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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
HISTORIOGRAFIA

CARLOS DE MIRANDA VITOI

1984: Debates historiográficos a partir da obra de George Orwell

RECIFE - PE
NOVEMBRO DE 2019

Sumário
Introdução..................................................................................................................................3

1. George Orwell, vivências e obra: o impacto das experiências de vida na arte................4

2. 1984: O Grande Irmão está de olho em você......................................................................6

2.1. Enredo.............................................................................................................................6

2.2. Coesão e fios invisíveis: duplipensamentos.................................................................9

2.3. Críticas sociais e semelhanças históricas...................................................................11

2.4. Literatura distópica como ferramenta de análise e crítica social-histórica............15

3. Reflexões no campo da historiografia a partir de 1984: memória e documento como


instrumentos de controle da História....................................................................................16

4. Novafala e o poder político e filosófico da linguagem......................................................19

Considerações finais................................................................................................................21

Referências Bibliográficas......................................................................................................22

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Introdução

Em 8 de junho de 1949, Eric Arthur Blair, sob o pseudônimo de George Orwell,


publica seu nono e último livro, o qual precocemente atingiu o status de clássico da literatura:
“Nineteen Eighty-Four”, ou simplesmente “1984”. O romance distópico acompanha a vida
do protagonista Winston Smith, habitante da Londres, cidade da Faixa Aérea Um, região do
superestado da Oceania. Situa-se numa sociedade futurística controlada por um regime
totalitário estruturado nas figuras do Grande Irmão e do Partido, com o “socialismo inglês”
(IngSoc) como ideologia. Orwell traz no romance uma sociedade miserável, controlada pelo
Estado quase que completamente. O cidadão da Oceania deve manter fidelidade ao Partido
durante toda sua vida. Qualquer deslize de conduta, desde um pensamento ou feição facial
involuntária até a rebelião explicita significa a morte. Winston, sendo membro do Partido
Externo, trabalha no Ministério da Verdade (Miniver), órgão responsável pela comunicação
do Partido com a população e por todo tipo de documentação e produção artística ou literária.
Ele é uma das poucas pessoas que parece perceber o quão perversa e desumana é a vida
imposta pelo Partido. Assim, a trama é guiada por Winston e sua vivência, expondo sua
revolta contra o Partido e o Grande Irmão.

1984 é, antes de tudo, uma crítica a todo e qualquer regime totalitarista, sem se ater a
necessariamente somente ao comunismo russo, ao fascismo italiano ou ao nazismo alemão.

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Orwell busca mostrar que qualquer sociedade ou cultura é passível a sofrer com o
totalitarismo, motivo pelo qual escolhe ambientar o romance na Inglaterra. Apesar de ser uma
distopia, a obra não retrata um futuro muito distante da realidade. À época que foi escrito, o
totalitarismo já mostrara suas garras e era um medo extremamente palpável. Não era muito
difícil para uma pessoa da época imaginar que dali a algumas décadas ela poderia estar
vivendo num regime similar ao do romance orwelliano. Assim, é interessante e válido analisar
1984 também como uma obra de caráter social e histórico, levando em conta as
particularidades do gênero distópico.

Além da crítica ao totalitarismo, Orwell também aborda alguns temas coincidentes aos
interesses e questionamentos da historiografia: criação, armazenamento, e manuseio de
documentação e fontes, a memória como instrumento e fonte histórica, a natureza da
“verdade” e da “realidade” dentro da história, passado, presente e futuro, além de questões
linguísticas convergentes com a História.

A partir disso, define-se o objetivo deste trabalho: analisar o caráter social e histórico
do livro 1984, levantando também discussões e reflexões nos campos da literatura, linguística
e, principalmente, da historiografia. Assim, o texto se dará de tal forma: num primeiro
momento, expor a vida de Eric Arthur Blair e então todo o contexto que envolve a obra
literária, comentando suas especificidades de estrutura e narrativa; em seguida, analisar e
comparar a temática com as discussões vigentes no meio da historiografia; por fim, discutir a
novafala como exemplo de aspectos do uso das línguas como instrumento histórico e de
coerção social.

1. George Orwell, vivências e obra: o impacto das experiências de vida na


arte

Eric Arthur Blair nasce em 25 de julho de 1903, na cidade de Motihari, na então Índia
Britânica, onde seu pai Richard Walmesley Blair trabalhava como servidor do Império. Em
1904, sua mãe Ida Mabel Limouzin-Blair leva Eric e sua irmã Marjorie para morar em
Shiplake, vilarejo na Inglaterra, não muito distante de Londres.

Seus pais almejavam proporcionar uma educação de qualidade para Eric, porém não
tinham condições de pagar todas as taxas de uma escola privada de alta classe. Graças a

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contatos de seu tio Charles Limouzin, Eric conseguiu uma bolsa de estudo na Escola de São
Cipriano, em Eastbourne. Eric odiava a escola e suas memórias o inspiraram a escrever o
ensaio Such, Such Were the Joys, publicado postumamente. Na época, escreveu dois poemas
que foram publicados no jornal local Henley and South Oxfordshire Standard, o que o levou a
receber bolsas de estudo no Wellington College e no Eton College. Ficou em Eton de 1917 a
1921, onde teve aulas de francês ministradas por Aldous Huxley, escritor do romance
distópico Admirável Mundo Novo. Por ser bolsista, Eric recebia um tratamento mais rígido
do que aqueles alunos que podiam pagar integralmente pela educação. Assim, ainda na
juventude, já começa a viver e perceber as desigualdades presentes na sociedade. Lá, Eric
aparentemente negligenciou os estudos, como indicam seus boletins. Devido às notas baixas,
não conseguiu bolsa para nenhuma universidade.

Sem o dinheiro para pagar uma universidade, decidiu entrar para a Polícia Imperial
Indiana, após passar em um exame. Assim, em 1922 se muda para a Birmânia e assume seu
posto na Polícia Imperial. Atuou como oficial subdivisional e como assistente de
superintendente distrital. Sua experiência em cerca de 5 anos como policial o expôs a diversas
injustiças e atos violentos praticados pelo Império Britânico e a partir daí começou a
desenvolver seu anti-imperialismo, característica importante de suas obras. Esse momento
inspirou o romance Burmese Days (1934) e os ensaios A Hanging (1931) e Shooting an
Elephant (1936). Em 1927, após um período de despensa por doença, se demite da Polícia e
decide se tornar escritor.

No mesmo ano volta para a Inglaterra e, após visitar a família e antigos amigos e
colegas, vai morar em Londres. Logo nos primeiros dias, começou a fazer “expedições
exploratórias” pelas periferias da cidade e passou a se comportar e se vestir no “estilo” das
ruas. Em 1928, se mudou para Paris, seguindo o mesmo modo de vida. Em certo momento,
teve todo seu dinheiro roubado na casa de hospedagem onde estava abrigado. Tanto por
necessidade quanto para coletar material para suas escritas, começou a realizar trabalhos
“inferiores”, como lavador de pratos num hotel de luxo. Foi nesta mesma época que começou
a obter sucesso como jornalista. Publicou artigos no Monde, G. K.’s Weekly e Le Progres
Civique. Também publicou seu primeiro ensaio, The Spike. Todas suas experiências vivendo
perto das classes mais baixas da sociedade (mendigos, prostitutas, desempregados) foram o
motor criativo que o levou a escrever seu primeiro romance, Down and Out in Paris and
London, publicado em 1933 já sob o pseudônimo de George Orwell.

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Em 1936, cada vez mais engajado politicamente, vai participar da guerra civil
espanhola, em Barcelona. Juntou-se ao Partido Operário de Unificação Marxista, grupo
resultante de uma cisão dentro do Partido Comunista Espanhol. Tal divisão se deu pela total
submissão do PCE diante do Partido Comunista Russo. Os membros do POUM se viam
aliados às críticas de Trotsky ao regime stalinista, o qual era extremamente autoritário. Assim,
ao unir-se ao POUM, Orwell assume ideais próximos ao socialismo democrático, com forte
caráter antistalinista, antitotalitário e antifascista. Participou de conflitos armados ao lado de
anarquistas, trotskistas e da esquerda antistalinista, contra o próprio PCR. Sofreu perseguição
da pela KGB e em uma ocasião de conflito em trincheira, levou um tiro no pescoço, que
acabou danificando suas cordas vocais. Em 1938, Orwell publica Homage to Catalonia,
romance que descreve essas experiências na guerra civil espanhola. Este foi, de fato, um dos
períodos mais marcantes de sua vida. Suas experiências o acompanhariam durante o resto de
sua vida, influenciando praticamente tudo que escreveu a partir de 1936. O que Orwell
descreve em 1984 parte de sua vivência. Orwell esteve de frente com as piores coisas que o
totalitarismo proporciona, ele o conheceu de perto. Em 1945, publica o romance Animal
Farm, uma crítica em forma de sátira ao regime stalinista. Assim como 1984¸ foi um livro
extremamente polêmico e importante, figurando entre os clássicos da literatura inglesa.

Eric fora casado duas vezes, primeiro com Eileen O’Shaughnessy, de 1935 até sua
morte em 1945. Adotou junto com Eileen, em 1944, uma criança órfã, Richard Horatio Blair e
foi um pai amável Em 1949 casou-se novamente, com Sonia Brownell, alguns meses antes de
morrer. Em 21 de janeiro de 1950, em Londres, Eric Arthur Blair morre, aos 46 anos, devido
a um quadro de tuberculose. Eric acabou deixando como herança para este mundo suas
magnificas obras. No total, foram nove romances, entre seis fictícios e três documentários
narrativos, além de uma série de outros escritos, entre ensaios, artigos e poemas. George
Orwell entrou para a história como um dos maiores escritores da literatura moderna, tendo um
grande impacto na cultura popular e política ocidental.

Conhecendo então a vida de Orwell e o impacto de suas experiências na sua obra em


geral, partiremos para a análise do romance escolhido como foco deste trabalho, 1984. A
seguinte parte consistirá em 4 momentos: (1) a exposição do enredo do romance, bem como a
explicação de alguns conceitos e termos da narrativa; (2) a compreensão dos elementos que
dão coesão ao texto, do que mantém o leitor imerso na obra, as suas especificidades; (3) a
análise das críticas e reflexões sociais que o autor imprime em sua obra, elencando também as

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semelhanças que mantém com a realidade; (4) a análise da importância da literatura distópica
na compreensão da história e da modernidade.

2. 1984: O Grande Irmão está de olho em você


2.1 Enredo

1984 segue a perspectiva de Winston, numa narrativa em terceira pessoa, diante da sua
realidade nem um pouco agradável ou feliz. Oceania, Faixa Aérea Um, Londres, 1984. Assim
situa-se o protagonista da obra, no espaço e no tempo. A realidade social em que vive, é a
seguinte: no mundo existem apenas três superestados, Oceania, Eurásia e Lestásia. A guerra é
constante, movida pela disputa pelos poucos territórios não ocupados por nenhum dos três.

A Oceania é governada pelo Partido, organização praticamente onipresente,


representada pela figura do ditador supremo “Big Brother”, o Grande Irmão. Durante a trama,
deixa-se a entender que o Grande Irmão é de fato uma representação simbólica do Partido
como um todo. O Grande Irmão e o Partido devem ser amados por toda a população, e sua
ideologia, o IngSoc (Socialismo Inglês), seguida a risco. O objetivo do Partido é obter o
poder, simplesmente o poder pelo poder. Para isso, impõe um controle total sobre sua
população. Em todo lugar – até mesmo em casa – e a toda hora, as pessoas são vigiadas
através da teletela, uma espécie de monitor que recorda imagem e sons do local onde está, que
são transmitidos simultaneamente para um departamento interno do governo, o Miniamor.
Também existem grupos de espionagem, atentos a qualquer sinal de rebeldia, por mais sutil
que for.

Mas o Partido ainda vai além, apenas o controle sobre o corpo humano, sobre as ações
físicas, não é o suficiente. O Partido visa obter controle total sobre a mente humana, sobre o
pensamento. Primeiramente, todo pensamento contrário ao governo é considerado um
pensamento-crime e, se descoberto, leva à morte. Como principal meio de controle de
pensamento, o Partido utiliza uma ferramenta linguística, a Novafala. Novafala é a língua
oficial construída pelo Partido, ainda em desenvolvimento durante a trama do livro. A língua
consiste em, basicamente, reduzir o vocabulário do inglês, conhecido como Velhafala. O
Partido começa a cortar todos os conceitos que julga desnecessários, principalmente aqueles
que vão contra as suas ideologias. Dessa forma, com a evolução – a involução, na verdade – e
a implementação da língua, chegará o momento em que será literalmente impossível ter
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qualquer pensamento contrário ao sistema. Então, o Partido terá atingido seu propósito: o
poder.

“[...] poder é poder sobre os seres humanos. Sobre os corpos – mas,


acima de tudo, sobre as mentes. Poder sobre a matéria – a realidade objetiva,
como você diria – não é importante. Nosso controle sobre a matéria já é
absoluto.” (1984, p. 309)

Outro instrumento de manutenção do poder pelo Partido, são os ministérios. Esses são
quatro: o Ministério da Verdade (Miniver), responsável pelo controle de todo tipo de
documento, além de produzir todo material cultural e educacional e as notícias; o Ministério
da Paz (Minipaz), responsável pela guerra; o Ministério da Pujança (Minipuja), responsável
pela economia e distribuição de mantimentos; e o Ministério do Amor (Miniamor),
responsável pelo controle da população e da ordem.

Acompanhamos então a vida de Winston Smith e o desenvolvimento do seu


sentimento de revolta contra o Partido, que por muitos anos estava escondido sobre uma
indiferença induzida pelo próprio sistema. Winston é um homem de 39 anos, funcionário do
Miniver. Lá, sua função é reescrever textos, pronunciamentos oficiais, jornais e outros tipos
de documentação conforme a necessidade do Partido. Assim, ele basicamente reescrevia a
História. O que estava registrado na documentação nunca havia acontecido, a verdade
absoluta era aquilo conivente ao Partido no presente. E esse processo havia se repetido
incontáveis vezes, e continuará se repetindo ad infinitum. O passado não existia se não na
memória individual. Mas até onde a memória individual é real, é verdade? Retornaremos a
essa discussão mais à frente.

Logo no primeiro capítulo, Winston resolve começar a escrever um diário, ato que por
si só já podia leva-lo à morte ou à prisão. Começa relatando sua noite anterior, no cinema. Em
certo momento, vem à sua memória o último Dois Minutos de Ódio do qual havia participado.
Reviveu uma gama de sentimentos conflitantes entre amor e ódio ao Partido. Até que se dá
conta que, durante seus devaneios, havia escrito no diário, repetidamente, a frase “ABAIXO
O GRANDE IRMÃO”. Só o fato dele pensar em começar a escrever um diário, já era
pensamento-crime, porém esse fora o estopim. Winston já era um homem morto, e a partir
dali só lhe restava abraçar a sua revolta.

“Ele já estava morto, refletiu. Parecia-lhe que só agora quando


começava a ser capaz de formular seus pensamentos, dera o passo decisivo.

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As consequências de toda ação estão contidas na própria ação. Escreveu: O
pensamento-crime não acarreta a morte: o pensamento-crime. É a morte.”
(1984, p. 40)

A história segue então acompanhando Winston, seus pensamentos e seu


relacionamento com Julia, colega de trabalho e eventual amante de Winston, e com O´Brien,
membro do Partido Interno e que Winston acredita ser adapto da rebelião. Recheada de
reviravoltas e momentos tensos, a trama deixa o leitor cada vez mais agoniado com a
realidade vivida por Winston.

1.1 Coesão e fios invisíveis: duplipensamentos

Uma característica necessária a todo escritor – incluindo romancistas e historiadores –


é a capacidade de manter seu leitor interessado e imerso na sua narrativa. Orwell consegue
isso de forma majestosa em 1984. Desde as primeiras páginas, traz uma imersão no cenário
construída através de uma ambientação detalhada, como no seguinte trecho:

“Fora, mesmo visto através da vidraça fechada, o mundo parecia


frio. Lá embaixo, na rua, pequenos rodamoinhos de vento formavam espirais
de poeira e papel picado e, embora o sol brilhasse e o céu fosse de um azul
áspero, a impressão que se tinha era de que não havia cor em coisa alguma a
não ser nos pôsteres colados por toda parte. Não havia lugar de destaque que
não ostentasse aquele rosto de bigode negro a olhar para baixo. [...] O
GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, enquanto os
olhos escuros pareciam perfurar os de Winston.” (1984, p. 12)

Aqui já vai se construindo a imagem de um mundo infeliz, totalmente neutro, onde o


Partido se sobressai em todos os âmbitos. No processo de imersão, Orwell também leva o
leitor a sentir o desespero, indignação e impotência de Winston diante da realidade, além de
suas dores físicas, emocionais e psicológicas.

“Winston tinha a sensação de estar vagando pelas florestas do fundo


do mar, perdido num mundo monstruoso em que o monstro era ele próprio.
Estava sozinho. O passado estava morto, o futuro era inimaginável. Que
certeza podia ter de que naquele momento uma criatura humana, uma que

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fosse, estivesse do lado dele? E como saber se o domínio do Partido não seria
para sempre?” (1984, p.38)

“Winston [...] parecia não ter se dado conta de quão magro e fraco
estava. Um único pensamento percorria sua cabeça: que permanecera naquele
lugar por mais tempo que pensara. De repente, [...] um sentimento de pena
pelo estado de seu corpo se apossou de sua mente. Antes de perceber o que
estava fazendo, despencou sobre uma banqueta ao lado da cama, em
lágrimas. Tinha consciência de sua feiura e falta de graça: um feixe de ossos,
envolto em roupas imundas, sentado e chorando sob a luz branca e dura. Mas
não conseguia parar.” (1984, p. 318)

O livro é dividido em três partes, cada uma subdividida em capítulos. Na parte I, em 8


capítulos, Orwell faz uma ambientação geral, apresentando ao leitor o mundo de 1984, seu
protagonista Winston e outros personagens importantes para a trama. Na parte II, ao longo de
10 capítulos, se dá o desenvolvimento da trama, onde a história em si prossegue, construindo
a relação amorosa e rebelde entre Winston e Julia, tendo como principal acontecimento o
encontro dos dois com O’Brien. Por fim, na parte III, em 6 capítulos temos o clímax e
conclusão da obra. Se passa quase que inteiramente no Ministério do Amor, em salas onde
Winston é torturado, sob a supervisão de O’Brien, por seus crimes contra o Partido. Nesse
capítulo se encontram algumas das cenas e diálogos mais impactantes do livro.

A narrativa segue, em sua maior parte, uma cronologia linear, voltando em alguns
momentos a lembranças de Winston, seja de um passado recente ou de um distante, através de
suas turvas memórias. Assim, seus capítulos se ligam dentro da perspectiva de Winston.

Entre os conceitos criados por Orwell em 1984¸ está o “duplipensamento”.


Duplipensamento é, basicamente, a capacidade de acreditar fielmente em mentiras, mesmo
sabendo que são mentiras; manter duas crenças contraditórias uma a outra simultaneamente;
refutar a lógica com a lógica. Na própria explicação de Orwell no livro:

“Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao


exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente
duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando
em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da
moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o
guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer,

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trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a
esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a
sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-
se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para
compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.”

O conceito tem uma presença importante na trama, tendo um uso bastante recorrente.
Aparece mais notavelmente num dos slogans do Partido: “Guerra é Paz. Liberdade é
Escravidão. Ignorância é Força.” Percebemos aqui então o uso de antonímias para a
construção do duplipensamento. Palavras contrárias umas às outras, antônimas, são
consideradas duas formas de se falar a mesma coisa. Logo, a relação também é reversível.

“Escravidão é liberdade. Sozinho – livre – o ser humano sempre será


derrotado. Assim tem de ser, porque todo ser humano está condenado a
morrer, o que é o maior de todos os fracassos. Mas se ele atingir a submissão
total e completa, se conseguir abandonar sua própria identidade, se conseguir
fundir-se ao Partido ao ponto de ser o Partido, então será todo-poderoso e
imortal.” (1984, p. 309)

Outro exemplo notável são os Ministérios. Cada um trata de assuntos contrários a o


que seus nomes representam: o Miniver destrói a verdade para construir a verdade própria do
Partido; o Miniamor causa sofrimento e dor, permitindo apenas o amor ao Partido e ao
Grande Irmão; o Minipuja mantém a fome e miséria entre a população; o Minipaz promove a
guerra.

Assim, o duplipensamento aparece como mais uma ferramenta de controle social


utilizada pelo Partido. E mais do que somente isso, representa também uma dualidade
presente no cerne da história de 1984. É com a ajuda da reflexão acerca do duplipensamento
que podemos chegar a dois sentimentos contrários um ao outro, mas complementares entre si
dentro do desenvolvimento do romance: de um lado, o sentimento de revolta contra a
opressão, a ânsia pela liberdade, do outro, o sentimento de impotência diante da imbatível
força opressora, a conformação com a realidade. Esses sentimentos se unem para servir como
um fio condutor de toda a história. Durante a obra acompanhamos Winston numa constante
luta interna entre os dois sentimentos, ambos existem simultaneamente. Anulam um ao outro,
mas ao mesmo tempo são interdependentes.

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1.1 Críticas sociais e semelhanças históricas

Orwell escreveu boa parte de 1984 entre os anos de 1947 e 1948, quando morava na
ilha de Jura, na Escócia. Podemos contextualizar rapidamente a época num período pós
Segunda Guerra e de início da Guerra Fria. A comunidade internacional havia acabado de
testemunhar a queda de dois regimes totalitários: a Alemanha nazista de Adolf Hitler e a Itália
fascista de Benito Mussolini. Além disso, a União Soviética ainda se encontrava sob comando
de Josef Stalin. Durante quase todo o século XX, o totalitarismo foi uma força esmagadora,
um medo real, e Orwell incorporou isso em sua obra.

Como já exposto aqui, devido às suas vivências, Eric Blair adotou um pensamento
social democrata, indo de encontro a qualquer regime totalitário. Durante sua participação na
Guerra Civil Espanhola tornou-se então um opositor ferrenho ao regime stalinista. Apesar de
ser uma crítica ao totalitarismo em geral, em 1984 Orwell expõe seu antistalinismo de forma
clara. As semelhanças entre elementos do romance e personagens e eventos históricos são
diversas.

De início, a existência de um único partido e de um líder supremo já aparece como


uma característica comum aos regimes totalitários. O líder do Partido, o Grande Irmão, é
claramente uma alusão a Josef Stalin, com o bigode como característica mais marcante.
Emmanuel Goldstein, no romance, foi um ex-membro central do Partido que, ao perceber a
corrupção dos princípios iniciais da revolução, tornou-se oposição e passou a ser perseguido,
taxado como um traidor. Novamente, uma clara alusão a um personagem real: Leon Trotsky.
A referência fica mais evidente ainda quando Winston descreve a feição de Goldstein como
um “rosto judaico” – Trotsky era de origem judaica.

As semelhanças se estendem ao modus operandi do Partido, o qual vai ao encontro do


da União Soviética de Stalin. Temos, por exemplo, os expurgos. Na década de 1930 ocorreu o
Grande Expurgo na Rússia, período no qual centenas de milhares de “inimigos do povo”
foram executados, deportados ou presos no Gulag, dentre estes membros dirigentes do Partido
Comunista, militares, civis, cientistas, intelectuais, artistas, etc. Em 1984, o Partido também
aplica os expurgos, de forma ainda mais extensa e cruel. Qualquer pessoa que demonstre
revolta ou infidelidade ao governo é capturada, torturada, morta e apagada da história. Às
vezes, como é o caso de Winston ao final do livro, a pessoa não é morta de imediato, mas
convertida ao lado do Partido e posta em “liberdade”. Os expurgados aqui são conhecidos

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como “impessoa”, indicando que tal pessoa na verdade nunca existiu. Apaga-se assim todos
seus feitos revoltosos e a possibilidade de que inspirem outros atos no futuro.

“[...] não permitimos que os mortos se levantem contra nós. Você


precisa para de ficar achando que a posteridade o absolverá, Winston. A
posteridade nunca ouvirá falar de você. Você será excluído do rio da história.
Transformaremos você em gás e o mandaremos para a estratosfera. Não vai
sobrar nada de você: nem seu nome no livro de registros, nem sua memória
num cérebro vivo. Será aniquilado no passado e no futuro. Nunca terá
existido.” (1984, p. 298)

Ambos regimes demonstram o interesse em controlar a ciência e a arte, buscando


impedir avanços científicos e pensamentos contrários aos interesses do governo. Convergem
também na mudança de infra e superestrutura social que as Revoluções causaram. Atingindo
um sucesso maior do que a URSS, o Partido aboliu completamente o sistema capitalista na
Oceania de 1984. O capitalismo virou praticamente uma lenda urbana, existente apenas na
memória coletiva dos membros do Partido.

“Os livros de história dizem que a vida antes da Revolução era


completamente diferente de como é hoje. Imperava a mais terrível opressão,
injustiça, miséria – uma coisa inimaginável de tão ruim. Aqui em Londres,
parece que a maioria das pessoas [...] trabalhavam doze horas por dia,
paravam de estudar aos noves anos e dormiam dez em um quarto. Também
dizem que havia um número extremamente pequeno de indivíduos, um
número que não ultrapassava a casa dos milhares – chamavam-se capitalistas
–, que eram ricos e poderosos. Possuíam tudo o que podia ser possuído.”
(1984, p. 110)

Outra semelhança importantíssima é a da existência, em ambos regimes, de um projeto


linguístico. Nas décadas de 20/30, o linguista georgiano Nikolai Marr foi encarregado de
chefiar o projeto de criação de uma língua única, a ser implementada na Rússia pós-
revolução, a “língua proletária nacional”. No contexto da Rússia pré-revolução, não existia
uma língua nacional, mas sim vários dialetos diferentes dentro de cada feudo. Para a
comunicação entre as cidades, era utilizada uma linguagem conversacional de entendimento
comum. Com a formação dos centros urbanos de forte presença burguesa, essa linguagem
conversacional foi se tornando cada vez mais voltada justamente para o núcleo burguês,
excluindo o proletariado. Dessa forma, após a revolução, surgiu a necessidade de uma língua
que representasse a nova ordem social russa. Marr previa que essa renovação linguística,

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seguindo os ideais da Comintern, atingiria o resto do mundo, resultando numa língua única
mundial. De modo semelhante, em 1984 temos a novafala, fruto da busca do Partido por uma
língua que impeça o pensamento contrário aos seus ideais.

É importante lembrar que, apesar da posição contrária ao stalinismo, Orwell não


escreveu 1984 como um ataque à esquerda como um todo ou aos ideais socialistas – afinal de
contas, ele mesmo se considerava um social democrata. O mundo já tinha visto as garras do
totalitarismo através da Itália e da Alemanha, além dos regimes de Salazar e Franco em
Portugal e na Espanha, respectivamente. O “fantasma” do autoritarismo estava mais vivo do
que nunca, assombrando a sociedade europeia. Orwell queria então alerta-la do que poderia
acontecer, num futuro não tão distante, caso a situação não fosse combatida.

“Meu romance recente [Nineteen Eighty-Four] NÃO foi concebido


como um ataque ao socialismo ou ao Partido Trabalhista Britânico (do qual
sou um entusiasta), mas como uma mostra das perversões [...] que já foram
parcialmente realizadas pelo comunismo e fascismo. O cenário do livro é
definido na Grã-Bretanha a fim de enfatizar que as raças que falam inglês não
são intrinsecamente melhores do que nenhuma outra e que o totalitarismo, se
não for combatido, pode triunfar em qualquer lugar.” (Collected Essays, p.
546)

Além das críticas explicitas ao totalitarismo e ao stalinismo, Orwell ainda levanta sua
visão sobre as diferenças sociais entre classes e sobre como a camada pobre da população é
negligenciada. A sociedade da Oceania é dividida em três classes: o Partido Interno, que
chega a menos de 2% da população, sendo basicamente a oligarquia que controla o Partido; o
Partido Externo, a classe dos trabalhadores dos Ministérios e do Exército; e a prole, camada
que chega a 85% da população, basicamente os pobres e trabalhadores braçais.

Enquanto os membros do Partido Interno ocupam o topo, gozando de uma vida até que
luxuosa, privilegiada, os do Partido Externo são os mais oprimidos pela máquina do Estado,
os mais infelizes. Já as proles, ou proletas – nomenclaturas claramente vindas de
“proletariado” –, são consideradas livres, assim como os animais. O controle do Partido sobre
suas vidas é mínimo, somente o necessário para evitar grandes problemas. Para o Partido,
desde que sejam mantidos bem alimentados e distraídos – pão e circo –, a prole nunca sentirá
a necessidade de se rebelar. Vemos então a dualidade entre as duas classes inferiores dessa
sociedade. Membros do Partido Externo vivem em uma falsa liberdade, trabalham a vida
inteira para o Partido, são privados das relações afetivas, da sua própria humanidade.
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Ironicamente, se enxergam superiores aos proletas, desprezados como animais. Porém, na
visão de Winston, a prole foi quem conseguiu permanecer humana, preservando a essência da
vida: emoções e relações humanas.

Por fim, Orwell ainda insere alguns elementos de sua vida pessoal na trama,
principalmente por meio de Winston. Enquanto escrevia o livro, Orwell passava por um
quadro de tuberculose, que acabou levando à sua morte em 1950. Não por coincidência,
durante a obra, o protagonista sofre de ataques de tosse, descritos como extremamente
dolorosos e desgastantes. Além disso, Julia, amante de Winston, tenha sido inspirada em
Sonia Brownell, esposa de Orwell.

1.2 Literatura distópica como ferramenta de análise e crítica social-


histórica

A distopia1 surge, no século XX, como um complemento ao conceito de utopia 2.


Enquanto a utopia representa um lugar ideal, perfeito que poderia ser atingido no futuro, a
distopia constrói um lugar não desejável, que pode vir a acontecer no futuro, ameaçando o
bem-estar social. Nascido no século XVI, num contexto pós-medieval, o conceito de utopia
vai refletindo dos ideais renascentistas e, posteriormente, iluministas. Reflete uma
autoconfiança na capacidade humana de construir um futuro pautado na liberdade e ciência.
Já a distopia é fruto de uma sociedade moderna cansada, beirando a pós-modernidade. Reflete
a impotência e desesperança do homem moderno diante de um futuro iminentemente trágico.

Partindo de uma compreensão frankfurtiana da literatura como campo de


conhecimento e análise da experiência social na subjetividade, podemos ver a utopia e a
distopia não só como gênero literário, mas também como discurso político e assim, pensamos
o social a partir da literatura.

Na literatura, a narrativa distópica surge num contexto onde o capital entra numa fase
bélica, imperialista e expansiva. Expressa seu antiautoritarismo e caráter crítico diante da
repressão estatal. Ao dar de frente com a realidade do presente, simula uma imagem do futuro

1
Das partículas gregas dis (dor, dificuldade, infelicidade) e topos (lugar), lugar infeliz, lugar ruim.
2
Das partículas gregas ou (advérbio de negação) e topos (lugar), não-lugar, lugar nenhum.
15
levando em conta as forças que prevalecem neste presente. No contexto europeu do século
XX, lida principalmente com o totalitarismo que assolava o continente. Além de uma reposta
ao presente, podemos ver a literatura distópica também como um traumatismo causado pelo
futuro, nos moldes do filósofo francês Jacques Derrida: “o traumatismo é produzido pelo
futuro, pelo que há-de-vir, pela ameaça do pior que há-de-vir, mais do que pela agressão que
‘já terminou’”.3 A narrativa distópica é o medo daquilo que ainda não aconteceu, mas está
bem próximo de acontecer.

Assim, a literatura distópica nada mais é do que uma tentativa de soar um “alarme de
incêndio”, alertando do fogo que, se não combatido, consumirá e destruirá a sociedade como a
conhecemos. Tal alarme é soado – de forma barulhenta, inclusive – por George Orwell em
1984. Ao representar uma Inglaterra dum futuro não tão distante – três décadas e meia –
controlada por um regime totalitário absoluto, Orwell consegue chamar a atenção da Europa
para o perigo que a rondava.

2. Reflexões no campo da historiografia a partir de 1984: memória e


documento como instrumentos de controle da História

Discutidos os aspectos narrativos e estruturais e todo o caráter social-histórico da obra,


partimos agora para algumas correlações que podemos fazer com alguns temas abordados
pelo autor que também são queridos ao campo da historiografia. Falaremos sobre a memória e
a documentação, refletindo sobre como estes são elementos essenciais para a construção da
História, assim como sobre o tempo e sua relação com a realidade, entrelaçando todos esses
temas uns aos outros.

“‘Por acaso o passado existe concretamente no espaço? Há em alguma parte


um lugar, um mundo de objetos sólidos, onde o passado ainda esteja
acontecendo?’
‘Não.’
‘Então onde o passado existe, se de fato existe?’
‘Nos documentos. Está registrado.’
‘Nos documentos. E...?’
‘Na mente. Na memória humana.’

3
Derrida, 2004, p. 160
16
‘Na memória. Muito bem. Nós, o Partido, controlamos todos os documentos
e todas as lembranças. Portanto, controlamos o passado [...]’” (1984, p. 291)

Diálogos como esse entre Winston e O’Brien e reflexões de Winston são recorrentes
em 1984, e levantam discussões interessantes para o campo da historiografia. Neste em
específico, somos confrontados com o questionamento da própria realidade. De fato, o
passado só é palpável através do acesso à documentação e das memórias adquiridas por
experiência pessoal. Quem controlar esses dois meios, por consequência controla o passado e
pode escrever a história como bem entender. No mundo orwelliano, quem tem esse poder é o
Partido. Já no nosso mundo, somos nós, os historiadores, que adotamos essa responsabilidade.

Falemos primeiro da relação historiador-documento. Winston, no seu trabalho no


Miniver, assume uma função que seria a de historiador daquela realidade, ou que pelo menos
chega perto do que nós fazemos. Ele basicamente constrói a história, atualizando o passado de
acordo com a necessidade do Partido, editando os documentos para remover o que não é mais
“verdade”, quantas vezes for necessário. Nós historiadores também construímos a história e
atualizamos o passado. Nosso papel é o de trabalhar com as fontes, os documentos, caçando –
somos o “ogro da lenda”, como diz Marc Bloch – aquilo que julgamos interessante, válido e
merecedor de entrar para os “anais da história”. Assim, ao validarmos uma fonte, uma visão,
apagamos do passado qualquer fonte, visão contrária a aquela validada.

“Esse processo de alteração contínua valia não apenas para jornais


como também para [...] todo tipo de literatura ou documentação que pudesse
vir a ter algum significado político ou ideológico. Dia a dia e quase minuto a
minuto o passado era atualizado. Desse modo era possível comprovar com
evidências documentais que todas as previsões feitas pelo Partido haviam
sido acertadas; sendo que, simultaneamente, todo vestígio de notícia ou
manifestação de opinião conflitante com as necessidades do momento eram
eliminados. A história não passava de um palimpsesto, raspado e reescrito
tantas vezes quantas fosse necessário. Uma vez executado o serviço, era
absolutamente impossível prova a ocorrência de qualquer tipo de
falsificação.” (1984, p. 54)

Notamos então o papel ativo e seletivo do historiador. Assim como afirmam E. H. Carr
e Carl Becker, os fatos históricos não existem objetivamente nem são independentes da
interpretação do historiador, que tem a tarefa de descobrir fatos importantes e torna-los fatos

17
históricos, descartando os fatos “insignificantes”. O fato histórico não existe até que o
historiador o crie.4

Interesses governamentais também exercem forte influência no nosso registro da


História. Muitos documentos históricos são produzidos e armazenados pelo governo, de
acordo com seus interesses. Até o acesso do historiador a esses documentos depende da boa
vontade do governo. Mesmo após obter o acesso à fonte, analisa-la e trabalhar em cima da
mesma, nada garante que o historiador conseguirá aprovação do seu trabalho pelo governo, e
isto não se limita apenas a regimes autoritários como o do Partido. Na Austrália e nos Estados
Unidos, por exemplo, há uma grande pressão sobre aqueles historiadores que buscam falar
sobre os Aborígenes e sobre Hiroshima e Nagasaki ou a guerra do Vietnã. No Brasil, nossos
historiadores sofreram grande repressão durante o período da Ditadura Militar, de 1964 a
1985.

Tratemos agora da memória e sua relação com a história. Em 1984, Winston


frequentemente vê suas memórias entrando em conflito com aquilo que o Partido diz ser a
verdade. Novamente, a natureza da própria realidade entra em questionamento.

“Naquele momento, por exemplo, em 1984 (se é que estavam em


1984), a Oceania estava em guerra com a Eurásia e era aliada da Lestásia.
Nunca, em nenhuma declaração pública ou privada, era admitido que as três
potências alguma vez tivessem se agrupado de modo diferente. Na verdade,
como Winston sabia muito bem, há não mais de quatro anos a Oceania estava
em guerra com a Lestásia e em aliança com a Eurásia. Só que isso não
passava de uma amostra de conhecimento furtivo que ele por acaso possuía
graças ao fato de sua memória não estar corretamente controlada. Em termos
oficiais, a troca de aliados jamais acontecera.” (1984, p. 46)

“Mas em que local existia esse conhecimento? Apenas em sua


própria consciência que, de todo modo, em breve seria aniquilada. E se todos
os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido – se todos os registros
contassem a mesma história –, a mentira tornava-se história e virava verdade.
‘Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente
controla o passado’, rezava o lema do Partido. E com tudo isso o passado,
mesmo com sua natureza alterável, jamais fora alterado. (1984, p. 47)

4
Mohomed, 2011, p. 72
18
A partir destes trechos, podemos estabelecer um diálogo entre as reflexões de Winston
e as ideias do historiador brasileiro Durval Muniz de Albuquerque, quando o mesmo afirma
que a História está a serviço do esquecimento, não da memória.

“Damo-nos conta de que a História não está a serviço da memória,


de sua salvação, mas está sim, a serviço do esquecimento. Ela está sempre
pronta a desmanchar uma imagem do passado que já tenha sido produzida,
institucionalizada, cristalizada. Inventado, a partir do presente, o passado só
adquire sentido na relação com este presente que passa, portanto, ele anuncia
já a sua morte prematura.” (Albuquerque Júnior, 2007, p. 61)

Aqui é importante ressaltarmos o caráter pessoal da memória, já que essa é produto de


experiências pessoais. Ao lidar com a memória como fonte histórica, o historiador deve levar
em conta tal caráter. Usemos novamente o período da Ditadura Militar no Brasil como
exemplo. A memória de um oficial do Exército a respeito do período, muito provavelmente,
será recheada de saudosismo e de orgulho. Já o parente de um exilado/torturado/desaparecido
durante o regime guarda uma memória traumática sobre o período. Além dessa dualidade,
devemos considerar a memória como algo maleável, não concreto. Nem sempre nos
lembramos de todos os detalhes dos acontecimentos com precisão. Lembramos de algumas
coisas e não de outras e, às vezes, alteramos alguns detalhes para deixar a memória mais
atrativa. É dessa mesma maneira que o historiador trata a História. Selecionamos aqueles fatos
que mais nos interessam para escrever a história que queremos contar.

Ainda nessa relação memória-história, podemos levantar as ideias de Pierre Nora. Para
o historiador francês, o criticismo da história busca destruir a memória, deslegitimando o
passado vivido. “No coração da história trabalha um criticismo destrutor de memória
espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e
a repelir. A história é deslegitimação do passado vivido.” 5Entrando em conflito com a
concepção do Partido, Nora caracteriza a memória como absoluta e a história como relativa.
Bom, a história contada pelo Partido é a verdade absoluta e, ao mesmo tempo que apaga a
memória como algo relativo da mente humana, a inclui na realidade, já que o real só existe na
mente humana. Acabamos tropeçando no duplipensamento.

Enfim, com a discussão a respeito da memória, da documentação e do tempo dentro de


1984 e da historiografia, é possível enxergar o papel que esses podem assumir na manutenção
do poder e no controle social. Tendo controle total sobre a documentação, tem se controle
5
(Nora, 1993, p. 9)
19
sobre a história e consequentemente sobre o passado, a memória, o presente e o futuro. Livres
da manipulação do Partido, nós historiadores temos o papel de democratizar a História, torna-
la plural através do acesso livre à documentação e através da capacidade de interpreta-la sem
amarras. De história em história, de tijolo em tijolo, construímos a História.

3. Novafala e o poder político e filosófico da linguagem

Dentre os elementos mais marcantes da obra de Orwell, destaca-se a Novafala –


Newspeak, no original –, língua oficial do Partido. Cortando cada vez mais palavras do
vocabulário, tem como objetivo tornar impossível todo e qualquer pensamento contrário aos
ideais do IngSoc. Na verdade, no auge da Novafala, o pensamento será algo dispensável.

“Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o


âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime
literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. [...]
Mesmo agora, claro, não há razão ou desculpa para cometer pensamentos-
crimes. É pura e simplesmente uma questão de autodisciplina, de controle da
realidade. Mas, no fim, nem isso será necessário. A Revolução estará
completa quando a linguagem for perfeita. A Novafala é o Socing, e o Socing
é a Novafala [...] Alguma vez lhe ocorreu, Winston, que lá por 2050, no
máximo, nem um único ser humano vivo será capaz de entender uma
conversa como a que estamos tendo agora? [...] Todo o clima de pensamento
será diferente. Na realidade não haverá pensamento tal como o entendemos
hoje. Ortodoxia significa não pensa – não ter necessidade de pensar.
Ortodoxia é inconsciência.” (1984, pgs. 68, 69, 70)

Como vimos anteriormente, a Novafala converge com o projeto linguístico marrista 6


ao buscar a implementação de uma língua única, destruindo outra língua. O marrismo, no
nosso mundo foi considerado errado ao conceber ideologia e linguagem como elementos
essencialmente fundidos. Porém a Novafala de Orwell é a concretização, o triunfo da Língua
única mundial de Nikolai Marr. Através dela, o Partido está destinado a atingir o poder total
sobre os homens, o controle do pensamento.

6
Para uma exposição extensa, detalhada e embasada das características das teorias de Nikolai Marr, consultar
(Santos, 2011).
20
É interessante comentar também sobre o caráter filosófico que a linguagem pode
assumir, além da política e de ideologias. Toki Pona, assim como a Novafala, é uma conlang7
minimalista, oligossintética8, criada pela linguista canadense Sonja Elen Kisa em 2001 e
utilizada majoritariamente na internet por alguns milhares de falantes. Conta com apenas 120
palavras, mas, ao contrário da novafala, não visa limitar a liberdade de pensamento. Segundo
a própria criadora, pensar em Toki Pona é como um “yoga para a mente”, um exercício para
estimular a criatividade. Inspirada na filosofia taoista, Toki Pona está numa posição
completamente oposta à Novafala. Seus falantes a veem como um meio de pensar o mundo de
maneira mais calma e feliz.

Considerações finais

1984, desde o seu lançamento, causou um impacto cultural enorme, passando a ser
considerado um dos clássicos da literatura mundial, principalmente entre os romances
distópicos. Com um caráter crítico fortíssimo, conseguiu manter-se relevante e atual desde
1949 até 2019, 70 anos depois. Na sua época, alertou sobre os perigos do totalitarismo, e vem
fazendo o mesmo até hoje. Em 2013, após a WikiLeaks revelaram o monitoramento de dados
pelo governo norte-americano, as vendas do livro subiram em 6.888%. Em janeiro de 2017,
com a posse de Donald Trump como presidente dos EUA, foi o livro mais vendido na
Amazon.

Foram abordados aqui, então, uma gama de temas em volta de George Orwell e 1984:
a vida e experiências do romancista, bem como a influência das mesmas em sua obra; o
enredo de 1984 e os elementos que dão coesão e estruturam sua narrativa, bem como suas
especificidades; as reflexões no campo da historiografia a partir de temáticas do livro; e, por
fim, um breve comentário no campo da linguística, influenciado por uma inclinação temática
pessoal. Em conclusão, deixo registrada a minha admiração a esta incrível obra de George
Orwell e a satisfação com o resultado das pesquisas e do trabalho.

7
Linguagem construída, planejada. Pode ser feita por fins narrativos/fictícios ou para comunicação interpessoal
por diversos objetivos.
8
Que tem poucos morfemas no léxico, cerca de 100
21
Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Munis de. História: A arte de inventar o passado:


Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007. cap. 2, p. 53-65.

BLAHUŠ, Marek. Toki Pona – eine minimalistische Plansprache. Interlinguistische


Informationen: Spracherfindung und ihre Ziele, Berlim, p. 51-55, 2011. E-book (155 p.).

BURITY, Joanildo. A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao


poder?. In: ALMEIDA, Ronaldo de et al, (org.). Conservadorismos, fascismos e
fundamentalismos: análises conjunturais. 1. ed. Campinas: Unicamp, 2018. cap. 1, p. 15-66.

CARIMO, Mohomed. The abolition of the Past: History in George Orwell’s 1984. 2nd
International Conference on Humanities, Historical and Social Sciences, Singapura, v. 17, p.
71-76, 201. E-book (6 p.).

DERRIDA, Jacques. Autoimunidade: Suicídios reais e simbólicos. Um diálogo com Jacques


Derrida. In: BORRADORI, Giovanna (ed.). Filosofia em tempo de terror: Diálogos com
Jurgen Habermas e Jacques Derrida, Porto: Campo das Letras, 2004, pp.141-176.

HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como ferramenta de análise
rádical da modernidade. Anu. Lit., Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 201-215, 2013.

KISA, Sonja Elen. Toki Pona: The language of good. [S. l.: s. n.], 2014. E-book (134 p.).

NORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. Proj. História, São
Paulo, ed. 10, dez. 1993.

ORWELL, George. 1984. 29. ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 414 p.
22
SANTOS, Rodrigo Fernando Assis dos. O conceito de língua/linguagem em 1984 de Orwell.
2011. Dissertação (Mestrado em Línguistica Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, [S. l.], 2011.

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