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Leo Strauss e o embate entre Atenas e Jerusalém

Uma das teses mais notórias de Leo Strauss é a afirmação da existência de uma tensão radical
entre a atitude teórica, cuja raiz em nossa cultura se encontraria na filosofia grega, e a atitude
religiosa, cuja raiz se encontraria na fé hebraica. De acordo com essa perspectiva, filosofia e
religião postulam modos distintos e aparentemente incompatíveis de acesso à verdade. Essa
incompatibilidade, por sua vez, é responsável por instaurar a tensão entre elas, o que se
observa, na história do mundo, a propósito das civilizações duplamente marcadas pelo
monoteísmo abraâmico e pela recepção da herança grega. Nossa cultura seria um caso
paradigmático de uma tal civilização. Tendo sido formada, desde a sua origem, pela reunião
do pensamento greco-latino e da religião cristã, a cultura ocidental teria no desequilíbrio
dinâmico produzido por essa tensão originária um dos fatores fundamentais do seu
desenvolvimento histórico particular.

A tese de Strauss guarda importantes implicações para a compreensão da cultura ocidental, e


ele as extrai ao longo de diversos trabalhos. Uma dessas implicações é dada pela
interpretação do significado da crítica iluminista à religião, notadamente no aspecto da crítica
ao milagre. Como se sabe, a crítica iluminista ao milagre, operada nos séculos XVII e XVIII
por filósofos como Espinosa, Lessing e Hume, corrobora um programa de esclarecimento
filosófico inspirado na recuperação do pensamento clássico. O historiador Peter Gay
demonstra, com farto recurso às fontes, que os filósofos iluministas se viam na condição de
continuadores da liberdade de pensamento da Antiguidade, perdida, para eles, com o advento
da superstição religiosa. Nos mais variados aspectos do projeto das Luzes, – ético, estético,
religioso ou científico – a influência greco-latina amiúde se faz sentir. A redescoberta da
atitude romana de desapego aos deuses tradicionais, um dos componentes dessa liberdade
intelectual, é o combustível para o movimento de afastamento radical da esfera de sentido da
religião tradicional cristã. Essa atitude desapegada, às vezes cínica, às vezes apenas
sobranceira, foi concebida em termos da aceitação esclarecida dos imperativos cognitivos e
éticos que a filosofia enquanto tal solicita à obediência, e era exemplificada no mundo antigo
por epicuristas, estóicos e ecléticos1. Os deuses não nos afetam, as descrições contidas na
narrativa tradicional dos olímpicos são alegóricas; os deuses são imorais, não são supremos –
múltiplos modos da idêntica atitude de distanciamento logocêntrico do mito presente no
mundo antigo fraturado.

A consequência prática do programa neopagão iluminista foi a vitória da crítica filosófica


sobre a ortodoxia religiosa, que desde então tem sido empurrada para a posição defensiva de
ter de sustentar seu apelo contra a florescente cultura racionalista. Na interpretação de
Strauss, a eficácia de tal programa dependeu, sobretudo, da firme rejeição de dois aspectos do
pensamento religioso: a crença no caráter miraculoso de alguns eventos narrados pela Bíblia
e a crença na inspiração divina do texto revelado. Considerando que a inspiração divina é
exemplo de qualidade sobrenatural, que vincula o texto à sua fonte autoral, Strauss resume as
duas rejeições a uma mesma, isto é, a rejeição do milagre. Despojada do halo do mistério que

1
GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. NY: Norton Library, 1995
o milagre lhe confere, a religião irá se transformar em muitas coisas nas mãos dos
iluministas, entre as quais uma ética do sentimento religioso, uma etapa na evolução histórica
da razão, um empecilho à cosmovisão secular plena, uma máscara ritualística para ambições
da casta sacerdotal. Quando a querela entre Atenas e Jerusalém estava viva, essas distintas
apropriações e transformações do significado da religião provocavam reações tremendamente
vigorosas – verdadeiro embate mortífero entre iluministas e contrailuministas2. Entretanto,
com a hegemonização da crítica filosófica em tempos posteriores, o caráter radical da tensão
foi obscurecido. Cumpre, portanto, realçá-lo, a fim de mostrar a função do milagre nessa
disputa.

A disputa entre Logos e Revelação é simbolizada nos textos de Strauss pelo embate das
cidades de Atenas e Jerusalém. Atenas é a cidade da filosofia, da zetesis, da investigação do
Ser. Jerusalém é a cidade sagrada da fé hebraica, tronco comum do cristianismo e do
islamismo. Entre as duas imponentes cidades abre-se a trilha acidentada das tentativas de
síntese. No mundo cristão, essa tentativa já surge com as primeiras polêmicas da apologética
que, grosso modo, dividem a ecúmene dos fiéis entre os partidários de um compromisso com
a sabedoria grega e os que rejeitam tal compromisso. Estes últimos têm em Tertuliano um
clássico exemplar. Para Tertuliano, a filosofia era apenas vã e perniciosa curiosidade humana,
dispensável na trilha do único genuíno propósito da vida cristã, a salvação3. Nos antípodas do
retórico romano, padres como Orígenes e Clemente, Basílio e Gregório de Nissa buscarão
esvaziar a controvérsia ao apresentar o cristianismo como única filosofia verdadeira.
Segundo eles, os pagãos teriam visto um vislumbre, ainda que imperfeito, da sabedoria, mas
este fora ultrapassado pela manifestação integral do Logos na vida, paixão e transfiguração de
Jesus Cristo. Em termos alegóricos, a estratégia de Tertuliano é destruir Atenas, a dos
teólogos alexandrinos e capadócios é se apossar das estátuas de Atenas; Jerusalém deve
abarcar as glórias de Atenas dentro dos seus muros. Mas há outros modos de enfocar a
questão sem destruir ou assaltar uma das cidades. Tomás de Aquino prescreve a Atenas e a
Jerusalém dois territórios nitidamente distintos, mas garante, por assim dizer, sua
compatibilidade geográfica ao tentar demonstrar que as verdades obtidas pela razão não
contradizem as verdades da fé, embora haja verdades da fé que não podem ser conhecidas
exclusivamente por meio da razão.

Estes movimentos de síntese ou de rejeição, dos quais se poderia oferecer inúmeros outros
exemplos na história do cristianismo, configuram-se diferentes maneiras de acomodar uma
mesma tensão originária, cujo núcleo se encontraria na incompatibilidade aparente entre
duas atitudes perante o conhecimento, o cosmos, o lugar do homem4. Para visualizar os

2
Deve-se a Isaiah Berlin a popularização do termo e a subsequente discussão acerca dele. Acredito que o termo
seja uma boa etiqueta para descrever certo movimento de resistência conservadora e religiosa ao iluminismo.
3
PELIKAN, Jaroslav. The Christian Tradition: The Emergence of the Catholic Tradition (100-600), Chicago,
1971
4
Assim, Strauss busca recuperar o que implicou essa incompatibilidade em diversos autores medievais e
modernos. Nesta linha, ele termina desenvolvendo sua famosa tese do ensinamento filosófico esotérico, segundo
a qual certos pensadores ao longo dos tempos mascaram suas verdadeiras idéias com o intuito de passarem
incólumes à perseguição social vigente. Pode-se considerar este esforço de interpretação esotérica dos grandes
autores como a essência da própria filosofia de Leo Strauss, boa parte dela constituída à maneira de um
motivos dessa tensão, iremos reconstruir com liberdade as implicações históricas contidas na
disparidade das atitudes filosófica e religiosa, descritas na famosa conferência proferida por
Leo Strauss em 1967, intitulada Jerusalém e Atenas.

Atenas, a cidade da filosofia, funda a sua pretensão de verdade no exercício da teoria, na


contemplação da natureza imutável das coisas. O homem cujo destino é o símbolo desta
atitude é Sócrates. Sócrates se depara com um mistério na estranha resposta do Oráculo de
Delfos, quando o oráculo lhe diz ser ele o homem mais sábio da Grécia. Ele, que nada sabe,
se dedica a investigar o que sabem os seus compatriotas, mas o meio escolhido para isso, fato
significativo da natureza da filosofia, é o diálogo. O diálogo socrático é uma investigação,
uma conversa, por assim dizer, falada através do logos com o propósito de descobrir a
verdade. A partir do diálogo não se desejaria impelir ou extasiar, mas se conhecer o que é; o
horizonte grego é o problema do Ser. Não existe atividade mais excelente que esse diálogo,
pois nenhuma outra pode dar o que é, e não podemos nos guiar para a vida excelente sem
saber o que ela é e como alcançá-la; a filosofia promete oferecer ambas as coisas. Assim, ela
só pode ser a mais excelente das formas de vida pois, não sendo deuses os homens, eles não
possuem a sabedoria como seu atributo próprio, mas o melhor que fazem e o que necessitam
é buscá-la. Há, portanto, instalado na própria forma desta zetesis permanente uma dupla
pretensão e uma dupla doçura: a de ansiar por conhecer a verdade e a de se propor como a
vida melhor. O filósofo não infere a sua autoridade de uma relação com o que se revela fora
do seu logos, nem faz da experiência da sua eudaimonia a dádiva dos deuses. Ele não
ausculta os mistérios. Ele não deixa sua mente imergir a fim de extrair uma intuição para a
qual lhe é impossível mostrar pelo dizer. Ele não se ilumina pela Revelação, mas tem a
experiência cósmico-lógica do Todo5. Como Sócrates, o filósofo pode reconhecer que sua
sabedoria é meramente humana, mas persistir no caminho porque a sabedoria humana é a
única que possui, a única que ele experimentou. Por isso, lhe é natural não aceitar uma
suposta verdade que não decorra do próprio movimento do logos. Se esta suposta verdade
não decorre da filosofia, do seu jogo de demonstração dialética, sob quais condições ele
deveria aceitá-la? Mais ainda: ele pode aceitá-la enquanto filósofo?

Em Jerusalém, as coisas se passam de forma diferente. A religião funda sua pretensão de


verdade na convocação feita aos homens por um Deus vivo. Ela não incita à investigação
teórica do Ser, já que a noção metafísica de Ser nem sequer existe na mentalidade hebraica. A
religião compele o homem a que receba uma revelação vinda do alto, daquele que diz Eu
serei o que serei e a atitude para recebê-la não é a curiosidade, mas uma humildade cheia de
confiança. Os pátios de Jerusalém são recolhidos: todo homem pode vir a se tornar filósofo,
como nos ensina o exemplo do escravo no Menon, mas o mais ardoroso fiel comum não se
torna um profeta. O conhecimento profético não pode ser alcançado por meio de nenhuma
forma de reflexão racional, tampouco pode ser transmitido. Ele é a fala do Deus vivo
transparente no coração. A Revelação, que lhe é dada diretamente por Deus, é logos entre
Deus e o profeta. A Revelação é um relato do que foi inspirado pela boca de Deus; é

comentário cuidadoso do pensamento clássico, a que mais de um estudioso de sua obra comparou à leitura do
Talmude na atenção obsessiva às minúcias e ao segredo criptografado nas entrelinhas do texto
5
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, São Paulo: É Realizações, 2014
comunicada sob a forma de injunção, visando concitar os homens à obediência de certas leis
e princípios. Os Profetas não investigam o que é, não perscrutam a natureza. Eles a alteram,
graças à onipotência de Deus. Eles realizam milagres como instrumentos do Deus vivo. No
milagre, os fiéis atestam a sua fé, mas os prodígios não a criam. A relação entre fé e milagre
não é a de uma causa; o milagre não causa a fé, nem a fé causa o milagre, mas eles se
interpenetram mutuamente. Jerusalém é incompreensível sem o milagre. A criação do mundo
foi um milagre de Deus. A Revelação é um milagre do Seu discurso. E os Profetas justificam
sua ação por meio dos milagres. As curas realizadas por Cristo Jesus, a ascensão de Elias aos
céus, a ressurreição dos corpos no Dia do Juízo, a lua fendida pelo Profeta Muhammad,
Abraão que entra no fogo e o fogo se transforma em rosas. Os relatos sagrados tornam-se
superfícies opacas sem os milagres.

É sabido que os filósofos antigos não se detiveram reverentes perante a religião dos seus
costumes ancestrais. Dois exemplos são suficientes para ilustrar esse ponto. Há na República
de Platão a famosa polêmica contra a autoridade de Homero, fonte da piedade religiosa grega.
No pré-socrático Xenófanes encontra-se o primeiro exemplo de teologia monista, sustentada
pelo argumento, derrisório para a narrativa mítica, contra a antropomorfização dos deuses.
Tratam-se de dois exemplos do perigo que Atenas representa para o mitologema, mas na
Grécia não havia Jerusalém e Atenas pôde ser aliciada contra Delfos. O que era
contemporâneo ao declínio da religião grega tornou-se, na mão dos polemistas cristãos no
mundo clássico dos primeiros séculos, verdadeiro arsenal para a completa aniquilação dessa
religião sob os golpes do monoteísmo trinitário. Isto porque padres gregos e latinos
encontraram vasto banquete de argumentos contra os deuses pagãos nos escritos dos
filósofos, banquete do qual eles se serviram abundantemente em favor da causa do Cristo
encarnado. Os mais afeiçoados à filosofia, dentre estes padres ambiciosos, enxergaram nesse
manancial de argumentos o sinal auspicioso de que os antigos haviam entrevisto, por meio de
certas luzes da razão natural, a verdade que só apareceria depois, e plenamente, na revelação
de Cristo.

A convergência aparente dos princípios da moral religiosa cristã com as virtudes nobres da
filosofia clássica reforçava o sinal. Na visão dos Santos Padres, o ataque platônico contra
Homero fora realizado em nome de uma moral que se aproximava da moral cristã. Também,
de acordo com eles, os estóicos pensaram a sua ética racional tateando na senda que os
cristãos viam com clareza translúcida. Sêneca havia pressentido a chegada da boa nova do
Evangelho. Cícero não era senão um virtuoso romano às portas da conversão religiosa.
Mesmo o imperador Marco Aurélio, perseguidor do cristianismo, recebera o escrito
apologético Súplica pelos cristãos de Atenágoras6, no qual se tentava mostrar os pontos em
comum entre a filosofia e o cristianismo. Em suma, os exemplos de predecessores pagãos, tão
convenientemente enfileirados, multiplicam-se. Construía-se o caminho para a exaltação dos
filósofos gregos e romanos, pavimentado pela conhecida propensão da mente medieval, e da
mente tradicional em geral, de conceber simbolizações e alegorias com as quais se deslocam
os significados historicamente concretos de personagens e eventos do passado. Alimentando

6
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001
essa propensão, o mundo cristão tradicional contemplou a transformação de Platão em
teólogo, de Ovídio em moralista, e de Virgílio em santo profeta da vinda de Jesus. A forma da
síntese cristã, que permitiu essas assimilações extravagantes, necessariamente repousava na
transparência social de outras simbolizações e alegorias, além das que faziam retirar os
elementos históricos do seu significado concreto no tempo. Abalado o valor dessas demais
simbolizações, tudo se rompe e a alegorização hermenêutica assume a roupagem de simples
engodo, do elemento impuro já presente, mas que a forma superior da síntese medieval
destilava. Portanto, quando essa forma superior estremece, pelo processo gradual que leva à
opacidade das demais simbolizações, a interpretação piedosa dos filósofos pelos padres perde
a sua autoridade intelectual, o que abre as alas para novas apropriações deste perigoso legado.
Assim foi o caminho no mundo cristão ocidental até o primeiro impasse constitutivo das
cidades.

Mas Atenas e Jerusalém não significavam o mesmo para seus herdeiros islâmicos e cristãos.
É o que aprendemos em Rémi Brague. Como este notável historiador demonstra, havia um
fundo de verdade na acusação que Schlegel fazia aos árabes de serem extremamente cultos,
porém bárbaros7. A acusação do literato alemão era a seguinte: os árabes, apesar de terem
dado contribuições notáveis ao desenvolvimento de muitas ciências, eram bárbaros porque
destruíram o legado da cultura antiga. Brague corrige Schlegel quanto a materialidade dessa
destruição. Os árabes não queimaram os manuscritos gregos que possuíam em suas
bibliotecas. Não houve, por parte das sociedades islâmicas após o século XIV, um ódio
intencionalmente dirigido para destruir os registros da cultura clássica, mas outro fenômeno
social, mais inusitado: a certa altura no longo curso da assimilação cultural das ciências
antigas, cessou o processo de tradução dos originais. Os manuscritos, quando se perdem no
mundo islâmico, simplesmente se perdem por indiferença. Há raízes profundas para essa
atitude.

De acordo com Brague, o comportamento dos homens cultos do mundo muçulmano era de
indiferença perante um legado já absorvido no seu essencial. Esse comportamento decorria da
sensação de que aquilo que fora útil à civilização islâmica já havia sido aprendido. Assim, os
muçulmanos simplesmente não se importavam mais com os manuscritos gregos após um
certo estágio de aprendizado, a partir do qual eles achassem que poderiam prosseguir suas
investigações adiante. Fruto de uma civilização profundamente assimilacionista,
orgulhosamente confiante de que se encontrava no centro do mundo, o senso de utilidade
diante dos clássicos era dominado pelo ímpeto de unificar tudo à sua própria forma histórica.
Uma tal civilização, uma vez que integre a cultura estrangeira à sua unicidade interna, a
tornará dispensável enquanto tal. O caminho da cultura medieval cristã é diferente. Os
cristãos jamais dispensaram ou absorveram completamente a herança greco-latina. Por conta
disso, eles tiveram de conviver permanentemente com os autores clássicos, o que é atestado
na sempre inacabada tradição de comentários a Aristóteles que perpassou toda a Idade Média
latina. Duas imagens tornam visível a diferença, concernente à relação com o patrimônio

7
BRAGUE, Rémi. Mediante a Idade Média: Filosofias Medievais na Cristandade, no Judaísmo e no Islã. São
Paulo: Loyola, 2010
cultural clássico, entre cristãos e muçulmanos: o inseto em uma pedra de âmbar forma a
imagem da inclusão, a maneira de assimilação cultural dos cristãos, onde o acento recai na
preservação do inseto dentro do âmbar; a digestão do alimento pelo estômago forma a
imagem da digestão, a maneira de assimilação cultural dos muçulmanos, onde o alimento é
gradualmente absorvido com sua estrutura originária sendo destruída no processo. Com a
filosofia nunca absorvida, mas somente incluída, equilibrando-se na síntese instável com a
religião, o mundo cristão testemunhara uma relação dúbia, feita de alteridades e agitações
dramáticas. Nesse convívio, os cristãos buscavam ressignificar a alteridade da filosofia, o seu
peso como corpo estranho, mas nunca chegaram a suprimi-la, fato responsável pela
extraordinária riqueza dialógica presente no seio da cristandade. Só que, como já sugerimos,
o diálogo não compunha a imagem completa do cenário, cuja face secreta era o elemento
estratégico no trato com as fontes pagãs, que tornava a consciência cristã passível de ter a sua
intenção defensiva desmascarada. No embate de Jerusalém com Atenas travado na arena
cristã, a síntese medieval, eivada de simbolizações e alegorias, também se constituía
estrategicamente em instrumento especioso de neutralização do adversário. Ocorre que esse
adversário não havia sido vencido pela absorção supressiva, como ocorreu no mundo
islâmico, mas aguardava o momento de fugir ao jugo da fé.

A leitura dos clássicos na esteira da perspectiva aberta pelos humanistas da Renascença, que
buscaram livrá-los dos acréscimos tardios das alegorizações medievais, deu novo frescor aos
textos antigos, de várias disciplinas, entre as quais a filosofia. Foram nesses textos,
reinterpretados por dois séculos de humanismo cristão, que os filósofos iluministas buscaram
sua inspiração. Assim, os iluministas descobrem um novo ideal de personalidade em
escritores como Cícero ou Sêneca. Agora, estes augustos personagens, homens situados no
limite de uma época crepuscular, eram predecessores dos iluministas, e não mais da vinda de
Jesus. Renasce, desse modo, determinada maneira de viver e de filosofar, reconstrução
contemporânea do espírito de epicuristas, céticos e estóicos, muito diferente de como essas
escolas se apresentavam quando encobertas pelas ilusões piedosas dos padres. Os iluministas
reconhecem o parentesco que lhes unia com os últimos romanos clássicos, ansiando a
desforra sobre a superstição cristã. Nesta história reescrita, a melodia mais pungente é a da
derrota de um princípio superior esclarecido, encarnado em Roma, pelas hostes bárbaras
germânicas e pelo, ainda mais insidioso, barbarismo cristão, capaz de corroer as antigas
virtudes cívicas por dentro para instilar na mente dos homens o pavor das coisas misteriosas,
o fanatismo e o desprezo pela filosofia. Há genuína semelhança entre a descrição desse horror
ao cristianismo e o sentimento de muitos pagãos que viveram no limiar do mundo antigo,
pagãos que temiam e desprezavam a nova religião, tais como Celso contra quem Orígenes
polemizou. Agora a tônica do sentimento não era mais temor ou desprezo, mas sim o misto
de confiança nas luzes da Razão com cólera militante contra a rudeza cristã. A Roma de
Augusto seria vingada, e a época da sua vingança assistiria a reconstrução do seu passado na
maior obra histórica do iluminismo inglês, Decline and Fall of Roman Empire, de Gibbon.
Era também, subterraneamente, a maior vingança, a de Atenas. Conforme argumenta Peter
Gay, tratava-se de vasto projeto animado pela inspiração neopagã, cujo cerne seria a
retomada da crítica filosófica clássica à religião tradicional, mas desta vez uma retomada da
atitude filosófica de crítica religiosa de maneira a voltá-la contra o próprio cristianismo,
alicerçando-a nas descobertas da filologia e da mecânica natural. Se as armas de Atenas
foram usadas contra Delfos, elas também poderiam ser usadas contra a Roma usurpada.

Agora podemos retomar o nosso fio.

Como vimos anteriormente, no esforço de recuperar os termos originais do debate iluminista


sobre a religião, Leo Strauss chama a atenção para a função do milagre no embate entre
Atenas e Jerusalém. É o tema do ensaio A influência mútua entre Teologia e Filosofia8,
complementar à sua mais célebre conferência. O argumento de Strauss é de fácil
entendimento.

De início, Strauss especula sobre se seria possível uma prova histórica da revelação. Esta
prova vem, tradicionalmente, a partir de dois argumentos fundamentais. “A resposta
tradicional costumeira era: milagres”9. O segundo argumento é o “cumprimento das
profecias”10. Strauss mostra que ambos são milagres, manifestações de um poder divino,
incompreensível à razão desassistida, que rompem a estrutura ordinária de funcionamento do
mundo. Deste modo, para a religião o milagre seria essencial, a forma objetiva da sua prova,
do mesmo modo que a prova da filosofia é a argumentação logicamente bem construída a
partir de premissas verdadeiras. O milagre não é um argumento, contudo: ele é um fato.
Assim, quando os iluministas empreendem seu abrangente projeto de ataque aos alicerces da
ortodoxia religiosa tradicional, a crítica factual ao milagre passa a ocupar um papel relevante
no trabalho de quase todos eles. Essa crítica pode ser dividida, esquematicamente,

Strauss mantém que não é possível refutar a religião por meio da alegação de que os fatos que
ela relata são incompatíveis com o conhecimento da natureza. Se esses fatos, chamados de
milagres, representam a irrupção da criatividade divina para além do conhecimento que o
homem tem da natureza, então não se pode rejeitá-lo alegando sua incompatibilidade com
esse conhecimento. É uma circularidade. Não podendo rejeitar o milagre, a crítica histórica
não pode chegar às conclusões que chegou através de um raciocínio natural; pois esse
raciocínio não contempla a possibilidade do milagre explicar as aparentes contradições,
interpolações, antecipações de fatos futuros, e outras incongruências textuais. Diz ele: “Algo
análogo se dá com a crítica textual – as incoerências, as repetições e outras deficiências do
texto bíblico: se o texto é divinamente inspirado, todas essas coisas significam algo
inteiramente diferente daquilo que significariam se tivéssemos o direito de presumir que a
Bíblia é um livro meramente humano. Nesse caso elas são só deficiências, mas do contrário
são segredos”11.

Essa parece uma defesa bastante obstinada do ponto de vista da fé judaica. Mas é apenas uma
aparência. A posição de Strauss é a de um filósofo filossionista que admite não ter encontrado

8
STRAUSS, Leo. Fé e Filosofia política: a correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin, São Paulo: É
Realizações, 2017
9
ibid., p.259
10
ibid., p.259
11
ibid., p.262
o caminho para retornar à velha ortodoxia judaica. Apesar dos argumentos engenhosos que
ele elabora, com o propósito de mostrar a impossibilidade de uma superação cabal e direta da
Revelação, Strauss não pôde retornar à fé. Parece-nos bem evidente que se ele não encontrou
este caminho de regresso é porque a crítica do milagre iluminista foi realmente capaz de
cumprir o seu propósito, a saber: o de estremecer os fundamentos da atitude espiritual
convencionalmente capaz de ultrapassar o abismo entre Razão e Revelação, isto é, a fé.

O que a crítica ao milagre fez foi tornar a fé que se exige para dar o salto sobre o aparente
abismo entre Atenas e Jerusalém, inverossímil à luz das condições gerais da modernidade
vigente, começando por tornar a questão dos milagres exageradamente problemática.
Distinguiremos, essencialmente, três dimensões primárias onde o milagre e a inspiração
divina tornam-se exageradamente problemáticos. São elas:

a) ontológica – sob o aspecto ontológico, o que se deseja saber é se o milagre é real, se


eventos miraculosos são possíveis, qual o status dessa entidade metafísica denominada
milagre. Por exemplo: no sistema determinista de Espinosa eles são impossíveis; o mesmo
ocorre em alguns sistemas deístas posteriores. Nestes sistemas, o mundo é um sistema
fechado de causas, às quais nos cabe conhecer o seu preciso encadeamento; se qualquer fato
se apresenta sem que conheçamos a sua causa, essa causa no entanto existe e pode ser
conhecida. Para saber como a causa produz o efeito, porque força ela o produz, o que o efeito
tem da causa e o que ela o transmite, bastaria inteligir racionalmente a causa, o que é possível
para toda causa e todo efeito no mundo; assim, o efeito se torna inteligível racionalmente. Se
o milagre é o efeito de uma causa ininteligível racionalmente, e a vontade sobrenatural do
Deus de Abraão é manifestamente uma tal causa, então ele ou é impossível ou a metafísica de
corte naturalista está equivocada.

b) epistemológica – a epistemologia coloca questões tais como: se o milagre pode ser


conhecido, quais as condições para conhecê-lo, qual a natureza da justificativa que a sua
crença porta. A epistemologia do milagre propriamente dita depende de uma ontologia
afirmativa. Se não há um milagre real, então a epistemologia do milagre torna-se a
epistemologia da crença no milagre, e com ela abrimos as portas para a epistemologia do
relato, extraordinariamente importante no âmbito desse ensaio. Na epistemologia do relato,
exemplo de investigação heterônoma do fato miraculoso, as questões primárias da
epistemologia do milagre se modificam mas ainda subsistem derivativamente. Elas passam a
ser uma mescla de reflexões estritamente epistemológicas e outras históricas: por que se
forma a crença no milagre? O que os relatos dos milagres tem de peculiar que produziram a
crença sustentada de povos inteiros por milênios? Qual o valor racional das justificativas para
o milagre que a argumentação filosófica busca fornecer?

c) hermenêutica – aqui, importa determinar o significado do milagre. Qual o significado desta


ação divina no mundo? O que significam os milagres reais narrados na Escritura? O que eles
significam para a compreensão dessa Escritura? Assim como no domínio epistemológico, se
não há milagre, a questão hermenêutica se torna puramente derivativa do significado textual.
São questões atinentes a esse estrato as seguintes: qual o significado dos milagres na Bíblia?
Por que os autores da Bíblia relataram milagres? O milagre tem uma função pedagógica?
Todas essas questões derivativas são dadas a partir da perspectiva que o milagre é impossível;
logo, é preciso buscar o significado textual para algo que não ocorreu, e não encontrar o
significado textual do que ocorreu (note-se: esses dois significados, ainda que coincidissem
no seu conteúdo, só aparentam ser o mesmo se tomamos a tarefa de compreender o
significado do texto como devendo ser uma operação puramente racional). Quando o
significado dos milagres finca-se na natureza, o significado textual relaciona-se com o
significado concreto12, que, por sua vez, altera o significado textual. Quando a dimensão
ontológica é assegurada, a hermenêutica textual do milagre, isto é, a função que aquela
narração específica tem na estrutura narrativa dos textos revelados, é iluminada pela sua
função hermenêutica no mundo. O milagre narrado tem, portanto, dois significados: o que ele
possui no mundo e o que ele possui na narração, e o segundo se modifica a partir do primeiro,
e vice-versa. É assim que o milagre da visão do Apocalipse de São João é uma das chaves
hermenêuticas do texto inteiro. Pois o milagre é, desde o âmbito das teologias ortodoxas
monoteístas, não só uma ocorrência costumeira nesses relatos, mas uma chave de
interpretação da própria Revelação.

Todas essas dimensões se cruzam na crítica iluminista ao milagre, tanto a que é voltada para a
crítica textual da Bíblia quanto a que é voltada para os aspectos ontológicos e
epistemológicos do fato miraculoso.

Passemos a abordá-la.

A crítica iluminista ao milagre

O mundo cristão encontra na filosofia da cultura do fenomenólogo Louis Dupré uma das mais
notáveis expressões de um amplo movimento convergente de autores que visavam, a partir de
premissas filosóficas e teológicas distintas, a restaurar a cosmologia simbólica católica. A
obra de Dupré situa-se dentro dessas balizas; assim, é possível examiná-la proficuamente nos
pontos de conexão e afastamento em relação aos escritos de pensadores como Hans Urs von
Balthasar, Jacques Maritain, Anna-Teresa Tymieniecka e Jean Borella. Diferentemente dos
citados, entretanto, a contribuição mais original de Dupré assoma no campo dos estudos
históricos e tem como resultado a criação de uma hermenêutica do desenvolvimento cultural,
vertida na trilogia de livros composta por Passage to Modernity, acerca da transição do
mundo antigo para o início da modernidade, The Enlightenment and the Intellectual
Foundations of Modern Culture, cuidadosa revisão crítica do pensamento iluminista e The
Quest of Absolute, reinterpretação valorizada do romantismo como rota de saída dos impasses
acumulados.

12
É assim que a tipologia teológica islâmica classifica os milagres dos profetas de maneira diferente que os
milagres dos santos, pressupondo a existência de ambos: os dos profetas são os mu´jizah e o dos santos,
karamah. O milagre, mu´zijah dos profetas é grandioso, serve de prova do clamor de verdade das revelações,
deve ser visto por muitos, é exclusivo dos profetas e deve ser mencionado no texto revelado. Os karamah
costumam ser fatos menos espetaculosos, geralmente favorecem somente aqueles que o suplicaram e não tem
como fins servirem de prova, mas aparecem nas hagiografias.
Dupré supõe ser a criação de uma cosmologia essencialmente baseada no exame da
causalidade eficiente a tradução filosófica de uma alteração fundamental na cosmovisão
humana. Ainda que de forma menos explícita, também é possível perceber o papel crucial da
crítica ao milagre na forma como se deu essa alteração. No capítulo oitavo de The
Enlightenment and the Intellectual Foundations of Modern Culture, Dupré assevera que, de
todas as áreas onde o iluminismo deixou a sua marca, o impacto mais profundo é na seara da
religião. No embate entre antiga fé e nova filosofia, não há fator mais fundamental do que o
choque da cosmologia científica com as expectativas interpretativas sobre o texto bíblico.
Tais expectativas, por sua vez, modificam-se profundamente na medida em que o texto sacro
é lido em função das novas crenças cosmológicas e de uma nova teoria da autoria da
Revelação. Neste sentido, a rejeição do milagre participa dessas duas mudanças estreitamente
vinculadas e se desdobra, simultaneamente, nas dimensões ontológica, epistemológica e
hermenêutica.

Para situar essa problemática historicamente, devemos aludir mais uma vez ao movimento
humanista da Renascença. Segundo Dupré, a expectativa por confrontar a literalidade do
texto veio a reboque do esforço dos primeiros humanistas e reformadores em fixar-lhe o
verdadeiro significado. Durante as disputas teológicas ocasionadas pela Reforma, partidários
de interpretações díspares da Sagrada Escritura eram impelidos a criarem um método
hermenêutico capaz de definir, com precisão, qual o significado verdadeiro do objeto da
disputa. Se na discussão se opunham justamente clamores contraditórios de autoridade
teológica, era imperioso criar uma forma de arbitrá-la. Vê-se a importância de garantir a
correta interpretação do texto escriturístico nesse contexto, já que o datum revelado era o
único árbitro válido unanimemente reconhecido por todos os contendores, ao qual eles
poderiam conjuntamente recorrer a fim de dirimir as dúvidas sobre a religião cristã. Por outro
lado, os humanistas da Renascença possuíam interesse teórico mais desvinculado das
posições de papistas ou protestantes. Além da fé sincera de muitos deles, os humanistas eram
movidos por um novo amor literário pela Escritura, fruto da experiência que haviam
acumulado como colecionadores e arqueólogos das obras gregas e latinas. Seja qual for a
motivação, uns e outros, reformadores e humanistas, empreendiam esforços na direção de um
mesmo fim.

O resultado dessa convergência foi o giro intelectual para a fixação do sentido verdadeiro do
texto, o que resultaria mais tarde, ao longo de um processo constituído de muitas etapas, no
abalo profundo do significado espiritual da Revelação. Tal significado dependia,
constitutivamente, da possibilidade de se aclarar uma multiplicidade de sentidos simbólicos
livremente aflorada, no seu último degrau, pela anagogia mística. Essa possibilidade sofre um
processo de oclusão com a nova ênfase na concretude semântica e histórica da Bíblia.

Humanistas e reformadores criaram os métodos investigativos para dissecar o significado


mais exato da Bíblia valendo-se dos mesmos instrumentos que utilizaram para estudar textos
profanos. Esse fato foi prenhe de consequências, embora muitas delas só tenham exibido todo
o seu potencial dissolvente ao longo do tempo. Ao ler o texto bíblico com o mesmo
instrumental utilizado para recuperar o significado das obras profanas da cultura clássica, os
humanistas afeiçoaram o olhar exegético a uma sensibilidade mundana. Enquanto a busca
pela literalidade ainda era realizada com espírito piedoso, de homens reverentes perante a
sacralidade do seu objeto, o enfraquecimento da fé que essa aproximação mundana implica
permanecia escondido. Quando as pesquisas filológicas e geográficas da modernidade
começam a exibir resultados que contradiziam frontalmente o que se lia, ela emerge em todo
o seu potencial disruptivo. De início, tal situação forçaria os exegetas a buscar a
compatibilização entre o sentido literal da Bíblia e as novas descobertas. Mas esse esforço
logo se mostraria demasiado árduo. Logo viria o abalo da crença, enfraquecida sob o peso de
diversas contradições que se acumularam com o progresso das ciências, entre as quais: a
idade do mundo do relato do gênesis parecia não bater com as pesquisas sobre a duração da
terra13; os patriarcas bíblicos antediluvianos possuíam longevidade jamais observada em
ninguém; o dilúvio era, estranhamente, um fato do qual os outros povos jamais ouviram falar.
O texto bíblico parecia, então, não fazer mais sentido; ele foi se tornando incompreensível.

Dupré começa exemplificar o rumo da incompreensão pela nova interpretação do Antigo


Testamento feita por Isaac de la Peyrére. Essa doutrina trazia uma estranha teoria da dupla
verdade, aparentada à de Siger de Brabante e dos averroístas latinos. Segundo La Peyrére, o
que explicava as contradições entre as narrativas geográficas e históricas da religião e os
resultados obtidos através da nova cosmologia era um misterioso particularismo do povo
judeu. Ele interpretava a história dos hebreus dizendo que o Adão bíblico não teria sido o
patriarca de todas as nações, mas apenas o patriarca dos hebreus. Mais antigo e primordial do
que o Adão do Gênesis, teria existido um outro patriarca de toda a humanidade anterior a ele.
Assim, problemas como uma datação do mundo incompatível com as descobertas
geográficas, eventos que geravam efeitos supostamente universais mas eram desconhecidos
por outros povos, erros e interpolações do texto concernentes a fatos históricos, ou previsões
impossíveis sobre acontecimentos do futuro seriam todos eles explicados por essa teoria da
dupla verdade histórica. É uma estranha teoria e suas ressonâncias gnosticistas são evidentes.
Contudo, pelo que notamos, a estrutura epistemológica da teoria parece fazê-la pertencer à
pré-história do iluminismo, remetendo-se ao estágio da decomposição da escolástica tardia
pelo averroísmo latino.

Na continuidade, Dupré aborda três modalidades de crítica religiosa, centralizada no exame


do texto bíblico, já características do paradigma cultural iluminista: a crítica exegética de
Espinosa, a crítica literária de Lessing e a crítica histórica de Richard Simon, três críticas que
passaremos a abordar brevemente.

i) Tradicionalmente, diz Dupré, as narrativas dos eventos históricos contidas na Bíblia faziam
parte da eterna verdade da Revelação, isto é, da intenção magisterial de Deus em ensinar os
homens a verdade. Como Deus é o seu autor, e Ele não erra, entendia-se que a Escritura
deveria estar isenta de erros factuais. Espinosa pensava de maneira diferente. Para ele, era a
intenção dos autores humanos da Bíblia o que explicava as narrativas. Neste sentido, não
importavam os erros factuais, que elas inegavelmente tinham, pois as narrativas eram uma

13
JACOB, Margareth C. The Secular Enlightenment. New Jersey: Princeton University Press, 2019
espécie de parábola. Mas, qual a intenção através dessas parábolas? De acordo com o Tratado
Teológico-Político, a intenção fundamental dos escritores da Bíblia era ensinar verdades
sobre o que é bom ou mau, justo ou injusto. Se eles o fizeram através de histórias e narrativas
fantásticas e piedosas, foi de modo a excitar a imaginação dos homens simples e levá-los a
fazer o justo. Há, no entanto, um conhecimento mais reservado, o único digno do nome de
conhecimento. O que a revelação transmitia recorrendo à imaginação, somente a Razão
assentia com certeza inabalável. Além disso, as proposições éticas obtidas via racional eram
exatas; as das religiões, sujeitas à mácula e a um processo de desenvolvimento evolutivo das
formas religiosas até o cristianismo secularizado. Mais do que a possibilidade de falsidade
das narrativas bíblicas, o que o pensamento espinosista apontava é que elas eram
fundamentalmente dispensáveis. Por fim, perante a posição segundo a qual a Revelação é
verdadeira e historicamente acurada, pois isso é assegurado porque Deus é seu autor,
Espinosa dirá que o conhecimento de Deus não é compatível com a contingência de uma
narrativa histórica. Metafísica e Ética, intimamente entrelaçadas, eram demonstráveis à
maneira de um geômetra. Portanto, a exegese de Espinosa tocava o cerne da questão da
teologia natural.

No judeu renegado e em toda a tradição deísta posterior, a rejeição da acurácia das narrativas
bíblicas dependia, obviamente, da rejeição do milagre. Se o milagre era possível, e a
inspiração divina de um texto é uma categoria de milagre, então, como disse Strauss, os erros,
interpolações e aparentes contradições não são falhas, porém segredos. Sob a ótica de uma
metafísica naturalista como a de Espinosa só se pode enxergar o milagre de dois modos: ou
como relato falseado de algo que não aconteceu ou como fato temporariamente inexplicado
pela filosofia natural. Portanto, uma narrativa histórica contando fatos fabulosos
necessariamente seria inexata e o motivo pelo qual uma flagrante inexatidão estava ali era o
propósito pedagógico dos seus autores perante uma audiência simplória. Ou a revelação era
uma forma de engodo ou de pedagogia, mas em todo caso não ensinava nada de relevante
para a compreensão da natureza mesma do mundo. O modelo metafísico de Espinosa,
fortemente inspirado pela revolução mecanicista cartesiana, não aceitava o milagre.

ii) Lessing compartilhava com Espinosa a perspectiva de que as religiões eram produtos
humanos e que uma das tarefas precípuas do filósofo era descobrir a intenção dos seus
autores. Mas o problema que o ocupou não foi tanto determinar o sentido que o texto tinha
para os seus autores judeus, porém estabelecer uma leitura evolucionista que preservasse a
necessidade histórica atual do cristianismo. No célebre ensaio, A Educação da Raça Humana,
Lessing argumentará que as religiões são etapas na longa bildung humana, no seu longo
processo de educação. Decerto, as verdades da religião podem ser descobertas pela razão a
qualquer tempo, no entanto, isso não é factível para a história humana. Mesmo na época do
próprio Lessing, a razão ainda trilhava o seu caminho rumo ao esclarecimento total, o que,
portanto, implicava na necessidade da religião continuar a dispensar os homens o
conhecimento dessas verdades.

Na sua polêmica com os deístas, que negavam o evento da Ressurreição de Cristo em razão
de diferenças nos relatos do evento presentes nos quatros Evangelhos, Lessing irá argumentar
que, mesmo quando relatos de testemunhas conflitam em relação a detalhes, é possível que o
fato que elas alegam terem testemunhado tenha ocorrido. É natural, dirá ele, a existência de
inexatidões no relato do que nós experimentamos. Esse é um argumento banal. Mas não é
banal onde o filósofo iluminista irá lastreá-lo. Ele defenderá os evangelistas perante os deístas
a partir de uma analogia com o estudo da história clássica. Ele dirá que os deístas não
consideram que os mesmos fatos históricos contados por Tácito, Lívio ou Políbio não tenham
ocorrido porque existem diferenças entre as narrativas históricas desses autores. Esse
argumento nos parece muito significativo, pois é um ponto de inversão na relação entre texto
sacro e investigação histórica. Agora, é o método de investigação histórica que é invocado a
fim de servir como parâmetro na interpretação de um texto sacro.

Mas Lessing não era um partidário da crença no milagre, cuja possibilidade ele defende
ironicamente diante da audiência de deístas. No seu escrito Acerca da Prova do Espírito e do
Poder, temos uma robusta defesa da tese do ceticismo metodológico quanto aos milagres. Ele
dirá explicitamente, “milagres, que eu vejo pelos meus próprios olhos, e que tenho
oportunidade de verificar por mim mesmo, são uma coisa; milagres que eu conheço através
da História, que outros dizem que viram e verificaram, outra”.

Nessa época, já se conhecia o suficiente do mundo para que um homem culto tivesse sob os
olhos vários textos revelados e informações, mais ou menos precisas, sobre os costumes de
muitas partes do mundo. Tais costumes estavam fundados em distintas percepções do que é
moralmente correto e estavam amparados por diferentes histórias sacras. Em razão dessa
multiplicidade, e do fato de que cada povo clamava ser a sua religião a verdadeira, e não a do
vizinho, a Lessing parecia que somente a razão era o árbitro para determinar qual das muitas
revelações que clamam serem verdadeiras de fato o é. Somente a Razão, com maiúscula, no
exercício da universalidade que lhe é própria, poderia julgar entre fontes diferentes. O
raciocínio é simples: se há muitas revelações pretendendo serem verdadeiras, nenhum relato
miraculoso ou testemunho do fiel poderia ser validado, dado que todas as religiões
apresentam relatos e testemunhos semelhantes, mas contradizem-se umas às outras. Além
disso, para Lessing é preciso tomar o milagre com uma elevada dose de ceticismo dado que é
muito diferente conhecê-lo por um relato e experimentá-lo diretamente.

iii) o argumento da particularidade histórica Vemos essa particularização histórica, com


nitidez, na Histoire Critique du Vieux Testament (1678; 1685) do padre oratoriano francês
Richard Simon. A tese de Simon é que o verdadeiro sentido das palavras do Antigo
Testamento só pode ser encontrado quando o lemos à luz da tradição histórica de quando ele
surge, isto é, da sociedade judaica do período. É preciso examinar o nexo entre o texto e a
história da época de sua elaboração. A tese pode hoje nos parecer apenas uma obviedade
sociológica. Aplicada essa visão à Bíblia pela primeira vez na França, ela pôs em xeque a
noção de uma tradição sacra que interpreta o depósito da fé com autoridade intrínseca
definitiva. O que estava implicado no raciocínio de Simon, motivo pelo qual Bossuet o
criticou, era que para defender as tradições católicas e protestantes sobre o Antigo
Testamento seria recorrer aos resultados da investigação científica, uma vez que somente essa
investigação daria a ideia adequada do fora a tradição judaica responsável pelo AT. Extraindo
as consequências da tese, não é difícil notar porque a autoridade das igrejas havia sido
abalada a partir da introdução da leitura crítica por Simon.

Ao tornar a hermenêutica bíblica dependente dos resultados da investigação histórica, a


argumentação de Simon reforçava o particularismo judaico, e com isso retirava da Revelação
seu imediato alcance universal. Se para entender o verdadeiro sentido do texto revelado era
preciso se remeter à particularidade histórica do mundo judaico, então porque não explicar o
próprio conteúdo do texto em função dessas particularidades, e não da irrupção de uma
inspiração divina? O alcance universal da Revelação depende de ela ser divina, pois Deus
falou a todos os homens pela boca dos seus profetas; o texto de um povo entre outros povos,
não, é apenas uma expressão dos acontecimentos militares, políticos e sociais daquele povo.
Como explica Dupré, a Histoire Critique apoiava-se no Tratado Teológico-Político de
Espinosa, cuja lição metodológica consistia em enfocar o texto sacro de acordo com a
intenção dos seus autores, entendendo-se por seus autores, naturalmente, não Deus, porém os
homens que o escreveram. O modo de alcançar esse sentido era operar uma interpretação
textual intrínseca, desassistida de qualquer predisposição religiosa iluminativa, idêntica a que
se pode fazer com os textos do próprio Espinosa. Tanto é assim, que a qualidade da
interpretação vai repousar cada vez mais no conhecimento racional e na posse de certos
métodos exegéticos científicos recrutados para se analisar o texto. Assim, Espinosa indica
como condições para uma boa leitura da Bíblia a familiaridade com a língua hebraica e com
as circunstâncias particulares da história hebraica, mas não era a fé ou qualquer predisposição
interior. Nem a tradição do Magistério da Igreja nem as tradições das igrejas protestantes
possuiriam por si mesmas nenhum privilégio epistêmico na determinação do sentido da
Escritura, cabendo determinar esse sentido por investigação científica e cabendo a essas
tradições defenderem os seus clamores contraditórios de verdade teológica a partir do
resultado dessa investigação.

Mas a crítica do texto bíblico deve ser doravante completada por uma ilustração mais
detalhada da crítica sob domínio ontológico e epistemológico. Assim, faz-se mister
acompanhar a seção X, do livro de Hume, Investigações sobre o Entendimento Humano e
sobre os Princípios da Moral, intitulada Dos Milagres.

A reflexão de Hume sobre os milagres tem sido interpretada de forma variada pelos
comentaristas. Alguns afirmam que ele teria fornecido argumentos para a negação cabal da
possibilidade do milagre; outros, oferecendo uma versão mais fraca do pensamento do
filósofo, dizem que ela não é negada, mas reduzida à probabilidade mínima. Em outra linha,
há estudos que relacionam o capítulo X das Investigações às demais partes da filosofia da
religião de Hume ou à estrutura sistemática de sua epistemologia. Uma das peças centrais
dessa filosofia, a crítica ao milagre é tematizada oportunamente como um tópico onde o
pensador escocês se posicionará perante pontos fundamentais da sua filosofia, tais como
prova e evidência, impressão e causalidade.
De acordo com o desenho geral fornecido pelo Tratado e pelas próprias Investigações, a
argumentação de Hume contra a possibilidade dos milagres14 repousa na seguinte premissa:
relatos de eventos miraculosos são evidências muito mais fracas do que aquelas fornecidas
pela regularidade da natureza. A regularidade da natureza, suscetível de níveis diferentes, é
testemunhada diretamente pelos sentidos, já os relatos de fatos miraculosos testemunham o
que outra pessoa percebeu. Como é o mesmo tipo de evidência que está na base da percepção
e dos relatos, isto é, a evidência sensível, a evidência sensível mais forte, a da regularidade da
natureza, vence a mais fraca, a da ruptura dessa regularidade, pelo simples fato de que ela já é
mais rara. Disso, se segue que os relatos que contassem uma quebra dessa regularidade
deveriam ser considerados uma evidência mais fraca do que os relatos que a afirmassem.
Nisso, já há implícito um ponto crucial: relatos e percepção direta são, estruturalmente,
idênticos quanto à evidência a que apelam. Assim, é preciso saber porque os relatos se
tornam tão especiais a ponto de darmos atenção a eles mesmo quando desafiam a nossa
percepção direta das coisas.

Como se sabe, a epistemologia de Hume, diferentemente da de Espinosa, rejeita a noção de


conexão necessária, tomando a causalidade como um hábito da percepção de regularidades
ordinárias. Assim, Hume dirá que em alguns casos os efeitos são sempre verificados a partir
das suas causas putativas. Em outros, a experiência mostra que nosso hábito ordinário pode se
enganar, pois as conexões mostram-se mais variáveis e por isso “frustram algumas vezes
nossas expectativas, de tal modo que, em nossos raciocínios relativos a questões de fato,
coexistem todos os graus imagináveis de confiança, desde a máxima certeza até a espécie
mais diminuta de evidência moral.”15. Por fim, mesmo nas regularidades naturais mais
repetidas, como o nascimento do Sol no oriente, nossa evidência causal jamais é
demonstrativa; ela é um hábito. Esse hábito, porém, se imprime com força em nossa mente,
quando os acontecimentos estão constantemente conjugados, como na queda livre dos corpos
em razão da força gravitacional. Nos casos da experiência infalível, repetida de maneira
idêntica em todos os lugares e eras, o homem espera a conexão dos acontecimentos como
quem possui uma prova. Mas é importante distinguir Hume de Espinosa. Em Espinosa, como
mostrou Leo Strauss, a ressurreição, sendo contrária à Natureza, inteligível e autodeterminada
em seu funcionamento perfeito, não poderia jamais ser possível. Ela é um evento cuja prova
de sua impossibilidade é demonstrativa, ao passo que para o autor das Investigações trata-se
de mostrar que não há razões para crer que relatos de ressurreições sejam verossímeis e,
portanto, não há razões para crer que o que contraria tudo o que sempre percebemos é
possível. Desse modo, é necessário compreender o que tem de peculiar nos relatos humanos.

Hume prossegue dizendo que uma das fontes de nosso conhecimento comum são os relatos
humanos. Sabemos de muitas coisas através deles. Há entre os relatos e os fatos uma conexão
mais tênue do que entre os fatos e a percepção direta dos sentidos. No caso dos relatos,
ficamos sabendo dos fatos por terceiros: são as evidências que outros homens supostamente

14
Existe uma extensa discussão entre comentaristas para saber se Hume teria negado a possibilidade do milagre
ou apenas defendido que a sua probabilidade é mínima. Consideraremos aqui a primeira opção, mais forte.
15
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo:
UNESP, 2003, p. 155
tiveram, e que nos contam. Já as evidências que os sentidos nos dão são de ordem primária.
Existe um problema com essas evidências: não as temos em número ilimitado. Não podendo
atestar nós mesmos todo o imenso número de possíveis fatos da história do mundo, é preciso
que confiemos nos relatos para constituir nosso saber do mundo. O conhecimento histórico,
por exemplo, seria impossível caso não houvesse algum valor epistemológico nesse
procedimento.

Se os relatos são uma fonte de conhecimento é exclusivamente porque o gênero humano, pela
vergonha da mentira, pela probidade e pela inclinação à verdade, não costuma falsear
sistematicamente as experiências observadas. Mas há circunstâncias a serem consideradas
que enfraquecem essa expectativa otimista sobre os homens. Elas modulam a confiança nos
relatos de acordo com o evento que é relatado. O relato de um evento improvável exige um
alto grau de confiabilidade; quanto mais contraria o evento a nossa experiência comum, mais
alto é o grau de confiabilidade de um relato para que possamos assentir à sua veracidade. Um
evento miraculoso é o caso mais extremo dessa regra: como ele contraria toda a experiência
uniforme, então sempre será mais provável supor que a pessoa que relatou esse evento se
enganou e mentiu do que imaginar, de acordo com o que aquela testemunha falou, que todo o
funcionamento habitual da natureza parou de repente. Para que a evidência do milagre
pudesse ser aceita, seria preciso que a falsidade do relato fosse, pelo menos, tão improvável
quanto a ocorrência de um evento que modifique tudo o que sabemos da uniformidade
natural. Mas seria possível que algum relato tivesse tal grau de veracidade?

Hume passa, então, a examinar se isso é possível.

O primeiro argumento de Hume é que, segundo ele, “não se encontra em toda a história
nenhum milagre atestado por um número suficiente de homens de bom senso, educação e
saber tão inquestionáveis que nos garantam contra toda possibilidade de estarem eles próprios
enganados”. Hume aponta um problema básico para se confiar nos relatos de milagres: a
ausência de um corpo de examinadores qualificados, isto é, homens de bom senso, educação
e reputação que os tenham examinado. A descrição parece esboçar os contornos da imagem
de um grupo de cientistas. O que Hume diz mais adiante confirma essa impressão: seria
necessário que os fatos relatados fossem realizados de maneira pública e em uma parte
conhecida do mundo onde “não se pudesse evitar o desmascaramento”16. Trata-se de estipular
critérios para o exame público dos fatos miraculosos. É bem verdade que Hume não demarca
os traços de um exame científico do milagre, mas faz o seu grupo confiável de observadores
emular algumas virtudes intelectuais normalmente associadas ao exercício da ciência: eles
não se enganam, são retos, probos e possuem uma boa reputação quanto a sensatez do seu
juízo, além de morarem nessas regiões esclarecidas nas quais o exame público do milagre
pode concluir-se pelo desmascaramento. É de se presumir que ele tenha em mente as
metrópoles do mundo europeu, regiões onde a ciência avançava e o espírito de
questionamento deitava raízes no solo do respeito às opiniões científicas. Poderíamos
denominar esse argumento de argumento do exame público.

16
Ibid, p. 162
Embora, na experiência cotidiana, conferimos mais crédito aos fatos usuais do que àqueles
incomuns, a tendência não se mantém quando estamos lidando com fatos extraordinariamente
raros e inusitados. Diante do prodigioso, os homens tendem a se maravilhar e dar azo à sua
livre fantasia. Essa peculiar fraqueza do espírito humano dá o combustível para que contemos
fatos magníficos, aptos a espantar a audiência, entretendo-a nas baixas paixões com que elas
nos pagam em moeda de atenção, provocando a vaidade e o deleite do contador de histórias.
Duas emoções acompanham normalmente aqueles que contam os prodígios, diz Hume, “a
paixão da surpresa e do assombro”17. Assim, um dos motivos do crédito nos fatos
miraculosos é a inclinação natural da humanidade à crença no fantástico. A propensão dessa
inclinação é universal para todas as pessoas, mas pode ser dirimida com a ajuda da educação
e do desenvolvimento de um senso de razoabilidade esclarecido. Contrário ao progresso deste
senso de razoabilidade, o sentimento religioso insufla a paixão natural na direção do espírito
sectário. Hume nos diz que é muito fácil que o adepto de uma religião imagine que vê coisas
que na realidade não vê, já que é motivado pela intenção de promover a sua causa. E porque
as coisas ocultas e maravilhosas seduzem com mais intensidade a audiência ignorante que
“qualquer capuchinho, qualquer mestre itinerante” pode perder todo o pudor e inventar
lorotas para manipular o vulgo, a fim de edificá-los na sua fé. Hume ainda reforça a descrição
psicológica negativa do prosélito religioso com um argumento histórico. Ele cita os muitos
casos forjados de milagres e profecias, que em todas as épocas foram desmascarados, mas
que entusiasmaram gerações inteiras, deixando implícito que foi o sectarismo de uma causa
que motivou sua forjaria. (acrescentaríamos, para ajudar o ponto de Hume dois exemplos
indiscutíveis: Savonarola e Sabbatai Zevi). Podemos denominar esse argumento de
argumento do interesse.

Em terceiro lugar, os milagres seriam atestados por homens dignos de pouco crédito, nas
nações bárbaras, em cidades pouco civilizadas. Observa-se uma regularidade histórica: na
origem de todas as nações abundam relatos de prodígios; na medida em que as artes e as
ciências evoluem nessas nações, tornando seus habitantes mais cultos e menos
impressionáveis, o número de relatos prodigiosos que a sociedade admite se reduz. Capta-se a
diferença entre as sociedades de Heródoto e de Políbio pelo fato de que no primeiro abundam
muito mais relatos prodigiosos; e entre a sociedade do esclarecido Gibbon e a de Políbio a
distância ainda é maior. Quanto mais remontamos a épocas bárbaras, mais comuns são os
relatos fantásticos. É essa a distância que ele certamente via de sua própria época para aquela
época encantada das hagiografias e relatos de viajantes da Idade Média. Nas nações bárbaras,
quando ainda não se conheceu a virtude do exame judicioso das evidências, e os homens,
pouco instruídos, são inclinados à crendice, encontramos muitos fatos miraculosos. Os
homens nas sociedades mais primitivas apresentam uma disposição mais crédula. Nestas
sociedades, os fatos históricos e naturais são explicados em função de milagres ou
entremeados por eles. Hume cita dois casos típicos em torno dos quais profetismos, prodígios
e fatos inauditos costumam ser narrados: as batalhas e as revoluções. Sobre o primeiro, existe
um famoso exemplo na tradição islâmica, que poderia ampliar a aplicabilidade da observação

17
Ibid.,p.163
de Hume: a Batalha de Badr. Segundo o relato de um célebre versículo do Corão, na batalha
de Badr os muçulmanos foram auxiliados por anjos no combate contra os exércitos dos
infiéis, e, graças a esse auxílio celestial, obtiveram sua extraordinária vitória. Para a
mentalidade islâmica, nenhum fator estratégico ou vantagem militar geográfica poderia
explicar a vitória em Badr. Mais ainda, pois a explicação não se faz ex post facto: os
muçulmanos que guerrearam em Badr contam terem visto anjos ao seu lado, terem
observados seus turbantes luminosos em meio a confusão de corpos e armas na batalha.
Hume não se convenceria. A credulidade dos povos árabes atribui uma causa sobrenatural a
um fato que poderia ser explicado por algumas vantagens naturais, como a melhor disposição
topográfica, uma moral superior no campo de batalha, ou o uso de uma estratégia mais
eficiente. Sobre as revoluções, nem nos ocorre remontar ao Oriente, mas é suficiente lembrar
da história inglesa: os anos tumultuados que levaram a um Rei decapitado e ao governo dos
santos de Cromwell. Hume, historiador da História da Inglaterra, poderia ter esse exemplo
contemporâneo em mente. Podemos denominar este argumento de argumento da evolução
histórica.

A quarta razão é a mais sutil, segundo Hume. É aquela que envolve a multiplicidade das
religiões. É que os relatos de prodígios sofrem a oposição de relatos contraditórios. Neste
ponto, Hume apela à dificuldade originada pela multiplicidade das religiões. Diz ele “é
impossível que as religiões da antiga Roma, da Turquia, do Sião e da China estejam todas
elas estabelecidas sobre alguma fundação sólida.” Assim, todo milagre que seja invocado por
uma religião para fundamentar o seu clamor de verdade terá o poder de derrubar o de todas as
outras. Mas se ele o faz, então ele destrói o próprio clamor de verdade, afinal, se pode
acrescentar a Nietzsche dizendo que há mil tábuas não apenas de moral, mas de relatos
milagrosos, todos clamando a sua verdade igualmente. A sutileza do argumento não é tão
profunda que não se dê para perceber sua semelhança com o “raciocínio de um juiz que supõe
que o crédito de suas testemunhas que acusam alguém de um crime é destruído pelo
depoimento de duas outras que afirmam que ele estava a duas léguas de distância no mesmo
momento em que se diz que o crime teria sido cometido.”18 Adiante, ele assume o papel mais
interessante e irônico do texto.

Para mostrar como as religiões se destroem mutuamente, ele dá três exemplos de milagres.
No primeiro, narra o milagre do imperador Vespasiano curando um cego em Alexandria, e
um coxo com os simples toques de sua mão. Defende a reputação ilibada das testemunhas do
milagre, a grandeza do imperador, a seriedade de Tácito que reporta o fato e o caráter público
do evento, circunstâncias que conjugadas o tornam verossímil. No segundo exemplo, Hume
fala do milagre da catedral de Retz, em que um homem coxo supostamente teria recuperado
sua perna amputada após passar um unguento abençoado sobre ela. Aqui, Hume corrobora o
ponto de vista do espirituoso e libertino cardeal de Retz, que havia se refugiado na catedral
onde ocorrera o suposto milagre. O cardeal de Retz, político e homem do mundo, não deu
crédito a história apesar do testemunho sincero de muitos, e isso pelo simples e razoável
motivo que as pessoas possuem uma ridícula combinação de “fanatismo, ignorância, astúcia e

18
Ibid., p.169
canalhice”, motivo pelo o cardeal concluiu que tamanho absurdo, um coxo com duas pernas,
trazia estampada a prova de sua falsidade. Por fim, o terceiro exemplo é a mais brilhante das
peças da seção X. Trata-se do tour de force retórico de quando o cético Hume se fará
defensor da plausibilidade dos milagres ocorridos aos pés do túmulo do abade jansenista de
Paris. Vemos que Hume fornece um sem número de atenuantes ao fanatismo, ignorância,
astúcia e canalhice de que fala o cardeal, quando sublinha a qualidade inegavelmente idônea
dos personagens que atestaram tais milagres. A ironia do texto atinge aí o seu clímax.

Neste momento final, Hume assume completamente a posição do pagão esclarecido, filósofo
naturalista que não se espanta com as superstições das várias religiões. Essa, aliás, parece ser
a sua posição pessoal em matéria de religião. De qualquer sorte, no final do texto ele lança
um olhar equanimemente cético para as afirmações de milagres, sejam elas provenientes dos
historiadores romanos ou dos autores santos do cristianismo, sejam elas as histórias do
imperador Vespasiano ou do santo Beda. Em boa parte dos casos onde se narram tais fábulas,
diz Hume, a vaidade humana, o espírito de contenda e o sectarismo explicam suas mais
fabulosas mentiras. As religiões se neutralizam mutuamente, por exibirem relatos
miraculosos que são similares a de todas as outras; evidentemente, isso torna muito difícil a
prova de que tais milagres fundam a fé de uma delas, já que os adeptos de cada religião
podem alegar o mesmo a respeito da seita que seguem. Por fim, no fundo dessa grande ilusão,
habita o mais iludido de todos. Esse é o próprio homem que reivindica ser um missionário,
um embaixador do céu, um profeta. No derradeiro argumento do texto, topamos finalmente
com o desmascaramento completo da falsa consciência que leva os homens a alegarem ter
realizado um milagre, algo impossível. A consciência do profeta redunda desmascarada,
como esse ilusor universal, capaz de gerar o maravilhamento através do engodo. Podemos
denominar este argumento de argumento da multiplicidade das religiões.

Os três degraus

Recapitulando a intuição de Strauss que expusemos no início, temos o desenrolar do conflito


entre Atenas e Jerusalém balizado por três condições, no Ocidente europeu: i) ruptura da
Cristandade pela incompatibilidade estrutural entre filosofia e fé – a despeito das múltiplas
formas que se tentou resolvê-la, essa tensão original vai romper o tecido da Cristandade. No
mundo islâmico, ao contrário, fé e filosofia serão absorvidas pela síntese Avicena-Ghazali da
filosofia oriental e do sufismo. Essa diferença se torna possível pela ii) redescoberta dos
textos clássicos por uma cultura cuja assimilação se dá no modelo da inclusão dos elementos
heteróclitos – segundo o ensaio de Rémi Brague, o modelo cristão de assimilação cultural não
permite à civilização cristã digerir a filosofia, mas só incluí-la como mais um elemento
heterogêneo em seu seio. Assim, após o humanismo recuperar o elemento grego e a reforma
contribuir para quebrar a unidade teológica dogmática, novas energias são liberadas na
Europa até a formação de um projeto de esclarecimento racionalista em iii) a retomada do
desafio à religião sob a bandeira do projeto das Luzes – cujo caráter neopagão e filosófico,
portanto de retorno ao modelo de Atenas, é estabelecida pelo trabalho de Peter Gay. Esse
projeto, por sua vez, acha o seu nó górdio na questão da religião e dos milagres, conforme
mostram Strauss e Louis Dupré.
Percebemos, ao longo do texto, que a rejeição da possibilidade do milagre é um expediente
central na crítica bíblica de Espinosa, Lessing e Richard Simon. Três consequências para o
entendimento da revelação a crítica bíblica desses três autores nos traz: a revelação é
particularizada historicamente, sua inspiração divina é negada, seus fatos miraculosos são
tomados como parábolas. Essas consequências têm implicações ontológicas, epistemológicas
e hermenêuticas.

Por fim, encontramos na seção X das Investigações sobre o Entendimento Humano um


exemplo clássico, valioso por brilhantismo e brevidade, da crítica ao milagre. Percebemos
que o objeto da investigação humeana são as condições pelas quais um relato fabuloso
torna-se verossímil ou não. Todos os argumentos gravitam em torno disso, e são eles: o
argumento do exame público, o argumento do interesse, o argumento da evolução histórica,
o argumento da multiplicidade das religiões.

O que todos esses críticos têm em comum na epistemologia do milagre?

Eles tem uma abordagem heterônoma do milagre e da espiritualidade. O que seria isso?
Trata-se de abordagem feita a partir de uma metodologia de conhecimento que não é a
metodologia que as religiões prescrevem para obter o conhecimento das experiências
espirituais. O ponto de vista heterônomo é um ângulo exterior, o de alguém que estude o
milagre mas nunca tenha realizado nada de modo a testemunhá-lo, alguém que nunca viu
nenhum evento fabuloso similar nem o realizou; portanto, alguém que se apoia
exclusivamente, por assim dizer, nas faculdades racionais desassistidas e desassombradas do
sujeito. Ao se colocar nesse ponto de vista, a crítica iluminista investiga a religião sob a
perspectiva de métodos não-religiosos de conhecimento, e frequentemente, considerando o
ceticismo prevalente entre iluministas, a partir do ângulo daqueles que não a praticam com
intensidade, o que terminará por firmar a tese epistemológica segundo a qual o exame externo
é a única forma legítima de conhecê-la e que, enquanto estudioso, mesmo o homem de fé não
deve deixar suas convicções interferirem na objetividade intelectual ideal.

É verdade que o modelo heterônomo de conhecimento, que aqui desenhamos em linhas


extremamente simples, se tornou muito mais complexo com o avanço da epistemologia no
âmbito das ciências da religião e das ciências humanas em geral. Mais recentemente, viu-se
que o desenvolvimento histórico das pesquisas antropológicas sobre o mito colocou inclusive
a pretensão de um conhecimento esclarecido puramente heterônomo em amplo parêntese
teórico19. Porém, se, de um lado, esse movimento avançou para descobrir as estruturas
míticas implícitas no racionalismo ocidental, e relativizar a sua pretensão em face do saber
tradicional mítico, do outro lado, ele não avançou o suficiente para incorporar à sua
metodologia a própria prática religiosa. Ao examinar a religião através de um método de
cujos elementos não participam qualquer prática religiosa, o ponto de vista heterônomo
iluminista ainda permanece vigente na ciência atualmente praticada. No caso dos relatos

19
DOSSE, François. História do Estruturalismo. São Paulo: Editora UNESP, 1993
miraculosos, a partir desse ponto de vista externo, a única tarefa que cabe é a investigação
dos testemunhos ou dos fatos naturais por meio de instrumentos idênticos aos utilizados para
investigar relatos históricos e regularidades naturais ordinárias. Não se coloca a possibilidade
da sua investigação interna, pois a experiência religiosa ainda aparece como um momento
não-científico. E, embora o uso sistemático dos métodos das ciências históricas para a
compreensão da religião tenha fornecido vastos campos para a curiosidade incessante do
espírito moderno, parece-nos evidente que, independentemente da amplitude desses campos e
da multiplicidade dos métodos empregados no seu escrutínio, trata-se sempre de uma
abordagem parcial do objeto.

Quem se vale exclusivamente do instrumental racional antropológico, sociológico ou


filosófico para examinar uma religião continua sem examiná-la por dentro, isto é, continua
passando ao largo do fato de que todas as chamadas religiões avançadas p ex., dispõem de
métodos para se alcançar as experiências seus textos canônicos e místicos relatam. Isto
significa dizer que um estudioso sério e honesto da religião deverá abordá-la precavendo-se
do contágio da experiência religiosa, capaz de alterar a sua eqüidade; assim, experimentar a
condição de um religioso que vivencia a sua prática e a sua relação com o sagrado não tem
valor cognitivo decisivo para a correção de sua investigação. Pois, enquanto estudioso, ele
não pode simplesmente ser religioso – esses dois momentos estão separados
metodologicamente – e se ele pode, com as ressalvas necessárias, é através de muitas
justificativas metodológicas elusivas, lançadas a fim de assegurar a cientificidade da sua
posição. É verdade ainda que a fenomenologia da religião, ao tematizar a experiência que os
homens têm do sagrado, nos habituou a um certo giro subjetivo, franqueando uma
aproximação em assíntota com a experiência do sagrado. Não obstante, ainda presa ao ponto
de vista heterônomo, a fenomenologia da religião não pode avançar no genuíno esplendor da
operatividade, envolvido no verdadeiro ponto de vista autônomo. Mas essa possibilidade, no
entanto, ela a traz em seu bojo: o giro fenomenológico só pode se consumar no seu termo
final, na sua autosuperação, logicamente, no exame subjetivo interno da própria experiência.
Pois é preciso notar um fato, paradigmático no caso do fenômeno espiritual, do qual o
milagre é um caso: sendo, antes de tudo, o conteúdo de uma experiência, essa abordagem
heterônoma não esgota todo o campo das modalidades possíveis de sua investigação, mas
apenas parece esgotá-lo quando o ponto de vista propriamente fenomênico foi relegado a
uma objetualidade discutível. Porém, antes de elucidar o que é essa parcialidade do método e
como superá-la, devemos notar que a primeira limitação da crítica iluminista, que o avançar
das ciências da religião já transcendeu, é a própria estreiteza na definição do seu objeto.

Em primeiro lugar, o milagre físico, a transformação patente da natureza externa, é um evento


raro, mas certamente não é o único que ameaça “o objeto imediato de seus sentidos”20 nem
tampouco a única experiência que denota os limites habituais da mente dos “homens de bom
senso, educação e saber”21. A primazia reservada ao milagre no debate, promovido pelos
filósofos iluministas, concernente à religião, se baseia em dois fatores. O primeiro fator, mais

20
HUME, op.cit.., p.153
21
HUME, op.cit., p.162
legítimo, é a real importância que tem o milagre para a economia da conversão nas religiões
monoteístas, já explicada anteriormente. O segundo fator é a valorização unilateral do
assunto, graças à seletividade, de cunho ideológico, do que esses distintos cavalheiros
desejavam encontrar nos relatos canônicos e místicos. É o vezo ideológico, fruto de um limite
no olhar “sensato e razoável” do iluminismo, que enfatiza unilateralmente o efeito físico
natural, e deseja enfocar polemicamente os relatos ao redor desse eixo. Hoje em dia, o
filósofo da religião se sente menos preso a essas antiquadas normas de etiqueta intelectual; o
seu olhar carrega menor preconceito ideológico. Essa condição provém do fato de que a
confiança nos destinos do racionalismo ocidental foi dirimida pelo desenvolvimento desse
mesmo racionalismo, capaz de problematizar as certezas iluministas sobre as intenções
subjetivas dos homens religiosos e sobre a evolução histórica do sentimento religioso. Foi a
própria evolução dos estudos históricos que desmascarou a intenção polêmica, portanto
parcial, do iluminismo em relação à religião. Do ponto de vista mais atual, o personagem do
adepto das religiões parece muito mais ambivalente, mais digno de crédito na sua fé, mais
complexo. Do mesmo modo, alguns séculos de esclarecimento não fizeram com que relatos
de eventos miraculosos tenham desaparecido de vista. Ao contrário, eles continuam a ser
produzidos em larga escala em todos os lugares do mundo. Essas duas razões enfraquecem os
argumentos do interesse e da evolução histórica.

Em segundo lugar, não nos parece sustentável que o estudo filosófico contemporâneo da
religião, conquanto sofisticado em seu próprio campo específico, ainda se encontre preso à
matriz do racionalismo religioso dos séculos XVII e XVIII. A dificuldade de sustentar uma
posição cômoda para esse estudo é que essa matriz racionalista topa com os seus limites
epistemológicos no simples fato de que é incompleta. Afinal, junto com o exame sociológico,
antropológico ou filosófico dos relatos sobre os fenômenos religiosos, é necessário mencionar
a possibilidade de um exame propriamente religioso. Este exame seria o que se entende por,
adequadamente e livre das mistificações nas quais costuma vir envolto, esoterismo. Para
completar o campo de possibilidades perante o fenômeno religioso é necessário examinar por
dentro das experiências não-ordinárias, através da sua metodologia ascética em si, isto é,
examiná-las esotericamente, não como um gesto de empatia hermenêutica, nem como
tentativa de descoberta dos traços subjacentes às visões de mundo historicamente localizadas,
nem como desconstrução politicamente orientada de uma episteme colonizadora, mas,
verdadeiramente, e fundamentalmente, como exame puramente autônomo. Essa completude é
exigida pela completude lógica das posições epistêmicas diante dos fenômenos miraculosos,
dos fenômenos não-ordinários, dos fenômenos religiosos e da própria religião em si mesma,
que se dá em três degraus: a) o primeiro é o de quem examina um relato que lhe é trazido por
um terceiro, isto é, a posição de Hume, Lessing, Espinosa e tantos outros; b) o segundo é o de
quem percebeu diretamente a experiência, portanto, o autor do possível relato, testemunhas
supostas de milagres, fiéis, homens incrédulos convertidos, ou grupos de cientistas e sábios
destinados a averiguá-los c) por fim, o terceiro é o de quem realizou o fato narrado ou de
quem foi instrumento de sua realização; no caso dos fatos miraculosos, o papel dos santos,
dos profetas, dos taumaturgos, dos instrumentos pelos quais, caso tenha algum instrumento, o
fato se deu. Evidentemente, Hume escreve necessariamente apenas da primeira posição, a de
um intelectual mundano que não experimentou qualquer experiência além das que a
regularidade dos sentidos lhe fornecem habitualmente, nem muito menos pensou tê-las
experimentado, deixando claro que as duas outras posições são errôneas. Em outras palavras,
ninguém jamais poderia ter presenciado ou realizado um milagre de fato. Note-se, contudo,
que ele não se predispôs a conhecer a experiência da realização do milagre, mas, concluindo
que o milagre é impossível a partir da argumentação sobre os relatos, inferiu que essa
experiência só pode ser uma autoilusão. Com efeito, na última parte da seção X, Hume irá
explicar o profetismo como uma sorte de autoilusão. A guarida da autoilusão acaba sendo a
última guarida das ciências cognitivas para lidar com o problema do sagrado no mundo atual,
já que devem explicar o fato notável e persistente de que as pessoas se apegam à sua religião
malgrado todas as supostas evidências contrárias.

Resulta bem claro, contudo, que a semântica do termo evidência é um tanto mais ambígua
aqui. Se em vez de saber por terceiros, o filósofo iluminista testemunhasse fato
aparentemente miraculoso, não dispondo de uma explicação naturalista hipotética, ele teria se
refugiar em uma única medida coerente com sua visão de mundo: postergar o exame do
evento percebido e com isso reassegurar a viabilidade de uma explicação naturalista
potencial; seria preciso traçar uma hipótese alternativa ou buscar recrutar meios científicos
para naturalizar o fato miraculoso. Como Strauss observa, essa disposição cética, embora
possa justificar sua plausibilidade apelando para exemplos de outros fatos supostamente
miraculosos que foram desmascarados, contém uma aposta de fé na completude ideal da
ciência e na posse futura de um sistema do todo22. Esta razão enfraquece o argumento do
exame público.

Mas, dizíamos atrás, essa não é a primeira limitação da crítica iluminista; em vez disso, é a
própria estreiteza na definição do seu objeto que vem antes de mais nada. Os milagres são,
mesmo dentre as experiências relatadas pela vida de pessoas religiosas, fatos bastante raros,
mas não os únicos que desafiam a regularidade habitual das experiências sensíveis e o
funcionamento ordinário da mente. Os relatos religiosos, tanto as revelações canônicas
quanto as hagiografias e escritos dos místicos, não apontam somente alterações espetaculares
no funcionamento da natureza externa. Eles descrevem, às vezes em detalhes, uma ampla
gama de experiências não-ordinárias, da qual o milagre seria antes um caso particular.
Passamos aqui a enumerar um rol que não pretende ser exaustivo, mas somente dar ideia da
riqueza do manancial das experiências contidas nos relatos religiosos, dividindo-as nas
seguintes categorias: i) experiências sensíveis não-ordinárias internas – são experiências
sensíveis que podem ser percebidas somente pelo sujeito, sem que haja um objeto externo
geralmente verificável. São tais as visões de espíritos, deuses, anjos, demônios, entidades
mágicas, audições de vozes, alterações de cheiros, da textura de superfícies, etc ii)
experiências sensíveis não-ordinárias externas – são basicamente as mesmas que as
primeiras, mas podem ser usualmente percebidas, de forma heterônoma, por terceiros
envolvidos no contexto de uma prática (reiki, qigong, shifa, yogas de Naropa, etc) iii)
experiências de concentração não-ordinárias com suporte material – essa categoria abrange
a alteração na consciência obtida por meio de práticas concentrativas. O resultado almejado

22
STRAUSS, op.cit.
dessas práticas consiste em uma concentração anormalmente intensa em suportes como a
respiração, objetos sagrados, formas geométricas visualizadas, pontos do corpo, etc
produzindo variados graus de absorção e alterações de consciência covariantes iv)
experiências de concentração não-ordinárias com suporte ideal – neste caso, a concentração
repousa em uma ideação, conceito, fórmula significativa, cabendo produzir mudanças de
consciência diretamente associadas ao plano cognitivo. São tais a concentração em koans, o
lamrim das quatro nobres verdades, as numerosas formas de meditação vipassana no
budismo, o fikr reflexivo sufi, etc v) experiências de fissura e recomposição do ego – as
experiências de fissura e recomposição do ego se dão pela descoberta de alteridades psíquicas
dentro de um ego aparentemente unitário. Tendem a ser sucedidas pela recomposição de um
“novo ego” transfigurado; também emergem em raptos instantâneos da mente como aqueles
descritos pela linguagem sufi do hal, qal, ilham, etc vi) experiências de plenitude amorosa
universal – são as aberturas compassivas que ocorrem no caminho dos místicos cristãos e dos
bodhisattvas, por exemplo. No cristianismo, uma expressão clássica é o amor em Cristo
paulino, o ágape descrito na Carta aos Coríntios. vii) experiências de transcendência sensível
de si – são abarcadas pelos relatos de projeções astrais presentes no xamanismo, experiências
de transcendência sensível de si, bilocação, projeções da imagem para terceiros viii)
experiências de harmonia do mundo – são desvelamentos do sentido do mundo,
extremamente comuns no contexto de súplicas e orações. Ocorrem com graus de intensidade
variados, desde ajustes harmônicos singulares que marcam uma biografia, até a fruição
permanente da harmonia do mundo na estação espiritual que aparece no quinto estágio da
purificação sufi do ego, nafs ar-Radiyya xi) pré-cognição – pode-se denominar a
pré-cognição como o conhecimento de estados de coisas antes da sua configuração no
mundo, uma antecipação por via não-ordinária x) experiências unitivas e de aniquilação –
estão entre as mais frequentemente relatadas entre místicos avançados. Aparecem, por
exemplo, na escalada mística dos cistercienses, descrita por São Bernardo de Clairvaux ou no
fanabillah (na extinção do ego na Unidade de Deus) de Ibn Arabî.

Este rol é um pequeno mostruário organizado das possibilidades existentes para aqueles que
desejam trilhar um caminho ascético no seio de alguma religião constituída. As distinções
feitas acima entre material e ideal, fissura e recomposição, externo e interno, transcendência e
imanência, subjacente e instanciado, plenitude e esvaziamento, unidade e aniquilação
permanecem amplamente externas às teorias e tipologias da experiência espiritual
estabelecidas pela perspectiva das diversas linguagens religiosas. Em outras palavras, a
própria pertinência dessas distinções e sua adequação descritiva passa por inflexões nos
estratos ontológico, hermenêutico e semântico de cada linguagem invocada a título de
exemplo, e, internamente, às suas várias escolas e abordagens. Do mesmo modo, não há uma
única ontologia, epistemologia ou hermenêutica do milagre.

O sujeito que se dedicasse a delinear uma cosmografia da sua experiência interna que
contivesse visões, pré-cognição, sonhos antecipatórios, experiências de concentração
não-ordinárias, fissuras e recomposições do ego talvez não se classificasse como “observador
de bom senso” na acepção humeana da palavra. Contudo, se ele perde o status de observador
sensato ao alegar possuir essas experiências e ao utilizá-las para avaliar a plausibilidade do
milagre, então o critério cético cai na antinomia. Ou se elabora uma teoria sólida da
autoilusão universal das pessoas religiosas, por via das ciências cognitivas, ou se tropeça na
falácia do raciocínio circular – o observador não é razoável porque nenhuma pessoa razoável
pode alegar essas experiências, já que alegá-las não é razoável.

A existência de ampla literatura mística ao lado dos escritos revelados, produzida ao longo de
todos os séculos, chama a atenção para o fato de que há, ao menos, um nexo histórico entre as
supostas experiências da espiritualidade e a realização de certo conjunto de práticas ascéticas.
Esse nexo não se apresenta de forma dicotômica, mas num chiaroscuro matizado, cheio de
gradações. Quanto mais dedicado é o asceta, quanto mais puro ele se torna, maior clareza ele
ganha na compreensão das experiências que teve e novas, e mais significativas experiências,
se apresentam a ele. Quem se dedica à purificação ascética poderia contar com as primeiras
experiências iniciais que lhe abrem a imaginação e o apetite de novas possibilidades, assim
como fundamenta em um critério de plausibilidade, embora não de prova, a confiança nos
relatos de terceiros, testemunhas do que ele ainda não viu. Essa é a promessa contida na
estrutura lógica da ascética. É evidente, ademais, que, nos dias normais, um asceta era um
homem ou mulher que comungavam da fé; a fé era preliminar ao seu esforço de
aperfeiçoamento. Neste sentido, há uma mudança radical entre a nossa posição e a de um
religioso pré-moderno, e dado que a fé não pode mais ser assegurada por um ambiente social
determinado ela precisa ser, na estrutura mesma de seu apelo vocacional, já esoterizada.
Nesse caso, os simples relatos das possibilidades cognitivas da ascética se tornam um convite
com suficiente força de atração para que alguém, inspirado apenas por curiosidade filosófica
radical, resolva tomar a tarefa de experimentar e ver por si. O terceiro degrau, como estamos
designando a posição de quem realiza o fenômeno não-ordinário, é uma possibilidade aberta
a todos. Ao lançar um olhar equânime para a sua própria vivência, o observador, estabelecido
no ponto de vista espiritual, não sentiria mais a mesma dificuldade em admitir a razoabilidade
de relatos miraculosos contidos nas hagiografias e revelações canônicas. Compreendendo a
realidade, tanto de sua subjetividade quanto da natureza externa, em função dessa
cosmografia, ele estaria só então realmente apto a ultrapassar as fronteiras da episteme
ocidental racionalista. Mais importante ainda: se existem meios de se obter esse tipo de
conhecimento, em tese, é possível que qualquer indivíduo possa fruí-lo, com a condição de se
dedicar apropriadamente a percorrer o caminho compatível com a fruição prometida. A
curiosidade intelectual tem sido louvada como o dínamo da investigação científica e
historiográfica. Não haveria motivo para que essa curiosidade não pudesse incidir sobre o
próprio objeto da espiritualidade – a experiência do sagrado.

Cumpre ainda notar que a literatura religiosa, antiga ou contemporânea, evoca certa conexão
habitual entre a percepção direta de milagres e a conversão, consequentemente, entre
perceber os milagres e assumir uma cosmovisão na qual se pode acomodá-los como
ocorrências possíveis. No terceiro degrau temos uma evidência ainda mais forte, que só pode
ser demolida por uma dúvida destrutiva sobre a nossa própria capacidade mental. A visão
mais interna e autônoma é a do homem santo: trata-se da fortíssima conexão entre realizar os
milagres e possuir uma cosmovisão na qual essa realização é possível; se alguém se
dispusesse a tentar alcançar esse ponto de vista, a transformação necessária para tanto teria de
ser pavimentada por uma radical mudança, ao mesmo tempo, ética e cognitiva. Sob esse
prisma, a interpretação do texto revelado também adquire a notável e penetrante
profundidade do escrutínio das “sutilezas”, que na tradição islâmica são denominadas lataif
al-isharat. Não há como abolir a diferença, que radica em uma distinção lógica, entre o
conhecimento heterônomo e o autônomo. As experiências religiosas formam um espectro de
experiências não-ordinárias possíveis, em frontal desafio à imagem de mundo esclarecida.
Por outro lado, as várias metodologias presentes nas obras dos místicos, que incluem desde
jejuns e privações físicas a inúmeras formas de meditação e exercícios mentais, formam a
estrutura prática que prometem o acesso a tais experiências, e, por conseguinte, a superação
dessa imagem de mundo. Ela é vencida pela fruição do aspecto, por assim dizer, fenomênico
da religião.

A própria multiplicidade das religiões, derradeiro argumento da consciência esclarecida,


jamais implicou exatamente a negação da possibilidade dos fenômenos espirituais de outras
religiões. Em geral, a apologética religiosa colocava sob parêntese a natureza da fonte
daqueles fenômenos e a reta intenção de quem os realizava. Assim, Agostinho dirá que os
deuses pagãos são demônios e os seus taumaturgos feiticeiros, ao passo que no Islam os
deuses pertencem à categoria dos djinns e os sacerdotes das deusas lunares foram passados
pelo fio da espada. É comum encontrar nas hagiografias um subgênero literário interessante:
as histórias sobre disputa de poderes entre santos de religiões diversas. Na literatura islâmica
produzida na Índia, por exemplo, abundam histórias de disputas entre sufis e yogis sobre
quem tem maior poder23. Há implícita, nesses variados relatos, a ideia de que os fenômenos
extraordinários são comuns às várias religiões. Não se trata, portanto, da disputa adversativa e
antinômica entre milagre e fraude, mas apenas do fato de que o relato do milagre por si
mesmo não pode, e apenas ele, estabelecer a verdade de uma religião sem que os milagres das
outras religiões sejam reinterpretados em função de razões apologéticas.

Strauss corretamente percebeu que o núcleo da vitória racionalista sobre a religião é a crítica
filosófica do milagre; diríamos, de forma mais extensiva, que é a crítica da religião em todas
as suas manifestações fenomênicas, entre as quais o milagre. Mas, aqui cabe retomar um
ponto fundamental: a história do embate entre Jerusalém e Atenas será diferente nas duas
maiores civilizações que se colocam à sombra de Jerusalém. No mundo cristão, a filosofia
deixa a abóbada teológica, e da condição de disciplina auxiliar torna-se autônoma, perfura a
ortodoxia tradicional e opera a mais drástica transformação histórica do mundo já vista até
hoje, entre 1650 a 1790. No mundo islâmico, a filosofia pagã é, para usar a expressão do já
citado ensaio de Rémi Brague, absolutamente digerida. Avicena constrói na Enciclopédia das
Ciências o mais monumental edifício do pensamento filosófico islâmico. A partir daí,
praticamente cessa o interesse no exame dos textos gregos originais, substituídos na condição
de recurso à autoridade pela própria Enciclopédia. Voltando-se para o Oriente, aos filósofos
persas posteriores a Avicena só restará o caminho original de erigir uma teosofia, onde as
fronteiras entre a zetesis socrático-platônico-aristotélica e a Revelação Corânica serão para
todo o sempre borradas. Dessa forma, as sementes daquela misteriosa Filosofia Oriental

23
ERNST, Carl. Refractions of Islam in India. Sage, London: 2016
aviceniana irão frutificar no solo de uma espiritualidade unificada24, onde o conflito
Atenas-Jerusalém foi enfim solucionado.

O que Strauss não percebeu, talvez em virtude de sua conhecida fraqueza em matéria de
metafísica25, e por isso não pôde regressar a Jerusalém, é que há um laço íntimo entre
filosofia e religião. Este laço pode ser recuperado mediante a reconsideração de uma ascética
da forma de vida total, ou, em outros termos, mediante a recolocação da espiritualidade, já
acenada como via para a autotransformação da perspectiva do sujeito observador, como
método investigativo tanto da filosofia quanto do esoterismo. Como vimos, a validade lógica
do giro para a autonomia foi dada pela própria natureza das dimensões do conhecimento. Já
para fundar a ideia de uma ascética da forma de vida, e mostrar esse laço que une filosofia e
esoterismo religioso em uma mesma estrutura geral, é preciso recorrer às investigações de
Pierre Hadot e do último Foucault, com tudo o que elas implicam em matéria da revisão das
condições subjetivas de acesso à verdade.

Ainda uma última palavra sobre a experimentação do conhecimento autônomo.

Fica claro que essa possibilidade está aberta a todas as pessoas vinculadas ao ponto de vista
interno e experimental das religiões, o que implica que através dessa escalada não se pode
resolver o único problema que Hume levanta cuja relevância não pode ser reduzida e que, de
fato, não cessou de espantar mesmos os filósofos da religião mais recentes: a multiplicidade
delas. Caminhamos meticulosamente até onde é abolido o paradigma do racionalismo
moderno, mas não até onde se supera o problema da multiplicidade das religiões. Na verdade,
esse problema já está superado, mas não por meio de raciocínios filosóficos morosos, e, sim,
por meio de uma nova apologética que é, essencialmente e já na sua forma metódica, ação
política radical. Não obstante esse fato até agora um tanto obscuro, até onde nos é permitido
dizer nesse momento, diremos: Strauss não atinou com a saída para o impasse entre
Jerusalém e Atenas porque ele não pôde realizar o caminho entre elas, esse caminho que
passa, em nosso tempo, necessariamente, por uma terceira e misteriosa cidade, Alexandria.

24
CORBIN, Henry. History of Islamic Philosophy. London: ISS
25
Como muitos comentaristas notaram, Strauss não deu sinal de atribuir à teoria platônica das ideias a
importância que ela tem na obra de Platão.

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