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Marina Massimi

Maria do Carmo Guedes


(organizadoras)

HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL


NOVOS ESTUDOS

Revisão
André Luís Masiero

edue © Í ditora
São Paulo
2004
Ficha c a ta lo g ráfic a elaborada pela Biblioteca Reitora N adir G ouvêa Kfouri / PUC -SP

História da Psicologia no Brasil: novos estudos / orgs. Marina Massimi,


Maria do Carmo Guedes ; revisão André Luís Masiero. - São Paulo :
EDUC; Cortez, 2 0 0 4 .
2 5 2 p. ; 2 3 cm

ISBN 8 5 -2 8 3 -0 3 0 0 -4 (Educ)
ISBN 8 5 -2 4 9 -1 0 8 8 -7 (Cortez)

1. Psicologia - Brasil - História. I. Massimi, Marina. II. Guedes, M aria do


Carmo. III. Masiero, André Luís.
CDD 1 5 0 .9 8 1

EDUC - Editora da PUC-SP

Direção
Maria Eliza Mazzilli Pereira
Denize Rosana Rubano

Produção Editorial
Magali Oliveira Fernandes

Preparação e Revisão
Tereza Lourenço Pereira

Editoração Eletrônica
Artsoft Informática

Capa
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APRESENTAÇÃO
Marina M assim i

A presente coletânea visa apresentar o estado da obra de


pesquisas realizadas até o momento no que diz respeito à História
da Psicologia no Brasil. Não pretende ser um apanhado exaustivo,
mas apenas um trabalho que pretende colocar algumas pinceladas
no grande afresco que ao longo das últimas décadas está sendo
realizado pelos historiadores da Psicologia, com o objetivo de re­
com por o percurso histórico que no contexto sociocultural brasi­
leiro levou à constituição das form as de conhecim ento psicológico
e da ciência psicológica enquanto tal.
Com efeito, recentemente assistimos a um aumento qualita­
tivo e quantitativo das investigações na área, contando com a
contribuição, seja de pesquisadores mais experientes, seja de jo ­
vens pesquisadores em formação, que estão elaborando teses de
doutorado, dissertações de mestrado e monografias de iniciação
científica dedicadas a estudos históricos em Psicologia. Além do
mais, a disciplina "História da Psicologia" comparece de uma fo r­
ma cada vez mais freqüente nos currículos dos cursos de gradua­
ção e pós-graduação em Psicologia, fato este que acarreta a ne­
cessidade de produzir material adequado para o uso didático na
perspectiva histórica.
A coletânea estrutura-se em partes: abre-se com uma contri­
buição sobre a historiografia geral da Psicologia, prosseguindo com
textos que traçam o percurso histórico da Psicologia no Brasil, para
finalizar-se com alguns trabalhos que aprofundam a consolidação,
no país, de abordagens específicas, tais como a psicanálise. As
contrlbuIçOe» l i o apresentadas em ordem cronológica (no que diz
respeito à colocação temporal do tema tratado em cada uma), res­
peitando assim o critério temporal, postulado essencial para traba­
lhos de natureza historiográfica.
O primeiro capítulo, elaborado por Deise Mancebo, visa de­
monstrar, numa perspectiva focaultiana, que a Psicologia, assim
como qualquer outro tipo de sujeito cultural, constitui-se no interior
da História, e como tal é por esta continuamente fundada e refun-
dada. Após reconstituir as origens da ciência psicológica no con­
texto do processo mais amplo de consolidação da ciência moderna,
Mancebo descreve as crises do paradigma científico da modernida­
de e as repercussões no que diz respeito à Psicologia. Propõe cami­
nhos para a constituição de uma relação adequada entre Psicologia
e História, bem como alerta acerca das armadilhas inerentes a esta
colaboração, o que acreditamos ser de grande utilidade para todos -
psicólogos e historiadores - que desejam em preender a pes­
quisa em História da Psicologia com rigor e seriedade, superando
amadorismos, intenções apologéticas, interpretações superficiais e
ideológicas, que não contribuem ao avanço efetivo desta área de
estudos.
O segundo e o terceiro capítulos - ambos de autoria de Marina
Massimi - são dedicados à história das idéias psicológicas na cultu­
ra luso-brasileira do século XVI aos inícios do século XIX: aborda-se
a produção de idéias psicológicas no âmbito do saber dos jesuítas,
ordem religiosa que teve uma grande importância no contexto do
Brasil Colônia, e a elaboração de conhecimentos psicológicos pela
inteligência brasileira do século XVIII e XIX. O objetivo é mostrar,
através deste percurso histórico, o fato de que muitos dos concei­
tos utilizados pela Psicologia moderna possuem raízes no passado e
que, portanto, o estudo da História da Psicologia contribui ao enrai­
zamento do psicólogo brasileiro em sua cultura e sociedade.
O quarto capítulo, elaborado por Elisabeth Bomfim, descreve
o processo de construção do sentimento de identidade nacional,
percorrendo as etapas mais marcantes da História do Brasil, desde
o Descobrimento até os tempos atuais. Apresenta um apanhado
sintético das contribuições mais importantes acerca deste tema.
No quinto capítulo, Nadia Maria Dourado Rocha relata suas
pesquisas acerca da Faculdade de Medicina da Bahia e de sua con­
tribuição à produção dos conhecimentos psicológicos no país. São
enfocados vários tipos de documentos: em primeiro lugar, as teses
de cunho psicológico de médicos baianos, apresentadas ao longo
do século XIX, cujo estudo é importante não tanto pela originalida­
de de métodos e conteúdos propostos, mas por perm itir uma ava­
liação adequada da vinculação desses médicos ao contexto interna­
cional da Ciência da época, através da análise dos temas escolhidos
e dos autores citados. Em segundo lugar, são apresentados textos
elaborados por intelectuais baianos referentes ao conhecimento psi­
cológico, entre eles as Investigações de Psicologia (1854), do
médico e filósofo Eduardo Ferreira França.
O sexto capítulo, elaborado por M itsuko Aparecida Makino
A ntunes, proporciona uma viagem panorâm ica e abrangente
ao longo da História da Psicologia brasileira do século XIX até a
atualidade, detendo-se em alguns pontos fundam entais de virada
ocorridos no decorrer do tempo, a saber: a conquista da autono­
mia da Psicologia como área de conhecimento no Brasil, sua con­
solidação como ciência e profissão, sua profissionalização, sua
expansão. Visa contribuir ao im portante exercício da Psicologia de
repensar a si própria no momento hodierno, tão cheio de fermen-
tos e questionam entos.
O sétimo capítulo, de autoria de Marisa T. D. S. Baptista,
aborda a constituição da identidade enquanto psicólogos por parte
de alguns profissionais que desempenharam atividades no campo
da Psicologia, em São Paulo, antes de 1962. Aponta para duas
fases desse processo de constituição da identidade: a primeira, en­
tre os anos 20 e 40; a segunda, entre as décadas de 1950 e 1962.
O oitavo capítulo, elaborado por Raul Albino Pacheco Filho, e
o nono, de autoria de Roberto Yutaka Sagawa, reconstroem o per­
curso de introdução e consolidação da psicanálise no Brasil. O pri­
meiro realiza uma análise de natureza histórica e epistemológica
acerca das relações entre psicanálise, Psicologia e Ciência, enfati­
zando a necessidade e a importância de discussões epistemológi-
cas e metodológicas na construção do conhecim ento científico.
O segundo discute a introdução da psicanálise no contexto brasilei­
ro, e especialmente em São Paulo, seja enquanto concepção teóri­
ca, seja enquanto prática clínica.
Essas contribuições, todas elas realizadas por membros do
Grupo de Trabalho em História da Psicologia da Anpepp - Associa­
ção Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, visam
proporcionar aos leitores um conhecimento histórico útil à reflexão
sobre a Psicologia, seu significado e sua função no contexto brasi­
leiro. Ao mesmo tempo, quer estimular o interesse pela continuida­
8 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

de das investigações na área, lançando um desafio, neste sentido,


aos estudantes em formação e aos jovens pesquisadores. Há muita
coisa ainda a se fazer, pois, no caminho da indagação histórica,
cada meta alcançada constitui-se num novo ponto de partida.

Marina Massimi
Professora Associada do Departamento de Psicologia e Educação da
FFCLRP-USP - Campus de RibelrSo Preto. E-mail: mmarlni@ffclrp.u8p.br
SU M ÁRIO

I História e Psicologia: um encontro necessário


e suas "a rm a d ilh a s".....................................................................11
Deise Mancebo

II As idéias psicológicas na produção cultural da


Companhia de Jesus no Brasil do século XVI e X V II.............. 27
Marina M assim i

III As idéias psicológicas no Brasil nos séculos XVII e XVIII ...4 9


Marina M assim i

IV Fragmentos psicossociais na histórica construção


da identidade nacional................................................................... 71
Elizabeth de Melo Bomfim

V A Faculdade de Medicina da Bahia e a preocupação com


questões de ordem psicológica durante oso ito c e n to s ........... 89
Nádia Maria Dourado Rocha

VI A Psicologia no Brasil no século XX:


desenvolvimento científico e p ro fissio n a l.............................109
M itsuko Aparecida Makino Antunes

VII A constituição da identidade de alguns profissionais que


atuaram como psicólogos antes de 1962 em São Paulo .... 153
Marisa T, D. S, Baptiste
10 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

VIII Psicanálise, Psicologia e Ciência:


origens, inter-relações e conflitos ..........................................205
Raul Albino Pacheco Filho

IX Psicanálise e Psicologia no Brasil e em São Paulo:


registros históricos ................................................................... 231
Roberto Yutaka Sagawa
HISTÓRIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO
NECESSÁRIO E SUAS "A R M A D ILH A S "
Deise Mancebo

Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a


constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não
é aquiio a partir do que a verdade se dá na história, mas de um
sujeito que se constitui no interior mesmo da história e que é a cada
instante fundado e refundado pela história. É na direção desta crítica
radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir.

(Foucault, 1991, p. 7)

Constituição histórica dos saberes "psi"

0 modelo de racionalidade que preside a ciência moderna cons-


tituiu-se a partir do século XVI, no campo das ciências naturais,
tendo por expoentes Bacon e Descartes. Descartes, especialmente,
teve a preocupação de estabelecer parâmetros que possibilitassem
uma forma de conhecimento considerado verdadeiro.
Dentre outros aspectos, o conhecimento científico comporta,
desde então, algumas distinções que o qualificam enquanto tal. Em
primeiro lugar, o^conheçimento cotidiano, fruto do senso comum, é
alijado do campo do conhecimento científico, ou seja, a ciência
moderna descarta sistematicamente as evidências da experiência
Imediata, entendendo-as como informações pouco precisas, inse­
guras e enganadoras.
12 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Outra importante clivagem operada pela ciência moderna se


refere à distinção entre natureza e ser humano. A natureza é consi­
derada passiva e reversível, como uma engrenagem cujos elemen­
tos se pode desmontar e depois associar sob a forma de leis; não
deve possuir nenhuma distinção especial que o homem não consiga
analisar. Apresenta, assim, como pressuposto metateórico, a idéia
de ordem, estabilidade do mundo, do passado que se repete no
futuro, sendo, portanto, passível de ser dominada pelo homem em
sua plenitude (Santos, 1997).
Com base nesses pressupostos, dentre outros, o conhecimento
científico procurou avançar, na modernidade, através de análises
rigorosas do ponto de vista técnico e metodológico, o que signifi­
c o u alimentar a pretensão de um descomprometimento do conheci­
mento em relação aos valores do pesquisador. As idéias mais claras
e simples, os objetos reduzidos em sua complexidade, a possibili­
dade de quantificação dos fenômenos transform am -se em pré-
requisitos para um conhecimento rigoroso e sistem ático da nature­
za, condição para que um saber almeje o status de científico.
Desse modo, dentre outros desenvolvimentos característicos,
a precisão torna-se um atributo imprescindível para a ciência mo­
derna, acompanhada necessariamente pela progressiva parceliza-
ção do objeto e, em decorrência, por especializações do conheci­
m e n to , produzido cada vez em maior número. Por essa via, a natu­
reza é desmembrada em múltiplos campos para efeitos de investi­
gação, mesmo que à custa do caráter distorcivo do conhecimento
gerado sob esta máxima.
Com algumas iniciativas no século XVIII e principalmente a
partir do século XIX, esse modelo de racionalidade se estende pro­
gressivamente às ciências sociais e humanas emergentes. Uma das
principais questões tematizada nos séculos XVIII e XIX, por teóri­
cos de diversas procedências, é a das relações entre o "individual"
e o "coletivo". A proliferação desses estudos é justificada pela pre-
eminência concreta da própria dicotomia enquanto tal, fazendo jus
à necessidade de novas teorizações que dessem conta dos interes­
ses individuais (Hirschman, 1979), da vida em sociedade recém-
inaugurada, bem como ao duplo processo de individualização/inte-
gração em que se sustentava a formação dos estados modernos.
Nesse universo de busca de explicações e soluções para as
tensões surgidas com a nova clivagem instituída - indivíduo e so­
ciedade - , emergem, por um lado, as primeiras ciências sociais,
HISTÓRIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSÁRIO E SUAS "ARMADILHAS" 13

com teorizações sobre o econômico, o político, o Estado, o social,


e, por outro, as primeiras ciências psicológicas (ou morais, como
muitas vezes estão designadas), encarregadas dos indivíduos, de
suas paixões, pulsões e interesses (Mancebo, 1999a).
De lá aos dias de hoje, esta dualidade no campo dos saberes
não se alterou fundamentalmente, malgrado os esforços de cons­
truções inter/m ultidisciplinares1. No caso das psicologias, desen-
volveram-se objetos de reflexão, classificação e intervenção sobre
aspectos os mais variados da chamada interioridade. A realidade
íntima e seu funcionam ento conquistaram densidade teórica e al­
cançaram modelos complexos de intervenção, de modo que a pró­
pria autonomização e o reconhecimento dos saberes "psi" como
ciências - conceituando "legitim idades" e "validades", definindo
autores e autoridades científicas, ou melhor, estabelecendo as mar­
gens no interior das quais devem ocorrer a produção e a divulgação
científicas - contribuíram para a consolidação das fronteiras entre
as diversas disciplinas (Mancebo, 1999a).
O grau de imbricação entre o processo histórico que segmen­
tou indivíduo e sociedade, bem como a necessidade também his­
tórica (no seu sentido mais forte) do desenvolvim ento das psicolo­
gias - considerando-se, aqui, também a psiquiatria e a psicanálise - ,
é de tal ordem que, de modo bastante recorrente, só se reconhe­
cem como modernas, racionais, civilizadas e até disciplinadas as
sociedades que apresentam um certo grau de psicologização.
Foucault (1979) é uma referência central nessa discussão,
pois analisa precisamente os dispositivos de poder que se desenvol­
vem a partir do século XVIII, articulando-os à constituição dos sa­
beres humanos e sociais. Apresenta duas formas não excludentes,
mas intercomplementares, de poderes que se organizam sobre a
vida. A primeira tem como eixo o corpo/máquina, cujos dispositivos
dlsciplinares permitem a elaboração e a sistematização dos saberes
constitutivos de uma anatomopolítica do corpo humano. O investi­
mento na utilidade/docilidade do corpo humano tornado máquina
direciona sua integração em sistemas sociais e econômicos. A se­

' Sflo multas as polêmicas acerca do sentido a atribuir aos termos multidiscipli-
ntr, plurldlsclptlnar, Interdisclpllnar e transdisciplinar, e uma análise detalhada des-
taa, no momanto, axcadarla oa limites do texto. A opção pela expressão multiV
lnt*rdl»olplln§r dacorra da Anfaaa oolooada am uma daaa]6val "indisciplina", em
faoa do paradigma aapaelflolata até antlo hagamflnloo.
14 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

gunda form a tem como eixo o corpo/espécie. Uma biopolítica da


população se elabora com o conhecimento da mecânica do organis­
mo vivo no que diz respeito à natalidade, à mortalidade, à saúde, à
longevidade, ou seja, dos processos biológicos que possibilitam in­
tervenções e controles reguladores sobre as populações. Em torno
desses dois eixos, anatomopolítico e biopolítico, organiza-se o po­
der sobre a vida nas sociedades modernas, conforme diz Foucault,
e se elaboram saberes que, sistematizados, irão constituir as Ciên­
cias Humanas e as Ciências Sociais.
Nesta linha de raciocínio, o próprio "indivíduo" é apresentado
como uma produção histórica, diante da qual, a partir do fim do
século XVIII, todas as ciências se curvaram. Foucault identifica, no
mundo contemporâneo, a transformação do espaço público em lu­
gar de seqüestro e de esquadrinhamento do indivíduo. Esse esqua-
drinhamento é possibilitado não apenas pelas tecnologias de poder,
a exemplo das que se manifestam na arquitetura das cidades, na
localização das praças e dos locais de diversão, ou na organização
interna de fábricas, escolas, prisões, etc. Os saberes médicos, jurí­
dicos, sociológicos, antropológicos, policiais e psicológicos, que
cresceram visivelmente desde o século XIX na ânsia de organizar as
multidões e canalizar "positivam ente" os problemas oriundos da
industrialização e da urbanização em larga escala, também se cons­
tituíram em dispositivos centrais de codificação e normatização das
condutas humanas.
O desenvolvimento desses saberes, dentre eles o psicológico,
são-nos apresentados, por Foucault, como processos de controle
social, form as de sujeição/subjetivação mobilizadas pela sociedade
urbano-industrial, que classificam os indivíduos em conceitos iden-
titários e os alocam em campos partilhados entre o normal e o
patológico. Para esse autor, então, o indivíduo foi construído na e
pela complexa intrincação das relações de poder e saber, nasceu
com elas e com elas se constituiu. Do mesmo modo, a emergência
e o desenvolvimento das Ciências Humanas, na qualidade de saber
próprio do homem, incluindo todas as ciências, análises ou práticas
com o radical "psico", tomaram corpo nessa reviravolta histórica
dos processos de individualização (Mancebo, 1999b).
Pode-se dizer, sinteticamente, que a partir do século XVIII, e
com maior nitidez no século XIX, engendrou-se um solo epistemo-
lógico pleno de especializações, em que teorias, ciências, idéias e
conhecimentos puderam florescer para dar conta da compreensão
HISTÓRIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSÁRIO E SUAS "ARMADILHAS 15

do universo de experiências da interioridade humana, em especial


das suas tensões. Desse modo, o espaço psicológico, tal como o
conhecemos na modernidade, nasceu e vive precisamente da arti­
culação conflitiva das formas de pensar e praticar a vida individual
em sociedade.

Crise do paradigma científico moderno


e repercussões para a Psicologia

Como resultado interativo de uma pluralidade de condições, o


paradigma dominante de ciência entrou em crise no século que fin ­
dou. Passa-se ao reconhecimento de que o conhecimento científico
moderno "é um conhecimento desencantado e triste, que transfor­
ma a natureza num autômato (...) ou num interlocutor terrivelm ente
estúpido". Dentre outros aspectos, o rigor científico não raramentè
desqualifica os objetos - "ao objetivar os fenômenos, os objectua- \
liza e os degrada, (...) ao caracterizar os fenômenos, os caricaturi- '
za" (Santos, 1997, p. 32) - e, ao reduzi-lo em pequenos objetos,
perde em relevância social, em generalização e em potencial expli-^
cativo.
Em decorrência das críticas que o conhecimento moderno passa
a enfrentar no século XX, alguns pressupostos de um novo paradig­
ma, ainda emergente, vêm sendo postulados, com implicações pro­
fundas para todos os campos investigativos, inclusive a Psicologia.
Primeiramente, o conhecimento do paradigma emergente pro­
cura superar alguns dualismos bastante familiares à disciplina psi­
cológica, como natureza/cultura, natureza/artificial, vivo/inanimado,
mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/
individual, animal/pessoa (idem, ibidem).
Depois, afirma-se a não-neutralidade na produção dos co­
nhecimentos, e o investigador passa a ser considerado como par­
te constitutiva do fenômeno analisado. Conforme Santos, a ciên­
cia moderna, sob cujos parâmetros a Psicologia se desenvolveu,
"consagrou o homem enquanto sujeito epistêmico, mas expulsou-o
(...) enquanto sujeito em pírico" (ibidem, p. 50). Um conhecim ento
objetivo, factual e rigoroso não tolerava a interferência dos valo­
rei humanos e as implicações do investigador. Ao contrário, sob a
percepção emergente, os pressupostos metafísicos, os sistemas
16 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

de crenças, os juízos de valor não estão antes, nem depois, da


explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte inte­
grante dessa mesma explicação. [ÍK realidade é uma construção
?) coletiva cotidiana, na qual indivíduos e sociedade se transform am
m utuam ente no curso de sua inevitável interação) Passa-se a as­
sumir, desse modo, a impossibilidade da objetividade, tão cara a
m uitos no campo da investigação psicossocial: a presença do in­
vestigador, a seleção do seu tema de trabalho, a escolha dos su­
jeitos (amostra), a determinação das condições da pesquisa e das
técnicas adotadas de coleta de dados (entrevistas, observações,
form ulários, história de vida, pesquisa documental e bibliográfica,
dentre outras), a análise dos dados (análises quantitativas e quali­
tativas - a "análise do conteúdo", a "análise do discurso" - , den­
tre outras), enfim , as partes constitutivas da construção investi-
gativa constituem -se em escolhas, nas quais o pesquisador tem
ativa participação.
Há que se considerar, ainda, as implicações metodológicas
geradas na crise da ciência moderna, que se encaminham no senti­
do de uma fértil aproximação da Psicologia com as Ciências Natu­
rais, Sociais e demais humanidades.
Conforme já apresentado, na investigação moderna o conhe­
cim ento avança pela especialização, e as inúmeras subdivisões da
Psicologia comprovam esta afirmação. O conhecimento "é conside­
rado tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objeto sobre o
qual incide, (...) o seu rigor aumenta na proporção direta da arbitra­
riedade com que espartilha o real" (idem, ibidem, p. 46), mesmo
que à custa de evidentes efeitos negativos quanto ao seu potencial
de generalização e sua relevância social. A consciência das lim ita­
ções deste modelo encaminha, então, alguns programas investiga-
tivos para a busca de articulações multi e interdisciplinares já loca-
lizáveis em uma significativa e volumosa produção acadêmica de
livros e revistas "especializadas". Psicologia, Sociologia, Antropo­
logia, Economia, História, Pedagogia, Lingüística e outras discipli­
nas têm suas margens permeabilizadas diante do objetivo de am­
pliar o conhecimento do indivíduo, do grupo, da sociedade e da
produção de sua existência material e concreta (Camino, 1996).
Por fim , assume-se o caráter histórico das investigações, de
seus resultados e métodos utilizados, o que significa afirmar que_ss
sociedades humanas e os homens que as habitam existem num
determinado espaço, cuja formação social e configuração são espe-
HISTÓRIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSÁRIO E SUAS "ARMADILHAS" 17

cíficas, que o dinamismo e a especificidade são características fun­


damentais de qualquer questão social e que teorias e métodos psi-
cossociajs construídos para tratar dos homens e das sociedades
são historicamente datados. Sob esta nova perspectiva na produ­
ção do conhecim ento, abdica-se progressivamente do projeto até
então hegemônico de purificação metodológica; o acolhimento dps
"híbridos" (Latour, 1994) torna-se uma realidade em algumas pes­
quisas, tra n s fo rm a n d o a Psicologia numa d iscip lin a m estiça
(Serres, 1993), combinada com outros campos do saber, que lhe
possibilita, enfim , avanços teórico-epistemológicos e, especialmen­
te, ético-políticos.
Em síntese, da aproximação da Psicologia com outros sabe-
res, do exercício crítico às especializações e às purificações teórico-
metodológicas positivo-funcionais, decorrem referenciais de análi­
se que afirmam o caráter histórico dos fenôm enos psicossociais.
ÍOs conhecimentos psicológicos construídos estão embebidos no
contexto temporal, cultural, espacial em que são criados, e se con- j
sidera que as formações da subjetividade não podem ser compreen- /
didas como desligadas da formação social na qual se constituem)}
Desse modo, "tanto os fenômenos 'norm ais' quanto os 'patológi­
cos', bem como a determinação das fronteiras entre uns e outros,
dizem respeito a uma dada formação social e só podem ser compre­
endidos em relação a ela" (Gentil, 1996, p. 83). Em conseqüência,
os conhecimentos alcançados são transitórios e destinados a serem
superados, modificados e esquecidos, na medida em que deixem
de responder às condições sócio-históricas que os favoreceram,
exigiram e os fizeram florescer.

História e Psicologia: uma hibridação necessária

São muitas as alternativas para uma Psicologia híbrida. Sem a


possibilidade de uma extensão maior no escopo deste texto, é pre­
ciso pelo menos citar duas dessas propostas: as investigações que
aproximam a Psicologia da Antropologia e as que a aproximam da
História.
Com a Escola dos Anais, criada na década de 1920 e assim
nomeada por causa da revista que, desde 1929, reuniu as contri­
buições de seus principais representantes (Annales d'Histoire
18 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Économique et Sociale), Psicologia e História passam a habitar or­


ganicam ente tem áticas comuns. O esforço m ultidisciplinar que
marcou essa nova tendência historiográfica - associada inicialmen­
te aos nomes de Lucien Febvre e Marc Bloch - encaminhava-se
para a definição dos delineamentos pelos quais as épocas se distin­
guem, relevando de forma inovadora as fronteiras éticas, estéticas
e também psíquicas. Tudo o que poderia dar sentido à mentalidade
de uma época - História da Psicologia coletiva, da comunidade de
valores e hábitos, dos gestos, dos sentimentos - transforma-se em
objeto de investigação e análise.
Nesta perspectiva, as temáticas analisadas ganham espessu­
ra temporal. Apresentam-se como tecidos complexos, com ritmos
próprios, uns mais lentos, ainda resistindo às heranças e à memória
do passado, enquanto outras conjunturas são percebidas como ace­
leradas, rompendo o presente para impor a urgência da mudança.
Os programas investigativos multiplicam-se em questões nas quais
cabem a história das idéias científicas, das práticas econômicas e
religiosas, das curvas demográficas, a história da cultura, das guer­
ras, das form as de representação da família, da loucura, da morte,
das mulheres, das crianças e da própria subjetividade. O vocabulá­
rio, a sintaxe, os lugares-comuns, a concepção de espaço e de
tempo, os quadros lógicos, tudo o que diga respeito aos locais e ao
modo de produção das mentalidades pode ser m otivo de exame,
constituindo um complexo inventário, que Febvre designou outillage
mental.
Por seu turno, a Antropologia detém, também de longa data,
experiências de pesquisas do que se convencionou chamar de cul­
turas "exóticas", que obrigam a um aporte avesso ao anacronismo
psicológico, segundo o qual poder-se-ia aplicar a todos os represen­
tantes da espécie humana as características que são específicas
daquele que os pensa. Especialmente a partir de uma certa tradição
na Antropologia, iniciada com Mauss (1974 ),2 passa-se a perceber
que a própria categoria "indivíduo", tão cara às diversas psicolo­
gias, além de construída histórica e socialmente, é um valor.

2 Nesta seqüência, Louis Dumont é outra referência central. Cabe destaque, ain­
da, à fertilidade de desenvolvimentos teóricos que se deram nesta linha, em nosso
país, com Gilberto Velho, Roberto Da Matta, Jane Russo e Luís Fernando Dias
Duarte, para citar alguns.
HISTÓRIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSÁRIO E SUAS "ARMADILHAS" 19

Desse modo, de posse das férteis articulações com as cons­


truções histórica e antropológica, torna-se possível à Psicologia
expandir a crítica ao etnocentrismo, para fazer despontar uma du­
pla preocupação com a variação espacial e temporal das mentalida-
des. A Psicologia pode e deve manter uma íntima relação com estas
disciplinas, e, mais do que se perguntar se há uma forma geral de
representação de si e do mundo, se há uma mentalidade ou "in­
consciente coletivo" (Ariès, 1990) a reger as trocas simbólicas de
uma época, voltar-se para o exame da forma como o homem se
singulariza nesses espaços e tempos.
São múltiplas, portanto, as trajetórias possíveis de se percor­
rer, uma vez que se proponha a lançar mão de construções teóricas
que ultrapassem as margens exclusivas dos saberes psicológicos.
A História da Psicologia, motivo central deste trabalho, pode expor-
nos diante da contextualidade dos fatos humanos, na qual o pano
de fundo universalista dos saberes "psi" dilui-se, bem como as reni­
tentes pretensões de construção de um discurso verdadeiro sobre
as diferentes qualidades e condições com que se organiza a alma, o
comportamento, a consciência, dentre outros o b je to s .^ subjetivi­
dade pode ganhar novas visibilidades diante da enunciação de sua
historicidade, os homens podem tomar corpo num tempo e num
espaço que os definem, como pertencentes a uma dada época e
para uma dada área social, econômica, geográfica e lingüística.
Hibridar Psicologia e História pode, além de tudo, oferecer um
Instrumento crítico que justaponha à normalidade de um presente a
diferença de outras organizações#- econômicas, políticas, cultu­
rais, existenciais - , que, apoiando-se na moda de passados findos,
relativizam a ortopraxe e a ortodoxia do sistema em que vivemos
(Certeau, s. d., p. 13). O recurso ao passado é vital. Exige o con­
fronto entre práticas e análises heterogêneas. Pode fornecer a força
transgressora da inventividade humana, politizando a criatividade,
0 Inacabamento do fazer e da narração. Como diz Paul Veyne, "os
fatos humanos não são evidentes por si mesmos", e a curiosidade
reside em se perguntar por que não seria possível fazer de maneira
diferente da que se pensa ou já se pensou. O apelo à História pode
lugerlr, assim, novas técnicas e objetos "psi", distintos daqueles
orlitalizados em espaços privados e intimistas.
Deste modo, investigações que remetem a disciplina psicológi-
01 aoi seus contextos de produção, que exploram os paradigmas
Qonitrufdos no campo psicológico, que analisam hábitos ou regras
20 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

compartilhadas pela comunidade de pesquisadores de uma determi­


nada época, que recuperam as intenções, as convenções e os con­
textos de produção desta disciplina, estas têm-se mostrados férteis.
Tal esforço pode ser tríplice: a análise de "orientações, para­
digmas, problemáticas e instrumentos de pesquisa" dessa discipli­
na; a pesquisa do processo de institucionalização através da qual a
disciplina procura se estabilizar do ponto de vista de sua organiza­
ção, e a discussão dos primeiros esforços de constituição do cam­
po de trabalho, com os quais, em princípio, os integrantes da comu­
nidade científica se identificaram (Lepenies, 1983, p. 38).

"Arm adilhas" no encontro História/Psicologia

O caminho não é todavia tranqüilo, e armadilhas precisam ser


evitadas. Primeiramente, é necessário romper com um determinado
tipo de literatura na História da Psicologia, que persiste em ater-se
ao território restrito da memória pessoal ou coletiva. É verdade que,
entre História e memória, as relações são fortes, e muitas das ne­
cessidades de rememoração estiveram, com freqüência, na base de
investigações rigorosas e originais. Mas nem por isso História e
memória são identificáveis. A primeira está inscrita na ordem de um
saber trabalhado criticam ente, "universalmente aceitável" e, para
alguns, "cie ntífico". A segunda é movimentada pelas exigências
existenciais de comunidades ou pessoas para as quais a presença
do passado no presente é um elemento essencial de seu ser coleti­
vo e pessoal (Chartier, 2000, p. 19).
Além disso, é preciso destacar que os "depoim entos", em
geral utilizados nesse tipo de literatura, estão interna e externamen­
te subordinados a restrições. Em outros termos, nem tudo tem o
direito de ser dito: "os tabus, a loucura, o erro (conhecimento falso)
atestam todo um esforço no sentido de silenciar o que oferece pe­
rigo" (Pinho, 1998, p. 184).

Procedimentos demarcam as fronteiras de cada discurso, limitando,


ou melhor, impondo regras à sua livre circulação. São os rituais de
enunciação (que requerem gestos, comportamentos e circunstân­
cias específicos), a engrenagem editorial, as associações criadas
para garantir a manutenção de determinado saber, os sistemas dou­
trinais, educacionais etc. (Pinho, 1998, p. 184)
HISTÓRIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSÁRIO E SUAS "ARMADILHAS" 21

Em contraposição à História, a memória ajusta-se às necessi­


dades de construção de uma identidade. E, neste jogo, as violên­
cias, os erros e não raramente as lutas que tiveram lugar têm que
ser esquecidas ou interpretadas de maneira que não impeçam o
sentimento de unidade, que permitam a produção de uma narrativa
coerente, uma escritura harmônica da disciplina.
Deste modo, é um bom antídoto caminhar além da memória e
em prol de uma História da Psicologia, caminhar na direção de cap­
tar o processo de constituição da Psicologia, no qual as experiên­
cias, os projetos e as lutas dos que se opuseram, perderam ou
foram abafados também tenham presença, o que implica realizar
uma pesquisa que não se fixe somente nos "resultados", isto é, no
projeto hegemônico, nas leis aprovadas, nos livros que ficaram, nos
nomes reconhecidos (Mancebo, 1999c). As contradições devem
ser analisadas pela História da Psicologia no sentido discutido por
Orlandi (1987, p. 31): o "espaço de dissensões m últiplas", o espa­
ço em que se mantém "o discurso em suas asperezas m últiplas".
Sob tal orientação historiográfica, a leitura dos textos - espe­
cialmente as fontes documentais primárias - também se altera. Pri­
meiro, porque não se trata mais de lê-los na busca de uma "unida­
de" que pudesse totalizá-los, mas de multiplicá-los. Desse modo,
am vez de se analisar a "estrutura interna de uma teoria", como
fazem as "descrições epistemológicas ou arquitetônicas, a análise
pode se encaminhar para uma articulação múltipla, para uma plura­
lidade de registros, interessando-se por interstícios e desvios"
(Orlandi, 1987, p. 30). Depois, é preciso também se precaver quan­
to aos perigos de se manter a independência soberana e solitária
dos discursos psicológicos. Como em Foucault (1981), deve-se
manter a preocupação em estabelecer "formas específicas de arti­
culação" entre discursos e domínios ou "sistemas não discursivos";
ou, ainda, em descobrir todo esse sistema de instituições, de pro-
fiossos econômicos, de relações sociais sobre os quais se podem
«rtlcular os textos e os conceitos que os abarcam, não mais para
"reencontrar um encadeamento causai" entre, por exemplo, "um
oonceito e uma estrutura social", mas para captar um "tipo próprio
d« hlstoricidade" em que se está enredado, relacionada a "todo um
flonjunto de historicidades diversas".
Outro aspecto cuja persistência deve ser evitada refere-se às
Intermináveis sérias de Influências tfio comuns nos manuais de "Histó-
rll da Psicologia". Conforme Lepenles, as Influências são, sem dúvida,
22 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

(...) m enos im portantes que uma rede de relações interdisciplinares


( ( . . . ) . A história de toda disciplina deve ser a história das suas rela-
ções com as outras disciplinas, daquelas que ela im ita com o m ode-
/v$/ los, to m a com o aliadas, tolera com o vizinhas, rejeita com o concor­
rentes ou despreza com o inferiores. ( 1 9 8 3 , pp. 3 9 - 4 0 ) |

Por fim , é possível se aperceber que, na formação de um sa­


ber específico sobre o homem, não se encontra exclusivamente um
suporte epistemológico. Os textos apresentam-se associados inva­
riavelmente a um componente político e, mais do que mecanismos
repressivos, envolvem relações de força, eficácias estratégicas, tá ­
ticas políticas. Passa a fazer parte do ofício do historiador da Psico­
logia a tarefa de revelar o regime político inerente às práticas dis­
cursivas e não discursivas, as redes de poder, as configurações
culturais e históricas que resultaram na produção de objetos, m éto­
dos e tratam entos para a Psyché.
Isto implica, de um lado, a superação do "modelo filo sófico"
que postula a leitura de "escolas", "estilos" ou "tendências" do
pensamento erudito e institucionalizado como uma extensa e inin­
terrupta cadeia de interlocutores que se sucederam e se revezaram
no tempo. Significa, ainda, pôr em xeque o "modelo da filosofia
como philosophia perennis" (Warde, 1997, p. 290), em prol de
uma outra metodologia que secundarize as relações de continui­
dade (sucessores e predecessores) e releve as relações de luta que
se travaram contemporaneamente. Implica, igualmente, superar o
entendimento de que as dinâmicas disciplinares são impelidas pelo
m otor interno das idéias, em favor de uma compreensão "contex-
tualizada" das idéias, do pensamento, das teorias.
Isto significa, também, repensar radicalmente os procedimen­
tos historiográficos, já que não se trata mais de buscar formas de
manifestação de um fenômeno ao longo da história, de partir do
objeto, do sujeito, de uma teoria "plenam ente" constituída para ver
como ele havia se manifestado em diferentes formações sociais.
questão que aqui se advoga é a de perceber de que maneira as
práticas discursivas e as não discursivas, as redes de poder consti­
tuem determinadas configurações culturais e históricas que resul­
tam na produção de determinados objetos e de determinadas figu­
ras sociais (Rago, 1995).^}
Trata-se, enfim , de levar a sério a questão levantada por
Rodrigues:
HISTÓRIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSÁRIO E SUAS "ARMADILHAS 23

i
/
f Enquanto privilegiarm os o epistem ológico e o técn ico , em detrim en-
( to do histórico (político e m icro -p olítico ), não estarem o s, necessa-
^ riam en te, legitim ando sab eres-com petências-dom inações, ao invés
Nde análise e intervenção social? ( 1 9 9 9 , p. 4 1 )

Considerações finais

Foucault localiza três usos possíveis do sentido histórico. Para


ele, o sentido histórico "comporta três usos que se opõem, palavra
por palavra, às três modalidades platônicas da história" (1986, p.33).
A primeira possibilidade é utilizá-la como uma paródia, com um uso
destruidor da realidade, que se oporia ao tema da história-reminis-
cência, reconhecimento. A segunda é o uso dissociativo e detruidor
da identidade, que se opõe à história-continuidade ou tradição. Es­
ses dois sentidos já foram abordados anteriormente. O terceiro é o
uso sacrificial e destruidor da verdade, que se opõe à história-co-
nhecimento.
De fato, a consciência da contextualidade e da historicidade
dos fatos humanos e, dentre eles, dos saberes psicológicos, choca-
18 inevitavelmente com qualquer tipo de pretensão universalista de
nossos saberes. Contrapõe-se a um certo senso comum da acade­
mia que, desde os primórdios da ciência moderna, procura se fun­
dar, se estabelecer, sobre a idéia, sobre a crença...

(...) de que nós nos a p ro xim am o s v e rd a d e ira m e n te do real ao


"conhecer", de que nós podem os produzir um saber verdadeiro so­
bre as d ife ren tes qualidades e condições em que se organizam a
m atéria, a vida e a significação, de que todos os fen ô m en os podem
ser e fe tiv a m e n te reduzidos a níveis mais profundos, invisíveis e co­
muns de interpretação; isso tudo que nos conforta na im pressão -
pode-se dizer ta m b é m que nos dá a ilusão - de que estam os to c a n ­
do no real e, acim a de tu d o, intervindo propiciatoriam ente sobre ele.
(D uarte, 1 9 9 9 , pp. 5 4 -5 5 )

Historiar a Psicologia significa, em síntese, ousar um certo


afastamento de seus protocolos formais, suas teorizações "acaba­
das", seus reglmea de IntervençSo "estabelecidos", incluindo a pre-
ta n ilo da cientlfloldade moderna, de conhecer a realidade para além
daa aparências, de modo que ae controle o mundo a serviço do
homem.
24 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Por fim , ousar transitar pelos novos paradigmas, ainda emer­


gentes, que pretendem alçar a produção do conhecimento em ní­
veis mais complexos, articuláveis com outros saberes, significa eri­
gir uma subjetividade que lhe faça jus, cujas características se apre­
sentem similares ou com patíveis/Se o racionalismo estreito, meca-
nicista, utilitarista e instrumental da ciência moderna soube dar sua
quota de contribuição para o obnubilamento da capacidade de sur­
presa diante do conhecimento, da descoberta de novos campos, de
novas misturas e dos seus imprevistos - o que em term os mais
amplos significou o arrefecimento da vontade de transform ação
pessoal e coletiva - , a tarefa de reconstrução dessa capacidade e
dessa vontade "de rebeldia" assume, neste novo século, um cará­
ter de urgência e necessidadeJSeguindo novamente Paul Veyne,
para quem "os fatos humanos não são evidentes por si mesmos", é
imperioso se perguntar por que não seria possível pensar, agir e
investigar de maneira diferente da que se pensa, se age e se investiga.

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De/se Mancebo
Professora titular e pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro; doutora em História e Filosofia da Educação pela Pontifícia
Unlvcraldadt Católica de São Paulo.
Il
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO
CULTURAL DA C O M P A N H IA DE JESUS NO BRASIL
DO SÉCULO X V I E XVII
Marina M assim i

História das idéias psicológicas,


na cultura luso-brasileira: do que se trata?

A elaboração dos conhecimentos psicológicos ao longo do


tempo nas diferentes culturas é objeto de uma área de estudos que
ie denomina história das idéias psicológicas. Indica-se com este
nome a reconstrução de conhecimentos e práticas psicológicas pré­
sentes no contexto de específicas culturas e sociedades, expressi­
vos das diversas "visões de mundo" (Chartier, 1990) que as carac­
terizam. Entende-se por visão de mundo aquele conjunto de aspira-
çfies, de sentim entos e de idéias que reúne os membros de um
mesmo grupo e os diferencia de outros grupos sociais.
O estudo da cultura brasileira dos séculos XVI ao século XVIII
é particularmente fecundo e propício para esse tipo de investiga­
ção: de fato, a produção de idéias e de tentativas de sínteses cultu­
rels é uma característica marcante desse período histórico, confor­
me assinalado por vários autores (Hansen, 1986; Morandé, 1984;
Morse, 1995; Pecora, 1994). Analisando o conjunto da produção
lUIO-brasllelra colonial, delineiam-se umas temáticas mais relevantes
HO que diz respeito a conhecimentos e práticas psicológicas, bem
eomo se destaoa o papel significativo de alguns sujeitos culturais
28 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

especialmente expressivos e atuantes no âmbito da cultura oficial


ou no da cultura acadêmica e popular brasileira.
Com efeito, apesar da fragmentação e do autodidatism o que
caracterizam a realidade do país daquele período, constata-se a
existência de alguns grupos ou realidades culturais que apresentam
uma certa homogeneidade, podendo assim ser considerados como
sujeitos culturais, ou seja, sujeitos que representam, expressam,
transm item e preservam determinados modelos culturais.
Evidenciaremos, a seguir, alguns tópicos da produção cultural
brasileira do período entre o século XVI e os inícios do século XIX,
que podemos reconhecer como significativos para a história dos
conhecimentos psicológicos na cultura ocidental.

Os jesuítas como portadores e transmissores


de idéias psicológicas

Ordem religiosa recém-surgida quando da vinda de seus pa­


dres missionários ao Brasil, junto da armada do Governador Geral
português Tomé de Souza, em 1549, a Companhia de Jesus se
originara num contexto cultural muito fecundo da Europa da época.
Com efeito, seus inícios aconteceram no âmbito de um pequeno
grupo de docentes e alunos da Universidade de Paris, local de con­
vergência da tradição medieval e dos novos fermentos do Humanis­
mo e do Renascimento; além disso, a identidade hispânica de seu
fundador, Inácio de Loyola, e de vários entre os primeiros adeptos, :
proporcionava a colocação da Companhia no âmago de um dos
mais im portantes m ovimentos culturais da Europa da época: a Se- |
gunda Esco/ástica ibérica, escola filosófica que tencionava abarcar
e discutir as novas teorias dos filósofos renascentistas e, ao mes- i
mo tempo, manter uma ligação estreita com a tradição filosófica i
cristã. Alguns dos membros da Companhia estiveram mesmo entre ;
os mais ilustres representantes desta corrente de pensamento (Fran- j
cisco Suarez, Pedro de Fonseca, Luís de Molina).
A proveniência portuguesa ou hispânica de grande parte dos
jesuítas que após 1549 chegaram no Brasil, bem como o fato de
sua form ação espiritual e intelectual ter sido realizada no Colégio :
das Artes de Coimbra, que fora um dos focos do referido movimen­
to filosófico, reforça ainda mais a significação do papel cultural que
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO CULTURAL DA COM PANHIA DE JESUS 29

os jesuítas assumiram no Brasil: o de portadores e transmissores da


tradição medieval e renascentista da Europa no contexto da colônia
além-mar, tendo eles propiciado e em parte se encarregado de rea­
lizar o enxerto das idéias, sonhos e desilusões, riquezas e contradi­
ções do Velho Mundo no terreno fecundo, virgem e desconhecido
do Mundo Novo, onde irão estabelecer sua morada.
A educação é reconhecida pelos religiosos - imbuídos pelo
espírito da pedagogia humanista - como instrum ento privilegiado
para criar um homem novo e uma nova sociedade no Novo M undo.1
Por isso a educação das crianças e a criação de escolas se consti­
tuíram os objetivos prioritários do plano missionário da Companhia
no Brasil. Esse empreendimento acarretava a necessidade de fo r­
mular conhecimentos e práticas de caráter pedagógico e psicológico.
Cabe ressaltar outro motivo que justifica o interesse do estudo
do saber dos jesuítas do ponto de vista da historiografia das idéias
psicológicas no Brasil: uma das dimensões principais da espirituali­
dade da Companhia e de sua formação é a ênfase no conhecimento
de si mesmo e no diálogo interpessoal visando à compreensão da
própria dinâmica interior. O discernimento dos espíritos e a direção
espiritual, por exemplo, recursos utilizados na Companhia para a
formação de seus membros, são expressões de uma atenção toda
moderna para com o cuidado de si mesmo e tornam-se normas para
a vida individual e social no âmbito da Companhia. Esses recursos
práticos eram aplicados à vida do indivíduo, sendo porém funcio-

1 Com efeito, assim como muitos entre os europeus que vieram para as Arriéri­
ons, os jesuítas chegaram ao Brasil carregando consigo fermentos milenaristas
qua, expressivos da crise cultural e social da Europa quinhentista, levavam-nos a
•iperança de que aqui, no Novo Mundo, seria possível realizar o que fora impossí­
vel em seu contexto de origem. As Américas seriam, então, o contexto onde seria
possível realizar a "utopia". Nesta perspectiva, a criação de escolas seria um dos
namlnhos para possibilitar a realização do ideal preconizado. Tal objetivo fora re­
forçado pela constatação - após alguns anos de experiência com os índios brasilei­
ros -, de que estes não seriam propriamente tabula rasa, como era esperado; pelo
oontrárlo, eram portadores de uma cultura e de um ethos muito diferentes, e às
vezes radicalmente opostos à cultura e aos valores religiosos e morais dos euro­
peus, conforme é documentado pela correspondência jesuítica escrita do Brasil ao
longo do século XVI (Massimi et alii, 1997). Daqui nasceu a necessidade urgente
(!• orlaçâo de escolas para formação dos meninos, pois na tenra idade seria mais
ftoll Inoulcar neles os caracteres da nova humanidade que se pretendera moldar. E,
OOm •falto, o resultado foi surpreendente, pois em poucos anos os jesuítas conse-
|Ulram construir a tornar operativas uma rede de Instrução de primeiro, segundo e
Uroalro grau* na» dlvaraaa raglOtt da tua presença missionária no pata.
30 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

nais ao bem-estar do grupo e destinados a favorecer a adaptação


aos diversos contextos de atuação missionária;2 neles canalizam-se
conceitos teóricos e receitas práticas próprias de toda a tradição
clássica e medieval.3
Apresentamos, a seguir, as principais idéias psicológicas que
surgiram nesse contexto, presentes no meio sociocultural do Brasil
colonial.

O estudo da alma e a cura das enferm idades do ânimo

Uma importante fonte para o conhecimento da teoria psicoló­


gica difundida no ambiente cultural da Companhia de Jesus em
Portugal e no Brasil, ao longo do período colonial, são alguns co­
mentários às obras de Aristóteles elaborados pelos jesuítas portu­
gueses docentes no Colégio de Coimbra, os tratados assim chama­
dos conimbricences (termo derivado de Conimbrica, nome latim da
cidade de Coimbra) (Lohr, 1995).
Tais comentários eram baseados nos textos gregos de Aristó­
teles, tendo por objetivos o uso didático (visando facilitar o trabalho
dos alunos e propor um corpo seguro e uniformizado de conhecimen­
tos filosóficos) e a necessidade de assumir uma posição cultural
explícita a favor de Aristóteles e de Santo Tomás, mas ao mesmo
tempo acolhedora dos fermentos culturais novos do Humanismo e

2 Especialmente daquela área que se denominara medicina do ânimo e que, desde


Platão, visava ao cuidado para com as assim chamadas enfermidades do ânimo,
caracterizadas pelo desequilíbrio entre as partes da alma causado pela perda da
soberania da alma racional sobre as demais partes da vida psíquica do homem
(vide, por exemplo, a longa discussão a respeito realizada por Platão no Timeu).
3 A contribuição do estoicismo à medicina da alma é conhecida (Pigeaud, 1989),
mas se pode afirmar que, ao longo de toda a Idade Média, proliferaram discussões
teóricas e receituários práticos, visando descrever, explicar, prevenir e cuidar de
todos os aspectos daquele microcosmo que é o homem, de maneira que este fosse
um verdadeiro jardim da saúde (Schipperges, 1985), conforme a expressão utiliza­
da na época para definir o gênero literário que se ocupava da difusão desses conhe­
cimentos e dessas práticas. O Humanismo e o Renascimento, retomando as tradi­
ções do neoplatonismo e do estoicismo, dedicam-se à construção da medicina do
ânimo, considerada essencial mesmo no que diz respeito à pedagogia e à política,
como, por exemplo, na formação do príncipe. De fato, não é casual que um entre
os tratados do humanismo italiano, dedicado ao filho do rei de Espanha e escrito
por Tideu Acciarini, tivesse o título de De Animorum Medicamentis.
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO CULTURAL DA COM PANHIA DE JESUS 31

da Renascença.4 Das teorias dos "modernos", aproveitavam o possí­


vel e refutavam os conceitos fundados em posições agnósticas e
naturalistas.5
A teoria psicológica dos mestres de Coimbra pode ser apreen­
dida pela leitura dos comentários às obras psicológicas de A ristóte­
les, a saber: De Anima-, Anima Separata; Parva N aturaiia; Ética a
Nicômaco; De Generatione et Corruptione.6
A concepção psicológica proposta pelos Comentários é clara­
mente inspirada na tradição aristotélico-tom ista: a alma é definida

4 Uma análise das fontes citadas pelos comentaristas pode fornecer uma idéia
mais concreta acerca da estrutura do conhecimento psicológico proposta pelos
filósofos jesuítas, verdadeira e complexa síntese entre antigos e modernos.
No comentário ao De Anima, por exemplo, além de outros tratados aristotélicos,
Oltam-se, entre as fontes médicas, desde Hipocrates e Galeno até o anatomista
msdleval Realdo Colombo e o mais recente trabalho de Vesálio (De fabricatione
oorporis humani). Entre as fontes filosóficas, citam-se juntamente aos mestres
Oláaaicos e medievais, Platão, Cícero, Agostinho, Alberto Magno, Santo Tomás e
Puna Scot, autores modernos, tais como o referido Nicoló Pomponazzi, os filóso-
foa humanistas Simone della Porta, Pico delia Mirandola e Costantino Nifo.
* As origens históricas dos tratados Conimbricences remontam aos 10 de setem­
bro de 1555, quando, por decreto régio, ao Colégio das Artes de Coimbra fora
•ntrague a responsabilidade da Companhia de Jesus. Todavia, somente em 1592
fol Impresso o primeiro tomo do Curso, na tipografia de Antônio Mariz, de Coimbra,
QOm 0 título Commentaríi Collegii Conimbricensis Societatis lesu in octo libros
Phyalcorum Aristote/is Stagiritæ. Em 1593, foram impressos vários outros tomos,
•ntra 08 quais alguns dedicados à discussão das obras psicológicas de Aristóteles:
If) Libro Aristotelis qui Parva Naturaiia appellantur H 04 p.), In Libro Ethicorum
Arittotelis ad Nichomacum (95 p.), todos em Lisboa, na Oficina de Simão Lopes.
Noa anos sucessivos, foram aparecendo os demais textos, sendo o De Anima e o
Anima Separata impressos em 1598. O autor anônimo dos tratados parece ter
\ lido na maioria dos casos o padre Manuel Góis.
I A Influência dos conimbricences no século XVI foi muito grande, chegando a atin-
I fir Daicartes e Leibniz (cit. Andrade, p. XXII).
: • Naases comentários, aparece uma discussão que atravessa todo o aristotelis-
t (TIO renascentista, na qual se explicita a divergência entre a interpretação humanista
Aristóteles e a leitura medieval. Em 1516, o filósofo italiano Pietro Pomponazzi
•leravara o Tractatus de immortalitate animæ, cuja tese defendia a impossibilidade
I 0 1 damonatrar filosoficamente a imortalidade da alma segundo os princípios de

Í
ltòtalaa. Com efeito, definindo aristotelicamente o homem enquanto corpo anima-
I • alma enquanto forma da matéria, esta possuiria a mesma qualidade de corrup-
lldada da matéria a, portanto, ela mesma seria mortal. A tese de Pomponazzi
lltlonara aaalm a conoapçlo da concordância existente entre a filosofia aristoté-
| • vlalo orlstl, pola o arlatotallamo, aagundo Pomponazzi, afirmaria uma dou-
Hi contrária ao dogma orlatlo da Imortalidade da alma humana.
32 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

como o ato primeiro e substancial do corpo, a forma do corpo e o


princípio de toda atividade. Inovadora, porém, é a ênfase quanto à
utilidade concreta da ciência da alma - o que justifica a posição
prioritária que ela ocupa entre as outras disciplinas filosóficas. Com
efeito, já no Proêmio do comentário ao livro De Anim a, afirma-se
que a ciência da aima não é útil apenas ao conhecimento da verda­
de eterna, não caduca, mas também à cura das enfermidades do
ânimo (animi m orbus).1
A aplicação das teorias psicológicas no plano prático nortea­
do pela ética encontra-se nos Comentários Conimbricenses à Ética
a N icôm aco.8 Este tratado é particularmente significativo por ser
expressão de um gênero de literatura muito im portante ao longo da
Idade Média, principalmente no Humanismo e no Renascimento,

Ante esta polêmica, os jesuítas tiveram que se posicionar, assim como os demais
filósofos da Segunda Escolástica. A opção foi de defender a enciclopédia aristoté-
lica em sua unidade e aprofundar a leitura e a interpretação de Aristóteles. Acaba­
ram, assim, propondo um novo aristotelismo, elaborado principalmente nas univer­
sidades espanholas, do qual Francisco Suarez (1 5 4 8 -16 1 7 ) fora o representante
mais significativo. Autor das Disputationes metaphysicæ (1 5 9 7 ), publicadas em
Salamanca, e que tiveram dezenove edições entre 1597 e 17 5 1 , Suarez aborda a
questão da relação entre ser finito e ser Infinito, afirmando a possibilidade de tratar
ambos de modo independente um do outro. Portanto, o problema de Deus e o
problema do mundo criado, da Teologia e da Filosofia Natural, podem ser tratados
de forma autônoma. O ser finito é aquele que o poder de Deus constitui na existên­
cia real. Deus é o ser por essência; as criaturas são seres por participação e por
dependência de Deus. O ser das criaturas enquanto criado é participação ou imita­
ção do ser de Deus e, portanto, depende de Deus essencial e intrinsecamente.
Nesse sentido, a criatura é analogia com o seu Criador. O ser das criaturas pode ser
comparado ao ser de Deus, já que é participação deste. A conseqüência da posição
de Suarez, no plano da teoria do conhecimento, é a divisão da Metafísica em três
partes: a Teologia Natural, a Psicologia Racional e a Cosmologia. A Metafísica é a
Filosofia primeira, ou seja, a que enuncia os princípios comuns de todas as ciên­
cias; seu objeto é o ser real e o seu domínio abrange todos os seres.
Os Comentários Conimbricences são elaborados paralelamente à elaboração da
filosofia suareziana, refletindo, portanto, a problemática acima apontada e deixan­
do em aberto as soluções possíveis.
7 Esta posição faz parte de um projeto de renovação da Filosofia proposto pelos
padres de Coimbra. A condição para enfrentar a res filosofica é a ordenação da
vida, pois as faculdades cognitivas não funcionam bem se antes não tiverem
adquirido a vis morai.
8 Os Comentários Conimbricenses à Moral a Nicômaco, impressos em Lisboa em
1 593, foram elaborados por Manuel de Góis, que, servindo-se dos manuscritos
correntes nas aulas dos jesuítas em Portugal (ex. Pedro Luís, 1567; Lourenço Fer­
nandes, 1 5 7 5 -1 5 7 8 ) e de outros comentários impressos, redigiu o texto.
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO CULTURAL DA COM PANHIA DE JESUS 33

mesmo no contexto da história cultural de Portugal, onde se pode


observar a presença de uma significativa tradição no domínio da
literatura moral. Nas ditas disputas, destacamos os seguintes tó p i­
cos de natureza psicológica: as noções acerca da estrutura e da
dinâmica psicológica do homem (vontade, intelecto e apetite sensi­
tivo); as noções acerca dos estados da alma definidos como pai­
xões; as relações entre as virtudes (hábitos) e as paixões.

As cegas paixões do coração humano

A descrição e a definição conceptual de emoções, tais como o


medo, o amor, a tristeza, na época denominadas paixões, são te­
mas recorrentes na literatura jesuítica produzida no Brasil ao longo
dos séculos XVI e XVII. A elaboração de uma teoria completa acer­
ca de tais fenômenos, bem como de seu controle pelo saber da
Companhia, é documentada pela literatura moral e pela oratória
aagrada.
No século XVII, nos Sermões de Antônio Vieira, encontram-se
Várias referências às "paixões", sendo estas reconhecidas como
motores do com portamento humano individual e social. O saber de
Vieira acerca da psicologia das paixões fundamenta-se numa longa
tradição teológica, médica e filosófica, em muitos casos explicita­
mente documentada e citada,9 e que, de qualquer form a, já encon­
tramos nos tratados filosóficos dos mestres de Coimbra.

* As fontes citadas por Vieira são textos clássicos ou medievais, tais como a
Ítlc /1 a Nicômaco e a Retórica, de Aristóteles; a República, o Timeu e outras obras
d» Platão; os tratados médicos de Galeno e Hipocrates; a Cidade de Deus de
Aflostlnho de Hipona; a Suma Teológica de Tomás de Aquino; mas trata-se tam-
M m de textos produzidos pela cultura humanista e renascimental, tais como o De
Vlln triplici (1475) e a Theologia Platônica de Marsilio Ficino; o De Anima et Vita
Llbrl Tres (1538) de Luís Vives, entre outros. A teoria psicossomática tomista
•cerca das paixões parece constituir-se no fundamento principal da visão dos je-
RUftfls: dita teoria encontra-se formulada principalmente na Suma Theologica e no
trotado De veritate (nas Cuestiones disputadas).
No caso específico de Vieira, a influência da Retórica aristotélica (cf. o Livro II) é
tiara: por exemplo, a afirmação da determinação exercida pelas paixões sobre a
paroepçlo, o entendlmtnto t o juízo, formulada pelo grande pregador jesuíta no
IfCSho citado da 1 608, anoontra-te explicitada nos primeiros parágrafos do dito
ttNto arletotélloo, oonatltulndo-ae o oonhaclmanto e a modificação da disposlçio
emeelonal do ouvlnta numadia eondlpflai fundamental! para a afloáola do dlaourao.
34 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Em sermão de 1665, Vieira declara que:

/4s paixõ es do coração hum ano com o as divide e n u m e ra A ris tó te ­


les, são onze; m as todas el/as se reduzem a duas c a p ita e s : a m o r e
ódio. E estes dois a ffe c to s cegos são os dois p ólos em que se resol­
ve o m undo, p o r isso tão m a l governado. Elles são os que dão os
m erecim en to s, elles os que avaliam as prendas, elles os que rep ar­
te m as fortunas. Elles são os que e n fe ita m ou d escom põ em , elles os
que fa ze m , ou aniquilam , elles os que p in ta m ou d e s p in ta m os
objectos, dando e tirando a seu arbítrio a cor, a figura, a m edida, e
ainda o m esm o s e r e substância, sem outra distinção, ou ju ízo , que
ab o rrece r ou am ar. ( 1 9 5 1 , to m o 4 , p. 1 1 1 )

À descrição da fenomenologia do amor são dedicados os Ser­


mões do M andato, pregados entre 1644 e 1670 (Assis, 1995); a
fenomenologia da tristeza discute-se no sermão pregado em São
Luís do Maranhão, em 1654 (Silva, 1997). Vieira busca explicar as
paixões utilizando-se do referencial da filosofia aristotélico-tom ista,
mas apóia-se também na medicina hipocrática e galênica (por exem­
plo, recorre à tradicional teoria dos humores10).

O conhecim ento de si mesmo:


força poderosa sobre as próprias ações

Para Vieira, o estudo desses fenômenos psicológicos situa-se


no plano de um conhecimento de si mesmo instrumental à conver­
são religiosa e ao com portamento virtuoso, em vista da qual o ser­
mão é considerado meio privilegiado e eficaz, conform e assinala
num famoso sermão ("As cinco pedras da funda de Davi em cinco
discursos m orais", 1676):

Q ue coisa é a conversão da alm a, senão entrar um hom em dentro em


si e ver-se a si mesmo? Para isto, o pregador concorre com o espelho
que é a doutrina; Deus concorre com a luz que é a graça; o hom em
concorre com os olhos que é o conhecim ento. (1 9 5 1 , v. 5 , p. 6 0 7 )

10 Na visão da teoria dos humores, que se originara na medicina grega e romana,


a diversidade na composição dos humores do corpo (complexão) origina diferentes
temperamentos psicológicos, mas um excesso ou defeito de um ou outro humor
pode degenerar em patologias psíquicas e físicas.
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO CULTURAL DA COM PANHIA DE JESUS 35

Por que é tão importante para Vieira o conhecimento de si


mesmo, a ponto de identificar-se com a "conversão da alma", ou
seja, com o efeito mais significativo do ponto de vista humano, da
experiência religiosa? Ele mesmo responde à nossa questão:

N este m undo racional do hom em , o primeiro móbil de todas as nos­


sas ações é o co nh ecim en to de nós m esm os (...). T od o s com um en-
te cuidam , que as obras são filhas do p ensam ento ou idéias, com
que se co nceb em e conhecem as m esm as obras: eu digo que são
filhas do p ensam ento e da idéia, com que cada um se concebe, e
conhece a si m esm o. (...) (Ibidem)

Os com portamentos, as ações humanas, são expressões da


maneira com que o homem concebe e conhece a si mesmo. Em
OUtra enunciação de Vieira: "o conhecimento de si mesmo, e o
OOnceito que cada um faz de si, é uma força poderosa sobre as
próprias acções" (ibidem, p. 612).
Observando-se o homem a si mesmo em seu agir cotidiano, o
que aparece aos "olhos de seu entendimento"? O fato de que o eu
é um composto de duas realidades muito diversas e irredutíveis,
*Um composto pouco menos que quimérico, form ado de duas par­
t i ! tão distantes como lodo e divindade, ou quando menos um
•Opro dela" (ibidem, p. 612). Se reduzíssemos o ser humano a uma
OU outra parte desse composto, haveria duas "vias" para o conhe-
Olmento de si: o conhecer-se a si mesmo "pela parte inferior e terre-
m ” , pelo qual o homem produz um "conceito m uito baixo de si",
Oentrado no reconhecimento da própria fragilidade e de seu destino
d t corrupção; ou, por outro lado, o conhecimento "pela parte su­
perior e tão alta", pelo qual o homem pode ensoberbecer-se, esti-
fflando-se igual a Deus.
Qual será então o verdadeiro conhecimento de si mesmo?
Ra»ponde Vieira: "Digo que é conhecer-se e persuadir-se cada um,
C|U0 ele é a sua alma" (ibidem, p. 613). A alma é para o ser humano
8 melhor espelho de si mesmo. Considerar apenas a parte corporal
do homem significa reduzi-lo à mera dimensão animal. Proclama
V ltlra: "eu sou a minha alma" e, portanto, "quem se conhece pela
jlirte do corpo ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma
| l oonhece" (ibidem).
Mas o que significa dizer que "o homem é a sua alma" e que
f | verdadeiro conhecimento de si mesmo é o conhecim ento da
lim a ”? E o que ee entenda por "alma" na concepção de Vieira?
I

36 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Ele mesmo explica as razões de suas afirmações, razões estas


fundadas na teologia aristotélico-tom ista: a essência de cada ser -
argumenta Vieira - corresponde ao que ele tem de peculiar com
relação aos outros seres. No caso do homem, a alma é "o que o
distingue e enobrece sobre todas as criaturas da Terra" (ibidem,
p. 614). Ademais, o corpo humano não especifica o ser do homem,
sendo substancialmente semelhante ao dos demais animais: "quem
vê o corpo, vê um animal; quem vê a alma, vê ao hom em " (p. 615). ;
Com efeito, o corpo humano, assim como o animal, é uma realidade
corruptível, mas há no eu do homem algo que não morre: "sou
alma, porque o fui, porque o hei-de-ser-porque sou" (p. 620).
Não se trata, porém, de uma antropologia dualista de sabor
platônico, em que o corpo seria considerado uma sorte de prisão da
alma: o corpo é parte do homem, e não sua prisão, conform e Platão
acreditara. Todavia, para que haja verdadeiro conhecimento de si
mesmo, é preciso que o homem assuma como ponto de partida!
o que peculiarm ente caracteriza-o, diferenciando-o do resto d e i
universo. I
0 m étodo para alcançar o saber acerca desse objeto não é ca
mesmo utilizado para o conhecimento da realidade natural - do tip c l
que a ciência natural proporciona. Com efeito, trata-se de o u tr »
ordem de conhecimento, que se refere à realidade moral. Vieira nã<*
pretende então negar no plano ontológico a natureza corporal dm
homem, mas quer em primeiro lugar afirmar que sua dimensão projB
priamente psicológica (que compreende as paixões a os apetiteáB
integra-se à dimensão especificamente espiritual (o que ele d e fin fl
como "homem m oral” ). ■
Vieira quer colocar, portanto, um problema no âm bito do c Æ
nhecimento. Para compreender o ser do homem, é preciso considÆ
rar a experiência humana em sua totalidade. Além disso, para c<S
nhecer de modo verdadeiro cada uma das dimensões da e x p e riê i*
cia humana, é preciso assumir como ponto de partida o que há d f l
mais substancial. A razão deve realizar uma operação semelhantM
àquela que os fenomenólogos chamariam de "redução fenom enol(B
gica": ao considerar a própria experiência, é preciso "separar" o f l
"colocar entre parênteses" a vivência corporal para apreender m
essência da vida pessoal, que é o que ele chama de "alm a". V
O verdadeiro conhecimento psicológico brota então do a s s f l
mirmos esta visada: não de uma autonomização do campo do p f f l
cológico, mas, pelo contrário, de uma sua consideração do p o n f l
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS 37

de vista de uma ordem superior da experiência humana, que é a


ordem do espiritual. Para atingir essa perspectiva é preciso "sair",
distanciar-se do que de imediato aparece como o ser do homem.
Quando a nossa subjetividade se espelha numa alteridade e o nosso
eu se depara com o Outro, então começamos a adquirir o verdadei­
ro conhecimento de nós mesmos. É por isso que "a boca do prega­
dor", semelhante à "boca de Deus", é o instrum ento com que a
graça "form a" os homens. É até por isso que, em vários de seus
Sermões, Vieira define os pregadores como "médicos das alm as".11
Vieira não pretende com isso afirmar a impossibilidade de
realizar um conhecimento da personalidade humana do ponto de
vista especificamente psicológico, e de fato declara: "Não digo que
0 alma se não conhece naturalmente nesta vida, mas quando se
conhece naturalmente, é também como Deus pelos seus efeitos"
(Ibidem). Em plena consonância com a doutrina tom ista - Vieira
ifirm a, assim, que conhecemos a alma pelos seus efeitos, ou seja,
jelas suas funções psicológicas, ou faculdades que se evidenciam
10 plano dos fenômenos. Trata-se então do que na perspectiva
:omista define-se como "Psicologia empírica", que complementa o
lOnhecimento metafísico próprio da alma da "Psicologia racional".
Conhecer a alma "em seu próprio ser e substância" só é pos-
ifvel, porém, através do encontro com Deus. O "espelho perfeito"
Iara o homem conhecer-se a si mesmo é a própria "face de Deus"
Ibidem, p. 625). E a razão disso é inerente à natureza da alma: "a

Uma das principais dimensões da espiritualidade da Companhia e de sua forma-


lo é a ênfase no conhecimento de si mesmo e ao diálogo interpessoal visando à
ímproensão da própria dinâmica interior (vide, por exemplo, o discernimento dos
ipfrltoB e a direção espiritual, expressões de uma atenção toda moderna para com
Oiildfldo de si mesmo, que se constituíam em normas de vida individual e social
} Amtaito da Companhia). Esses recursos práticos eram aplicados à vida do indiví-
10, sendo porém funcionais ao bem-estar do grupo e destinados a favorecer a
liptnçfio aos diversos contextos de atuação missionária. Neles se canalizam con-
iftoa teóricos e receitas práticas próprias de toda a tradição clássica e medieval,
iladmnente daquela área que se denominara de Medicina do ânimo (vide Nota 2
Slot o 3).
I bojo dessa produção, os jesuítas inserem-se de imediato, sendo que desde suas
f ln t • Companhia preocupa-se em demonstrar a importância de sua função
iãgóglo» para os indivíduos a para a sociedade civil. Em vários sermões. Vieira
tm a para al cata tradiçlo: SarmSo de Santa Iria, SermSo da Glorificação de
\Hetteo Xavier: Francltoo Xavier dormindo, Terceiro Sermão da Quarta Feira
Cinta, antr* outroa.
38 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

razão é porque como a alma é uma imagem perfeitíssima de Deus,


só à vista do original se pode conhecer perfeitam ente a cópia"
(p. 625)
Fica claro então o m otivo por que, na perspectiva de Vieira,
conhecim ento de si e conversão coincidam: conhecer-se a si mes­
mo significa poder viver em conformidade com o próprio ser, esta
conformidade sendo possível pela participação do Ser criador, o Ser
de Deus.12

"Estou eu imaginando todas as almas dos homens u m a..."

Numa perspectiva já voltada para a atuação no campo social


da Colônia, a correspondência epistolar e a literatura de viagem
elaborada pelos jesuítas ao longo de sua presença missionária no
Brasil, do século XVI ao século XVIII, constituem-se numa fonte
importantíssima de transmissão de idéias psicológicas acerca de si
mesmo e do outro. O conhecimento do índio, adquirido pelos mis­
sionários jesuítas através da convivência cotidiana com eles, n o r-)
teada pelo objetivo da evangelização, transm itido e difundido por !
meio da correspondência epistolar, é sucessivamente organizado;
em tratados e informes. Nesses documentos, o conhecimento psi- j
cossocial adquirido pela experiência direta é filtrado pelo crivo da
visão antropológica da teologia católica da época, especialmente
da visão elaborada pelos teólogos da Companhia em Coimbra e em !
Roma. As proposições dessa teologia, comparadas com os resulta-'
dos concretos da ação evangelizadora, não definem um modelo*
unívoco; contradições, dúvidas, revisões estão presentes, porém,|
na representação que o pensamento jesuíta constrói acerca doj
índio e do mundo social deste.
Um exemplo da modalidade pela qual o conhecimento do ín-|
dio vem sendo construído pelos missionários é o "Diálogo do Padre
Nóbrega sobre a conversão do gentio" (Nóbrega, 1988). Nesse tex-í
to, Nóbrega utiliza a figura retórica do diálogo, comum na cultura

12 O filósofo jesuíta Francisco Suarez (1 5 4 8 -1 6 1 7 ), em suas Disputationes Meta


physicae (1597), define Deus como o ser por essência e as criaturas como seres
por participação e por dependência de Deus. O ser das criatura enquanto criado é
participação ou imitação do ser de Deus e, portanto, depende de Deus essencial e
Intrlnsecamente. Neste sentido, a criatura é analogia com o seu Criador,
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO CULTURAL DA COM PANHIA DE JESUS 39

da época, para descrever duas visões acerca do índio, existentes na


Companhia, contraditórias entre si. A primeira é expressa pela per­
sonagem do irmão Gonçalo Alves, pregador nas aldeias indígenas,
e outra pela pessoa de seu interlocutor, o irmão Matheus Nogueira,
ferreiro de ofício. Gonçalo está "tentado" (p. 229) a pensar que a
conversão dos índios ao cristianismo seja de fato impossível, mas
Nogueira refuta esta posição valendo-se de uma afirmação doutri­
nária de caráter universal:

(...) esto u eu im aginando todas as alm as dos h om ens um a, nos


serem um as e todas de um m e ta l feitas à im agem e sem elhança de
D eus, e to d as capazes de gloria e criadas p a ra ella, e ta n to vai
diante de D eu s p o r naturaleza a alm a do P apa, co m o a alm a do
vosso escravo Papana. (Ibidem , p. 2 3 7 )

Assumindo esse enunciado como ponto de partida, Nogueira


aplica-o ao caso dos índios, para comprovar que estes também têm
alma. A verificação de tal afirmação é feita baseando-se no dado de
Observação de que eles possuem todas as "potências" atribuídas
pelos filósofos à alma, a saber "entendimento, memória e vontade"
(Ibidem, p. 237). Desse modo, a demonstração da "humanidade"
do índio é feita com base no conhecimento de suas características
psicológicas.
Para Nogueira, a inferioridade cultural dos povos indígenas
em relação a outras nações não é devida a uma diversidade quanto
à sua estrutura psicológica (por exemplo, uma pressuposta inferio­
ridade intelectual), mas sim à educação. 0 aspecto particularmente
Significativo desse enunciado, inspirado na pedagogia humanista, é
0 fato de que ele é comprovado pelo conhecimento por experiência
direta do índio: "e bem creio que vós o vereis claro pois trataes com
elles, e vêdes, que nas cousas de seu mestre, e em que elles tra­
tem, têm tão boas subtilezas, e tão boas invenções e tão discretas
palavras, como todos" (ibidem). A conclusão do raciocínio é, então,
A afirmação de que a personalidade humana e o desenvolvimento
de suas potencialidades dependem do processo educacional.
No que diz respeito ao objetivo específico de nossa análise, é
Interessante observar que a "criação" de uma "psicologia" do índio
1 esboçada, nesse texto, para corroborar a tese acerca da sua hu­
manidade, tese que por sua vez justifica a ação evangelizadora dos
religiosos junto a ala. Easa "psicologia" é baseada, por um lado, em
obaervaçôea derivadas do conhecimento direto dos povos Indíge-
naa a, por outro, é construfds noa moldea do modelo cultural euro*
40 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

peu da época - a saber, a filosofia aristotélica-tom ista e o humanis­


mo pedagógico - , doutrinas essas que, como vimos, permeavam o
espírito da formação jesuítica.
Outros autores jesuítas - tais como José de Anchieta e Fer-
não Cardim - constroem em seus escritos idéias psicológicas acer­
ca dos índios brasileiros, conforme assinalamos em vários trabalhos
(Massimi, 1990). A leitura atenta desses escritos evidencia que a
convivência entre os jesuítas e os índios, ao longo do tem po, reve­
lando a diversidade cultural e social dos homens dos Novos M un­
dos, derrubou aos poucos os modelos culturais tradicionais inicial­
mente utilizados pelos missionários para explicar os com portam en­
tos dos nativos brasileiros, impondo-lhes a necessidade de uma
observação e de uma aprendizagem de significações e valores alheios.
(Massimi et alii, 1997).

"A creança disposta para se form arem


nella quaesquer imagens"

A crença na possibilidade de o homem "fazer-se a si mesmo",


característica do Humanismo e do Renascimento, colocando a ên­
fase na possibilidade de o ser humano ser plasmado através da
educação, encontra nos Novos Mundos recém-descobertos o gran­
de laboratório de sua realização. O trabalho desenvolvido pelos mis­
sionários da Companhia de Jesus, visando à criação de escolas
para a form ação de crianças indígenas e mestiças no Brasil colo­
nial,13 enquadra-se nesse contexto: no projeto missionário da Com­
panhia, através da educação será viável a transform ação do ho­
mem, da cultura e da sociedade. É o que declara Manuel da Nóbre-
ga no já citado texto "Diálogo sobre a conversão do gentio", quan­
do, na conversa imaginada por Nóbrega entre os dois jesuítas, numa
certa passagem em que se compara a "rudeza" dos índios à civiliza­
ção ("polícia") dos povos pagãos da Antiguidade, um dos interlocu­
tores afirma que o fato de "terem os romanos e outros gentios mais

13 No Brasil, a atuação dos jesuítas no campo educacional concretiza-se na cria­


ção de "Escolas de 1er e escrever", para as crianças indígenas, e de Colégios -
dentre os quais destaca-se o Colégio dos Meninos de Jesus, na Bahia, fundado por
Manuel da Nóbrega, em 1550, como uma tentativa de integração entre as crianças
Indfganas e os filhos de portugueses e mestiços.
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO CULTURAL DA COM PANHIA DE JESUS 41

polícia, que estes, não lhes veio de terem naturalmente melhor en­
tendimento, mas de terem melhor criação, e criarem-se mais politi­
camente" (1988, p. 240).
De modo semelhante, declarava José de Anchieta numa sua
carta: "os filhos dos índios criados nisto ficarão firmes cristãos,
porque é gente que por costume e criação com sujeição farão dela
0 que quiserem" (carta de 1 557, ed. 1988, p. 159).
O homem em sua origem é, portanto, uma tabula rasa, e o seu
desenvolvimento é um processo em que esta tabula poderá ser
preenchida, dependendo do projeto de homem e de sociedade que
lerá proposto e eventualmente imposto.
A apresentação clara desse pensamento pode ser encontrada
nos textos escritos já no século XVII por um jesuíta brasileiro, padre
Alexandre de Gusmão (1629-1725), pedagogo e literato, fundador
(Io Colégio de Belém, em Salvador da Bahia, autor entre outros do
tratado A arte de cr ear bem os filhos na idade da puerícia {1685a) e
da novela História de Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito
(1685b).
Construído conforme o modelo dos tratados humanistas e re-
M ecentistas, A arte de crear bem os filhos abarca as várias dimen-
lõea da pedagogia. O objetivo do livro (de 387 páginas) é colocado
í já no Proêmio: a formação de um "perfeito minino, para que nos
ifW O S da Adolescencia chegue a ser hum perfeito m ancebo" ( 1685a,
. II). Ao definir a "puerícia" (infância) como o período da existência
R limana em que “ a creança (...) de sy nam tem acçam racional e,
, fitra viver, necessita do alheio socorro" (p. 170), Gusmão, reto-
mando Aristóteles, Tomás e os humanistas, apresenta uma visão
; d l criança como tábua rasa, “ disposta para se formarem nella qua-
§iQUer imagens" (p. 4). Encara assim a educação como um recurso
fundamental para o desenvolvimento infantil e para a formação do
i homem enquanto tal: "Conforme fo r a primeira doutrina, conforme
| primeira educaçam, que deres a vossos filhos, podereis conhecer,
f § que ham de vir a ser " (p. 2). De modo que Gusmão exorta os
; Iducadores a não desanimar ante a incapacidade de "lavrar" o me-
l^lno: nflo se deve atribuir as causas da ineficácia à personalidade
H ilt a , mas ocorre recorrer aos “políticos previstos nesta m atéria"
■tffci 139). Com efeito:

H r Nenhum mlnlno h» de tem ruim condlçam, que nem possa ser corre-
H f gtvaf » domeatloavel, Nam davam oa paya desamparar aos
H r flfhoa, qua aentlram da mia oondlçoana, deaconfiando da taxer net-
42 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

les frutos, p orqu e nenh u m p o d e ser de ta m m a o natural, que d o u tri­


n ad o , e dom ado, n am possa ser de p ro veito , p o r m eio da b oa crea-
çam . (Ibidem , pp. 1 3 8 -1 3 9 )

A responsabilidade pelo processo de aprendizagem da criança


depende então dos pais e dos educadores, comparados aos agricul­
tores que lançam as primeiras sementes da doutrina na terra, que
são os ânimos infantis, ou a pintores que pintam o painel em bran­
co, ou a escultores que dão forma à pedra.
Um aspecto especialmente inovador da posição de Gusmão
refere-se à questão da instrução feminina. Diante do preconceito
difundido na mentalidade da época sobre a inferioridade intelectual
da mulher, declara:

Pode vir em q uestam , se he conveniente, que as filhas ap ren d am as


a rte s liberaes desde m ininas, assim com o he certo dos filhos m ini-
nos. A o que respondo que n am só he co n ven vien te, m as grande
glória p a ra o sexo fem inino. (Ibidem , p. 3 8 3 )

Cuidados com o desenvolvimento psicológico são propostos


junto com cuidados com o desenvolvimento moral: já vimos que
esta abordagem, tão diferente da nossa, é porém própria da tradi­
ção que fundamenta a cultura do século XVII. A integração da di­
mensão psicológica no conjunto das demais dimensões do ser hu­
mano, inclusive a ética, caracteriza a concepção de homem e da
psicologia própria desta tradição, num contínuo que desde o mundo
clássico estende-se até ao século XIX (pois é somente então que
cada uma dessas dimensões que compõem a Antropologia tornar-
se-ão autônomas umas das outras, constituindo-se até mesmo em
áreas de conhecimento independentes).
Alguns temas do tratado parecem-nos especialmente relevan­
tes na perspectiva da história das idéias psicológicas: em primeiro
lugar, a defesa da "im portância da boa creaçam dos M in in o s", con­
form e reza o título do primeiro capítulo do tratado. Citando uma
afirmação de Aristóteles em Ética a Nicômaco (texto base do aristo-
telism o renascentista), Gusmão afirma desde logo que "todo o bem
dos m ininos depende de sua boa creaçam " (ibidem, p. 2 ).14

14 A plasmabilidade do ser humano, as infinitas possibilidades de ser que ele pode


escolher para si mesmo tinham sido um tema recorrente da filosofia e da pédagogie
humanista dos séculos XV e XVI. Conforme assinala Cassirer (1B77), a famoie
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NA PRODUÇÃO CULTURAL DA COM PANHIA DE JESUS 43

O método de argumentação por ele utilizado para sustentar


suas posições entrelaça as doutrinas dos antigos e as experiências
dos modernos. É interessante ver como a experiência adquirida pela
Companhia nos seus dois séculos de vida é citada em numerosos
•xem plos. Não se trata, então, da apresentação de uma mera teoria
pedagógica, mas da discussão de resultados adquiridos através da
•xperiência.
A construção do conhecimento acerca da criança que Alexan­
dre de Gusmão propõe é realizada com base em métodos e doutri­
nes próprias da tradição ocidental: vimos, por exemplo, a utilização
ds enalogia, método próprio da teologia católica desde a Idade Média
(Hensen, 1986), bem como o recurso a conhecimentos filosóficos,
médicos e teológicos antigos, mas geralmente considerados ainda
Válidos na época em que Gusmão escreve, tais como, por exemplo,
• Já citada teoria dos humores. Ao mesmo tempo, porém, sua peda­
gogia é baseada em dados derivados do presente, sobretudo da
•Xperiência pedagógica da Companhia de Jesus. Além do mais,
M be aqui observar que a escolha das analogias utilizadas no discur-
10 de Gusmão parece ter sido feita segundo imagens derivadas da
fltlldade quotidiana peculiar ao contexto brasileiro da época, de
IfUOdo que seu uso tornava imediatamente compreensíveis para os
ptltores os conceitos propostos: assim, por exemplo, Gusmão se
in fe r e ao trabalho de lavrar o ouro, os metais ou as pedras precio-
p t l l , ao cultivo da terra, ao som da viola, ao mundo dos animais.
P A novela alegórica História do Predestinado Peregrino e seu
M i o Precito, do mesmo Alexandre de Gusmão, publicada em Évo-
|f a em 1685, é uma parábola destinada a evidenciar a importância
educação no que diz respeito à escolha do projeto de vida indivi-
P fU lI (Silva e Massimi, 1997). De fato, Predestinado e Precito são
| Í Q l l Irmãos, cada um deles escolhendo o próprio caminho, um em
Hflreçflo do Bem (simbolizado de forma alegórica pela cidade de

itlo (itt hominis dignitate, de Pico delia Mirandola, invertera o sentido tradicional
rtlaplo entre ser e agir. A dignidade humana não residirá mais no ser, no lugar
| e homem ocupa no cosmos e que prescreve de uma vez por todas a direção de
I Cimlnho de formação; pelo contrário, o ser do homem nasce de seu fazer.
M l modo, o homem criado "nem anjo, nem demônio, nem celeste, nem terreno"
|erá dar a al mesmo, oomo "livre artifice", a forma que ele mesmo escolhe
b ti< 0 prooaaao eduoaolonsl 4 aaalm expressBo deste "fazer-se a si mesmo"
iW n em , parafraseando uma axprasslo do humanlata espanhol Luís Vives (em
Rimiau, 1983, v. 2).
44 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NO VO S ESTUDOS

Jerusalém), outro para o Mal (a cidade de Babilônia). A determinação


do rumo a seguir e da meta a ser alcançada depende da "com pa­
nhia" escolhida (Predestinado escolheu por esposa a razão; Precito,
a própria vontade), mas também da Escola (o primeiro freqüentou a
"Escola da Verdade" e o segundo, a "Escola da M entira").
O tema da existência humana como "peregrinação", herança
medieval que, como veremos no próximo capítulo, é amplamente
retomada pelo Barroco luso-brasileiro, expressa a concepção dinâ­
mica do ser humano, que caracteriza a pedagogia de Gusmão: inse­
rido na história e influenciado pelas circunstâncias, o homem é um
ser em movim ento. Sua personalidade é construída por escolhas de
tipo ético, realizadas continuamente ao longo do tempo (nas várias
fases do "percurso"): nesse sentido, a psicologia jesuítica nunca
independe da moral. É esta, de fato, a qualidade de sua matriz
aristotélico-tom ista.
Desse modo, o ideal humanista do desenvolvim ento como
abertura às infinitas possibilidades do s e re da confiança na educa­
ção, entendida como o processo através do qual essas possibilida­
des convergem na escolha e na construção eficaz de um certa mo­
dalidade de ser homem, chegara ao Brasil por influência da Compa­
nhia de Jesus e de seus pedagogos. É assim que, algumas décadas
após a publicação do tratado de Gusmão, Manoel de Andrade Fi­
gueiredo, natural do Espírito Santo e ex-aluno do Colégio da Com­
panhia de Jesus, calígrafo da corte de Lisboa, escrevera em seu
livro Nova escola para aprender a 1er, escrever e contar (1722),
oferecido ao rei de Portugal Dom João V: "A boa doutrina emenda
a má natureza" (p. 2).

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Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung. v. I.
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Marin* Maaaiml
Profaaaora Aaaoolada do Oapartamanto da Psicologia e Educaçlo da
PPCLRP-USP - Campua ds Rlbalrlo Prato. S-ma/h mmarlnaQffolrp.uap.br
Ill

AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL


NOS SÉCULOS X V II E XVIII
Marina M assim i

Os autores das idéias expostas neste capítulo expressam um


tipo de experiência e posição vividas por muitos intelectuais brasi­
leiros entre o século XVII e os inícios do século XIX: a do autodidata.
Devido às condições impostas pela política cultural da Metrópole, a
Inexistência de Universidade e de escolas de terceiro grau no terri­
tório nacional levara jovens brasileiros membros de famílias mais
abastecidas a realizar seus estudos no exterior, sobretudo nas Uni­
versidades de Coimbra, Paris e Montpellier. Uma das conseqüên­
cias mais graves desse êxodo foi a impossibilidade de se conseguir
modalidades de formação do intelectual integradas às condições e
às peculiaridades da realidade nacional; além do mais, tal situação
estimulou a tendência ao individualismo dos pensadores.
A formação cultural conseguida como autodidatas foi o cami­
nho encontrado por vários brasileiros, que buscaram, assim, reali­
zar seus estudos num contexto totalm ente hostil e marcado pela
desigualdade social. Esses pensadores afirmavam a dignidade cul­
tural de sua posição e, ao mesmo tempo, tinham uma consciência
crítica da condição de desterro do intelectual brasileiro, consciência
•ata que se evidencia claramente em seus escritos. Citaremos, a
laguir, alguns exemplos.
Feliciano Joaquim de Souza Nunes (1734-1808), nativo do
Rio de Janeiro e autor de várias obras que analisaremos a seguir,
•firma na Introduçlo da uma delaa, Dlscuraoa políticos e morals'.
50 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

C om que razão se poderá negar que não seja Filósofo, e bom Filóso­
fo , aquele a quem Deus tiver participado um en ten d im en to perspi­
caz, ainda que não tenha a m ínim a luz das platônicas e aristotélicas
ciências? (...) C om o se define a Filosofia? Não é a sua definição um
co n h ecim en to das cousas assim com o são? É sem dúvida que sim.
Logo, concluam os, se este conhecim ento pode te r um hom em de
bom discurso e claro e n ten dim en to , ainda que não te n h a cursado as
aulas, claro está que, sem a aprender, se pode saber Filosofia. (1 8 3 1 ,
pp. 2 9 -3 0 )

E, noutro trabalho manuscrito, a Política Brasílica (1781), de­


clara solenemente, reafirmando sua dignidade ante os detratores,
que a capacidade intelectual é um dom da natureza humana e não
fruto de circunstâncias econômicas, sociais e políticas favoráveis:

(...) não vivo tã o pobre, com o eles cuidam ; porque ainda conservo,
o m ais precioso que tive: que se no estado de m endigo m e puseram
os h om ens, estes só podem fa ze r o que p odem , e nunca podem
ta n to , q u an to querem ; a sua jurisdição não passa do caduco; e o
en ten d im e n to é potência da alm a, que, por ser im ortal, p erten ce ao
foro E terno, e d este, só Deus é juiz, e Senhor S up rem o. (Fl. 10)

Um autor brasileiro do século XVIII, o paulista Matias Aires


Ramos da Silva de Eça (1705-1770), no Prólogo de sua obra mais
im portante - Reflexões acerca da vaidade dos homens (1752) - ,
comenta tristem ente: "as letras parece que têm mais fortuna quan- í
do estão separadas do lugar em que nasceram". }
Em Matias Aires, evidencia-se também a atitude individualista j
que assinalamos em Souza Nunes. No Prólogo da obra, por exem- j
pio, o autor declara: "Escrevi das vaidades mais para instrução mi-
nha que para doutrina dos outros, mais para distinguir as minhas
paixões que para que os outros distingam as suas" (1993, p. 8). I
Se os textos produzidos pelos autores jesuítas propunham-se j
a ensinar, corrigir, aconselhar, oferecer regras de várias naturezas !
aplicáveis universalmente, as Reflexões, de Matias Aires, pelo con­
trário, têm como objetivo a observação da experiência individual,
colocada como ponto de partida, horizonte e term o de juízo, mes­
mo da realidade social. Esse individualismo característico da posi- ,
ção de vários pensadores latino-americanos do século XVIII é, pos- 1
sivelmente, fruto da desintegração da visão social ampla do século
XVI (Morse, 1996).
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL NOS SÉCULOS XVII E XVIII 51

A condição de dispersão e isolamento dos pensadores brasi­


leiros acarreta a inexistência de escolas ou de m ovim entos culturais
articulados, à diferença do caso já citado da Companhia de Jesus.
Portanto, as idéias psicológicas emergentes nesse contexto foram
por nós reagrupadas sob alguns tópicos, os quais emergem com
uma certa constância e que nos parecem representativos daquela
visão do mundo genericamente denominada como Barroco brasileiro.
Apesar de alguns autores discordarem acerca da legitimidade do
uso desse term o, tradicionalmente usado pela história cultural (en­
tre outros, vide Hansen, 1997), utilizamo-lo no presente texto ape­
nas como uma categoria sintética dos diversos aspectos da visão
de mundo próprios do período entre o século XVII e o século XVII,
no contexto latino-americano (Morse, 1995; Maraval, 1997).

"A vida de um homem neste mundo


não é mais que uma mera peregrinação"

O tema da existência humana como transform ação, mudan­


ça, m ovim ento, caracteriza, conform e acenamos (vide Cap. II,
p. 44), a concepção antropológica dos séculos XVII e XVIII. A vida
é concebida como fluxo constante de partes às vezes antagônicas:
e beleza faz pressentir a decadência, a alegria contém em si o ger­
me da tristeza, há "firmeza na inconstância", parafraseando um
poema de Gregório de Matos (Moscheta e Massimi, 2000).
A ênfase na mobilidade do homem da experiência humana,
que carateriza esse período, remete-nos por sua vez à imagem do
homo viator formulada pela tradição medieval e que, como vimos,
encontrara sua continuidade no Brasil na produção cultural do jesuí­
ta Alexandre de Gusmão.
A metáfora do peregrino, proposta pelo jesuíta Gusmão, é
retomada por outro escritor atuante no Brasil no século XVIII: Nuno
Marques Pereira, autor do Compêndio Narrativo do Peregrino de
América, editado em 1728, em Coimbra, e sucessivamente reedita­
do em 1731, 1760 e 1765 (Assis e Massimi, 1995). O objeto da
Obra é a peregrinação do protagonista, desta vez num contexto
real: as terras brasileiras, num percurso que, de Salvador, passa por
Minas Gerais e pelas terras da mineração e termina em Pernambu-
00. Desse modo, • obra é algo Intermediário entre o gênero da
62 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

literatura de viagem e a alegoria. A narração segue o modelo huma­


nista do diálogo entre o Peregrino e o Ancião, que é símbolo do
tempo.
O conceito do ser humano é retirado por Nuno da tradição
clássica e medieval: inspirando-se na teoria hipocrático-galênica dos
temperamentos, o homem é considerado um com posto de:

(...) quatro hum ores, produto da com posição dos quatro elem entos,
de que necessita a criatura viv e n te para se conservar, que foram :
terra, água, ar e fogo; dando a terra a m atéria de que foi criado;
a á g u a , para a com posição da m assa; o ar, o refrigério para respirar;
o fo g o, para o calor natural. (Pereira, 1 9 3 9 , v. 1, p. 9 5 )

Os excessos de um desses humores na composição psicosso-


mática do indivíduo determinam as "enfermidades ", entre elas a
tristeza. Se essa doutrina pertence a um corpo conceptual vindo
dos clássicos gregos e latinos, tendo sido enriquecido pela Idade
Media e pelo Renascimento, parece-nos todavia expressivo da men­
talidade contemporânea do autor o enfoque acerca da mutabilida-
de, da instabilidade da vida:

Se bem reparam os que cousa é a vida de um h om em neste m undo,


acharem os que não é mais que um a m e r a peregrinação: que vão
cam inhando com toda pressa para a eternidad e, desde o inferior até
o superior, ta n to que chegam a te r u so da razão: já andando, já
navegan d o , já ap etecen do glórias a té possuí-las, e na m esm a posse
tem en d o perdê-las. (Ibidem , p. 2 2 )

Essa afirmação acarreta também a consciência de uma certa


relatividade de valores e fatos humanos:

O Peregrino vai por onde há de achar cada dia novos co stu m es, e os
deve seguir e aprovar; e não repreendê-los; pois é mais razão aco ­
m odar-se ao uso da te rra , que p ertencer, e querer aos mais ao cos­
tu m e da sua Pátria. Há de considerar que vai obedecer às leis que
achar estab elecid as, e não dar regra ao m a is 1, e que vai aprender, e
nâo ensinar. E peregrinando assim , se qualificará em um p erfeito
H erói, (Ib id em , p. 2 3 )

A própria verdade é eubmetlde i t mudençae dos efetos e des


rarai vezee aa chaga a eeu alaman-
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL NOS SÉCULOS XVII E XVIII 53

to puro, e menos, quando vem de longe: sempre traz misturas dos


afeitos por onde passa, toma as cores que lhe parece, já odiada, já
favorável" (ibidem, p. 267).
Desse modo, as qualidades atribuídas aos objetos dependem
da dinâmica das emoções - conforme trecho de um famoso sermão
de Antônio Vieira.1

"A cada passo se contradizem os homens":


a m utabilidade e a variedade da experiência humana

Posição semelhante encontra-se no texto m anuscrito do bra­


sileiro carioca Feliciano Joaquim de Souza Nunes, Política Brazilica
(1781), achado por nós na Biblioteca Pública do Porto. O título
evoca outra obra mais famosa: a Política indiana, de Juan de
Solorzano Pereira (1703/1939), livro este inspirador da política pom-
balina no que diz respeito à questão indígena. Na realidade, o obje­
tivo do livro de Nunes é fazer apologia da colonização portuguesa
do Brasil, e as referências aos índios brasileiros representam-nos
Como encarnações de uma condição humana prim itiva a ser supera­
da pelo esforço civilizador realizado pela política pombalina.
O manuscrito constitui-se num conjunto de instruções sobre
vários tópicos de natureza moral ou religiosa, do tipo: as nossas
•ções nos distinguem; a sabedoria é a primeira e melhor riqueza;
dos primeiros e mais sólidos elementos da sociedade humana;
do mais sólido fundam ento do Estado; o homem mais universal é o
mais útil; é melhor saber do que ignorar; as artes fazem mais esti-
máveis os homens; o caráter do sábio é a valentia do ânimo; se
Vtnceres a ti vencerás a fortuna; não pode a prudência fazer firm e
0 caduco; sem proteção é mui difícil ser venturoso; a honra anima
•S ações; as tuas obras, os teus escritos te darão a conhecer; nos
livros acharás o maior tesouro; a eloqüência é o sobrescrito do
Itb e r; como deves escrever para deleitar, mover e persuadir; con­
sults, ouve e verás o que não vês; na resignação acharás a felicida-
l l que desejas; entre outros.
* A perspectiva proposta por Nunes parece marcada pelos dita-
« I da uma ética pessimista em que a visfio aristotélica e contra-
54 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

reformista é reinterpretatada numa tônica estóica e um tanto fa ta ­


lista: do ponto de vista social, por exemplo, o ideal é realizar a
própria tarefa, permanecendo cada um no lugar do corpo social que
lhe foi atribuído pela Providência Divina. Trata-se, em suma, de se
submeter à imutável ordem hierárquica das coisas:

Exam ina a tu a inclinação: acom oda-lhe os teu s exercícios. Não quei­


ras ser m enos, pela am bição de querer ser mais; que é m elhor que
sejas em in e n te em um exercício honesto, que buscares o mais ilus­
tre , para te fazeres indigno. (Fl. 9 2 )

Ou, em outro trecho: "Quem não quer mais do que tem, logra
tudo o que deseja" (fl. 83).
Assim, a prudência - virtude por excelência no enfoque aris-
totélico-tom ista - não garante a felicidade, pois "não está na tua
mão evitar as desgraças" (fl. 83), mas "a conformidade tem mais
poder, para fazer ditoso o desgraçado, do que a prudência, para o
constituir venturoso" (ibidem). Não vale a posse das virtudes por
elas mesmas, se não forem acompanhadas pelos "teus rendimen­
to s" úteis à sociedade.
Da mesma form a, a noção da estreita correspondência entre
higiene moral e higiene física, própria da teoria aristotélica e da
teoria dos temperamentos, é rejeitada:

Persuade o discurso, que a conservação da saúde pende da boa


regulação dos costum es: porém vê com o acaba aquele paralítico,
ainda que bem m origerado: vê com o vive e s te robusto, não o bstan ­
te a sua intem perança! (...) N ão há prudência que possa fa ze r certo
o co n tin g en te. (Fis. 8 5 -8 6 )

Ao descrever a situação do Brasil, Nunes propõe uma visão de


mundo e da sociedade marcada pelo pessimismo:

A cada passo se contradizem os hom ens: e se hoje desprezam o que


estim arão ontem ; am anhã estim arão o que desprezarem hoje. Cada
m udança da fo rtu n a é um a variedade do discurso (...). He o m undo
te a tro universal, em que todos representam o seu papel: e não é
m uito que cada um pareça o que não é, e que em nenhum a cena
sejam tã o diversos enlaces. (Fl. 14)

Aaalm como no caso dos demala autores a< idoa,


• poalçlo de Nunaa remete a uma oonoapçlo an qual
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL NOS SÉCULOS XVII E XVIII 55

ressaltam-se a mudança, a variabilidade, os aspectos contraditórios


da condição humana e a conseqüente instabilidade da vida social,
segundo Richard Morse (1995), expressões todas da crise do ideal
ibérico de incorporação social e de universalismo, proposto pelo
movimento da Segunda Escolástica ibérica do século XVI e dissolvi­
do pela prepotente afirmação do absolutismo político. Desse abso-
lutismo, o próprio Feliciano foi vitim a. Com efeito, uma das obras
mais im portantes de Feliciano - os Discursos poiíticos-m orais
(1758) - foi proibida pela Inquisição pombalina por conter "doutri­
nas anarquistas"; devido a este veredicto, foram queimadas todas
as cópias impressas do tratado.
É interessante observar que, dentre as teorias anarquistas
censuradas, havia a refutação da crença na inferioridade mental
das mulheres em relação aos homens - naquela época muito difun-
d ida e que a té m esm o ju s tific a v a a e x c lu s ã o
da população feminina das escolas do Reino e da Colônia. É possí­
vel, então, que a Política Brasílica (1781) fosse a ocasião para
Nunes ganhar novamente as graças do poderoso primeiro-ministro
português...
Há tons autobiográficos nas observações de Nunes acerca do
fato de que a vida do indivíduo - assim como o mundo e a socieda­
de - é submetida à condição de debilidade e de instabilidade:

(...) a racionalidade não o faz menos frágil e in c o n s ta n te ... Principia


a viver, e a m orrer; porque assim que nasce, co m eça o tem po de
acabar. Se isto sucede a respeito da vida, que há de suceder a
respeito das honras? Recebe as ditas, como os navegantes a bonança.
S upõe-nas sem pre contingentes. (Fl. 6 9 b )

O conhecimento humano é também marcado pela experiência


do limite:

A ciência é vasta e lim itada a capacidade h um ana. N ão fa lta m ho­


m ens que sabem m uito; porém nem todos juntos sabem tu d o. (...)
Os nossos próprios olhos nos o ferecem o m aior desengano: quando
vem os um as coisas, não podem os ver outras; e ainda aquelas para
que olham os mais aten to s, uns as vêem m elhor do que outros.
(Fl. 11)
66 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

A vaidade domina o "teatro do mundo"

Análoga percepção da existência humana é formulada pelo


autor paulista Matias Aires Ramos da Silva de Eça, em sua obra
Reflexão sobre a vaidade dos hom ens: "A cada passo que damos,
no discurso da vida, se nos oferece um teatro novo, com posto de
representações diversas as quais sucessivamente vão sendo obje­
tos da nossa atenção e da nossa vaidade" (1752, p. 37).
A vaidade nasce quando o homem fixa sua atenção numa
dessas "cenas" do "teatro do mundo", como se fosse a definitiva e
possuísse uma realidade última. A imagem do "te a tro " é caracterís­
tica da cultura do Barroco, que, conforme argumenta G. Bazin, ten­
de "a transform ar a existência, sob o olhar da inteligência, numa
representação; para o homem deste tempo, tudo é espetáculo, e,
antes de mais nada, a sua própria vida" (apud Araújo, 1998, p. 16).
Outra m etáfora do mundo utilizada pelo autor é a de um con­
certo, uma grande polifonia em que tudo é submetido à mudança e
6 inconstância, pois "estamos no mundo para ser alvos do tem po"
(Ibidem, p. 88).

A sociedade dos hom ens form a um concerto de infinitas vozes, e de


infinita diversidade. Todos choram , e todos can tam ; a vaidade a
todos dá por que ca n te m , e por que chorem ; to d os en tram com o
partes principais; ninguém fica destinado so m en te para ouvir e ver:
en qu an to dura ação (isto é, a vida), todos fa la m , depois todos e m u ­
decem ; a es tátu a que a vaidade enchia de ardor, e m o vim ento, d e­
pois fica im óvel e insensível; o m esm o h om em , que atraía tudo a si,
depois tu d o fa z fugir de si: que notável d iferença! ( 1 9 9 8 , p. 9 2 )

Contrariamente ao que acontece no caso dos outros afetos


("paixões"), a vaidade não é uma paixão do corpo e, portanto, inde­
pende da composição humoral somática, mas deriva do "discurso"
e do "entendim ento" (ibidem, p. 15). Ela é uma espécie de "delírio",
pois "tudo no mundo são sombras, que passam, e o desejo nos
finge mil objetos imortais, nas cousas é trânsito o que nos parece
permanência" (ibidem, pp. 34-35).
A vaidade produz um conflito no eu do homem: ao mesmo
tempo em que o juízo reconhece e denuncia os delírios da vaidade,
a vontade segue-os:
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL NOS SÉCULOS XVII E XVIII 57

T odos nós conhecem os os delírios, a que a vaidade nos incita, mas


nem por isso deixam os de os seguir. Parece que cada um de nós
te m duas vo n tad e s sem pre opostas entre si; ao m esm o te m p o , con­
d enam os e ap rovam os; ao m esm o tem p o , buscam os e fugim os;
am am os e aborrecem os. (Ibidem , p. 8 2 )

A vaidade aponta assim para a fragilidade e a limitação da


própria razão humana, incapaz de atingir a verdade por estar presa
à dinâmica das paixões:

V em o s as cousas pelo m odo com que as podem os v e r, isto é, con­


fu s am en te, e por isso quase sem pre as vem os com o elas não são.
As paixões fo rm a m dentro de nós um intricato labirinto, e neste se
perde o verdadeiro ser das cousas (...). T om am o s por substância, e
entidade, o que não é mais do que um costum e de ver, de ouvir,
e de entender; a vaidade, que de todas as paixões é a mais fo rte,
a todas arrasta, e dá ao nosso conceito a form a que lhe parece: o
en ten d im en to é com o uma estam pa, que se deixa figurar, e que
facilm ente recebe a figura, que se lhe im prime. (Ibidem , pp. 1 2 6 -1 2 7 )

O historiador francês Philippe Ariès assinala o tema da vaida­


de como característico dos séculos XVI e XVII, sendo uma condi­
ção psicológica essencial para o advento do capitalismo. A vaidade,
de fato, representa uma

(...) idéia nova da vida m ortal. Sob o véu da m elancolia que as


recobre, as riquezas já não são desejáveis por elas m esm as, pelo
prazer que elas proporcionam . (...) O m undo, infiltrado por um a so­
lução de m o rte, tornou-se suspeito de uma ex tre m id a d e a outra.
Sem dúvida, esta idéia com um (...) te v e grandes efe ito s sobre os
costum es. ( 1 9 9 0 , p. 3 6 4 )

Do mesmo modo que em Souza Nunes, na obra de Matias


Aires transparece a rejeição da ética e da antropologia aristotélico-
tom ista, bem como uma certa desconfiança acerca da razão huma­
na, enfatizando-se, pelo contrário, a determinação das paixões e a
prevalência das condições propriamente psicológicas sobre as nor­
mas éticas quanto à conduta humana:

As vlrtudei humana» m uitas vezes se com põem de m elancolia e de


um retiro agreste. As mais das vezes i hum or o que julgam os razão;
é temperamento o que ohsmamos desengano; é enfermidade o que
68 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

nos parece virtu d e. Tudo são efeito s da tristeza; esta nos obriga a
seguir os partidos mais violentos, e mais duros; raras vezes nos faz
refletir sobre o passado; quase sem pre nos ocupa em considerar
fu turos; por isso nos infunde te m o r e covardia, na incerteza de acon­
tec im en to s felizes ou infaustos; e verd ad eiram en te a alegria nos
governa em fo rm a, que seguim os com o por força os m ovim entos
dela; e do m esm o modo os da tristeza. (Eça, 1 9 9 3 , pp. 8 8 -8 9 )

Na perspectiva de Matias Aires, o discurso sobre a vaidade


parece m otivado também por motivos políticos: a constatação da
decadência do império português, apesar das ostentações de luxo e
de riqueza - sendo assim a obra uma crítica mais ou menos implíci­
ta à sociedade e à política lusitana.
O mesmo tema da vaidade encontra-se também na produção
poética de Gregório de Matos (Moscheta e Massimi, 2000), de
Gonzaga, de Cláudio Manuel da Costa, bem como nos já citados
Sermões de Antônio Vieira (Massimi, 1990). Todavia, nos autores
que aqui analisamos, a mutabilidade, a antinomia entre a essência e
a aparência, o sentido de incerteza e de instabilidade tornam-se
dimensões salientes e interiores de todo ser humano, característi­
cas inevitáveis e inerentes à subjetividade humana, sendo ao mes­
mo tempo sinais da consciência que os intelectuais brasileiros t i­
nham acerca da dissolução do mundo cultural e político da tradição
(Morse, 1995).
O mundo ideal preconizado no século XVII pelo Vieira de
A história do fu tu ro ,2 o advento do Quinto Império, estava longe de

* Trata-se da realização de uma esperança messiânica que considera o Brasil


nomo a possibilidade concreta de realizar a utopia política do "Quinto Império do
mundo". Este tema encontra-se expresso num livro escrito por Vieira na ocasião de
«•u exílio em Portugal e de seu processo pelo Tribunal do Santo Ofício, obra publi­
cada póstuma e inacabada: A história do futuro (1996). Nesta obra, à qual Vieira
atribuíra uma grandíssima importância, muito mais do que aos Sermões, ele ex­
pressa a convicção de ser chamado a anunciar aos seus contemporâneos uma
mudança radical do processo histórico, que levaria a humanidade a um estado de
paz, de tolerância, de unidade e de felicidade. Esta condição seria dom de Deus,
mas também fruto da iniciativa humana, e, nesta iniciativa, os portugueses assu­
miriam um papel de protagonistas.
A visão do Vieira expressa a visão político-social da Segunda Escolástica, que
reafirmava a possibilidade de uma ordem ecumônica mundial baseada na crença da
natural ■oclabllidade do homem, A concepção do ser humano como animal político
da matrli arlitotélloo-tomlattp a de Iita d o oomo expreisflo deaaa naturaaa. opfle-ae
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL NOS SÉCULOS XVII E XVIII 59

acontecer. O sonho de que uma sociedade ordenada conforme à


verdade e à justiça poderia realizar-se no Novo Mundo, mesmo que
ao preço de grandes batalhas e contradições, já se substituíra nos
pensadores brasileiros pela consciência da inevitabilidade do des­
tino imposto pelo regime colonial. Então, a dimensão psicológica,
interior do homem, não é mais concebida como o espelho da har­
monia universal, conforme a retomada renascentista do ideal da
República platônica ou da reforma ordenada aristotélico-tom ista,
nem como o lugar onde mora no homem aquela faísca divina que
ultimamente garante sua imortalidade, mas como o refúgio precário
e passageiro do indivíduo ante os absolutismos do poder e a desor­
dem exterior da sociedade.

O estado físico da nossa máquina influi


poderosamente nas operações de nossa alma

O médico mineiro Francisco de Mello Franco (1757-1822),


formado em Filosofia e Medicina pela Universidade de Coimbra e
autor de vários tratados e artigos, propõe uma sorte de psicologia
médica inspirada nas teorias do lluminismo e do sensualismo fran­
cês, especialmente na teoria do médico-filósofo J. Pierre Cabanis.
Num livro publicado em 1813 e escrito no Brasil, Elementos de
hygiene ou Ditames teoréticos e práticos para conservar a saúde e
prolongara vida, cujo objetivo declarado é "oferecer certos ditames
para a felicidade dos povos" (1813/1823, p. XI), Mello Franco de­

ft concepção do homem enquanto indivíduo e do Estado como produto de uma


mera convenção social, artifício para refrear e compor os interesses egoístas dos
singulos. Nesse contexto cultural (Morse, 1995), os movimentos populares eram
concebidos como respostas aos abusos do poder político ou religioso, numa tradi­
ção que remonta à Idade Média e que, na América Latina, continuou através dos
movimentos milenaristas de inspiração cristã ou ameríndia, ao longo do período
colonial, assim como nas comunidades eclesiais de base, nas seitas, nos movimentos
guerrilheiros e nos movimentos dos sem-terra, até os nossos dias (idem, ibidem).
A nosso ver, é em tal processo cultural que podemos encontrar as origens históri-
cai da afirmação da sociabilidade intrínseca do homem, a crença na existência do
"bem comum" • na neoeaaldade do empenho humano para sua realização, a ins-
tlncle de llbertaçlo e da traniformação social, o interesse pelos movimentos so-
olala a palaa experllnol#a comunitárias de solidariedade soclel, que marcam de
maneira original a PalQOtoÿ* loolal latlno-amerloana.
60 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

fine o físico como "a recíproca encadeação de todos os sistemas de


órgãos que form am a nossa máquina" (p. 308), sendo a dimensão
moral "tudo quanto diz respeito às funções e particulares afeições
da nossa alm a" (ibidem). Além do mais, afirma ser uma evidência
empírica o fa to de o estado físico do corpo ter grande influência nas
operações da alma. Portanto:

(...) a observação e o bom senso podem com o te m p o alum iar-nos,


de m odo q ue, dado o conhecim ento das im pressões feitas em tais
ou tais órgãos, possam os cair na conta dos resultados m orais, que
d evem ser a sua conseqüência. (Ibidem , p. 3 2 5 )

Assim, as antigas doutrinas acerca das relações m ente-corpo


e a tradicional teoria dos temperamentos de derivação hipocrática
são reformuladas numa perspectiva tendencialmente monista. Sen­
do o funcionam ento do organismo regulado pelas leis da natureza,
conhecíveis e previsíveis através da observação e da experimenta­
ção, será possível calcular e modificar seu dinamismo pela transfor­
mação das circunstâncias físicas determinantes, graças a remédios
e a normas higiênicas. A saúde do conjunto psicossomático, que
constitui o ser humano, é definida como equilíbrio ou regulação,
sendo este entendido como harmonia da máquina corporal, cujo
efeito é o bem-estar psicológico. Uma conseqüência dessa m entali­
dade é a proliferação do gênero literário dos tratados de higiene,
visando difundir junto à população brasileira regras e conselhos que
proporcionam o bem-estar do corpo e do espírito.
Outro livro do autor - o Tratado da educação física dos m eni­
nos para uso da nação portuguesa - , publicado em Lisboa em 1790,
responde à finalidade semelhante aplicada desta vez ao campo es­
pecífico da educação da criança, propondo-se a substituir os trad i­
cionais tratados de pedagogia e afirmando a tese de que "sem a
educação física, pouco se pode fazer na moral e literária" (1790/
1946, pp. 98-99), tese esta claramente fundada na filosofia empi-
rista. De fato, a tônica do texto é norteada por afirmações tais
como "sentir e viver, querem dizer o mesmo" (p. 324) ou "a fonte
das nossas idéias são os sentidos" (p. 319).
Desse modo, a Medicina propõe-se a si mesma como a Ciên­
cia do Homem, substituindo a Ética, a Filosofia e a Teologia na
tarefa de orientar indivíduos e sociedades rumo à felicidade. Nesse
sentido, a obra de Mello Franco constitui uma inversão radical e
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL NOS SÉCULOS XVII E XVIII 61

consciente da tradição cultural anterior, fato este que fica explícito


no tratado Medicina Teológica, ou Súplica Humilde aos Senhores
Confessores e Diretores sobre o modo de proceder com seus peni­
tentes na emenda dos pecados, principalmente da Lascívia, Cólera
9 Bebedice (1794), texto polêmico confiscado pelas autoridades
por causa de seu conteúdo taxado de materialista. Os m otivos da
polêmica podem ser derivados da consideração do objetivo da obra,
declarado no Prefácio:

A m pliar a idéia do ofício dos confessores, m ostrando a té onde podia


chegar a d enom inação de m édicos, com que são decorados pela
necessidade em que estão de conhecer rad icalm en te as doenças
que, depois de inficionar o corpo, penalizam a alm a e os fa z d esfale­
cer em pecado. (Franco, 1 7 9 4 , p. 5)

Mello Franco propõe-se, assim, a uma transform ação de dis­


cursos: conceitos e práticas elaborados pela Teologia acerca do
pecado são traduzidos em conceitos e práticas da ciência médica
icerca da doença. A analogia entre medicina do corpo e medicina
do espírito, tradicionalmente utilizada pela Filosofia e pela Teolo-
gla,3 adquire aqui uma significação nova - a medicina do corpo
pretendendo dar conta também da medicina da alma. A revolucio­
nária afirmação do autor de que "a experiência mostra que muitos
pecados humanos têm sua origem em doenças particulares do cor-
po" (ibidem, pp. 23-24) justifica a vivacidade das reações ao livro
•m âmbito católico, e especialmente eclesiástico,4 e abre uma nova
fis e na história da cultura brasileira no que diz respeito à concep-
Qlo do homem e de seu psiquismo, fase esta que se explicitará
mais clara e amplamente ao longo de todo o século XIX.

1 Vide Nota 2 e Nota 11 do Capítulo II.


* Foram elaboradas várias respostas críticas, tais como O juízo critico sobre a
Mwdldna Theologlca, de frei Joaquim de Jesus (1795), em Coimbra, e as Disserta-

Í Thaologlcaa Madlclnaa», dirigidas i Instrução doa Penitentes que no sacra-


M ttito da Panltinola alfícaramanta provam a aua aantlflcaçto, para que nSo se
% Mttmlnam com et tòom toévit anoa da um livro Intitulado Medicina Theologlca,
lujoa arroa refuta naata obr§, d* Frei Manoel da l i n t 'Ana, da 1799.
62 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

O homem primitivo é um mero autôm ato

O estudo de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838)


acerca dos índios brasileiros (Apontamentos para a civilização dos
índios bravos do Brasil, de 1823, documento destinado a ser apre­
sentado, discutido e aprovado no âmbito da Assembléia Geral Cons­
tituinte e Legislativa) apresenta um plano de colonização dos índios,
a ser conseguida não mais através do poder militar, mas sim por um
processo de aculturação. Para realizar esse objetivo é necessário,
segundo o autor, "conhecer primeiro o que são e devem ser natural­
mente os índios bravos, para depois acharmos os meios de os con­
verter no que nos cumpre que sejam" (1823/1965, pp. 9-10).
A seguir, é esboçada uma descrição das principais caracterís­
ticas do que seria, segundo José Bonifácio, o temperamento des­
sas populações: seriam "povos vagabundos e dados a contínuas
guerras e roubos", sem "freio algum religioso e civil que coíba e
dirigia suas paixões; donde nasce ser-lhes insuportável sujeitarem-
se a leis e costumes regulares"; seriam "entregues naturalmente à
preguiça", de "gula desregrada", mais aptos a "roubar-nos, que nos
servir" (ibidem).
Tais com portamentos são explicados por José Bonifácio na
base de uma teoria acerca do "homem no estado selvagem", inspi­
rada na filosofia iluminista da época (notadamente na antropologia
mecanicista do filósofo e médico francês J. O. de Lamettrie, 1709-
1751). Uma primeira característica do homem no estado selvagem
é a ausência das necessidades próprias do homem "civilizado", que
estimulam a atividade e o trabalho:

(...) com e fe ito , o hom em no estado s elvático , e m o rm ente o índio


bravo do Brasil, deve ser preguiçoso; porque te m poucas ou nenhu­
m a n ecessid ad e; porque, sendo v ag ab u n d o , na sua m ão está a
arranchar-se su cessivam ente, em terrenos ab undantes de caça ou
de p esca, ou ainda m esm o de frutos silvestres, e espontâneos; por­
que viven d o to d o o dia exposto ao te m p o , não precisa de casas e
vestidos côm odos; nem de m elindres do nosso luxo; porque fin a l­
m en te não te m idéia de propriedade nem desejos de distinções e
vaidades sociais, que são as molas poderosas que põem em a tiv id a ­
de o h om em civilizado. (Ibidem , pp. 1 0 -1 1 )

Um segundo aspecto que diferencia o "selvagem " do "civiliza­


do" é a ausôncia daquele tipo de racionalidade característica do
"eapírlto científico" europeu:
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL NOS SÉCULOS XVII E XVIII 63

Por m ais, um a razão sem exercício, e pela m aior parte já corrom pida
por costum es e usos brutais, além de apático, o deve fa z e r tam bém
es tú p id o . F alta de razão ap u ra d a , fa lta de p re c a u ç ã o . É com o
o anim al silvestre, seu com panheiro: tudo o que vê, p od e, talvez,
atrair-lhe a aten ção ; do que não vê , nada lhe im porta. Para ser feliz,
o hom em civilizado precisa calcular, e uma a ritm ética, por mais gros­
seira e m anca que seja, lhe é indispensável. M as o índio, bravo, sem
bens e sem dinheiro, nada te m que calcular, e todas as idéias abs­
tratas de quan tid ade e núm ero, sem as quais a razão do hom em
pouco difere do instinto dos brutos, lhe são desconhecidas. (Ibidem)

A própria sociabilidade dos índios é interpretada por José Bo­


nifácio como puro produto do instinto: "são pois as paixões que
não podem ser satisfeitas cabalmente sem a reunião de novos bra­
ços e vontades as que obrigam os selvagens a reunir-se em tais
quais aldeias" (ibidem, p. 11)
A possibilidade de modificar a realidade humana e social as-
llm retratada baseia-se, para José Bonifácio, num postulado antro­
pológico ambientalista claramente explicitado:

Daqui, porém , não se deve concluir que seja im possível converter


estes bárbaros em hom ens civilizados. M udadas as circunstâncias,
m udam -se os co stu m es. Com e fe ito , o hom em prim itivo nem é bom ,
nem é mau n atu ralm ente; é um m ero a u tô m ato cujas m olas podem
ser postas em ação pelo exem plo, educação e benefícios. Se Catão
nascera entre os sátrapos da Pérsia, morreria ignorado entre a m ul­
tidão de vis escravos. N e w to n , se nascera entre os guaranis, seria
mais um bípede que passara sobre a superfície da te rra . M as um
guarani criado por N e w to n , talvez ocupasse o seu lugar. (Ibidem ,
p. 12)

A civilização sendo entendida como modelo a ser realizado, é


necessário definir a estratégia para sua concretização. A proposta
de atuação, para José Bonifácio, consiste na criação dos métodos e
dos meios para possibilitar a "pronta e sucessiva civilização dos
índios" (ibidem, p. 15).
Alguns dos "m eios" de "civilização" propostos por Bonifácio -
que a nosso ver tôm uma clara significação psicológica - são:
•) a introdução do conceito de propriedade individual, totalm ente
•itranho à cultura Indfflana, profundamente comunitária; b) a intro-
jaçlo da Inferlorldacft cultural através de gestos e rituais voltados a
c*i1 '
64 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

induzir nos nativos "altas idéias do nosso [do governo brasileiro]


poder, sabedoria e riqueza" (p. 17); c) a educação das crianças;
d) o inculcar nos adultos do "princípio incontestável que se deve
permitir o que não se pode evitar" (p. 18); e) a introdução do hábito
do trabalho regular - "sejam forçados a ganhar e segurar o seu
sustento à custa de seus trabalhos" (p. 19).
Ao mesmo tempo, a adaptação dos índios ao novo modelo
sociocultural e, em particular, à nova organização do trabalho deve
ser realizada gradualm ente, "acostum ando-os pouco a pouco"
(p. 19) ao novo modo de vida, estimulando neles "novas necessida­
des" ("se vestir melhor, ter suas casas mais cômodas e asseadas
(...)" (ibidem), através da introjeção da exigência do "bem -estar"
própria do homem "civilizado" - de maneira que os nativos "façam
grande conceito da fartura em que vivemos e a que eles podem
chegar" (p. 18).
Nessa perspectiva, nasce a ideologia do "caráter nacional bra­
sileiro", que, conform e foi apontado na lúcida análise de Dante
Moreira Leite, manipula os traços psicológicos na construção de
teorias e conceitos que, ao definir características coletivas do "bra­
sileiro", refletem na verdade os interesses do poder encobertos pelo
manto do discurso científico": sendo assim, tal ideologia não repre­
senta "uma autêntica tomada de consciência de um povo, mas ape­
nas um obstáculo no processo pela qual uma nação surge entre
outras, ou pelo qual um povo livre surge na história" (Leite, 1992,
p. 329). José Bonifácio, ao esboçar esta doutrina noutro seu escrito
(Pepitas, citado em Massimi, 1990), retrata os brasileiros como
entusiastas do belo, amigos da liberdade e da justiça, "ignorantes
por falta de instrução, mas cheios de talentos" e "apaixonados do
sexo" (ibidem, p. 173), concluindo enfaticamente: "serão os A te­
nienses da Am érica".
No século XIX, o processo de organização da sociedade na­
cional acarreta a necessidade de nivelar os sujeitos sociais e cultu­
rais presentes no Brasil num protótipo nacional, com função norma-
lizadora. Após José Bonifácio, vários outros políticos e sociólogos
retomarão essa doutrina, propondo-a como resposta fictícia (pen­
samos nós) à pergunta acerca da identidade nacional: quem somos
nós? A nosso ver, seria a ocorrência desse processo um dos moti­
vos que explica, pelo menos parcialmente, por que a introdução e a
dlfusflo da Psicologia moderna no país, nas diversas vertentes de
Ciência do comportamento ou da Psicologia das diferenças Indl-
AS IDÉIAS PSICOLÓGICAS NO BRASIL NOS SÉCULOS XVII E XVIII 65

viduais - com suas técnicas de avaliação e de medida do ser huma­


no - , foi em m uitos casos favorecida e apoiada enquanto instru­
mento oportuno e moderno a ser utilizado nesta perspectiva.

Na conclusão, o início de um cam inho...

Percorrer a história das idéias psicológicas ao longo da cultura


brasileira evidencia que muitos dos conceitos utilizados pela Psico­
logia moderna possuem raízes no passado: lançando o nosso olhar
para esse passado, podemos reconhecer nele, em sua diversidade
de horizontes culturais e de concepções de homem e de sociedade,
os elos de continuidade com o nosso presente, as raízes de teorias
e métodos próprios do nosso modo de pensar.
Reatar laços com esse passado parece responder a uma exi­
gência que hoje m uitos psicólogos têm em nosso país: possivel­
mente, seria este um caminho para realizar uma proximidade maior
entre o saber e a competência profissional do psicólogo e a realida­
de brasileira que se constitui no contexto de sua produção, difusão
e atuação, pois, conform e assinala Simone Weil,

(...) o en raizam ento é talvez a necessidade mais im po rtante e mais


desconhecida da alm a hum ana. O ser hum ano te m um a raiz por sua
participação real, ativa e natural na existência de um a coletividade
que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressenti­
m entos do fu tu ro . (Bose, 1 9 7 9 , p. 3 4 7 )

Um psicólogo enraizado em sua cultura e sociedade, a nosso


ver, é um agente de transformação social e não de normalização.
A instauração da nova ordem m undial nos coloca hoje diante da
necessidade de uma escolha: atuar na direção da redução do ser
humano numa peça produtiva e homologada da sociedade globali­
zada, ou atuar no sentido de afirmá-lo protagonista da História e da
■ociedade. Acreditamos que o conhecimento das idéias psicológi-
Cas surgidas no âmago da História cultural de nosso país tenha
propriamente a função de iluminar essa escolha.
66 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

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Mtrin» Maaslml
Profusora Asaoclada do Departamento de Psicologia e Educação da
PPCLRP-U8P - Ctmpui d l Rlbelrlo Prato. E-m§ll\ mmarlna@ffolrp.uap.br
IV
FR AG M E N TO S PSICOSSOCIAIS NA HISTÓ RICA
C O N S TR U Ç Ã O DA IDENTIDADE N A C IO N A L
Elizabeth de Melo Bomfim

Um novo povo sob olhares estrangeiros

Quando Cabral, com frágeis embarcações, levantou âncoras de


Portugal, fez-se acompanhar de notáveis homens da vida política,
locial e eclesial portuguesa. Entre eles, Pero Vaz de Caminha, autor
da Carta a D. Manoel, que marca o começo da história escrita do
Brasil, e o franciscano Henrique, chefe da delegação eclesial consti­
tuída por oito clérigos e oito frades. Caminha, em abril de 1500, ao
narrar de um índio que, ao pôr os olhos no colar do capitão, acenara
com a mão para a terra, como que dizendo que ali havia ouro, já
anunciava a possibilidade de trocas de mercadorias lucrativas para
os portugueses. E na "Terra de Santa Cruz", mais tarde Brasil, fin ­
cava-se um marco e iniciava-se o comércio do pau-brasil.
Assim um novo povo surgia, a bem da verdade que sob a
pressão de ingleses, franceses e holandeses, o que gerava a neces-
■Idade de efetiva ocupação do solo brasileiro pelos portugueses,
temerosos da contestação do seu direito de posse, não garantido
pelo simples marco de chegada. Um povo que, a princípio, foi des­
crito sob olhares externos: olhares de portugueses, viajantes ou
moradores que nem sempre afiançavam suas permanências na nova
ttrra. Além do lucrativo comércio, a evangelização católica, a edu-
OaçBo e a produção panaram a fazer parte das metas portuguesas.
Com a Inlolaçlo do tráfloo negrelro para o Brasil, introduzido por
72 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Martim Afonso de Souza, uma nova miscigenação, uma nova raça,


uma nova estrutura social iriam ser delineadas. Portugueses, indí­
genas e africanos passaram a conviver numa terra quente, onde
abundavam os rios e as florestas, numa relação de conflituosas
trocas culturais, interações raciais e sexuais e lutas político-sociais,
sob a constante colonização portuguesa.
Quando Portugal substituiu o sistema de capitanias por um
governo central, em 1 549, enviando Tomé de Souza como primeiro
governador geral, chegaram os primeiros jesuítas: quatro sacerdo­
tes, padres Manoel da Nóbrega, João Aspicuelta Navarro, Leonardo
Nunes e Antônio Pires, e dois escolásticos, os irmãos Vicente Rijo e
Diogo Jacome. Fundada em 1534, por Inácio de Loyola, como uma
forma de reação ao avanço do movimento protestante na Europa, a
Companhia de Jesus ficou conhecida por seu trabalho educacional
e seu papel na Inquisição. Tendo obtido do rei a posse do até então
Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, tornaram-no o cen­
tro da form ação missionária para a propagação da fé nos domínios
portugueses, cujo lema rezava: "Faça tudo como se dependesse de
sua vontade, embora sabendo que tudo depende da providência
divina".
A primeira fase de ação educacional e propagação da fé foi
marcada pelas dificuldades de contato com os indígenas, o que
implicou a aprendizagem da língua nativa, e pelos precários meios
de subsistência. Datam dessa época as conhecidas "Escolas de 1er
e escrever", que cresciam paralelamente ao senhoriato colonial.
Manoel da Nóbrega registrava, em suas cartas escritas à M etrópo­
le, que seria mais fácil levar os índios à conversão pelo medo. Aspi­
cuelta Navarro, autor de vários autos e poesias, infelizmente perdi­
dos, foi o primeiro a aprender o tupi, chegando a traduzir algumas
orações para a língua nativa.
Em 1553, chegaram ao Brasil mais três padres e quatro ir­
mãos, dentre os quais o padre José de Anchieta, autor da primeira
gramática de tupi-guarani, publicada em 1595 com o título: A rte de
Gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Anchieta, co­
nhecedor do gosto indígena por música, dança, canto e espetá­
culo, teve o incentivo de Nóbrega para conduzir a representação de
autos de sua autoria. O primeiro deles, Pregação universal, repre­
sentado pela primeira vez no natal de 1561 e, posteriormente, em
quase toda costa da terra do pau-brasil, fo i escrito em versos
em portuguds e tupi, trazendo a descrição do costume Indígena de
FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTÓRIA 73

recepção de um personagem importante: tudo começava com um


ritual de saudação em um local distante da aldeia, depois havia um
desfile até a taba, onde tinham lugar os diálogos, seguidos do con­
selho dos chefes, e por fim a despedida, com dança e música.
As representações teatrais, as quais se faziam, em geral, no
adro das igrejas, passaram a ser freqüentes, e os autos anchietanos
se multiplicaram: Na festa de São Lourenço; A u to de São Sebas­
tião; Na aldeia do Guaraparim; A u to de Santa Úrsuia; Diâiogo de
Pero Dias; Na Vila da Vitória; Dia de Assunção em Reritiba e Rece­
bimento do Pe. M arcos da Costa . Além dos autos, Anchieta poeta­
va em quatro línguas, sendo notório seus poemas De Beata Virgine
Dei M atre Maria e De Gestis M endi de Saa. Narrando feitos portu­
gueses e aliando a fé católica aos costumes indígenas, Anchieta
mesclava as diferentes culturas.
0 domínio português nas terras brasileiras foi questionado pela
presença francesa no Rio de Janeiro, comandada pelo vice-almirante
Nicolas Durand de Villegaignon. Pela primeira vez em terras brasíli-
cas, surgia o risco de conflito entre religiões cristãs, representadas
pelos interesses dos huguenotes presentes no Rio de Janeiro, entre
1555 e 1560, e dos doze pastores comissionados por Calvino. Mas,
quer pelas discordâncias internas entre os huguenotes, quer pela
força portuguesa, os franceses acabaram expulsos e o catolicism o
manteve-se como a religião dominante.
Quando o jesuíta Fernão Cardim viajava pelo Brasil, provavel­
mente em 1583, impressionou-se não só com a solidariedade e a
hospitalidade dos indígenas, como também com o aumento das
"Escolas de 1er e escrever" e com a disseminação do "canto de
órgão". Ressaltando que os índios tinham por grande honra a hos­
pedagem e a garantia do necessário para a sustentação de todos, o
Jesuíta descreveu o ritual de acolhida a um visitante: o intenso cho­
ro dos índios por ocasião da chegada dos hóspedes, devido às ima­
gináveis tribulações do visitante durante a viagem, era seguido por
uma saudação de boas-vindas, pelo servir da comida e, finalmente,
pela esperada palavra de explicação da visita por parte do hóspede.
E a primeira história era registrada pelo português Pero de
Magalhães Gandavo em História da Província de Santa Cruz a que
vulgarmente chamemos Brasil (1576), seguida da obra Tratado des-
erltlvo do Braall (1687), de autoria do colonizador português e se­
nhor de enganhQfdi l*h l« , Qabrlel Soares de Souza.

U
fcíiàSLS-1
74 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

A escolástica e os primeiros olhares nativos

Com a nova orientação educacional jesuítica, elaborada na


Ratio atque Institu to studiorum Societatis Jesu e publicada pelo
Geral da Companhia, Cláudio Acquaviva, em 1599, foram mudados
os objetivos, os métodos e o conteúdo da educação ministrada no
Brasil. A Ratio studiorum , que visava ao total monopólio educacio­
nal, previa a utilização dos mesmos programas, livros e recursos
didáticos no mundo inteiro, estabelecendo, para os estudos inferio­
res, as classes de Retórica, Humanidades e Gramática (Superior,
Média e Inferior), e, para os estudos superiores, a Teologia, com
Exegese, Moral e Casuística aos que se destinavam ao sacerdócio,
e Filosofia e Ciências Exatas, aos que se destinavam às carreiras
liberais.
Nas terras brasílicas, já em adiantado processo de coloniza­
ção, tal projeto não encontrou grandes obstáculos, sendo o ensino
estratificado imediatamente adotado. Para form ar os brancos, f i­
lhos dos senhores de engenho, cuja preferência tendia para a cultu­
ra das terras do além-mar, mantinha-se uma educação erudita e
literária; já para os filhos dos gentios, a educação era essencialmen­
te manual. Algum trabalho educacional era ainda previsto para os
pardos e os mulatos, especialmente nas irmandades e nas confra­
rias, que passaram a ter grande importância nos séculos XVII e
XVIII. Quanto aos negros, não havia, por parte dos jesuítas, nenhu­
ma previsão educacional, sendo a eles mesmos reservada a trans­
missão de sua cultura, o que se fazia por rituais, cultos, brincadei­
ras e, posteriormente, por suas próprias irmandades, dentre as quais
as de Nossa Senhora do Rosário e a de São Benedito. Se essas
instituições recolhiam fundos para a libertação de escravos, isso
não resultava em grande importância devido à imensa população a
ser beneficiada, e a luta cultural negra acabou por ganhar mais
expressão nas suas conhecidas revoltas e fugas.
No final do século XVI, os jesuítas fundaram um colégio na
Bahia, constituído por três faculdades: Teologia Dogmática, Teolo­
gia Moral e Artes (Filosofia). Dentro desse espírito de tradição esco­
lástica e literária, surgiram os primeiros escritores nativos das te r­
ras colonizadas. Frei Vicente do Salvador foi o primeiro prosador,
nascido na Colônia, a elaborar uma História da ouitódíã do Brasil
(1827), Inaugurando a historiografia brasileira, Iftt g ftW lptrtlda a
e n e eatllo mala científico, o poema P ro ao p q 0tÊ Ê Ê Ê Ê M Ê ê Bento
FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTÓRIA 75

Teixeira Pinto, marcava o nascimento da literatura nativa, e com


Gregório de Matos registra-se o surgimento da sátira em terras bra-
sílicas. Embora português de nascimento, Padre A ntônio Vieira,
estudante do Colégio da Bahia, destacava-se pelos seus conheci­
dos Sermões (1648) e pela fervorosa defesa da liberdade dos índios.
Mas as riquezas dessa terra continuavam a atrair estran­
geiros. Comandados pelo fidalgo João Maurício, Conde de Nassau,
os holandeses aportaram em Pernambuco, trazendo uma relevante
equipe de c ie n tis ta s e a rtista s. Entre os c ie n tis ta s estavam
Marcgraf, naturalista e autor da História rerum Naturalium Brasiliæ;
Piso, patologista e autor de De Medicina Brasiliense; o arquiteto
Pieter Post, autor do plano de construção da Mauricéia; e o mate­
mático Crallitz. Maurício de Nassau reconstruiu Olinda (Mauricéia),
impulsionou o estudo e as artes e criou o primeiro observatório
astronômico brasileiro, um local de encontro de artistas para dis­
cussão de questões literárias. Os calvinistas holandeses (1630-1654)
posicionaram escolas e missionários em locais estratégicos, além
de realizarem o primeiro sínodo reformado na América, em 1635,
reunindo oito pastores e cinco anciãos dirigentes. De regresso à
Holanda (1644), após ter conquistado o Maranhão (1641), Nassau
deixou substitutos, cujos objetivos exploratórios geraram grande
descontentamento. Em um primeiro sinal de sentim ento nativista,
08 nativos decidiram expulsar os holandeses, objetivo consumado
nas batalhas dos Guararapes, retratadas pelos pintores pernambu­
canos em tons característicos de Franz Post.
Assim, os traços e os sentimentos dos habitantes da terra
brasílica, ainda que com seus olhares muito fixos nas culturas do
além-mar, já eram delineados na pintura e na literatura luso-brasi-
lelras e holandesas. Às entradas, que massacravam os indígenas
e despovoavam, seguiriam as bandeiras, que deixavam em seus
rastros pequenas edificações, abrindo o caminho para as minas
de ouro.

Dos sentim entos nativistas às esperanças libertárias

0 Sul das tarraa brasileiras era berço de uma república cristã


comunista. Os gufraftls dos sete povos das Missões conseguiram
llvrar<sa, por u n ü lfllljfto m os jesuítas, da brutal colonização espa­
76 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

nhola e, com peculiar organização social, já desenvolviam uma boa


produção agrícola e uma indústria incipiente. No entanto, a crise
econômica de Portugal, acentuada pela decadência da cultura açu-
careira e pelos malefícios do domínio espanhol, havia aumentado a
dependência do capital britânico, agravada pelo Tratado de Methuen,
o que eliminava as possibilidades de crescim ento da emergente
manufatura portuguesa. O ouro, que facilitava o pagamento dos
produtos manufaturados ingleses, transferia-se para a Inglaterra.
Pombal, m inistro de D. José I, então rei de Portugal, conhecendo a
situação de seu país empenha-se na aplicação das determinações
do Tratado de Madri e na conseqüente demarcação de terras.
A resistência dos guaranis à demarcação das terras passou a
ser percebida por Pombal como uma instigação jesuítica, instigação
presente também na difícil demarcação amazônica. A situação era
agravada pelo impedimento imposto pela Companhia de Jesus ao
rei, e em conseqüência a Pombal, de escolher os missionários a
serem enviados. Tais acontecimentos agravaram os desentendimen­
tos entre Pombal e os inacianos, sendo os últimos acusados de
participação no atentado ao rei, em 1757. O m inistro ordena, en­
tão, a tomada dos bens dos jesuítas e o seu recolhimento ao Colé­
gio da Bahia para expulsão, fulminando, pelo alvará de 28 de junho
de 1759, o ensino jesuítico em Portugal e nas colônias de além-
mar. Com a expulsão dos 445 jesuítas da Província do Brasil, des­
morona um sistema educacional de dois séculos de duração.
Os franciscanos, os capuchinhos e os carmelitas assumiram a
educação até a criação das aulas régias (1772), que foram m anti­
das pelo "subsídio literário" cobrado na taxação de determinados
produtos. Pombal, ao extinguir as capitanias, diversificou a produ­
ção agrícola, incrementou a produção do arroz, introduziu o café no
Rio de Janeiro e taxou a extração e o com ércio de diamantes.
Preocupado com a povoação da Colônia, o m inistro procurou facili­
tar os casamentos luso-indígenas e, ao transferir a capital da Bahia
para o Rio de Janeiro (1763), mostrou-se preocupado em manter
de mais perto o controle das regiões auríferas.
A riqueza das minas que se situavam além do Rio São Francis­
co atraía a atenção e aumentava o processo migratório do Nordeste
para essa região. Uma sociedade mineradora foi sendo formada
com um expressivo número de trabalhadores autônomoi* homens
livres, mlneradorea • oomarolantes, todos ele* em H H i l de fortu­
ne*. Em uma torra ortóH Vigorava a lei do toda a
FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTÓRIA 77

gente andava armada, os emboabas - nome dado pelos paulistas


aos outros colonizadores - haviam feito de Manuel Nunes Viana o
seu líder nas terras das minas. Viana tentou impor a lei oficial, e
sangrentas lutas foram travadas, afastando os paulistas (1707-
1709). A criação de uma Capitania nas Minas (1710) e a nomeação
do governador Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho acal­
maram os ânimos, mas a paz teve curta duração. A partir de 1715,
a ganância portuguesa, impondo a obrigação da doação de um quinto
do ouro e a posterior criação das Casas de Fundição (1719), agita­
va ainda mais os mineiros. Felipe dos Santos foi enforcado em 1720,
e o conflito permanecia em toda região mineradora.
A tensão aumentou na segunda metade do século XVIII, ge­
rando a Inconfidência Mineira. Tendo por lema o verso do poeta
latino Virgílio, Libertas quae sera tamen, os inconfidentes lutaram
pela independência política, propuseram a criação de muitas esco­
las e de uma universidade em Vila Rica, além de, dentro de certas
condições, se posicionarem a favor da abolição da escravatura.
Os Autos de devassa mostram na erudição dos inconfidentes mi­
neiros os ideais libertários franceses. Foram registrados, na biblio­
teca de Cláudio Manuel da Costa, cerca de duzentos volumes, em
sua maioria relativos a assuntos jurídicos, e, na biblioteca do cône­
go Luiz Vieira da Silva, cerca de oitoce nto s volum es, dentre
os quais textos de Voltaire, Descartes, Rousseau, Montesquieu,
Crebillon e Verney, além de 43 livros de vários autores franceses,
na biblioteca de Tomás Antônio Gonzaga. Considerando a dificulda­
de de obtenção de livros, registra-se a importância a eles atribuída,
o que pode ser constatado pelo seu freqüente registro como patri­
mônio de herança em inventários e testamentos (Bomfim, 1988).
Tão intenso quanto o sentimento patriótico era o sentimento
religioso na região aurífera. Simão Ferreira Machado (1967), ao re­
latar o traslado do Santíssimo Sacramento da Igreja da Senhora do
Rosário para o tem plo da Senhora do Pilar - conhecido como a
festa do Triunfo Eucarístico, resultado do empenho da população
na construção da igreja - , mostrou em detalhes a abundância de
ouro e diamantes nas vestimentas e enfeites dos mineiros.
0 acontecim ento havia sido anunciado por um bando de mas­
carados, e, no dia da festa, as janelas das casas amanheceram
•nfeitadas com Mdaa • damascos. Após a missa, deu-se início à
proolsslo, constituída por uma dança de turcos e cristãos com dois
oarroa, dantro á « iH « lli Iam múalooa da auavaa vozes a vários
78 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

instrum entos, uma dança de romeiros, uma dança de músicos, os


quatro cavalheiros dos ventos (norte, sul, leste e oeste), um cava­
lheiro alemão tocando clarim, dois negros galantemente vestidos,
dois pajens com roupas de ouro e diamantes encravados, que da­
vam "Vivas a Ouro Preto", duas figuras significando os morros de
Ouro Preto e Ouro Fino, as sete figuras representando os planetas,
estes últim os precedidos pela Lua e as figuras representando as
estrelas d 'A lva e da Tarde, além do Sol. As várias irmandades, com
suas cruzes e seus andores, eram precedidas por um gaiteiro, um
moleque tocando tambor e quatro negros tocando trom betas. Por
fim , seguia um numeroso séquito de nobres moradores da vila com
o andor, o numeroso clero das duas paróquias da vila e o Eucarísti-
co Sacramento nas mãos do vigário da matriz.
A festa prosseguiu com nova missa e, nos dias seguintes,
ocorreram cavalhadas, espetáculo de fogos de artifícios, comédias,
três dias de touros, serenatas e banquete para os nobres. Entre as
comédias apresentadas figuravam as peças de Calderón de Ia Barca
(£/ Príncipe Prodigioso e Ei secreto a vocês) e uma peça de suposta
autoria de Francisco de Rojas Zorrilha (El amo criado). A festa era
uma demonstração do envolvimento das raças e do pluralismo cul­
tural existentes na Vila, o que naturalmente se fazia sob os vigilan­
tes olhares dos padres.
Em outra festa, a da posse de Dom Frei Manoel da Cruz no
bispado de Mariana, em 1745, ano da fundação do seminário desta
cidade, foi relatada a existência de montagens teatrais, apresenta­
ção de música sacra, concertos musicais, danças típicas, que in­
cluíam em seus números folclóricos a participação de índios e ne­
gros, além da apresentação pública de poetas e oradores sacros. A
festa acabou gerando, em 1749, a publicação de uma coletânea de
peças literárias que reunia composições poéticas e oratórias de dez
autores da academia intitulada Áureo Trono Episcopal. No relato,
editado pelo cônego Francisco Ribeiro da Silva e escrito por um
autor desconhecido em 1749, vê-se que os poetas do "Áureo Tro­
no", todos padres, aproveitavam o ensejo festivo e exercitavam
seus talentos, quer nos "outeiros" (reuniões nos pátios nas quais
glosavam os motes dados, em diferentes idiomas), quer no mural
móvel de poesias (poema-cartaz).
Por ocasião da «xpulalo dos jesuítas do Braali, já havia na
Colônia, portanto, um movimento Intelectual a oultUf#tmbrlonárlo
aquaoldo na» «fftm ffM W MtomlM lltarérlaa, « n « ^ | ^ ^ Í N d » m l a
FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTÓRIA 79

dos Esquecidos (1714), a Academia dos Felizes (Rio de Janeiro,


1736), a Academia do Áureo Trono (Minas Gerais, 1748), a Acade­
mia dos Renascidos (Bahia, 1759), a Academia dos Seletos (Rio de
Janeiro, 1752), a Academia Científica (Rio de Janeiro, 1772) e o
grupo de poetas da Escola Mineira e da Arcádia Ultramarina, do
qual fizeram parte José Basílio da Gama, frei José de Santa Rita
Durão, Cláudio Manoel da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto
e Tomás Antônio Gonzaga. Na realidade, a Academia dos Esqueci­
dos, primeira sociedade literária brasileira, criada pelo vice-rei, o
conde de Sabugosa (responsável pelo enforcamento dos soldados
da guarnição baiana), funcionou apenas um ano, tendo se reunido
dezoito vezes. Sua produção em prosa foi a mais relevante, embora
houvesse poesias, orações, composições e exercícios. A Academia
Científica, instalada pelo segundo marquês do Lavradio, reunia os
homens de conhecimentos científicos para debates e divulgava es­
tudos sobre história natural no país, estimulando a agropecuária.
As academias facultavam debates aos que procuravam promover a
ciência e a arte.

O sentim ento nacional na nova ordem político-social

Portugal envolveu-se, por sua dependência econômica, nas


lutas que a Inglaterra travou com o governo da França e, pressiona­
do, viu-se obrigado a transferir a Coroa Portuguesa para o Brasil.
Com o Príncipe Regente no país, novas idéias, novos rumos sociais
• culturais e uma nova ordem político-social seriam aos poucos
Implantados. A abertura dos portos, a criação da Academia Real da
Marinha (1808), a Imprensa Régia (1808), a aula de Economia e
Política (1808), os cursos médico-cirúrgicos do Rio de Janeiro e da
Bahia (1808), a Academia Real M ilitar (1810), o Jardim Botânico
(1810), o Curso de Agricultura (1812) e o Gabinete de Química
(1812) abriram espaço e serviram de ponto de partida para a forma-
çâo de novas elites intelectuais. Construir uma nova ordem, promo­
ver a afirmação da Corte no país e, ao mesmo tempo, expressar o
desenvolvimento de um sentimento nacional foram algumas das
atribuições deasaa novae elites, em que José Bonifácio, o Patriarca
da Independência, Iria ter realce.
Com a IndeptwiâM le (1822), elas assumiram o poder politi­
co, Juntamente oom • oligarquia rural, que, aliada aoa Interesses
80 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

internacionais, manipulava as eleições. O ouro tornava-se raro, e


para superar a decadência da produção mineira foi preciso aumen­
tar a exportação cafeeira, modernizar os fatores de produção, ge­
rando o crescim ento da imigração, o trabalho assalariado e a form a­
ção de um empresariado. Emergia uma classe média, que tivera sua
origem no anterior período mineratório e que demandava por educa­
ção como meio de ascensão social. A Constituição de 1823 deter­
minava, além da concessão da liberdade de culto religioso aos es­
trangeiros no Brasil, fruto da pressão inglesa, educação para todos
os cidadãos e ensino de Ciências, Belas Letras e Artes nos colégios
e nas universidades. j
Tendo sido abolidas as corporações de ofícios, com seus juí- i
zes, escrivães e mestres, uma primeira lei nacional da educação j
brasileira foi publicada em 15 de outubro de 1827, prevendo um
ensino de primeiro grau gratuito e universal como dever do Estado ;
e a criação de uma universidade. O cum prim ento da nova lei não
chegou a ser sequer satisfatório; as escolas de 1er e escrever conti- i
nuavam m uito aquém das necessidades, e a universidade não foi j
criada. Contudo, aproveitando o espaço aberto, duas academias de I
Direito abriram suas portas: a de Recife (1827) e a de São Paulo j
(1828).
Crescia, então, um povo marcado historicamente pelo tripé
racial (branco, negro e índio), com uma emergente e tímida diversi-
ficação educacional superior e acrescido das novas raças, culturas
e religiões dos imigrantes. O romantismo na literatura brasileira pro- !
curava expressar o país independente nas produções de Gonçalves
Dias, Castro Alves e José de Alencar. ;
Com a abdicação de D. Pedro I em favor de seu filho D. Pedro '
de Alcântara (1831), a fase regencial se instala. Diogo Antônio :
Feijó renuncia em 1845 e é substituído por Araújo Lima, criador do
Imperial Colégio Pedro II, do Arquivo Público e do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. A estratificação social tornava-se mais com ­
plexa com o crescente volume de imigrantes, com o ativo papel dos
militares - que, com suas críticas ao regime monárquico, assumi­
ram, após a Guerra do Paraguai, efetiva participação política - e
com os crescentes debates em torno da abolição da escravatura.
Era um país marcado pelos conflitos relativos às práticas econômi­
cas escravocratas, pelo novo movimento imigratório a pala necessi­
dade tanto de uma política de estímulo à produçl© do paqueno
agricultor quanto da novai reformas sociais, pro*
1®*' ia H f H B P ''
FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTÓRIA 81

gramas sociais voltados para a reforma da educação, a industriali­


zação, a construção de estradas de ferro e a abolição da escravi­
dão. Crescia o m ovim ento científico e intelectual brasileiro com os
acadêmicos formados pelas Faculdades de Direito, Medicina e En­
genharia, e com os pesquisadores do Arquivo Público e do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.
Duas instituições educacionais tiveram papel destacado na
propulsão das idéias liberais do século XIX: o Colégio Caraça (MG)
e a Escola de Direito de São Paulo. O Colégio Caraça, criado em
1820, proveniente do santuário construído por Irmão Lourenço
(1 774 -17 79), teve entre seus alunos, além de A fonso Pena e
Arthur Bernardes, alguns dos participantes do m ovim ento liberal de
1842. A Escola de Direito de São Paulo, que funcionava no conven­
to anexo à Igreja São Francisco de Assis, numa construção em
taipa de pilão com embasamento de pedra, form ou, entre outros:
Prudente de Morais e Campos Sales, ambos na turm a de 1863; Rui
Barbosa, Rodrigues Alves e A fonso Pena na turm a de 1870;
Wenceslau Brás em 1890; Washington Luís em 1891; e Arthur
Bernardes em 1900. Por ela também passou Joaquim Nabuco, que
acabou se formando na Escola de Recife. Defensores da ampliação
da cidadania e do fortalecim ento dos partidos, alguns deles tiveram
papel relevante na abolição da escravatura e na Proclamação da
República.
Criar um Estado Nacional independente, manter a unidade ter­
ritorial e, ao mesmo tempo, abolir a escravidão eram desafios polê­
micos. Ficaram conhecidos os debates relativos à emancipação dos
escravos travados entre, de um lado, Joaquim Nabuco, político do
Império, e, de outro, Miguel Lemos, médico, e Raimundo Teixeira
Mendes, engenheiro, ambos membros do Apostolado Positivista do
Brasil. Os positivistas criticavam Nabuco pela simpatia à causa im­
perial, que consideravam nefasta à imediata abolição da escravi­
dão. Defendiam uma nova ordem social que, com a libertação dos
escravos, os incorporava, imediatamente, como trabalhadores li­
vres. Defendiam, também, o direito a uma jornada de trabalho diá­
rio, a um dia de descanso semanal, ao salário, assim como à educa-
ç lo nas escolas de instrução primária.
Em meio a um crescente fluxo migratório que aumentava a
miscigenação raolsl • as trocas culturais, André Rebouças, secretá­
rio da Socledtdi Ctntral de Imigração, criava, em 1883, no Rio de
Janalro, um pfffMNVIMOOial am defesa da reforma agrária, do In-
Jxlís, -lí
82 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

centivo à vinda de imigrantes europeus e da assistência e educação


aos ex-escravos já em liberdade. Só no século XIX, o Brasil recebeu
um milhão de italianos, e, embora a onda migratória tivesse sido
absorvida com relativa facilidade, ela contribuiu para algumas mu­
danças psicossociais e políticas, dentre as quais a separação entre
Igreja e Estado, a instituição do casamento civil, a secularização
dos cemitérios e a tolerância religiosa.
No primeiro período republicano (1889-1894), marcado pela
dupla referência ideológica - liberalismo e positivismo - , delineava-
se uma política econômica liberal com Rui Barbosa e uma política
educacional positivista com Benjamin Constant, antigo m inistro da
Guerra durante o Governo Provisório, responsável pela reforma edu­
cacional de 1890.
A literatura tentava, no realismo de Machado de Assis, no
naturalismo de Aluísio Azevedo e no parnasianismo de Alberto de
Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac, expressar as mudanças
na ordem social, no estilo de vida e na mentalidade. Surgiram as
primeiras obras sobre a história da literatura brasileira e, nelas, as
primeiras concepções sobre uma psicologia nacional. Sílvio Rome­
ro, em sua História da literatura brasileira, publicada em 1886, tra­
zia um capítulo intitulado "Psicologia nacional - Prejuízos de educa­
ção - Imitação do estrangeiro", no qual, de certa form a, o autor
reproduzia a concepção de Chasles (1875) de que a psicologia de
um povo estava contida em sua literatura. Influenciado pelos estu­
dos de Le Pia y e pelo movimento que defendia a psicologia dos
povos ( Vólkerpsychologie), a "Psicologia nacional" de Romero par­
te da concepção de que a psicologia de um povo é revelada pelo
conjunto de suas características peculiares, por sua literatura, seus
cantos, etc.
Paralelamente à produção dos bacharéis em Direito, os médi­
cos, quer em suas teses, quer como resultados de pesquisas, apre­
sentavam suas contribuições sociais. Na Faculdade de Medicina da
Bahia, influenciado por Sighele e Le Bon, Nina Rodrigues opôs-se ao
tratam ento policial dado às religiões africanas, argumentando ser o
branco católico tão fetichista quanto o negro. Nem por isso deixava
ele de ressaltar, em suas teses africanologistas, a inferioridade do
negro e do mestiço, denunciando a loucura epidêmica de Canudos
(Nina Rodrigues, 1897). Eram posições típicas de um darwinismo
social, próprias ao •mbrionérlo cientificismo do final do Séoul o XIX.
■<mÉÈÈÈÈàt$'
FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTÓRIA 83

A id en tid ad e nacional

Com o segundo período republicano (1894 -19 22), iniciado


com um governo que se dedicava à recuperação financeira, o de
Campos Salles, o país obteve a moratória européia e iniciou a "po­
lítica dos governadores", que fortalecia as oligarquias estaduais,
prolongava a política do "café com leite" e tinha na borracha e no
cacau os destaques de suas exportações. O século XX iniciava-se
com uma população com pouco mais que dezessete milhões de
habitantes, mais masculina que feminina, majoritariamente católica
e analfabeta. Foi nesse contexto que Manuel Bomfim, em A Am éri­
ca Latina: males de origem (1905), teceu um forte combate ao
darwinismo social e fez duras críticas à propagada superioridade
das elites e das raças.
As sucessivas reformas educacionais da República Nova - a
de Epitácio Pessoa (1901), a de Rivadávia Correia (1911) e a de
Carlos Maximiliano (1915) - cuidaram dos privilégios no ensino
público, da autonomia didática e administrativa dos institutos públi­
cos e da emancipação do ensino secundário da condição de simples
meio preparador para ingresso nas escolas superiores. As reformas
estaduais - a saber, de Sampaio Dória (São Paulo, 1920), Carneiro
Lefio (Rio de Janeiro, 1922), Lourenço Filho (Ceará, 1923), José
Augusto (Rio Grande do Norte, 1925), Francisco Campos (Minas
Gerais, 1927), Lisímaco da Costa (Paraná, 1927), Carneiro Leão
(Pernambuco, 1928), Anísio Teixeira (Bahia, 1928) e Fernando de
Azevedo (Rio de Janeiro, 1927, nos ensinos prim ário, técnico-
profissional e normal) - facilitaram a introdução das ciências huma­
nas e sociais no ensino secundário.
Os embates ideológicos entre o anarquismo, o comunismo e o
nacionalismo de Pedro Lessa e Miguel Calmon, a Semana da Arte
Moderna (1922), com o conseqüente movimento modernista de
Oswald de Andrade, Mário de Andrade, M enotti dei Picchia, Anita
M alfatti, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira e Villa-Lobos, o movimen­
to de renovação literária e cultural, em Recife, sob coordenação de
Gilberto Freire (1923), e o movimento m ilitar tenentista contribuí­
ram para a renovação intelectual brasileira. As crescentes urbaniza-
çflo e industrialização, aliadas ao surgimento do mercado interno
•tlvo, criaram condiçdee para o desenvolvimento do setor terciário,
• expansflo da o l f l l t t média e o surgimento de núcleos proletários.
Iram paitoa qu9*titirtaftdavam o desenvolvimento das ciências
84 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

humanas e sociais, propiciando o surgimento de uma literatura es­


pecífica. Em 1921, surgia o primeiro livro com título específico em
Psicologia Social. Em Pequenos estudos dè psychologia social, Oli­
veira Vianna, reunindo uma série de artigos publicados em jornais,
apresentava, em um estilo ensaístico, análises de biografias de vul­
tos da história brasileira e de sentimentos regionalistas.
Francisco Campos, como ministro da Educação, em 1931,
não só dava as coordenadas para as reformas de ensino nos vários
estados brasileiros, como também buscava implantar um sistema
integrado e uma política que atendesse a uma organização nacional
da educação. Em meio aos conflitos entre educadores católicos e
escolanovistas, acirrados pelas conferências da Associação Brasi­
leira de Educação e pela divulgação do M anifesto dos Pioneiros
da Escola Nova (1932), as Ciências Humanas e Sociais criavam
asas nas escolas de nível superior e nas primeiras universidades
brasileiras.
A Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, criada em
1933 por um grupo de empresários paulistas interessados na ma­
nutenção da influência política abalada pela Revolução de 1930,
contou, entre seus professores convidados, com a presença de
Horace Davis, Herbert Baldus, Emílio W illem s, Samuel Lowrie,
Radcliff-Brown e Donald Pierson. Gerada como um desdobramento
do Instituto de Organização Racional do Trabalho - Idort, a Escola
Livre ministrava cursos de graduação em Ciências Políticas e So­
ciais e de pós-graduação em Sociologia e Antropologia, objetivando
preparar uma elite para, racionalmente, buscar soluções para os
problemas sociais do país. Foi nessa instituição que Raul Carlos
Briquet m inistrou, no segundo semestre de 1933, o primeiro curso
superior de Psicologia Social, do qual resultou a publicação do livro
Psicologia Social (1935). Entre seus alunos, figuravam Florestan
Fernandes, Darcy Ribeiro, Oracy Nogueira e Maurício Segall.
Em 1938, a Escola Livre foi anexada à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo, que havia
sido criada 1 93 4. Pela FFCL-USP passaram professores como
Paul Arbousse-Bastide, Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, Otto
Klineberg e Aniela Ginsberg, responsáveis pela form ação de vários
cientistas sociais e humanos. A antiga Universidade do Rio de Ja­
neiro, criada em 1920, teve sua estrutura modificada com a criação
da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1937, e com a anexação da
extinta Universidade do Distrito Federal (UDF), que deveu sua curta
FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTÓRIA 85

vida, de 1935 a 1939, a divergências com o governo federal. Na


extinta Universidade do Distrito Federal, lecionaram Gilberto Freyre
e Arthur Ramos. O primeiro foi autor da notável obra Casa-Grande &
Senzala (1933), que vasculhava a colonização portuguesa, a fo r­
mação familiar e a arquitetura brasileira, e, admitindo a existência
de um caráter nacional, enfatizava algumas características comuns
ao povo brasileiro, provenientes da interação entre raça e ambiente,
ressaltando a composição híbrida da nossa colonização, a explora­
ção econômica escravocrata e a estrutura agrária, em que reinava
um clima de quase intoxicação sexual. Arthur Ramos ministrou o
aegundo curso superior de Psicologia Social, em 1935, resultando
na edição do livro Introdução à Psychologia Social (1936).
Estudos psicossociais de caráter regionalistas foram desen­
volvidos por Lourenço Filho, em Juazeiro de Padre Cícero (1926), e
por Gustavo Barrozo, em Almas de lama e aço (1930).
Entre as análises de amplitude nacional, vale ressaltar Retra­
tos do Brasil, de Paulo Prado, que, publicado em 1928, ponderava
■obre o papel da tristeza no desenvolvimento do caráter do povo
brasileiro. Indo de encontro às idéias não só de Paulo Prado, mas
também de Sílvio Romero e Ronald de Carvalho, o título da obra de
Eduardo Frieiro, publicada em 1931, O brasileiro não é triste, já
revela sua contraposição às idéias da tristeza do povo e inospitali-
dade do clima brasileiro. Notáveis também são as obras Ensaios de
antropologia brasiliana, de Roquette-Pinto, datada de 1933, e Raí-
zes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicada em 1936.
A cordialidade como um traço do caráter nacional, seguida da lha-
neza no trato, da hospitalidade e da generosidade, presentes na
obra de Sérgio Buarque de Holanda, são perfis que, se comparados
ao relato de Femão Cardim, seriam possivelmente legados indígenas.
Tal caráter nacional foi questionado por A rthur Ramos (1948)
em seu "Programa da antropologia brasileira", sob a alegação de
que, do ponto de vista antropológico, não se poderia falar de uma
cultura brasileira, mas de culturas brasileiras, sendo ainda cedo para
se indagar sobre o ethos do caráter nacional.
Em 1954, sob a orientação de Annita Cabral, Dante Moreira
Leite apresentou, na Universidade de São Paulo, sua tese de douto­
rado, Intitulada Caráter nacional do brasileiro, em que eram analisa­
dos os preconcaltoa • os estereótipos nos conceitos subjacentes,
•o caréter naolonilf n t literatura brasileira, com base no que se
dallnaavam quatro jfé lfi Idaológlcaa; o movimento natlvlsta, o
86 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

romantismo, a imagem pessimista e a superação da ideologia. Em


sua conclusão, Moreira Leite reconhecia que as ideologias do cará­
ter nacional brasileiro seguiam, bem de perto, as doutrinas euro­
péias, tendo sido a superação da ideologia do caráter nacional uma
construção ao longo de muitos anos.
No Rio de Janeiro, as Ciências Sociais e Políticas efetivam
planos com a criação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(Iseb), em 1955, que reunia intelectuais como Roland Corbisier,
Guerreiro Ramos, Cândido Mendes, Álvaro Vieira Pinto e Hélio Ja-
guaribe. Tinham por objetivo um desenvolvimento nacional inde­
pendente e por base a filosofia da intervenção consciente e racional
do Estado para uma transformação qualitativa da estrutura econô­
mica e social do país.
Assim, os cientistas sociais e humanos passaram a reivindicar
o direito ao fornecim ento dos conhecimentos à compreensão e ao
desenvolvimento da sociedade brasileira, assim como a participa­
ção nas decisões pertinentes.
Com a Revolução de 1964, foi ministrado um duro golpe con­
tra as organizações populares e as liberdades democráticas. Rea­
ções provieram de trabalhadores, estudantes e de parte da Igreja
Católica, tornando passeatas, manifestações e invasões de univer­
sidades partes do cotidiano brasileiro. As produções das Ciências
Sociais e Humanas, como não poderia deixar de ser, ressentiram-se
a princípio. Contudo, retomaram seu crescimento a partir da Refor­
ma Universitária de 1968, que impulsionou a abertura de cursos de
graduação e pós-graduação stricto sensu nas universidades. Rele­
vante papel tem sido desempenhando pelas organizações associati­
vas de pesquisa, ensino e/ou pós-graduação em Ciências Sociais e
Humanas. Entre elas, destacam-se a Associação Nacional de Pes­
quisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), a Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped), a
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia
(Anpepp) e a Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso).
Os trabalhos de consolidação da identidade nacional fizeram-
se simultaneamente às ações de respeito e incentivo às identidades
locais, grupais, étnicas e/ou religiosas, atentos às pluralidades cul­
turais. Tanto a produção relativa à identidade nacional quanto a
referente às identidades locais e regionais foram atravessadas pelas
particularidades sexuais, raciais, grupais, comunitárias, de classes,
bem como pelas singularidades do sujeito, num amplo movimento
da unlveraallzaçlo a consciência ecológica.
FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTÓRIA 87

E o povo brasileiro começa o século XXI em um país de maio­


ria urbana, mais fem inino que masculino, cristão, embora não mais
tão católico, com cerca de 52 milhões de pessoas passando fome,
com taxas de mortalidade infantil e analfabetismo alarmantes, ain­
da que decrescentes, com uma devastação ambiental galopante e
com o gradual envelhecimento da população. Mas começa também
com um consolidado sentimento de identidade nacional.

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Deslandes.

Elizabeth da Melo Bomfim


Pesquisadora em História da Psicologia na UFSJ (S. João Del Rey), m em bro
do G rupo de T rab alh o em H istória da Psicologia na ANPEPP, autora de
artigos em revistas clantffloae e de livros, entre os quail tfootoglê Social
no Braall ( 2 0 0 4 ) s oom Raul Carlos Briquet na C oltflp “Wonalros da
Pslooloala" (20031. < ,-.*i
V
A FACULDAD E DE M EDIC INA DA BAH IA E A
PREOCUPAÇÃO CO M QUESTÕES DE ORDEM
PSICOLÓGÍCA DURANTE OS O ITO C E N TO S
Nádia Maria Dourado Rocha

Escola de M ed icin a da Bahia: fu ndação

Início do século XIX. O Brasil passa por uma profunda mudan­


ça político-adm inistrativa, vez que, num período de catorze anos,
foi transformado de colônia portuguesa a Império. Com isso, torna-
•e crescente a necessidade de formação de profissionais liberais
que pudessem dar conta das necessidades do novo país. O primeiro
passo, por decisão da Assembléia Geral, foi aprimorar as institui­
ções existentes, ou seja, as duas escolas médico-cirúrgicas instala­
das em Salvador e no Rio de Janeiro, transformando-as, em 1832,
•m Escola de Medicina. Nesse mesmo ano foi criada a Faculdade de
Farmácia. Ainda no século XIX, foram criadas as escolas de Belas-
Artes (1877), de Direito (1891) e a Politécnica (1897). Essas três
Últimas derivaram-se da iniciativa privada, sendo reunidas em 1946,
oompondo a recém-fundada Universidade Federal da Bahia.
Segundo Pereira (1918):

O espírito liberal que anim ava a reform a de 1 8 3 2 m anifestava-se em


sábias disposições que m an tinh am a liberdade do ensino, am plia­
vam notavalmanta o desenvolvimento dos estudos, proporolonsvam
os meios de readier em algumas oadtlras a Inetrucçlo prátlos,
garantiam ao profeasorado independênola, autoridade e prestígio,
90 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

d avam salu tar autonom ia às duas facu ld ad es, conferindo-lhes o di­


reito de eleger seus diretores, apresentando ao G overno um a lista
tríplice da qual seria escolhido o nom eado, a atribuição de co n fe c c i­
onar seus regulam entos, de propor a reform a na distribuição das
m atérias, e de applicar as bases das m atrículas e os em olum entos
dos títu lo s à com pra de livros para a biblioteca.

Além disso, afirma ainda esse professor:

Fundada sob os benéficos auspícios de tã o ilustres paraninfos [José


A velin o Barbosa, Paula A raújo, Ferreira F ran ça1 e Lino Coutinho] a
Faculdade de M edicina da Bahia constituiu-se desde en tão um cen ­
tro de activid ad e co nstante pelo progresso da sciencia, pela causa
do bem e da hum anidade e, sobretudo, pelo culto da independência,
da liberdade e do direito, de que foram valorosos obreiros e intem e-
ratos d efensores os prim eiros m estres da velha escola.

Santos, autor da primeira Memória histórica da Escola de


Medicina da Bahia, referente ao ano de 1854, afirma que não só era
usual os alunos irem à Europa para aperfeiçoamento, como também
havia na Escola de Medicina da Bahia um predomínio das doutrinas
da Escola de Medicina de Paris. Segundo ele, essa predileção teve
origem, sem dúvida, na legislação, que "pedia como preparatório o
francês, mais cultivado entre nós, ou o inglês, e mais no grande
número de filhos daquela Escola, que foram chamados a professo­
res d 'e sta" (1905, fl. 20).
Com relação ao ingresso no curso de Medicina, Santos decla­
ra que, tendo iniciado seu curso em 1832, matriculou-se: "no Colé­
gio de Cirurgia, fazendo exame somente de língua francesa, peran­
te a Congregação dos Lentes, como era d 'u so " (ibidem, fl. 9).
Há indicação de que esta prova de ingresso foi mantida, mes­
mo com o surgim ento da Escola de Medicina, uma vez que, na
Memória histórica do ano de 1924, Aragão (1940) afirma que o
Decreto n. 1 1.5 3 0 2 determina que o exame vestibular compreende
prova escrita e oral, a primeira consistindo na tradução de um tre­
cho fácil de um livro de literatura francesa e de um outro, de autor
clássico alemão ou inglês, sem auxílio de dicionário.

’ Refere-se o autor ao Dr. Antônio Ferreira França, médico e professor da Escola


de Medicina da Bahia.
1 Artigo n. 8 0 do citado decreto, promulgado em 18 de março de 1818.
A FACULDADE DE M EDICINA DA BAHIA 91

Comentando a respeito do curso preparatório, Fonseca lamenta


que neste faltem "disciplinas das ciências do espírito e da socieda­
de" (1893, fl. 200), o que, segundo ele, seria em breve solucionado
com a inclusão da Sociologia e da Moral. Enfatiza ser necessária a
inclusão da Psicologia, o que não aconteceu em virtude da influên­
cia de Auguste Comte sobre o legislador. Continuando a defesa da
sua posição, afirma:

A psicologia de hoje se, de um lado, apóia-se nos dados fornecidos


por este elem ento estranho à fo rm ação das outras ciências que a
p recedem na hierarquia científica - a consciência, cuja intervenção
nos dom ínios dela bastaria por si som ente para individualiza-la e
distingui-la de to d as as mais - doutro lado, firm a-se e x a ta m e n te no
co nh ecim en to da anatom ia e da fisiologia dos sentidos, do sistem a
nervoso e do m uscular e nos conhecim entos positivos que necessa­
riam ente d evem preceder a estes (Ibidem , fl. 2 0 1 )

Concluindo, propõe a inclusão da Psicologia e da Lógica no


quadro de estudos necessários para o bacharelado.3
Uma das condições para a outorga do título de Doutor em
Medicina era a defesa de uma tese, com tema definido pela Congre­
gação, por sugestão do corpo docente, na primeira reunião anual.4
Esses trabalhos foram, ainda no século XIX, objeto de críticas, como
a realizada por Fonseca, a seguir transcrita:
Estam os de acordo (e este é o ponto capital e de que tudo mais
decorre) sobre o pouco ou nenhum valor científico da grande m aio­
ria das teses apresentadas pelos alunos às Faculdades de M edicina.
Se entre elas há m elhores e piores, a primeira condição para que
possam ser classificadas em m ás, sofríveis, boas e ó tim as, é serem
consideradas, salvo raríssimas exceções, com o sim ples coleciona-
m ento de o bservações alheias - nacionais ou estrangeiras - c a tá ­
logo das opiniões de diversos autores sobre o assunto escolhido,
com pilação dos jornais de m edicina sobre as questões de atualida­
de, repetições de críticas feitas sobre o seu objeto.
Se fossem to d as escritas em boa linguagem , organizadas com m é­
todo e su ficien tem e n te desenvolvidas, teriam pelo m enos o valor de

1 Provavelmente, referla-ae ao Bacharelado em Ciências e Letras, oferecido no


Qymnaslo da Bahli até o Início da dócada de 1930.
4 C f*. Ata» d t raunlle d l Congrtoaçio da Faculdade de Medicina da Bahia, de
1883 « 1888.
92 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

vulgarizar em nosso idioma a ciência que seus au to res adquirem em


estranh as línguas.
M as só a m em ória possui este m érito.
Q u an to às causas deste mal é para nós evid en te que elas consistem
nas disposições sobre o assunto estabelecidas pelos diversos e s ta ­
tu to s que tê m regido a Faculdade de M ed icin a, sem excluir os atuais
que, d este p on to , outra inovação não fizeram senão abolir a censura
prévia.
O que atu a lm en te a lei exige que se faça é estéril e até prejudicial.
As teses poderiam , e n tre ta n to , constituir um m eio poderoso de de­
sen volver o estudo original da m edicina no país e de contribuirm os
para o progresso geral das ciências m édicas. ( 1 8 9 3 , fis 2 5 e 2 6 )

Para o autor, a solução seria tanto dar um caráter facultativo


às teses quanto postergar a sua entrega para um ano após a form a­
tura, dando assim condição ao candidato de melhor elaboração do
material, vez que já não teria disciplinas para preparar.
Esta situação perdurou até 1915, quando o Decreto n. 11.530
tornou facultativa a defesa de tese pelos alunos ao térm ino do seu
tirocínio acadêmico, condicionando, porém, a outorga do título de
Doutor em Medicina aos que defendessem tese ou se incorporas- j
sem ao corpo docente da Faculdade. j
Diante do exposto, qual seria então o interesse ou a importân- j
cia desse material para a Psicologia? Material fru to de uma tarefa
escolar de graduação, cujo tema era definido pela Faculdade, com
mérito criticado por contemporâneos, docentes da Casa... 1
É im portante estudar essas teses. Não por terem trazido con- ]
ceitos ou metodologias inovadoras, mas por permitirem avaliar a
sintonia entre a produção baiana e os centros produtores do saber,
tanto pelos temas trabalhados, que falam de um saber instituído, já
aceito pela comunidade acadêmica, quanto pelos autores escolhi- j
dos para o "colecionam ento de opiniões", o que indica uma vincu- j
lação intelectual a determinada corrente teórica ou prática.
No Memorial da Medicina Brasileira, órgão da Universidade
Federal da Bahia, Peixoto (1996) localizou cinqüenta teses, apre­
sentadas durante o século XIX, que abordaram questões psicológi­
cas, das quais apenas duas eram de concurso e, as demais, teses
Inaugurais, ou seja, de conclusão de curso. Posteriormente, foram
localizadas outras teses na Biblioteca Pública do Estado da Bahia e
na Biblioteca da Fundação Clemente Marianl,
A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 93

Merece destaque o fato de que havia teses com preocupação


de cunho psicológico, mesmo antes da instalação da cátedra de
Psiquiatria, o que só ocorreu em 1881. Até o m omento, foram
localizadas doze destas.

Teses localizadas

(1) 1845 - Policarpo Cesário de Barros. A influência da


música sobre a medicina.
(2) 1849 - Rozendo Aprígio Pereira Guimarães. Theses
médico-ph ylosóphicas.
(3) 1851 - Francisco Tavares da Cunha Mello. Algum as con­
siderações psycho-physiológicas acerca do Homem.
(4) 1852 - Joaquim Marcelino de Brito Júnior. Breve disser­
tação sobre a hypochondria.
(5) 1853 - A n tôn io Dias Coelho. A lgum as proposições
sobre temperamentos.
(6) 1857 - Cid Emiliano de Olinda Cardozo. Influência
da civilização sobre o desenvolvimento das afecções ner­
vosas.
(7) 1 85 7 - José Joaquim G onçalves. Secção m édica:
herança temperamento lymphatico.
(8) 1869 - Francisco Borges de Barros. Influência do celiba­
to sobre a saúde do homem.
(9) 1873 - Manoel Ludgero de Oliveira. Em que consistem
os temperamentos.
(10) 1878 - Guilherme Pereira Rebello. Somno.
(11) 1883 - Leon Ferdinand Gay. Eletrotherapia.
(12) 1884 - José Machado do Valle. Estudo m édico psycho-
logico sobre o suicídio.
(13) 1885 - Sebastião Barbosa da Silva. Physiologia do cére­
bro.
(14) 1886 - Ernesto Carneiro Ribeiro. Perturbações psychi-
cas no domínio da histeria.
(15) 1887 - Raymundo da Câmara Barreto Durão. Alcoolism o
chronlco e suas variedades clínicas.
(16) 1888 - Quarino Aloyaio Ferreira Freire. Qual o papel que
d§a§m p»nha » civilização no desenvolvim ento das
moléattaa mantala?
HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

(17) 1888 - José Gabriel de Almeida Paim. Somno, sonho,


sonambulismo e delírio.
(18) 1888 - Pedro Rodrigues Guimarães. Alcoolism o chroni-
co e suas variedades clínicas.
(19) 1888 - Fábio Lopes dos Santos Luz. Hipnotismo e livre
arbítrio.
(20) 1889 - Bonifácio Ferreira Carvalho. Da coca, seu princí­
pio ativo e sua ação physio-terapêutica.
(21 ) 1889 - José Xavier Coelho. Do tabagismo e sua influên­
cia sobre a mentalidade.
(22) 1889 - Virgílio Martins Lopes Mendonça. Do hypnotis-
mo e seu valor terapêutico.
(23) 1889 - Landulpho Machado Magalhães. Hypnotism o e
livre arbítrio.
(24) 1890 - Francisco Chaves de Oliveira Botelho. Das rela­
ções entre as neuropathias e as psychopatias.
(25) 1890 - Eduardo Jansen Vieira de Mello. Hysteria no
Homem.
(26) 1890 - Manuel Sampaio Marques. Hysteria no homem.
(27) 1891 - Bonifácio Ponce de Leon Castro. Neurasthenia.
(28) 1891 - Alfredo Ferreira Magalhães. O hypnotism o e a
suggestão.
(29) 1891 - Felipe Nery Gonçalves. A degeneração psíquica.
(30) 1891 - João Maria Carneiro Lyra. Hysteria infantil.
(31) 1893 - Alberto Furtado Mendonça. Qual a m elhor inter­
pretação dada ao termo paranóia?
(32) 1893 - Elias da Rocha Barros. Estygmas da degeneração
psychica.
(33) 1 89 3 - A n tôn io Barreto Praguer. Da psycho terap ia
suggestiva.
(34) 1894 - João Luciano da Rocha. Breves considerações
sobre a epilepsia e seu tratam ento cirúrgico.
(35) 1894 - Luiz de Araújo Aragão Bulcão. Hystero paralisias
locomotrizes.
(36) 1894 - Aurélio Rodrigues Viana. Considerações sobre
os principais accidentes mentaes nos histéricos (concurso).
(37) 1895 - Emílio Champion. Considerações sobre a loucura
de dupla forma ou loucura circular.
(38) 1896 - Joilno Correa Cotias. Theorlê mêOêfltoã das vibra-
çõas eêfêbfêêê tm suas relações o o m ÿ g t^ iQ mental.
A FACULDADE DE M EDICINA DA BAHIA 95

(39) 1897 - Júlio Afrânio Peixoto. Epilepsia e crime.


(40) 1897 - Vital Cardoso do Rego. Relações da actividade
intellectual com a composição da urina.
(41) 1898 - João Batista de Barros Pimentel Filho. Psycho-
therapia.
(42) 1898 - José Mariano da Rocha. Tratamento da melan­
colia.
(43) 1900 - Eustáquio Daniel de Carvalho. Estudo physiológi-
co do sonho.
(44) 1900 - Adriano Augusto de Araújo Jorge Filho. Alcoolis­
mo e alienação mental.
(45) 1900 - João Pereira de Araújo Pinho Jr. Desordenspsychi-
cas da menstruação.
(46) 1900 - Ernesto Carneiro Ribeiro Filho. Alcoolism o chrô-
nico cérebro-espinhal e suas manifestações psychicas.
(47) 1900 - Carlos Maria de Novaes. Psychoses post-opera-
tóreas.
(48) 1900 - Augusto Ribeiro da Silva. O hypnotism o sob o
ponto de vista médico-legal.

Além dessas, no livro de registro do Memorial de Medicina


Brasileira constam mais duas, relacionadas em seqüência, das quais
nâo há exemplares no referido acervo:

(49) 1840 - Antônio Joaquim de Mello Rocha. A enfermida­


de denominada febre interm itente é uma verdadeira neu­
rose?
(50) 1853 - José Antônio de Freitas Jr. Influência do estado
social na produção de moléstias.

Quanto aos temas, a maioria buscou investigar questões li­


gadas à psicopatologia, mesmo antes da instalação da cadeira de
Clfnica Psiquiátrica, o que ocorreu em 1 8 8 1 .5 Com relação à me­
todologia, a maioria absoluta das teses somente realizou, como
pontuado por Fonseca, um trabalho de compilação, "um colecio-
namento de observações alheias" (fl. 1893, 25). Apenas uma das
teses, apresentada por Vital do Rego em 1897, expõe delinea-
mento experimental, tendo buscado controlar a variável indepen-

1 Laid* 30,10.1 «Mi


96 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

dente - no caso, a atividade intelectual. Durante um mês, ele foi


experim entador e sujeito desse estudo, no qual realizou análise da
própria urina, envolvendo-se em atividade intelectual (formal) em
semanas alternadas.
As referidas citações estão inseridas no te xto , não havendo
nesta época habitualidade de co n stitu ir a bibliografia ao final
do trabalho. Esse procedim ento dá mesmo margem a problema de
identificação, uma vez que a maioria dos autores fo i citada apenas
pelo sobrenome. Estudo preliminar realizado por Rocha (2001),
que examinou os autores citados em 25 das teses existentes no
Memorial da Medicina Brasileira, da Universidade Federal da Bahia,
identificou 1 .7 8 4 citações, de 1.224 personalidades, o que perfaz
uma média de 7 1 ,3 6 por doutorando, com variação de 6 a 304.
Dessas personalidades, 80% receberam apenas uma citação.
Bénédict Augustin Morel (1809-1873), médico austríaco que cons­
truiu sua carreira em Paris, foi o profissional mais referenciado, já
que consta de metade das teses. Procurou-se, então, verificar ano
e local de nascim ento, ocupação e loca! de trabalho de cada
um deles. Dos localizados, pode-se verificar que a data de nasci­
mento mais remota foi 560 a.C., e a mais recente, 1873 (Grand
Encyclopédie, s. d.; Morei, 1997; CFP, 2001). A França é o país
com a maior quantidade de autores citados. Foram lembrados prin­
cipalm ente alienistas e filósofos. A maioria dos citados trabalhou
na França, em especial na Salpetrière, no Bicêtre e na Faculdade
de Medicina de Paris.

Personalidades

Jo s é Lino dos S a nto s C o u tin h o (1 7 8 4 -1 8 3 6 )

Baiano, form ado em Medicina pela Universidade de Coimbra,


foi deputado do Brasil em Lisboa, sendo signatário do manifesto de
22 de outubro de 1822, gesto de Independência Nacional. Foi de­
putado geral do Império por duas legislaturas, fazendo constante
oposição ao imperador D. Pedro I. Interessado por questões de ins­
trução pública, integrou a comissão que realizou trebelhos sancio­
nados em lei de 15 de outubro de 1827, considereda por Afrânio
Peixoto (1 9 4 6 ) como únloa manifestação neolon§|> fgtfft Instrução
A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 97

A EDUCAÇÃO DE GORA,
SHail)*!'
«■ fH E C IK X O MO RAI., P O L IT IC O , B R W iC I O K » ,

mi»m*BoKoxsfctnrmo
DR. JOSÉ LINO COUTINHO,
E PUUI.ICADAS P0 R

acûfl «flTAamaSUM) -A'2Jÿ&SBDS,

NA TYPO&RAPIHA DE CARLOS P jJG fliS fM ,


Hu* Nov* <io Comraetcio ' ‘ v ^
1849 /*■

Figura 1 - Folha de rosto do livro


Cartas sobre a educação de Cora.
Autoria de Lino Coutinho.

popular. Foi o primeiro diretor da Escola de Medicina da Bahia;


ocupou a pasta da Justiça, após a abdicação de D. Pedro I (1831-
1833).
Criou diversas escolas, tendo reorganizado as escolas de Me­
dicina do Império e a de Belas-Artes do Rio de Janeiro (Silva, 1885).
Escreveu vasta correspondência à preceptora de sua filha Cora,
nascida em 1818. Postumamente, em 1849, foram elas publica­
das sob o título Cartas sobre a educação de Cora. Na avaliação de
Peixoto (1946), a proposta de educação de Cora é m uito mais libe­
ral e útil que a de Sofia, personagem de J.-J. Rousseau. Consistia
de orientações referentes à formação de atitudes e ausência de
castigo corporal. Sua educação, assim conduzida pela preceptora,
ainda anônima, foi altamente eficaz, tendo sido Cora ancestral de
Importante família baiana. Para Castro (1977), as orientações refle­
tem uma visfio liberal; a vida familiar ganha novas dimensões, com
a exaltação d l fJ§Mt feminina, nfio encarada como submissa ao
98 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

homem. Deve-se louvar, no entendimento desta autora, a preocu­


pação em registrar o roteiro seguido para a educação da sua filha.
Deve-se ressaltar, também, o fato de a educação de Cora ter sido
assumida pela figura paterna.

IKVESTIGAÇ0ES
fcs

P S Y C H O L0 G ÏA

Eduando Ferreira França


vMmtet e>* m uai» >cmkmuíu m uju, ttz-

\m anu»,

TVFOGRAfíllA DE E. PEDROZA,
Kiu Cajúüíí o. *».
I«í$4. Figura 2 - Folha de rosto do livro In­
vestigações de Psicologia. Autoria de
Eduardo Ferreira França.

E duardo Ferreira França (1 8 0 9 -1 8 5 7 )

Baiano, nasceu em Salvador e faleceu em viagem para a Euro­


pa, para onde se deslocava em busca de tratam ento médico (Blake,
1883; Oliveira, 1992). Era doutor em Medicina pela Faculdade de
Paris, onde recebeu a mais rigorosa formação naturalista, tendo
sido apontado como o primeiro estudante do seu curso. Apresen­
tou a tese Essai sur l'influence des aliments et des b o fito n s sur le
m oral de l'hom m e. De volta ao Brasil, foi nom tiG l# professor de
Química Médica e Prlnofplos Elementares de M lÉ iÉ iiË l da Facul-
A FACULDADE DE M EDICINA DA BAHIA 99

dade de Medicina da Bahia. Exerceu a medicina com extrema com ­


petência, sendo também grande filósofo. Durante sua vida, procu­
rou encontrar elementos observáveis que pudessem explicar o com ­
portamento moral das pessoas.
A partir de 1848, representou seu estado em várias legisla­
turas. Segundo Paim (in França, 1972), em sua atividade política
Ferreira França interessou-se por questões de saúde pública, tendo
dedicado a esse tema dois ensaios: Influência dos pântanos sobre o
homem (1850) e Influência das emanações pútridas animais sobre
0 homem (1859). Na qualidade de deputado estadual, elaborou re­
latório sobre a situação do sistema penitenciário da Província (1847).
Pertenceu a diversas associações literárias de jovens acadêmicos.
Para Paim (in França, 1972), foi a atividade política, mais precisa­
mente a representação em nível nacional, que o levou a se deparar
com o problema da liberdade humana e a rever as concepções apren­
didas na França, que culminaram em sua obra mais im portante, no
que foi influenciado por Condillac e Maine de Biran.
Investigações de Psicologia, publicado em 1854, é muito pro­
vavelmente o livro mais antigo sobre este assunto nas três Améri-
5 Oas. No entendimento do autor, essa obra contém reflexões sobre a
j; psicologia experimental, sendo intenção sua, não concretizada, tal-
| vez em virtude de sua morte prematura, escrever outro livro dedica-
| do ao que chamava de psicologia racionai. Apresentada em dois
volumes, com 284 e 424 páginas, respectivamente, a obra é com ­
posta por seis partes: 1) fenômenos da consciência e faculdades;
2) modificabilidade (sensibilidade, afetividade); 3) m otividade (mo­
vimentos); 4) faculdades intelectuais I (percepção interna e exter­
na, relações entre elas, das qualidades dos corpos e do hábito);
6 ) faculdades intelectuais II (sensibilidade cerebral, sono e sonhos,
oonsciência, razão, memória, imaginação, abstração, composição,
generalização, juízo, faculdade do futuro, faculdade da fé, da idéia);
Instintos (físicos, intelectuais, sociais e morais; e 6) vontade.

Abílio Cesar Borges, Barão de Macahubas (1824-1891)

I Baiano, natural da cidade de Rio de Contas, médico, com cur-


I 10 realizado na Faouldade de Medicina da Bahia e tese apresentada
I i Faouldade do Rio da Janeiro, destacou-se como um dos grandes
I tduoadoraa da a u t’ipooa. Fundou oa primeiros colégios partícula-
I rta do Braall. Tlnhomma forma paoullar a diferenciada oom relaçlo
100 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Figura 3 - Capa da conferência profe­


rida na Exposição Pedagógica do Rio
de Janeiro em 18 8 2 . Autoria de Abílio
Cesar Borges.

à educação, advogando a abolição do castigo físico e a valorização


dos corpos docente e discente. Recém-formado, radicou-se na ci­
dade de Barra, às margens do Rio São Francisco, onde, em 1850,
fundou o seu primeiro colégio, o Atheneu Barrense. Passando a
residir em Salvador, foi nomeado diretor-geral da Instrução Primária
e Secundária da Província da Bahia, cargo que exerceu de 1856 a
1858. Seu projeto de ação neste cargo incluía um plano de valoriza­
ção do corpo docente e dos alunos, com a conseqüente exclusão
da prática de castigos físicos na escola (Alves, 1925, 1936). Veri­
ficando que suas teorias não eram compreendidas nem executadas,
solicitou exoneração do cargo e abriu um estabelecimento de ensi­
no para pôr em prática seu projeto pedagógico - O Gymnasio Bahi-
ano (Blake, 1883; Alves, 1925 e 1936).
No plano educativo, Dr. Abílio procurava, acima de tudo, ins­
pirar o amor ao estudo, familiarizando as criançascom todos os
conhecimentos e servlndo-se das lições de coisas para desenvolver­
A FACULDADE DE M EDICINA DA BAHIA 101

lhes as aptidões naturais físicas, de acordo com as demais capaci­


dades intelectuais. Em 1883, durante a Exposição Pedagógica do
Rio de Janeiro, na presença de Pedro II, proferiu duas conferências
sobre o "arithm om etro fracionário", de sua invenção, e sobre a
nova lei do ensino infantil, aplicada no Colégio Abílio, o que lhe
valeu os foros de primeiro reformador do ensino público e particular
no Brasil (Fleiuss, 1925). Em 1889, obteve a medalha de ouro na
Exposição Internacional de Paris, onde exibiu trabalhos escolares,
obras didáticas e inventos seus. Representou o Brasil no Congresso
dos Americanistas; integrou comissão nomeada pelo barão de Ma-
moré para reformar o ensino do Rio de Janeiro. Foi um dos primei­
ros a chamar a atenção do governo para a educação dos retardados
e para a criação de uma cadeira de Linguagem Articulada aos sur-
dos-mudos.
Dr. Abílio não somente remodelou os métodos e os processos
de ensino e transform ou o tirocínio escolar, mas também m odificou
os compêndios então adotados. Imaginou um processo de leitura
que apelidou "leitura universal", para lhe demonstrar a eficiência e
quanto merecia cuidados o problema do analfabetismo em sua pá­
tria. Em 1881, D. Pedro II outorgou-lhe o título de Barão da Ma-
cahubas, em reconhecimento aos serviços prestados à educação
brasileira. Por sua ação pedagógica, fundamentada numa preocu­
pação com o educando, e com efetiva análise e implementação de
condições adequadas para o processo de ensino-aprendizagem numa
época em que a Psicologia ainda não havia sistem aticam ente
se dedicado a essas questões, Abílio Cezar Borges, Barão de
Macahubas, merece ser reconhecido como um precursor da tecno­
logia de ensino.

R aym undo N ina R odrigues (1 8 6 2 -1 9 0 6 )

Maranhense, formou-se em 1886 pela Faculdade de Medicina


do Rio de Janeiro, tendo apresentado a tese intitulada A s amiotro-
fias de origem periférica. Radicou-se em Salvador/Bahia, onde teve
uma destacada atuação em Medicina Legal, sendo mesmo patrono
do Instituto Médico-Legal do Estado da Bahia. Segundo Bonfim
{in CFP, 2001), foi ele influenciado principalmente por Scipio Sighele,
Tarde e Gustave La Bon.
Fundou a Reviita Médico-Légal e foi redator da Gazeta Médica
! da Bahia. Dentra auaa obrai, ancontram-aa 0 §nlml$mo fetlchlata
102 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

NINA RODRIGUES

ÀS
COLLECTIVIDADES
ANORMAES
Prefacio e Notas de
A rth u r R am os

'■ B - 5 . ■: c .

n /Mel-
BÎBLÏOTHHCA DH LHVULGAÇAQ SCIENTÍFICA
DmrciDAHaoprov. Du. Arthur K am os ~ Vo»,. 19
CIVIL1ZAÇAO B R A SILE IR A S. A. - EDITORA
Rio deJaneiro
1 9 3 9 Figura 4 - Folha de rosto do livro
A s Collectividades Anorm aes.
Autoria de Nina Rodrigues

dos negros baianos (1896), A s raças humanas e a responsabilidade


penal no Brasil (1894), O alienado no direito civil brasileiro (1901 ),
Os africanos no Brasil ( 1932) e A s collectividades anormaes ( 1939),
os dois últim os publicados postumamente, com base em textos
preparados pelo autor. 0 prim eiro deles teve coordenação de
Homero Pires e o segundo, de Arthur Ramos.
Nina Rodrigues é considerado o fundador da Escola Baiana de
Antropologia, a despeito de sua posição altamente criticável com
relação às populações negra, mulata e indígena, que considerava
inferiores, defendendo, ainda, que o Código Penal deveria prever
tratam ento diferenciado segundo um critério racial.

Juliano Moreira (1873-1933)

Baiano, freqüentou a Faculdade de Medicina da Bahia, tendo


apresentado a tese Slf/lls maligna precoce (1891). Peittrlormente,
foi também profaaaor d a m Eacola. ConalderadO ^ l^ O u r io r da
A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 103

psicanálise no Brasil, uma vez que, já em 1899, na qualidade de


professor catedrático da FMB, proferiu conferência divulgando as
Idéias de Sigmund Freud. Pode-se atribuir a isso o fato de ser ele
■depto da psiquiatria alemã. Radicou-se no Rio de Janeiro, tendo
dirigido de 1903 a 1930 o Asylo Nacional de Alienados. Defendia a
reformulação da assistência psiquiátrica pública, com a criação de
hospitais-colônias e a assistência heterofamiliar (Venâncio, in CFP,
2001), tendo incentivado a primeira lei federal de assistência aos
alienados (1934). Esteve ligado à fundação da Sociedade Brasileira
de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins. Integrou a comissão da
Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal,
oonstituída com o objetivo de definir uma classificação psiquiátrica
para o Brasil. Foi homenageado pelos baianos, uma vez que dá
nome ao hospital psiquiátrico mais antigo do Estado, o antigo Asylo
Blo Joâo de Deus» fundado no século XIX.
104 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

J ú lio A frâ n io P e ixo to (1 8 7 6 -1 9 4 7 )

Baiano da cidade de Lençóis, na Chapada Diamantina, foi alu­


no da Faculdade de Medicina da Bahia, onde defendeu a mais fam o­
sa das teses do século XIX, que obteve repercussão internacional,
denominada Epilepsia e crime (1897). Esta tese foi publicada no
ano seguinte, com dois prefácios: um escrito por Nina Rodrigues e
o outro, por Juliano Moreira. Transferindo-se para o Rio de Janeiro,
trabalhou, juntam ente com Juliano Moreira, no Hospital Nacional
de Alienados. Escritor muito fértil, produziu mais de cem obras,
científicas e literárias. Dentre as primeiras, podem ser arroladas
aquelas que lidam com temas afins à Psicologia, a exemplo de
A seleção dos incapazes afortunados pelo ensino secundário (s. d.),
Clima e saúde (s. d.), Criminologia (s. d.), Ensinara analnar (s. d.),
Ensino primário no Braall am 100 anos (s. d.), M arta 9 Mêrfâ (s. d.),
Novos rumos da mêdfeffíâ lag»/ (•. d), E lem entoêtàJM j& tlna Lagal
A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 105

(1910), Psicopatologia forense (1916), Sexo/og/a forense (1934).


Dentre as segundas obras, destaca-se Rosa M ystica, symbo/o trági­
co, drama em cinco atos, com forte carga simbólica. Cada um dos
atos foi impresso em uma cor diferente. Segundo Ribeiro (1950,
citado em Peixoto, 2000, p. 11):

(...) de fa to , a R o sa M y s tic a com eçava verm elho sangue, chegava


ao azul, acab ava violeta, sendo o últim o ato de escuridão e de m or­
te , negro. A s cores iam com a gradação psicológica do dram a, ver­
m elho claro na felicidade e negro fúnebre na m orte.

É Dalila Machado, autora que realizou um breve estudo sobre


esse livro, constante da edição fac-similar lançada em 2000 pelo
governo do Estado da Bahia, quem diz:

De fa to , a R osa M y s tic a , obra-prim a de A frânio P eixo to , à época


Júlio A frân io , causou escândalo nos meios literários d evid o , princi­
p alm en te, à ousadia de seu tem a: trata-se da história de um pai que
m ata a sua filh a, para que ela não se corrom pa com o am or dos
h om ens. V a le lem brar que o te m a do incesto co m eço u a ser tra b a ­
lhado por Freud, a partir de 1 9 1 0 , e que só em 1 9 1 3 ele publicou
T o te m e T a b u . P a rte 1 - 0 h o rr o r a o in c e s to . (Fl. 10)

Concluindo, gostaríamos de sinalizar que a Faculdade de Me­


dicina da Bahia, a despeito das dificuldades estruturais e econômi­
cas, atuou como um centro dinamizador da cultura baiana, oportu-
nizando o desenvolvimento de trabalhos em áreas afins e formando
pessoas que se destacaram também no cenário nacional. As obras
de alguns deles (Lino Coutinho, Ferreira França e Barão de Macahu-
bas) ainda estão por merecer análise mais aprofundada, a fim de
que possamos efetivam ente avaliar sua contribuição para o desen­
volvim ento posterior da Psicologia no Brasil.
106 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

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Nádla Maria Dourado Rocha


Profaaaora e pesquisadora na Faculdade Rui Barbosa, Salvador, Bahia.
Rvaponaével por projetos sobre a psicologia no Brasil, século XIX - tendo
oomo fontes principals as teses de doutorado da Faculdade de Medicina
de Bshls s s Saçlo da Obraa raraa da Biblioteca Pública de Salvador.
Membro do Grupo de Trsbslho am Hlstórls de Psioologls da ANPEPP,
VI
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX:
DESENVO LV IM E N TO CIENTÍFICO E PROFISSIONAL
M itsuko Aparecida Ma kino Antunes

Este texto não tem a pretensão de esgotar o assunto enun­


ciado em seu título, nem é estritamente uma formalização de dados
de pesquisa (embora estes sejam sua base). Foi ele elaborado com
base em pesquisas em História da Psicologia no Brasil, particular­
mente referentes ao período que vai da virada do século a 1962 e
de algumas reflexões sobre o período posterior a esta data. Sua
finalidade é expor um panorama do século XX, enfocando realiza­
ções que marcaram o processo que culminou com a regulamenta­
ção da profissão de psicólogo e em seu desenvolvimento como
clôncia e como profissão, posteriormente. O período é bastante
extenso, pois à medida que o tempo avançava, ampliava-se sobre­
maneira o espectro das realizações na área, abrangendo ensino,
pesquisa, práticas de intervenção, diversidade de abordagens teóri­
cas, publicação de livros e periódicos, criação de instituições, fun­
dação de entidades profissionais e promoção de eventos científi­
cos. Há que se registrar a carência de pesquisas que aprofundem a
análise histórica da Psicologia neste século, quer no que diz respei­
to à variedade de suas manifestações, quer no que se refere às
produções das diferentes regiões do país, pois a maioria das pes-
qul8as ainda enfoca Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia.
Percebe-se, na virada do século, o incremento da preocupa-
ç lo com 08 fenômenos psicológicos no interior de outras áreas de
oonheelmonto, particularmente na Medicina a na Educaçlo. Naaaa
110 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

contexto, circunscreve-se aos poucos aquilo que poderia ser deno­


minado propriamente de Psicologia, processo esse que caracteriza
seu reconhecimento como área específica de saber em nosso meio.
Esse m ovim ento precisa ser visto à luz de pelo menos dois conjun­
tos de fatores: o desenvolvimento da Psicologia na Europa, e mais
tarde nos Estados Unidos, e as múltiplas demandas impostas pelas
condições sociais brasileiras. Esse período pode ser considerado
como aquele em que se processa a conquista da autonomia da
Psicologia como área de conhecimento no Brasil.
Ao longo dos anos 20, e sobretudo a partir da década de
1930, verifica-se uma intensa produção na área, que se amplia e se
diversifica em diferentes abordagens e campos de atuação, assim
como são múltiplas as articulações que se estabelecem no interior
da própria área e desta com outras. Pode-se considerar que, nesse
momento, a Psicologia consolida-se no país, produzindo as bases
para seu reconhecimento como profissão e o estabelecimento do
currículo mínimo para seus cursos de formação. Esse período pode
ser considerado como aquele em que se dá a consolidação da Psi­
cologia como ciência e como profissão no Brasil.
Após a aprovação da Lei n. 4 .1 1 9 /6 2 , tendo sido a Psicologia
reconhecida como profissão, são criados seus primeiros cursos re-
gulares. Nesse momento, é potencializada a expansão que já vinha
anteriormente ocorrendo, sobretudo pelo aumento de cursos oca­
sionado pela Reforma Universitária de 1968. Nesse período, con­
cretizou-se a profissionalização da Psicologia.
No final dos anos 70, no contexto da luta pela democratiza­
ção do país, emergem críticas às várias form as de manifestação da
psicologia, enfocando as teorias e as abordagens mais em voga,
suas práticas e sua organização acadêmica e profissional. Nesse
período, são fartos os debates em várias instâncias da Psicologia, o
que concorre para a busca de novas perspectivas teóricas e m eto­
dológicas e sua expansão para vários campos da vida social, acar­
retando a superação da velha tríade escola-trabalho-clínica. Talvez
isso caracterize um novo momento histórico; defini-lo com precisão
é difícil, porém vislumbra-se com certa nitidez a expansão da Psico­
logia como ciência e como profissão, assim como o reconhecimen­
to de sua originalidade e excelência em várias instâncias.
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 111

A Psicologia é reconhecida com o


área específica de c o n h ecim en to

Preocupações com o fenômeno psicológico eram já recorren­


tes desde os tempos da Colônia1 Como já foi dito, não se poderia,
entretanto, afirmar que se tratava propriamente de Psicologia; só
aos poucos ela conquistaria a condição de área específica de co­
nhecimento e, pouco mais tarde, por decorrência, a de campo de
intervenção prática. Concorrem para a concretização desse proces­
so fatores de ordem interna, como o incremento das preocupações
com o fenômeno psicológico em outras áreas de saber e o reconhe­
cimento da Psicologia como ciência autônoma na Europa e nos Es­
tados Unidos, assim como fatores de ordem externa, como as trans­
formações da sociedade brasileira e seus velhos e novos proble­
mas, que demandavam, por sua vez, novos conhecimentos e possi­
bilidades de intervenção.2
A farta produção de idéias, particularmente no interior da
Medicina e da Educação, gerou condições e demandas para a busca
dos conhecimentos que vinham sendo produzidos no exterior. Nes­
sa época, já era fato a condição da Psicologia como ciência autôno­
ma; França, Alemanha e Estados Unidos, só para citar alguns paí­
ses, já se constituíam como produtores profícuos de pesquisas em
Psicologia, assim como várias perspectivas teóricas desenvolviam-
se e ampliavam-se, mesmo para alguns campos de aplicação. Nes­
se panorama, de rico desenvolvimento da área, essas idéias come­
çaram a penetrar no Brasil, principalmente trazidas por brasileiros
que iam estudar e se aperfeiçoar no exterior, ou por estrangeiros que
para cá vieram, convidados para ministrar cursos, dar conferências
ou para prestar assessoria, muitos dos quais aqui se radicaram.
Concomitantemente, no bojo das correntes positivistas e libe­
rais que participaram da implantação e permaneceram no modelo
republicano brasileiro, emerge a defesa da modernização do país.
Assiste-se, nesse momento, ao incremento do processo de urbani­

1 Para mais informações sobre as idéias psicológicas no período colonial e no


•éculo XIX, ver, naata obra, capítulos de autoria de Marina M a s s im i e Nádia R o c h a .
1 Para obtançlo d t mala Informaçfies, ver pesquisa sobre esse período em Antu-
n ii (1891 ). V a ra fltl m i ll raaumldaa podam aar encontradas am Antunis (1 999a a
1999b).
112 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

zação, à migração e ao estabelecimento dos pólos econômico e


político para o Sudeste do país, à expansão do ideário liberal e à
geração de pré-condições para o desenvolvimento do processo de
industrialização. Fazendo frente ao domínio de um modelo agrário
(sustentado principalmente na produção e na exportação do café),
a reivindicação pela adoção de medidas que pudessem elevar o país
à condição de modernidade passou a constituir o núcleo das idéias
de vários grupos de intelectuais, que arregimentavam cada vez mais
seguidores. Tais idéias caracterizaram a virada do século e se torna­
ram mais fortes à medida que os anos avançavam. Ainda que in­
corporando diferentes matizes, era certa, porém, a defesa da cons­
trução de uma nova nação pela construção de um homem novo,
para o que deveria concorrer a ação da Educação, esta também
alicerçada numa perspectiva à altura dos novos tempos. Assim, o
escolanovismo, uma das expressões das concepções humanistas
modernas em Educação, que se pretendia pedagogia científica e
buscava na ciência psicológica uma de suas mais im portantes ba­
ses de sustentação, proporcionou um terreno fértil para o desenvol­
vim ento da Psicologia. Pode-se afirmar que essa teia de demandas
e de possibilidades gerou as condições para que a ciência psicológi­
ca produzida na Europa e nos Estados Unidos aqui penetrasse, con­
cretizando seu processo de reconhecimento como área autônoma
de saber.
Apresentar-se-á, a seguir, uma breve descrição da produção
psicológica na Educação e na Medicina, com a finalidade de de­
m onstrar as realizações que contribuíram para o processo de auto-
nomização da Psicologia no Brasil.

A P sicolo gia na E ducação

Um marco importante no processo histórico ora em estudo foi


o estabelecimento da Psicologia como disciplina autônoma. Mais
precisamente, em 1890, a Reforma Benjamim Constant, de cunho
positivista, transform ou a disciplina Filosofia em Psicologia e Lógi­
ca; mais tarde, isso se desdobraria na introdução das disciplinas
Psicologia e Pedagogia nas Escolas Normais.
Vale dizer que, nos primeiros anos da República, foram reali­
zadas várias reformas educacionais, oscilando entre as tendências
positivistas e liberais; entretanto, o quadro da Educaçfio brasileira
pouco se alterou, permanecendo ainda os graves problemaa aduca-
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 113

cionais herdados da Colônia e do Império, sobretudo pela ausência


de um projeto nacional de Educação, o que só viria a ter início após
os anos 30. À parte isso, ocorreu, ao longo desses anos, uma efer­
vescência de idéias educacionais, expressão dos ideários naciona­
listas e modernizadores.
A necessidade de expandir a escolarização trouxe grandes
debates e muitas propostas, cuja tônica residia na defesa da eleva­
ção do Brasil à condição de potência mundial. M uitas dessas pro­
postas traziam em seu bojo algumas preocupações com o fenôm e­
no psicológico, porém ainda distantes daquilo que poderia ser con­
siderado propriamente como Psicologia, pois abordavam questões
relacionadas à higiene, enfocando os vícios e a decadência moral
como produtos da ignorância. Tais preocupações eram basicamen­
te de natureza disciplinadora. Em geral de cunho patriótico, essas
idéias não penetravam na questão propriamente educacional e, so­
bretudo, pedagógica, pois permaneciam no âm bito do discurso po­
lítico genérico; disso decorre em parte a ausência de elementos
próprios da ciência psicológica.3
Além disso, emerge mais sistematicamente, por volta da dé­
cada de 1920, a defesa da organização de um sistema nacional de
Educação, sobretudo com a implantação de uma reforma eminente­
mente pedagógica. Nesse contexto, surgiram os primeiros p ro fis­
sionais da Educação (vindos da Medicina, do Direito e de outras
áreas); foram criadas entidades representativas de educadores, como
a Associação Brasileira de Educação - ABE; foram empreendidas
reformas estaduais de ensino baseadas em projetos especialmente
pedagógicos, além de outras iniciativas. É im portante sublinhar que
tais empreendimentos estavam intimamente relacionados com a
introdução das novas idéias educacionais e pedagógicas represen­
tadas pela Escola Nova. Procurar-se-á demonstrar, a seguir, algu­
mas manifestações que ilustram esse processo.
O Pedagogium, idealizado originalmente por Ruy Barbosa, foi
criado em 1890 com a finalidade de se constituir como centro de
produção de saber e fom ento para novas realizações educacionais.
Em 1906, foi aí criado o primeiro laboratório de Psicologia no Brasil,
planejado por Binet em Paris, com a colaboração de Manoel Bomfim,

£ • • • awuntO foi tratado mais especificam ente em Antunm , M . A. M ., Paicolo•


i « E d u c a ç t y ^ f U lI; Idéias quo antecederam a sistematliÊÇfyj/f MCOlanovIs-
114 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

que dirigiu esse centro por cerca de quinze anos. Não há registros
sobre a produção desse laboratório, embora em suas obras de Psi­
cologia e Pedagogia seu diretor fizesse referência às pesquisas lá
realizadas. Curiosamente, nessas obras, o autor apresenta uma bem
argumentada crítica às pesquisas realizadas em laboratório; para
ele, as condições restritas e artificiais deste não permitiam a apre­
ensão da complexidade e das múltiplas determinações do fenôm e­
no psicológico, especialmente do pensamento, visto por ele como ;
função psíquica superior. Bomfim considerava o psiquismo como <
um fenôm eno de caráter histórico-social, devendo ser estudado
segundo o m étodo interpretativo, o qual deveria recorrer ao estudo j
de suas múltiplas manifestações, dando especial atenção à imensa .j
obra humana forjada ao longo da história. É im portante lembrar que
Bomfim não foi um partidário do escolanovismo, embora sua produ- ;
ção nesse âmbito fosse eminentemente voltada para a psicologia i
da educação, podendo ele ser considerado, por sua obra em geral, |
como um intelectual que não se alinhava ao que era hegemônico na
época.
Outros laboratórios foram criados em Escolas Normais, princi
palmente vinculados às denominadas Reformas Estaduais da Edu*
cação dos anos 20, realizadas por aqueles que personificaram os>
primeiros profissionais da Educação no Brasil, dentre os quais aN
guns dos pioneiros da Psicologia, como Lourenço Filho e Isaías
Alves. Essas reformas seguiam fundamentalmente os princípios d#i
Escola Nova, tendo a Psicologia como um dos principais sustentât
culos para a prática pedagógica, envolvendo estudos sobre desen*
volvim ento infantil, processos de aprendizagem, relações entre pro*
fessores e alunos, além de dar início ao emprego de técnicas oriun*]
das da Psicologia, como os testes pedagógicos e psicológicos, utHj
lizados como instrumentos de racionalização da prática educativa. 1
Dentre outras, destacam-se as Escolas Normais de São Paulo, For-1
taleza, Salvador, Recife e Belo Horizonte.
As Escolas Normais foram também base para o ensino de
Psicologia, e continuaram sendo após os anos 30, pois foram elas
os alicerces para as futuras seções de Pedagogia das Faculdades de j
Filosofia, Ciências e Letras - FFCL, nas quais a Psicologia se esta»
beleceu como matéria de ensino superior, concom itantem ente ao
que ocorria nas seções de Filosofia. Como já foi dito, nessas esco*
Ias foi introduzida a disciplina Psicologia e Pedagogia, um dos malt
Importantes meios pelos quais s clèncla pslcológloi • • difundiu • t i
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 115

desenvolveu, incluindo as diferentes abordagens teóricas e técni­


cas da época, por meio da tradução de obras estrangeiras ou da
vinda de psicólogos como Piéron, Walther, Simon, Claparède e ou­
tros, fatores estes que permitiram o acesso mais amplo àquilo que
vinha sendo produzido em âmbito internacional. As cátedras de
Psicologia e Pedagogia nas Escolas Normais também fomentaram a
produção de pesquisas e de obras escritas por seus catedráticos,
para uso dos alunos e suporte para suas aulas. Eis algumas obras
que tratam da ciência psicológica, produzidas por professores das
Escolas Normais: Compêndio de Paidologia (1911) e Educação da
infancia anorm al de intelligencia no Brasil (1913), de Clemente
Quaglio; Lições de Pedagogia (1914), Noções de Psychologia (1916)
e Pensar e dizer: estudo do symbolo no pensamento e na linguagem
(1923), de Manoel Bomfim; Psychologia (1926), de Sampaio Dória;
Teste individual de intelligencia (1927) e Os testes e a reorganiza­
ção escolar (1930), de Isaías Alves, entre outras.
Como diretor da Escola Normal Oficial de Pernambuco, Ulys­
ses Pernambucano criou, em 1925, o Instituto de Psicologia de
Pernambuco, o qual foi transferido para o Setor de Educação em
1929, passando a ser denominado Instituto de Seleção e Orienta­
ção Profissional - Isop, mais tarde anexado ao serviço de Higiene
Mental do Hospital de Alienados do Recife, quando Pernambucano
tornou-se seu diretor. É bem verdade que tais fatos demonstram
que essa instituição esteve mais ligada a seu criador do que propria­
mente à Escola Normal; entretanto, nas suas diferentes etapas, foi
constante a presença de professoras normalistas, assim como a
preocupação com a pesquisa em Psicologia e com o desenvolvi­
mento de suas técnicas. Muitas realizações aí ocorreram, como
estudos sobre testes de nível mental, aptidão e outros, incluindo a
padronização para a realidade brasileira; pesquisas sobre o vocabu­
lário das crianças das escolas primárias; elaboração de testes peda­
gógicos; estudos sobre técnicas projetivas, assim como muitas ati­
vidades que tinham como finalidade a formação de pesquisadores
em Psicologia, destacando-se Anita Paes Barreto, Nelson Pires e
Sílvio Rabelo. Pernambucano também realizou atividades em Psico­
logia mais relacionadas à sua atuação médico-psiquiátrica, as quais
serão citadas mais adiante.
Relacionada à Escola Normal e criada no bojo da Reforma Edu­
cacional de Minas Gerais em 1929, a Escola de Aperfeiçoam ento
de Professores de Belo Horizonte constituiu-se numa dae mais
116 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

profícuas instituições produtoras de conhecim ento, ensino e expe­


riências educacionais baseadas na Psicologia, tornando-se parâme- í
tro para os rumos que tomaram a Psicologia e a Educação no país.
Mais tarde, essa instituição fundiu-se com a Escola Normal, dando j
origem ao Instituto de Educação, que também anexou seu laborató-1
rio de Psicologia. Sob a direção de Helena A n tip o ff4 e por força de
sua liderança, aí muitas normalistas entraram em contato com a
Psicologia e foram introduzidas nos campos da pesquisa e da prátit
ca educacional nela baseada. É im portante ressaltar que A n tipoff,
além de ter se responsabilizado pela form ação de educadores ej
futuros psicólogos, também fundou a Sociede
sil; idealizou e concretizou a experiência educí
Rosário, ocupando-se da educação de superdi
rural; escreveu muitos artigos para importanti
ros em Psicologia e Educação, tendo reconh
significativa contribuição para a educação bra:
lidação da Psicologia no Brasil.
A Escola Normal de Salvador foi também
ro para a introdução e o desenvolvimento da F
continuou sendo-o também após os anos 30,1
seu mais im portante protagonista; foi ele um <
são, aplicação, revisão e adaptação de testes
sil, assim como um dos mais veementes defe
ção na organização escolar. Foi, por isso, fii
área, não apenas na Bahia, mas nacionalment
profícuo pesquisador do desenvolvimento psii
A Escola Normal de Fortaleza foi um dc
do Ensino do Ceará, empreendida por Lourei
escola a finalidade de form ar os educadores qi
zar os novos rumos da Educação cearense,
empreendimento, foi criado um laboratório de
borar com a form ação dos educadores, o qu
também permitiu a continuidade das pesquisa
já vinha realizando na Escola Normal de Pin
suas pesquisas sobre maturidade para a leitur
A Escola Normal de São Paulo foi uma <
instituições responsáveis pelo desenvolvimei

4 Pari mala Informaçflaa aobra i produçlo da Helena,


várlaa da Raglna Helena d l Pratlii Campoi,
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 117

Brasil. Sua importância justifica-se por suas atividades de ensino


dessa área, pela produção de seu laboratório, pelos cursos m inistra­
dos por im portantes psicólogos estrangeiros e por ter sido a base
para a cátedra de Psicologia Educacional da seção de Pedagogia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras - FFCL da Universidade
de São Paulo - USP. A cátedra de Psicologia da Escola Normal de
São Paulo pertenceu, sucessivamente, a Sampaio Dória, Lourenço
Filho e Noemi Silveira. Seu laboratório, criado na gestão de Oscar
Thompson, em 1914, foi dirigido no início pelo italiano Ugo Pizzolli;
af foram produzidas inúmeras pesquisas, abordando grafismo, aten-
çfio, tempo de reação, memória, associação de idéias, raciocínio
Infantil, tipos intelectuais e outras. Mais tarde, esse laboratório foi
Incorporado à cátedra acima citada.
As Escolas Normais foram, pois, essenciais para o desenvolvi­
mento da Psicologia e, certamente, protagonistas de primeira gran­
deza no processo de autonomização da Psicologia no Brasil. Sua
tarefa consistiu em divulgar e difundir o conhecimento psicológico
produzido na Europa e nos Estados Unidos por meio do ensino, da
produção de obras e da vinda de importantes psicólogos estrangei­
ros. Foram importantes pela produção de pesquisas; pela formação
da profissionais que viriam a fazer parte do grupo de pioneiros da
Psicologia; pela introdução dos conhecimentos da área em inter-
Vfnções práticas e por terem sido o alicerce para a introdução da
Pllcologia como matéria do ensino superior.

A P sicolo gia n a M e d icin a

Dando seqüência às tendências do século XIX, as Faculdades


da Medicina (Bahia e Rio de Janeiro) e os hospícios foram as princi­
pais fontes médicas de produção de idéias psicológicas, muitas das
quais foram aos poucos adquirindo contornos que as qualificavam
propriamente como Psicologia, ao mesmo tempo em que vão se
distanciando e se diferenciando da Medicina, sobretudo da espe-
Olalldade psiquiátrica.
Algumas teses já apontavam, desde o século passado, para
OOnteúdos que poderíamos considerar como próprios da Psicologia.
1890, a tese de José Estelita Tapajós, Psicofisiologia da per-
99pção e das representações, já apresentava a tendência psico-
flllológlca da épooa. Tases denominadas Das emoções foram apre-
lítntadas por VtrJ||lmo Dias de Castro (1890), Manuel Pereira de
118 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Melo Morais (1891) e Adolpho Porchat Assis (1892). De Alberto :


Seabra, a tese A memória e a personalidade, de 1894, anunciava |
temas que viriam a ser largamente pesquisados mais tarde, tam - j
bém pelos primeiros laboratórios de Psicologia criados alguns anos \
depois. |
A tese de Henrique Roxo, Duração dos atos psíquicos elemen­
tares, de 1900, defende a Psicologia como propedêutica da Psi­
quiatria, o que revela a admissão de que a primeira constitui-se
numa área específica de saber. A tese de Oscar Freire de Carvalho,
orientada por Nina Rodrigues, Etiologia das formas concretas da ,
religiosidade do norte do Brasil, já apontava para um tema que seria ;
incorporado pelas preocupações da psicologia social mais tarde. De
1907, a tese de Maurício Campos de Medeiros, médico que acabou !
por se dedicar à Psicologia, Métodos em Psicologia, é dem onstrati­
va do reconhecimento da autonomia dessa área, assim como da
preocupação com o rigor científico na produção de seus conheci*;
mentos. Em 1911, Plínio Olinto, outro médico que mais tarde viria!
a se dedicar à Psicologia, defendeu a tese Associação de idéias,
indubitavelm ente um tema psicológico. Essas teses demonstram?
com bastante clareza a produção psicológica da época, assim como»
a condição da Psicologia como área de saber, ainda que fosse ela
vista, por vários de seus autores, como subsidiária da Medicina,
interpretação esta que em verdade perdurou ainda por muito tempo.'
Alguns hospícios também se dedicaram à produção de conhe­
cimentos em Psicologia, principalmente com a instalação de labora­
tórios.5 No Hospital Nacional de Alienados, foi criado, em 1907,;
um laboratório de Psicologia, sob a influência de Georges Dumas,;
dirigido por Maurício Campos de Medeiros. Um laboratório de parti­
cular relevância foi o da Colônia de Psicopatas do Engenho de Den*
tro, criado em 1923. Em 1932, este foi subordinado ao M inistério
da Educação e Saúde Pública como Instituto de Psicologia e, em
1937, incorporado à Universidade do Brasil. Esse laboratório foi )
dirigido pelo psicólogo polonês W aclaw Radecki, tendo produzido
um significativo rol de pesquisas abrangendo várias temáticas da
Psicologia, como estudos sobre seleção e orientação profissional, j
fadiga em trabalhadores menores de idade, seleção de aviadores, ;
psicometria, etc.; além disso, dedicou-se à formação d e pesquisadorei

1 Para mala Informaçflaa aobra oa laboratórios daaaaa h M M f t i var publloaçfiaa


virlaa da Antonio Qomas Pinna aobra a Paloologla no Hw g W l l f e .
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 119

e de profissionais na área, incluindo a preocupação com a modali­


dade clínica e a aplicação às questões relativas ao trabalho. A Liga
Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923, também criou um
laboratório de Psicologia, considerando ser esta uma ciência afim à
Psiquiatria; dirigido sucessivamente por Alfred Fessard, Plínio Olin-
to e Brasília Leme Lopes, foram aí realizados os Seminários Brasilei­
ros de Psicologia e, anualmente, as Jornadas Brasileiras de Psicolo­
gia, com a finalidade de divulgar as pesquisas produzidas.
Na esteira do movimento higienista, o Instituto de Higiene de
Sâo Paulo form ou um grupo de estudiosos dessa área, sob a lide­
rança de Geraldo Paula Souza, composto por médicos, educadores
e engenheiros. Produtos desses encontros foi a criação do Serviço
de Inspeção Médico-Escolar, no qual foi criada uma escola para
"deficientes m entais", e, em 1938, da Clínica de Orientação Infan­
til, dirigida por Durval Marcondes. Além disso, esse grupo foi tam ­
bém precursor do Instituto de Desenvolvimento e Organização Ra­
cional do Trabalho - Idort, que esteve muito ligado à produção de
Psicologia aplicada ao trabalho nos anos seguintes.
Os pressupostos higienistas exerciam, nessa época, uma subs­
tancial influência sobre a Medicina, particularmente sobre a Psi­
quiatria, haja vista a denominação de algumas instituições acima
{ Citadas. Os ideais higienistas geralmente se articulavam aos princí-
í pios da eugenia, intimamente ligados ao pensamento racista brasi-
í lelro. Baseavam-se numa concepção que afirmava a existência de
Uma hierarquia racial (sendo a raça ariana considerada superior e a
; riç a negra, a mais inferior de todas), do que decorria a teoria da
\ dtgenerescência, que considerava a propensão à degenerescência
I física e mental das ditas "raças inferiores". Por essa via, a reivindi-
| oação de adoção de medidas "higiênicas", cuja finalidade não era
EOutra senão o "embranquecimento da raça brasileira", constituía-se
\ numa das bandeiras de lutas dessas entidades. É im portante dizer
í que tais idéias já se definiam como conteúdos próprios da Psiquia­
tria, distanciando-se, pelo menos diretamente, daquilo que se pro­
duzia como conhecimento psicológico, embora este trouxera, pelo
USO de testes, uma certa contribuição para corroborar "cientifica-
l "“ ente" tais concepções.

É Num sentido bastante diferente, evoluiu o M ovim ento Psiquiá-


loo de Recife, sob a liderança do já citado Ulysses Pernambucano,
ovlmento este que antecipou as idéias da antipsiquiatria, que só
ria a ae m a n ifM ^ 0éoadaa depois. Na condição de diretor do
120 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Hospital de Doenças Nervosas e Mentais do Recife e participando


da Assistência a Psicopatas de Pernambuco, ele aboliu as camisas-
de-força e os calabouços, implantou ambulatórios e hospital aber­
to, dentre inúmeras outras realizações, incluindo o já citado Institu­
to de Seleção e Orientação Profissional - Isop. Pernambucano fun­
dou também a Liga de Higiene Mental de Recife, porém numa dire­
ção bastante diferente das demais; aí criou ele a primeira "Escola
para Anorm aes" no Brasil, mais tarde assumida pela Associação de j
Pais e Am igos dos Excepcionais - Apae. Nessas atividades por ele
realizadas, fizeram-se presentes médicos e professoras normalis- ;
tas, incumbidos de desenvolver e realizar tarefas relacionadas à
Psicologia, na condição de m onitores de saúde m ental ou auxiliares
psicólogos. É possível dizer que, para Ulysses Pernambucano, não
havia uma linha de separação nítida entre Psicologia e Psiquiatria,
devendo o trabalho em saúde mental contar com a colaboração de
diferentes profissionais, o que também só muitas décadas depoisj
viria a ser defendido. Essa sua visão deve-se muito provavelmente*
à sua concepção de doença mental como situação existencial, pro«
duto da dinâmica psicológica do indivíduo, considerado como sujei­
to ativo em interação com fatores de ordem social. ?
Em síntese, podemos dizer que a Medicina, tal como no sécu*
Io XIX, continuou sendo um importante solo para o desenvolvimen-í
to da Psicologia, com a criação de laboratórios, cursos, encontros
etc., que tinham , em última instância, a finalidade de subsidiar (
prática médica. Entretanto, foi-se gradativamente demonstrando sua
delimitação enquanto área de conhecimento, em especial por suai
realizações no campo da Educação. Ao mesmo tempo, a Psiquiatrii
assumia um perfil mais nítido e distante daquilo que se produzia ert
nome da Psicologia. Muitos médicos permaneceram mesmo no es;
copo da Psicologia e se distanciaram da Psiquiatria; aliás, m uitol
profissionais que se dedicaram à Psicologia na Educação vinham
também da Medicina. Dessa forma, é possível dizer que a Psicoloü
gia, nessa época, ganhou espaço no interior da Medicina, embor<
dela começasse a se separar, adquirindo contornos de ciência autô*
noma. J
Processo diverso ocorreu com a Educação. Deve-se lembrai
que esta não é uma ciência, mas uma prática social que, sistematí
zada pela Pedagogia, busca sustentação nos conhecimentos cientl
ficos. Essa característica talvez seja importante para se compreenu
der como a Psicologia encontrou na Educaçto um rico substrat!
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 121

para o seu desenvolvimento, assim como é possível afirmar que


esta também encontrou na Psicologia um vasto cabedal de conhe­
cimentos subsidiários às suas práticas. Além disso, é possível dizer
que ambas, Psicologia e Educação, pelas vertentes que adotaram,
foram elementos fundamentais para contribuir com um projeto so­
cial mais amplo, a modernização do país, consubstanciado na im ­
plementação da industrialização. O movimento da Psicologia a par­
tir dos anos 30 demonstra com clareza o vínculo com esse projeto,
que, por sua vez, é representado pelas diretrizes assumidas pelos
grupos que tomaram o poder na denominada "Revolução de 30".
Assim, as idéias de modernização da administração pela racionali­
zação e a organização científica, elementos já presentes na aplica­
ção da Psicologia à Educação na década anterior, expandiram-se
para as aplicações ao trabalho, tendo como protagonistas alguns
dos pioneiros da Psicologia que emergiram no período precedente,
dentre os quais alguns que se tornaram eminentes quadros políti­
cos do governo, como Lourenço Filho, por exemplo. Nessa pers­
pectiva cientificista, vigorava a idéia de neutralidade representada
pela ciência, obscurecendo, de certa form a, as contradições de clas-
•e, herdadas do período anterior, mas naquele m omento portando
Uma nova roupagem.
Esse quadro, no entanto, apresenta contradições, representa­
das por posições que não se articulavam com o que era corrente ou
hegemônico na época. Nessa condição, encontram-se, por exem­
plo, Manoel Bomfim e Ulysses Pernambucano, defensores de idéias
que só mais tarde viriam a ser efetivamente reconhecidas e que não
incontraram respaldo em seus contemporâneos; não por acaso fo-
fsm ambos vítimas do ostracismo e, de certa maneira, de um "es­
quecimento" deliberado.

A Psicologia consolida-se como


área de conhecimento e campo de aplicação

Esse período caracteriza-se pela multiplicação de manifesta­


i s » da Psicologia relacionadas à sua condição de área de conheci-
bltnto e de campo de ação, envolvendo: a ampliação de seu ensino
■•ra os cursos suptrlores; a concretização da atuação em diversos
lim p o s de (particularmente em Educação, trabalho e
pfnlca); a liilm m iM E ip rtlfim iin i abordagens teóricas; a crlaçlo
122 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

de instituições de pesquisa e aplicação; o incremento da publicação


de livros e o aparecimento de periódicos na área; a criação de enti­
dades representativas da área e de seus profissionais; a organiza­
ção de im portantes eventos científicos e, por decorrência, o m ovi­
mento que culminou com a regulamentação da profissão de psicó­
logo. Os dados aqui apresentados são ainda precários, pois, pela
extensão da produção do período, há ainda carência de estudos que
possam fornecer um quadro analítico mais aprofundado de suas
inúmeras realizações, assim como de suas produções nas diversas
regiões do país.
Para expor o percurso da Psicologia nesse período, foram u ti­
lizados os dados de uma pesquisa,6 cujo objetivo foi elaborar um
quadro de referências com base no esquadrinhamento de publica­
ções que abordam a História da Psicologia no Brasil.7 Serão trata­
dos, da referida pesquisa, especificamente os dados referentes ao
período compreendido entre 1930 e 1962, que foram organizados
nos seguintes agrupamentos; ensino; aplicação; estudos e pesqui­
sas; publicações e outros (eventos e associações científicas e pro­
fissionais). Estas foram também subdivididas pelos campos de apli­
cação encontrados freqüentemente no período: educação, traba­
lho, clínica, ou de âmbito geral. Além disso, fez-se um levantamen­
to da distribuição geográfica das produções, e, quando diretamente
relacionadas a instituições, foram elas organizadas por sua nature­
za privada ou pública.

6 Os dados aqui apresentados baseiam-se na pesquisa Quadro de Referências


sobre a Psicologia no Brasií, realizada por um grupo de doutorandos e mestrandos
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação, da
PUC/SP, sob a coordenação da autora deste artigo. Foram colaboradores dessa
pesquisa: Alessandra Argolo Maruto, Ana Cristina G. Teixeira Arzabe, Carmem
Rotondano Taverna, Eveline Bouteiller Kavakama, Jane Persinotti Trujillo, Lilia
Midori S. P. Santos, Maria de Fátima F. de O. Peruchi, Regina C. Norkus, Rita de
Cássia Maskell Rapold, Sandra Regina de Souza Pesce, Sílvia Mendes Pessoa e
Sonia Regina Bueno. A parte referente ao período 1 9 3 0 -1 9 6 2 encontra-se publica­
da em: Psicologia Revista - Revista da Faculdade de Psicologia da PUC/SP [ 1999,
pp. 9 7 -1 3 2 ).
7 Foram consideradas como obras-referência, nessa pesquisa, entre outras mais
específicas, as seguintes publicações: A Psicologia Experim ental no Brasil, de PH-
nio Olinto; A Psicologia no Brasil; de Annita Cabral; A Psicologia no Brasil e
A Psicologia no B rasil nos ú ltim o s 2 5 anos, ambas de Lourenço Filho; A Psicologia
no Brasil, d« S im u tl Pfromm Netto; Alotas para uma História dê Psicologia no Brasil
• Dados para um» História dê Psicologia no Brasil, anfíbia d * l u í o P«Mottl, •
- . .— **'- j*-daAntenloGomai PMMèi
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 123

Os dados obtidos apontam para o aumento da quantidade de


referências encontradas nesse período, significativamente maior que
nos períodos precedentes. Além disso, explicita-se claramente a
diversificação de realizações, mostrando elementos que caracteri­
zam o processo de consolidação da área e sua gradativa profissio­
nalização. É im portante salientar que esses dados não refletem ri­
gorosamente os fatos ocorridos, uma vez que são tão-somente re­
ferências encontradas nas obras estudadas, as quais correm o risco
de terem sido privilegiadas pelo olhar específico do autor, assim
como muitas obras se referem especificamente a determinados au­
tores, instituições ou regiões. Entretanto, acreditamos que, apesar
disso, os dados levantados podem certamente revelar tendências e
contribuir para uma visão do período, sendo necessário que se tome
cuidado na interpretação destes. Foram encontradas referências8 a:
publicações (122); ensino de Psicologia (116); práticas psicológi­
cas (69); estudos e pesquisas (57), e outras realizações (41), como
congressos e criação de entidades representativas da área, entre
outras. Seguem-se abaixo algumas descrições sobre essas produções.

Publicações

Os dados demonstram que houve uma quantidade substan­


cial de publicações, ainda que nessa categoria estejam incluídas
Indistintamente referências a livros, relatórios de pesquisas ou arti­
gos em periódicos; no entanto, essa diversidade demonstra que
houve preocupação com a sistematização e a difusão do conheci­
mento, em especial pelos periódicos especializados então criados.
Em 1944, foi criado o periódico Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos - RBEP, por iniciativa do INEP - Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos. Embora fosse esta uma publicação do cam­
po da Educação, constituiu-se ela num importante veículo de divul­
gação da psicologia educacional, tendo Arrigo Leonardo Angelini,
Helena A n tip o ff e Betti Katzenstein como autores bastante profí­
cuos. Em seguida, outros periódicos, específicos de Psicologia, sur­
giram no cenário brasileiro, dentre eles, os A rquivos Brasileiros de
Psicotécnica, publicado pelo Instituto de Seleção e Orientação Pro­
fissional - Isop, da Fundação Getúlio Vargas - FGV. Esse periódico,

1 A i categorias frito l i e flMuamente exclusivas; assim, há referências que foram


InoorporadM « •«•Borla.
124 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

criado em 1949 e publicado até hoje (passou a se chamar Arquivos


Brasileiros de Psicologia Aplicada e, atualmente, Arquivos Brasilei­
ros de Psicologia), foi um im portante veículo de difusão das pesqui­
sas e aplicações realizadas pelo por esse Instituto, principalmente
realizadas sob a liderança de Emilio Mira y Lopez. Em 1949, a So­
ciedade de Psicologia de São Paulo criou o Boletim de Psicologia.
A Revista de Psicologia NormaI e Patológica, do Instituto de Psico­
logia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Ippuc/SP,
inicialmente publicada como Boletim, foi particularmente relevante,
não apenas pela diversidade de artigos sobre as diferentes áreas da
Psicologia, mas também como im portante órgão inform ativo, que
apresentava resenhas de obras e relatos sobre congressos nacio­
nais e estrangeiros, com farta contribuição de Aniela Ginsberg e
Enzo Azzi. Além de outros periódicos, também foram publicados
números especiais de Psicologia em periódicos mais gerais, como o
Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Os dados demonstram que havia um número razoável de obras
de caráter geral, dentre as quais Psicologia moderna, de 1953, or­
ganizada por O tto Klineberg e contando com a participação de vá­
rios profissionais, com o: Annita Cabral, Aníbal Silveira, Paulo
Sawaia, Cícero Christiano de Souza, Durval Marcondes, Aniela
Ginsberg, Betti Katzenstein, Oswaldo de Barros Santos e outros.:
Aparecem obras em psicologia social, como Psicologia social ( 1935),.
de autoria de Raul Briquet, e Introdução à psicologia social (1952)4
de A rthur Ramos. Muitas são as publicações relacionadas à psico-j
metria, relativas à adaptação e à padronização de testes, tais comc
as de autoria de Anita Paes Barreto, ou O método de Rorschach
(1953), de Cícero Christiano de Souza. Vale registrar que um signl*
ficativo número de publicações em periódicos referia-se a essa tej
mática. Autores católicos, como Alceu de Amoroso Lima, Teobaldí
Miranda Santos, Leonel Franca, frei Damião Berge, padre Paulo Siweck,
também produziram obras psicológicas, ora relacionadas a aspec-
tos religiosos, ora de Psicologia geral ou educacional. A EducaçãC
ocupa papel privilegiado nas publicações do período, com participai
ção de autores como Helena A n tipoff, Lourenço Filho, Isaías Alvea
e outros. Essa expressividade aumenta se nesse grupo forem inclufí
das as publicações sobre psicologia infantil, por autores come
Sílvio Rabelo e Maurício Campos de Medeiros. Deve-se acrescentai
que artigos sobre a Psicologia no Brasil já começavam a ser publicai
dos ne8se período, como Um decênio de atlvktitíêi no Instituto dê
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 125

Psicologia [de Pernambuco], de Anita Paes Barreto e Alda Campos


(1935); La pensée de Ribot dans la psychologie sud-americaine
(1939), de Lourenço Filho; A psicologia experim ental no Brasil
(1944), de Plínio Olinto e A Psicologia no Brasil, de Annita Cabral,
de 1950, o primeiro te xto mais longo e elaborado sobre o tema.

Ensino

Às publicações seguem as referências ao ensino de Psicolo­


gia. As Escolas Normais continuaram a ser im portantes fontes de
ensino dessa disciplina e, além disso, terreno sobre o qual foram
criados os cursos superiores de Educação, geralmente constituídos
como seções de Pedagogia das Faculdades de Filosofia, Ciências e
Letras - FFCL, que, por sua vez, deram as bases para os primeiros
cursos de Psicologia. Foram encontradas várias referências à Esco­
la Normal de São Paulo, origem da cátedra de Psicologia Educacio­
nal da FFCL da Universidade de São Paulo. A ela se acrescenta o
Instituto Pedagógico, subordinado à Diretoria do Ensino de São Paulo,
criado em 1931, sob a direção de Lourenço Filho, com a colabora­
ção de Noemi Silveira, no qual a Psicologia Educacional fo i ofereci­
da como matéria de ensino superior; o Instituto de Educação do
Distrito Federal, com efetiva participação também de Lourenço
Filho, seu catedrático; a Escola Normal da Bahia, com Isaías Alves
• Simone Bensabath, cujo curso de aperfeiçoamento de professo­
res foi base para a seção de Pedagogia e, mais tarde, para o curso
de Psicologia da Universidade Federal da Bahia - UFBA.
A partir dos anos 30, inicia-se o ensino form al de Psicologia
•m cursos superiores, com destaque para as seções de Pedagogia e
Filosofia das FFCL. Em São Paulo, com a criação da USP, em 1934,
Lourenço Filho foi nomeado professor de Psicologia; essa institui­
ção criou, pouco mais tarde, na seção de Pedagogia, a cátedra de
Psicologia Educacional, incorporando o Laboratório de Psicologia
de Escola Normal de São Paulo e nomeando Noemi Silveira sua
primeira catedrática, que, em 1954, seria sucedida por Arrigo
Angelini.
jj, A cátedra de Psicologia na seção de Filosofia da FFCL da USP
Ébrlgou Jean Maugué e depois O tto Klineberg, que teve como seus
■lllstentes; A m lÚ I Cabral, Cícero Christiano de Souza, João Cruz
Bosta e Anfla^ J É i i fr i. I m 1947, com a salda de Klineberg, Annita
jGabral t o r n è t f | | J g j p < l r*tloa. Em 1958, Annita Cabral, Cícero
126 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Christiano de Souza, Aníbal Silveira e Durval Marcondes dariam


início ao curso de especialização em Psicologia Clínica. Foi em 1962
que a Congregação da FFCL da USP estabeleceu o currículo pleno
do curso de Psicologia.
Em 1940, a FFCL Sedes Sapientiae começa a gestar um proje­
to para form ação de psicólogos. Sob a liderança de madre Cristina
Sodré Dória, catedrática de Psicologia Educacional, foi aí instalada,
em 1953, uma clínica psicológica e criado um curso de especializa­
ção em Psicologia Clínica, com duração de três anos, para gradua­
dos em Filosofia ou Pedagogia. Destaque deve ser dado à figura de
sua idealizadora, que foi não apenas uma das pioneiras da Psicolo­
gia no Brasil e formadora de gerações de psicólogos paulistas, mas
também uma com bativa defensora da democracia e dos Direitos
Humanos, atividades estas jamais separadas de sua prática psicoló­
gica e educativa.
Em 1946, foi criada a Universidade Católica de São Paulo, um
ano depois elevada à condição de Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo - PUC/SP, na qual Ana Maria M. de Morais foi nomea­
da catedrática de Psicologia Educacional e da Criança. Nesse mes­
mo ano, Maria José Peters assumiu a cátedra de Psicologia Educa­
cional e Orientação Profissional na PUC/SP-Campinas. Em 1950,
foi criado o Instituto de Psicologia da PUC/SP - Ippuc/SP, dirigido
por Enzo Azzi e contando com a colaboração de Ana Maria Poppovic,
diretora da clínica psicológica aí instalada em 1959. Nesse mesmo
ano, a Faculdade de Filosofia São Bento, com Enzo Azzi, Aniela
Ginsberg, Ana Maria Poppovic e Aydil Ramos, organizou cursos de
especialização em psicologia clínica, educacional e do trabalho; em
1962, essa instituição também elaborou e organizou seu curso de
graduação em Psicologia. A Faculdade de Psicologia da PUC/SP foi
formada com a junção dos cursos da Faculdade de Filosofia São
Bento e do Instituto Sedes Sapientiae.
Relacionado ao ensino católico, a Companhia de Jesus, em
1941, prescreveu o ensino de Psicologia Experimental. Na Faculda­
de Pontifícia de Filosofia do Colégio Máximo Anchieta, da referida
ordem, o padre Henrique Lima Vaz assumiu o ensino de Psicologia.
No Rio de Janeiro, então Distrito Federal, o Instituto de Psico­
logia foi um dos pioneiros no ensino dessa disciplina, contando com
figuras que posteriormente assumiram essa tarefa nas universida­
des. A Universidade do Brasil instalou a disciplina Psicologia nos
três primeiros anot do curso de Filosofia, tendo NlItCjn Campos como
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 127

seu catedrático de Psicologia e de Psicologia Educacional, cátedra


esta assumida, em 1939, por Lourenço Filho. Nilton Campos tam ­
bém lecionou na Faculdade Nacional de Filosofia, a qual contou
ainda com os estrangeiros Etienne Souriau e André Ombredane.
A Universidade do Distrito Federal teve a colaboração de Etienne
Souriau, sendo Plínio Olinto o professor de Psicologia.
Em Minas Gerais, Helena A n tip o ff teve participação funda­
mental na implantação de cátedras de Psicologia em cursos supe­
riores, criando a cadeira de Psicologia Educacional na Universidade
de Minas Gerais e na Escola de Filosofia de Minas Gerais, em 1948,
assumida por Pedro Parafita Bessa. Em 1958, a Universidade Cató­
lica de Minas Gerais instituiu o curso de Psicologia.
Na Universidade do Rio Grande do Sul, em 1950, Décio de
Souza criou a cadeira de Psicologia no curso de Medicina, tendo
sido um dos pioneiros na área nesse estado. Em 1954, a PUC de
Porto Alegre deu início ao curso de Psicologia.
Também aparecem referências ao ensino de Psicologia em
outros cursos superiores: Escola Livre de Sociologia e Política de
São Paulo (com a presença de Durval Marcondes, Raul Briquet,
Aniela Ginsberg, Betti Katzenstein e Lourdes Viegas); Faculdades
de Medicina (Rio de Janeiro, com Nilton Campos; Ribeirão Preto,
que criou um departamento de Psicologia Médica; Rio Grande do
Sul, com Décio de Souza; além de outras); cursos de Enfermagem;
Escola Nacional de Educação Física e Desportos (com Nilton
Campos); Escola de Economia e Direito (com Plínio Olinto e André
Ombredane); cursos de Serviço Social, etc.
Órgãos governamentais também patrocinaram cursos espe­
ciais de Psicologia, como o Departamento de Adm inistração do Ser­
viço Público - Dasp (com Lourenço Filho e Mira y Lopez); o M inisté­
rio da Guerra (curso de classificação de pessoal, com programa de
Psicologia Aplicada) e a Aeronáutica (que criou uma cadeira de Psi­
cologia).
É indubitável o processo de expansão do ensino de Psicologia
no Brasil nesse período, o que demonstra o prenúncio e a criação
das bases para os futuros cursos dessa área, expressão da forma-
çlo profissional do psicólogo em bases institucionais legais.
128 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

A p lic a ç ã o

A aplicação da Psicologia aparece em seguida, demonstrando


que sua profissionalização vinha sendo gestada com a ampliação
cada vez maior de seu campo de atuação, abrangendo a Educação
(dando continuidade à tendência do período anterior), a aplicação à
organização do trabalho (incluindo diversas instituições que deman­
davam os serviços prestados pela Psicologia) e a clínica (que esbo­
çava sua autonomização em relação à Medicina e que foi aos pou­
cos conquistando um espaço que se ampliaria significativam ente
no futuro próximo). Deve-se destacar que muitas das aplicações à
organização do trabalho e à clínica tiveram suas origens em conhe­
cimentos, práticas e demandas relacionados à Educação.
A distribuição das referências por campo de atuação demons­
tra que, com exceção das produções psicológicas de caráter geral,
a Educação é o campo que apresenta a maior quantidade de produ­
ção, m antendo de certa maneira a tendência já verificada no perío-,
do anterior, embora seja evidente a ampliação dos campos de
atuação do psicólogo em geral. Isso é reforçado pelo fato de que
muitas produções consideradas pertinentes ao campo do trabalho
guardam estreita relação com a Educação, sobretudo aquelas rela­
cionadas à orientação profissional, geralmente tratadas no âmbitoi
da orientação educacional, tendo esta última sua base teórica na
Psicologia, assim como são desta as técnicas de que se valem, errt
especial a psicometria.
M uitos foram os trabalhos realizados em Educação, dentre os
quais: as atividades realizadas no Serviço de Psicologia Aplicada do)
Instituto Pedagógico da Diretoria de Ensino de São Paulo, sob af;
responsabilidade de Noemi Silveira; a fundação da Sociedade Pes-
talozzi de Minas Gerais, em 1932, por Helena A n tipoff, inauguran­
do o atendim ento educacional aos portadores de deficiências em
escala mais ampla; a criação de uma "Escola para Anorm ais" no
Sanatório de Recife, em 1936, por Ulysses Pernambucano; a fun­
dação do Inep, no qual foram implantadas seções de seleção e
orientação profissional e psicologia aplicada; a instalação da Clínica
de Orientação Infantil/Seção de Higiene Mental da Diretoria de Saú­
de Escolar da Secretaria de Educação de São Paulo, por Durval
Marcondes, e a Clínica de Orientação Infantil do Rio de Janeiro, sob
a responsabilidade de Arthur Ramos, ambas em 1938. Houve, em
1940, a fUfldaçlo da Fazenda do Rosário, por Helena Antipoff, com
r
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 129

a finalidade de educar crianças da zona rural, além de crianças "ex­


cepcionais" e "abandonadas", com base num método centrado na
atividade espontânea da criança; em 1944, foi institucionalizado o
Departamento Nacional da Criança e fundada a Sociedade Pesta-
lozzi do Brasil, e ambas as instituições contaram com a participação
ativa de A n tip o ff; em 1 947 foi criado o Instituto de Seleção e
Orientação Profissional - Isop/FGV, que se dedicava também à
orientação educacional e profissional. Poppovic desenvolveu traba­
lhos com "crianças abandonadas" no Abrigo Social de Menores da
Secretaria de Bem-Estar Social do Município de São Paulo, cabendo
aos psicólogos também colaborar no planejamento educacional; foi
ela também a responsável, em 1953, pela criação e a organização
da Sociedade Pestalozzi de São Paulo; no Ippuc/SP, sob a direção
de Poppovic, realizaram-se serviços de medidas escolares, pedago­
gia terapêutica e orientação psicopedagógica.
Muitas das atividades acima relatadas têm interfaces explíci­
tas com atuações no âmbito do trabalho e da clínica. Além disso,
muitas instituições estritamente educacionais desenvolviam traba­
lhos relacionados à Psicologia. É possível dizer que, ao largo do que
vinha ocorrendo especificamente no interior da Psicologia, a Educa-
ç lo continuou sendo um terreno sobre o qual os conhecimentos e a
prática psicológica se desenvolveram significativam ente, sobretu­
do como sustentação teórica da Didática e da Metodologia de Ensi­
no, bases para a form ação de professores. Esta tendência explici-
tou-se mais claramente em experiências como as da Escola Experi­
mental da Lapa e as dos Ginásios Vocacionais em São Paulo; além
disso, o ensino nas Escolas Normais e nos cursos de Pedagogia
(durante e depois desse período) dava à Psicologia um significativo
tspaço em seus currículos.
Outro elemento que se mostra com clareza é o número signi­
ficativo de referências à aplicação da Psicologia na organização do
trabalho. Esse fa to pode ser interpretado como relacionado ao de­
senvolvimento do processo de industrialização do país, sobretudo
num período em geral dominado pela ideologia do "nacional-desen-
volvim entism o", caracterizado pela intervenção do Estado na eco­
nomia, com a meta de substituir importações. Esse fato, de certa
maneira, é confirmado pelos dados, pois muitas referências à apli-
Oaçfio da Psloologla ao trabalho ocorreram em instâncias do poder
público íprlnnlfitfoantl paio governo federal) ou sob sua influência.
Vala reltarar iJfj§§fftaatabelsolda entra Educaçflo a trabalho, pois
130 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

muitas realizações, como já apontado aqui, estiveram diretamente


ligadas à orientação profissional, inseridas nas preocupações de
cunho educacional, assim como muitos de seus autores tinham sua
origem, form ação e dedicação voltadas a essa área. Acrescenta-se I
a isso o fa to de que muitas referências dizem respeito também à ]
seleção profissional, atividade esta que se revestia de grande J
im portância numa estrutura social que se preocupava especial-1
mente com a racionalização do trabalho, uma das bases da "moder-1
nidade", cultuada pelas elites intelectuais, políticas e econôm icas!
brasileiras. I
Uma das figuras mais relevantes na aplicação da Psicologia à s l
questões do trabalho foi Roberto Mange, figura não apenas pionei^l
ra, mas também um de seus maiores divulgadores e formadores d en
novos quadros na área. Foi ele pioneiro no uso de testes para fin s *
de seleção de pessoal, com o trabalho realizado no Liceu de Artes â l
Ofícios de São Paulo, na década de 1920, utilizando-se dos testes*
de Giese. Realizou estudos e estendeu para vários setores a aplicaM
ção da Psicologia, incluindo a implantação da área no Idort (com m
colaboração de Aniela Ginsberg e Betti Katzenstein); criou o CentrÆ
Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional - CFESP, um dos cenÈ
tros de difusão da psicologia industrial; criou a Comissão de Psicojl
técnica da Associação Brasileira de Engenharia Ferroviária, assinjl
como o Boletim de Psicotécnica da referida associação; im planto®
o Serviço de Psicotécnica e respectivo laboratório no Serviço NaÊ
cional da Indústria - Senai e no Serviço Nacional do Comércio M
Senac, neste últim o com a participação de Leon W alther. fl
Outra figura de particular importância foi Emilio Mira y Lopezl
que dirigiu o Isop/FGV, criado em 1947. Aí trabalharam m édicos!
psicólogos e estatísticos, foram realizados exames de orientaçãaj
educacional e profissional, seleção de pessoal para empresas privai
das e públicas, além da produção de pesquisas e formação de espél
cialistas na área. Com a assessoria de Mira y Lopez, o trabalha
desse Instituto estendeu-se para outros estados, como Bahia e MM
nas Gerais. Foi ele um produtivo profissional da Psicologia, tendfl
publicado uma vasta obra escrita, participado de m uitos congre®
sos, assessorias e consultorias, abrangendo não apenas o Brasltj
mas vários outros países da América e da Europa. M uitos dos trabsj
lhos que Mira y Lopez criou e implantou exercem ampla influênclj|
até hoje, como é o caso da utilização do Psicodiagnóstíco Mfoclné
tico - PMK, teste de sua autoria.
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 131

O governo federal e os estaduais foram, direta e indiretamente


(como nos casos do Isop/FGV, Senai, Senac, etc.), incentivadores,
produtores e usuários dos serviços prestados pela Psicologia. Isso
pode ser visto nas realizações a seguir: instalação de um setor de
seleção profissional, em 1936, pela Comissão do Serviço Público
Civil, do governo federal; em 1938, o Dasp instalou uma divisão de
seleção de pessoal, com participação de Lourenço Filho; o Instituto
de Psicologia, no Rio de Janeiro, realizou serviços de seleção de
diplomatas e de candidatos aos postos de escritório para o Instituto
de Previdência e Assistência Social; o M inistério da Marinha criou
um serviço de seleção psicotécnica naval; a Estrada de Ferro Cen­
tral do Brasil instalou um serviço de seleção profissional, em 1939;
a Estrada de Ferro Central do Brasil instalou um serviço de seleção
profissional em 1939; em São Paulo, a Polícia M ilitar criou um ser­
viço de psicotécnica e, em 1952, foi criado o Centro Coordenador
das Atividades de Orientação, que deveria coordenar as diversas
Instituições de orientação profissional. Além disso, o Setor de
Psicologia Aplicada da Faculdade de Ciências Econômicas e Admi­
nistrativas da USP realizou pesquisas e projetos de intervenção em
processos de seleção.
Os dados demonstram uma preponderância de instituições
í públicas na base das atividades desenvolvidas em Psicologia. No
\ C|Ue diz respeito a esse aspecto, sem dúvida a investida estatal
í iparece com ênfase na organização do trabalho, pela seleção e
j Orientação profissional; deve-se reiterar que o número poderia ser
l maior se fossem consideradas como públicas algumas instituições
Como Senai e Senac, financiadas parcialmente pelo poder público.
Mais uma vez, a relação entre as diretrizes estabelecidas pela polí­
tica econômica, de caráter nacional-desenvolvimentista, em busca
do incremento do processo de industrialização e da racionalização
dê sua administração, veio encontrar na Psicologia um cabedal de
; Conhecimentos úteis para seus propósitos, além de mais uma vez
! demonstrar a presença direta e marcante do estado na economia e
nos meios para sua efetivação, na medida em que investia direta-
i mente no desenvolvimento de uma área de saber que lhe propor-
l lionava um conjunto de técnicas e conhecimentos necessários para
I t concretização de seus projetos.
Bi A maioria dat referências no campo da clínica situa-se mais
Eto final do período* éimonetrando que essa modalidade de atuação
■ mala r e c e n ta .||M ||^ la da Psicologia no Brasil.
132 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Uma parte das realizações no campo da clínica está relaciona­


da à Medicina, sem que a Psicologia apareça de maneira explícita
como área autônoma de conhecimento; em outras palavras, sua
presença mais se aproxima da idéia de que é ela um aporte ou
elemento subsidiário da área médica. Nessa perspectiva dominada
por médicos, podem ser destacadas as seguintes realizações: em
1932, a Liga Brasileira de Higiene Mental propôs ao M inistério da
Educação e Saúde Pública a presença obrigatória de gabinetes de
Psicologia em clínicas psiquiátricas e, em 1936, foi criado o Labora­
tório de Biologia Infantil, sob a direção de Leonídio Ribeiro, cujas ;
finalidades eram estudar os determinantes físicos e mentais da cri­
minalidade juvenil e desenvolver técnicas para seu tratam ento. Essa
idéia é reforçada pela resistência dos médicos, mais tarde, à regula­
mentação da profissão de psicólogo com atribuição clínica, além de
outras investidas posteriores.
M uitas das primeiras realizações que podem ser consideradas
como eminentemente do campo da psicologia clínica tiveram sua
origem em preocupações de natureza educacional. Dentre estas, os ’
já citados serviços de orientação infantil, sob a direção dos m édicos;
Durval Marcondes e Arthur Ramos, respectivamente, com a finali­
dade de atender crianças que apresentavam problemas escolares;
embora vinculados às demandas educacionais, esses serviços po­
dem ser considerados como iniciativas de caráter clínico. Numa
perspectiva de natureza bem mais próxima à Psicologia, foi criado*
em 1946, o Centro de Orientação Infantil, do Departamento Nacio--
nal da Criança, subordinado ao M inistério da Educação e Saúde
Pública, com serviços de psicologia clínica, contando com a colabo-*
ração de Helena A n típoff, Mira y Lopez e Reba Campbell. O mesmo
pode ser afirmado a respeito da Clínica Psicológica do In stitu toj
Sedes Sapientiae, em cuja origem estava a preocupação também
com o atendim ento de crianças que apresentavam problemas esco­
lares. Nessa linha, podem ser incluídos os trabalhos de Ana Maria
Poppovic, dentre os quais: sua atuação no Abrigo Social de Meno­
res, tendo como tarefa a realização de psicodiagnósticos; o traba­
lho na Clínica Psicológica da Sociedade Pestalozzi de São Paulo;
sua participação na instalação da Clínica Psicológica do Instituto de
Psicologia da PUC/SP, a qual, a convite de Enzo Azzi, ela viria tam ­
bém a dirigir. Acrescenta-se a isso que, em 1956, foram criadaa
clínicas p8icológicaã pela Prefeitura de São Paulo.
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 133

É im portante notar que as atividades clínicas empreendidas


por profissionais form ados na área da Educação constituíram-se
nas principais bases para o ensino de Psicologia tendo em vista a
formação clínica, e as instituições que acolheram essas atividades
foram as bases para o enraizamento desse campo de atuação em
nossa realidade. Aqui, mais uma vez, fica patente a presença mar­
cante da Educação no processo de desenvolvimento da Psicologia
no país, uma vez que demandas educacionais estiveram no cerne
daquilo que viria mais tarde a constituir-se como campo específico
de atuação do psicólogo, assim como seus desdobramentos em
formas variadas de intervenção.

E stu d o s e p e sq u isa s

No que se refere à pesquisa, a presença da Educação é tam ­


bém bastante significativa, reforçando a tendência demonstrada em
outras modalidades de produção da Psicologia no Brasil. Nesse pla­
no, podem ser destacadas as seguintes instituições, as quais se
dedicaram à pesquisa em psicologia educacional: Instituto de Edu­
cação do Rio de Janeiro; Escola de Aperfeiçoamento de Professo­
res de Belo Horizonte; Isop de Recife; Laboratório de Psicologia
Educacional do Instituto de Educação (evolução do Instituto Peda­
gógico de São Paulo); Núcleo de Pesquisas Educacionais da Munici­
palidade, no Rio de Janeiro; Instituto Nacional de Surdos-Mudos;
Instituto de Educação de Porto Alegre; Escola Normal da Bahia e
Universidade da Bahia; Escolas Normais do Estado de São Paulo e
Centros Regionais de Pesquisas Educacionais - CRPE; que se so­
mavam ao que se produzia nas universidades, por suas cátedras de
Psicologia.
As pesquisas relacionadas às questões do trabalho estavam
muito articuladas às finalidades de aplicação prática mais imediata,
envolvendo em geral estudos sobre seleção e orientação profissio­
nal. Mais uma vez, Roberto Mange e Mira y Lopez aparecem com
destaque nesse campo, assim como as seguintes instituições: Es­
trada de Ferro Sorocabana, Senai; Senac; CFESP; Escola Livre de
Sociologia e Política de São Paulo; Dasp; Faculdade de Ciências
Econômicas e Administrativas da USP - Setor de Psicologia Aplica­
da e leop/FGV.
Num» paP#|Matlva mais geral de Psicologia, podem ser lem-
brados o tnitfà n è Ü Pltooiogla, herdeiro do Laboratório da Colônia
!
134 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

de Psicopatas do Engenho de Dentro; o Instituto de Psicologia da


PUC/SP; e a cátedra de Psicologia da seção de Filosofia da FFCL da j
Universidade de São Paulo.
É im portante sublinhar que, em 1950, a Psicologia fez-se pre­
sente na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência - SBPC; o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi- j
co e Tecnológico - CNPq concedeu, em 1952, a primeira bolsa d e i
pesquisa em Psicologia; e, em 1953, Joel Martins escreveu uma|
tese sobre neurose experimental em ratos, a primeira em psicologia
experimental. Vale dizer também que muitas referências a estudosj
e pesquisas com testes foram identificadas.

E ventos e e n tid ades c ie n tífic a s e p ro fis s io n a is t

Seguem-se as referências a eventos (congressos, e n co n tro s,*


etc.) e a criação ou atividades desenvolvidas por associações/enti-j*
dades científicas ou profissionais, que apareceram mais fre q ü e n te *
mente no final do período estudado. Não há dúvida de que taiaÊ
dados demonstram o desenvolvimento e o amadurecimento da P s *
cologia enquanto ciência e profissão no Brasil, não apenas por d e w
monstrar o grau de organização dos profissionais que exerciam a t i f l
vidades nesse campo, mas também porque tais fatos sustentam-s<jM
em realizações concretas e reconhecidas por entidades científicafjM
nacionais de cunho mais amplo, como é o caso da SBPC, b e n fl
como por entidades internacionais de Psicologia, como a Sociedad^jH
Interamericana de Psicologia - SIP. ■
Em 1945, foi fundada a Sociedade de Psicologia de São P a u »
Io, por iniciativa de Annita Cabral e Otto Klineberg; quatro a n o f l
depois, essa entidade começou a publicar seu Boletim de Psico/owÊ
g/a. Em 1949, foi criada a Associação Brasileira de Psicotécnica®
que entregou ao Ministério da Educação, em 1953, um memorial Æ
um esboço de anteprojeto de lei relativo à formação de psicólo goM
e à regulamentação da profissão; em 1957, o memorial foi re a p re *
sentado ao referido Ministério, obtendo parecer favorável do Con**
selho Nacional de Educação. Em 1952, foi fundada a Sociedade d «
Rorschach de São Paulo. No ano de 1954, foram criadas, em S ã d l
Paulo, a Associação Brasileira de Psicólogos e, no Distrito F ed eral*
a Associação Brasileira de Psicologia. Em 1969, foi orlada a S o clefl
dade de Psicologia do Rio Grande do Sul. Em 1900, • Associação!
Brasileira de Psloologls Aplicada, a Socledad» M oologla de 8 ia i
r

A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SECULO XX 135

Paulo e a Associação Brasileira de Psicólogos criaram comissões,


que, reunidas, elaboraram um substitutivo ao projeto sobre form a­
ção de psicólogos que tram itava na Câmara dos Deputados.
Merecem destaque também os seguintes eventos: o I Con­
gresso de Psicologia, realizado em Curitiba, em 1953, organizado
por Gabriel Munhoz da Rocha; no mesmo ano, realiza-se o Simpósio
das Faculdades de Filosofia do país, ocasião em que foi proposta a
criação de cursos de bacharelado, licenciatura e pós-graduação em
Psicologia nestas faculdades; em 1955, ocorre o I Seminário Latino-
Americano de Psicotécnica e, em 1959, acontece o VI Congresso
; Interamericano de Psicologia, promovido pela Sociedade Interame-
} ricana de Psicologia - SIP, sob a presidência de Emilio Mira y Lopez.
î
t
f O período aqui estudado compreende o intervalo entre 1930 e
j 1962. Considerando que o objeto em estudo estava evidentemente
! em desenvolvimento, poder-se-ia supor que o espaço de 33 anos,

Í iobretudo por sua significativa produção, apresentaria mudanças


Ou indicaria algumas tendências. Verificou-se que, de fato, houve
Uma diminuição gradativa de referências ao longo do tempo, mas
nfio é possível afirmar que houve um decréscimo na produção, uma
Vez que várias obras-referência foram escritas antes de 1962, ano-
llmite do estudo, contribuindo para uma possível diminuição no vo-
i lume de citações nos anos mais próximos; destas, cabe ressaltar as
de autoria de O linto (1944) e Cabral (1950). Além disso, outras 1
publicações se dedicaram especificamente a certas delimitações
temporais. Mais importante, no entanto, é que as obras-referência
tiveram, em sua maioria, a preocupação de identificar atividades
pioneiras, de tal forma que o menor número de referências pode ser
! Indicativo menos de uma possível diminuição de produção do que
da efetiva incorporação das produções antes citadas ao trabalho
Ordinário da Psicologia, as quais, não sendo novidade, passaram a
fazer parte do cotidiano da profissão e já não exigiam referência
específica.
A m aior parte das referências relativas a eventos e associa­
ções aparece com m aior freqüência no período que vai de 1953
I 1962, o que é dem onstrativo do grau de am adurecim ento que
I Psicologia foi conquistando ao longo do tem po no país, sobre­
tudo porque ttla dados são indicativos de atividades de organi-
la ç lo e slstem atliaçio, tanto da área de conhecimento quanto
da proflaal
136 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Sobre a produção das diversas regiões do país, os dados apon­


tam para uma acentuada concentração na Região Sudeste, com
Distrito Federal/Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais concen­
trando a maior parte das referências, excetuando-se as referências
de caráter nacional. Deve-se reconhecer, porém, que no Rio de Ja­
neiro e em São Paulo encontravam-se os pólos político e econômico
do país, e, conseqüentemente, aí se localizava grande parte das
instituições adm inistrativas, prestadoras de serviços e entidades
educacionais responsáveis por uma significativa contribuição para
o desenvolvimento científico em geral e da Psicologia em particular.
Entretanto, dois estados foram modestamente citados (Paraná e
Ceará), e outros sequer aparecem. Antes de dizer que não houve
produção ou que as que ocorreram foram pontuais ou pouco signi­
ficativas, é im portante questionar se não são elas simplesmente
omissões ou, em outras palavras, desconhecidas ou negligenciadas
pela historiografia da Psicologia no Brasil. Esse questionamento ganha
sentido quando analisamos a primeira referência ao Estado do Paraná,
relativa ao I Congresso Brasileiro de Psicologia (a segunda refere-se
a uma Reunião Anual da SBPC, em 1962, e tem , portanto, um
caráter mais geral); ora, se houve um congresso nacional da área
nesse estado, isso indica que deveria haver, no mínimo, um certo
desenvolvim ento da Psicologia na região, embora não haja referên-*
cia a quaisquer atividades desenvolvidas.
Os resultados aqui apresentados, ainda que parciais e precá-s
rios, pois são constituídos apenas por uma primeira aproximação;
com os dados relativos ao período compreendido entre 1930 e 1962,
demonstram que esse momento foi de grande importância para o
desenvolvimento da Psicologia enquanto ciência e profissão no país,
confirm ando a hipótese de que nele ocorreu sua consolidação. Mos­
tram os dados que houve significativo desenvolvimento da Psicolo­
gia nas seguintes instâncias: ensino, aplicação, produção de estu­
dos e pesquisas, publicações, realização de eventos científicos e
organização em associações científicas e profissionais. A existên­
cia dessas instâncias e seu gradativo incremento são fatores de­
m onstrativos da inserção efetiva da Psicologia no Brasil, quer como
área de conhecim ento, quer como campo de atuação, o que certa­
mente determinou seu precoce (se comparado a vários outros paí­
ses) reconhecimento como profissão.
Expllcite-se tembém que o desenvolvlm«ntO d« Psicologia no
Brasil n lo poda ser compreendido apanaa M J |i ! • • • tm fatores
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 137

intrínsecos a essa área, sendo preciso reconhecer que tal processo


ocorreu de form a indissociada das condições sócio-econômico-polí-
ticas do país. O projeto de Brasil em implementação naquele mo­
mento foi um terreno fértil para o desenvolvimento da Psicologia,
sobretudo porque esta trazia teorias e especialmente um conjunto
de técnicas que podiam responder às demandas colocadas por uma
nação que se estruturava para ingressar no mundo industrializado.
Não por acaso, a psicologia da educação e a psicologia aplicada ao
trabalho constituíram-se em importantes campos de atuação psico­
lógica, afinadas com as idéias de racionalização do trabalho peda­
gógico e, principalmente, da produção industrial, tendo no uso de
testes um de seus mais efetivos meios de intervenção. Isso se con­
firma no fato de que muitas dessas atividades foram realizadas em
instituições criadas e mantidas pelo Estado, o que mais uma vez
caracteriza a indissociabilidade desses fatores, pois naquele mo­
mento a política posta em prática caracterizava-se pela intervenção
direta na economia e em outras instâncias da vida social.

A psicologia é reconhecida como profissão

Em 27 de agosto de 1962, foi aprovada a Lei n. 4 .1 1 9 , que


reconheceu a profissão de psicólogo, acompanhada de uma emen­
da que dispunha sobre os cursos de formação deste profissional e
fixava seu currículo mínimo. Esse fato, no entanto, foi precedido de
uma dura e longa luta, principalmente diante da oposição de um
grupo de médicos, cuja principal reivindicação era o veto ao exercí­
cio da psicoterapia por profissionais que não tivessem formação em
Medicina. Em verdade, essa problemática não term inou com a lei,
aparecendo mais tarde nos projetos dos deputados Kassab e
Julianelli, que tentaram reaver a prática clínica exclusivamente para
os médicos, colocando o psicólogo como seu mero auxiliar e sob
sua tutela; isso gerou fortes reações da categoria, cuja organização
conseguiu barrar o prosseguimento dos referidos projetos. Vez ou
outra, porém, esse problema reaparece sob diferentes formas.
No mesmo ano de 1962, pela Portaria n. 227, o M inistério da
Educação designou uma comissão de professores de Psicologia e
de especialistas em Psicologia Aplicada para apreciar a documentação
doa oandldatoa ao registro profissional de psicólogo, composta por:
138 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Lourenço Filho (presidente), padre Antonio Benko, Carolina M. Bori,


Pedro Parafita Bessa e Enzo Azzi. Essa comissão não deu início às
atividades, pois faltavam atos complementares à lei. Em 1963, nova
portaria garantiu as necessidades legais, e os trabalhos foram ini­
ciados, mantendo-se os nomes da primeira comissão, com exceção
de Enzo Azzi, que fora substituído por Arrigo Angelini. Nesse ano, a
comissão recebeu 1.511 pedidos para registro profissional; no ano
seguinte, cerca de quinhentos pedidos foram ainda recebidos, em
1969, fo i reaberto por mais sessenta dias o prazo para tal solicita­
ção. Os profissionais que receberam o registro por meio dessa co­
missão constituem -se nos primeiros psicólogos legalmente reco­
nhecidos, cuja form ação superior fora obtida principalmente em
Pedagogia e Filosofia.
Nessa década, instaurou-se a ditadura m ilitar, implantada a !
partir do golpe de 31 de março de 1964, que trouxe, entre tantos ;
desastres e retrocessos, a Lei n. 5.540, mais conhecida como Re- I
forma Universitária de 1968, no bojo dos acordos MEC-Usaid. Em ij
nome da expansão do número de vagàs para resolver o denominado j
"problema dos excedentes dos exames vestibulares", essa lei, apro- í
vada à revelia dos grupos diretamente interessados na questão, na ;
verdade garantiu a abertura do ensino superior para os setores pri-;
vados e estabeleceu mecanismos para dificultar e reprimir os m ovi-í
mentos estudantis e docentes, movimentos estes que se consti-íj
tuíam numa das mais poderosas frentes de oposição ao regime de
exceção então instalado.
No contexto dessa reforma, começaram a proliferar Institui­
ções de Ensino Superior - IES privadas no cenário da educação
brasileira. M uitas dessas novas instituições foram criadas em con­
dições acadêmicas precárias, oferecendo cursos que não necessita- \
vam de grandes investimentos, em geral aqueles que apenas preci­
savam de salas de aula e professores, além do fato de que não \
havia quantidade suficiente de docentes qualificados para assumir ;
a empreitada de form ar de modo adequado novos profissionais.
Não é possível ocultar que, apesar da existência de instituições
academicamente sérias, muitas das IES criadas nesse momento t i­
nham vocação mercantilista. Esses cursos começavam a funcionar
com uma autorização do MEC, devendo ser avaliados por ocasião ]
da form atura da primeira turm a, quando poderiam obter seu reco- •
nhecimento. Um dos critérios estabelecidos referia-se à existência
de um certo número de profetaorei portadores de parecer emitido
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 139

pelo próprio M inistério; como ilustração, vale lembrar que, dentre


os documentos necessários para a obtenção do tal parecer, consta­
va um Atestado de Idoneidade Moral, que deveria ser emitido por
uma autoridade constituída-, outra curiosidade ainda é que muitos
professores descobriam que seus nomes estavam arrolados como
parte do corpo docente de instituições que sequer conheciam. As­
sim, muitos cursos particulares foram criados nos anos 70, respon­
dendo a uma demanda cada vez maior pelo ensino superior e com
um interesse crescente pela Psicologia.9
Os cursos de Psicologia não eram propriamente investimentos
de baixo custo, mas, dada a demanda de alunos, alguns artifícios
poderiam ser utilizados para garantir sua rentabilidade. Embora tais
cursos necessitassem de laboratórios, estes não se constituíam em
problema insolúvel, pois poderiam ser utilizados aqueles dos cursos
de Biologia (geralmente oferecidos por essas IES); e os laboratórios
de psicologia experimental não eram particularmente caros (pois
suas instalações eram precárias, não passando de pequenos - e
poucos - cubículos com uma Caixa de Skinner simples). Havia a
necessidade também de salas para aplicação de testes, algo que
ainda hoje algumas instituições não possuem.
O problema maior era o curso de Formação de Psicólogos, que
deveria oferecer estágios supervisionados, além de uma clínica-
escola, com supervisores experientes para um número reduzido de
alunos. Esse gasto, no entanto, era de certa maneira compensado
por uma série de mecanismos, como a redução da oferta de discipli­
nas ao que era estritamente estabelecido pelo currículo mínimo,
baixos salários pagos aos docentes e número elevado de alunos por
aala de aula nas séries anteriores, sem contar, claro, com as altas
taxas de mensalidade. Deve-se ressaltar que as IES particulares
aram freqüentadas por um grande contingente de alunos oriundos
das camadas economicamente menos privilegiadas, que necessita­
vam estudar no período noturno para, com seu trabalho, pagar os

* Sobre a criação de cursos de Psicologia nessa época, ver dissertações de mes­


trado de: Francinete Maria Rodrigues Carvalho, sobre Universidade Federal do Pará
(Psicologia da Educação, PUC/SP, 1997) e Rita de Cássia Maskell Rapold, sobre
Universidade Federal da Bahia (Psicologia da Educação, PUC/SP, 1999); Jozélia
Plaglna Dlaz Olmoi, aobre Universidade de Mogi das Cruzes (Psicologia Escolar,
U8P, 1999); Jant Pifllnottl Trujillo e Lilia Midori S. P. dos Santos (Psicologia da
Iduoaçlo, PUC/t f iJ i l l ] i Ana Crlatlna Teixeira Arzabe (Psicologia da Educação,
PUC/SP, 2000)/«IÉII m í }trtleularai da Qranda 31o Paulo.
140 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

custos de um curso superior muitas vezes de futuro incerto. Soma-


se a isso o fato de que o rápido crescimento dessas instituições não
foi acompanhado de igual crescimento do número de docentes pre­
parados para assumir competentemente a formação de novos pro­
fissionais, fato que, acompanhado pelos baixos salários e pela pre­
cariedade das condições de trabalho, contribuiu para uma crescen­
te perda de qualidade do ensino da Psicologia.
Essa situação foi aos poucos se m ultiplicando, e os cursos i
com prometidos com uma formação sólida do psicólogo passaram a j
se constituir quase exceções, dado seu número cada vez menor se
comparado ao das IES privadas mercantilistas, fato reforçado pela
diferença no número de vagas oferecidas.
Nesse sentido, muito rapidamente as IES particulares come- ;
çaram a ser responsáveis pela maioria dos psicólogos formados, em ;
quantidade m uito maior da que o mercado de trabalho poderia
absorver. Acrescenta-se a isso que a precariedade acadêmica des­
ses cursos acabou produzindo um aligeiramento na formação dos
novos profissionais, acarretando prejuízos para a profissão, para
seus usuários e para muitos destes, que, com sacrifício, investiram
num curso superior sem conseguir ingressar de fato na carreira.
Nesse m omento, o campo clínico tornou-se mais difundido,
não apenas por ser privilegiado nos currículos, mas também porque
atraía um maior número de alunos. É bom lembrar que m uitos
recém-formados tentaram essa via, principalmente sublocando con*i
sultórios no período noturno, enquanto continuavam em seus em-j
pregos anteriores; destes, poucos foram os que conseguiram subsi
titu ir suas ocupações pregressas pela nova profissão de psicólogo;
Não obstante, a atuação clínica permaneceu como um dos cam pos]
mais difundidos da Psicologia no Brasil, absorvendo um significati­
vo número de psicólogos e ampliando-se, mais tarde, para diferen­
tes modalidades de atuação.
Processo semelhante ocorreu com o campo do trabalho, que,
antes da regulamentação da profissão, era fom entado e financiado
por empresas públicas e privadas; mais tarde, ficou cada vez mais
restrito para os psicólogos, muitas vezes reduzidos à condição de
meros aplicadores de testes em tarefas de seleção de pessoal. Alóm
disso, muitas críticas eram feitas à atuação do psicólogo nessa;
campo, não apenas por seus limites, mas pelo caráter de sua fun*
ç lo , geralmente vista como a de adaptaçfio do trabalhador Aa
condições a aos Intaraaaaa daa empresas, Intervindo no procaaao
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 141

produtivo e não nas condições de trabalho, servindo ao capital e


não ao trabalhador, este sim aquele que deveria ser o foco de ação
da Psicologia.
No que se refere à Psicologia na Educação, a situação foi
bastante complexa. De um lado, o conhecimento psicológico esta­
va incorporado aos diferentes aspectos da Pedagogia e à prática
profissional dos educadores; por outro lado, a atuação do psicólogo
na escola estava m uito calcada numa perspectiva clínica, ocupan­
do-se do atendimento individual de crianças designadas como "por­
tadoras de problemas de aprendizagem" fora da sala de aula.
No final da década de 1970, a hipertrofia da Psicologia na
Educação começou a ser duramente criticada, ta nto por educado­
res como por psicólogos. O principal objeto das críticas era o uso
abusivo dos testes e suas conseqüências para o educando, uma
vez que seus resultados eram interpretados como atribuições pró­
prias do sujeito, fazendo incidir sobre ele a determinação dos ditos
"problemas de aprendizagem" (a própria expressão já denota que
é a criança a fo nte de problemas; fala-se dificilm ente de "proble­
mas escolares"). As condições sociais eram negligenciadas, em­
bora, já na década de 1930, Helena A n tip o ff alertasse para o fato
de que elas afetavam os resultados dos testes de inteligência.
As decorrências dessa prática foram nocivas para um grande con­
tingente de crianças, pois isso poderia condená-las a uma classe
especial que, em nome de um atendim ento diferenciado, acabava
por relegá-las a um ensino de segunda categoria, confirm ando o
diagnó stico realizado e produzindo em verdade a deficiência
m ental e seus estigmas.
Essa crítica era estendida para outras interpretações e ações
baseadas na Psicologia, incorporadas tanto por educadores quanto
por psicólogos, que reduziam os supostos problemas escolares à
dimensão meramente psicológica. As determinações de tais proble­
mas eram buscadas em fatores como: desenvolvim ento mental,
atenção, com prometimentos motores ou emocionais (estes vistos
em geral como produzidos especificamente pelas relações familia­
res; aliás, as famílias das classes populares eram sistem aticam ente
consideradas como causadoras dos problemas apresentados pelas
crianças, sob a alegação de que eram "desestruturadas" ou consti­
tuídas por pais analfabetos). Essas interpretações acarretavam,
porém, um prokltma ainda mais grave, que era o de obscurecer
os determlnfHtlflwlniFi’MCOIares, fatores esses que estavam nas
142 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

raízes da maioria dos problemas. Assim, alguns educadores e psi­


cólogos começaram a tecer críticas à hipertrofia da Psicologia na
Educação, apontando para uma série de conseqüências que sua
incorporação trouxera ao processo educacional brasileiro.
Concomitantemente, os psicólogos também começaram a cri­
ticar a atuação da Psicologia na Educação, sobretudo pela via da
psicologia escolar, tendo como base os mesmos problemas identifi­
cados pelos educadores, mas enfocando o modelo médico que fun­
damentava a ação clínica de muitos profissionais, os quais enfatiza­
vam as intervenções terapêuticas negligenciando ações mais pre­
ventivas, que, por sua vez, exigiam ações mais propriamente peda­
gógicas e coletivas, como, por exemplo, a contribuição para o pro­
cesso de form ação de professores.
Nesse contexto, em que críticas vinham de todos os lados,
muitos psicólogos chegaram a negar a possibilidade de a Psicologia
contribuir com as questões educacionais; outros não tiveram opor- ;
tunidade de realizar formas alternativas de ação na escola, pois a j
expectativa desta era a da atuação clínica, não considerando a pos- ;j
sibilidade de intervenção do psicólogo em questões pedagógicas, \
que eram tidas como de alçada exclusiva de pedagogos. Enfim, |
foram poucos os trabalhos que conseguiram de fato intervir no es- |
paço escolar de maneira mais ampla, sendo estes justam ente os |
que se firm aram , permitindo o desenvolvimento atual desse campo |
de atuação. íj
Embora não sendo propriamente tema deste texto, vale a pena ?!
registrar que a emergência da psicopedagogia, numa perspectiva >
clínica, relaciona-se com esse processo, ocupando de certa forma o
lugar deixado pela psicologia escolar, quando esta passou a criticar j
a atuação do psicólogo desvinculada das condições intra-escolares, i
isto é, quando passou a criticar a psicologia clinica na escola. Pou- ;
cas mudanças ocorreram na escola desde então, de forma que esta
continua produzindo "crianças com problemas de aprendizagem";
assim sendo, nada melhor do que a existência de um locus para
onde o problema pode ser retirado e "resolvido" sem que suas ba­
ses sejam questionadas.
Apesar de todos esses problemas, e justam ente em função
deles, a Psicologia conseguiu, nesse período, um desenvolvimento
sem precedentes. Ainda que permeada por críticas de várias espé­
cies, a Psicologia estabeleceu-se como profissão, ampliando grada*
tlvamente seu eapectro de açlo e firmando-se eomo possibilidade
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 143

de resposta a inúmeros problemas, inicialmente em seus campos


tradicionais - educação, trabalho e clínica - , ensaiando e implan­
tando mais tarde novas modalidades de intervenção, como foram a
psicologia com unitária, a psicologia hospitalar e a psicologia jurídi­
ca, entre outras, que viriam a se consolidar e ampliar sua capacida­
de de responder às demandas antes não atendidas e a outras acar­
retadas por problemas sociais então emergentes.
A isso articulada, e em função também de um desenvolvimen­
to relativamente autônomo, a produção de conhecimento em Psico­
logia expandiu-se m uito, sobretudo com a implementação dos cur­
sos de pós-graduação, que, apesar da escassez de recursos, conse­
guiram se impor não apenas quantitativa mas também qualitativa­
mente, produzindo um acervo de conhecimento original e criativo.
A carência de investimentos em pesquisa no Brasil, sobretudo nas
Ciências Humanas, associada à complexidade de nossa realidade e
a seus múltiplos problemas, constituiu-se em condições fundamen­
tais para que a originalidade e a criatividade se tornassem caracte­
rísticas marcantes do modo de se produzir conhecimento em Psico­
logia, não apenas relacionadas à pluralidade de aspectos de seu
objeto de estudo, mas também à adoção de diferentes perspectivas
do olhar sobre eles.
Houve um incremento da qualidade de ensino com a expan­
são da pós-graduação, embora de forma heterogênea, pois a articu­
lação entre ensino e pesquisa não se constituía em regra para todas
as IES, ficando limitada às instituições que garantiam as condições
de trabalho necessárias para a efetivação do princípio de indisso-
ciabilidade entre difusão e produção de conhecimento. O mesmo
pode ser dito em relação à extensão, que muitas dessas instituições
reduziam à necessidade específica e restrita do ensino, isto é, ao
estágio supervisionado, e não a um projeto de coletivização e ex­
tensão para a comunidade do saber produzido pela universidade.
Entretanto, muitas IES produziram trabalhos significativos e rele­
vantes articulando ensino, pesquisa e extensão, tendo sido estes
um dos mais im portantes terrenos para o desenvolvimento da Psi­
cologia em várias de suas manifestações, seja como ciência, seja
como profissão.
A realização de congressos tornou-se uma prática regular,
ocorrendo enoontroa gerels da área ou encontros por temas, abor-
dagena ou OMP0QI da atuaçBo específicos. Dentre os encontros da
área, d ev en rajU H H O T , por antiguidade a regularidade, as reunlõea
144 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

anuais realizadas na USP-Ribeirão Preto, hoje com organização da


Sociedade Brasileira de Psicologia - SBP. A participação da Psicolo­
gia em congressos científicos mais amplos foi marcada sobretudo
por sua presença na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciên­
cia - SBPC, na qual vale a pena destacar o papel desempenhado
por Carolina Bori, que foi membro de sua diretoria, presidente da
entidade e, hoje, presidente de honra. Foram criadas outras entida­
des e associações de diversos campos específicos da Psicologia, as
quais se responsabilizaram pela organização de vários eventos cien­
tíficos. A criação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pes­
quisa em Psicologia - Anpepp também deve ser destacada, consti-
tuindo-se hoje num dos mais importantes fóruns de discussão so- I
bre a produção de pesquisa na área. j
No que diz respeito à literatura, esse período contou muitas
vezes com uma dedicação ímpar de professores, que, dada a preca- j
riedade editorial no país, muitas vezes traduziam livros, capítulos j
de livros e artigos, ou ainda elaboravam apostilas (em mimeógra-
fos!) para uso dos alunos. Aos poucos, ocorreu um incremento do
mercado de publicações, ainda assim baseado em traduções de ;
obras estrangeiras básicas; uma produção editorial mais significati­
va, incluindo obras escritas por brasileiros, só viria a se concretizar
um pouco mais tarde.
Como categoria profissional, a Psicologia sofreu grandes trans­
formações. Antes representada por um grupo pequeno de profissio­
nais, a expansão do ensino provocou um aumento quantitativo de
psicólogos que, como já foi dito, não foi acompanhado pelo merca­
do de trabalho; esse processo gerou algumas conseqüências, que
foram do abandono puro e simples da carreira à defesa corporativa ;
da profissão. Entretanto, outros m ovimentos surgiram daí, buscan- ]
do-se uma organização mais sólida e crítica. Mas isso é assunto !
para o item seguinte.

A Psicologia ampiia-se como ciência e como profissão

Os fatos anteriormente mencionados trouxeram transform a­


ções substanciais para a Psicologia no Brasil, o que pode caracteri­
zar um possível novo momento em sua história.
Os problemas anfrantados pela Psicologia podam Mr Ilustra­
do* palas «Ituaçõas abaixo: precariedade da fo M M M ftfttrao ld a por
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 145

niuitos cursos de graduação, disparidade entre o número de form a­


dos e o de profissionais atuando de fato na área, em contraposição
à carência quantitativa e qualitativa de atendimento às demandas
pelo trabalho profissional do psicólogo. Ademais, havia uma produ­
ção de conhecimento e de modalidades de ação com padrões de
excelência, caracterizada pelo desenvolvimento de muitas pesqui­
sas e projetos específicos de intervenção, que, pioneiramente, apon­
tavam para o potencial da Psicologia a fim de contribuir na solução
de várias das demandas já referidas. Enfim, muitas eram as contra­
dições que estavam no cerne dos problemas enfrentados pela cate­
goria, fazendo-se necessário o empreendimento de um movimento
amplo que buscasse superar essa situação.
Esse m ovim ento foi, e é, heterogêneo, pois há segmentos que
tomam a dianteira do processo, outros que respondem mais tardia­
mente e, claro, outros que resistem. Essa característica não é, po­
rém, exclusividade da Psicologia no Brasil, mas condição do próprio
processo histórico, que nunca é homogêneo nem ocorre em bloco.
Assim, por ocasião da virada dos anos 70 para os anos 80,
momento esse caracterizado pelo renascimento dos movimentos
sociais, algumas iniciativas começaram a despontar, pontuais no
início, mas que foram aos poucos se ampliando. A defesa da Psico­
logia como ciência e como profissão foi gradativamente ganhando
contornos que superavam o corporativismo, buscando uma ampla
participação da categoria na discussão dos problemas que a envol­
viam, mas que não poderiam ser limitados à mera defesa de interes­
ses intrínsecos a ela. Sua compreensão implicava uma articulação
com a realidade social como um todo e, fundamentalmente, com o
estabelecimento de um compromisso radical com ela. Era necessá­
rio, antes de tudo, adm itir a ampliação da categoria e trazê-la para
uma participação efetiva em seus órgãos representativos, ou, em
outras palavras, fazia-se necessário que esses órgãos passassem a
representar a maioria dos psicólogos. Nesse aspecto, há que se
considerar as mudanças ocorridas nas orientações dos Conselhos
Regionais de Psicologia - CRP, Conselho Federal de Psicologia -
CFP, Sindicatos de Psicólogos e, mais tarde, já produto dessas
mudanças, a criação da Federação Nacional dos Psicólogos -
Fenapsi. Vale lembrar que esse movimento começou a se materiali­
zar em S lo Paulo, mais precisamente a partir de uma histórica reu­
nião ocorrida l>0 Inatltuto Sedes Sapientiæ, com o apoio de madre
C ristin a9«D éftò fla,
146 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

A questão a ser enfrentada não era propriamente a defesa do


mercado de trabalho, mas a busca de respostas às demandas so­
ciais que se impunham. Nesse contexto, a questão ética passava a
ser central, devendo ser enfrentada não mais como estritam ente de
âmbito da ética profissional, mas fundam entalmente de ética so­
cial. Impunha-se a necessidade de construção e reconstrução de
uma Psicologia enraizada e comprometida com sua realidade. Para
isso, era necessário também produzir novos conhecimentos e no­
vas formas de intervenção, difundi-los e torná-los parte da form a­
ção do psicólogo. Ora, isso implicava um m ovim ento amplo, que
deveria contar com os vários segmentos da área: conselhos, sindi­
catos, associações, universidades, instituições várias e, sobretudo,
o envolvimento da categoria.
Como já foi dito, além das entidades, cabia à Universidade
uma im portante tarefa nesse processo. Sua participação foi subs­
tancial para o engendramento dessas transform ações. Mais parti­
cularmente, alguns setores ligados à pesquisa e à busca de novas
formas de intervenção contribuíram sobremaneira para a constru-
ção de novas concepções em Psicologia. A busca de um conheci- j
mento com prom etido com os problemas sociais abriu um campo j
vasto para a ampliação do olhar sobre o fenômeno psicológico, j
levando não só à busca de novas teorias, categorias e conceitos, j
bem como de novas bases metodológicas para a pesquisa na área, I
as quais deveriam dar conta da complexidade de seu objeto, mas 1
também à construção de novas práticas que pudessem responder |
melhor aos desafios que se impunham à Psicologia. I
É uma tarefa difícil ilustrar esse processo, pois muitos são os
grupos que para isso contribuíram; mas, para efeito de ilustração,
vale a pena lembrar a criação da Associação Brasileira de Psicologia I
Social - Abrapso, no início dos anos 80, que congregou psicólogos j
das várias regiões do país, os quais tinham como principal linha de j
ação a construção de uma nova maneira de se fazer Psicologia por !
meio da discussão e da socialização de conhecimentos e práticas.
Esse processo não ocorreu sem sofrer resistências acadêmicas, mas
se fortaleceu ao longo do tempo, sendo a Abrapso hoje composta j
por um grupo amplo de psicólogos e de outros profissionais interes:
sado8 em fazer da Psicologia uma área de conhecimento e um cam*
po de açfio articulados a comprometidos com a transformação da *
aooladada. Embora tanha sa avltado citar nomaa ralaclonados aos
tampos mais raoantaa, nlo é posslvsl deixar da lüftlrar o papal qua
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 147

desempenhou Sílvia Lane nesse processo, com a colaboração e a


participação de um sem-número de profissionais das várias regiões
do país, além do contato com estrangeiros, com quem foram esta­
belecidos intercâmbios que produziram ricas possibilidades de avanço
da área. Destes, podem ser citados, dentre muitos outros, Ignacio
Martin Baró, Maritza Montero, Fernando Gonzalez-Rey e Karl Scheibe.
As transform ações da Psicologia se manifestam mais clara­
mente no âm bito da ampliação de seus campos de intervenção.
Para as primeiras gerações de psicólogos formados pelos cursos
específicos de Psicologia, as opções por campo de atuação lim ita­
vam-se praticamente àquelas que se consolidaram nos anos que
precederam a regulamentação da profissão; entretanto, já nos anos
70, começavam a aparecer modalidades de intervenção que, à cus­
ta de muito esforço, apontavam possibilidades efetivas de interven­
ção psicológica. Segue abaixo descrição de algumas realizações
que podem ilustrar esse processo.
Nessa época, a atuação de psicólogos em hospitais começava
a se efetivar. Aos poucos, e à base de um incansável trabalho (não
apenas no que se refere ao próprio campo de ação, mas também no
que diz respeito à tentativa de convencer os demais profissionais
da possibilidade efetiva de intervenção da Psicologia nesse âmbito),
alguns profissionais demonstravam, por sua atuação, que vários
setores hospitalares poderiam usufruir desses serviços, ampliando
seu raio de ação e, principalmente, estendendo os benefícios da
Psicologia a pessoas que até então tinham negadas algumas de
suas necessidades humanas fundamentais. Assim, os então profis­
sionais da saúde (hoje o psicólogo é considerado também como tal)
e sobretudo seus usuários começaram a reconhecer a potencialida­
de e a necessidade da Psicologia nesse campo. Mais do que isso, a
Psicologia estende-se hoje para muito além da intervenção hospita­
lar, tendo presença marcante em diferentes setores da assistência
à saúde e participação significativa no âmbito da pesquisa na área.
A Psicologia era considerada até pouco tempo como um cam­
po de ação estritamente urbano (exceção deve ser feita ao trabalho
pioneiro de Helena A n tip o ff com educação rural). Entretanto, sua
preocupação com os m ovimentos sociais, seja no plano da pesqui­
sa, seja no da intervenção, veio mostrar, dentre várias outras pos­
sibilidades, que a Psicologia possui um potencial efetivo de traba­
lho, tanto nas regiões urbanas como nas rurais. Isso se demonstra
•m perspectives várias de eçlo, como aquelas que atuam com
148 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

assentamentos de sem-terra, tribos indígenas, mutirões, etc. Tam­


bém deve ser lembrado que, nessa área, trabalhos realizados com
grupos vitim ados por preconceito e intolerância - tais como mulhe­
res, negros, gays e lésbicas, pessoas portadoras de deficiências -
são de relevância não apenas profissional e acadêmica, mas sobre­
tudo social. Nessa perspectiva, deve-se sublinhar a importância his­
tórica da psicologia comunitária, que pode ser considerada como
uma das expressões pioneiras da ampliação dos campos de ação da
Psicologia, especificamente voltada para o atendimento de segmen­
tos da população antes alijados dos benefícios que a Psicologia
poderia lhes proporcionar.
A psicologia jurídica surgiu com uma proposta de superar e
estender seus serviços para além daquilo que era realizado pelos
peritos-psicólogos, procurando criar um modelo de ação alicerçado
no atendimento às necessidades psicológicas e no encaminhamen- i
to de crianças assistidas pelas então denominadas Varas de Meno- j
res, o qual foi, posteriormente, requisitado também pelas Varas de
Família. A isso se deve acrescentar a intervenção da Psicologia em
casos de violência sobre crianças e adolescentes; em instituições i
totais, como presídios; ou ainda sua im portante participação no :
m ovim ento antimanicomial. !
É possível dizer que as críticas feitas à Psicologia pela própria
Psicologia foram os mais substanciais fatores para sua superação,
0 que pode ser ilustrado pelo aumento quantitativo e qualitativo dôi
sua produção, abrangendo a pesquisa, os campos de aplicação, o
ensino, as publicações, as entidades representativas, os congres­
sos, atividades essas que, sem dúvida, contribuíram para que séí
possa dizer que elas forjaram um possível novo momento histórico
da Psicologia no Brasil.
Além disso, é importante a reflexão sobre as relações entre a
Psicologia e questões mais gerais, especificamente aquelas de na­
tureza epistemológica. As grandes discussões epistemológicas, hoje,
fazem referência constante à crise do conhecimento, pautada pelas
rígidas demarcações entre as áreas de saber, e à negação da com­
plexidade dos fenômenos, em busca de leis explicativas gerais. Essa
tradlçflo tem suas raízes na emergência da ciência moderna, com
Gallleu e Newton, acrescida da influência de Descartes (com partly
culsr Influência sobre a Psicologia, especialmente por «eu dualismd
Intsrsclonlsta relativo è questão mente-corpo) • levada ès últimai
ooneeqüènolaa pela tradtçlo positivista. Imtoort essa tradlçlo
A PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XX 149

persista, talvez na maior parte da produção psicológica (e da ciên­


cia em geral), é possível dizer que a Psicologia tem avançado muito
na superação dessa perspectiva, sobretudo ao assumir uma con­
cepção transdisciplinar (que admite e afirma a necessidade de trân­
sito pelos diferentes campos disciplinares), considerando-se que a
compreensão do fenômeno psicológico concreto transcende os li­
mites de seu objeto de conhecimento e exige o trânsito por outras
áreas de saber que dão conta da multiplicidade de fatores que o
integram, pois sua redução aos próprios limites a faz permanecer
no plano da abstração, abortando a finalidade de sua compreensão.
Ademais, fica cada vez mais explícito o fa to irreversível da
atuação m ultiprofissional (como a coexistência de m últiplos profis­
sionais contribuindo naquilo que lhes cabe para cum prir determina­
das finalidades), em favor da qual diferentes profissionais devem
atuar conjuntam ente no plano da intervenção sobre a realidade.
Deve-se reiterar que, ao adotar essa concepção, torna-se um contra-
senso qualquer defesa corporativa da profissão, pois o que deve
mover o trabalho da Psicologia não pode ser a defesa do mercado
formal de trabalho, mas a possibilidade de contribuir para o enfren-
tamento dos grandes (e pequenos) problemas que assolam a humani­
dade, que na sociedade brasileira não são de forma alguma menores.
Essa discussão extrapola os limites e os objetivos deste texto,
mas é im portante dizer que tais questões devem ser cuidadosamen­
te pensadas para cada uma das manifestações da Psicologia. Den­
tre tantos aspectos, deve-se sublinhar a importância da formação
do psicólogo, que, se se furtar a uma sólida e ampla base teórica
em Psicologia, fundamentalmente articulada às áreas afins, assim
como a absoluta necessidade de articulação com a realidade social
e prática, pouco se avançará nesse processo já iniciado de constru­
ção de uma Psicologia capaz de compreender o fenômeno psico­
lógico em sua complexidade e pluralidade e sobre ele intervir efeti­
vamente.
Para finalizar, deve-se reiterar que a pluralidade da Psicologia
contemporânea no Brasil é tal que seu perfil só poderá ser visto
mais nitidam ente com o passar do tempo. 0 que está aqui exposto
nada mais é do que uma viagem panorâmica que certamente con­
tém a perspectiva particular da autora; por esse motivo, não há
•qui a pretensio de expor um quadro completo e que dê as diferen-
te i e possíveis Interpretações para o processo, nBo sendo esse item
nada mala do qua uma reflexlo aobro a atualidade da Raloologla no
150 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Brasil. De qualquer maneira, é necessário que a Psicologia exerça


sua função de pensar-se a si própria, isto é, ser também objeto de
estudo da Psicologia.

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Mltauko Aparto/da Maklno Antuttê*


Profiiiora do Programa da A É lÉ êi Pda-Graduadoa am Eduoaçlo -
Paloologla d i Eduoaçlo. da P o n jj^ | Unlvtraldada Católica da 81o Paulo.
VII
A C O N S T IT U IÇ Ã O DA IDEN TIDADE DE ALGUNS
PROFISSIONAIS QUE A T U A R A M C O M O
PSICÓLOGOS ANTES DE 1 9 6 2 EM SÃO PAULO
Marisa T. D. S. Baptista

Introdução

Este é um estudo sobre a constituição da identidade do psicó­


logo na fase anterior à regulamentação, abrangendo aproximada­
mente o período que se inicia na década de 1920 e vai até 1962.
Ele tem um cunho histórico e é realizado pela perspectiva de identi­
dade enquanto metamorfose (Ciampa, 1990). O objetivo é clarificar
como foram se constituindo em São Paulo, antes de 1962, as iden­
tidades de alguns profissionais que desempenharam atividades no
campo da Psicologia e que poderiam ser considerados pioneiros em
sua introdução na nossa realidade social, assim como os contextos
nos quais eles circulavam.
A necessidade de compreender o processo de constituição da
Identidade do profissional em Psicologia antes da regulamentação
da profissão se justifica, porque o fato de serem formados em uma
área e depois se dedicarem profissionalmente à outra mostra a ocor­
rência de um m ovim ento de transformação de identidade, ou seja,
0 processo que Ciampa (1 990) denomina "m etam orfose". Ademais,
1 existência dessa metamorfose nos leva a crer que houve, no con-
tsxto da época, uma abertura que possibilitou e permitiu essas trans-
formações. Nesse sentido, torna-se também fundamentei verificar
154 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

quais foram as instâncias sociais propiciadoras dessa abertura, quais':i


grupos existentes no país e no exterior serviram de referência para';
as transform ações, bem como os tipos e espaços de discussões;
que permitiram novas reflexões.
Devido a essas questões, este texto se inicia com uma apre-i
sentação dos espaços que permitiram, nesse período, o floresci-i
mento das idéias psicológicas em São Paulo e, posteriormente, ana-<
lisa dois cursos ligados à Universidade de São Paulo que introduzN
ram a Psicologia em seu currículo, além da constituição da identida*
de de seis profissionais ligados a eles e considerados pioneiros.

O flo re sc im en to das idéias psicológicas em S ão Pauld

Desde a década de 1920, a Psicologia esteve presente e n j


vários espaços da cidade de São Paulo. Os mais significativos f o i
ram os núcleos institucionais de formação: a Escola Normal C aetal
no de Campos; a Universidade de São Paulo, através da Faculdada
de Medicina, do Instituto de Educação, da Seção de Educação e d a
Seção de Pedagogia, do Curso de Filosofia; a Faculdade S e d e i
Sapientiæ, através da Seção de Pedagogia; e a Faculdade São B entol
também através da Seção de Pedagogia. fl
Foram igualmente localizados vários núcleos institucionais d a
exercício da psicologia aplicada: Liceu de Artes e Ofício; Estrada d a
Ferro Sorocabana; Escola Técnica Getúlio Vargas; Senai (Serviça
Nacional de Aprendizagem Industrial); CMTC (Companhia M etropola
tana de Transportes Coletivos); Setor de Psicotécnica da FaculdadÉ
de Economia e Administração da Universidade de São Paulo - USra|
Serviço de Saúde Escolar e Seção de Higiene Escolar, relacionados jfl
Secretaria de Educação e Saúde Pública; Departamento de Ensina
Profissional. Esses núcleos de exercício profissional tinham comdl
objetivos a seleção e o treinamento de pessoal. Seus participantes
eram preparados para exercer os papéis de psicometristas, psicólo»!
gos clínicos, higienistas mentais e técnicos de seleção de pessoal. ,|
Em 1924, Roberto Mange inaugurou um serviço de seleçãd
de alunos no Liceu de Artes e Ofícios (ajudado por Henri Pièron a
sua esposa). Em 1 93 0 , essa experiência foi transplantada para ■
Estrada de Ferro Sorocabana, Inicialmente com a função de seleçta
a orientação de pessoal. A m ilp a se ampliou e, em 1932, Robarti
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 155

Mange passou a contar com a colaboração de ítalo Bologna; em


1933, com a de Aniela Ginsberg; em 1934, com a de Betty
Katzenstein Schõenfeldt; em 1937, com a de Oswaldo de Barros
Santos; e, no início da década de 1940, com a de Arrigo Leonardo
Angelini. As atividades também se ampliaram e eles passaram a
efetuar treinam ento, seleção, avaliação de desempenho, análises
profissiográficas, tradução e validação de testes. Em 1934, essa
experiência permitiu a esse grupo se engajar na criação de um Cen­
tro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional, assim como organi­
zar o Idort - Instituto de Organização Racional do Trabalho.
Poucos anos depois (1937), Roberto Mange e Oswaldo de
Barros Santos organizaram um gabinete de psicotécnica na Escola
Técnica Getúlio Vargas, idéia transplantada para o Senai, criado em
1942, e ampliada em 1945, quando implantaram a Orientação Vo­
cacional nos cursos vocacionais. Em 1947, organizaram o Serviço
de Pesquisa e Orientação no Departamento de Ensino Profissional
do Estado de São Paulo. Em 1941, a mesma estrutura foi implanta­
da na CMTC e, em 1950, na Sabesp - Companhia de Saneamento
Básico do Estado de São Paulo.
Nessa mesma época foi criado, no Instituto de Administração
da Faculdade de Economia e Administração da USP, um Setor de
Psicologia, dirigido por Raul de Moraes. Eugênia de Moraes de A n­
drade, Jovino Guedes de Macedo e Dulce de Godoy Alves também
atuaram nesse serviço. O principal trabalho desse grupo foi desen­
volver instrum entos de medida para pesquisas. Traduziram, adapta­
ram e padronizaram vários testes, como, por exemplo: Inventário
de Personalidade de R. C. Benreuter; CIA - Teste Coletivo de Inte­
ligência para A dultos; Inventário de Inteligência de Thurstone;
16PF - Fatores de Personalidade. Segundo depoimentos (Morais,
1999), a biblioteca da Administração tinha a maior quantidade de
obras psicológicas da USP no período em que esse serviço foi criado.
A seção de Higiene Mental Escolar foi criada na década de
1940 por Durval Marcondes. Helena Moreira e Silva Carmo (Morais,
Ibidem), que a partir de 1 954 trabalhou durante dezessete anos no
local, descreve o tipo de atividades realizadas pelos profissionais.
As crianças eram encaminhadas à Higiene Mental pelas educadoras
■anitárias. As queixas se referiam a repetências, comportamentos
de choro, agraaalvldads, roubos. As equipes de atendim ento eram
multldlscIplInSMir W m poitas por psicólogas, psicometristas, neu­
rologistas, .unitárias, fonoaudiôlogas, assistantes pe-
156 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOSj

dagógicas, psiquiatras e pediatras, que trabalhavam em conjunta


para atendê-las. Eram realizados exames clínicos, raios X. As "psi^
cólogas" e as educadoras sanitárias desenvolviam um trabalho de|
formação das professoras primárias para que elas pudessem sabejj
como selecionar e encaminhar as crianças. Segundo Helena, as dis|
cussões em equipe sobre os casos clínicos eram m uito ricas. \
Outra atividade mencionada eram as avaliações feitas cond
as crianças na intenção encaminhá-las para classes especiais. Erani
aplicados testes - principalmente o Binet-Simon (na edição de 1 9091
- e efetuadas conversas com os pais e os professores para fechai
um diagnóstico. Segundo a depoente, havia sempre uma d ú v id l
sobre outros aspectos que deveriam ser vistos, além dos testes, m
formação da classe especial era seguida de um acom panham enti
pedagógico dos alunos e da professora. Outro tipo de trabalho re la
tado por Helena era desenvolvido em "grupos escolares". A equip!
m ultidisciplinar se deslocava para uma determinada escola e atei®
dia a todos os alunos das escolas da redondeza que necessitasse»
do serviço. Procuravam atender prioritariamente a todas as c r ia *
ças de 7 anos, bem como às de outras séries que apresentasse*
problemas. fl
Outro núcleo existente na época era o da Cruzada Pró-lnfâ®
cia, que mantinha vários jardins de infância; Betty K atzenstdfl
Schõenfeld, segundo depoimento de Margarida W indholz (id e ril
ibidem), era quem fazia a avaliação e orientava das crianças q f l
freqüentavam essas classes. Utilizando o material obtido nos a te fl
dimentos, Betty desenvolveu várias pesquisas. ■
Além desses núcleos, a Psicologia também se fez preserifl
nas sociedades criadas com a finalidade de agregar p ro fissio n a |
interessados na área. As que se instituíram nessa época foram: f l
- A Sociedade Brasileira de Psicanálise (1927), fundada p f l
Franco da Rocha, Raul Briquet, Lourenço Filho, Durval M f l
condes e Almeida Júnior. Durval Marcondes, que h a vfl
mantido correspondência com Freud durante sua fo rm a ç ã *
passou a ser o primeiro diretor do Instituto de Psicanálise CÊ
São Paulo. fl
- A Sociedade de Psicologia de São Paulo (1945), o rg a n iz a *
por professores do curso de Filosofia e de Psicologia <■
Educação da USP, por alguns médicos da Faculdade de m Ê
dicina da USP e profissionais da Higiene Mental EscoIM
Segundo depoimento d« Annlta M. Cabral (Morais, 1 9 9 fli
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 157

a idéia de form ar a associação foi dela, após sua participa­


ção na American Psychological Association, quando esteve
nos Estados Unidos. Em seu depoimento, esclarece que pen­
sava ser uma oportunidade para associar grupos que tinham
uma certa disputa na cidade de São Paulo.
- A Associação Brasileira de Psicólogos, fundada em 1954 e,
segundo relatos, idealizada também por Annita M. Cabral,
tendo participado como colaboradores dessa criação: Vera
Hüsman, Virgínia Leone Bicudo, Odette Lourenção Van Kolck,
Dante Moreira Leite, Arrigo Leonardo Angelini. O depoimen­
to de Carolina M. Bori (idem, ibidem) demonstra que esse
nome foi escolhido para representar a categoria de profis­
sionais que desejavam ser reconhecidos, tendo sido altera­
do para Associação Brasileira de Psicologia em 1980.
- Foi também fundada no Rio de Janeiro a Associação Brasi­
leira de Psicotécnica (1949), cujo primeiro presidente foi
Lourenço Filho. Esta associação teve, entre seus criadores,
Emilio Mira y Lopez, tendo abrigado muitos profissionais
paulistas.

Nos anos 50, iniciaram-se as primeiras publicações nacionais.


I Sociedade de Psicologia de São Paulo iniciou a publicação do
Poletim de Psicologia. As cátedras de Psicologia da USP organiza-
[im o Boletim de Psicologia e o Boletim de Psicologia Educacional.
0 Instituto de Administração publicou a Revista do Instituto de
mdministração. A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -
r llC publicou a Revista de Psicologia Normal e Patológica. 0 Jornal
Wnisileiro de Psicologia iniciou sua publicação em 1960.
[ Partindo dessa contextualização, será feito, a seguir, um re-
lo rte para analisar o percurso histórico de dois dos núcleos de for-
jflflção existentes, nesse período, que permitiram a germinação de
Rlàlns psicológicas e a constituição da identidade de vários profis-
llonais que estudaram ou trabalharam nessa área. O primeiro deles
loi n Escola Normal Caetano de Campos, posteriormente transfor-
pBdn no Instituto de Educação Caetano de Campos e, em 1939, na
BtçSo de Educação e Pedagogia da Universidade de São Paulo,
pies cursos foram se constituindo como decorrência uns dos ou-
| 0 I , originando-se da Escola Normal. O segundo a ser analisado é o
Burio de Filosofia dessa mesma universidade, instituído com sua
pndaçâo em 1934*
158 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS!

Junto com o histórico da Escola Normal e seus desdobramen­


tos, são apresentados os percursos de quatro profissionais e, liga*
dos ao curso de Filosofia, de dois profissionais, considerados repre'
sentativos dos movimentos efetuados por cada um desses doij
núcleos de formação.

A Escola Norm al C a e tan o de C am pos (18401

A Escola Normal Caetano de Campos, segundo as evidências


foi um núcleo que funcionou fortem ente como impulsionador d
Psicologia em São Paulo. Os entrevistados mencionam que ess
instituição se diferenciava das suas congêneres. Em primeiro luga]
diferenciava-se por ser uma das duas escolas estaduais consider!
das Escolas Normais Secundárias e, como tal, responsável pela fcN
mação do professor do ensino secundário; conseqüentemente, |
nha um currículo mais rico, composto por Inglês e Trigonometry
além das matérias básicas. Em segundo lugar, era considerada tíl
d ic io n a l, por ter um grande renome e ser freqüentada por uma cliel
tela selecionada. Muitos profissionais que por ali passaram foraj
depois c o m p le ta r seus estudos no exterior. Também recebeu, I
longo de sua história, vários profissionais famosos vindos do mui
do todo para m inistrar cursos, dar palestras e montar laboratories
Sua história mostra que as noções de Psicologia passaram!
ser introduzidas no currículo do curso Normal a partir do final d
século XIX. Em 1912, a disciplina Pedagogia foi dividida oficli
mente em Pedagogia e Psicologia. Em 1914, foi organizado s |
Laboratório de Pedagogia Experimental, pelo italiano Ugo Pizzoj
considerado um psicólogo experimentalista. Nesse período, forai
desenvolvidos trabalhos experimentais sobre: raciocínio infantil, atei
ção, imaginação, memória, associações, grafismo, cinética e tipo
intelectuais. Esse laboratório já representava, no momento, a idéjl
de que a Psicologia deveria dar sustentação científica à Pedagogljj
através de sua contribuição com a psicometria (que classificava |
crianças) e a modernização dos sistemas de ensino, processo exifl
do pelo contexto social, preocupado com a qualidade da educaçjfl
Em 1 9 2 4 , Ugo Pizzolli deixou o laboratório e a cátedra, que fo rj]
assumidos por Antonio de Sampaio Dória, bacharel em Direlfl
que já trabalhava como professor na instltU($ÍQ> Juntamente o il
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 159

Roldão Lopes de Barros, ele difundiu nesse momento as idéias de


William James, Claparède e Dewey. Sampaio Dória foi também pro­
fessor de Lourenço Filho, seu sucessor a partir de 1925.
Annita M. Cabral (1950) relata que, até 1 9 2 5/1 930, a in­
fluência sobre os conteúdos psicológicos das disciplinas oferecidas
no currículo do curso normal foi totalm ente francesa, existindo os
cursos de Psicologia Geral em todas as Escolas Normais. Até 1 930,
o ensino de Psicologia era oferecido no penúltimo ano do curso, e
o de Pedagogia, no último. Nesse período, foram introduzidas as
idéias de testes, com base no trabalho de Pièron e Claparède, am­
bos já conhecidos em São Paulo.
Ainda na década de 1920, foram traduzidas obras de defen­
sores da Escola Nova, que atribuíam à Psicologia o papel de susten-
táculo das mudanças necessárias para que a educação pudesse
responder às necessidades do momento histórico. Nessa perspecti­
va, ela deveria subsidiar "as relações entre professor e aluno, o
processo de ensino-aprendizagem, a modernização metodológica, a
organização de classes, o conhecimento e o respeito ao desenvolvi­
mento da criança" (Antunes, 1998, p. 20).
Durante a gestão de Lourenço Filho, o laboratório foi reati­
vado, com a participação de Noemy da Silveira Rudolfer e de
outros colaboradores. As tem áticas estudadas no período foram :
"D esenvolvim ento de testes m entais", "Inquéritos sobre jo gos",
"Influência da leitura e do cinem a" e "M aturidade para leitura e
escrita".
Dois professores estrangeiros foram convidados para minis­
trar cursos: em 1927, Henri Pièron ofereceu um curso prático de
Psicotécnica, assistido por Lourenço Filho, Noemy da Silveira
Rudolfer e Roberto Mange, entre outros; em 1929, Leon Walther
ofereceu um curso de Psicologia Aplicada ao Trabalho Industrial.
Tanto nas atividades desenvolvidas no laboratório quanto nos cur-
h o s oferecidos pelos profissionais convidados pode-se observar uma

confluência de interesses na questão das medidas psicológicas.


A partir de 1 930, quando Lourenço Filho foi nomeado diretor-
geral do Ensino do Estado de São Paulo, as atividades do laborató­
rio passam a ser estendidas para alguns órgãos estaduais, ofere­
cendo servlçoi pilcológlcos à comunidade. Através do Serviço de
Psicologia A Departamento de Educação do Estado, diri-
flldo por N q VtlreRudolfer, é feita uma organização de
160 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUD

classes seletivas em todos os grupos escolares de São Paulo e n


escolas profissionais pertencentes ao Departamento de Ensino P
fissional do Estado.
São também criados serviços de orientação profissional. N
se momento, a psicologia educacional passou a trabalhar em c
junto com a organização empresarial, que já utilizava os egres
dos cursos de Pedagogia nas tarefas desempenhadas pela Psico
gia na nova sistemática de administração empresarial. Passo
atuar preventivamente nas escolas para encontrar, por meio de f
cessos de testes, indivíduos que tivessem interesses e aptid
para um bom desempenho nas atividades de trabalho. Para Ar>
nes, a racionalização introduzida nas mudanças da escola é mu
semelhante àquela utilizada na

(...) ad m inistração científica da indústria e do com ércio, am bas


cando m étod o s e p ro c e s s o s , ao m e s m o te m p o de seleção e av
ção , p o r m eio de técnicas que se pretendiam objetivas e isenta
valo ração subjetiva, prendendo-se à m ensuração e à q uan tifica
(1 9 9 8 Íp . 102)

É a partir desse período, conform e inform ação de An


M. Cabral (1950), que a influência norte-americana passou a
bastante presente.
Em 1931, com a reforma de ensino elaborada por Ferna‘
de Azevedo, começaram a ser oferecidos cursos de aperfeiçoa .
to em nível superior nas áreas de Biologia, Psicologia e Sociol
da Educação. Em 1932, Lourenço Filho passou a cátedra e o I
ratório, então denominado Laboratório de Psicologia Educacio
para a direção de Noemy da Silveira Rudolfer, que estabeleceu “
tro seções técnicas: medidas mentais; medidas do trabalho esc
orientação educacional; estatística. Esse laboratório perm ane5
em funcionam ento até o início da década de 1940.
A Escola Normal passou, em 1933, a Instituto de Educaç
continuando com a finalidade de formar professores primário
secundários, inspetores e diretores de escolas. Mantinha tamb
cursos de aperfeiçoamento, cursos primário e secundário, alérn
jardim da infância. A formação dos profissionais que viriam a tr»“
lhar nas escolas era oferecida pela instância denominada Escolhi
Professores. Nesse mesmo ano (1 9 3 3 ), Noemy foi nomeada dlr
ra do Serviço de Psicologia Aplicada da Eicola de Professora^
Instituto de Educação. Todo a « |t ppmplaxo ara vinculado ao
« i- An E atftd& i
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 161

Segundo Bernardo,

(...) o ensino na escola de professores era concretizado através de


cinco seções: Educação, Psicologia Educacional, Biologia aplicada à
E ducação, Sociologia Educacional e Prática de Ensino. Cada uma
dessas seções com preendia um conjunto de estudos distribuídos
em cursos. A Seção de Psicologia Educacional oferecia os seguintes
cursos: Psicologia da Criança e do A dolescente, Psicologia Aplicada
à Educação, T es te s e Escalas e O rien tação Profissional. ( 1 9 8 6 ,
p. 57)

Como já relatado aqui, esse modelo de ensino, baseado no


escolanovismo, correspondia às expectativas de transformação da
escola pública em São Paulo.
Com a criação da Universidade de São Paulo, a Escola de
Professores passa a constituir uma de suas unidades, com a deno­
minação de Instituto de Educação. Seu objetivo era oferecer forma-
ç8o de professor para os alunos oriundos de todas as seções da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O currículo proposto para
0 curso de formação compunha-se das seguintes disciplinas: Psico­
logia Educacional, ministrada por Noemy da Silveira Rudolfer; Biolo-
ministrada por Antonio de Almeida Junior; Filosofia e, poste­
riorm ente, Administração Escolar, ministradas por Roldão Lopes de
flarros; Sociologia, ministrada por Fernando de Azevedo; Metodolo-
iQla do Ensino, ministrada por Onofre de Arruda Penteado; e Estatís-
ftlca, ministrada por M ilton Penteado. A cátedra de Psicologia Edu-
Iflacional, nesse momento, foi incorporada à Universidade, e Noemy
Wudolfer foi nomeada para ministrá-la, em 1934. Pela primeira vez,
wropôs-se a inclusão da Psicologia como uma disciplina de Ensino
Superior. Noemy trabalhou como professora até 1954, quando foi
fflibstituída pelo professor Arrigo Angelini.
1 Bernardo (1986), estudando o período de criação da USP,
pBNtaca a distinção que desde o início marcou o Instituto em rela-
l l o ás outras faculdades que compunham essa Universidade. Os
p iotivos apontados pela autora foram dois: o aspecto profissionali-
B in to (formação de professores), que distinguia o Instituto das ou-
■ |B Instâncias da Faculdad® de Filosofia Ciências e Letras (concebi-
I c i com a flnalldada d t desenvolver o ensino desinteressado, a
■ tn c la e a pesqulaa), • a composição do corpo docente, que cola-
Bprava para o lumantO da diferença, A passagem do Instituto de
puo açlo para a UrtfViílWads foi raallxada sam nanhuma modificação
162 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

do corpo docente. A maior parte dos seus professores tinha forma- j


cão de nível médio, mas mesmo assim era responsável por form ar j
outros professores de nível primário e secundário, carregando con­
sigo todos os preconceitos associados a essa profissão. Ademais, I
os outros cursos da Faculdade de Filosofia contavam com a colabo- 1
ração de um grande número, senão a totalidade, de professores j
estrangeiros com títulos de nível superior reconhecidos internacio- I
nalmente. 1
Durante a gestão da professora Noemy da Silveira Rudolfer, I
várias mudanças foram introduzidas na organização formal da insti- S
tuição - que passou, em 1 9 3 8 , a se denominar Seção de Educação 1
e, em 1 9 3 9 , Seção de Pedagogia. A cátedra de Psicologia Educa- I
cional, nesse período, concentrou-se na investigação do desenvol- 1
vimento mental e nas diferenças individuais de aprendizagem. Se- 1
gundo alguns autores (Bernardo, 1 9 8 6 ; Leser de Melo, 1 9 7 5 ) , du- fl
rante todo esse período nunca houve real preocupação com a f o r - 1
mação do psicólogo escolar, estando essa cátedra a serviço som en-1
te da preparação profissional dos professores que viriam a trab alh ai;jl
no ensino de segundo grau. M
Morais (1 9 9 9 ) afirma que, entre as décadas de 1 9 4 0 e 1 9 5 0 , ®
a cátedra de Psicologia Educacional era responsável pelas seguin-B
tes disciplinas dos cursos de Pedagogia e especialização em Psico^jl
logia Educacional (organizado em 1 9 4 6 ) : Introdução à Psicologia|B
Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia do Adolescente, Psico^JB
logia Social, Psicologia do Anormal, Psicologia Diferencial e M étO |B
dos. Os professores-assistentes desse período foram: Cecília ElisaM
Castro e Silva, Maria de Lourdes Verderese, Maria José de B a rro s*
Fornari Aguirre, Arrigo Leonardo Angelini, Maria da Penha CaldeiríM
Pompeu de Toledo, Maria Dulce Nogueira Garcez, Odette Louren*'®
ção Van Kolck, Beatriz de Freitas Wey, Eulália Alves de S iq u e ira ,*
Nilontina Gonçalves Golanda, Hebe Rolim de Camargo, Romeu da l
Morais Almeida, Samuel Pfromm Netto. Este últim o relata (Morais, fl
ibidem) os trabalhos que desenvolveram nesse período no laborató- 1
rio da cátedra de Psicologia Educacional: pesquisas sobre cinema, !
TV e criança; comunicação de massa; ensino e aprendizagem a tr a * l
vés desses meios de cultura; psicologia do desenvolvim ento d t a
crianças e adolescentes. fl
Segundo relato de Maria José de Barros Fornari Aguirre, com B
o Início do curso de espeolallliçlo foi organizada uma clínica, o n d fll
aram atendidos crlançij^^ ^ ^ p. Manclona que cada um dos aa9
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 163

sistentes da cadeira havia se especializado na utilização de um tes­


te e cita como exemplos: "PMK, TAT, Machover, testes variados
de personalidade ou inteligência" (Morais, ibidem, pp. 31 e 33).
Informação de Morais (ibidem) nos revela que, entre 1950 e
1960, a cátedra de Psicologia Educacional transferiu-se para a Rua
Maria Antonia, e passaram a trabalhar no curso de Pedagogia os
professores Oswaldo de Barros Santos e Carolina Martuscelli Bori.
A partir dos anos 60, fizeram parte da equipe: Antonio Carelli, Car­
los Roberto M artins, Car mem Sílvia de Arruda Andaló, Geraldina
Porto W itter, José Fernando Bittencourt Lomonaco, Nilce Pinheiro
Mejias, Maria Helana Souza Patto, Maria Tereza de Araújo Silva,
Samuel Pfromm Netto, Therezinha Moreira Leite, Romeu de Morais
Almeida. Em 1960, o professor Bernard Rosen, da Universidade de
Connecticut, veio a convite da cátedra de Psicologia Educacional
para desenvolver pesquisas sobre motivação com o professor Arri-
go Leonardo Angelini.
Na década de 1960, nova mudança de local foi realizada, após
episódios de indisposição com os estudantes do Mackenzie. A
cátedra se transferiu para o prédio do Centro Regional de Pesquisas
Educacionais na Cidade Universitária. Samuel Pfromm Netto relata
duas situações características do período: seu envolvimento com
Tecnologias/Metodologias de Ensino e Aprendizagem, que o leva­
ram a introduzir a Instrução Programada, e, posteriormente, junto
com Geraldina Porto W itter e Nelson Rosamilha, a organização e a
oferta do "Primeiro curso de Psicologia Escolar do Brasil" (Morais,
Ibidem, pp. 38-44). Segundo Samuel, foram consideradas as in­
fluências francesa e americana na constituição desse curso. A pri­
meira propunha que a Psicologia Escolar deveria estar a serviço de
todos os escolares, indistintamente, devendo existir nas escolas
um trabalho preventivo com crianças e professores. A segunda es-
tnva ligada a um trabalho com crianças que já apresentavam dificul­
dades de aprendizagem. Esse trio, além de propor o curso, passou
n oferecer assessoria psicológica a escolas da cidade de São Paulo.
Com a formação do Instituto de Psicologia (1969), a cátedra
de Psicologia Educacional foi reivindicada pela Faculdade de Educa-
çfio e ficou agregada aos cursos de Licenciatura, composta pelas
disciplinas: Prática; Didática; Psicologia; Estrutura e Funcionamen­
to da Escola de Primeiro e Segundo Graus. No Instituto de Psicolo­
gia, os professores que pertenciam à antiga cátedra de Psicologia
iducsclonsl pssssrsm s compor o dsnomlnsdo Departamento de
164 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Psicologia da Aprendizagem, Desenvolvimento e Personalidade -


o PSA. (depoimento de Samuel Pfromm Netto, em Morais, 1999).
Samuel também relata que participou, por ocasião da reforma uni­
versitária, de uma comissão que, seguindo uma tendência mundial,
propôs a introdução do ciclo básico nos cursos da Universidade.
Essa proposta não foi levada a efeito em razão dos inúmeros pro­
testos dos alunos.
Os profissionais estudados neste trabalho - Manoel Bergstrom
Lourenço Filho, Noemy da Silveira Rudolfer, Annita de Castilho »!
Marcondes Cabral, Arrigo Leonardo Angelini, Oswaldo de Barroal!
Santos, Carolina Martuscelli Bori - participaram das experiênciaí
com a cadeira de Psicologia Educacional, seja na Escola Norm al
seja Instituto de Educação, seja nos desdobramentos posteriores'
Destes, os que vivenciaram primeiro essas situações foram Loureri
ço Fiho, Noemy da Silveira Rudolfer, Oswaldo de Barros e Arri
Angelini, responsáveis, cada um em seu tempo e a seu modo, pe
desenvolvim ento de alguns aspectos do que denominamos ho;
"Psicologia Educacional".
É im portante mencionar que também outras Escolas Norm
(como, por exemplo, as existentes nas cidades de Campinas, Pi
cicaba, Casa Branca, Limeira, Pirassununga), na década de 19
constituíram-se em ambientes propícios ao aparecimento de profl
sionais preocupados com a Psicologia. Todavia, neste estudo,
mos nos referir somente à Escola Normal Caetano de Campos, c
siderando-a como o exemplo mais evoluído de todas. Segundo
tunes (1998), as Escolas Normais de todo o Brasil efetuaram, nei
período, um m ovim ento de absorção do escolanovismo, que pro
nha a form ação de um novo homem que pudesse acompanh
modernização propugnada à época. Para tanto, a Psicologia repi
sentou o arcabouço científico que deu sustentação à Pedagog
Diz Antunes: t

É possível afirm ar que a Psicologia foi o pilar de su sten tação cl§r


fica para essa concepção pedagógica, pois era ela que cuidava
indivíduo e das diferenças individuais (representada pela psicok
d iferencial e suas técnicas, principalm ente a p sico m etria), do
cesso de d esenvo lvim en to psíquico, da aprendizagem , da dinêf
das relações interpessoais, da personalidade, das v o c a ç õ e i,
dões, m o tiva çõ e s , etc. (Ibidem , p. 7 2 )
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 165

A mesma autora justifica a importância dessas instituições ao


relembrar seu papel na produção de conhecimentos através das
pesquisas realizadas, das obras de autores nacionais e das tradu­
ções de autores estrangeiros publicadas.
Lourenço Filho, dentre os personagens estudados, represen­
ta um marco com relação às contribuições prestadas tanto à Edu­
cação quanto à psicologia educacional, dem onstrando o quanto
as duas Escolas Normais por ele cursadas - a de Pirassununga e a
Caetano de Campos - foram significativas em todo o seu desem­
penho posterior.

M a n o e l B e rg stro m Lourenço Filho (1 8 9 7 -1 9 7 0 )

Seu primeiro diploma de professor foi obtido na Escola Normal


de Pirassununga, vizinha de Porto Ferreira, sua cidade natal, onde
iniciou seu trabalho como professor primário em 1915. No ano se­
guinte, mudou-se para São Paulo, onde freqüentou a Escola Caeta­
no de Campos em busca de um novo diploma. Realizou, nesse pe­
ríodo, uma pesquisa sobre leitura e escrita. Iniciou um curso supe­
rior de Medicina, que abandonou no segundo ano; posteriormente,
freqüentou um curso de Direito, que completou em 1929. Apesar
de suas incursões em outros cursos superiores, dedicou-se durante
toda sua vida prioritariamente à Psicologia e à Educação.
Em 1920, foi professor de Psicologia e Pedagogia na Escola
Normal de Piracicaba, cidade onde também trabalhou em um colé­
gio particular financiado por uma fundação norte-americana. Nesse
colégio, tom ou contato com livros originários dos Estados Unidos
sobre psicologia educacional, passando após essa leitura a realizar
estudos sobre uso de testes de atenção e maturidade para leitor.
No ano seguinte, fundou a revista Estudo de Atenção Escolar.
Foi convidado e aceitou a incumbência de reformar o ensino
no Ceará, quando montou um pequeno laboratório de psicologia na
Escola Normal de Fortaleza. A reformulação dessa escola foi efeti-
vnda tendo em vista implementar os ideais do escolanovismo, atra­
vés da introdução de Pedagogia e Psicologia Científica. Os profes-
lores responsáveis pela formação do "homem novo", segundo essa
perspectiva, deveriam diapor de conhecimentos psicológicos.
Voltando • 81o Paulo, Lourenço Filho iniciou seu curso de
Direito e, enquanto aluno de Sampaio Dórla, foi convidado para
iucedê‘lo, am IC M N » laboratório de Psicologia Experimental,
166 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

ligado à Escola Normal Caetano de Campos. Efetuou, nesta situa­


ção, pesquisas e trabalhos de psicologia experimental; prontidão
para alfabetização; aprendizagem de leitura e escrita; jogos infan­
tis; influência da leitura e do cinema nos escolares; testes de desen­
volvim ento mental. Contou com a colaboração de Noemi da Silveira
Rudolfer, Branca Caldeira, Irene Muniz, Odalívia Toledo e João Da-
masceno Pena para desenvolver os trabalhos na Escola Normal.
No ano seguinte, foi convidado para organizar a Biblioteca
de Educação da Editora Melhoramentos, que passou a publicar li­
vros de Psicologia e Educação. Traduziu, nesse período, obras de
Claparède, Binet-Simon, Dewey, Kilpatrick, Pièron, Leon W alther,
Durkheim, m uitos deles defensores do escolanovism o, que in­
fluenciaram o seu pensamento. A partir desse momento, envolveu-
se com a defesa da Escola Nova. O resultado dessas influências
pode ser observado em suas duas publicações datadas de 1930 -
Introdução aos estudos da Escola Nova e Teste ABC - , bem como
em sua participação como signatário do M anifesto dos Pioneiros.
Em 1 9 2 7 , funda - ju nta m e nte com Durval M arcondes, Raul
Briquet, Almeida Júnior, Getúlio Moura Santos e Francisco Franco
da Rocha - a Sociedade Brasileira de Psicanálise.
Segundo Annita M. Cabral (1950), seus cursos e trabalhos
publicados até 1930 mostram uma influência da psicologia da cons­
ciência de Wiliam James e Warren. Posteriormente, foi influenciado
pelos resultados dos testes, por Pavlov e Watson, e passou a difun­
dir uma psicologia do comportamento.
Foi nomeado diretor-geral do Ensino do Estado de São Paulo
em 1932, quando implantou as classes homogêneas nas escolas
estaduais, através da aplicação de testes. Em 1931, nomeou
Noemy S. Rudolfer para a chefia do Serviço de Psicologia Aplicada
do Departamento de Ensino do Estado de São Paulo, que funcio­
nava na prática como uma extensão do Laboratório de Psicologia.
Criou cursos de aperfeiçoamento para professores, com duração
de dois anos, constando do currículo destes as disciplinas Psicolo­
gia e Sociologia. Criou também o Serviço Público de Orientação
Profissional.
Em 1932, deixou a cátedra e o laboratório, que passou a se
chamar Laboratório de Psicologia Educacional, para Noemy da Silvei­
ra Rudolfer, mudando-se para o Rio de Janeiro, onde passou a cola­
borar com Anfsio Teixeira na Eapola Normal e a lecionar Psicologia na
Faculdade Nacional de Fll0M f(id A Universidade do Braill. Trabalhou
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 167

também como professor de Psicologia Educacional na Universidade


do Distrito Federal e na Universidade do Brasil (1935-1937).
Entre o final da década de 1930 e início da de 1 940, Lourenço
Filho organizou e dirigiu o Instituto Nacional de Estudos Pedagógi­
cos (Inep), que dispunha de seções de orientação e seleção profis­
sionais. Nesse período, o Inep colaborou com o Departamento
Adm inistrativo do Serviço Público, efetuando a seleção de funcio­
nários públicos em todo o país. Mantinha um serviço de psicologia
aplicada, que realizou pesquisas sobre: "Vocabulários de escolares
e pré-escolares", "A influência de jornais e revistas infantis" e "En­
sino e a difusão da Psicologia no Brasil". Foram incluídas como
atividade do Inep a formação de professores, através de cursos de
aperfeiçoamento e estágios.
Fundou a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1944);
publicou A Psicologia a serviço da educação (1940) e Tendências
da educação brasileira (1948).
Ainda na década de 1940, Lourenço Filho estimulou a criação
do Instituto de Seleção e Orientação Profissional (Isop), contribuin­
do para a vinda de seu primeiro diretor, Emilio Mira y Lopez. 0 Isop
foi responsável pela divulgação, em todo o Brasil, das idéias mais
atualizadas sobre orientação, seleção, incluindo nesta os exames
psicotécnicos. Editou, a partir de 1949, a revista Arquivos Brasilei­
ros de Psicotécnica, sendo seu primeiro diretor. Em 1 949, fundou a
Associação Brasileira de Psicotécnica, sendo eleito seu presidente.
Como presidente, entregou para o Ministério da Educação o primei­
ro anteprojeto de Lei relativo à formação de psicólogos e à regula­
mentação da profissão. Esse projeto previa a formação de psicolo-
gistas, que seriam preparados em cursos de pós-graduação e traba­
lhariam vinculados a profissionais da Medicina.
Os anos 50 e 60 marcaram seu envolvimento com a regula­
mentação da profissão de psicólogo. Participou, a partir de 1953,
da comissão que trabalhou no anteprojeto de lei referente à form a­
ção do psicólogo e à regulamentação da profissão. Inicialmente,
envolveu-se com a proposta formulada pelos profissionais do Rio
de Janeiro, que propunha a regulamentação da profissão de psico-
logista, por estar na direção da recém-fundada Associação Brasilei­
ra de Psicotécnica. Mais tarde, participou também da comissão que
elaborou a proposta vencedora. Em 1962, foi eleito presidente da
comlssfio encarregada da opinar sobre o registro de psicólogo.
168 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Em 1 955, Lourenço Filho publicou A Psicologia no Brasil e O


estado atu a l da psicologia da m otivação. Aposentou-se, em 1957,
do cargo de professor de Psicologia Educacional da Faculdade Na­
cional de Psicologia.
Como se pode concluir, Lourenço Filho m ostrou durante todo
o seu percurso uma forte influência da psicometria, que de certa
forma ele instituiu nos órgãos nos quais trabalhou e dirigiu, seja em
São Paulo, seja no Rio de Janeiro, seja na área de educação ou de
organização. De certo modo, seu percurso confirm a as hipóteses
de Antunes (1998) sobre a estreita relação entre as áreas educa- ,
cionais e as organizacionais. Em um trabalho publicado em 1971
sobre a Psicologia no Brasil, refere-se a seu percurso como tendo
sido marcado por etapas nas quais procurou desenvolver tipos dife­
rentes de medidas. Inicialmente, foram os testes de desenvolvi-
mento mental e aptidões mecânicas; depois, os de maturidade para
aprendizagem da leitura e da escrita, os inventários de personalidade,
o Psicodiagnóstico de Rorschach, o M iocinético de Mira y Lopez, o í
Diagnóstico A fetivo de Weil, o Teste de Apercepção Temática -,
TAT e o Questionário de Benreuter.
Nesse mesmo trabalho, ele fez um balanço da bibliografia que I
ó citada no livro Psicologia moderna demonstrando a grande in­
fluência da psicologia americana no período. Diz ele: "70% dos
autores são norte-americanos ou ingleses, 10% alemães, 10% fran^ ;
ceses, 7% brasileiros, 3% espanhóis, latino-americanos e italianos".- !
Citou também alguns estrangeiros que estiveram temporariamente1j
ou trabalharam no Brasil como influenciadores do pensamento psi-.|
cológico brasileiro: Ugo Pizzoli, W aclaw Radecki, Henri Pièron, Th.
Simon, Léon W alther, W olfgang Kohler, Edouard Claparède, O tto !
Klineberg, Emilio Mira y Lopez, Helena A n tipoff, Pierre Janet, Henri !
Wallon, Jean Maügue, Paul Arbousse Bastide, Claude Lévi-Strauss,
Roger Bastide, Donald Pierson, Marie Joseph Peters, Betty Katzenstein,
Aniela Ginsberg, Reba Campbell.
Pode-se avaliar que, durante toda sua vida, Lourenço Filho
envolveu-se com questões das diferentes áreas da Psicologia, mas ;
suas atuações práticas voltaram-se primordialmente para a educa­
ção e para o trabalho. Sua busca constante de literatura estrangeira
e sua atividade de tradutor colocavam-no sempre a par das novai
abordagens da Psicologia, o qua provavelmente possibilitou suaa$|
transformações identltérlas, aaalm oomo sua permanente atuaçlQ*
no campo da Palcologla, Quio laqua da possibilidades ale amplia.
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 169

Pouco antes de se mudar para o Rio de Janeiro, Lourenço


Filho começou a introduzir, em vários locais de trabalho, Noemy da
Silveira Rudolfer, sua sucessora em São Paulo.

N o e m y da S ilveira R u d o lfe r (1 9 0 2 -1 9 8 8 )

Aluna e assistente de trabalho de Lourenço Filho na Escola


Normal Padre Anchieta e na Escola Normal Caetano de Campos,
Noemy foi posteriormente convidada por ele para ocupar vários
cargos públicos.
Em 1927, realizou cursos de formação no T ea ch e r's College
da Columbia University, quando teve a oportunidade de conhecer
as idéias de Dewey, Kilpatrick, Gates, Thorndike, W alker, Gesell,
Bühler, Holingworth e Cole. Viajou com bolsa financiada pela Asso­
ciação Brasileira de Educação e pelo International In stitu te of
Education of New York. Em 1930, realizou seu "M ajor" em Psicolo­
gia Educacional no T eacher's College. A partir de então, passou a
estudar as questões ligadas à psicologia da criança, da adolescên­
cia, da aprendizagem, e, principalmente, a utilização dos testes como
forma de diagnóstico. Segundo depoimento de Annita de Castilho e
Marcondes Cabral (1950), Noemy foi a primeira pessoa de São Pau­
lo a realizar cursos nos Estados Unidos na área de Psicologia.
Lourenço Filho, como diretor-geral do Ensino do Estado de
São Paulo, convida-a, em 1931, para chefiar o Serviço de Psicolo­
gia Aplicada pertencente a essa Diretoria e, em 1932, para assumir
a cátedra de Psicologia Educacional e o Laboratório de Psicologia
Educacional, ambos pertencentes à Escola Normal Caetano de Cam­
pos. O laboratório dispunha nesse momento de dezessete funcioná­
rios e contava com quatro seções principais: Medidas Mentais, Me­
dida do Trabalho Escolar, Orientação, Estatística. Funcionou ativa­
mente até meados da década de 1940, realizando pesquisas sobre
psicofisiologia, aferição de testes psicológicos, organização de tes­
tes de rendimento escolar para seleção e avaliação de crianças nas
escolas.
Entre os testes estudados, estão o Arm y M ental Test, o tes­
te de Dearborn, o de Kulhman-Anderson. Foram realizadas pesqui­
sas sobre os jogos infantis e as cartilhas utilizadas nas escolas.
Foi instalado o primeiro serviço de orientação educacional na rede
escolar e criadas classes para readaptação de crianças com defi­
ciências intelectual*. N t u t serviço, foi desenvolvida uma slste-
170 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

mática de estudos clínicos de casos-problema. O laboratório ser­


viu também como espaço privilegiado de estágio para os alunos
da Escola Normal.
Em 1 934, Noemy defendeu sua tese de cátedra, que teve por
título A evolução da psicologia educacional através de um histórico
da psicologia moderna, e, dois anos depois, publicou um livro, que
teve em sua primeira edição o mesmo título de sua tese. No Prefá­
cio desse livro, a autora explicitou que teve a intenção de fazer uma
revisão da História da Psicologia, aí inserindo a evolução da psicolo- '
gia educacional. Em 1960, na segunda edição, o título foi modifica- j
do para Introdução à psicologia educacional, e a autora incluiu um !
capítulo final que fazia referências a cinco modernas teorias de apren­
dizagem:

(...) Teoria dos estím ulos de E. R. G uthrie; Teoria do C ondiciona- |


m en to de Clark Hull; Teoria de C am po de Kurt Lew in; Teoria Orga-
nísm ica da A prendizagem de W h eeler; Teoria da A prendizagem com ■
um Propósito e o C om po rtam en to M o lar de T olm an .

Em 1935, é nomeada professora de Psicologia do Instituto ;


Caetano de Campos, que nessa mesma data é incorporado à Uni­
versidade de São Paulo com a finalidade de fornecer formação aos í
estudantes das diferentes áreas da Faculdade de Filosofia que esti­
vessem se preparando para o magistério. Ainda nesse ano, é convi- í
dada para m inistrar a disciplina Psicologia Social na Escola Livre de
Sociologia e Política, onde permaneceu até 1940.
Foi presidente do I Congresso Paulista de Psicologia, Neurolo- í
gia, Psiquiatria, Endocrinologia, Medicina Legal e Criminologia, rea­
lizado em São Paulo em julho de 1938. Os depoimentos permitem .
considerar que talvez este tenha sido um evento significativo em
sua vida, por ter propiciado um contato com a realidade mais clínica ■
da Psicologia. Na década de 1940, Noemy passou a participar das f
discussões de casos realizadas, todos os sábados, pelos psiquia­
tras no Hospital Franco da Rocha, bem como dos encontros e das ;
aulas que aconteciam no Serviço de Higiene Mental. Consta que i
nessa mesma década ela passou a fazer análise, no Rio de Janeiro, ;
e a trabalhar no Isop, do qual foi diretora de 1949 a 1951. Em !
conseqüência, passou a ter dolf endereços, um no Rio de Janeiro e
outro em Sfio Paulo. Velo também • trabalhar, concomitantemente,
com psicologia e d u c a d o q ^ ç ^ in lia c lo n a l e clínica. j
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 171

Noemy organizou, em 1946, um curso de especialização em


Psicologia Educacional, e ainda cuidou da publicação do Boletim da
FFCL - Psicologia Educacional, que durante três anos teve nove
números. Trabalhou como professora-visitante na Universidade do
Paraguai, em 1947. Nesse mesmo período, segundo depoimento
de Haim Grunspun (Morais, 1999), já oferecia cursos de Psicologia
Clínica na Av. São Luiz, esquina com a Av. Ipiranga, e também já
realizava trabalhos com grupo T. Diz Aidyl Macedo de Queiroz
Perez-Ramos (ibidem) ter participado de experiências em ludoterapia
na denominada Clínica Psicológica existente no mesmo endereço.
Em 1948, Noemy convidou Arrigo Leonardo Angelini para tra­
balhar como seu assistente na USP, onde ela permaneceu até 1954,
quando se aposentou. Em 1953, tornou-se membro efetivo da
Associação Internacional de Psicanálise e psicanalista-didata da
Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, organizada nessa data.
Em 1955, em um discurso proferido na posse de Arrigo Leonardo
Angelini como diretor da Sociedade de Psicologia de São Paulo,
Noemy declarou sua mudança de área de atuação, dizendo estar
abandonando a academia para trabalhar com indivíduos desajusta­
dos. Os dois artigos que publicou na década de 1 950 no Boletim de
Psicologia já demonstram essa tendência nos títulos: "Os motivos
profundos no desenho infantil"; "Psicologia profunda nas manifes­
tações artísticas". Em 1961, foi eleita para a primeira diretoria da
Sociedade Paulista de Psicoterapia e Psicologia.
O percurso de Noemy demonstra que ela viveu muitas trans­
formações em sua identidade profissional. No início, dirigiu sua ati­
vidade primordialmente às questões educacionais, sempre sob um
enfoque psicométrico, o que revela a influência americana que deve
ter recebido ao fazer seus estudos de pós-graduação naquele país.
Em alguns momentos, chegou a participar de algumas atividades
ligadas à área do trabalho. Seu contato com os profissionais da
medicina, sobretudo através de discussões acontecidas na Higiene
Mental ou no Hospital do Juqueri, devem tê-la influenciado na dire­
ção clínica psicanalítica que escolheu para exercer no final de sua
vida profissional. Há relatos que revelam um exercício clínico, in­
cluindo atividades de diagnóstico clínico e ludoterapia, a partir de
1946, com a introdução do curso de especialização em Psicologia
Educacional na Universidade de São Paulo.
Podemos considerar, ainda, que o exercício da atividade
psicométrica de diagnóstico, que era desenvolvida nos diferentes
172 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

ambientes de Psicologia Aplicada da qual Noemy participou, tinha


uma proxim idade m uito grande com a atividade clínica. É interes­
sante observar, também, que ela escolheu outra cidade para fazer
sua form ação, assim como para atuar como didata e psicanalista.
Seus assistentes relatam um clima de com petição entre as cáte­
dras de Psicologia Educacional e a cadeira de Psicologia (ligada à
Filosofia), o que talvez explique sua pouca participação nas asso­
ciações que se estabeleceram em São Paulo. Seu envolvim ento foi
maior com o projeto de regulamentação proveniente da Associa­
ção Brasileira de Psicotécnica. Os relatos não evidenciam sua par­
ticipação na organização do projeto vencedor.
Houve também uma indisposição de sua parte em relação à
organização do Instituto de Psicologia como uma instância inde­
pendente de outras unidades da USP, o que demonstra uma ambi­
güidade em seu com portam ento relacionado à autonomização da
Psicologia no Brasil. As questões de relacionamento pessoal po­
dem tê-la impedido de entender o significado tanto das propostas
de regulam entação quanto da criação do Instituto de Psicologia. í
Sua proxim idade com a psicanálise e com o modelo médico de \
trabalho podem igualmente ter impedido que Noemy buscasse j
novas perspectivas de atuação para o psicólogo. ]
Arrigo Leonardo Angelini foi seu sucessor na cátedra de Psi- ;
cologia Educacional da Universidade de São Paulo.

A rrig o Leonardo A n g e lin i (1 9 2 4 ) ,

Angelini freqüentou o Curso Normal no Colégio Paulistano (ter­


minado em 1 938) e, posteriormente, Pedagogia na FFCL da USP ;
(1942). Pouco antes de se formar, por indicação de Noemy da
Silveira Rudolfer, passou a trabalhar como assistente-técnico no \
Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional com Maria de
Lourdes Viegas. Nesse período, realizou pesquisas com a finalidade
de seleção e treinamento de candidatos aos cursos profissionais
mantidos pela instituição. Suas atividades nesse contexto de traba­
lho eram m uito parecidas com as que ele realizava na Faculdade.
Trabalhou com o estudo de testes de inteligência, aptidões gerais
e especiais, entre os quais o Teste de Habilidades Primárias de
Thurstone. Quando o Centro Ferroviário se transferiu para a Divisão
de Transportes do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial,
Angelini veio também a trabalhar com as mesmas funções nesse
outro local, ali permanecsndo até 1948.
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 173

Em 1949, a convite de Noemy da Silveira Rudolfer, foi no­


meado primeiro-assistente da cátedra de Psicologia Educacional da
FFCL da USP, quando assumiu as aulas das disciplinas Psicologia
da Aprendizagem, Psicologia da Adolescência, assim como as pes­
quisas que estavam sendo desenvolvidas na época. Passou a fazer
o curso de pós-graduação em Psicologia Educacional, (1 950/1 951 ),
preparando-se para a obtenção de grau de doutor.
Ainda estudante, participou das atividades da Sociedade de Psi­
cologia de São Paulo e, em 1951, fez parte da diretoria, exercendo o
cargo de secretário. Foi também eleito presidente por duas vezes. Muitos
de seus artigos foram publicados no Boletim dessa sociedade.
Em 1952, fez uma visita de estudos a dez universidades
norte-americanas, procurando conhecer as pesquisas que estavam
sendo desenvolvidas na área de aprendizagem humana. Esteve nos
departamentos de Psicologia das Universidades: Stanford, Berkeley,
Chicaco, Columbia, Northwestern. Nesta última, por sugestão do
professor Benton J. Underwood, planejou um experimento sobre
aprendizagem serial verbal, que transformou em sua tese de douto­
rado, aprovada em 1953.
Entrou em contato com o professor L. L. Thurstone em Chica­
go, tomando contato com o "Interest Schedule" nesse mesmo pe­
ríodo. Fez a adaptação e a aferição dessa prova no Brasil. Esse
trabalho foi utilizado para obtenção do título de livre-docente (1 957).
Posteriormente, junto com sua esposa, construiu um outro teste de
interesses, o Inventário de Angelini e Angelini, no qual os nomes
das profissões são substituídos por atividades de trabalho.
Em 1954, com a aposentadoria da professora Noemy Rudolfer,
assumiu interinamente a cátedra de Psicologia Educacional. Nesse
mesmo ano, voltou aos Estados Unidos para realizar um estágio na
Universidade de Michigan e conhecer uma técnica projetiva estuda­
da pelo prof. John W. Atkinson em colaboração com David C.
McClelland. Essa técnica objetivava avaliar o m otivo de realização
humana. Com base nessa experiência, Angelini criou um instru­
mento adaptado para avaliar a motivação humana na realidade bra­
sileira, procurando superar as dificuldades observadas quando de
sua aplicação nos Estados Unidos. Nomeou essa técnica de MPAM -
Método Projetivo de Avaliação da Motivação. Segundo seu depoi­
mento, o interesse por estudos interculturais se iniciou nessa épo­
ca. Essas pesquisas resultaram na tese para professor catedrático
(1956), que poattfiormante foi publicada em forma de livro: Moti­
vação humant (1973).
174 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Ainda em 1954, Angelini participou da fundação da Associa­


ção Brasileira de Psicólogos, que a partir desse momento passou
a representar o Brasil na Union Internationale de Psychologie
Scientifique. Nessa associação, assumiu vários cargos de direção,
tendo participado através dela de vários congressos internacionais.
Durante vários anos, suas pesquisas versaram sobre a ques­
tão da m otivação humana, principalmente interesses, preferências
e habilidades. Trabalhou também com muitos estudos intercultu-
rais, dentre os quais o mais significativo foi o que procurou analisar
o m otivo de realização nos Estados Unidos, na Alemanha e no Ja­
pão. Efetuou ainda uma pesquisa, em colaboração com os Estados
Unidos, na qual procurava verificar aspectos de aspiração profissio­
nal e educação de filhos.
Em 1 958, Angeüni participou da organização do curso de gra­
duação em Psicologia na Universidade de São Paulo, criado por
uma lei estadual. Esse curso tinha por objetivo form ar em três anos
o bacharel em Psicologia, e como tal era de natureza teórica e aca­
dêmica. A cátedra de Psicologia Educacional, da qual era titular,
ficou responsável pelas disciplinas Psicologia da Aprendizagem,
Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Personalidade e Tes­
tes e Medidas Psicológicas.
Em 1 959, realizou-se no Rio de Janeiro o VI Congresso Intera-
mericano de Psicologia, do qual Angelini participou, tendo discursa­
do no encerramento. Foi também colaborador dessa associação,
tendo posteriorm ente participado de vários cargos de diretoria e
sido eleito seu presidente para o período 197 2/1 973, quando reali­
zou o XIV Congresso em São Paulo. Em dois eventos promovidos
pela entidade, apresentou trabalhos referentes às questões provo­
cadas pelas pesquisas interculturais. Em razão dessa sua participa­
ção na SIP, foi durante 1960 e 1961 professor visitante da Univer­
sidade Central da Venezuela, onde ofereceu um curso de pós-
graduação em Psicologia Educacional.
Durante a década de 1950, Angelini relatou ter participado
das discussões sobre a regulamentação da profissão, juntamente
com os professores da cátedra de Psicologia, do curso de Filosofia
da USP, e com os membros da Associação Brasileira de Psicologia
e da Sociedade de Psicologia de São Paulo.
Nos anos 60, efetuou duas grandes pesquisas interculturais.
A primeira, realizada em parceria com Estados Unidos, Alemanha,
Itália, Inglaterra, Japão, Iugoslávia e México, tinha por finalidade
•studar durants aproxlmadamanta olnco anos a conduta social da
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 175

crianças e adolescentes: estilos de enfrentamento, atitudes perante


a realização, autoridade, ansiedade sociabilidade e agressão, rela­
cionadas com o aproveitamento escolar. A segunda pesquisa dizia
respeito a interesses e valores vocacionais em diferentes culturas.
Estavam envolvidos nesse projeto: Chile, México, Panamá, Peru,
San Salvador, Venezuela, Uruguai e Estados Unidos. Nessa mesma
década, Angelini iniciou no Brasil uma linha de pesquisa sobre o
papel do professor e características do professor eficiente. Vários
orientandos seus desenvolveram, mais tarde, trabalhos ligados a
esse tema.
Com a regulamentação da profissão, em 1 962, passou a ba­
talhar pela criação do Instituto de Psicologia da USP, o que ocorreu
em 1969. Foi indicado seu diretor e cuidou de sua instalação, vol­
tando a ocupar a diretoria por duas outras vezes.
Funcionalmente, durante os anos 1966 e 1967, atuou como
professor colaborador da Universidade de Brasília e, em 1967 e
1968, como professor visitante da Universidade do Texas, onde
ministrou cursos de pós-graduação em Psicologia Intercultural. Em
1971, foi criado o Conselho Federal e os Conselhos Regionais.
Angelini foi eleito o primeiro presidente do Conselho Federal, em 1973,
quando se responsabilizou por sua instalação, assim como dos Con­
selhos Regionais. A partir de 1979, atuou como sócio-fundador da
Academia Paulista de Psicologia, à qual se dedica até hoje.
Diferentemente desse grupo de profissionais formados na área
de Educação, Arrigo Angelini foi o que permaneceu durante toda sua
vida trabalhando em temas ligados a essa área. No início de sua vida
profissional, trabalhou concomitantemente com psicologia industrial,
o que era muito comum na época, considerando-se que a formação
na área de educacional enfatizava muito o uso de testes. Mais tarde,
quando passou a realizar pesquisas de cunho intercultural, também
se utilizou de instrumentos de medida. Sua faceta de administrador
pôde ser desenvolvida nos trabalhos ligados às associações às quais
pertenceu, nos trabalhos realizados na própria Universidade, por oca­
sião da organização do Instituto de Psicologia, no início dos cursos
regulares de pós-graduação, assim como nos trabalhos que efetuou
nos Conselhos Federal e Regional de Psicologia.
Durante toda sua vida, realizou ainda inúmeras pesquisas e
publicou intensamente nas diferentes revistas existentes (desde a
década de 1950 até a de 1980): Boletim de Psicologia; Boletim da
Faculdade da Filosofia Ciências a Letras da USP; Arquivos Brasileiros
176 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

de Psicotécnica-, Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada; Revis­


ta de Pedagogia; Revista de Psicologia Normal e Patológica; Pesqui­
sa e Planejamento; The Journal o f Social Psychology; Interamerican
Journal o f Psychology; Revista Latino-Americana de Psicologia.
Arrigo, dentre os profissionais estudados, é o que mantém
maior permanência de interesses durante toda a sua vida profissio­
nal. Suas atividades iniciais, realizadas tanto na Academia quanto
no Centro Ferroviário, marcadas fortem ente pela psicometria, refe­
riam-se à tradução e à adaptação de testes. Elas demonstram a
forte influência norte-americana em sua maneira de exercer a Psico­
logia. Visavam avaliar diferenças individuais de aprendizagem e de
fatores motivacionais. Nessa fase, criou um teste de interesses,
partindo de um modelo norte-americano mas incluindo uma carac­
terística diferenciada, que, segundo ele, era mais apropriada para a
cultura brasileira. Posteriormente, ainda com um forte tendência
psicométrica, passou a se preocupar com questões de diferenças
interculturais, também influenciado por pesquisas apresentadas nos
congressos internacionais dos quais participou. Nessa perspectiva,
Angelini ampliou também o espectro de sua tem ática de estudos,
incluindo a questão de valores, de relacionamento entre membros
da família ou de membros da realidade escolar, acompanhada de
preocupações sobre ajustamento e orientação. Participou de proje­
tos internacionais de pesquisa com esse teor.
Sua outra vertente de trabalho, além da pesquisa, situa-se na
participação intensa em associações, assim como nos trabalhos de
luta para reconhecimento da profissão e organização das situações
de formação regular e organização dos órgãos de classe. Talvez a
situação por ele vivida desde muito cedo, como substituto da profes­
sora Noemy da Silveira Rudolfer, tenha colocado Angelini ante ques­
tões políticas de implementação da profissão. Pode-se avaliar portanto
que, mesmo não tendo contribuído para a constituição do significado
da psicologia educacional, ele teve uma participação importante na
formação da identidade da psicologia como profissão autônoma.

O sw a ld o de B arros S a n to s (1 9 1 8 -1 9 9 8 )

Oswaldo de Barros Santos é outro ex-aluno de Noemy que


contribui para o fortalecimento de várias áreas da Psicologia. Traba­
lhou com psicologia aplicada, foi pioneiro na área de aconselha-
manto psicológico e também n* atendimento a superdotado*.
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 177

Freqüentou a Escola Normal Caetano de Campos, terminando


seu curso em 1934. Posteriormente, cursou a Escola Superior de
Educação Física (terminada em 1939) e, em 1950, concluiu Peda­
gogia na USP. Iniciou sua vida profissional no mesmo ano da form a­
tura da Escola Normal, atuando como professor. No ano seguinte,
começou a trabalhar em firmas comerciais e industriais. Nesse am­
biente, passou a maior parte de sua vida profissional, de início como
auxiliar-técnico, depois como psicotécnico, chegando enfim a
vários cargos de direção na área de recursos humanos.
De 1937 a 1947, trabalhou no gabinete de psicotécnica da
Escola Técnica Getúlio Vargas, juntamente com Roberto Mange.
Durante esse período, publicou o primeiro M anual de orientação
profissional. Em 1938, apresentou o trabalho Orientação profissio­
nal dos aprendizes das escolas profissionais de São Paulo, no Pri­
meiro Congresso Paulista de Psicologia, Neurologia, Psiquiatria, En-
docrinologia. Trabalhavam com ele, nessa época, Betty Katzenstein
Schõenfeldt, Aniela Ginsberg e Joel Martins.
A partir de 1942, passou a trabalhar como auxiliar-técnico no
Senai, atuando com uma equipe formada por Roberto Mange, Italo
Bologna, Betty Katzenstein e W alther Barioni. Foi promovido a che­
fe da Divisão de Seleção de Orientação e, a partir de 1945, introdu­
ziu os cursos vocacionais e o serviço de orientação profissional e
educacional em toda a rede de ensino industrial. Criou um teste de
inteligência, o AG-3, que segundo seu próprio depoimento levou
dez anos para ficar pronto. Permaneceu nessa instituição até sua
aposentadoria, em 1980. Concomitantemente ao Senai, onde tra­
balhava meio período, passou a atuar no Departamento de Ensino
Industrial, um órgão público de fomento à Educação.
Ainda desenvolvendo atividades psicotécnicas, trabalhou no
Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional, juntamente com
Arrigo Leonardo Angelini e Maria de Lourdes Viegas. Nesse centro,
assim como nos outros locais, foram feitas diversas pesquisas para
estudar vários testes de inteligência geral e aptidões específicas.
De 1947 a 1965, chefiou o Serviço de Pesquisas e Orienta­
ção Educacional do Departamento de Ensino Profissional do Estado
de São Paulo. A partir de 1950, trabalhou paralelamente na Sabesp
e na CMTC. Na década de 1950, depois de term inar seu curso de
Pedagogia, fez um curso de aperfeiçoamento no Institut d'Études
du Travail et d'Orlentation Professionelle, corn Henri Pièron. Esses
curaos eram estimulado» pelo próprio Senai, e multos doa alunos
que a aie • • dirigiram aram bolalitai do govarno francéa.
178 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Em 1956 e 1957, Oswaldo realizou cursos de pós-graduação


em Psicologia Clínica e Orientação na Florida State University e na
Columbia University (por indicação de Noemy Silveira Rudolfer).
Durante o período de um ano, teve bolsa do governo americano
para realizar seus cursos. Nos anos 60 e 70, fez estágios em insti­
tuições psicológicas da Inglaterra, de Portugal, França e Itália.
Com essa formação, iniciou suas atividades na carreira do­
cente e também na clínica. De 1949 a 1952, foi professor do Insti­
tuto de Serviço Social e, de 1954 a 1967, da Faculdade de Filosofia
Sedes Sapientiæ. De 1959 a 1960, foi assistente da cátedra de
Psicologia Educacional da USP; de 1959 a 1961, atuou como pro­
fessor da PUC/Campinas. No período de 1961 a 1964, organizou a
clínica psicológica PUC/SP. De 1964 a 1974, foi professor colabo­
rador de Aconselhamento Psicológico da USP, quando deu início ao
Serviço de Aconselhamento Psicológico, que adotou uma perspec­
tiva rogeriana. Oswaldo relata que foi muito bem aceito pelos alu­
nos, porque até então os de quinto ano só tinham contato com
duas perspectivas: a behaviorista e a psicanalista. Sua abordagem
veio enriquecer o currículo já existente, e ele sentia que os alunos
valorizavam essa experiência. Ao se retirar da Faculdade, escolheu
Raquel Lea Rosenberg para sucedê-lo. Bem mais tarde, na década de
1990, ministrou no Sedes Sapientiæ um curso de Terapia Rogeriana.
Em 1970, tornou-se doutor pela USP, com a defesa da tese
denominada Contribuição aos métodos de aconselhamento e psico-
terapia. Em 1975 iniciou sua Clínica Psicológica, adotando como
abordagem o Aconselhamento Psicológico rogeriano. Trabalhou nela
até seu falecimento. Na década de 1980, contribuiu significativa­
mente para o conhecimento acerca do superdotados, efetuando
pesquisas e publicando artigos e capítulos de livros sobre o assunto.
No primeiro capítulo de seu livro Aconselham ento psicológi­
co e psicoterapia (1982), Oswaldo fez um breve histórico das ten­
dências da Psicologia, dem onstrando que esta efetuara um per­
curso que ia do privilégio das técnicas do diagnóstico (1920 a
1960) até o desenvolvim ento de processos de orientação, acon­
selhamento e psicoterapia. De certa form a, sua história de vida
mostra que também ele fez um percurso parecido com este. Suas
obras publicadas até os anos 60 privilegiam a psicotécnica, a se­
leção e a orientação profissional; nos anos 70, publica matérias
sobre aconselhamento, Rogers, desenvolvim ento do potencial hu­
mano; e, nos anos 80, refere-se a aconselhamento versus psico­
terapia, e aos superdotado!)
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 179

Oswaldo participou de inúmeras associações. Foi sóclo-fun-


dador da Sociedade de Psicologia de São Paulo (1945) e da ASSO-
ciação Profissional dos Psicólogos do Estado de São Paulo (da qual
foi presidente de 1969 a 1972); participou da criação do Sindicato
dos Psicólogos do Estado de São Paulo e do Centro para o Desen­
volvim ento da Pessoa. Integrou a diretoria do Idort; foi membro da
Associação Brasileira para Superdotados; colaborou com a Colméia,
com a Escola de Pais. Foi membro do Conselho Federal de Psicolo­
gia, entre 1973 e 1976, e fundador da Academia Paulista de Psico­
logia, em 1 979 (presidente em 1988 e 1989). No período de 1994
a 1996, foi membro da Comissão de Normas e Procedimentos de
Avaliação do CRP-06, instalado por ele em São Paulo e do qual se
tornou o primeiro presidente.
O percurso profissional de Oswaldo de Barros mostra uma
constituição de identidade muito peculiar. Sua formação regular e
os cursos que efetua devido à sua primeira inserção profissional na
área do trabalho conduzem-no a uma atuação basicamente psico-
metrista, e é com essa ênfase que ele desenvolve sua atividade
profissional nesta área durante a maior parte de sua vida. Em con­
trapartida, os contatos mais tardios com outra perspectiva de tra­
balho, a rogeriana, possibilitados por sua formação no exterior, im ­
pulsionam Oswaldo a atuar, abrindo uma outra frente de trabalho
para a Psicologia. De certa forma, ele se torna o responsável pela
divulgação desta nos mais importantes espaços de formação exis­
tentes no Estado de São Paulo: na PUC/Campinas, na PUC/SP, na
USP e no Sedes Sapientiæ. Com sua aposentadoria, que se dá na
área de trabalho, Oswaldo passa a atuar mais intensamente na área
clínica, dentro dessa perspectiva rogeriana.
Sua proximidade com a área educacional se dá não só através
de seu trabalho psicométrico, mas principalmente por sua atuação
em orientação educacional, profissional e treinam ento, que desen­
volveu durante sua vida. É importante acentuar sua participação
em todos os eventos importantes relacionados à regulamentação
da profissão e à organização dos Conselhos Federal e Regionais de
Psicologia, assim como sua colaboração com o desenvolvimento de
várias associações ligadas a essa área. Todas essas atividades de­
monstram sua contribuição para a autonomização da Psicologia.

Esses quatro profissionais mencionados freqüentaram a Esco­


la Normal e, postsrlormente, efetuaram estudos no anslno superior
180 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

ligados à psicologia da educação, estando, portanto, por sua fo r­


mação, ligados à psicologia educacional. Suas carreiras profissio­
nais demonstram uma forte ligação com a psicologia norte-america-
na e, sobretudo, sofrem uma influência muito grande da psicome-
tria, tendo todos trabalhado com psicotécnica.
Annita M. Cabral efetua uma avaliação do tipo de trabalho
desenvolvido pelo grupo ao qual esses quatro profissionais perten­
ciam, revelando uma certa divisão entre eles e aquele do qual ela
própria fazia parte. Disse ela:

O ensino da Psicologia nas escolas norm ais, nas Seções de Pedago­


gia das Faculdades de Filosofia, em instituições especializadas com o
as sociedades Pestalozzi, o Instituto de Seleção e O rien tação Profis­
sional, e a própria Escola de Sociologia e Política de São Paulo, é
sempre prim eiram ente orientado para fins práticos, não de pesquisa.
(1 9 5 0 , p. 3 9 )

Complementando essa idéia, ela menciona os treinamentos


práticos oferecidos aos que exerciam a função de psicometristas ou
técnicos. Ao se referir desta maneira ao trabalho desenvolvido pe­
los componentes do grupo, Annita deixa de considerar como pes­
quisa o que todos eles ressaltaram, ou seja, a importância dos estu­
dos na área da psicometria como uma possibilidade de evolução da
Psicologia. De certa maneira, sua fala revela uma diferença de pers­
pectiva de grupos, já que também recebe uma crítica quanto ao
trabalho desenvolvido por ela própria na Psicologia/Filosofia, que é
classificado como eminentemente teórico, com ausência de expe­
riências práticas de pesquisa. Há uma diferença de perspectivas
que talvez não pudesse naquele momento ser avaliada como uma
simples diferença e passasse por um crivo de juízo de valor.
No percurso de cada um deles, pode-se observar que as influên­
cias externas foram muito significativas em suas transformações.
0 contato com a literatura, os cursos realizados no estrangeiro, os
encontros e congressos de Psicologia fizeram que todos eles intro­
duzissem mudanças em suas atividades profissionais. Desses qua­
tro profissionais, Arrigo Leonardo Angelini foi o que permaneceu
durante a maior parte de sua vida ligado às tem áticas da psicologia
educacional, mas sempre dentro de uma perspectiva psicomótrica.
É interessante notar que tanto Noemy da S. Rudolfer quanto
Oiwaldo de Barros Santos terminaram seus percursos proflsslonali
na psicologia clínica. Lourenço Filho também aa envolveu em
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 181

alguns momentos de sua vida com a psicanálise. Todos eles, por


diferentes perspectivas, também participaram das discussões efeti­
vadas para a regulamentação da profissão.
Apesar de três desses profissionais terem sido sucessores uns
dos outros, seus percursos muito diversos devem ter colaborado para
a não-constituição de um campo claramente delineado da psicologia
educacional. A isto vem se somar uma informação, fornecida por eles,
de que também internacionalmente, no período estudado, não havia
uma unanimidade em relação ao campo da psicologia educacional/da
educação/escolar. Eram vários os objetos de trabalho, assim como as
metodologias e os tipos de formação existentes nas várias instituições
mencionadas, tanto nos Estados Unidos como na Europa.
Angelini, em artigo datado de 1963, fez uma retrospectiva
histórica da psicologia educacional mediante consulta a obras que
analisavam currículos de cursos nos Estados Unidos e a temas tra­
tados em livros denominados "Psicologia educacional". O que fica
claro nesse artigo é a pouca concordância entre os diferentes auto­
res sobre os temas que seriam próprios da psicologia educacional,
assim como a diversidade de currículos existentes nas instituições
analisadas. Essa realidade, assim divergente, pode ter sido trans­
plantada também para o Brasil, no momento histórico aqui estuda­
do, dificultando a constituição de uma identidade claramente deli­
mitada do campo denominado "psicologia educacional".
Para Sylvia Leser de Mello (1975), o não-estabelecimento de
uma identidade nessa área se deveu a dois tipos de fatores: em
primeiro lugar, as atividades desse grupo eram dirigidas à formação
e à profissionalização de professores, e não de psicólogos; em se­
gundo plano, há a questão da utilização intensa, pelos membros do
grupo, de testes e de outras técnicas psicológicas, o que teria impe­
dido a criação de uma outra perspectiva de atuação mais preventi­
va ou mais institucional.
Bernardo (1 986) contribuiu também para esclarecer essa ques­
tão. Para ela, é possível considerar que o preconceito inicialmente
atribuído aos professores da Escola Normal tivesse sido transferido
para a psicologia educacional e organizacional por conta da decor­
rência de formação, e esse fator pode ter impedido o desenvolvi­
mento de uma identidade para a psicologia educacional, assim como
facilitado a evolução do preconceito.
A maama questão do preconceito aparece no depoimento de
Halana Moralra s Silva Carmo (Morais, 1999), só que ligado à ima­
182 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

gem dos alunos que faziam o curso de Pedagogia. Referindo-se a


um período em que foi convidada para lecionar na cadeira de Psico­
logia Educacional, menciona que os alunos do curso de Pedagogia
eram m uito mais "fracos". As causas apontadas para explicar essa
diferença foram: seu pertencimento a uma classe social mais baixa,
menor competição no vestibular, freqüência de cursos noturnos nos
graus anteriores.
Outra questão que se coloca é o fato de a maior parte dos
profissionais desse grupo terem se dedicado também à psicologia
clínica. Isto poderia ter impedido que se definisse claramente um
campo de trabalho ligado à psicologia educacional? Ou será que a
indefinição do campo de psicologia educacional/escolar se deve a
uma conjunção de todos esses fatores acima explicitados?
Em 1 969, por ocasião da criação do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, esta cátedra dá origem ao Departamen­
to de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Perso­
nalidade. Mesmo não tendo uma identidade claramente delineada,
não houve uma fragmentação, como ocorreu com a cátedra de;
Psicologia ligada ao curso de Filosofia da mesma universidade.

O curso de Filosofia da Universidade de São Paulo

Com a fundação da Universidade de São Paulo, é instituído o


curso de Filosofia, outra grande instância de promoção da Psicolo­
gia, que passa a atuar paralelamente ao Instituto de Educação (ori-,
ginado da Escola Normal Caetano de Campos), que se transforma,
posteriormente na Seção de Educação e de Pedagogia da USP.
A Seção de Filosofia da Universidade de São Paulo foi criada
em 1934, e seu currículo é constituído de quatro cadeiras: Filoso­
fia, História da Filosofia, Filosofia da Ciência e Psicologia. Inicial­
mente, funcionou na Rua da Consolação; mais tarde, no 3o andar
do Instituto de Educação Caetano de Campos. Na década de 1950,
foi para a Rua Maria Antonia, com algumas aulas de Psicologia
Experimental sendo dadas na Alameda Glete e, outras, na Avenida
São Luiz. Em setembro de 1964, a clínica de psicologia da faculda­
de passou a funcionar na Rua Jaguaribe, n. 585; em 1966, a seda:
passou para a Rua Cristiano Viana, n. 177, Em 1968, enfim,
mudou-se para o Pavilhão B-10 da Cidade Universitária,
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 183

Contrariamente ao que ocorreu com o grupo de profissionais


responsáveis pela Psicologia na Escola Normal (mais tarde, Institu­
to de Educação, Seção de Educação e Pedagogia), formado basica­
mente por brasileiros, discípulos uns dos outros e com uma história
de sucessão natural, ao se criar a seção de Filosofia, tal como ocor­
reu com todos os outros cursos criados na época da implantação
da USP, foram contratados professores estrangeiros, que se res­
ponsabilizaram pelas cátedras existentes. No caso da Filosofia, a
cátedra de Psicologia foi por eles exercida durante anos.
O primeiro professor a atuar foi o filósofo francês Jean Maugüé
(1 935 a 1944), contratado inicialmente para ministrar todas as quatro
cadeiras. Foi sucedido na de Psicologia pelo psicólogo nascido no
Canadá, e formado nos Estados Unidos, Otto Klineberg (1944 a
1947). Outros professores estrangeiros que ministraram disciplinas
nesse curso foram: Paul Arbousse Bastide, Claude Lévi-Strauss,
Roger Bastide e Luigi Galvani.
Jean Maugüé organizou um programa de Psicologia nos mol­
des franceses, entendendo-a como parte da Filosofia. Oferecia au­
las magnas sobre temas como: vida afetiva (princípio do prazer,
emoções, sentimentos), percepção, memória, personalidade, feno-
menoiogia da percepção, memória afetiva, caractereologia. Inaugu­
rou no Brasil a psicologia denominada na época de "concreta", e
era crítico da psicologia experimental (Cabral, 1950). Apesar de a
História da Psicologia no Brasil atribuir-lhe esse papel de iniciador
da Psicologia no curso de Filosofia, por ocasião da comemoração
dos 50 anos da USP, ao dar uma entrevista aos organizadores de
um filme histórico, ele não se refere nenhuma vez a essa experiên­
cia com a Psicologia. Também não menciona nenhum dos seus
antigos alunos que prosseguiram desenvolvendo esta área do
conhecimento. Em trabalho mais recente (Morais, 1999), há um
relato de um veto de Annita M. Cabral a um possível retorno de
Maugüé à USP, o que poderia explicar sua falta de lembranças a
respeito de sua ligação profissional com a Psicologia.
Ao assumir a cátedra, Klineberg mudou o enfoque da cadeira,
dirigindo-a mais para a psicologia social. No período em que esteve
no Brasil, a Psicologia passou a ser oferecida em três momentos do
curso de Filosofia: no primeiro ano, era Psicologia Geral e Experi­
mental, quando se discutia sobre escolas e sistemas em Psicologia;
no segundo, Psicologia Social e Diferencial; no terceiro, Psicologia
da Personalldada MNMApMtOlogla,
184 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Em 1946, com Klineberg na direção da cátedra, criou-se um


curso de especialização em Psicologia/Filosofia, legalizado após uma
interferência de André Dreyfus junto ao governador. Os primeiros
professores foram Otto Klineberg, Annita M. Cabral, Cícero Christiano
de Souza. As matérias oferecidas eram: Biologia, Fisiologia, Estatís­
tica, Sociologia, Antropologia e Psicologia Aplicada (Morais, 1999).
Posteriormente, passaram a trabalhar nesse curso: Carolina M. Bori,
Natália V oinoff, Maria da Penha Caldeira Pompeu de Toledo, Dante
Moreira Leite, Elza Lima dos Santos. Nesse mesmo ano, foi iniciada
a publicação do Boletim da FFCL/U SP - Psicologia. Até 1968,
foram organizados doze números.
Em 1 947, ao deixar o Brasil, Klineberg foi substituído por Annita
M. Cabral, ex-aluna da Escola Normal Caetano de Campos, colabo-
radora do Laboratório de Psicologia e sua ex-aluna do curso de
Filosofia. Ao assumir a cátedra, ela já havia realizado um curso de
aperfeiçoamento com Kofka no Smith College, bem como mestrado
com W ertheim er na New School for Research, ambos nos Estados
Unidos. Annita alterou o programa de Klineberg, introduzindo tes­
tes mentais e técnicas projetivas - com destaque para o Rorschach.
Essa última disciplina foi ministrada por Carolina M. Bori, primeira-
assistente da professora Annita e que, na época, ainda cursava o
último ano de Pedagogia na USP.
Na década de 1 950, quando o curso de Filosofia se transferiu
para a Rua Maria Antonia, os professores eram os seguintes: na
cadeira de Psicologia, Annita M. Cabral, Carolina M. Bori, Dante
Moreira Leite, Maria da Penha Pompeu de Toledo; da cátedra de
Filosofia participaram Roger Bastide, Gilles-Gaston Granger, João
Cruz Costa e Lívio Teixeira; também trabalharam em outras cadei­
ras, do mesmo curso, Antonio Cândido de Mello e Souza, Gilda de
Mello e Souza, Gioconda Mussolini, Egon Schaden, Roque Spencer
Maciel de Barros, Amélia Americano, Franco Domingues de Castro,
Onofre de Arruda Penteado Júnior, Arrigo Leonardo Angelini e Ma­
ria José de Barros Fornari Aguirre.
A nnita Cabral, em 1950, avaliando o curso de Filosofia,
considerou que, naquele momento, este representava o único espa­
ço dentro da Universidade de São Paulo em que os problemas teó­
ricos da Psicologia eram discutidos. Além de estabelecer essa dife­
rença em relação aos estudos desenvolvidos nos núcleos ligados è
educação e à organização, ela mencionou a dificuldade de realizar
pesquisas científicas sobre problemas psicológicos significativos,
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 185

principalmente as que envolviam experimentação, no contexto do


curso de Filosofia. Nesse mesmo ano, uma aluna do curso, Elza
Lima Gonçalves Antunha, propôs ao Conselho Técnico Adm inistra­
tivo da Universidade (CTA) que se organizasse um curso com estu­
dos aprofundados em Psicologia, o que não se concretizou.
A grande reformulação ocorrida em 1953 foi em relação às
disciplinas de Psicologia oferecidas no curso de Filosofia, m inistra­
das a partir de então integralmente por profissionais brasileiros.
0 currículo foi constituído da seguinte forma: Psicologia Social,
ministrada por Annita M. Cabral; Psicologia Diferencial, por Dante
Moreira Leite; Psicologia Experimental, por Carolina M. Bori; Psica­
nálise, por Maria da Penha Pompeu de Toledo.
Nesse mesmo ano, Annita M. Cabral propõe a criação de um
curso de Psicologia. Ela sugeriu ao professor paranaense, Gabriel
Munhoz da Rocha, a organização de um Primeiro Congresso Brasi­
leiro de Psicologia. Como nesse ano foi comemorado o 1o Centená­
rio de Curitiba, e Munhoz da Rocha era aparentado do presidente do
partido do governador do Paraná, o encontro foi realizado nessa
cidade. Nesse encontro, foi mencionada a proposta de realização
do curso de Psicologia na Universidade de São Paulo e, segundo
relato da própria Annita M. Cabral, foi efetivado o planejamento do
curso de Psicologia Clínica.
Nesse mesmo congresso, Mira y Lopes propôs que se reali­
zassem reuniões, a partir daquele momento, para a discussão da
criação do curso de Psicologia em âmbito nacional. A primeira reu­
nião realizada com essa finalidade se deu na Universidade do Brasil,
no Rio de Janeiro, tendo participado: Arrigo Leonardo Angelini, Madre
Cristina S. Dória, Pedro Palafita Bessa e Annita M. Cabral. Os des­
dobramentos posteriores desse grupo permitiram a organização de
um primeiro projeto enviado ao Congresso, mas por ter sido muito
criticado não teve prosseguimento.
Em 1954, iniciado-se um curso de especialização em Psicolo­
gia Clínica sob a orientação do professor Durval Marcondes. Nesse
curso, além do próprio coordenador, trabalharam Annita M. Cabral,
Aníbal Silveira e Virgínia Leone Bicudo. Mais tarde, foram também
professores: Aníbal da Silveira Santos, psiquiatra que ministrou
Psicopatologia e Técnicas Projetivas (principalmente Rorschach),
Durval Marcondes (Psicanálise), Virgínia Leone Bicudo, Lygia de
Alcântara do Amaral e Judih Andreucci.
Como decorrência desse curso, Durval cria tambóm a clínica
psicológica, para e «prandliado prétlco dos alunoa. Nesse maamo
186 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

ano, este profissional assume a presidência da recém-criada Asso­


ciação Brasileira de Psicologia. Ainda nesse período, avaliando-se a
dificuldade que seria a luta para a regulamentação da profissão,
pelo entrave criado por profissionais que já a exerciam, Annita
M. Cabral funda a Associação Brasileira de Psicólogos, com a cola­
boração de Virgínia Leone Bicudo, Arrigo Leonardo Angelini, Lygia
Amaral, Odette Lourenção, Dante Moreira Leite e Carolina M. Bori,
que na ocasião foi eleita a primeira presidente.
Em 1957, é oficializado, através de uma legislação estadual,
o curso de Psicologia da Universidade de São Paulo, do qual partici­
param os professores da cátedra de Psicologia, tanto do curso de
Filosofia quanto do curso de Pedagogia, assim como os do curso de
especialização em Psicologia Clínica. Segundo relato de Annita
M. Cabral (Morais, 1999), essa efetivação só foi possível em razão
de vários profissionais já estarem trabalhando gratuitamente no curso
de Psicologia Clínica. A duração era de quatro anos, e três turmas
se formaram nesse regime. Os alunos que compuseram o primeiro i
grupo foram: Maria Amélia Matos, Dora Selma Fix Ventura, Maria
Ignez Rocha e Silva, Maria Helena Raimo, Carlos Prósperi, Lúcia !
Sálvia Coelho.
Segundo o depoimento de Maria Amélia Matos, constava do i
currículo do curso: Psicologia Experimental, Psicologia Geral, Psico- j

logia Social (ministradas por Annita M. Cabral), Psicologia do De- :


senvolvimento, Psicologia da Aprendizagem, Psicopatologia, Filo- ;
sofia, Antropologia, Sociologia, Estatística, Fisiologia (esta última ]
ministrada em período integral). Os testes eram estudados a partir I
do 4o ano. Para ela, o objetivo do curso era: "form ar uma pessoa
culta, alguém que tivesse uma boa formação científica geral" (Mo- !j
rais, 1999, pp. 29-37). I
A avaliação que Maria Amélia fez do curso é interessante:
considerava positiva uma certa divisão entre disciplinas que davam,
por um lado, uma perspectiva geral, filosófica e científica aos alu­
nos e, por outro, uma visão das áreas da própria Psicologia. Consi­
derava que os professores eram muito divididos entre o grupo que
trabalhava com a professora Annita M. Cabral, o que trabalhava na
cadeira de Psicologia Educacional e os professores que vinham de i
outras áreas afins e da própria Psicologia. Cita o caso do professor J
Oswaldo de Barros Santos, convidado para ministrar aulas de 1
Psicologia do Trabalho, e o da professora Virgínia Leone Bicudo, I
chamada para ministrar Paloar^ljjKt' Eata situação, segundo ela, fazla I
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 187

que o curso ficasse m uito fragmentado. Os professores às vezes


eram improvisados, e não havia uma sistemática de utilização de
uma bibliografia; a única biblioteca existente era utilizada só para a
consulta dos assistentes da professora Annita M. Cabral.
Segundo relato de Carolina M. Bori, Annita M. Cabral, en­
quanto catedrática, tinha tido muita preocupação com a montagem
da biblioteca do curso, tendo comprado todas as coleções de livros
e revistas possíveis com as verbas conseguidas. Também segundo
a mesma inform ante, os espaços utilizados para a realização do
curso eram diversificados: as aulas das disciplinas ligadas à Psicolo­
gia Escolar (Psicologia Escolar, Psicologia do Desenvolvimento,
Aprendizagem, Testes) eram ministradas na Rua Maria Antônia;
Estatística, na Rua Dr. Vila Nova; Fisiologia, na Cidade Universitá­
ria; Biologia, Genética, Psicologia Geral e Experimental, na Alameda
Glete.
O depoimento de Romeu de Morais Almeida (Morais, 1999)
confirma a visão de um curso fragmentado. Para ele, o curso tinha
muitos problemas. Um deles era uma carga horária m uito grande,
com um grande acúmulo de matérias só teóricas. O pouco de práti­
ca que havia foi questionada pelo depoente, que explicou que
observações ou estágios realizados em outros contextos exteriores
à Universidade eram, a seu ver, possivelmente fictícios. Em geral,
os estágios eram realizados na "Sociedade Pestalozzi, no Hospital
das Clínicas e na Fundação Carlos Chagas". Considerava que esta
era uma prática que não entusiasmava nem o professor/supervisor
nem os alunos.
Quando a primeira turma inscrita estava por se formar, os
alunos descobriram que seu diploma não tinha validade para o exer­
cício da profissão; além disso, para poderem trabalhar como profes­
sores, teriam que competir com pedagogos e filósofos. Esse fato
levou-os a se mobilizar em torno do processo de regulamentação, já
em andamento, o que foi efetivado pouco antes de se formarem.
Em 1 961, o professor Fred Keller veio para o Brasil, a convite
de Paulo Sawaya (nesse período, diretor da Faculdade de Filosofia),
e passou a trabalhar na USP, no laboratório desse mesmo pro­
fessor. Maria Amélia Matos nos revela que o convite foi feito ao
professor devido às reclamações dos alunos com relação ao curso.
Carolina Bori, Rodolpho Azzi, Maria Amélia M atos, Maria Ignez
Rocha e Silva, Mérlo Quidl e Dora Selma Fix Ventura participavam
das atividades do Itboratório Instalado por Keller. Ele Iniciou um
188 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

período em que a psicologia experimental assumiu uma intensidade


ímpar. Em 1961, m inistrou, no primeiro semestre, a disciplina
Psicologia Comparativa e Animal e História da Psicologia; no segun­
do semestre, m inistrou Psicologia Experimental, acompanhada de
experimentação no laboratório.
Isaías Pessoti (1975), avaliando as atividades desenvolvidas
por Keller, diz que ele deu muita ênfase ao rigor conceituai e às
técnicas de experimentação. Acrescenta:

A Psicologia Experim ental, em São Paulo, que m o strava, a té então,


uma p red om in an te tendência g estaltista ou lew in iana, to m o u uma
orientação neobehaviorista que produziu notável progresso na pes­
quisa pura, nos m étodos de ensino escolar e na prática terap êu tica,
baseados nos princípios da análise experim ental do com portam ento.

É interessante observar que, em um depoimento, Walter Hugo


de Andrade Cunha (Morais, 1999) relata a estranheza que existia, :
em 1960, sobre o estudo com animais no departamento. Para ele, a j
catedrática tinha como proposta entender a psicologia experimental í
no enfoque de algum professor gestaltista, mas o envio de seus ]
assistentes para os Estados Unidos fez que eles tivessem uma in­
fluência muito grande do behaviorismo, que no momento estava em
ascensão, enquanto a Gestalt estava sendo muito criticada.
A segunda turm a que freqüentou o curso era composta por s
Mério A rturo Alberto Guidi, Lídia Arantangy, Marília Ancona Lopes, 1
Antônio Arm indo Camilo e Margarida Hofmann Windholz. Nessa !
turma, a ainda aluna Maria Amélia Matos já atuou como professora, ■
tendo sido contratada como segunda-assistente (o primeiro era ;
Rodolpho Azzi).
Em 1962, após a regulamentação da profissão, esse curso já
existente foi m odificado, com a criação do 5o ano, dando origem ao
curso regular de Psicologia. !
W alter Hugo de Andrade Cunha (Morais, 1999) relata um mo­
mento de muita transformação no curso, entre 1965 e 1968. Se­
gundo ele, o curso, que havia sido criado sem verba própria, passa
nesse período a receber verbas federais destinadas a cursos supe- ,
rlores que aceitassem os excedentes aprovados. Foram contrata-; j
dos professores e aceitos mais alunos, o que ampliou o trabalho 0 1
aumentou todos os tipos de necessidades. Neaae momento, deu-se 1
ume fregmenteçio Informal ne oedelra, com t e rliç lo de dois seto-1
ree: Psicologia Experimentei e Comparada - qu« floou a cargo de I
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 189

Carolina Bori, W alter Hugo de Andrade Cunha, Arno Englemann,


Cesar Ades, Rodolfo Azzi, Mário Guidi, Fernando Leite Ribeiro e
outros - ePsicologia Social e do Trabalho, a cargo de Annita
M. Cabral. Para Cunha, esse crescimento foi uma das causas que
provocou posteriorm ente a crise que envolveu a saída de professo­
res do departamento.
Annita M. Cabral relata que, em 1966, com algumas verbas
disponíveis, alugou um prédio de quatrocentos metros quadrados
na Rua Cristiano Viana, contratou uma bibliotecária, uma escriturá-
ria, dois serventes e um técnico de laboratório. No porão, foi mon­
tado um laboratório com caixas de Skinner e um formigueiro. Para
ela, esse aparato permitia que a Psicologia fosse mais respeitada
(Morais, ibidem). Seus assistentes nesse período foram : Maria de
Lourdes Pavan, Zelia Ramozzai-Chiarottino, Maria Margarida M. J.
Carvalho, Maria Thereza Pacheco Mendes, Maria Helena Steiner.
Logo depois dessa mudança, receberam a informação de que
a reitoria tinha interesse em reunir a maior parte dos cursos no
cam pus-, logo em seguida, foi construído o B-10, com base em
sugestões dos professores, que passou a abrigar a Psicologia. Com
a transferência para a Cidade Universitária, em 1968, foram cons­
truídos laboratórios, biotério, laboratório de psicologia dinâmica (com
espelhos), laboratório de psicologia genética.
Nesse ano, a antiga cátedra de Psicologia era conhecida como
Psicologia Social e Experimental, e a catedrática era Annita M.
Cabral (Dora Fix Ventura, apud Morais, 1999). Em 1968, houve um
m ovimento de alunos e professores contra a cátedra, e, com o
afastamento da professora Annita, formou-se o Departamento de
Psicologia Social e Experimental, que passou a ser dirigido pela
professora Carolina M. Bori. Dois professores foram afastados de
suas atividades nesse momento: Durval Bellegarde Marcondes e
Annita M. Cabral.
Em 1970, com a reforma universitária, implanta-se o Instituto
de Psicologia, com posto por quatro departamentos: Psicologia Ex­
perimental; Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da
Personalidade (PSA); Psicologia Clínica; Psicologia Social. Em 1972,
inicia-se a implantação dos cursos de pós-graduação stricto sensu.
0 primeiro deles foi o mestrado em Psicologia Experimental, seguido
do de Psicologia do Escolar, Psicologia Clínica e, posteriormente,
Psicologia Social.
190 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

As duas profissionais estudadas que tiveram uma grande liga­


ção com o curso de Filosofia são: Annita de Castilho e Marcondes
Cabral e Carolina Martuscelli Bori.

A n n ita de C astilho e M a rco n d e s C abral (1 9 1 1 -1 9 9 1 )

Annita iniciou sua formação na Escola Normal Caetano de


Campos. Fez o curso de Aperfeiçoamento Pedagógico na mesma
escola, tendo prosseguido na Universidade de São Paulo, cursando
Filosofia e Ciências Sociais. Foram seus professores: Fernando de
Azevedo, Lourenço Filho, Noemy Silveira Rudolfer, Haddock Lobo,
Jean Maugüe, Paul Arbousse Bastide, Roger Bastide e Lévi-Strauss.
Em 1 938, participou de uma articulação de alunos para apoiar
os professores estrangeiros, sendo, logo em seguida, convidada
para assistente-adjunta das cátedras de Sociologia de Roger e Paul
Arbousse Bastide, e também para dirigir o Centro de Ciências So­
ciais fundado por esses dois professores.
Em seguida, foi realizar cursos nos Estados Unidos, tendo sido
aluna, no Smith College (especialização), dos gestaltistas. Efetuou ’
o m estrado, tendo sido seus professores W ertheim er, Kallen,
Solomon e Kris. Durante sua estada nesse país, tom ou contato com 1
a American Psychological Association, da qual tornou-se membro |
em 1943.
Em um relato seu (Morais, 1999), contou que, ao voltar parai
0 Brasil, sentiu-se deslocada devido à falta de estímulo quanto à j
produção científica da Psicologia. Mas não se interessou em trazer |
os mesmos padrões lá vividos para aqui, tanto que diz ter rompido
com os gestaltistas para poder constituir uma "Psicologia brasileira"; J
Nesse período, trabalhou no curso de Filosofia a convite de I
Jean Maugüé, esperando a chegada de Otto Klineberg (1945 a j
1947). Preocupada com a diferença que os alunos poderiam sentir ;
entre a proposta dos dois professores, Annita se dispôs a prepará-
los para a mudança, dando um curso de Estatística. Paralelamente
ao seu trabalho, Mira y Lopes foi contratado para oferecer um curso !
na cadeira de Psicologia e, com ele, passou a conhecer os grupos |
ligados à Psicologia existentes em São Paulo, que ela desconhecia, j
Com a chegada do professor Klineberg, Anita se tornou primeira-J
assistente. Nesse período, foram Introduzidas algumas mudanças n o l
curso de Filosofia: • dliolpllna Psicologia passou a ser oferecida tarn**
bém no aegundo • iW tM W lro ano. Klineberg ficou reaponaável pela]
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 191

Psicologia Social; Annita M. Cabral, por Psicologia da Personalidade;


e Cícero Christiano de Souza, por Psicologia Experimental. Segundo
relato de Annita (Morais, ibidem) o professor não foi bem aceito
pelos alunos de Psicologia, mas sim pelos de Pedagogia.
Em 1 945, Annita Cabral estimulou a formação da Sociedade
de Psicologia de São Paulo, usando o nome do professor Klineberg
e tentando aglutinar alguns participantes dos núcleos de Psicologia
existentes na época. Segundo ela, esses núcleos eram com petido­
res entre si: os que trabalhavam no Senai, os higienistas mentais e
os psicotécnicos. 0 primeiro presidente foi Roberto Mange, tendo
Annita se tornado secretária da primeira diretoria.
Nesse mesmo ano, defendeu seu doutoram ento, realizado
sob a orientação de Jean Maugüe e, posteriorm ente, de Roger
Bastide: O co n flito dos resultados dos experimentos sobre m em ó­
ria de formas.
Quando Klineberg voltou para os Estados Unidos (1947), An­
nita assumiu a cadeira de Psicologia. Segundo relato da própria
(1950), sua intenção nesse momento foi a de procurar imprimir ao
curso uma "resultante brasileira da psicologia européia e norte-ame­
ricana". Nesse sentido, acrescentou ao currículo um treino obriga­
tó rio em teste s m entais e técnicas projetivas, especialm ente
Rorschach. Deixou a cargo de sua assistente, Carolina Martuscelli,
o treino em técnicas projetivas. Também introduziu um curso sobre
Piaget (2o ano) e de Psicologia gestáltica e topológica (no 3o ano).
Passou a exigir dos estudantes mais adiantados pesquisas que en­
volvessem análise de conteúdo, questionários e testes.
Em 1950, Annita publicou "A Psicologia no Brasil", quando
fez um histórico percorrendo as contribuições oferecidas por médi­
cos, educadores e filósofos desde o início do século. Também se
referiu à era normalista e universitária da Psicologia, analisando as
contribuições desses contextos para a formação do profissional,
assim como as influências estrangeiras que se fizeram sentir. Ter­
mina o texto colocando a necessidade que sentia de que houvesse
um curso exclusivamente para a formação do psicólogo, indepen­
dentemente dos outros cursos da Faculdade de Filosofia que in­
cluíam a disciplina Psicologia em seu currículo.
Nesse mesmo ano, foi eleita presidente, pela segunda vez, da
Sociedade Paullltt de Psicologia, quando fundou o Boletim de Psi­
cologia. Em ItH bjw junto com Cícero Christiano de Souza, Aníbal
192 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Silveira, Durval Marcondes, Lígia de Alcântara do Amaral e Virgínia


Leone - , cria o curso de especialização em Psicologia Clínica da
cátedra de Psicologia da FFCL da USP.
Durante toda a década de 1950, participou de reuniões com
grupos de profissionais de São Paulo e do Rio de Janeiro, discutin­
do propostas de organização de um curso regular de Psicologia. Era
contrária à idéia de que a formação em Psicologia deveria se dar em
um curso de especialização. Com essas intenções, fundou a Asso- ;
ciação Brasileira de Psicólogos. Seu depoimento e o de Carolina j
M. Bori (Morais, 1999) especificam que a intenção ao fundar a j
Associação foi a de organizar as pessoas que estavam se opondo :
à proposta de se reconhecer a existência do profissional "psicolo- I
gista", sem que houvesse a preocupação com sua formação. Foi 1
a primeira proposta da lei de estabelecimento da profissão de psi- \
cólogo, enviada ao Congresso por um grupo de médicos e de pro- j
fissionais.
Para os membros da Associação, o maior problema não era
iniciar uma profissão, mas preocupar-se com a formação do profis­
sional. A lei aprovada em 1962 regulamentou tanto o exercíciq
profissional quanto a formação necessária, através da exigência da
introdução de um currículo mínimo. Segundo Carolina M. Bori, esse,
currículo refletiu uma composição possível entre as diferentes for­
mas de entender a psicologia que seus organizadores possuíam.
Segundo depoimento de Annita Cabral, o substitutivo elabo?
rado em São Paulo teve sucesso, e a regulamentação ocorreu. Corr|
a criação do curso regular, as cátedras antes pertencentes ao curso
de Filosofia passaram a constituir a área de Psicologia Clínica, Psl*
cologia Social e Experimental.
Em meados da década de 1960, foram realizadas reuniões n<3
curso de Psicologia, com a participação de alunos e professores^
para discutire m as mudanças necessárias no curso. Segundd!
Morais (1999), essas reuniões levaram a uma avaliação dos profes^
sores, sobretudo em relação às características ligadas a autoritaris*;
mo ou a falta de empenho no desenvolvimento de suas tarefas. Aoí
final de uma dessas avaliações, os alunos se dirigiram para a clínk
ca, que funcionava na Rua Jaguaribe, e solicitaram a retirada d<H
professora Annita Cabral, lacrando a porta da sala que ela o c u p a v a
Seus assistentes da cátedra de Psicologia Social e E x p e rim e n ta
apoiaram a medida e, em seu lugar, elegeram Carolina M. Bori p t f f l
chafe de Departamento. -, M
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 193

A avaliação da situação, feita por Annita Cabral, é de que,


pelo fato de ter estado durante muito tempo em funções adminis­
trativas, lutando muito para oferecer condições de a Psicologia fru ­
tificar e oferecendo oportunidades aos seus assistentes de fazerem
pós-graduação, com isso ela própria não tinha tem po para preparar
seus cursos, oferecendo aulas desatualizadas. Em seu depoimen­
to, Helena Moreira Silva Carmo (Morais, ibidem) coloca que a prin­
cipal questão dos alunos era uma disputa entre os departamentos
de psicologia experimental e clínica. Os alunos da primeira achavam
que não se devia fazer clínica, pois era coisa de burguês; por isso,
fizeram a invasão.
Durante o ano seguinte, Annita foi convidada por Arrígo
L. Angelini para integrar a cátedra de Psicologia Escolar, mas poste­
riormente pediu sua aposentadoria. Ainda ministrou disciplinas em
faculdades particulares, esporadicamente.
Annita M. Cabral foi uma incansável lutadora, defendendo
sempre as questões que privilegiavam o desenvolvimento da Psico­
logia em São Paulo e no Brasil. Seus primeiros esforços se deram
tendo em vista ampliar o raio de ação da Psicologia no curso de
Filosofia. Posteriormente, sua preocupação foi com a instituição
de espaços de luta associativos, sobretudo a Sociedade Paulista de
Psicologia e a Associação Brasileira de Psicologia, com a finalidade
de possibilitar a existência da Psicologia enquanto área do conheci­
mento autônoma - o que de certa forma se concretizou com a
regulamentação da profissão e também com a criação do Instituto
de Psicologia da USP. Enfim, dedicou todo o seu esforço para cons­
titu ir um corpo de assistentes altamente credenciados para o exer­
cício da Psicologia de ponta.
Percebe-se que, durante o seu percurso, houve uma acentua­
ção cada vez maior de sua atuação política. Este fato talvez expli­
que os m otivos que a levaram a ser desvalorizada como acadêmica.
Seu depoimento revela que ela própria sentia que, com as inúmeras
tarefas burocráticas, administrativas e políticas, pouco tempo lhe
restava para se dedicar ao seu desenvolvimento científico e ao pa­
pel de professora e orientadora.
Podemos considerar que sua atuação em várias frentes da
Psicologia fizeram-na criar, do ponto de vista de identidade, várias
personagens. Dentre essas personagens, a menos desenvolvida era
a de professora, o que a levou a permanecer numa mesmice e per­
mitiu que se tornasse vulnerável a críticas. Seus assistentes e alu­
194 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

nos referem-se informalmente a uma dificuldade de comunicação,


com traços de autoritarism o, que Annita teria apresentado nos ú lti­
mos anos de atuação. Também, efetivamente, deve ter contado
para sua destituição a relação que mantinha com a clínica, naquele
momento desvalorizada pelo grupo mais politizado de alunos.

C arolina M a rtu s c e lli B o ri (1 9 2 4 -2 0 0 4 )

Como todos os profissionais anteriores, Carolina freqüentou a


Escola Normal Caetano de Campos e, em 1947, graduou-se em
Pedagogia pela USP. Um ano antes de sua form atura, foi convidada
pela professora Annita M. Cabral para ser sua auxiliar e, logo depois
de formada (1948), foi nomeada professora-assistente de Psicolo­
gia no curso de Filosofia, no qual permaneceu até 1955. Ela própria ,
relata que seu interesse sempre foi o de trabalhar para o desenvol- ?
vimento da ciência; que, ainda como aluna, o que admirava no )
contexto da faculdade era a reunião e a discussão das pessoas em
torno de um conhecimento desinteressado e pesquisa pura (não
envolvido com a profissionalização ou a aplicação). ■
Em 1952, foi para os Estados Unidos, onde efetuou o Master )
of Arts pela Graduate School of the New School for Social Research.
No ano seguinte, de volta ao Brasil, ministrou a disciplina Psicologia ■
Experimental para os alunos do 1o ano do curso de Filosofia. Logo ;
em seguida (1954), efetuou seu doutoramento pela FFCL da USP, |
com o trabalho denominado Os experimentos de interrupção de
tarefa e a teoria de motivação de Kurt Lewin, sob a orientação de
Annita M. Cabral. j
Em 1955, participou da criação da Associação Brasileira de
Psicologia e foi eleita sua 1a presidente. No ano seguinte (1956), ;
foi contratada como professora titular de Psicologia pela FFCL de
Rio Claro, onde permaneceu até 1961. Introduziu atividades de
laboratório como parte integrante de Psicologia Experimental (in* '
fluenciada pelas aulas que havia tido na Universidade de Columbia
ministradas por Fred Keller). Nesse mesmo ano, publicou sua tese, \
já defendida, no Boletim da FFCL da Universidade de São Paulo. <
A partir da criação do primeiro curso de Psicologia (por lei
estadual), em 1 9 5 8 , Carolina passou a lecionar Psicologia d H
Personalidade. Nessa mesma data, iniciou sua oolaboração com d l
Instituto Brasileiro de Educação, Ciôncla • Cultura - Ibecc, tanto n i l
realização dos concursos sobra os "c la n tla ta M i m a n h â " quanto!
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 195

na divulgação de notícias que pudessem fornecer informação e fo r­


mação para professores do ensino secundário.
Com a vinda do professor Keller para o Brasil, em 1 961, pas­
sou a fazer parte do grupo que trabalhava com ele, com posto por
Rodolfo Azzi, Maria Amélia Matos, Dora Fix, Mário Guidi, Isaías
Pessotti, Maria inês Rocha e Silva, Margarida Windholz (Keller, 1983).
Valendo-se dessas experiências vividas com o grupo da psicologia
experimental de Fred Keller, tornou-se behaviorista operante, só
que com uma perspectiva diferente da de Keller. Carolina atribuía
uma importância muito grande, na programação de ensino, às ques­
tões de definição de habilidades e conhecimentos necessários para
se executar uma atividade, assim como no planejamento de ensino
que previsse condições adequadas para a aquisição de tais habilida­
des e conhecimentos.
Segundo seu próprio relato, a vinda do professor Keller oca­
sionou uma grande mudança no contexto do curso; estabeleceu-se
na cadeira uma série de subáreas, e não havia muito entrosamento
entre os diferentes grupos. A principal questão em jogo era a liga­
ção com pesquisa básica ou aplicada, questão que só foi resolvida
em 1974, com a criação do mestrado em Psicologia Experimental.
Na opinião de Carolina, nos diferentes cursos oferecidos à época -
o de especialização, o regulamentado por legislação estadual e o
curso regular criado após 1962 - , havia muito pouca ênfase na
pesquisa básica, o maior enfoque estando ligado à formação do
profissional. Na sua perspectiva, os alunos, por seu lado, sempre
manifestaram maior interesse pela psicologia clínica.
Após seu envolvimento com a Associação Brasileira de Psicó­
logos, liderou um movimento que rejeitou a proposta de Nilton Cam­
pos (efetuada pelo grupo de médicos e professores da Universidade
do Brasil e enviada ao Congresso), passando a participar, durante
toda a década de 1950, de grupos interessados em discutir um
substitutivo. Foi integrante da comissão que elaborou a nova pro­
posta, presidente da que elaborou o currículo mínimo e da que su­
pervisionou a transição para a regulamentação da profissão de
psicólogo (Matos, 1998).
No início dos anos 60, Carolina também participou de uma
pesquisa do Inep, situação que facilitou seu contato com Anísio Tei­
xeira e Darcy Ribeiro, com quem trabalhou na montagem do curso de
Psicologia da Universidade de Brasília - UNB. Fundou o Departamen­
to de Pslcologl* •« logo em seguida, viajou para os Estados Unidos
196 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

junto com Rodolpho Azzi, a fim de adquirirem materiais, livros e apa­


relhos para a montagem do curso de Brasília. Planejou e instalou o
laboratório de Análise Experimental do Comportamento, no qual atuou
por pouco tempo. Em 1963, trabalhou como chefe do Departamento
de Psicologia da UNB, ainda em fase de montagem.
Ali, a Psicologia era disciplina obrigatória do curso básico e
concebida como ciência. Mesmo o curso de Psicologia não foi pensa­
do como profissionalizante, principalmente porque havia o interesse
em instituir o ensino individualizado como experiência. Carolina con­
vidou o professor Keller para fazer parte do trabalho, mas quando
este chegou ao Brasil, em 1964, encontrou todo o governo mudado
e, logo em seguida, a equipe de psicólogos voltou a São Paulo.
Em 1965, ela ministrou o primeiro curso de Análise Compor-
tamental para alunos da PUC/SP. Também introduziu Keller nesta
instituição, para discutir com os monitores do ciclo básico. No ano
seguinte, trabalhou como professora visitante da Universidade do
Texas. Em 1 968, participou do processo de transform ação da cáte­
dra de Psicologia no Departamento de Psicologia Social e Experi­
mental. Nesta situação, foi eleita chefe de departamento. Criou o
Laboratório de Psicologia Social e Experimental. No ano seguinte,
na ocasião em que foi criado o Instituto de Psicologia, por ter retira­
do sua inscrição para o concurso de livre-docência, ela foi convida­
da a sair da chefia do departamento.
Dora Fix Ventura (Morais, 1999) relata um mal-estar interno
ao departamento ocorrido nesse ano, quando ela voltava do exte­
rior para integrar o grupo de psicologia experimental. Segundo ela,
sua perspectiva era a de produzir ciência, enquanto o grupo de
Carolina M. Bori (a saber, Maria Amélia Matos, Rachel Kerbauy,
Mário Guidi) privilegiava a formação de recursos humanos através
da psicologia operante. Dora filiou-se ao grupo de W alter Hugo
Andrade Cunha, Cesar Ades e Fernando José Leite Ribeiro.
Outro fato relatado pela mesma profissional foi a questão
criada no departamento com a retirada da livre-docência de Carolina
(segundo ela, provocada por fatores políticos combinados com pro­
blemas intrínsecos ao trabalho a ser apresentado). Os professores
pertencentes ao departamento, diante desse fato, não se sentiram
à vontade para fazer livre-docência durante os vinte anos seguin­
tes. A primeira a se candidatar foi a depoente, em 1 988.
Retirando-se da chefia do departamento, Carolina M. Borl
montou, juntam ente com Walther Hugo Cunha» 0 «ator de póa-
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 197

graduação em Psicologia Experimental, que coordenou por quinze


anos. Nos anos seguintes, exerceu vários cargos adm inistrativos e
colaborou com inúmeras instituições para discutir currículos, criar e
reformular cursos de graduação ou pós-graduação na áreá de Psico­
logia ou afins. Envolveu-se com a criação da Associação de Docen­
tes da USP - Adusp. De 1969 a 1973, foi presidente da Associa­
ção de M odificação do Comportamento, membro e presidente da
Sociedade Brasileira para o progresso da Ciência - SBPC.
Carolina colaborou durante vários anos com outras in stitui­
ções, a saber: Centro Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal para
Formação Profissional - Cenafor; Adusp; Instituto Brasileiro de Edu­
cação, Ciência e Cultura - Ibecc; Funbecc; Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq; Programa de
Apoio ao Desenvolvim ento Científico e Tecnológico - PADCT;
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Capes; Ministério da Educação e Cultura - MEC; Estação Ciência;
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia -
Anpepp (presidente em 1984); desde 1996, atua como diretora
científica do Núcleo de Pesquisa sobre o Ensino Superior - Nupes,
da Universidade de São Paulo.
Demonstra, em seu percurso profissional, algumas transfor­
mações que vivenciou, participando de diferentes áreas da Psicolo­
gia. A primeira transformação deu-se logo no início de sua carreira
acadêmica, quando, saindo da Pedagogia, foi convidada para inte­
grar o corpo docente do curso de Filosofia. A seguinte deu-se na
década de 1960, ao decidir por uma mudança de área, passando da
Gestalt para a análise experimental do com portamento. É interes­
sante notar que esta passagem se deu logo após sua ida para o
exterior, onde realizou seu mestrado, ainda sob a influência da
Gesta/t. Todavia, nos Estados Unidos, na universidade que ela fre­
qüentou nesse momento, tomou contato com o behaviorismo, o
que talvez tenha influenciado sua mudança de perspectiva.
Sua vivência na Academia, nem sempre tranqüila, percorre
várias décadas. Inicialmente, trabalhou um período na USP, no cur­
so de Filosofia, lecionando disciplinas que abarcavam desde Psico-
metria, passando por Personalidade, até Psicologia Social e Experi­
mental. Posteriormente, foi para o interior de São Paulo trabalhar
em uma universidade pública, privilegiando nesse contexto a Psico­
logia Exptrlf^tntal. Voltou para São Paulo no momento em que
Keller fllftW ifw t neita cidade. Desenvolveu, ao mesmo tempo,
198 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

atividades no Inep (Rio de Janeiro), onde teve contato com os cria­


dores da Universidade de Brasília, na qual também atuou durante
um curto espaço de tempo.
Carolina explicita, em várias entrevistas que concedeu ao
longo de sua vida, que sua preocupação fundam ental sempre foi a
defesa da Psicologia enquanto ciência. Não houve, de sua parte,
preocupações ligadas ao exercício da profissão de Psicólogo. Em
todas as outras atividades exercidas durante seu longo percurso
profissional, nota-se a influência da perspectiva psicológica que
ela adotou. Tanto sua participação na regulamentação da profis­
são, a partir da década de 1950, quanto sua atuação nas reform u­
lações do curso de Psicologia, na década de 1990, demonstram
essa influência.
Podemos notar, no desenvolvimento da cátedra de Psicologia
do curso de Filosofia da USP, a origem de várias abordagens psico­
lógicas: a experimental, a clínica e a social. Tanto quanto na cáte­
dra de Psicologia Educacional, na de Psicologia também ocorreu o
processo de sucessão de professores, mas as relações se deram de
forma diferente, assim como o próprio processo de sucessão. Os
relatos mencionam que, no prmeiro caso, elas se deram de forma
tranqüila, ao passo que, no segundo, aconteceram de forma bas­
tante conturbada e com o envolvimento de alunos. O início do pro­
cesso de conturbação pode ter-se dado em 1958, logo após a ins­
talação do curso de bacharel, de cunho estadual, quando ocorreu
uma fragmentação informal dos professores em dois grupos: os
que abraçaram a psicologia experimental e comparada, de um lado,
S os da psicologia social e do trabalho, do outro. Por ocasião da
criação do Instituto de Psicologia, a cátedra dá origem a três depar­
tamentos, pelos quais se dividiram os diferentes profissionais que
nela trabalhavam: Departamento de Psicologia Experimental; Psico­
logia Clínica; Psicologia Social e do Trabalho.

C onsid era ções fin a is

Observa-se dois momentos nesse período estudado:


0 primeiro momento abrange a maior parte dos acontecimen­
tos dos anos 20, 3 0 e 4 0. Nesse período, os profissionais se en- !
contravam muito próximos de suas origens form É ||f ■ - os cursos
A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE ALGUNS PROFISSIONAIS 199

de Filosofia, Educação, Medicina e Direito - e constituíam suas


identidades profissionais com base em sua formação. Durante o
decorrer dessas décadas, vão tomando contato com novos perso­
nagens ou idéias psicológicas, em geral oriundas do exterior, e, ao
mesmo tempo, vão assumindo atividades a elas correspondentes.
A maior parte desses profissionais busca cursos de pós-
graduação no exterior. Vários estrangeiros, principalmente europeus,
vieram ministrar cursos em São Paulo. Os profissionais estudados
viveram situações de adequação do que haviam aprendido em seus
cursos de origem com o que haviam visto em suas especializações.
Noemy da Silveira Rudolfer é um exemplo típico desse movimento.
No final desse período, também se faz presente a necessidade
de confrontar a perspectiva européia com a norte-americana (caso
de Annita M. Cabral e Oswaldo de Barros).
Para Sylvia Leser de Mello (1975), esse foi um período em
que basicamente importamos Psicologia. Há poucas publicações e
poucos relatos históricos. No final da década de 1940, com o início
da publicação do Boletim da Sociedade Paulista de Psicologia (1949)
e dos Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, as idéias começam a
circular mais. Havia também, nessa época, uma divisão clara entre
a formação oferecida nos cursos universitários, extremamente teó­
rica, e a formação prática, assumida basicamente pelas organiza­
ções que desenvolveram a Psicologia Aplicada, cujo objetivo era
treinar os profissionais para realizarem as atividades socialmente
necessárias. Mas as duas instâncias constituíram-se em espaços de
abertura que possibilitaram a importação e o desenvolvimento de
idéias psicológicas. Profissionais denominados psicometristas, higie-
nistas mentais, técnicos de seleção, educadores sanitários, traba­
lhavam nesses locais em que a profissão era exercida de uma ma­
neira não institucionalizada.
É interessante observar a trama de relações que se estabele­
ceu entre os participantes dos diferentes grupos existentes no pe­
ríodo. 0 grupo do curso de Filosofia associou-se com o grupo da
Sociedade de Psicologia; o grupo de Psicologia Educacional com os
núcleos de Psicologia Aplicada - esses últimos com uma ênfase
nas medidas psicológicas. O serviço de Higiene M ental foi o que
acolheu pessoas vindas das diferentes origens, assim como a Asso­
ciação Brasileira de Psicólogos. Os profissionais circularam pelos
diferentes espaços e foram constituindo suas identidades com base
200 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

nas vinculações grupais que estabeleceram. Diferentes subgrupos


foram se fortalecendo e, como tal, fornecendo elementos de identi­
ficação para seus novos filiados.
O m om ento posterior, a saber, toda a década de 1950, esten­
dendo-se até 1962, considerado de consolidação, compreende os
movimentos que se dão na criação de cursos específicos de Psico­
logia, na denominação "psicológica" dada a algumas clínicas e na
denominação "psicólogo", utilizada por alguns profissionais. Houve
uma intensificação das publicações sobre assuntos psicológicos,
tendo a divulgação das pesquisas realizadas tanto nos núcleos de
psicologia aplicada como na Academia aumentado sensivelmente.
Também foram criados vários cursos de especialização em São Paulo.
Nesse período, alguns dos profissionais passam a desempe­
nhar papéis diferenciados dos anteriores, tais como Noemy Silveira
Rudolfer, que vem a trabalhar com psicanálise; de Oswaldo de
Barros, que começa a atuar em clínica; e de Carolina, que se identi­
fica com a psicologia experimental do comportamento. Pode-se notar
que, paulatinamente, todos os profissionais - uns mais, outros me­
nos - vivenciaram transformações significativas em suas identida­
des profissionais. De certa forma, essas vivências permitiram o de­
senvolvimento de várias abordagens da Psicologia.
As sociedades e as associações criadas no período, além de
ampliarem as situações de formação e divulgação, passam a deba­
ter a questão da profissionalização da Psicologia e a atuar tendo em
vista interferir no tipo de regulamentação oficial a ser estabelecida.
0 ponto culminante desse processo ocorre com a regulamentação
da profissão, o que pode ser entendido como a legitimação das
transformações já ocorridas com os indivíduos e os grupos.

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WITTER, G. P. (1998). Entrevista com o Prof. Dr. Arrigo Leonardo
Angelini. Psicologia Escolar e Educacional, v. 2, n. 1.

Marisa Todescan Dias da Silva Baptista


D outora em Psicologia Social pela PUC-SP; professora de M e tod o lo g ia de
Pesquisa no m estrado em Psicologia do Programa de Pós-G raduação da
U niversidade SAo Maroot, 8 1 o Paulo/SP. E-mail: m a rls a @ e tb n e to o m .b r,
un
VIII
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA:
ORIGENS, INTER-RELAÇÕES E CONFLITOS*
Raul Albino Pacheco Filho

A inauguração das disputas m etodológicas


e epistem ológicas e a ciência m oderna

É provável que não exista, em toda a história do conhecimen­


to, período mais atribulado e fecundo do que o compreendido pelos
séculos XVI e XVII. Em nenhum outro momento histórico existiram
transformações nas concepções sobre o Homem, Deus, o Mundo, a
Vida - sobre tudo, enfim - que se possam comparar à verdadeira
demolição de todas as certezas, que até então vinham sendo defen­
didas pelas instituições detentoras do poder econômico, político e
ideológico. Paralelamente às transformações econômicas, sociais,
políticas e religiosas, com o desenvolvimento acelerado do capita­
lismo, o enfraquecimento da estrutura e da organização feudal da
sociedade, o questionamento do poder e do prestígio da Igreja Ca­
tólica, assim como a ascensão do poder político da burguesia (ini­
cialmente, em aliança com as monarquias), ocorreram mudanças

* G ra n d e p a rte d e s te t e x t o fo i p u b lic a d a , a n te rio rm e n te , na in tro d u ç ã o de u m


liv ro o rg a n iz a d o p o r m im (v e r " 0 d e b a te e p is te m o ló g ic o em p s ic a n á lis e (à g u is a de
in tro d u ç ã o )'', in: P a c h e c o F i l h o , 2 0 0 0 , p p . 1 5 -4 2 ) . A re p u b lic a ç ã o se ju s tific a , t e n ­
d o e m v is ta q u e o c o n te ú d o d e ssa p a rte é im p re s c in d ív e l p a ra fu n d a m e n ta r as
a n á lis e s a q u i apreaantadas s o b re a fra g m e n ta ç ã o n o c a m p o d a p s ic a n á lis e e da
Palcologla, a sobra M dliputas aí existantes.
206 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

não apenas no conteúdo das crenças, mas sobretudo na própria


forma de produção e legitimação do conhecimento. Estavam sendo
definitivam ente minadas, pelas críticas da vanguarda intelectual que
se rebelava contra a hegemonia escolástica, a submissão aos dog­
mas e a obediência irrestrita à palavra das autoridades que deti­
nham o poder: surgia aquilo que conhecemos como o desenvolvi­
mento da ciência moderna.
A concepção de um mundo do qual a Terra não mais era o
centro, com os planetas girando em órbitas elípticas em torno de
um novo pólo de atração (o Sol), é apresentada por muitos como a
mais concreta representação de toda essa mudança na ordem esta­
belecida. Ela vinha em substituição à anterior concepção vigente -
a aristotélica - de uma natureza absolutamente harmônica, consti­
tuída por órbitas circulares e perfeitas, e regida por leis imutáveis.
Esta fornecia à Igreja o análogo, no mundo da matéria e dos astros,
de sua concepção espiritual, social e política, de um mundo domi­
nado por seu poder absoluto, no qual fiéis comportados conduziam-
se de modo regular e previsível de acordo com sua orientação infa­
lível e perfeita.
Sendo uma subversão no campo do conhecimento, paralela e
relacionada a uma subversão no campo social, é claro que a ciência
moderna não se desenvolveria sem oposições e contra-ataques da
ordem dominante, como se pode exemplificar pelas diversas to rtu ­
ras e execuções praticadas pelos tribunais da Inquisição (como é o
caso de Giordano Bruno), ou pelas inúmeras condenações a prisão
ou abjuração. A retratação a que se submeteu Galileu, aos 22 de
Junho de 1 633, no Convento de Minerva, em Roma, sob ameaça de
tortura, ilustra a determinação da Igreja Católica em preservar seus
dogmas.

Eu, Galileu, filho do falecido Vicenzio Galilei, florentin o , com 7 0


anos de idade, convocado p essoalm ente p eran te este tribunal e
ajoelhado p eran te vós, Em inentíssim os e Senhores C ardeais Inquisi-
dores-G erais, por pravidade herética em toda a com unidade cristã,
tendo d ian te dos meus olhos e to can do com as m inhas m ãos oa
S antos E vangelhos, juro que sem pre acreditei e, com a ajuda de
Deus, acreditarei no fu tu ro , em tu d o quanto é afirm ad o , pregado o
ensinado pela Santa Igreja Católica e A postólica. M a s dando-se Q
caso de depois de me te r sido legalm ente feita por eate Santo Ofício
um a injunção no sentido de que deveria abandonar por com pleto a
falsa oplnláo de que o Sol é o centro do M u rtd»ft'4fn  vtl, • de que i
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 207

Terra não é o centro do M undo e se m ove, e de que não deveria


aceitar, d efen d er ou ensinar, de qualquer m odo, verb alm en te ou por
escrito, a dita falsa doutrina, e depois de me te r sido notificado que
a dita doutrina era contrária à Sagrada Escritura, escrevi e imprimi
um livro em que tra ta v a essa nova doutrina já condenada e aduzia
argum entos a seu favo r sem apresentar nenhum a solução para eles,
fui considerado v e e m e n te m e n te suspeito de heresia, ou seja, de ter
aceitado e acred itado que o Sol é o centro do M u n d o e im óvel e que
a Terra não é o centro e se m ove.
P ortanto, desejando tirar do espírito de Vossas Em inências, e do de
todos os fiéis cristãos, essa vee m e n te suspeita ju s ta m e n te concebi­
da contra m im , com coração sincero e fé singela abjuro, m aldigo e
abom ino os supraditos erros e heresias e tam bém to d os os outros
erros, erros e seitas sejam quais forem , contrários à S anta Igreja, e
juro que de fu tu ro nunca mais voltarei a dizer ou a afirm ar v erb al­
m ente ou por escrito alguma coisa capaz de causar sim ilar suspeita
contra m im ; m ais, conheça eu algum herético ou pessoa suspeita de
heresia, e denunciá-lo-ei a este Santo Ofício ou ao inquisidor ou
ordinário do lugar onde me encontrar. (...). (Apud Boorstin, 1 9 8 9 ,
pp. 3 0 1 -3 0 2 )

Essas oposições não impediram, contudo, que o capitalismo


se tornasse a organização econômica e social hegemônica, nem
que a forma de produção de conhecimento que com ele foi desen­
volvida (a ciência moderna) se tornasse igualmente dominante. Para
um mundo acostumado ao conforto e à segurança de dogmas e
verdades inquestionáveis, a irrupção de um m ovim ento que se pro­
punha tudo submeter à crítica da razão desencadeou uma onda de
intranqüilidade, quando não de um definido pessimismo. Alexandre
Koiré vai buscar em Agrippa von Nettesheim, Francisco Sanchez e
Montaigne três exemplos desse ceticismo sobre as perspectivas do
conhecimento renascentista:

Desde 1 5 3 0 , depois de ter passado em revista todos os domínios de


saber hum ano, Agrippa proclama a "incerteza e a vanidade das ciên­
cias". (...) Cinqüenta anos mais tarde, depois de te r subm etido a
exam e crítico a hum ana faculdade de conhecer, Sanchez reitera, e
m esm o aprova, o julgam ento: "Não se sabe nada". (...) Nada se pode
conhecer. Nem o m undo, "nem nós próprios". Enfim, M ontaigne aca­
ba e faz balanço: o hom em nada sabe, porque o hom em não é nada.
0 caso de M o n ta ig n e é m uito p articularm ente in strutivo e curioso:
este grande destruidor só o é, na realidade, contra a sua vo ntade.
0 que ele queria dem olir não era, de Início, s e n io a superstição, o
208 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

p r e c o n c e it o e o e r r o , o f a n a t is m o d a o p in iã o p a r t ic u la r q u e s e fa z
p a s s a r p o r v e r d a d e ir a e s e ju lg a t a l s e m r a z ã o . N ã o é p o r c u lp a s u a
s e a s u a c r í t i c a lh e d e ix a a s m ã o s v a z ia s : d e f a t o , n a d a é m a is q u e
" o p i n i ã o " n u m m u n d o in c e r t o . ( K o ir é , 1 9 6 3 )

Compreensivelmente, um esforço intelectual que permitisse


superar a dúvida paralisante, que ao nada conduzia, tornou-se uma
necessidade urgente. Surgiram, então, preocupações com o desen­
volvimento de m étodos de produção e avaliação do conhecimento
que visassem ultrapassar as distorções e os erros introduzidos pela
falibilidade humana. Francis Bacon e René Descartes são, na época,
OS mais representativos porta-vozes dessas preocupações m etodo­
lógicas e epistemológicas. Contra os "ídolos que bloqueiam a men­
te hum ana",1 Bacon propõe seu Novum Organum (publicado em
1620) como método (ratio ou via) para se ascender segura e paula­
tinamente, por indução, dos dados empíricos até as leis gerais so­
bre a Natureza. Descartes, por sua vez, também desencantado com
8 filosofia (principalmente a escolástica) - "(...) que foi cultivada
pelos mais excelsos espíritos que viveram desde m uitos séculos e
que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a
qual não se dispute, e por conseguinte que não seja duvidosa (...)"
(1637/1973) - , publica em 1637 seu Discurso do método, com a
descrição dos seus quatro preceitos para a constituição de conheci­
mento verdadeiro. Em forma resumida e bem simplificada:

0 p r im e ir o e ra o d e ja m a is a c o lh e r a lg u m a c o is a c o m o v e r d a d e ir a
q u e e u n ã o c o n h e c e s s e e v id e n t e m e n t e c o m o t a l; is t o é , d e e v it a r
c u id a d o s a m e n t e a p r e c ip it a ç ã o e a p r e v e n ç ã o , e d e n a d a in c lu ir e m
m e u s ju í z o s q u e n ã o s e a p r e s e n t a s s e t ã o c la r a e t ã o d is t in t a m e n t e a
m eu e s p í r it o , que e u n ã o t iv e s s e nenhum a o c a s iã o de p ô - lo em
d ú v id a .

1 Na c o n c e p ç ã o b a c o n ia n a , os íd o lo s são d is to rç õ e s e v ie s e s in tro d u z id o s pela


fn llb ilid a d e d o in te le c to h u m a n o . Ele o s a g ru p a v a em q u a tr o c a te g o ria s : "ídolos da
trtho", fu n d a d o s na p ró p ria n a tu re z a da e s p é c ie h u m a n a , p e lo fa t o d e q u e o seu
In ta le c to e o s s e u s s e n tid o s sã o s e m e lh a n te s a " u m e s p e lh o q u e re fle te d e s ig u a l­
m e n te os ra io s d a s c o is a s e, d e ssa fo rm a , as d is to rc e e c o r r o m p e " ; "ídolos da
caverna", d e riv a d o s d a " p e c u lia r c o n s titu iç ã o d a a lm a e d o c o rp o d e c a d a um";
“ídolos do fo ro ", o rig in a d o s em p e rtu rb a ç õ e s , a m b ig ü id a d e s e ilu s õ e s in tro d u z id a s
pala lin g u a g e m , q u e c ria c o is a s q u e n ã o e x is te m e fa ls ific a ig u a ld a d e s e d ife re n ç a s ;
a *ídolos do te a tro ", c o n s titu íd o s p e lo a p e g o a c o rp o s d e conhecimento espúrios,
como o seriam os dogmáticos sistemas e le is d e demonstraçlo herdados da Esco*
lástlca (v e r B a co n , 1 6 2 0 /1 9 7 3 ).
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 209

O segundo, o de dividir cada um a das dificuldades que eu exam inas­


se em ta n ta s parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fo s­
sem para m elhor resolvê-las.
O terceiro , o de conduzir por ordem meus p ensam entos, com eçan­
do pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir,
pouco a pouco, com o por degraus, até o co nh ecim en to dos mais
co m p ostos, e supondo m esm o uma ordem entre os que não se pre­
cedem n atu ralm en te uns aos outros.
E o últim o, o de fa ze r em toda parte enum erações tã o com pletas e
revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada om itir. (Ibidem ,
pp. 4 5 -4 6 )

Estava assentada a pedra inaugural das reflexões metodológi­


cas, mas, de modo algum, obtido o consenso relativo às soluções
apresentadas. Aliás, não é apropriado nem mesmo se falar de uma
única, mas sim de duas pedras fundamentais, posto que desde o
princípio as divergências estavam estabelecidas. A proposta empi-
rista de Bacon e o posicionamento racionalista de Descartes divi­
diam, já no início, o inquieto movimento de busca de bases mais
seguras para a construção de conhecimento. Daí em diante, a frag­
mentação seria ainda maior.

As controvérsias m etodológicas e epistem ológicas


ch egam à investigação dos e ve n to s psíquicos

Os três séculos e meio que se seguiram, até os dias de hoje,


acrescentaram muitas discussões e novas idéias im portantes a res­
peito da questão da produção de conhecimentos. Isso ocorreu nas
ciências da natureza e também, como não poderia deixar de ser,
nas algumas vezes denominadas ciências do homem - entre elas,
particularmente, a Psicologia. Nesta, aliás, os conflitos visando à
dominação do campo suscitaram, desde o início, temas de grande
complexidade, em torno dos quais as pioneiras abordagens da emer­
gente disciplina psicológica do final do século XIX estabeleceram
suas polêmicas e seus confrontos. E, diferentemente do que ocor­
reu com as ciências naturais, nas ciências humanas as análises não
foram suficientes para fornecer, ainda, uma concepção que consti­
tua um foco aglutinador das várias opiniões.
Embora as querelas metodológicas e epistemológicas não es­
tejam ausentes no contexto das ciências naturais, o próprio nível de
210 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

desenvolvimento dessas disciplinas parece criar um campo de atra­


ção gravitacional entre seus membros que impede seu esfacela­
mento em uma multiplicidade de movimentos pulverizados a se
antagonizarem mutuamente. Existem divergências teóricas, técni­
cas e metodológicas, é claro, mas essas oposições permanecem
circunscritas nos limites internos das próprias disciplinas. São, por
exemplo, físicos divergindo a respeito de suas teorias sobre a estru­
tura dos átomos, ou químicos discutindo suas diferenças sobre os
processos subjacentes à reação de duas substâncias, ou biólogos
contrapondo seus pontos de vista antagônicos sobre a evolução
filogenética dos seres vivos. Mas, em nenhum momento, a alega­
ção é de que se trata de duas físicas, de duas químicas ou de duas
biologias diferentes. A interação entre os grupos que se opõem não
se interrompe sob o pretexto de que os próprios postulados e pres­
supostos fundam entais relativos ao objeto de estudo, ou ao m éto­
do de produção e avaliação do conhecimento, seriam tão incompa­
tíveis que inviabilizariam qualquer perspectiva de concordância fu ­
tura. Essa situação já ficou no passado, na história das ciências
naturais, sepultada pelos séculos de sucesso no manejo e na com­
preensão de seus objetos de estudo.
No caso das ciências do homem, por outro lado, a situação é
consideravelmente mais complexa, e as divergências metodológi­
cas e epistemológicas ainda evidenciam oposições radicais. Con­
sidere-se, por exemplo, a situação da Psicologia. Em primeiro lugar,
além de ter herdado as antigas questões relativas à definição das
características constitutivas do método científico, ela ainda tem
que se defrontar com problemáticas peculiares, como, por exem­
plo, a viabilidade ou não do seu emprego no estudo do objeto psico­
lógico, e, em caso positivo, sobre a melhor forma de efetivamente
fazê-lo. Já no final do século XIX, W undt e Titchener, por exemplo,
depositavam sua confiança na investigação experimental da "expe­
riência im ediata", a ser realizada através da "introspecção controla­
da", como depõe o primeiro em Human and A nim al Psychology'.

Portanto, o experimento é que tem sido a fonte do decidido avanço


na ciência natural e foi ele que provocou tamanha revolução em
nossas concepções científicas. Apliquemos agora o experimento A
ciôncia da mente. Devemos lembrar que, em todos os departamen­
tos da Investigação, o método experimental assume uma forma es­
pecial, ds acordo com a natureza dos fatos investigados. Em psico­
logia, verificamos que somente aquelas fenômenos mentais que slo
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA

d iretam en te acessíveis às influências físicas podem se to rn ar objeto


do exp e rim en to . N ão podemos experim entar sobre a m en te em si,
mas tão-só sobre as suas extensões físicas, os órgãos dos sentidos
e do m o vim ento que estão funcionalm ente relacionados com os pro­
cessos m en tais. (Apud M arx e Hillix, 1 9 7 4 , p. 1 5 5 )

Mal a psicologia instrospeccionista acabava de nascer e já


estava obrigada a enfrentar críticas oriundas de fontes diversas.
Ainda no próprio século XIX, a tradição wundtiana teve que enfren­
tar a acusação de estreiteza e artificialismo, a ela dirigida por William
James e pelo funcionalismo americano. Um pouco mais tarde, no
começo do século XX, duas novas frentes de críticos implacáveis
proclamaram seus protestos contra o introspeccionismo: de um lado,
os behavioristas liderados por Watson; de outro, a psicologia da
Gestalt fundada por Kõhler, Koffka e Wertheimer. De Watson vie­
ram as acusações relativas ao objeto inadequado de estudos, a
consciência, que impossibilitava uma verdadeira aplicação do mé­
todo científico à compreensão do comportamento do Homem e dos
animais:

[A Psicologia] te v e um a partida em falso com W u n d t (...) porque


não enterrou o seu passado. Tratou de apegar-se à tradição com
um a das m ãos, enquanto que, com a outra, p uxava para o lado da
ciência. A n tes que a astronom ia pudesse progredir, foi preciso en­
terrar a astrologia; a neurologia te v e que enterrar a frenologia; e a
quím ica te v e que enterrar a alquim ia. M as as ciências sociais, a
psicologia, a sociologia, as ciências políticas e a econom ia não qui­
seram en terrar os seus "bruxos e curandeiros". (Apud M a rx e Hillix,
1 9 7 4 , p. 2 3 0 )

A Psicologia, tal com o o behaviorista a vê, é um ram o puram ente


objetivo e experim ental da ciência natural. A sua finalidade teórica é
a previsão e o controle do com portam ento. A introspecção não cons­
titu i um a parte essencial dos seus m étodos e o valo r cien tífico dos
seus dados não depende do fato de se prestarem a um a fácil inter­
pretação em term os de consciência (...). Parece te r chegado o m o­
m ento em que a Psicologia terá de se descartar de to d a e qualquer
referência à consciência; em que ela já não necessita iludir-se a si
própria, acreditando que o seu objeto de observação são os estudos
m entais. (Idem , ibidem , pp. 2 2 9 -2 3 0 )

Da psloologla da Gestalt veio a crítica à tentativa de se abor­


dar o fenômeno global complexo com base em uma análise molacu-
212 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

larizante dos elementos que o constituem , de acordo com a asser- j


tiva de que o todo é mais do que a soma das partes. Nas palavras j
de Kõhler: J

Todos nós tínham os um grande respeito pelos m étodos exato s pe­


los quais certos dados sensoriais e fatos da m em ória e s tavam sendo :
investigados, m as tam bém sentíam os p ro fu nd am en te que um traba- '
lho de tão pouco âm bito nunca poderia nos proporcionar um a psico­
logia adequada dos seres hum anos reais. A lguns a cred itavam que
os p atriarcas da psicologia experim ental tinham co m etido um a gra- :
ve injustiça contra as form as superiores da vida m en tal. Outros sus- ;
p eitavam de que, na própria base da nova ciência, havia algum as I
prem issas que tendiam a tornar estéril todo o seu trabalho . (Apud |
M arx e Hillix, 1 9 7 4 , p. 2 8 0 ) |
1
1
O "fenôm eno p hi" estudado por W ertheimer - demonstrando ■
como duas fontes próximas de luz, acesas em rápida sucessão, são i
percebidas como uma única fonte deslocando-se no espaço entre ;
os dois pontos - forneceu o argumento experimental favorável à ;
irredutibilidade da percepção global complexa à soma dos elemen- ií
tos simples subjacentes.2 E, como não poderia deixar de ser, beha- ]
viorismo e Gestalt também trocaram críticas entre si, reivindicando j
a posição de correta e legítima abordagem da jovem psicologia ]
científica.
Esses exemplos oferecem uma amostra representativa dos ;
acontecimentos dessa disciplina e também de outros campos de
conhecimento relativos ao ser humano: conflitos análogos podem
ser encontrados na sociologia, na antropologia e nas demais ciên­
cias humanas. Apenas para termos um exemplo em outra área,
lembremos as oposições inconciliáveis entre durkheimianos, webe-
ríanos e m arxistas.
Paralelamente aos mencionados acontecimentos na Psicolo­
gia, em outra esfera de atuação - a neurologia e a psiquiatria do fim
do século - também estavam em curso acontecim entos que impri­
miriam uma marca definitiva na rota de conhecimentos dos fenô­
menos psicológicos. O rebelde e obstinado Freud empregava toda

2 O "fenômeno phi" é responsável pela própria viabilidade do cinema, já que a


projeçio sucessiva dos quadros que compõem a fita cinematográfica é apreendida
na percepçlo como um movimento uniforme e continuo. • n lo como uma seqüên­
cia luoaialva de Imagana estáticas discretas.
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 2 13

sua energia na tentativa de convencer seus pares da importância de


se estudar fenômenos até então tidos como exteriores ao âmbito
da ciência e indignos de merecer o status de objeto científico: a
histeria, a hipnose, a sugestão, os sonhos, as parapraxias, os chis­
tes, etc. Desenvolveu e aperfeiçoou seu método de investigação da
psique - o método psicanalítico - e formulou teorias abrangentes
sobre os eventos psicopatológicos que, aos poucos, foram se es­
tendendo também para os fenômenos da vida normal. Incapaz de
reverter a onda organicista que predominava nos ambientes acadê­
micos psiquiátricos da época, fundou seu próprio m ovim ento inde­
pendente (movimento psicanalítico), que apenas aos poucos pôde
ir reunindo aliados em torno de suas idéias, obtendo progressiva­
mente prestígio e reconhecimento da comunidade científica e do
público em geral.
Embora, no caso da psicanálise, os conflitos metodológicos e
epistemológicos estivessem limitados, a princípio, ao campo da
psiquiatria e ao espaço por cuja posse vinha com ela rivalizar o
m ovimento e a teoria psicanalíticos, as pretensões de Freud eram
sem dúvida mais amplas: mais do que se oferecer simplesmente
como um método terapêutico de distúrbios mentais ou como um
conjunto de teorias em psicopatologia, a psicanálise disputava ter­
ritórios no seio da própria Psicologia:

Enquanto que a Psicologia da consciência nunca foi além das se­


qüências rom pidas que eram obviam ente d ependentes de algo mais,
a outra visão, que sustenta que o psíquico é inconsciente em si
m esm o, capacitou a Psicologia a assumir seu lugar en tre as ciências
naturais com o uma ciência. (Freud, 1 9 4 0 /1 9 8 7 , v. 2 3 , p. 1 8 3 )

E Freud não reivindicava, para isso, nada além da estrita con­


cepção científica dos fenômenos psíquicos, para a qual sua maior
contribuição tinha sido a gestação de um método de investigação:

Na qualidade de ciência especializada, ramo da Psicologia - psicolo­


gia profunda, ou psicologia do inconsciente - , ela [a psicanálise] é
praticam ente incapaz de construir por si mesma uma W e lta n s c h a u u n g :
tem de aceitar uma W e lta n s c h a u u n g científica. (Freud, 1 9 3 3 /1 9 8 7 ,
v. 2 2 , p. 1 9 4 )

AortcUtO que, aqui, deveríamos fazer uma ressalva a algumas


paiavrat*4 |^ M l 0 fiO Fraud, para questionarmos, em primeiro lugar,
214 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

qual o significado preciso desta afirmação - de que a psicanálise


possibilitou que a ciência do psíquico assumisse um lugar entre as
ciências naturais. Talvez seja preferível argumentar que a psicanáli­
se trouxe, para a investigação científica dos fatos psíquicos, senti­
dos novos e originais para o que se entende por objetividade ou
reprodutibilidade (ou repiicabilidade) em Ciência. E essas inovações
originais distinguem seu método e sua epistemologia, em aspectos
importantes, dos encontrados em outras propostas de investigação
dos fatos psíquicos.
Além disso, também deveríamos nos questionar se a psicaná­
lise constitui tão-somente um "ramo da Psicologia", ou se ela veio
para rivalizar com os demais sistemas teórico-m etodológicos de
abordagem da psique. E, finalmente, seria ainda im portante que
nos perguntássemos se a psicanálise teria como visão de mundo
(ou Weltanschauung) apenas aquilo que, como propunha Freud, ela
partilharia com outras disciplinas científicas, ou se carrega consigo,
de modo indissociável, uma ética própria que a orienta na investiga­
ção e na intervenção sobre o psíquico. Mas meu intuito aqui é ape­
nas assinalar a relevância dessas questões, sem, contudo, aprofun­
dar reflexões ou pretender caminhar na direção da busca de solu­
ções ou respostas.

O q u estio n am en to das ligações entre


psicanálise. Psicologia e Ciência

Do início do século em diante, o conhecimento produzido pela


Psicologia e pela psicanálise veio se desenvolvendo, inicialmente,
de modo independente no interior de cada movimento. Entretanto,
da metade do século para a frente, uma aproximação gradual veio
sendo realizada por indivíduos que, de uma forma ou de outra, ti­
nham vínculos com os dois segmentos. Isto ocorreu sobretudo nos
Estados Unidos da América do Norte:

S eg u ram en te, um dos fatores mais im portantes para a m aior aproxi­


m ação entre a psicologia e a psicanálise foi a oportunidade ofereci­
da aos psicólogos de receber uma fo rm ação psicanalftica, orientada
por psicanalistas qualificados. Alguns institutos psloanalíticos e Io*
cala com o a Clínica Mermlnger * m T op eka, no Kanaas, ■ o Centro
Austin Riggs da StookfcrMfa# am Maieaohusetta»iallflram suas portaa
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 215

a psicólogos pós-graduados selecionados nos anos que se seguiram


à II Grande Guerra. A n tes disso, a form ação psicanalítica era um
privilégio dos m édicos. Pelo m enos, esse era o caso nos Estados
Unidos. A m onopolização da psicanálise pelos m édicos é irônica,
tendo em vista que Freud era vigorosam ente contrário à tra n s fo rm a ­
ção da psicanálise em uma especialidade m édica, e defendia arden­
te m e n te um a política de abertura para a form ação de psicanalistas.
M uitos dos prim eiros psicanalistas não eram m édicos.
Os psicólogos que receberam a form ação psicanalítica vo ltaram en­
tão às universidades, onde puderam oferecer a seus alunos uma
m elhor com preensão da psicanálise, ao lado de um a visão mais sim ­
p ática. Iniciaram tam bém program as de pesquisa com um a orienta­
ção psicanalítica. E não se deve esquecer o papel desem penhado
pelo N ational In stitu te of M en tal H ealth (Instituto Nacional de Saúde
M e n ta l), do D epartam en to de Saúde, Educação e Bem -Estar. Este
instituto forneceu grandes somas de dinheiro para o tre in a m e n to e a
pesquisa na área da psicologia psicanaliticam ente o rien tad a. Sem o
apoio financeiro, teria sido difícil prom over a união desses dois c a m ­
pos. (Hall e Lindzey, 1 9 5 7 /1 9 8 4 , v. 1, p. 5 9 )

M uito desta aproximação entre psicanálise e Psicologia ocor­


reu paralelamente a uma preponderância atribuída ao papel do Ego
e aos processos de adaptação do indivíduo à realidade. Conseqüen­
temente, esta abordagem divergia da ênfase que Freud atribuía ao
Id e a suas pulsões, ao caracterizá-las como expressão dos verda­
deiros propósitos da vida das pessoas. Com propriedade, a escola
de uma im portante parcela desses novos teóricos ficou conhecida
como psicologia do ego, entre os quais podem ser mencionados
Heinz Hartmann, David Rapaport, George Klein, Ernst Kris e Rudolph
M. Loewenstein. Os artigos de Hartmann (1950) e de Rapaport
(1959) são fontes importantes para se avaliar as propostas com
que a Ego Psychology apresentou-se a psicólogos e psicanalistas.
George Klein instituiu o Psychological Issues, em 1959, com o
objetivo de publicar artigos e pesquisas referentes a temas psicana-
liticos de interesse para a Psicologia.
É verdade que, mesmo antes da década de 1950, já existiam
alguns indivíduos promovendo algum tipo de aproximação entre
psicanálise e Psicologia, como é o caso de Herry Murray, John
Dollard e Neal Miller, que realizaram pesquisas empíricas relaciona­
das a assuntos psicanalíticos. Os dois últimos conduziram uma sé­
rie de pesquisas que tinham como referencial a aplicação da teoria
E-fí, de Clark L. Hull, a proposições e termos da psicanálise, como,
21 6 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

por exemplo, o deslocamento e as reações em situações de frustra­


ção (ver Miller, 1944 e 1 948). Aliás, o próprio Hull estivera também
interessado nessa aplicação de seus conceitos à teoria psicanalíti-
ca, tendo organizado um seminário sobre o tema em 1936-1937,
como registram Marx e Hillix (1 9 63 /19 74, p. 485). Um artigo de
Sears, de 1943, fornece um levantamento de experimentos condu­
zidos, até essa data, para avaliar a sustentação de formulações da
teoria psicanalítica.
Foi com o desenvolvimento dos elos de ligação entre psicaná­
lise e Psicologia, porém, a partir da psicologia do ego, que se sedi­
mentou uma base mais sólida para o maior desenvolvimento de
estudos empíricos e tentativas experimentais de validação das pro­
posições psicanalíticas. Kline levantou a literatura sobre o assunto
em seu trabalho de 1972; Eysenck e Wilson (1974) também anali­
saram uma parcela desses estudos, mas com o objetivo de encon­
trar argumentos para uma contestação da psicanálise. Já o levanta­
mento de Fisher e Greenberg (1977) levou-os à conclusão oposta.
"Esses autores acreditam que, de um modo geral, os resultados
encontrados favorecem Freud" (Hall e Lindzey, 1 9 5 7/1 984, p. 62).
Embora muitos acreditassem que tanto a Psicologia quanto a
psicanálise receberam uma inestimável contribuição do estabeleci­
mento dessa inter-relação entre os dois movim entos, essa opinião
não constituiu, de modo algum, um consenso. M uitos psicanalistas
recearam que a aproximação da psicanálise com a Psicologia des­
caracterizasse a primeira no que ela possuía de mais original e cria­
tivo. Temeram que uma obsessão cientificista, tecnicista e pragmá­
tica, que acreditavam presente na psicologia americana, já estives­
se influenciando negativamente o desenvolvim ento psicanalítico
naquele país:

Após 40 anos de prática analítica nos Estados Unidos, o vienense


Bettelheim resolve se pronunciar, não apenas para assinalar esta
diferença marcante entre concepções psicanalíticas, mas para de­
nunciar a via por onde foi conduzida a psicanálise norte-americana.
(...) O sentido do discurso freudiano foi inteiramente deformado.
As dimensões mítica e fantasmática, que presidem a constituição
da subjetividade na concepção freudiana, foram quase que comple­
tamente silenciadas num modelo preocupado com o comportâmes
to do indivíduo e a interação social e, evidentemente, voltado pare i
ad aptação social. (Birman, 1989, p. 81) 1
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 21 7

Segundo esses mesmos críticos, a própria tradução das obras


de Freud para o inglês teria sofrido a marca "nociva" da Ciência e
da psicologia de orientação científica.

No co n texto desta interpretação o que adquire m aior relevância d e­


m o n strativa são as traduções de Freud para o inglês, incluindo-se,
ta m b é m , a mais respeitada entre elas, isto é, a tra d u ç ã o organizada
por S trach ey para a S ta n d a rd Edition. (...) Passagens inteiras e pe­
quenos frag m en to s são com entados à guisa de d em o n stração , co m ­
parando os originais e as traduções, para assinalar as m utações no
co n texto discursivo, nos escritos de Freud, em direção a uma p sico ­
logia cien tificista de base behaviorista [grifos nossos]. Bettelheim
assinala de m odo recorrente, consultando os dicionários da língua
inglesa mais autorizados, que os tradutores teriam o utras possibili­
dades de tradu ção que m anteriam intacto o "espírito" do discurso
freudiano, afa stan d o , assim, uma ju stificativa repetida dos tra d u to ­
res de que certas escolhas foram feitas pela inexistência de palavras
correspondentes em inglês. Desta form a, conceitos básicos do dis­
curso freudiano receberam traduções que alteram o seu significado
num a direção bem d eterm in ad a, isto é, retirando o seu sentido
m ítico e o seu alcance m etafórico, e lhes dando um a objetivação
cie n tific is ta . D entre estas, as mais n otáveis são a tra d u ç ã o de
F eh lleistu n g por "p a ra p ra x ia ", de verdrangung por "rep ressão ",
b esetzu n g por "ca texia" e trieb por "instinto". (Idem , ibidem , p. 8 2 )

Uma das mais importantes correntes do pensamento psicana-


lítico a se pronunciar sobre a questão das inter-relações entre psica­
nálise, Psicologia e Ciência foi o movimento surgido na França sob
a liderança de Jacques Lacan. Empenhado em livrar a psicanálise
francesa da influência, considerada nociva, da psicanálise norte-
americana, e principalmente da psicologia do ego de Hartmann,
Rappaport, Kris e Lowenstein, Lacan empreendeu seu "retorno a
Freud" com uma crítica enfática às distorções que, no seu ponto de
vista, o pensamento freudiano teria sofrido ao longo do tempo.
E diversos outros autores, seus discípulos ou de outras correntes
psicanalíticas contemporâneas, fizeram coro às suas denúncias ou
explicitaram acusações análogas:

N esta concepção cientificista, p ortanto, a figura do analista está


anulada en qu an to subjetividade no co ntexto do processo psicanalí-
tico, transform an do -se num código fo rm al que registra aco n teci­
m entos pafqulooa no outro, mas o que registra nào tem qualquer
218 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

incidência na sua realidade psíquica enquanto sujeito. Este registro


form al de aco n tecim en to psíquicos na figura do analisando, sem a
im plicação subjetiva da figura do analista, é o cam inho m etodológi­
co pelo qual a tram a da linguagem é anulada no processo psicanalí-
tico e a concepção m ítico -fan tasm ática do psíquico é silenciada,
reduzindo-se a um a versão co m p ortam en tal do psiquism o. Enfim , o
psicanalista se transform a num técnico do inconsciente do outro,
visando a sua "cura" com a utilização da "droga" interpretação , não
estan d o, p o rtan to , nunca em questão na sua posição subjetiva pe­
los enigm as colocados pelo outro no processo psicanalítico.
A ssim , o m odelo m édico-psiquiátrico subm eteu de tal fo rm a o saber
psicanalítico a ponto de im prim ir neste a sua lógica de m aneira
absoluta. O analista seria o detentor de um saber praticam ente sobera­
no no que se refere à experiência psíquica e aos seus desvios, sus­
te n tan d o -se num código sofisticado sobre as enferm idades psíqui­
cas e reduzindo, assim , o saber analítico ao m odelo m édico-pedagó-
gico. O analisando é o seu objeto de cu ra /a d e s tra m e n to , a quem
cabe incorporar as normas que vão lhe ser com unicadas pelo m estre
e atingir, assim , a "felicidade" hum ana. (Idem , ibidem , p . 8 4 )

As propostas de Lacan foram se tornando progressivamente


mais radicais, a ponto de ele chegar a defender que a psicanálise
se desvinculasse por com pleto da Psicologia e das concepções
tradicionais de Ciência, fundamentando-se em estatuto epistemo-
lógico próprio, com uma formalização assentada em teorias sobre
o sim bolism o e inspirada na lingüística, na lógica e na topologia.
É verdade que este projeto não recebeu a acolhida irrestrita de
todo o campo psicanalítico, mas suas críticas contra a aproxima­
ção da psicanálise à Psicologia e a uma ciência de orientação po­
sitivista encontraram a melhor das repercussões entre todos os
que já denunciavam como empobrecedora do Homem uma visão
de Psicologia de ênfase científica e empírica. Entre estes, havia
também m uitos psicólogos, com certeza, a confirm ar as ferinas
afirmações de Politzer de que "(...) os psicólogos são cientistas
como os selvagens evangelizados são cristãos (...)" (apud Japiassu,
1989, p. 60): "(...) falam da Ciência, eles a copiam, mas não a
amam" (ibidem, p. 88).
Não pretendo deter-me para analisar as propostas de solução
de Lacan, pois o que me interessa aqui é apenas assinalar suai
críticas ao empobrecimento que uma orientação positivista de Ciôn­
cia Implicaria para a psicanálise. Suas acusações somam-se a todo
um movimento mais amplo de crítica aos caminhoi pelos quais •
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 219

ciência moderna veio prosseguindo, que terminaram por trazê-la,


no contexto histórico do capitalismo plenamente desenvolvido, a
uma situação m uito distante da imagem com a qual os cientistas
gostam de se identificar: a de uma vanguarda independente do
establishm ent intelectual de sua época, que subverte o status quo
e renova as concepções vigentes segundo proposições inovadoras
e teorias originais. Em resumo, colocou-se em xeque essa auto-
representação dos cientistas como legítimos herdeiros dos pensa­
dores subversivos, que, nos séculos XV a XVII, enfrentaram a San­
ta Inquisição para liberar o pensamento dos preceitos exclusivos da
metafísica escolástica.

A presença da ideologia na Ciência e a necessidade


das discussões m etodológicas e epistem ológicas

Faz-se necessário, agora, recapitularmos o trajeto percorrido


até este ponto. Iniciamos pelo exame de uma vanguarda rebelde,
nos séculos XVI e XVII, tentando tornar o pensamento e a razão
independentes da fé. E chegamos ao final do século XX com uma
severa acusação à intenção de se buscar uma compreensão cientí­
fica dos fenômenos humanos, por ela conduzir a uma visão míope e
deturpada do Homem. Os pioneiros batalhadores em prol da Ciên­
cia, renegados pelo conservadorismo reacionário e mantenedor do
status quo de sua época, ficariam provavelmente surpresos se t i­
vessem podido antecipar o teor dessa denúncia: o de que a te n ta ti­
va de estudar cientificam ente o Homem teria como propósito, no
século XX, a negação do que ele possui de mais criativo, original e
idiossincrático, bem como sua submissão e adaptação às normas
do contexto social. Como isto ocorreu?
A resposta deve ser complexa, obviamente, e não poderia
deixar de considerar as relações entre o campo da Ciência e o cam­
po social, como nos lembra Pierre Bourdieu:

O universo "puro" da mais "pura" ciência é um cam po social com o


outro qualquer, com suas relações de força e m onopólios, suas lu­
tas e estratég ias, seus interesses e lucros, mas onde todas essas
in v a ria n te s revestem form as específicas (...). O cam po científico,
en qu an to sistem a de relações objetivas entre posições adquiridas
(em l u t i i anteriores), é o lugar, o espaço da jogo ds um a luta
220 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

concorrencial. O que está em jogo esp ecificam en te nesta luta é o


m onopólio da a u to rid a d e c ie n tífic a , d efin ida, de m aneira insepará­
vel, com o capacidade técn ica e poder social; ou, se quiserm os, o
m o n o p ó lio da c o m p e tê n c ia c ie n tíf ic a , c o m p re e n d id a e n q u a n to ,
capacidade de falar e agir leg itim am en te (isto é, de m aneira autori- |
zada e com autoridade), que é socialm ente outorgada a um agente 4
d ete rm in ad o . ( 1 9 7 6 /1 9 9 4 , pp. 1 2 2 -1 2 3 ) íj
i

Em sua opinião, no campo da Ciência existiriam diferentes


I
|
interesses em jogo, além, é claro, do interesse na procura da v e rd a -1
de. Conseqüentemente, as práticas científicas estariam sempre so- ;
bredeterminadas, sendo ilusórias e artificiais as pretensas separa- j
ções absolutas entre o que constituiriam conhecimentos produzi- !
dos segundo "interesses intrínsecos" aos objetivos da Ciência e i
conhecimentos produzidos segundo "interesses extrínsecos" a es­
ses mesmos objetivos. Por exemplo, no mundo com petitivo d a ,
Ciência, a escolha de um problema de pesquisa por um investigador)
obedeceria à antecipação que ele faria do "lucro sim bólico" quel
seria possível obter, em sua comunidade científica de referência,!
por meio da descoberta realizada.
E o fato observado é que, seja de forma deliberada, seja d®
modo não consciente, os cientistas e sua Ciência vieram se enga*;
jando, em grande parte das ocasiões, nos processos históricos que:
promovem e consolidam o espírito do capitalismo. Isso pode sef
constatado tanto no tipo de conhecimento que se produz quanto n f ?
tecnologia que, baseada nele, se tem originado. Especialistas d f i
visão minuciosa e precisa, mas restrita às poucas micras dos redu­
zidos campos de visão de seus microscópios, os cientistas perde­
ram de vista a dimensão do campo humano e social mais amplo. ’
Profissionalizaram-se, submetidos às rígidas regras das estruturas
políticas dos campos sociais a que pertencem, os quais exercem !
uma esmagadora pressão sobre sua produção, limitando-a ao que
não ameaça (antes, colabora para fortalecer e reproduzir) os alicer­
ces do sistema. Tornaram-se míopes para tudo o que escape ao \
campo próximo e imediato de suas investigações especializadíssl- |
mas e, principalmente, para o significado social de seu próprio j
trabalho. i
As críticas de Horkheimer às teorias científicas "tradicionais",j
em oposição às teorias "críticas", apontam exatamente para essoi
afastamento, por parte da ciência "tradicional", das circunstância* i
sociais oonoratas em que se originam os problomaa • nas qualt
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 221

suas soluções são aplicadas. E, a despeito das diferenças entre


Horkheimer e Habermas, eu traria, para complementar as críticas
do primeiro, a apreciação negativa que Habermas faz do "positivismo
científico e filo sófico" e do "objetivismo tecnocrático", enquanto
"duas faces de uma mesma e ilusória moeda ideológica": "manchas
turvas no horizonte da racionalidade" (in\ Benjamin, Horkheimer,
Adorno e Habermas, 1980).
Pode-se questionar se existe ou não algo de intrínseco aos
próprios métodos que acompanham a Ciência desde os seus pri-
mórdios, que a dirigem necessariamente para essa reprodução de
um campo em que apenas a produção e o crescimento material
sejam considerados de interesse. Georg Lukács, por exemplo, em
História e consciência de ciasse (1923), reduziu o conhecimento
científico a uma mera representação ideológica da burguesia. Acre­
dito que talvez essa seja uma posição extremada. Contudo, o fato
inegável é que, concordando com Marcuse (1967),

(...) o m étod o científico que levou à dom inação cada ve z mais eficaz
da natureza passou assim a fornecer ta n to os conceitos puros como
os instrum entos para a dom inação cada vez mais e fic a z do hom em
pelo hom em através da dom inação da natureza. (A pud Haberm as,
1 9 6 8 /1 9 8 0 , p. 3 1 5 )

Para isso, muito contribuíram a especialização dos cientistas,


o distanciamento do interesse e da crítica relacionados ao amplo
sistema social, a reificação, a "economicização" e a moleculariza-
ção do objeto, além de um quase exclusivo interesse apenas por
sua dominação e controle. Isso tudo sem contar uma inequívoca e
insidiosa preferência pelo fortalecim ento do status quo político-
econômico-social que se instalou no campo produtor de conheci­
mento de modo sorrateiro (e, muitas vezes, desapercebido de boa
parte da própria comunidade do campo), mantendo-se à margem
das áreas de confronto científico e acadêmico como uma espécie
de premissa ou postulado inconsciente: uma zona de penumbra
implícita e fora de discussão.
Toda essa revisão das articulações entre o cam po da Ciência
e o campo social teve como resultado a destruição da imagem de
neutralidade política da atividade científica e sua destituição da
pretensa posição de instrum ento absoluto e inquestionável de re­
velação da verdade» que velo para tornar ultrapassados, Irrelevan-
222 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

tes e dispensáveis os modos não científicos de conhecim ento.


Reacenderam-se antigos conflitos, inauguraram-se novos antago­
nismos, estabeleceram-se e romperam-se alianças de confronto:
Ciência contra Religião contra Filosofia; razão contra fé contra
emoção e paixão; capitalismo contra marxismo contra fascism o;
m undo germ ânico contra m undo latino contra m undo anglo-
saxão; psicanálise contra Psiquiatria contra Psicologia; psicólogos
contra médicos contra psicanalistas; psicanalistas institucionali­
zados contra não institucionalizados; clínicos contra pesquisado­
res acadêm icos... E isto apenas para lembrar o que mais rapida­
mente me acorre à consciência.
Não se pretende afirmar, porém, que a questão se esgota no
plano dos interesses sociais, políticos e econômicos, a serem inves­
tigados exclusivamente pela sociologia do conhecimento. Pode-se
invocar mais uma vez Bourdieu:

Um a análise que tentasse isolar uma dim ensão p uram en te "política"


nos conflitos pela dom inação do cam po científico seria tão falsa
q uanto o p a rti pris inverso, mais fre q ü e n te , de so m en te considerar
as d e term in ações "puras" e p uram ente intelectuais dos conflitos
cien tíficos. ( 1 9 7 6 /1 9 9 4 , p. 1 2 4 )

Os embates intelectuais e científicos não se resolvem pelo


emprego exclusivo da força política, já que a manutenção do poder
dentro do campo exige que se persuada os demais de que a vitória
foi da Ciência ou da Razão, e não simplesmente do sucesso no
manejo da força bruta ou do poder político. Conseqüentemente, as
discussões epistemológicas e da Filosofia da Ciência não são sim­
ples ilusões desprovidas de significado em relação à realidade das
disputas no interior do campo científico. O fato de a classe burgue­
sa ter passado da revolução à "reação" contra novas transform a­
ções sociais, assim como a constatação de que a Ciência muitas
vezes a ela vem se aliando na solidificação de ideologias e do
"já conhecido", mais do que na libertação dos preconceitos e na
construção de progresso verdadeiramente científico (sobretudo em
se tratando dos fenômenos humanos e sociais), não desaconselha
(antes recomenda) a tarefa de crítica aos fundam entos da atividadft
de conhecer. É apenas com esse questionamento epistemológico ft
metodológico - conduzido integradamente com as tarefas de umi;
sociologia do conhecimento, e, quem sabe, com as contrlbulçõtt
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 2 23

das ainda não desenvolvidas psicologia e psicanálise do conheci­


mento - que se poderão obter os elementos necessários ao esclare­
cim ento de pontos cegos, zonas de obscuridade e miopia, assim
como fontes de erro presentes na busca de conhecimento; tam ­
bém, eventualm ente, obter-se-ão as formas de ultrapassagem e
superação de impasses.

Fragm entação e d isp u ta no cam po


da psicanálise e da Psicologia

Com relação às articulações entre psicanálise, Psicologia e


Ciência, que nos interessa de perto examinar, deve-se admitir que
infiltrações ideológicas tenham de fato ocorrido, em proporções in­
suportáveis, em determ inados contextos histórico-geográficos.
E deve-se também considerar cuidadosamente o alerta sobre o ris­
co, sempre presente, de que o mesmo possa se repetir em outras
situações. Disso não decorre, porém, a conclusão por antecipação
de que toda articulação entre psicanálise e Ciência ou entre Psicolo­
gia e Ciência constituam , obrigatoriamente, o esconderijo de in­
fluências ideológicas sorrateiras (o mesmo vale para interações en­
tre psicanálise e Psicologia); tampouco significa que o território do
misticism o seja o refúgio por excelência da virtude e da verdade, e,
muito menos, que a ausência de cientificidade constitua uma espé­
cie de atestado de "pureza ideológica".
Uma coisa é aceitar que a busca de cientificidade pela psica­
nálise e pela Psicologia não escapa ao movimento de crítica e revi­
são da teoria científica no seu modo de ver e lidar com o mundo, e,
até mesmo, concordar que talvez seja nelas, e nas demais discipli­
nas que constituem as Ciências Humanas, que essa necessidade
seja mais forte. Outra bem diferente seria admitir a irrelevância das
discussões filosóficas, epistemológicas e metodológicas relativas
às formas de produção e avaliação do conhecimento psicanalítico e
do conhecimento psicológico, como se o reconhecimento da in­
fluência das variáveis políticas e sociais as tornassem um empreen­
dimento falido, antes mesmo de ser iniciado.
Na ausência dessas discussões críticas, os posicionamentos
correm o risco de escorregar para polarizações irrefletidas: seja um
cientificismo ideológico ingênuo, de um lado (que, talvez, pelo menos
224 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

uma parcela da psicanálise do ego norte-americana poderia exem­


plificar), seja o mais raso e irracional misticism o incoerente, de ou­
tro. E mesmo que se consiga escapar desses pólos indesejáveis não
podemos esquecer que a psicanálise e a Psicologia ainda terão que
enfrentar e ultrapassar, para além da questão das interações entre
ambas, o problema da multiplicidade de alternativas teóricas que
se confrontam no interior de seus próprios campos: no caso da
psicanálise, freudianos, kleinianos, psicólogos do ego, bionianos,
w innicottianos e lacanianos (apenas para citar alguns dos grupos
mais destacados) disputam a prioridade pela oferta da teoria mais
bem fundamentada, da prática psicanalítica legítima e da articula­
ção mais apropriada entre psicanálise e Ciência; no caso da Psi­
cologia, skinnerianos, cognitivistas, psicólogos sócio-históricos,
rogerianos, gestaltistas e psicólogos humanistas fornecem apenas
alguns poucos exemplos do enorme contingente de concorrentes
que disputam a precedência no campo.
Particularizando a questão para o caso específico da psicaná­
lise, poder-se-ia imaginar que uniformidades poderiam ser buscadas
recorrendo-se, por exemplo, às palavras de Freud. No texto em que
tenta preservar a coesão da comunidade psicanalítica, ameaçada
pelas dissensões de Adler e Jung (cf. Freud, 1 9 1 4/1 987, especial­
mente pp. 26-29), ele propõe os elementos fundamentais que defi­
niriam o que poderia ser propriamente designado como psicanálise:
O reconhecimento da repressão, da resistência, da transferência e
da sexualidade infantil, além, obviamente, da admissão do incons­
ciente. Aliás, não foi esta a única ocasião em que Freud definiu
desta maneira as bases fundamentais subjacentes a toda reflexão
apta a se inserir apropriadamente no campo psicanalítico:

/4s p ed ra s A n g u lares da Teoria P sicanalítica. - a pressuposição de


existirem processos m entais inconscientes, o reconhecim ento da
te o ria da res istê n c ia e rep ressão , a a p re c ia ç ã o da im p o rtân cia
da sexualidade e do com plexo de Édipo co nstitu em o principal tema
da psicanálise e os fu n dam entos de sua te o ria . A q u ele que não
possa aceitá-lo s a todos não deve considerar-se a si m esm o como
psicanalista. (Freud, 1 9 2 3 /1 9 8 7 , p. 3 0 0 )

Ainda que isso seja importante, acredito todavia que não seja»,
suficiente, já que a própria convergência dos significados que t r
com unidade psicanalítica empresta aos term os que designam»,
os elementos teóricos centrais está colocada am questfio. Isso é
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 225

evidenciado, por exemplo, no convite dos editores do International


Journal o f Psychoanalysis, no editorial do volume de 1 990, solici­
tando o envio de artigos que possibilitem a elucidação desses con­
ceitos:

N o tio n s lik e " tra n s fe r e n c e " , " in te rp re tin g th e tr a n s fe re n c e " ,


"resistance", "analysing resistance", "free association", "discovering
th e associations to in te rp re t the la te n t c o n te n t o f a d re a m " e tc ., are
n o t a lw a y s as d e a r as w e m ig h t like (...). D iscussion should try to
s h o w w h a t the particular analyst m eans b y analysing th e transference
or resistance, w a itin g fo r associations, m aking reco n stru ction s etc.
(T u cke tt e H ayley, 1 9 9 0 , pp. 1-2)

Em um artigo publicado em 1 989, no International Journal o f


Psychoanalysis, o psicanalista uruguaio Ricardo Bernardi analisa as
proposições de Freud, Melanie Klein e Jacques Lacan, e apresenta
a seguinte conclusão:

(...) com relação à unidade e à diversidade do nosso cam po, nós


te n ta m o s m ostrar que estes d iferentes paradigm as são irredutíveis
uns aos outros, desde que não há acordo entre eles nem quanto às
prem issas gerais (as quais não com partilham ) nem quanto à ex p e ­
riência (que não é vista da m esm a m aneira). Não é fácil dizer se, ao
longo do tem p o , eles tendem a uma m aior convergência ou a uma
diferenciação crescente. ( 1 9 8 9 , pp. 3 5 3 - 3 5 4 ) 3

No caso da Psicologia, a situação é evidentemente ainda mais


complicada, considerando-se que a possibilidade de consenso entre
as várias abordagens concorrentes parece, de saída, uma miragem
com pletamente inatingível. Mais do que nunca, torna-se apropriada
a caracterização de Pierre Bourdieu do campo científico como o
lugar de relações concorrenciais pelo monopólio da autoridade
científica:

O cam po cien tífico, enquanto sistem a de relações objetivas entre


posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de

3 No original: "With relation to unity and diversity o f our field, we have tried to
show that these different paradigms are irreducible to one another, since there is
no agreement between them about general premises (which they do not share) or
about experience (which Is not seen in the same way). It Is not easy to say either
whether they HMtfl In llm» to greater convergence or Increasing differentiation
226 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

jogo de um a luta concorrencial. O que está em jogo esp ecificam en te


nessa luta é o m onopólio da autoridade cie n tífic a , d efin ida, de m a­
neira inseparável, com o capacidade técnica e poder social; ou, se
quiserm os, o m onopólio da co m p etên cia cien tífica, com preendida
en qu an to capacidade de falar e de agir leg itim am en te (isto é, de
m aneira autorizada e com autoridade), que é so cialm en te outorgada
a um ag en te d eterm inado. ( 1 9 7 6 /1 9 9 4 , pp. 1 2 2 -1 2 3 )

Nessa luta concorrencial, os representantes de cada aborda­


gem tentam impor a definição de Ciência que fundamenta sua pró­
pria versão de Psicologia: os problemas de pesquisa, métodos e
teorias que se ajustam às suas formulações. Conseqüentemente, a
própria noção de cientificidade é um elemento em jogo no espaço
dos embates entre os diferentes concorrentes. Não existe juiz neu­
tro e "desinteressado" daquilo que constitui uma prática "legitim a­
mente científica".
Fazendo uso das reflexões de Thomas Kuhn a respeito da
Cléncia, deveríamos considerar a Psicologia como situada no está­
gio Inicial das disciplinas científicas, quando diferentes escolas e/ou
abordagens competem entre si pela prerrogativa na investigação de
um determinado campo de eventos: aquilo que ele denomina "pe­
ríodo pré-paradigmático" (1962/1996). E, segundo suas propostas,
a passagem ao período de pleno desenvolvimento científico decor-
rarla do triunfo de uma das escolas pré-paradigmáticas sobre as
damais, instalando-se como dominante no campo da disciplina.
Embora apresentando uma concepção de Ciência com dife-
ranças significativas em relação a Kuhn, Bourdieu concorda com
aasa reflexão de que as disputas mais acirradas no campo científico
nflo se resolvem por consenso ou complementaridade:

Os fu n dad o res de uma ordem científica herética rom pem o contrato


de troca que os candidatos à sucessão aceitam ao m enos ta c ita -
m ente: não reconhecendo senão o princípio da legitim ação que pre­
ten d em im por, eles não aceitam entrar no ciclo das trocas de reco­
n h ecim en to que assegura a transm issão regularizada da autoridade
cien tífica en tre os d etentores e os preten d entes. (...). Recusando
todas as cauções e garantias que a antiga ordem o ferece, recusan­
do a p articip ação (progressiva) ao capital c o le tiv a m e n te garantido
que se realiza segundo procedim entos regulados de um dos contra­
tos de delegaçlo, eles realizam a cumuiaçlo Inlolal através de um
golpe de força, por uma ruptura, desviando am proveito próprio o
orédlto da que ia btneflolavam oa antigos domtaantai, sem oonoadar-
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 227

lhes a co ntrap artida do reconhecim ento que lhes o fe re c e m aqueles


que aceitam se inserir na continuidade de um a linhagem . ( 1 9 7 6 /
1 9 9 4 , p. 1 3 9 )

Tomando em consideração essas opiniões, seria razoável


supor-se que a situação de fragmentação no campo da Psicologia
não se resolverá por uma espécie de "acordo de cavalheiros" que
estabeleça fronteiras seguras para o domínio de cada abordagem.
Não parece ser este o modo pelo qual, historicamente, são resolvi­
das as divergências no campo da Ciência. Por conseqüência, pode-
se supor que as disputas e as divergências continuarão acentuadas.
Uma pergunta que se torna procedente refere-se a qual é o
lugar da psicanálise no que se relaciona com as disputas no campo
da Psicologia. Seria ela um dos concorrentes no campo de investi­
gação dos eventos psíquicos, como às vezes se depreende de algu­
mas afirmações freudianas?4 Ou, diversamente, seria um equívoco
pretender-se que Psicanálise e Psicologia disputam o mesmo terri­
tório, como propõe Jean Laplanche ao falar sobre "confusões abu­
sivas" entre a Psicanálise e a Psicologia? "As ilusões são múltiplas,
mas todas se resumem numa palavra: comparar a psicanálise com
uma psicologia geral" (Freud, 1923/1987, v. 18, p. 287).
Não é esta a ocasião que escolhi para discutir este assunto,
mas, de todo modo, cabe lembrar mais uma citação, do próprio
Freud, que parece pertinente no esclarecimento de suas posições a
respeito do assunto:

Psicanálise é o nom e de (1 ) um procedim ento para a investigação de


processos m entais que são quase inacessíveis por qualquer outro
m odo, (2) um m étod o (baseado nessas investigação) para o tra ta ­
m ento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de inform ações
psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que g rad ualm en te se
acum ula num a nova disciplina científica. (Ibidem , p. 2 8 7 )

Antes de terminar, quero ainda pôr em destaque um assunto


relacionado aos perigos implicados pelas disputas que envolvem a
busca de dominância no campo científico. Mesmo considerando
esse embate legítimo e intrínseco aos acontecimentos do campo,
talvez fosse o caso de nos perguntarmos sobre a necessidade de

4 Veja-se, anteriormente, a citação da p. 213, extraída de Freud (1 9 4 0 /1 9 8 7 ,


v, 23, p. 183).
228 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

uma "mínima ética" indispensável à sua regulação. Como escapar­


mos ao absurdo de pensar, por exemplo, que a invasão do campo
por uma espécie de totalitarism o econômico e político (articulado a
uma posição de dominância no campo social) poderia ser conside­
rada uma "arma apropriada" nas competições científicas? Ou que
as posições de poder no interior do próprio campo científico5 pos­
sam ser utilizadas como circunstâncias para reduzir ao silêncio os
adversários teóricos, em substituição ao carisma da engenhosidade
teórica, da habilidade metodológica e epistemológica das investiga­
ções e da genialidade das idéias? Encontrar uma solução razoável
que permita uma mínima ordenação ética das lutas, sem abrirmos
mão da legitimidade das disputas teóricas e epistemológicas, talvez
constitua um desafio a ser continuamente retomado em cada mo­
mento histórico do campo de uma disciplina científica!

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1 Reflro-me a posições como, por exemplo, direções ou participações em conaa*


lhos científicos e comissões: de perlódloos, de Instituições científicas, de avallaçlò
da programas da póa-Qraduaçlo, da administração da varbaa governamentais ott
prlvadaa da pesquisa, da oonouraei aoadémlooi, da oontrataçlo da profaaaoraa, ate.
PSICANÁLISE, PSICOLOGIA E CIÊNCIA 229

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Raul Albino Pacheco Filho


Coordenador, junto com Miriam Debieux Rosa, do Núcleo de Pesquisa
"Psicanálise e Sociedade" do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor-
associado da Faculdade de Psicologia da mesma universidade. Membro do
Grupo de Trabalho em História da Psicologia da Assoclaçlo Nacional da
Ptiqulta • Pós-Qraduaçlo em Paloologla (Anpepp).
IX
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL
E EM SÃO PAULO: REGISTROS HISTÓRICOS
Roberto Yutaka Sagawa

Introdução

A psicologia clínica e a psicanálise têm uma história em co­


mum no Brasil. No entanto, esta afirmação é insuficiente do ponto
de vista histórico e epistemológico, na medida em que, se for man­
tida apenas assim, dá a impressão de que seriam uma mesma ciên­
cia e, mais ainda, de que tanto a psicologia quanto a psicanálise
teriam uma unidade de objeto e de método.
No Brasil, a psicologia clínica e a psicanálise começaram num
mesmo e único campo científico e profissional. Sobretudo nos anos
10 e 20, ambas foram dominadas hegemonicamente pelos médi­
cos, os quais poderiam ser denominados hoje de "médicos psicólo­
gos". Nesse período, não houve outra psicologia clínica que não
tenha sido sinônimo de psicanálise. Um segundo momento marcan­
te da história das relações entre essas duas ciências psicológicas
foram os anos 50, um período decisivo para ambas, na medida em
que, pela primeira vez, foram definidas também como profissões
distintas e específicas.
Esses dois momentos históricos da implantação da psicologia
clínica e da psicanálise no Brasil servem para fazermos registros
históricos, mas também para refletirmos sobre o que significa res­
gatar essa história am um contexto científico e profissional como ó
o de nossos dias.
232 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Quem foi o primeiro no Brasil?

Existe uma pergunta que acaba sendo feita de forma muito fre­
qüente, em diferentes épocas sucessivas: quem foi o primeiro a aplicar
a técnica psicanalítica no Brasil? Aparentemente, a resposta a encon­
trar pode ser fácil: foi quem primeiro aplicou na sua clínica o método
de Freud. Se for assim, após alguns vacilos de dados coletados, a
prioridade foi sendo cada vez mais regredida cronologicamente.
De início, foi atribuída a Durval Marcondes. Virgínia Bicudo
(1948), autora de um dos primeiros estudos sobre a história da
psicanálise em São Paulo, deu a prioridade da clínica psicanalítica a
Durval Marcondes, no período autodidático referente aos anos 20
até meados dos 30. Em outro estudo ainda mais elaborado do que
a da professora Virgínia Bicudo, Galvão (1967) estabeleceu os prin­
cipais fatos e personagens da psicanálise em São Paulo: Franco da
Rocha, no plano teórico, e Durval Marcondes, no plano do exercício
da prática clínica psicanalítica.
Depois de algumas décadas, questionou-se essa prioridade
atribuída a Durval Marcondes e passou-se a considerar os médicos
cariocas (ou estabelecidos no Rio de Janeiro), sobretudo, porque se
passou a pensar em Brasil e não mais em São Paulo somente. Foi o
caso de incluir outros precursores, como Júlio Porto-Carrero e, em
seguida, Juliano Moreira e Genserico A. de Souza Pinto. Tal traba­
lho de pesquisa bio-bibliográfica foi desenvolvido, em duas etapas
complementares e sucessivas, pela dra. Marialzira Perestrello (1 987;
1992), que chegou a estabelecer a cronologia mais exata possível
da prioridade da aplicação da psicanálise no Brasil. Uma contribui­
ção recente é a publicação do Dicionário biográfico da Psicologia no
Brasil (2001), que reuniu os principais pesquisadores de História da
Psicologia, no qual constam inúmeros verbetes com os precursores
da psicanálise, como os já citados: Juliano Moreira, J. Porto-Carrero,
Genserico A. S. Pinto, entre outros.
Ainda entre os primeiros estudos1 referentes à história da
Psicologia no Brasil, deve constar o de Lourenço Filho, que, ao

1 Cabral (1950) desenvolveu um estudo crítico sobre o início da Psicologia no


Brasil, mas seu enfoque inclui a Psicologia e a psicanálise, sem dar o caráter de
desenvolvimento histórico desses dois campos interdependentes nos anos 20 até
os 50, No entanto, o autor levantou questões contundentes que ató hoje permane­
cem atuala: se existe um "retrato da multiplicidade de Influências que operam
aobra oa paloólogoa braallalroa", an tlo pode existir uma "resultanta brasileira da
paloologla européia • norte-americana"?
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 233

mesmo tem po, também foi um dos personagens pioneiros dessa


ciência no país. Em 1954, publicou um artigo que é marcado sobre­
tudo pelo caráter de depoimento histórico, na dupla condição de
personagem participante e autor dessa sistematização. Nesse arti­
go, ele faz um retrospecto do "início" da Psicologia no país. Mais
ainda, faz uma afirmação contundente ou categórica sobre esse
"início": "(...) fácil será demonstrar que os estudos de caráter obje­
tivo, na psicologia brasileira, tiveram início no campo da medicina,
ou, mais exatamente, nos da psiquiatria, neuriatria e medicina soci­
al" (Lourenço Filho, 1954, p. 266 - grifos meus). Observe-se que
sua afirmação não se refere apenas ao início da psicologia clínica,
mas à Psicologia como um todo.
Esse "início" da psicologia brasileira está caracterizado nas pri­
meiras páginas do seu artigo. Após uma visão preliminar, a segunda
seção já traz "a contribuição dos trabalhadores da medicina". É inte­
ressante destacar o uso do termo "trabalhadores da medicina" numa
época em que os médicos eram os profissionais de maior prestígio,
sendo até mesmo reverenciados, em termos sociais, e, portanto,
chamados por seus pacientes e pelos "leigos" de forma bem pompo­
sa: "doutores". No entanto, Lourenço Filho, ao usar o termo "traba­
lhadores", dá um caráter de aproximação em relação aos demais
"trabalhadores" intelectuais ou manuais.
Nessa seção sobre os "trabalhadores" da medicina, o autor
faz questão de basear sua história no estabelecimento de quem foi
o primeiro na nova ciência. O primeiro laboratório de psicologia
experimental foi instalado no Rio de Janeiro, em 1897. As prim ei­
ras teses de doutoram ento em Medicina baseadas em Psicologia
datam dos anos 30 do século XIX, em Salvador e no Rio de Janeiro.
No entanto, "a psicologia objetiva" iria se desenvolver somente na
virada do século XIX para o XX. Em 1900, divulga-se a tese de
Henrique Roxo, Duração dos atos psíquicos elementares: "é esse,
sem dúvida, o primeiro grande trabalho de psicologia experimental
publicado no país, ou a primeira investigação de ordem propriamen­
te científica" (ibidem, p. 269).
A tese de Genserico Aragão de Sousa Pinto, com o título
Da psicanálise: a sexualidade nas neuroses, defendida em 1914, foi
considerada "o primeiro trabalho a versar as idéias de Freud, não só
no Brasil, mas em língua portuguêsa" (ibidem). E sobre José Joa­
quim Medeiros e Albuquerque Lourenço Filho diz:
234 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

(...) foi o prim eiro a divulgar, entre nós, a teoria periférica das e m o ­
ções, de W illiam Jam es e Lang; dos prim eiros a escrever sobre
psicanálise e o primeiro tam bém a publicar um livro sobre testes
(Os te s te s , em 1 9 2 4 ); editou um volum e sobre hipnotism o, cujos
fu n d am e n to s estudou seriam ente, e em cujas técn icas se tornou
co nsu m ad o . (Ibidem , pp. 2 7 4 -2 7 5 )

Na Faculdade de Medicina da Bahia, há um destaque: "Entre


as primeiras, cumpre destacar a de Júlio Afrânio Peixoto, sob o
título Epilepsia e crime, datada de 1897, e que alcançou repercus­
são dentro e fora do país" (ibidem, p. 118).
É curioso constatar que, nem bem havia sido aceita como
ciência pelo establishm ent médico da época e, já em 1928, surgia
uma proposta, feita por Porto-Carrero, de se estabelecer uma "his­
tória da psicanálise no Brasil". Ele afirmou:

0 Professor Juliano M oreira foi o prim eiro a tra ta r do m étodo de


Freud no Brasil, em 1 9 1 4 , na S ociedade Brasileira de Neurologia;
já desde 1 8 9 9 se ocupava da m atéria na sua cáted ra da Bahia. (...)
A nossa prim eira obra sobre a teoria sexual tra ç o u -a , em São Paulo,
esse ven eran do professor Franco da Rocha. (Apud Perestrello, 1 9 9 2 ,
p. 1 2 7 ).

Em 1 945, Danilo Perestrello fez uma palestra no Centro d®


Estudos Juliano Moreira e citou que Porto-Carrero foi o primeiro no
país a se referir ao método de Freud. Depois, em 1975, deu ante-
rioridade a Juliano Moreira (Perestrello, 1976). São dados cronoló-
gico-históricos que foram sendo retificados, conforme passou o tem ­
po e novas pesquisas foram sendo feitas, como, por exemplo, tam ­
bém fez a própria Marialzira.
Entre os primeiros, o caso de Henrique Roxo, professor da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, é bem típico de uma
divulgação de novidade científica. Embora tenha sido um dos pri­
meiros a citar Freud e a psicanálise, não aceitou a teoria psicanalítica,
e muito menos chegou a praticar uma psicanálise em sua clínica.
Marialzira Perestrello deu o seguinte depoimento:

(...) foi-me possível comprovar (10 anos após o artigo de Porto-


Carrero), quando aluna da cátedra de Psiquiatria, que o Professor
Roxo nfio aprovava as idéias psicanalíticas - apesar da citá-las am
alguns ascrltos. (1992, p. 135)
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 235

É plenamente aceitável o estabelecimento do dado cronológi­


co da prioridade histórica. No entanto, o que quer dizer a nossa
interpretação histórica desse dado cronológico? Ou seja, em histó­
ria científica não importa apenas o dado cronológico por si mesmo,
mas também saber e discutir qual é a interpretação histórica a ser
dada a tal dado? Devemos entrar no mérito científico da iniciativa
histórica ou não? A resposta metodológica de uma história de qual­
quer ciência é a de que, se não forem entrelaçados os méritos cien­
tíficos e os históricos, então será uma história "externa" dessa
ciência... E o que nos interessa é uma história que considere a
história "interna" e a "externa" em sua conjugação conjuntural e
estrutural.
Se for assim, querer estabelecer quem foi o prim eiro a aplicar
o método de Freud em seus pacientes apenas como um dado cro­
nológico, isso pode implicar um risco de se estar apenas cultivando'
a vaidade narcísica (aliás, o próprio Porto-Carrero dava a notícia da
descoberta recente de Freud sobre o narcisismo) de uma "disputa"
em que não há vencedores nem perdedores.

Um mapa dos primeiros médicos psicólogos

A fim de dar um panorama mais amplo do que apenas a cita­


ção dos que teriam sido os primeiros, vou passar a fazer um breve
mapa dos "médicos psicólogos" que se destacaram nas primeiras
décadas do século XX. Estes surgiram em todos os principais cen­
tros m etropolitanos brasileiros: Rio de Janeiro, Salvador, Recife,
São Paulo, Porto Alegre. Nessa época, a raridade de uma Faculdade
de Medicina no país fez que os catedráticos fossem também os
diretores dos principais hospitais ou chefes de suas clínicas espe­
cializadas, e eles foram vistos também como os criadores de esco­
las, com seus discípulos. Foi o que aconteceu no Rio de Janeiro e
em Salvador, que, desde o século XIX, já tinham suas Faculdades
de Medicina, criada mais tarde em São Paulo, em 1913.
Na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o precursor dos
estudos psicológicos na neuropsiquiatria (com ênfase em psicofi-
siologia e neurologia pura) foi João Carlos Teixeira Brandão. Entre
os discípulos desta escola, constam: Antonio Austregésilo, Teixeira
Mendes, 0 . G allotti, entre outros. À parte a neuropsiquiatria mais
236 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

estrita, podem ser citados: Genserico Aragão de Souza Pinto, J. P.


Porto-Carrero, Deodato de Morais, Murillo de Campos e Carneiro
Ayrosa. Ainda no Rio de Janeiro, há uma exceção entre os médi­
cos: o "leigo" José Joaquim de Campos da Costa Medeiros e Albu­
querque, político, jornalista, presidente da Academia Brasileira de
Letras, que se interessou pela psicanálise e, desde 191 9, passou a
fazer palestras, divulgando-a.
Na Bahia, o precursor foi Raimundo Nina Rodrigues, um misto
de médico psiquiatra e antropólogo. Essa mistura de dois enfoques
científicos marcará a Escola Baiana com ênfase na medicina social:
crim inologia, psiquiatria forense, higiene mental, antropologia e
psicologia social. Entre os baianos, podem ser citados: Juliano
Moreira, A frânio Peixoto, Flamínio Fávero, Leonídio Ribeiro, A rthur
Ramos, Estevão Lima.
As duas principais Faculdades de Medicina (Rio de Janeiro e
Salvador) foram "reunidas" por meio de seus principais líderes, com
a mudança de Afrânio Peixoto para o Rio de Janeiro, e, logo depois,
em 1903, com a instalação de Juliano Moreira na mesma cidade.
Este se tornou, nesse mesmo ano, diretor do Hospital Nacional de
Psicopatas e criou sua escola de discípulos. Ali, Maurício de Medei­
ros instalou, na clínica psiquiátrica, um laboratório de psicologia
experimental.
Lourenço Filho, referindo-se a essa "reunião" da escola baiana
com a carioca, afirmou:

Praticando e ensinando a neurologia (entrelaçamento da neuriatria e


da psiquiatria, segundo as lições de psicopatologia francesa), como
substituto de Teixeira Brandão, Henrique Roxo desdobrava a seus
discípulos os horizontes da pesquisa psicológica; por outro lado,
Austregésilo, sôbre aprofundar a investigação neurológica, devia
realizar extensa obra de psicoterapia. (1954, p. 119)

Em 1922, foi criada no Rio de Janeiro a Liga Brasileira de


Higiene Mental, por Gustavo Riedel, a qual conseguiu reunir muitos
discípulos de Juliano Moreira e Henrique Roxo. Também criou um
laboratório, que foi dirigido pelo especialista francês Alfred Fessard
e, depois, por Plínio Olinto e Brasília Leme Lopes. Em 1923, Gustavo
Riedel criou ainda o Laboratório de Psicologia do Hospital de Engenho
de Dentro, que foi dirigido por Waclaw Redecki, até 1932.
Em Sflo Paulo, a Faculdade da Medicina foi orlada em 1913, a
aau primeiro oatadrátloo da Nauropalqulatrla foi o doutor Franclaco
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 237

Franco da Rocha, o criador do primeiro Hospital Psiquiátrico em São


Paulo. Além disso, implantou um modelo de tratam ento psiquiátri­
co que não se restringia à internação hospitalar, propondo-se a se
basear em "laborterapia" numa colônia agrícola fundada em Juqueri -
cidade em que, mais tarde, foi também criado o Manicômio Judi­
ciário. Entre os discípulos de Franco da Rocha, contam-se Durval
Marcondes, Osório César, entre outros.
Em Recife, Ulisses Pernambuco é o precursor, tendo assumi­
do, em 1918, a cadeira de Psicologia e de Pedagogia na Escola
Normal Oficial do Estado de Pernambuco (Campos, 2001, p. 289).
Tornou-se diretor desta escola, em 1 923, e nela fundou uma "esco­
la pioneira para crianças excepcionais, anexa à Escola Normal"
(ibidem). Em 1 925, fundou o Instituto de Seleção e Orientação Pro­
fissional de Pernambuco, depois chamado de Instituto de Psicologia
do Recife, "considerado como a primeira instituição cientificam ente
autônoma a funcionar regularmente no Brasil" (ibidem).

Uma iniciativa pioneira e ousada

Vamos entrar agora na questão de maior interesse científico e


terapêutico da história da psicanálise e da psicologia clínica. Não se
trata apenas de descrever e constatar quem foi o primeiro a ter uma
prática clínica, mas de questionar qual foi a natureza científica e
terapêutica da prática clínica dos primeiros "médicos psicólogos".
Antes de entrar no modo de cada um se caracterizar em sua
própria clínica, vamos ainda apresentar um caso excepcional de
instituição de saúde mental no Brasil. Em 1929, foi criado o Gabi­
nete de Psicanálise no Hospital Nacional de Psicopatas, no serviço
de Carneiro Ayrosa, durante a gestão de Juliano Moreira como dire­
tor. Além de Carneiro Ayrosa, Murilo de Campos também usou-o.
Numa época em que a psicanálise ainda não era bem aceita no meio
médico, a criação deste gabinete revelou que alguns médicos esta-
vam apostando em seu valor terapêutico.
Este foi um caso excepcional, porque, em São Paulo, desde
meados dos anos 20, Durval Marcondes vinha tentando introduzir a
psicanálise como um instrumento terapêutico em hospital psiquiá­
trico, mas sem êxito; nem depois, nos anos 30 e 40, conseguiu
alcançar tal objetivo, devido à oposição explícita de muitos médicos
pslquiatrit • neurologistas.
238 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Sendo uma iniciativa assim ousada e inovadora, naquela época,


o que nos restou dela? O que seus protagonistas deixaram registrado
sobre o que fizeram? No depoimento de Carneiro Ayrosa, consta:

C om a orien tação estabelecida de Juliano M o reira, fácil foi instalar


em m eu serviço do Hospital de Psicopatas um m odesto gabinete
ad a p tad o às exigências do am b ien te m o n ó to n o , silencioso e de
asp ecto não hospitalar, destinado à boa técn ica das associações
psíquicas. (1 9 2 9 )

Esta é apenas uma descrição externa das condições necessá­


rias à prática da psicanálise, mas nada consta sobre uma elabora­
ção do processo psicanalítico vivido. Em vez disso, o que restou foi
o que podem os presum ir dessa "psicanálise" em um hospital
psiquiátrico.
C arneiro A yro sa , em 1 9 2 9 , em c o n fe rê n c ia in titu la d a
"Valor da Psicanálise em N europsiquiatria" (1 932 ), declarou:

N estes ú ltim os anos, todavia, um m étod o a um te m p o de diag n ósti­


co e tra ta m e n to - a Psicanálise - , depois de d uram en te co m b atid a,
vem ganhando terreno dia a dia, para representar hoje as m aiores
esperanças de uma terapêu tica racional e produtiva.

Ora, a psicanálise não se caracteriza por ser "uma terapêu­


tica racional"; em vez disso, a própria racionalidade consciente é
posta em xeque para fazer em ergir uma outra lógica que inclui o
racional e o irracional.
Apesar de este Gabinete de Psicanálise ter sido uma iniciativa
ousada e pioneira, não resultou em uma conquista de natureza
científica e profissional, o que se poderia esperar dele nos anos 30.
Simplesmente deixou de existir, sem restar nenhum rastro de sua
existência como um fato histórico relevante. Aliás, o mesmo desti­
no parece ter tido a primeira filial da Sociedade Brasileira de Psica­
nálise, fundada em São Paulo por Durval Marcondes e Franco da
Rocha, mas que se propôs a ser uma iniciativa em conjunto com o
Rio de Janeiro - tanto é que se pode falar de uma sociedade com
duas sedes. Embora a sede do Rio de Janeiro tenha conseguido
reunir um maior número de "médicos psicólogos" adeptos da p8ica-
nállse do qua a de São Paulo, não teve nenhuma continuidade no
Rio da Janalro, aimplesmente deixando de exiatlr por inanição cien­
tífica • proflialonal já no Início doa anoa 30.
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 23 9

Em resumo, apesar de muitos (incluindo os principais) "m édi­


cos psicólogos" do Rio de Janeiro terem aceitado a Psicanálise, é
curioso constatar que ali, nos anos 30, esta não conseguiu dar um
salto de qualidade científica e profissional. Simplesmente, as princi­
pais iniciativas (a filial da Sociedade Brasileira de Psicanálise e o
Gabinete de Psicanálise) ali tomadas de forma pioneira e corajosa
não chegaram a ter alguma longevidade, deixando de existir.

A prática clínica dos precursores

Vamos passar, agora, a caracterizar como alguns dos princi­


pais "médicos psicólogos" concebem sua própria prática clínica.
Em primeiro lugar, foi uma prática autodidática e dirigida ape­
nas pela leitura de livros sobre psicanálise. E foi o que predominou
não só no Brasil, como também na Europa e nos Estados Unidos,
correspondendo a um primeiro período de implantação da psicaná­
lise em diferentes países. No entanto, a característica predominan­
te do autodidatism o dos primeiros médicos cariocas foi a de ser
espontaneísta, ou seja, ao gosto pessoal de cada um, sem uma
maior preocupação com as recomendações técnicas e éticas feitas
por Freud em seus escritos.
Sobre a prática clínica de Juliano Moreira, temos esta opinião:

Abraçou a idéia da fusão da Psiquiatria com a psicanálise e admitiu


esta no Hospital Nacional de Alienados, como m étodo de diagnóstico
e tratam en to , reconhecendo que o objetivismo da clínica e o subjeti-
vismo da psicanálise, conjugados, dão um optimum. (Perestrello, 1 9 9 2 ,
p .1 1 3 )

Ora, essa proposta de "fundir" a psiquiatria com a psicanálise


não foi uma integração entre essas duas ciências na história da
descoberta do inconsciente; em vez disso, foi um ponto de ruptura
epistemológica, clínica e científica. Então, como conciliar a psica­
nálise como método de tratam ento com a psiquiatria, segundo a
proposta de Juliano Moreira? Não temos encontrado até hoje a res­
posta fundamentada e coerente a essa pergunta tão central nos
interesses e propósitos científicos e profissionais de Juliano Moreira.
No caso de Antonio Austregésilo, existiu uma indecisão em
relação A paicanálise que permaneceu como tal:
24 0 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Sua am b ivalên cia em relação à Psicanálise é visível: num m o m en to


faz-lh e apologia, no próxim o retira-lhe o valor. (...) N ão aceita suas
idéias relativam e n te ao papel da sexualidade na gênese das psico-
neuroses e, ao m esm o tem p o , proclam a sua grande influência no
sistem a nervoso e na esfera m ental. (Ibidem , p. 1 1 8 )

Mesmo sendo "leigo", Medeiros e Albuquerque (1923) pro­


nunciou-se assim sobre o valor terapêutico:

A Psicologia de Freud, nas suas linhas gerais, parece-m e fora de


dúvida. Ela é, além de tu d o, essencialm ente fecu n da em aplicações.
A Psicanálise pode obter e obtém grandes resultados, m as o hipno­
tism o ora servirá como seu coadjuvante ora com o seu concorrente,
chegando freq ü e n te m e n te ao m esm o resultado com m uito menos
esforço e em m uitíssim o menos tem po . (Ibidem )

Ora, Medeiros e Albuquerque revelou-se ambíguo em sua rela­


ção com a psicanálise: de um lado, aceita seu valor terapêutico,
mas, de outro, afirma que o hipnotismo é muito mais eficaz, che­
gando a alcançar "o mesmo resultado" terapêutico. Esta última
mostra seu desconhecimento dos vários escritos de Freud sobre a
técnica psicanalítica (incluindo a História do movimento psicanaiitico,
191 4/1 997), nos quais ele demonstra como e por que abandonou o
hipnotismo e criou a psicanálise.

M au rício de M edeiros (na conferência P sicoterapia e suas m odalida­


des) coloca a Psicanálise entre as psicoterapias cien tíficas. Refere-
se a dois casos, um seu, outro de seu colega, em que explicam aos
pacientes o por quê de seus m ales. U m cliente to m a providências
para algum as m odificações em sua vida e o outro não mais apare­
ceu no consultório. A pesar de a com preensão da etiologia ter sido
m uito ad equ ad a, não se pode dizer que ten h am feito um tra ta m e n to
psicanaiitico. (Perestrello, 1 9 9 2 , p. 1 2 0 )

Como se vê, a psicanálise foi entendida, nesse caso, como


uma técnica de persuasão, e esta nada tem a ver com seus proce­
dimentos técnicos e metodológicos, a não ser em sua raiz de pre­
cursora do hipnotismo.
Sobre J. Porto-Carrero, Marialzira Perestrello afirmou:

(...) mu pflmilro trabalho de 1924 é o Jé citado sobre um caso ds


pltlétlca. Pels desoriçlo do próprio tsrspsuts, verifiquei
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 241

que não se ateve apenas ao m étodo analítico, em pregando tam bém


a sugestão arm ada, o aconselham ento e a te ra p ê u tic a ocupacional.
O próprio autor criticaria mais tarde seu modo de trabalhar. (Ibidem ,
p. 1 2 4 ).

Além da referência ao seu próprio trabalho clínico, há uma


outra forma facilm ente encontrada de ele autodefinir-se em relação
à psicanálise. Esta forma é a seguinte: "Sou um fanático da Psica­
nálise" (em uma aula inaugural de 4 de abril de 1928); "Sou um
convicto da ciência de Freud" (em comunicação à Sociedade Brasi­
leira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, em 1925). Ora,
o que quer dizer "fanático" e "convicto" em relação a uma "nova
ciência", conforme Freud definiu?
No contexto histórico da psicanálise no Brasil, isso quer dizer
que "a doutrina" psicanalítica convenceu o "médico psicólogo" quan­
do este aplicou em seus pacientes a teoria psicanalítica. Tratou-se
de uma "convicção doutrinária" incorporada em uma aceitação ape­
nas "lógica" e "racional" da teoria, que foi confirmada em seus
pacientes e não em sua própria experiência pessoal, ou seja, que foi
vivida, também, em termos emocionais. Se, em outras ciências, a
distância entre a teoria e a prática pode ocorrer também na relação
do próprio cientista com sua ciência, no caso da psicanálise essa
distância não pode ser mantida como tal. 0 que vive o paciente no
processo analítico não é distante nem diferente do que vive o psica­
nalista em sua relação com a psicanálise, e, portanto, teoria e prá­
tica nesse campo são sempre indissociáveis entre si.
Não foi este o entendimento dos "médicos psicólogos" sobre
sua relação com a psicanálise, e é bem contrário ao nosso entendi­
mento contemporâneo. É o que Porto-Carrero demonstrou, em en­
trevista jornalística concedida em 1931, quando declarou: "Aos
que duvidam, eu convido a estudar e observar e principalmente a
sujeitar-se à psicanálise, durante algumas sessões" (1933). Tam­
bém ele fora incrédulo a princípio:

(...) m as, aos poucos, com ecei a analisar atos falhados; fiz associa­
ções de idéias sobre sonhos meus e pedi que as fizessem , perante
m im , outras pessoas, a respeito de seus sonhos; surpreendi-m e com
a chusm a de idéias sexuais que vinham , ao cabo da cadeia de idéias
associadas. A profundei m inha observação; reli os livros de que d u ­
vidava. A nalisei, por fim , um d oente e consegui-lhe a cura. H i mais
de doza anoa aatudo ou pratico a Psicané/isa. Tenho tirado o melhor
242 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

resu ltado , com a m elhora ou a cura dos doentes que durante anos
se arrastavam de consultório em consultório. A penas seleciono meus
casos, não atendo a quaisquer solicitações, por mais vantajosas que
me pudessem ser econom icam ente, desde que tenha dúvida no êxito.
(Ibidem ).

Ora, por que Porto-Carrero não aplicou a si mesmo o que re­


comendou aos seus pacientes: sujeitar-se à psicanálise? Certamen­
te, não foi por falta de informações ou conhecim entos... Como
disse Perestrello, foi porque não quis ou porque não pôde?
De qualquer forma, o autodidatismo de Porto-Carrero ainda
foi aceito pelo próprio Freud e talvez por isso mesmo tenha tido sua
autorização indireta ou implícita. Por que não dar maior prioridade à
divulgação da psicanálise do que à formação psicanalítica do pró­
prio divulgador? Esta contradição encontrou terreno fértil no Brasil
dos anos 20, 30 e até meados dos 40. É curioso constatar que o
período de autodidatismo durou bem menos nos Estados Unidos e
na França do que no Brasil. Aqui, foi um período esticado demais -
por duas décadas e meia - , o que nos faz indagar: o que no contexto
brasileiro privilegiou o autodidatismo e a vulgarização psicanalítica?
Por que a questão levantada por Freud sobre resistência não
foi levada adiante por Porto-Carrero em relação a si mesmo? Em
carta, Freud repetiu-lhe o que já vinha escrevendo em artigos e
livros: a experiência viva da psicanálise traz resistência, então, não
há como se desenvolver psicanaliticamente sem lidar com a própria
resistência; isso não se aplica somente aos pacientes ou ao público
leigo, mas também à relação do psicanalista com a ciência e com a
profissão. Se for assim, o autodidatismo e a divulgação psicanalíti­
ca podem ter cumprido a função de resistência em um efeito para­
doxal ou paroxístico. No entanto, tal constatação é feita a posteriori,
na medida em que foi totalm ente acobertada pelo momento históri­
co da psicanálise: a necessidade de aliados criou um ambiente pro­
pício de manutenção do autodidatismo.

Refletindo sobre história e epistemologla

Nos anos 90, surgiram algumas histórias da Psicologia ou da


psicanálise no Brasil, que ainda não conseguem levar adiante um
fundamento teórico-metodológloo que consiste em fazer discriminar,
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 249

e, por conseqüência, não conseguem transpor a barreira entft •


mera divulgação científica da produção científica propriamente dltt*
Como? Por exemplo, o início da psicologia clínica e o da pslcanáillt
foram uma mesma e única iniciativa científica. Não houve no pafl
outra psicologia clínica que não fosse a própria psicanálise, sobre­
tudo nos anos 20 e 30. Mais ainda, algumas histórias da psicanáli­
se no Brasil têm criado e mantido confusões de natureza teórico-
m etodológica ao tratar como iguais elementos que são diferentes.
Divulgadores e cientistas são uma mesma e única categoria?
Vem existindo, no entanto, uma certa tendência de fazer uma
história da psicanálise brasileira sem se basear na distinção funda­
mental entre divulgação e prática científicas. Por exemplo, costu­
ma-se rastrear o início da psicanálise no Brasil em quem tenha algu­
ma publicação sobre esta área, independentemente de esse autor
ter, ou não ter, uma prática clínica em seu tempo. Assim, existe
uma tendência de fazer uma história da psicanálise baseada em
autores de divulgação científica, dando destaque cronológico na
"disputa" de verificar quem introduziu, antes dos "dem ais", a psi­
canálise no Brasil, como se a mera precedência de registro cronoló­
gico já implicasse por si mesmo o mérito de ser um pioneiro.
O Rio de Janeiro e a Bahia apresentam, então, uma pléiade de
tais autores de divulgação psicanalítica, e cada vez mais se procura
descobrir quem foi o primeiro ou o anterior em relação aos já conhe­
cidos. Ora, esquece-se ou desconhece-se que esses autores foram
apenas divulgadores da psicanálise e não se propuseram a praticá-la,
ou, se tiveram alguma prática clínica, assumiram apenas e exclusiva­
mente o autodidatismo, sem querer buscar alguma espécie de forma­
ção psicanalítica sistemática que tivesse por base a sua própria aná­
lise pessoal. Sendo assim, se fôssemos usar um termo mais corrente
daquela época, seriam os divulgadores da "doutrina" de Freud.
Tal distinção das fronteiras entre divulgação científica e pro­
dução de ciência também deve ser considerada na própria produ­
ção da história da Psicologia e da psicanálise. Seus historiadores
não podem ser alheios aos fundam entos epistem ológicos e cientí­
ficos dessas áreas. Isso implica fazer que a própria história da
Psicologia e da psicanálise tenha as peculiaridades equivalentes
dessas ciências. Ou seja, assim como essas duas áreas têm obje­
tos e m étodos plurais, diversidade/pluralidade ampla de objetos e
m étodos diferentes entre si, fazer sua história também requer
explicitar a diversidade/pluralidade equivalente ou correspondente
244 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

a ambas. O equívoco epistemológico e científico é o de tom ar


parâmetros pretensamente "universais" ou até mesmo "abstra­
to s" de uma certa cientificidade única para serem usados inge­
nuamente na história da psicologia como se fossem "verdadeiros"
ou "ú n ico s"...
Um desses equívocos é o de não discriminar as diferenças
entre a Psicologia e a psicanálise no Brasil conforme as diferentes
regiões: Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Nas primeiras décadas
do século XX, especialmente nos anos 1 0 e 20, não há dúvida de
que Salvador e Rio de Janeiro são centrais em quase todos (senão
em todos) os campos científicos. Mais ainda do que Salvador ou
São Paulo, o Rio de Janeiro foi o centro científico nacional na virada
do século XIX para o XX. Na psicologia e na psicanálise, a hegemo­
nia carioca não foi muito diferente da que ocorreu nas demais áreas
científicas.
Faço uma constatação interpretativa sobre os "médicos psi­
cólogos" do Rio de Janeiro. Como em nenhum outro centro m etro­
politano nos anos 30 a 50, o Rio de Janeiro reuniu alguns dos mais
persistentes e famosos divulgadores científicos da psicanálise. Pos­
so mesmo ampliar minha hipótese, que se trata de uma espécie de
modismo por parte desses "médicos psicólogos", que deram maior
importância à sua presença na mídia impressa, e em alguns casos
também em rádio, do que aos critérios de form ação científica e
produção de conhecimento.
É impressionante notar que eles praticaram a psicoterapia em
seus consultórios particulares e, ao mesmo tempo, dedicaram-se à
divulgação científica, principalmente por meio de livros, com objeti­
vo explícito de popularização da psicanálise, mas sem deixar regis­
tros sobre sua falta de formação científica. Quando deixaram algum
registro, que nos chega até hoje, foram recusas a se filiarem às
instituições psicanalíticas, como se fossem bravatas pessoais con­
tra as imposições institucionais de uma form ação sistemática. Ora,
isso é precário e inaceitável do ponto de vista da formação científi­
ca e da produção de conhecimento; sobretudo, não se justifica como
um problema de caráter institucional.
Isto teve conseqüências nos campos da psicologia clínica e da
psicanálise no Rio de Janeiro, porque lá, pelo menos, nos anos 50 •
60, não chegou a haver um terreno comum dessas duas áreas (como
aconteceu em Sflo Paulo)» mutto menos algum diálogo ou trânalto
provisional e olentífloo d l—f t i c l i eampoa, 84 que, na paloologla
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 245

e na psicanálise, há uma diferença que muitos historiadores ainda


se equivocam por razões que nem sempre são esclarecidas: no Rio
de Janeiro, não houve quem se propusesse sistemática e continua­
mente a relacionar teoria e prática clínica. Por que se limitaram a ser
divulgadores científicos, doutrinadores ou doutrinários da psicanálise?
Isso não desmerece nem desqualifica sua importância histórica, mas
eles não podem, sub-repticiamente, ser considerados o que não
foram em sua época: cientistas pioneiros. Em vez disso, podem ser
valorizados como verdadeiros divulgadores científicos e não como
cientistas propriamente ditos no que se refere à psicoterapia e à
psicanálise.
Mesmo assim, ainda cabe fazer subdivisões entre os divulga­
dores, destacando-se os eruditos, que estudaram a teoria/doutrina
psicanalítica e procuraram explicá-la aos que se iniciavam neste
estudo, como Franco da Rocha, Henrique Roxo, Juliano Moreira,
Antonio Austregésilo, etc. Esta divulgação erudita faz parte da im­
plantação da psicanálise. Sem sequer saber de que se trata, como
aceitar e praticar uma ciência? Trata-se então de algo que é ineren­
te à implantação da psicanálise em um novo contexto social e cien­
tífico. Como diz Moscovici (1978), a divulgação científica não é
uma distorção ou uma banalização da ciência, mas a apropriação da
ciência por diferentes agentes e diferentes contextos.

O diferencial de São Paulo no contexto brasileiro

Por que no Rio de Janeiro surgiram tantos divulgadores e,


em São Paulo, não aconteceu este mesmo fenômeno? Venho fa ­
zendo a seguinte constatação histórica: em São Paulo, Durval
Marcondes tom ou a frente da divulgação e da im plantação cientí­
fica e profissional da psicanálise, o que fez que o surgim ento dos
divulgadores fosse inibido em sua raiz. Como com petir de igual
para igual com quem se propunha a divulgar e im plantar a ciência
e a profissão conform e as concebeu Freud? Tal hipótese pode ser
endossada pela onipresença de Durval Marcondes na imprensa
escrita paulista quando o assunto jornalístico fo i a psicanálise.
Praticamente, não houve espaço jornalístico que não foi por ele
ocupado nos anos 3 0, 4 0 e 50. Durval não recusou nenhum con-
vita d t fW c v is ta jornalística, nesse período, chegando maamo a
dar dÉ É IjM flM aobra caaoa orlmlnala.
246 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Baseado nesse referencial epistemológico e científico, não foi


no Rio de Janeiro ou em Salvador que se introduziu a psicanálise
como ciência e profissão no Brasil. Os cariocas e os baianos tive ­
ram o m érito de ser divulgadores eficientes da ciência, mas não
ultrapassaram a barreira crítica de sua própria formação científica e
clínica. Eles devem merecer o seu lugar na história da psicologia e
da psicanálise, mas os historiadores dessas áreas não podem se
basear em critérios vagos ou apenas insinuados. Ao contrário,
devem ser precisos e equivalentes aos de seu campo científico e
profissional.
A diferença histórica é que, em São Paulo, a psicanálise to ­
mou o rumo de constituir-se como uma "nova ciência" e profissão
até então inexistente. O que distinguiu Durval Marcondes de todos
os demais precursores foi exatamente o fato de dedicar sua vida
científica e profissional segundo o fundamento definido por Freud:
a própria análise pessoal, supervisões e estudos teórico-técnicos.
Mais ainda, junto com a constituição de uma Sociedade de
Psicanálise, foi desenvolvida também a constituição de uma nova
profissão: a de psicologista. Durante duas décadas, essas duas novas
profissões (psicanalista e psicologista) estiveram juntas e conjugadas
em São Paulo. Assim, esta se tornou a única região do país onde tal
fenômeno histórico ocorreu. Isso fez que, ao ser regulamentada a lei
nacional de 1962, o psicólogo e o psicanalista não se tornassem pro­
fissões e ciências incompatíveis entre si. Em vez disso, vários psicana­
listas fizeram seus registros no Conselho Regional de Psicologia.
Mais tarde, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
foi pioneira em continuar aceitando os psicólogos entre os seus
candidatos a psicanalistas. Por exemplo, basta citar que a Facul­
dade de Psicologia da USP (em que vários psicanalistas foram arre­
gimentados por Durval Marcondes) formava uma equipe de traba­
lho muito influente e fértil. Muitos alunos se interessaram, desta
maneira, pela psicanálise e, depois de formados, foram desenvolver
sua clínica, tornando-se psicanalistas. Assim como a Higiene Men­
tal serviu como uma espécie de celeiro de novos psicanalistas, tam ­
bém a Faculdade de Psicologia da USP desempenhou um papel equi­
valente depois de aprovada a lei nacional de 1962.
Não foi o que aconteceu, a partir de meados dos anos 50,
com a criação das demais novas Sociedades de Psicanálise filiadaa
â Associação Internacional de Psicanálise (IPA), no Rio de Janeiro •
am Porto Alegre, que seguiram o modelo das sociedades norte*
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 247

americanas que aceitavam exclusivamente médicos entre seus can­


didatos a psicanalista. Após a Segunda Guerra Mundial, as socieda­
des norte-americanas exerceram um poder hegemônico na política
institucional da IPA, e, assim, tal influência acabou chegando às
filiais brasileiras.

Quem é o único detentor?

Os anos 50 foram um período histórico da Psicologia e da


psicanálise no Brasil. De um lado, a psicanálise já havia conseguido
estabelecer-se como ciência e profissão por meio da formação e da
consolidação das primeiras filiais da IPA em São Paulo e no Rio de
Janeiro. De outro lado, a psicologia havia conseguido form ar quatro
sociedades científicas (duas no Rio de Janeiro e duas em São Pau­
lo), mas ainda não havia conseguido introduzir-se como profissão, a
não ser em algumas instituições por meio de categorias provisórias
e locais. Portanto, os anos 50 foram o florescim ento de uma de­
manda de instituição e regulamentação da Psicologia como ciência
e profissão.
Tanto em São Paulo, com a Sociedade de Psicologia, quanto
no Rio de Janeiro, com o Instituto de Seleção e Orientação Profis­
sional - ISOP, da Fundação Getúlio Vargas, a ciência psicológica já
tinha adquirido alguma maturidade e continuidade de prática cientí­
fica desde os anos 40. Do ponto de vista do exercício profissional,
inúmeros serviços psicológicos em instituições públicas e privadas
(em saúde, educação e indústria) já vinham tendo a função de um
profissional de Psicologia. Em 1954, foi criada a Associação Brasi­
leira de Psicólogos, com o objetivo primordial de ser nacionalmente
representativo de uma nova categoria profissional.
A partir de meados dos anos 50, sobretudo, surgiu um movi­
mento irreversível de luta pela regulamentação da Psicologia. Um
primeiro clímax dessa luta foi a apresentação formal de um projeto
de lei (n. 3.825), em 1958, pelo Ministério da Educação e Cultura,
tratando da form ação universitária em cursos de graduação de
Psicologia e também da criação da profissão de psicólogo no país.
No Parecer n. 412, elaborado pela Comissão de Ensino Supe­
rior do MEC, tendo como relator Lourenço Filho, há um arrazoado
de argum entos favoráveis ao projeto de lei em apresentação.
A tônica é a de qua se faz tardia a criação e a regulamentaçBo da
248 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

ciência e da profissão de psico/ogista (conforme o term o proposto


por Lourenço Filho, recusando-se o de psicólogo e o de psicotécni­
co) no país. No entanto, na última seção, que aborda "os problemas
da regulamentação da profissão", consta o seguinte:

Não cuida, no en tan to , o anteprojeto, da reg u lam en tação de espe­


cialistas em psicologia clínica, dado que julgou a C om issão que essa
parte d eve ser do âm bito da regulam entação da profissão m édica
com a qual te m relações m uito estreitas. A Com issão form ula um
vo to no sentido de que as Faculdades de M edicina estab eleçam ,
logo que o portuno, as bases de estudos necessários, disciplinando a
especialidade. (Lourenço Filho, 1 9 5 9 , pp. 1 0 2 -1 0 3 )

Este parágrafo é explícito em reivindicar a exclusividade dos


médicos pelo exercício da psicologia clínica. Mais ainda, confessa
sem cerimônia que os médicos tampouco têm alguma formação
científica e profissional para exercê-la. Mesmo assim, o parecer não
deixa de reservar tal prática à medicina.
Se o parecerista e a respectiva Comissão de Ensino Superior
não tiveram uma visão mais crítica sobre a exclusividade médica, a
mesma reação não tiveram aqueles que já exerciam a psicologia
clínica, mas não eram médicos, e também diversos professores
universitários de Psicologia. Uma das manifestações contrárias à
exclusividade médica foi logo apresentada pela Associação Brasilei­
ra de Psicólogos, "depois de estudo m inucioso" do projeto de lei do
Ministério de Educação e Cultura.
Dois pontos foram considerados centrais para recusar o proje­
to de lei em pauta: 1. a proposta de instituir a profissão em dois
níveis - o de psicólogo e o de psicólogo-auxiliar; 2. a proposta de
vedar ao psicólogo o exercício autônomo da psicologia clínica,
tornando-se este um simples auxiliar do médico. Embora tenham
sido dois pontos rejeitados, o segundo foi o de maior polêmica e
teve o maior espaço de discussão pública. Essa reação da nascente
categoria dos novos profissionais, encabeçada pela Associação
Brasileira de Psicólogos, foi levada em consideração pelo Ministério
da Educação e pelos legisladores. 0 projeto de lei de 1958 foi rejei­
tado e arquivado como tal.
A partir daí, nasceu um outro projeto de lei, que foi finalmente
aprovado e promulgado em agosto de 1962. Essa história já é mais
conhecida dos psicólogos hoje: diversos artigos, livros e teses aca*
démlcaa trataram deata lei,
PSICANÁLISE E PSICOLOGIA NO BRASIL E EM SÃO PAULO 249

Um novo método de psicologia clínica

A influência da psicanálise na psicologia clínica foi irreversível


no Brasil dos anos 50. O substitutivo ao projeto de lei do MEC foi
apresentado pela Associação Brasileira de Psicólogos. Vou dar um
destaque à diferença entre os dois currículos propostos: no currícu­
lo do substitutivo, em seu artigo terceiro, sexto parágrafo, consta:
"na segunda série do curso de licença os alunos serão submetidos
à Psicoterapia de grupo; na terceira, da modalidade psicologia clíni­
ca, [os alunos serão submetidos] à Psicoterapia individual" (ABP,
1959, p. 84).
Nesse mesmo ano, apareceu outra notícia do mesmo teor -
"Novo método de ensino da Psicologia Clínica" - , que foi apresen­
tada assim:

(...) um a inédita experiência educacional está sendo fe ita na Facul-


1 dade de Filosofia, Ciências e Letras da U niversidade de São Paulo,
no Curso de Especialização em Psicologia Clínica. T ra ta -s e de um
novo m étod o de ensino da psicologia, que inclui a psicoterapia dos
alunos. O objetivo é facu ltar ao estudante de psicologia clínica uma
com preensão m elhor de alguns aspectos de sua personalidade, iguais
aos que irá en con trar, mais tarde, em seus p a cien tes, bem com o
oferecer-lhe a possibilidade de resolver alguns dos seus problem as
pessoais, proporcionando-lhe m aior equilíbrio em o tivo e conseqüen­
te m e n te m aior aptidão para o trabalho. (Ciência e C ultura, 1 9 5 9 ,
p. 2 4 0 )

Ora, sem tirar nem pôr aspas ou vírgulas, a proposta da fo r­


mação de psicólogo clínico é similar à da formação de psicanalista
apresentada por S. Freud. Não é de estranhar que seja assim, na
medida em que o coordenador do Curso de Especialização foi Dur-
val Marcondes. No entanto, é importante constatar que esta aproxi­
mação e convivência entre psicologia clínica e psicanálise foram
possíveis e colocadas em prática. Nesses anos 50, houve um inte­
resse conjunto de psicanalistas, de um lado, e também, de outro
lado, de "psicólogos clínicos" sem a profissão ainda reconhecida. É
verdade que tal aproximação e convivência entre essas duas não
tiveram caráter nacional, mas, de qualquer maneira, o caso de São
Paulo demonstrou que os dois lados podem ganhar mais do que
perder quando se propõem a compartilhar uma mesma estrada.
250 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS

Observações finais

Fazer a história das relações entre a psicologia e a psicanálise


tem uma peculiaridade epistemológica que, talvez, outras áreas da
psicologia não tenham. De qualquer modo, o fator comum e irredu­
tível em ambas é que teoria e prática clínica não podem ser separa­
das e dissociadas. Portanto, ao contrário de outras áreas da Psico­
logia, a modalidade clínica não pode ser meramente "teórica" e ■
"especulativa", porque assim dissociada de sua prática descarate-
riza-se como produção de saber e fazer.
Além disso, os próprios fatos históricos distinguem a história
da psicologia clínica das demais áreas psicológicas. Enquanto estas
se desenvolveram ligadas à pesquisa acadêmica (psicologia social,
psicologia experimental, etc.) ou aos locais de trabalho (escolas,
empresas, etc.), a psicologia clínica foi uma exceção entre elas; ao
contrário, esteve ligada diretamente à psicanálise durante um largo
período histórico, durante toda a primeira metade do século XX até
os anos 50. Mais ainda, foi exercida por leigos sob a supervisão de ;
médicos psicanalistas, antes de haver a regulamentação pela lei
nacional de 1962.

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Roberto Yutaka Sagawa


Psicanalista, candidato do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo; livre-docente no Departamento de Psicologia
Clínica da Unesp. Autor de Radascobrlr as psicanálises (1992), A construção
local da pslcanál/aa, e de dlveraoa artigos olantffioos.

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