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1.O que é o Mito do Dado?

Wilfrid Sellars, que é o responsável pelo rótulo, notoriamente deixa de


explicar em termos gerais o que ele quer dizer por isso. Como ele aponta, a
ideia de dadidade para o conhecimento, dadidade para um sujeito
cognoscente, pode ser inócua. [1] Então como ela se torna perniciosa? Aqui
vai uma sugestão: Dadidade no sentido do Mito seria uma disponibilidade de
cognição para os sujeitos cuja captação do que é supostamente Dado a
eles não depende de capacidades requeridas para o tipo de cognição em
questão.
Se isso é o que a Dadidade seria, é bem claro que ela deve ser mítica. Ter algo
Dado a você seria ser dado algo para conhecer sem necessitar ter as
capacidades que seriam necessárias para que se pudesse conseguir conhecê-lo.
E isso é incoerente.

Então como pode o Mito ser uma armadilha? Bom, poderia se cair no Mito se
não se percebesse que o conhecimento de um certo tipo requer certas
capacidades. E podemos ver como isso poderia ser um risco real, no contexto
no qual Sellars mais discute o Mito, considerando um ditado sellarsiano sobre
o conhecimento.

Sellars diz que atribuições de conhecimento posicionam episódios ou estados


“no espaço lógico das razões”. [2] Ele identifica o espaço lógico das razões
como o espaço “de justificar e ser capaz de justificar o que se diz”. Sellars
quer rejeitar uma visão externalista de satisfação epistêmica, uma visão de
acordo com a qual alguém pode estar justificado a ter uma crença sem estar
numa posição de saber o que o autoriza a tal. Conhecer coisas, da forma que
Sellars quer dizer em seu ditado, deve ser exercer capacidades que pertencem
à razão, concebida como a faculdade cujos exercícios incluem a vindicação de
uma autorização de se dizer coisas. Tal faculdade adquire sua primeira
atualidade, sua elevação acima da mera potencialidade, quando se aprende a
falar. Deve haver um potencial para a autoconsciência em suas operações.

Agora, considere como isso se aplica para o conhecimento perceptual. O


conhecimento perceptual envolve a sensibilidade; isto é, uma capacidade para
a responsividade diferencial a aspectos do ambiente, tornada possível por
sistemas sensórios propriamente funcionais. Mas a sensibilidade não pertence
à razão. Nós a compartilhamos com animais não-racionais. De acordo com o
ditado de Sellars, a faculdade racional que nos distingue dos animais não-
racionais deve também estar operativa no momento em que nos são dadas
[pela sensibilidade] coisas para conhecer.

Isso traz a nossa visão uma forma de se cair no Mito do Dado. O ditado de
Sellars implica que é uma forma do Mito achar que a sensibilidade por si só,
sem qualquer envolvimento de capacidades que pertencem a nossa
racionalidade, pode tornar as coisas disponíveis para a nossa cognição. Isso
coincide com uma doutrina básica de Kant.

Note que eu disse “para a nossa cognição”. Pode ser tentador objetar ao ditado
de Sellars alegando que ele nega conhecimento aos animais não-racionais. É
perfeitamente natural – a objeção afirma – falar de conhecimento quando
falamos sobre como a sensibilidade de animais não-racionais os permite lidar
competentemente com seus ambientes. Mas não há necessidade de ler Sellars,
ou Kant, como se estivessem negando isso. Podemos aceitar isso mas ainda
considerar que o ditado de Sellars, e a associada rejeição ao Mito do Dado,
expressam um insight. O ditado de Sellars caracteriza o conhecimento de um
tipo distinto, atribuível apenas a animais racionais. O Mito, na versão que eu
introduzi, é a ideia de que a sensibilidade por si só poderia tornar as coisas
disponíveis para o tipo de cognição que depende das capacidades racionais de
um sujeito.
2. Um juízo perceptual correto tem a sua inteligibilidade racional, equivalente
nesse caso à autorização epistêmica, de acordo com a experiência de um
sujeito. Ele julga que as coisas estão de tal e tal maneira porque a sua
experiência o revela que as coisas estão de tal e tal maneira: por exemplo, ele
vê que as coisas estão de tal e tal maneira. A inteligibilidade demonstrada por
tal explicação pertence a um tipo de inteligibilidade que também é
exemplificada quando um sujeito julga que as coisas estão de tal e tal maneira
porque a sua experiência meramente parece mostra-lo que as coisas estão de
tal e tal maneira. Esses usos do “porque” introduzem explicações que mostram
a racionalidade em operação. No tipo de caso com o qual comecei, a
racionalidade torna possível juízos corretos. No outro tipo de caso, a razão
leva seu possuidor ao engano, ou no máximo o permite fazer um juízo que é
verdadeiro meramente por acaso.
Em Kant, a faculdade mais elevada que nos distingue dos animais não-
racionais aparece na experiência na forma do entendimento, a faculdade dos
conceitos. Então para seguir o jeito de Kant de evitar o Mito do Dado nesse
contexto, devemos supor que capacidades que pertencem a essa faculdade –
capacidades conceituais – estão em jogo na forma como a experiência torna o
conhecimento disponível para nós.

Por enquanto, podemos tomar essa introdução da ideia de capacidades


conceituais de maneira bem abstrata. Tudo que precisamos saber até agora é
que elas devem ser capacidades que pertençam à faculdade da razão. Eu
tentarei ser mais específico posteriormente.
Eu invoquei a ideia de juízos que são racionalmente inteligíveis de acordo
com a experiência, no melhor caso na medida em que são revelados como
corretos. Existe uma interpretação de tal ideia que eu preciso rejeitar.

A ideia não é só que a experiência nos dá itens – experiências – dos quais os


juízos são respostas racionais. Isso seria consistente com a suposição de que
capacidades racionais estão operativas somente em respostas a experiências,
não nas experiências em si. Nessa visão, o envolvimento de capacidades
racionais ocorreria completamente após o fluxo de experiências.

Mas isso não faria justiça ao papel da experiência na nossa aquisição de


conhecimento. Como notei, até para Sellars não há nada de errado em dizer
que as coisas nos são dadas para conhecer. A ideia da dadidade se torna
mítica – ela se torna a ideia da Dadidade – apenas se falharmos em impor
os requisitos necessários para a captação do que é dado. E é na experiência
em si que temos as coisas dadas perceptualmente a nós para conhecer. Evitar o
Mito requer que capacidades que pertencem à razão estejam operativas na
experiência em si, não apenas em juízos nos quais respondemos à experiência.
3. Como devemos elaborar tal imagem? Eu costumava assumir que para
conceber as experiências como atualizações de capacidades conceituais,
deveríamos atribuir conteúdo proposicional às experiências, o tipo de
conteúdo que juízos possuem. E eu costumava assumir que o conteúdo de uma
experiência deveria incluir tudo que a experiência permite que alguém
conheça não-inferencialmente. Mas ambas assunções agora me parecem
equivocadas.

4. Deixe-me começar com a segunda. Podemos questiona-la mesmo se, por


enquanto, continuarmos a assumir que as experiências possuem conteúdo
proposicional. Suponha que eu tenha um pássaro no meu campo de visão, e
isso me coloca em uma posição de conhecer não-inferencialmente que ele é
um cardinal. Não é que eu infiro que o que eu vejo é um cardinal pela forma
que as coisas parecem, como quando eu identifico a espécie de um pássaro
comparando o que eu vejo com uma fotografia num guia de campo. Eu posso
imediatamente reconhecer cardinais se as condições de visibilidade forem
boas o suficiente.

Charles Travis me forçou a pensar em tais casos, e ao abandonar minha velha


assunção, eu estou parcialmente chegando a uma visão a qual ele me induziu.
Na minha velha assunção, já que a minha experiência me coloca numa
posição de conhecer não-inferencialmente que o que eu vejo é um cardinal,
seu conteúdo teria que incluir uma proposição na qual o conceito de um
cardinal aparece: talvez uma proposição exprimível, na ocasião, dizendo
“Aquilo é um cardinal”. Mas o que me parece correto é isso: a minha
experiência torna o pássaro visualmente presente a mim, e a minha capacidade
recognitiva me permite saber não-inferencialmente que o que eu vejo é um
cardinal. Mesmo se eu continuar assumindo que a minha experiência possui
conteúdo, não há necessidade de supor que o conceito sob o qual a minha
capacidade recognitiva me permite saber o que eu vejo figura em tal conteúdo.
Considere uma experiência tida, em circunstâncias semelhantes, por alguém
que não consegue identificar imediatamente que o que ele vê é um cardinal.
Talvez ele nem tenha o conceito de um cardinal. A sua experiência pode ser
que nem a minha na maneira como ela torna o pássaro visualmente presente a
ele. Para mim, o que eu vejo parece (parece ser) um cardinal, e para ele não.
Mas isso é apenas dizer que a minha experiência me inclina, e a experiência
similar dele não o inclina, a dizer que aquilo é um cardinal. Não há nenhuma
base aqui para insistir que o conceito de um cardinal deve figurar no conteúdo
da minha experiência em si.
Seria correto dizer que eu sou diferente da outra pessoa na medida em que eu
vejo que o pássaro é um cardinal; a minha experiência me revela que é um
cardinal. Mas isso não é nenhum problema para o que estou propondo. Tais
locuções – “Eu vejo que…”, “Minha experiência me mostra que…” –
aceitam, em suas “que…” cláusulas, especificações de coisas que a
experiência de alguém o coloca na posição de saber não-inferencialmente. [4]
Isso pode incluir conhecimento que a experiência torna disponível ao trazer
algo à vista para alguém que tem uma capacidade recognitiva adequada. E
como eu insisti, o conteúdo, cuja figuração em tal conhecimento se deve à
capacidade recognitiva, não precisa ser parte do conteúdo da experiência em
si.

5. Deveríamos concluir que capacidades conceituais não estão operativas no


momento em que se tem objetos visualmente presentes a alguém, mas apenas
no que alguém julga do que de qualquer forma se vê? Deveríamos abandonar
a própria ideia de que as experiências perceptuais tidas por animais racionais
não possuem conteúdo conceitual?

Isso seria drástico demais. Nada no que eu disse sobre capacidades


recognitivas desaloja o argumento de que, sob pena de se cair no Mito do
Dado, as capacidades que pertencem à faculdade cognitiva mais elevada
devem estar operativas na experiência. Ao dar a alguém coisas para conhecer,
a experiência deve exercer capacidades conceituais. Alguns conceitos que
figuram no conhecimento provido por uma experiência podem ser excluídos
do conteúdo da experiência em si, na maneira como eu ilustrei com o conceito
de um cardinal, mas nem todos podem.

Um ponto de parada natural, para as experiências visuais, seriam os sensíveis


próprios da visão [aquilo que é percebido apenas pela visão] e os sensíveis
comuns [aquilo que é percebido também por outros sentidos] acessíveis à
visão. Devemos conceber a experiência como exercendo capacidades
conceituais associadas com os conceitos de sensíveis próprios e comuns.

Então devemos supor que a minha experiência quando vejo um cardinal


possui conteúdo proposicional envolvendo sensíveis próprios e comuns? Isso
preservaria uma das assunções que eu costumava fazer. Mas eu acredito que
essa assunção está equivocada também. O que nós precisamos é de uma ideia
de conteúdo que não é proposicional, mas intuicional, no que eu tomo como o
sentido kantiano.

“Intuição” é a tradução padrão do termo kantiano “Anschauung”. A


etimologia de “intuição” se adequa à noção de Kant, e Kant usa uma
expressão cognata quando escreve em Latim. Mas precisamos esquecer muito
da ressonância filosófica de tal palavra. Um Anschauung é um ter-em-vista.
(Como é usual na filosofia, Kant trata a experiência visual como exemplária).

Kant diz: “A mesma função que dá unidade a várias representações em um


juízo também dá unidade à mera síntese de várias representações em uma
intuição; e essa unidade, na sua mais geral expressão, nós intitulamos como o
conceito puro do entendimento”. [5] A capacidade cujo exercício no
julgamento é responsável pela unidade do conteúdo de juízos – unidade
proposicional – também é responsável pela correspondente unidade no
conteúdo de intuições. Sellars dá uma ilustração útil: a unidade proposicional
em um juízo exprimível por “Isso é um cubo” corresponde à unidade
intuicional exprimível por “esse cubo”. [6] A frase demonstrativa pode
parcialmente capturar o conteúdo de uma intuição na qual se é visualmente
apresentado com um cubo. (Retornarei a isso).

A unidade proposicional vem em várias formas. Kant pega uma classificação


das formas de julgamento, e assim das formas de unidade proposicional, da
lógica de sua época, e trabalha para descrever uma forma de unidade
intuicional correspondente para cada. Mas a ideia de que formas de unidade
intuicional devam corresponder a formas de unidade proposicional pode ser
separada dos detalhes de como Kant a elabora. Não é óbvio o porquê de Kant
acreditar que a ideia requer que para cada forma de unidade proposicional
deve-se corresponder uma forma de unidade intuicional. E, de qualquer forma,
não precisamos seguir Kant em seu inventário de formas de unidade
proposicional.

Michael Thompson identificou uma distintiva forma de unidade proposicional


para o pensamento e fala sobre os vivos como tais. [7] O ponto primário de
Thompson é sobre uma forma exemplificada ao dizer o que coisas animadas
de um certo tipo fazem, como em “Lobos caçam em bandos” ou “A celidônia-
menor floresce na primavera”. Mas o pensamento de Thompson pode
naturalmente ser estendido para uma forma ou formas exemplificadas na fala
do que coisas animadas individuais estão fazendo, como em “Aqueles lobos
estão caçando” ou “Essa celidônia-menor está florescendo”. [8] E estaria no
espírito da concepção de Kant identificar uma forma correspondente ou
formas correspondentes à unidade intuicional, uma das quais poderíamos
identificar na minha experiência visual de um cardinal. O conceito de um
pássaro, assim como o conceito de um cardinal, não precisa fazer parte do
conteúdo da experiência; as mesmas considerações se aplicariam. Mas talvez
nós possamos dizer que tal conceito me é dado em tal experiência, não que
seja algo que eu sei por exercer uma capacidade conceitual sobre o que eu de
qualquer forma vejo, mas que o que eu vejo é um animal – não porque
“animal” expressa parte do conteúdo unificado na experiência de acordo com
uma certa forma de unidade intuicional, mas porque “animal” captura a forma
categorial de uma intuição, o tipo distintivo de unidade que ela possui.
Os sensíveis comuns acessíveis à visão são modos de ocupação espacial:
forma, tamanho, posição, movimento ou sua ausência. Numa intuição
unificada por uma forma capturável por “animal”, podemos reconhecer
conteúdo, sob a classificação de modos de ocupação espacial, que não poderia
figurar em intuições de objetos inanimados. Podemos pensar sobre sensíveis
comuns acessíveis à visão como incluindo, por exemplo, posturas tais como
pousar ou modos de locomoção tais como pular e voar.

Podemos evitar tais questões nos concentrando, como Sellars faz, na


presencidade de coisas como cubos coloridos. Mas mesmo com esse foco
restrito, ainda há uma complicação. Se pode haver intuições visuais cujo
conteúdo é parcialmente especificável por, digamos, “aquele cubo”, intuições
nas quais algo sendo cúbico é visualmente dado a alguém, então a faculdade
cognitiva mais elevada [razão] deve estar na nossa imagem não apenas por ser
responsável pela unidade com a qual certos conteúdos figuram em tal intuição,
mas também, na forma da imaginação produtiva, como provendo parte do
conteúdo em si – nos dando, assim, o resto do cubo, atrás da superfície visível.
Sellars frequentemente usa o exemplo de um cubo de gelo rosa, e uma razão
para isso é presumivelmente que tal exemplo o permite não se preocupar com
essa complicação, porque ele imagina seu cubo de gelo como transluzente, de
modo que o seu lado de trás possa ser visto. [9]
6. Até agora, capacidades conceituais estão em cena apenas como o tipo de
capacidades que deve estar em jogo na experiência se quisermos evitar o
Mito: capacidades que pertencem à racionalidade em um sentido exigente.
Mas eu prometi ser mais específico.

Se a ideia do conceitual seleciona um tipo de conteúdo, parece certo focar no


conteúdo de juízos, já que julgar é o paradigmático exercício da racionalidade
teorética.
Podemos pensar em juízos como os análogos internos das asserções. Isso
torna natural contar o julgamento como uma atividade discursiva, apesar de
que a ideia de discurso tenha a sua aplicação primária em performances
manifestas. [10] Numa asserção, alguém torna algo discursivamente explícito.
E a ideia de tornar as coisas explícitas se estende sem esforço ao julgamento.
Podemos dizer que alguém torna o que se julga explícito a si mesmo.
Eu disse que deveríamos centrar nossa ideia do conceitual no conteúdo de
juízos. Mas agora que introduzi a ideia do discursivo, eu posso colocar o
ponto dessa forma: deveríamos centrar a ideia do conceitual no conteúdo da
atividade discursiva.

Agora, intuir não é discursivo, mesmo no sentido estendido no qual o


julgamento é. O conteúdo discursivo é articulado. O conteúdo intuicional não
é. Parte do ponto é o de que há tipicamente aspectos do conteúdo de uma
intuição que o sujeito não tem nenhuma forma de tornar discursivamente
explícitos. Intuições visuais tipicamente apresentam a alguém características
visíveis de objetos que não se está equipado para atribuir aos objetos fazendo
predicações apropriadas em alegações ou juízos. Para transformar tal aspecto
do conteúdo de uma intuição no conteúdo associado com uma capacidade que
é discursiva no sentido primário, seria necessário esculpi-lo, dessa forma, a
partir do conteúdo categorialmente unificado, mas ainda conteúdo
inarticulado, da intuição determinando-o como o significado de uma
expressão linguística, a qual se estabelece como um meio para tornar tal
conteúdo explícito. (Isso pode ser através da cunhagem de um adjetivo. Ou a
expressão pode ser algo como “ter tal tom de cor”). Talvez possamos ignorar a
linguagem e equiparmo-nos com uma capacidade correlata que é discursiva no
sentido no qual um julgamento é discursivo. Haveria a mesma necessidade de
isolar um aspecto do conteúdo da intuição, determinando-o como sendo o
conteúdo associado com uma capacidade de fazer predicações nos
julgamentos.
E articular vai além de intuir mesmo se nos restringirmos a aspectos do
conteúdo intuicional que estão associados com capacidades discursivas que já
se tem.

Em interações discursivas com conteúdo, se junta significâncias. Isso é


particularmente claro com performances discursivas no sentido primário, cujo
conteúdo é a significância de uma combinação de expressões significativas.
Mas apesar de julgar não precisar ser concebido como um ato estendido no
tempo, como fazer uma alegação, o seu ser discursivo envolve um correlato da
maneira como se junta significâncias na fala significativa.

Eu pretendo que isso seja consistente com rejeitar, como devemos, a ideia de
que os conteúdos que se juta na atividade discursiva são blocos de construção
autônomos, elementos separadamente pensáveis no conteúdo de alegações ou
juízos. Pode-se pensar na significância de, digamos, uma expressão
predicativa apenas no contexto de um pensamento no qual o conteúdo ocorre
predicativamente. Mas podemos reconhecer isso e ainda dizer que na
atividade discursiva juntamos conteúdos, de uma forma que pode ser
modelada no ato de unificar expressões significativas no discurso literal.

Não é assim que ocorre com o conteúdo intuicional. A unidade do conteúdo


intuicional é dada, não é o resultado de nosso juntar significâncias. Mesmo se
a exploração discursiva de algum conteúdo dado na intuição não requeira que
se adquira uma nova capacidade discursiva, é preciso esculpir tal conteúdo a
partir do conteúdo inarticulado de uma intuição antes que se possa junta-lo a
outros bits de conteúdo na atividade discursiva. O intuir não esculpe o
conteúdo dessa forma para alguém.
Se o conteúdo intuicional não é discursivo, por que insistir que é conceitual?
Porque todo aspecto do conteúdo de uma intuição está presente numa forma
na qual ele já está adequado para ser o conteúdo associado com uma
capacidade discursiva, se não estiver – ao menos até então – de fato assim
associado. Isso é parte da força de dizer, com Kant, que o que dá unidade a
intuições é a mesma função que dá unidade aos juízos. Se um sujeito ainda
não possui a capacidade discursiva associada com algum aspecto do conteúdo
de sua intuição, tudo que ele precisa fazer, para adquirir tal capacidade
discursiva, é isolar tal aspecto se equipando com um meio de tornar tal
conteúdo – o próprio conteúdo – explícito na fala ou julgamento. O conteúdo
de uma intuição é tal que seu sujeito pode analisa-lo em significâncias para
capacidades discursivas, quer isso requeira ou não a introdução de novas
capacidades discursivas associadas com tais significâncias. Quer por meio da
introdução de novas capacidades discursivas ou não, o sujeito de uma intuição
está numa posição de juntar aspectos de seu conteúdo, o próprio conteúdo que
já está lá na intuição, em performances discursivas.

Eu disse que a unidade do conteúdo intuicional é dado. Kant às vezes sugere


uma imagem diferente. Ele diz, por exemplo, que “toda combinação,
estejamos nós conscientes dela ou não… é um ato do entendimento
(Verstandeshandung)” (B130). No seu contexto, tal observação implica que
nós ativamente juntamos conteúdo nas intuições não menos que em juízos
(apesar de que com intuições a atividade deva ser inconsciente). E isso não vai
bem com a minha afirmação de que o conteúdo intuicional não é discursivo.
Mas Kant não precisa manter que a unidade do conteúdo intuicional não é
dado. O que ele realmente quer insistir é que ele não é Dado: que ele não é
provido pela sensibilidade sozinha. Ao intuir, capacidades que pertencem à
faculdade cognitiva mais elevada estão em jogo. A unidade do conteúdo
intuicional reflete uma operação da mesma função unificadora que está
presente nos juízos, nesse caso ativamente exercida. É por isso que é correto
dizer que o conteúdo unificado em intuições é do mesmo tipo que o conteúdo
unificado em juízos: isto é, conteúdo conceitual. Nós não poderíamos ter
intuições, com suas específicas formas de unidade, se não pudéssemos fazer
juízos, com suas correspondentes formas de unidade. Podemos até dizer que a
função provedora de unidade é essencialmente a faculdade de atividade
discursiva, uma capacidade de julgar. Mas suas operações no prover da
unidade de intuições não é um caso de atividade discursiva.
Não que seja o caso de uma atividade pré-discursiva, ao menos se isso
significar que intuir é um precursor mais primitivo de julgar. Os dois tipos de
unidade que Kant diz serem providos pela mesma função, a unidade das
intuições e a unidade dos juízos, estão no mesmo nível.

7.Numa intuição visual, um objeto está visualmente presente a um sujeito com


as características que são visíveis ao sujeito do seu ponto de vista. É através
da presença dessas características que o objeto está presente. De que outra
forma poderia um objeto se apresentar a alguém?

O conceito de um objeto aqui é formal. Nos termos de Kant, uma categoria,


um conceito puro do entendimento, é um conceito de um objeto em geral. Um
conceito formal, como podemos naturalmente dizer, de um tipo de objeto é
explicado pela especificação de uma forma de unidade categorial, uma forma
do tipo de unidade que caracteriza intuições. Talvez, como eu sugeri, seguindo
Thompson, “animal” pode ser entendido como expressando tal conceito.

Na explicação que eu tenho dado, ter um objeto presente a você numa intuição
é a atualização de capacidades que são conceituais, num sentido que pertence
à tese de Kant de que o que é responsável pela unidade com a qual o conteúdo
associado figura na intuição é a mesma função que dá a unidade aos juízos. Eu
insisti que apesar da função que dá tal unidade ser uma faculdade de atividade
discursiva, não é na atividade discursiva que essas capacidades entram em
operação nas intuições. Com muito do conteúdo de uma intuição visual
ordinária, as capacidades que estão em jogo quando nós o temos como parte
do conteúdo da nossa intuição não são sequer suscetíveis a exercício
discursivo. Podemos fazer uso do conteúdo ser dado numa intuição para
adquirir uma capacidade discursiva nova, mas com muito do conteúdo de uma
intuição ordinária, isso nunca ocorre. (Pense nas formas e tons de cor
finamente discrimináveis que a experiência visual nos apresenta). Contudo, o
conteúdo de uma intuição é todo conceitual, no seguinte sentido: ele está na
intuição numa forma na qual se poderia fazer com que esse mesmo conteúdo
figurasse numa atividade discursiva. Isso seria explorar um potencial para a
atividade discursiva que já está lá nas capacidades atualizadas ao se ter uma
intuição com aquele conteúdo. [11]

Numa intuição, um objeto se apresenta a nós mesmo se não explorarmos seu


potencial para a atividade discursiva. Kant diz que o “eu penso” da
apercepção deve ser capaz de acompanhar todas as
minhas Vorstellungen (representações), num sentido que está relacionado à
ideia de operações da função que dá unidade tanto a juízos quanto a intuições
(B131). Um objeto se apresenta a um sujeito em uma intuição quer ou não o
“eu penso” acompanhe quaisquer dos conteúdos da intuição. Mas qualquer
conteúdo de uma intuição deve ser capaz de ser acompanhado pelo “eu
penso”. E o “eu penso” acompanhar algum conteúdo de uma intuição, por
exemplo, uma intuição visual minha, é eu julgar que eu estou visualmente
confrontado com um objeto de tais e tais características. Já que a intuição
torna o objeto visualmente presente a mim através de tais características, tal
juízo seria correto.
Agora temos em vista duas maneiras pelas quais as intuições tornam possíveis
juízos corretos.
Uma delas é a que eu acabei de descrever. Um potencial para a atividade
discursiva sempre está presente enquanto uma intuição possui conteúdo. E é
possível explorar um pouco desse potencial num juízo correto que reutiliza
alguma parte do conteúdo da intuição. No tipo de caso que primeiro nos abre a
essa possibilidade, nós adicionamos uma referência à primeira pessoa.
Quando o “eu penso” acompanha algum conteúdo fornecido em uma intuição,
isso acarreta um juízo correto de que estou sendo confrontado por um objeto
com tais e tais características. Mas estar numa posição de fazer tal juízo é
estar numa posição de julgar que há um objeto com tais e tais características
em uma localização tal e tal. Não é preciso referir-se a si mesmo num juízo
cujo status como correto depende no seu ser uma exploração discursiva de
alguma parte do conteúdo de uma intuição.

A outra maneira pela qual as intuições tornam o conhecimento possível é


aquela que ilustrei com meu conhecimento de que o pássaro que eu vejo é um
cardinal. Aqui um juízo correto tornado possível por uma intuição tem
conteúdo que vai além do conteúdo da intuição. A intuição torna algo
perceptualmente presente ao sujeito e o sujeito reconhece que aquela coisa é
uma instância de um tipo. Ou como um indivíduo; parece razoável encontrar
uma estrutura correspondente num caso no qual a experiência permite que se
conheça não-inferencialmente com quem é que se está perceptualmente
confrontado.
8.Travis insiste que a experiência não representa as coisas dessa forma. [12]
Se as experiências forem intuições, ele está estritamente correto. Qualquer
coisa que representa as coisas dessa forma tem conteúdo proposicional, e eu
estive apresentando uma concepção de intuições na qual elas não possuem
conteúdo proposicional. Mas apesar de Travis estar correto sobre a natureza
da tese de que as experiências representam as coisas dessa forma, ele está
incorreto sobre o espírito de tal tese, como podemos ver ao considerarmos a
primeira das duas maneiras pelas quais as intuições tornam possíveis juízos
corretos. Mesmo não sendo discursivas, as intuições possuem conteúdo de um
tipo que corporifica um potencial imediato para a exploração do mesmo
conteúdo num juízo correto. As intuições imediatamente revelam que as
coisas são do modo que elas seriam julgadas como sendo naqueles juízos.

Quando Sellars introduz o caráter conceitual que ele atribui a experiências, ele
descreve experiências como “por assim dizer, fazendo” alegações ou
“contendo” alegações. [13] Se experiências são intuições, isso está
similarmente errado em natureza mas correto em espírito. Intuições não
possuem o tipo de conteúdo que alegações possuem. Mas intuições
imediatamente revelam as coisas como sendo como elas seriam alegadas
como sendo em alegações que não seriam nada mais que explorações
discursivas de alguma parte do conteúdo das intuições.

Quando Travis diz que as experiências não representam as coisas dessa forma,
ele não quer dizer eu as experiências são intuições no sentido que venho
explicando. Ele diz que a experiência não é um caso de intencionalidade, e eu
acho que é justo entende-lo como negando que quaisquer capacidades
conceituais estejam em jogo na experiência. As experiências visuais nos
trazem os nossos arredores à vista; isso deve ser ponto pacífico. A ideia de
Travis é a de que a forma como a experiência torna [um tipo de]
conhecimento disponível para nós pode ser entendida, de maneira geral, com
base no modelo de como uma experiência pode me permitir saber que o que
eu vejo é um cardinal. Na imagem de Travis, capacidades conceituais entram
em jogo apenas no nosso julgar, como podemos, o que as experiências visuais
de qualquer forma nos trazem à vista, independentemente de qualquer
operação de nossas capacidades conceituais. [14] Na imagem de Travis, ter as
coisas em vista não depende de nossas capacidades conceituais. E se não
depende de capacidades conceituais, ter as coisas em vista deve ser provido
pela sensibilidade sozinha.

O problema com isso é o de que é uma forma do Mito do Dado. Nós não
caímos no Mito só por supor que características de nossos arredores nos são
dadas na experiência visual. Mas na imagem de Travis, essa dadidade se torna
um caso de Dadidade.

Travis acredita que a ideia de que experiências possuem conteúdo conflita


com a ideia de que a experiência diretamente nos traz nossos arredores à vista.
Ele não está só em pensar assim. [15] Querendo, como é razoável, manter a
ideia de que a experiência diretamente nos traz nossos arredores à vista, ele é
levado a negar que as experiências possuem conteúdo. Mas não há conflito.
As intuições, como eu as expliquei, diretamente nos trazem objetos à vista
através do trazer suas propriedades perceptíveis à vista. As intuições o fazem
precisamente por ter o tipo de conteúdo que possuem.

Se as intuições tornam [um tipo de] conhecimento disponível para nós,


intuições meramente aparentes meramente aparentemente tornam [um tipo de]
conhecimento disponível para nós. É frequentemente pensado que quando as
pessoas insistem que as experiências possuem conteúdo, elas estão
respondendo a uma necessidade sentida de acomodar o fato de que a
experiência pode nos enganar. [16] Mas o motivo adequado para creditar
experiências com conteúdo é o de que devemos evitar o Mito do Dado. Dar
espaço para experiências enganadoras é um subproduto inegável.

9.Donald Davidson alega que “nada pode contar como uma razão para ter uma
crença exceto uma outra crença”. [17] O seu ponto é negar que crenças podem
ser tomadas como racionais à luz de episódios ou estados na consciência
sensória – ao menos que isso signifique que elas podem ser tomadas como
racionais à luz de crenças sobre episódios ou estados na consciência sensória.
Isso colocaria a relevância racional potencial de crenças sobre episódios ou
estados na consciência sensória no mesmo nível da relevância racional
potencial de crenças sobre qualquer coisa sobre o qual se pode ter crenças.
Em trabalhos prévios, eu tomei o slogan de Davidson como refletindo
um insight: que capacidades conceituais devem estar em jogo não só na
formação racional de crenças ou no fazer juízos, mas também no ter as
autorizações [entitlements] racionais que exploramos ao fazer isso. Mas insisti
que o insight, assim entendido, permite que juízos possam ser tomados como
racionais à luz das experiências em si, não apenas à luz de crenças sobre
experiências, já que podemos entender as experiências como atualizações de
capacidades conceituais. [18]
Tentando explicitar tal possibilidade, que não encontrei na imagem de
Davidson, eu fiz uma das assunções que eu renunciei: que se as experiências
são atualizações de capacidades conceituais, elas devem possuir conteúdo
proposicional. Isso deu a Davidson uma abertura para uma resposta
reveladora.

Davidson argumentou que, se por “experiência”, nós queiramos dizer algo


com conteúdo proposicional, ela só pode ser um caso de tomar as coisas como
estando de tal e tal forma, distintiva em ser causada pelo impacto que o
ambiente tem sobre o nosso aparato sensório. Mas é claro que a imagem dele
[já] inclui tais coisas. Então eu estava errado, ele alegou, em supor que havia
algo faltando em sua imagem. [19]

Eu quero insistir, contra Davidson, que ter experiência não é tomar as coisas
como estando de tal e tal forma. Como Travis insiste, nossas experiências
visuais trazem os nosso arredores à vista. Parte do que nós somos por isso
autorizados a tomar como estando de tal e tal forma, em juízos que seriam
racionais dado o que é visualmente presente a nós, nós tomamos sim como
estando de tal e tal forma. Mas mesmo quando nós separamos o [processo de]
aquisição de crenças do [ato de] explicitamente julgar as coisas como estando
de tal e tal forma, como deveríamos, nós exageraríamos a extensão da
atividade doxástica a qual a experiência nos impele se supuséssemos que
adquirimos todas as crenças às quais nós estamos autorizados através daquilo
que temos em vista.

Então eu concordo com Travis que as experiências visuais apenas trazem os


nossos arredores à vista, e assim nos autorizam a tomar certas coisas como
estando de tal e tal forma, mas deixando como uma questão adicional o que,
se alguma coisa, nós tomamos como estando de tal e tal forma. Mas como eu
argumentei, a versão de Travis desse pensamento cai no Mito do Dado. E se
nós evitarmos o Mito concebendo as experiências como atualizações de
capacidades conceituais, ainda retendo a assunção de que isso requer creditar
as experiências com conteúdo proposicional, então o ponto de Davidson
parece correto. Se as experiências possuem conteúdo proposicional, é difícil
negar que ter uma experiência é tomar as coisas como estando de tal e tal
forma, ao invés do que eu quero: um tipo diferente de coisa que nos autorize a
tomar as coisas como estando de tal e tal forma.
Se a experiência abrange intuições, existe um meio-termo entre essas
posições. As intuições trazem os nossos arredores à vista, mas não em uma
operação de mera sensibilidade, então nós evitamos a forma de Travis do Mito
do Dado. Mas o conteúdo conceitual que nos permite evitar o Mito é
intuicional, não proposicional, então ter experiências não é tomar as coisas
como estando de tal e tal forma. Ao trazer os nossos arredores à vista, as
experiências nos autorizam [nos dão justificação para o ato de/] a tomar as
coisas como estando de tal e tal forma. Se o fazemos ou não é uma questão
adicional.
Como eu disse, existem duas maneiras pelas quais a experiência, concebida
como abrangendo intuições, nos autoriza a jogadas com conteúdo discursivo.
Ela nos autoriza a juízos que explorariam parte do conteúdo de uma intuição,
e ela figura em nossa autorização a juízos que vão além desse conteúdo em
formas que refletem capacidades de reconhecer coisas presentes a nós em uma
intuição. Mas como eu insisti, ao intuir nós não lidamos discursivamente com
o conteúdo.

Eu mencionei a proposta de Sellars de que o conteúdo de uma intuição pode


ser capturado, em parte, por uma forma de palavras como “esse cubo
vermelho”. Um conteúdo expressado dessa forma seria um conteúdo
discursivo fragmentário. Pode ser parte do conteúdo de um juízo garantido na
segunda daquelas duas maneiras, onde o que alguém julga inclui, além do
conteúdo contido na intuição em si, conceitos cuja participação no juízo
reflete capacidades recognitivas exercidas em algo que a intuição torna
presente para nós. Assim, uma parte do discurso que começa com “Esse cubo
vermelho…” pode continuar como “…é aquele que eu vi ontem”.

Eu acredito que isso indica que a proposta de Sellars é útil até certo ponto. Ela
pode parecer implicar que o conteúdo intuicional é essencialmente conteúdo
discursivo fragmentário. Mas o conteúdo intuicional não é nenhum pouco
discursivo. Ter algo em vista pode tornar possível uma expressão
demonstrativa, ou um análogo no juízo, mas o potencial não precisa ser
atualizado

10. O slogan de Davidson como formulado restringe a maneira como crenças


podem ser tomadas como racionais para explorações em
estruturas inferenciais. Ele implica que dar uma razão para ter uma crença é
retratar o conteúdo da crença como a conclusão de uma inferência com o
conteúdo de uma outra crença como uma premissa.
Eu me propus a modificar o slogan de Davidson dizendo que não só crenças
mas também as experiências podem ser razões para crenças. E de acordo com
a minha velha assunção, as experiências possuem o mesmo tipo de conteúdo
que crenças. Então foi compreensível que eu fosse interpretado como
recomendando uma concepção inferencial, ou ao menos quase-inferencial, do
modo como a experiência nos autoriza a crenças perceptuais. [20]

Não era isso que eu pretendia. Eu não queria insinuar que a experiência nos dá
premissas para inferências cujas conclusões são os conteúdos de crenças
perceptuais. Pelo contrário, eu acredito que a experiência nos
revela diretamente as coisas como acreditamos que elas sejam em crenças
perceptuais, ou ao menos aparentam fazer isso. Mas é difícil fazer isso coerir
com a suposição de que as experiências possuem o mesmo tipo de conteúdo
que crenças. Essa é só uma forma de registrar o quão persuasiva é a resposta
de Davidson de que “não tem nada faltando”, contanto que nós não
questionemos a assunção de que o conteúdo conceitual das experiências teria
de ser proposicional.
Tomar a experiência como abrangendo intuições, no sentido em que expliquei,
remove tal problema. Não deveria nem parecer que a forma pela qual as
intuições nos autorizam a crenças envolve uma estrutura inferencial. Se um
objeto está presente para alguém através da presença para alguém de algumas
de suas propriedades, numa intuição na qual os conceitos de tais propriedades
exemplificam uma unidade que constitui o conteúdo de um conceito formal de
um objeto, podemos assim ser autorizados a julgar que estamos sendo
confrontados por um objeto com tais propriedades. A autorização deriva
da presença para nós do objeto em si disponível para nós ao ser o conteúdo de
nossa experiência, não de uma premissa para uma inferência.
Na interpretação que ofereci no início, a visão de Sellars do Mito como uma
armadilha a ser evitada, ao pensarmos sobre a experiência, é uma aplicação de
seu pensamento de que o conhecimento, como tido por animais racionais,
depende de nossas capacidades distintivamente racionais. Eu acabo de
explicar como isso não implica que a justificação para tal juízo perceptual é
quase-inferencial. [21]
Encontrar tal implicação é a mesma coisa que achar que o entendimento
kantiano de Sellars do que o conhecimento é para animais racionais sobre-
intelectuailiza a nossa vida epistêmica. [22] Isso precisa ser discutido, mas eu
terminarei brevemente argumentando que isso é o exato oposto da verdade.

Uma concepção intelectualista do intelecto humano o considera como algo


distinto de nossa natureza animal. O melhor antídoto é ver tais capacidades da
razão como operativas até mesmo em nossa consciência perceptual irreflexiva.

É completamente errado acreditar que a concepção de Sellars implica que toda


a nossa vida epistêmica é ativamente guiada por nós, através da luz brilhante
da razão. Que capacidades racionais estão penetrantemente em jogo em nossa
vida epistêmica humana é refletido no fato de que qualquer parte
dela pode ser acompanhada pelo “eu penso” da autoconsciência explícita. Mas
apesar de toda nossa vida epistêmica ser capaz de ser acompanhada pelo “eu
penso”, em boa parte dela nós apenas seguimos o fluxo.
Eu disse que toda nossa vida epistêmica pode ser acompanhada pelo “eu
penso”. As ocorrências subpessoais no nosso maquinário cognitivo não são
um contraexemplo a essa alegação. Elas não são, no sentido relevante, parte
de nossa vida epistêmica. Sem dúvida o conhecimento sobre como o nosso
maquinário cognitivo funciona é essencial para um entendimento completo de
como pode ser que as nossas capacidades epistêmicas são como são. Mas ter
uma posição no espaço das razões – por exemplo, estar numa posição onde se
vê que as coisas estão de tal e tal forma – não é um assunto subpessoal. É
verdade que o maquinário subpessoal que nos permite ter tais posições opera
fora do alcance de nossa apercepção. E existem, não surpreendentemente,
similaridades entre o nosso maquinário cognitivo subpessoal e o maquinário
cognitivo de animais não-racionais. Mas isso não ameaça a ideia de que
animais racionais são especiais em ter posições epistêmicas às quais é
essencial que possam ser disponíveis à apercepção.

O que torna a concepção internalista de Sellars apropriada para o nosso


conhecimento perceptual não é que na percepção nós participamos de uma
atividade racional nos moldes do raciocínio – algo que pode ser considerado
como separado da nossa natureza animal, especificamente, para propósitos
presentes, da nossa natureza senciente. Isso seria sobre-intelectualizar o nosso
conhecimento perceptual. Mas a razão pela qual o internalismo está correto
sobre o nosso conhecimento perceptual é que as capacidades racionais, e
portanto a disponibilidade para a apercepção, permeiam a nossa experiência
em si, incluindo a experiência na qual agimos irreflexivamente no nosso lidar
com os nossos arredores. Tal é a forma que o engajamento animal com o
ambiente perceptível toma no caso de animais racionais.
Tradução: Haslley Queiroz Freitas

REFERÊNCIAS
[1] – “Empirismo e Filosofia da Mente”, §1.

[2] – “Empirismo e Filosofia da Mente”, §2.

[3] – Agradeço ao Travis por muita discussão prestativa.

[4] – Essas locuções podem até ser entendidas de tal forma que credenciais
inferenciais não sejam negados para o conhecimento em questão. Considere,
por exemplo, “Eu vejo que o carteiro ainda não veio hoje”.
[5] – Crítica da Razão Pura, A79/B104-5.
[6] – Science and Metaphysics, p. 5.
[7] – Ver “The Representation of Life”.

[8] – Uma forma ou formas: talvez devamos distinguir uma versão animal de
uma versão não-animal. Um caso especial da versão animal seria uma forma
para a falta da ação intencional, que é o tópico de G.E.M.
Anscombe, Intention.
[9] – Ver Willem A. deVries Wilfrid Sellars, p. 305, n. 18.
[10] – Talvez já seja metafórico até nessa aplicação. Veja Stephen Engstrom,
“Sensibility and Understanding”, para algumas observações sobre como o
entendimento discursivo pode ser concebido como operando, que é o que a
etimologia do termo indica que deveria significar.

[11] – Conteúdo intuicional que não é trazido para a atividade discursiva é


facilmente esquecido. Isso não apresenta nenhum desafio para o dizer que ele
é conteúdo conceitual, no sentido que eu tentei explicar. Veja Sean Dorrance
Kelly, “Demonstrative Concepts and Experience”.

[12] – Ver “The Silence of the Senses”.

[13] – “Empirismo e Filosofia da Mente”, §16.

[14] – “In making out, or trying to, what it is that we confront”: “The Silence
of the Senses”, p. 65.

[15] – Ver, e.g. Bill Brewer, “Perception and Content”.

[16] – Ver Brewer, “Perception and Content”.

[17] – “A Coherence Theory of Truth and Knowledge”, p. 141.


[18] – Ver, e.g., Mente e Mundo.
[19] – Para uma expressão particularmente clara, ver “Reply to John
McDowell”. Colegas de Davidson em Berkeley opinaram em uma veia
semelhante. Ver Barry Stroud, “Sense-Experience and the Grounding of
Thought”, e Hannah Ginsborg, “Reasons for Belief”. Para uma visão
semelhante, independente de Davidson, ver Kahtrin Glüer, “On Perceiving
That”.

[20] – Ver Crispin Wright, “Human Nature?”.

[21] – Para a ideia de que a rejeição de Sellars do Mito do Dado se resume à


tese de que a justificação dos juízos perceptuais é inferencial ou quase-
inferencial, ver Daniel Bonevac, “Sellars vs. the Given”.

[22] – Veja Tyler Burge, “Perceptual Entitlement”.

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