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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DE SUL

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO


BACHARELADO EM FILOSOFIA

A PSICOLOGIA DO ENTE E DO SER:


UM DIÁLOGO ENTRE HEIDEGGER E JUNG

ANDERSON C. TRIACCA

CAXIAS DO SUL
2017
ANDERSON C. TRIACCA

A PSICOLOGIA DO ENTE E DO SER:


UM DIÁLOGO ENTRE HEIDEGGER E JUNG

Monografia apresentada no Curso de


Bacharelado em Filosofia do Centro de
Ciências Humanas e da Educação da
Universidade de Caxias do Sul como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Bacharel em Filosofia.

ORIENTADOR: PROF. DR. ITAMAR S. VEIGA

CAXIAS DO SUL
2017
RESUMO

A partir da crítica de Heidegger nos Seminários de Zollikon, apresentamos Carl Gustav


Jung como modelo não reducionista / representacional de psicologia científica, e
afirmamos isso devido ao fato de ele ter construído uma Psicologia que de certa forma
dialoga com todas as correntes psicológicas predecessoras e antecipa muitas de suas
sucessoras, mantendo-se em diálogo próximo com a Filosofia e formando um modelo
científico que concilia os métodos das ciências da natureza com os das ciências do
espírito, resultando numa visão mais completa de ser humano.

Palavras-chave: Filosofia da Psicologia, Seminários de Zollikon, Psicologia Analítica,


modelos não representacionais, história da psicologia.
ABSTRACT

Begining from the Heidegger's crititic of the Zollikon Seminaries, we apresent


Carl Gustv Jung as a model of not reducionist / representacional scientific
psichology by the fact that he has constructed a model that dialogues with the
backgrounds and precedents psichologies, and antecipate in many ways your
successors, always in strict conversation with the filosophy, resulting in a model
that sum the methods of the Geisteswissenschaften with the methods of the
Naturewissenschaften, constructing an amplificated vision of human being.

Keywords: Philosophy of psychology, Zollikon Seminaries, Analytical


Psychology, psychology‟s history.
SUMÁRIO

RESUMO............................................................................................................ 3
ABSTRACT ........................................................................................................ 4
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 5
1 - CAMINHOS DA PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA .......................................... 8
1.1 - A DEPENDÊNCIA DA TÉCNICA ............................................................... 8
1.2 - A PSICOLOGIA E A CIÊNCIA DO SÉC. XVIII ......................................... 10
1.3 - OS VETOS KANTIANOS ......................................................................... 13
1.4 - RESPOSTA AOS VETOS E EMANCIPAÇÃO DA PSICOLOGIA ............ 15
2 - HEIDEGGER E A CIENTIFICIDADE DA PSICOLOGIA.............................. 18
2.1 - O DASEIN E A REPRESENTAÇÃO ........................................................ 18
2.2 - O CONCEITO FENOMENOLÓGICO DE FENÔMENO ........................... 19
2.3 – AS CRÍTICAS DOS SEMINÁRIOS DE ZOLLIKON ................................. 21
3 - O MODELO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA ................................................ 26
3.1 - A PSICOLOGIA DAS GEISTWISSENSCHAFTEN .................................. 26
3.2 - O CONCEITO DE ARQUÉTIPO............................................................... 28
3.3 - OS MOLDES DO MUNDO ....................................................................... 30
3.4 - UMA PSICOLOGIA HEIDEGGERIANA? ................................................. 31
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 36
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 38
5

INTRODUÇÃO

Antes do estudo da psique se chamar Psicologia e se estruturar de


forma científica, a disciplina fazia parte do corpo teórico das diversas filosofias
que transpassaram a Cultura Ocidental desde a antiga Grécia, e somente no
séc. XIX separou-se oficialmente de sua progenitora teórica, através do gênio
de Wundt e seu laboratório experimental. Porém a diversificação e o
aprofundamento dos campos de estudo fizeram com que vários psicólogos se
utilizassem de terminologia e metodologia filosóficas para expressar de forma
conceitual as conjecturas que são experimentalmente impossíveis de se
observar e quantificar.
A distinção feita por Wilhelm Dilthey no seu Introdução às ciências
humanas entre ciências da natureza e ciências do espírito acabou por ampliar
o foco da discussão sobre qual delas seria mais adequada como modelo
científico para a Psicologia, que ainda sofria influência dos antigos vetos
kantianos que tinham como pressuposto o modelo das ciências naturais do
séc. XVIII e a filosofia de Wolff. Tal distinção gerou uma grande ampliação das
possibilidades de desenvolvimento da ciência psicológica, pois ofereceu uma
série de novas ferramentas que implicaram em novos métodos e novas
descobertas.
Essa discussão sobre os pressupostos epistemológicos da psicologia é
ponto central nos Seminários de Zollikon de Heidegger, onde ele questiona a
cientificidade da Psicanálise Freudiana (fortemente embasada no modelo das
ciências da natureza), afirmando que a mesma objetifica a existência humana
se limitando ao modelo representacional implicado em sua visão mecanicista
de ser humano 1.

1
Pulsão é sempre uma tentativa de explicação. Entretanto, não se trata de uma
tentativa de explicação, mas é preciso observar, em primeiro lugar, o que é mesmo o
fenômeno que se quer explicar e como ele é. Tenta-se sempre explicar por pulsões algo
que, para começar, nem se viu. As tentativas de explicação de fenômenos humanos a
partir de pulsões têm o caráter metódico de uma ciência, cuja matéria não é o homem, mas
sim a mecânica. Por isso, é fundamentalmente discutível se um método tão determinado
por uma objetividade não-humana pode mesmo ser apropriado para afirmar o que
quer que seja sobre o homem enquanto homem. (HEIDEGGER, 2013, p.211).
6

A partir da crítica de Heidegger, apresentamos Carl Gustav Jung como


modelo não reducionista / representacional de psicologia científica, e
afirmamos isso devido ao fato de ele ter construído uma Psicologia que de
certa forma dialoga com todas as correntes psicológicas predecessoras e
antecipa muitas de suas sucessoras, mantendo-se em diálogo estreito com a
Filosofia, gerando um modelo científico que concilia ambos métodos,
resultando numa visão mais completa de ser humano.
A psicologia complexa de Jung tem forte embasamento clínico, porém
teve seus insights fundamentais ao menos esboçados durante um determinado
período de tempo de sua vida, no qual o mesmo se voltou à observação e
interpretação de sua própria experiência psicológica. Utilizando seu próprio
método de introspecção (nomeado de imaginação ativa) chamou tal período de
descida ao inconsciente, e em seu Livro vermelho o descreve de forma textual
e através de gravuras, visando interpretar de forma ampliativa suas
experiências.
Desta forma, Jung acaba por também fazer filosofia. Mais que isso, a
fazer filosofia nos moldes que Heidegger aponta ao sugerir seu retorno às
origens (antes da coisa ser objetificada)2 e tendo a vantagem de sua atualidade
temporal e completude bibliográfica. Se a própria filosofia abandonou suas
perguntas primordiais, talvez uma leitura filosófica de uma psicologia que tenha
se ocupado das mesmas perguntas nos ajude a encontrar novos caminhos
para a especulação filosófica.
À crise da filosofia que se inicia com Platão e se arrasta até o séc. XX,
Heidegger propõe um retorno às origens (sua versão do retorno às coisas
mesmas de Husserl), onde argumenta que a Filosofia Entificante acarretou
num Esquecimento do Ser, de modo que a investigação filosófica necessita
voltar-se novamente para sua origem, anterior à tecnicização do homem, onde
os primeiros poetas, não limitados pela representabilidade objetificante
buscavam soluções para as grandes perguntas filosóficas, e como resultado de
tal esquecimento, os modelos psicológicos hegemônicos acabaram por se
formar baseados em pressupostos provenientes e delimitados pelo antigo

2
Isto é, a coisa foi objetificada pela representação e pela indústria e comércio. Tudo é
descartável e provisório, tudo pode ser mensurado em termos de utilidade ou monetariamente.
A coisa já não mais se manifesta como coisa em sua coisidade, em sua originalidade. Por isto,
não mais reúne, não mais indica, em sua originalidade, o simples. (HEIDEGGER, 2002, p.143).
7

paradigma representacional, que é marcado pela influência de Kant e dos


físicos dos séc. XVIII.
Apresentaremos a obra de Carl Jung fazendo analogias com as ideias
de Heidegger e elucidando os pontos principais em que a visão de ser humano
implícita no modelo da psicologia complexa converge com a visão
antropológica de Heidegger. Centraremos a análise no que diz respeito a
formação e consolidação do paradigma representacional enraizado em Kant e
na visão de ser humano de Heidegger, que converge de muitas formas com a
visão de ser humano da psicologia complexa.
Toda a obra de Jung foi profundamente influenciada pelas críticas de
Kant e pelos filósofos do antigo romantismo alemão, que foram os verdadeiros
criadores do conceito de inconsciente, nos quais Jung encontrou os métodos
interpretativos para compreender suas manifestações espontâneas. Com base
nos pontos levantados na apresentação do modelo, iremos apontar possíveis
posicionamentos da psicologia complexa perante os questionamentos
filosóficos de Heidegger nos Seminários de Zollikon, para defender que a
psicologia de Jung pode ser compreendida como um modelo psicológico não
pautado pela representatividade e aprovado nos critérios Heideggerianos, além
de representar uma visão de ser humano em total harmonia com a visão de
Dasein.
8

1 CAMINHOS DA PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA

1.1 – A DEPENDÊNCIA DA TÉCNICA

Desde seu nascimento até os dias atuais, a Psicologia se confronta com


o problema de se estabelecer como ciência independente, e isso se deve
principalmente ao fato de existirem diversas posturas epistemológicas em
irredutível oposição, criando várias formas de se fazer psicoterapia3.
Em paralelo ao saber psicológico, Ser e tempo trata dos modos a partir
dos quais o dasein acessa a realidade, e acusa a tradição metafísica de ter
estipulado o conhecimento intuitivo-representacional como única via de acesso
verdadeira à realidade, reduzindo o homem a uma estrutura causal geradora
de representações, e em função disso afirma nos seminários de Zollikon que as
psicologias científicas teriam se desenvolvido a partir de uma visão de homem
reducionista, criando ciências que não são capazes de dar conta da totalidade
de modos de ser do Dasein.
Dentre os muitos motivos que levaram Heidegger a interromper a obra, a
questão da técnica é um dos mais importantes, pois foi através dessa visão
que ele compreendeu que até mesmo a própria Filosofia se mostrava
condicionada aos avanços tecnológicos, obrigando-o a reinventar os rumos de
sua obra filosófica. No mundo informatizado que vivemos os avanços
tecnológicos são fio condutor dos diversos avanços científicos que
caracterizam nossa época, porém nos anos que Heidegger viveu ainda era
muito difícil imaginar onde a segunda revolução industrial iria levar o ocidente,
e dentro deste contexto suas palavras soam quase proféticas:

Se chega, como se tem que chegar, ao reconhecimento da


essência predeterminada da ciência moderna, de seu mero e
necessário caráter serviçal empreendedor e das requeridas
organizações para isso, então no horizonte desse

3
A psicologia, desde o seu nascimento oficial como ciência independente, vive, ao lado de
outras ciências humanas, umas crise permanente. Esta crise se caracteriza pela extraordinária
diversidade de posturas metodológicas e teóricas em persistente e irredutível oposição.
(FIGUEIREDO, 2008, p. 11).
9

reconhecimento tem que se esperar e calcular no futuro um


enorme progresso das ciências. (HEIDEGGER, 2013, p. 156).

O projeto de Ser e tempo (seguindo o percurso Husserliano) buscava um


retorno às coisas mesmas, retorno este que deveria acontecer através da
abertura do Dasein em seu horizonte ontológico. Porém a leitura dos escritos
de Junger aliadas aos avanços da segunda revolução industrial4 mostraram a
Heidegger que o modo como a técnica se expandiu pelo mundo suplantou as
coisas mesmas em nome das coisas produto, fazendo com que o ser-no-
mundo, mais do que moldado pela técnica, tenha sua própria essência também
determinada por ela, tornando-se assim um mero produto.
O termo grego τέτνη (téchne) para Heidegger representa a origem do
sentido do termo moderno técnica (tal distinção ele busca em Aristóteles),
porém em sua etimologia diz respeito a algo a ser revelado, descoberto, ou
seja, na τέτνηé onde a verdade (άλήθεια) ocorre. Desta forma, as coisas
produto tomam o lugar das coisas mesmas, se mostrando como evidência da
dominação técnica resultante do esquecimento do ser por parte da metafísica
ocidental, que desde a antiguidade priorizou o estudo do ente em detrimento
dele, criando uma ciência altamente dependente da técnica, e que considera
válido somente aquilo que se comprova nos moldes do ente.

A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma


forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se
diante de nós todo um outro âmbito para a essência da técnica.
Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da verdade. (...)
Técnica é uma forma de desencobrimento. A técnica vige e
vigora no âmbito onde se dá descobrimento e
desencobrimento, onde acontece άλήθεια, verdade.
(HEIDEGGER, 2002, pp.16 – 17).

Devido a sua dependência da Filosofia, a nascente Psicologia


acabou também submetida aos limites que a técnica impôs à ciência ocidental,

4
A Segunda Revolução Industrial possui várias características que a diferenciam da
Primeira. Uma delas foi o papel assumido pela ciência e pelos laboratórios de pesquisa,
com desenvolvimentos aplicados à indústria elétrica e química, por exemplo. Surgiu
também uma produção em massa de bens padronizados e a organização ou administração
científica do trabalho, além de processos automatizados e a correia transportadora.
Concomitantemente, criou-se um mercado de massas, principalmente e em primeiro lugar
nos EUA, com ganhos de produtividade sendo repassados aos salários. Por fim, houve
um grande aumento de escala das empresas, via processos de concentração e
centralização de capital, gerando uma economia amplamente oligopolizada.
(HOBSBAWM, 1983, p. 160-5).
10

e as diferentes hipóteses apontadas pela tradição filosófica são em todos os


casos resultados de uma visão também influenciada pelo seu próprio tempo:
um grego antigo não tinha acesso aos conhecimentos que a ciência
contemporânea oferece, logo sua visão sobre a Ψστή será limitada aos
recursos técnicos disponíveis em sua época. Isso gera por consequência o fato
de que as visões da Psicologia como ciência resultantes também se mostram
condicionadas a tais fatores técnicos, que na esteira da historicidade acabaram
por gradualmente formar as diferentes psicologias que existem hoje em dia.
Galileu nos deu o método científico que iria influenciar por séculos todo o
desenvolvimento técnico do ocidente, porém os problemas base das tentativas
de emancipação da Psicologia remontam às revoluções científicas do séc.
XVIII e ao pensamento de Kant.

1.2 – A PSICOLOGIA E A CIÊNCIA DO SÉC. XVIII

Antes do florescer da ciência moderna a Filosofia era considerada o


mais respeitado dos modos de saber, e isso explica em partes porque a
Psicologia nasceu e se desenvolveu a partir dela. Desde a Grécia antiga os
filósofos tentam descobrir os segredos da alma, em parte devido ao fato de que
tais segredos poderiam trazer algumas respostas às grandes perguntas da
Filosofia. Porém o nascimento da ciência moderna acabou por enfrentar a
exigência da criação de uma psicologia científica e que fosse compatível com
as novas e incríveis descobertas que o método de Galileu trouxe ao mundo.
A Psicologia como ciência independente é uma conquista do séc. XIX,
mas a discussão sobre sua cientificidade remonta a revolução científica do séc.
XVIII tendo como referência Christian Wolff (2006), que apontou como
necessária uma divisão entre psicologia racional e psicologia empírica. A nova
ciência de Galileu exigia comprovação empírica, mas na concepção de Wolff os
avanços alcançados pelas correntes racionalistas mostravam que era
impossível negar a existência de princípios fundamentais abstratos inerentes
aos fenômenos empíricos. Desta forma a separação entre os tipos de
Psicologia também demarcava seus possíveis campos de estudo. A ciência
nascente exigia correspondência empírica e conceitual em seu método, e a
11

Psicologia (limitada pela Filosofia e tecnologia da época) não conseguia


observar e apontar correspondências empíricas para os fenômenos psíquicos.

Está claro, portanto, que a psicologia empírica corresponde à


física experimental e pertence, assim, à filosofia experimental.
Está igualmente claro que a psicologia empírica e a física
experimental, quando são exercidas de acordo com o nosso
método, não são partes da história. Pois a psicologia empírica
não apenas cataloga o que é observado na alma. Ela também
estabelece a partir daí conceitos das faculdades e dos hábitos,
além de outros princípios. Ela fornece até mesmo a razão para
algumas coisas. E aquilo que é próprio do conhecimento
filosófico não pode ser classificado como conhecimento
meramente histórico. (WOLFF, 2006, pp. 64-65).

Para Wolff (2006) a Psicologia lidaria com conceitos e apreensões, de


modo que todos os conceitos se encontram na memória e tem origem na
experiência. Para ele nenhum conhecimento seria confiável se não tivesse
iniciado pela experiência (ideia posteriormente muito explorada por Kant), e a
separação que faz na Psicologia é justamente para diferenciar a ciência que
cuida dos entes abstratos (psicologia racional) da que cuida das experiências
com entes concretos (a psicologia empírica).
Tal separação tinha um caráter prático em seu sistema: evitava que as
pessoas rejeitassem certas ideias da Psicologia achando que as mesmas
fossem fundamentadas em especulações fantasiosas, e fazia isso com seu
caráter de base empírica, cumprindo as exigências do método científico. A
psicologia empírica seria “A Ciência que estabelece através da experiência os
princípios a partir dos quais pode ser fornecida a razão para o que ocorre na
alma humana”. (WOLFF, 2006, p. 64).
Kant tomou para si a tarefa de demarcar o campo de atuação da
nascente ciência, e fortemente inspirado pela física de Newton em sua Crítica
da razão pura cria uma demarcação entre o que é ciência (limitada aos
fenômenos empíricos) e metafísica (limitada aos fenômenos não empíricos).
Tal distinção acabou por tornar mais complicada a pergunta sobre a
cientificidade da psicologia, pois para Kant só é possível fazer ciência a partir
das representações captadas por nossa sensibilidade, porém se não temos
como ter acesso a psique de forma empírica, então como fazer uma ciência
12

dela? Como resultado em seu Princípios metafísicos da ciência da natureza,


critica a noção de Wolff de alma como objeto de conhecimento, e com isso
acaba por destruir a psicologia racional e direcionar seu estudo para a
psicologia empírica, a definindo como ciência que deveria se limitar às
manifestações empiricamente observáveis da alma.

A psicologia empírica está mais distanciada que a química da


classe da ciência da natureza propriamente dita, primeiro,
porque a matemática não é aplicável aos fenômenos do
sentido interno e a suas leis, pois teria que se ter em conta em
tal caso somente a lei de continuidade no fluxo das mudanças
do dito sentido interno (...). Pois a pura intuição interna, na qual
devem se constituir os fenômenos da alma é o tempo, mas
este tem uma só dimensão. (KANT, 1990, p. 32-33).

Kant era estudioso das descobertas de Newton e via nelas a expressão


perfeita de como deveria ser um modelo científico empirista, ao ponto de ter
dedicado muito trabalho no esforço de embasar filosoficamente as descobertas
da física, além de compreender as suas entidades básicas (espaço e tempo)
como formas à priori da sensibilidade na Crítica da razão pura.

A ciência da natureza propriamente assim chamada pressupõe


uma metafísica da natureza; com efeito, leis, isto é, princípios
da necessidade do que é inerente à existência de uma coisa,
referem-se a um conceito que não se pode construir, porque a
existência não pode representar-se em nenhuma intuição a
priori. Por conseguinte, a genuína ciência natural pressupõe
uma metafísica da natureza. Esta deve, pois, conter sempre
puros princípios, que não são empíricos (é por isso que leva o
nome de metafísica). (KANT, 1990, p. 15; A 7-8).

Isso demonstra que a visão kantiana de ciência era bastante


influenciada pelo modelo mecanicista nascente da evolução técnica de seu
tempo, não acarretando surpresa o lugar onde o mesmo colocou a psicologia
empírica. As críticas de Kant são o fundamento epistemológico da ciência
moderna, e como era de se esperar, uma Psicologia que queira adquirir o
status de ciência perante a autoridade Kantiana necessita se submeter ao
tribunal da razão e demonstrar suas condições de possibilidade como tal.
13

1.3 – OS VETOS KANTIANOS

Para podermos discutir uma ciência de entes não físicos, precisamos


antes estabelecer critérios que nos garantam que não cairemos em saberes
sem fundamentos (agora jogados de lado junto com toda a metafísica). Dado
isto, Kant afirma que a psicologia racional é impossível, e a empírica
improvável devido a não corresponder a todos pré-requisitos que seu sistema
exigia para que a mesma pudesse ser considerada ciência. Tais pré-requisitos
são os conhecidos na literatura psicológica como vetos kantianos, e os
mesmos são explicados abaixo:

I) A Impossibilidade de Isolamento do objeto de estudo

O modelo de ciência inaugurado por Descartes exigia o isolamento das


partes do fenômeno a ser observado para que o mesmo seja reduzido às suas
unidades mais fundamentais, a partir das quais o cientista poderá através da
análise e síntese inferir as leis universais que estão veladas por detrás do
mesmo. Kant aponta que os eventos psíquicos não podem ser considerados de
forma isolada, pois a vida psíquica representa uma totalidade onde o fenômeno
isolado perde seu sentido e função.

A possibilidade de coisas naturais determinadas não pode


conhecer-se a partir dos seus simples conceitos; a partir destes
pode, certamente, conhecer-se a possibilidade do pensamento
(isto é, que ele não se contradiz a si mesmo), mas não do
objeto enquanto coisa natural, a qual pode ser dada (como
existente) fora do pensamento. (Kant, 1990, p. 16; A 9).

II) A Impossibilidade de sujeito ser ao mesmo tempo objeto:

Dentro do paradigma representacional da modernidade (caracterizado


pela dicotomia sujeito/objeto) onde Kant estava inserido, torna-se óbvia a
profundidade de tal veto, pois é impossível conceber dentro do modelo do
sujeito transcendental uma experiência onde sujeito e objeto estejam contidos
no mesmo ente. Desta forma a Psicologia deveria ser limitada a uma
14

observação e descrição dos fenômenos da alma e jamais atingiria a posição de


disciplina experimental.

A doutrina empírica da alma jamais poderá se aproximar da


química como arte sistemática de análise, ou doutrina
experimental, uma vez que nela, o múltiplo da observação
interna está separado somente por uma simples divisão no
pensamento, sem poder manter-se separado, e unificar-se de
novo arbitrariamente; menos ainda poderá se submeter outro
sujeito pensante a nossa busca, de tal modo que seja conforme
a nossos propósitos, e inclusive a observação em si mesma
altera e distorce o estado do objeto observado. Por isso, a
psicologia nunca pode ser mais do que uma doutrina histórica
do sentido interno, e como tal, tão sistemática quanto possível,
uma simples descrição da alma, mas não uma ciência da alma,
nem uma doutrina psicológica experimental. (KANT, 1990, p.
32-33).

III) A Inquantificabilidade do fenômeno psíquico:

Desta forma Kant delimita quais exigências um sistema psicológico deve


cumprir para ser considerado científico dentro do modelo de conhecimento
demarcado pela crítica da razão pura, e que influenciou o desenvolvimento
posterior da psicologia.

Uma pura filosofia da natureza em geral, isto é, aquela que


unicamente investiga o que constitui o conceito de natureza em
geral, pode ser possível mesmo sem a matemática, mas uma
doutrina acerca das coisas naturais determinadas (doutrina dos
corpos e doutrina da alma) só é possível por meio da
matemática. (KANT, 1990, p. 16).

Kant não via formas de quantificar o fenômeno psíquico, pois o mesmo


ocorre somente no tempo, e não no espaço. Dessa forma uma psicologia
empírica seria inviável, pois sem quantificar o fenômeno se torna impossível
matematizar e empregar o cálculo para fazer uma descrição precisa da forma
como o mesmo ocorre. No séc. XIX o behaviorismo, buscando uma Psicologia
que fosse aceita dentro dos padrões de ciência impostos pelo positivismo de
Comte, aponta como solução para tal veto o estudo do comportamento, pois o
mesmo ocorre no espaço e pode ser observado e matematizado.
15

1.4 – RESPOSTA AOS VETOS E EMANCIPAÇÃO DA PSICOLOGIA

Na compreensão de Kant, uma psicologia empírica deveria estudar não a


alma ou o sujeito, mas sim os objetos dados em seu sentido interior (as
representações). Ao estabelecer tal ciência como empírica da alma, não se
refere a alma em sentido transcendental, mas em sentido empírico e aos
objetos nela dados, ou seja, uma antropologia do ponto de vista fisiológico que
estuda as representações que sustentam a psique (sejam elas conscientes ou
inconscientes).
Desta forma, os objetos psíquicos são tratados pelas mesmas categorias
do entendimento que os objetos da física empírica, de modo que do ponto de
vista da psique são ao menos objetiváveis tal qual os objetos da física, e assim
sendo, também sujeitos as mesmas leis de causa e efeito. Uma ciência que
tivesse como proposta estudar tais fenômenos deveria então cumprir os
requisitos impostos pelo modelo da física empírica, evidenciando mais uma vez
a forte influência do modelo mecanicista em sua visão psicológica:

[...] o seu lugar é aquele onde deve ser colocada a física


propriamente dita (empírica), isto é, do lado da filosofia
aplicada, para a qual a filosofia pura contém os princípios a
priori e com a qual, portanto, deve estar unida, mas não
confundida. (Kant 1990, B 876).

O rápido avanço técnico fez com que tal visão de ciência fosse
confrontada em busca do estabelecimento da Psicologia como ciência
independente da Filosofia, e no intervalo de um século os três vetos já haviam
sido superados e a Psicologia se estabeleceria como ciência independente.

O primeiro veto seria derrubado pela teoria das energias nervosas


específicas de Johannes Müller, em seu Handbuch der Physiologie de 1826.
Para ele cada sensação corresponderia a uma energia nervosa específica
onde o mundo percebido é mero reflexo das energias nervosas que nossos
sentidos captam. Assim sendo, temos a energia nervosa como elemento
objetivo mensurável.
16

O segundo veto é resolvido pela teoria das inferências inconscientes de


Hermann von Helmholtz (e a fundação do método instrospectivo experimental).
Para ele o nosso sentido de mundo é formado pelas memórias de experiências
passadas, que seriam sempre levadas em conta como elemento base para a
formação de nossas representações psicológicas. Consciente disso, o analista
pode treinar sua psique para neutralizar tais elementos e assim analisar as
sensações em sua forma mais pura, assim separando o observador do objeto
de estudo.

E por fim o terceiro veto é resolvido por Gustav Fechner, que postula em
seu elementos de psicofísica de 1860 a primeira lei matemática da Psicologia:
a lei das diferenças apenas percebidas (Lei Weber-Fechner), que estabeleceu
uma fórmula matemática que relacionava os fenômenos físicos aos psíquicos e
viabilizava o uso de cálculo na análise das sensações medindo as respostas
causadas por seus estímulos.

Com os 3 vetos superados, a Psicologia poderia nascer como ciência


independente no laboratório experimental de Wilhelm Wundt em 1879, que
criou os primeiros instrumentos de medição e efetuou pesquisas que abriram
caminho para o surgimento de todos os grandes psicólogos das décadas
seguintes, tais como Freud, Jung, Adler, James, Janet, entre incontáveis outros
nomes. Porém tanto a problematização quanto a resolução dos vetos apontam
para o fato de que a Psicologia somente conquistou seu reconhecimento como
ciência no momento que cumpriu às exigências impostas pelo paradigma
mecanicista fundamentado pela Filosofia kantiana, que como vimos
anteriormente, tinha sua orientação epistemológica fortemente baseada na
física de Newton.

Hoje em dia a globalização e sua resultante tecnicização, herdeiras da


visão positivista, acabaram por gerar avanços enormes na Psicologia como
medicina objetiva ao custo do quase abandono da psicologia como medicina
subjetiva. Desta forma a ciência acaba por se limitar aos fenômenos que de
alguma forma se consigam encaixar numa esteira de causalidade onde o
homem é apenas um produto sem direito de respeito a sua subjetividade. Essa
predominância do pensamento objetificante, tanto nas ciências quanto no dia a
17

dia, vai de encontro a crítica de Heidegger em Ser e tempo, onde aponta os


problemas resultantes da entificação do ser e mostra como o avanço da técnica
contribuiu de forma fundamental para isso.

O caminho tomado pela civilização ocidental nos últimos séculos foi


fortemente influenciado pelo esquecimento do ser, tornando o humano quase
artificial e distante de sua natureza fundamental de Dasein. Este modelo
científico tão criticado por Heidegger é o chão onde a psicologia científica que
se tornou hegemônica5 se fundamenta, e por isso a Psicologia é o assunto dos
seminários de Zollikon, que serão o assunto do próximo capítulo.

5
Cabe ressaltar que nem todos os teóricos da psicologia se renderam ao paradigma
mecanicista, cabendo apontar ao menos Wundt (o fundador da psicologia científica) como um
exemplo de psicologia que levou em conta tanto o modelo das naturwissenschaften (em sua
psicologia experimental) quanto o das geisteswissenschaften (em sua psicologia social), dentro
outros tais como William James. Porém nenhum deles foi capaz de dar conta de todos os
modos de ser do Dasein, indo de encontro ao pensamento que posiciona a Psicologia como
uma ciência em constante construção.
18

2 HEIDEGGER E A CIENTIFICIDADE DA PSICOLOGIA

2.1 – O DASEIN E A REPRESENTAÇÃO

A tese fundamental de Heidegger é de que o ente humano (Dasein)


possui em seus modos de acesso a realidade um primado ôntico e ontológico,
que o torna hábil a ter de compreensão de seu ser a partir de seu ente, e desta
forma uma Psicologia dentro dos moldes do paradigma6 representacional(de
nível apenas ôntico) não daria conta da totalidade da nossa psique, seria
apenas uma Psicologia dos entes.
Dasein não é essência estática e permanente perante as mudanças
como defendiam os antigos, mas sim o contrário: é um ente em mudança, em
devir. Seu ser é dado como uma tarefa a ser conquistada e que a cada
momento tem que ser novamente, assim sendo por natureza eternamente
inacabado. É o ente que questiona pelo sentido do ser, questionar este mais do
que apenas uma característica, mas seu modo de ser fundamental,
constituindo assim na reconstrução do termo existência (e também do seu
sentido ontológico).
O Dasein é o único que realmente existe. Os outros entes apenas são,
mas não existem. Isso porque para Heidegger, existir possui um sentido muito
particular: é o modo de ser exclusivo do ente humano, e o que caracteriza tal
modo de existir é o fato do Dasein possuir a compreensão de seu ser (primado
ontológico), tornando sua experiência muito mais ampla do que apenas as
representações sensoriais da metafísica entificadora do ser.
Assim sendo, as ontologias até então pecaram em não partir desta
compreensão primordial, criando arcabouços conceituais baseados inclusive
nas regras da gramática para chegar a confusões infundadas e
incompreensíveis. Heidegger acusa a tradição de ter entificado o ser, e ter
permanecido com essa análise superficial, gerando um modelo de ciência
incompleto e entificante, que artificializa e prende o ser humano dentro de um
modo de vida que vai contra o que pede sua natureza. Pecaram também em

6
“(...) paradigmas são as realizações cientificas universalmente reconhecidas que, durante
algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes
de uma ciência.” (Kuhn, 1991, p.13).
19

seu método, levando Heidegger a escolher a fenomenologia como método


mais adequado para abordar as questões do Dasein.
Assim, ao falar em Fenomenologia, Heidegger não busca aproximar sua
analítica a uma corrente filosófica em específico. Neste sentido, o termo é
compreendido como método, sendo este visto por Heidegger como confiável e
afastado das assim chamadas “manipulações técnicas”. Desta forma, sua
análise acaba por irromper numa ontologia, mostrando que ele não visava falar
de ontologia como uma disciplina em específico, mas sim de um conjunto de
perguntas que poderiam vir a formar uma disciplina, pois via o método clássico
da ontologia como altamente questionável:

Com a caracterização provisória do objeto temático da


investigação (o Ser do ente, ou, correlativamente, o sentido do
Ser em geral, parece já estar esboçado, também, o seu
método. Destacar o Ser do ente e explicar o Ser mesmo é a
tarefa da ontologia. Mas, o método da ontologia resulta
altamente questionável, caso se queira recorrer à ontologias
historicamente legadas. (HEIDEGGER, 2005, p. 56).

A palavra Fenomenologia é composta de dois termos gregos: υαινόμενα


e λόγος, Heidegger parte para a explicação de ambos termos para chegar ao
sentido metodológico desejado e centra no estudo dos fenômenos em seu
sentido fenomenológico. Tal compreensão servirá de base para entendermos o
novo paradigma inaugurado, que exigirá a criação de uma nova Psicologia que
vá além do fenômenos vulgares das representações e compreenda o Dasein
como desvelamento.
Agora se faz necessário expor o modo particular como Heidegger
compreendia os fenômenos e porquê ele classificava sua fenomenologia de
“fenomenologia hermenêutica”.

2.2 – O CONCEITO FENOMENOLÓGICO DE FENÔMENO

Heidegger volta a raiz grega da palavra, que deriva do verbo υαινεσθαι:


mostrar, surgir. ϕαινομενον é seu modo nominativo, que significa “aquele que
se mostra”, ou o “aquilo que ϕαινω”: auto-mostrante. Logo, o sentido que é
resgatado significa “o que se mostra em si mesmo”. Para os gregos,
20

ϕαινομενον designa simplesmente a totalidade daquilo que se mostra, que


também já foi identificado como τά οντά (aquele que ον, o ente).
Porém, dentro da analítica existencial de Heidegger, o ente pode se
mostrar a partir de si mesmo de diversos modos, sendo que inclusive o ente
pode se mostrar como algo que ele não é em si mesmo. Assim o ente não
mostra o que ele é, mas apenas o que ele parece. Deste modo, fenômeno
possui dois sentidos: “o que se mostra” e “aparência”.

A expressão grega ϕαινομενον, à qual remonta o termo


“fenômeno”, deriva do verbo φαινεσθαι, que significa mostrar-
se; φαινεσθαι significa, portanto, o que se mostra, o se-
mostrante, o manifesto [was sich zeigt, das Sichzeigende, das
fenbare].ϕαινομενονé, ele mesmo, uma formação media de
ϕαινω - trazer à luz do dia, pôr em claro; ϕαινω pertence à raiz
ϕα - como ϕω, a luz, o claro, isto é, aquilo em que algo pode se
tornar manifesto, pode ficar visível em si mesmo. Como
significação da expressão “fenômeno” deve-se portanto reter
firmemente: o-que-se-mostra-em-si-mesmo, o manifesto. Os
“fenômenos” são então o conjunto do que está à luz do dia ou
que pode ser posto em claro, aquilo que os gregos às vezes
identificaram simplesmente com o ente. Ora, o ente pode se
mostrar, a partir de si mesmo, de diversos modos, cada
vez segundo o modo-de- acesso a ele. Há mesmo a
possibilidade de que o ente se mostre como o que ele não é
em si mesmo. Nesse mostrar-se, o ente aparenta, ele “é como
se...” (HEIDEGGER, 2005, p. 58).

Porém, na terminologia de Heidegger, ficamos apenas com um dos


sentidos, o sentido de “aquele que se mostra”, legando para aparência outro
sentido e utilização. Quando estamos gripados e temos febre, a febre não é o
fenômeno da gripe, é apenas aparência de que algo está errado, ficando assim
a gripe velada por trás da febre, não se mostrando em si mesma:

Manifestar-se é anunciar-se por meio de algo que se mostra.


Quando se diz, então, que com a palavra “manifestação”,
apontamos a algo em que se manifesta uma coisa que não é
ela mesma „manifestação‟, não fica circunscrito o conceito de
fenômeno, senão que, muito mais, este conceito fica suposto,
mas de forma encoberta, porque nesta determinação da
„manifestação‟, o termo „manifestar-se‟ é empregado em um
duplo sentido. Esse em que algo „se manifesta‟, quer dizer
aquilo em que algo se anuncia, isto é, não se mostra. E quando
se diz 'que ela mesma não é „manifestação‟, a palavra
'manifestação' tem o sentido de mostrar-se. Mas este mostrar-
se pertence essencialmente a “aquilo em que” algo se
21

anuncia. Por conseguinte, os fenômenos não são jamais


manifestações, mas toda manifestação está, diferentemente,
necessitada de fenômenos. (HEIDEGGER, 2005, p. 59).

Para Heidegger, tanto uma analítica Fenomenológica quanto uma


Psicologia baseadas no conceito de fenômeno no sentido de “manifestação”
(sentido do paradigma representacional, fenômeno vulgar) se mostram
infundadas, pois não nos levariam para o significado das coisas em si, mas
apenas a uma representação de como elas se mostram em um dado momento.
Desta forma, se ao analisar um fenômeno não fica determinado se aquilo é um
ente, ou caráter de ser de um ente, assim não chegaremos ao fenômeno real,
chegaremos apenas a seu caráter formal.
Assim sendo, acaba por diferenciar o conceito fenomenológico de
fenômeno do conceito “vulgar” de fenômeno. O conceito “vulgar”
corresponderia ao conceito kantiano, onde os fenômenos são a totalidade
daquilo que afeta nossa intuição empírica. Para Kant, não temos acesso às
coisas em si (nôumenos), mas somente as representações delas servidas por
nossa sensibilidade: a estas representações Kant chama fenômeno.
Porém na analítica de Heidegger o conceito de Kant não serve, pois no
máximo poderia nos falar sobre o modo como as coisas se apresentam, sem
nos dar certeza do que elas são em si mesmas, fugindo do sentido original
grego de fenômeno: aquilo que se mostra em si mesmo.
Assim compreendido o conceito fenomenológico de fenômeno, podemos
falar das críticas tecidas por Heidegger nos Seminários de Zollikon, que apesar
de se dirigirem mais diretamente a psicanálise de Freud, cabem a todos os
autores que criaram suas teorias psicológicas edificadas no pressuposto da
soberania do paradigma representacional.

2.3 – AS CRÍTICAS DOS SEMINÁRIOS DE ZOLLIKON

Em 1947 o psiquiatra suíço Medard Boss entrou em contato com


Heidegger buscando esclarecimentos sobre alguns pontos de sua obra
filosófica. Como resposta recebeu 10 anos de visitas constantes de Heidegger
a Zurique (entre 1959 e 1969) onde o mesmo deu conferências a psiquiatras
22

convidados sobre as implicações do Dasein para os métodos da psicologia


científica. Nos seminários vemos um Heidegger bastante maduro e ciente das
implicações de sua filosofia nas bases da ciência e da civilização ocidental,
tentando traduzir sua linguagem filosófica para o campo de conhecimento dos
psiquiatras convidados a assistir os seminários.
A crítica de Heidegger, apoiada na tese de que a metafísica ocidental
criou uma ciência dos fenômenos vulgares, atinge a visão de homem que
fundamenta todas as ciências, e por consequência também a Psicologia. Em
suas conferências busca constantemente, através de exemplos práticos,
desconstruir a visão mecanicista herdeira da modernidade que busca reduzir o
ser humano a uma máquina de estímulo resposta, que recebe como input
representações sensoriais:

O exato das ciências exatas não pode ser exatamente


determinado, ou seja, por vias de cálculo, mas apenas
ontologicamente, e assim sendo o tipo de verdade que se
aplica à ciência é no sentido da ciência natural exata. Sua
verdade é verificada pela eficiência de seus resultados.
Quando este modo de pensar determina o conceito científico
de ser humano e o investiga a partir do modelo de conjunto de
leis, como agora acontece na cibernética, em pouco tempo a
destruição do ser humano será perfeita. É por isso que eu
combato a ciência, mas não a ciência enquanto ciência, mas
apenas o caráter absolutizante da ciência natural.
(HEIDEGGER, 2013, p. 197).

Assim sendo, o ser não pode ser delimitado, mas precisa ser desvelado,
e isso acaba por implodir as bases de todas tentativas de uma psicologia
científica baseadas unicamente nos fenômenos vulgares observáveis, que tem
por base uma representação delimitada espacial e temporalmente. Neste caso
a crítica não se direciona apenas a uma corrente psicológica específica (apesar
de em alguns momentos fazer menção direta a conceitos de Freud, tais como
trieb), mas sim a metapsicologia que está subjacente às visões de mundo e de
ser humano que são o ponto de partida das psicologias científicas domintantes
da época:
23

A objetivação da natureza assim determinada é por ela mesma


o projeto de natureza enquanto vista de um âmbito objetual que
pode ser dominado. Os passos decisivos no desdobramento
deste projeto de uma natureza dominável foram levados a cabo
por Galileu e Newton. O que lhes importa é como a natureza é
representada, e não o que ela é. (HEIDEGGER, 2013, p. 213).

Uma Psicologia fundamentada nos conceitos herdeiros da tradição


filosófica entificante só poderia estudar o homem se o encaixar dentro dos
pressupostos mecanicistas que buscavam reduzi-lo a mera representação, de
modo que seria assim possível apenas estudar um dos modos temporários a
partir do qual o ser se manifesta. Da mesma forma que as tentativas de
dominar a natureza por parte do homem falharam, também falharam as
tentativas de dominar nossa psique.
Tal visão acabou por não dar conta da totalidade do Dasein, criando
uma ciência de cura ineficaz e tão doente quanto os pacientes que se propõe
a tratar. Não podemos reduzir o homem a um aparelho de conflitos gerador de
sintomas casualmente explicável de forma físico-matemática, pois o mesmo
não vive apenas de pulsões e não tem a representatividade como único modo
de acesso a realidade.
Esse predomínio das ciências naturais como modelo metodológico para
todas ciências (que remonta a Kant) é causador principal dos modelos de
Psicologia tão dependentes da visão representacional do paradigma sujeito /
objeto. Heidegger instiga e fornece as ferramentas para que todos os
participantes do seminário consigam enxergar o ente humano sem precisar se
apoiar nas categorias da psicanálise (hegemônica dentre os participantes), e
faz isso através de um retorno a Ser e tempo, onde o mesmo questiona os
modos de acesso à realidade do Dasein e aponta a metafísica moderna como
causadora desta visão hegemônica onde o conhecimento intuitivo é a única via
correta de acesso a realidade.
A analítica dos modos de ser é pré-requisito para o projeto de Ser e
tempo, que tem como questão primeira a busca do sentido de ser, apontando a
dimensão pré-objetiva do existir como determinante de boa parte dos modos
cotidianos de existir no mundo. Uma ontologia precisa se fazer fenomenologia
para partir de tais modos de ser, e assim compreender o fenômeno em seu
24

desvelamento e não apenas como ele se mostra inicialmente. O fenômeno


compreendido fenomenologicamente não pode se reduzir às simples intuições
visando satisfazer as exigências de um paradigma em crise:

[...] se a ciência do ser humano deve satisfazer as exigências


fundamentais da ciência moderna, ela deve estão seguir o
princípio da primazia do método no sentido do projeto de
ciência calculável. O resultado inevitável desta ciência do ser
humano seria a construção técnica da máquina-ser humano.
Muitos sinais indicam que a investigação científica desta
orientação e a produção de tais seres humanos realmente já
está acontecendo, esmagada pela imposição da já mencionada
vitória do método sobre a ciência e com o fanatismo da
vontade incondicional de progresso e em nome do progresso.
(HEIDEGGER, 2013, p. 215).

Os fenômenos psíquicos não podem ser medidos de forma objetiva,


apenas podem ser vividos de forma intuitiva, de modo que não podemos
pensar separadamente o fenômeno da psique, como pretendia o primeiro veto
de Kant e menos ainda separar sujeito de objeto, afinal a experiência do
Dasein vai muito além dos modos de ser-no-mundo. Da mesma forma, a
separação corpo e alma (soma e psique) se mostra infundada, dado que não
temos como provar cientificamente que a psique tenha base unicamente
químico-biológica, mas sabemos que seja lá qual sua origem, tem conexões
com o biológico, e é mais inteligente enxergar a mente como algo que penetra
todo o organismo do que uma área isolada ou um órgão.
Tais visões levam Heidegger a afirmar que a ciência é cega quanto a
seus pressupostos, e dentro de sua linha de pensamento não é difícil
compreender os motivos que o levaram a tal conclusão: não cabe nem nunca
coube as ciências refletir sobre suas bases, mas muito mais a Filosofia cabe
abrir os caminhos especulativos a partir dos quais uma ciência possa se
alicerçar e construir seu fazer prático.

No modo de ver fisiopsicológico predominante, tal fenômeno é


pressuposto como óbvio e conhecido, e de início não apenas
permanece indeterminado como fenômeno, mas acima de tudo
nenhuma atenção é direcionada a um estado de coisas
decisivo, a saber: que a familiaridade com o fenômeno deve
ser pressuposta se não queremos que as explicações
fisicopsíquicas caiam por terra. Aqui repentinamente termina a
exatidão normalmente exigida pela ciência. A ciência se torna
25

cega quanto a aquilo que precisa pressupor. (HEIDEGGER,


2013, p. 130).

Thomas Kuhn (1991) afirma que a ciência avança em momentos de


ciência normal e intercalados com momentos de ciência extraordinária7, onde
um paradigma vigente é quebrado e partir donde se desenvolvem novos
caminhos para avanços dentro de seu âmbito, e que tais momentos acontecem
geralmente quando um paradigma já consolidado esteja próximo de se esgotar.
Heidegger compreende a psicanálise de Freud e seus modelos
derivados e antecedentes como últimos esforços do paradigma
representacional da modernidade, paradigma este condicionado aos
fenômenos vulgares e insustentável dentro do contexto da Física Quântica e
das descobertas do séc. XX, e também como evidências do domínio
metodológico e epistemológico do modelo das ciências naturais sobre as
demais. Seu contraponto é uma Filosofia que acaba por colocar a psicologia
hegemônica numa crise de fundamentos e a obriga a repensar suas bases
epistemológicas.
No próximo capítulo vamos apresentar a psicologia de Carl Jung como
modelo não dependente do paradigma representacional e também vamos
argumentar que o mesmo representa a inauguração de um novo paradigma
dentro da Psicologia, paradigma este alinhado com a visão de Heidegger, além
de também apresentar uma sugestão de solução para a crise epistemológica
causada nas bases da Psicologia pelo paradigma do Dasein.

7
“Quando [...] uma anomalia parece ser algo mais do que um novo quebra-cabeça da ciência
normal, é sinal de que se iniciou a transição da crise para a ciência extraordinária. A própria
anomalia passa a ser mais comumente reconhecida como tal pelos cientistas. Um número
cada vez maior de cientistas do setor passa a dedicar-lhe uma atenção sempre maior. Se a
anomalia continua resistindo à análise (o que geralmente não acontece), muitos cientistas
passam a considerar sua resolução como o objeto de estudo específico de sua
disciplina. [...] Nenhuma dessas articulações será igual; cada uma delas será bem sucedida,
mas nenhuma tão bem sucedida para que possa ser aceita como paradigma pelo grupo.
Através dessa proliferação de articulações divergentes (que serão cada vez mais
frequentemente descritas como adaptações ad hoc), as regras da ciência normal tornam-se
sempre mais indistintas. A esta altura, embora ainda exista um paradigma, constata-se que
poucos cientistas estarão de acordo sobre qual seja ele. Mesmo soluções-padrão de
problemas que anteriormente eram aceitas passam a ser questionadas”. (KUHN, 1991, p. 113 -
114).
26

3 O MODELO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

3.1 – A PSICOLOGIA DAS GEISTWISSENSCHAFTEN

No capítulo anterior estudamos uma parte dos Seminários de Zollikon de


Heidegger e destacamos alguns pontos onde o mesmo, guiado pela
problemática levantada pela visão entificante do ser, tece críticas a visão de
homem subentendida nos modelos de psicologia científica praticados na
maioria das instituições de pesquisa e consultórios europeus e americanos da
época.
Tais críticas partem da constatação de Heidegger de que o modelo
científico que serviu de base para toda psicologia hegemônica (o modelo
representacional kantiano) se mostra demasiado reducionista para poder ser
utilizado como ferramenta única para uma ciência que tenha como pretensão
dar conta da alma do homem. Até mesmo o modelo das diversas psicanálises,
que buscam uma visão interpretativa da mente peca nesse aspecto, na medida
que se encontram fundamentadas em bases unicamente orgânicas ou que
convergem para a visão mecanicista-representacional de homem, gerando uma
ciência cujo objeto de estudo é apenas uma visão reduzida de todos os modos
de ser do Dasein. Isso leva Heidegger a levantar constantemente nos
seminários o questionamento sobre os fundamentos teóricos da psicoterapia:

(...) el tema de la física es lanaturaleza inanimada. El tema de


lapsiquiatría y la psicoterapia es el ser humano.
Cómodebedeterminarseel caráter científico de lapsiquiatría y
de los fundamentos teóricos de lapraxispsicoterapéutica?
(HEIDEGGER, 2013, p. 215).

Temos algumas poucas exceções que devem ser mencionadas, tais como
William James,Wilhelm Wundt e Carl Jung, que influenciados pelo romantismo
alemão e pelos trabalhos de Dilthey, buscaram caminhos de aplicação dos
modelos interpretativos das ciências humanas (geisteswissenschaften) junto
com o uso dos já conhecidos modelos experimentais que eram usados em
laboratórios e consultórios.
Tratarei da obra de Jung unicamente por julgar que a mesma, além de
27

mais atual, também dialoga com todas as correntes psicológicas


predecessoras e antecipa muitas de suas sucessoras, mantendo-se em diálogo
estreito com a Filosofia, a Ciência e a Arte num modelo científico que concilia
os métodos e paradigmas das ciências naturais com os das ciências do
espírito, resultando num horizonte interpretativo muito mais amplo.
Seu modelo tem forte embasamento clínico, porém teve seus insights
fundamentais ao menos esboçados durante um determinado período de tempo
de sua vida, no qual Jung se voltou à observação e interpretação de sua
própria experiência psicológica, buscando compreender os fenômenos
espontâneos que sua mente produzia em estados de não vigília observados,
dentro de seu próprio método observativo de introspecção, que foi nomeado de
imaginação ativa. Tal período é descrito em forma narrativa, poética e
desenhada em lindas telas em seu Livro vermelho. As experiências ocorreram
em contexto de rompimento com Freud e num momento muito complicado do
ponto de vista psicológico para o próprio Jung, e desta forma ele pode observar
como seu inconsciente reagia aos acontecimentos de seu mundo e como suas
manifestações se desvelavam dentro de determinadas circunstâncias, levando-
o a formar analogias interpretativas entre sua própria experiência interior e os
acontecimentos de sua vida exterior.
Ao fazer tal exercício, deu-se conta de que muitos motivos das
manifestações de seu inconsciente seguiam certos padrões que podiam ser
relacionados a figuras mitológicas de diversas culturas, e que a interpretação
cultural de tais figuras sempre tinha alguma relação com a possível patologia
influenciadora da manifestação. Desta forma ele encontrou um caminho a partir
do qual poderia desenvolver mais o lado interpretativo de sua psicologia, que
nessa altura da carreira já estava muito bem consolidado com a teoria dos
complexos de tom afetivo, que representa bem um modelo que leva em conta
as duas visões de ciência e foi muito bem recebido pelos psiquiatras de sua
época.
Do ponto de vista das psicologias de seus antecessores, Jung fez
importantes estudos e avanços nos modelos experimentais existentes,
levando-o a alcançar prestígio e reconhecimento acadêmico muito
precocemente, e ajudando-o a desenvolver um modelo que era capaz de ir
muito além da visão das naturwissenschaften, e a chave dessa grandiosa
28

descoberta é o conceito de arquétipo, que forçou uma ampliação da visão de


homem subentendida no modelo das ciências naturais.

3.2 – O CONCEITO DE ARQUÉTIPO

Ao se deparar com as estruturas das manifestações de seu inconsciente e


perceber que as mesmas tinham relações com motivos mitológicos arcaicos
com os quais ele nunca tivera contato, começou a levar em conta o fato de que
tais estruturas poderiam não ser constituintes apenas de sua experiência
individual, mas do contrário e tal qual Kant, poderiam ser estruturas a priori da
própria psique. Tais conteúdos também foram identificados por Freud, e por ele
chamados de resíduos arcaicos:

Pois vamos descobrir que muitos sonhos apresentam imagens


e associações análogas a ideias, mitos e ritos primitivos. Essas
imagens oníricas eram chamadas por Freud de resíduos
arcaicos. A expressão sugere que tais resíduos são elementos
psíquicos que sobrevivem na mente humana desde tempos
imemoriais. (JUNG, 2008, p. 51).

Essa camada impessoal estaria fora das categorias de espaço e tempo,


e seria influenciadora direta do nosso modo de ser consciente. Em O Homem e
seus símbolos, argumenta baseado em sua experiência clínica e na auto
observação que a psique se desenvolve a partir de tal camada, e que a partir
dela se desmembram as funções básicas estruturantes de nossa mente.
Partindo deste raciocínio torna-se impossível se sustentar a ideia de uma
Psicologia dentro dos modelos da representatividade se a própria mente não se
estrutura dentro deles.
Tanto Jung quanto Platão defendem a existência de tal base psíquica
acolhedora de arquétipos impessoais a partir dos quais emergem nossas
estruturas cognitivas e sob as quais baseamos nossa consciência de ser e agir.
Tais bases são impossíveis de ser precisamente delimitadas justamente pelo
fato de não se limitarem às categorias de espaço e tempo (esquemas base de
nosso conhecimento consciente e da visão representacional), e por isso
passíveis de conter existência fora dos citados esquemas.
29

Cada ser humano possui, originalmente, um sentimento de


totalidade, isto é, um sentido poderoso e completo do self. E é
do self (o si mesmo) - a totalidade da psique - que emerge a
consciência individualizada do ego à medida que o indivíduo
cresce. (JUNG, 2008, p. 167).

Para Kant espaço e tempo são as formas através das quais a coisa em
si se molda à experiência consciente, sendo seguro afirmar que ele considera a
coisa em si quantitativamente superior à mera representação de nosso
conhecimento, tal qual Jung e Platão. Porém, como vimos anteriormente, Kant
considera impossível a existência de uma ciência da alma que fosse capaz de
estudar o horizonte de toda experiência possível, reduzindo a visão de homem
para algo cientificamente mensurável. Jung vai além e reinventa o modelo de
ciência para que o mesmo dê conta do homem dentro de todas as dimensões
em que nós o conhecemos, resultando numa visão muito mais completa e útil
para as ciências e para a Filosofia, e não refém do paradigma representacional.

Embora me tenham chamado frequentemente de filósofo, sou


apenas um empírico e, como tal, me mantenho fiel ao ponto de
vista fenomenológico. Mas não acho que infringimos os
princípios do empirismo científico se, de vez em quando,
fazemos reflexões que ultrapassam o simples acúmulo de
classificação do material proporcionado pela experiência.
Creio, de fato, que não há experiência possível sem uma
consideração reflexiva, porque a “experiência” constitui um
processo de assimilação, sem o qual não há compreensão
alguma. Daqui se deduz que abordo os fatos psicológicos, não
sob um ângulo filosófico, mas de um ponto de vista científico-
natural. (...) me abstenho de qualquer abordagem metafísica ou
filosófica. Não nego a validade de outras abordagens, mas não
posso pretender a uma correta aplicação desses critérios.
(JUNG, 1988, p. 1).

Jung não enxerga o homem como apenas um substrato orgânico


sentenciado ao eterno sofrimento psíquico proveniente de um sistema que o
mesmo não tem forças para mudar. Do contrário, vê o homem como um ser
espiritual em necessária evolução rumo a uma conciliação de todos os
arquétipos formadores da psique, sempre supervisionado pelas vontades mais
profundas de sua alma e que vão muito além daquilo que o mecanicismo
consegue matematizar.
30

3.3 – OS MOLDES DO MUNDO

O inconsciente de todos os seres humanos produz figuras


espontaneamente através dos sonhos, fantasias e imaginação, e tais figuras
têm relação com os principais temas de todas as religiões míticas do mundo,
existindo elementos psicológico-simbólicos comuns em pessoas de todos
lugares. A essas formas Jung deu o justo nome de arquétipos,
etimologicamente explicado através do grego arché (ἀρτή) + typós (τύπος),
aqui livremente transliterado como “padrão ou tipo [impressão] primordial ou
arcaico”.
Tais arquétipos não correspondem a delimitadas e representacionais
imagens: Jung usa o termo para definir campos estruturais básicos que são
comuns a toda experiência humana, de uma forma mais existencial que
transcendental, correspondendo a condensações do conjunto da experiência
comum do homem e que nós herdamos à priori pelo simples fatos de sermos
humanos. Se manifestam de forma análoga em todas as pessoas e constituem
camadas não-identificadas com nosso ego consciente, sendo transmitidas de
forma biológica em nossa espécie e aperfeiçoadas e testadas por séculos de
evolução não apenas biológica, mas também psicológica e comportamental.

Assim como o nosso corpo é um verdadeiro museu de órgãos,


cada um com sua longa evolução histórica, devemos esperar
encontrar também na mente uma organização análoga. Nossa
mente não poderia jamais ser um produto sem história, ao
contrário do corpo em que existe. (JUNG, 2008, p. 82).

Estas imagens não se explicam e limitam no nível racional intelectivo,


pois uma definição lógica iria desconsiderar todo seu caráter vital e instintivo.
Os arquétipos estão ligados ao modo de apreensão das ocorrências da
existência, enquanto os instintos estão ligados aos modos de ação,
representando a totalidade das condições de possibilidade estruturais da
psiqué, e não apenas um momento cristalizado representacionalmente.
Os arquétipos fundamentais são gerados nas constantes repetições de
experiências típicas da vida, pois nascemos com sistemas organizados
especificamente e prontos a funcionar como resultado dos milhares de anos de
31

evolução. Tais sistemas herdados correspondem às situações humanas que


prevalecem desde tempos imemoriais: infância, velhice, morte, paternidade,
etc. A consciência individual experimenta estas situações como que pela
primeira vez, porém para o corpo e para a mente as mesmas não são
novidade:

Essa psique, infinitamente antiga, é a base de nossa


mente, assim como a estrutura de nosso corpo se
fundamenta no molde anatômico dos mamíferos em
geral. O olho treinado do anatomista ou do biólogo
encontra no nossos corpos muitos traços deste molde
original(...) Assim como o biólogo necessita de uma
anatomia comparada do corpo, também o psicólogo
não pode prescindir da anatomia comparada da
psique. (JUNG, 2008, p. 82).

Alguns destes arquétipos evoluíram tão profundamente no processo de


desenvolvimento biológico humano que se torna válido sua compreensão como
subsistemas separados do ego. Para nomear os impulsos fisiológicos de nossa
sensibilidade, Jung usa o termo instintos, afirmando que os mesmos podem se
manifestar de forma alegórica em nossa consciência e por vezes se mostrar
apenas de forma simbólica. A origem de tais manifestações é desconhecida e
as mesmas podem ser observadas em qualquer época e em qualquer lugar do
mundo onde existem vidas humanas, correspondendo assim à base evolutiva
comum de nossa psique.

3.4 – UMA PSICOLOGIA HEIDEGGERIANA?

Uma Psicologia que estude as condições de possibilidade da mente é


muito mais completa do que outra que estude apenas os aspectos
mecanicamente observáveis da psique. Assim como o Dasein, na visão de
homem junguiana o modo de ser do homem não é uma essência permanente
às mudanças, mas sim uma totalidade de possiblidades em eterno devir, dentro
das quais se desvelam os modos de ser e de apreender o mundo.
Baseado nisso ouso afirmar que a visão de homem que nasce com a
psicologia complexa encontra-se em alto grau de intimidade com a visão de
32

homem proveniente dos estudos de Heidegger, pois ambos buscam fugir das
limitações que a tradição metafísica legou em formato de leis científicas que
nunca deram conta da totalidade do homem. As visões de Heidegger sobre a
técnica como grande culpada das patologias objetivas do séc. XX convergem
com as ideias de Jung de que a modernização da civilização afastou o homem
de suas vontades naturais e por causa disso é culpada de suas patologias
subjetivas.
Aquilo que chamamos de consciência civilizada não
tem cessado de afastar-se dos nossos instintos
básicos. Mas nem por isso os instintos
desapareceram: apenas perderam contato com a
consciência, sendo obrigados a afirmar-se de maneira
indireta. Podem fazê-lo através de sintomas físicos,
como no caso de uma neurose, ou por meio de
incidentes de vários tipos, como humores
inexplicáveis, esquecimentos inesperados e lapsos de
palavra. (JUNG, 2008, p. 104).

Nos Seminários de Zollikon Heidegger não afirma de forma exata como


seria uma Psicologia que fosse capaz de ser aprovada em seus “vetos”, porém
explica claramente quais são os argumentos que fazem de todas as outras
psicologias científicas problemáticas do ponto de vista epistemológico e do
ponto de vista dos fundamentos teóricos de suas constituições, pois suas
afirmações, tais quais as de Jung, tornam as perguntas pressupostas nos vetos
kantianos totalmente desnecessárias e por muitas vezes incorretas.
Tanto para a Psicologia de Jung quanto para a visão de Heidegger não
faz sentido uma pergunta da natureza do primeiro veto kantiano, que afirma
necessária a separação de sujeito e objeto para que possa haver ciência. O
Dasein se desvela em seu devir e se mostra de várias formas, assim como o
homem de Jung é vários ao mesmo tempo e nunca um só e fechado, fazendo
com que a experiência vá muito além dos fenômenos vulgares e sendo visto
como interpretável, não calculável. O fenômeno não é apenas representação, é
sujeito, objeto e todo o resto. Se nem o corpo pode ser biologicamente
separado da mente, porque um fenômeno percebido poderia ser? Desta forma
a visão hegemônica que separa psique e soma mostra-se equivocada:

Me han objetado que nosotros, médicos internistas, hacemos


una separación demasiado rigurosa entre psique y soma. La
33

psique no estaría al lado del cuerpo como algo separado, sino


que penetraría todo el organismo. Esto es, ciertamente,
posible, incluso probable. Sin embargo, nos abstenemos de
toda especulación filosófica y nos atenemos a un principio
simple para diferenciar soma y psique: los fenómenos
psíquicos no pueden ser pesados ni medidos, sino solamente
pueden ser sentidos intuitivamente. [...] La tristeza no puede
ser medida, pero las lágrimas, formadas por la tristeza como
consecuencia de relaciones psicosomáticas, pueden ser
examinadas numericamente en diferentes direcciones.
(HEIDEGGER, 2013, p. 134 a 135).

O homem não existe separado de seu mundo, nem de seu contexto,


nem da sua psique ou livre de influências culturais. Esse ser a que chamamos
de humano segue existindo e reconquistando seu ser novamente a cada
instante, sendo impulsionado por muitos fatores mensuráveis e vários outros
não mensuráveis. Me parece algo tão complexo que uma visão reducionista
representacional soa quase inocente, e toda filosofia do romantismo serviu
para impulsionar os avanços científicos do séc. XX que botaram em cheque a
visão de mundo e de homem herdada pela tradição metafísica.
Teoria da relatividade, geometrias não euclidianas, física quântica,
nanobiologia, eletricidade e energia nuclear são apenas alguns exemplos das
descobertas do início do séc. XX que colocaram em crise quase terminal o
paradigma representacional, e Jung situado em meio a todas essas revoluções
se negou a cristalizar sua Psicologia como verdade indiscutível, fazendo
contatos com Einstein e Wolfgang Pauli, e desenvolvendo sua teoria da
sincronicidade alinhada de forma próxima aos fenômenos da relatividade geral
e a física quântica (principalmente o fenômeno do entrelaçamento quântico).
Ao vislumbrar Jung em sua torre numa vida quase rural às margens do
lago de Zurique é impossível não lembrar de Heidegger e Gadamer em sua
foto icônica cortando lenha, ou em Heidegger de bicicleta fugindo da guerra
com seus cadernos embaixo do braço. A conexão com a natureza é vista por
ambos como necessária e fundamental para a saúde humana, não por
coincidência outra grande crítica dos seminários diz respeito ao fato de a visão
representacional separar o homem de seu mundo, pois o ser humano é em
partes também produto de seu mundo:
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[...] el ser humano no puede ser separado de su mundo,


también esta afirmación está basada en la representación de
una composición de ser humano y mundo que no acierta com
el estado de cosas fenomenológico-existenciario.
(HEIDEGGER, 2013, p. 219)

Isso nos fornece boas pistas sobre porquê a visão de ciência da


psicanálise de Freud foi vista com maus olhos por Heidegger: tal modelo parte
de pressupostos orgânicos que condicionam a existência humana, reduzindo o
homem a uma máquina pulsativa respondedora de estímulos sensíveis.
Quando um paciente é analisado, o analista também faz parte da
realidade fenomenológica, causando influências mesmo que de forma não
intencional. Isso faz com que seja muito fácil persuadir um paciente e
“enquadrar” seus sintomas dentro de um sistema previsível e causalmente
explicável, tal qual faz a psicanálise. O problema de tal abordagem se dirige ao
fato de que se torna impossível compreender o indivíduo em questão dentro de
seu contexto, e a finalidade da terapia acaba por se tornar reprimir e
condicionar o paciente à imposições da cultura e moral, em detrimento de suas
vontades e de tudo aquilo que o torna humano e diferente de todos os outros
entes.

Lo decisivo es que los fenómenos respectivos que surgenen la


relación entre el analizando y el analista sean discutidos en su
pertenencia al paciente concreto en cuestión a partir de su
contenido fenomenal y no sean simplesmente subordinados a
un existenciario en forma general. (HEIDEGGER, 2013, p.
199).

Jung discorda totalmente da visão psicológica que visa reprimir e controlar


os sintomas dos pacientes. Seu modelo oferece ferramentas para compreender
profundamente a realidade psíquica de qualquer ser humano, e parte do
pressuposto de que os sintomas devem ser interpretados. Os sintomas são
manifestações espontâneas do inconsciente em questão, e a única forma de
compreender sua origem é interpretá-los, pois eles, tal qual os sonhos, servem
de termômetro da saúde da nossa psique. Ao amplificar e interpretar as
manifestações, se torna clara a origem do desequilíbrio velado por detrás dos
sintomas e se torna mais eficaz e fácil de tratar, resultando em curas
verdadeiras, não apenas em mero controle sintomático através da manipulação
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das reações biológicas.


Tais visões e posições da psicologia complexa colocam Jung, em minha
humilde opinião, dentro do hall dos grandes pensadores do séc. XX, pois abriu
espaço para o desenvolvimento de um novo paradigma dentro da Psicologia,
tal qual Heidegger fez na Filosofia, ampliando drasticamente a visão de homem
subentendida nas bases da ciência. Ele foi capaz de nos mostrar que a mente
não deve ser somente quantificada e mensurada como um projeto matemático,
mas sim interpretada e acessada conforme se desvela a nós dentro de uma
realidade fenomelógica, cabendo ao método interpretativo (hermenêutico) guiar
a pesquisa por esse projeto em constante devir, e contribuindo para o
desenvolvimento de uma Psicologia que enxerga e atua muito além das meras
representações.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho tem caráter unicamente especulativo-filosófico, e busca


desvelar alguns aspectos implícitos na obra de Jung através de ferramentas
filosóficas. Sua natureza o condiciona a comparar e relacionar informações de
fontes diretas em busca de pontos de convergência, e como resultado
mostramos de que forma a visão de homem implícita em Heidegger encontra-
se em harmonia com a visão homem implícita na psicologia complexa.
Parte deste comparativo só foi possível devido ao caráter metodólogico
em comum entre ambos pensadores: a fenomenologia. Em várias passagens
Jung qualifica seu trabalho como fenomenológico, considerando-se ele acima
de tudo um empírico, bem distante da filosofia especulativa com que tratamos
neste trabalho. Porém o sentindo de fenomenológico é menos orientado para o
lado de teorias filosóficas e mais orientado para o lado da análise empírica dos
fenômenos, começando pela prática e não pela teoria. Mas em algumas
passagens o mesmo comenta que apesar de seus métodos de pesquisa serem
estritamente empíricos, acredita que não há possibilidade de experiência sem
uma consideração reflexiva, herança romântica que se manifesta desde suas
primeiras obras, tornando sua ciência não escrava dos fatos empíricos, e sim
ampla e aberta para a especulação filosófica, desde que guiada por
comprovações empíricas.
Em várias situações Jung fala sobre sua dívida com Kant e os filósofos do
romantismo, que além do conceito de inconsciente também forneceram o
método hermenêutico de interpretação que era necessário para engendrar sua
psicologia empírica, mas assume que não se considera apto a correta
apliacação da Filosofia em sua forma pura, apenas como ferramenta de apoio
a seus métodos próprios, que como discutimos durante o trabalho, encontram-
se profundamente enraizados nas diversas filosofias.
No que diz respeito ao seu contato com as obras de Heidegger, em uma
carta de 1939 afirma que nunca foi influenciado direramente pelas obras dele
ou de outros pensadores da escola fenomenológica, e em outra carta dos anos
40 acusa Heidegger de produzir um modus philosophandi neurótico, baseado
em “excentricidades psíquicas” pois o mesmo encontra-se muito distante da
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prática terapêutica. Em outra carta vai mais longe ao afirmar que as ideias dele
são incompreensíveis e que a filosofia do séc. XX “merece algo melhor que
Heidegger como seu último representante”.
Não encontrei referências mais tardias a obra de Heidegger nos materiais
a que tive acesso de Jung, e levando em conta as mudanças pelas quais
passou seu pensamento após o período das cartas (1906 a 1945), acredito que
o mesmo mereceria uma revisita a partir das ópticas desenvolvidas pelas fases
mais maduras de sua filosofia, e alguns dos argumentos são as bases
fundamentais que formaram este trabalho, mostrando que mesmo verbalmente
se colocando contra as ideias iniciais de Heidegger (talvez influenciado pelas
errôneas posturas políticas na época dos comentários da cartas), do ponto de
vista epistemológico o pensamento maduro de Jung converge para uma visão
de homem ampla e que critica as mesmas matrizes científicas da metafísica
que o filósofo da floresta negra tomou como missão de vida destruir.
O desenvolvimento da técnica desconectou o homem de seus
arquétipos fundamentais, porém o inconsciente ainda necessita dessa conexão
para seu pleno desenvolvimento, fazendo com que tal perda acarrete em
neuroses coletivas culturais, baseadas em mitos artificiais criados pela
sociedade de consumo para manipular as massas em nome de seus
interesses, gerando assim uma sociedade superficial e dominada pelas coisas
produto que se tornam cada vez hegemônicas e distantes das coisas mesmas.
A obra de ambos abre amplos e novos caminhos para o desenvolvimento
do conhecimento, representando nova visão de ser humano e resultando em
uma necessidade de atualização das ciências que se encontram ainda
baseadas nos antigos paradigmas mecanicistas, que limitam a observação de
homem à algo que ele não é, cabendo a Heidegger a abertura de uma nova
compreensão antropológico-filosófica de homem e a Jung a comprovação
empírica de que tal visão não se encontra nada distante da nossa realidade
factual.
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REFERÊNCIAS

FIGUEIREDO, L. C. M. Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis:


Vozes, 2008.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo p.1 Tradução de Marcia de sá


Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005.

HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica in Ensaios e Conferências.


Tradução de Emmanuel Carneiro Leão e outros. Petrópolis: Vozes, 2002.

HEIDEGGER, Martin. Seminarios de Zollikon Tradução de Ángel Xolocotzi


Yáñes. Ciudad de México: Herder, 2013.

HEIDEGGER, Martin. A Coisa. In Ensaios e Conferências. Trad. Emannuel


Carneiro Leão; Gilvan Fogel; Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis:
Vozes/USF, 2002.

HOBSBAWM, Eric J. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio


de Janeiro: Forense - Universitária, 1983.

JUNG, Carl G. A Psicologia da Religião Ocidental e Oriental. Obras


Completas vol. XI. Petrópolis: Vozes, 1988.

JUNG, Carl G. Cartas: 1906-1945. Obras Completas, vol. I. Petrópolis:


Vozes, 2001.

JUNG, Carl G. O Homem e Seus Símbolos. Petrópolis: Vozes, 2008.

KANT, Immanuel. Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza. Lisboa:


Edições 70, 1990.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 1997.

KUHN, Thomas S. A Estrutura da Revoluções Científicas. São Paulo:


Perspectiva, 1991.

WOLFF, C. Einleitende Abhandlung über Philosophie im allgemeinen.


Stuttgart/Bad Cannstatt: Frommann- Holzboog, 2006.

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