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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
HISTORIOGRAFIA
RECIFE - PE
NOVEMBRO DE 2019
Sumário
Introdução..................................................................................................................................3
2.1. Enredo.............................................................................................................................6
Considerações finais................................................................................................................21
Referências Bibliográficas......................................................................................................22
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Introdução
1984 é, antes de tudo, uma crítica a todo e qualquer regime totalitarista, sem se ater a
necessariamente somente ao comunismo russo, ao fascismo italiano ou ao nazismo alemão.
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Orwell busca mostrar que qualquer sociedade ou cultura é passível a sofrer com o
totalitarismo, motivo pelo qual escolhe ambientar o romance na Inglaterra. Apesar de ser uma
distopia, a obra não retrata um futuro muito distante da realidade. À época que foi escrito, o
totalitarismo já mostrara suas garras e era um medo extremamente palpável. Não era muito
difícil para uma pessoa da época imaginar que dali a algumas décadas ela poderia estar
vivendo num regime similar ao do romance orwelliano. Assim, é interessante e válido analisar
1984 também como uma obra de caráter social e histórico, levando em conta as
particularidades do gênero distópico.
Além da crítica ao totalitarismo, Orwell também aborda alguns temas coincidentes aos
interesses e questionamentos da historiografia: criação, armazenamento, e manuseio de
documentação e fontes, a memória como instrumento e fonte histórica, a natureza da
“verdade” e da “realidade” dentro da história, passado, presente e futuro, além de questões
linguísticas convergentes com a História.
A partir disso, define-se o objetivo deste trabalho: analisar o caráter social e histórico
do livro 1984, levantando também discussões e reflexões nos campos da literatura, linguística
e, principalmente, da historiografia. Assim, o texto se dará de tal forma: num primeiro
momento, expor a vida de Eric Arthur Blair e então todo o contexto que envolve a obra
literária, comentando suas especificidades de estrutura e narrativa; em seguida, analisar e
comparar a temática com as discussões vigentes no meio da historiografia; por fim, discutir a
novafala como exemplo de aspectos do uso das línguas como instrumento histórico e de
coerção social.
Eric Arthur Blair nasce em 25 de julho de 1903, na cidade de Motihari, na então Índia
Britânica, onde seu pai Richard Walmesley Blair trabalhava como servidor do Império. Em
1904, sua mãe Ida Mabel Limouzin-Blair leva Eric e sua irmã Marjorie para morar em
Shiplake, vilarejo na Inglaterra, não muito distante de Londres.
Seus pais almejavam proporcionar uma educação de qualidade para Eric, porém não
tinham condições de pagar todas as taxas de uma escola privada de alta classe. Graças a
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contatos de seu tio Charles Limouzin, Eric conseguiu uma bolsa de estudo na Escola de São
Cipriano, em Eastbourne. Eric odiava a escola e suas memórias o inspiraram a escrever o
ensaio Such, Such Were the Joys, publicado postumamente. Na época, escreveu dois poemas
que foram publicados no jornal local Henley and South Oxfordshire Standard, o que o levou a
receber bolsas de estudo no Wellington College e no Eton College. Ficou em Eton de 1917 a
1921, onde teve aulas de francês ministradas por Aldous Huxley, escritor do romance
distópico Admirável Mundo Novo. Por ser bolsista, Eric recebia um tratamento mais rígido
do que aqueles alunos que podiam pagar integralmente pela educação. Assim, ainda na
juventude, já começa a viver e perceber as desigualdades presentes na sociedade. Lá, Eric
aparentemente negligenciou os estudos, como indicam seus boletins. Devido às notas baixas,
não conseguiu bolsa para nenhuma universidade.
Sem o dinheiro para pagar uma universidade, decidiu entrar para a Polícia Imperial
Indiana, após passar em um exame. Assim, em 1922 se muda para a Birmânia e assume seu
posto na Polícia Imperial. Atuou como oficial subdivisional e como assistente de
superintendente distrital. Sua experiência em cerca de 5 anos como policial o expôs a diversas
injustiças e atos violentos praticados pelo Império Britânico e a partir daí começou a
desenvolver seu anti-imperialismo, característica importante de suas obras. Esse momento
inspirou o romance Burmese Days (1934) e os ensaios A Hanging (1931) e Shooting an
Elephant (1936). Em 1927, após um período de despensa por doença, se demite da Polícia e
decide se tornar escritor.
No mesmo ano volta para a Inglaterra e, após visitar a família e antigos amigos e
colegas, vai morar em Londres. Logo nos primeiros dias, começou a fazer “expedições
exploratórias” pelas periferias da cidade e passou a se comportar e se vestir no “estilo” das
ruas. Em 1928, se mudou para Paris, seguindo o mesmo modo de vida. Em certo momento,
teve todo seu dinheiro roubado na casa de hospedagem onde estava abrigado. Tanto por
necessidade quanto para coletar material para suas escritas, começou a realizar trabalhos
“inferiores”, como lavador de pratos num hotel de luxo. Foi nesta mesma época que começou
a obter sucesso como jornalista. Publicou artigos no Monde, G. K.’s Weekly e Le Progres
Civique. Também publicou seu primeiro ensaio, The Spike. Todas suas experiências vivendo
perto das classes mais baixas da sociedade (mendigos, prostitutas, desempregados) foram o
motor criativo que o levou a escrever seu primeiro romance, Down and Out in Paris and
London, publicado em 1933 já sob o pseudônimo de George Orwell.
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Em 1936, cada vez mais engajado politicamente, vai participar da guerra civil
espanhola, em Barcelona. Juntou-se ao Partido Operário de Unificação Marxista, grupo
resultante de uma cisão dentro do Partido Comunista Espanhol. Tal divisão se deu pela total
submissão do PCE diante do Partido Comunista Russo. Os membros do POUM se viam
aliados às críticas de Trotsky ao regime stalinista, o qual era extremamente autoritário. Assim,
ao unir-se ao POUM, Orwell assume ideais próximos ao socialismo democrático, com forte
caráter antistalinista, antitotalitário e antifascista. Participou de conflitos armados ao lado de
anarquistas, trotskistas e da esquerda antistalinista, contra o próprio PCR. Sofreu perseguição
da pela KGB e em uma ocasião de conflito em trincheira, levou um tiro no pescoço, que
acabou danificando suas cordas vocais. Em 1938, Orwell publica Homage to Catalonia,
romance que descreve essas experiências na guerra civil espanhola. Este foi, de fato, um dos
períodos mais marcantes de sua vida. Suas experiências o acompanhariam durante o resto de
sua vida, influenciando praticamente tudo que escreveu a partir de 1936. O que Orwell
descreve em 1984 parte de sua vivência. Orwell esteve de frente com as piores coisas que o
totalitarismo proporciona, ele o conheceu de perto. Em 1945, publica o romance Animal
Farm, uma crítica em forma de sátira ao regime stalinista. Assim como 1984¸ foi um livro
extremamente polêmico e importante, figurando entre os clássicos da literatura inglesa.
Eric fora casado duas vezes, primeiro com Eileen O’Shaughnessy, de 1935 até sua
morte em 1945. Adotou junto com Eileen, em 1944, uma criança órfã, Richard Horatio Blair e
foi um pai amável Em 1949 casou-se novamente, com Sonia Brownell, alguns meses antes de
morrer. Em 21 de janeiro de 1950, em Londres, Eric Arthur Blair morre, aos 46 anos, devido
a um quadro de tuberculose. Eric acabou deixando como herança para este mundo suas
magnificas obras. No total, foram nove romances, entre seis fictícios e três documentários
narrativos, além de uma série de outros escritos, entre ensaios, artigos e poemas. George
Orwell entrou para a história como um dos maiores escritores da literatura moderna, tendo um
grande impacto na cultura popular e política ocidental.
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semelhanças que mantém com a realidade; (4) a análise da importância da literatura distópica
na compreensão da história e da modernidade.
1984 segue a perspectiva de Winston, numa narrativa em terceira pessoa, diante da sua
realidade nem um pouco agradável ou feliz. Oceania, Faixa Aérea Um, Londres, 1984. Assim
situa-se o protagonista da obra, no espaço e no tempo. A realidade social em que vive, é a
seguinte: no mundo existem apenas três superestados, Oceania, Eurásia e Lestásia. A guerra é
constante, movida pela disputa pelos poucos territórios não ocupados por nenhum dos três.
Mas o Partido ainda vai além, apenas o controle sobre o corpo humano, sobre as ações
físicas, não é o suficiente. O Partido visa obter controle total sobre a mente humana, sobre o
pensamento. Primeiramente, todo pensamento contrário ao governo é considerado um
pensamento-crime e, se descoberto, leva à morte. Como principal meio de controle de
pensamento, o Partido utiliza uma ferramenta linguística, a Novafala. Novafala é a língua
oficial construída pelo Partido, ainda em desenvolvimento durante a trama do livro. A língua
consiste em, basicamente, reduzir o vocabulário do inglês, conhecido como Velhafala. O
Partido começa a cortar todos os conceitos que julga desnecessários, principalmente aqueles
que vão contra as suas ideologias. Dessa forma, com a evolução – a involução, na verdade – e
a implementação da língua, chegará o momento em que será literalmente impossível ter
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qualquer pensamento contrário ao sistema. Então, o Partido terá atingido seu propósito: o
poder.
Outro instrumento de manutenção do poder pelo Partido, são os ministérios. Esses são
quatro: o Ministério da Verdade (Miniver), responsável pelo controle de todo tipo de
documento, além de produzir todo material cultural e educacional e as notícias; o Ministério
da Paz (Minipaz), responsável pela guerra; o Ministério da Pujança (Minipuja), responsável
pela economia e distribuição de mantimentos; e o Ministério do Amor (Miniamor),
responsável pelo controle da população e da ordem.
Logo no primeiro capítulo, Winston resolve começar a escrever um diário, ato que por
si só já podia leva-lo à morte ou à prisão. Começa relatando sua noite anterior, no cinema. Em
certo momento, vem à sua memória o último Dois Minutos de Ódio do qual havia participado.
Reviveu uma gama de sentimentos conflitantes entre amor e ódio ao Partido. Até que se dá
conta que, durante seus devaneios, havia escrito no diário, repetidamente, a frase “ABAIXO
O GRANDE IRMÃO”. Só o fato dele pensar em começar a escrever um diário, já era
pensamento-crime, porém esse fora o estopim. Winston já era um homem morto, e a partir
dali só lhe restava abraçar a sua revolta.
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As consequências de toda ação estão contidas na própria ação. Escreveu: O
pensamento-crime não acarreta a morte: o pensamento-crime. É a morte.”
(1984, p. 40)
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fosse, estivesse do lado dele? E como saber se o domínio do Partido não seria
para sempre?” (1984, p.38)
“Winston [...] parecia não ter se dado conta de quão magro e fraco
estava. Um único pensamento percorria sua cabeça: que permanecera naquele
lugar por mais tempo que pensara. De repente, [...] um sentimento de pena
pelo estado de seu corpo se apossou de sua mente. Antes de perceber o que
estava fazendo, despencou sobre uma banqueta ao lado da cama, em
lágrimas. Tinha consciência de sua feiura e falta de graça: um feixe de ossos,
envolto em roupas imundas, sentado e chorando sob a luz branca e dura. Mas
não conseguia parar.” (1984, p. 318)
A narrativa segue, em sua maior parte, uma cronologia linear, voltando em alguns
momentos a lembranças de Winston, seja de um passado recente ou de um distante, através de
suas turvas memórias. Assim, seus capítulos se ligam dentro da perspectiva de Winston.
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trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a
esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a
sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-
se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para
compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.”
O conceito tem uma presença importante na trama, tendo um uso bastante recorrente.
Aparece mais notavelmente num dos slogans do Partido: “Guerra é Paz. Liberdade é
Escravidão. Ignorância é Força.” Percebemos aqui então o uso de antonímias para a
construção do duplipensamento. Palavras contrárias umas às outras, antônimas, são
consideradas duas formas de se falar a mesma coisa. Logo, a relação também é reversível.
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1.1 Críticas sociais e semelhanças históricas
Orwell escreveu boa parte de 1984 entre os anos de 1947 e 1948, quando morava na
ilha de Jura, na Escócia. Podemos contextualizar rapidamente a época num período pós
Segunda Guerra e de início da Guerra Fria. A comunidade internacional havia acabado de
testemunhar a queda de dois regimes totalitários: a Alemanha nazista de Adolf Hitler e a Itália
fascista de Benito Mussolini. Além disso, a União Soviética ainda se encontrava sob comando
de Josef Stalin. Durante quase todo o século XX, o totalitarismo foi uma força esmagadora,
um medo real, e Orwell incorporou isso em sua obra.
Como já exposto aqui, devido às suas vivências, Eric Blair adotou um pensamento
social democrata, indo de encontro a qualquer regime totalitário. Durante sua participação na
Guerra Civil Espanhola tornou-se então um opositor ferrenho ao regime stalinista. Apesar de
ser uma crítica ao totalitarismo em geral, em 1984 Orwell expõe seu antistalinismo de forma
clara. As semelhanças entre elementos do romance e personagens e eventos históricos são
diversas.
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como “impessoa”, indicando que tal pessoa na verdade nunca existiu. Apaga-se assim todos
seus feitos revoltosos e a possibilidade de que inspirem outros atos no futuro.
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seguindo os ideais da Comintern, atingiria o resto do mundo, resultando numa língua única
mundial. De modo semelhante, em 1984 temos a novafala, fruto da busca do Partido por uma
língua que impeça o pensamento contrário aos seus ideais.
Além das críticas explicitas ao totalitarismo e ao stalinismo, Orwell ainda levanta sua
visão sobre as diferenças sociais entre classes e sobre como a camada pobre da população é
negligenciada. A sociedade da Oceania é dividida em três classes: o Partido Interno, que
chega a menos de 2% da população, sendo basicamente a oligarquia que controla o Partido; o
Partido Externo, a classe dos trabalhadores dos Ministérios e do Exército; e a prole, camada
que chega a 85% da população, basicamente os pobres e trabalhadores braçais.
Enquanto os membros do Partido Interno ocupam o topo, gozando de uma vida até que
luxuosa, privilegiada, os do Partido Externo são os mais oprimidos pela máquina do Estado,
os mais infelizes. Já as proles, ou proletas – nomenclaturas claramente vindas de
“proletariado” –, são consideradas livres, assim como os animais. O controle do Partido sobre
suas vidas é mínimo, somente o necessário para evitar grandes problemas. Para o Partido,
desde que sejam mantidos bem alimentados e distraídos – pão e circo –, a prole nunca sentirá
a necessidade de se rebelar. Vemos então a dualidade entre as duas classes inferiores dessa
sociedade. Membros do Partido Externo vivem em uma falsa liberdade, trabalham a vida
inteira para o Partido, são privados das relações afetivas, da sua própria humanidade.
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Ironicamente, se enxergam superiores aos proletas, desprezados como animais. Porém, na
visão de Winston, a prole foi quem conseguiu permanecer humana, preservando a essência da
vida: emoções e relações humanas.
Por fim, Orwell ainda insere alguns elementos de sua vida pessoal na trama,
principalmente por meio de Winston. Enquanto escrevia o livro, Orwell passava por um
quadro de tuberculose, que acabou levando à sua morte em 1950. Não por coincidência,
durante a obra, o protagonista sofre de ataques de tosse, descritos como extremamente
dolorosos e desgastantes. Além disso, Julia, amante de Winston, tenha sido inspirada em
Sonia Brownell, esposa de Orwell.
Na literatura, a narrativa distópica surge num contexto onde o capital entra numa fase
bélica, imperialista e expansiva. Expressa seu antiautoritarismo e caráter crítico diante da
repressão estatal. Ao dar de frente com a realidade do presente, simula uma imagem do futuro
1
Das partículas gregas dis (dor, dificuldade, infelicidade) e topos (lugar), lugar infeliz, lugar ruim.
2
Das partículas gregas ou (advérbio de negação) e topos (lugar), não-lugar, lugar nenhum.
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levando em conta as forças que prevalecem neste presente. No contexto europeu do século
XX, lida principalmente com o totalitarismo que assolava o continente. Além de uma reposta
ao presente, podemos ver a literatura distópica também como um traumatismo causado pelo
futuro, nos moldes do filósofo francês Jacques Derrida: “o traumatismo é produzido pelo
futuro, pelo que há-de-vir, pela ameaça do pior que há-de-vir, mais do que pela agressão que
‘já terminou’”.3 A narrativa distópica é o medo daquilo que ainda não aconteceu, mas está
bem próximo de acontecer.
Assim, a literatura distópica nada mais é do que uma tentativa de soar um “alarme de
incêndio”, alertando do fogo que, se não combatido, consumirá e destruirá a sociedade como a
conhecemos. Tal alarme é soado – de forma barulhenta, inclusive – por George Orwell em
1984. Ao representar uma Inglaterra dum futuro não tão distante – três décadas e meia –
controlada por um regime totalitário absoluto, Orwell consegue chamar a atenção da Europa
para o perigo que a rondava.
3
Derrida, 2004, p. 160
16
‘Na memória. Muito bem. Nós, o Partido, controlamos todos os documentos
e todas as lembranças. Portanto, controlamos o passado [...]’” (1984, p. 291)
Diálogos como esse entre Winston e O’Brien e reflexões de Winston são recorrentes
em 1984, e levantam discussões interessantes para o campo da historiografia. Neste em
específico, somos confrontados com o questionamento da própria realidade. De fato, o
passado só é palpável através do acesso à documentação e das memórias adquiridas por
experiência pessoal. Quem controlar esses dois meios, por consequência controla o passado e
pode escrever a história como bem entender. No mundo orwelliano, quem tem esse poder é o
Partido. Já no nosso mundo, somos nós, os historiadores, que adotamos essa responsabilidade.
Notamos então o papel ativo e seletivo do historiador. Assim como afirmam E. H. Carr
e Carl Becker, os fatos históricos não existem objetivamente nem são independentes da
interpretação do historiador, que tem a tarefa de descobrir fatos importantes e torna-los fatos
17
históricos, descartando os fatos “insignificantes”. O fato histórico não existe até que o
historiador o crie.4
4
Mohomed, 2011, p. 72
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A partir destes trechos, podemos estabelecer um diálogo entre as reflexões de Winston
e as ideias do historiador brasileiro Durval Muniz de Albuquerque, quando o mesmo afirma
que a História está a serviço do esquecimento, não da memória.
Ainda nessa relação memória-história, podemos levantar as ideias de Pierre Nora. Para
o historiador francês, o criticismo da história busca destruir a memória, deslegitimando o
passado vivido. “No coração da história trabalha um criticismo destrutor de memória
espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e
a repelir. A história é deslegitimação do passado vivido.” 5Entrando em conflito com a
concepção do Partido, Nora caracteriza a memória como absoluta e a história como relativa.
Bom, a história contada pelo Partido é a verdade absoluta e, ao mesmo tempo que apaga a
memória como algo relativo da mente humana, a inclui na realidade, já que o real só existe na
mente humana. Acabamos tropeçando no duplipensamento.
6
Para uma exposição extensa, detalhada e embasada das características das teorias de Nikolai Marr, consultar
(Santos, 2011).
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É interessante comentar também sobre o caráter filosófico que a linguagem pode
assumir, além da política e de ideologias. Toki Pona, assim como a Novafala, é uma conlang7
minimalista, oligossintética8, criada pela linguista canadense Sonja Elen Kisa em 2001 e
utilizada majoritariamente na internet por alguns milhares de falantes. Conta com apenas 120
palavras, mas, ao contrário da novafala, não visa limitar a liberdade de pensamento. Segundo
a própria criadora, pensar em Toki Pona é como um “yoga para a mente”, um exercício para
estimular a criatividade. Inspirada na filosofia taoista, Toki Pona está numa posição
completamente oposta à Novafala. Seus falantes a veem como um meio de pensar o mundo de
maneira mais calma e feliz.
Considerações finais
1984, desde o seu lançamento, causou um impacto cultural enorme, passando a ser
considerado um dos clássicos da literatura mundial, principalmente entre os romances
distópicos. Com um caráter crítico fortíssimo, conseguiu manter-se relevante e atual desde
1949 até 2019, 70 anos depois. Na sua época, alertou sobre os perigos do totalitarismo, e vem
fazendo o mesmo até hoje. Em 2013, após a WikiLeaks revelaram o monitoramento de dados
pelo governo norte-americano, as vendas do livro subiram em 6.888%. Em janeiro de 2017,
com a posse de Donald Trump como presidente dos EUA, foi o livro mais vendido na
Amazon.
Foram abordados aqui, então, uma gama de temas em volta de George Orwell e 1984:
a vida e experiências do romancista, bem como a influência das mesmas em sua obra; o
enredo de 1984 e os elementos que dão coesão e estruturam sua narrativa, bem como suas
especificidades; as reflexões no campo da historiografia a partir de temáticas do livro; e, por
fim, um breve comentário no campo da linguística, influenciado por uma inclinação temática
pessoal. Em conclusão, deixo registrada a minha admiração a esta incrível obra de George
Orwell e a satisfação com o resultado das pesquisas e do trabalho.
7
Linguagem construída, planejada. Pode ser feita por fins narrativos/fictícios ou para comunicação interpessoal
por diversos objetivos.
8
Que tem poucos morfemas no léxico, cerca de 100
21
Referências bibliográficas
CARIMO, Mohomed. The abolition of the Past: History in George Orwell’s 1984. 2nd
International Conference on Humanities, Historical and Social Sciences, Singapura, v. 17, p.
71-76, 201. E-book (6 p.).
HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como ferramenta de análise
rádical da modernidade. Anu. Lit., Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 201-215, 2013.
KISA, Sonja Elen. Toki Pona: The language of good. [S. l.: s. n.], 2014. E-book (134 p.).
NORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. Proj. História, São
Paulo, ed. 10, dez. 1993.
ORWELL, George. 1984. 29. ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 414 p.
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SANTOS, Rodrigo Fernando Assis dos. O conceito de língua/linguagem em 1984 de Orwell.
2011. Dissertação (Mestrado em Línguistica Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, [S. l.], 2011.
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