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CAPÍTULO I - BUSCA PELA VERDADE

O início da Filosofia coincide com os primórdios da Ciência. Em primeiro lugar,


um termo central na Filosofia Antiga é "logos", uma palavra grega que abarca
significados como "palavra", "discurso", "argumento", "explicação" e, em um sentido
mais amplo, "teoria" e "razão". Essa palavra é a raiz de diversas disciplinas
contemporâneas, tais como Biologia, Psicologia e Antropologia, ainda que essas
disciplinas fossem estudadas de forma bastante distinta em comparação com o que se vê
hoje. Os filósofos antigos, conhecidos como pré-socráticos, estavam em busca de um
elemento primordial, uma substância fundamental que servisse como origem de todas as
coisas no mundo, e isso eles chamaram de "arché". Eles já não se satisfaziam com
explicações baseadas em mitos; em vez disso, ansiavam pela verdadeira razão
subjacente às coisas.
Os filósofos sempre procuravam e procuram a verdade:

Ora, dado que buscamos as causas e os princípios supremos, é evidente que estes
devem ser causas e princípios de uma realidade que é por si. Se também os que
buscavam os elementos dos seres, buscavam esses princípios supremos,
necessariamente aqueles elementos não eram do ser acidental, mas do ser enquanto
ser. Portanto, também devemos buscar as causas do ser enquanto ser.
(ARISTÓTELES, 1969, p. 98)

A finalidade da Filosofia está no puro desejo de conhecer e de contemplar a


verdade. Aristóteles vai afirmar que: “os homens buscaram o conhecimento a fim de
saber, e não a fim de obter alguma utilidade prática”. (REALE; ANTISERI, 2017, p.
20).
Ignorar implica desconhecer algo, muitas vezes de forma tão profunda que se
nem percebe nossa própria ignorância. Normalmente, permanecemos na ignorância
enquanto nossas crenças e opiniões continuam a ser eficazes e úteis, não nos dando
motivos para questioná-las. Em contraste, a incerteza revela nossa ignorância,
mostrando as falhas em nossos antigos pontos de vista que costumavam orientar nosso
pensamento e ação. Essa descoberta gera dúvidas que nos deixam perplexos e inseguros,
já que não sabemos como lidar com essa nova perspectiva. Esse estado de dúvida nos
surpreende e nos motiva a buscar a verdade para dissipar nossa insegurança.
No início da jornada filosófica, a busca pela verdade era permeada por três
distintas concepções, enraizadas nas línguas grega, latina e hebraica. A palavra grega
para verdade, "aletheia", evoca a ideia de algo evidente, plenamente visível à razão,
desprovido de dissimulação ou ocultação. A etimologia dessa palavra leva a
compreender que a verdade é intrinsecamente ligada à revelação, àquilo que se desvela
diante de nós.
Por sua vez, a língua latina oferece a palavra "veritas" como representante da
verdade. Aqui, a verdade está vinculada à precisão e à exatidão, e a sua busca é
caracterizada por um estudo metódico das coisas. A raiz etimológica desta palavra
sugere que a verdade é algo que pode ser verificado, uma realidade que pode ser
apreendida mediante a investigação.
No universo hebraico, a verdade se manifesta como "emunah", que pode ser
traduzida como "assim seja". Nesse contexto, a verdade está intrinsecamente associada
ao cumprimento de pactos e promessas, abraçando uma crença na esperança e na
realização futura. Essa perspectiva etimológica revela que a verdade hebraica é
carregada de um sentido de compromisso e fidelidade.
É importante salientar que, diante dessas concepções etimológicas, a verdade
não pode ser confundida com mera ideologia ou mascaramento. A verdade não deve ser
um instrumento de dominação, mas sim de libertação, pois ela carrega consigo a
essência da liberdade.
Assim, ao longo da história, indivíduos de todas as épocas têm buscado
desvendar a verdade das coisas. A busca pela verdade é, essencialmente, uma jornada
para escapar da incerteza, do desconforto da ignorância. Em termos práticos, essa busca
não se limita a ingressar em uma instituição acadêmica ou se inscrever em um curso
formal; todos, desde uma dona de casa em busca da receita verdadeira para um bolo
especial, até um aprendiz de pedreiro que busca a técnica autêntica para erguer uma
casa, ou mesmo um cientista dedicado à busca da verdade em seus experimentos, todos
estão envolvidos nessa busca incessante pelo conhecimento e pela verdade.

1.1 Problema da verdade


No alvorecer da filosofia grega, emergiram os sofistas, que desempenharam um
papel fundamental no período socrático, adicionando uma dimensão significativa ao
desenvolvimento do pensamento filosófico e político na Antiga Grécia. Protágoras,
Górgias e Isócrates estão entre os sofistas mais proeminentes, cada um contribuindo
com sua visão única para a arena intelectual da época. Esses sofistas contestavam
abertamente os ensinamentos dos filósofos cosmologistas, que haviam se concentrado
na exploração do universo e de suas origens. Argumentava-se que as teorias dos
cosmologistas continham falhas e não tinham aplicação prática na vida da cidade-
Estado, conhecida como pólis, que era o centro da vida grega. Os sofistas acreditavam
que a filosofia deveria ser prática e relevante para os cidadãos, ajudando-os a lidar com
questões morais, políticas e sociais do dia a dia.
Uma das características distintivas dos sofistas era sua habilidade excepcional na
oratória. Eles se apresentavam como mestres da persuasão e acreditavam que a
habilidade de persuadir era essencial para o sucesso na vida política e social da pólis.
Assim, eles se dedicaram a ensinar aos jovens gregos a arte da retórica e da
argumentação persuasiva, ajudando a moldar a política e a filosofia da Grécia Antiga.
Esse período de efervescência filosófica e debate entre os sofistas e seus críticos, como
Sócrates, contribuiu para a reflexão sobre questões fundamentais relacionadas à moral, à
verdade e à natureza da virtude.
Protágoras, um proeminente sofista da Grécia Antiga, dedicou-se ao ensino de
legislação e retórica a qualquer pessoa que pudesse arcar com seus serviços. Seu foco
não estava em estabelecer a verdade objetiva, mas sim em preparar seus alunos para
habilmente debater e triunfar em causas legais, independentemente de qual lado eles
representassem. Protágoras introduziu uma ideia revolucionária para sua época: a
perspectiva subjetiva da verdade. Para ele, todo argumento tinha dois lados e ambos
poderiam ser válidos, dependendo do ponto de vista do indivíduo. Essa concepção
culminou na famosa afirmação: "O homem é a medida de todas as coisas".
Historicamente, a filosofia de Protágoras desafiou as noções tradicionais de
verdade e moral na sociedade grega. Sua ênfase na relatividade da verdade provocou
debates acalorados e influenciou pensadores posteriores, como os filósofos
existencialistas da era moderna. A noção de que a verdade é moldada pela perspectiva
individual permanece uma questão filosófica crucial e tem implicações profundas na
ética, na política e na epistemologia ao longo da história do pensamento humano. O
legado de Protágoras destaca a complexidade das questões filosóficas que envolvem a
natureza da verdade e da realidade, destacando o papel da perspectiva individual na
construção de nossa compreensão do mundo.
Sócrates lançou um desafio audacioso contra os sofistas, acusando-os de não
merecerem o título de filósofos. Em suas palavras incisivas, afirmou que eles careciam
do verdadeiro amor pela sabedoria e do respeito pela verdade. Sustentou que os sofistas
estavam dispostos a abraçar qualquer ideia, desde que essa abordagem lhes trouxesse
vantagens. Além disso, Sócrates viu neles uma corrupção sutil do espírito dos jovens,
pois permitiam que o erro e a mentira fossem tão valorizados quanto a própria verdade.
Essa disputa filosófica traz a reflexão sobre a natureza da verdade e da moral. A
filosofia de Protágoras, por exemplo, levanta a intrigante questão da subjetividade e
relatividade das crenças. Ele argumentava que o que é considerado verdadeiro para uma
pessoa pode ser falso para outra, estendendo essa relatividade até mesmo aos valores
morais, como o certo e o errado. Para Protágoras, a moralidade era moldada pelas
convenções sociais, e algo era moralmente aceito apenas porque a sociedade o julgava
assim.
No entanto, essa abordagem levanta um dilema profundo sobre a natureza da
verdade. Protágoras parecia não ter preocupação genuína com a verdade em si; para ele,
o que importava era a vitória nos debates. Embora seu relativismo filosófico tenha
colocado em xeque a noção de verdade absoluta, muitos argumentam que sua filosofia
permanece superficial e não atende às aspirações daqueles que buscam uma verdadeira
desconstrução do conceito de verdade. A questão da verdade, assim, persiste como um
desafio filosófico que nos convida a explorar mais profundamente os fundamentos de
nossas crenças e valores.

1.2 Querela dos Universais

A problemática dos universais, que remonta aos debates filosóficos da Grécia


Antiga e perdura ao longo da história da filosofia, está intrinsecamente ligada à questão
do conhecimento. Ela se concentra na indagação sobre a natureza e a existência dos
universais, ou seja, das características ou propriedades que objetos individuais
compartilham. No contexto do conhecimento, a controvérsia gira em torno de saber se
esses universais existem objetivamente no mundo ou se são apenas construções da
mente humana. Por exemplo, quando percebemos várias maçãs vermelhas, como
conhecemos a "vermelhidade" que todas elas compartilham? Essa questão tem
profundas implicações epistemológicas, influenciando diferentes abordagens filosóficas,
desde o realismo platônico, que sustenta a existência real dos universais, até o
nominalismo, que os considera apenas abstrações mentais. Portanto, a querela dos
universais é uma problemática fundamental que lança luz sobre a natureza e os limites
do conhecimento humano.
Os debates sobre a natureza dos termos universais tiveram seu ponto de partida
na concepção socrática da ciência como a compreensão das essências universais. Se se
entende que a busca pelo conhecimento requer a apreensão do universal, torna-se
crucial determinar sua verdadeira essência. Como resultado, ao longo da evolução da
Filosofia, inúmeros pensadores empenharam-se em encontrar respostas para esse
intrincado questionamento.
Na esteira do legado de Sócrates, Platão adota a visão da ciência como o
conhecimento das essências universais. No entanto, o que singulariza sua filosofia é a
introdução de uma distinção crucial entre dois domínios da realidade: o mundo
inteligível e o mundo sensível. Para Platão, aquilo que é perceptível pelos sentidos não
passa de uma sombra ou aparência da verdadeira realidade. Essa verdadeira realidade,
conhecida como Formas ou Ideias ("Eidós"), é o foco central de sua filosofia. Em sua
obra "Timeu", Platão descreve o mundo sensível como resultado do trabalho de um
demiurgo. Esse demiurgo, ao contemplar as Ideias Eternas, moldou a matéria como uma
imitação imperfeita dessas Ideias. No entanto, a introdução dessas Ideias eternas traz
consigo um dilema intrigante: se cada ser aparente corresponde a uma Ideia perfeita,
como então explicar a própria existência e as propriedades desses seres? Pois, segundo
essa lógica, até mesmo as propriedades de um ser seriam compostas por seres ideais.
Esse paradoxo desafia os filósofos a explorar profundamente a relação entre o mundo
sensível e o mundo das Ideias em busca de uma solução coerente.
Para abordar essa complexa questão, Platão elaborou dois diálogos notáveis: o
"Parmênides" e o "Sofista". Neles, ele apresenta o argumento de que se no mundo
sensível as coisas podem ser sujeitas a predicados, então também é necessário admitir
que esses predicados existem em sua forma perfeita no mundo inteligível. Em outras
palavras, no reino das ideias, não encontramos objetos brancos, mas sim a própria ideia
da brancura; não há objetos circulares, mas sim a ideia do círculo perfeito. Logo,
o universal (predicado de diversos sujeitos) é para Platão existente em si, ou seja, é ele
mesmo um “ser perfeito, pleno, existente no Hiperurano” (CHAUÍ, 2002, p. 268) sendo
combinado, contudo, pelo demiurgo com outras ideias na modelação do ser.
Platão resolve a problemática levantada por Sócrates sobre a definição de ciência
como conhecimento de uma essência universal ao conceituar o universal como uma
ideia perfeita e absoluta. No entanto, Aristóteles aborda essa questão sob uma
perspectiva metafísica relacionada à distinção entre o falso e o verdadeiro em uma
proposição. Para Aristóteles, uma proposição é um julgamento composto de duas partes:
o sujeito e o predicado. Ele considera que uma proposição, como a enunciação de algo,
corresponde à realidade. Portanto, se uma proposição é constituída por duas partes, a
realidade que ela enuncia também o é, e essas partes são a substância e o atributo.
A substância, à qual a proposição se refere, está sujeita a mudanças que ocorrem
em suas relações com seus atributos. No entanto, para que seja possível pensar e falar
sobre uma substância, ela deve possuir uma qualidade de imutabilidade, ou seja, uma
essência que seja distinta de seus acidentes. “Nesse raciocínio o conhecimento não é
outra coisa a não ser a classificação das substâncias em gênero e espécie, já que a
substância seria a realidade final de todas as coisas” (GHIRALDELLI, 2009, p. 82).
A visão apresentada pelo autor Ghiraldelli ressalta a abordagem fundamental da
filosofia aristotélica em relação ao conhecimento. De acordo com essa perspectiva, o ato
de conhecer não é apenas uma apreensão passiva do mundo, mas uma atividade ativa de
categorização e organização das substâncias em categorias mais amplas, como gênero e
espécie. Para Aristóteles, essa classificação é de importância central, pois permite que
compreendamos as características essenciais e individuais de cada entidade. Além disso,
a ênfase em considerar a substância como a realidade final de todas as coisas destaca a
crença de Aristóteles de que a essência de um objeto reside na sua substância, que é
imutável e constitui o núcleo inalterável da sua identidade, enquanto seus atributos
podem variar. Portanto, o conhecimento, segundo essa perspectiva, está intrinsecamente
ligado à compreensão da substância e da essência subjacente a todas as coisas.
Da doutrina aristotélica surgem três desafios fundamentais: o primeiro reside na
explicação das mudanças, o segundo na compreensão do desaparecimento e surgimento
de substâncias, e o terceiro na distinção de termos relacionados à quantidade. Por
exemplo, o termo "gato" é utilizado tanto para se referir a um indivíduo específico
quanto à classe que abrange todos os gatos, enquanto o termo "água" carece de
individualização. Esses problemas levantam questões sobre os termos universais, que
são comuns a vários enunciados, permitindo que objetos distintos compartilhem as
mesmas propriedades e pertençam a uma única categoria.
Aristóteles, diferentemente de Platão, não concebe os universais como Ideias
absolutas que existem independentemente da matéria, mas sim como parte integrante do
próprio ser, da substância. Um termo universal se torna apreensível quando é atribuído a
uma substância específica que está sendo analisada. Por exemplo, se estamos
descrevendo a qualidade de um tecido como "vermelha", o termo "vermelho" é
universal, pois pode ser aplicado a outras substâncias, como flores ou frutas. Nesse
contexto, o universal emerge por meio do processo de abstração que nos permite formar
ideias, e sua existência se justifica pelo fato de que podemos percebê-lo e usá-lo em
proposições.
Porfírio, um mestre da escola neoplatônica que nasceu em Tiro no ano de 234,
trilhou um caminho acadêmico notável. Após ter completado seus estudos em
Alexandria e Atenas, ele embarcou em uma jornada intelectual que o levou a Roma,
onde se tornou discípulo de Plotino. É importante destacar que Porfírio desempenhou
um papel fundamental na organização das obras de Plotino, compilando-as em seis
livros que contêm nove tratados, coletivamente conhecidos como as "Enéadas".
Como sucessor de seu ilustre mestre, Porfírio continuou a tradição neoplatônica
até seu falecimento em 305. Uma das suas contribuições notáveis foi a escrita de uma
obra introdutória às "Categorias" de Aristóteles, que ficou famosa como "Isagoge". Essa
obra foi projetada para orientar seus alunos no estudo da filosofia aristotélica. Na
"Isagoge", Porfírio apresenta uma variedade de abordagens para o problema dos
universais, embora ele não tome partido entre o pensamento de Platão e Aristóteles. Ele
adotou essa postura porque, como professor, sua prioridade era instruir os iniciantes no
estudo da lógica, evitando envolvê-los em debates filosóficos complexos e elevados.
O trecho de sua obra que se tornou geratriz da disputa medieval é seguinte:

Caro Crisaório, dado que para compreender a doutrina das categorias de Aristóteles
é necessário saber o que sejam o gênero, a diferença, a espécie, o próprio e o
acidente, e dado que esta análise é basilar para a formação das definições, e, em todo
caso, para tudo aquilo que se refere a divisão e a demonstração, farei para ti uma
breve exposição em poucas palavras, na forma por assim dizer, de uma isagoge,
daquilo que nos foi transmitido pelos antigos, deixando as questões mais complexas
e tratando em igual medida as mais simples.
Previno-te logo que não enfrentarei o problema dos gêneros e das espécies, isto
é, se não subsistentes por si ou se são simples conceitos mentais; e, no caso que
sejam subsistentes, se são corpóreos ou incorpóreos; e, finalmente, se são separados
ou se se encontram nas coisas sensíveis, inerentes a elas; este é, com efeito, um tema
muito complexo, que tem necessidade de outro tipo de pesquisa, muito mais
aprofundada. Disponho-me, ao contrário, a explicar-te de um ponto de vista lógico
aquilo que sustentaram sobre estas duas questões e sobre outras, sobretudo os
Peripatéticos. (PORFÍRIO, Isagoge apud Reale, 2017, p. 175-176).

Nesse fragmento, Porfírio identifica quatro modalidades de existência dos


universais. Essas modalidades dariam origem a várias correntes de pensamento sobre o
tema, desencadeando um debate acalorado entre os pensadores medievais. As quatro
formas de existência dos universais são: como entidades independentes, de acordo com
a perspectiva platônica; como entidades presentes nas coisas, seguindo a visão
aristotélica; como entidades existentes na mente ou como conceitos, derivando das
filosofias estóica e de Cícero. (ABBAGNANO, 1982, p. 943).
Boécio, cujo nascimento remonta a cerca de 470 e que faleceu por volta de 525,
é um personagem notável na história da filosofia. Ele desempenhou um papel
fundamental como a ponte que conecta o pensamento antigo ao medieval, deixando uma
marca indelével com sua obra magistral, "A Consolação da Filosofia". Sua influência
ecoou por todas as áreas da produção filosófica medieval.
Uma das contribuições mais significativas de Boécio reside em seus comentários
sobre a obra de Porfírio, onde ele lança luz sobre a questão dos universais. Boécio
argumenta que os universais não podem ser substâncias individuais, pois, por exemplo,
o termo "animal" abrange uma pluralidade de seres de tal maneira que seria impossível
considerá-los como um único indivíduo. Ele adota uma perspectiva que ecoa a de
Alexandre de Afrodísia, quando enfrenta o dilema de se os universais seriam meras
expressões de pensamento relacionadas a objetos inexistentes, ou seja, pensamentos de
nada. Ele afirma que o que é pensado existe, mas de forma abstrata, seja como
encontrado em seres incorpóreos ou como algo que pode ser abstraído dos seres
corpóreos. Dessa forma, os universais subsistem em relação às coisas sensíveis, mas
também podemos conhecê-los separadamente dos corpos.
Outro destacado filósofo medieval, João Escoto Eriúgena, nasceu em 810 na
Irlanda e lecionou na corte Carolíngia. Sua interpretação dos universais estava
profundamente enraizada no pensamento platônico das ideias. Para Eriúgena, os
universais são semelhantes a ideias divinas, arquétipos da criação que existem
substancialmente na mente divina. Esses universais são a estrutura fundamental da
realidade, que o Criador utilizou como base para a arte da criação. A criação, de acordo
com Eriúgena, não é mais do que uma manifestação das ideias que residem na mente
divina. Portanto, Deus cria revelando-se, e a criação é, em última instância, uma
manifestação das ideias preexistentes na mente divina.
Essas perspectivas divergentes de Boécio e Eriúgena sobre os universais
contribuíram para moldar o pensamento filosófico medieval. Enquanto Boécio
enfatizava a relação entre os universais e a realidade sensível, Eriúgena os via como
manifestações divinas, incorporando assim duas visões fundamentais da problemática
que seriam exploradas posteriormente pelos escolásticos: uma perspectiva platônica e
outra aristotélica. Essas discussões filosóficas continuaram a influenciar e aprofundar o
pensamento medieval e além, marcaram a transição do pensamento antigo para o
medieval de forma notável. (REALE; ANTISERI, 2017, p. 135).

1.3 A disputa medieval e o Nominalismo

A disputa medieval é um termo que se refere a uma série de debates intelectuais


que ocorreram ao longo da Idade Média, entre os séculos XI e XV, e que tiveram um
profundo impacto no desenvolvimento da filosofia e da teologia da época. Uma das
questões centrais dessas disputas foi a natureza da realidade e do conhecimento, que
estava intrinsecamente ligada ao debate entre o Realismo e o Nominalismo.
O conceito de realismo exagerado, também conhecido como exagerado realismo,
refere-se a uma corrente filosófica que enxerga nos universais uma espécie de
manifestação das ideias platônicas. Isso implica considerar os universais como
substâncias em si mesmas, enquanto os indivíduos seriam apenas acidentes ou
manifestações contingentes dessas substâncias universais.
Essa linha de pensamento encontra seu principal representante em Guilherme de
Champeaux (1070-1121), que, além de filósofo, também foi bispo de Châlons. Para ele,
a essência de um indivíduo, como Sócrates, Platão e outros, se identifica com a essência
universal do homem. Em outras palavras, a realidade fundamental do homem está
presente de forma completa em cada um desses indivíduos, sem que haja diferença
essencial entre eles, mas apenas diferenças acidentais.
Nessa perspectiva, a distinção entre um animal racional e um irracional não é
essencial, pois ambos compartilham a mesma essência universal. A única coisa que os
diferencia são os acidentes ou características particulares que cada indivíduo pode
possuir. É importante destacar que ideias semelhantes a essa foram defendidas por
diversos filósofos da época, entre os quais se destaca Santo Anselmo. Essa abordagem
filosófica, embora controversa, desempenhou um papel significativo na história da
filosofia medieval, contribuindo para debates importantes sobre a natureza dos
universais e a relação entre a essência e os acidentes dos seres individuais. (BRÉHIER,
1962, p. 340).

Roscelin, nascido por volta de 1050 em Compiègne, França, foi uma figura
notável na filosofia medieval. Seus estudos iniciais ocorreram na sua província natal.
Posteriormente, tornou-se cônego em Compiègne e dedicou-se ao ensino. No entanto,
sua carreira foi marcada por controvérsias filosóficas que o levaram a enfrentar desafios
significativos.

Outro filósofo importante no debate é Roscelin, que ficou conhecido por suas
ideias que o colocaram em oposição aos realistas da época. Sua posição filosófica
central sustentava que a realidade não é constituída por seres com características
universais, mas sim por entidades individuais e concretas. Ele defendia a visão de que
os universais eram apenas abstrações, meros nomes, ou como ele os chamava, "flatus
vocis" - uma expressão que se traduz como "emissão de voz".
Essa perspectiva filosófica de Roscelin, que negava a realidade substancial dos
universais, é muitas vezes associada ao nominalismo. O nominalismo argumenta que os
universais são apenas conceitos ou rótulos criados pelas mentes humanas para agrupar
objetos similares, em vez de entidades reais e independentes.
No entanto, as opiniões de Roscelin causaram polêmica na época, e ele foi
acusado por um concílio de afirmar a existência de três deuses, um erro teológico grave.
Isso resultou em sua mudança forçada de local e em sua abjuração dessas ideias
controversas. É importante notar que Roscelin também é conhecido por ter tido
Abelardo como discípulo, que mais tarde se tornou uma das figuras filosóficas mais
influentes da Idade Média. Roscelin faleceu em 1120, deixando um legado de debate
intelectual e controvérsia em torno de suas ideias nominalistas. Suas contribuições
desempenharam um papel fundamental na evolução do pensamento filosófico medieval
e na discussão sobre a natureza dos universais. (GILSON, 2007, p. 289). Por exemplo, o
termo homem não designa nenhuma realidade da espécie humana, mas apenas duas
realidades concretas: “a física, isto é, a emissão de voz e a dos indivíduos humanos que
essa palavra tem por função significar”. (CIVITA, 1972, p. 141).
Pedro Abelardo, um dos filósofos mais controversos do período medieval,
tornou-se célebre tanto por seu romance com Heloísa quanto por suas acaloradas
disputas com os principais pensadores de sua época. Abelardo nasceu em 1079 e faleceu
em 1142, deixando uma marca indelével no desenvolvimento do pensamento filosófico
medieval. Ele adotou uma posição filosófica que incorporou elementos de duas
concepções anteriores, criando assim uma abordagem única e perspicaz. (CIVITA,
1972, p. 141).

Em sua obra, Abelardo dedicou-se a responder às complexas indagações


propostas por Porfírio, um filósofo antigo. No que diz respeito à primeira indagação
sobre se os universais existem de fato ou são meramente objetos da mente, Abelardo
argumentou que os universais, por si mesmos, não têm existência fora da mente
humana, referindo-se a eles como seres reais apenas no âmbito do intelecto.
Quando questionado sobre a natureza corporal ou incorpórea dos universais,
Abelardo ofereceu uma resposta intrigante. Ele sugeriu que, enquanto nomes, os
universais podem ser considerados corpóreos, pois são expressos por meio do som da
voz. No entanto, em relação à sua função significativa, que é a de representar uma
pluralidade de indivíduos semelhantes, os universais são, em essência, incorpóreos.
Em relação à questão de saber se os universais existem nas coisas sensíveis ou
fora delas, Abelardo apresentou uma resposta dualista. Ele argumentou que alguns
universais existem independentemente da percepção sensível, como é o caso do
universal "alma". No entanto, outros universais, como aqueles que se referem às formas
dos corpos, existem tanto no reino sensível quanto além dele, como produtos da
abstração.
Abelardo também levantou uma questão intrigante por conta própria: se não
houvesse indivíduos correspondentes, os universais ainda existiriam? Novamente, sua
resposta foi matizada. Em termos individuais, os universais deixariam de existir na
ausência de indivíduos que os significassem. No entanto, em termos de conceitos
universais, eles continuariam a existir, mesmo na ausência de exemplos específicos,
como a afirmação paradoxal "as rosas não existem" ilustra.
O pensamento de Abelardo representou um marco importante no
desenvolvimento da filosofia medieval e demonstrou sua capacidade de combinar
elementos de diferentes tradições filosóficas para criar uma perspectiva original e
inovadora. Suas ideias influenciaram significativamente o pensamento subsequente e
continuam sendo objeto de estudo e debate até os dias de hoje (CIVITA, 1972, p. 141-
142).
John Duns Escoto, nascido em 1266 na pequena localidade de Maxton, no
condado de Roxburgh, Escócia, é uma figura notável da história da filosofia medieval.
Aos quinze anos, ele ingressou na Ordem Franciscana, marcando o início de sua jornada
intelectual e religiosa. Após ser ordenado padre em 1291, Escoto iniciou seus estudos
em Paris, onde teve a oportunidade de se aprofundar na teologia. Posteriormente, ele
também lecionou em Oxford, contribuindo significativamente para o campo da filosofia
e da teologia.
Escoto é conhecido por sua abordagem filosófica e por sua interpretação realista
das formas. Esta perspectiva o distingue de Tomás de Aquino, outro grande pensador da
época, que argumentava que as formas universais existiam na mente divina. Para
Escoto, no entanto, a distinção entre as formas ocorre sempre que o intelecto pode
concebê-las como constituintes formais separados em um ser real.
Ele introduziu o conceito de "formalitates", que são simultaneamente distintas
no pensamento e realmente unidas à unidade do sujeito. Isso significa que, para Escoto,
o universal resulta de uma abstração realizada pelo intelecto a partir das coisas, mas não
é um mero produto do intelecto. Ele argumentava que, se fosse assim, não haveria
distinção entre a metafísica e a lógica, e todas as ciências se reduziriam a uma simples
lógica.
Nas ideias de Escoto, a essência é vista como igualmente indiferente ao
universal e ao individual, embora contenha virtualmente ambos. Portanto, o universal é
um produto do intelecto, mas tem seu fundamento nas próprias coisas. Escoto
sustentava que o real não pode ser puramente universal ou puramente individual, sendo
assim, sua visão ficou conhecida como realista ou semi-aristotélica. A influência de
John Duns Escoto nas discussões filosóficas da Idade Média foi profunda, e suas ideias
continuam sendo objeto de estudo e debate na filosofia contemporânea. Sua abordagem
inovadora sobre a relação entre o intelecto humano e a realidade deixou uma marca
duradoura na história do pensamento filosófico. (GILSON, 2007, p. 746-747).
Guilherme de Ockham nasceu no condado de Surrey, em 1290. Desde jovem
demonstrou interesse pelos estudos teológicos e ingressou na Ordem Franciscana. De
1315 a 1323 lecionou em Oxford. Foi impedido, no entanto, de receber o título de
doutor pelas autoridades papais por considerarem seus escritos um tanto heterodoxos.
Tem início aí, uma luta que durará toda sua vida; luta entre ele e o papa, tornando-se
responsável por lançar os alicerces da sociedade laica. Protegido por Ludovico da
Baviera, após uma vida repleta de lutas e debates intelectuais, veio a falecer
contaminado pela peste por volta de 1349.
Ockham será o último filósofo a exercer uma influência decisiva no
desenvolvimento do pensamento medieval. Diferentemente do tomismo que via a
ciência como esforço pelo conhecimento geral, donde a necessidade da doutrina dos
universais, para Ockham, porém, o que se deve alcançar é a evidência do particular,
sendo assim, deve-se afirmar que o universal não é real e definir as faculdades da
inteligência humana para apreender o particular. Desta forma, o único real é o
particular, sendo que o universal existe somente na alma do sujeito cognoscitivo.
Ockham foi o primeiro a não conceder, ao universal, existência real nenhuma.
(GILSON, 2007, p. 799).
Ora, se os universais existem somente na alma é necessário definir a natureza
desta realidade. Para ele todo conhecimento poderia ser pautado pelas proposições
verdadeiras ou falsas, sendo que apenas as verdadeiras fazem parte da ciência. Por sua
vez as proposições são como que a matéria de que é feito todo o saber, sendo que toda
ciência consiste nas proposições. As proposições se compõem de termos, falados ou
escritos, que são os universais. Esses termos somente entram na ciência por terem uma
significação, os termos, portanto, fazem as vezes do objeto. Essa função chama-se
suposição.
Com este raciocínio, Ockham elimina toda realidade ontológica dos universais,
desde os seres individuais até a mente divina. Os universais tornam-se, portanto, apenas
palavras; por isso sua filosofia ficou conhecida como nominalista. O nominalismo de
Ockham trouxe como consequência a transformação da ciência em conhecimento
empírico do indivíduo e o abismo criado entre o conhecimento cientifico e o
pensamento religioso, uma nítida dissolução do espírito medieval. A filosofia
escolástica que tentava formular uma visão universalizante do mundo chegava a seu
fim. (CIVITA, 1972, p. 163).
Guilherme de Ockham, porta estandarte dos nominalistas, como era chamado,
deu início à destruição da verdade objetiva. Será elogiado, mais tarde, por Lutero, como
“o primeiro e mais genial dos doutores escolásticos”. O ockamismo tornou-se filosofia
comum nas escolas inglesas e angariou muitos adeptos em Paris. (FRANCA, 1952, p.
118-119).
BIBLIOGRAFIA

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