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DESVENDANDO A ASTRÉA

Kennyo Ismail, 33°

A Astréa é a revista de estudos maçônicos


publicada pelo Supremo Conselho do Grau 33 do
Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria para a
República Federativa do Brasil (SC33, com sede
em Jacarepaguá, Rio de Janeiro). Criada por
Mário Behring e publicada desde janeiro de 1927,
é a revista maçônica mais antiga ainda em
publicação no Brasil, além de ser a de maior
tiragem e circulação no país. O nome, Astréa, é
da deusa da justiça da mitologia grega, tão
ilustrada como uma virgem vendada, segurando
uma balança.

A primeira edição (Ano 1, Número 1), de


janeiro de 1927, não justifica a escolha do nome.
Contudo, seu editorial justifica seu lançamento
pelo fato:
Figura 1. Capa da 1ª edição da Astréa (SC33)

De há muito fazia-se sentir no meio maçônico brasileiro a necessidade de


uma revista consagrada, pura e exclusivamente, aos estudos da maçonaria.
Da falta de uma publicação desse gênero e de livros que possam guiar os
nossos IIr.´. em sua carreira dentro da Ord.´., decorre o mal de que todos
nos queixamos, com justa razão, a profunda ignorância das coisas
maçônicas, de que têm resultado não pequenos danos ao desenvolvimento
da Sub.´. Inst.´. em nosso país.
Sendo a Maç.´. como é, de fato, uma escola, o Ap.´., ao penetrar pela
primeira vez em nossos templos, não deve ser abandonado às próprias
inspiração que, às mais das vezes, o conduzirão por errada trilha (...).
Artigos doutrinários, artigos de propaganda, matéria exclusivamente
maçônica, notas sobre a Ord.´. em geral, sobre as Off.´. espalhadas pelo
território pátrio, tudo isso terá guarida nas páginas de Astréa, que recusará
apenas artigos de polêmica e de caráter pessoal que tanto desprestigiam a
1
imprensa maçônica em nosso país (GRIFOS NOSSOS).

Essa edição inaugural ainda traz artigos interessantes, como diferentes definições do
que é a Maçonaria, uma análise da lei moral segundo Confúcio, as origens do REAA, e o
primeiro congresso internacional de Supremos Conselhos. Na parte oficial da publicação, tem-
se, dentre outros decretos e extratos:

 a publicação do aditivo ao tratado entre o SC33 e o GOB, de 13 de outubro de 1926,


solicitado pelo GOB para tratar da divisão das despesas do Palácio do Lavradio;

1
 o decreto do dia 22 de outubro de 1926, que cassa as Cartas Constitutivas das Lojas
Simbólicas, emitidas pelo SC33, as quais seriam substituídas por novas, exclusivas do
GOB, enquanto determina que os graus 4 em diante serão concedidos em Altos Corpos
subordinados ao SC33 e não mais pelas "lojas capitulares";
 extrato da ata da assembleia do SC33, de 16 de novembro de 1926, presidida por
Mário Behring, em que ele investe quatro Irmãos no 33° grau, dentre eles Octávio
Kelly.

Entretanto, a escolha do nome, Astréa, permaneceu sem explicações, já que essa deusa
grega, ao contrário de Atena, Héracles e Afrodite, não é mencionada em rituais e literatura
maçônica. Contudo, o que pode-se afirmar, é que existiu, 100 anos antes, um periódico Astréa
no Brasil, e que Mário Behring sabia disso!

O Astréa original teve seu primeiro número publicado em 17 de junho de 1826 e


circulou até, pelo menos, agosto de 1832, somando mais de oitocentas edições.2 Dedicava-se a
notícias políticas, em especial da Câmara dos Deputados, e era um dos jornais mais antigos,
com grande quantidade de edições e muito bem preservadas, dentre todos os periódicos
catalogados na Biblioteca Nacional, da qual Mário Behring era diretor geral.

Além disso, o Astréa original cobria o tema e o período relacionados à abdicação de


Dom Pedro II e o retorno de Montezuma, pai do SC33, ao Brasil, tendo, provavelmente,
servido de fonte de pesquisa a Mário Behring sobre o primeiro Soberano Grande Comendador,
de quem ele era o legítimo sucessor.

Figura 2. Cabeçalho da Astréa, em 1826. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional

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Figura 3. Cabeçalho da Astréa, em 1832. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional

2
Para se ter uma ideia da importância que teve o jornal profano Astréa naquele período,
de 1826 a 1832, Dom Pedro I era um de seus leitores fieis, e vez ou outra enviava cartas à
redação. Ainda, era um dos poucos jornais brasileiros que possuía tipografia própria, a qual
ficava na Rua da Alfândega, número 426, onde hoje está localizado o Real Gabinete Português
de Leitura.

No entanto, para entender a escolha de Behring por este nome, Astréa, dentre tantas
outras opções, faz-se necessário conhecer um pouco mais de sua vida profana: Mário Behring
ra engenheiro agrônomo, jornalista e historiador. Ingressou na Biblioteca Nacional como
amanuense (espécie de escrevente), por concurso público no qual passou em primeiro lugar, e
lá fez carreira.4 Foi professor do curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional, entre 1917 e
1921. Assumiu como Diretor Geral da mesma, em 27 de fevereiro de 1924, permanecendo no
posto até 17 de novembro de 1932, quando pediu exoneração para tratar da saúde, alguns
meses antes de seu falecimento, em 14 de junho de 1933, aos 57 anos de idade.5

Nos dois primeiros anos de sua gestão à frente da Biblioteca Nacional (1924-1926),
Behring cedia o edifício da BN para as reuniões da Câmara dos Deputados, cujo Palácio
Tiradentes ainda estava em obras. E o jornal Astréa (o profano, de 1826 a 1832) era uma
importante fonte de informação sobre o período inicial daquela casa legislativa. Diferente de
seu homônimo maçônico, em seu número inaugural, o Astréa "profano" (1826) justifica o uso
do nome mitológico:

Astréa = Cega, e sem atavios, desprezada dos ignorantes e dos impostores,


que inundam o mundo (...)
A verdade, minha muralha, minhas baterias, é eterna: pode ser obscurecida
pelas névoas do Erro e da Ignorância; mas é para como um novo sol,
aparecer mais luminosa. (...)
Estou bem longe de prevenir-me em favor da efetividade de tão apurada
perfeição, sabendo que o orgulho da ignorância, a pertinácia do erro e o
delírio das paixões estão sempre em contínua oposição com a felicidade do
Homem; mas nem por isso, a perfeição deve ser menos o alvo, à que se
dirijam as nossas ações. Não podendo tocá-la por muito subida,
trabalhemos por aproximar-nos dela, quanto nossas forças o permitem.
Por estas reflexões produz-me concorrer com o meu débil trabalho para a
grande obra do bem comum, publicando a Astréa. Todas as ideias, que
6
neste periódico se hão de expender, serão subordinadas ao seu título.

Essa simbologia presente no editorial da primeira edição da Astréa profana, das vendas
(cegueira), da busca da verdade, do combate à ignorância, de colaborar com a felicidade da
humanidade e, principalmente, de subordinar o conteúdo da publicação a esse ideal,
coadunam com a filosofia maçônica que a Astréa de Behring tão bem difundiu.

Ainda em sua gestão como Diretor Geral da Biblioteca Nacional, Mário Behring idealizou
e lançou a série "Documentos Históricos", que contou com 19 volumes sob sua
responsabilidade. Essa série dava acesso aos documentos oficiais do período régio Portugal-
Brasil, sendo manuscritos que, a partir de então publicados, serviram de base para estudos e
pesquisas dos principais historiadores do século XX.

3
Como jornalista, escreveu por anos no famoso
Jornal do Comércio, além do Imparcial e da revista
Kosmos, da qual foi um dos fundadores. Quando de seu
falecimento, a revista CINEARTE declarou que "o Cinema
no Brasil perdeu a sua maior figura. Dr. Mario Behring era
uma figura de extraordinária expressão na
intelectualidade brasileira".7 A homenagem póstuma,
que ocupou a primeira página de conteúdo da edição de
julho de 1933 da revista, apresenta aquela que talvez seja
a última foto de Behring antes de sua passagem ao
Oriente Eterno, em que se pode vê-lo mais velho e sem o
bigode característico das imagens utilizadas no meio
maçônico.
Figura 4. Mário Behring. (CINEARTE, 1933)
Infelizmente, ao contrário de todos os registros e publicações que se tem na imprensa,
alguns autores maçônicos tendenciosos esforçaram-se muito na tentativa de macular o bom
nome de Mário Behring, apontado por esses como portador dos piores defeitos possíveis na
espécie humana, por sua iniciativa de promoção do sistema das Grandes Lojas brasileiras. E o
mesmo foi feito posteriormente contra Athos Vieira de Andrade, pai da COMAB.

José Castellani e William de Carvalho, por exemplo, ousaram chamar Behring de


medíocre; acusá-lo de fraudar eleições do GOB e de subtrair documentos; e sugeriram que ele
foi "insinuante" para subir na carreira, já que entrou na Biblioteca Nacional como amanuense e
tornou-se Diretor Geral.8 É de se observar que, além de ter sido aprovado em primeiro lugar
no concurso, Behring demorou mais de 20 anos até tornar-se Diretor Geral, tendo passado por
todas as etapas da carreira: oficial, sub-bibliotecário, bibliotecário, chefe de seção, diretor, até
tornar-se Diretor Geral. Em todas as etapas, foi promovido por desempenho pelo conselho
superior competente. Em seu auge profissional, ele era conhecido e admirado por dirigentes
de grandes bibliotecas e universidades da Europa, assim como pelos diretores dos maiores
estúdios de Hollywood. Recebia frequentemente propostas de emprego no exterior e recusava
todas por puro amor pátrio e senso de dever.

O mesmo Castellani usou, em outra obra, idêntica estratégia contra Athos Vieira de
Andrade, pai da COMAB, acusando-o de ser comunista, por ter escrito um livro intitulado
"Cuba, estopim do Mundo".9 Aos incautos, basta ler a primeira página do livro para verificar
que se trata de um crítica ao então regime Castrista, e não um elogio. Athos inclusive opinou
em seu livro que "o comunismo é, indiscutivelmente, uma ameaça à paz mundial".10

Vê-se que, para autores como esses, a verdade é secundária e a escrita gira em torno da
velha falácia do Argumentum ad hominem.11 Esses autores "maçônicos" não tiveram o mesmo
cuidado de Behring, quando da criação da Astréa, ao observar que a literatura maçônica, assim
como essa deusa grega, precisa ser justa, imparcial, cega para as questões e opiniões pessoais,
dedicada exclusivamente a retirar os irmãos da ignorância acerca da própria Maçonaria.

Assim, ao desvendarmos os nossos próprios olhos, podemos ver que, mesmo passado
95 anos da escolha, realmente não havia melhor nome para a revista do que ASTRÉA.

4
Obrigado, Behring.

NOTAS:
1
BEHRING, M. Editorial. ASTRÉA: Revista de Estudos Maçônicos. Ano 1, N. 1, Janeiro de 1927, p. 1-2.
2
Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/astrea/749700
3
ASTRÉA, Ano 07, Número 832, 18 de agosto de 1832, p. 1.
4
Anais da Biblioteca Nacional, Ano 1903, Edição 025, p. 315.
5
CONDÉ, Elísio (org.). Sesquicentenário 1810-1960 - Guia da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 1960.
6
ASTRÉA, Ano 01, Número 01, 17 de Junho de 1826, p. 1-2.
7
CINEARTE, Rio de Janeiro, Ano 8, n. 370, p. 5, 01 jul. 1933
8
CASTELLANI, J.; DE CARVALHO, W. A. História do Grande Oriente do Brasil: A Maçonaria na História do
Brasil. São Paulo: Madras, 2009.
9
CASTELLANI, J. A Cadeia Partida. Londrina: Editora Maçônica A Trolha, 1994.
10
DE ANDRADE, A. V. Cuba, estopim do Mundo. Belo Horizonte: publicado pelo autor, p. 238.
11
Argumento contra a pessoa: quando se contraria um argumento atacando o autor e não o conteúdo.

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