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Este trabalho foi escrito no contexto de uma pesquisa mais ampla, sobre
o “poder” e a “ética”, e sobre a relação entre a “guerra” e a “ética
internacional”. E propõe uma reflexão sobre o tema do “ceticismo ético”, a
partir de uma leitura do Gênesis, ou melhor, de uma “exegese lógica” do
mito da “criação e queda” do Homem, segundo o texto clássico do Torá ou
Antigo Testamento.1 Nossa hipótese é que esse texto, de origem mitológica
e religiosa, acabou transcendendo seu tempo e sua própria origem, graças
à força narrativa da sua aporia do “pecado original”, onde se esconde e
desvelam, a um só tempo:
1Sobretudo o texto dos seus capítulos 1-4, 6-7, 11 e 22, segundo a versão da Bíblia de
Jerusalém (1973).
1
i) uma incompatibilidade lógica, entre o objetivo divino da
“obediência” e o objetivo humano da “liberdade” e da
“igualdade”; e
2 “Se fizermos uma pesquisa sobre história e cultura humanas, veremos que toda sociedade
possui um código moral cuja concepção se apresenta, na maioria dos casos, com clareza e
exatidão. Em praticamente toda sociedade do passado existe uma íntima relação entre esse
código moral e a religião dominante. O código de ética é concebido frequentemente como um
imperativo, declarado por um legislador divino...” (DAWSON, 2010, p. 117).
3 Freud (1969, p. 18-65).
2
como é o caso dos “poemas da criação”, Enuma Elish e Atrahasis; da
“epopeia” de Gilgamesh; ou da história de Atrahasis, epopeia acadiana do
século XVIII a.C. Ou ainda, do mais antigo de todos os “mitos da criação”
conhecidos, de origem suméria, o Eridu Genesis, onde também é contada
a criação do Homem a partir do barro, esculpido pelos deuses que estavam
embriagados e que por esta razão teriam feito um homem repleto de
imperfeições.
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florescimento da cultura helênica, ao despertar da civilização romana e à
grande crise chinesa, que foi a responsável indireta pelo florescimento da
melhor parte da filosofia moral asiática. É nesse “momento” da história
eurasiana que o homem se coloca, pela primeira vez, nestas distintas
latitudes, de forma sistemática e quase simultânea, as mesmas perguntas,
pela origem e destino do universo; pela definição e defesa do
comportamento “virtuoso” dos indivíduos e dos governos; e pelo
“critério”, em última instância, de definição e distinção do “bem” e do
“mal”.4 As mesmas perguntas e várias respostas – muitas vezes
convergentes – que foram sendo dadas a partir daquele período, pelas
quatro grandes religiões monoteístas, de que já falamos, mas também, pela
filosofia moral de Lao Tsé, Confúcio e Sidarta Gautama, e pela ética e pela
filosofia política e jurídica greco-romana.
4“Se por um lado não é muito evidente a existência de uma moralidade pré-religiosa, por outro
não há dúvida sobre a existência de uma pós-religiosa. Na medida em que o Homem se torna
crítico em relação à religião dominante, aparece, em toda civilização avançada, uma nova
necessidade de se elaborarem sistemas filosóficos e novas interpretações da realidade, com
seus códigos de ética correspondentes” (DAWSON, 2010, p. 118).
4
mantendo-se como uma referência e uma influência universal, que acabou
transcendendo sua própria “visão criacionista” da origem do universo e do
Homem.
2. A narrativa bíblica
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Nesta primeira versão da história bíblica, depois de criar o homem e a
mulher, Deus lhes ordena: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra
e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves dos céus e todos
os animais que rastejam sobre a terra” (Gen I, 27-28). Nesta primeira versão
da criação, Deus não impõe ao homem nenhum tipo de proibição, ameaça
ou punição, apenas o manda dominar o mundo, como se o Homem fosse
um instrumento ou uma prolongação do seu “poder absoluto” sobre o
universo e todas as suas “coisas”.
6
Eva, que é repassado para o resto da Humanidade, pelo resto dos tempos,
segundo a interpretação canônica desse texto. Mas tudo acontece porque
a “Serpente” questiona o “imperativo categórico” de Deus, ao propor uma
interpretação alternativa da “proibição divina” e da sua ameaça de punição
com a “morte”: “Então Deus disse que vós não podeis comer de todas as
árvores do jardim? (Gen2, 1) [...] Não, não morreis!: Mas Deus sabe que no
dia em que dela comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como
deuses, versados no bem e no mal” (Gen3, 4 e 5).
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através da mediação do profeta Maomé6. Assim mesmo, apesar da
hierarquia inquestionável e da intervenção continuada de Deus na vida
quotidiana do seu “povo escolhido”, os homens seguirão desobedecendo
e pecando, a despeito das sucessivas alianças estabelecidas por Deus,
sucessivamente, com Noé, Abraão e Moisés. Por isso, mesmo depois da
expulsão de Adão e Eva do Paraíso, Deus se arrependerá de haver criado
o Homem, e o punirá com o Dilúvio, que abre o caminho para uma nova
tentativa de “refundação” da humanidade, a partir de Noé.
6
É interessante observar a presença igualmente constante da ideia de “hierarquia”,
“obediência” e “autocontenção”, também na filosofia moral de Lao Tsé e Sidarta
Gautama , mas sobretudo nos Analectos, de Confúcio.
8
próprio povo judeu que matará Moisés, e permanecerá politeísta por mais
cinco ou seis séculos, até seu exílio na Babilônia, quando entra em contato
com o Zoroastrismo e é escrita a versão do Gênesis que conhecemos, junto
com as partes mais significativas do Pentatêutico.
7“Proposição 13. Uma substância absolutamente infinita é indivisível. Demonstração: com efeito,
se fosse divisível, as partes nas quais se dividiria ou conservariam a natureza de uma substância
absolutamente infinita ou não a conservariam. Se consideramos a primeira hipótese, existiriam,
então, várias substâncias de mesma natureza, o que é absurdo. Se consideramos a segunda
hipótese, então, uma substância absolutamente infinita poderia deixar de existir, o que também
é absurdo” (Spinoza, 2007, p. 29)
9
– uma “relação” entre seres ou entidades que compartem e disputam
um mesmo objeto ou objetivo, e neste sentido ele não pode ser
absoluto.8 Portanto, pode-se concluir logicamente, que se Deus
fosse um “poder”, ele não poderia ser “absoluto”, ou então, se ele
fosse “absoluto”, ele seria qualquer outra coisa, menos um “poder”.
8 “Em termos estritamente lógicos, o ‘poder’ é uma relação que se constitui e se define,
tautologicamente, pela disputa, e pela luta contínua, pelo próprio poder. Em qualquer nível de
abstração, e em qualquer tempo ou lugar, independente do conteúdo concreto de cada relação
de poder em particular” (FIORI, 2014, Prefácio, p. 18).
10
Porque qualquer ato de desobediência supõe a existência de uma
escolha, e portanto, de pelo menos uma alternativa que seja
conhecida, e que esteja disponível, para que as partes envolvidas
possam tomar sua decisão e fazer sua escolha. Neste sentido,
radicalizando o argumento, se pode dizer do ponto de vista lógico
que a relação bíblica entre Deus e o Homem supunha desde o início
a existência de um terceiro elemento (o “terceiro incluído”) porque
se ela fosse apenas “binária”, e se restringisse a Deus e ao Homem,
não haveria a possibilidade da desobediência, e não haveria
tampouco como conceber e conhecer o “mal”..
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Homem ao conhecimento do “critério” de distinção entre o “bem” e
o “mal”, e o conhecimento desse “critério ético” abriria seus olhos
e o faria “como os deuses”. “Deus sabe que no dia em que dele
comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses,
versados no bem e no mal” (Gen 3, 5). Ou seja, a Serpente propõe ao
Homem que “escolha” a “desobediência”, em nome da “igualdade”.
Uma explicação e uma proposta que revelam, ao mesmo tempo, a
natureza assimétrica e hierárquica da relação entre Deus e o Homem,
a partir do momento em que surge a figura da Serpente. Neste
sentido, Adão e Eva desobedecem a Deus ao optar por sua própria
“liberdade”, e é esta “escolha”, pela “liberdade de escolha”, que se
transformará no “pecado original” da Humanidade9. De um lado,
portanto, se colocam o “imperativo categórico” e a valorização da
obediência incondicional, que se transformam na primeira de todas
as virtudes agostinianas; e do outro, o desejo da “liberdade” e da
“igualdade”, que leva o Homem à desobediência, à rebeldia e ao
“pecado original”. Aliás, o próprio mito da origem da Serpente
reproduz esse modelo, uma vez que o Demônio também surge de
outra “rebelião igualitária” ocorrida no “mundo dos anjos”, onde
Lúcifer, o “anjo mau”, quis igualar-se a Deus e foi banido do céu. Ou
seja, uma vez mais, a desobediência de Lúcifer envolvia uma relação
de poder, e sua rebelião envolvia o mesmo desejo de igualdade com
Deus que moveria Adão e Eva na direção do “pecado”.
9 Do ponto de vista estritamente lógico, o “pecado original” não foi cometido para ser perdoado,
ou para ser eliminado. Sua falta de materialidade e de especificidade indica que não ele não foi
feito para não ser cometido; pelo contrário, ele foi concebido para permanecer e atuar como um
freio atemporal, que assumiria na história humana a forma variável do “medo” e da “culpa”, que
limitam o impulso individual e coletivo na direção da liberdade e da igualdade, e reforçam todos
os mecanismos de manutenção e reprodução da ordem estabelecida.
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do Homem, pela “liberdade” e pela “igualdade” (com Deus ou com
qualquer outro “senhor”). Depende do “critério” ou da posição em
que se coloque o “juiz” dentro desta relação trinária, que é o
verdadeiro sujeito desta narrativa e desta lição ética do Gênesis.
4. A título de conclusão
13
escolher o “bem” e estar fazendo o “mal”, e possa estar “pecando”,
quando está praticando a “virtude”.
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que é impossível é que estas negociações ou acordos eliminem a
assimetria, a hierarquia e o conflito insuperável de interesses envolvidos
na criação, interpretação e arbitragem de todo e qualquer “critério” ou
“fundamento” ético que se proponha ser universal10. É mais fácil imaginar
“negociação ética” entre indivíduos, sociedades ou civilizações
inteiramente diferentes (os “bárbaros”)do que entre indivíduos e
sociedades que compartem os mesmos valores (os “incluídos”)e
competem dentro das mesmas estruturas de poder.
Bibliografia
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Esta leitura e conclusão do Gênesis apontam na direção do mesmo “ceticismo moral” defendido por
Trasímaco, nos Livros I e II da Republica de Platão, onde a “ética” aparece como um instrumento útil e
dependente do interesse e do poder dos mais fortes..
11 “O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Há no seu âmago
alguma coisa que tem validade universal. Não tem caráter meramente fictício, embora
originalmente seja, sem dúvida alguma, o sedimento de acontecimentos históricos que
alcançaram a imortalidade através de uma longa tradição e da interpretação enaltecedora da
fantasia criadora da posteridade” (JAEGER, 2001, p. 68).
12“O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente
coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo o
tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as ‘motivos’ ou ‘temas’; na psicologia
dos primitivos elas correspondem ao conceito das représentations colletives de Levy-Brühl e no
campo das religiões comparadas foram definidas como ‘categorias da imaginação’, por Hubert e
Mauss. Adolf Bastian designou-as bem antes como ‘pensamentos elementares’ ou ‘primordiais’”
(JUNG, 1976, p. 51-52).
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A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1973.
Outubro de 2016
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