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1974

(Sobre D. Byzantios) (Apresentaçao)

Galeria Karl Flinker, Paris, 15 de fevereiro de 1974. (Apresentação da exposi­


ção de D. Byzantios "30 desenhos, 1972-1973".)

Seria possível imaginar que as coisas se p assa ram assim; no


início, traços colocados ao acaso e em todos o s sentidos, ener­
gias desencadeadas. Grandes linhas de força teriam atravessa­
do a folha de papel, escutando apenas seu p ró p rio furor. O lá­
pis do desenhista, sua pena os teriam seguido. Depois, pouco a
pouco, tornando-se os traços mais num erosos, m ais apressa­
dos, se aglutinando, se juntando em certas regiões, pequenos
campos de força seriam localizados; turbilhões, nós, cristas,
contornos. Desenhos espontâneos da limalha. E desse acaso te­
ria surgido, de quando em quando, a possibilidade de um a figu­
ra: sustentados por essa massa de acontecimentos ao acaso,
por essas milhares de forças que se entrecruzam, u m a silhueta
lunar, um perfil, o estilhaço de um a vidraça, a ro d a cintilante
de uma motocicleta, uma fantasia de carnaval.
É completamente diferente. O desenhista colocou inicial­
mente sobre sua folha, meticulosamente, árvores, ruas, auto­
móveis, passantes e, do outro lado, vitrines, m anequins pareci­
dos com os passantes. Isto feito, começa o verdadeiro começo:
uma chuva de traços, largos, fechados vêm se abater sobre o
desenho; ele é traspassado, sufocado, recoberto, tragado, per­
dido. Perdido? De modo algum. Não se trata do jogo das apari­
ções e desaparições.
As figuras preliminares são um suporte, um suporte-adver-
sário: um pouco como a tela, polida, m onocrôm ica, que o pin­
tor começa por preparar: nessa superfície a pintura se fixa e
contra ela se choca. O desenho, aqui, se choca contra um dese­
nho. Ele se lança contra esses elementos nos quais ao mesmo
tempo encontra seu fundamento. Arte da esgrim a e de qualquer
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estratégia: apoiar-se so b re seu adversário; repousar sobre o


que se ataca; encontrar sua solidez no que se busca abater.
Não se trata de u m crepúsculo mergulhando tudo, quase
tudo, em sua so m b ra. É o confronto de duas raças inimigas.
Esse desenho so b re o desenho, contra o desenho, é a justa
entre as diferenças de fo rm as (obtidas pelas linhas) e as dife­
renças de forças (estabelecidas pelos traços). Combate do dese-
nho-linha contra o desenho-traço. De um lado - mas é preciso
dizer “de um la d o ”, q u an d o já se está em plena refrega? as
formas recortadas anteriorm ente pelo desenho linear, e depois,
de outro, trazidos p o r não sei qual tempestade exterior, tra-
ços-flechas, p o rtad o res de forças, som bras invasoras.
A linha, tradicionalm ente, é a unidade, a continuidade dos
traços, a lei que os dom ina. E la reduz sua multiplicidade, apla­
ca sua violência. E la lhes fixa um lugar, lhes prescreve uma or­
dem. E la os im p ed e de vagabundear. Mesmo se ela se esconde,
reina sem pre no horizonte do traço, que se dobra finalmente às
suas exigências m u d as.
Aqui, o d esenho-lin ha e o desenho-traço, bastante indepen­
dentes, são lan çad o s u m contra o outro. A linha é apresentada
de uma vez p o r todas e antecipadamente. Ela se integra às exi­
gências p rim á ria s - o papel, seu formato, suas bordas, sua con­
sistência, su a textura. E la constitui o que é dado. Ela é o aca-
so-fatalidade em relação com o que vai se desenrolar a seguir: a
imprevisível b atalh a do desenho.
Um jogo perigoso, p orq u e tudo ali tem um valor positivo.
Nada é anulado, n ad a é apagado. Nenhuma triste rasura.
Quando o desenhista, com grandes traços, começa a batalha
contra o desenho linear, todos os golpes são registrados. Um
traço sendo feito, o desenhista sempre pode acrescentar-lhe
um outro, interceptá-lo, duplicá-lo. multiplicar o emaranha-
mento. M as a regra do seu jogo lhe proíbe retornar ao que foi fei­
to; o retorno ao zero está excluído. O golpe dado permanece
dado. Sem dúvida, é perm itido se servir da borracha, mas os
próprios golpes de b o rrach a são feitos para serem visíveis: ar­
ranhões acinzentados, traços leves, esmagados, pulverizados,
multiplicados em um feixe de pequenos sulcos abertos e sensí­
veis. Tudo é m arca. N ão signo de alguma coisa, ou de outra coi­
sa, mas m arca de u m a multiplicidade de acontecimentos dos
quais nenhum pode ja m a is recair na inexistência. Uma série,
portanto, sem volta nem correção; mas traços que se super­
328 Michel Foucault - Ditos c Escritos

põem a traços, golpes que respondem a golpes. N a superfície


dessa batalha, da qual temos um a visão abrangente, o desenho
se torna quadro.
Paradoxo desses desenhos som brios - desses q u ad ro s sem
cor - nos quais todos os elementos são positivos: n ad a existe ali
que faça pensar no claro-escuro. O negro, aqui, não é a noite; é
a intensidade de um combate. O som brio não é a som bra, mas
o lugar onde se confrontam as form as mais vivas. A s m assas es­
curas não poupam as distâncias; elas indicam as aglomera­
ções, os confrontos, o corpo a corpo.
O negro brilha por sua própria força; é ali onde ele é m ais ne­
gro, onde as forças lançam suas flechas m ais intensas, que ele
faz jorrar dele mesmo uma claridade que é com o seu paroxis­
mo. Ele não tem necessidade de que um a luz vin da de fo ra o pe­
netre e o ilumine: sua intensidade lhe basta. Fica-se longe do
jogo da noite com o dia. Fica-se no ru m o r so m b rio e brilhante
da batalha. Esses traços são metálicos, com o o c h u m b o que os
traçou.
Reina aqui o princípio da adição infinita. N en h u m a grandeza
negativa. Mas tampouco soma. Não h á m om ento em que a con­
ta termine; em que a série chegaria à saturação; em que não
houvesse nada mais a fazer a não ser puxar u m traço e totalizar:
eis o desenho concluído. De fato, seria possível, é sem pre possí­
vel haver ali um traço a mais. Nenhum a lei, nen hum a senha diz
ao desenhista: aqui e agora deve parar, n en hum traço a mais.
Ele é sempre livre para continuar; m as h á sem pre o risco - e ha­
via risco desde o início - de que o traço fosse a m ais, que ele fi­
zesse tudo oscilar e anulasse o desenho. C a d a golpe traz consi­
go o perigo de ser negativo, porque seria excessivo; m as, após
cada traço, há ainda o perigo de p arar muito cedo, de deixar um
vazio, de ter estabelecido uma ba rra arbitrária, de ter colocado
um limite naquilo que não deve tê-lo. N enhu m excesso, m as ja ­
mais limite, tal é o risco.
Pode-se imaginar a lenta, a febril paciência que se apodera
do desenhista, ao longo dessa batalha de linhas e traços. O pri­
meiro traço pode já ser excessivo e levar tudo a p erder. Mas
imaginem o quanto esse perigo, único no início, se multiplica;
pois cada novo traço atrai outros. C ad a um d á lu gar a milhares
de novas possibilidades. E, se multiplicando, eles se aproxi­
mam do excesso: um traço a mais é dem asiado, é irreparável,
tudo desapareceu. Imaginem o frenesi d os traços possíveis que
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se esboçam, o desejo, a necessidade de sempre acrescentar, a


excitação do acaso, e pensem no domínio, na ponderação, no
cálculo necessário, e tam bém na extrema reserva que supõe
esse jogo sem volta.
Entre esse frenesi e essa contenção, cada traço deve ser feito
como se fosse o último. E aquele que se vê não tendo sucessor
nunca será o últim o a não ser por um momento. É esse momen­
to, no entanto - nem m ais nem menos derradeiro que os ou­
tros, m as que leva o jogo ao seu mais alto grau de intensidade -,
que o desenhista escolheu, com seus riscos e perigos, para se
desviar do seu desenho e deixar diante de vocês se desencadear
a batalha em seu fulgor ininterrupto. Então avançam na sua di­
reção, pelo efeito de u m relevo branco, os personagens que li­
nhas negras tinham anteriormente desenhado, horizontalmen­
te, sobre a superfície b ra n ca do papel.

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