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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

Centro de Linguagem e Comunicação

Faculdade de Letras

REENCONTRANDO AS LETRAS: FILOSOFIA DA


GRAMÁTICA E PRÁTICA PEDAGÓGICA.

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Área: Ensino de Língua Materna

Willian Vitor Orlandi


RA: 16508863

Campinas, SP
Novembro de 2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
Centro de Linguagem e Comunicação

Faculdade de Letras

REENCONTRANDO AS LETRAS: FILOSOFIA DA


GRAMÁTICA E PRÁTICA PEDAGÓGICA.

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Área: Ensino de Língua Materna

Willian Vitor Orlandi

RA: 16508863

Monografia apresentada como exigência


do Trabalho de Conclusão do Curso de
Licenciatura em Letras: Português - Inglês,
da Faculdade de Letras, do Centro de
Linguagem e Comunicação, da PUC-
Campinas, sob a orientação da Profa. Dra.
Cristina Betioli Ribeiro Marques.
AGRADECIMENTOS

À minha esposa, Vitória Guedes Orlandi, que esteve ao meu lado, compreensiva e
sempre me apoiando para que eu pudesse prosseguir com meus estudos e, enfim,
chegar a esta etapa final.

À minha orientadora, Profa. Dra. Cristina Betioli Ribeiro Marques, sem a qual este
trabalho não seria possível.

Às minhas professoras Teresa de Moraes, Eliane Azzari e Gabriela Orosco as


quais, juntamente com a professora Cristina são modelos para mim e contribuíram
enormemente à minha formação como educador.

Ao Dr. Albert Weideman por seus vários conselhos e direcionamentos via e-mail.
Resumo

Esta monografia propõe apresentar a filosofia reformacional como uma nova base
teórica à linguística, especialmente ao entendimento de gramática e sua prática
pedagógica. Essa nova base teórica não contradiz ou nega os avanços teóricos feitos até
hoje, antes, confirma-os. Entretanto, essa nova fundação para se erigir a construção da
teoria linguística propõe uma conexão satisfatória da linguagem com o todo da realidade.
Essa conexão soma forças com outras teorias linguísticas para demolir pré-conceitos
racionalistas e tradicionalistas, bem como vai contra um ensino de Língua Portuguesa
artificial e descontextualizado. Pretende-se ajudar os professores e alunos a perceberem
a realidade como unidade e diversidade, conectando cada aspecto da experiência
humana com o todo da realidade.

Palavras-chave: Filosofia; Reformacional; Linguística; Gramática; Pedagogia.


LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Conceitos linguísticos formais e ideias sociolinguísticas..................13


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. ................................................................................................................................... 1
1. DA METAFÍSCA À LINGUAGEM: O REAL REENCONTRA OS SÍMBOLOS............................ 2
1.1 Filosofia: contornos de uma definição. ...................................................................................... 2
1.2 A suposta objetividade das teorias científicas. .................................................................... 3
1.3 O caráter fundacional da filosofia. ........................................................................................ 3
1.4 A presente abordagem: filosofia reformacional. ....................................................................... 4
1.4.1 Conhecimento teórico e conhecimento ingênuo.................................................... 5

1.4.2 Os aspectos modais da realidade. ......................................................................... 5

1.4.3 A relação sujeito-objeto. ......................................................................................... 7

1.5 A realidade e a linguagem. ........................................................................................................ 9


1.5.1 A essência da linguística. ....................................................................................... 9

1.6 Conceitos fundamentais da linguagem. .................................................................................. 10


1.6.1 Unidade e diversidade lingual. ............................................................................. 11

1.6.2 Dimensionalidade lingual. .................................................................................... 11

1.6.3 Constância lingual. ............................................................................................... 12

1.6.4 Operação de normas linguais nos processos linguais factuais. ......................... 12

1.6.5 Desenvolvimento e organização lingual. ............................................................. 12

1.6.6 Volição lingual....................................................................................................... 13

1.6.7 Identificação e diferenciação lingual. ................................................................... 13

1.7 Retrocipações formativas no aspecto lingual. ........................................................................ 13


1.7.1 Antecipações modais no aspecto lingual. ............................................................ 14

1.8 A gramática tradicional de Carlos Nougué: uma avaliação crítica. ........................................ 15


1.9 Conclusão. ............................................................................................................................... 18
2. DA LINGUAGEM À GRAMÁTICA: OS FATOS REENCONTRAM AS NORMAS. .................. 20
2.1 O que é a gramática? Um retorno ad fontes........................................................................... 20
2.2 Normas e fatos. ....................................................................................................................... 21
2.3 Adequabilidade situacional. ..................................................................................................... 23
2.3.1 A esfera lingual material da conversação. ........................................................... 23

2.3.2 Características típicas de discursos certitudinais. ............................................... 23

2.3.3 A linguagem científica. ......................................................................................... 23

2.3.4 Conclusões preliminares. ..................................................................................... 24


2.4 A via negativa: o que não é gramática. ................................................................................... 25
2.5 Conclusão: um teste preliminar. .............................................................................................. 26
3. DA GRAMÁTICA AO ENSINO: O PROFESSOR REENCOTRA O ALUNO. .......................... 27
3.1 Introdução. ............................................................................................................................... 27
3.2 O que é o ser humano? ........................................................................................................... 28
3.2.1 A supratemporalidade da antropologia transcendental de Herman
Dooyeweerd............................................................................................................................... 29

3.2.2 As estruturas encápticas do corpo humano. ....................................................... 30

3.2.3 Homo liturgicus: James Smith e as práticas intencionais do amor. .................... 30

3.3 Pedagogia do desejo: “diga o que amas e te direi quem és”. ................................................ 31
3.3.1 O que é a escola? ................................................................................................ 34

Conclusão. ......................................................................................................................................... 37
BIBLIOGRAFIA. ................................................................................................................................. 39
1

INTRODUÇÂO.

A presente monografia visa propor uma filosofia da gramática e sua


respectiva prática pedagógica. Para tal, nossa fundamentação teórica partirá da
filosofia reformacional, aplicando-a a linguística e, consequentemente, às
implicações na prática do ensino de Língua Portuguesa nas salas de aula.

O objetivo desse trabalho é apresentar uma nova base teórica para o


ensino de gramática da Língua Portuguesa. Esse novo fundamento filosófico não
trará nenhuma conclusão que os linguistas, desde 1980, já não tenham
alcançado com bases teóricas diferentes. Portanto, não pretendemos contrariar
ou renovar em absoluto a pesquisa acadêmica até hoje, pelo contrário, essa
nova base teórica irá confirmar as conclusões dos estudos linguísticos recentes.
Por isso, a revolução aqui proposta é no sentido próprio (astronômico) do termo,
pois os astros, após fazerem uma revolução completa ao redor do sol, voltam ao
mesmo lugar. A vantagem proposta por essa nova base teórica é conseguir
conectar, satisfatoriamente, a teoria e prática pedagógica do ensino de
gramática com o todo da vida dos alunos e dos professores. Assim, a proposta
aqui apresentada pretende unir força com as demais teorias linguísticas para
combater um ensino de Língua Portuguesa artificial e descontextualizado.

No que se refere à metodologia, examinaremos os principais livros que


tratam da filosofia reformada e sua aplicação na linguística, sempre propondo
pontes e diálogos com as demais teorias vigentes. O principal pensador da
filosofia reformada é o holandês Herman Dooyeweerd (1894 – 1977) o qual
usaremos como base para a exposição dessa filosofia. Dialogaremos
amplamente com Albert Weideman - um linguista norte-americano que aplicou a
filosofia de Dooyeweerd na linguística teórica, mas hoje migrou para a linguística
aplicada.

Portanto, o texto seguirá o seguinte fluxo de argumentação: iniciaremos


com uma exposição da metafísica (teoria da realidade) no capítulo um, de
acordo com a filosofia reformacional como uma fundamentação para os demais
capítulos. O capítulo dois aplicará essa filosofia à linguística, demonstrando
como a linguagem humana se relaciona com o todo da realidade. Por fim, o
terceiro capítulo afunilará um pouco mais, aplicando a linguística reformacional à
prática pedagógica de Língua Portuguesa, seguida de algumas conclusões.
2

1. DA METAFÍSICA À LINGUAGEM: O REAL REENCONTRA


OS SÍMBOLOS.

Existe uma coisa que uma longa existência me ensinou: toda a nossa ciência,
comparada à realidade, é primitiva e inocente.
(Albert Einstein)

Uma das passagens mais controversas dos escritos de Paulo de Tarso


está em sua segunda carta aos Coríntios (3.6) que diz: “... a letra mata, mas o
Espírito vivifica” (Gr. γράμμα ἀποκτέννει, τὸ δὲ πνεῦμα ζωοποιεῖ). A “letra” que
Paulo se referiu é a Torá judaica per se, que, segundo o apóstolo, apenas
condenava (morte), em contrapartida, o Espírito (Deus) trazia vida através de um
novo pacto. Por analogia, uma determinada prática da pedagogia brasileira
parece estar matando a educação dos alunos, não com a gramma mosaica, mas
com uma teoria e prática pedagógica de gramática (grammatikḗ) da Língua
Portuguesa, que parece ser inadequada e reducionista. Mas então – para seguir
a analogia paulina – qual espírito (disposição, entendimento) poderá vivificar
nossa compreensão sobre a gramática e seu ensino? A proposta dessa tese é
elaborar uma teoria da linguagem e da gramática que esteja conectada com o
todo da realidade.

1.1 Filosofia: contornos de uma definição.

A própria definição de filosofia já apresenta, além de muita dificuldade,


inúmeras propostas ao longo de sua história. Adotaremos a definição de que a
filosofia tem a ver com o todo da realidade. Mas esse todo não é meramente a
soma de todo conhecimento, ou de todas as coisas, pois a soma constitui-se
como um movimento a posteriori. Antes, a filosofia é um movimento a priori, ela
fundamenta (como veremos) todas as outras ciências. Assim, K. J. Popma
(apud. KALSBEEK, 2015, p. 5) define filosofia como “discernir a estrutura da
3

realidade e descrever, sistematicamente, tudo o que está sujeito a essa


estrutura”. Da mesma forma, Mário Ferreira dos Santos (2014, p. 38) define a
filosofia como possuindo um “universo de discurso num sentido mais amplo que
o da lógica, pois ela se interessa pelo todo, estuda tudo, e o seu universo de
discurso abrange o conjunto de todas as coisas”.

1.2 A suposta objetividade das teorias científicas.

O dogma da autonomia da razão dominou a filosofia desde Platão até


Husserl1. Além disso, o projeto cartesiano, levado a seu clímax no iluminismo e
retomado pelo positivismo, prega uma suposta objetividade ou neutralidade na
abordagem científica. Essa posição tem sido brutalmente questionada por
diversos pensadores que assinalam a importância do lado sujeito da equação,
mostrando que todos os “fatos” já são interpretados previamente por
pressupostos (conscientes ou não) do observador. Tais pressupostos são de
natureza filosófica (e até mesmo religiosa)2.

1.3 O caráter fundacional da filosofia.

As inúmeras diferenças entre várias abordagens científicas só podem


ser explicadas através de uma análise das diferentes respostas filosóficas que
cada escola de pensamento, tendência ou abordagem dão a determinados
problemas (WEIDEMAN, 2009, p.3). Aplicado à linguística, as diferenças entre a
escola estruturalista (e suas várias vertentes) e a abordagem gerativista são
fruto das diferenças entre as tendências empiristas e racionalistas no
pensamento teórico sobre a linguagem.

Portanto, todas as “ciências especiais” (que lidam com algum aspecto


da realidade, como a matemática, a física, a linguística, etc.) estão
fundamentadas em alguma filosofia que é a “ciência geral” por excelência. Esse
caráter cosmovisional e totalizante da filosofia torna-a inescapável em toda e

1
Para uma análise mais detalhada, ver: DOOYEWEERD, H. In the Twilight of Western
Thought. Collected Works of Herman Dooyeweerd, B Series, Volume 4, General Editor
D.F.M. Strauss, Special Editor J.K.A. Smith. Lewiston: Edwin Mellen. 1999. [não coloque
recuo nas notas de rodapé!]
2
Para uma exposição desse tema, ver DOOYEWEERD, 1953 vol. 1: 545-566; ver
também vol. 2: 556-557.
4

qualquer análise teórica da realidade. Portanto, a filosofia como visão do todo


em sua coerência e abrangência opera de forma consciente ou não em todo
cientista. Para fins ilustrativos, é interessante notar que, embora Noam Chomsky
abertamente declara ser influenciado por René Descartes, ele não deixa explícita
uma de suas maiores influências – Immanuel Kant (para uma análise da
influência de Kant em Chomsky, ver: WEIDEMAN, ibid. pp. 14-16).

Esse trabalho propõe uma nova abordagem da teoria e prática


pedagógica da gramática da língua portuguesa3. Novas abordagens sempre
aparecem quando as abordagens atuais (e as passadas) não conseguem
sustentar uma visão e prática coerente. Para usar a linguagem do físico Thomas
Kuhn4, precisamos de uma “mudança de paradigma” no ensino de gramática em
nosso país. Esses novos paradigmas aparecem quando existem anomalias e
antinomias teóricas e práticas nas abordagens vigentes. Embora uma boa parte
das abordagens modernas enfatize o ensino contextualizado da gramática,
parece ser insuficiente afirmar esse truísmo. É como ter um ponto arquimediano
correto, mas não ter uma haste suficientemente grande para o movimento certo.
Propomos então, um giro copernicano que começa explicando a coerência,
distinção e unidade de todos os aspectos da realidade, para então nos
movermos aos significados linguísticos e assim integrar a teoria e ensino da
gramática com o todo da realidade.

1.4 A presente abordagem: filosofia reformacional.

Este trabalho propõe uma abordagem fundamentada na filosofia


reformacional5, também chamada de filosofia da ideia cosmonômica6 (ou até
mesmo “método empírico-estrutural”). Nosso espaço não permite uma exposição
mais detalhada desse sistema filosófico, entretanto iremos esboçar seus
principais contornos teóricos.

3
A abordagem é nova apenas no Brasil, pois Albert Weideman já propôs essa
abordagem reformacional à Linguística em sua tese de doutorado nos EUA. Ainda que,
em e-mail particular, Weideman tenha me dito que migrou da Linguística teórica para a
Linguística aplicada, seu trabalho ainda permanece um paradigma.
4
Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora
Perspectiva S.A, 1997.
5
Para bom resumo dessa filosofia em português, ver: KALSBEEK, L.. Contornos da
filosofia cristã. Trad. Rodrigo Amorim de Souza. 1. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
6
O termo cosmonomia foi cunhado para expressar o caráter modal da metafísica dessa
filosofia. O termo vem do grego “cosmos” (mundo) e “nomos” (lei), referindo-se as leis
modais de significados que regulamentam a realidade.
5

1.4.1 Conhecimento teórico e conhecimento ingênuo.

A epistemologia da filosofia reformacional faz uma importante distinção


inicial: a diferença entre conhecimento pré-teórico (ingênuo) e o conhecimento
teórico. O intelectualismo da modernidade enfatiza o conhecimento teórico,
dando-lhe a primazia epistêmica. Entretanto, a filosofia reformacional reconhece
que o conhecimento pré-teórico é sempre mais rico, mais abrangente e mais
importante que o conhecimento teórico. É o nosso conhecimento imediato da
realidade empírica que possui a primazia e não a reflexão teorética posterior
feita sobre essas experiências. Isso ocorre porque o conhecimento teórico é
apenas uma função lógica do nosso pensamento, mas a nossa experiência pré-
teórica é experimentada no mais profundo do nosso ser, o núcleo do nosso “eu”,
que não pode ser reduzido por uma de suas funções modais temporais, antes, a
totalidade de significados é concentrada e fundada nesse “eu”. Portanto, o
pensamento teórico não pode negar, reduzir ou distorcer nossa experiência
ingênua do todo da realidade ou de suas partes. A função do pensamento
teórico é confrontar o aspecto lógico com os demais aspectos modais, para dar
precisão, coerência e até mesmo profundida àquilo que já sabemos via
experiência ingênua. Entretanto, o pensamento teórico, por seus limites
intrínsecos, jamais poderá esgotar o oceano de significados que cercam a
experiência pré-teórica da realidade em sua totalidade estrutural.

Essa distinção possui implicações interessantes para todas as ciências,


e para a linguística não é diferente. Qualquer teoria linguística que contradiga ou
não abarque o todo da experiência linguística dos alunos precisa passar por uma
crítica radical (em sua raiz) para ver a fonte dessas antinomias. Por isso, o
constante diálogo crítico entre as teorias linguísticas faz-se imprescindível para a
disciplina.

1.4.2 Os aspectos modais da realidade.

Uma das contribuições mais originais e significativas para a filosofia


como um todo feita pela filosofia reformacional é a teoria dos aspectos modais.
6

Segundo Dooyeweerd7 (fundador dessa teoria), o “modo de ser de tudo o que há


é significado”. A totalidade da realidade é uma totalidade de significados, ou
aspectos modais ou leis-modais. Conseguimos distinguir formalmente esses
aspectos pela abstração teórica, mas experimentamos todos eles, ao mesmo
tempo, em nossa experiência ingênua. Tais aspectos de significado não são
“coisas concretas”, mas são tão reais quanto. São modos de significados nos
quais todas as coisas participam. Dooyeweerd enumerou quinze aspectos, mas
a lista não é fechada. Pode ser que descubramos a abertura de mais aspectos
modais com o passar do tempo. Descreveremos brevemente os aspectos
modais em sua ordem cósmica.

O primeiro aspecto é o numérico. Se abstrairmos todas as


características de alguma coisa, chegaremos a sua primeira qualificação, a
quantidade. A unidade e a diversidade, bem como sua estruturação fazem parte
desse aspecto, e todas as coisas que existem são sujeitas do aspecto numérico.
É o primeiro aspecto porque conseguimos pensar teoricamente nos números,
sem a necessidade dos demais aspectos. O segundo aspecto é o espacial.
Todas as coisas estão localizadas em determinado espaço. É o segundo
aspecto porque, embora consigamos abstrair um espaço vazio de objetos, toda a
noção de espaço pressupõe a quantificação desse espaço (depende do aspecto
anterior). O terceiro aspecto é o cinético e tem a ver com o movimento das
estruturas de individualidades (“coisas”). O quarto aspecto é o físico-químico,
que diz respeito à materialidade das coisas. O quinto aspecto modal é o biótico.
Esse aspecto está ligado à vida orgânica dos seres vivos. O sexto aspecto é o
psicológico (ou sensitivo), que indica as sensações das criaturas vivas. O sétimo
aspecto é o lógico (ou analítico) e está encarregado das distinções e
associações dentro da estrutura da realidade (por exemplo, A não é B). O oitavo
aspecto é o histórico-cultural (ou formativo) e está ligado à produção cultural
humana que é o moldar intencional da estrutura plástica da realidade. O nono
aspecto é o lingual, e se refere à significação simbólica. O décimo aspecto é o
social, que é o aspecto das associações humanas em comunidade. O décimo
primeiro aspecto é o econômico, ligado à frugalidade e valoração das coisas. O
décimo segundo aspecto é o estético, e se refere à beleza e harmonia de todas
as coisas. O próximo aspecto é o jurídico, referindo-se à justiça, ou a retribuição
adequada em cada situação. O penúltimo aspecto é o ético, que é a nossa

7
Dooyeweerd, H. A New Critique of Theoretical Thought, Collected Works of Herman
Dooyeweerd, A Series Vols. I, General Editor D.F.M. Strauss. Lewiston: Edwin Mellen.
1997, p. 4.
7

experiência daquilo que é moralmente certo ou errado. Por fim, o último aspecto
da realidade é o aspecto credal, que se refere à crença do sujeito.

Cada aspecto é regido por suas próprias leis. Os seis primeiros


aspectos (até o sensitivo) são chamados de aspectos naturais e suas leis são
inquebráveis (como a lei da gravidade). Os demais aspectos são chamados de
aspectos culturais, pois apenas são “abertos” a partir da intervenção humana
nos aspectos naturais. As leis dos aspectos culturais funcionam mais como
normas que dizem como as coisas deveriam ser, mas são passíveis
transgressão (alguém pode pensar de forma ilógica, agir de modo injusto, imoral,
etc.).

Cada um desses aspectos possui uma imensidão de significados e leis


que jamais poderão ser esgotados pela experiência humana. A ordem desses
aspectos, ainda que inquebrável, é uma ordem cósmica e não hierárquica (p.
ex., o aspecto numérico não é mais importante que o aspecto estético e nem
vice versa). Embora sejam inesgotáveis, cada um desses aspectos possuem um
núcleo modal de significado. Não temos espaço para descrever todos os
núcleos, mas, por exemplo, o núcleo do aspecto lógico é a distinção, do aspecto
lingual é a significação simbólica e do aspecto estético é a harmonia.

A ilustração preferida de Dooyeweerd para falar desses aspectos é a


figura do prisma. Experimentamos a “luz” da realidade como uma unidade em
nosso eu concêntrico. Entretanto, essa luz refrata no prisma do nosso eu e então
podemos perceber essa incrível diversidade modal na atitude teórico de nosso
pensamento. Portanto, além de unidade e diversidade, há uma coerência entre
todos esses aspectos. Para descrever essa coerência, a filosofia reformacional
cunhou a expressão analogia modal. As analogias se referem as interconexões
entre os aspectos. Existem as antecipações e as “retrocipações” modais. Cada
aspecto “anterior” antecipa os “posteriores” e os posteriores retrocedem nos
anteriores. Para usar exemplos da linguística, basta pensar que a
sociolinguística estuda a antecipação linguística no aspecto social da experiência
humana. O fato de que cada idioma nasce, se desenvolve e pode “morrer” é uma
antecipação do aspecto biótico no aspecto lingual.

1.4.3 A relação sujeito-objeto.


8

Embora tenhamos muito a dissertar sobre as principais ideias da


filosofia reformacional, iremos abordar apenas mais um ponto, que é a relação
sujeito-objeto. Aqui, como no ponto anterior, a filosofia cosmonômica
efetivamente fez uma grande contribuição para a história da filosofia.

Como já vimos no ponto anterior, tudo o que existe participa de todos os


aspectos modais da realidade. Entretanto, cada “coisa” participa ou como sujeito
ou como objeto desses aspectos. Além disso, cada coisa existente possui um
aspecto que a qualifica centralmente. Alguns poucos exemplos bastarão para
esclarecer esse ponto.

Uma pedra é qualificada pelo aspecto físico. Portanto, ela possui uma
função sujeito nos aspectos anteriores ao físico e uma função objeto nos
aspectos posteriores. Assim, uma pedra é quantificável, ocupa um lugar no
espaço, é movimentada e material (aspecto numérico, espacial, cinemático e
físico). Entretanto, uma pedra não é viva, não sente, não pensa, não fala, não
interage, etc. (aspecto biótico, sensitivo, lógico, lingual, social). Nos aspectos
posteriores, uma pedra pode ser usada para se cometer um crime, quebrando as
normais do aspecto jurídico e ético, pode ser usada como arte (estético), como
mercadoria (econômico) e até mesmo pode ser reverenciada como uma
divindade (aspecto credal).

Uma planta, por sua vez, vai um aspecto a mais, sendo centralizada
pelo aspecto biótico. Um animal é qualificado pelo aspecto sensitivo e assim por
diante. O ser humano age como sujeito em todos os aspectos modais da
realidade. É o único ser que experimenta todos os aspectos mas não é
qualificado por nenhum deles, pois seu eu transcende todos os aspectos modais.
Assim, o ser humano é sujeito psicológico, lógico, histórico, linguístico, social,
econômico, estético, jurídico, ético, etc., mas não pode ser descrito
essencialmente em um desses aspectos, e nem em todos juntos.

Na atitude teórica do nosso pensamento, podemos fazer absolutizações


modais tanto em relação à realidade externa como em relação ao ser humano.
Essas absolutizações teóricas reduzem os aspectos da realidade a apenas um
(ou mais) deles. Assim, o psicologismo reduz a realidade a seu aspecto
sensitivo, o logicismo ao aspecto lógico, o historicismo ao aspecto histórico, etc.
O ser humano pode ser reduzido a uma de suas funções modais. Sempre que
essas reduções acontecem, aparecem antinomias e contradições entre a teoria e
a experiência prática.
9

1.5 A realidade e a linguagem.

Apresentamos, in nuce, uma teoria da realidade baseada na filosofia


reformacional. E se, como vimos, a filosofia abarca todas as coisas, a linguagem
não é exceção. Entretanto, devido (novamente) aos limites do nosso espaço e
propósito no presente trabalho, um desenvolvimento completo de uma teoria
linguística a partir da filosofia reformacional não será possível8. Faremos apenas
algumas breves menções a conceitos fundamentais da linguística reformacional.

1.5.1 A essência da linguística.

A frase quot homines tot sententiae também é uma realidade quando


falamos sobre a natureza da linguagem. Alguns linguistas assumem que a
linguagem concreta é apenas comunicação. Entretanto, como afirmou Verburg, a
comunicação é tão vaga e indefinida que é um “conceito universal que não
contém nenhuma especificidade que possa definir a linguagem”. Ele demonstra
que a comunicação pode envolver desde “uma comunicação física
intermolecular até uma comunicação espiritual inter-humana” (VERBURG, 1965,
p. 97).

Na perspectiva aqui adotada, o núcleo de significado do aspecto lingual


é a expressão (ou significação) simbólica. Precisamos apenas distinguir a
linguagem humana concreta e seu aspecto modal lingual. A linguagem humana
– quer seja escrita, falada ou gesticulada – é centralizada pelo aspecto lingual da
realidade. Entretanto, esse aspecto não se restringe apenas á linguagem
humana. Como vimos, todas as coisas participam de todos os aspectos. Assim,
árvores, livros, animais, igrejas, clubes, fenômenos naturais, enfim, todas as
coisas, participam lingualmente da realidade humana. Se olharmos para as
nuvens do céu e interpretamos se vai ou não chover, estamos percebendo o
aspecto lingual nesse fenômeno natural9. Se um professor combinar com sua
classe que todas as vezes que ele colocar uma pedra em cima de sua mesa vai

8
Para uma explanação completa de uma teoria linguística reformacional, ver:
WEIDEMAN, A. Beyond expression, A systematic study of the foundations of linguistics.
JordanStation: Paideia Press. 2009.
9
Como atesta o campo de estudo da Semiótica / Semiologia.
10

ter prova naquele dia, essa pedra estará funcionando lingualmente (como objeto
lingual) na realidade daquela sala. Hjelmslev (1963, p. 127) afirmou que não
existe um único objeto que não seja iluminado da posição de uma teoria
linguística. No entanto, basta dizer que de todas as coisas, apenas a linguagem
humana é centralmente caracterizada pelo aspecto lingual do cosmo.

Chomsky (1969, pp. 55-73) enfatiza a função expressiva da linguagem,


demonstrando que: (1) comunicação é uma das funções da linguagem, mas não
é a única e; (2) a necessidade comunicativa não se opõe à função expressiva da
linguagem (Cf. WEIDEMAN, 2009, p.48). Criticando uma definição de linguagem
via seus propósitos, Chomsky afirma (1979. p. 88):

Language is used in many different ways. Language can be used to


transmit information, but it also serves many other purposes: to
establish relations among people, to express or clarify thought, for
play, for creative mental activity, to gain understanding, and so on. In
my opinion, there is no reason to accord privileged status to one or the
other of these modes. Forced to choose, I would have to say
something quite classical and rather empty: language serves
essentially for the expression of thought.

Se a linguagem não pode ser restrita à linguagem verbal (Dooyeweerd


1953 vol. 2: p. 137), a linguística pode ser delimitada apenas com referência ao
aspecto lingual da experiência, não podendo se restringir ao fenômeno empírico
da linguagem concreta (DOOYEWEERD, 1953 vol. 1: p. 565; vol. 2: pp. 55, 226;
WEIDEMAN 2009: p. 49). A linguagem concreta pode ser estudada sob diversos
ângulos modais (numérico, sensitivo, jurídico, certitudinal, etc.) que definem
outros campos científicos (matemática, psicologia, jurisprudência, teologia, etc.).
Interpretando De Saussure, Wells (1971, p.15) pergunta, se inúmeros outros
cientistas podem analisar a linguagem sob vários pontos de vista diferentes, o
que sobra para o linguista? E a única resposta é que o campo legítimo da
linguística é o aspecto lingual da experiência.

1.6 Conceitos fundamentais da linguagem.

Movendo-nos do amplo aspecto lingual da experiência para a linguagem


humana concreta, dissertaremos brevemente de alguns conceitos fundamentais
da linguagem a partir da filosofia reformacional. Os aspectos modais anteriores
11

ao aspecto lingual, em suas analogias intermodais, tornam-se as próprias


condições transcendentais que possibilitam a linguagem. Vale lembrar que os
subtópico a seguir, não discutem as influências de uma área de conhecimento
sobre outra (como o português e a matemática), mas sim as analogias dos
significados modais que se intercomunicam. Tais analogias modais são ricas e
amplas, mas nos limitaremos apenas às principais.

1.6.1 Unidade e diversidade lingual.

Toda linguagem verbal possui unidade e diversidade estrutural que


possibilitam sua existência. É impossível pensar em qualquer linguagem sem
esses dois conceitos. Unidade e diversidade são significados próprios do
primeiro aspecto da ordem temporal, i.e., o numérico. Não foi por acaso que
Ferdinand De Saussure, ao abstrair o aspecto lingual dos demais aspectos na
abstração teórica do pensamento, percebeu essa primeira analogia numérica,
passando o legado à escola estruturalista, bem como para às demais correntes
teóricas. Portanto, tanto os fatos linguais como os sujeitos e objetos linguais são
elementarmente marcados pela unidade e multiplicidade lingual.

1.6.2 Dimensionalidade lingual.

Um dos significados modais do aspecto espacial é a coerência. Esse


significado modal está presente na linguagem humana, que possui coerência
interna e externa. Quando nas aulas de produção textual o professor analisa a
coerência do texto, ele está percebendo a analogia modal do aspecto espacial
no aspecto lingual. Sem coerência não há comunicação efetiva, por isso é um
conceito fundamental da linguagem.

A aplicabilidade de um sistema lingual, sua extensão, dimensão,


posição e relação lingual são todas analogias espaciais no aspecto lingual, que
possibilitam a linguagem. Podemos pensar na extensão do léxico total de uma
língua, começo e fim de conversas, textos, etc. O campo semântico de cada
palavra é uma clara ilustração desse ponto (reparar como, intuitivamente, damos
o nome espacial “campo” para essa análise linguística).
12

1.6.3 Constância lingual.

Quando chegamos ao aspecto cinemático (de movimento), percebemos


que a expressão e comunicação linguística precisa ter certa constância. Isso
acontece tanto no lado objetivo – os sistemas linguais possuem constância (as
palavras não mudam do dia para noite) – como no lado subjetivo – os sujeitos
falantes precisam de constância em sua interação verbal. Ainda que, como
veremos, o aspecto biótico mostre que as línguas se desenvolvem, sem uma
relativa constância lingual a comunicação seria impossível (na Análise da
Conversação, esse aspecto é conceitualmente levado em consideração).

1.6.4 Operação de normas linguais nos processos linguais factuais.

O aspecto físico (assim como os demais) está presente em todos os


processos linguais da experiência humana. Desde as ondas dos sons da fala até
uma caneta que escreve em um papel, tudo isso se constitui a partir da
materialidade da realidade. É própria do aspecto físico, entendido modalmente, a
constituição das normais linguais de um sistema linguístico, assim como suas
transformações linguais. Também se percebe a energia, ou poder da linguagem,
como uma analogia física no aspecto lingual, entre muitas outras. Um
materialismo filosófico pode levar à absolutização dessa analogia física de poder
na linguagem, e afirmar, por exemplo, que apenas o que a linguagem faz é
exercer poder sobre os outros, ignorando toda a complexa e oceânica
diversidade que constitui a linguagem humana.

1.6.5 Desenvolvimento e organização lingual.

Quando falamos que uma determinada língua nasceu em determinada


época, se desenvolveu em um determinado povo e local, e “morreu” em
determinada época (deixou de ter falantes), estamos percebendo os significados
do aspecto biótico no lingual (reparar, novamente, na escolha lexical: nascer,
desenvolver, morrer). Isso acontece no macro nível da história, mas também no
micro nível de cada indivíduo que aprende, desenvolve e para de falar (por
algum motivo de saúde ou pelo óbito) determinada língua. Além disso, toda a
13

organização dos sistemas linguais se dá pela analogia modal do biótico no


lingual.

1.6.6 Volição lingual.

Todas as vezes que percebemos os significados linguísticos em uma


interação comunicativa, percebemos apenas devido a nossa participação no
aspecto psicológico ou sensitivo. Todas as intenções que determinado falante
assume em sua comunicação são analogias psicológicas na interação lingual.

1.6.7 Identificação e diferenciação lingual.

O partir do aspecto da lógica, estamos tratando da esfera cultural do ser


humano, diferentes dos aspectos anteriores que são “naturais”. O aspecto da
lógica é o aspecto da identificação e da diferenciação. A identificação de cada
palavra com seu significado e sua diferenciação com os demais significados são
analogias lógicas na linguagem humana (esse tema também é tratado na
semiótica de Pierce). Por ser o primeiro aspecto cultural e, portanto, próprio do
ser humano, a lógica foi absolutizada muitas vezes na história do pensamento
humano, e não é de se admirar que muitos linguistas insistem que a linguagem
humana é apenas uma serva da lógica (ver, por exemplo, a análise abaixo da
gramática de Carlos Nougué)

1.7 Retrocipações formativas no aspecto lingual.

O aspecto histórico, centralizado pelo poder formativo, é o último


aspecto antes do lingual, e também possui inúmeras analogias modais nesse
aspecto. Há também muitos equívocos aqui. O historicismo, filosofia que surgiu
no século XIX, absolutiza o aspecto histórico da experiência humana e produz
muitas antinomias e falsos conceitos sobre todas as coisas, inclusive a
linguagem. Mas apenas em nível de significação modal, podemos pensar na
moldagem interna de cada língua, entre outras analogias.
14

1.7.1 Antecipações modais no aspecto lingual.

A relação dos aspectos anteriores com o aspecto em foco (lingual) é


chamada “retrocipações”, enquanto as analogias com os aspectos posteriores
são chamadas de antecipações. Apenas alguns esboços serão apresentados
aqui. Seguindo o aspecto lingual temos o aspecto social. Na relação dessas
duas modalidades significativas, temos, por exemplo, o conceito de apropriação
e aceitabilidade linguística, ou seja, falar de acordo com a situação social em
que o sujeito se encontra (essa analogia modal é um dos fundamentos que
teóricos linguistas brasileiros usam para combater o preconceito linguístico).
Além do aspecto social, temos a ideia da economia lingual (aspecto econômico),
harmonia lingual (antecipação do aspecto estético), ratificação,
responsabilização e reparação lingual (antecipação do momento jurídico), etc.

No seguinte gráfico, Weideman (2009, 108) ilustra e resume muito bem


as analogias do aspecto lingual, chamando as retrocipações de “conceitos
constitutivos” e as antecipações de “ideias linguísticas”:

Figura 01: Conceitos linguísticos formais e ideias


sociolinguísticas.
15

Até aqui vimos apenas uma foto 3x4 de uma vasta floresta, e vimos de
cima, como num voo de helicóptero. Precisaríamos ver toda a extensão floresta,
e depois descer e analisar cada árvore, planta, animal, rio, etc., vinculando as
partes com o todo. Tal é a vastidão significativa da experiência humana como
um todo, e da experiência linguística em particular. Falta-nos espaço para
vermos com mais detalhes todas as analogias modais da linguagem e como a
linguística percebeu, de forma correta ou não, essas analogias.

Antes de concluirmos esse primeiro capítulo, entraremos em um diálogo


crítico com um livro de gramática de língua portuguesa. Essa gramática, como
veremos, adota o mesmo movimento do presente trabalho, i.e., de uma teoria da
realidade (metafísica) para uma teoria da linguagem e da gramática. Veremos
que tanto uma como outra se mostraram inadequadas, o que justifica não
somente nossa crítica, mas também nosso próprio trabalho de apresentar e
formular uma nova base filosófica para a realidade e para a linguagem.

1.8 A gramática tradicional de Carlos Nougué: uma avaliação crítica.

Uma boa parte das gramáticas normativas começa com suas teorias
linguísticas, deixando em oculto seus pressupostos filosóficos. Uma exceção a
isso é a gramática de Carlos Nougué, lançada em 201510. Nougué assume de
forma explícita, a filosofia aristotélica-tomista, aplicando essa metafísica
particular à linguística e à gramática.

O exemplo da morfologia bastará para entendermos seu projeto. Para


Nougué, a linguagem reflete a realidade, mas a “realidade” segundo a metafísica
de Aristóteles. Segundo esse filósofo, as dez categorias do ente (ser) são: a
substância (οὐσία, substantia) e seus nove acidentes, a saber, quantidade
(ποσόν, quantitas), qualidade (ποιόν, qualitas), relação (πρός τι, relatio), lugar
(ποῦ, ubi), tempo (ποτέ, quando), situação (κεῖσθαι, situs), hábito (ἔχειν, habere),
ação (ποιεῖν, actio) e paixão (πάσχειν, passio). Nougué aplica essas categorias
às classes gramaticais (2015, p. 126):

Não é difícil concluir que a classe do substantivo exprime a


substâncias ou os acidentes tratados como substância; que o adjetivo

10
NOUGUÉ, Calos; Suma gramatical da língua portuguesa: gramática geral e avançada.
1. ed. São Paulo: É-Realizações, 2015.
16

corresponda à qualidade – e à relação, à situação, à posse, etc.,


atribuídas ao modo de qualidade; que o verbo expressa,
propriamente, a ação e a paixão, mas também a posse entendida
como ação de possuir, etc.; e que o advérbio se ocupa do tempo e do
lugar (além, naturalmente, de aplicar-se à indicação de modo, etc.).

Entretanto, Nougué não é o primeiro a fazer esse movimento. Em toda a


história de comentários e estudos das categorias aristotélicas, sempre se
debateu se elas se remetem à ontologia ou à linguística. Ammonius, que iniciou
a tradição de comentários sobre Aristóteles em Alexandria no século V A.D.,
estabeleceu que as categorias eram tanto ontológicas como linguísticas,
afirmando que “o alvo do filósofo, portanto, é tratar as palavras que significam
coisas através de conceitos mediadores” (tradução própria)11. No século XIX, o
esquecido, porém importante filósofo Adolf Trendelenburg12 defendeu a tese de
que o fio condutor da lógica e da metafísica de Aristóteles era a gramática grega,
influenciando assim a virada linguística da filosofia contemporânea. Se formos às
fontes, o próprio Estagirita declara:

As palavras sem combinação umas com as outras significam por si


mesmas uma das seguintes coisas: o que (substância), o quanto
(quantidade), o como (qualidade), com o que se relaciona (relação),
onde está (lugar), quando (tempo), como está (estado), em que
circunstância (hábito), atividade (ação) e passividade (paixão).
Dizendo de modo elementar, são exemplos de substância, homem,
cavalo; de quantidade, de dois côvados de largura, ou de três
côvados de largura; de qualidade, branco, gramatical; de relação,
dobro, metade, maior; de lugar, no Liceu, no Mercado; de tempo,
ontem, o ano passado; de estado, deitado, sentado; de hábito,
calçado, armado; de ação, corta, queima; de paixão, é cortado, é
13
queimado (Cat., IV, 1 b) .

Embora não tenhamos espaço para uma crítica mais detalhada da


gramática de Nougué, algumas breves pontuações serão suficientes para
esclarecer o nosso ponto, que é mostrar a inadequação da filosofia de
Aristóteles, tanto para a metafísica, quanto para a linguística.

Primeiramente, precisamos entender os pressupostos pré-teóricos do


pensamento aristotélico. Toda a filosofia grega é regida pelo motivo básico
dualista da forma e matéria. Esse motivo base é de natureza religiosa e sempre

11
AMMONIUS, On Aristotle´s categories. Traduzido para o inglês por S. Marc Cohen e
Gareth B. Matthews. NewYork: Cornell University Press. 1991, p. 17.
12
Cf. o artigo GIUSTI, Ernesto Maria. Lógica, linguagem e ontologia no século XIX: a
interpretação das categorias de Aristóteles por Adolf Trendelenburg. Revista Guairacá:
Revista de filosofia, Paraná, v. 28, n. 1, p. 93-111, 2012.
13
Cf. ARISTÓTELES, Categorias. Tradução, introdução e comentário por Ricardo
Santos. Porto: Porto Editora. 1995.
17

leva o pensamento teórico em caminhos dualistas que acabam por não serem
suficientes para explicar a realidade que nos cerca, além de contradizer nossa
experiência metafísica (Cf. DOOYEWEERD, 1999, pp. 41-94).

Em segundo lugar, o conceito de οὐσία (substância) é o oposto de


nossa definição de realidade como significado. A substância possui autonomia
ou independência em relação às demais coisas. Os acidentes são relativos à
substância, mas ela mesma torna-se um absoluto. O conceito de significado, por
outro lado, mostra que todas as coisas estão ligadas e se referem umas as
outras, inclusive as supostas substâncias. Não é uma relação causal, mas
abraçar a filosofia aristotélica pode dar base para uma pedagogia exclusivista,
que não precisa conectar as partes com o todo da realidade. Não é exatamente
isso que o ensino de gramática descontextualizada faz?

Uma teoria da realidade inadequada sempre leva a antinomias teóricas


que contradizem nossa experiência ingênua, além de não dar conta de
descrever a coerência total da realidade. Novamente, dois exemplos da
gramática de Nougué ilustrarão o argumento, o primeiro sobre a finalidade da
linguagem e o segundo sobre o escopo da gramática.

Em relação à finalidade da gramática, Nougué afirma que a gramática


serve à língua como um todo (p. 62) e que a língua serve ao pensamento (p.63).
A lógica do pensamento serve à ciência e esta serve à sabedoria (p. 65). Temos
aqui um reducionismo lógico da linguagem. Tal reducionismo acontece nas
filosofias racionalistas, que entendem que o ser humano é essencialmente um
animal pensante. Entretanto, a lógica é apenas mais um dos quinze aspectos da
realidade e nenhum aspecto pode ser absolutizado. Esse aspecto analítico
centraliza a atitude teórica do nosso pensamento, mas não é o centro do ser
humano e nem soberana sobre os demais aspectos. Na ordem cósmica dos
aspectos modais de significado, o aspecto lingual é posterior ao aspecto lógico,
ou seja, não haveria linguagem sem a lógica. Entretanto, nem a ordem cósmica
dos aspectos nem as analogias inter-aspectuais justifica a primazia, hierarquia
ou absolutização de algum aspecto. Há vários exemplos de usos da linguagem
que não servem de forma imediata, mediata ou última (para usar a linguagem do
Nougué) ao aspecto lógico – o uso criativo e estético da linguagem na arte é um
dos vários exemplos que podem ser dados.

Em relação ao escopo da gramática, a aplicação aristotélica também


deixa a desejar. Nougué (e outros pensadores aristotélicos) parece forçar as dez
18

classes gramaticais dentro da forma das dez categorias do ente, e se o círculo


não entra no formato triangular, corta-se o círculo em forma de triângulo. Assim,
embora Nougué reconheça as dez classes gramaticais, entretanto, ele cita a
conjunção e a interjeição bem rapidamente (p. 134), e não trata delas na parte
sobre as classes gramaticais (quinta parte, pp. 201 – 394).

Como vimos, teorias inadequadas levam a soluções inadequadas que


sempre são contrárias à nossa experiência real. A filosofia de Aristóteles
mostrou-se inadequada como explicação coerente da totalidade da realidade e
sua aplicação nas ciências especiais (como a linguística) tem se mostrado
inconsistente e insuficiente.

1.9 Conclusão.

A filosofia reformacional tem se mostrada adequada como descrição


teórica da realidade empírica, uma vez que faz justiça a toda nossa experiência,
sem cair em reducionismos, absolutizações ou confusões. Entretanto, uma vez
que nenhuma teoria humana é perfeita – por ser isso mesmo, humana – cada
teoria precisa dialogar extensamente com todas as propostas, ideias e práticas
que os demais estudiosos propiciam. Tal diálogo é essencial e imprescindível
para uma vida acadêmica saudável. Não somente a filosofia reformada dialoga
com as teorias concorrentes (que correm juntas), mas as demais teorias se
beneficiariam do diálogo com a filosofia reformacional. O presente trabalho pode
ser o início desse diálogo em língua portuguesa.

Nos demais capítulos, trataremos sobre alguns princípios da teoria


gramatical e sua prática pedagógica, levantando mais algumas colunas sobre o
fundamento lançado nesse capítulo.
19
20

2. DA LINGUAGEM À GRAMÁTICA: OS FATOS


REENCONTRAM AS NORMAS.

É muito mais difícil matar um fantasma do que matar uma realidade.


(Virginia Woolf)

Na atitude teórica do nosso pensamento, é muito fácil criarmos fantasmas


teoréticos que substituem a realidade. A palavra “fantasma” (do grego
phantázein, “fazer aparecer”, por sua vez derivada de phaínein, “mostrar”) é
aparentada com a palavra “fantasia”, querendo dizer algo que não é real, que só
existe na imaginação. Nossa imaginação é muito subestimada. Entretanto, ela
precede nossa razão e podemos dizer que ela é a incubadora do nosso
pensamento teórico. Nossa imaginação é formada essencialmente por histórias
que ouvimos e vemos. Portanto, se interiorizarmos uma história inadequada da
realidade, parafraseando Woolf, será difícil matar esse fantasma que matou a
realidade.

O fantasma da “gramática tradicional” sem dúvidas tem sido um dos mais


difíceis de derrotar. Desde a década de 1980, linguistas e gramáticos se
levantaram como caça-fantasmas-gramaticais, mas o sucesso dessa empreita
tem ficado majoritariamente no reino acadêmico, raramente tocando o chão das
escolas.

A tradicional história que ouvimos (desde os gregos) é que a gramática


da “língua padrão” é uma espécie de salvaguarda da língua, um baluarte da
verdadeira comunicação, algo a que toda a sociedade falante deve se adequar.
Essa história formou o imaginário de inúmeras gerações e está sendo difícil
desconstruí-la.

2.1 O que é a gramática? Um retorno ad fontes.

Há certo reducionismo presente nas práticas de ensino de gramática em


nosso país. Para evitarmos tais desvios conceituais e práticos, usaremos a
própria etimologia da palavra, que por si só já é muito instrutiva. Estamos cientes
da “falácia etimológica” que afirma que um conceito não pode ser definido
apenas por sua etimologia, visto que há toda uma história dialética de
progressão conceitual para cada termo. Assim, por exemplo, nossa palavra
21

“ideia” não tem o mesmo significado que a “ideia” (eidos) de Platão, por isso a
etimologia grega já não é suficiente para explicar o termo moderno (juntamente
com a falácia etimológica temos a falácia do anacronismo semântico, igualmente
perigosa). Entretanto, olharemos para a etimologia de “gramática” com novos
óculos cosmovisionais (ou conceituais), dando para esses ossos (gregos) mortos
uma nova carne, uma nova vida, uma nova roupagem (e quiçá, um novo
caminho).

A palavra “gramática” vem do grego “grammatiké”, feminino


substantivado de “grammatikós”. A “grammatiké” é a técnica das letras, técnica
no sentido de “arte”. Assim, essa técnica da linguagem é o treinamento teórico e
prático do uso adequado da linguagem para cada situação experiencial do
falante. Mas o uso adequado da linguagem não é o uso estrito senso da “norma
culta”. Cada situação do “ser-no-mundo” (para usar a linguagem de Heidegger)
exige, por assim dizer, a sua “própria gramática”.

Vale dizer que cada “técnica” ou arte no sentido grego, exige (e


pressupõe) suas próprias regras, ou normas. Mas não podemos cometer o
reducionismo de acharmos que as “regras” gramaticais são unívocas em relação
às regras da “norma padrão”. Discutiremos agora a relação entre as normas
linguais e os fatos linguais (2.2), a adequabilidade situacional da linguagem (2.3)
e por fim caminharemos na via negativa, i.e., o que não é a gramática.

2.2 Normas e fatos.

A relação entre as normas e os fatos é uma questão importante e difícil


de lidar. Dooyeweerd (1953 vol. 2: 8) afirma que:

(...) “norma e fato”, ou “lei e sujeito”, são mutuamente irredutíveis, apesar


das opiniões de racionalistas e irracionalistas. Lei e sujeito são possíveis
apenas em sua correlação indissolúvel. O lado funcional da esfera da lei
é determinado e delimitado pelas leis funcionais da esfera. [tradução
própria]

Isso se aplica ao todo da realidade. As leis de cada esfera modal regulam


a atuação dos sujeitos e dos fatos. Na linguagem, a relação entre fatos linguais e
normas linguais tem sido expressada de várias maneiras (De Saussure expressa
essa relação com a terminologia “langue” e “parole”, enquanto Chomsky usa
“competência” e “desempenho”).
22

O conceito de normas linguais a partir da filosofia reformacional


transcende o conceito de regras gramaticais da norma padrão. Como vimos,
todos os aspectos modais da realidade significativa são normativos para o todo
da realidade e da experiência humana. Por isso, esses aspectos modais de
significado são também chamados de “esferas-lei” (por isso o termo
“cosmonomia”)14.

Cada esfera-lei de significado modal possui e opera segundo suas


próprias leis. As leis do aspecto ético não funcionam da mesma maneira que as
leis do aspecto estético. Assim, por exemplo, as leis do aspecto físico
determinam seus objetos e sujeitos de maneira diferente das leis do aspecto
lingual. Quando uma pedra cai (lei da gravidade no aspecto físico) ela não
possui a escolha de não cair. Nesse sentido, as leis do aspecto físico são
determinantes, normativas para seus sujeitos e objetos. Entretanto, o mesmo
não ocorre no aspecto lingual, pois cada falante possui inúmeras escolhas
intencionais ou não, conscientes ou não do todo de seu sistema linguístico.
Portanto, as leis do aspecto lingual são “normas”, ou seja, elas descrevem como
deve ser, mas é possível a transgressão. Isso se dá pela própria configuração da
realidade entre os aspectos naturais (do numérico ao sensitivo) e os aspectos
culturais (do lógico ao certitudinal).

Em relação ao termo “transgressão” (apropriado quando se trata de


quebras de normas), um esclarecimento é necessário. A transgressão das
normas linguais gera ruídos e mal-entendidos de natureza comunicativa. A
tradição do ensino da “gramática padrão normativa” tratou (e ainda trata) as
transgressões linguais como transgressões do aspecto ético, como se fosse algo
moralmente por si. Obviamente podemos transgredir o aspecto ético via a
linguagem (como as ofensas, por exemplo), mas um aspecto não pode ser
reduzido a outro. Da mesma forma, as variações linguais são vistas como
transgressões do aspecto social ou do aspecto econômico – nada mais absurdo
(essa é a base que Bagno usa para criticar os preconceitos linguísticos).

Assim, todas as analogias modais no aspecto lingual do horizonte da


experiência humana (que vimos no capítulo 1) são normativas para a linguagem.
Essa definição de normatividade linguística escapa aos reducionismos e faz jus
à experiência humana lingual em toda a sua amplitude e complexidade.

14
O termo no original holandês é “Wetsidee” que pode ser traduzido como “ideia-lei”.
23

2.3 Adequabilidade situacional.

O ser humano é o único ser que age como sujeito em todos os aspectos
modais da realidade. Cada situação em que uma pessoa se encontra está
cercada por essa riquíssima variedade de significados modais. Cada situação é
caracterizada por uma ou mais esferas modais. Veremos alguns exemplos.

2.3.1 A esfera lingual material da conversação.

Uma conversa entre duas pessoas é centralizada pelo aspecto social da


realidade e é caracterizada por várias normas. Weideman (2009, p. 40), citando
Crystal e Davy, mostrou que uma formulação provisória de algumas dessas
normas incluiu: (a) a explicitude da linguagem, (b) a aleatoriedade (naquele
tempo aparente) do assunto e a falta geral de planejamento consciente,
juntamente com (c) uma imprevisibilidade opcional, a justaposição de
características linguísticas normalmente distintas, resultando em um alto grau de
flexibilidade, bem como (d) variação em vários níveis linguísticos, e (e) a
chamada 'não-fluência normal'.

2.3.2 Características típicas de discursos certitudinais.

O último aspecto modal da realidade, o aspecto da fé ou certeza,


caracteriza os discursos e textos religiosos. A Bíblia, por exemplo, não trata
sobre equações matemáticas ou como uma empresa gerencia suas finanças,
mas trata de temas e histórias que possuem a finalidade religiosa de dar certeza
para um indivíduo e para as comunidades de fé que as seguem. Filosoficamente
falando, os textos religiosos não podem ser centralizados por nenhum dos
aspectos pontuados, exceto pelo último, o da fé15.

2.3.3 A linguagem científica.

15
Não estou advogando nenhuma hermenêutica teológica particular da Bíblia, apenas
pontuando filosoficamente a centralidade modal que perpassa seu discurso, tomando-a
apenas como um exemplo de discurso caracteristicamente certitudinal.
24

A qualificação tipificadora da linguagem científica é caracterizada pelo


aspecto lógico da realidade, que distingue cada coisa e aspecto em seu devido
lugar. A confrontação do aspecto lógico com os demais aspectos gera a
abstração teórica que as diferentes ciências especiais estudam. Portanto, a
linguagem científica demanda precisão conceitual, diferente de uma poesia, que
é caracterizada pelo aspecto estético.

2.3.4 Conclusões preliminares.

A linguagem artística é diferente da linguagem jurídica e assim por diante.


Existem vários níveis de efeitos e consequências da transgressão das normas
linguais. Quando isso ocorre numa conversa de amigos, o mal entendido gerado
é resolvido no mesmo instante. A falha na comunicação entre engenheiros
aeronáuticos na hora da construção de um avião pode resultar numa tragédia.
Portanto as normas linguais possuem uma ampla variedade lexical para cada
contexto situacional. Bakhtin (1997, p. 279), nessa mesma linha de pensamento,
afirma:

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam,


estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de
surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão
variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não
contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua
efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e
únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da
atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as
finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo
(temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos
recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —
, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional.

Por isso, é papel do professor de língua portuguesa ensinar seus alunos


essas diferentes “gramáticas”, i.e., essas diferentes técnicas do uso da
linguagem. Podemos chamar essas “técnicas”, ou “gramáticas” de “gramáticas
modais”, i.e., cada modalidade significativa e situacional da experiência humana
demanda certas regras que variam de uma situação para outro16. O sujeito

16
Essa proposta coaduna com a linguística aplicada, que tem trabalhado com trabalho
com gêneros discursivos e textuais diversos em sala de aula. Um dos principais
estudiosos dessa questão, no Brasil, é Marcuschi.
25

lingual usa normas linguais diferentes para cada situação lingual, para cada fato
lingual.

2.4 A via negativa: o que não é gramática.

Irandé Antunes17 nos ensina que as regras gramaticais não se reduzem


às meras nomenclaturas metalinguísticas. Conhecer apenas essas
nomenclaturas (substantivo, verbo, sujeito, objeto direto, etc.) não garante por si
só um entendimento adequado de textos literários, por exemplo. Conhecer essas
nomenclaturas tem sua importância, mas gramática não é apenas isso.

Antunes também insiste (com razão) que gramática não é apenas norma
culta. A norma culta regula a fala e a escrita em contextos formais. Antigamente,
dizia-se que a norma culta regulava todos os tipos de textos escritos. Esse
reducionismo também ignora as modalidades situacionais que vimos acima. Sem
mencionar contextos informais como as redes sociais e o Whats-app, o que
diríamos dos escritos de James Joice e Mário de Andrade, que intencionalmente
fogem da norma padrão?

Novamente, precisamos insistir que tanto as nomenclaturas gramaticais


como a norma padrão são importantes, mas que a gramática da língua
portuguesa (e de qualquer língua!) transcende essas categorias. É interessante
notar a semelhança entre a proposta de Antunes (2007) e de Weideman (2009).
Enquanto o título do livro de Antunes é “Muito além da gramática”, o título do
Weideman é “Beyond Expression” (“Além da expressão”). Ambos concordam
que o lado normativo e o lado sujeito do aspecto lingual (gramática e falantes)
transcendem a mera norma padrão e as nomenclaturas, rejeitando qualquer tipo
de reducionismo e de imposição a priori de um sistema sobre os dados da
realidade. A semelhança da abordagem interacionista e sociolinguística
(Antunes, Marcuschi, etc.) e da abordagem da filosofia reformacional
(Weideman) é o respeito e a responsabilidade de se teorizar sobre o real a partir
da experiência, sem querer negar essa experiência ou enquadrá-la em algum
sistema teórico de antemão.

17
ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no
caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007, pp. 69-81.
26

2.5 Conclusão: um teste preliminar.

Com relação às conclusões que os estudos da linguagem alcançaram


nos últimos 40 anos, talvez a filosofia reformacional tenha pouco a acrescentar.
Entretanto, essa teoria oferece uma visão do todo da realidade de modo
coerente, abrangente e que não contradiz nossa experiência pré-teórica (antes,
parte dela). Conectar a linguagem com o todo da realidade pode ser o tônico a
mais que está para ajudar os professores e estudiosos da linguagem a
contextualizar suas práticas pedagógicas (assunto do próximo capítulo).

Basta, no momento, investigarmos mais um ponto em que a filosofia


reformacional pode contribuir para uma filosofia da gramática em específico.

Se os aspectos-lei da realidade são seus limites modais, segue que a


linguagem humana encontra seus limites nos próprios limites da realidade. Até
mesmo o uso fantástico, metafórico, imaginativo da linguagem não escapa aos
aspectos transcendentais do real. Por exemplo, ao lermos num conto infantil que
“uma pedra falou”, estamos fazendo uso fictício da linguagem, atribuindo a
função de sujeito no aspecto lingual para a pedra. Apenas mudamos os sujeitos
e os objetos nas modalidades normativas da nossa experiência18.

Assim também expressamos na gramática, em seu estrato sintático. Na


frase: “o cachorro chorou de tristeza”, o sujeito e o predicado expressam
exatamente a relação metafísica do animal como sujeito ativo do aspecto
sensitivo. Exemplos assim mostram como a linguagem reflete e expressa a
ordem inquebrável da realidade. Chegamos até os conceitos-limite, não
podemos e nem conseguimos ir além deles. Na gramática tradicional, a
linguagem é forçada a expressar uma teoria da realidade que não condiz com
nossa experiência da realidade. A substância aristotélica leva a uma gramática
descontextualizada exatamente pela ideia de autonomia da substância (e depois
do substantivo) em relação aos seus acidentes. A ontologia reformada, ao
afirmar que tudo é essencialmente significado, mostra a interdependência
insuperável de todas as coisas, e a linguagem, por sua vez, não pode existir por
si mesma - isolada de seu contexto social.

18
Essa questão é debatida pela Semântica Formal, quando leva em consideração a
relação da realidade fatual com uma “semântica de mundos possíveis ou ficcionais”.
27

3. DA GRAMÁTICA AO ENSINO: O PROFESSOR


REENCONTRA O ALUNO.

"Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o


essencial é que saiba amar."

(Machado de Assis, Ressurreição).

3.1 Introdução.

O filósofo James K. A. Smith (2018, p. 37) corretamente afirmou que


“toda pedagogia parte de uma antropologia”. Portanto, não existe pedagogia
neutra, ingênua, ou pedagogia “por pedagogia”. Como a filosofia reformacional
se encontra com o todo da realidade, em relação à antropologia não é diferente.

A cena se repete ad infinitum (ou seria ad nauseam?). Os professores


entram na sala de aula, gastam alguns (ou muitos) minutos organizando a sala,
e então começa a transmitir o conteúdo de sua disciplina, pregando os conceitos
na tábua raspada (tabula rasa) do cérebro de seus alunos. Esse modelo
pedagógico é tão comum que quase não conseguimos imaginar outra cena
numa sala de aula.

Esse tipo de pedagogia é uma prática de ensino voltada para a


informação dos aprendizes. Esse capítulo irá argumentar em favor de uma
pedagogia para a formação, e não essencialmente para informação. Mas se toda
pedagogia está fundamentada numa antropologia, qual é a visão do ser humano
que a pedagogia da informação carrega, consciente ou inconscientemente?

A pedagogia que tem seu telos na informação possui uma visão


racionalista da humanidade. Racionalismo é um termo muito amplo e traçar seu
desenvolvimento histórico-filosófico foge dos limites desse trabalho. Entretanto,
em linhas gerais, o racionalismo advoga que o ser humano é essencialmente, ou
centralmente, um ser que pensa, um animal racional, um biós theoretikus (vida
teorética, contemplativa), para usar a linguagem aristotélica.

Entretanto, essa visão reduz o homem a um de seus aspectos temporais


(o lógico) e não faz justiça à experiência do próprio humano sobre si mesmo. A
atitude analítica do nosso pensamento, como já vimos, é sempre a posteriori e
nunca consegue dar conta de toda a experiência pré-teórica. Além do mais, a
28

nossa forma de vida (para usar a linguagem de Wittgenstein) é guiada mais pela
nossa imaginação, pelos nossos desejos e pelas nossas atitudes (e hábitos) do
que propriamente pelo pensamento.

A crença dogmática de que o ser humano é primordialmente um animal


racional falha em todos os sentidos. A pergunta feita por todos os alunos e
odiada por todos os professores é a clássica “para quê vou usar isso na minha
vida?”. Essa indagação é vista pelos docentes como um descaso teórico da
parte dos alunos. Mas e se os alunos estiverem apenas expressando a
preocupação mais elementar e primordial do que a mera reflexão teórica? E se o
ser-no-mundo dos alunos estiver de forma ingênua (pré-teórica) demonstrando
para seus professores que eles não são essencialmente coisas pensantes,
máquinas cartesianas, mas antes, seres que amam, que desejam, que agem no
mundo?

A pedagogia da mera informação é tediosa e produz aulas “chatas”.


Filosoficamente, o tédio é definido como a falta de significado no horizonte da
experiência humana19. A informação sozinha não significa nada, ou seja, ela não
se conecta com o restante da vida, e não se conecta com os desejos e amores
(sinônimos aqui) do aluno, muito menos com as suas práticas cotidianas. Sem
cairmos no outro extremo do pragmatismo, precisamos de uma pedagogia de
formação, que se conecta com o todo da vida do aluno no todo de sua realidade
empírica. Só assim as aulas serão significativas, com práticas pedagógicas
densas que realmente vão formar um cidadão crítico, que ama o saber e o
coloca em prática. A pedagogia racionalista é um tiro no pé, pois ao focar só na
informação, mata o amor e o desejo dos alunos pelo saber.

3.2 O que é o ser humano?

A essência do ser humano constitui-se como uma das perguntas centrais


da história da filosofia e da própria humanidade. Esboçaremos brevemente
algumas reflexões antropológicas fundamentadas no pensamento reformado.

19
Ver a discussão filosófica de Svendsen, em SVENDSEN, Lars. Filosofia do tédio. Trad. Maria
Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
29

3.2.1 A supratemporalidade da antropologia transcendental de Herman


Dooyeweerd.

Toda a vasta obra filosófica de Herman Dooyeweerd 20 é marcada por


uma antropologia sui generis. O ser humano, como já vimos, é o único ser que
funciona como sujeito em todos os aspectos modais da realidade. Do numérico
ao certitudinal, nenhuma esfera modal de significado escapa a atividade
humana.

Dito isto, precisamos esclarecer que, diferente das demais estruturas de


individualidade, o ser humano não é qualificado ou centralizado por nenhum
desses aspectos. Nesse sentido, o ser humano transcende toda a ordem
temporal significativa da realidade. O núcleo concêntrico da existência humana
não é a razão ou a emoção, mas é o que Dooyeweerd chama de “coração” (ou o
“eu”). O coração, como núcleo egóico da existência humana, é o lócus da
concentração da totalidade de significados que experimentamos da realidade
que nos cerca. Portanto, esse núcleo existencial não pode ser qualificado por
nenhum desses aspectos metafísicos e nem mesmo o pensamento teórico pode
capturar o significado do coração (do “eu”) humano.

É por essa razão que, ao tentarmos caracterizar o ser humano em um de


seus aspectos temporais, sempre caímos em reducionismos. O ser humano não
é essencialmente psicológico, ou racional, ou histórico, ou linguístico, ou social
(etc.). Apesar de ele ser todas essas coisas (por ser sujeito, respectivamente,
aos aspectos sensitivo, lógico, formativo, lingual e social), nenhuma dessas
modalidades é suficiente para descrever a essência nuclear das pessoas.

Os professores precisam estar atentos a essa vasta complexidade que


envolve seus alunos (e ele mesmo!) e não reduzir seus alunos em nenhum
sentido. Uma pedagogia responsável que realmente respeita a natureza humana
precisa ter consciência que os alunos precisam conhecer mais profundamente
toda essa riqueza metafísica e como ela se interconecta com todas as coisas.

20
Ver, especialmente, DOOYEWEERD, H. A New Critique of Theoretical Thought, Collected
Works of Herman Dooyeweerd, A Series Vols. I-IV, General Editor D.F.M. Strauss. Lewiston:
Edwin Mellen. 1997; e Dooyeweerd, H. In the Twilight of Western Thought. Collected Works of
Herman Dooyeweerd, B Series, Volume 4, General Editor D.F.M. Strauss, Special Editor J.K.A.
Smith. Lewiston: Edwin Mellen. 1999.
30

3.2.2 As estruturas encápticas do corpo humano.

Movendo-nos do núcleo existencial para o corpo humano, a filosofia


reformada distingue quatro aspectos estruturantes. O psicólogo Willem
Ouweneel (2014, p. 18) também as denomina de “reinos”. Primeiramente temos
a estrutura (ou reino) físico-química, a estrutura biótica, a psicológica e por fim, o
que Dooyeweerd chama de “estrutura-ato” (New Critique, V. 3, p. 88).

Assim como o coração humano, ou ego, a estrutura-ato não é qualificada


por nenhum dos aspectos modais. É devido a essa estrutura final que podemos
dizer que o ser humana “age” como sujeito em todos os aspectos da realidade.

Essas estruturas não são independentes ou autossuficientes, pelo


contrário, uma pressupõe e necessita da outra. Para expressar esse
entrelaçamento, Dooyeweerd usa o termo “encaptico”, ou “encapsular”. Por
exemplo, já vimos que as árvores são centralizadas pelo aspecto biótico.
Entretanto, um jardim não é caracterizado essencialmente pelo aspecto biótico,
mas sim pelo estético. Assim, cada planta, árvore, estátua (e o que mais um
jardim tiver) serão estruturas de individualidade que estarão encapsuladas no
todo do jardim.

Assim também são as quatro estruturas do ser humano. Somos seres


altamente complexos, uma estrutura encápticas, formada de outras estruturas, e
mesmo assim transcendemos as modalidades significativas do real.

A estrutura-ato, além de ser a mais rica de todas, é aquela que nos define
e nos distingue dos demais seres vivos (os animais possuem as três primeiras
estruturas do ser humano). Passo a passo, estamos esboçando uma
antropologia a partir da filosofia reformada, e veremos os impactos dessa
perspectiva antropológica na pedagogia, especialmente no ensino de língua
portuguesa.

3.2.3 Homo liturgicus: James Smith e as práticas intencionais do amor.

James K. A. Smith, um pensador reformado norte-americano amplamente


influenciado pelo pensamento de Herman Dooyeweerd, afirmou que “o papel
principal da educação é transformar nossa imaginação e não saturar nosso
intelecto” (2018, p. 18). Reagindo rigorosamente contra o racionalismo (ou
31

intelectualismo, na linguagem de Charles Taylor), Smith demonstra que nossos


desejos possuem primazia sobre nossos pensamentos. Aquilo que nós amamos
(desejamos) direciona nossos pensamentos e o todo da nossa vida. Além disso,
nossos desejos são formados por narrativas – histórias que moldam nosso
imaginário.

Smith, tomando emprestado um conceito de Taylor, mostra que nossa


cultura ocidental é guiada por uma espécie de “escarnação”. Contrário à clássica
doutrina cristã da encarnação (o Logos se fez carne, se corporificou21), o
racionalismo nos leva a ignorar nossas práticas corporais, restringindo-nos ao
“mundo das ideias platônicas”. Entretanto, nossos hábitos, nossas práticas
cotidianas, são vitais para nossa vida. Essas práticas são orientadas pelos
nossos desejos, mas nossos desejos também são orientados por nossos hábitos
– é uma via de mão dupla.

Portanto, dado esses esboços filosóficos e antropológicos, vamos refletir


no próximo subtópico sobre as implicações práticas da perspectiva reformada
para a pedagogia, especialmente para o ensino de língua portuguesa.

3.3 Pedagogia do desejo: “diga o que amas e te direi quem és”.

O fato de que há muitas abordagens pedagógicas tem efeitos positivos e


(quiçá) negativos. O lado positivo dessas miríades de metodologias é possibilitar
aos docentes várias escolhas e perspectivas para seu trabalho. A verdade não
pode ser capturada por apenas um ponto de vista. Essa polifonia pode lançar luz
na pedagogia dos professores, que podem mesclar as várias abordagens e
adaptá-las ao seu contexto particular. Entretanto, as infindas abordagens podem
deixar os professores confusos e desanimados frente a essa grande massa
teórica.

Independente da escolha do professor, a pedagogia da informação,


fundada na antropologia racionalista, não pode mais ser uma opção, visto que se
mostrou inadequada para dar conta da rica complexidade do ser humano.

Portanto, a pedagogia precisa estar mais preocupada em formar seus


alunos do que meramente informar. A informação não pode ser um fim em si
mesmo, ela serve à formação integral do aluno. Essa formação precisa ir de

21
Evangelho segundo João, 1.14.
32

encontro ao núcleo dos alunos enquanto seres-no-mundo, isto é, deve atingir o


desejo deles. É preciso fazer com que os alunos amem a língua portuguesa (ou
que pelo menos não a odeie!). Rubem Alves apontou que “poucos são os “casos
de amor” que nasceram, na escola, entre nós e a língua que falamos e
escrevemos“22. O curioso é que todos os alunos amam falar (principal
reclamação dos professores). A pedagogia racionalista ao invés de aprofundar
esse amor já existente, o destrói. A maioria dos alunos não ama a gramática
exatamente porque o conceito de gramática está equivocado. Mas eles vão
continuar amando a gramática que eles falam. Por isso o título desse trabalho é
“reencontrando as letras”. O professor precisa levar seus alunos a um encontro
“romântico” com a língua que eles já sabem. Por esses encontros terem sido um
fracasso ao longo das gerações, ele se tornou um “encontro romântico às
escuras” (teoricamente falando), pois nem os alunos (nem os professores)
conhecem (ou ouviram falar) do alvo de seus amores linguais – a língua
portuguesa. Portanto, é papel primordial dos professores de língua portuguesa
fazer com que os alunos amem essa disciplina. Para isso propomos quatro
conceitos práticos para uma pedagogia da (re)formação:

1. Cada coisa em seu devido lugar. Reducionismos e absolutizações


sempre distorcem a realidade e os amores humanos. Absolutizar as
regras padrões da língua portuguesa é uma forma eficaz de acabar
com o amor dos alunos por essa disciplina. Ensinar que a norma
padrão é importante em contextos formais, mas que não é absoluta é
o primeiro passo para cativar a atenção e o amor dos alunos. Ensinar
as variações linguísticas, combater o preconceito linguístico e outras
práticas similares também se fazem necessárias. Cada coisa em seu
devido lugar é sine qua non para que cada coisa seja amada como
ela é.
2. Sujeitos linguais responsáveis. Nossos alunos já são sujeitos linguais,
i.e., já sabem falar a língua portuguesa23. Não é necessário perder
tempo ensinando regras gramaticais que literalmente nenhum falante
erra. Precisamos ensinar nossos alunos a serem sujeitos linguais
responsáveis, que sabem se comunicar nas diferentes esferas
sociais, como falantes, ouvintes, escritores e leitores.

22
Apud ANTUNES, 2007, p. 122.
23
Ver essa discussão em POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 2.ed.
Campinas: Mercado de Letras, 1998, p. 20-24.
33

3. Literatura e imaginação. Se, como vimos, nosso ser é constituído


mais por histórias do que por informações teóricas, as aulas de língua
portuguesa precisam dar grande espaço para a leitura e discussão de
textos literários. A leitura de boas obras literárias seguida de práticas
de escrita, reflexões teóricas e debates críticos são essenciais para
que os alunos amem a língua que falam, e para que sejam realmente
formados como cidadãos críticos, com opinião, repertório e uma
imaginação educada.
4. Práticas materiais encarnadas. Se nossas práticas corpóreas
direcionam nossos desejos, elas devem fazer parte das aulas de
língua portuguesa. O modelo tradicional de um professor falando o
tempo todo sobre conceitos teóricos não faz justiça à natureza
humana. Atividades corpóreas e corporativas como meios didáticos
ajudam a direcionar e a formar o amor à língua portuguesa. Além
disso, os alunos precisam praticar (e muito) a leitura e a escrita.
Ninguém nasce leitor ou escritor. Essas práticas são formadas por
hábitos e hábitos são formados por práticas repetidas. Essas práticas
repetidas, longe de serem tediosas, quando contextualizadas e
corretamente ensinadas, são significativas e (trans)formadoras.

Baseado nessas breves observações, podemos propor uma atividade


pedagógica simples. Numa sala de 6º ano, o professor, ao ensinar a conjugação
dos verbos no passado e futuro, singular e plural, pode propor a fábula do
Coelho e da lebre:

A lebre vivia a se gabar de que era o mais veloz de todos os animais. Até
o dia em que encontrou a tartaruga.

- Eu tenho certeza de que, se apostarmos uma corrida, serei a vencedora


- desafiou a tartaruga.

A lebre caiu na gargalhada.

- Uma corrida? Eu e você? Essa é boa!

O possível exercício seria:


34

Veja a lista com alguns verbos que aparecem na fábula A Lebre e a


Tartaruga e escreva-os no tempo passado e no futuro:

Verbo Passado Futuro

A lebre e a tartaruga (elas)... A lebre e a tartaruga


(elas)...

viver viviam viverão

encontrar encontraram encontrarão

desafiar desafiaram desafiarão

cair caíram cairão

Após a leitura e atividade, juntamente com a explicação das regras


gramaticais, o professor pode sugerir uma atividade lúdico (por exemplo, um
quebra cabeça da Lebre e Tartaruga), ou até mesmo uma atividade física (por
exemplo, um breve teatro dos alunos encenando essa fábula).

As possibilidades são virtualmente ilimitadas. O foco sempre deve ser o


ensino a partir de textos significativos, aplicando ao contexto vivencial dos
alunos e, se possível, alguma atividade corporal para o alunos.

Concluo essa parte afirmando que é quase impossível para uma


pedagogia da formação - que leva em conta o amor, a imaginação e as práticas
dos alunos – não criar um ambiente educativo que leva os alunos a entenderem,
usarem e amarem a língua de forma adequada e transformadora.

3.3.1 O que é a escola?

Discutiremos nesse último subtópico sobre a natureza e a função


principal da escola. Essa discussão será quase como uma digressão, mas
servirá como um argumento acumulativo para uma prática pedagógica
formadora. Novamente, nos valeremos da filosofia reformada como base teórica
para a discussão da escola enquanto instituição social.
35

Para a filosofia reformada, a discussão sobre as instituições sociais


precisa levar em conta qual é o aspecto fundante e qual é o aspecto central de
cada instituição. Alguns exemplos serão necessários.

O Estado, como instituição da sociedade humana, é fundado (originado)


pelo aspecto histórico da realidade cultural humana, pois surgiu em um
determinado tempo na história humana. Além disso, o Estado é centralizado pelo
aspecto jurídico, visto que sua principal função é promover a justiça dentro da
sociedade.

As empresas também são historicamente fundadas, mas são


centralizadas pelo aspecto econômico da realidade, visto que sua principal
função é gerar lucros (idealmente para o bem da sociedade).

As igrejas são instituições historicamente fundadas e são centralizadas


pelo aspecto da fé (último aspecto). As ONGs são centralizadas pelo aspecto
social, o estádio de futebol é centralizado pelo aspecto estético (que abarca o
entretenimento), a família pelo aspecto ético (do amor) e assim por diante.

Quando refletimos sobre a escola, sabemos que ela também é fundada


no aspecto histórico, mas esse mesmo aspecto também é o seu aspecto central.
O aspecto histórico, ou formativo, tem a ver com a formação cultural da
humanidade. O papel da escola, enquanto instituição social é tanto passar os
saberes acumulados na história como formar seus alunos.

O modelo racionalista vê as escolas como sendo centralizadas pelo


aspecto lógico. Nesse modelo, os professores são apenas informadores, cujo
único papel é passar informações para seus alunos. Estamos propondo um
modelo mais abrangente, centralizado pelo aspecto formativo, que respeite as
complexidades da realidade e dos alunos.

Cabe ainda uma última palavra sobre os aspectos das instituições.


Quando uma cultura humana, ou grupo de pessoas começam a descentralizar
uma instituição de um aspecto para o outro, aquela instituição começa a ser
descaracterizada, começa a ruir, e logo não é capaz de funcionar
adequadamente dentro da sociedade. Uma família, centralizada pelo aspecto do
amor, demanda amor em suas inter-relações. Os pais não podem tratar seus
filhos como funcionários de uma empresa: “façam isso, ou serão demitido dessa
família”, pois estariam centralizando a família dentro do aspecto econômico,
transformando a família numa empresa. O mesmo acontece com as
comunidades de fé (igrejas) que centralizam suas atividades religiosas no lucro
36

financeiro, essas começam a se tornar empresas e se descaracterizam como


igrejas. Da mesma forma, assim como criticamos o modelo racionalista, muitas
escolas (particularmente as privadas) correm o risco de cair na tentação de “re-
centralizar” seu espaço educacional da esfera formativa para a esfera
econômica. Os professores se tornam meros funcionários e os alunos (e seus
pais) são clientes (que sempre tem a razão). No momento que uma escola cede
a essa tentação, torna-se uma caricatura da educação e começa e se
descaracterizar como escola. Além disso, a consequência disso é a
incapacidade de funcionar devidamente, ou seja, se torna incapaz de formar
seus alunos com cidadãos críticos, educados e amantes do saber e do agir
responsável. .

Portanto, as escolas - como instituições formativas - e os professores -


como agentes formativos - precisam repensar a realidade e as práticas
pedagógicas vigentes em nossos dias. O que falamos aqui, embora de forma
abreviada, se aplica a todas as disciplinas, visto que a escola precisa dar conta
de formar os alunos em todos os aspectos significativos da realidade que os
cercam.
37

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Esta monografia procurou traçar uma argumentação holística,


começando da natureza da realidade, afunilando até a linguagem, gramática e
práticas de ensino, integrando tudo em um quadro referencial significativo,
coerente, e não reducionista.

No primeiro capítulo, discorremos brevemente sobre a metafísica a partir


da filosofia da ideia cosmonômica, especialmente momo é exposta na obra do
filósofo Herman Dooyeweerd. Segundo este, a realidade é significado, i.e.,
composta por diversas esferas modais de significado que regulam todo o
universo. Todas as coisas são sujeitas e objetos dessas esferas nômicas. Dentre
os aspectos da realidade, há o aspecto lingual, que caracteriza centralmente a
linguagem humana.

No segundo capítulo, aplicamos essa filosofia à teoria gramatical da


língua portuguesa, mostrando que a gramática é muito mais ampla que a norma
padrão e suas nomenclaturas. Cada situação exige sua própria “gramática”, ou
seja, suas regras linguísticas, situacionais e sociais.

O terceiro capítulo finaliza aplicando essa teoria na própria prática de


ensino da Língua Portuguesa, mostrando que o ensino precisa ser real e
contextualizado devido à própria natureza significativa e interconectada da
realidade. A abordagem aqui proposta é contra qualquer tipo de reducionismo
em qualquer área da vida, e aqui vimos o quão inadequada é uma pedagogia
reducionista (a racionalista, por exemplo). Portanto, o professor precisa levar em
conta que seus alunos são sujeitos complexos e concretos, moldados por
desejos e imaginários, seres corpóreos e práticos. Tudo isso tem grande impacta
na prática de ensino, pois uma pedagogia não reducionista e preocupará com a
formação integral de seus alunos e não com a mera transmissão de informação.

Infelizmente, mesmo com todos os avanços na área da linguística, a


prática de ensino de gramática por meio de textos artificiais e
descontextualizados ainda é muito comum nas escolas brasileiras, tanto públicas
como particulares. Nossa proposta pode ajudar os professores e alunos a
conectarem não apenas a linguagem, mas todas as matérias escolares com
suas vidas concretas, no horizonte de experiência total de cada indivíduo e de
cada sociedade.
38

Vale ressaltar também que a abordagem aqui sugerida é altamente


dialógica. Poderíamos ter iniciado diálogos produtivos com literalmente todos os
teóricos da linguagem e todas as correntes linguísticas da história, pois todos os
pontos de vista agregam valores positivos e elementos veritativos para uma
melhor compreensão de um aspecto da realidade (ou ela como um todo).
Mesmo as teorias mais falaciosas possuem momentos de verdade que podem
ajudar em nosso aprofundamento teórico. Portanto, as poucas referências aqui
apresentada se devem exclusivamente aos limites de tempo e espaço da escrita
dessa monografia.
39

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pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

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Maria Emsantina Galvão G. Pereira revisão da tradução Marina Appenzellerl. 2º
ed. São Paulo Martins Fontes, 1997.— (Coleção Ensino Superior).

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(Liturgias Culturais Vol. 1) Trad. A. G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2018.

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1956. Chicago: University of Chicago Press. 1971.

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