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Então como pode o Mito ser uma armadilha? Bom, poderia se cair no Mito se
não se percebesse que o conhecimento de um certo tipo requer certas
capacidades. E podemos ver como isso poderia ser um risco real, no contexto
no qual Sellars mais discute o Mito, considerando um ditado sellarsiano sobre
o conhecimento.
Isso traz a nossa visão uma forma de se cair no Mito do Dado. O ditado de
Sellars implica que é uma forma do Mito achar que a sensibilidade por si só,
sem qualquer envolvimento de capacidades que pertencem a nossa
racionalidade, pode tornar as coisas disponíveis para a nossa cognição. Isso
coincide com uma doutrina básica de Kant.
Note que eu disse “para a nossa cognição”. Pode ser tentador objetar ao ditado
de Sellars alegando que ele nega conhecimento aos animais não-racionais. É
perfeitamente natural – a objeção afirma – falar de conhecimento quando
falamos sobre como a sensibilidade de animais não-racionais os permite lidar
competentemente com seus ambientes. Mas não há necessidade de ler Sellars,
ou Kant, como se estivessem negando isso. Podemos aceitar isso mas ainda
considerar que o ditado de Sellars, e a associada rejeição ao Mito do Dado,
expressam um insight. O ditado de Sellars caracteriza o conhecimento de um
tipo distinto, atribuível apenas a animais racionais. O Mito, na versão que eu
introduzi, é a ideia de que a sensibilidade por si só poderia tornar as coisas
disponíveis para o tipo de cognição que depende das capacidades racionais de
um sujeito.
2. Um juízo perceptual correto tem a sua inteligibilidade racional, equivalente
nesse caso à autorização epistêmica, de acordo com a experiência de um
sujeito. Ele julga que as coisas estão de tal e tal maneira porque a sua
experiência o revela que as coisas estão de tal e tal maneira: por exemplo, ele
vê que as coisas estão de tal e tal maneira. A inteligibilidade demonstrada por
tal explicação pertence a um tipo de inteligibilidade que também é
exemplificada quando um sujeito julga que as coisas estão de tal e tal maneira
porque a sua experiência meramente parece mostra-lo que as coisas estão de
tal e tal maneira. Esses usos do “porque” introduzem explicações que mostram
a racionalidade em operação. No tipo de caso com o qual comecei, a
racionalidade torna possível juízos corretos. No outro tipo de caso, a razão
leva seu possuidor ao engano, ou no máximo o permite fazer um juízo que é
verdadeiro meramente por acaso.
Em Kant, a faculdade mais elevada que nos distingue dos animais não-
racionais aparece na experiência na forma do entendimento, a faculdade dos
conceitos. Então para seguir o jeito de Kant de evitar o Mito do Dado nesse
contexto, devemos supor que capacidades que pertencem a essa faculdade –
capacidades conceituais – estão em jogo na forma como a experiência torna o
conhecimento disponível para nós.
Eu pretendo que isso seja consistente com rejeitar, como devemos, a ideia de
que os conteúdos que se juta na atividade discursiva são blocos de construção
autônomos, elementos separadamente pensáveis no conteúdo de alegações ou
juízos. Pode-se pensar na significância de, digamos, uma expressão
predicativa apenas no contexto de um pensamento no qual o conteúdo ocorre
predicativamente. Mas podemos reconhecer isso e ainda dizer que na
atividade discursiva juntamos conteúdos, de uma forma que pode ser
modelada no ato de unificar expressões significativas no discurso literal.
Na explicação que eu tenho dado, ter um objeto presente a você numa intuição
é a atualização de capacidades que são conceituais, num sentido que pertence
à tese de Kant de que o que é responsável pela unidade com a qual o conteúdo
associado figura na intuição é a mesma função que dá a unidade aos juízos. Eu
insisti que apesar da função que dá tal unidade ser uma faculdade de atividade
discursiva, não é na atividade discursiva que essas capacidades entram em
operação nas intuições. Com muito do conteúdo de uma intuição visual
ordinária, as capacidades que estão em jogo quando nós o temos como parte
do conteúdo da nossa intuição não são sequer suscetíveis a exercício
discursivo. Podemos fazer uso do conteúdo ser dado numa intuição para
adquirir uma capacidade discursiva nova, mas com muito do conteúdo de uma
intuição ordinária, isso nunca ocorre. (Pense nas formas e tons de cor
finamente discrimináveis que a experiência visual nos apresenta). Contudo, o
conteúdo de uma intuição é todo conceitual, no seguinte sentido: ele está na
intuição numa forma na qual se poderia fazer com que esse mesmo conteúdo
figurasse numa atividade discursiva. Isso seria explorar um potencial para a
atividade discursiva que já está lá nas capacidades atualizadas ao se ter uma
intuição com aquele conteúdo. [11]
Quando Sellars introduz o caráter conceitual que ele atribui a experiências, ele
descreve experiências como “por assim dizer, fazendo” alegações ou
“contendo” alegações. [13] Se experiências são intuições, isso está
similarmente errado em natureza mas correto em espírito. Intuições não
possuem o tipo de conteúdo que alegações possuem. Mas intuições
imediatamente revelam as coisas como sendo como elas seriam alegadas
como sendo em alegações que não seriam nada mais que explorações
discursivas de alguma parte do conteúdo das intuições.
Quando Travis diz que as experiências não representam as coisas dessa forma,
ele não quer dizer eu as experiências são intuições no sentido que venho
explicando. Ele diz que a experiência não é um caso de intencionalidade, e eu
acho que é justo entende-lo como negando que quaisquer capacidades
conceituais estejam em jogo na experiência. As experiências visuais nos
trazem os nossos arredores à vista; isso deve ser ponto pacífico. A ideia de
Travis é a de que a forma como a experiência torna [um tipo de]
conhecimento disponível para nós pode ser entendida, de maneira geral, com
base no modelo de como uma experiência pode me permitir saber que o que
eu vejo é um cardinal. Na imagem de Travis, capacidades conceituais entram
em jogo apenas no nosso julgar, como podemos, o que as experiências visuais
de qualquer forma nos trazem à vista, independentemente de qualquer
operação de nossas capacidades conceituais. [14] Na imagem de Travis, ter as
coisas em vista não depende de nossas capacidades conceituais. E se não
depende de capacidades conceituais, ter as coisas em vista deve ser provido
pela sensibilidade sozinha.
O problema com isso é o de que é uma forma do Mito do Dado. Nós não
caímos no Mito só por supor que características de nossos arredores nos são
dadas na experiência visual. Mas na imagem de Travis, essa dadidade se torna
um caso de Dadidade.
9.Donald Davidson alega que “nada pode contar como uma razão para ter uma
crença exceto uma outra crença”. [17] O seu ponto é negar que crenças podem
ser tomadas como racionais à luz de episódios ou estados na consciência
sensória – ao menos que isso signifique que elas podem ser tomadas como
racionais à luz de crenças sobre episódios ou estados na consciência sensória.
Isso colocaria a relevância racional potencial de crenças sobre episódios ou
estados na consciência sensória no mesmo nível da relevância racional
potencial de crenças sobre qualquer coisa sobre o qual se pode ter crenças.
Em trabalhos prévios, eu tomei o slogan de Davidson como refletindo
um insight: que capacidades conceituais devem estar em jogo não só na
formação racional de crenças ou no fazer juízos, mas também no ter as
autorizações [entitlements] racionais que exploramos ao fazer isso. Mas insisti
que o insight, assim entendido, permite que juízos possam ser tomados como
racionais à luz das experiências em si, não apenas à luz de crenças sobre
experiências, já que podemos entender as experiências como atualizações de
capacidades conceituais. [18]
Tentando explicitar tal possibilidade, que não encontrei na imagem de
Davidson, eu fiz uma das assunções que eu renunciei: que se as experiências
são atualizações de capacidades conceituais, elas devem possuir conteúdo
proposicional. Isso deu a Davidson uma abertura para uma resposta
reveladora.
Eu quero insistir, contra Davidson, que ter experiência não é tomar as coisas
como estando de tal e tal forma. Como Travis insiste, nossas experiências
visuais trazem os nosso arredores à vista. Parte do que nós somos por isso
autorizados a tomar como estando de tal e tal forma, em juízos que seriam
racionais dado o que é visualmente presente a nós, nós tomamos sim como
estando de tal e tal forma. Mas mesmo quando nós separamos o [processo de]
aquisição de crenças do [ato de] explicitamente julgar as coisas como estando
de tal e tal forma, como deveríamos, nós exageraríamos a extensão da
atividade doxástica a qual a experiência nos impele se supuséssemos que
adquirimos todas as crenças às quais nós estamos autorizados através daquilo
que temos em vista.
Eu acredito que isso indica que a proposta de Sellars é útil até certo ponto. Ela
pode parecer implicar que o conteúdo intuicional é essencialmente conteúdo
discursivo fragmentário. Mas o conteúdo intuicional não é nenhum pouco
discursivo. Ter algo em vista pode tornar possível uma expressão
demonstrativa, ou um análogo no juízo, mas o potencial não precisa ser
atualizado
Não era isso que eu pretendia. Eu não queria insinuar que a experiência nos dá
premissas para inferências cujas conclusões são os conteúdos de crenças
perceptuais. Pelo contrário, eu acredito que a experiência nos
revela diretamente as coisas como acreditamos que elas sejam em crenças
perceptuais, ou ao menos aparentam fazer isso. Mas é difícil fazer isso coerir
com a suposição de que as experiências possuem o mesmo tipo de conteúdo
que crenças. Essa é só uma forma de registrar o quão persuasiva é a resposta
de Davidson de que “não tem nada faltando”, contanto que nós não
questionemos a assunção de que o conteúdo conceitual das experiências teria
de ser proposicional.
Tomar a experiência como abrangendo intuições, no sentido em que expliquei,
remove tal problema. Não deveria nem parecer que a forma pela qual as
intuições nos autorizam a crenças envolve uma estrutura inferencial. Se um
objeto está presente para alguém através da presença para alguém de algumas
de suas propriedades, numa intuição na qual os conceitos de tais propriedades
exemplificam uma unidade que constitui o conteúdo de um conceito formal de
um objeto, podemos assim ser autorizados a julgar que estamos sendo
confrontados por um objeto com tais propriedades. A autorização deriva
da presença para nós do objeto em si disponível para nós ao ser o conteúdo de
nossa experiência, não de uma premissa para uma inferência.
Na interpretação que ofereci no início, a visão de Sellars do Mito como uma
armadilha a ser evitada, ao pensarmos sobre a experiência, é uma aplicação de
seu pensamento de que o conhecimento, como tido por animais racionais,
depende de nossas capacidades distintivamente racionais. Eu acabo de
explicar como isso não implica que a justificação para tal juízo perceptual é
quase-inferencial. [21]
Encontrar tal implicação é a mesma coisa que achar que o entendimento
kantiano de Sellars do que o conhecimento é para animais racionais sobre-
intelectuailiza a nossa vida epistêmica. [22] Isso precisa ser discutido, mas eu
terminarei brevemente argumentando que isso é o exato oposto da verdade.
REFERÊNCIAS
[1] – “Empirismo e Filosofia da Mente”, §1.
[4] – Essas locuções podem até ser entendidas de tal forma que credenciais
inferenciais não sejam negados para o conhecimento em questão. Considere,
por exemplo, “Eu vejo que o carteiro ainda não veio hoje”.
[5] – Crítica da Razão Pura, A79/B104-5.
[6] – Science and Metaphysics, p. 5.
[7] – Ver “The Representation of Life”.
[8] – Uma forma ou formas: talvez devamos distinguir uma versão animal de
uma versão não-animal. Um caso especial da versão animal seria uma forma
para a falta da ação intencional, que é o tópico de G.E.M.
Anscombe, Intention.
[9] – Ver Willem A. deVries Wilfrid Sellars, p. 305, n. 18.
[10] – Talvez já seja metafórico até nessa aplicação. Veja Stephen Engstrom,
“Sensibility and Understanding”, para algumas observações sobre como o
entendimento discursivo pode ser concebido como operando, que é o que a
etimologia do termo indica que deveria significar.
[14] – “In making out, or trying to, what it is that we confront”: “The Silence
of the Senses”, p. 65.