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H . D .

GARD EIL

IN ICIAÇÃO À FILOSOFIA
D E S. TOMÁS D E AQU IN O
PRIMEIRA PARTE:
IN TROD U ÇÃO GERAL E LÓGICA

IN TROD U ÇÃO H ISTÓRICA


E LITERÁRIA

1. O PR OBLEM A IN TELECTU AL D A CR ISTAN D AD E N O TEM PO D E S. TOM ÁS.

A obra de S. Tom ás é considerada, m ais ainda do que a de outros grandes


filósofos, com o um im ponente m onum ento, encarado fàcilm ente com o um a peça única e fora
de todo contexto histórico. É certo que, no que toca à verdade, tem -se de
reconhecer que esta obra tem um valor absoluto e, portanto, transcendent e. A olhá-la
m ais de perto, porém , percebe-se que ela traz igualmente, sob m uitos aspectos, a
m arca do seu tem po. Isso é evidente no que diz respeito ao gênero literário de seus
escritos e um pouco m enos, talvez, no tocante ao seu conteúdo. Chegar-se-á,
portanto, a um a com preensão m ais adequada do pensam ento de S. Tom ás qua ndo se levar
em conta as condições concretas de sua form ação e a m aneira pela qual ela foi
expressa. É com relação a êste ponto de vista que irem os nos situar nesta prim e ira
parte.

2 . CR ISTAN D AD E E CU LTU R A AN TIGA.

Até os tem pos m odernos, o pensam ento do Ocidente estêve condicionado por um
acontecimento m aior: o encontro da m ensagem evangélica ou, da sabedoria cristã, com a
cultura da antigüidade. Todos os grandes problem as intelectuais giravam até então,
em tôrno dessa conjunção. Teríam os de esperar o fim da Renascença para que os
espíritos se vissem dom inados por outras preocupações, nascidas do choque da pró pria
sabedoria cristã, então tôda penetrada pelo helenism o, com um a concepção das coisas
que o progresso das ciências e das técnicas renovara com pletam ente. O interêsse não
é m ais em tôrno de um passado que sobrevive, m as de um futuro que se delineia.
Voltando ao problem a geral do helenism o e do cristianism o, tentem os inicialm ente dar um a
idéia dessas duas fôrças.

O que im pressiona no prim eiro instante, é a oposição entre a sabedoria evangélica e


a sabedoria pagã, que o Apóstolo deveria acentuar de m aneira tão brilhante:
oposição concernente ao princípio dessas sabedorias, de um lado a fé, do outro a
razão natural; oposição relativa a seus conteúdos, um a vez que o cristianism o se
apresenta sobretudo com o um a m ensagem de salvação, enquanto que a sabedoria antiga se
ordenava para um a visão cientificam ente organizada do m undo; oposição, finalm ente,
quanto aos destinatários: os sim ples, as m ultidões, clientela privilegiada do
Evangelho, em face das classes cultivadas que visavam principalm ente as liçõ es dos
filósofos da Grécia. O Cristianism o é a sabedoria da Cruz, que parece nada ter em
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com um com a sabedoria do m undo.

Entretanto, observando m elhor, verifica-se logo que entre as duas sabedorias há


tam bém pontos de contato. Não se pode deixar de reconhecer, com efeito, que a
m ensagem cristã é bem m ais provida de filosofia do que nos pareceu a princípio. N ão
há na Escritura, doutrinas, a do Logos por exem plo, bastante próxim as das
concepções gregas, para que se tenha invocado, a seu respeito, um a influência
determ inante do pensam ento pagão? Ao inverso, não encontram os nos tesouro s da

s abedoria helênica m uitos elem entos que já prenunciam o Cristianism o?

Se, portanto, entre os dois grandes fatôres culturais era de se prever um a luta, que
efetivam ente se realizou, tentativas de harm onização ou de assim ilação recíproca
não podiam deixar de se produzir. A história dessas tentativas, m ais ou m enos bem
sucedidas, é a própria história do pensam ento cristão durante quinze séculos.

3 . A OBR A R EALIZAD A ATÉ O SÉCU LO X III.

O problem a se coloca desde as prim eiras gerações cristãs, No século II, São
J ustino se esforça por explicitar as relações de um a sabedoria pagã que apreciava, e
a que não pôde totalm ente renunciar, com a fé pela qual derram ará o seu sangue No
século seguinte, sabe-se, é em Alexandria que é necessáric buscar o centro
intelectual ativo da cristandade. Ali, Clem ente; em seu PROTRÉPTICOS Ou
em seus STROMATEIS, prossegue a obra de conciliação. No século V, com
Santo Agostinho, Boécio e o Pseudo-Dionísio, que se tornarão com o que os t rês
preceptores do Ocidente m edieval, se conclui esta prim eira fase da assim ilação viva da
filosofia grega. A que resultados exatam ente se chegou até então?

E m santo Agostinho encontram os o prim eiro grande sistem a de filosofia cristã. Não
que no pensam ento dêste Doutor um conjunto especulativo orgânico se ache constitu ído
por fora da fé, m as, sim , que o exercício teórico da razão é aí reconhecido como
legítim o e que, de fato, é considerável a parte da especulação filosófica. A obra
original de santo Agostinho, com relação ao pensam ento antigo, é sobretudo
representada pela assim ilação do neo-platonism o, então a filosofia m ais atuan te, e
cuja peça m estra era a teoria das idéias. O Doutor de Hipone, colocando as
"idéias" em Deus, conseguia dar um a unidade satisfatória ao m undo de Platã o e ao da
Bíblia. Esta tarefa de assim ilação das especulações platônicas será continuada
paralelam ente, algum as décadas m ais tarde, por Dionísio que tôda a Idade Méd ia
identificaria com o discípulo de Areópago. Aristóteles, por sua vez, será
introduzido sobretudo por Boécio, graças ao qual sua obra atingirá as escolas do
Ocidente. Mas é capital observar aqui que o Aristóteles dos escritos de Boécio é
quase exclusivam ente o Aristóteles do Organon. Quando o conjunto dos tratados do
Estagirita se perder, dêle não restará pràticam ente senão esta parte de sua
filosofia.

Se se tentar, portanto, estabelecer o balanço do que possui o Ocidente logo depois da


queda de Rom a e da subm ersão de sua cultura pelos bárbaros, deve-se enum erar, em
prim eiro plano com as artes liberais, herança da literatura do baixo-im pério, êsse
conjunto de concepções neo-platônicas que Dionísio e sobretudo Santo Agostinho,
haviam incorporado à sua visão cristã do m undo, e a Lógica de Aristóteles,
conservada por Boécio. Todo o resto da filosofia antiga, ou quase, vai se perd er.
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A época patrística term ina, pois, antes que a obra da confrontação das duas
sabedorias tenha podido ser conduzida a seu têrm o. A tarefa m ais árdua, a
assim ilação do sistem a de Aristóteles, está apenas com eçada. Vai ser necessário
esperar que novam ente surja o conflito helenism o-cristianism o, para que a totalid ade do
prim eiro dêstes conjuntos volte a ser colocada em circulação.

N ão se pode deixar de invocar, aqui, grandes etapas percorridas pelo pensam ento
cristão antes da m aior crise do século XIII, crise a que S. Tom ás será
justam ente cham ado a dar um a solução. A reconstrução da cultura ocidental data da
Renascença carolíngea. É necessário, porém , esperar o século X11 para que a
vida intelectual tom e um a verdadeira am plitude. Até então perm anece em voga sobretudo
o conjunto das idéias divulgadas pelos m estres que já apresentam os. Entretanto, os
acontecimentos decisivos se preparam : o conjunto da filosofia de Aristóteles está em
vias de ser traduzido, e m isturado aos com entários dos Árabes e dos J udeus, com eça a
penetrar nas escolas do Ocidente. É com essa nova introdução do peripatetism o na
cristandade que se inicia efetivam ente a história do pensam ento de S. Tom ás.

4 . A IN TR OD U ÇÃO D A FILOSOFIA D E AR ISTÓTELES N O OCID EN TE.

As prim eiras traduções latinas que deviam possibilitar ac Ocidente o conhecim ento das
principais partes da obra do Es. tagirita, foram em preendidas na segunda m etade do
séculc XII. Eram traduções feitas do árabe, e num am biente que estava, então em
estreito contato com a cultura m uçulm ana de Toledo. J untam ente com os escritos d e
Aristóteles, foi tra duzido um certo núm ero de escritos de seus com entadores anti gos
(Alexandre de Aphrodise, Thém istius, Philopon) e árabe-judeus (Alkindi,
Alfarabi, Avicena, Avicebron).

A leitura dêstes tratados, que abrem um nôvo m undo aos professôres de teologia
cristãos, provocou um verdadeiro choque. Tem os um sinal inequívoco disto na sér ie de
interdições de que foram objeto por parte das autoridades eclesiásticas que tem iam um
pensam ento aparentem ente tão pouco assim ilável. O problem a que, no fundo, êste
acontecimento levantava diante da inteligência cristã era o da escolha entre um a
filosofia de inspiração peripatética, e um a outra, que até então tivera o apoio dos
teólogos, e que era dom inada pela influência de Platão. Tentem os representar o qu e
podiam trazer para o pensam ento cristão, de positivo e de negativo, as especulações
das duas grandes filosofias.

O platonism o se apresentava garantido pelo seu reconhecim ento de um m undo superior, o


das idéias, e de um a intuição direta dêsse m undo. A partir dêsse ponto m áxim o, o
universo se desenvolvia hieràrquicam ente, segundo um processo de em ana ção no q ual se
exprim ia a causalidade divina. No hom em , a distinção da alm a com relação ao corpo
se via particularm ente acentuada. Em face dêsse idealism o espiritualista, no qual o
acôrdo com o pensam ento religioso parecia tão fácil de se realizar, em vista da
im precisão de alguns de seus tem as que o tornavam m ais fàcilm ente flexível, o
aristotelism o, pelo contrário, apresentava-se com o um em pirism o científico. Sua
doutrina do conhecim ento, sua antropologia, sua física, tinham m ais clareza e
objetividade. Em m etafísica havia igualm ente progresso no que concernia à
determ inação dos conceitos fundam entais, assim com o no seu rigor sintético . Mas para
um cristão, além de algum as incertezas, essa m etafísica oferecia dificuldades
consideráveis. A eternidade do m undo e da m atéria, adm itidas com o postulado s, não
vão de encontro ao dogm a da criação? A espiritualidade do conhecim ento hum ano, sua
aptidão para atingir as verdades superiores, não se encontram com prom etidas pela
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im plicação por dem ais m arcante da vida intelectual na dos sentidos? Pode-se falar ainda
de Causa criadora e de Providência, com êste ato puro concentrado sôbre si m esm o,
que coroa o sistem a? Essas lacunas e essas obscuridades, assim com o um a am biência
positiva e científica, colocarão os pensadores religiosos, tanto os do Islam quanto
os do Cristianism o, em guarda contra as especulações do Estagirita. Dom inados po r
seu valor racional sem par, êles não poderão evitar de se perguntar se os valôres
religiosos, que evidentem ente colocam acima de tudo, não sairiam perdendo em a liar-se
com um pensam ento espiritualm ente tão pouco acolhedor.

E ssa atitude de reserva m ais ou m enos hostil em relação à obra reconquistada de


Aristóteles será, no início do século XIII, a m ais com um . Por causa da
influência dom inante que não cessará de exercer sôbre os espíritos o pe nsam ento do
doutor de Hipona, falar-se-á a seu respeito de agostinism o. Ao lado de alguns
seculares e de m uitos pregadores, êste m ovim ento doutrinal abrangerá o conju nto dos
m estres franciscanos, tendo Alexandre de Hales e S. Boaventura na liderança.

N um outro extrem o, no últim o terço do século, um grupo de m estres da Universidade


de Paris se inclinará, com Siger de Brabant, no sentido de um a aceitação de um
aristotelism o de estrita obediência, tal com o propunha o grande com entador árab e
Averrois. Teses essenciais do pensam ento cristão, com o Providência e im ortalidade
pessoal da alm a, encontrar-se-ão seriam ente com prom etidas. Através de censuras
rigorosas, im postas em 1270 e em 1277, o Bispo de Paris, Étienne Tem pier,
tentará reprim ir os em preendim entos dêsse aristotelism o por dem ais ortodo xo.

Antes dêstes últim os acontecim entos, um a posição interm ediária surgiu, - onde se
m antinha o respeito pelo dogm a cristão e se buscava conservar tudo o que o
néo-platonism o agostiniano havia podido trazer de bom , m as onde se testem u nhava um a
sólida confiança no valor dos princípios e m étodos de Aristóteles, adotada pelos
dois grandes m estres dom inicanos, Alberto Magno e Tom ás de Aquino: o prim eir o
voltado m ais para o m undo físico e m ais interessado pela ciência, porém m ais eclético
e m enos profundo; o segundo conseguindo afinal, com seu gênio de síntese superior, a
obra de assim ilação, pelo cristianism o, dessa filosofia de Aristóteles que parecia
destinada a destruí-lo.

E m resum o, esta é a significação histórica e a posição do pensam ento de S.


Tom ás de Aquino.

5. AS GR AN D ES ETAPAS N A VID A D E S. TOM ÁS.

Todos os fatos da vida de S. Tom ás estão longe de serem conhecidos com precisão, e
sôbre pontos im portantes ficam os ainda na incerteza. A Historia EccIesiae de
Ptolom eu de Lucques (1312-1317 ), a Historia beati Thom ae de Aquino de
Guilherm e de Tocco (em tôrno de 1311) e os Atos dos processos de canoniza ção de
Nápoles (1319) e de Fossanova (1321) constituem os docum entos de base de sua
biografia. Entre os trabalhos m odernos destacam -se prim eiram ente os do Padre M andonnet
op (+1936) e de Mons. Grabm ann (+ 1948). O Pe. Walz op, no Dict.
de Théol. cath., art. S. Tom ás, apresenta um a boa exposição da quest ão.
Eis aqui, sim plesm ente enum eradas, as grandes etapas da vida de S. Tom ás.

Origem . S. Tom ás nasceu provàvelm ente em 1225 no Castelo de Roccasecca,


perto da cidade de Aquino, no Reino de Nápoles. Pertencia a um a fam ília de grandes
senhores, aliados do im perador e devotados à sua causa.
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Em Monte-Cassino (1230 -1239) . Aos cinco anos de idade, o jovem Tom ás


é confiado, por seus pais, para sua prim eira educação, à abadia vizinha de
Monte-Cassino. Pode-se crer que o desejo de vê-lo um dia na direção do célebre
m osteiro não deixou de influir nesta decisão.

N a Universidade de Nápoles (1239-1244). S. Tom ás aperfeiçoa sua


form ação literária e com eça seus estudos de filosofia em Nápoles, on de tem , em
particular, com o m estres: Martinho de Dacie (para a Lógica) e Pedro o Irlandês
(para a Física).

E ntrada na Ordem Dom inicana (1244-1245 ). Em 1244, o jovem estudante


tom a o hábito dos Pregadores, no convento de San Dom enico de Nápoles.
Descontentes, os pais prendem e escondem o noviço que, depois de diversa s peripécias,
conseguirá finalm ente a liberdade de seguir sua vocação.

Os estudos na Ordem de São Dom ingos (1245-1252). É m uito provável que


S. Tom ás tenha sido inicialm ente estudante no Studium de Saint-J acques de Paris
(1245-1247) , e tenha seguido seu m estre Alberto Magno à Colônia, onde aperfeiçoou
sua form ação (1247-1252) .

S. Tom ás, bacharel em Paris. (1252-1256). Designado para lecionar em


Paris, que era então o centro intelectual da cristandade, S. Tom ás com eçou, de
acôrdo com o costum e, por "ler" a Bíblia de m aneira contínua e rápida
(Cursorie), durante dois anos. Depois, durante outros dois anos, com ent ou as
Sentenças de Pedro Lom bardo.

S. Tom ás, m estre em Paris (1256-1259) . Adm itido com o m estre ao m esm o
tem po que São Boaventura, S. Tom ás com enta a Bíblia (ordinarie), realiza su as
prim eiras questões disputadas (De Veritate), e em preende a com posição da Sum m a
Contra Gentiles.

E stadia na Itália (1259-1268) . A pedido do Papa, S. Tom ás vai à


Itália para aí exercer as funções de leitor da Cúria. Acom panha es ta a Anagni, a
Orvieto e volta a Rom a. Sua atividade intelectual é então das m ais intensas: ensin a
a Sagrada Escritura (curso ordinário para m estres), discute num erosas questões,
conclui o Contra Gentiles, com põe a Catena Aurea, com enta Aristóteles, inicia a
Sum a Teológica, etc.

P rofessor pela segunda vez em Paris (1269-1272) . Cham ado a Paris por
ocasião da crise intelectual provocada pelo m ovim ento averroista, S. Tom ás tom a
posição na polêm ica e prossegue incansàvelm ente na sua tarefa de professor e de es critor
(com entários da Sagrada Escritura, de Aristóteles, Questões Disputadas, Sum a
Teológica, opúsculos diversos).

P rofessor em Nápoles (1271-1273). Designado para assum ir a direção do


nôvo Studium generale em Nápoles, S. Tom ás tem , além dos trabalhos ha bituais de
m estre, um a notável atividade apostólica.

Convocação ao Concílio de Lyon, doença, m orte. (1274). A pedido de


Gregório IX, S. Tom ás parte para participar do Concílio de Lyon. Dura nte a
viagem fica doente e m orre, a 7 de m arço, na abadia cisterciense de Fossanova.
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6 . PR OBLEM AS R ELATIVOS ÀS OBR AS D E S. TOM ÁS.

Falecido aos 49 anos, S. Tom ás teve um a prodigiosa atividade co mo professor e


e scritor: tôdas as m atérias filosóficas e teológicas estudadas em seu tem po foram
abordadas por êle. Dos num erosos trabalhos que êle deixou, alguns (lições,
questões disputadas), representam o fruto direto de seu ensino. Outros (Sum as,
opúsculos diversos) são com posições livres. Alguns dêstes trabalhos foram es critos
por êle próprio, outros sòm ente ditados, e há ainda os que foram sim plesm ente
reportados. Além disto, observar-se-á que num erosos apócrifos se encontram na
com pilação clássica dos Opera om nia, que não foram com postos com um a verdad eira
preocupação crítica. Na edição Vivès por exem plo, a m ais com pleta de tôdas, são
encontrados 140 escritos, agrupados em 32 volum es, sem qualquer ordem
cronológica, não havendo possibilidade de se distinguir o que é e o que não é
verdadeiram ente de S. Tom ás. Estas observações - e se poderiam fazer outra s
análogas m ostram que a obra literária do nosso Doutor com porta m uitos prob lem as.

A prim eira questão que se pode colocar a respeito das obras de um autor é,
e videntem ente, o de sua autenticidade. Na Idade Média, parece não ter havido um
escrúpulo excessivo no que diz respeito à propriedade literária e, por outro la do,
pode ter havido êrros ou fantasias dos copistas, sem contar que num erosos m anuscr itos
circulam anônim os. Assim , não é de adm irar que m enos de m eio século após sua
m orte, tenha se tornado tão difícil fixar com exatidão a lista das obras de S.
Tom ás. Para prevenir êste inconveniente, procurou-se então organizar catálogos: n as
prim eiras décadas do século XIV foi lançada tôda um a série dêles. Esses
catálogos perm anecem com o docum entos de prim eira ordem para determ inar
a autenticidade dos escritos de nosso Doutor, m as infelizm ente êles não
coincidem entre si de m aneira perfeita. Por outro lado, é visível que tam bém não
foram com postos com suficiente preocupação crítica. Portanto, tom ados isoladam ente,
o seu testem unho nem sem pre é decisivo.

Diante dessas dificuldades, os editôres da P iana (século XVI), se contentarão


e m colocar prudentem ente à parte um a série de escritos que êles qualificaram de
duvidosos. Os prim eiros trabalhos de crítica realm ente séria a êsse respeito são os
de dois dom inicanos, do início do século XVIII, os Padres Échard e De
Rubeis. Hoje, a questão foi inteiram ente reform ulada, notadam ente pelo Pe.
Mandonnet (Les écrits authentiques de saint Thom as d'Aquin, 2.a ed., F ribourg
(Suisse), 1910 ) e por Mons. Grabm ann.

A que resultados se chegou? Pode-se dize r que de um m odo geral chegou-se a um acôrdo
s ôbre a autenticidade ou não, de quase cada um a das obras em questão. Se subsistem
algum as dúvidas, estas se referem sòm ente a alguns opúsculos de pouca im portância.
Para o fundam ento da doutrina, em todo caso, nenhum problem a sério se coloca sob ês se
ponto de vista. - Na prática, poder-se-á utilizar o quadro preparado pelo Pe.
Mandonnet, em seus Écrits authentiques. Este quadro agrupa 140 escritos, 75
m arcados com o autênticos e 65 com o apócrifos. Estes últim os, apressem o-no s em
dizê-lo, constituem de fato m enos da décim a parte do conjunto e não com preen dem qualquer
das obras m ais im portantes. O estudante de filosofia notará que a Sum m a totius
logicae, algum as vêzes utilizada nas exposições do pensam ento de S. Tom ás, não é
dêle.

O esta belecim ento da cronologia das obras de S. Tom ás coloca problem as m ais árduos
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ainda. Alguns pontos im portantes estão entretanto assegurados e a. classificação
aproxim ativa das grandes obras está quase tôda realizada. Nós nos contentarem os aqui
em rem eter o leitor ao artigo citado, do Pe. Walz, que dá, em quadro, o estado
atual das pesquisas.

Pode-se perguntar em que m edida é exigido para o estudo de S. Tom ás, o


conhecim ento da cronologia de suas obras. Em se tratando de um a filosofia em perpétuo
desenvolvim ento, a de um Platão, por exem plo, ou a de um Fichte, é claro q ue não
se pode deixar de seguira ordem cronológica de seus escritos, sob pena de cair-se na
m aior das confusões. No caso de S. Tom ás essa ordem não é tão necessária,
quanto ao conjunto de seu pensam ento. A parte o caso das Sentenças e de alguns
opúsculos que de m aneira m anifesta representam um estado prim itivo e m en os elaborado de
sua doutrina, pode-se dizer que êle se afirm a, desde o Contra Gentiles e o De
Veritate, em plena e lúcida posse do que será sua síntese definitiva. O que
im ediatam ente, m ais im pressiona em S. Tom ás é a fundam ental estabilidade d e um
pensam ento tão ràpidam ente tornado adulto. Adm itido isso, resta que êle p ode ter
evoluído em alguns pontos particulares. Pelo m enos a prim eira fase de sua doutrina t em
m uito a ganhar quando considerada à parte. Há vantagem , portanto, em certos caso s,
e êsse é o caso das Sentenças, em se levar em conta a cronologia.

Praticam ente, o principiante em filosofia, para quem escrevem os, poderá observar as
s eguintes discrim inações sum árias:

Prim eiro período de juventu de (1252-1256) :


Com entários sôbre as Sentenças, assim com o os opúsculos:
De ente et essentia, De principiis naturae, De
Trinitate.

Prim eiro pe ríodo de professorado em Paris, Início da


e stadia na Itália (1256-1264) : Questões
disputadas De Verilate, Contra Gentiles.

Período de plena m aturidade (1264-1274) : outras


q uestões disputadas, Com entários de Aristóteles, Sum a
Teológica, etc.

Observar que o Com pend ium theologiae não é, com o durante m uito tem po se acreditou, a
ú ltim a obra de S. Tom ás.

7 . AS OBR AS D E S. TOM ÁS QU AN TO AO SEU GÊN ER O LITER ÁR IO.

Ao prim eiro contato, o leitor m oderno das grandes obras m edievais não pode deixar de
ficar confundido pelos m étodos de exposição nelas utilizados. Há, evidentem ent e,
m uita diferença com relação aos nossos livros atuais. Portanto, não será
supérfluo, para introduzir ao estudo de S. Tom ás, dizer algum a coisa sôbre os
processos literários da época. Com o os autores de então, antes de tudo, são
professôres e, com o os escritos que êles deixaram são em grande parte fru to de sua
atividade professoral, será útil um a inform ação a respeito desta. (Para todo êste
parágrafo, Cf. CHENU, Introduction d l 'etude de saint Thom as d'Aquin;
Paris, Vrin, 1950 ).
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8 . OS PR OCESSOS M ED IEVAIS D E EN SIN O.

Tôda a pedagogia m edieval é à base de leitura de textos:

"Duas coisas principalm ente concorrem para a aquisição da


ciência, a leitura e a m editação"

Hughes S. Victor, Didascalicon, L.1,c.1

Através da m editação dá-se a assim ilação pessoal da doutrina, enquanto que pela
leitura ela é transm itida a outrem , ou é dêle recebida. Este ú ltim o processo é
tã o usado com o m étodo de ensino que o professor tom a o nom e de "leitor... lector",
e o próprio ato de ensinar consiste em "ler. . . legere". Lêem -se, por
exem plo, as Sentenças. Observar-se-á que êste costum e de ler os textos não de ve
deixar de ter relação com a tradicional lectio m onástica, a qual era sòm ente um m eio
de edificação.

Essa prática generalizada da leitura se deve, por um lado, ao respeito m uito grande
que então se tin ha pelos textos escritos. São poucos os que os possuem , e os livros,
a té a invenção da imprensa, eram raros e preciosos. São verdadeiros tesouros que se
exploravam com o m aior cuidado. Pode-se supor, por outro lado, que a teologia, à
base de textos, não deixou de ter um a influência sôbre o m étodo das outras
disciplinas.

Seja com o fôr, essa prática da "leitura" fazia com que os autores que se liam
fôssem respe itados. O texto é sagrado porque êle é a expressão do pensam ento de um
m estre reconhecido. Assim é que, ao lado da autoridade sem par da Sacra pagina, a
Idade Média venerará a autoridade dos Padres, a de S. Agostinho em particular,
dos quais jam ais se poderá apontar um êrro. Ao lado das autoridades pròpriam ente
sagradas, haverá as autoridades do terreno profano cujos textos serão "lidos" tam bém
com o m aior respeito: os de Aristóteles em filosofia e de Donat em gram ática, os d e
Cícero e Quintiliano em retórica, os de Galileu em m edicina, os do Corpus luris em
direito. Isto faz com que haja, em um nível inferior ao da escrita inspirada que
evidentem ente está à parte, todo um escalonam ento de autoridades de m aior ou m en or
pêso, a dos Sancti, a dos Philosophi e finalm ente a dos Magistri, que se tem plena
liberdade de não seguir.

Na prática, a "leitura" escolar se revestia de form as bastante variadas. Podia


com portar sòm ente breve s anotações, cham adas glosas, que figuravam nos m anuscritos
e ntre as linhas (glossa interlinearis) ou nas m argens (glossa m arginalis). As vêzes
o com entário do m estre se estendia em um a am pla exposição, com o por exem plo os
com entários de S. Tom ás sôbre Aristóteles. Outras vêzes, ainda, o m estre que
lia desenvolvia pessoalm ente o pensam ento do autor em questão, ou o parafraseava , com o
no caso de Avicena ou de Alberto o Grande.

Não há dúvida de que êsse m étodo de "leitura" das autoridades, que a princípio
foi a fonte de um enriquecim ento e de um desenvolvim ento autênticos da vid a intelectual,
p oderia levar com o tem po, ao perigo de afastar, cada vez m ais a atenção dos objetos
reais, para se concentrar na análise abstrata das fórm ulas e das noções. A
escolástica decadente incorrerá nessa falta que a conduzirá a um verbalism o bastante
vazio. Porém êsses excessos não condenam o m étodo no que êle pôde ter de fecundo
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durante tanto tem po.

Um texto necessàriam ente apresenta dificuldades ou, se se prefere, faz surgir


questões: assim é que o leitor será naturalm ente conduzido da lectio à quaestio que
s ignifica na ordem literária, que os Com entários se sobrecarregarão de Questões.

Essas questões podem nascer, seja de um a expressão que exigia m aior precisão, seja
de um a fórm ula que se prestava a equívoco, seja do confronto de várias
in terpretações contrárias, etc. Progressivam ente, cada vez m ais tom ando corpo, essas
explicações com plem entares vão tender a se tornar a própria form a do ensino escolar.
Por exem plo, é o que se deu com o com entário das Sentenças de S. Tom á s, onde a
exposição de Lom bardo fica reduzida, sim plesm ente, a um a m uito breve divisio textus,
enquanto a doutrina do com entador se estende am plam ente em longas séries de artigos .

Mera dificuldade textual a princípio, a Questão se tornou um sim ples processo de


exposição cuja autonom ia se afirm ava cada vez m ais. Coloca-se em questão os
p roblem as, não porque se tenha dúvidas realm ente sôbre suas soluções, m as porque se
acredita que assim êles serão m elhor apresentados. Da dificuldade original não rest a
m ais, nesse estágio, senão a fórm ula, com andada por um "Utrum " ou um
"Quom odo", seguidas de um a form a estereotipada de solução. Êsse processo se tornou u m
gênero literário próprio, que logo se separou da expositio textus, da qual não é
m ais do que um a superfetação.

A solução de um a questão, sobretudo a partir do sic et non de Abelardo, colocava em


jôgo, naturalm ente, opiniões ou a utoridades contrárias. Alguns se contentavam em
e xpôr o conflito em um a obra escrita, m as tam bém havia quem preferisse colocá-lo em
cena, por m eio de um debate público, onde os contraditores seriam personagens vivos .
De processo literário, a questão passava então para o gênero dos exercícios
acadêm icos: surgia a Questão disputada. No século XIII, êsse exercício terá
um lugar tão im portante, que ao lado das lições e dos serm ões que lhe eram
designados, cada m estre deveria, obrigatòriam ente, realizar disputas: "legere ,
disputare, praedicare", tais são suas funções habituais.

É bom saber que os textos das Questões disputadas, encontrados nas obras dos m estres
m edievais, não reproduzem ao pé da letra a disputa realizada na sessão solene de defesa
d as teses, m as sim um arranjo m etódico das anotações tom adas logo após, e que,
além disto, deviam ser dadas em aulas, dentro do currículo norm al num a segunda
reunião.

No seio dêsse gênero de exercícios escolares desenvolve-se um tipo especial de


questões d isputadas, o Quodlibet, assim denom inado porque, por ocasião dessas
r euniões podiam -se levantar não im porta que questões à consideração do m estre
defensor. Os Quodlibets eram realizados duas vêzes por ano, antes das festas do Natal
e da Páscoa e se revestiam de um a particular solenidade. Pode-se im aginar o quan to
deviam exigir, da parte do m estre, de in comura solidez e universalidade de saber! O
certo é que a essa prova nem todos se subm etiam e, as coleções de Quodlibets são
relativam ente raras. O interêsse dessas questões reside m ais na atualidade dos
assuntos tratados do que na am plitude das exposições, à qual fatalm ente,,
prejudicavam a dispersão e o im previsto das discussões.

Os esclarecim entos precedentes nos colocam finalm ente em condição de co m preender a


razão e de perceber o interêsse dos artigos que com põem m uitas obras m edievais, e em
p articular a Sum a Teológica de S. Tom ás. O artigo, tal com o se encontra nessas
10
obras, não é senão a redução das grandes disputas que acabam de ser descritas. Da
m esm a form a que elas, êle com eça por um a questão, "Circa prim um quaeritur...",
após o que vem a discussão, form ada antes de tudo pelo enunciado do pró ("videtur
quod..."), e do contra ("sed contra..."), que não correspondiam necessàriam ente
à tese sustentada pelo autor, em bora na Sum a Teológica seja êste o caso m ais
freqüente. Na realidade, essas prelim inares constituem com o que um prim eiro m anejar de
arm as, que a determ inação m agistral contida no corpo do artigo ("respondeo, dicendum
quod. . . ") vem concluir. Finalmente vêm as respostas aos argum entos "contra",
onde de ordinário nota-se a preocupação de salvaguardar, através de distinções
convenientes, a parte de verdade que podiam conter as objeções.

Sob a técnica um pouco pesada e uniform e dessas Sum as m edievais esconde-se u m a vida
intensa de discussões e de pesquisas expressivas de um a época em que a curiosidade e a
a gilidade intelectual foram notáveis. B possível que êsse form alism o tenha tido seus
inconvenientes, porém ele foi sobretudo um instrum ento de análise e de exposição de
incontestável eficácia.

9 . CLASSIFICAÇÃO, Q U AN TO AO GÊN ER O LITER ÁR IO, D AS OBR AS D E S.


TO M ÁS.

Todos os gêneros literários acima definidos se encontram nas obras de S. Tom ás:
lições, segu idas de explicações, nos com entários filosóficos e escriturísticos;
s istem as de questões ainda ligadas a um texto, com o no caso de tôdas as Sentenças e
do De Trinitate; Questões disputadas e Quodlibets; escritos sistem áticos
independentes, m as onde se encontra ainda a divisão em questão, a Sum a teo lógica,
por exem plo;, obras m ais livres, agrupadas de ordinário sob o título de opúsculos;
finalm ente várias séries de serm ões ou de collationes, aos quais seria nece ssário
acrescentar, para ser com pleto, alguns trechos de poesia religiosa.

10 . OS COM EN TÁR IOS SÔBR E AR ISTÓTELES.

Os com entários constituem a base de todo estudo direto da filosofia de S. Tom ás.
Disso decorre seu interêsse para nós. Parece terem sido tem as de aulas privadas dadas
p elo m estre a seus irm ãos de religião.

Sabe-se que no século XIII os textos de Aristóteles, da m esm a form a que os de


outros autores gregos, não foram pràticam ente acessíveis aos ocidentais senão em
tr aduções latinas. Que texto teria S. Tom ás podido consultar? O trabalho de
tradução de Aristóteles parece ter sido efetuado em três etapas. Até a m etade do
século XII tem -se um conjunto de traduções feitas principalm ente do grego das qua is
algum as rem ontam a Boécio. No final dêsse século, provocando a crise de que já
falam os, novas traduções foram feitas, porém agora do árabe que por sua vez não
rem ontava, sem dúvida, ao texto prim itivo senão através de versões sírias. É
evidente que os resultados só poderiam ser m uito im perfeitos. Para rem ediar êsse
estado de coisas, decidiu-se refazer o trabalho, partindo do grego. S. Tom ás deve
ter sido um dos incentivadores dêsse trabalho de aperfeiçoam ento. Em todo caso, foi a
seu pedido que Guillaum e de Moerbeke, que então se achava com ele na curia
pontifical, se dedicou, a partir do texto original grego, a fazer um a nova versão
latina. Foi essa versão que serviu habitualm ente a S. Tom ás em seus com entários, e
que se acha nas edições de suas obras. Muito literal, ela se recom enda m ais pela sua
precisão concisa do que por sua elegância.
11

No dizer de Ptolom eu de Lucca, S. Tom ás utilizou um nôvo m étodo em seus


com entários m ais rigoroso do que o com um ente usado. Substituiu a paráfrase um pouco
vaga pela análise precisa de tôdas as particularidades do texto, com pletada aliás por
um esfôrço de reconstrução sintética do tratado. Acrescentem os que, se teve a
preocupação pelo detalhe, e isso algum as vezes até à m inúcia, nosso Doutor se
m anifestava com o autêntico filósofo, jam ais perdendo de vista os princípios nem o
conjunto. Análise e síntese se conjugam , assim , num a harm onia genial.

Não há dúvida de que com entando Aristóteles, S. Tom ás desejou, ao m esm o


tem po, penetrar no pensam ento autêntico do filósofo e descobrir, sob sua orientação,
a verdade objetiva. Do ponto de vista exegético, deve-se reconhecer que sua obra
representa a m ais feliz realização de seu tem po. Regra geral, a interpretação d o
texto é perspicaz e fiel; hoje ainda é utilizada para com preender Aristóteles.
Entretanto, apesar de seguir conscientem ente seu m estre, S. Tom ás perm anece um
filósofo pessoal. Seu com entário, portanto, exprim e tam bém o seu próprio
pensam ento. Deve-se tão sòm ente observar que, ligado às idéias de um outro , ele
não tem aqui tôda a liberdade suficiente para desenvolver as suas, sendo necessário,
para ter-se um a idéia integral de sua filosofia, recorrer às outras de suas obr as onde
ela se desenvolve com plena independência.

Iniciada talvez na m etade do período italiano de sua vida professoral, a obra de


com entário de S. Tom ás prosseguiu até o fim de sua carreira. Aproxim adamente irá
d os anos 1265-66 a 1274. Com o subsistem m uitas dúvidas quanto à data
precisa de cada com entário, bastará darm os aqui sua relação, seguindo a ordem
clássica do Corpus aristotélico:

Periherm eneias (autêntico até II, I. 2 inclus.).


Segundos Analíticos.
F ísica (em 8 livros).
De coelo et m undo (autêntico até III, I. 8 inclus .).
De generatione (aut. at é I, I. 17 inclus.).
Meteorológicos (aut. a té II, I. 10 inclus.).
De anim a (em 3 livros).
De sensu, De m em oria.
Metafísica (com ent. dos 12 prim . livros).

Ética a Nicôm aco.


Política (aut. até III, I. 6 inclus.).

11. O COM EN TÁR IO SÔBR E AS SEN TEN ÇAS.

Sabe-se que o interêsse dêsse com entário deve-se ao fato de que êle representa o
pensam ento de juventude de S. Tom ás. Pertence, aliá s, a um tipo de obra tão
clássica na Idade Média que não será inútil dizer algum a coisa a seu respeito.

O ensino dos m estres da Faculdade de Teologia estava ligado à leitura da Bíblia e,


a prim eira iniciação nesse dom ínio se fazia seguindo o texto das Sentenças de P edro
Lom bardo. A explicação dessa obra durava dois anos e era confiada a um auxiliar do
m estre que, por essa razão, tinha o título de bacharel em sentenças. Norm alm ente,
portanto, um com entário sôbre as Sentenças correspondia ao início da carreira de um
12
teólogo.

Com postas em tôrno de 1150 pelo bispo de Paris, Pedro Lom bardo, as Sentenças
constituíam um a coleção bastante com pleta das principais questões teológicas, estando
e stas repartidas em quatro livros, tendo por objeto: o prim eiro, Deus uno e trino; o
segundo, a criação; o terceiro, a redenção e a graça; o quarto, os sacram entos e
os fins últim os. Êsse trabalho está longe de apresentar um a estrutura sistem ática
com parável à das futuras Sum as, porém isso m esm o contribuiu para seu sucesso pois dava
m ais lugar à livre interpretação. Por outro lado, as Sentenças se recom endavam por
sua ortodoxia e por um a larga inform ação escriturística e patrística. Um tal
conjunto de qualidades, ao m esm o tem po positivas e negativas, devia assegurar à obra de
Lom bardo um destino absolutam ente excepcional: durante vários séculos servirá de
m anual de teologia e pode-se avaliar em centenas o núm ero de com entários q ue foram
conservados.

O texto que possuím os corresponde ao curso efetuado por S. Tom ás no Studium


parisiense de s aint J acques, durante os anos 1254-1256 (com possíveis
r etoques feitos um pouco m ais tarde). Êsse texto se liga ao gênero da lectio em seu
estado de evolução para a quaestio. Cada um dos livros de Lom bardo é dividido em um
certo núm ero de "distinções" (48 no prim eiro livro; 44 no segundo; 40 n o
terceiro; 50 no quarto), repartidas algum as vêzes em várias "lições".
Obrigatòriam ente, distinções ou lições se articulam segundo um plano tripartido
com preendendo: uma divisio textus, análise lógico-gram atical, bastante sucinta, do
texto; um conjunto de quaestiones, subdivididas em artigos e às vêzes em
questiúnculas: finalm ente um a expositio textus ou um a expositio litterae, onde o a utor
repassa m uito ràpidam ente o texto estudado e resolve as últim as dificuldades. Todo
êsse aparato, m inuciosam ente ordenado, desagrada um pouco ao leitor m o derno, habituado
a exposições contínuas e m ais livres. Pelo m enos nós conhecem os agora sua origem e
podem os ver sua razão de ser.

12 . AS SU M AS.

S. Tom ás é célebre em tôda parte por sua Sum a teológica. Sabe-se m enos, em
contraposição, qu e esta obra pertence a um gênero literário m uito difundido em seu
te m po. Mons. Glorieux (art. Som m es théologiques, no Dict. de Th. cath.)
divide as sum as m edievais em três grupos, de intenção e de estrutura diferente s: as
Sum as com pilações, onde dom ina a preocupação da com pilação com pleta, porém não
organizada sistem àticam ente (florilégios de textos escriturísticos ou patrís ticos,
por exem plo. Na obra de S. Tom ás, a Catena aurea); as Sum as abreviadas, onde
sobretudo se busca a brevidade exata (gênero léxico ou catecism o); as sum as
sistem áticas finalm ente, que visam dar um ensinam ento de conjunto orgânicam e nte
estruturado. É neste últim o grupo que se encontram as duas grandes Sum as de S.
Tom ás.

A Sum a contra os Gentios é um a obra apologética que teria sido escrita a pedido de
Raim und o de Pennafort, m estre geral dos pregadores, por ocasião do problem a da
conversão dos m ouros do reino de Valência, recentemente reconquistado pelos cristãos.
Deve-se observar, entretanto, que os argum entos apresentados não visam unicam ent e aos
m uçulm anos. Os "gentios" são tam bém os heréticos, os judeus, os pagãos, em um a
palavra todos os heterodoxos. Há concordância em datar o início da Contra Gentiles
no final do prim eiro ensinam ento do m estre (1258 aproxim adamente). A obra teria
sido term inada na Itália (por volta de 1263-64) .
13

Devido ao lugar considerável que os argum entos racionais têm na Contra Gentiles,
confere-se às vêzes a esta obra, em paralelism o com a "Sum a teológica", o título
d e "Sum a filosófica". Tal designação é totalm ente inexata, com o ressalta do
conjunto de seu conteúdo e, de sua intenção, form alm ente expressa em várias
passagens, que é a defesa das verdades da fé. Trata-se, portanto, de um a apologia
da fé católica, sistem àticam ente valorizada em face dos não-crentes e de suas
objeções.

A Sum m a Contra Gentiles foi dividida pelo próprio S. Tom ás (cf. I, c. 9 e


IV, proem ium ) em duas grandes partes. A prim eira tem com o objeto as verdades da fé
a ccessíveis à razão, Deus (1. I), a processão das criaturas a partir de Deus
(1, II), a ordenação das criaturas a Deus com o ao seu fim (1. III). A
segunda tem com o objeto as verdades que ultrapassam a razão, quer dizer, os m istérios
da fé, a Santíssim a Trindade, a Encarnação, a Beatitude sobrenatural (1.
IV). É interessante observar que, diferentem ente do que fêz nas Sent enças ou na Sum a
teológica, S. Tom ás não usou nesta obra o processo clássico da quaestio. Os
argum entos que propõe em tôrno de cada assunto sucedem -se em pequen os parágrafos
concisos sem aparente ligação orgânica.

A Sum a teológica não é fruto de um ensino escolar. Tam bém não é, propriam ente
falando, um a obra de circunstância. Ela re presenta m ais um a iniciativa pessoal do
m estre, realizada na intenção de auxiliar os estudantes principiantes. Com o observa
êle no Prefácio da obra, êstes encontram nas exposições habituais três espécies de
dificuldades: m ultiplicação de questões, artigos e argum entos inúteis, falta de
disposição m etódica nas razões alagadas que aparecem ao sabor das circunstâncias do
texto com entado ou por ocasião das disputas e, finalm ente, a fadiga e a confusão qu e
resultam da repetição dos m esm os argum entos. A fim de evitar êsses inconvenientes,
S. Tom ás se propôs a expôr a verdade cristã com brevidade e clareza (breviter ac
dilucide), quando a m atéria o perm itia. É fácil de se constatar que a apresentação
exterior da Sum a está perfeitamente adaptada a êsses fins: divisão sim ples e regular
em partes, questões, artigos; redução do núm ero das objeções, geralm ente a
apenas três, com um único argum ento sed contra; determ inação sob form a conden sada e
clara, da doutrina, no corpo do artigo; finalm ente, breve resposta às objeções.
Basta com parar a Sum a Teológica com outras obras da época para que estas vantagens
im ediatam ente apareçam .

A cronologia da Sum a é a seguinte: a I.ª Pars dataria da segunda m etade da estadia


na Itália (a partir de 1266); a II.ª Pars corresponderia, sem dúvida, ao
s egundo ensinam ento parisiense (1269-1272) ; a III.ª Pars, finalm ente,
teria sido realizada em Nápoles, onde S. Tom ás a deixou inacabada (fim de
1273). O suplem ento (a partir da q. 70 ) não é senão um a com pilação de textos
das Sentenças, redigido por Reinaldo de Piperno, secretário e confidente do santo.

A Sum a Teológica está construída sôbre o plano, aliás perfeitam ente clássico,
da processão das criaturas e de seu rotôrno a Deus, retôrno êste de início
considerado de m aneira m ais abstrata e do ponto de vista da m oralidade e, depois, na
perspectiva da Encarnação redentora ou do Christus, via. Bastará lem brar aqui os
títulos destas grandes divisões:

I.ª Pª . De Deus uno e trino, e da processão das


criaturas a partir de Deu s.
14
II.ª Pª . Da volta da criatura racional para Deus.
Iª -IIae, em seus princípios gerais; IIª -IIae, segundo
a s virtudes particulares.

III.ª Pª . Do Cristo que, enquanto hom em , é para


nós o cam inho da volta pa ra Deus.

13 . OU TR AS OBR AS.

O estudo da filosofia de S. Tom ás supõe ainda o auxílio constante de duas outras


séries de obras im portan tes. A prim eira delas é constituída pelas Questões
d isputadas, onde freqüentem ente se encontram os m ais profundos desenvolvim entos de sua
doutrina. J á é suficiente o que dissem os sôbre o gênero literário dessas obras.
Acrescentem os, sim plesm ente, que as questões m ais utilizadas em filosofia s ão, em
prim eira linha, o im portante conjunto De Veritate, e, depois dêle o De potentia.
As questões De anim a, De spiritualibus creaturis e De inalo devem tam bém ser
consultadas.

A segunda série com preende todo um grupo de opúsculos, de tam anho aliás m uito
variável, entre os quais não se pode deixar de assinalar, para a filosofia: o De
p rincipiis naturae, o De aeternitate m undi, o De ente et essentia, o De unitate
intellectus, e o com entário sôbre o De causis, obra de Proclus, bastante conhecida
na Idade Média, de cuja inautenticidade aristotélica S. Tom ás foi o prim eiro a
suspeitar.

14 . A ESCO LA TOM ISTA E A IN FLU ÊN CIA D E S. TOM ÁS.

N este parágrafo, pretendem os expôr apenas um a visão extrem am ente sum ária do
m ovim ento intelectual que se acha sob a influência de S. Tom ás.

Quando vivo ainda, S. Tom ás já suscitava ao m esm o tem po discípulos fervorosos e


adversários decididos. Na própria Ordem dos Pregadores, a resistê ncia à sua
d outrina foi suficientem ente séria para que um personagem tão im portante com o
ROBERT KILWARDBY arcebispo de Cantuária, ousasse condenar algum as de suas
teses. Entretanto, a m aioria de seus irm ãos em religião não tardaram em se de clarar
de seu lado, e, desde o fim do século XIII, os Capítulos Gerais Dom inicanos
tom aram oficialm ente posição a seu favor. Fora da Ordem , não faltam tam bém
testem unhos m ais laudativos, entre êles, notadam ente, o de GIL DE ROMA,
m estre geral dos Erem itas de santo Agostinho, discípulo aliás bastante pessoa l do
m estre. E, logo, o título significativo de Doctor com m unis consagrará sua
reputação.

A m ais viva oposição, no século XIII, vem principalm ente do grupo dos
teólogos, sob retudo franciscanos, que perm anecem m ais estritam ente ligados à tradição
a gostiniana. A essa oposição, e às reações que ela devia suscitar, se liga tôda
um a literatura polêm ica, cham ada corretórios, que m arca os avanços do pensam ento de
S. Tom ás no curso das décadas que se seguiram à sua m orte. Entre seus partidários,
destacam -se dois inglêses, GUILHERME DE MAKELFIELD e RICHARD
KLAPWELL, um m estre de Saint J acques cham ado J EAN GUIDORT, e o m estre geral
da Ordem , HERVÉ DE NÉDÉLEC.
15
O prim eiro com entário própriam ente dito da Sum a teológica foi feito por um regente de
Toulouse, J EAN CAPRÉOLUS (t 144 4), que escreveu Defensiones
th eologicae Divi Thom ae.

Nesse m eio tem po, S. Tom ás havia sido canonizado por J oão XXII, em 18 de
julho de 1323. Será declara do Doutor da Igreja universal por S. Pio V, em
2 1 de abril de 1557.

15. OS GR AN D ES C OM EN TAD OR ES D E S. TOM ÁS E AS CON TR OVÉR SIAS


T EOLÓGICAS D OS SÉCU LOS X VI E X VII.

Após um período de m enor fecundidade, o m ovim ento dos estudos escolásticos retom a um
nôvo vigor no início do século XVI. Na literatura tom ista, essa renovação se
tr aduz sobretudo pela produção de tôda um a série de com entários da Sum a que, pelo
m enos nas escolas dom inicanas, tornara-se o livro regular de texto. Os m estres
tom istas m ais célebres dessa época são:

A. Mestres dom inicanos.

CAIETANO (1468-1534). Thom as de Vio,


cardeal Caietano, hom em de um a notável atividade
in telectual que exercia funções de prim eiro plano: m estre
geral dos Pregadores (150 7-1510 ) ; e legado do
papa na Alem anha (1517) . Escreveu perto de 150
obras entre as quais 120 opúsculos de teologia. É
conhecido sobretudo pelo seu com entário literal da Sum a
onde, com um a rigorosa precisão e grande clareza, se
esforça por seguir com a m aior exatidão possível, o
pensam ento de S. Tom ás. Seu tom ism o, m uito ortodoxo no
conjunto, guarda um a certa liberdade, com algum as ou sadias.
A obra de Caietano se apresenta, em um a boa parte, com o um a
defesa de S. Tom ás contra a m etafísica do século
XVI, onde são visados notadam ente o pré-nom inalism o de
Durando de Saint-Pourçain e a filosofia de Duns Scot.

SYLVESTRE DE FERRARA
(1476-1538), conhecido sobretudo pelo seu excelente
com entário da Contra Gentiles.

Estim ulado por FRANCISCO DE VITTORIA


(1480 -1546), deveria surgir, entr e os frades Pregadores de
Salam anca, um m ovim ento de pensam ento teológico tom ista
particularm ente brilhante. Com o o interêsse d essa escola
não se estende diretamente à filosofia, achamos suficiente
apenas alinhar, aqui, os nom es de seus principais m estres:
Melchior Cano (150 9-1560 ); Dom ingos Soto
(1494-1560 ); Pedro de Soto (1518- 1563 ) ;
Bartolom eu de Medina (1528-1580 ); Dom ingos
Banes (1528-160 4 ) .

Um lugar à parte deve ser dado aqui a J OÃO DE SÃO


TOMÁS (1589-1644) q ue, além de um Cursos
16
theologicus apreciável, deixou um Cursos philosophicus onde
se encontra um a exposição m etódica e relativam ente co m pleta
da filosofia especulativa. Discípulo incontestàvelm ente
fiel e profundo de S. Tom ás, êle não tem e desenvolver o
pensam ento do m estre, m esm o em pontos onde êle foi m enos
explicito. Em filosofia tom ista, será sem pre de grande
proveito consultá-lo, com a condição de não se atribuir
uniform em ente ao m estre o que foi dito pelo seu com entador.

B. Mestres jesuítas.

Tendo S. Inácio determinado aos seus filhos que


seguissem , n ão sem guardar um a certa liberdade, o pensam ento
d o Doutor Angélico, não tardou que nascesse entre os
jesuítas um im portante m ovim ento de filosofia e d e teologia
tom ista. Entre os nom es que ilustram êsse m ovim ento, devem
ser citados particularmente os de: FRANCISCO
TOLET (1532-1596), LUÍS MOLINA
(1536-160 0 ), GABRIEL VASQUEZ
(1551-160 4), LÉONARDO LESSIUS
(1554-1623).

Em filosofia deve ser lem brado sobre tudo o nom e de


FRANCISCO SUAREZ (1548-1617) . Professor na
célebre universidade portuguêsa de Coim bra, autor de
num erosas obras, Suarei escreveu o prim eiro grande tr atado
escolástico de m etafísica, independente do texto de
Aristóteles, suas Disputationes m etaphysicae. Espírito
conciliante, êle se esforça por seguir um cam inho m édio,
onde, apesar de se inspirar em S. Tom ás, não tem e
acolher algum as idéias de origem scotista ou nom inalist a.
Seu ecletism o bem inform ado e claro, teve um a im ensa
influência sôbre o ensino posterior da escolástica. Ap esar
de tudo Suarei representa um tom ism o, se não alienado,
pelo m enos fraco e diluído.

C. Mestres carm elitas.

Do ponto de vista da teologia tom ista, um lugar notável


caberia aos Car m elitas de Salam anca, os
"Salm anticenses", devido ao im portante Cursos theologicus que
êles organizaram . Os 20 volum es dessa obra, escrita entr e
1631 e 170 1, são 0 fruto da colaboração de quatro ou
cinco professôres. Esse cursos, um pouco prolixo e
difuso, é, no conjunto, fiel a S. Tom ás. Algum as de
suas teses, entretanto, são pessoais.

16 . O M OVIM EN TO TOM ISTA CON TEM P OR ÂN EO.

E sabido que, após um período de recolhim ento no século XVIII 'e no início do
século XIX, a vida intelectual foi retom ada com intensidade na Igreja. Em um
d ocum ento que teve grandes repercussões, a encíclica Aeterni Patris(1879), o
17
papa Leão XIII aconselhou um retôrno a S. Tom ás. Foge de nossa pretensão
apresentar, a não ser sob a form a de um esbôço, a história de um m ovim ento de
pensam ento que até hoje agita profundam ente a Igreja contem porânea. Seus re sultados
doutrinais, que logo vieram se acrescentar aos de pesquisas históricas e crítica s cada
vez m ais ativas, têm sido incontestàvelm ente m uito consideráveis.

17. OBR AS D E S. TOM ÁS.

Além da edição Piana (1570 -1571), que é a prim eira coleção das Opera
om nia, devem -se destacar as duas outras coleções com pletas atualm ente em uso:

- a edição cham ada de Parm a (1862-1873 ), em


25 volum es e

- a edição Vivès, de Paris, (1871-1880 e


1889-1890 ) em 34 volum es.

A edição crítica definitiva será a Leonina, da qual sòm ente 16 volum es,
contendo as duas Sum as e os com entários lógicos e físicos, apareceram até esta
data. A Sum a teológica vem acom panh ada do com entário de Caietano. A Contra
Gentiles, vem acom panhada do Com entário de Sylvestre de Ferrara.

Edições parciais de grande núm ero de obras de S. Tom ás se acham seja em


Lethielleux (Paris), seja em Marietti (Turin).

Com relação às traduções francesas, é necessário assinalar pelo m enos o conjunto


da Sum a teológica da edição da Révue des J eunes (60 volum es aproxim adam ente já
lançados ou em fase de acabamento: texto, tra dução, notas explicativas.)

Com relação a Aristóteles, o leitor poderá consultar as traduções francesas de


TRICOT (Paris, Vrin) que são suficientes (Escritos Lógicos, De anim a,
Metafisica, alguns escritos físicos).

18 . EX POSIÇÕES GER AIS D A FILOSOFIA D E S. TOM ÁS.

P ara um a iniciação geral, recomendam -se em prim eiro lugar, em francês, as obras
d os três m estres universalm ente reconhecidos:

A. - D. SERTILLANGES, diversos trabalhos e


particularmente Saint Thom as d'Aquin (2 vol., 28
éd., Paris, Aubier, 1940 ).

J . MARITAIN, Elém ents de philosophie: I ,


Introduction; II, L'ordre des concepts (Paris,
Téqui, 1920 -1923) e a sínte se do conjunto que
constitui Les degrés du savoir (Paris, Desclée de
Brouwer, 1935).

E. GILSON, Le Thom ism e (Paris, Vrin, 50


éd. 1944).
18
Entre os m anuais de filosofia tom ista em francês basta assinalar: o Traité de
Philosophie de R. J OLIVET (I, Logique et Cosm ologie; II, Psychologie;
III, Métaphysique; I V, Morale) (Lyon, Vitte, 1939 e seg.) e o Manuel
d e Philosophie thom iste de H. COLLIN, reeditado por R. TERRIBILINI
(I, Logique, Ontologie, Esthétique; II, Psychologie: Paris, Téqui,
1949-1950 ).

A Universidade de Louvain iniciou a publicação de um conjunto de curso s de


inspiração tom ista. O iniciante teria proveito em consultar sobretu do: l'Introduction
à la Philosoph ie, de L. DE RAEYMAEKER (Ire éd., Louvain,
1938).

19 . TÁBU AS E R EPER TÓR IO S.

E xiste um a tábua ideológica da obra de S. Tom ás, a Tabula aurea de ALBERTO


DE BERGAMO (os 2 últim os vol. da ed. Vivès).

P ara a bibliografia geral relativa ao tom ism o, cf. MANDONNET e


DESTREZ, Bibliographie Thom iste, (Paris, 1921). - Desde 1923, o
Bulletin thom iste (Le Saulchoir) dá um a bibliogr afia lógica e crítica de tôdas as
p ublicações relativas a S. Tom ás e sua doutrina.
19
II

N OÇÃO GERAL D E FILOSOFIA

1. N ATU R EZA D A FILOSOFIA.

Em seu sentido m ais geral, a filosofia não é senão o que com um ente se entende por
sabedoria. A denom inação m esm a de filosofia rem ontaria a Pitágoras que, por
m odéstia, e considerando que a sabedoria própriam ente só poderia convir a Deus, teria
reivindicado som ente o título de "philosophos", isto é, am igo da sabedoria.

A acreditarm os no que está escrito no início da Metafísica, a busca filosófica


teria com o origem o desejo inato de saber, desejo que se traduz pela surprêsa ou
adm iração que se sente diante das coisas que ainda não se sabe e que se deseja

com preender. Partindo desta constatação, vam os explicitar, com Aristóteles, a


noção de filosofia, distinguindo-a progressivam ente das outras grandes form as do saber,
quais sejam o conhecim ento com um e experim ental, as ciências e a teologia.

2 . FILOSOFIA E EX PER IÊN CIA.

Em um grau inteiram ente inferior do conhecim ento, observa Aristóteles (Metaf.,


A. C. I, 980 a 19), encontram os a sensação, tipo de conhecim ento que tem os
em com um com os anim ais. Estes já têm um a perfeição m ais ou m enos grande segundo a
sensação se acom panhe ou não de m em ória. Da m em ória, com efeito, nasce, por
acum ulação de lem branças, a experiência.

Com o hom em , nós nos elevam os m ais alto, até ao nível da arte e do raciocínio. A
arte aparece quando, de um a m ultidão de noções experim entais, se desprende um único
julgam ento universal aplicável a todos os casos sem elhantes. Com efeito, form ar o
julgam ento de que tal rem édio aliviou Cállias, atingido por tal doença, depois
Sócrates, depois vários outros individualm ente considerados, é o fato da experiência.
Porém declarar que tal rem édio aliviou a todos os indivíduos atingidos pela m esm a
doença, isto já pertence à arte. Com a arte nós estam os no plano do conhecimento
verdadeiram ente racional, que se distingue do grau inferior do saber, nisso que o hom em
não se contenta m ais em constatar sim plesm ente a existência dos fatos, m as procura-lhe
tam bém a razão explicativa ou a causa. A ciência, que se encontra no m esm o nível,
acrescenta à arte o caráter de conhecim ento desinteressado. O sábio busca o saber
pelo saber, e sem se preocupar diretam ente com sua utilidade ou aceitação.

Destas considerações resulta que a filosofia, que é em inentem ente ciência, é um


conhecim ento pelas causas:

"Philosophia est cognitio per causas".

Na m esm a ordem de idéias procurou-se, hoje, precisar as relações da filosofia com o

senso com um , que é tam bém um a form a não cientificam ente elaborada de conhecim ento.
Basta reproduzir aqui a conclusão do estudo que Maritain consagrou a êsse assunto
(Élem ents de Philosophie thom iste, 1. Introduction générale à Ia philosophie,
20
pp. 87-94) : "A filosofia não é fundam entada sôbre a autoridade do senso com um
tom ado com o consenso geral ou com o instinto com um da hum anidade, ela deriva todavia do
senso com um se se considera nêle a in teligência dos princípios imediatam ente
evidentes. Ela é superior ao senso com um com o o estado perfeito ou "científico" de um
conhecim ento verdadeiro é superior ao estado im perfeito ou "vulgar" dêste m esm o
conhecim ento. Todavia, a filosofia pode ser, por acidente, julgada pelo senso
com um ".

Exprim indo-se assim , Maritain entende colocar a filosofia tom ista, na qual êle
pensa, entre as afirm ações sim plistas da escola escocesa, e algum as pretensões da
crítica m oderna. A filosofia não tem de buscar outro fundam ento senão ela m esm a,
sendo ela o estado superior e científico da possessão dos princípios. Todavia, ela
está em acôrdo e em continuidade com o conhecim ento vulgar dêsses m esm os princípios.
Disto pode-se concluir, com o precedentemente, que a filosofia se distingue das form as
com uns do saber pelo seu caráter de ciência ou de conhecim ento explicativo.

3 . FILOSOFIA E CIÊN CIAS.

A filosofia é um a ciência, m as há outras disciplinas que m erecem êste título: a


m atem ática ou a física, por exem plo. Com o estas form as de saber se distinguem um as das
outras?

Para Aristóteles, a diferença procede de que a filosofia não explica pelas m esm as
causas que as ciências particulares. As causas form am , com efeito, um a ordem , um a

hierarquia; existem causas inferiores e causas de grau m ais elevado. Um a vez que eu
descobri um a causa, posso procurar a causa dessa causa, e assim sucessivam ente. . .
É desta m aneira que eu explicaria sucessivam ente o eclipse pela interposição da lua, a
interposição pelas leis m ecânicas do sistem a solar, estas leis pela gravitação, a
gravitação, talvez, pela estrutura da m atéria, e a m atéria por Deus. A filosofia
é, nessa linha de procura, a explicação pelas causas m ais elevadas, pelas causas
prim eiras, quer dizer, por causas que se bastam a si m esm as e além das quais nada m ais
há a procurar. Tal é a razão formal pela qual a filosofia se distingue das ciências
particulares. Rigorosam ente falando, esta definição só convém , de m aneira
adequada, à m etafísica. Entretanto, ela pode ser estendida a todos os dom ínios do
saber, lógica, cosm ologia, psicologia etc., por onde, independentem ente do cam inho
trilhado, se tem acesso tam bém ao nível superior de explicação.

Pode-se observar, aliás, que as causas m ais elevadas são ao m esm o tem po as m ais
universais: a gravitação, por exem plo, explica m ais fatos do que tal lei particular de
m ecânica celeste e Deus, que está no ápice, explica tudo. Portanto, absolutam ente
nada há que não esteja com preendido no objeto da filosofia, a qual tem , desta form a,
o m áxim o de extensão. Assim é que podem os dizer, em conclusão, que "a filosofia
é o conhecim ento pelas causas prim eiras e universais":

"Sapientia est cognitio per prim as et universales causas".

Encontrar-se-á um a exposição desenvolvida desta doutrina no início da Metafísica


(A, C. 1-2; cf. Com ent. de S. T., 1, 1. 1-3) . Ela se acha
excelentem ente condensada neste texto da Sum a contra os Gentios (III, e. 25):

"Há em todo hom em um desejo natural de conhecer a causa


21
daquilo que percebe. É, portanto, em conseqüência da
adm iração sentida em face dos objetos, m as cuja causa lhe
perm anece escondida, que o hom em se põe a filosofar. Um a
vez descoberta a causa, seu espírito se tranqüiliza. Mas
a busca não cessa até que se tenha chegado à prim eira
causa, porque só quando esta é conhecida é que se considera
conhecer de um a m aneira perfeita."

"Naturaliter inest om nibus hom inibus desiderium cognoscendi


causas eorum quae videntur: unde propter adm irationem eorum
quae videbantur, quorum causa latebant, hom ines prim o
philosophari caeperunt; invenientes causam quiescebant. Nec
sistit inquisitio quousque perveniam us ad prim am causam , et
tunc perfecte nos scire arbitram ur quando prim am causam
cognoscim us".

Tendo distinguido filosofia e ciências, resta-nos precisar


suas respectivas relações. Esta questão, por dem ais
com plexa, não pode ser convenientem ente elucidada em um a
sim ples introdução. Digam os em síntese que, por um
lado, a filosofia, a título de sabedoria, tem um certo
poder de organização superior, e mesm o de apreciação dos
resultados, ou de julgam ento, em face das ciências
inferiores; e que, por outro lado, estas ciências guardam
no interior de seu dom ínio próprio sua autonom ia, quanto ao
m étodo que em pregam e sua realização. Esta solução,
observa Maritain, é ainda um m eio-têrm o entre as
afirm ações extrem as daqueles que colocam , com o Descartes,
as ciências particulares em continuidade imediata com a
filosofia, e daqueles para quem a filosofia nada teria de
com um com as ciências.

De fato, a linha de divisão da filosofia e das ciências


está longe de perm anecer constante. Na antigüidade e na
Idade Média, a filosofia teve tendência a absorver o
conjunto dos conhecim entos científicos. Tôdas as ciências
da natureza lhe pertenciam . Sòm ente as m atem áticas e, em
um outro dom ínio, as artes técnicas, podiam se prevalecer
de um a existência relativam ente independente. No corpo
unificado do saber científico, a m etafísica tem
evidentem ente um lugar em inente, pois ela constitui a
Filosofia prim eira, a física tendo por sua vez, em
Aristóteles, o lugar de Filosofia segunda. Depois da
Renascença o saber ficou m ais fragm entado. Ao lado dos
filósofos, aparecem os sábios, no sentido m oderno da palavra
e, independentem ente da filosofia, se m ultiplicam disciplinas
particulares pretendendo estabelecer-se por si m esm as.
Depois das m atem áticas, foram em seguida as ciências da
natureza que reivindicaram um estatuto autônom o. Hoje, com
a constituição de um a psicologia ou de um a sociologia
científica, a especialização atingiu o próprio dom ínio das
coisas do espírito.
22

4 . FILOSOFIA E TEOLOGIA.

A filosofia sem pre reivindicou as prerrogativas de ciência suprem a, de um a sabedoria,


sapientia. Porém os cristãos conhecem um a outra sabedoria que para êles tem m esm o m ais
valor, a teologia. Haveria, portanto, duas sabedorias?

Em princípio, não pode haver e não há senão um a única Sabedoria, que é a de


Deus. Mas com o há, do ponto de vista da criatura, duas ordens, a ordem natural e a
ordem sobrenatural, deve-se reconhecer, do lado do hom em , a existência de duas
ciências suprem as correspondentes, a sabedoria natural e a sabedoria sobrenatural. O
que distingue form alm ente estas duas sabedorias é sua luz, o lum en: a prim eira, a
filosofia, está sob o lum en rationis, e a segunda, a teologia, sob o lum en lidei. A
filosofia considera as verdades enquanto elas são acessíveis à razão, e a teologia
enquanto reveladas) Disto resulta que, tendo sua luz e, portanto, seus princípios
próprios, a filosofia é um a ciência autônom a e que, rem ontando até à causa
prim eira, ela bem m erece o título de sabedoria. Entretanto, ela não deixa de ser
inferior à teologia, porque só indiretam ente atinge Deus, a partir das criaturas, e
sobretudo porque o lum en rationis é m enos elevado que o lum en lidei.

Provindo de um a m esm a fonte, que é a Sabedoria divina, e tendo objetos que


parcialm ente coincidem (algum as verdades são com uns à razão e à fé), filosofia e
teologia têm necessàriam ente relações recíprocas. Três afirm ações principais
podem explicitá-las.

Existe harm onia entre as duas sabedorias. Devido à sua origem com um que é a
Sabedoria divina, filosofia e teologia não podem se contradizer em face de um m esm o
objeto. Não há duas verdades, com o sustentaram m ais ou m enos abertam ente os
averroistas ou, com o se diz de m aneira corrente, existe acôrdo entre a razão e a fé.

A teologia tem um poder extrínseco de regência sôbre a filosofia. A título de


sabedoria suprem a, a teologia pode exercer e de fato tem exercido um a dupla influência
sôbre a filosofia. Um a influência positiva antes de tudo, de direção, na m edida em
que ela propõe à filosofia problem as ou soluções de ordem filosófica, e sôbre os
quais os filósofos não tinham pensado. Foi assim , por exem plo, que històricam ente,
o problem a da criação e a afirmação correlativa da. dependência absoluta das
criaturas com relação a Deus, entraram no plano da especulação racional.
Deve-se, entretanto, especificar que esta influência de direção, por m ais real e
eficaz que seja, perm anece de algum a form a exterior à filosofia, que possui seus
princípios e seu m étodo próprio. - Um a influência negativa de salvaguarda. Sem ter
de intervir no próprio processo da reflexão filosófica, a teologia tem , a título de
sabedoria suprem a, o direito de julgar as conclusões desta, e portanto, de as declarar
falsas se elas são m anifestam ente contrárias a seus dados m ais certos. Êste poder
pertence evidentem ente à teologia, únicam ente na m edida em que as proposições
filosóficas tenham qualquer relação com o dado revelado.

A filosofia fornece à teologia seu instrum ento racional.

A filosofia, por sua vez, presta serviço à teologia assegurando-lhe o conjunto dos
instrum entos racionais que lhe são necessários para se constituir em ciência. Com o
nesta função ela perm anece, entretanto, sem pre subordinada à ciência do revelado,
23
diz-se-que ela age a título de serva da teologia, ancilla theologiae.

Êste problem a das relações entre a filosofia e a teologia, que aqui não pudem os
senão aflorar, foi objeto de um a reflexão contínua no curso da história do pensam ento
cristão, e não podia deixar de ser assim , um a vez que o espírito hum ano se via
solicitado pelos dois lados ao m esm o tem po.

Até o século XIII, o pensam ento cristão ocidental foi sobretudo representado por
esta grande corrente de especulações que, rem ontando ao doutor de Hippone, é
conhecida sob o nom e de agostinism o. Pensava-se então com o teólogo, ou com o
cristão, utilizando-se evidentem ente dos recursos do pensam ento racional, m as sem se ter
a preocupação de desenvolver sistem àticam ente a êste. A teologia absorvia de certa
form a a filosofia, a tal ponto que o lim ite dos dois saberes perm anecia um pouco
incerto. - A descoberta, no século XIII, da física e da m etafísica de
Aristóteles, colocando os cristãos pela prim eira vez em face de um poderoso sistem a
racional foi ocasião para um a grande perturbação nos espíritos. O problem a das
relações entre as duas sabedorias surgiu, então, e de m aneira por dem ais aguda. S.
Tom ás iria superar essa crise dando, de m aneira m uito clara à filosofia, seu estatuto
autônom o de ciência, sem por isso, evidentem ente, subtraí-Ia à regulam entação
suprem a da sabedoria revelada. - Não é sem interêsse assinalar que, hoje, essa
questão tem sido de nôvo objeto de vivas discussões na França, discussões suscitadas
por estudos de Bréhier que pretende sustentar, sem razão, que a filosofia m edieval
não era um a verdadeira filosofia, um a vez que havia: sido elaborada sob o dom ínio do
dogm a. (cf. sôbre êste debate, La philosophie chrétienne, J uvisy, 1933).

J untando um a um todos os elem entos que acabam os de explicitar, distinguindo


sucessivam ente a filosofia da experiência, das ciências e da teologia, chegam os a um a
fórm ula, desta vez com pleta:

"A filosofia é o conhecim ento, pelas causas prim eiras e


m ais universais, obtido à luz da razão natural" .

... Philosophia est cognitio per prim as et universales


causas sub lum ine naturali rationis.

Um a últim a dificuldade se coloca. Até aqui tem os considerado a filosofia sobretudo


sob o seu aspecto de conhecim ento desinteressado ou de ciência especulativa. Não vem os
porém nela, de m aneira corrente, tam bém um a arte de viver, quer dizer, um a ciência
essencialm ente prática? Não há nela, por êste fato, um a dualidade de objeto,
com prom etendo necessàriam ente a unidade do saber? - Responderem os a esta dificuldade
fazendo observar que o princípio últim o da ordem especulativa é, ao m esm o tem po,
princípio prim eiro da ordem prática. Nêle, tôdas as linhas de causalidade e de
explicação se encontram . Deus, concretam ente, é ao m esm o tem po causa do ser e do agir
que nêle encontram , um e outro, sua razão de ser. Não há, portanto, senão um a
só sabedoria que é, ao m esm o tem po, especulativa e prática. Precisem os,
entretanto, que nas condições de fato do destino do hom em , que é sobrenatural, a
filosofia m oral, por si m esm a, é incapaz de determ inar o fim últim o da vida e de
indicar os m eios que perm itirão eficazm ente atingi-lo.

5. D IVISÃO SEGU N D O AR ISTÓTELES E S. TOM ÁS.


24
Aristóteles e, em seguida, S. Tom ás nos deixaram um a teoria da organização do
saber que, a despeito de algum as incertezas, é sólida em suas grandes linhas.

A divisão m ais geral do saber é a que se encontra na Metafísica (E, c. I),


exposta tam bém em outros lugares: ciências especulativas, práticas e técnicas
(literalm ente "poiéticas", de poiein, fazer). As ciências especulativas ou
teoréticas são aquelas que não têm outro fim senão o puro conhecim ento. As ciências
práticas e as ciências técnicas são ordenadas à ação. As ciências práticas
concernem à ação hum ana ou m oral (ação im anente, dir-se-á, porque tal ação
não sai do sujeito) e, as técnicas, à atividade exterior ou à fabricação (ação
transitiva, quer dizer que sai do sujeito para um objeto). Essas ciências técnicas
são, no sentido m ais geral dado aqui a êste têrm o, as artes. Assim aparecem , em
Aristóteles, as divisões suprem as do saber. Com o se vê, é o ponto de vista da
finalidade do saber que as diferencia.

S. Tom ás adotou essa divisão geral unificando, às vêzes, os dois últim os


grupos, um a vez que, um e outro tendo um a finalidade prática, têm um a afinidade
particular. Porém no prim eiro livro de seu com entário sôbre as Éticas, em um texto
notável, êle distingue um a quarta ordem de conhecim entos filosóficos, a rationalis
philosophia (lógica). Aristóteles não a havia m encionado em sua classificação,
sem dúvida porque a considerava m ais com o o instrum ento geral, organon, da filosofia,
do que com o um a um a de suas partes. De qualquer form a, eis o que diz S. Tom ás:

"É próprio do sábio pôr ordem nas coisas.

A razão disso é que a sabedoria é a perfeição suprem a da


razão e o próprio da razão é conhecer a ordem ...

Ora, um a ordem pode relacionar-se com a razão de quatro


m aneiras diferentes.

Há um a ordem que a razão não estabelece, m as apenas


conhece e considera: é a ordem das coisas da natureza.

Há um a outra que a própria razão, ao m esm o tem po que a


conhece, a estabelece (considerando facit), dentro de sua
própria atividade: é quando, por exem plo, ela ordena seus
conceitos uns com relação aos outros, bem com o os sím bolos
dêsses conceitos, que são palavras dotadas de
significação.

A terceira ordem é aquela em que a razão, ao m esm o tem po


que a conhece, a estabelece, desta vez nas operações da
vontade.

A quarta ordem , enfim , é a que a razão, ao m esm o tem po


que conhece, estabelece, nas coisas exteriores de que ela
própria é causa: um arm ário, um a casa, por exem plo.

Ora, com o a atividade da razão só se torna perfeita por um


hábito, conclui-se que as diversas ciências se dividem
exatam ente segundo essas diferentes ordens que a razão
considera com o algo que lhe é próprio.
25

Com efeito, cabe à filosofia da natureza tom ar com o objeto


a ordem que a razão hum ana considera m as não estabelece.

A ordem que a razão hum ana conhece e estabelece em seu


próprio ato, constitui a filosofia racional (lógica)...

A ordem das ações voluntárias pertence às especulações


da filosofia m oral...

A ordem , finalm ente, que a razão estabelece quando


conhece, nas coisas que lhes são exteriores, constitui as
artes m ecânicas".

Deixando de lado o caso da lógica, que pode ser encarado seja com o instrum ento de tôda
a filosofia (Aristóteles, habitualm ente), seja com o um a ciência especial (S.
Tom ás no texto precedente), êste quadro corresponde bem à divisão tripartida
clássica do aristotelism o, e nós poderem os, em definitivo, adotar a classificação
seguinte:

Rationalis philosophia vel Logica (Ciência ou Organon)

Philosophia speculativa

Philosophia practica (Activa: Moralis philosophia;


Factiva: Artes)

Não m enos im portante é a subdivisão, feita por Aristóteles, das ciências


teoréticas ou especulativas em três partes, segundo o que se cham a os três graus de
abstração. Essa divisão não tem por princípio a distinção exterior ou m aterial dos
objetos, m as um a distinção de estrutura inteligível ou noética: o grau de
im aterialidade. Quanto m ais um objeto de ciência é im aterial, quer dizer, elevado
acim a das condições da m atéria, m ais êle é inteligível em si, m ais o conhecimento
que se tem dêle é de um grau elevado. Na filosofia de S. Tom ás, o fundam ento
profundo e a razão própria da inteligibilidade com o, aliás, da capacidade
intelectual, é a im aterialidade. Os hom ens, assim , são m ais elevados do que os
anim ais na escala dos sêres dotados de con hecim ento. E os anjos, por sua vez, o são
m ais do que os hom ens.

Isto pôsto, vejam os com o se definem os três graus de abstração e, por êste m esm o
fato, as três grandes partes da filosofia teórica que lhes correspondem . O prim eiro
esfôrço da inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas sensíveis
independentem ente de seus caracteres individuais: o hom em , por exem plo, sem o que é
próprio a cada hom em em particular. Neste caso, eu abstraio de "tal m atéria" ou da
"m atéria individual", a m atéria signata vel individuali, conservando os caracteres
sensíveis com uns, m ateria sensibilis. A êste prim eiro grau de abstração corresponde
a filosofia da natureza ou cosm ologia, a física de Aristóteles. O segundo esfôrço
da inteligência abstrativa consiste em con siderar as coisas independentem ente de suas
qualidades sensíveis e de seus m ovim entos, para reter tão sòm ente as determ inações
de ordem quantitativa, figura geom étrica, relações num éricas, etc . . .
Mantém -se, entretanto, ainda neste nível, o que na m atéria se relaciona com a ordem
quantitativa: a m atéria inteligível, m ateria intelligibilis. A êste segundo grau de
26
abstração correspondem as ciências m atem áticas. Finalm ente, a inteligência
abstrativa considera as coisas independentem ente de tôda m atéria, não retendo senão
as suas determ inações absolutam ente im ateriais: abstração separativa da m atéria
inteligível e do m ovim ento: a m ateria intelligibili et m otu. Ao terceiro grau de
abstração corresponde a m etafísica (filosofia prim eira ou teologia conform e as
designações de Aristóteles). E S. Tom ás conclui (Metafísica, VI, 1. 1,
n.o 1166):

"Há, portanto, três partes na filosofia teorética: a


m atem ática, a física e a teologia, que é a filosofia
prim eira".

"... tres ergo sunt partes philosophiae theoricae,


scilicet m athem atica, physica et theologia quae est
philosophia prim a."

6 . AS CLASSIFICAÇÕES M OD ER N AS E A ESCOLÁSTICA.

Na filosofia m oderna, a questão da classificação das ciências se com plicou e se


desenvolveu consideràvelm ente. Está inteiram ente fora de nossas pretensões nos
determ os na história desta renovação. Entretanto, não podem os aqui nos
desinteressar totalm ente de algum as concepções que, provindo de sistem as m ais
recentes, acabaram por agir de m odo bastante profundo sôbre a doutrina tradicional que
expusem os, resultando num a verdadeira transform ação desta.

Na origem da evolução a respeito da qual vam os falar, deve ser lem brada a influência
principal da classificação do filósofo alem ão Wolff (século XVIII). Wolff,
em seus fam osos m anuais, distinguia inicialm ente três grandes gêneros de conhecim ento:
o conhecim ento histórico (experim ental), o conhecimento filosófico e o conhecim ento
m atem ático. As m atem áticas se viam assim excluídas da filosofia. Depois,
considerando que nossa alm a tem duas faculdades principais, a inteligência e a vontade,
e que elas podem igualm ente falhar, êle designa duas outras partes da filosofia para
dirigi-Ia: a lógica, para a razão, e a filosofia prática para a vontade.
Finalm ente, observando que existem noções gerais com uns a tôda a filosofia, êle
coloca ainda à parte um a secção especial, a ontologia. As principais partes da
filosofia são portanto, na ordem em que convém estudá-las: a lógica, a ontologia,
a física, a cosm ologia, a teologia natural, a filosofia prática. Haveria m uito a
dizer a respeito desta classificação e sôbre os princípios que a inspiraram . Basta
aqui observar que ela introduz duas im portantes inovações: a divisão da física em um a
cosm ologia e em um a psicologia nitidam ente separadas, e a da m etafísica em ontologia e
em teodicéia. Daí por diante, num erosos m anuais, m esm o em filosofia aristotélica,
adotarão essas subdivisões e êsses títulos.

Na época contem porânea, novos dom ínios do saber filosófico tiveram a tendência de
se constituir de m aneira independente; pensam os especialm ente na sociologia, que m uito
se desenvolveu e, na teoria crítica do conhecim ento. Ainda aqui, a escolástica
julgou dever-se m ostrar receptiva.

Que devem os pensar, em tom ism o autêntico, dessa evolução da classificação recebida
dos antigos? Certam ente, nada im pede que se façam subdivisões e m esm o que se
m ultipliquem nos grandes planos do saber; porém , algum as destas subdivisões podem ser
feitas de um a m aneira inoportuna, correndo o risco de com prom eter a solidez do
27
edifício.

Não há dúvida, por exem plo, de que a constituição universalm ente recebida agora,
de um a psicologia separada da filosofia da natureza, se ela se justifica, tem o
inconveniente de encobrir a continuidade não m enos real destas duas disciplinas. De
conseqüência m ais deplorável ainda, apresenta-se o desm em bram ento da m etafísica, a
única sabedoria dos antigos, em ontologia, teodicéia e, algum as vêzes, em crítica.
Neste ponto pelo m enos, o uso, que tem sua origem em Wolff, deve ser abandonado. Um a
única ciência suprem a, a m etafísica, tem valor crítico, e term inando em Deus com o
em seu têrm o natural. Levando-se em conta essas observações, pode-se organizar da
m aneira seguinte uma exposição m oderna da filosofia de S. Tom ás:

I. Lógica (ciência propedêutica)

II. Filosofia da natureza - psicologia (em


continuidade)

III. Metafísica (incluindo Teodicéia e Crítica)

IV. Moral e Sociologia


28
III

IN TROD U ÇÃO À LÓGICA

1. D EFIN IÇÃO D A LÓGICA.

É da natureza do hom em dirigir-se pela razão. Porém, esta faculdade não exerce seu
poder de direção apenas sôbre atividades que lhe sejam exteriores e dependam de outras
potências, tais com o a vontade ou a sensibilidade. Ela dirige igualm ente os seus
próprios atos e, nesta ação de dirigir com o nas outras, ela é ajudada por um a
técnica especial: a arte racional ou Lógica, que a torna apta a realizar sua tarefa
com êxito. De um a m aneira geral, pode-se definir esta arte com S. Tom ás: "a
arte que dirige o próprio ato da razão, quer dizer, que nos faz proceder, neste ato,
com ordem , com facilidade e, sem êrros".

"ars... directiva ipsius actus rationis; per quam


scilicet hom o in ipso actu rationis ordinate et faciliter et
sine errore procedat".

Poster. Analít.
I, L 1, n 1

Porém a atividade racional, objeto da lógica, interessa a outras partes da


filosofia. Se, por exem plo, eu vier a concluir que a alm a é im ortal porque, não
sendo com posta ela é incorruptível, eu toquei em um a questão m etafísica, a da
im ortalidade da alm a, coloquei um fato de consciência do qual a psicologia poderá
reivindicar a análise, e, ao m esm o tem po, utilizei as leis lógicas do raciocínio.
Estes três pontos de vista form alm ente distintos se encontram em tôda e qualquer
atividade do espírito. É, portanto, indispensável definir a Lógica com m ais
precisão a fim de distinguí-la da m etafísica e sobretudo da psicologia, com as quais
fàcilm ente se é levado a confundi-la.

2 . OBJETO FOR M AL D A LÓGICA.

A definição é aquilo que nos m anifesta a essência ou a natureza de um a coisa, o que


ela é: quid est. Nos sêres da natureza, a definição designa principalm ente a
form a, que é o princípio de determ inação. A definição das potências e das
disposições que se relacionam com seu exercício (tecnicam ente, os "habitus") se
depreende a partir do objeto, que representa, na circunstância, um papel análogo ao
da form a para as substâncias m ateriais. Diz-se que as potências e suas disposições
operativas são especificadas por seus objetos, com o os sêres da natureza o são por sua
form a: potentiae vel habitus specificantur ab objecto. A vista é assim especificada
pela côr, a inteligência pelo ser, o habitus m atem ático pelo ser quantificado. Isto
se deve ao fato de que, potências e habitus não são, em sua própria essência senão
tendências, e um a tendência não tem significação a não ser pelo fim ou pelo objeto
para o qual é orientada.

Em filosofia escolástica, distingue-se o objeto m aterial e o objeto form al. O objeto


m aterial é constituido pela realidade total que se encontra em face da potência ou do
habitus: as coisas visíveis, por exem plo, para a vista. O objeto form al é o ponto de
29
vista preciso que é visado pela potência ou pelo habitus: o colorido no exem plo
precedente. Só o objeto form al pode servir de princípio de especificação, uma vez
que, um a m esm a realidade m aterial pode ser considerada sob vários pontos de vista
diferentes: o nariz achatado por exem plo, sob seu aspecto físico ou segundo sua curva
geom étrica.

Se a lógica pois, é um a disposição dessa potência operativa que é a


inteligência, e portanto um habitus, definir-se-á, com o as realidades de sua ordem ,
ou seja, por seu objeto. E, conseqüentem ente, é por êsse objeto que ela se
distinguirá das outras disciplinas.

O objeto form al da lógica é o ser de razão lógico ou as segundas intenções.

Vam os explicar, logo de início, o que se deve entender por ser de razão. S.
Tom ás (Metaf., IV, 1. 4, n. 547) distingue duas m odalidades essenciais do
ser da natureza, ou o ser real, e o ser de razão. O ser real é aquêle que existe ou
pode existir independentem ente de qualquer consideração do espírito. O m undo que m e
rodeia, com tôdas as suas possibilidades efetivas de transform ação, pertence à
realidade do ser que, pense-se ou não se pense nela, existe. O ser de razão é
aquêle que, apesar de estar representado à m aneira de um ser real, não pode existir
independentem ente do pensam ento que o concebe. Por exem plo, as privações, as
negações e um certo núm ero de relações. O núm ero negativo, o gênero anim al não
existem , com o tais, senão na inteligência que os representa. Os escolásticos
distinguem ainda o ser de razão fundam entado na realidade, cum fundam ento in re, do ser
de razão não fundam entado na realidade, sine fundam ento in re. O prim eiro, em bora
não exista verdadeiram ente senão no espírito, tem um fundam ento objetivo; o segundo
seria pura construção subjetiva. O ser de razão se divide em negações e
relações. Essa divisão é essencial e necessária, pois o ser de razão só pode ser ou
algum a coisa que, por natureza, se oponha à realidade, ou então esta categoria m ais
exterior e, portanto, m ais independente da substância que é a relação.

O ser de razão lógico pertence a esta últim a categoria da relação de razão. Ele
designa o objeto de nosso pensam ento considerado no entrelaçamento de relações que êle
recebe no espírito, pelo fato de ser êle concebido pelo próprio espírito. Se, por
exem plo, eu form o os conceitos de "hom em " ou de "anim al", êstes conceitos,
considerados em sua universalidade, não existem com o tais na realidade. Da m esm a
form a, se eu pronuncio êste julgam ento: "o hom em é um anim al", o têrm o "hom em " em
sua função de sujeito, e o têrm o "anim al" considerado com predicado, não têm
evidentem ente realidade senão no espírito que julga. Observe-se todavia, que êles
não são sem fundam ento na realidade um a vez que correspondem a um a ordem real das
naturezas e dos indivíduos.

Percebe-se m elhor, agora, com o o ponto de vista próprio da lógica se distingue do da


m etafísica e do da psicologia. Com o o m etafísico, ou o físico, o lógico está
voltado para o objeto do conhecim ento, porém não o estuda em sua natureza ou em suas
propriedades: êle o considera sòm ente segundo a ordem das relações que se situam na
vida racional. Com o o psicólogo, o lógico observa a atividade do espírito, m as
enquanto aquêle se detém no aspecto subjetivo do pensam ento ou em sua qualidade
física, êste não retém senão a ordem Qbjetiva engendrada por seu próprio
funcionam ento: ordo quem ratio considerando facit in proprio actu, diz S. Tom ás.

Poder-se-á dizer, na term inologia escolástica, que a psicologia considera de


início o conceito formal, quer dizer a idéia enquanto atividade do espírito, a
30
m etafísica ou a física o conceito objetivo em seu conteúdo de realidade positiva,
enquanto que a lógica considera igualm ente o conceito objetivo, porém enquanto êle é
organizado pelo pensam ento. Assim , no exem plo proposto acim a, da dem onstração da
im ortalidade da alm a, o m etafísico se interessará pela relação de natureza que se
associa à incorruptibilidade e, portanto, à im ortalidade da alm a; o psicólogo pelos
atos da inteligência; o lógico pelas con dições form ais do concatenam ento dos três
conceitos de alm a, considerada com o sujeito, de im ortalidade, considerada com o
predicado, e de incorruptibilidade, em sua função de têrm o m édio.

Para concluir, direm os, firm ados nas explicações precedentes, que a m etafísica
considera o objeto pensado, a psicologia o pensam ento do objeto, e a lógica o objeto do
pensam ento.

O objeto da lógica tam bém é freqüentem ente caracterizado pela expressão de segundas
intenções. Que devem os entender por isto? As prim eiras intenções designam 'nossos
conceitos considerados em sua relação im ediata com a realidade, ou em sua aptidão para
representá-la; correspondem ao olhar direto do espírito sôbre as coisas. Por segundas
intenções, deve-se entender êstes m esm os conceitos nas relações objetivas que êles
recebem pelo fato de serem pensados. O con ceito de "hom em ", por exem plo, considerado
com o prim eira intenção, exprim e a realidade m esm a da natureza hum ana; a título de
segunda intenção, êle designa esta natureza hum ana no estatuto de idéia universal de
que ela se revestiu no espírito. A filosofia da realidade se detém nas prim eiras
intenções, enquanto que a lógica vai às segundas intenções que não são outra coisa
senão o ser de razão lógica.

3 . A LÓGICA COM O CIÊN CIA E AR TE.

J á é tradição fazer a seguinte pergunta: a lógica é um a ciência ou um a arte?


Para Aristóteles, a ciência é o conhecim ento desinteressado pelas causas, cognitio
per causas; e a arte, o conhecim ento enquanto regula a atividade exterior, recta rabo
factibilium . Não se pode certam ente recusar à lógica o título de ciência, um a vez
que ela pretende explicar pelas causas, e m esm o pelas causas as m ais elevadas; o
silogism o, por exem plo, pode ser justificado por redução aos prim eiros princípios da
vida do espírito. A lógica nos leva, portanto, a um conhecim ento científico das
atividades racionais. Entretanto, a lógica é tam bém , e m esm o de preferência, um a
arte, porque ela é preceptiva e pretende regular a atividade do espírito. S.
Tom ás, que reconhecia à lógica as prerrogativas e o título de ciência, rationalis
scientia, a vê de preferência em sua função de arte, considerando-a m esm o a arte por
excelência, dirigindo as outras artes: ais artium . A denom inação de Organon ou de
instrum ento, que prevaleceu para designar o corpo dos escritos lógicos de Aristóteles,

está dentro do sentido desta interpretação. A lógica aparece portanto, em


definitivo, em peripatetism o, m ais com o um a introdução à filosofia, com o um a
propedêutica do que com o um a de suas partes integrantes. Tudo o que acabam os de dizer se
deduz claram ente dêste texto do Com entário de S. Tom ás sôbre os Segundos
Analíticos (I, 1. I, nº s 1-2) do qual já citam os um fragm ento:

"...É necessário que exista um a certa arte que dirija o


próprio ato da razão, graças à qual o hom em possa proceder
neste ato com ordem , facilidade e sem êrro. Trata-se da
arte lógica ou ciência racional. A qual é racional não
sòm ente no sentido em que ela é conform e à razão, o que é
31
com um a tôdas as artes, m as tam bém pelo fato de que ela se
relaciona ao próprio ato da razão com o à sua m atéria
própria. Eis porque, nos dirigindo no ato da razão, de
onde as artes procedem , ela parece ser a arte das artes."

" ... ars quaedam necessaria est, quae sit directiva


ipsius actus rationis; per quam scilicet hom o in ipso actu
rationis ordinate et faciliter et sine errore procedat. Et
haec est ars logica, id est rationalis scientia. Quae non
solum rationalis est ex hoc quod est secundum rationem , quod
est om nibus artibus com m une; sed etiam ex hoc quod est circa
ipsum actum rationis sicut circa propriam m ateriam . Et ideo
videtur esse ars artium ; quia in actu rationis nos dirigit,
a quo om m es artes procedunt."

4 . AS TR ÊS OPER AÇÕES D O ESPÍR ITO.

A lógica, com o se viu, é a ciência e a arte da atividade racional do espírito. O


ato próprio dessa atividade é o raciocínio, quer dizer, o "discurso" organizado
pelo qual se avança no conhecimento da verdade. Porém , há outros atos ou outras
operações que entram com o elem entos na estrutura do raciocínio. A prim eira tarefa que
se im põe é a de distinguir e de definir essas diversas atividades, o que nos
assegurará um prim eiro princípio de divisão de nossa ciência. Um a análise elem entar
perm ite distinguir três operações do espírito.

A sim ples apreensão, ato sim ples do espírito, dirigida para um objeto sim ples ou
concebido com o tal. É a atividade elem entar da vida do pensam ento, aquela pela qual se
apreendem noções sim ples tais com o: "hom em ", "quadrúpede", "branco".

O julgam ento, ato igualm ente indiviso, m as aplicado sôbre um objeto com plexo:
nom e-verbo, ou sujeito-cópula-predicado. Ex.: "a chuva cai", "êste m uro é
branco". Não há julgam ento sem que haja pelo m enos dois têrm os presentes, m as o
julgam ento nem por isto deixa de ser um a atividade sim ples, um a vez que êle é a
afirm ação ou a negação da própria unidade dêsses dois têrm os. S. Tom ás designa
habitualm ente essa operação pelas significativas expressões de "com positio" e de
"divisio", segundo o julgam ento seja afirm ativo ou negativo.

O raciocínio, principal objeto da lógica, é um ato com plexo, aplicado sôbre um a


m atéria com plexa. É essencialm ente, um a m archa, um progresso do espírito, a partir
de verdades reconhecidas, para a aquisição de novas verdades. Vejam os, por exem plo,
êste raciocínio disposto em silogism o:

Todo ser que se dirige pela razão é livre.


Ora, o hom em se dirige pela razão.
Logo o hom em é livre.

É visível que de duas verdades reconhecidas nas duas prim eiras proposições eu passo à
aquisição de um a terceira verdade, que se acha expressa na conclusão.

Tais são as três operações do espírito. É fácil reconhecer que o raciocínio,


terceira operação do espírito, é constituído essencialm ente de julgam entos, segunda
32
operação do espírito, e que êstes, por sua vez, têm com o elem entos sim ples
apreensões, a prim eira operação do espírito.

Alguns lógicos m odernos, im pressionados pelo lugar excepcionalm ente im portante que o
julgam ento tem na vida do espírito, pretenderam fazer dêle a atividade elementar e
prim eira do pensam ento. Segundo essa concepção, a prim eira operação do espírito
desaparece, ou pelo m enos aparece sòm ente com o um a divisão abstrata do julgam ento, que
fica sòm ente êle, com o um ato real e com pleto. - Tem os de reconhecer, com êsses
lógicos que o julgam ento constitui, sob um certo ponto de vista, a atividade m ais
perfeita do espírito. O próprio raciocínio tem com o têrm o um
julgam ento-conclusão. Porém não é m enos verdade que, anteriorm ente ao julgam ento, a
sim ples apreensão perm anece a atividade elem entar do pensam ento, e um a atividade
psicològicam ente discernível. O julgam ento, com efeito, é essencialm ente um a
síntese de dois têrm os preexistentes. Com o é que essa síntese poderia ter uma
realidade se os têrm os que ela pressupõe não foram apreendidos anteriorm ente?

Se se levam em conta as distinções que acabam os de estabelecer, poder-se-á dividir


a lógica em três partes, correspondendo cada um a delas a um a das três operações do
espírito, e das quais as duas prim eiras serão com o um a introdução à terceira:

Lógica da sim ples apreensão


Lógica do julgam ento
Lógica do raciocínio

Essa divisão corresponde à própria ordem do Organon de Aristóteles que trata: nas
Categorias, da sim ples apreensão; no Periherm eneias, do julgam ento; e nos
Analíticos e livros seguintes, do raciocínio (cf. S. Tom ás, II Analíticos,
I, 1. 3, nº s 4-6, e Periherm eneias, I, 1. 1, n.os 1-2). Eis aqui
êste últim o texto, que traz um bom resum o do que acabam os de dizer:

" ... existe um a dupla operação da inteligência: por


um a, denom inada "intelecção dos indivisíveis"
(indivisibilium inteligentia), essa faculdade percebe a
essência de cada coisa, nela m esm a.

A outra operação é a da inteligência que com põe e que


divide.

Deve-se acrescentar um a terceira operação, a do


raciocínio, pela qual a razão, partindo do que é
conhecido, vai à procura do que é desconhecido.

Dessas operações, a prim eira é ordenada para a segunda,


visto que não pode haver com posição e divisão senão entre
objetos de sim ples apreensão.

A segunda, por sua vez, é ordenada para a terceira visto


que é necessário que se parta de um a certa verdade
conhecida, à qual a inteligência dá seu assentim ento, para
atingir-se a certeza sôbre coisas ignoradas.

Sendo a lógica cham ada a ciência racional, segue-se


33
necessàriam ente que suas considerações devem tom ar com o
objeto aquilo que tem relação com essas três operações da
razão.

O que concerne à prim eira operação da inteligência, a


saber, do que é concebido em um a sim ples percepção dessa
faculdade Aristóteles trata nos livros dos Predicam entos.

O de que se relaciona com a segunda operação, quer dizer a


enunciação afirm ativa e negativa, êle trata no livro do
Periherm eneias.

Das coisas, finalm ente, que são relativas à terceira


operação, êle trata no livro dos Prim eiros Analíticos e
nos livros seguintes, onde se analisa o silogism o considerado
em si m esm o e as diversas espécies de silogism os e de
argum entações das quais se serve a razão para ir de um a coisa
à outra."

A tradição aristotélica e m esm o, em larga escala, a lógica m oderna retom aram essa
divisão da "ars logica" segundo as três operações do espírito. Porém
Aristóteles, sob um outro ponto de vista, propôs um a outra distinção - a da form a e
da m atéria do raciocínio - que, vindo interferir com a precedente, não se deu sem
com plicar as coisas, sobretudo pelo fato de que a escolástica posterior estendeu o seu
uso a tôda a lógica.

5. LÓGICA FOR M AL E LÓGICA M ATER IAL.

O objeto principal da lógica é o raciocínio, sendo que as outras operações do


espírito são consideradas sobretudo enquanto com ponham os elem entos dêste últim o.
Porém o raciocínio pode ser considerado sob dois pontos de vista diferentes.
Considerem os, com efeito, êste silogism o:

Tudo que é im aterial é im ortal.


Ora, a alm a é im aterial.
Logo a alm a é im ortal.

Para que êste raciocínio seja justo, é necessário que a ordem das proposições que
o com põem (sua form a) seja correta. É necessário, em segundo lugar, que cada um a
de suas proposições tom adas à parte (sua m atéria) seja lògicam ente verdadeira.
Haverá, portanto, condições form ais e condições m ateriais quanto à exatidão de um
raciocínio. O próprio Aristóteles consagrou esta distinção tratando em dois livros
diferentes, os Prim eiros e os Segundos Analíticos, destas duas ordens de
condições. S. Tom ás, por sua vez, a retom a, justificando-a da seguinte m aneira:

"... a certeza do julgam ento que se obtém ao têrm o de um


processo resolutivo depende, seja tão sòm ente da form a do
silogism o, e é disto que se ocupa o livro dos Prim eiros
Analíticos, que tem com o objeto o silogism o considerado em
si; seja, por outro lado, do fato de que , se lida com
proposições evidentes por si m esm as e necessárias em sua
34
m atéria, e é disto que se ocupa o livro dos Segundos
Analíticos, que trata do silogism o dem onstrativo."

Em seguida, com o já o dissem os, aplicou-se esta distinção a tôda a lógica,


inclusive à da sim ples apreensão e à do julgam ento. Tal extensão nos parece
contestável. Se é certo, com efeito, que o raciocínio comporta condições de verdade
form ais e m ateriais distintas, se é certo que se pode, ainda, discernir no
julgam ento, com o o próprio S. Tom ás o observa, essas duas ordens de condições, -
não se pode conceber que se aplique tal distinção a sim ples têrm os. A distinção de
lógica form al e lógica m aterial não tem , portanto, um a aplicação universal, e
pràticam ente é m elhor, seguindo os passos de Aristóteles, não levá-la em conta,
senão no tocante ao estudo do raciocínio.

Os autores que generalizaram essa distinção de lógica form al e lógica m aterial


freqüentem ente denom inam a prim eira Lógica Menor e a segunda Lógica Maior. Na
realidade essa divisão pretende sobretudo responder a um a questão de dificuldade dos
problem as tratados, sendo portanto, de ordem pedagógica. Os problem as da Lógica
Menor seriam m ais sim ples e m ais fáceis de com preender do que os que se reservavam para a
Lógica Maior. Êsse cuidado de guardar para m ais tarde as questões m ais árduas teve,
com o resultado, sobrecarregar a Lógica Maior de discussões m etafísicas, por isso
m esm o com pletam ente deslocadas num esquem a de lógica.

6 . SU BD IVISÕES D A LÓGICA D O R ACIOCÍN IO.

O Organon com preende tôda um a série de livros consagrados ao raciocínio,


dividindo-se êsses livros segundo consideram essa operação do espírito sob o ponto de
vista da m atéria.

Os Prim eiros Analíticos tratam ex professo do raciocínio form al. Êsse raciocínio
é para Aristóteles essencialm ente o silogism o ou dedução. Porém em várias
passagens êle apresenta um outro tipo de raciocínio, a indução, estudado m uito
ràpidam ente m as sôbre o qual os m odernos se deterão, com interêsse. Um a exposição
com pleta da lógica form al do raciocínio deve, portanto, com portar duas secções que
tratem respectivam ente do silogism o e da indução.

Os Segundos Analíticos, os Tópicos, a Refutação dos sofism as e,


analògicam ente, a Retórica, tratam das condições m ateriais do raciocínio. O
prim eiro dêstes livros estuda a dem onstração científica, aquela que, partindo de
prem issas certas, chega a um a conclusão certa; o segundo trata da dem onstração
provável, a qual, não repousando senão em prem issas prováveis, não pode conduzir
senão a um a conclusão igualm ente provável. A Refutação dos sofism as considera
especialm ente os raciocínios que, tendo a aparência da verdade, são entretanto
falsos, seja em razão de vícios de form a, seja por defeitos devidos à m atéria. S.
Tom ás resum e tudo isso neste texto dos Segundos Analíticos (I, 1. I, n. 5)

"Há, com efeito, um processo da razão que conduz ao


necessário, no qual não é possível que haja falsificação
da verdade: é por êsse processo que se atinge a certeza da
ciência. Há um outro, cuja conclusão é verdadeira na
m aioria dos casos, sem que, todavia, haja necessidade.
Há, finalm ente, um terceiro em que a razão se afasta da
verdade por haver negligenciado algum princípio que seria
35
necessário levar em conta."

Considerando tôdas essas distinções e, levando-se em conta a Retórica, arte da


persuasão oratória cuja estrutura lógica é, em Aristóteles, paralela à dos outros
tipos de raciocínio, obtem os, para o con junto da lógica, o seguinte m apa orgânico
que será o plano geral de nosso curso:

I. Os elem entos do raciocínio

1. A sim ples apreensão (c. I).

2. O julgam ento (c. II).

II. Teoria do raciocínio

1. O raciocínio form alm ente considerado: o silogism o


(c. III), a indução (c. IV).

2. O raciocínio m aterialm ente considerado: dem onstração


científica (c. V), dem onstração provável (c.
VI), persuasão oratória (c. VI).

3. Os raciocínios falaciosos ou Sofism as (c. VI).

7. O PEN SAM EN TO E SU A EX PR ESSÃO VER BAL.

Um a últim a questão se coloca nesta introdução: a das relações do próprio


pensam ento com os sinais vocais ou escritos, pelos quais êle se exprim e. A lógica
tem , evidentem ente, com o objeto essencial a atividade própria do espírito, suas
operações m entais. Entretanto, ela não lançará fora de seu horizonte todo o sistem a
de sinais exteriores que vem com o que reforçar aquela atividade. Os dois estudos, o do
pensam ento em sua realidade espiritual e o de sua expressão pela linguagem , têm
obrigatòriam ente de ser solidários, um a vez que os sinais exteriores não têm outra
finalidade senão m anifestar, tão fielm ente quanto possível, a atividade do
pensam ento. Deve-se acrescentar que a consideração do discurso falado, que é m ais
fàcilm ente analisável, será de grande ajuda no estudo dos m ovim entos m ais fugidíos da
vida do pensam ento que êle deseja exprim ir.

Salvo indicações especiais, o que será dito neste curso sôbre os sinais valerá
proporcionalm ente para o pensam ento e vice-versa. Deve-se observar que, em linguagem
lógica, designa-se, às vêzes, pela m esm a palavra, o trabalho m ental e o sinal verbal
correspondente, enquanto que em outros casos em pregam -se palavras diferentes. O m apa
seguinte dá, para cada um a das operações do espírito, o vocabulário correspondente
aos dois níveis de expressão.

OPERAÇÕES

1. Sim ples apreensão


2. J ulgam ento
3. Raciocínio
36
TRABALHO MENTAL

1. Conceito
2. Proposição ou juízo
3. Raciocínio ou argum entação

SINAL ORAL

1. Têrm o
2. Proposição
3. Raciocínio ou argum entação

8 . BIBLIOGR AFIA.

Os textos de base são: os livros do Organon de Aristóteles e os com entários


correspondentes de S. Tom ás sôbre o Periherm eneias e os Segundos analíticos.

Das obras clássicas da escola tom ista destacar-se-á sobretudo a Lógica do Cursus
philosophicus de J oão de S. Tom ás.

Recom endam os, de m odo especial, L'Ordre des Concepts, t. II dos Élém ents de
Philosophie de J . Maritain (Paris, Téqui, 1923) . Querem os afirm ar um a vez
por tôdas que, sôbre um certo núm ero de pontos, nosso curso é devedor dos
esclarecim entos trazidos por êste últim o trabalho.
37
IV

A PRIMEIRA OPERAÇÃO D O ESPÍRITO

1. A SIM PLES APR EEN SÃO.

O m ais sim ples elem ento que entra na com posição do raciocínio é o conceito ou o
têrm o. A prim eira questão que se coloca a seu respeito é a de sua form ação ou da
operação pela qual êle é constituído. Essa operação, já o dissem os, é a sim ples
apreensão. De um a m aneira geral assim se define essa operação: o ato pelo qual a
inteligência percebe a essência de um a coisa, quidditas, sem afirm ar ou negar o que
quer que seja a seu respeito

Operatio qua intellectus aliquam quidditatem intelligit,


quin quidquam de ea affirm et vel neget.

Esta operação tem com o prim eiro caráter a sim plicidade. Sim plicidade, de início,
quanto ao objeto. Êsse objeto é a essência da coisa, quer dizer, o que se exprim e
quando se deseja responder à questão quid est, o que é? Responde-se, portanto,
por um têrm o sim ples: é um "hom em ", um "anim al". Em si, a essência é algum a
coisa de sim ples. As vêzes, é verdade, em pregar-se-á para exprim i-Ia um têrm o
com plexo, "anim al racional", "hom em branco", porém essas com plexidades não são
objeto de sim ples apreensão a não ser na m edida em que conservam um a certa unidade. O
objeto da sim ples apreensão é sem pre encarado com o sendo um a unidade, assim é com
m uita pertinência que S. Tom ás definiu essa operação: a inteligência dos
indivisíveis, indivisibilium intelligentia. O ato pelo qual o espírito percebe essa
essência indivisível das coisas é êle próprio sim ples, quer dizer, não im plica em
nenhum a síntese, em nenhum m ovim ento com o acontece no julgam ento e no raciocínio. É
um a visão sim ples: um a sim ples apreensão.

Em segundo lugar, êsse ato caracteriza-se por seu m odo abstrato. A quididade
representa a natureza de um a coisa em geral, independentem ente de suas condições de
realização, em tal ou tal indivíduo. Designa, por exem plo, "o hom em " e não tal
hom em particular, Sócrates, Platão. Sob êsse aspecto, a sim ples apreensão se
distingue de tôda e qualquer visão intuitiva dos sêres em sua existência concreta
atual. Êsse m odo concreto será, nós o verem os, característico da segunda operação
do espírito.

Finalm ente, a sim ples apreensão tem , com o propriedade distintiva, na ordem do
conhecim ento, o ser sem verdade nem falsidade. Ela não afirm a nem nega, apenas
percebe, sem m ais, o objeto que lhe é apresentado. O julgam ento, pelo contrário,
que sem pre im plica em afirm ação ou negação, ocasionará necessàriam ente um a
qualificação de verdade ou de falsidade. O conceito de "hom em " não é nem verdadeiro
nem falso, enquanto que é necessàriam ente verdadeiro ou falso afirm ar: "êste anim al
é um hom em ".

Concluam os fazendo um a im portante observação. A leitura de S. Tom ás e dos


escolásticos deixa freqüentem ente a im pressão de que, em seu espírito, a simples
apreensão atinge e esgota com um só olhar a essência ou a natureza profunda das coisas.
No hom em , por exem plo, ela revelaria repentinam ente o que exprim e a definição
clássica, "o hom em é um anim al racional". É um a m aneira bem sim plificada de
38
representar as coisas. As prim eiras percepções da inteligência são, evidentemente,
m uito gerais e m uito confusas. É lentam ente, depois de um laborioso esfôrço, que se
chega a precisar e a distinguir os conceitos. De fato, m uitas noções ficarão sem pre
m al definidas em nosso espírito. Ora, em lógica, onde se faz a teoria do raciocínio
ideal, não se leva em conta, pràticam ente, essa im perfeição efetiva de nosso
pensam ento e se m anipula os conceitos com o se êles estivessem sem pre bem determ inados.
É im portante lem brar que essa sim plificação da vida real do espírito, necessária para
assegurar seu funcionam ento lógico, não exprim e freqüentem ente, senão de m aneira
m uito im perfeita, a essência das naturezas m esm as que se considera.

2 . O CON CEITO.

O conceito é aquilo que o espírito form a ou esprim e em sua prim eira operação. Êle
se distingue do têrm o, escrito ou oral, que é o seu sinal exterior. Não podem os
esquecer que o lógico se coloca aqui, em seu estudo, sob o ponto de vista das segundas
intenções, isto é, do ser de razão lógico. Portanto, êle não considera
im ediatam ente o conceito nem com o ato da inteligência, nem em seu conteúdo de
realidade, m as no conjunto das relações de razão que êsse conceito adquire no
exercício do pensam ento.

3 . EX TEN SÃO E COM PR EEN SÃO D OS CON CEITOS.

Um conceito apresenta à análise lógica dois aspectos dignos de nota.

Prim eiram ente, há um certo conteúdo pelo qual êle se m anifesta a nós e se distingue
dos outros conceitos. Salvo para o caso das prim eiríssim as noções, êsse conteúdo
poderá ser dissecado em um certo núm ero de notas ou de caracteres distintivos. Por
exem plo, no conceito "hom em " distinguir-se-ão as notas "vivente", "anim al",
"racional". O conjunto das notas que caracterizam um conceito é cham ado sua
com preensão. Em si, a com preensão de um conceito im plica tudo o que exprim e sua
definição: gênero e diferença específica. Pode-se incluir tam bém suas propriedades
necessárias. A com preensão será, portanto,

o conjunto das notas que constituem um conceito e o distinguem


dos outros conceitos.

Se agora consideramos o conceito em sua função de universal, vem os que êle tem
necessàriam ente relação com um certo núm ero de sujeitos: o conceito "anim al", por
exem plo, relaciona-se com as diferentes espécies anim ais e com os indivíduos que elas
com preendem . Cham ar-se-á, pois, extensão

o conjunto dos sujeitos englobados por um conceito.

Observem os que não se trata som ente, nesta definição, dos sujeitos atualm ente
existentes, m as tam bém de todos os sujeitos possíveis, m esm o daqueles que não serão
m ais. O conceito de "hom em " se estende a todos aquêles que possuem , possuíram ou
poderão possuir a natureza hum ana. Quando se trata dos indivíduos, a extensão de um
conceito é, portanto, indefinida e não m uda com a variação de seu núm ero real.
39
4 . R ELAÇÕES EN TR E A COM PR EEN SÃO E A EX TEN SÃO.

Com o tôda a orientação da lógica pode depender da significação precisa que se dê


à doutrina da com preensão e da extensão dos conceitos, im porta explicitar um pouco m ais
essa doutrina.

Para algum as filosofias, com tendência nom inalista, a realidade é, antes de tudo, o
singular, e o conhecim ento intelectual a apreensão do singular. Segundo tais
concepções, a extensão se torna naturalm ente o caráter prim ordial do conceito, não
sendo êste senão um nom e com um form ado pelo espírito para agrupar indivíduos.
Raciocinar seria antes de tudo classificar. Tem -se aí o que se poderia cham ar um a
lógica de tipo extensionista.

Para outros, ao contrário, os realistas, no sentido m edieval dêsse têrm o, a


realidade verdadeira é antes de tudo a essência, a natureza das coisas, e o
conhecim ento passa a ser a percepção das essências. A com preensão torna-se, neste
caso, a nota essencial do conceito, que é imediatam ente expressivo de um a natureza.

Chega-se aqui, ao inverso, a um a lógica de tipo com preensionista.

A filosofia de S. Tom ás, que é um conceitualism o realista, tem um a posição


interm ediária, m ais próxim a, entretanto, do realism o. Os conceitos se caracterizam de
início e, se distinguem , por seu conteúdo ou por sua com preensão, que por isso m esm o
é sua nota fundam ental, m as lhe é igualm ente essencial ter um a extensão determ inada.
Raciocinar é, antes de tudo, associar naturezas, m as é ao m esm o tem po classificar
conceitos e sujeitos. A lógica de S. Tom ás é, portanto, ao m esm o tem po e
indissoluvelm ente, com preensionista e extensionista. Essa idéia se encontrará na base
m esm a de um a sã teoria do silogism o.

É fácil concluir, em vista do que foi explicado, que a com preensão e a extensão
estão em razão inversa um a da outra: um a crescendo, a outra decresce, e inversam ente.
O conceito de "hom em ", "anim al racional", tem assim um a extensão m enor do que o de
"anim al", m as tem um a com preensão m aior, porque contém em si o caráter específico
"racional" que não foi expresso no conceito genérico de "anim al".

5. AS ESPÉCIES D E CON CEITOS.

Pode-se dividir e classificar os conceitos sob diferentes pontos de vista. Não nos
deterem os aqui senão nas distinções que se relacionam im ediatamente com as noções de
com preensão e de extensão, deixando as outras divisões para o estudo da teoria do
têrm o, dos predicáveis e dos predicam entos.

Do ponto de vista da com preensão, distinguem -se os conceitos em sim ples e com plexos
segundo que o conteúdo que êles exprim em atualm ente seja tam bém sim ples ou com plexo:
"hom em " é um conceito sim ples, "anim al racional", um conceito com plexo.

Conceitos concretos e abstratos. Os prim eiros significam a essência da coisa com o seu
sujeito: "hom em ". Os segundos sign ificam a êssencia sem o seu sujeito:
"hum anidade". Essa diversidade se deve ao m odo de abstração.

Do ponto de vista da extensão, em si m esm o, todo conceito é universal, quer dizer,


êle tem tôda a sua extensão. Mas no exercício do pensam ento pode-se ser levado a
40
restringir essa extensão a um a parte sòm ente dos sujeitos aos quais êsse conceito
convém . Em lugar, por exem plo, de considerar o conceito "hom em " com o se relacionando
a "todo hom em ", não se retém senão um a parte desta coletividade: "êste hom em ",
"algum hom em ". Chega-se assim à seguinte divisão que representa um papel capital na
lógica peripatética:

Conceito universal: extensão não restrita: "todo hom em "

Conceito particular: extensão restrita a um grupo: "algum


hom em "

Conceito singular: extensão reduzida a um só:


"Sócrates"

O conceito tom ado em tôda sua extensão é freqüentem ente cham ado: universal
distributivo.

Distingue-se tam bém , do ponto de vista dos sujeitos, o conceito coletivo, (que não
pode ser realizado senão em um grupo de sujeitos: exército, sociedade) e o conceito
divisivo (que se encontra integralm ente em cada sujeito: soldado, sócio).

6 . O TÊR M O.

Não tendo a linguagem outra finalidade a não ser a de exprim ir o pensam ento, devem os
naturalm ente encontrar nela os elem entos do pensam ento. É assim que ao conceito
corresponde o têrm o, oral ou escrito, que pràticam ente não é senão um a
representação daquêle. O que se dirá de um , do ponto de vista lógico, valerá sem
reserva especial para o outro.

7. D EFIN IÇÃO D O TER M O.

A questão do têrm o e a questão m ais geral da linguagem , são tratadas por


Aristóteles nos quatro prim eiro capítulos do Perihermeneias, e por S. Tom ás em seu
Com entário a êsses capítulos.

De m aneira geral, define-se o têrm o: um a "voz" (um a palavra) que tem um a


significação convencionada:

vox significativa ad placitum .

A segunda parte desta definição destaca justam ente o aspecto convencional da


linguagem . Um sinal pode, com efeito, ser natural ou convencional. É natural o sinal
cuja significação está incluída na essência m esm a do fato. A fum aça, por
exem plo, é sinal natural do fogo, o gem ido, do sofrim ento. É convencional o sinal
cuja determ inação depende de um a escolha livre. Um ram o de oliveira é,
convencionalm ente, sinal de paz. A linguagem , em seu conjunto e em seus elem ento&, é

o próprio tipo do sinal convencional.

Mas, de que, exatamente, a linguagem é um sinal? O sinal é aquilo que representa


41
um a coisa diferente de si. Para S. Tom ás, aquilo que é significado im ediatam ente
pelo têrm o é o conceito: eu falo para exprim ir m eu pensam ento. Não é m enos certo
que, quando eu falo, é sobretudo para dizer algum a coisa, isto é, para fazer conhecer
um a realidade. Dir-se-á que, por êsse m otivo, o têrm o significa principalm ente a
coisa expressa pelo conceito. É à luz desta explicação que será necessário entender
a fórm ula clássica de S. Tom ás:

voces sunt signa conceptuum et conceptus sunt signa rerum .

Dever-se-á observar, além disso, que os têrm os, voces, não são sinais da m esm a
m aneira que os conceitos. Os têrm os não contêm as coisas que êles próprios
significam, êles som ente conduzem a elas com o a qualquer coisa de distinto. Os
conceitos, ao contrário, representam as coisas e m esm o, sob um certo ponto de vista,
na m edida em que exprim em a essência, êles são as próprias coisas que representam .
Os escolásticos, J oão de S. Tom ás em particular, fizeram essa distinção. O
têrm o é o que êles cham am um sinal instrum ental, enquanto que o conceito é um sinal
form al.

8 . D IVISÃO D OS TÊR M OS.

Vam os encontrar, com m uitas outras, as distinções já feitas a respeito do conceito.


Para colocar um pouco de ordem em tôdas essas divisões, pode-se fazer um a distinção
que S. Tom ás propõe no Periherm eneias (l, 1. 1, n. 5). Os têrm os, diz
êle, podem ser considerados sob três pontos de vista: enquanto significam absolutam ente
as sim ples intelecções, enquanto são partes das enunciações ou julgam entos,
enquanto são elem entos constitutivos dos raciocínios. Tom em os essa distinção com o
base de nossa classificação dos têrm os e, pela m esm a razão, dos conceitos.

Os têrm os considerados em si m esm os podem ser

Sim ples ou com plexos

Concretos ou abstratos

Singulares, particulares, universais

Coletivos ou divisivos.

Unívocos, análogos, equívocos

Gênero, espécie, diferença, próprio, acidente

A divisão dos term os com o partes da enunciaçãofoi exposta por Aristóteles nos
prim eiros capítulos do Perihermeneias. O prim eiro discernim ento que aqui se im põe é
o das partes essenciais e das partes accessórias da enunciação; a lógica
pràticam ente não terá de se ocupar dos prim eiros. As partes essenciais da enunciação
são os têrm os categorem áticos (significativi), que representam diretam ente algum a
coisa não entrando na enunciação para m odificar um outro têrm o.

Exem plo: "hom em ", "branco", "cair.". Há duas espécies dêles: o nom e e o
verbo. As partes acessórias da enunciação são os têrm os sincategorem áticos
(consignificativi) que não têm significação senão enquanto m odificam um elem ento
42
essencial do discurso. São os adjetivos, qualificativos, ("um a bela casa"); as
preposições e os advérbios ("faz m uito calor").

9 . TEOR IA D O N OM E E D O VER BO.

Com o dissem os, são êstes os elem entos lógicos essenciais da enunciação. Tôda
enunciação com preende, necessàriam ente, pelo m enos um nom e e um verbo: dois nom es
isolados ou dois verbos constituem apen as um conjunto sem significação própria,
enquanto que um nom e e um verbo são suficientes para constituir um a verdadeira
proposição: "a chuva cai".

O nom e e o verbo se distinguem profundam ente pela m aneira pela qual êles significam a
coisa que representam . O nom e faz abstração da existência no tem po, representando as
coisas com o estáveis, m esm o se sua natureza é, na realidade, móvel: "hom em ",
"branco" "queda". É o aspecto essência que assim se acha expresso. O verbo, pelo
contrário, inclui em sua significação a existência atual. Êle representa as coisas em
sua m utação, em seu vir-a-ser, com o sujeitas a m odificações no tem po. É o lado
da existência das coisas que é aqui colocado em relêvo. O verbo essencial será o
verbo ser que as outras form as verbais contêm de m aneira pelo m enos im plícita. Nom e e
verbo se com binam e se com pletam , assim , no discurso, o prim eiro exprim indo o aspecto
de determ inação estável, o segundo aspecto dá atualidade m utável das coisas.

Tem os agora, condições para com preender a definição que se dá, sintetizando tôdas
essas observações, a essas duas espécies de têrm os:

O nom e é um têrm o significativo de m aneira intem poral do


qual nenhum a parte tem significação por si só, e que é
finito e direto: vox significativa ad placitum , sine
tem pore, cujus nulla pars significat separata, finita,
recta.

Vox significativa ad placitum exprim e a própria definição do têrm o, sinal


convencional. Sine tem pore indica o caráter distintivo do nom e que abstrai do tem po ou,
m ais profundam ente, da existência atual. Cujus nulla pars significat separata exclui
os discursos ou os têrm os com plexos. Observe-se que por têrm os com plexos entende-se
aqui aquêles em que cada parte teria um a significação relativa ao conjunto
("arco-iris"). Não se trata de sílabas que, isoladas, poderiam ter um a significação
sem qualquer relação com o todo, "livra-ria". Finita exclui os têrm os que seriam
indeterm inados: Aristóteles dá com o exem plo "não-hom em " que, com efeito, nada
designa de preciso. Recta exclui os casos de dedicação de um nom e: "de Filon",
"a Filon": êsses casos, com o tais, relacionam o têrm o a um outro e o im pedem ,
assim , de ter um a significação própria ou com o nom e.

O verbo é um têrm o significativo no tem po, do qual ne nhum a parte tem significação
por si própria, que é finito, de tem po direto, e relaciona-se sem pre ao predicado:
vox significativa ad placitum , cum tem pore, cujus nulla pars significat separata,
finita et recta, et eorum quae de altero praedicantur sem per est nota.

Vox significativa ad placitum exprim e a definição do têrm o. Cum tem pore distingue o
verbo do nom e. Cujus nulla pars significat separata exclui os verbos com postos. Finita
exclui os verbos indefinidos ou indeterm inados "não passa bem ", "não está
doente". Recta exclui os tem pos passados ou futuros "êle passou bem ", "êle passará
bem ". Êste detalhe tem sua im portância porque torna patente que Aristóteles não
43
desejou visar, ao afirm ar que o verbo significava cum tem pore, a diversidade
passado-presente-futuro, m as sòm ente o m odo presente. O passado e o futuro "declinam "
da significação própria do verbo. Et de eorum quae praedicantur sem per est nota
exclui o particípio e o infinitivo, que podem se relacionar tanto ao sujeito quanto ao
predicado ("viver é um bem ") enquanto que o verbo se m antém sem pre do lado do
predicado.

10 . A D IVISÃO SU JEITO - CÓPU LA - PR ED ICAD O.

Os têrm os essenciais da enunciação, com o acabam os de ver, são o nom e e o verbo,


m as os lógicos falam freqüentemente de um a outra divisão em três têrm os: sujeito -
cópula predicado. Esta divisão, que parece ter sua origem na teoria do silogism o
onde, o sujeito e o predicado são os elem entos essenciais, pode ser reduzida à
precedente da m aneira que segue. O verbo realiza na proposição um a função de
ligação entre o sujeito e o nom e-predicado; a êste título nós o cham am os cópula.
Essa ligação não é outra coisa senão a afirm ação m esm a do ser, explicitam ente
expresso ou im plicitam ente contido no verbo: "o tem po está bom "), "o sol brilha"
- "é brilhante". Tôda proposição pode, portanto, ser do tipo nom e-sujeito,
verbo-cópula, nom e-predicado.

A divisão sujeito-cópula-predicado se distingue, portanto, da divisão


nom e-verbo, no fato de que esta coloca em evidência a função copulativa do verbo e de
que ela separa o nom e-predicado. Em oposição, ela não exprim e de m aneira tão
explicita os aspectos de estabilidade e de atualidade, que a divisão nom e-verbo coloca
tão bem em relêvo. Pode-se dizer que essa divisão em nom e-verbo é m ais essencial à
proposição que a outra, porque é necessário sem pre que os têrm os sejam aí
explícitos, enquanto que a cópula e o predicado podem ser significados pelo m esm o
têrm o. Os escolásticos cham am proposições de secundo adjacente àquelas onde cópula e
predicado estão unidos: "a chuva cai"; e proposições de tertio adjacente àquelas
onde êles são distintos: "o tem po está bom ".

11. OS TÊR M OS COM O PAR TES D O SILOGISM O.

Os "têrm os silogísticos" são os últim os elem entos do silogism o ou raciocínio


dedutivo. Éles são em núm ero de três: o sujeito, o predicado, o têrm o m édio. O
sujeito e o predicado são os têrm os que se encontram na proposição conclusão. O
têrm o m édio é sujeito ou predicado em cada um a das prem issas. Exem plo:

Tudo o que é im aterial(M) é im ortal(P).

Ora, a alm a(S) é im aterial(M).

Logo a alm a(S) é im ortal(P).

Observe-se que essa divisão não leva em conta a cópula nem o verbo em sua função de
cópula. É que, nós o verem os em seguida, o silogism o não tem com o função
construir, a verdade pela afirm ação, m as sim inferi-Ia a partir de princípios que se
supõem verdadeiros. A cópula não entra, portanto, a título de elem ento form al no
raciocínio, ainda que ela seja necessária para a form ação das proposições que são
com o que sua m atéria.
44
45
V

A D EFIN IÇÃO E A D IVISÃO

1. R AZÃO D E SER D A D EFIN IÇÃO.

A prim eira operação do espírito é ordenada à percepção da essência das coisas,


que ela exprim e em conceitos. Mas de fato, devido à fraqueza de nossa inteligência,
nós não percebem os essa essência senão de m aneira confusa, quer dizer, não
distinta. Ê, portanto, necessário utilizar processos auxiliares para suprir essa
im perfeição de nossa prim eira percepção das coisas. Êsses processos, denom inados em
escolástica m odi sciendi, são, para a prim eira operação do espírito, a definição
e a divisão. A divisão perm ite distinguir e ordenar as partes que estão com preendidas
nas totalidades confusas que se apresentam a nosso espírito, enquanto que a definição
delim ita cada um a das essências e m anifesta claram ente sua natureza. No final dêsse
trabalho de divisão e de definição, supondo que se possa chegar a seu têrm o, o dado
nos aparecerá ordenado, classificado, cada parte estando distinta das outras e
m anifesta em si m esm a.

2 . N ATU R EZA D A D EFIN IÇÃO.

A definição é um têrm o com plexo que torna explícita a natureza da coisa ou a


significação do têrm o:

Oratio naturam rei aut significationem term ini exponens.

Darem os algum as precisões. Antes de tudo, a definição não é um têrm o sim ples.
O objeto deve ser uno em sua essência, m as com o se trata justam ente de deslindar a
confusão na qual esta prim itivam ente se acha apresentada, tal não pode se dar senão por
algum discurso ou algum a frase, oratio, ou por um têrm o com plexo. Êste têrm o é
necessàriam ente com posto de dois elem entos: um elem ento genérico, ou quase genérico,
que m arca o aspecto pelo qual o objeto a definir se assim ila aos objetos da classe
superior ou gênero, e um elem ento específico, ou quase específico, que denuncia a
diferença que o distingue dêstes m esm os objetos. Na definição do triângulo,
"polígono de três lados", o elem ento genérico é "polígono", o triângulo pertence
ao gênero "polígono"; "de três lados" designa o caráter específico: o
triângulo se distingue dos outros polígonos visto que êle é um a figura "de três
lados".

Em segundo lugar, a definição, se bem que ela seja um têrm o necessàriam ente
com plexo, depende da prim eira operação do espírito e não da segunda. Não há na
definição nem afirm ação de ser nem , pròpriam ente falando, verdade ou falsidade: há
a sim ples associação de um a "razão" genérica e de um a determ inação específica.
J ulgam entos terão podido intervir na form ação de uma definição, poder-se-á m esm o
enunciar um a definição em um julgam ento: "o triângulo é um polígono de três
lados", m as a definição com o tal resta sem pre um a sim ples percepção do espírito.

Finalm ente, não há definição, pròpriam ente falando, senão do universal. O


singular com o tal não pode ser definido: om ne individuum inef fabile. Isto se deve a
46
que a individualidade depende das condições m ateriais, as quais têm um a
indeterm inação que provém de sua própria natureza.

3 . ESPÉCIES D A D EFIN IÇÃO.

A definição típica é a definição essencial pelo gênero e diferença específica:


"anim al racional". Pràticam ente não se atinge quase a êste ideal e deve-se
contentar em definir as naturezas por caracteres secundários ou m ais exteriores.
Freqüentem ente define-se pelas propriedades: "o ferro é um m etal que tem tal côr,
fundindo a tal tem peratura" etc.; ou então pelas causas extrínsecas eficientes ou
finais: "um relógio é um instrum ento destinado a indicar a hora". - Poder-se-á,
finalm ente, se contentar em definir o têrmo, definição nom inal, baseando-se na
significação com um das palavras ou etim ologia. Com o tudo isso tem sem pre um a relação
com a verdadeira natureza das essências, as definições dêsse tipo podem tam bém ter o
seu valor. De ordinário é pràticam ente dando sua definição nom inal que
Aristóteles e S. Tom ás com eçam o estudo de um a noção. Por exem plo: "religio"
será relacionado com "religare", tornar a ligar. Num gênero m ais fantasista citem os
as definições etim ológiças de "m onum entum " de "m onet m entem ", e de "lapis" de
"ladere pedem ". Eis aqui, num a certa ordem , os principais tipos de definição:

Definição nom inal: expõe a significação do têrm o.

Definição real: expõe o que é a coisa significada.

Definição extrínseca: pelas causas exteriores eficiente e


final.

Definição intrínseca: pelos elem entos necessàriam ente


ligados à essência.

Definição descritiva: pelas propriedades, pelos efeitos.

Definição essencial física, pelas partes físicas,


essenciais, m atéria e form a.

Definição essencial racional, pelo gênero e pela


diferença específica.

4 . LEIS D A D EFIN IÇÃO.

São as condições às quais deve se subm eter um a definição para ser correta.

A. A definição não deve conter o definido.

B. A definição deve ser convertível ao definido, quer


dizer, convir a todo o definido e só ao definido.

5. D EFIN IÇÃO D A D IVISÃO.


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Dissem os que, com o a definição, a divisão era um processo lógico que tinha por
finalidade suprir a insuficiência do olhar im ediato de nosso espírito. A definição
nos perm ite delim itar as essências particulares e torná-las m anifestas, enquanto que a
divisão distingue os elem entos dos conjuntos com plexos e confusos que a experiência nos
apresenta. Pode-se defini-la como um têrm o com plexo que distingue em suas partes um a
coisa ou um nom e significativo:

Oratio rem vel nom em per suas partes distribuens

Com o a definição, a divisão tam bém é um têrm o com plexo, não com portando nem
afirm ação, nem negação: ela pertence tam bém à prim eira operação do espírito.
Distinguem -se, em tôda a divisão, três elem entos: o todo que se divide, suas
partes, e o fundam ento da divisão. O fundam ento designa o ponto de vista form al com
relação ao qual é feita a divisão (a divisão em azul, branco, verm elho, tem assim
com o fundam ento a côr) : êle é, portanto, o elem ento determ inante dessa
operação, e é pràticam ente sôbre êle que será necessário dirigir a atenção quando
se efetuar divisões.

6 . ESPÉCIES D E D IVISÕES.

A classificação das espécies de divisões é difícil de se estabelecer, devido tanto


à m ultiplicidade dos "todos" e portanto das "partes" que se foi levado a distinguir,
quanto às variações no uso das denom inações. Eis o que parece ser o m ais com um ente
aceito:

A. O todo lógico, totum universale, divide-se em suas


partes subjectivas, partes subjectivae. É a própria
divisão do universal em seus gêneros e espécies
subordinadas. As partes do todo lógico não se encontram
senão em potência no todo e não são atualizados senão pela
divisão: o universal "anim al", por exem plo, não contém
senão potencialm ente os caracteres distintivos das diversas
espécies anim ais.

B. O todo atual, totum essentiale, divide-se em suas


partes essenciais, partes essentiales: partes físicas
(m atéria e form a); partes racionais (gênero e diferença
específica).

C. O todo quantitativo ou integral, totum integrale,


divide-se em suas partes integrantes, partes integrales: a
casa em suas partes, o corpo em seus m em bros.

D. O todo virtual ou potestativo, totum potentiale,


divide-se segundo suas diversas virtualidades ou funções,
partes potentiales. É um a divisão da ordem das potências
ativas da qual S. Tom ás fará grande uso em teologia,
com o aliás da divisão em partes integrantes. Dir-se-á,
por exem plo, que as partes potenciais da alm a são a parte
vegetativa, a parte sensitiva e a parte racional, ou que as
sete ordens são as partes potenciais do sacram ento da ordem ,
ou que um a virtude tem tais e tais partes potenciais.
48

E. Ao lado dessas espécies de divisão, que são cham adas


per se, porque o fundam ento é tom ado da própria coisa que
se divide, há as divisões acidentais, per accidens, quer
dizer, as divisões que se fundam entam sôbre um elem ento
adventício. Os autores distinguem , nesta ordem , os três
casos seguintes:

- o sujeito dividido por seus acidentes: o hom em em branco,


negro, am arelo etc.

- o acidente por seus sujeitos: o branco em neve, papel


etc.

- o acidente por seus acidentes: o branco em doce, am argo


etc.

7. LEIS D A D IVISÃO.

- Que tôdas as partes igualem o todo.

- Que nenhum a parte iguale ou exceda o todo.

- Que o fundam ento de um a divisão seja o m esm o em relação


a tôdas as suas partes.
49
VI

U N IVERSAIS, PRED ICÁVEIS E PRED ICAMEN TOS

1. IN TR OD U ÇÃO.

O livro das Categorias que se relaciona m ais especialm ente com a prim eira operação do
espírito, teve, na Idade Média, um papel extraordinário. Isso decorre do fato de
que foi justam ente até o século XIII um dos m ais raros escritos conservados de
Aristóteles. Mas as coisas se com plicam quando se sabe que êsse livro foi geralm ente
utilizado com um a introdução que o neoplatônico Porfírio (Séc. III D .
C.) havia com posto para êle. Essa introdução, a fam osa Eisagoge, figurava,
aliás, na tradução deixada por Boécio. Encontra-se aí um estudo dos cinco têrm os
gerais: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente (donde o subtítulo, De
quinque vocibus) que tom aram o nom e de Predicáveis.

As circunstâncias fizeram com que a atenção dos filósofos m edievais se prendesse a


um a sim ples frase do pequeno livro de Porfírio, na qual levantava-se a questão da
realidade ou da objetividade das idéias universais. Essa questão foi então de tal
form a discutida que pode-se asseverar, sem m êdo de errar, que, em tôrno dela
dividiram-se as grandes tendências especulativas da época. As Categorias de
Aristóteles foram , portanto, incluídas na escolástica, sobrecarregadas com o que, de
um duplo prefácio: o pequeno tratado de Porfírio-Boécio e o conjunto de discussões
sôbre o problem a dos universais que se ligou a êle. Daí nasceu o costum e escolar de
tratar sucessivam ente dos universais, dos predicáveis e dos predicam entos
(categorias). Os autores reservam , de ordinário, essas questões para a Lógica
Maior. Tratarem os dêles aqui m esm o, no âm bito da prim eira operação do espírito,
deixando às outras partes da filosofia os longos desenvolvim entos estranhos à lógica e
que com tanta preferência a sobrecarregam .

2 . D OS U N IVER SAIS.

O fam oso texto de Porfírio-Boécio que originou a querela dos universais é assim
redigido:

"No que concerne aos gêneros e às espécies: será que


subsistem nêles m esm os ou não estariam êles contidos a não
ser nas puras concepções intelectuais? São êles
substâncias corporais ou incorporais? Finalmente, são
êles separados das coisas sensíveis ou estão im plicados
nelas, encontrando aí sua consistência? Recuso-m e a
responder."

"Mox de generibus et speciebus illud quidem sive subsistunt


sive in soles nudisque intellectibus posita sunt, sive
substantia corporalia sunt an incorporalia, et utrum separata
a sensibilibus an in sensibus posita et circa ea constantia,
dicere recusabo."

As três questões que Porfírio levanta aqui, e que êle se recusa, aliás, a
50
resolver, têm ligação, igualm ente, com a realidade e com a objetividade das idéias
universais. Observar-se-á sem dificuldade que as duas últim as dependem , para sua
solução, da prim eira, em tôrno da qual todo o debate se fixou: as idéias de gênero e
de espécie (os universais) subsistem em si próprias, quer dizer na realidade, ou'
não teriam existência a não ser na inteligência? É pròpriam ente um problem a de
m etafísica, o que não interessa à lógica senão na m edida em que ajuda a m elhor
perceber a natureza do universal. Portanto, não tratarem os dêle aqui, senão de
m aneira suscinta, e sobretudo à m aneira de conclusão.

De um a m adeira geral, pode-se definir o un iversal com o "algum a coisa que é apta a se
encontrar em m uitas":

"Unum aptum inesse m ultis".

Representa com o que o elem ento com um a um conjunto de sujeitos que se cham am seus
inferiores e aos quais, em conseqüência, êle pode ser atribuído: assim "anim al"
é um universal com relação às diferentes espécies anim ais; "hom em " é um universal
relativam ente a Sócrates, Platão etc. O universal é o conceito lógico, quer
dizer, a idéia na razão.

Num erosos autores (cf. J OÃO DE S. TOMÁS, Logica IIa P., q. 3,


Prm m ium ) colocam em discussão, a respeito do universal, estas três questões que
irem os considerar suscintam ente: a objetividade do universal, a causa do universal, a
propriedade característica do universal.

3 . A OBJETIVID AD E OU A R EALID AD E D O U N IVER SAL.

Trata-se do m esm o problem a colocado no Eisagoge: as idéias gerais existem com o tais
no espírito ou fora do espírito sòm ente? As respostas a esta questão se dividem
entre três orientações filosóficas que já assinalam os. Os realistas, na linha de
Platão, tinham a tendência a realizar o universal fora do espírito: a verdadeira
realidade é o "hom em " ou a natureza hum ana real. Os nom inalistas, ao contrário,
partindo da convicção de que o real autêntico não se encontra senão nos indivíduos,
tendiam por sua vez a reduzir o universal a um sim ples nom e coletivo, representativo do
conjunto dos indivíduos. A idéia do "hom em ", por exem plo, não representaria
verdadeiram ente a natureza hum ana, m as supriria tão' sòm ente o lugar da coletividade
dos hom ens na linguagem e no pensam ento. ,Para o realism o m oderado, o
conceitualism o-realism o com o se diz, os universais exprim em bem a verdadeira natureza das
coisas, m as seu estado de universalidade não lhe é conferido senão pelo espírito; sob
este aspecto êles não existem senão no pensam ento. A noção com um que eu form o do
"hom em " se encontra nos hom ens reais, Sócrates, Platão etc., os quais participam
da m esm a natureza hum ana m as, esta noção não se reveste de seu estado de
universalidade senão no espírito que a concebe com o aplicável indiferentem ente a todos
os indivíduos hom ens. O universal representa realm ente as naturezas, m as vistas em um
estado de subjetividade: é a teoria do realism o m oderado. Esta doutrina, que é a de
S. Tom ás, foi assim resum ida por Gredt (Logica, 4.a ed. p. 96):

"Insunt in m ente nostra conceptus vere universales, quibus


a parte rei respondet natura his conceptibus expressa.
Nihilom inus haec natura, ut a parte rei existit, non est
universalis sed singulares".
51
4 . A CAU SA D O U N IVER SAL.

Trata-se ainda de um a questão de m etafísica do conhecim ento ou de psicologia


racional. A pergunta é a seguinte: quais as operações do espírito pelas quais êle
form a um universal?

Inicialm ente, pôr um a abstração. A inteligência extrai dos singulares que estão
na origem de nosso conhecim ento a natureza que é com um a todos. Por exem plo, da
observação das diversas espécies anim ais, tira-se a noção de "natureza anim al".
Esta noção considerada ao têrmo desta atividade abstrativa do espírito, é o que se
cham a o universal m etafísico. Não é ainda o universal em seu estado perfeito, porque
a natureza considerada, m esm o guardando ainda um a ordem radical relativam ente aos
sujeitos dos quais ela foi extraída, é en tão apreendida com o isolada, com o natureza
pura. Por um a espécie de com paração ou de relacionam ento, o espírito volta então
aos sujeitos dos quais a natureza universal foi tirada e reconhece que essa natureza
universal convém a êsses sujeitos e pode, portanto, lhes ser atribuída. Tem -se,
então, o verdadeiro universal, o universal lógico, quer dizer, o conceito considerado
em suas relações com seus inferiores. Enquanto o universal m etafísico corresponde às
prim eiras intenções, o universal lógico é da ordem das segundas intenções. Em
lógica, evidentem ente, é dêsse tipo de universal de que irem os nos ocupar.

5. A PR OPR IED AD E ESSEN CIAL D O U N IVER SAL.

Essa propriedade não é outra senão a praedicabilitas, ou a aptidão essencial para


ser predicado. Todo universal, im plicando em sua própria natureza um a relação com
seus inferiores, pode, por esta razão, lhes ser sem pre atribuído. O universal
"anim al", que foi tirado dos diversos tipos de anim ais e que tem relação com todos os
anim ais possíveis, poderá ser atribuído a qualquer um dentre êles: "o cão é
anim al" etc. A aptidão para ser predicada é a propriedade característica ou, em
linguagem aristotélica, a propriedade do universal. Essa aptidão é evidentem ente,
com o tôdas as entidades lógicas, da ordem da relação de razão. - A atribuição
ou praedicatio é o ato pelo qual se efetua êsse relacionam ento do universal com os seus
sujeitos. Pertence à segunda operação do espírito. Os autores (cf. J OÃO DE
S. TOMÁS, Logica, IIa P, q. 5) freqüentem ente estudam aqui esta
operação. Parece-nos preferível considerá-la na operação lógica à qual ela
pertence.

6 . D OS PR ED ICAD OS.

A teoria dos predicados rem onta de m aneira im ediata ao Eisagoge de Porfírio que a
fixou no estado no qual ela se perpetuará em seguida. Porém , a idéia dessa teoria,
assim com o seus principais elem entos, já haviam sido claram ente expostos nos Tópicos
(I, C. I e segs.): os predicados já aparecem aí com o sendo os títulos m ais gerais
de atribuição. Sem entrar em m aiores detalhes, m ostrarem os sim plesm ente que a lista
aristotélica dos predicados não coincide exatam ente com a de Porfírio-Boécio, pois
com preende sòm ente quatro predicados: definição, propriedade, gênero e acidente.

Os predicados são as diversas espécies de conceitos universais. Essa divisão tem sua
raíz na própria propriedade do universal lógico: sua aptidão a ser predicado. Com o,
com efeito, as noções universais convêm a seus inferiores de m uitas m aneiras
diferentes, elas exercem sua função de predicado de maneira igualm ente diferente, o que
52
ocasiona um a diversidade nos próprios conceitos, que se vêem por êste fato, divididos
segundo as diversas espécies de "predicáveis".

Porfírio distinguiu cinco espécies de predicáveis: gênero, espécie, próprio e


acidente. Eis com o se pode justificar essa divisão. Há, já o dissem os, tantos
predicáveis quantas as m aneiras de se relacionar ao sujeito. Ora, um predicado pode
representar, seja a essência do sujeito, seja algum a coisa que lhe é acrescentada.

Se o predicado significa a essência, ou êle a significa inteira e tem -se a espécie,


species: "hom em ", ou êle significa a parte a determ inar dessa essência, e tem -se o
gênero, genus: "anim al", ou êle significa a parte que determ ina a precedente, e
tem -se a diferença específica, differentia: "racional".

Se o predicado significa algum a coisa que é acrescentada à essência, ou se trata de


algum a coisa que lhe pertence necessàriamente, e tem-se o próprio, proprium : "a
propriedade de rir", para o hom em , ou se trata de algum a coisa que não lhe sobrevém
senão acidentalm ente, e tem -se o acidente predicável, accidens, que é necessário
não confundir com o acidente predicam ental: "a qualidade de francês".

7. OS PR ED ICÁVEIS EM PAR TICU LAR .

O gênero pode ser definido como um universal relativo a inferiores especìficam ente
diferentes uns dos outros, e que lhes pode ser atribuído exprim indo sua essência de
m aneira incom pleta:

"Universale respiciens inferiora specie differentia et quod


praedicatur de illis in quid incom pleta".

A prim eira parte desta definição indica a própria natureza do gênero: é um


universal cujos inferiores são espécies; a segunda parte acentua a propriedade do
gênero, sua aptidão a exprim ir a própria essência, o quid do sujeito, m as sòm ente de
m aneira incom pleta. Assim "anim al" exprim e a essência do hom em m as de m aneira
incom pleta; quando se diz: "o hom em é um anim al", na verdade exprim e-se o que êle
é, m as incom pletam ente.

A espécie é um universal que pode ser atribuído a seus inferiores exprim indo sua
essência de m aneira com pleta:

Universale respiciens inferiora et quod praedicatur de illis


in quid com plete.

A espécie se distingue do gênero pelo fato de que ela exprim e com pletam ente o que são
seus inferiores. Se eu digo: "Pedro é um hom em ", exprim o com pletam ente sua
essência.

A diferença específica é um universal que pode ser atribuído a seus inferiores por
m odo de qualificação essencial:

Universale respiciens inferiora et quod praedicatur de illis


in quale quid.

Observar-se-á que a diferença específica, bem com o o gênero e a espécie, exprim e


53
a essência do sujeito, seu quid, m as sob um m odo especial. A diferença determ ina o
gênero e o qualifica. Donde a precisão qualis ajuntada ao gênero de atribuição que,
no fundo, não deixa nunca de ser um quid: "O hom em é racional".

O próprio é um universal que exprim e por m odo de qualificação algum a coisa que
sobrevém acidentalmente à essência, m as lhe é atribuída necessàriam ente:

Universale quod praedicatur de pluribus in quale,


accidentaliter et necessario.

Nesta definição, quale significa o m odo qualitativo da predicação; accidentaliter


indica que se trata de um elem ento que não é da própria essência do sujeito;
necessario, finalm ente, faz a distinção entre o próprio e o acidente, pois o acidente
não qualifica necessàriam ente o sujeito. - O próprio é freqüentem ente definido com o
"o que convém a todo, ao único e sem pre":

Quod convenit om ni, soli et sem per.

Esta fórm ula, que vem de Porfírio-Boécio, designa o próprio em sentido estrito.
Para com preendê-la é necessário com pletar: om ni individuo e soli speciei. Com
isso, quer-se significar que a propriedade pertence a tôda a espécie e só à
espécie. A "capacidade de rir", por exem plo, se encontra em todo hom em e só na
espécie hum ana: dir-se-á, é próprio do hom em poder rir. O próprio neste sentido
se liga à diferença específica. Se se considera que um a espécie últim a se obtém
determ inando progressivam ente os gêneros m ais elevados por diferenças sucessivas,
poder-se-á dizer que um a m esm a espécie tem m uitas propriedades, m as só a que se liga à
sua últim a diferença será verdadeiram ente seu "próprio". O próprio sendo para
Aristóteles, portanto, um a m odalidade bem determ inada, característica de cada
essência, tôda a teoria da dem onstração científica se liga a esta noção.
Observe-se que, aquilo que se cham a com um ente de "propriedades" de um a coisa, de um
corpo, pode-se ligar ao próprio e m esm o o exprim ir, se bem que, nesse caso, se trata
de apenas um a m anifestação m ais ou m enos exterior.

O acidente predicável é um universal que pode ser atribuído a um a m ultidão, de


m aneira qualitativa, acidental e contingente:

Universale quod praedicatur de pluribus in quale,


accidentaliter et contingentes.

Contingenter, nesta definição, m arca a diferença do próprio e do acidente: o


acidente não está necessàriam ente ligado à essência. É o que, da m aneira m ais
explicita, exprim e a definição de Boécio: aquilo que se acrescenta ou se separa sem
que haja corrupção do sujeito,

Quod adest et abest praeter subjecti corruptionem .

Dorm ir, ser branco ou preto, são assim acidentais com


relação à espécie hum ana.
54
55
8 . O IN D IVÍD U O.

Os gêneros e as espécies form am um a hierarquia de têrm os dos quais os m ais elevados


são atribuíveis àqueles que lhes são inferiores. Para o alto, no sentido da
universalidade crescente, atinge-se, com o o verem os, aos gêneros suprem os; para
baixo, para-se nas espécies últim as, assim cham adas porque abaixo delas não se pode
m ais encontrar espécies subordinadas m as sòm ente indivíduos. Os gêneros
interm ediários podem ser ditos espécies com relação aos gêneros superiores, m as é à
espécie últim a que convém plenam ente o nom e de espécie: species.

Nesta perspectiva, o indivíduo representa o últim o sujeito de tôda atribuição,


aquêle que não pode ser atribuído a nenhum outro senão a êle próprio e ao qual tôdas
as noções superiores poderão ser atribuídas. O indivíduo não sendo um universal,
não é um predicável.

9 . D OS PR ED ICAM EN TOS.

Com a questão dos predicamentos abordam os o próprio conteúdo do livro das


Categorias. Êste conteúdo se divide em três partes, das quais a últim a é de
autenticidade discutida, m as geralm ente reconhecida.

A prim eira parte (c. 1-3) é um a espécie de introdução com preendendo diversas
distinções das quais a m ais im portante é a do têrm o em hom ônim os, sinônim os e
parônim os. Os escolásticos denom inaram esta introdução: De ante-prcsdicam entis.

A segunda parte (c. 4-9) , que constitui o corpo do livro, trata das categorias
ou predicam entos.

A terceira parte (c. 10 -15), os Post-praedicam enta dos escolásticos, é


consagrada às noções gerais que dom inam a distinção dos predicam entos.

10 . OS TÊR M OS U N ÍVOCOS, EQU ÍVOCOS, AN ÁLOGOS.

Até o presente, consideram os o conceito com o sendo participado igualm ente por todos os
seus inferiores. "Anim al" convém em tôda a sua significação e, idênticam ente,
às diversas espécies anim ais; um a espécie não é m ais ou m enos ou de m odo diferente
"anim al" do que outra, o hom em , por exem plo, não é m ais anim al do que o boi. A
razão significada pelo m esm o nom e é idêntica em todos os sujeitos. Esse têrm o é
denom inado sinônim o, por Aristóteles (m ais tarde será cham ado unívoco), é o
verdadeiro universal lógico que se pode definir:

Quorum nom en com m une est, et ratio per nom en significata


sim pliciter eadem .

Mas há outros casos onde só o nom e é com um , enquanto que as diversas coisas que êle
significa são totalm ente dissem elhantes: "anim al, diz Aristóteles, é tanto um
hom em real quanto um hom em em pintura; estas duas coisas, com efeito, não têm em
com um senão o nom e, enquanto que a noção designada pelo nom e é diferente"
(Categorias, I, c. I). Paralelam ente, o têrm o "gallus" designa ao m esm o tem po o
gaulês e o galo. Êstes têrm os são hom ônim os, ou equívocos. São definidos:
56
Quorum nom en com m une est et ratio per nom en significata
sim pliciter diversa.

Um a análise m ais acurada m ostraria que a alguns têrm os correspondem , nos inferiores
aos quais êles são atribuídos, naturezas ou razões que são sob alguns aspectos as
m esm as, e sob outros aspectos diferentes. Por exem plo, o têrm o "bom ", aplicado a um
hom em , a um problem a, a um a fruta, significa em cada coisa um a certa bondade m as que
não é em cada caso, do m esm o gênero: a bondade do hom em não é idênticam ente a de um
problem a etc. Diz-se que se trata de um têrm o análogo. Tais têrm os se definirão:

Quorum nom en com m une est, ratio vero per nom en significata
sim pliciter diversa, secundum quid eadem .

Sob êste ponto de vista, pode-se portanto distinguir três espécies de têrm os:
unívocos, análogos e equívocos, êstes dois últim os não representando, aliás,
qualquer conceito definido. Terem os ocasião de voltar, em m etafísica, a esta
divisão capital. Aqui, basta que a form ulem os de nôvo, com S. Tom ás, neste belo
texto (Metaf., IV, 1. I, n. 535)

"Deve-se saber que qualquer coisa pode ser atribuída a


diversos sujeitos de várias m aneiras: ore segundo um
conteúdo absolutam ente idêntico e diz-se então que êle
lhes é atribuído univocam ente (anim al, por exem plo,
atribuído ao boi ou ao cavalo); ora segundo conteúdos
absolutam ente diferentes e diz-se neste caso que lhes são
atribuídos equivocam ente (cão, por exem plo, atribuído ao
astro ou ao anim al); ora segundo conteúdos que são em
parte diversos e em parte não diversos: diversos, na m edida
em que im plicam m aneiras de ser diferentes, e unos na m edida
em que essas m aneiras de ser se relacionem a algo de uno e de
idêntico; tal atribuição diz-se que é feita
analògicam ente, quer dizer, de m aneira proporcional,
porquanto cada atributo é relacionado àquela coisa una e
idêntica, m as segundo sua m aneira própria de ser."

"Sed sciendum est, quod aliquid praedicatur de diversis


m ultipliciter: quandoque quidem secundum rationem om nino
eadem , et tunc dicitur de eis univoce praedicari, sicut
anim al de equo et bove. Quandoque vero secundum rationes
om nino diversas, et tunc dicitur de eis aequivoce
praedicari, sicut canis de sidere et anim ali. Quandoque vero
secundum rationes, quae partim sunt diversae et partim non
diversae: diversa quidem secundum quod diversas habitudines
im portant, unge autem secundum quod ad unum aliquid et idem
istae diversae habitudines referentur, et illud dicitur
analogice praedicari id est proportionaliter, prout
unum quodque secundum suam habitudinem ad illud unum
refertur".

Observem os que Aristóteles, nas Categorias; não tratou expressam ente dos
"análogos". Os "parônim os", denom inativa, de que êle fala, são coisas que
"diferindo de um a outra pelo caso, recebem sua denom inação do próprio nom e de que se
origina: assim , de gram ática vem gram ático e, de coragem , hom em corajoso". Essa
57
denom inação tem um a certa relação com o análogo, porém não lhe corresponde
exatam ente.

11. OS PR ED ICAM EN TOS.

A lista dos predicam entos que em aristotelism o tem um lugar tão im portante,
apresenta-se, no prim eiro livro do Organon, com o um a coleção dos m odos m ais gerais do
ser. Aí êles são apresentados em núm ero de dez. Em outras partes a lista se verá
um pouco reduzida. A tradição escolástica consagrou a lista com pleta de dez. Eis
com o Aristóteles a apresentou: (Categ., C. 4, 1 b 25) .

"As expressões sem qualquer ligação significam a


substância, a quantidade, a qualidade, a relação, o
lugar, o tem po, a posição, a possessão, a ação, a
paixão. É substância, para o dizer em um a só palavra, por
exem plo, hom em , cavalo; quantidade, por exem plo, do
tam anhode dois côvados, do tam anho de três côvados;
qualidade, branco, gram ático; relação, m enor, m aior;
lugar, no Liceu, no Forum ; tem po, ontem , no últim o
ano; posição, êle está deitado, êle está sentado;
possessão, êle está calçado, êle está arm ado; ação,
êle corta, êle queim a; paixão, êle se queim a, se
corta."

As categorias constituem com o que a últim a resposta e, a m ais profunda, às questões


que se podem colocar sôbre a natureza das coisas. O que é isto? Um a substância,
um a qualidade, será a últim a resposta.

Perguntou-se com o Aristóteles teria constituído sua relação das categorias.


Pretenderam alguns que tinha sido a partir de um a análise das form as da linguagem . Nós
julgam os que se tal análise pôde, com efeito, esclarecer Aristóteles a êste
respeito, parece, entretanto, m ais fundam entado descobrir nessa lista um a origem
em pírica ou indutiva, a partir do dado exterior.

Em seguida houve quem quisesse dem onstrar que êste quadro das categorias era necessário
e suficiente. As razões apresentadas não são certam ente sem valor, m as é
necessário não esquecer que se trata de um a sistem atização posterior à descoberta das
categorias.

Categoria, no sentido etim ológico da palavra, significa predicado e, de fato, nove


das dez categorias enum eradas por Aristóteles são aptas a se tornarem predicados;
apenas a substância, a que designa o prim eiro sujeito, faz exceção. Essa
particularidade nos perm ite dividir o conjunto das categorias em dois grupos gerais, dos
quais o prim eiro não contém senão um a única categoria, a substância, sendo que o
segundo une tôdas as categorias que podem ser atribuídas à substância, os acidentes.
Estes podem ser divididos, por afinidade, em quatro classes:

- Os acidentes fundam entais: quantidade, qualidade,


relação;

- os que têm relação com a atividade: ação, paixão;


58
- os que situam as coisas: tem po, lugar, posição;

- um predicam ento extrínseco: possessão.

As categorias, divisões essenciais do ser, podem , em conseqüência ser ordenadas da

seguinte m aneira:

Ens: substantia, accidentia.

Accidentia:

1. Quantitas, qualitas, relatio. 2. Actio, passio.


3. Quando, ubi, situs. 4. Habitus.

Este esquem a representa o que se cham a a divisão do ser segundo os dez predicam entos:
ens dividitur secundum decem praedicam enta. Essa divisão se situa, de início, sob o
ponto de vista m etafísico ou das prim eiras intenções, e é neste sentido que
Aristóteles certam ente a com preendeu. Mas pode-se dar-lhe um a significação
pròpriam ente lógica, quer dizer, considerá-la sob o ponto de vista das segundas
intenções, com o iremos fazer.

Metafìsicam ente considerados, os predicam entos exprim em os m odos gerais do ser, m as


cada um dêles pode, por sua vez, ser relacionado com as m odalidades m ais particulares
do ser, onde o ser se encontra: a substância, por exem plo, com as substâncias
espirituais, corporais, etc. Obtém -se, assim , a classe de todos os sêres que são
substância. Com o a substância e os outros predicamentos são os atributos m ais
elevados, êles podem , por extensão, ser cham ados gêneros: são os gêneros
suprem os, abaixo dos quais se ordenam os gêneros m enos elevados até às espécies,
últim as. A série ordenada dos gêneros e das espécies, com andada por um dos dez
predicam entos, se cham a um predicam ento lógico. Pode-se defini-lo:

Series generum et specierum sub uno suprem o genere


ordinatorum .

Subordinando-se a cada um dos dez predicam entos um a série de gêneros e de espécies,


obtém -se um a classificação geral em que tôda m odalidade de ser terá o seu lugar, e
que poderá servir de base para as definições. Precisem os logo que se trata aí de um a
visão totalm ente teórica que, apesar das aparências, não é difícil de realizar.
Os autores costum am representar, para o caso m ais accessível da substância, a série
ordenada dos gêneros e das espécies que, partindo do gênero suprem o, substância,
desce até a um a de suas últim as espécies, o hom em .

O esquem a assim estilizado é a fam osa árvore de Porfírio.

Arbor porphyriana:

Substantia: m aterialis, im m aterialis.

Substantia m aterialis: corpus.

Corpus: Anim atum , inanim atum .


59
Corpus anim atum : Vivens.

Vivens: Sensibile, insensibile.

Vivens sensibile: anim al.

Anim al: Rationale, irrationale.

Anim al rationale: hom o.

Hom o: Socrates, Plato, Aristotelis.

Essa ordenação dos gêneros e das espécies da substância é certam ente bem
fundam entada, um a vez que se baseia sôbre a diferenciação das grandes classes ou reinos
da natureza. Mas não se deve esperar dela m ais do que ela pode dar. Ela não
apresenta, com efeito, senão as linhas do predicam ento substância, que pela série das
diferenças, m aterial, anim ada, sensível, racional, chega a um a única das espécies
de substâncias concretas, o hom em . As diferenças correspondentes, im aterial,
anim ado, insensível, irracional, que perm anecem indeterm inadas, deixam aberto o m undo
m uito m ais dificilm ente penetrável das hierarquias angélicas e dos reinos m inerais,
vegetais e anim ais. Observem os, além disso, que as definições que se podem form ar
por gêneros e diferenças específicas "o hom em é anim al racional" etc. não têm
sentido a não ser que se tenha com preendido verdadeiram ente as diferenças e os gêneros
superiores: diga-se isto para que não se acredite que a filosofia pode dar lugar a um
psitacism o vazio.

12 . OS POST-PR ED ICAM EN TOS.

O caráter de léxico que apresenta em seu conjunto o livro das categorias se afirm a m ais
claram ente ainda na últim a parte da obra. Após ter estudado separadam ente cada um a das
categorias, tarefa que deixam os à m etafísica, Aristóteles passa à definição e à
subdivisão de cinco noções um pouco sem nexo, nas quais pode-se, contudo, reconhecer
a propriedade com um de pertencerem a todos os predicam entos ou a alguns. São elas a
oposição, a prioridade, a sim ultaneidade, o m ovim ento, o ter.

O m ovim ento, m otus, que só se encontra nas categorias de substância, de quantidade,


de qualidade e de lugar, deve ser estudado em física.

A prioridade, prioritas, e a sim ultaneidade, sim ultaneitas, são noções


correlativas. A prioridade, à qual se opõe diretam ente a posterioridade, exprim e o
m odo segundo o qual um a coisa precede um a outra. Aristóteles distingue cinco espécies
de prioridade, que podem ser reduzidas a duas principais: a prioridade segundo o tem po,
que é a prioridade tipo (ex.: a anterioridade do pai com relação ao filho), e a
prioridade segundo a natureza (ex.: a da alm a com relação às suas potências). A
sim ultaneidade é a negação da prioridade e da posterioridade.

O ter, habere, exprime um a outra m aneira de um ser relacionar-se com um outro. É o


m odo de conveniência entre duas coisas que faz dizer que é um a possuída pela outra:
tudo o que se acha expresso pelo verbo ter nos seus m ais variados usos: ter febre, ter
trinta anos etc. Assinale-se que Aristóteles distingue cinco m odos de ter.
60

13 . CON CLU SÃO: A PR IM EIR A OPER AÇÃO N O CON JU N TO D O PEN SAM EN TO.

Vim os que a prim eira operação do espírito tem com o objeto a essência das coisas,
quidditas, que ela abstrai dos dados sensíveis e que ela percebe em seguida com o
"universal", relacionando-a com os sujeitos aos quais ela pode ser atribuída.
Considerada no conjunto da vida do espírito, essa operação representa um duplo papel.

Por sua natureza, ela é o ato pelo qual o espírito percebe a essência das coisas,
assim ila essa essência, sendo que cada essência lhe aparece m anifesta em si própria e
distinta das dem ais essências. Mas, com o nossa potência de abstração é por dem ais
fraca para que possam os atingir a êsse resultado de um só lance, tem os de tentar
alcançá-lo, cam inhando progressivam ente, por etapas. O ponto de partida dessa m archa é
a apreensão confusa dos dados da experiência. Seu discernim ento e ordenação se fará
em seguida, graças a um duplo processo: inicialm ente, por divisão, que é o m eio
próprio e adaptado a essa tarefa; e se a divisão se revela im potente para esclarecer o
com plexo prim itivo, lançam os m ão do m étodo de coleção. Isto é, parte-se dos
dados m ais particulares e procura-se discernir o que êles têm entre si de com um e de
diferente. Ao nível da prim eira operação do espírito, êsses m étodos correspondem
aos dois processos essenciais do raciocín io: dedução e indução. A m eta ideal dessa
m archa do espírito na análise do dado é a definição, ponto culm inante da prim eira
operação. Pela definição, as essências se tornam m anifestas ao espírito e se vêem ,
ao m esm o tem po, colocadas em seu lugar na classificação geral dos gêneros e das
espécies. As definições autênticas, pelo gênero e diferença específica, são,
já o dissem os, dificilm ente alcançadas. Apesar disso, o processo que elas
desencadeiam perm anece inteiram ente característico da atividade de sim ples apreensão.

Existe, portanto, um a atividade original de sim ples apreensão que tem valor por si
própria. Mas essa atividade ainda não dá um conhecim ento acabado das coisas, a
quididade que ela atinge diretam ente, ainda abstrai da existência, ou da realidade
concreta. É necessário, portanto, que um a segunda operação do espírito intervenha,
tom ando dessa vez com o objeto êsse aspecto de existência: ipsum esse. Face a essa
segunda atividade do espírito, a sim ples apreensão representa o papel de operação
prelim inar. Ela constitui os têrm os que serão associados ou dissociados pelos
julgam entos: antes de tudo os predicados, pois a propriedade do universal é precisam ente
sua aptidão a ser predicado; e, subsidiàriam ente os sujeitos, pois os têrm os
universais, com parados aos que lhes são superiores, podem ter a função de sujeitos.

Essa m aneira de encarar a prim eira operação do espírito com o preparatória à segunda
e sendo perfectiva do conhecimento, é certam ente legítim a.

Mesm o assim não se deve esquecer que a sim ples apreensão é um a atividade do pensam ento
que atinge, na ordem da percepção da essência, a um certo resultado absoluto, ao
qual nada se tem a acrescentar.
61
VII

A SEGU N D A OPERAÇÃO D O ESPIRITO

1. D EFIN IÇÃO D O JU LGAM EN TO.

O julgam ento é o ato psicológico que corresponde à segunda operação do espírito.


Pode-se defini-lo com Aristóteles e S. Tom ás: um ato da inteligência que une ou
divide por afirm ação ou negação

“actio intellectus qua com ponit vel dividit affirm ando vel
negando”.

O que im pressiona de início no julgam ento é que êle é um a atividade com plexa, um a
associação de vários têrm os, enquanto que a prim eira operação era sim ples. Mas isso
não é o que caracteriza m ais profundam ente êste ato; podia já haver com plexidade na
sim ples apreensão, para a definição por exem plo. O que especifica e distingue o
julgam ento é a afirmação ou negação que se acha expressa pelo verbo ser ou pela
negação não ser, verbo que está sem pre explícita ou implicitam ente contido nessa
operação: "O leão é um anim al", "Pedro joga" =Pedro é jogador.

Vê-se, portanto, que enquanto a prim eira operação atingia a essência da coisa, a
segunda operação considera de preferência sua existência, que ela afirm a ou nega.
Ela com pleta assim e conduz a seu têrm o o esfôrço de percepção da realidade total que
havia sido com eçada pela sim ples apreensão. Dir-se-á que, enquanto o objeto da
prim eira operação do espírito é a quidditas, o da segunda é o ipsum esse (cf. I.
Sent., D. 19, q. 5, a. I, ad 7) :

“Prim a operatio respicit quidditatem rei, secunda respicit


ipsum esse”.

O julgam ento vê a existência, a realidade atual das coisas. É da m aior im portância


tom ar consciência dêsse fato quando se aborda o estudo dessa operação. É sua m arca
distintiva; e é ainda sob êste ponto de vista que poderem os dividi-la. Observem os,

todavia, desde logo que, o ser afirm ado no julgam ento é analógico. Quem diz ser, diz
necessàriam ente ordem à existência, à realidade. Mas há várias m aneiras de ordem
à existência. Pode-se existir em si ou sòm ente em um outro, em ato ou em potência,
pode-se m esm o existir sòm ente na razão (ser de razão). Há, paralelam ente,
julgam entos de diversos tipos: concretos, abstratos, etc. Todos êsses julgam entos
im plicam igualm ente afirm ação ou negação de ser, m as segundo m odalidades diferentes.
Exem plos: "Pedro é hom em ", "Pedro é branco", "o hom em é vivente", "o
quadrado é um retângulo", "o vício é condenável", "o sujeito é um têrm o".

2 . PR OCESSOS D E FOR M AÇÃO D O JU LGAM EN TO.

A psicologia se aplica em precisar a série dos atos que asseguram a integridade de um


julgam ento. Distinguem -se, assim , com o que cinco tem pos nessa operação:

A. A apreensão de dois têrm os.


62

B. Seu relacionam ento.

C. A percepção de sua conveniência ou de sua não con


veniência.

D. A afirm ação dessa conveniência ou dessa não conve


niência.

E. A expressão em um verbo m ental daquilo que é assim


concebido, ou a enunciação.

Por exem plo, se eu julguei que "a m úsica é um repouso", inicialmente concebi os
têrm os "m úsica" e "repouso", eu os com parei, percebi sua conveniência, tôda esta
atividade preparatória situando-se no plano da prim eira operação do espírito ou da
sim ples apreensão das coisas; depois, refletindo sôbre o m eu ato, vi que a
conveniência constatada entre as noções de "m úsica" e de "repouso" correspondiam à
realidade, que a com posição que eu efetuava em m eu espírito existia m esm o nas coisas;
aderindo ao testem unho dessa visão refletida, afirm ei, é, isto é assim , isto que eu
disse, "é": eis a enunciação acabada: "a m úsica é um repouso". Tais são as
atividades, evidentem ente m uito estreitam ente associadas, que integram um julgam ento:
um a visão objetiva, depois, a partir de um a visão refletida, a afirmação e a
expressão do que se vê e afirm a.

Esta análise do julgam ento certam ente não seria reconhecida com o autêntica por
num erosos filósofos m odernos, para quem a relação é anterior aos têrm os e os coloca
de algum m odo depois dela. Segundo esta m aneira de ver, a operação elem entar do
espírito é o julgam ento, a sim ples apreensão não correspondendo senão a um a divisão
abstrata dêste. De bom grado reconhecerem os com êsses filósofos que o pensam ento
hum ano não atinge o seu estado perfeito senão no julgam ento, que finaliza a percepção
total da realidade; m as há, anteriorm ente a essa operação, um a prim eira atividade da
qual já tivem os ocasião de assinalar a originalidade.

3 . A PR OPR IED AD E D O JU LGAM EN TO.

A propriedade do julgam ento, que decorre im ediatam ente de sua natureza, é a verdade ou
a falsidade. Quer dizer que quando o espírito julga êle é necessàriam ente verdadeiro
ou falso: verdadeiro, se a com posição ou a divisão que êle estabelece entre dois
têrm os corresponde efetivam ente à que se acha na realidade; falsa, no caso contrário.
"Pedro é m atem ático" é um julgam ento verdadeiro se Pedro é m esm o m atem ático;
senão, é falso. O julgam ento se distingue por isso da prim eira operação do
espírito, que em si não era nem verdadeira nem falsa. Esta doutrina, com um ente
sustentada por S. Tom ás, está bem resum ida no seguinte texto (I.a p.a, q.
16, a. 2)

"A inteligência pode conhecer sua conform idade com a coisa


inteligível, todavia ela não a percebe no m om ento em que ela
apreende a quididade de um a coisa. Porém , é quando ela
julga que a coisa é realm ente tal nela m esm a, que ela a
concebe, que essa faculdade conhece e exprime pela prim eira
vez a verdade. E ela o faz com pondo e dividindo. Porque,
em tôda proposição, ou ela aplica a um a coisa significada
63
pelo sujeito um a form a significada pelo predicado, ou ela o
nega. Eis porque, falando pròpriam ente, a verdade está na
inteligência que com põe e que divide, e não nos sentidos,
ou na inteligência enquanto ela percebe a quididade das
coisas."

"Intellectus autem conform itatem sui ad rem intelligibilem


cognoscere potest: sed tam en non apprehendit eam , secundum
quod cognoscit de aliquo quod quid est. Sed quando judicat
rem ita se habere sicut est form a, quam de re apprehendit,
tunc prim o cognoscit, et dicit verum . Et hoc facit
com ponendo et dividendo. Nam in om ni propositione aliquam
form am significatam per prxdicatum , vel applicat alicui rei
significatae per subjectum vel rem ovet ab ea... Et ideo
proprie loquendo veritas est in intellectu com ponente et
dividente, non autem in sensu, neque in intellectu
cognoscente quod quid est".

4 . A EN U N CIAÇÃO

O julgam ento é o ato do espírito que com põe ou divide afirm ando ou negando; a
enunciação é o têrm o dêsse ato, o que se diz ou se pronuncia julgando. É esta
expressão do julgam ento que interessa ao lógico, o ato com o tal diz respeito à
psicologia. Com o para a prim eira operação do espírito, irem os considerar
paralelam ente a expressão m ental e o sinal verbal do pensam ento.

5. O D ISCU R SO, "OR ATIO".

Aristóteles inaugura, no Periherm eneias, seu estudo da segunda operação do


espírito, com um capítulo (c. 4) sôbre o discurso em geral. Segundo a definição
que é dada neste local, o discurso, ou m ais sim plesm ente a frase, "oratio", é um
conjunto verbal cujas partes, tom adas separadam ente, têm um a significação com o
têrm os e não com o afirm ação ou negação:

“vox significativa ad placitum cujus partes separatae aliquid


significant ut dictio non ut affirm atio vel negatio”.

Dito de outra form a: o discurso tem , com o elem entos, sim ples têrm os. Esta
afirm ação não vem sem dificuldades, um a vez que é com um encontrarm os enunciações que
têm com o partes proposições já constituídas. Ex.: "Se chover, a terra se
m olhará". Êste caso especial das enunciações ditas "com postas" não está
com preendido na definição que acabam os de dar, a qual não considera senão as
enunciações "sim ples" que são o próprio tipo da enunciação.

Na seqüência do livro, Aristóteles distingue o discurso im perfeito que deixa o


espírito com o que em suspenso "hom em justo", "de passagem ", e o discurso perfeito
que apresenta algo com o que acabado, definido: "Pedro é justo". O discurso
perfeito se subdivide em enunciação e em argum entação, form as expressivas
correspondentes à segunda e à terceira operação do espírito, e em discurso prático
(ordenativo), em que entra um elem ento de intenção voluntária. Os discursos práticos
são de quatro espécies, segundo S. Tom ás
64

"Do fato de que a inteligência ou a razão não tem com o


função unicam ente o conceber nela m esm a a verdade objetiva,
m as tam bém o dirigir e ordenar as outras coisas de acôrdo
com o que ela concebeu, resulta que, sendo a própria
concepção do espírito significada pelo discurso enunciativo,
deve haver outras form as de discurso que exprim am a ordem
segundo a qual a razão exerce sua função de direção.
Ora, um hom em pode ser ordenado pela razão de um outro, a
três atos: prim eiram ente, a prestar atenção; a isso
corresponde o discurso vocativo. Em segundo lugar a dar um a
resposta vocal, e a isso corresponde o discurso
interrogativo. Em terceiro lugar, a executar, e a isso
corresponde: relativamente aos inferiores o discurso
im perativo e com relação aos superiores o discurso
deprecativo, ao qual se liga o discurso optativo, um a vez que
o hom em não tem outro m eio de agir sôbre aquêle que lhe é
superior pela expressão de um desejo".

Periherm eneias, I,
L 7, n 5

E S. Tom ás conclui que, já que nenhum a destas form as de discurso exprim e o


verdadeiro ou o falso, sòm ente a enunciação pròpriam ente dita vai interessar à
lógica.

6 . EN U N CIAÇÃO E ATR IBU IÇÃO.

Os elem entos gram aticais da enunciação são, nós o sabem os, o sujeito (S), a
cópula (C) e o predicado (P). O sujeito e o predicado são os elem entos m ateriais
da enunciação, enquanto que a cópula, que representa um papel análogo ao da form a
que determ ina a m atéria, pode ser considerado com o o seu elem ento form al.

Considerada em sua unidade, a enunciação, expressão do julgam ento, apresenta-se


essencialm ente com o um a atribuição, praedicatio, quer dizer com o a conjunção ou a
disjunção de dois extrem os, segundo haja ou não conveniência entre êles. "Pedro é
m usico": quando eu pronuncio esta enunciação, eu atribuo a qualidade de "m úsico"
(P) a "Pedro" (S) . O ponto de vista inteiram ente form al visado pelo lógico no
julgam ento é, portanto, a relação de conveniência ou de não conveniência entre os
dois têrm os, a qual fundam enta a atribuição efetiva.

Segundo a natureza desta relação, pode-se distinguir vários m odos de atribuição.


Quando o sujeito e o predicado são absolutam ente sem elhantes, tem -se a praedicatio
identica ou atribuição do m esm o ao m esm o "o hom em é hom em ". Quando o sujeito e o
predicado, apesar de convir um ao outro em um m esm o sujeito, não são form alm ente
idênticos, tem -se a praedicatio form alis: é a atribuição norm al "o hom em é um
bípede". Êste segundo m odo de atribuição se subdivide em praedicatio essentialis (per
se) e em praedicatio accidentalis (per accidens), segundo o predicado convenha ao
sujeito em razão de sua essência, necessàriam ente ou não (contingentem ente).

A atribuição form al essencial, ou necessária, é evidentem ente aquela que pode


interessar ao lógico, porque da atribuição idêntica nada se pode tirar, e a
65
atribuição acidental está fora da certeza científica. S. Tom ás, em seguida a
Aristóteles (11 Anal., 1, 1. 10 ), analisa com cuidado êsse tipo de
atribuição e nêle distingue vários m odos, segundo o predicado exprim a a própria
essência do sujeito ou um elem ento que se liga necessàriam ente a ela. É a fam osa teoria
dos quatuor m odi dicendi per se (não se diz praedicandi, porque sòm ente três dêstes
m odos podem ser atribuídos).

O prim eiro m odo, prim us m odus dicendi per se, corresponde ao caso em que o predicado
pertença à própria essência do sujeito, seja exprim indo-a totalm ente (definição:
o hom em é anim al racional"), seja exprim indo-se sòm ente em parte: "o hom em é
anim al", "o hom em é racional".

O segundo m odo, secundus m odus dicendi per se, corresponde ao caso em que o predicado
exprim e um a propriedade da essência: "o hom em têm o poder de rir".

O terceiro m odo, tertius m odus dicendi per se, não é, com o observa S. Tom ás, um
m odo de atribuição mas de existência: é a designação do m odo de realidade da
substância que existe por si própria e não em um outro e não pode, por êste fato,
ser atribuída a nenhum outro: "Pedro".

O quarto m odo, quartus m odus dicendi per se, tem i ligação com a relação de
causalidade eficiente; o predicado, ou antes, o verbo predicado, exprim e a causalidade
própria do sujeito que lhe é assim atribuído: "o pintor pinta", " o m édico
cura".

Além dessa relação dos m odos de predicação, S. Tom ás, observando que um
conceito pode ser tom ado concretam ente "hom em ", ou abstratam ente "hum anidade",
estabeleceu as regras a aplicar quando o sujeito e o predicado são concretos ou
abstratos. Pode-se dizer, por exem plo: "o hom em é anim al", "a hum anidade é
anim alidade", m as não "o hom em é a anim alidade". Entretanto, é correto dizer-se:
"Deus é sua divindade".

7. EX TEN SÃO E COM PR EEN SÃO N O JU LGAM EN TO.

O sujeito e o predicado, sendo universais, entram , cada um , no julgam ento com seu
tipo de extensão e de com preensão. Assim é que se pode dizer que o predicado, que é
form a, determ ina a com preensão do sujeito. Em "Pedro é m úsico" eu declaro que a
qualidade de ser m úsico pertence a Pedro. Pode-se igualm ente dizer que, julgando,
eu classifico o sujeito na extensão do predicado: Pedro, na enunciação precedente,
está classificado no núm ero dos m úsicos. - Após o que foi dito do conceito,
percebe-se que êstes dois pontos de vista se com binam no julgam ento, que é assim ao
m esm o tem po determ inação da com preensão do sujeito, e análise da extensão do
predicado. Todavia, o ponto de vista da com preensão tendo prioridade, pode-se
concluir que julgar é, antes de tudo, determ inar a com preensão do sujeito.

8 . D IVISÃO D A EN U N CIAÇÃO.

As divisões essenciais de um a operação se tom am a partir de seu objeto. Ora, a


enunciação, têrm o do julgam ento, tem com o objeto o próprio ser que ela afirm a, ipsum
esse. Portanto, é sob o ponto de vista do ser afirm ado que se efetuarão as divisões
essenciais relativas a esta operação: haverá tantos tipos gerais de enunciações
66
quantos os m odos específicos de afirm ação do ser. Dentre êles, a filosofia
escolástica conservou os três principais.

As enunciações sim ples. - O predicado é um esse essencial ou acidental, recebido


num sujeito que preenche a função de substância ou de suposto: "hom em ",
"bípede", "gram ático" atribuído a "Pedro". As enunciações correspondentes:
"Pedro é hom em " etc., são ditas sim ples ou categóricas, porque há um a sim ples
atribuição de um predicado a um sujeito. Dir-se-á que se tem aí um julgam ento de
inerência, para distinguir êste caso, onde apenas se afirm a que o predicado convém
(inere) ao sujeito, daquele em que se precisa o m odo dessa inerência (proposições
m odais).

As enunciações com postas. - O predicado afirm ado exprim e, neste caso, o laço
existente entre enunciações sim ples. Ex.: "Se a chuva cai, a terra é m olhada".

Tais enunciações são ditas de conjunção ou com postas; a cópula não é m ais o
verbo "é", m as partículas tais com o "ou", "se", "e". Vê-se que se trata
de um caso' m uito diferente do precedente: a m odalidade de ser que se afirm a não é
m ais um a parte da essência ou um acidente de um sujeito, m as o próprio laço
(causalidade ou coexistência) que une várias realidades. Os elem entos de tal
enunciação são já enunciações constituídas; daí lhes vem a denom inação de
enunciação com posta (ou hipotética). Entretanto, não se trata ainda de um
verdadeiro raciocínio, um a vez que não existe ainda, pròpriam ente falando, um
m ovim ento do espírito a partir de verdades adquiridas em direção a um a nova verdade.
-A enunciação com posta, que tem seu fundam ento na pluralidade do ser e nas relações
que resultam dessa pluralidade, correspon de, no âm bito da segunda operação do
espírito à divisão e à definição no âm bito da prim eira, que são atividades
relativas à pluralidade das essências e a suas relações.

As enunciações m odais. - O predicado afirm ado é o próprio m odo de ligação dos


dois têrm os de um julgam ento "é necessário que o justo seja recom pensado". Estes
m odos, afetando a cópula ou o verbo, são, nós o verem os, o possível, o
im possível, o necessário, e o contingente. A afirm ação assim constituída tem com o
objeto a m odalidade de ipsum esse que ela considera.

A teoria dos m odais é longam ente desenvolvida por Aristóteles no Periherm eneias; a
das proposições com postas, ao contrário, não rem onta senão à lógica estóica.

9 . AS EN U N CIAÇÕES SIM PLES.

A enunciação sim ples constitui o tipo norm al de atividade da segunda operação do


espírito; as outras espécies de enunciação são m odos derivados, e supõem sem pre em
sua base a sim ples atribuição. As enunciações sim ples são constituídas de um
predicado, que com a cópula-verbo tem a função de form a determ inante, e de um
sujeito. Dividir-se-ão as enunciações sim ples, seja sob o ponto de vista da form a
(divisão essencial), seja sob o ponto de vista da m atéria, (divisão dita
acidental).

Sob o ponto de vista da form a ou da qualidade, as enunciações sim ples se dividem em


afirm ativas e negativas. Eu com paro o predicado e o sujeito, e se vejo que êles se
convêm na realidade, afirm o sua ligação: "o hom em é um anim al"; se vejo, ao
contrário, que êles não se convêm , nego que haja ligação: "o hom em não é um puro
67
espírito". Note-se que, do lado do espírito, há igualm ente nos dois casos um a
aproxim ação, um a ligação dos dois têrm os presentes; na realidade, é sôbre a
relação objetiva que se porta a afirm ação ou a negação.

Sob o ponto de vista da m atéria ou do sujeito, distingue-se principalm ente, o que


corresponde à divisão paralela dos têrm os, as proposições universais "todo hom em é
m ortal", particulares, "algum hom em é filósofo", singulares "Pedro é
filósofo", e indefinidas "o hom em é m ortal". Estas últim as proposições não são
evidentem ente utilizáveis em lógica, senão na m edida em que podem ser reduzidas a um
dos tipos precedentes.

Sob o ponto de vista da cópula ou do verbo, pode-se ainda estabelecer distinções


secundárias:

- Enunciações necessárias, quando a ligação afirm ada


é necessária: "o hom em é capaz de rir", contingentes,
se a ligação é contingente: ".` Pedro é m úsico";
im possíveis, se ela é im possível: "Pedro é um anjo".
A m odalidade da afirm ação não estando ainda explicitamente
expressa, ainda não se trata, em nenhum dêstes casos, de
verdadeiras proposições m odais.

- Enunciações no passado, no presente ou no futuro,


segundo o tem po em que esteja o verbo: se são verdadeiras,
tais enunciações serão sem pre verdadeiras. Todavia,
aquelas que dizem respeito a um futuro contingente, "o m undo
acabará em m il anos" são um caso especial sôbre o qual
voltarem os a falar.

Aplicação lógica dessas divisões. - Em lógica interessam especialm ente as


enunciações necessárias (as únicas que podem entrar em raciocínios rigorosam ente
científicos) e, sob o ponto de vista da quantidade, as universais e as particulares.
As singulares, quanto às suas propriedades lógicas, podem ser pràticam ente
assim iladas às universais. Êstes são, portanto, os principais tipos de proposições
estudadas, considerando-se sua distinção em afirm ativas e negativas:

A. Universais afirm ativas: "todo hom em é anim al"

E. Universais negativas: "nenhum hom em é anjo"

I. Particulares afirm ativas: "algum hom em é filósofo"

O. Particulares negativas: "algum hom em não é


filósofo".

A acepção dos têrm os sendo, com o o vim os, dependente da form a especial das diversas
proposições, cada um dos tipos que acabam os de distinguir im põe ao sujeito e ao predicado
condições particulares no que concerne sua com preensão e sua extensão.

O sujeito é, regra geral, tom ado em tôda a sua com preensão, m anifestando-se sua
extensão pelas partículas: todo, nenhum , algum etc.

As regras relativas ao predicado são as seguintes. Em tôda afirm ativa, o predicado


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é tom ado particularm ente "todo hom em é (algum ) anim al"; em tôda negativa, o
predicado é tom ado universalm ente "algum hom em não é (todo) anjo"; em tôda
afirm ativa, o predicado é tom ado em tôda a sua com preensão "todo hom em é (tudo o que
é) anim al"; em tôda negativa, o predicado é tom ado sòm ente em um a parte de sua
com preensão "algum hom em não é (um a parte do que é) filósofo".

Relações da afirm ação com a negação. - A distinção das proposições em


afirm ativas e em negativas é particularm ente im portante. Gerando a oposição dita de
contradição, é-não é, ela dará lugar ao prim eiro princípio da vida do espírito, o
princípio da não-contradição. Do m esm o m odo estará na base da teoria da oposição
das proposições.

Pode-se perguntar quem tem a prioridade: a afirm ação ou a negação? S. Tom ás


(Periherm eneias, I, 1. 8, n. 3) responde que, sob três pontos de vista, a
prioridade cabe à afirm ação: sob o ponto de vista da coisa, o esse tem prioridade
sôbre o non esse; sob o ponto de vista da inteligência, tôda divisão pressupõe um a
com posição; sob o ponto de vista da linguagem , a negação é um sinal que se acrescenta
à afirm ação e, portanto, é m enos sim ples que ela.

A negação tem entretanto um papel essencial na vida do espírito hum ano que, não
percebendo im ediatam ente a essência das coisas e sua diferenciação, procede por
discrim inação progressiva do dado. Ao nível da prim eira operação do espírito (ordem
dos conceitos), essa discrim inação se dá por divisões; no da segunda operação do
espírito (ordem do ser concreto), ela se efetua por negações.

10 . OS JU LGAM EN TOS D E R ELAÇÃO.

Os lógicos escolásticos não fizeram um estudo especial dos julgam entos em que a
m odalidade afirm ada parece ser um a relação: "Pedro é m enor que Paulo", "seis é
igual a cinco m ais um ". Os lógicos m odernos, ao contrário, devido sobretudo ao
desenvolvim ento alcançado pelas ciências m atem áticas, em que a relação tem um lugar
essencial, detiveram -se m ais longam ente sôbre o caso. Alguns (Lachelier em La
proposition et le syllogism e) acham que à relação corresponde um tipo de pensam ento
lògicam ente diferente daquele que a lógica do tipo clássico considerava, dito de
inerência. De sorte que, para o julgam ento, seria necessário considerar à parte Os
julgam entos de relação, que teriam um a estrutura inteiram ente original. Neste caso,
não haveria m ais sujeito e predicado ligados pela cópula "é", nem afirm ação de
dependência de um predicado a um sujeito m as, dois. têrm os igualm ente sujeitos que se
ligariam por um a relação que' não seria m ais um a relação de inerência. Na
proposição "Fontainebleau é m enor do que Versalhes", por exem plo, não se deve
considerar "Versalhes" com o o predicado de "Fontainebleau", m as "Fontainebleau"
e "Versalhes" com o dois sujeitos que são colocados em relação de com paração, sob
o ponto de vista do tam anho, por um ato de síntese original que não é m ais um a
atribuição sim ples.

Deve-se concordar com os adeptos desta teoria em que a relação é incontestàvelm ente
um m odo de ser inteiram ente original, e que do ponto de vista lógico pode ser proveitoso
fazer um estudo especial das form as de pensam ento a ela relacionadas. Porém acham os que
não existe um a lógica da relação totalm ente por fora dos princípios e das leis da
lógica dita de inerência. Em todo julgam ento, em particular, deve-se distinguir um
sujeito e um predicado, e o julgam ento será sem pre essencialm ente afirm ação e
negação de ser.
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Com o a relação, sob o ponto de vista da realidade, parece ser interm ediária entre
vários "sujeitos", poder-se-á interpretar em dois sentidos diferentes os julgam entos
que com ela se relacionam : ou fazendo de um dos sujeitos reais o sujeito lógico:
"Fontainebleau" (S) "é" (C) "m enor que Versalhes" (P) (o sujeito é,
neste julgam ento, "Fontainebleau", e o predicado "m enor que Versalhes"); - ou
tom ando com o sujeito a relação indeterm inada e com o predicado sua determ inação
afirm ada: "a relação de Fontainebleau com Versalhes" (S) "é" (C) "um a
relação do m enor com o m aior" (P). - No prim eiro caso, foi afirmada a inerência
de um sujeito real (esse in). No segundo caso, foi considerado seu próprio ser de
relação (esse ad). Mas tanto em um a com o em outra destas interpretações houve, tal
com o em todo julgam ento ordinário, um a certa atribuição de um predicado a um sujeito.
A afirm ação de ser que está im plicada em todo pensam ento é, ao nível da segunda
operação do espírito, essencialm ente de tipo atributivo.

11. PR OPR IED AD ES D AS EN U N CIAÇÕES.

As enunciações, consideradas com o um todo e um as em relação às outras, têm


propriedades. A m ais essencial dessas propriedades é a oposição, que decorre do
próprio caráter de afirm ação ou de negação que necessàriam ente apresenta todo
julgam ento. Quando eu declaro que "êste objeto é branco", estou afirm ando, por isso
m esm o, um a oposição a tôda outra proposição que possa ser-lhe contrária, tal
com o: "êste objeto não é branco".

A noção de "oposição" tem um lugar considerável nos escritos lógicos de


Aristóteles. É estudada, em particular, quando se trata da proposição, no
Periherm eneias (a partir do c. 6), m as já tinha sido encontrada antes, a respeito
dos têrm os (Categorias, c. 10 e ll); (ef. igualm ente: Metafísica, A, c.
10 e I, c. 4 e seg.). Ler a êste respeito, em Le Systèm e d'Aristote de
Ham elin o capítulo consagrado à oposição (p. 128 e seg.).

É possível descobrir-se, na filosofia anterior, um a dupla origem para esta teoria:


na física pré-socrática, por um lado, onde já se dava grande im portância à
contrariedade das qualidades, quente-frio, sêco-úm ido, e onde se concebia a
m udança com o a passagem de um contrário a outro contrário; por outro lado, nas
especulações sôbre a possibilidade da atribuição (as de Antístene, notadam ente),
onde se supunha necessàriam ente adm itida a exclusão parm enidiana do ser e do não-ser.
-Na filosofia m oderna, essa noção da oposição foi de nôvo posta em evidência:
alguns idealistas, Hegel, Ham elin, e sob um outro ponto de vista Meyerson, a
consideram pràticam ente com o o fato prim itivo ou o dado essencial sôbre o qual deve
repousar tôda a m etafísica.

A teoria aristotélica, para voltar a ela, com preende duas peças principais que irem os
considerar sucessivam ente: 1. um a teoria geral da oposição com sua distinção em
quatro tipos fundam entais; 2. a teoria especial da oposição das proposições.

12 . OS QU ATR O M OD OS D A OPOSIÇÃO.

"A oposição de um têrm o a um outro se dá de quatro


m aneiras: há a oposição dos relativos, a dos contrários,
a da privação da possessão e a da afirm ação da
70
negação. - A oposição, em cada um dêsses casos, pode
exprim ir-se esquem àticam ente da seguinte m aneira: a dos
relativos, com o o duplo à m etade; a dos contrários, com o o
m al ao bem ; a da privação da possessão, com o a cegueira
à vista; a da afirm ação da negação, com o: êle está
sentado, êle não está sentado".

Categorias C. 10

Passem os em revista cada um dêstes tipos de oposição.

A oposição dos relativos. - É relativo um têrm o que, em sua essência,


relaciona-se a um outro e não pode, em conseqüência, ser concebido sem essa relação
a êle: o duplo é duplo em relação à m etade, e o conhecim ento é conhecim ento em
função de um cognoscível. Observem os que os relativos não são verdadeiros opostos,
um a vez que a oposição pròpriam ente dita com porta um a exclusão de seus têrm os um com
relação ao outro (a afirm ação exclui a negação); o relativo, ao contrário, não
pode existir senão com relação a seu contrário, que o com pleta de algum a form a (o
conhecim ento supõe a própria realidade de um conhecível).

A oposição dos contrários. - Ao contrário dos relativos, os contrários não


podem ser ditos um do outro. Não se diz "o frio do quente". Êles se colocam , um em
face do outro, repelindo-se m utuam ente. Trata-se de um a verdadeira oposição. O
que distinguirá os contrários dos dois últim os tipos de oposição será o laço, a
com unidade que êles conservam ainda sob sua m útua incom patibilidade: êles se excluem
em um m esm o sujeito, não podendo êste receber ao mesm o tem po os dois contrários,
quente e frio por exem plo, m as perm anecendo o suporte presuntivo de um e de outro. Por
outro lado, na oposição dos contrários subsiste o que se cham a um a com unidade de
gênero: assim , o branco e o prêto se excluem no m esm o gênero, côr. Alguns
contrários, para Aristóteles, não adm item interm ediários, o par e o im par por
exem plo; outros o com portam , o prêto e o branco entre os quais há inúm eros m atizes
tais com o o cinza.

A oposição privação-possessão. - Este tipo de oposição com porta um a negação


m ais radical do que a contrariedade: não há m ais com unidade de gênero entre um
"hábito" e sua "privação", m as sòm ente de sujeito. O exem plo clássico dêste tipo
de oposição é o da visão e de sua privação, a cegueira: em um m esm o sujeito,
êstes extrem os se excluem . É necessário precisar que não se pode falar de privação
ou de seu oposto a não ser que a perfeição em questão deva efetivam ente se achar no
sujeito considerado: a pedra não é "privada" da visão, m as um vidente o é, um a
vez que êle se acha em condições nas quais norm alm ente deveria ver.

A oposição dos contraditórios. - Trata-se da m ais forte de tôdas as oposições


e, com o se verá, é o funcionam ento m esm o de tôda oposição: um dos partidos exclui
com pletam ente o outro, sem que subsista entre êles nada de com um . Esta oposição se
realiza essencialm ente entre a afirm ação e a negação, quer dizer no julgam ento:
"Sócrates está doente". - "Sócrates não está doente"; ela se liga im ediatam ente
à propriedade de verdade ou de falsidade que pertence necessàriam ente ao julgam ento.

Esta classificação que acabam os de estabelecer, seguindo a concepção de


Aristóteles, dirige-se, com o se vê, no sentido -de um a oposição cada vez m ais
acentuada. Partindo da relatividade, que não é um a verdadeira exclusão, ela chega à
negação absoluta ou à contradição. É um a gradação que aparece bem clara neste texto
71
de S. Tom ás:

"Prim o enim dicit quot m odis dicuntur opposita; quia


quatuor m odis, scilicet contradictoria, contraria, privatio
et habitus et ad aliquid. Aliquid enim contraponitur alteri
vel opponitur, aut ratione dependentiae, quo dependet ab
ipso, et sic sunt opposita relative. Aut ratione
rem otionis, quia scilicet unum rem ovet alterum . Quod quidem
contingit tripliciter. Aut enfim totaliter rem ovei nihil
relinquens, e sic est negatio. Aut relinquit subjectum
solum , et sic est privatio. Aut relinquit subjectum et
genus, et sic est contrarium . Nam contraria non sunt solum
in eodem subjecto, sed etiam in eodem genere."

Metaf., V, L
12, n 922

Im porta observar que a oposição, tal com o acabam os de defini-Ia e de dividi-Ia,


conform e a teoria exposta nas Categorias, é, antes de tudo, um a oposição dos
conceitos e, correlativam ente, das coisas que êles representam . Entretanto, já
nesse esquem a, a oposição de contradição não se realiza a não ser no julgam ento;
não é senão de um a m aneira derivada e imprópria que se pode transpor para os conceitos
um a tal oposição, ex.: "doente" - "não doente", pois o têrm o negativo "não
doente" é um têrm o indeterm inado.

Se nos lem brarm os de que esta oposição está na raiz dos outros tipos de oposição,
dever-se-á concluir que efetivamente a oposição é antes um a propriedade do julgam ento
ou da enunciação. É sob êste prism a que irem os agora estudá-la: ao lado da
contradição que já conhecem os, irem os encontrar, paralelam ente com o esquem a dos
têrm os, tipos atenuados de repulsa, bem com o a contrariedade e a subcontrariedade.

13 . A OPOSIÇÃO D AS PR OPOSIÇÕES.

Êsse tipo de oposição, que se pode cham ar de lógica, em com paração com a
oposição dos conceitos que, resultando im ediatam ente da natureza das coisas, pode ser
cham ado de físico, apresenta um interêsse m uito prático na arte do raciocínio. Com
efeito, já que as proposições se excluem com relação à verdade ou à falsidade,
pode-se concluir sôbre a verdade ou a falsidade de um a desde que se conheça o seu
oposto.

Quando é que duas proposições podem ser cham adas de opostas? Quando, pode-se
responder, se afirm a ou se nega o m esm o predicado de um m esm o sujeito. A oposição das
proposições assim se define:

“affirm atio et negatio eiusdem de eodem ”.

Evidentem ente, essa definição não se aplica às oposições das universais


afirm ativas - particulares afirm ativas, nem das universais negativas -particulares
negativas, que diferem sòm ente por sua quantidade. Observem os, por outro lado, que se
o sujeito e o predicado devem ter a m esm a significação, nos dois opostos, podem
entretanto ter quantidades diferentes.
72
A oposição das proposições terá graus, na m edida em que a afirm ação e a negação
se destruam m ais ou m enos com pletam ente, deixando ou não soluções interm ediárias.

Na oposição de contradição há pura e sim ples destruição da alternativa oposta.


Duas contraditórias não podem , portanto, ser ao m esm o tem po falsas ou verdadeiras:
um a sendo verdadeira, a outra será necessàriam ente falsa e reciprocam ente. Form a-se
a contraditória m udando-se a qualidade e a quantidade da proposição em questão:
"todo hom em é justo" - "algum hom em não é justo".

Na oposição de contrariedade, m odifica-sé apenas a qualidade, perm anecendo


im utável a quantidade dos sujeitos, quer dizer, universal. Devido a êste fato
subsistirá entre as duas proposições um a certa com unidade, e a destruição não será
tão absoluta. Duas contrárias não poderão ser verdadeiras ao m esm o tem po, m as
poderão ser tôdas duas falsas, porque a possibilidade de proposições interm ediárias
perm anece. Ex.: "todo hom em é justo" - "nenhum hom em é justo". Estas duas
proposições são igualm ente falsas se é verdade que "algum hom em é justo".

Na oposição de subcontrariedade, a quantidade não m uda, porém as duas proposições


são particulares: elas não poderão ser falsas ao m esm o tem po, m as poderão ser tôdas
duas verdadeiras: "algum hom em é justo" -"algum hom em não é justo".

Nota. - Duas proposições singulares, "Pedro é justo" - "Pedro não é


justo", se opõem de m aneira contraditória e não contrária, sendo que a quantidade do
sujeito não m udou; com efeito, não há nenhum a possibilidade de soluções
interm ediárias, com o era o caso das proposições com sujeito universal ou particular.

14 . O CASO D OS FU TU R OS CON TIN GEN TES.

As proposições universais sendo necessárias e, portanto, determ inadas quando à sua


verdade, não oferecem dificuldades especiais em sua oposição. O m esm o se dá com
relação às proposições que têm objetos con tingentes; passados ou presentes, um a vez
que sua verdade ou sua falsidade se acham tam bém fixadas de m aneira certa: é verdade,
por exem plo, e será sem pre verdade dizer que "Napoleão m orreu em Santa Helena".
O m esm o não se dá quando se trata de futuros contingentes, quer dizer que podem existir
ou não existir: a verdade ou a falsidade das proposições que lhes dizem respeito não
pode, evidentem ente, se achar determ inada antecipadam ente. Veja-se, por exem plo esta
proposição e seu oposto: "haverá um a batalha naval am anhã" - "não haverá batalha
naval am anhã". Se declaram os que um a destas duas proposições, a prim eira por
exem plo, é verdadeira, a batalha será então não m ais um acontecim ento contingente,
porém um acontecimento necessário, o que é contrário à hipótese. Deve-se
concluir, portanto, com Aristóteles que, m esm o que não se possa precisar qual destas
duas opostas é a verdadeira, elas se excluem indeterm inadam ente: supondo-se que um a
seja verdadeira, a outra será necessàriam ente falsa. Porém nem um a nem outra,
tom adas isoladam ente, pode ser cham ada falsa ou verdadeira. Assim se encontra
salvaguardada a contingência do m undo (In Periherm eneias, c. 9, 18 a 34).
73
VIII

O SILOGISMO

1. LU GAR D O R ACIOCÍN IO N O CON H ECIM EN TO H U M AN O.

Estudam os até aqui as duas prim eiras operações do espírito: sim ples apreensão e
julgam ento. Pela sim ples apreensão o espírito apreende a "quididade" abstrata das
coisas; pelo julgam ento êle afirma o ser concreto. Estas duas operações, m esm o
supondo um a atividade anterior do espírito,: eram na realidade atividades sim ples e
com o que im óveis: eram atos do intellectus ut intellectus.

Porém diferentem ente de Deus e dos anjos que, sendo sim ples inteligências, percebem
em um único objeto intelectual tudo o que pode estar contido nêle ou depender dêle, o
hom em não tem senão apreensões prim itivas im perfeitas e confusas: êle não esgota
im ediatam ente seu objeto. O julgam ento, com posição e divisão, e os atos com plexos
que se ligam à prim eira operação, definição e divisão, já perm itiam associar e
desenvolver alguns elem entos do dado. Mas a organização de conjunto dêste dado supõe
um a terceira operação, essencialm ente discursiva, o raciocínio, obra da
inteligência hum ana com o tal, intellectus ut ratio, definindo-se o hom em com o um anim al
dotado de razão:

"Fazer ato de sim ples intelecção (intelligere), não é


outra coisa, com efeito, do que apreender de m odo absoluto a
verdade das coisas, enquanto que raciocinar consiste em
passar de um objeto percebido a um outro objeto percebido,
visando entrar na possessão da verdade inteligível. Disto
advém que os anjos os quais, segundo o m odo de sua natureza,
possuem de m aneira perfeita o conhecim ento da verdade
inteligível, não se vêm sujeitos a proceder indo de um
objeto a outro, pois que captam de m odo absoluto e sem
discursos, a verde inteligível... Os hom ens, pelo
contrário, chegam ao conhecim ento da verdade inteligível indo
de um objeto a outro... Eis porque êles são cham ados
racionais. É, portanto, evidente que, raciocinar está
para o ato de sim ples intelecção, assim com o m over-se
está para o repouso, ou com o adquirir está para ter."

ST I, 79, 8

2 . N ATU R EZA D O R ACIOCÍN IO.

S. Tom ás, em seu com entário aos Segundos Analíticos, assim define o
raciocínio:

"O terceiro ato da razão corresponde àquilo que é o


próprio da razão, a saber: ir de um objeto percebido a um
outro objeto percebido, de tal m aneira que pelo que é
conhecido, chega-se ao conhecim ento daquilo que é
desconhecido".
74

“Tertius autem actus rationis est secundum id quod est


proprium rationis, scilicet discurrere ab uno in aliud, ut
per id quod est notum deveniat in cognitionem ignoti”.

II Anal. I,
L.I, n.4

Devem os distinguir nesta definição três elem entos - discurrere: o raciocínio é um


"discurso", quer dizer, na ordem do pensam ento, um m ovim ento. S. Tom ás, no texto
citado m ais acim a, com parava as outras operações do espírito ao repouso; o
raciocínio é essencialm ente m ovim ento. Observe-se que esta operação conservará
sem pre um a certa unidade, que ela não será um a sim ples justaposição de atos, porém
esta unidade será a de um m ovim ento, de um discurso “ab uno in aliud”: todo m ovim ento
se efetua entre dois têrm os. Aqui, o antecedente e o conseqüente; o antecedente é o
conjunto das verdades que prèviam ente foram adm itidas e que perm ite adquirir um a verdade
nova, expressa pelo conseqüente “per”: esta partícula define o m odo segundo o qual se
passa do antecedente ao conseqüente. O que não se dá por m odo de sim ples sucessão,
m as de causalidade. Neste m ovim ento de ordem intelectual e im anente que é o
raciocínio, o antecedente é causa do conseqüente. Nem a justaposição de dois
têrm os, nem m esm o a justaposição de vários julgam entos constitui, portanto, um
verdadeiro raciocínio. Esta operação supõe necessàriam ente um a dependência, na
ordem da verdade, por m odo de causalidade.

É necessário, igualm ente, que haja passagem de um a verdade a um a outra verdade. Nem
na conversão nem na oposição das proposições há pròpriam ente raciocínio, porque,
m esm o que haja dependência na verdade das proposições em causa, não há, na
realidade, presença de duas verdades diferentes: a segunda proposição não faz senão
traduzir, com um a construção diferente, o que a prim eira já exprim ia. Ex.:
"nenhum hom em é anjo" enuncia a m esm a verdade que "nenhum anjo é hom em ". Se,
portanto, eu posso legitim am ente concluir sôbre a verdade de um a dessas proposições
porque sei que a outra é verdadeira, não posso dizer que fiz um raciocínio, um a vez
que não deduzi um a outra verdade. Sôbre êste assunto pode-se consultar Stuart Mill
(Lógica, L. II, C.1) onde êle demonstrou que, a passagem de um a verdade a um a
outra expressão da m esm a verdade, não constitui um raciocínio.

3 . D IVISÕES D O R ACIOCÍN IO.

Vim os que o raciocínio pode ser considerado sob dois pontos de vista diferentes:
form alm ente, quer dizer, em sua disposição lógica e m aterialm ente, quer dizer,
quanto a seu conteúdo. Ter-se-á, portanto, um estudo form al e um estudo m aterial
do raciocínio.

O estudo form al do raciocínio, sôbre o qual nos deterem os inicialm ente, se subdivide
em duas secções correspondentes aos dois grandes tipos clássicos desta operação: o
silogism o ou dedução, que se pode caracterizar de uma m aneira geral com o sendo o
raciocínio que vai do m ais universal ao m enos universal, e a indução que é, em
sentido inverso, a passagem do particular ao universal.
75
4 . N ATU R EZA E D IVISÕES D O SILOGISM O.

Aristóteles assim define o silogism o, no livro que consagra ao seu estudo (I Anal.
I, C. I, 24 b 18) : "um discurso no qual, um a vez que certas realidades são
afirm adas, algum a outra realidade diferente resultará necessàriam ente delas, pelo
sim ples fato de que elas foram afirm adas." Tal definição parece convir a tôdas as
form as de raciocínio necessário. Restringida, entretanto, ao silogism o, parece
querer dar a entender que, para Aristóteles, não havia nenhum a outra form a apodítica
de raciocínio senão o próprio silogism o.

Distinguem -se duas grandes espécies de silogism o: o silogism o categórico, no qual a


m aior é um a proposição categórica, e o silogism o hipotético, no qual a m aior é um a
proposição hipotética ou com posta. Se observam os, por outro lado, que existem form as
particulares de silogism o, derivadas das precedentes, poderem os pràticam ente dividir
nosso estudo em três parágrafos tratando respectivam ente: do silogism o categórico, do
silogism o hipotético e das form as particulares do silogism o. Com o o silogism o
categórico é o que tem m aior utilidade e com o êle se encontra na base de todos os
outros, será principalm ente sôbre êle que deterem os m ais a nossa atenção.

5. O SILOGISM O CATEGÓR ICO.

O silogism o categórico é um a argum entação em cujo antecedente se associam dois


têrm os a um m esm o terceiro, de m odo que se possa inferir daí um conseqüente em . que
êstes dois têrm os possam ou não convir entre si (Gredt):

“argum entatio, in cujus antecedente com parantur duo term ini


cum uno eodem que tertio ut exinde inferatur consequens quod
enuntiat illos duos term inos inter se convenire vel non
convenire”.

Se se analisar esta definição. constatar-se-á que o silogism o categórico se


com põe necessàriamente de três têrm os, e que se pode exprim ir as relações supostas
entre êles, em três proposições. Nas duas prim eiras, que constituem a
antecedente, o têrm o interm ediário será sucessivam ente com parado aos dois extrem os; na
terceira, que exprim e o conseqüente, os dois extrem os se verão associados entre si.
Exem plo:

Antecedente:

O que é espiritual (M) é im ortal (T)


Ora, a alm a hum ana (t) é espiritual (M)

Conseqüente:

Logo, a alm a hum ana (t) é im ortal (T)

Cham a-se:

- Têrm o Maior (T), o predicado da conclusão


76

- Têrm o Menor (t), o sujeito da conclusão

- Têrm o Médio (M), o têrm o com um das prem issas

- Prem issas, as proposições que constituem o


antecedente.

- Prem issa Maior, a prem issa que contém o têrm o m aior

- Prem issa Menor, a que contém o têrm o m enor

- Conclusão, a proposição conseqüente

Observe-se, e isto é m uito im portante, que no pensam ento e linguagem correntes, não
se desenvolvem habitualm ente raciocínios silogísticos em prem issas e conclusão.
Dir-se-á, por exem plo, m uito sim plesm ente: "A alm a hum ana é im ortal porque ela é
espiritual". Porém é sem pre possível proceder-se a esta decom posição, porque em
tôda dedução há necessàriam ente três têrm os e, portanto, três proposições. Em
lógica, onde se procura pôr em evidência tôdas as ligações do pensam ento,
representar-se-á norm alm ente a dedução dentro de sua figuração assim desenvolvida.

Até aqui, só fizem os um a análise descritiva do silogism o. Convém voltarm os à sua


definição para que possam os nos dar conta exatam ente de sua natureza e, assim , nos
colocarm os em condições de refutar as críticas feitas por alguns m odernos, contra esta
form a de raciocínio, por a haverem m al com preendido.

A questão que se coloca é a seguinte: o silogism o será essencialm ente determ inação
do particular contido no universal, assim com o o parece sugerir a definição com um ente
proposta? Ou, não seria, antes, um a espécie de identificação dos dois extrem os em
virtude ou em razão do têrm o m édio, e assim , as relações de universalidade e de
particularidade não passariam de um aspecto dependente dêsse m esm o têrm o m édio?

Segundo a prim eira dessas concepções, o silogism o é essencialm ente explicação do


conteúdo im plícito das afirm ações m ais gerais. Destia form a eu diria:

Todos os ocupantes desta casa foram m ortos


Ora, Pedro era um dêsses ocupantes

Logo, Pedro foi m orto

Ao silogism o assim apresentado opõe-se um a dupla objeção. Trata-se, diz-se, de


um a tautologia. Não se faz senão repetir na conclusão o que já se afirm ava na
m aior. O silogism o é incapaz de fazer progredir o conhecim ento; êle pode ser útil
para classificar ou verificar o que já se sabe, porém , com o instrum ento de
descoberta, é de um a esterilidade perfeita. Ou então se acusa o silogism o de im plicar
em um círculo vicioso. Se eu posso dizer, no exem plo precedente, que todos os
ocupantes da casa foram m ortos, é porque eu havia constatado que Pedro, que era um
dêles, estava efetivam ente m orto. A m aior só é verdadeira se eu puder antes,
verificar a conclusão. É, portanto, raciocinar em círculo, pretender deduzir a
conclusão "Pedro foi m orto", da m aior que já a supunha com o certa.
77
Essas objeções só têm razão de ser se se concebe, com o os nom inalistas, o
universal com o sendo um a coleção de casos particulares, e se se interpreta o silogism o
com o a determ inação de um dos casos particulares do universal assim com preendido.
Porém , tal não se dá. Na realidade, o silogism o é essencialm ente a identificação
dos dois extrem os em virtude ou em razão de um têrm o m édio. Quando eu declaro que
"Pedro é contem plativo porque êle é filósofo", eu estou afirm ando que o predicado
"contem plativo" pertence ao sujeito "Pedro", em razão do m édio "filósofo". O
têrm o m édio constitui o elem ento dinâm ico efetivo do raciocínio; é êle que traz a
luz: concluir é assentir, sob a pressão do têrm o m édio. Há, é verdade, um
progresso em direção do m enos universal (ou ao não m ais universal), m as isto não é
senão um segundo aspecto do silogism o, que é antes de tudo um a operação de m ediação
causal pelo têrm o m édio.

Concluirem os, portanto, que no verdadeiro silogism o há progresso de conhecim ento que,
a identificação do predicado e do sujeito não pode ser conhecida antes que a vejam os
sob a luz do antecedente, que é sua razão própria.

Da m esm a form a, não se deve dizer que êle é um círculo vicioso, porque as prem issas
não são sim plesm ente a coleção de casos particulares som ados, m as um verdadeiro
universal necessário, que se justifica por êle próprio ou por verdades m ais elevadas.
- Os exem plos que, à prim eira vista, parecem justificar as objeções não são, de
fato, silogism os autênticos. guando eu declaro que "Pedro foi m orto porque todos os
ocupantes da casa foram m ortos", eu volto a um a experiência prim itiva que estava na
origem de m inha indução: "todos os ocupantes da casa foram m ortos"; porém , a
m aior, aí, não é verdadeira m ente universal e o têrm o m édio, os ocupantes da casa,
não é razão explicativa da conclusão. Em tudo isso não há senão classificações
ou ligações m ateriais, m as não silogism o no sentido pleno da palavra.

O critério que acabam os de estabelecer está ligado ao duplo aspecto com preensionista e
extensionista que se pode distinguir no silogism o.

Se se lê o silogism o sob o prism a da com preensão, dir-se-á que o têrm o m aior faz
parte da com preensão do têrm o m enor porque êle faz parte da com preensão do m édio, a
qual por sua vez está com preendida no m enor: "contem plativo" faz parte da com preensão
de "Pedro" porque faz parte da com preensão de "filósofo", que, ela m esm a, está
com preendida tia de "Pedro".

Se, ao contrário, se lê o silogism o sob o prism a da extensão, dir-se-á que o


têrm o m enor faz parte da extensão do têrm o m aior, porque êle faz parte da extensão do
têrm o m édio, a qual está com preendida na do têrm o m aior: "Pedro" é
"com tem plativo" porque Pedro está com preendido na extensão de "filósofo", que por
sua vez está com preendido na de "contem plativo".

Essas duas leituras de um silogism o são legítim as, sob a condição de que não sejam
consideradas com o exclusivas um a da outra. O processo silogístico coloca em ação
êstes sistem as de relações concernentes a com preensão e a extensão. Absolutam ente
falando, a interpretação com preensiva é fundam ental, porém , na lógica
silogística, deter-se-á de preferência nas relações de extensão. Eis porque,
aliás, as regras que passarem os a form ular, relativas a êste ponto de vista particular,
apenas poderão assegurar um a parte das condições de verdade do silogism o.

6 . O SILOGISM O H IPOTÉTICO.
78

Cham a-se silogism o hipotético o silogism o no qual a m aior é constituída por um a


proposição hipotética e a m enor assegura ou destrói um a das partes da m aior.

Exem plo:

Se a terra gira ela se m ove


Ora, a terra gira

Logo ela se m ove

Podem -se distinguir quatro espécies de proposições hipotéticas: condicionais,


conjuntivas, disjuntivas, copulativas. Mas, com o das copulativas não se pode, em
lógica, nada retirar, de válido, restam três espécies de m aiores que dão três
form as diferentes de silogism os hipotéticos: o silogism o condicional, o conjuntivo e o
disjuntivo. Exem plos das duas últim as form as:

Disjuntivo:

Ou o círculo é um a curva ou é um a reta


Ora, o círculo é um a curva

Logo, ele não é um a reta

Conjuntivo:

O hom em não pode ao m esm o term po servir a Deus e a Mam m on


Ora, ele serve a Deus

Logo, ele não serve a Mam m on

7. SILOGISM O H IPOTÉTICO E SILOGISM O CATEGÓR ICO.

Na lógica m oderna, a questão das relações do silogism o categórico e do silogism o


hipotético deu lugar a diversas discussões (Lachelier, Goblot). Sem descer a todos
os detalhes da controvérsia, m ostrarem os que:

A. O silogism o hipotético é um a form a de raciocínio que


difere do silogism o categórico;

B. O silogism o hipotético supõe o silogism o categórico o


qual perm anece o tipo essencial da dedução.

A. Pode-se sem pre resolver um silogism o hipotético em um ou dois silogism os


categóricos correspondentes. Considerem os êstes dois silogism os:

Prim eiro:

Se Pedro corre êle se m ove


Ora, Pedro corre
79

Logo Pedro se m ove

Segundo:

Tudo o que corre se m ove


Ora, Pedro corre

Logo Pedro se m ove

Nos dois casos chega-se à m esm a conclusão. Pode-se deduzir disto que se raciocinou
da m esm a m aneira? Não, porque no silogism o categórico (II), eu tiro de um a
proposição universal, um a proposição particular que aí se achava em potência, ou,
se se prefere, eu ligo dois extrem os com um têrm o m édio. No silogism o hipotético
(I), eu não posso dizer que a conclusão "Pedro se m ove" estava contida apenas em
potência na m aior; de certa m aneira, ela aí já se achava em ato. Além disto, eu
não estou ligando dois extrem os com um m édio; "Pedro" e "se m ove" já estavam
hipotèticam ente unidos na m aior. Na realidade, no silogism o hipotético eu não com bino
têrm os m as proposições. A m aior é a afirm ação de um elo existente entre duas
proposições, a m enor assegura ou suprim e um a dessas proposições, do que resulta, em
conclusão, a afirm ação ou a destruição da outra posição. Eu raciocino sôbre
relações de verdade já estabelecidas, o que não é a m esm a coisa que raciocinar sôbre
ligações de têrm os: o silogism o é um a form a de raciocínio original, com o a
proposição hipotética é um a form a de afirm ação igualm ente original.

B. Entretanto, é fácil ver que esta m aneira de raciocinar (hipotèticam ente)


supõe o silogism o categórico. Os têrm os já se acham associados antes que se com ece a
raciocinar. A m aior "se a terra roda ela se m ove", supunha que já se sabia que a
afirm ação particular, "a terra se m ove", dependia da afirm ação mais geral "tudo o
que gira se m ove", de onde ela procedia por silogism o categórico. O silogism o
categórico perm anece, assim , na base do silogism o hipotético que está com o que
enxertado nêle. Aristóteles podia, não sem razão, lim itar seu estudo ao silogism o
categórico, m odo essencial e originário do raciocínio dedutivo.
80
IX

A IN D U ÇÃO

1. O PR OBLEM A D A IN D U ÇÃO.

A terceira operação do espírito, o raciocínio, encontra sua razão de ser na


fraqueza da inteligência hum ana que, não podendo esgotar de im ediato a inteligibilidade
dos objetos por ela percebidos, vê-se na obrigação de proceder de acôrdo com um m odo
com plexo: em virtude de um a prim eira verdade suposta com o adquirida, o antecedente, ela
conclui por um a nova verdade, o conseqüente.

A m ais perfeita forma do raciocínio é o silogism o ou a dedução, no qual o espírito


infere o conseqüente porque o antecedente lhe faz ver a razão. Há, neste processo do
pensam ento, explicação verdadeira e necessitante, pela intervenção do têrm o m édio.
A inteligência se m ove no plano inteligível, ao m esm o tem po que desce ao m enos
universal.

Mas a dedução supõe princípios (as prem issas do silogism o), e definições,
especialm ente a do têrm o m édio, não podendo êste representar sua função de
ligação entre os dois outros têrm os se êle próprio não é conhecido. Por exem plo, a
m aior "todo hom em é m ortal" não tem sentido se eu não souber o que é "o hom em ",
sem o que eu não poderia dizer que êle é "m ortal".

Por outro lado, se a dedução supõe, com o seu ponto de partida, alguns princípios e
algum as definições, ela não poderá, evidentem ente provar os seus pressupostos, sem
cair em círculo vicioso. E se êstes podem , em alguns casos, ser estabelecidos

a través de outras dem onstrações, sem pre deverão subsistir pelo m enos alguns
princípios e algum as dem onstrações prim eiras que não serão dem onstradas. Ser á
necessário, portanto, que um a nova operação intervenha aqui para nos assegurar de seus
pressupostos. De m aneira geral, esta operação geradora dos princípios não
dem onstráveis da dedução é a indução.

2 . N OÇÃO D A IN D U ÇÃO.

Com preendida em seu sentido m ais am plo, a indução é o processo do espírito que nos
perm ite passar dos dados m ais particulares da experiência aos princípios e às noções
prim eiras de onde sairão as dem onstrações.

O conhecim ento hum ano, com efeito, não com eça pelo inteligível, m as pelo
sensível, quer dizer pela percepção das coisas singulares e m utáveis. A partir daí,
nossa inteligência, que tem o universal com o objeto, form a por abstração as noçõe s
e os princípios universais. Em seu sentido m ais geral, a indução atinge tôda essa
passagem do singular percebido pelos sentidos, ao universal objeto prim eiro da
inteligência (é o significado habitual da "epagoge" de Aristóteles).
Psicològicam ente, e na prática da atividade de pensam ento, isso sup õe todo um conjunto
m uito com plexo de operações. Não nos esqueçam os que, o que vai seguir agora, é
81
apenas o esquem a lógico essencial do problem a, aquêle que nos interessa.

3 . OBSER VAÇÃO H ISTÓR ICA.

A idéia da indução e, em um a certa m edida, sua teoria, rem ontam a Aristóteles


(Ver em particular: I Anal., II, C. 23, 68 b 8, e Top., I, C.
12, 10 5 a 10 ), porém o Estagirita se estendeu bem m enos s ôbre esta questão do
que sôbre o silogism o, deixando pontos obscuros. Pelo m enos, afirm ou êle m uito
claram ente que ao lado do silogism o há um outro processo do espírito, o "epagoge",
que é distinto daquele, e que m arca a passagem do singular ao universal. Na Idade
Média, a indução foi m ais especialm ente estudada por Alberto Magno e por Scot que
apresentaram os prim eiros elem entos de um m étodo experim ental. S. Tom ás teve
certam ente a percepção nítida do problem a e de sua solução, porém em nenhum a p arte
êle se estendeu suficientem ente (ver entretanto seu Com entário aos II Anal.,
II, L. 20 , n. 8 e segs., onde é m ais explícito). Os m odernos, ao
contrário, em conseqüência do desenvolvim ento das ciências experim entais, deram grande
im portância à indução. Assinalem os sim plesm ente que seus trabalhos obedecem a um a
dupla preocupação: busca dos m étodos científicos da indução e determ inação de seu
fundam ento filosófico.

4 . D EFIN IÇÃO D A IN D U ÇÃO.

N os Tópicos (I, C. 12, 10 5 a 12), Aristóteles define de m aneira muito


geral a indução como "a passagem dos casos particulares ao universal", e propõe
êste exem plo: "se o m ais hábil pilôto é aquêle que sabe, e se se verifica o m esm o
com relação ao cocheiro, é o hom em que sabe quem em cada caso é o m elhor".

E xplicitando as condições da passagem ao universal, pode-se dizer (Maritain) que


"a indução é um raciocínio pelo qual, partindo-se de dados particulares
suficientem ente enum erados chega-se a um a verdade universal". Seja êst e outro exemplo
de Aristóteles (I Anal., II, C. 23, 68 a 19):

O hom em , o cavalo, e o burro vivem m uito tem po


Ora (todos os anim ais sem fel são o hom em , o cava lo e o
burro)

Logo todos os anim ais sem fel vivem m uito tem po.

A partir de um a série, supostam ente suficiente, de observações sôbre a longevidade


dos anim ais sem fel, eu chego a um a conclusão, de valor universal, sôbre a
longevidade de todos os anim ais desta categoria.

5 . IN D U ÇÃO E SILOGISM O.

Com preendem os m elhor a estrutura original do raciocínio indutivo com parando-a com um
raciocínio silogístico que lhe seja paralelo. Com efeito, pode-se im aginar que a
partir de princípios m ais elevados, um silogism o chegue à m esm a conclusão que um a
indução. Exem plo:
82
Indução:

P edro, Paulo etc . . . são m ortais


Ora, Pedro, Paulo . . . são todos ho m ens

Logo todo hom em é m ortal.

Silogism o:

Tudo o que é com posto de m atéria é m ortal


Ora, todo hom em é com posto de m atéria

Logo todo hom em é m ortal

N os dois casos, obtém -se a m esm a conclusão universal: "todo hom em é m ortal".
Porém , os pontos de partida foram diferentes: no caso da indução, partiu-se da
enum eração de experiências particulares; no do silogism o, de verdades universais. -
Os têrm os m édios igualm ente foram diferentes; para o silogism o, era um a razão que
m anifestava a conveniência do sujeito e do predicado com a conclusão; no caso da
indução, era um a enum eração de casos singulares que era considerada suficiente pa ra que
se pudesse chegar à afirm ação universal. Seria m esm o m ais exato dizer que na
indução não há, pròpriam ente falando, têrm o m édio, quer dizer, um têrm o
determ inado que ligue os extrem os, m as sòm ente um a enum eração que repr esenta o papel
dêle.

Aristóteles (I Anal. II, C. 23, 68 a 33) exprim e a diferença entre


essas duas form as de raciocínio da seguin te form a: "De certa m an eira, a indução se
opõe ao silogism o: êste prova, pelo têrm o m édio, que o extrem o m aior pertence ao
terceiro têrm o; aquela prova, pelo terceiro têrm o, que o extrem o m aior pertence ao
têrm o m édio. Verificar-se-á isto fàcilm ente no seguinte exem plo, onde indução e
silogism o estão invertidos:

Silogism o:

Todos os anim ais sem fel (M) vivem m uito tem po (T)
Ora, o hom em , o cavalo, o burro (t) são anim ais sem fe l
(M)

Logo, o hom em , o cavalo, o burro (t) vivem m uito


tem po(T)

I ndução:

O hom em , o cavalo, o burro (t) vivem m uito tem po (T)


Ora, todos os anim ais sem fel (M) são o hom em , o
cavalo, o burro (t)

Logo, todos os anim ais sem fel (M) vivem m uito tem po
(T)
83

Para verificar a fórm ula de Aristóteles é necessário determ inar M, T, t no


silogism o, depois transportá-lo com sua significação para a indução. O m éd io não
é verdadeiram ente m édio senão no silogism o.

Observação. - A verdadeira indução deve ter com o fim não o coletivo com o tal,
quer dizer, a coleção dos singulares enum erados, m as o universal, incluindo em
potência um núm ero indeterm inado de sujeitos. - A indução com pleta, da qual
falarem os em breve, é um caso especial no qual a coleção com porta um núm ero
determ inado de indivíduos.

N o caso privilegiado da percepção dos prim eiros princípios ou noções sim ples, a
indução chega às evidências: eu percebo que o todo, absoluta e universalm ente
falando, é m aior do que a parte. Porém quase sem pre, nas ciências e na prática d a
vida, esta operação não chega a atingir êste grau de certeza: ela atinge a
julgam entos universais, m as sem que a razão dêstes seja evidente. Não há verdadeiro
têrm o m édio, não se vê a razão form al de ser da conclusão. A conclusão a que se
chega é, antes, em tôrno da existência: se os casos foram suficientem ente
enum erados, pode-se legitim amente assegurar-se do julgam ento universal.

Decorre disto que, regra geral, a conclusão de um a indução é sòm ente provável,
porque perm anece sem pre um certo hiato entre a som a dos casos particulares obs ervados e o
universal que se infere: há, portanto, sem pre possibilidade de êrro. Se observei
que o cobre, o ferro, o ouro etc., se dilatam com o calor, eu poderia, se m inhas
experiências foram suficientes, concluir legitim am ente que todos os m etais se d ilatam com
o calor. Entretanto, não o posso afirm ar com certeza absoluta porque, talvez, tal
m etal que eu não conheça não se dilate efetivam ente com o calor. Na indução
científica eu não "vejo" e é por isto que guardo sem pre um certo receio de m e
enganar, form ido errandi, o que é o caráter distintivo do conhecimento prováve l.

6 . IN D U ÇÃO COM PLETA E IN D U ÇÃO IN COM PLETA.

A indução é com pleta quando se inferiu um universal após ter-se enum erado todos os
casos singulares que se acham com preendidos abaixo dêle. Exemplo:

As plantas, os anim ais, os hom ens se m ovem por si próprios


Ora, todos os corpos viventes são plantas, anim ais,
hom ens

Logo, todos os corpos viventes se m ovem por si próprios.

Supõe-se que não há senão as três espécies enum eradas de corpos viventes. Se,
portanto, verificou-se que cada um a destas espécies possuía m ovim ento por si pr óprio,
pode-se concluir que todo corpo vivente se m ove por si próprio. Tal indução conduz à
certeza: é com o um caso lim ite e perfeito desta operação. Os antigos consideraram com
um a atenção especial esta form a privilegiada do raciocínio indutivo que, na verdade,
é bem rara, porém seria falso afirm ar que êles não tivessem conhecido outra.

A indução incom pleta é aquela na qual a enum eração das partes subjetivas do
universal não é com pleta. Ex.:
84
Esta porção de água ferve a 10 0 , esta outra tam bém ,
aquela etc.

Lo go, a água ferve a 10 0 .

Quando a enum eração das partes é suficiente, infere-se legitim am ente um a conclusão
universal, que porém não deixa de ser apenas provável. Êsse tipo de indução é o
que habitualm ente se encontra nas ciências, e é com êle que os lógicos m odernos m ais
se preocupam .

P oder-se-ia perguntar se raciocínios do tipo dêste:

P edro, André, Tiago etc . . . estavam no Cenáculo


Ora, Pedro, André, Tiago ete . . . são todos os
apóstolos

Logo, todos os apóstolos estavam no Cenáculo.

d evem ser considerados com o verdadeiras induções (com pletas). Não há,
lem brem o-nos disto, verdadeiro raciocínio se não há progresso na ordem d a verdade.
Seria o caso de perguntar se a afirm ação coletiva "todos os apóstolos" acrescenta
algum a coisa à som a das afirm ações individuais, "Pedro" etc.

7. O FU N D AM EN TO D A IN D U ÇÃO.

Até aqui, descrevem os e analisam os o raciocínio indutivo, porém ainda não


legitim am os filosòficam ente o seu em prêgo. Colocado à parte o caso especial da
indução com pleta, o que acontece, nesse tipo de raciocínio, é que se passa de algu ns
singulares a um universal que os ultrapassa: o cobre, o ferro, o ouro se dilatam com o
calor, logo todo m etal se dilata com o calor. O que nos autoriza a passar de algum a
todo? Este é o problem a do princípio ou do fundam ento da indução.

Observem os, inicialmente que a indução, não podendo ser reduzida ao silogism o, não
poderá ser justificada pelos princípios dêste. Pode-se perfeitam ente colocar em
silogism o a m atéria de um a indução, não porém sua form a. Adem ais, quando se diz:
"O que é verdade quanto a várias partes suficientem ente enum eradas de um certo suje ito
universal é verdade quanto a êste sujeito universal", atinge-se a um princípio m uito
exato. Mas chegou-se ao fundo do problem a? O que se trata precisam ente de saber, é
com o um a certa enum eração, incom pleta por hipótese, pode apesar disto ser
suficiente.

A razão m etafísica profunda é que há um a correspondência aproxim ativa entre o m undo


da existência e o da essência, entre os fatos e o direito, entre a experiência e as
leis. O universo criado pode ser considerado com o um a hierarquia de essências dotadas de
determ inadas propriedades. Todo êsse conjunto perm anece escondido para nós (pelo
m enos em sua m aior parte) e não se nos revela senão pelo com plexo dos fatos concreto s e
singulares da experiência. Porém , e é precisam ente o que legitimará o raciocínio
indutivo, êsse com plexo de fatos não se dá sem relações com as determ inações
necessárias das essências e de suas propriedades. As causas agem cada um a con form e sua
85
natureza e, na m aioria dos casos, produzem os m esm os efeitos no m undo da experiência.
A constância das relações, no nível dos fatos, poderá assim ser interpretada com o o
sinal de um a necessidade de direito, correspondendo ao plano das naturezas. Há,
portanto, possibilidade de se chegar dos fatos da experiência às determ inações
necessárias que são a causa form al dêles, quer dizer, de fazer induções.

A indução se acha, assim , fundam entada porém , perm anece a dificuldade prática de
saber quando um conjunto de observações de fato autoriza um a indução. Quando é qu e
se pode dizer que um a enum eração é suficiente? Quando, responderem os, o m esm o fato
se reproduzir no m aior núm ero de casos e nas circunstâncias as m ais variadas
possíveis. A técnica prática dessa utilização variada e calculada da experiência
provém dos m étodos da indução.

8 . OS M ÉTOD OS D A IN D U ÇÃO.

A indução consiste, assim , em se atingir, a partir da constatação de um certo


núm ero de fatos singulares, a um a afirm ação universal correspondente. Sob o ponto de
vista prático, o que dificulta é poder discernir quando a enum eração será suficiente
para que se possa, com garantias convenientes, proceder à inferência do universal.
Em princípio, é quando a ligação ou a causa procurada tiver sido constatada em um a
suficientem ente grande variedade de casos. Os m étodos da indução não terão outro
objeto senão o de variar, de m aneira calculada, o conjunto das condições nas quais um
fenôm eno se reproduz ou não, para autorizar induções válidas com o m áxim o de
segurança. Observe-se que êsses m étodos não constituem o próprio processo lógico da
indução; êles apenas o preparam e o garantem , protegendo-o das causas de êrro. Não
m ais que a própria indução, êsses m étodos não nos farão, portanto, ver com
necessidade o têrm o inferido; êles não poderão senão aum entar a probabilida de da
conclusão.

O objetivo visado pelo m étodo indutivo não é exatamente o m esm o entre os antigos e
entre os m odernos. Em filosofia aristotélica pretendia-se chegar às form as, quer
dizer, às definições essenciais; os m odernos não têm habitualm ente outras am biçõ es
senão determ inar leis ou ligações constantes. Essa diferença é considerável sob o
ponto de vista dos resultados efetivos, m as não atinge senão indiretam ente as
considerações m etódicas, de sorte que se pode m uito bem adotar as teorias m ais m odernas
em lógica aristotélica. É isso que parece nos autorizar um a am pliação aqui, de
nosso horizonte habitual, dando, ao lado das concepções de Aristóteles, aquelas ,
tornadas clássicas, de Francis Bacon e de Stuart Mill.

9 . A IN D U ÇÃO E OS M ÉTOD OS D A D EFIN IÇÃO EM AR ISTÓTELES.

É digno de nota que Aristóteles, em bora tenha m anifestado um a inclinação m uito


pronunciada pelas questões de m étodos, e tenha, por outro lado, atribuído à
experiência excepcional im portância na form ação do conhecim ento, não tenh a deixado
senão um a teoria pouco segura da indução. Ao contrário de Platão, êle afirma,
continuam ente que, todo conhecim ento nos vem dos sentidos, quer dizer, do pa rticular.
E não nos tenha m ostrado de m aneira clara com o, dêste ponto de partida inevitável, se
possa chegar a essas definições universais que, em seu m étodo, são as verdadeiras
chaves da dem onstração científica. Deve-se reconhecer, entretanto, que êle
realizou um certo núm ero de tentativas para determ inar os m étodos da defin ição, o que
nêle corresponde a nossos m étodos de indução. Nós nos contentarem os em indicar,
86
sôbre êste tem a cujo estudo nos levaria longe dem ais, os artigos do Pe.
Roland-Gosselin, OP. De l'induction chez Aristote (Révue des sciences
philophiques et théologiques, 1910 , p. 39-48); Les m éthodes de la
définition chez Aristote (ibid., p. 236-252, 661-675).

10 . A IN D U ÇÃO EM FR AN CIS BACON .

A teoria da indução constitui a peça central do célebre trabalho de F. Bacon, o


Novum organon. Após ter, em um a "pars destruens", purgado o espírito de todo s os
preconceitos, "ídolos", que o im pedem de progredir na ciência, Bacon se volta para
a definição e o m étodo desta. O intuito teórica da ciência é, para Bacon, a
descoberta das "form as", objetivo que, diga-se de passagem , tem m ais afinidade com o
ideal aristotélico do que com a ciência m oderna. Eis com o se deve proceder:

I nicialm ente, procura-se recolher o conjunto dos fatos experim entais (historia
generalis) depois, organizam -se êsses fatos em m apas:

M apa das presenças, agrupando todos os fatos em que se


acredita encontrar a form a que se procura.

M apa das ausências, onde se reúnem os fatos em que a form a


procurada se ache ausente.

M apa dos graus: onde são consignados os fatos nos quais a


form a em questão existe em diferentes graus.

Com eça então o trabalho pròpriam ente dito da indução, que se efetua em duas
"instâncias" principais. Exclui-se, de início, as naturezas que não podem ser a
form a procurada, depois tenta-se determ iná-la positivam ente. Essas operações
constituem a "vindem iatio prim a". Term inada a prim eira vindim a, recorre-se às
"auxilia inductionis": Bacon havia previsto nove séries delas. Entretanto apenas n os
deixou um a única, a das "praerrogativa instantiarum ", fatos que têm o privilégio de
nos colocar na trilha da definição procurada. Assinalem os sim plesm ente que existem
27 dessas categorias.

11. OS CÂN ON ES D E STU AR T M ILL.

E m seu Sistem a de lógica, Mill nos deixou tôda um a teoria da indução, e


particularm ente um conjunto de regras ou cânones que aperfeiçoam os m a pas de Bacon.
De fato, êle tem um objetivo bastante diferente do de seu ilustre predecessor.
Enquanto êste pretendia atingir "form as", pela indução, Mill busca fixar as
ligações necessárias entre causas e efeitos, seja procurando o efeito próprio d e um a
dada causa, seja, ao contrário, esforçando-se em ir do efeito à causa. Mill
constituiu assim quatro m étodos (ou cin co, se se considera que o 1. e o 2.
com binados form am um m étodo especial) que êle resum e em outros tanto s cânones.

12 . O M ÉTOD O EX PER IM EN TAL.

Os m étodos da indução não são senão a parte central do m étodo experim ental. Êste
últim o pretende ditar regras sôbre o conjunto dos processos que utilizam as disciplina s
que se fundam entam sôbre a experiência, enquanto que o prim eiro só diz respeito à
87
passagem lógica do particular ao universal. Os principais problem as colocados pela
m etodologia das ciências experim entais, sem contar os da própria indução, parecem
ser o do papel da hipótese na pesquisa e o das relações da indução e da dedução no
m étodo. Um a exposição geral dêstes problem as será encontrada em Les théories de
l'induction et de l'expérim entation de Lalande, e na obra clássica de Claude
Bernard: Introduction à l'étude de Ia m édecine expérim entale.

Apêndice. - Observe-se sim plesm ente que o raciocínio por sem elhança pode ser
encarado com o um processo racional no qual, de um ou de vários fatos, se infere um
outro fato particular. Exem plo:

P edro, Paulo, Tiago foram curados por tal rem édio ...

Logo, J oão será igualmente curado por êsse rem édio.

Tal raciocínio pode ser figurado analiticam ente por um a indução que seria seguida de
um a dedução:

P edro, Paulo, Tiago foram curados por tal rem édio ...

Logo, todo hom em é curado por êsse rem édio

Ora, J oão é hom em

Logo, J oão será curado por êsse rem édio.

O exem plo que Aristóteles considera com o a form a retórica da indução, não é
senão um esbôço de indução destinado a tornar m ais aecessível ou m ais sensíve l um a
verdade.
88
X

A D EMON STRAÇÃO

1. IN TR OD U ÇÃO.

Até o presente, consideram os o raciocínio sob o ponto de vista de sua estrutura


lógica, independentem ente do valor das proposições que êle contém . Porém , pode-se
tam bém considerar esta operação em seu conteúdo, em sua m atéria, quer dizer,
segundo a certeza de suas proposições. Assim vista, a dem onstração pode, então,
se apresentar sob duas form as principais: no caso em que as prem issas do silogism o em
questão são certas, tem -se o que se cham a um silogism o dem onstrativo ou científico;
no caso em que essas prem issas são sim plesm ente prováveis, tem -se um silogism o
dialético ou provável, sendo aplicadas nos dois casos as m esm as leis form ais.

Aristóteles, que havia analisado as regras form ais do silogism o nos Prim eiros
Analíticos, consagrou seus Segundos analíticos ao estudo do silogism o dem onstrativo.
Êste livro, que é um dos m ais com pletos de sua obra, é ao m esm o tem po com o que o
centro do Organon, um a vez que a lógica tem com o objeto essencial a constituição de
um a teoria da ciência dem onstrativa, ideal jam ais abandonado aqui. Sabe-se que S.
Tom ás escreveu um com entário sôbre êsse trabalho (cf. sobretudo I, 1. I a 25) .
Encontrar-se-á igualm ente um a interessante exposição no Cursus de J oão de S.
Tom ás (Logica, II.a p.a, q. 24-25) .

2 . A N ATU R EZA D A D EM ON STR AÇÃO.

Na trilha de Aristóteles, a filosofia tradicional conservou duas definições da


dem onstração: a prim eira por sua causa final; a segunda, que se liga à precedente, por
sua causa m aterial ou por seus elem entos constitutivos.

3 . D EFIN IÇÃO D A CAU SA FIN AL.

A dem onstração é essencialm ente um silogism o, e um silogism o que conduz à ciência.

Dem onstratio est syllogism us faciens scire.

É, portanto, a noção de ciência ou de "saber" que com anda a própria noção de


dem onstração. Ora, a ciência é definida de m aneira geral, por Aristóteles, com o o
conhecim ento pelas causas.

Scire est cognoscere causam propter quam res est, quod hujus
causa est, et nora potest aliter se habere.

Com o essas são noções absolutam ente essenciais ao aristotelism o, vam os voltar, com
algum as precisões a m ais, a estas definições da ciência e de seu instrum ento
próprio, o silogism o dem onstrativo (cf. ARISTOTELES, II Anal., I,
C. 2, 71 b 9. Com . de S. Tom ás, 1, 4, n. 2).

O têrm o ciência tom ou entre os m odernos um significado ao m esm o tem po m ais geral e m ais
89
vago: poder-se-ia estendê-lo pràticam ente a todo o conhecim ento m etódico,
organizado e dotado de um grau suficiente de certeza. Entre os antigos, scientia pode
ter, às vêzes, seu sentido am pliado, porém , em aristotelism o, deve-se
restringi-lo, com o já o dissem os, a um objeto m uito m ais lim itado e preciso, o
conhecim ento pelas causas: "Estim am os possuir a ciência de um a coisa de um a m aneira
absoluta, e não à m aneira dos Sofistas, que é um a m aneira puram ente acidental,
quando estam os certos de que conhecem os a causa pela qual a coisa é, quando sabem os que
essa causa é a causa dessa coisa, e que além disto;, não é possível que a coisa
seja diferente do que ela é.

De acôrdo com êste texto, o conhecim ento científico supõe três condições: o
conhecim ento da causa; a percepção de sua relação com o efeito ou de sua aplicação
a êste; e, conseqüentem ente, a necessidade da coisa que se acha causada e que não
pode ser de outro m odo senão com o é.

Que é que se deve entender aqui exatam ente pelo têrm o causa? Exatam ente aquilo que,
com um ente, a gente pensa quando fala de causa! A causa é o que faz um a coisa existir,
quod dat esse rei alterium , e isto acontece dentro das quatro linhas clássicas de
causalidade. Se analisarm os o fato m ais detidam ente, observarem os que a causa designa,
em prim eiro lugar, um elem ento ontológico objetivo: a causa é aquilo que faz ser.
Considerada porém em sua relação com a inteligência, a causa passa a ter,
igualm ente, valor de razão explicativa. t; por isso que a causa intervém na
dem onstração: considera-se um a coisa dem onstrada quando se percebe a razão de seu ser.

O caráter próprio dêsse conhecim ento pela causa é o de poder-se chegar ao


necessário. Segundo esta concepção, o contingente com o tal, ou o m ero provável,
não figuram com o objeto da ciência, que se vê m uito restringido, por êste fato. As
ciências da natureza, em grande parte, tam bém lhes escapam . Só resta, em seu
conjunto, o dom ínio das m atem áticas e, em um nível superior, o da m etafísica.

Vê-se agora porque o silogism o é o processo lógico que m ais exatam ente se proporciona
à ciência. A ciência é o conhecimento pela razão de ser; ora, fazer um silogism o
não é outra coisa senão justificar, por um têrm o m édio explicativo, a dependência
de um predicado a um sujeito, quer dizer, explicar pela causa. A ciência
aristotélica será essencialm ente com posta de silogism os que chegam a conclusões
necessárias, seguindo um processo de causalidade ao m esm o tem po m etafísico e lógico.

4 . D EFIN IÇÃO PELA CAU SA M ATER IAL.

Os elem entos de que um a coisa é constituída dependem de' seu fim . Se um a casa é
construída com tais m ateriais, é porque ela é destinada a nos abrigar das
intem péries. A natureza dos elem entos do silogism o dem onstrativo acha-se do m esm o m odo
determ inada por sua finalidade: chegar a conclusões científicas ou necessárias.
Donde, a definição de Aristóteles que explicita as condições de tal silogism o:

Dem onstratio est syllogism us constans ex veris, prim is,


im m ediatis, prioribus, notioribus, causisque conclusionis.

Sem entrar na explicação detalhada destas condições, que irem os reencontrar m ais
adiante digam os sim plesm ente que as três prim eiras dentre elas, vens, prim is,
im m ediatis, se relacionam im ediatam ente com o caráter de verdade que deve ter o
90
raciocínio dem onstrativo, enquanto que as três últim as condições, prioribus,
notioribus, causisque interessam à anterioridade das prem issas sôbre a conclusão.
5. OS ELEM EN TOS D A D EM ON STR AÇÃO.

O capítulo 1. dos II Analíticos é consagrado ao estudo do que é necessário


conhecer antes da dem onstração, de proecognitis, e freqüentem ente Aristóteles volta
a êsse assunto neste livro. Antes de precisar com êle a natureza dêste
pré-conhecim ento, observem os três coisas.

Pode-se tratar de pré-conhecimento seja dos elem entos necessários para que haja
dem onstração (e é do que se tratará aqui), seja do pré-conhecimento da conclusão
(a conclusão é virtualm ente conhecida nos princípios antes de o ser atualm ente no
têrm o da dem onstração).

Há dois m odos possíveis de pré-conhecim ento, com o aliás de todo conhecim ento: o
pré-conhecim ento da natureza de um a coisa, quid sit, e o de sua existência an sit
(quia est).

Com o tôda dem onstração consiste em atribuir um a propriedade, passio propria, a um


sujeito, subjectum , por m eio de prem issas representando o papel de princípios,
principia, dever-se-á colocar a questão do pré-conhecim ento relativam ente a cada um
dêsses elem entos. Tratarem os sucessivam ente do pré-conhecim ento do sujeito, da
propriedade e dos princípios, depois relacionarem os com êste últim o ponto tudo o que
Aristóteles disse dos princípios, nos Segundos Analíticos (Cf. Texto IX B,
p. 20 9).

6 . O SU JEITO.

Para Aristóteles, devem os conhecer ao m esm o tem po, relativam ente ao sujeito da
dem onstração, que êle é, an est, e o que êle é, quid est. Se por um lado, com
efeito, no início de um a pesquisa científica, não se coloca a questão da existência
do sujeito cujas propriedades se desejar conhecer -ela é pressuposta - por outro lado,
deve-se conhecer a natureza dêsse sujeito, o que êle é, sem o que jam ais se poderia
conhecer a natureza do têrm o m édio, e em conseqüência, não se poderia jam ais
proceder à dem onstração. A determ inação de um a propriedade pressupõe, portanto,
que seja pré-conhecida a existência e a natureza do sujeito ao qual ela pertence. É o
que afirm a S. Tom ás (11 Anal., 1, 1. 2, n. 3)

"O sujeito, por sua parte, tem um a difinição, e seu


existir não depende da propriedade, um a vez que êle já é
conhecido anteriorm ente ao existir de sua propriedade.
Segue-se que é necessário prèviam ente saber do sujeito "o
que êle é" e "que êle existe".

7. A PR OPR IED AD E.

É o que se atribui ao sujeito da dem onstração, quer dizer o predicado da conclusão.


Propriedade, notem o-lo bem , deve aqui ser tom ada em seu sentido preciso, isto é o
proprium , predicável de Aristóteles, aquilo que pertence com o próprio e
necessàriam ente a um a natureza. A dem onstração tem na lógica aristotélica um papel
preciso e relativam ente lim itado: m anifestar êsse proprium das essências das quais se
91
supõe conhecida a definição. - Que devem os conhecer da propriedade, antes da
dem onstração? Não se pode, no sentido pleno destas palavras, conhecer nem sua
existência com o propriedade dêste sujeito, nem sua natureza, um a vez que um a e outra
são fundam entadas sôbre o sujeito e que a atribuição ao sujeito é justam ente o que
está em questão. É necessário, entretanto, ter um a certa noção da propriedade,
sem o que não se poderia falar dela. Em outras palavras, é necessário possuir a seu
respeito um a certa definição nom inal, quid nom inis, (Cf. S. Tom ás, ibidem ).

"Da propriedade, ao contrário, pode-se saber "o que ela


é", porque, com o foi provado na Metafísica, os acidentes
têm , de um a certa m aneira, um a definição. Quanto ao
"existir" da propriedade ou de qualquer acidente, êle é um
"existir" em um sujeito, o que é concluído na

dem onstração. Não se pode, portanto, conhecer de m aneira


antecedente o existir, m as sòm ente a natureza da
propriedade."

S. Tom ás precisa, depois, que êsse pré-conhecim ento do quid est de um a


propriedade é sòm ente pré-conhecim ento do quid nom inis, a essência de um a
propriedade não podendo ser perfeitam ente conhecida senão em sua dependência do
sujeito.

8 . OS PR IN CÍPIOS.

São as verdades que, na dem onstração, são a razão da atribuição do predicado ao


sujeito. Não se trata pròpriam ente de saber o que elas são, um a vez que não se
define um a enunciação, m as sòm ente se elas são, ou m ais exatam ente se elas são
verdadeiras (Cf. S. Tom ás, ibidem ).

"As coisas com plexas não se definem , ("hom em branco"


não tem definição), e muito m enos ainda um a enunciação.
Resulta disto, já que o princípio é um a enunciação, que
não se pode saber prèviam ente dêle "o que êle é", m as
tão sòm ente se "êle é verdadeiro".

Vejam os aqui resum idam ente as conclusões m ais im portantes dos Segundos Analíticos a
respeito dos princípios. Por princípios, se entendem de início, no que se segue,
as duas prem issas de cada dem onstração silogística. Mas deve-se notar que
Aristóteles e S. Tom ás dão tam bém a êsse têrm o um sentido m ais geral: as verdades
com uns contidas nas prem issas e, em um a outra ordem , a definição do têrm o m édio
podem ser igualm ente cham adas de princípios.

As propriedades dos princípios. - A classificação e a sim ples enum eração dessas


propriedades perm anecem um pouco incertas. Eis aqui o que nos parece m elhor
estabelecido:

Em si m esm os, os princípios devem ser

- verdadeiros, pois a ciência é um conhecim ento verdadeiro


e não se pode ter conhecim entos verdadeiros a partir de
92
princípios que não o sejam ;

- im ediatos, quer dizer, conhecidos sem interm ediários.


Em si, a dem onstração ideal procede de princípios
evidentes por si próprios, porque não se pode ascender
indefinidamente na ordem dos princípios e é necessário
deter-se em princípios prim eiros, indem onstráveis.
Aristóteles reconhece freqüentem ente, aliás que, entre
êstes princípios realm ente verdadeiros e a conclusão a
dem onstrar, podem se intercalar verdades interm ediárias que
tiram o seu valor das verdades prim eiras. Porém sem pre, em
definitivo, é necessário que se possa chegar do im ediato.
Observe-se que a qualificação de per se notis, conhecidos
por si, que se atribui aos princípios, reduz-se à
própria qualificação de im ediação. Um a proposição per
se nota é um a proposição cuja verdade se m anifesta pela
sim ples percepção de seu sujeito e de seu predicado. Em
outras palavras ela é em definitivo im ediata;

- necessárias, porque a ciência sendo para Aristóteles o


conhecim ento certo ou necessário, não pode decorrer senão
de prem issas igualm ente necessárias.

Com relação à conclusão, os princípios devem ser

- anteriores (ex prioribus) : trata-se aqui de


anterioridade de natureza ou form al;

- m ais conhecidos (notioribus) : não se pode dem onstrar


evidentem ente o m ais conhecido pelo m enos conhecido;

- causas da conclusão (causis): trata-se, nós o


vim os, de um a propriedade necessária das prem issas do
silogism o.

Multiplicidade e ordem dos princípios. - Pode haver acim a de um a m esm a dem onstração
tôda um a hierarquia de princípios explícitos e im plícitos. Pode-se colocar a
questão da ordem e das relações dêstes princípios entre êles m esm os e em relação
às dem onstrações.

Um a prim eira distinção é a dos princípios próprios e dos princípios com uns. Os
princípios próprios são os que convêm im ediatam ente a um a determ inada dem onstração:
são os verdadeiros princípios, pràticam ente as prem issas. Os princípios com uns são
aquêles que, devido à sua generalidade, podem convir a várias dem onstrações; em
regra geral, são os princípios m ais elevados que com andam , do alto, os silogism os.

Entre os princípios com uns, deve-se colocar à parte a grande categoria dos que são
com uns a tôdas as dem onstrações, quer dizer a tôdas as atividades do pensam ento.
São êles os axiom as denom inados "propositiones", "m axim ae propositiones",
"dignitates" (cf. II Anal. I, 1. 5, n.os 6-7); na lição precitada,
nos foi proposto o exem plo do princípio de não-contradição: "affirm atio et negatio
non sunt sim ul vera". Os princípios gerais da m etafísica, as proposições im ediatas
ou per se notae definidas acim a, entram nesta categoria que S. Tom ás assim
93
caracteriza: "tôda proposição cujo predicado está im plicado na noção do sujeito
é, em si m esm a, im ediata e conhecida por si... quaelibet propositio cujus praedicatum
est in ratione subjecti est im m ediata et per se nota quantum est in se."

As proposições suprem as são tam bém divididas em per se nota om nibus e per se nota
solis sapientibus. As prim eiras são princípios m uito sim ples, com o o princípio de
não-contradição, do qual os têrm os são necessàriam ente conhecidos por todos e são
assim evidentes para todo espírito. As segundas são form adas de têrm os m ais técnicos
cuja conveniência só é m anifesta quando é conhecida a definição dêles. Seria,
notadam ente, o caso de alguns postulados m atem áticos.

Em tôdas essas questões, Aristóteles e S. Tom ás colocam ora a hipótese de um a


única dem onstração determ inada, ora a de tôdas as dem onstrações que poderiam
constituir um a ciência. Essas duas considerações se com pletam , aliás, um a vez que
a ciência não é senão um conjunto de dem onstrações.

9 . AS ESPÉCIES D A D EM ON STR AÇÃO.

Nas páginas precedentes, tivem os em vista sobretudo a dem onstração rigorosa ou


perfeita, ideal que só raram ente é atingido. Aristóteles e S. Tom ás entretanto
dão ainda a alguns raciocínios m enos perfeitos a denom inação de dem onstração
(Aristóteles, II Anal. I, C. 13, 78 a 21; S. Tom ás, I.
23-25). Nestas passagens, êles fazem apêlo a um a dupla distinção que perm ite
classificar as diversas espécies de dem onstrações.

A dem onstração propter quid é aquela a respeito da qual falam os pràticam ente até
aqui, quer dizer, aquela que faz conhecer a razão de dependência de um a propriedade em
relação a um sujeito. Tal dem onstração é sem pre a priori ou pela causa.
Dem onstra-se, por exem plo, desta m aneira que, o hom em tem a "risibilitas" porque êle
é racional, ou que Deus é eterno porque êle é im utável, a im utabilidade sendo a
razão própria da eternidade. - A dem onstração quia est, sem nos m ostrar a razão da
conclusão, nos assegura, entretanto, de sua verdade. Distinguem -se duas espécies de
dem onstrações quia est.

A dem onstração quia a posteriori é aquela na qual se dem onstra um a causa a partir de
seu efeito. Im porta observar que essa dem onstração não é rigorosa senão quando
feita per effectum convertibilem , quer dizer, quando se pode inverter-lhe os extrem os e
o têrm o m édio, visto terem todos a m esm a extensão. O exem plo de Aristóteles e de
S. Tom ás é o seguinte: "os planêtas estão próxim os porque não cintilam ".

Om ne non scintillans est prope


Planetae sunt non scintillantes

Ergo planetae sunt prope

Fundam entando-se na experiência, concluiu-se que os planêtas estão próxim os porque


não cintilam . Isso é verdade, m as um tal silogism o não é fundam entado na razão
porque, em física aristotélica, não é a não-cintilação que é a razão da
proxim idade dos planêtas m as, pelo contrário, é a proxim idade que explica a
não-cintilação. De sorte que em silogism o propter quid é necessário dizer:
94
Quod prope est non scintillat
Atque planetx sunt prope

Ergo planetae non sunt scintillantes

A dem onstração quia a priori é aquela na qual se dem onstra a existência de um fato ou
de um a verdade, não pela causa im ediata, mas por um a causa m ais elevada, a qual é
im potente para nos dar a razão explicativa própria. S. Tom ás nos propõe êste
exem plo: "um m uro não respira porque êle não é um anim al", raciocínio que se
desenvolve no seguinte silogism o de 2.a figura:

Om ne respirans est anim al


Atqui nullus paries est anim al

Ergo nullus paries respiret

Supõe-se que o têrm o m édio "anim al" não é a razão própria da respiração; há
anim ais, os peixes, por exem plo, que não respiram . Para se ter um a verdadeira
dem onstração propter quid, seria necessário fazer intervir o verdadeiro têrm o m édio
causa, e dizer por exem plo: "os m uros não respiram porque êles não têm pulm ões".

Aristóteles e S. Tom ás encaram à parte o caso que encontrarem os m ais tarde, no


qual as dem onstrações de ciências diferentes convergem para um m esm o fato, a ciência
superior dem onstrando então o propter quid e a ciência inferior o quia. Por exem plo,
a m edicina prova experim entalm ente que as feridas circulares cicatrizam mais lentam ente,
o que, supunha-se, então, a geom etria podia dem onstrar a priori.

10 . A CIÊN CIA.

J á falam os resum idam ente da ciência, a propósito da dem onstração. Essas duas
noções sendo solidárias, vam os agora voltar a êste assunto para tratá-lo em tôda a
sua am plitude, Devem os observar que a partir de agora não considerarem os m ais sòm ente
a conclusão particular deu m dado silogism o, que é com o o elem ento da ciência, m as
antes o conjunto das dem onstrações que constituem um a disciplina científica e, m ais
geralm ente ainda, o sistem a total das ciências.

Um a ciência pode ser considerada sob dois pontos de vista: objetivam ente, com o o
desenvolvim ento das proposições que a constituem e subjetivam ente, ou seja com o
habitus, enquanto ela é um a disposição ou um aperfeiçoam ento de nossa inteligência
relativam ente a um certo objeto. Os m odernos, quando falam de ciência, pensam quase
que exclusivam ente no prim eiro dêstes aspectos, enquanto que para os antigos, a
consideração do hábito tinha tam bém o m esm o interêsse. Essas duas noções da
ciência, aliás, se correspondem , pois, a ciência com o percepção objetiva das
conclusões é com o o próprio hábito, um efeito da dem onstração.

11. O LU GAR D A CIÊN CIA EN TR E OS H ÁBITOS IN TELECTU AIS.

Dissem os que a ciência, considerada subjetivam ente, era um hábito.


95

Que é um hábito? - Cham a-se hábito um a disposição de um a potência da alm a tendo


em vista o fim intencionado pelo sujeito, in ordine ad finem . Dessa relação essencial
ao fim , segue-se que o hábito é necessàriam ente um a m odificação boa ou m á: um a
disposição orientando para o fim autêntico é boa, no caso contrário, é m á. Isto
posto, ser-nos-á possível perceber o sentido da definição clássica do hábito:

dispositio secundum quam aliquis disponitur bene vel m ale

Sob o ponto de vista predicam ental, o hábito pertence à categoria qualidade, da qual
êle é a prim eira das quatro espécies (habitus, potentia, passibiles qualitates,
figura). - Observem os ainda que os hábitos podem encontrar-se em diversas potências
da alm a: apetite sensível, vontade, inteligência. Evidentem ente, aqui nos
interessam os hábitos que têm com o sujeito a inteligência, os hábitos intelectuais.

Aristóteles enum erou cinco dêles, três especulativos, (inteligência, ciência,


sabedoria) e dois práticos (prudência e arte). Estes dois grupos de hábitos
distinguem -se pelo fim intencionado: os hábitos especulativos têm com o fim o puro
conhecim ento, enquanto que os hábitos práticos são ordenados para a ação. Falem os,
de início, dos segundos.

Hábitos práticos. - A prudência se distingue da arte por ter com o m atéria a


atividade im anente ou m oral, os atos hum anos: ela é a regra dêsses atos (recta ratio
agibilium ); a arte é o conhecim ento racional com o regra da atividade exterior ou prática
(recta ratio factibilium ).

Hábitos especulativos. - A inteligência é a percepção im ediata dos princípios.


Com o já o sabem os, ela não é o resultado da ciência, mas se encontra em seu próprio
princípio. A ciência e a sabedoria são igualm ente hábitos que nos dispõem ao
conhecim ento pela causa; porém , enquanto a ciência dem onstra pela causa própria e
im ediata, a sabedoria vai até às causas prim eiras. Tôdas estas distinções são bem
analisadas nêste texto de S. Tom ás (I-II. q. 57, a. 2):

"A virtude intelectual especulativa é a que aperfeiçoa o


intelecto especulativo na consideração do verdadeiro, que
é sua m elhor obra. Ora, o verdadeiro pode ser atingido de
duas m aneiras: ou enquanto conhecido por si próprio, ou
enquanto conhecido por interm édio de um outro. O que é
conhecido por si tem papel de princípio e é percebido
im ediatam ente pela inteligência. É devido a isto que o
hábito que aperfeiçoa a inteligência com relação a tal
percepção é cham ado "inteligência", no sentido de hábito
dos princípios. Quanto ao verdadeiro que é conhecido por
um outro, êle não é im ediatam ente percebido pela
inteligência, m as por um a pesquisa da razão, e tem um papel
de têrm o final. E isto pode-se produzir de duas m aneiras
diferentes: de um a parte, de tal m aneira que êle seja
últim o em seu gênero particular (de conhecimento); de
outra parte, de m aneira que êle seja têrm o últim o de tôdo
o conhecim ento hum ano... Neste últim o caso, tem -se a
"sabedoria" que considera as causas m ais elevadas... Com
relação ao que é o últim o em tal ou tal gênero das coisas
conhecíveis, tem -se a "ciência" que dêsse m odo
96
aperfeiçoa a inteligência."

Vê-se que a Ciência é tom ada, nesta classificação, segundo sua significação
m ais restrita, com o a dem onstração pelas causas inferiores e próxim as; neste
sentido, as m atem áticas e a física são ciências. A sabedoria filosófica superior,
a m etafísica, é tom ada, nêste texto, com o algo à parte, relativam ente à
ciência. Relem brem os que Aristóteles dá m uitas vêzes a êsse têrm o de "ciência"
um a extensão bem m aior, de sorte que a m etafísica, que é tam bém um conhecim ento
pelas causas (pelas causas suprem as), pode reivindicar o qualificativo de ciência.

12 . PR IN CIPIO D A CLASSIFICAÇÃO D AS CIÊN CIAS.

Com o já o dissem os, as ciências para S. Tom ás não se distinguem pela diferença
m aterial dos sêres que estudam , m as segundo o ponto de vista que é visado nesses
sêres. É a tese geral que se exprim e quando se afirm a que as ciências, com o aliás
todos os hábitos, são especificadas por seu objeto form al. Dizendo-o de outra
form a, as ciências são com o organism os intelectuais que podem se relacionar a coisas
m aterialm ente m uito diversas m as tôdas consideradas sob um m esm o aspecto. Ao inverso,
um m esm o objeto m aterial pode ser considerado sob pontos de vista diferentes por ciências
diferentes. O "nariz achatado" do exem plo de Aristóteles é assim , em sua curva,
objeto da geom etria, enquanto que sob o ponto de vista de sua com pleição física, é
objeto da física.

Observe-se que a tradição filosófica, m esm o escolástica, nem sem pre perm aneceu
fiel a êsse princípio. Os m odernos, sob a influência de Wolf, dividiram a
m etafísica em ontologia, ciência do ser, em teodicéia, ciência da alm a, e
cosm ologia, ciência do m undo. É certo que essas distinções não carecem de
fundam ento, m as tendem a substituir, na divisão da filosofia, pontos de vista de
separação m aterial por diferenças form ais de objetos. Ciência e filosofia perdem ,
assim , algum a coisa da forte estrutura racional que haviam recebido na sistem atização
precedente.

Antes de abordar o problem a do fundam ento preciso da distinção das ciências, não
será inútil esclarecer algum as dificuldades que provêm do entrecruzam ento de dois pontos
de vista na doutrina tom ista da ciência.

Considerando a ciência em sua estrutura lógica, discernim os aí três elem entos


constituintes: subjectum (freqüentem ente designado pela expressão genus subjectum ),
passio propria e principium . Em últim a análise, é do princípio, que constitui com o
que o laço lógico do sujeito e do predicado, que provém a especificidade de um a
ciência.

Se nos colocam os na linha do hábito: encontram os diante de nós o objeto, o objeto


m aterial, se se trata da realidade considerada no todo que ela é: o objeto form al quando
se retém o aspecto particular sob o qual a realidade é atingida. Por sua vez, o
objeto form al se subdivide em objeto form al quod (ratio form alis quae attingitur) e
objeto form al quo (ratio form alis sub qua). O objeto form al quod é, no objeto, o
próprio aspecto de ser que é atingido pelo hábito (ens in quantum ens no caso da
m etafísica); o objeto form al quo é, vindo da inteligência, o princípio form al que dá
a um a ciência sua luz própria. Exem plificando, no caso da visão, direm os que o
objeto visto (o m uro, o céu) representa o objeto m aterial desta atividade sensorial;
que a côr é seu objeto form al quod, enquanto que a luz seria seu objeto form al quo. É
97
o objeto form al quo, ou a luz intelectual, que determ ina, aplicando-se sôbre o objeto
m aterial, o objeto form al quod. Êle corresponde m ais ou m enos ao principium do prim eiro
vocabulário. Não se pode estabelecer um paralelism o tão estrito entre os outros
elem entos dos dois conjuntos, poisa passio propria, tanto quanto o subjectum são
m arcados pelo objeto form al quod.

As ciências se distinguem , portanto, pelo seu objeto form al quo; sua diversidade,
dizendo-o de outra form a, procede do espírito e, sob um outro ponto de vista, dos
princípios que êle encerra (cf. II Anal., I, l. 41, n.10 -11).

"[Aristóteles] não busca a razão da diversidade das


ciências na diversidade de seus sujeitos, m as na de seus
princípios. Êle diz, com efeito, que um a ciência difere de
outra por ter outros princípios...

Para se evidenciar isto, convém saber que não é a


diversidade m aterial do objeto que diversifica o hábito, m as
sòm ente sua diversidade form al. Com o, portanto, o objeto
próprio da ciência é "o que pode ser sabido" (scibile),
não se diferenciarão as ciências segundo a diversidade
m aterial das coisas "que podem ser sabidas", m as conform e
sua diversidade form al. Do m esm o m odo que a razão form al do
visível vem da luz, graças à qual percebe-se a côr,
assim a razão form al de "o que pode ser sabido" depende dos
princípios a partir dos quais tem -se a ciência."

A ratio form alis scibilis é tom ada, portanto, a partir dos princípios, de onde
resulta, em definitivo, a diversidade e a especificidade das ciências. Os
princípios, entretanto, não são para S. Tom ás o fundam ento noético último dessa
diversidade. Este se acha na im aterialidade. Portanto, com o se poderá operar a
passagem para êsse nôvo ponto de vista? S. Tom ás no-lo explica no De Trinitate
(q. 5, a. 1)

"Im porta saber que, quando os hábitos ou as potências


são distinguidas segundo seus objetos, êles não o são por
qualquer diferença dêstes objetos, m as segundo aquelas que
concernem a êstes objetos enquanto tais... Resulta disto
que as ciências especulativas devem ser divididas conform e a
diferença dos objetos de especulação considerados enquanto
tais. Ora, em um objeto de especulação, enquanto êle se
relaciona com um a potência especulativa, há algum a coisa
que vem da potência intelectual, e algum a coisa que vem do
hábito pelo qual a inteligência se acha aperfeiçoada. Da
inteligência lhe advém ser im aterial, já que esta
faculdade, ela própria, é im aterial... E, é assim
que, ao objeto de especulação que se relaciona com um a
ciência especulativa lhe é próprio o estar separado da
m atéria e do m ovim ento ou im plicar estas coisas. As
ciências especulativas se distinguem , portanto, segundo seu
grau de afastam ento da m atéria e do m ovim ento."

Vê-se com o S. Tom ás passa do "speculabile" ao "im m ateriale" e acaba assim por
relacionar a diversidade das ciências com os graus de im aterialidade. Um a coisa é
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tanto m ais inteligível, ou inteligente, quanto ela é m ais im aterial; assim o anjo,
m ais elevado que o hom em na ordem da im aterialidade, é tam bém m ais inteligível e mais
inteligente do que êle. Observem os que por im aterialidade não se deve entender
sòm ente aqui precisam ente a ausência da m atéria física, "carentia m ateriae", m as
antes a independência em face das condições que resultam da m atéria, "elevatio super
conditiones m ateriae": form alm ente, é a não potencialidade.

A classificação aristotélica das ciências é dom inada pela fam osa distinção dos
três graus de abstração ou de m aterialidade, distinção que se enraíza no que há de
m ais profundo da vida da inteligência. Ela tem com o efeito distribuir as ciências
(com preendida aí a sabedoria m etafísica) em três grandes classes racionalm ente
distintas: física, m atem ática e metafísica. Esta classificação já era
aproxim ativam ente a de Platão, e pode-se dizer que ela é com um na história do
pensam ento. Todavia, no tom ism o ela tem um a significação m uito precisa que é função
nossa determ inar.

Podem os considerar nosso objeto de conhecim ento segundo três graus de abstração ou de
im aterialidade. A cada um dêsses graus, deixa-se um a certa parte de m atéria de que se
faz abstração e pode-se conservar ainda um a outra parte de m atéria. - Segundo se
considere a parte da m atéria que se deixa ou a que se conserva, ter-se-á duas
m aneiras de caracterizar cada um dos graus de abstração, sendo a segunda denom inada por
S. Tom ás secundum m odum definiendi.

Recordem os aqui algum as precisões de vocabulário. Quando S. Tom ás (I q. 85,


a. 1 ad 2) fala "m ateria signata", "m ateria sensibilis", "m ateria
intelligibilis", que é que se deve entender por essas expressões? A m ateria signata ou
individualis é a m atéria enquanto ela é princípio de individuação (haec caro, haec
ossa). A m atéria sensibilis ou com m unis é a m atéria enquanto ela é princípio das
qualidades sensíveis e do m ovim ento. A m ateria intelligibilis é a m atéria enquanto
ela é sujeito da quantidade e das determ inações da ordem da quantidade.

Isto pôsto, (I. q. 85, a. 1, ad. 2), o prim eiro esfôrço da


inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas independentem ente dos sêres
particulares que atingem nossos sentidos. Obtém -se êste objeto abstraindo-se "a
m ateria signata vel individuali": 1. grau de abstração. - O segundo esfôrço da
inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas independentem ente de suas
qualidades sensíveis e de seus m ovim entos, para reter sòm ente suas determ inações de
ordem quantitativa. Eu abstraio "a m ateria sensibili et m otu": 2. grau de
abstração. - O terceiro esfôrço da inteligência abstrativa consiste em considerar as
coisas independentem ente de tôdas as condições m ateriais. Tem-se, então, o objeto
m etafísico, o qual é totalm ente separado da m atéria: 3. grau de abstração.

Pode-se tam bém caracterizar os graus de abstração segundo a m atéria que resta e
perm anece, portanto, incluída na definição do têrm o m édio (S.Tom ás, Metaf.,
VI, l.I; Com ent. s/ De Trinitate, q. 5, a. 1). O objeto físico é aquêle
que não pode existir, "esse", nem ser definido sem a m atéria sensível; êle
depende dela "secundum esse et rationem ". O objeto m atem ático será definido sem a
m atéria sensível, se bem que não possa existir fora dela; êle depende dela "secundum
esse non secundum rationem ". O objeto m etafísico é definido sem qualquer m atéria;
êle não depende dela "nec secundum esse nec secundum rationem ". Tudo isto está
perfeitam ente caracterizado neste texto do De Trinitate (q. 5, a. 1)

“... há coisas que dependem da m atéria quanto à sua


99
existência e quanto ao conhecim ento que se pode ter delas:
tais são as coisas em cuja definição está im plicada a
m atéria sensível e que, portanto, não podem ser
com preendidas sem essa m atéria; assim , na definição do
hom em , é necessário incluir a carne e os ossos. Destas
coisas trata a Física ou Ciência da natureza. Há outras
coisas que, se bem sejam dependentes da m atéria quanto à
sua existência, não dependem dela quanto ao conhecim ento
que se pode ter a seu respeito, visto que sua definição
não inclui a m atéria sensível; assim se verifica quanto à
linha e o núm ero. Destas coisas trata a Matem ática.
Há, finalm ente, outros objetos de especulação que não
dependem da m atéria em sua existência, porque êles podem
existir sem m atéria: seja porque jam ais estão na m atéria,
com o Deus e o anjo, seja porque em certos casos êles
im plicam m atéria e em outros, não, tais com o a
substância, a qualidade, a potência e o ato, o uno e o
m últiplo, etc. De tôdas essas coisas trata a Teologia,
cham ada Ciência divina devido ao fato de que o m ais
im portante de seus objetos é Deus. Denom ina-se,
tam bém , Metafísica..."

Depois de Caietano (De Ente et Essentia, Proem ium ) e de J oão de S. Tom ás


(Curs. Phil. Log., II.a p.a, q. 27, a. 1) num erosos intérpretes m odernos
consideram que a abstração sôbre a qual se fundam enta objetivam ente a diversidade das
ciências não deve ser entendida com o abstração total, quer dizer, abstração lógica
de um predicável com relação a seus inferiores, m as com o abstração form al, a qual
distingue as razões form ais dos aspectos m ateriais. As noções abstratas nas ciências
têm valor de universal com relação aos têrm os dos quais elas procedem , m as é por sua
razão form al objetiva e não por sua universalidade que elas são constituídas em tal ou
tal grau do saber.

Restar-nos-ia m ostrar que essa teoria dos graus de abstração, que à prim eira vista
se apresenta com o um m ecanism o m ental de certa rigidez, corresponde em S. Tom ás a um a
atividade de espírito m uito m ais diversificada. Na realidade, o processo de form ação
do objeto em cada grau de abstração corresponde a um a atividade m uito original; isto é
verdade sobretudo no nível m etafísico, onde S. Tom ás, em seu Com entário sôbre o
De Trinitate de Boécio (q. 5, a. 3), substitui o têrm o de abstração,
reservado aos graus inferiores do saber, pelo de separação. Voltarem os, no m om ento
oportuno, a essas im portantes discrim inações.

A cada um dêsses graus corresponde um a das três grandes partes da filosofia: a


física, a m atem ática e a m etafísica. Mas no interior ou nos intervalos dêstes três
grandes estágios do saber, podem os distinguir planos interm ediários de
inteligibilidade.

No interior de cada grau, inicialm ente, poder-se-á distinguir m odalidades m ais ou


m enos abstratas; isso é constatável sobretudo no 2. grau, no qual S. Tom ás
discernia já um plano geom étrico m enos abstrato e um plano aritm ético m ais abstrato.
Hoje, seria sem dúvida necessário superpor-lhe um plano algébrico.

Pode-se ainda variar a inteligibilidade das ciências constituindo espécies de


100
interm ediários entre os graus de abstração, o que S. Tom ás, em seguida a
Aristóteles, cham ou de scientice m edite. Consegue-se isso ilum inando o sujeito de um a
ciência de grau inferior com os princípios tom ados de um grau superior de abstração
(subalternação). Os antigos propunham os exem plos da perspectiva ou ótica, da m úsica e
da astronom ia. Hoje seria necessário incluir nessa categoria todo o conjunto
com preendido sob o nom e de física m atem ática. As ciências interm ediárias são,
graças a princípios tirados de um a ordem m ais elevada, m ais inteligíveis que as
ciências que se acham ao nível de seu próprio sujeito. Entretanto, observa S.
Tom ás, elas são ciências de grau inferior, "dicuntur esse m agis naturales quam
m athem aticae", e isso porque a especificação se faz essencialm ente pelo têrm o e, o
têrm o dessas ciências interm ediárias se acha no grau inferior.

Será necessário acrescentar que um vez constituídos os diversos planos de


inteligibilidade ou os graus do saber, poder-se-ão distinguir as ciências
particulares, em cada grau, pela divisão do seu sujeito. A ciência das plantas
será, assim , um a subdivisão da física. Tais ciências particulares são cham adas
subalternadas em razão de seu sujeito.

Metafísica e Matem ática estão em um grau de inteligibilidade suficientem ente elevado


para que se possa organizá-las sem m uita dificuldade; não se dá o m esm o com relação
às ciências da natureza que, perm anecendo m ais engajadas na m atéria, fazem surgir
questões m uito m ais com plicadas. Por isso, irem os exam iná-las à parte.

Existe um a ciência física dem onstrativa, que procede a partir das definições e dos
princípios das essências naturais, e que procura explicar as propriedades dessas
essências. Foi o que os antigos com preenderam quando tentaram constituir um a ciência
explicativa dos fenôm enos da natureza, a Philosophia naturalis. Infelizm ente,
entretanto, não conhecem os senão de m aneira m uito im perfeita essas essências naturais
que deveriam servir de ponto de partida para nossas dem onstrações. O que faz com que
essa ciência dedutiva da natureza não chegue, o m ais freqüentemente, na realidade,
senão a generalidades ou a conclusões hipotéticas: os fenôm enos observados
perm anecerão, em sua m aior parte, fora de sua apreciação.

Deverem os por isso renunciar com pletam ente ao conhecim ento racional dêsses fenôm enos?
Não, porque em um nível inferior podem -se constituir, e, de fato, se constituíram ,
ciências particulares que se aplicam ao detalhe dos fenôm enos. O que é necessário
observar bem , é que de um a parte essas ciências não estão em continuidade perfeita
com a philosophia naturalis, e que, por outra parte, elas não podem nos dar senão um
conhecim ento aproxim ado e relativo da essência das coisas, que perm anece sem pre velada.
As conclusões da física m oderna não são, em grande parte senão sinais m ais ou m enos
denunciadores da verdadeira natureza das coisas.

Levando-se em conta tôdas as observações precedentes, é-nos possível estabelecer


o seguinte esquem a que resum e a classificação das ciências teoréticas, segundo a
filosofia de S. Tom ás

3o. grau de im aterialidade: Metafísica

2o. grau de im aterialidade: Matemática, Física


m atem ática

1o. grau de im aterialidade: Filosofia da natureza,


Ciências da natureza
101
102
XI

TÓPICOS - SOFISMAS - RETÓRICA

1. OS TÓPICOS.

Agruparem os em um últim o capítulo algum as reflexões sôbre os últim os livros da


lógica de Aristóteles, inclusive a Retórica.

Os livros dos Tópicos, que se julga terem sido com postos antes dos Analíticos,
com preendem duas partes principais: os Livros I e VII, 3 a VIII, constituindo
um a introdução e um a conclusão e o bloco central dos livros II a VII, 3.

O objeto do Tratado dos Tópicos é

“Encontrar um m étodo que nos possibilite raciocinar sôbre


qualquer problem a que poderia nos ser proposto, partindo de
prem issas prováveis e, no decorrer da discussão, evitar
contradizer-nos a nós próprios".

Tóp., I, c. 1,
10 0 a 18

Neste têxto inicial, Aristóteles nos dá a nota que caracteriza o raciocínio


dialético e o distingue do raciocínio dem onstrativo. O raciocínio dem onstrativo parte
de prem issas necessárias e conduzem a um a conclusão científica necessária; o
raciocínio dialético parte do provável para chegar a um a conclusão igualm ente
provável. Por provável, Aristóteles entende "o que parece ser, seja a todos os
hom ens, seja à m aioria, seja ao sábio". (I. C. 1, 10 0 b 21). O
provável é definido então, por um critério externo, pelo sinal que perm ite
reconhecê-lo: o testem unho. Notem os que para Aristóteles, se bem que o provável não
seja a verdade m esm a, reconhecida im ediatam ente ou cientificamente, deve ser tom ado
favoràvelm ente: é o que se assem elha à verdade, o verossím il. A dem onstração
dialética difere, portanto, da dem onstração científica por sua m atéria, m as é
preciso observar que am bas utilizam as m esm as form as lógicas: a indução e o
silogism o.

No c. 2 dos Tópicos, Aristóteles precisa que a prática da dialética pode ter um a


tríplice utilidade: é um exercício do pensam ento, - perm ite-nos discutir com quem
quer que seja partindo de suas próprias opiniões, - e finalm ente é do interêsse da
ciência: pois se, de um lado, estam os em condições de discutir o pró e o contra, de
um a determ inada questão, bem m ais fàcilm ente estarem os aptos a distinguir o verdadeiro
e o falso. Por outro lado, poderem os nos encam inhar na direção dos princípios
indem onstráveis das ciências. De fato, Aristóteles quase não explicou a m aneira
pela qual seria possível utilizar assim a dialética para subir aos princípios das
ciências. Em S. Tom ás entretanto, podem os encontrar os delineam entos de um a lógica
inventiva já nitidam ente m elhor constituída.

O problem a geral da dialética consiste em investigar, por m eio de prem issas


prováveis, se determ inada conclusão pode' ser aceita, quer dizer, se um certo
predicado pertence a um determ inado sujeito. Para Aristóteles, êsse problem a se
103
subdivide em quatro problem as m ais particulares, segundo o predicado pertença ao sujeito
com o gênero, com o definição, com o próprio ou com o acidente. Perguntar-se-á,
por exem plo, se o hom em é anim al (problem a do gênero), se êle tem a capacidade de
rir (problem a da propriedade), se êle é branco (problem a do acidente); cada um a
dessas questões devendo ser resolvida, não por argum entos científicos, m as por
argum entos prováveis ou a partir de princípios com um ente aceitos. Para resolver cada
um dêsses problem as, recorrer-se-á ao que Aristóteles cham ou de topoi, lugares
dialéticos.

Os lugares dialéticos são conjuntos de proposições prováveis prontos a entrar com o


prem issas nos silogism os dialéticos e que se acham classificados sob as quatro divisões
das grandes questões dialéticas. Quer dizer que quando se levanta um a questão que
entra em um a destas categorias (por exem plo: tal qualidade é propriedade de tal
sujeito?), encontra-se um a provisão de proposições que perm itirão resolvê-la. A
enum eração dêstes lugares dialéticos ocupa todo o corpo da obra: lugares do acidente
(II e III), lugares do gênero (IV), lugares da propriedade (V), lugar da
definição (VI, VII, 3).

Os lugares dialéticos são, portanto, prem issas, m ais especialm ente, m aiores
presuntivas. Citem os, a título de exem plo, os prim eiros lugares do gênero: "Se um
gênero, pretendido com o tal, não pode ser atribuído a um a espécie ou a um indivíduo
dessa m esm a espécie, êle, na realidade, não é um gênero". - "O atributo que
não convém essencialm ente a todos os sujeitos aos quais êle pode ser atribuído, não
poderia ser seu gênero". - "O predicado ao qual convém a definição de um acidente
não é o gênero do sujeito dêsse acidente."

Não entrarem os em m aiores detalhes sôbre os Tópicos de Aristóteles (ver a êste


respeito A. Gardeil, La Notion du lieu théologique). Êles são um a tentativa de
constituição de um m étodo de discussão absolutam ente universal. Enquanto as ciências
são circunscritas por seus objetos específicos, a dialética trata de tudo e a partir de
princípios com uns adm itidos por todos ou por m uitos. Aristóteles cedia aqui ao gôsto,
da discussão, tão comum entre os Gregos, m as ao m esm o tem po, visava a louvável m eta
de tornar essas discussões tão fecundas quando possível para a defesa e procura da
verdade. Repitam os que, em S. Tom ás, a dialética assum e de m aneira m ais firm e do
que em Aristóteles a estatura de um a disciplina de pesquisa. (Cf. J . ISAAC,
La notion de dialectique chez sain t Thom as, na Rev. des Sc. Ph. et Th.,
1950 , pp. 481-50 6).

2 . R EFU TAÇÕES SOFISTICAS.

Os Sophistici elenchi não são senão um apêndice do livro dos Tópicos. Êles se
situam , com o esta últim a obra, naquela curiosa atm osfera dialética tão a gôsto do
pensam ento grego e da qual Platão nos deixou um a evocação tão viva. As
"Refutações sofísticas" são os falsos raciocínios que os sofistas im aginavam para
confundir seus adversários. Por extensão, elas podem significar todos os falsos
raciocínios. De m aneira geral, cham ar-se-á sofism a a um falso raciocínio que se
fizer com a intenção de enganar. Quando o falso raciocínio é pôsto de boa fé,
será cham ado um paralogism o. Aristóteles distingue duas espécies de sofism as: os que
provêm da linguagem (fallacia in dictione) e os que não provêm dela (fallacia extra
dictionem ).

Fallacia in dictione. - Aristóteles enum era seis espécies de sofism as verbais: o


104
equívoco, a anfibologia, a com posição, a divisão, o êrro de acento e os êrros
provenientes de analogias na form a da linguagem . - O equívoco e a anfibologia para
não falar senão destas duas form as de sofism as verbais m ais com uns, são am bigüidades
tendo com o objeto, a prim eira um a sim ples palavra, a segunda um a frase. Exem plo de
equívoco: canis, o cão e a constelação.

Fallacia extra dictionem . - Aristóteles conta sete delas: o acidente, "a dicto
secundum quid ad dictum sim pliciter", a "ignoratio elenchi", a petição de
princípio, a conseqüente, a "non causa pro causae", a pluralidade das questões. A
"ignoratio elenchi" consiste em não provar o que se devia provar, ou, o que dá no
m esm o, em ignorar a verdadeira questão que se deveria resolver. Na "petição de
princípio", tenta-se provar tom ando-se com o princípio justam ente aquilo que estava em
questão.

3 . A R ETÓR ICA.

Pode-se relacionar a Retórica com o conjunto dos escritos lógicos do Organon. O


próprio Aristóteles nos orienta nesse sentido, ligando-a a várias considerações da
dialética. Am bas as disciplinas têm com o objeto ensinar-nos a discutir sôbre todos os
assuntos, usando sòm ente argum entos e princípios com um ente aceitos.

A finalidade, os m eios e as divisões gerais da Retórica estão indicados nos três


prim eiros capítulos do 1. I. - A Retórica é a arte de persuadir ou, m ais
precisam ente, "a faculdade de ver tôdas as m aneiras possíveis de persuadir as pessoas
sôbre qualquer assunto". - Os m eios pròpriam ente oratórios de persuadir são de
três espécies. Os prim eiros se relacionam com o caráter do orador: êste deve falar
com sucesso, inspirar confiança. Os segundos consistem em fazer nascer um a em oção no
ouvinte. Finalm ente, os últim os, que são tècnicam ente os m ais im portantes,
com preendem as provas ou argum entos, pela fôrça dos quais defende-se a verdade da tese
que se sustenta. Esses argum entos são de duas espécies: o entim em a que é, com o já
o sabem os, um silogism o truncado; e o exemplo, tipo oratório da indução. -
Aristóteles distingue, em seguida, três ram os da Retórica correspondendo a três
espécies diferentes de discursos. O ouvinte pode ser ou espectador ou juiz, e isto,
seja das coisas passadas seja das coisas futuras. A eloqüência do que é conselheiro
nas coisas futuras liga-se ao gênero deliberativo que tem com o objeto o útil ou o
prejudicial. Os discursos relativos ao passado pertencem ao gênero judiciário e tratam
do justo e do injusto. Aquêles que reprovam e os que louvam (gênero epidítico) se
ocupam do belo e do honesto.

A seqüência da obra de Aristóteles com preende quatro peças principais que não
parecem , aliás, perfeitam ente ordenadas. Inicialm ente, um estudo especial dos três
gêneros reconhecidos de discursos (I). Depois, um estudo das paixões e das
disposições das diversas categorias de ouvintes (II, 1-18). O final do livro
II trata dos lugares com uns na arte oratória. Finalm ente, o livro III, que form a
um conjunto à parte, trata do estilo e da com posição.
105
XII

CON CLU SÃO

1. VALOR E IM POR TÂN CIA D A LÓGICA AR ISTOTÉLICA.

O ideal lógico de Aristóteles foi o de constituir um a teoria da ciência e, por


isso, um a rigorosa teoria da dem onstração. Segue-se daí, que a parte essencial do
Organon é form ada pelos Segundos Analíticos. Os livros precedentes, Categorias,
Periherm eneias e m esm o os Prim eiros Analíticos, não são, de algum a form a, senão
um a preparação. Os Tópicos, e a Refutação dos sofism as representam um conjunto
com plem entar.

Voltem os aos Analíticos. Os Prim eiros estabelecem as regras do raciocínio correto;


os Segundos são dirigidos pela própria definição da dem onstração científica e da
ciência: "dem onstratio est syllogism us faciens scire - scire est cognoscere per
causas". A dem onstração, portanto, depende do conhecim ento das causas e dos
princípios sendo que êstes não podem ser dem onstrados; pelo m enos pode-se recorrer aos
últim os princípios que não são adquiridos por ciência.

É necessário, portanto, que um outro processo lógico nos coloque na posse dêsses
princípios. De m aneira geral, êste será a indução. Com o a dem onstração supõe o
conhecim ento do têrm o m édio, pode-se tam bém dizer que a definição dêsse têrm o
m édio é princípio e que, em conseqüência, os m étodos da definição são tam bém
preparatórios para a dem onstração. Em definitivo, no conjunto da lógica
aristotélica, indução e definição, ao m esm o tem po que conduzem a resultados que têm
valor em si m esm os, aparecem tam bém com o prelim inares da dem onstração científica.

Será entretanto, perm itido afirm ar que tôda a lógica aristotélica resum e-se na
teoria da dem onstração científica? Isso seria esquecer todo aquêle com plexo de
processos m enos rigorosos do espírito que encontram os nos Tópicos. Em um a m ultidão
de casos, m uitas vêzes tem os de contentar-nos com raciocinar sôbre o provável. Por
outro lado, a parte efetivam ente m ais considerável da vida da inteligência será sem pre
constituída por essa atividade de pesquisas e de invenção que, ela tam bém , se vê
com preendida, no peripatetism o, sob o título geral de dialética. S. Tom ás teve
consciência disso, e um estudo atento dos processos m etódicos que ele preconizou e
utilizou nessa ordem de coisas conduz-nos certam ente a resultados novos e interessantes.

Devem os acrescentar que um outro enriquecim ento da lógica demonstrativa aristotélica


nos é trazido por S. Tom ás, com a doutrina am pliada e sistem atizada que ele propõe
da analogia. A m etafísica e o estudo de Deus em particular, em pregam processos
m etódicos que, sem fugir das regras lógicas gerais, lhes são próprios. Ao teólogo
cabe êsse estudo.

Que pensar, finalm ente, dentro das perspectivas da lógica clássica em que nos
colocam os, de todos êsses sistem as novos, de inspiração m atem ática, que atualm ente
m onopolizam a atenção? Dois caracteres originais são com uns a esses sistem as: por um
lado, predom inância da relação sôbre o term o, e resolução da "com preensão" na
"extensão"; por outro lado, em prêgo incessante e generalizado de algorítm os abstratos
que constituem a m atéria do discurso.
106
Esta m atem atização da lógica oferece vantagens evidentes. Valoriza plenam ente a
relação com o tal, fornece sobretudo, um precioso instrum ento, tanto para o contrôle
rápido da exatidão de um enunciado, quanto para a análise crítica dos fundam entos da
lógica. Mas tal transform ação apresenta, em contraposição, graves inconvenientes,
não certam ente de direito, porém , porque, de fato, a m aioria dos lógicos m odernos
fazem dos algorítm os abstratos a parte essencial da lógica, esquecendo-se de que êles
não podem ter senão um papel subordinado! É a ruptura e do "lógico" com o
"m etafísico" que é de fato, repitam o- lo,a causa de um a oposição entre a lógica
clássica e a lógica m oderna. O conflito atinge o clím ax m áxim o quando se chega à
logística a qual elabora, com o se sabe, os algorítm os abstratos de que Boole foi o
iniciador. A logística, da m esm a form a que as m atem áticas, faz corresponder sím bolos
às realidades, à espécie os term os e as proposições. Daí a substituir o universo
do discurso, pelo qual apreendem os a realidade, pelo universo dos sím bolos, não falta
senão um passo, e êsse passo m uito freqüentem ente é dado.

Não são, portanto, senão as usurpações e as pretensões ilegítim as dêsses novos


m étodos que se devem contestar. A logística tem seu lugar com o instrum ento crítico,
m as a lógica do conceito e da atribuição conserva tam bém o seu, que é o
fundam ental. Resta que em tudo isso não se pode prescindir de um a m etafísica, sendo
que em qualquer hipótese ela perm anece a reguladora suprem a das dem ais ciências.

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