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II SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DAS CIÊNCIAS DA LÍNGUAGENS NO MACIÇO DE BATURITÉ

DE 11 A 13 DE DEZEMBRO DE 2013 ISSN 2318-8391

Fato e Ficção na História e na Literatura:


Do Pacto Romanesco ao Hibridismo Literário

PINHO, Carlos Ronald Oliveira de (UNILAB)


opensar@hotmail.com

RESUMO
No âmbito da História e da Teoria da Literatura temos um campo vasto de possibilidades de estudo:
inúmeras vertentes teóricas que foram construídas por filósofos, cientistas sociais, teóricos da literatura, assim
como por outros pensadores das mais diversas áreas, problematizando
que estes conceitos e suas representações não são uniformes em sua propedêutica. Tendo em vista que a ciência
positivista separa os saberes em disciplinas, fragmentando-os e os sublevando, perde-se assim a possibilidade de
uma interligação entre eles. Para promover a conexão entre saberes, é objetivo deste trabalho uma reflexão mais
ponderada sobre obras literárias que se inserem em gêneros limítrofes, uma vez que mesclam as fronteiras entre
o pacto romanesco, o pacto ficcional e o pacto autobiográfico e possibilitam, dessa forma, uma discussão sobre

Carvalho; e Os papéis do inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, tendo como arcabouço teórico os debates do
Pensamento Complexo, através das proposições de Edgar Morin; da Nova História, por meio das reflexões de
Jacques Le Goff; da teoria autobiográfica de Philippe Lejeune; e dos Estudos de Memória. A partir de uma
concepção de ficção como construção (como derivação do fingere latino), procurar-se-á adotar uma perspectiva
interdisciplinar para caracterizar a resposta à hipótese-pergunta da pesquisa de Iniciação Científica intitulada

Câmara Cas

a concepções de história e literatura (e seus discursos)?


Palavras-chave: Fato; Ficção; Discurso Histórico; Hibridismo Literário.

ABSTRACT
In the History and Theory of Literature have a wide range of possibilities for study : numerous
theoretical perspectives that were built by philosophers , social , theoretical scientists of literature , as well as
other thinkers from various fields , problematize the concepts of "fact " and " fiction, " since these concepts and
their representations are not uniform in their workup . Considering that the positivist science separates
knowledge into disciplines , fragmenting it and fortify , so if you lose the possibility of a connection between
them . To promote the connection between knowledge , this study is aimed at a more considered reflection on
literary works that fall within neighboring genres , since merge the boundaries between the novelistic pact , the
fictional and the autobiographical pact pact and enable thus a discussion on the notions of "fact " and " fiction."
The analysis covers the study of literary works Nine Nights , Bernardo Carvalho , and papers of English , Ruy
Duarte de Carvalho , whose theoretical framework discussions Complex Thinking through the propositions of
Edgar Morin ; New History, by reflections of Jacques Le Goff ; autobiographical theory Philippe Lejeune , and
Memory Studies . From a conception of fiction as construction (as derivation from the Latin fingere ) , will seek
to adopt - an interdisciplinary perspective to characterize the response to the survey question - hypothesis of
Scientific Initiation titled "Facts , Fictions and complex thought : study the paths of memory in Bernardo
Carvalho , Luís da Cascudo and Ruy Duarte de Carvalho " , directed by Dr. Rodrigo Ordine : how are literarily
worked the terms "fact " and " fiction " in the works of the Brazilian and Angolan writers mentioned above in
relation to conceptions of history and literature ( and his speeches ) ?
Key words: Fact , Fiction , Historical Discourse , Literary Hybridity.

Uma das fundamentais discussões que permeou o século XX é baseada na

Ao desenvolver uma ideia sobre a realidade, devemos primeiramente nos remeter ao estudo e
compreensão das relações entre o objeto observado e o observador, visto que é a partir de um
conjunto de abstrações e racionalizações sobre o q
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discursos como o filosófico e o científico, constrói conhecimento sobre o mundo, a realidade


que aceita como tal. Nesse sentido, apresenta-se a constatação feita por Edgar Morin:

Dito de outro modo, fazemos recortes na realidade e é por isso que se diz que não
existe um fato puro, um fato sem teoria. Será que isso quer dizer que não existe fato
objetivo? Não! É preciso dizer que graças as idéias bizarras, graças às hipóteses,
graças aos pontos de vista teóricos é que, efetivamente, conseguimos selecionar e
determinar os fatos nos quais podemos trabalhar e fazer operações de verificação e
falsificação. E esta é outra ideia muito importante: o conhecimento não é uma coisa
pura, independente de seus instrumentos e não só de suas ferramentas materiais, mas
também de seus instrumentos mentais que são os conceitos; a teoria científica é uma
atividade organizadora da mente, que o implanta, também, o diálogo com o mundo
dos fenômenos. (MORIN, 2005, p. 43).

Estudos teóricos da corrente do Pensamento Complexo, em especial no nome de Edgar


Morin, reiteram debates concernentes à relação entre os conceitos de verdade/mentira;
inquietações que sempre estiveram presentes nas proposições de teorias ligadas ao
pensamento pós-estruturalista e pós-moderno do século XX. Partimos, neste trabalho, do
pressuposto de que todo o conhecimento é perpassado por duas linguagens, uma da esfera do
consciente e outra do inconsciente. Assim, postulamos que não somente a razão compõe a
estrutura do conhecimento, mas a imaginação, que no pensamento de Gaston Bachelard é
acessível como linguagem advinda do inconsciente em sua forma mais espontânea e
interpretada pelo consciente tornando-se causadora de múltiplas realidades. Em sua obra
Poética do espaço o pensador francês afirma: [...] quando se vive a espontaneidade de uma
imagem, a imagem não é preparada pelo pensamento. Esta não tem nada de comum com as
imagens que ilustram ou sustentam idéias científicas. (BACHELARD, 1974, p. 455). Dessa
forma, indagamos: o que entendemos como fato se apresenta tal como o fenômeno se mostra
ou é apenas o produto gerado por processos mentais daquele que observa? É por meio dessa
interrogação que nos deparamos com conceitos que perpassam discussões tanto no meio das
ciências empíricas quanto na prática artística e na especulação filosófica, isto é, as ideias de
verdade e mentira ou ainda, o embate entre fato e ficção. Seria a ciência detentora de uma
verdade, mesmo que numa acepção relativista? Sabemos que a arte, em sua essência
contestadora, ao tentar explicar essa pergunta, tem gerado produtos artísticos baseados em
discursos híbridos, muitos dos quais rompem os tradicionais limites entre os pactos histórico e
romanesco e, numa linha mais severa, entre o científico e o ficcional. O que é passível de
oposição, certamente, é que o que se produziu sob orientação de uma ciência positivista,
darwiniana e cartesiana em relação à defesa da verdade acabou por ser desconstruído nas
últimas décadas do século XX: se o século XIX primava por apresentar uma ciência baseada
em conceitos fixos e imutáveis (por mais lógicos que se apresentem os seus argumentos), a
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ciência dos últimos trinta anos tem se aberto para as possibilidades do imprevisível,
incompleto e/ou inacabado. Se ainda não podemos vê-la dessa forma de modo expandido pelo
globo, pelo menos essa é a proposição mais cara à teoria de Edgar Morin e de muitos outros
pensadores, como os historiadores provenientes da Escola dos Anais e da Sociologia do
Conhecimento, por exemplo.
Tradicionalmente a História sugere que, numa abordagem a um fato (acontecimento),
o historiador deve descrevê-lo objetivamente tal como ele se apresenta. Entretanto, a partir da
proposta da Nova História, particularmente através do pensamento de Jacques LeGoff (1990),
e do conceito de observador de segunda ordem, derivado dos estudos da Antropologia e da
Sociologia, compreende-se que a observância de um acontecimento não pode ser acessada
objetivamente, uma vez que, um observador de segunda ordem é justamente representativo do
processo no qual o indivíduo, ao observar o seu objeto de pesquisa, inevitavelmente, forja
uma dupla relação: primeiro, tem sua subjetividade afetada durante o fenômeno da observação
e, segundo, interage com o objeto, impondo em sua análise o seu background experiencial.
Nesse sentido, o discurso histórico que já se apresentou como isento, verdadeiro e imparcial,
vê-se transformado num discurso em que é possível considerar a existência de escolhas
subjetivas derivadas do olhar do analista.
Por outro lado, a literatura, entendida em sua vertente mais tradicional (em especial
sob os efeitos do Positivismo), ficou reconhecida particularmente como área das construções
ficcionais que detinham o status de inverdades ou, ao menos, como produtora de uma
realidade imaginária, pois a razão científica, ao reivindicar a legitimação de seu discurso,
excluía permanentemente as artes fantásticas e os sonhos, ao passo que o leitor era quase que
impelido a uma subordinação a uma literatura atrelada sobretudo ao entretenimento. Nas
últimas décadas, contudo, a própria literatura tem produzido uma série de produtos artísticos
em que se digladiam as noções de fato e ficção e nos quais se apresentam debates sobre os
discursos da ciência e da arte. Os limites que antes separavam criteriosamente os manuais de
história, as autobiografias e os romances começam a ruir já mesmo durante o ápice da
divulgação dos estudos pós-estruturalistas, em especial nas décadas de 1990 e na primeira do
século XXI. Nessas décadas, produziu-se um número considerável de obras que carregam em
si discursos híbridos, escritos que mesclam ora romance, ora história, fundindo e
reinterpretando os pactos histórico e romanesco. Na verdade, o que se aponta aqui é
justamente o poder de obras literárias de reinscrever a relação proposta entre narrador e leitor,
ou seja, os pactos se rompem justamente na tentativa de promover no leitor o senso (muitas
vezes incômodo) da incerteza: se antes, por exemplo, acreditava-se na veracidade dos relatos
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autobiográficos, a crítica contemporânea já defende a impossibilidade de um relato que

s, o
verbo fingo, fingere, que aponta para o caráter manufatureiro e construtor da ficção.
Na obra Os papéis do inglês, do angolano Ruy Duarte de Carvalho, encontramos um
percurso delineado pelo autor onde o leitor é constantemente levado a questionamentos
quanto ao formato da sua produção literária que para o senso comum seria apenas ficção;

parte do relato, constituindo não apenas o que corresponde a uma suposta realidade, mas
fazendo-se valer do imaginário dos personagens que compõem a obra, desta forma, a ficção
serve como condutor de experiências que abrigam aquilo que circunda o ser humano. Trechos
curtos de diário de campo elaborados tal como cartas revelam a busca do autor de si mesmo,
um reencontro provocado pelo conflito gerado entre a objetividade do que se põe como
fenômeno e a subjetividade da ficção que cria, recria e alimenta o seu discurso narrativo,
como podemos verificar nas seguintes passagens onde o narrador Henrique Galvão nos conta:
O que mais nos interessa, não é o que mais ou melhor diz, mas onde .
(CARVALHO, 2006, p. 93) e após isso Galvão conclui:
anos de perplexidade constante, transporta para onde vai as marcas do exercício pessoal da
, p.94). O romance em questão possui uma similitude
com os relatos etnográficos que consiste em descrever as experiências vividas onde o objeto
de pesquisa interfere e incomoda de forma contudente a psique da personagem de Henrique
Galvão, como aponta Regina da Costa e Tarouco em seu brilhante trabalho
:

o
intriga, personagens,

uguesa e da literatura africana


.

Concluímos portanto que em Os papéis do Inglês, encontramos uma escrita


marcadamente incorporada por diversas linguagens, misturando-se Literatura, Antropologia e
História, confirmando nossa tese do hibridismo na literatura..
Já em Nove Noites de Bernardo Carvalho encontramos uma narrativa também
híbrida, porém mais intensa no que concerne a discussão no que diz respeito ao que é fato e o
que é ficção, pois o autor ao explorar o possível suicídio do antropólogo Buell Quain que de
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fato veio ao Brasil, durante toda a obra sua


suposta relação com os indígenas Krahô e com a morte, enquanto que fornece pistas não
muito claras a respeito da vida e do suicídio do cientista em terras brasileiras junto aos índios,
nestes trechos identificamos o que ora afirmamos:

Diante da minha insistência sobre a vida pessoal de Quain, Castro Faria terminou
por admitir que de fato ouvira falar das excentricidades do jovem americano, mas
apenas para repetir que, até onde tinha podido ver, elas se resumiam ao fato de que
era um rico fazendo questão de não ser identificado como tal. Eu queria saber a todo
custo se Quain era casado.(CARVALHO, 2006, p.25).

E ainda:

E hoje, ao lembrar das palavras do Dr. Buell, só me vem á cabeça imagem do seu
corpo enforcado, cortado com gilete no pescoço e nos braços, coberto de sangue,
pendurado sobre uma poça de sangue, que foi como os índios o encontraram e o
descreveram ao chegarem à minha casa. Me lembro ainda de ele ter comentado,
perplexo, que os Trumai, apesar de estarem em vias de extinção, continuavam
fazendo abortos e matando recém nascidos.(CARVALHO, 2006, p.40).

A ação dos personagens em diversos momentos na narrativa de Nove Noites é


interpenetrada por uma realidade ficcional transfigurada, que ao provocar o surgimento de
múltiplas possibilidades dentro do enredo termina por impactar o leitor conduzindo-o a uma
espécie de conflito entre uma realidade factual calcada no fenômeno do suicídio da
personagem de Buell Quain. Em certo momento o narrador expõe uma de suas principais
querelas na narrativa, como observamos no seguinte excerto:

Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não
tem mais os sentidos que o trouxeram até aqui. (...) A verdade está perdida entre
todas as contradições e disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou,
é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser
exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a
única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido,
nem que seja pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá
escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. (CARVALHO,
2002, P.07)

Considerações finais

Diante do exposto concluímos que a ciência, a filosofia e as artes encontram-se


fragmentadas, o pensamento complexo proposto por Edgar Morin e outros teóricos
contemporâneos nos conduz a uma postura interdisciplinar e transdisciplinar com o objetivo
de religar saberes que devido às lacunas impostas pelos sujeitos reprodutores do
conhecimento, acabam por afastar o indivíduo de uma totalidade epistêmica interconectada
pelos saberes então separados. Quanto aos discursos de verdade/mentira e fato/ficção
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abordados brevemente neste trabalho através de discussões no âmbito da História e da


Literatura e no caso específico por meio de problematizações entre o rompimento dos limites
dos discursos empreendidos pelo pacto romanesco e o (auto) biográfico consideramos
importante salientar que os gêneros literários assumem outra configuração em face do
fenômeno intertextual, desta forma identificamos o hibridismo entre esses gêneros como
consequência da insustentabilidade de uma uniformidade fixa destes discursos. Nos romances
trabalhados na iniciação científica, Nove noites de Bernardo Carvalho e Os papéis do inglês
de Ruy Duarte de Carvalho, verificamos claramente essa hibridização de gêneros, ambos
corroboraram para a confirmação da hipótese da pesquisa da ficção como construção.

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antonio da Costa Leal e Lídia do


Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1974 (Coleção Os Pensadores).

CARVALHO, Bernardo. Nove Noites. Rio de Janeiro: Companhia das letras, 2013.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Os papéis do inglês: Companhia das letras, 2007.

MORIN, Edgar, Ciência com consciência, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.

SILVEIRA, Regina da Costa da. TAROUCO, Elisângela. Os papéis do Inglês e O vélo d'oiro:
diversidades do real. EDIPUCRS, 2014.

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