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MARTINHO LUTERO

Obras Selecionadas

Volume 4
Debates e Controvérsias, 11
@Comissão Interluterana de Literatura, formada pela Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil e pela Igreja Evangélica Luterana do Brasil:

Caixa Portal 14
93001-970 São Leorioldo - RS
Tel. (051) 592-1763
em co-ediçáo com:

EDITORA SINODAL CONCÓRDIA EDITORA LTDA.


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93001-970 São Leopoldo - RS 90001-970 Porto Alegre - RS
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Corrussáo Inlerlutema de Literatura


Edsoii E. Streck Martinho Krebs
Gerliard Grasel Nilo L. Figur
João A. Miiller da Silva Ingo Wulfhorst

Com:ssão "Obras de Lutem"


Martin N. Dreher Nestor L. J . Beck
Joachim H. Fischer Martin C. \iTarth

Tradutores
Luis H. Dreher Luis M. Sandcr
Ilson Kayser Helberto Michel

Revis0re.s
Madalena Z. Altrnann Johannes F. Haseiiack

Editor-geral
Ilson Kayser
Apresentação ....................... ............. ....,,.,,,,,,,,.,,.....................,.,..........
Introdução Geral ....................... .
... ......... . ...........................................
Da Vontade Cativa - Tradução: Luís H. Dreher, Luis M. Sander e Ilson Kayser.

.. ... . ................. ..........


Da Santa Ceia de Cristo - Confissão - Tradução: Helberro Michel .................
1 Parte: Rebatendo Ulrico Zwimlio - ..........................................................
Rebatendo Ecolampádio . . . . . . . . . . . . . . . . 289
Rebatendo Schwenckfeld ........................................................... 316
Sobre a predicação idêntica................ . . .......................... 320
I1 Parte: Análise dos textos da instituicão em Mt, Mc, Lc e Paulo ................. 326
111 Parte: Confissão ..................................................................... 367
Lutero e os antinomistas - Tradugo: Ilson Kayser ...................................... 376
Seis séries de teses contra os antinomistas ................... .
..
............. . . . . . . 380
Primeiro debate contra os antiiiomistas ....................... . . . ....................... 394
Carta a Caspar Guttel ..............
.................................... 429
, .
Indices ..................................................... 439
Apresentação

Cada volume desta obra é um grande mutirão. Os membros da Comissão Obras


de Lutero, peritos em Lutero, têm a difícil tarefa de selecionar o conteúdo sob determi-
nado aspecto dentre um enorme acervo, de supervisionar as traduções, assessorar o edi-
tor-geral e introduzir a cada um dos textos escolhidos. Cabe a tradutores o desafio dc
verter os escritos escolhidos para o vernáculo a partir do latim e do alemão medieval.
O editor-geral confere as traduções ou traduz ele mesmo, dá redação final aos textos e
Ihes acrescenta as notas necessárias para facilitar a compreensão: Depois vem a equipe
..
esoecializada em editar textos DOI meio de modernos eauioamentos comoutadorizados.
A leitura de provas exige mais outras pessoas de qualificação específica. Hábeis gráfi-
cos imprimem os livros e Ihes àáo acabamento de categoria. E não é tudo. As Secreta-
rias de Comunicação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e da Igreja
Evangélica Luterana do Brasil se empenharam para conseguir o financiamento para o
oneroso projeto junto a doadores do exterior: Igreja Evangélico-Luterana na Bavier;~
(Alemanha), Sociedade Martinho Lutero da Ipreia Evangélico-Luterana da Baviera e
igreja ~ u t e r a n aSínodo Missouri (Estados ~ n i i o da
s ~ m i r i c a ) e, um tesoureiro admi-
nistra as verbas com muita competência e responsabilidade neste tempo de inflaçâo.
As co-editoras se encarregam da promoção e venda dos livros. Todo esse processo é co-
ordenado pela CIL - Comissão Interluterana de Literatura.
Um esforço ingente para pôr à disposição das pessoas de língua portuguesa tentos
que marcaram época, que mudaram estruturas sociais, políticas e religiosas, que delçi-
minaram o início de uma nova era, sem os quais o mundo não seria o que é hoje. Fs-
te é o desafio e por isso vale a pena todo o empenho.

São Leopoldo, junho de 1993 Pela Comissão Interluterana de Litçratiir;i

Gerhard Grasel
Presidente
Introdução Geral
Sobre a tarefa da teologia, Martinho Lutero disse, em 1532, na preleção sobre o
Salmo 51: "O conhecimento de Deus e do ser humano é a sabedoria divina e propria-
I
mente teológica. Tal conhecimento refere-se ao Deus que justifica e ao ser humano peca-
dor, de modo que o tema da teologia é, propriamente, o ser humano réu e perdido e
o Deus que justifica ou salva. nido o que se procura fora deste assunto ou tema é pu-
- íWA 40/II.. 327.. 11-3283) E no "Debate acerca do ho-
ro erro e futilidade na teoloaia." ~

mem" afirmou, em 1536, que os teólogos conseguem "compreender ou definir o que é


- . í...)
o lioinem teológico. , , voraue
. . temos a Bíblia" (v. 3 desta edicão. . . o.
. 198). Nas duas
afirmações, Lutero expressa com sua conhecida precisâo o que eram, para ele, o tema
e o fundamento da teologia.
Com o presente volume continuamos a apresentar Lutero como teólogo emdito.
Publicamos a segunda parte de escritos de teologia emdita de maior envergadura e de
textos de debates acadêmicos. Os escritos e textos, redigidos entre 1525 e 1539, são fru-
tos de três grandes controvérsias em que Lutero estava envolvido: a com o maior repre-
sentante do humanismo da época, Erasmo de Roterdã, a com o líder da Reforma evan-
gélica na Suíça de fala alemã, Ulrico Zwínglio, e seus seguidores, e a com um adepto
seu, João Agrícola, que achava necessário superar a concepção de Lutero a respeito
da iustificacão. Os assuntos tratados nestes escritos e textos são a condição da vontade

va; nâo é livre para se decidir pelo bem. Contra Zwínglio e seus seguidores, Lutero afir-
ma que na ceia de Cristo o/a participante recebe materialmente o Cristo inteiro, com
sua divindade e humanidade. Contra Agrícola, Lutero destaca que tanto a lei como o
evangelho são indispensáveis para a justificação do ser humano pecador. Nas três ques-
tões, a salvaçito do ser humano está em jogo. Estamos, pois, bem no centro da teologia
de Lutero. Engajado na e apaixonado pela causa da salvação, Lutero desenvolve deta-
lhadamente sua comvreensão do aair salvífico de Deus. em Jesus Cristo. velo ser huma-
no, abordando sua &~lusividade,~materialidadee dialética. A salvação é obra exclusi-
va de Deus. Materializa-se na ceia de Cristo. Acontece num vrocesso Que abrange - iuí-
.
zo e graça.
O projeto "Obras Selecionadas" continua sendo administrado pela Comissão Inter-
luterana de Literatura (CIL), constituída e mantida pela Igreja Evangélica Luterana do
Brasil (IELB) e pela Igreja Evangélica de Confissão Luteraua no Brasil (IECLB). Atual-
mente são membros da CIL: Edson E. Streck, Gerhard Grasel, Martinho Krebs, Nilo
L. Figur, Ingo Wullfhorst, João Artur Muller da Silva.
O presente volume foi preparado pela Comissão "Obras de Lutero" (COL), inte-
grada pelos professores Dr. Nestor Beck, Dr. Martin N. Dreher, Dr. Joachim H. Fis-
cher e Dr. Martim C. Warth, com a participação do editor-geral, pador Ilson Kayser.
A COL é responsável pela seleção dos escritos, pelas introduções e por pequena parte
das notas de rodapé. As traduções foram feitas por Luís Marcos Sander, Luís Henrique
Dreher, Helberto Micbel e Ilson Kayser.
. .
Os trabalhos oreoaratórios da editoracão. a mande maioria das notas. a revisão.
a redação final dos textos e a preparação dos.índice;couberam ao editor, P. 11son ~ a y s e r :
As . - biblicas citadas nos textos foram traduzidas na versão ofieind
oassaeens - de Lu-
tcro com apoio nas versões portuguesas de João Ferreira de Almeida, edição revista e
9
:itiializada (1969), da Sociedade Biblica do Brasil, e de Matos Soares, Ediqões Paulinas
- %o Paulo, 1977. Desta edição foram tomadas as abreviaturas dos livros bíblicos,

com tnçeGio dos apocrifos, para os quais utilizamos as abreviatiiras da Bíblia de Jerusa-
ICm, edição revista de 1985. Edições Paulinas. No caso das passagens hiblicas citadas
por Lutero, a referência está no corpo do testo. A indicação dos versiculos foi acrescen-
tada por nós, pois Lutero indica apenas o capitiilo. Quando Lutero não indica onde se
encontra a passagem citada, a referência vem entre colchetes. No caso em que Lutero
apenas faz uma alusão a determinada passagem da Bíblia, a referência encontra-se no
rodapé. Lutero tambein indica com certa frequência capítulos errados. Neste caso ofere-
cemos a indicação original e acrescentamos a iiidicação correta entre colchetes. Qiinnto
à numeração dos Salmos, optanios, neste voliuiie, pela nunieração da versão de João
Ferreira de Aliiieida.
Todos os textos foram traduzidos do texto da edi(;io de lVeimar, sigla WA, coni
iirilizaqão de outras versões a que tivenios acesso. A indicação exata da fo~itee anota-
da na primeira nota de rodapé de cada escrito. O prinieiro número indica sempre o vo-
lunie, a segundo a página, o terceiro a linha. (En.:WA 50,329,21ss. significa: Edição
de Weirnar, v. 50, p. 329, linhas Ilss.)
Esta edi@o continuará com a publicação dos volumes 5 e 6, contendo escritos so-
bre questões de ética cristã. A comissão "Obras de Lutero" e o editor-geral já estão tra-
balhando no preparo dos dois voliimes.

São Leopoldo, janeiro de 1993

Joacbim H. Fischer
Coordenador da Comissão
"Obras de Lutero"
Ilsoii Kayser
Editor-geral
Da Vontade Cativa1

Em princípios de setembro de 1524, Erasmo de Roterdã publicou sua "Diatribe so-


bre o livre arbítrio". Nela posicionou-se aberfamente contra uma a f ~ m a ç ã ocentral da
teologia de Lutero: sua antropologia. Com essa publicação, Lutero tinha contra si o
oosicionamento do mais resoeirado estudioso da éuoca. Lutero teve aue se oosicionar.

I Para ele estava claro que a questão era fundamentãl. Em muitos setitidos,
cussão entre Lutero e Erasmo não oassou de eoisódio. Não orovocou o debate das mas-
sas, mas colocou-o no centro da discussão da inteledualidãde. Essa discussão não foi
a dis-

concluída. Em seu centro está a concepção humanista e reformatóna do ser humano.


Os preparativos para a discussão vinham de longa data. Em 1516, Lutero já nota-
ra que Erasmo lia Paulo de maneira distinta da dele2. O moralismo humanista tinha
~oi\ibilirl;t.lcsr'tica, <Ia \cr hilinatio nn alta c,iiit;i. 1.11 po\tiirs t r d inioncilii$cl çoiii
A dou1rin.i *d jit~rific:i;iio. ll:~!ta. poreti~,~ ~ J I I K
a ~\ Ip IcI ~ Jtc~$r:ttidc Lon;urdincia eii.
tre Lutero e Erasmo. Aqui é necessário que se mencione a seriedade de ambos na inter-
pretação filológica da Bíblia e a critica aos abusos existentes na vida da Igreja. O pró-
prio Erasino acompanhou muito de perto o fen0111eno Lutero, como se pode ver em
sua vasta correspondência, e via-o como grande aliado na ~iecessáriareforma da Igreja.
Julgou válidas as críticas de Liitero, mesmo que imprópria a forma com a qual eram
apresentadas. No entanto, não chegou a ser um adepto de Lutero e, desde 1521, acen-
tuou de forma crescente sua neutralidade e distância para não ser envolvido.
Lutero, no entanto, buscou evidenciar as diferenças entre ambos, afirmando quc
Erasmo entendia menos da predestinação do ser humano que os teólogos escolásticos.
A tese luterana de que tudo o que o ser humano faz por si mesmo é pecado, renovada
em seu ataque a bula de ameaça de excomunhão no escrito "Assertio omri'um articul«-
rum"', foi considerada errônea por Erasmo. Em 1521, o humanista Melanchthon4, cola-
borador de Lutero e, como ele, professor em Wittenherg, ao publicar seus "Loci coni-
munes" distanciou-se claramente da antropologia de Erasmo, afirmando, alem disso,

i ik .Servo Arbitrio Mar. Lutheri ad Erasrnum Rolerodamum, 1525, WA 18,MY>.787.Tiaduçzio:


I.iih Marcos Sander. Luis H e h u c Dreher e Uson Kavser.
? ('I'. Mnrtin Urecht, Marlin Luther. Vol.2: Ordnung und Abgrenmng der Refor~~~ation 1521-152.1.
SiiItIgart, Calwer Verlag, 1986, p.210.
.~
1 WA 7. 04-151.
~ ~-~
4 I'jlille Md~icl~tlion, 1497-1560, distinguiu-se como humanista e editor de autora clissicus. Pru
(eshr>i- na Universidade de Wittenberg e autor de uma gramitica grega, tarnau-sc amigo <li I .iltr
ri) c ;i<lil>to da wusa rcfarrnatária. Autor da Confissão de Augsburgo c da Apologia da Coiilih~
r:<> <Ir.Aiigshiirya, (I.ivro de Conc6rdia. São Leopoldo e Porta Alegre, Siiiodal/Ci>iiçi>rdi;i. I'JHO,
1pp.21-3M).piihlicuii taiiibCiii, eili 1521, o\ Lwi ci>iiimuncr.a primcira leologiii rirlçiii;iliç;i Iillnii
I!:!. t 'I'. 'K ZíJ,70i~,70S.
Da Vontade Cativa
que Odgenes, Ambrósio e Jerônimo5 estariam inúmeras vezes em desacordo com a dou-
trina apostólica. Para Melanchthon, era iiecessário distinguir entre a doutrina evangéli-
ca e as boas normas ensinadas por Erasmo. Além disso, acusava-se, em Wittenberg, o
lato de Erasmo haver inserido sua doutrina do livre-arbítrio em suas paráfrases a Roma-
rios, publicadas em 1517, especialmente no capitulo 9 da carta de paulo6. Sua serieda-
de como exegeta estava em jogo. Em 1532, Erasmo alterana essa passagem de suas paráfrases.
Já em 1523, Erasmo acusa Lutero de ser adepto de Wyclií7 coin sita antropologia.
Alem disso, apresenta Origenes e Jerôiiimo como autoridades para a hermenSiilica bi-
blica. A partir desse fato, pode-se compreender as duras críticas que Lutero fará a Ori-
genes e a Jerônimo no presente escrito. Apesar dessas criticas, Erasmo continua a apri-
ciar Lutero, considerando, inclusive, que a condenação deste significaria o encobri-
mento do Evangelho.
Lutero l o u k a ein Erasmo o fato de haver recuperado as iínguas antigas e de criti-
car a escolástica. Via. ~oréin.aue o destino de Erasmo era semelliante a o de Moises.
ntorreria fora da Terra~~rotiietida. pois sua hermenêutica biblica iião conduzia à ~ e r r á
prometida8.
No verão de 1523, contudo, Ulrico von ~ u t t e n outro
~ , liumanista alemão, força-
va Erasmo a se posicionar. Acusava-o de fugir a posicionamentos claros em relação a
Reforma e de estar-se dela distanciando. Na resposta a von Hutten, Erasmo dizIo que
sua posição em relação a Reforma é como uma viagem entre Cila e CariMis". Encou-
tramos também essa imagem no escrito de Lutero. Ao contrário de Lutero, ele, E r a -
mo, procuraria manter a mansidão evangélica, evitando a obstinação em fazer "asserti-
vas pervicazes", mais uma formulação que \'oltará no escrito de 1525. Erasmo nega-se
a aceitar a acusação de ser um traidor. No entanto, seu amor à unidade da Igreja seria
a causa para negar-se a apresentar sempre a verdade critica. Nesse aspecto teria apoio

5 ONgrnrs. Ambrósio e Ierônimo, cf. notas 262 e 267 quanto a Origeiies e Jerônimo. - Ambr6-
sio: (339-397), foi governador do Norte da ItáJia antes de se tornar cristão. h i d a dw.mte seu
ticriodo de catecumc&?.?ia(isso é, de sua preparac50 para o Batismo), foi eleito bispo de Milão
(174). Considerado um dor yrandes teólogos da Igreja de faia latina, destacand*se na luta con-
tra os ariaiios (cf. acima n. 55).
6 Cf. Martin Bretht, op. 61. p. 212s.
7 Wyclif - cf. abaixo n. 117.
8 Cf. carta de Lutero a Ewlampádio, de 20 da abril de 1523. WA Br 3: 96,17-97, 29.
9 Ulrjco von Huttzn. 1488-1523, natural de Steckelberg. Em 1505 fugiu da escola conventual de
Fulda, pemanecnida errante até 1511, vindo a ser um dos principais poetas latinos alemãa.
Sob influência da hum.uiismo nacionalista, passou a fazer publica~õescontra o papado. Depois
dc reu encontro com Eranmo, 1511/15, passou a ser ardoroso defensor de uma reforma mora li^
mnte da Igreja. Juntamente com Crotus Rubeanur planejou e esneveu urna Urie das Episfolae
V!roruin Ohsciirorum. Após o Debate de Leipzig (cf. Obras Slecionadas, v. I, pp. 257ss) pas-
mii a defender Lutero, sem se tomar luterano, pois via em Lutero a maior possibilidade de
iiiiia libertação de Ronia. Em virtude de seus posicionanisntos foi perseguido pela Cúria. Sob
:i ikilliiência de Lutero passou a escrever em lingua aleniã, tornando-se, aa lado do rcformador,
iiiii dos principais escritorrr da língua alemã no sk. XVI. A "Exposlulatin" foi escrita pouco
;iiitc\ dc siia morte, em Zurique, onde encontrara Iirotwão dc Zwliiglio.
IIi ",Y,\riorig;:i;i:iiivemiir. ;irprgincs Huffeni" Cf. Marliii Ilrcclit. op. cit.. 11, 214.
I I (';iril>ilis. i! iiiii abismo rxirleiitc ii;is proriiiiirl;i<l~s <!:i SirI1i;i. <Icliiiiilc:#<i i\ci,IIii, i.lliilit;i<li> ('iI;i.
I ! ~ B I;,sIrcilc>'lc M~?sin;t l::b?kt ~n:#t!frtt~:tn
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Da Vontade Cativa
em Cristo, nos apbstolos e nos pais da Igreja. Aqui, no entanto, encontram-se divergên-
cias fundamentais em relação a Lutero. Erasmo busca compromissos, Lutero nega-se a eles.
Em carta a Konrad pellikantL, datada de l 0 de outubro de 1523, Lutero vai di-
zer que melhor teria sido Hutten não ter escrito, nem Erasmo ter respondido. Manifes-
ta pena em rela~ãoa Erasmo. A carta foi mostrada a Erasmo, que nela encoiitra mais
uma vez o desafio de se posicioiiar com clareza.
O posicionamento veio com uma clareza ern nada esperada por Lutero. Em feve-
reiro de 1524. Erasmo declara ao Cardeal campeggioI3 estar preparando um escrito con-
tra Lutero, acatando solicitação de Heiirique ~ 1 1 1 ' ~Este
. escrito tratava do livre-arbi-
trio. Um primeiro esboço do escrito foi enviado ao rei inglês. Sem saber desses prepara-
I tivos, Lutero aproveitou a ida de Joaquim Cameráriot5 a Basiléia, em abril de 1524, e
enviou nova carta a Erasmo. Nela, Lutero reconhece os méritos do humaiiista, mostra
compreensáo ante o fato de não merecer seu apoio, mas adverte-o a que não apbte aber-
tamente seus opositores. No fundo, a carta de Lutero é oferta de neutralidade. A reda-
ção falta, no entanto, a necessária diploniacia. Mesmo sendo Erasmo o mais famoso
sábio europeu da época, Lutero mostra-lhe suas limitações. Erasmo, por seu turno, não
pode calar. Respoiide a Lutero em 8 de maio, afirmando que também a ele importa o
Evangelho. Duvida, porém, do fato de Lutero estar trilhando o caminho correto, em
virtude da revolução iminente (Guerra dos Camponeses!) e da desintegração das cièn-
cias e dos costunies. Nada diz a respeito de já ter pronto o libelo contra Lutero, mas
argumenta poder vir a debater com ele por causa da reta doutrina.
Ao ser publicado, o escrito de Erasnio levou por titulo "De libero arbitrio DIA-
TPIBH sive ~o!./atio"~~. Seu conteúdo parte de uma das mais coiiipliçadas temáticas bí-
blica~,voltando-se contra a afirmação feita por Lutero em sua "Assertio o m ~ i u narti-
~ulorum"'~.Trata-se de discussão aberta de argumentos, entre os quais também foram
colocadas as argitmentações de Melanclithon e de Karl~tadt'~. O estilo i elegante. Na

12Konrad Peltikan. 1478-1556, nascido em Ruffach/Alsicia, franciscano, dedicoil-se especialmeri-


te ao estudo da língua hebraica, tendo sido o primeira cristão a publicar uma gramática desw
língua. Atuou pnncipahente em Ba~iléiae Zurique, onde veio a se tornar, em definitivo, adeyi~
toda Reforma. Teve papel preponrlerantena traducão daBhlia dezurique. Cf. WA Br 3; 158-162.
13 Lourenço CIiiip~60.14741539, nascido em Bolonha e falecido em Roma, foi diploniata d;~
Círia romana.
14 Heniique VIII. 1508-1547. rei inglês da diiwstia dos Tudoi. Inter6ssado em quetõer teológica\,
arte e miisica, provocou o surgimento da Igreja da Iiiglatena, quando, não conseguindo ter her~
dciro hoi~icmde sua esposa Cattmina de Aragão, solicitou de Roma a anula~ãodeite matrirno-
!I iiio. A negativa de Rama levou ao rompimento com a Igreja Católica Romana. Antes deste iulii-
pimcnto, em vinude de sua fidelidade ao papa e aos ataques feitor a Lutero, recebera o titiil<i
<Ic "defensor da fé". A informagáo a respeita do contato de Eramio com Campeggio e ç<rni
iIci8riiiuc VI11 foi tomada de Martin Brecht, op. sil., p. 215.
I5 .Ir>:i<lirii~iC;uiir.l;ino. 1500-1574. nascido em Bamberg, fdólogo e aluno de Melanchflion. I'oi I p i i ' ~
Icssur universitjrio crn Tiibingcn e Leipzig. Participou de diversos çolóquias religiosas. Plalr>iiw
I>i<i!&i;ili;i d ç Melanchthon. Cf. WA Br 3; 268-271.
16 (:I'. Iir;iviiiu de Rotcrdj. Au,$.zewihlte Schriften. VoL. 4. Dairnstadt. Wi\sriiscliafiliclir
Iiiicligcsells~~liaft. 1969, pp. 1-195.
l>s Vontade Cativa

iiitrodução alega que o debate é necessário, poisZutero não só discute com os pais da
Igrcja, mas também com todas as universidades, concílios e decretos papais. Aqui já
\c evidencia que ao lado do debate, Erasmo coloca a questão do compromisso em rela-
ção a tradição eclesiástica.
Erasmo entra, assim, no debate de auestões doemáticas. frente as anais era cético.
quando não estavam fundamentadas pela autoridade da ~ í b l i aou da lireja. Nesse ca:
so, submetia-se a elas sem qualquer discussão. Teme qualquer fanatismo que possa sur-
gir em decorrência de discussões. Como já os pais da Igreja divergem na questão do li-
vre-arbitrio, faz a constatação bastante vaga de que "há algum poder do livre-arbítrio".
Afirma não ter sido convencido por ~ u t é r o mas
, declara-se disposto a uma pesquisa
aberta da questâo, mesmo que a Bíblia tenha passagens obscuras, as quais não se deva
perscrutar, segundo a vontade de Deus. Erasmo quer que a pessoa piedosa busque o
bem, se afaste do pecado e seja misericordiosa; está disposto a declarar oriundo da von-
tade de Deus todo o bem feito pela pessoa. Com esta postura, assim pensa, poder-se-
iam deixar de lado questões controversas como a da presciência divina em relação a to-
do ato humano ou se o ser humano pode fazer algo para sua salvação ou se depende
totalmente da graça de Deus. Essas questões o ser humano não deve querer saber. Evi-
dentes são, porém, as prescrições divinas para uma vida correta. Erasmo quer descom-
plicar a fé cristã.
Na segunda parte da introdução, dedica-se a questões de método. Fundamental é
u questão: Qual o critério da verdade? Lutero reconhece apenas a autoridade da Biblia.
Erasmo aponta, além dela. para a autoridade da tradição interuretativa da Iereia.- . . en-
contrada em santos, mártirc; e concílios. Estes defenderam a liberdade da vontade hu-
mana. Os santos uais e os concilias aeiram inspirados uelo Espírito Santo. Nessa condi-
ção são intérpretei das passagens obscuras da ~scritura.~~ui,-biblicismo e tradicionalis-
mo se confrontam.
Erasmo define livre-arbítrio como "a potência, através da qual o ser humano se
pode inclinar ou afastar ao/do que leva a salvação eterna". A formulação é genérica e
iiZo distingue entre a liberdade natural e a liberdade concedida pela graça divina. Mes-
mo que venha, depois, a acentuar sempre o suporte dado pela graça divina, sua posição
não é conforme. Lutero vai acusá-lo de instabilidade.
Na sequência do escrito, Erasmo arrola passagens do Antigo e do Novo Testamen-
10 que, em sua opinião, falam a favor do livre-arbítrio. Mesmo após a queda, permane-
ccu iio ser humano a voutade de fazer o bem, a qual, no entanto, não pode levar à sal-
vação sem a graça. Caso não tivesse livre-arbítrio, o ser humano não poderia ser respon-
sahilizado pelo pecado. Erasmo discute com Agostinho e Lutero. Agostinho afirma que
« scr hiimano para nada é capaz,
. . a não ser oara
. .
pecar. Lutero afirma aue o livre-arbí-
trio é incra fórmula. Importantes são para Erasmo aquelas passagens biblicas que falam
ila possibilidade de escolha, de conversão, de recompensa, de juizo. Erasmo sabe, por

ci~iiiliniilieiiade lutas do reformadar. Em 1519, ambos participaram do Debate de Leiprig. No


ciii:iiii<i,erii 1521 surgem as primeiras diferenças entre ambos, quando Karbtadt procurou c o n ~
r.lcii/;ii n Kcforma, abolindo a missa e declarando eliminado o celibato saccrdoial. Difcrçriças
r i a ci~rnl>icçiisZ« da Eucaristia c do Batismo aprofundainm casas difereiiçasniii<la tniiis. Kailstadt
~riiiiociciil;i su;i citiicdrn c torrioii-se piihtor aii Orlariiiiride. liiii sctciiihro ilc 1124. I .iilcrri cuiise~
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I;ilvi.i.ii i i < i N;ii;iI (li, 15.11, v i i i i i i ; i < l < ,l > i d ; i ~".\ic.
Da Vontade Cativa
outro lado. aue há Dassaeens aue.. . anarentemente.
. falam contra o livre-arbítrio. Entre

I elas está aquela que rala d;> endurecimento do coração de Faraó (Êxodo 9.12 e 16). Eras-
mo afirma aue o fato de Deus haver endurecido o coracão de Faraó é culoa do .
Faraó: ~ e s &e em outras passagens, Erasmo vê a confirmação de sua tese de que há
.
oróorio

uma correspondência entre a vontade humana e a graça divina. Apoiando-se em John


~ i s h e r nega
l ~ que, sem a graça, o ser humano seja totalmente pecador. Ao concluir o
escrito, Erasmo mostra que quer manter a graça como impulso inicial necessário para
a salvação, mas deixa o livre-arbítrio cooperar com a graça. Caso assim não fosse,
Deus seria responsável também pelo mal. Nega que os mandamentos tenham a única
finalidade de evidenciar o fracasso ético do ser humano. Não quer que os esforços do
piedoso sejam sem sentido, senão a dignidade da pessoa e sua responsabilidade estariam
em jogo.
O escrito de Erasmo é uma busca por conciliação. Pede que Lutero restrinja sua
doutrina da graça e seu conceito da pecaminosidade do ser humano. Pouco depois da
publicação da Diatribe, Erasmo iniciaria toda uma correspondência, na qual se pode
notar que ele próprio náo estava tão seguro acerca do que escrevera. O escrito preten-
dia mais defender sua imagem, acusada de ser luteranizante, do que trazer uma opinião
teológica final.
As primeiras reações de Lutero apareceram no prefácio a traduçáo do ~ c l e s i a s t e s ~ ~ ,
na sua opinião um escrito contra o livre-arbítrio. Em pregação de 9 de outubro de
1524~',descreve a impotência do ser humano aprisionado pelo diabo: "Tu és cavalo, o
diabo te cavalga." Só Cristo pode libertar do poder do diabo. Em carta a Espalatino,
de 1" de novembro de 15Q2, confessa que, enojado, não conseguira ler mais do que
duas páginas do limo de Erasmo. Seria difícil responder a tão indouto livro de douto
autor. Lutero sabe, porém, que não poderá esquivar-se de resposta. Amigos instam-no
para tanto.
Mas a resposta tem que esperar, mesmo que a preocupação fique presente, como
se evidencia em pregação no Natal de 1524, na interpretação de Deuteronômio de prin-
cípios de 1525 e em outras oportunidades. A Guerra dos Camponeses e o própfio casa-
mento de Lutero com Catarina de Bora retardaram a redação do manuscrito. E a pedi-
do de Catarina2' que vai, finalmente, elaborar a resposta a Erasmo. O texto é puhlica-
do em 31 de dezembro de 1525.
O titulo do escrito "De servo arbítrio", expressão com a qual buica expressar 0
extremo oposto de Erasmo, é tomado de Agostinho. Seu esquema segue o esquema pro-
posto por Erasmo. No seu todo, o escrito é documento que expressa com toda a pro-
l

19 Johri Fisher. 1459.1535, nascido em Beverley c falecida em Londres, foi o líder do humaniscni,
católico-romano inglês. Estudou em Ckmbridge, universidade da qual veio a ser clianccla, e~ii
1504, ano em que também se tornou bispo de Rachester. Levou Erasmo para Cambiidgc. l i i t i
1523 publicou refutação da A:sertio de Lutero e, m 1525, cscreveu uma "defesa do ,sncii, ,s;!~~i.r
ddcio", também contra Lutero. Talvez tenlia participado, em 1522, da redacão da "As,soi;o Siyi
Ieiii Sacrane~~toi-um", escrito de Hcnrique V111 contra Lutcro. Ao scrcoi queiinados i>&csciiii,r
dc Lutcro em I.andrçs, Jahn Fislier proferiu o disciii-so inlrodutbrio. Ao uoliar-sc o>cili;i< i ili
vht.cio dç Hcnriqiie VI11 dc Cul~iiinadc Aragão, foi decapitado por ordem de Ileriiiiliic.
20 WA 1>1110/11: 1M,24-105.
L I WA 15: 113-716.
?% WA 111 3: 3fiX.20-31
? I WA l i 4: N i ((X+).
[>a Vontade Cativa
-

Sundidade o contraste existente entre Reforma e Humanismo. Como Erasmo preten-


deu produzir escrito teológico, Lutero se lança com todo o vigor a discussão. Mostra-
se indignado pelo fato de Erasmo tratar de questões da fé, nas quais tudo depende da
certeza, de assertivas precisas, com ambiguidade e ceticismo, com a convicção de que
em questões de fé haja um meio-termo. A fé não pode ser submetida a conveniências,
senão estará sendo equiparada a uma ideologia. A Escritura não pode ser apreciada a
partir de um ponto de vista isolado dela; quem se submeter obediente a ela, reconhce-
rá aue ela tem seu oróorio brilho e luz. De nenhum modo o ser humano Dode arrorar-
se direito de decikr respeito da hora adequada para a confissão da f i e para a pre-
-gação.
. Essa decisão Deus reservou oara si .m ó.~ r i o sua
; Dalavra não admite ser amarra-
da. Por sobre o livre-arbítrio humano, cuja capacidade em questões externas não é con-
testada por Lutero, encontra-se a vontade soberana de Deus, única base e norma dele
próprio. Por isso, o ser humano não é livre, mas campo de batalha, área de disputa en-
tre Deus e diabo; só quando a vontade está cativa por e em Deus há certeza da salva-
@o. A condenação final de Erasmo, da parte de Lutero, é feita com as palamas ini-
ciais do livro. As formulaç6es são cortantes, têm tom de juizo final e caracterizam a
diversidade dos pressupostos de ambos. Do lado de Erasmo há suma inteligência que,
no entanto, foge de toda a decisão. Do lado de Lutero há a verdade insofismável do
Deus santo e maravilhoso.. oelo
. aual
. a razão e a vontade se deixam cativar em obediên-
cia e humildade.
Erasmo buscou resoonder ao ataaue fulminante de Lutero2, mas não obteve mais
resposta. Ao contrário, as colocações de Lutero em relação a Erasmo foram cada vez
mais contundentes. Erasmo nada mais era aue casca sem noz, saDo coaxante, enguia -
que não se pode pegar e que utiliza seus conhecimentos para o mal. Nada sabe acerca
do oerdão dos necados e é um vagão crente no destino, zomba de Cristo, de quem é o
maior adversário. É Judas, c u b ;ida que desconhece a tentação encontra morte sem
penitência25.
O texto de Lutero foi impresso por João Luft, em Wittenberg. A impressão foi ini-
ciada enquanto Lutero ainda escrevia o texto. O impressum reza "mensi Decembri
1525". Ao mesmo tempo Justo .lonasz6prepararia uma tradução alemã, igualmente im-
picssa por Luft. Esta viria a público após 4 de janeiro de 1526.

Martin N. Dreher

24 A resposta de Erasmo levou por titulo "Hweraspistes". Cf. Erasmo de Roterds. AirsgewaNte
Schiifien. Vol. 4. Darmsladt, WissenschaftlicheBuchgesellschaft, 1969, pp. 197-675.
25 ('i. WA Tr 1, Nr 439. WA Tr 1, Nr 131. WA Tr 2, Nr 2420. WA Tr 1, Nr 448. WA Tr 1, Nr 466.
WA Tc I, Nr 811. WA Tr 1, Nr 837. WA Tr 1, Nr 797. WA Tr 4, Nr 4028.
26 . i i ~ . ~Jonas.
to 1493-1555. Nascido em Nordhausen, estudou em Eifurt e em Wittenbcrg. Teólogo
e Iiumaiiista foi, inicialmente, ardoroso adepto de Erasmo. Desde 1520 influenciado por Lutero,
~>:irs«ua dedicar-se à Teologia. Participou de todas as dietas. Nos debates teolágios procurou
ihiieroicdiur entre Lutero e Bucer, entre Melanchthon e Agrícola. Seus estudos jurídicos foram
iiiiporlatrtcs para a formula@o de diversas constituições eclesiásticas. Alem de providenciar tra-
<Iiicocsde diversas obras de Lutero e Melanchthon, foi o primeiro dos reiòrrnadorcs a propug-
ii;ii- ~pcloriiairim6nia dos saccrdutes. Eslevc juiilo ao leita dç iiioi-le <Ic l.i!lei, c proferiu a aloçii-
y:ii> liirieliic Ç I I ~liislchc~i.t i i i H,ille viio a sct. si~painlc~irleiile eçlcsi.iilic<~,iiiiir liii &!li exlitils,,
Aiiic>riIkl i i i i < i \ . .liifi:iaCiiiii iI,i* ~ > ; i i \ < I ; iiriI<i<li>xi:i
ritici>ti~ci~iii.i~ci;i<I;i<;iieir;iileIlst~i:ilr;il<lc. hi1a;iii;i.
Da Vontade Cativa
[I I""
) Knlrrdi, hlartinho I .ittero Idwc+al gr4%e piv.
. uvenerivrl Senhor E r ~ s n ade
O iaia>.i< rcm0ndr.r t;trdi;uiieiire a ida U13rril1i3 rcmeird do livre-iirbiiiio.
venerável Erasmo, aconteceu contra a expectativa de todos e contra o costu-
me, pois parece que até hoje não só aproveitei, de bom grado, tais oportunida-
des para escrever, mas. além disso, também as procurei. Talvez haja quem vá
se admirar dessa nova e insólita paciência - ou medo - de Lutero, a quem
nem mesmo tantas palavras e escritos jactanciosos dos adversários puderam
provocar, que congratulavam Erasmo por sua vitória e entoavam um cântico
de triunfo: Encontrou finalmente aquele macabeuz7 e obstinadíssimo assertor,
um antagonista a altura, contra o qual não ousa abrir a boca? Contudo, não
só não acuso essas pessoas, mas eu mesnio te concedo a palma, a qual até ago-
ra a ninguém concedi, não apenas porque me superas de longe em forças dc
eloquência e engenho - o que todos nós te concedemos merecidamente, quan-
to mais eu, um bárbaro que sempre vivi na barbáriS8 -, mas porque retives-
te meu espírito e ímpeto e lhe tiraste o vigor antes da luta, e isto por duas
razões: em primeiro lugar, pela habilidade, isso é, por tratares essa causa, coiii
a qual te opões a mim, com admirável e perpétua modéstia, para que eu não
possa me inflamar contra ti; em segundo lugar, porque, numa questão de ta-
iiianha magnitude, por sorte, ou por acaso, ou por fatalidade nada dizes que
não tenha sido dito anteriormente; ou melhor: dizes até menos e atribuis ao li-
vre-arbítrio mais do que até hoje disseram e lhe atribuíram os sofistas (a estc
respeito falarei mais amplamente abaixo), de modo que até [me] pareceu supér-
fluo responder a esses teus argumentos que foram tantas vezes refutados ante-
riormente também por mimz9, mas que foram conculcados e inteiramente es-
magados pelo invencível livro de Filipe Melanchthon sobre os Loci theologici3".
Em minha opinião, ele não só é digno de imortalidade, mas também [de scr
considerado] cânone eclesiástico. Comparado a ele, teu livro se me tornou tão
sórdido e sem valor, que me compadeci muito de ti pelo fato de poluíres tua
bela e engenhosa dicção com semelhante sordidez e ine indignei com a matcria
iiidigníssima que é veiculada com tão preciosos argumentos de eloquência, a>-
1110 se rebotalho e esterco fossem transportados em recipientes de ouro e pra-
i:~.'Também tu pareces ter percebido isso, pois estiveste tão pouco disposto pa-
i . ; ~ itri-ostar a tarefa de escrever sobre o assunto, certamente porque tua consci-
Ciici;i tc advertiu que, por maiores que fossem as forças da eloquência com qiic

?li:, A \~ihdivi%ioem niimcroi romanas foi introduzida pelo editor.


i1 1'1. 2 Mel, 10.1.
H! I i i I r i < ~&rcoiisideru itiii hárbaro eni compara@o a Erasma, homem versado nas lirigii;ir cl;i*,i
i.tir c de iniiil;i elcqiiêiicia.
!I' l'iv nniipl<i. c i o 1)eh:ilç de tieidelberg, leses 13-15 (cf. nossa d i c a : Obrar Sclcci<iriud;is. vol.
1. I'. l h + . .csl>cri;iliiiciiic li. 4 6 s ~ ) .
li1 I twi I ' l t i ~ i b , ~ iiiii ~ . i/ . < c ;<ii,ziriiiiiics. de 151<), ubr;i erii qiri Mçlaiiclitli~~ii
evidciici;~.;i ~ p i i i i i i <li!
Ic~ll<ui;i
I>.?sic;i~riiliçiiIc<il<iyi;tc%oilJsli~iç;i
I ~ t l \ i i i I i i ; i ~ Ii<~i i i t i i i i i < i \ . :i\ilil'cieii~s 1iililicuiI;i I < v I i i i i t i ; i
atacaste a questão, não seria possível me enganar, de modo que, uma vez afas-
tado o artificial enfeite das palavras, eu reconheceria a própria borra, pois, ain-
da que eu seja imperito no falar, pela graça de Deus não sou imperito no co-
nhecimento das coisas3'. Assim, pois, ouso, com Paulo, arrogar a mim o co-
nhecimento e negá-lo a ti com confiança, embora arrogue eloqüência e enge-
nho a ti e os negue a mim, o que faço de bom grado e por obrigação. Por con-
seguinte, pensei assim: se existem pessoas que não observaram com mais pro-
fundidade nem sustentam com mais firmeza nossa [doutrina], munida de tan-
tas abonações da Escritura, que se deixam impressionar por esses argumentos
de Erasmo, insignificantes e nulos, posto que extremamente enfeitados, não
são dignas de que eu as auxilie com minha resposta, pois para tais pessoas na-
da pode ser dito ou escrito que seja suficiente, mesmo que se repetisse111 mil
vezes muitos milhares de livros. Pois seria um trabalho semelhante a arar a
praia e jogar sementes na areia ou encher de água um tonel furado. Pois já
servimos mais do que suficientemente as pessoas que hauriram o Espuito co-
mo mestre em nossos opúsculos, e elas desprezarão tuas [idéias] com Facilida-
de. Quanto aquelas, porém, que lêem sem o Espírito, não é de admirar que
sejam agitadas pelo vento como um caniço. A elas nem Deus poderia dizer o
suficiente, ainda que todas as criaturas se transformassem em linguas. Daí que
quase decidi deixar de lado os que se ofenderam com teu livro, juntamente
com aquelas que se gloriam e te adjudicam triunfo. Assim, pois, o que deteve
meu ímpeto de responder não foi a multidão de minhas ocupações, nem a difi-
culdade do assunto, nem a magnitude de tua eloqüência, nem o temor de tua
pessoa, e, sim, o mero tédio, indignação e desprezo, ou, falando francamente,
meu juizo acerca de tua Diatribe, para não falar entrementes que, conforme
tua permanente maneira de ser, cuidas com pertinácia para ser escorregadio e
ambíguo em toda parte, e, mais cauteloso que Ulisses, pareces navegar entre
Cila e C a r í b d i ~ ~enquanto
~: nada queres asserir, mas queres, por outro lado,
parecer alguém que faz asserções, a que, pergunto, se pode comparar ou cote-
jar tal gênero de pessoas, a menos que se seja hábil a ponto de agarrar Pro-
te@? Com a ajuda de Cristo, mostrarei depois o que posso [fazer] nessa ques-
tão e em que isso te será proveitoso.
Portanto, o fato de eu te responder agora de modo algum é sem razão
de ser: fiéis irmãos em Cristo [me] pressionam, fazendo-me ver a expectativa
de todos, pois a autoridade de Erasmo não deve ser menosprezada e a verda-
de da doutrina cristã periclita nos corações de muitos. Por fim, na verdade,
também ocorreu a mim que meu silêncio não foi inteiramente justo e que a
prudência, ou melhor, a malícia de minha carne brincou comigo, de modo

31 Cf. 2 Co 11.6.
32 Vide acima n. 11.
33 Proteu, deus marinho, ao qual a fábula atribiii a faciild;iilc d ç ,io<lci ~ ~ t t ~ lIICi cI
r I>II I:Ihd-
i,ISCLI
prazer. Aqui é usado na acep@a dc iim I i o i ~ i c i iaatiilii.
i vri\;liil r i,hi:iiii>.
Da Vontade Cativa

que me lembrei suficientemente de meu ofício, pelo qual sou devedor de sá-
bios e in~ipimtes'~,principalmente tendo em vista que sou convocado a isso
pelas súplicas de tantos irmãos. Na verdade, nossa causa é de tal espécie que
não se contenta com um mestre externo - mas, além daquele que planta e re-
ga exteri~rmente'~,deseja também o Espírito de Deus, a fim de que ele dê o
crescimento e, como vivo, ensine coisas vivas interiormente (pensamento este
que se me impôs). Ainda assim, visto que esse Espírito é livre e não sopra 011-
de nós queremos, e, sim, onde ele quer, era preciso observar aquela regra dc
Paulo: "Insta, quer seja oportuno, quer não" [2 Tm 4.21, "pois não sabemos
a que hora o Senhor virá" [Mt 24.421. Pois bem, pode haver pessoas que aili-
da não tenham percebido o Espírito como mestre em meus escritos e tenha111
sido abatidos por essa Diatribe; talvez a hora delas ainda não tenha chegado.
E quem sabe, caro Erasmo, se Deus não vai querer visitar tanibém a ti por
meio de mim, seu mísero e frágil vaso, para que, numa hora feliz @elo quc
rogo de coração ao Pai das misericórdias por meio de Cristo, nosso Senhor),
eu venha a ti através deste livrinho e ganhe um caríssimo irmão. Pois embora
penses e escrevas inadequadamente sobre o livre-arbítrio, tenho contigo uma

I
1
!I
considerável dívida de gratidão, pois tornaste minha opinião muito mais rir-
me para mim quando vi que a cansa do livre-arbítrio foi tratada com o máxi-
mo esforço por uma inteligência tão importante e tão grande e que nada se re-
alizou, de modo que ela36 está em situação pior do que antes. Isto é uma pro-
va evidente de que o livre-arbítrio não passa de uma mentira, porque [ocorre
com ele o mesmo que no] exemplo daquela mulher no evangelho: quanto mais
Ç tratada pelos médicos, pior fica3'. Por conseguinte, te retribuirei abundantc-
mente minha dívida de gratidão se adquirires maior certeza por meu intermé-
dio, assim como eu adquiri maior firmeza por ti. Todavia, ambas as coisas são
i dom do Espirito, não obra de nosso ofício. Por essa razão deve-se orar s
I Deus para que ele me abra a boca, a ti e a todos, porém, o coração, e que clc
riicsrno seja o mestre em nosso meio, que em nós fala e ouve. Permite, preza-
do Erasmo, que eu consiga de ti que, assim como eu tolero tua ignorância ncs-
sns questôes, da mesma forma tu, por tua vez, toleres minha incapacidade dc
f;il;rr. Deus não dá todas as coisas a uma única pessoa, nem todos nós pode-
1110studo; antes, como diz Paulo: "Os dons são diversos, mas o Espírito ii o
iiicsiiio" [I Co 12.41. Resta, pois, que os dons se prestem serviços mútuos I.
qiic LIIII carrcgue, com seu dom, o Ônus e a penúria do outro; assim cumprii-c~
iiius :I Ici de

i
--

i 1 I . Iliii. 1.14.
l i ( ' I . I I ' , , 11.
Ir, S i , . ":L ~ , , , h i , ~ ~ .
I I < ' I M < 7.?.1>.
ll! 'I <;I (>.L.
Da Vontade Cativa

11 I
Inicialmente quero examinas algumas partes principais de teu prefácio
com as quais oneras bastante nossa causa e enfeitas a tua. Em primeiro lugar,
repreendes também em outros escritos minha pervicácia em fazer asserções e
dizes, neste livro, que não te deleitas com asserções, a tal ponto que facilmente
seguirias a opinião dos céticos onde quer que fosse permitido [fazê-lo] pela in-
violável autoridade das Escrituras Divinas e pelos decretos da Igreja, aos quais,
de bom grado, submetes tua opinião em toda parte, quer compreendas o que
prescrevem, quer não o compreendas. Esse modo de proceder te agrada39. En-
tendo, como é justo, que isso tenha sido dito por ti com ânimo benévolo e
porque és amante da paz. No entanto, se alguém outro o dissesse, talvez eu
me lançaria contra ele, como é meu costume. Não obstante, não devo tolerar
que erres nessa opinião, por maior que seja tua boa vontade. Pois não é pró-
prio de uni coração cristão iião deleitar-se com asserções; ao contrário, deve
deleitar-se com asserções, o11 não será cristão. Chamo de asserção, porém (pa-
ra que não brinquemos com palavras), apegar-se com constância, afirmar, con-
fessar, defender e perseverar com firmeza, e creio que o vocábulo não signifi-
ca outra coisa em latim e no uso de nossa época. Depois falo da asserção das
coisas que nos foram transmitidas por Deus nas Sagradas Letras. De outro
modo não teríamos necessidade nem de Erasmo nem de qualquer outro mestre
para nos ensinar que, em qiiestões dúbias ou inúteis e desnecessárias, as asser-
ções, pugnas e rixas não apenas são estultas, nias também inipias; Paulo as
condena em mais de uina passagem". Também tu, creio eu, não falas disso
nessas passagens, a menos que, à maneira de um ridículo orador, queiras presu-
mir uma coisa e tratar de outra, como aquele homem da história do rodova-
lho4', ou que, com a insânia de um escritor ímpio, contendas que o artigo a
respeito do livre-arbítrio seja dúbio ou desnecessário.
Estejam longe de nós cristãos os céticos e acadêmicos, mas perto os asser-
tores duas vezes mais pertinazes do que os próprios estóicos. Quantas vezes,
pergunto, exige o apóstolo Paulo aquela p l e r o f ~ r i a ~isso
~ , é, aquela asserção
certissima e firmissima da consciência? Em Rm 10.9s. ele a chama de confis-
são: "A confissão com a boca se faz para a salvação". E Cristo diz: "Quem

39 Cf. Diofnbe. § 1
40 Ci. 2. Tm 2.23; 1 Tm 1.3; Tt 3.9.
41 e l u t illc Rhombum: Provavelmente Lutero se refere a uma sátira de Juvenal (IV, v. 39-14):
o imperador Diodeciano recebe de presente um rodoualho descomunal. O imperador reune então
as grandes de seu reino para colher seus pareceres: o pescado deve permanecer inteiro ou deve
ser repartido em peda~ospara ser ureparado? De medo de discordarem da opinião do violento
imperador, tados se entregam a adula$&er em ver de emitirem sua apiniiio, especialmente Pabn-
cio Veiciitn. que se desdobra em adulacões sem dizer unia palavra relciriite r<> pcintu em ques-
t.io: dividir ou não dividir o peue. Seria Fahriiio Veienio I> "ri<liriilivi ~ ; i < l < i t ' qine
' I.uteio ~rrn
cin nieiiir?
42 Cl. I TI 1 . 5 .
.
10.321. Pedro ordena que prestemos conta da esperança que há em nós4'. Que
necessidade h i de muitas [palavras]? Entre os cristãos não há nada mais conhe-
cido e difundido do que a asserção. Suprime as asserções, e suprimiste o cris-
tianismo. E mais: o Espírito Santo Ihes é dado dos céus para glorificas a Cris-
to" e para que ele seja confessado até a morte, a menos que morrer por cau-
sa de confissão e asserção não seja asserir. Por fim, o Espírito assere a tal pon-
to que até ataca e argúi espontaneamente o mundo por causa do pecado4', co-
mo alguém que provoca para a luta, e Paulo ordena que Timóteo incrcpe e
inste de modo i n o p ~ r t u n o Ora,
~ ~ . que belo increpador seria esse que não crê
com certeza nem assere com constância o que increpa! E claro que eu o man-
daria para Anticira4'. Porem, sou muitissimo estulto perdendo palavras e
tempo nunia questão que é mais clara do que o sol. Que cristão toleraria que
as asserções fossem desprezadas? Isso não seria outra coisa senão ter negado
toda a religião e piedade de uma vez, ou ter afirmado que a religião, ou a pie-
dade, ou algum dogma nada são. Por que, pois, também tu afirmas: "Não
me deleito com asserções" e preferes essa atitude a seu oposto?
No entanto, sou lembrado com razão de que não queres ter dito aqui na-
da a respeito de confessar a Cristo e seus dognias. E, fazendo-te um obséquio,
abro mão de meu direito e costume e não quero julgar teu coração; reservo is-
so para outro tempo e outras pessoas. Entrementes, admoesto-te que corrijas
tua língua e pena e que doravante te abstenhas de usar tais palavras, pois, por
mais íntegro e cbdido que seja teu coração, o discurso (que se diz ser o caráter
do coração) não é de tal espécie. Pois se julgas que a questão do livre-arbítrio
é coisa que não se necessita saber e que ela não concerne a Cristo, falas corre-
tamente, e, não obstante, julgas de iiiodo ímpio. Se, porém, a julgas necessá-
ria, falas de modo ímpio, mas julgas corretamente. Ademais, aquele não era
o lugar para querelar e exagerar tanto acerca de asserções e rixas inúteis, pois
o que tem isso a ver com o estado da questão? Mas que dizes sobre estas tuas
palavras, onde afirmas - não a respeito da questão do livre-artitrio apenas,
I e, sim, de todos os dogmas da religião em geral? Se fosse permitido pela iiivio-
Iável autoridade das Divinas Letras e pelos decretos da Igreja, seguirias a opi-
nião dos céticos, a tal ponto não te deleitas com asserções? Que Proteu se cs-
conde nas palavras "inviolável autoridade" e "decretos da Igreja"? Natural-
mente, é como se reverenciasses grandemente as Escrituras e a Igreja, e, no eii-
tanto, dás a entender que desejas a liberdade de ser cético. Qual o cristão quc

43 Cf. I Pe 3.15.
44 Cf. Ja 16.14.
45 <'f. .lo 16.8.
46 ('f. 2 T", 4.2.
li Aii1icii;i. iii,i:i ilha da Mar Egcu. oridc crrycç muito hel&ti<iro,iiqadi, coinci iiie<lic;ii;io p ; i i ~cI<m~
<;i\ilii rtrrlili,. i .iltcri>piicl- difer: tise dc\,ni;i iiwr IieHhnro piir;i li!iq,;ii i>ctirl>r<,Jt>ciiiii,.
Da Vontade Cativa
falaria assim? Se dizes isso acerca dos dogmas inúteis e indiferentes, que novi-
dade estas contando? Quem não desejaria a liberdade de se manifestar como
um cético neste ponto? Sim, que cristão não usa essa liberdade de fato e irres-
tritamente e condena quem é escravo e cativo de alguma opinião? A menos
que - como inclusive talvez se tivesse que entender as palavras - consideres
todos os cristãos pessoas cujos dogmas são coisas inúteis e pelas quais querelam
estultamente e lutam coin asserções. Se, contudo, te referes a coisas iiecessá-
rias, que coisa mais ímpia poderia alguém afirmar do que desejar a liberdade
de nada asserir a respeito de tais coisas? Antes, um cristão fala &?sim: A tal
ponto não me deleito com a opinião dos céticos que, onde quer que fosse per-
mitido por causa da fraqueza da carne, não só me apegaria as Sagradas Letras
com constância, em todo lugar e em todas as partes e as afirmaria, inas tam-
bém desejana estar tão certo quanto possível nas coisas não-necessárias e situa-
das fora da Escritura. Com efeito, o que é mais deplorável do que a incerteza?
Que haveremos de dizer também quanto ao que acrescentas: "Aos quais
de bom grado submeto minha opinião em toda parte, quer compreenda o que
prescrevem, quer não o coiiipreenda"? Que dizes. Erasmo? Não basta que te-
nhas subinetido a [própria] opinião as Escrituras? Tu a submetes também aos
decretos da Igreja? Que pode ela decretar qiie não esteja decretado lias Escritu-
ras? Ademais, onde fica a liberdade e o poder de julgar esses autores dos de-
cretos, como ensina Paulo em 1 Co 14.29: "Os demais julguem"? Não te agra-
da ser juiz sobre os decretos da Igreja, embora Paulo o prescreva? Que nova
religião e humildade é esta: com teu exemplo nos substrais o poder de julgar
decretos de seres humanos e [nos] submetes sem juizo aos homens? Onde a
Escritura de Deus nos manda [fazer] isso? E ainda, que cristão jogaria ao ven-
to as prescrições da Escritura e da Igreja de modo a dizer: "Quer o compreen-
da, quer riào"? Tu te submetes e, mesmo assim, iiáo te importas absolutanien-
te se compreendes ou não? Ora, seja anatema o cristão que não tem certeza e
não comprende o que IIie é prescrito. Pois de que modo haverá de crer o que
não compreende? Pois aqui haverás de chamar "compreender" aquilo que d -
guém apreender com certeza e não duvidar a maneira dos céticos. Do contrá-
rio, se "compreender" é "conhecer e ver perfeitamente", o que há em algu-
ma criatura que algum ser humano possa compreender? Pois então não aconte-
ceria que alguém pudesse compreender uma coisa e, ao mesmo tempo, não
compreender outra coisa; antes, tendo comprendido uma coisa qualquer, teria
compreendido todas, a saber, em Deus. Quem não o compreende, jamais com-
preenderá parte alguma da criação.
Em suma, tuas palavras soam como se absolutamente em nada te impor-
tasse o que quer que seja crido por qualquer um em qualquer parte, desde que
a paz do mundo esteja segura, como se fosse permitido, por causa de perigo
para a vida, a fama, os bens e o favor, imitar quem diz: "Se dizcm sim, digo
sim; se dizem não, digo não", e como se não considerasses os dognias cristãos
em nada melhores do que as opiniões dos filósofos e dos Iioiiicii\, 11cl:is cliiais
é sobremodo estulto querelar. pugnar c asserir, j i qiic d:ii iiiio icsiilin ri:id:i sc-
Da Vontade Cativa
não contenda e perturbação da paz externa. O que está acima de nós em na-
da nos diz respeito. Assim vens como mediador, com o propósito de dirimir
nossos conflitos, para suspender a ambos e persuadir que nos digladiamos por
caiisa de coisas estultas e inúteis. Assim, digo, soam tuas palavras. E creio que
entendes, caro Erasmo, em que insisto aqui. Mas, como eu disse, que passem
as palavras. Neste ínterim escuso teu coração, desde que não o traias niais; e
teme o Espírito de Deus, que escruta rins e corações" m ã o se deixa enganar
por palavras dispostas com arte. Pois eu disse isso para que, de agora em dian-
te, deixes de argüir nossa causa de pertinácia e pervicácia. Pois com tal desig-
nio outra coisa não fazes do que mostrar que, no coraçZo, nutres um Lucia-
no ou algum outro porco da manada de E p i c ~ r o que, ~ ~ , por absolutamente
não crer que Deus existe, se ri em oculto de todos os que crêein e confessaiii.
Deixa-nos ser assertores e aplicar-nos a asserções e deileilar-nos com elas; favo-
rece tu teus céticos e acadêmicos, até que Cristo tenha chamado também a ti.
O Espírito Santo não é um cético, neiii escreveu em nossos corações coisas dú-
bias ou opiniões, e, sim, asserções mais certas e firmes do que a própria vida
e toda experiência.

I 111 I
Passo ao segundo capitulo, que está ligado a esse. Onde fazes distinção
entre os dogmas ciistãos, inventas que há alguns que é iiecessário saber e ou-
tros não; dizes que alguns são abstrusos, outros são patentes. Assim ou brin-
cas com as palavras de outros, pelas quais foste enganado, ou exercitas a ti
mesmo numa espécie de artifício retórico. Em favpr dessa opinião, porém, ado-
zes aquela [palavra] de Paulo em Rm 11.33: "O profundidade das riquezas,
da sabedoria e do conhecimento de Deus!", e ainda aquela [passagem] de 1s
40.13: "Quem ajudou ao Espírito do Senhor, ou queni foi seu coriselheiro?".
Foi fácil para ti dizer essas coisas, seja porque sabias que não escrevias a Lute-
ro, a quem, espero, reconheces algum esforço e discernimento nas Sagradas
Letras; se não o conheces, verás que te forçarei também a isso. A distinção
que faço - para falar também cu como retórico ou dialético - é a seguinrc:
Deus e a Escritura de Deus são duas coisas [diferentes], não menos do que s Z o
duas coisas o Criador e a criatiira de Deus. Ninguéni duvida que h:i muitas
coisas abscônditas em Deus, coisas que ignoramos, coino ele mesmo diz no to^
cante ao último dia: "A respeito daquele dia ninguém sabe senão o Pai" [Mc
13.321. E At 1.7: "Não vos compete conhecer os tempos e momentos". I:,
mais uma vez: "Eu conheço os que escolhi" [Jo 13.181. E Paulo: "O Scnlii)r
conhece os que lhe pertencem" [2 Tm 2.191, e [passagens] semelhantes. Mas

48 CL J r II.20.
49 I.i,i.izti,o, cscritor wtiiico qiic viveu cm 125-IXO <I.<:.Sciis diálog<i\I<ir;iilicrlil;al<i\ l'i;i\iiii>.
I:j,ici,ri,, qiic viveii < l i 341-270 ;!.C., 6 <ciiiiilc,i.
i ili iiiti sislcrii;i lilciviilic<i cciil~iiliiiiii
!pi>/<i

L' ,,,I [llil/CI.


L>a Vontade Cativa
que na Escritura há algumas coias abstmsas e que nem todas são patentes, is-
so é divulgado pelos ímpios e sofistas, por cuja boca também tu falas aqui,
Erasmo, porém jamais apresentaram um único artigo, e nem podem apresen-
tar, com o qual provassem essa sua insânia. Ora, com tais fantasmagorias Sata-
nás desviou da leitura das Sagradas Letras e tornou desprezível a Santa Escritu-
ra, para põr no governo da Igreja suas pestes extraídas da filosofia. Admito,
por certo, que nas Escrituras há muitas passagens obscuras e abstmsas, não
por causa da majestade dos assuntos, mas por causa da ignorância em matéria
de vocabulário e gramática. No entanto, elas absolutamente não impedem o
conhecimento de todas as coisas nas Escrituras. Pois que coisa mais sublime
pode ainda permanecer oculta nas Escrituras depois que os selos foram rompi-
dos e a lápide foi removida da entrada do sepulcro50e depois que foi revela-
do aquele sumo mistério: Cristo, o Filho de Deus se fez ser humano, Deus é
trino e uno, Cristo sofreu por nós e reinará eternamente? Acaso não se conhe-
cem e cantam essas coisas até nas escolas prim&ias5'? Se tiras Cristo das Escri-
turas, que encontrarás nelas ainda? Portanto, todas as coisas contidas na Es-
critura estão reveladas, embora algumas passagens sejam obscuras porque ain-
da não conhecemos as palavras. Estulto e ímpio, porém, é saber que todas as
coisas da Escritura estão postas na mais clara luz e, por causa de algumas pou-
cas palavras obscuras, chamar as coisas de obscuras. Mesmo que as palavras
sejam obscuras num lugar, são claras em outro. Contudo, é a mesma coisa
que, declarada de modo manifestíssimo ao mundo todo, ora é expressa nas
Escrituras com palavras claras, ora ainda permanece oculta em palavras obscu-
ras. Dai que, caso a coisa esteja na luz, absolutamenrte não importa que um
sinal seu esteja em trevas, visto que neste meio-tempo muitos outros sinais
seus estão na luz. Quem haverá de dizer que uma fonte pública não está na
luz porque os que estão numa viela não a vêem, ao passo que todos os que
estão no mercado a vêem?
Portanto, tua referência à gruta de Coríciosz é improcedente. Nas Escritu-
ras a coisa não é assim. E as questões que dizem respeito à suma majestade,
bem como os mistérios mais abstrusos, não estão mais num beco obscuro, e,
sim, nas próprias praças públicas e à vista de todos, revelados e expostos. Pois
Cristo nos abriu a inteligência para que entendamos as Escrituras. E o Evange-
lho foi pregado a toda criatura 53. "Por toda terra saiu sua voz" [Rm 10.18;

50 Mt 27.66, 28.2.
51 No original consta: Nome haec etiam in biviis sunt nota et cantata? Bivitim significa iitcralmen-
te encmdhada, mas também escola elementar, escola prirnd& O Divium significa o csludo nas
três disciplinas básicas desde o século 1X: gramãtica, retórica e dialélica.
52 Cf. DhtRbe, 6 2. A g u l a de Co~icioencontra-se nas irnedia~àcide Delfris, c<icis:igcndn a Pari
-
e às ninfas aue ali celebram as arpias noturnas de Dionisici. I~SYU .ciiiiii
. .inritticii;iiiic~iie;iil;ii i>s
transeuntes por sua beleza; mas à medida qiiç vâi, ;iv;iiic;iii<li,. \;;iIiiiiriii:iiliis
i,> i i o i "ccrii, licil-
ror e majestade do iiiiineii qiie riel;i 1i:ihit:t".
51 C I . M c 16.15.
I!
Da Vontade Cativa
SI 19.41. "E tudo quanto foi escrito foi escrito para nossa instrução" [Rm 13.41.
E ainda: "Toda escritura inspirada por Deus é útil para o ensino" [2 Tm 3.161.
'I Portanto, tu e todos os sofistas, tratai de apresentar um único mistério qual-
quer que ainda esteja abstruso nas Escrituras. Todavia, o fato de muitas coisas
terem permanecido abstrusas para muitas pessoas não se deve a obscuridade
da Escritura, mas a cegueira ou indolência delas, que não tratam de ver a ver-
dade claríssima, como diz Paulo a respeito dos judeus em 2 Conntios 4 [sc.
i 3.141: "O véu permanece sobre o coração deles". E mais uma vez: "Se nosso
evangelho está encoberto, então está encoberto naqueles que se perdem, cujos
corações foram cegados pelo deus deste século" [2 Co 4.3s.I. Com a mesma
temeridade culparia o sol e o dia de serem obscuros a pessoa que velasse os
próprios olhos ou saísse da luz e fosse para as trevas e se escondesse. Que pa-
rem, pois, os miseráveis seres humanos de imputar com blasfema perversida-
de as trevas e a obscuridade de seu coraçso às claríssimas Escritiiras de Deus.
Assim, quando aduzes a palavra de Paulo: "Incoinpreensíveis são seus juí-
zos" [Rm 11.331, pareces relacionar o pronome "seus" com a Escritura. Pau-
lo, porém, não diz: "Incompreensiveis são os juizos da Escritura", e, sim,
"de Deus"; deste modo 1s 40.13 não diz: "Quem conheceu a mente da Escritu-
ra", e, sim, "a mente do Senhor"54, se bem que Paulo afirme que os cristãos
conhecem a mente do Senhor, mas nas coisas que nos são dadas, como diz
no mesmo lugar, em 1 Co 2.12. Vês, portanto, de que forma negligente exami-
naste essas passagens da Escritura e que as citas com a mesma aptidão com
que citas quase tudo em favor do livre-arbítrio. Desta maneira, também os exein-
plos que acrescentas, não sem suspeição e aguilhão, nada contribuem para o
assunto, como os exemplos a respeito da distinção de pessoas, da conglutina-
ção da natureza divina e humana, do pecado irremissível, cuja ambigüidade
dizes não ter sido suprimida ainda. Se te referes as questões debatidas pelos
sofistas acerca dessas coisas, que te fez a inocentíssima Escritura para atribuir
a pureza dela o abuso cometido por pessoas celeradas? A Escritura confessa
simplesmente a trindade de Deus, a humanidade de Cristo e o pecado irremis-
sivel. Nada há aqui de obscuridade oii ambigüidade. Porém, a Escritura não
e
fala, do modo como essas coisas acoiitecem como inventas, também não hli
necessidade de saber. Aqui os sofistas expõem seus sonhos. E a eles que devcs
arguir e condenar, e absolver as Escrituras. Se, contudo, te referes a própria
substância da coisa, mais uma vez deves argüir não as Escrituras, e, sim, os
e aqueles aos quais o Evangelho está encoberto, de modo que, poi-
obra de Satanás, o deus deles, não percebem os clarissimos testemunhos accr-
ca da divindade da Trindade e da humanidade de Cristo. E, para dizê-lo c0111
brevidade, existe urna dupla clareza da Escritura, assim como existe uma diililn
obscuridade: uma é externa, colocada no ministério da Palavra; a outra, situa-
da na cognição do coração. Se falas da clareza interna, nenhum ser humano
percebe nem um único i nas Escrituras, a menos que tenha o Espírito de Deus.
Todos têm um coração obscurecido, de modo que, mesmo que digam e saibam
recitar toda a Escritura, nada dela percebem ou conhecem verdadeiramente.
Não crêem em Deus, nem que são criaturas de Deus, nem qualquer outra coi-
sa, como diz SI 14.1: "Diz o insipiente em seu coração: 'Não há Deus"'. Pois
para compreender toda a Escritura e qualquer parte dela se precisa do Espíri-
to. Se falas da clareza externa, não resta absolutamente nada obscnro ou am-
bíguo; antes, tudo o que há nas Escrituras foi conduzido a luz certíssima e de-
clarado ao orbe todo pela Palavra.

N I
Mais intolerável ainda, porém, é o fato de incluíres essa causa do livre-ar-
bítrio entre as que são inúteis e desnecessárias e, no lugar dela, nos enumeras
as coisas que julgas suficientes para a piedade cristã, de uma forma como qual-
quer judeu ou gentio inteiramente ignaro de Cristo por certo poderia descrevê-
lo com facilidade; pois não fazes a menor menção de Cristo, como se pensas-
ses que pode haver piedade cristã sem Cristo, contanto que se venere com to-
das as Forças a Deus como clementíssimo por natureza. Que direi a este respei-
to, Erasmo? Tu cheiras totalmente a Luciano e me exala5 o bafo de vinho de
Epicurosh. Se julgas essa causa desnecessária para os cristãos, peço que abando-
nes a arena. Nada temos a ver contigo. Nós a consideramos necessária. Se é
ímpio, se é impertinente, se é supérfluo, como dizess7, saber se Deus tem pres-
ciência de algo de modo contingente, se nossa vontade faz alguma coisa naqui-
lo que concerne h salvação eterna ou apenas sofre a ação da graça, se fazemos
o que realizamos de bom ou de mau apenas por mera necessidade ou, antes,
o sofremos, que então, pergunto, será piedoso, que será importante, que será
útil saber? Isso não vale de jeito nenhum, Erasmo, isso é demais5? E difícil
atribuir essas coisas a tua ignorância, pois já és velho, viveste entre cristãos e
estudaste durante muito tempo as Sagradas Letras, [e ainda assim] não deixas
uma oportunidade para que possamos te escusar ou pensar bem a teu respei-
to. No entanto, os papistas te perdoam essas monstruosidades e as toleram,
porque escreves contra Lutero. Do contrário, se Lutero estivesse ausente e tu
escrevesses tais coisas, eles te Iacerariam com os dentes. Que Platão seja ami-
go, que Sócrates seja amigo, mas a verdade deve ser honrada antes de mais
nadas9. Pois, ainda que pouco entedesses das Escrituras e da piedade cristã,
certamente até um inimigo dos cristãos deveria saber o que os cristãos conside-

5 0 I.iiciano, cf. acima si. 49


57 VI'. IXiliihi. 8 7.
ram necessário e útil e o que não. Tu, porém, na qualidade de teólogo e mes-
tre dos cristãos, queres descrever-lhes uma forma de cristianismo e nem sequer
duvidas, segundo teu costume como cético, acerca do que Ihes seja necessário
e útil, mas cais inteiramente no extremo oposto, e agora, contra tua natureza
e mediante uma inaudita asserção, julgas que essas coisas não são necessárias.
Ora, se elas não são necessárias e não são conhecidas com certeza, então não
resta Deus, nem Cristo, nem Evangelho, nem fé, nem coisa alguma, nem se-
quer do judaísmo, muito menos do cristianismo. Pelo Deus imortal, Erasmo,
que grande janela, ou melhor, que grande campo abriste para agir e falar con-
tra ti! Que coisa boa e reta haverias de escrever sobre o livre-arbítrio, se, por
essas tuas palavras, revelas tão grande ignorância da Escritura e da piedade?
No entanto, vou recolher as velas e não vou discutir contigo aqui com minhas
palavras (o que talvez farei mais abaixo), e, sim, com tuas próprias palavras.
A forma de cristianismo por ti descrita contém, entre outras coisas, a afir-
mação de que devemos nos empenhar com todas as forças, recorrer ao remé-
dio da penitência e procurar obter a misericórdia do Senhor de todos os mo-
dos; sem ela, nem a vontade nem o esforço humanos são eficazes. Igualmen-
te, ninguém deve desesperar da vênia de Deus, que é clementíssimo por nature-
za". Estas tuas palavras, sem Cristo, sem o Espírito, são mais frias do que o
próprio gelo, de modo que a beleza de tua eloqüência admite até o erro nelas
contido. Dificilmente o medo, talvez em relação aos pontífices e tiranos, de
parecer completamente ateu, as extorquiu de ti, misero homem. Elas asserem,
entretanto, o seguinte: há forças em nós; há um empenho com todas as for-
ças; existe a misencórdia de Deus; Deus é justo por natureza, clementíssimo
por natureza, etc. Se, pois, alguém ignora o que são essas forças, do que sâo
capazes, o que sofrem, qual é seu esforço, qual é sua eficácia e qual sua inefi-
ciência, que haverá de fazer tal pessoa? Que lhe ensinarás a fazer? Dizes quc
é ímpio, impertinente e supérfluo querer saber se nossa vontade faz alguma
I coisa naquilo que conceme a salvação eterna, se apenas sofre a ação da graça.
Aqui, todavia, dizes, ao contrário, que é piedade cristã empenhar-se com io-
das as forças e que a vontade não é eficaz sem a misericórdia de Deus. Aqui
! afirmas claramente que a vontade faz alguma coisa naquilo que concerne a sal-
i vação eterna, pois a representas como vontade que se empenha; por outro la-
do, porém, a apresentas como vontade que sofre, pois dizes que é ineficaz sciii
misericórdia, embora não definas até que ponto se deve entender esse fazer c
sofrer e de propósito nos deixas na ignorância sobre o que pode a misericórdi:~
de Deus e o que pode nossa vontade, e fazes isso justamente ao ensinar o qiic
fazein nossa vontade e a misencórdia de Deus. Assim te faz rodar em circiilo
essa tua prudência, pela qual resolveste não aderir a nenhum dos dois pariidos
e, dessa forma, te evadir seguramente entre Cila e Carihdis6', de inodo 1111~.

-.
Il;i Vi>iil;idc ('aliva

crii nieio ao inar, coberto pelas ondas e confuso, afirmas tudo o que negas e
negas o que afirmas.
Vou te mostrar tua teologia com algumas comparações: quem quer fazer
um bom poema ou um bom discurso não deve pensar nem perguntar qual é
seu engenho, do que é capaz e do que não é, o que requer o assunto que se
propôs, devendo omitir inteiramente aquele preceito de Horácio: "Que agüen-
tam os ombros? que se recusam a levar?"". Deve, isso sim, apenas atacar im-
petuosamente a obra e pensar: é preciso esforçar-se para que a coisa seja fei-
ta, é impertinente e supérfluo perguntar se é suficiente tanta erudição, tanta
fecúndia e força de engenho. Ou se alguém quiser colher abundantes frutos
de um campo, não deve ser impertinente e, com cuidado supérfluo, verificar
a qualidade da terra, como ensina Virgílio nas Geórgicas" de modo impertinen-
te e vão, mas deve pôr mãos à obra cegamente, não pensar em nada senão
no trabalho, arar a praia e jogar sementes onde quer que haja lugar, seja na
areia, seja no lodo. Ou se alguém quer fazer uma guerra e aspira uma bela vi-
tória, ou tem que cumprir qualquer outro dever no Estado, não deve ser im-
pertinente, deliberando do que é capaz, se o erário é suficiente, se os soldados
são aptos, se há qualquer possibilidade de agir, devendo desprezar totalmente
aquela [palavra] do historiador: "Antes de agir, é preciso deliberar; depois de
deliberar, é necessário agir com r a p i d e ~ " ~Deve,
. isso sim, atacar com os olhos
cerrados e ouvidos tapados, vociferando apenas "guerra, guerra" e insistindo
apenas na ação. Qual será, Erasmo, teu juízo a respeito de tais poetas, agricul-
tores, comandantes e príncipes? Acrescento ainda a [palavra] do evangelho:
"Se alguém quer edificar uma torre e não se senta antes e calcula os custos
para ver se tem com que acabar" [Lc 14.281, que juízo faz Cristo a respeito dele?
Desta maneira também tu nos ordenas só as açoes, porém nos proíbes de
primeiramente examinar e medir ou conhecer as forças, o que podemos e não
podemos, como se isso fosse impertinente, supérfluo e impio. Assim, enquan-
to abominas a temeridade com excessiva prudência e alegas sobriedade, chegas
ao ponto de ensinar inclusive a maior temeridade. Pois, embora os sofistas de
fato sejam temerários e insanos, porque tratam de coisas impertinentes, eles
pecam de modo menos grave do que tu, que até ensinas e ordenas que se seja
insano e se aja sem reflexão. E, para que a insãnia seja ainda maior, nos per-
suades de que essa temeridade é a mais bela e cristã piedade, sobriedade, serie-
dade religiosa e salvação; se não agimos assim, asseres - tu que és tão gran-
de inimigo das asserções - que somos impios, impertinentes e vãos; e assim,
ao evitar Caribdis, fugiste elegantemente de Cila. Mas a isso te impeliu a con-
fiança em teu engenho, visto que crês que assim, pela eloqüência, podes te im-
por a todas as inteligências de tal modo que ninguém seja capaz de perceber
o que nutres em teu coração e o que tramas com esses teus escritos escorregadios.

h2 A ~ .poeiica,
T 38-40: Qiiid vdeani hiirna% qiiicl lciie ri,ciiiivii
h3 (;riirgic;i.s 50ss.
(4 Saliisiio. I>c cniiiiiiaiio,ic <'ai. 1.

?X
Da Vontade Cativa

De Deus, porém, não se zomba [Gl 6.71; e não é bom arrojar-se contra ele.
Ora, se nos tivesses ensinado essa temeridade na confecção de poemas, no cul-
tivo de frutos, na execução de guerras e ofícios ou na edificação de casas -
o que ainda assim é intolerável, principalmente no caso de um tão grande ho-
mem -, enfim serias digno de alguma vênia, pelo menos entre os cristãos,
que desprezam as coisas temporais. No entanto, visto que ordenas aos próprios
cristãos'tornarem-se operários temerários e, no que diz respeito à obtenção da
salvação eterna, os mandas ser indiferentes quanto ao que podem e não podem,
isto é realmente um pecado deveras irremissível. Pois não saberão o que fazer
I enquanto ignorarem o que e quanto podem. Ora, se não sabem o que fazem,
não podem fazer penitência (se errarem). A impenitência, porém, é pecado irre-
missível. E a este ponto que nos leva essa tua moderada teologia cética.
Por conseguinte, não é ímpio, impertinente ou supérfluo, mas antes de tu-
do salutar e necessário que o cristão saiba se a vontade efetua alguma coisa
ou nada naquilo que concerne à salvação. Sim, para que o saibas: este é pon-
to capital de nossa disputa, em torno disso gira o grau dessa questão. Pois tra-
tamos de investigar do que o livre-arbítrio é capaz, o que sofre, de que modo
se relaciona com a graça de Deus. Se ignorarmos isso, absolutamente nada sa-
beremos das coisas cristãs e seremos piores do que todos os gentios. Quem não
percebe isso deve reconhecer que não é cristão. Quem, todavia, o repreendc
ou despreza, fique sabendo que é o maior inimigo dos cristãos. Pois se igno-
ro o que, até que ponto e quanto eu posso e faço em relação a Deus, de igual
modo me será incerto e ignoto o que, até que ponto e quanto Deus pode e faz
em mim, já que Deus opera tudo em todos6'. Entretanto, se ignoro as obras c
a potência de Deus, ignoro o próprio Deus. Se ignoro a Deus, não posso vene-
rar, louvar, agradecer e servir a Deus, pois não sei quanto devo atribuir a mim
mesmo e quanto a Deus. Portanto, se queremos viver piedosamente, é necessá-
n o que mantenhamos uma distinção certíssima entre a força de Deus e a nos-
sa, entre a obra de Deus e a nossa.Ws, assim, que esse problema é uma das
partes de toda a suma das coisas cristãs; dele depende e nele está em jogo o
I
conhecimento de si mesmo, assim como o conhecimento e a glória de Dcus.
Por esta razão, caro Erasmo, não se pode tolerar que chames esse conhecci-
de impiedoso, impertinente e vão. Devemos muito a ti, porém devemos tudo
à piedade. E mais: tu mesmo és de opinião que devemos atribuir a Deus todo
o nosso bem e o afirmas em tua descrição do cristianismo. Se, porém, afiriniis
isso, certamente afirmas ao mesmo tempo que a misericórdia de Deus f u 111-
do sozinha e que nossa vontade nada faz, mas, antes, sofre; do contrário, iiào
se atribuiria tudo a Deus. Pouco depois, contudo, negas que asserir ou conlic
cer isso seja religioso, piedoso e salutar. Assim, porém, é obrigada a falar i i i i i ; ~
mente que não é coerente consigo mesma, incerta e inexperiente nas coisas d;i
piedade.
Da Vontade Cativa
A outra parte da suma cristã é saber se Deus tem presciência de alguma
coisa de modo contingente e se fazemos tudo por necessidade. E também esta
parte tu consideras impiedosa, impertinente e vã, o que também fazem todos
os impios; e mais ainda: os demônios e condenados a consideram odiosa e exe-
crável. E não és estulto se te eximes dessas questões, contanto que seja possí-
vel fazê-lo. Nesse meio-tempo, todavia, não és um retor e teólogo muito bom,
pois presumes falar e ensinar acerca do livre-arbítrio sem estas duas partes. Fa-
rei o papel de amolados e, ainda que eu mesmo não seja retor, lembrarei o
egrégio retor de seu ofício. Se QuintilianoM, ao escrever sobre a oratória, dis-
sesse o seguinte: "Em minha opinião, devem-se omitir essas coisas estultas e
supérfluas a respeito da invenção, disposição, elocuçao, inemorização e pronún-
cia; basta saber que a oratória é a perícia de falar bem", não ririas de tal artis-
ta? Também tu não ages de outra forma: ao querer escrever sobre o livre-arbi-
trio, primeiramente afastas e jogas fora todo o corpo e todas as partes da ar-
te sobre a qual queres escrever. Pois não é possível que saibas o que é o livre-
arbítrio a menos que saibas do que é capaz a vontade humana, o que Deus
faz, se tem presciência de modo que não pode ser diferente. Não ensinam tam-
bém teus retores que, quando se quer falar sobre alguma coisa, é necessário
dizer, em primeiro lugar, se ela existe, depois, o que ela é, quais são suas par-
tes, o que é o contrário, afim, semelhante, etc. Tu, porém, privas esse por si
já miserável livre-arbítrio de todas essas coisas e não defines nenhuma questão
a respeito dele, a não ser aquela primeira, a saber, se ele existe, e isso com ar-
gumentos tais - como veremos - que não vi livro mais inepto sobre o livre-
arbítrio, excetuando a elegância do estilo. Neste ponto os sofistas pelo menos
apresentam uma dialética melhor, já que conhecem a retórica: ao abordarem
o livre-arbítrio, definem todas as questões acerca dele, se existe, o que é, o que
faz, como se porta, etc., embora também eles não consigam atingir o objeti-
vo que se propõem. Assim, com este apúsculo acossarei a ti e a todos os sofis-
tas até que me definais as forças e obras do livre-arbítrio, e vos acossarei de
tal modo que (se Cristo me for propicio) espero compelir-te ao arrependimen-
to por teres publicado tua Diatribe.
Assim, pois, em primeiro lugar é necessário e salutar que o cristão saiba
tainbém que Deus de nada tem presciência de modo contingente; antes, ele pre-
vê, se propõe e faz tudo com vontade imutável, eterna e infalível. Com este
raio o livre-arbítrio é totalmente derrubado e destruido. Por isto, os que que-
rcin defender o livre-arbitrio devem negar esse raio, ou dissimulá-lo, ou afas-
tá-lo de si de alguma outra maneira. Entretanto, antes de firmar este ponto
através de minha argumentação e da autoridade da Escritura, vou tratar dele
usando tuas próprias palavras. Não és tu que afirmaste um pouco antes, preza-

h0 kf:ixr>Fahio Quintiliano, rctórico hispano-latina, 35-95 d.C., primeiro mestre público de retóri-
c;) ciii Iloriia, <Ic vnsia e merecida larna. Sua abra principal: I~sfirutiooratoria era conhecida
<!c l.t~Icrocpc a c h l i t ~ ~ a vlnuilo.
:~
Da Voirtadc Caiiv;i
do Erasmo, que Deus é justo por natureza, clemenlíssimo por natureza? Se is-
to é verdade, não se segue que ele é imutavelmente justo e clemente? Pois, as-
sim como sua natureza não muda eternamente, da mesma forma sua justiça c
clemência. Ora, o que se diz acerca de sua justiça e clemência precisa ser dito
também a respeito de seu saber, sabedoria, bondade, vontade e das outras coi-
sas divinas. Se, portanto, se afirmam essas coisas a respeito de Deus de modo
religoso, piedoso e salutar, como tu mesmo escreves, que te aconteceu para
que, em desacordo contigo mesmo, afirmes agora que é irreligioso, impertineii.
te e vão dizer que Deus tem presciência de tal maneira que as coisas acontecetii
necessariamente? Pregas que a vontade imutável de Deus deve ser aprendida.
porém proíbes que se conheça sua presciência imutável. Acaso crês que ele teiii
presciência sem querer ou que quer sem saber? Se tem presciência querendo.
sua vontade é eterna e imutável (porque é sua natureza); se quer tendo presci-
ência, seu saber é eterno e imutável (porque é sua natureza).
Disso se segue irrefragavelmente: tudo o que fazemos, tudo o que aconte-
ce, ainda que nos pareça acontecer de modo imutável e contingente, na verda-
de acontece de modo nessário e imutável, se consideramos a vontade de Deus.
Pois a vontade de Deus é eficaz e não há como impedi-la, visto que é a pró-
pria potência natural de Deus; além disso, ela é sábia, de sorte que não se po-
de enganá-la. Ora, se não se pode impedir a vontade, também não se pode im-
pedir a própria obra, isso é, não se pode impedir que aconteça no lugar, no
tempo, do modo e na medida que ele mesmo sabe de antemZo e quer. Se a
vontade de Deus fosse tal que cessasse uma vez acabada a obra e esta perma-
necesse, como é a vontade dos seres humanos, que deixa de querer tão logo
esteja edificada a casa que querem, assim como cessa a morte, então poder-sc-
ia dizer verdadeiramente que algo acontece de modo contingente e mutável.
Aqui, contudo, acontece o contrário: a obra cessa de existir e a vontade perma-
nece. "Acontecer de modo contingente", porém, quer dizer, na lingua latina
(para que não abusemos dos vocábulos), não que a própria obra aconteça dc
iiiodo contingente, e, sim, segundo uma vontade contingente e m~tável,tal co-
i110 não há em Deus. Ademais, não se pode chamar uma boa obra de contin-
~!,ciilca menos que nos suceda de modo contingente e como que por acaso c
sciii iiosso conhecimento prévio, porque nossa vontade ou nossa mão a agar-
i ; i cotiio algo que nos foi oferecido por acaso, pois anteriormente nada pensn-
iiios ~ I I Iquisemos em relação a ela6'.

:to tcrmo "ncceasária". A edição de Jena, registra o seguinte acréscimo dc Liiterci: "!)r
iii l ? i i . i i i i i i
\<.i;ii i;,. por ccrlo, qiic para uso neste debate, existisse um termo melhor que o usual 'iiçcc\riil;i
ili.', iIiir ,150 cxiiressa corretamente o que se quer dizer, nem quanta à vontade divina, iicm <lii;sti
l i , ;i viiiii;iilc Iiiirnnn~.Pois liara o tema coiii o qual rios estamos ocupando, tnn urii sigiiilic;i
%li, <Ir~ii;isi;i<I:iiiicr~Icdcsagra<livel ç inadequado, visto que obriga a pensar cm tima cslifcic ,I<.
i ii;i\,i<v. i. c i ~ gci;il,
i tici qiiç é contrdrio íi voiitadc; e não 6 isso qiic se tcin cin iiieiitc ;ai i i ; i i ; i ~
i l i t i i \ i i i i i l < i . N;i uii<la<lc.liiiit<ia voiitiidç divina qiiniitn n liirriiaria l;i, o qiic I :,, xj:, I N > I I ~
iiil t>i;iit ii;iii 1 ~ 3 qui~lq~lci.
i ç0iq50. ITI~ISi111 vc~.~lii<lcilit
lil>crdi\ile,11111 I>oi~ C I I I <ICII.~<V
<lis!>ovi~;~o
Neste ponto os sofistas suaram já há muitos anos e, por fim, dando-se
por vencidos, foram obrigados a admitir que tudo acontece necessariamente,
nias pela necessidade da consequência (como dizem), e não pela necessidade
do consequente"Assim eludiram a gravidade desta questão; em verdade, an-
ies iludiram a si mesmos. Pois não terei dificuldade em demonstrar o quanto
isso é nulo. Chamam "necessidade da consequência", para dizê-lo de modo
crasso, o seguinte: se Deus quer alguma coisa, é necessário que ela aconteça,
porém não é necessário que o que acontece exista. Pois somente Deus existe
necessariamente; todas as outras coisas podem não existir, se Deus quer. Assim,
dizem que a ação de Deus é necessária, se ele quer, mas aquilo que é feito não
E necessário. Ora, o que conseguem com esses ludíbrios de palavras? O seguin-
te, naturalmente: a coisa feita não é necessária, isso é, não tem uma essência
i~ecessária;isto é dizer simplesmente que a coisa feita não é Deus mesmo. Não
obstante, permanece o seguinte: toda coisa acontece necessariamente se a ação
dc Deus é necessária ou [se há] uma necessidade da consequência, ainda que
a coisa, uma vez acontecida, não exista necessariamente, isto é, não seja Deus
o u não tenha uma essência necessária. Pois se sou feito necessariamente, poii-
co me importa que meu existir ou ser feito seja imutável; ainda assim eu, aque-
Ic contigente e mutável, que não sou o Deus necessário, sou feito. Por esta ra-
f i o , o ludíbrio deles, [ao afirmarem que] tudo é feito por necessidade da con-
scquência, mas não por necessidade do consequente, nada contém senão o se-
guinte: é verdade que tudo acontece necessariamente, porém as coisas que as-
sitil acontecem não são Deus mesmo. Mas que necessidade haveria de nos di-
zcr isso? Como se fosse de se temer que afirmássemos que as coisas feitas são
I>cus ou têm uma natureza divina e necessária. Com maior razão é e perrnane-
cc invencivel a sentença: tudo acontece necessariamente. E aqui não há qual-
quer obscuridade ou ambigüidade. Em Isaías se diz: "Meu conselho permane-

veemente. Náo obstante, a vontade de Deus é imutável e infalível, a vontade que governa nos-
sa vontade mutável, como canta Boicio: 'Tu pareces imutavel, e dás movimento a tudo'. E nos-
sa vontade, especialmente a má vontade, não pode fizer o bem de si mesma. Portanto, o que
o vocábulo não consegue exprimir, tem que complementá-10 a inteligência do leitor e entender
sob 'necessidade' aquilo que se quis expressar, a saber, a imutável vontade de Deus e a incapaci-
dade de nossa má vontade, como a designaram alguns: necessidade da imutabilidade; mas isso
,120 corresponde nem a gramática nem iteologia."
68 I'ara a "necessidade do consequente" (necessitas consequentisj também é corrente usar "necessi-
kide absoluta", e para "necessidade da consequência", "necessidade condicional" ou "da supa-
hic.ão" (ex suppositione). Cf. Tomás de Aquino, Summa I q. 19 aR. 3. "Com essa diferenciaMa,
ms escolásticos tentavam salvar a liberdade do acontecer (contingéncia). Em terminologia mais
iiio<lernddiriamos: Admitiam a detcrminacão causal, mas rejeitavam a determinação teleológi-
c;,. Com isso se acreditava ter salvo a liberdade de Deus como pessoa frente ao 'suceder' candi-
cii~nadocausalmente. 1.utero não mostra interesse nesta problemática; ele resume seu pensamen-
io iia frase: omnia necessitate fjzn - tudo é feita de tal maneira que não pode ser feito de ou-
ti.<> imodo. Verdade é que tamhém Iutero distingue cntrc a necessidade da coisa feita (resfacta)
c ;i <i,w,li:iri<r.css;iri.i d i Deus." (De: M. Lutlier. Aii~gew,lhllcWcrke, supl. I, p. 276, Chr. Kai-
>c#. Miiiiiiliie I1J54.)

32
Da Vontade Cativa
cerá, e minha vontade se fará" [Is 46.101. Com efeito, qual é a criança que
não entende o que querem dizer os vocábulos "conselho", "vontade", "se fa-
!
I rá", "permanecerá"?
i Ora, por que essas coisas haverão de ser abstrusas para nós cristãos, de
modo que seja irreligioso, impertinente e vão tratar delas e sabê-las, visto que
os poetas gentios e o próprio povo falam delas com freqüência em uso muito
comum? Quantas veres apenas Virgílio lembra o destino? "Tudo está estabele-
cido por lei certa". "A cada um está fixado seu dia". "Se o destino te cha-
ma". "Se romperes o áspero destino"". Esse poeta não faz outra coisa senão
mostrar, a partir da devastação de Tróia e do surgimento do Império Roma-
no, que o destino pode mais do que os esforços de todos os seres humanos e
até impõe uma necessidade as coisas e aos homens. Por fim submete seus deu-
ses imortais ao destino, ao qual inclusive Júpiter e Juno cedem necessariamen-
te. Daí que inventaram aquelas três parcas imutáveis, implacáveis e inexoráveis.
Esses sábios homens perceberam o que prova a própria coisa juntamente com
a experiência: homem algum jamais viu realizados seus planos; antes, a todos
aconteceu coisa diferente do que haviam pensado. "Se Pérgamo pudesse ter
sido defendida com a mão direita, também teria sido defendida por esta [mi-
nha]", diz Heitor em Virgíli~'~.Daí que está na boca de todos o propaladíssi-
mo dito: "Que aconteça o que Deus quiser". E também: "Faremos isso se
Deus quiser". "Deus quis assim". "Assim aprouve aos deuses, assim o quises-
tes", diz Virgílio, para que vejamos que entre o vulgo o conhecimento da pre-
destinação e presciência de Deus restou não menos do que o próprio conheci-
! mento da divindade. E aqueles que querem parecer sábios chegaram, através
i
de suas disputas, ao ponto de, com o coração obscurecido, tornarem-se estul-
tos (Rm 1.21s.) e negarem ou dissimularem as coisas que os poetas, o vulgo e
sua própria consciência têm por sobremodo corrente, certo e verdadeiro.
Digo ainda não só o quanto são verdadeiras essas coisas - sobre isso fala-
rei mais amplamente abaixo, a partir das Escrituras -, mas também o quan-
to é religioso, piedoso e necessário sabê-las. Pois ignorando-se essas coisas,
não podem subsistir nem a fé nem qualquer culto a Deus. Por isso seria verda-
deiramente ignorar a Deus, e com tal ignorância não pode haver salvação, co-
mo se sabe. Pois se duvidas ou desprezas o saber que Deus tudo pré-sabe e tu-
do quer não de modo contingente, mas de modo necessário e umitável, como
poderias crer em suas promessas, nelas confiar e te firmar com certeza? Quan-

~ do ele promete, é preciso que estejas certo de que ele sabe, pode e quer dar o
que promete. Do contrário, não o terás na conta de veraz e fiel, o que é incre-
dulidade e a maior impiedade e negação do Deus altissimo. Como, porém, es-
tarás certo e seguro se não sabes que ele sabe, quer e fará certa, infalível, imu-

69 Virgilio, Aeii. 11,324: Ccrra stanc omnia lege. V1,883: star sua cuique d i a . V11,314: si te faia vo-
cirii. X,465: ,si qim faia aipeia riinlpas.
70 Vir>:ilii,.Ai,ri. 11,2'1l~.:,Sipcig:~niapofuissciit dcxrra def'e~zdi,etinrn hac defen.sa fuimerir.
C'aliva
11.1 V~~~!l,klc

Ihvcl c necessariamente o que promete? Não só e preciso que estejamos certos


de que Deus o quer e fará necessária e imuta\~elmente,mas também que nos
gloriemos nisso, como diz Paulo em Rm 3.4: "Que Deus seja veraz, e todo
ser humano, mentiroso". E ainda: "Não que a palavra de Deus tenha falha-
do" [Rm 9.61. E alhures: " O fundamento de Deus está firme, tendo este selo:
O Senhor conhece os que lhe pertencem" 12 Tm 2.191. E em Tt 1.2: ''Que
Deus, que não mente, proiiieteu antes do começo dos séculos". E H b 11.6: "É
preciso que quem se aproxima [de Deus] creia que Deus existe e que é um re-
munerador dos qiie nele esperam".
Assim, pois, a fé cristã é inteiramente extinguida, as promessas de Deus e
todo o Evangelho desabam por completo, caso se nos ensine e caso creiamos
que não é preciso saber n presciência necessária de Deus e a necessidade das
coisas que hão de acontecer. Este, pois, é o único e supremo consolo dos cris-
tãos em todas as adversidades: saber que Deus não mente, mas tudo faz imuta-
velinente, e que a sua vontade não se pode resistir e que não se pode mudá-la
ou impedi-la. Vê agora, caro Erasmo, para onde nos conduz essa tua teologia
táo riioderada e amiga da paz! Tu nos aconselhas e proíbes que nos esforce-
mos para aprender a presciência de Deus e a necessidade tias coisas e nas pesso-
;ts, e, pelo contrário, lios aconselhas que ababaiidonemos, evitemos e despreze-
1110sisso. Com esse teu ato inconsulto nos ensinas, ao mesmo tempo, que bus-
quemos a ignorância a respeito de Deus - ignoriiicia esta que vem por si mes-
iiia e também nos é inata -, que desprezemos a fé, abandonemos as promes-
sas de Deus e consideremos sem valor todos os solazes do espírito e certezas
da consciência. Dificilmeiite o próprio Epicuro rios prescreveria tais coisas.
NXo contente com isso, chamas de irreligioso, impertinente e vão quem tiver
se esforçado para conhecer tais coisas, mas chamas de religioso, piedoso e só-
brio quem as tiver desprezado. Que outra coisa constróis com com essas [tuas]
palavras senão que os cristãos seriam impertinentes, vãos e irreligiosos? que o
cristianisn~oseria uma coisa sem qualquer impi~rttincia,vã, estulta e coinpleta-
mente ímpia? Assim acontece de novo que, ao quereres justamente nos afastar
(Ia temeridade, és arrastado para o extremo oposto, a maneira dos estultos,
nada ensinando senão as maiores temeridades, impiedades e perdições. Não
pcrcebes quê neste ponto teu livro é tão ímpio, blasfemo e sacrílego que em
parte alguma se encontra algo semelhante?
Como disse acima, não fdo de teu coração, pois iião te considero tão per-
<lido que queiras, de coração, eiisinar essas coisas ou que sejam feitas. Faço-o
Ixira te mostrar que iiionstruosidades é obrigado a dizer irrefletidanieiite quem
sc propõe a assumir uina causa ruim, e, além disso, o que é arremeter contra
;is coisas e letras divinas quando, para fazer uni obséquio a outros, assunumos
i i i i i papel e, contra a coiisciência, servimos a um jogo alheio. Ensinar as Sagra-
<I;isI.etras e a piedade não é brincadeira nem divertimento, pois facilmente acon-
iccc aqui aquele lapso do qual fala Tiago: "Queni ofende num ponto se tor-
lia i C i i de todos" [Tg 2.101. Assim, pois, acontece que, quando parece que qiie-
ii~iiosgracejar s6 uiri pouqiiiriho c não tratamos as Sagradas Lctras coni a de-
Da Vonlade Cativa

vida reverência, logo somos envolvidos em impiedades e imersos em blasfê-


mias, como aconteceu aqui contigo, Erasmo. Deus te perdoe e tenha misericór-
dia de ti. Porém o fato de que, a respeito dessas coisas, os sofistas engendra-
ram tantos enxames de questões e misturaram muitas outras coisas inúteis,
muitas das quais recenseias7', sabemos e reconhecemos contigo, e o invectiva-
mos de modo mais acre e intenso do que tu. Tu, porém, ages de modo impru-
dente e imponderado ao misturar, confundir e assemelhar a pureza das coisas
sagradas às profanas e estultas questões dos impios. Eles conspurcaram o ou-
ro e mudaram a cor boa, como diz Jeremias12, porém não se deve juntar o ou-
ro ao esterco e jogá-lo fora junto em este, como fazes tu. Deve-se livrar deles
o ouro e separar a pura Escritura das fezes e imundícies deles. E o que sempre
me esforcei para fazer, para que se tratasse das Sagradas Letras num lugar e,
noutro, das nugas deles. Também não nos deve abalar o fato de que "nada
se ganha com essas questões, exceto que, com o grande prejuízo que sofre a
concórdia, amamos menos enquanto queremos ser sábios demais". Nossa ques-
tão não é o que lograram os sofistas questionadores, e, sim, de que modo nos
tornamos bons cristãos, e não deves imputar a doutrina cristã o que os ímpios
fazem mal. Pois isso não tem nada a ver com o assunto, e poderias tê-lo dito
em outro lugar e poupado papel.

No terceiro capitulo continuas a nos transformar nesses modestos Epicu-


ros, e o fazes com outro gênero de conselho, não mais sensato do que os dois
anteriores, a saber: "Há certas coisas que são de tal gênero que, mesmo que
fossem verdadeiras e pudessem ser sabidas, não conviria expô-las a ouvidos
públi~os"'~.Também aqui, mais uma vez, confundes e misturas tudo, como é
teu costume, igualando as coisas sacras às profanas, inteiramente sem qual-
quer distinção, e mais uma vez incorreste em desprezo e injúria contra a Escri-
tura e contra Deus. Eu disse acima que as coisas que sáo transmitidas ou pro-
vadas nas Sagradas Letras não apenas são claras, mas também salutares, po-
dendo - e mais: devendo - por isso, ser seguramente divulgadas, aprendidas
c sabidas. Assim sendo, é falsa tua afirmação de que não devem ser expostas
a ouvidos públicos, se te referes as coisas contidas na Escritura. Se te referes
;I outras, nada nos dizem respeito e não vêm ao caso; antes, desperdiças papel
c tcmpo com tuas palavras. Além disso, sabes que não concordo com os sofis-
ias cm coisa alguma, de modo que é com razão que deverias ter-me poupado
c ilno dcvcrias ter-me censurado por causa dos abusos deles, pois é contra mim
i );i Vontade Cativa

quc deverias ter falado neste livro. Sei em que pecam os sofistas, e não preci-
so de ti coiiio meslre; já os repreendi suficieritemente. Quero ter dito isso de
uina vez por todas e o repito todas as vezes que nie iiiisturas com os sofistas
c oneras minha causa com a insãnia deles. Com efeito, ages de modo iníquo,
coiiio muito bem sabes.
Vejamos agora as razões de teu conselho: segundo sua natureza, Deiis es-
Iá iio antro do escarabeu ou até na cloaca (o que tu inesmo receias dizer, insi-
nuando que são os sofistas que garrulam assim) não menos do que no céu.
Mesmo que isso fosse verdade, pensas que rião seria razoável debatê-lo diarite
da multidão. Em primeiro lugar, que garrule quem quiser; nós iião debatemos
aqui acerca da ação dos homens, mas do direito e da lei, não como vivenios,
inas como devemos viver. Quem de nós vive e age corretamente em toda par-
te? Ora. riso é por essa razão que o direito e a doutrina são condenados; ali-
tcs, ele, 6 que nos condenam. Tu, porem. procuras essas coisas estrarilias na
(listãncia e recollies penosamente muitas coisas de toda parte, porque te contra-
ria aquele uiii ponto sobre a presciência de Deiis. Coiiio não consegues vencs-
lo coiii nenhum argumento, prociiras entrementes fatigar o leitor coin uni pala-
vi-cado inane. Pois bem, que seja; volteinos ao assunto. Em que direção ten-
clc essa tua opinião de que certas coisas não devem ser divulgadas? Acaso con-
i:is entre elas a questão d o livre-arbitiio? E~itãose voltará contra ti tudo quan-
i« eu disse acima sobre a necessidade de entender o livre-arbítrio. Ademais,
r não segues a ti mesmo e desistes de tua Diatribe? Se fazes bem em tra-
~ i o que
tiir do livre-arbítrio, por que o vituperas? se é mau, por que o fazes? Se, contu-
do, não contas entre elas, de novo foges entrementes do estado da questão e,
c~iinlorador verboso, tratas de coisas estranhas fora do lugar.
Tainbéni não tratas corretamente aquele exeinplo e condenas como inútil
que ?e deliata perante a multidão [a proposi~ãode] que Deus esta num antro
oii numa cloaca, pois pensas de modo deniasiadamrnte humano a respeito de
I Ieiis. Reconhe~oque liá certos pregadores levianos que, sem nenhunia reverên-
ciii 011 piedade, por desejo de gloria, ou por amor a qualquer novidade, ou
por dificuldade de guardar silêncio, garrulam e proferem iiugacidades de mo-
c111 cstremamente leviano. Estes, port'm, não agradam nem a Deus nem as pes-
soes, ainda que afirmem que Deus esti no mais alto dos céus. Onde, todavia,
I i i pregadores sérios e piedosos, que ensinam com palavras modestas, puras e
scrisatas, estes falam tais coisas diante da multidão sem perigo, mais ainda:
coin grande proveito. Acaso não devemos todos ensinar que o Filho de Deus
csicvc iio útero da Virgem e nasceu de seu ventre? Ora, qual é a diferença entre
< I vciitrc lilimano e qualquer outro lugar imiindo? E quem não poderia descic-
vci- isso de iiiodo repugnante e torpe? Entretanto, é com razão que condeiia-
IIIOS [ai\ pessoas, visto que abundam palavras puras com as quais podemos Li-
I;ii dcssn riccessidade também com decoro e graça. Do mesmo modo, <i corpo
(10 liiiilirio Cristo foi huinario conio o iiosso, e quc tiú de iiinis rcpiigii;itiic
i10 qiic c\lc'! I'orvciitiira C por esl;i r;i/io qiic rlcixereiiios (Ic <li/i,r ililc I > C I I Y
Da Vontade Cativa
Iiabitou corporalinente nele, como diz Paulo7"? O que é mais repugnante do
que a morte'? O que é mais horrível do que o inferno? Não obstante, o profe-
ta se gloria de que Deus está com ele na moite t o assiste no inferno7'.
Por conseguinte, uiii coração piedoso não receia ouvir que Deus esta na
inorte ou no iiiferno, e ambas as coisas são mais horríveis e repugiiantes do
que iiiii antro ou uma cloaca. Pelo contrário: uma vez que a Escritura testifi-
ca que Deus está em toda parte e tudo preenche76, não só diz que ele está ries-
ses lugare~'~,mas aprende e sabe necessariamente que ele lá está; senão, se eu
fosse preso por um tirano e jogado iium cárcere ou numa cloaca - o que acon-
teceu a muitos santos -, não me seria permitido iiivocar a Deiis ai ou crer
que ele me assiste, até que eu entrasse em algum templo ornado. Se nos ensina-
res a dircr tais iiugacidades acerca de Deus e te ofenderes com os lugares em
que está presente, por fim não no-lo permitirás que ele resida nem mesmo rio
céu, pois neiii os mais altos céus o contêm e sâo dignos dele. No eiitanto, co-
i110 disse, seglindo teu costume, pica7 de modo r50 odioso para agravar nossa
caiisa e torna-la execrável, pois viste que ela te é insupoitável e invencivel. Quaii-
to ao outro eieiiiplo que diz que há três deuses, reconheço que 6 ofeiisivo ensi-
iiá-lo. Tainbéni rião é verdade, e a Escritura não o ensina: são os sofistas que
ralain assim e inventaram uma nova dialética. Ora, que nos impoita isso?
Resta [a questão] a respeito da confissão e da satisfação: é de admirar com
que hábil prudência argumentas e, como costumas fazer, andas sobre ovos
eni toda parte, para 1120 dar a impressão nem de que simplesmente condenas
nossa causa iiem de que ofendes a tirania dos pontífices, o que é menos segu-
ro para ti. Assiiii, pois, deixarido entremerites de lado a Deus e a consciência
(pois o que importa a Erasmo o que aquele [sc. Deus] quer nessas coisas e o
que é converlieiite para esta [sc. consciência]'!). lanças-te sobre uma aparência
externa e acusas o vulgo, [dizendo] que, conforine sua malícia, abusa da prega-
va« da livre confissão e satisfação para a liberdade da carne, ao passo que, co-
1110 dizes,, atravéc da necessidade de confessar-se isso é de todas as maneiras
coibido. O argumento preclaro e egi-egio! E a isso se chama ciisinar teologia:
ligar por meio de leis e (como diz Ezeqiiiel 113.191) matar almas que nBo são
ligadas por Deus? É claro que, com esse argumento, nos suscitas toda a tirania
das leis pontificais como algo útil e salutar, já que também através delas se co-
il)c a malicia do vulgo. Não quero, porém, investir contra este ponto como ele
iiicrcceria; vou expor a questão coin brevidade. Um boiii teólogo ensina assim:
clcvc-se refrear n vulgo pela força externa da espada, quando tiver agido mal,
~.011iocnsiiia Paulo em Rm 13.4. No entanto, não se devem enredar suas coiis-
ciCiicins corii falsas leis, para vesá-Ias com pecados onde Deus quis que não
Iioiivc\\c pccados. Pois as consciências são ligadas unicamente pelo preceito
<li.I )cii\, de niodo que aquela tirania papal que ai se interpõe -e que sem razão

!,I , I. < '1 ?..'). 76 Cí. Ir 23.24.


C ' i . S I I 1~1.n. 77 SI.. "iii, ; i c i i i < i c ii;i ci<iuc;i"
Un Vontade Cativa

aterroriza e inata as almas interiormente e ein vão fatiga o corpo exteriormeii-


te - seja coiiipletamente afastada. Pois, niesino que exteriormente ela obrigue
à confissão e a outros ônus, com isso o corasão não é coibido, e, sim, exaspe-
rado mais ainda e levado ao ódio de Deus e dos Iioiiiens. E em vão que tortu-
ra o corpo em coisas externas, transforinando as pessoas em meros Iiipócritas,
de modo que os tiranos de tais leis nio passam de lobos rapaces, bandidos e
ladrões de almas78. E a estes tu tornas a nos recomendar, ó bom acoiiselliador
das alnias, isso é, és protetor dos mais cruéis assassinos de almas, para qiie en-
cham o mundo de hipócritas, de pessoas que blasfemam a Deus e o desprezam
no coração, para que, exteriormente, sejam refreados até certo ponto, como
se nXo houvesse outro modo de refrear, que não produz hipócritas e que acon-
tece sem perdição de consciências, como eu disse.
Aqui apresentas comparações, para mostrar o quanto és rico delas, além
de dar a impressão de que as utilizas de inodo extremamente apto: afiriiias
q u e há doenças em que o mal menor é suportá-las, e não suprimi-Ias, como a
lepra, etc. Tainbém acrescentas o exemplo de Paulo, qiie fez uma diferença eii-
Ir? as coisas que são permitidas e as que ~onvèm'~.Dizes qiie é licito dizer a
vcrdade, porém não é convenierite fazê-lo diante de qualquer um, iieiii eiii qual-
qiisr tempo, nem de qualquer modo. Que orador eloqüente! Ainda assiiii, não
ciilciides nada do que falas. Em sunia: tratas essa causa como se tu e eu tivés-
scmos um processo em que estivesse ein jogo uma quantia reparável de diiihei-
ri> ou qualquer outra coisa de pouquissima importância, cuja perda (já que se
iiata de coisa de muitíssimo menor valor que aquela paz externa) não deve
~il~alar alguém ao ponto de não ceder, fazer e tolerar, conforme a situação,
liara que não seja necessário causar tal tumiilto ao mundo. Portanto, dás a eii-
Iciider claramente que essa paz e tranqüilidade da carne te parecem muitissi-
mo mais \valiosas do que a fé, a consciência, a salvação, a palavra de Deus, a
glória de Cristo, mais do que o próprio Deus. Por isso te digo, e rogo que guw-
~lcsisto no fundo da mente: nessa causa eu viso uina coisa séria, necessária e
cicriia, de tal espécie e importância que é necessário afirmá-la ate a iiiorte,
iiicsiiio que o mundo todo não só tivesse que ser envolto em conflito e tumul-
10, iiias também ruísse num só caos e fosse reduzido ao nada. Se não coinpre-
ciides ou não és afetado por isso, trata de tuas coisas e deixa que o conipreen-
cI;iin e sejam afetados aqueles aos quais Deus o deu.
Pois, graças a Deus, não sou tão estulto e insano a ponto de querer defen-
ilcr c sustentar essa causa durante tanto tempo, com tanto ânimo, com tanta
c<iiistância (que tu chamas de pervicácia), enfrentando tantos perigos de vida,
i:iiiio ódio, tanta insídia, numa palavra: a fúria dos homens e dos demônios,
piir causa de dinheiro, que não tenho nem desejo, ou por causa da glória qiic,
iiics~iioque quisesse, não poderia obter nuni iniindo que me é tão infenso, oii
por ciiiis;~(Ia vida do corpo, que em nenhum moineiito me pode sei- certa. Acaso

~~~

18 ( ' I . 1 , ?J..27: M I 7.15; 1 i i I1i.H. 71) ( ' 1 . I <'i> 6.12; 111.21


Da Voiirnde Ciiiivii

crês que só tu teus um coração que se coniove com esses tumultos? Também
nós não somos de pedra nem nascemos das roclias de MarpessoaO.Mas, quan-
do não pode ser de outra maneira, preferimos sofrer o choque do tumulto tem-
poral. alegres na gra(a de Detis, por causa da palavra de Deus, que deve ser
afirmada com ánimo inveiicivel e iricoriuptivel, a ser triturados por tuniulto
eterno, sob a ira de Deus, com iusupoitável tormento. Queira Cristo que, assim
como desejo e espero, teu coração não seja assim; tuas palavras, poréni. certa-
niente soam como se, com Epicurosl, tenhas a palavra de Deus e a vida futu-
ra por fábulas, pois em teu ensino queres fazer com que, por causa dos poiití-
fices e principes ou por causa dessa paz, conforme a situação, deixeinos de la-
do a certissima palavra de Deus e cedamos. Se deixamos isso de lado, deixa-
mos de lado a Deus, a fé, a salvação e tudo quanto é cristão. Com quanto
niais acerto nos admoesta Cristo que, antes, desprezemos o mundo todoR2.
Tu, poréiii. dizes tais coisas porque não lês ou não observas que erra é a
sorte mais constante da palavra de Deus: por cniisa dela o muiido é tumuliua-
do. Cristo afirnia isso publicamente: "Não vim", diz ele, "trazer a paz, mas
a espada" [Mt 10.341. E em Lucas: "Vim trazer fogo a terra" [Lc 12.391. E
Paulo em 1 Co 6 [sc. 2 Co 6.51: "Em sedições", etc. E, no Salmo 2, o profe-
ta testifica abundantemente a mesnia coisa. afirmando qiie as naç6es estão
eni tumiilto, os povos fremem, os reis se iiisurgern, os príncipes conspirani con-
tra o Senhor e contra seu Cristo, como se dissesse que a multidão, a altitude,
ii riqueza, a poténcia, a sabedoria, a justiqa e tudo quanto é sublime no miin-
do se opõe a palavra de Deus. Vê em Atos dos Apóstolos o que acontece no
niundo somente por causa da palavra de Paulo @ara não falar dos outros após-
tolos), como ele sozinho agita gentios e judeus, ou, como dizem no mesiiio Iii-
a r os próprios inimigos, conturba todo o oi-be". Sob Elias turba-se o reino
de Israel, como se queixa o rei Acabea4. Quanto tumulto houve sob os outros
profetas! qiiaiido todos são mortos ou apedrejados, quaiido Israel e levado ca-
tivo para a Assiria, assiiii como Judá para a Babilõiiia. Acaso isso Coi paz? O
niuiido e seu deus não podem iiem querem a palavra do verdadciro Deiis; o
verdadeiro Deus não quer neni pode calar; ora, que outra coisa pode aconte-
cer senão tumulto no mundo todo se esses dois deuses estão em guerra iini con-
tra o olltro?
Portanto, querer fazer cessar esse tuiiiulto nZo é outra coisa do que que-
rcr Suprimir e proibir a palavra de Deus. Pois sempre qiie a palavra de Deus
vem, ela vem para mudar e inovar o orbe. Mas também os escritores gentios

80 "Ar rochas de hlarpessa" - citacão de Virifio, Arri. \'I.J71. Do monte Marpessa, na illia dc
Paror, se e x i r i a i>fomiaso rnkniore branco usado pelos cscultorcs.
RI Epici~io,c l ncin>;r 11 39.
xz ('i. MI tó 26.
H> i,:AI 14.5; 17.6
i I:, 18.17.
8.4 ('i,
11.8 Vii~ii:$dcCativa

;iicsi:iiii que não podem acontecer mudanças nas coisas sem agitação e tumul-
[(i.siiii, sem sangue. Cabe agora aos cristãos esperar e suportar essas coisas
coiii ãriirno intrépito, como diz Cristo: "Quando ouvirdes [falar] de guerras e
roiliores de guerras, não vos aterrorizeis. Importa que essas coisas aconte-
<:iiii primeiro, mas ainda não é imediatamente o fim" [Mt 24.61. E, se não vis-
sc csscs tumultos, diria que a palavra de Deus não está no mundo. Ao vê-los
:igorii, alegro-me de coraqão e deles faço pouco caso, certíssimo de que o rei-
1 1 0 do papa ruirá juntamente com seus adeptos, pois é principalmente a este
qiic a palavra de Deus, que agora ocorre, atacou. Vejo muito bem, prezado
I<i-asino, que em muitos livros deploras esses tumultos, a paz e a concórdia
l~crdidas.Além disso, fazes muitas tentativas para remediar, com boa intenção,
coiiio creio eu; porém, essa podagra se ri de tuas mãos medicinais. Pois aqui
i. verdade que navegas contra a correnteza, como dizes, e mais: extingues o in-
ci.iidio com palha. Deixa de deplorar, deixa de medicar; esse tumulto foi origi-
iinclo e é mantido por Deus, e não cessará enquanto não transformar todos
os :idversários da Palavra em lodo das ruas85. Contudo, é de se lamentar que
sW:i necessário lembrar isso a ti, tão grande teólogo, como a um aluno, já que
ilcvcrias ser mestre dos outros.
Aqui, pois, cabe teu belo aforismo de que no caso de certas doenças o
iii:iI iiienor é suportá-las e não reprimi-las. Só que tu não o usas de modo apro-
liri:ido, pois deverias dizer que as doenças que se podem tolerar com menor
~ i i ; i lsáo esses tumultos, agitações, turbações, sedições, facções, discórdias, guer-
i:is e coisas assim, através das quais, por causa da palavra de Deus, o orbe to-
i10 C concutido e dividido. Digo que essas coisas, por serem temporais, são to-
Iciiidas com mal menor do que aqueles antigos e maus costumes, em virtude
CIOS quais todas as almas perecerão necessariamente, a menos que sejam muda-
diis pela palavra de Deus. Se esta é suprimida, são suprimidos os bens eternos,
I)ciis, Cristo, o Espírito. Quanto mais preferível, porém, é perder o mundo a
~~cirlcr a Deus, o Criador do mundo, que pode criar de novo inumeráveis mun-
dos c é melhor do que uma infinidade de mundos! Pois o que são as coisas
iciiipordis em comparação com as eternas? Portanto, é preferível suportar es-
\;i Icpra dos males temporais a que todas as almas sejam trucidadas e eterna-
iiiciiie condenadas e o mundo seja pacificado e curado mediante o sangue e a
~icrdiçãodelas, pois nem pelo preço do mundo todo se pode redimir uma úni-
c:i iiliiia. Tu tens belas e egrégias comparações e sentenças, mas quando tratas
d:is coisas divinas, as aplicas de modo pueril, ou melhor, perverso, pois raste-
i;is i i o terra e não cogitas nada acima da capacidade de compreensão humana.
I'iris o qiie Deus opera não são coisas pueris, nem civis, nem humanas, e, sim,
iliviiios, que excedem a capacidade de compreensão humana. Por exemplo:
ii:io l~crccbesque esses tumultos e facções grassam pelo mundo por desíg~iioc
01ii:i (Ic Deus, c temes que o céu venha a ruir; eu, porém, graças a Dciis, o
Da Vontade Cativa
percebo muito bem, porque vejo outros tumultos e facções maiores no tempo
futuro, em comparação com os quais os de agora parecem o sibilo de uma le-
ve brisa ou o Iene sussurro da água.
Quanto ao dogma da liberdade de confissão e satisfação, ou negas ou ig-
noras que ele é a palavra de Deus. Esta é outra questão. Nós, contudo, sabe-
mos e estamos certos de que é pela palavra de Deus que a liberdade cristã é
afirmada, para que não nos deixemos escravizar por tradições humanas e leis.
Ensinamos isso abundantemente em outra parte, e, se queres experimentá-lo,
estamos prontos a dizê-lo também a ti ou a travar uma batalha. Existem não
poucos livros nossos sobre essas questõesa6.No entanto, [dirás], ao mesmo tem-
po devem-se igualmente tolerar e observar em amor as leis dos pontífices, se
assim talvez possam subsistir, sem tumulto, tanto a salvação eterna pela pala-
vra de Deus quanto a paz do mundo. Eu já disse acima que isso não é possí-
vel. O príncipe do mundo não permite ao papa e a seus pontífices que as leis
deles sejam observadas livremente, mas têm a intenção de cativar e ligar as cous-
ciências. O verdadeiro Deus não pode tolerar isso. Assim a palavra de Deus e
as tradições humanas pugnam em implacável discórdia, da mesma maneira co-
mo Deus mesmo e Satanás se opõem um ao outro e um destrói as obras e ar-
ruína os dogmas do outro, como se dois reis assolassem os reinos um do outro.
"Quem não é comigo", diz Cristo, "é contra mim" [Mt 12.301.
Quanto ao medo de que muitas pessoas propensas a flagícios abusarão
dessa liberdade, isso se inclui entre aqueles tumultos, como parte dessa lepra
temporal que se deve tolerar, e do mal que se deve suportar. E não se deve
dar-lhes tanta importância que, para coibir o abuso delas, se suprima a pala-
vra de Deus. Ainda que nem todos possam ser salvos, são salvos alguns por
causa dos quais veio a palavra de Deus. Estes amam com tanto maior fervor
e estão concordes de modo tanto mais santo. Pois quanto mal os homens ím-
pios também não cometeram antes, quando não havia Palavra? Ou melhor:
que bem fizeram? Acaso o mundo não transbordou guerra, fraude, violência,
discórdia e todos os crimes sempre, a ponto de Miquéias 17.41 comparar o me-
lhor deles a um espinho? De que achas que ele chamaria os demais? Agora,
contudo, que vem o Evangelho, começa-se a imputar a ele o fato de o mun-
do ser mau, ao passo que, na verdade, é através do bom Evangelho que come-
ça a luzir quão mau ele foi quando, sem o Evangelho, vivia em suas trevas.
Desta maneira os iletrados atribuem b ciências o fato de sua ignorância se tor-
nar manifesta com o florescimento delas. Esse é o agradecimento que retribuí-
mos a palavra da vida e da salvação. Quão grande, entretanto, cremos que foi
o temor entre os judeus quando o Evangelho desligou todos da lei de Moisés?
O que tão grande liberdade não parecia permitir aos homens maus nesse caso?
Ora, não é por causa disso que se omitiu o Evangelho; antes, os ímpios foram

80 I'. cx.. ciii: I>« Cativeiro BabilôiUco da Igreja, Obias Selecionadas, v. 2. p. 341; ibd. Traiado
<IL, M:iliiiiliii I.iilcio xihir: a 1.ihcrdade Cristã, p. 435.

41
i >;i V,irirade Cativa

iIi.ix;idos de parte, e aos piedosos se ordenou que não permitissem que a liber-
<I:idc desse ocasião a carneR7.
Também não tem validade a parte de teu conselho ou remédio em que di-
zcs: É licito dizer a verdade, porém não é conveniente dizê-la diante de qual-
qlier um, nem em qualquer tempo, nem de qualquer modo. E aduzes de ma-
iicii-a muito inepta a palavra de Paulo que diz: "Tudo me é licito, mas nem tu-
do convém" [l Co 6.121, pois aí ele não fala da doutrina ou do ensino da ver-
d;ide, como tu confundes suas palavras e as interpretas arbitrariamente. An-
ics, ele quer que a verdade seja pregada em toda parte, em Lodo tempo e de
iodo modo, de maneira que também se alegra que Cristo seja pregado por oca-
sião e inveja, e atesta [isso] publicamente com sua própria palavra, [dizendo
q~ic]se alegra seja lá de que modo Cristo for pregados8. Paulo fala da obra e
c10 uso da doutrina, a saber, dos que se jactavam da liberdade cristã, buscavam
scii próprio proveito e não tinham nenhuma consideração pelo escândalo e pe-
I;i ofensa que causavam aos fracos. A verdade e a doutrina devem ser prega-
iliis sempre, publicamente e com constância, nunca devendo ser torcidas e ocul-
[;idas, pois não há nenhum escândalo nelas. Elas são a vara da retidão8'. E
iliicm te deu poder ou direito de prender a doutrina cristã a lugares, pessoas,
iciiipos e situações, quando Cristo quer que ela, libérrima, seja divulgada e rei-
iic iio orbe? Com efeito, "a palavra de Deus não está presa" 12 Tm 2.91, diz
1';ililo; e Erasmo haverá de preridê-ia? Deus não 110s deu uma palavra que ia-
,:i cscolha de lugares, pessoas e tempos. Quando Crislo diz: "Ide por todo o
iiiiiiido" [Mc 16.151, ele não diz: "Ide para este lugar, mas não para aquele",
i.ciiiio [faz] Erasmo. Da mesma forma: "Pregai o Evangelho a toda criatura"
IMc 16.151; ele não diz: "Entre algumas, porém não entre outras". Em suma,
i i i 110s prescreves acepção de pessoas, lugares, modos e tempos oportunos no
iiiiiiistério da palavra de Deus, ao passo que uma das grandiosas partes da gló-
iria da Palavra é o fato dc, como diz Paulogo,não haver acepção de pessoas e
I Ic~isnão olhar para a pessoa. Vês mais uma vez de que modo desconsidera-
do te lanças contra a palavra de Dcus, como se preferisses de longe teus pró-
[li-iospensamentos e conselhos.
Agora, se te pedirmos que discirnas os tempos, pessoas e modos de dizer
; i vcrdade, quando terminarás? Antes que tenhas estatuido uma única regra
i.i:rtn o tempo se encerrará c o mundo chegará a seu fimgi. Onde ficará entre-
iiiciiici o oficio de ensinar? onde as almas a serem ensinadas? E de que mo-
ilo lioderias [estatuir regras], já que não conheces uma única relação das pessoas,
Da Vontade Cativa
dos tempos e dos modos? E mesmo que as conhecesses perfeitamente, não co-
nheces o coração dos seres humanos. A menos que, para ti, o modo, o tem-
po e a pessoa sejam que ensinemos a verdade de tal maneira que o papa não
se indigne, o imperador não se ire, os pontífices e príncipes não se irritem, não
acontecam tumulto e agitação no orbe, muitos não se ofendam e se tornem
piores. Viste acima que espécie de conselho é este. No entanto, houveste por
bem assim demonstrar tua habilidade retórica para dizer alguma coisa. Quan-
to melhor seria, pois, que nós, miseros homens, atribuíssemos a Deus, que co-
nhece os corações de todos, essa glória de prescrever o modo, as pessoas e os
tempos de dizer a verdade. Pois ele sabe o que, quando e como deve ser dito
a cada um. Agora, porém sua prescrição é que seu Evangelho, necessário pa-
ra todos, não fosse prescrito para nenhum lugar e nenhum tempo, mas fosse
pregado a todos, em todo tempo e em todo lugar. E acima provei que as coi-
sas transmitidas nas Escrituras são de tal espécie que são patentes para todos,
devem ser necessariamente divulgadas e são salutares, como tu mesmo estatuís-

I
te em tua Paiaclese, que é melhor do que este conselho de agorag2. Aqueles
que não querem que as almas sejam redimidas, como o papa e os seus, a eles
cabe prender a palavra de Deus e impedir aos homens o acesso a vida e ao rei-
no dos céus, para que eles mesmos não entrem e não permitam que os outros
entrem93. E tu, Erasmo, estás a serviço do furor deles com esse teu conselho
pernicioso.
E com a mesma prudência que aconselhas depois que, "se alguma coisa
I foi definida incorretamente nos concílios, não se deveria admiti-lo publicamen-

I te, para não dar oportunidade de desprezar a autoridade dos pais"94. É claro
que o papa quis ouvir isso de ti, e o ouve com mais prazer do que ao Evange-
lho. Ele seria muitíssimo ingrato se, em troca, não te honrasse com um píleo
cardinalício juntamente com os bens [correspondentes]. Entrementes, porém,
Erasmo, que farão as almas que foram ligadas e mortas por aquele estatuto
iníquo? Isso não te importa? Tu, todavia, és sempre de opinião ou fazes de
conta que és de opinião que se podem observar estatutos humanos sem peri-
go ao lado da pura palavra de Deus. Se pudessem, eu concordaria sem dificul-
dade com essa tua opinião. Se, pois, o ignoras, digo mais uma vez: não se po-
de observar estatutos humanos junto com a palavra de Deus, porque aqueles
amarram as consciências, ao passo que esta as liberta, e eles se combatem mu-
tuamente, como água e fogo, a menos que sejam observados livremente, isso
é, como estatutos que não amarram. É isso que o papa não quer nem pode
querer, a não ser que queira que seu reino seja destruido e tenha fim. Esse rei-
no só subsiste através de laços e vínculos impostos as consciências, que o Evan-
gelho afirma serem livres. Em conseqüência, portanto, a autoridade dos pais
I
I);i Vi,iitade Cativa

~lcvcser considerada indiferente, e os estatutos propostos incorretamente -


~lcssaespécie são todas as coisas definidas sem a palavra de Deus - devem
sei- rompidos e lançados fora, pois Cristo é superior a autoridade dos pais.
I:iii suma: se esta é tua opinião sobre a palavra de Deus, ela é impia; se é so-
hrc outras coisas, não nos importa a verbosa disputa de teu conselho. Nós de-
lhatemos a respeito da palavra de Deus.
Na última parte do Prefácio, dissuadindo-nos com seriedade desse gênero
de doutrina, crês que quase granjeaste a vitória. Dizes: "Que [poderia ser]
iiiais inútil do que divulgar ao mundo este paradoxo: o que fazemos não é fei-
i11 por livre-arbítrio, mas por mera necessidade? E aquela [afirmação] de Agos-
iiiilio: "Deus opera o bem e o mal em nós; remunera suas boas obras em nós
c )>tinesuas más obras em nós"y5. Neste ponto és rico em dar ou, antes, em
rcclamar explicações: "Que grande janela para impiedade", dizes, "esta pala-
vi;i abriria ao vulgo, se propagada aos mortais? Qual é a pessoa má que corri-
1:iri siia vida? Quem crerá que é amado por Deus? Quem lutará com sua car-
iic?" Admira-me que, em tão grande veemência e esforço, não tenhas tc lem-
11i:ido também da causa e dito: "Onde ficará então o livre-arbítrio?" Caro
I(i;isino, também eu te digo mais uma vez: se crês que esses paradoxos são in-
vciicões humanas, por que contendes? por que te agitas? contra quem falas?
I'oiventura existe hoje em dia alguém no orbe que tenha atacado os dogmas
Iiiiiiiaiios com maior veemência do que Lutero? Portanto, não temos nada a
vci com essa admoestação.
Se, porém, crês que esses paradoxos são palavra de Deus, onde está tua
vviporiha? onde o pudor? onde - já não digo aquela modéstia de Erasmo,
iiins - o temor e a reverência devidos ao Deus verdadeiro? Como afirmas que
iiio se pode dizer nada mais inútil do que essa palavra de Deus? Naturalmen-
ic leu Criador aprenderá de ti, criatura sua, o que é útil e o que é inútil pregar,
c ;iquele Deus estulto ou ignorante até agora não sabia o que deve ser ensina-
do, até que tu, seu mestre, lhe prescrevesses o modo de saber e de mandar, co-
iiio se ele ignorasse, se tu não lho ensinasses, que o que se segue desse parado-
\ < I 6 aquilo que tu inferes. Se, pois, Deus quis que tais coisas fossem ditas pu-
I>licamentee divulgadas, sem considerar o que se seguiria, quem és tu para ve-
(:i-lo? Na Epístola aos Romanos o apóstolo Paulo expõe abertamente as mes-
iiiiis coisas, não num canto, e, sim, em público e ante todo o mundo, com to-
<I;I :i liberdade, com palavras mais duras ainda, dizendo: "Ele endurece a quem
(liicr" [Rm 9.181. E mais uma vez: "Deus, querendo tornar conhecida sua ira",
r i c . IRm 9.221. Que, porém, é mais duro [para a carne] do que aquela palavra
iIc ('iislo: "Muitos são chamados, poucos os escolhidos" [Mt 20.16]? E mais
iiiiin vez: "Eu conheço os que escolhi" [Jo 13.181. É claro que, em tua opinião,
icid;is cssas coisas são de tal espécie que nada mais inútil pode ser dito, pois a
1):iriiidelas pessoas impias são levadas ao desespero, ódio e blasfêmia.
Da Vontade Cativa
Aqui, como vejo, julgas que a verdade e utilidade da Escritura devem ser
pesadas e julgadas segundo a opinião dos homens, e dos mais ímpios deles,
de sorte que somente aquilo que Ihes agradar ou Ihes parecer tolerável será ver-
dadeiro, divino e salutar, enquanto que o contrário sem demora será inútil,
falso e pernicioso. Que visas com esse conselho senão que as palavras de Deus
sejam dependentes, fiquem de pé e caiam conforme o arbítrio e a oportunida-
de dos homens? A Escritura, ao contrário, diz que tudo fica de pé e cai pelo
arbítrio e pela autoridade de Deus, numa palavra, que toda a terra deve calar-
se a face do Senhorq6. Assim deveria falar quem imaginasse que o Deus vivo
1 não passassse de algum rábula leviano e ignorante a discursar em alguma tribu-
na, e cujas palavras se podem, se quiseres, interpretar, aceitar, refutar confor-
me o agrado, dependendo se as pessoas ímpias são por elas movidas ou afetadas.
Aqui revelas claramente, prezado Erasmo, com que sinceridade aconselhas-
tc acima que se deve venerar a majestade dos juizos divinos. Onde se tratava
dos dogmas da Escritura e absolutamente não havia necessidade de reverenciar
coisas abstrusas e ocultas, porque não há tais coisas, nos ameaçavas, utilizan-
do palavras muito religiosas, com a gruta de Corícioq7,para que não irrompês-
semos [nela] de forma precipitada, de sorte que nos amedrontaste tanto que
quase nos afastaste completamente da leitura da Escritura, cuja leitura Cristo
e os apóstolos assim nos urgem e aconselham, bem como tu mesmo em outra
parte. Aqui, contudo, onde se chegou não aos dogmas da Escritura, nem tão-
só a gruta de Corício, mas verdadeiramente aos reverendos segredos da majes-
tade divina, a saber, por que Deus obra da maneira descrita, aí rompes as trau-
cas e cometes uma invasão, por pouco não blasfemando. Que indignação não
mostras para com Deus porque ele não permite ver o plano e a razão desse seu
juízo! Por que não pretextas obscuridades e ambigüidades também aqui? Por
que tu mesmo não te absténs de inquirir e dissuades os outros de inquirir as
coisas que Deus quis que nos fossem ocultas e não revelou através das Escritu-
ras? Aqui teria sido necessário tapar a boca com o dedo, reverenciar o que cs;
tá latente, adorar os secretos desígnios da majesiada e clamar com Paulo: "O
homem, quem és tu para contenderes com Deus?" [Rm 9.201.

Quem se empenhará em corrigir sua vida? perguntas. Respondo: ninguém,


e também ninguém poderá fazê-lo, pois Deus absolutamente não se importa
com teus corretores sem o Espírito, pois são hipócritas. Os piedosos, porém,
serão corrigidos pelo Espírito Santo; os demais perecerão incorrigidos. Pois
tampouco Agostinhoy8 diz que não serão coroadas as boas obras de nin-

96 Cf. Hc 2.20.
97 Cf. n. 52.
98 C'[. I* ~.o,rripriorieel p a f i n , c. 7,16 (Mignc, ser. lar. 44, p. 925).
guém ou que serão coroadas as boas obras de todos, e, sim, de alguns. Por
csla razão, haverá alguns que corrigirão sua vida. Dizes: Quem crerá que é
timado por Deus? Respondo: nenhurri ser humano crerá e nem poderá crer.
Os eleitos, porém, crerão. Os demais perecerão sem crer. indignando-se e blas-
kinaiido, como tu fazes aqui. Portanto, Iiaverá alguns que crerão. Quanto a
afirmação, porém, de que, através desses dogmas. se abriria uma janela para
a impiedade, que seja; eles [sc. as pessoas impias] pertencem à suprameiiciona-
da lepra do mal que se deve tolerar. Não obstante, com tais dogmas ao mes-
mo tempo se abre, para os piedosos e eleitos, a porta para a justiça, a entra-
da para o céu e o caminho para Deus. Se, seguindo teu conselho, nos abstivés-
semos desses dogmas e ocultássemos essa palavra de Deus dos seres humarios.
dc modo que cada uiii, enganado por uma falsa convicção a respeito da salva-
cão, não aprendesse a temer a Deus e a se humilliar, para que, por meio do
ccmor, por fim chegasse a graça e ao amor, então teriamos fechado muito bem
tua janela, mas, em lugar disso, abriríamos, para nós mesmos e para todos,
portas duplas, ou melhor, abismos e voragens, não só para a impiedade, mas
para as profundezas do inferno. Assim nós mesmos nio entraríamos no céu,
alCin de impedir que outros entrasse~ii~~.
"Qual é, pois, a utilidade oii necessidade de divulgar tais coisas, já que
tantos males parecem provir delas?"'" Respondo: seria suficiente dizer: Deus
quis que elas fossem divulgadas. Não se deve perguntar pela razão da vonta-
de divina, mas simplesmente adorCla e dar a glória a Deus, visto que, como
ele é o único justo e sábio, não farb injustiça a ninguém nem poderá agir de
tiiodo estulto ou irrefletido, embora a nós as coisas pareçam diferentes. Os pie-
dosos se dão por satisfeitos com esta resposta. No entanto, para fornecer argli-
tr1eiiros em abundância, [acrescento o seguinte]: duas coisas exigem que se pre-
guc isso. A primeira é a humilhação de nossa soberba e o conhecimeiito da
graça de Deus; a segunda é a própria fé cristã.
Em primeiro lugar, Deus certaniente prometeu sua graça aos bumilliados,
isto é, aos que se lamentam e desesperam. Ora, o ser humano não pode humi-
Iliar-se completamente enquanto não souber que sua salvação em nada depen-
dc de suas forças, desígnios, esforços, vontade e obras, mas totalmente do ar-
Iiitrio, designio, vontade e obra de um outro, a saber, tio-somente de Deus.
I'ois enquanto estiver persuadido de poder fazer ao nienos um pouquiiilio em
prol de sua salvação, ele permanece na confiança ern si mesmo e não desespe-
ra inteiramente de si; por esta razâo não se humilha diante de Deus, mas presu-
iiic, ou espera, ou pelo menos deseja um lugar, um tempo ou alguma obra pe-
los quais possa chegar por fim a salvaqão. Mas quem não duvida absoluiainen-
ir iliie tudo depende da vontade de Deus, este desespera inteiramente em reia-
\.:i<, e si mesmo, nada escolhe, e, sim, espera que Deus obre, este está próxi-
itto de graça, de iirodo que será salvo. Assim, pois, estas coisas são divulgadas por
Da \'ontade Cativa
causa dos eleitos, para que, deste modo humilhados e reduzidos a iiada, sejam
salvos. Os demais resistem a essa humilhaçào, mais ainda: condenam que se
ensine esse desespero em relação a si mesmos e querem que Ihes seja deixada
alguma coisa, por pouco que seja, que possam [fazer]. Estes permaneiicein ocul-
tamente soberbos e adversários da grasa de Deus. Esta Ç, digo eu, unia das ra-
zões: que os piedosos, huinilliados, reconheçrun, invoquem e aceitem a promes-
sa da graça.
A outra razão é que a fé tem a ver com coisas que não se vêem'0i. Por
conseguinte, para que haja lugar para a fé, é necessário que todas as coisas
I que se crêcin sejam abscônditas. Ora, não podem estar mais remotarilente abs-
conditas do que se estão sob o contrário do que se tem a vista, se percebe e
experimenta. Assirii, quando vivifica, Deus o faz riiataiido: quando justifica,
o faz iiicrinunando; quando leva ao céu, o faz conduzindo ao inferno, como
diz a Escritura: "O Senhor mata e vivifica, leva ao inferno e retira" (1 Sm
2.6). Aqui iião é o lugar para falar disso em mais detalhes. Para quem leu nos-
sos escrito^]^" isso é conhecidíssimo. Assim ele oculta sua eterna clemência e
misericórdia sob a ira eterna, a justiça, sob a iniquidade. Este é o grau supre-
mo da fé: crer que é clemente quem salva tão poucos e condena tantos, crer
que é justo quein, por sua vontade, nos torna necessariamente condeiiáveis,
de modo que parece, como refere Erasmo, que ele se deleita com os tormen-
tos dos miseráveis e que é mais digno de ódio do que de amor. Se, portanto,
eu pudesse de algum modo compreender de que maneira é misericordioso e
justo esse Deus que mostra tão grande ira e iniquidade, a fé não seria necessa-
ria. Agora, como não se pode compreender isso, há lugar para exercitar a fé
quando se pregam e divulgam tais coisas, assim como, quando Deus inata, a
fé na vida é exercitada na morte. Que isto baste quaiito ao Prefácio.
Desse niodo se aconselham mais corretaiiieiite os que debateni acerca des-
ses paradoxos do que com teu conselho. Com ele queres dar um coiiselho a im-
piedade deles por meio do silêncio e da abstinência. No entanto, iiada conse-
gues com isto. Pois se crês ou suspeitas que são verdadeiros (uma vez que se
1 trata de paradoxos de não pouca importância), farás, com a divulgação dessa
tua admoestasao, com que agora todos, naturalmente excitados por tiia conten-
da, vão querer saber tanto mais se esses paradoxos são verdadeiros, pois os
moitais têiii um desejo iiisaciável de escrutar coisas secretas, principalmente
quando mais queremos que permaneçam ocultas. Até hoje nenhum de nós deu
tanto ensejo a divulgá-los quanto tu com essa religiosa e veemente admoesta-
ção. Terias agido de modo muito inais prudente se calasses completamente a

101 Cf. Hb I1.l.


102 Os escrito5 eni que Lutera o<pi>i iiiais deialhadamente seiir Dinsamcntos sobre o "Deus abscõn-
diio" s8o: O Debate de Hejdelbcx, (cf. Obras Seleoonadas v. 1 , pp. 355s. = L\K 1,353-365);
I'rclec:ii> ,sobre Isaias, 1527-29, WA 25.87~~. Cf. ainda a monografia: Waither von Loewenich.
A iii!liii:i;i <i:<Cruz de l.iiteio, São Leopoldo, Sinodal 1988, cspecialrnente o cap. I.
rcspeito desses paradoxos de que nos devemos acautelar, se quisesses que teu
ilcscjo fosse cuiiiprido. Agoi-a o fato est8 consumado, depois que negas inteira-
iiiciite que rão verdadeiros. Eles nào poderão ser ociiltos; antes. atravis da ~ u s -
licita de que são verdadeiros. atrairão a todos para que os investiguem. Portari-
10,se queres que outros silenciem, ou nega que eles sejam verdadeiros o11 sileii-
cia tu mesmo por primeiro.
Vejamos brevemente o outro paradoxo, para n2o permitir qiie seja tacha-
clo de extremamente pernicioso: tiido o quc fazemos é feito não por livre-arbi-
trio, e, sim, por mera necessidade. Aqui digo o segiiiiite: quando tiver sido pro-
v;ido que riossa salvação depende unicamente da obra de Deus, sem nossas for-
cas e desígnios - o que espero provar abaixo, no corpo deste debate -, não
sc segue claramente que, quando Deus não está em iiós com sua obra, todas
;I\ coisas qiie fazemos são más e iiós necessariamente obranios coisas sem va-
Iiir para a salvaçao? Pois se não sonios nós, e, sim, tão-somente Deus que ope-
i-;I a salvacão eni nós, nào operaiiios nada de salutar antes da obra dele, quer
qiiriramos, quer não. Digo "necessariamente", iião "por coação", iiias, co-
iiio dizeni eles. "por necessidade de iniutabilidade, não de çoayão". Isso é:
iliiando o ser humano está sem o Espírito de Deus, não faz o tnal por violên-
cia, contra a vontade, como se fosse arrastado pelo pescoço, do mesmo iiio-
do que um ladrão ou bandido é levado para o castigo contra a vontade, mas
o ktz espontaiieamente, com voiitade e com prazer. Ora, por suas próprias for-
(;I? cle não pode abandonar. repriinir oii mudar esse prazer ou voiitade de ra-

~ c i mas, coiitinua tendo voiitade c prazer. Mesnio que para fora seja coagido
;i fotça a fazcr outra coisa, interiormente a vontade permanece adversa e ele
sc indigna com quem o coage ou lhe resiste. Não se indignaria, contudo, se
fosse mudada e se conformasse a força de boa vontade. É isso qiie chamamos
115 pouco de "necessidade de iinutabilidade", isso é. o fato de a vontade não
~ic~der iniidar-se e voltai-se para olitro lugar; atires. é mais estimulada a querer
q i i ~ n d ose lhe resiste. Prova disso C. siia indignaçno. Ela não faria isso se fos-
\c livre ou tivesse um livre-arbítrio. Pergunta a experiência o quanto é impossi-
vcl persuadir pessoas que se apegaram a alguma coisa com afeto. Ou, se cedem,
ccdcin a Força ou a maior vantagem de outra coisa. Jamais cedem espontane-
;iiiiciite. Se. porém, não possueni tal afeto, deixam que as coisas andeni e se
. .. coiiio quiserem.
p1<,iiii
I'or outra parte, se Deus opera em nós a vontade, por sua vez, mudada e
I~l:iiidiciosainenteLocada pelo Espírito de Deus, qiier e faz por puro prazcr.
~~rI~pctisâo c espontaneidade, não por coação, de modo que iião pode ser mu-
<l;ida para outra coisa por nada qiie lhe seja contrário neni ser vencida ou co-
:igiil;i pelas portas do inferno; antes, continua querendo e amando o bem e tcii-
<li) ~imxcrnele, assim como anteriormente quis e amou o mal e tcvc prazer nc-
Ic. 'liiiiihéni isso o prova a experiência: quão iiiveiiciveis e constaiitcs são os
Iii)iiiciis siiiiios! Quando sâo coagidos pela forçu ;I raxer ouira voisn, s5o :iiii-
<I:\i i i ; i i h ciiiiiiiilsdos a qiierci. [<i bciiil, i i \ h i i i i c~irrii~ o kigo 2 iiiai\ i i i l ' l ; ~ i i i : ~ ~ l ~ ~
,I,> i111c, cxli~iliiliclii vciito. Assiiii S ~ I I ~I : I I,I I,~ I ~ I I I:iqiii riao l i i qii;iIqiicr lilicr(l:i
Da Vontade Cativa
de ou livre-arbítrio para voltar-se para outro lugar ou querer outra coisa enquan-
to perdurarem o Espírito e a graca de Deus no ser humano. Em suma: se esta-
mos sob o deus deste skuloio3,seiri a obra e o Espírito do Deos verdadeiro,
soinos mantidos cativos a vontade dele, como diz Paulo a Timóteo", de iiio-
do que só podemos querer o que ele quer. Pois ele 6 aquele homem forte e ar-
mado que guarda sua casa de modo que os seus estejam em paz 'O5, para que
não suscitem contra ele qualquer sentimento ou pensamento. Do contrário, o
reino de Satanás, dividido contra si mesmo, não subsistiri~i;Cristo, porém, afir-
ma que ele s u b s i ~ t e ' ~E. fazemos isso coni vontade e coni prazer, segundo a
natureza da vontade. Se ela fosse coagida, não seria vontade, pois a coação é,
antes, uma não-vontadeio7,por aisini dizer. Todavia. se vem um mais forte e,
teiido-o [sc. a Satanás] vencido, nos toma como seu despojo, iiiais iiina vez,
por seu Espírito, somos seus servos e cativos (ainda que isso seja unia Iiberda-
de régia), de modo qiie queremos e fazemos com prazer o que ele quer. Des-
sa maneira a vontade humana está colocada no meio, como um jumento. Se
Deus está sentatlo nele, ele quer e vai como Deus quer, coiiforme diz o salmo:
"Tornei-me como iim jumento, e estou sempre coiitigo" [SI 73.22s.l. Se Sata-
liás está sentado riele, ele quer e vai como quer Satarih, e não está em seu ar-
bítrio correr para um dos dois cavaleiros ou prociirá-lo; antes, os próprios ca-
valeiros lutain para o obter e possuir.
E se eu provar, a partir de tuas próprias palavras, com as quais afirmas
o livre-arbítrio. que 11ao Iiá livre-arbítrio? para demonstrar que negas iniprii-
dentemente o qiie procuras afiririar com tão grande ~~rudência. Se eu iião fizer
isso, juro que estão revogadas todas as coisas que escrevo contra ti eni todo
este livro e que esta confirmado tudo o que tua Diatrib? afirma e busca contra
niim. Tii tornas a força do livre-arbitrio limita<líssimae de urna espécie tal que
é coiiipletai~ieiiteineficaz sem a graça de Deus. Nào o admites? Agora prrgun-
to e peço: se a graça de Deus está ausente ou é separada daquela forca liinita-
dissiiiia, que faz esta? E ineficaz, dizes tu, e 1150 làz nada de bom. Por corise-
giiinte, não faz o que quer Deus ou sua graça, visto que supusemos que a gra-
ça de Deus está separada dela. Ora, o que não é feito pela graça de Deus não
é bom. Segue-se, por isso, que seni a graça de Deus o livre-arbítrio absoluta-
niente não é livre, e, sim, imutavelrnente cativo e senso do mal, já que por si
só não pode voltar-se ao bem. Constaiido isso, admito que tornes a força do
livre-arbítrio iiáo apeiias limitadissima; torna-a angélica, toriia-a, se podes, in-
teiramente divina. No entanto, se acrescentares esse desagradável apêndice, di-
zeiido que ele é irieficaz sem a graça de Deus, sem demora lhe substraiste to-
da força. O que é uma força ineficaz senão claramente força nenhuma? Dizer,
pois, que o livre-arbítrio existe e tem certa força, poréni ineficaz, é aquilo que

103 CI. CI. 2.2s. 106 Cf. Lc 11.18.


IíU ('I.2 I'in 2.26. 107 riolunlas, no original
105 ('I' 1.c 11.215.
os sofistas chamam de "contradição em si mesmo"'0R, como se dissesses que
existe um livre-arbítrio que não é livre, como se dissesses que o fogo é frio e
a terra é quente. O fogo pode ter a força do calor, até do calor infernal, mas
se não arde nem queima, e, sim, está frio e esfria, então não me falem em fo-
go, muito menos de quente, a menos que queiras ter um fogo pintado ou ima-
ginado. Mas se chamássemos de força do livre-arbítrio aquela força pela qual
o ser humano é apto a ser arrebatado pelo Espírito e imbuído da graça de
Deus, como ser criado para a vida ou morte eterna, então estaríamos falando
corretamente. Pois também nós confessamos essa força, isso é, aptidão, ou,
como falam os sofistas, qualidade dispositiva e aptidão passiva. Quem é que
não sabe que ela não foi dada as árvores nem as bestas? Pois, como se diz,
ele não criou o céu para os gansos.
Portanto, é coisa decidida, também por teu próprio testemunho, que faze-
mos tudo por necessidade e nada por livre-arbítrio, porque a força do livre-ar-
bítrio nada é, não faz nem pode fazer o bem na ausência da graça, a menos
que, mediante uma nova significação, queiras chamar a eficácia de realização
completa, como se o livre-arbítrio pudesse começar e querer, mas não realizar
completamente, o que não creio. Depois falarei mais amplamente sobre isso.
Segue-se então que o livre-arbítrio é um nome inteiramente divino, que não
pode competir a ninguém exceto tão-somente à majktade divina. Pois, como
canta o salmoLw,ela pode e faz tudo o que quer no céu e na terra. Se é atri-
buído aos homens, isso não seria mais do que se Ihes fosse atribuída a própria
divindade, e não pode haver sacrilégio maior do que esse. Em conseqüência,
os teólogs deveriam abster-se desse vocábulo, quando querem falar a respeito
do poder humano, e deixá-lo tão-somente para Deus. Ademais, deveriam su-
primi-lo da boca e da fala de seres humanos e reivindicá-lo, como nome sagra-
do e venerável, para seu Deus. E se atribuíssem alguma força aos seres huma-
tios, deveriam ensinar que se a designasse com outro nome que não "livre-ar-
bítrio", principalmente porque nos é conhecido e manifesto que o povo é mise-
ravelmente enganado e seduzido com esse vocábulo, visto que, ao ouvi-lo, pen-
sa em algo muito diferente do que pensam e debatem os teólogos. Pois "livre-
~irbítrio" é um termo muitíssimo magnífico, amplo e rico, com o qual o povo
julga que se designa (como o exigem o sentido e a natureza do vocábulo) a
Iòrça que pode voltar-se livremente para qualquer uma das duas [direções, sc.
para o bem ou para o mal], e que essa força não cede nem está sujeita a nin-
guém. Se ele soubesse que é diferente, e que com ele mal-e-mal se designa uma
pcqueníssima centelha e que por si só ela é completamente ineficar, cativa e
scrva do diabo, seria de admirar que não nos apedrejassem como zombeteiros
c enganadores que falam uma coisa e querem dizer bem outra, sem que sequer
conste o que queremos dizer ou haja acordo quanto a isso. Pois quem fala
Da Vontade Cativa

de modo sofístico (diz o Sábio1Io) é digno de ódio, principalmente se o faz


em questões relativas a piedade, em que está em perigo a salvaçâo eterna.
Como, pois, perdemos - ou melhor, nunca tivemos - a significação e
o conteúdo de um vocábulo tão glorioso (como queriam os pelagianos1I1, que
também foram enganados por esse vocábulo), por que mantemos tão pertinaz-
mente um vocábulo inane, para perigo e engano do povo fiel? Não é outra a
sabedoria com que atualmente reis e príncipes também mantêm ou reivindicam
títulos inanes de reinos e regiões e deles se jactam, quando entrementes são
quase mendigos e têm tudo menos esses reinos e regiões. Entretanto, isso é to-
lerável, já que não enganam ou iludem a ninguém, mas se nutrem com sua
própria vaidade, [ainda que] absolutamente sem qualquer proveito. Aqui, po-
rem, há perigo para a salvacão e engano extremamente prejudicial. Quem não
haveria de ridicularizar ou antes considerar odioso o intempestivo inovador
de vocábulos que, contra o uso de todos, tentasse introduzir um modo de fa-
lar segundo o qual chamaria um mendigo de rico, não porque possuísse algu-
ma riqueza, mas porque talvez pudesse lhe doar a sua - e fizesse isso como
que seriamente, sem nenhuma figura de linguagem, como, por exemplo, a an-
tífrase ou a ironia? Ou se chamasse uma pessoa mortalmente doente de perfei-
tamente sã porque uma outra pessoa lhe poderia dar sua saúde? Ou se chamas-
se um idiota totalmente iletrado de muito letrado porque alguma outra pessoa
talvez lhe pudesse dar [sua] cultura? Assim soa também aqui: o ser humano
tem livre-arbítrio se Deus lhe conceder o seu. Com esse abuso de linguagem
qualquer pessoa poderia jactar-se de qualquer coisa. Por exemplo: aquele é se-
nhor do céu e da terra, se Deus lho conceder. Isso, porém, não condiz a teólo-
gos, e, sim, a histriões e embusteiros. Nossas palavras devem ser próprias, pu-
ras, sóbrias e, como diz Paulo, sãs e irrepree~siveis"~.
Se não queremos omitir completamente essa palavra - o que seria o mais
seguro e piedoso -, devemos ensinar que se a use de boa fé, de tal modo que
se conceda ao ser humano um livre-arbítrio não com respeito ao que lhe é su-
perior, mas apenas ao que lhe é inferior, isso é: ele deve saber que em relação
a suas faculdades e posses tem direito de usar, fazer e omiti-las segundo o li-
vre-arbítrio, embora também isso seja regido unicamente pelo livre-arbítrio de
Deus, conforme lhe aprouver. Em relação a Deus, porém, ou nas coisas que
concernem a salvaçâo ou condenação, ele não tem livre-arbítrio, mas é cativo,
sujeito e servo ou da vontade de Deus ou da vontade de Satanás. Disse isso a
respeito das partes principais de teu Prefácio, que contêm praticamente toda

110 Cf. Pv. 6.(16)17.


- . da Iereia
111 Pela~iaiios:enioo . . antiga,
. secuidor
. -
da doutrina do monee bretão Pelápio
. íca.
. 400) e
de seu amigo Celéstio. Negava o cativeiro do arbitiio humana, a perversão da natuem huma-
na e o pecado original. Agostinho foi o mais ferrenho adversário dessa doutrina. A Igreja deci-
diii-se ci>iitrao pelagianisrna,mesmo que -segundo Lutero -tenhamantidoum semipelagianismo.
112 <'i. '1'1 2 . 8 .
I );i Vontade Cativa

;i questão, quase mais do que o corpo do livro que se segue. Contudo, a su-
nia delas foi tal que poderia ter sido explicada através do seguinte breve dile-
iiia: teu Prefácio se queixa ou das palavras de Deus ou das palavras dos ho-
iiiçns. Se se queixa das palavras dos homens, foi tudo escrito em vão e não
rios diz respeito. Se se queixa das palavras de Deus, é todo ímpio. Por conse-
gninte, teria sido mais útil ter tratado da questão se as palavras acerca das
(liiais debatemos são de Deus ou de homens. Mas talvez se trate disso no pro-
Crnio que se segue e no próprio debate.
As coisas que dizes no final de teu Prefácio113,porém, não me impressio-
nam. Chamas nossos dogmas de fábulas e coisas inúteis, e dizes que se deve
scguir antes o exemplo de Paulo e pregar o Cristo crucificad~~'~, que a sabedo-
ria deve ser ensinada entre os perfeitosu5, que as Escrituras ajustam sua lingua-
gcm de modo variado conforme a maneira dos ouvintes, de sorte que julgas
tlue se deve deixar isso por conta da prudência e caridade do doutor, que tem
que ensinar o que é conveniente para o próximo. Dizes tudo isso de modo inep-
i o e ignorante. Pois também nós nada ensinamos senão o Jesus crucificado.
Ora, o Cristo crucificado traz todas essas coisas consigo, inclusive a própria
sabedoria entre os perfeitos, pois não há outra sabedoria a ser ensinada antre
os cristãos a não ser a que está abscôndita no mistério e diz respeito aos per-
Seitos, não aos filhos do povo judeu e legal que, sem fé, se gloriam de suas
oliras, como diz Paulo em 1 Co 2.6s~.- a menos que queiras que por "ensi-
iiar o Cristo crucificado" não se entenda outra coisa do que dizer: "Cristo foi
csiicificado".
Quanto a afirmação de que Deus se ira, se enfurece, odeia, se aflige, se
iipicda, se arrepende, coisas que não cabem a Deus - isso é procurar nó em
j i i i i ~ o Essas ~ ~ ~ .coisas não tornam a Escritura obscura nem exigem que seja ajus-
i;ida a vários ouvintes, a não ser que se tenha prazer em criar obscuridades on-
tle riâo as há. Elas são expressões gramaticais e construídas com figuras de pa-
Iiivras que até as crianças conhecem. Nós, porém, não tratamos de figuras de
1:samática nessa causa, e, sim, de dogmas.
Então, ao entrar no debate, prometes que tratarás da questão baseado nas
liscrituras canônicas, visto que Lutero não se sujeita a autoridade de nenhum
oiitl-o escritor. Isso me agrada, e aceito a promessa, embora não o prometas
porque julgas que esses escritores sejam inúteis para a causa em questão, mas
)'ira não assumir um trabalho em vão. Pois não aprovas suficientemente essa
i i i i i i l i a audácia ou como se deva chamar esse meu propósito [sc. de admitir so-
iiic~itcas Escrituras]. Pois impressiona-te bastante essa série tão numerosa de

I li,. r i i i i l i r i ;ri \ciri>o qiiaeririrr, um provc'rhio de Torêncio que significa: biiscar dificuldades on-
I I<>
<Iri,I;i\ii.iii cxi.;lein.
Da Vontade Cativa
homens extremamente eruditos, aprovados pelo consenso de tantos séculos, en-
tre os quais houve alguns extremamente peritos nas Sagradas Letras, bem co-
mo muitos santos, alguns mártires muito famosos por seus milagres, além dos
teólogos mais recentes, tantas academias, concílios, bispos, pontífices. Em su-
ma: deste lado estão a erudição, o engenho, a multidão, a magnitude, a altitu-
de, a fortitude, a santidade, milagres e tantas coisas mais. De meu lado, porém,
estão Wyclif e Laurêncio Valla, embora também AgostinhoIL7,a quem preteres,
seja todo meu. Esses, porém, não têm nenhum peso em comparação com aque-
les. Resta apenas Lutero, um indivíduo privado, aparecido recentemente, com
seus amigos, nos quais não há tão grande erudição, nem tão grande engenho,
nem multidão, magnitude, autoridade, nem milagres - pois nem sequer são
capazes de curar um cavalo manco. Ostentam a Escritura, que, todavia, têm
por dúbia, da mesma maneira como a outra parte; além disso, jactam-se do
Espírito, que não mostram em lugar algum; e muitas outras coisas que podes
enumerar por ouvir dizer. Assim, conosco não se passa outra coisa do que dis-
se o lobo ao rouxinol que acabara de devorar: "És uma voz e nada mais".
Pois dizes: eles falam, e só por isso querem que se creia neles.
Confesso, caro Erasmo, que não é sem razão que te impressionas com
todas essas coisas. Por mais de um decênio também eu me impressionei de tal
modo que julgo não haver outra pessoa que tenha sido abalada por elas da
mesma forma. Eu mesmo não podia crer que essa nossa Tróia, invicta duran-
te tanto tempo e em tantas guerras, pudesse ser tomada algum dia. E invoco
a Deus por testemunha sobre minha alma11R,que eu teria perseverado e até ho-
je seria assim impressionado se a consciência insistente e a evidência das coisas
não me coagissem na direção contrária. Certamente podes pensar que também
eu não tenho um coração de pedra, e, se fosse de pedra, poderia ter sido amo-
lecido no combate e no choque com tão grandes vagas e ondas, quando ousei
fazer isso e quando vi que toda a autoridade daqueles que enumeraste inunda-
ria minha cabeça como um dilúvio. Mas não é este o lugar de tecer a história
de minha vida ou de minhas obras, e essas coisas não foram empreendidas pa-
ra louvarmos a nós mesmos, e, sim, para exaltar a graça de Deus. Quem sou
eu e por que espírito ou propósito fui arrastado a essas coisas, isso encomendo

I
117 João Wydlif;ca. 1320/31-1384, filósofo e teólogo em Onford, atacou em uma série dc cxigên-

I cias reformistas as bases dogrnáticas da Igreja Romana. Exigiu a independhcia da autoridade


secular do poder espiritual, considerou a Bíblia o único fundamento da Igreja a qual, como co-
munidade dos eleitos, tem apenas Cristo por cabeça. Wyçlif atacou também a doutrina da tran-
aubstanciaçãa. - Laurêncio Vala, 1407-1457, humanista e tradutor de clássicos da Antiguida~

i de, atacou a filosofia esçolistiça e o clero. Além disso voltou-se contra o monacata. Seu ata-
que mais famoso está contido no escrito contra a "doação de Constantino", no qual demons-
tra a falsidade dos dacumentos surgidos na Idade Média. Ele cnigiu o fim do estado pontifício.
- Agostinho: Nem em todos os pontos Lutero tem Agostinho a seu favor. Na questão da ne
ccssidndc do pecado de Adão, por exemplo, as opiniòcs de ambos divergem. (Cf. Lutero no
q i i c scgtic c Agostinho: Decorreptioneetgratia c. 10,26ss. e 11,31s.; Migne, sa.. lar. 44 p. 931~s.).
118 ( ' V , 2 ( ' 0 1.23.

53
Oa Vontade Cativa
aquele que sabe que todas essas coisas foram feitas por seu livre-arbítrio, não
pelo meu, embora o próprio mundo j i há muito tempo o deveria ter percebido.
De fato me lancas numa posição odiosa coin esse Prefacio, de modo que
não posso me desemedar facilmente sem jactar a mim mesmo e vituperar tan-
tos pais. Mas vou dizê-lo em poucas palavras. Em termos de erudição, enge-
nho, n~ulticlào,autoridade e de todas as outi-as coisas sou iiiferior, segundo teu
próprio juizo. Se, no entanto. eu te pergiintasse o que são estas trPs coisas: de-
rnonstracáo do Espirito, milagres e santidade, parecerias, tarito quanto te c«-
nlieço a partir de tuas cartas e livros, tão perito e ignorante que não serias ca-
paz de indicá-lo com uma única sílaba sequer. Ou se eu insistisse e exigisse que
mostres coni certeza qual dentre todos aqueles que gabas foi ou i santo, ou ti-
nha o Espirito, ou realizou milagres verdadeiros, creio que te esforçarias miii-
to, mas eni vao. Dizes muitas coisas tomadas do uso comum e do que se fala
p~iblicameiite,e não acreditas o qiiaiito perdem ern credulidade e autoridade
se comparecem ao juizo da consciência. É verdadeiro o provérbio [que diz]:
Muitos passam por santos na terra, enquanto suas almas estão no inferno.

Iv11 I
Se quiseres, porém, te faremos iiiclusive a concessão de que totlos forani
santos, todos tiriliam o Espirito, todos fizeram milagres (o que, poréiii, não
pedes). Dize-me o seguinte: foi em iiooie ou no poder do livre-arbítrio, ou pa-
ra confirma o dogina do livre-arbítrio qiie qualquer uin deles foi santo, rece-
beu o Espirito e realizou milagres? De modo algum, dirás; aiitei, todas essas
coisc~sforam feitas ein iiome e no poder de Jesus Cristo e em favor do dog-
ma de Cristo. Por que. então, aduzes a santidade, o Espirito e os milagres de-
les em favor do dogma do livre-arbítrio, pelo qual não foram dados e feitos?
Por conseguiiite, os milagres, o Espírito e a santidade deles estão de iiosso la-
do, que pregamos a Jesus Cristo, e não as forças ou obras de seres hun~anos.
Que haveria de admirável se os que foram santos, espirituais e milagrosos às
vezes foram surpreendidos pela carne e falaram e agiram segundo a carne, já
que isso aconteceu, e iião apenas uma vez' aos próprios apóstolos, que estavam
sob » próprio Cristo? lkmpolico tu negas, inas afirmas que o livre-arbítrio 1150
5 assiinto do Espírito ou de Cristo, e, sim, assuiito humano, de niodo que o
Espiiito, prometido para glorificar a Cristo1L9,de nianeira alguma pode pregar
o livre-arbítrio. Se, pois, os pais de vez em quando pregaram o livre-arbítrio,
certamente falaram da carne conforme a carne (porque foram seres humanos),
riâo coiiforme o Espii-ito de Deus, e muito menos realizaram milagres em fa-
vor ilclc [sc. do livre-ai-bitrio]. Por esta r,uão é inepta tua alegação acerca da
s;intiil;iilc, do Espirito e dos milagres dos pais, pois a partir deles não se pro-
\:a o livre-arbítrio, e , sim, o dogma de Jesus Cristo contra o do livre-arbítrio.
Ila Vontade Calini
Mas vinde ainda, vós que estais do lado do livre-arbítrio e afirmais que
I
um dogma desses é verdadeiro, isto é, proveniente do Espírito de Deus; viride
ainda, digo, e apresentai o Espírito, realizai milagres, mostrai a santidade! De-
I certo vós. que o afirmais, deveis isso a nós. que o negamos. De n6s, que o ne-
gamos, não sc devem exigir o Espírito, a saniidade e inilagrei: de I:&, porém,
que o afirmais, devem-se exigi-los. Pois se a negati\.a nada pode, nada é, ria-
da é obrigada a provar, nem deve ser provada, é a afirmativa que se deve pro-
var. Vós afirmais que o livre-arbítrio é uma força e uin assunto humano, mas
até hoje n30 se viu ou ouviu que Deus tivesse feito iiiii milagre em favor de
qualquer dogma referente a um assurito humano, e, sim, tão-somente eiii fa-
vor de iim dogma referente a um assunto divino. Niis, porém, tenios a ordem
de não admitir absolutamente iienlium dogma que n3o tenha sido provado pre-
vianierite mediante sinais divinos (Dt 15.22). E mais: a Escritiira chama o ser
Iiumano de vaidade e iiie~irira'~". o que equivale a dizer que todas as coisas hu-
manas são vãs e nientirosas. Continuai, pois, contiriuai, digo, e provai que é
verdadeiro vosso dogma acerca da vaidade humana e da mentira. Onde está
aqui a demonstração do Espirito? onde a santidade? onde os milagres? Vejo
engenho, erudifão, autoridade, mas isso Deiis concedeu também aos gentios.
No riitanto, iiã« vamos vos coagir a [fazer] grandes milagres. nem mesiiio a
curar uni cavalo m a n c ~ " ~para , que não pretexteis que este 6 um século cai.-
nal, embora Deus costume confirmar seus dogmas com milagres, sem conside-
rar o século carnal. Pois ele não é movido pelos méritos ou deniéritos do sécii-
10 cririial, e , sim, apenas por misericórdia, graça e amor para com as almas,
que, para glória dele, devem ser fortalecidas por meio da verdade sólida. E-
vos dada a opção de fazer qualquer milagre, por menor que seja. E mais: pro-
voco vosso Baall-", o insiilto e desafio, para que crieis pelo menos unia única
rã em riome e no poder do livre-arbítrio - ainda que os magos gentios e iin-
pios no Egito tetiliam sido capazes de criar muitas delasi23 -, pois não vou
onerar-vos com a criação de piolhos, que nem mesmo aqueles foram capazes
de p r o d i ~ z i r ~ ~ ~ .coisa mais fácil ainda: pegai uma única pulga ou um úni-
Digo
co piolho (i6 que teiitais nosso Deus e escarneceis dele [ao falar] eni curar uni
cavalo manco), e se, conjugando todas as forcas e reunindo todos os esfot'$os
tanto de vosso Deus quanto de vós mesinos, puderdes mali-lo em rioriie e tio
poder do livre-arbítrio, sereis vencedores e vossa causa estará defendida, e lo-
go tambéiii nós virenios e adoraremos esse adiiiirável Deus destruidor deum piolho.

I20 Cf. I ' t 1.2; K i i i 3.4.


I21 Eiasnio havia apontado para o ciisiiansirna primitivo cuin seus mila~rese Ifilus do Eapiriir,:
cm r.o,iij>ara(ào, zoinbam dos evang6licos coin siiis paradoroiria - seus rniiag~elinhori50
- vel equurn cku-
ocos e vazios que riinguém "era c a ~ a zde curtu sequer um cavala manco"
Oa Voritade Cari\,a
Não que eu negue que possais até transportar montesi2', mas porque dizer que
algo é feito pela força do livre-arbítrio é uma coisa, e prová-lo é outra.
O que disse a respeito dos milagres, digo também a respeito da santidade.
!!
Se, em tão grande série de séculos, homens e tudo que relataste, puderdes indi- i
car uma única obra (mesmo que seja apenas levantar uma palha da terra), ou
uma única palavra (mesmo que seja apenas a sílaba "my") ou um único pensa-
inento (mesino que seja o mais tênue suspiro) produzidos pela força dolivre-
arbítrio e pelo qual trataram qualquer coisa com Deus, por miiiúscula que fos-
se (não digo: pelo qual tenham sido santificados), mais uma vez sereis vencedo-
res e nós vencidos. Refiro-me ao que é feito por força e em noiiie do livre-ar-
bitrio, pois a respeito do que é feito tios seres humanos por forca da criação
as Escrituras contêiii abundantes testemunhos. E certamente tendes o dever
de apresentar isso, para n i o parecerdes doutores ridículos, jã que, com tão gran-
ilc arrogância e auloridade, espnlhais pelo mundo dogmas a respeito de coisas
das quais não mostrais nenhum indicio comprobatório. Serão chamados de so-
nhos aos quais nada se segue, o que é de longe a coisa mais torpe para tantos,
homens eruditíssimos, santíssimos e milagrosos de tantos séculos. Então prefe-
riremos os estóicos'26 a vós. Embora também eles tenham descrito um sábio
que nunca viram, ao menos tentaram expor uma parte. Vós sois absolutamen-
t c incapazes de expor qualquer coisa, nem sequer uma sombra de vosso dog-
ma. Acerca do Espírito digo o seguirite: se dentre todos os assertoses do livre-
arbítrio podeis apresentar um único que teiiha tido uin pouquiiitio de vigor,
de ânimo ou afeto, para, eiii nome e no poder do livre-arbitrio, poder despre-
Lar um único óbolo, abrir mào de um único ganho, suportar uma única pala-
vra ou um único sinal ofensivos (pois nada direi sobre o despre~oda riqueza,
da vida e da fama), mais uma vez levareis a palma e de bom grado admitire-
mos nossa derrota. E isso vós, que com tão grande profusão de palavras ga-
hais a força do livre-arbítrio, tendes o dever de nos mostrar, ou então mais
uma vez parecereis estar brigando por lã de cabraI2' ou agir como aquele que
assistiu aos jogos num teatro vaziot28.Eu, porém, vos provo facilmente o con-
irário: todas as vezes que esses homens santos que gabais se cliegam a Deus
[para orar ou tratar com ele, fazem-iio inteiramente esquecidos de seu livre-ar-

I25 ('f. Ml 17.20.


126 lutcro está uensando na idcntificaç~ode verdade e bem-aventurança coin a vinude plcm que,
higundo tradição csldica, deveria sri- poiiivel por forca da superação da seniuaiidade como a
virtude que alcança a perfeição.
127 I<ixari de hna capriiia. Est de re frivola niliilque coiitendere. Horatius de his, qui ob causam
<,ii:rnt~lmi?~ frrvolam r k m ciim anicis siiscipiunl: Alter, inquit, iixatur de lana saepe capiir~a,
icl cqt de nihilo. Capra etim setas rioutis habet quam lanam. Adagia XIV. - (LIrigar por lã
<Ic c.~hra. Isso iignifica contender par aigiima frivolidade ou por nada. Horicio diz a respeito
~l;iit!lclc\qiic brigam coin seus amigo5 por qualquer frivolidade: alguern que briga por lã de ça-
lha. i k i i. por iiailii. Porque a cahra tçai .irites cerdas do que lã.)
I 'H 1liii;iciii. I;li. 2.2,IZXhs.
bitrio, desesperando de si mesmos e invocando para si unicamente a pura gra-
ça, tendo merecido bem outra coisa. Assiin o fez com freqüência Agostinho,
assim o fez BernardoI2', que, ao morrer, disse: "Perdi meu tempo, porque
vivi como pessoa perdida". Não vejo aqui nenhuma alegaçzo dc alguma for-
ça que se aplique a graça, e, sim, a acusação de toda força por não ter feito
nada senão afastar-se [sc. de Deus ou da graça]. Contudo, em seus debates es-
ses mesmos santos as vezes falaram de modo diferente sobre o livre-arbitrio.
Vejo que isso aconteceu a todos: quando dirigem sua atenção a palavras ou
debates são outras pessoas do que quando lidam com sentimentos e obras.
Lá falam de modo difereiite do sentimento que tiveram antes; aqui sentem coi-
sa diferente do que disserairi antes. Mas os seres huniarios, tanto os pios quan-
to os impios, devem ser avaliados mais pelo qiie sentem do que pelo qiie dizem.
No entanto. vos Fazemos mais outra concessão. Não exigimos milagres,
Espírito e santidade; voltemos ao próprio dogma. Só pedimos que ao menos
nos indiqueis que obra, que palavra, que pensanieiito essa força do livre-arbi-
trio produz, ou empreende, ou faz para aplicar-se a graça. Pois não basta di-
zer: "Existe uma força, existe uma força, existe certa força do livre-arbítrio",
pois o que é mais fácil de dizer do que isto? Isso não condiz a homens eruditisi
simos e santissimos, aprovados por tantos séculos. Antes, deve-se dar um no-
me a criança, como diz o provérbio alemão, deve-se definir o que é essa for-
ça, o que faz, o que sofre, o que lhe sucede. l'or eseinplo - vou dizê-lo de
11iodo extremamente crasso , deve-se perguntar se aquela força deve ou pro-
cura orar, oii jejiiar, ou trabalhar, ou fatigar o corpo, ou dar esmolas, ou oo-
tra coisa dessas. Pois se é uma força, deve realizar alguma obra. Neste poiito,
porém, sois mais iiiudos do que as rãs de S e r i f ~ e' ~os~ peixes. E como liave-
rieis de defini-lo, visto que, de acordo com vosso próprio testemunho, ainda
estais incertos a respcito da própria força, variais entre vós mesmos e sois in-
conseqüentes em relação a vós mesmos? Que será da definição, já que a pró-
pria coisa definida não está de acordo consigo mesma? Mas suponhamos que,
depois dos anos de P l a t ã ~ ' ~algum
~ , dia se chegue a um acordo entre vós quan-
to a própria força, e então sua obra seja definida como orar, jejuar ou qual-
quer coisa assim que talvez ainda esteja escondida nas idéias de Platão, quem
nos dará a certeza de que isso i: verdade, agrada a Deus e nós fazemos com
segurança o qiie é reto? Principalmente tendo em vista que vós mesmos confes-
sais que ela é coisa Iiumana, que. não tem o testemunho do Espirito, já que
foi gabada pelos filósofos e esteve no mundo antes que Cristo viesse e o Espi-
rito fosse enviado do céu. Assim sendo, é certissimo que esse dogma não foi

129 Peidid tempus meum, q ~ l l aperdite viú.Sermo ;ri cant. XY. Lutero cita essa cxclamafão de
S . Bernardo mais do que uma vez. Mas se equivocou nos dct~dhes.Pois não foi em seu5 últi-
mos dias de vida nem eni rcirospecta a sua vida manacai que Bcrriarda pronunciou essas pala^
vi:!\. iniiis em lembran~ade riia vida pré-canventuai.
I30 Sciili,. ii~ii;i iiiiiiú<culailhado h[ac Egsu, dogrupa das Ciclades. Provavcliiiei~tenãaexistiam rbali.
131 I$%<>;, t t ) l < h , t I { , ~ l t ~tnilkdrc\
\ dc atlt>s.
cnviado do teu, mas que se originou já antes da terra. Por esta razão e neces-
sário um grande testemunho para que ele seja corifirinado como certo e verdadeiro.
Portaiito, riiesriio que nós sejamos pessoas particulares e poucos, vós, po-
i-em, publica no^'^^ e muitos, nós riides, vós eruditissimos, nós crassos, vós en-
genliosissimoi, nós nascidos oiiteni, vós mais velhos que Deucalião13', nós nun-
ca aceitos, vós aprovados por tantos séciilos; ademais, nós pecadorcs, carnais,
iridoleiites, vós temíveis aos próprios deniônios por [vossa] santidade, Espirito
e milagres, concedei-nos ao menos o direito dos turcos e judeus, para que peca-
mos razão de vosso dogma, o que vosso Pedro vos ordenou134.Nosso pedido,
porém, é muito modesto, porque não exigimos que se prove isso mediante san-
tidade, Espirito e milagres, embora certamente pudéssemos fazê-lo segundo
vosso direito, já que vós mesmos exigis isso de outros. Além do mais, vos faze-
inos inclusive a seguinte concessão: que não exibais nenhum exemplo de uina
ação, ou de iiina palavra, ou de um pensariieiito em relação a vosso (logrria.
irias que apenas o ensineis, que ao menos expliqueis o próprio dogma, o que
clucreis que se eiiteiida sob ele e de que foriiia, seli20 o quereis ou não o po-
(leis, 110s vamos ao menos tentar expor um exemplo dele. Ou imifai o papa e
(1s seiis, que dizem: "Farei o que dizemos, mas não fazei segiindo nossas
obras" i35.Assim dizei também vós qiie obra aquela força exige que se faca;
110strataremos de fazê-la e vos deixaremos em paz. Acaso não conseguiremos
inein ao menos isso de vós? Quanto mais numerosos, mais antigos, maiores e
poderosos sais do que nós por todos os vossos titnlos, tanto mais vergonhoso
C para vós que não podeis provar vosso dogma a nós - que de todos os mo-
dos nada somos perante vós e que queremos aprendê-lo e praticá-lo - através
de um milagre, quer seja matando um piolho, quer através de algum peqiie-
iio afeto do Espirito, quer através de algunia pequena obra de santidade; antes.
[não podeis] demonstrar sequer o exemplo de alguma ação ou palavra, e, além
clisso - o qiie é inaudito , nem sequer explicar a própria forma ou a coni-
preensão do dogriia, para que ao menos possamos iriiitá-10. Qiie belos mestres
i10 livre-arbítrio! O que sois vós agora senão uma voz e nada inais? Erasmo,
qiieiii são agora aqueles que se jactam do Espírito e nada demoiistrain, que
tipeiias falam e já querem que se Ilies creia? Não são os teus partidarios, tão
cxaltiidos aos céus? que sequer falais, mas gabais e exigis tantas coisas. Por
coiiscgiiinte, rogamos por Cristo, caro Erasmo, que tu e teus partidários ao
iiiciios nos concedais que, aterrorizados pelo perigo de nossa consciência, tre-
iiintiios de medo ou ao menos adiemos o assentimento ao dogma que, como tu nies-

I i? N<ioii;itial encontra-sc de fato pubiicani quando se esperaria piibli<i. O "engano" pode sei
~ p i < q i < i \ i t a lcoriio
, à avidez e ganáncia que revela a çiria romana e os dignatki<is eclesi&~
alusão
l i i < CLII
~ IL><IUI OS t~ivçis.
I li Ih,ii<iiiioiicni,rii,iiiorcr, Ovidio, ,\<elum. 1:138sa. Deucaùão, filho de Pioi~ietcu.era ionsidcra~
ili, i i Iiiiiil;idi>r d a isca dos helcnos.
11.1 ( 1 . I I'~'1.15.
l l i i I . h11 2 1 . 1
Da Vantadc Cativa
mo vês, não passa de uma palavra inane e um estrépito de sílabas, a saber: "E-
xiste uma forca do livre-arbítrio, existe uma forqa do livre-arbítrio", mesmo
que teiihais chegado ao máximo e todas as vossas afirmações estejam prova-
I
das e firmemente estabelecidas. Além disso, ainda é incerto entre teus próprios
partidarios se essa palavra existe ou iiio, visto que divergem entre si e iião es-
t i o de acordo consigo mesmos. É muito iníquo - mais ainda: extreiiiainente
lamentável - que nossas consciências, que Cristo redimiu com seu sangue. se-
jam vexadas com o mero fantasma de iiina única palavrinha, e ainda por ci-
ma incerta. E, se não permitimos que nos torturem, soinos acusados de inaudi-
la soberba por termos desprezado tantos pais de tantos séculos que asseriram
o livre-arbítrio, embora seja verdadeiro, como tu mesmo vês a partir do que
foi dito, que eles absolutamente nada definiram a respeito do livre-arbítrio; e,
tomando-os por pretexto e sob seu nome, erige-se o dogma do livre-arbítrio.
do qual coritiido não podem mostrar nem a fortiia nein o nome, e assim delii-
dem o mundo coni um vocábulo mentiroso.
E aqui, Erasiiio, apelamos a teu próprio coiisellio, que deste acima, de
que sc devem omitir questões dessa espécie e, antes, ensinar o Cristo cruçifica-
do e as coisas que são suficientes para a piedade cristã. Pois já há muito biisca-
mos e tratamos disso. Que outra coisa procuramos senão que reine a siniylici-
dade e a pureza da doutrina cristã, abaiidonando-se e negligenciando-se as coi-
sas inventadas e introduzidas ao lado dela por seres humanos? Tu, porém, que
nos aconselhas tais coisas, não as fazes, e, sim, o contrário: escreves diatribes,
celebras os decretos dos pontífices, gabas a autoridade dos seres humanos e
tentas de tudo para nos arrastar a essas coisas que são estranhas e alheias as
Sagradas Escrituras; e meditas sobre assuntos não-necessários a fim de que cor-
rompamos e confundamos a simplicidade e a sinceridade da piedade cristã atra-
vés de aditaiiieiitos humanos. Disso entendeirios facilmente que não nos acori-
selhas isso de c o r a ~ ã oe que nada escreves serianieiiie, mas confias que coiii
as inanes bollias d'água de tuas palavras podes conduzir o mundo para onde
quiseres. Ainda assim, não o coiidiizes n lugar algum, já que não dizes absolu-
I tainente riada exceto meras contradii;òes por toda parte, de modo que falou
muito acertadamente quem te chamo11 de Proteu ou V e r t ~ m n o 'em ~ ~ pessoa,
ou, coiiio diz Cristo: "Médico, cura-te a t i mesmo" [Lc 4.23.1. Vergonhoso é
I para o doutor ser refutado por seu próprio erroJ3'.
Portanto, até que tiverdes provado vossa afirmativa, permanecemos em
nossa negativa, e, mesmo sob o juizo de todo aquele coro de santos que tu ga-
bas, ou melhor, de todo o mundo, ousamos e nos gloriamos [de dizer] que é
preciso que não admitamos aquilo que nada é e não se pode mostrar ao certo
o que seja; e que vós todos sois incrivelmente piesunçosos ou insanos ao exigir

136 Proicir - cf. n . 33. - Veitiim~io:drus roinano. de origeni clrurca, que prcsidia is rniiiliinfai
&i\ ~ l l ; ! ~ f i c \Ijorjcio,
. Sai. 11 7.14.
117 I > i i ~ i i i h i i )(';iii>. 1Iistich;i nioiiilia, li". 1.
de nós que se admita tal coisa somente porque apraz a vós, que sois muitos,
grandes e antigos, asserir o que vós mesmos confessais que nada é, conio se
fosse digno de mestres cristãos iludir o mísero povo em matéria de piedade atra-
vés daquilo que nada é, como se fosse de grande importância para a salvação.
Onde esta agora aquele acume dos gênios gregos, que ate agora inventava men-
tiras ao iiieiios com alguma bela aparência, mas que aqui iiiente de modo ina-
nifesto e descoberto? Onde está aquela diligência latina, equiparada a grega,
que de tal iiiniieira engana e é enganada por um vocábulo conipletamente va-
zio? Mas tt isso que acontece aos imprudentes ou malignos leitores de livros,
quando transforiiiam todas as debilidades nos pais e nos santos ein artigos dc
suma autoridade; de modo que esta culpa não é dos autores, e siin dos leitores.
É como se alguéiii, apoiado na santidade e autoridade de São Pedro, preten-
desse que tudo o que S. Pedro alguma vez disse é verdade, a ponto de querer
persuadir-nos de que também é verdade aquilo que em Mateus 16.22 aconse-
lhou a Cristo a partir da fraqueza da carne, a saber, que não sofresse, ou quan-
do mandou que Cristo se apartasse dele saindo do barco138,e moitas outras
coisas em que é repreendido pelo próprio Cristo.
Tais pessoas são senielhantes Aquelas que, a fim de provocar risos. dizem.
que nem tudo o que esta no evangelho é verdade, e tomam aquela passagem
de Jo 8.48 onde os judeus dizem a Cristo: "Não dizemos nós com razão que
és um samaritano e teris derriâiiio?" Ou esta: "É réu de morte" [h311 26.66.1.
Ou esta: "Encontrainos este subvertendo nossa nação e proibindo que se dê
tributos a César" [Lc 23.21. O mesmo fazerii os assertores do livre-arbítrio, sc
beni que coni oiitros fins, e também não deliberadaiiiente como aqueles, e, sim,
por cegueira e ignorância. Tomam dos pais aquilo qiie disserniii em favor do
livre-arbítrio, por que tropeçaram por causa da fraqueza da carne de modo
que até o coiitrapõem aquilo que em outra parte os mesmos pais disseram con-
tra o livre-arbitrio na fortitude do Espírito; então, insistem iusso e forçam o
melhor a ceder ao pior. Assim acontece que atribuem autoridade aos ditos pio-
res, porque estão de acordo com a maneira de pensar de sua cariie, e a tiram
dos melhores, porque contrariam a maneira de pensar de sua cariie. Por que,
ao contrário, não escolhemos os melhores? Há muitos desses ditos nos pais.
I'ara citar um exemplo: que se pode dizer de mais carnal - mais ainda: de
iiiais sacrílego e blasfemo , do que aquilo que Jerânimo costuma dizer: "A
virgindade enche o céu, o casamento a terra"139? Como se aos patriarcas, após-
Iolos e cônjuges cristãos estivesse destinada a terra e não o céu! E, não obstan-
ic, os sofistas juntam essas coisas e outras semelhantes [dos escritos] dos pais,
visto que combatem iuais com a quantidade do que com o discernimerito pa-
r ; ~gi~njearautoridade para essas coisas, como fez aquele imbecil Faber de

I18 ( ' I .M I Ih.231.; Lc S.R.


11'1 . l c ~ ~ ~ ~ (':,ri:,.,
~ ~ i x ! ~INI$!&,I~~:,,
~ ~ . 22 c.lcJ (Mi~:nc 22.405).
Da \jtitaiic Cativa

Constançala, que rscenteriirnte deu a público aquela sua peróla, isto i,


aquele estábulo de Áugias'", para que houvesse algo que provocasse iiáiisea e
vômito nos piedosos e eruditos.
Com isso respondo aquela passagem em que dizes que é impossível crer
que Deiis teria dissimulado o erro de sua Igreja diiraiite tantos séculos e não
teria revelado a algum de seus santos aquilo que afirniaiiios ser a parte princi-
pal da doutrina e ~ a n g é l i c a l Em
~ ~ . primeiro lugar, não dizemos qiie Deus teria
tolerado esse erro em sua Igreja ou em algum santo seu. Pois a Igreja é regi-
da pelo Espírito de Deus, e os santos são conduzidos pelo Espírito de Deus
(Rm 8.14), e Cristo permanece com sua Igreja até a consumação do mundoi43.
E a Igreja de Deus é o firmamento e a coluna da verdadelM. Isio, digo eu, sa-
bemos, pois assim reza o símbolo de todos nós: "Creio na santa Igreja católi-
ca", de sorte que é impossível que ela erre mesmo no menor artigo. E mes-
mo que admitamos que alguns eleitos sejam mantidos no erro durante toda a
sua vida, é contudo necessário que antes de morrer voltem ao camiriho, por-
que Cristo diz ein .lo 8 [sc. 10.281: "Ninguém os arrebatará de minha mão".
Mas aqui a dificuldade e a tarefa consistem em estabelecer com certem sc aque-
les que chamam de Igreja são Igreja, ou, antes, se os que erraram a vida to-
da enfim foram recondiizidos antes de morrer. Pois não se segue imediaiiiiiicn-
te que Deus permitiu que sua Igreja errasse, se permitiu que errasserii todos
aqucles homens eruditissirnos que nduzes por tão longa série de séculos. \? Is-
rael, o povo de Deus: e111 trio grande número de reis e cm tão longo teiiipo
n.io se eiiuiiiera um único rei que não tivesse errado. E sob o profeta Eliar io-
dos e tudo que era público nesse povo tinham se voltado 3. idolatria, a tal pon-
to que Elias achou que era o único que restara. Enquaiito que reis, principcs,
sacerdotes, profetas e tudo quanto pudesse chamar-se de povo ou Igreja de
Deus se perdia, Deus reservou sete mil para siI4'. Quem os viu ou soube que
eles eram o povo de Deus? Quem, pois, também, agora vai atrever-se a negar
que sob esses lionicni destacados (pois só mencionas homens de oficio e reno-
me públicos) Deiis se conservou uma Igreja entre o vulgo, permitindo que to-
dos aqueles perecessem, a exemplo do reino de Israel? Pois é uma peculiarida-
de de Deus impedir os eleitos de Israel e matar os robustos dentre eles (Salmo
78.31), mas preservar a escória e o restante de Israel, como diz I ~ a i a s l ~ ~ .

I I. 1. I.,,l;, t i l . .,:. I,. <<.I11 . I I , \ l . ,


I-'. .i' 1 ..,.-I.,,.... .r;,>, .. '...!.:-.<).8 , 1 1 1 l i : .
I I . r , :.a . I .. i,. I i , .!i. I iiiIi:..~ir ,i,.. li,il!li. t... .i,: < L ., .<?J
11 ,2..1. -- I,,.i., I...I . :. .I i. :,:.i, .L I... \.I. ..'.li.ll i, I : lh.,L , . r I,,.. i ,l.. :.l 1.<11,. ,1111
ta anos nZo haviam sido litii~ios.Áugias tlrornetcu um décimo do rçbaiiho a quctri ai 1iriip.i~~
se. Hércules rcalizoii a riiipieilada, desviando o rio Alfeu c l a z e n d u ~liasar pelas e%ibulos.
Áugias náo c u r n ~ r i ua promessa c Hecciiler o matou.
142 Diairihe, 5 5, n o fim.
143 TI. h11 28.20.
14-4 Ci. I 11ii 3 . I5 citado dc acordo coni a Vulgata:ElEccle.sia Dei a r fiiriiariiriiii~iiir i i-olumna vefirarjc.
14svi. I IR, I~).I~.
146 ('S. 1, 10.22,
Que aconteceu sob o próprio Cristo, quando todos os apóstolos se escan-
dalizaram e ele mesmo foi negado e condenado pelo povo inteiro, e mal-e-mal
Iòi preservado um que outro, um Nicodemos e um José, depois o ladrão na
cruz? Acaso esses eram chamados de povo de Deus naquele tempo? Eles certa-
mente eram o povo restante de Deus, mas não tinham esse nome, ao passo
que quem tinha esse nome não o era. Quem sabe se em todo o curso do mun-
do, desde a origem da Igreja de Deus, o estado desta sempre tenha sido tal
que alguns eram chamados de povo e santos de Deus e não o eram, ao passo
que outros dentre eles o eram efetivamente qual remanescente, [nas não eram
chamados de povo ou santos, como mostra a história de Caim e Abel, Ismael
e Isaque, Esaú e JacóI4'? \.re a época dos arianosI48, em que mal-e-mal cinco
bispos foram conservados católicos no mundo inteiro, e ainda expulsos de
suas sés, enquanto os arianos reinavam em toda parte com o nome e o ofício
públicos da Igreja; não obstante, Cristo conservou sua Igreja sob esses heregcs,
porém de tal maneira que nem de longe era considerada ou lida por Igreja.
Mostra, sob o domínio do papa, um único bispo que lenha desempenhado seu
ofício, mostra um único concílio em que se tenha tratado de questões pertinen-
tcs a piedade e não antes de pálios, dignidadeI4', tributos e outras ninharias
profanas, que apenas um insano poderia atribuir ao Espírito Santo. E, não
obstante, eles são chamados de Igreja, conquanto todos, ao menos os que as-
sim viveram, estejam perdidos e sejam tudo menos Igreja. Todavia, sob eles
[Deus] conservou sua Igreja, mas de tal modo que não era chamada de Igreja.
Quantos santos crês tu que queimaram e mataram só os inquisidores da depra-
vação herética em alguns séculos, como João Husi5" e pessoas semelhantes,
c111 cuja época sem dúvida viveram muitos homens santos no mesmo espírito?
Por que, Erasmo, não te espantas antes com o fato de que desde o inicio d o
inundo sempre houve entre os gentios engenhos mais excelentes, maior crudi-

147 CC. Gn 4.1,4s.; 16.15; 21.12; 27.4,25ss.


148 CC. n. 55.
149 I'ilio, literalmente "inanto", "capa". O pálio concedido pclas papas Foi, inicialmente, um ador-
cio honarifica para bispos que se haviam destacado. Boiiifácia piociiiou u s a r o pálio coma sim^
hola dc submissão a Roina, ordenando aos mevopolitas que solicitassem o palio da papa. Não
ohtcvc êxito. Somente no sinodo imperial (franco) de 747 os aiccbispas tiveram que se compro-
nieiei a rccebcr o pálio do papa, como sinal de sua submissão a Rama. Sob Gregório VI1
(1073-1085) C que a paio vai ser definitivamcnle visto como sinal de submissão ao papado.
1)csde Nicolau 1 (1058-1061) e Pascaal 11 (1099~1118)os bispos são obrigados a prestar juiamen-
10 ao papa em troça do pálio. - Dizidade, são cargos do prcpósita c da deão de uin cabido,
c,>in os devidos rendimentos.
1711 .I<?.ioIllix. 1373(?)-1415, precursor da Reforma. Formou-se pela Univcrsifdade de Praga. da
<lii;~lii>inou-ac lamhCm reitor (1409). depois de sagrado sacerdote (1400). Foi disçipiilo de
'dfyclil'(cf. acima n. 117). Atacou a corrup~ãodo clero. Entre outros desmandas da Igseja, de-
iiiiiiiioii o cooicrcio dc indulgências. Hus ensinou quc a Escritura 6 a uiiica norma para a dou-
1 i i i i ; i . i ~ i i c;i Igccjn i n coiiiiliiliãi>de iodos "I crentcs e qilr Cristo, e não o papa, C o cabççn
il;, lf:ii.i;i. M;iiilcvc ;i ii:insiii>il;iiici,~c;i~~ c ;i iiivocac8o dos %asilos.19ii coii<lçiiado ci>iri« Iicr.cgc
11i.I<i ( ' i , ~ i i . l l i < i ilc ( ' i > i i \ l ; i i i r . ; i (1414-141X) i i < i ili;i h <Icjiilliii ilr 1 4 1 c i~iiciiii;i,li>
iio ciiçsiiio <li;i.

02
Da Vontade Cativa
ção e empenho mais ardente do que entre os cristãos ou os povos de Deus, co-
mo o confessa o próprio Cristo ao dizer que os filhos deste século são mais
hábeis do que os filhos da luzlS1?Qual dos cristãos pode-se comparar em enge-
nho, erudição e diligência a um CicerolS2, para não falar dos gregos? Que,
I pois, diremos que serviu de obstáculo para que nenhum deles conseguisse che-

1
gar a graça? pois sem dúvida exerceram o livre-arbítrio com todas as suas for-
ças. Quem, contudo, ousaria dizer que entre eles não houve nenhum que pro-
curasse a verdade com o máximo de empenho? Mesmo assim, é preciso afir-
mar que nenhum a alcançou. Acaso dizes também aqui que é impossível crer
que no perpétuo curso do mundo Deus tenha abandonado tantos e tão gran-
des homens e permitido que se esforçassem em vão? Certamente, se o livre-ar-
bitrio fosse ou pudesse [fazer] algo, deveria ter estado e podido [fazer algo]
nesses homens, ao menos nalgum único exemplo. Entretanto, ele não teve efi-
cácia alguma; ou melhor: sempre teve a eficácia contrária, de sorte que com
esse único argumento se pode provar suficientemente que o livre-ar bitrio nada
é, já que desde o inicio do mundo até seu final não se pode mostrar nenhum
indício dele.
Mas volto ao tema. Por que causaria admiração, se Deus permite que to-
dos os grandes da Igreja sigam seus próprios caminhos, visto que assim permi-
tiu que iodos os povos seguissem seus próprios caminhos, como diz Paulo nos
Atos [14.16]? A Igreja de Deus, caro Erasmo, não é coisa tão comum quanto
é este nome "Igreja de Deus", e não se topa com os santos de Deus tão ami-
úde quanto com o nome "santos de Deus". Eles são uma pérola e nobres ge-
mas, que o Espírito não joga ante os porcos, mas, como diz a Escritura [Mt
7.61, conserva ahscônditas para que o ímpio não veja a glória de Deus. Do
contrário, se fossem reconhecidos publicamente por todos, como poderia acon-
tecer que fossem vexados e afligidos de tal maneira no mundo? Como diz Pau-
lo: "Se o tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória"
[l Co 2.81.

~
Não digo isso porque negue que os que tu aduzes sejam santos ou a Igre-
ja de Deus, e, sim, porque, se alguém negar que são santos, não se pode pro-
vá-lo, mas isso permanece absolutamente incerto, razão pela qual a questão
da santidade deles não é suficientemente sólida para se confirmar algum dog-
i ma. Chamo-os de santos e os tenho por tais, cliamo-os de Igreja de Deus e
julgo que o são, mas faço-o pela regra do amor, não pela regra da fé, isto
é, do amor que pensa o melhor a respeito de qualquer um, não é suspeitoso,
tudo crê e presume coisas boas acerca dos próximos e chama de santo a qual-

151 Cf. 1.c 16.8.


152 Mzixo Túlio Cícero, IM-43 a.C. O mais fainaso oiador e escritor latino de seu tempo e
doi do kiiiili cldssico. Como politico dedicou-se i promasão do bem comuiii na Roma icpubh~
c;iii;i. <'oiiiu lii,liicrii criidita, traiismitiu ao Ocidente latino elementos importantes da filosofia
i:ici:;i. Iril'liiriici<,iicicriloics cristãos dos primeiros séculos, como Agostinho, p. ex.
quer pessoa batizada's'. E não há perigo se o amor erra, pois é próprio dele
ser enganado, já que está exposto a todos os usos e abusos de todos, é servo
geral dos bons, maus, fiéis, iiifieis, verazes e falazes. A fé, porém, não clia-
ma ninguém de santo a ineiios qiie tenha sido declarado santo pelo juizo divi-
iio, pois é próprio da fé não se enganar. Por isso, embora todos devamos ier-
nos niiituanieiite por santos segundo o direito do amor, niiigiiéiii deve contu-
do ser julgado justo segundo o direito da fé, como se fosse uni artigo de Té
que este ou aquele seja santo. É assim que procede o papa, aquele adversário
de Deus, que, colocaiido-se no lugar de DeuslS4,canoniza ssiis sarilos, qiie não
conhece. Digo apenas isto sobre esses teus, ou melhor, nossos srmtos: como
eles próprios difereiii entre si, dever-se-ia seguir aqueles que falaram o melhor,
isto é, contra o livre-arbitrio e a favor da graça, deixando de lado aqiieles que,
por causa da fraqueza da carne, testificaram antes a carne do que o Espírito.
Assim, também quanto àqueles que estão em desacordo consigo mesmos, de-
ver-se-ia escolher e reter aquela parte em que falam a partir do Esl~irito,mas
deixar de lado a parte qiie sabe a carne. Isto condiria a um leitor cristio e ani-
mal limpo que tem unhas fendidas e ruminai5s. Agora, porém, colocaiido em
segundo plano o juizo, eiigolimos a confusão toda, ou, o que é mais iiiiquo,
rejeitamos com juizo 11er~ersoas coisas melhores e aprovamos as piores 110s
[escritos dos] mesmos aiitorrs: e então aplicainos a essas coisas piores c> titulo
e a autoridade da santidade delcs. qiie eles contudo mereceram por causa das
coisas melhorcs c só por caiisa do Esl~irito,não por causa do livre-arbitrio oii
da carne.
Que faremos, pois? A Igreja é abscôndita, os saiitos são ocultos. Que va-
mos crer e a qiieni'? Ou, como tu debates de modo extrenianiciite arguto: quem
nos dará certeza'? Donde vamos provar o Espírito? Se olliarnios a erudição,
em ambos os lados I i i rabinos; se olharmos a vida, em ambos os lados há pe-
cadores; se olharriios a Escritura, ambos os lados a acolhem. E o debate iião
gira tanto em torno da Escritura, que ainda não seria suficienlemciite clara, e,
sim, em torno do sentido da Escritura. Em ambos os lados, poréin, há seres
lilimanos, e assim coino nem a multidão, nem a erudição, nem a dignidade
deles contribui para a causa, do mesmo modo muito menos seu pequeno nú-
iriero, sua insciência e Iiumildade. Por conseguinte, a questão fica lia dúvida
c o debate permanece sob juizo, de modo que parecemos agir com priidência
sc aderimos à opinião dos céticos; só que ages da melhor forma: dizes que du-
vidas de tal forma que atestas que procuras e aprendes a verdade, inclinando-
[ c , nesse ínterim, para a parte que sustenta o livre-arbítrio, até que a verdade
coiiiece a luzir. A isto respondo: 1130 dizes nada nem dizes tudo. Pois iião ra-
iiir~sprovar os espiritos por nrgiiiiientos relativos a erudicão, vida, eiigenlio,
iiiiiliidão, dignidade, insciência, impericia, pequeno número OLI humildade. Tam-
Da Vontade Cativa
bém não aprovo aqiieles que se refugiam na jactância do Espirito. Pois foi su-
ficientemente acre - e ainda é - a luta que tive este ano com os fanáticos,
que submetem a interpretação da E s c r i t ~ r a a' ~seu
~ próprio espírito. Por esta
mesma razão ataquei até agora também o papa, em cujo reino não h i nada
mais difundido ou aceito do que a afirmação de que as Escrituras são obs-
curas e ambíguas, sendo preciso pedir da S i Apostólica em Roma o Espirito
que as interpreta. Não se pode dizer nada mais pernicioso do que isso, pois
aqui seres humanos impios se elevaram acima das Escrituras e dela fizeram o
que Ihes aprouve, até que as Escrituras foram completainente conculcadas e
nós não críamos nem ensinávamos nada senão os soiilios de seres humanos
delirantes. Ein suma, essa afirmação não é um invento huiiiano, e, sim, um
veneno enviado ao mundo pela incrível maldade do próprio príncipe de todos
os demônios157.
Nós dizemos o seguinte: os espíritos devem ser examinados ou provados
por um juizo dúplice. Um é o juizo interior, consistindo em que cada um, ilu-
minado para si e unicamente para sua salvação através do Espirito Santo ou
um dom singular de Deus, julga e discerne com toda a certeza os dogmas e
as opinioes de todos. Disso se diz em 1 Co 2.15: "O espiritual julga todas as
coisas e não é julgado por ninguém". Isto concerne a fé e é iiecessario para
qualquer cristão, inesino p a r t i c ~ l a r ' ~Chamamo-lo
~. acima de clareza interior
da Sagrada Escritiira"9. Tilvez seja isso o que queriam dizer os que te respon-
deram que todas as coisas devem ser decididas pelo juizo do Espirito. Mas es-
se juizo não é Útil para nenhum outro, e n5o é dele que se trata nesta causa.
Tampouco creio que alguém duvide que assim seja. Por isso o outro é o juizo
externo, pelo qual julgamos com toda a certeza os espíritos e dogmas de todos,
não só para nós mesmos, mas também para os outros e por amor da salvação
dos outros. Este juizo é próprio do ministério público da Palavra e do oficio
externo, e concerne principalmente aos lideres e pregadores da Palavra. Faze-
mos uso dele ao fortalecermos os fracos na fé e ao refutarinos os adversários.
Chamamo-lo acima de clareza externa da Sagrada E s ~ r i t u r a ' ~Assim
. dizemos
o seguinte: todos os espíritos devem ser provados em face da Igrejal6' tendo a
Escritura por juiz. Pois é preciso qiie isto esteja estabelecido antes de mais na-
da e sobremaneira firme entre os cristãos: as Sagradas Escrituras são uma luz
espiritual, muito mais clara do que o próprio sol, principalmente nas coisas
que dizem respeito a salvação ou ne~essidade'~~. Todavia, visto que já há muito

156 Em janeiro de ISZ? Liiizro lhavia piiblicada um escrito iniitulado: Corirra os proferar ielesljtiis
- Wider die himmlischen Proplirtrn, ron den Hildriii und Sakrament, WA 18.32-125.

157 CI. Ol>rasSelecionadas, v. 2, pp. 277-3W.


ISR piiiaio, tio oiiginal, ou seja, que não desempenha frinjão pública.
I59 ('r. ;cciuu 1., 2 %
I60 ('1'. iici1;i ;iiitciior.
lf,l ('1'. I ' I , ? . ? I .
I(,? ( ' 1 . L I'<. 1.1'1.
estamos persuadidos do contrário por aquela pestilenta afirmação dos sofistas
de que as Escrituras são obscuras e ambíguas, somos obrigados a provar antes
aquele primeiro principio nosso, pelo qual devem ser provadas todas a?outras
coisas. Para os filósofos isso pareceria absurdo e impossível de se fazer.
Primeiro diz Moisés em Dt 17.8-11: se ocorrer uma causa difícil, deve-se
ir ao lugar que Deus escolheu para seu nome e aí mesmo consultar os sacerdo-
tes, que devem julgá-la segundo a LEI do Senhor. "Segundo a lei do Senhor",
diz ele. Como, porém, haverão de julgar, a menos que a lei do Senhor, pela
qual se satisfizesse a aqueles, seja clarissima externamente? Do contrário basta-
ria dizer: julgarão segundo seu espírito. E mais: em toda administração dos
povos acontece que todas as questões litigiosas de todos são conciliadas por
meio de leis. Como, porém, poderiam ser conciliadas as leis não fossem elas
certíssimas e claramente luzes em meio do povo? Pois se as leis são ambíguas
e incertas, não só não se resolveriam quaisquer litígios, mas também não exis-
tinam quaisquer comportamentos certos. Pois as leis sZo propostas para que
o comportamento seja regulado segundo certa forma e as questões litigiosas
sejam definidas. É preciso, pois, que aquilo que é metro e medida dos outros
seja de longe o mais certo e claro; assim é a lei. Se essa luz e certeza das leis
é necessária e concedida gratuitamente a todo o mundo como presente divino
na organização política profana, em que se trata de coisas temporais, como
não daria a seus cristãos, a saber, aos eleitos, leis e regras de claridade e certe-
za muito maiores, segundo as quais dirigissem e coticiliassem a si mesmos e to-
dos os litígios, já que ele quer que os seus desprezem as coisas temporais?
Pois se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lança-
da no forno, quanto mais a nósih3?Continuemos, porém, e aniquilemos com
as Escrituras essa pestilenta palavra dos sofistas.
O Salmo 19.9 diz: "O preceito do Senhor é claro ou puro, iluminando os
olhos". Creio que aquilo que ilumina os olhos não é obscuro ou ambíguo.
Do mesmo modo SI 119.130: "A porta de tuas palavras ilumina e dá inteligên-
cia aos pequeninos". Aqui ele diz que as palavras de Deus são como uma por-
ta e algo aberto, que está exposto a todos e ilumina até os pequeninos. Em Isa-
ias 8.20 ele remete todas as questões a lei e ao testemunho, e, se não o fizer-
mos, ameaça que nos será negada a luz da aurora. No capítulo 2 de Zacarias
[SC.M1 2.71 ele manda que procurem a lei da boca do sacerdote, porque ele é
o anjo do Senhor dos exércitos. Naturalmente seria um belíssimo anjo ou lega-
do do Senhor aquele que anunciasse coisas que são ambíguas para ele mesmo
e obscuras para o povo, de modo que ele não soubesse o que fala e o povo
iião soubesse o que ouve. E o que se diz em todo o Antigo Testamento, princi-
palmente no Salmo 119, com mais freqüência em louvor da Escritura do que
que ela é uma luz certissima e evidentissima? Pois assim ele celebra sua clare-
za: "Lâmpada para meus pés é tua palavra, e luz para meus caminhos" (SI 119.105).
Da Vontade Caiiva
Ele não diz: "Lâmpada para meus pés é unicamente teu Espirito", embora tani-
béin a este atribua seu oficio ao dizer: "Teu bom Espirito me conduz em terre-
no reto" [SI 143.101. Assim ela também é chamada de caminho e senda, segu-
ramente por causa de sua extrema certeza.
Passemos ao Novo Testamento. Paulo diz em Rm 1.2 que o Evangelho
foi prometido pelos profetas nas Sagradas Escrituras, e ein 3.21 que a justiça
da fé foi testificada pela lei e pelos profetas. Porém, que espécie de testificação
seria essa, se é obscura? E mais: ao loiigo de todas as epístolas chama o Evan-
gelho de palavra da luz, de Evangelho da claridade, e o faz magistralmente e
com grande abundância erii 2 Co 3.7 e 4, onde discorre gloriosamente acerca
da claridade de Moisés e de Cristo. Também Pedro diz, em 2 Pe 1.19: "Temos
unia palavra profética muilo certa, e fazeis bem em atender a ela como a uma
lâmpada que brilha num lugar caliginoso". Aqui Pedro chama a palavra de
Deus de lucerna luminosa, e todas as outras coisas de trevas. E vamos nós
transformar a Palavra em obscuridade e trevas? Cristo chama a si mesmo mui-
tas vezes de luz do mundo, e a João Batista de luceriia luzente e ardenteiM,
sem dúvida não por causa da saiitidade da vida, e, siiii, por causa da Pala-
vra, da inesiiia forma qiie Paulo chama os tessalonicenses [sc. Fp 2.15s.l de lu-
minárias brilhantes do rnuiido, porque, diz ele, "conservais a palavra da vi-
da". Pois a vida sem a Palavra é incerta e obscura.
E o que fazem os apóstolos ao provarem suas pregações através das Escri-
turas? Acaso o fazem para nos obscurecer suas trevas com trevas ainda maio-
res? Ou para provar coisas conhecidas por meio de desconhecidas? O que faz
Cristo em Jo 5.39, onde ensina os judeus a escrutar as Escrituras, que dão tes-
temiiiiho dele? Acaso o fez para torná-los incertos quanto a fé nele? O que fa-
zem aqiieles que, em At 17.11, depois de ouvirem a Paulo, liam as Escrituras
dia e iioite para ver se as coisas eram assim? Essas coisas todas não provam
que os apóstolos, assim como Cristo, apelam para as Escrituras como testeniu-
nhas claríssimas de suas palavras? Com que cara, pois, tornamo-las obsciiras?
Suplico-te: acaso são obscuras ou ambíguas estas palavras da Escritura: "Deus
criou o céu e a terra" [Gn I. 11; "O Verbo se fez carne" [Jo 1.141, bem como
todas que todo o mundo aceitou como artigos de fé? De onde as aceitou? Não
foi das Escrituras? E o que fazem aqueles que até hoje ainda pregam, interpre-
tam e explicam as Escrituras? Ora, se a Escritura que explicam é obscura,
quem nos dará a certeza de que a própria explicação deles é certa? Uma outra,
nova explicação? Quem explicará esta? E assim se continuará até o infinito.
Em suma, se a Escritura é obscura ou cimbígua, que necessidade havia de que
Deus no-la desse? Acaso tião somos suficientemente obscuros e ambíguos, a
menos que a obscuridade, a ambigüidade e as trevas nos sejam aumentadas
do céu? Onde ficará então aquela afirmação do apóstolo: "Toda Escritura ins-
pirada por Deus é útil para ensinar, repreender e argüir" [2 Tm 3.16]? Sim,
Da Vontade Caiivs
Escritura tão manifestas e claras que tapem a boca de todos. para que não
possam dizer qualquer coisa contra eles, assim como Cristo nos prometeu
dizendo: "Eu vos darei boca e sabedoria a que não poderão resistir todos os
vossos adversários" [Lc 21.151. Se, portanto, nossa boca está fraca nessa par-
te, de modo que os adversários possain resistir, é falsa a afirmação dele de
que nenhum adversirio pode resistir à nossa boca. Por consegiiinte, ou não tc-
remos adversários no dogma do livre-arbítrio - o que acontecerá se els não
nos diz respeito , ou, se nos diz respeito, certamciite leremos adversários,
mas que não podem resistir.
No entanto, essa incapacidade de resistir dos adversários (já que isso ocor-
reu aqui) não significa que eles sejatii coagidos a desistir de sua opinião ou se-
jani pcrsiindidos a confessar [seu erro] ou a calar-se. Pois qiiein os coagira,
contra sua vontade, a crer, adinitir o erro ou calar-se? O que é mais loquaz
do que a vaidade?, diz Agostinho'". Antes. a boca deles é tapada de tal ma-
neira que iiâo tenham o que dizer contra isso, e, nissnio que digam muita coi-
sa em contrário, ainda assim nada dizem conforine o juizo do senso comuni.
É melhor niostrar isso com exemplos. Quando, em Mateus 22.23ss., Cristo im-
pôs sil2ncio aos saduceus ao provar. aduziiido a Escritura, a ressurreição dos
mortos a partir de Moisés, Êxodo 3.6: "Eu sou o Deus de Abraão", etc.; "E-
le não é Deus de mortos, e, sim, de vivos", eles não puderam resistir nem re-
plicar qualquer coisa. Mas acaso desistiram de siia opinião por isso? E quan-
tas veres refutou os fnriseus com passageiis da Escritura e argiiiiientos muirissi-
mo eviderites, de iiiocio que o povo os via publicamente vericidos e eles próprios
o sentiam? Não obstante, eles continuavam a ser adversários. Como testeniu-
nha Lucas eni At 7[sc. 6.101, Estêvão falava de tal modo que não podiam re-
sistir a sabedoria e ao espírito com que falava. Mas que fizeram eles? Acaso
deram o braço a torcer? Pelo contrário: envergonhados por serem vencidos e
não poderem resistir, ficam furiosos e. cerrando ouvidos e olhos (At 7.54, 571,
enviam testemuiihas contra ele (At 8 [sc. 6.11-1-11). Da mesiiia maneira, qiian-
do está no Conselho, vê como rcfutn os adversários! Depois de enumerar os
beiieficios de Deus desde a origem desse povo e provar que Deus nunca orde-
nou que se Ilie construísse uni ieniplo (pois ele era aciisado por causa dessa
questão e era essa a causa d o litisia), por fim adiiiitiu que sob Salomão se edi-
ficou um ten~plo,porém extraiu disso a seguinte conclusão: "Mas o Excelso
não habita em templos feitos pelo ser humano" [At 7.481, alegando para isto
o profeta Isaías: "Que casa é esta qiie me edificais?" (1s 66.1.) Dize, que po-
diam eles dizer contra uma passageiii da Escritura tão manifesta? Entretanto,
absolutanieiite li50 se coinoveram e persistiram fixados eiii sua opinião. Por
isso ele também investe contra eles dizendo: "Incircuncisos de coracão e de
ouvidos, v6s sempre resistis ao Espirito Santo", etc. [At 7.511. Ele diz que re-
sistem os que. conludo, não tinha111 condições de resistir.
I';i\sciuos aos nossos tempos. Quando João Hus disserta contra o papaiG"
;i ~>oitir de Ml 16.18: "As portas do inferno não prevalecem contra minha Igre-
.i;i", existe aqui alguma obscuridade ou ambigüidade? Mas as portas do infer-
rir> prevalecem contra o papa e os seus, porquanto são célebres em todo o mun- i
i10 por sua ni'anifesta impiedade e por seus criines. Também isto é obscuro?
Logo, o papa e os seus iião são a Igreja da qiial Cristo fala. Que diriam con- I

I
li-a isto. ou como resistiriam 3. boca que Cristo lhe dera? Ainda assim, resisti-
iam e persistiram, até o queiinarenl; tão longe estavam de abrir mão de sua
opiiiião. Cristo também não silencia isso, pois diz: "Os adversários não pode-
iáo resistir". São adversários, diz ele; logo, resistirão. Do contrário, não seriam
adversários, mas se tornariam amigos. Não obstaiite, não poderão resistir. O
que é isto senão d i z r que ao resistir nào poderão resistir? Se, portanto, tam-
béiii, nós pudermos refiitar o livre-arbítrio de tal forma que os adversários não
~possunresistir, mesmo que persistam em siin opinião e resistain opondo-se à
própria consciência, teremos feito o bastante. Pois tenho experihiçia suficien-
lc de que ninguém quer ser vencido, e, como diz Q u i i i t i l i a n ~ ~de~ ~que
, iião
há ninguém que não prefira aparecer como sabedor e não como aprendiz, se
bem que, entre nós, todos levem na boca, aqui e ali, - mais por costume do
yiie por conviccão, ou melhor, niais por abuso - o seguinte provérbio: "Dese-
jo aprender; estou disposto a receber ensinaineiitos e, ao ser esclarecido, seguir
o iiielhor; sou humano, posso errar". Diz-se isto para que, sob essa máscara,
coiiio sob uma bela aparência de humildade, seja permitido dizer com confian-
<a: "Lsso não iiie satisfaz; não entendo; ele faz violência às Escrituras; asseie
corn pertinácia". É claro que estão certos de que ninguéni suspeitará que al-
iiias tão humildes estejam resistindo coni pertinácia e impugiiando energicamen-
te até a verdade recoiihecida. Assiiii acontece que o fato de não deristirem de
siia opinião não precisa ser atribuído a malícia deles, mas à obscuridade e am-
higiiidade dos argumentos. Assim também agiram os filósofos gregos, para
illir 1130 parecesse que um cedia ao outro, mesmo que estivesse manifestamen-
lc refutado: começavam a negar os primeiros priiicipios, como conta Aristóte-
Ics. Enquanto isso persuadimos blandiciosamente a nós ixiesmos e a outros que
cuistem muitos hoiiiens bons na terra, que de bom g a d o abraçariam a verda-
ilc se Iioiivesse quem a ensine com clareza, e que não se deve presumir que tão
grande numero de homens eruditos em tantos séculos tivessem errado ou não
coiihecido, como se ignorássemos que o mundo é o reino de Satanás, onde,
:iI(.iii da cegueira natural que nos é inata por causa da carne, somos também
ciiiliirecidos na mesma cegueira pelos espíritos extremamente per\,ersos que rei-
ii;iiii sobre nós t. somos mantidos ein trevas demoniacas, já não mais humanas.
Sc, pois - dizes tu -, a Escritura é clara, por que em tantos séculos ho-
iiiciis notáveis por seu engenho foram cegos nessa parte? Respondo: foram cegos
Da Vontade Cativa
dessa maneira para louvor e glória d o livre-arbítrio. para que se demonstrasse
essa força mag~ficanientegabada pela qual o ser humano pode aplicar-se as
coisas que concernem a salvação eterna, a saber, a força que não vê o visto
nem ouve o ouvido, muito menos o entende ou deseja. Pois aqui é pertinente
o que Cristo, citando lsaias, e os evaiigelistas alirmam tantas vezes: "Ouvireis
coiii os ouvidos e não entendereis; vereis com os olhos e não vrreis" 11s 6.10;
Mt 13.141. O que é isto seiião que o livre-arbítrio ou o coração humano S opri-
mido pela potência de Satanás de tal maneira que, a menos que o Esl~iritode
Deus o desperte niaravilhosamente, por si mesmo não pode ver nem ouvir as
coisas que saltam de niodo manifesto nos próprios olhos e oiividos, de forina
que podem ser apalpadas coni as mãos? Tão grande é a miséria e cegueira d o
gênero huriiano! Pois assim os próprios evangelistas se adniiraram como acon-
teceii que os judeus não foram cativados pelas obras e palavras de Cristo, que
foram completamente irrefragáveis e inegáveis. E respondem a si mesmos com
essa passagem da Escritiira qiie diz que o ser hiiinano, deixado por sua pró-
pria conta, não vê ao ver e não ouve ao ouvir. O que é riiais monstruoso do
que isso? "A luz", diz ele, "resplandece nas trevas, e as trevas não a compre-
endem" [Jo 1.51. Quein creria isso? Queni ouviu coisa semelhante? A luz res-
plandece nas trevas e, mesmo assim, as trevas permanecem trevas e não são ilu-
iiiinadas? Poitaiito não é de admirar que homens iiotáveis por sei! engenho te-
nham sido cegos por taiitos séculos, no que diz respeito à5 coisas divinas; no
que diz respeito às coisas hiimanas seria de iidinirar. Em coisas divinas seria
niais admirável se iim e outro não fossem cegos, porém não seria de admirar
se todos seni exce~ãofossem cegos. Pois o que é todo o gênero humano sein
o Espirito senào o reino do diabo, conio disse, uiii confuso caos de trevas?
Dai que Paulo chama os demôiiios de dominadores dessas treva~"~.E diz
em 1 Co 1 [sc. 2.81: "Ncnhum dos principes deste mundo conheceu a sabedo-
ria de Deus". O que aclias que ele pensará acerca dos demais, visto que afir-
iiia que os príncipes do ii~undosão servos das trevas'? Pois ele entende sob
"príncipes" os primeiros e mais elevado5 no niuiido, a quem tu chaiiias de 110-
táveis por seu engenho. Por que totlos os ariaiios"' foraiii cegos? Acaso nao
houve ai homens notáveis por seu engenho? Por que Cristo é estultície para
os gentios? Acaso não há entre os gentios homens notáveis por seu engenho?
Por que ele é um escândalo para os jiideus? Acaso não houve entre os judeus
homens notáveis por seu engenho? "Deus coiihece os peiisaiiieiitos dos sábios,
porqiie são vãos", diz Paulo [l Co 3.201. Ele nõo quis dizer "dos seres huma-
nos", corno reza o próprio textoi7z, e se refere aos primeiros e principais entre
os seres humanos, para qiie a partir deles avaliemos os tlemais seres humanos.
Mas sobre isso talvez falemos mais amplamente abaiko. Basta que teiiha-
nios adiantado como introdução que as Escrituras são clarissiinas. Assini sendo,
I );iVwitade Cativa

iiossa posição pode ser defendida com elas de tal maneira que os adversários
1120sejam capazes de resistir. Mas as coisas que não podem ser defendidas as-
sim são alheias e não dizem respeito aos cristãos. Caso, porém, haja pessoas
que não vêem essa clareza e ficam cegas ou se ofendem nesse sol, então elas,
se são ímpias, dão a conhecer quão grande é a majestade e potência de Sata-
nás nos filhos dos seres humanos, de sorte que não ouvem nem compreendem
as palavras claríssimas de Deus, como se alguém, enganado por um truque de
magia, considerasse o sol um carvão frio ou tomasse uma pedra por ouro. Se
são piedosas, devem ser contadas entre aqueles eleitos que as vezes são condu-
zidos ao erro para que se manifeste em nós o poder de Deus, sem o qual não
podemos ver nem fazer absolutamente nada. Pois não é por causa da fraque-
za do engenho - como alegas tu - que eles não compreendem as palavras
de Deus. Pelo contrário: riada é mais apto para compreender as palavras de
Deus do que a fraqueza de engenho. Foi justamente por causa dos fracos e
para os fracos que Cristo veio e enviou sua palavra1". Isso se deve a maldade
de Satanás, que habita e reina em nossa fraqueza e resiste a palavra de Deus.
Se Satanás não o fizesse, Lodo o mundo dos seres humanos se converteria com
iiin único sermão de Deus, ouvido uma única vez, e não haveria necessidade de mais.
Mas por que gasto muitas palavras? Por que não pomos fim a causa jun-
!:+mentecom esta introdução e pronunciamos a senteça contra ti com tuas pró-
~priaspalavras, conforme aquela afirmação de Cristo: "Por tuas palavras serás
iiistificado, e por tuas palavras serás condenado" [Mt 12.37]? Pois tu dizes
que a Escritura não é clara neste ponto. Depois, deixando a senteça em suspen-
so, debates nas duas direções, referindo o que se pode dizer a favor e coritra.
Além disso nada fazes em todo este livro, que, por esta causa, preferiste cha-
iiiar de Diatribe e não de apófase ou de outra coisa, porque escreves a fim de
ludo coligir e nada afirmar. Se, pois, a Escritura não é clara, por que aqueles
que gabas não só são cegos neste ponto, mas definem e asserem o livre-arbítrio
clc modo imponderado e estulto como que a partir da Escritura certa e clara?
I<efiro-mea tão numerosa série de homens eruditissimos, aprovados até o dia
(Ic hoje pelo consenso de tantos séculos, e dos quais a maioria é recomenda-
cln não só por um admirável conhecimento das Sagradas Letras, mas também
~pclapiedade de sua vida; alguns deles deram testemunho com seu sangue da
<loutriiia de Cristo, que defenderam em seus e~critos"~.Se falas isso de cora-
<:to, está estabelecido para ti que o livre-arbítrio tem assertores dotados de
i i i i i admirável conhecimento das Sagradas Letras, de sorte que também o testi-
licaram com seu sangue. Se isso é verdade, eles consideravam a Escritura cla-
!:i. I>» contrário, que seria esse admirável conhecimento das Sagradas Le-
I ~ i s ?Adcmais, que leviandade e temeridade seria derramar o sangue em favor
i l c 111113 coisa incerta e obscura? Isso não é próprio de mártires de Cristo, e,
siiii, dc deinonios.
Ora, considera também tu e pondera contigo mesmo se deve ser dado
maior peso aos juizos prévios de tantos eruditos, tantos ortodoxos, tantos san-
tos, tantos mártires, tantos teólogos antigos e recentes, tantas academias, tan-
tos concílios, tantos bispos e sumos pontífices, que eram de opinião que as Es-
crituras são claras e confirmaram isso tanto com escritos quanto com sangue,
ou a teu juízo privado e individual, tendo em vista que negas que as Escrituras
sejam claras e talvez jamais tenhas derramado uma única lágrima ou exalado
um único suspiro em favor da doutrina de Cristo? Se crês que a opinião deles
foi correta, por que não os imitas? Se não o crês, por que te jactas com tan-
to garganteio e tanta verbosidade, como se quisesses me sepultar com uma
tempestade e com uma espécie de dilúvio de palavras, que, porém, se precipi-
ta mais fortemente sobre tua própria cabeça, ao passo que minha arca nave-
ga segura no alto? Pois tu atribuis a tantos e tão grandes homens ao mesmo
tempo a maior estultície e temeridade, ao escreveres que eram pessoas extrema-
mente peritas na Escritura e a asseriram com a pena, a vida e a morte, embo-
ra sustentes que ela seja obscura e ambígua. Isso não é outra coisa do que tor-
ná-los extremamente imperitos no conhecimento e extremamente estultos na
asser~ão.Eu não os teria honrado em meu desprezo privado da maneira co-
mo tu o fazes em teu elogio público.
Portanto, seguro-te aqui coin um silogismo cornudo, como se diz. Pois é
preciso que uma das duas afirmações seja falsa: ou tua afirmação de que eles
foram admiráveis por seu conhecimento da7 Sagradas Letras, por sua vida e
seu martírio, ou tua afirmação de que a Escritura não é clara. Contudo, co-
mo te deixas arrastar antes para a crença de que as Escrituras não são claras
(pois é disso que tratas em todos o livro), só resta concluir que foi por hrinca-
deira ou por adulação que disseste que eles são extremamente peritos na Escri-
tura e mártires de Cristo, de modo algum com seriedade, unicameiite a fim
de preparar uma impostura para o vulgo inculto e criar dificuldades para Lute-
ro, onerando a causa dele com ódio e desprezo através de palavras inanes.
Eu, porém, digo que nenhuma delas é verdadeira, e, sim, que ambas são fal-
sas. Afirmo, em primeiro lugar, que as Escrituras são claríssimas; em segun-
do, que aqueles, na medida em que asseriram o livre-arbítrio, são extremamen-
te imperitos nas Sagradas Letras; em terceiro lugar, que não o asseriram nem
com a vida nem com a morte, mas somente com a pena, porém com o ãni-
mo divagante.
Por essa razão, concluo este pequeno debate da seguinte maneira: por
meio da Escritura, que é obscura neste ponto, nada de certo se definiu nem
se pode definir acerca do livre-arbítrio, como tii mesmo teslificas. Entretanto,
por meio da vida de todos os seres humanos desde o início do mundo nada
sc dcinonstrou em favor do livre-arbítrio, como foi dito acimai7s. Por conse-
guiiite, ensinar algo que não é prescrito por nenhuma palavra dentro das Escri-
Luras e não é mostrado por nenhum fato fora das Escrituras não é coisa perti-
nente aos dogmas dos cristãos, mas aos contos verídicos de L ~ c i a n o l só~ ~que
,
Luciano, brincando por gracejo e habilmente com coisas jocosas, não engana
nem lesa a ninguém, ao passo que essa nossa gente age insanamente num as-
sunto sério que diz respeito a salvação eterna, para perdição de inumeráveis almas.
Assim eu poderia terminar toda essa questão acerca do livre-arbítrio, já
que até o testemunho dos adversários fala a meu favor e se opõe a eles mes-
mos, e visto que não há prova mais forte do que a confissão e o testemunho
contra si mesmo do próprio acusado. Todavia, como Paulo prescreve que se
deve tapar a boca dos v a ~ l o q u o s ~ abordemos
~~, a própria causa e tratemos
da questão na mesma ordem em que avança a Diatribe. Primeiramente refuta-
remos os argumentos aduzidos a favor do livre-arbítrio; depois defenderemos
iiossas posições refutadas; por fim pugnaremos contra o livre-arbítrio a favor
da graça de Deus.

[ v111 ]
Em primeiro lugar, iniciaremos, como convém, pela própria definição
lia qual defines o livre-arbítrio da seguinte maneira: "Ora, por 'livre-arbítrio'
cniendemos aqui a força da vontade humana pela qual o ser humano pode
;~plicar-seàs coisas que levam à salvação eterna ou delas afastar-se". É certa-
iiicnie com prudência que pões essa deiinição nua, sem explicar uma única par-
iicula dela (como costumam fazer outros), talvez por medo de sofrer não ape-
iias um naufrágio. Em conseqüência, sou forçado a examinar cada unia das
partes. Examinada com rigor, vê-se que a coisa definida certamente é mais am-
pla do que a definição. Tal definição os sofistas chamariam de viciosa, um ter-
iiio que usam todas as vezes que uma definição não abarca a coisa definida.
I1»is demonstramos acima178que o livre-arbítrio não convém a ninguém senão
iiriicamente a Deus. Talvez pudesses atribuir com razão um arhitrio ao ser hu-
iiiano, mas atribuir-lhe um [arbitrio] livre em coisas divinas é demais. Pois,
li« juizo de todos que o ouvem, o termo "livre-arbítrio" designa propriamen-
i c aquele que pode e faz perante Deus tudo quanto lhe apraz, sem ser coibido
por nenhuma lei, nenhum domínio. Pois um servo que age sob o domínio de
I I I I I senhor não se poderia chamar de livre; muito menos podemos com razão
i.li;iiiiar de livre um ser humano ou um anjo que, sob o domínio pleníssimo
iIv Dcus (para não falar do pecado e da morte), passam a vida de tal maneira
qiic iião podem manter-se um momento sequer com suas próprias forças.
I'ortanto, já de início conflitam entre si a definição do nome e a definição
iI;i c~iim, porque a palavra significa algo diferente do que se entende sob a coi-
,:;I.Siria inais correto chamá-lo de arbítrio cambiável ou mutável. Pois desta
Da Vontade Cativa
maneira Agostinho e depois dele os sofistas enfraquecem a glória e o poder
desse termo (livre) ao acrescentarem essa redução, falando da cambiabilidade
do livre-arbítrio. Ora, assim deveríamos Calar, de tal modo que não enganás-
semos os corações dos seres humanos com vocábulos empolados e inultilmen-
te fasiuosos. Assim também Agostinho é de opinião que devemos falar segun-
do uma regra certa com palavras sóbrias e próprias. Pois no ensino exigem-se
simplicidade e propriedade dialética, e não empolamento e figuras de retórica
persuasivas. Mas, para não parecer que nos deleitamos em brigar por palavras,
admitamos por um tempo o abuso - ainda que seja grande e perigoso - que
livre-arbítrio seria o mesmo que arbítrio cambiável. Admitamos também que
Erasmo faça da força do livre-arbítrio uma força da vontade humana, como
se os anjos não tivessem livre-arbítrio, pois neste livro resolveu tratar somente
do livre-arbítrio dos seres humanos. Do contrário, também nesta parte a defi-
nição seria mais acanhada do que a coisa definida.
Passemos as partes em torno das quais gira o cerne da questão. Algu-
mas estão bastante claras, outras fogem da luz, como se, sentindo-se culpadas,
tivessem medo de tudo, ao passo que nada deveria ser exposto com mais clare-
za e certeza do que a definição. Claras estão as seguintes: "Força da vontade
humana", "pela qual o ser humano pode" e "à salvação eterna". Andába-
tas179,porém, são estas: "aplicar-se", "as coisas que levam" e "se afastar".
O que, pois, vamos adivinhar que seja esse "aplicar-se" e "afastar-se"? E que
são essas "coisas que levam a salvação eterna"? Para onde correm? Como ve-
jo, tenho que haver-me com um verdadeiro Escoto ou H e r á c l i t ~ ~ de~ modo
~,
que vou me fatigar com um duplo labor: primeiro, o de procurar o adversá-
rio, apalpando e tateando, nos buracos e nas trevas (o que é uma ação ousa-
da e perigosa), e, se não o encontrar, lutarei em vão e com fantasmas e golpe-
arei o ar no escuro181.Depois, se o conduzir até a luz, então finalmente, já
cansado de procurar, vou travar combate em igualdade de condições.
Creio, então, que "força da vontade humana" signifique a potência, ou

~
faculdade, ou habilidade, ou aptidão de querer, não querer, escolher, despre-
zar, aprovar, refutar e quaisquer que sejam as outras ações da vontade. Ora,
não vejo o que seja essa força de aplicar-se e afastar-se, a menos que seja o
!
próprio querer e não querer, escolher, desprezar, aprovar, refutar; ou seja, a
própria ação da vontade, de modo que devamos imaginar-nos que essa força
seja algo intermediário entre a própria vontade e sua ação, de sorte que por

1 ela a própria vontade produz a ação de querer e não querer, e por ela é produ-
zida a própria ação de querer e não querer. Não há outra coisa que se possa

179 No original Andabatac. O andábata era um gladiador que lulava montado e de olhos vendadas.
180 João Dons Escoto (1274-1308), adversário de Tomks de Aquino e um dos paladinos da filoso~
fia escolá~tica,levava o apelido de Doctorsubtiüs. - O filósofo grego Heráclito (576-650 a.C.)
foi apelidado de ho ~kotinos- o obscuro.
I X I ('1. i ('c> 9.26.
iiii;igitiar e pensar aqui. Se estou enganado, a culpa cabe ao autor que fez a
ilclinição, não a mim, que investigo. Pois é com razão que se diz entre os ju-
ristas: As palavras de quem fala obscuramente, quando poderia fazê-lo com
iiiliior clareza, devem ser interpretadas contra ele mesmo. E aqui quero igno-
Gir por enquanto meus teólogos modernosig2juntamente com suas sutilezas,
pois é preciso falar de modo crasso para se poder ensinar e entender. Creio,
porém, que as coisas que levam a salvação eterna são as palavras e as obras
clc Deus, que são oferecidas i vontade humana para que a elas se aplique ou
clclas se afaste. De "palavras de Deus", porém, chamo tanto a lei quanto o
livangelho. Pela lei se exigem obras; pelo Evangelho, a fé. Pois não há outra
coisa que leve tanto a graça de Deus quanto a salvação eterna senão a palavra
c r i obra de Deus. Pois a graça ou o Espírito é a própria vida à qual somos le-
vados pela palavra e obra divina.
Contudo, essa vida ou salvação eterna é algo que a compreensão humana
iiZo pode captar, como Paulo afirma em 1 Co 2.9, citando Isaias: "O que o
<iIIi«não viu, nem o ouvido ouviu, nem entrou no coração do ser humano, o
, 1 1 1 ~Deus preparou para os que o amam". Pois entre os artigos supremos de
iiossa fé se conta também aquele em que dizemos: "e na vida eterna". De que,
~~i~rCrn, o livre-arbítrio é capaz em relação a isso é atestado por Paulo em 1
( ' o 2.10: "Deus no-lo revelou por seu Espírito", diz ele, como se dissesse: se
, I Ilspirito não o tivesse revelado, nenhum coração humano saberia ou pensa-
i ia algo a respeito disso, muito menos poderia aplicar-se a ele ou desejá-lo.
Olha a experiência: o que pensaram a respeito da vida futura e da ressur-
iciçXo os mais excelentes engenhos entre os gentios? Acaso não sucedeu que,
qiiniito mais excelentes foram por [seu] engenho, tanto mais Ihes pareceram
i-idiciilas a ressurreição e a vida eterna? Não eram engenhosos aqueles filóso-
Ii~se [ainda por cima] gregos que chamaram de palrador e assertor de novos
<Iciises a Paulo, que ensinava isso em Atenas183?Em At 26.24 Pórcio Festo
cliiiinava Paulo de louco por causa da pregação da vida eterna. Que ladra Pli-
iiio a respeito dessas coisas no livro 7Ig4?E Luciano, que tem tão grande enge-
iiIi(,:> Acaso eles foram estúpidos? Em suma: até hoje a maioria, quanto maior
svii engenho e erudição, tanto mais se ri desse artigo e o considera uma fábu-
I;i, c isso publicamente. Pois ocultamente nenhum ser humano, a menos que
rsicja cheio do Espírito Santo, conhece, crê ou deseja a salvação eterna, mes-
iiio qiic se jactem de fazê-lo em palavras e escritos. E oxalá tanto tu quanto
C.II csiivéssemos livres desse fermento'85, caro Erasmo, tão rara é uma alma
licl iio tocante a esse artigo! Acaso entendi o sentido dessa definição?

Ih.! R l f i i l i ~ i i ~ i>rico,s
ii - os ie"1agns rnodernos = a escola iriadernista, narriiiialisia, iniciada pelo

l i ;iiii.ihc;iii<i C;iiillicririe de Ocçaiii (1285-1349),da qual ~iroccdiao pifipiii, 1.iiliro.


I!;\ 1 ' 1 . A i 17.IX.
18.1 I i i i ,m;i lli,sl<iii:i ii:iliir;iiic. <ihi:iciiciclolil.ilic;i c i i i 37 livro5 qiic deacrcvi, c i i i V < i i i i i i i cl:ii;i c Iicili
<,rclc~~:t<l;~ I<><!,>\ 05 I'C~II<~CI~CINI\<I:! n:[i~<rc,it.l ' l i r r i ~ ~ M ~ f l ~vivw
o coirc 27 :c 7'1 <I.<'.
I R 5 ( I . MI lb.0.
Da Vontade Cativa

Portanto, segundo Erasmo, o livre-arbítrio é uma força de vontade, que


pode, por si mesma, querer e não querer a palavra e a obra de Deus, pelas
quais é conduzida às coisas que excedem sua capacidade de captar e compreen-
der. Porém, se pode querer e não querer, também pode amar e odiar. Se po-
de amar e odiar, também pode, em certa modesta medida, cumprir a lei e crer
no Evangelho. Pois é impossível que, se queres ou não queres algo, não pos-
sas fazer, por essa vontade, [pelo menos] parte da obra, mesmo que não a pos-
sas levar a cabo por impedimento de outrem. Ora; visto que entre as obras
de Deus que levam a salvação se contam a morte, a cruz e todos os males do
I
mundo, a vontade humana poderá querer também a morte e sua própria per-
dição. E mais: por poder querer a palavra e a obra de Deus, pode querer tu-
do. Pois que pode haver em algum lugar abaixo, acima, dentro ou fora da pa-
lavra e obra de Deus exceto Deus mesmo? Mas então o que resta aqui para a
graça e o Espírito Santo? Isto é atribuir inteiramente a divindade ao livre-arbí-
trio, já que querer a lei e o Evangelho, não querer o pecado e querer a morte
são coisas que cabem unicamente ao poder divino, como diz Paulo em mais
de uma passagem'". Por conseguinte, depois dos p e l a g i a n o ~ ninguém
'~~ escre-
veu mais corretamente acerca do livre-arbítrio do que Erasmo. Pois dissemos
acima que "livre-arbítrio" é um nome divino e significa um poder divino. Is-
to, contudo, ninguém atribuiu a ele até hoje além dos pelagianos, pois os sofis-
tas, qualquer que seja sua opinião, decerto falam de modo muito diferente. E
mais: Erasmo supera de longe os pelagianos, pois estes atribuem essa divinda-
de ao livre-arbítrio todo, Erasmo, porém, à metade dele. Eles distinguem duas
partes do livre-arbítrio, a força de discernir e a de escolher, atribuindo um a
razão e o outro a vontade, o que também fazem os sofistas; Erasmo, entretan-
to, pondo de lado a força de discernir, exalta tão-somente a força de escolher,
transformando assim em Deus um arbítrio claudicante e semilivre. Que achas
que ele teria feito se tivesse descrito o livre-arbitrio todo?
Todavia, não contente com isso, excede também os filósofos. Pois entre
eles ainda não está definido se uma coisa pode mover-se a si mesma. Nesse as-
sunto os platônicos e peripatétic~s'~~ divergem por todo o corpo da filosofia.
Para Erasmo, porém, o livre-arbítrio não só se move por sua própria força,
mas também se aplica as coisas que são eternas , isto é, que lhe são incompre-
ensíveis. É um definidor inteiramente novo e inaudito do livre-arbítrio, que
deixa longe atrás de si os filósofos, os pelagianos, os sofistas e todos os de-
mais. Não satisfeito com isso, não poupa nem a si mesmo, e diverge e pugna
consigo mesmo mais do que todos os outros. Pois antes havia dito que a vou-

1 186 P. en., 1 Co 2.14; 2 Co 3.5.


IR7 Cf. acima n. 111.
IR8 FL.rip;ltéticos, termo grega quc, traduzido literalmente, significa "os passeadores". Chamavam-
sc asrini as fil6sofaí que seguiram o sistema de Aristóteles. Este lecionava numa escola supe-
rii,i l i i t i i l i i < l : i por clec a qiial chami~iidçpeRpiltos, uma galeria de passeio de Atenas, onde lecionava.
iade humana é inteiramente ineficaz sem a graça (a menos que tenha dito isso
por brincadeira); aqui, porém, onde define com seriedade, diz que a vontade
Iiiimana tem essa força pela qual é capaz de aplicar-se as coisas que concernem
à salvação eterna, isto é, que estão incomparavelmente acima daquela força.
Assim nesta parte Erasmo sobrepuja até a si mesmo.
Ms, caro Erasmo, que com essa definição revelaste a ti mesino (creio que
por imprudência), mostrando que não entendes absolutamente nada dessas coi-
sas, ou que escreves acerca delas de modo totalmente impensado e despreocu-
pado, ignorando o que falas ou o que afirmas? E, como disse acima, dizes
menos e atribuis mais ao livre-arbítrio do que todos os outros, porquanto nem
descreves todo o livre-arbítrio, mas lhe atribuis tudo. Muito mais tolerável é
o ensino dos sofistas - ou ao menos do pai deles, Pedro Longobardo1R9-,
que dizem que o livre-arbítrio é a faculdade de discernir, e também de esco-
Ilier, a saber: o bem, se a graça está presente, porém o mal, se a graça está au-
sente. E ele opina claramente junto com AgostinhoIgoque, por sua própria for-
ça, o livre-arbítrio só pode cair e só é capaz de pecar. Daí que, em seu livro
2[8,23] Contra Juliano, Agostinho chama o arbítrio antes de servo, do que li-
vre. Tu, porém, tornas a força do livre-arbítrio igual em ambos os sentidos,
de modo que, por sua própria força, sem a graça, ele pode tanto aplicar-se
iio bem quanto afastar-se do bem. Pois não cogitas quanto lhe atribuis com o
pronome "se" ou "a si mesmo"; ao dizeres que ele pode aplicar-"se", excluis
siinpletamente o Espírito Santo com todo o seu poder, como se fosse supér-
Iluo e desnecessário. Por isso tua definição é condenável até para os sofistas191,
qiie, se não investissem insanamente contra mim cegados pela inveja, antes se
Iniiçariam com fúria contra teu livro. Agora, porque atacas Lutero, mesmo
qiie fales contra ti mesmo e contra eles, só dizes coisas santas e católicas. TZo
grande é a paciência dos santos homens.
Não digo isso por aprovar a opinião dos sofistas acerca do livre-arbítrio,
iiias porque a julgo mais tolerável do que a de Erasmo, já que se aproximam
iiiais da verdade. Pois eles não dizem, como eu, que o livre-arbítrio nada é;
:tilida assim, como dizem que ele nada pode sem a grap, principalmente o
iricstre das sentença.^'^^, pugnam contra Erasmo. E mais: eles parecem pugnar

18')i'cdio Longobardo E o mesma que Pedro Lombardo, ca. IlWllM), teólogo escolástico, autor
iliis Quauo Livros de S e n t e n ~ s- Sententiarum libri quaituor, um compêndio teolób.ico que,
por sua claridade sistemática, chegou a ser o mais importante manual teológico da Idade Mé-
dia, livro-texto para' os estudantes de Teologia. Lutero pode reierir-se especificamente a Liv. 11
ilibl. 25.5, ande a autor afirma que a vontade é liwe porque é capa de "apetecer ou escolher,
iciii coação ou riecessidadc, o que disccrniu mediante a rarãa" (sjne coactione ei necessitate
v;ilet ap)pi>eterevel eligere, quod er raiione decrevuit).
IH
' I I.i~ter«pode cstar pensando numa passagem de De spin'tu et littera 111.5 (Migne 44,203): Nam
. . Nsi ad oecwndum valet. si lateat verjfatis i i a . 10 livre-arbi-
iic<itti. liheium arbitrium ouidouam
iii<iiiZ« 6 i a p x ~de nada a não ser de pecar se lhe está oculto a caminha da verdade.)
11' 1 Soii\i;ia szo, ~ i i ilinguagem de Lutcio, os tcólogos cscolásticus em geral.
I<>.! Viilv ;aci!ii;i i?. 18%

78
Da Vontade Cativa
também contra si mesmos e revolver-se apenas numa controvérsia de pala-
vras, mais desejosos de contenção do que da verdade, como convém a sofislas.
Pois imagina que me fosse dado o sofista menos mau possível, com o qual
eu pudesse conversar sobre essas coisas em separado, num diálogo confiden-
cial, e do qual pudesse pedir um juizo sincero e livre do seguinte modo: se al-
guém te dissesse que é livre aquilo que, por seu próprio poder, só pode fazer
algo numa direçâo, a saber, na má direção, ao passo que na outra direçâo, a
saber na boa direção, pode fazer algo, mas não por seu próprio poder, e, sim,
unicamente com auxílio de outro, poderias coiiter o riso, ineu amigo? Pois as-
sim demonstrarei facilmente que uma pedra ou um troiico tem livre-arbítrio,
já que pode voltar-se tanto para cima quanto para baixo, mas por sua própria
força só para baixo, e para cima só com o auxilio de outrem. E, como disse
acima, por fim vamos dizer, coiitra o uso de todas as línguas e palavras: "Niii-
guém é todos, nada é tudo", referindo um a própria coisa, o outro a uma coi-
sa estranha que poderia estar ai e agregar-se.
Assim, disputando em excesso sobre o livre-arbítrio, acabam tornando-o
livre por acidente, visto que algum dia poderia ser liberto por outrem. A ques-
tão, no entanto, é o que ele pode por si mesmo, e qual é a substância da liber-
dade do arbitrio. Se quisermos resolver essa questão, nada mais restará do li-
vre-arbítrio do que uma palavra vazia, quer queiram, quer não. Outro defeito
dos sofistas consiste em atribuirem ao livre-arbítrio a [orça de discernir o bem
do mal. Do mesmo modo, ocultam a regeneração e renovação do E ~ p i r i t o ' ~ ~ ,
e lhe agregam, como que externamente, aquele auxilio alheio. Disto falarei
mais tarde. Mas isso basta a respeito da definição. Vejamos agora os argumen-
tos com os quais se quis inflar aquela palavrinha inane.
O primeiro é a passagem de Eclesiástico 15.14-17: "Deus criou o ser huma-
no desde o inicio e o deixou na mão de seu próprio juizo. Acrescentou seus
mandamentos e preceitos. Sc quiseres guardar os mandamentos e conservar
perpetuamente uma fé agradável, eles te guardarão. Ele pôs diante de ti o fo-
go e a água; estende a mão para o que quiseres. Diante do ser humano estão
a vida e a morte, o bem e o mal; o que lhe agradar, isso lhe será dado". Em-
bora eu pudesse recusar esse livro coin razão, por ora o aceito, para não gas-
tar meu tempo me envolvendo numa disputa a respeito dos livros acolhidos
I no cânone hebreu, que tu tratas com mordacidade e escárnio, comparando os
Provérbios de Salomão e o Cântico Amalório (como o chamas coin ambígua
insinuação) com os dois livros de Esdras, Judite, a história de Susaua e o dra-
gão, e Ester. Se bem que tenham este último no cânone, em meu juizo mere-
ce mais do que todos os outros ser tido por extracanônico.
Todavia, eu poderia responder brevemente com tuas próprias palavras:
nessa passagem a Escritura é obscura e ambígua, por isso não prova nada de
certo. Conio nós, porém, estamos do lado que nega [o livre-arbítrio], exigimos
11;i Vontade Cativa
que apresenteis uma passagem que demonstre com palavras claras o que é e
de que é capaz o livre-arbítrio. Talvez fareis isso no dia de São Nunca, ainda
que tu, para fugires dessa necessidade, desperdiças muitas boas palavras ao ca-
minhares sobre ovos, recitando tantas opiniòes sobre o livre-arbitrio que clua-
se fazes de Pelágiol" um evangélico. Do mesmo modo, inventas uma graça
qiiadrupla, para atribuir tambéiii aos filósofos certa ft! e caridade. Também in-
ventas igualmente essa lei triple: da natureza, das obras e da fé - tiaturalmen-
te urna nova fábula, para afirmares com veeniêiicia que os preceitos dos filóso-
fos estão de acordo com os preceitos evangélicos. Então aplicas a razão cega
a passagem de S1 4.6: "Gravada está sobre nós a luz de teu rosto ó Senhor",
que fala do conhecimento do próprio rosto de Deiis, isto é, da fé. Se um cristão
juntar ti~doisso, será obrigado a suspeitar que til brincas e zombas dos dog-
mas e da religião dos cristãos. Pois me é extremamente difícil atribuir tainanha
ignorãiicia a quem examinou ateniainente todas as nossas afirmaçóes e as con-
servou com tamanha diligência na memória. Mas entrementes me çoiitrrei, con-
ietitando-me com o fato de havê-lo indicado, até que se ofereça unia ocasião
mais conveniente. Não obstante, rogo-te, caro Erasmo, que não nos tentes co-
mo um daqueles que dizem: "Quem nos verá?" [SI 64.5.1 Também não é segu-
ro, numa questão de tanta importância, brincar perpetuamente com Vertum-
~ palavras diante de qualquer um. Mas passemos a questão.
~ i o s "de
De uma única opinião sobre o livre-arbítrio fazes lima triple. Parece-te du-
ra, porein, bastante plausivel, a opinião daqueles que negam que o ser liunia-
tio possa querer o bein sem uma graça peculiar. que negam que ele possa co-
riiesar, negam que possa progredir, completar, etc. Aprovas esta opinião por-
que deixa ao ser llumano o empenho e esforço, mas não lhe deixa nadaque
possa imputar a suas próprias forças. Mais dura te parece a opinião daqueles
que sustentam que o livre-arbítrio não é capaz de nada senão de pecar, que so-
mente a graça opera o bem em nós, etc. Durissima, porém, é a opinião daque-
les que dizem que "livre-arbitrio" é um nome vazio, mas que Deus opera em
116s taiito as coisas boas quanto as más, e que tudo que acontece existe por
riiera necessidade. Contra estas ultiinas é que te propões a escrevertg6.Sabes
i;iinbém o que falas, caro Erasmo? Fazes aqui três opiniòes coriio se fossem
dc três escolas, porque não entendes que a mesriia questão foi exposta de mo-
do variado, ora com estas, ora com aquelas palavras, por nós que professa-
iiios uma e mesma escola. Mas vamos chamar tua atenção e te demonstrar a
iicgligência, ou melhor, a hebetação de teu juizo.
Pergunto: como a defiiufão do livre-arbítrio que deste acima se coaduna
cotii essa primeira opinião bastante plausivel? Disseste que o livre-arbítrio é a
I'oica da vontade humana pela qual o ser humano pode aplicar-se ao bem.

I'J4 ( ' I . 11. 111.


1'15 ('r, L). 130.
100 l l ~ ~ ~$ [~I , ~ i Iihu
l ~ ~ ,
Da Vontade Cativa
Aqui, contudo, dizes e aprovas que se diga que o ser humano não pode que-
rer o bem sem a graça. A definição afirma o que sua exemplificação nega, e
em teu livre-arbítrio encontram-se ao mesmo tempo um sim e um não, de mo-
do que simultaneamente nos aprovas e coiidenas, e também condenas e apro-
vas a ti mesmo num único e mesmo dogma e artigo. Acaso crês que não é bom
aplicar-se as coisas que concernem a salvação eterna, o que tua definição atri-
bui ao livre-arbítrio? Pois não haveria qualquer necessidade da graça se hou-
vesse tanto bem no livre-arbítrio por meio do qual ele pudesse aplicar a si mes-
mo ao bem. Assim sendo, o livre-arbítrio que defines é diferente daquele que
defendes. E agora Erasmo, mais que os outros, tem dois livres-arbítrios que
estão totalmente em desacordo entre si.
Mas, deixando de lado o que inventou a definição, vejamos o que a pró-
pria opinião propõe em contrário. Admites que o ser humano não pode que-
rer o bem sem uina graça peculiar (pois não debatemos agora o que pode a
graça de Deus, mas o que pode o ser humano sem a graça). Admites, portan-
to, que o livre-arbitrio não pode querer o bem; isso não é outra coisa do que
afirmar que não pode aplicar-se as coisas que concernem à salvação eterna, co-
mo reza tua definição. E mais: pouco antes dizes que, após o pecado, a vonta-
de humana é tão depravada que, tendo perdido a liberdade, é obrigada a ser-
vir ao pecado e não pode voltar-se a um valor melhor. E, se não me engano,
sustentas que esta foi a opinião dos pelagianos. Creio que aqui ProteuN7já
não tem nenhuma escapatória. É mantido preso por palavras claras, a saber,
que a vontade, tendo perdido a liberdade, está sob coação e é mantida na ser-
vidão do pecado. Ó egrégio livre-arbítrio, do qual o próprio Erasmo diz que,
tendo perdido a liberdade, é servo do pecado. Se Lutero tivesse dito isso, não
se teria ouvido nada mais absurdo e não se teria podido divulgar nada mais
inútil do que esse paradoxo, de modo que teria sido necessário escrever até dia-
tribes contra ele. Mas talvez ninguém me creia que isso tenha sido dito por
Erasmo. Leia-se essa passagem da Diatrjbe, e se ficará assombrado. Eu, no
entanto, não me assombro muito. Pois quem não toma essa questão a sério e
não é bastante afetado pela causa, mas é completamente alheio a ela em seu
coração, sente tédio, frieza ou náuseas - de que modo tal pessoa não diria
em toda parte coisas absurdas, ineptas, contraditórias, enquanto que trata da
causa como que ébrio ou dormindo e, entre um ronco e outro, arrota "sim",
"não", ao som das várias vozes que lhe chegam aos ouvidos? Por essa razão
os professores de retórica exigem afeto da parte do advogado de uma causa,
e tanto mais a teologia exige um afeto tal que torne [o advogado de sua cau-
sa] vigilante, perspicaz, atento, prudente e estrênuo.
Se, pois, o livre-arbítrio sem a graça, tendo perdido a liberdade, é coagi-
do a servir ao pecado e não pode querer o bem, eu gostaria de saber o que é
aquele empenho, o que é aquele esforço que a primeira e plausível opinião deixa
Ila Vontade Cativa
[ao ser humano]? Não pode ser um bom empenho, um bom esforço, porque
não pode querer o bem, como diz a opinião e como foi admitido. Resta, por
conseguirite, um mau empenho, um mau esforço, que, tendo perdido a liberda-
de, é coagido a servir ao pecado. Ora, o que, pergunto eu, significa dizer isso?
Essa opinião deixa ao ser humano o empenho e o esforço, mas não deixa o
que possa imputar a suas próprias forças? Quem pode conceber isto? Se o em-
penho e o esforço são deixados para as forças do livre-arbítrio, por que não
Ilies são imputados? Se não são imputados, como são deixados? Acaso aque-
le empenho e esforço antes da graça são deixados também para a própria gra-
ça futura e não ao livre-arbítrio, de modo que, ao mesmo tempo, sio deixa-
dos e não são deixados ao mesmo livre-arbítrio? Se isso não são paradoxos,
ou melhor, monstruosidades, o que então são monstruosidades?
Entretanto, talvez a. Djatribe sonhe que entre esses dois, poder querer o
bem e não poder querer o bem, haja um meio-termo, que seria o querer abso-
luto, sem consideração pelo bem e pelo mal, de sorte que assim, com certa ar-
gúcia dialética, nos esquivemos dos escolhos e digamos que na vontade do ser
humano há um certo querer, que sem a graça certamente não pode voltar-se
para o bem, e que, contudo, sem a graça não quer imediatamente apenas o
mal, mas é um puro e mero querer, que pela graça pode ser voltado para ci-
ma, para o bem, e pelo pecado para baixo, para o mal. Mas onde ficará então
aquela afirmação de que, perdida a liberdade, ele e coagido a servir ao peca-
do? Onde ficam então aquele empenho e esforço que são deixados? Onde fi-
ca a força de aplicar-se as coisas que concernem a salvação eterna? Pois tani-
bém essa força de aplicar-se a salvação não pode ser um puro querer, a menos
quc se diga que a própria salvação nada é. Além disso, também o empenho e
o esforço não pode ser um puro querer, visto que [precisa] estender-se para
algo (para o bem, por exemplo) e esforçar-se por alcançá-lo, e não pode diri-
gir-se para o nada ou sustar o empenho. Em suma, para onde quer que a Dia-
tiibe se volte, não pode escapar das contradições e dos ditos incoerentes, de
solte que o próprio livre-arbítrio que ela defende não é tão cativo quanto ela
própria é cativa. Pois ao tratar de livrar o arbítrio ela se enreda de tal manei-
ra que fica presa por vínculos indissolúveis juntamente com o livre-arbítrio.
Além disso, não passa de invencionice dialética a afirmação de que há no
ser humano um querer médio e puro, e os que afirmam isso não podem pro-
vi-10. Ela nasceu da ignorância das coisas e do respeito pelas palavras, como
sc a realidade sempre fosse assim coino se dispõe nas palavras. Há um núme-
ro infinito de tais coisas entre os sofistas. Antes, a realidade é tal como a ex-
lprcssain estas palavras de Cristo: "Quem não é comigo, é contra mim." [Lc
11.23.1 Ele não diz: "Quem não é comigo, riem contra mim, mas está no
iiicio". Pois se Deus está em nós, Satanás está ausente, e só o querer o bem
csiii presente. Se Deus está ausente, Satanás está presente, e só o querer o mal
csi;i cm nós. Neni Deus nem Satanás permitem um mero e puro querer ern
116s;niitcs, coino disscstc corrctanienlc, tciido pcrdido a libcrdadc, soinos coa-
tri<los:i scrvir no pcc:i<li~.islo i., 116sqiicrciiios o pccodo c o iii;iI, frilariios o
pecado e o mal, fazemos o pecado e o mal.
Vê, a este ponto a invencível e potentissima verdade impeliu a imprudente
Diatribe e tornou estulta sua sabedoria198,de modo que, ao querer falar contra
nós, é coagida a falar a nosso favor e contra si mesma. É da mesma maneira
que o livre-arbítrio faz algo de bom: pois quando faz algo contra o mal, então
é que faz o máximo mal contra o bem, de sorte que a Diatribe é no dizer assim
como o livre-arbítrio é no fazer. Entretanto, também a própria Diatribe toda
não passa de uma egrégia obra do livre-arbítrio, condenando ao defender e
defendendo ao condenar, isto é, duplamente estulta enquanto pretende parecer
sábia.
Quando comparada consigo mesma, a primeira opinião é tal que nega que
o ser humano possa querer algo de bom, e mesmo assim resta um empenho,
que, porém, também não é dele próprio. Vamos compará-la agora com as ou-
tras duas. A segunda é aquela mais dura, que sustenta que o livre-arbítrio não
é capaz de nada senão de pecar. Esta, porém, é a opinião de Agostinho, que
ele expressa em inuitos outros lugares, especialmente no livro D o espfrito e da
letra, se não me engano no capítulo 4 ou P 9 , onde utiliza essas mesmas palavras.
A terceira opiniâo, a mais dura, é a de Wyclif e de Luterozw. Ela diz que
o livre-arbítrio é um termo vazio e que todas as coisas que acontecem existem
por mera necessidade. É contra estas duas opiniões que a Diatribe luta. Quan-
to a isto digo que talvez não saibamos suficiente latim ou alemão, de modo
que não pudemos explicar a fundo a própria questão. Mas Deus é testemunha
de que com as palavras das duas últimas opiniões eu não quis dizer nem quis
que se entendesse outra coisa do que aquilo que é dito na primeira opinião.
Também não creio que Agostinho tenha pretendido outra coisa e não depreen-
do de suas palavras outra coisa do que afirma a primeira opinião, de sorte
que as três opiniões citadas pela Diatribe para mim nada mais são do que aque-
la única opinião minha. Pois depois que se admitiu e concordou que, perdida
a liberdade, o livre-arbítrio é coagido a servir ao pecado e não pode querer al-
go de bom, eu não posso conceber a partir dessas palavras nenhuma outra coi-
sa do que isto: o livre-arbítrio é um termo vazio, cuja realidade se perdeu. "Li-
berdade perdida" minha gramática chama de nenhuma liberdade, e atribuir o
título da liberdade ao que não tem nenhuma liberdade é atribuir-lhe um ter-
mo vazio. Se erro neste caso, corrija-me quem puder. Se o que digo é obscu-
ro e ambíguo, torne-o claro e firme quem puder. Eu não posso chamar de sa-
úde a uma saúde perdida, e se a atribuisse a um doente, parece-me que não
lhe atribuiria outra coisa do que um termo vazio.
Fora, porém, com as monstruosidades de palavras! Pois quem pode supor-
tar esse abuso no falar, quando dizemos que o ser humano tem livre-arbítrio

1<18 ('i. I <'i> 1.20.


I<)')N;i i,ciil;!<lc ilcverici sci cap. 3,5.
2íKI ( ' I . O I)rli;ilr <Ic Ilciclcllicr~:, Icse 13, i n : Obms Selecioriadaa, v. 1, p. 46.
I>a Vontade Cativa

e, ao mesmo tempo, afirmamos que, tendo perdido a liberdade, é coagido a


servir ao pecado e não pode querer nada de bom? Isso contraria o sentido co-
mum e suprime completamente o uso da linguagem. Antes, deve-se acusar a
Diatribe por falar suas palavras sem pensar e cochilando e por não observar
as palavras dos outros. Digo que ela não considera o que é e quanto implica
dizer: o ser humano perdeu a liberdade, é coagido a servir ao pecado e não
pode querer algo de bom. Pois se vigiasse e observasse, veria claramente que
o sentido das três opiniões, que ela transforma em diversas e contraditórias, é
um só. Pois se alguém perdeu a liberdade, e é coagido a servir ao pecado e
não pode querer o bem, que conclusão mais correta se pode tirar a respeito
dele do que esta: ele peca ou quer o mal necessariamente? Pois assim também
os sofistas concluiriam através de seus silogismos. Por esta razão a Djatribe
combate de modo extremamente infeliz e excessivo as duas últimas opiniões,
cuquanto aprova a primeira, que é a mesma que aquelas. Como é de seu costu-
ine, mais uma vez ela condena a si mesma e aprova nossa causa num único e
incsmo artigo.

r IX I
Passemos agora a passagem do Eclesiásti~o~~' e comparemos também
com ela aquela primeira opinião plausível. A opinião diz que o livre-arbítrio
iiâo pode querer o bem. Entretanto, a passagem do Eclesiástico é aduzida pa-
ra provar que o livre-arbitrio é algo e pode algo. Portanto, a opinião a ser con-
firmada por meio do Eclesiástico estatui uma coisa, e o Eclesiástico é alegado
para confirmar outra coisa. Isso é como se alguém, para provar que Cristo é
o Messias, aduzisse uma passagem que prova que Pilatos foi governador da
Siria202ou qualquer outra coisa que não vem ao caso. Assim se prova também
aqui o livre-arbítrio, para não falar do que exigi acima, [quando disse] que ab-
solutamente não se diz ou se prova com clareza e certeza o que é e do que é
capaz o livre-arbítrio. Ainda assim, vale a pena examinar atentamente toda es-
sa passagem.
Primeiramente diz: "Deus criou o ser humano desde o inicio" (Eclo 15.14).
Aqui se fala da criação do ser humano, e ainda nada se diz acerca do livre-ar-
I~ilrioou dos mandamentos.
Segue: "E o deixou na mão de seu próprio conselho" (Eclo 15.14). Que
Iciuos aqui? Acaso se estabelece aqui o livre-arbítrio? Ora, aqui nem sequer
sc mencionam os mandamentos para os quais se exige o livre-arbítrio, e nada
sc IC a respeito disso na criação do ser humano. Se, portanto, se entende outra
coisa por "mão de [seu próprio] conselho", deve-se entender antes o que [cons-
I;! em] Gn 1 e 2: o ser humano foi criado como senhor das coisas, para domi-
ii:ir livremente sobre elas, como diz Moisés: "Façamos o ser humano, que pre-
sida aos peixes do mar" (Gn 1.26). Outra coisa não se pode provar a partir
dessas palavras. Com efeito, ai o ser humano pôde lidar com as coisas 7rgun-
do seu arbítrio, como coisas a ele sujeitas. Além disso, chama isso de conseiiio
do ser humano, como algo diferente do conselho de Deus. Depois disso, porém,
tendo dito que o ser humano foi criado dessa maneira e deixado na mão de
seu próprio conselho, prossegue:
"Acrescentou seus mandamentos e preceitos'' @CIO15.15). A que os acres-
centou? Certamente ao conselho e arbítrio do ser humano e aquela constitui-
ção do domínio do ser humano sobre as outras coisas. Com esses preceitos ti-
rou do ser humano o domínio sobre uma parte das criaturas (a saber, sobre a
árvore do conhecimento do bem e do malzo3e quis, antes, que ele não fosse
livre. Tendo, contudo, acrescentado os mandamentos, passou então ao arbítrio
do ser humano diante de Deus e das coisas que são de Deus:
"Se quiseres guardar os mandamentos, eles te guardarão", etc. @c10
15.16). Por conseguinte, com esta passagem: "Se quiseres" começa a questão
acerca do livre-arbítrio, de modo que, por intermédio do Eclesiástico, entenda-
mos que o ser humano está distribuído em dois reinos: um em que é conduzi-
do por seu próprio arbítrio e conselho, sem preceitos e mandamentos de Deus,
a saber, nas coisas que são inferiores a ele. Aqui ele reina e é senhor, sendo
deixado na mão de seu próprio conselho. Isso não quer dizer que Deus o tives-
se abandonado de tal maneira que não cooperasse em todas as coisas, mas, sim,
que lhe concedeu o livre uso das coisas conforme seu próprio arbítrio e não o
inibiu com quaisquer leis ou prescrições. É como se dissesses através de uma
comparação: o Evangelho nos deixou na mão de nosso próprio conselho, pa-
ra que dominemos sobre as coisas e as usemos como queremos. Todavia, Moi-
sés e o papa não nos deixaram nesse conselho, mas nos reprimiram através
de leis e, antes, nos sujeitaram a seu arbítrio. No outro reino, porém, elem
não é deixado na mão de seu próprio conselho, mas é conduzido e guiado pelo
conselho de Deus, de modo que, assim como em seu próprio reino o ser huma-
no é conduzido por seu próprio arbítrio sem os mandamentos de outrem, da
mesma maneira no reino de Deus é conduzido pelos mandamentos de outrem
sem seu próprio arbítrio. E é isso o que diz o Eclesiástico: "Acrescentou pre-
ceitos e mandamentos"; "Se quiseres", etc.
Se, pois, isso está suficientemente claro, demonstramos que essa passagem
do Eclesiástico não fala a favor, e sim, contra o livre-arbítrio, já que o ser hu-
mano é sujeitado aos preceitos e ao arbítrio de Deus e eximido de seu próprio
arbítrio. Se isso não está suficientemente claro, conseguimos, mesmo assim,
que essa passagem não possa valer em favor do livre-arbítrio, já que pode ser

203 Cf. Gn 1.26.


204 Note-se que os "dois reinos'' de que Lutero fala neste contexto, não são o reino de Deus e o
icino dc Satanás, e, sim, o reino das "coisas que são inferiores" ao homem e o reino "das coi-
sas siipçriiiies" ao homem, no qual o homem é conduzido pelo arbítrio e pela decisão dc Deus.
Da Vontade Cativa

entendida num sentido diferente do deles, a saber, em nosso sentido, que já


expusemos e que não é absurdo, e, sim, muitíssimo correto e está em conso-
nância com toda a Escritura, ao passo que o sentido deles está em desacordo
com toda a Escritura e se baseia nessa única passagem, contra toda a Escritu-
ra. Persistimos, pois, seguros no bom sentido, negando o livre-arbítrio, até
que eles tenham confirmado seu sentido afirmativo, difícil e forçado.
Se, pois, o Eclesiástico diz: "Se quiseres guardar os mandamentos e con-
servar uma fé agradável, eles te conservarão" (Eclo 15.16), não vejo como se
possa provar o livre-arbítrio com essas palavras. Com efeito, a palavra está
no modo subjuntivo ("Se quiseres"), que nada afirma, como dizem os dialéti-
cos: uma [oração] condicional nada afirma indicativamente; por exemplo: Se
o diabo é Deus, é adorado com razão; se o asno voa, o asno tem asas; se o ar-
bítrio é livre, a graça nada é. Ora, se o Eclesiástico tivesse querido asserir o li-
vre-arbítrio, deveria ter dito assim: "O ser humano pode guardar os manda-
mentos de Deus"; ou: "O ser humano tem o poder de guardar os mandamentos".
Mas aqui a Diatribe retrucará argutamente: "Ao dizer: 'Se quiseres
guardar', o Eclesiástico quer dizer que existe no ser humano a vontade para
guardar e para não guardar. Do contrário, que significa dizer: 'Se quiseres' a
alguém que não tem a vontade? Não é ridículo que alguém diga a um cego:
'Se quiseres ver, acharás um tesouro'; ou a um surdo: 'Se quiseres ouvir, con-
tar-te-ei uma boa história'? Isso seria rir-se da miséria deles".
Respondo: isso são argumentos da razão humana, que costuma produzir
tais sapiências. Por isso já não temos quc disputar a respeito da conclusão com
o Eclesiástico, e, sim, com a razão humana, pois ela interpreta as Escrituras
dc Deus uor meio de suas conclusões e seus silo~ismose a arrasta oara onde
quer. E o faremos com gosto e confiança, visto que sabemos que ela só garru-
Ia coisas estultas e absurdas, principalmente quando começa a ostentar sua sa-
bedoria em coisas sagradas.
Em primeiro lugar, se eu perguntar com que se prova que se quer dizer
ou se segue que há um livre-arbítrio no ser humano toda vez que se diz: "Se
quiseres, se fizeres, se ouvires", ela205 dirá: "Porque a natureza das palavras
c o uso da linguagem entre as pessoas assim o exige". Portanto, ela mede as
coisas e palavras divinas a partir do uso e das coisas humanas. O que pode ser
mais perverso, já que aquelas são celestes e estas terrenas? Por conseguinte,
cla própria se revela como estulta, pois cogita unicamente coisas humanas a
i-cspeito de Deus.
Mas e se eu provar que a natureza das palavras e o uso da linguagem mes-
1 1 1entre
~ as pessoas nem sempre implica que sejam ridicularizados os que não
s30 capazes toda vez que se Ihes diz: "Se quiseres, se fizeres, se ouvires"? Quan-
Ii~svezes os pais brincam com seus filhos, ao ordenar-lhes que venham a eles,
q ~ i cfaçam isto ou aquilo, unicamente para que se torne evidente quão incapazes
são e sejam obrigados a invocar a ajuda dos pais? Quantas vezes urn médico
fiel ordena a um doente soberbo que faça ou deixe de fazer coisas que lhe são
impossíveis ou prejudiciais, para impeli-lo por experiência própria ao conheci-
mento de sua enfermidade ou impotência, ao qual não pode levá-lo de rienhu-
ma outra Forma? E o que é mais corrente e comum do que insultar e provo-
car com palavras, quando queremos mostrar a inimigos ou a amigos do que
são capazes e do que não? Mericiono isso tão-somente para mostrar a razão
suas conclusões, quão estultamerite as imputa as Escrituras, e também quão
cega 6 ao não ver que elas não se aplicam sempre nem sequer a coisas e pala-
vras humanas; mas se ela vê que iis vezes assim acontece, logo se precipita e
jiilga que acontece geralmente em todas as palavras de Deus e dos seres hu-
manos, fazendo do particular um geral, segundo o costume de sua sabedoria.
Agora, se Deus age conosco como um pai com seus Filhos, para mostrar
a nós, ignaros que somos, nossa impotência, ou como um médico fiel nos reve-
la nossa enfermidade, ou nos insulta na qualidade de inimigos seus que resis-
tem soberbamente a seu conselho, e nos diz, tendo [nos] proposto [suas] leis
(através das quais o consegue do modo mais cômodo): "Faze, ouve, guarda",
ou: "Se ouvires, se quiseres, se fizeres", acaso se poderia inferir dai conio con-
cliisão correta de que, em consequêiicia~somos capazes de fazê-lo livremente
ou então Detis zomba de nós'! Por que não deveria seguir-se antes esta conclu-
são: em conseqiiência, Deus nos tenta para nos levar, por meio da lei, ao co-
nhecimento de nossa impotência, se somos amigos, ou então para verdadeira-
mente e com razão nos insultar e zombar de nós, se somos inimigos soberbos?
Com efeito, essa é a causa da legislação divina, conio ensina Paulozoh. É que
a natureza humana é cega, de modo que não conliece suas próprias forças,
ou inelbor, enfermidades. Além disso, e soberba, imaginando que sabe e po-
de tudo. Para tratar dessa soberba e ignorância, Deus não pode apresentar re-
médio melhor do que a proposição de sua lei. A respeito dessa questão dire-
mos mais no devido lugar. Neste ponto baste havê-la prelibado para refutar
esta conclusão da sabedoria carnal e estulta: "Se quiseres, por consegiiinte po-
des querer livremente". A Diatlibe sonha que o ser humano é integro e são,
tal como ele é em suas próprias coisas p a r a a vista lirimana. Por isso garrula
que com estas palavras: "Se quiseres. se fizeres, se ouvires" se zomba do ser
humano se seu arbitrio não é livre. A Escritura, porém, define que o ser huma-
no é corrupto e cativo, e ainda despreza e ignora soberbamente sua corrupção
e seu cativeiro. Por isso com essas palavras ela lhe dá um puxão e o desperta,
para que reconheça ao menos por experiência certa quão incapaz é de qual-
quer uma dessas coisas.
Mas vou atacar a própria Diatiihe. Se verdadeiramente crês, ó senhora ra-
zão, que est'ão firmes essas conclusões ("Se quiseres, por conseguirite podes li-
vremente"), por que tu mesma rião as imitas? Com efeito, tu mesma dizes

21% Cf. Rrn 3.20.


I>a Vanlade Cativa

naquela opinião plausível que o livre-arbítrio não pode querer qualquer coisa
de bom. Por que conclusão, pois, isso decorre ao mesmo tempo dessa passa-
gem "Se quiseres guardar" da qual dizes decorrer que o ser humano pode que-
rer e não querer livremente? Acaso o doce e o amargo manam da mesma
fonte? Será que também tu zombas mais aqui do ser humano, ao dizer que ele
pode guardar o que não pode querer nem desejar? Logo, também tu não crês
de coração que se trata de uma boa conclusão ("Se quiseres, por conseguinte
podes livremente"), apesar de travares tão grande luta por causa dela, ou não
dizes de coração que é plausível aquela opinião que julga que o ser humano
iião pode querer o bem. Assim a razão é feita prisioneira através das conclu-
sões e palavras de sua própria sabedoria, de modo que não sabe o que ou so-
bre o que fala, a menos que seja o mais conveniente defender o livre-arbítrio
com tais argumentos que se devoram e destroem mutuamente, assim como os
'midianiías se destruíram através de matanças mútuas enquanto atacavam Gi-
deão juntamente com o povo de DeusZU7
E mais, vou fazer ainda outras queixas contra essa sabedoria da Diatribe.
O Eclesiástico não diz: "Se tiveres o esforço ou o empenho de guardar, o que
não deve ser atribuído a tuas próprias forças", como tu concluis, mas diz:
"Se quiseres guardar os mandamentos, eles te guardarão." Se agora queremos
tirar conclusões a maneira de tua sabedoria, vamos inferir o seguinte: "Logo,
o ser humano pode guardar os mandamentos". E assim não faremos aqui com
que algum pequenino esforço ou empenho reste no ser humano, mas lhe atri-
buiremos toda a plenitude e abundância [da capacidade] de guardar os manda-
mentos. Do contrário o Eclesiástico zombaria da miséria do ser humano ao
ordenar que guardasse aquilo que sabe que ele não é capaz de guardar. E tam-
I~émnão seria suficiente que ele tivesse o esforço e empenho, pois também as-
sim [o Eclesiástico] não escaparia da suspeita de estar zombando, a menos que
indicasse que nele existe o poder de guardá-los.
Façamos de conta, contudo, que esse esforço e empenho do livre-arbítrio
seja algo; que diremos aqueles - a saber, aos pelagian~s~'"~ - que com base
iicssa passagem negavam a graça totalmente e atribuíam tudo ao livre-arbítrio?
OS pelagianos venceriam claramente, se a conclusão da Diatribe subsiste. Pois
:is palavras do Eclesiástico se referem ao guardar, não ao empenho ou esfor-
c«. Se negares aos pelagianos a conclusão a respeito do guardar, eles, por sua
vcz, com muito mais razão, negarão a conclusão a respeito do empenho. E se
1 i1 Ihes tomares todo o livre-arbítrio, também eles te tomarão a partícula restan-
i c dele, para que não possas afirmar acerca da partícula o que negas acerca
CIO todo. Portanto, qualquer coisa que disseres contra os pelagianos, que atri-
hiiein tudo ao livre-arbítrio a partir dessa passagem, nós o diremos com mui-
io inais vigor contraaquele pequenino esforço de teulivre-arbítrio. E os pelagianos
Da Vontade Cativa
estão de acordo conosco na medida em que, se a opinião deles não pode ser
provada com base nessa passagem, muito menos qualquer outra poderá ser
provada com base nela. Pois, se a causa deve ser tratada com conclusões, o
Eclesiástico é o mais forte argumento a favor dos pelagianos, já que diz com
palavras claras acerca de todo o guardar: "Se quiseres guardar os mandamen-
tos". E mais, também a respeito da fé ele diz: "Se queres guardar uma fé que
agrada", de modo que, de acordo com essa conclusão, deveria estar em nos-
so poder guardar também a fé. Ela, porém, como diz Paulozog,é um singular
e raro dom de Deus.
Em suma: visto que se enumeram tantas opiniões a favor do livre-arbítrio
e não há nenhuma que não reclame para si essa passagem do Eclesiástico, e
que elas são diversas e contrárias, só pode acontecer que o Eclesiástico as
contradiga e aponte em direção oposta com as mesmas palavras. Por isso, na-
da podem provar a partir dele. Não obstante, admitindo-se aquela conclusão,
ela é unicamente a favor dos pelagianos, contra todos os outros. Por esta ra-
zão, também é contra a Diatrjbe, que, nessa passagem, é degolada com sua
própria espada.
Nós, porém, dizemos, como no início, que essa passagem do Eclesiástico
nZo apóia absolutamente nenhum dos defensores do livre-arbítrio, mas pugna
contra todos eles. Com efeito, não se deve admitir esta conclusão: "Se quise-
res, por conseguinte poderás". Antes, deve-se entendê-la no sentido de que,
com essa palavra e outras semelhantes, o ser humano é advertido de sua impo-
tência, que, devido a sua ignorância e soberba, não reconheceria nem sentiria
sem essas advertências divinas.
Nós, entretanto, não falamos aqui apenas do primeiro ser humano, mas
de qualquer um, embora pouco importe que o relaciones com o primeiro ser
humano ou com quaisquer outros. Pois, ainda que o primeiro ser humano não
era impotente por ter a assistência da graça, nesse preceito Deus lhe demonstra
suficientemente quão impotente seria na ausência da graça. Ora, se esse ser hu-
mano, estando presente o Espírito, não pôde querer com uma nova vontade
o bem que novamente lhe fora proposto, isto é, a obediência, porque o Espiri-
to não a acrescentava, de que seríamos capazes nós sem o Espírito no bem
que perdemos? Portanto, nesse ser humano se demonstrou, através de um ter-
rível exemplo, para abater nossa soberba, de que é capaz nosso livre-arbítrio
quando está entregue a si mesmo e não é continuamente mais e mais impeli-
do e aumentado pelo Espírito de Deus. Aquele não foi capaz de crescer no
Espírito, cujas primícias tinha, mas caiu das primícias do Espirito. De que ma-
neira nós, já caídos, seremos capazes de qualquer coisa em relação às primí-
cias do Espírito que nos foram tiradas, principalmente tendo em vista que Sata-
nás já reina em nós com pleno poder, que prostrou o primeiro ser humano
com uma única tentação quando ainda não reinava nele? Não se pode expor
iiada mais forte contra o livre-arbítrio do que caso se tratasse dessa passagem
do Eclesiástico juntamente com a queda de Adão. Mas aqui não é o lugar
clc fazê-lo, e talvez em outra parte se apresente uma ocasião para tanto. Por
cnquanto basta termos mostrado que o Eclesiástico absolutamente nada diz
c111 favor do livre-arbítrio nessa passagem - que eles, todavia, consideram a
principal -, e que essa passagem e outras semelhantes - "Se quiseres, se ou-
vires, se fizeres" - não demonstram do que os seres humanos são capazes, e,
sim, do que são devedoreszlo.
Outra passagem aduzida por nossa Diatribe é Gn 4.7, onde o Senhor diz
;i Caim: "Sob ti estará o desejo de pecar, e tu o dominará^"^'^. Demonstra-
se aqui, diz a Diatribe, que o impulso da alma para as coisas torpes pode ser
vcncido e não acarreta a necessidade de pecar. Esse "o impulso da alma para
as coisas torpes pode ser vencido", embora seja dito de modo ambíguo, preci-
sa [ser entendido], por força da própria significação, do que se segue e dos pró-
prios fatos, no sentido de que é próprio do livre-arbítrio vencer seu impulso
para as coisas torpes e esse impulso não acarreta a necessidade de pecar. Mais
iima vez: que se omite aqui que não seja atribuído ao livre-arbítrio? Quai é a
iiccessidade do Espírito, de Cristo, de Deus, se o livre-arbítrio é capaz de ven-
ccr o impulso da alma para as coisas torpes? Mais uma vez: onde fica a opi-
..
iiiao plausível que afirma que o livre-arbitrio não pode sequer querer o bem?
Aqui, porém, se atribui a vitória sobre o mal aquele que não quer nem deseja
o bem. A irreflexão de nossa Diatribe não conhece limites.
Eis a questão [exposta] em breves palavras. Como disse, por tais ditos se
demonstra ao ser humano do que ele é devedor, não do que é capaz. Por con-
seguinte, diz-se a Caim que ele deve dominar o pecado e ter sob si o desejo
clc pecar. Ora, ele nXo fez nem era capaz de fazer isso, pois já estava premi-
do pelo império alheio de Satanás. Com efeito, é sabido que os hebreus usa-
vam frequentemente o indicativo futuro em lugar do imperativo, como em
Ex 20.3,13,14: "Não terás outros deuses"; "NZo matarás"; "Não cometerás
adultério". Do contrário, se fossem entendidos em sentido indicativo, como
i-czam, seriam promessas de Deus, e, como Deus não pode mentir,.aconteceria
qiic nenhum ser humano pecaria e os mandamentos seriam dados desnecessa-
riamente. Assim, nosso intérprete212 deveria ter traduzido essa passagem mais
c~~rretamente da seguinte maneira: "Mas o desejo de pecar esteja sob ti e do-
iiiiria-o tu". Da mesma maneira se deveria ter dito também a respeito da mu-
Ilicr: "Deves estar sujeita a teu marido, e ele te dominará" [Gn 3.161. Com
clcito, que isso não foi dito a Caim em sentido indicativo é provado pelo fa-
io dc que então teria sido uma promessa divina. Ora, não foi uma promessa
p~~rqiic acoriteceu o contrário c Caim fez o contráriozi3.

.>I11Ili:itiihc, 5 10.
.?i! 'il;idi, coiiI'i,rme a Vulgata: Sub te cri1 apdilu.~cim ct tfii <loiiiin~hzrisillii,.~.
> I ? "ii<,hhi> iciiCilirele" i', cuiiio ali aiitras oczisiiies. .Iiii,iiiirio. Ir;i<liilor <la Viilg;al;i
21 I ('I'. <h4.10.

')O
Da Vontade Cativa
A terceira passagem é tomada de Moisés: "Pus diante de ti o caminho
c a vida e da morte. Escolhe o que é bom", etc. [Dt 30.15,19]. "Que", afir-
rna ela2I4, "se podia dizer com maior clareza? Ele deixa ao ser humano a liber-
I ,Iade de escolher". Respondo: o que é mais claro do que tua cegueira neste
jonto? Onde, pergunto, deixa ele a liberdade de escolher? Ao dizer: "Esco-
lhe"? Portanto, tão logo Moisés diz: "Escolhe", acontece que eles escolhem?
Por conseguinte, mais uma vez o Espírito não é necessário. E como tu repetes
e inculcas tantas vezes a mesma coisa, também a mim será permitido reiterar
a mesma coisa com freqüência. Se existe a liberdade de escolher, por que a
opinião plausivel disse que o livre-arbítrio não pode querer o bem? Acaso po-
de escolher sem querer ou não querendo? Ouçamos, porém, a comparação.
"Seria ridículo dizer a alguém que está parado numa encruzilhada: 'Ves
dois caminhos; toma aquele que quiseres', quando apenas um deles estivesse
aberto".
Isto é o que eu disse acima acerca dos argumentos da razão carnal, que
crê que se zomba do ser humano com um mandamento impossível, enquanto
nós dizemos que através de tal mandamento ele é advertido e despertado para
que veja sua impotência. Assim sendo, verdadeiramente estamos numa encruzi-
lhada, mas apenas um caminho está aberto, ou melhor, nenhum. No entanto,
pela lei se nos demonstra quão impossível é o caminho que leva ao bem, se
Deus não concede o Espírito, mas quão largo e fácil é o outro, se Deus o per-
mite. Portanto, não seria ridículo, mas se deveria dizer com necessária serieda-
de a quem está na encruzilhada: "Toma o caminho que quiseres", se ele, em-
bora fraco, quisesse passar por forte ou sustentasse que nenhum dos dois
caminhos está fechado.
Por isso, as palavras da lei são ditas não para afirmar o poder da vonta-
de, mas para iluminar a razão cega, para que ela veja quão nula é sua luz e
quão nula é a força da vontade. "O conhecimento do pecado", diz Paulo,
"(vem) pela lei'' (Rm 3.20); não diz que por ela venha a abolição ou evitação
do pecado. Todo o sentido e força da lei consiste unicamente em proporcionar
conhecimento apenas do pecado, mas não em demonstrar ou conferir alguma
força. Com efeito, o conhecimento não é poder nem confere poder, mas ins-
trui e demonstra que ali não há força nenhuma e quão grande é ali a fraque-
za. Pois que pode ser o conhecimento do pecado senão o conhecimento de
nossa fraqueza e de nosso mal? Com efeito, ele não diz que pela lei viria o co-
nhecimento da força ou do bem. Ora, tudo o que faz a lei, como testemunha
Paulo, é tornar conhecido o pecado.
E essazL5é a passagem da qual tomei essa resposta de que através das pala-
vras da lei o ser humano é advertido e instruido quanto ao que deve, nXo quan-
to ao que pode, isto é, que conheça o pecado, não que creia que possui algum
poder. Em conseqüência, caro Erasmo, toda vez que me confrontares com pa-

- .~
-

214 l ) i : , l r ; l ~ 5~ ~111,
, 215 Sç. Rm 3.10.
lavras da lei, confrontar-te-ei com esta passagem de Paulo: "Pela lei (vem) o
conhecimento do pecado", não a força da vontade. Ajunta, pois, a partir das
iiiaiores con~ordâncias2~~. num único montão todas as ~alavrasaue estão no
imperativo, desde que não sejam promessas, mas exigências e palavras da lei,
e direi imediatamente que por elas sempre se indica o que os seres humanos
devem fazer, não o que podem fazer ou fazem. E isso até os gramáticos e as
crianças nas praças sabem: através das palavras que estão no modo imperati-
vo não se indica mais do que aquilo que deve ser feito. O que é feito ou po-
de ser feito, porém, precisa ser expresso através de palavras que estejam no in-
dicativo.
Como, então, acontece que vós, teólogos, perdeis assim a cabeça, como
se fôsseis duplamente crianças, de modo que, mal apreendeis uma palavra no
imperativo, logo inferis um indicativo, como se no instante em que se ordena
(uma coisa, ela) necessariamente também seja feita ou possa ser feita? Com
efeito, assim como entre o bocado e a boca acontece muita coisa2" - de mo-
do que aquilo que ordenaste e que até era bastante fácil nâo é feito -, da
mesma maneira as palavras no imperativo e no indicativo estão distantes umas
das outras [mesmo] em coisas comuns e fáceis. E vós, nessas coisas mais dis-
tantes umas das outras do que o céu e a terra e até impossíveis, nos converteis
imperativos em indicativos tão subitamente, que quereis que [as coisas] sejam
guardadas, feitas, escolhidas e cumpridas, ou que isso aconteça por meio de
nossas próprias forças, tão logo ouvis a voz de quem ordena:"Faz, guarda,
cscolhe!"
Em quarto lugar, aduzesZ1*de Dt 3 e 302" muitas palavras semelhantes so-
bre escolher, afastar-se e guardar, como: "Se guardares, se te afastares, se es-
colheres", etc. Todas essas coisas, dizes, seriam ditas intempestivamente se a
liberdade do ser humano nâo fosse livre para o bem.
Respondo: e tu, cara Diatribe, deduzes bastante intempestivamente o livre-
arbítrio dessas palavras. É que querias provar apenas o empenho e esforço do
livre-arbítrio, mas não aduzes nenhuma passagem que prove tal empenho. Con-
tiido, aduzes aquelas passagens que, se tua conclusão tivesse validade, atribuem
iiido ao livre-arbítrio. Portanto, temos que distinguir mais uma vez aqui entre
as palavras da Escritura que se aduzem e a conclusão que a Diatribe acrescen-
ia. As palavras aduzidas são imperativos, dizem tão-somente o que deve ser
rcito. Também Moisés não diz: "Tens o poder ou a força de escolher", mas:
"Escolhe, guarda, faz". Ele transmite preceitos do que se deve fazer, porém

L I 0 "Concordância" em sua acep~ãode Índice alfabético de todas as palavras de um livro indican-


do a página em que ocorrem.
L17 Ii~lcros et offam - provérbio registrado em Catãa, Adágia XII: Multa cadunt infer calicem
rilprcmaqiie Inbra, inter os et offam - (São muitas as coisas que acontecem entre a cálice e
os Iabios, entre a boca e o bocado)
>I8 i>i;irrihc,5 10.
!.lcJ'I'. 1)l 30,IShh.
Da Vontade Cativa
não descreve a faculdade do ser humano. Entretanto, a conclusão acrescenta-
da por aquela erudita Diatribe infere: logo, o ser humano é capaz de tais coi-
sas, do contrário seriam prescritas em vão. A isso se responde: Senhora Diatri-
be, vós inferis mal e não provais a conclusão; antes, parece a vossa cegueira e
negligência que isso se segue e se prova. Elas não sào prescritas intempestiva-
mente e em vão, mas para que por meio delas o ser humano soberbo e cego
aprenda a conhecer a enfermidade de sua impotência, se tentar fazer o que se
prescreve.
Assim também de nada vale a comparação em que dizes: "Do contrário,
i seria como se alguém dissesse a uma pessoa amarrada de tal maneira quc só
pudesse estender a mão para a esquerda: Olha, tens a tua direita um ótimo vi-
nho, e a tua esquerda um veneno; estende a mão para o que queres". Creio
que essas tuas comparações te causam uma suavissima blandícia. No entanto,
ao mesmo tempo não vês que, se as comparações ficam de pé, provam muito
mais do que resolveste provar, mais ainda: provam o que tu negas e queres
que seja rejeitado, a saber, que o livre-arbítrio é capaz de tudo. Com efeito,
no tratado esqueces continuamente que disseste que o livre-arbítrio nada pode
sem a graça, e provas que ele tudo pode sem a graça. Pois tuas conclusões e
comparações acarretam a seguinte alternativa: ou o livre-arbítrio por si só é
capaz de fazer as coisas que se dizem e prescrevem, ou elas são prescritas de
modo inútil, ridículo e intempestivo. Ora, essas são as velhas cantilenas dos
pelagianos, que até os sofistas desaprovaram e que tu mesmo condenaste. En-
quanto isso, porém, revelas através desse teu esquecimento e má memória que
nada entendes do assunto e que ele absolutamente não te afeta. Com efeito,
o que é mais vergonhoso para um orador do que tratar e provar continuamen-
te coisas alheias ao tema em questão, mais ainda: falar sempre contra sua pró-
pria causa e contra si mesmo?
Digo, pois, de novo: as palavras da Escritura por ti aduzidas são imperati-
vos e nada provam, nada estatuem a respeito das forças humanas, mas prescre-
vem o que se deve fazer e deixar de fazer. Tuas conclusões ou acréscimos e com-
parações, porém, se é que provam alguma coisa, provam que o livre-arbítrio
I tudo pode sem a graça. Ora não é isso o que te propuseste a provar; pelo con-
trário, o negaste. Por isso, provas dessa espécie não são outra coisa do que re-
provações fortissimas. Com efeito, se eu demonstrar (se porventura conseguir
despertar a Diatribe de sua sonolência) que, quando Moisés diz:"Escolhe a vi-
da e guarda o mandamento", isso seria um preceito ridículo dado por Moisés
ao ser humano se este não fosse capaz de escolher a vida e guardar o manda-
mento, acaso provei com este argumento que o livre-arbítrio não pode [fazer]
nada de bom ou que pode se empenhar sem suas próprias forças? Pelo contrá-
rio: provei, com uma contenção bastante forte, que o ser humano pode esco-
lher a vida e guardar o mandamento, como se prescreve, ou que Moisés é um
legislador ridículo. Mas quem ousará dizer que Moisés é um legislador ridícu-
lo? Segue-se, pois, que o ser humano é capaz de [fazer] o que se prescreve.
Desse modo a Diatribe disputa continuamente contra seu próprio desígnio, pe-
I ].i Viritade Cativa

111 qual prometeu que não disputaria assim, mas que demonstraria certo empe-
iilio do livre-arbítrio. Disso. todavia. ela não se lembra muito em toda a série
ilc argumentos, e muito menos o prova; prova, antes, o contrário, de modo
que ela própria tudo diz e disputa de maneira ridícula.
Agora, visto que é ridículo, segundo a comparação aduzida, que se orde-
iie a uma pessoa, cujo braço direito está amarrado, que estenda a mão para
n direita, já que só pode fazê-lo para a esquerda, acaso também é ridículo que
rima pessoa esteja com ambos os braços amarrados e sustente soberbamente
ou presuma ignorantemente que tudo pode para ambos os lados, e que então
se ordene a ela que estenda a mão em ambas as direções, não para zombar
de seu cativeiro, mas para que ela seja convencida da falsa presunção de liber-
dade e poder ou para que perceba sua ignorância quanto a seu cativeiro e sua
miséria? A Diatribe nos inventa continuamente tal ser humano, que é capaz
de [fazer] o que se prescreve ou ao menos reconhece que não é capaz. Ora,
ia1 ser humano não existe em parte nenhuma. E, se existisse, então de fato se
[>rescreveriarnridiculamente coisas impossíveis ou o Espírito de Cristo seria inútil.
A Escritura, porém, propõe um ser humano que não só está amarrado, é
iiiiserável, cativo, enfermo e morto, mas que, por obra de Satanás, seu prínci-
pe, acrescenta a suas [demais] misérias essa miséria da cegueira, de modo que
crt? ser livre, beato, estar solto, ser potente, são e vivo. É que Satanás sabe
que se o ser humano soubesse de sua miséria, ele não poderia reter ninguém
ciii seu reino, pois Deus não pode deixar de se comiserar e auxiliar imediata-
iiiente quem reconhece sua miséria e clama [a ele]. Ao longo de toda a Es-
critura ele é pregado com muito louvor como Deus que está perto dos contri-
10s de coração220;de modo que também Cristo testifica em 1s 61.1 que foi en-
viado para pregar o Evangelho aos pobres e curar os c o n t r i t o ~ ~Em~ ' . conse-
qiiência, a obra de Satanás é reter os seres humanos para que não reconheçam
\ira miséria, mas presumam que são capazes de [fazer] tudo que se diz. A obra
clc Moisés e do legislador, contudo, é o contrário disso, de modo que, por
iiieio da lei, dão a conhecer ao ser humano sua miséria e, assim contrito e en-
vergonhado no conhecimento de si mesmo, o preparam para a graça e o en-
viam a Cristo, para que dessa maneira seja salvo. Portanto, o que se faz por
iiiicrmédio da lei não é ridículo, e sim muitíssimo sério e necessário.
Quem entendeu isso entende facilmente ao mesmo tempo que, com toda
; i sua série de argumentos, a Diatribe não consegue absolutamente nada, já
iiiic só extrai das Escrituras palavras no imperativo, acerca das quais não enten-
de o que querem nem por que são ditas. Além disso, acrescentando suas con-
i.liisóes e comparações carnais, apronta uma mistura tamanha que afirma e
Iiiova mais do que se havia proposto, e disputa contra si mesma. Assim sen-
do, iião haveria necessidade de continuar percorrendo ponto por ponto, pois

.!i11 'I.. I>.cx., SI 14.IR.


??I 1'1'. 1 4.1X..IO.
Da Vontade Cativa
com uma única solução se soluciona tudo, já que tudo se apóia num único ar-
gumento. Entretanto, para cobri-la com a abundância com que ela quis me co-
brir, vou continuar e examinar mais alguns.
1s 1.19: "Se quiserdes e me ouvirdes, comereis os bens da terra". Aqui,
no juizo da Diatribe, seria mais conveniente dizer: "Se eu quiser, se eu não
quiser", caso nâo haja liberdade da vontadezzz.
A resposta está suficientemente clara a partir do que dissemos acima. Ade-
mais, que conveniência haveria aí, caso se dissesse: "Se eu quiser, comereis
os bens da terra?" Acaso a Diatribe crê, por excesso de sabedoria, que se po-
dem comer os bens da terra sem que Deus queira, ou que é raro e novo o
fato de só recebermos os bens se Deus o quiser?
O mesmo acontece com a passagem de 1s 21.12: "Se buscais, buscai, con-
vertei-vos e vinde". "De que adianta exortar aqueles que não têm nenhum po-
der sobre si mesmos? é como se alguém disser a uma pessoa presa por grilhões:
'Move-te daí"', diz a DiatribeZz3.
De que adianta, digo eu, citar passagens que por si mesmas nada provam
e que, ao lhes serem acrescentadas conclusões (isto é, ao se depravar seu senti-
do), atribuem tudo ao livre-arbítrio, quando se devia provar unicamente certo
empenho, sem atribui-lo ao livre-arbítrio?
O mesmo deve ser dito a respeito da passagem de 1s 45.20,22: "Congre-
gai-vos e vinde, convertei-vos a mim e sereis salvos". E 52.12: "Levanta-te, le-
vanta-te, sacode-te do pó, desata as cadeias de teu pescoço". Do mesmo
modo Jr 15.19: "Se te converteres, eu te converterei, e se separares o precioso
do vil, serás como minha boca". Com maior clareza, porém, Zacarias indica
o empenho do livre-arbítrio e a graça preparada para quem se empenha. Diz
ele: "Voltai-vos para mim, diz o Senhor dos exércitos, e eu me voltarei para
vós, diz o Senhor" [Zc 1.51.
Nessas passagens nossa Diatribe absolutamente não distingue entre pala-
vras da lei e do Evangelho, pois é tão cega e ignorante que não enxerga o que
é lei e o que é Evangelho. Com efeito, de todo o Isaias não aduz nenhuma pa-
lavra da lei exceto aquela uma: "Se quiserdes"; as demais são todas palavras
do Evangelho, pelas quais os contritos e aflitos são chamados a consolação
pela palavra da graça oferecida. Mas a Diatnbe as transforma em palavras
i da lei. Pergunto-te, porém, o que conseguirá fazer em matéria de teologia ou
de Sagradas Letras quem ainda não chegou ao ponto de saber o que é lei e o
que é Evangelho, ou que, se o sabe, não se digna a levá-lo em conta? Forçosa-
mente misturará tudo, céu, inferno, vida, morte, e não se esforçará para saber
nada sobre Cristo. Mais abaixo continuarei a advertir minha Diatribe aesse respeito.
Olha as passagens de Jr e Zc: "Se te converteres, eu te converterei"; e:
"
Voltai-vos para mim e eu me voltarei para vós". Acaso segue-se: "Convertei-
l>a Vontade Cativa

vos, logo podereis converter-vos"? Acaso segue-se: "ama o Senhor teu Deus
de todo o teu coração, logo poderás amá-lo de todo o coração"? Que, pois,
concluem argumentos dessa espécie exceto que o livre-arbítrio não tem necessi-
dade da graça de Deus, mas tudo pode por sua própria força? Quanto mais
correto é, pois, tomar as palavras assim como estão colocadas! "Se te conver-
Leres, também eu te converterei", isto é, se deixares de pecar, também eu dei-
xarei de punir, e se, convertido, viveres bem, também eu te farei bem, Irans-
formando teu cativeiro e teus males. Mas disso não se segue que o ser huma-
no se converteria por seu próprio poder, e as próprias palavras também não
o afirmam; antes, dizem simplesmente: "Se te converteres", advertindo o ser
humano do que deve fazer. Tendo, porém, reconhecido e visto que não pode,
deve procurar saber de onde o poderá, se o Leviatã daDiatribe (isto é, os acrés-
cimos e as conclusões dela) não intervir, afirmando que, a menos que o ser
humano possa converter-se por seu próprio poder, é em vão que se diria: "Con-
vertei-vos". Já dissemos suficientemente de que espécie é essa afirmação e o
que ela acarreta.
E por um certo estupor ou certa letargia que se crê que o poder do livre-
arbítrio seria confirmado por palavras como: "Convertei-vos", "Se te conver-
ici-es" e [outras] semelhantes, não se observando que, pela mesma razão, ele
deveria ser confirmado também por esta palavra: "amarás o Senhor teu Deus
ile todo o teu coração", já que em ambos os casos existe um significado igual
ile ordem e exigência. Ora, o amor a Deus não é menos exigido do que nossa
conversão e [o cumprimento] de todos os mandamentos, visto que o amor a
I>eus é nossa verdadeira conversão. E, não obstante, ninguém demonstra o li-
vre-arbítrio a partir desse mandamento do amor, ao passo que todos o demons-
iram a partir das palavras "Se quiseres", "Se ouvires", "Converte-te" e seme-
Iliantes. Se, portanto, daquela palavra ("ama o Senhor teu Deus de todo o co-
ração") não se segue que o livre-arbítrio é algo ou é capaz de algo, é certo que
iambém não segue daquelas outras: "Se quiseres", "Se ouvires", "Convertei-
vos" e semelhantes, que exigem menos ou o exigem com menos veemência
do que aquela que diz: "ama a Deus, ama o Senhor."
Por conseguinte, tudo o que se responder aquela palavra "ama a Deus"
iio sentido de que não constitui uma conclusão a favor do livre-arbítrio pode
sei- dito a respeito de todas as outras palavras que expressam uma ordern ou
cnigência: também elas não constituem conclusões a favor do livre-arbítrio. E
qiic com a palavra "ama" se mostra a forma da lei, o que devemos [fazer], e
113r)o poder da vontade ou o que podemos [fazer], mas sim o que não pode-
iiios. A mesma coisa mostram todas as outras palavras que exprimem exigên-
cia. Com efeito, consta que até os escolásticos, com exceção dos escotistas e
~ i i ~ x l c r n oafirmam
s ~ ~ ~ , que o ser humano não pode amar a Deus de todo o co-

L!.4 I.sirnl;í\li<.ia: ilii!;! v;isl;i g;im;i ile ~ciil,,gi,~<I;il<l;i<Iç Mhli:i dcsclc o sfciilo X I I a16 o sfciilo XV.
I I ~riiii<iriii ri i ileiiv;i<l<ide ccii<liç;i,>, i>1iiic>ii,iiii iiiCli>d<>
"ciciiliiicii" opiiaido ;i li><l;i\
tis úrc;ia
Da Vontade Cativa
ração. Por conseguinte, também não pode cumprir nenhum dos outros
mandamentos, pois todos dependem desse um, como testifica Cristo225.Resta,
assim, também segundo o testemunho dos doutrores escolásticos, que as pala-
vras da lei não demonstram a força do livre arbítrio, mas mostram o que deve-
mos e o que não somos capazes [de fazer].
Nossa Diatribe, porém, com maior inépcia ainda, não só infere um indica-
tivo dessa passagem de Zacarias: "Convertei-vos a mim" [1.3], mas sustenta
que a partir delas prova também o esforço do livre-arbítrio e a graça prepara-
da para quem se esforça.
E aqui por fim ela se lembra uma vez de seu próprio esforço. E, segundo
a nova gramática, "converter-se" significa para ela o mesmo que "esforçar-
se", de modo que o sentido seria o seguinte: "Convertei-vos para mim" signi-
fica "Esforçai-vos para vos converterdes", e "Converter-me-ei para vós" signi-
fica "Esforçar-me-ei para me converter a vós", para assim atribuir uma vez
um esforço também a Deus, talvez querendo preparar a graça também para
ele, já que se esforça. Pois, se "converter-se" significa "esforçar-se" numa
passagem, por que nZo em todas?
Ainda uma vez, ela diz que através da passagem de Jeremias 15.19: "Se
separares o precioso do vil" se prova a liberdade de escolher, não só esforço,
embora acima houvesse ensinado que essa liberdade se perdeu e se converteu
na necessidade de servir ao pecado. Ws, portanto, que a Diatribe verdadeira-
mente tem livre-arbítrio ao tratar as Escrituras, de modo que, para ela, pala-
vras com a mesma forma são forçadas a provar o esforço numa passagem e
a liberdade em outra, conforme o que lhe apronver.
Mas deixemos de lado as frivolidades. A palavra "converter-se" é empre-
gada mediante um duplo uso nas Escrituras: um uso legal e um uso evangéli-
co. Em seu uso legal, ela é a voz de quem exige e ordena, que não requer um
esforço, e, sim, a mudança da vida toda, como Jeremias a emprega frequente-
I mente, dizendo: "Convertei-vos cada um de seu mau caminho" [25.5; 35.151.
"Converte-te ao Senhor" [4.1]. Com efeito, aí ela envolve a exigência [do cum-
1 primento] de todos os mandamentos, como está suficientemente claro. Segundo

do conhecimento humano: teologia, filosofia, medicina, etc., em substitui@o à tradicional "es-


cala de artes". O método consiste em interpretar sistematicamente "autoridades" em qualquer
zkea - inclusive da teologia - à luz da filosofia - no caso. esoccificamente à luz da fdosofia
de Aristóteles. A carrent~escolásticaproduziu vánas obras primas e de influência duradoura:
Graciano produziu o primeiro manual sistemático do Direito Canônico; na literatura de Lute-
r0 ele é citada por Decretum Gratiani. De mkima importância para o estudo da Teologia na
Idade Média foi a Suma Twlogica, a primeira yande teologia sistemática, redigida por Tomás
de Aquino. Pedro Lombardo e autor das "Sentenw", obra abngatória nas universidades da
Idade Média; Lutero cita "As sentenças" com freqüência. - Duns Escoto (ca. 1270-1308) foi
um dos mais briihantes pensadores escolasticos (cf. acima n. 180). Os modernos são os adep-
tos da assim chamada via modema, expressão da escolástica da Idade Média Tardia, na qual
I.iiiçi<~
I'or;i iiistruido (cf. acima n. 182).
225 ('1. MI 22.40.
Da Vontade Cativa
seu uso evangélico, é uma palavra de consolo e promessa divina, pela qual na-
da sexos exige, mas se nos oferece a graça de Deus, como é o caso da passa-
gem de S1 14.7: "Quando o Senhor converter o cativeiro de Sião" e de S1
23.3226:"Converte-te, alma minha, a teu repouso". Zacarias, portanto, apre-
senta num brevíssimo resumo de ambas as pregações, tanto da lei quanto da
graça. Toda a lei e a suma da lei estão onde ele diz: "Convertei-vos para mim".
A graça está onde diz: "Converter-me-ei para vós". Pois bem, tanto quanto
se prova o livre-arbítrio a partir desta palavra: "Ama o Senhor", ou qualquer
outra palavra que expressa uma lei particular, tanto também se o prova a par-
tir desta palavra que resume a lei: "Convertei-vos". Cabe, pois, ao leitor pru-
dente observar nas Escrituras que palavras são da lei e quais são do Evangelho,
para não confundi-las todas à maneira dos imundos sofistas e dessa negligen-
te Diatribe.
Pois vê de que modo ela trata esta insigne passagem de Ezequiel 18.23227:
"Tão certo como eu vivo, diz o Senhor, não quero a morte do pecador, mas
sim que se converta e viva". "Primeiramente", diz ela, "neste capítulo se repe-
te muitas vezes: 'afastou-se', 'fez', 'praticou', tanlo no bom quanto no mau
sentido. E onde estão os que negarão que o ser humano faz algo?"
Por favor, olha que egrégia conclusão! Ela queria provar o esforço e em-
penho do livre-arbítrio, e [agora] prova que tudo está feito, que tudo está cum-
prido pelo livre-arbítrio. Onde estão agora, pergunto eu, os que precisam da
graça e do Espírito Santo? Com efeito, assim ela se expressa argutamente, di-
zendo: Diz Ezequiel: "Se o ímpio se apartar e fizer a justiça e o juizo, viverá"
[18.21]. Em conseqüência, o ímpio imediatamente faz isso e pode fazê-lo. Eze-
quiel indica o que deve ser feito, [ao passo que] a Diatribe entende que isso é
feito e foi feito, querendo mais uma vez ensinar-nos com sua nova gramática
que dever e ter, exigir e cumprir, demandar e entregar são a mesma coisa.
Depois altera esta palavra do dulcíssimo Evangelho: "Não quero a morte
do pecador", etc. B z 118.23; 33.111, da seguinte maneira: "Acaso o bom Se-
nhor deplora a morte de seu povo, que ele mesmo opera neles? Se ele não
quer a morte, em todo caso o fato de eventualmente perecermos deve ser atri-
buído a nossa vontade. Ora, o que vais imputar a quem não pode fazer nada
bom e nada mau?"228Esta era também a cantilena de Pelágio2", quando atri-
buiu ao livre-arbítrio não um empenho nem um esforço, mas todo o poder
de cumprir e fazer tudo. Pois é este poder que provam essas conclusões (co-
mo dissemos), se é que provam alguma coisa. Assim sendo, elas pugnam com
igual força e com força ainda maior contra a própria Diatribe, que nega o poder

226 I.iilero não citou corretamente, pois, segundo a Vulgala, se lê: animam riieaiil conveiiit - con
viricu minha alma.
227 N i vcrdade, l.utero tinha cm mente SI 116.7.
228 I)i;iliiDe, $ 10.
22') ('1. ;LC~I~YU11. 111.
Da Vontade Cativa
do livre-arbítrio e constrói apenas o esforço, dos que pugnam contra nós, que
negamos todo o livre-arbítrio. Mas vamos omitir a ignorância dela e falar da
questão em si.
I

É em todos os sentidos uma palavra evangélica e um dulcíssimo consolo


para os miseros pecadores a passagem em que Ezequiel diz: "Não quero a
morte do pecador, mas, sim, que ele se converta e viva" [33.11]. O mesmo va-
le para 5429.6: "Porque sua ira dura um momento, e sua vontade é, antes, a
vida". E S1 69.17: "Quão benigna é tua misericórdia, Senhor!" Igualmente:
"Porque eu sou misericordioso". E aquela palavra de Cristo em Mt 11.28:
"Vinde a mim lodo os que estais afadigados, e eu vos reanimarei". Do mes-
mo modo Êxodo 20.6: "Eu faço misericórdia em muitos milhares aqueles que
me amain". E o que é quase mais da metade da Sagrada Escritura senão pu-
ras promessas da graça, pelas quais Deus oferece misericórdia, vida, paz e sal-
vação aos seres humanos? Que outra coisa, porém, dizem as palavras de pro-
messa senão isto: "Não quer a morte do pecador?" Acaso dizer: "Eu sou mi-
sericordioso" não é a mesma coisa que dizer: "Não me ira, não puno, não
quero que morrais, quero perdoar, quero poupar"? E se não ficassem de pé
aquelas promessas divinas por meio das quais se animam as consciências afli-
tas pela percepção do pecado e aterrorizadas pelo medo da morte e do juiz,
que lugar haveria para o perdão ou a esperança? Qual o pecador que não de-
sesperaria? No entanto, assim como o livre-arbítrio não é provado a partir das
outras palavras de misericórdia, promessa ou consolo, da mesma maneira tam-
bém não a partir desta: "Não quero a morte do pecador", etc.
Nossa Diatribe, porém, mais uma vez nZo distinguindo absolutamente en-
tre palavras da lei e da promessa, transforma essa passagem de Ezequiel em
lei e a expõe da seguinte maneira: "Não quero a morte do pecador", isto é:
"Não quero que peque mortalmente ou que se torne um pecador réu de mor-
te, mas, sim, que ele se converta do pecado, se cometeu algum, e assim viva".
Pois se não a expusesse assim, ela não teria nada a ver com o assunto em ques-
tão. Isso, porém, é derrubar e abolir inteiramente aquela suavissima palavra
de Ezequiel: "Não quero a morte". Se é assim que queremos ler e entender
as Escrituras em nossa cegueira, que admira que sejam obscuras e ambíguas?
I Com efeito, ele não diz: "Não quero o pecado do ser humano", e, sim: "Não
quero a morte do pecador", indicando claramente que fala da pena do peca-
do que o pecador sente por causa de seu pecado, a saber, do temor da morte.
E [assim] anima e consola o pecador metido nessa aflição e nesse desespero,
para não apagar a mecha que ainda fumega e quebrar a cana rachadaZ3O,mas
para despertar a esperança de perdão e salvação, a fim de que o pecador se
converta mais (a saber, convertendo-se da pena da morte para a salvação) e
viva, isto é, se sinta bem e se alegre com uma consciência segura.
Com efeito, também se deve observar o seguinte: assim como a palavra
da lei se dirige tão-somente a quem não sente nem reconhece o pecado - co-
rno diz Paulo em Rm 3.20: "Pela lei [vem] o conhecimento do pecado" -,
do mesmo modo a palavra da graça vem unicamente a quem, sentindo o peca-
do, se aflige e é tentado pelo desespero. Por isso, vês que em todas as pala-
vras da lei se indica o pecado, ao se mostrar o que devemos [fazer]. Da mesma
maneira, vês inversamente que em todas as palavras da promessa se indica o
mal com que se atormentam os pecadores ou aqueles que devem ser animados.
Nesta passagem, por exemplo: "Não quero a morte do pecador", se nomeia
claramente a morte e o pecador, tanto o próprio mal que se sente quanto o
próprio ser humano que o sente. E nesta: "ama a Deus de todo o coração",
se indica o bem que devemos [fazer], não o mal que sentimos, para que reco-
iiheçamos o quanto não somos capazes desse bem.
Assim, pois, não se pôde aduzir nada mais inepto em favor do livre-arbí-
trio do que essa passagem de Ezequiel; mais ainda: ela se opõe de modo extre-
mamente enérgico ao livre-arbítrio. Com efeito, aqui se indica como se porta
c do que é capaz o livre-arbítrio no reconhecimento do pecado ou na conver-
szo, a saber, que ele só cairia mais profundamente e acrescentaria desespero e
iinpenitência a [seus] pecados se Deus não o socorresse sem demora e o cha-
iiiasse de volta e o animasse por meio da palavra da promessa. Pois a solicitu-
clc de Deus ao prometer a graça para chamar de volta e animar o pecador é
iim argumento suficientemente grande e sólido de que, por si só, o livre-arbi-
trio não poderia deixar de cair mais profundamente e (como diz a Escritura)
Iafundar-se] no inferno, a menos que creias que Deus é de uma leviandade tal
que profira tão copiosamente palavras de promessa sem qualquer necessidade
para nossa salvação, mas pelo prazer da loquacidade.
Assim, podes ver que não apenas todas as palavras da lei estão contra o
livre-arbítrio, mas que também todas as palavras da promessa o refutam com-
pletamente, isto é, que toda a Escritura está em desacordo com ele. Por isso
vEs que com esta palavra: "Não quero a morte do pecador" não se visa outra
coisa do que pregar e oferecer a misericórdia divina no mundo. Essa misericór-
dia só é aceita com alegria e gratidão pelos aflitos e vexados pela morte, por-
que neles a lei já concluiu seu ofício, isto é, o conhecimento do pecado. Aqne-
Ics, porém, que ainda não experimentaram o ofício da lei, nem reconhecem o
pecado, nem sentem a morte, desprezam a misericórdia prometida por essa pa-
lavra. De resto, por que alguns são tocados pela lei e outros não, de modo
qiic aqueles acolhem e estes desprezam a graça oferecida, é outra questão, da
qual Ezequiel não trata nessa passagem, em que fala da misericórdia de Dens
prcgada e oferecida, não daquela vontade oculta e temível de Dens que, de acor-
do com seu conselho, ordena que pessoas ele quer que sejam capazes e partíci-
pcs da iniscricórdia pregada e oferecida. Essa vontade não dcve ser investiga-
<I;i. irias ;idor;idu com rcvcrCncia como o segredo da majestade divina que
--- -. 1
rnais se deve reverenciar, reservado unicamente a ela e proibido a nós, muito
mais venerando do que uma multidão infinita de grutas de CoricioZ3'.
Se agora, a Diatnbe pergunta argutamente: "Acaso o bom Senhor deplo-
ra a morte de seu povo, que ele mesmo opera neles?", pois isso lhe parece de-
masiadamente absurdo, respondemos, como já dissemos: a respeito do Deus
- o11 da vontade de Deus - que nos é pregado, revelado, oferecido e cultua-

do deve-se debater de outra maneira do que a respeito do Deus nio-pregado,


rião-revelado, não-oferecido, não-cultiiado. Portanto, na iiiedida em que Deus
se oculta e quer ser igriorado por nós, ele absolutamente não nos importa.
Coni efeito, aqui de fato tem validade a palavra que diz: "O que está acima
de nós, absolutamente iião nos importa". E, para que ninguém ache que essa
distinção é minha, sigo a Paulo, que escreve aos tessalonicenses acerca do anti-
cristo [e diz] que ele se exaltará acima de todo Deus pregado e c u l t ~ a d oin-
~~~,
dicando claramente que alguém pode se elevar acima de Deus na medida em
que ele é pregado e cultuado, isto é, acima da palavra e do culto através dos
quais Deus nos é conhecido e se relaciona conosco, mas que nada pode eleva-
se acima do Deus que não é cultuado nern pregado, isto é, em sua natureza e
majestade; antes, tudo está sob sua potente mão.
Portanto, devemos deixar de lado a Deus em sua majestade e natureza,
pois assim nada temos a ver com ele e assim ele não quis que tenhamos a ver
com ele. Mas na medida em que se vestiu e se revelou em sua palavra, pela
qual se ofereceu a nós, temos a ver com ele. Esse é seu esplendor e sua glória,
com os quais ele está vestido, como celebra o s a l ~ n i s t a Assim
~ ~ ~ . dizemos: o
boni Deus não deplora a morte do povo que opera nele, nias deplora a morte
que descobre no povo e que ele se esfor~apara afastar. Com efeito, é disso
que trata o Deus pregado: que o pecado e a morte sejam tirados e nós seja-
mos salvos. Com efeito, "enviou sua palavra e os sarou" [SI 107.20]. O Deus
abscondito em majestade, porém, não deplora nem abole a morte, mas opera
vida, morte e tudo em todos. Pois aí ele não se limitou através de sua palavra,
mas se nianteve livre sobre todas as coisas.
A Diatribe, contudo, ilude a si mesma com sua ignorância, pois absolnta-
mente não distingue entre o Deus pregado e o abscôndito, isto é, entre a pala-
vra de Deus e o próprio Deus. Deus faz muitas coisas que não nos mostra atra-
vés de sua palavra. Ele também quer muitas coisas que não mostra querer atra-
vés de sua palavra. Assini ele não quer a morte do pecador, a saber, de acor-
do com sua palavra, mas a quer de acordo com aquela vontade imperscrutá-
vel. Assim sendo, porém, nós devemos fixar os olhos na Palavra e deixar de
lado aquela vontade imperscnitável. Pois é preciso que sejamos dirigidos pela
Palavra, não por aquela vontade inescrutável. Aliás, quem poderia dirigir-se
por uma vontade inteiramente imperscrutável e incognoscivel? Basta saber que
em Deus existe certa vontade imperscrutável. O que, porém, por que e em que

231 ( ' 1 . ;ii.iiii:i ii. 52. 232 Cf. 2 Ts 2.4. 233 Ci. SI 21 S .

101
Da Vontade Cativa
medida ela quer, isso de maneira iienliuma nos é permitido procurar saber, de-
sejar, tratar ou tocar; apenas devemos temé-lo e adorá-lo.
Por conseguinte, dizes com razão: "Se Deus não quei- a morte, o fato de
pereceriuos deve ser imputado a nossa vontade". Com razão, digo, se te refe-
res ao Deiis pregado. Pois esse quer que todos os seres liiimanos sejam sal-
vosu4, visto que \,em a todos com a palavra da salvasão, t. a hllia é da vonta-
de que não o admite, como diz Mt 73.37: "Quantas veres eu quis juntar teus
filhos e tu não quiseste?" Mas por qiie aqiiela majestade não suprime essa fallia
de nossa vontade ou não a muda em todos, já que isso iião está no poder do
ser humano, ou por que imputa a ele essa falta, já que o ser humano não po-
de existir sem ela, isso não é permitido procurar saber. E, mesmo que muito
investigasses, não o descobririas, como diz Paiilo em Rm 11 [sc. 9.701: "Quem
és tu, para replicares a Deus?" Isso deve bastar quanto a essa passagem de
Ezequiel. Passemos ao restante.
Depois disso a Diatribr alega que tantas exortações que há nas Escritiiras,
e também taiitas promessas, ameaças, expostulações, exprobrações, súplicas,
bendiçóes e maldições, tão grande iiúmero de riiandan~eiitosnecessariamente
se tornariam inúteis se não está no poder de algukni guardar o que se precei-
tuaz3? A Diatribe se esquece continuamente do assunto em pauta e faz outra
coisa do que se propôs, e também não vê o quanto todas as coisas se opõem
mais forteriiente a ela do que a nós. Pois com base eni todas essas passagens
ela prova a liberdade e faculdade de guardar tudo. coino também afirma a
conclusão das palavras que ela pòe em seguida, ao passo que ela quis provar
qiie o livre-arbitrio é de tal espécie que nâo pode querer nenhum bem seiii a
graqa e certo esforqo que não se deve imputar a suas próprias forças. Não ve-
jo que tal esforço seja provado por qualquer uma dessas passagens; elas ape-
iins exigem o que se deve fazer, como já dissemos muitas vezes. Mas é preci-
so repeti-lo tantas vezes porque a Diatribe toca erradamente a mesma corda
laritas vezes, dispersando os leitores com uma inútil profusão de palavras.
Praticamente a última passagem23Gque ela menciona no Antigo Testamen-
10 é aquela de Içloisés em Dt 30.11~s.:"Este mandamento que hoje te prescre-
vo não está acima de ti, nem colocado ao longe, nem sitiiado no céu, de ser-
te que possas dizer: 'Quem de nós é capaz de ascender ao céu para trazê-lo até
nós, a fim de que ouçamos e cumpramos a obra?' Mas a palavra está muito
próxinia, em tua boca e em teu coração, para que a cumpras". Nesta passagem
- sustenta a Diatribz - se declara que o que é prescrito náo só se situa em
116s. mas tanibém corresponde a inclinação. ou ieja, é fácil, ou, ao menos,
iiào é difícil2". Ohriçado por tamanha erudição. Se, poitanto, Moisés proclama

li4 ('r. I T m 2.4.


L i ? I>i;rlrihc, $ 10.
211, Ai? ;i<iiii;i Ir;idiiçúo foi rlc I iiii M. Stiiidci. lnici;! a Ir:id!>cZo tlc 1 . z ~ Ilcr~r;<,~~c
;~ D,cl~cr.
Da Vontade Cativa

tão claramente que em nós não apenas existe uma faculdade de guardar todos
os mandamentos, mas também uma facilidade, por que suamos tanto? Por
que não exibimos imediatamente esta passagem e asserimos o livre-arbítrio
ein campo aberto? Que necessidade lia ainda de Cristo? Que necessidade do
Espírito? Agora encontramos a passagem bíblica que tapa a boca de todos e
não apenas assere claramente a liberdade do arbítrio, mas também ensina que
a observância dos mandanlentos é fácil. Quão estulto foi Cristo, qiie até com
sangue derramado coniprou-nos aquele Espírito que não nos é iiecessário, pa-
ra que se nos tornasse fácil giinrdar os preceitos, coisa que já temos por nntu-
reza! Ora, até a própria Diafribe retrata-se de sua palavra em que disse que,
sem a graça, o livre-arbítrio nada pode querer de bom. Agora, porém, diz que
o livre-arbitrio possui um poder tão grande que não apenas quer o que é bom,
mas também guarda, com facilidade, os mais elevados e todos os mandamen-
tos. Vê, peço-te, o que faz um corasão alheio à causa, como não pode deixar
de revelar-se! Acaso ainda é necessário confutar a Diatribe? Ou quem pode
confutá-Ia mais do que ela mesma se confuta? Esta é sem dúvida aquela bes-
ta-fera que devora a si mesma. É bem verdade que o mentiroso precisa de
uma boa memória!
Discorremos acerca desta passagem em D e u t e r o n ô m i ~ ~Examinemo-la
~~.
agora brevemente, sem considerar a Paulo, que trata desta passagem vigorosa-
tiieiite em Rm 1 0 . 6 ~Vês,
~ . aqui, que absolutamente nada se diz e nenhuma síla-
ba se emite acerca da facilidade, da dificuldade, da potência ou impotência
do livre-arbítrio oii do ser humano para guardar ou rião guardar [os manda-
mentos], a não ser que aqueles qiie interpretam capciosamente as Escrituras
segundo suas inferências e peiisamentos as tornem obscuras e ambígiias para
si mesmos, para Fazerem delas o que quiserem. Se não és capaz de ver, aplica
ao menos os ouvidos ou apalpa com as mãos. Moisés diz: "Não está acinia
de ti, nem colocado ao longe, iiein situado no céu, nem além do mar". Que
está "acima de ti"? que "ao longe"? "situado no céu"? "além do mar"? Aca-
so nos obscurecerão também a gramática e as palavras mais costumeiras, a
ponto de não sermos capazes de falar nada certo, apenas com o intuito de sus-
tentarem que as Escrituras são obscuras? Nossa gramática não indica, com es-
tas palavras, a qualidade ou a quantidade das forças humanas, mas sim a dis-
tância entre lugares. Pois "acima de ti" não designa certa força da vontade,
mas o lugar que está acima de nós. De igual maneira, "ao longe", "além do
mar", "no céu", nada designam a respeito de um poder no ser humano, mas
iim lugar em cima, à direita, a esquerda, atrás, a frente, afastado de nós. Tal-
vez algiiém vá se rir de mim por debater tão crassamente, por apresentar a ho-
mens tão grandes algo previamente mastigado e ei~iná-losa unir sílabas co-
mo a meninos analfabetos. Que farei, se vejo que em tão clara luz se buscam
trevas e que com seu empenho qiierem ser cegos aqueles que nos eiiumeraiii

238 WA 14.72'): I>ciilcronornionMmi curii aniiorationibur, 1525.

103
Da Vontade Cativa
uma série de tantos séculos, tantos gênios, santos, mártires, doutores, e com
tanta autoridade gabam esta passagem de Moisés, conquanto não se dignem
a inspecionar as sílabas ou apenas impor uma ordem aos seus pensamentos,
de maneira a considerarem, uma só vez, a passagem que gabam? Que se vá
agora a Diatribe e diga como é possível que uma pessoa privada veja o que
tantas pessoas públicas, próceres de tantos séculos, não viram. Esta passagem
certamente prova, mesmo segundo o parecer de um rapazinho, que eles não
raro estiveram cegos.
Que, portanto, pretende Moisés dizer com estas palavras sumamente paten-
tes e claríssimas exceto que ele mesmo exerceu de modo excelente seu orício
como legislador fidedigno? Que não é culpa dele que não saibam tudo e não
tenham os preceitos colocados diante de si, que tampouco Ihes é deixado lugar
para a escusa de que ignoram ou não têm os preceitos ou de que devem bus-
cá-los de outra parte. De sorte que, se não os guardaram, a culpa não é nem
da lei nem do legislador, mas deles mesmos; pois a lei está presente, o legisla-
dor a ensinou, de modo que não resta nenhuma escusa com base na ignorân-
cia, mas tão-só a acusaeo de negligência e desobediência. Não é necessário
(diz ele) trazer as leis do céu ou dos confins de além-mar ou de longe, nem po-
des pretextar não tê-las ouvido ou possuído: tu as tens perto de ti; Deus as pres-
creveu e tu as ouviste por meu intermédio, percebeste-as com o coração e acei-
taste-as [como leis] que deveriam ser meditadas através de leitura assídua em
teu meio pelos levitas, conforme o testemunho desta minha própria palavra e
livro. Resta apenas isto: que as cumpras. Pergunto-te: que se atribui aqui ao
livre-arbítrio, exceto que se exige dele que cumpra as leis que tem e se elimine
a escusa com base na ignorância e na ausência de leis?
Isto é, mais ou menos, o que a Diatribe aduz do Antigo Testamento em
favor do livre-arbítrio. Anulado isso, nada resta que não seja igualmente anula-
do, quer aduza mais coisas, quer queira aduzir mais coisas; pois nada é capaz
de aduzir senão palavras de caráter imperativo, subjuntivo ou optativo com
as quais se indica não o que podemos ou fazemos (como tão frequentemente
dissemos a Diatribe que tantas vezes o repele), mas o que devemos [fazer] e o
que se exige de nós a fim de que se nos torne conhecida nossa impotência e
aconteça o conhecimento do pecado. Ou, se provam algo mediante inferências
aditadas e analogias inventadas pela razão humana, provam isto: que o livre-
arbítrio não possui apenas um impulso ou algum empenho muito modesto,
mas toda a força e o poderio inteiramente livre de fazer todas as coisas sem a
graça de Deus e sem o Espírito Santo. E assim, com todo aquele debate elo-
qüente, reiterado e inculcado, nada menos se prova do que aquilo que devia
ser provado, a saber: aquela opinião "provável", mediante a qual se define o
livre-arbítrio; de que ele é impotente, de que sem a graça nada pode querer
clc hom, é coagido à servidão do pecado e possui um impulso não atribuível
(1s suas forças; é, enfim, aquele monstro que ao mesmo tempo não é capaz
clc lazer coisa alguma coiii suas forças e, contudo, possui em suas forças um
iiii~iiilso,curisistindo I I L I I I I ; ~coiitradi~ãomanifestíssima.
Passa-se agora ao Novo Testamento, onde novamente se alinha um exér-
cito de palavras imperativas em favor daquela mísera servidão do livre-arbítrio
e se buscam as tropas auxiliares da razão carnal, a saber, inlerências e analo-
gias; é como se visses pintado ou sonhasses com um rei das moscas rodeado
de lanças de palha e escudos de feno face a face com uma formação verdadei-
ra e regular de homens combativos. Assim os sonhos humanos da Diatnbe lu-
tam contra os batalhões das palavras divinas. Na vanguarda239avança com
aquela passagem de Mt 23.37 como o Aquiles2" das moscas: "Jerusalém, Jeru-
salém, quantas vezes eu quis congregar os teus filhos e não quiseste?" Se to-
das as coisas se fazem por necessidade (diz [aDiatribe]), acaso não podia Jeru-
salém responder com razão ao Senhor: "Por que te maceras com lágrimas ina-
nes? Se não querias que déssemos ouvidos aos profetas, por que os enviaste?
Por que nos imputas o que foi feito conforme tua vontade e por nós por ne-
cessidade?" Isto diz aDiatribe. Nós, porém, respondemos: admitamos, provi-
soriamente, que essa inferência e prova da Diatribe seja verdadeira e boa. Per-
gunto: que se prova? Acaso a opinião provável que diz que o livre-arbítrio não
pode querer o que é bom? Ao contrário: prova-se que a vontade é livre, sadia
e capaz de todas as coisas que os profetas disseram. Mas a Diatribe não se en-
carregou de provar tal [vontade]. Pois bem, que a própria Diatribe responda
aqui: se o livre-arbítrio não pode querer o que é bom, por que se lhe imputa
que não ouviu os profetas, a quem, como pessoas que ensinavam coisas boas,
não podia ouvir por suas próprias forças? Por que Cristo se lamenta com lá-
grimas inanes, como se fossem capazes de querer aqueles dos quais sabia, com
certeza, que não podiam querer? Digo: que a Diatribe livre a Cristo da insânia
em favor daquela provável opinião deles, e, imediatamente, nossa opinião fi-
ca livre deste Aqniles das moscas. Por conseguinte, ou essa passagem de Ma-
teus prova todo o livre-arbítrio, ou luta de modo igualmente forte contra a pró-
pria Diatribe e a derruba com seu próprio dardo.
Nós dizemos, como já dissemos antes, que não se deve debater acerca da-
quela secreta vontade da majestade; e a temeridade humana, que com contí-
nua perversidade sempre investe e atenta contra ela pondo de lado as coisas
necessárias, deve ser dissuadida disso e retirada, a fim de que não se ocupe
em escrutar aqueles segredos da majestade, a qual não se pode atingir, visto
que habita em uma luz inacessível conforme o testemunho de Paulo [I Tm
6.16.1. Que se ocupe, ao contrário, com o Deus encarnado ou (como diz Paulo)
com Jesus crncificado, no qual estão todos os tesouros da sabedoria e do co-
nhecimento, porém abscônditos [C1 2.31; pois por meio deste ela possui abun-
dantemente o que deve saber e o que não deve saber. Portanto, o Deus encar-
nado fala aqui: "Eu quis e tu não quiseste". Digo que o Deus encarnado foi
enviado para querer, falar, fazer, sofrer, oferecer a todos tudo que é necessário

239 Diatribc, 6 12.


240 O iiiaior herói da Guerra de Tióia
[>a Vontade Cativa
para a salvação, ainda que ofenda muitíssimos que, conforme aquela vontade
,sçcreta da majestade, ou foram deixados de lado ou endurecidos, e não rece-
beni aquele que quer, faia, faz e oferece, assim como diz João: "A luz resplan-
dece nas trevas e as trevas não a compreendein" [Jo 1.51. E iiovamente: "Veio
ao que era seu e os seus não o receberam" [Jo 1.111. Do mesmo modo é pró-
prio desse Deus encarnado chorar, lamentar-se e gemer por causa da perdição
dos ímpios, embora a vontade da majestade [divina] deixe para trás e reprove
propositadamente alguns, de modo que perecem. Não nos cabe perguntar por
que ela procede assim, mas deve-se reverenciar a Deus qiie tanto pode como
quer tais coisas. Taiiipouco considero que alguém caluniará, aqui, que aquela
voiitade acerca da qual se diz: "Quantas vezes quis...!" tenha sido exibida aos
judeus também antes do Deus encarnado, já que eles são acusados de terem
matado os profetas e, assim, terem resistido a vontade dele. Pois entre os cris-
tãos é notório que todas as coisas s5o executadas pelos profetas em nome do
Cristo futuro, o qual fora prometido para que Deus se fizesse carne. Assim
sendo, chama-se corretamente de vontade de Cristo tudo quanto se ofereceu
tlcsde o início do miiiido aos seres humanos pelos ministros da Palavra.
Aqui, porém, a sacio, impertinente e dicaz como é, diri: Evasiva belamen-
te inventada esta de recorrernios aquela temível vontade da majestade todas
as vezes que fornios acossados pela força dos argunientos e de forçariiios o
debatedor ao sil?ticio onde tenha sido molesto, precisamente como os astrólo-
gos que, com seus epiciclos inventados, eludem todas as perguntas sobre o mo-
vimento do céu como um todo. Respondemos que isso iião é nosso invento,
iiias preceito confirmado pelas Escrituras divinas, pois assim diz Paulo em
Rni 11 [sc. 9.19ss.l: "Por que, portanto, Deus se queixa? Qiiem resiste a vonta-
de dele? Homem, quem es tu para que coiitendas com Deus? Acaso o oleiro
não tem poder?", e mais o resto. E, antes dele, Isaías 58.2: "Pois me buscam
dia após dia e querem saber os meus caminhos como iim povo que tivesse fei-
to a justiça. Rogam-me juizos de justiça e querem aproximar-se de Deus".
Creio que com estas palavras se mostra suficientemente, que não é permitido
aos seres humanos escrutar a vontade da majestade. Além disso, esta questão
é de tal natureza que principalmente nela os seres humanos perversos buscam
atingir aquela temlvel vontade; por esta razão, sobretudo aqui é o lugar para
exortá-los então ao silêncio e a revereqcia. Em outras questões, onde se tratam
de coisas tais que dclas se pode dar razão e se nos ordena dar razão, não pro-
cedemos desse modo. Quanto a isso, se alguém prossegue escrutando a razão
daquela vontade e não dá ouvidos a nossa advertência, a este deixamos ir e lu-
tar com Deus ao modo dos gigantes. Haveremos de ver que triunfos trará pa-
i-:i casa, certos de que em nada desacreditará a nossa causa e nada ajuntará 3.
siia. Pois ficará fixado o fato de que oii provará que o livre-arbítrio pode to-
d;is as coisas oii as passagens aduzidas das Escrit~irasIiitarão contra ele mes-
iiio. Porem, c111qualquer dos casos, ele jaz proslrado como vcncido e nós prr-
iiiniicccmos tIc p t coiiio vcnccdorcs.
A i>iiii-;i p;issagciii E :i<liicl;i cIc MI 19.17: "Sc rliici'cs ciiti-:ir p:ii-ii a vida,
Da Vontade Cativa
guarda os mandamentos". Com que cara se diria "se queres" a alguém cuja
vontade não é livre? Isto [diz] a Diatribe, ao que replicamos: então, mediante
esta palavra de Cristo, a vontade é livre? Ora, tu querias provar que, estando
ausente a graça, o livre-arbítrio nada pode querer de bom e serviria necessaria-
mente ao pecado. Com que cara, pois, tu dizes agora que ele é todo livre? O
mesmo se deverá dizer das seguintes passagens: "Se queres ser perfeito" [Mt
19.211; "Se alguém quer vir após mim" [Mt 16.241; "Quem quiser salvar sua
vida" [Mt 16.251; "Se me amais" [Jo 14.151; "Se permanecerdes" [Jo 15.7].
Em suma como eu disse, colijam-se todas as conjunções "se" e verbos impera-
tivos, para que ajudemos a Diatribe ao menos com a quantidade de palavras.
Ela dizZ4'que todos estes preceitos são frios se nada se atribui a vontade huma-
na. Como essa conjunção "se" concorda mal com a mera necessidade! Res-
pondemos: se [os preceitos] são frios, o são por tua culpa; ou melhor: nada
são, pois, ao dizeres que o livre-arbítrio não pode querer o bem, asseres que
nada se atribui a vontade humana; e aqui, por outro lado, dizes que o mes-
mo pode querer tudo de bom, a não ser que, para ti, as mesmas palavras se-
jam quentes e frias ao mesmo tempo, já que simultaneamente asserem e negam
todas as coisas. E admiro-me que tenha agradado ao autor, continuamente es-
quecido dc seu próprio propósito, repetir tantas vezes a mesma coisa; salvo se,
talvez desistindo da causa, tenha querido vencer por meio da grande extensão
de seu livro ou fatigar o adversário pelo tédio e aborrecimento da leitura. Ro-
go-te: mediante que conclusão acontece que, todas as vezes que se diga "se
queres, se alguém quer, se quiseres", é preciso que imediatamente estejam pre-
sentes a vontade e a capacidade? Não é verdade que, muito frequentemente,
indicamos com tais palavras antes a impotência e a impossibilidade? Por exem-
plo: "Se queres igualar-te a Virgílio no compor versos, caro MérvioX2, é preci-
so que componhas de outro modo"; "se queres superar a Cícero, ó Escoto, é
preciso que tenhas, em lugar [dessas] argúcias, a máxima eloqüência"; "se que-
res ser comparado com Davi, é necessário que produzas salmos similares [aos
dele]". Aqui se indicam claramente coisas impossíveis para as próprias forças,
ainda que todas possam ser feitas pelo poder divino. A coisa também é assim
nas Escrituras, de sorte que, por meio de expressões semelhantes, mostra-se o
que pode acontecer em nós pelo poder de Deus e aquilo de que nós não so-
mos capazes.
Mais além, caso se dissesse isso acerca das coisas que são absolutamente
impossíveis de fazer, de sorte que nem Deus jamais haveria de fazê-las, então
com razão se chamariam de frias ou ridículas, já que estariam sendo afirma-
das em vão. Agora, porém, aiirmam-se de modo tal que a impotência do livre-
arbítrio, fator pelo qual nada daquelas coisas acontece, não apenas se dá a co-
nhecer, mas simultaneamente se indica que alguma vez todas estas coisas havc-

3 I2
241 1Ji;iliil~i~.
242 Af$,vi<~,IIOCI:~ c :a~~l;t!~,s>c)is~;t<I<,Vi~p,ílio;cl'. Ilcwici~>,l~,wd.X.,
1,;) Vontade Cativa
xio de existir e de acontecer, porém por meio de um poder alheio, a saber: di-
viiio. Isso caso admitamos, de modo geral, que em tais expressões exista certa
iiidicação das coisas que se devem fazer e são possíveis. Como se alguém inter-
pretasse desta maneira: "Se quiseres guardar os mandamentos, isto é, se algu-
iiia vez tiveres a vontade (não a terás porém de ti, mas de Deus, que a conce-
derá a quem quiser) de guardar os mandamentos, eles também te guardarão".
Ou, em termos mais amplos: aquelas palavras, principalmente as subjuntivas,
parecem ser colocadas deste modo também por causa da predestinação de
Deus de modo a incluir inclusive essa [predestinação], que nos é incógnita, co-
1110 se quisesse dizer: "se queres, se quiseres", isto é, se junto a Deus fores
iiiria pessoa tal que ele te julgue digno desta vontade de guardar os preceitos,
serás guardado. Por meio desta figura dão-se a compreender ambas as coisas,
:I saber, que nós não somos capazes de nada e que, se fazemos algo, Deus ope-
i-a em nós. Assim eu falaria aos que não quisessem contentar-se com a afir-
iiilição de que com aquelas palavras apenas se dá a conhecer a nossa impotên-
cia, e, sim, sustentassem que provam também alguma força e capacidade de
~:iiriipriras coisas que são prescritas. Desta maneira se tornaria a uma só vez
verdadeiro que não somos capazes de nada do que é prescrito e simultaneamen-
ic somos capazes de tudo, sendo aquilo atribuível as nossas forças e isto à gra-
C:I de Deus.

xr I
Em terceiro lugar, preocupa a Diatribe o ~egniiitG"~: Não compreendo
qiie haja lugar para a mera necessidade ali onde tantas vezes se faz menção
cln recompensa. Ela diz que nem a natureza nem a necessidade possuem méri-
10. Na verdade tampouco eu compreendo; só compreendo que aquela opinião
provável afirma uma mera necessidade ao dizer que o livre-arbítrio não pode
qiierer nada de bom e, não obstante, aqui lhe atribui também um mérito. O
livre-arbítrio progrediu a tal ponto com o crescimento do livro e do debate da
Iliatribe, que agora não só possui um impulso e um empenho próprios, ainda
qiie a partir de forças alheias; mais ainda: não apenas quer e faz bem, mas tam-
I ~ & i rmerece
i a vida eterna, pois Cristo diz em Mt 5.12: "Alegrai-vos e exultai,
pois vossa recompensa é grande nos céus". "Vossa", isto é, [a recompensa]
dii livre-arbítrio, pois assim a Diatribe compreende esta passagem, de sorte
qiic Cristo e o Espírito de Deus nada são. Por que razão, pois, haveria necessi-
clode deles, se temos as boas obras e os méritos mediante o livre-arbítrio? Di-
c i ~isto afim de que vejamos que, não raro, homens excelentes e dotados de
ciigciiho costumam ser cegos em um assunto claro até mesmo para um enge-
i i l i i ~grosseiro e rude; e para que vejamos quão débil é um argumento de auto-
ii<l;ide humana nas coisas divinas, em que apenas a autoridade divina vale.
Duas coisas devem ser ditas aqui, a primeira referente aos preceitos do
~ ~p

.'li I)i;ii,ibi~. "2.


Da Vontade Cativa
Novo Testamento e a segunda, ao mérito. Seremos breves em ambos os casos,
já que falamos mais demoradamente acerca das mesmas em outro lugarz4". O
Novo Testamento consiste propriamente de promessas e exortações, assim co-
mo o Antigo consiste propriamente de leis e ameaças. Pois no Novo Testamen-
to prega-se o Evangelho, o qual não é outra coisa que a pregação em que são
oferecidos o Espírito e a graça para a remissão dos pecados obtida em favor
de nós mediante o Cristo crucificado, e isso tudo gratuitamente e apenas pela
misericórdia de Deus Pai que favorece a nós, [seres] indignos e antes de qual-
quer outra coisa merecedores de condenação. Depois seguem-se as exortações,
que estimulam os já justificados e os que alcançaram a misericórdia para que
sejam estrênuos nos frutos da justiça dada e do Espírito, e para que pratiquem
o amor por meio de boas obras e carreguem com firmeza a cruz e todas as ou-
tras tribulações do mundo. Esta é a suma de todo o Novo Testamento. Que a
Diatribe não entende nada a respeito deste assunto mostra suficientemente o
fato de que não sabe fazer nenhuma distinção entre o Antigo e o Novo Testa-
mento; pois em ambas as partes quase nada vê senão leis e preceitos com os
quais os seres humanos são instruídos para os bons costumes. O que seja, po-
rém, o novo nascimento, a renovação, a regeneração e toda a atuação do Es-
pírito, absolutamente não é visto por ela, de modo que me causa estupefação
e assombro o fato de que um homem que trabalhou durante tanto tempo e
com tão grande empenho nas Sagradas Escrituras saiba tão pouco acerca delas.
Por conseguinte, a passagem "alegrai-vos e exultai porque vossa recompensa
é grande nos céus" combina tão bem com o livre-arbítrio quanto a luz se ajus-
ta bem as trevas. Pois ali Cristo não exorta o livre-arbítrio, e, sim, os apósto-
los, que não só estavam na graça e eram justos, encontrando-se acima do livre-
arbítrio, mas também tinham sido investidos do ministério da Palavra, isto é,
[estavam] no ponto mais elevado da graça a fim de que carregassem as tribula-
ções do mundo. Nós, porém, debatemos sobretudo acerca do livre-arbítrio sem
a graça, o qual é ensinado pelas leis e ameaças, ou pelo Antigo Testamento, a
autoconhecer-se, para que corra as promessas oferecidas pelo Novo Testamento.
No entanto, que outra coisa é o mérito ou a recompensa proposta senão
certa promessa? Mediante ela, porém, não se prova que nós sejamos capazes
de algo, pois com ela nada mais se indica do que isto: se alguém tiver feito is-
to ou aquilo, então há de ter a recompensa. Todavia, nossa pergunta não é
de que maneira ou que recompensa é concedida, e, sim, se porventura pode-
mos fazer coisas às quais se concede recompensa. Pois era isto que se devia
provar. Acaso não é ridícula esta conclusão: "no estádio se expõe o prêmio a
todos [os que correm]245;logo, todos podem correr e obtê-lo"? Se César tiver
vencido o turco, apoderar-se-á do reino da Síria; logo, César pode vencer e
vence o turco. Se o livre-arbítrio dominar o pecado, será santo para o Senhor;

hoiis obras. Obras Selecionadas, v. 2, pp. 97ss


244 ('I'. I>:i<
245 ('I. 1 ('<><).?4.
11.1 V<>iil;ldçCativa

Iol~,o,o livre-arbítrio é santo para o Senhor. Mas deixemos de lado estas [con-
~.liisiics]demasiadamente crassas e evidentemente absurdas, ainda que seja
iiiiiiio conveniente que se prove o livre-arbítrio com argumentos tão belos. Acer-
i ; i disso afirmaremos, antes, que a necessidade não tem nem mérito nem recom-
ipciisii. [Se falamos acerca da necessidade da compulsão, é verdade ir^;]"^ se
I;il;iirios acerca da necessidade da imutabilidade, é falso. Pois quem daria uma
iccoinpensa ou atribuiria um mérito a um trabalhador que trabalha contra a
v~ilitade?Contudo, no caso daqueles que fazem o bem e o mal voluntariamen-
ic. tiiiida que não possam modificar esta vontade por suas próprias forças, se-
!:iic-se natural e necessariamente o prêmio ou a punição, como está escrito: "Da-
i:is a cada um segundo suas obras" [Rm 2.61. Segue-se naturalmente: se és
iiici-giilhadona água, serás sufocado; se escapares nadando, serás salvo. E, pa-
i :i diz?-io brevemente:
No mérito ou na recompensa trata-se ou da dignidade ou da conseqüên-
c.i:i. Sc olhas para a dignidade, não há mérito nem recompensa. Pois se o livre-
:!i-liíii-iopor si só não pode querer o bem, mas quer o bem somente pela gra-
i-:( (pois falamos do livre-arbítrio excluída a graça e buscamos a força própria
ilc i i i i i e da outra), quem não vê que aquela boa vontade, o mérito e o prêmio
ioiiipctem tão-somente a graça? E aqui a Diatribe novamente diverge de si pró-
ri i;i ao demonstrar a liberdade da vontade a partir do mérito, e está na mes-
i i i ; i ci)iidenação comigo, contra quem luta. Pois, que há mérito, que há recom-
pciisii c que há liberdade, evidentemente luta, de igual maneira, contra ela pró-
lii.i:i, já que mais acima afirma que o livre-arbítrio nada quer de bom e assu-
i i i i i i o compromisso de provar isso. Se olhas para a consequência, nada há,
iiciii o bem nem o mal, que não tenha sua recompensa. E daí vem o erro: que,
1 1 0 qiic se refere aos méritos e aos prêmios, nos voltamos para pensamentos e
~>crgiinlas inúteis acerca da dignidade, a qual não existe, já que se deve deba-
ici ;il>enas sobre a consequência. Pois o inferno e o juizo de Deus esperam os
íiiiliios por conseqüência necessária, ainda que os mesmos não desejem tal re-
coiiipensa nem dela cogitem por seus pecados; ao contrário: detestam-na vee-
iiiciiicinente e a amaldiçoam, como diz PedroM7.De igual modo, o reino espe-
i;i os piedosos ainda que os mesmos não o busquem nem dele cogitem, pois
iiio s6 Ilies foi preparado por seu Pai antes que os mesmos existissem, mas tani-
I>i.iii;irilcs da fundação do mundoM8.
AIEiii disso, se fizessem o bem por causa do reino a ser obtido, nunca o
<,lilcriaiii, e pertenceriam antes aos impios, que, com olho vil e mcrcenário.
I~iis~:iiii o que é seu até mesmo em Deus. Os filhos de Deus, porém, fazem <i
1ii.111 lior iiieio de uma vontade desinteressada, não procurando prêmio nenliiiiii.
iii;i.s sii :i glória e a vontade de Deus, preparados para fazer o bem mcsiiio si.

.,.I<,iii\rii.;iii ;ii~\i.iilci i ; i WA. ('I.


('lciiicii v. 3 , 11. IHh.17\
!.li ( ' I . .' I'i. ?.I?.
!.(li ' I . Ml Y . 14, ri>\.
Da Vontade Cativa
- para pôr um caso impossível - não houvesse nem reino nem inferno. Con-
sidero isto suficientemente firmado a partir daquele único dito de Cristo em
I Mt 25.34, que citei há pouco: "Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do
reino que vos está preparado desde a fundação do mundo". De que modo po-
deriam merecer aquilo que já Ihes pertence e lhes está preparado antes mesmo
de serem criados? Assim podemos dizer, com maior correção, que o reino de
Deus merece, antes, a nós, seus possuidores; e devemos colocar o mérito lá
onde eles colocam o prêmio e o prêmio lá onde colocam o mérito. Pois o rei-
no não está sendo preparado, mas está preparado; os filhos, porém, são prepa-
rados para o reino, não preparam o reino; isto é: o reino merece os filhos, e
não os filhos o reino. Assim, também o inferno merece e prepara, antes, os
seus filhos, pois Cristo diz: "Ide, malditos, para o fogo eterno que está prepa-
rado para o Diabo e seus anjos" [Mt 25.411.

~ Que querem, por conseguinte, as palavras que prometem o reino e amea-


çam o inferno? Que [quer] a palavra da recompensa, tantas vezes repetida pelas
i1 Escrituras? "Há uma recompensa para tua obra", diz ela [2 Cr 15.71. "Eu sou
i tua recompensa sobremaneira grande" [Gn 15.11. Também: "Ele dá a cada
! um segundo suas obras" [Rm 2.61. E Paulo, em Rm 2.7: "A vida eterna aos
que perseveraram nas boas obras" e muitas outras passagens similares. Respon-
I
de-se: com todas elas nada se prova senão a conseqüência da recompensa, e
I de modo nenhum a dignidade do mérito; a saber: os que fazem coisas boas
não as fazem com uma disposição servil e mercenária por causa da vida eter-
na, mas buscam a vida eterna, isto é, estão naquele caminho em que atingirão
e encontrarão a vida eterna, de sorte que "buscar" é labutar com empenho e
esforçar-se com trabalho insistente por aquilo que costuma seguir a uma vida
boa. Mas nas Escrituras se anuncia que essas coisas hão de existir e hão de se-
guir-se após uma vida boa ou má para que os seres humanos sejam instruí-
dos, agitados, estimulados e aterrados. Pois assim como por meio da lei vem
o conhecimento do pecadouy e a advertência de nossa impotência, da qual
não se infere que sejamos capazes de algo, assim por meio destas promessas e
ameaças vem uma advertência pela qual se nos ensina o que se segue ao peca-
do e àquela nossa impotência mostrada pela lei, não se atribuindo, contudo,
por meio das mesmas, alguma coisa de dignidade ao nosso mérito. Por conse-
g u i ~ t e assim
, como as palavras da lei servem de instrução e iluminação para
ensinar o que devemos e o que não somos capazes [de fazer], assim as palavras
da recompensa, ao indicarem o que há de ser, servem de exortação e comina-
ção mediante as quais os piedosos são estimulados, consolados e erguidos pa-
ra prosseguir, perseverar e vencer no fazer o bem e suportar o mal, para que
não se fatiguem nem se quebrantem, assim como Paulo exorta os seus corín-
I tios dizendo: "Procedei de modo viril, sabendo que vosso trabalho no Senhor
não ii vão" [I Co 15.58; 16.131. Assim Deus ergue Abraão dizendo: "Eu sou

1
~ ~-

711') ( I ' . I(!,, 1.20.


I );i Voiitade Cativa

iii;i recompensa sobreinaneira [grande]". Isso é o mesmo que quando confor-


iiis alguém mostrando-lhe que suas obras certamente agradam a Deus, uiri gê-
iicro de consolação da qual a Escritura não raro se utiliza. E não é uma coriso-
.;. pequena saber que se agrada a Deus, ainda que dai nada mais resulte.
1..i+~o
sc bem que isso seja impossivel.
A isso se refere tudo que se diz a respeito da esperança e da expectação,
pois as coisas que esperamos certamente hão de acoiitecer, se bem que os
picdosos não esperem por causa das mesmas ou busqueni tais coisas por sua
própria causa. Assim, os impios são aterrados e derrubados com palavras de
cominação e juizo futuro a fim de que abandonem o mal e se abstenham dele,
iião se encham de orgulho e não se tornem seguros e insolentes nos pecados.
(Jiianto a isso, se aqui a razão torce o nariz e diz: Por que Deus quer que es-
. . aconteçani por meio de palavras, já que com tais palavras não se al-
. , Loisas
I ,I\

Giiiça nada e a vontade não consegue voltar-se para nenhuma direção? Por
qiic não o faz sem a palavra, visto que pode fazer tudo sem a palavra? visto
iiiinbém que, se falta o Espírito que a move interiormente, a vontade por si
iiicsina não tem mais força ou não faz mais porque ouviu a palavra? riem te-
ria inenos força ou faria menos, se o Espirito está presente, porque se silen-
<.ioiia palavra, pois que tudo depende do poder e da obra do Espírito Santo?
I>ii-cmosque foi desta maneira que agradou a Deus conceder o Espírito: não
hciii a palavra, mas por meio da palavra, a fim de que nos tenha como seus
~ o o p c r a d o r e scontaiito
~~~ que proclamamos exteriormente o que apenas ele
iiicsiiio iiispira interiormente onde quer que Ilie aprouve - coisas que, apesar
disso, poderia fazer sem a palavra, porém não quer. Demais, quem somos nós
Inra querer investigar a causa da vontade divinazs1? E suficiente saber que
Ilcos quer assini e é mister reverenciar, amar e adorar esta vontade, reprimin-
CIO o atrevimento da razão. Assim também poderia alimentar-nos sem pão, e
i-cnlinente concede a força de alimentar sem pão, como diz Mt 4.4: "Não só
~ l cpão se alimenta o ser humano, mas da palavra de Deus"; coiitudo, agri-
(Ioii-llic alimentar-tios interiormente com a Palavra por meio do pão e com o
1120 apresentado de fora.
Fica de pé, portanto, que não se prova o mérito a partir da recompensa,
cio iiicnos nas Escrituras. Além disso, a partir do mérito não se prova o livrc-
cirhíti-io, muito menos um livre-arbítrio tal como a Diatribe se propôs provar,
;i s;iher, um que, por si só, nada pode querer de bom. Pois ainda qiie admiias
o iiiErito e acrescentes essas costumeiras analogias e inferências da ra;.i« -
por cxcinplo: se o arbítrio não é livre preceitua-se em vão, promete-se a rccoiii-
pciisa cm vão. dirigem-se ameaps em vão -, digo que com elas se prova (\c
i: (liic se prova algo) que 0 livre-arbítrio por si só pode tudo. I'orqiic, sc i i , i < ~
~ i ( ~ <tiiclo
l c por si so, periiiaiiece aquela inferência da razão: lo~~m,
prccciiii;i-sc
riii v50, proincic-se em vão, dirigem-se ameaças eiii váo. Dc\l;i iii;iiicii-;i; i I>i;i~
trihe, ao debater contra nós, debate continuamente contra si mesma. Mas
Deus sozinho, por meio de seu Espírito, opera em nós tanto o niérito quanto
o prêmio; contudo, indica e da a conhecer ambos ao mundo todo por meio
de sua palavra externa, de sorte que também junto aos ímpios, aos incridulos
e aos ignorantes se anunciam sua potência e glória e nossa impotência e igno-
iiuiua, ainda que apenas os piedosos percebam isso eni seli coração e somente
os fiéis o compreendam, ao passo que os restantes o desprezain.
Ora, seria demasiado entediante, daqui para a frente, repetir uma a uma
as palavras imperativas que a Diatribe enumera do Novo Tesiamento acresceii-
taiido sempi-e suas inferêiicias e pretextando que, se a vontade não é livre, o
que se diz é vio, supérfluo, frio, ridículo e nulo. Pois já dissemos há muito
e a ponto de causar muita náusea que não se alcança nada coni tais palavras;
e que, se for provado algo, prova-se todo o livre-arbítrio. Isso não é outra coi-
sa que subverter toda a Diatlihe, já que ela se comprometeu a provar aquele
livre-arbítrio que não é capaz de nada de bom e que é escravo do pecado, mas
que, ignorando e esquecendo-se continuamente a si rnesnia, prova iim livre-ar-
bitrio capaz de tudo. Por conseguinte, são meras cavilações quando diz: "Em
seus frutos os conliecereis", diz o Senhor [Mt 7.20). Ele afirma que os frutos
si» obras e chama estas de nossas [obras]; mas elas iião são nossas se indo se
Inz por necessidade. Dize-me: acaso não se diz, com muita razão, que são iios-
sas [as coisas] que nós na verdade não fizemos, porém recebemos de outros?
Por que, portanto, não se diria que são nossas as obras que Deus iios deti por
meio do Espírito? Acaso não diremos que Cristo é nosso porque não o fize-
iiios, mas apenas recebemos? De novo, se fazenios o que se diz ser nosso, en-
ião 116siiiesmos nos fizemos os olhos, nós mesmos nos fizemos as mãos e nós
mesmos nos fizemos os pés, a iião ser que não se diga que os olhos, as mãos
c os pés são nossos. Mas "o que teinos", diz Paulo, "que não tenhamos rece-
bido?" [ I Co 4.7.1 Direinos, por conseguinte, que isso não i nosso ou que foi
kiio por nós mesmos? Siipõe agora que se tenha dito que os frutos são nos-
sos porque nós os fizemos; onde ficam a graça e o Espírito? Pois ele não diz
assiiii: "Vós os conhecereis pelos frutos, que, em peque~ssimaparte, são de-
Ics". Estas coisas são, antes, cavilações, ridículas, supérfluas, vãs, frias, e até
estúpidas e odiosas; com elas se mancham eprofanam as palavras sagradas de Deus.
Assim tambéni se zomba daquela palavra de Cristo na cruz: "Pai, perdo-
;I-lhcs. porquc não sabem o que fazem" [Lc 23.241. Embora se esperasse aqui
iiiiia ~ciiiciicaque afiriiiaria o livre-arbítrio, [a Diatribe] passa novamente as
iiilcii.ricias. Com quanto mais direito, diz ela, os teria escusado. já qiie não
i i i i i ;i voiiia~lelivrc e riem são capazes, caso queiram, de agir de outra maiiei-
"L ('oiiiiido, tainpooco co~iiesta inferência se prova aquele livre-arbítrio
iIc qiic x lrata, qiic não pode rllierer nada de bom, nias sim aquele que tiido
pi~lc.ilc iliic iiiiiguém irata c todos negaiil, com excecào dos pelagianosZs3.
I,;, Vontade Cativa
Altin do mais, acaso ao dizer publicamente que eles não sabem o que fazem,
iião atesta simultaneamente que não são capazes de querer o bem? Pois de
qiic modo queres aquilo que ignoras? Certamente [não há] nenhum desejo do
que é ignorado. O que de mais forte se pode dizer contra o livre-arbítrio do
que [isto]: que ele absolutamente nada é, de sorte que não só não quer o bem,
mas nem ao menos sabe quanto faz de mau e o que é o bem? Porventura há, i
aqui, uma obscuridade em alguma palavra: "não sabem o que fazem"? Que
restou lias Escrituras que não possa, segundo conselho da Diatribe, afirmar o
livre-arbítrio, visto que para ele a palavra de Cristo extremamente clara e opos-
ta o afirma? Com a mesma facilidade, alguém poderia dizer que se afirma o
livre-arbítrio também por meio desta passagem: "A terra, porém, estava deso-
cupada e vazia" [Gn 1.21; ou desta: "Deus repousou no sétimo dia" [Gn 2.21;
ou de outras semelhantes. Aí, sim, as Escrituras serão ambiguas e obscuras.
E inais ainda: serão simultaneamente tudo e nada. Mas ser assim ousado e tra-
lar as palavras divinas desta maneira indica um espírito de um insigne despre-
zlidor de Deus e dos homens e que não merece absolutamente nenhuma paciência.
E aquela passagem de Jo 1.12: "Deu-lhes o poder de se tornarem filhos
~ l cDcus" a Diatribe interpreta assim: De que modo se Ihes dá o poder de se
Ioinarem filhos de Deus se não existe nenhuma liberdade da nossa vontade254?
'liiinbém esta passagem é um [golpe de] martelo contra o livre-arbítrio, tal co-
iiio o é quase todo o Evangelho segundo João; ainda assim, é aduzida em fa-
vor do livre-arbítrio. Peço-te que vejamos isso. João não fala acerca de qual-
qiicr obra do ser humano, nem grande, nem pequena, e, sim, precisamente
ticerca da renovação e da transmutação do velho homem, que é filho do dia-
tio, em novo homem, que é filho de Deus. Este ser humano encontra-se, co-
1110 se diz, puramente passivo; não faz coisa alguma, mas é todo feito. Pois
.loâo fala acerca de "ser feito"; diz que "são feitos filhos de Deus" mediantc
LI poder que nos é dado divinamente, não mediante a força inata do livre-arbi-
ii-io. Nossa Diatribe, porém, deduz daqui que o livre-arbítrio tem uma força
i
ião grande que faz os filhos de Deus; quando não, está disposta a declarar
qiie a palavra de João é ridícula e fria. Mas quem alguma vez elevou tanto o
livrc-arbítrio a ponto de atribuir-lhe força de fazer os filhos de Deus, sobrclii-
do iim como este adotado pela Diatribe, o qual não pode querer o bem? M:is
~lcixcmospassar isso com as inferências restantes, tantas vezes repetidas, coiii
tis quais nada mais se prova, se é que se prova algo, do que isto que a 1Ii:ilri
Iic iicga, a saber: que o livre-arbítrio tudo pode.
,1030 quer [dizer] o seguinte: depois que Cristo veio ao rnuiido por inicio II
<li) Evaiigelho - através do qual se oferece a graça mas 1150 sc cxigc ohi-:i .
siirgc para todos os seres humanos a oportunidade, sem dúvida iii:~giiil'ic;i.[li.
sciciii lilhos dc Deus se quiserem crer. Contiido, coino o livre-tirhiirio j:iiii:iis
coiiliccco cste querer e estc crer cm scu nunic, iiciii pciisoii :iccic:l (Icl~.; i i i I i . i .
assim muito menos é capar dele por suas próprias forças. Pois de que modo
a rarão pensaria que a fé em Jesus, Filho de Deus e do homem, é necessária,
visto que nem hoje compreende ou consegue crer, ainda que toda a criação o
afirmasse a gritos, que existe uma pessoa que é simultaneamente Deus e ser
Iiiimano? Antes, porém, sente-se chocada por tal discurso, como diz Paulo
em 1 Co 1.23; tão distante está de querer ou poder crer! Portanto, João pro-
clama as riquezas do reino de Deus oferecidas ao mundo por meio do Evange-
lho, e não os poderes do livre-arbítrio. Simultaneamente, indica quão poucos
são os que as aceitam, por causa da oposição do livre-arbitrio, cuja força em
nada mais consiste, por ser governado por Satanás, do que em rechaçar até a
graça e o Espírito que cumpre a lei, tão esplendidamente eficazes são seu esfor-
ço e empenho para cumprir a lei. Mas abaixo diremos, de modo mais extenso,
qiie fulminação contra o livre-arbítrio é esta passagem de João. Todavia, aba-
la-me bastante o fato de que passagens tão claras e tão fortes contra o livre-
arbítrio sejam aduzidas em favor do livre-arbitrio pela Diatribr, que é tão em-
botada que não distingue absolutamente nada entre palavras de promessa e
palavras da lei. Embora estabeleça o livre-arbítrio de maneira extremamente
inepta por meio de palavras da lei, ela logo depois o confirma, de um modo
de longe o mais absurdo, por meio de palavras de promessa. Porém, este ab-
surdo se explica facilniente ao se considerar quão hostil e desprezador é o espí-
iito com que a Diatiibr debate. Não lhe importa nada se a graça fica de pé
ou cai, se o livre-arbítrio jaz no chão ou está selitado; somente [lhe importa]
iornar odiosa a causa com palavras inanes e prestar um serviço aos tiranos.
Depois disso, chega-se também a Paulo, o inimigo pervicacissimo do livre-
arbítrio, e também este é coagido a estabelecer o livre-arbítrio ein Rm 2.4: "A-
caso desprezas as riquezas de sua bondade, paciência e longaninlidade? Acaso
ii:iioras que sua benignidade te conduz a penitência?" De que modo se impu-
(;i o desprezo do preceito ali onde não há vontade livre? , diz ela. De que mo-
<Ir> Deus convida à penitência, ele que é o caiisador da impenitência? De que
i t ~ i ~ daocondenação e jiista ali onde o juiz coage ao malefíci0?~5' Respondo:
iliic ír Diatrjbe veja o que fazer com estas perguntas. Que têm elas a ver conos-
r<)? Pois ela mesma disse, conforme a opinião provável, que o livre-arbitrio
ii;io é capar de querer o bem e é necessariamente coagido a servidão do peca-
(10. Por conseguinte, como se lhe imputa o desprezo do preceito se não é ca-
1t:ix dc querer o bem nem há ali liberdade, e, sim, a servidão necessária ao pe-
c.:iclo'l Como convida a penitência o Deus que faz com que [o ser humano]
ii:irl possa penitenciar-se, a medida em que abandona ou não confere a graça
.I <~iiciii, por si só, não 6 capaz de querer o bem? Como pode ser jiista a con-
~l~.ii:ic.io onde o juiz, após retirar o auxílio, obriea o ímpio d ser deixado no
iii:ilclicio, jii que, por seu próprio poder, não é capaz de outra coisa? Todas
;v. cois;is recaem sobre a cabeça da Diatribe; ou, se é que provam algo (como
~ -

cii disse), provam que o livre-arbítrio tudo pode, o que todavia é negado por
<.I:i iiicsma e por todos. Aquelas inferências da razão atormentam a Diatribe
Iioi iodas as afirmações da Escritura, pois parece ridículo e frio avançar e exi-
):ir com palavras tão veementes onde não há ninguém capaz de cumpri-lo. O
:il~i,stolo,porém, tem em mira isto: por meio daquelas ameaças quer levar os
iiiipios e soberbos ao conhecimento de si mesmos e de sua impotência, a fim
ilc preparar para a graça os humilhados pelo conhecimento do pecado.
E por que é necessário enumerar uma a uma todas as coisas aduzidas de
I':iiilo, já que [a Diatribe] nada colige exceto palavras imperativas ou subjunti-
vas, ou seja, do tipo com que Paulo exorta os cristãos para os frutos da fé?
Mas com suas inferências acrescentadas, a Diatribe concebe o poder do livre-
;iihíirio tal e tão grande que, sem a graça, é capaz de tudo o que Paulo pres-
ci-cve como exortador. Os cristãos, porém, não são conduzidos pelo livre-arbí-
trio, c, sim, pelo Espírito de Deus, conforme Rm 8.14. Todavia, ser conduzi-
(Io iião é conduzir, mas ser arrebatado, do mesmo modo que a serra ou a ma-
rli;idinha são conduzidas por um carpinteiro. E para que aqui ninguém duvi-
<Ir de que Lutero diz coisas tão absurdas, a Diatribe cita suas próprias pala-
vi:is2'", as quais sem dúvida reconheço. Pois confesso que aquele artigo de
Wyclii (de que tudo se faz por necessidade) foi injustamente condenado pelo
( '<iiiciliábulo,ou melhor, pela conjuração e sedição de Constançaz5'. Além dis-
so. 3 mesmíssima Diatribe defende o mesmo comigo quando afirma que o li-
vic:irbitrio não é capaz de querer nada de bom por suas próprias forças e que
iirccssariamente é escravo do pecado, ainda que, ao apresentar provas, estabe-
Icq:i completamente o contrário. Que isto seja suficiente contra a primeira par-
ic (13 Diatribe, na qual se tentou estabelecer o livre-arbítrio. Vejamos agora a
scgiintla parte em que nossos [argumentos] - isto é, aqueles mediante os quais
o livre-arbítrio é suprimido - são confutados. Aqui verás de que a fumaça
( 1 0 scr humano é capaz contra os relâmpagos e trovões de Deus.

Segunda Parte
Em primeiro lugar, depois que citou inumeráveis passagens da Escritura
ctii Iãvor do livre-arbítrio, tal como um exército extremamente temível (a firii
ilc ciicorajar os confessores, os mártires e todos os santos e santas do livrc-ar-
Iríiiio, mas pávidos e trépidos todos aqueles que recusam o livre-arbítrio c pc-
r:iiii contra ele), alega que existe somente uma turba desprezível contra o livrc-
:irliíIiio; e isso de tal forma que neste lado fiquem de pé somente duas 1i;iss:i-
cciis rriais claras em comparação com as outras, sem dúvida proiita ~iiiicaiiiciilc
Da Vontade Cativa
a trucidá-las - e sem grande trabalhozs8. Uma delas é Êx 9.12: "O Senhor en-
dureceu o coração do Faraó"; a outra, M1 1.2s.: "Amei Jacó, mas tive ódio
de Esaú"; Paulo explica ambas de modo mais extenso em Rm 9.13ss., mas,
segundo o parecer da Diatribe, é de se admirar que tenha empreendido um
debate tão detestável e inútil. Contudo, se o Espírito Santo não soubesse um
pouquinho de retórica, haveria o risco de que, abatido por uma arte tão gran-
de de desprezo dissimulado, se desesperasse completamente da causa e conce-
desse a palma da vitória ao livre-arbítrio antes [do sinal] da trombeta. Mas
eu, ínfero homem da reserva, mostrarei com estas duas passagens também as
nossas tropas, ainda que não sejam necessárias quaisquer tropas onde o desti-
no do combate é tal que um só [homem] põe em fuga dez mil259.Pois se uma
só passagem derrotou o livre-arbítrio, de nada lhe servirão suas incontáveis tropas.
Aqui, portanto, a Diatribe descobriu um novo artifício para eludir as pas-
sagens evidentes, a saber: ela pretende que haja uma figura nas palavras mais
simples e claras, de sorte que, assim como mais acima, ao defender o livre-
arbítrio, eludiu todas as palavras imperativas e subjuntivas da lei por meio de
itiferências e analogias acrescentadas, assim também agora, tendo a intenção
de agir contra nós, torce todas as palavras da promessa e da afirmação divina
por meio de uma figura inventada para onde bem entende. Assim, ela é em
~nnbosos casos um Proteu que não se pode apanhar. E até exige com grande
severidade que isso mesmo lhe seja permitido por nós, visto que nós mesmos
costumaríamos esquivar-nos com figuras inventadas onde somos apertados.
I'or exemplo: ali [onde se diz]'? "Estende tua mão ao que quiseres" pclo
15.171, [dizemos que] isso significa "a graça estenderá tua mão ao que ela
quer"; [onde se diz]: "Fazei-vos um coração novo"[Ez 18.311, [dizemos que]
isso significa: "a graça vos fará um coração novo"; e outras semelhantes. Por
conseguinte, parece injusto se a Lutero se permite apresentar uma interpreta-
$,i0 tão forçada e distorcida e não se permite, ao contrário, seguir as interpreta-
~ 5 e dos
s mais experimentados doutores. Assim vês que aqui não se peleja acer-
ca do texto em si, nem mais acerca de inferências e analogias, mas acerca de
figuras e interpretações. Portanto, quando será que teremos algum texto sim-
plcs e puro, sem figuras e inferências, em favor do livre-arbítrio e contra o li-
vi-e-arbítrio? Acaso a Escritura não possui em parte nenhuma tais textos? E
scrá eternamente duvidosa a questão do livre-arbítrio porque não é confirma-
<Ia por nenhum texto determinado, mas apenas agitada, como um junco pelos
vciitos, por inferências e figuras introduzidas por seres humanos que se encon-
iv:iin em dissensão reciproca?
Assim, somos antes da opinião de que não se deve admitir nenhuma infe-
ii:itcia c nenhuma figura em qualquer lugar da Escritura, a não ser que a cir-
i.iiiist~riciaevidente das palavras e a absurdidade de uma coisa evidente, que
iri~.:i contra algum arligo da fé, force a isso. Deve-se, isto sim, ficar preso por
i >.iViviindc Cativa

ioilii a parte a simples, pura e natural significação das palavras que a gramáti-
<::i c 0 uso do falar criado por Deus nos seres humanos possuem. Pois ao se
licrriiitir a qualquer um inventar inferências e tropos nas Escrituras segundo
; i >lia vontade, que será toda a Escritura senão um junco agitado pelos ven-
I,,s:~i~ ou algum Vertuinno? Eiitão sim iião se estabelecerá tieiii se provará tia-
cI;i certo em qualquer artigo da fé qiie não consigas submeter a cavilações me-
~li;intealguma figura. Por isso, deve-se antes evitar, como a um veneno extre-
iiiLirnente eficaz, toda a figura que não for forçada pela própria Escritura. Que
iiconteceu a O r i g e n e que
~ ~ ~falava
~ tropologicarnente ao comentar as Escrituras?
Oiic boas oportunidades oferece ao caluniador Porfírio, de maneira que até
para .lerÒiuino os que defendem Origenes parecem ter pouco êxito2". Que acoli-
icceii aos arianos naquela figura coin a qual fizeram de Cristo um Deus
iipciias nominativoz"? O que aconteceu em nossa época a estes novos profetas
iio tocante as palavras de Cristo "Isto é o meu corpo", nas quais um vê um
;i\l>ccto tropológico no pronome "isto", outro no verbo "é" e um terceiro
fio substantivo "corpo"? Eu observei isto: todas as heresias e erros nas Escritu-
i : i i iião vieram da simplicidade das palavras, como se diz ein quase todo o
iiiiirido, mas, sim, da negligência da simplicidade das palavras e das figuras
oii iiiferências que se procura obter com o próprio cérebro.
No exemplo "Estende a tua ]não a qualquer coisa que queiras" [Eclo.
15.171 eu jamais me ocupei (pelo que me lembro) com esta interpretação força-
<I;! :i ponto de dizer: "A graça estenderá tua mão ao que ela mesma quer"; "Fa-
/(+vos um coração novo" [Ez 18.311, isso é: "A graça vos fará um coração
iii~vo", e assim por diante, aiiida que a Diatrjbe me ridicularize desta forma
ciii uin opúsculo publicado265, evidentemente cheia de figuras e inferências e
luir ela iludida, de modo que não vê o que e de quem fala. Eu, porém, disse
( I seguinte: se aceitamos as palai'ras "E estende a mão, etc." simplesiiieiite co-
i i i i i hão emitidas e pomos de lado figuras e inferêiicias, elas significam siiiiples-
iiiciitt que se exige de nós o ato de estender a mão e que se indica o que (leve-
iiios iazer; esse é o caráter da palavra imperativa entre os graináticos e o uso
liiigiiistico. A Djatril~r,contudo, após ter sido negligenciada esta simplicidade
<I:\[i>ilnvra,interpreta, mediante inferências e figuras aduidas de maneira for-
\,;ida, da seguinte maneira: "Estende a mão", isto é, "és capaz de estendcr a
iii;io coni tua própria força"; "Fazei um coraçáo novo", isto é, "sois capaics

LliI 1'1. Mt 11.7.


!c,.! <lrigcrie.s: (185-254).natiird de Nenandria. Escreveu muitos livros, rciido qile iim ilo, i ~ i ; i i \ iiii
Iv>ii:iiiresC De princi~iis.Tornou-se um dos mais klmosos i: sdhi<iiedl<?g<i\ <[cscti Icitili<i. ' i c i i i i
i I i i ; i \ c~ci~1;isiIrTralogi;i. urna delasci~iCr\;ii8ia,ondcfoi hi~po.;i i>iilr;i, :i ~pii~iicif;#. c ~ iAlrx:~~iiIi
i i:,.
:r,! 1 i i.i,iiccii<i <Ic Icriiiiiiiii> a icspeiio dc I\lei<idin,Eiisiiiiii e .,\lii,liii:iiiii..iili<iic* <I<i\ 1 1 % riciiii~h
i'iitiiil>;li\c i i i i I i ; i I ' i > i l i i i i > , riL, i i i i i i i i o I.ivc>i;ivil. - . llorl'irit~, l i I h u > l ' ~ ~~ c t ~ ~ ~ ir!!,I : ~ l ~ ~
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!r>! ' I . ; , ~ , i l , , : , 1,. 1 %
Da Voniade Cariva
de fazer uiii coração novo"; "Crede em Cristo", isto é, "sois capazes de crer".
Desta maneira, diante dela, o que se diz de modo imperativo e o que se diz
de modo indicalivo é o mesmo; de um e de outro modo, está disposta a tor-
nar a Escritura ridícula e ineficaz. E a estas interpretações, intoleráveis para
qualquer graiiiático, não se permite chamar entre os teólogos de forsadas e afe-
tadas, inas são as dos mais experimentados doulores que foram aceitos ao loii-
go de tantos séculos.
Para a Diatribe, porém, é fácil admitir e .seguir figuras iiesta passazem.
pois nada lhe importa se o que se diz é certo ou incerto. Além do mais, trata
de que tudo seja incerto, pois aconselha que os dogriias acerca do livre-arbítrio
devem antes ser deixados de lado do que investigados. Por esta razão lhe tinha
sido buficiente afastar de qualquer maneira os ditos pelos quais se sente acua-
da. Para nós, porém, para quem está em jogo uma questão séria e que busca-
mos a verdade certíssima para tornar Firmes as consciências, deve-se proceder
de maneira bem diferente. Para iiós, digo eu, não é suficiente que tenhas dito
que aqui pode haver uma figura. mas a questão é se deve e é preciso haver
aqui uina figura. Porque, se não tiveres mostrado que unia figura existe neces-
sariamente, não terás feito absolutamente nada. Lá está firme a palavra de
Dcus: "Eu endurecerei o corasão do Faraó" [Êx 4.211. Se disseste que isso de-
ve ser ou pode ser compreendido assim: "Eii permitirei que seja endurecido",
certamente ouço que assim se o pode compreender; ouso que esta figura é di-
Iùndida na linguagem popular, como por exemplo: "Eu te arruinei porque
não te corrigi imediatamente quando erravas". Mas não há lugar para este ti-
po de prova. Não se pergunta se aquela figura está em uso. Não se pergunta
se alguém pode empregá-la nesta passagem de Paulo. Pergunta-se, isso sim,
re é segiiro e certo einpregi-Ia corretainente nesta passagem e se Paulo acaso
quer usi-Ia. Não se pergunta acerca do uso alheio do leitor, inas acerca do uso
de Paulo, o próprio autor. Que farás a uma consciência que pergunta assini:
Eis aí: Deus, o autor, diz: "Endurecerei o coração d o Faraó"; a signifcação
da palavra "endurecer" é clara e conhecida. Porém uni ser humano, o leitor,
nie diz: Nesta passagem endurecer significa dar ocasião para o endurecimento,
já que o pecador não é corrigido imediatamente. Com que autoridade, delibe-
ração ou necessidade se me distorce desta maneira aquele significado naturd
cla palavra? Que acontece se o leitor e intérprete erram? De onde se prova que
iiesta passagem deve acontecer essa distorção da palavra? É perigoso e até ím-
pio distorcer a palavra de Deus seiii iiecessidade e sem autoridade. Acaso en-
i50 cuidas desta pequena a h a sofredora assim: Esta é a opinião de Orígenes?
c111 assim: Deixa de escrutar tais coisas, já que são indiscretas e supérfluas? Ela,
pnrfrn, responderá: Era preciso fazer lembrar isso a Moisés e Paulo aiites que
cscrcvessein, e, sobretudo, ao próprio Deus. Pois por que nos atormentam coiii
cscriios iiidiscretos e supérfliios?
Sciido assim, esta miserável evasiva das figuras não serve de auxílio a Dia-
Iril~c.M;is aqui nosso Proteo deve ser mantido corajosamente a fim de que
iiin ii>riiccci-lissiiiios qiiaiito 3 risiira desta passagem, c isso mediante passa-
i i;, V~iriradeCativa

),,ciisclarissiinas das Escrituras ou mediante milagres evidentes. Nada crenios


ii iiicsrtia que assim opina, ainda que esteja em concordância com o engenho
tlc todos os séculos, mas prosseguiinos e insistimos que aqiii niÍo pode haver
iiciihuma figura, e, sim, deve-se simplesmente compreender o falar de Deus
como soam as palavras. E não cabe a nosso arbítrio (como faz crer a si mes-
iiizi a Diatnbe) modelar e remodelar as palavras de Deus conforme iiosso ca-
pricho; do contrário, que permanece em toda a Escritura que não retorne a fi-
losofia de Anaxágoras, de sorte que qualquer coisa se faça de qualquer coisazG?
I'ois cu diria: "Deus criou o céu e a terra" [Gn 1.11, isto é, colocou-os em or-
dem, mas não os fez a partir do nada. Ou ainda: "Criou o céu e a terra", is-
ro c', os anjos e os demônios ou os justos e impios. Quem então, pergunto eu,
\ c r i teólogo assim que abriu o livro? Portanto, esteja ratificado e definido is-
io: visto que a Diatribe não é capaz de provar que existe uma figura nestas
nossas passagens que refutou, é forçada por 116sa admitir que as palavras de-
vcni ser compreendidas como são enuiiciadas, ainda que provasse que a mes-
III;I figura é extremaiiiente difundida alhures, em todas as passagens da Escritu-
i:i e no uso de todos. E através disso defende-se definitivanleiite tudo o que
clisscmos e que a Diatribe quis confiitar, e se evidencia que sua confiitafio ab-
si~liitamentenada efetua, nada pode e nada é.
Por conseguinte, quando aquela passagem de Moisés - "Endurecerei o
voiação do Faraó" - é interpretada assim: "Minha brandura, com que tole-
i t ~o pecador, certamente conduz outros a penitência, mas tornará o Faraó
iii;iis obstinado em [sua] maldade", faz-se um belo discurso, mas não se pro-
va que é preciso falar assim. Nós todavia, não satisfeitos com o dito, deseja-
iiios a prova. De igual modo, aquela passagem de Paulo - "Ele tem miseri-
vilidia de quem quer, e endurece a quem quer" [Rm 9.181 - é interpretada
Iil:i~i>ivelrnente,isto é: "Deus endurece ao nâo castigar imediatamente o peca-
dor, e tem misericórdia logo que o convida a penitência por meio de aflições".
<'o111que, porém, se prova essa interpretasão? Algo semelhante ocorre coiii
:tcliicla passagem de Isaias: "Fizeste com que nos desviássemos de tens cami-
iilios, endureceste nosso corarão para que não te temêssemos" [Is 63.171. Pois
Iici~i!Jerõnimo interpreta assim a partir de Orígenes: Fala-se de seduzir quaii-
tlo :llguém não faz retroceder o erro. Quem nos dá a certeza de que Jerôiiimo2'" c

(ca. 500428
>h0 A!l:~xdgor~i.s, a.C.), fundador do tcismo filosófico, sustentou que a inafCii,i \r
coiiip6c de minúsculas partialas, os atornos, que se movem na caos e foram oi-ganiiad;ispui
iiiii:i forca superior cliarnada nous (mente).
!<<I ir~6riioio(347-420) a mais erudito dentie os pais de fala latina, chamado "lIoiit<ii hil>licii"
I X I Y "Ias pcsqiiisas no campa da Sagrada Escritura. Depois de vivcr iin Pale.;tiri;~ c<iiii<icrriiii
i:,, ti;iri.;fc.riu-\c para Roma assumindo a fun<Zo dc secretãrio do pap;i 1 I ~ n i ; t r ~I'ci~ . <~iilci~i
<Ic\ictv.ili,i, .lcroriimo oiciloi~a icvisáo do texto itala da S;igl;idn Csçiilurn. 1 : ~ ~~; i l i ; i l I ~i< <i
%iiIi<i!1 ~iii V,ilgtifa, qiic I>ns\oii;i sc inipiir c<iiii<,vci.iãu iiuiirialiv:~[pai;! ;i 1gici;i. I iiiri,< i ~ i i
~ii.iliiictticcit;i ciliili~iiiic:i Vci1e;il:t. Ilcl,oir <Icscii , i c i i < ~ l < )
L<)IIIIIII<P. r c i < n ~ t < tou . ~i,i I~' i \ l ~ \ ~ i l c : t .
iiiiiii ~ i i i , \ i c i i i iccti Ili~lilii.Ali !.c ilcilici>it ;i l > i < > c l ~ ~ 1ili.i;iii;i.
c>iiiIi. ,.c l i x i i i i . l p i n 34 ;iiii>i. v : ~ ~ > 15.iili
i I ,, , , , , " , i , i , l l , i L ,
. 1 , 1,. 1 1 1 ) .
Da Vontade Cativa
Orígenes interpretam corretamente? Afinal de contas, nosso acordo é de que
não queremos debater baseados na autoridade de algum doutor, mas tão-so-
nieiite na autoridade da Escritura"6". Por que então a Diairibe, esquecendo o
acordo, nos vem com homens como Origeiies e Jerõnimo, já que entre os es-
critores eclesiásticos não há quase nenhuni que tenha tratado as Escrituras Di-
vinas de maneira mais inepta e E, para dizer uma só palavra: este
desregramento da interpretação chega ao ponto de, mediante uma nova gramá-
tica, tudo se confundir, de sorte que quando Deus diz: "Eu endurecerei o cora-
ção do Faraó", trocam-se as pessoas e tu o deves entender assim: "O Faraó
se endurece por meio de minha brandura". "Deus endurece nosso coração"
significa: "Nos mesmos nos endurecemos porque Deus posterga as punições".
"Tu, Senhor, nos fizeste errar" significa: "Nos niesmos causamos nosso erro
porque tu não nos castigaste". Assim, o fato de Deus ter misericórdia já não
significa que ele dá a graça ou mostra a misericórdia, remite o pecado, justifi-
ca ou liberta dos inales, mas, ao contrário, significa que iiifüge o mal e castiga.
Com estes tropos terminarás enfim dizendo que Deus teve misericórdia
dos fillios de Israel quando os levou para a Assíria e a Babilônia; pois ali casti-
gou os pecadores, ali convidou a penitência por meio de aflições. Inversa~nen-
te, quando os trouxe de volta e libertou, entáo não foi misericordioso, e, sim,
os endureceu, isto é, através de sua brandura e misericórdia deu ocasião a que
se endurecessem. Assim, o fato de ter enviado ao mundo Cristo como Salva-
dor não será chamado um ato de misericórida de Deus, mas, sim, de endureci-
mento, pois por meio desta misericórdia deu aos seres humanos ocasião de se
endurecereni a si próprios. Porém, pelo fato de ter devastado a Jemsdém e
arruinado os judeus até este dia, ele tem misericórdia deles, pois castiga os que
pecam e convida a penitência. Ao transportar os saiitos ao céu no dia do juí-
zo2'0, não o fará tendo misericórdia, mas, sim, endurecendo, porque por meio
de sua bondade dará ocasião a que se pratique abuso. Contudo, ao arrojar
os impios aos infernos terá ali misericórdia, porque castiga os pecadores. Por
favor, quem alguma vez ouviu algo a respeito dessas misericórdias e iras de
Deus? Estamos de acordo, sem dúvida, que os bons sejam feitos melhores ora
pela brandura, ora pela severidade de Deus. Não obstante, visto que falanios
simultaneamente a respeito dos bons e dos maus, essas figuras farão da miseri-
córdia de Deus a ira, e da ira, a misericórida; e isso mediante um uso linguisti-
ço metido inteiramente as avessas, falando em ira quando Deus presta benefí-
cios, e de misericórdia quando impõe aflições. Caso se deva dizer então que
Deus endurece quando presta benefícios e tolera, mas tem misericórdia quan-
do impõe aflições e castiga, por que se diz que endureceu a Faraó mais que
aos filhos de Israel ou até mesmo que todo o mundo? Porventura não presta

I í i X ('I'.ticinia 11.51.
?.lvLlc 'I. ~ c t52%.
; a c i ~ ~ p.
L7i)('I. I lr1.17.
Iiciiefícios aos filhos de Israel? Não presta benefícios a todo o mundo? Não
iolcra os maus? Não faz chover sobre bons e mausz7'? Por que se diz que te-
vc luais misericórdia para com os filhos de Israel no Egito e no deserto? Estou
llc acordo que uns abusam da bondade e da ira de Deus e que outros as usam
corrctaniente. Tu, porém, defines isso assim: endurecer é o mesmo que ser in-
<li~lgente com os maus por meio de braiidiira e bondade, mas ter misericórdia
F não ser indulgente, e, sim, punir e castigar. Por conseguinte, no que diz res-
]>citoa Deus, ele mesmo não faz outra coisa que endurecer através de sua con-
iiiiua bondade, nem faz outra coisa que ter misericórdia através de seu contí-
iiiio castigo.
O mais bonito de tudo, porém, é o seguinte: diz-se que Deus endurece quan-
do i. indulgente com os pecadores mediante sua brandura; porém, que tem
iriisericórdia quando pune e impõe aflições, corividando a penitência median-
cc a severidade. Mas que foi que Deus deixou de fazer ao impor aflições, casti-
c;tr e chamar a Faraó a penitência? Não se enumeram ali dez pragas272?Se fi-
c:i de pé tua definição de que ter misericórdia significa castigar e chamar ime-
(liiitamente o pecador, Deus certamente teve nusericósdia de Faraó. Logo, por
qiic Deus não diz: "Eu terei misericórdia de Faraó", e, sim: "Eu endurecerei
o coração do Faraó"? Pois no próprio fato de se comiserar dele, ou, como
i i i dizes, de impor aflisões e castigar, ele diz: "Eu o endurecerei", ou, como
I i i dizes, lhe prestarei benefícios e o tolerarei. Que se pode ouvir que seja mais
iiioiistruoso? Onde estão agora tuas figuras? Oiide está Ongenes? Onde está
Icrfinimo? Onde estão os mais experimentados doutores, aos quais um único
Iioiiiem, Lutero, coiitradiz irrefletidamente? Mas a imprudência da carne for-
c:i ;i ralar desta maneira quando brinca com as palavras de Deus e não acredi-
13 que são sérias.
Portanto, o próprio texto de Moisés convence de modo irrefragável quc
;iqlielas figuras são inventadas e que nesta passagem nada valem; e que com
tuas palavras - "Eu endurecerei o coração do Faraó" - se indica unia coi-
\:i Iiciii diferente e muito maior, algo que está além da beneficência, da ?Flicão
i. do castigo, já que não podemos negar que ambas as coisas foram tentadas
rio I;ziraó com o m&ximo empenho e cuidado. Pois que ira e castigo são mais
:iiiicaçddores do que quando se é golpeado por tantos sinais e tantas pragas,
(lc sorte que até o próprio Moisés testifica que jamais houve tais coisasz7'? I'i-
i~;tliiicrite,o próprio Faraó, como que voltando a si, é mais que uma vez iiii
~>icssiioiiado por aquelas coisas, porém não chega a ser abalado nem persisir.
AlCiii disso, existe brandura e beneficência mais abundante do quc quaiido
I tciis :ifiista as pragas tão facilmente e permite o pecado tantas vczcs, laiii;ts
\,r/c\ iiaz dc volta as coisas boas e tantas vezes retira as más? Não ohslniiic.
tii.1111tii11adas duas surte efeito, e Deus ainda diz: "Endurecei-vi i ) coi;iq:io i l i ~
Da Vontade Cativa
Faraó". Vês, portanto, que mesmo que se admitam teu endurecimento e mise-
I ricórdia (isto é, tuas glosas e figuras) em grau máximo tanto no uso quanto
no exemplo, como se pode discernir eni Faraó, ainda assim fica de pé o endu-
recimento; e é necessário que um seja aquele [endurecimeuto] de que fala Moi-
sés e outro o que soiihas.

1 XII I
Contudo, tima vez que lutamos com fabuladores e máscaras, coloque-
mos também nós uma máscara e fabulemos @ara pôr um caso impossível) que
a figura sonhada pela Diatribe tenha validez nesta passagem; e haveremos de
ver de que modo ela se esquiva para não ser forçada a afirmar que tudo acon-
tece apenas pela vontade de Deus, de nossa parte, porém, por necessidade, e
de que modo escusa a Deus para que o niesrno não seja o autor e o culpado
cie nosso endurecimento. Se é verdade dizer-se que Deus endurece quando tole-
ra mediante sua brandura e não pune de maneira imediata, ainda ficam de pe
duas coisas. Em primeiro lugar, que o ser humano, não obstante, serve neces-
sariamente ao pecado; pois, no momento em que admitiu que o livre-arbítrio
não pode querer qualquer coisa boa (o que a Diatribe se encarregou de pro-
var), ele de nenhum modo se torna melhor mediante a brandura de um Deus
tolerante, e, sim, necessariamente pior, a não ser que lhe seja acrescentado o
Espírito através de um Deus misericordioso. Por isso, tudo que depende de
iiós ainda acontece por necessidade. Em segundo lugar, que Deus parece ser
tão cruel ao tolerar mediante a brandura quanto é ao endiirecer - como atti
se crê que e pregado por nós -, porque o quer mediante aquela vontade im-
pcrscrutável. Pois como vê que o livre-arbítrio não é capaz de querer o bem e
que se torna pior mediante a brandura daquele que o tolera, Deus parece ser,
por meio desta mesma brandura, extremamente cruel e deleitar-se com nossos
males, embora pudesse curá-los, se quisesse, e pudesse não tolerá-los, se quises-
se; ao contrário, se não quisesse não poderia tolerá-los. Quem o constrangerá
contra sua vontade? Se, portanto, está de pé aquela vontade sem a qual nada
\e faz e se admite que o livre-arbítrio não é capaz de querer nada de bom, diz-
sc em vão o que quer que se diga coin o intuito de escusar a Deus e acusar o
livre-arbítrio. Pois o livre-arbítrio sempre diz: Eu não posso e Deus não quer;
que farei? Ele naturalmente pode ter misericórdia impondo-me aflições; de
iiiodo algum tenho proveito nisso, mas torno-me forçosamente pior, a não ser
que ele conceda o Espirito. Contudo, não o concede, mas o concederia se qui-
sesse. Portanto, 6 certo que não o quer conceder.
làmpouco contribuem com qualquer coisa para a questão iis analogias
:idiizidas quando se diz?": Assim como por meio do mesmo sol a argila endu-
iccc c a cera aiiiolece, e a partir da mesma chuva a terra cultivada produz fruto
I I . , Vciiitadc Cativa i
C ;I tcrra não ciiltivada, espinhos. assim t'mbém por meio da mesnia brandu-
I ;I dc Deus uns são endurecidos e outros convertidos. Pois não dividimos o Li-
vic-arbitrio em duas disposições naturais distintas, de sorte que uma seja co-
1110 a argila e a outra como a cera, ou uma como a terra cultivada e a outra
corno a terra não cultivada. Falamos, porém, de um [livre-arbítrio] ignalmen-
ic impotente em todos os seres humanos, que é tão-somente argila e terra não
cultivada, de modo que não é capaz de querer o bem. Por isso, assim como a
argila se torna sempre mais dura e a terra não cultivada mais espinhosa, assim
iarnbém o livre-arbítrio se torna senipre pior, tanto por meio da brandura en-
cliircccdora do sol quanto por meio do aguaceiro que amolece. Portanto, se
Iii em todos os seres humanos um livre-arbítrio que comporta uma Única defi-
iiiqão e tem a mesma impotência, não se pode dar nenhuma razâo por que
li111 alcança a graça e o outro não a alcança quando se prega somente a bran-
cliira do Deus que tolera e o castigo do que tem misericórdia. Pois em todos
os scres humanos colocou-se um livre-arbítrio de igual definição: que não é ca-
p;iz de querer nada bom. Então nem Deus elege alguém nem se deixa qual-
(liicr espaço para a eleição, mas apenas a liberdade do arbítrio que aceita ou
i-cl,cle a brandura e a ira. Mas que será um Deus despojado do poder e da sa-
I>c<l«riade eleger senão o ídolo da deusa da fortuna, sob cujo nome tudo acon-
iccc b cegas? E finalmente se chegará ao ponto que os seres huinanos sejam
~;ilvose condenados por um Deus ignorante, já que ele não separou, median-
ic iinia eleição inequívoca, os que devem ser salvos e os que devem ser conde-
ii:idos. mas, depois de oferecida a lodos a brandura geral que tolera e endure-
( c c eiii seguida a misericórdia que castiga, deixou [a escolha] entre os dois pa-
i;~ os seres humanos: ser salvos ou ser condenados. Entrementes, talvez elc
iiicsriio tenha partido para o banquete dos etiopes, como diz H ~ m e r o ~ ' ~ .
Também Aristóteles nos pinta um Deus semelhante, um que dorme e coii-
sciite que usem e abusem de sua bondade e repreensão todos os que queiram27".
I: ;I rai.20 não é capaz de fazer outro juizo dele do que aquele que a Diatrihr
lliz aqui. Pois da mesma maneira como ela própria ronca e despreza as coisas
<livirias.tanibém pensa acerca de Deus: como se roncasse e, tendo posto de Iii-
<I<, [sua] sabedoria, vontade e presença de escolher, de separar e de inspirar.
uiiii'iou aos seres humanos esta obra trabalhosa e molesta de aceitar e repelir
S I I ; I brandura e ira. A este ponto se chega quando queremos delimitar e escii
s;ii a Deus mediante a razão humana; quando não reverenciamos os segrcdos
CI;I iiinjcstade [divina], mas neles penetramos escrutando, de maneira quc, clo
iiiiiiit~lospelo desejo de glória, vomitamos mil blasfêmias em vez de uma cscii
s : ~c, 11.20 lembrados entrementes de nós mesmos, tagarelamos como iiisniro~

!i\ I I<>,,,C,<,, 0<1;s.vc;;, 1,22ss.


.'i11 Aii~.l<iielc~. Alcl.il'. X11.7. Ali \c <Ic*cirvc iitu <Icii\ clirç, aii ]>clccicsciciii<l;i<li..ici11 i i i i i # i i < l i i i 11,
<I<, ..c, ;i vc~cl;i<lc;ilis<iliii:i. r qiir iiiiii i i i t c i \ i i ; i de iicllhii~ii:~ ; i ~ : i < i . A i i l < , \iiliciclllc. $ , < i ~ : iIv
i <ii.i
,i.,l>riii;ivi.iilii~;iiir;l ,I;! riiiiiciiii>l;ir;ii>ilr \>>:i l i l i ) , > ~ i ; i r\\?!ici;i.
Da Vanlade Cativa
simultaneamente contra Deus e contra nós próprios ao querermos falar com
grande sabedoria em favor de Deus e em favor de nós.
Aqui vês, pois, o que esta figura e glosa da Diarribe fazem de Deus; em
seguida, [vês] quão bem concorda consigo mesina aquela que, tendo antes des-
crito, por meio de uina única definição, o livre-arbiirio como sendo igual e si-
milar em todos os seres humanos, agora, ao debater, esquecida de sua própria
definição, qualifica um de cultivado e outro de não-cultivado. A partir da di-
versidade das obras, dos costumes e dos seres humanos ela forma livre-arbítrios
diferentes, um que faz o bem, outro que não o faz; e isso por suas próprias
forças antes da graça, [embora] tivesse definido previamente que por tais for-
cas o mesmo nZo e capaz de querer algo de bom. Assirii acontece que, ao não
atribuirmos exclusivamente a vontade de Deus a vontade e o poder de endure-
cer, de ter nusericiirdia e de fazer tudo, atribuiinos ao próprio livre-arbitrio o
poder de ser capaz de tudo sem a graça, mesmo que tenhamos negado qiie ele
possa qualquer coisa de bom sem a graça. Portanto, de nada vale, neste pon-
to, a aiialogia do sol e da chuva. O cristão se utilizará mais corretameiite des-
sa analogia se cliamar o Evangelho de "sol" e "cliuva" (assim como faz o SI
19.4 e a Epístola aos Hebreus, cap. 10 [sc. 6.7]), porém de terra cultivada os
eleitos, e não cultivada os réprobos; pois através da palavra aqueles são edifica-
dos e tornam-se melhores, e estes são ofendidos e ioi'riam-se piores. Caso con-
r r k o , o livre-arbítrio é por si niesmo o reino de Satanás em todos os seres humanos.
Vejamos tambéiii as causas da iiivenção desta figura iiesta
Parece absiii-do. diz a Djatrjbe. afirmar qiie Deus, que não é sonieiite justo,
inas também bom, tenha endurecido o coração do ser humano a fim de tor-
iiar evidente sua polência mediante a maldade daquele. Por isso recorre a Ori-
genesZs, o qual recoiihece que a ocasião do endurecimento foi dada por Deus
airida que jogue a culpa em Faraó. Além disso, o mesmo observou o que dis-
se o Senhor: "Para isto mesmo te despertei" @x 9.161; não diz: "Para isto
mesnio te fiz". De outro modo, Faraó iião teria sido ínipio se Deus, que, ten-
do contemplado todas as suas obras, [viu] que eram muito boas219, o tivesse
criado de modo semelhante. É isso que diz a Diatribe. Por isso, a absurdida-
de é uma das principais causas para que as palavras de h31oisés e de Paulo não
sejam compreendidas eiii sua simplicidade. Mas contra que artigo da fé peca
esta absurdidade? Ou quem se ofende com ela? A razão humana se ofende,
razão que, emboia cega, surda, estulta, ímpia e sacrílega no tocante a todas
as palavras e obras de Deus, neste lugar é chaiiiada para ser juiza das pala~ras
e das obras de Deus. Negarás com o mesmo argumento todos os artigos da
fé, [dizendo] que o mais absurdo de tudo - e, corno diz Paulo, "estulticia pa-
ra os gentios e escândalo para os judeus [l Co 1.231 - é que Deus seja um
ser humano, filho de uma virgem, que foi crucificado e está sentado a destra
do Pai. Eu digo qiie é absurdo crer ein tais coisas. Portanto, inventemos com

277 I)i:ililhc, 5 15. 278 Oiipriie~,cl. ;iciina n. 262. 279 Yl. Cii 1.31.

125
os arianos algumas figuras a fim de que Cristo não seja simplesmente Deus.
Iiiventemos figuras com os maniqueus2" a fim de que não seja um verdadei-
ro ser humano, mas um fantasma que deslizou através da virgem como um
inio de luz através do vidro e foi crucificado. Desta maneira trataremos mui-
io bcm das Escrituras.
Todavia, as figuras não têm nenhuma utilidade nem se evita com elas a
cihsurdidade. Pois continua sendo absurdo (conforme o juizo da razão) que
csse Deus justo e bom exija do livre-arbítrio coisas impossíveis; que, embora
o livre-arbitrio não seja capaz de querer o bem e sirva necessariamente ao peca-
do, ainda assim lhe impute isso; e que, ao não conferir o Espírito, nada faça
com mais suavidade ou clemência do que quando endurece ou permite que se
scja endurecido. Essas coisas, repetirá a razão, não sZo próprias de um Deus
Iion~e clemente. Superam demasiadamente seu poder de compreensão, e ela
iicrn mesmo pode render-se para crer que é bom o Deus que faz e julga tais
coisas, mas, deixando de lado a fé, quer apalpar, ver e compreender de que
iiianeira ele é bom e não cruel. Porém compreenderia caso se falasse sobre
I>ciis desta maneira: não endurece a ninguém, não condena a ninguém, mas
iciii misericórdia de todos e salva a todos, de modo que o inferno estaria des-
iiiiido, o medo da morte eliminado e não haveria razão para recear alguma
Iiciia futura. Por isso está inflamada e esforça-se deste modo a fim de escusar
c dcfender a Deus como justo e bom. Mas a fé e o Espírito julgam de outro
iiiodo: crêem que Deus é bom, ainda que causasse a perdição de todos os sc-
ics humanos. E que adianta nos fatigarmos com estes pensamentos a fim de
jogar a culpa do endurecimento no livre-arbítrio? Que o livre-arbitrio faça lu-
do de que é capaz em todo o mundo e com todas as suas forças; não aprescii-
rará, contudo, nenhum exemplo mediante o qual possa evitar ser endurecido
sc I>cus não deu o Espirito, ou mediante o qual mereça a misericórdia se foi
:~handonadoas suas próprias forças. Pois o que importa se é endurecido oii
iiicrece ser endurecido uma vez que o endurecimento existe necessariamciilc
iiclc enquanto nele se encontra aquela impotência mediante a qual, conforiiic
,I Icslemunho da própria Diatribe, não é capaz de querer o bem? Portaiito.
j:i q ~ i cnão se afasta a absurdidade por meio dessas figuras, ou, se é afasta<l;i.
:ipicseiitam-se absurdidades maiores e atribui-se tudo ao livre-arbitrio, elimiiiciii
sr iis figuras inúteis e sedutoras e aferremo-nos a pura e simples palavra dc Ilciis.
A outra causa é que as coisas que Deus fez são muito boaszx' e quc I>ciis
i;iiiih6m iião disse "para isso mesmo te fiz", mas "para isso mesmo te Icv:iii
l c i r i ~.~ Em
2 primeiro lugar, dizemos que este dito se encontra anlcs da clii(~l:i

!H11 Ari:iii<,,s, cl. acinia n. 55. - M;iniqiiei~,s:adcplos do pei-sa Mncii (210 - ~ i i i , v ; i u c l i i i r i i i i >/li).
iii~iiki<I<ii <!c iiiiia icligião qiic rç cs]>nlliou~iorlodi, c, loi~>Cri,,Ilocti:iiiii. Sii;i c;ii;icli~ii\lii.:i l i r i l i
~ l o ~luitlisnloitccc~lt~i~<l<)
~ . i l > i ccic l , i, III, C i!* Ir~vit\.
CIIIIC I ) lhe111C I) ~ l l i ~ OI!
.'Xl ('I'. 1.13.
. i . I:* 'Ilh.
do ser humano, quando as coisas que Deus havia feito eram muito boas. Mas
logo depois, no terceiro capitulo, segue-se de que modo o ser humano tornou-
se mau, foi abandonado por Deus e relegado a si mesmo. Deste ser humano,
de tal maneira corrompido, nasceram todos os impios e também Faraó, co-
mo diz Paulo: "Éramos por natureza todos filhos da ira, assim como os ou-
tros" (Ef 2.3). Portanto, Deus criou a Faraó como impio, ou seja, a partir
de uma semente impia e corrupta assim como se diz nos Provérbios de Salo-
mão: "O Senhor fez todas as coisas por causa de si mesmo, também o impio
para o dia mau" (Pv 16.4). Dai não se segue, então: Deus o criou impio, lo-
go não é impio. Pois de que maneira não seria impio quem vem de uma se-
mente impia? Assim diz o SI 51.7: "Eis que fui concebido em pecados"; e Jó
14.4: "Quem pode tornar puro o que foi concebido de semente impura?" Ain-
da, pois, que Deus não faça o pecado, ele contudo não cessa de formar e mul-
tiplicar a natureza que foi viciada pelo pecado após o Espírito tcr sido subtraí-
do, tal qual um escultor faz estátuas de madeira estragada. Deste modo, assim
como é a natureza, assim tornam-se também os homens quando Deus os cria
e forma a partir de uma tal natureza. Em segundo lugar, dizemos: se queres
que as palavras "eram muito boas" sejam compreendidas com referência às
obras de Deus após a queda, considerarás que isso não se diz acerca de nós,
e, sim, acerca de Deus. Pois não se diz: "O ser humano viu as coisas que
Deus havia feito, e eram muito boas". Muitas coisas que, quando vistas por
Deus, são muito boas, quando vistas por nós, são péssimas. Assim, as aflições,
os males, os erros, o inferno e até todas as melhores obras de Deus são péssi-
mas e condenáveis perante o mundo. Que é melhor que Cristo e o Evangelho?
E que é mais execrado pelo mundo? Por conseguinte, só Deus e aqueles que
vêem com os olhos de Deus - isto é, os que possuem o Espírito - sabem de
que maneira é bom diante de Deus aquilo que para nós é mau. Mas um deba-
te tão sutil aindanão é necessário. Por enquanto é suficiente aresposta precedente.
Talvez alguém pergunte como se pode dizer que Deus opera o mal em nós,
como por exemplo, endurecendo, entregando aos desejos, seduzindo e coisas
semelhantes. Sem dúvida seria conveniente contentar-se com a3 palavras de
Deus e simplesmente crer no que dizem, já que as obras de Deus são absoluta-
mente i n e n a r r á v e i ~ coniudo,
~~~; para condescender com a razão, isso é, com a
estulticia humana, permita-se-nos dizer inépcias, cometer estuiticias e ver se,
balbuciando, podemos de algum modo influenciá-la.
Primeiro: também a razão e a Diatribe admitem que Deus opera tudo em
todoszx4e que sem ele nada se faz nem é eficaz; pois ele é onipotente e isso faz
parte de sua onipotência, como diz Paulo em Ef 1.19. Doravante Satanás e o
ser humano, caídos e abandonados por Deus, não são capazes de querer o bem,
isto é, aquilo que agrada a Deus ou o que Deus quer, mas são continuamente
voltados para os seus desejos, de sorte que não podem deixar de buscar o que

281 ('I'. I<cii I l . l i . 284 C ( . I Co 12.6,

127
I ,;i V<inisde Cativa

i: SCU. Por conseguinte, esta sua vontade e natureza, desviada deste modo de
Ikiis, nao é "nada". Pois nem Satanás neiu o ser humano impio são "nada"
ou não t2in nenhuma natureza ou vontade, conquanto tenham uma natureza
corrupta e desviada. Logo, aquilo que chamamos de remanescente da nature-
za no ímpio e em Satanás não está menos sujeito, como criatura e obra de
Deus, a onipotsncia e a ação divina do que todas as outras criaturas e obras
dc Deus. Assiiri, visto que Deus a tudo move e atua em tudo, também move
iiccessariamente a Satanás c o impio e neles atua. Porém, atua neles de modo
correspondente ao que são e a como os encontra, isto é: já que são desviados
c inaus, e são arrebatados por essa manobra da onipotência divina, fazem so-
riicntc o que é contra Deus e mau. É como se um cavaleiro cavalgasse um ca-
valo que anda sobre três ou duas patas; conduz o cavalo de acordo com suas
condições, ou seja, o cavalo anda mal. Que pode fazer o cavaleiro? Conduz
li11 cavalo como conduz cavalos sãos, aquele mal, estes bem; não pode ser dife-
iciite, a não ser que o cavalo seja curado. Aqui vês que qiiando Deus opera
ii<is riiaos e por mcio dos maus certamente o mal acontece, e contudo Deus
i130 pode agir mal ainda que faça o mal por iiieio dos maus; pois, sendo ele
1ii6prio bom, não pode agir mal, mas faz uso de instrumentos maus que não
1~odctnescapa da apropriação e da manobra de sua potência. Portanto, o de-
leito está nos instrumentos aos quais Deus não permite ser ociosos; por isso,
ii iiial acontece porque o próprio Deus o põe em inovimento. É exatamente

como se um carpinteiro cortasse mal com um machado cheio de rebarbas e


~lciitado.Daí resulta que o ímpio não pode senão errar e pecar sempre, pois,
iiiovido pela apropriação da potência divina, não se lhe consente ser ocioso,
iii;ts quer, deseja e age de modo correspondente ao que ele é.
Essas coisas são ratificadas e certas se cremos qiie Deus é onipotente c
(liic, além disso, o impio é uma criatura de Deus, a qual, porém, desviada c
:iliaiidonada a si rnesnia sem o Espírito de Deus, não é capaz de querer ou k i ~
;.cr o bem. A onipotência de Deus faz com que o impio não possa escapar (I;i
iii:iiiobra e da ação de Deus, e, sim, siijeito a ele, obedeça necessariameiiic.
I'or?ni, sua corrupção ou aversão a Deus iião permite que possa ser coinovi~
&I c manobrado para o bem. Deus não pode pôr de parte sua onipotência In)r
c:iiisa da aversão dele. O ímpio, todavia, não pode alterar sua averszo. Assiiii
:iccriilece que peca e erra contínua e necessariamente, até que seja corrigido 11r
Iii Ikpírito de Deus. Nisso tudo, porém, Satanás ainda reina em paz c eslá ii;iii
qiiilo na posse de seu palácio sob a manobra desta onipotência divina2xs.Ali05
isso, porém, segue-se o processo do endurecimento, que se dá dcstc iiioclo: I I
iiiipio (como dissemos), assim como também seu príncipe, Satanás, csiii io(li>
vi~liadopara si c para o que é seu; não busca a Deiis nem cuida <lo qtic c' CIV
I>ciis; busca suas riquezas, sua glória, suas obras, scii salicr, scii poilci- c, riii
I:ri:iI, seu reino, c quer usufruir dcsses em pzv. Sc alriiCiii Ilic icsisir oii (liici
Da Vontade Cativa
diiiunuir alguma destas coisas, e movido por meio da mesma aversão ine-
diante a qual busca aquelas coisas, a indignar-se e a eiifurecer-se contra o ad-
versário. E tanto não pode deixar de enfurecer-se quanto não pode deixar de
desejar e buscar; e tanto 1120 pode deixar de desejar quanto não pode deixar
de existir, pois é uma criatura de Deus, ainda que viciada. Esta é a fúria do
mundo contra o Evangelho de Deus. Pois pelo Evangelho vem aquele "mais
forte" que há de vencer o traiiquilo possuidor d o palácio e que condena estes
desejos de glória, riquezas, sabedoria e de justiça própria e tudo em que ele
confia. Essa irritação dos impios quando Deus Ihes diz ou faz o contrário do
que querem é o próprio endurecimento e agravamento dos mesmos. Pois não
só são aversos por si mesmos mediante a própria corrupção da natureza, mas
também tornam-se muito mais aversos e piores quando se resiste a sua aversão
ou quando ela sofre defração. Assim, quando [Deus] havia resolvido tirw do
impio Faraó o poder tirânico, irritou-o, endureceu e agravou seu coração ca-
da vez inais ao atacá-lo mediante a palavra de Moisés, como se este tivesse a
intenção de tomar o reirio e subtrair o povo a sua tirania, e não lhe concedeu
o Espirito interiormente, mas permitiu que sua ímpia corrup~ão,dominada
por Satanás, se exasperasse, se enfatuasse, se enfurecesse e prosseguisse com
certa segurança e desprezo.
Portanto, quando se diz que Deus endurece ou opera o mal em nós (pois
endurecer é fazer o mal), ninguém pense que ele age como se criasse de novo
o mal em nós, como se imaginasses um taberneiro malvado que, sendo ele pró-
prio mau, derrama ou mistura veneno num recipiente não mau, no que o pró-
prio recipiente nada faz exceto receber ou sofrer a malignidade daquele que
faz a mistura. Pois assim parecem imaginar que o ser humano, por si mesmo
bom ou não mau, sofre a má obra da parte de Deus; e fazem isso quaiido nos
ouvem dizer que Deus opera em nos o bem e o mal e que estamos sujeitos por
tnera necessidade passiva ao Deiis operante. Não consideram suficieiiternente
qiião inquieta é a atuação de Deus em todas as suas criaturas e como não con-
sente a nenhuma ter um dia feriado. Mas quem de alguma maneira quercom-
prcender tais coisas, pense assim: Deus opera o mal em nós, isto é, por meio
de nós, não por culpa de Deus, mas por causa de um vício nosso, pois somos
maus por natureza, e Deus, ao contrário, é bom; ao apropriar-se de nós por
meio de sua ação de acordo comi a natureza de sua onipotência, ele. que é bom,
rião pode agir de outro modo senão fazendo o mal com um instrun~entomau,
ainda que faça bom uso deste mal de acordo com sua sabedoria p a a sua gló-
ria e nossa salvação.
Assim também encontra a vontade má de Satanás, mas não a cria; porque
Deus a abandonou e Satanás pecou, ela se tornou má; contudo, toma posse
clcla e a manobra para onde quer, se bem que essa vontade não deixe de ser
iiii, iitcsirio sob esta acão de Deus. Assim disse Davi acerca de Siinei em 2
Siii 16.11: "l>eixa-c>, que maldiga, pois o Senhor lhe ordenou que maldiga a
I);ivi". I)c cl~icni:iiicirü I>cns ordena irialdizei-. se maldizer é uma obra tão vi-
iii1riiI:i r iii:i? I ~ I I II I C I I ~ ~ I I I IPILI.(C
I~I havi:i tal preccito exterrio. Por conseguinte,
Da Vontade Cativa

com aquilo Davi toma em consideração o fato de que o Deus onipotente falou
e foi feitoza6,OU seja, de que faz tudo por meio da palavra eterna. E assim,
quando Davi se apresenta oportunamente como alguém que mereceu tal blasfê-
mia, a ação e a onipotência divinas tomam posse da vontade de Simei, que já
era má com todos os [seus] membros e estava anteriormente inflamada contra
Davi; e o próprio Deus bom ordena por meio de um instrumento mau e blasfe-
mo, ou seja, diz e faz esta blasfêmia mediante a palavra, a saber: mediante a
apropriação de sua ação.
Assim endurece a Faraó ao apresentar a sua vontade impia e má uma pala-
vra e obra que ela odeia, sem dúvida por causa de um vicio ingênito e de uma
corrupção natural. E porque Deus não a muda interiormente por meio do Es-
pírito, mas prossegue apresentando e impondo a palavra e a obra enquanto
Faraó olha para suas forças, riquezas e poder, e neles confia por cansa do
mesmo vicio natural, acontece o seguinte: por um lado, este torna-se abalofa-
do e altivo pela visão de seus próprios potenciais, e, por outro lado, torna-se
um desprezador soberbo através da humildade de Moisés e da palavra de
Deus que vem numa forma abjeta; e assim se endurece, irritando-se e agravan-
do-se mais e mais quanto mais é instado e ameaçado por Moisés. Esta sua von-
tade má não seria acionada ou endurecida por si mesma; mas, como o agente
onipotente a impele com um movimento inevitável do mesmo modo que impe-
le as demais criaturas, é necessário que ela queira algo. Além disso, Deus ao
mesmo tempo lhe apresenta exteriormente aquilo que por natureza a irrita e
ofende; assim acontece que Faraó não pode evitar seu endurecimento assim
como tampouco pode evitar a ação da onipotência divina e a aversão ou a
maldade de sua vontade. Por isso, o endurecimento de Faraó por Deus é exe-
cutado desta maneira: este p6e exteriormente, frente a maldade daquele, algo
que ele odeie por natureza; depois, não cessa de acionar interiormente, com
ação onipotente, a vontade má (como a encontrou). E aquele, de acordo com
a maldade de sua vontade, não pode deixar de odiar o que lhe é contrário e
de confiar em suas forças; assim obstina-se, de sorte que nem ouve nem sabe,
mas, possuído por Satanás, é arrastado como se fosse insano e furioso.
Se tivermos sido persuasivos neste ponto, vencemos nesta questão, e, de-
pois de desaprovadas as figuras e as glosas dos seres humanos, aceitamos de
maneira simples as palavras de Deus para que não haja necessidade de escusar
Ileus ou acusá-lo de iniqüidade. Pois quando diz: "Eu endurecerei o coração
dc Faraó", fala de maneira simples, com se dissesse: "Eu farei com que o co-
ração de Faraó se endureça, ou que se endureça enquanto eu opero e ajo".
.lá ouvimos de que maneira isso acontece: interiormente, acionarei a própria
vontade má por meio de um impulso geral, de modo que prossiga com seu im-
pcto e curso do querer; e não cessarei de acioná-la, nem posso proceder de ou-
iio modo. Exteriormente, porém, apresentarei a palavra e a obra contra a qual
Da Vontade Cativa
aquele impeto mau arremeterá, pois não pode senão querer mal quando acio-
no o próprio mal pelo poder da onipotência. Assim, Deus estava inteiramente
certo - e anunciou de modo certíssimo - de que Faraó devia ser endurecido.
Isso porque Deus estava inteiramente certo de que a vontade de Faraó nem
poderia resistir ã ação da onipotência, nem poderia pôr de lado sua maldade,
nem poderia receber em audiência a Moisés, que lhe fora apresentado como
adversário; mas, como sua vontade continuava sendo má, [Faraó] necessaria-
mente se tornaria pior, mais duro e mais soberbo a medida em que arremetes-
se com seu curso e impeto contra aquilo que não queria e que, confiando em
seu poder, desprezava. Conseqüentemente, vês aqui que também por meio des-
ta palavra se confirma que o livre-arbítrio não pode querer senão o mal; e is-
so no momento em que Deus, que não se engana por ignorância nem mente
por perversidade, prediz tão seguramente o endurecimento de Faraó, obviamen-
te certo de que a vontade má não pode senão querer o mal e de que, quando
lhe é apresentado um bem contrário a ela, não pode senão tornar-se pior.
Resta então que alguém pergunte: por que Deus não renuncia ã própna
ação de onipotência pela qual a vontade dos ímpios é movida a continuar sen-
do má e tornar-se pior? Responda-se: isso significaria desejar que Deus deixe
de ser Deus por causa dos impios no momento mesmo em que desejamos pôr
termo a seu poder e a sua ação, a saber, pedindo que deixe de ser bom a fim
de que aqueles não se tornem piores. E por que não muda ao mesmo tempo
as vontades más movidas por ele? Isto faz parte dos segredos da majestade,
onde seus juizos são incompreensiveis [Rm 11.331. E não nos cabe perguntar
por isso, mas, sim, adorar estes mistérios. Se, neste caso, a carne e o sangue,
sentindo-se ofendidos, vierem a murmurar, que murmurem mesmo; porém,
nada conseguirão: Deus não será mudado por isso. E se os impios, escandaliza-
dos, se retirarem em grande número [Jo 6.661, ainda assim os eleitos permane-
cerão. O mesmo se dirá aos que assim perguntam: por que permitiu que Adão
caisse, e por que cria-nos a todos infectados com o mesmo pecado, já que po-
deria ter preservado aquele e poderia ter-nos criado de outra parte ou de uma
semente previamente purificada? Ele é um Deus para cuja vontade não há ne-
nhuma causa ou razão que lhe seja prescrita como regra e medida; isso porque
nada lhe é igual ou superior, mas ela mesma é a própna regra de todas as coi-
sas. Pois se houvesse qualquer regra, medida, causa ou razão para ela, já não
poderia ser a vontade de Deus. Pois o que ela quer não é correto pelo fato
de que deve ou deveu querer assim.
Antes pelo contrário: porque ele assim quer é que deve ser correto aquilo
que acontece. Prescreve-se causa e razão ã vontade da criatura, mas não a von-
tade do Criador, a não ser que lhe tenhas anteposto outro criador.
Creio que, com isso, a tropóloga Diatribe está suficientemente confutada
com seu tropo; não obstante, voltemos ao próprio texto com o propósito de
ver o quanto concorda com ela mesma e com a figura. Pois é costume de to-
dos os que eludem os argumentos por meio de figuras que, após desprezarem
o próprio texto com valentia, se ocupem unicamente disto: torcemzR7com fi-
guras algum vocábulo posto a parte e crucificam-no com sua opinião sem ne-
nhuma consideração quer das circunstãncias, das palavras que o seguem e pre-
cedem, quer da intenção ou do motivo do autor. Assim, aDiatribe, não se aten-
do nesta passagem aquilo de que trata Moisés ou a direção a que seu discurso
se inclina, arranca do texto a palavrinha "Eu endurecerei" @ela qual se sente
ofendida) e a remodela a seu bel-prazer, não pensando, entretanto, de que ma-
neira deve ser reinserida e readaptada a fim de que quadre com o corpo do tex-
to. E esta é a razão por que a Escritura não é suficientemente clara entre os
homens que por tantos séculos foram os mais aprovados e os mais eruditos.
E não é de admirar, pois nem o sol poderia luzir se atacado com tais artes.
Demonstrei mais acima que não é correto dizer que Faraó foi endurecido por
ter sido tolerado pela brandura de Deus e não ter sido punido imediatamente,
já que foi castigado com tantas pragas. Contudo, deixando isso de lado: que
necessidade havia de que, na ocasião em que os sinais aconteciam, Deus predis-
sesse tantas vezes que haveria de endurecer o coração de Faraó, o qual já an-
tes dos sinais e antes deste endurecimento era tal que, sendo tolerado pela bran-
dura divina e não punido, veio a trazer tantos males sobre os filhos de Israel,
tibalofado pela sorte favorável e pelas riquezas? que necessidade havia, se "en-
durecer" significa "ser tolerado pela brandura divina e não punir imediatamen-
(c"'? E s , portanto, que nesta passagem esta figura é absolutamente inútil pa-
ra a questão. Pois refere-se de um modo geral a todos os que pecam sendo to-
lerados pela brandura divina. Desta maneira, pois, diremos que todos os seres
Iiumanos são endurecidos, já que não há ninguém que não peque, mas que
iiinguém pecaria se não fosse tolerado pela brandura divina. Por conseguinte,
cste endurecimentode Faraó é diferente daquela tolerância geral da brandura divina.
Moisés, ao contrário, não se interessa tanto em proclamar a maldade de
I'araó quanto em proclamar a verdade e a misericórdia de Deus, e isso para
que os filhos de Israel não desconfiassem das promessas de Deus quando pro-
iiicteu que havia de libertá-los. Visto que esta era a causa maior, prediz-lhes a
dificuldade para que não vacilassem na fé, sabendo que tudo isso foi predito
c devia ser assim cumprido por disposição daquele que o prometeu. É como
sc dissesse: Verdadeiramente vos liberto, mas dificilmente ireis crer nisso, a tal
ponto Faraó resistirá e diferirá a questão; mas, não obstante, confiai. Inclusi-
vc tudo isso que ele difere acontecerá mediante obra minha, a fim de que eu
i ; i p tanto mais e maiores milagres para confirmar-vos na fé e para mostrar
iiicu poder, para que depois creiais em mim tanto mais no que se refere a to-
do o resto. Assim também faz Cristo quando na última ceia promete o Reino
:I sciis discípulos: prediz muitíssimas dificuldades, sua própria morte e as mui-
iiis tribulações deles a fim de que, quando tivesse acontecido, crêssem muito

.'H/ Iiilcii, s r i r l c i c ;i iim;i pi';itic;i de toi-1tir;i: ;iiii;ii-r;tv;$-sc ;i vitiliia iii~iii;icrio, <Iciili<>iIc iiiii;i io-
,\
<IA:o l t t c n t i o c m j:irtt<kt, " l ~ ~ v c i ~ l ~ t ":u~:tlt~gkt
. c,mt "cc~!ciV!c:~~ '' cst;í c v i ~ l c ~ ~ l ~ .
mais em seguida288.E Moisés não obscurece o sentido ao dizer: "Faraó, porém,
não vos deixará ir para que muitos sinais aconteçam no Egito" [Êx 3.191. E
novamente: "Para isso mesmo te levantei, para mostrar em ti meu poder e pa-
ra que se anuncie meu nome em toda a terra" [Êx 9.161. Aqui vês que Faraó
se endurece para resistir a Deus e diferir a redenção, pelo que se dá ocasião a
muitos sinais e a uma manifestação do poder de Deus, a fim de que ele seja
anunciado e crido em toda a terra. Isso significa que todas essas coisas são di-
tas e feitas para confirmar a fé e consolar os fracos, para que em seguida creiam
de bom grado em Deus como um Deus verdadeiro, fiel, poderoso e misericor-
dioso. É como se ele falasse de modo extremamente blandicioso a crianças:
Não vos aterrorizeis com a dureza de Faraó, pois até ela é minha obra, e a te-
nho em minha mão, eu, que vos liberto; somente farei uso dela para fazer
muitos sinais e para declarar a minha majestade em favor de vossa fé.
Daí porque Moisés repete após quase cada uma das pragas: "E o coração
de Faraó foi endurecido para que não deixasse ir o povo, assim como falara
o Senhor" [Êx 9.12 e outros]. Para que este "assim como falara o Senhor",
senão para que o Senhor, que predissera que aquele devia endurecer-se, apare-
cesse como veraz? Se aqui havia alguma possibilidade de mudança ou [algu-
ma] liberdade do arbítrio em Faraó que pudesse ter-se voltado para um lado
ou outro, Deus não poderia predizer com tanta certeza seu endurecimento.
Agora, uma vez que aquele que promete não pode nem enganar-se nem men-
tir, havia de acontecer de modo necessário e extremamente certo que Faraó se
endurecesse. Isso não aconteceria se o endurecimento não estivesse ahsoluta-
mente fora do alcance das forças do ser humano e somente no poder de Deus,
do modo como dissemos acima, a saber: que Deus estava certo de que não re-
nunciaria ao exercício geral de sua onipotência em Faraó ou por causa de Fa-
raó, pois nem pode renunciar a ele. Demais, era igualmente certo que a vonta-
de de Faraó, má e aversa por natureza, não poderia consentir com a palavra
e a obra de Deus que lhe era contrária; por isso, como o ímpeto de querer foi
interiormente conservado em Faraó por meio da onipotência de Deus, e co-
mo o enfrentamento com a palavra e a obra contrária a ele foi apresentado
exteriormente, não pôde acontecer em Faraó outra coisa do que a ofensa e o
endurecimento do coração. Pois se Deus tivesse posto de parte em Faraó a
ação de sua onipotência na ocasião em que lhe apresentou a palavra contrária
de Moisés, e caso imaginássemos que a vontade de Faraó atuou unicamente
por meio de sua força, então talvez tivesse havido lugar para debater se ele te-
ria podido inclinar-se para um outro lado. Porém agora, quando é impelido e
arrastado para o querer, certamente não se comete violência contra sua vonta-
de; pois não é forçado contra sua vontade, mas ela é arrastada pelo operar na-
tural de Deus para querer naturalmente tal qual ela é (ela, porém, é má). Por
isso, não pode deixar de arremeter contra a Palavra e assim endurecer-se. Deste
modo vemos que esta passagem luta fortemente contra o Livre-arbítrio pela ra-
zão de que Deus, que promete, não pode mentir. Se contudo não mente, Fa-
raó não pode deixar de endurecer-se.
Mas vejamos também Paulo, que cita esta passagem de Moisés em Rm
9.17. De que forma miserável a Diatribe se contorce nesta passagemzB9!Para
não deixar escapar o livre-arbítrio, volta-se para todas as posições. Ora diz
que há uma necessidade da conseqüência mas não do consequente; ora que
há uma vontade ordenada ou reveladaZ9O,a qual se pode resistir, e uma vonta-
de da resolução, à qual não se pode resistir. Ora as passagens aduzidas de Pau-
lo não discutem, não falam acerca da salvação do ser humano, ora a presciên-
cia de Deus estabelece a necessidade, ora não a estabelece. Ora a graça é preve-
niente a vontade para que ela queira, acompanha-a em seu caminho e dá um
desenlace feliz. Ora a causa primeira faz todas as coisas, ora age por meio de
causas secundárias enquanto que ela mesma permanece quieta. Com esses jo-
guetes verbais e outros semelhantes [a Diatribe] nada faz exceto ganhar tein-
po e afastar, enquanto isso, a questão de nossos olhos, arrastando-a para ou-
tro lado. Considera-nos tão estúpidos e pouco inteligentes, ou tão pouco inte-
ressados pela questão como ela mesma. Ou então age segundo o costume das
crianças, que, quando têm medo ou brincam, tapam os olhos com as mãos:
crêem que não são vistas por ninguém porque elas mesmas não vêem a nin-
guém. Assim a Djatribe, que não suporta os raios, ou melhor, os relâmpagos
das mais claras palavras, faz de conta que não vê o que a questão significa,
com a intenção de, simultaneamente, persuadir-nos para que, com os olhos
vendados, também não vejamos. Mas tudo isso são indícios de um Espírito re-
futado e que reluta as cegas contra a verdade invencivel.
Aquela ficção sobre a necessidade da conseqüência e do conseqüente foi
confutada mais acima"'. Que a Diatribe invente e reinvente, que cavile e reca-
vile o quanto quiser. Se Deus tinha presciência de que Judas haveria de ser o
traidor, Judas tornou-se o traidor necessariamente. E não estava na mão de
Judas ou de qualquer criatura agir de outro modo ou mudar a vontade, embo-
ra tenha feito o que fez por vontade própria, e não forçado; todavia, esse que-
rer era uma obra de Deus movida por sua onipotência assim como também to-
das as outras. Pois fica de pé a sentença invencivel e evidente: Deus não mente
nem se enganaz92.Aqui não há palavras obscuras ou ambíguas, ainda que to-
dos os homens eruditissimos de todos os séculos tivessem sido cegos de modo
que tiveram outras convicções e falaram de outra maneira. E por mais que ter-

289 Diiitnbe, $ 17.


2'XI Orignies: ... nunc ordinatam seu voluntatem si@. Lutero faz referência às palavras de Eras-
iiio: ...sed ordinatae volunfati sive ut scholae vocmt voluntati sjgn' nimirum saepe desistitur.
"Orrlinata volontas" e "voluntas signi" são temos técnicos com que os escolásticos (cf. aciL
it!:in. 224) ilesignavam a vontadc revelada, manifesta, perceptívci por sinais exteriores.
2!)1 <'I'.acima p. 31s.: çf. th. ii. 67 e 68.
L C J Z ( ' CI l h 6.18.
giverses, ainda assim a tua consciência e a de todos, tendo sido refutada, é for-
çada a dizer: se Deus não se engana naquilo de que tem presciência, é necessá-
rio que aconteça aquilo de que teve presciência; de outra forma, quem poderia
crer em suas promessas e quem temeria suas ameaças se o que promete ou
ameaça não se segue necessariamente? E como pode prometer ou ameaçar se
sua presciência se engana ou pode ser impedida por nossa mutabilidade? Evi-
dentemente esta luz muito grande da verdade certa fecha a boca de todos, diri-
me todas as questões e decreta a vitória contra todas as argúcias evasivas.
Sem dúvida sabemos que a presciência dos seres humanos se engana. Sabe-
mos que um eclipse não vem porque é previsto, mas ele é previsto porque há
de vir. Que temos a ver com essa presciência? Debatemos acerca da presciência
de Deus; se não admitiste que ela efetuará necessariamente o que foi pré-sabi-
do, tiraste a fé e o temor de Deus, abalaste todas as promessas e ameaças divi-
nas e negaste até a própria divindade. Mas inclusive a própria Diatribe, embo-
ra se tivesse esforçado por muito tempo e tentado de tudo, finalmente, compe-
lida pela força da verdade, confessa nossa sentença e dizz9? A questão acerca
da vontade e da destinação de Deus é mais difícil. Pois Deus quer aquilo que
sabe de antemão. E é isto que Paulo sugere com: "Quem resiste à sua vonta-
de, se ele tem misericórdia de quem quer e endurece a quem quer?" [Rm
9.18.1 Com efeito, se houvesse um rei que fizesse tudo o que quisesse e ao
qual ninguém pudesse resistir, dir-se-ia que faz tudo o que quer. Assim a von-
tade de Deus, visto que é a causa principal de tudo que aconlece, parece im-
por uma necessidade a nossa vontade. E isso que ela diz.
E, finalmente, damos graças a Deus pela opinião sensata da Diatribe. En-
tão, onde está agora o livre-arbítrio? Mas essa enguia esquiva-se mais uma vez
dizendo subitamente: Paulo, porém, não explica esta questão, mas repreende
a quem debate [sobre ela]: "O homem, quem és tu para que discutas com
Deus?" [Rm 9.20.1 Que belo efúgio! É esta a forma de tratar as Escrituras
Divinas? proferindo opiniões desta maneira, por própria autoridade e de sua
própria cabeça, sem abonações das Escrituras, sem milagres, e até desfigurau-
do as claríssimas palavras de Deus? Paulo não explica aquela questão? Que
faz então? Ela diz que ele repreende a quem debate. Porveutura essa repreen-
são não é a explicação mais completa? Pois que se pretendia com essa questão
sobre a vontade de Deus? Acaso não foi saber se ela impunha uma necessida-
de a nossa vontade? Mas Paulo responde que é assim. Ele diz:"Tem misericór-
dia de quem quer e endurece a quem quer. Não depende do que quer nem do
que corre, mas do Deus que tem misericórdia" [Rm 9.18, 161. E, não conten-
te com ter dado a explicação, introduz além disso aqueles que murmuram con-
. -
. em favor do livre-arbítrio e aue tagarelam aue não há méri-
tra esta exulicacão
tos, que não somos condenados por culpa nossa e coisas do gênero; isso faz
a fim de conter seus murmúrios e indignação dizendo: E assim me dizes: "De que
IIa Vontade Cativa

se queixa ele ainda? Quem resiste a sua vontade?" [Rm 9.19.1 Vês que se em-
presta voz a outras pessoas? Essas, após terem ouvido que a vontade de Deus
rios impõe uma necessidade, murrnuram e dizem blasfemando: De que se qiiei-
s a ele ainda? Ou seja: por que Deus insta, insiste, exige e se queixa desta ma-
neira? Por que acusa? De que nos incrimina? Como se nós, seres humanos,
i'ôssemos capazes, se quiséssemos, daquilo que ele exige! Ele iião tem motivo
justo para essa queixa; antes, que acuse sua própria vontade, que lá se queixe
c lá insista. Pois quem resiste a sua vontade? Quem obtém iiusericórdia se ele
nXo quiser? Quem amolece se ele quer endurecer? Não está em nossas mãos
mudar sua vontade, muito menos resistir-lhe; esta vontade nos quer endureci-
dos e por ela soinos forçados a ser endurecidos, queiramos ou nSo.
Se Paulo não tivesse explicado esta questão ou não tivesse definido irrevo-
gavelmente que a necessidade nos é imposta pela presciência divina, por que
lhe era necessário introduzir aqueles que inurmuram e pleiteiam que não se po-
de resistir a sua vontade? Pois quem murmuraria ou se indignaria se não fos-
se da opinião de que aquela vontade está definida? As palavras coni que ele
fala sobre resistir a vontade de Deus não são obscuras. Acaso é aiiibíguo o
qiie significa "resistir", o que significa "vontade" ou aquilo acerca de que ele
liila ao falar da vontade de Deus? Que fiquem cegos aqui os inumeriveis nii-
Iliares de doutores experiinentadissimos, que inventem que as Escritiiras não
\%o claras e que se apavorein diante de uma questão difícil. Nós tenios pala-
vias clarissimas que rezani assini: "'Cem rnisericórida de quem quer e endure-
i:c a quem quer". E também: "E assim me dizes: De que ele se queixa? Quem
resiste a sua vontade?" E esta questão não é difícil; ao coiitrário, nada é mais
'icil,
'
até iiiesrno para o senso comum, do que dar-se conta de que esta inferên-
cia é certa, sólida e verdadeira: se Deus tem presciência de algo, isso acontece
iiecessariamente no momento em qiie tivermos pressuposto, a partir das Escri-
liiras, que Deus não erra nem se engana.
Na verdade confesso que a questão é difícil, e até impossivel, se queres es-
tabelecer ao mesmo tempo ambas as coisas, a presciência de Deus e a liberda-
de do ser humano. Pois o que é mais difícil, e até mais impossível, do que sus-
iciitares que coisas contrárias ou contraditórias não se opõem, ou que um nú-
iiiero qualquer seja simultaneamente dez e nove? A dificuldade não está em
iiossa questão, mas é buscada e introduzida do mesmo modo que se busca e
s i introduz violentamente a ambigüidade e a obscuridade nas Escritiiras. Por
csla razão ele refreia os ímpios, os quais se ofendiam com essas palavras claris-
siiiias porque percebiam que a vontade divina se cumpre estando nós sob a ne-
~tssidadee percebiam que está irrevogavelmente definido que nada llies resta
< l i liberdade ou de livre-arbítrio, mas que tudo depende apenas da voiitade de
I )cii\. Refrcia-os, poréni, ordenando-lhes que se caiem e reverenciem a majesra-
clc do poder e da vontade divina em relação a qual não temos nenhuni direito,
iii;is qiic. eiii relação a nós, tem pleno direito de fazer o que quiser. E a nós
ii;io \c kiz qiialqiier injustiça, pois Deus nZo nos deve nada, liada recebeu de
iihs c ii;i~I;i proriicteii ulkin do quc quis c Ihc agradou.
Da Vontade Cativa
Por conseguinte, este & o lugar e o tempo de adorar não aquelas grntas
de C o r i ~ i omas
~~~ a verdadeira
, majestade em suas temíveis maravilhas e inconi-
preensiveis juizos, e de dizer: "Faça-se tua vontade, assim como no cbu tam-
bém na terra" [Mt 6.101. Nós, porém, em nenhum lugar somos mais irreveren-
tes e teinerarios do que quando penetramos e aciisainos esses mesmos misté-
rios e juizos ininvestigáveis; entrementes, contudo, siiiiulanios unia incrível re-
verência ao escrutarmos as Santas Escrituras que Deus nos ordenou escrutarzgs.
Aqui não escrutainos; lá, porém, onde proibiu que escrutássemos, não faze-
mos nada exceto escrutar com continua temeridade, para não dizer blasfêmia.
Porventura não é um escrutar temerário envidar esforços para que a presciên-
cia libérrima de Deus concorde com nossa liberdade, dispostos com isso a der-
rogar a presciência de Deus se não nos conceder a liberdade ou se impuser a
necessidade de dizer com os murmuradores e blasfemadores: De que ele se quei-
xa ainda? Quem resiste a sua vontade? Onde está o Deus clemeniissimo por
natureza? Onde está o que não quer a morte do pecador? Acaso nos criou pa-
ra deleitar-se com os tormentos dos seres humanos? Estas perguntas e outras
semelhantes serão eternamente uivadas nos infernos e entre os condenados.
Mas a própria razão natural é forçada a confessar que o Deus vivo e ver-
dadeiro precisa ser tal que nos imponha a necessidade por meio de sua liberda-
de, pois certamente seria um Deus ridículo - ou melhor: um idolo - aquele
que previsse de modo incerto o que há de acontecer ou que fosse enganado
pelos eventos, já que até os gentios concederam aos seus deuses um "destino
iiielutável". Ele seria igualmente ridículo se não pudesse e não fizesse todas
as coisas, ou se algo acontecesse sem ele. Porém, admitidas a presciência e a
onipotência, segue-se naturalmente, por meio de uma conseqiiência lógica irre-
sistivel, que nos não fomos feitos por nós mesmos, e não vivemos nem faze-
mos coisa alguma que não [ocorra] através de sua onipotência. Mas já que ele
pré-soube anteriormente que haveríamos de ser tais como somos, e agora nos
faz, move e governa como tais, eu te pergunto: o que se pode imaginar em
nós que seja livre, que seja diferente e que aconteça de modo diferente do que
ele pré-soube e agora faz? Por isso, a presciência e a onipotência de Deus
opõem-se diametralmente ao nosso livre-arbítrio. Pois ou Deus se enganará
em sua presciência e errará também ao agir (o que é impossível), ou nós agire-
mos e seremos conduzidos segundo a sua presciência e ação. Todavia, não cha-
mo de onipotência de Deus aquela onipotência pela qual ele não faz muitas
coisas de que é capaz, mas, sim, aquela [onipotência] ativa, pela qual faz pode-
rosamente tudo em tudo, da maneira como a Escritura o chama onipoteiite.
Digo que esta onipotêricia e presciência de Deus abolem completamente o dog-
ma do livre-arbítrio. E aqui não se pode pretextar a obscuridade da Escritura
ou a dificuldade do assunto. As palavras são clarissimas, conhecidas até por
meninos. O assunto é evidente e fácil, examinado até mesmo pelo juizo tiatu-

294 Cf. acima 11. 52. 295 Cf. Jo 5.39.

137
1.21 do senso comum, de modo que nada importa, por maior que seja a série
iIc séculos, tempos e pessoas que escrevem ou ensinam de outra maneira.
Naturalmente, ofende no mais alto grau aquele senso comum ou razão na-
iiiral de que Deus, por sua mera vontade, abandone, endureça e condene os
seres humanos, como se encontrasse deleite nos pecados e nos tão grandes e
eternos tormentos dos miseros, [logo] ele, de quem se prega que possui tama-
nha misericórdia e bondade, etc. Ter tal opinião acerca de Deus pareceu iníquo,
cruel e intolerável; por isso também se ofenderam tantos e tão grandes ho-
iiiens por tantos séculos. E quem não se ofenderia? Eu mesmo me ofendi mais
que uma vez até a profundeza e o abismo do desespero, de sorte que desejei
janiais ter sido criado como ser h ~ m a n dantes ~ ~ que soubesse quão salutar
aquele desespero seria, e quão próximo da graça. Foi por isso que se suou e
iiabalhou tanto a fim de escusar a bondade de Deus e acusar a vontade do ser
humano; ai foram inventadas as distinções entre vontade ordenada e vontade
;ibsoluta de Deus297,entre necessidade da conseqüência e necessidade do conse-
qüente, e muitas outras semelhantes. Contudo, com essas coisas nada se obte-
ve exceto lograr os incultos com a inânia das palavras e a oposição daquilo
qiic e falsamente chamado de ciência. Entretanto, quer para os incultos quer
Ixiia os eruditos, permaneceu sempre cravado no fundo do coração - quan-
i111porventura se chegava a tratar seriamente do assunto - aquele acúleo quan-
i111percebiani nossa necessidade ao se crer na presciência e na onipotência de Deus.
E a própriarazáo natural, que se sente chocada por essa necessidade e tan-
[ < I sc esforça por suprimi-la, é forçada a admiti-la, convencida por seu próprio
iiiizo, ainda que não houvesse Escritora algunia. Pois todos os seres humanos
ciicontram este pensamento escrito em seus corações, e o reconhecem e apro-
vaili (mesmo que contra sua vontade) quando ouvem falar dele: primeiro, que
I>eiis é onipotente não só segundo o poder, mas também segundo a ação (co-
iiio eu já disse); de outra maneira seria um Deus ridiculo. Segundo, que ele co-
iilicce e tem presciência de todas as coisas, e que não pode errar nem enganar-
sc. Uma vez admitidos a t e s dois pontos no coração e no entendimento de to-
dos, são forçados a admitir imediatamente, mediante uma conclusão inevitá-
vcl, qiie nós não fomos feitos por nossa vontade, mas por necessidade; e assim,
qiic nós não fazemos coisa alguma por causa do direito do livre-arbítrio, mas
conforiiie a presciência de Deus e conforme conduz de acordo com [seu] conse-
1110 e podei- infaiível e imutável. Por isso, acha-se simultaneamente escrito nos
corações de todos que o livre-arbítrio nada é, ainda que isso seja obscurecido
]por tantos debates contrários e pela tão grande autoridade de tantos homens
qiic por tantos séculos ensinaram de maneira diferente. O mesmo também ocor-
i c (conforme o testemunho de com toda a outra lei em nossos cora-
<<~es: é reconhecida quando tratada de modo correto, e obscurecida quando
iii:iltrntada por mestres impios ou tomada por outras opiniões.
Da Vontade Cativa
Volto a Paulo. Se ele não explica a questão em Rm 9 e nem define a ne-
cessidade a que estamos ligados a partir da presciência e da vontade de Deus,
por que lhe seria necessário introduzir a analogia do oleiro299,que de um e o
mesmo barro faz um vaso para a honra e o outro para a desonra? E não obs-
tante, a obra não diz ao que a faz: por que me fazes assim? Isso porque ele
fala sobre os seres humanos, comparando-os ao barro e Deus ao oleiro. A ana-
logia é sem dúvida tímida, e até absurda e aduzida em vão, se ele não compar-
tilha a opinião de que nossa Liberdade é nula. E o que é mais: todo o debate
de Paulo, com o qual defende a graça, é inútil. Pois toda a epístola teni por
alvo mostrar que não somos capazes de nada, nem mesmo quando pareceiiios
obrar bem; é como ela diz, na niesma passagem, a respeito de Israel, que, ao
perseguir a justiça, não a alcançou, ao passo que os gentios a alcançaram seni
a perseguirim. Tratarei disso mais extensamente quando fizer avançar nossas
tropas.301
Mas a Diatribe finge não ver todo o corpo d o debate paulino e a direção
para a qual Paulo tende, consolando-se entrementes com palavras tiradas [do
contexto] e distorcidas. Tampouco em nada auxilia a Diatribe o fato de que
posteriormente, em Rm 11.20, Paulo de novo exorte dizendo: "Estás de pé pe-
la fé; vê que não te ensoberbeças"; e, semelhantemente: "Também aqueles,
se tiverem crido, serão enxertados" [11.23], etc. Pois ali ele nada diz acerca
das forças dos seres humanos, e, sim, pronuncia palavras imperativas e subjun-
tivas; e o que é feito por estas foi suficientemente dito acima302. E o próprio
Paulo se adianta, nesta mesma passagem, aos que gabam o livre-arbítrio: não
diz que aqueles podem crer, mas diz que Deus é poderoso para enxertá-los.
Resumindo: ao tratar estas passagens de Paulo, a Diatribe procede de forma
tão tímida e hesitante que em sua consciência parece divergir de suas próprias
palavras. Pois quando ela deveria ter prosseguido acima de tudo e aduzido pro-
vas, quase sempre interrompe o discurso dizendo: "Mas que isso seja suficien-
te acerca destas coisas"; ou: "Agora não examinarei aquilo"; ou: "Não faz
parte do propósito [desta obra]"; ou: "Aqueles diriam assim". E diz muitas
outras coisas similares, deixando a questão em dúvida, de modo que não sa-
bes se ela quis dar a impressão de falar em favor do livre-arbítrio ou apenas
de eludir Paulo com palavras inanes, seguindo nisso sua lei e costume pelo fa-
to de que para ela inexiste um problema sério neste pleito. A nós, porém, não
lios convém ser frios desta maneira, andar sobre ovos ou ser agitados pelos
ventos como uma cana, mas, sim, fazer asserções com certeza, constância e
ardor, e então demonstrar de maneira sólida, destra e copiosa aquilo que ensinamos.

299 Cf. Rm 9.205.


300 Cf. Rm 9.305.
301 AS "tropas" são OS argumentos que Lutera vai apresentar na terceira parte desta obra (cf. abai-
no pp. 154~s.).
102 Cf. acima pp. R4s.
!>;i Vonlade Cativa
Mas quão belamente ela conserva agora a liberdade ao mesmo tempo que
ti iiecessidade quando diz: "Nem toda necessidade exclui a vontade livre, assim
corno Deus Pai gera o Filho necessariamente e, n i o obstante, o gera porque
quer e livremente, pois não foi coagido"303. Peço-te: porventura debatemos
agora acerca da coação e da força? Acaso não testemunhamos em tantos li-
vros que estamos a falar sobre a necessidade d a imutabilidade? Sabemos que
o Pai gera o Filho porque qiier, que Judas entregou a Cristo porque quis; mas
dizemos que, se Deus teve presciência, este querer teve de existir no próprio
.ludas de maneira certa e infalivel. Ou, se ainda não se coinpreende o que di-
go. queremos referir unia necessidade obrigatória a obra e uma outra necessi-
dade infalível ao t e m ~ Que ~ . que nos ouve compreenda que estamos
~ ~aquele
falando acerca da última, e não da primeira; ou seja: não debatemos se Jiidas
tornou-se traidor contra a própria vontade ou por querer, mas se, após Deus
lcr predefinido o tempo, foi necessário acontecer infalivelmente que Judas en-
tregasse a Cristo por querer. Vê, porém, o que a Diafribe3" diz a respeito: "Se
olhas para a presciência infalível de Deus, Judas havia necessariamente de ser
iraidor; e, iião obstante, Judas podia ter mudado sua vontade". Compreendes
também o que falas, cara Diatribe? Deixando de lado o fato de que a vonta-
cIc rião pode senão querer o mal, como se provou acima: como pôde Judas
iiiiidar sua vontade ficando de pé a infalível presciência de Deus? Acaso pôde
tiiudar a presciência de Deus e torná-la falível? Aqui a Diatribe sucumbe; e,
ilepois de ter abandonado os estandartes e deposto as armas, retira-se do cam-
po de batalha remetendo o debate para as sutilezas escolásticas concernentes
:i necessidade da conseqüência e do con~equente"~,como quem não quer se-
giiir essas argúcias até o fini. Certamente ages com priidência quando, após
icres levado a causa para um debate tumultuado e no niomento em que mais
i. necessário um debatedor, voltas as costas e deixas a outros a tarefa de res-
ponder e definir.
Esse conselho deveria ter sido seguido desde o inicio, abstendo-se totalmen-
tc de escrever, conforme o dito: "Quem não sabe lutar, abstenha-se dos jogos
iriarciais"3'J'. Pois não se esperava que Erasmo fosse provocar essa dificulda-
de relativa ao modo com que Deus poderia ter presciência com certeza, e, não
ohstante, nossas ações poderiam produzir-se de maneira contingente. Esta difi-
ciildade estava no mundo muito antes da Diatnbe. Contudo, esperava-se que
;I respondesse e definisse. Mas ele, tendo usado uma transição retórica, arrasta

1111 ilintribe, 6 17.


!li4 l~rigciiçs:Aliarn ~ccessitateinviolentam ad opu.5, aliam necessitatem i~fallihilcrrind icn~pzi.%
r.~
ii.i;iiiiiis. Também scrid possivel traduzir: Mencioiiaremos uma necessidade qiic obriga :i ioI>i;i
c i i i i i i ; i necessidade quc acontece infdivelrneiitc a seu tempo.
305 f)i;~lril>c, # 17,
lin, 1'1. ;\ci~o:i11. 68.
!li7 I I i i i : i i i i , . !>i' ;iiic ,x>ni~,;c.170.
Da Vontade Cativa
consigo a nós que somos ignorantes na retórica como se aqui não estivesse
em jogo coisa alguma sobre a questão, e como se meramente houvesse certas
argúcias; retira-se corajosamente do meio do tumulto da luta, coroado de he-
ra e louro.
Assim não dá, irmão! Nenhuma retórica basta para enganar uma consciên-
cia verdadeira; o acúleo da consciência é mais foste que todas as forças e figu-
ras da eloqüência. Não toleraremos aqui que o retórico passe de largo [por es-
sa questão] e dissimule; neste momento não há lugar para tal atitude. Aqui se
ataca o ponto principal dos assuntos e o essencial da questão. E aqui ou se ex-
tingue o livre-arbítrio ou ele triunfará de todo. Tu, porém, percebendo o peri-
go e até a vitória certa contra o livre-arbítrio, simiilas não perceber nada exce-
to argúcias. Acaso isso significa agir como teólogo confiável? A questão não
te afeta seriamente? A ti, que desta maneira deixas os ouvintes em suspenso e
o debate confuso e inflamado, querendo, entretanto, causar a impressão de
que deste satisfação honestamente e levaste a palma? Em questões profanas,
esta manha e astúcia pode ser tolerada; em um assunto teológico, porém, on-
de se busca a simples e aberta verdade em favor da salvação das almas, ela é
extremamente odiosa e intolerável.
Tdmbéin os sofistas308perceberam a força invencível e irresistivel deste argu-
mento; por isso inventaram a necessidade da conseqüência e do consequente.
Contudo, ensinamos acima3m como esta invenção nada efetua. Pois tampou-
co eles observam o que dizem e o quanto admitem contra si próprios. Pois se
admitires a necessidade da conseqüência, está vencido e prostrado o livre-arbi-
trio, e de nada ajuda a necessidade nem a contingência do consequente. Que
me importa se o livre-arbítrio não é coagido, mas faz o que faz de acordo com
a vontade? Para mim é suficiente que admitas isto: há de acontecer necessaria-
mente que ele faça o que faz de acordo com a vontade, e não pode ser diferen-
te se Deus teve presciência disso, Se Deus tem presciência de que Judas comele-
rá traição ou que mudará sua vontade de trair, acontecerá necessariamente aqui-
lo de que ele teve presciência; ou Deus se enganará em sua presciência e predi-
zer, o que é impossível. Pois é isso que realiza a necessidade da conseqüência;
isto é: se Deus tem presciência, isso acontece necessariamente. Ou seja: o livre-
arbítrio nada é. Esta necessidade da consequência não é obscura nem ambígua,
de modo que, ainda que os doutores de todos os séculos sejam cegos, são toda-
via forçados a admiti-la, pois ela é de tal modo evidente e cesta que se pode
apalpá-la. Mas a necessidade do consequente, com a qual se consolam, é um
mero fantasma, e opõe-se diametralmente a necessidade da conseqüência. Ha-
verá por exemplo uma necessidade da conseqüência se eu tiver dito: Deus te-
ve presciência de que Judas cometeria traição, portanto acontecerá segura e in-
falivelmente que Judas será traidor. Diante desta necessidade e conseqüên-

308 Soli.9tas: cf. acima n. 191


309 c'f. i>. 31s. c LI. 67 c 68
I>a Vontade Cativa
cia, tu te consolas assim: visto que Judas pode mudar sua vontade de trair,
ii5o há necessidade do consequente. Como, eu te pergunto, se coadunam essas
duas afirmações: Judas pode não querer trair e: é necessário que Judas quei-
i-a trair? Dizes que ele não será coagido a trair contra sua vontade. Que tem
i1 ver isso com o problema? Tu falaste acerca da necessidade do consequente,
a saber, que aquela não é introduzida pela necessidade da conseqüência; não
disseste nada sobre a coação do consequente. A resposta relacionava-se com
a necessidade do consequente e tu apresentas um exemplo sobre a coação do
conseqüente. Pergunto uma coisa e tu respondes outra. O motivo disso é aque-
la oscitação por causa da qual deixa-se de observar como essa ficção da neces-
sidade do consequente nada efetua.
Isso sobre a primeira passagem, que versou sobre o endurecimento de Fa-
i-aó e que todavia envolve todas as passagens e muitas tropas, por sinal inven-
cíveis. Vejamos agora a outra passagem, referente a Esaú e Jacó, dos quais an-
tes mesmo de terem nascido se disse: "O mais velho servirá ao mais moço"
[Gn 25.231. ADiatribe elude esta passagem dizendo que "ela não se refere pro-
priamente a salvação do ser humano, pois Deus pode querer que o ser huma-
iio seja servo ou pobre, quer este queira ou não, e que ainda assim não seja
cxcluido da salvação eterna3Io.Vê, peço-te, quantos rodeios e efúgios procura
iiin espírito escorregadio e que foge da verdade! E contudo não consegue esca-
par. Certo, que seja assim, que aquela passagem não se refira a salvação do
scr humano; sobre isso falaremos abaixo. Acaso por isso Paulo, que cita aque-
la passagem31', não realiza nada? Tornaremos Paulo ridículo ou inepto em
iim debate tão sério? Mas isso é típico de Jerônimox2, que em mais de um lu-
gar ousa dizer, de maneira bastante superciliosa mas simultaneamente com bo-
ca sacrilega, que há coisas que para Paulo são contraditórias, mas que em
scus respectivos contextos não o são3L3.Isto significa apenas dizer: Paulo, ao
estabelecer os fundamentos do dogma cristão, nada faz senão deturpar as Es-
crituras Divinas e enganar as almas dos crentes mediante uma opinião produzi-
da em seu próprio cérebro e imposta as Escrituras com violência. E assim que
sc deve honrar o Espírito naquele instrumento santo e eleito de Deus, Paulo.
I; onde se deve ler a Jerônimo com discernimento e enumerar este seu dito en-
irc as muitas coisas ímpias que esse homem escreve (tal foi sua oscitação e em-
Iiolamento na compreensão das Escrituras), a Diatnbe apropria-se dele sem
<liscernimentoe não se digna nem ao menos mitigá-lo com alguma glosa, mas
jiilga e adapta as Escrituras Divinas por meio dele como se fosse um oráculo
ci~rtíssimo.Assim aceitamos os ditos ímpios dos homens como regras e medidas da

I 1 0 I)i;iiiihe, .V 19.
111 ('S. R i i i 9.12.
117, .Icifiiiii~i<i,çS. acima i i . 267.
11 I (111,:ciics: 1.i r~iigr~aic;q>ir<iliriiliirn, yiisc loci.7 suis iinr?pugnoiit. Sc tomarmos piigrliue no sen-
iiilir iIc "Iiii;ii ;i I;iv<ri <!c ;ilgc>", ;i lqa<liiç5o ~r,dcri;isçr t;irnhéi~i: Há coisasque, cm seti prci-
iii i i i l i l r r t o . c r i i i \ ~ i ~ i i c i~pr<?vas,
ii xnit'. ~pitl.:~l'i11110 sH<>C«III~IC>VIIIIICC.
Oa \'otil;ale Cativa
que Paulo seja manchado pelas calúnias dos sacrílegos). Pois assim reza o ora-
culo em Moisés: "Dois povos se dividirão de teu ventre; iim povo será supe-
rior ao outro povo, e o mais velho servirá ao mais moço" [Gn 25.231. Aqui
são claramente distinguidos dois povos. Um é recebido na graça de Deus
embora seja mais moqo - para vencer o mais velho, seguramente não por
-
suas próprias forças, inas pelo favorecimento de Deus. De outro modo, como
o mais moso pode vencer o mais velho se Deus não está coni ele? Por conse-
guinte, visto que o inais moço há de ser o povo de Deiis: não se trata ali ape-
nas do senhorio oii da servidão externa, mas de todas as coisas pertinentes ao
povo de Deus, isto é' da bênção, da palavra, do Espírito, da promessa de Cris-
to e do reino eterno, o que a Escritura posteriormente confirma de maneira
ainda mais ainpla quando descreve que Jacó é bendito e recebe as promessas
e o reino. Paulo indica tudo isso brevemente quando diz que o mais velho há
de servir ao mais moço. remetendo-nos a Moisés, que trata disso de modo
mais amplo, para que possas dizer contra a opinião sacrílega de Jerônimo e
da Diatribe que as passagens aduzidas por Paulo (quaisquer que ,sejam) sejam
iiiais contraditórias em seus contextos originais do que r~ele~~"sc.em Paulo].
Isso não é verdadeiro apenas no que tange a Paulo, mas no tocante a todos
o apóstolos que aduzem as Escrituras como testemunhas e defensoras de seu
ipróprio discurso. Seria, porém, ridículo aduzir como testemunho aquilo que
iiada testemunha nem 6 de proveito para o assunto. Pois se entre os filósofos
\ão ridículos os que provam o desconhecido mediante algo mais desconhecido
i~u mediante algo não pertinente, com que cara nós atribuiremos isso aos iiiais
clcvados guias e aiitores da doutrina cristã (da qual depende a salvação das al-
inas), principalmente onde ensirirun aquelas coisas que são pontos capitais da
I&?Mas isso fica bem aos que não são seriamente comovidos pelas Escrituras
Divinas.
Mas ela distorce com tríplice engenho aquela passagem de Malaquias acres-
centada por Paulo, a saber: "Amei Jacó, mas tive ódio de Esaú" [Rm 9.13;
MI I.2s.l. O primeiro é: "Se insistes na letra", diz ela, "Deus não ama do
modo que nós amamos nem odeia a ninguém, pois a Deiis não cabem afetos
de tal natureza". Que ouso? Acaso se pergunta agora como Deus ama e odeia,
c não antes por que ama e odeia'? Pergunta-se a partir de que mérito nosso ele
arna ou odeia. Sabemos muito bem que Deus não ama ou odeia como nós,
pois nós arnamos e odiamos de modo mutável, ao passo que ele ama e odeia
dc acordo com [sua] natureza eterna e imutável, a tal ponto que não lhe cabem
;icideiites e afetos. E é isso mesmo que deiiionstra de modo concludente que
o livre-arbítrio é iiulo, pois O ainor de Deus é eterno e imutavel e [seu] ódio
contra os hoiiiens é eterno antes que se fizesse o iiiundo. não só anteriormen-
l i . ao iii6rito e a obra do livre-arbítrio; e tudo acontece em tiós iiecessariameii-
te, dependendo se ele ama ou não ama desde a eternidade, de sorte que não
só o amor de Deus, mas também [seu] modo de ama- nos acarreta uma neces-
sidade. Vês, assim, como servem àDiatribe seus efúgios, de maneira que, quan-
to mais se esforça por escapar, [tanto] mais arremete por toda parte; por isso,
não alcança sucesso ao resistir a verdade. Mas que seja que ali a figura tenha
validade, de sorte que o 'amor de Deus seja efeito do amor, e o ódio de Deus
seja efeito do ódio. Porventura esses efeitos ocorrem sem a vontade de Deus
e ao lado dela? Acaso aqui também dizes que Deus não quer como nós e que
não lhe cabe o afeto do querer? Por conseguinte, se esses efeitos ocorrem, não
ocorrem a não ser que Deus queira. Além disso, aquilo que Deus quer ou ele
o aina ou o odeia. Portanto responde: a partir de que mérito Jacó é amado e
Esaú odiado antes de nascerem e realizarem obras? Logo, Paulo fica de pé
ao introduzir muito bem a Malaquias em favor da opinião de Moisés, a saber:
que [Deus] chamou a Jacó antes que nascesse, por tê-lo amado, mas que não
foi amado primeiro por Jacó ou comovido por algum mérito seu a fim de que
eni Jacó e Esaú se mostrasse do que é capaz nosso livre-arbítrio.
O outro engenho é?" que "Malaquias não parece f a i a sobre o ódio ])elo
qual somos condenados para sempre, e, sim, sobre a aflição temporária, pois
são repreendidos os que queriam construir Edom" [MI 1.4). Isto novamente é
dito para injuriar a Paulo, como se ele tivesse feito violência As Escrituras.
Desta forma não reverenciamos absolutamente a majestade do Espírito Santo,
apeiias para estatiiir o que é nosso. Mas tolereinos por enquanto esta iiijúria
e vejamos o que consegue. Maiaquias fala %obrea aflição temporal. E daí?
011 que tem isto a ver com o assunto? Paulo prova baseado em Malaquias
que aquela aflição foi imposta a Esaú sem mérito e somente pelo ódio de
Deus, de modo que conclui que o livre-arbítrio nada é. Aqui estás sendo pres-
sionado, aqui era necessário receber resposta. Nós debatemos acerca do méri-
to, tu falas sobre a recompensa; e falas de tal maneira que não coiisegues, Lo-
davia, eludir o que quiseste. Ao contrário: quando falas sobre a recompensa,
reconheces o mérito. Mas finges não ver isso. Portanto diz: qiial foi o motivo
para Deus amar a Jacó e ter ódio de Esaú quando aqueles ainda não existiam?
Ora, também é falso [sustentar] que Malaquias fala somente sobre a aflição
temporária3'" nem é sua intenção falar sobre a destruição de Edom. Com es-
te engenho pervertes todo o modo de ver do profeta. O profeta indica suficien-
temente e com palavras clarissimas o que quer, a saber: reprova a ingratidão
dos israelitas, pois embora [Deus] os tenha amado, eles por sua vez não o
amam como Pai nem o temem como Senhor. Ele, porém, prova que amou tan-
to por meio da Escritura como por meio da obra, a saber: embora Jacó e
Esau fossem irniãos, como Moisés escreve em Gn 25, ele todavia amou e ele-

317 0i;irrihe. $ 19.


31X T~.ilvo a inleric;io iciihn sida escrever: tempordia afflicrn>ne em vez de remporaria, em analogia
geu a Jacó antes que nascesse, como foi dito há pouco, mas odiou a Esaú a
tal ponto que reduziu seu território a lugar ermo. A seguir odeia e prossegue
com tal pertinácia que, enquanto reconduz a Jacó do cativeiro e o restabelece,
todavia não permite que os idumeus sejam restabelecidos, mas, ainda que te-
nham dito que querem construir, ele mesmo os ameaça de destruição. Que to-
do o mundo me acuse de mentiroso se o próprio texto manifesto do profeta
niio contém isso! Por conseguinte, não se repreende aqui a temeridade dos idu-
meus, mas, sim, (como eu disse) a ingratidão dos filhos de Jacó, que não vêem
o que ele lhes confere e o que retira de seus irmãos idumeus sem qualquer mo-
tivo, a não ser porque aqui odeia e ali ama. Como ficará agora de pé aquilo
que o profeta fala sobre a aflição já que ele testemunha com
palavras evidentes que se fala acerca de dois povos nascidos de dois patriar-
cas, aquele aceito como povo e conservado, este porém abandonado e final-
mente destrnído? Mas aceitar como povo e não aceitar como povo não diz res-
peito apenas aos bens ou males temporais, mas a todas as coisas. Pois nosso
Deus não é somente um Deus das coisas temporais, e, sim, de todas as coisas.
'Tampouco quer ser Deus para ti ou ser adorado com meio ombro ou com pé
claudicante320, mas com todas as forças e de todo coração, de maneira que se-
ja Deus para ti tanto aqui como no futuro, e em todas as coisas, casos, tem-
pos e obras.
O terceiro engenho [consiste em dizer1 que, de acordo com o significado
ti-opológico, ele [Deus] não ama a todos os gentios nem odeia a todos os ju-
deus, mas, sim, alguns de ambos os povos. "Por esta tropologia chega-se à
conclusão", diz ela32',"que este testemunho absolutamente não serve para pro-
var a necessidade, e, sim, para repelir a arrogância dos judeus." Depois de
aberto este caminho, a Diatribe se evade então para lá, a ponto de dizer que
Deus odiou os ainda não nascidos porque tinha presciência de que esses iriam
fazer coisas dignas de ódio; assim, o ódio e o amor de Deus em nada contradi-
zem a liberdade do arbítrio. Por fim, conclui que Os judeus foram cortados
da oliveira por causa da incredulidade e que os gentios foram enxertados pelo
mérito da fé, e - segundo o parecer de Paulo322- dá aos cortados a esperan-
ça de serem reenxertados, e aos enxertados o receio de serem cortados.
Quero morrer se a própria Diatribe compreende o que fala. Mas talvez tain-
I~émaqui haja uma figura de retórica que ensina a obscurecer o significado sc
i~lguEmcorre perigo de ser tomado pela palavra. Nós não vemos quaisquer tro-
pologias nesta passagem, tropologias que a Diatribe Sonha para si mesma c
1130prova; por isso, não é de admirar se o testemunho de Malaquias não sc
opiic a ela em [seu] significado tropológico, o qual precisamente não existc.
Albm disso, n6s não debatemos sobre cortar e enxertar de que Paulo fala nas
cxortações. Sabemos que os homens são enxertados pela fé e cortados pcln

11') Vidç i i . aiiiirioi.


1211 <'I'. 1 I<* 18.21
Da Vontade Cativa
incredulidade, e que devem ser exortados a crer a fim de que não sejam corta-
dos. Mas daí não se segue nem se prova que eles são capazes de crer ou des-
crer pela força do livre-arbítrio, do qual nós estamos a tratar. Não debatemos
sobre quem são os crentes e quem não, quem os judeus e quem os gentios, o
que se segue aos crentes e descrentes; isto cabe ao exortador. Antes, debate-
iiios sobre o seguinte: a partir de que mérito e de que obra chegam a fé pela
I qual são enxertados ou a incredulidade pela qual são cortados; isso cabe ao
rliie ensina. Descreve-nos este mérito! Paulo ensina que ele não acontece por
:ilguma obra nossa, mas somente pelo amor e pelo ódio de Deus. Mas onde
tiver acontecido, ele exorta para que perseverem e não sejam cortados. Contu-
do, a exortação não prova o que podemos, e, sim, o que devemos. Sou força-
ilo a conter o adversário quase com mais palavras para que não divague em
~lireçãoa outro assunto após abandonar a questão, do que para tratar da pró-
pria questão. Isso muito embora tê-lo retido no escopo do assunto signifique
15-lovencido, tão claras e invencíveis são as palavras; e por isso ele não faz
qiiase nada exceto desviar-se delas e escapar do conspecto ocupando-se de al-
!:i)diferente do que havia estabelecido.
A terceira passagem ele toma de Isaías 45.9: "Acaso o barro diz a seu olei-
ro: que fazes?" Também Jeremias 18.6: "Assim como o barro na mão do olei-
ro, assim [sois] vós em minha mão". Mais uma vez [a Diatribe] diz que estas
p:issagens são mais contraditórias em Paulo do que nos profetas323(de onde
5:1t1tomadas), já que nos profetas são emitidas com respeito a aflição tempo-
I :iI, ao passo que Paulo as usa em relação a eleição e reprovação eterna3"; des-
i ; i iiianeira, ela difama a temeridade ou ignorância de Paulo. Mas, antes de
vciiiios de que maneira ela prova que ambas [as passagens] não excluem o li-
vic-;irbítrio, direi primeiramente isto: não parece que Paulo tenha tomado es-
i ; i ixissagem dos profetas, nem a Diatiibe prova isso. Pois Paulo costuma acres-
e.i.iiini. o nome do autor ou declarar que assume algo das Escrituras; aqui não
I:II iicnhuma dessas coisas. Por isso, é mais acertado dizer que Paulo faz uso
1 <Irsi;ianalogia geral - usada por outros para outras causas - segundo [seu]

I
i~iii~ii-io espírito para sua causa, da mesma maneira que faz com esta analogia:'
' I l i i i pouco de fermento corrompe325a massa toda". Em 1 Co 5.6 ele a apli-
,.:i :aos costumes cormptiveis; noutra ocasião, coloca-a diante dos que corropem
.i i':il:ivra de Deus326, assim como também Cristo menciona o fermento de Hero-
g1c.s c dos fariseus3". Admito que os profetas falam sobretudo acerca da afli-
C : I < I iciiiporal, assunto do qual deixo de tratar agora para não ser tantas vezes to-

/
i! i i lii i . ~ i i ; i < t : "...estas passagens provam mais em Paulo do que nas profetas" (cf. n. 313).
i!.I l i . IR,,, ').20.
I!,. ,c i i ~ i i , i , , i l , ii;i Vukava; Alineida, seguindo o texto grego, regisma "leveda", embora também
M;iIiv\ Siv;iirs 1i;aliirii "lcvcda".
I!,, 1'1. t i l 5 . 9
I!! ( ' 1 Mr H.15,
iiiado e dispersado por questões alheias; não obstante, Paulo faz uso de seu
cspirito contra o livre-arbítrio. Porém, quanto ao falo de não se subtrair a li-
berdade do arbítrio se somos barro quando Deus nos aflige, ignoro a que di-
ga respeito ou por que a Diatribe sustenta isso, pois não há dúvida de que as
aflições vêm de Deus contra nossa vontade e que encerram a necessidade de
siiportá-Ias, queiramos ou não; tampouco está em nossas mãos afastá-las. ain-
da que sejamos exortados a carregá-las voluntariamente.
Mas tem seu valor ouvir a Diatnbe a repisar de que modo o discurso de
I'aulo não exclui, com esta analogia, o livre-arbítrio. Pois ela alega dois absur-
dos, deduzindo um das Escrituras e o outro da razão. Das Escrituras deduz o
seguinte: Paulo teria dito em 2 Tm 2.20 que em uina casa grande há vasos de
oiiro, de prata, de madeira e de barro, alguns para a honra e alguns para a re-
preensão, acrescentando logo a seguir: "Portanto, se algiiéin se limpou destas
coisas, será um vaso para a honra", etc. Então a Diatribe argumenta assim328:
"Que é mais estulto do que dizer a um vaso ~ â m i o ~ se ' ~ te
: purgues serás um
vosci cheio de honra? Porém. é correto dizer isso a uin vaso racional que, ad-
iiiocstado, é capaz de acomodar-se a vontade do Scntior". A partir disso ela
~irctciideque a analogia não se enquadra em tudo, e que, desta forma, é elimi-
iiiida, porque nada prova. A fim de não cavilar disso, respondo qiie Paulo
ii;io diz: "se alguém se limpou de sua? imundicies", iiias sim "destas coisas",
i h i i ~c, "dos vasos da repreensão", de maneira que o sentido é: se alguém per-
iiiarieceu afastado e não se mistura com mestres ímpios, será um vaso de hon-
i;i, ctc. Admitamos também que esta passagem de Paulo prova inteiramente
o que a Diatnbe quer, ou seja, que a analogia não é contundente; como prova-
i;i que Paulo pretende o mesmo naquela passagem de Rm 9, sobre a qual de-
I~aleriios?Acaso é suficiente citar outra passagem e absolutamente não cuidar
ciii nada se demonstra o mesmo ou algo diverso? Como mostrei em mais de
iiiiia ocasião, não ha nas Escrituras jeito mais fácil e mais comum de errar
< I ~ I que ligar passagens diferentes das Escrituras como se fossem similares, de
siiiie que a analogia das passagens, da qual a Diatribe se orguiha, é nienos con-
tiiiidciite do que a nossa que ela refuta. Mas para que não sejamos contencio-
sos, concedamos que ambas as passagens de Paulo pretendam o mesmo, e que
o que seni controv-irsia é verdadeiro - a analogia não se quadra sempre e
c111todos os aspectos; de outra maneira, não seria nem analogia nem metáfo-
!;I. c, sim, a prúpria coisa. De acordo com o provérbio, "a analogia claudica
c iicrii scmpre anda sobre quatro patas".
No entanto, a Djafribe erra e peca quando, depois de negligenciada a cau-
\;I rl:i analogia - que deve ser observada acima de tudo -, toma as palavras
Da Vonlade Cativa
~ ~que se deve procurar a conipreezi-
de ii~aneiracontenciosa. Pois H i l á r i ~ 'diz
são a oartir das causas do discurso. e não somente a oartir das rialavras. Assim.
a força comprobatória da analogia depende da causa da analogia. Por que,
pois, aDiatrjbe onllte aqiiilo que levou Paulo a usar esta analogia e toma aqui-
lo que ele diz à parte da causa da analogia? O fato de ele dizer: "se alguém
se limpou", certamente diz respeito à exortação; porém, o fato de ele dizer:
"em uma casa grande há vasos", etc., diz respeito a doutrina. Desta maneira,
a partir de todas as circiinstâncias das palavras e da opinião de Paulo vês que
ele estatui sobre a diversidade e o uso dos vasos, de sorte que o sentido é: vis-
to que tantos renunciam a fé, não há para nós nenhuni consolo exceto o de
estarmos certos de que "o fundamento de Deus está firme, tendo este selo: O
Senhor conhece os que são seus, e aparte-se da iniqüidade todo o que invoca
o nome do Senhor" [2 Tm 2.191. Até aqui [trata-se] da causa e da força com-
probatória da analogia, a saber: que "o Senhor conhece os seus". Depois se-
gue-se a analogia, a saber: que há vasos diferentes, uns para a honra e outros
para a repreensão. Coni isso encerra-se a doiitrina de que os vasos não prepa-
iam a si mesmos, mas são preparados pelo doiio. Isso tambéin pretende Rm
9: que o oleiro tem o poder, etc. Deste modo, fica comprovada com força a
analogia de Paulo que a liberdade do arbítrio nada é diante de Deus. Depois
<li.sso,segue-se a exortação: "Se alguém se limpou destas coisas", etc.; o que
cla significa é suficientemente conhecido a partir d o que foi dito acima. Pois
iiáo se segue que por isso alguém seja capaz de limpar-se sem a graça, já que
I'aulo não diz "se a graça limpou alguém", e sim "se alguém se limpou".
Mas já se falou que chega sobre as palavras imperativas e subjuiitivas~3'. E
i150se expõe a analogia mediante palavras subjuntivas, mas, sim, mediate pala-
vi-as indicativas; como há eleitos e réprobos, assim há vasos da honi-a e da ig-
iioininia. Em suma: se esta evasão é válida, todo o debate de Paulo nada va-
li., pois ele introduziria em vão os que niurmuram contra Deus, na pessoa do
,ilciro. se a culpa parecesse ser do vaso e não do oleiro. Pois quem murmiira-
I ia se ouvisse que é condenado quem é digno de coiidenação?
O outro absurdo ela deduz da Senhora Razão, que é chamada humana.
li-ala-se do seguinte: que a culpa não é do vaso, mas do oleiro, principalmen-
i c em se tratando de um tal oleiro que cria e mistura o próprio barro. "Aqui",
ilir a DjatribeU2, "laiiqn-se ao fogo eterno um vaso que não teve nenhuma cul-
1x1 exceto a de não existir segundo seu próprio direito." Ein lugar nenhum a
1li:itiibe se dá a conhecer mais abertaniente do que nesta passagem. Pois aqui

l i 0 1lii:iiio: cnistcin virios na história da ]seja Antiga. Um deles 6 Sto. Hiláno (461468),bispo
<I<:Allcs; oiitro C o papa Hiiário (461468). Lutero, porém, se refere ao terceiro: Sto. Hilário
<h.i'c,ilici:s. lingajado no combale à doiiiina a i a n a , escreveu sua obra mais conhecida: Sobre
. i li:. ci>iiiiliiieiitecilad;! roino De Pioilstr. Lutero se refere repctidar vezes a ena obra.
i i 1 ( ' I . ;ii.iiii;i li. 841
I I.' I l;:rf,,i,c,$ 211
I);i Vontade Cativa
iluves que se diz - certamente por meio de outras palavras, mas com o mes-
irio sentido - aquilo que Paulo põe na boca dos impios: "De que se queixa?
()nem resiste a sua vontade?" [Rm 9.191. Isto é o que a razão não pode cap-
tar nem suportar, isto ofende tantos homens de engenho excelente, aceitos por
tantos séculos. Aqui reclamam que Deus aja de acordo com o direito huma-
rio e que faça o que Ihes parece justo, ou que deixe de ser Deus. Os segredos
da majestade de nada lhe terão servido; que ele preste contas por que é Deus,
ou do motivo por que quer ou faz o que não contém nenhuma aparência de
,justiça - como se convocasses um sapateiro ou um fabricante de cintos a com-
parecer no tribunal. A carne não julga a Deus digno de tanta glória de manei-
ra a crer que ele é justo e bom quando fala e age acima e além do que definiu
o Código de J ~ s t i n i a n oou~ o
~ ~livro quinto da Ética de Aristóteles. Que a ma-
jestade criadora de todas as coisas ceda lugar a um único rebotalho de sua cria-
<ao, e que, após mudada [sua] condição, aquela gruta coriciana tema seus es-
pcctadores. Por conseguinte, é absurdo que [Deus] condene quem não pode
evitar o mérito da condenação. E, por causa deste absurdo, precisa ser falso
c~iicDeus tem misericórdia de quem quer e que endurece a quem quer. Antes,
Il>cus] deve ser reconduzido ã ordem e devem-lhe ser prescritas leis a fim de
qiic não condene a ninguém a não ser aquele que, segundo nosso juizo, o me-
receu. Desta maneira prestou-se contas a Paulo com sua analogia: que ele revo-
i:iic e permita que ela nada valha, adaptando-a, porém, de tal forma que aqui
o oleiro (como interpreta a Diatribe) faça o vaso para a repreensão em virtu-
iIc dos méritos precedentes, assim como rejeita certos judeus por causa da in-
credulidade e recebe os gentios por causa da fé. Mas se Deus age consideran-
do os méritos, por que aqueles murmuram e reclamam? Por que dizem: "De
c~ncse queixa? Quem resiste a sua vontade?" Por que é necessário que Paulo
os contenha? Pois quem se admira, para não dizer se indigna ou reclama, se
alguém é condenado por ter merecido? Ademais, onde fica o poder do oleiro

.
clc fazcr o que quer, se, tendo sido sujeito a méritos e leis, não se lhe permite
I':izcr o que quer, mas se lhe exige que faça o que deve? Pois a consideração
<Ias iiiéritos opõe-se ao poder e a liberdade [que ele tem] de fazer o que quer,
coiiio prova aquele chefe de família que opôs [sua] liberdade da vontade no
i<)ciiiiiea seus bens aos trabalhadores que murmuravam e reclamavam direi-
l0sn4. isso que não deixa valer a glosa da Diatribe.
Não obstante, eu te peço: imaginemos que Deus tenha que ser de uma na-
iiircza tal que tome em consideração os méritos nos que hão de ser condena-
CIOS; acaso não sustentaremos e admitiremos igualmente que considere os méri-
10s tarnbEm rios que hão de ser salvos? Se queremos seguir a razão, é ignal-
iiiriitc iníquo que sejam coroados os que não o mereceram c que também sejam

111 ,lii$lj,,~:,,,,,I. i~iilier;i<loioiieiifal ile 527-565. iii;itirli>ii cortipil;ii- i i ~ i icii<lipi>ililr continuou sen-
#10r~1t;tliv0ia16 :t I'k~lc Modcr~ta.
l l f l 1'1, Ml 7.ll.l5.

li0
Da Vontade Cativa
punidos os que não o mereceram. Logo, tiremos a conclusão de que Deus
deve justificar em virtude dos méritos precedentes; ou o declararemos iníquo,
visto que se deleita com os seres humanos ímpios e maus e estimula e coroa
sua impiedade com recompensas. Mas então ai de nós, miseráveis, na presen-
ça desse Deus! Pois quem será salvo? Vê, portanto, a maldade do coração hu-
mano: quando Deus salva os indignos a parte dos méritos, ou melhor, quan-
do justifica os ímpios apesar de seus muitos deméritos, ele não os acusa de ini-
qüidade; ai não interroga por que ele quer isso - embora a seu próprio juizo
isso seja extremamente iníquo -, mas, porque [isso] é vantajoso e digno de
aprovação para ele, julga-o justo e bom. Quando, porém, [Deus] condena os
que não o mereceram, isso é iníquo, intolerável; aqui se reclama, aqui se mur-
mura e aqui se blasfema, pois [isso] é desvantajoso para ela [sc. para a razão].
Por conseguinte, vês que nesta questão a Diatribe e os seus não julgam
com eqüidade, mas de acordo com o desejo de seus próprios interesses. Pois
se ela considerasse a eqüidade, reclamaria de Deus quando coroa os indignos
tanto quanto reclama dele quando condena os que não o mereceram. Também
louvaria e exaltaria a Deus quando ele condena os que não o mereceram tan-
to como faz quando ele salva os indignos, já que a iniqüidade é igual nos dois
casos se consideras nosso modo de ver. Salvo se louvar a Caim por causa do
homicídio e fazê-lo rei não for tão iníquo como lançar o inocente Abel no cár-
cere ou matá-lo. Portanto, visto que a razão louva o Deus que salva os indig-
nos, mas acusa o que condena os que não o mereceram, ela se convence de
que não louva a Deus como Deus, mas como alguém que serve aos próprios
interesses dela. Ou seja: ela busca e louva em Deus a si mesma e seus interes-
ses, e não a Deus ou as coisas que são de Deus. Mas se te agrada o Deus que
coroa os indignos, também o que condena os que não mereceram não deve te
desagradar. Se ele é justo lá, por que não será justo aqui? Lá ele esparge a gra-
ça e a misericórdia sobre os indignos, aqui esparge a ira e a severidade sobre
os que não o mereceram; em ambos os casos é desmesurado e iniquo aos olhos
dos homens, mas justo e veraz consigo mesmo. Pois agora é incompreensível
como pode ser justo o fato de coroar os indignos; contudo, nós o veremos
quando tivermos chegado lá onde já não se crerá, mas se verá de rosto desvela-
do335.Assim, agora é imcompreensível de que modo pode ser justo o fato de
condenar os que não mereceram; não obstante, crê-se até que o Filho do ho-
mem venha a ser revelado.
No entanto, a Diatribe se sente violentamente ofendida por aquela analo-
gia do oleiro e do barro e está toda indignada por se ver de tal modo aperta-
da por ela; finalmente, porém, chega ao ponto de, após expor diversas passa-
gens da Escritura - das quais algumas parecem atribuir tudo ao homem e ou-
tras tudo a graça -, insistir, cheia de irritação, que tanto umas quanto as ou-
tras devem ser compreendidas de acordo com uma interpretação sã, e não ser
1 i;\Vuiitade Cativa

siiiiplesmente aceitas. Por outro lado, se nós insistimos nesta analogia, ela,
pi>r sua vez, está pronta para acossar-nos com aquelas passagens imperativas
c subjuntivas, sobretudo com aquela de Paulo: "Se alguém se limpou destas
ciiisas" [2 Tm 2.211. Aqui ela põe Paulo em contradição a si mesmo e atribui
iiido ao homem, a não ser que uma interpretação sã o socorra. Portanto, se
aqui se admite uma interpretação para deixar lugar a graça, por que a analo-
gia do oleiro também não admite uma interpretação para que haja lugar para
o livre-arbítrio? Respondo: iião me importa que o aceites simplesmente, dupla-
iiicnte ou centuplamente. Digo isto: com essa sã interpretação não se alcança
iiada e não se prova o que se procura. Pois deve-se provar que o livre-arbítrio
iião é capaz de querer nada de bom. Mas com a passagem "se alguém se lim-
pou destas coisas", por ser uma oração subjuntiva, não se prova nem nada
iiciii algo. Paulo apenas exorta. Ou, se acrescentas a inferência da Diat~ibee
clizcs: ele exorta em vão se a pessoa humana não pode limpar a si mesma, en-
i;io prova-se que o livre-arbítrio é capaz de tudo sem a graça. E assim a Diatri-
Iic desaprova a si mesiria.
Por conseguinte, ainda esperamos por alguma passagem da Escritura que
ciisine essa interpretação; não cremos nos que a inventam por meio de seu pró-
ltiio cérebro. Pois negamos que se encontre alguma passagem que atribuiria
i iido ao ser humano. Também negamos que Paulo se contradiz a si mesmo on-
<Ic diz: "se alguém se limpou destas coisas"; contudo, dizemos que tanto a
ciiiiiradição em Paulo é fruto da invenção quanto a interpretação que a Diatri-
/,L. :irranca é da imaginação, mas que nenhuma é demonstrada. Certamente re-

i~iiiilieceinoso seguinte: se é lícito ampliar as Escrituras com infcrências e adita-


iiiciiios daDiatribe, como: "Prescreve-se em vão se não somos capazes de cum-
111 i!. o que se prescreve", então Paulo verdadeiramente se contradiz a si mes-
11111, como toda a Escritura. Pois neste caso a Escritura é outra do que foi, eii-
i:io lambérn prova que o livre-arbítrio é capaz de tudo; mas por que se admi-
i i i i sc então ela contradiz também ao que diz noutro lugar, [a saber,] quc
I>ciisfaz tudo sozinho? No eiitanto, essa Escritura assim ampliada não contra-
diz ~ipciiasa nós, mas também a própria Diatribe, a qual definiu que o livre..
;irliiiria n2o é capaz de querer nada de bom. Portanto, que ela primeiro se dc-
sciircilc e diga de que maneira estas duas afirmações concordam coni Paulo:
"11 livre-arbítrio não é capaz de querer nada de bom" e "se alguém se lirii-
I I I I I I " qiic cle pode, por conseguinte, limpar-se a si mesmo; do contrário, sc
:iliriiiii isso em vão. Vês, portanto, que a Diatribe está atormentada e verici<l;i
[ i i i i ;iqiicla analogia do oleiro; trata apenas de eludi-la, não pensando absoliii:~
iiiciilc, crilrcmciites, em quanto a interpretação prejudica a causa qiie assiiiiiiii.
c. i1ii;iiiIii corifuta e ridiculariza a si mesma.
NAS, porém, como dissemos, nunca fizemos uma intcrpretaqZo iiciii l';il;i
iiii~siiiis scgiiirilcs termos: "estende a mão", isto é, "a gruça a cs1ciidcr;i". A
I)i:iliil~r iiivciiia tiid« isto acerca de 116s para a variiageiii dc sii:i pr6prin c;iii
: i . Niis. cniiiiidii, disserrios o scguiiiic: iiáo Iiii oposiç3ii lios cliliis iI;i Ikciitii
I ; ! iiciii li:\ iicccssi<l:itlc ilc i i i i i ; ~ iiilcilirv1;i~ãiiiliic cIcs;ilc o i i i i . iii;is os ~iiiiliiios
Da Vontade Cativa
iisseitores d o livre-arbítrio procuram nós no j ~ i n c o ' e~ soiiliain
~ contradições
para si mesinos. Essas passagens, por exemplo, eiii tiada se contradizeiii: "Se
alguéiii se limpou" e "Deus opera tudo em todos" [2 Tm 2.21; 1 Co 12.61.
Tampouco é necessário dizer, a fim de desatar o nó, que Deus faz algo e o ser
humano faz algo. Pois a primeira passagem configura uma oração subjuntiva,
que nem afirma nem nega alguma obra ou algum poder no ser humano, mas,
sim, prescreve que obra ou poder deve haver no ser humano. Aqui nada é figu-
rado, iiada é carente de interpretaçoes; as palavras são simples e o sentido é
simples, coiitanto que não acrescentes iiiferências e corriiptelas conforme o cos-
i~iiiieda Diatribe, pois então surgiria um senlido qiie não é são, todavia não
por sua (sc. das palavras) culpa, e, sim, por culpa do corruptor.
Mas a segunda passagem, a saber, "Deus opera tudo em todos", configu-
i-a uma oração indicativa, a qual afirma que todas as obras e todo o poder es-
i i em Deus. Portanto, como conflitariam duas passagens das quais uma abso-
lutamente não trata do poder do ser humano e a outra atribui tudo a Deus?
Não concordam, ao contrário, de uma maneira perfeita? A Djatribe, porém,
i:stá de tal maneira submergida, siifocada e corrompida pelo modo de ver da-
qiiele pensaiiieiito carnal (de qiie se prescreve em vão o que é impossível) que
iiiio 6 capaz de nioderar-se; pelo contrario, todas as vezes que tiver ouvido
iiina palavra imperativa oii subjuntiva, adiciona iriiediatamente suas iiiferên-
cias indicativas: prescreve-se algo, portanto somos capazes [de fazê-lo] e o faze-
iiios, ou então ter-se-ia prescrito estultamente. A partir daí ela irrompe e gaba
vitórias por toda parte, como se tivesse demonstrado que essas inferências es-
150 ratificadas por seu pensameiito como autoridade divina. A partir daí ela
;iiiuncia trariquilamente que em certas passagens da Escritura atribui-se tudo
;i0 homeni, r a s o pela qual existe ali uma contradição e f<w-senecessária uma
i~itei-pretação.E não vê que tudo isto é uma invenção de sua própria cabeça,
ii;io çoiifirmada em nenhum lugar da Escritura [sequer] por um til; e ademais
ilc Ia1 iratureza que, se fosse admitida, a ninguém confutaria de modo rnais ca-
11x1 do quc à própria [Diatribrl. Isso porque mediante essa invenção ela prova,
C que prova algo, que o livre-arbítrio é capaz de tudo; tal afirmação é o coii-
ii:iri» do que se havia proposto a provar.
Assini também repete tantas vezes337:"Se o ser liumano nada faz, não
li:\ Iiig~ralgum para os méritos. Otide não há lugar para os méritos, não have-
!:iIiigar iieiii para os castigos nem para as recompensas". De novo ela não
tc ciii que medida ela confiita mais cabalmente a si mesma do que a nós com
i.\ics ;irgumentos carnais. Pois que provam estas iriferèncias a não ser que to-
( I i i ii~Ciitoestá em poder do livre-arbítrio? Onde haverá então lugar para a gra-
\.:I? M:iii ainda: se o livre-arbítrio merece tão pouca coisa, ao passo que a gra-
<:I iiici-ccco resto, por que o livre-arbítrio recebe toda a recompensa? Ou também
I);, Vontade Cativa

Ilie inventaremos uma recompensa ínfima? Se há lugar para os méritos a fim


dc que haja lugar para as recompensas, também é preciso que o mérito seja
tão grande quanto a recompensa. Mas porque perco palavras e tempo iiiima
questão nula? Ainda que tudo o que a Diatribe maquina tivesse consistência e
o que merecemos fosse em parte obra do homem e em parte de Deus, mesmo
assim não são capazes de definir o que, qual e de que quantidade seria essa
própria obra; por isso, [este] é um debate pela lã de cabrans. Agora porém,
como não prova nada do que diz e não é capaz de mostrar nem a contradição,
nem a intepretação, iiem a passagem que atribui tudo ao homem, e como to-
das estas coisas são antes fantasias de seu pensamento, fica de pé, incólume e
invicta, a analogia de Paulo sobre o oleiro e o barro conforme a qual o tipo
de vasos em que sornas formados não diz respeito ao nosso arbítrio. Contu-
do, as exortações de Paulo - "se alguém se limpou" e outras similares - são
formas segundo as quais devemos ser formados, mas não testemunhos de nos-
sa obra ou empenho. Que estas palavras sejam suficientes sobre essas passa-
gens que tratam do endurecimento do Faraó, de Esaú e do oleiro.

Terceira Parte
[ XIII I
A Diatrjbe finalmente chega as passagens citadas por lu ter^)^^ contra o
livre-arbitrio, com a intenção de confutá-ias tanibéni. A primeira delas é Gn
6.3: "kIeu Espirito iião permanecerá no homem, pois [este] é cariie". Ela con-
I'uta essa passageni de várias maneiras. Primeiro, diz que aqui "carne" não sig-
nifica um afeto impio, e sim fraqueza. Em seguida, amplia o texto de Moisés:
seu dito refere-se aos homens daquela época, e não a todo o gênero humano;
por isso ele teria dito: "nestes homens". Semelhantemente, tanipoiico [se refc-
ic] a todos os homens daquela época, pois Noé é excetuado. Por último, [ela
(liz] que em hebraico este dito tem um teor diferente, a saber: a clemência, c
iilio a severidade de Deus. Isso ela faz a conselho de Jerônimo", talvez coni
:I iiiteiição de persuadir-nos de que, como aquele dito não se refere a Noé c,
sim, aos celerados, o que diz respeito a Noé não é clemência, mas sim a severi-
clndc de Deus, ao passo que o que diz respeito aos ímpios é a clemência e iiao
:I scvcridade.
Mas deixemos de lado estes ludíbrios da Diatribe, a qual em todas as p;ii
1i.s (lá a entender que tein as Escrituras por fábulas. Não nos atemos às iiiig;i
ciics de Jerônimo; certo é que ele iiáo prova nada. Tampouco debatcinos sohri.
< > ~poiiinde vista de Jerônimo, mas, sim. sobre o significado da Escritiira. 011i
o ~icrvcrsorda Escritura invente que "Espírito de Deus" significa indigii:i~io.
NOS di,.cin«s que Itie falla uma dupla prova. A primeira porquc cle riiio C c:i(i;ir

;iiiiii;i t i . 17.7.
I In 1 'I. 11cJ i);:,,rri~c,5 7.3. I.lll c 'I. ;i<.lnii.i( 8 . >(;i

151
I
I Da Vontade Cativa
de exibir uma única passagem da Escritura em que se tome o Espírito de Deus
por indignação, já que. pelo contrário, por toda parte atribui-se ao Espírito
benignidade e ternura. Além disso, se de alguma maneira provasse que em al-
guma parte toma-se "Espírito" por indignação, ainda assim não é capaz de
provar de modo imediato que [isso] se segue necessariamente e que ["Espíri-
to"] deve ser tomado nesta acepção na presente passagem. Que ele invente,
assiiii, qiie "carne" seja tomada por "fraqueza"; contiido, também aí nada
prova. Pois o fato de Paulo chamar os coríutios de c a r ~ i a i s 'certamente
~~ não
assinala fraqueza. mas vicio, visto que os acusa de formarem seitas e partidos, o
que não é fraqueza ou falta de compreensão de uma doutrina mais sólida, e,
sim, a maldade e o velho fermento que ele manda expurgar. Vejamos o texto
hebraico.
"Meu Espírito não julgará para sempre no homem, pois ele é carne" [Gn
6.31. Pois assim consta conforme a palavra de Moisés. E se deixássemos de la-
do os nossos sonhos, creio que ali as palavras se acham suficientemente eviden-
ics e claras. Mas que são palavras de um Deus irado, mostram muito bem o
clue precede e o que se segue, juntamente com o efeito do dilúvio. Pois o que
iiiotivou esta frase foi o fato de os filhos dos homens terem tomado mulheres
para si pelo mero desejo da carne, e além disso oprimiam a terra com tirania,
clc maneira que forçavam o Deus irado a acelerar o dilúvio e a postergá-lo ape-
112scento e vinte anos, algo que, sob outras circunstâncias, ele jamais teria le-
v;ido a,efeito. Lê ivloisés e observa, e verás claramente que é isso que ele quer
<li/cr. E todavia de admirar se as Escrituras são obscuras ou se estatuis por
iiicio das mesmas não só o livre-arbítrio, mas tanibkni o arbitrio divino, se te
~~criiiitesjogar desta maneira com elas, como se nelas procurasses os centões
(Ic Virgiliol-'?? Evidentemente isso significa desatar nós e dirimir questões por
iiicio da interpretação. Mas Jerônimo e seu Orígene~'~'encheram o mundo
corri essas ~iugacidadese foram os autores deste exemplo pestiiehto, a fim de
<~iic não houvesse empenho pela simplicidade das Escrituras. Para mim foi su-
I'icicnte provar, a partir desta passagem, que a autoridade divina chamava os
wics humanos de carne, e a tal ponto carne que o Espírito de Deus não podia
I>criiianecerentre eles, mas tinha de ser revocado deles em uni tempo estabele-
<.iilo.Pois o fato de Deus negar que seu Espírito haveria de julgar para sempre

1.11 ('r. I ( ' o 3.1.


1.12 1 )rigciic<: 2c i Vir~iliccr~foiiasin iltis quaeras. Centonas (Corretamente seria crnfones)são poe-
,i.ir ci>iiil>osiar dc palavras e obras alheias. Lutero alude a uma passagem do PIPfjcio dc JeTU-
iiii~i,, ,>:ira I'auliiio, ondz Jerôiiiiiio ceiisura o fato de todo mundo arrogar~scioiùicciiiie~itos
i1.i S;ii,r;i<l.i I'scritura. Ali conrtli a frase: Quasi non leserimiis ... Virgüiocentonas,ac no" sic
I A i r i ç (lii;st<i porsimiis dicere christimiirri, quia sciipsil: Iam redil et Grgo...
( i ' < i c i i < i \e ,)nc,1iv6s\çin<i\ lido as Vir~iliocnilonas, r como sr, da mesma forma, não pudés-
.,,.iii<,* cIi;iii!;i! l i t t r ~ l l i i ta~ ~[Viigilio]Maro dc crislão scm Crista, porque escreveu: Jã volta tam-
I,;.,,,;, ,,i,,,.s,,, ..., <I<.].
1.1 I vidr ;iiiiii.i t i . ?O?. c 11. 267.
i>a Voniade Cativa

cntre os seres humanos é imediatamente defirudo quando ele prescreve cento


e vinte anos, nos quais ainda há de julgar. Coritudo, contrapõe o Espírito i
carne, pois os homens, por serem carne, não admitem o Espirito, ao passo
que ele próprio, por ser Espirito, não pode aprovar a carne; assim acontece
qiie [OEspírito] deve ser revocado após cento e vinte anos. Por isso, deves com-
preender a passagem de Moisés desta maneira: meu Espirito, que esta em No6
c em todos os homens santos, acusa aqueles ímpios mediante a palavra da pre-
gação e a vida dos piedosos bois julgar entre os seres humanos significa atuar,
acusar, increpar e obsecsar oportuna ou inoportunamente entre eles com o ofí-
cio da palavra344), mas em vão; pois eles, cegados e endurecidos pela carne,
tornam-se tanto piores quanto mais são julgados, assim como sucede todas as
vezes que a palavra de Deus vem ao mundo: quanto mais são instruídos, pio-
res se tornam. E esta foi a causa que fez com que a ira se acelerasse, assini co-
ino t:mibém lá acelerou-se o dilúvio; pois já rião se peca apenas, mas tanibém
:i graça é desprezada. E, como Cristo diz, "quarido veio a luz, os homens odia-
iam a luz" [Jo 3.191.
Visto, pois, que, conforiiie o testemunho do próprio Deus, os homens são
ciii-ne, eles não podem sentir outro desejo a não ser pecar. Visto que pioram
i:iiiibém quando o Espírito de Deus chama e ensina entre eles, que fariam se
cslivessem abandonados a si mesmos, sem o Espírito de Deus? Tampoiico tem
;irliii algo a ver com o assunto o fato de Moisés falar sobre os homens daque-
Ia Spoca; o mesmo diz respeito a todos os homens, pois todos são carne, assim
coino Cristo diz em Jo 3.6: "O que nasceu da carne é carne". Ele próprio en-
sina quão grave é este vício onde diz, na mesma passagem: "A não ser que te-
iilia rsriascido novamente, ninguém pode entrar no reino de Deus" [Jo 3.51.
Saiba poitanto o cristão que Origenes e Jeronimo erraram perniciosamente juli-
io coiii todos os seus lá onde negam que nestas passagens [a palavra] "cariie"
C (oniada por "afeto impio". Pois tambkni aquela passagem de 1 Co 3.3, "Ain-
(Ia wis carnais", refere-se a impiedade. Pois Paulo pretende dizer que ainda
1i;i ímpios entre eles, e que, aléni disso, os piedosos, a medida em que têm gos-
ir, [>elascoisas carnais, são cariiais aiiida que tenham sido justificados pelo Es-
~)iiiii~. Em suma: observarás nas Escrituras que, onde quer que se trate da car-
iiv cin antítese ao Espírito, ali podes mais ou menos compreender por carne
iiiilo n que é contrário ao Espírito, como por exemplo: "A carne para nada
:il>ioveita" [Jo 6.631. Onde, porém, é tratada em termos absolutos, saibas quc
:ili c13 indica a condição e a natureza corporal, como por exemplo: "Serão
iliiis cm uma só carne" [Mt 19.51; "Minha carne verdadeiramente é coniida"
1.10 6.551; "O Verbo se fez carne" [Jo 1.141. Nestas passagens, trocando o Iic-
Iii;ii~iii«,poderás dizer "corpo" em vez de "carne". Pois a líiigua hebraicii
tli.\igiia c0111 o único vocábulo "carne" o qiie nós indicamos com os dois v o ~ i -
liiilo\ "c:isiic" e "corpo". E cii gostaria, assirii, que todo o cânoiic da Escrittii:~

1.1.1 i ' I . .>1 iii 4.2.


Da Vontade Cativa

tivesse sido traduzido por toda a parte com vocábulos distintos. Por isso creio
que minha passageni de Gn 6 ainda permanecerá vigorosamente de pé contra
o livre-arbítrio, pois se prova que a carne é o que Paulo diz em Rm 8.7 e que
ririo pode sujeitar-se a Deus (como veremos naquela passagem), e que é o que
ri propria Diatribe diz: que não pode querer nada de bom.
A outra passagem é Gn 8.21: "Os sentidos e o pensamento do coração
liumano estão inclinados para o mal desde a sua adolescência". E o capítulo
0.5: "Tbdo o pensamento do coração humano está continuamente voltado pa-
ia o mal". Ela elude esta passagem da seguinte maneira345:"A propensão pa-
ia o mal, que há na maior parte dos seres humanos, não subtrai de todo a li-
Iicrdade do arbítrio". Mas eu te peço: acaso Deus fala da maior parte dos ho-
tiiens e não antes de todos, já que depois do dilúvio, como que arrependido,
piom mete aos homens restantes e futuros que nâo haverá de ocasionar outro di-
Iiivio por causa do homem? Como motivo para isso alega: o homem está incli-
iiodo para o iiial. coino se dissesse: "se a maldade dos homens tivesse de ser
considerada, jamais o dilúvio deveria ter cessado; doravante, porém, não que-
i i r çoiisiderar o que merecem, etc.". Deste modo vês que tanto antes do dilú-
vio quanto depois do dilúvio Deus afirma que os homens são maus, de sorte
iiiie iiada vaie o que a Diatribe diz sobre lima "maioria". Além disso, a incli-
ii:iqão ou propensão para o mal parece uma coisa de pouco peso para a Diatri-
1 - como se estivesse ao alcance de nosso poder suscitá-la ou coibi-la -,
; i < , passo que a Escritura quer indicar com essa inclinação aquele constante ar-
icliritamento e fmpeto da vontade para o mal. Ou por que ela não consultou
1;tiiihém aqui o hebraico, onde Moisés não diz nada acerca da inclinação, a fim
<Ie yuc não tenhas motivo para cavilar? Pois o teor de Gn 6.5 é o seguinte:
(.li01 ietrer niahescheboth Iibbo rak ra chol hri iom, isto é: "toda a invenção
~1i1spcnsameiitos do seu coração [era] todos os dias apenas o mal". Ele não
< l i / "voltado o11 inclinado para o mal", mas "cotnpletamente mau"; e diz que
(.iii irida a vida o homem não inventa e não pensa nada exceto o mal. A natu-

I ~ . / :deI sua maldade é descrita no sentido de que não procede nem é capaz de
iii<>ccilcrde modo diferente, visto que é iiiá; pois, conforme o testemutilio de
I 'i i\li>,iiina árvore má também só pode produzir frutos maus346.Porém, quaii-
I,, ; i r > qiic n Diatribe repisa, a saber, "Por que se deu espaço para a penitência
,.c tii:iiliu~iiaparte da recipiscência depende do arbítrio, mas tudo se faz por
iii.<.cssidadc?", eu respondo: o mesnio dirás em relação a todos os preceitos
<Ir ociis; por que prescreve se tudo acontece por necessidade? Prescreve para
<.tisiii;iic o<lriioestar [os homens] quanto ao que devem fazer, de sorte que, re-
,<,rilirci~l:i siin maldade, cheguem humilhados à graça, como foi dito abundan-
ii.tiii.tiir. I'ori;irit«, tambbm esta passagem fica de pé, ainda invicta, contra o
I I V I C :t~l~iliio.
A ictccii:~~i:iss;igciiié aquela de 1s 40.2: "Recebeu da mão do Senhor em
i>a Vontade Cativa

dobro por todos os seus pecados". "Jerônimo" (diz ela347)"a interpreta segun-
-
do a vindita divina. e não segundo a-sraca
. em retribuicão
, nelas más acões."
Eu ouço: ~erônimo'dizassim, portanto é verdadeiro. Eu debato acerca de Isa-
.
ias, que fala com palavras clanssimas, e contrapôe-se-me Jerônimo, um homem
(para não dizer de modo mais ríspido) sem nenhum juizo ou diligência. Onde
está aquela promessa mediante a qual fizemos o pacto de que queríamos tra-
tar das próprias Escrituras, e não dos comentários de homens348?Segundo o
testemunho dos evangelistas, todo o capítulo de Isaías fala da remissão dos
pecados anunciada pelo Evangelho, onde dizem que "a voz do que clama" diz
respeito a João Batista3". E nós deveríamos tolerar que Jerônimo imponha,
de acordo com seu costume, as cegueiras judaicas como o significado históri-
co, e, em seguida, suas próprias inépcias como a alegoria? Isso a fim de que,
invertida a gramática, compreendamos a passagem que fala da remissão segun-
do a vindita? Peço-te: qual é a vindita cumprida pelo Cristo proclamado? Mas
vejamos as próprias palavras no hebraico: "Consolai (diz ele), consolai, ó meu
povo" ou "o meu povo, diz o vosso Deus" [Is 40.11. Julgo que aquele que
manda consolar não exige uma vindita. Segue-se: "Falai ao coração de Jerusa-
Em e proclamai-lhe" [ 1s 40.21. "Falar ao coração" é um hebraismo e signif-
ca "falar coisas boas, doces e blandiciosas", do mesmo modo que em Gn 34.3
"Siquém fala ao coração de Diná", a qual corrompera; isto é: "ele acalmava
a triste com blandícias", conforme o nosso [tradutor] traduziu350.Mas o que
sejam essas coisas boas e doces que se ordenou proclamar para o consolo de-
Ics, ele expõe do seguinte modo: "visto que sua milícia terminou porque sua
iniqüidade foi perdoada, pois recebe da mão do Senhor em dobro por todos
os seus pecados". A expressão "milícia", que nossos manuscritos registram
erroneamente como "maldade"351, parece significar, de acordo com os auda-
ciosos gramáticas judeus, um tempo estabelecido, pois compreendem Jó 7.1
da seguinte maneira: "A vida do homem sobre a terra é uma milícia"; isto é:
0 tempo lhe está definido. A mim me agrada, como reza a gramática, dizer
simplesmente "milícia", de sorte que deves compreender Isaías assim: ele fala
sobre a marcha e a fadiga do povo sob a lei como daquele que combate no
cstádio. Pois assim Paulo gosta de comparar tanto os pregadores como os ou-
vintes da palavra a soldados, como, por exemplo, quando ordena a Timotéo
qiie "seja um bom soldado" [2 Tm 2.31 e que "combata o bom combate" [ I
'1'1116.121 e quando fala dos coríntios que correm no estádio352.Também diz:
"Ninguémé coroado a não ser que tenha pelejado segundo as normas" [ZTm 2.51.

, .,
148 ('I. açiiiia p. 52.
l4t) ('I. Mt 3.3.
Irli ''Nosm fra<l~il«i"i! lerficiima, oii sej;i, ;iViilgala (cf. ;icima n. 267).
I71 A Vtdj!,aI:t, p. cx., registra: qt,o,~ilt!uco,~~pIcla
<,TI~!2:tlili.?cio,^ ([>orqc$c: ! c a i ~ nhu:t 1r1;8lck!<lr),
~ ~

172 ('I. I (',i 4.211.


Da Vontade Cativa
Itle guarnece os efésios e tessaloniceuses de armaGs3, e ele mesmo se gloria de
"ier pelejado o bom combate" [2 Tm 4.71. E há outros exemplos similares.
Assim também está escrito no hebraico em 1 Sm 2.22 que os filhos de Eli dor-
iiiiam com as mulheres que prestavam serviço militar na porta do Tabernácu-
lo da Aliança, e Moisés menciona a milícia delas em Ê ~ o d o Por ~ ~ isso
~. O
I>eus desse povo é chamado Senhor Zebaote, isto é, o Senhor da milícia ou
110s exércitos.
Portanto, Isaías anuncia que a milicia do povo da lei deve terminar e que
rlcs devem ser libertados da lei e transferidos para a nova milícia do Espírito,
11oissob a lei eram atormentados como que por carga insuportável - confor-
tiic o testemunho de Pedro em At 15.10. Ademais, este fim da milícia duríssi-
iii;i e a passagem a uma milicia nova e inteiramente livre não Shes será dado
~icloseu mérito, pois não puderam suportar aquela, mas antes e ao contrário
iloi- seu demérito, porque sua milícia termina de modo tal que sua iniqüidade
I Ilics é perdoada gratuitamente. Aqui não há palavras obscuras ou ambíguas.
I'or isso ele diz que a milícia deve terminar porque a sua iniquidade é perdoa-
<I:i, dando claramente a entender que os soldados sob a lei não cumpriram a
Ici iicm podiam cumpri-la, mas exerceram a milicia do pecado e foram solda-
,111specadores. E como se Deus dissesse: Se quero que a lei seja cumprida por
clrs, sou forçado a perdoar-lhes os pecados e até a suprimir simultaneamente
:I Ici, pois vejo que não são capazes de não pecar, sobretudo quando militam,
ihio L:, quando se esforçam para realizar a lei com suas forças. Pois a palavra
Iirhrnica "a iniqüidade está perdoada" significa um beneplácito gratuito. E
1 ~ 1 clc i a iniquidade é perdoada sem qualquer mérito, e até com demérito. E
C isio que ele coloca abaixo: "Pois recebeu da mão do Senhor em dobro por
ig~dosos seus pecados". Como eu disse, isso não significa apenas a remissão
ilos pecados, mas também o fim da milícia, o que é simplesmente isto: supri-
iiiicl;i a lei que era o poder do pecado e perdoado o pecado que era o acúleo
iI:i riiol-te, eles reinariam em dupla liberdade mediante a vitória de Jesus Cris-
10. Isto E o que Isaías diz com "da mão do Senhor"; pois não obtiveram estas
c<iis:ispor suas forças ou méritos, mas as receberam de Cristo, o vencedor e
~lo;iclor.Diz-se com o hebraísmo "em todos os pecados" aquilo que em latim
,.c iliz "por" ou "por causa dos pecados", como, por exemplo, em Oséias
.!:I I:!: “.lati> serviu em uma mulher", isto é, "por uma mulher"; e no S1 17.9:
"( 'cic;ir:irii-me em minha alma", isto é, "por causa da minha alma". Por con-
,.ri:iiiiiic. Isaias retrata nossos méritos por meio dos quais obtemos essa dupla
1iliriil:iclc. ianto do fim da milícia da lei como do perdão dos pecados, dizen-
I I I I C ii:id:i hram senão pecados e nada mais que pecados. Acaso aturaría-
I I I O S ciiiio qiic çsta belíssima e invencível passagem contra o livre-arbítrio scja
,I<. i:iI iii;iiicii;i cotispurcada com imundícies judaicas aduzidas por Jerônimo e
1irI;i I)i;ilril+~'! 1.origc dc mim! Antcs, fica de pé Isaias, o meu vencedor do
livre-arbítrio, e define que a graça não é concedida pelos méritos ou esforços
do livre-arbítrio, mas pelos pecados e deméritos; e que por suas próprias for-
ças o livre-arbítrio só pode exercer a milícia do pecado, a tal ponto que a pró-
pria lei, da qual se pensa que foi dada como uma ajuda, foi-lhe intolerável e
o fez mais pecador ainda, a ele que milita sob a lei.
No entanto, quanto ao que a Diatribeiss debate: "Embora o pecado abnn-
de por meio da lei, e também a graça abunde onde abundou o pecado, não
se segue todavia daí que, com o auxílio de Deus, o homem não possa prepa-
rar-se para o favor divino mediante obras moralmente boas antes da graça que
o torna aceitável". Seria de admirar se a Diatribe tirou isso de sua própria ca-
beça ou se não o colheu antes de algum papel enviado ou recebido de outro
lugar, inserindo-o em seu livro. Pois ela não vê nem ouve que teor têm as suas
palavras. Se por meio da lei abunda o pecado, como é possível que o ser hu-
mano possa preparar-se para o favor divino mediante obras morais? Como
podem as obras ser úteis quando a lei não é útil? Ou: que mais significa "o
pecado abunda por meio da lei" do que "as obras feitas segundo a lei são pe-
cados"? Mas disso trataremos em outra ocasião. Contudo, por que afirma
que o homem pode preparar-se com obras morais com o auxílio de Deus? Aca-
so debatemos sobre o auxilio divino ou sobre o livre-arbítrio? Pois que não é
possível com o auxílio divino? Mas é isto que eu disse: a Diatribe despreza a
L.ausa de que trata; por isso ronca e oscita desta maneira ao falar. Entretanto,
cla aduz como exemplo o centurião Cornélio, cujas preces e esmolas agradaram
[a Deus] embora ainda não fosse batizado nem inspirado pelo Espírito Santois6.
Eu também li [o que] Lucas [escreve] em Atos; todavia, não encontrei nenbu-
[na sílaba a indicar que as obras de Cornélio eram moralmente boas sem o Es-
pírito Santo, como sonha a Diatribe. Antes, encontro o contrário: que foi jus-
10 e temente a Deus. Pois é assim que Lucas o descreve. Mas dizer que [alguém]
é justo e temente a Deus sem o Espírito Santo é o mesmo que chamar Belial
de Cristois7. Além disso, todo o debate sustenta que Cornélio é puro diante
de Deus, conforme testemunha também a visão enviada a Pedro do céu e que
o censurava; com tantas palavras e fatos Lucas evidentemente celebra a justi-
ça e a fé de Cornélio. Não obstante isso, e apesar de terem os olhos abertos,
a Diatribe e seus sofistas são cegos na luz clarissima das palavras e na evidên-
cia dos fatos e vêem o contrário; tamanha é a falta de diligência ao ler e obser-
var as Sagradas Letras, as quais convém então difamar de obscura? e ambí-
guas. Estou de acordo: ainda não era batizado e ainda não tinha ouvido a pa-
lavra concernente ao Cristo ressuscitado. Porventura segue-se dai que o
riiesmo estava sem o Espírito Santo? Assim também dirás que João Batista e
scus pais, e depois a mãe de Cristo e Simeão, não estavam com o Espírito San-
10. Mas que se vão trevas tão crassas.

15%1>;:81rif>c,,5 24.
151) ('I. A I lO.ls$.
157 ('I. 2 1 ' 6.1%
~ ~ i.ixii I,. 1').?2; 20.11; I Siii I.!(>.
Da Vontade Cativa
A quarta passagem é do mesmo capitulo de Isaias: "Toda a carne é erva,
c toda a sua glória como a flor da erva. A erva secou e a flor da erva caiu,
pois o Espírito do Senhor soprou nela", etc. Minha Diatribe358acha "que se
aplica [esta passagem] a graça e ao livre-arbítrio de forma forçada demais".
Peço-te: por que isso? "Porque" (diz ela) "Jerônimo toma Espirito como in-
dignação, e carne como a débil condição do ser humano que nada pode dian-
te de Deus." De novo me trazem as nugacidades de Jerônimo em vez de Isa-
ias, e tenho que lutar mais energicamente contra o tédio que a Diatribe me cau-
sa com tamanha falta de diligência (para não dizer algo mais acerbo) do que
contra a própria Diatribe. Pouco antes, porém, expressamos nosso juizo acer-
ca da opinião de Jerônimo. Peço agora que comparemos a própria Diatribe a
si mesma. Ela diz: "a carne é a débil condição do ser humano, ao passo que
o Espírito é a indignação divina". Então, a indignação divina nada mais tem
para cortar do que aquela misera e débil condição do ser humano, a qual deve-
ria antes erguer? Mais belo, porém, é o seguinte: "A flor da erva é a glória
qlie nasce da felicidade das coisas corporais. Os judeus se gloriavam do templo,
do prepúcio, dos sacrifícios; os gregos, da sabedoria". Por conseguinte, a flor
da erva e a glória da carne é a justiça das obras e a sabedoria do mundo. Co-
1110, pois, a justiça e a sabedoria são chamadas de coisas corporais na Diatri-
l ~ r ?Que tem isso a ver então com o próprio Isaias, que se interpreta com as
próprias palavras dizendo: "Na verdade o povo é erva"? Ele não diz: "Na ver-
iI:icle a débil condição do ser humano é erva", mas, sim, "o povo", e afirma
iss(1 com um juramento. Mas que é "o povo"? Acaso é a mera débil condição
do ser humano? Ora, não sei se Jerônimo compreende por débil condição do
sci- humano a própria criação ou a sorte e a mísera situação do ser humano.
(~iinlquerque seja porém [a compreensão], a indignação divina certamente le-
va egrégio louvor e abundantes despojos por cortar a mísera criatura ou os in-
iclizcs seres humanos, e não antes dispersar os soberbos, depor do trono os
poclcrosos e despedir vazios os ricos, como canta Maria359.Mas deixemos de
I;i<loessas fantasmagorias e sigamos a Isaias. "O povo", diz ele, "é erva"; po-
iCiii, não é a mera carne ou a débil condição da natureza humana, mas abar-
i.;)liido que existe no povo: ricos, sábios, justos, santos, a não ser que no po-
vo dos judeus não haja fariseus, anciãos, príncipes, aristocratas, ricos, etc.
('li:iiii:i-se corretamente a glória de "flor da erva", pois eles evidentemente se
1:loiinvam do reino e do governo, mas sobretudo da lei, de Deus, da justiça e
iI;i s;il>cdoria,como Paulo expõe em Rm 2, 3 e 9.
I'ortaiito, já que Isaias d
iz "toda a carne", que significa isso senão toda
:i i.iv;i oii todo o povo? Pois ele não diz simplesmente "carne", mas "toda a
c:iiiic". Ao povo, porém, pertencem a alma, o corpo, a mente, a razão, o jui-
/i>c ( I (~iic quer que além disso se possa chamar ou encontrar de mais excelen-
Ir i111 scr Iiiiinano. Pois quem diz "toda a carne é erva" não excetua ninguém,
a não ser o Espírito que corta. Tamponco omite algo quem diz "o povo é er-
va". Apresenta, pois, o livre-arbítrio, apresenta o que quer que possa haver
de supremo e de ínfimo no povo: tudo isso Isaias chama de carne e erva. Pois
de acordo com o próprio intérprete, que e o autor do livro, esses três termos,
"carne", "erva" e "povo", significam a m&ma coisa nesta passagem. Ade-
mais, tu niesmo afirmas que a sabedoria dos gregos e a justiça dos judeus que
foram cortadas pelo Evangelho são erva ou flor da erva. Acaso consideras que
a sabedoria não foi a coisa mais excelente que os gregos possuíram, e que a
justiça não foi a coisa mais excelente de que os judeus forani capazes? Ensina
outra coisa mais excelente!
Onde, pois, está tua confiança, com a qual creio que difamavas ate Filipe
[Melanchthoii13", dizendo: "Se alguém sustenta que o que Iiá de mais excelen-
te na natureza humana não é outra coisa que carne, isto é, algo impio, estarei
de acordo se ele ensinar isso que assevera por meio de abonações da Sagrada
E~critura"~~~'! Aqui tens a Isaias, que em alta voz chama de "carne" o povo
cl~.sprovidodo Espírito do Senhor, embora neni assim o ouças. Tens tua pró-
pria confissão, tu que dizes (talvez imprudentemente) que a sabedoria dos gre-
iros é erva ou a glória da erva. Isso é o mesnio que se a tivesses chamado "car-
ric", a não ser que sustentes que a sabedoria dos gregos não diz respeito a ra-
/,ao ou, como o chamas, ao begemo~ikon"~,ou seja: a parte mais excelente
(10 ser bumario. Se nos desprezas, peço-te: ouve ao menos a ti mesmo quaii-
(10, apanhado pela força da verdade, dizes coisas corretas. Tens a João: "O
qtie é nascido da carne, é carne; o que é nascido do Espírito, é espírito" [Jo
3.61. Esta passasem, que demonstra de maneira evidente que aquilo que. não
i. iiascido do Espinto é carne - de outro modo não subsistiria a divisão que
(:risto faz,dividindo todos os homens em dois, em carne e espírito -, esta
Ipassagem, repito, tu passas arrogantemente em silêiicio como se não te ensinas-
sc o que procuras atingir, e, conforme teu costutne, te lanças noutra direfão
ilcclarando entrementes que João afirma que os crentes nascem de Deus e tor-
iiain-se filhos de Deus, e até deuses e uma nova criação. Não dás atenção a o
que a divisão implica, mas nos ensinas com palavras ociosas quem esta na sc-
l:iiiida parte da divisão, fiando-te em tua retórica como se não houvesse iiiii-
~iiEnique observasse esta omissão e dissimulação tão astuta.
É dificil crer que nesta passagem não sejas insidioso e dissiiliulado. IJoi\
qlicin trata as Escrituras com a manha e a hipocrisia com que as tratas. poclci:i

ihll I~ilipc.Melaridilhon (1497.1560). humaiiista, profes~orda Univcrsidiidç d ~ Willail>ci)*,.


. liviiiiiii
sç aiiiipi> dc I.uiçro c adepto do nioviinento icfarniaiSrio. Tdlvr, i > riil;ilioi:iili>i<li. i i i ; i i i i i i i i i i
~ < i~rilir*:r<><I<Ar<,.<
I>.iiv,;i qiic I ulrro leve. Organi~ouo sistema escolar da S:txiniia. C r i i i < <I;,
I,trr*.r,, iI;i :\jx'logki da Co,ifi,wi~c <toTixlado Si>hic, i I'ii'k'r c I'riiii;iili> i l r i 1:irri ( < I . I > > r i ,
</c <i,iiciiiili:+. Si<) I.eolii,ldri/l'r>il<iAlcgic, 4. eil. IIRZ). I (1, Ii2I piililii.irii I <!<i it!iiiiiriirii.i
;i liiiiiicii;! lciil<igi;i sirtei~i:iliaiIiliei;i!i;i.
Vil I>i:iliil~i.. R 24.
IIJ I i ~ ~ ~ w ~ c ~ ictii
i i hp,rc&*~) t ~icr,Icm
i ~ , i p;nr;> " t ~ ~ : ~ # ~ ~ i ;<it rq ~ " , Ih<'jr?nh>~~i;a.
o ~ u ~ ~ o ~~ il lc ~~ i# c~ ~~ i ~ ~ ; t , ~ l c .
tranqüilamente confessar de si mesmo que ainda não foi instruido pelas Escri-
turas, mas que quer ser instruido [por elas], embora seja a última coisa que
deseja, e tagarele isso tão-somente para a injúria da luz clarissima nas Escritu-
ras e para enfeitar sua própria pertinácia. Assim os judeus dizem, até o dia
de Iioje, que as coisas que Cristo, os apóstolos e toda a Igreja ensinara111não
se provaiii pelas Escrituras. Os heréticos não podem ser instruidos em nada
por meio das Escrituras. Os papistas ainda não se instruiraili lias Escrituras
até hoje, por mais que até as pedras clameni a verdadeJ". Talvez esperes que
se arranque das Escrituras uma frase composta por estas letras e silabas: "a
parte principal do ser humano é a carne" ou "aquilo que há de mais excelen-
tc no ser huinano é a carne"; do contrário serás o vencedor invicto, como se
os judeus postulassem que se mostre uma palavra dos profetas com o seguiii-
ic icor: "Jesus, filho de um carpinteiro e nascido da virgem Maria de Belém,
I: o Messias e o Filho de Deus". Aqui, onde és convencido pelo sentido aber-
I I I [das Escrituras], nos prescreves as letras e sílabas que temos. de mostrar;
iioutro lugar, onde és convencido tanto pelas letras como pelo sentido, encon-
lias tropos. nós e sãs iiiterpretaçòesJM.Em lugar nenhum deixas de encontrar
:ilgo com que coiitradizer as Escrituras Divinas; e não é de admirar. pois não
I:i/es outra coisa do que procurar o que contradizer. Ora recorres às iiiterpreta-
\.i~csdos antigos, ora as absurdidades da razão; onde nenhuma destas te socor-
ic, dissertas sobre temas estranhos e afins, soniente para que a passagem da
I(scritura em questão não te prenda. Que direi? Proteu3(js não é Proteu se com-
it;irado a ti. Contudo, nem assim podes escapar. De quão grandes vitórias os
;iiiniios se gabavam pelo fato de as sílabas e letras da palavra h o m o o ~ i s i o s ~ ~
ii;io sc encontrarem nas Escrituras, não reparando que a mesma coisa era pro-
i,:icI;i de inaiieira extremamente eficaz por outras palavras? Mas se isto é pró-
i i i i i i 1111 um coração boni, para não dizer piedoso e desejoso de ser instruido,
i~iic<i julgue a própria impiedade e iniqüidade.
I I'ica, pois, com a vitória; nós, os vencidos, confessamos que estes caracte-
I irs c sílabas (de que o mais excelente no ser humano nada é senão a carne)
ii:io sc ciicontram nas Sagradas Escrituras. Vê, porém, de que natureza é tua
i v i i i ~ r i : ~pois
. provamos que nas Escrituras se encontram indicaçòes abundantis-
,.ii~i:icilc que não apenas uma porção, ou a pane niais excelente ou principal
CIO ~ c iIiiiinano, é carne, mas que todo o ser humano é carne; e não só isso,
I I I ; I \ It:ii~il>c'm]que todo o povo é carne; e, não sendo isto na verdade suficien-
I,.. I I I I C lodo o gênero humano é carne. Pois Cristo diz: "O que S nascido da

18, I , 'I I c 14),40.


!Mil i I ;iiilii:i 11. 117.
Iiii l'iiili.ir <I.;iciiiia ri. 33.
ii.r, I r < i i i i ~ i ~ i , i r i \ ~ > ; ~ l : g v i çirg:i
;i q ~ i c\ignitiçn "consuhsf;itici:il". Os ariano, ncgavurn quc o Pillio
j. o>iri>li\i.iiii-i:,!(h,>iii<,oii\iis)
c,ziiii i > ]'ai, c iriristi;iiii ~ ~ i I>i cPiti i ) Irilvia ciia<li>do iiuda. ('I.
l.iiiili<~iii .i,~iii,;i
i,. 5 5 .
I
Da Vontade Cativa
carne é carne" [Jo 3.61. Desata os nós, inventa tropos, segue a interpretaçáo
dos antigos ou, voltado entrementes para outro assunto, disserta sobre a Guer-
ra de Tróia, para que iião vejas ou ouças a passagem eni questão. Nós não cre-
mos, mas vemos e experimentainos qiie todo o gênero humano é nascido da
carne. Por isso somos forçados a crer o que não vemos, a saber que, confor-
nie o ensinamento de Cristo, todo o gêiiero humano é carne. Mas deixamos a
critério dos sofistas se a parte hegemônica no ser liumano diz respeito a todo
o ser humano, a todo o povo, a todo o gênero humano. Que duvidem e deba-
tam. Nós sabemos que "em todo o gênero humano" estão compreendidos o
corpo e a alma com todas as [suas] forças e obras, com todos os [seus] vícios
e virtudes, com toda a sabedoria e estultícia, e com toda a justiça e iiijustiça.
Tiido é carne, pois tudo tem gosto pela carne, ou seja, pelo que é seu; e tudo
carece da glória de Deus e do Espírito de Deus, como diz Paulo em Rm 3.73.
Dizes: "Nem todo o afeto do sei humano é carne, mas hA o que se cha-
iiia nliiia e liá o que se chama espirito. pelos quais nos inclinamos as coisas
honradas, assim como se inclinaram os filósofos que ensinaram que antes se
deveria perecer mil vezes do que cometer um ato torpe, ainda que soubésse-
mos que os seres humanos o igiiorariam e Deus o perdoaria"'". A isso respon-
do: para quem não crê nada com certeza, é fácil crer e dizer qualquer coisa.
Não eu, mas teu próprio Luciano368 te pergunta se és capaz de iiiostrar uma
só pessoa em todo o gênero humano (seja ela duas vezes ou sete vezes o pró-
prio Sócrates) que tedia feito isto que dizes aqui e que escreves que eles ensina-
ram. Por qiie, então, fabulas com palavras inanes? Inclinar-se-iam as coisas
honradas os que nem mesmo sabiam o que é a honra? Se eu pedir o mellior
exemplo, talvez dirás que é digno de honra o fato de terem morriùo pela Pá-
tria, pelos cônjuges, pelos filhos e pelos pais, ou de teretn suportado torturas
refiiiadas para não mentir ou cometer traição, como é o caso de Q. Scevola,
M. Régulo e outros369.Mas o que poderás demonstrar ein todos estes, a iião
ser a aparência externa das obras? Acaso viste seu coração? Pelo contrário:
na aparência da obra tornou-se claro, simultaneamente, que fizeram tudo isso
para sua glória, tanto que iião se envergonharam de confessar e jactar-se dc
que procuravam sua própria glória. Pois, conforme seu próprio testemunho,
também os romanos realizaraiii todos os seus atos virtuosos sotiiente por su;i
ardente sede de glória; o mesmo ocorreu também com os gregos, os judeus c
todo o gênero humano. Mas ainda que entre os seres humanos isso seja hones-

367 DiaVibe, S 24.


Zl>R Lilciano - cf. acima B. 49.
i09 No texto original consta Q(ujBius) S m ~ ~ o l No n . entanto, deve tratai-sc dc 1 'l;iii>) M(iirii>)Si.ui,
Ia (séc. VI1 a.C.), patricio romano que qiiriiiioii siia pr6pria iiiL, I><>' Icr cri;iilc>i>:ilr<> ; t i > 1i.11
13i mata a Porsena, chefe dos etrurcos, qur riliiiv;im ;i çi<l;i<lide I ( i > i i ~ ; i . M;UCC> ,+~;l;tz \<C'
g010, cònbul romano que caiu prisioneiro do\ i:i!l:igir,r\ci c lui eiivi:iili, ;i lKc,iii;i ti;!i;i i,wi.ii;ii
iiiti;i lioca de prisi<iiicir<)<.Cni vi, d i s o i i i \ i i i i i q i i c ii Si.ii:iilir ir<il\;iw;i i ~ < ~ t ' c ~ \ i c; i i i i < i \ \ r p i i i \
>c ii;i giicrr;i. KCgiilo vi>ltoii ;i (':ill:igci. iiic\iiici >;ilir~i<l<i ilirr ;,li c, rrlici.iv.iti>riitiliiiii\ c , i i i i c i i t i
10, perante Deus nada é mais desonesto, e até extremamente ímpio e o mais
:i110 sacrilégio; porque não agiram para a glória de Deus nem o glorificaram
c<iiiioDeus3'0, mas, ao roubareni a glória de Deus e atribuíreni-na a si mes-
iiios pelo mais impio ato de rapina, nunca foram mais desonrados e torpes
r l < ~que quando refulgiam em suas virtudes mais elevadas. Contudo, de que
~ii<i<lo agiriam para a glória de Deus se desconheciam a Deus e sua glória'"?
NZo que ela não tivesse sido manifesta, mas porque a carne não consentia que
vissem a glória de Deus devido ao delírio e ao desvario pela própria glória.
Ai tens, portanto, aquele espirito hegemônico, a parte principal do ser huma-
iio qiie se inclina as coisas honestas; isto é, o ladrão da glória divina e que am-
liciona a majestade divina, sobretudo quando são extremamente honestos e ilus-
i i i~çimospor siias elevadas virtudes. Nega agora que estes são carne e corroni-
iviclos por um afeto ímpio!
Tampouco creio que a Dialribe se ofenderia tanto com o enunciado dc
, 1 1 1 ~o ser hiimaiio e carne ou espirito, se o testo latino dissesse: "O ser h u m a ~
i i < r ? carnal ou espiritual". Pois, como muitas outras coisas, deve-se atribuir
IWI língua hzbraica que, quando se diz em hebraico: "O ser humano é car-
( ! c ( i t i espirito", isso tem o mesmo significado que quando nós dizemos qiie o
,.,.i litimano é carnal ou espiritiial, do mesmo modo como dizem os latinos:
"('bisa triste é o lobo para os estábulos, coisa doce a umidade para as semen-
1i.,'3172, ou então: "Este homem é o próprio crime e a própria maldade". As-
..i111 I;iinbém, para dar ênfase, a Sagrada Escritura chama o ser humano dc
"c;ii-iie" como se ele fosse a própria carnalidade, pois deseja em demasia e iiri-
#I:!iii:iis do que aquilo que é da carne; e de "espirito", porque não deseja, n i o
I~iisc;~, não faz e não suporta senão aquilo que é do espirito. Mas talvez [a Di;i-
f i i l , ~:iiiida ] pergunte mais o seguinte: mesmo que se diga que todo o ser huma-
n t ~ .c o que 1iá de mais excelente no ser huinano, é carne, será que por isso L:

i ~ i i . i . i \ i ) dizer, imediatamente, que tudo que for carne também e ímpio? Nas
~li/cii~iis que é impio quem quer que esteja sem o Espírito de Deus. Pois a Es-
< I I I I I I ; ~ diz que é por isso que o Espírito é concedido: a fim de que justifiqiic

G ) iiiil~io.Porém, quando Cristo distingue o espirito da carne dizendo: "O cliic


ii:i\ccii <Ia carne é carne" [Jo 3.61, acrescentando que "o que nasceu da cai-ric
i i . i i , 1 ~ 1 d ver c o reino de Deus" [Jo 3.31, segue-se, evidentemente, que tiidii
~ I I I C . I r t i carne é igualmente impio e está sob o reino e o e$pirito de Sata~ilis;
i ~ ( , i > ii:ii~cxiste um reino intermediário entre o reino de Detis e o reino de Sot;i
..
(!:i. os quais cslào mútua e continuamente eni luta entre si. São coisas assi111
c ~ i i i . ili~iiioiistramque as mais elevadas virtudes entre os pagãos, o que há dc
11ii.111i11 i i i w filóso~"os c o mais excelente nos seres humanos certamente é cliiiiii;~.
( 1 8 , t . 1>:1ivcc IioiicsI» c boin diante do mundo; inai diante de Deus isso é vcrd:i<lci

1'11 i I I<,,, I LI.


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l i ~ ~ , ~
rameiite carne e servidão ao reiiio de Satanás, isto e, coisas impias e sacrilegas
e más sob todos os aspectos.
No entanto, peço que façamos de conta que a opinião da Diatribe é váli-
da. e que nem todo o afeto é carne, ou seja, ímpio, mas que isto que se cha-
nia de "espírito" é honesto e são: vê quaiitos absurdos resultam disso, certa-
mente não para a razão humana, mas em toda religião cristã e nos mais eleva-
dos artigos da fé. Pois se o que liá de mais excelente no ser hutilano não é im-
pio. iiem corrupto ou condenado, mas sonieiite a cai'ne, isto e, os afetos mais
grosseiros e inferiores, que tipo de redentor, pergunto eu, faremos de Cristo?
Porventura atribuiremos tão baixo valor ao preço de seu sangue, de sorte que
somente tenha redimido no ser humano aquilo que 6 de milito pouco valor,
ao passo que o que há de mais excelente no ser Iiiirnano vale por si mesmo,
não tendo necessidade de Cristo? Assim que, doravante, pregaremos que Cris-
to não é o redentor de todo o ser humano, mas de sua parte de menor valor,
a saber, da carne. enquanto que o próprio sei' humano é o redentor de si riies-
mo em sua melhor parte. Das duas opções, escolhe a que quiseres. Se a me-
lhor parte do ser humano é sadia, ela não carece de Cristo como redentor. Se
não carece de Cristo, ela triunfa sobre Cristo com maior glória, já que ela cui-
da de si mesma como a melhor pai-te, enquanto Cristo cuida somente da par-
te de menor valor. Além disso, também o reino de Satanás nada será, pois rei-
na sobre a parte de menor valor do ser humano, todavia é antes dominado pe-
lo ser humano desde sua melhor parte.
Assini acontece, por meio deste dogma sobre a parte principal do ser hu-
inaiio, que o ser humano é elevado acima de Cristo e do diabo, isto 6 , torna-
se deus dos deuses e senhor dos senhores. Onde está agora aquela "opinião
provável" que disse que o livre-arbítrio não pode querer nada de bom, nias
que aqui sustenta existir uma parte principal, sadia e honesta, a qual certamen-
te não carece de Cristo. mas pode mais do que podem o próprio Deus e o dia-
bo? Digo isso para que vejas, mais uma vez, o quanto é perigoso tocar nas
coisas sagradas e divinas sem o Espirito de Deiis, com a temeridade da razão
liuniana. Por conseguinte, se Cristo é o cordeiro de Deus que tira o pecado
clo ~nundo"~,segue-se que o mundo todo está sob o pecado. a condenação e
i) diabo, e que de nada serve a clistinçâo entre partes principais e não princi-
~xiis.Pois "mundo" significa os seres humanos qiie em tudo ariseiam pelas
coisas mundanas.
"Se o homem todo", diz ela. "mesmo que nascido de novo pela fé. na-
iI;i niais é do que carne, onde está o espírito nascido do Espirito? Ondz está
o lilho de Deus'? Onde a nova criatura? Quero ser instruída sobre isso." Assim
diz a Diat1ibe2'~. Para onde? Para onde [vais], caríssima Diatribe? Que so-
iiIi:i~'! Pedes que se te ensine de que maneira o espii'ito nascido do Espírito é
C ; I I I I C . Ah! Com que viteria folgarãesegura nos insultas aqui, a nó>, os vencidos!
Como se fosse impossivel subsistirmos neste ponto. Enquanto isso, queres abu-
sar da autoridade dos antigos, os quais ensinam que há certas senientes de ho-
nestidade enxertadas nas mentes dos seres humarios.
Em primeiro lugar, se assim o queres, de nossa parte certamente te é per-
mitido que uses s abuses da autoridade dos antigo.5; verás o que crês. t u que
crês nos homens que repetem suas próprias idéias sem a palavra de Deus. Tal-
vez nem mesmo te atormente muito a preocupação da religião acerca daquilo
que alguém crê, já que crês tão facilmente nos seres humanos, não te importan-
do se o qiie dizem é certo ou incerto junto a Deus. Tanibém nós queremos ser
instruidos acerca disso: qiiando foi que ensinamos essas coisas que tão livre e
publicamente nos imputas? Quem e tão louco a ponto de dizer que quem iiar-
ceu d o Espírito nada é exceto carne? Nós distinguimos claramente a cariie e o
espírito como coisas que se combateni, e dizemos, juntamente com a revelacão
divina, que o ser Iiuinano que não nasceu de novo pela fé é carne. Adeniais,
dizemos que queni nasceu de novo é cariie apenas na medida em que reiiianes-
cem nele restos da carne que lutam contra as primicias do Espírito recebido.
Tanipouco creio que quiseste inventar isso para [suscitar] ódio contra nós; de
outro modo, que podias lios impor de mais criminoso? Todavia, ou nada com-
preendes de nossas qiiestões, ou pareces não estar à altura da magnitude das
questões, pela qual talvez sejas tão pressionado e confundido que não te lem-
bras suficientemente do que dizes contra nós ou em teu favor. Pois quando
crês, conforme a autoridade dos antigos, que há certas sementes de houestida-
dc enxertadas nas rnenlrs dos seres humanos, falas mais unia vez com um cer-
to esquecimento, ji que acima afirmaste que o livre-arbítrio não pode querer
nada de bom. Se, todavia, não é capaz de querer algo de bom, não sei como
tolera junto a si certas sementes de Iionestidade. Desta maneira, sou continua-
mente forçado a recordar-te do ponto principal da questão de que tratamos,
do qual te afastas em constante esquecimento, tratando de algo diferente do
que tinhas proposto.
Outra passagem é a de Jereriiias 10.23: "Eu sei, ó Seiihor, que o caminho
do ser humano não está eni seu poder, e que ninguém pode andar e dirigir
neus passos". [ 4 Diatribe] diz que esta passagem se refere mais ao resultado
de coisas alegres do que ao poder do livre-arbítrio375.Aqui, mais uma vez, a
DNtribe acrescenta confiantemente uma glosa segundo seu parecer, como se a
Escritura estivesse iiiteiramerite sob seu poder. Mas considerar o sentido e a in-
tenção do profeta - que necessidade teria disso um homem de tão graude au-
toridade? Basta que Erasino o diga, portanto é assim. Se este crapicho de fa-
zer glosa é permitido aos adversários, o que 6 que não conseguir,ão? Portanto.
que demonstre esta glosa a partir do contexto desta mesma citação. Ai acredi-
taremos. Nós, porém, ensinamos, a partir do próprio contexto, que o profeta,
ao ver que ensinava os inipios em vão coiii tão grande iiisistência, compreen-
deu ao mesnio tempo que sua palavra de nada vale, a iião ser que Deus a ensi-
ne interiormente, e que por isso não está nas mãos do ser humano ouvir e que-
rer o que é boiii. Tendo se dado conta disso, aterrado pelo juizo de Deus, pe-
de-lhe que o corrija em juizo caso deva ser corrigido e que não seja abandoiia-
do à ira de Deus com os inipios, aos quais permite que fiquein endurecidos e
permaneçam incrédiilos.
Não obstante, fafamos de conta que a passagem verse sobre os resultados
de coisas tristes e alegres. E se esta riiesma glosa derrubar. de modo mais enir-
gico, o livre-arbítrio? Certametite se inventa esta nova evasiva para que os iri-
cultos e preguiçosos considerem, iludidos, qiie houve uni tratamento suficieii-
te [do assunto], assim como aqueles fazem com a evasiva acerca da necessida-
de da Pois não vêem que, como são muito mais enredados c
apanhados por estas evasivas, assim também se afastam com essas novas pala-
vras. Se, portanto, o resultado dessas coisas, que são temporais e sobre as
quais o ser honiano foi posto senhor?77,iião está em nossas ~iiãos,eu pergun-
to: de que niaiieira poderá estar cin iiossas mãos aquela coisa celestial, a gra-
Ca de Deus, a quxi depende do arbirrio de Deus somente? Porventura o csfor-
ço do livre-arbítrio, que não é capaz de reter uin Óbolo e nem niesmo um cabe-
lo da cabeça' é capaz de obter a salvação eterna? Não nos é dado o poder de
tomar posse da criação; ser-nos-á dado o poder de tomar posse do Criador?
Que desvario é o nosso? Por conseguinte, o fato de o ser humaiio se inclinar
para o bem ou para o mal diz respeito muiio mais ao resultado, porque em
ambos os casos ele se engana milito mais e tem menos liberdade do que quan-
do se inclina para o dinheiro, a glória ou o pr'uer. Com que elegância, portari-
to, evadiu-se esta glosa que nega a liberdade do ser humano nas coisas insigni-
ficantes e criadas e as proclama nos acontecimentos mais elevados e divinos!
como se dissesses que C o d ~ não o ~ pode
~ ~ pagar um estáter, mas pode pagar
iiicontáveis milliares de moedas de ouro. E admiro-me que a mesina Diatribe,
que até aqui tanio se opôs aquele dito de Wyclif de que tudo acontece de mo-
do necessario, agora admita que os resultados são para nós [resultados] necessários.
Além disso, ela diz: "Se queres aplicar [este texto] a todo custo ao livre-
arbitrio, todo o mundo reconhecerá que sem a graça de Deus ninguém pode
inanter reto o curso da vida; não obstante, entrementes iiós mesmos tambéni
lios empenhainos na medida de nossas forças, visto que oramos cotidianamen-
ic: 'Ó Senhor, Deus meu, dirige a tua vista o.meu caminho' [SI 5.81. Quem
~>mle aiisilio, não põe de lado o esfor~o""~.A Djatribe considera que de na-
<I:i iniporta o que ela respoiide, contanto que não se cale e diga alguma coisa;

176 <'I' acima t i . 68.


177 ('I'. <;ri 1.28.
i7S 1 ;rirri 6 <iiianic da último rei de Atcrias, morto na luta cotirrn os invawrcs il6rias. É pos\ivcl
<IUC 1.~1lnuDCIISOII eni Creso. rei d a I.idia. de iiriiic~anrovçrbial. O r5l:iicr cia iiiiia niiirrla
-
eritâo quer dar a impressão de ter feito o suficiente, tal é a confiança que
tem em sua autoridade. Tinha de ser provado se nós nos emi~enhamosconi
nossas forças; ela, porém, prova que quem ora se esforça por alguma coisa.
Pergunto: acaso zomba de nós? Porventura escarnece dos papistas? O que
ora, ora por meio do Espírito; e até o proprio Espirito ora em nós (Rm 8.15).
De que maneira, pois, se prova o poder do livre-arbítrio mediante o esforço
do Espírito Santo? Acaso o livre-arhiirio e o Espírito Santo si70 a mesma coi-
sa para a Diatribe? Acaso debatenios agora acerca do que pode o Espirito?
Portanto, a Diatribr me deixa intacta e invicta esta passagem de Jeremias, e
só é capaz de produzir essa glosa de sua própria cabeça: "Nos também nos
empenhamos com as forcas". E Lutero é forçado a crer nisso, bastando para
isso que queira.
A mesma coisa se dá com aquela passagem de Provérbios 16.1: "Ao ser
humano cabe preparar o coração, mas ao Sriihor, governar a língua". Ela diz
que tambkm [isso] conceriic aos resultados das coisas, como se com este seu
dito próprio, desprovido de outra autoridade, pudesse satisfazer-nos. E ceita-
iiiente nos satisfaz eni demasia, pois, tendo nós admitido a compreensão refe-
rente aos resultados das coisas, vencemos por inteiro segundo o que dissemos
há pouco, pois, uma vez que a liberdade do arbítrio é nula em nossas coisas
e obras, muito mais nula há de ser nas coisas e obras divinas. Mas vê que argú-
cia a sua: "Como cabe ao ser humano preparar o coraçâo, já que Lutero afir-
nia que tudo se 1,rodor por iiecessidade?"?" Respondo: visto que os resulta-
dos das coisas não estão em nosso poder, como tu inesmo dizes, de que rira-
iieira cabe ao ser humano produzir as coisas? Aquilo que iiie terias respondi-
do, assume como resposta para ti. Sim, justamente por serem incertas todas
as coisas futuras deve-se obrar ao máximo, como diz Eclesiastes: "Semeia pe-
la manhã tua semente, e não pares de trabalhar a tarde, pois não sabes se nas-
cerá esta ou aquela" [Ec 11.6]3si,Digo que [as coisas] nos são incertas no to-
cante ao coiihecimento, iiias necessárias no tocante ao resultado. A necessida-
de 110s incute o temor a Deus, a fim de que não fiquenios presunçosos e segu-
ros. A incerteza, porém, faz nascer a fé para que não desesperemos.
Contudo, ela volta a sua velha cantilena de que no livro dos Provérbios
são ditas muitas coisas em favor do livre-arbítrio, como por exemplo: "Reve-
la ao Senhor as tuas obras" [Pv 16.31. Diz ela: "Ouves? 'Tuas obras'?" Cla-
ro, porque neste livro há muitas palavras imperativas e subjiintivas, da mes-
ma forma que pronomes da segunda pessoa. Pois é com estes fundamentos
que se prova o livre-arbítrio, como no caso de: "revela", logo as podes reve-
lar; "tuas obras", logo as f'zes. Assim, compreeiiderás que a exprasâo: "Eii
sou Leu Deiis" [Dt 5.61 significa: "Tii me fazes teu Deus". "Tua fé te salvou"
Da Vontade Cativa
[Mt 9.221 - ouves o "tua"? - explica assim: "tu fazes a fé"; então terás pro-
vado o livre-arbítrio. Aqui eu não zombo, mas demonstro que a Diatribe care-
ce de seriedade nesta questão.
Tairibém a passagem no mesmo capitulo, a saber: ''O Senhor fez tudo por
causa de si riiesmo, também o impio para o mau dia" [Pv 16.41, ela formula
com suas próprias palavras, desculpando a Deus por não ter criado nenhuma
criatura má; como se eu tivesse falado sobre a criasão, e não antes sobre aque-
le obrar assíduo de Deus nas coisas criadas, obrar pelo qual Deus move tain-
bém o impio, assim como dissenios acima acerca do Faraó382.
Tampouco parece apertá-la aquela passagem do capítulo 20: "O coração
do rei está na mão do Senhor, ele o inclina para onde quiser" [Pv 21.11. Ela
diz que quem inclina não coage de maneira imediata. Cqmo se falássemos so-
bre a coação, e não antes da necessidade da imutabilidade! Esta é indicada pe-
la "inclinação" de Deus, que não é coisa tão sonolenta e preguiçosa como ima-
gina a Diatnbe, mas, sim, aquele obrar extremamente ativo de Deus, que não
se pode evitar nem mudar, pelo qual, contudo, se tem necessariamente aquele
querer que Deus deu e que arrebata com seu movimento, como eu disse aci-
rna. Além disso, visto que Salomão fala do coração do rei, a Diatnbe conside-
ra'#? que não é correto fazer desta passagem unia sentença genérica, mas que
3 riiesina expressa aquilo que Jó diz noutro lugar: "Ele faz reinar o hipócrita
por causa dos pecados do povo" [Jó 34.301. Ela finalmente admite que o rei
é iricliriado por Deus para o mal, mas de tal inarieira que este permita ao rei
ser movido por [seus] afetos para castigar o povo. Respondo: quer Deus per-
mita, quer incline, o próprio perniitir ou inclinar não se faz a não ser que
Deus queira e atue, pois a vontade do rei não pode evadir-se da ação onipoteii-
te de Deus, já que a vontade de todos, seja boa ou má, é arrebatada a fim de
que queira e faça. Quanto ao fato, porérii, de que fiiemos da vontade particu-
lar do rei uma sentença genérica, considero que não o fizemos nem de manei-
ra inepta, nem indouta. Pois se o coração do rei, que parece ser livre no mais
alto grau e dominar sobre os outros, não pode, contudo, querer exceto aquilo
a que Deus o inclinou, quanto menos o poderá qualquer dos outros seres hu-
manos! E esta conclusão não valeria apenas no tocante ã vontade do rei, mas
também no tocante a de qualquer ser humano. Pois se um ser humano, por
rriais simples que seja sua posição, não pode querer diante de Deus senão aq~ii-
I<)a que Deus o inclina, o mesmo se pode dizer de todos os seres humanos.
Assirn, o fato de Balaão não ter podido fazer o que queria384é um argunicii-
I« evidente nas Escrituras de que o ser humaiio não tem livre escolha dc scii
ilircii« ou obra nem pode executá-los livremente. Se não fosse assim, neiiliiiiii
cI<is tsen~plosnas Escrituras subsistiria.
Depois disso, como tivesse dito que os testemunhos cr>ligidosp o r I,iilcri,
;i p:iriir desse livro podem ser coligidos em grande quanii~kidc,iii;is qiic. 1'i,i
meio de uma interpretação conveniente, podem posicionar-se ora em favor,
ora contra o livre-arbítrio, finalmente aduz38Saquele irresistivel dardo de Aqui-
les de Lutero, João 15.5: "Sem mini nada podes fazer", etc. Também eu elo-
gio o eminente retórico do livre-arbítrio, que eiisina a modelar os testemunhos
da Escritura a bel-prazer por meio de interpretacões convenientes, de maneira
que fiquem a favor do livre-arbítrio, isto é, demonstrem não o que devem,
inas aquilo que nos tiver agradado. Aiém disso, é admirável como finge tenier
este único [dardo] de Aquiles para que o leitor insensato, depois de vencido
aquele [argumento de Lutero], tenha os restantes por demasiadamente despre7iveis.
Eu, porém, observarei a grandiloquente e heróica Diatribe para ver com
que força supera meu Aquiles, ela, que até aqui não feriu sequer um soldado
raso, nein mesmo um ter si te^^^^, mas destruiu a si mesma de modo extremamen-
ic lastimável com seus próprios dardos. Então, depois de ter-se apoderado da
i~alavrinha"nada", estrangula-a com muitas palavras e muitos exemplos, e,
por meio de uma interpretação conveniente, estica-a até o ponto em que "na-
da" pode ser o mesmo que "pouco" e "imperfeito", expondo com outras pa-
lavras aquilo que os sofistas3u7 ensiiiaram até hoje sobre a passagem: "Sem
iiiim nada podeis fazer", ou seja, "nada de maneira perfeita". Com força retó-
rica, ela nos apresenta esta glosa há muito fora de uso e gasta como algo no-
v o , e insiste como se fosse a primeira a aduzi-Ia e [como se] a mesma jamais
tivesse sido ouvida antes, com o propósito de exibi-la para nós no lugar de
i i i i i niilagre. Entrementes, porém, está absolutaiiiente segura e nada pensa so-
Iirc o próprio texto e sobre os posteriores e anteriores, de onde se deve tentar
:iIcan~ara compreens80. Calo-me sobre o fato de, com tantas palavras e exem-
plos, provar que nesta passageiii pode tomar-se o vocábulo "nada" por "poii-
co" e "imperfeito". Como se nós discutissemos acerca de uma possibilidade,
qiiando havia de provar se acaso se deve tomá-lo desta maneira!
Assim, com toda esta magnífica interpretação nada se alcança - se é qric
:ilgo se alcança - exceto tornar incerta e ambígua essa passagem de João. E
ii;io é de admirar, pois a Diatribe se esforça de modo singular em afirmar quc
:is Escrituras de Deus são por toda parte ambíguas para não ser forçada a usá-
!:i*, afirmando por sua vez como certas as opiniões dos antigos para que Ihc
,jc.j;i permitido abusar delas. Certamente uma religião digna de admiração, n;i
< ~ i i : i I as palavras de Deus são inúteis e as palavras dos seres humanos úteis!
O mais bonito, porém, é ver coiiio ela está de acordo consigo mesma. 1'0-
cI~,sctomar "nada" por "pouco". E nesse sentido, diz elaSuR,é bem verdadci-
i < <~iic> iiós não podemos fazer nada sem Cristo, pois ele fala do fruto do Ev;iii-
Da Vontade Cativa
gelho, que é concedido somente aos que permanecem na videira que é Cristo38',
etc. Aqui ela própria confessa que o fruto não é concedido senão aos que per-
manecem na videira, e faz isso na mesma interpretação conveniente pela qual
prova que "nada" é o niesino que "pouco" e "iinperfeito". Mas talvez tam-
bém seja preciso interpretar convenientemente o advkrbio "não" no sentido
de que o fruto evangélico [nos] é concedido em alguma forma fora de Cristo,
ou que nos é concedido um [fruto] módico e imperfeito de sorte que iremos
proclamar que os ímpios sem Cristo, reinando neles e Satanás também lutan-
do contra Cristo3y0,podem produzir algum fruto da vida, isto é, que os inimi-
gos de Cristo atuam em favor de Cristo. Mas deixemos isso de lado.
Aqui quero apenas que me ensinem um modo como se possa resistir aos
heréticos que, com o intuito de fazereni liso desta lei por toda parte nas Escri-
turas, insistem em toiiiar "nada" e "não" por algo "iniperfeito", como: "Sem
ele nada [do que foi feito] se fez" [Jo 1.31, isto é, "pouco". "Disse o tolo
eiii scu coração: 'Não há Deus"' [Sl 14.11, isto é, "Deus é imperfeito". "Ele
nos fez, e não nós a nós mesmos" [SI 100.31, isto é, "iim pouco nós mesmos
nos fizemos". E quem é capaz de enumerar todas as passagens das Escrituras
onde se empregam "nada" e "não"? Acaso dizemos aqui: "Deve-se procurar
por uma interpretação convenienle? No entanto, para neiilium herético é con-
veniente sua própria interpretação. Sem dúvida! Acaso seria isso desatar nós?
abrindo a janela com tanta licenciosidade para mentes corruptas e espíritos fa-
lazes? Creio que para ti, que desprezas a certeza da Sagrada Escritura, tenha
sido conveniente esta licenciosidade na interpretacâo; para nós, porém, que tra-
balhamos com o fim de firmar as consciências, nada de mais inconveniente,
nada de mais nocivo, nada de mais pernicioso nos pode atingir do que esta
"conveniência".
Ouve, pois, grande vencedora do Aquiles luterano: a não ser que tenhas
provado que nesta passagem "nada" não só pode, mas também deve ser toma-
do por "pouco", nada terás alcançado com tanta abundância de palavras e
de exemplos; foi apenas uma luta com palhas secas contra as chamas. Que te-
mos a ver com teu "pode", quando se exige que proves ser "deve"? Se não
consegiiires isso, permaneceremos no significado natural e gramatical do vocá-
bulo, rindo tanto de teus exércitos quanto de teus triunfos.
Onde fica a opinião provável que estatuiu que o livre-arbítrio não pode
querer nada de bom? Mas talvez, por fim, ainda venha, mediante uma gramá-
tica e dialética inteiramente inaudita, a interpretação conveniente de que "nada

389 Tf. Jo 15.5.


390 O tmto latino correspondente a esta o i a ~ á orelativa C: qui rcgnanrr S,araii;i i,) ipsi.5 et mritia
Chrisiwii >>"&!"ante,posse aliquid hucrurn praestare, ... A cdicão dc \Iàlcli hilgctc iiiiia leitura
difcrei~te:it corirra Chri,?iurnpugnar,?. Neslc caso pugnam scna i> vi.iIiii i.\iciilii jpclo pcono~
me ielatiuo qui. Teriamas cnlão por 1reduyRii: qiic, reinando iiclcr S;il,iii;i\. lhil.iiii r.i>iilr;i Cvi.;~
to ... Neste caso, por&ni,dçvccia ser eliiiiiiiada o 0 .A l'i;i\i.. c i i i i < i < l i r \ i i , c.i~.<s,. ii:ii>c\i:i cI;ii:i
ein sua riiifae.
de bom" significa "algo de bom", de sorte que "nada" seja o mesmo que "al-
go", o que teria sido iniyossivel entre os dialeticos, já que são termos coiitradi-
tórios. Oiide fica também aquela nossa convicção de que Satanás é o príncipe
do mundo, o qual, segundo o testemuiiho de Cristo e de paul^'^', reina nas
vontades e lias mentes dos seres humanos, seus cativos e servidores? Acaso o
leão que ruge [I Pe 5.81, o inimigo implacável e irrequieto da graça de Deus
e da salvação humana, permitirá que o ser humano, servo e parte de seu rei-
no, se esforce pelo bem com algum impulso ou em algum momento pelo qual
possa evadir-se de sua tirania? Antes não o incitará e acossará para que quei-
ra e faça com todas as [suas] forças o que e contrário à graça? Ele se enfurc-
ce contra eles a tal ponto que somente os justos e os que agem pelo Espírito
de Deus lhe resistem e querem e fazem o bem.
Tu; que imaginas que a vontade humana é algo situado em uin campo in-
termediário livre, e abandonada a si niesma, facilmente imaginas, ao mesmo
tempo, que h i um esforço da vontade eni direção a ambas as partes, pois pen-
sas que tanto Deus quanto o diabo estão distantes, como se fossem apenas es-
pectadores daquela voiitade inutável e livre; no entanto, que elas, extremamen-

I te belicosas entre si, sejam os instigadores e condutores daquela vontade cati-


va, isso não crês. Crendo-se apenas nisso, fica de pé, de maneira suficientemen-
te forte, nossa opinião, e cai prostrado o livre-arbítrio, como tambem ensina-
mos acima. Pois ou o reino de Satanás nada será nos seres humanos, e assim
Cristo estará mentindo, ou, se o reino é tal qual Cristo o descreve, o livre-arbí-

i! trio nada será a não ser um animal de carga cativo de Satanás, o qual não po-
de ser libertado se antes o diabo 1150 for expulso pelo dedo de Deus.
Dai, itunha Diatribe, creio que compreendas o bastante o que seja c
quanto vale o que teu autor, que detesta a pervicácia da asserção de Lutero,
costuma dizer: Lutero empenha-se muito pela causa com textos das Escrituras
que, no entanto, podem ser esclarecidos com uma só palavrinha. Pois quciii
não sabe disso, que com uma só palavrinha se podem explicar todas as Escrilu-
ras? Sabíamos disso muito bem, mesmo aiites de ter ouvido o nome de Eras-
mo. Mas pergunta-se o seguinte: acaso é suficiente explicar a Escritura coni
uma palavrinha? E isto que se debate: se é explicada corretamente e se devc
ser explicada assim. Que olhe para isso e verá quão fácil é explicar as Escritii-
ras e quão detestável é a pervicácia de Lutero. Verá, porém, que iião só as IJ;I-
lavrinhas tiada conseguem, mas tampouco todas as portas do iiiferiio.

~ Por conseguinte, aquilo que a Diatribe não é capaz de fazer por sua [posi-
ção] afirmativa, façamo-lo nós - ainda que não tenhamos o dever de provai-
a [posição] negativa -, e arranquemos [dele], pela força dos argumentos, qiic
nesta passagem "nada" não somente pode, mas também deve ser toiriado i120
por "pouco", e, sim, por aquilo que o vocábulo significa por natureza. I'nrc.
mos isso, poréin, à parte daquele argumento invicto pelo qual já vencciiios. ;I

~
~p ~

1.1.111: 1:1'fi.12.
391 ('i. .I<>
saber, de que as palavras devem ser maritidas no uso natural de seu significa-
do, a iião ser que se tenha demonstrado o contrário - o que a Diatrihe não
fcz nem pode fazer. Contudo, [lhe] arrancaremos isso em primeiro lugar pela
própria natureza do assunto, ou seja, pelo fato de que foi evidenciado por tex-
tos nem ambíguos nem obscuros [da Escritura] que Satanás é de longe o prin-
cipe mais poderoso e astuto do mundo (como dissemos); enquanto ele reina,
a vontade Iiuinana já não é livre nem existe por seu próprio direito, mas é ser-
va do pecado e de Satanás, não sendo capaz de querer senão aquilo que esse
seu príncipe quer. Esse, porém, não conseiitirá que ela queira algo de bom,
inobstante o fato de que, mesmo se Satanás não iniperasse sobre ela, o pró-
prio pecado do qual o ser humano é servo o sobrecarregaria o bastaiite para
que iião pudesse querer o bem.
Além disso, o próprio contexto das que a Djatribe despreza ar-
dorosamente, embora eu tivesse feito aiiotações suficientes e abundantes sobre
ele em minhas AsserçÕe~~~', obriga a chegar a mesma [conclusão]. Pois assim
prossegue Cristo em João 15.6: "O que não permanecer em mim será lança-
do fora como o ramo da videira e secará; juntam-no, jogam-no no fogo r ar-
de". Digo que isso a Diatribe passou por alto de maneira extremamente retóri-
ca, esperaiido que esta omissão não fosse percebida por luteranos tão incultos.
Vês, porém, que aqui o próprio Cristo é o intérprete de sua parábola do ra-
mo c da videira, e que declara com suficieiite clareza o que quer que se coiii-
preenda pela palavra "nada", a saber, que fora de Cristo o ser humano é lan-
qido fora e seca. Mas o que pode significar ser lançado fora e secar senão ser
ctirregue ao diabo e tornar-se coritinuamente pior? Tornar-se pior, poréin, não
é poder algo ou esforçar-se por algo. Quanto mais o ramo seca mais o ramo
está pronto para o fogo. Não tivesse o próprio Cristo tratado e aplicado esta
parábola dessa maneira, ninguém ousaria tratar e aplicá-la assim. Por conse-
guinte, fica de pé que nesta passagem "nada" deve ser tomado em sentido pró-
prio, de acordo com a natureza do vocábulo.
Vejamos agora também os exemplos com os quais ela prova que, em algu-
iria parte, "nada" é tomado por "pouco", para demonstrar, também neste
ponto, que n Diatribe nada é e nada alcança. Ainda que fizesse algo neste poli-
1 1 1 , mesmo assim nada alcançaria, tão nula é a Diatribe de fora a fora e em to-
do< os sentidos. "Comumente", diz ela394,"afirma-se que quem não alcança
11 que procura nada faz; e, não obstante, com frequència aquele que se esfor-

<;I por algo faz progressos, em alguiiia parte". Respondo: jamais ouvi que é

I'J2 S r . O C O U ~ ~ X L O d e Jo 15.5.
1'13 O título original e: Assertio omnium articulorum MarDiii LutheBper bullam Leonis X ~avis.si-
iiz;iiii d.~nin;iiorum,1520 - (Defesa de todos 9s artigos de Martinho Lutero condenados pcl:,
iccerilc hiilii do papa Leão X, WA VII, 142).E contra o Art. 36 desta obra que se dirige 1nd:i
:i I~i:iliil>cdc Hinsin<i.
1'14 11i;iiiihi.. ii 28.
isso qiie se diz comumente; tu inventas isso por tua própria iniciativa. Como
dizem, devem-se considerar as palavras segundo a matéria subjacente e confor-
me a inteiição de quem faia. Ora, ninguém chama de "nada" aquilo por que
se esforça; quem fala de "nada" também não fala do esforço, mas sim do efei-
to, pois é isso que tem em vista aquele que diz: "aquele iiada faz ou nada al-
cança", isto é, não atingiu, 1130 alcançou. Além disso, ainda que o exemplo
seja válido - o que todavia não é -, ele é mais útil para nós. Pois é isso que
temos sustentado e que queremos ver triunfar: que o livre-arbítrio faz muitas
coisas que, todavia, nada sâo diante de Deus. De que lhe terá adiantado esfor-
<ar-se se não alcança o qcir procura? Por isso, para onde quer que a Diatribe
se volte, ela esbarra [em algo] e refuta a si mesma, como costuma acontecer
aos que defendem uma causa má.
Assim também aduz de maneira irifeliz aquele exemplo de Paulo: "Nem
o que planta e alguma coisa, liem o que rega, mas Deus que dá o crescirnen-
to" [I Co 3.71. Ela diz que aquilo que tem um peso minimo e por si mesmo
é inútil, a isso chama de "nada". Quem chama? Diatribe! És tu que ditas que
o ministério da palavra é inútil por si inesmo e tem um peso iiiíiiimo, quando
L'aiilo o exalta por toda parte com tão grandes lou\,ores, sobretudo em 2 Co-
iiiitios 3.9, onde o chama de "ministério da vida e da glória"? Novamente dei-
xas de considerar a matéria subjacente e a inteiicão de quem fala. Para dar cres-
ciiiiento, o qiie planta e o que rega nada são, mas para plantar e regar não são
iiulos, pois a iiiais elevada obra do Espirito na Igreja de Deus é ensinar e exor-
inr. É isso que Paulo quer e isto as palavras transmitem com suficieiite clare-
/;i. Mas que seja! que valha tambeni este exemplo absurdo; também ele está
;i nosso favor. Pois é disso que tratamos: que o livre-arbítrio nada é, ou seja,
qiie é iriútil por si mesmo diante de Deus, como tu expões; pois é desse gsne-
i o de ser que falamos. não ignorando de que a vontade íiiipia é "algo". e não
i i i i i mero "nada".
O mesmo [se dá com] a passagem de 1 Coríntios 13.2: "Se não tiver anior,
ii:ida sou". Não vejo por que aduz este exemplo, a menos que estivesse preocu-
1p:ido com o número e com a quantidade de palavras, ou tivesse pensado que
iios faltam as armas com que pudéssemos abatê-la. Pois, em verdade e propria-
iiiciitc, quem não tem amor nada é diante de Deus. Assim também ensinanios
:ii.cic;i do livre-arbitrio; por isso, também este exeniplo fica de pé a nosso fa-
rc>i. coiitra a própria Diatnbe. a não ser que, talvez a Diatribe ainda ignore o
l ~ ~ t iqiiei o é objeto de nossa coiifrontação. Pois, como dizem, não falamos so-
I>ico 5c.i da iiatureza, e, sim, sobre o ser da graça. Sabemos que por nature-
/:i 1 1 livre-arbítrio faz algo, como comer, beber, gerar e governar, para que ele
ii;i<i >c i ia dc nós com aquele delírio conio que arguto de que, se forçamos es-
,.;i~';ilovi:i "iiada", nem mesmo se poderia pecar sem Cristo, embora Lutero
ii.iiIi:i ;i<liiiiii<loque o livre-arbitrio de nada vale, a não ser para pecar 395. Até
Da Vontatle Cativa i
este ponto aprouve a sábia Diatribe falar coisas absurdas em um assunto sério.
Pois dizemos que o ser humano, mesmo afastado da graça de Deus, não obs-
tanle permanece sob a onipotência geral do Deus que faz, move e arrasta to-
das as coisas em um curso necessário e infalível; mas o que o ser humano faz
arrastado desta maneira nada é, ou seja, nada vaie diante de Deus, e é conside-
rado nada mais do que pecado. Desse modo quem não tem amor não é nada
na graça. Por que então a Diatribe, embora ela mesma confesse que nesta pas-
sagem tratamos do fruto evangélico, que não é concedido sem Cristo, se des-
via aqui imediatamente do estado da questão e cavila numa outra canção e
em discursos sobre a obra natural e o fruto humano? A menos que quem este-
ja privado da verdade não esteja de acordo consigo mesmo em nenhuma parte!
O mesmo se dá com aquela passagem de João 3.27: "O ser humano não
pode receber coisa alguma, a não ser que lhe tenha sido dada do céu". João
fala do ser humano que em todo caso já era algo, e nega que este receba algu-
ma coisa, a saber, o Espírito com [seus] dons; pois é disso que falava, e não
da natureza. Pois tampouco ele teve necessidade de que a mestra Diatiibe lhe
ensinasse que o ser humano já tem olhos, narinas, ouvidos, boca, mãos, men-
te, vontade, razão e tudo o que há no ser humano - a menos que a Diatribe
creia que o Batista tenha sido tão delirante que, quando mencionou a palavra
"ser humano", tenha pensado no caos de Platão, no vácuo de Leucipo ou
no infinito de A r i s t ó t e l e ~ ~ou~ ~num
, outro nada que, por meio de um dom
do céu, viria por fim a tornar-se algo. Isto sim é exibir exemplos das Escritu-
ras quando se brinca desta maneira em um assunto de tamanha importância!
A que se refere, portanto, essa eloqüência com que nos ensina que o fogo, a
ruga do mal, a inclinação para o bem e outras coisas mais vêm do céu, como
se alguém ignorasse ou negasse isso? Nós falamos sobre a graça e, como ela
mesma disse, de Cristo e do fruto evangélico, ao passo que ela, tendo entre-
mentes fabulado sobre a natureza, gasta o tempo e estende a questão envolven-
do o leitor inculto em fumaça.
Enquanto isso, porém, ela não só deixa de exibir aquele exem~loem quc
toma "nada" por "pouco" - assim como se propusera fazer -, como tani-
bém revela abertamente que não compreende o que seja Cristo ou a graça oii
em nada se preocupa com isso, ou em que sentido a graça é diferente da natil
reza, coisa que mesmo os sofistas mais incultos souberam, tendo repisado cs-
ia distinção em suas escolas de modo extremamente corriqueiro. Ao mcsriio
icmpo, ela não vê que seus exemplos falam em tudo a nosso favor e contra cl;i.
Pois a palavra do Batista de que o ser humano nada pode receber se não Ilic
tiver sido dado do céu faz com que o livre-arbítrio nada seja. Desla maiicir:~.
i: vencido meu Aquiles, pois a Diatribe lhe alcança as armas com quc ela, drs.
pojada e desarmada, é destruída. Assim, por meio de unia só palavriiili;~sc
csclarecein as Escrituras com as quais Lutero, aquele defensor prcvic;iz, I:iiiio iiisisic.
Depois disso, ela enumera muitos exemplos com os quais nada faz senão,
C-oinoé de seu costume. desviar o leitor estulto nara temas estranhos.. esauecen-
A

do-se, neste meio tempo, inteiramente da questão. Por exemplo: Deus certa-
iiicnte preserva a embarcação, mas ainda assim o navegador a conduz ao por-
i i r ; por isso, o navegador faz algo. Esta analogia atribui [a cada um] uma
~>l>ra distinta: a Deus a de preservar, ao navegador a de conduzir. Além disso,
ila prova - se é que prova algo - que toda obra de preservação é de Deus,
i. toda obra de condução do navegador; e, não obstante, é uma analogia bela

c apropriada. Assim, o agricultor colhe a produção, mas foi Deus que a deu;
iiovamente são distintas as obras atribuídas a Deus e ao ser humano, a menos
quic ela faça do agricultor simultaneamente o criador que deu a produção. Po-
i-tin, ainda que se atribuam as mesmas obras a Deus e ao ser humano, que
conseguem mostrar estas analogias? Nada, exceto que a criatura coopera quan-
CIO Deus atua.
Mas acaso debatemos agora sobre cooperação, e não antes sobre a pró-
pria força e atuação do livre-arbítrio? Para onde foge então esse retórica, que,
icrido a intenção de falar da palmeira, fala exclusivamente da cabaça? Come-
<ou-se a manufaturar uma ânfora; por que saiu um jarro3"? n m b é m nós sa-
Iiciiios que Paulo coopera com Deus na instrução dos coriutios. Enquanto ele
prega exteriormente, Deus ensina interiormente, também numa obra distinta39x.
I>c niodo semelhante, também coopera com Deus quando fala no Espírito dc
Ilcus, e isso na mesma obra3w. Por isso asseveramos e sustentamos: que Deus,
<~iiaiido opera tudo em tudo sem a graça do Espírito, também atua nos ímpios,
visto que sozinho também move, impele e arrasta tudg o que criou sozinho
lpclo in~pulsode sua onipotência que as coisas criadas não podem evitar nem
iiiudar, mas necessariamente lhe seguem e obedecem, cada uma de acordo com
o poder que lhe foi concedido por Deus; assim, tudo o que existe coopera com
clc, também o que é impio. Além disso, ali onde ele atua pela graça do Espíri-
1 0 iiaqiicles que justificou, isto é, em seu reino, de igual modo os impele e mo-
vc, c csses, como são nova criação, lhe seguem e cooperam, ou antes, como
diz I1uulo, são guiado+.
Mas não era este o lugar para isso. Não debatemos sobre aquilo de que
siiiiios capazes quando Deus atua, mas sobre o que nós próprios podemos; a
s;ilicr, sc iibs, que já fomos criados a partir do nada, fazemos ou nos esforça-
iiios por flizcr algo sob aquele impulso geral da onipotência a fim de nos prc-
p;ii;iiiiios para a iiova criação do Espírito. Aqui devia-se dar uma resposta, e
ii;io ic~iii;iriiin dcsvio para outro assunto. Pois aqui respondemos da seguiiilc
iii;iiicii.;i:~issiiiicoiiio, ai~tesde ser criado, o ser humano nada faz para ser Iiii-
iii:iiio, oii ciii 11:lda sc esforça para tornar-se uma criatura, assim também, dc-
11c)ih clr kifi) i ri-i:i(lo. clc iimla faz oii em nada se esforça para permaiiecer cria-
tura; ambas as coisas acontecem somente pela vontade do onipotente poder
e bondade de Deus, o qual nos criou e nos preserva sem nossa ajuda, mas não
atua em nos sem nós, ja que 110s criou e preservou para que atuasse ein nós e
nós cooperássemos com ele, quer isso ocorra fora de seu reino pela onipotên-
cia geral, quer dentro de seu reiiio pelo poder sitigular de seu Espírito.
Ademais dizemos o seguinte: antes de ser renovado em nova criatura do
reino do Espírito, o ser humano nada faz e em nada se esforça a fim de prepa-
rar-se para esta renovaç'ão e este reiiio; depois de recriado, nada faz e em na-
da se esforça para permanecer nesse reino, mas somente o Espírito faz ambas
as coisas ein nós, recriaiido-nos e preservando-nos sem nós como também diz
Tiago: "Gerou-nos de livre vontade pela palavra de seu poderJ0', para que fôs-
semos as primicias de suas criaturas" [Tg 1.181. Tiago fala da criatura renova-
da. Mas Deus não atua sem nós, pois para isso mesino nos recriou e nos pre-
serva: para atuar em nos e cooperarnios com ele. Assiiii, é por nosso intermé-
dio que prega, tem misericórdia dos pobres e consola os aflitos. Mas que se
atribui ao livre-arbitrio a partir dirso? E mais: que Ilie sobra? Nada! Real-
mente nada!
Lê, pois, cinco ou seis páginas da Diatribe onde ela, depois de aduzir pas-
sagens e parábolas belíssimas do Evangelho e de Paulo, nada faz senão ensi-
nar-nos que nas Escrituras se encontrani iiiumeráveis passagens que, como ela
diz, instriiem sobre a cooperação e os aiixílios de Deus. Se eu então deduzir
destas passagens que o ser humano nada pode, exceto pela graça auxiliadora
de Deos, e que, portanto, as boas obras do ser humano são nulas, ela, por
meio de uma inversão retórica, deduz em contrário o seguinte: "Antes", diz
ela, "o ser humano tudo pode pela graça auxiliadora de Deus, portanto todas
as obras do ser humano podem ser boas. Portalito, há tantas passagens tias
Escrituras Divinas a mencionar os auxílios quantas há as que estatuem o livrc-
arbítrio; essas, porém, são inumeráveis. Conseqüentemente, se avaliarinos a
questão de acordo com o número de testemunhos. eu terei vencido". É isro
que ela diz402.Acaso achas que a Diarribe estava sóbria o bastante oii em scii
são juuo quando escreveu essa? coisas? Pois não atribuirei isso a sua malícia
e perversidade, a menos que talvez tenha intencionado dar cabo de mim por
meio de iim tédio continuo, enquanto vai tratando, seinpre e em toda pnric
idêntica a si mesma, de temas diferentes dos que se propòs. Mas se lhe caiis~ii
prazer dizer disparates em um assunto tão importaiite, também rios causa 1 i i ; i . ~
zer ridicularizar publicamente seus disparates deliberados. Em priniciro liig;ii,
nós não discutimos e não ignoramos que todas as obras d o ser hiin~anoIu>s\;iin
scr boas se acontecem pela graça auxiliadora de Deus. Poréin, iião coiiscgiii
irios admirar-nos o bastante de tua negligência, pois embora (c pn)l>iiscssrsrs
Da Vontade Ca1iu;i

(:rever a respeito da força do livre-arbítrio, escreves sobre a força da graça dc


Ocus. Além disso, te atreves a dizer publicamente, como se todas as pessoas
I'ossem troncos e pedras, que o livre-arbítrio é estatuido por meio das passa-
vens da Escritura que enaltecem o auxilio da graça de Deus; e não ousas so-
iiicnte isso. mas também cantas o próprio encômio como vencedor e triunfa-
I dor gloriosíssimo. Agora realmente sei, a partir de teu próprio dizer e fazer.
1 ,i que consegue o livre-arbitrio, a saber: ser e ficar desvairado. Peço-te: quc
I 11ode haver em ti que fale desta maneira, salvo o próprio livre-arbítrio? Ain-
i <Iaassim, ouve tuas próprias conclusòes: a Escritura eiialtece a graça de Deus,
i logo prova o livre-arbitrio; eiialtece o niixílio da graça de Deus, logo estatui o
livi-c-arbítrio, Por meio de qiie diaiitica aprendeste essas conclusòes? Por que
iiio [dizer] o coiitrario: prega-se a graça, logo suprime-se o livre-arbítrio; eiial-
i~,ce-seo auxilio da graça, logo destrói-se o livre-arbitrio. Para que fim, pois,
SI. confere a graça? Acaso para que a soberba do livre-arbítrio, siificientementc
l.oi-lc por si mesma, piile e brinque com a graça nos dias de bacana], como se
cI;i hsse iim ornamento siipérfluo? Por isso, embora não seja um retórica, tani-
I ICiii cu inverterei a conclusão mediante uma retórica mais sólida do que a tua:
i Ii:i iaritas passagens nas Escrituras a mencionar o auxílio quantas há as que su-
l i~riiiicmo livre-arbítrio. Mas essas são iiiumeráveis. E assim, caso se conside-

I
i I i . ;i qiiestão de acordo com o número dos testemunhos, eu é que terei venci-
i l i n ; pois para isso é necessária a graça, e para isso se confere o auxilio da gra-
(:i: porqiie em si mesmo o livre-arbitrio nada pode, e, como ela própria disse

i~:i<lil~la opinião provável, não pode querer o que é bom. Assim, quando sc

1 <.ii:iliccea graça e si: prega o auxílio da graça prega-se, simultaneainente, a im-


ix~ii.iiciado livre-arbítrio. Esta é uma conclusão sensata, uma conclusão confir-
~ii:iiliique nem inesmo as portas do inferno irão subverter.
Aqui colocaremos iim fim a defesa de nossos argumentos refutados pcla
11i:rrril~epara que o livro não se toriie demasiadamente volumoso; caso seja
< l i , : i i < ~de tratamento, o restante será considerado em meio ao que devemos afir-
I I I : I II'ois . daquilo que Erasrno repete no EpílogoW3- que, se nossa opiiiião
Ii~-:i\\cde pé, seriam vãos todos os preceitos, ameaças e promessas, e não resta-
i !:i Iiig:ir nem para os méritos, deméritos. recompensas ou castigos; e que, adc-

~ii:ii\.\cria difícil defender a misericórdia e mesmo a justiça de Deus se o mch-


I I O C ? c<tii~lciinsse os que necessaiiamente pecani -, bem como d o outros incoii-
r~~iiiciiics scguiiites que tanto incoiiiodaram a honiens ilustrís~inios,inclusive
.i iuuiio dc abatê-los: disso tudo prestamos contas acima. Não toleramos iiciii

. i ~ ~ ~ i i : i iaquele~ i o s meio termo que - de bom coraqão, creio eu - rios acoiisc-


I l i 8 ) i i . ; I ~:ilicr:qiic admitamos o livre-arbítrio [ao menos] um pouquinho, ;i f i i i i
'.~illiiiiiiriii~iisfiiciliiicrite a contradição das Escritiiras e os inconvciiicriich
I ~.lc!i<li,s ;iiilcrioriiiciitc. Pois com cste meio-termo nada se rcsolvcu da rliicsi;io,
C I ; I I I I I ~ ~ B ~se
I Cprogi-ccliii
U iialgtiliin coisa. Pois n iiienos quc tenlias iitiihiii<lo o

I
Ua bro'ontadeCativa

todo e tudo ao livre-arbítrio, a exemplo dos pelagiaiiosW, permanece a contra-


disso na Escritura; suprime-se o mérito e a recompensa; suprime-se a miseri-
córdia e a justiça de Deus; e permanecem todos os inconvenientes que quere-
mos evitar por meio da força mediocre e ineficaz do livre-ai-bitrio, como ensi-
namos acinia. Por isso deve-se chegar ao extrenio de negar todo o livre-arbi-
trio e atribuir tudo a Deus; desta maneira as Escrituras não entrarão em con-
tradição, e, se é que os inconvenientestião são afastados, são belo menos] tolerados.
Todavia te suplico o seguinte, caro Erasmo: que não creias que defendo
esta causa mais por animosidade do qiie por discernimento. Não aturo ser acu-
sado dessa hipocrisia de opinar de um modo e escrever de outro; nem fui, co-
mo tu escreves a meu respeito, arrastado tanto pelo ímpeto apologético a pon-
to de somente agora negar todo o livre-arbítrio, enquanto que antes lhe teria
atribuído alguma faculdade405.Sei que tampouco iiie mostras isso em qualquer
parte de meus livros. Existem teses e tratados nos quais continuamente afir-
mei. até o presente momento, que o livre-arbitrio nada é, sendo realidade so-
iiicnte enquanto nome (é essa a expressão que usei na o c a s i ã o ) ~ Assim
. opi-
nei e escrevi, vencido pela verdade e provocado e compelido pelo debate.
Reconheço, porém, a culpa por me ter conduzido de maneira um tanto im-
(ictuosa4" - se é que ai existe culpa; e atS me alegro extrernaitientt. por ser-
iiic concedido no mundo este testemunho no tocante a causa de Deus. Mas to-
iiiara que até o próprio Deus confirme este testemunho no dia derradeiro!
I'ois quem seria então mais bem-aventurado que Lutero, t i o enaltecido pelo
icstcmunlto de seu séçiilo de que não defendeu a causa da verdade de maiici-
i-a iibia ou fraudulenta, mas bastante impetuosa, ou, antes, demasiadamcnic
iiiipetuosa? Felizmente, nesse caso, eu me esquivaria daquela passagem de Jerc-
iiiias: "Maldito o que faz a obra do Senhor negligentemente" [Jr 48.101. Cor:. I
iiido, se eu der a impressão de ser muito acerbo çoni tua Diarribe, qiie to iiic
pcirloes. Pois tampouco faço isso com má inteiicão; irritou-me, porém, o I';!.
l i > de que por tua própria autoridade oneravas esta causa de Cristo, ainda qiic.
c111termos de erudição e do próprio assurito, nada apresentasses. Ora, <(iiciii

4114 1'cl;igianos - cf. acima n. 111.


.I!)< N;i verdade, rr encontram eiii alguiis escritos do jovem I.utero lreçlior cluc aliiliiiriii ;iI~:iiiii;i
I.iciil<ladcao lirie-arbitrio. Por excniplo, elii l>iclara super P.wlteriuin. 1113-1616 (WA 1 \'..>'15)
>c lê: Ariirna mea esr in poresraie mea a in Iibeiíritrm .vbirrii pos.s<inieiirii j>oilctr. i1.1 uiliiiic
<,l<xciido aur rcprovar>doI c m luam - (minha alma esta e m meu p<i<lrc. e <>;i lilivi<l.iilr <I<\
.iil>iiiioporio salvá-la ou pcrdêli. escolhendo ou iejcitariilo tiia Içi). N<> Si.rriii~ ili. ,'il>ltii.i\;r
i>iiiiiiact volui~fate,1514, Luiera reconhece que o homem tcni ;i cap;iciil;iilc iIc "lii>i c,lai;ii ii
I i n " e "rrsiiiir à gra~a".llifirilmente, porCm. Erasmo rcvr ronhccitiiciiici iIi,\\r\ r<i.i iiivr.
,liK <'i.,>.~,<e>io o,iiiiii,m ;rriicuIor<iniA 1 I ., cic. (v. ri. 3611) c O Ilcl,;cri <IL. Ilci<lill~rti:.I,IH,
<ilicir Sclcci<irioda,~ v . I , (ip. 15ss. De ; i c i < i \ ariicii<i<e.;: <Jtim3i;<i <kv i r i l i t o cr v o l ~ i i i r . i l <Ii.uui
~
r i i i rinc giiil;:, <Ii.spillal;i,ISlb, WA 1.145si.
,1117 Nii i i i i i <I;! I)i:ird,e. I'i;$riii<i cri1ic;i ,i\ cr;igriiih <Ic l , t l l c r ~~>c t ~ i i ~ ~ l irtll~lrit
llo$ :t ~ l t l l t l # i t rl<.,lii.,
~,~
!li:! :i !c\piiii>iI:i\ iiiiliili~?rici;i\. <li> ~p~r~:;iii\tii>.
< I < i \ <Ii,cii.iii\iril>;iir r i l i v ipiiiti:~<li>. ~i.iiiiiii.iiiliiti
<Iii itiii;! ii.i,iiiii;i i i i ; i i \ iii<iilci.iil;i.
i:oiisegue governar sua pena por toda parte para que ela n3o venha a formigar
cm algiini lugar? Até tu, que por causa de teu empenho pela moderação qua-
sc ficas gelado neste livro, lanças, não obstante, frequentemente dardos infla-
iiiados e mordazes, de sorte que pareces virulento a não ser que o leitor seja
iiiiiito achegado e favorável [a ti]. Nada disso, porém, diz respeito a questão,
c de bom grado devemos perdoar estas coisas de paite a parte. Isso porque so-
1110sseres humanos, e em nós não há nada que fosse estranho ao humanoa8.

[ Quarta Parte 1
Cliegamos a última parte deste livro, parte em que, como prometemos,
ilçvemos fazer avancar nossas tropas contra o livre-arbitrio. Contudo, não as
:ipresentareinos todas; pois quem conseguiria fazer isso em um pequeno livro,
i~iiandotoda a Escritiira fica ao nosso lado em cada til e em cada letra? Mas
iiio é necessário [fazê-lo]. Eiii primeiro lugar, porque o livre-arbítrio já foi ven-
<.idoe ficou prostrado mediante uma dupla vitória: uma vez lá onde provamos
que tudo que ela considerava estar a seu favor se coloca contra o livre-arbítrio;
outra vez onde demonstramos que o que ela quis refutar ainda permanece
irlvicto. Eiii segundo lugar, se o livre-arbítrio ainda não estivesse vencido, ter-
,>c-iaconseguido o bastante se fosse derrubado por qualquer um dos dois dar-
,li~s.Pois que necessidade há de dilacerar, com uma série de outros dardos, o
iiiorto, o inimigo abatido por um dardo qualquer? Portanto, se o assunto per-
iiiiiir. agora conduzireinos a discussão de modo mais abreviado. E, dentre
i1111 número tão grande de exércitos, faremos avansar dois coniandantes com
;ilr:~imasde suas legiões, a saber, Paulo e o evaiigelista João.
Ao escrever aos romanos, Paulo começa a controvérsia contra o livre-arbi-
iiio e em favor da graça de Deus da seguinte maneira: "A ira de Deus", diz
c.lc.. ''irvela-se do céu sobre toda a impiedade e injustiça dos seres huinanos
(~iicdetêm a verdade de Deus na injustiça" [Rm 1.181. Ouves aqui a sentença
i:riiGrica, pronunciada sobre todos os seres humanos, de que estão sob a ira
GIL, I>çur? Que significa isso, senão que são dignos da ira e do castigo? Ele atri-
111ii ;I causa da ira ao fato de fazereni somente o que é digno da ira e do casti-
!:i>,certamente porque todos são impios e injustos e detêm a verdade na injus-
iii.:~. Onde está agora a força do livre-arbitrio que se empenha por algo bom?
1':iiiIo torna o livre-arbítrio digno da ira de Deus, e o declara ímpio e injusto;
iii:is o cliie merece a ira e é ímpio opõe-se a graça e prevalece contra ela, e não
. I ~ I I : I VIII favor d a graça.
Aqiii cle vai rir da sonolência de Lutero, que não examinou Paulo suficien-
i~.iiiciiic;c alguém dirá que ali Paulo não fala de todos os seres humanos nem

lili< , S i i i i i i i \ bi,iiiiiic\ c Iiii,ri;ii,i ;ilicriiiiii i i ~no11i.sniliil e,u, iio origin;il. I.iitero cita o coriliccido vcr-
,.i) <Ir li.r<:riii,,1.1.25: 11i,iiri, riisii; 1iririi;iiii iiil>il:i inc ;ilieriiirri ,>iilo. - -- ( S i ~ tini i sci liii!ii;iili>:
i. ii.ii, i i c i i i q i i i . Ii:ii;i i.oi i i i i i i i :iIxi> i ~ i LIA<>
~ r \c,;( 1111~1:t11<)).
Da Vontade Caiiw
de todos os seus empenhos, mas apenas daqueles que são impios e injustos e,
como rezam as palavras, daqueles que detêm a verdade ria injustiça, não seguin-
do-se disso que todos sejam de tal natureza. A isso respondo que em Paulo
dá no mesmo se disseres "sobre toda a impiedade dos seres humanos" ou "so-
bre a impiedade de todos os seres humanos". Pois Paulo faz uso de hebrnis-
mos quase que por toda parte, de sorte que o sentido é: "Todos os seres huma-
nos são impios e injustos e detêm a verdade na injustiça, por isso todos são
dignos da ira". Além disso, em grego não se põe a forma relativa "daqueles
que", mas sim um artigo, da seguinte maneira: "A ira de Deus se revela sobre
a impiedade e injustiça dos seres humanos deteritores da verdade lia injustiça";
de modo que "detêm a verdade na injustiça" vem a ser como que uma qualifi-
cacão de todos os seres humanos. Da mesma forma como é uma qualificação
quando se diz: "Pai iiosso que estás nos céiis", coisa que de outro modo dir-
se-ia assim: "Pai nosso celestial" ou "nos céus". Pois [assim] se diz para deno-
tar a diferença em relação aos que crêem e são piedosos.
Mas isso seria trivial e vão se a própria controvérsia de Paulo não forças-
se este resultado e convencesse dele. Pois antes Paulo havia dito: "O Evange-
lho é o poder de Deus para a salvação para lodo o que crê, primeiro para o
judeu e também para o grego" [Rm 1.161. Aqui não há palavras obscuras ou
ambíguas: aos judeus e aos gregos, ou seja, a todos os seres humanos, é neces-
sário o Evangelho do poder de Deus, a fim de que, crendo, sejam salvos da
ira revelada. Pergunto: quem proclama que os judeus, poderosos pela justica,
pela lei de Deus e pela força do livre-arbítrio, são indistintamente vazios e ca-
rentes do poder de Deus - poder pelo qual são salvos da ira revelada -, c
quem também Ihes apresenta esse poder çoirio necessário, acaso não ira [igual-
mente] declarar que eles estão sob a ira? Ora, que seres humanos apresentarás
como nâo sujeitos a ira de Deus, quando és forçado a crer que as pessoas
mais notáveis deste mundo, por exemplo os judeus e os gregos, estão nesta
condição? Aléni disso, a quem excetuarás entre os próprios judeus e gregos,
já que Paulo, após abarcar a todos indistintamente numa única palavra, sub-
mete todos a mesina sentença? Acaso deve-se considerar que nestas duas II;I-
coes tão excelentes não houve pessoas que se inclinassem para o que é honi-;i-
do? Porventura alguns não se empenharam conforme as forças do livre-arl~i-
trio? Mas, não se atendo a nada disso, Paulo lança todos sob a ira declaraii
cio todos impios e injustos. Acaso não se deve portanto crer que também o<
nutros apóstolos, cada um em sua area de atuação, lançaram, em termos scnic
Ihaiites, todos os outros povos sob esta mesma ira?
Em conseqüência, esta passagem de Paulo fica finnemente de pé, insisiiii
clo que o livre-arbítrio ou "o que há de mais excelente" nos seres huinaiio\
- por inais excelentes que estes fossem no tocante a lei, justiça, sabedoriii r

iixlas as virtudes que possuem - é impio, injusto e digno da ira de Dcus. N;MI
I'osse assim, a controvérsia de Paulo não teria validade. Se, no cntarito, iciii
v:ilidndc, sua partição não deixa nerihum estado intcrinediário: disirihiii ;isi11
.;- aos que crêeiii rio Evangcllio. e a todns os oiitros ;i ira; Iorii:~jiislob 05
v..I(..IO
Da Vontade Cativa
-
que crêem, e injustos e sujeitos a ira os que não crêeiii. Pois o que ele quer
dizer é apenas o seguinte: a justiça de Deus revela-se no Evangelho, isto é, a
partir da fé; por conseguinte, todos os seres humanos são ímpios e injustos.
Pois seria estulto o Deiis que revelasse aos seres humanos a justira que já co-
nhecessem oii cuja semeiite já tivessem [em si]. Contudo, lima uez que Deus
não é estulto, e, não obstante, Ilies revela a justiça da salvação, fica matiifes-
to que o livre-arbítrio não somente carece de qualquer faculdade ou poder
mas que nem mesitio sabe o que e justo nas pessoas mais distintas diante de
Deus; a não ser que talvez a justiça de Deus não seja revelada àquelas pesso-
as, mas somente as mais inferiores - contra isso gloria-se Paulo, dizendo ser
devedor de judeus e gregos, de sábios e a néscios, de bárbaros e gregosm.
De modo que, nesta passagem, Paiilo encerra todas as pessoas sem exce-
ção riuma única massa humana, e coucliii que todos são ímpios, injustos e ig-
norantes da justiça e da fé, tal e a distância que os separa da possibilidade de
querer ou fazer algo de bom. E esta conclusão é sólida pelo fato de Deus Ihes
revelar a justiça da salvação conio a seres ignorantes e sentados em trevas, que,
portanto, a igiioram por si mesnios. Mas os que ignoram a justiça da salvaçfio
certaniente estão sob a ira e a condenação, e. por causa da ignorância, tampou-
co podem sair daí por si mesnios ou esforçar-se para que sejam daí tirados.
Pois que esforço podes fazer se não souberes por que deves te esforçar, nem
coiiio, onde e até que ponto se esforçar?
Com esta conclusão concordam o próprio tema e a experiência. Pois mos-
ira-me em todo gênero dos mortais um único ser, ainda que seja o mais san-
i o e justo de todos, ao qual tenha ocorrido alguma vez que o caminho para a
iiistica e a salvação e crer naquele que é simultniieameiire Deus e homem, mor-
io pelos pecados dos seres humanos e ressuscitado e colocado à direita do Pai;
ou mostra-me quem tenha sonhado com esta ira de Deus, da qual Paulo diz
;iqiii ser revelada do céu. Atenta para os mais importantes filósofos que opinki-
iaiu a respeito de Deus; vê o que deixarani escrito sobre a ira futura. Obser-
va os judeus, constantemente instruidos por tantos sinais e tantos profetas; ví.
o que pensam deste caminho. Não só não o receberam, mas o odiaram tanto
qiie nenhuma nação debaixo do céu perseguiu a Cristo com maior ferocidndc
; i t t o dia de hoje.
E quem ousaria dizer que em um povo tão grande não tivesse havido uiii;i
iiiiica pessoa que tivesse cultivado o livre-arbítrio e se empenliado coin sua Iix-
$,:i'? Como acontece, então, que todos se esforçam na direção oposta, e qiic
;iqiiilo que de mais excelente houve nas mais excelentes pessoas não só não c111
iivoii 1x13 forina de justiça, não só a ignorou, mas também a repeliu coiii sii
iiio Odio depois de anunciada e revelada, quereiido destrui-la? Tanto é quc 1';iii-
Ih <liL,ciii I Coríutios 1.28, que este caminho é escândalo para os judeiis c cs-
i i i l l i ~ . i ; i para os gentios. Porém, como ele irienciona indistintamenic 0 s iiirlcii.;
Da Vontade Cativa

e os gentios, e como é certo que os judeus e os gentios são os principais povos


debaixo do céu, igualmente é certo que o livre-arbítrio nada mais é que o su-
premo inimigo da justiça e da salvação humana, já que é impossível que pelo
menos alguns entre os judeus e os gentios não tenham agido e se empenhado
por meio da força do livre-arbítrio, ainda que, por isso mesmo, nada tenham
feito senão travar guerra contra a graça.
Vai agora e diz que o livre-arbítrio se esforça para o bem, quaiido para ele
a própria bondade e justiça são escândalo e estultícia! Tarnpouco podes dizer
que isso diz respeito a alguns, mas não a todos. Paulo fala de todos indistinta-
mente quando diz: "estulticia para os gentios e escândalo para os judeus" [I
Co 1.181, e não excetua a ninguém a nZo ser os crentes. "Para nós", diz ele,
isto é, para os cliamados e santos, "é poder e sabedoria de Deus". Não diz "pa-
ra alguns gentios, para alguns judeus", mas simplesmente "para os gentios e
judeus que 1120 são de nosso meio", separando por uma partição evidente os
crentes dos incrédulos sem deixar nenhuni estado intermediário. Nós, porém,
debatemos acerca dos gentios que agem sem a graça; para estes, diz Paulo, a
justiça de Deus é uina estultícia a qual têm horror. E este é o louvável esfor-
$0 do livre-arbítrio para o bem.
Além disso observa se acaso o próprio [Paulo] não menciona os mais emi-
nentes dentre os gregos lá onde diz que os mais sábios entre eles se tornaram
estúpidos e ficaram com o coração obscurecido, tendo igualmente se tornado
fúteis em seus raciocínios, isto é, em seus debates sutis41o.Pergunto: ao tocar
aqui em seus raciocinios, acaso não toca naquilo que de mais elevado e mais
excelente houve entre os gregos? Pois estes são seus mais elevados e melhores
pensamentos e opiruões, os quais tiveram por sólida sabedoria. Assim, porém,
como alhures diz que esta sabedoria é estulta, diz também aqui que neles ela
é fútil, e que, ao esforsar-st por muitas coisas, chegou ao ponto de tornar-sc
ainda pior; de sorte que, por fim, eles adoravam ídolos com o coracão obscii-
recido e realizavam as monstruosidades dai resultantes relatadas por ele4".
Por conseguinte, se o melhor empenho e obra nos melhores dentre os gcii-
tios é mau e ímpio, que achas da multidão restante, ou, por assim dizer, dos
gentios piores? Pois nem mesmo aqui ele faz distinção entre os melhores, vis-
to que condena o empenho de sua sabedoria sem nenhuma consideração dc
liessoas. Quando, porém, a própria obra ou empenho é condenado, condcii;i-
\c todos aqueles que se empenharam, ainda que tenham agido pela iii6xiiii:i
i'orca do livre-arbítrio. Digo que declara vicioso inclusive o seu melhor csll>i--
vo; quanto mais aqueles que o exercem! Assim também rejeita imediai~iiiiciitc.
sciii qualquer distinção, os judeus que são judeus na letra e nZ« no cspirito'".'.
lilc diz: "Tu desonras a Deus por'meio da letra e da circuncis.ii>". I>c i&:ii:il
iiiodo diz: "Pois não é judeu quem o é manifestamente, c, sini, qiiciii 11 C si'
~rctamente" [Rm 2.27ss.l. Há algo mais claro do que esta divisão? O judeu
-
iiianifest? e transsressor da lei! Mas mantos iudeus consideras terem existido
que, sem a fé, foram homens extremamente sábios, religiosos e honrados, ten-
cio se esforçado com o máximo empenho pela justiça e pela verdade? Como,
iiliás, [Paulo] lhes dá testemunho muitas vezes de que têm zelo por Deus, de
que aspiram a justiça da lei, de que se empenham de dia e de noite para che-
!:ar a salvação, de que vivem de maneira irrepreensível. E, não obstante, são
iransgressores da lei, porque não são judeus no espírito e até resistem pertinaz-
iiiente a justiça da fé. O que resta, ent50, exceto que o livre-arbítrio é o pior
ao ser o nielhor, e que, quruito mais se esforça, tanto pior se torna e se coiii-
porta? As palavras são claras; a divisão é certa; não 1iá nada que se possa di-
/cr em coiitrário.
Mas ouçamos a Paulo como seu próprio intérprete. Fazendo como que
iiin epílogo ao terceiro capitulo ele diz: "Como então? Somos superiores a
clcs? De nenhuma maneira. Pois alegamos que os judeus e os gregos estão to-
dos debaixo do pecado" [Rm 3.91. Onde está agora o livre-arbítrio? Ele diz
ilue todos, judeus e gregos, estão debaixo do pecado. Acaso há tropos ou nós
:iqui? De que vale a interpretação do iiiuiido todo contra esta sentença claríssi-
III:~? Queni diz "todos" não excetua ninguém, e quem define que estão debai-
xo do pecado - isto é, que são servos do pecado - não deixa nada de bom.
Mas onde foi que ele advogou esta cama de que todos, judeus e gentios, estão
ilcbaixo do pecado? Exatamente na passagem por nós indicada, a saber, quan-
ilo diz: "A ira de Deus se revela do céu sobre toda a impiedade e iniqüidade
110s seres humanos" [Rm 1.181. E isso ele prova em seguida por meio da expc-
I icncia: sendo ingratos para com Deus, estiveram sujeitos a tantos vícios; é co-
I I I U se os frutos de sua impiedade lhes tivesse que mostrar de niodo convinccn-
ir que somente eram capazes de querer e fazer o mal.
Depois julga os judeus separadamente ao dizer que, de acordo com a letra,
i) judeu é t r a n ~ g r e s s o r ~
e ~prova
~ ; isso igualmente pelos frutos e pela experiên-
cia, dizendo: "Tu pregas que não se deve furtar e furtas; tu, que abominas os
iclol«s, cometes sacrilégio" [Rm 2.21s.l. Ele não excetua absolutamente niii-
jtiic!iii, a menos que sejam judeus no espirito. E aqui não podes fugir e dizcr:
"Ainda que estejam debaixo do pecado, aquilo que há de melhor neles, c«-
i1111 a razão e a vontade, dispõe de um esforço para o bem". Pois se resta iiiii
iqli~rçobom, falso o que ele diz - que estão debaixo do pecado. Pois quaii-
do iiieiiciona os judeus e os gentios, ele inclui, ao mesmo tempo, quem qiicr
qiic csici:~eiitre os gentios e os judeus. A menos que, com o propósito de iii-
vrricr :i Pn~ilo,pretendas que ele tenha escrito da seguinte maneira: "A cariic
i I i iodos »Ajudeus e gentios, isto é, os afetos mais crassos, estão debaixo d o

~~cc:ido".Mas a ira revelada do céu sobrc eles irá condená-los a todos, a riZi
\vi qiic scj;~iiijiistilicados pclo Espírito, o que não aconteceria se n5o cslivcs-
,.c111Iiiili)s o h o iiccado.
Da Vontade Cativa

Vejamos, porém, de que modo Paulo prova sua opinião a partir das Sagra-
das Letras, e se porventura as palavras se opõem mais em Paulo do que em
seu próprio lugar"4. Ele diz: "Como está escrito: não há justo, nem sequer
um; não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se desviaram,
à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer",
etc. IRm 3.10-121. Quem puder que me dê aqui uma interpretação convenien-
te; quem tiver a ousadia invente tropos, alegue que as palavras são ambíguas
e obscuras e defenda o livre-arbítrio contra estas condenações. Então também
eu cederei e me retratarei, e eu mesmo confessarei e afirmarei o livre-arbítrio.
O certo é que essa afirmação é feita a respeito de todos os seres humanos,
pois o profeta introduz a Deus como quem olha sobre todos os seres humanos
e sobre eles pronuncia esta sentença. Pois assim diz o Salmo 14: "Do céu olha
o Senhor sobre os filhos dos seres humanos, para ver se há quem entenda ou
quem busque a Deus. Mas todos se desviaram", etc. E para que os judeus não
cressem que isso não Ihes dizia respeito, Paulo antecipa-se a eles dizendo que
o mesmo se refere principalmente a eles. "Sabemos", diz ele, "que tudo aqui-
lo que a lei fala, fala para os que estão na lei" [Rm 3.191. Ele quis dar a enten-
der o mesmo quando disse: "Primeiro ao judeu e também ao grego" [Rm
2.91. Por conseguinte, ouves que todos os filhos dos seres humanos, todos os
que estão na lei, isto é, tanto os gentios quanto os gregos, são julgados dian-
te de Deus como sendo de tal natureza que nem sequer um é justo, [que nem
sequer um] entende ou busca Deus, mas todos se desviam e são inúteis. Julgo,
contudo, que entre os filhos dos seres humanos e aqueles que estão debaixo
da lei também se enumeram os melhores e os mais honrados, os que com a
força do livre-arbítrio se esforçam pelas coisas honradas e pelo bem, e aqueles
que a Diatribe gaba como tendo enxertados em si o sentido e as sementes da
honra - a não ser que ela talvez sustente que esses são filhos dos anjos!
De que modo, pois, se esforçam para o bem aqueles que em sua totalida-
de ignoram completamente a Deus, e não se preocupam com ele nem o buscam:'
Como podem ter a força capaz do bem aqueles que em sua totalidade se des-
viam do bem e são completamente inúteis? Porventura não sabemos o que sig-
nifica ignorar a Deus, não entender, não buscar a Deus, não temer a Deiis.
desviar-se e ser inútil? Acaso não são palavras clarissimas e que ensinam qiic
todos os seres humanos desconhecem e desprezam a Deus, desviando-se ;iclc-
iriais para o mal e sendo inúteis para o bem? Pois aqui tampouco sc Lratn c1;i
ignorância na busca do sustento, ou do desprezo pelo dinheiro, mas, sirri, cls
ignorância e desprezo da religião e da piedade. Mas essa ignorância c despi-c-
zo sem dúvida não se encontram na carne e nos afetos mais baixos e c~.;iss(~s,
c, sim, naquelas forças mais elevadas e excelentes dos seres humanos c111 i~iic
clcvcin reinar a justiça, a piedade, o conhecimento e a reverência dc I>ctis. ;I
sahcr, tia razão e na vontade, e até na própria força do livre-arhíirio. II;I piii-
]]ria semente da honra ou naquilo que de mais excelente há no ser humano.
Oride estás agora.- . cara Diatribe? Tu.. aue mais acima orometias aue, de bom
A A .

j:rado, concordarias que o que há de mais excelente no ser humano é carne,


isto é, ímpio, caso isso fosse provado pelas Escrituras? Concorda então agora,
]pois ouves que o que há de mais excelente nos seres humanos não só é impio,
iiias [também] ignora a Deus, despreza a Deus, está voltado para o mal e é inú-
i i l para o bem. Pois que significa ser injusto, senão que a vontade (que é uma
das coisas mais excelentes) é injustiça? Que significa não ter entendimento de
Oeus e do bem, senão que a razão (que é outra das coisas mais excelentes) ig-
iiora a Deus e o bem, isto é, que é cega no conhecimento da piedade? Que sig-
iiilica desviar-se e ser inútil, senão que os seres humanos não conseguem, em
1i:irte nenhuma, e menos ainda naquelas suas partes mais excelentes, fazer al-
j:o na direção do bem, mas somente na direção do mal? Que significa não te-
iiicr a Deus, senão que os seres humanos em todas as suas partes, sobretudo
iioquelas partes melhores, desprezam a Deus? Mas desprezar a Deus significa,
:i11mesmo tempo, desprezar todas as coisas de Deus - por exemplo, suas pda-
vias, obras, lei, preceitos e vontade. Agora: que pode ditar de correto uma ra-
/:io cega e ignorante? Que pode escolher de bom uma vontade má e inútil? e
mais: que pode buscar uma vontade à qual a razão nada dita, exceto as trevas
(lc sua cegueira e ignorância? Por conseguinte: com uma razão imersa em er-
I I I e uma vontade desviada, que pode fazer de bom ou pelo que pode esforçar-
sc o ser humano?
Mas talvez alguém ouse sofismar que, embora a vontade se desvie e a ra-
f i o seja de fato ignorante, ainda assim a vontade pode esforçar-se por algo e
:i razão pode conhecer dgo por suas próprias forças; isso porque podemos
iiiiiitas coisas que todavia não fazemos. Entenda-se bem, debatemos sobre a
Iiirça da capacidade, e não da do ato. Respondo: as palavras do profeta in-
~.liicmtanto o ato como a capacidade. E dá no mesmo dizer "o ser humano
ii:io busca a Deus" e dizer "o ser humano não pode buscar a Deus". Podcs
iiilcrir isso do fato de que, se houvesse no ser humano uma capacidade ou for-
<;i dc querer o bem, não poderia acontecer que ela não fosse ativada em algu-
111;ispessoas, ou ao menos em uma pessoa, e que não se revelasse de alguma
li~iiiiaprática -já que, como ensinamos acima, sendo ele movido pela onipo-
i?iici:i divina, não se permite ao ser humano repousar ou fazer feriado. Isso,
~~i~i.L'iii,não acontece, porque Deus olha do céu e não vê um sequer que o bus-
iliic oii sc esforce4is.Daí se segue que em nenhuma parte existe essa força qiic
ciiipciiha ou quer buscá-lo; antes, todos se desviam. Ademais, se não se coiii-
~~icciidcsse que Paulo [trata] simultaneamente da impotência, sua argumenta-
c;ii~ii;ida alcanqaria. Pois este é todo o interesse de Paulo: tornar a graça iic-
c-cssiíiia para todos os seres humanos. Se, porém, pudessem empreender algo
11i1i si iiicsiii«s, a graça rião seria necessária. Assim vês que nesta passagciii o
livre-arbitrio é suprimido por completo, e que nada de bom ou de honrado res-
ta no ser humano quando ele é definido como injusto, ignorante de Deiis, des-
prezador de Deus, desviado e inútil diante de Deus. E o profeta combate de
maneira bastante ardorosa, tanto em seu texto como eni Paulo que o cita. E
não é pouca coisa dizer que o ser humano ignora e despreza a Deus; estas são
as fontes de todos os crimes, a sentina dos pecados e mesmo o inferno dos
riiales. Que mal não haverá onde existe ignorância e desprezo de Deus? Em su-
nia: não pôde descrever o reino de Satanás nos seres humanos coni palavras
mais breves e intensas do que com a afirmação: são ignorantes e desprezado-
res de Deus. Ai estão a incredulidade e a desobediência; os sacrilégios, a blasfê-
mia contra Deus, a crueldade e a falta de misericórdia para com o próximo;
o amor de si mesmo em todas as coisas de Deus e do ser humano. Ai tens a
glória e a potência do livre-arbitrio.
Paulo. porém, continua, atestando que fala de todos os seres hunianos,
sobretiido dos melhores e mais excelentes, ao dizer: "Para que se feche a bo-
ca de todos e todo mundo se torne culpável perante Deus, porque a partir das
obras da lei carne nenhuma é justificada diante dele" [Rm 3.19s.I. Pergunto:
de Que modo se fecha a boca de todos, se ainda fica uma força pela qual so-
nios capazes de algo? Pois [então] será licito dizer a Deus: "Não é que não
exista absolutamente nada aqui; existe algo que não podes condenar, pois tu
iiiesmo concedeste algum poder, e ao menos isso não silenciará nem será culpá-
vel diante de ti". Pois se essa força do livre-arbítrio é sã e tem valor, é falso
que todo mundo seja culpável ou réu diante de Deus, visto que essa força não
é pouca coisa nem existe apenas nunia pequena parte do mundo, mas é o que
existe de mais excelente e comum em todo o mundo; e sua boca não deve ser
fechada, ou, se sua boca deve ser fechada, é preciso que seja culpável e ré dian-
te de Deus juntamente com todo o mundo. Mas com que direito pode-se dizer
que [alguem] é réu se não for injusto e iinpio, isto é, digno de pena e de puni-
cão? Eu gostaria de ver, peço-te, por meio de que interpretacão essa força do
ser humano pode ser absolvida do reato com que todo mundo está preso por
Deus, ou através de que a t e pode ser excetuada para que não seja incluída
cm "todo o mundo". Ingentes trovões e penetrantes raios, e na verdade "a-
quele martelo que tritura a pedra" (como o chama Jeremias [23.29]), são essas
lialavras de Paulo: "Todos se desviaram, todo mundo é réu, não há um justo
sequer"; com elas tudo é triturado, não só em um ser humano ou em alguns,
ou em alguma parte dos mesmos, mas também em todo o mundo, em todos,
absolutamente sem nenhuma exceção, de sorte que, diante dessas palavras, to-
do iiiundo deveria tremer, temer e fugir. Que de mais ingente e forte pôde-se
d i ~ e rdo que isto: "Todo mundo é réu, ninguém é justo, ninguém entende e
iiinguéiii busca Deus"? E, não obstante, tão grande foi e é a dureza e a insen-
saia obstiiiação de nosso coração que iiào ouvimos nem sentimos estes trovões
c raios, iiias, entrementes, elevamos e ao iiiesmo tempo estatuimos o livre-arbi-
I i i o c suas forças contra isso tiido, de maneira que, em verdade, cumprimos
;iqiiclo Ipassagcin dc Malaquias 1.4: "Eles ediiicam e eu destruirei".
Da Vontade Cativa

Com a mesina imponência é dito também o seguinte: "A partir das obras
da lei carne nenhuma é justificada diante dele" [Rm 3.201. Grande palavra é
esta: "a partir das obras da lei"; da mesma fornia também aquela: "Todo
mundo" ou "todos os filhos dos seres humanos". Pois deve-se observar que
Paulo abstrai das pessoas e menciona os esforcos, isso a fim de envolver todas
as pessoas e aquilo que de mais excelente existe nelas. Pois se tivesse dito que
a multidão dos judeus, ou os fanseus, ou alguns ímpios não são justificados,
poderia parecer que tivesse deixado de lado a alguns que, pela força do livre-
arbítrio e pelo auxílio da lei, não seriam inteiramente inúteis. Quando, porém,
condena as próprias obras da lei e as declara impias diante de Deus, fica e\+
dente que condena a todos que se destacavam pelo empenho da lei e das obras.
Mas empenhavam-se pela lei e pelas obras somente os melhores e os mais
excelentes, e isso faziam exclusivamente em suas partes melhores e mais exce-
lentes, a saber: na razão e na vontade. Por conseguinte, se esses que cultivavam
a lei e as obras com o máximo empenho e esforso tanto da razão como da
i vontade - isto e, coiii toda a força do livre-arbitrio, recebendo ademais aju-
da da própria lei ou do auxílio divino, com o que eram instruidos e estunula-
dos -, se esses, digo eu, são condenados por impiedade, não sendo justifica-
dos e. sim, definidos como carne diante de Deus, que resta então ein todo o
gênero humano que não seja carne e não seja impio? Pois todos os que vivem
a partir das obras da lei são condenados por igual. Pois absolutamente não in-
teressa se cultivaram a lei com máximo empenho, com empenho moderado
ou sem nenhum empenho. Todos eles puderam cumprir apenas as obras da lei;
mas as obras da lei não justificam. Se não justificam, declaram ímpios e dei-
xam imyius os que as praticam. Os ímpios, porém, são réus e dignos da ira
de Deus. Isso é tão claro que ninguém pode restnungar um único pio em contrário.

I XIV I
1
Aqui, porém, eles costuniain eludir a Paulo e evadir-se diieiido que ele
chama de obras da lei as obras ceriinoniais4'b, as quais, depois da morte dc
Cristo, são mortais. Respondo: aqui tenios aquele erro e ignorância de Seróni-
mo, que, embora recebendo forte resistência por parte de Ago~tinho"~,não
obstatite difundiu-se no mundo e permaneceu até o dia de hoje depois de
Dcus se haver retirado e depois que Satanás veio a prevalecer. Por isso tambéni
se tornara impossível compreender a Paulo, e foi preciso obscurecer-se o co-
nhecimento de Cristo. E mesmo que antes não tivesse havido nenhum erro lia
Igreja, este único [erro] foi suficientemente pernicioso e potente para arruinai-
o Evangellio. A menos que uma graça singular tenha intercedido, Jerônimo

416 É mhido qiir j6 no ano de 1517 I.ulero havia crilica<lo a Erasiiio poiqiie cninp;lililli;ivii ii iii1i.i~
prel;i(.;i<i ;iqui iiiencianiida (cf. \\'A 18,593 -- Lntiodiiqào).
417 hç<i\liiili<i.I;,iiir<8i:i ;!<I Hici. (<'r. riolar 117 c 267.)
mereceu, por causa desse erro, antes o inferno do que o céu - tão longe estou-
de ousar canonizá-lo ou dizer que é santo. Não é verdade, então, que Paulo
fala apenas das obras cerimoniais. De outro modo, como ficaria de pé sua con-
trovérsia na qual conclui que todos são injustos e carecem da graça?
Pois alguém poderia dizer: "De acordo: não somos justificados a partir
das obras cerimoniais, mas alguém poderia ser justificado pelas obras morais
do Decálogo; por isso não provaste, com teu silogismo, que para essas a gra-
ça é necessária". De mais a mais, que utilidade teria uma graça que nos liber-
tasse apenas das obras cerimoniais, que são as mais fáceis de todas e que nos
podem ser arrancadas até mesmo pelo temor ou pelo amor de si mesmo? Ora,
também é errôneo dizer que depois da morte de Cristo as obras cerimoniais
são mortais e ilícitas. Paulo jamais disse isso. Disse, porém, que elas não justi-
ficam, e que de nada servem diante de Deus para o ser humano tornar-se livre
da impiedade. Com isto casa bem o fato de alguém fazer essas [obras] e, não
obstante, nada faça de ilícito, assim como o comer e o beber são obras que
não justificam e não nos recomendam a Deus, mas nem por isso faz algo de
ilícito aquele que come e bebe.
Erram também no seguinte: [em não reconhecerem] que na lei antiga as
obras cerimoniais eram preceituadas e exigidas assim como o Decálogo, sen-
do que por isso não tinham nem menor nem maior validade que aquele. Pau-
lo, porém, fala em primeiro lugar aos judeus, como diz em Romanos 1.16.
Por isso ninguém duvide de que por obras da lei se compreendem todas as
obras de toda a lei. Pois certamente n i o devem ser chamadas de obras da lei
se a lei é ab-rogada e mortal, pois uma lei ab-rogada já não é lei. Isso Paulo
sabia muito bem; por isso não fala da lei ab-rogada ao mencionar as obras
da lei, mas, sim, da lei vigente e reinante. Se não fosse assim, quão fácil lhe
teria sido dizer: "A própria lei já foi ab-rogada". Isso sim teria sido uma de-
claração aberta e clara.
Mas recorramos ao próprio Paulo, o melhor intérprete de si mesmo, que
em Gálatas 3.10 diz: "Todos os que vivem a partir das obras da lei estão de-
baixo de maldição, pois está escrito: 'Maldito todo aquele que não permanecer
crn todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las"'. Vês aqui que Pau-
lo, ao tratar da mesma questão e com as mesmas palavras da Epístola aos Ro-
iiianos, fala de todas as leis escritas no livro da lei todas as vezes que mencio-
tia as obras da lei. E o que é mais admirável: ele cita Moisés, que maldiz os
qiie não permanecem na lei, muito embora ele próprio proclame malditos os
cliic vivem das obras da lei, citando uma passagem que afirma o contrário de
siiu própria opinião, pois aquela [passagem] é negativa, e esta afirmativa. Ele,
portni, faz isso porque, diante de Deus, a coisa se dá de tal forma que aque-
Ics que mais se empenham nas obras da lei menos cumprem a lei, pois carecem
clo Espirito, o cumpridor da lei. É certo que o possam tentar por suas próprias
l'iii-çlis, mas nada conseguem. Desta maneira, ambas as afirmações são verda-
clcitns: de ricordo com Moisés são malditos os que não permanecem [na lei],
I. cIc :icei-do coiii I'aolo são inalditos os que vivcm a partir das obras d a lei.
I Da Vontade Cativa

Pois ambos exigem o Espírito, sem o qual, como diz Paulo, as obras da lei
não justificam, por mais que aconteçam; por isso, como diz Moisés, eles tam-
pouco permanecem.em todas as coisas escritas4I8.
Em suma: com sua divisão Paulo confirma suficientemente o que dizemos.
Pois ele divide as pessoas que fazem a lei em duas classes: a algumas descreve
como pessoas que atuam pelo Espírito, a outra, pessoas que atuam pela car-
ne, não deixando nenhum estado intermediário. Pois diz: "Carne nenhuma se-
rá justificada a partir das obras da lei" [Rm 3.201. Que significa isso senão
que atuam na lei sem o Espírito, pois são carne, isto é, ímpios e ignorantes
de Deus, pessoas a quem essas obras de nada servem? Assim, tendo feito uso
da mesma divisão em Gálatas 3.2, ele diz: "Recebestes o Espírito das obras
da lei ou do ouvir na fé?" E de novo em Romanos 3.21: "Agora, sem lei, se
manifestou a justiça de Deus". E novamente: "Julgamos que o ser humano é
1 justificado a partir da fé sem obras da lei" [Rm 3.281. Com tudo isso fica trans-
parente e claro que em Paulo o Espírito se op6e às obras da lei do mesmo
modo que a todas as coisas não espirituais e a todas as forças e títulos da car-
ne, de maneira que é certo que esta opinião de Paulo está do lado de Cristo
em João 3.6: "Tudo que não é do Espírito é carne", por mais formoso, san-
to e excelente que seja, inclusive e até mesmo as mais belas obras da lei divi-
na, seja quais forem as forças que em última instância as produziram. Pois é
necessário o Espírito de Cristo, sem o qual tudo não passa de algo condenável.
Portanto, fique isto confirmado: por obras da lei Paulo não compreende as
obras cerimoniais, mas todas as obras de toda a lei. Ao mesmo tempo, estará
confirmado que nas obras da lei se condena tudo que estiver sem o Espírito419.
Sem Espirito, porém, aquela força do livre-arbítrio, sobre a qual, aliás,
debatemos, é o que há de mais excelente no homem. Pois "ser das obras da
lei' [Gl 3.101 é um enunciado sobre o homem como não pode haver melhor.
Pois não diz: "Os que são contra a lei com pecados e impiedade", mas: "Os
I que são das obras da lei", isso é, os melhores e os que se esforçam afanosa-
mente pelo cumprimento da lei, os que, além da força do livre-arbítrio, ainda
receberam a ajuda da lei, ou seja, foram orientados e estimulados por ela. Se,
pois, o livre-arbítrio, tendo recebido ajuda da lei e se esforçado ao máximo
para cumpri-la, para nada aproveita nem justifica, mas permanece na impieda-
de e na carne, que se haverá de pensar [de seu poder] que tem por si só, sem

1 mostra em que medida e até que ponto a lei é útil: por si só, o livre-arbítrio é
tão cego que sequer sabe o que é pecado, necessitando da lei para que lho en-
sine. No entanto, quem não sabe o que é pecado, que esforços fará para afas-
Da Vontade Cniira
tar o pecado'? Decerto considerará não-pecado o que é pecado, e o que não é
pecado considerará pecado. Isso também o revela com suficiente clareza a ex-
periência: assini como o mundo odeia e persegue a justiça de Deus pregada
por meio do Evangelho, e a difama como heresia e erro e com outros nomes
da pior espécie, justamente por meio daqueles que considera os mais excelen-
tes e que mais se eiiipenham pela justiça e piedade, enquanto erialtece e apre-
goa coriio justiça e sabedoria suas própriai obras e propó$iios que, na verda-
de, são pecado e erro. Com esta palavra, portanto, Paiilo tapa a boca do livre-
arbítrio ao ensinar que pela lei se inostra o que é pecado aquele que desconhe-
ce seu próprio pecado, longe de lhe atribuir qualquer força para se empenhar
pelo bem.
E assim se resolve aquela questão da Diatribe, repetida tantas vezes em to-
do o livrinho: "Se não somos capazes de nada, para que servem então tantas
leis, tantos preceitos, tantas ameaças, tantas promessas?" Paulo responde nes-
ta passagem: "pela lei vem o corihccimeiito do pecado". Ele responde de mo-
do muito diferente a essa questão do que o homem ou o livre-arbitrio o imagi-
na. Diz que o livre-arbítrio não é provado pela lei, que não coopera para a jus-
tiça. Pois pela lei não .se obtém a justiça mas o conhecimento d o pecado. Pois
o fruto, a obra, o oficio da lei é este: ser luz para os içiiorantes e cegos, no
entanto, unia Iiiz que revela a enferiiiidade, o pecado, o mal, a morte, o infer-
no, a ira de Deiis. Todavia, em nada ajuda nem livra disso tiido. Ela se conten-
ta em tê-lo manifestado. Depois de o honiem ter conhecido a enfermidade do
pecado, ele se entristece, se aflige, incliisive desespera. A lei em nada njudii,
muito menos pode ele ajudar-se a si mesmo. Torna-se necessária outra luz qiic
mostre o remédio. Esta é a voz do Evangelho que mostra a Cristo. o libertii-
dor de todas aquelas coisas. A razão ou o livi-e-arbítrio não revelaria isso. Co-
ino poderia mostrá-lo se ela própria é treva, precisando da luz da lei para Ilic
mostrar aeidermidade que não enxerga por sua próprialuz, ni,u acredita ser saúclc'!
De igual inodo trata esta mesma qiiestáo em Gálatas, ao dizer: "Para qiic
então a lei?" [GI 3.191. Não responde. porém, à moda da Diatribe, argiiiiicii.
tando que existe o livre-arbítrio, rnas diz: "ela foi dada por causa das traiisgrcs-
sí,es, até qiie viesse a semente a qual fora feita a promessa". "Por causa iI:i\
iransgressões". diz ele, não para coercê-Ias, como sonha J e r Ô n i n i ~porqii;iii
~~,
to Paulo ensina que tirar os pecados e coercê-10s depois de conferida a jiisii~;i
foi anunciado a senieiite futura prometida. mas para aumentar as ti-;iiisgr~~
sócs, como o próprio apóstolo escreve em Rm 5.20: "A lei entroii ii<licioii:il
inerite para que abundasse o pecado". Isso não quer dizer que sciii a Ici i i : i c ~
tivcssem sido cometidos e não abundassem os pecados, mas q ~ i ciiao lociiii ir
conhecidos conio transgressões o11 pecados tão grandes e quc ;i iii;iiiiii:i (Ii.lc\
c os piores f«ram considerados justiça. Quando, portiii, sc ig~ior:iiii 05 ~>i'~,:i
CIOS. não há possibilidade nem esperança dc rcmcdiri-10s. I'ois iiZo to1ci;iiii : i

.1!11 i r i <.l>i\l.; t i l (;;i11


'iiiiiii~i~iil. . lil, 11. , . I. ici. Mi~,iirLli.lltli

I')?
Da Vontade Cativa
inão do médico, porque se consideram sãos e que não têin necessidade de mé-
dico. Por isso é imprescindível a lei que mostra o pecado, para que o homem
soberbo, que. além disso, se considera são, reconheça sua perversidade e gran-
deza, se humilhe e suspire e anele pela graça oferecida em Cristo.
Vede, portanto, como é simples a fraye: "pela lei vem conhecimento do
liecado", e, não obstante, ela sozinha é suficientemente forte para confundir
o livre-arbítrio e de subvertê-lo. Se é verdade que [o livre-arbítrio] não sabe
por si só o que é pecado e mal, como diz Paulo nesta passagem e também
cin Rm 7.7: "Eu não poderia ter sabido que a cobiça é pecado se a lei não ti-
vesse dito: Não cobicarás", como poderá jamais saber o que é justiça e o que
c: bom? E, desconhecendo a justiça, como se esforçará por aicanyá-ia? Desco-
~ihecemoso pecado no qual nascemos, no qual vivemos, rios movemos e no
ciiial existimos, sim. o pecado que vive, se move e reina eni iiús. Como haveria-
iiius de conhecer a justiça que reina fora de nós, no céu? Essas palavras fazem
do livre-arbítrio menos do que nada.
Visto que é esta a situaçzo, Paulo proclama com plena convicção e autori-
dade: "Agora, pois, a justiça de Deus se inanifestou sem lei, testeinunhada pe-
I;i lei e pelos profetas. Falo da justiça de Deus que vem da fe eni Jesiis Cristo
; i iodos e sobre todos que nele crêem. Pois não há distiiição. pois todos peca-
i:iiii e carecem da gloria de Deus, serido justificados gratuitamente por sua gra-
(.;i, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus ofereceu co-
iiio propiciatario por meio da fé em seu sangue", etc. [Rm 3.21-251. Aqui Pau-
Iii laiiça somente raios contra o livre-arbitrio. Em primeiro lugar ele diz que a
iiisiiya de Deus se manifesta sem lei. Discerne a justiça de Deus da justiça da
1c.i. I'orque a justiça da fé vem da graça, sem lei. A expressão "sem lei" pode
\igiiificar somente que a justiça cristã siibsiste sem obrai da lei, de modo que
:is obras da lei nada valem nem contribue111 para obtê-la. É isso que ele diz
ciii scg~iida:"Pelas obras da lei nenhuma carne é justificada perante ele" [Rm
\.LXI. De tudo isso se torna absolutameiite claro que o eiiipenho e o esforço
i10 livre-arbítrio não vale absolutamente nada. Pois se a justiça de Deus subsis-
ic scin lei e sem as obras da lei, como não subsistiria muito mais sem o livre-
:iil>iii-i«?Visto que o supremo esforço do livre-arbítrio consiste em exercitar-
,.c ii;i jiistiça moral ou nas obras da lei, o que ainda apóia sua própria cegiici-
I;! c iiiipotBicia. Esta palavra "sem" acaba com as obras rnoraimeiite boas.
:ic.;iI,;icoin a justicn inoral, acaba com as preparações para a grasa. Além dcs-
\:i\ j)odcs iiiventar faculdades do livre-arbítrio quantas quiseres. Paulo, poréin,
11'1 iirniicccri firme e dirá: A justiça de Deus subsiste independentemente de to-
iI:i\ csxis coisas. Embora admitissemos que o livre-arbítrio pode progredir de
; ~ I i ~ i i i iiiodo
ii Iior meio do esforço próprio, seja em direção a boas obras oii I:
~iiclii.;i pciaiilc a Ici civil ou moral, não obstante não progredirá em direçiio
i i i i i i v : i iIc I>ciis; lampouco de modo aigurii Deus considcrará digno o csí'orco
< I < \ livir~;irliiliio~>ar;ialcançar sua justiça, porquanto diz qiir siia jiistiçu vnlc
~ ~ ~:i i Ici. i i Sc. (Ic kiio. ir20 avança ciii dii-cção à jiisiiça dc Uciis. dc qiic Ilic v:i-
Iri i:! \c c.i>iii\ii:is i>l?i;isc csli>r~i>\ coiiscgiiissc (sc isso J.o\sc ~)(i\sivd)iiv:iiiqiir
Ila Votitaùe Cativa
inclusive até a sailiidade dos anjos? Segundo niinha opinião aqui não existem
palavras obscuras nem ambíguas, nem sobra espaço para quaisquer tropos.
Porque Paulo distingue ilitidamente duas justiças: a justiça que atribui a lei e
a que atribui a graça. Esta nos é dada sem aquela e independentemente de
obras, e aquela não justifica sem esta nem tem qualquer valor. Gostaria de ver
como o livre-arbítrio quer subsistir e deferider-se contra isto.
O segundo raio S a afirmação de Paulo de que a justiça de Deus se mani-
festa e tem validade para lodos e sobre todos os que crêem em Cristo, iião lia-
veiido qualquer distinção. Novaniente divide a todo o g2iiero humano com pa-
lavras claríssimas em dois grupos. Aos crentes dá a justiça de Deus, dos nào
crentes ele a tira. Ora, ninguém é t i o louco a ponto de duvidar que a força
ou o empenho do livre-arbítrio é outra coisa que a fé em Jesus Cristo. Pelo
contrário, Paulo nega que qiialquer coisa fora desta fé seja justo perante Deus.
Se não é justo perante Deus, necessariamente é pecado. Pois pcrante Deus não
eniste um estado interniediário entre justica e pecado. uni estado iieutro, nem
justiça nem pecado. Do contrário, de nada vale toda a argumentação de Pau-
lo que se baseia naquela divisão de que, perante Deus, tudo que acontece eiitre
os homens e é feito por eles ou é justiça, ou é pecado. É justiça se há fé, peca-
do, se falta a fé. Entre os bomeiis, evidentemente, existem estados intermediá-
rios e neutros, nos quais os homens nada devem nem concedem uns aos ou-
iros e não dão graças a Deus eiii momento algum.
A frase: "Todos pecaram e carecem da glória de Deus, e não há qualquer
distinção" [Rin 3.231 também não é um raio qualquer. Dize-me: Que poderia
ser dito com maior clareza? Indica-me alguém que age pelo livre-arbítrio para
ver se também peca com este seu esforço. Se não peca, por que então Paulo
iiào o excetuou, mas o inclui sem distinção? Certamente, aquele que diz "to-
dos", este não excetua a ninguém, em parte alguma, em iienhum tempo, em
nenhuma obra, eni nenhum empenho. Pois, se excluíres uma pessoa por cau-
<a de qualquer esforco ou obra, afirmas que Paulo está errado. Porque tam-
tiéiri aquele que age e se esforça no livre-arbítrio está incluído eiitre "todos".
I)o contririo, Paulo deveria ti.-lo respeitado e não deveria tblo incluido de
iiiodo tão despreocupado e geral eiitre os pecadores.
O mesmo acontece com a afirmação: "São carentes da gloria de Deus".
"Glória de Deus" poderia ser entendido aqui de dois modos: de iiiodo ativo
c de modo passivo. Paulo expressa isso com seus hebraísinos, de que se vale
coin freqüência. Eiti sentido ativo, a "glória de Deus" é a glória com que ele
iiicsmo revela sua glória eni nós. Em sentido passivo, ["a glória de Deus"] é
iiqiicla com que nós rios gloriamos em Deus. Em minha opinião, porém, ela
[Icvc ser enteiidida no sentido passivo; assim, quando digo em 1atim:"fé de
( 'risto", eiitendo a fé que Cristo tem. Em hebraico, porem, "fé de Cristo" sig-
iiilica a fé que se tem em Cristo. Do mesmo modo se designa eiu latim com
"iiisiiça de Deus" a justi~aqiie Deus tem, enquanto em hebraico [a cxpres-
\;i01 \c rcfere h jiistiça que se tnii dc Ucus c perante Deiis. Assiiu. p ~ ~ iciitcii-
s,
ilciiios ;I rxprcssSo "gl0ri;i [lc I>ciisViio seiilido Iichr;iici~c i12111111 sciitido 1:iti-
no: a glória que se tem em Deus e perante Deus e que be poderia chamar de
"glória em Deus". Portanto, gloria-se em Deus o homem que tem a certeza
de que Deus lhe é favorável e se digna a olhá-lo com benevolência, para que
lhe agrade o que faz, ou que sejam perdoadas ou toleradas as coisas que não
são de seu agrado. Se, pois, o esforço e o empenho do livre-arbítrio não é pe-
cado, mas coisa boa perante Deus, ele pode gloriar-se com razão e afirmar,
confiante nesta glória: isto agrada a Deus, isto conta com seu favor, a isto con-
sidera digno e o aceita, ou ao menos o tolera e perdoa. Pois esta é a glória
dos fiéis perante Deus. Os que a não têm, ficam, muito antes, envergonhados
perante Deus. Isso, porim, Paulo nega, ao dizer que [os hoinens] são inteira-
iiiente carentes dessa glória. Também o prova a experiência: pergunta a todos
em geral que se esforçam pelo impulso do tivre-arbítrio, para ver se me podes
mostrar pelo inetios um capaz de afirmar séria e sinceramente a respeito de
qudqiier de seus eriipeiihos e esforços: "Sei que isto agrada a Deus". Veiici-
do, darei a mão a palmatória. Sei, porém, qiie não se encontrará nenhum. Se,
todavia, falta esta glória, de modo que a consciência não ousa saber ou con-
fiar com certeza que isto agrada a Deus, está decidido que não agrada a Deus.
Pois como crê assim o terá. Pois não crê com certeza que tem o beneplácito
de Deus, o que, todavia, é necessário, visto que justamente isso é a culpa da
descrença: duvidar do favor de Deus que quer que se creia com total firmeza
que ele é favorável. Assini demonstramos, com base no testemunho da própria
consciêiicia deles, que o livre-arbítrio, por carecer da glória de Deus, é deve-
dor coni todas 2s suas forças, empenhos e esforços, por causa de sua eterna
culpa da incrediilidade.
No entanto, que dirào finalmente os dei'eiisores do livre-arbítrio a respei-
to do seguinte: "...e são justificados gratuitamente por sua graça"? [Rm 3.241
Que significa "gratuitamente"? Que significa: "por sua graça"? Como se co-
adunam esforço e mirito com a justiça gratuita e presenteada? Talvez digam
que atribuem ao livre-arbítrio o mínimo possível e de maneira alguma um mé-
rito c o ~ i d i g n o ~Isso,
~ ' . porem, são palavras vazias. Pois com isso se procura
uin espaço para iiiéritos por meio do livre-arbítrio. O que. porém, a Diarribe
reclamou, pretextaiido eternamente, é justamente o segiiitite: Se não existe li-
berdade do arbítrio, onde há lugar para méritos? Se não há lugar para mé-

421 i\f~?ito condigno: A teologia escoláslica diferencia enlrc o cumprimento lorinal da lei como
as80 e i i i ~i (quoarl siihstanriaiii operis), quc tarnbem rstn dentro das possibilidades do homrni
regenerado, e o ciimprimento da lei coni a dis~osi$ãode siriirno correia (quoad Nitentionem l c ~
gislatoris). Ao priniciro chamavam de "mirito cõngnio", ao segundo de "merito condigno".
De acordo com esta definição, o "mérito condigo" é aquele pelo qual o homem se torna cre-
dor de iima recompensa da parte de Deus em decorrência i10 ciimprimento da lei em sentido
ético. O "mkrito côngriio" seria, então, o merecimento das boas obras ~raticadaspor aquele
r j ~ i eesij cm pecado niorlal c que, ainda que não Ihc dSo ilirriio 6 glória, porque lhe falta a
Ilic <!ETcirças par;, \ai>
gi;ic;i, sçrveli dc "a>iigriri-iria" ]para qiie Dcur, riiisericoidiornr~~~~ilc,
,I,, c,l;,~l,, c,,, <IL!C \c C#,<,>,,I,,,.
Da Vontade Cativa
ritos, onde há lugar para prêmios? A quem será imputado se alguém pode
ser justificado sem méritos? Paulo responde a isso que não há mérito de for-
ma alguma, mas que todos os que são justificados o são gratuitamente, e que
isso é imputado exclusivamente a graça de Deus. No entanto, uma vez presen-
teada a justiça, é simultaneamente presenteado o Reino e a vida eterna. Onde
ficou agora o esforço? onde o empenho? as obras? onde ficaram os méritos
do livre-arbítrio? que utilidade têm? Não podes pretextar obscuridade ou am- I
bigiiidade, pois o assunto e as palavras são bem claras e simples. I
Por mim que atribuam ao Livre-arbítrio o mínimo possível; iião obstante,
ensinam que com este mínimo podemos alcançar a justiça e a graça. De fato
resolvem a questão por que Deus justifica a este e abandona aquele somente
da seguinte maneira: estabelecendo o livre-arbítrio, ou seja, que um se esfor-
çou e o outro não, e que por causa desse esforço Deus aceita a este e conde-
na aquele, para não ser injusto se fizesse o contrário. E por mais que pretextem
em palavras e escritos que não alcançam a graça por mérito condigno nem o
chamem de mérito condigno, não obstante nos iludem com o vocábulo e se
prendem a esse conceito. Acaso estariam escusados pelo fato de não o chama-
rein de mérito condigno, quando, 1180 obstante, lhe atribuem tudo que faz par-
te do mérito condigno? ou seja, que este alcança a graça de Deus porque se
esforça, aquele, porém, que não se esforça, não a alcança. Não diz isso clara-
mente respeito ao mérito condigno? Acaso não fazem de Deus alguém que faz
acepção de obras, méritos e pessoas? Isso significa que aquele carece da graça
por culpa própria, porque não se esforçou, este, porém, alcança a graça por-
que se esforçou; não iria consegui-la se não se esforçasse. Se isso não é méri-
to condigno, eu gostaria que me ensinassem a que se pode chamar de mérito
condigno. Desse modo poderás brincar com qualquer palavra e dizer: Na ver-
dade, não é um mérito condigno, não obstante, efetua o que um mérito coii-
digno costuma efetuar. O espinheiro não é unia árvore má, apenas tem o efei-
to de uma árvore má. A figueira não é uma árvore boa, tiias efetua o que
uma árvore boa comumente efetua. A Diatribe, na verdade, não é ímpia. mas
apenas diz e faz o que é impio.
Com esses defensores do Livre-arbítrio acontece o que se chama de "cair
nos bancos de areia ao querer desviar do sorvedouro""'. Pois no afã de dis-
sentir, começaram a negar o mérito condigno, e justamente com aquilo com
que o negam confirmam-tio tanto mais. Negam-no com palavras e escritos,
de fato, porém, e no coraçio o estabelecem firmemente, tornando-se piores
que os pelagianos4*' em dois sentidos: em primeiro lugar porque os pelagianos
confessam e afirniaiil o mérito condigno com siniplicidade, sinceridade e fran-
queza, chamando o barco de barco, o figo de figo e ensinando o que pensam.
Nossos [adverários], porem, apesar de serem da rnesnia opinião e ensinarem

422 ('i12 e <àrihrlir.,no original. Cf. acima n. hl


4 I ' .i . 111.
Da Votitade Cativa
a mesma coisa [que os pelagianos], nos enganam com palavras mentirosas e
falsa aparência, como se dissentissem dos pelagianos, embora seja isso o que
inenos fazem. De modo que, se observares sua hipocrisia, parecem ser acérri-
mos inimigos dos pelagianos. Se, todavia, observares o conteúdo e o pensamen-
to, somos pelagianos em sentido duplo. Em segundo lugar porque, com base
nessa hipocrisia, consideramos a graça de Deus muito inais desprezível e a apre-
ciamos muito menos do que os pelagianos. Pois eles nao afirmam que é qual-
quer coisa insignificante ein nos aquilo com que obtemos a graça4u mas que
são a totalidade de enipenhos e obras pleiias, perfeitas, grandes r nunierosas.
Nossos [adversários], porem, sustentaiii que o que nos faz merecer a graça é
algo rníninio ou quase nada. Por isso, se é preciso errar, erram de forma mais
honesta e menos arrogante os que estimam a graça e a apreciam, por conside-
rarem a graça de Deus um bem de preço elevado, do que aqueles que ensinam
que agraça tem preço baixo e iiisigificante, por considerarem-navil e despredvel.
Paulo. porém, ainasia a ambos em uma só massa, ao dizer que todos são
justificados gratuitamente e que são justificados sem lei, sem as obras da lei.
Pois qiiem afirma uma justificação gratuita em todos que devem ser justifica-
dos, esse não deixa sobrar ninguém que faz obras, merece e se prepara, e não
deixa sobrar nenhuiiia obra que possa ser chamada de côngrua ou condigna,
e com uma só faisca desse relânipago fnlmina tanto os pelagianos coni todo
o seu mérito como tambéni os sofistasJ25com seu mérito insignificante. A jus-
tificação gratuita não tolera que estabeleças obradores, porque "dado gratuita-
mente" e "adquirir por meio de alguma obra" são conceitos abertamente con-
flitantes. Ademais, ser justificado pela graça não tolera que aduzas a dignida-
de de qualquer pessoa, como também Páulo o diz abaixo no capitulo 11.6:
"Se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça".
Da mesina forma diz também no capítulo 4.4: "Ao que trabalha, o salário
não é imputado segundo a graça, mas seguiido o débito". Por isso meu Pau-
lo permanece firme como devastador invicto do livre-arbítrio, e com uma só
palavra aniquila dois exércitos. Porque se somos justificados sem obras, todas
as obras estão condenadas. sejam elas insigiuficantes ou grandes. Ele não exce-
tua a nenhuma delas mas fulmina-as todas por igual.
Observa aqui a sonolência de todos os nossos [adversários] e que vale que-
rer apoiar-se nos antigos pais, aprovados por uma série de tantos séculos. Não
estiveram todos eles obcecados da mesma forma, por igual, sim, não deixaram
eles de lado as mais claras e evidentes palavras de Paulo? Por favor, que po-
de ser dito clara e abertamente a favor da graça contra o livre-arbítrio. se a
palavra de Paulo não é clara e evidente? Ele faz uso de uma comparação e lan-
ça a graça contra as obras; depois usa as mais claras e simples palavras, dizen-
do que somos justificados gratuitamente e que a graça não é graça se ela po-
de ser conquistada por obras, excluindo da forma mais evidente qualquer obra

424 <'r. ;\cima p. 77. 425 Solisios, cf. niiiiia IYI


i?.

197
Da Vontade Cativa
em matéria de justifica@o, para estabelecer o principio da exclusividade da gra-
ça e da justificaçáo gratuita. E nós continuamos procurando trevas nesta luz,
e onde não podemos atribuir a nós coisas grandes e [possivelmente] tudo, pro-
curamos atribuir-nos insignificãncias e coisas modestas, somente para sustentar
que a justificação por meio da graça de Deus não é gratuita e sem obras. Co-
mo se aquele que nos nega o maior e tudo, não negasse igualmente muito an-
tes que as coisas insignificailtes e modestas estivessem a nossa disposição para
a justificação, quando estabelece que somos justificados somente por sua gra-
ça, sem qualquer obra, ou, inclusive, sem a própria lei, na qual estão compre-
endidas todas as obras, as grandes, pequenas, côngruas e condignas. Vai ago-
ra e exalta a autoridade dos antigos e confia em seus enunciados, quando cons-
tatas que todos eles deixaram de lado a Paulo, o mais claro e evidente mestre
e. de propbsito, fugirani desta estrela niatutina, que digo? desse sol, possessos
da idéia carnal de que Ihes parecia absiirdo que não restasse nenhum espaço
para os méritos.
Queremos trazer o exeniplo de Abraão que Paulo cita com freqüência.
Diz o seguinte: "Se Abraão foi justificado das obras, ele tem glória. não, po-
rém, perante Deus. Pois, que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe
foi imputado por justiça" [Rm 4.31. Por favor, observa também aqui a divisão
que Paulo faz, referindo-se a lima dupla justiça de Abraão. Uma é a justiça
das obras, ou seja, a justiça inoral ou civil; nega, porém, que esta o justifica
perante Deus, embora por meio dela seja considerado justo perante os homens.
Além disso tem glória entre as pessoas: no entanto, carece da glória de Deus
por meio dessa justiça. Também não é o caso que alguém pudesse dizer que
aqui estejam sendo condenadas as obras da lei ou as obras cerimoiuais, visto
que Abraão viveu tantos anos antes da lei. Paulo fala simplesmente das obras
de Abraão, e somente das n~elhores.Portanto é ridículo discutir se alguém po-
de ser justificado por meio de obras lilás. Logo, se Abraão não é justo por
nenhuma obra, ele próprio permanece sob a impiedade com todas as suas
obras, caso não for revestido de outra justiça, ou seja, da justiça da fé. Está.
pois, evidente qiie nenhuma pessoa contribui qualquer coisa para a justiça por
meio de suas obras e, além disso. qiie nenhuma obra. nenhum empeiitio. iic-
nhum esforfo do livre-arbitrio vale qualquer coisa perante Deus. Tudo isso i.
considerado irnpio, injusto e mau. Pois se ele próprio não é justo, nem sii;is
obras nem seus empenhos são jiistos. Se não são justos, são condeiiaveis c clip
nos da ira.
A outra é a justiça da fé, que não consiste em nenhuma obra, irias lx~rqiic
Deus é benigno e o toma em conta pela graça. E observa como Paiilo sc I , ; i ~
seia no verbo "imputar", como insiste nele, o repete e inculca. "Ao qiic li-:ili:i
lha o salário não é imputado segundo a graça mas segundo o tltbito". <li/ (.Ir.
"Mas ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica a« iiiipio. siiii I?
lhe é imputada c o n ~ ojustiça" [Rm 4.4s.1, seyndo o prop6siio (I;I ~i:i<:i <Ir
Deus. Depois cita Davi que fala da mesma forma da imput;içZo 11;i gi;ic;i: "llriii
aventurado o homem ao qual o Senhor nZo iiiipiiioii o ~nv:ttlo". di. I I < i i i
Da Vontade Cativa
4.71. Ele repete o ternio "imputar" cerca de dez vezes neste capitulo. Em resu-
1110: Paulo contrapõe o qiie faz obras ao que não as faz, e não deixa uni espa-
co intermediário entre ainbos. Ao que faz obras nega que elas lhe sejani inipu-
iadas por justiça. Ao que não faz obras assegura, todavia, que lhe 6 atribuída
;i justiça, desde que creia.
Aqui não há brecha por onde o livre-arbitrio pudesse evadir-se oii escapar
coni seu esforço e empenho. Pois será contado entre os que fazem obras ou
cntre os que não fazem obras. Se for [contado] entre os que fazem obras, ou-
ves aqni que não lhe será imputada qualquer justiça. Se [for contado] entrc
os que iião fazem obras, mas crê em Deus, ser-lhe-á imputada a justiça. Aí.
porém, não estará a força do livre-arbítrio, mas a criatura renovada pela f6.
Sc, pois, não é atribuida a justiça ao que faz obras, torna-se manifesto quc
\tias obras iião passani de pecados maus e impios permite Deus. E aqui nc-
iiliuiii sofista pode afirmar desaforadamente que, apesar de o homem ser inaii,
suas obras não precisam ser más. Pois é justamente por isso que Paulo não
se refere simplesmente ao homem, mas ao obrador, para declarar com uma
palavra muito clara que exatamente estas obras e esforços do homem são coii-
denadas, qiiaisquer que sejam e qualquer que seja o nome ou a espécie pela
qual sejam denominadas. No entanto, faia de boas obras porque está debateri-
ilo sobre a justificação e o merecimento. E ao mencionar o obrador, refere-sc
(Ic modo geral a todos os obradores e a todas as suas obras, acinia de tudo,
pciréni, as obras boas e honestas. Do contrário, sua divisão em obradores c
iiáo-obradores não subsistiria.
Deixo de lado aqueles argumentos mais fortes extraidos do propósito de
):raça, da promessa, da força da lei, do pecado original, da eleição de Deus.
ciitre os quais não há um sequer que não anulasse completaniente o livre-arbi-
(rio por i só. Pois, se a graça procede do propósito ou da predestinação, iic-
ccssariamente não procede de nosso empenho ou do esforço, como ensinaiiios
;icima. Do mesmo modo, se Deus prometeu a graça antes da lei, como Paulo
o demonstra aqui e em Gálatas 426, ela não procede das obras ou da lei, do
contrario a promessa não valeria. Assim também a fé nada seria (por mciii
<I;\ qual, não obstante, Abraão foi justificado antes da lei), se as obras valcssciii
:ilg«. Ademais, como a lei é a força do pecado421, somente revelando o pecki-
LI«, sem, n o entanto, anulá-lo, ela acusa a consciência perante Deus e anieaqi
coin a ira. E isso que Paulo diz [ao escrever]: "A lei prodiiz a ira" [Rm 5.12).
( 'oino então poderia ser possível alcançar a justiça pela lei? Se, portanto, não
i.ccebeinos ajuda da lei, como nos poderia ajudar a simples força do livre-arhi-
iiio'! E iiiais. Se todos estamos sob o domínio do pecado e da condenavio por
6,;iiisu dc tini único homem, A d ã ~ ~como* ~ , poderiamos empreender qual<liici
cois:i qiic iião fosse pecado e condenável? Pois quando diz "todos", iiào cxcc-
iii:i ;i iiii~giicm,nem a força do livre-arbiirio, nem obrador algum, qiiei. csiçi:i

.1.1li ( ' 1 . (i1 1.17\. 427 ('1. 1 ( ' o 15.56. 42H ('I. IUlii 5.12.

lal#J
obrando quer não, quer esteja se esforçando quer não; necessariamente estará
compreendido eiitre "rodos", como qualquer outro. Também nós não pecaria-
mos nem seríamos condenados por aquele único delito de Adão, se ele não
fosse nosso delito. Pois, quem seria condenado por causa do pecado alheio,
ainda mais perante Deus? Ele, porém, não se torna nosso imitando ou fazen-
do-o, visto que este rião poderia ser aquele pecado único de Adão, uma vez
que foinos nós que o cometemos, e não ele. Ele se torna nosso por nascimen-
10. Sobre isso, no entanto, é preciso debater em outra ocasião. Assim pois o
pecado original não deixa outra possibilidade ao livre-arbítrio a não ser pecar
e ser condenado.
Esses argumentos, digo, de~xode lado porque são inteiramente evidentes
e fortissimos, e depois porque já dissemos muita coisa a respeito anterior-
Pois se quiséssemos recensear todas as passagens que derrubam o li-
vre-arbítrio somente eni Paulo, nada nielhor do que tratar de todo o Paulo
num conientário continuo, e iriamos demonstrar quase em cada uma das paia-
vrds que a propalada força do livre-arbítrio está rejeitada, como já o fiz com
cite capitulo três e quatro. Isso o fii principalmente para mostrar a sonolência
ein que estamos envolvidos todos nós que lemos a Paulo de tal modo que na-
Ldescobrimos
IA nessas clarissimas passagens do que esses poderosíssimos argu-
incntos contra o livre-arbítrio, e para mostrar como é estulta aquela confian-
<a que se apóia na autoridade e nos escritos dos antigos mestres e, ao mesmo
icrnpo, queria que refletissem sobre o efeito que teriam aqueles argumentos
cvidentissirnos quando tratados com diligência e critério.
A respeito de i ~ mesmo
m digo que muito me admira que, depois de Pau-
l i > ter empregado tantas vezes aqueles vocábulos gerais como "todos", "niii-
guéin", "em parte alguma", "sem", em expressões como "todos se desvin-
ram", "não há justo sequer um", "não há quem faça o bem, não há um sc-
iluer", "pelo pecado de uma única pessoa todos são pecadores e condenados".
"pela fé, semalei", "somos justificados sem a lei" [Rm 3.10,12; 5.12; 3.21.281,
<Ic sorte que, se alguiin quisesse de outro modo, não o poderia formular dc
h r m a inais clara e evidente - adnúra-me, digo eu, como pode suceder cliic
contra essas palavras e frases universais poderiam prevalecer afirmaçóes coriii;i-
rios ou até mesmo contraditórias, como, por exemplo: alguns não se desviar;iiii.
ifio são injustos, não são maus, não são pecadores, não são condenados; li;:
;iIgo no homem que é bom e que tende para o bem, como se aquele, seja qiiciii
Ii~i-. que tende para o bem não estivesse incluído nesta palavra: "todos". "iiiii-
giiCiii", "não".
I'cssoaimeiite eu não teria nada a opor ou a responder a Paiilo, iiicsiiiii
qiie qiiisesse, mas nie veria obrigado a incluir a força de meu liyrc-arbiirio. j i i i i
1;irnciite com seu esforço, entre aqueles "todos" e "niiigueni" dos qii;iis 1':iii
10 fala, a não ser que seja introduzida uma nova grambtica ou inii iii~vo
Da Vontade Cativa

iiso linguistico. Talvez também se pudesse suspeitar [da existência] de um tro-


po e distorcer palavras arrancadas de seu contexto, se Paulo tivesse usado tal
expressão apenas uma única vez ou somente em uma passagem. No entanto,
o uso é constante, tanto nas [frases] afirmativas como nas negativas, e, por
meio de uma comparação e de uma divisão em ambos os casos das partes em
geral, trata da frase de tal forma que não somente o significado natural das
palavras e a frase em si, mas também o contesto posterior e anterior, as circuns-
tjncias, a intenrão e o próprio corpo de toda a discussão coiicluam pelo pensa-
mento comum que Paulo quer denionstrar: que fora de Cristo existe somente
pecado e coiidenação. Deste modo nós nos havíamos comprometido a refutar
o livre-arbítrio, para que nenhum adversário pudesse resistir. A meu ver, eu o
consegui, ainda que os vencidos não concordem com nossa opinião oii silen-
ciem. Pois isso não está em nosso poder; é dom do Espirito de Deus.
Antes, porém, de ouvirmos o evangelista Joáo, queremos acrescentar o re-
mate final de Paulo, dispostos, caso isso não for suficiente, a fornecer um co-
nieutano completo sobre todo o Paulo contra o livre-arbítrio. Em Rni 8.5, on-
de divide o gênero humano em dois grupos, em carne e Espirito, como também
o faz Cristo em João 3.6, [Paulo] diz o seguinte: "Os que são segundo a car-
ne. pensam nas coisas da cariie; os que, porém, são segundo o Espírito, discer-
nem as coisas do Espirito". Que Paulo cliama de carnais a todos os que não
são espirituais se torna evidente uma vez a pacir da divisão e justaposição de
Espirito e carne, e, por oiitra, das próprias palavras de Paulo como segue:
"Vós não estais na carne, nias no Espirito, se é que o Espirito de Deus liabita
crn vós. Aquele, porém, que não possiii o Espirito de Cristo, este não é dele"
[Rm 8.91. Que quer ele dizer com as palavras: "Vós não estais na carne, mas
o Espírito de Deus está em vós"? Evideiitemente o seguinte: os que não pos-
suem o Espirito, vivem forçosamente na carne. E quein não é de Cristo, de
quem poderia ser senão de Satanás? Consta, portanto, que os que carecem
do Espírito, esses estão na carne e sob Satanás. Vejamos agora como pensa a
iespeito do esforço e da força do livre-arbítrio dos carnais. "Os que estão na
carne não podem agradar a Deus". E depois: "Pensar na carne é morte"; e
segue: "Pensar na carne é inimizade contra Deus". Igualmente diz: "Não es-
l i sujeito a lei de Deus, nem pode estar". [Rm 8.6-8.1
Aqui pode o patrono do livre-arbítrio responder-me: Como pode esforçar-
\c pelo bem aquilo que é niorte, o que desagrada a Deus, é inimizade contra
1)ciis. desobedieiite a Deus e que é incapaz de obedecer? Pois [Paulo] também
1120quis dizer: "Pensar na carne é coisa moita ou inimiga de Deus", mas é a
pi-'ipria morte, a própria inimizade, para a qual é impossível sujeitar-se à lei
tlc Deus ou agradar a Deus, como também havia dito antes: "Pois o que foi
iiiipossívcl à lei, porque estava enfraquecida pela carne, Deus o fez", etc. [Rm
x.31. .hiiibCm eii conheço a fábula de O r í g e n e ~sobre
~ ~ ~o triplice afeto, cha-
Da Vontade Cativa

mando o primeiro de "carne", o segundo de "alma" e o terceiro de "espir-


to". A "alma", porém, é aquele afeto intermediário, que se pode inclinar pa-
ra a carne ou para o espírito. Isso, porém são fantasias dele; apenas o afirma
$em nada provar. Em nosso caso, Paulo chama de "carne" a tiido que care-
ce do Espírito, como acabamos de mostrar. Por isso aquelas virtudes máximas
das melhores pessoas são carnais, ou seja, são mortas, inimigas de Deus, não
sujeitas a lei nem capazes de sujeitarem-se a ela, e não agradam a Deus. Pois
Paulo não diz apenas que não se sujeitam, mas também que não podem sujei-
tar-se. O mesino diz Cristo em Mt. 7.19: "A árvore má iião pode produzir fm-
tos boiis". E no capítulo 12.34: "Como podeis falar coisas boas sendo maus?"
Vês aqui que não apenas dizemos coisas más mas que sequer somos capazes
de falar coisas boas. E ele que diz em outra passagem: "Nós, embora sendo
maus, sabemos dar coisas boas a nossos filhos", nega, não ohstante, que faze-
mos o bem inclusive qiiando damos coisas boas. Porque, embora seja boa a
criatura de Deus que damos a nossos filhos, nos próprios não somos bons,
nem é boa a maneira como damos estas coisa boas. Isso, porém, ele diz a to-
dos, inclusive a seus próprios discípulos, de modo que são verdadeiras as fra-
ses gêmeas de Paulo: "O justo vive da fé" e."tudo que não procede da fé é
pecado" [Rni 1.17; 14.231. Uma é conseqüência da outra. De fato, se não exis-
te nada por meio do qual somos justificados exceto a fé, fica evidente que aqiie-
les que vivem sem fé ainda não são justificados. Os não-justificados, porém,
são pecadores; por sua vez, os pecadores são árvores más, incapazes de fazer
:ilgo diferente que pecar e produzir frutos maus. Por essa razão o livre-arbítrio
iiáo é outra coisa do que escravo do pecado, da moite e de Satanás, nada ?a-
zcndo nem podendo fazer senão praticar ou intentar o mal.
Acrescente-se a isso Rm 10.20, citado de Isaias 165.11: "Fi~i encontra-
do por aqueles que não me procuravam, manifestei-me aos que não pergunta-
vain por mim". Isso diz referente aos gentios, aos quais foi dado ouvir c co-
iiliccer a Cristo antes mesmo que pudessem pensar nele, muito menos aiiid;~
huscá-lo ou preparar-se para ele pela força do livre-arbítrio. Com este exeinplo
fica suficientemente claro que a graça vem gratuitamente de tal modo que nciii
o pensamento nela muito menos o esforço e o empenho por ela lhe preccdciii.
O iiiesmo aconteceu também com Paulo, quando ainda era Saulo: que i'cz clc
com aquela força máxima do livre-arbítrio? Sem dúvida, tinha em iiiciiic
;i\ melhores e as mais honestas intenções, do ponto vista racional. Obscrvii.
portin, por meio de qiie esforço alcança a graça. Ele não apenas não a procii-
GI, mas a alcança ao arremeter furiosamente contra ela. A respeito dos jiiclciih
li^, todavia: "Os gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram :i iiisliq:i
qiic procede da fé. Israel, porém, ao buscar a lei da justiça, não a alcaiicoii"
I R i i i 9.30s.I.
(jiic poderá reclamar contra isso qualqiier defensor do livrc-:irl>íiiioY( ) c
p,ciitios rccchem a justira gratiiitaniciifr. ;io se eiicr>iilr:irciii clicioh clc iiiiliii.il:i
(Ic c (Ic Lodos os vicios, porqiic I>ciis sc coiiipndccc. Os .iii<lciis.poii.~ii.~ ~ i i ( ~ i i i i i i
10 1111sc:iiii:i .iiisIi~:icoiii o 111;iiorciiipciilio c cs~orqo,siici~iv;i/.ios. AC~ISCI isso
Da Vontade Cativa
não equivale a dizer que é vão o esforço do livre-arbítrio, que, enquanto bus-
ca o melhor, ele próprio antes cai em situação pior e regride cada vez mais?
Tampouco ninguém poderá negar que eles não se empenharam com a força
máxima do livre-arbítrio. O próprio Paulo lhes testemunha isso em Rm 10.2,
dizendo que eles têm zelo de Deus, não, porém, segundo o conhecimento. Por-
tanto, os judeus não têm falta de nada do que se atribui ao livre-arbítrio. No
entanto, disso nada resulta, pior ainda, resulta no contrário. Os gentios nada
têm daquilo que se atrbui ao livre-arbítrio, não obstante, Ihes é concedida a
justiça de Deus.
Que significa isso senão que é confirmado pelo exemplo evidentíssimo de
ambos os povos como também, simultaneamente, pelo claríssimo testemunho
de Paulo que a graça é dada gratuitamente aos que não a merecem e que são
indignos, e que ela não pode ser conseguida por qualquer empenho, esforço,
obras, sejam pequenas ou grandes, inclusive das melhores e mais honestas pes-
soas que buscam a justiça com zelo ardente e correm atrás dela.
Voltemo-nos também a João, também ele próprio um eloqüente e podero-
so devastador do livre-arbítrio. Logo no início atribuiu ao livre-arbítrio uma
cegueira tão grande a ponto de sequer enxergar a luz da verdade, muito me-
110s é capaz de esforçar-se por ela. Pois diz o seguinte: "A luz resplandece nas
trevas, mas as trevas não a compreendem"; e logo em seguida: "Estava no
inundo, mas o mundo não o conheceu. Veio para sua propriedade, e os seus
não o receberam" [Jo 1.5,10,11]. Que crês que ele entende por "mundo"?
Acaso podes excetuar a qualquer pessoa desse conceito, a não ser que seja re-
criada pelo Espírito Santo? Aliás, este apóstolo faz um uso peculiar deste vocá-
bulo "mundo". Entende por ele o gênero humano em sua totalidade. Portan-
to, o que ele diz a respeito do mundo diz respeito ao livre-arbítrio, por ser ele
0 que de mais excelente existe no homem. Portanto, segundo este apóstolo, "o
iiiundo não reconheceu a luz da verdade". "O mundo odeia a Cristo e os que
lhe pertencem". "O mundo não conhece o Espírito Santo nem o enxerga". "To-
do o mundo jaz no maligno". "Tudo que existe no mundo é concupiscência
<Iacarne e concupiscência dos olhos e soberba da vida". "Não ameis o mun-
ilo". "Vós sois do mundo", diz ele. "O mundo não pode odiar-vos. Ele odeia
;i mim, porque testifico que suas obras são más" [Jo 1.10; 15.19; 14.7; 1 Jo
5.19; 2.16; 2.15; Jo 8.23; 7.7 1. Todas essas passagens e muitas outras semelhan-
ics sâo elogios ao livre-arbítrio, ou seja, da parte mais excelente que reina no
iii~iiidosob o império de Satanás. Pois também o próprio João fala do mun-
CIO por meio de uma antítese: "mundo" é tudo que não foi transferido do
iiiiiiido rara o Espírito, como [Cristo] diz aos apóstolos: "Eu vos tirei do mun-
do c .vos coloquei, etc." [Jo 15.19,16]. Agora, se existissem no mundo alguns
<~iic hiiscasscm o bcm pela força do livre-arbítrio, o que deveria ser o caso se
a i livrc-avhílrio fosse capaz de alguma coisa, João teria temperado com rwâo
YII:I ~p;il:ivreciii consideração a eles, a fim de não envolvê-los, com a linguagem
~ : i . i ; i I . c111I;irilos rrialcs de qiic acusa o mundo. Visto, porém, que não o Iv,,
..
(i<.. .i <vi(lciilc qiic ;iciisa o livrc-arhíirio coiii liido qiic disse a rcspcilo do iiiiiri-
do, uma vez que tudo que o mundo faz, ele o faz por meio do livre-arbítrio,
isso é, por sua razão e vontade, suas partes mais excelentes.
Segue: "A todos quantos o receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos
de Deus, a saber, aos que crêem em seu nome; os que não nasceram do san-
gue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus" [Jo
1.12s.I. Por meio dessa divisão João expulsa do reino de Cristo o sangue, a
vontade da carne, a vontade do homem. Creio que "sangue" são os judeus, ou
seja, os que pretendem ser os filhos do Reino, porque são descendentes de
Abraão e dos patriarcas, a saber, os que se gloriam de seu sangue. Por "vonta-
de da carne" entendo o empenho do povo com que se exercitaram na lei e nas
obras. Pois "carne" designa aqui os "carnais" que não têm o Espírito, por-
que, tendo a vontade e o esforço, eles os têm de modo carnal, porque falta o
Espírito. Por "vontade do homem" entendo, de modo geral, os empenhos de to-
dos, quer estejam na lei, quer estejam sem a lei, por exemplo, os [empenhos]
dos gentios ou de quaisquer outras pessoas, de modo que o sentido é o seguin-
te: não se tornam filhos de Deus nem através do nascimento da carne, nem
através do empenho da lei, nem por qualquer outro esforço humano, mas uni-
camente pelo nascimento divino. Se, portanto, não nascem da carne, nem são
educados pela lei, nem são preparados por qualquer disciplina do homem, mas
são renascidos de Deus, fica evidente que aqui o livre-arbítrio de nada vale.
Pois sou da opinião de que nesta passagem o termo "homem" é concebido
no sentido hebraico como "qualquer pessoa" ou "cada pessoa", assim como
"carne" significa, por antítese, "o povo sem o Espirito", "vontade", porém,
significa a força suprema nos homens, a saber, a parte principal do livre-arbítrio.
No entanto, ainda que não entendamos cada uma das palavras desta for-
ma, o essencial da questão está claríssimo: por meio desta divisão, João rejci-
ta tudo que não é geração divina, porquanto diz que não se tornam filhos de
Deus a não ser que nasçam de Deus, o que acontece, segundo sua própria iii-
Lcrpretação, quando crêem em seu nome. Nesta rejeição se inclui forçosamcii-
te a vontade do homem ou o livre-arbítrio, visto que não é nascimento de
Deus nem fé. Se, porém, o livre-arbítrio tivesse algum poder, João não deveria
rejeitar a vontade do homem, nem deveria afastar dela os homens e remetê-los
cxclusivarnente a fé e ao renascimento, a fim de não se aplicar a ele aquela p;i-
lavra de 1s 5.20: "Ai de vós que chamais de mal o que é bom". Agora, porE~ii.
que ele rejeita por igual o sangue, a vontade da carne, a vontade do hoiiiciii.
E certo que a vontade do homem não contribui mais para fazer filhos de Ilciis
do que o sangue e o nascimento carnal. No entanto, ninguém duvida dc qiic
o nascimento da carne não faz filhos de Deus, como também diz I'aulo c~ii
I<iii 9.8~s.:"Não os que são filhos da carne são filhos de Dcus". Pr«v;i isso
com o cxcmplo de Ismael e Esaú.
O iiiesmo João também cita o Batista que diz o seguinlc: "de ciij;i plciiiiii
(Ic todos 116s recebemos graça sobre graça" [Jo 1.161. Diz qiic rccchciii~>s gr;i
(.;i c l ; ~ plciiitiidc de Cristo, no cntanto, por coiiia de qiic iiiEi-iio c)ii ciiili~~iilio?
I'ui coiii:i d;i gr;iça. diz clc, oii sci;i. <I;i graça dc <:i-islo, coiiic) I:iiiiI,Eiii o rx
pressa Paulo em Rm 5.15: "A graça de Deus e o dom na graça de um só
homem Jesus Cristo abundou para muitos". Onde ficou agora o esforço do
livre-arbítrio com que se alcança a graça? João não somenle afirma nesta pas-
sagem que não recebemos a graça por algum esforço nosso, mas que a recebe-
mos por graça e mérito alheio, a saber, somente do homem Jesus Cristo. Por-
tanto é falso que recebemos nossa graça por causa de graça alheia, ou é eviden-
te que o livre-arbítrio nada é; pois não podem constar ambas as coisas simulta-
neamente: que a graça de Deus é tão insignificante que pode ser conseguida
em qualquer lugar e em toda parte, por meio do insignificante esforço de qual-
quer pessoa, e, por outro lado, tão cara que ela nos é dada na e por meio da
graça deste único tão grande homem. Ao mesmo tempo, por meio desta passa-
gem quero ter advertido os defensores do livre-arbítrio, a fim de que saibam
que se tornam negadores de Cristo quando afirmam o livre-arbítrio. Pois, sc
obtenho a graça de Deus através de meu esforço, que necessidade tenho da gra-
ça de Cristo para receber minha graça? Ou então, que me falta se tenho a gra-
ça de Deus? A Diatribe, porém, disse, e o mesmo dizem todos os sofistas 43',
que alcançamos a graça de Deus por meio de nosso esforço e que por meio
dele somos preparados para recebê-la, se bem que não de condigno, mas de
côngruo. Isso significa nitidamente negar a Cristo por cuja graça recebemos a
graça, como o testemunha o Batista. Pois essa invenção a respeito do "condig-
no'' e do "côngruo" refutei mais acima, porque são palavras inanes; na verda-
de, porém, pensam no mérito condigno, c isso com base numa impiedadc
maior do que a dos pelagianos 432, como já foi dito. Assim acontece que os
sofistas ímpios juntamente com a Diatribe negam a Cristo, que nos resgatou,
mais do que jamais o negaram os pelagianos ou quaisquer heréticos, a tal pon-
to a graça é intolerante a qualquer partícula ou força do livre-arbítrio. Mas
que os defensores do livre-arbítrio negam a Cristo não o comprova somentc
csta abonação da Escritura, mas também a própria vida deles. A partir disso
já não têm mais a Cristo como mediador benigno, mas o transformaram eiri
temível juiz a quem tentam aplacar por meio das intercessoes da mãe [Maria]
c dos santos, e ademais com muitas obras inventadas, cerimônias, práticas rcli-
giosas, votos. Com tudo isso querem conseguir que o Cristo reconciliado Ilics
conceda a graça. No entanto, não crêem que ele intercede junto a Deus e quc
Ilics conquista a graça por meio de seu sangue, e (como diz aqui) "graça sobrc
graça". E assim como crêem, assim o têm. Pois Cristo é para eles de fato c
iircrecidamente um juiz inexorável, contanto que o abandonaram como clemcii-
i issimo mediador c salvador e consideram seu sangue e sua graça de menos vn-
lor do que o empenho e esforço do livre-arbítrio.
Ouçainos também um exemplo do livre-arbítrio. N i c o d e ~ n o spor
~ ~ ~cxciii-
,
~plo,i. inri homein qiic nada deixa a desejar do que o livre-arbitrio C. c;i[>;i/.
I'ois ilii;il 11 eriipeiiho ou eslòi-ç« que aquclc homem omite? Confessa quc ('i-isio

I
I 'I i I . l<Il, 432 I>i,l;i,,i:iii<'I'
ii,\:iciiii:i
: ii. 111 ,131 <'I'.I , > l , l \ \ ,

205
I>a Vonradc Caiiva
é verdadeiro e aue veio de Deiis.. eloaia- os sinais, vem a noite vara ouvir mais
s para conversar. Acaso não se tem a impressão de que ele procurou coin a
força do livre-arbítrio as coisas que dizein respeito a piedade e a salvação'?
Mas observa o impacto que sofreu ao ouvir a Cristo ensinar o verdadeiro ca-
minho da salvação por meio do renascimento; acaso o reconhece ou confessa
tê-lo buscado alguma vez? Pelo contrário, ele recua com tanto horror e se con-
funde de tal nianeira que não somente declara que não o entende, mas inclusi-
ve se afasta dele por ser impossível. "Como pode acontecer isso?", perguntou
ele. Isso, evidentemente, não admira. Pois quem jamais ouviu que o homem
deve ser regenerado de água e Espírito para a salvação? Quem jamais cogitou
que o Filho de Deus tem que ser exaltado, para que rodo o que crê nele não
pereça, mas tenlia a vida eterna? Acaso isso ocorreu algiima vez aos mais pers-
picazes e excelentes filósofos? Ou os príncipes deste muiido alguma vez conhe-
ceram esta ~iência?"~ Acaso alguma vez o livre-arbítrio de alguém se esforçou
por isso? Não confessa Paulo que esta é uma sahedoria envolta em mistério,
aiiiiiiciada pelos profetas, é verdade, mas revelada pelo Evangelho de cal iiia-
iieira qlie foi tácita e desconhecida para o mundo desde a e ~ e r n i d a d e ?Que
~~~
devo dizer? Pergunteinos a experiência. O muiido inteiro, a própria razão hu-
mana e inclusive o próprio livre-arbítrio são obrigados a confessar que não co-
nheceram a Cristo nem o ouviram antes que viesse o Evangelho ao mundo.
Se, porém, não o conheceu, muito menos o buscou ou pôde buscá-lo ou esfor-
?ar-se por ele.
Cristo, com efeito, é o caminho, a verdade, a vida e a salvação436.Portan-
to, o livre-arbítrio confessa, queira ou não queira, que não é capaz de conhc-
ccr ou buscar por suas próprias forças as coisas pertinentes ao caminho, a ver-
dade e à salvasáo. Não ohstante arremetemos furiosamente contra essa mes-
iiia confissão e experiência própria, e discutimos com palavras vãs que perina-
iicceu em nós unia força suficiente para conhecer as coisas coiicernentes à sal-
v;ição e para aplicar-se a ela437.Isso significa afirmar: "Cristo é o Filho dc
1)eiis exaltado por nós", embora niiiguéni jamais o soubesse nem o pudesse
Ipciisar jaitiais; apesar disso esta ignorância não e ignorância, mas conhecimcii-
io de Deus, isso é, conhecimento das coisas coiicernentes a salvaçZo. Acaso
;lilida não percebes e apalpas que os defensores do livre-arbítrio realmcntc so-.
Iiciii de insanidade quando chamam de sabedoria aquilo que eles próprios coii-.
kssnm ser ignorância? Não significa isso chamar a luz de trevas, conforme Isn
i;is 5.20? Tão poderosamente Deus obstrui a boca do livre-arbítrio com a prii
[liia confissão e experiência deles. Nem mesmo assim pode calar-se e dar :I FIO
I i:i LI Deus.
.Ném disso, como Cristo é chamado o caminho, a verdade e a vida, e is-
so por meio de iima antítese, como tudo que iião é Cristo não é caminho,
iiias engano, não é verdade, mas mentira, não é vida, iiias moite, o Livre-arbi-
ii-io, não sendo Cristo nerii estando em Cristo, tem que iiscessariamente consis-
iir em engano, mentira e iiiorte. Onde, portanto, e de onde se tem aquela situa-
cZo intermediária ou neutra, ou seja, aquela força do livre-arbítrio que, não
sendo Cristo (isso é, o caminho, a verdade e a vida), nem engano, nem menti-
ia, nem morte, deveria existir apesar de tudo? Pois, se tudo que diz respeito
;i Cristo e à graça não fosse expressado antiteticamente, de modo que seja opos-
to a fatores contrários, como, por exemplo: fora de Cristo existe somente Sata-
iiis, fora da graça existe somente a ira, fora da luz existem somente as trevas,
I'ora do caminho existe somente o engano, fora da verdade existe somente a
iiientira, fora da vida existe sometite a morte - por favor, que poderiam reali-
/;ir todos os discursos dos apóstolos e toda a Escritura? Tudo seria dito em
\5o, visto que não leva h conclusão de qiie Cristo é necessário - o que. não
ubstante, é seu iritei-esse principal -, porque se descobriria algo intermediário
{Iiie, por si mesnio iião seja nem bom nem mau, nem pertencente a Cristo nem
:i Satanás, nem verdadeiro nem falso, nem vivo nem morto, talvez também
iiáo seja algo nem nada, e a isso se chamaria o mais excelente e o máximo que
cxiste em todo o gênero humano. Escolhe o que quiseres. Se admites que as
! liscrituras falam por meio de antítese, nada poderás dizer a respeito do livre-
I :irbítrio a não ser coisas contrárias a Cristo ou seja, que nele próprio reinam
i 1 engano, a morte, Satanás e todos os males. Se não admites que elas falam

i Iioi meio de antítese, já estás enervando as Escrituras, de modo que ela nada
cktua e não prova que Cristo é necessário. E assim, estabelecendo o livre-arbi-
[rio, esvazias a Cristo e arruiiias toda a Escritura. Depois, embora siiniiles por
iiicio de palavras que confessas a Cristo, na verdade e no corai;.io o negas.
I'ois, se a força d o livre-arbítrio iião é completamente errônea e condenável,
iii;is, inuito antes, reconhece e deseja o que é honesto e bom, e concernente a
:ilvação, então ela é sadia, não tem necessidade do riiédico Cristo"" nem tam-
~ ~ o i i cCristo
o rediriiili esta parte do homem. Pois, que necessidade há da luz e
<I:i vida onde há luz e vida'? Se, porém, esta parte do horiierii não foi redimi-
iI;i [por Cristo, então iião está redimido o que há de melhor no homem, mas
I: Ihoiii c csiá salvo por si niesmo. Neste caso também Deus é injusto se condc-
i i ; i csic homem, porque condena aquilo que há de mais excelerite e sadio no
Iioiriciii, oii seja, o que é inocente. Porque não existe homem que não tenha
livi-c-arhíisio. E ainda que o homem mau abuse dele, a própria força não se
chliiil:i~c, CIIS~II:III~eles, de modo que não busca o bem nem pode buscá-lo. Se,
11iri61ii.ela C clesta iialurera, sei11 dúvida alguma é boa, santa e jiisia; por csta
i:i/;io ii:io ~>odc ser con~lcnadn,iiias deve ser separada do horneni que dcvc ser
<~~~ii~Icii:iiIo.Isso, [porL:iii, nUo pode acontecer. Se, no entaiilo, fosse possivcl,
I l a Vontade Cativa
- ~~

o homem sem livre-arbítrio já não seria mais homem, nada mereceria e nada
desmereceria, não seria condenado e não seria salvo, seria totalmente bruto e
já não seria mais imortal. Resta, pois, que Deus iseja iníquo porque condena
esta força boa, justa e santa, que não necessita de Cristo, no homem e com O
liomem mau.
No entanto, prossigamos com João. "Quem nele crê", diz ele, "não serb
julgado; o que não crê já está julgado, porque não crê no nome do unigènito
Filho de Deus" [Jo 3.181. Responde-me se o livre-arbítrio figuraentre o núme-
ro dos crentes ou iião. Se figura, uma vez mais não necessita da graça, cren-
do por si mesmo em Cristo, ao qual não coiiliece por si mesmo nem cogita
dele. Se não figura, já está julgado. Que significa isso a não ser "está condeiia-
do perante Deus"? Deus, todavia, condena somente o ímpio. Portanto, [o li-
vre-arbitrio] é ímpio. Como, porém, poderia o impio esforçar-se pelo que é
justo? Também não creio que aqui se pudesse excetuar a força do livre-arbítrio,
visto que fala de todo o homem do qual diz que 6 condenado. Ademais, a iii-
cicdulidade não é um afeto grosseiro, mas o suprerno que reside e reina no
castelo da vontade e da razão, como seu contrário, a saber, a fé, Ser incrédu-
lo, porém, significa negar a Deus e fazê-lo mentiroso, conforme 1 JoSo 5.10:
"Se não cremos, fazeiiios a Deus mentiroso". Como, agora, pode a força que
C contrária a Deus e o faz mentiroso esforçar-se pelo bem? Se esta força não
I'osse incrédula e ímpia, não se deveria ter afirmado a respeito de todo homem:
"já está julgado", mas: o homem já está julgado de acordo com seu afeto gros-
seiro; no eiitanto, de acordo com o melhor e mais excelente [que há nele] ele
iião será julgado, porque ele se esforça para conseguir a fé, ou melhor, já é
ciente. Deste modo, onde a Escritura diz tantas vezes: "Todo homem é menti-
roso" [SI 116.11], diremos corn a autoridade do livre-arbitrio: Ao contrário! a
Escritura mente, porque eiii sua parle mais excelente o hoinem não é mentiro-
50, ou seja, ciii siia razão e vontade, mas apenas na carne, no sangue e na
iiiedula, de modo que o todo, de onde recebe a designação de homem, a razão
e a vontade, é são e santo.
Também o dito do Batista: "Quem crê no Filho tem a vida eterna. Quem,
iodavia, não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre
cle" [Jo 3.361 deverá ser entendido da seguinte forma: "sobre ele", isso é, so-
[>i-eos afetos grosseiros do homem permanece a ira de Deus, mas sobre a for-
(11 do livre-arbítrio, ou seja, da vontade e da razão. permanece a graça e a vi-
dn cterna. Para que subsista o livre-arbitrio, sc pode, com base neste exemplo,
ioiccr. por meio de uma sinbdoque, tudo o que se diz na Escritura a respeito
LIII Iioincm ímpio à parte bruta do homem, para que fique a salvo a parte ra-
i.ii>iialc verdadeiramente humana. Então agradecerei aos advogados do livre-
;iil~iirioe pecarei confiante, certo de que a razão e a vontade ou o livrc-arbi-
irio i130 podem ser condenados porque jamais é extinto, mas permanece eter-
ii:iiiiciitc sâo, justo c santo. Sendo, porém, beatas a voiitadc e a razão, eu nie
;ilcgi;irci porque a carne corrupta c bruta é separada c coridciiada, loiigc de
~lcsc.i;ir1ni.a cla :i Cristo. O Rcdcntor. Vts pnr;i <iiidc iios Icvn o dogrua do li-
Da Vontade Catiua
vre-arbitrio? como nos leva a negar todas as coisas divinas e humanas, as tem-
porais e eternas, e como se ridiculariza com tantas monstruosidades?
O Batista diz igualmente: "O homem nada pode receber se não lhe for
dado do céu" [Jo 3.271. Que a Diatribe pare de ostentar sua riqueza sempre
que enumera tudo que temos do céu. Não estamos debaterido sobre a nature-
za, nias sobre a graça; tampouco perguntamos quem sonios sobre a terra, mas
quem somos no céu perante Deus. Sabemos que o homem foi constituído se-
nhor sobre os seres inferiores a ele. Sobre estes tem direito e livre-arbitrio, de
sorte que eles lhe devein obedecer e fazer tudo o qiie quer e pensa. Pergunta-
nios, porém, se ele também tem livre-arbítrio perante Deus, de sorte que Deus
deve obedecer e fazer o que o homem quer, ou, se não é o contrário: que
Deus tem livre-arbítrio sobre o homem, de sorte que esse deve querer e fazer
o que Deus quer, e que nada pode fazer senão o que Deus quis e fez. O Batis-
ta diz aqui que nada se pode receber se não lhe for dado do céu. Por isso o
livre-arbítrio será nada. Diz mais: "Quem é da terra, este é da terra e fala da
terra; o que vem do céu, este está sobre todos" [Jo 3.311. Novamente coloca
a todos conio terrenais e diz que aqueles que não são de Cristo pensam e falam
coisas terrenas, e não deisa njnguém ficar no meio. Ora, o livre-arbitrio iiao
é. de forma alguma, aquele que vem do céu. Por isso necessariamente tem que
ser da terra e pensar e falar coisas terrenas. Porque, se alguma força no ho-
mem, em qualquer tempo, lugar ou obra não pensou nas coisas terrenas, a es-
te o Batista deveria ter excluído e não deveria ter dito, em termos gerais, a res-
peito de todas as pessoas fora de Cristo: são da terra, falam da terra. Assim
também diz Cristo abaixo, no capítulo 8.23: "Vós sois do mundo. Eu não sou
do murido. Vós sois daqui de baixo, eu sou lá de cima". Ora, aqueles, aos
quais fala, tinham o livre-arbítrio, ou seja a razão e a vontade; não obstante
diz que eles são do mundo.
Que novidade, porém, estaria dizendo ao afirmar que, segundo a carne e
os afetos grosseiros, eles sâo do mundo? Acaso o mundo inteiro não sabia is-
so j i antes? Além disso, que necessidade há de dizer que os homens são do
mundo no que diz respeito a sua parte irracional, visto que, neste sentido, tam-
bém os animais são do mundo?
E que deixa para o livre-arbítrio a passagem de João 6.44, onde Cristo diz:
"Ninguém vem a mim se meu Pai não o traz"? Pois diz que é necessário que
se ouça e aprenda do próprio Pai, e depois diz que todos precisam estar instrui-
dos por Deus. Aqui, na verdade, não ensina apenas que as obras e os esforços
do Livre-arbítrio de nada valem, mas que o próprio Evangelho (do qual trata
esta passagem) é ouvido em vão, se o próprio Pai não falar, ensinar e atrair
interiormente. Ele diz: "Ninguém pode vir", quer dizer, afirma-se que é nula
aquela força por meio da qual o homem pode, de alguma forma, buscar a
Cristo, isso é, o que diz respeito a salvação. Também não vem em apoio da
Diatlibe a citação que faz de Agostiriho para desacreditar esta passagem tão
clara c poderosa, a saber quc Deus atrai como nós atraímos uma ovelha, cstcn-
DI Vontade Cativa
dendo-lhe um ramo439. Com essa comparação quer provar que existe em nós
uma força para seguir ao gesto de atração de Deus. No entanto, essa compara-
ção para nada serve neste caso. Pois Deus não mostra apenas um de seus bens,
mas todos eles, além disso o próprio Cristo, seu Filho. Apesar disso nenhuma
pessoa lhe segue, a não ser que, interiormente, mostre algo diferente e atraia
de niodo diferente. Pelo contrário, todo mundo persegue o Filho que ele mos-
tra. Essa comparação se aplica maravilhosamente aos crentes que já são ove-
lhas e conhecem a Deus como seu pastor. Estes vivem no Espírito e, movidos
por ele, seguem para onde quer que Deus queira e seja o que ele mostrar. O
impio, porém não vem, nem mesmo depois de ter ouvido a Palavra, se o Pai
não o atrair e ensinar por dentro, o que faz dando-lhe o Espirito. Ai existe
uma força de atração diferente daquela que acontece exteriormente. Ai é mos-
trado Cristo por meio da iluminação do Espírito, por meio da qual o homem
é arrastado para junto de Cristo por uma atração extremamente agradável e
prefere antes consentir com o Mestre que ensina e com o Deus que atrai do
que buscá-lo ele próprio e correr atrás dele.
Queremos citar mais uma passagem de João, do capitulo 16.9, onde
diz: "O Espirito convencerá o mundo do pecado, porque não acreditaram em
mim". Vês aqui que pecado é não crer em Cristo. Em todo caso, no entanto,
esse pecado não está grudado na pele ou nos cabelos, mas na própria razão
ou vontade. Visto, porém, que acusa o mundo inteiro deste pecado e, como é
notório a partir da experiência, que esse pecado foi desconhecido do mundo
como também Cristo, fato que é revelado pelo Espirito acusador, fica eviden-
te que o livre-arbítrio com sua vontade e razão é considerado cativo e condena-
do perante Deus por este pecado. Por isso, enquarito ignora a Cristo e não crê
nele, nada pode querer ou intentar de bom, mas serve obrigatoriamente aque-
le pecado ignorado. Em resumo: tendo em vista que a Escritura anuncia a Cris-
to em toda parte (como já disse) por meio de comparações e antíteses, de mo-
do que tudo que não tiver o Es,pirito de Cristo submete a Satanás, a impieda-
de, ao erro, as trevas, ao pecado, à morte, a ira de Deus, todos os testcmii-
nhos que falam de Cristo combaterão o livre-arbítrio. E esses são incontáveis,
ou melhor, toda a Escritura. Por isso, se tratarmos deste assunto perante o li-i-
bunai da Escritura, serei vencedor em toda a linha, de sorte que não sobrafii
um único jota ou til que não condene o dogma do livre-arbítrio. Embora o s
grandes teólogos e defensores do livre-arbítrio ignorem ou dissimulem igiir>r;ir
que a Escritura proclama a Cristo por meio de comparações e antíteses, sahciii-
no, não obstante, todos os cristãos e o confessam publicamente. (Estou dizcii.
do) que sabem que existem dois reinos no mundo que se combateiii iiiiitiiniiicii-
tc, que num deles reina Satanás que, por isso, é chamado de "piiiicipc CIO
inundo" por Cristo [Jo 12.311, e por Paulo, "Deus do prcsciilc sL:ciilr~"12
( ' O 4.41, que mantém cativos a sua vontade a todos quc iião foi-tiiii ;iri;iiic:i(l~>\
dele pelo Espírito de Cristo, como o testemunha o próprio Paulow, e que ri311
permite que lhe sejam roubados por nenhuma força a não ser pelo Espirilii
de Deus, como Cristo o testemunha na parábola do forte que conserva seu pn.
lacio em paz*'. No outro mundo reina Cristo, reino este que resiste assidiiii.
mente e luta com o reino de Satanás, para o qual somos transferidos não p11r
iiossa própria força, mas pela graça de Deus, por meio da qual somos liberi:~
dos do presente século mau e somos arrancados do poder das trevas. Coiilic-
cer e confessar esses reinos que se combatem eternamente utn ao outro coiii
iantas forças e paixões, seria por si só suficiente para refutar o dogma do livri-
arbítrio, porque somos coagidos a servir no reirio de Satanás, se não formos
~irrancados[dele] pelo poder divino. Isso o sabe o povo (digo eu) e o confcs-
sa suficientementepor meio deprovérbios, oracões, esforços ecom toda suavida.
Omito aquele meu verdadeiro Aquiles, porque a Diatribe o passou corajo-
simente por alto, sem tocar nele, a saber, o que Paulo ensina em Rm 7 . 1 4 ~ ~ .
i. GI 5.16~s.:que nos santos e justos se desenvolve uma luta tão ferrenha entrc
Irspirito e carne que não podem fazer o que querem. A partir disso, argumctcii
ila seguinte forma: se a nartureza do homem é má a tal ponto de não somen-
cc iião se esforçar pelo bem naqueles que são renascidos pelo Espírito, mas iii-
t.lusive lutar contra o bem e se lhe opor, como poderá esforçar-se pelo beni
ii:~<]oelesque, ainda não renascidos, servem a Satanás no velho homem? 'kiti-
ItCin ali Paulo não fala apenas dos afetos grosseiros, por meio dos quais, usii-
d<iscomo uma evasiva geral, a Diatribe costuma evadir-se de todos os argii-
iiiciitos bíblicos, mas enumera entre as obras da carne a heresia, a idolatria.
ilisscnsões, contendas que reinam de forma generalizada nas forças supremas.
l ~ t exemplo,
r na razão e na vontade. Se, pois, a carne luta com esses afetas
~.iriiirao Espírito nos santos, quanto mais lutará contra Deus nos impios e no
livic-arbítrio. Por isso a chama de "inimizade contra Deus" em Rm 8.7. Gos-
i ; i r i : i de ver (digo eu) como este argumento me é rebatido e como o livre-arhi-.
1 1 i<i C defendido por ele. Quanto a mim, confesso abertamente: se fosse possi-
vcl. iiio gostaria que me fosse concedido o livre-arbítrio ou que me fosse colo-.
c:iilir lia mão alguma coisa com a qual poderia esforçar-me pela salvação. Is-
,.c, ii;io apenas porque não seria capaz de subsistir e garantir aquilo [que foi
1 ~ , , \ i i ciii
1 ininha mão] em tantas adversidades e perigos, além de tantos dcni6-
~ i i ~Iiii;iiido
ts contra mim, visto que um único demônio é mais forte do quc to-.
~ l c i sos Iioiriens e nenhum homem poderia ser salvo, mas também porque, cn-
, . g t ii;io cxistisse nenhum perigo, nenhuma adversidade, nenhum demônio, iiZo

G ~ ~ I :111c I Iveria
I I ~obrigado a debater-me em constante incerteza e a dar g«lpc.:
II,,:ir. i'ois, iiiesnio que vivesse e realizasse obras eternamente, jamais iiiiiili:i
C ~tiis<.ii.iici;i lcrii ccrtcía e segnrança sobre quanto deveria fazer para satisfxzcr
.I I )i.ii\. I'ois cri1 qualqiicr obra feita permaneceria a dúvida sc ela ugrnd:~:i
I k.iis c i i i si. vxigc algo iiinis, como mostra a experiência de iodos os qiic l i i i ; i i i i
i>a Vontade Cativa

pela justiça por forças próprias e como eu próprio o aprendi suficientemente


por tantos anos, para desgraça minha. Agora, porém, que Deus tirou minha
salvação do meu arbítrio e a incluiu no seu, e prometeu salvar-me não por
meio de minha obra e corrida, mas por sua graça e misericórdia, estou segu-
ro e certo que ele é fiel e que não me mentirá, e que, além disso, é forte e po-
deroso de modo que nenhum demônio, nenhuma adversidade poderá vencê-
lo ou arrebatar-me dele. Ele diz: "Ninguém os arrebatará de minha mão,
porque o Pai, que os deu, é maior do que todos" [Jo 10.28s.]. Assim aconte-
ce que, se não todos, sejam salvos alguns e [até] muitos, enquanto pela força
do livre-arbítrio não seria salvo sequer um, mas todos estaríamos perdidos con-
juntamente. Então também estamos certos e seguros de que agradamos a
Deus, não pelo mérito de nossa obra, mas pelo favor da misericórdia que nos
é prometida; e se fazemos menos ou o fazemos mal, [estamos certos e segu-
ros] de que no-lo não imputará, mas que nos perdoa e corrige paternalmente.
Esta é a glória de todos os santos em seu Deus.
Se, porém, causa preocupação o fato de ser difícil defender a clemência e
a justiça de Deus, que condena os que não têm merecimento, ou seja, os ím-
pios que, tendo nascido na impiedade, nada podem fazer por si mesmos para
que não sejam impios, não permaneçam ímpios e não sejam condenados, e
não sejam coagidos a pecar por necessidade da natureza e a se perderem, co-
ino diz Paulo: "Todos nós éramos filhos da ira, do mesmo modo como os de-
mais" [Ef 2.31, visto que foram criados assim pelo próprio Deus da semente
viciada pelo pecado de um só homem, Adão, aqui deve ser honrado e venera-
do o clementíssimo Deus, naqueles indignissimos que ele justifica e salva; c,
afinal, se deve fazer alguma concessão à sabedoria divina, para que se creia
que ele é justo quando nos parece ser injusto. Pois se sua justiça fosse tal
que o homem pudesse julgar com sua capacidade de percepção que ela é jus-
ia, de forma alguma ela seria divina e em nada se diferenciaria da justiça hu-
mana. Como, porém, Deus é verdadeiro e único e, além disso, totalmente iri-
compreensível e inacessível para a razão humana, é conveniente, sim, é necessá-
rio que também sua justiça seja incompreensível, como também exclama Paulo,
dizendo: "Ó profundidade das riquezas e da sabedoria de Deus; quão incom-
prccnsíveis são seus juizos e insondáveis seus caminhos!" [Rm 11.331.
No entanto, não seriam incompreensíveis se fôssemos capazes de perceber,
c111 todos os detalhes, por que são justos. Que é o homem comparado cor11
I>cus? Que pode nosso poder comparado ao dele? Que é nossa força ao Indo
das forças dele? Que é nosso saber comparado com a sabedoria dele? Que c:
iiosso ser comparado ao ser dele? Em resumo, que é tudo que temos ao liiilo
ilo que ele tem? Se, portanto, confessamos, ainda que com base no qiic iios
crisina a natureza, que o poder humano, sua força, sabedoria, coiilicciiiiciilo
c seu ser e tudo que somos e temos é absoluiamcnte nada se coiiip:ii-:ido coiii
o poder, a força, a sabedoria c o conhecimcnlo de I)ciis. qiic pci-vcrsicl:iclc i.
ciilzo a nossa qiic iiiipugiiainos soiiiciilc :I jiisliça c o jiiizo iIc I>ciis c :iiii+!:i
IUOS {>aiaiiosso jiiizo tinia cop;icid;idc Iâo gr:iii<lc i~iici~iiriciii<ic~iiii~>rrcii<ll.i.
julgar e avaliar o juizo divino? Por que não dizemos de modo semelhante: nos-
so juizo não é nada comparado com o juizo divino? Consulta a própria razão
se não é obrigada a confessar convicta que procede de modo estulto e temerá-
rio ao não admitir que o juizo de Deus seja incompreensível, quando confes-
sa que todas as demais coisas concernentes a Deus são incompreensíveis. Na
verdade, concedemos a Deus a majestade divina em todos os demais assuntos,
somente em relação a justiça estamos dispostos a negá-la a ele, não podendo
crer que ele é justo, embora nos tenha prometido que assim será quando ele
rcvelar sua glória, quando então veremos e poderemos apalpar com as mãos
que ele foi e é justo.
Quero dar um exemplo para confirmar essa fé e para confortar aquele
olho malvado que considera a Deus suspeito de injustiça. Olha, em coisas ex-
icrnas Deus administra este mundo corporal de tal maneira que, se observares
o juizo da razão humana e lhe seguires, estás obrigado a dizer que Deus é nulo
oii que Deus é iníquo, como o expressa aquele [poeta]: "Muitas vezes me as-
cnlta o pensamento de que não existem deuses". Pois observa como prosperam
o s maus, enquanto os bons vivem na maior miséria, o que também testemu-
~iliamos provérbios e a experiência, mãe dos provérbios: "Quanto mais crimi-
IIOSO tanto mais afortunado". "Prosperam as tendas dos impios", diz Jó [12.61
11 Salmo 73.12 lamenta que os pecadores alcançam grandes riquezas neste
tiiiindo. Acaso não é a maior injustiça, de acordo com o juízo de todos, que
~ i smaus são abençoados com fortunas e os bons são afligidos? Mas este é o
,.iii-so do mundo. Neste ponto inclusive os maiores gênios caíram no erro de
iicgarem a existência de Deus e a concluirem que a sorte determina tudo cega-
iiiciite, entre eles os epicureus e Plínio 442. Além disso, Aristóteles opina que
:iqiiele seu primeiro ser, para libertar da miséria, nada vê das coisas a não ser
: i si próprio, por acreditar que lhe seria extremamente incômodo ver tantos so-
liiiiientos e tantas injustiças "3. Por outro lado, os profetas, que acreditavam
ii;i existência de Deus, foram mais tentados pelo pensamento de que Deus é in-
~iislo,como aconteceu com Jeremias, Jó, Davi, Asafe e outros444.Que achas
I I I o que terão pensado Demóstenes e Cícero que, depois de terem feito tudo
c ) qiic esteve a seu alcance, receberam por recompensa um fim miserá~el?"~

I I ? Ii,iciircus: ndeotoa da fdósofo .ereeo .


. Eaicuro íca. 342270 a.C.). natural de Samos. Enriiioil
1.: i I 1 ...<.,1.I 1p:.i,r.r c .,iI.i<>:>,,,I.>, .I .li> r>.llll.ll>ll.l i I . i .'J'lhl. .,.L* \r I11~,,,1<rL<iI.., \.l<l.<.'
i.. . , I c. O : I I I rii.il. '42 c . l i r i .i.i ri.i.2. ..-,:i" .i ';.r.! I . s
i8 . . I I . I : > II,I,I..i. c,,.! > i l l ~ l ~ Ii .n r ..,.l!,>.l>
.i)> . I \ . . n L . t l > l <c>, : ~ L : l . , , . l <,,.I. ~ 1 ,
\r ;il:ieg;iiii c dçsagregam no vazio, não por ação da dcidadc, mas em virtude do acaso ;il>siiiir-
iii. I'lir>io: <Iiue traiar~sedc Caio Plinio Segundo, a Velha, historiador, naturalista e e\ciilc)~
( ? I 7') ;i.('.). ciiciiieci<ioes~>ccialmcntepor sua Hi~fóriaNatural eili 37 livros.
I . I i 1 ' 1 . 11. ?76.
1.1b i ' I . I ,:~t!~r#ti:kq<~cs cic , l c r c ~ ~ ~I < i\ , ~ Saimns
~s, dc ilavi, Awfe em Y C ~ I Ssallllos.
,I.[\ f)rrw!,\l<~ttc.$(c;,. 3x5 322 :L('.), c$k!dista : ~ l c ~ ~ i c !?>i ~ ~ s:tpri~ion:~cic
c, q ~ ~ t n c lAo l c ~ caiu
~;~~
ii>;iiiiiIc Alrs;iii<lir. 1 'i,r,~i~l:iiiiiil<> chc;ili;ii, rcliiçioii-se eiii ligiri;i. I > i l x > i ~ l :cnioilc
i <IrA1ch;iii
,lir. v i , l i i , i z ;i Airii;i\. iclii;iiid<i ;iriri.iiiiriii;i~ i>* i:iiy:<>i ruiiii;i ;i M;icciiiitii:i. Ir:ii.:i*\;iil;i ;i iiiii
Da Vontade Cativa
Não obstante esta iniquidade de Deus tão provável e traduzida por argumen-
tos aos quais nenhuma razão ou luz natural pode resistir, é removida com faci-
lidade por meio da luz do Evangelho e do conhecimento da graça, pela qual
somos instruidos de que os ímpios, sem dúvida, florescem fisicamente, mas
que a alma se perde. A solução para toda esta questão insolúvel se resume nu-
ma só palavrinha: depois desta vida existe outra vida na qual tudo o que não
for punido e remunerado aqui será punido e remunerado lá, visto que a presen-
te vida nada mais é do que a precursora, ou melhor, o inicio da vida futura.
Se, portanto, a luz do Evangelho, que é forte somente na Palavra e na fé,
realiza coisas tão grandes que esta questão, discutida através de todos os tem-
pos e jamais resolvida, é dirimida e adequada com tanla facilidade, que achas
que sucederá quando deixar de existir a luz da Palavra e da fé e quando será
revelado por si só o próprio assunto e a majestade divina? Ou acaso não crês
que então a luz da glória poderá resolver com facilidade a questão que a luz
da Palavra e da graça é insolúvel, visto que a luz da graça resolveu com tanta
facilidade a questão insolúvel a luz da natureza? Coloca-me três luzes: a luz
da natureza, a luz da graça e a luz da glória, de acordo com uma distinção ge-
ral e boa. A luz da natureza é insolúvel que seja justo quando o homem bom
é afligido e o mau vai bem. No entanto, a luz da graça resolve a questão. A
luz da graça é insolúvel como Deus pode condenar aquele que com qualquer
de suas forças próprias somente é capaz de pecar e de se tornar culpado. Aqui
lauto a luz da natureza quanto a luz da graça ditam que a culpa não é do mi-
serável homem, mas do Deus iníquo, pois não pode fazer outro juizo de Deus
que coroa o ímpio sem nenhum mérito, e ao outro, menos impio, em todos
os casos não mais ímpio, não coroa, antes o condena. A luz da glória, por6111
dita outra coisa e há de mostrar que Deus, cujo juízo por ora ainda encerra
uma justiça incompreensivel, é de uma justiça extremamente justa e evidenic;
apenas que, entrementes creiamos nisso, admoestados e confirmados pelo exeiii-
plo da luz da graça que realiza um milagre semelhante a luz natural.

[XVI
Aqui quero concluir este livro, disposto, se necessário, a tratar dessc sssi~ii
to em mais outros, embora acredite que isso satisfaz ao piedoso e ao qiic qiiri
dar crédito a verdade sem resistência. Pois se acreditamos que i. verdaclc qiii.
Ilcus tem presciência de tudo e a tudo preordena, e que ele não pode ciigiii:ii
sc em sua presciência e predestinação nem ser impedido; [se creiriosl til6111<lis
so, que nada acontece a não ser o que ele quer, coisa que a pri,pri;i ~ ; I I ; I I I
i. ohrigada a admitir, então, ao mesmo tempo, segundo o Lcslc~~iiiiili~) clcil:i

\fi<i. irliigii>ii-sc nii leiirpli><IcPosciilki, <in<lcciiniclcii siiicidio, 1i;ii;i ti:io i.;ii> ii:i\ i i i ; i < i \ i l i , iiii
i < ' i c ~ c ~ i <(IlXi~43
, ;i.('.). <ii;al<ir.lil6si>liic ~ii>lilic<, i i i r i i : i ~ i i t . i.lir,::iiiilii ;i ~ , i v r i l i ; i ~ l ~i1.8ii
Sicili,,. i(11ril:;ts ~ ~ ~ ~ l IIPIO i l i c~ p:c >~< I~< z : I ] I O ~c > :t&h;!\<it$;$lo <lc .li~li<> 1 '?<;I#, I,I# , ~ \ \ ; ~ \ \ % # # ; I C Ir118
~>
%\#:i ~ > i i i i > i i . iic\iili'iii-i;,. ( I ' I . i!. 152.)
II:,Vixitade Cativa

d;is as demais coisas. Pois não é nenhuma novidade se Deus instrui a Moisés
por meio de Jetro e ensina a Paulo por meio de AnaniasM.
Quando, porém, dizes que seria errar o alvo de longe se tu ignorasses a
'risto, julgo que tu próprio deves ver como está a situação. Pois nem todos
ii-áo errar se erramos tu e eu. É Deus que é anunciado admiravelmente em
sciis santos"', para que consideremos santos aqueles que estão mais distantes
<Li santidade. E visto que és humano, pode acontecer com facilidade que não
ciitendas de forma correta ou não examines com suficiente diligência as Escritu-
ras e os ditos dos pais, sob cuja orientação crês alcançar o alvo. Isso o denun-
cia com clareza suficiente o fato de escreveres que não fazes assertivas, mas
tipenas comparações. Assim não escreve a pessoa que tem <ma visão profun-
(Iii do assunto e o entende corretamente. Eu, no entanto, N A 0 FIZ COMPA-
I<AÇÕES NESTE LIVRO MAS FIZ E FAÇO ASSERSÕES e não quero dei-
xiir « juizo [sobre o que disse] nas mãos de ninguém, mas aconselho a todos
qiic prestem obediência. O Senhor, porém, de quem é a causa que defendo,
l c iliiinine e faça de ti um vaso para honra e glória. Amém.

FIM

+
.l.l(v I'I'. f : , ~ 3 AI ~ J , l l l s ~ .
1.11 i 'I. SI hH.15. i.il;i<lo ii>iil)iiiiir;i Vi11e:it;i. SI 1>7.15. O l i i r i v c i l t ~ c:L v c . ~ h i ~ <I>~ c l ? f i ~ i <1lilv8~.
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<I:( Vttlp,:3l:~: ' ' I I ~ KLI
~ ~h ;I~ f~~ l > ~ : ' t ~ i ,I>k ,1 1 5 I~~~iv~l'',
Da Ceia de Cristo
- Confissão1-
Introdução

No ano de 1520 Lutero havia desenvolvido sua compreensão evangélica dos sa-
cramentos no escrito "Do Cativeiro Babilânico da ~greja'", no confronto com a doutri-
ii:i tradicional da Igreja Católica Romana. Essa compreensão, no entanto, não foi com-
[>;irtilhadapor todos os adeptos da Reforma evangélica. Surgiram outras interpretações
. ~

i l o s sacramentos, sobretudoda Santa Ceia.


Para Lutero, o Cristo inteiro está realmente presente na Santa Ceia (ou Sacramen-
l i > do Altar), inclusive segundo sua humanidade. Outros entenderam que pão e vinho
\ii~ibolizamcorpo e sangue de Cristo. Na época da Reforma, o primeiro a propor essa
iiiici.pretação, com a devida fundamentação, foi o holandês Cornelisz Hendricxz Hoen3.
Siii conceito de Santa Ceia ganhou adeptos sobretudo na Suíça de fala alemã e em algu-
iii~iscidades do sul e sudoeste da Alemanha. Lutero viu-se obrigado a defender sua con-
iipção da presença real de Cristo na Santa Ceia no confronto com os adeptos da con-
CCIICZOsimbólica.

,ii~íila de um enxame de s"a colmeia, à procura de outro ligar. Sugere as idéias de mo-
viiiicnto desordenado e de perigo; nesta fase, as abelhas estão irritadas, prestes a atacar
:i\ Ipcssoas a qualquer momento para picá-las e injetar-lhes seu veneno. Os "Schwirmer"

. ; i < , . pois, para Lutero, pessoas com pensamentos teológicos desconexos e confusos; es-
i ; i < , iriclinados a fugir da realidade e representam um perigo para os demais cristãos.
Nvisc sentido o termo já fora usado na Igreja Antiga. Na polêmica teológica dos sécu-
Ih+h XVII e XVIII, esses cristãos foram caracterizados, preferencialmente, como entusias-
i : ) \ . A historiografia moderna prefere chamá-los de espiritualistas religiosos. Ela vê sua
i i i ilici~ialcaracterística na convicção de que a base do ser cristão é o Espirito Divino,

i ~ : i i :I, Sagrada Escritura, a palavra de Deus e os sacramentos. O próprio Lutero afir-

I 1;8iii Aliciidrnahi Christi, Bekennm's, 1528, W A 26.261-509. Traducão de HeIberto Michel.


' ll,i;i% ,Seleci<>na<las, v. 2, pp. 341ss.
I i i \i>liiçii<iiiiçocorre tambCm nas grafias Hoon, Honius, c Honnius. Jurista, amigo de humanis-
1.i.. i, \iiii[>;iii!.ariles da Reforma evangélica, preso por suspeita de "heresia lutcrana" (1523). O
c . . i i i i l < n <I,> cvcrito "lle sacramento eiichansriae" (Sobre o Sacramento da Eucaristia), da teólogo
lii,I.itiilii Wc\\cl Warisfort (1419-1489), um dos chamados pré-rcfomadores, levou-a à interpreta-
,..ii, \iiiilililic;i d;i Sacila Ceia. Desenvolveu sua concepcão numa carta dirigida ao compatnola
I liibiii. Iki,lr. I:\ie levou-a pessoalmente para Wittenberg (1521). Baseado no t a t o bíblico, Lute-
,,i ii.ii.iIi>ii ;i i.oiicrli$áo de Iloçii. Em 1524, Radc entregou a carta a Zwinglia, em Zurique (Sui~
,,.i1 I \ \ r ~rrrliriicorii<iconfiiiiiacão de scii proprio conceito da Santa Ceia e a publicou em
1'. ' 5 . i ) i i i i l i i i i l i i < i t i i i l i i r dii ;iiiliir. I li>cti 1:ileccnl j:i i m 1524.
Da Ceia de Ciisra - ConfissSo
m a , n o presente escrilo, que, e m sua opiiiiSo, o s "Schwarmer" n ã o se importam com
"a palavra diviiia exterior", m a s se baseiam n o "testemunho d o Espirito".
A palavra alemã "Sct~iv;untcr" é d e dificilima tradução para o portugués, caso sc
queira transmitir todas as conoracões que compreende. N o presente e w i t o optou-sc.
por via d e regra, pela tradução "fanáticos", respectivamente "espíritos fanáticos", n o
setirido d e pessoas qite se consideram iluminadas pelo Epirito divino. Poréiii, deve-sc
ter e111 iniente sempre q u e a palavra está origiiialnienle relacionada com a imagem tira-
d a d a vida das abelhas.
A controvérsia e m torno d a Saiita Ceia foi o mais longo e mais grave dos conflitos
que eclodiram entre o s seguidores d a Reforma evangélica. Desde 1-24/25 até o fim dc
sua vida, Lutero voltou, com recorrèiicia, a o c u p a r ~ s ecom essa qiiestão. A o longo dii
contro>2i-ia rompeu-se a unidade d o protestantismo. Apesar d e todos o s esforços, j a ~
mais foi possi\,el restabelecè~la.
Os principais personagens da controu4rsia lorani, tio lado dos defensores da iri-
tcrpretacao simbólica d a Santa Ceia, André Karlstadt, o s ieformsdores suíços Ulrico
Zwiiigiio, e m Zurique, e JoBri Ecolarnpadio, em Basiléia, e < te0logo
i leigo Gaspnr
Scli\i.enckfeld, n a Silésia (Alemanliaj4. A posição luterana foi delendida pelo próprio

4 Andri Llod?nsirin (ca. 1480~1541).natiiral de KarlsLadt/ble~io. par isso chamado de Kail.~<a<il.


doiitoi em Teolo&a e toiiiista, profeiioi e colega dc Lilteio iia Univcrsiilade de Wittenberg. 1iiii;il
mente n i o ~ ó d acompanhar c as dc~cobertasreforiiiatórias de Lufero. Dryois tornou-se comp;i~
nhciro dr liitas do reformadui. Ein I519 ariibos participaram do Debate dr Lciprig (cf. Ol>r;i\
.Selicio~i~d.~s, v. I. pp. 257 si.). Ja ein 1521 siirgiram a r primeiras diferen~nsmtrr m b o s , qii;ii>
do Karlstadt piocuiou i.olicretiz?r e Refariiia em Winenbccg, lia niisência de Lutera. aboliiiii<i:i
niissa e dcclaranda eliminado a iclibata sacerdotal. Ditereiips ria conipieenaio da Santa <'ti:(i.
do Barirma apraiundaram essa div?rgéncia. Karlstadt renunciou h cdredra em Wittenberg c li>t
rioii-se pastar. Foi expulso de sua parbquia pelas autorida<ies da Swônia. Depois dc breve eri;i
da ein Esirarburgo e de muitas andançar, enlrentando dificuldades. Karlstadt rmcbru s<i>llii<l;i
eni Basili'ia (Suíça) como piegador e professor de Teologia. Faleceu no Natal de 1541.
UliicuZ~uinglio(1484-1531).nascido cm Wildhaus, Suip. Tornou-se sacerdote em Glarus (l5lKi151h).
ile oiidc açompa~ihoua exercito em batalhas na Itália, na qualidade de capelão. Foi sncci<li>l~~
em Eirisiedein (1516-1518), onde combatai as indulgências, e cm Zurique. onde ficou de I5lCJ; i i P
i, fini dç sua vida. De formasão humanista. estudou especialmente o Novo Tfstameiito c ,,r 1p:iiv
d3 Igrqia. Encontrou-se com Erasmo dr Roterdã (1466169-3536, cf. n. 112) em 1515, eni IN;i\ill'i;i.
Sua ohra iIc Reforma iniciou em 15>2, qiiando ixrevcii contra o jejum ohrigntciiio. N o i i i r h l i i i i
. ~ l i oco~~iraiii iii;itiimÔnia em secreto. que lrvoii n público somente dois anos depoir. I:%cicvi.ii.i
~iiir~ieira do~miticaevaiipCLi?a riii lingua alemã ("E~i>osic3o? !'unctlr~ieiiiaCiio <I;,.\/(i71 ic:ii.,''.
I523 - .Aiislegung und Uegriindiing der ScNussrrilen), afirmarido que a E~,.iiigellii> dcve \i.# ii.
de Sé e de vida. Removcu qiiadros e estátuas das igrejas e eliminou a nikicn. O ciillo I>:L\\UU
;i \ci realizado na vcrnáçulo. Mosteiros iõram fechados. Com Lutero rnconlii>ir-*cl i < > ('iiliii~i~iii
'Ir Marhiirgo , em 1529. Na Dieta de Augsbiirga em 1530 apresentou sua proprki çi>riSias;~ii("I'!<\
(.i i .:( d ~dc cantas sobrc a f&" - Fidei ratio). Tentou orsariizar politicamciiv u\ ceiiifics cv;i>i>:i.li
c i ~ da s Suica. Na guerra dai decuiretite Zwinglio participou somo capelào c firi l i i < l ! l < > ( 1 1 <I<. i n i l i i
l>v<i <Ir 1530, perto de Kappel. Entre Liitero e Zwinglici liouve pr<ifi~iidai ilivcii.,<ii~~i;i\ iciili)i,ii.i,.
Y i i i ! i ~ l i i >iitiha a tçndencia de valoiiz.ii ac~ntunilamentca i ; i ~ ù i > c o I i i i i i i . i i i i i i i i i > i.iii rii.i i i i i i . i i > r i .
i:ii;ii>~ 1 . 1 5Escritiiras. Ilrii do\ pi>ali,s ilc ~iinii,i'<livrigi.ncia ciiii-c iir iloir irli,i>ii;iili>r<~\ l i i i ;i i < i i i i
i . I . . I . < , , i , , < ..I.. >,lili i, ..ll:,*i,llil
I I .i.! ...,I.,.,, ( i > ?1 ~ 1 1 1 . . i.,'.....,. i.. i l l . i l ,.,i,\ . .i,. \\ i. .,\I. 0, i

......
i

, , I i I,.,ilrI,i<i,~ (.i,,tii,,,.i .c < l i ' < . , , .I , L I < < , . r<.,, ,,I1III\II 1 I ' I <.<\,I< ! I , * I, >I I l i l l ' l , 11.1, I,, i
Da Ceia de Cristo - Confissáo
1,utero e por seus partidários J o ã o Bugenhagen e JoZo ~ r e n z entre ~ , outros. D e anibos
i>s lados foi piiblicado u m boin número d e escritos sobre a Santa Ceia. Registramos, a
\egiiir, o s principais deles, antes de descrevermos mais detalhadameiite o contexto e m
qiie surgiu o presente escrito d e Lutero.
Karlstadi publicou, e m fins d e 1524, cinco trata<los sobre a Santa Ceia, entre eles
"Contra a missa papista antiga e novan6 e "Diálogo ou livrinho de conversasão sobre
o abuso horrível e idólatra d o digníssimo Sacramento d e Jesus rist to"^. Lutero respon-
deu, e m dezembro d e 1524, c o m a "Carta aos cristãos d e Estrasburgo contra o espiri-
~ niiiiuciosamente, coiii o escrito "Contra o s profetas celestiais. sobre
i r > f a n á t i ~ o "e,
i45 imagens e o racrainento'", publicado e m duas partes, e m fins de 1524 r n o início
ile 1525.. resoectivamente.
.
Zwinglio apresentoli s u a coricepfão em noveiiibro d e 1524 n a caita a o pregador
Mateui ~ I b e r " e m Reutliiiaen (Nernanha). ~ u b l i c a d arin março d e 1525. e nos escritor
"Debate atnigável, isto é, exposição d o a s s u i t o d a S a n t a Ceia, para hlartirhio ~ u t e r o " "
c "Resposta cordial e recusa d a pregação d e Lutero contra o s fanáticos"", ambos de
itiarço de 1527.

na edicáo do Novo Testamento grego (1515/16). Nas discussóer que se acenderam em torna de
I.iitero, passou a derender o ieforinador de Wittenberg. Em 1521 publicou seu primeiro escrito
reformatório, o Par,adoxon. Finando-se em Basiléia (l5?2), foi assumindo, aos poucos, a Lideran-
ça reformatória na cid.ide, atuando como pastor e prolcsroi de Teologia. Tornou~seadepto de
Zwinglio, vindo n posiiiunar-se com três escritor contra a doutrina eucaristica de Lutero (v. aci-
ina na texto). o que rsti riii diiaissão no presente esciiir>.Eiii 1529 participou do C:r>lóquiodr.
rilnrl>urgo Em muitos x n t i d a ~~>i>de ier ~'oiisideiadoprecurrvr dr Calvino (1509-1564).
(I;i,~pa S~,hsi,rnikfeid(1489-1561), lidrr dc iitn grupo espiriiualista de cristãos <IaSil&in. A ~ r i i i ~
cipii~partidiria de Lutero, abandoiioii, mais taiilr. a p<i\i&a lutcrana e prociiroii apioximai-sc
dos reformadoiri suicos e dos teólogos do sul da Alemanha. Mas a divergência eiitre a teulagki
ilesies e a espiriiiialismo de Schwenckield cra gra~idcdemais. Schwcnckfeld abandonoii a Silésia
(1529) e passou por Eitrasburgo, Augshurgo (1533) e Ulm (1535). Viveu os Últinias 20 anos de
sii;t vida como fugitivo em domiciliar de faiiiflias "obrei no sirl da Alemanha oii rscoridido coi
i;isas dc se~uidoresseiis.
5 .i<%io Buginhasen (1.185-1558). narural da Pomerânia (Alemaniia), jwi- isso apelidado de "Doii-
t < i i Poiner" (Doutoi Pomcrana), pároco da igreja matriz de Witlenberg (1523). doutor eni Teii~
Ihgia (1533), profes>ui ria Universidade de Wittenberg (1535), colaborador e çoiifessoi de Liitc-
I < > , autor dai corisritu~~óer de diversas igreja5 lutermas.
I<Wo BIWL 0499~1570).reformador da SuAbia (Alemanha), premdor na cidade de Sehw3hircli
. . nanisinou
11;iIl (15221: . do Colósuio dr Marburco. entre Lutem e Zwinelio (15291. c da I>iei;t
ilc Aiierhurso . . 11530): ~. 1' 0 diiuue CrirtorZo de Wiirtlernbcre.
.. conselheiro reolrieiro - . so~autor<IA
iiiiirtiliiicZn irle?iisii~nde Wiirtternberg de 1536 e da Confissáo de Wüittemberg de 1551, ; i i i i < i i
<I;\ ciiii\iiiuiç3o ~.clexi\cicado nirsma território, ds 1559.
I , Il'i<lci <iic a l r i li!: neue papistisctir Alese.
1 I>i;ilo,~tiiodcr ciri Gespr#chsbüchlzii~ von deni grcuiiclirn und abgottischeii Missbiiiiicli ikv
I,, ! \> !,..L>!., <.,h ,,.,,,.r,, ,,..,..
* I;,,! 1.1
> i 3 I 1 i. i li. .li. < ,,,i.,iii I , , ,li.i..l>i i>,.<,<.r, ...r: \:1:.i.1iii,,.i1:iI \ \ \ I'. rl> I r l - l ~ l "
9 li . . . .I.. I,,.: .
.vi I', i r i r i < l < l . . i: ~ i . 01lrl.i:i i ~ i i . 1
Silriii..ili. I\\ .
Ih. 1 . 182-?I1
10 n i ; i r < , t i Aii)c, (1405~t570),rcformador da cidade imprii;ll de Reullingeii, no \iiili>ciic iI;i Alr
I ,I 1 I c Siiizlg;irl. Diniilc dar iii\,c\tiilas de Zwii,glio. pciiiiiiiivcrii l i i l
.i i l < , i i i ~ i i i . i Ih~ft~imi\ I li\1<10 i/ ini1iiCnci;i. Kciiiliiigrii I ~ i i i i i i t i <I;is dii,i\ cicl;iilc\ i~iilii'ii.ii\i t i i i
.i\\iii:ii.i!ii. i111 1~30..I <'i,iifi\h3<> <Ic Aiix\Iiiii&i>.;i ci>nfi\\;iii(li. I < fiiliil;irnclit.il CIO Iiiici;iiii\iiiii
i 1 :\i,ii,., C . W ~ , , . ~nti
~ \c,(.
. ~ i p , ~ \ i ~cii~ii;i,;~i;:ic
i<r ,iq!~~,.v. ;,<i hl;4,ii,iiit~ii irrB~,iiiiii.
I.' l ~ ~ ~ i i i i i i i i\?rpliiii)iliiij,:
~lii. iiiiil Al>kliiiiiril: ,ilii,i <li<,I'i<.<li(:rI iilli<,ri ii'ii1i.r <li<,SiIiii:iii!icr
Da Ceia de Cristo - Confissão
Ecolampádio defendeu sua posiçâo em 1525 no escrito "Sobre a expiicacão aiitênti-
ca das ~alavrasdo Senhor: Isto e meu corvo. etc."13. em 1525126 no riti ti-escrito""
e em ii;llio de 1526 na "Resposta adequada =o relatodo Dr. Martinho Lutero refereii-
te ao ~acramento"'~.
Schwenckfeld desenvolvru siia teologia da Santa Ceia juntamente com seu amigo
humanista Valentim ~ r a u t w a l d l Esse
~ . aoresentou-a em 1525 no escrito '.Sobre o inicio
da revelação salutar do entendinieiito 'correto das palavras da Ceia do Senhor"".
Schwenckfeld redigiu eni língua alemã o escrito "Confutação da impanacão e da tran-
siibsianciacão, co; base na ~scritiira"~"publicado por ~ h i n g l i oe m 1528 sob o título
"Uma instrução de que a opinião da presença corporal de nosso Senhor Jesus Cristo
no pão ou sob a forma do pão está j u ~ g a d a " ~ ~ .
Do lado luterano manifestaram-se João Bugenhagen em meados de 1525 na "Car-
ta aberta contra o novo erro no sacramento do corpo e sangue de nosso Senhor Jesus
Cri~to"'~,João Brenz eni outubro de 1525 no "Escrito ~ u e v o " ~Lutero ~, em junho c
eteinbro de 1526.. resoectivarnente.
. nos nrzfáçios a duas traducães alemã$ do "Escrito
sue\,v"", na Semana Santa de 1526 nas predicas proferidas na quarta-feira e na qiiiii~
Ia-feira.. .~ublicadasem outubro do mesnio ano sob o titiilo "Sermão sobre o sacramen-
to do corpo e sangue de Cristo, contra os espíritos fanatico~"~',e eni nixço de 1527
tio escrito "Que estas palavras de Cristo: 'Isto é meu corpo', etc., ainda continuam fir~
iiies contra os espiritos fanáticos"", o mais acabado, sob o ponto de vista sistemático,
entre 5eus escritos referentes à Santa Ceia.
Ecolampádio respondeu a esse escrito de Lutero em junho corn o escrito "Que i>
entendimento errado do Dr. Martinho Lutero não pode ser sustentado pelas oalavi-as
eternamente firmes: 'Isto é meu corpo', a segunda resposta adequada de João Ecolani-
p á d i ~ " ~Pouco
~ . depois Zwínglio manifestou-se no escrito "Que estas palavras de Jesilr
Cristo: 'Isto é meu corpo que é dado por vós' eternamente terão o antigo sentido iiiç-
quivoro e M. Lutero com seu último livro de maneira alynia ensinou nem coiiiprovr>il

13 Degenwiia t:crhorurn Dmini: hoc esr Corpus nieui~ir i c rx~osiiione.


i4 Aniijyngramrna.
I 5 Hiliich? .hrwort auf D. iIIrlitir~Luihrn Br"i'ht der Sakramenls hdb.
I6 Kdcnlin f i a u i u d d , nascido por volra <Ir 1490, falecido em 1545; a n t s de romper com :i 1 ~ 1 r
ia C:alSlica, cônego na Silenia.
17 Von der a n f w c h e n gnadenreichen Ofikibamng vom rechfrn Verstande der R'o~iede,, flcrii~ri
Nachirnahls.
I R ,Lfontes registram a versão latina do titulo: Confutatio impmatioojs cr fran.ssiihrr;iriti~i,iiiriii
ex sciipruris.
I<) b i e Arnveisung, dass die Opinion dei leiblichen G e p w ã r l i g k i r iinserm Hcrrçn .le,ir < 'lirhli
iii, HroM oder unler der Cesialr der Brols gerichlri isf.
20 .Sc.ridthf widerden nrueri 1mlurn beideni Sakr.unent desleibes rindBluies unserc.5 t f e ~ t i.lc,ii
i i 'liiiiri
21 Syi?siainniaSuevicum.
22 WA 19. pp. 457-461; 529s.
?? ,Scvrii<>ii1.0r1 deni Sakramenr der Leibcs und Blufes <'hrisli, widcr dic S~1~w;iirii~ciriir. \VA I').
inc, 482.517~
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Da Ceia de Cristo - Confissao
i> sentido defendido por ele e o papa, resposta cristã de Ulrico Z ~ i n g l i o " ~Em
~ . agos-
io de 1527, Lutero tomou conhecimento da publicaçào das duas respostas. Em noveni-
Rro começou a pensar nuiiia obra d e peso contra os espiritualistas que deveria contei
tariibérii sua confissão de fé. Devido a seu estado de saúde precário ale adioit possivel
que este escrito seria sua última publicação, uma espécie de testaniento teológico. Em
iado caso, seria sua última tomada de posição nessa controvérsia sobre a Snnta Ceia.
Lotero redigiu o presente escrito eni fins de 1527 e no inicio de 1528 sob condições
ilificeis. Em Wittenberg grassava a peste. A Universidade havia sido transferida para
.leria. Ein 10 de dezembro de 1527 nasceu sua filha Elisabeth (falecida já em agosto de
1528). Ele mesmo estava doente e deprimido.
Parte do manuscrito ainda existe. O livro foi impresso em Wittenberg, na grafica
ilc Melqi~iorLotter, de modo que pôde ser lançado na Feira de Primavera de Frank-
furt sobre o Meno, em fiiis de março de 1528, como estava previsto. No mesmo ano
itcorircceram diias.rrediçóes na cidade de Augsbiirgo, mais unia reediçáo em Wirtenberg,
cln 1534. Coin a anuência de Lutero, a terceira parte d o escrito foi editada em separa-
do, em 1528, na cidade de Nurnberg, na gráfica de Jobst Gutkiiecht, por Venceslaii
I .inck2', com um prefácio deste, sob o titulo "Confissão dos artigos de fé, contra os
iiiiniigos do Evangelho e toda espécie de Desta ediçào se fizerani várias r n -
ilicõc.~c t r a d u g ô e ~ ~ ~ .
Em reagáo a o livro de Lutero, Martinho ~ u c e r publicou,
'~ etn junho de 1528, em
Ilstrusburgo, sua "Comparação entre [a posição do] Dr. Lutero e a contraposição quan-
i i i a Ceia de Cristo. Diálogo, isso é, uma conversação amigá~el"~'.Em fins de julho,

?O Dass rliese Wori Jesu Chri5ti "Das isr rnein Leichnam, der für euch hingegehen wird" ewiglicli
den alicii ei111gen Sinn haben werden und M. Luther mii seinem leiztcn Buch seinen und de.$
Papsls Siiin gar nit gelehri noch hewahit hai. Hulrych Zwinglis christlide Antwoit.
27 Vmces1;ro Linck (1483-1547), natural da Saxònia. nionge eremita agostiiiiano, doutor em Teolo-
gia pela Lini~ersidadede Witlenberg (1511); ocupoii diversos cargos em siia ordem em Muniqiic
c Nurnbpre. rigirio geral da provincia germã~cada ordciii (1520). após sua rrniincia a esse r a i ~
go (1523) e pregador oii Altenburg (Sarònia) e Nürnbrrg (1525).
.?H Belrenricnis dei Anikel d a Glaubeni. ulder die Feindc des E v a ~ w l i o nund
i allirle; Keczereien.
?!I Urna em 1528 em Niimberg; trés eni 1529 em Wittenberg, Eriurt e Magdeburgo; cai I529 e 1530.
icsl~eciivarnente.duas edicões em baixo-aienl~o;em'lS39 duas edições latinas çni Wittcnberg;
cni I530 uma edição em LWpcig, por Jerõnima Dungersheim (1465-1540), com comenthos hosti\.
10 Al.?.?irinBuser, (1491~1551),natural da Alsácia. irigre~souna ordem dos doniiiiiunor aos I5 aiior.
LIII 1513. por ocasião da Debate de Hridelb<ri (cf. Obras Selecio~adas,v. 1, pp. 35ss.), tarnoii-
se adepto da causa luterana. Foi um das pnnieiros clérigos luteranos a contrair marriinònio
(1522). Tornou-se pregador em Estrasburgo (1514) e organizador da Reforma nesta cidade. Dii-
i;iiiic toda a sua vida tentou intermediar entre Lutero e as cidades influenciadas por Zwinglio.
I(in I536 participou da elaboração da Concórdia de Wittrnberg. Desde então foi conscllieiri,
8i;i ih>lroJu$ãoda Refornia em diversos teriil6rio.r. Pressionado pelo imperador Carlos V, Icvc
qiie ;ahsndunar Estrasburgo, dingindo~separa a Inglaterra (1549), onde veio a falecer. Duialiie
; i teiit;iiiva dc recatoliti%çãa
da país, no governo da rainha Maria (1553-1558). após sua IIII>IIC
Ii>ipii>ci~sadopor heresia; scus restos mortais foram qiiùmados em fogueira (1556). Biiccr r c ~
~>rc\ciii.iiim tipo próprio da Reforma. Infliienciado, por iim lado, por Lutero, estava, piir i > i i
ir<%.i;iri,hi'tii ligado R Erasmo de Roicrdã (cf. n.112) A doiitrina do Espiriio Santo rccchcir ilrr~
i:i<ii* ciii ~ i ;ia>L>gi;i,a qiinl colma o Esl>iriioSanto como ~ i u ~ e<.<-le<l:ir
a (>in:il pelo qit;i1 \c ~i~
.
i
r.<>i~liccr;i Igicin ct. <>hr;i.\ ScIcci<iriad;is.v . i,
pp. W I S )30 lado dr P;il;ivr;i c S:ar.iitiriit<i.
i1 bi~t.cl~~ic1~~,,1~
I). 1 , 1 ~ 1 1t ~
, t~~ ~I,sci,~cs
: ~ ~ ; c ! t ~ c ~ n lvcun
~ ~ i l~. ~~ h c ~ ~ ~('l,ri$li,
l r r ~ ~l i) li ;~~l l ~ ~<I:,-~ ! i>(
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(;<,,,,,,'iicl,.
I>a Ceia de Cristo - Confissào
Livinglio e Ecolampádio publicaram, em coiijuiito, eni Zurique, suas respostas ao es-
crito de Lutero: "Sobre o livro do Dr. Marfiiilio Lutrro, iniiiulado 'Confissão', duas
respostas. de João Ecolampádio e Ulrico Zwingli~"~'.Lutero não mais Ihes respondeu.

-- ~- detalhadamente,
A obra de Lutero consiste de três partes. N a primeira ocupa-se,
com a concepcão de Zwínglio e Ecolam~ádioe. brevemente, com a de Schwenckfeld.
Ikcorre algumas vezes também à sua contestação da doutrina de Karlstadt. Mostra que \
os adversários não respondem realmente aos argumentos com os quais havia fundamen-
tado sua posifão no escrito anterior33. Demonstra que a argumentação a favor da com-
preensão simbólica da Santa Ceia é insustentável. Insiste nas palavras da instituição da
Santa Ceia do Senhor, que não podem ser entendidas de outra maneira senão como afir-
mação da presensa corporal de Cristo. ExpOe sua doutriiia da ubiqüidade da natureza
Iiumana de Cristo: devido à sua unidade com a natureza divina, a natureza humana é
onipresente. Lutero destaca fortemente a unidade da pessoa de Cristo: nele, Deus e ho-
inem jamais p«dem ser separados um do outro. Rnta elucidar essa concepção recorren-
clrr à teoria escolástica refererite ao modo de presença própria de Deus. A rigor, a pre-
ciiça corporal de Cristo na Santa Ceia iiltrapassi os limites do reciocinio e da lógica
Iiiiiiianos. Pode ser compreendida somente pela fé.
Na ~tiineiraDarte. Lutero aborda exoressaiiiente também o ~roblemade como

.
li> a solução cscoláslica do problema, ou seja, a teoria da transubstan~iação~~, como a
<loiitrina atribuída ao teólogo inglês João W ~ c l i f de ~ ~aue
. na Santa Ceia haveria mero
l p i i > c vinho36. Pela razão,duas-coisas distintas não podem ser uma só. Mas tambéni
ticssa questão não é a razão que decide, mas a palavra divina. Pela Palavra, pão e cor-
Iiir de Cristo formam uma unidade sacramental.
Na segunda parte do livro, Lutero explica minuciosmiente os textos biblicos qiic
Iiilam da instit~iidoda Santa Ceia, nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e nas
cliislolas do apóstolo Paulo, discutindo e rebatendo a interpretação dos adversários.
As palavras biblicas são decisivas; são "o principal". porque, para Lutero, em últiiiiii
:iiiilise, está em jogo iiossa salvação eterna:
"As palavras unem (...) o pão e o cálice, para tornarern-se sacramento. I1;ici
c cálice compreendem o corpo e o sangue de Cristo: copo e sangue de Cfisto cornl>i-wri

iil>ci D. i\farrin Ludiers Buch,


i? BekeBBtnis genannt, zwci .Anrworten von Joliannes 0ckol;iiii~i:iil
iirid Hiildieidi Zwingii.
i V . acima iiota 24.
i4 liiscados na filosofia de Anstáteles (383-322 a.C.), distinguiram entre substância e açidciiic* (;i\
pcclrls exteriores) e ensinaram que na Eucaristia a substância de pão e vinha se trnriski~ixi:~ i~;i
\i~listâticiade corpo e sangue de Cristo, enquanto os acidentes permanecem.
i 5 .foi70 Wydif, ca. 1320-1384, doutor em Teologia, professor, sacerdote, critico de diversci~;i*lvi.c
i<>> ila Igreja dc seu tempo (cstmtu~ahierárquica, domínio temporal, teoria da ir:iiisid>si;iiii.i;i
c%i). Ik\encadcnu o movimento popular dos lolardos ( = scrneadorcs de iiico, ;il>cli<li> cli;i<l<i
I?c,i bciis ndversdrias). Foi condenado pelo papa Gregóiia X1 (1370-1378)e pelo <'iiriciliii <li. 1 '<iiv.
1;iilv;i (1414-1418). Cm 1427, o papa Martinlio V (1417-1431) iri:i<id<iiiexiiin:ii c i~iiriiil;ii irui 1i.r
i < > \ ~ttwlitis:a\ citvms l'aran>jogadav nuc,~rio.
111 I uic~o~ ~ ~ v , ~ ~ c ~ ~icvc
r!i<> i ci t~!~~r ocr ~t ~~~~~~c<i\:ts
~a <~k s ~ 1 1 r Wydil.
c , v ~ ~ r ~ IoI<>
l , . ~ 11;t l ~ ~C~I ! l, ~r .
111111 < t qbtc I.IIIcI<) IIIC i ~ l t i h ~ ~ i .
Da Ceia de Cristo - Confissão
dem a nova aliarifa: a nova aliança compreende vida eterna e bem-aveiituransa.
Ws que as palavras da Santa Ceia nos oferecem e dão tudo isso. e nbs assimila^
mos tudo com a fé".
A partir dessa "realidade sacraiiiental" explica-se a paixão com que Lutero se engajou
iicssa grande controvérsia sobre a Sarita Ceia.
Na terceira oarte do escrito Lutero aoresenta sua confissão de fé Dara irn~ossibili-
i;ir qualquer distorção futura de sua teologia e qualquer recurso indevido a mesma.
N i o é por acaso que essa parte foi publicada em separado. Com esse texto Lutero exer-
irii enorme influência sobre a elaborasão das primeiras confissões de fé lutesanas.
Em sua "Confissão" Lutero segue o tradicional esquema trinitário, falando de
I)ciis Pai, Filho e Espírito Santo. Inclui nisso a doutrina da justificaqão somente por
vi:ica
. . mediante a fé como base e centro da f6 cristã. Partindo da cristolonia, aborda tani-
Ii1:ni a ética, ao falar das três "sagradas ordens" em que os cristãos e as cristãs ageni,
ii~<iii\,ados pela fé, a saber, a Igreja, a família e a política. Deixa bem clara sua posicão
:i<> ileliniitar-se, por um lado, contra a Igreja Romana e, por outro, contra os "enxarne-
.iil<ilcs".Dessa maneira Lulero confessa com firmeza inabalável, numa perspectiva escn-
i~di)çica,"perante Deus e o mundo todo", com base na Sagrada Escritura e na comu-
tili:ii>dos demais cristãos e cristas, a fé na qual pretendia permanecer ate sua morte e
"[>;liLirdeste mundo (...) e comparecer ao tribunal de nosso Senhor Jesus Cristo".
Joachim H. Fischer

Graças e louvor em eternidade a Deus, por meio de Jesus Cristo, nosso


Sriilior, porque meu livro publicado este ano contra os espíritos fanáticos e
iiiiiiiigos d o Santo Sacramento3' não ficou sem bons frutos. E m primeiro lugar,
corações d e muitos devotos pertiirliados e inquietados pelas palavras flrteis
, I < i \ hriáticos foram apaziguados e agradecem a Deus com muita alegria. co.-

1110 iiic atestam alegremente nas cartas que me escrevem. Por outra, porque
g1c.i iiiii golpe certeiro em Satanás e não errei, de modo que agora passou a ser
.iiii<l:rmais insensato e furioso comigo, como bem o atesta a mais recente con-
ii.i:iGio deste espirito contra meu livro, publicado h á tempo e chegado a mi-
iili:is iiiãos aqui em Wittenberg neste dia d e S. Martim". Talvez até agora te-
ii11:i lido medo de morrer39. Deus nos guarde! Como esta0 furiosos estes he-
iOis! Não somente esquecem sua moderação d a qual tanto se vangloriam contra
i ~ i i i i ic t;irií» gostariam de preservar, ainda que não haja víbora tão venenosa
L O I I I O clcs (1 são nestes escritos, mas d e tanta mágoa e ódio sequer enxergam
:I qiic c o quc devem responder. Sobretudo o espírito de Zwíngliom, que faz

I.i~terode 1527: Das dirse wort ChRsti (Das N.1 mein Jeib etc.) noch fcst stc
I I I ' I . o c h i - t i l , i di
IW,I i%iilil<.i WA 23,(dss. (v. acima n. Z).
<li'. ,Yc~I~lnv;irrirgciilcr.
\!i I I iIi:i i I < S. M;iciiiii C c<iiiiçiiiui;i<lon I I <Ic iiovemhro. CC. WA 26,244.
1'1 N.iiliti.Ii.1 i . t i i 1 1 i ) ;i ~prrlcrciliv;i vi&<< ciii Willelihcig.
~iiiiil;i\
.li1 i .I.
Da Cria de Cristo - Confissão

uma mistura de imagens, purgatório, veneração de santos, chaves, pecado


original e não sei mais o que de suas novas doutrinas loucas, com o Úiiico ob-
jetivo de cuspir muita coisa onde não há necessidade, e passar por alto onde
seria necessário responder, como haverei de provar.
Por isso estou farto deles e não mais Ihes quero escrever, para que Sata-
nis não fique ainda mais furioso e cuspa ainda niais mentiras e tolices (como
agora o fez), borrando desnecessariamente o papel e roubando ao leitor o tem-
po para ler coisa melhor. Pois se com o livro não consegui provocar resposta
satisfatória, ainda que nele tenha manifestado tantas vezes, até com destaque,
para o que eu desejaria resposta, não teiilio mais esperança que a obtenha no
futuro, ainda que escreva mil livros. Tampouco se deve censurar a Satanás,
pois o mentiroso não pode brincar com a verdade. O misericordioso Deus quei-
ra convertê-los e libertar sua mente das amarras do enfadonho Satanás; mais
não posso fazer. Infelizmente receio que devo ter sido um verdadeiro profeta
quando escrevi que um mestre da heresia não se converte. Por isso quero lar-
gar deles de acordo com os ensinamentos de Paulo em Tito 3.10: "Evita o he-
rege, depois de ser admoestado uma ou duas vezes". Pois daqui para a frente
não o farão melhor; já se viu de que são capazes; quero dirigir-me aos nossos
e, na medidaem que a graça de Cristo me permitir, instrui-los mais nesse assunto.
Embora tenha dito o suficiente para qnalquer cristáo inteligente nestes
dois livrinhos, um contra os profetas celestiais, o outro contra os fanáticos4',
dc modo que, quem não quiser errar e os que até agora não foram mordidos
pelo espírito dos fanáticos, pode com eles defender-se contra os sedutores, por
niais que gritem vitória. Mesmo assim, para foitaiecer os fracos e esclarecer
melhor ainda este ponto, vou lançar ainda este último livrinho neste assunto.
Pois noto que, e disso tenho que me convencer, por dar respostas tão grossei-
ras e cuspir tão-somente palavras fúteis, Satanás pretende desviar-me de outras
coisas que lhe são muito mais importantes. Por isso não tem cabimento ocu-
par-me por mais tempo com suas tolices e relegar as Escrituras a um segundo
[ilano. Que continue cuspindo o quanto quiser. No entanto, quero tratar três
pontos neste livrinho. Primeiro, alertar os nossos com a constatação de que,
dc forma alguma, os fanáticos responderam minhas ponderações. Segundo, tra-
1:ri- dos textos que faiam do Santo Sacramento. Terceiro, confessar todos os
:irtigos de minha fé contra estas e todas as novas heresias, para que não pos-
\;!i11 alegar um dia, ou depois de minha morte, que Lutero esteve de seu lado.
como já o fizeram em alguns casos.
Em primeiro I U ~ ~ todo
U , cristão sério deve estar de sobreaviso contra os
iiiimigos do Sacramento pelo fato de esta seita ter, desde o começo, tantas fac-
c6es e líderes discordando entre si quanto ao texto: "Isto é meu corpo ofereci-
do por vós" [Lc 22.191. Pois essa desavença e sectarismo não é e não pode ser

.I1 1,iilciii rclerc~sç;i hcii crcriio ilr 1?24/25: Widcr dic hiinrzili,sL.lirri I ~ n ~ ~ i l ~ c fvori
c ! i . iliri Rdiloii
il. IX.02~214(cl. ri. 1)).
WA
iiiiil ,S;ii(i:ii,i~~r
Da Ceia de Cristo - Confissão
obra do Espírito Santo. Certamente vem do enfadonho Satanás, como indi-
auei em meu último livro42: .
, oois o texto deverá ser uniforme e simnles e ter
uma única e definida interpretação para ser claro e fundamentar determinado
artigo. Mas, como eles têm tão diferentes interpretações e textos, onde cada
um contraria a interpretação do outro e nenhum deles tem certeza de sua inter-
pretação, e como também ninguém deles conseguiu comprovar sua interpreta-
ção e refutar a de outro, conclui-se que todos estão errados e até hoje nenhum
deles está se atendo ao texto neste ponto, devendo todos eles realizar a Santa
Ceia sem texto mesmo. Pois ter um texto ambíguo é tanto quanto não ter tex-
to nenhum. Que espécie de Santa Ceia será essa que não conta com um texto
e palavra certa da Escritura? Pois as palavras de Cristo têm que ser convincen-
tes e claras, ou então não se as tem. Nós, entretanto, temos texto e interpreta-
ção convincentes e palavras simples, como ali constam, e entre nós não há dis-
córdia sobre elas.
Se respondem a isso43:Não importa que haja termos e interpretações dife-
rentes, desde que estejam de acordo no principal, ou seja, que haja simples
pão e vinho44;e fazem a seguinte comparação: da mesma forma como no Evan-
gelho Cristo expressa o aspecto central do Evangelho de diferentes maneiras
- em João 4.14, pelo beber da água; em João 6.51, pelo comer de sua carne
e pelo beber de seu sangue; pelo chefe de família que, em Mt 22.1s., contrata
trabalhadores para sua vinha, e por outras e variadas comparações no Evange-
lho se faz referência ao único reino de Deus. Por isso não seria descabido que
o espirito fanático tenha interpretação e terminologia diferente sobre o mes-
mo assunto. Que te parece? Não calha direitinho? Quem é que não enxerga
aqui que esse miserável espírito ou não quer responder por arrogância, fazen-
do pouco caso de nossa pergunta, ou então está completamente cego a ponto
de não ver o que se pergunta ou o que deve responder. Quem foi que pediu
isso dele? Quem lhe solicitou que nos ensinasse como uma e a mesma coisa
pode ser apresentada por diferentes interpretações, palavras, comparações e
formas? Tudo isso já sabemos melhor antes que jamais nos poderia ensinar.
Sei perfeitamente que Cristo, o único Salvador, não tem apenas alguns, mas
todos os significados das Escrituras. Dele se fala como cordeiro, rocha, pedra
angular, sol, estrela d'alva, fonte, noivo, patrão, mestre, pai; de fato, tudo se
refere a ele e dele fala cada uma a sua maneira. É como se tratássemos aqui

42 C f . WA 23,69,25ss. (v. n. 37).


43 No que segue, Lutero procura refutar as opiniões de Zwinglio no escrito: Das mese Worl ChRs
ti "das ist mein lychnam, dei fzü üch hiiigeben wiit", ewiglich den alten einigen sjnn haben wer-
dend ... Huldwch Zm'nglis chrisfljch anthuri ( c f . n. 26). No decorrer da argumentasão de Lute-
ro indicamos apenas os números da página desse escrito na Eiste vollstindige Aussabe von H.
Zulngli~Werken durch M. Sdiiilcr und Joh. Schulthess. Der deutschen Schiiften dRtter 'ièil,
Zurique, 1832. O escrita de Zwinglio encontra-se também na edisãa das obras de Lutera de
Walçh X X , çuls. 14Wss.
44 Zwii~gli,Wclkc 111,25s.
Da Ccia de CriiLu - Confissão

do modo como uni objeto pode ter muitas designacões e símbolos e como se
houvesse alguém a duvidar disso.
Mas é a isso que deveria responder; pois é neste ponto que perguntamos
como é possível que entre os fanáticos o mesmo termo, palavra e interpretação
esteja em desacordo consigo mesmo sobre o niesmo assunto, de modo que
um diz sim, o outro, não. Karlstadfjs, por exemplo, diz que t ~ u t estaria
o ~ ~ in-
dicando para o corpo sentado. Zwínglio afirma que este mesmo touto estaria
indicando para o pão. Ora, não podem ser verdadeiras as duas interpretações;
iim estará meiitiiido e deve ser o mestre do diabo. Pois numa só explicação
ii'io pode acontecer que uiiia palavra ou ternio tenha duas acepções e interpre-
taç6e.s conflitantes. Não p s s o afirmar qiie naquele versículo de João 1.29:
"Eis o cordeiro de Deus", etc. "cordeiro" veiilia significar aqui simultanea-
mente ovelha e lobo, ou, ao mesmo tempo, ovelha e iião-ovelha, tal como na-
quela uma palavra touto Karlstadt, E ~ o l a m p á d i oe~Zwinglip
~ discordani, di-
zendo um que significa ibto, e outro dizendo que não, que significa outra coi-
sa. O mesmo acontece quando Zwínglio diz que ''6'' quer dizer "significa",
enquanto Ecolampádio afirnia que não, que significa simplesmente "é". Por
outra, Ecolampádio sustenta que "meu corpo" significa "sinal de meu cor-
po"; Zwínglio diz que não, que significa siinplesmentre "meu corpo". Aqlii
se deveria responder e coiiciliar este dissenso para que o diabo não continiie
lia moita e possa ser pilhado publicamente em suas mentiras. Mas é psovávcl
que isso ficará eternamente sem resposta da parte deles.
Pois quando uma passagem das Escrituras chama a Cristo de cordeiro c
dele fala como tal, erii parte alguma se contesta isso, nem se o desmente oii
nega. Porque o fato de ser chamado de cordeiro iião impede que, em outra
parte. seja chamado de rocha ou pedra, tampouco isso provoca conflito. Aqui.
porém, o espírito dos fanáticos dá um tapa em sua própria cara, interpretaii-
do não somente vários termos, mas também uma mesma palavra, na incsiiiti
passagem, contra si mesmo. A mentira não seria tão grosseira nem a vergoi11i;i
tão grande se interpretassem a mesma palavra, em diièrentes passageiis, dc
maneira diversa e desigual, ou dessem a palavras diferentes significado diCcrcii
te no mesmo tópico. Mas qiie interpretem a mesma palavra, na mesma jxassti~
gein e na mesma frase de forma diferente e coiitrária significa, com pcrd5i1
da má palavra, sujar-se a si iiiesino e expor o diabo desnudo 3. execraçiio p i í
blica. Nenhuma língua se expressa assim. Até liriia criança há de d i ~ c qiic
r i~:i,i
pode ser assim. Pois quando digo: Cristo é o cordeiro de Deus, não i. poisiv~.l
que um entenda por cordeiro um lobo, outro uma ovelha; um csi:ir;i iiici~iiii
do. Tampouco as diias [interpretações] provem do Espírito Saiito. Os l';tii;iiic~~\.
porém, têm cerca de dez diferentes interpretações das palavras da Sniiiii ' i i ; i .

45 ('I'. ;icii~ian. 4.
4 I Ih;$\i,:"I\Ii,Ciiiciici>rpi>"ciii MI Zh 21,; Mi.
"isi<i"ccii~!ri~i~ii.i 1.12,'; I.<.?.L.llli. I 1 '$1 II.!~I.
.I7 ( ' 1 . ;iciirb;i ri. 4.
Da Ceia de Criao - Confir,ão
C. ricnhum concorda com o outro em sua interpretação. Dessa maneira é mis-
iii- que haja meiitiias e diabruras no assunto e nenhum espirito bom.
O falso espírito, porém, nos acusa que nós próprios também não nos ate-
iiios as palavras e a uma interpretação coerente, porque dizemos: as palavras
"isio é meu corpo" devem ser entendidas assim: sob o pão está meu corpo,
t ) i i ciitão, no pão esta meu corpo, etc., estando, portanto, também nós em de-
\;icurdo. A isso respondo: O espirito mentiroso sabe muito bem que com isso
iios faz injustiça e que somente cospe essas coisas para nos difamar e enceitar
5ii;is mentiras junto aos seiis. Pois ele sabe muito bem qiie estamos insistindo,
v ~ ~ itoda ii seriedade, em que estas palavras: "lsto é nieu corpo" devam ser en-
ic.rididas da maneira mais siniples, assim como ali constani e de acordo com
. i i i teor; e que não fazemos de um texto textos diversos e discordantes, como
i:i/crii eles. Pois A j manifestei claramente eiii meu livrinho48 que aqueles que,
v i i i linguagem siniples, dizem: "sob o pão está o corpo de Cristo", ou então,
"i111 pão está o corpo de Cristo", não deveiii ser condenados, uma vez que.
r~tiiiessas palavras, confessam sua fé de que o corpo de Cristo está verdadeira-
iiiciite na Santa Ceia. Com isso não estão produzindo nenhuni texto novo. Tam-
i~~iiico pretendem que essas suas palavras substituam o origirial, mas ficam com
icxto comum. Em Rni 9.5 Paulo diz: "Cristo é Deus", mas em 2 Co 6.19:
"i)ciis estava em Cristo". Não obstante, as duas passagens, cada qual em seli
tlii,ido entendimento, são simples, corretas e não coiitlitantes. O texto dos Fa-
ii:iiici)s, porem, conflita eni uma só passageni e em um mesmo termo.
Sc, todavia, quiserem analisar nossas palavras com tanto escrúpuio e $c
i o i i;io iinportaiite ou ate fique comprovado que a passageni: "Isto é meti cor-
1113" 1180 comporta que em outro lugar eu diga: "Na Santa Ceia está o corpo
,Ir ('risto", estanios dispostos a retratar-nos de que se possa dizer isso, mas
Itiiic se diga] simplesmente: "Isto é meu corpo", conforme dizem as palavras.
(!ii~. eles façam a mesma coisa e ohtenhani consenso sobre o texto. Na verda-
,I(.. iiciihum cristão pode exigir de nós que em todas as prédicas e sermóes,
~~ii:iiiiI» se fala da Santa Ceia, sejamos obrigados a dizer: "lsto é ineii corpo",
tlv\ilc qiic na Santa Ceia conservemos o texto como ele é e o deixemos eni scii
lii1::ii. I:in outras passagens ou manifestaçóes certamente nos será permitido
,li,ci: "sob o pão ou iio pão está o corpo de Cristo", oii então: "na Santa
i 'i.i:i csii verdadeiramente o corpo de Cristo", a não ser que iião nos queira111
i81.ii i i i l i i - riliir de nossa fé. Os fanáticos, poréni, dizem esses despropósitos 11n~
1 . 1 i . < i i i i isso rciiiendar seu casaco esburacado. Eles sentem perfeitamente qiir

G oiii rii;is iiiciitiras a respeito da mesma passagem e do mesmo termo as cois:i~


..;I,! ililkiciilcs, e qiic corii isso querem defender seu desacordo e não revogiil-
ii:iiI:!. Mas isso iião vale. Nós llies perinitimos perfeitamente que, e111 «iili;ih
1 3 . 1 1 ics. kilciii do Sacramcnto como quiserem ou pudereni. O texto da Sniil:i

1 'i.i:i. pai-Ciii. i~iici-ciiiostcr iiiiiforme, siiiiples, certo c scguro em todas as pal:i


Da Ccia dc Criala - Confissão
vras, sílabas e letras. Como não o fazein, tomo a liberdade de deduzir que o
diabo, pai da discórdia, é seu mestre. Pois S. Paulo diz: "Deus não e de confu-
são- [ I Co 14.331. Assim tainbéiii todos os cristãos "têm o mesmo modo de
pensar" (Ef 4.3) e não provocam divisões (1 Co 1.10). Por coiiseguinte, conhe-
ces este espirito pelo pritiieiro fruto de sua discórdia.
De resto, onde as Escrituras atribuem vários nomes ou termos à mesma
coisa, os mesmos não somente estão de acordo e jamais se contradizem, mas
também são confiáveis e bem fundamentados, de modo que se pode basear-
se neles. Por exemplo, onde se proclama a Cristo como cordeiro, estou certo
e seguro de que é chamado de cordeiro com razão e cabimento. No entanto,
nenhum dos fanáticos pode comprovar siias interpretações. Pois Karlstadt até
hoje iião deu cima interpretação convincente de seu touro, iio sentido de que
si~nifiqtieo que ele alega, coiiio eles mesmos confessani. Zwinglio e Ecolampá-
dio jamais tentaraili provar coni unia letra sequer que "é" fosse igual a "signi-
fica", "corpo" o mesmo que "sitia1 do corpo". Pelo contrário, eles simples-
mente o afirmam como sua própria palavra e opinião, da qual eles próprios
i
1130 têm certeza, e não tomam em consideração a ninguém. Se ao menos ten-
tassem trazer a prova.
Por isso o espirito fanático não deveria ensinar-nos aqui que nas Escritu-
ias o reino de Deus tem vários significados, mas deveria provar que esses signi-
Iicados são conflitantes e incertos, como iiós acusamos e provamos que suas
equivocadas e errôneas interpretações não apenas são várias, mas tainbéni in-
ccitas e conflitantes. Não é uma constataçáo engenhosa? Enquanto ataco sua
desiiiuão e insegurança, ele nie responde com a idéia da diversidade, como sc
diversidade e discordância fossein a mesma coisa. Eu pergunto como é possi-
vcl que rua interpretação e eiitendiiiiento não sejam apenas diversas, mas tani-
ht!m discordantes e conflitantes. Ele me responde que iião há nada de err;iilo
lia pluralidade; querem que isso nos baste, que confessemos nosso equivoco c
que demos razão a sua fé. Quando, porém, haveria de agradar uma explica<Zo
de que a discórdia nessa diversidade procederia do Espirito Santo? Ai nXo tciii
iiinguém ein casa. Se quiserem nossa companhia, terão que eliminar efctiv:~.
iiicrite esse escanda10 da discórdia e se eiiteiider quanto ao testo e sua iiiicrliic-
1;1<~5o. Do contrârio, tenios razões para desconfiar e dizemos: o diabo csl:l ;iir;ís
~ l nriioita. Eliminar esse escândalo seria mais importante do que dc5iriiir ; i \
iiii:igcris. Imagens não nos seriam estorvo. Mas discórdia na interl~rct:i~~io c
cxplica~âoé coisa do diabo.
Pois mesmo que tivessem ganho a causa e tapado nossa boca, iiad:i iii;iis
icriarn conseguido, nem promovido sua causa, do que privar-nos dcstc t~~xio:
"Isto é meu corpo", conforme nosso entendimento. Coiti isso, porc'iii. :iiii<l;i
i150 icriani provado seu entendinieiito. como, aliás, j;irnais n po<lcr;ii>.Si. r1i.s
loascm assistidos por um espirito corrcto, ele não soincnlc rciiiovcri;i ;i iiiiri
~)icl:~~.in crrada, mas colocaria em sei1 Iiigar iinia outra. vcr<l;i<l~ii;i i. rcl:ivcl c
i:iiiih611i a coriipiovaiia. Aiiida que S. I'aiilo tivcssc rei~iovi<l~~. ~ ( I I I Ii<i(l<r vipti.
;i ,iii\iic.;i d;i Ici c das ohi-;ls, ii;ula ici.i;i coilscgiii~iose, c111\c11 l i i ~ ; i i . ii:io livch
Da Ceia de Cristo - Canfis>So

?c ensinado convinceiiteniente outra . iustica.


. Deus não ab-roeou- o Antiao- Testa-
iiiento, até que instituiu o Novo Testamento e o tornou mais convincente que
ii Antigo. Não é uin espírito bom aquele que ensina e diz que algo é mentira,
iiias não dá, em seu lugar, nina verdade convincente. Não vale cliamar algo
dc mentira, sein saber ou querer revelar a destruidora da iiientira, a verdade.
Quem quiser acabar poderosamente coni a nientira terá que colocar iio lugar
dela a verdade notória, convincente e abalisada. Pois a iiientira não tenie nem
b g e até que venha a verdade clara e firme. Ela adora ficar no escuro e longe
da verdade. Se for errada nossa compreensão deste texto: "Isto é meu corpo", ,/,
ciitão é dever de Zwínglio tornar convincente seu entendimento e texto, qual,
seja: "Isto significa meu wrpo", e comprová-lo firmemeiite. O mesmo vale
liara Ecolampádio e todos os oiitros, cada um a sua maneira. Quando, porém,
I~retendeinfazer isso?
Na verdade, eu diria algo mais. Unia vez que eles não têm certeza de sua
interpretação e de seu texto, nem podem coniprová-10, é certo que 1150 têm
condições de chamar nossa interpretação e texto constantemente de errados.
I: o que já dissenios: quem pode reptidiar firine e convincenteniente tima men-
tira, quaiido não é capaz de estabelecer a verdade, em contrário? Queiii pode
criticar a injustiça, se não puder provar o direito? E a luz que tem que repreen-
clcr a escuridão; uma escuridão não repreende a outra. Da mesma forma, Bel-
~ c b unão expulsa diabosJ9. Isso o espírito fanático o sente muito bem; poi- is-
\i>fica dando voltas como uni gato ao redor de rningaii qiiente. Briga terrivel-

iiicnte para iiioslrar que nosso texto e inlerpretação não seriam corretos. mas
<:vitae foge qiial diabo da palavra de ,Deus, para não precisar provar que seu
icxto e interpretação seriali corretos. E que sente muito bem que não pode fa-
li.-lo. Por isso acha que se devam deixar as coisas assim: que ele elimine o tex-
iii da Santa Ceia conforme nossa interpretação sem colocar nada de convincen-
i c em seu lugar. Não, assim 1150 dá. Se qiiiseres derrubar, também terás que
ii:construir. Se quiseres alertar contra o equivoco, eritão ensina em seu Iiigar
; i vcrdade convincente, ou pára de criticar e ensinar. Pois com isso confessas
i i i próprio que és uni falso espírito da nientira, porque criticas o erro, cujo
i~postonão podes coiiiprovar como verdadeiro e certo, nem pretendes fazè-10.
( ) I'spirito Santo. poréiii, sabe inuito bem provar e convencer da verdade con-
ii:iria, qnaiido censura as mentiras e o eqiiivoco.
Scja isso dito 3 nós, estimados senhores e irmãos, para advercênilia, pois
; i i l i i i podeis reconhecer que este espírito foge da luz e que é um tagarela impres-
i;ivcl onde não é preciso, e que se esquiva e foge onde seria preciso falar. Co-
i i i i r ji disse naquele livros0, não deves esperar que ele venha a apresentar-se
:ilirri;iiiiciile a uin argumento ou réplica. Prlo contrário, como o fez em rela-
i:io ;i c\\e priiiieiro qiiesiionaiiieiito, ele procede ein relação a qiiase todos, como
tiaveremos de ver. Por isso é bom ter cuidado com eles, ou então, ataca-os
decididamente nessa discórdia e incerteza de sua explicação e entendimento,
exigindo deles firmemente que te apresentem um texto certo, convincente e con-
sensual destas palavras: "Isto é meu corpo". Se fizerem isso, podes associar-
te a eles traiiquilaniente, pois até eu ine darei por vencido. Como, poréni, não
o fazeiii, temos que considerá-los errados, hereges, fanáticos e sedutores, e per-
dedores da questão, por mais empedernidos e orgiilhosos que sejam. Pois, ain-
da que sua causa principal e seu erro fossem corretos e verdadeiros, seria pre-
ciso que se tivesse um texto comum, correto, convincente, consellsual, porqnc
não há como construir em cima de um texto incerto, discordante e conflitante.
De maneira que minha primeira réplica ainda está de pé, [quando disse] que
esta seita tem tantas caheças diçcordaiites como %iria1de que aqui SatanQs C
niestre e iiispirador.
Em segundo lugar, eu havia solicitado5' qiie taiiihém se provasse para nós,
;i partir da Escritiira, como é que a palavra "é" na Santa Ceia poderia ser si-
iionimo de "significa". Pois em meu livrinho provei que este espirito cita, em
SCIIS livros anteriores, algumas passagens em qne querem que "é" correspon-
da a "significa". De minha parte afirmei que isso não passa de fantasia subje-
tiva e qiie, de forma alguma, estava coniprovado. Por isso exigi que o fizessc
c provasse sua interpretação na base do "significa". Para nós não há grandc
iiccessidade de fazer citações. Coiiliecemos esses versiculos niuito bem, seni
que ele os mencione, tal como: Cristo é a rochas2, etc. No entanto, não vemos
iicm entendemos que houvesse nisso um significado subjacente, e desejamos
qiic isso fosse esclarecido. Ele, porém, continua da mesma forma, citando no-
v;iiiiente versiculos como este: "João é Elias" [Mt 11.141, ou "Cristo é a vidci-.
ia" [Jo 15.11, etc. Feito isso, fica revirando e prolongando copiosaniente s~itis
1iiGprias palavras, concluindo sem Escritura' dizendo: Aqui se trata de sigiiili-
ctido5'. Pois João não é Elias, mas significa Elias. Ai vedes novamente quc clv
iiao quer provar de que maneira "é" possa equivaler a "significa". Ele al'ir-
iiia que equivale a "significa". No entanto, a quem interessa que ele o dig;i'!
I;i sabemos que diz isso; no entanto, deveria provar pela Escritura que siia :ilii.
iii;iqáo é procedente.
Ele sabe muito bem qiie seu jogo de palavras c' palavrorio vlizio (:IIIV\;II
do giaiide esforso de falar alemão, quando até sem empenho o fal:iri;i iii;iI ii
\iiii~.icntc)e confessa que não é sua intenção irisistir que, embora "E" sq;i l i )
iii;ido por "significa" em algumas passagens, devesse, por isso, ser ciilciicli<lii
:issiiii na Santa Ceia. Entretanto, unia vez que outras passagens d;i 1~svritiii;i
c. ; i I'E ohrigani a [concluir] que as palavras da Santa Ceia não teiii iiiisri) V I I I < Y I
iliiiiciilr>antigo, eles entendem que "é" deve ser toiiiatlo por "sigiiilic;i". " l ' i u
Da Ceia de Crisra - Co,ifissáa

que este sentido seria absurdo i~iclusivepara o intelecto crente, sim, para o in-
iclecto carnal"s4. Eles ainda não provaram por que nossa interpretação nZo
se coaduna com a Escritura e coni a fé. Veremos isso mais adiante. Não é jus-
io que queiram põr em dúvida o texto da Santa Ceia e esquivar-se furtivamen-
i c como ladròes. Que aguentem firinemente! Ia qiie ensiiiaram que "é" eqiiiua-
Ic a "sigriifica". que tragarii prova çonclosiva e nos fornesam em lugar d o an-
iigo e conviiicente texto, que pensam ter estracalhado e tornado duvidoso,
i i i i ~texto novo e convinceiite, como já falei acima, o que é de sua obrigação.
('orno têm medo disso e não querem fazê-lo, dão a entender que tipo de espi-
iito eles têm: o,que somente quer destruir, não coiistruir, ferir e não curar; is-
I O é o diabo. E por isso que alertanios mais lima vez contra esse diabo arre-
dio, evasivo e voliivel, porque iiào qiier responder corretamente. Larga a mão dele.
Para vossa instrução, qiie sstais do iiosso lado, qucro que saibais que é
Ipiira fantasia dizer que esta palavrinha ''i" equivale a "sigiiifica". Ninguéni
i;imais pode prová-lo em uma única parte da Escritura. Quero, inclusive, dizer
iiiais: se os fanáticos trouxerem, de qualquer língua existente na face da terra,
iiina frase em que "é" equivale a "significa". dou-lhes ganho de causa. Mas
rlcs não o consegiiirão. O defeito desses eminentes espíritos é que não levam
i.111 considera~Aoa arte da liiiçiiageni, a gramatica, ou, iiai palavras deles, o
"iropo", coiiio se ensina 113 escola das criaiicas. Esta arte ensina como urii
iricnino pode fazer de unia palavra duas ou três, ou como pode dar a mesma
i>;ilavranovo emprego e diferentes significados. Deixai-me provar isso com d -
j:iiiis exeinplos. Segundo seu significado original e antigo, a palavra "flor" sig-
iiifica uma rosa, um lírio, unia violeta e coisa semelhante que nasce da terra e
Iloresce. Se eii agora quisesse enaltecer a Cristo com um louvor especial, saben-
i111 yiie ele procede da virgem Maria, iiina criança tão linda. eu poderia usar
:i palavra "tlor" e fazer disso uin trapo, ou então, dar-lhe tiovo sigiiificado e
iisi,, direiido: Cristo é uIiia flor. Aqui todos os gramáticos e oradores dizem
iliic "flor" se tornou uma palavra nova e adquiriu novo sentido, não signifi-
c;iiido mais a flor do campo mas o menino Jesus. Só que aqui a palavra "é"
ii50 precisa equivaler a "significa": pois Cristo não significa uma floi-, mas é
i i i i i ; i Ilor, só qiie diferente da flor iintliral.
O poela Horacio diz: "D~xeriseg@e, notiim si callida r~erbiirnreddideril
iirrii/irci rioviini"55, OU seja: "Terás te expressado muito beni se de uma pala-
iri:i coiri~iinsouberes fazer uma expressão nova". Disso se deduz qiie da mes-
I I I ; ~ lxilavra sc originam duas ou várias palavras, tia medida em que, além de
..L,II sigiiil'icado corrente, adquirir outros c novos sentidos. Assiiii "flor" é uma
~~;il;ivi-:r i~iiaiidosignifica Cristo, e é outra quando se refere as rosas e outras
1liiii.r ri;iiiirnis, outra ainda yiiando expressa a idPia de uma rosa de ouro. dc
i ~ ; i i ; i c161 <Ic iiia<lcii-a. O riiesmo acontece qiiando se diz de iim avarento q11c
U a Ceia de Cririo - Confisião

ele é um cachorro. Aqui "cachorro" se reporta a pessoa avarenta; e da pala-


vra original se fez uma nova de acordo com a tese de Horácio. E aqui o "é"
não precisa ser entendido como "significa~ão", pois o avarento não "signifi-
ca" utn cachorro. É assim que se fala em todas as línguas e se reiiova o voca-
bulário, como quando dizeinos: Maria é uiiia aurora, Cristo é um fmto do
ventre, o diabo é um deus do mundo, o papa é Judas, S. Agostinho é Paulo,
S. Bernardo é uma pomba, Davi é um caruncho. Estas e outras expressões des-
se tipo ahuiidam na Escritura e que na gramática se chamam "tropo' ou "me-
táfora", sempre que se dê a coisas diferentes a iiiesma desigiiação por causa
da seiiielhaiiça existeiite entre as duas. Pelas letras, o vocábulo é o mesnio,
tiias potestate ac .significatiarte plura, quer dizer, segundo o poder, o sentido
e significado são duas palavras, um antigo e um novo, como diz Horácio e até
as criancas sabem.
No caso desses neologismos, nós alemães costuriiainos adjetivá-los com
"verdadeiro", "outro", "riovo" e dizemos: Tu és um verdadeiro cachorro;
os moiiges são verdadeiros fariseus; as freiras são verdadeiras filhas moahitass6;
Cristo é um verdadeiro Salornão. Da mesma forma: Lutero é outro Hus";
Zwínglio é outro Coré; Ecolampádio é iiin novo Abirà '? Nessas forniulações
lodos os alemães hão de concordar coinigo e admitir que são palavras novas
c valem tanto quanto se eu dissesse: Lutero é Hus, Lutero é outro Hus, Lute-
ro é iiin verdadeiro Hus, Lutero é um novo Hus. De modo que se sente co-
tno nessas expressões se faz, em consonância com o ensinainento de Horácio,
da palavra origiiial uma nova palavra. E que não combina nem soa bem sc
digo: Lutero significa Hus, mas, sim, Lotero é um Hus. Nessas frases se fala
da essência, do que alguém vem a ser, e nZo do que venha a significa; para
cssa nova essência se faz um novo vocábulo. Encoiitrarás isso em todas as líii-
guas, tenho certeza disso, e assim ensinam todos os gramáticas e o sabeiri as
crianças na escola. Jamais ericontraras que "é" equivale a "significa".
Quando Cristo afirma que João e EliasiY, ninguéiii pode provar quc .i050
significa Elias, muito meiios que Elias sigiufica João. Pelo raciocínio de Zwiii-
gli«, Cristo deveria tê-lo invertido e tcr dito: Elias S João, isso é, ele sigtii-
lica João. Pelo coiitrario, Cristo quer dizer o que João é, não o qiic signil'ia~,

F b I;ill~;ir rnwbNas, cf. Nm 25.15.


57 .lo>iioHui. iiasc. por volta dz 1369. precursor da Reforma, líder tinciand do povci tcliçcii. r.i<i.i
iluii l1400), icitor da Uiiiversidade de Praga (1409). Disçípiilo do tcologo iiigl?a I i v i i > Wyclil
(cl. :iciina n. 36), atacou a curropcãa do clero e denunciou o combcio de indiilgi.iicius. I i i i i r i i i i i
tiiie a F.rcritura 6 a única norma Dar8 a doutrina, que a Igreja e a coniii~ihgode iiidos < i \ ~ i c i i
tcs c laii a Cristo como seu cahrca. Releve a doucriria da tranviilisrniici;i<;i;i>c ;i i~iviic;ir.;iil ilcir
\;iiil<ik. Apisar do salvo~coiidiitoquc lhe havia sido concedido. Ii>ici,iidc!i,i<lii i i i i ~ ~li<.ii.i.i.
i, iiii

<'<til~,ili~ ? <:i>n\iaiiça(1414-1118j c
<Ir queiiiiado tio dia 6 dç jullii, <!c 1415. I . i i l c i < i I)ii;i 1'ii.iiiii.iiIv
iiiriilc ;iciiviili> dc ser ;idcpi<i dc Hus c da "1icrcsi;i Iii,ê~iii;i".
7H 1 I . Niii 1h.l 40.
\ ' ) < ' I . 1\11 11.I4.
D a Ceia de Cristo - Coniiasão

qual é sua essência ou missão, e então diz que é Elias. Aqui "Elias" se torna
uma palavra iiova e não designa o velho Elias, mas o novo. Como dizemos
nós alemães: João é um verdadeiro Elias, João é outro Elias, João é um no-
vo Elias. O mesmo vale para a expressão: Cristo é uma rochaa, isso é, que tem
uma índole [de rocha] e i urna verdadeira rocha, ma.s uina rocha nova, diferen-
te, uina rocha verdadeira. Da mesma forma: Cristo é uma autêntica videira6'.
Meu caro, coriio f que fica se quiseres interpretar isso de acordo com a fanta-
sia de Zwinglio: Cristo significa a verdadeira videira? Quem é a autêntica vi-
deira que Cristo representa? Será que estou ouvindo que Cristo seria um sinal
ou significado da madeira no parreiral? Seria uma coisa curiosa. Por que Cris-
to não teria dito de forma mais direta: A autêntica videira é C.ri$to, ou seja,
a niadeira do pé de uva significa Ciisto? É mais lógico que algo signifique Cris-
to do que que ele venha a significar algo, posto que aquilo que siinboliza al-
go sempre S inferior ao que siinboliza. Todos os símbolos são inferiores ao que
simbolizam, coisa que até todas as crianças entendem perfeitamente.
Zwinglio, porém, não repara na palavra "verdadeira" no versículo: "Cris-
to é a videira verdadeira" [Jo 15.1). Se tivesse reparado, iião poderia ter trans-
forriiado esse "é" em "significa". Pois nenhuma língua ou raciocinio permite
que Cristo signifique a verdadeira videira. Pois iiinguém pode afirmar que
aqui a autêntica videira seria a madeira d o parreiral. O texto obriga, de for-
ina inarredivel, que videira seja aqui um vocábulo iiovo, que descreve uma
nova e verdadeira videira e nXo a videira do parreiral; conseqüentemente "é"
aqui não pode ser uma significação; pelo contrário, Cristo o é de fato e teni
a qualidade de uma verdadeira e nova videira. hlesmo que o texto rezasse:
"Cristo é uma videira", isso ainda não me obrigaria a concluir que Cristo sig-
nifica a videira; antes pelo contrário, a videira deve significar a Cristo.
Tanipouco a expressão: "Cristo e o cordeiro de Deus"62 deve ser entendi-
da como: "Cristo significa o cordeiro de Deus". Pois desta maneira Cristo te-
ria que ser menos importante do que um sinal, do que o cordeiro de Deus.
Qual. porém, seria o cordeiro de Deus que Cristo significaria? Seria o cordei-
ro pascoal? Por que então não inverte e diz diretamente: O cordeiro de Deus
C Cristo, isso é, cordeiro pascoal significa Cristo, como Zwinglio interpreta.
Coiiio, porém, a palavra "cordciro" é complementada pela palavra "Deus",
6 obrigatória a conclusão de que "cordeiro" aqiii c oiitro vocábulo novo, des-
cicvciido outro, iiovo e verdadeiro cordeiro que Cristo verdadeirrimente é, e
ii.To o antigo cordeiro pascoal.
O inesmo se aplica aos demais exemplos que arrolam, tais como: "A se-
iiiciite f a palavra de Deus" [Lc 8.111; "o campo é o mundo" [Mt 13.181, ctc.,
i,ii<lc1150 podem, com boa razão, fazer do "é" um "significa". Até as criaii-

( ' I . I ( ' c ) ll1.4.


,,I 1'I, I < , 15.1.
(I? ( ' t li, l l ~ l .
Da Cda d c Cristo - Confissào
ças da escola dizem que "semente" e "cainpo" são tropos ou neologismos de
:icordo com a metáfora. Pois o vocábulo siiiiples e o metafórico não são ape-
iins uma, mas duas palavras. Aqui, portanto, "semcnte" não equivale a cen-
leio ou trigo, mas a palavra de Deus, e campo é o mundo, pois Cristo (como
o próprio texto o diz) fala em parábolas e não do centeio e trigo naturais.
Quem fala em parábolas, no entanto, faz de palavras corriqueiras verdadeiros
tropos, outras e novas palavras; do contrário, não seriam parábolas, se estives-
se usando as palavras corriqueiras no sentido orignal. E um espírito louco e in-
sensato querer usar as palavras das parábolas eni sentido corriqueirio, o que
c totalriieiite contrário a natureza e ao caráter das parábolas. Esse naturalmen-
te terá qiie recorrer a significações e invenções.
O niesiiio siicede com a passagem de Cênesis: "Sete bois são sete anos"
c "scte espigas são sete anos" [Cn 41.2bI. Uma vez que o próprio texto diz63
que está falando do sonho e da parábola ou sinal dos sete alias, aqui as pala-
vras "sete bois" e "sete espigas" deveni ser metáforas e palavras novas e sigiii-
ficar o mesmo que a expressão "sete anos". De sorte que as palavras "sete
;iii»s" (de acordo com o sentido comiini) e "sete bois" (de acordo com o no-
vo sentido) querem dizer o mesmo. Pois os sete bois não significam sete anos.
ti qiie não são bois naturais que comem o capim no pasto e que pela palavra
original antiga são chamdos de "sete bois". Aqui temos uma palavra nova;
trata-se de sete bois da fome e da abundância, quer dizer, sete anos de foine
c de abundância. Em resumo: eles podem arrolar passagens e dizer: Aqui se
ti-;ira de significado. Mas eles não vão prová-lo jamais em um caso especifico,
conto, aliás, jamais o tentaram provar. Acham que seria suficiente arrolar pas-
siigens e dizer: Aqui tem significado. Para nós, porém, isso não basta, porquc
1150acreditamos em Zwinglio ou outro homem. Quereinos argumentos e provas.
Agora, porém, talvez a outra facção se vanglorie dizendo: Com isso est6s
c<iiifirmaiid« a idéia do sinalisino de Ecolampádio, pois ele, seguindo a tcsc
tlc Ilorácio, também faz da palavra comum uma iiova e uni trapo, afirmaii-
CIO qiie "nieii corpo" significaria aqui "sinal de meu corpo". Isso é fácil coii-
1csi;ii-. Os gramáticos e mestres cristãos proíbem afastar-se do antigo sigiiilic;~.
111, coiiium de uma palavra e de aceitar iinia nova interpretação, a não ser qiir
i) irxto ou a lógica obrigue a isso ou que seja comprovado indiscutivelniciiic
I'i>r oiitras passagens biblicas. Se assim não fosse, nao haveria mais Lcxto, scii~
iidii, expressão ou linguagem confiável. Quando Jesus diz: "João é Elins". o
icxio c a fé nos obrigam a admitir que aqui "Elias" é uma palavra nova, por-
qiic 6 cvidente que João não é nem pode ser o antigo Elias. O mesino :icoiitc
rc coiii a expressão "Cristo é uma rocha". O próprio texto e a fé cxigciii o
i~iirliiiiciilode que "rocha" seja aqui uma palavra nova, porqiic <:I-istoii:o i.
iiciii [ioclc scr uma roclia natural.
Náo sc pode admitir, portanto, quc Ecoliinipidio laça d:i ~p:ilovi.:i " ~ o I .
Da Cria de Cristo - Coniíssão

po" a expressão "sinal de ineii corpo", porque ele o faz de maneira arbitrária
c não pode provar que o texto ou a fé assim o exigem. E como se algiiéiii qui-
scsse fazer tropologia e criar novas expressões arbitrariamente, de modo que
"o Evangelho é o poder de Deiis", de Rm l . l b , venha a significar o inesmo
que "o Evangelho é a espada de Rolando"". Dessa maneira alguém poderia
chamar ou interpretar Cristo de Belial, Paulo de Judas - quem poderia irnpe-
<li-lo?Isso, porém, é inadmissível, a menos que se prove ou mostre que o tex-
io assim o exige. Por isso Ecolairipádio também nada mais pretende do que
cstabelecer que há simples pão e vinho na Santa Ceia. Mesmo que tivesse cori-
seguido isso, o que, no entanto, não consegue, não vai conseguir ou provar
que "corpo" signifique "sinal do corpo", como mostrei em meu livrinho ante-
iior. De modo que Ecolampádio também fica sem um texto e uma interpreta-
<,i« da Santa Ceia que sejam conviiicentes. Neste ponto, no entanto, é preci-
\<I que haja um texto e uma interpretasão corivincentes. mesmo que tivesse
iipcnas mera pallia e moinha na Santa Ceia. No entanto, quem haveria de for-
iiecê-lo? Eles não o f'azeni, náo querem nem podem fazê-lo. Pois bem, então

1 litamos com o nosso e alerta~nosa todos quantos quiserem aceitar nosso con-
selho que tomem cuidado coii~tais iropistas e sinalistas duvidosos e iiicoiistan-
ics. Pois não basta que digam que pão é pão e vinho é vinho; é preciso que
piovem como deve ser lido e eiitendido o texto: "Isto é meu corpo"; se deve
equivaler a: "Isto é sinal de meit corpo" ou então a: "Isto é meu corpo". Não
! :iceitamos que se faça deste texto uma brincadeira de criança ou coisa qual-
iliicr, como, aliás, eles bem que gostariam. São palavras de Cristo, e nós preci-
stiinos saber o que contêm e oferecem. Em resumo, é como já disse: não que-
1 ~ 1 1 responder
1 onde deveriam dai resposta e ficam divagando sobre suas pr6-
]>riasidéias.
Terceiro: Embora este espirito estraordinário saiba perfeitamente que eu,
11clagraça de Deus, entendo que unia passagem da Escritura deve ser esclareci-
(li1 pela outra, como expliquei para o inundo todo em muitos escritos, antes
' ~ i i ' o nome de Zwinglio se tornasse coiihecido, este se sentiu obrigado a me
riihinar isso ao longo de ii?iiilas páginas", com o único objetivo de levar a pen-
\:ir que ele se dispôs a responder. Deus sabe, no entanto, que para iiieus ques-
ii<~iiarnentos eu esperava resposta e não essa sabedoria, pela qual taitibem não
v c ~ iagradecer. No entanto, aiiida hoje gostaria que ensinasse essa sabedoria
; i si próprio e aos seus, que a necessitam mais do que eu, e que a comprovas-
\r rio texto da Santa Ceia, visto que tem necessidade disso. Ele me critica, evi-
<Ii.iilciiieiite,de me ter ocupado apenas com a expressão: "Isto é meu corpo",
c <lc lcr deixado de lado a outra: "...dado a favor de vós", fazendo um pala-
\'I iiiii~Ii«rrivel para me dizer que a segunda expressão explica a primeira. Pois
I I ~ . I I I , sci pcrkitameiile que iiina passagem explica a outra; pois não faz taiiio
Da Ceia de Cristo - Confissão

temuo. aue tomei um banho e lavei as orelhas. de modo aue ouco


A

mente que no texto da Santa Ceia a expresão sibseqüente: "que é dado a fa-
.
. oerfeita-
vor de vós" deverá explicar a precedente: "Isto é meu corpo". No entanto,
pergunto eu, como se prova essa explicação e como se chega a ela? Então escu-
ta uma vez um mestre, se nunca ouviste um.
(Diz ele) que o corpo de Cristo foi dado por nós visivelmente na cruz; co-
mo no texto da Santa Ceia está escrito: "Isto é meu corpo que é dado por
vós", ele deve estar também visivelmente na Santa Ceia, já que se pretende
que seja o mesmo corpo dado por nós. Desse modo a segunda parte explica a
primeira. Uma vez que Cristo não é visível na Santa Ceia, o "é" passaria a
equivaler a "significa". Direi-me, queridos irmãos, se esse espírito tem o sério
propósito de nos responder, ou se não está fazendo, muito antes, uma piada
da questão toda. Mas eu te agradeço, Jesus Cristo, meu Senhor, que és capaz
dc prender e desmascarar tão magistralmente teus inimigos em suas próprias
palavras, para fortalecer nossa fé em tuas despretensiosas palavras. Essa úni-
ca questão deveria bastar para afugentar a qualquer um dessa seita, ao ver tão
grande e grosseira cegueira em gente tão erudita. Os meninos da escola sabem
que "que" se refere a substância; mas esse espírito diz: "que" se refere a qua-
lidade, portanto, ao acidente mais comum e m ~ t á v e l Tenho
~ ~ . que dizer isso
c111alemão.
Sempre que eu puder dizer: "Isto é o corpo de Cristo dado por nós", elc
inmbém tem que ser visivel, porque não foi dado por nós senão de maneira
visível. Logo, se não estiver presente de forma visível, não está presente dc
iiianeira alguma. Se indico com a mão para o céu e digo: Ali, a direita dc
I>cus está sentado o corpo que foi dado por nós, então de fato tem que estar
scntado ali visivelmente, ou não está de forma alguma, pois a expressão seguiri-
ie: "...que foi dado por vós" assim o exige, segundo a sabedoria dessa gente.
Ila mesma forma, quando Cristo se escondeu e saiu do templo, seguiido .lo
8.59, eu poderia dizer: Ali vai o corpo que será dado por nós. No entanto, clc
scri dado por nós de forma visível, e por isso certamente anda de forma visí-
vel, e o evangelista estaria mentindo ao dizer que anda as escondidas, ou enião
1150estaria ali de forma alguma. Em resumo: onde quer que esteja, o corpo
(Ic Cristo é o corpo que é dado por nós. Como foi dado visivelmente por 116s.
ii.io pode estar em parte alguma senão de forma visível. Que achas disso'? . l i
iivcste a oportunidade de ouvir um mestre? Aqui tens uma vez escritura c cic
(10 quc não toleram nossa inteligência. E de agora em diante acredita ricsic cs.
11iiilopara que te instrua corretamente na Santa Ceia! Desta forma, porEiii. LI
(lial)o sempre tem que selar sua sabedoria com sujeira, deixando l'cdor ;iii.;is
ilc si, para que se note que ele esteve por aí.
Assiin o pobre corpo de Cristo, por ter sido dado uma vcz visivcliiiciiic
110r 11<is, csti prisionciro, de modo que não pode cstar dc loriii;i iiivisivcl riii
Da Ceia de Cristo - Coiifissão
parte alguma, ou então, sendo invisível, não está presente. O fato de ter sido
dado por nós de forma visível o impede de estar presente na Santa Ceia, uma
vez que não pode estar presente senão de forma visível, já que as palavras re-
zam: "Isto é meu corpo que é dado por vós"; logo, não pode estar presente
em parte alguma a não ser de forma visível. Fornecem tal explicação as pala-
vras: "...que foi dado por vós". Qual o significado de "que"? Este espírito
afirma que significa tanto quanto "como"ou "da maneira como" esteve prega-
do na cruz. Ali ele esteve pendurado visivelmente diante dos olhos dos judeus,
entre lanças e cavalos; se estivesse presente na Santa Ceia, também deveriam
estar presentes na Santa Ceia todos os judeus, cavalos, lanças, roupas, pregos,
e tudo mais, ou até a direita de Deus e em todo lugar onde o corpo de Cristo
estiver. É assim que se devem interpretar as Escrituras Sagradas e avaliar uma
passagem pela outra. Estão irados porque eu acho que o diabo está falando
através deles. Meu caro, como é que a razão pode afirmar aqui que se trata
de mero equívoco humano e não de escárnio do diabo? Especialmente porque
Zwínglio empenha nisso tão grande sabedoria, espírito e tagarelice, como se
fosse uma de suas melhores teses e obra de mestre. Muntzer" foi um espírito
temerário. Este, porém, é tZo temerário que vomita tudo que lhe cai na boca
e nem pensa no que diz. Deus, porém, nos previne desse modo.
Não é uma desgraça que, por razões fortuitas e erradas, se deva negar as
claras palavras de Cristo: "Isto é meu corpo" e profanar a Santa Ceia? Se
um escolar fizesse tal silogismo, receberia uma bofetada. Se algum mestre dos
sofistas68 o fizesse, seria chamado de burro. Para esse espirito, porém, deve
ser entendido como escritura divina e verdade, com as quais se vangloriam con-
Ira nossa interpretação. Desse modo alguém poderia vir com a espirituosa idéia
c dizer: O Cristo à direita de Deus é o filho de Maria; de Maria, porém, ele
nasceu mortal; logo, deve estar sentado a direita de Deus como mortal. O se-
nhor cavaleiro não cavalga de couraça, portanto, não é cavaleiro. Raquel não

07 Tòmás Miintzer (ca. 1489/91-1525), monge, mestrc em Teologia (1516), aluou em muitas lugares.
Ilccomendado por L.utcra, tornou-se pregador «n Zwickau (Saxônia), em 1520. Influenciado
pelos "profetas de Zwickau", defendeu um cristianismo espiritualizado e entusiasta que se base-
ava em revela~õesdiretas, uma ilumina@a por uma luz divina interior em visões e sonhos, em
vc~da Biblia. Afirmava que se chega à salvacão pela experiência da cruz. Expulso de Zwickiiii
(1521), deslocou-sc para Praga. Em 1523 tornou-se pregador na cidadezinha dc Allstedt (Saxôiii~
clçitoral), de onde fugiu para a cidade imperial de Miihlhausen (agosto de 1524). Expulsa dc [;i,
loi para o sul da Alemanha. Entrou em contata com as camponeses que se haviam levanl.~do
contra a opcessáo, e também com Ecolampádio, em Basiléia. Voltou para Mühlhauscn (fcverci-
vi, rlç 1525), ande camccou a organizar um regime democrático de inspiração cristã. Tornoii-\i
liilei dos cniiinoncses da r r i n e i a lia Guerra das Camooneses. O cwército camoonçs foi dcrrai:i~
do, ctii I5 de li aio dç 1525, peita de fiankenhausen. Müntzcr foi presa, torturado c deail>ii;i
<I<> (27 <1ç iii;iii> de 1525). Hoje muitos historiadores consideram-no o teólogo niais origi~i;ilr
iiiciir iiilliiciiic de scii ieiiipi,, depois <Ic I.utcro.
( 8X8lf,,l;i <wieiii;ilr~iiiiii<>s liliisi~loado aéc. V ;i.<'.çiii Aieri;is, Iricstrcs vi;ii;lotes <lc ii.ii)~ic:i.
clc8qtr?~t<kt c p,~a!~~ilic:t,c ~ ~ ~ ~ i clc ! ~s ~~ ~i ~
l ~l cc~~l ~~l o:~~~lc~i ~si l ~
i ~IJos
l : ~lr:~~~s~cr?ctci:~,
~l~. p:tl:wt:t
t l < , \ i p , ~ ~;d)!~~t~!t
;t qttc t ~ ; u~ r p , ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~vi'~Iiclo~,u l ~ ~ IsXccit ;V~rr:!li<ktclc,
, ~ ~ ~ ~!130 r cs ~
~ ~~ l~ c~ ~c ~~ ~~ ~~ ~~ ~r ll ~~ !
Da Ceia de Cristo - Confissão

está usando véu; conseqüentemente, Raquel rião é mulher. De acordo com a


nova rqra: O acidente é substância e iião pode estar ausente de seu objeto69.
Eril quarto lugar; chega as palavras da Santa Ceia e as divide em dois ti-
. algumas faz imperativos que nos iiiaridain fazer ou ordenam algu-
p o ~ ' ~De
nia coisa, conio: " l m a i , comei"; de outras faz eiiuiiciados ou descrições que
simplesmente nos dizem o que está acontecendo. Aqui, porém, tenlio que usar
seu alenião pobre e odioso que lhe agrada mais do que a matraca a cegorilia.
ainda que sofra para coiiipreendC-lo, Ele quis gaguejar ou tossir (ou nielhor),
dizer o seguinte: Onde Deus manda, temos palavras imperativas, tais como:
"Não rerás outros deuses" [Êx 20.31; por sua vez, onde ele faz algo, se trata
de palavras-ação, como em Gn 1.3: "Haja luz", etc. Se soubesse expressar-se,
diria: onde constam palavras de ação. ali nada acontece, ainda que eu as pro-
nuncie; como se eu pronunciasse as palavras de Gn 1.14: "Façam-se sol e lua",
mas liada acontece. Então, mesmo que Cristo tenha dado seu corpo na Saiita
Ceia quando disse: "Isto é meu corpo", não decorre disso que Cristo logo tam-
bém apareça quando repito a expressão. Pois em parte alguma Cristo dispôs
que por minha palavra se fizesse seu corpo, etc.
Pobre e miserável espírito! Como luta e se debate, e não acha saída! Em
primeiro lugar, aceitamos que ele admite que iia Santa Ceia Cristo deu seu cor-
po aos discípulos, pois reconhece que estas são palavras de açio: ''Isto é meu
corpo", e que isso aconteceu naquela oporturiidade. Agradecemos cordialmeii-
(e a eles por deixarem, afinal, intacta a primeira Saiita Ceia. No entanto, ten-
do essa, as outras coisas tarnbéiii lios Iião de ficar. Por sinal, nós Ihes arraiicn-
remos esta Ceia original à força e por siias próprias palavras da seguinte ma-
neira: Zwiriglio pode torriar as palavras da Santa Ceia como quiser, coriio inl-
perativos ou palavras de permissão, palavras-ação ou palavras de leitura; isso
pouco me importa. Pergunto, no entanto, se essas mesmas palavras-ação dc
Cristo são palavras de mentira ou de verdade. Se forem mentira, o próprio
Cristo deverá se resporisabilizar por elas e não nos dizem respeito. Se, poréiii,
forem palavras verdadeiras, então respondemos com alegria: inclusive o espíi-i-
lo fanático tem que admitir que Cristo ofereceu seu corpo na Santa Ceia. Pois
são palavras-ação as que Cristo proiiunciou pela primeira vez e ele não meiitc
q~iandodiz: "Tomai, comei, isto é meu corpo", etc. E a mesma sitiiação quaii-
CIO se formaram sol e lua, segundo Gn 1.14: "Haja sol e lua", e não foi p;il:i.-
\,ra de mentira. Dessa maneira sua palavra iião é urna palavra póstera, iii:is
iiiiia palavra de poder que cria o que ela expressa. Salriio 33.9: "Elc kila, c :i
ci>i\a\c faz", especialmente porque aqui é proiiuriciada primeiro c porqiic dc
vc hcr iiiiia ~alavra-ação.Foi desta forma que rgheinos a primeira Soiitti '?i:,
qiie taiiib&meles administram e confessam.
Da Ceia de Cristo - Coiifiuzo

Agora veremos taiiibéni como esse delicado espirito quer fazer da palavra-
tiçlio "é" uma palavra-significação, querendo nos tirar nossa interpretação.
Onde ocorrem palavras-ação (assim se expressa ele) iião decorre que assim acon-
ieya quando as pronunciamos, mas permanece simples narraçâo do fato acon-
lecido. Mesmo que afirmemos na Sarita Ceia: "lsto é meu corpo", ela não se
transforma em corpo de Cristo. Logo, o que deve haver é simples pão. Se. to-
davia, o que há é siiiiples pão, "é" deve equivaler a "significa". Logo, nossa
iiitcrpreta~ãonão tem valor e os fanáticos estão coni a razão. Ele iiào iiisistc
nisso, uina vez que consi<lrra nossa interpretação correta ein relação a priniei-
ia Santa Ceia, não, porém, às subseqüentes. Se, todavia, agora pergunto:
Quem deu poder a esse espirito, ou com que quer provar que as palavras da
Santa Ceia devam ser separadas e distinguidas desta forma em palavras-manda-
iiieiito e palavras-açZo, ele não tem outra resposta do que esta: ele espera que
iiingiiém afirme haver na Sania Ceia palavra-mandamento, pela qual se quei-
ra produzir o corpo de Cristo. Portanto sua argumentaçâo se baseia em sua
cspernriça, ele que sempre se vangloria de se basear na palavra de Deus e nas
claras Escrituras. Afinal, quem quer basear-se na esperança do espírito pode,
(lc qualquer maneira, crer que há siiiiples pão na Santa Ceia, uma vez que tam-
IiCm essa acepção tem evidentemente esse fuiidaiiieiito.
Nós, porém, replicanios que uina vez iiiais esse espirito nos ensina o que
i:i sabemos e se esquiva do que deveria ensiriar, e que apela para um nerasto
:irtit'icio, ao dividir e separar assim as palavras da Santa Ceia. Caberia provar
i~iicdevem ser separadas desse modo, visto que constam todas beiii juntinhas,
iitiia atrás da outra, iio mesmo lugar: "Tomai, coinei, isto é meu corpo", elc.
c, ademais, não são nossas, nias palavras do próprio Cristo. Por outra, incs-
iiio que estas palavras: "lsto e nieii corpo" fossem, ein si, palavras-ação. quaii-
do arrancadas d o contexto e separada.%das outras, e colocadas sozinhas iiomri
prisão, elas ainda assiiii são nada mais que palavras-mandamento, porque são
iiicorporadas e formuladas em palavras-mandamento. Pois eu também espero,
cvidentemente, e até o sei com toda certeza, que todos os cristãos são obriga-
dos, de acordo com a instituição e o mandamento de Cristo, a pronunciar es-
:;tis palavras na Santa Ceia e não considero sequer os ianáticos tão atrevidos
cliic, de boa consciência, venham omiti-las. Se for mister conservar e pronuii-
ci:i-1;)s iia Santa Ceia, então, evideiiteinente, são palavras-maiidamento, pohiir
qiic cstáo forinuladas em palavras-mandamento e nào tem cabimento separi-
li(,\ t1ii.v 1)alavras-inaildamento, conio esse espírito o faz aciiitosamente. Sc, pi-
i;.iii, as palavras-ação estão formuladas em palavras-mandamento, deisairi dc
C I IIICKIS palavras-ação, mas sào também palavras-mandamento, pois acoiilc-
<c iiido o qiic dizcm por força das divinas palavras-mandamento, pelas qliiiih
\:II> CXIIrcSSaS.
I ( i i i Maiciis 21.21, ]>»i-excniplo, encontra-se uma palavi-a-ac5o qiic os rlih-
<il~iiliistIcvcri;iiii dizcr: "Ergiic-tc e lança-te ao mar". Sc alguém a ]~roiiiiiiri:ii~
~ I I : I ~ I ~ ~ ~ I I ; III:ICI:I ~ I ~ Isiircdcr;i
I I I ~ ~ I I c~ c~o ~ i l i i i i ~iiiiiii
r ~ l?:~I;iv~i-a~io. l~~~li-cl;~iil~~,
i . a > i i i i > ( 'iisii, :i f r ~ i i i i i i l ; icoiiio ~~;il;ivi.:i-iiiaiic1~111ic11iii. di/.ciiclci: "Se dissci-clrrioiii
Da Ceia de Cristo - Canfissáo
fé a esta montanha: Ergue-te", etc., certamente já não pode mais ser palavra-
ação, mas sucede o que expressa, quando pronunciada conforme sua ordem.
Ou então, quando o sacerdote batiza e diz: "lde, batizai", e t ~ . ~isto] , há de
ser, sem dúvida, um Batismo diante de Deus. E se Pedro ou Paulo dissessem:
"Teus pecados estão perdoados" [Lc 7.481, como Cristo falou a Madalena, en-
tão se trataria de mera palavra-ação; mesmo assim os pecados são perdoados
neste caso, como rezam as palavras, porque assim foi ordenado e expresso
em palavra-mandamento, uma vez que Cristo diz em João 20.22: "Recebei o
Espírito Santo pelo qual perdoareis os pecados", etc. E se a palavra de Gn
1.14: "Façam-se lua e sol" também estivesse formulada em palavra-mandamen-
to e se nos fosse ordenado pronunciá-la, haverias de ver se Deus mente e não
aparecesse um sol, se eu falasse a uma estrela ou ao céu. Como, porém, não
é uma palavra-mandamento, evidentemente não surgirá sol algum. O mesmo
acontece se houvesse uma palavra-mandamento para que eu dissesse para a
água esta palavra-ação: Isto é vinho, haverias de ver se não se transformasse
em vinho. Por isso é mera brincadeira infantil e conversa inútil que este espiri-
to quer separar as palavras-ação das palavras-mandamento no mesmo texto,
visto que estão incorporadas em palavras-mandamento e que foi ordenado pro-
nunciá-las, e que as iguala a outras palavras-ação que carecem de imperativo
e de palavra-mandamento. Isso significa tratar da palavra de Deus de manei-
ra sofística e malandra. Para eles, no entanto, é escritura e credo o que nossa
compreensão não pode admitir.
Como até aqui não ficou comprovada nenhuma significação, tampouco
refutada nossa compreensão, prosseguimos perguntando se Cristo nos mandou
mentir, quando nos ordenou estas palavras-ação: "Tomai, comei, isto é meii
corpo", uma vez que todas elas são pronunciadas em seu nome e como suas
próprias palavras. Se nos manda mentir, o problema é dele. Se, todavia, nos
manda dizer a verdade, então, evidentemente, seu corpo tem que estar prescii-
te na Santa Ceia, não por força de nosso falar, mas por força de sua ordeiii.
mandamento e ação. E assim temos não somente a primeira Santa Ceia, ni;!s
todas as demais celebradas de acodo com a ordem e instituição de Cristo Senhor.
Se perguntarem agora: Onde está o poder que produz o corpo dc Cristo
na Santa Ceia quando dizemos: "Isto é meu corpo", eu respondo: Ondc cslh
a força que faz uma montanha se erguer e lançar-se ao mar, quando dizciiios:
"Ergue-te e lança-te ao mar"72? Está claro que não está em nossa fala. 1ii:is
na ordem de Deus que vincula seu imperativo a nosso falar. Do mesmo r i i o
do, onde está a força que faz com que saia água da rocha73, uma vcL iliic
Moisés com nada mais contribui do que bater nela? Se bater fosse o siilicicii
tc, também nós transformaríamos todas as pedras em água. Mas ali cstii n oidciii (Ir

'71 ('1. M1 2R.I9.


72 ( ' V . MI 21.21.
7 1 ( ' V . 1:x 17.17 .
Da Ceia de Cristo - Confissão
I>cus. Moisés nada mais tem a fazer do que falar a palavra-ação: "Eu bato
iin rocha". Eu também poderia pronunciar esta palavra, mas nem assim sairia
igua, porque a palavra-mandamento foi dada a Moisés, não a mim. Assim
1:imbém acontece em uosso caso. Mesmo que falasse sobre todos os pães: "Is-
10 é o corpo de Cristo", certamente nada sucederia. Se, no entanto, diss~mos:
"Isto é meu corpo", conforme sua instituição e mandamento, então é seu cor-
li<>,não por causa de nosso pronunciamento ou palavra-ação, mas por causa
ilc sua ordem que nos ordenou falar e fazer isso e pelo fato de ter vinculado
siia ordem e ação a nosso falar. Se, porém, de acordo com a famosíssima ar-
Ic desse espírito, o mandamento de Deus e uosso falar devessem ser separados,
ii;io precisaria ensinar-nos que nosso falar nada produz; isso nós também sabe-
ríamos. Entretanto, ele deveria responder e provar sua sabedoria de que, on-
(Ic ordenar e falar estão juntos, Deus deveria estar mentindo e enganando e
qiic nada sucederia. Esse espírito louco, porém, sempre costuma vomitar coi-
s:i diferente do que se pergunta ou a questão exige.
Se, porém, eu me tivesse proposto escrever contra esse espírito, faria aqui
iirria pergunta sutil, qual seja: Posto que esse espírito tanto insiste em quod
ver-bum facti non effciat factum, sed narret factum, que a palavra-ação não
cria o que afirma, mas simplesmente relato o fato, não admite ele com isso,
cvidcntemente, que na primeira Ceia de Cristo aconteceu que seu corpo foi da-
rlo para ser comido? Do contrário, por que se martirizaria tanto para nos mos-
ii;ir que são palavras-ação, isso é, palavras que falam do o~orrido?'~ Seria tu-
(10 uma conversa inútil, uma vez que ele baseia tudo no fato de que palavras-
;ii:io são aquelas que dizem que a ação tenha acontecido em certa ocasião (do
coiiirário não seriam palavras-ação). Portanto esse espírito confessa com isso
cliic na primeira Ceia o corpo de Cristo foi dado para comer, e que tal coisa
icriii acontecido alguma vez, com a ressalva de que o ocorrido não teria consc-
<liiCriciasquando, depois, se falasse dele, como ele próprio não o nega mais acima.
Aqui pergunto onde esse espírito deixou seu cérebro, raciocínio, discipli-
ii:i c vergonha? Mais acima ele afirma75que o corpo de Cristo não pode estar
ii:i S;iiiia Ceia porque esse entendimento das palavras de Cristo não se coadu-
ii:i coni as Escrituras e a fé: O absurdo dessa compreensão repugna até ao iutc-
IkcIo crcnte7< Se o corpo de Cristo pode estar presente na primeira Ceia, co-
I I I I I ~podccntão contrariar a Escritura e a fé? Se for contra a Escritura e a I%
L I I I C 0 c<>i-po de Cristo esteja na Santa Ceia, como pode ter estado, então, na
~~riiiicii-;~ Ceia? Pois não falo aqui se sacerdotes indignos podem celebrar oii
I I ; I I I . iii:is das palavras de Cristo: "Isto é meu corpo", das quais dizem, gritani
r i.:iv;iqiicisiri: f contrário A fé e a Escritura que o corpo de Cristo esteja pre-
\~.iiic.coiiio cl;is [sc. as palavras] dizem, ainda que estivessem presentes somcii-
Da Ccia de Cristo - Confissão
te saritos. Mesmo assini esse espírito morde de iiovo sua própria língua qiiaii-
do admite que não é contrário a Escritura e à fé que, de acordo com seu teor,
o corpo de Cristo estava presente na primeira Ceia, com a única restrição de
que dai não decorre que o mesmo aconteceria nas Ceias subseqüentes. Por is-
so não deveriam gritar e vangloriar-se tanto de que nossa interpretação seria
contrária a Escritura e a fé (como afirmam com tanta arrogância), mas, sim,
contra as demais e subsequentes celebrações da Santa Ceia. Pois esta é uma
questão bem distante se eu ou tu temos o corpo de Cristo na Santa Ceia ou
se a velha iiifzrpretação é contrária à Escritura e à fé. Que ela não contraria
a Escritura e a fé, isso o prova a primeira Ceia, i~iclusivecom a aprovação des-
se espúito.
Pedimos, portanto, mui gentilmente, que nos permitam ensinar e crer o
que admitem contra si próprios: que [a velha interpretação] não contraria a
Escritura e a fé. Se, no entanto, Escritura e fé lhe forem adversas, a ponto de
Ihes cobrar explicação, uma vez que eles se opõem com tanta firmeza a sua
própria confissão, a nós bastará que admitam não ser contrário a Escritura e
3 fé, como ficam espalhando, para que se revelem a si próprios como mentiro-
sos e não possam ocultar sua falsa iiitenção. Como aqui apanhamos o espiri-
io iiientiroso em meiitira contra si próprio e nos confessando que nossa inter-
[iretacão não contraria a Escritura e a fé (como, iião obstante, afirmam) quaii-
do dizemos que o corpo de Cristo está na Santa Ceia, mas que questiona apc-
tias as celebrações subseqüeiites, nós permanecemos em nosso entendimento.
l'ois, como não contraria a Escritura e a fé que as palavras de Cristo, de acor-
d o com nossa interpretação, oferecem o corpo de Cristo na primeira Ceia, não
veinos inotivos para que nas oiitras celebrações fosse coiitrário a Escritura e à
Ie. O que aqui não contraria a Escritura e a fé também iiào o faz nas celebra-
c8es subsequentes.
Vè se não e uni espirito excelente e prudente. Exatamente na passagem
ciii que pretende provar que iiossa interpretação estaria contra a fé, ele se pro-
põe a provar que há palavras-ação na Santa Ceia, e não enxerga que com is-
so dá provas contra si próprio no sentido de que nossa interpretação da pri-
iiieira Ceia está correta e não contraria a fé. Pois as palavras-ação oferecem,
iio primeira ocasião, o que dizem, ou não são palavras-ação, como ele mes-
iiio iidinite. Conseqüentemente conclui contra si próprio que não há palavra-
:1c.50 113 primeira Ceia, ou então que nossa interpretação da primeira Ceia es-
[:icorreta. Se alguém arymentar que Cristo não ordenou pronunciar estas pa-
1:tvi.a~na Santa Ceia: "Isto é meu corpo", respondemos: É verdade; nZo cons-
[:i tio texto a ordem: "Devereis dizer: Isto é nieu corpo"; tampouco há ali
iiiii;i iiião desenhada que o estivesse indicando. Mas deixa que sejam atrevidos
11 qiiniito queiram, a ponto de quererem omitir e coiisiderar estas palavras co-
iiio iiâo ordenadas. Pois no texto também não consta: "Deveis dizer: Tomai,
ciiiiici". Da mesma forma não diz que se deve pegar o pão c abcnçoa-lo, clc.
I:,spcr;i para ver quem qiicr ser tão atrevido e afirmar qiic não sc deva pcg:ir
i 1 1p:i11iiciii abcnçmí-10, oii qiic iiàu sc diga: "Toiiini, c»iiici". 1'c1« jciio, ('ris-
Da Ccia dc í'iihii, ~ - ('tbt~li\\:u>

to deveria ter colocado ao lado de cada letra estas palavras: "Assiiii dcvcicih
diwr e fazer". Não seria suficiente ele ter dito ao final: "Fazei isso em iiiiiilin
meiiiória"? Se é para fazer o que ele fez, então temos que tomar o pão e abcii-
çoá-10, parti-lo, distribui-lo e dizer: "Isto é meu corpo". Pois tudo está coni-
preendido na palavra-mandamento: "Fazei isso", e não haveremos de omitir
essas palavras. Pois também S. Paulo diz que o recebeu do Senhor e assim o
legou7', etc. São, efetivaniente, palavras-mandamento e não admitem que se
tire ou iiiodifique Lima parte.
Portanto. é verdade que em parte alguiiia Cristo nos disse literalmente: "Fa-
zti do pão meu corpo". E por que seria necessário? Ele disse, no entanto, que,
eiii seu nome e lugar, por sua ordem e mandamento, pronunciássemos estas
palavras: "Isto é meu corpo", ao ordenar: "Fazei isso". Também não produ-
zimos seu corpo a partir do pão, como esse espírito nos acusa78. Mais ainda,
não afirmamos também que seu corpo surja a partir do pão, mas dizemos que
seu corpo, há muito feito e surgido, está presente quando proniiiiciamos as
palavras: "Isto é meu corpo". Pois Cristo não nos manda dizer: "Isto se trans-
forme eiii meu corpo", ou então: "Fazei meu corpo", mas, sim: "Isto é meu
corpo".
Já que falamos das palavras-mandameiito, é preciso acrescentar riiais um
detalhe para prevenir os nossos contra o palavrório desses espiritos. Pois iião
é possivel tapar a boca do diabo. Ele é como o vento que entra pelos menores
buracos, como se diz. H$ dois tipos de pala\'ras-mandamento. Algumas, 011-
de a fé está embutida, conio Mt 21.21, onde fala de mover montaiilias; e Mar-
cos 16.17, onde fala dos sinais que hão de acompanhar os crentes. Mesmo que
alguéni falasse sem fé tais palavras à montanha: "Ergiie-te", alegando que es-
taria fazendo isso com base na palavra-mandamento, nada haveria de aconte-
cer, porqiie neste caso Cristo coiidiciona a palavra-maiidaii~entoa fé. O outro
tipo é aquele onde a ft não vem embutida, como nestas palavras da Santa
Ceia: "Tomai, comei", pois aqui também os indignos e descrentes ingerem o
corpo de Cristo, como o fez também Judas e muitos dos corinti~s'~. Por isso
ii'ão 6 indispensável qiie tenham fé aqueles que administrain a Santa Ceia, beni
como para os que batizam não é implícito que tenham fé. O mesmo vale pa-
ra os que pregam ou têm uma função pública, porque tudo isso Cristo inte-
grou eni sua palavra e não na santidade da pessoa humana, para que tenha-
mos ceiteza da palavra e dos sacramentos, etc. Digo isso porque para os faná-
ticos o iiiaior escândalo é que indignos batizam, rezam missa, pregam, etc.
Eles não levam eni conta que eles próprios talvez sejam piores perante Deus,
ou que jaiiiais alguém pode saber quão piedoso realmente é, de modo que tein
que deixar que os sacramentos sejam fundados e praticados iiiGanente na pa-
lavra e na ordem de Deus.
Depois ele conduz meu dedo como o de um cego para a palavra: "Fazei

77 1 'I'. I ('i> 11.23. 78 Zli,ingli,sWeike 111.54. 79 Cf. 1 Co 11.17~~.


243
Da Ceia de Cristo - Confcwão
isso", ou "o mesmo"80, o que S. Paulo estaria explicando da seguinte manei-
ra: "todas as vezes que comerdes o pão", etc."'. Disso quer deduzir que com
a palavra: "Fazei isso" Cristo se teria reportado ao comer do pão e não ao
conier do corpo do Cristo. Realmente, se Paulo tivesse dito: "Todas as vezes
que comerdes deste pão, que não é o corpo de Cristo" (coisa que esse espiri-
to acrescenta por conta própria), não haveria necessidade de pôr o dedo nisso.
Eu já o teria visto a cinco passos de distância. Enquanto eu espero que citem
a Escritura, eles trazem suas próprias fantasias. Por isso repito: Eu gostaria
qiie eles também pusessem o dedo na palavra acima, onde Cristo aponta para
o pão e, não obstante, diz: "Isto é meu corpo". Aqui também consta um "is-
to" que teria gosto em ser tocado pelos dedos dos fanáticos e que me pressio-
na e constrange moito mais [a concluir] que no pão se come o corpo de Cris-
to, do que o "isto" deles, pelo qual qiierem que ali exista simples pão. Ainda
mais que meu "isto" e o "isto" dele se referem ao mesmo pão, como eles ad-
mitem. Junto a meu "isto", porém, consta: "...é meu corpo"; junto ao dele,
no entanto, não consta: "...não é meu corpo"; ele mesmo tem que acresceu-
tá-lo, pulando por cima daquilo que esta junto a meu "isto", esse fiel e zelo-
so intérprete da Escritura!
Agora todo mundo seja juiz entre miin e este espirito. qual pão deva ce-
der ao outro. Meu pão vem aconipantiado do seguinte texto: "Comei, isto é
meu corpo", e se explica com palavras expressas de que este pão é o corpo
de Cristo. O pão desse espirito vem acompanhado do seguinte texto: "Fazei
isso", ou então: "todas as vezes que comerdes o pão", e não se explica que
seria simples pão e não o corpo de Cristo. Pelo contrário, esse espirito tem
que corrigir o texto e dizer que não é o corpo de Cristo conio, afinal, tem or-
dem de o fazer, mas do próprio diabo. Se tini "isto" deve ceder ao outro, en-
tão é justo que o seu ceda ao meu, porque o seu esta desprotegido e nu, seni
explicação, porquanto o meu traz suas explicações; ou eiitio terá que suar beni
mais para provar que o meu "isto" deve ceder ao seu. Apontar com o dedo
não leva a nada. Se ele quisesse agir de forma justa e correta, não deveria
mostrar-nos com o dedo que seu "isto" aponta para o pão; isso nós o havería-
mos de descobrir sem sua arte e explicação. Primeiro deveria refutar o texto:
"Coiiiei, isto é meu corpo". Se conseguisse provar que ali o pão não é chaina-
d o c o r p de Cristo, saberiamos muito bem que seu "isto" indica simples pão.
Como, porém, não o faz, trata-se de unia petição de principio e conversa fiada,
para não precisar responder aquilo que se pergunta e deseja, como sempre recla-
iiio. Pois nós dissemos: se o primeiro "isto" aponta para o corpo de Cristo,
seu "isto" siibsequente também deveria apontar para ele, uma vez que ambos
11s"isto" apontam para o pão; não obstante, o primeiro, ao inesino tempo, in-
clui o corpo de Cristo, conio assinalam as palavras: "Comei, isto é meu corpo"
De iesto, não coiicordamos que, quando Cristo diz: "Fazei isso" ou "o
iiicsino", isso signifique o mesmo nas palavras de Paulo: "...todas as vczei
-
H 0 %wii!gli.> Wcikr 111. 545. 81 Cr. I ('<i 11.20.
244
Da Ceia de Cristo - Confissão
que comerdes deste pão" [I Co 11.261. Esse espírito assim o afirma, mas não
o prova, como, aliás, é de seu feitio. Pois as palavras: "todas as vezes que co-
merdes deste pão", etc. falam somente de comer e beber. Se algum outro espi-
rito fosse tão briguento como esse, certamente quereria coiicluir dai que não
se deve tomar o pão, agradecer, partir, dar e abençoá-lo, mas tão-somente co-
mê-lo, como rezaiii as palavras; que se deveria, pois, apanhar o pão da mesa
com a boca ou tirá-lo do forno a dentes. No entanto, meu caro, se as pala-
vras: "todas as vezes que comerdes deste pão" comportam que se deva tomar,
partir, agradecer e dar o pão, então comportarão também aquela uma outra
paite, ou seja, a bênyão, quando Cristo diz: "Isto é meu corpo", etc. Se, no
entanto, não permitirem essa [mia parte, concluo, com a mesma força de argu-
mento, que, de acordo com o sentido literal, apenas se deve comê-lo, não to-
rnar, não partir, rião abençoar nem dá-lo. Pois S. Paulo não diz: Todas as ve-
zes que tomardes, partirdes, agradecerdes ou derdes este pão, mas somente: "to-
das as vezes que o comerdes". Entendes agora em que dá cobrir e enfeitar-se
com letras? E quereni que essa seja a abonação da Escritura a contrapor-se a
nosso entendimento! Por isso dizemos que com a expressão "isto" ou "fazei
o inesmo" Cristo não niandou apenas comer o pão, mas ordenou todo o tex-
to da Santa Ceia, como taiiibéni S. Paulo o faz, apesar de trazer somente o
texto do comer o pão. Pois quis mandar comer o pão como Cristo o instituiii
e não como bobeia o espirito fanático, ainda que com a expressão "comer o
pão" não pôde expressar essa idéia; no entanto, ele o havia feito suficienternen-
te com niuitas palavras.
Quinto: Ele tenta provar que nossa interpretação contraria a féa2,e de no-
vo se esforça desmesuradamente para nos ensinar que Cristo morreu por nós.
Pois esse espirito tem que ine ensinar a toda liora o que por tanto tempo e tan-
tas vezes ensinei, enquanto passa por cima daquilo a que deveria responder.
Pois, pela graça de Deus, sei muito bem que nossa fé consiste em que Cristo
rios libertou dos pecados por seu sofriniento; tudo isso iião nos precisalia ensi-
nar. Eu, porém, gostaria muito de ouvir em que sentido nossa interpretação
da Santa Ceia contraria a fé, como ele insiste e proclama. Neste ponto silencia
esse meu caro espirito como um ratinho e até pula por cima como um cervo.
Quando, porém, afirma ser contra a fé ensinar que a degustação do corpo de
Cristo perdoa os pecados, eu respondo: Isso também eu defendo. Na verdade,
ate disse mais: ingerir o corpo de Cristo fisicamente, seni Espírito e fé, é vene-
no e morte. A quem esse espirito está respondendo e contra quem está lutaii- ,
do? Achas que pode estar de juizo perfeito uma pessoa que quer atacar a Lute-
ro, mas não luta contra ninguéni?
Admitindo que na Santa Ceia o corpo de Cristo não é comido por causa
de nossos pecados, como decorreria disso que, por essa razão, seu corpo iião
esteja presente na Santa Ceia ou que isso seja contrário à fé? Se Ci-isto dcvc
Da Ceia de Cristo - Confissão
ser mutilado a ponto de se lhe atribuir o perdão dos pecados exclusivamente
em sua qualidade de crucificado, eu também concluo, por esse raciocínio, que
contraria a fé que Cristo está no céu, e contestarei todas as afirmações desse
espírito da seguinte maneira: S. Paulo não diz que Cristo subiu ao céu por cau-
sa de nossos pecados, mas que foi crucificado por nossos pecados; por isso
não está no céu nem perdoa nele os pecados. De igual modo, Paulo não diz
que Cristo nasceu e viveu por nossos pecados, mas que morreu por eles [l
Co 15.31. Conseqüentemente não nasceu nem viveu; é o mesmo raciocínio co-
mo o desse espírito que conclui: o corpo de Cristo não é comido por nossos
pecados, mas morreu por eles; portanto, não se pode comê-lo na Santa Ceia.
Logo, não faremos de Cristo outra coisa do que aquele que sofre eternamen-
te na cruz por nossos pecados, para não agirmos contra a fé ao crermos, em
outros artigos, que Cristo está presente e perdoa pecados, coisa que esse espíri-
to quer que aconteça somente na cruz.
Esse espírito cego e louco não sabe que mérito de Cristo e distribuição
do mérito são duas coisas distintas e as mistura como um porco imundo. Cris-
to mereceu e conquistou, uma vez por todas, o perdão dos pecados por nós
na cruz. Esse perdâo, porém, ele o áistribui onde ele se encontra, a qualquer
hora e em qualquer lugar, como escreve Lucas no último capítulo: "Assim es-
tá escrito que Cristo deveria padecer e ressuscitar dos mortos no terceiro dia"
(nisso está seu mérito) "e em seu nome ordenasse pregar o arrependimento e
o perdão dos pecados3'(onde acontece a distribuição de seu mérito) [Lc 24.461.
Por isso não dizemos que na Santa Ceia há perdão dos pecados por causa do
comer e [também não] que ali mesmo Cristo merece ou conquista o perdão
dos pecados, mas por causa da palavra, pela qual distribui entre nós esse per-
dão conquistado, dizendo: "Isto é meu corpo que é dado em favor de vós".
Aqui ouves que comemos o corpo como dado por nós, e é isso que ouvimos
e cremos no comer; por isso é distribuído ali o perdão dos pecados que já foi
conquistado na cmz.
Se assim não fosse, eu também poderia fantasiar, como o faz esse espíri-
to, e dizer: Cristo não nos rediiiu através de nossa pregação, por isso é con-
trário a fé procurar perdão dos pecados na pregação. No entanto, meu caro,
onde deveríamos procurá-lo? Ainda mais que Cristo diz que o perdão dos pe-
cados deve ser pregado em seu nome! Da mesma forma: Cristo não nos redi-
miu através de nossa fé, por isso contraria a fé que se procure perdão dos pe-
cados através da fé. Mas, então, através de que devemos procurá-lo, já que
Cristo diz: "Quem crer será salvo" [Mc 16.16]? Mais ainda: Cristo não nos
rcdimiu através de nossa prática do Batismo; logo, contraria a fé quem procu-
ia o perdão dos pecados no Batismo. Meu caro, por que será que Paulo cha-
iiia o Batismo de lavagem do pecado? E ainda: Cristo não nos redimiu pelo
lispírito Santo; por isso é contrário a fé que se procure perdão dos pecados
.jiiriio ao Espírito Santo. Onde então, meu caro? Acontece, poréni, que (1 çe-
p," iiáo podc ciixergar. Esse espírito ficou transtornado c ccgo cm rcla<áo ao
Snc~iiiiciito,por isso iião potlc inais coiilicccr corrcliiiiiciilc iiciiliiiiii artigo d;i
Da Ceia de Cristo - ConfiSsBo
doutrina cristã. Nós, porém, sabemos que Cristo morreu uma vez por nós e
que distribuiu esse morrer através de pregação, Batismo, Espírito, leitura, fé,
comer e como bem entende, onde quer que seja e o que quer que faça.
Em meu último livrinhos3 expus cuidadosamente que nossa Santa Ceia se
compõe de duas partes, a saber, a palavra e o comer, e que a palavra exige
fé e um comer espiritual ao lado do fisico, e ainda pedi que provassem em
que sentido isso é contrário a fé. Mesino assim esse espírito se atreve a divul-
gar desavergonhadamente tantas vezes, em todos os livros, essa mentiras4 que
eu nao estaria ensinando nem o comer espiritual, nem a fé, mas apenas o co-
mer fisico. Lê meu livrinho e hás de admitir que esse é um espirito falso e men-
tiroso, que me culpa de estar ensinando que se obtém o perdão dos pecados
somente coiii o comer físico, mesmo sabendo e tendo lido que não e assim.
Com essas mentiras ele apenas quer descouversar para qiie não tenha que res-
ponder a pergunta eni que sentido nossa interpretação seria contrária a fé.
Pois bem, com tais artimanhas estou longe de abalar nosso entendimento, antes
elas nos fortalecem, já que nos atacam com notórias mentiras, pois nós não
somos da opinião que fé cristã e mentiras notórias sejam a niesma coisa.
Da mesma forma escrevi com afinco contra os profetas celestiai~~~ no sen-
tido de que a história do sofrimento de Cristo e sua aplicação não são a mes-
riia coisa, o fato e a aplicação do fato ou o fato e o uso do fato. Pois o sofri-
mento de Cristo evidentemente aconteceu apenas uma vez na cruz; a qneiii,
no entanto, serviria se não fosse distribuido, aplicado e usado? E como pode-
ria ser usado e distribuido senão pela Palavra e pelo Sacramento? Por que,
porém, esses elevados espíritos haveriani de ler meus livros? Eles o sabem
melhor. Pois bem, então também levam a recompensa por considerarem fato
e liso a mesma coisa, fazendo-se com isso ridículos e desacreditados. Não en-
xergam que na Santa Ceia se trata do uso da paixão e não do fato da paixão.
Berii feito para eles que, de tanta arrogância e convencimento, nada lêem ou
só lêem superficialmente o que se escreve contra eles. Esse espírito todo-podero-
so deveria provar que o corpo de Cristo não está na Santa Ceia. Deixa de la-
do essa questão e passa a provar que não somos salvos pelo comEido~corpo
de Crísiõ'iiiiisin;;, pÕròTseussofrimentos. Quem teria conhecin~entodessa no-
va sabedoria se esse espírito não a tivesse produzido agora? Isso é do feitio
desse espírito. Tem que cuspir algo diferente do que se pede e sempre tem c~iic
ensinar-nos o que já sabemos, para, de forma alguma, precisar provar o quc
se propôs e deveria [provar]. Com isso, no entanto, ele nos fortalece cada vez
mais, ao se portar como espírito esquivo, que não se atreve a enfrentar cara a
cara seu adversário. Sabemos muito bem que Cristo não nos salvou por nos-
so comer. Ninguém jamais ouviu coisa diferente de nós. Qiie disso, poréin,
decorresse que há mero pão na Santa Ceia, isso gostariamos iiiuito de oiivir c
aplaudiriamos esse espírito se o provasse.

H A , 1 7 J , . i .r . 1 H4 I'. cn.. %*iri,!lir \!&li 111.5X. H5 ('I.


WA IH.lh7,\ iv. i i 41).

247
Da Ceia de Cristo - Confissão

Ele também está irritado porque prevenimos que não se questionasse co-
mo poderia ser possível o corpo de Cristo estar na Santa Ceia, mas que se de-
vesse confiar piedosamente na palavra de Deus. Fizemos isso, não por causa
das pessoas ingênuas bois elas não o necessitam), mas por causa dos pretensio-
sos, em especial por causa dos fanáticos. Que façam o que quiserem! Que in-
vestiguem e especulem a vontade, mas que satisfaçam sua ambição e compro-
vem de que forma nossa interpretação contraria a fé, o que provavelmente fa-
rão no dia da ascensão do diabo ao céu. Nós, porém, vemos perfeitamente
que se tornam mentirosos manifestos nessa investigação e põem em dúvida o
que eles próprios inventam e o que ninguém ensina. Pode-se notar que sobem
demais e que são acometidos do espírito da vertigem, de modo que, por fim,
tomam "que" por "como" e também misturam fato e uso, como os bons co-
zinheiros porcos. De resto, provocam discórdia e insegurança em todos os seus
grupos sectários, caindo incessantemente de erro em erro. Este é o prêmio pa-
ra quem não quer acreditar na palavra de Deus, mas investigá-la.
Sexto: Ele quer provarg6 que também a Escritura se opõe a nossa interpre-
tação. A primeira prova seria precisamente a passagem: "Isto é meu corpo
que foi dado por vós". Ora, não é verdade que seu corpo é tal como foi da-
do em favor de nós, pois foi dado por nós de forma visível. A isso responde-
mos mais acima, mostrando como esse espírito faz do "que" um "como" por
meio de um silogismo inteiramente vicioso, no qual há quatro termos, não se
dizendo nada sobre o universal, não existindo nenhuma proclamação sobre o
assunto nem distribuiçãog7, e há ainda muitos outros vícios, pois os lógicos
bem sabem que um termo acidental não pode ser subsumido sob um substan-
cial. Esse tipo de raciocínio, todavia, se chama de abonação da Escritura e pa-
lavra de Deus para esse espírito. Em palavras simples: Não afirmamos que o
corpo de Cristo esteja presente na Santa Ceia da maneira ou na forma como
foi dado por nós (pois, quem haveria de afirmar isso?), mas que o mesmo cor-
po que foi dado por nós [está pfese.nt& @o na mesma forma ou do mesnio
modo, mas na mesma essência e natureza.it\gora, a mesma essência pode scr
visível num lugar e invisível no outro. Na verdade, tudo isso é besteira; não
querem nos responder, mas fazer conversa fiada e vangloriar-se.
Da mesma forma seria contra o texto: "Todas as vezes que comerde.: eslc
pão", etc. [I Co 11.261, uma vez que "este" estaria se referindo ao pão. I>c
igual modo também estaria se reportando a simples pão na frase: "Isto é iiicii
corpo". Resposta: Esse não precisa ser o caso em todas as partes, iiern poclc
scr comprovado; acima provamos o contrário: ambos os [pronomes] "cslc" c
"islo" sc referem ao pão que é o corpo de Cristo, e nenhum deles a uiii pão coriiiiiii.
O mesmo constatamos em Marcos [16.19]: "O Senlior foi rccchiclo rio
cEii", ou então: "Deixo o mundo e torno para o Pai" [Jo 16.281, e ;iiii(l;i:
"Eii iião cstou mais no mundo, mas eles estão no mundo" [Jo 17.141 c oiiii.;is
-~ -- .-

l W l l c III, M1.
H12 %win~~:li,v
ir, i,ii;tlli,or Iirr~iiiii.ri!rlliiii~iliri <I<,
H7 riiioisii~iri,syllrigi.s~,~o, iiiiiili.iiii11:r ~viiuli<-,lilii,,
iqrnicl :,i1 <li,~lriIiiil~ii.

218
Da Ceia de Cristo - Confissão

passagens mais, onde se proclama que Cristo está no céu. Pois bem, isso tam-
bém nós cremos e afirmamos, e não havia necessidade de nos ensinar isso.
Convinha que ensinassem, isso sim, que, estando Cristo no céu, seu corpo não
pode estar na Santa Ceia. E essa discrepância que deveriam provar, então nós
também saberíamos que essas passagens contrariam nossa interpretação. Acon-
tece, porém, que nos ensinam com grande palavrório o que já sabemos, silen-
ciando magistralmente sobre os assuntos que pedimos [sejam esclarecidos].
Por essa razão temos que permanecer com nossa interpretação.
Pois o próprio Cristo explica no último capítulo de Lucas o que significa
"estar no mundo", quando diz: "Estas são as palavras que eu vos disse, quan-
do ainda estava convosco" [Lc 24.441. Como assim? Acaso não está com eles?
Mesmo assim come com eles depois de sua ressurreição? É evidente que não
está mais com eles como estava antes, mortal e sujeito as condições de vida
desse mundo, como Paulo fala em 1 Co 15.44 do homem natural e espiritual.
Disso, porém, não se pode deduzir que, por isso, não estivesse corporalmente
presente. Pois, como está escrito: ele estava sentado com eles, comeu e falou
com eles, e, mesmo assim, não está no mundo. Também: "Pobres sempre os
tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes" [Mt 26.111. O próprio
texto esclarece o que significa aqui "convosco" e é fácil de verificar: ele não
está conosco "como os pobres estão conosco", e assim por diante. As demais
passagens que arrolam se responde logo: Cristo não está conosco como os po-
bres, mortal, terreno. Por isso ainda não conseguiram provar que nossa inter-
pretação é contra a Escritura; é lógica zwingliana usar "substância" por "aci-
dente", "que" por "como", como s e e u dissesse: há formas em que Cristo
não está na Santa Ceia, portanto, não está presente de forma corporal. Há
formas em que Cristo não está conosco, portanto, não está conosco de modo
algum, concluindo simplesmente do particular ao universal. O prefeito não es-
tá tomando banho de calça vermelha, logo, não está tomando banho. O rei
não está sentado a mesa de coroa, por isso não está sentado à mesa. Isso é
brincadeira de criança e ilusionismo, como se sabe muito bem nas escolas; par
ra esses espíritos, porém, isso passa por Escritura e fé cristã.
E se se baseiam nessas afirmações de que Cristo nâo está mais conosco,
deverão concluir dai que Cristo também não está espiritualmente conosco,
pois as palavras são claras: "Já não estou mais convosco" [Jo 17.111, o quc
significa simplesmente que não está conosco de modo algum. Sim, ai dizem
que têm passagens claras de que está espiritualmente conosco, como, por exem-
plo, João 16 [sc.14.23]: "faremos nele morada", e Paulo em Efésios 3.17:
"Cristo habita em vossos corações", etc. Respondo: Meu caro, se podem con-
siderar estas passagens como contrárias aquelas, como não podem considerar
também o texto na Santa Ceia contrário àquelas? Se Cristo pode estar coiii
clcs de alguma forma, de modo que aquela passagem: "Eu não estou coiivos-
co" não atrapalha, então também pode estar conosco na Santa Ceia dc I;iI
iiiaiieira qiie não nos alrapallia o texto: "Não estou convosco". Sc csli: I c x l o
iiZ« ~lcrriili;isii;is ;iliriiia~õcssohrc a iialiircza cspiriloal dc Crislo, ciillio l ; i i ~ i
.~ ..
~

Da Ceia dç Cristo - Confissão


bém não derruba nosso texto na Santa Ceia s o b e a presença invisível de Cris- i
I

to. Demaneira que siias objeções se opõem a eies como a 116s com a mesma-
força. A saída que acha111para si vale como saída também para nós. De mo-
do que permanece inabalada nossa interpretação: "Isto é meu corpo". Pois
se conseguem provar muito com seus argumentos, eiitão mostram que Cristo
não está presente na Santa Ceia de forma visível, mortal e terrena. Coisa que
não é preciso provar porque também nós afirmamos tudo isso. Aquilo, porém,
que deveriam provar, isso é, que nossa interpretação estãerrada e que Cristo
mentiu quaiido disse: "Isto é meu corpo", isso ninguém quer atacar, aí dá so-
mente espírito superficial e inconstante, borrando entrementes niuito papel bom
com palavras inúteis e vãs, e bobeiam os pobres e ingênuos cristaos.
Depois fica divagando sobre a piscoa, citando a Paulo que, em 1 Co 5.7,
chama a Cristo de Cordeiro P a ~ c o a l ~e 'quer~ concluir disso que, como Cristo
não é Cordeiro Pascoal iiatural nessa passagem, mas, mediante um tropo,
um novo Cordeiro Pascoal, assim também teríamos um tropo nestas palavras:
"Isto é meu corpo". Isso nXo é argumento, pois ele mesmo reconheceu aci-
nia que, se numa passagem ocorre um tropo, não decorre disso que aqui tam-
bem haja um tropo. Tais conclusões devem ser comprovadas, e niais acima es-
crevemos extensamente sobre os tropos. A esse espirito iiiteressa somente escre-
ver iim livro e agradar seus seguidores. para qiie assim não tenha que respoii-
der o que cabia e devia e, não obstante, fazer de conta que está respondendo.
Cabe-lhe provar que nossa interpretação é contra a Escritura. E então nos en-
sina que Cristo é um Cordeiro Pascoal. Isso se chama de transposição. A es-
se respeito deixamos que falem e façain o que quiserem, pois com isso não res-
pondeu em que sentido nossa interpretação seria contrária à Escritura.
Depois esse espírito se enche de cólera porque zombei tão jocosamente
de seu sinalismo e me repreende severamente. Para nós! porém, repreendcr,
encolerizar-se e vociferar não é prova da Escritura que conteste nossa interprc-
ração. Todavia, quem não pode dar resposta, costuma ficar irado e vociferar,
a exemplo da mãe que ensina a seu filho: Querido filho, se não consegues ven-
ccr, arranja uma briga. Eu atirei o cacete no meio dos cachorros e pelos bci-
ios posso deduzir a qual deles acertei.
Esse espirito se me parece com um homem desvairado que teni uma balcs-
tia: com grande gritaria e estardalhaqo, pega a corda e arnia a balestra, e, coiii
grande palavreado, ameaça acertar na mosca. Mas, na pressa e afobafio, r\
qiiece de colocar a seta. Ao ouvir a corda tinir, ergue a balestra e diz: Ai csl:~!
kicertei lia mosca! E quando os outros começam a rir c lhe dizein quc sc Iinviii
esquecido da flecha, ele os repreende por não quererem tomar aquilo por Ilc
cliki. Esse espírito age da mesma forma. Com grande estardalliaço faz <Icc<iii
(:I que vai responder e acertar-nos, mas sempre esquece as sct;is. dc ~iiodo11iiv
iiciiliiiiiia vc7 contesta realrriente. Mesino assim, o palnvrOrio Ilic :i~,,r;i<l:i c iiii:i
i L r i c i a c que acrrlou n;i nioscti. Nós, ]~«rCiii,csi;iiiios :ic<>r
Da Cria de Cristo - ConfissBn

tumados a esses tiros de loucos. Mesnio que colocassem setas na balestra, es-
tamos certos que acertariam o clião ou atirariam três braças além do muro,
eni vez de acertar-nos.
Eles citam a passagem de S. Paulo aos Colossenses 3.1s.: "Portanto, se
fostes ressuscitados juntamerite coin Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde
Cristo vive assentado a direita de Deus. Pensai nas coisas lá do alto, não nas
que são aqui da terra". Eis aí, seus comedores de carne e bebedores de sangue,
dizem eles, ouvi que o corpo de Cristo não deve ser procurado no Sacramen-
to, pois o Sacramento está na terra, enquanto Cristo está no alto, a direita de
Deiis. Aqui esse espírito não acha necessário mostrar-nos o que significa "da
terra" em S. Paulo, expressão na qual se encontra o peso dessa passagem. Pe-
lo contrário, passa por cima ao acaso, impelido por seu pensaniento petulan-
te. Se agora pergunto: por que ouvem a pregação e procuram o Evangellio,
ou ainda, por que celebram a Ceia do Senhor, por que amam o próximo e Ihc
fazem o bem quando pai, mãe, patrão, peão e próximo estão todos na terra
- pois bem, não vamos procura-los, não vamos honrar a ninguém, iiein obe-
decer, nem servir a iunguéin? Não seria boiuto isso? Afinal, são tudo coisas
da terra! E S. Paulo diz que não se deve buscar o que está na terra. Na verda-
de, os apóstolos então fizeram muito mal ao seguirem a Cristo, pois ele esta-
va na terra e o próprio Cristo vem a terra. Também Paiilo faz sua pregação e
visita os cristãos cá e lá na terra. Que te parece? Não distorceram ninravilhosa-
inente esse versiculo?
Todavia, já estamos acostumados ao diabo que só zomba de nós e de tão
orgulhoso não nos considera dignos de resposta, já que consegue discípulos su-
ficientes com suas ciispidas inúteis. De nossa parte aceitamos siia zombaria e
Ilie contestamos que com zomb.uia possa derrotar nossa interpretação, e, além
disso, a consideramos um fortalecimento de nossa fé, já que nada coiiseguc
:irrolar contra nos a não ser sua inelancólica e impoteiite zombaria. São Pau-
lo entende por "da terra" a vida terrena, como o mundo a vive, em fornica-
ção e vícios de toda sorte. Pois fala da mortificação do velho Adão, como cons-
tam suas palavras e dizem claramente: "Se com Cristo morrestes" [v.3], c

i
i
iiiais adiante: "Fazei, pois, morrer vossos membros que estão na terra: prosii-
i~iição,impureza, lascívia, avareza, etc." [v. 51. Nessa passagem entendi qiic
cli;ima "da terra" uma velha vida terrena, conforme o velho Adão, corno ;i
vivc o mundo sem o Espírito de Deiis. Pois é assim que vive o velho Adão c
!:tis coisas não devemos procurar (diz S. Paulo). Porque, mortos para o miiii-
do e a vida niundana, deveríamos, doravante, viver com Cristo e de forma cc-
Icstial em Cristo. Apesar disso afirmamos alegremente que nosso Sacramciiio
ii;io está ria terra. Igualmente não o procuramos no mundo. Se, no entaiiiii.
ii diabo consegiiir provar que consideranios nosso Sacrariiento e o corlio dc

I 'ii.;to foriiir:i~ii>.;ivare7a, ódio r piiro vicio, haveremos de coiil'essar qiie csi;i-


iiio\ ci-iatlos no pi-ociirarinos a Cristo no iniiiido. Sc, toda vi;^. não 11 Sizci, diic
iiios qiic csi:i iiiciitii~rloconi siia hocarru iriici-ri:il e yiie 2iiiid:i caliiiiia ;i S. I';iii
10. :iliriii;iii<liiqiic o corpo dc ('risto cslh na 1cir;i qiiaiirlo csl:i no S:ici-:iiiirii
Da Ceia de Cristo - Confissão
to. Com efeito, não é isso que S. Paulo considera "estar no mundo", como
acabamos de ouvir. Aqui tens de novo os fanáticos, como observam bem as
Escrituras e qual é o espírito que fala através deles. Pois o diabo sabe muito
bem o que S. Paulo entende por "da terra", e assim mesmo leva os obceca-
dos fanáticos a chamar a presença do corpo de Cristo no Sacramento como
sendo "da terra". Com esses argumentos querem firmar sua interpretação da
Santa Ceia e derrubar a nossa.
Da mesma forma o diabo escarnece da palavra de Paulo em 2 Co 5.16s.:
"Não conhecenios mais a Cristo segiindo a carne", e "em Cristo está a nova
criatura". Tais passagens significariam que o corpo de Cristo não está na San-
ta Ceia. Ora, deixemos que zombem de nós uma vez mais, para ver o que o diabo
ganha com isso. O espírito fanático deveria explicar no caso o que S. Paulo
quer dizer com a expressão "segundo a carne", onde está todo o peso da ques-
tão. Pois sim, diz o diabo, não me preocupo convosco; estou satisfeito com a
interpretação de meus seguidores. Nada resta a não ser aceitá-la. Está bem.
Seremos tão humildes e o expoiiliamos: também nesta passagem S. Paulo fa-
la da mortificação do velho Adão, querendo dizer com isso que não devemos
viver mais de acordo com a carne, mas como nova criatura em Cristo. Escu-
ta tu mesmo suas palavras: "Julgamos" (diz ele) "que, se um morreu por to-
dos, todos morreram", etc. [2 Co 5.141. Que outra coisa pode isso significar
do que aquilo que ele diz em passagem semelhante, em C1 3.3: "Nós morre-
mos com Cristo", eni Rm 6.6: "Nosso vellio Adão foi cmcificado com Cris-
to"? E disso decorre: "Portanto, ele morreu por todos, para que aqueles que
vivem, não viv.un para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou"
[2 Co 5.151. Que significa isso senão o chamado para uma nova vida em Cristo?
E prossegue: "Por isso, doravante não conhecemos a ninguém segundo a
carne" [2 Co 5.61. Deixa que aqui Paulo e os fanáticos discutam; o fanático
diz: "Conhecer segundo a carne" é considerar algo fisicaniente presente, ou
estar com seu corpo na presença de alguém, como Cristo está no Sacramento.
Isso está errado, e Paulo o proibe. Meu caro, por que então conhece Paulo
seus corintios como gente que vive fisicamente em sua presença? por que co-
nhece seu próprio corpo? Da mesma forma, por que os fanáticos conhecern
seus companheiros fisicamente em sua presença? por que conhecem sua Santa
Ceia material? Não é tudo isso coisa material e não esta presente segundo a
carne, sem que Paulo tivesse que ser contra eles, porque seria contra nós por
conhecermos a Cristo fisicamente no Sacramento? Que o zombador zomhc.
Quem mais zombar do outro seja considerado mestre.
Com [a expressão] "segundo a carne" Paulo descreve nesta passagciii ii
que acontece de forma carnal ou de acordo com as intenções da carnc, c ii.30
scgundo o Espírito ou de forma espiritual. É como ele diz em 2 Co 10.3: "I<iii-
hora andando na carne, não rnilitanios segundo a carne", isso é,"nZo de iiie
iieira carnal". "Segundo a carne" não significa "na carne", como soiili;iiii,
iiios signií'ca, de modo adverbial, "carnalmente", ou "coiii a paixão c 11viiiii;i
clc cla carnc", ou "do iiiodo coiiio o faz a cariic". "Na c;iriicMc "scgiiiido ;I
Da Ceia de Cristo - ConfissZo
carne" são coisas muito distintas uma da outra. De acordo com G1 2.20, Pau-
lo vive na carne, entretanto não segundo a carne, mas na fé em Cristo. Pois
em Rm 8.13 ele diz que viver segundo a carne é a morte, dizendo: "Se viver-
des segundo a carne, morrereis". Por isso o texto de S. Paulo obriga a con-
cluir de forma inapelável que sua opinião é esta: uma vez que, em Cristo, to-
dos nós morremos para o mundo e a carne, doravante não devemos viver ou
pensar segundo a carne ou carnalmente e, portanto, não conhecer a ninguém
carnalmente, mas apenas espiritualmente. Pois conhecer o outro carnalmente
é não conhecê-lo além do que a carne é capaz. Acontece que a carne não é ca-
paz de nada mais do que procurar em todas as pessoas seus próprios interes-
ses; odeia, inveja e pratica toda sorte de mal ao inimigo, e procura gozo, fa-
vor, prazer e amizade com qualquer um para seu proveito, etc. E dessa manei-
ra que o mundo se conhece. Nós cristãos, porém, não conhecemos a ninguéni
dessa forma, pois somos nova criatura em Cristo e conhecemos uns aos outros
segundo o Espírito, isso é, cada qual não procura seus próprios interesses,
mas o que serve para o bem do outro, como também o ensina Rm 14.19 e Fp 2.4.
"Mesmo que tivéssemos conhecido a Cristo segundo carne" (diz elc),
"já agora não o conhecemos [deste modo)" [2 Co 5.161. E fácil de entendcr
que com isso ele não se refere ao corpo pessoal (como esse espírito afirma bo-
bamente), pois esse continuará sendo a carne de Cristo eternamente e nela to-
dos os anjos haverão de conhecê-lo para sempre. Da mesma forma, porém,
como conhecemos a nossos irmãos espiritualmente e não mais segundo a car-
iie, assim conhecemos ainda menos a Cristo segundo a carne. Outrora (qiicr
cle dizer), quando éramos santos no judaísmo e nas obras da lei - para on-
de agora tendem de novo os falsos apóstolos -, nada sabíamos de Cristo espi-
ritualmente; naquele tempo buscávamos tão-somente o que era carnal. Pois es-
perávamos que ele fosse redimir a Israel, conforme o último capilulo de Lucas
(24.211 e que fosse reconhecer nossa santidade e glorificar-nos segundo a car-
iic. Tudo isso, porém, terminou agora e morreu com ele, de modo que não o
conhecemos mais assim. Pois todas essas coisas passaram, e nós nos tornamos
criatura completamente nova em Cristo. Essa interpretação o próprio Paulo
ic dará; basta ler e observar direito o texto.
Todos quantos olharem e conhecerem a Cristo segundo a carne necessarin-
iiicnte ficam escandalizados com ele, como aconteceu aos judeus. Pois visto
qiic carne e sangue não pensa além do que enxerga e sente e, ao ver que <:ris-
I io é crucificado como pessoa mortal, tem que constatar: tudo está acabatlo,
i :iqiii iião há nem vida nem bem-aventurança; este acabou; não pode ajudar ;I
I
iiingiitm; clc próprio cstá perdido. Quem não quer escandalizar-se com clc Iciii
qiic passar por ciina da carne e ser fortalecido pela Palavra, para que no Espi-
iiio rccoiilieça como Cristo se tornou bem vivo e maravilhoso exatamente air:~
vi.s clc scii sofriiiicrilo e de sua mortc. Quem faz e pode fazer isso de vcr<l;i<lr
1i:isrn :I scr nova criatura em Cristo, dotado de percepção nova c cspiriiii;il.
' l i i i i i l ~ ~ ~Iiojc
i i i niiid;i ioclos sc csciiiidaliziiiii corri Cristo qiiaiido coiisidcr:iiii sii:i
S:iiiI:i < 'cki srgiiiiclo :i coiiic, coi1io o fiizciii os fnii;llicos. li szo clcs qiic coiilir
Da Ceia de Cristo - Confissão
cem a Cristo segundo a carne (do que nos acusam). Pois carne não pode dizer
e reconhecer mais do que isto: aqui tem pão e vinho. Por isso tem que se es-
candalizar com Cristo quando diz: "Isto é meu corpo", porque é velha criatu-
ra em Adão. Para não se escandalizar é preciso passar por cima dessa carne e
crer nas palavras: "Isto é meu corpo"; então compreenderá que este pão não
é simples pão, mas o verdadeiro corpo de Cristo.
Na verdade me aborrece o fato de que o diabo fica zombando dessa for-
iria da palavra de Deus. Por outro lado, lastimo que esta pobre gente náo vê
que tais idéias vagas formam a base de siias ilusões. Vangloriani-se de forma
excelentemente encarecida de não haverem aprendido nada de nósaS, o que na
verdade não deveriam; seus escritos o revelam demais, mesmo que calassem
da basófia. Lamentaríamos se tivessem aprendido tais coisas de nós. Se for es-
ta a maneira de interpretar a Escritura em Zurique, Basiléia e Estrasburgoa9 e
onde mais ensinam, seria desejável que ainda fossem papisias. Pois estes já es-
tão quase convencidos em todo mundo que ensinam errado. Meu Deus, se es-
te erro notório e esta interpretação errada de S. Palilo não assustam e coino-
vem contra esses fanáticos, que é que ainda pode coiiiover?
Nas demais passagens que arrolam e onde se anuncia que Cristo deixou o
mundo, foi ao Pai, subiu ao céu, está sentado a direita de Deus, etc., nada
mais conseguem do que ensinar o que há milito já sabíamos, para que iião no-
tássemos como se esquivam onde deveriam responder. Caberia a eles ensinar
e provar que nossa interpretação está equivocada e erradas estão estas palavras
de Cristo: "Isso é meu corpo". Dizem que conflita que o corpo de Cristo este-
ja no céu e também na Santa Ceia, mas não o provam. Por isso contestamos:
não há afirmações contlitantes, porque a Escritura diz ambas as coisas. Nos-
50 "não" é tão forte conio seu "sim". Pois não podemos negar as palavras
claras e transparentes por causa de sua mera, despida e descabida afirmasão
do "sim". Há mais de mil anos se sabe que Crista ascendeu ao céu, sem ensi-
namento qualquer desse espírito, e nem por isso se negou que o corpo de Cris-
to está realmente na Santa Ceia ou que as palavras de Cristo são verdadeiras.
Se esse espírito tem restrições, cabe-lhe indicar e ensiná-las. Nada disso, po-
rém, acontece.
Eu, no entanto, vos direi a verdade, meus amigos: Se esse espírito aclili
com seriedade que nossa interpretação é contra a Escritura e não o nega a r l ~ i -
irariamente, quero desistir de todos os meus argumentos. E o provarei da sc-
guinte maneira: Em priirieiro lugar, esse espírito admitiu mais acima3' qtic ii:i
primeira Santa Ceia Cristo deu seu corpo para ser ingerido, uma vcz quc iis;i
lsulavras-ação na Ceia, como foi exposto ainplamente. Dize-me, eiitáo, coiiio
pode afirmar aqui com seriedade que é errado e contraria a Escriiur;~o i~iic
cle inesmo admite mais acima: que está certo e que aconteceu unia vcz'! I'ois

nu xwijiglatwrkc 111.25.
H0 <'i. ri. 4.
1' 0 X$vi,j!!li,s t k r k c 111,53 (c(, ;t~.irn:~11. 75 c c , ~ ~ i c x l t > ) ,

254
Da Ceia de Cristo - Cor>I'is\3o
sc fosse conseqüente, questionaria a afirmação tari~bémna primeira Sant:i
Ceia com abonações da Escritura e não enxergaria ali palavras-ação. Isso ele
não faz e admite nossa interpretação. Entretanto, se nossa interpretação é pro-
cedente na primeira Santa Ceia, então não pode haver nem "significatismo"
iicin "sinalismo" nestas palavras, mas elas significam exatamente o que dizeni
c como rezam. Portanto, e iiiutil toda sua tempestade e fúria em busca dc
iiin "sigiuficatismo".
Por outro lado, ninguém pode negar que Cristo realizou a primeira Santa
(:tia quando estava no mundo, portanto, antes de ir ao Pai. Dize-me, então,
como esse espírito pode dizer seriamente que as passagens que falam da ida
ilc Cristo ao Pai seriam contra o texto da Santa Ceia? visto que tem que adiiii-
lii- que ainda não se havia cumprido nenhuma dessas passagens e que Cristo
:iiiida não estava sentado lá no céu. Se Cristo tivesse instituído a Santa Ceia
l i no céu, depois de sua ascensão, os fanáticos aparentemente teriam razão.
<:iisto, porém, procede como se quisesse dizer: Virão fanáticos que alegaiii
qiie ininha Santa Ceia contraria as passagens que, falando a respeito de mim,
:ifiiinain que vou para junto do Pai e que não estou inais no mundo. Por is-
ho quero ine antecipar e instituir minlia Santa Ceia enquanto ainda estou no
iiiundo e na terra, para que eles, antes de se darem conta, sejam apanhados
<,oinomentirosos públicos por suas próprias palavras, e que vós, meus queri-
i ilos filhos, sejais fortalecidos na verdadeira fé.
I Como querem eles manter sua posição em face disso? Eles têm que desis-
! iir de todas as passagens nas quais até agora se basearam tão atrevidamente,
i c c.o~ifessar,como mentirosos notórios, que, pelo fato de Cristo não estar no
cCii ao realizar a Santa Ceia, tais passagens não os moveram seriamente a nc-
,:;ir a presença do corpo de Cristo na Santa Ceia, mas foram enganados pelo
<li;ilioao imaginarem que enxergavam o que de fato não viain. Pois essas pas-.
5;igcns nâo esclarecem se o corpo de Cristo está ou não está na Santa Ceia; co-
iiio, tampouco, [o esclarecem] aquelas passagens eiu que se diz que Cristo ii;is-
ccii eni Belém [Lc 2.lss.I e fugiu para o Egito [Mt 2.13ss.l. Quero dar-vos
i i i i i bom conselho: eles têni que pensar agora em outra passagem da Escritura.
! i1ii:iI seja: "A noite Jesus sentou-se à mesa com os doze" [Mt 26.201, e as dc-
1 iii:iis que falam de sentar-se à mesa. Dessas haverão de concluir que a Escrilii-.
I ,...i .iI _ .irnia que Jesus estava sentado a mesa, logo, não pode estar no pZo. Se
. , , .
~li\~ciciii isso, entao- basta e não é preciso que nos provem que é contrário ;i
I:\ci.ii~i~i, como o fazem com as passagens acima. Pois o que esse espírito diy
i. vcid;i(lc. aiiida que minta. Nós, porém, vainos responder: Tarde, caro espiri-
to. ~iiiiiiolarde. Pois essas passagens que falaiii do estar sentado à iiiesn ;li?
;ij:iii;i i1.50 tc levaraiii a teu equivoco; aliás, nunca peiisaste nisso, quanto iiic-
l i ( > \ ~)oilcriaiiiiiiduzir-ic [a esse equivoco]. Como estas nunca te rnovcfiiiii c
;iiliiil;is iliiiins 11ão coriscgiiirum mover-te seriamente, di~e-nos,então, qiic
c l i i ~ ' I c iiiovcii. <';ira cspirilo, apanha-iios tamhéin cin mentiras iiothrios, qiic
1 1 1 1 ~~l:irc~i~os por vc~ici<Ios.
~ ~ ~ I ~ I C ~ clcs
~ I I :ii~~iii~iciit:iiii:
I ~ I I . Ainda iliic ;i pri~iicir;~
('ciii 1i.Xo coiiirC I I'l i , :i5
Da Ceia de Crista - Confissáo

citações da Escritura que aduzinios, as celebrações posteriores à ascensão são


conflitaiites. Minha resposta: Isso agora nio me interessa; contento-me agora
de ter preservado a primeira Santa Ceia, que não pode contrariar as passagens
sobre a ascensão de Cristo. E esse espírito está manifestamente errado. Pois,
se está estabelecido que as passagens da ascensão não podem mover ninguém
a negar o entendimento da primeira Santa Ceia de acordo com nossa interpre-
tação, queremos preservar também as demais celebrações da Ceia. Pois quem
haveria de acreditar nos fanáticos que as passagens da ascensão de Cristo os
movem seriamente contra a Santa Ceia depois da ascensão, uma vez que foram
persuadidos de que não foram movidos pelas mesmas contra a Santa Ceia an-
tes da ascensão? Se o corpo de Cristo pode estar sentado à mesa e, mesmo as-
sim, estar presente no pão, então também pode estar no céu ou onde quiser,
e, não obstante, estar no pão. Não há diferença entre estar perto ou longe da
mesa para que esteja, ao mesmo tempo, no pão. Isso sigiúfica ser apanhado
publicamente em nientira. Eles, porém, ainda não vão ceder e confessar seu
eqiiivoco para honrar a verdade por amor de Deus.
Isso basta para mostrar que nossa interpretação não conflita com a Escri-
tura ou a fé, como esse espirito louco se engana a si mesmo. Depois ele se ocu-
pa dos dois pontos principais que ataquei coiii mais veemência, ou seja, que
Cristo esta a direita de Deus e que a carne de nada vale, etc. Ali deveria pro-
var coino esses dois pontos não admitem que o corpo de Cristo esteja na San-
ta Ceia, como eu havia assinalado em letras niaiúsculas, para que, de modo
algum, passassem por cimag1.Aí vem esse caro espírito c apixsenta sua figura,
a a l e o ~ e por
~ ~ ,meio da qual ele quer endireitar tudo. Ensina-nos que na Escri-
tura se toma uma natureza de Cristo pela outra, até cair no abismo e concluir
que a palavra: "O verbo se fez carne", de João 1.14, não deve ser entendida
ao pe da letra, mas assim: a carne se fez Verbo, ou então, o homem se tornou
Ileus, etc. Assiin ele quer que se desminta a Escritura.
Desta vez não posso atacar todos os erros desse espirito. Uma coisa, porém, i
digo: quem quer aceitar uma advertência, tome cuidado comzwirtgko e evite
sciis livros como veneno do diabo infernal. Pois o homem está totalmente erra-
ilo e perdeu a Cristo completamente. Os oiitros sacramentários ficam compro-
iiietidos com um só erro. Ele, porém, não publica um só livro sem espalhar
iiovos erros; quanto mais tempo, pior. Quem, todavia, não aceitar a adverttii-
cia, que siga seu caminho, desde que saiba que eu o adverti e que estou dcscul-
pado. Não deves crer nem aceitar que o tropo da aleose exista nessas pass:t-
gcns oii que se tome uma natureza em Cristo pela outra. Esse espirito insctis;i-
111 inventa estas coisasg3para que também nos roube a Cristo. Pois clc 1150
Da Ceia de Cristo - Confisrâo
prova nem pode prová-lo. E mesmo que seu equívoco piidesse vir a ser algo
verdadeiro e certo, ainda não estaria comprovado que o corpo de Cristo não
possa estar na Santa Ceia. Pois insisti que mostrassem razões pelas quais estas
palavras: "Isto é meu corpo" estariam erradas na forma como rezam, ainda
que Cristo esteja no céu, porque não temos consciência do poder de Deus, e
ele certamente encontrará uma maneira que torne as duas coisas verdadeiras:
Cristo no céu e seu corpo presente na Santa Ceia. Essa foi a questão principal.
Isso eu havia exigido e escrito em letras maiúsculas, para que mostrassem co-
ino essas duas coisas conflitam. Ai ele silencia, não toca nisso com uma letra
sequer, como se não lhe dissesse respeito, e em lugar disso fica babosando sua aleose.
Se provei que o corpo de Cristo está em todas as partes, porque a direita
de Deus está em toda parte, eu o fiz (como expliquei publicamente) para inos-
trar uma maneira pela qual Deus é capaz de fazer com que Cristo esteja no
c611 e, ao mesmo tempo, seu corpo na Santa Ceia. Certamente reservou a sua
divina sabedoria e poder ainda outras maneiras pelas quais pode fazer o mes-
imo, porque não coiiliecemos medida e termo de seu poder. Portanto, se qui-
sessem ou pudessem responder, deveriam ter provado para nos de forma inques-
iionável que Deus não coiiliece qualquer maneira nem é capaz de fazer com
que Cristo pudesse estar no ceu e, ao mesmo tempo, seu corpo [piidesse estar]
lia Santa Ceia. Eis o nó da questão, e ai esses bons moços pulam por cima.
Não tem cabimento ensinar-nos a inviabilidade visivel no sentido de que, pelo
qiie vêem os olhos, o céu está lá no alto e a Santa Ceia cá em baixo, na terra.
Nós também sabemos muito bem que, a julgar pelos olhos, não pode estar lá
IICI alto o que está aqui em baixo, e vice-versa. Essa é uma acepção humana e
visível. A palavra e a ação de Deus, no entanto, não se orientam pela visão
(Ic nossos olhos, mas são ininteligiveis a toda razão humana e até dos anjos.
I>cssemodo Cristo não está de forma visível nem no céu, nem na Santa Ceia,
c do modo como os olhos carnais julgam que algo está aqui e ali.
Sem dúvida, é um espírito miserável aquele que avalia a palavra e a obra
de Deus através dos olhos; pois desse modo o próprio Deus não está onde
iiiicr que esteja, seja en1 todas ou em algumas partes. Meu caro, por que será
qiic esse espírito se apega a essa uma maneira que indiquei? Primeiro, porque
cscava preocupado que a barriga lhe estourasse de tanta erudição. Segundo, a
Iini dc bobcar com isso os ingênuos, para não perceberem que ele passava por
iilio onde fora chamado a responder, começando, dessa maneira, conosco ou-
ir<]jogo, c a fim de arrancar-nos de nossa linha de raciocínio e para que esquc-
cFsscmos aquelas coisas que o afligem. Se eu ficasse discutindo sobre aquela
iii:iiicir;i por mim indicada, eles teriam ganho de causa. Por quê? Pelo simples
liilo de qnc assim teriam motivo para não responder ao verdadeiro calo qiic
os iiicoiiioda c ainda para escreverem um livro após outro, para voniitar ao
iiiiiiido siia convcrsa inútil; pois acham que vomitar muito e escrever iiiiiitos
livros iiiiilcis seria rcspoiidcr corrciaincnte; e assini engrinani o pobrc povo.
I'or isso, Ixirn protcgcr-tc delcs, dcvcs farcr o scgiiintc: se tc provarcrii dc
I i i i i i i ; ~c~~iiviiic~.iilc
qiic o ~i<~<lcr
c ;i s;ilicclorin <Ic Ilciis iiáo vào ;iIEiii dc iii~ss<~s
Da Ceia de Cristo - Confissão
olhos e não podem fazer mais do que aquilo que podemos alcançar, avaliar
com os olhos e tocar com os dedos, então podes ficar do lado deles. Então tam-
bém acreditarei que Deus não conhece nenhuma maneira [para fazer] com que
Cristo esteja, ao mesino tempo, no céu e seu corpo na Santa Ceia. Insiste nis-
so e cobra-o deles. Eles têm o dever de fazê-lo. A doutrina deles somente terá
consistência se esclarecerem e demonstrarem esse ponto, pois é nisso que seus
ensinamentos se baseiam. O diabo sente muito bem que não pode fazê-lo; por
isso faz essa barulheira com conversa fiada, para que não o forcemos a tanto,
enquanto oferece uma erudição que ninguém pediu. Pois mesmo que pudesse
derrubar a solução por mim indicada (coisa que não pode fazer), ainda não
teria conseguido nada, porque com isso não estaria provado que as duas coi-
sas se contradizem: Cristo no céu e seu corpo na Santa Ceia:!Ele não tem que
provar apenas que esse modo é impossível, mas também que o próprio Deus
não conhece outra solução nem é capaz [de encontrar outra solução], como
também postulei no livro anterior. Como não o faz, afirmamos que Deus é to-
do-poderoso, que é capaz de mais do que enxergamos, e por isso creio em
suas palavras como rezam. Vê, aí está esse espírito de mãos sujas com toda es-
sa sua erudição.
Pois a todas as suas cuspidas inúteis contra a explicação por mim indica-
da respondo com uma só palavrinha: não. Pois ele vem aí com sua deose, com
a qual ninguém concorda neste artigo e que carece tanto de prova como toda
sua doutrina mentirosa. Se, porém, consegue prová-la, ainda poderíamos discu-
tir. De modo que a solução por mim iiidicada ainda permanece inabalada, ape-
sar de sua deose. Sua alegação de que se trata de uma deose não nos interes-
sa. Melhor seria que dissesse que é ironia ou outro tropo. Não vale falar des-
sa maneira de tropo ou tropos na Escritura; é preciso comprovar primeiro que
os tropos existem, antes de usá-los como argumento. Ora, é como eu disse: o
diabo foi atingido a ponto de não poder responder; por isso fica vagueando
por ai com palavras sem nexo. Graças e louvor a Deus que tão bem sabe ar-
mar-nos contra o diabo.
Tu, meu caro irmão, em vez da aleose, deves ficar com o seguinte: sendo
Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem em unia só pessoa, em nc-
nhuma parte da Escritura se toma uma natureza pela outra; pois ele chanin
de deose o caso quando se afirma da divindade de Cristo algo que correspoii-
de a natureza humana, ou como, por sua vez, Lucas diz no último capítulo:
"Não foi preciso que Cristo sofresse para assim entrar em sua glória?" [I .c
24.26.1 Aqui inventa que se está falando da natureza humana de Cristo. (:iii~.
da-te, te digo eu, cuida-te da deose; ela é a máscara do diabo, pois acaba pro-
duzindo um Cristo segundo o qual eu não gostaria de ser cristão, isso C, 11iii.
doravante não seja nem faça mais com seu sofrimento e sua vida do qiic qii;il~
quer outro santo comum. Pois se acredito que somente a naturcza 1iiiiii;iir;i si)
freu por mim, Cristo é um mau salvador para mim; desse iriodo clc ~)rOlitiii
tem necessidade de salvador. Em resumo, é indcscrilivcl o qiic o di:iho lprc1i.11
de com a aleose.
Da Ceia de Cristo - Confis\.i<i

Evidentemente, esta parte é um arligo de suma importância e mereceria


ser tratado em livro próprio. No entanto não é aqui seu lugar. De forma resii-
iiiida, porém, o cristão comum deve contentar-se com o seguinte: o Espirito
Santo soube muito bem ensinar-nos a falar, sem precisar de tropo ou tropolo-
gia. É assim que o Espírito Santo fala ein João 3.16: "Deus amou o mundo
de tai maneira que deu seu Filho unigênito". E Romanos 8.32: "Não poupo~i
seu próprio Filho, antes por todos nós o entregou". Da mesnia forma, todas
as obras, palavras, sofrimentos e o quer que Cristo faça, isso o faz, opera, diz
c sofre o verdadeiro Filho de Deus, o que quer dizer: o Filho de Deus morrcii
por nós, o Filho de Deus prega no mundo, o Fillio de Deus lava os pés dos
<liscipulos[Jo 13.lss.1, coiiio diz no capitulo 6 da Epístola aos Hebreus: ''L<\-
1.50 crucificando para si mesmos o Filho de Deus" [Hb 6.61, ou I Co 2.8: "Sc
:i [SC.a Sabedoria] tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da
< ilória".
Se agora a velha bruxa, a senhora razão, a avó da aieose, vem dizer qiic
:I divindade não pode sofrer nem morrer, deves responder: Isso é verdade.
Mesmo assim, como natureza divina e huinaiia são uma pessoa em Cristo. a
1:scritura atribui, em função dessa unidade, a divindade tudo que acontece ii
ii:icureza humana, e vice-versa. E na verdade é assim mesmo. Pois com isto
Iiiis de concordar: a pessoa (referindo-se a Cristo) sofre, morre. Agora, essa
l u s o a é o verdadeiro Deus; por isso está correta a formulação: o Filho de
I >i.iissofre; pois, ainda que aquela uma parte (por assim dizer) que é a divindii-
<!c. não sofra, não obstante a pessoa, que é Deus, sofre ria outra parte, qulil
,.c.j;i, na natureza humana. É como se dissesse: o filho do rei está ferido, aiii
,I;! que somente sua perna esteja ferida. Salomâo é sábio, embora somente scii
cspirito seja sábio; Absaião é bonito, embora somente seu corpo seja bonito.
I'cilro cslá grisalho, ainda que apenas a cabeça esteja grisalha. Pois, como o
rqtipo e a alma coiistituem uma só pessoa, atribui-se correta e adeqiiadamcnic
;i pchsoa toda tudo que acoiitece ao corpo e à alma, e inclusive as meiioics

11:iiics do corpo. Essa é a maneira de falar de todo mundo, não somentc dii
I'\criliira. Além do mais, é verdade, porque de fato o Filho de Deus, isso C ,
;I ~ ~ c s s o a é Deus, foi crucificado em nosso favor; pois ela, digo, a pcsso:i.
que
Ioi ciiiciCicada segundo a natureza humana.
l>c inodo qiie se deve atribuir a pessoa tudo que acontece a iiina das &>:ir
ir,. ~ioiqiieas duas formani uma pessoa. Assim tambéni etisinam todos os iiii
i i i 7 y i s iiicslies, bem como todos os teólogos recentes, todas as línguas c Ieda ;I
I:,.ciiiiira. Essa maldita aleose, porém, inverte tudo de vez, querendo atrihiiii
.i!, l~;iiicso que ira Escritura é alribuido a pessoa como um todo, fazciido Iro
I > O ~~iripiios
~ para perverter a Escritura e para dividir a pessoa de Ci-islo, co
iiio o I:I/ l~iiiihCi~i coin o "é'"'4, soineute para ensinar algo novo c Irazci 3 l i i l
D a Ceia de Crislo - Confissão
suas malditas idéias. Já qiie ele adora tropologizar, por que não continua no
antigo tropo que a Escritura e todos os niestres usaram aqui até hoje, qual se-
ja, a sinédoque9s? Por exemplo: Cristo morreu segundo a natureza humana,
etc. Isso, porem, não teria sido nada de novo e não havia como ganhar fama
com isso. Tambéni não teria acarretado novo equivoco. Por essa razão teve
que lançar rnào da aieose, para nos ensinar que uma natureza pode ser toma-
da pela outra, como se os apóstolos tivessem sido tolos e néscios a ponto de
não quererem falar da divindade, a não ser qiie se chamasse de humanidade,
e vice-versa. Se João tivesse tido a intenção de usar a aleose, ele poderia ter
dito: "A carne se fez Verbo", quando disse: "O Verbo se fez carne" [Jo 1.141.
Não cliega a ser um espirito sacrílego este que e tão temerário a ponto de
estabelecer uma .aleose nesses assuntos? Queni lhe deu ordens para isso? Com
que prova a existência de uma aieose? Não, parece que isso não é necessário.
Basta que diga: Eu, Zwinglio, digo que aqui estamos diante de uma deose, e,
portanto, é assim, porque onteni estive no regaço de Deus e estou agora voltan-
do do céu; por isso deve-se dar crédito a minha pessoa. No entanto, deveria,
antes de tudo, provar que aqiii estamos diaiite de uma drose. Isso, poréni, ele
omite e faz de conta como se já o tivesse provado há mil anos e como se não
houvesse ninguém que duvidasse disso. No entanto, é muito mais importante
provar a existência da deose do que o objeto que com isso quer confirmar.
Pela lógica de Zwinglio isso quer dizer provar o incerto pelo que é ainda mais
iiiceito, o descoiihecido pelo que é mais desconhecido ainda. Bela ciência esta!
Até as crianças deveriam rejeitá-la atirando-lhe barro. Se deve prevalecer que
ele fique a tropologizar e a briricar com figuras de seu capricho, seria de adrni-
rar que, por Em, fizesse de Cristo um Belial? Quem ousa dizer tudo que Ihc
agrada (sem ter que dar razões), meu caro, a que coiiclusões pode chegar? I?
cxatarnente isto que venho lainentando: esse espírito gloria-se da Escritura pa-
ra adular as pessoas. No entanto, produz seus próprios sonhos vãos e sua ima-
giiiação louca contra a Escritiira. Nesse ponto, porém, condenamos e amaldiço-
amos a aleose ate o inferno como inspiração d o próprio diabo, e querenioh
ver como quer confirmá-la. Pois exigimos abonações da Escritura e boa argii-
iiientação, e não seu próprio ranho e saliva.
Vociferam contra nós que estaríamos mesclando as duas naturezas ciii
lima sá essência. Isso não é verdade. Não estanos afirmando que divind;iilc
seja humanidade, ou que natureza divina seja natureza humana, o quc viria ;I
hcr a mistura das naturezas em uma só essência. Pelo contrário, nós iiicscl:i-
trios as duas naturezas distintas em uma só pessoa e afirmamos: Deus 6 o Iio
iiictn, e o honiern é Deus. De nossa parte reclamamos deles que tcnlairi dividir
;i pessoa de Cristo como se fossem duas. Pois, se qucreiiios admitir :i :il<.osr.
~.oin«Zwinglio o pretende, Cristo deverá consiituir-se dc duah pcsso;is, iiiii:~

95 I:rlrles*Ro que Pdhi d<i l<,il<i


(<'iirl<i, [i. ex.). iit;is. ;i iigiil. v 0 *c irlrlr li;iclc
:i iiii~;i <lu l i i i l i > (ritii
ii;iiiIic,:i 1iiiiti;i1i;i. ,i. C\.).
Da Ceia de Cristo - Contissãci
divina e uma humana, porque ele relaciona as passagens que falam do sofri-
inento apenas coin a natureza huniana, separando-a completamente da divinda-
de. Pois onde forem divididas e separadas as obras, também deve ser dividida
a pessoa, porque todas as obras ou sofrimentos não são atribuídos as nature-
Las, mas às pessoas. Pois é a pessoa que tudo faz e sofre, uma coisa segundo
esta natureza: outra coisa segundo aquela, como as pessoas instruidas o sabem
muito bem. E por isso que consideramos a Cristo, nosso Senhor, como Deus
c homem em uma pessoa, non confundendo natiiras nec dividendo personam,
de modo que não inisturamos as iiaturezas nem iampouco dividimos a pessoa.
Ora, basta de coisas acidentais, pois neste contexto não servem para iia-
da a não ser para mostrar que esse espírito está cheio de equívocos, procuraii-
do, por todos os meios, desorientar as pessoas ingênuas e alijar o verdadeiro
problema da discussão. Continuamos insistindo, porque esse espírito conversa-
dor não quer nem pode provar que sejam conflitantes esta$ duas coi&: Cris-
I » está no céu e seu corpo e ~ t ána Santa Ceia, de modo que para nós permane-
cem as palavras: "Isto é meu corpo", tal corno rezam. É que uma só de suas
Iclras nos dá iiiais certeza e nos é de maior valor do que todos os livros dos
liiiáticos, ainda que encham o mundo com eles. Por outra, como não provani
que "à direita de Deus" seja deterniinado lugar no céu, minha versão conli-
iiua sólida rio sentido de que o corjm de Crislo está em toda parte, uma vez
ili~eestá a direita de Deus que, por sua vez, está em toda parte, ainda que não
\iiibamos como isso acontece. Afinal. também não sabemos como acontece
iliie a direita de Deus está eni toda parte. Certamente não é da maneira conio
vemos algo com nossos olhos, como os fanáticos enxergam o Sacramento.
I>cus, porém, coin certeza tem algum meio pelo qual possa estar, e efetivanieii-
ic está, [cá e lá]. até que os fanáticos provem o contrário.
Pois ainda que coubesse a aleose, de modo que uma natureza pudesse scr
siihstituída pela outra, isso diria respeito apenas às obras e maiufestações, c
i150 a essSncia das naturezas. De fato, ainda que nas obras, quando se diz:
( 'risto prega, bebe, dorme, morre, se possa subentender a natureza liumaiia
ilc Cristo, não pode ser assim na essência, quando se diz: Deus é homem, ou
ii Iiomem é Deus. Aqui não pode haver aieose nem sinédoque, ou algum tro-

po. Pois ali Deus deverá ser tomado por Deus, e homem por homem. Quan-
( l i > cscrevi que o corpo de Cristo está em qualqiier lugar, não estive trataiido

<Ir iibras das naturezas, nias da essência das naturezas. Por isso, nem d c o c
iiciii sinédoque podeni derrubar isso. Essência é essência, cada qual para si,
iiciiliuma pela outra. E quem ine quiser derrubar isso terá que trazer algo difc-
iciiic do qiic aieose, siiiédoque ou tropo. Aqui eles não conseguem nada; pi-i-
iiicii-11tcriii que derrubar os argiimentos, nos q u i s eu me baseio nestc poiiiii.
OS iirgumcntos, 110s quais iiie baseio neste assunto, são os seguiiiics: O
iiriiiiciro c: cste artigo dc fé: Jcsus Cristo e Deus e Iioineni cssciicial. n ; i t i i ~ i l .
vcidiidciro c coiiiplcto niiina si5 pcsson, itiscpnrdvel c iiidivisiv~'1.O oliiro E i~iic
:i iliic,ii:i llc I>ciis csid ciii loda Iioric. O lcrcciro E qiic a pul;ivi-;tdc I>ciis ii;io
i: vii~:iiii~.s;i c I>cii i i i 1 1 iiiriilc. O qii:irIo. qiic I)ciis Iciii iiiiiilav iii:iiicii-;i\ IIC
Da Ceia dc Crista - Confissão
estar em algum lugar e não somente aquela uma, sobre a qual deliram os faná-
ticos e a qual os filósofos chamam de "local". Pois nesse ponto os sofistas têm
razão, quando dizem: Há três maneiras de estar em algum lugar: localiter ou
cixumscriptive, diffinitive e repletive Que, para melhor compreensão irei tradu-
zir: primeiro, alguma coisa pode estar em algum lugar de forma circumscripti-
ve ou locliter, de forma apreensível, isso é, quando o lugar e o corpo nele pre-
sente combinam, congruem, correspondem, tal como o vinho ou a água que
está num barril. O vinho não ocupa mais espaço nem o barril oferece mais es-
paço do que o volume de vinho existente. Da mesma forma como uma madei-
ra ou um tronco de árvore na água, que não ocupa mais espaço, nem a água
o dá, do que o volume do tronco que está na água. Do mesmo modo como
uma pessoa que caminha ao ar livre não ocupa mais espaço do ar a seu redor,
nem o ar lhe dá mais espaço do que o correspondente a seu tamanho. Dessa
maneira espaço e corpo se correspondem exatamente, parte por parte, semelhan-
Lc a um fabricante de jarros que os calcula, molda e funde.
Por outra, alguma coisa está num lugar de forma diffiwtive, inapreensivel,
se a coisa ou o corpo não está num lugar de forma apreensivel e não se enqua-
dra no espaço do lugar em que se encontra, mas pode tanto ocupar muito co-
mo pouco espaço. Assim, diz-se, que os anjos e os espíritos estão em lugares
ou pontos. Dessa forma um anjo ou um diabo pode estar numa cidade intei-
ra, mas, por outro lado, pode estar num quarto, num baú ou numa lata, ou
:%i& numa casca de noz. O espaço, evidentemente, é físico e apreensivel e tem
siias medidas: comprimento, largura e altura; aquilo, porém, que está dentro
[desse espaço] não tem comprimento, largura e espessura como o espaço em
que está; pelo contrário, não tem coniprimento e largura nenhuma. Assim le-
mos no evangelho que o diabo toma posse das pessoas e entra nelas, e até nos
porcos. Em Mt 8.28~s.'~ está escrito que uma legião inteira deles estava numa
pessoa; foram aproximadamente seis mil diabos. A isso chamo de estar em al-
gum lugar de forma inapreensivel, pois não o podemos apreender nem medir,
como medimos os corpos; não obstante, está naquele lugar. Assim era o cor-
po de Cristo ao sair do túmulo lacrado e chegou a seus discípulos através dc
portas fechadas, corrio rclatam os evangelhos9'. Pois aí não há o que iiicdii
~ i i iapreender para saber onde tenha estado sua cabeça ou seus pés. Qiiariclo
:iiravessou as pedras, que efetivmanete teve que atravessar, não ocupoii iic-
iiliiim espaço e tampouco a pedra lhe ofereceu espaço; pelo contrário, a pcdi.;i
coiitiiiua pedra, inteira e sólida como antes, e seu volume continua do it111i:i
iilio c espessura que tinha antes. Além disso ele podia mostrar-se dc forriia :il1i'r
ciisivel sempre que quisesse, onde ocupava espaço e onde podia sci- iiiciisiii:i~
(li> por scu tamanho. Da mesma forma Cristo pode estar 110 pâo, :iiii(la qiic.
Da Ceia de Cristo - Confissáo
ao mesmo tempo, se possa mostrar de forma apreensível e visível onde quiser;
pois, tal como a pedra lacrada e a porta trancada ficaram intactas e inaltera-
das. ainda que seu corpo estivesse no lugar onde havia somente pedra e madei-
ra, assim está também siniultaneamente onde há soineiite pão e vinho, e onde
o pão e o vinho em si mesnios ficam inalterados e sem transformação.
Em terceiro lugar, algo está em algum lugar de forma repletive, de forma
sobrenatural, quando está inteira e plenamente em todos os lugares, preenchen-
rio todos os espaços, sem que pudesse ser mensurado e apreendido de acordo
com o espaço do lugar onde está. Esse tipo de presença se atribui excliisivatnen-
te a Deus, como diz o profeta Jeremias [23.23]:"Eu sou um Deus de perto, e
não de longe, pois preencho céus e terra", etc. Essa forma, no entanto, é to-
lalmente incompreensível a nosso raciocínio e pode ser assimilada somente pela
1e na Palavra. Contei tudo isso para que se visse que há mais formas de algo
estar presente eni algum lugar do que aquela única apreensivel e corporal, na
qual os fariáticos se baseiam. E a Escritura nos mostra com vigor que o cor-
po de Cristo não precisa estar num lugar somente de forma corpórea e apreen-
sivel, onde toma e dá lugar conforme sua estrutura e tamanho. Pois esteve na
pedra do túmulo sem essa forma apreensível; o mesmo se dá com a porta tran-
i.ada. como eles não podem negar. Se pôde estar ali, serli que se pudesse me-
dir o espaco e o volume de seu tamanho, meu caro, por que não haveria de
cstar dessa forma no pão, sem que se possa definir o tamanho de espaço e lu-
gar? Entretanto, se existe dessa maneira inapreensivel, então se encontra fora
<Ias criaturas corpóreas e não está compreendido e mensurado nelas. Porém,
iliiem pode saber como isso acontece? Quem pode provar que estaria errado
:ilgu&m dizer e achar que, estando fora da criatura. está, eiii todos os casos,
onde bem entende, de modo que todas as criaturas lhe são tão penetráveis e
presentes conio para outro corpo é sua localização e espaço físico?
Observa nossos olhos e nossa vista física. Quando abrimos os olhos, nos-
\:i vista abrange e está presente, no mesmo instante, numa distância de cinco
;i scis milhas e, ao mesmo teiilpo, em todos os lugares no âmbito de seis mi-
Ilias; e é apenas uma vista, um olho. Se uma vista física pode fazer isso, não
:icreditas que o poder de Deus pode achar uma maneira para que todas as cria-
Iiiras sejam presentes e penetráveis ao corpo de Cristo dessa forma? Sim, dizes
iii, com isso não provas que também seja assim. Obrigado. Mas com isso pro-
vo pclo menos o que os fanáticos não podeni refutar e provar que isso seja im-
11<~ssivel ao poder de Deos, coisa que eles deveriam e precisariam provar. De-
vciii provar, repito, que Deus não coniiece uma maneira de acordo com a
i~iinlo corpo de Cristo possa existir de forma diferente do que corpórea e apre-
i.iisívcl. Sc não fizerem isso, seus ensinamentos passam vergonha. No entanto,
i;iiii:~ispodcráo fazê-lo. Todavia, como provamos pela Escritura que o corpo
ilv ('ri\io podc csf;ir cm algum lugar de mais formas do que dessa forinn fisi-
..
i ; \ ,~ ; coiiscgiiiiiios
i dciiioiistrar suficiciiicmente que se dcvc crer i ~ i spal:ivres
ciii scii Icxli~oripiii;il: ''lsi<i C meli corpo". Litiia vcz qiic ~ S S CnZo I corliraria ric-
i i l i i i i i i ;iriig-,i~ clc lc c ;iiiid;i chii cni a c ~ ~ i d
coiii
c ;i liscriiiir;i, visto qiic cl;i kiz
Da Ceia de Cristo - Coi\fissãu

pasFar o corpo de Cristo pela pedra lacrada e pela porta trancada. Uma vez
que conseguimos demonstrar uma maneira além daquela corpórea apreeiisivel,
quem quer ser tão atrevido a ponto de querer medir e delimitar o poder de
Deus, como se ele iião soubesse de outras maneiras mais? De modo que a po-
sição dos fanáticos é insustentável, a não ser que provem que o poder de Deus
possa ser medido e delimitado dessa maneira, já que toda a sua argumentação
se fundamenta na alegação de que o corpo de Cristo só pode estar em um lu-
gar e de maneira corpórea e apreensivel. Só que não tratam de responder, nias
pulam por cima r, ao niesmo tempo, falam de dro.se.
Agora, voltaiido à minha posição: ja que nosso credo susteiita que Cristo
i Deus e homem e que as duas naturezas formam uma só pessoa, de tal mo-
do que essa pessoa não pode ser dividida, ele pode muito bem manifestar-se
pela maneira corpórea e apreensivel onde bem quiser, como fez após a ressur-
reicão e o fará no dia do juizo final. Além dessa maneira, porém, pode valer-
se da forma inapreensivel, como provamos pelo evangelho em relação ao túmu-
I« e i porta trancada. Como, todavia, é um hoinem tal que, de forma sobreria-
i~irai,é tima pessoa coni Deus e que alem desse Iiomem não existe Deus, deve-
\e coiicluir qiie ele está e pode estar também. pela terceira forma - a forma
robrenatural - ein toda parte onde Deus está, e que tudo esta repleto de Cris-
111 inclusive seguiido a humanidade. Isso não pelo primeiro modo, a iiianeira
iisica e apreensível, mas pela maneira sobrentural e divina. Nesse ponto deves
ficar firme e dizer que, segundo sua divindade, Cristo é uma pessoa natural
divina onde quer que esteja, e que está ali também de modo natural e pessoal,
coiiio o prova sua coiicepçâo no ventre materno. Pois, para ser Filho de Deus,
iciia que estar de forina natural e pessoal tio ventre materno e toriiar-se ho-
iiieiii. Agora, se está de fornin natural e pessoal onde quer que esteja, eritâu
deve também ser homem, pois iião ~ ã diias o pessoas distintas, mas uma só pes-
ma. Onde ela esta, ali ela é a pessoa úiuca e indivisivel. E onde puderes dizer:
;iqui está Deus, ali deves dizer, então, Cristo, o homem, também está presente.
Se me mostrasses um lugar onde estivesse Deus e não o homem, a pessoa
iú estaria dividida, porque então eu poderia dizer com toda razão: Aqui está
I)cos que não é homem e nunca foi homem. Mas não me vem com esse Deus.
I'uis disso decorreria que espaço e lugar estão dividindo a pessoa, quando riciii
;i iiiorte e todos os demônios conseguiram separar r dividi-la, e me ficaria i i i i i
( 'ris10 iiiiserável que seria, ao iiiesmo tempo. pessoa divina e humaria suiiicii-
i c L.ni uni uiiico lugar, e em todos os deniais lugarei deveria ser um Deiis scp:i--
i;ido e pessoa divina sem humanidade. Nào, companheiro, ondc inc c<~loc;is
I >cii\, lens que colocar tainbém a humanidade. Os dois não periiiiiciii yiic \i'
i;iiii iipartados ou separados. Fez-se uma só pessoa e ela não se desfaz <I;i ii;itii.
i.i./ii Iiiiiriana, como mestre João tira sei] casaco e o põe de lado qiiarido vili doriiiir.
Voii dar um exemplo simples para o honicin comuiii. A iinliircz:i 1iiiiii:iii;1
i.\l:i iii:iis intimainciitc ligada a L>eos do que iiosiu pele ii c:iriic. ;!ti. iii;ii\ (111
~ I I C<.orlio e iiliiia. Iln<liiniit« <i Iioiiiciii vive c <: \;ulio. pclc c c;iriic Iiciii coiiiii
C . < ~ I I I C I :tIiiv,i %%I I ~ I I Y C \O
I <ois.i c )icssti;i <11icii;io ~io~lciii
?c! ~ c ~ x i ~ i l't4cj
~I;i~.
Da Ceia dc Crino - Confissão
contrário, onde está a alma, também tem que estar o corpo; onde estiver a car-
ne, há de estar também a pele. Não se podem indicar lugares ou espaços espe-
ciais onde esteja somente a alma sem o corpo, como iiiiolo sem casca, ou a
carne sem a pele, como uma ervillia sem vagem. Pelo contrário, onde está
uma, a outra também tem que estar. Assim também não podes descascar a
humanidade da divindade e colocá-la [em algum lugar] onde não esteja tam-
bém a humanidade. Pois com isso estarias dividindo a pessoa e fazendo da na-
tureza uma vagem ou então um casaco que a natureza divina veste e despe con-
forme o lugar e espaço. Dessa maneira o espaço fisico teria aqui o poder de
dividir n pessoa divina, que neni os anjos nem todas as criaturas conseguem dividir.
Aqui dirás com Nicodemos: "Como pode suceder isso?" [Jo 3.9.1 Será
que todos os lugares e espaços se tornarão um só lugar e espaço? (como aliás
esse espírito estúpido sonha em sua grosseira mentira carnal) ou será que a na-
tureza humana de Cristo se estenderá e dilatará como uma pele sobre toda-a
criatura? Respondo: Aqui deves tirar os sapatos velhos, conio fez Moisés [Ex
3.51, e renascer como Nicodemos. Segundo tua antiga mentalidade, que não
percebe outra senão a primeira forma física apreensivel, nada compreenderás,
como acontece com os fanáticos. Eles não conseguem imaginar outra coisa se-
não que a divindade esteja em toda parte de forma física e apreensivel, corno
se Deus fosse uma enorme coisa estendida, que penetra e cobre todas as criatu-
ras. Toma nota disso, porque nos acusam de estendermos e dilatarmos a natu-
reza humana e que com isso cercamos a natureza divina. Essas palavras falam
claramente sobre a forma corporal e apreensível, como um agricultor que es-
tá metido em camisa e calça que lhe cobrem o corpo e as pernas. Arreda-te
com essas idéias idiotas, estúpido espirito fanático! Se não és capaz de um ra-
ciocínio mais elevado e diferente nesse essunto, então fica atrás do fogão, as-
sando peras e maçãs e deixa esse assunto em paz. Se Cristo passou com seu
corpo por portas trancadas, sein que se dilatasse a porta ou seu corpo encolhes-
se, como, então, aqui a humanidade poderia ser estendida e cercada a divinda-
de, já que se trata de um modo muito diferente e mais elevado?
É coisa por demais elevada, dizes tu, e eu não o entendo. Pois eu também
lamento que esses espíritos carnais, que mal conseguem arrastar-se pelo chão,
sem comprova$ão na fé e inexperientes em coisas espirituais, querem voar nas
alturas sobre as iiuvens e avaliar e mensurar essas coisas elevadas, misteriosas
c incompreensiveis, iião pela palavra de Deus, mas de acordo caiu seu ratejar
c camiiihar lia terra. Sucede-lhes então o que os poetas contam a respeito de
lcaro". Pois também eles roubaram penas estranhas (isso é, passagens da Es-
critura) e as fixaram com cera (isso é, adaptaram-nas racionalmente a sua men-
iiilidadc) c assim voam para o alto. A cera, porém, se derrete e eles caem no
iiiei- e se afogam em todo tipo de equivoco, etc. Cristo diz: "Se tratando dc
coisas terrcnas não rne credes, como crerieis se vos falasse das celestiais?"
Ua Ceia de Çvirio - Caiifiss;io

[Jo 3.12.1 Ve que isso tudo ainda é coisa terrena e corporal, qiiando o corpo
de Cristo atravessa a pedra e a porta. Não ohstante, nenhuma razão pode com-
preender como seu corpo e a pedra podem estar no mesmo lugar ao mesino
tempo, e, quando ele a atravessa, a pedra não fica inaior e mais dilatada, e o
corpo de Cristo não fica meiior e encolhido. Aqui a fé tem que obcecar a ra-
zão e ergiiê-la do nível corporal apreensivel para o nível inapreensível, que ela
não compreende e que, mesmo assim, não pode negar.
Se a outra maneira tem que ser compreendida através da fé e sucumbir a
razão com sua primeira maneira apreensivel, quanto mais a fé tem que estar
sozinha neste caso, e perecer a razão na maneira celestial e sobrenatural, on-
de o corpo de Cristo é uma só pessoa com Deus lia natureza diviiia? Pois qual-
quer um há de admitir que é uiii niodo muito diferente e mais elevado, quan-
do Cristo está na pedra lacrada e na porta trancada, do que qiiando, segundo
o primeiro modo, está em sua roupa ou sentado ou parado no ar que o envol-
ve. E que aqui ar e roupa se dilatam e cedem conforrne o tamanho de seu cor-
po, que os olhos podem ver e as mãos podem tocar. Isso, porém, não aconte-
cc na pedra ou na porta. Mais ainda: qualquer um Iiá de admitir que é uin
inodo muito rnais elevado quarido o corpo de Cristo se constitui em uma só
pessoa com Deus, d o que quarido eitá na pedra oii na porta. Pois Deus não
C algo corporal, mas uni espirito acima de todas as coisas. De fato, Cristo não
i. unia pessoa com a pedra e a porta, como o é coin Deus. Por isso tem que
csiar mais e de forma mais profunda na divindade do que está na pedra e na
porta. como, por outro lado. está mais profunda e intimamente na pedra c
ria porra do que na roupa ou no ar. E assim como a pedra e a porta não tive-
ram que se estender ou dilatar. nem cercar o corpo de Cristo, muito menoi
iiqui. no niorio mais elevado, a riatureza humana se dilata, se estende ou redii/.
n divindade, como o espírito carnal sonha.
Pois csse espírito tem que responder e confessar que o corpo de Cristo teni
iiiiia essência muito superior e sobrenatural quando é uma só pessoa coni
1)eus. do que aquela que possuía quando estava na pedra e na porta Irancada,
visto que é o modo e assência mais elevada, não podendo haver nada superior
cI11 que quando um homem se torna uma pessoa com Deus. A outra maneir:!.
:iq~iilaein que o corpo de Cristo estava na pedra, será coiiiuiii a todos os soii~
irls tio ceii. de modo que com seu corpo possam atravessar qiiiilquer criatiiiii.
coiiio asora já é próprio dos anjos e dos demônios. Pois de acordo coni Ai
12.7, o anjo veio a Pedra no cárcere. Do mesmo modo os niaus espíritos [>ciic-
I i i i i i i diariarnente nos qiiartos e dormitórios. Alein disso, tem quc adiniiir qiic
:i ~ ~ i c l n8o r a se dilatou nem taiiipouco envolveu o corpo de Cristo. Por qiii' ri1
i:io iiivciita a respeito da suprerna essência, do niais alto modo, «iiclc ('iislo i.
I I I I I : ~ pessoa com Deus, que ali a naturem Iiiirpana irve qiie sc c\tciiclcr c cci
<.:ir :i I>ciis. quando devevia estar com Deiis cin toda parlc? ( ' i ~ i i i isso icvrl:i
rliic. ciii sciis coiiceitos riidci. g«rd«s c grossi)s, i;iiii:iis ~pciisoii~ l cI>ciis r <I<.
( ' I islo (lc lbrin:i difcrciiic <lo qiic rios tcriiios ~Inqiiclc~iiiiiiciiuiiio(Io ci~il~,ii;il
c ;il~icciii\cl.Mcii c:iiir. I;iiiio IIi/ sc ;I i i ; i I i i i ~ ~ / : i l i i ~ i i i ; i i i ; i rsl:í riii i i i i i oii <.iii
De Ceia de Cristo - Confis\:,o

todos os lugares, ela iião cerca a divindade e' tampouco como a pedra, quc
estava em determinado Iiigar, cercou seu corpo. Pelo contrário, ela é uina pes-
soa com Deus, de inodo que onde está Deus, está também o homem. Isso sig-
nifica que o que Deus faz o homem também o fez. Significa que o que sofre
o Iiomem, também Deus o sofre.
De fornia que o corpo único de Cristo tem três niodos de ser, ou eiitão,
três maneiras de se fazer presente eni algum lugar.
Pririiriro: a nianeira apreeiisível corporal, do modo como andou fisicaiiieii-
te pelo mundo, qiiaiido ocupava e preenchia espago de acordo coni siia estatu-
ra. Essa maneira ele aiiida usa quando quer. como o fez depois da rcsrurrei-
*o e o fará iio dia do juizo final, conforme diz Paulo em 1 Tin 6.15: "...aos
qiiais o bendito Deiis revelará sua manifestação", etc., e em C1 3.4: "Quan-
do Cristo, que é a vossa vida, se manifestas". Nesse modo ele 1150. está em
Deus ou coni o Pai no céu, como o espírito louco sonha. Pois Deus não 6
iini espaço ou lugar físico. A isso se referem as passagens aduzidas pelos espi-
ritualistas e que dizem que Cristo deixa o mundo e vai ao Paiw, etc.
I
Seglirido: a maneira iriapreeiisivel, espiritual, é aquela na qual não ocupa
iiem cede espaço, iiias atravessa todas as criatiiras, quando quer, tal como mi-
l ilha visão (para usar uma comparação grosseira) atravessa o LU,luz ou água,
1 iiias existe sem ocupar iiein ceder espaço. Como iim ruído ou um som qiie atra-
\,rssa o ar, a água, a tábua e a parede, nias existe, sem, no entanto, ocupar
ou ceder espaco. Da inesnia forma como luz e calor atravessam o ar, a ágiia.
i i vidro, cristais e outros, no entanto existem sem dar neni tomar espaço; e ou-
tros mais. Essa nianeira ele usou quando saiu do tíimulo lacrado e passou pc-
In porta trancada, e no pão e no vinho da Santa Ceia, e coiiio se crê quarido
nasceu de sua mãe, etc.
Em terceiro Iiignr: o modo divino e celestial, no qual é uma só pessoa coni
I>eus, segundo a qud, evidentemente, todas as criaturas lhe deve111 ser muito
I iiiais penetráveis e presentes do que o sáo coiiforme o segundo iiiodo. Pois,
c pelo segundo modo pode estar nas criaturas e com elas, de inodo que nãn
r i sentem, tocaiii, medem nem apreendem, quanto mais há de estar em tod:is
;i\ criaturas de forma maravilhosa segiiiido esse terceiro inodo, de tal maneira
qiic o não possani medir liem apreender, mas que, muito antes, ele as teiiliii
liicsciites, meça e apreenda'? Pois é preciso colocar esse [modo de ser] de Cri\-
io, pelo qual é uma pessoa coni Deus, bem longe, fora das criaturas, tão Iori-
13.cquanto Dcus esii Fora delas. Por outro lado, deves colocá-la tão fiindo c111
~o<l:isas criaturas e perto delas, como Deus está nelas. Pois ele é iiiiia pciso:i
iiiilivisivcl com Deus. Onde está Deus, ele tein que estar também, sen'a» nms:i
I<.c\t;i cir:id;r. Quem. todavia, vai querer dizer ou pensar como isso siiccclc?
S;ihciiios pcileitainentc que é assim, quc cle está em Dcus c fora dc teclas :i$
~~ii;itiii-:is.
c yuc i: iinia pessoa com Deiis. Náo sahemos, porém. coiiio isso sii
1121 Ceia de Cristo - Coiilisrâo
cede. Isso está acinia da natureza e da razão, até dos anjos do cku. Apenas
Deus o sabe e conhece. Visto qiie nós o desconhecemos, mas, não obstaiite, e
verdade, não devemos negar sua palavra até que saibamos provar coin certe-
za que, sob nenhuma Iiipútsse, o corpo de Cristo pode estar onde está Deus e
qiie esse iiiodo de ser e falso. É isso que os faiiáticos devein provar. No eiitan-
to, não o faiPo.
Não quero ter negado aqui que Deus ainda tem e coiiliece outras manei-
ras para qiie o corpo de Cristo esteja em algum lugar. Apenas queria mostrar
quão grosseiros e idiotas são nossos fanáticos, quando não adinitem que o cor-
po de Cristo possa existir de outra foriiia além da primeira, a apreensivel. Se
bsrii que sequer consrgiiem provar que esta seja contra riossa iiiterpretação.
Pois de forma alguina pretendo iiegnr que o poder de Deus não seja capaz de
fazer com que iim corpo possa estar simultaneamente em muitos lugares de
forma corporal e apreensivel. Pois quem haveria de provar que Deus não é ca-
paz disso? Quem jamais viu o limite de seu poder? Os fanáticos, evidentemen-
ie, pensam que Deus não pode fazer isso. Quem, no entanto, vrii acreditar
cni suas idéias? Em que se fundamentam seus raciocínios? Se hasta raciocinar,
tanihém quero lazé-10, e melhor do que eles, e dizer: mesmo que o corpo de
Cristo estivesse em dererniiiiado lugar no céu (coino eles inventam), airida as-
sim todas as criaturas podeni estar a sua frente e a seu redor, como tini ar cla-
ro e transparente. Coiiio já disse: um espirito vê, passa e escuta atravks de
iirna parede de ferro tão clara e làcilinente como eu escuto e enxergo através
CIO ai- e do vidro. E o que é compacto e escuro para nossa visão, como a ma-
clcira. a pedra e o nietal, isso para um espírito é coino vidro. até como ar cla-
ro, como beiii o provam os duendes e os anjos, e coiiio Cristo o provou na
pedra lacrada e na porta trancada.
É verdade qiie vi cristais e pedras preciosas que têm lá dentro algo como
iirna faisca ou chama, como na opala, ou uma nuvenzinha ou bolhaziiiha.
No entanto, essa bolhazinha ou nuveiizinha brilha como se estivesse em todos
os cantos da pedra, pois, para onde quer que se vire ou direcione a pedra, vê-
sc a bolha como se estivesse na superfície da pedra, quando, na verdade, está
I I C I centro. Agora não estou raciocinando com a Escritura. Temos que pensar,
i111 ciitão dar razão aos fanáticos. Se Cristo estivesse também no centro de to-
<I;i\ tis criaturas em I~igardeterminado, como a bolliazinha ou a faisca no cris-
i ; i I , c me fosse indicado iim lugar da criação onde o pão e o vinho riie fosse
ol'ciccido pela Palavra, da mesma forma como me foi colocado diante dos
iillios i11n lugar do cristal, por acaso não poderia dizer: Vè, aqui o corpo de
('risio cstá verdadeiraiiieiite no pão, exatamente como eu digo: Olha, a faísca
ciii I~crnna superficis do cristal? Não achas que Deus pode apresentar, de for-
i i i ; i IICIII mais maravilhosa e verdadeira, o corpo de Cristo rio pão (mesuio quc
i.~iiv~~sse c111dçieiminado lugar no céii) do que se me apicreiita a faisca no cris-
i:iI? N;io pciisu qiic iixo seja bem nssiin, mas penso qiie ii.io scja impossivcl ;i
I )ciih. Ilipo isso p;ii;i pir~liorcioiiersi)\ hiiáticos algo p;ii;i n)iiih;rr c iiilcrprc-
I;ii. vr~iclo,c01110C 1lc SLYI rciiio. A o I I I C S I I I ~tctiipri,
~ rio c~iI;iiilo,t:iiiih~~ii
1i;ii;i
Ila Ceia de Cristo - Confissão

fazer tais coisas com o rosto e o espelho, que uma face pode estar simui~auea-
mentre em mil pedaços ou espelhos, por que não procederia assim com o cor-
po único de Cristo? que não somente sua imagem, mas ele próprio esteja em
muitos lugares ao mesmo tempo, ainda que esteja no céu em determninado lu-
gar, uma vez que seu corpo entra com mais facilidade no pão e no vinho do
que um rosto no espelho, visto que também atravessa pedra e ferro, que ne-
nhum rosto ou imagem podem atravessar.
Ah, que papista ambíguo! irão gritar aqui. Pois que grite quem quiser;
com gritaria não se dá resposta nem se refuta alguma coisa; do contrário, os
gansos, os burros e camponeses bêbados também seriam teólogos. Aliás, não
vi sequer uma coisa do papa que os fanáticos, esses grandes Rolandos In1 e gi-
gantes, tivessem conseguido derrubar e que Ihes permitisse vangloriar-se tanto
contra os papistas. Rosnaram um pouco contra os pobres objetos de madeira
e pedra, as estátuas, mas não morderam. Agora atacam o Batismo e a Santa
Ceia, mas por enquanto nada conseguiram. Sei também que aqui poderiam
responder: as imagens no espelho não são o próprio rosto mas sua cópia, co-
mo pão e vinho são o simbolo do corpo do Senhor. Por isso tal exemplo fala-
ria mais a seu favor do que contra. Por outro lado, também sei muito bem
que pão e vinho não são iguais ao corpo de Cristo, como a imagem do espe-
lho é igual ao rosto. Por isso meu exemplo insiste no seguinte: se Deus pode
produzir, no mesmo instante, tantas imagens de um rosto no espelho, e se tal
coisa maravilhosa acontece naturalmente e de forma visível, então deve ser
muito mais crive1 que possa fazer com que o corpo de Cristo realmente possa
estar em muitos lugares no pão e no vinho, ainda que se encontre em determi-
nado lugar físico, como eles sonham. Com isso quero mostrar, portanto, que
é vã sua opinião, que pode conceber somente essa uma forma apreensível dc
Cristo. E mesmo que isso fosse verdade, ainda assim não resultaria disso o
que eles querem concluir. Muito antes, se conclui o contrário, porque o cor-
po de Cristo não está no céu desta maneira corporal e apreensível, nem tam-
pouco podem provar que esteja dessa maneira no céu.
Agora, este espírito devaneia contra mim: se o corpo de Cristo é para cs-
lar em toda parte onde Deus está, eu me tornaria um marcionitaio2e estaria

101 Cf. acima n. 64.


102 Mnrcionita - adepto de Marcião, natural de Sinope, na Ásia Menor, talvez expiilso &i cuiiiii
nidade natal por seu pai acusado de heresia. Diigiu-se a Koma (antes de 140) iindc dc\i~ivi,l
veii sua doutrina. Em 144 foi excomungado. A partir de entáo comeco" a propagar 5ii;i ~ t < > v ; i
ili>utrina c constituiu sua própia igreja, que logo se tornou um perigo sério para a Igrcki (';ilii
lica. I>eve ter falecido por volta de 160. Sua doiitrina se caracteriza por iiriliiioiuis!~ii> c i i ~ i icr;i
gevadti pauliiiismo: Evangelho em oposiçâo A Lei; amor iniiidc>r coiitra jiis1ic;i ~iii~iiliv;i; 1iiI;il
icjciçái, i10 AT e cliiniiiac3o de i<iilo\ os Iracos de jiid;iiniiio do Nl'. c, qiiç c, Icvi>it ii rl;ili<>i;ii
ii~ii c:irii,iie ~ieolcsrairieiitsriopr0liri0, coriipi>sl<is<i por lcnlc,r <]iico>iiri<lcr;iv:i]p:iiiliiii,\. Alii
iiii,ii iini :ilil;ip,iiiiin?ii, ccilic i>I>ciis iIi> Kl'. ii <Iciiiii~rg<i, i. i>Ileiia <I<, N'I'. <iI l r i ! ~i l < i ; i t i l < t i

1 ' r i s i i ~ ;i li>rrrt:! # l > < ) < l i ! lcnl q11i< ) I>L.,~\ LI<> iut><!rsr rvvrli! I N ~ I L
corpc
~ itlli8rr1llr. ~PIII !b:l\<.i!n<.i~
Da Ceia de Cnsto - Confiss.'ii>
inventando um Cristo, porque seu corpo não poderia ser tão grande, nem se
dilatar tanto que abrangesse a divindade que está em toda parte, etc. Respon-
do: Primeiro, talvez esse espírito estivesse dizendo isso por que sente cócega
demais ou por travessura; porque não prova que é esta a consequência de mi-
nha afirmação. Por isso não dou importância a essa conversa fiada. Por o[~-
tra, ele sabe muito bem que alegar algo inconveniente não significa refutar os
argumentos. Se bastasse alguém dizer que algo não está rimando, então não
snsbsistiria um só artigo de fé nem uma lei sequer no mundo. Mas esse espiri-
to orgulhoso e arrogante está presumindo que, dizendo que não está rimando,
e que haveria esta ou aquela consequência, terá que ser assim, sem necessida-
de de comprovação. Em terceiro lugar, ele revela com isso seus grosseiros pen-
samentos de idiota que não conseguem conceber outra forma de Deus estar
em todos os lugares, senão que Deus seja um ser grande e amplo, que enche
o mundo e sobressai acima dele, tal como um colchão que está cheio de palha
e as sobras aparecem em cima e embaixo, exatamente conforme a primeira for-
ma. a forma aoreensivel. Desse modo evidentemente o corvo de Cristo se tor-
naria puro fantasma e invenção, como um enorme colchão de palha, no qual
Deus estaria dentro com o céu e a terra. Não seria isso falar e pensar de Deus
de modo assaz grosseiro? Nós, porém, não falamos assim. Pelo contrário, afir-
mamos que Deus não é um ser estendido, comprido, largo, grosso, alto e fun-
I do, mas um ser sobrenatural e inexplorável, que está, ao mesmo tempo, inteira-

~ mente em qualquer grãozinho e, não obstante, em todas as criaturas, acima e


além de todas as criaturas. Por isso aqui não há necessidade de delimitação,
como esse espirito sonha, porque um corpo é demasiadamente espaçoso para
1
I
:i divindade, a ponto de poder abrigar milhares de divindades. Por outra, é tão
apertado que não pode abrigar divindade nenhuma. Nada é tão pequeno que
Ilcus não seja menor ainda; nada é tão grande que Deus não seja maior; na-
da é tão curto que Deus não seja mais curto; nada é tão comprido que Deus
iiào seja mais comprido; nada é tão largo que Deus não seja mais largo; na-
<Ia é tão fino que Deus não seja mais fino ainda, e assim por diante. Ele i:
i i i i i ser inefável, acima e além de tudo que se possa citar.
A isso, porém, esse espírito deveria responder: primeiro, com que abona-
pio bíblica ou por que razão pode provar que o corpo de Cristo não tem ou-
ii.ns nianeiras de estar em algum lugar do que a corporal-apreensível, conio
11:iIli:t no colchão ou pão na cesta e carne na panela, especialmente depois qiic
provci que tem outras maneiras, como aquela da pedra tumular, etc. Além dis-
so. 11iic "a direita de Deus" seja um lugar especial no céu. Que está acoiiteccii-
ilo qiic esse espírito permanece tão calado a este respeito onde há máxima ric-
~.i.ssiclodede falar? Já que silencia a este respeito, perdeu a cansa, nnra vc~.

iii. n b i i i i r :i<liillo,c i ~ u clilicrtoii iis rcriiidos do pcidcr <I<i deiniiirgo e ii.i rcs~.,li,ii iI;i cci;ic;iii (li.
:,;~\II;NI:~ ~i c~cr!~,.,
I ' c I ~ O c~l i t ! t ~~ ~~ >~ rclc ~ clcscida :ao i n l ' c r ~ ~c crcss,1vrci~3<>.
~ A lgrcj:t M ; t ~ c i < w i
i:, \i. i.;ii:ii.irri,<~ii I p i t i i i i i i celib;ii<i iii:i>i.oso ç ti>i;iI :~l>'iiir~Cc~cii~ W Y I I : ~ , ;I\CCSC L. <li\l><l\ivi~oI>:LI;I
I, lllil,li,i<,.
Da Ceia de Cristo - Caiifisr5u

que sua fé se baseia nesta questão: y corpo de Cristo não pode ter outra ina-
tieira de estar no céu do que a maneira local, conio palha no colchão, coisa
que sobejamente demonstrei ser errado. Aqui ele deveria ser inteligente e pro-
var isso; mas, como é que pode? Ele se afundou demais na lama e não conse-
gue mais sair.
Em segundo lugar, esse espírito deveria responder o seguinte: visto que
Cristo é Deus e homem e que sua natureza humana se tornou uma pessoa com
Deus, sendo completamente inteirada em Deus sobre todas as criaturas, de
modo que está como que colocado nele - conio é possível que Deus esteja
ein alguma parte onde não fosse homem? e como poderia acontecer, sem divi-
são da pessoa, que Deus pudesse estar aqui sem natureza humana, e ali com
ela? uma vez que não temos dois deuses, mas um sO Deus, sendo ele totalmen-
te homem de acordo com uma pessoa, qual seja, o Filho. Que há que de res-
to ele conversa muito, mas aqui, onde seria preciso [falar], silencia e passa por
alto? Se Deus e o homem são uma pessoa e as duas naturezas estão unidas
de forma mais intima do que corpo e alma, então Cristo também deve ser ho-
mem onde ele é Deus. Se num Iiigar ele é Deus e homem, por que não haveria
de ser homem e Deos em outro (lugar]? E se no segundo lugar for homem e
» e u , por que não o seria, ao mesmo tempo, num terceiro, quarto e quinto
lugar, etc., e em toda parte? Porque, se o terceiro, quarto, quinto lugar não
lhe permitem ser homem e Deus ao mesmo tempo, tampouco o primeiro lugar
original lhe permite ser homem e Deus simultaneaniente. Pois, se ponto e Iii-
gar podem dividir a pessoa, o primeiro o fará tanto quanto todos os outros.
A isso deveria ter respondido; nisso insisti quando mostrei que Deus e homem
sâo lima pessoa e que, conseqüentemente, Cristo adquiriu uma essência e ma-
neira de ser sobrenatural para estar em todos os lugares.
Se qiiisermos ser cristãos e pensar e falar adequadamente de Cristo, tere-
rnos que pensar que a divindade está fora e aciina de todas as criat~iras.Por
outra, temos que perisar que a natureza humana (ainda que também seja uma
criatura), posto que somente ela e nenhuma outra está colada a Deus de nio-
do que forma uma pessoa com a divindade, também tem que estar acima e
;ilcm de todas as criaturas, tanto pela natureza humana quanto pela divina.
Aqui entramos com a natureza humana num mundo diferente do que quan-
do andava pela terra, isso é, fora e além de todas as criaturas, somente na di-
vindade. Deixemos que a fé julgue a esse respeito e tire as conclusões. Fora
iI;is criaturas nada há senão Deus; esta natureza humana, portanto, também
015 fora das criaturas; assim ela tem que estar onde esta Deus; qiianto a isso
ii;io Iiá erro. Quanto à essência, não pode ser Deus; como, porém, está aciriia
(Ic todas as criaturas, atinge e adere ao Deus essencial, e está onde Dcus csti,
clii ;to menos tem que ser Deus quanto a pessoa e estar em qualquer lugar OII-
(Ic I>cus eslá.
Verdade é quc ncstc ponto nossa razão se faz de ignoraiilc, poi-qnc cl;i cs.-
I.,
a . . .
.i~osLotiinda a ciitcndcr ;I palavririha "cin" soiiiciitc I]« sentido corpo~ilc
: i ] ) ~ ~ ~ c ~ ~coiiio
~ s í v;ic piilt~ii
I, qiic cslh i i o colcl15o c o p5o II:I ccsl;~.l'or isso, ~ I I ; I I I -
Da Ceia de Cristo - Confissdu
-
do ouve que Deus está nisso ou naquilo, ela raciocina sempre em termos dc
colchão de palha ou cesta de pão. A fé, porém, percebe que, neste caso, o
"em" significa o mesmo que acima, fora de, abaixo, através, ao contrário e
em toda parte. Ora, por que falo de coisas tão elevada$, que na verdade são
inefáveis, desnecessárias para o homem comum, para o fanático, no entanto,
inúteis e até prejudiciais? De qualquer modo eles o entendem tanto quanto o
burro entende o Saltério; somente podem separar, por exemplo, uma partezi-
nha que blasfeiiiam e desonram para se li\,rarem da questão priiicipal e pula-
reiii por cima dela, conio Zwinglio se besteia aqui e deduz de minha argumen-
Lação que, se Cristo está eiii toda parte, não pode ser recebido com a boca, a
iião ser que a boca também estivesse em toda parte. Isso se chama de malda-
de travessa, em que o próprio diabo póe as mangas de fora. Por isso vou pa-
rar por aqui de falar dessas coisas. Quem aceita conselho terá o suficiente.
Quem não quer, no entanto, que fique na dele. Ao homem simples bastam as
simples palavras de Cristo que ele pronuncia na Santa Ceia: "Isto é meu cor-
po", porque os fanáticos não consegiiem aduzir nada de siibstancial e consis-
icnte contra isso, nem tampouco respondem a uma só questão de maneira cor-
reta. Pois, quem for achado em um só fundamento podre nessa questão inl-
~iortarite,merece ser suspeito e evitado, especialmetite porque são orgulhosos
c se vangloriam com segurança de que teriam base bíhlica e estaria tudo certo.
Ouatito mais não se deve tê-los por arrogantes espíritos fanáticos, facciosos e
cri-ados, visto que se encontram em base fraca não apenas num ponto, mas
i<o-somente em fundamentos fracos? pelo que também mentem tantas vezes
riii público e não respondem corretamente a nenhuma questão.
Daqui em diante especialmeiite Zwinglio não merece que se lhe responda,
:i iicio ser qiie se retrate de suas blasfemas aleoses, pois, como se costuma di-
/ci, um mentiroso notório não merece resposta. Da mesma fornia deve ser evi-
i:iilo como notório herege quem nega um artigo comum da fé. Zwinglio, rio
~.tiliit~l«. não nega apenas esse irnportantissimo e sunianiente necessário artigo
i l i . iluc "o Filho de Deus morrcu por nós",mas ainda blasfema e afirma que
i: ; i iiiais horrenda heresia que já apareceu. E a isso que o conduz sua fantasia
r :i iiialdita aleose, que divide a pessoa de Cristo e não deixa outro Cristo do
i l i i i . iiiii puro homem que teria morrido por nós e nos teria redimido. Qual é
i ~ i ;ic'.io
i cristão que pode ouvir e suportar isso? Pois com isso estaria extin-
i:i i. ~.i>iideiiada toda a fé cristã, bem como a bem-aventuratiça de todo mun-
i l i i . I'ois, qiiein foi redimido apenas por uma natureza hiimana, certamente

:iiitil:i i120 está rcdimido e jamais o será. Agora, porém, não há teinpo nem
< ' \ I ~ ; I ( ' < I 1 1 ; i ~ i tratar disso. Confesso de minha parte que considero Zwinglio
IIIII :lu i\l:i(~, com toda sua doutrina, pois não deferids corretamente nenhum

; l i i i l ' , ~(I;! fi. cristã c se tornou sete vezes pior do que quando era papista, con-
l i r i iiic i i i i / i ~ dc Cristo em Mt 9 [sc. Mt 12.451: "Tal tipo de gente se torna pior
(10 i ~ i i i 'ci;i ;iiilcs". Faço csta confissão para me eximir de culpa perante Deus
o iiiiiiiilo. coiiio qiictn iião coinpartilha os ensinamentos de Zwínglio e ja-
III:II<, CIIIVI ~ ~ ~ ~ ~ i ~ ~ ~ ~ ~ r l i l l i ; Í - l o s .
Da Crie de Criato - Confirrão

Eiri resumo, neste ponto não adirutimos qualquer aleosz, helerore ou ;to-
~ o i i a ' ~ ou
' , qualquer ourra trapaça que Zwitiglio tire de seu saco de ii~ágico.
Queremos argumento a paitir da Escritura, e não a arte de sua fantasia. Não
nos importa também que se enfurece e espuma tão horrivelmente nesse assun-
to, como se estivesse possesso de grande ira. Não será com ira e fúria que nos
tirará nossa interpretação. Esse espirito furioso iião conseguirá convencer-nos
de que o corpo de Cristo não possa estar simultaneamente no céu e na Saiita
Ceia, como dizem as palavras: "Isto é meu corpo". Talvez seja por grande rai-
va, ou então por soprema nioderação que abandona esse assunto, passando
depressa a nos eiisiiiar novos tropos sem qualquer necessidade. Ele conclui e
deduz que, se minha tese prevalecesse - a de que o corpo de Cristo está em
toda parte onde está Deus - o corpo de Crisro seria um alterurn infim'tum,
uma coisa incomeiisurável como o próprio Deus, etc. Se não estivesse cego de
raiva, ele próprio poderia ver que não é essa a conseqiiência. Visto que o pró-
prio mundo não é infinito e infindável, como eiitão se deveria deduzir que o
corpo de Cristo é infinito por estar em toda parte? De resto, esse espirito ce-
go faz essa dedução de acordo com o modo grosseiro e apreensivel, enquanto
sabemos que Deus dispõe de niais de iun modo de fazer algo estar em difereri-
tes lugares, como ficou provado acima. Um anjo pode estar, ao mesnio tem-
po, no céu e na terra, como Cristo mostra etii Mt 18.10: "Seus anjos vêem in-
cessaiitemente a face do Pai iio céu". Quando nos servem, estão conosco na
terra e, iiicsmo assim, vêem constantemente a face do Pai iio céu. Apesar dis-
so, não são infinitos ou de natureza infinita.
Esse espírito grosseiro ainda não sabe o que sigriifica "estar no céu", mas
pretende definir conclusões nesse assunto. Quando eu disse que Cristo estava
rio céu quando ainda andava sobre a terra, como coiista em João 8.13: "O
Filtio do homem que esta tio du", etc., meu Deus, por que tem que fazer de-
duções ai e faiitasiar dizendo: Como poderia Cristo ter estado no céu naquele
momento? Por acaso também se come e bebe no céu? No céu taiiibéni se so-
fre e se morre? No céu também se dorme e descansa? Vè onde vais parar, Lu-
tero louco! Que nojo! - Que achas desta vitória do espírito? Com isso con-
quistou Constantinopla e devorou os turcos. Aí seu saco de inagia começa n
pular de tantas aleoses e ilopoii,isiN. Mas vai-te. diabo bonito! Uiii bom cris-
tão que me diga se iião e algo mais elevado e maior a natureza humana csiar
em Deus, que inclusive seja uma pessoa com Deus, do que o fato de estar tio
céu? Acaso não é Deus rnais elevado e maravilhoso do que o céu? Ora, dcsdc
o ventre materno a natureza humana de Cristo esteve mais alta e iiiais profiiii-
damente em Deus e diante dele do que qualquer anjo. Pois o q u i crih c111

103 Segunda a definiqão dc Zwinglio. iri>poiia significa a alril>uiq.'ii, dc uiii ri>sli~iiicr<iiiiiiiii.i # \ : #


d3 rluando alguém impiiia a iiiii;i pc*bi,;i i ~ n ic~rfilci.qiic <%\;i
~ i à o~ p i > \ r i i i ii;iliiin:i." 1 Irli.
IO~C'' = i l l ~ i > b ~ .
IIU (' 1 ' . [ a , ;~nIczi<br.
Da Cda de Cristo - Conrirr;i<i
Deus e diante de Deus está no céu, assim como os anjos, embora estejam n;i
tcrra, coino consta em Mt 18.10, a iiienos que o próprio Deus ainda não estc-
ja iio céu. Assiiii tambein eu poderia coiicliiir e fantasiar da arte de Zwinglio:
será que se conie e bebe na divindade? Será qiie se sofre e inorre na divinda-
de? Vê onde acalias, João Evangelista louco, que nos queres ensinar que Cris-
ia é Deus e que está na divindade! Pois, se com Deus não há sofrimento c
iiiorte, nem comer e beber, a natureza humana de Cristo não pode estar coiii
Ileus, muito menos pode ser uma pessoa com Deus. A isso eu queria chegar
(diz o diabo) com minha fantasmagoria, mas til, Lutero inimigo, me arraiiccih
i>fundo do saco de inagicas.
Portanto, se Crislo pode sofrer e morrer ao inesmo tempo na terra, ;iiii.
ila que esteja ria divindade e seja uiiia só pessoa com Deiis, porque não havc-
rio de poder sofrer, muito antes, na terra, ainda que esteja, ao mesino teriilio.
iio céu? Se o céii o impedisse, muito mais o impediria a divindade. Efetivamcii.
ic, sc eu dissesse que não somente Cristo estava no céu enquanto andava II:I
icrra, mas também os apóstolos e nós todos que na terra somos mortais, n:i
iiicdida em que cremos em Cristo, que barulho isso provocuia no saco de mii-
18,ic:i de Zwínglio. Ai ele iria deduzir e coiicliiir: Será que iio céu também sc
l~cca?No céu tambrm se erra? O diabo tambkm tenta no céu? O mundo tarn-
I~i.iiinos persegue no céu? Carne e sangue também nos provocam no ceu? E
<n~iiras mais. Pois pecamos e erramos sem parar, como no-lo ensina o Pai-No$-
\ti: "Perdoa-nos as iiossas dividas", e somos constaiiteinente tentados pelo dia-
I r i ~ , pclo mundo e pela carne. Desta maneira colocarias o diabo e o mundo,
(tiiiie e sangue no céu. Vê onda acabas, Lutero louco! Qiie vergonha! - Sc
.iiiiil;i iião compreendeste que nosso espirito é mágico, agora o tens! Que farci
t . i ) i i i ele? São Paulo me seduziu quando disse em Ef 1.3: "Deus nos leiii abeii-
~.c~;icIo com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais". E ainda iio
~;iiiiiiilo2.5s.: "...ele nos deu a vida juntamente com Cristo, e juntamente coiii
VI<, iios ressuscitou e nos fez assentar nos lugares celestiais juntamente com elc".
I ' riii C1 3.3 ele diz que "nossa vida está oculta juntamente com Criao ciii
I >,.iis"; isso, claro. tein que ser no céu.
Náo obstante, esse espirito pode invocar aqui seu saco de mágicas, p;ii-;i
I I I I C Ilic Iorneca uma ;~lsosr ou itopoiiaiu"qiie aqui nos ensinem permutar c IO.
iii:ii iiiii:i coisa pela outra, de fornia que céu aqui quer dizer terra, coriio ciii
I,! (q.51~~. iambkni diz que a carne de Cristo significa sua divindatlc. P<ii\ :I
.ilc~isi.C iiicstra na Escritura, e onde 116s não queremos acreditar algo clc IIO-
Ia, ii:i iiiilior coiii deduções e dizer afinal: não estamos no Monte das Olivcii-;i\
~ i < . i i i<I;ili ascendemos ao céu, mas estanios aqui em terras da Alemanha. 1'i)r
i..,.t, o i t i i cIc I'aiilo iciii que significar tanto como terra. I'ois esse espírito cli:!
1 i i . i ili. i C i i soiiiciilc o c~iicpode mostrar coiii »s dedos c vcr coin os ollir>\ ;ici-

I I I . ~ <lilc,ii~iclcci1;io sol c liia. E visto que os iiiesiiios jamais paiiiiii, :iclio i~iic
1);) Ceia de Cristo - Confissão
atribuem a Cristo um lugar no céu onde jamais pode sentar tranqüilo. Pois
iião consigo imaginar e descobrir qual é o lugar que dão a Cristo no céu. Mas,
deixa que se vá o que não nos interessa.
Em resposta à minha citação de C1 3 [sc. 2.91: "Toda a plenitude da divin-
dade habita corporalmente em Cristo", ele não consegue responder mais do
que: "corporalmente" significa "essencialmente", como se Cristo não tivesse
sido essencialmente Deus antes que [toda a plenitude da divindade] habitasse
corporalmente em Cristo. Que bonito que esse espírito pode dar a interpreta-
ção que quer e não precisa prová-la. O mesmo sucede com a passagem de Ef
4.10: "Cristo desceu e subiu acima de lodos os céus, para preencher todas as
coisas". Aqui ele chama "preencher" de "cumprir a Sagrada Escritura", e ou-
ira vez rejubila contra o Lutero louco, como se tivesse destroçado o inferno.
Mas trazer provas, isso não é necessário. Basta que o tal espírito assim o diga.
Isso é resposta suficiente para mostrar que nossa interpretação está errada.
Mas aí ele se dá mal de vez com o Lutero, quando demonstra sua arte de
argumentar na palavra de Cristo: "Onde eu estou, quero que estejais vós tam-
Ihtni" [Jo 12.261. Vê, diz ele, se Cristo está em toda parte, também nós temos
1111cestar em toda parte. Eu me admiro que não deduz também o seguinte: co-
iiio cstamos onde Cristo está, nós todos temos que também ser Deus e homem,
p«is Cristo está [em toda parte] porque é Deus e homem. Igualmente, Cristo
iiiravessou a pedra lacrada e a porta trancada, portanto, também nós devemos
;iiravessá-Ias. Ou, Cristo está em nós de forma espiritual, por isso também nós
iciiios que estar espiritualmente em nós, etc. Por outro lado, talvez queira de-
~liizir:nós não podemos estar onde Cristo está, pois assim como não é possí-
vcl que muitos corpos estejam no mesmo lugar, também é impossível que um
corpo esteja em muitos lugares. Já que Cristo ocupa um lugar específico no
cCii (como afirmam), cada um deve também ter seu lugar especifico. Como a
Iiiissagem: "Onde eu estou, quero que estejais vós também" [Jo 12.261 contra-
ria a Escritura e a fé, se fosse entendida ao pé da letra, a senhora aleose ou
Iicl~~rose ou então a simplória figura da " b o b o ~ e "deve
~ ~ servir de madrinha
c iios guiar para a correta interpretação. Por acaso, não sou capaz de racioci-
i i i i r também nos termos de suas deduções?
Agora, uma porca não é uma pomba, e o cuco não é um sabiá. O orgli-
Ilioso diabo opera na Escritura como bem entende, e com semelhante lanias..
iii;igoria sinaliza que, não podendo dar resposta, quer zombar de nós. Sahc-
iiioh, porem, que a Escritura coloca à direita de Deus esse único homem c iic.
i i l i i i i i i inais. Embora estejamos onde ele está, pelo primeiro ou segundo iiio.
ilir, corno mostrado acima, não estaremos do terceiro modo onde clc csiii, oii
sciii, :i direita de Deus, uma só pessoa com Deus, forma pcla qual csti oiiclc
Ociis csti. De fato, como ele está em toda parte, nós taiiibérii cstaiiios oii<lc
<.Iri~st;i,~ioisdcveráestar conosco, uma vez quccstá em lod;~pni-ic. Isso o cliíiiio
Da Ceia de Cristo - Confissáo

das conclusões deveria ter derrubado. Ele, porém, mistura tudo e não quer sa-
ber de outra coisa do que da maneira apreensível; por isso não consegue saber
absolutamente nada, e nem ele mesmo entende o que está fantasiando. Isso
basta quanto à primeira parte principal. Pois das supracitadas afirmações e res-
postas desse espirito qualquer um pode ver que toda sua ciência consiste em
muita conversa e gritaria, enquanto jamais respondem e nada compreendem.
E quanto mais citam a Escritura, mais revelam sua tolice. Queremos agora tra-
tar também daquela outra passagem : "A carne para nada aproveita" [Jo 6.631
e ouvir se o diabo quer responder ou zombarIo7.
Em primeiro lugar, escrevi que a "carne de Cristo" não se relaciona com
a expressão de Jo 3.6: "O que é nascido da carne é carne", mas a esta: "o
que é nascido do Espírito é espírito". E isso eu havia provado de modo con-
tundente a partir de nossa fé e do Evangelho onde o anjo fala a José em Mt
2 [sc.1.20]: "O que foi gerado de Maria é do Espírito Santo". E em Lc 1.35:
"O que há de nascer de ti é santo", etc. Contra estes trovões da Escritura ele
nada mais faz do que contrapor sua pura e simples baboseira, dizendo que a
carne de Cristo nasceu de carne e que eu estaria cometendo um equivoco ao
l'azer disso puro espirito. Isso é a mesma coisa (pelo que eu entendo) como se
0 orgulhoso diabo quisesse dizer: Miserável e louco Lutero, será que devo res-
ponder-te e refutar teus argumentos? Seria até uma boa. Digo que a carne de
Cristo nasceu de carne; aceita isso e não contesta com uma só palavra. Decer-
io eu deveria dizer: Perdão, cavalheiro, o que vós dizeis está certo e não care-
ce de comprovação. Isso caso me importasse tão pouco com o assunto como
c s e espírito, o qual, quando se sente atingido por mim, ou pula, ou fica ira-
do, ou gagueja uma ou duas palavras pela metade e chama a isso de resposta.
Entrptanto, sabemos que "carne de Cristo" não se relaciona com a expres-
s a ~ "O : que nasceu da carne é carne", ainda que fosse dez vezes uma máxi-
i i i a ou que quinze aleoses tivessem aí suas bancas de câmbio. Não importa
que seja uma máxima, porque nessa passagem Cristo fala do novo nascimen-
to e condena o velho nascimento carnal, posto que não pode ver o reino de
l)cus, etc. Por isso seja anátema e maldito onde se diz que a carne de Cristo
iitisceu da carne, visto que a carne de Cristo não está condenada, nem teve
q ~ i cnascer de novo para o reino de Deus, mas é santa e nos trouxe o novo
ii:iscimento. Quem leva esse espirito a escola e lhe ensina o que significa car-
iic c Espírito? Pois ele chama de carne a criatura que não é espirito, assim co-
tiio foi feita por Deus, como Cristo diz em Lc 24.39: um espirito não tem car-
iic c osso. Como seria possível que com essa mentalidade pudesse compreen-
dei- ;is passagens de Jo 3.3 e semelhantes, onde carne e sangue são condenados?
Visio que sabemos que todas as criaturas de Deus são boas (Gn 1.31) e que
I)ciis não condena sua criação. Desse modo, evidentemente, carne e sangue
(li. ('iisio procedem da carne e do sangue de Maria; como, porém, em Jo 3.3
Da Ceia dc Cristo - Confissão

carne e sangue são condeiiados como os que não podem reconhecer o reino
de Deus, certamente não podem ser chanindos criatura de Deus no sentido de
carne, osso, pele, cabelo. Pois tudo isso é boa criatura de Deus.
Conseqiientemeiite, carne aqui náo pode significar apenas sangue, osso,
medula, como é criada por Deus, mas como ela é sem Espirito, em seu pró-
prio poder, obra, uso, inteligência, vontade e capacidade; portanto. onde a car-
11s procede segundo sua própria inteligência e força em coisas diviiias, ai ela
iião vale nada, mas está condenada. Por isso Cristo não quis iiascer do esper-
iiia do hoiiiem, para que iião fosse nascido da carne, isso é, por obra, prazer,
vontade e cooperação da carne, mas tão-somente da força e do efeito do Espi-
rito Santo. Sua carne, portanto, é puro de espírito, pura santidade, pureza to-
t d . Pois que pode a santidade, pureza e iiiocência ser além espirito e puro es-
pírito? Nossos fanáticos, porém, cliainam de espirito apenas um ser que n,io
tem carne e osso; por isso para eles santidade, pureza e inocência não são espi-
rito. Eles são uns idiotas grosseiros e ignoraiites nessas coisas. Querem ensinar
muita coisa e não enteridem as palavras que usam. Em Jo 3 Cristo chama de
csliírito todos os que nasceram do Espírito e que, evidentemente. têiii qiie pos-
siiir carne, osso, medula, pele, cabelo; disso escrevi o suficiente no Livro aiite-
~ior"'~. No entaiito, ainda que o escrevesse mil vezes, meus queridos cavalhei-
ros fanáticos não o leriam e respeitariam. Por isso não me ocupo iiiais com eles.
Esse espírito me imputa três grandes errosiM eni relação as palavras: "A
carne para nada aproveita". Ouçamos, então, e vejamos como o diabo raivo-
!,oiiiventa mentiras venenosas através de seus fanáticos miseráveis e obcecados.
O priineiro [erro] é que eu estaria contradizendo a mim mesmo porque,
vcz por outra, teria ensinado que o comer corporalmente do corpo de Cristo
iião seria de proveito; mas que aqui estaria ensinando que do comer o corpo
clc Cristo seria de proveito. Meus livros estão aí, e através deles se pode coii-
vcrrçer esse espirito mentiroso de qiie ele está agindo conio t de se esperar dc
iiin aluno desse tipo. Meu caro, de que adiantaria se eu escrevesse contra essc
cspirito eternamente, uma vez que ele se empenha eni operar com mentiras pú-
I~licase desavergonhadas? Deixa esse diabo! Eu ensinei e continuo ensinando:
:I carne de Cristo não só não é de proveito mas até veneno e morte quando
li11 comida sem fé e Palavra. Disse até mais: que Deus e o Espírito Santo são
v~,rdadciroveneno e iriorte e de nenliiim valor onde forem recehidos sem .?i
I'ois cstá escrito: "Para os impuros nada é puro" (Tt 1.15) e também SI 18.26:
"('oiii o perverso és perverso". Pois os judeus iião se tornaram santos qiiaii-
clc) ziiacaram a Cristo e o mataram. Por outro lado, porém, o coiiier da cririic
<Ic Cristo é bein-aventurado, necessário e proveitoso quando coniido coiii ;i
1';il;ivra c a fé. Pois está escrito: "Para o puro tudo é puro"[T~ 1.15). I.? iucii
Dn Cria dc Cririo - Confissão
livro e hás de ver que esse espirito mentiroso não soube responder, e por isso
quer lançar suspeitas sobre meu livro com mentiras grosseiras e torpes.
Até uma criança de sete anos é capaz de compreender que essas duas afir-
mações não coiiflitam: comer a casne de Cristo corporalmente sem fé não tem
proveito, e comer a carne de Cristo corporalmente com fé é de proveito. Co-
nio também, que essas duas não se contradizem: a cariie de Cristo não é de
proveito para os ateus, e: carne de Cristo é de provei10 para os pios, como ex-
pliquei sobejamente em meu último livro; tia fé até a morte e todos os males
sào de proveito, quanto mais a carne de Cristo que em si mesma é saiita e pro-
veitosa, cheia de divindade, etc. Mesmo assim o espirito iiientiroso calunia pu-
blicamente afirmando que eu teria dito que a carne de Cristo seria proveitosa
quando ingerida sein fé, como alardeia com seus exeiiiplos. Pois o contato não
foi eni vão quando a mulher enferma tocoii a bainha do monto de Cristouo.
Ou então teríamos que dizer que ela nào tocou o manto de Cristo, porque o
contato de nada aproveita. Olha só como inventam coisas: comer a carne de
Cristo de nada aproveita, por isso sua carne não está aí. É safadeza do diabo.
O segundo erro de que me aciisa"' é que eu não teria traduzido correta-
mente o texto: "Cariie para nada aproveita" [Jo 6.631, porque rio grego esta-
ria escrito: "A cariie para nada aproveita", e que eu teria omitido a paiavri-
ilha "a". Nio sei por que esse espirito trata de tais sandices, se bem que ima-
gino que queira transformar-se com passe de riiAgica na praça e enfeitiçar as
Ipcssoas, para que admirem o grande conhecimento da língua grega ein sua ca-
heça, visto não ter esquecido lá muita coisa dela. Se sabe que esta conversa
cin nada contribui para a questão, então se trata de brincadeira de mau gosto;
i c não o sabe, entfio é sinal de que ainda precisa de um professor por algum
iciiipo. Pois nos dois especialistas eiii latiin, alemão e grego teremos que reco-
iiliecer que o texto 'hr sarx ouk ophelei oiidtii" no latim deve ser traduzido
por: "caro iion prodest qujcquuni", isso é, "carne para nada aproveita"; no
Itilim não pode estar ali o "a", coiiio aliás também E r a s n ~ o "e~todos os on-
li-os o traduzem. Depois, os alemães têm que me atestar que pelo uso e costu-
iiic muito comum de nossa língua, tanto faz colocar um "a" ou um "uma",
i i i i então omiti-lo, como, por exeinplo: "Homem e mulher sáo um corpo" é
:I iiicsma coisa que: "um homem e uma mullier são um corpo". Na verdade,

. .. . .. ...-.....
W i , k lll,66,
I II X~vi,~gli,s
I I > Ih~ri<lCiioDiiiiiio, de Roterdá (1469-1536).o maior reprcsenlante do huoianAmo crisftio. mem-
Iiici <Ia <'iingrccaçáodos Cóiiegos de Sanio Agostinlia (desde 1488, aproxirnidamente). Em
1716 [piililiciiii ciii Ua5ilCia (Suica) a primeira edição do Novo Testamento em lirigua grega. Foi
<.iiiihi<lcr;iilo imir bcils iniiniiios como Lima csoécic de areciirror ou. durante aleuni
. temno.. . até
v i i ~ i i i ~~;icii<l.iiio
i dc 1,iireio.Em setembro dc 1517 foi coiivocado como professor para a Univer-
\iil;i<lc (Ir I . i i u ; i i i i ; i . 1'ar;i ,vã<>ser. obrigado n sccvir à Iii<,uisi~ão, mikdou~sede lá para nasileia
llf?,ll. l k l?21J I515 \,ivcu CLII 1:rihurKu (Alcct~;!t~l~:!~. t ~ Basiltia.
R ~ l e c c CI?I

27')
Da Ceia de Cristc - Confissão

é expressão mais culta dizer: "Homem e mulher são um corpo" do que: "Um
homem e uma mulher são um corpo". Da mesma forma: "Pedro tem casa e
lar, mulher e filho em Betsaida" é o mesmo que: "Pedro teni uma casa e um
lar, uma mulher e um filho em Betsaicla". Ou ainda: "Senhor e servo são a
inesma coisa" é o mesmo que: "O senhor e o servo são a mesma coisa". Ou
então: "Ele me deu cacliorro por cachorro, cavalo por égua", que vem a ser
o mesmo que: "Ele me deu uiii cacliorro por um cachorro, um cavalo por
uma égua". Mais ainda: "Mulher não é para ser chefe na caia" é o mesmo
que dizer: "uma mulher", ou então "a mulher não é para ser o chefe ou um
chefe na casa".
Muitas expressões semelhantes podem ser encontradas na língua alemã; a
estas palavrinhas, que se pode omitir ou acrescentar, os eruditos chamam de
artigos; no latim não existem. Não há regras e normas certas que estabeleçam
quLmdoserão oinitidos ou acrescentados; isso deve ficar por conta do uso ge-
ral da liiigua. Pois às vezes soa mellior quando são oniitidos, como é o caso
quando falo de duas coisas iguais: "É homem contra hoiiiern". Isso soa me-
lhor que se dissesse: "É um homem contra um homem". Do mesmo modo,
quando se diz: "Pedaço por pedaço, olho por olho, punho por punho, moe-
da por moeda, corpo por corpo". Nesse tipo de discurso é melhor que os arti-
gos sejam omitidos do que colocados. Por outro lado, as vezes é bem mais bo-
riiio que sejam usados do que omitidos, como, por exemplo: "Um homem é
iiiais forte do que iiiiia mulher", ou: "O Iiomem é mais forte do que a mu-
Il~cr", ainda qiie o significado seria o mesmo que dizer: "Homem é mais for-
ic que mulher": mas assim não soa bem. "O Zwinglio i pior que o Ecolampá-
dio" soa mel1101 que: "Zwinglio é pior que E~olampádio""~."Um apóstolo
L: superior a um profeta" soa melhor do que: "Apóstolo é superior a profeta".
Acontece que nós alemães muitas vezes temos que colocar esses artigos
qiic no grego não constam, como, por exemplo em Mt 1.1: "Biblos geneseos",
cic., quer dizer: "Livro nascimento de Jesus Cristo". Isso não faz sentido,
[por isso tenho que traduzir: "O livro do iiascimento", etc., ou melhor ainda:
"1:ste é o livro do naicimento de Jesus Cristo". Do mesmo modo: "José fez
ciiiiio lhe ordenara o anjo do Senhor". No grego não consta o artigo "do",
iii;is sin~plesmente:"o anjo de Senhor". Em nossa língua, porém, tem que coiis-
] . . 1:
.i]. '~mbéme111 Mt 3.3.; Mc 1.3 e Lc 3.4 temos que dizer: "Uma voz" ou "o
viv/ do que clama no deserto", quando no-grego simplesmente consta ' ' / i ) r i ~ .
I~~ioirlos", etc., isso é, "voz de clamante'. As vezes não devemos colocar arii-
ll,o quando no grego consta: "Abraão gerou Isaque", conformc Mt 1.2; iio
1:icgo cstá escrito: "Abraão gerou o Isaque". Igualmente: "Eniaiiucl, isio I'
ii;icliizido Deus conosco". Aqui no grego cstá escrito: "O Deus corisoa>". I'e
!:;i i]Novo Testamento em grego e o compara com o alerii30, c dcscobrii.6~11 qiii
Da Ceia de Cristo - Confissão
digo: que lá muitas vezes constam artigos que no alemão não precisam constar,
e outros que no grego não constam, mas que no alemão têm que constar.
Digo isso para que se compreenda como Zwiuglio opera com invenções e
que faz essa conversa sem fundamento a base de seii equivoco. Pois se o arri-
go fosse tão necessário e indicasse que foi dito algo especial ou deduzido do
anterior, como ele bobeia, então, com certeza, ele deveria constar em Mc 1.3,
onde o autor diz: "Voz de clamante", ainda mais que se trata de uma voz e
de um arauto especial, como nunca linha vindo ao mundo. Do mesmo modo
deveria constar em J o 1.6, onde escreve: "Houve um homem enviado por
Deus". Acontece que no grego não está escrito: "Houve um homem enviado",
mas, sim: "Houve homem enviado". Conseqüentemente Zwínglio ainda vai
ter que estudar grego por cinco anos, antes que prove seu sonho dos artigos,
ou antes que indique onde devem ser omitidos ou acrescentados. Não conhe-
ço outra prova além do fato de que a mesma coisa pode ser dita (como foi
dito) sem artigo e com artigo, dando o mesmo sentido. No entanto, uma [for-
ma] é mais completa e mais elegante do que a outra, o que se deve reconhecer
pelo costume e uso da linguagem.
O mesmo também acontece em nosso caso: "Carne para nada aproveita",
quando no grego consta: "A carne para nada aproveita"; como, porém, uma
versão significa tanto quanto a outra, de acordo com o que acima provei com
exemplos, e como qualquer um pode achar exemplos semelhantes em abundân-
cia no grego, usei ambas as formas e pretendo usá-las futuramente, porque as
duas são certas, ainda que rebente a barriga desse espírito. Se bem que no ale-
mão: "Carne para nada aproveita" soe melhor do que: "A carne para nada
aproveita", a opinião de Cristo vai no sentido de dizer: carne não ajuda, ou
carne é uma coisa ineficiente. Essa idéia podes expressar então assim: "Carne
para nada aproveita", ou: "A carne para nada aproveita", valendo uma for-
ina tanto quanto a outra. Do contrário, os latinos jamais poderiam ter ou rece-
ber esse texto, uma vez que eles têm que dizer, sem qualquer artigo: "Carne
para nada aproveita", e assim mesmo possuem uma tradução correta. O fato
de Zwínglio invocar alguns professoresu4 que ensinam isso dos artigos, de na-
da vai lhe adiantar. Pois neste ponto não ensinam como Zrrínglio, de modo
que seu testemunho não prova nada. De resto, não é sua opinião séria, pois
1130os tem por tão eruditos que o possam aconselhar e ajudar nessa questão.
Agora, ele não se contenta com esses sofismas dos artigos, mas continua
c interpreta o "a" da expressão: "A carne para nada aproveita" da seguinte

1I.i /ivii,gli,\ Wuke 111.87: Il;<von~ i u nalie giiediisci~erilerei vji gcsagt habend, besundci Cyiilli~s,
( i i i i d iu uiireni zyie~iEia«nus
'lir.v,vnloi~~ii\ - (Do que miiilo falaram tados os pais gicgcih,
<,h(~~r.i;ili$w!.liic<'iriJ<~e Cria<istomo, e. cri! nossos dias, Erasmo). - C/rilo, patriarca de Alçn;ir>-
illki. ii<i I:,[:iio (<lcsdc412). iii. 444. - .lo;;io, apelidado dc ('ri,~ó,sromo(dcsdc o sCc. VI), 345-407.
Ihihl~i~,lc ( 'i>ri\l;itiiiiiolil:i (?<JX). cil;iilc> (404). hrilli;iiilc prcx:idoi <Ia Igicj:i Ali1ig;i <lc liiigii;i gic
i::, l.,;i\iiii>. v. I , . 112.
Da Leia ilc Crido - Confissão

forma: exatamente esta carne de nada aproveita, de modo que "a" e "exata-
mente esta" teriam o mesmo significado, pretendendo torcer a opinião de Cris-
to li» seguinte sentido: "Exataiiiente esta carne" (lembra o que eu disse aci-
lua: "Minha carne é verdadeira comida" [Jo 6.551). Todavia, o mundo todo
sabe que no alemão eben das - "exatamente esta" não é um artigo, mas um
bom e reforçado pronome que é relativo e demonstrativo ao mesmo tempo,
no latim o idem. Aqui os eruditos entendem muito bem que grosseira burrice
é fazer do artigo um pronome demonstrativo. Assim se pretende ensinar ao
Lutero a traduzir o texto. Que se pode fazer com tais espíritos blasfemos, que
tomam "que" por "tal como", artigo por pronome, "carne" por "divinda-
de", e fazerti com a Escritura tudo que conseguem imaginar? Se ele aprendeu
isso de Cirilo, Ci-isóstomo e Erasmo"' a respeito dos artigos, eiitão ele os leu
eni sonho ou na chaminé, pois nenhum deles ensina assim. Ele os acusa falsamente.
Meu caro, há uma grande diferença entre "A carne para nada aproveita"
e "Esta carne para nada aproveita", ou então: "Exataniente esta carne". Ou
ainda: "Aquela carne" ..., etc. Pois "exatamente esta", ou "esta", ou "aquela"
não podem ser omitidos sem mudança de sentido. Quando digo: "O homem
deve ser chefe na casa e não a mulher", não me reporto a determinado homem
ou mulher presentes, mas estou falando de forma genérica de todos os ho-
mens e de todas as mulheres. Mas qnando digo: "Este ou exatamente este ho-
mem deve ser chefe e não esta ou precisamente aquela mulher". estou me re-
]portando a iirii homem especifico e a Liina mulher especifica, sob exclusão de
iodos os outros. Pois pronome é isto: ele indica algo específico como presen-
ic, e separa de todos os outros. Um artigo, porém, não indica nada de especí-
lico ou presente, nem separa de outros; fala de forma geral, sem mostrar e in-
dicar, como quando se diz: "Este homem é devoto, esta mulher é casta, este
p"io é bonito". Aqui a linguagem indica para pessoas determunadas como pre-
sentes, e se aqui se omitissem tais pronomes ou partículas e se dissesse: "Ho-
iiiem é devoto, mulher é casta", não haveria mais o sentido e o entendimento
que havia acima. Se, porém, eu digo: "O homem deve ser homem, a mulhcr
deve ser mulher", posso dispensar os artigos e, mesmo assim, preservar o sen-
lido: "Hoineni deve ser homem, ~iiulherdeve ser mulher", pois o artigo não
iiidica nem especifica nada, como faz o pronome.
Esse espírito tem que reconhecer que na frase: "A carne para nada apro-
\.cil:i" não há pronome mas iirn artigo. Mas ele, não obstante, faz disso uni
Iiioiiome - não somente na tradução, quando diz que "a" significaria o iiics-
iiio qiie "exatamente esta", mas também na interpretação quando diz quc iics-
( ; i passagem "exatamente esta carne" estaria se referindo aqucla [carne] (11.
qiic Cristo falou acima: "Minha carne é verdadeira comida" [Jo 6.551. ('OIII
isso clc prova pessoalmente que falsifica a palavra de Deus e trava :I gente siiii
iplch dc rorina dolosa. Pois um artigo nunca fala de algiima coisa tiiilcriiri- < > t i
I específica, como uin pronome, mas [fala] das coisas livremente, de forma
genérica, de modo que pode ser compreendido da niesriia forma do que quaii-
do formulado sein artigo, mesmo que não soe bem e bonito. Por isso é grama-
Da Ceia de Cristo - CoiifissSo

ticalmente iinpossivel que aqui "carne" possa significar especificamente ''a car-
ne de Cristo", da qual falou acima, mas tein que significar "carne" de for-
ma genérica, de modo que disso se pode falar também sem artigo, ou seja:
"Carne para nada aproveita".
Tal diferença entre pronome e artigo nós alemães também distinguimos
no tom ou na intoiiação, que os latinos chamam de tônica. Pois é um "das"
bem diferente quando Cristo diz: "Das ist rneiri LeiD", ou quando afirma:
"Das Flejsch ist kein r~iitze""~.O primeiro "das" 5 um pronome [equivalente
3 "este" ou a "isto" eni português] e a letra "a" tern pronúncia forte e lon-
ga, conio se fosse escrito "dahas", do modo como se pronuncia o "daas" da
Suábia ou do Aigau. Quem o ouve tem a impressão de que ali há uni dedo in-
dicador. O outro "da,s" soa átono, de modo que quase não se ouve a letra
"a", ou não se sabe direito se é um "a", ui11 "e" ou um "i", e não h$ nada
a indicar, de modo que soa como as vogais átonas dos boêmios quando dizem
"przikasani". Não consegues distinguir se dizem "parzikasani" ou "perzikasa-
ni" ou ainda "pir~ikasani""~,tão curta é a pronúncia. É o mesmo quando
um alemão diz: "U'ie ist das Korn so thewr""? não consegues distinguir direi-
to se ele disse "das", "des" ou "dis", pois soa como se a palavra não tivesse
vogal: "Wie ist d,~koiliso thewr", ou ainda: "\Vir istds Korn so thewr", tão
curta e rápida é a pronúncia. O que estou dizendo aqui a respeito do "das"
deve valer tanibéin para os artigos tais como "dir, die, das, den, <Inii": quan-
do prolongaiii a vogal, como se houvesse duas, são pronomes. Quando são
átonos, como se a letra do meio sumisse, são artigos, como quando dizes:
"Dfrau, Dherr, dskind, dshaus" [a mulher, o senhor, a criança, a casa]; quan-
do são de pronúncia rápida e superficial, trata-se de artigos e não são indicativos.
A partir disso qualquer alemão pode entender essa questão polêmica e no-
tar a safadeza e malícia desse espírito. Pois em Jo 6: "Das ist mein Fleisch"
[Isto é minha carne]""ele faz um "dahas" suábio longo, ou um pronome, quari-
do na verdade é uni artigo e um "das" átono, e no alemão de fato se proiiiin-
<ia: "D,sfleisch ist keiri nutz", ou "Sfleisch ist kein autz" [A carne para nada
;iproveita], como se estivesse apenas a letra "s" na frente. Aqui tens de for-
iiia definitiva e clara o texto de Jo 6 e o que são artigos e qual sua fiinção.

l l ( t N;i lingiia alemã, das pode ser artigo (neutra) ou pronome demonstrativo. Na casa da priinei-
li-avç:
i;, "ljas ;si mein Leib", das é pronome dernonrlrativo: "isto é meu corpo". N o aiw
<I;i iigiin<lnfrasc: "D;isFIeisch ist kein nülze", das 6 artigo (neutro): "a carne paninadii iilivovci1;i"
-
l l i ,'i/ik;i.v;iiii "ni~n<lanieiito", na lingiia boêmia antiga.
11s "\Vi? i.~t<$s Koill s 0 I ~ u c I " .(ortogriltiil atiiali7acla) -= Canio o ceiileio é carci.
11'1 N i vriil;i<lc, 1,iilciii sc eng:iiioii ria citaçlo. A rcici?iici:i hihliczi cil;i ccrl:i. iti;ir <ilcri<i c 4
cii;i<I<>: <li,vi,ii:i \c\: "I1:ic I:lr~i\ili hl keiii iiiii," ( A catt>c ) p : t ~ $ tn:td:i :\provvil:t).
Agora decide entre mim e Zwinglio, para ver quem entende alemão. Zwiiiglio
afirriia que o texto quer dizer: "Exatamente esta carne para nada aproveita",
ou então: "Esta carne para nada aproveita". Quem está falsificando o texto?
Querii é tão grosseiro que não sinta grande diferença quando se diz: "Sfleisch
ist krin nutze" [A carne para nada aproveita], ou então: "Dasselbige Fleisch
ist krin nutze" [esta carne para nada aproveita]? Entendes mais ou menos a
manobra desse espírito safado? Ademais, quando numa passagem digo: "Car-
ne para nada aproveita", e em outra: "A carne para nada aproveita", qual é
a diferença, meu caro? Uma [expressão] é de pronúiicia diferente da outra, o
sentido, porém, é o mesmo. É como digo: o espirito tem que fazer muita con-
versa fiada para impressionar as pessoas de que de fato estaria respondendo,
para que, eiitrementes, não se notem seus saltos e sua volubilidade.
Depois ele volta ao assunto com seriedadeL2"e quer provar, a partir do tex-
to de Jo 6.63, que Cristo estaria ralando de sua carne, quando diz: "Carne
para nada aproveita". Escutemos, pois, sua sabedoria.
Primeiro (diz ele), os discipulos inuriiiiiraram porque Cristo ensinava que
deveriam comer sua carne. Entretanto, eles não murmuraram contra a interpre-
tação espiritual, mas contra o comer ~iiaterialmente.Ai é que está. Dize-me,
amigo, prova isso que a carne de Cristo para nada aproveita? ou então, que
esse texto se refere a carne de Cristo? Claro, na lógica de Zwínglio se deduz
qualqiier coisa, como ele quer. Na verdade, c' uma coisa chata tratar da pala-
vra de Deus com tais malandros. Nós afirmamos que os discípulos murmura-
ram contra ambas as coisas, contra a interpretação espiritual e contra comer
a carne de Cristo materialmente, porque não entendiam direito nenhuma das
duas coisas. Pensavam que tinham que dilacerar sua carne com os dentes, co-
mo qualquer outra carne perecível. Disso, porém, ainda não se deduz que a
carne de Cristo, como carne espiritual imperecível, não possa ser comida mate-
rialmente em fé, na Santa Ceia. É isso que esse espirito deveria refutar. Em lu-
gar disso nos eiisina que os discípulos haviam entendido qiie deviam comer a
carne de Cristo materialmenle, como se não subéssenios isso sem seu magis-
tral concurso. Ele evita a resposta sempre que pode.
Em segundo lugar ele nos ensina que os discipulos se escandalizaram coiii
cssas palavras de Cristo sobre o comer de siia carne materialmente; disso have-
ria de se concluir que, com sua resposta, Cristo estaria falando decididamcnlc
de sua carne. Por que essa conclusão? Porq~icZwínglio o diz, e isso basta!
Conio se Cristo não pudesse falar de outra carne, quando quer ensinar o enlcii-
dimento espiritual sobre o comer de sua carne. Ele não poderia ter ensinado
mais adequadamente do que falando de duas carnes e ensinando duas foriu:ts
clc comer, dizendo: Carne e sangue não vos permitem entender este coiiicr clc
minha carne. Porque aquela carne para nada aproveita, mas esta carne c :i vi.
da. Porqiie a única e melhor maneira de ensinar é distinguir c dcfiiiir c«iicl:i
Da Ceia de Cristo - Confissão
mente. Por isso deve-se coricluir, pelo contrário, que a expressão "carne para
nada aproveita" deve ser relacionada a outra carne que Cristo distingue e con-
trapõe a sua carne, coiiio todos os bons professores costumani fazer, quando
ensinam da melhor maneira.
Terceiro: Cristo diz: "Se virdes o Filho do homem subir para o lugar on-
de primeiro estava" [Jo 6.621. Não consigo imaginar o que ele pretende com
isso, se bem que a esse espirito tudo que cospe tem que servir para suas menti-
ras. Talvez queira cantar a conhecida canção: "Cristo sobe ao céu"12i, por is-
so seu corpo não poderia estar na Santa Ceia para ser comido. A que esse pa-
lavrório leva foi explicado suficieiitemente mais acima. Que queira, poréiii, pro-
var que a expressão "carne para nada aproveita" estivesse falando da carne
de Cristo é uma lógica bonita e iiiiia bela dedução. É como se eu dissesse:
"Cristo subiu ao céu", por isso a afirmação a respeito de seu corpo deve ser
entendida assim: "Todo homein é iiientiroso" [SI 116.111. Isso não rima e eii-
caixa bonito? Em dialeto suiço se chama a isso de derrotar a Lutero a ponto
de não sobrar um lansquenete, como esse espírito se va~igloria~~'.
Quarto: "O espirito i que vivifica" [Jo 6.63; cf. 2 Co 3.61. Aí está, sucin-
to e preciso, diz ele. Da afirmação se concluiria: se apenas o espirito vivifica,
a carne de Cristo nada vale, pois ela não é espirito. A isso temos que respon-
der: Visto que a carne de Cristo não é espírito e, por isso, para nada aprovei-
ta, posto que someiite o espirito tem valor, como então pode ter proveito sc
foi dada por nós? Como pode ter proveito se está no céu e se nós crermos nis-
so? Se for correto e suficiente o argumento de que a carne de Cristo para na-
da aproveita por não ser espirito, então não poderá aproveitar para nada neni
lia cruz nem no céu. Pois tainpouco é espírito na cruz e no céu quanto o L:
iia Santa Ceia. Como, porem, n3o foi um espírito que foi crucificado por nós,
:I carne de Cristo foi crucificada por nós inutilmente. E, como não foi uni c-
pírito que subiu ao céu, mas a cariie de Cristo, cremos numa carne sein valor
I:i no céu. Pois, onde quer que esteja, a carne de Cristo não é espirito. Por
sii;~vez, se não for espirito, de nada aproveita,e não dá a vida, como Zwínglio
i.<iiiclui.Olha só :ioiide o diabo quer chcgar! E uma linda nialieira de prodii/ii
~ i i i ~ cortina
ii de furnqa para os olhos.
Quinto: "As palavras que eu vos tenho dito são espirito e são vida" [.li)
0.031. Disso ele deduz que Cristo estava falando de sua carne quaiido disse:
"í ':iriic para nada aproveita". Que linda dedução, igual a outra açiiiia! Parc-
cc qiic, de tanta presunção, esse espírito pensa que não há gente na terra, O I ~
i ciiiisidcra todas as pessoas gansos e gralhas. Do contrário, como seria possivcl
i~iicrossc tão arrogante e atrevido a ponto de manifestar tamanha bcsicii-;~'!

1 ' 1 A ;iij:iiiiiciii;i~;ii> .iA fiii i1siid;i c i i i !);i,$ <lii:sc woil <'liri.vli (<I;#<i,$(iiiciii 1i.ili clci.) IIOL.III j l i ti<,h<.,j
ii.iil<li,r ilii. \ i ~ l i i ~ ~ ~ i r r ~ ~ : i VI'. l i . r .2i.ll5. No c;iii>. I.iiieiii icI'cic-sc ;i<>I i i i i i , iiiic ciiiiici..~i t i i i i
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1uc , ~ ~ ~ 1 ~ i ~ ~ : 1 1 I : 1 ~ I ~ ~ 7 , i ~ ~ i ~ ~ j ~ l I5.>1. i~~i~O~i:~~i
Da Ceia de Cristo - Coniissão
Sabemos muito bem aue as oalavras de Cristo são esoírito e vida. Mas nin-
guém dirá que disso decorra que a carne de Cristo não tivesse valor, a não ser
que fosse louco e bobo ou despreze arrogantemente o entendimento e a opi-
nião de todo mundo. Esse espírito afirma que a conclusão é essa. Quando, po-
rém, prova essa conclusão? Na verdade, exatamente estas palavras de Cristo:
"Carne para nada aproveita" são espírito e vida, pois com isso ele nos ilumi-
na e guia da carne para o espírito, o que vem a ser ensinameuto salutar e espi-
ritual que dá vida. É uma blasfêmia pública querer dizer que Cristo nos quer
afastar de sua carne, para a qual nos encaminha, dizendo: "Minha carne é ver-
dadeira comida" [Jo 6.551, a não ser que a senhora aleose de novo nos trans-
forme "carne" em "divindade". Nós, porém, não damos ouvidos aos bruxos.
Sexto: Jesus disse: "Mas há alguns entre vós que não crêem" [Jo 6.641.
E Pedro diz na mesma passagem: "Senhor, para quem iremos? Tu tens pala-
vras da vida eterna" [Jo 6.681. Dessas duas palavras ele deduz e inventa o se-
guinte: visto que essas passagens tratam da fé e da palavra viva, deve-se suben-
Lender a carne de Cristo na expressão: "Carne para nada aproveita", e nâo
há necessidade de começar a falar de outra carne, etc. Já ouvi muitas dedu-
ções ou conseqüências malucas em minha vida; mas uma dedução mais louca
e impertinente que essa feita por esse espírito nunca ouvi, ou seja, que, pelo
fato de Cristo falar da fé e da Palavra, se deve concluir que a expressão: "Car-
ne para nada aproveita" estaria tratando de sua própria carne. Suponho, real-
mente, que esse espírito outra coisa não cogita em seu coração do que: nós,
Zwinglio, pela graça de Deus, gigante e Rolando, herói e vencedor na Itália e
ria Alemanha, na França e na Espanha, apóstolo de todos os apóstolos, profe-
ia de todos os profetas, professor de todos os professores, mestre de todos os
mestres, erudito de todos os eruditos, senhor de todos os senhores, espírito de
todos os espíritos, etc., dizemos o seguinte: É isso aí, e basta. Do contrário,
como seria possível que andasse por aí com tanta arrogância, deduzindo na
Escritura e na palavra de Deus, e tirando suas conclusões em toda parte, se
não estivesse possuído de desumana arrogância e frivolidade?
Nós pobres pecadores e carnívoros, na verdade, nunca e em parte algu-
iiia afirmamos que Cristo estaria começando um novo assunto quando diz:
"Carne para nada aproveita", como esse espirito nos acusa. Pelo contrário,
ainda hoje admitimos que, ao aludir a sua carne, Cristo fala do começo ao fim,
(Ic fora a fora, do comer espiritual de sua carne, até o final de Jo 6. De nos-
sa parte, porém, afirmamos: como desse seu discurso surgiram dois tipos dc
iliscipulos, uns que se escandalizaram, murmuraram e o abandonaram, outros
qiic creram, deram louvor e ficaram, ele pôde dizer, a partir dessa discórdia.
sciii começar novo assunto, que espirito dá vida, carne para nada aprovciiii.
Niis senipre o entendemos do seguinte modo: minha doutrina C cspiriliiiil.
(.iiiciii qriiser entendê-la de forma carnal está errando, e tal enteiidiiiiciiio iiiio
Icvn a iiacla. Quem, todavia, a entender de forma espiritual, esse vivcii. A<liii
ii;ici sc cliz iiada de iiovo quanto ao comer dc siia coriic. iii;is sc ;ilii<lcI: diki-i11
q i ciiii-c 0s cli\cípiilos qiic oiivirain isso. Seiiiprc cslivciiios disli~~slcrs;i ;i~ircii
, der outra coisa, se alguém nos convencesse com bons argumentos. É como
se eu pregasse: Boas obras de nada valem para a justificação. Ai vou ter dois
tipos de discípulos; uns se escandalizam, reclamam, vão embora e dizem: En-
tão ele está proibindo todas as boas obras? Alguns, no entanto, acreditam,
dão louvor e ficam. A esta altura eu também gostaria de dizer que minha dou-
trina das boas obras é espiritual e diferenciada, ou seja, [que é preciso distin-
guir entre] boas obras para a justificação e boas obras em louvor a Deus.
Quem acha que são necessárias para a justificação está errado, mas quem as
D3 Ceia de Cristo - Confissão

considera necessárias para o louvor a Deus, este está entendendo, está acertan-
do. Aqui, acho eu, não se trata de assunto novo, mas, de fora a fora e de poli-
ta a ponta, está se tratando das boas obras, ainda que eu fale de dois tipos
de discípulos.
É assim que Jesus também procede em Jo 6. Ele fala do comer de sua car-
iie e depois trata da diferença entre os discípulos que ouvem esse ensinamento.
A alguns considera carnais, a outros espirituais, e pronuncia a sentença: a car-
ne para nada aproveita, o espirito é que dá vida. Além disso, explica suas pró-
prias palavras: "Minhas palavras são espirito e vida" [Jo 6.631; isso não po-
de significar outra coisa do que: minhas palavras exigem discípulos espirituais,
discipulos carnais não servirão, porque são discípulos da carne e não de minha
palavra. Carne, porém, de nada aproveita e os engana. Pois, como o espírito
I é sua palavra e ensinamento, assim a carne tem que ser palavra e ensinamen-
to da carne. Deste modo o espirito, ou seja, sua palavra e ensinamento, dá a
vida, e a carne, a palavra e o ensinamento da carne, para nada aproveita. Dis-

I
I
so tratei o suficiente em outros escritos meus.
O terceiro erro que eu teria coinetido neste ponto é que estaria errada mi-
nlia norma quando escrevo: Onde espirito e carne são contrapostos na Escritu-
ra, carne não é entendido como carne de Cristo, mas como velho Adão. Aqui
« gigante C r i s t ó f ~ r ode
'~~
Zurique arranca a árvore e confunde montanha com
vale. Se entendo bem seu alemão atrapalhado e emaranhado (coisa que não
iiic é fácil), ele faz diferença entre o espírito de Deus e nosso espírito, coisa
que para a questão é tão importante como a quinta roda na carroça, a não ser
clue sirva para que a gente simples pense que o grande gigante de Zurique
qiicr responder e que nele está oculto um verdadeiro abismo de sabedoria. Is-
si), porém, não nos importa. Tanto faz se é o espírito de Deus ou o nosso,
iiii~ilianorma continua inabalada: onde espírito e Escritura são opostos ou con-
Ilitaiites iia Escritura, "carne" não pode significar "a carne de Cristo". Sua
ctiiiie não é contra o espirito, pelo contrário, é nascida do Espírito Santo e es-
i : [ ~plciiado Espírito Santo. Visto, porém, que Cristo diz aqui: "O espirito vivi-
l i a ' ' c "a cariie para liada aproveita", está suficientemente claro que se refe-
ic ;i I:i1 cliriic qiic iião é nein tem espirito, mas é contra o espirito. "Vivificar"

I !.I 1 1 i:ii:.iiiii, 'iiiii)l'iiii, i rrl,lciciii;i<l<i iiiiiii:i# vc/cr ;ip<ii;idi>iiiiiii;i ;iiviiic ililc ;iii;iiici,ii.
D3 C:cia de Ciisto - Confiafio

e "para nada aproveitar" são coisas coiitrárias como morte e vida, como ex-
pliqiiei mais a fundo naquele meu l i ~ r o " ~ .
Depois Zwínglio me ensina como espirito e carne se adaptam, como em
Jo 1.14: "O Verbo se fez carne", e 1 Pe 3.18: Cristo foi "morto, sim, na car-
ne, iiias vivificado no espírito". Que Deus lhe pague, pois quem teria descober-
to isso sem sua ajuda? Minha norma persiste, conseqüentemente: onde espiri-
to e carne são opostos na Escritura, etc. Com isso admito com suficiente clare-
za que espirito e carne não são opostos em toda parte, porque aqui também
não se trata da questão se espírito e carne hariiionizam na Escritura. A ques-
tão é: onde espirito e carne não harmonizam, como é o caso aqui: "Carne pa-
ra nada aproveita", e "O espirito vivifica", ali, digo eu, "carne" não pode
significar "cariie de Cristo". A este ponto o teinioso Iierói deveria responder,
mas ele passa por alto e vai dizendo outras criaiicices e nos ensina que em al-
guns poiitos da Escritiira espírito e carne não conflitarn. Isso não é resposta
completa. É como se alguém pergliiitasse: Para onde conduz o caminlio? E re-
cebe por resposta: Estou pegando filhotes de pica-pau. O diabo é mestre eiii
conversa, quando não sabe dar resposta correta.
Insisti também na palavra "minha" que Cristo não usa neste caso: "Mi-
nha carne para nada aproveita", como o fai.nesta outra passagem: "Minha
carne verdadeira comida". A isso ele da a seguinte resposta: Assim como
Cristo não diz: "Meu espírito vivifica", ainda que seja seu espirito, também
não diz "minha carne", ainda que seja sua carne. Transforma-te, espiritozinho.
Nessa passagem Cristo não fala de seu próprio espirito, que ele tem pessoal-
mente, inas, conforme o teor do texto, do espii-ito que vivifica, isso é, de uma
forma grral do espírito que está em todos os crentes, se bem que é Cristo que
o d B e é 0 espirito de Cristo. Aqui, porém, ele L; iiin espírito de forma genéri-
ca, presente em toda parte onde vivifica. Logo, iieste contexto "carne" tem
que significar carne de forma genérica, sem o espirito, e que para nada apro-
veita. Por isso Z\vinglio usa aqui um verdadeiro sofisiiia e faz uma trapaça
coin a palavriiilia "iilinha" que se chama ''falácia da figura da expressão".
Pois acima, onde Cristo diz: "Miiitia crune é verdadeira comida" [Jo 6.551,
"[iiinha" significa sua própria carne, que iião é comum a ninguém. Mas quaii-
~ I c iaqui o "espirito" se chama "seu espúito". não se trata de seu próprio esp-
rito pessoal exclusivo, mas do espírito comuin e presente ein todos, que clc
<li. Por isso, neste caso, "carne" não pode sigriificar "sua carne", como 0 "cs-
píi-iio" significa "seu espirito", porque sua carne não é a carne coinunl eiri to-
dos. Mas quem não sabe dar resposta tem que se virar dessa forma.
Isso basta em relação a segunda parte. Qualquer um pôde ver que o cspiii-
io iiZ» pode aplicar a expressão: "A carne para nada aproveita" à cariic dc
< 'i-ihiu.Ele está desmascarado e não sabe responder absolotanieiitc iindn. Ip,iio
r:i ioili>ros exeinplos e silencia onde provei hrtaiiientc qiic o coriic ilc Alii-:i;ii~.

\v,\
]?..I 1 'i. ?.i,i'/-/,<
Ua Ceia dr Cristo - Cnnfissào
-
. e de outros santos foi útil nara a fé. mostrando corn isso de for-
Sara., Isaaue
ma conclusiva que a carne de Cristo deve ser de muito proveito, etc. Ele perce-
be perfeitamente que aqui iião adianta esbravejar e ralhar. Também ri-ao res-
ponde aos ditos dos pais da Igreja; disse simplesmente: Lutero, tu não os en-
tendes direito; de resto, que não se importa muito em tê-los de seu lado, etc.
Está certo também. Que teria um espírito tão elevado a responder a tais baga-
telas? Pois que vá com sua erudição! No entanto, jamais será meu mestre e
companheiro, se Deus permitir, a não ser que se retrate de sua doutrina blasfe-
ma, não somente nesta questão, mas também em todas as outras onde ele se-
duz a si e as pessoas tão miseraveliiierite. Que Cristo nosso Senhor o conceda
a ele e a todos nós. Amém.
Agora queremos ouvir tamhéni a contestação de E ~ o l a m p á d i o ' ~Ainda
~.
espero que não concorde em todas as partes com Zwinglio, mas somente no
Sncraiiieiito e no Batismo. Que Deus lhe njiide n encontrar uma saida. Amém.
É certo que a c i ~ n a "já~ provei que o tropo de Ecolampádio não pode iiem de-
ve existir na Santa Ceia, porqire não pode justificá-lo. Além disso, 6 uin tro-
po errado e descabido ern contraste com todos os tropos da Escritura, de mo-
do que se deve concluir que se trata de uma invenção arbitrária. É isso que
me cabe esclarecer.
Onde ocorre um tropo ou irma palavra com novo seritido na Escritura,
há também duas interpretações; uma nova, que se sobrepõe a primeira, anti-
ga e anterior, como dito acima, exemplificado na palavra "videira", que tem
dois significados na Escritura, um antigo e um novo. De acordo com o anti-
go, respectivamente primeiro sentido, descreve simplesmente o arbusto ou plaii-
ta do parreiral. De acordo com o iiovo, significa Cristo, conforme Jo 15.5:
"Eu sou a videira", ou uma mãe, conforme S1 128.3: "Tua esposa será como
a videira...", ou coisas mais desse gênero, porque têm uma semelhança coni
:i videira por causa dos frutos, conio ensinam os mestres: Quae transferuntiir,
,srni~idiimsiiniljtudiriem transfeririitur, quer dizer: Todos os novos sentidos
oii tropos acontecem em função de seiiielliança.
Agora, esses tropos da Escritura são estruturados de tal forriia que. pelo
\eutido antigo ou primeiro, as palavras indicam o elemento que serve de com-
par ação para o novo, e pelo sigiiificado novo indicam a coisa nova r verdadei-
ro, ou sua própria essência, r riia o inverso. Por exemplo, na seguiiite expres-
sào: "Eu sou a videira verdadeira"; aqui a palavra "videira" se tornou iirn tro-
110 ou palavra nova, que não pode reportar-se, em sentido inverso, a velli;i vi-
(Icira, que é a semelhança para o novo, mas indica por si mesmo a videira,
q i i c nao é semelhança. Pois Cristo não é uma coisa semelhante à videira, rnas

I.>' A i i ; i i i i i <I;i<]iii ociilxii-<rri>iiios ciciiros dc tcolani[i:iilio (v. ti. 4) ~.oiii,>i


I.iiicro iilrnzi ;i i~ii;ii\
i;', ir 1i;ivi;g iiciili;al,, 0.1,i l i i ~ \ i ,i i i 8 i i <liii.sli (d:i,s h1 riieiii lcih cii.c) iiiicli li,\! ii<lii.ii
iio cscrili,:
t \ i,l<lc, d t t , , Y c ~ l ~ ~ ~ ~ ; rWA
r , ~2 ~7 , ~f A~h ~. ~ i ~ l ~ ~ ~ ,
l!f, ('I'. : ~ C ~ ~ I I , I1). ? ? I h \ ~
Da Ceia de Cristo - Confissão
a videira é uma coisa semelhante a Cristo, etc. Do mesmo modo: "A semen-
te é a palavra de Deus" [Lc 8.111; aqui "semente" não indica o grão, ao qual
se assemelharia o Evangelho, mas (como compete a uma palavra nova ou tro-
po) entende o Evangelho como a própria nova semente, que não é semelhan-
ça. E assim por diante; todos os tropos na Escritura descrevem a verdadeira
nova essência e não a semelhança da coisa nova.
Ecolampádio, porém, inverte a situação e inventa um tipo de tropo ou pa-
lavra nova que aponta para trás, para a semelhança do novo objeto e diz na
passagem: "Isto é meu corpo", "corpo" significa sinal do corpo, ou sua seme-
lhança, quando deveria dar novo sentido a palavra "corpo", se quisesse seguir
a Escritura, de modo que significasse o verdadeiro novo corpo, do qual o cor-
po natural de Cristo seria uma semelhança. E que a Escritura não fica tropolo-
girando para trás. E não faria sentido se eu quisesse empregar o seguinte tro-
po: Cristo é uma videira, isso é, um sinal da videira; o Evangelho é uma se-
mente, isso é, um sinal da semente; Cristo é um cordeiro [cf. Jo 1.291, isso é,
um sinal de cordeiro; Cristo é uma rocha [cf. 1 Co 10.41, isso é, um sinal de
rocha; Cristo é nossa páscoa [cf. 1 Co 5.71, isso é, um sinal de nossa páscoa;
João é Elias [cf. Mt 11.141, isso é, um sinal de Elias. Em resumo: esse tipo de
tropo não ocorre na Escritura e nenhum deles tem valor. Por isso o tropo de
Ecolampádio não pode prevalecer quando diz: "Pão é meu corpo", isso é, "si-
nal de meu corpo", pois é um tropo ao inverso, fazendo do verdadeiro ser
um símbolo ou sinal, o que não é do feitio da Escritura. Portanto, é mera fantasia.
Se, no entanto, o texto fosse o seguinte: "Tomai, comei, este é meu verda-
deiro pão", poder-se-ia fazer um tropo apropriado e dizer de forma bonita:
aqui pão é uma palavra de sentido novo, que, de acordo com o primeiro signi-
ficado, quer dizer simples pão, que, por sua vez, é uma semelhança do corpo
de Cristo. De acordo com o novo sentido se refere ao próprio verdadeiro e no-
vo pão, o qual é o corpo de Cristo. Como, porém, o texto, na realidade é: "Is-
to é meu corpo", e querendo ele fazer um tropo, teria que dizer de acordo com
a Escritura: segundo o antigo significado a palavra "corpo" se refere ao cor-
po natural de Cristo; mas, de acordo com o novo significado, deve reportar-
se a um outro e novo corpo de Cristo, do qual seu corpo natural é uma seme-
lhança. De acordo com a Escritura isso seria o modo correto e apropriado de
dar novo significado à palavra, de forma que o novo texto ficaria assim: Isto
i: meu verdadeiro novo corpo, que não é uma semelhança, como se dissesse a
respeito de Cristo: esta é nossa videira, isso é, uma videira nova e verdadeira,
da qual a velha videira do parreiral é uma semelhança.
Agora, alguém poderia alegar: Não obstante, esse tropo dc Ecolainpidio
pode ser encontrado na linguagem comum, como, por exemplo, sc diz a i-c,\-.
pcito dos quadros: este é S. Pedro, este é S. Paulo, este é o papa Júlio, cslc +
o imperador Nero, e assim por diante; nestas exprcssõcs as p;il;ivi.;is I'c<lii>.
I'aulo, .Júlio c Nero são tomadas por i'igiirLis.Eu respondo: priiiiciro, cs1;i ii;io
6 :I <[iicsl,io;Ecolan~p~idio iião leve o propbsilo de ciic~)iili.iii. 1rol)os 1ii1 liiil:ii;i
gclll colllillll, iilils lias iisciilui-as. i'oi-liillto. l i l l l r{ilc fic:ir lirillro d<,I:l c si.p,ilir
Da Ceia de Cristo - Canlissiii,
seu modo. Se ele me pudesse mostrar um só exemplo de seu tropo na Escritu-
ra, eu me daria por vencido e haveria de apoiá-lo em todas as questões. Co-
mo, porém, não consegue trazer um exemplo, ele perdeu a questão e seu tro-
po não vale nada e é mera fantasia. A Sagrada Escritura procede em expres-
sões do mesmo modo como procede em ações. Deus cuida por todos os meios
para que o significado e semelhança ocorra primeiro, e para que depois venha
a verdadeira realidade e o cumprimento das semelhanças. Assim, o antigo tes-
tamento antecede como semelhança, e o novo testamento segue como a verda-
deira realidade; ela procede da mesma forma quando usa tropos ou palavras
de significado novo, tomando a palavra antiga, que é a semelhança, e lhe dá
novo significado, que é a verdadeira realidade.
Pois, como soaria se eu dissesse: O Evangelho é um novo testamento, is-
so é uma semelhança do novo testamento? Isso seria tanto quanto dizer: O
Evangelho é o antigo testamento. Ou ainda: Cristo é o cordeiro de Deus, isso
C, uma imagem ou semelhança do cordeiro de, Deus. Isso seria o mesmo que
dizer: Cristo é o cordeiro pascoal de Moisés. E desse modo que procede Eco-
lampádio com seu tropo reversivo, onde transforma a nova palavra "corpo"
cm palavra velha e diz: o significado é: "Isto é o sinal de meu corpo", o que
quer dizer: isto é pão; logicamente, "pão" seria a palavra antiga e "corpo",
a nova; e a palavra "pão" significaria "corpo", não a palavra "corpo", o
"pão". Dessa forma seu tropo se desmancha e não tem lugar na Escritura.
Segundo: Também não é verdade que esse tropo de Ecolampádio exista
c111algum idioma ou língua no mundo todo. Ofereço meu pescoço para quem
iiic trouxer um exemplo sólido disso. É verdade que afirmam existir um tro-
fio desse tipo na seguinte expressão: "Isto aqui é S. Pedro", q u o dizer, uma
iiiiagem de S. Pedro. Mas eu o nego e eles não podem prová-lo. E sua própria
1':liitasia equivocada. Pois esta é uma regra constante em todas as iínguas: on-
cIc for usada a palavrinha "é" numa expressão, certamente se está falando da
cssCncia dessa coisa e não de seu significado. Anota: pego uma rosa de madei-
i-n ou de prata e pergunto: Que é isto? E terei por resposta: É uma rosa. Aqui
ii.;ici pergunto pelo significado, mas pela essência. Assim também a resposta
vai iio sentido do que é e não do que significa. Pois é uma questão bem dií'c-
Iciiie quando pergunto: Que significa isto? ou quando pergunto: Que é isto?
( ) "C" sempre visa a própria essência. Isso é invariável. Então dizes tu: Na
vricladc, não é uma rosa, mas um pedaço de madeira. Resposta: Está correto,
ii;io ohstarite, é uma rosa; ainda que não seja uma rosa crescida no jardim, c
i~ssciicinliuentcuma rosa a sua maneira. Pois existem muitos tipos de rosas:
ilc ~pi-tiia,ouro, tecido, papel, pedra, madeira. Ainda assim cada uma é cssçn-
i.i;iliiicriic unia rosa a sua maneira. Não pode ser mero significar. De fato, co-
I I I < I lici<lcriahaver um significar se antes não houver uma essência? O quc não
c:i\ic iifio fciii significado. O que expressa significado deve primeiro ter I I I I I ; ~
vi+iici;i c iiiii;i seiiiclli;iii~ada outra essêiicia.
I'oi. isso clcvciii-sc distiiigiiir as duas coisas ria rosa de ~iiadcirli:a css?iici;i
i. i i ~ij:iiilii.:i<lo. i.<iiiioo 1ii.iiiicii.o c scgiiiido aio, coiiio o vci-lio siilisl:iiiiivo c
I I;, < 'cia dc Cristo - Confissão
:iiivo. Pela essência é de fato uma rosa, isso é, uma rosa de madeira. Depois
disso, uma vez constatada a essência, poder-se-á dizer: Esta rosa significa ou
C &pia de outra rosa. Pois estas são duas expressões ou idéias diferentes: Isto
C iiriia rosa e isto significa uma rosa. Quem fizer disso uma só expressão faz
o nicsmo que tomar uma proposição hipotética e uma categórica como uma
si5 proposição, coisa que é impossível. Os eruditos bem sabem quanto isso é
<Icscabido. Tal como a essência das rosas é multiforme, de madeira, prata, ou-
ro, elc., e como, assim mesmo, cada uma é e se chama, por si mesma, de fa-
io uma rosa, assim também a palavra "rosa" adquire novo significado (ainda
qiic as letras continuem as mesmas) na medida em que muda a essência da ro-
sa. De modo que não se pode usar o tropo de Ecolampádio em parte alguma,
i r i i dizer: Isto é imagem de uma rosa. Pois também não é verdade que, quem
<liL:Isto é uma rosa, queira ter dito ou entendido: Isto é a semelhança de uma
iirsn. Ele quer dizer o que é em essência. E se ainda quiser dizer o que signifi-
c:!, usará duas expressões diferentes e dirá: Isto é uma rosa e isto significa
iiiiin rosa. Qualquer pessoa há de concordar que essas duas expressões não di-
/.c111c) mesmo, nem que falam da mesma rosa, mas que cada uma diz uma
coisa diferente daoutra. Sei com certeza que isso é assim e ninguém poderá negá-lo.
I'or isso Ecolampádio não pode manter-se com sei1 tropo, uma vez que
iliicr dar o mesmo sentido às duas expressões: "Isto é meu corpo" e "isto é
~c~iiclliança de meu corpo". Nenhum idioma ou linguagem permite isso. Assim
coiiio não pode significar o mesmo quando digo a respeito do quadro de S.
I1;iiilo: "Isto é S. Paulo" e "isto significa S. Paulo". Pois a primeira expres-
s:io quer dizer o que o quadro é, que é S. Paulo, ou seja, um S. Paulo de ma-
~Iciin,de prata, de ouro, um S. Paulo pintado, enfim: é da essência que fala
;I ~xilavrinha"é", seja qual for a essência. De modo que aqui "S. Paulo" se
ii)iiiou uma palavra nova, que não fala do S. Paulo vivo. Depois, quando ain-
iI:i ~~crgunto: Qual é o significado?, a idéia já é outra, que não trata da essên-
~ i ; iiiias do significado; de modo que essência e significado não são a mesma
ciris;~,ncm podem ser expressos com as mesmas palavras e termos. Cada qual
ilcvcri ter sua formulação própria.
Se Ecolampádio quiser manter seu tropo, deverá usar duas expressões na
5;iiii;i Ceia. Uma que fala da essência, portanto: "Isto é meu corpo", pois l i
?i. ciicoiilra um "é", que quer referir-se a essência e a ela se refere necessaria-
~iiciiic.<:orno, porém, no texto da Santa Ceia há somente essa uma expressão
iliic Iiiln da essência, quer dizer: "Isto é meu corpo", então deve falar do cor-
I I I ) rc,:iI <Ic Cristo, tanto faz se Deus quer que seja de madeira, de prata oii sci;i
iIc qiic for. E que consta um "é" que exige um corpo de Crisio que s.ja c se
i.li:iiiic corpo de Cristo, como também é próprio da linguagem coiii~iiir:dc til-
~ : i i i i i : i iiioiieira Paulo tem que estar presente quando sc diz dc scii <~ii;ali-o qiic
<.sic L: I'iiiilo; do incsino rnodo Ecolampádio tem que adiiiilir iiiii iipo <Ic cai.
11i1 cIc ('iislo lia Sariia <%a, poclcndo dccidir se o cleixn sci <Ic pão, <Ic iii:iilci
i ; ~ . CIC ~~c~r3iiiiç;i oii cic ~mcirti.O ii-opo iciii qiic ter iiiii corlio clc ('i-isio. ]pi~ii[iic
Da Ceia de Cristo - Confissão
não consta a outra expressão: "Isto significa", ou: "Isto é o sinal de meu cor-
po", mas, sim: "Isto é meu corpo".
Em resumo, é como eu disse a respeito da rosa: quando numa expressão
a palavra "rosa" é para tornar-se uma palavra nova ou um tropo, tem que
haver duas rosas, e que ambas de fato sejam designadas de rosa. Uma que sig-
nifica e outra que é significada. Cada uma das duas rosas deve ser e chamar-
se realmente de rosa, ainda que cada uma a sua maneira, uma de madeira, ou-
tra natural. O mesmo ocorre quando, no texto da Santa Ceia, o termo "meu
corpo" é para tornar-se uma palavra nova ou um tropo; é preciso que haja
dois corpos de Cristo, que ambos mereçam de fato a designação "meu cor-
po". Um que significa, outro que é significado, de modo que cada um dos
corpos de Cristo seja com razão chamado corpo de Cristo e o seja essencial-
mente, ainda que seja de madeira, de prata ou de pão. Se Ecolampádio puder
provar que o pão seja verdadeiramente um corpo de Cristo, podeiido dizer
que é um corpo de Cristo feito de pão, que vem a ser uma semelhança do cor-
po natural de Cristo, tal como a rosa de madeira de fato é uma rosa e a seme-
lhança da rosa natural, então terá conseguido mostrar que o exemplo de seu
tropo existe e que é do tipo da linguagem comum referente aos quadros: isto
é Pedro, isto é Paulo, etc., ainda que não seja um tropo a maneira da Escritu-
ra. Se não puder fazê-lo, seu tropo também não vale de nada fora da Escritu-
ra. Entretanto, como quer provar que "pão" se chame "corpo de Cristo",
ou que Cristo tenha um corpo feito de pão, como S. Paulo tem um S. Paulo
de madeira? No entanto, ele vai ter que fazê-lo, ou então está no caminho er-
rado. Ainda que o descobrisse, de que adiantaria, uma vez que na Escritura
cste tipo de tropo não vale? Já que seu tropo não tem exemplo nem dentro
nem fora da Escritura, mas conflita com a Escritura e com todos os idiomas,
Iàcilmente se entende que é fantasia inútil.
Ecolampádio enganou-se a si mesmo na expressão de TertulianolZ7:"Hoc
e,st figura corporis rnei", "isto é a figura de meu corpo". Ai toma a figura
por um corpo. Pois note-se bem que não foi Ecolampádio que descobriu esse
iropo ou que o deduziu da Escritura; pois nem a Escritura nem algum idio-
iiia falam desse modo. Ele se deparou com a citação de Tertuliano e tropeçou
sobre ela, de modo que ficou confuso. Só que nesta passagem Tertuliano não
l;iz um tropo, mas dá uma explicação ou explanação de como o pão seria o
corpo de Cristo, a saber: é a forma sob a qual o corpo de Cristo se apresenta.
I>c resto, não fala de vocábulos, mas de coisas, quando diz: "Esta é a figura

1?7 Il.iliilia,io (c*.160-230), um dos quatro maiores pais da Igreja Antiga ocidental. Ca~taginês,
( l i ~!raiidçcultura, era advogado em Roma quando se converteu à fe cristã pai volta de 195.
Ilcade eritai, wassou a scrvir à lereia de Cartaeo. Em 207 romlieu com a lereia. aderindo ao
Da Ceia de Ciisto - Confissão

de meu corpo, porque pão não é figura lingiiistica na gramática, mas figura
de algo na natureza"12s. Tertuliano não pode ter sido tão louco a ponto de
querer dizer que Cristo fez do pão um vocábulo gramatical, como se deveria
deduzir da opinião de Ecolampádio, do seguinte modo: "Fez do pão seu cor-
po, isso é, uma figura de seu corpo, ou seja, uma figura gramatical. Porque
tal figura não existe nem na realidade nem no uso da Escritura: que o pão seja
figura do corpo de C r i s t ~ . " ~ ? ~
Coin isso creio que o tropo e o "sinalismo" de Ecolampádio foram tão
convincentemente eliminados como o "significatismo" de Zwiiiglio e o fouto
de Karlstadt, de modo que nenhum deles tem e pode ter base em algum texto
[bíblico], ficando, assiiii, todos eles desnudos e desprovidos, sem abonação [bi-
blica] na Santa Ceia. Se não têm texto, também não podem ter sentido e com-
preensão. Se não têm compreensão, também não podem saber se têm mero
pno e vinho. Pois primeiro eles têm que chegar ao ponto de saber o que têm
na Santa Ceia. Até aí, porém, não podem chegar, a não ser que consigam tex-
to e compreensão seguros. Esse, no entanto, jamais podem conseguir, confor-
me provamos. Disso concluiinos: os próprios fanáticos não sabem o que tEm
na Santa Ceia. Que belo espírito, que bela Santa Ceia! Isso é estar sentado
no escuro e comer sern saber o que se come oii onde se está sentado. Qiierido,
por amor de Deus, doa alguns centavos para unia vela para o pobre espírito.
Não que queira zombar dos fanáticos e de seu Deus, a não ser com pala-
vras. Não sou Elias, que zombou dos demais profetas de Baal130. Especialmen-
te porque eles afirmam, não obstante estarem sentados no escuro, terem verifi-
cado que Lutero perdeu a razão e tornou-se um Saul13', não podendo eiiten-
der que pão é pão, coisa que até cachorros e porcos entendem. Pois se conse-
guisse zombar deles, Ihes aconselharia em tal miséria e infortúnio que seguisseni
a urii de seus discípulos que havia consultado um dos iiossos sobre o Sacrameii-
to e que, ao final, quando não tinha mais argutnento, disse: Ab, prezado ir-
mão, dizem em verdade que no grego consta: "Este é meu tropo" e não "Es-
te e meu corpo". Assi111 talvez achem um texto confiável e inventem tropos
até que acertem.
Se isso lhes causa desgosto, então podem fazer o que fez aquele clérigo
que ocasionalmente se encontrou com dois outros e os achou profundamente
preocupados com essa questão do Sacramento eni relação ao texto: "Islo 6
meu corpo". Um defendia a opinião de que o testo deveria rezar: "Hoc est
COIJXIS n~eus"e o outro sustentava [que deveria ser]: "Hoc esf covpurn rneurn",

IZX Iloc c.st figtira corporis mci, yuia panis no" est figura scrmoni.? in gi;ii>ini.llic.l, scd l?giilii 1c.i
ir, no orignal.
ri:iriira,
12'1 I':,iieiii Cacit corpiis suum idesf figuram cog~orissui, hoc c . ~ i t igiimm gi;rrii,ii;,ti~.:jt;lili. Oriiz i:ili,,
Ii*.ii,;i iirc Ni re rlec in usu rcri~tiiree.st. sood na~ii,~
sit Ilfiiirii coiai,,ii <'l!ri,sli. i i c i oiiri~i;il.
Da Ceia de Crista - Confissio

para que rimasse direito13z.Quando apresentaram a questão ao terceiro para


jolgamento, esse disse: De fato, 3 niim isso tambeni preocupou muitas vezes;
mas me arranjo do seguinte modo: quando chego a este texto, rezo em lugar
dele uma Ave-maria. Surge a i uma grande pergunta: quem consagrou os ele-
mentos? Mas deixemos isso de lado. Pois, visto que nossos fanáticos não prati-
cam a consagração e, mesmo assim, estão tão incertos, confusos, discordes e
soturnos em relação a esse texto, seria bom que, seguindo nosso exemplo, tam-
bém rezassem uina Ave-maria em lugar do texto diividoso. Ou então, caso re-
ceassem parecer antigos ou novos papistas e tivesseiii medo demais de Maria,
dos santos ou das imagens, poderiam cantar em lugar [das palavras da consa-
gração]: "Cristo ressuscitou" ou "Cristo subiu ao céu", uma vez que esses
cantos e textos se opõem especialmente ao texto da Santa Ceia, tornando-o
duvidoso. Pois é de arrancar lágrimas das pedras que esses altos e iluminados
espíritos, que de resto têm tantos sóis em sua cabeça como cabelos nela, andem
IIO escuro someiite nessa questão, n ponto de não vislumbrarem uma estrelinha
sequer.
Se alguém acha que os ataco de maneira excessivamente dura e os despre-
zo demais, peço que também pondere que, mesnio sendo um cristão modesto,
não me irrito sem razão com o diabo, que não faz outra coisa de meu Salva-
dor e Senhor Jesus Cristo do que um palhaço leviano, e fica zombando dele
somo se tivesse sido um paspallio ou um beberrão na Santa Ceia. Primeiro
porque interpretam a Cristo em suas palavras de tal maneira que iia Santa
Ccia não haja mais nada a receber do que pão e vinho para lembrar a mortc
do Senhor. Desse modo não precisam do texto: "Isto é meu corpo", etc., "Is-
to é meu sangue", etc.; ele lhes é um texto totalniente dispensável, desnecessá-
rio e inútil, podendo a Santa Ceia ser celebrada completa e perfeitamente sem
ele. Pois acham que têm texto suficiente quando Iaem: "Tomai, comei; tomai,
bebei; farei isso em minha memória". Nessas palavras eles têm toda a sua San-
ta Ceia. Por isso Cristo tem que ficar reduzido a um verdadeiro palhaço que,
no final de sua vida, é um chariador inútil ao colocar tal texto desnecessário:
"Isto é meu corpo", etc., "Isto é meu sangue", etc., do qual esses altos espiri-
tos podem prescindir perfeitamente, dele são inimigos e gostariam que fosse
eliminado. Pois que nos digam para que serve esse texto se podem lembrar a
iriorte do Senhor perfeitamente sein ele, com pão e vinho (o que seria o propó-
sito principal e única razão da Santa Ceia).
Segundo: Ainda que pão e vinho signifiquem corpo e sangue do Senhor,
que necessidade haveria de Cristo nos ensinar exatamente aqui essa significa-
vão? Sei que não nos compete perguntar por que Deus faz algo; como, po-

l i ? O vibstantivo latinu i-orpiis (corpo) é neiitio. No entanto, m i i i i o r substa~iiivosniariiiliii<is(1.1-


iiiiri;iiii etii "-iih". stibstantivos nciirros em "-iim". NZo tendo hoiis coiilicciiucait<is <Ic kitiiii.
,i\ cl6iieos :icli:ini qiic dcvcoi lairi o \iilistnritivo cr>nc<ir<l;ir cuin o ;arljeliv<i i,irii\/riicii,ii (ctirii)
c ;iltci;ii c, ;i<l,ictiv~i(~'oipiisIIICII,,) 011 ( I s ~ t h s t i ~( c~o~q il o
i ~~,,ZCIIIII).
,~~~
Da Ceia de Cristo - Coiifissão
rém, aqui é tido por palhaço, não pergunto sem razão: Para que serve então,
se sei que significa o corpo de Cristo? Que proveito tem a fé de tais alego-
rias que até o diabo e os ateus podem inventar? E, por outra: que perigo e
prejuízo haveria se jamais soubesse que o pão significa o corpo de Cristo,
mas considerasse o pão simples pão? Será que Cristo nada tem a ensinar do
que coisas inúteis e que até nós poderíamos descobrir depois por nós mesrnos,
serii seu ensinamento, e que o diabo e os seus também podem [descobrir]? Es-
pecialiiiente porque no caso 1120 existe analogia da fé. Pois todas as pala-
vras de Cristo deveni fomentar a fé e o amor e ser semelhantes a fé (Rin 12.7).
Não, ele teve que comprovar sua ignorância, sobrecarregando-nos não apenas
com um texto vão e iiiutil, mas ensinando taiiibém uma doutrina sem provei-
to, que certamente também se pode achar sem seus ensinamentos nas mesas
de todos os ateus. De resto, ensina essas coisas inúteis com palavras tão
obscuras que até seus discípulos naquele tempo não o entenderam. Como le-
nios que nunca ou raras vezes entenderam seu discurso, teve que lhes forne-
cer constantemente o sigiúfiçado. Como é que agora se tornou tão mesquiiiho
na riiaior e última obra de seu amor e não da nenhuma explicação aos tolos e
simplórios discipiilos, deixando-os ficar iiessas palavras obsciiras que, sem
explicação, não puderam entender de outra maneira do que rezam, enquanto
em outras oportunidades fora tão generoso coiii suas explicações? A resposta
é breve: qual palhaço e por ociosidade, Cristo quis, naquela ocasiao, bo-
bear e burlar os discípulos com palavras inúteis e obscuras, enquanto, não
obstante, poderiam ter celebrado perfeitamente a Santa Ceia com ele sem as
mesmas.
Em terceii-o lugar: A niaior besteira e quando diz que o pão significaria
ou seria uma semelhança do corpo dado por nós, e o cálice e o vinho seria
unia semelhança de seu sangue derramado a favor de nós. Meu caro, em que
consiste tal semelhaiiça no pão e no cálice de vinho? Pois para haver tima fi-
gura, um símbolo ou uma semelhança em qiie lima coisa signifique a outra, é
preciso indicar algo de semelhante nas duas ein que a comparação se possa
basear. Por exemplo, em Jo 15.4, a videira é uma semelhança ou figura dc
Cristo naquilo que ele mesmo diz:como o ramo não pode dar fruto, mas se-
ca se não permanecer na videira. Da mesma fornia, Elias é uma figura ou se-
melhança de João naquilo que o arcanjo Gabriel diz em Lc 1.17: que ele [cria
o niesmo espírito e poder de Elias. O cordeiro pascoal é uma semelhança dc
Cristo iio sentido como diz Ap 5.12: que foi morto e sacrificado a Favor clc
nós. Assim acontece em todas as figuras e semelhanças: tem que liavcr algo
em que consista a senielhança e que seja coiiium aos dois. Aqui, poi-fin, rio
pão e no cálice de viiilio não há nada em que o corpo e o sanguc de ('ris10
fossem semelhantes.
Agora, se Cristo dissesse: O pão é a semelhaiiça de ineu corpo dado n 1';~-
vor de vós; o cálice de vinho é a semelhança dc ineu sanguc, isso scria o iiics
iiio como se dissesse: O pão, que nâo tcrii nada scinclliaiilc coiii iiic~ic<nilio
dado a favor de vós, aitida assiiii E a sciiielliaii~;~
de iiicii corpii ~ 1 ; i c l r i :i Iliv<ii
Da Ceia de Cristo - Confihsãi>
-
de vós, como se eu, baseado em paul^"^, dissesse: Belial, que não tem nenhu-
ma semelhança com Cristo, não obstante é semelhança de Cristo. A luz, que
não combina com as trevas, não obstante combina muito bem, etc. Todo mun-
do sabe que tipo de gente é esta que fala assim, a saber: tolos e patifes loucos
e doidos, que, ao redor da mesa, falam de pássaros de Ferro que voam sobrc
o mar e da neve preta que cai no verão, para provocar gargalhadas dos convi-
vas. Os fanáticos estão fazendo de Cristo um louco ou patife doido igual quan-
do lhe atribuem as palavras: O pão é o sinal de meu corpo dado por vós, em-
bora tal semelhança não exista em parte alguma no pão.
Talvez queiram alegar que a semelhança consiste no fato de que tal co-
mo o pão é comido e o cálice é bebido, o corpo de Criso é comido espiritual-
mente e seu sangue bebido espirutalmente, etc. Meu caro, isso não diz coisa
alguma. Os fanáticos não baseiam o tropo nas palavras: "Tomai, comei" ou
"agradeceu", etc., mas na seguinte palavra: "Isto é meu corpo dado por vós";
por isso aqui não se pergunta pela semelhança no comer, tomar, agradecer,
etc.; aqui, exatamente aqui, digo eu, tem que ser identificada uma semelhan-
ça no pão, como é dado, morto, torturado e sacrificado para a remissão de
nossos pecados, para que possa ser e ser considerado uma figura ou semelhati-
ça do corpo de Cristo dado por nós para a remissão dos pecados, como rezam
as palavras. Do contrário, Cristo é um tolo ao chamar o pão de semelhança,
quando não é nem pode ser esta semelhança. Da mesma forma deve ser apon-
tada uma semelhança rio cálice de vinho no sentido de que, como ele é derra-
mado a favor de nós para a remissão dos pecados, assim também o sanguc
de Cristo seja derramado para a remissao dos pecados.
Pois é assim que Moisés procede com suas semelhanças, mostrando quc
os bois e bezerros são mortos e sacrificados e seu sangue é derramado ao pc:
do altar e aspergido para perdão dos pecados e para a purificação do povo,
das tendas e dos recipienteP, como a Epístola aos Hebreus nos mostra magis-
tralmente essa semelhança135.Especialmente o cordeiro pascoal tem uma semc-
Ihança muito bonita com o corpo de Cristo dado a favor de nós para a remis-
são dos pecados, porque foi morto e sacrificado, derramou seu sangue, foi as-
pergido e passado na porta para salvação do perversos. Tais semelhanças têiii
que ser indicadas também no pão e no vinho, ou então teremos que dizer: 6
rim bobo quem os compara ao corpo e sangue de Cristo dado e derraiiiadi)
por nós para a remissão dos pecados, posto que em parte alguma se encoritxi
qualquer semelhança. Para haver semelhança deverá conter algo semelliniilc,
ou cntâo é invenção e equivoco chamá-lo de semelhança.
Se Cristo quis instituir uma Santa Ceia em que não estivesse presenlc scii
corpo c sangue, mas semelhanças de seu corpo e sangue, sinip~smeiitcnos Ir
ri;! Icgado a antiga ceia de Moisés com o cordeiro pascoal [cf. Ex 12.Iss.1, qiir
sii~iholixtde I'oriria incomparável e perfeita, em todos os dclallics c ciii tocl;i~
Da Ceia de Cristo - Corifissào

as partes, de forma linda seu corpo dado a favor de nós e seu sangue derrama-
do a favor de nós para a remissão dos pecados, sendo uma figura ou semelhau-
ça, como todo niundo bem sabe. Por que então essa tolice, anulando essa bo-
nita ceia do Antigo Testamento, colocando em seu lugar uma ceia que não é
nada comparada aquela, seja em significaçio, seja em essência? De maneira
que se poderia dizer-lhe coiii razão: o Novo Testnmeiito é para ser o cumpri-
mento e a luz em comparafão com o Antigo Testarneiito. Mas tu o inverteste
a ponto de o Novo Testamento ser uni vazio e uma escuridão conlparado ao
Antigo Testamento. Pois Ia ainda se tem uni cordeiro, um corpo vivo que é sa-
crificado pelo povo, e qiie simboliza o corpo de Cristo de forma mais clara e
inteligível do que simples pão, semelhança que é uma semelhança obscura em
comparação com o cordeiro. E lá há o sangue do cordeiro que simboliza o san-
gue de Cristo de maneira bem mais clara e inteligível do que simples vinho.
Em resumo, essa Ceia de maneira alguma pode ser comparada aquela em sig-
nificado e semelhança. Portanto, se no Novo Testamento tudo deve ser mais
ioinpleto do que no Aiitigo, incluiiido as semelhaiiças, teria sido melhor qiie
.lesus iios tivesse deixado ficar com aquela ceia, oii então não é verdade que
há somente simples pão e vinho em nossa Saiita Ceia. Pois ela realmente teni
que superar em niiiito aquelaceia deMoisés, do contrário Cristo não a teiia abolido.
Aqui os fanáticos irão procurar de novo um subterfúgio e alegar que em
1 Co 11.24 Paulo diz o seguinte em seu texto: ''Isto é meu corpo, que é parti-
do por vós". A semelhan~ae o significado coiisistem aqui no partir, de mo-
do que, assim como na iiiesa o pão é paitido em pedaços, assim Cristo foi tor-
turado na cruz a favor de nós, etc. Ora, alg~iémque não tivesse proibido vene-
rar os santos e possuir imagens poderia agora prostrar-se diante da imageni
de Paulo e exclamar: Sniito S. Paulo, socorre a nós. pobres, miseráveis e ahan-
donados fanaticos, contra o furioso Lutero. Vê como nos aflige e persegue, n
ponto de não aguentarmos mais. Soniente tu podes ajudar-nos. dizendo que
o corpo de Cristo foi partido. Entretando, para ser breve, S. Paulo não pode
e não quer ajudar, porque as imagens dos santos "têm ouvidos e não escu-
tam" [SI 115.61.
Primeiro: Que nesse caso "partido" signifique tanto quanto "crucifica-
do" é invencão de sua própria cabeça. Podem prová-lo tampouco como a se-
melhan~ado pão com o corpo de Cristo. E pura conversa sein fundamento,
[provando] o ignorado pelo ignorndo. Nós, no entaiito, exigimos provas segu-
ras a respeito dessas seiiiellianças. Já que se gloriam conio tão seguros dc seli
poilto de vista, queremos que também tragam as provas ou que fiquem dcs-
mascarados como tagarelas.
Segundo: Aciina eu disse que os fanáticos não colocam seli tropo «LIscinc-
Iliaiiça nas palavras "tomai, comei, agradeceu", como também não nas pal:i-
vras: "Cristo tomou o pão, partiii-o e o deu aos discipulos". Aqui clcs dcix:itii
:is palnvras "tomar, partir. dar, pio, discip~ilos" scm caritcr dc Iropo. III:IS
c111scii sciitido literal. Por isso tamb&iii iiao clcvcriiiiri dcp<iis l':i/cr IIIII I r o ~ i i ~
(111 "porlir". qiiarido I'niilo cliii: "F,stc (: tiicii corpo parliclo c111favur clc vik".
Da Ceia de Cristo - Conlii\;io
-
porque trata do mesmo "partir" de que se faia acima: "Toinou o pão e o par-
tiu", até que tenham provado com clareza que se trata de outro "partir". Eii-
quanto isso afirmamos que se trata do mesmo "partir"em ambos os casos c
que não se subenteiide com isso a crucificação ou os sofrinientos de Cristo.
Pois Cristo não se aprisionoii, crucificou ou matou a si mesmo, como teria
que ser, se "partir" sigiijficasse tanto quaiito "matar", posto que ele mesmo
toniou o pão e o partiu com siins próprias mãos.
Terceiro: Nós nos atemos a Escritura, afirmatido que "partir o pão" sigiii-
ficadistribuir opão, como provei [no escrito] "Coiitraos Profetas Celestiais""".
S. Paulo diz: "O pão que partimos não é a distribuição do corpo de Cristo'?"
11 Co 11.16.1 É totalmente injurioso quando alguém afirma, sem base na Escri-
tiira, que "partir" significa o mesmo que crucificar ou matar. Em nenhuma
parte "partir" significa o mesmo que degolar ou matar. Por isso é mera inveii-
$20 com que os fanáticos querem enfeitar-se. Quereinos que se iiidique uma
semelhança convincente no que diz respeito ao pão e ao corpo de Cristo dado
por nós. Ainda que a semelhança estivesse no "partir" (o que não acontece),
não está ai a parte principal da semelhança, ou seja, que o pão é partido e »
vinho derramado para nossa salvação. Pois o pão e o vinho devem e têni quc
ser uma semelhança desse corpo e desse sangue de Cristo que foi derramado
em favor de nós, e ainda, que através disso somos redimidos, como diz o texto:
"luto é meu corpo e meu sangue dado e derramado por vós para a remiss5o
dos pecados". Essa setiielhança o "partir" não a pode fornecer. O cordeiro
paicoal, porem, e a antiga ceia o podem muito bem. Por isso, neste caso p i o
e vinho não podem ser nem podem ser chamados de semelhança do corpo c
do sangue de Cristo no sentido como rezam as palavras da Santa Ceia. Ape-
nas aiiota a margem que Joáo nem usa o termo "partir" em relação ao sofri-
mento de Cristo, quando escreve que sequer uma perna de Cristo foi quebrn-
da, para que se cuniprisse a Escritura: "Nerihuni de seus ossos será quebra-
do", etc. [Jo 19.33ss.I. Por isso a Escritura iião p e r r ~ t eque se aplique o "p;ii-
(ir" ao sofrimento e a morte de Cristo.
Quarto: Adinitamos que pelo "partir" o pão se asseinelhe ao corpo cruci-
ficado de Cristo, o que não ocorre; como, porém, será lia outra parte com o
cálice ou copo de vinho? Como pode aqui o vinho ser uma semelhança do saii-
gue de Cristo derramado por nossos pecados? Pois beber não é uma semclhaii-
ça do sangue derramado de Cristo, mas d o beber espiritual, isso é, da fé, ço-
in« eles próprios ensinam. Aqui o pobre cálice de vinho fica tão nu e humilliii-
CIO que pior não poderia ficar, porque não tem um fio de senielhanca e, 1150
cihstaiite, é para ser r ser contiderado urna semelhança d o saiigue de Crihio
clcrrurnado por nós. Oride estás agora, S. Paulo? Se tivesses dito, com rcla$ài~
:i11 cálice, que as iiiãos de Cristo tremeram, a ponto de derramar o cálicc, i1<5s
~iolircsIànáticos ao menos poderíamos ocupar-nos algum tempo com esse cicr-
Da Ccia de Cristo - Confissão
ramar, como agora nos ocupamos uma hora com "partir". Por que S. João,
quando estava nos braços de Jesus [cf. Jo 21.201, não tocou com a cabeça no
cotovelo de Cristo, quando pegou o cálice e o deu aos discípulos? Se ao me-
nos tivesse sido derramada uma gota, seria suficiente e poderíamos dizer: Aí
está! o vinho tem semelhança com o sangue de Cristo sob o aspecto de ter si-
do derramado. Ainda que esse derramamento não aconteça para nossa salva-
ção ou proveito e assim não tenha semelhança com o sangue de Cristo na ques-
tão central das semelhanças, como o exigem as palavras na Santa Ceia, não
obstante acontece para a redenção de nós pobres fanáticos desse grande apu-
ro e vexame. Porque outra semelhança não podemos indicar, ainda que há
muito tempo e por toda parte e com muitos livros proclamemos que o vinho
seria uma semelhança e uma figura do sangue de Cristo que foi derramado
para a remissão de nossos pecados; agora, porém, não se acha um indício se-
quer dessa semelhança.
. Aí vês o que ganham os escarnecedores de nosso Senhor Cristo, e quem
bobeia mais ao outro. Pois sua figura não pode ser nem gramatical, nem teoló-
gica, nem natural. Isso é: sua semelhança não resiste a nada, pois nem nas pa-
lavras, nem na Escritura, nem na natureza se encontra tal semelbança. Se esti-
vesse nas palavras, o termo "corpo" deveria ser desdobrado em dois e, não
obstante, preservar as mesmas letras, e designar dois corpos de Cristo, como
a palavra "videira" se transformou em dois vocábulos, conservando, não obs-
tante, as mesmas letras e designando dois tipos de videira. Agora, o pão não
pode ser nem chamar-se de corpo de Cristo. Se isso ocorresse na Escritura, o
pão deveria conter semelhanças que pudessem revelar o corpo de Cristo dado
a favor de nós, como o fazem todas as semelhanças na Escritura. Mas, se ti-
vesse que ser uma semelhança natural, o pão deveria ser tao parecido com o
corpo como a rosa de madeira com a rosa natural. Pois uma semelhança natu-
ral ocorre quando qualquer um nota por natureza, sem qualquer explicação,
o que está representado, como o fazem os quadros. Pois ao que conhece uma
rosa, não se lhe precisa dizer que uma rosa pintada é semelhante a uma rosa
natural. Dessa forma, porém, o pão jamais se assemelha ao corpo de Cristo,
muito menos se lhe assemelha no aspecto de ter sido dado em favor de nós.
Portanto, para onde quer que se vire a fantasia dos fanáticos, ela é podre
e sem valor. Pois acima provamos que eles não possuem uma versão segura
do texto. Agora, mesmo que quiséssemos aceitar sua versão como confiável,
esta coisa deteriorada não resiste e se desvanece em nossas mãos. Pois quem
pode satisfazer-se com uma versão que reza: O pão é a semelhança do corpo
de Cristo, mas não pode ser a semelhança do corpo de Cristo? Quem pode,
simultaneamente, dizer sim e não no mesmo discurso e no mesmo assunto? A
cssc aconteceu como aquele louco que construiu um moinho movido a ágiia
1111 iiiorro. Quando o moinho estava pronto, perguntaram-lhe de onde iria biis-
cal- a água. Ao que respondeu: Nisso eu realrnente não havia pciisado. I>:I
iiicsiiia kli-ma os fatráiicos cstâo apcgados ao "significalismo" c i scii~clli:iii-
?o dc tal li>~.rna( 1 1 1 ~11i1d:lC O I I S C ~ I I C I I P
I C I I S ~ I I l i ~ r disso.
i~ MCSIIIO C ql~ises
~ I I sc
Da Ceia de Cristo - Coiifi*\ái>

I
I
sr conceder-lhes ganho de causa, aceitar essas seinelhanças e pedir que nos eii-
sinem em que consiste essa semelhança do pão com o corpo de Cristo, eles tc-
riaili que confessar: Olha, nisso não havíamos pensado. Achávamos que basta-
va chamar algo de semelhança, e ela estaria ai. É que nosso espírito quis sei.
Deus desde o começo, a porilo de que tudo que dissesse tinha que ser. Vê, i\-
so e levar a queda a si mesmo pelas próprias palavras.
Eiiibora com isso o tropo dos fanáticos esteja suficientemente refutado,
não vão poder ceder e calar, pois quem poderia tapar a boca do diabo? Esse
sênero de demônios 1130 sai senão com jejuin e oração'". Eles querem e preci-
sam sentir-se vencedores por algum tempo. Dirão que as semelhanças 11- ao cos-
tuiiiam ocorrer em todos os detalhes e que o pão podc ser semelhança do cor-
po de Cristo em outro sentido do que aquele que "o corpo de Cristo foi da-
do em Favor de nós", por exemplo, no comer, no tomar, etc. Sobre isso res-
pondemos suficientemente acima. Eles mesmos não procuraram nem estabelc-
cerain a semelhança nessas palavras e termos da Santa Ceia, mas, sim, no cor-
I po que foi dado por nós. Se eiicontram semelhanças eiii outras partes elas não
I dizem respeito a Santa Ceia e não sustentam sua Fantasia. Eles têm que perma-
i necer nesta questão: isto é uma semelliança de meu corpo dado em Favor de
vos. Se não o indicarei11 e iião concordarem coin isso, estão ralados.
I Com isso basta, por enquanto, a respeito dos tropos, para que os iiossoi
! e os que têm vontade de ficar com a verdade possam se defender bem da clini.-
latanice do diabo. De resto, E c o l a m p á d i ~se~queixa
~ ~ muito de que estaria blas-
femando e que estaria começando meu escrito com o diabo, disparate esse quc
até Zwinglio comunga'3'; e alguns afirmam que meticionei o diabo setenta e
sete vezes. Esta é uma coisa loiiuável, honrosa e, não obstante, muito necesd-
ria de escrever, porque nada se pode contestar. Por que não contam tambtni
quantas vezes menciono a Deus e a Csisto e como luto a favor de Cristo coii-
tra o diabo? Pois é, isso iiào combina bem c0111 o veneno que querem inciilcar
rio homem do povo: que o cnsinamento de Lutrro seria do diabo. Essa r a p
de v i b o r a ~quer
' ~ ~ alardear amor, paz e comedimeiito, mas está repleta de vciic-
iio como uma salamandra colorida. Pois bem, declarei que não escrevo contra
carne e sangue (como ensina S. PauloI4', mas contra o diabo e seus asseclas.

137 ci. ~ I 9.29. C


I i H A p;iriir daqui, Luiero a r ocupa com o daiadeiio escrito dc FcolariiF>ddio: I>ns di'~i i i i n t i i . ~
ri.i,id . ,iit hcrron i n q . Dir andei billjche snrwurl, cf. n. 25. No quc scguc, eslc c\irili, irei
; i rcicr2iicia bibliogrifiça expi-erya assim: 2 Biilichr Arili\:<iir. cp. ... .
I li) i lliiliclir Ai~lworf,cp. 2, b 2 ' : "E.? ist fiçyiii-li frii, zeilliclieii Fiideii eii7;iIriri 'icti ii.i<iirr<.ii
i tc . rzijr drn Iii>rlirteii sdiiiiacliiuoifrri lerfeirn ... vuni ieiiflcl ;iiilii,lii,ri /ir i f .
d ~ v!td ~ ti,? ;die!z rt"1c11 Iccil'l'el :t~8.~z.~pcyen'' -- (''E<ta 6 , s c n ~ciÚvi&~, tt!n;t l x k t ~ O ~ I I Iele
; % III;~L>
1i.i ;i lp;i, Iciii11or;il qii;m<i,, \i di'\pio;i i>pi<iniiiii, iiiiereci~i;irncrilicom ;is ]iii,i'c\ crliici\iirh ...
~ < I O K V ; >:t I'hlx~<I<>cii;cIx> c a v o t ~ ~ i l ; tcr l k ~ CIU
l ~ IL><IO
~ ~ qoc
~ se <li,'').
l . I l 1 < 'I. h11 2 3 . 3 3 .
Da Ceia de Cristo - Confissáo

Por isso estou agindo corretamente se cito o diabo com freqüência. Será que
devo me intimidar por causa dos delicados fanáticos, altamente espirituais, pro-
fundamente santos, a ponto de não poder mencionar meu inimigo? Aceito até
que me chamem de blasfemo e briguento onde ataco o diabo em seus mensa-
geiros de forma tão enérgica e confiante. Prefiro minha mordacidade livre,
aberta, pública e simples contra o diabo a suas punhaladas venenosas e traiço-
eiras desferidas contra os sinceros sob a aparência da paz e do amor, como
os salmos se referem a tais serpentes, e t ~ . ' ~ ~ .
Em terceiro lugar ele escreve143que o texto: "Isto é meu corpo" não está
claro, como eu afirmo, porque o corpo de Cristo não está visivelmente presen-
te, e que tampouco provo minha assertiva. Por uma simples razão: não cito
uma passagem da Escritura que afirme que o corpo invisível de Cristo está pre-
sente. Minha posição seria inconsistente, porque o corpo de Cristo foi dado
visivelmente em favor de nós, e o texto fala do corpo de Cristo dado em fa-
vor de nós e que está presente de forma invisivel. Minha resposta: Realmente,
para os fanáticos não provei nada, nem poderei fazê-lo. Eles não o querem ler,
nem saber ou compreender, como diz o salmo: Fecham os ouvidos como uma
serpente para não escutar a voz do sábio encantado^'^^. Para os nossos (disso
tenho certeza) esclareci esse texto o suficiente, dando esta norma: na Escritu-
ra se deve deixar as palavras em seu teor, de acordo com sua natureza, e não
atribuir-lhes outro significado, a menos que um notório artigo de fé obrigue
a isso. Essa norma consta em meu livro. Mesmo assim, Ecolampádio afirma'45
que não ofereci norma nenhuma. Visto que estas palavras: "Isto é meu cor-
po", de acordo com a natureza e modo de falar de todas as línguas, não falam
do sinal do pão ou do corpo, mas do corpo de Cristo, deve-se deixá-las como
estão e não dar-lhes outra interpretação, a menos que a Escritura o exija.
Onde se tem tais palavras, cujo significado exato é conhecido de qualquer
um, e não havendo prova de outro significado, temos palavra e texto claros,
liinpos e evidentes. Jamais alguém ouviu no mundo inteiro que "corpo" deves-
se ser semelhança do corpo. Isso é uma interpretação nova, obscura e inusita-
da no mundo inteiro. Por essa razão deve ser comprovada com rigor. Mas,
como todos sabem, a primeira interpretação está clara e certa em si mesma.
Núo é lindo que Ecolampádio invente uma interpretação nova, desconhecida,
obscura e duvidosa, querendo conseguir com isso que a antiga interpretação
scia considerada obscura e duvidosa? Desse jeito nenhuma palavra da Escritura

1.12 <'I'.SI 140.3.


1.13 2 Hilliche Antwort, cap. 3 b 2" - titulo: "Ob die worr, Das ist mein leib, klai seind, viiil k c i ~
iter ;tu.sslcg~rngd6rffen" - ("Sc as palavras: 'Isto é meu corpo' sáa claras e (não piccih:jiii <Ir
,r~>>Ii"n"a""~
~
I

haveria de continuar clara, se for permitido que qualquer espírito estabeleça


uma nova interpretação e alegue que a antiga é obscura e duvidosa. Isso leva-
rá a conclusão podre que Ecolampádio tira daqui, ou seja: o texto diz: "Isto
Da Ceia de Cristo - Confisráo

é meu corpo dado por vós". Ora, ele foi dado por nós de forma visível, por-
tanto não pode estar presente de forma invisivel. Isso mostrei acima suficiente-
mente ao Zwínglio. Mais uma vez: o prefeito está no banho sem calça verme-
lha e também não está.
Eu não sabia que Ecolampádio é um lógico ou dialético tão miseravelmen-
te pobre, a ponto de trocar a substância pela qualidade e de fazer conclusões
do acidente para a ~ubstância'~~. No caso de Zwinglio isso não admira, pois
ele é um doutor autodidata; esses costumam dar nisso. Em verdade, quem
quer debater e não conhece os elementos rudimentares da lógica, que pode con-
seguir ele de bom? Ecolampádio me irrita tanto com isso que doravante não
espero nenhuma prova de inteligência dele. Pois, ainda que não seja necessário
que conheça as sutilezas e sofismas inúteis dos sofistas, deveria conhecer pelo
1 menos os rudimentos, isso é, a dialética simples, como as regras da dedução,

I as formas dos silogismos, as espécies de argumentação, etc. A não ser que eu


o tenha atingido tão violentamente com a verdade (até acho que é isso) que

i
I
não consiga mais ver direito o que está falando. Pois, dize-me, quem pode ad-
mitir que um homem ponderado possa dizer o que Ecolampádio diz aqui?'",
isso é, que o texto: "Isto é meu corpo" não estaria claro porque o corpo de
Cristo não está visivelmente no Sacramento e que somente os crentes entendem
um texto desse tipo, como teria dito Agostinho. Será que um texto é duvido-
so porque o objeto é invisivel e porque somente o crente o compreende? Que
passagem da Escritura estaria clara então? Afinal, tudo quanto a fé ensina é
invisivel. Desse modo tambéin não estaria claro o texto: "Deus criou céu e ter-
ra" [Gn 1.11, pois Deus e seu ato de criação são invisíveis. Como poderia fi-
car claro que na Santa Ceia haveria somente simples pão e vinho? Pois, se al-
I go mais há, é invisível. Que proveito tem esse espírito dessa fantasia, a não ser
que causa sua própria ruína? Realmente, com essas alegações superficiais estão
longe de nos levar para o lado deles e comprovar seu ponto de vista.
Sabcmos, no entanto, que as palavras: "Isto é meu corpo", etc. são cla-
ras e inequívocas. Quer seja cristão ou gentio, judeu ou turco que o ouça, ha-

146 ... quod pm quaijter- ... ab nccidenle ad substantiam, no original.


147 2 Billiclie Alitwort, cap. 3 b 3': "Iten* S. Augustin [li". 3 de trin. cap. 101 bekennet, wo cin
kirid dic wort boi*, mochte es in eiii faaritasey kurnrncn, Cliristu.~leib wer also gestait gewcroi
w k das bioL. Aber wii sollen es bass veiston vnd ein aiidem veistand darauss nernrnen... Wie
d;in gcrnL.inklic1~die allen in jrm predige~rsagen: 'Norunt fnitiati quid dicanios'. D.a.7 ihi, clic
viidcrwissnei~iin glauberz wi,$sen was &virsagen" - ("Tarnbkrn Sto. Agostinho corifcsha I 1 . i ~ .
3 I>? 'lin,iraie, ç;i]>. 101 que, ye tima criança ouvir essas palavras, poderia imaginar cm siiti kiii-
t;i\i:i (liic i>çoi li,) 'li Cristo iivcsic lido ;i foriria dc ~>.ío.Niis, porém. Iiavereiiios qiic c i > i i ~ ] i ~ e c r i ~
<I?1,) ntclltoc c ~ I a v ~ l,>t~lr;,
I~c i ~ ~ l c r ~ ~ ~C cO ;xIiAs,
l ~~ ~I O
~ ,~ o 0. s. .;o,ligus ~I~YCIII
c111gcr:tl cnl w t h
' O i icliciil<l~)b If \i~l>ccil
~>ic.~:;iqi>rr: < I iluc c*lic~t~o\ <li,.ctiil<l"').
Da Ceia de Cristo - Confissão
verá de admitir que aqui se fala do corpo de Cristo que está no pão. Do con-
trário, como poderiam gentios e judeus zombar de nós, dizendo que os cris-
tãos devoram seu Deus, se não entendessem bem e com clareza esse texto?
No entanto, o fato de se confirmar que o crente compreende e que o incrédu-
lo despreza, não é problema de obscuridade ou falta de clareza nas palavras,
mas é culpa dos corações que o ouvem. Os poetas também sabem falar de for-
ma linda e com palavras clarissimas não somente de coisas invisíveis, mas até
de futilidades. Quanta gente é ludibriada por palavras bonitas de mentirosos,
cujo significado entendem tão bem! De que forma as pessoas agora são seduzi-
das por fanáticos que falam de coisas fúteis (sem pensar nas invisíveis)? Exata-
mente por entenderem de forma clara e iniquívoca as palavras. Na verdade,
as vezes as palavras coin que se ludibriam as pessoas e com as quais se fala
de futilidades são mais claras e inequívocas do que aquelas com que se fala a
respeito da verdade. Pois, se não entendessem clara e inequivocamente o signi-
ficado das palavras, não seriam ludibriados. Entretanto (como já disse), Eco-
lampádio e esse espírito carecem dos rudimentos da dialética, de modo que
da dificuldade ou obscuridade de compreensão no assunto infere obscuridade
de significado nos vocábulos. Isso é distinguir mal as coisas, é ignorar o tercei-
ro elemento da d i a l é t i ~ a ' ~ ~ .
Pela mesma sutileza ele alega que, sendo a Santa Ceia um sacramento, as
palavras: "Isto é meu corpo" devem ser entendidas sacramentalmente, ou se-
ja, "isto é um sinal de meu corpo". Para que essa fantasia? Admito de todo
coração que a Santa Ceia é um sacramento, ainda que na Escritura não seja
chamada assim. Como, porém, segue-se dai que as palavras sejam sacramen-
tais, tropológicas ou (como dizem eles) figuradas? Não é uma consequi.ncia
ou dedução bonita? Ai está um sacramento; logo as palavras nele contidas de-
verri ter sentido figurativo? Meu caro, por que então as demais palavras não
sáo entendidas igualmente de forma figurativa, e por que o tropo está sendo
aplicado somente as palavras "é" e "corpo"? Ou então, onde existe uma re-
gra que nos ensine que palavras devem e que outras não devem ser tidas por
figurativas? Pois de acordo com esse ensinamento, também posso entender tro-
lpologicamente as palavras "tomai, comei, farei isto em memória de mim" e
dizer: "tomai" significa ouvir, "comer" quer dizer crer; "fazer isto" signifi-
ca pciisar no coração; "memória" seria um crucifixo ou outro objeto de lem-
hi-aiiça. A razão seria a seguinte: aqui temos um sacramento; logo, as palavras
iiclc contidas devem ser entendidas de forma sacramental ou figurativa. Pois
(Icscoriheço qualquer razão pela qual não devessem ser entendidas de modo fi-
~:iiintivotanto essas quanto aquelas. Desse jeito o próprio Deus dificilmente
~~odci-ia instituir um sacramento. Pois como poderia falar de sacraincrito, sc
ii~tI;isas palavras serão entendidas de modo diferente do qiic rcznni'! Sc l':iln

ILIS ~ iii>,v<iriil;iii.ii>lclii.ciii<ii iri i<, i i i k i i i > l ~ , ~ < ~ i i i i l ; i ,iii:iiilii;iii<li


. . i . \ < l i l l i i . i i l I ; ~ i iii.1 ii.iii iii i.i,t.:il>iili\.
I i f 1 ~<.\I
- rm;iic <livi<k,ri,,r<.ili;~iiii,;irl<,i?iwiii<.ci I)i;~ic<.ii<.<. ii.ii,,i;ii<.. iio i > i i i , i i ; i l .
Da Ceia de Cristo - Confissão

de forma simples, corno é da natureza das palavras, não é sacramento, porque


não se trata de tropos e palavras figurativas. Se fala de forma figurada, não
se sabe o que diz.
Coisa de tolo. Quando Moisés instituiu o cordeiro pascoal [cf. Êx 12.lss.I
que, afinal, era uma imagem e figura de Cristo, não usou de nenhuma palavra
figurativa, mas de palavras secas, claras e simples, como eram de uso geral.
Todas as figuras do Antigo Testamento são descritas com palavras secas, sim-
ples e claras e não há uma sequer que estivesse descrita de forma figurada, de
maneira que se deve inverter a regra de Ecolampádio e dizer que não se pode
falar de nenhum sacramento ou figura sem usar palavras secas, simples e e!
uso geral. Do contrário, quem o compreenderia quando Moisés diz em Ex
12.5: "Tomareis um cordeiro de um ano e o comereis", etc., se não se referis-
se simplesmente a um cordeiro e a um comer natural, mas se fosse de opinião
de que devessem pegar um sinal daquele cordeiro de um ano e comê-lo espiri-
tualmente? Da mesma forma, quem compreenderia a João, quando diz: "Eu
batizo com água" (Jo 1.26), se não falasse simplesmente de água e batismo
natural, mas quisesse subentender: Eu batizo com um sinal da água? Ora, que
direi? Se Ecolampádio não escreve isso por maldade (como espero) então ja-
mais ouvi um homem tão tolo, simplório e imprudente em toda a minha vida
de homem erudito. Afinal, tudo quanto quer alegar a seu favor depõe direta-
mente contra ele.
Receio, entretanto, que o diabo tenha nisso outra intenção (afinal, quem
de nós está seguro do diabo?). Como ele sabe que Cristo é chamado de sacra-
mento na Escritura, como em 1 Tm 3.1614y,poderia ter por objetivo que tam-
bém sejam tomadas como expressões figurativas quando se diz que Cristo é
Deus e homem, etc. Atrás disso existe uma intenção; não é a toa que diz essas
infantilidades. Em resumo: mais uma vez Ecolampádio revela falta da dialéti-
ca elementar que ensina bene dividere, isso é, a distinguir bem na expressão.
Pois o sacramento ou o fato e as palavras com que se fala do sacramento são
coisas distintas. O sacramento ou o fato, evidentemente, pretendem ser sinal
ou semelhança de outra coisa. As palavras, porém, não devem ter outro signi-
ficado que o literal, como o cordeiro pascoal de Moisés pretende, sem dúvida,
prefigurar e sinalizar a Cristo. As palavras, no entanto, com que Moisés fala
do cordeiro pascoal querem falar simplesmente do cordeiro pascoal e nada
mais. Da mesma forma, a circuncisão quer prefigurar a mortificação do velho
Adão; mas as palavras com que Moisés fala da circuncisão querem tratar efeti-
vamente da circuncisão física. Por sua vez, o Batismo quer significar o afoga-
inento dos pecados, mas as palavras do Batismo querem falar simplesmente
da imersão na água.
Da mesma forma o sacramento da Santa Ceia pretende, é claro, prefigu-
rar e sinalizar algo, ou seja, a união dos cristãos em um só corpo espirit~i:il
Da Ceia de Cristo - Confissão
de Cristo, através do mesmo espírito, na mesma fé, amor, cruz, etc. As pa-
lavras desse sacramento, no entanto, querem e precisam significar simplesmen-
te o que expressam. Meu prezado Ecolampádio, porém, encontra aqui, de
olhos vendados, uma verdadeira aieose zwingliana e, no escuro, faz troca, fa-
zendo da figura do fato uma figura lingüística, do seguinte modo: o fato é fi-
gurativo, logo as palavras referentes aos fatos figurativos são figurativo^'^^.
Deve ser um bom e ridículo padre este que é envolvido inocentemente nessa
questão. Teria sido melhor se tivesse ficado de fora. Por acreditar que ele o
faz por ingenuidade, quero fazer-lhe essa concessão, visto que se dá muito tra-
balho com as palavras de Gn 17.10, no sentido de que a circuncisão seria uma
aliança, quando, na verdade, pretende ser um sinal da aliança. Pois meu Livro
de Gênesis não diz que a circuncisão seja uma aliança e um sinal, como eu
bem poderia provar, a ponto de doer ao diabo. Visto, porém, que isso nada
contribui para a questão, ainda que neste ponto tivesse razão, eu deixo como
está. Porque com isso ainda não estaria provado que, por esse motivo, na San-
ta Ceia "corpo" também devesse ser sinal do corpo. Da mesma forma quero
desculpá-lo por fazer da pedra natural na passagem de Paulo: "A pedra era
Cristo" [l Co 10.41 uma rocha espiritual, considerando que está inventando
coisas de sua própria cabeça, sem nada provar. E mesmo que o pudesse pro-
var amanhã, ainda assim não decorre dai que por isso aqui "corpo" também
deva significar sinal do corpo. O mesmo acontece com a passagem de Êx 12.11:
"É a páscoa do Senhor". Dessas passagens e dos tropos tratei suficientemen-
te mais acima. Vamos ao assunto principal: que a Escritura estaria contrarian-
do nossa interpretação. Talvez se revele aqui a alta sabedoria.
(Ele diz) que a Escritura obriga a concluir que Cristo não está na Santa
Ceia1*'.Que passagem [da Escritura]? Aquela em que Cristo diz: "Os pobres
sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes" [Mt 26.111.
[Diz também] que Cristo não quer ser procurado aqui ou ali, etc.l5%Como "es-
tar presente" e "não estar presente" conflitam, deve haver simples pão na San-
ta Ceia. Em relação a essas passagens foi dito o suficiente de nossa parte. En-
tretanto, eu havia solicitado em meu último livrolS3que não nos dissessem que
essas passagens conflitam, porque já ouvimos isso o suficiente da parte dcles
e já sabemos ser isso o que afirmam; queríamos que o provassem. Neste pon-
to, porém, Ecolampádio silencia tanto quanto Zwínglio. Por isso não tem fun-
damento o que dizem. Ambas as coisas podem ser verdade: que Cristo esteja

150 ... ex figura rei figuram sennonis hoc modo: Res est figurativa, ergo verba de rebits figiiralivis
sunt figurativa, no original.
151 2 Billiche Antwort, cap. 4 d 1". tituia: "Das gegensdin'fft dn'ngen, das tiiiscrn vciaaii<l i!?<li.,i
worien Chrsti gehalten werden solle" - ("Que argumentos conbirios da 1iscritiir:i i>hrig;tm:i
que nossa compreensão das palavras de Cristo deve ser iiiantida").
152 Cf. Mc 13.21: Mt 24.23.
153 Cf. WA 23,119,llss. e 275.15~~.
Da Ccia de Cristo - Confissão
presente e que também não esteja, ao mesmo tempo, de acordo com uma ou
outra forma. Ele tem mais de uma forma de ser, como foi dito acimals4.
Ao falar da direita de Deus [afirmei] que o corpo de Cristo deve estar on-
de Deus está. Disso Ecolampádio, como também Zwinglio, deduz que Cristo
não tem:6po realLs5,tecendo as mesmas grosseriaslS6que Zwinglio, ou seja,
que o corpo de Cristo deveria ser do tamanho do céu e da terra e, mesmo as-
sim, inapreensivel. Essa dedução ele deveria provar. Ai, porém, silencia de no-
vo. Em resumo, esse espírito não quer responder quando se pergunta. Nós di-
zemos não. Por isso o corpo de Cristo não precisa ser do tamanho dos céus e
da terra, posto que o próprio Deus, que está em toda parte, não é tão grandc
e abrangente. Embora acima tivesse dito muita coisa sobre isso, tenho quc
acrescentar uma coisa contra Ecolampádio. Visto que Deus pode mais do que
compreendemos, não é preciso afirmar que as duas coisas conflitam: o. corpo
de Cristo no céu e no pão, baseando-nos somente em nossa presunção e con-
clusão, porque ambas [as afirmações] são palavra de Deus. É preciso que sc
prove com abonação da Escritura que as duas coisas são conflitantes. Enquan-
to não se faz isso, a fé afirma: Deus pode muito bem manter o corpo de Cris-
to de determinada forma no céu e de outra no pão. Se isso acontece nos dois
lados de forma e maneira diferente, não se trata de contradição, assim como
não é contradição que Cristo estava sentado com seus discipulos depois da res-
surreição, conforme o último capitulo de Lucas, e, ao mesmo tempo, não esta-
va com eles, como diz ali: "São estas as palavras que eu vos falei, estando ain-
da convosco" [Lc 24.441. Aqui se lê "convosco" e "não convosco", e, não
obstante, não há conflito, pois a dialética elementar ensina que as conlradi-
ções devem acontecer no mesmo objeto, de acordo com o mesmo objeto e so-
bre o mesmo objeto, etc..'51 Quer dizer que espíritos desse tipo deveriam scr
mandados para a escola para que se Ibes ensinasse o Pedro H i ~ p a n o ' ~o ~que
,
certamente estão precisando.
Tenho que dar um exemplo simples. O sol se reflete numa grande lagoa
ou num açude. Ali não deveria haver mais de uma imagem do sol na água,
posto que existe somente um sol. Como fica, porém, quando centenas e cente-
lias de pessoas estivessem ao redor da lagoa e cada uma tivesse o reflexo do
sol para si, em seu lugar, e ninguém no lugar do outro? E se rodeasse o lago,

I54 V. aciina p. 235ss. e 361ss.


I55 2 Rilliche Antwort, cap. 5 b 3", título: "Ob Chnstus leib im nachtmal sey, dariimb das dic r ~ ~ l i -
lc hnrid Goftes an d e n orten." - ("Se o como de Cristo está na Santa Ccia, porque a itiào
ilircita dc Deus está em toda parte.")
150 ... .s,>Nirief ebcn dtissçlbige sackgarn. no original; literalmente seria: ... fia o mcsmo fio jirc>rsciL
1 0 [ ~ u r i lsacariu.
1 Y l ... co,ilradiclori.a dchent fieri ad idem, seciindum idem, circa idem, no orignal.
158 I'i,rln, Ilehiili-(iiiili;ini, apelidado Hispario, nalural d i Portugal, ciciitista e iiiedico, : i i i l o c <li,
i~l>i;is iIc filosdia, ~isici>lopin,ciêlicins cialiirais c itiediciiia. e(i1i.eel;is iim rii;iniial ile Ibyic;i IIIU~
logic~tlc,~;
c l ; t :(v ,St,r~~t?~,l~tc
10 c,tn t ~ c ,~ ~ : t q ~ ~tpcvc$~, carcIc:~l(1273) c 11;tp:i (.IoXo XXI. I216 12'171.
Da Ceia de Cristo - Confirráo
a imagem a acompanharia e estaria em todos os lugares aonde ela vai. E se
mil olhos olhassem para o lago, cada um veria a imageni para si mesmo e não
pelo outro. Ora, isso é uma coisa criada, e de determinada maneira pode estar
em todas as partes do lago. Meu caro, quem nos obrigará a negar que Deus
não saiba muito mais formas e que não tenha poder [de fazer] com que Cris-
to seja como ele quer, em toda parte, ou onde quisesse? Eu digo que aqiii, an-
tes de mais nada, é preciso responder e provar que o poder de Deus não é ca-
paz disso. Quando nào se prova isso, é uma blasfêniia terrivel dizer que as
duas afirmações são conflitantes: o corpo de Cristo no céu e na Santa Ceia,
porque não podem ter certeza disso. Por outro lado, as palavras certas de
Deus estão aí: "Isto é meu corpo".
Mas nesse ponto esses espíritos inteligentes não escutam; decerto até ficam
rindo desses exemplos. Por isso digo aos nossos: deixem que fiquem rindo, e
tomem a substância por qualidade, cartie por divindade e vice-versa, e debatam
da forma mais viciosa com total ignorância da lógica159;para nós basta que
não provem nada. Vou colocar mais um exemplo: Imaginemos uma coluna er-
guida na praça e milhares e milhares de olhos ao redor contemplando-a. Ca-
da olho apanharia a coluna inteira em sua visão e um não atrapalharia o outro.
E a coluna estaria inteira na visão de cada um e diante de cada olho, como
se fosse somente um olho e uma só visão, porque nenhum veria mais ou me-
nos da coluna do qiie o outro. Poderiainos trazer muito niais exemplos desse
tipo, especialmente da área da matemática. Como, porém. estarnos acostuma-
doi a essas coisas, ninguém as considera milagre. Por isso a razio maliica es-
tranha tanto que um corpo possa estar simultaneamente em muitos lugares,
simplesmente porque não o vê. No entanto, deveria ser também um grande e
inacreditável milagre se não tivéssemos olhos e dispuséssemos apenas dos qua-
tro sentidos: tato, olfato, paladar e audição, que, sem exceção, não podem
perceber as coisas a distância, mas somente de perto. Se então alguém anuncias-
se que Deus pode criar um órgão que, num instante, pode dcançar oito, no-
ve ou dez milhas e perceber coisas [a essa distância], quer dizer, [que Deus é
capaz de ci-iar] um olho - um cego de nascença tanibérn ficaria marauilhado
e diria: Meu caro, como isso é possível? O alcance de minha mão não é de
uma braça, minlia língua não sente e gosto à distância de um dedo, meu nariz
não pega o cheiro a mais de um palmo, rneu ouvido, se alcançar longe, escii-
ta à distância de uma quadra, e tu me falas de um órgão que percebe as coi-
sas a dez milha de distância?
Nós, porém, que enxergamos, já não o consideramos inais um milagrc.
Alcaii$amos até mais longe com os olhos, até o sol e as estrelas, sim, do nas-
cente ao poente. Não obstante, o olho é algo físico, carnal e mortal, mas um
só olho pode abranger meio mundo em um instante e estar presente com sii;i
Da Ceia de Cristo - t 'iiiili~.,.iii,
visão em todos os lugares simultaneamente nesse meio mundo. Como podcri;~
mos pretender limitar e medir o poder de Deus, como se com o corpo dc (:ris-
to não pudesse fazer mais do que faz com nosso olho mortal, posto que nos-
sos olhos são muito menos em comparação com o poder e a obra de Deus do
que o tato e o gosto do cego em comparação com nossa visão. Visto que te-
mos diante de nós as palavras claras e precisas de Deus: "Isto é meu corpo",
e visto que nem na Escritura nem no uso de nenhuma língua alguma vez se
ouviu que essa expressão "meu corpo" tivesse outro uso ou sentido diferente
do que o literal; ademais, conhecendo o poder de Deus e não sendo, em par-
te alguma, contrário a Escritura e tendo muitos exemplos na natureza; visto
que os fanáticos foram apanhados em tantas mentiras falsas e argumentos sem
base, convém que se creia mais em Deus do que em nossa imaginação. Se os
fanáticos fossem apanhados publicamente em equívoco numa só questão, já
estaríamos suficientemente alertados por Deus de não Ihes dar fé e ficar com
as palavras de Deus, pois o Espírito Santo não mente, nem falha ou duvida.
Acontece, no entanto, que, pela graça de Deus, nós os flagramos em mentira
e erro em quase todas as questoes; nas outras, achamo-los ao menos incertos
e duvidosos, de modo que, mesmo que eu tivesse dúvidas a respeito de minha
interpretação e gostasse de me juntar a eles, não poderia fazê-lo, porque vejo
que a mentira e dúvida são evidentes e não encontro argumento substancial e
convincente.
Onde provei que dois corpos podem estar ao mesmo tempo no mesmo lu-
gar'*, como foi o caso quando Cristo passou pela porta trancada, que é unl
milagre tão grande como aquele de um corpo estar em dois lugares, ele dizJh'
que isso não procede, porque ainda haveria outros caminhos de Cristo passar
por uma porta trancada. Ele teria entrado ali graças à sutilidade do corpo, dc
modo que não haveria necessidade da presença de dois corpos no mesmo lu-
gar. Quando então pergunto quais são essas maneiras e como penetrou a sutili-
dade; então a ordem é silenciar. Parece-me que um dos caminhos leva a igre-
ja, de modo que Ecolampádio, quando deveria responder, teve que ir pregar.
O outro caminho talvez seja uma memória fraca, de modo que depois esquc-
ccu de responder a isso. E assim que esse espírito procede. Resmunga uma ou
duas palavras, de sorte que ninguém sabe o que diz, e isso vale como respos-
ia. Se pode achar a sutilidade do corpo de Cristo nesse caso pelo fato de Cris-
to passar pela porta sem que haja dois corpos no mesmo lugar, então, mcii

I00 ('f. WA 23,131s~.


i61 2 l<iiliciieAiiiwoit, cap. 5 e I's.: "Das zwen leib an einein ort sei" solleii, ist aiicli riil bi.iv<.ir.
/>:,I> ryl ;>ii<íer- iivg ,sc~~z, dar Cliristus durch bescii/os.~netliür ais ddurcii die ga11 der iduilii,kcir
1; i>ic.iii
' :
sicli gcilio!~hiih LU jn. daii das cbeii zwen leib ar? Niiem oli seycii." - (".i%nihL'iii t i ; i c i
si. ciiiii1iiiiv;i <iiic doi.; cnipos l>ossam csrai no iriesmo lugar. Pai\ cxistcrri i ~ i i ~ i t i ,iiittnbs s ciiiiii
iili<>\ lpi'l<>\i~ii;ii\ t 'ii\io ~>fi<lc ici- criiiii<lo jiiiilii ;i clçq pcla poil;i fcclia<l;i, coiiso. I x i r c r c i i i l > l ~ ~ ,
o <l<%,u v , C ~ I Clr.\j:! cl,>is CC>II>O<LIC, I I I C S I ~ I CIugac.'')
da ~ u l i l i ~ k ~< ~l cl ~qoc ,
Da Ceia de Cristo - Confissáa
caro, por que não pode constatar a sutilidade que possa estar, ao mesmo tem-
po, no pão sem descer do céu qual telha que cai do telhado? Mas eles não vão
me escapar tão facilmente com a sutilidade. Apesar de tudo, é o mesmo cor-
po de Cristo, e a porta estava trancada. Cristo não entrou pelas fendas ou bu-
racos dos pregos. Ele era de carne e ossos, como ele próprio diz em Lucas no
último capítulo162.
Referente a aparição de Cristo a S. Estêvão em Atos 8 [sc. 7.551 e a ou-
tros santos mais, e que a voz do Pai veio das nuvens, conforme Mt 17.5, exem-
plos que citei para provar que Cristo não precisa estar em determinado lugar
no céu, ele mostra sua engenhosa inteligência e diz16': "Isso prova que um cor-
po pode estar em dois lugares? Que conversa é essa para um homem erudito!"
Confesso minha culpa, pois tais exemplos também não provam que o lobo
gosta de comer carne de ovelha, ou coisas mais que queira alegar. Usei esses
exemplos para mostrar que Cristo está perto e não sentado em algum lugar
no céu. Ele, porém, interpreta isso como bem entende. De resto, ainda questio-
na se S. Estêvão viu a Cristo de modo espiritual ou físico. Sustenta ainda que
Cristo foi visto em imagem e não pessoalmente. Tudo isso seria verdade simples-
mente porque Ecolampádio o afirma como invenção de sua própria cabeça.
Desse modo as palavras da Escritura têm que dar lugar a sua fantasia. Cha-
mam a tudo isso de resposta ao livro de Lutero. Se eu o fizesse, eles me man-
dariam prová-lo com passagens biblicas.
Isso, porém, não está errado e em todos os casos é melhor do que aquilo
que Zwínglio fazlM da passagem em Jo 3.13: "O Filho do homem está no
céu", uma vez que Ecolampádio admite que, em relação a pessoa, está bem
formulado que Deus nasceu de Maria e que desceu do céu, salvo que me con-
duza para a "Exegese" blasfema de Zwingliol" onde, entre outras barbarida-
des, a aleose nos ensina a tomar carne por divindade. O melhor ilisso tudo é
que se saiba quão erudito é Zwínglio nos mais diferentes ramos da ciência.
Da questão propriamente dita ele trata muito pouco, impedido que está por
sua vasta emdição. Além do mais, Ecolampádio também se excede nesse pon-
to, colocando a Cristo em contradição a si mesmo e a toda a Escritura, segun-
do a divindade no céu e segundo o corpo apenas na terra. Eles não levam a
sério meus argumentos e nem entendem suas próprias palavras. Se Cristo é
uma pessoa na divindade e humanidade, então a humanidade tem que estar
simultaneamente na terra e no céu, como acima provei contra Zwinglio. Pois
scr uma só pessoa em Deus e com Deus certamente é mais do que estar no céu.
Então também não é verdade que, naquela ocasião, Cristo estava no céu scgun-
do a divindade quando se fez homem no ventre materno? Por acaso não cstava

102 ('1. 1.c 2 . 3 9 .


101 2 I?illicl~eAnlworf, cap. 5 e 2'.
Ií4 %wicil:lis Wcrke III,74.
1115 2 Ilillidic A,rllv<iri, c;il>. 5 c 2'. Sohrc :, ~ ' I ~ , x clcc ~Z w~ íc~~t j ~ lv.~i ~~~l, ~ ~ t r o ~ 1l1 )~ ~ ~ ; ~ ~ ~
(1,.
Da Ceia de Cristo - Confissão
~~~
.
também nessoalmente e essencialmente nela natureza divina no ventre mater-
~~~

no e na terra? Expliquei isso amplamente ein meu último livro. Mas o negócio
é passar por ciiiia, não considerar nem ponderar adequadamente o que ouvem
e o que alguém diz.
Por isso também não tem cabimento sua comparação, quando diz: Se al-
guém desce da montanha e se veste no vale, poder-se-ia dizer que ninguém so-
be senão aquele que desce. Porque a divindade não desce d o céu como aque-
le desce da montanha, mas está no céu e permanece no céu, mas, ao mesmo
tempo, está também na terra e na terra permanece. Assim também não se po-
de afirmar a respeito da pessoa vestida: ela está na montanha, quando ainda
está cá embaixo, como Cristo afirma de si mesmo: "O Filho do homem que
está no céu". Por que mais palavras? O reino dos céus está na terra; os anjos
estão, ao mesino tempo, no céu e na terra. Os cristãos estão, ao mesmo tem-
po, no céu e na terra. Se alguém quiser entender a expressão "na terra" co-
nio eles a entendem, isso é, de fornia matemática e local, então a palavra de
Deus está lia terra, o Espírito foi dado na terra, Cristo, o Rei, estava na terra
e terá um reino na terra, até os confins do mundo, conforme S12.8, e fará jui-
zo e justiça lia terra (Jr 31. sc. 33.15). Oh! que maneira pueril e tola de falar
do céu, para arrumar um Iiigar para Cristo lá no céu, conio a cegonha faz seu
ninho na jrvore, e tiem eles sabem como e o que estão falaiido.
Depois ele contestatMque Cristo iião se teria ligado a determinados luga-
res e que tampouco quer ser achado aqui e ali, mas que seja reconhecido em
espírito. Mais uma vez passa por alto e não quer enxergar o que escrevo con-
tra eles. Afinal, quem prende a Cristo a determinados lugares? Não seriam os
próprios fanáticos quando nos fixam Cristo em determinado lugar no c6u e
nos obrigam a dizer: Vê, Cristo está aqui, [Cristo] está ali? E como procedein
eles mesmos ao remeterem as pessoas ao Evangelho e ao próximo? Acaso o
Evangelho e o próximo não se enconlram em lugares definidos na terra? En-
tão Cristo não está nos crentes? Ele está presente de forma espiritual (dizem
eles). Que significa de forma espiritual? Significa de forma física ou verdadeira-
mente? É como se disséssemos que esta no Sacramento de forma física ou vcr-
dadeiranietite. A cristandade e o reino de Deus não abrangem os confins do
inundo, corno proclamani os profetas? Onde estão eles mesmos, que no rciilo
de Cristo querem ser os mais destacados? Se o reino de Cristo se encontra na
terra, então estará também aqui e ali. Isso já escrevi contra os profetas celcs-
ii:iisl". Incomoda-os um bocado que scnipre de novo lembro esse livro como
obra ainda não tocada por eles. Por enquanto está intocada por eles e ccrta-
iiicrite vai ficar assim. Bate-boca e conversa fiada não chamo de morder.
Mais uma vez falta a lógica elementar a esse espírito, uma vez qiic 1120
ilistiiiguem as palavras "estar aqui e ali". Pois o próprio Cristo explica clara
i~iciitcn si mesmo quanto a que se refere com essas palavras e como <Icvciii

1 2 l l l l A c , 5 c 1'. 107 ( ' I ' WA 111.2111.?.25\

III
Da Ceia de Cristo - Caniissão
ser entendidas, quando diz anteriormente: "O reino de Deus não vem de for-
ma ou com aparência visível. Não dirão: Ei-10 aqui! Ou: Lá está! Porque o
reino de Deus está dentro de vós" [Lc 17.20s.I. Que falta a estas palavras cla-
ras: "O reino de Deus está dentro em vós", exceto que nenhum fanático quer
encará-las? Quem são esses "vós"? Não estão na terra, falando fisicamente
da mesma forma como eles falam a respeito disso? Desse modo, com certeza
estão aqui e ali; por isso a expressão "aqui e ali" tem duas maneiras de ser en-
tendida: segundo o local e segundo o c o ~ l u m e ~Em
~ * .primeiro lugar, essencial-
mente do seguinte modo: "Estar aqui e ali" significa que a coisa se encontra
/' realmente ali e está presente. ,Pois precisam admitir que Deus está aqui e ali e
---- - ~

, em todos os lugares, e permitir que seja procurado e adorado aqui, ali e em


qualquer lugar. Isso eu o sei perfeitamente. A segunda maneira, more loci, pe-
lo costume, quer dizer que não se comporta nem vive de acordo coni o [costu-
me] do lugar, como Paulo diz em 2 Co 10.3: "Embora andando na carne, não
militamos segundo a carne". Que significa isso senão que estainos na carne e
também não estamos? Se estamos na carne, estamos realmente aqui e ali, a
não ser que não se admita que a carne esteja aqui e ali. Todavia, não milita-
mos de forma carnal, isso é, nosso caráter e comportamento não se pauta pe-
lo que costuma acontecer na carne.
De modo que posso dizer: estamos na terra e não estamos na terra, isso
é, vivemos na terra, mas não de forma terrenal, ou seja, mundana. Ou então,
estamos no mundo e não estamos no mundo, isso é, não há dúvida de que vi-
vemos no mundo, mas não vivemos de forma mundana, a maneira do mun-
do. Um exemplo: no último capitulo de L u c a ~ ' ~Cristo ~ , está sentado e vive
com os discípulos após sua ressurreição. Não obstante, ele declara que não es-
tá nem vive com eles. "Estas palavras vos falei estando ainda convosco" [v.
441, diz ele. Que pode esse "convosco" significar senão "a vossa maneira",
ou então, "como sois agora"? Afinal, ele estava lá sentado pessoal e essencial-
mente, falava e permitia que o tocassem. Um exemplo: Um viajante pode vir
a Wittenberg e dizer: Estou em Wittenberg, mas também, não estou em Wit-
tenberg. Como? Pois sim, de forma corporal e essencial estou evidentemente
aqui; mas aqui não sou wittcnberguense, isso é, não vivo a maneira dos cida-
dãos de Wittenberg, porque não gozo a cidadania de Wittenberg, nem desfru-
to dos direitos e dos bens de Wittenberg. Nesse sentido escreve também Pau-
lo em C1 3 [sc. Fp 3.201 que nosso politeunia, isso é, nossa cidadania, nossa
vida de cidadão não está aqui, mas no céu. Visto que Cristo diz: "O reino dc
Deus não vem com aparência externa" [Lc 17.201, ele afirma claramente quc
o reino de Deus vem a nós aqui na terra, como diz: "Arrependei-vos, porque
o reino de Deus está próximo" [Mt 4.171. No entanto, ele não veni da maiici-
ra como vêm os reinos mundanos, porque sua maneira de ser e viver não Ç
liem inundana nem humana. Como já disse, seria muito iieccssário Icvar cssc
cspirito a escola para aprender os elementos básicos de Pedro His~xiiio~'".
~~ - ~~ .-

IbH l i , ~CI
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I!?
Da Ceia de Crista - ConI'issho

Ai, porém, cai em cima de Lutero de vez ao citar a passagem de JoXo


4.24, onde diz que Deus quer ser adorado no espirito, não em Jerusalém neiii
na montanhai71.A partir daí tens resposta convincente de que o corpo de Cris-
to não está aqui ou ali, portanto também não na Santa Ceia. Quando esse es-
pírito se limita a responder, ele vai bem às vezes. Quando, porém, dá saltos,
torna-se hostil. Pois bem, então o céu é espirito, porque Cristo deve ser adora-
do no espirito, isso é, no céu. No entanto, como poderá estar em determina-
do lugar no céu? Ou "espirito" também significa lugar específico? Por que
não? Se esse espirito o diz, certamente é assim. Entretanto, que fez o cego dc
Jo 9.38, que adorou a Cristo na terra? Sem dúvida, errou, e Cristo zombou
dele ao aceitá-lo. Ou então, "espírito" também significa tanto quanto "na ter-
ra". Meu caro, não ri; o espírito poderia irar-se, pois está falando sério. No
entanto, iem coisa ainda melhor: Cristo fala dos adoradores que não deveni
adorar nem em Jerusalém nem na montanhai7z, como também lhe disse aquela
mulher: "Nossos pais adoraram nesta montanha, e vós dizeis que se deve ado-
rar em Jerusalém" [Jo 4.201. Essas palavras também se referem aos adorado-
res, pois ela não diz: Deus não está na montanha. Cristo também não diz:
Deus não está em Jerusalém ou nesta montaiiha, etc. Esse espirito, porém, en-
sina que tais passagens se referem a Deus, no sentido de que ele não está aqui
ou ali, e que não se referem aos adoradores.
Meu caro, que pensas que Deus pretende ao deixar que esse espírito faná-
tico lide de modo tão grossciro com a Escritura? Claro que nada mais do qtic
se dissesse: Meu filho, de minha parte não falharei. Cuidarei fielmente de ti c
não permitirei a esses espíritos que lidem com a Escritura a não ser dessa for-
ma grosseira, desajeitada e tola, de modo que, quem se deixa seduzir, não te-
nha a desculpa de que não foi suficientemente alertado e advertido por miiii.
Quem der crédito a esses espíritos busca sua perdição propositadamente, por-
que sequer se preocupa em ver seus disparates, mas fica ajuntando tudo quc
dizem, qual porco imundo. De nossa parte acreditamos que .::adorar no espíri-
to" quer dizer adorar espiritualmente, ou então, de maneira espiritual, não ini-
portando que Cristo esteja no céu, na terra, no Sacramento ou onde ele quiser.
Pois Cristo contrapõe a adoração espiritual a adoração corporal que os judcus
e também nossos hipócritas condicionam a lugar e tempo, de modo que teri1i:i

171 2 Biiiiche Aiitwort, cap. 5 c 3's.: "Hie hai Lutiier ober so vyi crobeii ds vvoi; das i.~ralr vyI ;,\.v
nicht. Da" diss bmtat no&, das Ch"sios leib nllein im Hiznmel und Cortes worl <Iri,igl ~ C ! r i i i l l :
Daiiimh auch D. Martinus ausslegung in den worten des Herrn, 'das isi nieii~lei/>'i , , i i i i i i ~i~riil
ii~iilig.Dali C I I ~ F ~ sitzt
U SZ U rechlen
~ an dem ort, an m~eiclieswii glalibigeii ;n der iillcirli.liiiri!:
kommm werdc,~." - ("Neste ponto 1.iitero alcan~oiitanto quanto nriteriormcriic, ou 5ci;i. ii:i
da. Pois ainda coiitiiiiiii firme quc o corpo de Cristo c s t i utiicatiieiitc iia C&,,; a ~li!li!v~itilc,
I>ciis ohriga a isso.Por isso taiiibcni a crplicaçiio r10 Di. M~rtiriliosohie ;l p:il;ivi;i ilii Sciiliiii:
'Isto C Iiieii corpo' i' sciii pi<>vciioc criAricl. I'iiis <'risli> çst5 actirad<>:i rliicil:$i1:iqiii.l~ liil:;ii
<>t,<lc <>rcrciiics csli~l%i> i~~st1rrciç4<1.")
172 ('I'. .I,> 4.21
Da Ceia de Crista - Confissáo
que acontecer de maneira externa, como o determinam lugar e tempo, como
se a força, vida e todos os méritos da oração procedessem do lugar e do tem-
po. Ensinam que o principal nessa oração é a obediência, ainda que nada pe-
çam nem saibam o que ficam tagarelando. Vê, isso significa adorar a Jesus
em Jerusalém e em determinados lugares, e não no espírito e em verdade. Es-
pero que até uma criança possa compreender o quanto essa passagem se opõe
a que o corpo de Cristo não possa estar no pão e que as palavras: "Isto é meu
corpo" devam ser entendidas de outra maneira do que rezam! Meu caro, se
eles querem defender sua causa e persuadir-nos, realmente têm que mudar de
postura. Com essa maneira de proceder somente nos afugentam mais ainda,
a ponto de termos que afirmar que não levam a questão a sério, ou que estão
usando de malandragem ao fundamentarem-se em argumentos tão incertos,
errados e descabidos.
Portanto, também Ecolampádio está perdido nesta questão central, não
podendo provar que Cristo está apenas no céu e em lugar determinado. E até
agora ainda não achou uma explicação para esclarecer como estariam conflitan-
do as duas coisas: Cristo no céu e seu corpo, ao mesmo tempo, na Santa Ceia,
no que insisti em meu livro. Não o conseguem mostrar, isso é impossível, e
também eles sentem isso muito bem. Pois tudo que tagarelam nada nos ensi-
na além do fato de que Cristo ascendeu ao céu, algo que ninguém lhes solici-
tou. Quando, porém, se trata de esclarecer que por causa disso o corpo de Cris-
to não pode estar na Santa Ceia, de acordo com a palavra: "Isto é meu cor-
po", aí apelam para o silêncio, revoluteiam, pulam, se contradizem e se enre-
dam em suaspróprias palavras, como temos visto. E de que serve revirar to-
do o esterco do diabo? Eu estaria pecando se roubasse meu tempo e o do lei-
tor com tais anedotas sujas. Pois ainda que recorrêssemos a Escritura toda re-
ferente a essa questão, em todas as passagens não conseguiriamos mais do que
aconteceu até agora: apenas se deu ampla oportunidade a esse espírito para
conversa inútil e mal interpretação da Escritura, para que, entrementes, esque-
ça a questão principal e revele ciência desnecessária. Pois já disse, ainda digo
e repetirei: a argumentação de sua doutrina é de que o corpo de Cristo não
disporia de outras maneiras de estar em algum lugar do que aquela da farinha
no saco e do dinheiro na carteira, isso é, a maneira local. Queremos que nos
prove esse argumento com a Escritura. Por que escrever muitos Livros? Deixa
que te mostrem essa prova e então reconhece-lhes alegremente a vitória. Acre-
dita: se tivessem sido capazes de fazê-lo, não teriam silenciado tanto tenipo,
visto que aqui são pacientes e monges sobremaneira bonzinhos, que guardam
muito bem a lei do silêncio quando o mais necessário seria falar! Em todos
os livros que espalharam não tentaram uma vez sequer tocar nessa úlcera. E
fácil notar por que se vangloriam, alardeiam, ostentam e insistem, como sc
sua posição fosse segura. O diabo teme a luz e quer silenciar-nos com barulho.
Já que (digo eu) ninguém arranca desse mudo espírito barulhcnio csta úiii-
ca parte necessária, também largarei de Ecolampádio daqui em diante e, p(ir
Da Ccia de Cristo - Confissão
fim, analisarei ainda a expressão: "a carne para nada apr~veita""~. Suas
blasfêmias sobre a palavra externa pretendo trabalhar quando voltar a escrever
sobre o Batismo, se Deus o permitir. Pois bem: Ecolampádio quer provar pe-
lo contexto de Jo 6.52s~.que "carne" aqui deve ser entendido como "carne
de Cristo", mas nada faz a não ser arrolar uma comparação de um rei em rou-
pa rasgada que os súditos deveriam beijar, no entanto, não querem, porque
se escandalizam, etc. A isso ele chama de responder-me e fortalecer sua mura-
lha de ferro. Aí está novamente esse espírito pusilânime. Promete elaborar o
entendimento a partir do contexto, mas traz uma comparação com o rei. Que
nos interessa a comparação? Ainda que seja boa e válida o quanto quiser, co-
mo, porém, podemos ter certeza que ela cabe aqui? Dizemos que não, e que
ele deveria prová-lo. Todavia isso não é necessário. Estabelece-se o seguinte:
Basta que nós o dizemos, ilustre senhor! Cá está! Assim tenho minha resposta.
Depois ele se arranja da seguinte maneira: É certo que os judeus reclama-
ram por causa de sua carne; logo, ele deve estar falando de sua carne e de nc-
nbuma outra. Não é uma dedução linda e uma conclusão convincente? Os ju-
deus murmuram por causa de sua carne, por isso Cristo também deve ter fala-
do de sua carne. A isso se chama de provar a partir das circunstâncias do tex-
to. Meu caro, por que alguém não haveria de falar da carne de Cristo, do Es-
i pírito, do Evangelho, da fé ou do que quiser, e, logo em seguida, de carne c
sangue ou das pessoas? tal como faz Cristo em Mt 16.15ss., quando pergunta
aos discípulos o que pensam dele, isso é, fala com eles de Cristo, que era
Deus e homem, e, não ohstante, logo em seguida, diz a respeito da simples
carne: "Não foi carne e sangue quem to revelou". Em G1 1.16, quando Pau-
lo fala de sua vocação, diz em seguida: "...não consultei sangue e carne...".
I Se o tal muro de ferro não estiver mais firme do que isso, construa etn cima
dele quem temvontade de levar um tombo. Eu não; ele é pior do queum de papel.
Nuni exame imparcial e simples (como deveria ser), o contexto favorece
mais nossa interpretação. Eu não ofereço comparações; o texto diz clarameri-
te que Judas e os discípulos se escandalizaram com as palavras de Jesus sobre
o comer de sua carne. Isso é pacífico. Aqui posso e devo deduzir, a partir da
circunstância do texto, que Cristo teve dois tipos de discípulos: uns que se cs-
candalizam e reclamam; outros que crêem e melhoram. Ora, quando um mes-
tre tem alunos que não entendem bem sua posição, é natural que ele se ocupe
com essa falta de compreensão para criticá-la e dizer eventualmente: Pois E.
cabeça dura não dá para isso. Ou então: Burro jamais será bom aluno. É pre-
ciso pegar odres novos para o vinho, etc. Do mesmo modo pode Cristo procc-
<ler neste caso; ao encontrar alunos grosseiros, ele se dirige a eles, dizendo: Is-

I i r vos escandaliza? Aqui ele critica, evidentemente, a interpretação errada dclcs.


I);i Ceia de Ciirlu - Coiifissào
E depois pode muito bem dizer: Ora, a carne para nada aproveita; o espírito
I? que dá vida. Desse modo "espirito" deve significar compreensão ou ensina-
iiiento espiritual, porque o próprio Cristo assini o iiiterpreta. dizendo: "As pa-
lavras que falo são espirito e vida" [Jo 6.631. Logo, o termo "carne" terá que
significar, por sua vez, compreensão ou ensinamento carnal. Afirmo que o tex-
i o c o contexto dizem isso melhor, sem comparações, do que as explicações
dos fanáticos.
Isso foi dito igualmente mais acima contra Zwínglio. Ecolampádio usa a
iiiesma sofisticaçâo que Zwínglio com relação a palavrinha "minha"174, e na-
c1;~responde. Aléiil disso quer invalidar minha regra na qual afirmei: onde car-
iie e espirito são conflitantes, carne não pode significar a carne de Cristo. No
ciiianto, ele não faz outra coisa do que citar a passagem de 1 Tm 3.16: "...foi
iiianifestado na carne, justificado no espírito...". Que direi? Quando falo do
espírito e da carne que conflitam na Escritura, ele cita uma passagein onde car-
iic e espirito harmonizaiii. Além disso não prova que lá se deve entender que
x j ~ni carne de Cristo. Mesmo assim, tudo isso vale como resposta. Pois bem,
iiiiiiha noriiia ainda está inabalada: carne aqui não significa carne de Cristo..
I:. como ela está firme, seu argumento principal está derrubado.
Da mesina forma ele trata os textos dos paisi7'; enquanto eu cito os textos
<lclcs,ele faz seus comentários sem concluir nada deles, como eu o fiz; d o mes-
I I I L I rriodo ele nianipulou o texto de Jo 6, a partir de sua cabeça. Com isso dão
:i entender o quanto desprezam os liomens e acham que, quando afirmam al-
i : ~ deveria
, ser imediatamente acatado. Pois bem, eu escrevi contra os profetas
cclcstiais; não houve resposta nenhuma, a não ser suas próprias fantasias e glo-
sis. Com o livrinho contra os fanáticos está acontecendo o mesmo. Querem
~riiiicnteenrolar, de resposta nâo são capazes, como beiii provei nesse livrinho.
Oiic se vão e rejam santos, espirituais e eruditos. Eu ~ I Zo qiie pude e, de acor-
(111 coni os ensinninentos de S. Paulo, adverti-os mais uma vezi7h.Deus quei-
I:I converté-10s e proteger os nossos de seu veneno. Améin.
No entanto, para ine livrar deuma vez por todas desse assuiito, devo lem-
Iii;iiriie taiiihém de meus v i ~ i n h ó s ' ~para
~ , , que iião pensem que desprezo seu
\:ilicr c iriteligêiicia. Esse espirito escreve que rietii Zwiiiglio, Ecolampádio, Karl-
\i;1111"~,Lutero ou o papa estariam certos, e forniula o texto da Santa Ceia
:is\iiii: "Meu corpo que é dado por vós é isto"; enquanto os evangelistas e
l';iiilo colocarii a palavrinha "isto" na frente, ele a coloca no fim e quer que

11.1 .' lliiiii.ilc Anrwoir, cap. 8 g 3'.


i I', .' i l i l l i < l i c Aiiiuorr. sqi. I I i 3', titulo: "Von dm leerm iind niiil cr,slrri voil S. Aiigiisririr . p r i;
,.lii.ri." C'Snùir or mestres c sobre a primeira cita$&" de Slo. Agi>stinlio.)
li<,I '1. 2 'I'iii 4.2
I 1 1 i t!irt<>! < l c ~ c ~ - si\ clc S c l ~ ~ v c ~ ~ c k
c ip1113Ii~,aq6e~ c lK' cv~a~~l ~ l w ~~n~~ cl r~~lc i o r ~ ; tII:,
t l ; ~l! ~ ~ l r ~ ~ ~ (lvt. ~ c ; i , ~
ii 11%r. 17)
11s \,,,i,,: K:,,i.l:8ill. \.. ;,i.i,,,;,, i . 4 .
Da Ceia de Cristo - Confissão
tenha o significado de iim "alimento espiritual". Por isso sua versão d o texto
fica assim: "Meu corpo que é dado por vós é isto" (ouve beni): uin alimento
espiritual. Se perguntas por que fazem isso e por que não pegam a versão de
Karlstadt, Zwinglio ou Ecolainpádio, já que são da mesma opinião, podem
ser dadas três respostas: a priiiieira é divina, ou seja, que Deus quer que sejam
desunidos, contraditórios e desigiiais entre si, para que o Espírito Santo perma-
neça insuspeito e fique publicamente desculpado perante todos que nada têm
a ver com eles, porque ele é um Espírito de união e não de desunião, e para
que previna a todos contra esse espírito de mentira. A outra é humana, ou se-
ja, por que, afinal, seriam tão humildes a ponto de aceitarem a versão de Karl-
stadt, Zwinglio e Ecolampádio, quando esses mesmos são por demais orgiilho-
sos entre si para aceitarem um a versão do outro? Não seriam eles suficiente-
ineiife sábios para fazer um texto especial como o fazem aqueles? Isso seria
tinia grande vergonha. Meu caro, para esses a honra é tão importante como
para aqueles três. A terceira é diabólica, ou seja, qiie os evangelistas e Paulo
estavam embriagados ou loucos a ponto de ficarem de pernas para o ar, tro-
cando em cima e embaixo, conieço e fim no texto da Santa Ceia. Por isso te-
ve que surgir esse espírito para arrumar o texto e corrigir os evangelistas.
Motivo e causa dessa presunção é: primeiro, que se deixam de lado as pa-
lavras: "Isto é meu corpo", para então analisar a questão antes de mais nada
espiritualmente. Pois quem começa com as palavras: "Isto é meu corpo" não
pode chegar a tamanha presunção, quer dizer, a tão elevado conhecimeiito de
que pXo é pão e vinho é vinho. Quem, todavia, perde de vista essas palavras
pode muito bem chegar a esse entendimento. Aqui tens uma norma segura
que te guia melhor a toda a verdade do que o próprio Espírito Santo pode fa-
zê-lo. Onde a Escritura Sagrada atrapalha e incomoda tua presunção, deves
dei~á-iade lado e seguir primeiro a tua presunção; assim certamente encontra-
rás o caminho em todas as questões, como Moisés ensina em Dt 12.8: "NZo
procederás segundo o que parece bein a teus ollios", isso é, deves fazer o qiie
parece bem a teus olhos. Esse diabo anda livreluente por aí. sem máscara, e
nos ensina abertamente a não observar a Escritura, assim como M u ~ i t z e er ~ ~ ~
Karlstadt também o fizeram; também eles recebiam seu saber do testemunho
de sua interioridadeiaoe não necessitavam da Escritura para si mesnios, somen-
te para ensinar os outros, coino iim testemunho exterior do testemunho de sua
própria interioridade. Quem acredita num diabo público desses, esse se dispõe
voluntariamente para ir ao fogo infeinal. Nem para idiotas é preciso dar expli-
cações nesse ponto. Esses blasfemadores, porém, precisam desses arguuientos
para sua fé, porque não crêem em Cristo.

170 'Iilotiidr Miiiitm, v. acima n. 67.


1x0 ('r. WA 18,136, n. 2: "Ich will meyn reilgnuss vom geyst in meyner inwendigkeit haben, das
l ' l i i i \ i i ~ rverheysscn hat." (Karlitadi, D;alo8us. BI c [Pet.]. - ("Quero ter mcu teitemunlio
,li>I '\i>ii i!,> ciii iiiiiili;i iriiciii>ridadc. conii] C'rirtn proiiieleii".)
Da Ceia de Cristo - Confissão

Segundo: A "impanação" do corpo de Cristo (como eles se expressam)


seria contrária a toda a Escritura, etc. Que te parece aqui esse espírito? Ele es-
tá enchendo a boca demais! Quer estar longe, muito acima, bem distante de
Zwínglio e Ecolampádio, que não aduzem a Ecritura toda contra isso. Escuta
só. Ele diz que o Antigo Teslamento, ao qual Cristo nos remete em Jo 5.39,
não diz nada a respeito. O Novo Testamento fala de sua vinda para a carne,
do que João é precursor, e não para o pão. O próprio Cristo diz: "Ninguém
conhece o Pai, a não ser por mim" [Mt 11.271; não disse: "a não ser pelo
pão". Ai vês o quanto contribui para achar a verdade quando se deixa de la-
do estas palavras: "Isto é meu corpo". Do contrário, como poderia esse espiri-
to dizer que nossa interpretação contraria toda a Escritura, se tivesse estas pala-
vras diante dos olhos? Além do mais, mesmo que lhe amarrássemos essas pala-
vras diante dos olhos com correntes de ferro, de modo que não as pudesse
pôr de lado, ainda assim teria mais um artifício e norma para chegar a verda-
de. Diz ele que essas palavras não constam do Antigo Testamento. O fato de
Lucas, Mateus, Marcos e Paulo as trazerem no Novo Testamento não impor-
ta; assim não há problema de pô-las de lado. Deus tem que capitular, não po-
dendo colocar suas palavras quando e onde lhe convém, mas onde e como lhe
determina esse espírito. Agora, porém, que as coloca e procura no Antigo Tes-
tamento e não as tendo Deus colocado lá, esse espírito mais uma vez venceu
aberta e elegantemente.
Como é que esse espírito pode errar com a verdade? Quem pode medir-
se com ele, já que tem esses dois artifícios e essas duas normas a seu favor?
IJma, que se ignorem as palavras de Deus ali escritas. A outra, onde não po-
de ignorá-las, trata de desviar os olhos para outro lugar, onde não estão escn-
tas, para então dizer: Vê, aqui essas palavras não constam. Prova-me que cons-
tam aqui, exatamente aqui. Do contrário estás derrotado. Pois tens que me
apresentar essas palavras de tal maneira que eu possa ignorá-las ou não possa
desviar meus olhos para outro lugar. Este é o jeito de atacar a nós carnivoros,
assim se pretende acabar com nosso Deus de pão. Por ai vês que o diabo está
zombando de nós com grande petulância. Mesmo assim, [tudo isso] serve pa-
ra confirmar e assegurar nossa fé, porque o enfadonho diabo diz coisas tão
sem nexo. Ele sabe que não podemos apontar no Antigo Testamento as pala-
vras de Cristo na Santa Ceia. Por isso faz de conta que aceita ser corrigido,
caso pudermos mostrá-las no Antigo Testamento, pensando que não se nota-
riam suas mentiras grosseiras. Pois, já que não as quer enxergar no Novo Tes-
caiiiento, mas desvia os olhos, que faria ele se, não obstante, as pudéssemos
iiidicar no Antigo Testamento?.Ai ele desviaria os olhos tanto mais, alegando
qiic o Antigo Testamento é obscuro e não está em vigor. Dever-se-ia mostrar-
Ili;is iio Novo Testamento, pois ele seria o cumprimento, etc.
E se tudo que devemos crer constasse no Antigo Testamento, por que prc-
cisnriainos do Novo? Que necessidade haveria de Cristo vir ao mundo para
110s crisiiiar? Desse jeito eu também diria que o Batisino não é nada, o envio
111) lispirilo Santo não C nada, o fato dc Maria scr mâc dc I)cus na« i: nada;
Ua Ceia de Cristo - Confissão
enfim, nenhum artigo da fé cristã haveria de resistir. Pois, sem dúvida, no An-
tigo Testamento se fala da vinda de Cristo; mas que agora já veio e cumpriu
tudo, que instituiu o Batismo, assegurou o perdão dos pecados, concedeu o
Espírito Santo, etc., disso não consta uma só letra. Tudo isso o Novo Testa-
mento teve que revelar. Esse espírito, porém, tem que explicar-se e dizer que
argumentos tem para suas mentiras, para que possamos precaver-nos tanto
mais contra ele.
O terceiro argumento é que a "impanação" seria contrária a fé cristã.
Pois a fé precisa de um objeto espiritual em que se possa fixar, mas pão é
um objeto natural. A partir desse argumento também se pode concluir que
Cristo não foi homem aqui na terra, pois sua natureza humana foi um obje-
to físico e não espiritual. Por isso ninguém pôde crer, sem incorrer em heresia,
i que esse homem fosse Deus. Do mesmo modo, ninguém pode crer que um cris-
ii tão possa ser nosso próximo, que homem e mulher, nossos pais e primos sejam
irmãos. E ainda, ninguém pode crer que céus e terra sejam criação de Deus.
Motivo: a fé não pode ter por objeto algo material. No entanto, todas essas
coisas existem de forma material. Esse espírito é tão cego que não sabe que
sempre se apresenta um objeto material para a fé, sob o qual deve entender e
imaginar outro [objeto], como expliquei em meu livrinho com muitos exem-

~
plos, sendo um deles o corpo de Sara em Rm 4.19, e outros mais.
i
O quarto argumento: [a impanação] é contra a natureza e o caráter da pa-
lavra. Pois não entende por palavra a voz ou palavra oral, mas a eterna vonta-
de de Deus, etc. Essa palavra não pode ligar-se ao pão, nem a qualquer coisa
da criação. Esse arligo, em que desfazem a palavra externa como inútil para
a fé, precisa de comprovação; portanto, não tem valor o que provam com is-
so, pois o argumento básico não está comprovado. Tratarei disso em outra
opofiunidade.
O quinto argumento: [a impanação] é contrária ao sacerdócio e reino de
Cristo, que a Epístola aos HebreuslB1ensina. Pois Cristo é rei e sacerdote on-
de quer que seja. No pão, porém, não pode ser rei, pois o pão é uma criatu-
ra do mundo. No entanto, seu reino não é deste mundo. Não é bacana? O rei-
no de Cristo não é deste mundo, logo, não está neste mundo. É que esse espí-
rito faz das expressões "deste mundo" e "neste mundo" uma coisa só. Ai de
nós pobres cristãos que temos que estar no mundo, na morte e sujeitos ao dia-
bo, e nosso Rei está preso no céu, de modo que não nos pode governar, nem
proteger, nem ajudar, nem estar a nosso lado, porque seu reino está no céu c
não na terra. Essa facção bem que merece mestres tão loucos e insensatos, e
! nenhum outro! Graças e louvor a Deus! Sabemos que Cristo não disse diante
de Pilatos: "Meu reino não está cá embaixo", mas disse: "Meu reino não é
deste mundo" [Jo 18.361. Ele existe e reina em toda parte onde se encontra:
no pão, no mundo, na morte, no inferno, entre os demônios. Mas a força dc

~ l 1ol ckl ~~r c ~p:,ssin~.


181 ('I'. l ~ ~ ~ i,N>S ~s,
Da Ceia de Crista - Confissão
seu reino não reside na força do pão, do mundo, da morte, do inferno e do
demônio. Pois nada temos dele nara fortalecer seu reino. como o mundo e o
diabo têm que fazer em seus reinos.
O sexto argumento: [a impanação] contraria a glória de Deus, pois Cris-
to está no céu, na glória de Deus, conforme Fp 2.9, e seu trono não está pre-
parado no pão, mas no céu, etc. Esse argumento pretende o mesmo que o an-
terior: que Cristo esteja preso uo céu, como que encarcerado e preso ao tron-
co; pois estar conosco na terra em toda a angústia do pecado e da morte seria
uma vergonha. É melhor que nos deixe cá embaixo a mercê do diabo e fique
brincando com os anjos lá no alto. Não é delicioso? Que ele esteja em toda
parte segundo a divindade, inclusive no inferno, isso não contraria a glória de
Deus, mas é contra a glória de Deus que seu corpo esteja no pão, como se seu
corpo fosse mais nobre que a divindade. Deixa estar! Ele é um espírito lindo
e excelente!
Por último, afirma que [a impanação] contraria a instituição por Cristo e
a prática da Igreja Primitiva. Pois as palavras de Cristo são palavras de ação,
quando diz: "Isto é meu corpo", e não são palavras de promissão, porque
Cristo em parte alguma diz: "Quando tiverdes pronunciado estas palavras,
meu corpo estará presente". Esta colocação ele roubou de Zwínglio e mais aci-
ma já teve resposta suficiente. Portanto, ouvimos também esse espírito louco.
Todavia não aparece nenhum dente para morder as palavras de Cristo ou que
atacasse meu livrinho. Reli também meu livrinho contra os profetas celestiais
c estranho que o diabo fujão não tenha respondido absolutamente nada com
publicaçôes, mas apenas resmunga contra ele com palavras vazias, deixando-o
incólume até agora.

Sobre a predicação idênticalS2


Em toda essa questão esta é a parte mais importante e incômoda que, ao
que parece, nenhum fanático entende, pois não tocam nela, nem mesmo de
forma desajeitada. Em comparação a isso, a conversa dos fanáticos é mera
besteira. Esse assunto, porém, ocupa realmente todo pensador sério. Wyclif a
considera a mais nobre em seus livros. As próprias faculdades de todo o mun-
do se preocuparam tanto com isso, até que se viram forçadas a ensinar que
no Sacramento não resta essencialmente pão, mas apenas forma. Pois essa pre-
dicação idêntica das diversas naturezasIa3 é insustentável, seja pela Escritura,
scja pela razão, isso é, que duas naturezas distintas sejam uma coisa só. Se os
fanáticos não fossem tão ignorantes em lógica, poderiam ter tratado dessa ques-

182 tislc çapilulo se dedica priiicipalmnite h refiitacJ<i da daiiliicia wyclirila da SaiiI:~<'ci;i. N:iir C
~pi>hsivel "crificar se I.iilcrc, cniilieciii os livi<is d i Wyçlil. Eiii c<liçX« ikiiprcrr:i ~ic,ilcIci- l i d o ;ivch
i<> 15,)-s<iineiile ;to Icxl,> do Iti;ilo,g:iis, c<lil;iili> ciii 1525.
: , l i , ~ <I<, <livcz,vi.\ ,):8lu!i,\, LI<> ,>~i!,,izi:~l.
I H I ,,. ~ ~ r ~ ~ ~ l i cidcv>li<:~
Da Ceia de Cristo - Confissáo
tão. Teria valido a pena e poderiam ter deixado sua carne inútil e a Cristo no
céu com todas as criancices. Por isso vamos tratar também disso.
Afinal, é um fato e ninguém pode negá-lo que duas coisas diferentes não
podem ser uma coisa só. Um burro não pode ser um boi; o que é uma pessoa
não pode ser uma pedra ou madeira; e também não é possível que eu diga a
respeito de S. Paulo: Isto é uma pedra ou madeira personificada, a não ser
que queira fazer de "pedra" ou "madeira" uma palavra nova e um significa-
do novo, como dito acima. Isso tem que ser admitido por todo ser racional
de toda. a criação; não há outra saída. Se nos aproximarmos da Santa Ceia
com esse entendimento, a razão se choca, pois conclui que aqui dois objetos
diferentes, pão e corpo, são tidos por uma só coisa e essência nas seguintes pa-
lavras: "Isto é meu corpo". Ai meneia a cabeça e diz: Ora, é totalmente im-
possível que pão seja corpo. Se é pão, pão será; se é corpo, corpo será; esco-
lhe o que desejas. Aqui os sofistas ficaram com o corpo e renunciaram ao pão,
dizendo que o pão desaparece e perde sua essência sob as palavras. E [afir-
mam] que a palavrinha "isto" não estaria indicando para o pão, mas para o
corpo de Cristo, visto que o texto diz: "Isto é meu corpo"._JVyclif, por sua
vez, contesta; ele fica com o pão e abandona o corpo, dizendo que a palavri-
nhaaisto" estaria se referindo ao pão e não ao corpo. Assim essas cabeças
aguçadas se degladiaram de tal forma que os sofistas tiveram que inventar
um milagre [para explicar] como o pão desaparece e se desfaz sua essência.
De minha parte, até hoje ensinei e continuo ensinando que essa contenda
é desnecessária e que não tem grande importância, permaneça ou não o pão.
Acompanho a Wyclif quando afirma que o pão permanece. Mas também acom-
panho os sofistas [em sua opinião] de que o corpo de Cristo esteja presente.
De maneira que, contra toda razão e lógica aguda, opino que duas essências
diferentes sejam e possam ser chamadas uma coisa só. Minhas razões são as
seguintcs: primeiro, que nas obras e palavras de Deus é preciso que toda a ra-
zão e inteligência fiquem aprisionadas, como S. Paulo ensina em 2 Co 10.5, c
que é preciso deixar-se cegar, guiar, conduzir, ensinar e instruir para que não
nos tornemos juizes de Deus em suas palavras, porque certamente seríamos
perdedores no julgamento de sua palavra, como testemunha o Salmo 51.
Segundo, quando nos damos por vencidos e confessamos que não comprc-
endemos sua palavra e obra, é preciso que nos contentemos e falemos de suas
obras de maneira singela usando suas palavras, como ele nos prescreveu qlic
falássemos e nos permite falar, e que não tentemos falar de modo diferente c
melhor com nossas palavras. Pois certamente estaremos errando, se não rcpc-
tirmos singelamente o que ele nos diz, assim como uma criança repete para scii
pai o Credo ou o Pai-nosso. Aqui é preciso andar no escuro e de olhos vcii<l;i-
dos, agarrar-se simplesmente a Palavra e segui-la. Como aqui constam as pa1;i-
vras de Deus: "Isto é meu corpo", palavras secas, claras, usuais c dcliiiid:is.
que riuuca foram tropo, nem na Escritura nem em qualquer língua, é preciso
ciitciidi.-liis com a ré, cegar a razão e dar-sc por vencido. 1)e iiiodo qiic clcvc-
inos ~repcli-li~s ç nos alcr a elas coiiio Deus no-las diz, c niiu conio os siilis solis1;is.
.Aqui a predicação idêntica pode querer interferir, alegando que nem a Es-
critura nem a razão admitem que duas essências possam ser uma só coisa, ou
que uma coisa possa tornar-se a outra, como foi dito que pedra não pode ser
madeira, nem água pode ser fogo na própria Escritura; por isso seria contrário
a palavra de Deus e aos artigos de fé que uma coisa fosse algo diferente do
que é; pão tem que ser pão e não pode ser corpo. Aí deves responder: Não é
contrário a Escritura, como não é contra a razão e a verdadeira lógica; apenas
lhes parece contrariar a Escritura, a razão e a lógica, porque não as relacionam
adequadamente. Isso tenios que mostrar com exemplos, para melhor entendi-
mento. Primeiro, a partir da Escritura, depois, a partir da linguagem comum.
O sublime artigo d a Santa Trindade ensiria-nos a crer e confessar que o
Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas distintas. Mesmo assim, cada
um deles é o Deus único. Aqui se fala da divindade una como sendo três, em
três pessoas, coisa que contradiz a razão de forma muito mais violenta do que
afirmar que madeira seja pedra. Afinal, a madeira em si não tem uma essência
tão única como a divindade e, por outra, madeira e pedra não são tão certa e
inconfundivelmcnte distintas como o são as pessoas. Se aqui a unidade da natu-
reza e da essência pode fazer com que, não obstante, pessoas diferentes sejam
tidas por uma e a mesma essência, então não há por que ser contrário a Escri-
tura ou ao artigo de fé que duas coisas diferentes sejam consideradas uma só
coisa e tidai por uma só essência, como é o caso de pão e corpo. No entanto,
talvez esse artigo seja sublime demais; vamos pegar outro.
Aponto para o homem Cristo e digo: "Este é o Filho de Deus", ou então:
"Este homem é Filho de Deus". Aqui não é preciso que a natureza humana
se desfaça ou desapareça, para que a palavrinha "este" indique para Deus e
não para o homcm, como os sofistas sonham a respeito do pão no Sacramen-
10; pelo contrário, a natureza humana tem que permanecer. Não obstante, ho-
mem e Deus são mais distintos, mais afastados e contrários entre si do que
pão e corpo, fogo e madeira, boi e burro. Quem faz com que, neste caso,
duas naturezas diferentes se tornem uma essência e uma seja tida pela outra?
Sem dúvida, não é a unidade essencial das naturezas (pois são duas naturezas
c essências difererites), mas a unidade pessoal. Ainda que não seja a mesma
essência conforme as naturezas, é urna só essência segundo a pessoa. Conse-
quentemente surgem daí dois tipos de unidade e de essência: uma unidade natu-
i-ol e uma unidade pessoal, etc. Da unidade pessoal nasce a afirmação de quc
I>ws é homem, e que homem é Deus, como, por sua vez, da unidade natural
surge a constatação de que Deus é o Pai, que Deus é o Filho e que Deus é o
I'spírito Santo, e o inverso: que o Pai é Deus, Filho é Deus, etc.
Aqui temos duas classes de unidade, uma natural e outra pessoal, quc lios
ciisinam que a predicação idêntica não contraria a Escritura, ou qiic [riao é
coriiraditório que] duas essências distintas sejam tidas por uma úiiica cssCiici;~.
V?iiiios procurar mais desses exemplos. Diz o SaI~no104.4: ''FaXcs a Lciis aiijos
vci~ios,c ;i tçus iiiii~istros,laharcilas dc I<)go". Aqui iniiiliCrii I i i dois sci-cs, ;III-
c vciito, o11 aiijo c I;ib;li.cd:l dc I<)go, cxalniiiclilc a11110 110 S:~~'i-;iliiciilo0
Da Ceia de Cristo - Coniisrái,

são pão e corpo. Não obstante, a Escritura faz dos dois uma essência e diz:
"Faz dos seus anjos vento e labareda", do mesmo modo como torna seu cor-
po em pão, de maneira que se tenha que dizer a respeito desses ventos e labare-
das: Isto é um anjo. E a Escritura afirma que quem vê tal vento ou tal labare-
da está vendo o anjo. Agora, ninguém pode enxergar um anjo em sua própria
natureza, mas somente em sua forma de labareda ou de luz. E essa forma de
luz não precisa desaparecer quando se aponta e diz: Isto é um anjo, como os
sofistas fazem desparecer o pão no Sacramento, etc. Ao contrário, é preciso
que ela permaiieça.
Também nesse caso temos a unidade de dois seres diferentes, ou seja, do
anjo e da labareda. Não sei como chamá-la. Não é uma unidade natural, assim
como na divindade Pai e Filho são uma só natureza; tampouco é uma unida-
de pessoal, como Deus e homem são uma unidade em Cristo. Chamemo-la
de unidade efetiva, considerando que o anjo e sua forma efetuam a mesma
obra. Não obstante, a Escritura diz que Abraão e Ló viram, ouviram, alimen-
taram e abrigaram anjos. Gideão e Manoá viram e ouviram anjos. Davi e Da-
niel viram e ouviram anjos. As Marias viram e ouviram anjos junto ao túmu-
lo de Cristo, e tantos outros exemplos maislR4em que foi visto um anjo, não
segundo sua natureza, mas somente segundo sua forma ou como labareda. E,
onde se aponta para ele, deve-se dizer: Isto é um anjo, e esse "isto" está indi-
cando para a forma do anjo. Não nos importa se o sutil Wyclif e os sofistas
queiram alegar a predicação idêntica, de acordo com a qual duas coisas dife-
rentes não podem ser uma só coisa, nem uma pode ser tomada pela outra, c
que, ou tem que ficar somente a forma, sem anjo, como quer Wyclif, ou so-
rilente o anjo, sem forma, como o desejam os sofistas. Cá está a Escritura cla-
ra e a obra manifesta de Deus, dizendo que Deus converte seus anjos em laba-
redas, e a labareda é anjo quando se aponta para ela e diz: "isto é um anjo",
por causa da unidade efetiva que fez as duas coisas se tornarem uma só, assiiii
como em Cristo, devido à unidade pessoal, Deus e homem se tornaram uni
só ser pessoal. Da mesma forma deve-se falar do Sacramento quanto ao "ls-
io é meu corpo", ainda que o "isto" esteja se referindo ao pão. Pois aí tatii-
bérn se fez uma unidade de duas coisas diferentes, como veremos a seguir.
Em quarto lugar, os evangelistas contam como o Espirito Santo veio
sobre Cristo no Jordão em forma de uma pomba, sobre os discípulos em k ~ r -
iiia de vento e línguas de fogo no dia de Pentecostes e, no monte Tabor, iin
li~i-inada nuvem, etc.ls5. Neste ponto Wyclif e os sofistas poderiam bancar os
cspcrtos e afirmar que essa pomba está aí sem o Espírito Santo, ou eiitâo, o
I(spirito Santo sem a pomba. Contra as duas alternativas afirmamos quc, ;v)
iiidicar para a pomba, se diz com toda razão: "Isto é o Espirito Santo", vislo
Da Csia dc Cristo - Confissão

que aqiii os dois seres diferentes, Espirito e poniba, de certa forma são um
único ser. se bem aue iião de modo natural oii nessoal. Pois bem. clianierno-
Ia de niiidade formal, posto que o Espirito Sanio quis revelar-se sób essa for-
ma. A Escritnra fala aqui abertamente que quem vê essa pomba está vendo o
Espirito Santo. conforme João I .33: "Aquele sobre queni vires descer o E ~ p í -
rito, etc.". Por que não se diria com muito mais razão na Santa Ceia: "Isto
é meu corpo", ainda que pão e corpo sejani seres diferentes e o "isto" se rsfi-
ra ao pão? Pois aqui tambéiii se fez a unidade de duas coisas, a que quero cha-
mar de urudade sacramental, cotisidsratido que ali nos são dados o corpo de
Cristo e o pão na quirlidade de sacramento. Pois não se trata de uiiia unida-
de natural ou pessoal como a de Deus e de Cristo, e provavelmente seja uma
unidade diferente daquela da pomba com o Espírito e da labareda com o an-
jo; todavia, não deixa de ser uma unidade sacramental.
Por isso é absolutamente correto que se aponte para o pão e se diga: "Isto
é o corpo de Cristo", e quem vê o pão está vendo o corpo de Cristo, assim
como João disse que viu o Espirito Santo quaiido viu a pomba, como ouvi-
mos. De forma que também 6 correto dizer: Quein tocar neste pão está tocaii-
do no corpo de Cristo, e qusrn conier este pão esta comendo o corpo de Cris-
10,quein mastigar este pão com os dentes e a liiigua esta mastigando o corpo
d c Cristo coin os dentes e a língua. Não obstaiite, çoiitin~iainconteste que nin-
giiini v?, toca, come ou mastiga o corpo de Cristo como se vê e mastiga visi-
velmente outra carne. Pois o que se faz com o pão c atribiiido correta e aceria-
damente ao corpo de Cristo por causa da unidade sacrainental. Por isso os fa-
iKiticos e a glosa no Direito CanOiiico procedem mal ao criticarem o papa Ni-
colaii por haver forçado a Berengário a confessar que ele tritura e mastiga coiii
(1s dente5 o verdadeiro corpo de Cristola6. Quisera Deus que todos os papas ti-
veisern agido de maneira tão cristn em todas as questões como esse papa agiu
coni Berengário nessa Confissão. Pois, sem dúvicia, é a crença que quem co-
iiie e mastiga esse pão, come e mastiga aquilo que é o real e verdeiro corpo
clc Cristo, e não mero pão, como ensina Wyclif. O pão é, portanto, o corpo
de Cristo, tal-como a pomba é o Espirito Santo e a labareda é o anjo.

IXh Nit dosa ao Decrei. Grat. 111 p. Ego Berengarias c 42 dr coi,s?cral. disl li. Nesta Carifer.,io
ilz IicrciigArio de Tours, que Ihc foi arrancada sob c o a ~ j cpelo i papa Nicalau 11. 1059, no Sítio-
do de Roi,,n. se L* " . . Cc>nf~tê~i ... pailer!? ct rinuin quar jii dmri ~ O B U B I U G~ o s consecinlio-
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, i i ~ i iiiivi ii>iiim sacranieriliini sed e t i a ~ iverum corpus er iuigiiiiiriii ... Christi esse cl ,r,i.so:rlirrr
rli>ii s01,limi sai-inmrnlo sal in veillaie inanibilr ~acerdorui~i iracliii. I'rm~piri li'deliiini ricniihiii
.iIirii."- ( " . . Confesso ... que o pào e o vinho que sán porlns sobrr o altar oàa s60 : I I > c I ~ ~ \
\;icinniciilo dcpois da conragm$io. miar reccladeiro corno r rarigue dc Cri\to, c qiiç &i iii:i~>ii-
\i.;i<Iov, pariidos c Lriluradas pelos drnrrs <Ias fiéis rensorialiiieiitc "$0 allciias iio iaci:iiiiciii<<
i~i;i\ <Icvcidadc.") - Bcrmgiiio dc lòiirs ((11. IOfiX). dircl<ii c clia~icclerd;i csci>l;idc ' l i > i i i h
11 i;iii~al.<Iclciidcii urii puro virriboliamo e\i,iiiiii;ili\iic<i ii;i ciiiiiliicciisA<>i k i I(iic;iii*li:i. iicg;iii
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Da Ceia de Crirro - Cu!il'i\r.ii>
O sutil Wyclif e os sofistas foraiii enganados pela lógica irioportutia,
quer dizer, não examinaram previamente a gramática ou a retórica. Pois quan-
do se quer entender de lógica antes de conliecer a gramática, e ensinar aritcs
de ouvir, julgar aiites de falar, não pode sair coisa boa. A Iógica ensina corrc-
taiiieiite qiie pão e corpo, pomba e Espirito, Deus e Iiomem são duai nature-
zas distintas. Mas, em apoio, deveriam pririieiro ter ouvido a gramática que.
em todas as línguas, eiisina a falar assim: onde dois seres distiiitos se toriiaiii
um só ser, aí tatiibém resuiiie esses dois seres nuiii só termo. Do liiesriio mo-
do como concebe a unidade das duas coisas, assim também se reporta as duas
com um só termo, ou seja, em Cristo Deus e homem são um só ser pessoal.
Por isso se refere aos dois seres assim: ele é Deus, ele é homem. O mesmo va-
le referente a pomba de João 1.32~8.:isto é o Espirito Santo, isto é uma poni-
ba. Ou enc'ão, 3 respeito dos anjos: isto 6 um vento, isto e uin anjo. Isto é pão,
isto é meu corpo. Por outro lado, a s vezes um é chamado pelo outro: o ho-
mem é Deus; Deus é homem; a pomba é o Espirito Sinto; o Espirito Santo é
a pomba. O vento ou a labareda P o anjo; o anjo P a labareda. O pão é meu
corpo; meu corpo é o pão. Pois aqui não se deve falar das diferenças e distin-
$»es dos seres entre si, como Wyclif e os sofistas usam a lógica de forma inade-
iliiada, mas da essêiicia da unidade, em fiinção da qual esses seres diferentes
se tornaram uni só ser, cada qual a sua iiianeira. Pois, na verdade, é assim
qne essas naturezas distintas se fundem em uiiin, de fato adquireiii, a partir
da jiiiiqão, um ser único e novo, de modo que coiii todo o direito e aceno são
chamados de um só ser. apesar de cada qual ter sua essência própria. Foi isso
qiie enganou a Wyclif e aos sofistas, porque concluem da unidade total pelas
iiiiidades parciais, e vice-versai".
Esse modo de falar de seres diferentes como de uiii só os gramáticos cha-
mam de sinédoque, o que é iiiuiro usado, não só iia Escritura, mas em todas
as línguas. Por exemplo, quando mostro ou ofereço uma bolsa ou carteira de
dinheiro e digo: "Isto são cem ducados", o ato de mostrar e a palavrinha "is-
to" se referem a bolsa; mas, como bolsa e ducados formam praticamente uma
só coisa, um só volume, [o ato de mostrar e a palavrinha "isto"] referem-se,
ao inesmo tempo, aos ducados. Do mesmo modo posso pegar um barril e di-
rcr: Isto é vinlio d o Reno, isto é vinho italiano, isto é vinho tinto. Ou então,
iiimo um copo s digo: Isto é água, isto é cerveja, isto é pomada, etc. Em to-
iI;is essas expressões vês que a palavriiiha "isto" indica para o recipiente, mas,
como o conteúdo e o recipiente de certo modo são uma só coisa, ela se refere,
;ir> iiiesmo tempo e até de forma especial, ao conteúdo. Mais acima já dei um
c~ciiiplo:quem ferir a mão do fillio do rei será tido como quem fere o filho
ili) [ri, pelo fato de a mão ser parte integrante d o f9ho do rei. quer dizer, iim
v o i ~ ~ ainda
o. que, por si só, conio mão, seja uina coisa a paire, já que iiião
II.I~IC corpo. Aqiii tamhéni cabe niiiiha comparação do ferro em brasa, tomado
Da Ceia de Cristo - Confirsào

de S. Agostinho, na qual os fanáticos quebram a cabeca, sem nada consegui-


rem. Pois, seja o fogo coiiio quiser, em todas as línguas está certo dizer: isto
é fogo, isto é ferro, etc.
Se agora um sutil Wyclif ou sofista quer vir e dizer: Tu me mostras a ból-
sa e dizes: isto são cem ducados - coriio pode um bolsa ser cem ducados?
O11 então, se dissesse: Tu me mostras o barril e dizes que é vinho. Meu caro,
um barril é madeira e não vinho. Bolsa é couro, e não oiiro. Disso até as crian-
$as iriam rir como de um bobalháo ou piadeiro; pois ele separa as duas coisas
iiiúficadas e quer falar de cada iiina em separado, quando nós agora estamos
falando do fato de quc os dois seres se tornaram uma só coisa. Pois barril
aqui não é mais simples madeira ou barril, mas uma madeira ou barril de vi-
nho; a bolsa aqui não é iiiais simples couro ou bolsa, inas iim couro de ouro
ou bolsa de dinheiro. Se, porém, queres separar tudo, colocar oiiro e couro a
parte, cada coisa, evideiiternente, é algo próprio e seri preciso falar diferente
das coisas, ou seja: isto i ouro. isto é couro; isto é vinho, isto é o barril; mas
se o deixares iiiteiro, também terás qiie referir-te a ele por inteiro, indicar pa-
ra o barril e para a bolsa e dizer: Isto é ouro, isto é viiiho, dada a unidade
do ser. Pois não se deve levar em conta o que tais sutis sofistas deliram, mas
observar a linguagem, para ver qual o modo, uso e costume de falar.
Já que esse é o modo de falar conium, tanto na Escritiira como em todas
as línguas, a predicação idêntica não coiistitui nenhum impedimento para nós
na Saiita Ceia. Aliás, ela neni ocorre; Wyclif e os sofistas apenas a imaginam.
Pois, na verdade, corpo e pão são, cada um por si, duas naturezas distintas e,
quando separadas, unia não é a outra. Quando, porém, se unem e se tornani
um ser novo e inteiro, perdem suas diferenças no que diz respeito a esse novo
e único ser. E, tal como se tornam e são uma só coisa, assim também os con-
ceituamos e chamamos de uma coisa só, de modo que iiáo é necessário que
lima das duas desapareça e pereça, mas que ambos, pão e corpo, fiquem, e
que, de acordo corii a unidade sacramerital, se possa dizer corretamente: "Is-
to é meu corpo", sendo que a palavrinha "isto" indica para o pão. Pois já
não é mais simples pão no foino, mas pão-carne, ou pão-corpo, quer dizer,
tini pão que se tornou uma só essência sacramental e unia só coisa com o cor-
pi, de Cristo. O mesmo vale a respeito do vinho no cálice: "Isto é meu san-
gue", onde a palavrinha "isto" iiidica para o vinho. Pois ja não é mais sim-
~plcsvinho da adega, nias vinho-sangue, poitanto, um vinho que se tornou
iiina só essência sacraiiierit:il com o sangue de Cristo. Isso basta sobre esse as-
siinlo para os nossos. Aos outros seu espírito somente Ilics ensina o que Ihes
iiiieressa.

Seguiida parte
lixaiiiinarcmos agora os textos dos cvangelistas e do :il>«stolo I':iiilo. 1x1-
i:i 1'ort:ilcccr nossa conscii.nci;i. Fni ,>i-ii~lciroItrg;~i-,tlcvcs ;icril;ii- :I coiil'iss:io
iIi,s ~'riiprios liiiifilicos. I'ois clc\ i-cc~iiiliccciiic ii.io I2ii1 ~.iiiiioii<ii, rccoiiliri.ci
Da Cria dc Cristo - Cimfis(iiO

que nosso entendiriiento coincide coni o sentido literal do texto, de modo que.
a julgar pelo sentido etiniológico, nossa interpretaç'ão está indubitavelmente
correta. Eles, porém, afirmam que as palavras não devem ser entendidas iio
sentido literal. Tal coiicessão, diria eu, deves aceitar. É que isso j& é mais de
meio caminho andado. Visto que confessam que, se as palavras devessem ser
aceitas tal como rezam. nosso entendimento estaria correto, eles nos desagra-
vam com seu próprio testemunlio. Primeiro, porque não 110s compete compro-
var nosso eiitendimento correto além do que dizem a, palavras, tais quais ai
estão e como rezam. Note bem, isso e uiii ponto. Por oiiiro lado, eles se sobre-
carregam e se comprometem com duas grandes tarefas e iiicôinodos. A primei-
ra, que devem e precisam coniprovar por que as palavras deveni ser entendi-
das de outra iiiaiieira do que se encontram escritas. A outra, que, em lugar
destas, terão que oferecer outras palavras e textos confiáveis, em que possa-
mos basear-nos. AtC agora não fizeram nenhuma das duas coisas. Especialmen-
te a segiinda nem tentaram fazer, como expusemos e comprovamos acima.
Com isso nos obrigam a insistir iio sentido que as palavras têm em sua acep-
cão literal, provocando seu próprio descrédito com suas vagas mentiras.
Em segundo lugar: Tu sabes, ou deverias saber, que nosso texto: "Isto é
meu corpo, etc." não foi dito e colocado por homeiir, iiias pelo próprio Deus,
de sua própria boca, nesses termos e palavras. O texto dos fanáticos, porém:
"Isto significa meu corpo". ou: "Isto é sinal de meu corpo, elc.", não foi di-
to por .lesus nesses termos e letras, mas tão-somente por Iionieiis.
Terceiro: Conio vimos acima, eles estão totalliiente e em todos os sentidos
incertos quanto a seu texto, e nenhum deles sc dispas até agora a comprovar
efetivanieiite que ele deva ser entendido como alegam. Tarnpouco conseguirão
produzir uin texto confiavel. Nosso texto, porém, i dc confiança e deve e tem
que valer pelo que as palavras dizem. Pois o próprio Deus assiiii o colocou, e
ninguém deve ousar acrescentar ou tirar uma letra sequer.
Quarto: Saibas que eles não têm consenso e que, a partir dessas palavras,
elaboram vários textos conflitantes, de modo que não estão apenas em dúvi-
da (o que já seria uma coisa bastante diabólica), mas também se combatem
entre si com as conseqüentes e recíprocas acusações de nientira. Nosso texto,
porém. não é apenas confiá\:el. mas também coerente. simples e de consenso
para todos nós.
Q u i ~ ~ t oAdmite
: inclusive que nosso texto e iiitcrprelac50 também seja in-
certo e obsciiro (coisa que ele não é), tal qual o iexto e o entendimento deles.
Mesmo assim, tens uma forniidável e firme vantasem que te permite basear-
ic de boa consciência em iiosso texto e dizer: se é para aceitar um texto e iiiter-
prctação duvidoso e obscuro, prefiro aquele que foi pronunciado pela boca
clc Deus, ao invés daquele que foi formulado por boca humana. Se é para ser
ciiganado, prefiro ser enganado por Deus (se isso fosse possível) do que 1301
Ii~iiiieiis.Se Deus nic enganar, ele assumirá a responinhilidade c Iiaverá de rc-
parar isso. HOIIIC~S, poréiii. ~ i ã »me podem okrcccl- compcnsacâo dcpois rlc
i ~ i i ,ici-ciii ciigaii;itli>c cr~iiilii/iiIii:ti>irilèriio. E\vii scg,tr;iiiqi~os fi~i~álicos
Da Ceia de Cristo - Confissão
a podem ter, pois não podem dizer: Prefiro basear-me no texto que Zwinglio
e Ecolampádio estabelecem de forma discordante, do que naquele que o pró-
prio Cristo proclama sem contestações.
Por conseguinte, podes falar confiantemente a Cristo, tanto na hora de
tua morte quanto no juizo final: Meu querido Senhor Jesus Cristo, surgiu
uma contenda sobre as palavras da Santa Ceia. Alguns querem que sejam 'en-
tendidas de maneira diferente do que elas dizem. Como, porém, não ensinam
nada certo, mas somente me confundem e me deixam em dúvida, nem querem
ou podem provar seu texto de forma alguma, fiquei com teu texto e com a
acepção literal. Se ali existe algo de obscuro, é porque tu quiseste que fosse
obscuro, pois não deste outra interpretação nem mandaste que fosse dada.
Em nenhum escrito ou língua se encontra que "é" quer dizer "significa", ou
então que "meu corpo" venha a ser "sinal de meu corpo". Se houver algo
de obscuro nisso, tu certamente hás de me desculpar que não o entendo, co-
mo também perdoaste aos apóstolos que não entenderam muitas coisas, em
muitos pontos, como, por exemplo, quando Ihes anunciaste tua paixão e res-
~urreição'~~; mesmo assim, eles guardaram as palavras originais, sem modifi-
cá-las. Como também tua querida mãe não te entendeu quando, em Lucas
2.49, lhe disseste: "...Me cumpria estar na casa de meu Pai", e ela guardou
estas palavras com toda simplicidade em seu coração, sem fazer delas outra
coisa. Assim também eu me ative a esta tua palavra: "Isto é meu corpo, etc.",
e não quis fazer disso outra coisa, nem permitir que outros o fizessem, colocan-
do em tuas mãos se nelas há algo de obscuro; eu as aceitei tal qual rezam, es-
pecialmente porque não entendo que estejam conflitando com algum artigo
de fé. - Vê, assim nenhum fanático pode falar com Cristo, disso estou certo,
porque eles estão em dúvida e discórdia sobre seu texto.
Eu tentei: ainda que lia Santa Ceia houvesse somente pão e vinho e eu,
por brincadeira, quisesse procurar uma forma como explicar que o corpo de
Cristo está no pão, decididamente não poderia expressá-lo melhor, de forma
mais simples e mais clara do que dizendo: "Tomai, comei, este é meu corpo,
etc.". Pois, se o texto rezasse: "Tomai, comei, neste pão está meu corpo",
ou então, junto a este pão está meu corpo, certamente choveria fanáticos de
todos os lados e jeitos a exclamar: Estás vendo e escutando? Cristo não diz:
O pão é meu corpo, mas no pão, com o pão, sob o pão está meu corpo; e gri-
tariam ainda que, com muilo prazer, creriam se tivesse dito: "Isto é meu cor-
po". Isso seria uma definição simples e clara. Agora, porém, que diz: "no pão,
com o pão, sob o pão", não segue dai que seu corpo esteja presente. Inventa-
riam também mil evasivas e explicações sobre os termos "em", "com" e "sob",
com grande aparência de verdade, de modo que seria bem mais difícil contê-
10s. Então até poderiam dizer: Onde está escrito que o corpo de Cristo está
no pão? Como se estivessem dispostos a crer se pudéssemos prová-lo. Todavia,

188 Cf.Lc 9.45.


Da Ceia de CrisLa - ConFisuiii
não querem crer o que provamos da forma.mais conclusiva, ou seja, quc o
pão é o corpo de Cristo, o que afirma de maneira mais vigorosa e clara a prc-
sença de seu corpo do que aquele texto: "no pão está meu corpo". Eles, no
entanto, mentem e pretendem que Deus formule o texto conforme eles lho pres-
crevem; mesmo, porém, que ele o fizesse, não o aceitariam, porque é a ele que
não aceitam.
Já que provamos cabalmente que nem o significatismo de Zwínglio neni
o sinalismo de Ecolampádio tem consistência, também temos assegurado qiic
todos os textos que tratam da Santa Ceia devem ser entendidos textualmente
conforme nossa interpretação. %atei deles exaustivamente no livrinho Contni
os profetas celestiai~'~~;até hoje os fanáticas nada tiveram o que lhe opor sc-
não meras glosas inconsistentes, sem respaldo bíblico, invenção de suas cabe-
ças, baseada em seu significatismo e sinalismo, coisa que caiu por terra junto
com o significatismo e sinalismo, enquanto meu livro está ai, firme, como po-
des ler e verificar nos cadernos G. H. J. K.Iq0. No entanto, torno a tratar dcs-
ses textos um por um, para reforçar nossa interpretação.
São Mateus é opiimeiro que fala no capítulo 26.26s.: "Enquanto comiaiii,
tomou Jesus o pão, e o abençoou, e o partiu, e o deu aos discípulos, dizendo:
Tomai, comei; isto é meu corpo. E tomou o cálice, e deu graças, e o deu aos
discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é meu sangue da nova aliaii-
ça, que e derramado em favor de muitos, para a remissão dos pecados". Es-
sas palavras foram pronunciadas pela boca de Deus, ainda que os fanálicc~s
não as considerem mais do que se tivessem sido ditas por um patife ou bebcr-
rão. Pois também Zwinglio se irrita conosco em ceria ocasião e diz que nós
nos agarramos a cinco pobres e míseras palavras. Ele faz isso como recurso
de retórica: se alguém está defendendo uma causa má e a outra parte o acii;i
e assusta com a clara verdade, deverá pô-lo de lado com um gesto da mão c
torcer a boca, dizendo que aquilo não faz sentido, que sequer vale a pena rcs
ponder, que são apenas cinco pobres e míseras palavras, etc. Mas, a par disso.
deve achar também que Deus é um ídolo ou macaco, e que todo mundo C iii-
sensível como pau ou pedra, que simplesmente se satisfazem ao ouvirem taiiiii-
nlio desprezo. Dessa maneira a retórica de Zwínglio está bem de acordo coiii
o pensamento dos sile~ianos'~~ de desconsiderar essas palavras e desprczú-l:is
como pobres e miseras. Foi assim que conseguiram e acharam sua verdade cci...
ta. Querem que esta seja a base para explicar e entender essas claras palavi-ns.
Contudo, nós pobres e miseráveis carnívoros temos que ficar admirados
como é que tão poderosos ferrófagos e fanfarrões nada conseguem apor e cs-
siis pobres e míseras cinco palavras senão um cru e orgulhoso desdém. Sc iiic-
iiosprczo bastasse para obter a verdade, o diabo de fato seria Deiis aciiiia (li,
io<los os deuses. Com essa argumentação, no entanto, eles depõeni coiiti.:~si
~x<iprios,revelando que espírito os domina e quanto apreço têm pcla pnlovi;i

lU31 ( ' I ;tcirn:~ !>.,I1 I'JO ('I'. WA 21.11~IIUL. 101 ('I'. ;LC~III;L 11, I111

3 20
Da Ceia dc Cristo - Confissáo
de Deus, a ponto de desfazerem essas preciosas palavras como sendo pobres
e míseras cinco palavras. Isso significa que não acreditam que sejam palavra
de Deus. Pois, se acreditassem que são palavra de Deus, não as chamariam
de míseras e pobres palavras, mas considerariam um acento e uma letra mais
importante do que o mundo todo e diante delas tremeriam e temeriam como
diante do próprio Deus. Pois quem despreza uma única palavra de Deus não
tem nenhuma em alto apreço. Se apenas criticassem nossa compreensão e inter-
pretação errônea, e não as próprias palavras de Deus, ainda seria tolerável.
Que, todavia, fazer com pessoas que não consideram miseras essas míseras pa-
lavras, mas as têm por maravilhosas, poderosas e tremendas? Que fazer? Se-
rá preciso considerá-las igualmente miseras e bobalhonas, incapazes de despre-
zar e desconsiderar essas palavras.
Uma vez que não se pode provar que "é" quer dizer "significa", nem
"meu corpo" "sinal de meu corpo" e visto que as expressões "a carne para
nada aproveita", "Cristo está assentado no céu" não obrigam nem dão moti-
vo algum para um entendimento diferente do sentido literal das palavras, co-
mo ouviiiios acima, temos que insistir nelas e a elas apegar-nos como as mais
claras, certas e seguras palavras de Deus, que não nos podem enganar ou indu-
zir ao erro. Pois está dito da forma mais simples: "Isto é meu corpo", "isto
é meu sangue da nova aliança", de modo que, se fôssemos recorrer a todas
as línguas ou palavras do mundo, não se poderia escolher ou tomar formula-
ções ou palavras mais simples. Cristo não pode falar de forma mais simples a
respeito de seu corpo e sangue do que esta: "meu corpo", ou então: "lsto é
meu corpo", "isto é meu sangue". Não faz sentido que os fanáticos afirmem
que Cristo não disse: "No pão está meu corpo", ou: "quando pronunciardes
estas palavras, meu corpo estará presente". Deixemos que escolham c tentem
dizer isso de maneira mais simples. Se Cristo tivesse dito: "No pão está meu
corpo", as aparências estariam a favor deles e eles poderiam alegar que Cris-
to estaria no pão de forma espiritual ou simbólica. No entanto, se já puderam
encontrar uma expressão figurativa nas palavras "isto é meu corpo", quanto
mais haveriam de achá-la nas palavras: "No pão está meu corpo". E isso com
maior razão, posto que a expressão "isto é meu corpo" é mais inteligível e cla-
ra do que "nele está meu corpo".
Se Cristo, no entanto, tivesse dito: "Quando pronunciardes estas palavras,
inieu corpo está presente", fariam logo a objeção: Pois sim, amigo, Cristo não
diz: o pão é meu corpo, mas, meu corpo estará presente. É claro que pode es-
tar presente sem que o pão seja seu corpo. Vê em que situação ficari,am eles!
Se, por outra, tivesse dito: Ao pronunciardes estas palavras, meu corpo esla-
r i presente no pão, eles, por sua vez, diriam: Evidentemente o corpo de Cris-
to cstá presente no pão, todavia, não essencialmente, mas de Corma espiritual
c ligurativa. Se, porém, constasse: Quando pronunciardcs estas palavras, riicii
corpo estará esseiicialmenlc presente no pão, rctriicariarii: <:lar(>qiic scii cor-
~pocst5 csseiicialmente presente no pio, 110ciitaiito, de tal imodo qiic "cssciicinl
iiiciiic" se i-ckrc corlio de ('risto. oii sci:i, qiic ('risto tciiliti i i i i i coilio c h l x ' ~
Da Ceia de Cristo - Confis\;ii,
cífico e não um ~narcionita'~~; este corpo específico de fato está presente no
pão, mas como sinal, não de verdade.
Em resumo: se Deus Ihes desse a oportunidade de formular o texto, eles
não formulariam outro tão inteligível quanto este, mas achariam nele muito
iriais lacunas e falhas do que acham neste. Portanto, quem não se deixa reter
por este texto de acordo com nossa interpretação, jamais se deixará reter por
algum outro. De resto, está visto qiie os fanáticos resolveram que não se deixn-
rão reler. Provain isso brocando e esburacando este texto tão simples de todas
as maneiras. Um quer fazer um furo até atingir o "isto", outro quer perfurar
o "é", o terceiro tenta fazê-lo na expressão "meu corpo"; outros, de tudo
que é jeito, tal como os peixes romperam a rede de S. P e d r ~ ' ~e ~defendem
.
posições tão levianas e podres, muito mais duvidosas e obscuras do que é o
próprio texto. É mera farsa e patifaria exizirem um texto mais correto, sim-
i ples e claro. Pois sabeni que não pode ser formulado mais claro e simples.
mesmo que tivessem a incumbêiicia de formulá-lo. Sentindo, porém, que estc
é muito claro e certo, querem provocar-nos para formulaqão de outro texto,
no qual pudessem achar muito mais buracos e brechas. Assim pareceria que
tivessem derrubado um texto mais claro do que aquele que consta no Evangelho
e que estaria simplesmente desautorizado. Não mesmo, diabo, não vais conse-
guir isso. Nada te vai adiantar, vais te afogar e sucumbir com este texto.
S. Marcos é o s e ~ u n d oque, no capitulo 14.22ss., diz: "Enquanto comiam,
torriou Jesus o pão e o abençoou, o partiu e Ilies deu, dizendo: Isto é meu cor-
po. E tomoii iim cálice, deu graças e deu a seus discípulos: e todos hebcrain
dele. E Ihes disse: Isto é o meu sangue da nova aliança, que é derramado eiii
favor de muitos".
Foi desse texto que Karlstadt tirou suas primeiras idéias sobre o "isto".
Isto porque, pelo texto de Marcos, pode parecer que os discípulos todos hebc-
ram do cálice antes que Cristo disse: "Isto é meu sangue", para logo após re-
ferir-se a seu sangue, tal como estava sentado aí, porque o cálice já estava va-
zio. Isso, porém, está refiitado e desmentido há tempo. Não somente os oii-
tros evangelistas e S. Paulo têm oiitra redação, mas o próprio S. Marcos, f;i-
lando da outra parte do sacramento, não diz que os discípulos comeram o pio
e que depois Cristo disse: "Isto é meu corpo". Por isso a refcrênca ao bebcr
tem que se ater a ordem dos outros evangelistas e a Paulo, e ao próprio Mar-
cos no texto a respeito do comer. Afinal, não pode estar contra si mesmo c
contra todos os outros.
Mesmo assim, fico intrigado como é que somente Marcos escreve: "e to-
dos beberam dele". E ainda o faz no mesiiio lugar onde Mateus escrevc c111
seu texto: "Bebci dele todos", a poiito de me parecer milito provável quc i>
tcxto de S. Marcos tenha sido alterado, fazendo de "bebei" "beherain". I'ois,
sc cstivessc escrito "bebei", seria idêntico ao tcxto de S. Mateus, com i>qii;il

I')?('I'. :LC~III;$ )I, 1112 ' 3 1'1. I c 5 . 6


11
Da Ceia de Cristo - Confissão
S. Marcos costuma conferir quase literalmente nas outras coisas. Deixo isso
para os especialistas. Eu sustento que ambas [as versões] - S. Mateus ao es-
crever como único: "Bebei dele todos", e S. Marcos, também como único: "e
todos beberam dele" - foram escritas porque ambos os evangelistas quiseram
indicar que todos os discípulos beberam desse cálice, não em função da sede,
como talvez na oportunidade também tenha acontecido, quando, possivelmen-
te, se teve que encher várias vezes o copo, até que tivesse passado. Pelo contrá-
rio, deviam fazer circular esse cálice, bebendo dele moderadamente, de manei-
ra que bastasse para todos, assim como Lucas [22.17] também escreve que ele
deu o último cálice antes do sacramento para que todos bebessem do mesmo,
quando diz: "Reparti este cálice entre vós", como se quisesse dizer: certamen-
te havia mais cálices na mesa, do qual cada um bebia, ou então o mesmo cáli-
ce era enchido mais de uma vez. Mas este cálice no final foi dado para que to-
dos dele bebessem em despedida do antigo cordeiro pascoal.
Em relação a esse cálice especial, Mateus e Marcos podem ser entendidos
no sentido de que os apóstolos, a mesa, tinham cada um seu copo, ou que ha-
via no mínimo mais de um copo na mesa. Mas aqui, quando Ihes dá uma no-
va bebida especial de seu sangue, pede que todos bebam do mesmo cálice, de
modo que, com a oferta e o gesto especial, Cristo tomou seu próprio cálice,
dando dele a todos, em distinção dos copos comuns na mesa, fazendo com
que assim notassem melhor que era uma bebida especial, diferente das outras
que foram oferecidas ao longo da refeição. O pão ele pôde, até teve que distri-
buir de tal modo que cada um recebesse seu bocado. O vinho ele não pôde
distribuir dessa forma, mas teve que deixá-lo num só cálice para todos e indi-
car com palavras que se tratava de uma bebida comum para todos, e não a
ser oferecida a um, dois ou três para ser bebido, como os outros copos que
estavam na mesa a disposição de cada um.
É evidente que com esse gesto ele quis distinguir claramente sua Ceia da
antiga. Primeiro, ao oferecer o cálice de despedida, como escreve Lucas. Com
isso intrigou os discípulos a ponto de terem que se perguntar: Que será que
ele pretende ao oferecer o último cálice de seu próprio copo? Até agora nun-
ca procedeu assim na mesa. Ainda mais que Lucas escreve [22.18] que expres-
sou também com palavras esse caráter final, ao dizer: "...vos digo que de
agora em diante não mais beberei do fruto da videira até que venha o reino
de Deus", como podemos constatar. Por outra, porque toma nas mãos um
pão distinto dos outros pães, abençoa e parte-o depois da última bebida. Aí
tiveram que pensar: Que é isso? Será que quer comer de novo? Mesmo depois
do cálice final? Então observaram atentamente o que estaria para fazer, e
atentaram para o que diria, porque assim não procedera com o outro pão na
mesa e na ceia do cordeiro. Depois do último cálice e da ceia, inicia algo
novo, e ele diz que é seu corpo. Aí eles se calam e simplesmente crêem. Ne-
nhum deles pergunta como é que pão pode ser corpo. Em terceiro liigai-, olc.
recendo seu cálice e pedindo que todos bebessem dele, deve tê-los coiiiovido,
porque antes jamais procedera assim com outro cálice, c aiiidn dissc qiic
Da Ceia de Cristo - Confiss;ai

era seu sangue, ao que novamente calaram e creram. Certamente pensaram


que deveria ser verdade o que estava dizendo, pois viram este novo gesio
depois do final, de modo que estava iniciando algo novo, agradecendo dc
novo, proferindo a bênção mais uma vez e tomando um pão especial qiic
reparte entre eles, e também reparte entre todos eles seu cálice e encerra es-
ta ceia com um pão e um cálice. Ai certamente pensaram que ele sabia mui-
to bem o que estava fazendo e dizendo, de modo que não havia necessidadc
de fazer perguntas e todos entenderam que se tratava de uma ceia nova, difc-
rente.
Em resumo: eles comeram o cordeiro pascoal sem que Ihes ordenasse co-
mer e bebê-lo, mesmo sem que lhes oferecesse comida ou bebida. Cada um co-
meu e bebeu por si, como estava posto em seu lugar, como dizem Mateus c
Marcos: "Enquanto comiam, ele tomou o pão, etc.". Mas aqui as coisas acoil-
tecem de forma totalmente nova. Ele escolhe e toma um pão em particular,
dá graças por ele, parte-o, distribui-o entre eles, oferece-o, ordena-lhes que co-
inam e diz: "lsto é meu corpo dado por vós". Com o cálice faz a mesma coi-
sa. Escolhe-o e dá um gole especial para todos. Dos outros pães não os man-
da comer, nem tampouco beber de outros cálices, nem oferece comida ou be-
bida a ninguém como aqui o faz. Com isso quis sinalizar que esse pão e vinho
não são pão e vinho comuns como aqueles ingeridos na ceia do cordeiro pasco-
al, mas algo bem diferente, especial, sublime, como o formula quando diz que
é seu corpo e seu sangue.
Concluímos, pois, que Mateus e Marcos conferem na maior simplicidade.
usando praticamente as mesmas palavras, as quais Mateus acrescenta aquelti
~ parte: "para remissão dos pecados". Marcos por sua vez, quando fala do p30,
diz eulogesas, isso é, "abençoando", enquanto os outros todos falam de eucli~i-
ristesas, isso é, "agradecendo". Como o próprio Marcos o faz também em rc-
lação ao cálice, parece-me que ele entende "abençoar" e "agradecer" coiiio
sendo a mesma coisa. Mas isso deixo para aqueles que têm prazer de se preocii-
par com essas coisas. Bem mais útil é anotar o seguinte: visto que os evangclis-.
tas são unânimes e claros em colocar esta palavra: "Isto é meu corpo" coiii ;i
maior simplicidade, pode-se deduzir que não se trata de linguagem figurativil
nem de algum tropo. Se houvesse nela algum tropo, certamente um dos oti-
tros teria tocado nisso ao menos com uma sílaba, no sentido de que o tcxio c
o entendimento pudessem ser outros, tal qual procedem em outras partes, qii:iii.
do um traz o que o outro omite, ou o coloca com outras palavras. Assirri, por
exemplo, Mateus escreve no capitulo 12.28 que Cristo teria dito: "Se, porkiii.
eu expulso os demônios pelo dedo de Deus", e Lucas por sua vez: "Se c11 cx.
pulso os demônios pelo Espírito de Deus" [Lc 11.20]'94. Em outra passapciii
Marcos afirma que uma semente teria produzido trinta por um, outra, scsciii:~
Da Ceia de Cristo - Confissáa
por um, e ainda outra dando cem por um'95. Sobre o mesmo assunto, Lucas
diz simplesmente que deu fruto a cento por um [Mc 4.8; Lc 8.81. Dessas passa-
-gens existem mais. onde um exdica o outro ou oferece uma narrativa diferente.
Aqui, porém, todos são simplesmente iguais e nenhum difere do outro
por uma letra, como se todos quisessem dizer: ninguém pode falar disso de
maneira mais simples e mais clara do que assim: "Isto é meu corpo". Lucas
e Paulo diferem bastante de Mateus e Marcos em relação ao cálice, como ha-
veremos de ver; como, porém, há quatro testemunhas que concordam em suas
palavras, podemos confiar alegres e seguros ein seu testemunho, julgar e crer
por ele; pois se Deus diz que o testemunho de dois é prova da verdade196,quan-
to mais o testemunho desses quatro será mais forte do que toda gritaria e con-
versa fiada dos fanáticos. Eles não podem dizer que Mateus, Marcos, Lucas
e Paulo não foram tão doutos, santos, piedosos e espirituais como eles próprios
e seus seguidores. Se, todavia, colocarem em dúvida o ensiiiamento dessas tes-
temunhas, quanto mais duvidoso será o ensinamento dos fanáticos; especial-
mente porque não têm consenso eiitre si, ninguém deles tem liem pode ter cer-
teza de seu texto. Essas quatro testemunhas, porém, concordam no texto até
a última letra. É assim que falo com os nossos. Pois os fanáticos podem con-
testar tudo, porque ~ i ã ose atrevem a indicar passagens das Escrituras, mas
meras glosas tiradas de suas próprias cabeças.
S. Lucas é o terceiro, com o texto do cap. 22.19s.: "E tomou o pão, deu
gracas, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é meu corpo que é oferecido por vós;
fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cá-
lice, e disse: Este é o cálice, a nova aliança em meu sangue, que é derramado
em favor de vós".
Quem está disposto a aceitar instrução pode satisfazer-se só com Lucas,
tão claras e maravilhosas são suas palavras a respeito da Santa Ceia. Primei-
ro descreve o último cálice de Jesus (como dito acima) e diz: "e tomou o cáli-
ce, deu graças, e disse: Tomai e reparti este [cálice] entre vós; pois vos digo
que de agora em diante não beberei do Iruto da videira, até que venha o rei-
no de Deus". Aqui Cristo testifica que seria seu último gole de vinho na com-
panhia de seus discípulos na terra. Pouco depois, porém, ele dá o cálicc de vi-
nho da nova ceia, etc. Se houvesse apenas siniples vinho na nova ceia, como
seria verdade que aquele leria sido o último gole, não pretendendo tomar mais
vinho algum? Se aquele foi o último gole de vinho, não pode ter sido vinho
o que deu a beber depois. Se não foi vinho, terá que ter sido aquilo que elc
diz, ou seja, seu sangue, ou então, a nova aliança em seu sangue. Por conse-
guinte, Lucas testemunha vigorosamente que na Ceia de Cristo não se tem siin-
ples vinho.
Aqui podes argumentar: Quem sabe se Cristo não pronunciou essas pala-
vras a respeito da última bebida antes ou depois de sua ceia. Pois Lucas cscrcvc
Da Ceia de Cristo - Confissão
que ele pronunciou essas palavras antes da ceia; Mateus e Marcos, no entanto,
[expressam-se] como se as tivesse dito depois da ceia. Pois bem, então a ques-
tão depende de saber qual dos evangelistas mantém a ordem correta do relato.
Se for Lucas, a questão é simples, riosso entendimento é correto e os fanáticos
estão indubitavelmente liquidados; mesmo que duvidem disso, estamos conven-
cidos de estarmos com a razão. Isso nos basta. No entanto, vamos aprender
da própria palavra e obra dos evangelistas quem mantém a ordem correta do
relato. S. Lucas afirma no início de seu evangelho que pretende relatar desde
o começo e pela ordemiy7.Ele prova isso com o que faz, pois seu evangelho
tem boa sequência até o fim, como todo mundo sabe. Mateus e Marcos, entre-
tanto, não prometeram isso. Também não o praticam, conio poderíamos pro-
var em muitas passagens, [por exemplo], quando Mateus descreve a tentaçáo
de Jesus no cap. 4, e o aparecimento de Cristo depois da ressurreição [Mt
28.lss.1, onde, de modo algum, segue a ordem. S. Agostinho se deu muito tra-
balho com isso em seu De consensu E ~ a n g e l i s t a r u m Nem
~ ~ ~ . tampouco Mar-
cos mantém a sequência nessa parte da ceia, quando coloca a passagem "e to-
dos beberam dele" antes das palavras: "Isto é meu sangue, etc.", ainda que
por natureza e gênero deveria ser o inverso.
Como nâo há dúvida de que Mateus e Marcos não seguem uma ordem ri-
gida, mas que Lucas comproineteu-se a segui-la e efetivamente a segue, os es-
critos de Mateus e Marcos devem ser analisados pela ordem de Lucas, e não
o contrário. Será preciso dizer que Mateus e Marcos colocaram após a nova
ceia o que aconteceu e deveria ser relatado depois da antiga ceia. É que eles
não se importaram muito com a sequência; bastou-lhes poder relatar o aconte-
cido e a vcrdade. Lucas, porém, que escreveu depois deles, declara que um:i
das razòes de seu relato é que muitos outros escreveram essa história sem ob-
servaqão de sequência, pelo que resolveu escrever observatido a ordem. Por is-
so muitos acham, e até é provável, que S. Paulo se refere a S. Lucas, quando
escreve aos coríntios elogiando e dizendo: "E com ele enviamos um irmão cu-
jo louvor do Evangelho está espalhado entre todos os cristãos" [2 Co 8.IHI.
O fato de Lucas haver pretendido seguir a ordem com afinco corrobora que
não somente o último cálice, mas todo o jantar da última páscoa é relatado
primeiro, quando escreve: "Chegada a hora, pòs-se Jesus à mesa, e corn clc
os doze apóstolos. E disse-lhes: Tenho desejadoansiosamente comer convoscii
este cordeiro pascoal, antes de meu sofri~nento.Pois vos digo que nunca iriais
comerei dele, até que se cumpra no reino de Deus. E tomou o cálice, etc.".
Vês aqui que se relata tudo ordenadamente nesse texto sobre a última pásc(xi,
tanto do comer como do beber, coisa que Mateus e Marcos não fazem. Sc,
pela ordem, quanto ao comer, a última páscoa vem antes da nova ceia, coili~i
Da Ceia dc Cristo - Confissão
deve ser, assim também o último cálice tem que vir antes da nova ceia. Pois
as duas coisas fazem parte da última páscoa e não podem ser separadas.
Com isso retornamos ao argumento e a conclusão acima expostos. Se Lu-
tas mantém a ordem correta (como agora está provado), Cristo toma o últi-
mo cálice de vinho antes da nova ceia. Se, porém, de fato bebeu o último cáli-
ce de vinho antes da nova ceia, não é possivel que na Santa Ceia se esteja to-
mando apenas simples vinho. Pois suas palavras estão ai bem claras quando
diz que após esse cálice não pretende mais beber do fruto da videira.
Contra isso alguém poderá argumentar: Tu mesmo negas que o vinho con-
tinue sendo vinho na nova ceia. Essa tua doutrina se parece muito com a dos
papistas, que ensinam não haver vinho na Santa Ceia. Respondo: Isso não
me incomoda; como declarei reiteradas vezes, não vejo por que brigar se é ou
não é vinho. Para mim basta que o sangue de Cristo esteja preseiite; com o
vinho aconteça o que Deus quiser. Antes de optar pelo puro vinho com os fa-
náticos, iria preferir o puro sangue com o papa. De resto, eu disse acima: se
o vinho se tornou sangue de Cristo, então já não é mais simples vinho, mas
vinho-sangue, de modo que posso apontar para ele, dizendo: Isto é o sangue
de Cristo. Cristo não oculta esse fato, pois aqui ele diz: "Não beberei mais
do Cruto da videira". Por que nZo diz "vinho", mas "fruto da videira"? Sem
dúvida porque a bebida da Santa Ceia não procede da videira, como outro sim-
ples vinho; e ainda que também seja vinho, não cresceu como é agora. É co-
rno se misturasse vinho malvásio com um pouco de água; existe água ali, mas
tão absorvida pelo vinho malvásio que não sentes mais seu gosto. A respeito
dessa bebida posso dizer então: a água nZo foi tomada da fonte; assim o vi-
nho da Santa Ceia não é mais fruto da videira. Pois o fruto da videira é, sem
dúvida, simples e puro vinho.
Como ficaria se em sua ceia tivessem bebido somente os discipulos, e Cris-
io não? Respondo: Como fica quando um bobalhão é capaz de fazer mais per-
guntas do que der sábios podem responder? Não está escrito que ele bebeu o
último cálice, no entanto, é de se supor que ele não o tenha oferecido somen-
tc aos discípulos, mas que tenha bebido também. Após esse último cálice tam-
hém os discípulos não devem ter bebido mais, acompanhando a Cristo. Por
outra, se após o último cálice os discípulos beberam o sangue do Senhor, certa-
mente ele os acompanhou nisso. Mas, afinal, por que estou me ocupando com
perguntas tão tolas? Para a primeira parte de S. Lucas basta que esteja claro:
iilio se trata do fruto da videira na Ceia de Cristo. Entretanto, se não for fruto
tla videira, então não pode ser outra coisa do que o sangue de Cristo, de acor-
CIO com sua palavra: "lsto é meu sangue".
Por outra, a expressão "que é oferecido por vós" - que consta somentc
c1111.ucas e Paulo - também incomoda alguns fanáticos, especialmeiite as
Iiordns de Karlstadt; alegam eles que, ao constar ali: "que é oferecido por
VOS", coiiio que se cslivesse acontecendo agora, o corpo de Cristo iião potlcrin
<.~t;irria S;iriia Ceia, porqiic nem iiaqucla oporiuiiitlade, iicin agora scii c o r p ~
i. ~ l ; i < l i c) scii s;iiiglic dci-rniiindo por 116s;lia priiiieii-a ceia tlcvcria coiislnr: "qiic
Da Ceia de Cristo - Confissão

será dado por vós", e hoje: "que foi dado por vós". Perspicazes e argutos es-
píritos! A isso respondi amplamente a senhora Hulda no livrinho Contra os
profetas ~elestiais'~, no capítulo quatro. Esses espíritos não enxergam que
suas fantasias contrariam tanto a eles quanto a nós. Se for correto o texto de
Karlstadt: "Isto é meu corpo que ai está sentado", "isto é meu sangue que ai
está sentado", etc., como é que seu corpo poderia ser dado e seu sangue derra-
mado agora, como dizem as palavras: "que é oferecido por vós", "que é der-
ramado em favor de vós"? Não se pode admitir que Cristo esteja mentindo
ou falando à toa quando diz na Ceia: "Isto é meu corpo oferecido por vós",
"isto é meu sangue derramado em favor de vós". No entanto, não é ofereci-
do e derramado ali, como deveria ser se a sabedoria dos fanáticos nesse assun-
to fosse sustentável. Será que podem ter as duas coisas em sua Santa Ceia?
que o corpo e o sangue de Cristo estejam sentados ai, ainda não oferecido nem
derramado em favor de nós e que, ao mesmo tempo, seja verdade quando diz
que o corpo é oferecido e o sangue derramado em nosso favor? Meu caro, en-
tão nossa Ceia também terá por certas essas mesmas palavras, ainda que Cris-
to não seja oferecido agora, mas o foi anteriormente. Para mais detalhes, lê
no mesmo livrinho, se tiveres interesse.
Em terceiro lugar vem este texto de Lucas [22.20]: "Este é o cálice, a no-
va aliança em meu sangue, que é derramado em favor de vós". Ele que aguen-
te! Até hoje não chegaram a um acordo como poderiam maltratá-lo e torturá-
lo melhor. Um se agarra a expressão "nova aliança", o outro à expressão "em
meu sangue", etc. Mas nenhum deles se preocupa em revestir ou confirmar
suas pobres idéias e observações com abonações híblicas e boa argumentação.
Nós também iremos estudar esse assunto. Em primeiro lugar, cabe dizer que
somente Lucas [22.19] e Paulo [l Co 11.241 trazem as palavras: "fazei iSLo
em memória de mim", e ambos as colocam em conexão com o pão, e não com
o cálice. Eles acham que basta dizê-lo uma única vez, o que realmente é verda-
de, ainda que se refira as duas partes do Sacramento e, portanto, à Ceia toda,
como Paulo ainda o explica e diz: "Todas as vezes que comerdes este pão e
heberdes deste cálice, deveis anunciar a morte do Senhor, etc." [l Co 11.261.
Eles fazem isso para assinalar a origem e o frnto dessa Ceia, isso é, que louvc-
mos e agradeçamos a Deus pela salvação de pecado e morte, como aos judeus
cabia agradecer e louvar por sua libertação do Egito. E disso que se deve falar
e escrever. Em vez disso, os fanáticos nos levam a uma discussão hostil.
Ambos, Lucas e Paulo, colocam antes do cálice as seguintes palavras: "Sc-
melhantemente, também [tomou] o cálice depois de cear", ou: "depois de ha-
verem ceado". Por que isso? Penso que tudo isso aconteceu por causa dos fo-
turos fanáticos, como se, com essa palavra, Lucas quisesse apontar para trás
com o dedo e lembrar o último cálice, como se dissesse: Lembra-te do que dis-
sc acima a respeito do último cálice: que Cristo não pretende beber novanieiiic
Da Ceia de Crista - Confissão
do fruto da videira, e para que saibas que aqui estou falando de outra bebida,
a que beberam depois da ceia, quando já se tinha parado de beber do fruto
da videira, e para que não confundas essa hsbida com aquele último cálice,
mas o entendas como bebida de instituição da nova ceia. Lucas e Paulo colo-
cam isso sigiiificativamente em relação ao cálice, e não ao pão. porque em rela-
ção ao cálice é mais adequado e necessário, visto que no final (da ceia] não
se costuma comer, mas beber. e para que não seja interpretado como iiliinio
cálice, ainda que se refira aos dois elementos e à Santa Ceia toda, bem como
a passagem da memória acima referida, etc.
Deixemos que delirem e comentem i vontade. De nossa parte estamos se-
guros de que com as palavras: "Este cálice é a nova aliança" Lucas não quis
dizer outra coisa, mas o mesmo que S. Mateus e S. Marcos dizem com a fra-
se: "Isto é meu sangue da nova aliança". Não pode haver contradição, mas,
sim, consenso. Toma o texto de Lucas como quiseres; a conclusão deve ser
quc Marcos e Mateus dizem: "Isto é meu sangue da nova aliança". Se inter-
pretarmos as palavras de Lucas no sentido de que, na Santa Ceia, elas nos dão
o sangue de Cristo para nova aliança, como o fazem Marcos e Mateus, certa-
nieiite temos sua verdadeira opinião. Quem, no entanto, as interpreta de ma-
neira diferente e as torce, não o tem no verdadeiro significado, pois iiào esta-
ria de acordo com os outros [evangelistas]. Disso se conclui que são grandes
tolos os que querem deduzir das palavras de Locas que o cálice deveria estar
no sangue, se quiséssemos seguir suas palavras literalnieiite, porque ele diz: "o
cálice, a nova aliança em meti sangue", pois acham que "em meu sangue" se-
ria como o agricultor em suas botas ou a carne na panela, ainda que tenham
que admitir que não se pode concluir o mesmo de Marcos e Mateus, sem que
isso signifique desacordo.
Lucas fala (como costuma fazer coin freqüência) a maneira hebraica, por-
que a língua hebraica se expressa da segiiiiite forma: SI. 78.64: "Seus sacerdo-
tes caíram na espada", isso é, caíram pela espada. Ou: "Os príncipes são en-
forcados em suas mãos" [Lm 5.121, isso é, usaram as mãos para enforcá-los.
E mais: "Bebemos nossa água em dinheiro" [Lm 5.41, isso é, por dinheiro.
Idem: "Os meninos caíram na lenha", isso é. sob a lenha que tiveram que car-
regar. Da mesma forma Oséias [12.12]: "Jacó serviu em Raq~el"~", isso é,
por causa de Raquel, e muitas outras mais. Dessa maneira vês que o "em"
hebraico tem significado abrangente, no entanto de tal modo que indica que
0 objeto do qual se fala deve estar presente. Tairibém aqui Lucas quer dizer:
este cálice é a nova aliança no sangue de Cristo, quer dizer, através do sangue,
com o sangue ou por causa do sangue, etc., assim como diz Mateus: "Isto é
meu sangue da nova aliança". Pois o cálice não pode ser a nova aliança em
prata, ou através de prata, ou eiitão, por causa da prata. Podes dizer cssas
palavras como quiseres: este cálice e a nova alianca no sangue, dcsde que i150
Da Ceia de Cristo - Caniiwdii
fales contra Mateus e Marcos. Um espírito tranqüilo e pacifico pode dizer coni
facilidade que as palavras de Lucas querem dizer em nossa linguagem: este cá-
lice é uma nova aliança, não por causa de sua prata bonita ou por causa do
vinho, mas por causa do sangue, ou eiitão, em virtude e por causa do sanguc
de Cristo. Qualquer contemporâneo nosso sabe interpretar para sua casa oii
para seu meio esse texto de S. Lucas; qualquer uin o entenderá assim: o cáli-
ce e uma nova aliaiiça porque o sangue de Cristo está nele.
Foi preciso estender-me tanto para esclarecer o texto de Lucas. Pois coin
exceção de seu linguajar Iiebraico, ele está muito claro e simples em si, coinci-
dindo com Mateus e Marcos ein todas as coisas, trocando apenas a posi~ão
das palavras, como é próprio da lingua hebraica. Pois, onde Mateus escreve,
de acordo com o linguajar grego: ''Isto é meu sangue da nova aliança", Lii-
cas diz, a maneira hebraica: "Esta é a nova aliança em meu sangue". Ora, "no-
va aliança em meu sangue" e "meu sangue da nova aliança" não são expres-
sões contraditórias, mas as mesmas palavras com o mesmo significado. Somen-
te não estão colocadas na mesma ordem, o que resulta das características da
língua hebraica, como o sabem niuito bem os entendidos. Para evitar qual-
quer dúvida, passo a traduzir esse texto de Lucas da maneira mais clara e cur-
ta deste modo: "Este cálice é a nova aliança em meu sangue", ainda que Lu-
tas não coloque um "é", dizendo assim: "Este cálice, a nova aliança em meu
sangue, etc." Se alguém assim o desejar, pode traduzir com dois "é": "Estc
é o cáiice que é a nova aliança em meu saiigiie". Como, porém, Paulo (quc
usa esta? mesmas palavras de Lucas) coloca someiite um "é", dizendo: "Estc
cálice é uma nova aliança em meu sangue" [ l Co 11.251, também o texto dc
Lucas deve ser traduzido apenas com um "é".
A mim me agradam iiiais Lucas e S. Paulo, por terem preservado rigorosn-
mente o linguajar hebraico nesta passagem, do que Mateus e Marcos, que o
disseram à maneira grega, visto que assim se tem as palavras de Cristo coir~
mais fidelidade, podendo-se evitar futuros sectarismos. Com que força Lucas
c Paulo derrubaram com seu texto o touto de Karlstadt 201, isso eles próprios
o confessam. Quem não o sabe, leia meu livrinho Contra os profetas celestiai,~,
capítulo quatro. No entanto, assim como derrubaram o touto de Karlstadt,
(Icrrubaram também o touto dos silésios, que o trocam de posição, colocaii-
(10-o no fim, como ouvimos acima, quando formularam: "Meu corpo, quc sc-
ri dado em favor de vós, é isto", a saber, um alimento espiritual. Pois hciii.
iiiiia vez que Lucas coloca o touto junto ao cálice e diz: "Este cálice", dcixti
qiic invertam também esse texto e digam: "A nova aliança em meu sangiic.
11iic L: derramado em favor de \,ás, é este cálice", ou seja, uma bebida cspiii-
iii:il. Mcu caro, que é que Lucas faz coni esses fanáticos que invertem suas 11t1-
I;ivi-;is(lcssc jeito? Faz deles gente que consideram um cálice de prat:? oii LIL.
C I I I ~ Oi i i i i ; ~hcbida espiritual. Scria iim espírito estranho que quiscssc bchcr c cii
Da Ceia de Crista - Confissão

golir cálices materiais de prata ou de ouro. Que não chegue perto de mim;
em pouco tempo teria bebido meu dinheiro e meu ouro. Seria um tipo mais
. . . engoliria mais ouro sem medi-
difícil de sustentar do aue todo o sistema oanal: u

da do que o papado com missaszo2.


Vê, é isso que acontece aos espíritos incautos que, podendo dar asas a
sua fantasia em certas passagens, acham que isso é válido em toda parte, não
olhando a seu redor para verificar como isso se encaixa em outros lugares.
Pois assim como puderam dizer em relação a Marcos e Mateus: meu corpo é
isto, meu sangue é isto, ou seja, alimento e bebida espiritual, porque ali acha-
ram o touto isolado, queriam proceder com esse recurso a vontade, como aque-
les homens em Daniel fizeram com SuzanaZo3,modificando e violando-o com
uma interpretação errada. Não observaram, porém, que Lucas haveria de in-
verter sua arte com seu texto, para que fossem flagrados com toda desonra
em sua falta de virtude. Isso significa: "Com os perversos te perverterás" -
S1 18.262M.Querem passar a palavra de Deus do material para o espiritual, e
passam com isso a si próprios do espiritual para o material. Pois Lucas é bem
claro com seu touto e indica com ele para o cálice material e diz: "Este cáli-
ce", de modo que se torna impossível interpretar touto no sentido de uma he-
bida espiritual. Mais uma vez os fanáticos estão aí com suas inversões e afir-
mam que o touto indicaria uma bebida espiritual. Logo, ou Lucas ou os faná-
ticos estão mentindo e enganando abertamente. Se o touto em conexão com
o cálice não pode ser transformado em um touto espiritual, tampouco o pode-
rá ser o touto relacionado ao pão. De modo que o touto silesiano está na la-
ma tanto quanto o touto de Karlstadt. Quando é que os sectários vão criar ver-
gonha, diante de tantas vezes que são apanhados em mentiras?
Continuemos pela ordem: Ecolampádio também tem que comparecer ao
tribunal de Lucas com sua tropomania. Corpo e sangue, diz ele, são tropos
ria Santa Ceia e se chamam sinal do corpo, sinal do sangue. Se isso for verda-
de, o sangue no texto de Lucas também deve ser um tropo, isso é, um sinal
do sangue. Afinal, ele fala do mesmo sangue de que falam Mateus e Marcos;
isso ninguém pode negar. Logo, de acordo com Ecolampádio, o texto de Lu-
tas deve rezar: "Este cálice é uma nova aliança no sinal de meu sangue", ou
seja, no simples vinho. Mas isso realmente seria ótimo! Assim a nova aliança

202 O texto original contém um belo jogo de palavras, dificil de imitar cm português: "... mehr
golds on messen (seminedidaj verschlingen, denn dasBapsfum mil messen (com missas) verschlin-
get".
203 Cf. Dn 13 nas traduções grega (Septuaginta) e latina (Vulgata) do Antigo Testamento e na Bi-
blia adotada pela Igreja Católica Romana. Lutero colocou este capitulo entre os escritas apd-
çri(os, clija leitiira e útil, mas que não fazem parte do cânone da Sagrada Escriliira. Trata-se
iI,ihislória de Surana, mulher bonita, casada, falsametite acusada de adulttrio, salva da seiiien-
$;i dc marte pelo sabia Daniel.
204 1)ç ;içordii com ii versão d;i Viilg;ita: "Cirni ~icrvcrsopcrvcrtcri~", oiidc csv Snliiia é cuiitado
L.<>~I,OSI 17.
Da Ceia de Cristo - Coiil'iss3<,
nada mais seria do que um gole de vinho, ou então, que um gole de vinho tc-
ria o poder de transformar esse cálice na nova aliança, pois é isso que esse tcx-
to de Ecolampádio propõe e quer. Pode-se entender aqui "aliança" como sc
quiser; certo, porém, é que está contraposta à antiga aliança, porque ele a cha-
ma de nova. Por isso deve conter os bens espirituais que foram simbolizados
e prometidos pela antiga aliança e seus bens, e que foram cumpridos e concre-
tizados na nova aliança. Ninguém pode dizer outra coisa. Que coração cristão
aceitaria que nossa nova aliança fosse apenas um gole de vinho? ou que estc
cálice seja uma nova aliança por causa de um gole de vinho? E que Ecolampá-
dio deixa a palavrinha "é" como está. Por isso, de acordo com seu artifício,
a nova aliança não pode ser outra coisa do que o míser~cálice, e, assim mes-
mo, somente em virtude e por causa do vinho como sinal do sangue de Cris-
to. Desse modo todas as imagens da antiga aliança deveriam ser chamadas dc
nova aliança, porque todas elas são tais sinais.
Se, todavia, ele quisesse dizer que o texto deva rezar assim: "Este cálice C
um sinal da nova aliança em meu sangue", de modo que o tropo aqui nâo
consista no sangue, mas na nova aliança, então por que não faz sinal e tropo
de tudo e diz: "Esta figura do cálice é uma figura do testamento na figura de
meu sangue", isso é, "este cálice pintado é a imagem da nova aliança pelo si-
nal de meu sangue, ou seja, pelo vinho"?2u5 Este sinal do cálice é um sinal da
nova aliança no sinal de meu sangue? Em nossa língua seria: este cálice pinta-
do é uma figura da nova aliança por meio do vinho. Boa coisa essa! Quem
quer provar por que determinada palavra deve ser figura e outras não? Con-
cordemos, porém, que ele transforme esse texto em tropo da seguinte manei-
ra: "Este cálice é um sinal da nova aliança em meu sangue", de modo quc
aqui o sangue não seria figura, mas verdadeiro sangue. Aí é que ele vai ver!
Primeiro ele confessa com isso que na Santa Ceia, de acordo com Lucas, o
sangue não é um tropo, mas o verdadeiro sangue de Cristo; então pergunta-
mos: por que em Mateus e Marcos fez dele um tropo? Como se pode afirmar
que Lucas fala de outro sangue na Santa Ceia do que Mateus e Marcos? Sc
no texto de Lucas houver o verdadeiro sangue de Cristo, também haverá que
haver o mesmo em Mateus e Marcos; pois não há dúvida que falam da incs-
ma Santa Ceia; por conseguinte, estão falando do mesmo sangue e da mesm;i
bebida. Podes abordar a questão como quiseres: se em Mateus e Marcos o saii-
giie for apenas um tropo, terá que ser tropo também em Lucas; se no texto
de Lucas não for [tropo], também não pode sê-lo em Mateus e Marcos. E sc
o sangue não é um termo figurativo, o corpo também não o é. De modo qiic
I.ucas desfaz e destrói todos os tropos com uma palavra. Com o tropo aconic-
cc então a mesma coisa que acontece com o touto: provoca sua própria qlicd;i.
Por outro lado, a vergonha é ainda maior, uma vez que o texto: "Eslc c;i-
Da Ceia de Cristo - Confirrão
lice é um sinal da nova aliança em meu sangue" confessa que o verdadeiro san-
gue de Cristo está no cálice, mas não teria outro efeito do que tornar esse cáli-
ce um sinal ou figura da nova aliança; isso outra coisa não é do que afirmar
que o cálice com o sangue de Cristo vem a ser figura da iiova aliança, de mo-
do que o sangue de Cristo não estabelece a verdadeira aliança, mas se consti-
tui em sinal, nada melhor então do que o sangue do cordeiro pascoal ou do
cabrito da antiga aliança, que também é uma figura ou sinal da nova aliança.
Pois acima ja ouvimos que esta palavra "em meu sangue" significa o mesmo
que "pelo" ou "com meu sangue", de modo que estaria presente no cálice, e
que o cálice seria uma nova aliança pelo fato de conter o sangue de Cristo.
Que beleza de tropologia e quanta honra para o sangue de Cristo nivelá-lo ao
sangue do cabrito e torná-lo uma figura da nova aliança! Dizer que estamos
na nova aliança, mas, na realidade, ficamos presos na antiga. Pois quem tem
a figura da nova aliança ainda não pode estar de posse da nova aliança propria-
mente dita, como ensina a El>istola aos Hebreus2*. De acordo com esse tento
de Ecolampádio, porém (se ele o quisesse sustentar), teriamos, não obstante,
nova aliança e ao mesmo tempo não a teríamos, pois teríamos simultaneameii-
te a figura da nova aliança e a própria nova aliança, o que não seria outra coi-
sa do que, ao mesmo tempo, ter e não ter o sangue de Cristo.
Além disso não é aceitável que "iiova aliança" venha a ser um tropo. Co-
mo querem provar isso? Onde existe algum exemplo disso? Onde ficaria a lin-
gliagem comum, na qual eu gostaria e talvez deveria falar com simplicidade
da nova aliança, caso se quisesse ter entendido uin sinal ou figura toda vez
que menciono a nova aliança? Dessa maneira a nova aliança não seria o Euaii-
gelho, promissâo do Espírito Santo ou da vida eterna, mas uma velha figura
ou uma prefiguração da futura nova aliança. Enfim, a idéia da figura não se
enquadra em nenhum lugar da nova aliança, muito menos pode ser provada
com alguma dose de razão, de sorte que Ecolampádio deve ater-se à primeira
versão, onde sangue é uma figura, dizendo: Este cálice é tima nova aliança
tio sinal de meu saiigue. Nossa fé não pode aceitar esse texto, onde simples vi-
nho transforniaria esse cálice eni nova aliança. Pois nova aliança é promessa,
muito mais até, é doação da graqa r perdão dos pecados, o que vem a ser o
verdadeiro Evangelho. Ainda que o cálice seja um objeto corporal, tornando-
se com o sangue de Cristo ou com a nova aliança um objeto sacramental, e
com toda razão que se chama nova aliança, ou o sangue para o qual se pode
apontar e dizer: Esta é uma nova aliaiiça, este é o sangue de Cristo, bem assim
como mais acima a chama material 6 uiii fenômeno espiritual, a saber, o an-
jo, e assim se denoiiiiiia, e a pomba é o Espírito Santo. Portanto, quem bebcr
desse cálice estará bebendo o verdadeiro sangue de Cristo e o perda0 dos peca-
dos, ou então, o espírito de Cristo, que são recebidos com o cálice, e não \c
recebe aqui uma mera figura ou sinal da nova aliança ou do sangue dc Cristo.
Islo coubc aos judeus na antiga aliança.

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14?.
Da Ceia de Cristo - Confisa%i
Talvez alguém queira procurar uma escapatória e alegar que Ecolampádi«
poderia formular seu texto do seguinte modo: "Este cálice é um sinal da nova
aliança em meu sangue", de sorte que o sangue não estaria relacionado ao cá-
lice, luas a aliança, corri o seguinte argumento: a nova aliança está no sangue dc
Cristo, e não que o cálice seja sinal ou figura graças ao sangue de Cristo; como
se seu texto tivesse a seguinte redação: Este cálice é um sinal da nova aliança. A
nova aliança, porém, é algo que está no sangue de Cristo. Resposta: Ecolampádio
sabe muito bem que aqui o texto não pode ser entendido dessa forma. Porquc
neste caso deveria haver um artigo depois de "nova aliança" no original grego:
kaine diatheke, he en to haimati mou. Esse artigo, porém, não existe; pelo con-
trário, o texto forma um conjunto, como se fosse uma só palavra inseparávcl,
do mesmo modo como cálice, sangue e nova aliança se entrelaçam, como sc
fosse coisa única e inseparável, de sorte qiie o sentido terá que ser este: Estc
cálice é uma nova aliança em meu sangue, isso é: em virtude de meu sanguc
o cálice passa a ser isso; sem "meu sangue" ele não o seria.
Assim como aqui está derrotado Ecolampádio com seu tropo ou sua trop«-
mania, também está derrotado Zwínglio com seu significatismo. O que valc
contra o sinalismo também vale contra o significatismo, por se tratar praiic;~.
mente da mesma coisa. Pois o texto de Zwinglio deveria rezar: "Este cálice sig-
nifica a nova aliança em meu sangue, o que vale dizer: pelo fato de contci-
meu sangue este cálice significa a nova aliança. De modo que o sangue de Cris-
to é reduzido a um significatismo e nada mais - a mesma coisa que provei
contra o sinalismo de Ecolampádio. Pois Zwínglio também não pode formular
o texto nos seguintes termos: Este cálice significa a nova aliança que está c111
meu sangue, porque a palavrinha "que" não existe; pelo contrário, como j:i
disse, o texto é uma formulação coesa. S. Lucas até parece um homem belico-
so que, com poucas palavras, por assim dizer, de um só golpe, derruba 150
enormes gigantes e heróis, tanto os tutistas, os figuristas e significativistas e to-.
dos os fanáticos. De que adiantaria se fossem aceitos seus textos com o sinalis-
mo e o significatismo? Pois não são capazes de indicar sequer um til de semelli;iii-
ça em que pudesse consistir tal sinalismo ou figuracão, como ouvimos aciiiin
a respeito do tropo de Ecolampádio. Afinal, em que sentido o cálice se igii:il;i
a nova aliança por meio do sangue de Cristo? Será que a igualdade coiisisiv
no fato de serem perdoados também os pecados de Cristo, como são perdoti-
dos a todos nós? Ou em que, então, vão querer achar a similitude? Na ch;iiiii-
iié! Por que então ensinam figuras onde não pode havê-las?
Nesse texto, porém, Lucas usa uma frase que não consta em nenliiriri dos
ouiros evangelistas, nem mesmo em Paulo; é aquela expressão: "[o cáliccl qiiv
é derramado em favor de vós", e não "[o sangue] que é derramado cin I i v o i
de vós"; pois no grego a referência é ao cálice e não ao sangue, como iiiiigiiCiii
podc negar. "Touto to potcrion ... ekcliynnonieno~~" c náo: "cn to h:~irii;~ii...
ckcfiyri~ionicno"~". No Iritiin não se podc iiolar a dilcrciiw q~iaiiclosc <li,.:
D3 Ceia de Cristo - Coiifissãa

"Qui pro vobis f u n d ~ t u i - " ~ ~ ~ p o [em


r q u latim]
e tanto "c#ice" como "sangue"
são masculinos, mas no alemão dá para perceber bem, porque "sangue" é do
gênero neutro e "cálice", do masculino. Isso me ensinou há uns três ou quatro
anos um douto pastor de aldeia, dizendo que, conforme sua opinião, Lucas
deve ser entendido da seguinte forma: "Este cálice é a nova aliança em meu
sangue, [cálice este] que é derramado em favor de vós", isso é, que é servido
e oferecido na mesa, como se costuma servir o vinho da jarra para os convi-
vas. Isso foi um dos motivos por que Lucas, coiiio já dissemos, não diz ekchynno-
riienon - "derramado", com referência ao sangue (como Mateus e Marcos),
mas com refertncia ao cálice. A isso se junta o texto de Paiilo: "Este é meu
corpo que é partido em favor de vós", isso é, distribuído e oferecido na mesa.
Eu porém, por achar que ele não era partidário dos fanáticos, mas que
confessava que no Sacramento estão presentes o verdadeiro corpo e sangue,
me alegrei e aceitei essa interpretação, embora a considerasse desnecessária,
porque não havia perigo com o antigo entendimento. Ela me agrada ainda ho-
je; eu gostaria até que essa interpretação piidesse ser deduzida do texto grego,
pois com isso se taparia com todo vigor a boca de todos os fanáticos. Para
iiiiin não há duvida que o texto de Paulo: "Isto é meu corpo que e partido
em favor de vós" deve ser entendido simplesmente como o partir e distribuir
do pão a mesa, como também diz em 1 Co 10.16: "O pão que partimos é o
corpo de Cristo repartido". Uma vez que o texto de Paulo se refere ao pão
nesses termos, respectivamente, ao corpo de Cristo, a distribução na mesa e
não a imolação na cruz, o texto do cálice pode ter a mesma interpretação. Nis-
so também Mateus e Marcos se enquadrariam, pois na expressão: "Isto é meu
corpo" nada dizem a respeito de dar, como se por outra maneira estivesse bem
claro que estava dando seu corpo, quando dizia: Isto é meu corpo, aqui ten-
des meu corpo. O mesmo vale para o cálice: Isto é meu sangue, derramado
cin favor de vós, isso é, servido e oferecido na mesa para perdão dos pecados.
Nada vejo nessas palavras que se oponha claramente a tal enteiidimento. Até
S. Paulo omite, na referência ao cálice, o "derramado em favor de vós", co-
nio se estivesse claro que, tendo sido o pão partido em favor deles, naturalmen-
ic também o cálice seria oferecido em favor deles.
Embora essa interpretação não tenha prevalecido até hoje, sendo que to-
dos entenderam o texto no sentido de entrega a« sofrimento e do derramamen-
to [de sangue] na cruz, ela não teria sido erro nocivo, como, aliás, ainda hoje
11.20 L'. Ningiiéin procede mal em aclxu que o corpo de Cristo foi dado e seu
5:ingue derramado na cruz em nosso favor, ainda que o faça nuiria passagem
oiide nada se diz e escreve a esse respeito, desde que não haja conflito e contra-
ilicXo, assim como os amados pais da Igreja citaram as Escrituras com frequên-
ci;i c sem risco em lugar impróprio, no entanto, em sentido bom e útil. Assini
i:i1iih6iii me parece que alguns dos antigos pais tiveram esse entendimento, quando
diziam que o sangue de Cristo -é derramado sempre que se celebra a Santa
Ceia. Especialmente Ambrósio, que diz: "Se o sangue de Cristo, toda vez que
for derramado, é derramado para remissão dos pecados, convém que eu o be-
ba diariameiite, porque peco todos os dias". Pois a palavra firnditur não signi-
fica somente derramar, mas também verter, entornar. Assim Gregório pôde
dizer: "O sangue de Cristo é derramado na boca dos crentes, e t ~ . " ~ ~ .
Não digo isso por estar convencido disso, pois não quero ensinar algo de
que não tenha ceiteza; no entanto, gostaria que fosse assim. Como não sou
especialista em grego, quero estimular os entendidos a pesqiiisar se a língua
grega permite esse entendiniento. Então os fanáticos não teriam mais recurso
e evasiva contra nossa interpretação. Teriam que confessar que o corpo e o san-
gue de Cristo foram distribuídos a iiiesa, que foi comido e bebido materialmen-
te no pão e no cálice. Conforme minha análise das coisas, eu diria que também
Lucas e Paulo insistem decididamente nessa opinião; Paulo o faz com aquela
passagem quc diz (como já mostramos): "Isto é meu corpo dado por vós" [ l
Co 11.241; "o pão que partimos é a distribuição do corpo de Cristo" [I Co
10.161. Assim achamos mais passageiis onde Paulo usa hjper hymon, "por
nós,,2~o, como equivalente a coram ou arite, como em I Co 15.29: "Por que
se deixarão batizar pelos mortos?" E Lucas, com siia formulação que o cáli-
ce no sangue seria derramado, também usa hyper hyrnon, isso e , "por vós",
servido diante de vossos olhos para ser bebido, etc. E aiiida a passagem onde
diz: "meu corpo oferecido por vós", como também Paulo formula. Oferecer
significa, evidentemente, dar algo e não entregar algo a morte.
Mateus e Marcos, no entanto, dão a impressão de serem contrários a isso
quando dizem: "Isto é meu sangue, derramado ou vertido por muitos". Isso
soa como se Cristo estivesse falando de muitos que não esta\,am presentes a
mesa. Também iião usam o termo hyper Iiyrnon, m a peri pollori'"; deixo is-
so para os especialistas em grego. Quem se inclinar para a opinião acima ex-
posta poderia responder que Lucas e Paulo falam do servir e oferecer a mesa,
mas que aludem com isso ao sofriiiiento na cruz quando dizem que se faça is-
so em sua memória, ou então, que se anuncie sua morte, colocando assim as
coisas em maior ordem e clareza do que Mateus e Marcos. Por outra, Mateus
e Marcos falaiii do derramamento na cruz e omitem o derramar à mesa, co-
mo se a palavra "isto" fosse suficiente. Sabemos que é comuiii entre os evan-
gelistas que uni fala de determinado assunto mais e com maiores detalhes do
que outro, e um omite o que o outro relata. Logo, a palavra "oferecido por
vós" não se refere tão clara e segiirainente ao sofrimento de Cristo, como Zwiii-

209 E.~prpo~irio in pralniom 118 26 (Mignc PL 15, 1537). - Arnbiósio (339-397). Iiirpo de Mil%> (li;\
lia) desde 374. - Cregório 1 (540~604),valia desde 590; dois dos 4 graiides pais hIilii>s (iI;i lp;ir
te oci<lenial da Igcj;i Antiga).
?I0 A ti-;i<liii.;ioci>rici;i L: "por v6s" (ç1. : L C ~ Io~ ~ I I I.utcri>
C (li, ~ b r I.IIC~L\).
c
L I 1 Ii.v,icr i i i . r i i < i i i 1 sv i 1 1 cisi 1.ivol ,Ic !iiiiiIi>h.
Da Ceia de Cristo - CatifissRo
glio imagina, querendo com isso explicitar a parte anterior: "Isto é meu cor-
po", como vimos acima.
Quem, no entanto, não se inclinar para essa interpretação pode argumeii-
tar que Lucas diz: "O calice é derramado por nós", afirmando com isso: vis-
to que o cálice, sangue e nova aliaiiça são elementos sacramentais, o cálice é
derramado em função dessa unidade, quando, na verdade, somente o sangue
6 derramado. Aqui acontece iima sinédoque, como explicamos acima: que e
correto dizer que o Filho de Deus morre. embora morra somente a hiimanida-
de; e que se vê o Espírito Santo, ainda que se veja somente a pomba; que &e
enxerga o anjo, embora se tenha percebido apenas sua imagem brilhante; etc.
Se isso parecer insosso e barato a alguéiii, que traga explicação melhor, ou en-
tão, que aceite a interpretação exposta. Penso que é resposta boa e suficiente,
porque é assim que também vemos e bebemos o cálice, isso é, o sangue de Cris-
to. Não há nenhom perigo, mas somente vantagens quanto a escolha de uma
das duas posições. Ambas sfio boas e certas. De fato, as duas coisas estão cer-
tas: o corpo de Cristo foi oferecido na mesa e sacrificado na cruz. Ainda que
este n i o seja o lugar certo das Escrituras para esse entendiiiiento, como aconte-
ceu a muitos santos, rião erramos quanto à interpretaçio e B verdade. Para
os lanaticos, poréiii. isso é de suma importãricia. Pois, se a interpretação aci-
ma não estiver correta em relação a esse texto, eles iião têm nada mellior em
sua argumentação; se, todavia, estiver correta, jazem coiiipletamente nas cinzas.
O quarto e último texto é o de S. Paulo em 1 Co 11.23~s.:"Eu o recebi
do Senhor o que vos entreguei. Pois o Senhor Jesus, na noite em que foi trd-
do, tomou o pão, deu graças, partiu-o e disse: Toniai, comei. Isto é meu cor-
po que é partido por vós. Fnzei isso ein memória de mim. Por semelhante mo-
do, também o cálice, depois da ceia, e disse: Este chlice é a nova aliança eni
Ineii sangue. Fazei isso todas as vezes que beberdes. eiii memória de rillrn".
Sc eu fosse tão eviidito na língua grega coriio Karlstadt e Zwínglio, decidida-
ineiite haveria de deduzir desse texto que no pão estaria sendo ingerido o ver-
dadeiro corpo de Cristo. Pois Erasmo anota que no grego não se encontra
iiin "é" junto ao pão, mas apenas: phagete, touto emoii soma - conirdi-
(c, hoc meum c ~ q ~ uo sque ~ ~eu~traduziria
, assim: Tomai. comei este meu cor-
po que é partido por vos. Isso seria uma tradução correta, palavra por palavra, só
qiic passei por cima dc uiii sinal de pontuação, que iião afeta o sentido. Assim
1.11 teria vencido completa e lisanierite. Como, porini, não sou tão especializa-
(li,, tenho que largar de mão disso, para não colocar igiialmente um artigo ein
1tig;ir de uiii pronome ou inventar uma evasiva, confundindo o caso com outro.
Na verdade podeoios, sem dúvida. deduzir disso de que maneira iricotiiple-
[;i Matcus e Marcos descrevem a Santa Ceia. Não fossem Lucas e Paulo, iiZ«

I?. I i i t i ( C) nii i<nl;ih as sii,is cdi(óch <I<> N<iv<iTchl;$iiie<ilo grci.<i <Ic\


<li. 15111.0 c\ii(ii) Iilla, ii>il;i\i;i. I:i;i\iiii,. I iilcici cili>il (lc iiiciiiiiii:i. I \ \ i i
ciii io<l;i\ ;i\ ii<>l;ir<Iç
i.\iilic;i v;i!iii\ iIi,wii>i iIi> ir\l<i <,iigiii:il ciii \ii;i# ci1;iiiiri.
Da Ceia de Crista - Coiitissãa
poderíamos ter este sacramento. Pois Mateus e Marcos não escrevem que Cris-
to nos ordenou repetir e guardá-lo. Teríamos que tomá-lo como mais uma his-
tória de Cristo com seus discípulos, a qual não poderiamos ou não deveríamos
dar continuidade. Lucas e Paulo, porém, escrevem que Cristo mandou que to-
dos nós fizéssemos isso. De fato, não fosse Paulo, até Lucas não nos seria su-
ficiente. já que poderia ser interpretado como se coubesse apenas aos apósto-
los repetir esse gesto de Cristo. A náo ser que Mateus estivesse indicando al-
go nesse sentido em seri ultimo capitulo, quando diz: "...ensinando-os a gtiar-
dai- todas as coisas que vos tenho ordenado" [Mt 28.201. Não sei, no entanto,
se isso bastaria. Paulo é o verdadeiro mestre e apóstolo enviado a nós pagãos;
ele fala de maneira franca e insofismável, quando diz: "Tomai, comei, isto é
meu corpo que é partido por vós". Ele coloca a palavra "meu" logo após a
palavra touto - "isto", o que nenhum dos outros faz. De resto, como rezam
alguns textos, omite a palavra "é", assim como Lucas a oinite em referência
ao cálice. O Espírito Santo nos revela esses dois detallies para fortalecer-nos,
dando-nos certeza de que o corpo de Cristo está no pão. Para nós é a mesma
coisa dizer:"lsto é meu corpo" e "este meu corpo" ou "eis meti corpo". No
entanto, falo de modo mais claro e certo da presença do corpo quando digo:
"Este meu corpo" ou "eis meu corpo". Essa foriiiiilação não dá chance para
as fantasias das hordas fanáticas como a formu1ai;ão: "Isto é meu corpo".
Não há dúvida de que Cristo está dizendo isso em contraposição ao antigo cor-
deiro pascoal, que ele cancela com esse ato, como se estivesse dizendo: Até ho-
je comestes o cordeiro e o corpo de um animal, aqui, porém, está agora, em
seu lugar, meu corpo - meu, meu, digo com toda ênfase. É por isso que Pau-
lo insiste diligentemente na palavra "meu", de modo que o coloca de novo
pouco depois de "isto", dizendo: "Isto", "meu", como se quisesse amarrá-
lo a ponto de se tornar uma só palavra com o "isto", conquanto, em si, deve-
I liam estar mais estreitanieiite relacionados "meu"' e "corpo". Tudo isso ele
faz para afirmar, da maiieira mais clara possível, a presença do corpo de Cris-
to lia Santa Ceia.
"Que é partido por vós." Acima já expusemos com suficiência que as Es-
crituras não comportam que o "partir" signifique o sofrimento de Cristo. Os
fanáticos que o afirmem, como sustentam também outras coisas, mas jamais
conseguirão prová-lo. Não é licito interpretar e usar o "partir" de acordo com
nossa iniaginação, mas de acordo com o uso das Escrituras. Nestas, especial-
mente onde é usado em relacão ao pão e ao comer, "partir" significa fazer
cm pedaqos ou distribuir. De modo que este pão partido, tanto no grego quan-
io rio latim e no alemão, é cliamado de klasma, fiaznirntum, pedaço. Por GIII..
xn dcsse "partir" se diz tanihém no hehraico "shebrr de cereais", isso é, [cerc-
:i11 tritiirado. De acordo corii Cin 44 [sc. 42.11, Jacó fica sabeiido que havia si
IJL'U I I O Egito, vale dizer, aliniento ou cereal que se tritura para con1er. <:otii
prar ccicnis C traduzido ali por shahiir, como a di~er:qiiercinos [trigo] iritiirn-
(10. OII scj:i. querciiios alinieiito. O corpo clc <:risto i150 roi partido c kilo c111
~~t'cI:i~~os 11:i cruy,. Ilisso lr:Il;~~ii~~s
;~ciiii:ii~i:iis~ l c l : ~ ~ l ~ : i ~ l ~[:,ssc
i ~ ~ itcxlo
c i ~ t c:ifir
.
iiiu, portanto, com todo vigor, que o corpo de Cristo é partido e feito em pe-
daços, em bocados, é mastigado e engolido como qualquer pão, mas sempre
ciii forma de pão, ou então, no pão, etc.
Ainda que se provasse que, neste caso, "partir" venha a significar o sofri-
iiiento de Cristo, em que, meu caro, consistiria a semelhança no sentido de
que, na Santa Ceia, o pão seja sinal do corpo de Cristo? Mais acima admiti
que fizessem do pão partido uma semelhança, se pudessem. Agora, porém,
que separam o "partir" do objeto do pão, e o atribuem ao corpo de Cristo
na cruz, quero saber em que sentido o pão se torna semelhança de seu corpo.
Não há outra resposta do que a acima indicada. O pão deve ser considerado
igual ao corpo de Cristo, se bem que não lhe é semelhante em nada no senti-
do como o exigem as palavras na Santa Ceia. Prossigamos.
"Este cálice, a nova aliança, está em meu sangue." Pode ser que este tex-
to signifique tanto como se eu dissesse: "Este cálice é a nova aliança, etc.".
Não foi por acaso que Paulo colocou o "é" após a expressão "iiova aliança",
c não na frente. O Espírito Santo quis antecipar-se aos sectários. Porque S.
I'aulo coloca ambos como sujeito, tanto o cálice como a aliança, como se fos-
sem o mesmo sujeito; em outras palavras, seu texto diz que este cálice, que é
a riova aliança, o é no sangue de Cristo, e chama então o cálice despreocupa-
damente de nova aliança. Se os fanáticos tivessem tanto texto a seu favor co-
iiio nós aqui temos, como haveriam de resistir e insistir! Entretanto, a nova
aliança não pode consistir em mero vinho ou cálice.
A alegação de que "nova aliança" deveria ser entendida como sinal ou fi-
gura da nova aliança foi suficiente e decididamente rebatida. Pois eles o afir-
iiiam, mas não o provam. Não damos importância a suas meras assertivas,
Iporque em parte alguma das Escrituras ocorre que "nova aliança" signifique
siiial da nova aliança. Dizem que o assunto em si obriga a isso. Pergunto:
q~ial?O cálice, dizem eles, tem que ser um objeto material, de prata, madeira,
1)uro, vidro, etc. Claro, a prata jamais pode ser a nova aliança; se for algo nes-
se sentido, será seu sinal, mais não pode ser. Disso falamos acima em relação
cio texto de Lucas. Como, porém, são tão teimosos e empedernidos, também
c11 farei uso de seu truque. Dizei-me, como pode o cálice ser sinal da nova alian-
<:i, já que ele é simples prata ou madeira? Sua4ualidade de sinal consiste no
iiiaici-ial, no tinido, na forma, ou em que, afinal? Quer dizer, então, que qual-
qiier cálice é igualmente sinal da nova aliança, quer esteja na cristaleira ou na
I ~ j ado ourives, OU onde quiser, vazio ou cheio, porque qualquer um deles é
iIc prata, de madeira, tem tinido, forma, etc. Como pôde Cristo chamar o cá-
licc de mesa assim, como se nenhum outro cálice do mundo fosse de prata, ti-
vcssc tinido, forma, ou então, não tivesse em si as semelhanças da nova alian-
(.:i'! Não, dizem eles, mas o cálice de vinho servido é um sinal da nova alian-
<:i, cic. Então, escuta duas coisas:
/'r-inlciro: Eles prbprios são obrigados a fazcr do cálice c do vinho iiina
iiovo iiiiid:idc c r.calidadc, iiina vez qiic são duas coisas de naturcza dilèiciiic;
vi:i.iii-sc ohiig;id<rs:i cli:iiii:ir csse iiova rc:ilid;idc dc cilicc, sc Iicni 1iiic iiio pcii.
Da Ceia de Cristo - Confissão
sem apenas no cálice, mas, sobretudo, no vinho, assim como acima falamos
da chama e dos anjos; se podem admitir entre si que se diga: "o cálice é um
sinal, etc.", ainda que não se refiram somente ao cálice, mas ao vinho (que
agora se tornou uma coisa só com o cálice), e não admitem que se desfaça es-
sa unidade e essência do cálice e do vinho, e que se chame o cálice sem vinho
de sinal, pedimos gentilmente que permitam ao Espírito Santo que fale também
conosco sobre seus assuntos, que chame o cálice de aliança, e nos mostre, por
isso, que não é apenas um simples cálice sacramental. Ou então nos forneçam
motivos e causas daquela autoridade de falarem assim entre si, e que o Espui-
to Santo não possa ter tal autoridade. Se zombarem de nós, que chamamos o
cálice de nova aliança, e se separarem o cálice da nova aliança, desfazendo es-
sa essência e unidade sacramental, nós iremos zombar de seu sinal, separare-
mos cálice e vinho e desmancharemos sua unidade simbólica, como eles desfa-
zem nossa unidade sacramental. Pois se o cálice e a nova aliança pudessem ser
separados e cada parte pudesse ser mantida em separado, com suas proprieda-

1
des específicas, nós também saberíamos que um cálice nada mais seria do que
um cálice, ou a prata da qual é feito, tão bem como eles sabem que, se vinho
e cálice fossem separáveis, o cálice não poderia ser sinal da nova aliança, mas
seria um simples cálice. Os especialistas em lógica chamam essa trapaça de "con-
cluir da parte ao todo em uma proposição negativa, quer dizer, do inferior
ao superior em uma proposição negativa, ou do particular ao univer~al''~l~, o
que é comum entre os fanáticos. É como se eu dissesse: Pedro não tem orelha,
logo, Pedro não tem corpo. Ouro não é preto, logo, ouro não tem cor. No
entanto, os fanáticos sequer dominam os princípios elementares da lógica.
Em segundo lugar gostaríamos de saber como e em quais de suas proprie-
dades o cálice com o vinho pode ser um sinal do sangue de Cristo ou da no-
va aliança, e em que consiste tal semelhança, como já discutimos acima. Pois
a nova aliança é evangelho, espírito, perdão dos pecados, no e pelo sangue de
Cristo e o que mais houver, porque é tudo uma coisa só, compreendido co-
mo um todo ou uma realidade, tudo no sangue, tudo no cálice. Onde um es-
tá, encontra-se também o outro. Quem cita ou mostra um, abrange o todo.
Como pode simples vinho significar ou sinalizar coisas tão importantes, já que
dificilmente todas as figuras da antiga aliança o podem? Só como eu disse: o
vinho pode e deve ser chamado um sinal, ainda que não possa sê-10, mas isso
não importa. Acaso não são uma pobre gente, que não perde apenas a essên-
cia, o corpo e o sangue de Cristo M Santa Ceia, mas até o sinal ou a figura,
não lhes sobrando nada mais do que os colonos na simples bodega, ainda que
se consolem com palavras, como se essa figura existisse, sem saberem dizer
em que essa figura consiste? Bem feito para eles; já que não querem o cerne

211 ... ;iri!ririi. ;i p;$rlc :i'/ lotiiiri ncgative, I>i>cest, ab iiiferiolr ad siipcr~u.s.ncgafivc, sivc a parli-
vrrkvi :til isivci:s;ilc. rio oiip,iii;il.
Da Ceia de Cristo - Confissão
e o miolo, não lerão, tampouco, as cascas e vagens. E, ao tentarem contestar
e prejudicar nossa causa, perdem sua própria.
Mais'acima, ao comentarmos o texlo de Lucas, provamos que nas pala-
vras: "Este cálice é a nova aliança em meu sangue" não pode tratar-se de tro-
po, porque a expressão "em meu sangue" tem o significado de "por" ou "com
meu sangue". Pois o sangue de Cristo não pode ser uma coisa tão impotente
que se constitua apenas de sinal-da nova aliança, como antigamente o era o
sangue dos bezerros de Moisés [Ex 24.lss.I. Da mesma Forma, "sangue" não
pode ser um tropo, pois o cálice não pode ser coisa tão grande por meio do
sinal do sangue ou por meio de simples vinho, a saber, a nova aliança.
Em resumo: Se compararmos os evangelistas e Paulo, constatamos que fa-
lam como se fossem um só, não admitindo tutistas, tropologistas ou sinalistas.
Se os tropologistas quiserem que, em Mateus e Marcos, o sangue deva ser en-
tendido como sinal do sangue, aparecem Lucas e Paulo e derrubam os tropolo-
gistas prontamente. Pois eles provam, com seus textos, que sangue não pode
significar sinal do sangue ou tropo. Visto que do texto: "Este cálice é a nova
aliança em meu sangue" os próprios fanáticos não deduzem nem podem dedu-
zir um sinal do sangue, o mesmo sangue também será sem tropo em Mateus
e Marcos, já que é o mesmo sangue do qual falam os quatro. Se, todavia, qui-
serem mexer com Lucas e Paulo, e fazer da expressão "nova aliança" um tro-
po, ou seja, um sinal da nova aliança, acodem Mateus e Marcos, juntamente
com Lucas e Paulo, para derrubá-los novamente e provar que "nova aliança"
não pode ser um tropo. Inclusive em Mateus e Marcos os fanáticos não fazem,
nem podem transformar a expressão "nova aliança" num tropo, tão pouco
como o podem em Lucas e Paulo. O texto não comporta que em Mateus e
Marcos se diga: Este é meu sangue da nova aliança figurada; pois o sangue
de Cristo não é o sangue da aliança figurada, ou da antiga aliança, mas da
nova aliança, que consiste em seu sangue. Tanto em Lucas como em Paulo tra-
ta-se da mesma nova aliança como em Mateus e Marcos, uma vez que os qua-
tro falam da mesma aliança. De maneira que Mateus e Marcos destacam a ex-
pressão "nova aliança" de forma pura e simples, sem qualquer tropo; Lucas
e Paulo destacam o termo "sangue" de forma pura e simples, sem qualquer
tropo. Ai os fanáticos são obrigados a mentir; sei isso com certeza. Mas, se
nessa questão derem resposta correta, podes admitir alegremente que ganharam.
Por isso o texto deve ser preservado como rezam as palavras. Espero que
isso ficou estabelecido de forma incontestável e que nossa consciência possa
ficar tranqüila de que nossa interpretação é correta, enquanto que a dos faná-
ticos não é somente duvidosa, como está errada.
Onde estão agora os pobres fanáticos que afirmam com tanta insistência
que Cristo não praticou nenhum sinal que não tivesse sido visível ou palpável?
Acaso não foi um sinal, quando João viu o Espírito Santo descer do
1! Da Ceia de Cristo - Confissão
Todavia, o Espirito não foi visível, 4 não ser na forma da pomba. Acaso não
foi um sinal, quando Zacarias viu o anjo Gabriel junto ao altar do incenso?2'5
O anjo, no entanto, não foi visivel, a não ser na imagem da cliama de fogo.
Acaso não foi um sinal que o Filho de Deus andou pessoalmente pelo mundo?

~
I Entretanto, o Filho de Deus não era visivel. Que está acontecendo quando se
constrói em cima de argumentos tão fracos e inconsistentes, blasfemando com
isso contra a palavra e a obra clara de Deus senão procurar propositalmente
a perdição? Evidentemente é um sinal milagroso que corpo e sangue de Cris-
to estão no Sacramento, apesar de não serem visíveis. Basta-nos, entretanto,
sentir pela palavra e pela fé que estão presentes. O sinal deles também não es-
tá visivelmente presente. Pois, ainda que vejam realmente o cálice de vinho,
não podem ver que seja um sinal do corpo e do sangue; é preciso que o afir-
mem com palavras e o creiam com o coração. Pois não está desenhado ou en-

~
cravado no cálice que ele seja sinal do sangue de Cristo. Isso é um absurdo;
o pior é que se baseiam nisso e desafiam a palavra de Deus.
Onde estão os outros todos que tagarelam não haver perdão dos pecados
na Santa Ceia? S. Paulo e Lucas dizem que é a nova aliança que está na Santa
Ceia e não sinal ou figura da nova aliança. Pois figuras ou sinais da nova alian-
ça tiverem sua vez na antiga aliança, entre os judeus. Quem, portanto, confes-
sar que tem a figura ou o sinal da nova aliança admite com isso que ainda não
I
tem a nova aliança. Esse voltou atrás, negou a Cristo e se fez judeu. Pois cris-
! tãos podem ter a nova aliança propriamente dita, sem figura e sinal. Tê-la-ão
oculta sob forma estranha, mas a terão de verdade e de forma presente. Sc,
pois, a nova aliança estiver presente na Santa Ceia, nela deve haver perdzo
dos pecados, espírito, graça, vida e bem-aventurança. Tudo isso está incorpora-
! do na palavra. Pois quem poderia saber o que há na Santa Ceia, se as pala-

~
! vras não o anunciassem? Por isso, que linda, grande e maravilhosa coisa é, co-
mo tudo está interligado e constitui algo sacramental! As palavras são o princi-
pai, pois sein as palavras o cálice e o pão nada seriam; por outra, sem pão c
cálice o corpo e o sangue de Cristo não estariam presentes. Sem a nova alian-
ça o perdão dos pecados não estaria presente. Sem perdão dos pecados a vida
e a bem-aventurança não estariam presentes. De modo que as palavras unem,
em primeiro lugar, o pão e o cálice, para tornarem-se sacramento. Pão e cáli-
ce compreendem o corpo e o sangue de Cristo; corpo e sangue de Cristo com-
preendem a nova aliança; a nova aliança compreende perdão dos pecados; pcr-
I
dão dos pecados compreende vida eterna e bem-aventurança. Vês que as paki-
I vras da Santa Ceia nos oferecem e dão tudo isso, e nós assimilamos tudo coni

I
a fé. Como é que o diabo não seria inimigo dessa Santa Ceia e deixaria dc dcs-
pertar fanáticos contra ela?
Como o todo é uma realidade sacramental, pode-se dizer, com toda a rn..
I Cio, a respeito de cada parte, como do cálice, por exemplo: Isto é o saiigiic
I
Da Ccia de Cristo - Confissão

de Cristo; isto é a nova aliança; ali está o perdão dos pecados; ali temos vi-
da e bem-aventurança. Assim como, apontando para o homem Cristo, eu di-
go: Isto é Deus, esta é a verdade, a vida, a bem-aventurança, a sabedoria, etc.
No entanto, agora basta sobre esse assunto. Ouçamos mais de Paulo:
"Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, de-
veis anunciar a morte do Senhor, até que ele venha" [l Co 11.261. Note bem
que "cálice" aqui não pode ser entendido como simples prata ou madeira;
pois, quem pode beber prata ou madeira? Como, porém, o cálice e a bebida
se tornaram uma coisa só, o termo "cálice" inclui aqui a bebida existente no
cálice. Assim vês que essa maneira de falar é igual em todas as línguas. Co-
mo diz logo após: "Aquele que comer o pão ou beber o cálice" [v. 271. Quem
pode beber o cálice, isso é, a prata ou a madeira? Mas, como já disse, é co-
mum a todas as línguas falar assim, onde duas coisas se fundem em uma só,
de modo que essa uma coisa compreende os dois objetos, tal como o Espírito
Santo é a pomba, e a pomba, o Espírito Santo.
Aqui os fanáticos vibram e gritam vitória: Estás vendo? aqui ouves que S.
Paulo fala de pão e cálice, e não diz: Todas as vezes que comerdes o corpo e
beberdes o sangue de Cristo, etc. Meu caro, vamos proclamar também que
Paulo não disse: Todas as vezes que beberdes o vinho, mas, o cálice. Por que
bebem, então, o vinho e não o cálice? Não se deve deduzir disso que estão en-
golindo cálices, quando Paulo fala de beber o cálice, porque se subentende o
vinho do cálice, pela circunstância de vinho e cálice se haverem tornado um
coisa só? Por que, meu caro, decorreria disso que comemos simples pão, quan-
do Paulo fala de comer do pão, e não possa ser subentendido o corpo neste
pão em função da unidade sacramental? Será que os pobres carnívoros não
podem ter tanta inteligência, mas somente os maravilhosos fanáticos? Mais
uma vez eu insisto: S. Paulo não diz: Toda vez que comerdes o sinal do cor-
po e beberdes o sinal do vinho, etc.; por isso o pão não pode ser o sinal do
corpo, nem o vinho o sinal do sangue. Não está correto? Se, todavia, o texto
não impede aos fanáticos ver seu sinal, por que então impediria a nós enten-
dê-lo no sentido de presença de corpo e sangue? Pois ele fala tão pouco do si-
nal quanto de corpo e sangue; por isso será tanto contra eles como contra nós.
Se não contestar a eles, não contestará também a nós, a não ser que baste o
seguinte: Paulo não disse isso, portanto também não é assim. Isso significa silo-
gizar de coisas puramente negativaszL6.Até as crianças sabem que classe de ar-
gumentos é essa, especialmente para fundamentar artigos de fé.
É verdade, entretanto, que, de acordo com as regras do pensamento silesia-
no, eles têm razão e eu tenho que admitir sua vitória. Pois essa regra manda
esquecer e não analisar os textos que falam da presença do corpo e do sangue
de Cristo na Santa Ceia. Pois estaríamos atrapalhando o espírito e a comprcen-
são espiritual. A outra regra é que se vá em busca de passagens onde esses tcxlos
Da Ceia de Cristo - Canfissárr
não ocorrem e que então se grite: Olha, olha aqui não se diz que corpo e san-
gue estejam presentes na Santa Ceia. Também aqui eles usam essas regras.
Pois a passagem imediatamente anterior, em que S. Paulo escreve: "Isto é
meu corpo", e também: "a nova aliança em meu sangue", não lhes vale na-
da; comportam-se como se esse texto não existisse em parte alguma do muu-
do e não o enxergam. Aqui, por siia vez, onde ele não está, ficam de olhos es-
bugalhados, de boca e nariz abertos e procuram encontrar tal texto, como se
S. Paulo tivesse que usar, em toda parte e em todas as linhas, exclusivamente
a expressão: "Isto é meu corpo, etc." Como, porém, todo seu empenho con-
siste em procurar o texto "Isto é meu corpo" em lugares onde não consta,
por que então não o procuram também em Marcolfo ou em Dietrich de Ber-
Ali teriam certeza de não o achar. Essa gente é moleque ou louca ao
procurar e exigir uma coisa onde não está e ao não quererem vê-la onde está
e onde lhes é posta bem debaixo do nariz.
Todavia, Paulo não esquece o que havia colocado imediatamente antes.
Pois ele não fala de simples pão e cálice, mas diz: este pão, este cálice, dos
quais esteve falando. Caso seguissem a essas duas indicações remissivas e repa-
rassem que pão e cálice são estes aos quais se reporta, logo descobririam que
este pão é o corpo de Cristo e o cálice, a nova aliança, pois aqui fala do mes-
mo pão e cálice quando diz este, coisas que até crianças e imbecis observam.
Os fanáticos, porém, pulam por cima de "isto" e "este", ignoram-nos em obe-
diência a suas regras e se fixam apenas nas palavras "pão" e "cálice", enquan-
to não querem admitir que se deva passar por alto a questão do "cálice" co-
mo eles costumam proceder com nosso "isto" e "este". Se gritarem: S. Pau-
lo não di:todas as vezes que comerdes o corpo de Cristo, etc., deves respon-
der: Está dizendo, sim. Onde? com que texto? Então diz: Com as palavras "is-
io" e "este". Olha bem essas duas palavras, que nelas encontrarás o seguintc
icxio: "Isto é meu corpo", "este é a nova aliança em meu sangue", pois elas
I.cpctem esse texto e colocam-no diante de teu nariz. Só que diante dos olhos
não podem colocá-lo, pois tu olhas sempre para outro lugar.
No entanto, até que ponto esse espírito toma a sério esse tipo de questioiia-
iiiciito e desafio podes deduzir do seguinte: acima, onde se encontram as pala-
vi-as claras: "Isto é meu corpo", "isto é meu sangue", são capazes de achar
scnões e dizer: "Isto é sinal de meu corpo", "sinal de meu sangue". Sc ago-
i;i I'aulo colocasse aqui o texto: "Todas as vezes que comerdes o corpo do Sc-
iilior c beberdes seu sangue, etc.", como seria amargo para eles proceder d;i
iiicsiiin forma e dizer que o texto deveria rezar: "Todas as vezes que [corncr-.
dcs »ri beberdes] o sinal do corpo ou do sangue, etc.". O espírito supõe qiic
iiiiigiiém irá desconfiar de sua malícia. Meu amigo, quem é capaz de glos:ir o
icxio: "lsio é meu corpo", que não pode ser expresso de maneira mais cl;ii;i
c prccisa. tanto mais poderá glosar o texto: "'iodas as vczcs que coiiicidcs o
Da Ceia de Crista - Colitissáo
corpo do Senhor", que não é tão claro como o primeiro. A não ser que o es-
pirito se pinte e disfarce para dar a impressão que crê nas palavras de Paulo:
"Todas as vezes que coiiicrdes o corpo do Senhor", para que não se perceba
como sua soberba despreza o texto onde está escrito claramente que se deve
comer seu corpo, ou seja: "Tomai, comei, isto é ineu corpo". Amigo, deixa
que eles próprios formulem um texto claro, que não possam glosar; eu teria
prazer em ouvi-lo. Pois assim que surge a palavra "corpo", logo pode apare-
cer a glosa: "sinal de meu corpo". Embora fosse vergonhoso brincar dessa
maneira com tais coisas, os fanáticos não se envergonham. Não obstante, is-
so é vantagem para nós, porque nos certificamos tanto mais do acerto de nos-
so entendimento, já que deliram contra ele de modo tão leviano e pueril.

Segue:
"Aquele que comer o pão indignamente ou beber o cálice d o Senhor indig-
namente, será réu do corpo e d o sangue d o Senhor." [l Co 11.27.1
Aqui constam mais uma vez pão e cálice para os fanáticos que querem fa-
zer disso mero pão, ou então, mero vinho, para depois perguntarem e até exi-
girem, por que S. Paulo não disse "este pão", e se reporta ao pão do qual fa-
lou acima; isso iião se deve observar, antes, deve ser omitido, para não com-
prometer o entendimento espiritual; e, a seu ver, se deve pensar unicamente
que Paulo não teria dito "este pão", mas simplesmente "pão", como se seu
texto tivesse o seguirite teor: "Quem comer um pão indignamente, etc." Vai
ver que é assim que se acha a verdade! Nós, porém, louvamos a Deus por ver-
iiios que com a palavra "isto" Paulo sempre de iiovo retoiiia e introduz este
texto: "Isto é meu corpo", como dito acima, confirmando isso ainda mais cla-
ramente quando diz: "Quem comer este pão indignamente será culpado", não
perante simples pão ou perante o sinal do corpo de Cristo, nias réu do corpo
do Senhor. Meu caro, vamos insistir neste ponto um pouco à maneira deles.
Por que Paulo não diz: é réu do pão ou do sinal do corpo de Cristo quem co-
mer este pão indignamente? Visto que o texto força a interpretação de que es-
te pecado consiste no comer indignamente, e visto que eles alegam, assim mes-
mo, que é mero pão que comem, ele deve, conforme a natureza das palavras
e da linguagem, ser culpado do que come. Paulo não diz: quem refletir indig-
namente sobre o sofrimento de Cristo, este é réu do corpo do Senhor. Eles po-
dem atacar-nos com a pergunta por que Paulo não diz: quem comer indigna-
mente o corpo de Cristo, etc. e querem ter ganho de causa, porque O corpo
de Cristo não estaria ali, enquanto não o provarmos. Nesse caso, no entanto,
eles deverão resporider, por sua vez, a nossa pergunta: Por que Paulo não diz:
"quem refletir indignamente sobre o sofrimento de Cristo", ou: "quem comer
indignamente o sinal de seu corpo, etc."? E, caso não o pudereiii explicar, te-
rão perdido, com justiça, siia própria glosa, de acordo com o criterio e dirci-
1 0 coiii que pretendiam julgar-nos.
Sci, iio cnlanto, muito bem que nem eles acrcditniii eiii scmelliaiitcs glos:is;
iodnvia, por insistirem qiie é siinl?lcs pão, acham qiic algo dcvc scr coiiiciii;i-
Da Ceia de Cristo - Confissão
~ ~
- . ~.
do e elosado. Pois. não fosse sua insistência. eles nróorios teriani iioio dessas
glosas. Eles próprios reconhecem e têm que admitir que as glosas de Karlstadt
são pura invenção. Pois S. Paulo não repreende os corintios por causa de iii-
digna reflexão sobre o sofrimento de Cristo, como qualquer criança pode ler
e provar. Porque ele descreve expressamente que o pecado dos corintios se cons-
tituia no fato de um não esperar pelo outro. Quem vinlia primeiro já ia comen-
do, de modo que os que vinham depois não achavam mais nada e passavam
vexame; e depois, o fato de fazerem da Santa Ceia uma mera comilança, co-
mo se fosse iim banquete qualquer. Pois é isto que ele diz: "Quando, pois,
vos reunis, iião se celebra ali a Ceia do Senhor, mas cada um toma antecipada-
mente sua própria ceia" [v.20s.]. Estás ouvindo? eles não celebravam a Ceia
do Senhor, mas a de sua barriga. Pois, como os outros vinham atrasados, eles
iam se servindo, ignorando a Ceia do Senhor, e iam comendo, como diz mais
adiante: "Quando vos reunis para comer, esperai uns pelos outros, a fim de
não vos reunirdes para juizo" [v. 33s.I. Vês aqui que o pecado estava no comer.
Por isso Ecolampádio oferece uma glosa melhor (em sua própria opinião)
e diz: Com sua riianeira de comer, os coríntios pecaram contra o Sacramento,
isso é, contra o pão e o vinho, que são sinais do corpo e do sangue de Cristo.
Como quando alguéiii desrespeita o retrato do imperador desonra a própria
majestade, quer dizer, quem consumir indignamente este pão e viiilio desonra
corpo e s a n y e de Cristo, dos quais são representação ou sinal. Discordani.
portanto, entre si quanto as glosas como também em relação ao testo; não
obstante afirmam que ambas as posições sáo ensinamento do mesmo Espírito
Santo. Eiii especial não vale nada a tese de Ecolampádio. Primeiro porque,
co11io acima contestamos e provamos, não são nem podem ser sinal ou figura
do corpo e do sangue de Cristo, visto que não se pode citar uma única referên-
cia bi%lica em que se estabeleça essa semelhança; por isso também o exemplo
do retrato do imperador não tem cabimento nessa glosa, a não ser que se pro-
ve primeiro de que maneira pão e vinho são figura ou semelhança do corpo e
do sangue, assim como o retrato do imperador é semelhante a ele.
Em segundo lugar, mesmo que houvesse aqui tal semelhança, isso seria
uma idéia interessante para a glosa, mas nada convincente. Pois, quem não
poderia fazer comentários e depois ir embora e dizer: "Estive a q ~ i " ? ~ ' W ã o ,
já que desejam de maneira diferente do que rezam as palavras e, assim, derro-
tar nossa interpretação, não basta que apresentem comentários tão desprotegi-
dos, infundados, famintos e sedentos, para depois sumirem. Devem compro-
var convincenten~enteo acerto e pertinência dessas glosas. Disso, porkm, Ecolani-
pádio não se lenihra unia única vez sequer, achando que a mera glosa seria sii-
Iicientc. Entretanto, onde fica, então, minha consciência, que tanto gosta dc
Da Ceia de Cristo - Confissáo
base sólida e segura? Querem que se fundamente nesses argumentos famintos,
sedentos e pobres? Ora, que importam a esse espírito onde ficam as consciências!
Em terceiro lugar, esta glosa, além de incerta, não pode ser aceita, a não
ser que se ateste e comprove primeiro que na Santa Ceia temos apenas pXo e
vinho. Pois, se o verdadeiro corpo e sangue de Cristo estão presentes na San-
ta Ceia, essa pobre e esfarrapada glosazinha cai por terra. Até agora não pro-
varam, como, aliás, não o podem provar, que seria apenas simples pão e vi-
nho tão pouco como provaram ou podem provar que temos sinal do corpo e
sinal do sangue, ainda que tivessem provado que seria simples pão e viiilio.
No entanto, neiiliuina das duas coisas ficou provada nem podem prova-las.
Nós, porém, provamos de foriiia coiiclusiva que, como diz o texto, o corpo e
o sangue de Cristo estão presentes. Por isso, se já tivessem garantido o texto
da Santa Ceia de acordo com sua interpretação, até que podcriainos tolerar
alguiiias dessas glosazinhas, por questão de boa amizade, ainda que em si não
tenham valor, como haveremos de ver.
Quarto: O mais bonito é que Ecolampádio não considera "corpo e san-
gue" um tropo, mas, como reza o texto: "Ele é réu do corpo e do sangue do
Senhor". Que se pretende com isso? É o seguinte: se corpo e sangue devem
ser entendidos conforme o texto, então taiiibém não têm significado tropológi-
co no texto da Santa Ceia; pois não se pode admitir, de forma alguma. que
Paulo, falando sobre o mesmo assunto ou matéria, num mesmo escrito, vá
usar as mesnias palavras com sentido diferente. qual trapaceiro ambiguo e astii-
to. Pelo contrário, ele deve ter empregado em ambos os lugares corpo e san-
gue siniplesmente no mesmo seiitido. Se na Santa Ceia corpo significa sinal
do corpo, e sangue, sinal do sangue, então haverá de significar tarnbéin neste
caso sinal do corpo e sinal do sangue. Se, no entanto, aqui significa verdadei-
ro corpo e sangue, entâo há de significar verdadeiro corpo e sangue também
na Santa Ceia, pois fala da mesma Santa Ceia nas duas passagens; por conse-
guinte, está falando do mesmo corpo e sangue. Pois ali ele ensina sobre e fa-
la de sua instituição, aqui exorta para o correto uso da mesma.
Onde ficou agora essa glosazinha fanuiita e sedenta? Quem comer indigna-
mente é réu do corpo do Senhor, isso é, quem zombar do retrato do imperii-
dor está zombando do próprio imperador? Se corpo for sinal do corpo, então
a glosariiilia terá que se torcer do seguinte modo: Quem comer este pão indig-
namente é réu do sinal do corpo, isso é, do pão; pois também aqui corpo tem
que significar sinal do corpo ou pio; se assim não for, ambos, texto c glosa,
cor11 fanáticos e tudo mais, vão para o brejo. Ai vês quanto trabalho, perigo
e desgraça acarreta quem quer fazer da mentira uma verdade e ainda propagá-
Ia contra a verdade. Para os fanáticos manterem sua posição, eles estio dian-
te de trZs grandes tarefas. A primeira: provar no texto da Santa Ceia como
corpo e sangue vêm a ser sinais de corpo e sangue, ou então, simples pão e
vinho. A segunda: provar como este simples pão e vinho podem ser sinal do
corpo c do sangue. Quando tiverem feito isso (o que será no dia de S. Nunca),
Icrâo que ciirrcntar novamente tarefa igual ou ate maior para provar qiic, iics-
Da Ceia de Crista - Confis%i<i
sa passagem, corpo e sangue não são sinal de corpo e sangue. Pois terão quc
provar que, na mesma exposição e no mesmo assunto, sangue não seja sangue,
nem corpo seja corpo, mas que, por outro lado, o mesmo sangue deve ser cha-
mado sangue, e o mesmo corpo, corpo. Para tanto é preciso ser artista, isso
é, tornar simultaneamente verdadeiras coisas contraditória^^^^.
Quinto: Ainda que todas as coisas estivessem em ordem e nada estivesse
faltando, a glosa é inepta em si mesma. Pois Paulo não diz: Quem comer es-
te pão indignamente, este é réu de Cristo, como pensa Ecolampádio, do mo-
do como se toriia culpado diante do rei quem zombar de sua imagem. Pelo
contrário, S. Paulo indica que a culpa acontece eiii relação àquelas partes dc
Cristo as quais se igualam pão e viiiho e das quais são sinais, ou seja, é réu
do corpo e sangue, etc. Consequeiiteinente Ecolampádio teve que adaptar sua
glosa e seu exemplo da seguinte maneira: quem desrespeitar o nariz da imagem,
está desrespeitando o nariz do rei. Quem zombar da hoca da imageni, está zom-
bando da hoca do rei. O raciocínio seria que o desrespeito manifestado a ima-
gem não estaria se referindo a pessoa, mas as partes que são desrespeitadas
na imagem. Pois Paulo não cita a pessoa de Cristo, mas corpo e sangue co-
mo partes da pessoa. Estou dizendo isso para que se veja que Ecolanipádio
não desenvolve sua glosa e seu exemplo corretamente, e não corresponde ao
texto de Paulo. Para que correspondesse, S. Paulo deveria dizer, como já foi
dito: Quem comer este pão é réu de Cristo, como se torna culpado perante o
rei queni desrespeitar sua imagem. Quer dizer, iião está pecando contra,uni
rneinbro ou parte da pessoa, riias contra a majestade e autoridade do rei. E is-
so que está sendo dito com essa expressão. S. Paulo, porém, diz qiie se peca
contra as partes, ou seja, contra corpo e sangue de Cristo. Isso é uma ofensa
mais intima e mais grave do que [pecar] contra a majestade e autoiidade de
Cristo. Por isso essa glosazinha não tem valor em si, porque fala da majesta-
de e da autoridade, enquanto o texto fala de membros ou partes da pessoa.

Segue:
"O homem se examine a si me,Tmo, i. assim coma do pão e beba do cáli-
ce" [I Co 11.281.
Temos aqiii novamente as palavras pão e cálice. Paulo usa os termos nltcr-
nadamente. Aqui o chama "pão e cálice", depois usa "corpo e sangue" e iio-
varnente,"pão e cálice", e pela terceira vez "corpo e sangue", para assegurai-
tios com certeza que este Sacrametito não é mero pão e viiiho. mas (ambtiii
corpo e sangue de Cristo. Ou então os fanáticos têm que desviar o olhar da
passagem em que o denomina corpo e sangue e se apegar apenas aquela paric
em que fala de pão e cálice. Ou então, têm que glosar corpo e sangue c apli-
car a tropologia, não, porém, em pão e cálice, brincando deste modo coiii o
Icxto c procedendo com ele a seu bel-prazer. Essa passagem Ihes é espccialiiic~iic
Da Ceia de Cristo - Conlisr5o
favorável, uma vez que S. Paulo não diz: "assim coma deste pão", mas fala
simplesmente d o pão e do cálice, não deste cálice. Pois bem, deixemos que de-
cidam se Paulo está falando de outro pão e cálice ou dos mesmos. Se estiver
falando de outros, isso não nos incomoda e aceitamos que considerem ser sini-
ples pão e vinho. Isso, porém, de nada Ihes vale, porque nós estamos falando
do pão na Santa Ceia. Se, porém, estiver falando do mesmo pão e do mesmo
cálice (do qiie não há dúvida), então já ouvimos o suficiente no texto anterior
sobre o que vem a ser este cálice e pão. O que foi dito lá vale também aqiii.

Por último.

"Quem comer e beber indignamente, come e bebe juízo para si, como
quem não discerne o corpo do Senhor" [I Co 11.291.
Sobre a interpretação de Karlstadt escrevi o suficiente no livrinho Contra
os profetas celestiai,~.Pois não pode tratar-se da memória dos sofrimentos, co-
mo pretende a cabeça de Karlstadt. O texto é conclusivo: comer indignamente
e não discernir o corpo de Cristo é a mesma coisa. Nós entendemos isso ao
pé da letra no sentido de que os corintios coiiierain o pão com tamanha insen-
satez e imprudência, conio se fosse simples pão, e não distinguiram este pão
de outros pães; é isso que vem a ser "comer indignamente" o corpo de Cris-
to. Por isso exorta-os para que se examinem e sintam quem são e o que acham
desse pão. Pois, se não o consiclerarem corpo de Cristo e lidarem com ele co-
nio se não fosse o corpo de Cristo, iião discernem o corpo de Cristo. E isso
não ficará impiine. Sabemos muito bem como S. Paulo usa a palavra diacri-
noi~"~,para discernere, como em 1 Co 4.7: "Quem te discer~u?", isso é,
quem te fez tão diferente dos outros, como se fosses algo melhor e diferente
do que o povo? Em Rm 14.23: "Quem discernir está condenado", isso é,
quem achar isso pecado e aquilo certo, e, assiin mesmo, age em contrário. E
assim S. Paulo continua usando diakrinrin no sentido como nós usamos "dife-
rcnciar, distinguir, considerar uma coisa diferente da outra", etc.
Ecolampádio, no entanto, parece ter mais razão, porque aplica essa dife-
renciação também aquela honra que se presta ao rei por meio da honra a sua
iiiiagem, como vimos acinia, no comentário ao outro vei-siculo. No entanto,
o defeito é o mesmo cá e lá. Tudo que digo contra ele no comentário aquele
vcrsiculo deve ser dito contra ele também aqui. Pois, como entendemos o texto
~iiiiplesineiiteem seu teor e eles querem tomá-lo de nós e interpretá-lo diferen-
! c , 11.50 basta que oferesam um comentário desnudo e depois batam eni retira-
d;i. Pelo coiitrário, será preciso que provem coni argumentos e com abona~fies
Ihiblicas e argumentos que essa glosazinha é períiiiente. Isso, porém, ele n i o
I':iz nem pode fazê-lo. Pois quem haveria de acreditar que "não disccrnir o corpo
Da Ceia de Cristo - Caiiiis\;ii)
de Cristo" nZo seja nada mais do que desonrar o próprio Cristo em seu sinal?
Afiiial, ainda não está provado que tenhamos simples pão e sinal do corpo
na Santa Ceia, no que se fundamenta essa linda glosazinha frágil. Além disso
ele terá que tomar aqui a expressão "corpo do Senhor" não como verdadeiro
corpo de Cristo, mas como sinal de seu corpo, já que S. Paulo não pode estar
falando de outro corpo do que quando diz: "lsto é nieu corpo", pois ainda
está falaiido da Santa Ceia no mesmo contexto, de modo que o significado
das palavras ainda deve ser o inesmo. Se "corpo" não for "sinal do corpo"
aqui, por que seria "sinal do corpo" ali? Por isso essa glosazinha há que pere-
cer com texto e tudo, ou então terá que ser colocada da seguinte forma: "Quem
não discernir o sinal do corpo do Senhor...". De iiiodo que também este argii-
mento está aniquilado, e Paulo está firme do nosso lado, porque considera-
mos suas palavras simples, harmoniosas e sem restrições de acordo com nossa
interpretação, não carecendo de comentários nem de esforços para interpretá-
Ias de maneira diferente do que rezam.
Vejamos também o texto que se encontra no décinio capítulo, onde diz:
"O cilice da bênção que abençoamos, não é ele a cornunlião do sangue de
Cristo? O pão que partimos, não é ele a comunhão d o corpo de Cristo?" [I
Co 10.161. Enalteci e ainda continuo enaltecendo esse texto com a maior ale-
gria e como preciosidade de meu coração, porque ele não diz apenas: "lsto é
o corpo de Cristo", como está escrito [no texto] da Santa Ceia, mas nomeia
o pão que é partido e diz: o pão é o corpo de Cristo, mais ainda: o pão que
partimos não é somente o corpo de Cristo, mas o corpo de Cristo distribuído,
Temos ai, finalmente, uni texto tão claro e compreensí\~elcomo os fanáticos e
o rnuiido todo não o poderiam esperar e exigir. No entanto, nem ele resolve
o caso. Em face desse texto, não mais contestam, porque estão em desacordo
entre si: uns dizem que Paulo está falando de comunhão em forma de sinal
ou figura, outros, porém, afirmam que está falando de comunhão espiritual.
Alegam que depois o texto segue falando da comunhão do altar e dos deni6-
nios. Com isso querem se safar. Não nos enfrentam para provar ou deduzii-
isso do texto. Será que tenho que contentar-me coni suas simples palavras c
glosas vazias, e fazer de conta como se cumprimentasse uma pessoa, mas que
me dá as costas, troveja com seu traseiro e some. Pois bem, se Deus quiser
eles não vão escapar assim e deixar o fedor atrás de si.
Em primeiro lugar, não Iiá dúvida que também aqni S. Paulo está Falan-
do da Santa Ceia, porque fala de pão, cálice, corpo e sangue de Cristo, e, na-
turalmente, deve estar falando do mesmo corpo e sangue, pão e cálice de que
fala a Santa Ceia. Se assim não for, esse texto não nos interessa e pouco nos
iiiiporta que alguém ache estar tratando de simples e comum alimento. Dccor-
i-c disso que, de acordo com a arte de Ecolampádio, esse texto deve ter o se-
guinte teor: O pão que partimos é uma comunhão do pão, que é sinal do cor-
po de Cristo. O cálice da bênção que abençoamos é uma comunhão do vinho,
cliie é sinal do sangue de Cristo. N2o é um texto maravilhoso? Pão C uiiia co-
iiiiiiiliào do ~ â « cálice,
, unia coiiiunhão do vinho. Que sc diz corii isso scii:io
Da Ceia de Cristo - Coiifissão

que o pão partido é comunhão do pão, isso é, o pão partido é simples pão dis-
tribuído? Será que Paulo não tinha outra coisa para nos ensinar do que: pão
distribuído é pão distribuído? Ou estava preocupado que nós entenderíamos
pão distribuído por salsichão distribuído e vinho distrihuido por água distribuí-
da? Ora, são deles próprios as palavras que corpo deve significar sinal do cor-
po, isso é, pão, e que sangue deve significar sinal do sangue, isso é, vinho, co-
mo ouvimos exauslivamente e com o que borraram todos os livros.
Se, no entanto, querem basear o tropo na palavra comunhão, e se deve
ser um sinal da comunhão ou uma comunhão figurada, pela qual seria figura-
da a comunhão espiritual, então esse retrógrado e distorcido tropo de Ecolam-
pádio exigiria o seguinte texto: O pão que partimos é uma comunhão figura-
da do corpo figurado de Cristo, que é o pão. Meu caro, que conversa é esta:
pão é comunhão figurada do pão? Pois é assim que eles têm que raciocinar
para sustentar sua tropologia. Acaso um pão deverá ser sinal ou figura do ou-
tro, quando é distribuído e comum? visto que ambos devem ser pães naturais
e materiais. O primeiro porque é partido, o outro por ser um sinal do corpo
de Cristo. Creio que esse espírito, já que é capaz de qualquer coisa, considera
o primeiro pão, aquele que é partido, um pão desenhado em papel, ou então,
entalhado em madeira, que pode perfeitamente ser uma figura ou sinal do ou-
tro verdadeiro pão, que significa o corpo de Cristo, de modo que o texto fica-
ria assim: O pão de madeira partido é uma comunhão fiyrada do verdadei-
ro pão, que, por sua vez, é sinal do corpo de Cristo; pois a tudo isso obrigam
suas interpretações tropológicas. Do contrário, teria que ficar assim: O pão
partido, que não pode ser uma comunhão figurada do pão, é, não obstante,
uma comunhão figurada do pão. Afinal, não é possível que um pão seja a co-
munhão figurada de outro.
Mais acima também demonstramos que esse tropo retrógrado e distorci-
do não encontra respaldo nas Escrituras nem em qualquer língua, e que não
passa de mera fantasia. Pois, de acordo com as Escrituras e a natureza de to-
das as línguas, a palavra "comunhão" tem que tornar-se um tropo no senti-
do de apontar para uma comunhão espiritual, ou então para uma comunhão
nova e diferente, além da antiga comunhão física. Assim como corpo e sangue
devem ser chamados de corpo e sangue espirituais e diferentes quando se con-
vertem em tropo e quando não devem ser chamados de sangue ou corpo físi-
cos. Nessa passagem, portanto, "comunhão" tem que significar simples comu-
iiliâo ou distribuição física, ou, se for tropo, deverá significar uma nova comu-
riliâo espiritual, de acordo com a qual o texto deveria rezar: O pão que parti-
iiios E uma comunhão espiritual do corpo de Cristo. Se, no entanto, aqui cor-
110 deve ser entendido como tropo, então deverá significar o corpo espiritual
dc Cristo, que é a Igreja, etc. Em resumo, o texto ficaria com o segiiintc teor:
O piio que partimos é uma distribuição espiritual da cristandade, na scgiiiiilc
;icepv.:i«: onde este pão for partido, é distribuída a cristandadc. A isso Ii;tvc-
iiniii dc scguii. outras horríveis ahomitiaç6es.
Qiic cscolhnin o quc quiserem! Sc ncsla passagciii "corpo c s;iiigiic" loiciii
Da Ceia de Cristo - Coiifis\;ii>
tropo ou sinal do corpo e sinal do sangue, ou seja, pão e vinho, como reza
sua doutrina, eles não podem evitar essas horríveis conseqüências que acabo
de citar. Isso cada qual o deverá compreender e ninguém o poderá negar, espc-
cialmente quando também querem interpretar a comunhão de forma figurada.
Entretanto, se não for tropo, mas verdadeiro corpo e sangue de Cristo, confor-
me nossa doutrina, então também não pode ser tropo em outras passagens
da Santa Ceia; pois ninguém pode negar que nessa passagem S. Paulo fala
da Santa Ceia e menciona e indica o rnesmo sangue e o mesmo corpo a que
se reportam e de que falam Mateus, Marcos, Lucas e o próprio Paulo e111
outros capítulos, quando dizem: "Isto é meu corpo", "isto é meu sangue".
Que podem reclamar contra isso? Eles não têm outra escolha: sangue e corpo
têm que ser tropos, pois é isso que sua doutrina afirma, uma vez que aqui sc
fala de sacramento e porque no sacramento é preciso haver conceitos sacramen-
tais ou figurados, como ensina Ecolampádio. Então terão que tirar também a
conseqüência: o pão seria uma comunhão figurada do pão, isso é, seria uni
pão desenhado, ou seja algo que não pode ser, como foi dito. Pois Ecolampá-
dio admite que "é" não quer dizer "significa". Por isso tem que admitir que
pão seja a comunhão figurada do pão, e não pode dizer que o pão partido sc-
ja comunhão espiritual. Pois de acordo com ele, uma coisa material não po-
de ser nem chamar-se coisa espiritual.
Se, no entanto, restringisse o tropo exclusivamente a palavra "comunhão",
de modo que o texto tivesse a seguinte forma: "O pão que partimos é um si-
nal da comunhão de Cristo", e se pudesse comprovar isso, sua opinião seria
correta. Nesse caso, porém, "corpo" não seria tropo. Contudo, se corpo não
for tropo aqui, também não poderá ser tropo onde Mateus, Marcos, Lucas
dizem: "Isto é meu corpo", porque se trata da mesma Santa Ceia e do mes-
mo corpo. Portanto, qualquer rumo que esse espírito tomar, ele dá com a ca-
beça na parede, a ponto de tontear e cair. Aconselho-lhes que digam que a pa-
lavra divina externa não importa, que Ihes basta o testemunho interior do Es-
pírito, e que as palavras de Paulo não passam de míseras dez letras. A partir
disso talvez "corpo e sangue" sejam e também não sejam tropos, como quise-
rem. De outra maneira eu não saberia como poderiam escapar de Paulo. Mas
também teriam que pensar que todo mundo estaria obrigado a acreditar e111
suas idéias. Assim teriam vencido.
O que foi dito contra o texto de Ecolampádio vaie também contra o tex-
to de Zwínglio. Pois onde Ecolampádio fala de sinais, Zwinglio faia de signifi-
cado. No entanto, é a mesma interpretação, apenas com palavras difercntcs.
A diferença é que Ecolampádio diz "figura do corpo" e Zwínglio fala dc "sig-
nificando o corpo", o que, na verdade, é a mesma coisa. Por isso o Lcxto dc
Zwinglio teria que ser o seguinte: O pão que partimos é a comunhão do cor
po significante de Cristo, ou seja, do pão, tal como no caso de Ecolanilládio.
Sc, no cniaiito, pudesse alterar seu texto para: O pão que partimos sigiiific:! ;I
coiiiuiihâo do corpo de Cristo, isso seria ótiino para siia lese. Ein Mnlciis.
Miircos c I.iices, poitiii, o lexio iiâo odniile que sc diga: Isto sigiiilic;i iiicii
Da Ceia de Cristo - Confissáo
corpo. Se ali tem um corpo significante, terá que admitir também aqui um cor-
po significante, pois é o mesmo corpo, como já foi dito. Agora, para o cor-
po significante valem as mesmas conseqüências que valeram para o corpo sina-
lizante de Ecolampádio, o que qualquer um pode concluir e ver. Por isso não
há necessidade de repetir tudo.
Que venha também o espírito ~ i l e s i a n o ~com
~ ' sua distorção que perverte
o texto de Mateus, Marcos e Lucas da seguinte forma: "Meu corpo é isto, a
saber, um alimento espiritual". Pois, segundo ele, "isto" se reportaria ao espí-
rito; então, neste caso, também o texto: "O cálice da bênção que abençoamos,
etc." deveria ser invertido da seguinte forma: "A comunhão do corpo de Cris-
to é o cálice da bênção que abençoamos", ou seja, um cálice espiritual da bên-
ção. Ora, acontece que essa comunhão é um fenômeno espiritual; não obstan-
te, é preciso haver um cálice material de vinho e assim deve ser designado. Sim,
o cálice material tem que ser, ao mesmo tempo, um cálice espiritual, isso é, si-
multaneamente espiritual e não-espiritual, material e não-material. Pois Paulo
fala [do cálice] material, o espírito [silesiano], porém, faz dele um cálice espiri-
tual, e não material. Acaso isso não seria produto de fantasia desmedida? Dei-
xemo-los com suas fantasmagorias loucas.
Nosso texto e interpretação estão aí, bonitos, claros, simples e transparen-
tes: "O pão que partimos é a comunhão do corpo de Cristo", etc. Em primei-
ro lugar deves anotar aqui que ele fala do pão material que partimos na San-
ta Ceia; ninguém pode negar isso. Não há dúvida também que desse partir
material ou dessa Santa Ceia não participam apenas pessoas santas e dignas,
mas também indignas, como haveremos de considerar Judas e similares. De-
pois ouviste que, em qualquer língua do mundo, "é" não pode nem deve ser
entendido como "significa", mas tem o sentido de "ser", onde quer que seja
usado. Por fim, comunhão quer dizer aquilo que é comum, do que muitos têm
parte e de que gozam, como aquilo que é distribuído entre todos. O mesmo
pode ser recebido de duas maneiras, materialmente e espiritualmente, pois coi-
sa comum é algo que muitos desfrutam em comum, como uma fonte comum,
ruas comuns, plantações e campos comuns, lenha e fogo comuns, etc. E evi-
dente que, nessa passagem, não pode significar a comunhão da fé no coração.
I'orque o texto fala aqui de um bem comum tal que possa ser recebido e des-
hiitado, como o pão e o cálice, pois diz: "O pão que partimos", "o cálice
que abençoamos", em seguida: "Todos nós, que temos parte de um mesmo
ls2o e de um mesmo cálice, somos um corpo" [I Co 10.171. De maneira que
csiá assegurado que a comunhão do corpo de Cristo outra coisa não é do que
desfrutar do corpo de Cristo, qual bem comum distribuído entre muitos.
Paulo diz, portanto: O pão que partimos é a comunhão do corpo de Cris-
10, isso é, quem desfrutar desse pão partido está desfrutando do corpo dc Cris-
10 como um bem distribuído entre muitos, pois o pão é este corpo dc Cristo
Da Ceia de Cristo - Confiasão
que nos é comum, afirma Paulo. Isso está dito dessa forma clara e seca para
que ninguém o possa entender de modo diferente, a não ser que se mudem as
palavras. Agora, esse pão partido não é desfrutado apenas pelos dignos, mas
também por Judas e pelos indignos, porque o partir do pão se realiza entre
bons e maus. Não é possivel, porém, que o desfrutem espiritualmente, porque
não têm espírito nem fé. Assim também Cristo tem só um corpo. Se os indig-
nos o desfrutarem e o tiverem como bem comum, terá que ser corporalmente
,. . ~ ~
.
e não esoiritualmente. ooroue não há outra forma de desfrutá-lo do oue corno-~A~~

ralmente ou espiritualmente. Pois o desfrute na forma de figura, sinal ou signi-


ficado não tem cabimento na Santa Ceia, porque nela não existe significatis-
mo ou sinalismo. Por isso necessariamente há que estar o verdadeiro e real cor-
po de Cristo no pão que partimos, para que os indignos desfrutem dele corpo-
ralmente, já que dele não desfrutam espiritualmente, conforme reza a seguin-
i te palavra de Paulo: "O pão que partimos é a comunhão", isso é, o corpo
de Cristo comum, distribuído entre aqueles que recebem o pão.
Aqui o espírito entusiasta se debruça sobre a palavrinha "comunhão" e
quer conceber uma comunhào espiritual que existiria tão-somente entre os pie-
dosos e que seria sinalizada pelo partir do pão como uma comunhão figurada,
para que o texto de Paulo [I Co 10.161 adquira o seguinte sentido de acordo
com Ecolampádio: O pão que partimos é um sinal da comunhão do corpo de
Cristo, ou então, segundo Zwínglio: O pão que partimos significa a comunhão
do corpo de Cristo. Provam isso, em primeiro lugar, com o argumento: "As-
sim nos parece correto", pois seu próprio parecer é o argumento mais forte
que possuem na questão toda, embora batizem e denominem o mesmo de abo-
nação bíblica e fé. Depois citam o versículo que Paulo coloca após aquele tex-
to: "É um só pão, todos nós somos um só corpo, porque temos parte de um
só pão" [I Co 10.171. Alguns deles fazem disso novo tropo. O pão seria um
pão espiritual, a saber, corpo de Cristo; e "um corpo" também seria um tro-
i po, ou seja, estaria se referindo somente aos santos que têm parte no pão espi-
ritual de forma espiritual. Argumentam contra mim do seguinte modo: uma
vez que somos todos corpo de Cristo, os indignos não podem estar nesse cor-
po, mas tão-somente os membros verdadeiros; por isso essa comunhão do cor-
po terá que ser espiritual, etc.
Que farei com esses espíritos equivocados? Uns fazem [da Santa Ceia]
um pão e uma comunhão figurados, os outros têm pão e comunhão espirituais,
chocam-se uns contra os outros como se estivessem tontos e nenhum deles teiii
certeza de sua linha de raciocínio. Sabemos que Paulo não diz aqui: Todos
nós somos um só corpo de Cristo, mas simplesmente: "Nós todos somos um
s6 corpo", isso é, um grupo, uma comunidade, tal como qualquer cidadc C
iinia grandeza e corporação a parte de outra cidade. Disso não decorre qiic to-
dos os membros desse corpo sejam membros santos e que somente esscs I c ~ ~
rih:ini a comunhão espiritual; pelo contrário, é um grupo ou corpo físico, dcii
iro d o qiial cxisleiii santos e perversos; todos elês têrn parte no mcsiiio pão.
Ilc iiio<lo qiic "pZo" aqui taiiibéiii ilào poclc scr LIIII pão cspirilual, poicliic
Da Ceia de Cristo - Confissão
Paulo fala do mesmo pão do qual falava antes: "O pão que partimos". Esse
pão é um só, por isso também faz daqueles que nele têm parte um grupo e
corpo especial. Não se trata de um corpo de Cristo, mas simplesmente de um
corpo; pois há uma grande diferença entre "corpo" e "corpo de Cristo", sen-
do que aqui "corpo" é um verdadeiro tropo, a maneira das Escrituras, não
um corpo figurado, de acordo com o tropo retrovertido, mas um segundo e
novo corpo, para o qual o corpo natural serve de semelhança, etc. Essa inter-
pretação iigurada é exigida pelo texto quando diz: "Somos um corpo". Afi-
nal, não podemos ser um só corpo natural. Dessa maneira também os fanáti-
cos deveriam colocar seus tropos, e argumentar e provar que o corpo e o san-
gue de Cristo são sinais do corpo e do sangue de Cristo.
Em resumo: em toda essa passagem S. Paulo não fala de comunhão espi-
ritual ou figurada, mas somente de comunhão fisica, ou de um bem comum
que é distribuido. É isso que deves ver em todos os versiculos e exemplos que
ele emprega. Primeiro, no seguinte: "E um só pão, nós todos somos um só
corpo, porque temos parte nesse um só pão". Para que se tenha que entender
a comunhão no sentido físico, ele diz: "E um só pão" (a saber, do qual o tex-
to diz: "O pão que partimos"), "no qual todos nós temos parte". É evidente
que o pão partido não pode ser espiritual, e, em conseqüência, sua distribuição,
partilha ou comunhão não podem ser espirituais. E o outro versiculo: "Consi-
derai o Israel segundo a carne: não é certo que estão na comunhão do altar
aqueles que se alimentam dos sacrificios?" [l Co 10.181. Aqui não há comu-
nhão espiritual ou figurada, porque alimentar-se do sacrifício é uma coisa ma-
terial, fisicamente comum e distribuída entre os que comem o sacrifício. Da
mesma forma também nosso pão é uma comunhão fisica distribuída entre nós.
Se, porém, o pão é partido, distribuído e recebido por nós de forma fisica co-
mum, então também o corpo de Cristo é fisicamente comum, partido, distri-
buído e recebido, como diz Paulo: "O pão que repartimos é a comunhão do
corpo de Cristo" [l Co 10.161.
Sim, dizem eles, depois Paulo passa a falar da comunhão dos demônios:
"Não quero que tenhais a comunhão dos demônios" [l Co 10.201. Aqui é pre-
ciso haver comunhão espiritual, pois os demônios não têm corpo; portanto, a
comunhão de Cristo referida mais acima também será espiritual. Resposta: pa-
rece que a palavra "comunhão" os confunde a ponto de r i o a entenderem
hem. Até que é verdade: não é um termo tão próprio de nossa língua como
eu gostaria que fosse. Por comunhãozz2entende-se, em geral, ter algo a ver
com o outro. Aqui, porém, deve significar, como já expliquei acima, que mui-
i«s precisam, desfrutam ou participam da mesma coisa. A isso deve-se tradu-
7,ir por "comunhão"; não achei palavramelhor paraisso. Pois bem, já que os demô-

222 ('I'. crpi,siçZo de I.iitero sobre o tcnia "corniicilião" ,ir> <':rlcci,$r,io M:iirii. ,,;i cxlilic:iç;iii <!<i
'l(.icciii>Artigo dii ('vedo Aposl6lico (I.ivrr> <Ic(?,iic<iiili;i; ;is c<irilissõcsilii Igiciii 1lv;iiig:Clic;i
I . ~ I I c s ; ~%;o
c I : ~l ,, c ~ ~ Si~~o<ktl;
~ ~ ~ l 1'~0r10
l ~ Alcgw,
~ , ('ottcÍ>rdi:t, I ~ I N O ,1). 454).

304
Da Ceia de Cristo - Confiasá,,
nios não têm corpo e mesmo que esse versículo estivesse falando de comunhão
espiritual, por que teríamos que deduzir que acima também tivéssemos que en-
tender a comunhão como comunhão espiritual do corpo de Cristo? Basta que
se o diga? Paulo, porém, fala de comunhão física com os demônios; prova
disso são as palavras que vêm antes e as que vêm depois. Antes, diz assim:
"As coisas que os gentios sacrificam são sacrificadas aos demônios". Ouve-se
aqui que está falando do sacrifício aos ídolos e a isso chama de sacrifício aos
demônios e trata da questão do comer do sacrifício aos ídolos. Quem comer
sacrifício oferecido ao demônio está em comunhão com o demônio; trata-sc
de uma comunhão fisica, porque é um sacrifício ao demônio, um sacrifício
material, que muitos consomem e desfrutam. De modo que estão corporalmen-
te em comunhão corporal com o demônio, isso é, com o sacrifício oferecido
I ao demônio, assim como nós gostaríamos de dizer que ambos, dignos e indig-
nos, estamos na comunhão de Deus quando recebemos o corpo de Cristo fisi-
camente, pois desfrutamos e participamos fisicamente do corpo de Cristo, quc
é um sacrifício de Deus e sacrificado a Deus.
A isso constrangem também as seguintes palavras: "Não podeis beber,
ao mesmo tempo, o cálice do Senhor e o cálice dos demônios" [I Co 10.211.
Ws aqui a que se reporta quando diz que não nos quer ver na comunhão dos
demônios? Não devemos beber o cálice do demônio! Logo, o cálice do demô-
nio é uma coisa material; de modo que beber o cálice do demônio deve ser
uma comunhão física com o demônio, da mesma forma como beber o cálice
do Senhor é ter a comunhão física do Senhor ou de Deus, ou seja, tornar-se
participe daquilo que é do Senhor ou de Deus, ou que é sacrificado a Deus.
O cálice do Senhor, no entanto, não é somente um cálice, mas também uma
comunhão do sangue de Cristo, do qual muito desfrutamos. Ele diz mais:
"Não podeis, ao mesmo tempo, ser participes da mesa do Senhor e da mesa
dos demônios". Será que não está suficientemente claro que a mesa do demô-
nio é algo físico? Nesse caso a comunhão ou a participação da mesa terá que
ser física também, tão bem como a mesa e a comunhão do Senhor têm quc
ser físicas. Pois não podemos ser ignorantes a ponto de querer entender aqui
a comunhão do diabo como se fôssemos desfrutar ou participar do próprio
I demônio sem qualquer elemento material exterior, porque aqui estão citados
ambos, mesa e cálice do demônio. Antes devemos compreender que participa-
mos da coisa e do objeto que é do demônio ou que a ele pertence, tal coiiio
i se fala da comunhão de Deus ou do Senhor quando se participa da coisa oii
do objcto que 6 de Deus ou do Senhor, ou que lhe é pertinente, como o tirlo
diz aqui claramente: "Não podeis ser participes da mesa do Senhor c da iiic-
sa do demônio ao mesmo tempo" e "não quero que estejais na corniiiili?~o
do demônio".
Ccrlamente são coisas diferentes quando digo "comunhão do dciiifiiiio"
c "coinunhão da mesa do demônio", mas é a mesma idéia, coirio laiiihtiii i.
o iricsrno nssiiiito. É que "comurihão da mesa do demônio'' indica ;i coisa o11
( 1 ol),jrlo ciii qiic coiisislc cssa coiiii~iiliZo.Ma\ "coiiiiiiiliáo do <Ic~iiGiiio"
iiilli
Da Ceia de Cristo - Confisdo

ca de quem é aquela coisa ou objeto, a quem pertence aquilo em que consiste


a comunhão. Da mesriia forriia, "comunhão da mesa do Senhor" é outra coi-
sa do que "comunhão do Senhor". "Comunhão da mesa do Senhor" revela
a coisa ou o objeto eni que a comunhão consiste; "comunhão do Senhor".
porém, revela quem é aquele de quem é tal coisa em que consiste essa coinu-
iili3o. E111 [l Coríntios] 11.27,28, Paulo também iisa as duirs formulações na
Santa Ceia e as vezes diz simplesmente do comer do pão: "Todas as vezes que
comerdes este pão", e ainda: "e assim coma do pão". Depois, porém, diz:
"Quem corner o pão do Senhor", etc. O primeiro texto diz o que vem a ser o
que sc come; o outro, de quem é e a quem pertence aquilo que se come. De
modo que nessa expressão "comunhâo do corpo de Cristo" diz simplesmente
o que vem a ser a coisa em que consiste a comunhâo, a saber, o corpo de Cris-
to, e não de quem é essa coisa ou objeto, pois pertence a Deus ou ao Senhor.
Por isso não se pode entender aqui uma comunhâo espiritual, porque o pão
partido é tal comunhão do corpo de Cristo, e o corpo de Cristo é a coisa, ou
então, o objeto ein que essa comunhâo consiste e que ambos, digiios e indig-
nos, podem degustar, porque desfrutam do pão partido.
Se quisesse falar de comunhâo espiritual, não seria necessário citar as
duas coisas, corpo e sangue de Cristo, mas seria suficiente citar Cristo, assim
como em outra passa~en~"'Paulo diz que fomos chamados para a coiiiui~lião
do Filho de Deus. Por que faria questão de diferenciar tão nitidamente entre
corpo e sangue, justapondo duas comunhões como duas comunhões distiiitas,
onde uma não inclui a outra? A comunhâo espiritiial é, sabidamente, uma úni-
ca coniuiihão e não duas diferentes; isso quer dizer qiie n coiiiiinhão do cor-
po de Cristo iião E a comunhão do sangue de Cristo, iieiii vice-versa, porque
Paulo as separa. Numa comunhão espiritual seria impossivel separar corpo e
sangue de Cristo em duas comunhões distintas, como acontece aqui. Consequen-
temente, neste caso a comunhão do corpo e sangue tem que ser fisica e não espiritual.
Dessa maneira temos esse texto importante clara e firmemerite a nosso fa-
vor, contra as despidas e miseráveis glosazinhas dos fanáticos. Ainda que não
aceitem tudo isso nem nisso acreditem, mostramos suficientes argumentos e ra-
zões que nos autorizam a manter nossa interpretação. Pois, ainda que fosse
um turco, judeu ou pagão, sem qualquer apreço pela fé cristã, mas ouvisse
ou lesse esses textos sobre o Sacramento, teria que dizer: Na verdade, eu não
acredito na doutrina dos cristãos, mas isso tenho que admitir: se qiiiserem ser
cristãos e seguir sua doutrina, então devem crer que o corpo e o sangue de
Cristo é comido e bebido fisicamente na Santa Ceia.
Saibam os fanáticos que, uma vez tendo que admitir que nossa iriterpreta-
qxo t correta em consoriâiicia coin o texto, e eles, não obstante, não se satisfa-
/cri1 com isso e não se dão por vencidos, por nosso lado nos satisfazerli riiui-
li) iiicrios ainda suas glosas famintas, sedentas e desriudas, qiie levanlam, como
Da Ceia de Cristo - Confissáo
produto dc suas cabeças, contra o claro teor das palavras, nein nos queremos
dar por vencidos. Pois, se é que devemos apegar-nos a palavras riiias e simples,
preferimos ater-110s ao texto nu e simples que Deus mesmo pronuiiiou, do que
a glosas nuas e sem fundamento, inventadas por homens. f i n d a que batizem
e chamem essas glosas de abonação da Escritura e as tenham como expressão
de fé, isso não nos incomodará, até que tan~bémproveiii que se trata de expres-
são da Escritura e da fé, como erroneamente o denominam. Pois deveriam ad-
mitir que nós, tampouco quanto' eles, não queremos defender ensinamentos
errados, como, aliás, graças a Deus, o comprovamos com fatos melhor e mais
do que eles, de modo que não podem gloriar-se de só eles terem essa mentali-
dade. Cristo será juiz de todos os que mentem e enganam.
Quero vangloriar-me em Deus que no presente livrinho esclareci amplamen-
te não poder haver tropo na Santa Ceia. Pelo contrário, as palavras devem ser
entendidas ao pé da letra: "Isto é meu corpo, isto é meu sangue"; disso tenho
certeza. Se fossem tropos, deveriam sê-lo em todas as passagens em que se fala
da Santa Ceia. Vimos, no entanto, que os próprios entusiastas ensinam e ad-
mitem que não há tropos nas palavras de Paulo: "Quem coruer e beber indig-
namente é seu do corpo e do sangue de Cristo" [l Co 11.291, e , portanto, tam-
bém não na seguiiite frase: "O cálice da bênção que abençoamos é a comu-
nhão do sangue de Cristo, etc." [I Co 10.161. Em relação a isso nada há o
que possam contrapor-nos. Portanto, se nZo há tropo na Santa Ceia, está sufi-
cientemente claro que nossa iiiterpretação está correta e a dos entusiastas equi-
vocada e errada. O sexto capítulo de João fica para outra oportunidade, vis-
to que nada diz a respeito da Santa Ceia e porque já foi tratado por outros,
coino Filipe Melanchthon e João Brenz e outros iiiais, se bem que pretendo
tratar dele iiiim sermão e dar assim minha ~ontriboiçâo"~.

1 Terceira parteu5

I Vejo que, a cada dia que passa, há mais sectarismo e equívoco, e não ti5
rim para a raiva e fúria de Satanás. Para que não aconteça que, durante iiii-

i nha vida ou depois de minha morte, alguém invoque e cite meus escritos inadc-
quadamente para confirmar seu engano, como, aliás, os entusiastas do Sacin-
mento e do Batismo já começaram a fazer, quero, com este livro, coiifessai-

I perante Deus c o iiiundo todo, ponto por ponto, minha fé, na qual pi-etcndo

224 I i i l c i u iiáa cotiscgiiiii ciiiiiprir scit ~iropásiiodeita lorrna. Soiiiriiiç <icuii<iu-i< ccitii ,i ;i,\iiiii<i
cxii iciiiií>c\ mbrc Jo 6.26~28,proiiridoa çnlic 5 <Ir iioreml>n><!c 1530 a V iIc iiiaiu>ilc I<]?.
0 icrli>riici>iiIlucciii WA 33,lss. As Anriol:,iionrr in !I>;iiigiliii,ii .Ii,li;iiiriic, ilc k4,1r.liiiicliilii~ii.
I \ L I C I ~III:MICI~~~;L
> lpuI>!ir~r I523 c o n ~i ~ n carta x ~ anexa (cf. \VA 12,?3\~.).I~L,,,, ) p ! ~ l > l i c,(#:I
;~~~~
i (Ealilioi~nr>
I . \ i : ~ , i i iii I:i.:!i!~r'iiiiin I < > l i : i r i i ~ i-- do I+vaiicc!lio\cciiiiilii I i > ; i i > ) 1727.
I 27.5 I 1 Iiilii,iliii.iii>.
Da Ceia de Crista - Confissáo

permanecer até minha morte, nela partir deste mundo (que Deus me ajude) e
comwarecer ao tribunal de nosso Senhor Jesus Cristo. E se aleuém.. deoois
. de
minha morte, disser: Se Lutero vivesse hoje, ele entenderia e ensinaria este ou
aquele artigo de lorma diferente, porque, a época, não o havia analisado sufi-
cientemente, etc. - digo agora, uma vez por todas: pela graça de Deus, anali-
sei todos esses artigos reiteradas vezes, com o maior zelo possível, à base das
Escrituras, e os defenderei com a mesma convicção com que aqui defendi o
Sacramentio do Altar. Não estou embriagado nem procedo de modo impruden-
te. Sei muito bem o que estou dizendo; também tenho consciÊncia do que is-
so significa para mim no juizo final de nosso Senhor Jesus Cristo; por isso
nXo admito que alguém tome isso por brincadeira ou conversa tola. Estou fa-
lando sério. Pela graça de Deus, conheço o demônio um bocado. Se é capaz
de perverter e embaralhar a palavra de Deus e as Escrituras, que não haveria
dc fazcr com minhas palavras ou com as de qualquer outra pessoa?
Em piimeiro lugar, creio de lodo o coração no sublime artigo da majesta-
de de Dcus: que Pai, Filho e Espirito Santo, três pessoas distintas, é o verda-
deiro, único, natural e genuíno Deus, criador do céu e da terra, em completa
oposição aos arianos, macedônianos, sabe lia no^^^^ e outras heresias semelhan-
tes, com base em Gn 1, como está sendo sustentado até aqui tanto na Igreja
Romana como também nas Igrejas cristãs do mundo todo.
Em segundo lugar, creio e sei que a Escritura nos ensina que a segunda
pessoa da divindade, o Filho, foi o único a se tornar verdadeiro homem, con-
cebido do Espírito Santo, sem o concurso de um homem, e dado $I luz pela
pura e santa virgem Maria, como de mãe verdadeira e natural, como Lucas o
relata claramente [Lc 1.26ss.I e os profetas o anunciaram. De modo que não
foi o Pai nem o Espírito Santo que se fez homem, como ensinaram alguns he-
reges2". [Creio também] que Deus Filho não assumiu apenas o corpo sem a
alma (como disseram alguns hereges22R),mas inclusive a alma, ou seja, uma
humanide cornpleta e verdadeira, e que nasceu como o verdadeiro descenden-
te ou filho de Abraão prometido, e como filho natural de Maria, verdadeiro
homem sob todos os aspectos e formas, como o sou eu e todos os outros; no
entanto, que veio sem pecado, somente da virgem, pelo Espírito Santo. E

226 Aiiarios: adeptas da douvina de Ário (m. depois de 335). sacerdote (preshilero) eni Nexandria
(I(gito); essa doutrina nsgava a diviridade do Lagos (Cristo), por isso foi coridenada pelo Coii-
iili<i rle Niciia, em 325 (cf. Oliras Seleionadas, v. 3, pp. 337ss.j. - iMUced0rlii1no.s: adeptos
<li! doutrina de Maccdônio (de 342 a 360 bispo dc Constantinoplaj; esta doutrina ncgava a di-
vindndc do Espírito Santo, por isso foi condenada pelo Coiicília de Coiistanrinopla, ciii 381
ícl. 0lm.s Seiecioiiadas, v. 3, pp. 362~s.).- Sabelianos: adeptos da douti-iria de Sahl'liu (dc+
<Ic 21, aproximadamente, em Roma); esta doutrina eiisinava q ~ i cIleui I'ai, Filho e F,spicii<i
S:iiiio iiL, sã<>três pessoas, mas três modos de Dcus se rçuel.ir ("rri,,d;iliaoio"): S;ihl'lii>li>ic*
coiiiiiiig;ido pelo hispa romano Calirto 1 (217-222).
22.1 O\ "iiii><laIisl;is", como S;ihMio. p. en. (cl. t i . :iiiiciioi).
!.?I( Api~liii:iri<i (c;i. ?IO-1~JO), Iiislii, <Ic I.;iorlici.i:i (ihll); \~i:i,li>iiiiici:if i i i r<icirlrii;al;iv:iii;i\ vc/i.\. 1,.
c\., ~ p i l i i< ' i > i i i i l i i > <li, Alc~ittl<l~ii~
íI:j:ili>).CIII 3(1?. ,I licl<>('<>ficilioI/C ( ' o ~ t i t : ~ ~ ~c!llci 1x1
~~~~~ih

10X
I Da Ceia de Cristo - Confissão
I
1 que este homem é verdadeiro Deus, que de Deus e homem se fez uma só eter-
I na pessoa indivisível, de modo que Maria, a santa virgem, é verdadeira mãe,
não somente do homem Cristo, como ensinam os n e s t ~ r i a n o s mas
~ ~ ~do
, Filho
de Deus, como diz Lucas: "O que há de nascer de ti será chamado Filho de
I
Deus" [Lc 1.351. Este é meu Senhor e Senhor de todos, Jesus Cristo,,Filbo
único, verdadeiro e natural de Deus e Maria, verdadeiro Deus e homem.
Creio também que este Filho de Deus e Maria, nosso Senhor Jesus Cristo,
sofreu por nós pobres pecadores, foi crucificado, morto e sepultado, para que
nos livrasse dos pecados, da morte e da ira eterna de Deus, por seu sangue ino-
cente; e que no terceiro dia ressurgiu da morte, subiu ao céu e está sentado a
direita de Deus, Pai todo-poderoso, como Senhor sobre todos os senhores,
Rei sobre todos os reis e todas as criaturas no céu, na terra e debaixo da ter-
ra, sobre morte e vida, pecado e injustiça. Pois confesso e sei comprovar a
partir das Escrituras que todos os homens descendem de um só homem Adão
e dele trazem e herdam, por meio do nascimeiito, a queda, culpa e pecado,
que o mesmo Adão cometeu no paraíso pela maldade do diabo, e que, junta-
mente com ele, todos nascem, vivem e morrem em pecado e seriam culpados
da morte eterna, se Cristo não nos tivesse socorrido, assumindo, como cordei-
rinho inocente, tal culpa e pecado, pagando por nós com seu sofrimento e de-
fendendo-nos ainda diariamente, como fiel e misericordioso Mediador, Salva-
dor, único Sacerdote e Bispo de nossas almas.
Com isso rejeito e condeno como puro engano toda doutrina que engran-
dece nosso livre-arbítrio, posto que se opõe diametralmente a esse auxilio e gra-
ça de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois, visto que, fora de Cristo, a morte e o
pecado são nossos senhores e o diabo, nosso deus e príncipe, não existe força
nem poder, sabedoria ou esperteza com que pudéssemos preparar-nos para a
justiça e a vida ou para procurá-las; pelo contrário, somos forçados à ceguei-
ra e ao cativeiro, propriedade do demônio e do pecado, para fazermos e pen-
sarmos o que agrada a ele e afrontar a Deus e seus ensinamentos.
De modo que repudio tanto os novos quanto os antigos p e l a g i a n o ~ que
~~~,
não querem admitir que o pecado original seja pecado, dizendo que seria ape-
nas uma deficiência ou falha. Visto, porém, que a morte abrange a todos os
homens, o pecado original não pode ser entendido como uma deficiência, mas,

229 Nc~iorianos:adeptos da doutrina de Nestória, condenada lia Cancíiio de Éfeso, em 431 (cf.
Obias Selecioiindar, v. 3, pp. 3 6 7 ~ s . )Ncstório,
. nasc. depois de 381, em Antiaquia (Siria), s a ~
ccrdote em sua cidade natal, de 428 a 431 metropolita de Constantinopla, deposto pelo Conciliii
<Ic431, iii. çii. 451.
230 I'clagianiis: adeptos da doutrina do ascctn britânico FclAgio (rn. depois de 418). Sua douiciri;i
h i conibiilidd por Agostiiilio (354.430). bispo de Hipona, iia ÁMca do Nortç, ç i>mais iiiipoc~.
iiitiic do\ pais laliiios (da ,>ai.ie ocidciital ila Igrcj:! Aliliga), c coii<lçii;i<l;i v:iiios curicilios.
ciiiii clçs < l i <?ari;igi~.";i Anic;, do Nrrlc, em 418, c <Iclikso, i i i i 411. N~~~i,ic~lkigi;,i,or (l>cl:i
s:i;iii<t\ IIOY<~S) SB<>os <IC~IISI>ICSdo l i v ~ ~ ~ a r l ><li,
í t r6li<lcic C I > I T C CICS ~ l c i i i l r>itrlc
i ~ <li, IKclj>r~~~it.
~II!I~~l~~~it~~isli~s.
Da Ceia de Crista - Coiifissào

sim, como pecado gravissimo, como diz S. Paulo: "O salário do pecado é a
morte" [Rm 6.231, e ainda: "O aguilhão da morte é o pecado" [I Co 15.561.
Assim também diz Davi, no Salmo 51.5: "Eu fui concebido em pecado, e mi-
nha mãe me gerou em pecado". Ele não diz: "Minha mãe me concebeu em
pecado", mas: "Eu, eu, eu fui concebido em pecado, e minha mãe me gerou
eni pecado", ou seja, que me formei no ventre materno de semente pecamino-
sa, como o expressa o texto hebraico.
Depois rechaço e condeno como meros sectarisinos e distorções diabólicas
todas as ordens, regras, conventos, fundações e o que mais foi inventado por
homens e instituído além das Escrituras e vinculado a votos e comproinissos,
ainda que neles tenhnin vivido muitos santos e que, como eleitos de Deiis, a
seu tempo foram seduzidos por essas coisas, mas salvos finalmente e libertos
pela fé em Jesus Cristo. Pois, se essas ordens, fundações e seitas são observa-
das e mantidas na convicção de que com tais procedimentos e obras se poderia
ser salvo, escapar do pecado e da morte, isso se coiistitui em blsafêmia públi-
ca e horrenda, e em negação do auxilio e da g r a p exclusiva de nosso úiuco
Salvador e Mediador Jesus Cristo. "Pois não nos foi dado outro nome pelo
qual possamos ser salvos do que este que se chama Jesus Cristo" [At 4.121. É
impossível, portarito, que haja mais salvadores, caminhos ou maneiras para
salvar-se do que a úiuca justiça que é o nosso Senhor Jesus Cristo e qiie uo-
Ia presenteou, colocarido-se diante de Deus conio nosso único trono da graça
(Rm 3.25).
Certamente seria bom que se mantivessem mosteiros e fundações com o
objetivo de neles instruir jovens na palavra de Deus, nas Escrituras e na disci-
plina cristã. Com isso se preparariam e habilitariam homens distintos e capa-
zes para as funções de bispo, pastor e outros serviços da Igreja, como também
para o regime civil, e ainda mullieres educadas e instriiidas que pudessem ad-
ministrar suas casas e educar seus filhos no espírito cristão. No entanto, procu-
rar ali um caminho de salvação é doutrina e crença do diabo (1 Tm I .lss.).
As sagradas ordens e verdadeiras fundações instituidas por Deus são estas
três: o ministério sacerdotal, o estado matrimoiual e a autoridade secular. To-
dos quantos se encontram no ministério pastoral ou a serviço da Palavra en-
contram-se numa ordem e num estado santo, correto, bom e agradável a Deus,
tais como os que pregam, administram os sacramentos, administram a tesoura-
ria comunitária, e tambéin seus auxiliares, os sacristãos, mensageiros ou empre-
gados, etc. Todas essas são atividades manifestamente santas para Deus. Da
mesina forma, quem é pai ou mãe, q u e administra bem sua casa e gera filhos
para servirem a Deus, também isso se constitui em santuário e em obra e or-
dem santa. Igualmente onde filhos e empregados forem obedientes aos pais c
scnhores existe santidade e quem nisso for encontrado é um santo vivo iia ter-
ra. O mesmo vale para o príncipe ou goveruante, juiz, delegados, secretários
tlc estado, escrivães, empregados e empregadas e os que servem aos primeiros,
c ainda todos quc obedecem submissamente. Tudo isso C santidadc c vida s:iii-
lificada dianlc dc I)cos, posto qiic essas três iiistitiiições ou ordeiis estio h;i.;c-
Da Ceia de Crisro - Cuntisr&i
adas na palavra de Deus. O que estiver fundamentado na palavra de Deus l.
necessariamente coisa santa, pois a palavra de Deus é santa e santifica a tudo
quanto a ela estiver ligado ou nela contido.
Acima dessas três instituições ou ordens está somente a instituição univer-
sal do amor cristão, na qual não se serve apenas aquelas três ordens, mas tam-
bém, de uma forma geral, a qualquer necessitado com todo tipo de beneficias,
tais co1110: alimentar famintos. dar de beber aos sedelitos, perdoar aos inimi-
gos, roga- por todos os homens na terra, suportar todo tipo de mal na terra,
etc. Vê, todas essas são obras santas e boas. Mesnio assim, nenhuma dessas
iiistituições se constitui em caminho de salvação; acima de todas elas permane-
ce o caminho único, ou seja, a fé em Jesus Cristo. Pois há uma grande diferen-
ça entre ser santo e ser salvo. Salvos seremos apenas por Cristo. Santos nos
tornamos pelas duas coisas, pela fé e por essas instituições e ordens divinas.
Até os ateus podem ter muita coisa de santo, mas nem por isso são salvos.
Pois Deus quer essas obras de nós para seu louvor e para sua honra; e todos
aqueles que estão salvos na fé em Cristo praticam tais obras e respeitam essas
ordeiis. O que, porém, foi dito a respeito do estado matrimonial também va-
le para as viúvas e as virgens, pois elas fazem parte da casa e da vida familiar,
etc. Se no entanto, essas ordens e instituições diviiias não salvam, que S quc
poderiam realizar os mosteiros e conventos do diabo, que surgiram a margem
da palavrade Deus e aindacontendem e esbravejam contra o caminho único da fé?
Em terceiro lugar, creio no Espírito Santo, que, junto com o Pai e o Filho,
é verdadeiramente Deus e procede do Pai e do Filho desde a eternidade, sen-
do, no entanto, uma pessoa distinta em uma essência e natureza divina. Atra-
vés dele, qual dádiva viva, eterna e divina, todos os crentes são agraciados com
a fé e outros dons espirituais, são ressuscitados dos mortos, libertados dos pe-
cados e feitos alegres e consolados, livres e tranqüilos de coiisciência; pois es-
ta é nossa força: que sentimos em nossos corações esse testemunho do Espíri-
to, que Deus quer ser iiosso Pai, perdoar os pecados e conceder vida eterna.
As três pessoas são um só Deus que a todos nós se entregou totalmente,
com tudo que ele é e tem. O Pai se nos dá com céus e terra e todas as criatu-
ras, para que nos sirvam e nos sejam proveitosas. Essa doação, no entanto,
foi obscurecida e inutilizada pela queda de Adão. Por isso depois também o
Pilho se nos deu, presenteou-110s todas as suas obras, seu sofrimento, sua sabc-
dnria e justiça, reconciliando-lios com o Pai, para que nós, novamente vivos
c justos, reconhecêssemos e tivéssemos o Pai com suas dádivas. Como, pori.iii,
cssa graça não seria de proveito para ninguém se ficasse oculta e não pudcssc
vir até nós, vem o Espírito Santo e também se nos dá completamente. Ele 1105
ciisina a reconhecer a misericórdia de Cristo para conosco, ajuda-nos a rccc-
licr c conservá-la, a utilizar e compartilhá-la proveitosamente, a desenvolvci- c
~>ti~iiiovi.-Ia. Elc o faz de duas maneiras, interior e exteriormente: interiornicii~
te, liela í't e O L I ~ ~ Odons
S espirituais.
llxlcrioriiic~itc,110 entanto, [clc o faz] pclo Evangelho, pelo Batisiiio c pc
l i , S;icrniiiciiio cio All;~r.;iir:ivEs dos qiinih vciii ai6 110sc01110 qlic n1i-nvl.s (li.
Da Ceia de Cristo - Confissáo
três meios, exercitando em nós o sofrimento de Cristo e fazendo com que re-
dunde para a salvação.
Por isso sustento e sei que, tão bem como não há mais de um Evangelho
e Cristo, também não há mais de um Batismo, e que o Batismo é, em si mes-
mo, uma instituição divina, como seu Evangelho também o é. E como o Evan-
gelho não passa a ser falso e incorreto só porque alguns o usam e ensinam er-
radamente ou não crêem nele, assim também o Batismo não é errado e impro-
cedente, ainda que alguns o tenham recebido ou administrado sem fé ou te-
nham abusado dele de outra maneira. Por isso rejeito e condeno decididamen-
te a doutrina dos anabatistas, dona tis ta^^^^ e a todos que costumam rebatizar.
Da mesma forma digo e confesso em relação ao Sacramento do Altar que ali
de fato são comidos e bebidos oralmente o corpo e o sangue em pão e vinho,
ainda que os sacerdotes que o administram ou os comungantes não creiam
ou pratiquem qualquer outro abuso. Pois ele não se baseia em fé ou falta de
fé humana, mas na palavra e instituição divinas. A não ser que mudem pri-
meiro a palavra e a inslituição de Deus, e a interpretem de outra maneira, co-
mo o fazem os atuais inimigos do Sacramento, que, evidentemente, têm ape-
nas pão e vinho, pois também não preservam as palavras e a ordem instituída
por Deus, mas mudaram e perverteram-nas segundo seu próprio juizo.
Além disso creio que haja na terra uma Santa Igreja Cristã, que é a comu-
nidade e a soma ou reunião de todos os cristãos em todo o mundo, a única
noiva de Cristo e seu corpo espiritual, do qual ele também é a única cabeça.
Os bispos e pastores não são cabeças, nem donos, nem noivos da mesma, mas
servidores, amigos e, como sugere a palavra "bispo", supervisores, curadores
e administradores. E essa cristandade não existe somente na Igreja Romana
sob o papa, mas no mundo todo, como anunciaram os profetas: que o Evan-
gelho de Cristo deveria espalhar-se pelo mundo inteiro (Salmo 2.7s.; 19.4).
Assim a cristandade está fisicamente dispersa sob o papa, os turcos, persas,
tártaros e em toda parte, mas está espiritualmente unificada num só Evangelho
e fé, sob uma só cabeça, que é Jesus Cristo. Pois o papado é, sem dúvida, o
verdadeiro regime anticristão dos tempos finais e a real tirania anticristã, que
está sentado no templo de Deus e governa com mandamentos humanos, co-
mo diz Cristo em Mt 24.24 e Paulo em 2 Ts 2.4. Se bem que estão incluídos
nessa abominação os turcos e toda heresia, onde quer que esteja, e das quais
foi profetizado que se instalariam no lugar sagrado; mas não são iguais ao papado.
Nesta cristandade, e onde quer que ela exista, há perdão dos pecados, is-
so é, há um reino da graça e da verdadeira indulgência, pois ali está o Evange-
Ilio, o Batismo e o Sacramento do Altar, nos quais se oferece, é procurado e
i-cccbido o perdão dos pecados. Nela também está Cristo e seu Espírito, c
Ilciis. Fora dessa cristandade não há salvação nem perdão dos pecados, nias
Da Ccia de Cristo - Confissão

morte e condenação eterna; ainda que haja grande aparência de santidade e


muitas boas obras, tudo está perdido. Esse perdão dos pecados, porém, nâo
se recebe de uma só vez por ocasião do Batismo, como ensinam os novacia-
mas tantas vezes quantas dele se precisa, até a morte.
Por essa razão tenho especial apreço pela confissão sigilosa, porque
ali se comunica a cada qual a palavra de Deus e a absolvição dos peca-
dos pessoalmente e em sigilo. E nela cada um poderá obter esse perdão,
ou então, consolo, conselho e orientação, sempre que quiser, de modo
que se constitui em coisa preciosa para as almas, desde que não se impo-
nha essa confissão a ninguém com leis e disposições, mas que seja opcio-
nal conforme as necessidades de cada um, quando e onde quiser fazer
uso dela; da mesma forma como é de livre escolha procurar conselho c
consolo, orientação ou informação, quando e onde a situação e o dese-
jo recomendam; tampouco se deve obrigar a enumerar e confessar todos
os pecados, mas aqueles que mais pesam na consciência, ou os que al-
guém queira confessar, como já escrevi no livrinho sobre a oração233.
No entanto, a indulgência que a igreja papal usa é uma trapaça blasfema.
Não somente porque inventa e institui um perdão especial acima daquele que
é dado em toda a cristandade pelo Evangelho e pelo sacramento, desmerecen-
do e destruindo com isso o perdão universal, mas também porque estabelece
uma satisfação pelo pecado e se fundamenta nas obras dos homens e nos méri-
tos dos santos, quando somente Cristo pode fazer satisfação por nós, e tam-
bém o fez.
Quanto aos mortos, como as Escrituras nada dizem a respeito, creio que
não é pecado pedir, em livre devoção, mais ou menos da seguinte forma: "Nos-
so bom Deus, se o estado das almas é tal que se lhes possa ajudar, tem miseri-
córdia delas". Feito isso uma ou duas vezes, deixa que baste. Porque as vigi-
lias e missas pelas almas e comemorações anuais não têm valor e são merca-
do do diabo. Nas Escrituras nada encontramos [a respeito disso] e também,
nada sobre o purgatório. Evidentemente é uma invenção de duendes. Por isso
não acho necessário acreditar nisso, ainda que, sendo tudo possível a Deus, elc
poderia mandar castigar as almas depois de sua separação do corpo. Contii-

232 Novacianos: seguidores de Novaciano (séc. III), picsbitero e teólogo de Roma, rigorista de <li&
ciplina eclesi~stica.Queria que os cristãos "lapsos" (os que haviam negado sua fé na pei'higiii~
? o aos cristãos) não fossem readmitidos à Igreja. Mais tarde os novacinnos defeiidri;iiii c\si
porisão çrn ielacão a todos os pecados mortais. Para eles não havia mais pcrdào dos ~icaiili~h
;i~ió\c> Batismo. O bkpo romano Cornélio (251-253), o bispo Cipriano (20«/210-258, d i (';liIa
gi,. c oillros bispos do Norte da África reacimitiatn os "lapsos" após a ilevidn pcnili.nci,i. I l i i i
ç<>riçiliiiromano dc 60 bispos cciiidciiou Novaciano. Apesar disso, a Igrcia iiovnci~ii;~ (;iiii~>ilr
,sig<in~.lo: "cAtaros" os puros) diiiiiidiu-sç em l«<l<io Imprrio IUorn:ini>, cxislin<loiiii Oriilcli
ic t i l i i>iic. V, no Oriirilc ;$li i>siç. VII.
! l i 'I. WA 10/~l,375s~.: !:ir> ~ ~ c l ~ ~ ~ lksc ~ ~ ~ l ~l'oil :c ~~ c~r rc . ~ ~:a<>c1 ~~ ~x ,)tigi~~:tl
l ~ p:irigr;~l'c> l1 ~~ ~~ ~CIU:III
l ~ ~
,lc> <Ia ccliqm>ck! '' l l , ~ c c ~i' ~~I v~I c ' ' cru ~ c p ~ t 1 ~ ~ ~ 1 ~ 1 ,
Da Ceia de Cristo - CanCissãa

do, não mandou dizer oii escrevê-lo, por isso também não quer que se acredite
nisso. No entanto, eu conheço o purgatório muito bem. Mas não é apropria-
do falar sobre isso na comiinidade nem tamponco lutar contra ele com doa-
ções e vigilias.
Antes de mim já outros criticaram a invocação dos santos; agrada-me e
também creio que somente Cristo deve ser invocado como nosso Mediador.
As Escrituras são claras e inequívocas a esse respeito. Da invocação dos santos
nada consta, pelo que deve ser considerada duvidosa e não pode ser objeto de fé.
As unções, desde que praticadas conforme Mc 6.13 e Tiago 5.14, eu aceita-
ria; mas que se faça delas um sacraniento, isso não tem base. Pois assim co-
mo eni lugar das vigílias e missas pelas almas se poderia pregar sohre a morte
e a vida eterna, orando, portanto, no enterro e refletindo sobre nosso fim (co-
mo os antigos, ao que parece, fizeram), assim também ficaria bem que se visi-
tasse o doente, para orar com ele e exortá-lo; se, além disso, alguém quiser un-
gir O enfermo com óleo, que seja permitido, em nome de Deus.
Tampouco se deve fazer um sacramento do matrimôiuo e do sacerdócio.
Eles são disposições suficientemente sagradas em si mesmas. Assim como a
penitência outra coisa não é do que exercício e poder do Batismo. De manei-
ra que sobram estes dois sacramentos do Batismo e da Santa Ceia do Senhor,
ao lado do Evangelho, nos quais o Espírito Santo nos oferece, dá e pratica ri-
canieiite o perdão dos pecados.
Considero a maior de todas as abominações a missa rezada e vendida co-
ino um sacrifício ou boa obra; nela se baseiam, hoje eni dia, todos os conven-
tos e mosteiros. Mas, se Deus quiser, eles vão cair. Eu próprio fui um grande,
grave e acintoso pecador; passei e gastei minha juventude de forma abominá-
vel. Meu maior pecado, porém, foi que me fiz um desses monges santos e que,
com missas incontáveis, ao longo de quinze anos, irritei, afligi e torturei meu
querido Senhor. Mas graças e louvor sejam dados eternamente a sua indizível
misericórdia, que ele me tirou dessa abominação e que, diariamente, apesar
de minha ingratidão, me conserva e fortalece na verdadeira fi.
De resto, tenho aconselhado e ainda aconselho a abandoiiar os conventos
e mosteiros juntamente com os votos proferidos, e integrar-se nas verdadeiras
ordens ci.istãs, para escapar dessas abonúiiações das missas e da santidade blas-
lema da castidade, pobreza e obediência, pelas qiiais se pretende alcançar a
salvação. Pois, por mais digno que tenha sido, no inicio da cristandade, con-
servar a virgindade, hoje é abominável que por esse meio se repudie o auxílio
c n graça de Cristo. Pois é possível viver em estado de virgindade, de viuvez c
castidade também sem essas abominações blasfemas.
Imagens, sinos, estola, decorações da igreja, altar, velas e coisas semelhan-
tcs considero livres. Quem quiser pode aboli-las. Quadros bíblicos e boas Iiistó-
rias, iio entanto, considero bastante úteis, mas livres e opciouais, pois iiâo sou
[partidário dos iconoclastas.
I'oi último, creio na ressurreição de todos os mortos no dia dcrradciro.
i;iiito dc hons quanto dc inaiis, p:ira ~ U cada
C qiial icccha Ai, ciii scii coi-lia.
Da Cria de Cristo - Contiiinu
o que inereceu, de modo que os piedosos viverão eternainente com Cristo, c
os maus tenham morte eterna com o diabo e seus anjos. Pois não acompanho
aqueles que ensinam que, no final, tambem os demônios sejam salvos.
Esta é minha fé, porque assim crêem todos os verdadeiros cristãos e assini
nos ensinam as Escrituras. Das coisas que aqui expliquei pouco, meus livros
falam suficientemente, em especial os publicados 110s iiltinios quatro ou ciiico
anos. Peço a todos os corações piedosos que sejam minhas testemunhas e re-
zem por inim que eu permaneça firme nessa fé e nela conclua meus dias. Pois
se (o que Deus perrilita), airida que em tribulação e angústia de morte. venha
a dizer algo diferente, isso de nada valera; quero ter coiifessado p~blic~unente
que isso não será verdade e que terá sido inspiração do diabo. Para tanto nic
assista nieu Senhor J e r u ~Cristo, bendito eternamente. Aiiiém.
Lutero e os antinomistas

A história da Reforma conhcce duas controvérsias antinomistas. Uma era do


tempo de Lutero, e envolvia especialmente João Agrícola, que reinterpretava textos de
Lutero e Melanchthoni. A segunda era posterior a Lutero, mas continuava a envolver
Agrícola, além de outros. Os textos oferecidos aqui dizem respeito ao período de 1537
a 1540. A segunda controvérsia, de 1565, é tratada pela Fórmula de Concórdia em seus
artigos 5 (Da lei e do evangelho) e 6 (Do terceiro uso da lei)'. No entanto, toda a pro-
blemática já está presente na primeira controvérsia de Agrícola com Lutero.
João Agrícola era muito ambicioso e , embora discipulo, amigo e depois colega de
Lutero, procurava superar e mesmo criticar seu mestre. A situação da Universidade de
Wittenberg, onde Lutero ocupava a posição de líder inconteste, se torriou muito tensa
quando Agricola começou a lecionar em 1536, recomendado pelo próprio Lutero. Agrí-
cola se achou com poderes para contestar a liderança de Lutero, mas se deu mal. Em
debates públicos Lutero demonstrou o erro de Agrícola, que teve de recolher suas afir-
maç6es erradas contra a lei. Estava para ser julgado, quando fugiu para Berlim.
João Agricola era mais m o p que Lutero. Nasceu também em Eisleben (ca.
1494-1566), como Lutero. Seu nome era Johann Schneidcr, que se transformou em
"Schnitter" (ceifeiro). Aplicado à agricultura, se tornoii "Agrícola" em latim, como
era uso na época. Estudou a partir de 1515 na Universidade de Wittenberg, onde, com
Melanchthon, recebia a amizade de Lutero. Estudou Medicina por algum tempo e ser-
viu como catequista da juventude ein Wittenberg. Como até 1525 não conseguiu uma
cadeira teológica na Universidade de Wittenberg, aceitou a posição de diretor da nova
cscola latina de Eislehen e desenvolveu uniri liderança como pregador.
Em 1528 Melanchthon havia escrito os "Artigos de ~ i s i t a ç ã o " ~que
, orientavam
11s pastores designados para visitar as igrejas na Saxônia Eleitoral a partir de 1527. Pala-
vras de Lutero sobre a "liberdade cristã" (quando fala da liberdade sob Cristo) e o "es-
~iclliosaxão dos iudeus" (quando se referia à lei civil e cerimonial do povo de Israel),
Iiein como palavras de Lutero e Melanchthon obre o "Evangelho que leva ao arre-
Iicndimento"3" (quando as palavras do sofrimento de Cristo são usadas como lei) haviam

i i;ilipc hIeIancl~thon(1497-1560), hummista e editor de autores çlissicas, foi tambéni autoi de


t1r11a gramática grcga. Professor na Universidade dc Wittcnberg, lago tornou-se amigo dc Liitc-
i<i c adepto do inovimeao da Reforma. Ele é o autor da Confissão de Aomburgo e d a Apologia
i1:i ('oiilissZo de Augsburgo" (Livro de Concórdia, Sinodal e Concuidia, São Lcopoldo ç Porlo
Alcgcc, 1980,pp. 23-304). Em 1521publicouLociCommunes,a primeira teologia sistemática1iila;ili;i.
!,<'r. 1.ivru de Concórdia, Sinodal e Concárdia, SZo Leopoldo e Porto Alegre, pp. 514-518.
I ('I. < i i q i i a Ilclòrnlatoriin~.obras de Filipe Melanchthoii editadas lior Iiciiiricli I(iiist Hiii<liril.
w i l . 26. li]>. %27.
i:,0 iriiiio ":iiiepciidiaic~~ic>" o>rrcspoiiilcao voc;iliiilo i~i>eiiiloili~i i i u fcil,, origiil;>lI ; i l i i i < i . No
C C N I I , I cI<%icxio ~pz~ss;in~c~~ s c ~ ~ q ]por
:$ i r ; ~ c l t ~ , ip<~c!~itc!~liir
~ ~ r c "l~cc~iiC~~ci;i",
sido mal interpretadas como se abolissem a lei. Por isso Melanchthon admoesta a que
sc use a lei para levar ao arrependimento e o Evangelho para dar o perdão. Contrição
e arrependimento são pressupostos da fé. Estes são causados pela pregação da lei, eu-
quanto que a fé vem pela pregação do Evangelho. Para o cristão a lei também serve
de guia e orientação para as boas obras. Logo a lei precisa ser pregada.
Agrícola se viu atingido, pois entendia que a lei serve somente para o ímpio e pa-
ra o tribunal, como entendia ler nos escritos de Lutero. Lutero, Melanchthon e Bugen-
hagen4 conseguram acertar uma fórmula de compromisso com Agrícola em 1528. Mas
- com o romanista Witze15. voltou a atacar a lei. Ouan-
Aerícola. irritado oor um diáloeo
do, em 1536, conseguiu uma cadeira de Teologia em Wittenberg e Lutero o designou
seu substituto enquanto estava na Conferência de ~ s m a l c a l d em
e ~ 1537, Agrícola voltou
a publicar três sermões que, junto com teses anônimas de Agricola ou de seu3 discípu-
los, apontavam erros nos escritos de Lutero e Melanchthon sobre a questão da Ici.
Agora Lutero se irritou. Em setembro de 1537, pregou contra o perigo da libertina-
. quando se adota uma posição antinomista. Embora Agrícola e Lutero aDarante-
gem ~ ~ ~

mente se acertassem, o primeiro voltou a afirmar, numa publicação de teses sobre os


evangelhos do ano eclesiástico, que o arrependimento e o perdão devem ser pregados
somente a base do Evangelho. Como deão da Faculdade de Teologia, Lutero mandou
confiscar as folhas já impressas. Surgiu o "Primeiro Debate Contra os Antinomistas"
em 18 de dezembro de 1537. Agrícola nào compareceu, mas concordou em realizar ou-
tra reunião eni que admitiria seus erros e aceitaria a posição de Lutero. Isto aconteceu
no "Segundo Debate", em 12 de janeiro de 1538. Apesar da reconciliação pública, Agrí-
cola foi considerado insincero. Isto levou ao "Tkrceiro Debate", onde Agricola nova-
mente ficou ausente. Era 6 de setembro de 1538. Em dezembro Agrícola procurou Lute-
ro, com medo de perder seu emprego e salário. Lutero o aconselhou a escrever um tex-
to de revogação de seus escritos, mas Agrícola pediu que Lutero o escrevesse. Ele iria

4 João Bugenhagen(1485-I558), tambkm çognaminado dc D. Pomçr, o pomerano, tornou-se a d e p ~


to de Lulero a partir da leitura do escrito "Do cativeiro babilônico da Igreja" (cf. Obras Selecio-
nadas, vol. 2, pp. 342ss.), indo cstudar Teologia em Wittcnberg (1521), passando a ser paroco
da igreja matriz ria cidade (1523) e professor dcssa universidade (1535). Bugenhagen é o criador
da casa paslaral evangélica, ao contrair matrimônio, em 1522. Intima amiga de Lutcio, caldbo-
rou na tiaducão da Bíblia. foi também seu conseiheiro e confessor. Decisivas são suas contribui-

Fulda, Mogúncia), representante de um catolicisma reformado.


6 Ein 2 de junho de 1536 o papa Paulo 111 convocou um Concilia a realizar-se em maio da ano se..
guinle em Mânlua. A cones luleranas queriam estar preparadas para cima evcntual cotivoca~áo.
O prinçipe eleitor João Fredcriço da S d n i a encarregou a Lurcro a preparar uma enpuriçáo indi-
caiido os artieas de fé nos auais "aderiam sei feitas concessóes oor amor 4 oaz. e os artieos nos

ciiiiii<la<lci.m sua aprovação, cspeci~lmeiitepar intervenção dç Melanchllion (cf. acinia nota I).
AlCiii d i ' i ~ I~l ,~ t c r oiitavii inipcdido dc ~incticipar,><ir niolivo~de docriva. O dociiiiiç~itoV<,i :is\i~
ii;i<Iii c,,iiii, coitVirs;i<ipcvsoal ~iclacii:iii,ii:i <Ici! clúigi>s liri\e#itcs. O Icrli, iiilcgi,il hc ciio>cili;i
riii: I ii'io iIi. <'oiliiiiili:i, Siiii>d;ilc <'i>~iciii<li;i,
Siio I.e<ilii>l<lo
i: l'oili> Alcg!,ir. IiJXO, 111,. 305 341.
assiná-lo. O texto é a carta, em janeiro de 1539, a o Dr. Caspar ~ u t t e l " ,na qual as fra-
ses ofensivas de Agricola são Colocadas junto com uma polêmica forte e mesmo satiri-
ca contra todos os antinomistas.
Agrícola se sentiu ofendido. Isso fez com que colegas o apoiassem e o quisessem
promover a deão d a Faculdade de Artes d a universidade. Somente a objeção de Lute-
ro impediu a concretização desse projeto. Agrícola apelou a o reitor e ao eleitor em 31
de março de 1540. Agora Lutero escreve "Contra o Eislebiano", n o que declarou Agri-
cola como perigoso para a ordem social e élica. O eleitor determinou a permanência
de Agrícola na cidade de Wittenberg até o final d o julgamento, mas, apesar de ter da-
do sua palavra de honra, Agricola fugiu em agosto de 1540 para Berlim. Quando Agri-
cola retirou suas queixas contra Lutero, ele foi, ao menos formalmente, readmitido a
suas funções políticas e teológicas em Wittenberg.
D e ~ o i sda morte de Lutero (em 1546) e d a derrota da Lipa de ~ s m a l c a l d evelo
~ im-
perador; Agrícola serviu de porta-voz dos luteranos temerosos
no ínterim de Áugsbur-
go (15 de ma<o de 1548)9, assim como o próprio Melanchthon também assinou o com-
promisso n o Interim de Leiprig (21 de dezembro de 1548)1°. O antinomismo foi reafir-
mado em 1565, quando Agricola voltou a sustentar que o "o Evangelho prega arrepen-
dimento e perdão dos pecados", negando a validadeda lei para o arrependimento, bem
como para a orientacão da vida cristã.
0s.textos oferecem uma excelente exposição da relação que existe enlre lei e Evan-
gelho. E mostrado como tanto a lei quanto o Evangelho não atingem o pecador sem a
ação d o Espírito Santo. A presença d o Espírito Santo na pessoa também faz a diferen-

7 Caspai Güttzl,pregador em Eisleben, que já em janeiro de 1537 pregara pubiicamcnlc contra


Agricola. Em 1538 publicou um escrito contra ele, sob a titulo: V m Gesetze Wic wir aUe, un-
tei Süiide, Tod, Teuffel, sind gefangen, Widerumb von Gottes gnade, wie wir durch Chnstum
Jliesum sind fedi8 und 10s worden - (A respeita da lei pela qual todas cstarnas cativos sob pe-
cado, morte e diabo, e por outro lado, a respeito da grasa de Deus, pela qual nos libertamos
por meia de Cristo Jesus).
K Depois do resultado pouco satisfatória da Assembléia Nacional de Augsbmgo (19 de navcmbro
de 1530), as coite5 luteranas se viram obrigadas a rcvisar seus tratados de dian~a.De 26 a 31
de dezembro de 1530 deliberaram em Esmalcalde sobre uma liga de defesa. Ponto alto da Liga
toi a assembléia nacional de fevereiro de 1537, quando da aprovação dos Artigos dc Esmalcal-
de (çf. acima n . h). A Liga de Esmdcalde manteve o equililirio politico-religioso por um longo
~pçihdoe garanti" a diuulgasáo pacifica da Reforma. Na entanto tensóes políticas internas leva-
iam a seu enfraquecimento, sendo, finalinente, derrotada no confronto armado com as forças
ininçriais na Guerra de Esmalcalde 11546/47).

iixi, que o imperador Carlos V esperava do Candio de Trento. O imperador nomeou uma ca-
iriishão para preparar o inferjm, Fazendo algumas concessões: Santa Ceia sob ambas as espécies,
m\aiiiento do dero, ligeira lirnitaga dos poderes da papa. Apesar da resistência por parte <I«s
iprincipcs católicos, o imperador conseguiu sua aprovasão em 30 de junlio de 1548, na Assciii-
blL9 Nacional de Augsburgo. Rcpresentanle dos luteranos nessa ocasião foi Agrícola.
10 O Iiitciim dc Auesburzo
I .. iclevaiites
.ti.$ .
" introduzido. No enwnto. Mauricio da Sanoniii., uiri
" foi sendo loea
scrvicos causa imperial, teve a permissão de introduzir alguinas mo<lificac;i>e\
.
. ,>i-c*.
iii> iiiici.ioi dc Aiigsbilrgo. Essas sZo conhecidas cnino Ínterim de I.eip,.ig. Alii.iii;iv;i elc ;i jitslifi.
Contra as Aniinomist;i\
ça entre as funções da lei. Embora a primeira função seja desagradável para os impios.
porque náo têm o Espírito Santo gracioso, a lei evita o caos no mundo. Este é o uso
político, em que Deus apela também para a lei escrita no coração de cada um. Deus
Espírito Santo faz com que esta mesma lei tenha uma função teológica: ela acusa a pes-
soa do pecado contra Deus e suas conseqüências. Dessa forma leva a pessoa a procurar
um salvador. O uso elênctico convence do pecado, e o uso pedagógico conduz à procu-
ra de um salvador. Então, quando o pecador ouve o Evangelho, o Espírito Santo o le-
va a fé que aceita a Cristo como Salvador e lhe perdoa todos os pecados. Lutero enten-
de que então a lei tem uma segunda função: ela já não só acusa, porque Cristo anulou
a acusação. A lei agora também orienta o cristão que quer cumprir a lei gravada ern
seu coração e que foi novamente revelada nos Dez Mandamentos. Este é o uso didáti-
co, tão bem usado por Lutero na explicação dos Dez Mandamentos no Catecismo Menor.
No Primeiro Debate, 7' argumento (contra 24), Lutero afirma:
O Decálogo, porém, está fixado na consciência até agora. Pois se Deus jamais ti-
vesse estabelecido a lei por meio de Moisés, a mente humana, não obstante, tem
naturalmente o conhecimento de que se deve adorar a Deus e amar ao próximo.
(...) Sim, para aqueles que se encontram fora de Cristo, a exigência da lei é triste,
odiosa, impossivel. Para aqueles, porém, que estão sob Cristo, ela começa a ser
agradável, possível nos comecos, embora não nas grandes coisas.
No 6' argumento (contra 4), Lutero diz:
Pois Cristo é o cumprimento da lei; se ele está presente, a lei perde seus poderes,
não pode exercer a ira, porque ele nos libertou dela. Depois traz o Espírito Santo
aos que crêem nele, para que tenham prazer na lei do Senhor, de acordo com SI
1.2, e além disso sáo recriados por meio dele em seu coração, e este Espírito dá a
vontade para que a cumpram.
Alguns acham que o final do Segundo Debate Coiitra os Antinomislas (12 de ja-
neiro de 1538). que se encontra em WA 39/I, 485,16-25, seja um adendo de Melanchthon,
que queria defender um terceiro uso da lei. Diz: "Tertio. Lex est retinenda, ut sciaiir
sancti, quaenam opera requirat Deus, in quibus obedientiam exercere erga Deum pos-
sint" ("Terceiro: A lei deve ser mantida para que os santos saibam que obras Deus re-
! quer, nas quais possam exercitar a obediência a Deus"). Esta critica é gratuita, pois quc
I Lntero afirma o mesmo nos textos acima. Apenas o chama de outro nome. E a seguri-
da parte da explicacão dos mandamentos no Catecismo Menor nada mais é do que {i
terceiro uso da lei sugerido no final do Segundo Dabate contra os antinomistas e praii-
cado nos demais escritos contra os antinomistas.
Na carta ao Dr. Guttel, Lutero conclui que toda luta contra a lei é, na verdadc,
uina luta contra Cristo. Diz: "Disso se conclui que por meio dessa esperteza o diabo
i não quer abolir a lei, mas a Cristo, o cumpridor da lei" (cf. p. 431). Ele sabe que coiii
seus escritos não consegue salvar a Igreja. Isto Cristo mesmo precisa fazer. Diz: "Pois
liao somos nós que podemos preservar a Igreja". E Jesus, "este é o nome do homciii"
(cf. p. 436).
A tradução de Ilson Kayser foi feita a partir dos textos encontrados na WA. I -
As seis séries de teses se encontram em WA 39/I, 345-358. 2 - O Primeiro Dehite ('oii-
11;) os Antinomistas está em WA 39/1, 359-417. 3 - A Carta ao Dr. Caspal- <;ütlcl cs
i;i c111WA 50,468-477.
Primeiro Debate do DF.Martinho Lutero
contra certos antinomistas".
1. A penitência é, de acordo com o testemunho de todos e que seja verda-
deiro, o pesar sobre o pecado associado ao propósito de uma vida melhor.
2. Esse pesar propriamente nada mais é, nem pode ser outra coisa, do que
precisamente sentir e experimentar a lei no coração ou na consciência.
3. Pois certamente muitos ouvem a lei; mas porque não sentem o sentido
nem a força da lei, não sentem pesar nem se arrependem.
4. A primeira parte da penitência, o pesar, procede somente da lei. A ou-
tra parte, o bom propósito, não pode proceder da lei.
5. Pois a pessoa aterrorizada em face do pecado não pode propor-se algo
de bom por forças próprias, visto que sequer o pode quando está tranqüila e segura.
6 . Mas a pessoa confundida e aniquilada pela força do pecado cai no de-
sespero e ódio a Deus, ou desce aos infernos, como diz a Escritura.
7. Por isso há de se ajuntar a lei a promessa ou o Evangelho que devol-
va a paz a consciência aterrorizada e a levante, para que se proponha o bem.
8. A penitência que procede exclusivamente da lei é meia penitência ou seu.
iiiicio, ou penitência por sinédoque, porque carece do bom propósito.
9. E se fica nisso, torna-se penitência de Caim, Saul, Judas e de todos aque-
les que descrêem e desesperam da misericórdia de Deus, isso, dos que se perdemt2.
10. Os sofistast3adotaram a definição da penitência como pesar e propósi-
to, etc. dos pais [da Igreja] e o ensinaram.
11. No entanto, não entenderam as partes da definição: pesar, pecado, pro-
pósito, nem as puderam ensinar.
12. Inventaram que o pesar é um ato provocado pela força do livre-arbi-
trio, que detestaria o pecado sempre que quisesse ou não.
13. Quando, na verdade, esse pesar é um sofrimento ou aflição que a cons-
ciência é coagida a sofrer, quer queira, quer não, quando é atingida pela lei
«u por ela torturada.
14. Inventaram que o pecado é aquilo que é contrário às tradições huma-
nas, raras vezes O que é contra a lei moral.
15. A respeito do pecado original, porém, ponderaram que ele não é se-
quer pecado depois do Batismo, especialmente contra a primeira tábua.
16. Contra essa palha a lei, martelo de Deus (como diz Jeremias 123.291)
qiie destrói rochas, encerra todos os homens sob o pecado.
17. Achavam que bom propósito fosse a resolução tomada no sentido de,
pi>r forças humans, futuramente evitar o pecado,

I1 Sei# \Ccic< ilc lcscs d i M a i t i n l i a I.utera coiifi-a i i s aiitinooiisfas, WA 39/1,345-358. 'li;iilii~.iil:i\


<I<>i>iigiii;il I;iliii<i [>,ir Ihoii K;cysei.
I? ( ' I . 1;n 4.13: 1 Siii 2h.21; 31.4; Mt 27.4s.
I i "SiiIi\i:i\" i ;i iIi~iil:ii;i(.;i<> j:i.iii.iir;i i ~ i i <I'i i i i ~ oiI;i ;ai\ Ii.<ili>t:i>\ caci>l;i$lici,\.
Contra os Antinomis1:is

18. quando, na verdade, segundo o Evangelho, é um impulso do Espírito


Santo de, doravante, detestar o pecado por amor, enquanto, entrementes, o
pecado ainda continua se rebelando com força na carne.
19. Essa sua ignorância não admira, visto que não usavam a Bíblia e, por-
1
tanto, não puderam saber nem o que é lei, nem o que é Evangelho.
20. Evidentemente estavam tão aprofundados em preceitos e mandameti-
tos humanos que apenas em sonhos faziam juizo das coisas santas e divinas.
21. Contra tais mestres inúteis e do desespero o Evangelho começou a cn-
s i n a que a penitência não precisa ser necessariamente apenas desespero,
22. mas que os arrependidos devem tomar confiança, e desse modo odiar
o pecado a partir do amor a Deus, o que é um verdadeiro bom propósito.
23. Alguns, que não consideram as razões desse modo de falar ou o assuii-
to em questão, achavam que isso seria dito contra a lei de Deus.
24. E ensinam perniciosamente que a lei de Deus simplesmente deveria scr
eliminada da Igreja, o que é blasfemo e sacrílego.
25. Porque, segundo a tradição de toda a Escritura, a penitência deve ser
começada a partir da lei, o que também demonstram a ordem desse assunto
em si e a experiência.
26. Ela diz: "Sejam lançados ao inferno todos os que se esquecem de
Deus", e: "Põe sobre eles um legislador, Senhor, para que os homens saibam,
etc." [SI 9.17,20].
27. "Enche-lhes o rosto de ignomínia, para que busquem teu nome, Sc-
nhor" [SI 83.161. E: "O pecado está enredado nas obras de suas próprias
mãos" [Sl 9.16b].14
28. É a ordem das coisas que morte e pecado estão na natureza antes dc
vida e justiça.
29. Pois não estamos destinados a sermos entregues ao pecado e a morte
como justos ou vivos, mas, como pecadores desde já e mortos por Adão,
deveremos ser justificados e vivificados por Cristo.
I 30. Por essa razão deve-se ensinar primeiramente sobre Adão (isso é, so-
bre pecado e morte), que é figura do Cristo vindouroL5,do qual se deve ensi-

l
I
nar depois.
31. O pecado e a morte, porém, não devem ser expostos pela palavra da
graça e da consolação, mas pela lei.
32. A experiência é que Adão é argüido primeiramente como transgrcssor
da lei, e depois é levantado pela prometida semente da mulherr6.
33. Também Davi é primeiramente morto pela lei, quando Natã lhe dissc:
"Xi és aquele, etc.". Depois é preservado pelo Evangelho, ao dizer: "Nào
iiiorrerás, etc." [2 Sm 12.7,13].
34. Depois de primeiro prostrado pela lei, Paulo ouve: "Por que me perse-
gues?" Depois é vivificado pelo Evangelho: "Levanta-te, etc." [At 9.4,6].
35. E o próprio Cristo diz em Mc 1.15: "Arrepeiidei-vos e crede no Evan-
gelho, pois está próximo o reino de Deus".
36. Diz também: "Em seu nome tinha que ser pregada a penitência e a re-
nussão dos pecados" [Lc 24.471.
37. Assim também o Espírito primeiro convence o mundo d o pecado'' pa-
ra ensinar a fé em Cristo, isso é, a remissão dos pecados.
38. Na Epístola aos Romanos, Paulo preserva esse método, ensinando pri-
meiro que todos são pecadores a serem justificados por Cristo.
39. A mesma coisa testemunha Lucas em Atos [15.11]: que Paulo ensinou
que niiigiiém pode ser justificado, neni judeus nein gentios, a não ser por meio
de Cristo. E o que mais segue.

Segundo Debate do Dr. Martinho Lutero


contra os antinomistas.
I. A lei não é apenas desnecessária para a justificação, mas totalmente
inútil e inteiramente impossivel.
2. Aqueles, porém, que guardam a lei na opinião de serem jiistificados
por ela, para estes ela se torna também um veneno e uma peste para a j~istificação.
3. Quando se trata da justificação, não há expressões suficientes contra a
impotència da lei e a pestilentissima confiança na lei.
4. Pois a lei não foi dada para justificar ou vivificar, ou para ajudar eiii
algo para a justiça,
5 . mas para que aponte o pecado e provoque a irai8, ou seja, acuse a cons-
ciência.
6. A morte não é infligida para que vivamos por meio dela, ranipouco o
pecado é inato para que por meio dele sejanios inocentes.
7. Igualmente a lei não é proposta para nos tornarmos justos por meio
dela. visto que ela não pode oferecer nem a justiça nem a vida.
8. Em resumo, quanto o céu dista da terra, tanto deve-se manter a lei se-
parada da justificação.
9. No assunto da justificação nada se deve ensinar, dizer, cogitar a não
zcr unicamente a palavra da graça que 110s foi oferecida em Cristo.
10. Disso, porém, não se conclui qiie a lei deve ser abolida ou afastada
LI:I< pregaçoes da Igreja.
11. E tanto mais necessário ensiná-la e insistir nela justamente porque não
i iicces~áriae também inipossivel para a salva~ão,

1'1 I 'I. .Iii I0.X. IH ('1. l<in 3.211: 4.15.

3x2
C o m a os Antinomi,i;is

12. para que o homem soberbo e presunçoso em suas forças aprenda qiic
não pode ser justificado pela lei.
13. Pois o pecado e. a morte devem ser inostrados o mais possivel não por-
que Fossem necessários para a vida e a inocência,
14. mas para que a pessoa reconheça sua injustiça e perdição, e assini ve-
nha a humilhar-se.
15. Quando o pecado é ignorado, presume-se uma inocência falsa, como
se pode perceber entre os gentios e posteriormente entre os pelagiano~'~.
16. Quando a morte é ignorada, presume-se que vida é esta vida e que não
existe outra no futuro.
17. Visto, porém, que a lei ensina ainbas as coisas, fica suficientementc
claro que a lei é de máxima necessidade e utilidade.
18. Tudo que aponta o pecado, a ira ou a morte, exerce o ofício da lei.
aconteça isso no Antigo ou no Novo Testaniento.
19. Pois revelar o pecado não é outra coisa, nem pode ser outra coisa,
do que a lei, ou o propriíssimo efeito ou força da lei.
20. Lei e revelação do pecado. ou revelação da ira, são termos intercam-
hiáveis, como homem e criatura capaz de rir ou criatura racional.
21. Anular a lei e conservar a revelação da ira é a mesma coisa que negar
que Pedro é pessoa humana, afirmando, ao mesmo tempo, que é uma criatu-
ra capaz de rir ou uma criatura racional.
22. Sabedoria semelhante é anular a lei e, não obstante, ensinar que o pe-
cado tem que ser perdoado.
23. Enquanto a Escritura do Espírito Santo diz que sem a lei o pecado es-
tá morto20, e que onde não há lei não há transgressãoz1.
24. De forma que é impossível entender que há pecado sem a lei, seja
pela lei escrita, seja pela inscrita [no coração].
25. Depois segue: Como não existe pecado (depois de anulada a lei), tain-
bém não há Cristo que salve do pecado. Pois assim diz o próprio Cristo: "Os
s9os não precisam de médico" [Mt 9.121.
26. Visto, porém, que Cristo não veio para dissolver mas para cuinprir a
lei2', ele veio em vão, se não há lei que deve ser cumprida em nós.
27. E visto que a lei de Deus requer nossa obediência a Deus, esses subvcr-
sores da lei anulam também a obediência a Deus.

I'JPe1a~'anos:hercgcs da Igreja Antiga, seguidores da doutrina do monge brctão Pelagio (m. :ipii\
418). Negava a cativeiro do arbítrio humano, a perversão da natureza humana e o pecado o i igil
n;il. Pelágio cnsinava que Cristo não cstá em oposiqãu a Moisés, nem o Evangelho mi opoiii.;ii>
3 Ici. O Deus justo dá os mandamentos porque o Iioaicrn é capar de cumpri-los, ci>nccdc~i<li,~
Ilic a poribilidade para a bem O~ossibilitarborii), ou seja, liberdade da arbítrio. Pecado iiài, i
;ilxu inocnie A ri;\tiirira, mas ato livic. Pclágio substitui o termo "pecado originei" pnr " c i h i i i
c i # ~ i i i a ~de
iuc ixc.$riiiii<>u> ã oA<lãoM.
o' . < I'. I<,,, 7.8.
!I ( ' I . IKu 4.15.
!!.('I, h11 7.17.
Contra os Antinomistas

28. Disso se evidencia que, por meio desses seus órgãos, não obstante,
Satanás ensina verbalmente o pecado, a penitência e a Cristo.
29. Na realidade, porém, anula a Cristo, a penitência, o pecado e toda a
Escritura, juntamente com o próprio Deus, seu autor.
30. E cogita estabelecer a pestilentissima segurança, o desprezo de Deus,
a impunidade e a perpétua impenitência, mais que o próprio E p i ~ u r o ~ ~ .
31. Isso o atesta sua afirmação no sentido de que a lei argui o pecado, in-
clusive sem o Espírito Santo, somente para a condenação.
32. Aqui se evidencia que eles querem que se ensine um pecado que não
condene, que salve, talvez também sem Cristo.
33. Pois se o pecado não condena, resta apenas que Cristo não nos redi-
miu do pecado condenador, nem da ira de Deus.
34. Pois o pecado que não condena é um pecado melhor que a própria
justiça e a vida.
35. Pois nada é mais bem-aventurado do que ter pecado que não conde-
na, isso é, pecado que não existe.
36. Por isso, uma vez removida a lei, somos salvos do pecado de tal for-
ma que não mais necessitamos de Cristo como Salvador, etc.
37. Mas também é falso que a lei argui o pecado sem o Espírito Santo,
visto que a lei foi escrita pelo dedo de Deus.
38. E toda a verdade, onde quer que esteja, vem do Espírito Santo, e proi-
bir a lei é proibir a verdade de Deus.
39. Anular a lei por causa dessa sua função arguidora do pecado para a
condenação é uma loucura evidente.
40. Pois esta é a força do pecado, como diz Paulo3, que o pecado é o
aguilhão da morte, e a lei é a força do pecado.
41. Comamos e bebamos, pois, e cantemos sob esses mestres: que morra
quem se preocupa com o amanhã.
42. Pois a lei, força do pecado, está anulada, e conseqüentemente perece-
ram também a morte e o inferno, depois de anulada a força do pecado.
43. Não por meio do sangue do Filho de Deus, que guardou e cumpriu a
lei, mas porque nós negamos que existe a lei de Deus que se deva cumprir.
44. Todas as suas afirmacões sobre o pecado, a penitência, sobre Cristo e
a remissão são mentiras impuríssimas e digníssimas do próprio Satanás.
45. A lei como era antes de Cristo na verdade nos acusava, mas sob Cris-
to ela está aplacada pela remissão dos pecados, e deve agora ser cumprida pelo
Espírito.

21 Ej~iciiro:filósofo grego (341-272 a.C.) de Samos; ensinou que o verdadeiro p r a c r 6 o da cspiri-


I«, do equilihrio de corpo e alma. Este somente é accssivel ao homem que olha o ~aasadocom
;ilcgria e o fuluro com csperanw. Epiçuro foi injustamente acusado por pais da Igreja cotiio
[irc,p;ig;i<loiilo gozo dcsciifi-çado, imagcrn qiic, ar>< ~ iIpai'ççç,
ç ianibém I.iiier<i litilia clelc.
24 ('I'. I ( ' < i 15.56.
Contra OS Antinomirtn~

46. Assim continuará cumprido depois de Cristo, na vida futura, o que a


lei exigiu entrementes, porque então a criatura será nova.
47. Por essa razão não será anulada eternamente, mas permanecerá, ou
para ser cumprida nos condenados, ou para estar cumprida nos bem-aventurados.
48. Esses discípulos de Satanás, porém, parecem pensar que a lei é tempo-
rária, tendo cessado depois de Cristo, como a circuncisão.

Terceiro Debate do Dr. Martinho Lutero.

1. A penitência dos papistas, turcos, judeus e de todos os descrentes c


hipócritas é semelhante em tudo.
2. Ela consiste em sentir pesar e fazer satisfação por algum ou alguns peca-
dos atuais, estando depois seguros em relação aos demais pecados e ao peca-
do original.
3. Mas esta sua penitência é parcial e temporária, somente dizendo respei-
to a alguns pecados e a algumas áreas da vida.
4. São obrigados a pensar dessa forma os que de algum modo entendem
que o pecado original é a corrupção e perdição de toda a natureza.
5. A penitência dos crentes em Cristo vai além dos pecados atuais, é perpé-
tua, dura a vida toda, até a morte.
6. Pois lhes compete detestar a doença ou o pecado da natureza e odiá-los
até a morte.
7. Pois é com razão que Cristo diz a todos os seus: "Arrependei-vos" [Mt
4.171, querendo que toda a vida dos seus fosse um arrependimento.
8. Pois o pecado em nossa carne dura durante todo o tempo da vida, e lu-
ta contra o Espírito adverso a elez5.
9. Por isso todas as obras depois da justificação nada mais são do que pe-
nitência ou bom propósito contra o pecado.
10. Pois não se faz outra coisa do que expurgar o pecado denunciado pc-
la lei e perdoado em Cristo.
11. Foi tarefa dos filhos de Israel, depois da conquista da terra de Canaâ,
expulsar os jebuseus que moravam em seu território2h;
12. e não foi mais fácil expulsar do território os jubeseus remanescenics
do que invadi-lo no principio;
13. assim não é muito menos trabalhoso combater o pecado restante por
iiieio de uma penitência constante do que no começo iniciar a detestá-lo.
14. Por essa razão os santos e justos (quando Deus os exercita ~Icss:~
inaneira por meio da lei) muitas vezes estão tristes e deploram os pecados,
Contra os Anlinomistas
15. embora estejam na graça de Deus e devessem alegrar-se, porque os pe-
cados estão perdoados.
16. Sim, eles n3o apresentniii nenhum pecado atual, e, não obstante, cla-
mam miseravelmente e imploram a graça de Deus, como se pode ver nos salmos.
17. A Oração Dominical, legada pelo próprio Senhor a seus santos e fiéis,
6 uina parte da penitência e um ensinamento cheio de lei.
18. Pois quem a ora de verdade confessa com a própria boca que peca
contra a lei e que se penitencia.
19. Pois quem pede que o nome de Deus seja santificado, esse confessa
que o nome de Deus ainda não está sendo santificado de modo perfeito.
20. E quem pede que o reino de Deus venha, esse confessa que até agora
ainda está preso em parte no reino de Satanás, contrário ao reino de Deus.
21. Quem pede que se faça a vontade de Deus, esse confessa que em gran-
de parte é desobediente a vontade de Deus e que se arrepende disso.
22. Mas a lei de Deus ensina que o nome de Deus deve ser santificado;
quem ora essa lei confessa que não a cumpriu.
23. E quem detesta o reino de Satanás que remanesce nele, atesta ao mes-
mo tempo que não cumpriu a lei, precipuamente a primeira tábua.
24. E quem ora para que a vontade de Deus se Faça nele, atesta qiie não
é obediente a vontade de Deus.
25. No entanto, essa oração deve ser orada pela Igreja toda até o fim do
mundo e por qualquer santo até a morte.
26. Pois a Igreja e santa e reconhece que tem pecado e que precisa fazer
penitência permanentemente.
27. Por esse motivo a própria Oração Domiiical ensina que a lei existe an-
tes, soh e depois do Evangelho e que a penitência deve começar a partir dela.
28. Pois quem pede algo confessa primeiramente que iião possui o que pe-
de, e que espera que isso lhe seja concedido.
29. No entanto, é a lei que primeiro nos mostra o que não temos e o que,
nZo obstante, é preciso ter.
30. Daí se segue que esses inimigos da lei também deveni acabar com a
Oração Dominical, porquanto anulam a lei.
31. Sim, eles têm que tirar também a maior parte do discurso do próprio
Cristo da história evangélica.
32. Pois [Cristo] não apenas cita a lei de Moisés em Mt 5.17ss.. mas tam-
bErn a explica perfeitamente, e ensina que ela não deve ser abolida.
33. E ao ensinw ao fariseu o maior e primeiro mandamento da lei, confir-
iiin a lei, dizendo: "F'ue isto, e viverás" [Lc 10.281.
34. Tambéiii ele censura, acusa, ameaça, aterroriza por todo o Evangelhoz7
c cxerce semelhantes ofícios da lei.
35. De modo que jamais se ouviu falar de pessoas mais impudicas, e nem
as haverá no futuro, do que estas que ensinam que se deve anular a lei.
36. Pois essas míseras pessoas têm vergonha de ensinar e fazer o que o
próprio Senhor fazia e ensinava.
37. Adniitamos o caso que o pecado possa ser reconhecido de outra for-
nia do que pela lei - o que, não obstante, é impossível.
38. Por que seria necessário rejeitar a lei se ela tem o mesmo efeito que
se poderia obter de outro modo, ou seja, o reconhecimento do pecado?
39. E embora a lei pudesse ser eliminada de acordo com a gramática ou
tomando o vocábulo materialmente (deve ser necessariamente isso que eles pensam),
40. quem irá abolir aquela [lei] viva, inscrita nos corações e o manuscrit«
surgido por decreto, contrário a nós, o que é a mesma coisa que a lei de Moisés? 2X

Quarto Debate do Dr. Martinho Lutero.


1. Jamais houve na Igreja doutrina mais pestilenta contra a peiutência (ex-
cetuando a dos saduceus e epicureusZ9que a dos papistas.
2. Ela tolheu a penitência intima e verdadeira, não permitindo que a remis-
são dos pecados fosse certa.
3. Pois ensinaram que a pessoa (inclusive a penitente) deve permanecer
na incerteza quanto a graça de Deus e a remissão dos pecados.
4. Mas remeteram a núsera pessoa ao mérito de sua contricão, confissiio,
satisFa$ão e finalmente ao purgatório.
5 . Não obstante, não definiram medida ou fim da coiitrição, confissão,
satisfação, iiem do purgatório.
6. Mas por que irias penitenciar-te, se hás de ficar na incerteza se teus pe-
cados serão retidos ou perdoados?
7. Desta maneira os impenitentes e seguros não são ensinados no sentido
de iniciarem a penitência.
8. Mas os aterrorizados e os que começaram a arrepender-se são obriga-
dos a cairem por fim na impenitência.
9. Para tais arrependidos Cristo não tem nenhum valor, porque são coagi-
dos a descrer que Cristo morreu por seus pecados.
10. A impenitência final e a dos desesperados também é mais perigosa qiic
a irnpenitência dos seguros.
11. A impenitêiicia dos seguros é desprezo de Deus, a impenitêiicia Filial 6
hlnsfêmia contra o Espírito Santo.
12. Portanto, deve-se fugir da doutrina da penitência dos papistas coiiio
ilo ~r01irio inlcr~ioo11 do diabo.
13. Muito mais, porem, se deve tomar precau~ãodaqueles que 11.5~dcisiiiii
I I C I I ~ I U I I I~icliitfncia
~ na Igreja.
Contra os Antinomirias
-

14. Pois os que negam que se deve ensinar a lei simplesmente e de fato
não querem que exista qualquer penitência.
15. De nada serve a argumentação: o que não é necessário para a jostifica-
ção nem i10 principio, nem no meio, nem no fim, não deve ser ensinado, etc.
16. Em primeiro lugar, se perguntares o que significam estas bombásti-
cas palavras "princípio, meio e fim", descobrirás que nem eles o sabem.
17. É como se quisesses demonstrar que o fato de o ser humano estar riior-
to em pecado não é necessário para a justificação, nem no principio, neiii no
meio, nem no fini. Portanto, isso não deve ser ensinado.
18. Honrar os pais, viver castamente, abster-se de homicídios, adultério e
furtos não é necessário para a justificação. Portanto, tais coisas não devem
ser ensinadas.
19. A obrigação da pessoa de servir na vida pública e na economia não é
necessária para a justificação. Portanto, a lei a este respeito deve ser abolida.
20. Em tempos passados os sofistas30chamavam tais conclusões zombetei-
ras de "do báculo ao ãng~lo"~'.
21. Se o silogismo quer que isso não seja ensinado como necessário para
a justificação, que novidade está sendo alegada?
22. Disso não segue que a lei deve ser abolida ou não ensinada, embora
nada contribua para a justificação.
23. Na [premissa] menor se alega erroneamente a experiência de Paulo e
Barnabé, por meio de cujo ministério os gentios são justificados sem lei.
24. Pois Paulo demonstra que todos são pecadores (o que é o oficio da
lei) ao ensinar que devem ser justificados em Cristo.
25. A pessoa a ser justificada é pecadora de qualquer maneira, e ainda
não justa: e somente é convencida de ser pecadora a partir da lei.
26. Paulo deve ser entendido em toda parte "sem a lei", como o expoe
corretamelite Agostinho, com o auxilio da lei; a isso sempre seguimos.
27. Pois a lei não ajuda para seu próprio cumprimento. Mas requer seu
cumprimento.
28. E o requer inclusive com tal severidade, como testemunha o próprio
Cristo, que não deixará impune nem mesmo uma palavra inútil.
29. E de acordo com o testemunho do mesmo Senhor, não pode passar
sequer um i ou um til da lei, até que tudo se cuniprai2.
30. Em suma, caso Cristo não for contraposto à lei exatora, o débito tem
que ser pago até o último centavo3'.
31. A graça e a remissão dos pecados não nos tornam seguros contra o
pccado, a morte e a lei, como se eles nada mais fossem,

10 SoFisi;~~:cT acima nota 13.


?I I~nprissàuque indica "caiiclusZo iinconsistçniç".
12 ('I' MI TIX.
13 ('r, M I T.26.

X X
Contra os Antinomistas
32. mas tornam-nos mais diligentes e solícitos, para que vengamos sobre
os mesmos diariamente por meio de Cristo, o Salvador.
33. Pois a lei não está conosco por causa de uma necessidade nossa, mas
de fato, contra nossa vontade, antes de nossa justificação, no começo, no
meio, no fim e depois dela.
34. Pois ela quer ser ensinada, conhecida, e reinar desde o inicio do peca-
do, perpetrado por Adão, até que seja cumprida por meio de Cristo, o Vencedor.
35. Porém somente a fé em Cristo justifica, somente ela cumpre a lei, so-
mente ela faz o bem sem a lei.
36. Pois somente ela recebe o perdão dos pecados e faz boas obras espon-
taneamente por meio do amor.
37. E verdade que depois da justificação seguem boas obras espontanea-
meiite, sem a lei, ou seja, sem awilio ou coação da lei.
38. Em resumo: a lei não é útil nem necessária para a justificação, nem
para qualquer boa obra, muito menos para a salvação.
39. Mas ao contrário, a justificação, boas obras e a salvaçZo são necessá-
rias para o cumprimento da lei.
40. "Pois Cristo veio para salvar o que estava perdido" [Lc 19.101 e "pa-
ra a restituição de todas as coisas", como diz Pedro [At 3.211.
41. Por isso a lei não é abolida por meio de Cristo, mas é restabelecida,
para que Adão se torne tal qual era, e até nielhor.

Quinto Debate do Dr. Martinho Lutero contra os Antinomistas.


No ano de 1538, no mês de setembro.

1. "A lei domina sobre o homem enquanto ele vive." [Rm 7.1.)
2. Mas ele é libertado da lei quando morre.
3. Portanto é necessário que o ser humano morra, se quiser ser libertado da lei.
4. Pois se a lei domina sobre o homem enquanto ele vive, também o peca-
do domina [sobre ele] enquanto vive.
5. Por isso i preciso que o ser humano morra, se quiser livrar-se do pecado.
6. "Pois a força do pecado é a lei, e o aguilhão da morte e o pecado."
[I Co 15.56.1
7. Estas três coisas: a lei, o pecado e a morte são inseparáveis.
8. Por isso, na medida em que a morte ainda está no ser lininano, cstzo
nele também o pecado e a lei.
9. Recebemos a lei fora de Cristo, isso é, a letra ainda não cumprida, iii;is
qiic, não obstante, deve, necessariamente, ser cumprida por nós.
10. Na verdade, em Cristo a lei está cumprida, o pecado está ariiqiiil:ido.
;i iiioi-ic dcstruída.
I I . Isso sigiiifica: sc somos cruciliciidlos c niorlos coin <:i-islopcl;i i?. isl:is
v<iis;i\s2i1 i;iiiiIi6iii vcrdadciras c111iií~s.
7x0
Contra os Antinornistas
12. Se, porém, vivemos, ainda não estamos em Cristo, mas vivemos fora
de Cristo, sob a lei, o pecado e a morte.
13. O próprio assunto e a experiência, porém, atestam que os próprios jus-
tos são entregues a morte diariamente.
14. Por isso é necessário que eles também estejam ainda sob a lei e o peca-
do, contanto que estão sob a morte.
15:São totalmente inexperientes e enganadores das mentes os que querem
abolir a lei da Igreja.
16. Pois não é somente estulto e ímpio, mas totalmente impossivel.
17. Pois se queres abolir a lei, é preciso que, simultaneamente, suprimas
também o pecado e a morte.
18. Pois a morte e o pecado existem por meio da lei, como diz Paulo: "A
lei mata" [2 Co 3.61, e: " a força do pecado é a lei" [I Co 15.161.
19. Posto que vês que os justos morrem diariamente, quanta estultícia é
acreditar que eles estão sem lei.
20. Pois se não fosse a lei, não haveria pecado nem morte.
21. Portanto, deveriam primeiramente provar que os justos estão totalmen-
te livres de todo o pecado e da morte.
22. Ou que eles já não vivem na carne, mas que foram tirados do mundo.
23. Então se ensinaria corretamente que para eles também a lei estaria
totalmente abolida e que r150 deveria ser ensinada de modo algum.
24. Visto, porém, que não podem provar isso, mas que a experiência Ihes
opõe o contrário aos olhos,
25. é extraordinário o atrevimento destes mestres que querem abolir a lei
da Igreja.
26. Maior ainda, porém, é seu atrevimento - melhor, sua insanidade!
- de que a lei deve ser abolida também entre os impios e que não deve ser

cnsinada a eles.
27. Mesmo se seu pecado e morte, isso é, a lei, não devesse ser anuncia-
da aos santos e justos, aos quais também não foi dada,
28. quanto mais ela deve ser anunciada aos impios e maus, aos quais ela
foi dada propriamente e de modo especial.
29. Pois, se pressupõem que sua Igreja ou seus ouvintes sejam simplesmen-
ie todos piedosos e cristãos sem lei,
30. fica evidente que estão totalmente loucos e não sabem o que dizem
ou afirmam.
31. Pois não é outra coisa do que acreditar que todos os seus ouvintes ti-
vessem sido tirados desta vida.
32. Mas acreditar algo assim é a mesma coisa que imaginar para si pró-
prio que esteja presenciando o desenvolvimento de um espetáculonum palco vazio.
33. Pois neste mundo sempre haverá justos que vivem na carne, como tam-
IiCin maus em maior número, misturados com eles.
34. Portanto, assim como a lei foi dada, sem dúvida, para ser ciisinad;~c
Contra os AntinoMstas
não para ser abolida, para que, por meio dela, reconheçam o pecado e a mor-
te ou a ira de Deus,
35. assim ela é dada aos piedosos, contanto que ainda não morreram e ain-
da vivem na carne.
36. No Cristo ressuscitado certamente não há pecado, nem morte, nem
lei, aos quais estava sujeito quando vivo.
37. Mas o mesmo Cristo ainda não foi perfeitamente ressuscitado em
seus fiéis, sim, começa a ressuscitar da morte como primícia entre eles.
38. Entre os ímpios, no entanto, que estão misturados na Igreja em maior
iiúmero, ainda está totdinente morto, sim, neles ele é absoliitamente nada.
39. Estes se encontram simplesmente sob a lei, e precisam ser, se possível,
abalados por desgraça corporal.
40. Na medida em que Cristo ressuscitou entre nós, estamos livres da lei,
do pecado e da morte.
41. Na medida, todavia, em que não ressuscitou em nós, encontramo-nos
sob a lei, o pecado e a morte.
42. Por isso a lei deve ser ensinada indistintamente (como também o
Evangelho) tanto aos piedosos quanto aos ímpios.
43. Aos ímpios para que, abalados, reconheçam seu pecado, a morte e a
inevitável ira de Deus, por meio do que devem ser levados a se humilharem.
44. Aos piedosos, para que sejam admoestados a crucificarem sua carne
com as concupiscências e vícios, para não se tornarem seguros34.
45. Pois a segurança acaba com a fé e o temor de Deus, e torna as últi-
mas coisas piores do que as primeira^'^.
46. Observa-se com suficiente clareza que os antinomistas são da opinião
de que o pecado foi abolido formalmente e filosoficamente ou juridicamente
por meio de Cristo,
47. e que eles ignoram totalmente que ele foi tirado somente por atribui-
ção e pelo perdão de Deus que se compadece.
48. Pois o pecado foi tirado, a lei abolida, a morte destruida de modo rela-
tivo, não formal ou substancialmente.
49. E tudo isso por causa de Cristo, nesta vida, "até que cheguemos ao
estado do liomem perfeito, na plenitude de C r i ~ t o " ~ ~ .
50. Sabemos, e eles o aprenderam de nós, que Cristo nos foi feito sa-
cramento e exemplo.
51. Esse belíssimo pensamento não é nosso, muito menos deles, inas dc
Agostinho37.
52. Com isso ele quer dizer que com seu simples Cristo está em harmonia
com nosso duolo.. . fazendo uma unidade ~ e r f e i t a ~ ~ .
53. No entanto, nem o autor [desse pensamento], Agostinho, nem nós,
seus discípulos, acrescentamos a conclusão de que, por isso, a lei devesse ser abolida.
54. Eles a acrescentaram de sua cabeça, para que parecessem novos e
mais ilustres autores do que os outros, sob a inspiração do mestre diabo.
55. A Escritura nos transmite quatro maneiras de anunciar e instruir o ho-
mem para a salvação, derivados de quatro obras de Deus.
56. Pois Deus intimida com ameaças, consola com promessas, admoesta
com aflições, atrai com benefícios.
57. Essas quatro maneiras, porém, não anulam a lei quando são ensina-
das, mas a estabilizam.
58. "A bondade de Deus te conduz a penitência" [Rm 2.41, isso é, para
que reconheças que a lei é a força do pecado".
59. E a lei que intimida e mata faz isso para chamar a atenção para si pró-
pria ou obrigar ao conhecimento próprio.
60. Disso esses fanáticos se aproveitam para abolir o próprio Cristo por
meio do sacramento e exemplo de Cristo.
61. Pois, se a lei é abolida, ignora-se o que Cristo é ou o que fez quando
cumpriu a lei por nós.
62. Pois, se quero reconhecer o cumprimento da lei, isso é, a Cristo, é pre-
ciso saber o que é a lei e seu cumprimento.
63. Isso n2o pode ser ensinado, a não ser que se ensine que a lei não será
cumprida em nós, e que por isso somos réus do pecado e da morte.
64. Se isso for ensinado, aprendemos que todos nós somos devedores da
lei e filhos da ira;
65. os ímpios simplesmente segundo a carne e o espírito, ou totalmente;
os piedosos, porém, enquanto estão e vivem na carne.
66. Portanto, a doutrina da lei é necessária na Igreja, e deve ser mantida
em sua totalidade, pois sem a mesma não se pode manter a Cristo.
67. Pois, que queres reter de Cristo quando a lei, que ele cumpriu, está
abolida e tu não sabes o que ele cumpriu?
68. Finalmente, a lei foi cumprida em Cristo de tal maneira que não a po-
des ensinar desse modo, a não ser que ensines também que a lei não foi cum-
prida em nós.
69. Em resumo, abolir a lei e deixar o pecado e a morte é ocultar aos bo-
riictis a doença do pecado e da morte, para sua ruína.

38 "I iriuito feliz o enunciado de Agostinho, ao afirmar que Crista harmanizoii scu simples cor"
iiosso duplo, fazendo assim um numero perfeito. Pois a morte de Cristo é chamada de sirnlilcs,
Ip<nclue ele morre somente segundo a carne; nossa morte, porém, é o dupla, porque esiiitiii,s
rterriiimcnie condenados, de corpo e alma, por uusa de nosso pecado." (WA R . 3,3 894, 1 .
2111s.) O seniido.parece ser que a morte de Ccislo (o simples) iios salva de iiosv;i riiortc rsl>iri
1ii:iI c clçrn;i (o diii>lo).
I<> ('1. l ( ' o 15.56.
70. Quando a morte e o pecado estiverem abolidos (como fez Cristo"),
a lei pode ser abolida com sucesso, sim, pode ser confirmada, Rm 3.31.

Sexto Debate do Dr. Martinho Lutero contra os Antinomistas.


1. A conclusão de S. Paulo: "Onde não há lei, não há transgressão"
[Rm 4.151, não é boa somente teologicamente, mas também do ponto de vis-
ta político e natural.
2. De modo semelhante também esta: Onde não há pecado, ali não há cas-
tigo nem remissão.
3. De modo semelhante também esta: Onde não há castigo nem remissão,
ali não há ira nem graça.
4. De modo semelhante também esta: Onde não há ira nem graça, ali não
há governo divino nem humano.
5. De modo semelhante também esta: Onde não há governo divino nem
humano, ali não há nem Deus nem homem.
6. De modo semelhante também esta: Onde não há Deus nem homem, ali
nada há, a não ser talvez o diabo.
7. Daí decorre que os antinomistas são inimigos da lei, certamente, ou dia-
bos ou irmãos do diabo.
8. E de nada adianta aos antinomistas gloriarem-se de ensinarem muitas
coisas a respeito de Deus, de Cristo, da graça, da lei, etc.
9. Não é novo nem raro que se tome o nome do Senhor em vão, inclusi-
ve da parte dos próprios demônios.
10. A confissão dos antinomistas é semelhante aquela que berram os demô-
nios: "Tu és o Filho do Deus vivo!" (Lc 4.34 e 8.28).
11. E ao juramento daqueles pseudoprofetas: "Tão certo como vive o Se-
nhor" [Jr 5.21, embora jurassem falsamente, conforme o testemunho de Isaías
[48.1] e Jeremias.
12. Quem nega que se deva ensinar a lei que condena, nega simplesmente
a lei em si.
13. E quando ensina algo a respeito da lei que condena, ensina o véu dc
Moisés, não, porém, a face clara e verdadeira4', isso é, ensina [a lei] entendi-
da carnalmente.
14. A lei que não condena é uma lei fictícia e pictórica, como a quimcia
ou o t r a g é f a l ~ ~ ~ .

10 ('I'. 2 I ' m 1.10; Krn 8.3.


dl <'I'. 7 <'o 3.18.
12 1liii;i r\liCçic <!c ;iiililopc ;ifiiç;iiiit, niciiçioii;i<li>ein I'lírik,, 8.50. I<~ilre
os gccgos cc;i colihiilci;i
<li>i i t i i ;itiiiii;il I:uii;i\iia>. coiilicci<l« <Iclcs E I > I I ~ C I I I Ciilriivis <lc~ i ~ ~ l u r i t i .
15. Nem a lei política nem a natural têm qualquer valor se elas não con-
denam e intimidam os pecadores, Rrn 3.1; 1 Pe 2 . 1 3 ~ ~ .
16. Por isso se diz corretamente: De maus costiimes nascem boas leis.
17. O que os antinomistas dizem a respeito de Deus, de Cristo, da fé, da
lei, da graça, etc. eles o dizem sem entendimento, assim como os papagaios
dizem seu "bom dia".
18. Por isso é impossível aprender teologia ou política dos antinomistas.
19. Por esse motivo devem ser evitados como os mais pestilentos mestres
da licensiosidade e da indulgência para todos os crimes.
20. Pois não serveni a Cristo, mas a sei1 ventre4', e procuram agradar aos
homens, buscando furiosameiite a glória de iim dia humano.

Primeiro Debate Contra os Antinomistas".

Prefácio do reverendo padre senhor Doutor Martinho Lutero


ao primeiro debate contra os antinomistas,
realizado em Wittenherg, no ano de Cristo de 1537,
a 18 de dezembro.

Vedes, meus carissirnos irmãos e senhores, que Satanás não cessa de per-
serguir a nosso Salvador e Mediador Jesus Cristo e que, no que lhe for possi-
vel, impede pela doutrina ímpia dos heréticos, por meio de escândalos e perse-
guições dos tiranos, que a salutar doutrina da justificação permaneça pura na
Kgreja. Como, porém, nos foi dado, pela inefável misericórdia de Deus, que
cssa nossa Igreja e todo aquele que concorda coin essa doutrina tenha razão
I>iirae certa de tratar e transmitir a doutrina cristã, devemos agir com a.máwi-
iiia diligência para que ela se conserve pura e que, quanto depende de nós, se-
j:i transmitida pura à posteridade; e que de modo algum admitamos que o ar-
ligo da justificação seja transniitido por uma maneira diferente ou nova de en-
sitiar, especialmente enquanto nós vivemos, nem demos ocasião a nossa negli-
j:?ricia para que Satanás irrompa de novo na Igreja, incitando inúmeras sei-
i a s c escândalos. Não devemos 110s preocupar somente como salvar-nos, mas
iciiios que ter o máximo cuidado para que a posteridade não receba mentiras
c crros sob a aparência da piedade ou da verdade. Malditos, no entanto, os
qiic sBo ou foram os autores desse horrendo mal.
?[àmbém já ouvistes muita3 vezes que não existe melhor maneira de trans-
Contra os Antinomistas
mitir e conservar pura a doutrina do que seguir o seguinte método: divide-se
a doutrina cristã em duas partes, em lei e Evangelho, como também são duas
as coisas que nos são propostas na palavra de Deus: pecado e justiça, morte
i ou vida, inferno ou céu. Estas coisas são certas e evidentes. Não se trata de
uma confusão babilônica de opiniões e abominações, como foi no papado. A
primeira coisa, o pecado, a morte, a ira de Deus, nos é inata e conhecida por
!
meio do primeiro pai. A outra, a graça, a remissão dos pecados, a justiça, a

I vida, todavia tomou seu início em nós pelo benefício de Cristo, não sendo, po-
rém, consumada. Mas ela será totalmente consumada quando ressuscitarmos
da morte naquele dia, quando o corpo estiver inteiramente purgado de todos
os pecados e se tornar conforme ao glorioso corpo de nossa cabeça, Jesus Cris-
to. Se, pois, permanecermos nessas duas coisas, não podemos desviar-nos do
caminho. Pois sabemos, sim, sentimos que o pecado está presente, que a mor-
te nos apavora, etc. Isso é ensinado primeiramente pela lei, cujo conhecimen-
to é de suma necessidade para o gênero humano, porque não apenas somos
concebidos e gerados em pecado e nele vivemos, mas a corrupção e cegueira
da natureza humana é tanta que nem vê nem percebe a magnitude do pecado.
É verdade que todas as pessoas têm certa cognição natural da lei, mas têm-na
de forma muito incerta e obscura. Por isso foi e sempre é necessário transmi-
tir as pessoas esse conhecimento da lei, para que conheçam a magnitude de seu
pecado, da ira de Deus, etc. Mas é impossível que Deus se agrade do pecado
e o recompense, e também é necessário ensinar simultaneamente a ira de Deus
e a morte como recompensa do pecado45.
Visto, portanto, que a natureza do homem é corrupta e cegada pelo vene-
no do diabo no paraíso, para que não perceba a magnitude do pecado, não
sinta nem receie a ira de Deus e a morte eterna, é preciso conservar na Igreja
a doutrina que põe esses males a descoberto e os revela. E esta é a lei. Assim,
por outro lado, para que não desesperemos por meio desses males que nos fo-
ram revelados e mostrados pela lei, também deve ser preservada na Igreja a
outra doutrina, que ensina a consolação face as acusações e os terrores da lei,
a graça em oposição a ira de Deus, a remissão dos pecados e a justiça em opo-
sição ao pecado, a vida em oposição à morte. Essa doutrina, porém, é a dou-
trina do Evangelho, que ensina que Deus encerra a todos sob o pecado, para
comiserar-se de todos% que com toda certeza quer perdoar os pecados de to-
dos, libertar da morte e dar a justiça e a vida aos que reconhecem sua miséria,
a injustiça e a perdição; e que esses benefícios, não obstante, certamente pas-
sam a pertencer de graça aos crentes, sem qualquer mérito nosso, por causa
de Cristo.
Paulo usa esse método em todas as suas epístolas, precipuamente na [E-
pístola] aos Romanos. Pois nos primeiros três capítulos não faz outra coisa
do que inculcar que todos os seres humanos são ímpios e injustos, que nZo so-
iiiciite os gentios, mas também os judeus estão sob o pecado, porque está escrito:
~ ~

45 ('I. 1iii 0.21. 44 ( ' V , Krr, 11.32,


Contra os Aniinoniirtas
"Não há justo, não tiá quein entenda, não há quem busque a Deus, não há
quem faça o bem, nâo há um sequer" [Rm 3.101. Pois a lei não livra os ju-
deus dessa sentença divina, mas envolve nela justamente a eles, "para que se
cale toda boca e todo o mundo seja culpável perante Deus" [Rm 3.191. De-
pois de inculcar isso com muitas e certamente gravissimas e significativas pala-
vras, apresenta a outra parte da doutrina cristã: que somos justificados gratui-
tamente pela graça de Deus, por meio da redenção que há ein Cristo Jesus,
ao qual Deus ofereceu como propiciação por meio da fé, em seu sangue.
O próprio Cristo, João Batista, os apóstolos e os profetas também segui-
ram esse método. Pois Cristo diz em Mt 5.17: "Eu não vim para revogar a lei,
mas para cumpri-la", o que mostra que meu ofício não é abolir a lei, mas cum-
pri-la, e cumpri-la de tal maneira que aqueles que crêein que são salvos da
inaldição da lei por meio deste meu cuinprimento da lei saibam eles próprios
que a lei deve ser cumprida por eles desse modo, especialnierite porque já rece-
beram as primícias do Espírito Santo. Assirn diz Paulo rios Romanos, cap.
3.31: "Pela fé não destruímos a lei, antes a confirmanios". E.em 8.3,4: "O
que foi inipossivel à lei, etc. Para que a jiistificação da lei se cumpra em nós".
Portanto, a lei não pode ser abolida, mas periiianece não-cumprida antes de
Cristo, a ser cumprida depois de Cristo, embora não seja cumprida de modo
perfeito nesta vida, nem mesmo pelos justificados. Pois requer que amemos a
Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesnios. Isso acontece de
modo perfeito soniente na vida futura.
Visto, portanto, que os profetas, Cristo e os apóstolos usaram tal niéto-
do, devemos seguir-lhes o exemplo, e advertir a todas as pessoas, especialnien-
te as insensatas e impenitentes, que aprendam a reconhecer a magnitude do
pecado, pelo qual merecem a ira de Deus e a morte eterna. Onde fazemos is-
so pela lei, temos o mandamento divino que, por outro lado, consolemos os
pusilânimes por nieio do Evangelho, qiie acolhamos e fortaleçamos os que es-
tão abalados pela lei, que os sustentemos. Assim o verdadeiro e próprio oficio
da lei é acusar e matar, o do Evangellio e vivificar.
Estes debates foram organizados por nossa causa, meus irmãos, para que
sejais confirmados na santa doutrina e tenhais uma razão certa para transmiti-
la a outros, [doutrina esta] que não permite que vos desvieis do caminho ou
vos enganeis, especialmente se observardes estas duas coisas: o pecado e a jus-
tiça, a vida e a morte, aos quais todo o gênero liumano está sujeito por causa
da queda dos primeiros pais. Essa doutrina transmite a verdadeira penitência,
que dura toda a vida. Foi isso que quis colocar preliminarmente. Os que, por-
tanto, querem argumentar, têm agora a liberdade.

1" argumento.
Contra todo o debate.
Não somos ol>rigado.sa coisas inil~ossivcis.A Ici L: ini~~otssívcl.
I.o>go, 1150
riuii(>sobrigados n ela.
Contra os Antiriarnisi;i\
Resposta: É impróprio, isso é, iricorreto ou inadequado dizer que pela Ici
somos obrigados ao impossivel. Quando, no principio, Adão foi criado, a Içi
não lhe era apeiias possível, mas também prazeirosa. Ele prestava a obediênci;~
que a lei lhe exigia com a melhor boa-vontade e alegria do coração, e certa-
mente de modo perfeito. Mas o fato de ela ser impossivel agora, depois cl:i

i queda, não aconteceu por culpa da lei, mas por nossa ciilpa; não é culpa dc
quem obriga, mas de quem peca; por essa razão a frase: "A lei nos obriga
ao impossível" deve ser entendida de modo adequado. Porque, se quiseres prc-
i servar rigorosamente o sentido das palavras, ela soa como se o próprio Deus
fosse acusado, porque nos onera com uma lei impossível. Muito antes, porém,
se deve acusar o pecado e Satanás, que transformou a lei possivel e prazeirosis-
sima em lei iiiipossivel e terrificante. Todavia, pelo fato de Cristo se ter subnic-
tido espontaneaiiiente a lei e ter suportado suas maldições, coiiquistou o Espi-
rito para os que créem nele, rnovidos pelo qual comeGam a cumprir a lei taiii-
ùém nesta vida, e na vida futura se encontrará neles o mais prazeiroso e perfci-
to cumprimento da lei, demodo que a farão decorpo e alnia, como agora os anjos.

argumento.
2 O

Contra 24.
A lei foi abolida. Logo, não se O que foi ab-rogado já não valc
deve ensiná-la. mais, nem tem eicácia. Logo, já 0.70
vale mais.
A [premissa] menor se demonstrti
porque a lei e os profetas vigoraram
até João.
Respondo a [preirussa] menor:
A lei foi ab-rogada, isso é, a malcli-
ção da lei foi ab-rogada. Pois, desdc
que Cristo veio, ela não tem podct
de nos acusar, ou: a lei foi ab-roga-
da, logo nio deve ser pregada.
Respondo: Há mais no consequcii-
I te do que no antecedente. O antccc-
dente fala apeiias da [lei] cerini»iii;il
e não da [lei] moral, que existiu dcs
de o início e nasce conosco.
Resposta: Dr. Martinho Lutero. Este argumento é uni dos principais, c;i
paz de sensibilizar também iim homem sensato. Se Cristo diz: "A lei c os pio^
I'cras vigoraram até João" [Lc 16.161, essas palavras soam como se a Ici II<IO
iii;iis dcvesse ser ensinada depois do adveiito de Cristo. Poréiii, o sciiíido tlch
siis palitvras c o seguinte: o ser Iitiinaiio não pode cuiiiprir o q ~ i c21 Ici ruliici
c o s prolCta\ proiiictcni, a iião ser quc vcnlia Joio. o iiidiciidor do ('oidciii).
lihic I: o vcr<l:i~lciri> rcqticri:~I>I)L,
sciilido dcss;i pass:igcni. A Ici cxigi:t jiisii~;~.
Contra os Antinomistaa
diência perfeita. Depois os profetas anunciavam esse cumprimento, embora fu-
turo, e com isso inclusive confirmaram a lei em sua exigência; mas iieiii os pro-
fetas foram capazes de cumprir o que a lei requeria, muito menos a própria
lei. Mas, vindo João, disse: Se quiserdes ver e ter o que a lei exige e os profe-
tas prometem, "eis aí o Cordeiro de Deus" [Jo 1.291. Quem não tiver recebi-
do este indicador do Cordeiro e acreditado que veio o Cristo, o fim da lei, es-
se perecerá, como os judeus, para os quais João não veio até hoje e que conti-
nuam sob a lei. Ou então, nem a puderam cumprir enquanto não veio João
que neni ele mesmo pôde cumprir ou satisfazer a lei. Todavia, dizia: Ouvi! A
lei. que antes requeria o impossivel de nós, já não tem mais o direito de exigir
qualquer coisa de nós, porque já temos presente e já apresentaiiios o Cordei-
ro de Deus, Cristo, que tira os pecados do mundo4' e cumpriu mais do que
suficiente o que a lei requeria. Estando, porém, tirado o pecado, a lei não tem
o direito de acusar-nos, de modo que ele agora é o fim da lei para a justifica-
ção de todo crente. Por isso é impossível que os seres hiiinanos cumpram o
que a lei exige e o que os profetas prenunciam a respeito do futuro cumprimen-
to da lei, a não ser que tenham a Cristo e dele se apropriem pela fé, etc.
Os crentes, porém, têm o que a lei exige e os profetas prenunciam. Por is-
so não i necessário que a lei continue a requerer seu cumpriinento, e que os
profetas vaticinem a respeito de Cristo, o futuro cumpridor da lei. Porque ele
apareceu a seu tempo, feito maldição por nós, para libertar-nos da maldição
da lei e que também nos deu o Espírito Santo, para que a justifica@o da lei
se cumpra eui nós. Não obstante, a lei exigente perniaiiece de pé para os iin-
pios e certamente também acusa e aterroriza os piedosos, mas não pode em-
purrar para o desespero e condenar. Por isso a lei e os profetas cessaram no
tempo de João, quando Cristo apareceu. Isso acontece pessoalmente com qual-
quer pessoa. Enquanto não crê no dedo e na palavra de João, que testifica
que o Cordeiro de Deus, Cristo, cumpriu a lei, ele é escravo no império e sob
a tirania da lei. A este ela diz: Devolve o que deves; Deus ordena a lei para
que a ciimpras. Tu não a cumpriste, portanto, tens um Deus irado e um juiz
severo. E~itrementes,porém, a lei não diz como ou por quem ela pode ser cum-
prida. Ela iião pode mostrar aquele que a cumpre, até que veiilia o Evangelho
e diga que Cristo faz isso.

3' argumenlo.
Contra 4.
Somente a graça de Deus opera em nós a penitência. Portanto, nenhuma
parcela da penitência pode ser atribuída i~lei. Provo o antecedente com J r 31.18:
"Converte-me, e serei convertido, etc.". Igualmente SI 51.12: "Cria em mini
irni coin+,io puro, ó Deus".
Resposta: Não negamos que é Deus quem opera a penitência em nós, sim,
nossas teses mostram isso com evidência. Não obstante, é impróprio dizer quc
a graça de Deus produz a penitência em nós. Pois a graça é propriamente 1)
cumprimento da lei, a remissão dos pecados, a justiça e a vida enl Cristo. Que
Deus opera a penitência em nós niostra-o. por exemplo, o seguinte: muitos ou-
vem a lei, no entanto, não são sensibilizados nem por suas ameaças nem por
seus terrores, porque não conhecem a força da lei. Por isso não converto a nin-
guém pelo poder de minha pregação, a não ser que Deus esteja presente e co-
opere com seu Espírito. Logo, a lei não deveria ser anunciada, porque Deus
comove e converte o coração por misericórdia. Essa é uma conclusão estúpi-
da. Com o mesnio areumento posso dizer que iião se deve pregar o Evangelho.
porque poucos ouvein e menos ainda crêem.
Deus, porém, quer que ensinemos a lei. Onde fizermos isso, se verá: coiii
certeza ele converterá para a penitência os que são convertidos por meio dclii,
a quem e quando quer. Assim devemos pregar o Evangelho, que é a doutrina
comum a todos, mas a fé não é de todos. Também a lei é pertinente a todos,
mas a penitência não é de todos. Os que a têm recebem-na pelo ministério da
lei. Pois o profeta fala da verdadeira penitência, que dura a vida toda, como
se dissesse: Huniilha-me e conduze-me à verdadeira penitência, para que abo-
mine a doutrina perversa e ímpia, não obstante a santíssima aparência dos hi-
pócritas, que não entendem a lei, muito menos podem ensiná-la corretamente
a oulros, mas se gabam da justiça dela e da sabedoria própria. "Pois o discípli-
lo não será melhor que seu mestre" [Mr 10.241. Por isso tainbéin eles certamen-
te convertem seus discípulos, mas para a idolatria e perdição. O Evangelho S
de todos, mas a fé não. A lei é de todos, mas não é de todos o poder e o cn-
tendimento da lei. Assim eu faço penitência quando Deus me atinge com a Ici
e o Evangelho. Nada podemos dizer a respeito do tempo e da hora; ele sabc
quando quer converter-me. Ele fala da vida inteira.

4' argumeiito.
Contra 25.
O que a lei 1120foi capaz de efetuar, para isso foi enviado o E.~piritoSai!
to. A lei não foi suficiente para os terrores a serem incutidos às aiina,~.Logo,
o Espirito Santo foi enviado para isso.
Explicação: A lei não é causa suficieiite sem o movimento do coração, iiciii
satisfaz a partir de fora, razão pela qual é necessário o Espírito Saiito quc ki
Ia e interpela por nós.
Resposta do D. Lutero: Este argumento já foi explicado. É má a coiiclii
sâio: a lei não esecuta seu ofício sem o movimento interior, logo, ela dcvc sei.
abolida. Com tanto mais diligência deve ser mostrada a magnitude do pcc:ido
c da ira de Deus por meio da lei, e depois n causa deve ser enlrcguc o I>ciis.
lilc coiiiovc os corncocs que quiser. Mas aqui sc dcvc observar qiic ;iprolli~>i
<C10 11'' Ih <li,.: :iiitiiioiiiistas aririii:~qiic a Ici :ipcii:is nrgiii os ~pcc;iilos.c ~.cri;i
I I I V I I I C SCIII o l~spiritoXiiito, L[IIC,
pi~rI:i~ilo,rirgiii : I ~ ~ I I : I Sp:ira :I C O I I L ~ C I I ; I ~ ~ I ~ I .
30')
Isso é conversa iinpia deles, porque é impossível que a lei argua o pecado e
mova os corações seni o Espírito Santo, que é Deus criador de todas ascoisas
e que escreveu a lei com seu dedo em tábuas de pedra, como se lê em Exodo
[31.181. Definimos, portanto, o Espírito Santo como Deus em sua natureza e
substância divina e dado a nós. Em sua natureza e niajestade, Deus C nosso
adversário, exige a lei e ameaça os transgressores com a morte. Quando, porém,
se associa a nossa fraqueza, assume nossa natureza, nossos pecados e males,
ai ele não 6 nosso adversário, como atesta Isaias 9.6: "Utii menino nos nasceu
e um filho nos é dado", é-nos dado o verdadeiro Deus, ele se torna nosso su-
mo sacerdote e salvador.
Assim o Espírito Santo está em sua majestade ao escrever a lei nas tábuas
de Pedra de Moisés com seu dedo, e certamente argui os pecados e aterroriza
os corações. Quando, porém, se oculta em línguas e dons espirituais, então ele
é chamado dom, que santifica e vivifica. Sem este Espírito Santo, que é dom,
a lei argui o pecado, porque a lei não é dom, mas a palavra do Deus eterno e
onipotente, que i. fogo para as consciências. Mas a lei não argui o pecado sem
o Espírito Santo. É correto o que eles dizem, que a lei argui o pecado para a
condenação. Depois, porém, inferem que por causa desse efeito ela deve ser
abolida. Isso é írnpio e blasfemo. Eu prometo comprar sapatos de ouro ao pro-
feta que mostrasse com certeza, a partir das Escrituras, que a lei deve ser abo-
lida porque argui os pecados para a condenação. Pois, abolindo a lei dessa for-
ma, abolem lambem a morte e o inferno. Pois, se não existe a lei qiie acusa e
condena, para que tenho necessidade de Cristo que se entregou por meus peca-
dos? Mas quando vem a morte, certamente selitiris que o pecado te acusa e
condeiia de modo tão horrível que irás desesperar se iiio fores sustentado pe-
la promessa de Cristo. Satanás odeia a doutrina da piedade. Portanto, quer
abolil. a lei por meio desses espíritos. Sim, justamente por essa causa, em ra-
zão da qual eles abolem a lei, ela deve ser estatuida e conservada, ou seja, que
ela argúi e mostra o verdadeiro pecado, e com esta ostentação não poupa a
nenhuma pessoa, e condena e impele a pedir auxilio junto a Cristo (G1 2.19).

5' argumento.
Contra 5.
Moisés diz em Deuteronômio [11.26]: "Eis que te proponho a bênção e a
riialclição; rrcolhe qual queres". Logo, o ser humano pode obedecer por suas
próprias forças.
Resposta: Este argumento é propriamente pertinente ao artigo da justifica-
fio; quanto a se podeinos cumprir a lei, Paulo diz: Não.
Contra: A Escritiira diz ein toda parte: "Se fizerdes penitências [Jr 15.191,
.;c i>hservardesmeus preceitos, serei vosso Deus, e vós meu povo" [],v 26.1,12].
I.og«. atribui o cumprimento da lei as forças humarias. Do contrário, por qiic
iiiciilc:ir cssos í'rascs com tanta freqüência?
I<csli~~si;i:
('crl;iriicrilc a Ici rcqiicr c rrioslia i1 qiic dcvc scr kilo. Mas 1111-
de está esta vontade qiie obedece e faz o que a lei exige? Quem a dará? Cris-
to, que veio cumprir a lei, ele dá a vontade para que faça7 a lei; no entanto,
nesta vida, de modo imperfeito, por causa dos restos de pecado que aderem :I
cariie, naquela, porém, de modo perfeito.

6 O argumento.
Contra 4.
Vós dizeis maldosamente que da lei nasce a dor. Logo, vossa posição é fal-
sa. Provo o antecedente, porque o SI 119.165 diz: "Muita p;lz aos que amam
teu nome ou tua lei, Senhor", e SI 19.8: "A lei do Senhor é pura e converte
os corações". Logo, traz paz ás consciências e segurança na dor.
Resposta: Todo o salmo fala de Cristo, de seu reino e do Evangelho. Pois
Cristo é o cumprimento da lei; se ele está presente, a lei perde seus poderes,
não pode exercer a ira, porque ele nos libertou dela. Depois traz o Espírito
Santo aos que crêem nele, para que tenham prazer na lei do Senlior, de acor-
do com SI 1.2, e além disso são recriados por meio dela em seu coração, e es-
te Espírito dá a vontade para que a cumpram. Na vida futura, porém, terão
a vontade de fazer a lei não somente no espírito, mas também na carne que,
enquanto vive aqui, se op0e a esse prazer. Logo, restabelecer a lei agradável e
pura é oficio de Cristo, o cumpridor da lei, cuja glória e obras de suas mãos
anunciam os céus e o firmameiito, os apóstolos e seus sucessores. Portanto, o
prazer na lei lambem será tanto quanto o Espírito estiver em nós. Mas tanto
quanto permanecermos carnais, tanto permanecerá a lei, todavia de tal manei-
ra que não possa impelir ao desespero, e embora permaneçam o pecado e a
morie, não podem prejudicar nem condenar.

7" argumento.
Contra 24.
O que estiver ab-rogado não tem eficácia. A lei foi ab-rogada. Logo, não
deve ser ensinada. Que ela foi ab-rogada atesta-o Paulo em Rm 6.14: "Não
estais sob a lei, mas sob a graça". Também atestam o mesmo os discursos de
Pedro, Paulo, Barnabé e de outros em Atos.
Resposta: A circuncisão e outras cerimônias tiveram seu público e tempo
determinado, tendo cessado depois de cumprido o mesmo. O Decáiogo, porém,
está fixado na consciência até agora. Mesmo que Deus jamais tivesse estabele-
cido a lei por meio de Moisés, a mente humana, não obstante, tem naturalmeii-
te o conhecimento de que se deve adorar a Deus e amar o próximo. Tànibéni
o Decáiogo tem seu tempo determinado previamente, no qual, por exemplo,
Crislo apareceu na carne e se sujeitou a lei; ele lhe tirou o direito e acabou coiii
sua sentença, para que não pudesse levar ao desespero e condenar. Na vida Iù
tiira, porérri, scrá totalmente abolido; então não haverá necessidade de admocs-
tnr qiie dcvciiios amar a Deus. Mas faremos dc vcrdadc c dc iiiodo pcrfciti~o
qiic ('risto Ici :t<liii. 1;ntào não diriis: Dcvo ainar ao pai. riias cii aino ao 11:ii.
Contra os Antinomistas
e conforme o mandamento que me deu, isso faço. Portanto, sob Cristo a lei
consiste em tornar-se, e não em ser de fato. De um lado, os fiéis têm necessida-
de de serem admoestados pela lei; de outro, não haverá dever ou qualquer exi-
gência, mas perfeita obra da lei e amor supremo. Sim, para aqueles que se en-
contram fora de Cristo, a exigência da lei é triste, odiosa, impossível. Para aque-
les, porém, que estão sob Cristo, ela começa a ser agradável, possível nos co-
meços, embora não em grandes coisas. Por isso ela deve ser ensinada entre os
cristãos, não por causa da fé que tem o Espirito sujeito a lei, mas por causa
da carne que resiste ao Espírito nos santos (GI 5.17). Na medida em que esta
vive, a lei não foi ab-rogada; no entanto, não reina, mas é obrigada a ficar su-
jeita a servidão do Espírito.
A lei, portanto, é necessária, em primeiro lugar, por causa dos obstinados
e insensatos, para que sejam corrigidos; em segundo lugar, por causa dos fiéis
que ainda têm as remanescências do pecado. Pois assim como o pecado e a
morte jamais se calam, mas continuam perturbando e contristando os piedo-
sos enquanto aqui vivem, assim a lei continua a retornar e a aterrorizar as cons-
ciências dos piedosos. Quando, porém, ressuscitarmos, ela será simplesmente
abolida, não nos será ensinada nem será exigido de nós qualquer coisa. Assim
é oficio de Cristo devolver ao gênero humano, ainda nesta vida, aquela inocên-
cia perdida e a agradável obediência à lei que existia positivamente no paraíso.
Isso ele fez ao morrer por nós e ao suportar as maldições e penas da lei, dan-
do-nos assim sua inocente justiça. Desta maneira a lei se nos torna uma obedi-
ência agradável de outro modo do que aquela que prestaremos na outra vida
de forma superlativa. Visto, portanto, que a maior parte das pessoas é dura e
impenitente, e que, nesta vida, os santos não se libertam inteiramente do velho
homem e sentem, em seus membros, a lei se rebelando contra a lei de suas
mentes e tomando-os cativos48,não se deve remover a lei da Igreja; pelo con-
trário, ela deve ser conservada e fielmente inculcada.

ti0 argumento.
Contra 1.
Afirmações contrárias não podem ser partes do mesmo conceito. Tnnor e
fé, dor e propósito de uma Mda melhor são coisas contrárias. Logo, I I ~ Gpo-
dem ser partes do mesmo conceito, ou seja, da penitência.
Provo a [premissa] maior: é manifesto que contrários não podem estar si-
multaneamente no mesmo objeto.
Resposta: Este é um argumento das ciências naturais e não pode ser des-
prezado: contrários não existem no mesmo objeto no mesmo grau. O calor
máximo não se mantém com o primeiro, o segundo e o terceiro grau de frio.
Também os médicos dizem que a melhor saúde não pode existir com a doen-
ça. Assim aqui: quando a dor é máxima, não admite a fé, mas desespera. Quando
Contra os Aniinomis1;is
a saúde é perfeita, a doença é excluída. Na fé, porém, ainda não somos perfci-
tamente sãos, mas em vias de sarar. O samaritano começou a sarar aquele quc
caíra nas mãos dos salte adore^^^. E isto porque a doença não está totalmente
sarada, mas continua a molestar-nos. Assim existem em nós as duas coisas, o
pecado e a justiça, todavia não no mesmo grau, mas em grau diverso. A fé lu-
ta contra o pecado, contra as sugestões do diabo, entretanto de tal maneira
que domina em grau máximo. Pois também o frio e o calor podem estar jun-
tos simultaue,amente em determinados graus. O pecado pugna contra a fé,
mas não vence, e isso porque se encontra em grau inferior. Desse modo, con-
trários podem, muito bem, estar no mesmo objeto em diversos graus. Em graus
mais amenos, a dor e a fé podem estar juntas ao mesmo tempo. Se são contri-
rios, então se repelem mutuamente. Se a dor é superior, ela leva à ordem natu-
ral das coisas e ao desespero. Do mesmo modo a fé superior exclui os terrores,
não lhes cede.

9' argumento.
Contra 24.
Tudo que não procede da fé é pecaddO. A lei não procede da fé (GI 3.12).
Logo, a lei é pecado e, conseqüentemente, deve ser destruida e abolida.
Resposta: Este é um argumento sofístico. O vocábulo "lei" contém uma
ambigüidade. "Tudo que não procede da fé", isso significa, tudo que não fazc-
mos com fé, mas duvidando, isto é pecado. O apóstolo fala aqui de nossas
obras. Aos gálatas diz: "A lei não procede da fé", isso significa: a lei não dá
a fé ou não é pertinente ao assunto fé; mas o ofício da lei é um, outro o do
Evangelho. Este ensina a promessa, aquele a lei e as obras.

10° argumento.
Contra 24.
Tudo que aumenta o pecado não deve ser requerido. A lei aumenta o peca-
do (Rm 5.20). Logo, não deve ser requerida.
Resposta: Há que se destacar a [premissa] maior. A lei entrou adicional-
mente para que abundasse a transgressão (Rm 5.20) e foi adicionada por çaii-
sa da transgressão (G1 3.19). Portanto, aumenta o pecado. Se aqui inferires
que por causa disso ela não deve ser exigida, ou seja, que deve ser abolida, cii-
Cio a proposição é falsa. Pois a lei deve ser louvada e ensinada ao máximo
porque aumenta o pecado e humilha as pessoas. Pois os teimosos e maliciosos
1150podem ser convertidos e mortificados a não ser que sejam terrificados coiii
os raios e cornos de Moisés. Se, porém, entendes a expressão: a lei auinciilii
I I O sciitido de cometer o pecado, então ela não deve ser exigida. Mas a Ici risi)
aumenta o pecado de forma tal que ela mesma o cometa, mas apenas o mos-
tra (Rm 7.7). Uma coisa é fazer, outra E mostrar o pecado. Não é a lei que
comete o pecado, mas nós.

11° argumento.
Filipe Melanchthons' contra 22.
Deus opera em nós o querer e o realizar (FP 2.13). Logo, o homem não
pode propor-se o bem de si próprio.
Resposta: Este argumenfo conclui: se é o Espírito Santo que o faz, não
somos nós que o fazemos. E verdade, não podemos tomar bons propósitos,
mas o Espírito, que é dado aos crentes, ele o dá. Nosso propor fora de Cris-
to e do Espírito Santo é murmurar contra Deus, maldizer a Deus e aos ho-
mens, esbravejar, matar, etc.

[lloal Contra.
Todo pecado é voluntário. O pecado original não é voluntário. Logo, não
é pecado.
A [premissa] maior é verdadeira, porque Deus não é autor do pecado.
Resposta: A concupiscência nos é ingênita e ela é involuntária; não obstan-
te, é volúpia C vontade máxima de pecar também no pecado original, e não
podem pecar os que não querem.

[1l0b1 Contra 5.
O bom propósito não vem da livre vontade do ser humano. Logo, os se-
res humanospecam por necessidade, e consequentementeDeusé autor do pecado.
Resposta: O ser humano não peca por necessidade, mas por querer. Deus
não é autor, porque não ordenou que pecássemos, muito antes o proibiu. Mas
a causa do pecado são o diabo e nossa vontade.

12" argumento.
Contra 24.
Pergunto se, porventura, o Novo Testamento se chama novo em diferen-
ça do Antigo.
Respondente: É isso mesmo.
Agora argumento contra: o Antigo Testamento está abolido, e o Novo,
sub-rogado. A lei é Antigo Sestamento. Logo, a lei não deve ser ensinada. Pro-
vo a conseqüência, porque a lei é doutrina do Antigo Testamento. Estando,
porém, este abolido, está eliminda também a lei.
Resposta: Sobre a ab-rogação da lei falamos já acima. A lei e os profetas

51 lilirre Melar~clilliori:cl'. ;icini:i noln I


valem até Cristo; na presença deste, cessam, porque ele cumpriu a lei. E de-
pois, porque a lei o condenou inocentemente, ele aboliu todo o poder da lei
que consiste em exigir, acusar e perterrificar. Esta exação cessou em Cristo,
entretanto por meio da remissão dos pecados e pela imputação divina, por cau-
sa do que Deus quis considerar a lei cumprida se crermos no cumpridor da
lei. Além disso dá o Espírito Santo, para que comecemos a cumpri-la já aqui.
Na vida futura seremos semelhantes ao cumpridor Cristos2. Portanto, a lei está
abolida na medida em que está cumprida.

1 3 O argumento.
Contra o escopo do debate.
A lei foi dada aos judeus, não aos gentios. Nós, porém, não somos ju-
deus. Logo, a lei não nos foi proposta nem nos deve ser imposta, e, consequen-
temente, procedem impiamente os que nos oneram com o jugo da lei.
Resposta: Embora a lei fosse dada aos judeus, não segue-se dai que devem
servir sob ela enquanto se chamam judeus; do contrário, os apóstolos e todos
os crentes procedentes dos judeus teriam sido misérrimos. Mas Paulo diz:
"Eu morri para a lei mediante a lei" [G12.19]. Contudo, os judeus infiéis que-
rem permanecer sempre sob a lei e de modo algum admitir que ela deve ser re-
vogada. Mas a propósito. Em Atos 15.10,11 Pedro expõe como isso deve ser
entendido: nem a lei cerimonial, na qual insiste ali precipuamente, nem a lei
moral deve ser imposta aos ombros dos irmãos, porque Cristo veio para cum-
prir a lei que nem os pais nem seus descendentes puderam suportar, e para li-
bertar da maldição da lei a todos os que crêem nele. Não obstante, deve ser
exigdo dos piedosos que mortifiquem os feitos da carne por meio do Espírito,
de modo a expurgarem o velho fermento5'. Isso porque a lei permanece, mas
seu ônus ou jugo não pesa mais sobre as nucas daqueles aos quais foi impos-
to o jugo de Cristo, que é suave e levG4.

14" argumento.
Pergunto se a lei é necessária para a salvação.
Respondente: Certamente, pois está escrito: "Encerrou a todos sob o pcca-
do, para comiserar-se de todos" [Rm 11.221.
Agora argumento da seguinte forma: Se a lei é necessária para a justific;i-
cão, Cristo morreu em vão. Logo, Cristo e Paulo ensinaram erroneamcntc :i
respeito das obras.
Resposta do Doutor M. Lutero. Nas teses em seqüência ouviste^^^ quc a

2 ('I.
I lo 3.2.
53 ('I. I<tn 8.13; 1 Co 5.7.
54 ('r. Ml ll.311,
5 5 I<rkrrs r d sri:iiii<l;t 4 r i c <Ic lcscs ciiiiir;i <i\;iiili~iiiiiii*i;i~
lei de modo algum é necessária para a justificação; este artigo, se a lei é ne-
cessária para a salvação, é pertinente ao debate sobre a justificação. A lei não
é necessiria para a justificação, mas inclusive inútil e impossivel, porque não
tira os pecados, mas os revela, não justifica, mas rios constitui pecadores, não
vivifica, mas mortifica e mata. Visto que se encontram na lei esses efeitos, es-
tá evidente que ela não é necessária para a justificação. Tu, porém, dirás: Não
obstante, é efeito próprio da lei tornar os homens réus e humilhá-los, e mos-
trar a ira de Deus. Este, no entanto, é o uso necessário. - Eu respondo: Mes-
ino assim, porém, não para a justificação, pois ninguém chega a justificação
sem a contrição. Logo, ela é necessária para a justificação? e consequentemen-
te, a lei, cujo efeito é essa contrição? Respondo: Não. O contrito está tão dis-
tante da lei para chegar a graça quanto mais distante está dela. Se Pedro tives-
se permanecido mais tempo naquela contrisão da lei e o Senhor não tivesse
posto o olhar nele, lhe teria acontecido a mesma coisa que a Judas, isso é, de-
sespero e morte. Por isso a frase: "Todos pecaram" e "para que se cale toda
boca e todo o mundo se torne culpável perante Deus" [Rm 3.23 e 191 e semelhan-
tes são meros trovões para aqueles que senteni o poder da lei, que atestam que
a lei é simplesmente impossível para a justificação. Pois quanto mais a pessoa
sente o poder da lei, tanto maior ódio e aversão a Deus. Por isso o homem
que sente esses horrores, agarra-se à palavra da graça, a saber, a justiça de
Deus pela fé em Jesus Cristo, e "são justificados gratuitamente pela graça de
Deus" (Rm 3.24). Por isso a justificação certamente segue a contrição, não co-
mo efeito da contrição, mas da graça, isso é, a causa eficiente da justificação
é a graça, não a contrição.
Portanto, deve-se inculcar diligentenierite que Deus odeia o pecado e o pu-
ne severamente. Não obstante, deve-se ensinar a remissão gratuita dos pecados
por meio da graça de Deus, pela redenção que há em Cristo Jesus. Pois Pau-
lo atesta com palavras clarissimas que a lei é impossivel para a justificação,
conforme diz em Romanos 8.3: "O que era impossível a lei", e acrescenta a
consideração: pela, isso é, por causa da carne. Se a lei é impossivel para a jus-
tificação, onde então devo procurar remédio e auxílio contra o pecado e a
morte, em favor da justiça e da vida a ser conseguida? Aqui responde Paulo:
"Deus se comiserou de nós, enviou seu Filho na semelhança da carne do peca-
do e condenou o pecado na carne pelo pecado, a fim de que a justificação da
lei se cumprisse em nós" [Rm 8.3-41. Por isso, visto que não podemos cum-
prir a lei por causa do pecado reinante em nossa carne, tomando-a cativa, veio
Cristo, niatando o pecado pelo pecado, isso é, pela vitima que ele se tornou
por causa do pecado, para que, desta forma, se cunipra a justiça da lei em
nós, primeiramente de forma imputativa, depois também formalmente; não,
todavia, a partir de nós, mas a partir da grasa de Deus que enviou o Filho pa-
ra a carne. Este dá o Espírito aos que crêem nisso, para que, de coração, co-
mecem a odiar o pecado, a reconhecer esse imenso, incompreensivel e incfávcl
dom e a dar graças a Deus por ele, a amar, adorar, invocar a Deus, a cspcrar
tiido dele. Pois se entregou o Filho, e certamente pelos pecados, sem dúvitl:i
dará com ele todas as coisass6.
Não obstante, convém muito insistir na doutrinada lei, não porque cl:i
fosse útil para a justificação, visto que, como já dissemos, quanto ao que Ilie
diz respeito, ela mais prejudica e impede, porque acusa e condena a conscifii-
cia e mortifica o ser humano. Esse oficio da lei, porém, não é perpétuo, mas,
não obstante, eiitrementes necessário, até que se proclamasse o Evangelho dc
Cristo: "Não niorrerás, antes viverás" [SI 118.171. "Cristo não veio para sal-
var justos, inas pecadores" [Mt9.13], "não quebrará o câlamo agitado ao ven-
to" [Is 42.31, não rejeitará os tristes, mas Ihes falará com suavidade: "Viiidc
a mim todos os que passais por dificuldades e que estais onerados" [Mr 1I.ZRI
Portanto, a lei mata por sua impossibilidade, mas o Evangelho vivifica por cs-
ta ou por semelhante palavra da graça: "Tem confiança, filho, teus pecados
estão perdoados" [Mc 2.51. Cristo é o Cordeiro de Deus sobre cujos ombros
são colocados os pecados do mundo inteiro, e o Espírito Santo é eficaz, e so-
pra e atiia onde quer. Assim ambas as doutrinas, tanto a lei quanto o Evaiigc-
lho, precisam ser preservadas na Igreja. Deus se comisera dos aterrorizados c
humilhados pela lei, não por causa daqueles terrores, porque a pessoa qiie os
sente odeia a Deus e o julga iniiisto, mas por sua mera misericórdia re\'elnd:i
ein Cristo.

lSO argiimentu.
Pedro ensina a periifência a partir da profanação do Fillio. Pedro Coi
pregador. Logo, os pr~'gadoresdevem ensinar a penitência a partir da prof;iri;i-
ção do Filho, não a p a r i r da lei de Moisés.
Resposta: Concordo que se deve insistir ao máxiiiio iia profanacio do Fi-
lho, como o faz a primeira tese dos antiiiomistas, isso é, assim o entendo, dc-
ve-se insistir na incredulidade no Filho, porque, depois de já nos ter sido revc-
lado e dado o cumprimento da lei por meio do Filho, não abraçá-lo de braços
abertos e não crer que [o cumprimento] foi realizado é o maior e [mais] horri-
vel pecado. Isso certamente deve ser inculcado com diligência. No entanto. pcr-
gunto, que conclusão é esta: "Deve-se insistir na profanação do Filho, liigo,
toda a lei deve ser rejeitada e removida na Igreja"? Como dissemos reiicrntlns
vezes, a lei urge e exige sempre o perfeito temor, anior, a fé em Deus. E isso
ninguém faz. Que faz Deus? Ele eiivin o Filho. Assume nossa cariic, s~i.icil:i..
\e a lei e suporta ser coiidenado por ela, n fim de que, por meio disso. nos li-
bertasse da maldição da lei. E Deus ordena que aceitemos esse ciiiiilirid<ii
Quc acontece? Em todo caso. os iiiipios e o niuiido inteiro não o accilaiii. 1150
o abraçam com alegria, não adoram esse vencedor da lei, riias pcrscgiiciii-ii<r
cuin todos os seus beiieficios, blasfemam, matam e crucificaiti-i10 do I<,riii;i
mais ignominiosa entre dois criminosos. Assim a lei não é destruida ou ab-ro-
gada por essa profanação do Filho, mas ainda é aumentada e corroborada,
porque está escrito: "Quem não crê já está julgado" [Jo 3.181, visto que a lei
permanece ali perpetuamente, exigindo obediência perfeita, a qual o incrédulo
não consegue prestar, e também não aplica a si, por meio da fé, o cumprimen-
to de Cristo. Por isso os não-crentes pecam em dobro: primeiro são desobedien-
tes à lei por si mesmos; depois não querem aceitar aquele que foi feito maldi-
ção por eles, a fim de livrá-los da maldição da lei. Por essa razão, visto que
se insiste na incredulidade no Filho, insiste-se duplamente na lei. Em primeiro
lugar, pois, a obediência a lei se recomenda por si, depois é enviado o Filho,
ao qual tudo foi entregue pelo Pai, para que fosse o sacrifício pelos pecados
do mundo, quando é ordenado que ouçamos a este e creiamos nele. Isso não
acontece. Mas a maior e melhor parte dos homens não suporta seu reino, con-
forme o S1 2.2s.
Por esse motivo as conclusões dos antinomistas não são apenas muito frias,
mas também ineptas e ímpias. Admoesto especialmente a vós que, com o tem-
po, sereis os futuros doutores dos outros, que ensineis com a máxima diligên-
cia a primeira parte conforme as normas da dialética, isso é, distinguir e defi-
nir corretamente, para que possais entender os assuntos e os vocábulos apro-
priadamente. A não ser que definas claramente os vocábulos e estabeleças
qual seja sua propriedade, serás um artífice deplorável na composição dos silo-
gismos, como acontece aos antinomistas, que não vêem que a revelaçzo do pe-
cado pela lei é a mesma coisa que a revelação da ira. Mas voltemos aos p r i d -
pios estabelecidos. A profanação do Filho, isso é, a incredulidade no Filho,
não apenas não atende a primeira tábua, mas a transgride duplamente, não su-
prime a exação da lei, mas a fortifica e exaspera ainda mais. No Antigo Testa-
mento se exige sobretudo o cumprimento da primeira tábua. No Novo Testa-
mento se exige sobretudo a fé no Filho. Portanto, quem não crê no Filho pe-
ca em dobro, em primeiro lugar contra Deus, que exige a perfeita obediência
a lei. Como, porém, nenhum santo pôde cumpri-la, enviou Deus seu Filho,
para que esse cumprisse a lei por eles. Os que não aceitam esse benefício inefá-
vel pecam horrivelmente contra ele, que traz o remédio contra os terrores da
lei, o pecado e a morte; pelo contrário, crucificam o Filho de Deus para si pró-
prios (Hb 6.6). Nossa demência e cegueira é maior do que qualquer mente po-
de conceber. Os primeiros pais no paraíso, ainda que estivessem sem pecado,
neo prestaram a obediência a Deus que Ibes fora prescrita. Depois, no Antigo
Testamento, seus descendentes a prestaram menos ainda, embora fosse exigi-
da pela lei dada até então. Pois a natureza corrupta não o permitia. No No-
vo, onde Cristo é dado para remediar essa enfermidade, isso é, para procurar
0 que estava perdido e restituir a natureza corrupta a sua integridade, também
soiiios preguiçosos, sim, perseguidores desse bondosissimo cumpridor da lei.
Quein, pois, oferecerá auxilio aqui? Satanás no inferno? Portanto, ou aceita-
iiios a Cristo coin alegria e ações de graça, que foi feito maldição por 116s. ;i
i'iiri dc quc nos libcrlasse da maldição da lei, ou c1ii2o sliibaiiios que sereiiios
entregues a eternos castigos e certamente muito merecidos, com o diabo e seus
anjos no tártaro.

1 6 O argumento.
Contra 4.
O Evangelho argüi os pecados. Logo, não há necessidade do ministério
da lei, para que argua os pecados no Novo Testamento. Provo o antecedente:
"A ira de Deus se revela desde o céu pelo Evangelho" (Rm 1.18) e J o 16.8:
"O Espírito Santo argüi o mundo do pecado".
Quem não divisa as coisas corretamente aqui, confunde lei e Evangelho.
Por sua própria definição, o Evangelho é a promessa de Cristo, que libeita
dos terrores da lei, do pecado e da morte, traz a graça, a remissão dos peca-
dos, a justiça e a vida eterna. Destes bens celestiais e eternos Cristo é mestre
e doador. Não obstante, ele interpretou a lei, não como legislador ou algum
Moisés, mas para que entendamos de que espécie deve ser a obra ou o cumpri-
mento que a lei exige de nós, o que Cristo não pode mostrar, a não ser que
defina a lei claramente. Define, porém, que Mt 5 é doutrina que não pode ser
satisfeita por qualquer observação externa, mas que requer um coração limpo,
obediencia perfeita, que postula perfeito temor e amor a Deus. Pois assim diz
Cristo: "Se vossa justiça não for mais abundante do que a dos escribas e fari-
seus, etc." [Mt 5.201. Isso significa que não apenas não deveis ser homicidas
externamente, mas também ter o coração puro de toda a ira e inveja; do mes-
mo modo, não deveis apenas abster-vos corporalmente da libidoí7, mas ter aque-
la castidade que agora têm os anjos e, depois da ressurreição da morte, todos
os beatos, etc. Por essa razão Cristo não é legislador. Não obstante, mostra a
obra da lei, e simultaneamente indica o que ele mesmo fez para que se cumpris-
se essa obra da lei que é exigida de todos, sem dúvida porque realizou isso fa-
zendo a vontade de Deus e satisfazendo sua lei, conforme SI 40.6~s.:"Sacrifi-
cio e oblação não quiseste, no entanto me aperfeiçoaste os ouvidos, etc. Então
eu disse: Eis que eu venho. No titulo do livro está escrito a meu respeito, pa-
ra que faça tua vontade, Deus, e tua lei esteja no meio de meu coração". Es-
ta justiça, portanto, que a lei exige, não acontece por meio da lei que revela
o pecado e produz a ira, mas por meio de Cristo, que é o único que fez a von-
tade de Deus e cumpriu sua lei, e recebeu o Espírito Santo.
Portanto, todo aquele que aceita esse benefício de Cristo pela fé, esse cum-
priu a lei de modo imputativo e recebe o Espírito Santo que transforma a lei
em algo agradável e suave, quando, do contrário, ela é odiosa e molesta para
a carne. Assim também Paulo não estabelece a lei, mas mostra o que ela exi-
ge de nós, certamente a perfeita obediência e justiça, da qual somos faltos,
porque Lodos somos pecadores e réus perante Deus (Rm 3.23). Mas ela acontecc
Contra os Antinomistas
pela fé em Cristo. Portanto ele fala ali de seu cumprimento. E para que as pes-
soas o entendessem, não achou forma melhor do que dizer que se trata da su-
prema e perfeita obediência, temor, fé, etc. em Deus. Isso não é propriamen-
te pregar a lei, mas é necessário mostrar às pessoas o poder da lei. Dessa ma-
neira o Evangelho não argüi propriamente o pecado, inas mostra a lei que ar-
güi os pecados. Cristo não veio para exigir de nós a obediência que a lei re-
quer, mas veio a fim de nos presentear, visto que não podemos prestar essa
obediência; não obstante, mostra simultaneamente o que ele próprio faz, a sa-
ber, que, fazendo a vontade de Deus e prestando a obediência abundante que
a lei requer, nos redimiu da condenação da lei e nos deu a justiça por meio
disso, a justiça que é melhor que a dos fariseus.

17' argumento.
Contra 4.
A contrição é obra do Espírito Santo. Logo, pela lei não pode ser dada a
contrição.
Prova: A raça humana não percebe as coisas que são de Deuss8.
Resposta: Ninguém entende a lei a não ser que seja tocado por seu senti-
do e poder no coração. Mas esse tato ou sentido da lei é divino. Logo, a lei
sem o Espírito Santo não argui os pecados, embora este discurso de que a lei
sem o Espírito Santo não argui os pecados seja impróprio. Pois geralmente
chamamos o Espírito Santo aquele que Cristo nos enviou da parte do Pai co-
mo dom, a fim de que fosse nosso vivificados, santificador, etc. Portanto, não
lhe atribuímos a contrição como dom, consolador e Espírito da verdade, mas
como Deus, autor da lei, que a escreveu em tábuas de pedra. Até aí vai a se-
melhança que aduzi acima referente ao Verbo incriado e encarnado. É perigo-
so querer perscrutar e compreender a divindade nua sem o mediador Cristo,
pela razão humana, como o fizeram os sofistass9e monges c como o ensinaram
outros. A Escritura diz: "Não me verá o homem, e viverá"; e a fim de evitar-
mos tal perigo, foi-nos dado o Verbo encarnado, colocado num presépio e sus-
penso na madeira da cruz. Este Verbo é a Sabedoria e o Filho do Pai, e nos
revelou qual é a vontade do Pai conosco. Aquele que, tendo posto de lado es-
te Filho c segue a suas cogitações e especulações, este se escondeu da majesta-
de de Deus e desespera. Deram ensejo a tais especulações sobre a majestade
nua de Deus Dionísio60 com sua teologia mística, e outros seguidores seus, que
escreveram muitas coisas sobre núpcias espirituais, onde o próprio Deus é ima-

SX <'I. I Ca 2.14.
4 ,S~o/itli~\: veja acima nota 13.
(31) I .iilcr<i rifcre-se a Dio~iisioAreopagita, nome d e um autor de~conliecidodc iiina colcçjo dc c i ~
ciit<ihqiie gr>lav;iiii dc gi-andc autoridade dcide os con>cçosdo SCC. VI. Scgoiid<>a l i ; ~ < l i ~ n x i >i i,
:iiili>r 1cii;i sicli, I)i<>nisiti. a>nvcrlidi> I'niili, (AI 17.34). i ~ i i ct;i~iihCrti 1cii:i sido iiirp<>< l i A l c
II:~\.lihsc? c(cril<>\ I < ~ V C I ~ ! Y ; L I I I ~i1C Ihil%c<I0111i\licist11o~>ci<lcc~litl.
ginado como esposo, e a alma, como esposa. Em especial ensinaram que as
pessoas podem relacionar-se e lidar, sem intermediação, nesta carne mortal c
corrupta, com a inescrutável e eterna majestade de Deus. E certamente esta
sua doutrina foi aceita como a sabedoria máxima e divina, a qual inclusive eu
me apliquei por certo tempo, no entanto, não sem grande dano para mim.
Admoesto-vos que detesteis como uma peste essa teologia mística de Dionísio
e livros similares que coiitenham semelhantes nugacidades. Pois temo que com
I o tempo virão homens fanáticos que tornarão a levar para dentro da Igreja
tais portentos, e por meio disso irão obscurecer a sã doutrina e a encobrirão
completamente. São ilusões de Satanás, que fascina o sentido dos homens de
tal maneira que abraçam e consideram tais mentiras como a mais certa verda-
de e suprema sabedoria.
As mesmas estulticias espalharam entre o povo Muntzer e os anabatistas6I
que, depois de afastado Cristo, insistiam em dizer que tinham revelações, que
transitavam com Deus diretamente e falavam com ele. Marcos62, o primeiro
autor desse erro, dizia-se pleno da divindade. Os judeus viram e ouviram a
Deus falando, em sua majestade, ao pé do Sinai, mas com grande terror e pa-

61 Tomás Müntzer (L468[?]-1525), monge agostiniaiio, estudou Teologia em Leipzig (1506) e Rank-
furt no Meno (1512), coiiquistando o grau de "Magistei" (1516). Conheceu a Lutcro provavcl~
mente em Leiprig por ocasião do debate de André Karlstadt (cf. abaixo nota 98) com Eck (v.
Obras Selecionadas, val. 1, pp. 257~400,três escritos sobre esse debate). Mais tarde sofreu a iii-
fluência dos "profetas de Zwickau", que liaviam substituido a Bíblia por sua iluminação i n l e ~
iior e a justificaçáo por meio da fe pela experiência da cruz. Essa fé espiritual afastou Müntzcr
definitivamente do principio luterano de intcrprcta~ãobíblica. Convenceu-se de que ele próprio
experimentara a n u i c de ser o profeta eleito. Fundou a "Liga da Fiel e Divina Vontade", 5
mal aderiram vastas rcgiões da Sarônia. Lutero advertiu a principe eleitor contra o "espiriin
~ ~

I sedicioso" de Miintrer em seu escrito: "Carta aberta aos principes da Saxônia sobrc o espii-i10
sedicioso" - (Sendhiefand e Fürsten ni Sachsen vom aufrül~~erischer~ Geist - WA 15,210-221).
Miintzer tornou-se um agitador. Iria prcparar o reina de Cristo, libertando o povo da tiraiiki.
Expulso de Wcimar, encontrou asilo em Mühlhausen, fundando ali uma democracia cristã. A
partii de Mühihausen convocou fogosamente as populllçães simpáticas a seu movimenta i <;uci~
! ra dos Camponeses. Como "servo de Deus contra os impios, cingido da espada de Gideão", cii.
locau-sc i ircnte da exército dos camponeses. Derrotado, foi executado em 1525. Seus peiiszi-
mcntos sobreviveram nos grupos anabatistas. - Aizabafistas: t e m o derivado do grego qiic six
iiitica literalmente "os que batizam de nova". Denominavam-se assim refoimadarcs radic:ii\
que não admitiam o Batismo dc crian~aspequenas. É dificil determinar sua origem. Estnv;iii~
presentes nas mais diferentes regiões da Aiemanha e da Europa. Tomás Müntzer conta eciiii.
seus mais conhecidas dcfe~isores.
<>Z Marcos.. -~nóslico,disci~ulode Valentim, viveu na segunda metade do séc. 11, atuaii<lo ii;i A\i;i
Metior. Por meio de uma extensa mistica de números ampliou os ensiiiamentos di seti iiiislic.
A tratiiforinaçào no sentido das religiões de misterio 6 siia obra: dirplo Baiihlii<r, s;ici:iiiiriilii
<i<, ichg;ite (grego: apolylioFiF, por iiicio da qual o Iroiiicm cspiriiiinl rlevc sci- libei-l:~di,. ir:iii\
li,iiii;iciiu < l i dgilii ciri viirli<iIior aitcs iii.igic:ih ii,i Sii!ii;i <"%i, siici;iliieiilo iliir ~ t , i i ~ i < )I):,V:L
h i,\
~ cc l i h ; :~I r ~ : h >tI ~ ~ l c
~ f ~ i l(p,rcgc):
!~~ ~ l c~pJc,o!~~;t).
~
Contra os Antinomistas
vor, com horrível tempestade, nuvens negras e um som de buzina fazendo ala-
rido horrível, de modo que retrocederam e disseram a Moisés: "Não fale Deus
conosco, para que não morramos; fala tu conosco" [Ex 20.191. E: Não mais
quero ouvir a voz de meu Senhor, e não continuarei a ver este enorme fogo,
para que não morra63. Bem, disse o Senhor, já disseram tudo. "Eu Ihes susci-
tarei um profeta semelhante a ti, etc." (Dt 18.16ss.), porque é dito: Este profe-
ia, a saber, Cristo, Ihes mostrará minha vontade e será o mediador entre mim
e eles. Onde, portanto, Deus fala diretamente em sua majestade, ali somente
aterroriza e mata. Se queres, pois, dirigir-te a Deus, toma o seguinte caminho:
ouve a voz de Cristo, ao qual o Pai constitui mestre do mundo inteiro, ao di-
zer: "Este é meu Filho amado, nele tenho prazer; a este ouvi" [Mt 17.51. "So-
mente ele conhece o Pai, e ele o revela a quem quer" [Mt 11.271. Por outro
lado, os judeus, turcos e todos os justiceiros cairão, finalmente, no desespero,
porque negligenciam este cãnone e se relacionam com Deus diretamente. O
mundo, porém, não ouve, abandona a Cristo com sua palavra, e segue e en-
grandece iluminações e revelações como se fossem magníficas e divinas, quan-
do, na verdade, são satânicas. Como ouço dizer, os turcos têm sacerdotes e
religiosos que, em determinados dias, sofrem êxtases, são arrebatados e ficam,
por algum tempo, prostrados sem sentido. E, quando retornam a si, falam coi-
sas grandes e admiráveis. O vulgo se deixa impressionar por suas práticas, vis-
to que tem esses videntes em conta de grandes homens, acham que é uma san-
tidade especial. Deus o Pai, porém, ordenou que não demos ouvidos a tais ar-
rebatamentos, mas ao Filho, no "qual estão ocultos todos os tesouros da sabe-
doria" (C1 2.3). Em resumo, como o Espírito Santo é Deus em sua natureza,
ele é o autor da lei, sem o qual a lei não argüi os pecados; visto, porém, que
L: dom por meio de Cristo, ele é nosso vivificador e santificador.

18' argumento.
A morte de Cristo é a causa da mortificação do pecado. A lei não é a
riiorte de Cristo. Logo, a lei não é a causa da mortificação do pecado. Provo
;i [premissa] maior: "Fomos sepultados com Crjsto na morte pelo Batismo"
//<m 6.41.
Resposta: É conhecida a frase da Escritura: "Pela lei morri para a lei"
!(;I 2.191. Igualmente: "Mortos para o pecado, para que vivamos para a justi-
i.:i" [I Pe 2.241. Isso é, pela graça que Cristo traz e dá em abundância morre-
iiios para a lei que nos acusa e condena. Assim morremos para o pecado por
iiicio de Cristo, que foi feito sacrifício pelo pecado e que deste modo matou
[ I pecado, para que não mais pudesse dominar sobre nós. Portanto, na medi-
ilo c111 que morremos para a lei e para o pecado pela fé em Cristo, e fomos
scliiil(udosjuntamente com ele, morreram para nós os pecados, isso é, não podem

h 1 ('i. I)! 5.24,s.


Contra os Antinomistas
praticar suas crueldades ou exercer sua tirania em nós. Esta não é uma morte
perniciosa mas salutar. No entanto, não segue dai que a lei foi abolida ou de-
ve ser abolida, ou que o pecado estivesse abolido de tal modo que não fosse
mais absolutamente sentido pelos piedosos. Mas por causa de Cristo, o cum-
pridor da lei, os crentes não são levados ao desespero pela acusação e pelo ter-
ror da lei, mas, ao contrário, são fortalecidos por sua palavra. Depois, por
causa do mesmo Cristo, vencedor do pecado, morreram para o pecado, e o
pecado para eles. Na medida, porém, em que ainda tiverem carne, a lei e o
pecado têm domínio sobre eles.

I 1 9 O argumento.
Tudo que Cristo prescreveu a seus apóstolos, ele prescreveu a todos os su-
I cessares. Cristo prescreveu aos apóstolos que pregassem a p e ~ t ê n c i aem seir
nome, logo, o conhecimento do pecado não vem da lei, mas pelo Evangelho.
Logo, a lei deve ser abolida.
Resposta: Este argumento conclui que a penitência deve ser pregada em
nome de Cristo, portanto não em nome da lei. Prova a conseqüência a partir
da natureza dos contrários, porque Moisés e Cristo são contrários. O antece-
dente é verdadeiro, a conseqüência, porém, é falsa, porque o próprio Cristo
diz: "Não vim abolir a lei, mas cumpri-la" [Mt 5.171. Mostra, portanto, o que
a lei exige, a saber, seu cumprimento, que jamais alguém prestou nem presta-
rá. Portanto são malditos todos os pecadores e réus da morte eterna. "Pois
maldito é todo aquele que não permanece, etc." [GI 3.101. Depois diz que ele
cumpriu a lei, a fim de que redimisse os crentes dessa exação e maldição. Por
esse motivo, ainda que Cristo não mencione nenhuma lei, mostra pelo fato
em si que a lei não foi cumprida, visto que ele a cumpre. E em outra parte diz
Cristo: "Fazei penitência e crede no Evangelho" [Mc 1.151. Visto que ordena
fazer penitência, indica que são pecadores e transgressores da lei, e que não
podem escapar por outro caminho da condenação da lei, a não ser que creiam
no Evangelho, que anuncia publicamente que Cristo satisfaz a lei.
I1 20' argumento.
Paulo é convertido pela voz de Cristo. A voz de Cristo é o Evangelho.
Logo, é convertido pelo Evangelho e não pela lei.
Resposta: É o ofício de Cristo anunciar a graça e a remissão dos pecados.
Entrementes, porém, como sempre já foi dito, diz que ele vem não para revo-
gar, mas para cumprir. Portanto, fala de toda a sua obra, que somente traz a
hcnsão, isso é, a graça e a justiça contra a maldição da lei, a qiial todos os se-
res humanos estão sujeitos, da qual são libertados os que crêem nele. Contra
os scgiiros c desdenhadores faz ameaças constantes e os assusta, mas do seguin-
Ic iiiodo: porqiie não qnereis ouvir minha voz, para que sejais libertos da mal-
clic.io 1I;i Ici c salvos, morrercis em vossos pecados. E segiiramente é justo o
juizo de Deus que permaneça sob a lei e o pecado o que não quer receber o
vencedor do pecado e ciimpridor da lei.

21' argiimento.
Contra 4.
Todo aquele que tem fé também lamenta o pecado. Os magos tinham fé.
Logo, tambt'n~lanientaram o pecado. E conseqiienteniente n20 há necessida-
de do ministério da lei para produzir o sentimento de dor sobre o pecado.
Resposta: Coiicordo com todo o argumento. No entanto, a conseqüência
que infere depois, que não seria necessário o ministério da lei, essa é falsa. To-
do crente que começou a vencer os terrores da lei pela fé, faz penitência duran-
te toda a vida. Pois toda a vida dos fiéis é um exercício e certo ódio contra a
remanescência do pecado na carne que murmura contra o Espírito e a fé. De-
pois sentem terrores piedosos. Ali luta a fé contra a desconfiança e o desespe-
ro, do mesmo modo contra a libido", a ira, a soberba, a vingança, etc. Essa
luta continua nos piedosos enquanto vivem, em alguns com mais veemência,
em outros de forma mais amena. Pois, juntamente com a fé, sentem dor e
ódio contra o pecado. Por essa razão clamam com Paulo: "Miserável liomem
que sou! quem me libertará do corpo desta morte?" [Rm 7.241. Stai~pitz"~ cos-
tumava dizer que, em vista disso, se deve desejar a morte aos piedosos, por-
que o pecado jamais acaba nesta vida, e neste sentido com toda certeza teni
razão. Há iiiais sofrimento nas mentes piedosas por causa do pecado e do me-
do da morte do que alegria sobre a vida doada e a inenarrável graça por meio
de Cristo. Certamente eles lutam contra essa desconfiança e vencem por meio
da fé, no entanto, este espirito da tristeza retorna sempre. Por isso a penitên-
cia permanece neles até a morte.
Faço essas admoestações por causa do autor das teses monstruosas e dos
papistas que tomam qualquer pecado atual e o consideram leve e niomentâneo,
que pode ser abolido pela contrição, confissão e satisfação. Serviram-se tam-
bém da absolvição, na verdade, porém, não foi absolvição. Pois não consola-
vam os que se confessavam com a palavra de Deus nem Ihes davani a certeza
dc que, por meio da satisfação de Cristo, Ihes são perdoados os pecados, mas

íil I .ibido como conupqão, náo apenas como instinto.


05 .loZo von Siaupitz (ca. 1469-IW),saiiáo nobre, estudou em Colônia e LeipYg, in~ressouna or-
dciu doi ago~tinianon,em Munique, em 1490. Em 1497 tornou-se prior do convento de Tübin-
gcn. Doctor in Bjblia desde ISW, ioi convocado por Frederico, o Sábio, Para ser o primeiro de-
c;,n<ida Faculdade de Teologia de Wittenberg. em 1503. Neste ano também foi eleito vigario-ge-
i;il da Coieregacão Aemã de Observanter. No processo contra Lutero, Staupitz procurou defen~
(IC-lo ciiide Ilic foi passivel, dispenaaiido~o,p. ex., do voto de obediência. Como estivesse 5ob
\iispeita <leIieresia, renuncioii, em 1520, ao carga dc vigãrio-geral, IocnsnAo-se pregador crn Salz~
Iiiigaii. I>csde ciitao Iiouve i i i i i distzincianimito dc Lutero. Staupitz leni inlloincias tomistas c
iii1riic;ir. Siia ~iiçd:rlrcri\locéiiliica aiinilioii a I.utno wn seus çoiitliloa caril a 1ieiiilCncin e cooi
<li!
:I ~l,>t#lli~lit p~c<Ic\~i~tit~it<~.
Coiitra as Antinorniatas
impunham determinadas obras moderadas. Depois, pelo contrário, aboliam o
pecado original, dizendo que se trata de uma fraqueza na natiireza, que eles
chamavam de desejohh.Por isso todos os papistas, judeus e turcos soiiiente co-
nhecem a penitência pelos pecados atuais, que são: derramamento de sangue,
furto, adultério, etc.; quando deploram a estes e fazem satisfação por meio
de obras e exercícios selecionados, acham que Deus está aplacado e satisfeito.
Eles não sabem o que é penitência, muito menos fazem penitência. Ao contrá-
rio, por meio das palavras: "Se a vossa justiça, etc." e "Fazei pnitênccia"
[Mt 5.20; Mc 1.151 somos admoestados de que a penitência dos piedosos é per-
manente, no entanto de tal modo que a fé e o conhecimento de Cristo vençam
os terrores, para que haja um temor filial e não servil; portanto, por mais que
o diabo nos assedie, nos cerque, e ainda que consiga fazer-nos cair, não obs-
tante, sejamos encorajados pela promessa a respeito de Cristo que anuncia a
remissão dos pecados. Depois recebemos o Espírito Santo por meio da fé, que
cria novos sentimentos e imbui a vontade, a fim de que verdadeiramente come-
ce a amar a Deus e a detestar o pecado remanescente na carne. Porque este
de fato sempre retorna e nos dá trabalho; por isso temos necessidade da peni-
tência que dura até a morte. Dessa penitência os judeus, papistas e maometa-
nos nada souberam, iiias apenas aceitam a penitência por certos pecados atuais,
não por toda a vida, nias temporária. E quando a tiverem prestado por meio
de obras por eles escolhidas para este fim, crêem que foi feito satisfação por
eles perante Deus.
Na vida civil certamente as coisas são de tal forma que se satisfaz ao peca-
do por meio de uma pena; não, porém, perante Deus, oiide sempre permane-
cem pecados maiores e mais graves inclusive nos piedosos, pecados que eles
próprios desconhecem e não sentem. Por isso sempre é necessário que tenham
em mente a Palavra que argüi o pecado, no entanto de tal modo que a Pala-
vra se junte a fé. Portanto, a penitência dos piedosos dura a vida toda. Por
essa razão Paulo diz que temos o Cordeiro sacrificado por nós, Cristo, por
meio do qual somos purificados do fermento6", e, não obstante, nos ordena
que, entrementes, expurguemos o antigo fermento. No papado a doutrina da
penitência é tratada de forma tão obscura e confusa que ninguém a pode enten-
der. A isso acresce aquela horrível abominação que pessoas há muito contritas
ainda assim não sabem quanto de obras é preciso fazer pelos pecados. Depois,
ainda que o saibam e façam muitas, duvidam d a graça de Deos, de acordo
com o dito de Eclesiastes 9.1: "O ser humano não sabe se é digno de amor ou

h0 N o original i m c s . iernxo I~eqüeiiteiios textos de Lutero, usado como sinsnimo de coiicupisccti~


ri:, (sl..p . CX., Livro de Concórdia. p. 101,7). Eiii portiiguês existe o termo (antiquada!) " f o ~
tncq" (vihu. iiiasc.). rio sentido de (1) concupiscência; (2) grande npriitc; (3) aquilo quc c\iiinii-
I;,; i i i c i r i i i v i i (cl'., 11. cx., I.;iii<lclino I'rcirc. Grande e Novii:inio Dici~iriirioda I.íngir;i I'or(irgoc-
hi8) ( ) u i ~ ~ c ~ I Il IoI C ~ O CSCICYC CIII ~IcIII%<>. ~rsii0 v<>ç$h~~lcl qiic \,ai iiiais cio roiliil<idc "ea
%~in<lr.r.
l l i 1 i i i l < ~ " . "iii~.ciiliv<,". li1ci;ilitircilc ";i çap~~lel:i" " o I>ol:i-log<r".
1;) ('I'. I ( ' c , 5.7,.
Contra os Antiiiomistas
de ódio". Visto, pois, jamais poderei11 certificar-se se fizeram o suficiente
pelos pecados por meio de suas obras, a satisfação, por fim, é transferida pa-
ra o purgatório. Dessa doutrina resulta a permanente tristeza e, por último, o
desespero das consciências. Não havia nenhum refúgio a Cristo, porque isso
se temia mais do que ao próprio diabo. A única idéia que se fazia dele era a
de um juiz severo, etc. Agora esta doutrina errônea e perniciosa foi purifica-
da, porque ela nos ensina que a satisfação pelos pecados não deve ser impos-
ta a nós, mas foi imposta ao Cordeiro de Deus, Cristo, que tira o pecado do
mundo (1s 53.4s.). Sabendo isso e crendo-o, não se pode duvidar da graça
de Deus, a não ser que se queira dizer que Cristo morreu em vão.
Importa conhecer essa doutrina ao máximo, porque vence os terrores da
lei e do pecado e produz a verdadeira penitência. A esta doutrina evidencia-
mos pela graça de Deus por meio do Evangelho, não para abolirmos o ofício
da lei, como crêem os antinomistas, mas para resistirinos i s abominações pa-
pisticas mais do que diabólicas, e ministremos às consciências aflitas a liberda-
de que Cristo nos presenteou. Portanto, chega com os delírios pueris dos anti-
noniistas, porque querem abolir a lei da Igreja e, não obstante, reter a revela-
ção da ira, embora a revelação da ira fosse propriamente um efeito da lei.
Não permitimos que se tire a lei da Igreja. Há vinte anos venho pregando o
Evangelho aqui, e, não obstante, sempre acrescentei a lei, o que os próprios
fatos atestam. Pois durante alguns anos passamos o Catecismo quatro vezes e
o inculcamos diligentemente em várias reuniões, não apenas ao povo simples,
mas também aos piedosos, porque ainda têm a carne que se rebela contra o
Espírito. Além disso ele é cantado em nossas igrejas em língua alemã, para
que possa ser entendido por todos. Enquanto vivo, admoesto-vos uma vez
mais com a iiiáxima diligência que tenhais preparada para vós a certa doutri-
na a partir da palavra de Deus sobre todos os artigos de fé contra tais espíri-
tos fanáticos. Pois temo que, depois de afastados6%Iguiis de nós, aparecerão
muitos do tipo que irão depravar e perverter totalinente coisas que por nós fo-
ram ensinadas correta e piamente, e convencerão o povo a asseiitir com seus
erros. Deploro ao máximo que as pessoas se deixam comover tão depressa por
ineptos tão ridículos e se deixam demover tão facilmente da verdade. A nature-
za corrupta e depravada pelo vicio da culpa original é, por si mesma, mais pro-
pensa ao pecado. Por isso não se preocupa com o pecado, não acredita que
Deus se encoleriza tão seriamente com o pecado e que o pune tão severamen-
te, mas vive em certa segurança e desprezo de Deus, de modo que presencia-
mos com enorme dor da alma, em nossa época, que a maior parte de nossa
gente faz da liberdade, pela qual Cristo nos libertou dos terrores da lei, do pe-
cado e da morte eterna, de certo modo, uma segurança e Licenciosidade da car-
nc para fazer qualquer coisa. Aqui certamente não há necessidade de pôr óleo

suffcre = suporlar. sofrci. 7 a l v c ~i>aulor l i v e ~ s rem niçnlc nl~l;ili$iIc


iic
OU No origiii;il ,sol~l;ir;,~,
:1!!1'iw : ~ k ~ ~ l ~í'alccidos.
~ l c ~ s , Opt:cn~c~spor CYIZL !illim;t vark!q3<?.

416
Contra os Antinomistaa

na lareira, isso é, lanfar fora a lei e atenuar aqueles pecados dos quais Cristo
predisse que aconteceriam em grande escala antes do derradeiro dia, quais se-
jam: orgias, embriaguez, conio se não prejudicassem aos piedosos. Portanto,
por causa da existência dessas pessoas duras e impenitentes na Igreja, devem
ser inculcados com freqüência e diligentemente os discursos de Cristo, dos pro-
fetas e dos apóstolos, por meio dos quais são ameaçadas de destruição através
de tais vícios prejudiciais. Depois também se devem apresentar exemplos da ira
de Deus contra a perdição de todo o mundo, revelada no dilúvio, na destrui-
ção dos sodomitas pelo fogo, na destruição de reinos, do mesmo modo como
nós estamos sendo atormentados e afligidos pela selvagem tirania do papa e
do turco, em alma e corpo, por causa de nossos pecados. Mesmo assim é pre-
ciso acrescentar sempre a consola~ãoa partir do Evangelho, que Deus não
quer a morte do ímpio que se coiiverte, isso é, que começou a odiar e a detes-
tar o pecado e aceita a Cristo como vencedor do pecado e de todos os males.
Onde existe esse conhecimento de Cristo e fé nele, segue-se itma penitência
continua, no entanto, não odiosa e difícil como aquela penitência estranha dos
hipócritas, mas agradável e fácil. Agora os filhos têm o Espírito Santo por
meio da fé, que os purifica durante toda a vida, santifica e vivifica. Ensina-
mos desse modo a respeito da penitência para que não seja entendida apenas
com respeito ao pecado atual, mas a todo o pecado original e atual. que não
é erradicado completamente por toda a vida. Certamente começou-se a revelá-
lo pela lei, e seus remanescentes permanecem nos santos; mas porque crêem
que lhes foi remitido por Cristo e o odiaram, e têm sede de justiça, não lhes
é imputado. Em resumo: "Não há condenação naqueles que estão em Cristo
Jcsus" [Rm 8.11. E se ainda têiii remanescências do pecado, assim mesmo es-
ses restos cometidos pela carne sáo nlortificados pelo Espírito. Por outro lado,
os que se encontram fora de Cristo são malditos e condenados, e deles a lei
exige que paguem até o último centavo. Por essa razão, não prestes oiividos
aqueles que querem ver a lei abolidn da Igreja. Pois seu ofício é necessário c
útil periiiai~entemente.ora por causa dos endurecidos, que precisam ser assusta-
dos, ora por causa dos piedosos, que precisam ser admoestados, para que per-
maneçam até o fim da vida tia peniténcia iniciada.

22' argumento.
Em Pari10 está proposto um claro exemplo da penitência a ser ensinada.
Mas ele ensjnou a penitência a partir da profanação do Filho. Logo, não sc
deve pretender alcançá-la a partir da lei.
Itesposta: Eu disse acima que a incredulidade no Filho é transgressão clii-
pia. Primeiro, contra a lei, que exige o temor, a fé, o perfeito amor a Dciis.
Visto, no entanto, que ninguém a cumpre, todos são seus transgressorcs c iiiis
de morte. Eni segundo lugar, porque não aceitam, mas odeiani o l'illio, rliic
vcio cuiiiprir n Ici, ctc.
23" argumento.
O Evangelho é discurso ou doutrina da remissão dos pecados. Logo, a pe-
nitêncja deve ser ensinada a partir da profanção do Filho.
Resposta: O argumento parece aduzir a violação do Filho neste contexto
porque os crentes no Filho devem precaver-se ao máximo para não se afasta-
rem dele por meio da incredulidade. Mas por causa disso a lei náo é abolida.
Pelo contrário, o que é descrente no Filho permanece sob a lei e todas as suas
maldições, sob a ira de Deus, etc. (Jo 3.36). Por isso não há pecado maior
que a incredulidade. Pois todo o pecado foi tirado por Cristo, perdoado e re-
mitido aos crentes. Portanto, esse argumento parece insistir em que se deva
evitar a incredulidade, para que não nos afastemos do Filho. Mas, como dis-
se acima, toda a profanação do Filho consiste em não crer nele, depois de re-
velado o pecado por meio da lei e dado o Filho que a cumpre e concede o Es-
pírito para a cumprir.

24" argumento.
Tudo que provoca ira não contribui para a penitência. A lei provoca ira.
Logo, nada contribui para a penitência69.
Provo a [premissa] maior: Rm 2.4: "Ou ignoras que a benignidade de
Deus te convida para a penitência?"
Resposta: É um argumento bom e retórico do ponto de vista da utilidade,
honesto, fácil e agradável. Se a benignidade de Deus convida para a penitência,
a lei não é nem útil nem necessária para a penitência. São Bernardo diz em
alguma parte70: "O coracão duro, que não se comove nem por ameaças nem
por castigos, deve ser atraido para a penitência pelos benefícios e promessas
divinos, e lhe deve ser inculcada a paixão e a morte de Cristo que ele aceitou
por mero amor, a fim de libertar o gênero humano do pecado e da morte, aos
quais estava sujeito". E verdade, quando não podemos conquistar os duros e
iinpenitentes com ameaças e pavores, devemos tentar se conseguimos dobrá-
10s com as promessas e benefícios de Deus. Assim procederam os filhos de
Coré. Ao verem que o pai pecava contra Deus e se arrogava o sacerdócio sem
vocação e sem mandato, sim, contra o mandato de Deus, e como não se como-
via nem por ameaças nem pelos terrores de Moisés, usam de retórica, relem-
bram ao pai todos os benefícios que Deus mostrou ao povo de Israel, libertan-
do-os do durissimo cativeiro do Egito, conduzindo-os pelo Mar Vermelho, pa-
ra que, chorando, o dissuadissem de não se opor a Moisés e h ã o juntamen-
tc com os seus7'. Assim também nós devemos valer-nos de todos os recursos
i~ossíveispara exortar as pessoas à penitência, isso é, para que sintam o poder da

(><I ('I'. Riii 4. 15.


711 llcrii;iiili>. I,, w,itica serrnu XLIV.6.
71 'I:ilvc, I.iiicrr> livessc ali riicrite Niii IhXss.. ;ipci;ii d;ih <livcicli:iiici:i~
lei. A mesma coisa faz Paulo na presente passagem, como a dizer: Deus te exor-
ta de todos os modos por meio de sua palavra, para que pares de pecar e ou-
ças sua promessa. Não diz que não deves lamentar-te. Inclusive requer isso e
permite que exortes com todos os recursos e meios retóricos. Depois não diz:
A benignidade de Deus te convida a amabilidade e segurança ou desprezo,
mas a penitência, e submete aqueles que não se deixam atemorizar nem como-
ver para a penitência, mas permanecem duros e impenitentes, a acumularem
sobre si próprios a ira, como fazia Coré, que não pôde ser movido a penitên-
cia nem por meio de preces, nem pelas lágrimas dos filhos.

2 5 O argumento.
Contra 21.
Abraão e outros patriarcas antes de Moisés conheceram o pecado e a mar-
te. Abraão e semelhantes não tiveram a lei. Logo, o pecado e a morte podem
ser conhecidos sem a lei. Prova da [premissa] menor é que a lei foi dada 430
anos depois de Abraão.
Resposta: Certamente a lei ainda não existia de forma ampla e escrita na-
quele tempo; não obstante, ele tinha a lei da natureza gravada no coração, co-
mo todos os seres humanos. Depois não há como duvidar que os patriarcas
ensinaram aquilo que está contido no Decálogo antes de a lei ter sido revela-
da do céu no Sinai, e essa doutrina passou para os pósteros. Gravaram no es-
pírito dos seus a impiedade e a malícia daqueles que exsitiram antes do dilúvio
e que depois foram extintos por causa delas, dissuadindo-os da idolatria e oo-
tros pecados, para que não perecessem também eles. Por essa razão não esta-
vam sem doutrina, sem dúvida, porém, apenas [com a doutrina] naturalnieri-
te introduzida nos corações. Depois de dada a lei, foi instituído o ministério
público para ensiná-la.

26O argumento.
Contra 1 e 2.
A incredulidade e a ignorância devem ser argüidas no inicio da penitênci:~.
A lei não argüi a incredulidade e a ignorância a respeito de Deus. Logo, a Ici
não é exigida para o início da penitência.
Provo a [premissa] maior a partir do dito de Cristo em Jo 16.8s.: "O Hs-
píi-ito Santo argüi o mundo", e "porque não crêem em mim". A mciior ficci
evidente porque o Evangelho revela tão insistentemente a incredulidade c a ig-
iioi-âiicia a respeito de Deus e de Cristo. Em resumo, este argumento qiics i)
scguirilc: o Espirilo Sai110 argüi a incredulidade e a ignorância a respcito <I<,
('i-isio. I .ogo, a lei n8o f o início da penitência.
I<rsl>os(a: A lei argui a incredulidade e a ignorância a respcito dc ('iisio
li11111iivcxigc seu ciiiiipriincnto. E os profctas ~>rcdissrrani a rcspciio de < 'risli)
<~iic clc scri:i scii ciiiiipridi~r(1s 0.4): "'lriiiiihsie si~hrc(1 jiigo dc sii;i c:irfii, c o
I I I , , v i i i Mitli;~". I(os ]>icclososc,iilrc iis iii~lviiss;il)i~iiiidisso. ('c~sl;iiii~~iilc
ii;io
Colitra os Antinomistas
titihain a Cristo presente, mas o tiniiani tia promessa e acreditavam que ele
iria restituir todas as coisas perdidas em Adão. Por isso, quando veio Cristo,
divulgou-se por todo o iiiundo por meio do ministério público este pecado da
incredulidade e ignorância a respeito de Cristo, que, a principio, no tempo dos
patriarcas, se escondia em recintos privados, mas também entre seus pósteros,
sendo também divulgado na Jitdéia. Mas desde o começo do miirido todo pe-
cado foi incredulidade e ignorgncia de Cristo, porque a promessa da descendên-
cia da mulher foi dada logo após o lapso de Adão, divulgada pelas casas dos
patriarcas até a plenitude dos tempos.

2 7 O argumento.
Contra a explicação.
D. J o n a ~ ' ~Os
: iinpios e os que não aceitam o Evangelho são endurecidos
(2 Co 4.3~s.). Logo, a palavra argiiidora não é eficaz noi que não aceica~iio
Ei;anselho. Logo, a lei é inútil e desrtscessiria.
O Dr. Martinho Lutero repeliu o argumento: A lei é ineficaz nos duros e
insensatos sem o Evangellio. Logo, os impenitentes podein ser coinovidos pe-
lo Evangelho, não pela lei. Respondo: A lei é comum a todos. poréin, nem to-
dos sentem seu poder e efeito; no entanto, quer os seres humanos se convertam,
quer não, a lei tem que ser ensinada. Pois foi para isso que Deus instituiu o
ministério da lei: para revelar e apontar o pecado. Os que são atingidos por
ela, são atingidfos; wens trifft, den triffl~"~.Nós fomos incumbidos de ensinar
que todos os seres humanos são transgressores da lei e estão sob o pecado, e
que os que querem libertar-se do pecado e cumprir a lei, que creiam em Cris-
to. Em resumo, Deus exige de rins, como suas criaturas, a obediência a lei e
a justiça. Mas ninguém a presta, visto que não exige apenas uma obediência
externa, mas também a pureza do coração, conforme atesta Cristo: "Se vossa
justiça não for mais abundante do que a dos escribas e fariseus, não entrareis
no reino dos céus" [Mt 5.20). Por isso deve-se pregar o Evangelho: "Quem
crer e for batizado será salvo" [Mc 16.161. Mas disso não segue que n lei é ineficaz.

72 Justo Jonas (1493-1555). teólogo e hiimanista, nascido em Nardhausen. Estudoil em Eifurt e


Wittenberg. Inicialmente ardoroso adepto de Erasmo de Roterdã, desde 1520 influenciado por
Lutero, passando a dedicar-se i Teologia. Participou de todas as dietas imperiais relacionadas
com a Reforma. Nos debates teológicas, desempenhou papel de mediador entre Lutero c Buccr,
entre Melanchthon e Agrícola. Seus estudos jurídicos foram importantes para a formulacão de
diversas condituiçócs cclcsiásticas. Joiins providenciou a tradução de diversas obras de Lutcru
e Melançhthon. Foi a primeiro dos reformadores a propugnar pelo matrimônio dos saccrdates.
Esteve junto ao leito de marte de Lursro e proferiu a alocução fúnebre em Eisleben. Erri Hallc
veia a ser suaerintendente eclesiástico. mas foi exnulso em conseaüência da Guerra dc Esitinlcalb
u c 1 I 6 8 i . i . i r u< c . l ! ~ i s( v Ilri.Ui.> ./.i I.:r:i.~I-i.irii:,l ...i .Ir.<.ir ri%.,., I ..ir.
I .i 1 II i i7 .I I I .J . . i . , t i ..
-3 N 1 , 4 II , c d c . , . r . r..,..:,. <.,,..,i.. ..i i,
Iraser em lingua diiiia entremeaiido o latim
Aqui o respondeute é perguntado pelo argunientador: Que dizeis a res11c.i-
to da pessoa de Paulo que, em meio a lei, nada sabia da lei? pois diz: "0iilii1-
m eu vivia sem a lei" [Rm 7.91.
Resposta: Antes da conversão, Paulo não sentia o poder da lei, ensinava
a lei e, não obstante, a ignorava. Quando, porém, ouviu: "Saulo, por qiic
me persegues?", foi tocado pela lei, e teria caido no desespero se não fosse
novamente levantado por esta palavra de Cristo: "Levanta-te e entra na cida-
de" [At 9.4,6]. Não refuto que o ser humano é conduzido a penitência a par-
tir da cruz ou da morte de Cristo.

2 8 O argumento.
D. Joiia: Os ímpios, que não aceitam o Evangelho, são deixados no a-
curo (2 Co 4.3). Logo, a lei argüidora não é eficaz a não ser no que aceila < i
Evangelho. E conseqüentemente, sem o ministério do Evangelho a lei não tciii
valor nenhiini para os ímpio~,como fica evidente e n ~Paulo que, embora tives-
se ouvido a lei com freqüência e miuto, desde a infância, sendo nela educado
e ii~struído,e, o que é mais, aos pés de Gamaliel, conhecedor máximo da Ici,
corno se gloria74,assim mesmo nada aproveitou nem foi conduzido a Cristo.
Doutor M. Lutero: O argumento quer dizer o seguinte: a lei é ineficaz pa-
ra os ímpios sem o Evangelho. Logo, a lei é totalmente ineficaz para a conver-
são do ser humano, porque é manifesto que os seres humanos ímpios não sc
deixam absolutamente comover à conversão por meio da lei, como fica eviden-
te em Coré, Judas, Caim, Absalão, Saul e outros. Eu respondo: Primeirameii-
te, sem dúvida, a lei é de todos, mas a compreensão da lei não é de todos.
Assim também o Evangelho certamente é de todos, pois se oferece a todos a
remissão dos pecados. Não obstante, a compreensão do Evangelho e a fé não
são de todos. Contudo, apesar disso deve ser ensinada a lei, deve ser ensina-
do o Evangelho, ainda que sejam poucos os que são atingidos pela lei ou apro-
vam e obedecem ao Evangelho, pois foi assim que Deus estabeleceu coovertci
as pessoas e prepará-las para aceitarem a Cristo. Entrementes, toca a qiiein 10-
car; nada mais podemos fazer. Somos ministros e não senhores quepud6ssc-
nios ensinar e, simultaneamente, comover os coraçòes. Portanto, é preciso [li-
zer qiie todos os homens estão sob o pecado e a morte eterna, e devem ser li-
bertados somente por meio de Cristo. Os que o aceitam, ótimo, os que 1130,
die gehen dohin (estes se vão), são apelgekotes, isso é, insensíveis, como diz
Paulo [Ef 4.191, pessoas que não se deixam comover nem pela lei nem pelo
Evangelho. Wer kann dawider? - (Quem pode fazer uma coisa contra isso?)
Deus, porém, é Senhor, que exige obediência de todas as suas criaturas. QLICIII
obedece, qne obedeça; quem não, bem, esse verá. Não obstante, sempre <Icvc
soar a lei: "Se a vossa justiça não for mais abundante, etc.". Por iiieio ~Iclti
Contra os Antinomistas
Deus é eficaz e age com poder onde e quando quer. E que tens til a ver com
isso se for ineficaz?
Um oponente: Qiie dizeis. porém, a respeito do exemplo de Paulo pelo
qual. por exemplo, somente parecein morrer os que espalharam tal opinião a
rrsprito da lei?
Resposta: Paulo nada sabia a respeito de Cristo aiites da conversão, de
modo que sequer soube qualquer coisa a respeito da lei, embora vivesse total-
mente na lei; ensinava a lei, mas ignorava-a, como está escrito em Romanos
2.19s~.Depois, porém, que a lei começou a soar desde o céu: "Saulo, por que
ine persegues?", Paulo foi primeiro tocado pela lei e sentiu a força e o poder
da lei, de modo que disse, abatido de medo: "Ó Senhor, que queres que eu
faça?" Aqui Cristo acrescentou mais uma palavra: "Por conseguinte, vai, etc.".
Certamente o ser humano deve ser conduzido a penitência a partir da cruz
ou da paixão de Cristo, mas dai não segue que, por isso, a lei é totalmente inú-
til, ineficaz e nula, e que deve ser totalmente abolida. Pelo contrário! Muito
antes chegamos à penitência a partir da cognição da lei e da cognição da cruz
de Cristo ou da salvação. A lei procede de modo simples e claro, como se cos-
tuma dizer, acusando. condenando, argüindo, precipitando no inferno, e age
de modo durissimo conosco. Não assim o Evangelho. Ele te compele branda-
mente e te atrai como que com arte ou com retórica para a penitência. Pois
além da remissão dos pecados, é oferecida a vida eterna aos crentes por causa
de Cristo, e tambéni propõe a Cristo como pastor que carrega em seus oiii-
bros a nós, ovelhas desgarradas, e que venceu nosso pecado em si mesmo e,
triunfando dele gloriosamente, afixou-o na cruz. Seja que chegues a penitência
pela lei, seja pela retórica do Evangelho, sempre serás uiii e o mesmo. Es sey,
wodurcti rs ~,olle,so ligt nichts dran - (seja por que meio for, isso não im-
porta). Neni por isso abolimos a lei em si; pelo contrário, a estatuimos, ela
não é revogada, mas confirmada.

29' argumento.
Contra 16.
A sombra niío é eficaz. A lei é sombra, como diz Paulo, sombra das coi-
sas futuras [C1 2.171. Logo, a lei não é eficaz.
Respondo: Quando Paulo chama a lei de sombra, fala sobretudo das [leis]
ccrirnoniais e judaicas. Aqui, porém, se trata da lei moral ou do Decálogo,
qiic acusa e condena toda a natureza. Por isso é chamada de martelo que des-
pcdaça pedras75, como consta em nossas teses, coisa que as leis cerimoniais e
iiidnicas não fazem.
30' argumento.
Contra o escopo do debate.
A Igreja não erra. A Igreja define a penitência como sendo confissão, coii-
trição e satisfação. Logo, vorsa tese 1120vale.
Respondo: Este também é um dos [artigos] aboniináveis e horríveis no rei-
no do papa, que misturam a penitência pública ou eclesiástica e a evangélica.
Quem ensina e efetua a esta é a lei, quando abala e coiripunge nossos cora-
ções; e ela é comum a todos os que se convertem a Cristo. A segunda, porém,
a eclesiástica, é antes certa encenação ou rito solene e há niiiito antiquada. Ela
se destinava ao caso em que alguém era convencido de crime muito grande, e
era obrigado a penitenciar-se na presença de toda a Igreja. Ora, não duvida-
mos que no corneço essa [penitência] tenha sido instituída com boas intenções,
por determinados motivos; não obstante, posteriormente, pessoas seculares e
indoutas ensinaram-na do modo mais ímpio, com injúria a Cristo, especialmen-
te porque também o divino Ambrósio escreveu que ela deve ser abolida e que
seria suficiente fazê-la uma única vez na vida76. Assim, pois, é abuso extremo
e impiedade dos monges que, para introduzirem tal penitência, ensinaram do
modo mais desavergonhado que é preciso que façamos satisfaçdo por todos
os pecados perante Deus, como aqui, na presença da Igreja, por esta ou aque-
la desonra. A partir dai foram criadas infinitas satisfações e acumulados cul-
tos dos santos e missas, dai surgiram as peregrinações a Terra Santa e ao divi-
no Tiago. Admito até que tenham um fundamento bom, para servir de elemen-
to amedrontador para as pessoas soberbas e duras. e para que sejam postos a
prova aqueles que iam sendo recebidos, para ver se realmente estavam arrepen-
didos ou não. E certamente foi bom e salutar para aquele que fez penitência
desse modo. perante toda a Igreja, sendo assim absolvido, porque tinha o segu-
ro testemunho de toda a Igreja que de fato fora recebidos na Igreja de Cristo.
Não obstante, foi totalmente ímpio que nossos papistas, não satisfeitos
com esse uso, ensinaram que é preciso que façamos satisfação igualmente pe-
rante Deus, devendo nós, assim mesmo, ficar na incerteza quando Deus está
satisfeito; por último apontavam para o purgatório, e não sei para onde man-
davam em seguida a nós pobres homens; [certamente] para a S c h l a ~ á f i a As-
~~.
sim nada de certo restou para as rníseras consciências e também não é possívcl
excogitar tortura maior. Isso deveis saber e recordar. Pois sua ignorância foi
tanta que inclusive enviaram para o purgatório aqueles que foram absolvidos
pela Igreja, a fim de que satisfizessem por seus pecados. Deste modo já estão
abolidas todas as penitências. Cuidai para não cairdes numa armadilha, sc
um dia eles voltarem. Por essa razão aprendei a distinguir corretanietite eiilrc
a peniténcia eclesiástica e a evangélica. Pois esta dura a vida inteira e não satis-
faz pelos pecados, mas apodera-se da satisfaGo de Cristo, por meio da fé, e
luta perpetuamente contra a concupiscência da carne do pecado, etc. A penitên-
cia deles, porém, está saturada de erros e blasfêmias contra Cristo e é totalmen-
te inventada, e, não obstante, acreditamos nela e a adoramos divinamente. Es-
sas satisfações certamente tiveram um fundamento bom, no entanto, quanto
prejuízo causaram na Igreja; falando nisso, nenhum ser humano o compreen-
de. Pois dai emanaram, como de uma fonte, todos e certamente os mais im-
pios erros.

31° argiinicnto.
Contra a esplica$ão.
4 s contrições de Pedi-o e de Jiidas diferem. A coritrição de Judas consis-
te apenas de ira, erro e desespero, não, porém, assim a de Pedro. Logo, é ne-
cessário que a contrição de Pedro tenha outra origem que iião seja a lei.
Respondo: É o que dissemos acima78. "A lei e os profetas [profetizaram]
até João" [Mt 11.131. Isso é suficiente para ela e não deve ser suportada por
mais tempo. As vezes, porém, aquela exigência, exação e força da lei se torna
tanta e se exaspera e aguça a tal ponto que mataria as pessoas se o Evangelho
não viesse em socorro. Certamente é tarefa da lei acusar, argüir, meter medo,
condenar os pecados, conduzir aos infernos e confrontar com a niorte. No en-
tanto, não coiicordamos que ela tenha o poder de levar ao desespero e matar
iiiteiramente, como a Judas, Caim, Saul e a outros, porque deve ser certo pe-
dagogo e exator, não para o iiiferno, mas para Cristo, conio diz Paulo79. Por
isso, se a lei ultrapassar esses limites, fora com ela e que se cuide! Ich wollt
selbst den Moysen helfen steinigen mit dem gesetze - (Eu próprio gostaria
de ajudar a apedrejar a Moisés com a lei). Por essa razão é preciso clamar pa-
ra a lei que passa além [de seus limites]: Sai daí! Já esqueceste? até Joáo, isso
é, basta para ti o que tens direito de reclamar, de exigir, mas, por favor, não
ine vás condenar ou abolir a Cristo; porque não és somente tu que nos dizes
i-cspeito, nias também o próprio Cristo, porque Cristo diz: Certamente quero
que te seja mostrado o pecado, mas depo,is de já revelado o pecado por meio
ila lei, também quero que não morras. E isto, pois esta é minha vontade, e
iii, lei, deves acusar. No entanto, tenho mais prazer na \ida do que na morte.
I? ai que surgem igualmente aquelas suavissimas palavras do Evangelho: "Ten-
de bom ânimo, eu venci o mundo" [Jo 16.231.
Por esse motivo essas duas coisas não devem ser separadas por mais tem-
po, como fizeram os papistas, mas devem ficar interligadas. Do contrário, nos
:ic«iitecerá a mesma coisa que aconteceu aos papistas que, ao ensinarem so-
iiiciitc a lei, ou, ao contrário, nem sequer a lei, incorreram em meros decretos
Iiiirnanos e iium desespero permanente, e implorávamos, como diz Davi: "Re-

7 8 ('I.;iii:iiiiicliii> 2. 70 'I'. <;I 3.24

424
~~p~ -

guei meu leito coni rniiihas lágrimas" [SI 6.61. E nem pôde ser de outra ma-
neira, porque ninguéni tios dizia algo a respeito da fT: em Cristo: "Não quero
a morte do pecador, etc." (Ez33.111, e: "Cristo veio a este mundo para sal-
var os pecadores, dos quais eu sou o principal, etc." [I Tm 1.151. Pois Pedro
foi tão contristado e atingido pela lei como Judas, e foi a mesma penitência.
Mas Pedro foi favorecido pelo que está escrito: "E o Senhor olliou para ele"
[Lc 22.611. "E depois de tua conversão, consola teus irmãos" [Lc 22.321. Ja
das ists! - (Sim, é isto!) Nisso Pedro é superior a Judas. Se não tivesse feito
isso, logo teria morrido, como Judas.
O Senhor quer que nos arrependamos. Se, todavia, permanecermos em
pecados, ele vem siibitamente sobre os ímpios, niata, destrói, como a Sodo-
ma e Gomorra, as qiiais aiuquilou e destruiu radicalniente. Mas humilha-te e
reconhece que és pecador, assim Deus também te perdoará, assiiii também tu
ouvirás esta palavra: "Não quero a morte do pecador". Entrementes, no en-
tanto, apesar de alguns serem atingidos e atemorizados mais e outros menos
pela lei, não obstante a consolação e a salvação são oferecidas a todos de igual
modo: que Cristo veio para salvar os pecadores. Igualmente: "Não quero a
morte do pecador", mas também isso um crê com mais, outro com menos fir-
meza. E conforme cada um crê, assim triunfa sobre os pecados. Ira, ódio, so-
berba, luxúria não são aqueles grandes pecados, h d t s nit der Knotenn -
(não considero este o nó), com os quais guerreiam os santos precipuaniente,
mas com os pecados de Judas, o desespero, a presunção, ódio e ira contra
Deus, e outras coisas semelhantes. Mas neles é preciso correr a Cristo pela fé,
para que uiii dia possamos dizer: "Graças a Deus que nos deu a vitória por
meio de Cristo Jesus, nosso Senhor" [I Co 15.571, e dizer juntamente com
Cristo: "Eu venci o mundo" [Jo 16.331, mas somente no vencedor Cristo.

3 2 O argumento.
Contra 4.
A mortificação acontece por meio do conhecimento de Cristo e pelo Es-
pfrito Santo. A coiitrifão é mortificação. Logo, a contrição não acontece poi-
meio da lei.
Respondo: A mortificação antes da fé é contrição. Isso, porém, acontecc
por meio da lei, porque a lei mata. "A força do pecado é a lei" [l Co 15.561,
sempre acossando e mortificando-nos. Nos justificados, porém, a mortificação
que nos redime da maldição da lei não é contrição, se realmente sou libertado
da lei, como diz Paulo80. Não obstante, a lei também continua sendo mortifica-
ção, porque nossa carne sempre é rebelde. Por isso o Espírito Santo ou a í'i:
sempre inculca a lei a sua carne, a fim de que cesse, para que não admita qiic
o pecado reine, nem faça o que deseja. Essa itiortificação, porém, é tolcriivcl
e justificante.
Contra os Antinomistas
33' argumento.
Contra 24.
Onde há pecado ali existe tambéni a lei. Na Igreja do Senhor não há peca-
do. Logo, na Igreja de Deus não há lei.
Provo a [premissa] menor com Ef 5.26s.: "Purificando-a por meio da la-
vagem da água na palavra da vida, para exibi-la para si como igreja gloriosa,
que não tem ruga nem mácula". Se é esposa sem ruga nem mácula, esposa
gloriosa, logo, não tem pecado.
Respondo: Este texto será cumprido na vida futura, a exemplo de todos
os demais enunciados sobre a santidade, a justiça, etc. "Pois agora enxerga-
mos por espelho, em enigma, então, face a face" [I Co 13.121. Aqui somos
considerados justos por causa de Cristo, mas lá seremos realmente puros e jus-
tos, luzentes como o sol. Os que vivemos aqui, não somos isentos de pecado.
De outro modo, por que oramos: "Perdoa-nos as dívidas, etc."? Ou entXo:
"Creio na remissão dos pecados"?

34O argumento.
A lei da circuncisão é superior ao Decáiogo. Mas a circuncisão foi aboli-
da. Logo, muito mais está abolido o Decáiogo.
Provo a [premissa]maior: a lei da circuncisão tem a promessa da descendência.
Respondo: A circuncisão não é melhor ou superior ao Decálogo por ter
:I promessa da descendência, visto que também os judeus tiveram muitas prer-
rogativas, como diz Paulo: "Pertence-lhes a adoção de filhos e a glória, e o
testemunho, e a legislação, e o culto, e a promessa; a eles pertencem os patri-
carcas, dos quais procede Cristo segundo a carne" p m 9.4ss.I. No entanto,
riem por isso são melhores entre os demais povos, como conclui Paulo aos
I<in 3.9: "Temos nós qualquer vantagem? de forma nenhuma". E justamente
tis piores pessoas têm, em geral, os maiores dons e têm abundância. O Decálo-
g«, porém, é maior e superior porque está gravado nos corações e mentes de
iodos, e nos acompanhará também na vida futura. O mesmo não acontece com
:i circuncisão, de igual modo como nem o Batismo permanecerá. Somente o
I )ccálogo é eterno, a saber, como tal, não como lei, porque na vida futura se-
i:i cxigida a mesma coisa que se exigia aqui. Finalmente, e para exemplo, o
I Ic~ílogoé mais nobre porque puxou a Cristo do céu [para a terra]. Pois se
ii:o estivesse ai o Decálogo acusando e condenado-nos, para que, pergunto,
i c i i n Cristo descido?
Contra os Antinomistas
35' argumento.
D. CordatoS1: Somente deve ser ensinado o que Cristo ordenou que fosse
pregado em seu nome, ao sair deste mundo. Ele, porém, ordenou que fosse
pregada a penitência em seu nome, não no de Moisés ou da lei8z. Logo, a pe-
nitência deve ser ensinada somente a partir do Evangelho, não da lei.
Dr. Martinho Lutero: Sim. A penitência deve ser anunciada em nome de
! Jesus, etc. Logo, não a partir da lei.

I Respondo: A conclusão é nula. Em primeiro lugar, porque o próprio Cris-


to pregou a lei. Embora tivesse vindo para cumprir a lei, não para aboli-la,
mostrou, às vezes, o que a lei exige, para que seus benefícios nos fossem reco-
mendados tanto mais, como dito acima. Em segundo lugar, a penitência in-
clui ambos, a lei e o Evangelho, como o divino Paulo quis que fosse pregada

I
a penitência no mundo inteiroR3:que todo o mundo é réu perante Deus. No
entanto, depois de convencidas todas as pessoas do pecado, da justiça e do juí-
zo, e de ter mostrado que todas as pessoas se encontram sob o pecado, tam-
Iir'iii nio(rr3 iiquele que di/: "Viiidc ;i iiiiiii rodo, qiic :\r;ii\ ~ohrc;aircg;idos,
I ~.
cii \ < I \ ri,t;ibc.le~o" 1\11 11.281. F.i$ciiie \.<iilioc \o\ ir;ico cisai coir:is. F i,,u
w

é de fato pregar a penitência e a remissão dos pecados em nome de Cristo, a


saber, que todos são pecadores, e depois, que devem ser justificados gratuita-
mente pelo sangue de Jesus Cristo (Rm 3.24~s.).Aqui ambas as partes são en-
sinadas em nome de Cristo, e essas duas partes seguramente continuarão neces-
sárias na Igreja. Pois se não for ensinado deste modo, as pessoas acreditarão
que são justas, não buscarão a Cristo, e deste modo serão condenadas. Por
essa razão também é enviado o Espirito Santo, e quando ele tiver tomado pos-
se de toda a pessoa, mais e mais se tornam conhecidos os pecados, tornando-
se conhecidos também os benefícios que recebemos gratuitamente por meio
de Cristo. E essa é a razão por que o mesmo Espírito Santo convence o mun-
do do pecado, da justiça, etc.
1
36' argumento.
Pergunta: Por favor, mostra-me em que passagem Cristo prescreveu anun-
ciar a lei.
Respondo: Cristo diz em Mt 5.19: "O que ensinar e fizer isso será gran-

i
de no reino dos céus". É um argumento sofístico: Cristo não disse: Pregai a
lei, logo a lei não deve ser pregada.

81 Conrado Cordato (1476-1546),pregador reformista na H u w i a e em virias cidades da Alema-


nha. Esteve algumas vezes em Wittcnberg e é conhecido como colecionador de "discursos B me-
sa" (Tiscbreden)de Lutero e por causa de seu debate com Melmchthon e Cniciger sobre a dou-
trina da justifica~ão.
82 Cf. Lc 24.47.
Respondo: É verdade, de acordo com a gramática e tomando as palavras
material ou tecnicamente. Pois na gramática existem diversos vocábulos para
"penitência", como também para "lei"; não obstante, quanto ao assunto, é
a mesma cojsa anunciar o arrependimento e anunciar a lei. Isso não são coisas
diferentes. E a mesma coisa. A lei é a revelação da ira, porque a penitência,
pelo menos em parte, na medida em que revela o pecado, e a revelação daira
são efeitos da lei. Pois, mesmo que não escrevamos as letras LEI, pensamos
no mesmo assunto. O próprio pavor da consciência, a própria tristeza a partir
da letra e da gramática são transferidos para o sentimento e matam o coração.
Se não vier em socorro o Evangelho de Cristo, acontece o desespero e a peni-
tência de Judas. No entanto, para que isso não aconteça, Cristo ordenou que
se pregasse a penitência e a remissão dos pecados, isso é, o Evangelho. Aqui
não se trata da palavra "lei", mas do assunto em si.

37' argumento.
É supérfluo fazer por mais o que pode ser feito por menos. O Evangelho
pressupõe que temos pecados. Logo, não é necessário que a lei seja ensinada.
Respondo: Lei e Evangelho não podem nem devem ser separados, assim
como também não podem ser separadas a penitência e a remissão dos pecados.
A tal ponto estão interligados entre si e implícitos. Pois pregar a remissão dos
pecados nada mais é do que indicar e apontar que existe pecado. A própria
remissão indica que existe pecado; tamponco pode ser entendido o que seja o
cumprimento se não se entender o que é a lei, assim como também a remissão
dos pecados não pode ser entendida, se não se sabe primeiramente o que é pe-
cado, nem ainda pode acontecer cumprimento, se não for constituída alguma
lei. Por isso Cristo diz significativamente: "Vim preencher a lei", não [encher]
algum copinho de vinhoa4. Que teria Cristo cumprido, pergunto, tendo sido
abolida a lei? Além disso, de onde iremos saber o que somos de natureza? e
por que o mundo inteiro jaz na maldade? De onde saberemos nós e todos os
scres humanos nascidos desde Adão até ao último serhumano a nascer, que
\oinos pecadores, se a lei fosse inteiramente abolida? E isso que tentam esses
tratantes.

Fim do primeiro debate


contra os antinomistas e carrascos de Moisés.

H4 No <iiiçili:il coosia N>iplerclegerri, liteialinçiitç "(pre)eiiclicr (as cxighcias) da lei"; ;rnplnc triiii-
Ii(.iii lpnilç sci çiiipren;i<lono seiili<lode "ciiclier" i i i n copo d i virilio.

428
Ao digno e doutíssimo senhor Caspar Guttel,
doutor e pregador em Eisleben,
meu especial bom amigo em Cristo.85
Graça e paz em Cristo, prezado senhor doutor! Suponho que há muito
chegaram a suas mãos os debates contra os novos espíritos que ousaram expul-
sar da Igreja a lei de Deus ou os Dez Mandamentos, e a transferi-los para a
prefeitura. Jamais teria imaginado que tais fantasias espirituais pudessem ocor-
rer à mente de uma pessoa, muito menos que alguém as fosse propor. No en-
tanto, Deus nos adverte por meio de semelhantes casos, para que nos precave-
nhamos, e que não imaginemos o diabo tão distante como se arrogam esses
espíritos seguros e atrevidos. Na verdade, é preciso que invoquemos constante-
mente o auxílio e a proteção de Deus com temor, humildade e oração séria;
do contrário, realmente acontecerá de fato em breve que o diabo nos pinte
um fantasma diante dos olhos, a ponto de jurarmos que é o próprio verdadei-
ro Espírito Santo, como nos advertem não apenas os antigos hereges, mas tam-
bém exemplos de nossos tempos, que foram grandes e horríveis e ainda são.
Agora, eu poderia ter esquecido tudo que me machucou neste ponto, se
eu pudesse ter ficado sossegado na esperança de ter mostrado suficientemente
meu ponto de vista com este debate e de me ter resguardado. Isso, porém, Sa-
tanás não tolerou. Ele sempre quer envolver-me, como se a situação não esti-
vesse tão má entre mim e eles. E creio até, se tivesse morrido em Esmalcalden6,
teria sido considerado eternamente patrono desses espíritos, porque eles se ba-
seiam em meus livros, embora tudo às minhas costas, sem que eu o saiba, c
contra minha vontade. Sequer fazem questão de me mostrarem uma palavri-
nha ou letra a respeiio, ou que me tivessem consultado nesse assunto. Por is-
so me vi obrigado a debater com M. João AgrícolaB7por mais de uma vez (so-
bre o assunto que ficou sabendo além do exposto no debate), e lhe disse dian-
te de nossos doutorrs, teólogos, tudo o que já havia sido dito. Porque ele é in-
citador e mestre deste jogo. Pois ele deveria entender que grande favor fez coni
isso a mim e meu espírito (que, aliás, considero bom).

85 Dcm Wirdigen und hachgelehrtcn Hcrrn Caspar GUttel, Doktar und Prcdigcr zu I.:i~lcbcci, ~iiri
ricm besondercn guie" freund jnn Chnsto. WA 50,468-477. Traduzido do origiial alcii,3<>IXX I 1
si~iiKnyscr.
Xh 1.iiieio cslevc cni Esmalcalde de 7 a 26 de fevereiro de 1537 por oc;isiãn da coiivcci~fii,<I<?\i,\I:i
<li,< qiic ir~rinavatiia liga de Esrnalcaldc ali defesa dn Ilcforinii. O piOprii>I.iiloi, c\ievc ~.c;ivv
t c ~ c ~cr~ic~rno
~lc c l ~ ~ ~ tcsta
~ r ~c~tadia,
lc tetncr~d<~-sc por stt:~ vicl:\. I'OT chia r~r,iTo n<ic r~<kIch c ~ ~ u r r
~ ~ ; $ r l i c i<I;!
] ~ :rcw>i%o
~r ~ I I C I C seus :~vligoscst:iri;un C$,I clisct~s%io. ('I' :tcin~;$
11, í,,
HJ .Ii,;i<t A~:,icob: 'i. 111ll<l~lll~3<).
Contra os Antinomistas
Desse modo ele se suieitou humildemente (como o revelam valavra e ges-
to), prometendo distancia;-se nos pontos em que se excedera e acompanhar nos-
so vensamento. Tive que acreditar nisso e satisfazer-me. Quando, porém, coii-

lebenS8estivessem de acordo um com o outro, continuei a insistir que ele deve-


ria publicar uma revogação pública. Do contrário não haveria maneira de aca-
bar com esse veneno em Eisleben e nas regiões cicunv?zinhas. A isso ele se dis-
pôs e se ofereceu de boa vontade. Como, porém, receasse que não encontraria
os termos certos, para que tivessem o efeito desejado, deu-me total confiança
e me pediu que o fizesse da melhor maneira. Ele anuiria. Aceitei a incumbên-
cia (e pretendo ter-me desincumbido dela com o presente escrito) antes de
mais nada para que, depois de minha morte, nem o próprio Mestre Eisleben
nem qualquer outra pessoa pudesse afirmar que eu não teria tomado providên-
cias e deixado correr tudo a seu bel-prazer.
[A declaração deveria ter] o seguinte sentido: O Mestre Eisleben declara
ter revogado o que ensinou contra a lei e os Dez Mandamentos e quer acompa-
nhar a nós (como ensinamos aqui em Wittenberg) e como também o expressam
a Confissão e a Apologia de Augsburgo89, diante do imperador. E mesmo que
viesse a pensar e ensinar de modo diferente posteriormente, isso deveria ser
considerado nulo e condenado. Eu gostaria de elogiá-lo por se humilhar dessa
forma. Visto, porém, que é sabido que ele foi um de meus melhores e mais in-
timos amigos, quero deixar essa tarefa para outro, para que dai não surja sus-
peita como se minha intenção não fosse séria. Se ele permanecer nessa humil-
dade, Deus certamente pode e quer exaltá-lo; caso se afastar, Deus certamen-
te pode precipitá-lo abaixo novamente.
Por isso, amado doutor, peço que não considereis o presente [texto] escri-
to para vós somente, mas que o publiqueis a todos que puderdes, especialmen-
te aqueles que não sabem ler. Pois o texto também será publicado pela impren-
sa, para que o leia quem quer e sabe ler, a fim de que não seja escrito somen-
te para vós, visto que não tenho outra maneira de combater o diabo. Por
meio de escritos, ele sempre quer apresentar-me de outro modo do que sou e penso.
Admira-me muito como é possível que queiram atribuir-me que eu quero
rejeitar a lei ou os Dez Mandamentos, quando existem tantas explicações dos
Dez Mandamentos de minha parte, e não apenas em uma versão, e que tam-
bém são pregadas e praticadas diariamente em nossas igrejas, sem falar da
Confissão e da Apologiam e de outros livros, sendo inclusive cantados em

H8 M.~~islisler Eisleben é o próprio João Agricola.


H<) Os icxtos completos da "Canfissgo de Augsburgo" e &a "Apologia dii <'oriiisiã<ins i cncoiitralii
ciii: I.ivio de Concurdia, Sinodal e Condrdia, S j i > I.copi>ldo e Porto Alcgic, pp. 23-304.
'NI V. 11i11:1 t~cimil.
Contra os Antinornisl:t\
duas versõesgi; além disso existem pintados, impressos, entalhados em madci-
ra, sendo também recitados pelas crianças pela manhã, ao meio-dia e de noiic,
de sorte que já não sei mais outra maneira em que pudessem ser oferecidos;
somente não os praticamos nem pintamos com os atos e a vida, como é dc
1
nosso dever. E eu próprio, por mais velho e estudado que seja, recito-os diaria-
mente, como uma criança, palavra por palavra. De maneira que, se de fato
alguém tivesse entendido outra coisa de meus escritos e, não obstante, vissc c
compreendesse que insisto de modo tão veemente no catecismo, simplesmente
se deveria ter dirigido a mim e dito: Prezado Doutor Lutero! Como é isso que
I insistes com tanta veemência nos Dez Mandamentos quando tua doutrina é
que se deve rejeitá-los? E isso que deveriam ter feito e não remexer as escondi-
das, a ininhas costas, esperando por minha morte, para depois fazerem de mim
o que quisessem. Pois não, seja perdoado àqueles que desistem disso.
Sem dúvida, ensinei, e ainda ensino, que se deve provocar os pecadores i
penitência por meio da pregação ou por meio da contemplação do sofrimento
de Cristo, para que vejam como é grande a ira de Deus contra o pecado, de
modo que não há outro remédio contra ele senão que teve que morrer o Filho
de Deus por causa dele. Essa doutrina não é minha, mas de São Bernardo".
De São Bernardo? É a pregação de toda a cristandade, de todos os profetas c
apóstolos. Como, porém, concluir dai que por causa disso se deva abolir a lei?
Em minha dialética não consigo encontrar semelhante conclusão, e gostaria
muito de ver e ouvir o mestre que a pudesse provar.
Quando Isaías diz no capítulo 53: Eu o feri por causa do pecado de meu
povo, ora, então se prega o sofrimento de Cristo, que ele foi Ferido por nos-
sos pecados; mas seria, por isso, a lei atirada fora? Que significa: por causa
do pecado de meu povo? não significa: porque meu povo pecou contra minha
lei e não a cumpriu? Ou pode alguém imaginar que o pecado tenha algum sig-
nificado onde não há lei? Quem afasta a lei tem que, juntamente com ela, afas-
tar também o pecado. Se quiser admitir o pecado, muito mais tem que admi-
tir a lei. Pois em Rm 5.13 está escrito: "Onde não há lei também não há pcca-
!
do". Se não existe pecado, Cristo nada é. Pois, por que morre ele, se não exis-

I te Ici nem pecado pelos quais tivesse que morrer? Disso se conclui que poi-
meio dessa esperteza o diabo não quer abolir a lei, mas a Cristo, o cumpridor da Ici.
Pois ele sabe muito bem que Cristo pode ser tirado logo e com facilidade,
mas a lei está gravada no fundo do coração, de modo que não é possível tir&

I la, como se vê nos salmos de lamento, onde os amados santos não consegiiciii

')I I.iiici<ii-clccc-se a seiis doia Ihirios sobre os Dcz Mandaiiienlos. Urn delc.;:I > i o i i i i l <Iic bc?l!:<.z~
/?liri <ichoi - (I!sles S.?" os sarili,a De, Manrlarnçiilos). ilc 1524, çiicori1r:iwc ciii: I($,:rrt,:c.lr.v<li,.\
t i i ~ ~ l ~ ~ ~ ~ ~W. g c<'rtiwcll, ~ ~ l ~ ~ ~(1''c 240.
s ~ ~ ~ llorl~nuc~d, / z ,
02 I ! ~ i i i ; i i , I i i clc ('1:ii;iv;il (10'11 -1151). :ili;icic <lc<'l;i~:iv;il, i. ,i cii;ii<ii ic<ili>g,>iiii#lici, i l < > ~i p < i v i >~h < > i i i , i
iii<i>\. A l i ; i i i y i > i i iiiiliiii1iiiici;i c i t i virliiilc <Icscii i-içi>c i.lii.ii, <Ich\!;$ ~iic,l;i<lrc < i > ; i i i i ~ i ; i 1. iiIcc<>v i
1iiii;iv:i ii i. i i i i 1 ; i ii>iiil'i~,ilii?iici:i.
suportar a ira de Deusq3, o que não pode ser outra coisa do que a pregação
da lei sensível na consciência. E o diabo também sabe muito bem que não é
possível arrancar a lei do coração, como diz S. Paulo em Romanos 2.14s.: os
gentios, que não receberam a lei por meio de Moisés, e assim não têm lei, são
eles próprios sua lei, tendo que atestar que a obra da lei está inscrita em seus
corações, etc. Ele, porém, recorre a esse expediente para tornar as pessoas segu-
ras e para ensiná-las a desconsiderar tanto a lei quanto o pecado, a fim de que,
quando de repente forem surpreendidos por morte ou má consciência, onde
anteriormente só havia pura e doce segurança, tenham que sucumbir no infer-
no sem que ninguém lhes ajude, como aqueles que nada mais tinham aprendi-
do em Cristo do que doce segurança. Por isso tal susto seria um sinal seguro
de que Cristo (que é pura doçura) os teria rejeitado e abandonado. Isso o dia-
bo procura e gostaria de alcançar.
Parece-me, no entanto, que esses espíritos vivem na idéia de que todos os
que ouvem a pregação são cristãos perfeitos, sem pecado, quando nada mais
são do que pobres corações atribulados, que sentem seus pecados e temem a
Deus, razão por que devem ser consolados. Pois a pessoas assim jamais se po-
de apresentar o amado Jesus com doçura suficiente. Eles o necessitam ainda
muito mais do que eu (quero silenciar a respeito de mim mesmo) o verifiquei
muito bem em muitos. No entanto, esses espiritos também não são cristãos
dessa espécie, porque são tão seguros e confiantes. Tampouco o são seus ouvin-
tes, que também se sentem seguros e confiantes. Em determinada passagem,
uma maravilhosa e bela virgem, uma excelente cantora, canta o seguinte: "E-
le alimenta os famintos" para que tornem a alegrar-se, "e despede vazios os
ricos; humilha os soberbos e exalta os humildes. E sua graça está com aqueles
que o temem" [Lc 1.52ss.I. Se o "Magnificat" tiver razão, Deus deve ser ini-
migo dos espíritos seguros, que não têm medo, como não podem ser diferen-
tes os espíritos que acabam com a lei e o pecado.
Por isso peço, prezado senhor doutor, permanecei na doutrina pura co-
mo o fizestes até agora, e pregai que os pecadores devem e têm que ser estimu-
lados a penitência não apenas por meio da doce graça e sofrimento de Cristo,
a saber, que ele morreu por nós, mas também pelos terrores da lei. Pois o ar-
gumento de que se deveria preservar somente uma forma de pregar a penitên-
cia, a saber, que Cristo sofreu por nós, do contrário a cristandade se confundi-
ria sobre o verdadeiro e único caminho - esse argumento não vale. Mas de-
ve-se pregar de todas as maneiras, por exemplo, das ameaças de Deus, suas
promessas, castigos, socorro e tudo o que pudermos, para que sejamos leva-
dos a penitência, isso é, sejamos levados ao reconhecimento do pecado e da
Ici por meio de todos os exemplos da Escritura, como todos os profetas, após-
tolos e S. Paulo em Rm 2.4: "Ignoras que a bondade de Deus te incita à penitência?"
Soponho, porbm, que eu tivesse ensinado ou dito que não se deve ensinar

~ ~ ~ - p

'li ('I'.. I'. c\.. SI ?X; SI 141; clc.


a lei na Igreja, embora todos os meus escritos mostrem o contrário e tenha in-
sistido sempre no catecismo, desde o inicio. Seria isso motivo para apegar-se
a mim com tanta pertinácia e [com isso] opor-se a mim mesmo, visto que sem-
pre ensinei de outro modo, tendo assim apostatado de mim mesmo, como o
fiz na doutrina do papa? Pois quero e posso gloriar-me de verdade de que
em nossos tempos nenhum papista é papista com a mesma consciência e serie-
dade como eu o fui. Pois o que é papista agora, não o é por causa do temor
de Deus, como eu pobre miserável fui, mas têm outros interesses, como bem
se vê e como eles próprios sabem. Eu tive que experimentar a frase de S. Pe-
dra: "Crescei no conhecimento do Senhor" [2 Pe 3.181. Mas ainda não encon-
trei nenhum doutor, nenhum concílio, nenhum dos pais, rnesmo que dilatasse
seus livros e extraísse deles a quinta-essência, que tivessem concretizado esse
"crescei" logo no começo e tivessem conseguido fazer do "crescei" um "ser
perfeito". Para falar a verdade, o próprio S. Pedro também teve que aprender
seu "crescei" de S. Paulo em G1 Z.llss., e S. Paulo do próprio Cristo, que lhe
teve que dizer: "Minha graça te basta, etc." [2 Co 12.91.
O meu Deus, será que não é possível admitir que a Santa Igreja reconhe-
ça que é pecadora, que crê na remissão dos pecados e que, além disso, pede
a remissão dos pecados no Pai-nosso? De onde, porém, se poderia saber o
que é pecado se não fosse a lei e a consciência? E onde aprender o que é Cris-
to, o que ele fez por nós, quando não nos é permitido saber o que é a lei (a
qual ele cumpriu por nós), ou o que é pecado pelo qual ele fez satisfação? E
embora não necessitássemos da lei para nós e a pudéssemos arrancar do cora-
ção - o que é impossível -, ainda assim devemos pregá-la por amor de Cris-
to (como aliás acontece e tem que acontecer), para que se saiba o que ele fez
e sofreu por nós. Pois qnem poderia saber o que e por que Cristo sofreu por
nós se ninguém pudesse saber o que é pecado e lei? Por isso tem que ser prega-
da a lei onde se quer pregar a Cristo; e embora não se queira usar expressa-
mente o termo "lei", não obstante a consciência é aiemorizada por meio da
lei, quando a pregação diz que Cristo teve que pagar preço tão alto para cum-
prir a lei por nós. Por que se quer afastá-la, ela que não pode ser afastada?
sim, quando é tanto mais confirmada quando afastada? Pois, certamente a lei
atemoriza de modo mais horrível quando ouço que Cristo, o Filho de Deus,
teve que suportar a mesma por mim do que se me fosse pregada fora de Cris-
to e sem esses grandes martírios do Filho de Deus, apenas por ameaças. Pois
no Filho de Deus vejo concretamente a ira de Deus que a lei me mostra coiii
palavras e obras menores.
Ah, qnem me dera ao menos ser deixado em paz da parte dos meus. J:i
iiie bastariam os papistas! Quase se poderia dizer com Jó e Jereiuias: "Qucin
me dera não ter nascido"94. Assim também quase estou inclinado a dizer: Qiii-
sci-;i nunca ter escrito meus livros, nem me importaria e o suportaria sc todos
Contra as Antinamistas
já tivessem desaparecido; e que em todas as livrarias estivessem a venda os es-
critos desses espíritos elevados, como é de seu desejo, para que se satisfizessem
da bela honra. Por outro lado, também não devo considerar-me melhor do
que nosso Senhor Jesus Cristo que também se queixa por vezes: "Trabalhei
em vão e meu esforço foi debalde"95. Mas o diabo é senhor do mundo, e eu
próprio nunca pude acreditar que o diabo poderia ser senhor e deus do mun-
do, até que agora experimentei de modo conveniente que também isso é arti-
go de fé: príncipe do mundo, deus deste século. Graças a Deus, porém, as pes-
soas não acreditam nisso, e eu próprio também não o acredito bem, pois a ca-
da qual agrada sua própria maneira, e todos esperam que o diabo se encontre
do outro lado do mar, e que Deus esteja em nosso bolso.
Mas temos que viver, pregar, escrever, fazer e sofrer tudo por causa dos
piedosos, que querem alcançar a bem-aventurança. Do contrário, olhando pa-
ra os diabos e falsos irmãos, seria melhor não ter pregado, escrito, feito nada,
mas ter morrido e ter sido sepultado o quanto antes possível. Pois de qualquer
modo pervertem e blasfemam todas as coisas, transformam tudo em puro es-
cândalo e vergonha, do modo como o diabo os cavalga e conduz. Haveremos
de lutar e sofrer; não podemos ser melhores do que os amados profetas e após-
tolos, que tiveram a mesma sorte.
Eles inventaram para si um novo método: primeiro se deve anunciar a gra-
ça, depois a revelação da ira, para que, de forma alguma, se ouça e pronuncie
aquela palavra (lei). Esta é uma bela "cadeirinha de gato"96 e Ihes agrada imen-
samente, e pensam que ali podem botar e tirar toda a Escritura e com isso tor-
nar-se a luz do mundo. É isso que deve e tem que sair de S. Paulo aos Rm
1.18. No entanto, não vêem que S. Paulo ensina exatamente o contrário: co-
meça mostrando a ira de Deus desde o céu e torna pecadores e réus diante de
Deus o mundo inteiro. Depois de terem sido tornado pecadores, ele Ihes ensi-
na como se alcança a graça e a justiça, como mostram poderosa e claramente
os primeiros três capítulos [da Epístola aos Romanos]. Também é uma ceguei-
ra e tolice especial pensarem que "revelação da ira" seria outra coisa que a lei,
o que não é possível. Pois "revelação da ira" é a lei, onde é reconhecida e sen-
tida, como diz Paulo: "A lei suscita a ira'' [Rm 4.151. Não foi um jeito astu-
to este que encontraram, quando abolem a lei e, ao mesmo tempo, a ensinam
ao pregarem a revelação da ira? No entanto, invertem as coisas e ensinam-nos
a lei segundo o Evangelho, e a ira segundo a graça. Vejo, porém, uma porção
de enganos escandalosos que o diabo insinua com esta "cadeirinha de gato";
no entanto, não posso analisá-los agora, nem é necessário, porque espero que
isso cesse.
Foi uma arrogância e atrevimento especial o fato de também terem inten-
cionado produzir algo novo e extraordinário, para que as pessoas dissessem:

95 Cf. Lc 13.34.
96 Katzenstülgen, "cadeirinha de gato": Lutero refere-se provalrnenlc a uma r;aleiriiili;i <Iç I>i>ilci:is.

414
Contra os Antinomist;i,
Creio que de fato este é um grande homem. É um segundo Paulo. Será qiic
os de Wittenberg são os únicos que sabem as coisas? Eu também tenho cabc-
ça, etc. Sim, de fato, uma cabeça que procura sua honra e que passa vergoiili;~
com sua sabedoria. Pois querem abolir a lei e, não obstante, ensinam a ira, o
que somente a lei pode fazer. Portanto, não fazem outra coisa do que atirar
fora estas pobres letras: "L E I", mas afastam a ira de Deus que é represeuia-
da e interpretada por essas letras. Acontece, porém, que com isso torcem o
pescoço de Paulo, querendo colocar no fim as coisas que devem estar no co-
meço. Não é isso uma arte elevada, que todo o mundo tem que admirar? I s ~
so, porém, basta por esta vez, pois espero que, pelo fato de Mestre Eislchcti
se converter e revogar, também os outros, que o aprenderam dele, desislii2o
disso. Que Deus Ihes ajude. Amém.
De tudo isso deduzimos e, se quiséssemos, podefiamos entender muito hciii
a história desde o inicio da Igreja, que as coisas sempre se deram da seguiiitc
forma: sempre que a palavra de Deus vingou e reuniu seu grupinho, o dialio
percebeu a luz e começou a soprar contra ela de todos os lados, ventando c iii
vestindo com ventos fortes e grandes, para apagar essa luz divina. E quando
se conseguiu desviar dois ou três ventos ou defender-se contra eles, ele sopnxi
contra a luz iuinterruptamente do outro buraco. E jamais desistiu nem parou,
e também náo haverá [de desistir] até o dia derradeiro.
Acho que somente eu (sem falar dos outros) aguentei mais que vinte tciii-
pestades e ataques que o diabo assoprou. O primeiro foi o papado. Sim, soii
de opinião de que todo o mundo deveria saber com quantos temporais, bultis
e livros o diabo investiu contra mim por meio deles, de que forma miserávi:l
me dilaceraram, devoraram e acabaram comigo. Mas também eu, as vwcs,
os bafejei um pouco, nada, porém, conseguindo a não ser que redobrassciii
sua ira e insanidade em ventar e lançar raios, até o dia de hoje, sem parar. 1:
quando quase ja nem me assustava mais com esses raios do diabo, ele me 1x0.
vocou outro rombo por meio de Muntzer e da revolução97, com o que quosr
teria apagado minha luz. Mal Cristo tinha tapado o buraco, ele me arraticoii
alguns vidros da janela por meio de K a r l ~ t a d t romurejon
~~, e assobiou, dc iiio
do que pensei que iria levar consigo juntamente a luz, cera e pavio. Dciis, po-
rém, socorreu mais esta vez sua miserável lanterninha, conservando-a, ii;ii.;i

97 Cf. acima nota 61.


V8 Aridrt Karlstadt (ca. 1480-1541),doutor em Teologia, professor e colega de Liitcro risi Ilriivri\i
<lii<ledc Wittenberg. Tornou-se um dos nrimeiros comnanheiros de luta de Luter«. Os iniii,iriiii\
descti~onti-osentre ambos aconteceram em 1521, quãndo Lutei" se ençoii1r:iv;i celitii:iil<> iiii
W.iriliiiino. Nesse inlerim. Karlsiadt assumiu a lideranca cm Wittenhcrc e i>irrc<lcitirl),iiii;i:.
não se apagar. Depois vieram os anabatistaP, arrombaram portas e janelas
(na opinião deles) para apagarem a luz. Provocaram uma situação calamitosa;
no entanto, não conseguiram impor sua vontade.
Alguns tambéiii investiram contra os antigos mestres conjuntamente, pa-
pa e Lutero, como, por exemplo, Serveto, Campaiio'" e outros semelhantes.
Não quero enumerar agora os demais que não investiram contra mim publica-
niente, pela impresna, mas cujos venenos e maliciosos escritos e palavras tive
que suportar pessoalmente. Quero apenas mencionar que tive que aprender
de própria esperiência (porque não tomava em consideração a História) que,
por causa da amada Palavra, sim, por causa da alegre, bem-aventurada luz,
a Igreja não pode ter paz, mas tem que defender-se sempre contra novas tem-
pestades do diabo, como foi desde o inicio, como podes ler na História Eclesiás-
tica Tripartita e também nos livros dos santos pais.
E ainda que vivesse mais cem anos e tivesse apaziguado não apenas os ata-
ques e tempestades passados e presentes @ela graça de Deus), mas pudesse apa-
ziguar da mesma forma também os futuros, vejo, não obstante, que com isso
não se teria conquistado a paz para nossos descendentes, enquanto vive e rei-
na o diabo. Por isso também rogo por uma misericordiosa liora de morte e
não tenho mais desejo de viver. Vós, nossos descendentes, orai também e em-
penhai-vos pela palavra de Deus, conservai a pobre lanterna de Deus acesa,
estejai alerta e preparados, como pessoas que a qualquer hora devem estar pre-
paradas que o diabo vos quebre lima vidraça ou janela, arrombe uma porta
ou o telhado, para apagar a luz. Pois ele não morre antes do dia derradeiro.
Eu e tu temos que morrer, e quando estivertiios nioitos. ele continua sendo o
mesmo que sempre foi, e não pode parar com seus ataques.
Vejo-o, ali de longe, enchendo as bochechas até ficar vermelho, querendo
assoprar e investir. Da maneira, porém, como nosso Senhor Jesus Cristo es-
murrou essa bochechas com seus punhos desde o início (também pessoalmen-
te), de modo que apenas saíram puns diabólicos, embora fedessem desagrada-
velmente, assim também o fará agora e no futuro. Pois não mente quando diz:

99 Anabatistas, v. acima nota 61.


1lHl Mizoei Servelo (ca. 1511-1553), médica es~anhol,humanista crítico, pcrsegiiido pela inquisi-
cZo por causa de sua doutrina trinitána de cunho madalista, revelando afinidade com Paulo
de Smósala. Fugi11 de Basiléia e se refugiou na França. Em sua fuga da pris2o da França pa-
ra a ItAlia. foi preso em Genebra. Caivino o acusou de negação da Trindade e Serveio foi con-
denado à~. foausira.. em 27 de outubro de 1553. J o ã o Camoano.
~ ~
, .
~.um iovsin oiie.. em 1528.
4 , s . tn>nr~:uk~J,> n., l l ~ n s r ~ i c ~ JC ; t J\\>ii.nhc<:.
; I > ~ < I I ,C.ILTC L I ~ u , I C I ~ ~ :
I,
J,m J w g c l i > , -
., I .:i .,: I ~ NA I , B I!,.
~ N O ( ' ' ~ I I o ~ ~ J KR~ L I ~ ~ L.ic> \, ~, ,x h u r g , >~ I ~ ~ I C U,u;cs\.,
,. !unr~".,$ , :.x.I-
1 r:~v<io r d I ~ r . 4J:t~ ~ n 5 1 i i . ~ ida , ~Sx~t.4
o Cc,i*. L111 1530s :~l,.~rt:cu~ Y A :~>n:A, pru~.iprc.1 .I-
ioi dc Torgau com um montoado de "iinpios e monriruosor dogmas". na opinifio dc I.iitci«
e Mclancl~thon.Ensinava que ao Espirita Santo não compete ~iersonalidadc.c qtic o Filli<rnão
i iair~lno Pai em essência e eteinidade. Atacou tambem a doutciiin evuiixélica da iuriificiicã<i.
<I;(~ieliitc?iici:ic da Palavra com<, meio da graca. Assim r i col<ico~i eni <i!io\ic;i<8;i Wiiiçiilicr,:
c ;i Itolii;i ao Ilicsmo icirip<i.

430
"Estou convosco todos os dias até o fim do mundo" e "As portas do ini'cr-
no não prevalecerão contra a Igreja" [Mt 28.20; 16.181. Mas também nos Ioi
ordenado vigiar e proteger a luz o quanto depende de nós. Está escrito: "Vi-
giai, porque o diabo é leão que ruge, que anda ao derredor, procurando o qiic
devorar" [I Pe 5.81. E isso não apenas nos tempos dos apóstolos, quando S.
Pedro disse isso, mas até o fim do mundo. É por isso qiie nos devemos orien-
tar. Que Deus nos ajude, como ajudou a nossos antepassados e como ajuda-
rá a nossa posteridade, para louvor e honra de seu nome divirio, eternamentc.
Pois não sonios nós,que podemos preservar a Igreja, também não o foram
nossos ancestrais, e nossa posteridade também não o será, mas foi, é e será
aquele que diz: "Eu estou convosco até o fim do mundo", como está escrito
em Hb 13.8: "Jesus Cristo, ontem, hoje e por todos os séculos", e em Ap 1.8:
"aquele que era, que é e que há de ser". Sim, este é o nome do homem, e nc-
nhum outro tein esse nome, e também não haverá outro que se chamará assim.
Pois há mil anos tu e eu nada fomos; não obstante, a Igreja foi presesva-
da sem nós, e o teve que fazer aquele que se chama: "O que era" e "ontem".
Do mesmo modo não o somos agora, enquanto vivemos, pois a Igreja não é
preservada por nós, porque nós não somos capazes de impedir ao diabo no
papa, nas hordas e pessoas más. E, se dependesse de nós, a Igreja deveria su-
cumbir diante de nossos olhos, e nós com ela (como o experimentamos diaria-
mente), se não fosse aquele outro homem que conserva tanto a Igreja coiiio
também a nós evidentemente, de modo a se nos tornar palpável e que o podc-
inos sentir, se não o quisermos crer; e temos que deixar isso para aquele qiic
se cliama: "Que é" e "hoje". De igual modo nada iremos contribuir para qiic
a Igreja seja preservada, quando estivermos mortos. Mas o fará aquele quc se
chama: "O que virá" e "por todos os séculos". E o que dizemos a nosso rcs-
peito nesse assunto, isso também o disseram a respeito de si nossos antepassa-
dos, como atestam os salmos e a Escritura; e nossos descendentes farXo a mcs-
ma experiência, de modo que cantarão conosco e com toda a Igreja o Salmo
124: "Não fosse o Senhor, que esteve a nosso lado, Israel que o diga, etc.".
É realmente um fato lamentável que tenhamos diante de nós tantos excni-
plos horríveis daqueles que julgaram que eles é que deveriam conservar a Igrc-
ja, como se a Igreja estivesse fundamentada neles, e que por fim pereccroiii
tão escandalosamente. Não obstante, esse cruel juizo de Deus não consegue
quebrar, humilhar ou impedir nosso orgulho e injúria. Que aconteceu ao MuiiI-
zerloi em nossos dias @ara não falar dos antigos e anteriores), que jiilgavii qiic
a Igreja não poderia existir sem ele, que ele a deveria carregar e governar'! 1;
recentemente os rrnabati~tas'~~ nos deram uma advertência horrível qiic c11g:i
para que nos leinbsásseinos como é poderoso o belo diabo e quão pri,siiiio clc
cstá, c como são perigosos iiossos belos pensamentos. De acordo coiii i) ~.oiisc~
lho de Isaías [44.19], devemos olhar primeiro para nossa mão, quando nos pro-
pomos algo, para ver se é Deus ou ídolo, ouro ou barro. No entanto, não
adianta, porque nós estamos seguros, sem medo e preocupação. O diabo está
longe de nós, e em nós não existe a carne que havia em S. Paulo e da qual ele
se lamenta (Rm 7.23), dizendo que não consegue livrar-se dela (como gostaria),
mas que é prisioneiro dela. Nós, porém, somos os heróis, que não devem pre-
ocupar-se com sua carne e pensamentos, mas somos puramente Espírito, e apri-
sionamos nossa carne juntamente com o diabo, de modo que tudo que nos
ocorre ou que podemos pensar certamente e sem dúvida vem do Espírito San-
to. Como poderia haver engano? Por isso também o resultado final é que ca-
valo e cavaleiro quebram o pescoço. Chega agora desses queixumes. Nosso
amado Senhor Cristo seja e permaneça nosso amado Senhor Cristo, louvado
em eternidade. Amém.
Índices
índices

INDICE DE PASSAGENS BÍBLICAS

ANTICLO Êxodo
TESTAMENTO 3.5 265
3.6 69
Gênesis 3.19 133
I 368 3-4 216
1.1 67, 120, 303
1.2 114
8.3 55 n. 173
8.8 122 i i . 273
8.14 55 ri. 124
9.12 116, 133
9.16 125, 126 11. 282, 133
12.1s~. 297 n. 135. 305

Juizes

1 Samuel
1.16 160 n. 357
Levitico 2.6 47
8.15~s. 297 n. 134
11.3 64 n. 155

Números
16.8~s. 418 n. 71 2 Samuel
1Reis
18.17

2 Crônicas
15.7

Salmos Jeremias
124
2 39 3.38 398
128.3
408 4.1 97
135.6
37s.
139.8
311 143
143.10
168
425 Provérbios
381
381 6.17
172 16.1
187 n. 415 16.3
98 16.4
159 21.1
278, 340
25, 125, 372 Eelesiastes

Larnentaqóes de Jeremias
5.4 338
98 Cantares
5.12 338
99 . .

Daniel
6.22 R23 ti. I84
Oséias
12.12 159, 338

Miquéias
7.4 41

Habacuque
2.20 45 n. 96

Zacarias
1.5 95

Malaquias
1.2s. 117

Marcos

Eclesiástico

NOVO
TESTAMENTO

Mateus

Lucas
1.3 335 n. 197
1.11 351
1.17 296

5.45 122 n . 271


h. 10 117
0.30 hh i i . 163 5.6 RRI 11. 103
Atos

22.32
22.61
23.2
23.24
24.21
24.26
24.30,43
24.39
24.44
24.46
24.47
Joãu
1.3
1.5
1.5,10,11
1.6
1.10
1.11
1.12
1.12,.
1.14 67,
Romanos

1 Conntios
1.9 3hfi

3.20 71
4.7 113, 3%
5.6 147
5.7 250, 290. 405 t i . ? I
5.7s. 415 r i . 07

V.26 75 11. 1x1


10.4 2311 ii. 52. 213 11. frll.
>"I. 10(>
1 Tessalonicenws
1.5 20 n. 42

1 Timóteo
1.4 20 n. 40
2.4 102 n. 234
3.15 61 n. 144
3.16 305. 316
15.47 381 n. 15
15.56 199 n. 427, 370, 384
r i . 24, 389, 392 n. 39, 425
15.57 425

2 Timóteo
1.10 393
2 Curíntios

2.9 42
2.19 23, 34, 149
2.20 148
2.21 152, 153
2.23 20 n. 40
2.26 49 ii. Ia?, 211 n. 440
3.16 25, 67
4.2 19, 21 n. 46,
Filipcnws 156 n. 344, 316 11. 176
1.15.IX 42 ii. 48 4.7 159
Titn Tiago 1 João
1.2 34 1.18 178 2.15.16 201

3.10 224 2.24 412 Apncalipse


3.15 21 n. 43, 58 n. 134 1.8 437
Hebreus 3.18 288 5.12 296
6.6 408 5.8 173, 437
6.7 125

Agostinho 14, 44, 51 n. 111, 53 n. 117, Calisto 1 368 n. 226.


57, 63 n. 152, 69, 75, 78, 83, 85, 189, Calvino, João 436 n. 100.
209,303,326,335,369n. 230,388,391s. Camerário, Joaquim 13 n. 15.
Agrícola, João 16 n. 26, 376, 420 n. 72, Campano, João 436 n. 100.
429 n. 87. Campeggio 13 n. 13.
Alber, Mateus 219 n. 10. Carlos V 221 n. 30, 379 n. 9.
Ambrósio 12 n. 5, 345, 423 n. 76. Catarina de Aragão 13 n. 14.
Anaxágoras 120 n. 266. Catarina de Bora 15.
Aoolinário 368 n. 226. Cicero 63 n. 151. 107. 213 n. 445
Á;io 368 n. 226. Cipriano 373 n. 232.
Aristoteles 70. 77 n. 188. 124 n. 276.. 150.. Cirilo 281 n. 114.
176, 213, 222 n. 34. Codro 168 n. 378.
Augias 61 n. 141. Cordato, Conrado 427 n. 81
Cornélio, bispo 373 n. 232.
Rerengário 324 n. 186. Crisóstomo 281 n. 114.
Bernardo de Claraval 57 n. 129, 418 n. Cristóvão, duque 219 n. 5.
70, 431 n. 92. Crotus, Rabeanus 12 n. 9.
Hodcnsteiii, André - v. Karlstadt.
I%r~hi<i 32 11. 67. Dâmaso, papa 120 n. 267.
Brçiii, João 219 n. 5, 220, 367. Demócrito 213 n. 442.
Iliiccr. M;irtiiiho 16 ri. 26, 221 n. 30, 420 Demósteiics 213 li. 445.
ii. 72. Dcuçaliio 58 11. 133.
lI~~~~,cr~l~:ij!,c~~,
.loXc) 219 11. 5, 220, 377. I>iclricl~dc ncrii;i 153.
Oioclrsioiio 20 ir. 41.
( ':iiiii ')O. I)ioiiisio 24 o . 52.
117
Dionisio Areopagita 410 i i . 60. Linçl., Vcnceslau 221 n. 27
Duneersheim. Jerônin~o221 n. 29. Leuci~o176.

Eck. João 411 n. 61.


Ecolampádio, João 12 n. 8, 118 n. 4, 220, Litít, João 16.
228, 289ss. n. 125, 340ss., 355ss.
Elix 61. Macedònio 368 11. 226.
Epicuro 23 n. 49, 26. 34, 39, 384 n. 23. hlarciáo 270 n. 102.
Erasmo de Roterdã Ilss., 218 n. 4, 279 n. hlarcos (gnóstico) 411 n. 62.
112, 281 n. 114, 346, 420 n. 72. Maria (mãe de Jesus) 277s.. 295, 310, 318,
Escoto 75 n. 180, 97 n. 224. 368.
Espalatino 15. Maria, rainha da Inglaterra 221 n. 30.
Martinho V, papa 222 n. 35.
Faber dc Constanca 61 n. 141) Mauricio da Saxônia 378 i]. 10.
.
Fistiei John 15 11. 19.
Fredeiico, o Sábio 414 n 65.
Melanclitlio~i,Filipe 11 n. 4. 16 n. 16, 17,
162 n. 360, 367, 376 n. 1, 404. 420 n.
72. 427 n. 81.
Gansforr, Wessel 217 11. 3. hléi-vi0 107. 1
Gideão 88. Miintzer. Tomás 211 n. 61. 237 n. 67. 317.
Gregório I, papa 345 n. 209.
Gregório XI, papa 222 li. 35
Giitkneclit, Jobst 221 Nestório 369 n. 229.
Ciiittel, Caspar 378 ti. 7. Nicodemos 205.
Nicolau, papa 374 n. 186.
I leiiriqiie VI11 13 n. 14. 15 n. 19. Novaciano 373 n. 332.
llcráclito 75 n. 180.
I Tilário 149.
Hocn, Cornelisr Hendricxz 217 n. 3. Oriyenei 12 n. 5, I18 n. 262, 120 n. 267,
1lomero 124. 125, 155, 201.
liorácio 28. 56 n. 128.. 140 n. 307. 177 n.
~
Ovidio 265 n. 98.
397. 231:
tlu\. João 62 n. 150. 70. 232 n. 57 Paulo 111. nana 377 n. 6.
Pedro ~ i s i a n o307 n. 158, 313.
Icr6iiimo 12 n. 5., 60. I I R n. 263. 120 n. Pedro Lonibardo 78 n. 189. 97 li. 224.
267, 142 n. 312, 144. 154, 158, h l . 189, ~ e l á g i o80,98 n. 229,369 n. 230,363 ri. 19.
192. Peiiikan. Konrad h 11. 12.
.Ii>>oBatista 67. ~ i l a t o s84.
.ii>ii> Frederico da Sawònia 377 n. 6. Plalio 26. 57, 176.
loiia\. Justo 16 n. 26. 420 n. 72. Plinio 76 n. 184, 213 n. 442.
Iiiii<i 33. Pórcio Festo 76.

h:~iI\i;idi.André 13 n. 18, 118 11. 4, 226, Quintiliano 30 n. M), 70


228. 294, 316 11. 178. 317, 331, 336,
11'). 346, 355, 358, Jll n. 61, 435. Rigulo, M. 164 n. 169.
Ki;iiilw;ild, Valentin1220n. 16,31611, 177. Rode, Fiinnr 217 n. 3.
Samósata, Paulo de 436 n. 100. Valentin 411 n. 62.
Scevola, Q. 164 n. 369. Valla, Laiirêncio 269 n. 100.
Schwenckfeld, Gaspar 219 n. 4, 220, 316 Vertumno 59 n. 136, 80, 118.
n. 177. Virgílio 28, 33, 39 n. 80, 107, 155.
Serveto, Miguel436 n. 100.
Sócrates 26.
Staopitz, 102.0von 414 n. 65. Witzel. Joree 377 n. 5. 436.
Terêncio 52 11. 116, 181 n. 408. Wyclil; ~ o à o12 li. 7, & n. 117, 62 n. 150,
Tertuliano 293 li. 127. 83,116n. 257, 1 6 8 , 2 3 2 ~57,32011. 182.
Tomás de Aquino 75 n. 180, 97 n. 224.
Ulisses 18. Zwínglio, Ulrico 12 n. 9, 217 n. 3, 218 n.
Ulrico von Hutten 12 n. 9 4, 222 n. 35, 225, 228, 346, 361.

Abolição da lei 397s. Analogia 148s.


Abscôndito Andar iia "carne" 251s.
- todas as coisas qiie se crêem devem ser Anjos 409.
a. 47. Antigo Testamento
Absurdidade - consiste de leis e ameaças 109.
- é a bumanaç50 de Deus 125; Antinomismo 270 n. 102.
- do agir de Deus 126, 150. Antitese(s)
Acidentes - Escrituras falam por a. 206s.. 210.
- não cabeni a Deus 144. Antropologia 11.
Adão 287. Antropologia bíblica 154s.
Adiáfora 374. Aparência
Adorar - das obras 164.
- no espírito 312 ss.. Aplicação
Afeto(s) - d a história 247.
-não cabem a Deus 144; Apologia de Aiigsburgo 430.
- triplice de Ongenes 202. Apóstolos 109.
Aflições Arbítrio cainbiavel 75.
- vêm de Deus contra nossa vontade 148. Argumentos
Aleose 256s., 273s., 306, 310; - da razão 91.
- é a máscara do diabo 258. Arianos 25 n. 55, 62, 71, 118, 126, 163,
Alma(s) 368 n. 226.
- seu impulso para as coisas torpes 90; Arrebatameiitos 412.
- e corpo insepardveis 264s; Arrependimento
- missas pelas o. 373. - toda a vida a. 385.
Amor Artigos de Esmalcalde 378 n. 8.
- sua pratica 109; Artigos de fé
- dc I>eiis preceilc a tudo 144ss.; - devem estar firmados na Escritura 68s.
iiisliliiiç5o siipietna 371. Assertivas pervicazes 12, 20.;~.
Aii;il>;ilisl;ts372. 411 ri. 61. 436. 437. Atraçào

U'J
- de Wurttemberg 219 n. 5; Crente
- sigilosa 373. - sua vida um exercício contra o i>ci.;i
Conhecer do 414.
- segundo a carne 253. Cristandade
Conhecimento - está dispersa pelo mundo 372;
- não é poder 91. - existe no mundo inteiro 372;
Consapacão dos elementos - fora dela não há perdão 372.
- os íanáticos não a praticam 295. Cristãos
Consciência(s) - conduzidos pelo Esp. não pelo livi-c-
- presas somente em Deus 37; arbítrio 116;
- leis papais a cativam 41; - aomesmotemponocéuenaterrn311s.;
- quer base sólida 355; - devem ser consolados 432.
- sua incerteza 423. Cristianisnio primitivo 55 n. 121.
Conseqüência necessária 110. Cristo
Consolação 395, 425; - fora dele existe somente pecado 201;
- promessa de recompensa é C. 111s. -juiz inexorável 205;
Constança - vinculou sua ordem a nosso falar 241;
- Concilio de 116. - duas naturezas em uma só pessoa 260s.;

Contemplação - Deus e homem numa só pessoa 261~s.;


- do sofrimento de C. 431. - no céu e na tema ao mesmo tempo 274s.;
Contrição 410. - não nasceu do esperma do homem 278;
Conventos 370; - circunscrito a determinado lugar 3íKss.;
- deve-se abandoná-los 374; - uma pessoa na humanidade e na diviii-
- se baseiam nas missas vendidas 374. dade 310;
Conversão - na circunscrição ao céu 319s.;
- o amor a Deus é a verdadeira c. 96; - verdadeiro homem sob todos os aspci.~

- não converto a ninguém pelo poder tos 368;


de minha pregação 399: - o fim da lei 398;
- não está em nosso poder 421. - seu oficio é devolver a iiiocèiicia 402;
Converter-se - não é legislador 409;
- palavradeduplo usonas Escrituras 97s. - mais temido que o diabo 416;
Cooperação - seus discursos devem ser inculcado:, 417:
- Deus e ser humano 177s. Cruz
Cordeiro pascoal - carregá-la com firmeza 100.
- cancelado com a S. C. 347. Culpa original 416.
Coricio, a gruta de 137. Culto aos santos 423.
Corpo Cumprimento da lei
- humano e repugnante 36; - seria impossível? 397.
- ç alma iriseparáveis 264s.
<'i>rpode Cristo Debate de Heidelberg 221 n. 30.
pre?ença visível na S. C. 236; Debate de Leipzig 14, 218 n. 4, 411 ti. 01
- Iprcscnte na I a Ceia 240s.; Decálogo 190, 419, 422, 426;
I tirge a partir do p i o 243; - Iixado na conscifncia 401.
c s i ~ cin
i toda parte 257; Decretos
sii;t itbiqiiidadc 261; - da Igreja 21s.
cslA tio pão 347; Dcscrcntes
irisisI?rici;i ri<] "nico" 347. - tb. iilgcrcni o cnrpo dç C. 243.
( ' o r ~ x0 1~1 I>%'>?321ss. Dccrdtirfr C;,:tli:trti 97 ti. 221.
( 'iiiiii~'("<' I>cgtlslaçZo
(li, p,?iirii> I1tiiii:tiiii 3 % i l i r corpo dc c ' . sciii I'C C vci,rmi 2.17.
Demônio(s) 211, 368. Distribuisão
Desejo 415 - do mérito de Cristo 246;
Destinacão 143. - dos benefícios de Cristo 246s.
Deus Divindade
- abscôndito 23, 47, 99s.; - é perigoso querer perscrutá-la 410.
- é justo por natureza 30s.; Doação de Coiistantino 269 n. 100.
- age sub contrario 47; Dogma(s) 22;
- sua forma de agir conosco 87; - distinsão entre eles 23;
- sua vontade não deve ser investigada - confirniados por milagres 55;
100s.; - do arbítrio 55s.
- revelado e não-revelado 101; Donatistas 372.
- oculto não nos importa 101; Doutrina
- pregado e abscondito 101s.; - a melhor maneira de manter e transmi-
- encarnado 105s.; ti-la 394s.
- nada faz seiii a Palavra 112; - dividida em lei e Evangelho 395.
- e o mal 123ss.;
- autor do endurecimento 123; Eclesiástico
- seria cruel? 123; - Lutero poderia rejeitar o livro 79.
- conceito da razão arespeito de Deus 124, Eleição 147;
- autor da natureza viciada 127; - e rejeisão 106;
- atua tb. em Satanás e no ímpio 128; - por graça ou por mérito 195s.
- faz o mal por nieio dos maus 128; Eleitos
- porque age como age? 131; - mantidos no erro por toda a vida 61.
- não cabem a ele afetos e acidentes 144; Elementos da S. C.
- ama e odeia de modo imutável I44ss.; -não têni termo de comparação com
- seu agir absurdo 150; corpo e sangue 257s.
- não atua em nós sem nós 177s.; Elênctico, uso e. da lei 379.
- é justo quando parece injusto 212; Empenho
- nasceu de Maria 310: - do livre-arbítrio 81s;
- e nosso inimigo 400; - até o melhor é impio 184s.;
- autor do pecado? 404. - não precede a graça 202.
Dez Mandamentos 429s. Endurecimento 15, 120ss.
Diabo 226, 236, 251s.. 254, 255, 258. Entusiastas 217.
273, 276, 288, 295, 296, 301, 305, 314, Enxertar
317, 318, 320, 329, 351, 378, 415, 429, - na videira 146 S.
430, 434, 435; Epicureus 213 n. 442, 387 n. 29.
- mestre dos fanáticos 228. Escandalizar-se
Dialéticos 173 - com Cristo 253s.
Dieta de ~ugsburgo218 u. 4, 219 11. 5. Escândalo
Dignidade 62; - o caminho da justiça é e. 183s.

- nela não há mérito 110s.; Escolásticos 11, 96 n. 224.


- dos oficiantes 372. Escotistas 96 n. 224.
Ilireito Canônico 324. Escoiha
Discernimento - liberdade de 91.
- discernir o pão da S. C. de outros Escrito Suevo 220.
pães 358. Escrituras
I>iscursosa meia 427 n. 81. - sua autoridade 20;
1)istinção - autoridade inviolável 21;
ciilre AT e NT 109; - e Deus são coisas distintas 23;
cntrc carne e espírito 167. - abstruias c obscuras 22s.;
Espíritos maus 266.
p a r a compreendê-la se precisa do E. Espiritualistas 217.
S. 26: Essência
- a Sé Apostólica a interpreta 65; - sacramental 320;
- sua clareza interior 25s., 65; - pão e corpo uma essêiicia 321ss.
- luz espiritual 65; Estado matrimonial 370.
- juiz dos espíritos 65; Estado santo 370.
- não são obscuras 66s.; Estatutos humanos
- são clarissimas 71s.; - 1120 podem ser observados sem perigo
- interpretaçào do detalhe em consonân- ao lado da Palavra 43.
cia com o todo 85; Estóicos 20, 56 n. 126.
- mais da metade é promessas 99; Eucaristia 14.
- seriam obscuras 103; Evangelho
- acepção siniples, natural das palavras - revela a natureza do mundo 41;
117s.; - chamado de palavra da luz 67;

- única autoridade 120s.; - é a pregação que oferece o Esp. e ;i


- falani por antítese 206s., 210; graça 109;
- única norma 232 n. 67; - é "sol" e "chuva" 125:
- uma palavra esclarece a outra 236; - seu verdadeiro oficio é "ivificar 396;
- as palavras devem ser deixadas em seu - não argüi os ~ecados420.
teci 302. ~ x o r t a ~ 146s:;
~es
Escrurar - do NT estimulam os justificados 109.

- a vontade de Deus 105s.; Exce@o 183~s.;


- querer escrutar os mistérios de Deus é - não existe 194;
temeroso 137. - não há 199s.
Esforço
do livre-arbítrio 81s.;
- até o melhor é vicioso 184s. Facilidade
Esmalcalde, Artigos de 378 n. 8. - de ciin~vriros mandaiiientos 102s
Esmalcalde, Conferência de 377 n. 6. Falar
Esperaii~a112. - nosso falar nada produz 241
Espírito (humano) Fanáticos 65,218,223, 224,248,252,261,
- vê, passa e escuta através de uma 268, 294, 297, 309, 311, 320, 330, 334,
parede 268. 335, 336, 340, 343, 344, 347, 359, 366.
Espírito (Santo) 55s., 400; Fariseus 69.
- não é necessário? 91; Fato e uso do fato 247;
- é concedido pela Palawa 112; - o fato é figurativo, as palavra são liie-

- siia obra na 1. 175; rais 305s.


- é cumpridor da lei 190; Fazer o bem
- nota ecclesiae 221 n. 30: - com vontade desinteressada 110.
- sua divindade 368 n. 226; Fé
- uma essência e natureza com o Pai e - e obras 197~s.;
o Filho 371; - dispensável para os que adminislraiii
- a&àoexterior e interior 371s. a S. C. 243;
- cm forma de pomba. vento e línguas - tem que obcecar a razão 266;

323s. - ludo quanto a fé ensina é invisivcl 101;


- precisa de um objeto maicrial 319;
- somente ela cumpri ;i Ici 3x9;
- iiclu cstaiiios ciii vi;is dc miar 403;
\1,;i l,llil 414.
Fermento 147. Heréticos
Ferro em brasa 325s. - não podem ser instruídos 163.
Figuras Heresia
- não devem ser admitidas na Escritura - um mestre dela não se converte 224.
117s.; Heresia boêmia 232 n. 57.
- não ajudam 119; História
- não têm utilidade 126. - e aplicação da história 247.
Fieuristas 343. Homem 204,
Firhos - cavalo cavalgado pelo diabo 15;
- a t ã o sendo ~revaradosDara o reino 111. - campo de batalha 16;
Filhos de ~ e u s .
L - deve ser avaliado mais pelo que sente
- pelo nascimento divino 204. do que pelo que diz 57.
Fomes 415 n. 66. Homoousios 163 n. 360.
Força do livre-arbítrio Humanidade
- é o que há de mais excelente no ser - de Cristo 25.
humano 191. Humanismo 12 n. 9.
Formas de ser Humanistas 369 n. 330.
- as três f. de ser de Cristo 261ss.
Formas Iconoclastas 374.
- da presença de Deus 306ss. Ignorância
Fraqueza 153s.; - não tem desculpa 104;
- humana apta para compreender a pala- - de Deus é fonte de todos os crimes 188.
vra de Deus 72. Igreja
Frutos - é o firmamento e a coluna da verdade 61;
- da . iustiça
. 109; - Deus permite que a I. erre 61;
- obras nossas? 113. - Cristo a conservou sob os hereges 62;
Fruto evangélico 172, 176 - é ahscôndita 64;
Fundações 370. - espíritos provados em face da I. 65;
- comunhão de todos os crentes 232 n. 57;
Gênero humano - uma Sta. I. Cristã na terra 372;
- é carne 164; - é a unidade e soma de todos os cris-
- dividido em dois grupos 201. tãos 372;
Gentios - é a noiva de Cristo 372;

- tb. eles têm autoridade, erudição e em- - impios misturados aos justos 391;
penho 55. - nZo pode ter paz 436;
Glória de Deus - não podemos preservá-la 437s.
- ativa e passiva 194s. Igreja da Inglaterra 13 n. 14.
Graça Iluminação interior 411 n. 61.
- quádrupla 80; Imagens 295, 298;
- e livre-arbítrio 81 S.; - não são estorvo 228;
- auxiliadora 178; - adiáfora 374.
- guerra contra ela 184; Impanação 220, 318ss.
- precede a tudo 202. Impenitência
(;rula de Coricio 24 n. 52. - é pecado irremissivel 29.

(;iicrra Impenitentes
- contra a graqa 184. - como pregar a penitência a eles 417;
(iiierra de Esmalcalde 76 n. 26, 378 n. 8. d e v e m ser atraídos com as promessas
<;iicrr;i dos Camponeses 13, 15, 411 n. 61. de Deus 418.
Imperativo 14%
- c iridic:iiivo 9lss., 84-99, 153.
Impio(s) Israel
- Deus atua nele 127; - sua escória preservada 61

- é todo aquele qiie não tem o Esp. de


Deus 165; Jejum 218 11.4.
- misturados na 1. 391; Judeus e gentios 183s.
- não se deixam comover a coiiversão Juizo duplo
pela lei 421. - prova os espíritos 65.
Impotência Juizos de Deus
- do ser humano 88s.; - devem ser adorados 137
- humana revelada pela lei 111. Justiça 162;
Inipulso - de Deus e a razão 149~s.. 212s.;
- da aima para as coisas torpes 90. - de Deus 194;

Imputação 198s.; - da fé e da lei 193s.;


- da desobediència 105; - dupla de Abraâo 198.
- do pecado 417. Justificação
Imutabilidade 170. - e livre-arbítrio 189~s.;

Incredulidade 407s.; - por graça 197s.;

- dos judeus 146s.; - e lei 388:.


- tmnsgressão dupla 417s.; - siia causa eficiente k a graça 406.
- o maior pecado 418.

Indicativo Lanterria de Deus 436.


- e imperativo 91ss., 84-99, 153. Lapsos 373 n. 232.
Indignos Legislador
- tb. ingerem o corpo de C. 243; - sua obra 94.

- tb. participam da S. C. 362s. Lei


Indulgência(s) 218 ri. 4. 232 n. 57; - de Deus é clarissima 66:
- é trapaça 373. - inostra que o caminho para o berii L:
Injustiça imriossivel 91:
- Deus não faz i. 136s. - ilumina a razão cega 91;
Inocência - leva ao conhecimento da miséria huiiia-
- oficio de C. é devolvê-la 402. na 94;
Instituições 3 7 0 ~ . - revela o pecado e a impotência 1111-

Iiiteligência mana 111;


- deve ficar aprisionada nas obl:is e pala- - é c~impridaquando os pecados sáo jic~
vras de Deus 321. doados 159;
íntcrim - ceriiiionial 189ss., 405, 422;

- de Augsburgo 378 n. 9. - ab-rogada 190, 402;


- de Leipzig 378 n. 10. - seu oficio: ser luz para o\ igiiorantch 1'12;
Iiitcrioridade - é impi-esçindivel 193;
- testemunho na 317. - c livre-arbitrio 189~s.;
Interpretação - seus usos 378;
- figurada e tropologica 117~s.; - é inútil para a salvaeu 382;
- conveniente 171~s.; - inscrita nos coraçòcs 387, 431s.;
- simples das palavras 227ss.; - e justificação 388s.;

- figurada 305; - somenie a fé ein C. a ciiinirrç 380;

- textual 329. - libertaçio dela por incio ds iiirirlc RH')s.:


I~~visi~cl - dcvc sci-i>icc;ida;iiiirii>\c iiiii~iorJLXh.:
- prcseiiça iiivisivel 302ss.
- necessária para entender a C. 392; -só é capaz de pecar 83, 131;
- que não condena é fictícia 393s.; - é um termo vazio 83;
- seu verdadeiro ofício 396; - é capaz de algo 84s.;
- não é impossível 397; - e os pelagianos 88s.;
- não foi abolida 397s.; -capaz de vencer o impulso para as
- sua maldisão foi abolida 397; coisas torpes? 90;
- argüi o pecado sem o E. Sto. 399s.; - não pode querer o bem sem a graça,
- impela a pedir auxilio a C. 400; 81ss., 93;
- perde seus poderes por C. 401; - seu esforço 97;
- sob C. ela consiste em "tornar-se" 402; - tem mérito 108s.;
- aumenta o pecado 403s.; - só faz oposição ao E\,angslho 115;
- em C. cessou sua exaçio 405; - igual em todos os seres Iiiimaiios 124s.;
- moral 405, 422; - exclui a graça 187s.;
- não necessária para a salvação 406; - e a lei l89ss., 191s.;
- impossivel para a justificaçáo 406; - é escravo do pecado 202;
- seu cumprimento imputativo 406; - afirmá-lo é negar a C. 205, 207;
- exige o perfeito amor 407; - por ele estaríamos todos perdidos 212.
- sem o E. Sto. 410; Lolardos 222 n. 35.
- da natureza gravada no coração 419; Luta
- início da penitência 419; - entre Espírito e carne 111;
ineficaz nos endurecidos 420s.: - da fé 414.
deve ser pregada por obedibicia à Lutero
ordem de Deus 421; - suas condições físicas 221;
- sua tarefa é acusar 424; - deseja morrer, 436.
q u e m a afasta tem que asfdstar tb. o Luxúria
pccado 431; - n5o é o grande pecado 425.
sem ela nao se reconhece a C. 433.
I .ci c Evangelho 76, 95s., 99s., 395s., 407, Macedonianos 368 n. 226.
422; Mãe
como pregá-los 434s.; - ser mãe é um santuário 370;
1130podem ser separados 428; - de Jesus 328;
I .ilici.dade Magnificat 432.
cristã usada em proveito próprio 42; Majestade de Deus 101, 105, 410s.;
ilc cscolha 91; - seus segredos não devem ser investi-
qiic C. presenteou 416; gados 105s.;
I .icciiciosidade 416. - deve ser adorada 137;
I .ig:i de Esmalcalde 377 n. 6. 378 n. 8, - relacionamento direto com ela 411;
429 ti. 86. Mal
I ii:a I5el da Divina Vontade 411 n. 61. - Deus e o mal 123ss.;
I .ivi-c-arbítrio - como Deus o opera em nos 127s.;
tlcliiiiçáo de Erasmo 14; - o próprio Deus o põe em movimento 126;
ilcsiiecessário para a piedade 26s.; -ignorar a Deus é fonte de todos os
<li, quc C capaz 29; males 188.
Iriii rol-c;! liniitada 49; Maldição da lei
c<oiill>ere5 0 a Deus 50, 74; - foi abolida 397.
ui:i li>ic.;icfctiva 55ss., 57s.; Mandamentos
ol~iiriiidopor Satanb 71; - evidenciam o fracasso 15;
\ i i i i ~IcfiniçZo7 4 - poder guardá-los 88. líl?~.;

; i i i i l > i i i sc-llic ;i di\,iiicl;i<lc77; - dados dcsiiecessai-iaiiirliic<)O;


I:iciilcl;iilc <Ic disccr~iii7x5.; - ii~ipossiveisi' csdiriiio 1' 1
Maniqueus 125 n. 280. Mortos
Mártires 53. - oração por eles 373
Mansidão evangélica 12 Mundo
Marcionita 270 n. 102; - reino de Satanás 70;
- C. tem um corpo marcioiiita 331. - nos escritos de João 203;
Marcos -diferença entre "deste" e "neste" 319.
- tem descrição incomuleta da S.C. 347.
Maria 205.
Náo-crentes
Mateus
- pecam eni dobro 408.
- teni descrição incompleta da S. C.
Matrimônio Natureza
- viciada criada por Deus 127;
- no clero luterano 221 n. 30;
- humana é cega e soberba 87;
- não é sacramento 374.
- corrupta 416.
Maus
Naturezas de C. 2 5 6 s ;
- Deus faz o mal através deles 128,
- onipresentes 222;
Mediação
- duas em uma só pessoa 260s., 320ss.;
- entre Deus e o ser humano 412.
- não devem ser misturadas 261s.
Memória
Necessidade 31s.;
- S. C. m. dos sofrimentos 358.
- daconsequência32n. 68,134,141s. 168;
Mérito(s) 143ss., 159;
- d a imutabilidade 48ss. 170:
- do livre-arbitrio 108s.;
- da fé 146;
- tudo é feito por 50, 80. 83, 157;
- de pecar 90;
- e justiça gratuita 195s.;
- da compulsão 110;
- alheio 205;
- infalível do tempo 140.
- condigno 195s., 205;
- sua distribuicão 246.
Neopelagianos 369 n. 330.
Nestorianos 369 n. 229.
Metáfora 231.
Nota ecclesiae 221 n. 30.
Midianitas 88.
Neutro
Milagres 55s.
- não existe posição neutra 206s.
Milicia do pecado 158s.
Norma
Ministério
- paraa interpretação das Escritiiras 302.
- da Palavra 175;
Nova aliança 348s..
- público da Palavra 65. 419. 420:
Novacianos 373.
- sacerdotal 370;
Novo nascimento 109.
- d a lei 420.
Novo Testamento
Ministros
- sua suma 109;
- dispensam a fé 243;
- edição grega 218 n. 4.
- e não senhores 421
Núpcias espirituais 410.
Miséria
- do ser humano 94.
Missa 14, 218 n. 4, 423; Obrador 199s.
- pelas almas 373; Obras
- vendida é abominarão 374. - morais preparam para a graçka I(+,
Modalismo 271, 368 n. 226. - segundo a lei $20 pecado 160;
Modernos 76 n. 182, 96 n. 224 - distintas arrihoidas a Deus e ao ho-
Motiacaro 269 n. 100. iiieni 177;
Moiitaiiisriio 293 n. 127. - cerimoniais 189~s.;

Morlc salutar 411. - morais 190, 1911;


Morl ificacA<l - são penitência 385.
(. ri,iilri(.%o:III!CF <li, IU 425. Obrai de Deus
- boas do ponto de vista de Deus, más - da S. C. devem ser entendidas ao pé
do ponto de vista do honiem 127. da letra 367;
Obscuridade - externa 361;
- das Escrituras 22ss. - significado único 226s.;
Ob~ervância - externa 361.
- da lei seria fácil? 103. Palavras-aqão 237s.
Obse~vantes414 n. 65. Palavra(s) de Deus
Odio - sua sorte 39;
- de Deus precede a tudo lj4ss. - gera tumulto 39s.;
Oferecer - sua glória 42;
- significa dar, e não entregar amorte 345. - distinção entre p. de Deus e o próprio
Onipotência Deus 101;
- por que Deus não reiiuncia a ela? 131; - aferrar-se a pura e simples 126;
- se opõe ao livre-arbitrio 137. - ininteligivel a razão 257;

Onipresriica - santifica a tudo 371.


- de Deus 36s., 128; Palavras-maiid,amento 237s.
- da natureza huiiiaiia de Cristo 222. Pálios 62 n. 149.
Orasão Pâo (na S. C.)
- pelos mortos 373. -ou corpo na S. C. 321ss.,
Orasão Dominical - e corpo uma essência 322;
- é oartc da oenitência 386. p a r t i d o não diz respeito a paixão de
ordem C. 344, 347s.;
- de C. vinculada a nosso falar 241 - comê-lo dignamente 354s.
Orderis Papa 58, 62. 85;
- religiosas 370; - coloca-se tio lugar de Deus M;
- sagradas 370. - e os seus iião são a Igreja 70.

Papado
- 4 o regime anlicritão 372.
Pai Papistas
- ser pai é um santuário 370. - não sabem o que é penitência 415.
Pais da Igreja parábolas 234.
- agiram insipirados pelo E. Sto. 14; Parcas 33.
- nada asseriram a respeito do livre- Passivo
arbitrio 59; - ser huinaiio é passivo na renovai;Zo 114.

- suas debilidades 60s.; Pastores


- intérpretes da Escritiira 68; - servidores da Igreja 373.
- Lutero os contradiz 122; Pecado
- cegos em relação a Escritura 143; - sei1 conhecimento vem pela forca da
- de autoridade duvidosa 200; lei 91, 111, 413;
- - citaram as Escrituras em lugar impró- - de Adão é nosso 200;
prio 344s. - sua caiisa 404;

1';ilnvrn - não tetii mais domínio 413;


- Dciir iiada faz sem ela 112; - seu remanescente 415, 417;
- \til significado natural 119; - seu reconliecimento sem a lei 419;
i150 iiatural do sigiiificado 174; - ódio, soberba, luxúria iião são os gran-
>ciilido literal nas Escrituras 305s.; des pecados 425.
2 ~picçisr,ctitcndê-Ias comi I é 321s.; Pecado atual
2 liicciso eridar rio esciiro c agarrar-se - abolido pela contricâo? 414s.
:I cl:ts 321; Pccado iiiol-tal 373 n. 232.
( , o lprincipal I,:! S. c'. 351; I'ccxilo i,rigiii:tl 200, 360s. 383 ii. I<);
- nos corrompeu 215; - quanto mais o sinto, mais ódio ;i
- é pecado 404; Deus 406.
- fraqueza da natureza 415. Por quê? 137;
Pecar - Deus age como age 131;
- a necessidade de 90. - Deus justifica a um e condena a o i i ~
Pedro tro? 196.
- tudo que ele disse é verdade? 60. Povo 161s.
Pelagianos 51 n. 11, 77 n. 187, 81, 93, Povo de Deus 62s.
113, 180,196~.205,369n.230,383n. 19; Prazer na lei 401.
- atribuem tudo ao livre-arbítrio 88. Preceitos 157
Penitência 27, 374; - de MoisEs 92;
- e Iivre-arbítrio 157; - inúteis sem o livre-arbítrio 93.
I
- não procede exclusivamente da lei 380; Predestinação 11, 33, 108, 143s., 214, 413
- definição dos sofistas 380; n. 65.
- no conceito dos papistas 287, 385; Predicaçâo idêntica 222;- não oci>ii c
- no conceito cristão 385; nas Escrituras 326
- operada por Deus ou pela lei? 398s. - é insutentável 320.
- dura a vida toda 399, 414ss.; Prefiyração
- C. a ordena 413; - dos sacramentos 305s.
- agradável e fácil 417; Pregação
- lei não é seu início 419; - seu poder 399;

- ser humano conduzido a ela a partir - seu efeito não depende da fé ou saiiti-

da cruz 422; dade do pregador 243.


- pública e evangélica 423s.; Preparar-se
- inclui lei e Evangelho 427; - para o favor divino 160.
- é efeito da lei 428; Presciência 14,26,33s.,36, 134s., 143,214:
- os pecadores devem ser provocados - de modo contingente 30s.;
a ela 431. - dos seres humanos se engana 135;

/ Perdao
- dõs oecados na S. C. 351:
- fora da crisiandade 372;
- de Deus realiza necessariamente i>
que pré-sabe 135;
- se opõe ao livre-arbítrio 137.
- universal 373; Presença
- certeza de 387. - corporal de C. na S. C. 222;
i Peregrinações 423. - visível do corpo de C. 236, 302ss.;
Peripatéticos 77 n. 188. - do corpo de C. na primeira Ceia 241s.:
Pcrscrutar - de C. em essência e natureza 248;
- a divindade 410. - as três maneiras de algo estar picriii
I Pessoa te 261s.;
I
- C. uma só pessoa 260s.; - de C. de forma apreensível na S. ( ' .
I
- de C. nâo deve ser dividida 261s. 263s.;
Peste 221. - simultânea em modos diferentes 30hss.
Picdadc 26s. Primícias do Espírito
Piedoros - o ser humano as perdeu 89, 396.

- ain<l;i1Ciii ; I í : i i i i i . i ~ i i i ,&i,i i , l i i , l ; i 410 Priricipe dos demônios 65.


l'lal~iiicos 77. Profanação do Filho 407, 417.
I'i>dci- I'r<ifcias
- c qilcici H4-')'): 1:iI:ii-:i111cin nonie do C'. liiiiiri, IOh.
<li,<,1>1<>1111% o < , , , I « , 11,. ( ' !.III.. 1'1 i~lki:iscilcstiiiis 224, 31 1.
I',,,lcr ,I;, ] , i V ) ~ , < , ~ < , , ,7'1'1. I'iiil'i,i:ir <Ic%wick;iir 237 ii. 67. 411 ii. (i1
ls<><lc~ cl:~lri I'iiiii,<.,,:i <)o:
- metade da Escritura é promessa 99 Ressurreição 375;
Propensão - entre os gentios 76.
- para o mal 157. Revelação 183;
Propósito 404; - da ira 416, 428, 434.
- bom é impulso do E. Sto. 380s. Revelações 412.
Protestantismo
- sua unidade 218. Sabedoria 162;
Provérbios de Salomão 79. - é estulticia 194.
Purgatório 416, 423; Sabelianos 368 n. 226.
- nada há nas Escrituras 373. Sacramentos
Pureza da doutrina 394s. -não dependem da fé ou santidade
dos que os administram 243;
Queda - fundados unicamente na palavra de
- de Adão 90; Deus 243;
- antes e depois 127. - são prefiguração de algo 305s.
Querer Sacerdócio
- absoluto e puro em nós 82s.; - não é sacramento 374.
- e poder 84-99. Saduceus 69.
Salvação
Razão humana - sua obtenção 27ss.;
- seus argumentos 86s., 91; - está no arbitrio de Deus 212;
- é iluminada pela lei 91; - oferecida a todos 425.
- incapaz de crer em C. 115; Santa Ceia
- seu conceito de Deus 124, - interpretação simbólica 218, 222;
-considera absurda a humanacão de - seus administradoresdispensam a fé 243;
Deus 125; - é distribuição dos méritos de C. 246;
- admite a necessidade da oresciência - se divide em duas partes 247;
de Deus 137; - apenas memória? 295;
- se afunda com a presciência 138; - conceito figurativo 340s.;
- e a justiça de Deus 149~s.; - nova aliança 341ss.;
- ignora a Deus e o bem 187; - pão partido e sangue derramado não
- é treva 192; se referem a paixão de C. 344s.;
- deve ser cegada 321s.; - duas acepções certas 346:
- obcecada pela fé 266; - o verbo artu tu" não se refere ao so-
-deve ficar aprisionada nas obras e frimento de C. 347s.;
Dalavras de Deus 321. - concede perdão 351;
Recompensa 108~s.; - as palavras são o principal 351;

- é consolação 111. - o que ela oferece 351s.;


Regeneração 109. - não é memória dos sofrimentos de C.
Reino 358;
- está preparado 110s.; - discemir "este" pão de outros pães 358;
- ser humano dividido em dois 85; - é comer e beber físico 366;
- das coisas inferiores e das coisas supe- -seu efeito não depende da dignidade
riores ao ser liumano 85s.; dos oficiantes 372;
- existem no mundo dois 210s. - se baseia na instituição divina 372.
I<ckaci«iiamentodireto com Deus 411s. Santidade 55s.
I~iiliaiicsccntesdo pecado 417. Santos 48, 53, 54, 56s., 205. 295. 298.
I<cii;isciincnlo 204. 370, 425;
I<cII,,"~I~~<, - suas debilidade 60;

<I<Tl!or~~cr!t114. -- coiidiizid<ispclo Ikp. de Ilcris 61;


- uma pérola e iiobres gemas 63; - perdeu as primicias do Esp. 89;
- é toda pessoa batizada 63; - não pode querer o bem sem a graça 01 :
- a fé não chama a ninguém de santo, - o que ele pode 91s.;
só o amor 64; - está amarrado, é miserável e cativo 94:
- carne luta neles 211; - crê ser livre por obra de Sataná 94;
- invocação 232 n. 57, 374; - é passivo na renovasão 114;

- corpo igual ao de C. 266; - é carne 156;


- o pecado permanece neles 417. - propenso para o mal 157;
Satanás 82, 223, 224, 225, 429; - dividido em carne e espírito 162;
- o mundo é seu reino 70, 172s.; - é redentor de si mesmo em siia i i i c ~

- sua força no ser humano 72; Ihor parte 166;


- reina em nós 89; - existe nele uma parte excelente 1625s..
- leva o ser humano a acreditar em sua 185~s.;
capacidade 94; - sob a ira de Deus 181;
- Deus atua nele 127: - constituido senhor sobre as coisas iiil'c

- o príncipe mais poderoso do mundo riores a ele 209.


174, 215; Serifo 57 n. 130.
- fascina os homens 211; Significa
- é mestre dos adversários 230; - sinônimo de "é" 230ss.
- quer abolir a lei 400. Significacão
Satisfação 37ss., 373, 414ss., 423. - simples, pura e natural das palavr;is
Schw&mer (v. th. fanáticos, entusiastas) 117s., 172.
217s. Significatismo 329, 255, 294, 300, 341.
Sé Apostólica Significativistas 343.
- intérprete da Escritura 65, 68. Silésios 329, 352, 360.
Segredos Sínibolo
- da majestade divina IWs., 131, 150. - e inferior ao que simboliza 231.
Segurança 416; Simbolismo espiritual 324 n. 186.
- acaba com a fé 391. Sinalismo 255, 294, 329, 343.
Semelhança Sinalistas 350.
- pão S. do corpo de C. 296; Sinédoque 260, 325;
- não há S. no partir do pão 298s.; - cálice derramado é S. 346;

- não há S. entre cálice e sangue de C. 299s. Sinai 412, 419.


Semente Sofistas 17, 24, 30, 32. 35s.. 50, (Ai. hcv.
- de honestidade no ser hiimano 167; 74, 77, 78s., 82, 84. 98, 141, IMI. IlrfL.
- da honra 186s. 171, 176, 197, 199, 205, 237 ri. 68. 121,
Semipelagianos 51 n. 111. 410.
Sentido - fazem o pão desaparecer iio Sacr;iiiirii~
- literal das palavras 309, 327. to 321, 323
Ser humano Sofrimento de C.
- rleve ser avaliado mais pelo que sente - distribuído na pregarão, Batisiir<> ç S.( '.
do quc pelo que diz 57; 246s.
- cçgo c surdo para as coisas divinas 71; Sub contrdrio 47.
.. . li;\ nele um qucrer riiédio e puro 825s.; Subjuiitivos 149;
rlislribuido ern dois reinos 85; - colocados por cn1is;i iI:i ~>icilcsli~i:i~:iii
- íiitcgro c sZo? 87; 107s.
rili-ropt<iç cativo 87; Suma Teológica 97 li. 224.
lnlilc RLIIII(I:II. L)\ riiiiridiirilçilt~)S.X8, Siiiilid;idc
1112s.: do c<>l-po dc C'. 100s.
s t t a i~t~l>oI?~~cii,
88:
Tentação Vasos
- Satanás prostrou o ser liiimano com - para honra e desonra 148s.
uma única t. 89. Ventre materno
Teologia - lugar imundo 36.
- exige afeto do advogado de u n a cau- Vida
sa 81. - sem a Palavra é incerta 67;
Teologia mística 410. - presente é precursora da futura 211;
Tersites L71 11. 386. - na futiira será exigido o Decálogo 426.
Testemunho Videntes 412.
- do Esp. na iiiterioridade 317. Vinho na S. C.
Texto da S. C. - não importa se é vinho 336;
- deve ser entendido literalmente 327; - não é fruto da videira 336.
- é colocado pelo próprio Deus 327; Virgindade
- é coerente, simples e de consenso 327; - é abominável 374.
- é correto, simples e claro 331s.; Virtudes
- em Mt 329s.; - máximas sXo carnais 202.
-em Mc 331~s.; Vontade
- em Lc 334s.; - apenas sofre a ação da graça 27;
- em Paulo 346s~. - é ineficaz sem a misericórdia 27;
Louto 226, 228, 294, 339, 340, 347. - vontade contingente 30s.;

Tradicionalismo 14. - humana um jumento montado por


Tradições Deus ou pelo diabo 49;
- pugnam contra a Palavra 41. - vontade humana 74s.;
7i.a&ubstanciação 220, 222, 232 n/ 57. - a força da vontade humana 75;
Trindade 25, 322. - é ineficaz sem a graça 78;
. -
Tronoloeia ~.~
146. 360:.
- deve ser evitada na interpretação das
- obrigada a servir ao pecado 81;
- sua força é iiula 91;
Saeradas Escrituras 118s. - Deus toma posse inclusive da vontade

'liopologistas 350. má 129s.;


Tkopomania 340s.. 343 - sua inclinação para o mal 157;
- serva do pecado e de Satanás 174.
Vontade de Deus
- não se deve perguntar por sua razão 46;
Ubiqüidade 306s.; - não revelada 100s.;
- da natureza humana de C. 222; - inescrutável 101;
- do corpo de C. 261. - secreta 105;

Ilnidade - por que Deus não muda sua vontade


- pçssoal e natural 322s.; má? 131;
cfçliva 323; - para ela não existe causa 131;
- formal 324; - vontade revelada e da resoluqão 134;
sacramental 324, 326, 352. - imp0e uma necessidade 136.
I1iiç<^>cs
374. Vulgata 120 u. 267.

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