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*PARTES RETIRADAS DO

MATERIAL ORIGINAL DO
CLUBE DE LEITURA
Material de apoio (A)NORMAL, TURMA 2021:

Clube de Leitura
(A)
Leitura Dirigida Normal
Do mal-estar ao bem-estar
Por Maria Camila Moura
Por Maria Camila Moura
CRIME E CASTIGO
Fiódor Dostoiévski

CONTEXTO DA OBRA

A época do nascimento de Dostoiévski foi um período de várias mudanças


políticas e socioeconômicas na Rússia. Nesse período, o país era uma monarquia
autocrática, isto é, com um poder altamente centralizado na figura do Czar (termo
que tem origem na palavra latina "Ceasar", derivada do sobrenome do famoso
conquistador e ditador romano Júlio César e que, desde a Roma Antiga, já era
utilizada como sinônimo de "imperador"), poder esse que não era restringido pela
lei. Estabelecida por Pedro, o Grande, no século XVIII, e inspirada nas monarquias
absolutistas europeias, a monarquia russa exibia um grau de centralização bem
maior.

Não havia, por exemplo, em contraste com os países europeus, um primeiro-


ministro ou chanceler para coordenar os ministérios; essa função era exercida
pelo próprio Czar. Essa centralização foi reforçada após a tentativa de invasão da
Rússia por Napoleão Bonaparte e também após a Revolta Dezembrista
(dez/1825), na qual 3000 amotinados do exército se recusaram a jurar lealdade
ao czar Nicolau I. A monarquia autocrática russa passou a ser apresentada pelo
governo como uma característica nacional, marcada pelo amor do povo ao
imperador, à imagem dos governos absolutistas europeus de séculos anteriores.
O espírito dessa ideologia é bem representado por Nikolai Gógol (1809–1852),
que afirmou, em 1847, que “O povo vai ser plenamente curado apenas quando o
monarca apreender seu significado máximo — ser uma imagem, na Terra, Daquele
que é Ele próprio o amor”.

No ocidente, o papel da religião na política, na filosofia e na moral era


duramente atacado. Lembremos que, já em 1882, em A Gaia Ciência, Nietzsche
escreveu que “Deus está morto”, em referência à impossibilidade de se continuar
a ter Deus como guia para a existência.
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CRIME E CASTIGO
Fiódor Dostoiévski

CONTEXTO DA OBRA

Na Rússia, em contraste, a religião continuava forte. Ao contrário do que


ocorria na Europa, onde o catolicismo e o protestantismo eram as formas
dominantes de cristianismo, na Rússia predominava o Cristianismo Ortodoxo. A
Igreja Ortodoxa havia rompido com a Igreja Católica desde a queda de
Constantinopla, e tornou-se completamente independente da ortodoxia
europeia no final do século XVI, baseado na ideia de que Moscou seria uma
“terceira Roma”, sucessora de Constantinopla e da própria Roma. Uma mudança
importante, porém, ocorreu sob o reinado de Pedro, o Grande: a Igreja tornou-
se submetida ao controle do czar, que efetivamente apontava os bispos. Assim,
a Igreja funcionava como um mecanismo de legitimação da autoridade do czar.
Dessa maneira, entende-se que a ideologia de apoio à autocracia russa estava
intimamente ligada à ideologia cristã ortodoxa.

A extrema centralização do império começou a mudar com o czar Alexandre


II, que, apesar de manter o governo autocrático, permitiu alguma abertura, como
menor controle sobre a imprensa. Uma das reformas mais importantes foi a
abolição da servidão feudal, que caracterizava a sociedade e a economia russas
ainda na metade do século XIX. Ao contrário de nações como Inglaterra, Estados
Unidos ou Alemanha, a Rússia da metade do século XIX não vivia um período de
industrialização, mas mantinha uma economia basicamente agrária. Os servos
chegavam a constituir um terço da população russa. Assim, a economia e
sociedade russas eram, pelos padrões europeus, considerados “atrasados” no
século XIX.

A configuração da servidão russa, no século XIX, datava de 1649, quando foi


introduzido um sistema legal que dava aos proprietários de terra autoridade
completa não sobre o servo — que não era, tecnicamente, uma posse do seu
senhor —, mas sobre o seu trabalho.
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CONTEXTO DA OBRA

Entretanto, essa autoridade incluía, inclusive, o poder sobre o direito de ir e


vir dos servos: pela vontade do senhor, os servos podiam ser impedidos de se
mudar da propriedade onde trabalhavam. É verdade que não havia na Rússia do
século XIX escravidão, diferentemente do que ocorria nas Américas — o czar
Alexandre II, inclusive, considerava a escravidão nos Estados Unidos
“desumana”. No entanto, o alcance do poder do senhor de terra sobre o servo
russo era tal que as diferenças entre a servidão e a escravidão eram menos
óbvias do que poderiam parecer.

É nesse contexto que ocorre a participação de Dostoiévski no círculo de


Petrachévsky. O grupo era formado por intelectuais e organizado por Mikhail
Petrachévsky, um seguidor de Charles Fourier, pensador francês e importante
teórico do socialismo (não confundir com Joseph Fourier, o célebre matemático).
Fourier é considerado um dos fundadores do socialismo utópico, uma das muitas
posições socialistas desenvolvidas no século XIX. Apesar de atualmente o
Marxismo ser identificado como a mais importante posição socialista, nesse
período várias correntes — marxismo, anarquismo(s), socialismo utópico,
sionismo trabalhista, sindicalismo e social-democracia — estavam em
desenvolvimento e competiam nas nações europeias ocidentais e orientais, e
inclusive nos Estados Unidos, baluarte da democracia capitalista. Apesar de ser
considerado por representantes de outros movimentos socialistas como ingênuo
ou utópico (daí o nome), é importante perceber a influência e o caráter
progressista desse movimento no século XIX. Fourier, aliás, é considerado o
cunhador do termo feminismo.

Entretanto, apesar da ideologia do seu fundador, o círculo de Petrachévsky unia


indivíduos de várias ideologias, e o próprio Dostoiévski não seria considerado
um progressista pelos padrões do grupo.
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Fiódor Dostoiévski

CONTEXTO DA OBRA

O círculo tinha como alvos comuns a servidão e autocracia czarista, e foi um


dos muitos grupos que organizavam as revoltas que colocaram o czar em alerta
na primeira metade do século. Entretanto, o grupo foi eventualmente
descoberto, e seus membros presos e sentenciados à morte (com posterior
mudança da sentença, como vimos no caso de Dostoiévski). A mudança no
sistema de servidão ocorreria apenas em 1861, desencadeada pela derrota da
Rússia na guerra da Criméia, em 1854. O império desmoralizado e o povo
insatisfeito motivaram o czar Alexandre II a empreender reformas com o objetivo
de manter a unidade do império e a fidelidade do povo. O czar buscava, assim,
manter o “amor do povo pelo soberano”, visando evitar revoltas populares, como
as que vinham acontecendo desde a subida de Nicolau I ao trono.

Nesse cenário, como podemos caracterizar a visão de Dostoiévski em relação


ao que se desenrolava no seu país? A despeito de sua oposição à servidão, do
apoio a certas reformas e da admiração pelo espírito dos revolucionários,
Dostoiévski se considerava um eslavófilo: alguém que crê na devoção popular ao
czar, o que, em tese, tornaria desnecessária a repressão por parte do governo
(pois o povo se submeteria de bom grado ao governo autocrático). Ele criticava a
possibilidade de uma monarquia constitucional, aos moldes do que ocorria na
Europa Ocidental, na Rússia. Essa posição se intensificou após a sua primeira
viagem para a Europa, em 1862, na qual ele teve uma impressão bastante
negativa do ocidente, relata em Notas de Inverno sobre Impressões de Verão. Ele
identificava o regime czarista russo com o Cristianismo Ortodoxo e considerava
os seus opositores como inimigos da Cristandade. Assim, ele também era cético
em relação a ideias socialistas e democráticas. Na realidade, com o passar dos
anos, Dostoievsky se tornou progressivamente mais conservador, de maneira
que seu apoio à monarquia russa e à Igreja Ortodoxa se tornou mais e mais
intenso com o tempo.
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Dado o pensamento eslavófilo e cristão ortodoxo de Dostoiévski, não é


surpresa que ele tenha sido extremamente crítico das ideias ocidentais. Na
metade do século XIX, o pensamento e a sociedade europeus passavam por
importantes mudanças. No plano econômico, temos uma economia que,
começando com a revolução industrial no século XVIII, torna-se cada vez mais
industrializada e urbana. Politicamente, temos a formação de estados nacionais
regidos por uma constituição que limitava os poderes dos reis ou imperadores, e
ideias democráticas começando a se espalhar por influência dos Estados Unidos.
Ideias socialistas, liberais e revolucionárias se disseminavam. Foi nessa época, por
exemplo, que Karl Marx escreveu A Ideologia Alemã (1845) e o Manifesto do
Partido Comunista (1848), obras essenciais do socialismo, que seriam seguidas
por O Capital, no final do século; e John Stuart Mill escreveu Sobre a Liberdade
(1859), umas das mais importantes obras do liberalismo. Todas essas ideias,
obviamente, conflitavam fortemente com a crença no czarismo.

Filosófica e cientificamente, há uma série de críticas à religião, e o surgimento


da ideia do “homem racional”. Essa ideia consistia na concepção do homem como
sendo fundamentalmente orientado para os próprios interesses, de maneira
racional. Os proponentes dessa visão argumentavam que, se o indivíduo parece
se comportar de maneira irracional, ou contrária aos próprios interesses, isso não
indica que ele não seja racional, mas apenas que ele não possui todas as
informações possíveis para fazer escolhas racionais. Dado o conhecimento
apropriado, o homem poderia, racionalmente, tomar decisões de forma a
maximizar os próprios interesses. Crucialmente, dado que esse seria um
procedimento racional, ele poderia ser apreendido pela ciência. Assim, a razão
poderia desbravar até mesmo as preferências do homem, consideradas uma lei
da natureza como as leis físicas, apontava para uma possibilidade de progresso,
com a construção de uma sociedade cada vez mais guiada racionalmente.
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Fiódor Dostoiévski

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A atitude de Dostoiévski em relação ao Ocidente e a tais ideias é bem


representada na figura do Palácio de Cristal. Projetado por Joseph Paxton, o
edifício foi construído em 1851 no Hyde Park, em Londres, para abrigar a “A
Grande Exposição dos Trabalhos da Indústria de Todas as Nações”, um evento
cultural em que produtos industriais de vários países eram expostos em feiras. O
palácio, assim como a exposição, tornou-se símbolo da modernidade e do papel
da Inglaterra como maior potência mundial.

Na Rússia, o palácio se tornou símbolo de ideias socialistas que inspiravam


uma nova forma de organização social, baseada em princípios racionais, na
emancipação feminina e de toda a sociedade. Essas ideias foram expressas pelo
escritor russo Nikolai Tchernychévsky, no seu romance Que Fazer?, que retrata
um palácio claramente inspirado no Palácio de Cristal. Esse palácio, assim como o
escritor, é severamente criticado e ironizado pelo homem do subsolo,
demonstrando a visão de Dostoiévski acerca das ideias progressistas ocidentais:
uma ilusão perniciosa, uma ideia estrangeira que não era coerente com a
realidade e o espírito russos.

Portanto, o contexto histórico em que Dostoévski estava imerso era de


profunda transformação na Rússia, que, até então, mantinha, há muitos séculos,
uma estrutura social e de poder praticamente inalterada. A forte influência
ocidental, a crença no progresso, na ciência, iriam gerar intelectuais dissidentes
do tradicionalismo russo: eram os chamados "ocidentalistas". Essa cisão, o
conflito entre "eslavófilos" (como Doistoévski) e "ocidentalistas" (como
Tchernychévsky), gerou grandes tensões e alterou completamente o cenário
social na Rússia do Século XIX. Os conflitos de valores iriam marcar
profundamente Dostoiévski, dando a tônica psicológica de muitos de suas
personagens, inclusive do protagonista de Crime e Castigo, Raskólnikov.

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