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Experiência hermenêutica e formação

para o reconhecimento em Gadamer


RAIMUNDO RAJOBAC∗

Resumo
O objetivo do artigo é refletir sobre os conceitos de formação e
reconhecimento no contexto da racionalidade hermenêutica gadameriana e
seu ideal de experiência hermenêutica como abertura e reconhecimento do
outro. Nas trilhas de Hans-Georg Gadamer nossa atenção recairá sobre a
crítica a respeito do conceito de experiência oriundo do modo relacional
objetificador das ciências naturais, o qual em última instância passou a
determinar o modo relacional entre os seres humanos. Apontaremos, a partir
daí, para a pertinência do conceito de experiência hermenêutica para se
pensar processos formativos no contexto atual de sociedades plurais e
complexas, uma vez que o mesmo só é possível enquanto abertura para a
alteridade.
Palavras-chave: Experiência Hermenêutica; Formação; Reconhecimento.

Abstract
The objective of this is to reflection about the concepts of training and
recognition in the context of rationality Gadamer's hermeneutics and his
ideal of experience as a hermeneutical openness and recognition of the other.
On the trail of Hans-Georg Gadamer our attention will be on critical about
the concept of experience derived from the relational mode of objectifying
the natural sciences, which ultimately went on to determine the relational
mode between human beings. Point out, from there to the relevance of the
concept of hermeneutic experience to think about formative processes in the
current context of plural societies and complex, since it is only possible
while openness to otherness.
Key words: Experience Hermeneutics; Formation; Recognition.


RAIMUNDO RAJOBAC é professor efetivo no Departamento de Música da UFRGS e
Doutorando em Educação pela PUCRS.

1
Da atualidade desenvolvidas e
temática da civilizadas, também
formação para o foi uma vocação para
reconhecimento o não
reconhecimento. A
O que significa
história já
discutir formação
descortinou inúmeras
para o
questões relativas à
reconhecimento em
resistência ao
nossa época, qual a
diferente; também
importância dessa
pensadores e grupos
temática para a
diversos dedicaram e
sociedade atual e
dedicam vidas
qual o papel da
inteiras a essa temática: muitos avanços
educação nesse processo? Estas
podem ser notados. Nosso trabalho
parecem ser as questões fundamentais
que devem orientar nosso espírito pretende ser uma contribuição a mais
nesse processo, tematizando a
durante a reflexão aqui proposta. As
importância do reconhecimento a partir
sociedades e culturas percebem-se
de uma superação vocacional
diferentes a cada dia. Contudo, vivemos
epistemológica que a ciência moderna
num intervalo social patológico entre o
plantou nas sociedades contemporâneas,
encantamento com o diferente nas
culturas e a resistência ao que é entendendo-o enquanto problema de
estranho. Num mundo que se descobre formação. São cada vez mais frequentes
plural, parece sintomático, depararmo- em nossa época posturas intolerantes,
nos a cada dia com perspectivas políticas excludentes e reações violentas
intolerantes, fundamentalistas e a grupos e pessoas; a pergunta que cabe
totalitárias, que vão da esfera política à aqui é: não teriam a sociedades
religiosa ferindo modos de ser e viver. aprendido o suficiente a partir das
A vocação moderna para a colonização experiências desastrosas anteriores de
fundou um ideal de sociedade, cujo colonização?
modelo principal foi o modo de vida A sociedade esclarecida que quis o
europeu. Não precisaríamos de um Iluminismo entende-se diferente, mas
esforço desmedido para lembrarmo-nos resiste à aceitação do mesmo. São cada
das marcas profundas deixadas em vez mais claras as iniciativas
diversos continentes pelos processos de colonizadoras entre países e povos, os
colonização mediados pela violência de quais tomam como critério de poder e
fato ou simbólica. dominação o fato de ser ou não
Enrique Dussel apresentou-nos bem tal desenvolvido tecnicamente: assim,
problemática ao tematizar quando não subjugam povos pelo poder
“descobrimento” enquanto tecnológico simbólico, o fazem pela
“encobrimento do outro”.1 Muitos violência bélica da tecnologia. Entende-
exemplos de violência e resistência ao se a partir daqui, a necessidade de se
diferente poderiam ser citados no discutirem processos formativos na
decorrer da história: de fato, a vocação perspectiva da aceitação e
para a colonização das sociedades ditas reconhecimento do diferente: esta
apresenta-se em nossa época como uma
1
Ver: DUSSEL, 1492 – O encobrimento do das principais tarefas da pedagogia: o
outro: a origem do mito da modernidade. 1993. homem contemporâneo carece de

2
formação para conviver entendendo-se modernidade que se deu o chão fecundo
em sua individualidade para reconhecer para o surgimento das discussões em
o mundo indecifrável que é o outro. torno das relações subjetivas do sujeito
com o que lhe é estranho, foi também
A história do conhecimento ocidental
com a ideia de um sujeito capaz de
em sentido lato é, na verdade, a história
dominar e explorar mecânica e
da formação. Cada momento da história
matematicamente o mundo exterior a
da produção do conhecimento ocidental
ele, que se firmou o relacionamento
nasceu como projeto formativo que ao
diretivista e dicotômico entre sujeito e
partir da paideia grega passou pelo
objeto, que ao extrapolar o âmbito
medievo, culminando com a humanitas
epistemológico, gerou um sujeito
renascentista e a bildung alemã. Assim,
refratário ao diferente que, ao se deparar
entendemos, que ao refletir criticamente
com o outro, o entende na perspectiva
sobre problemas de ordem
do próprio sujeito, e não como algo
epistemológica e sua manifestação na
estranho e infinitamente inacessível.
esfera da vida, dirigimo-nos
necessariamente a um problema de
formação, que na perspectiva Que significa discutir formação para o
epistemológica é apresentado à reconhecimento? E qual a possibilidade
pedagogia como desafio na de se tematizar formação para a
contemporaneidade. alteridade em Hans-Georg Gadamer? A
condição moderna permite-nos trabalhar
A preocupação com o modo como o com a hipótese de que discutir o
sujeito se relaciona com o outro numa problema da formação no contexto das
perspectiva subjetiva, nem sempre foi sociedades plurais e complexas
tomada como foco central das significa, dentre outras coisas, superar
discussões filosóficas. Basta um olhar criticamente o cenário metodológico e
em retrospecto e notaremos que dos epistemológico fundador de um sujeito
Pré-socráticos à filosofia socrática, determinador: o que só se faz possível a
platônica e aristotélica prevalecem partir da retomada crítica da teoria da
temas cosmológicos, metafísicos, ciência moderna e suas pretensões. Daí
epistemológicos, políticos e éticos, os a ideia segundo a qual a hermenêutica
quais não conferem à perspectiva do gadameriana pode contribuir em tal
estranhamento, da alteridade, a debate, uma vez que reside em
pungência necessária. Também durante Gadamer, um esforço contínuo de
o pensamento medieval o outro não foi superação do método das ciências da
tomado como temática específica da natureza, principalmente quando este
reflexão teológico-filosófica; foi passa a determinar nosso modo de ser
somente no contexto do pensamento no mundo. Com Gadamer
moderno que tal discussão encontrou o aprenderemos que a experiência do
espaço necessário, o qual nasce da universo científico-natural não responde
pergunta a respeito da relação pela totalidade de nossa experiência
intersubjetiva do sujeito com o mundana, e que a dimensão do
diferente. estranhamento constitui-se no
fundamento antropológico da
O nascimento da modernidade e a
experiência hermenêutica, a qual
instauração do cogito cartesiano
poderá, segundo a pretensão do presente
estabeleceu o sujeito enquanto condição
estudo, justificar um ideal de formação
a priori e o exterior a ele como estrutura
para o reconhecimento.
disponível. Dessa forma, se foi com a

3
Sobre a experiência hermenêutica experiência só é válida quando,
amparada metodologicamente, sempre
O conceito de experiência é discutido
por Gadamer no final da segunda parte se confirma. Qual o caminho tomado
por Gadamer para esclarecer tal
de Verdade e método2, “A extensão da
questão da verdade à compreensão nas problemática e retomar o sentido
originário do conceito de experiência?
ciências do espírito” como segundo
subtópico do penúltimo tópico “Análise Após apontar o esforço e limites de
da consciência da historia efeitual” com Husserl em superar a unilateralidade
o título de “o conceito de experiência e imposta ao conceito de experiência pela
a essência da experiência teoria da ciência fundando o conceito de
hermenêutica”. Esse momento é mundo da vida que antecede a própria
tematizado pelo teórico perpassado pela ciência3, Gadamer embarca num
ideia segundo a qual “é uma ilusão processo interpretativo retroativo que
considerar o outro como um retoma o ponto de partida inicial da
instrumento que se pode abranger com a teoria da ciência e lógica modernas, o
vista e dominar totalmente” qual aponta o método experimental de
(GADAMER, 2007, p. 470). Bacon enquanto organização técnica da
Gadamer está convencido de que a natureza, como momento a ser
acomodação pela qual passou o reinterpretado criticamente caso
conceito de experiência no contexto da queiramos romper com o conceito
produção do conhecimento desde o moderno de experiência. Nesse sentido,
teria sido melhor por parte dos
florescer da modernidade torna-o hoje,
interpretes de Bacon, terem difundido
por mais estranho que possa parecer,
que “sua verdadeira contribuição
um conceito dos menos elucidados: nós
consiste, antes, numa investigação
o entendemos sempre na perspectiva
abrangente dos preconceitos que
das ciências da natureza e da
ocupam o espírito humano e que
“esquematização epistemológica
desviam do verdadeiro conhecimento
[comum às mesmas]” (GADAMER,
das coisas” (GADAMER, 2007, p. 457).
2007, p 453). Foi com o objetivo de
No contexto do nascimento da ciência
problematizar a análise da consciência
moderna, a validade da experiência
da história efeitual, que Gadamer fez
obrigatória a retomada do sentido ligou-se necessariamente à não-
contradição da mesma por uma nova
originário de experiência que
extrapolasse o pretendido pela ciência experiência: esse modo unilateral de
conceber a experiência é o que precisa
positiva moderna; posto que “o objetivo
da ciência é tornar a experiência tão ser superado, uma vez que em Gadamer,
a experiência possível na estrutura
objetiva a ponto de anular nela qualquer
elemento histórico” (GADAMER, dinâmica da linguagem é sempre
dialética.
2007, p. 454), o que em última instância
impede-a de dar conta do modo
complexo de o homem ser no mundo e
3
com os outros durante a história. Nesse Para Gadamer (2007), o próprio Husserl
sentido, a ciência moderna tende a parece também estar dominado pela
perpetuar a ideia de que toda e qualquer unilateralidade que ele critica, ao projetar o
mundo idealizado das ciências extas sobre a
experiência original de mundo, na medida em
2
GADAMER, H. G. Wahrheit und Methode: que faz da percepção, enquanto experiência
Grundzünge eiher Philosophischen exterior e orientada à mera corporalidade, o
Hermeneutik, 1960. fundamento de toda experiência ulterior.

4
Para Gadamer, a ciência moderna reteve (GADAMER, 2007, p. 465). Em outras
o que interessou a Aristóteles na palavras, a dialética hegeliana continua
experiência: “unicamente sua presa ao modelo científico-natural, uma
contribuição para a formação dos vez que, quem determina é sempre o
conceitos [...] [contudo,] quando se sujeito absoluto, e que a experiência de
considera a experiência na perspectiva estranhamento existe sempre para
de seu resultado, passa-se por cima do confirmar a postura de um saber
verdadeiro processo da experiência” absoluto que torna a experiência a
(GADAMER, 2007, p. 461). Chegar ao própria ciência. Dirá Gadamer:
conceito de experiência hermenêutica
exige, portanto, a retomada de seu A própria experiência jamais pode
sentido dialético originário que só se faz ser ciência. Ela detém uma
possível enquanto linguagem: Gadamer oposição insuperável frente ao
o faz, ao retomar as contribuições e saber e frente àquele ensinamento
limites de Hegel nesse processo. De fato que provem de um saber geral
foi Hegel quem interpretou o conceito teórico ou técnico. A verdade da
de experiência “[...] como auto- experiência contém sempre a
referência a novas experiências.
realização do ceticismo” (GADAMER,
Nesse sentido, a pessoa a quem
2007, p. 462), entendendo-a como chamamos experimentada não é
dimensão fundamental das somente alguém que se tornou o
transformações pelas quais passam que é através das experiências, mas
nosso saber. Daí a ideia geral sobre o alguém que está aberto a
caráter dialético da experiência, posto, experiências. A consumação de sua
que sempre que experimenta, a experiência, o ser pleno daquele a
consciência volta-se sobre se mesma, quem chamamos “experimentado”,
torna-se consciente do experimentado, e não consiste em saber tudo nem em
ganha um novo horizonte dentro da saber mais que todo mundo. Ao
macroestrutura de sua experiência de contrário, o homem experimentado
evita sempre e de modo absoluto o
mundo. O movimento do espírito em
dogmatismo, e precisamente por ter
Hegel aponta então, para a inversão no feito tantas experiências e
processo da experiência: a consciência aprendido graças a tanta
que experimenta passa a reconhecer a si experiência está particularmente
mesma no outro, no que é estranho a capacitado para voltar a fazer
ela. experiências e delas aprender. A
dialética da experiência tem sua
Como é característico da postura própria consumação não num saber
gadameriana, o teórico busca em Hegel concludente, mas nessa abertura à
a dose de acerto de sua descrição experiência que é posta em
dialética da experiência, e em seguida funcionamento pela própria
aponta seus limites na busca por novas experiência (GADAMER, 2007, p.
saídas. A suspeita de Gadamer é que, a 465).
aplicação de Hegel não faz justiça ao
conceito pretendido de experiência A citação acima apresenta o estatuto
hermenêutica, uma vez que ao qualitativamente novo do conceito de
movimentar-se em direção ao estranho, experiência hermenêutica pretendido
a consciência retorna sobre si mesma; por Gadamer. Experiência aqui não é
assim, “[...] a consumação da mais uma ferramenta usada para
experiência é a ‘ciência’, a certeza de si determinados fins, a mesma, é
mesmo no saber [absoluto]” entendida em seu todo, compondo

5
necessariamente a essência histórica4 do perpetuada pela ciência moderna, a qual
homem. Assim, novas experiências marcou profundamente os processos
exigem necessariamente, ao compor a formativos no ocidente. Daí a ideia de
essência histórica do homem, a que a formação para a ciência, tal como
frustração de muitas expectativas, para a entendemos hoje, apresenta-se como o
que se tornem possíveis novas grande desafio para se pensar o
experiências5. “Experiência é, portanto, problema da formação no contexto de
experiência da finitude humana; sociedades plurais e complexas com a
[Consequentemente], é experimentado em que vivemos.
[...] aquele que tem consciência dessa
Formação para o reconhecimento ou
limitação, [...] que sabe que não é
sobre as maneiras de experimentar o
senhor do tempo nem do futuro, [que]
tu
conhece os limites de toda previsão e a
insegurança de todo plano” O ideal de experiência hermenêutica
(GADAMER, 2007, p. 466-467). No orienta a uma profunda mudança na
todo da obra Verdade e método o novo estrutura da experiência como pretendeu
conceito de experiência contribui para o projeto formativo moderno orientado
os questionamentos a respeito do modo pela teoria da ciência. A mudança
de ser da consciência da história apresentada por Gadamer requer,
efeitual; Gadamer quer mostrar que portanto, o rompimento com formas de
experiência hermenêutica tem haver reconhecimento instrumetalizadoras;
com a tradição enquanto linguagem que para, tanto o teórico nos apresenta três
nos fala por si mesma como algo formas de experiência do tu.
estranho: como um tu. Dessa forma, A primeira experiência do tu
assim como a tradição, o outro, não caracteriza-se superficial e consiste em
deve ser entendido como acontecimento detectar elementos típicos a partir da
dominável por meio da experiência. observação do comportamento de quem
A novidade de Gadamer é a se faz próximo. O resultado desse
“experiência do tu” (GADAMER, 2007, processo é sempre a previsão de quem
p. 468) como experiência específica na experimentou em relação às atitudes do
qual o objeto da experiência outro. Nas palavras de Gadamer:
personifica-se. Por esse motivo a “compreendemos o outro da mesma
experiência hermenêutica caracteriza-se maneira que compreendemos qualquer
como um fenômeno moral, processo típico dentro do nosso campo
principalmente porque ela passa a da experiência [...] e seu
envolver a compreensão do outro. Esse comportamento nos serve como meios
novo estatuto confere duros golpes à para nossos fins” (2007, p. 468). Do
concepção tradicional de experiência ponto de vista moral, essa atitude em
relação ao outro se apresenta
problemática por se caracterizar egoísta
4
Para Gadamer (2007) o limite da dialética e contradizer a determinação moral do
hegeliana reside em entende a história absorvida homem6. O máximo que conseguimos
na autoconsciência absoluta da filosofia.
5
Ao buscar um novo conceito de experiência
aqui é o conhecimento das pessoas
Gadamer (2007) mostra que a experiência não
6
chega a um fim, conferindo ao sujeito uma Lembra Gadamer (2007), sabe-se que uma das
forma suprema de saber como pretendeu Hegel. formas de interpretação que Kant dá ao
Na experiência hermenêutica chega ao limite imperativo categórico é que se deve jamais usar
absoluto todo dogmatismo nascido do coração o outro como meio, mas reconhece-lo como fim
humano que se deixa possuir por seus desejos. em si.

6
convertendo-as em objetos, retirando do primeira, a qual reduz o outro a objeto
processo relacional todos os momentos de cálculo, contudo, corre-se o risco da
de subjetividade, característica herdada prisão permanente na aparência
da crença desenfreada no método e na dialética geradora de um senhor que
objetividade. A crítica de Gadamer continuará a desconhecer a alteridade do
retoma a metodologia das ciências outro.
sociais do século XVIII e o papel de
Partindo daí Gadamer chega ao que
Hume na maneira esquemático-natural
denomina de a mais elevada maneira de
com a qual experimentamos. Neste
experiência hermenêutica: “[...] a
cenário a experiência hermenêutica
abertura à tradição, própria da
encontra-se limitada, uma vez que o
consciência da história efeitual”
comportamento humano e seu modo de
(GADAMER, 2007, p. 471), a qual se
ser no mundo são reduzidos a um
relaciona diretamente com a originária
acontecimento objetivo e esquemático.
experiência do tu. Nesse caso, a
Reconhecer o outro como pessoa é a verdadeira experiência do tu só é
característica central da segunda possível na medida em que nas relações
maneira de experimentar o tu. Contudo, humanas permitamos que o tu nos diga
mesmo ao incluir a pessoa na algo: a primeira exigência para esse
experiência, ao compreender o processo é a capacidade de abertura
diferente, a referência é sempre o sujeito mútua para o diferente. Diz-nos
conhecedor. Estabelece-se uma Gadamer:
aparência dialética, que naturalmente Sem essa abertura mútua, tampouco
compõe a “relação-eu-tu” (GADAMER, pode existir verdadeiro vínculo
2007, p 469), mas, mediada pela humano. A pertença mútua
reflexão. Dessa forma, posto que significa sempre e ao mesmo tempo
qualquer pretensão de conhecimento poder ouvir uns aos outros. Quando
gera necessariamente uma pretensão dois se compreendem, isto não quer
oposta, é sempre possível que uma das dizer que um “compreenda” o
outro, isto é, que o olhe de cima
partes imbricadas sobreponha-se
para baixo. E igualmente “escutar
reflexivamente sobre a outra, retirando alguém” não significa
do tu a imediatez necessária ao processo simplesmente realizar às cegas o
da compreensão mútua. Aqui o tu é que o outro quer. Agir assim
compreendido de forma antecipada por significa ser submisso. A abertura
um processo reflexivo no qual alguém para o outro implica, pois, o
sempre determinará, perde-se nesse reconhecimento de que devo estar
processo a dimensão de que “a disposto a deixar valer em mim
historicidade interna de todas as algo contra mim, ainda que não
relações vitais entre os homens consiste haja nenhum outro que o faça valer
em que, consequentemente, se está contra mim (GADAMER, 2007, p.
472). lógica do cuidado ou do amor cristão?
lutando constantemente por
reconhecimento reciproco” A passagem acima apresenta, segundo
(GADAMER, 2007, p. 469), e que por Gadamer, o correlato da experiência
outro caminho a tensão gerada por tal hermenêutica, o qual deve nos ensinar
luta pode até mesmo “chegar [...] ao que temos de deixar valer o outro e a
completo domínio de um eu por outro tradição em suas pretensões, o quer
eu” (2007, p. 469). Gadamer não nega requer a superação do mero
que essa forma de experimentar o tu é reconhecimento da alteridade tão
significativamente mais adequada que a difundido. Precisamos reter daí, que o

7
outro tem sempre algo a nos dizer: nisso modos plurais de ser e viver de cada
consiste a abertura fundamental. Dessa cultura, grupos e pessoas. A abertura
forma, o homem experimentado não é para a alteridade do outro como
mais o preso aos dogmas metodológicos pretende Gadamer, parece-nos um
da certeza científica, mas o que, caminho fecundo para pensarmos
consciente da abertura mútua, reconhece processos formativos que nos ajudem a
a alteridade do outro mais em sua conviver nos compreendendo enquanto
estranheza que em sua familiaridade. parte de um universo rico e plural, no
qual qualquer tentativa de olhar
Formação para o reconhecimento em
abrangente e simplesmente conceitual
Gadamer faz-se possível na medida em
poderá resultar em atitudes éticas
que o problema do conhecimento no
violentas contra o outro e sua
Ocidente configura-se como problema
estranheza.
de formação. Em sentido hermenêutico,
o teórico reapresenta as bases
epistemológicas nas quais se fundaram Referências
a ciência moderna, mostrando-nos de
CRUZ, R. J. B. Compreensão e diálogo:
que forma a perspectiva metodológica contribuições da hermenêutica gadameriana à
daí resultante formou o homem educação. Passo Fundo: UPF Editora. 2010.
ocidental. A euforia proporcionada
DUSSEL, Enrique. 1492 – O encobrimento do
pelos avanços da ciência moderna outro: a origem do mito da modernidade. Trad.
permeia até hoje os processos Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.
formativos contemporâneos: da relação FLICKINGER, H.G. A caminho de uma
sujeito – objeto da ciência experimental pedagogia hermenêutica. 1. ed. Campinas, SP:
resultou o sujeito moderno colonizador, Autores Associados, 2010.
que reflexivamente domina o mundo GADAMER, H. G. Wahrheit und Methode:
circundandante. Entende-se a partir Grundzünge eiher Philosophischen
daqui, a urgência da discussão do Hermeneutik, 1960.
problema da formação na GADAMER, Hans-Georg. A razão na época
contemporaneidade via racionalidade da ciência. Trad. Ângela Dias. Rio de Janeiro:
hermenêutica. Formação para o Tempos Brasileiro, 1983.
reconhecimento não se liga apenas ao ______, Hans-Georg. Verdade e método:
discurso e boa vontade para a aceitação, traços fundamentais de uma hermenêutica
ela requer antes de tudo, o rompimento filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 8 ed.
profundo com a ordem epistemológica Petrópolis: Vozes, 2007.
geradora do desejo compulsivo de ______, Hans-Georg. Verdade e método:
conhecimento como dominação. complemento e índices. Trad. Ênio Paulo
Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.
Num contexto de sociedades plurais e
GRONDIN, J. Introdução à hermenêutica
complexas, a temática do filosófica. Trad. Benno Dischinger. São
reconhecimento é cada vez mais atual, Leolpodo, 1998.
apresentando à pedagogia o desafio de
HERMANN, N. Breve investigação genealógica
tematizar a formação para além do sobre o outro. Educ. Soc., Campinas, v. 32, n.
modelo epistemológico da ciência 114, p. 137-149, jan.-mar. 2011.
moderna, mas lançando mão de PALMER, R. E. Hermenêutica. Trad. Maria
racionalidades capazes de repensar a Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70,
relação entre os seres humanos e os 1969.

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