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Celma Laurinda Freitas Costa

Clóvis Ecco
José Reinaldo F. Martins Filho
(Organizadores)
Prefácio

José Ternes

Um prefácio não pode realizar funções que são da res-


ponsabilidade da obra, particularmente aquela de oferecer ao
leitor os resultados de pesquisas realizadas, ou em andamento.
Antes que antecipar, ainda que em resumo, o que será dito logo
adiante pelos diversos autores, e não teria nenhuma competência
para isso, gostaria de assumir o lugar desinteressado do mensa-
geiro: dar uma notícia. Nem tudo o que se diz merece publicida-
de. É preciso diagnosticar a sua novidade. Tarefa do filósofo jor-
nalista do Foucault dos seus últimos escritos. Mas nem isso me
parece possível, pois a novidade nasce, ela mesma, de um ponto
de vista, que é o do leitor.
Talvez convenha o uso do plural: novidades, notícias.
Trata-se de uma reunião de artigos bastante estranhos entre si.
Não apenas no que concerne aos conteúdos, mas, principalmente
às formas de investigação. “A eucaristia em Epicteto” (de Antonio
Carlos Rodrigues e Aldo Dinucci) constitui, no meu entender,
um interessante esboço de uma espécie de arqueologia da idade
da graça, ou, como enfatizam os autores, da era da eucharestia.
O signo da descontinuidade poderia ser localizado em Epicteto.
José João Neves Barbosa Vicente nos leva a Rousseau. O filósofo
acena para a possibilidade de uma conciliação, ou, pelo menos,
uma convivência minimamente civilizada entre religião e polí-
tica. A noção de totalidade ontológica em Hegel, numa época
em que a singularidade assume positividade cada vez mais reco-
nhecida, é o tema do artigo de Pedro Gomes Neto. Clovis Ecco
e José Reinaldo F. Martins Filho tematizam o antropologismo
religioso em Feuerbach. A inversão realizada pelo pensamen-
to do filósofo “materialista” contesta a teologia tradicional em
aspectos essenciais. Enquanto, no passado, o homem aparecia
como criatura de um Deus transcendente, sempre submisso a ele,
agora se constituiria em lugar privilegiado nessa relação. Daniel
Rodrigues Ramos nos convida para um “passeio” nas sendas do
Heidegger pós Sein und Zeit, em que teria ocorrido uma signi-
ficativa transformação de seu pensamento, denominada Kehre.
Nessa démarche, em que o tempo aparece como conceito decisivo,
a divindade também sofre transformação. Com Ricardo Delgado
de Carvalho, uma pequena inflexão: da filosofia às “Ciências da
Religião” (o plural faz sentido). O autor trabalhado é Gianni
Vattimo, particularmente o seu livro Depois da cristandade.
Diante da “morte de Deus” anunciada por Nietzsche, talvez se
recomende certa prudência. Como se vê em Heidegger, Vattimo
também parece comungar da ideia de que essa morte deve ser
entendida como acontecimento do pensamento ocidental, como
derrocada do fundamento último. Mas, por outro lado, a histó-
ria ensina o quanto nossa civilização é tributária da crença em
Deus. Celma Laurinda Freitas Costa, Glaucia Borges Ferreira
e Katiuska Florencia Serafin Nieves seguem essa trilha aberta
pelo Prof. Ricardo. Recorrendo a autores diversos, as autoras pre-
tendem contribuir com um discurso “crítico” acerca do ateísmo
na sociedade contemporânea. Carolina Teles Lemos desenvolve
estudos acerca da “religião e a relação desta com a sociedade”. Na
verdade, trata-se de investigar as formas de tematização do fenô-
meno religioso realizada por alguns autores das ciências sociais.
Apesar da diversidade de perspectivas, parece consenso de que “a
religião é um elemento constituinte da sociedade e influencia na
maneira em que os indivíduos interagem entre si”. Finalmente,
Nanci Moreira Branco trabalha a religiosidade popular no Brasil
recorrendo a elementos de análise de Bakhtin. Cultura popular,
dialogismo, alteridade são conceitos que organizam a reflexão
que pretende ser pessoal. Essas indicações talvez já sejam suge-
ridas, e com maior objetividade, pelo próprio Sumário. Por isso,
não as consideraria indispensáveis. Gostaria de insistir no fato
mesmo de se reunir, num lugar comum, numa coletânea de arti-
gos, perspectivas tão diversas.
Alguns historiadores do pensamento trabalham com a
hipótese de que se poderia, numa determinada época e cultura,
reconhecer disposições gerais fundamentais que condicionam
formas de pensar compartilhadas. Uma espécie de Zeitgeist, se-
gundo Alexandre Koyré, orientaria a cultura renascentista, por
exemplo. Tratar-se-ia de uma época de possibilidades infinitas,
e, dada a ausência de qualquer critério para o conhecimento, da
impossibilidade de algo denominado ciência, desde o século XVII.
A idade científica começaria com uma radical mudança filosófica.
Galileu e Descartes se constituiriam os signos maiores da moder-
nidade (ou, para outros, da idade clássica). Devem sua existência
a uma transformação radical de espírito. As similitudes sem freio
dão lugar à ordem e à medida. Na verdade, é o século XVII todo
que, na expressão de Cassirer, precisava ser sistemático. Época do
Grande Racionalismo, diagnosticaria Merleau-Ponty. Grande em
demasia, dizem os historiadores de nosso tempo. O que se viu
foi o esgotamento do projeto cartesiano, já em meados do século
XVIII. No seu lugar, lembrando ainda Ponty, pequenos racionalis-
mos. Com Kant (que é apenas um indicador), a abertura para a
configuração de uma terceira Zeitgeist. Foucault falaria episteme
moderna. Pouco importa, aqui. Gostaria apenas de assinalar que,
se escutarmos a história do pensamento, e, para isso, é preciso
reconhecer que o pensamento tem sua história, que não é simples
pleonasmo da história civil, e, histórico, muda em seu ser (pen-
samento), nossa modernidade coloca exigências (ou condições)
outras para o pensar. E a mais paradoxal, para não dizer a mais
cruel, é, novamente, após dois séculos de porto seguro, como que
num retorno ao século XVI, a ausência de normas epistemológi-
cas confiáveis. A dispersão epistemológica moderna, no entanto,
não poderia ser um retorno puro e simples ao renascimento. Os
retornos, aprendemos com Nietzsche (e com Deleuze), são sem-
pre os da diferença. Para nossa época, o tudo é possível renascentis-
ta, assim definido por Koyré, não se aplica. As Regulae cartesianas
valem ainda. No entanto, como lemos em Le nouvel esprit scientifi-
que de Bachelard, perderam muito de sua autoridade. Perderam o
status epistemológico de método universal e seguro. Servem como
conselhos elementares que nenhum físico transgrediria. Mas são
insuficientes. Nenhuma ciência, hoje, se realiza no elementar. E,
quanto mais avançada, mais independente, mais autônoma. Mais
regionalizada, no sentido bachelardiano de constituição de lingua-
gens autóctones, especializadas, das diversas ciências. O que, para
o filósofo, não é o apocalipse. É a natureza da razão moderna. Fazer
ciência se tornou algo muito diferente do que sonhara Galileu e,
ainda, Newton. Cada região com o seu estatuto epistemológico
próprio. Parece-me ser essa situação, que muitos definem como
crise, semelhante àquela denunciada por Descartes como funesta
e deplorável, que justifica, também, esforços para encontros, diá-
logos, ensaios interdisciplinares. O interdisciplinar, dissera Olga
Pombo, numa palestra na PUC de Porto Alegre, talvez ninguém
saiba o que seja. Mas não deixa de ser um ideal. Os artigos desta
coletânea perseguem este sonho.
Apresentação

Celma Laurinda Freitas Costa


Clóvis Ecco
José Reinaldo F. Marins Filho

Desde as primeiras propostas de submeter o universo à


percepção humana, múltiplos significados são impressos e vêm
irrigando leituras, estudos, pesquisas e exegeses acerca dos seres
humanos e da sua realidade, seja pelos dínamos de dogmas reli-
giosos, seja pelos vetores das investigações antropológicas, cien-
tíficas, culturais, históricas, políticas. Do controle imposto pela
fé à diversidade opcional da descrença, a ordem da razão divide a
ancestralidade da fé e busca padronizar as descobertas e explica-
ções por uma lógica funcional que preside a mutabilidade de leis
e a frieza de cálculos, além de encorajar incursões profundas em
conceitos e teorias, denotando-se, por outro lado, a transitorieda-
de de valores que mais exaltam a dificuldade de compreensão da
vida por meio da percepção temperada pela fatuidade.
Sem desmerecer ou desacreditar no progresso alcança-
do pela razão, percepções outras são erguidas para contemplar as
forças que alimentam um ideário indefinido de tensões, pulsões,
desejos, sonhos, contradições e, inegavelmente, de esperanças,
renovações e inovações. Nunca se falou tanto em promoção de
cultura de paz, alteridade e respeito às diferenças. Indivíduo e
sociedade contemporânea aceleram seus passos rumo a conquis-
tas imediatas, específicas ou dispersas; lacunas se abrem criando
fossos profundos nas relações humanas e nos destinos da huma-
nidade – e aí tudo pode acontecer.
Urgem novas práxis, confluindo a concretude e suas
processualidades, para superar dicotomias e divisões classifican-
tes das pessoas e das coisas. A religião, a filosofia, a ciência, a
tecnologia, em seus lugares específicos, dão o seu contributo, mas
a riqueza de suas “verdades” está no prognóstico da multiplici-
dade de suas manifestações. Complementaridade, sim; mistu-
ra arbitrária, não. Diálogos tornam-se possíveis entre as várias
epistemes e saberes. Fenômenos que outrora escapavam à razão
e à fé atualmente confrontam-se ou se encontram no ansiado
ecumenismo. A ciência tem suas promessas não cumpridas; o
ser humano não alcançou o conforto e a felicidade; problemas
inumeráveis grassam em muitas regiões do mundo. Com a física
quântica, relativiza-se o pensamento científico, e abrem-se, in-
clusive, possibilidades para se discutirem os fenômenos da fé sob
diferentes campos de investigação e pesquisa, a fim de se refletir
e encontrar respostas sobre as questões do homem integral.
Partindo-se do exame de diversas mesclas a respeito da
complexidade de saberes – como a sabedoria da filosofia, a fé er-
guida nas crenças, a ciência das provas, as antropologias e culturas
sobre a vida e as suas múltiplas significâncias –, apresentar um
livro no qual confluem ideias de religião, filosofia e cultura, com
discussão de temas da filosofia clássica a assuntos da atualidade,
que geram acirrados debates, muitas vezes sem acordo – carac-
terística singular da academia –, é um grande desafio, na medida
em que percebemos que os temas no conjunto da obra aportam
uma variedade de estilos e visões conceituais. Estudando os tex-
tos, os leitores terão uma noção da problemática que transita nas
propostas de investigação de cada autor, tendo por norte direto ou
indireto questões que se vinculam de alguma forma a explicações
voltadas às noções construídas no campo das ciências da religião.
Alguns textos apresentam abordagem mais técnica, a
exemplo do título A eucharistia em Epicteto, que demonstra a re-
flexão da sabedoria estoica em relação à providência divina de
radical desapego e mergulho em Deus em razão da sua dádiva,
que se realiza pela graça. Transitando em tendências de cunho
teórico-dialógico, tendo em Rousseau a voz de equilíbrio para
se compreender a potência temporal e espiritual e a possibilida-
de de se evitarem danos no tecido social, o texto É possível unir
política e religião apresenta a ideia de que há pontes de esperança
para o homem nestes dois espaços: secularização política e cren-
ça religiosa. Embora o Estado tenha se tornado laico nas socie-
dades democráticas, distanciando-se do fato de que o poder de
reis e imperadores teria sido divino, a política, o poder e a religião
sempre estiveram ligados de alguma forma.
Numa complexa densidade teórica, o artigo Totalidade
ontológica na fenomenologia hegeliana traz uma discussão sobre a
metafísica do eu e a lógica filosófica que elucida a concepção de
que o mundo atual da aparência deveria ceder lugar à verdade,
convertendo o simples em universal, a fim de permitir a realiza-
ção da experiência de consciência num processo de descoberta
do absoluto na particularidade do saber sensível.
Com Antropologismo religioso em Ludwig Feuerbach, a
discussão feita sobre postulados da religião, ateísmo e descren-
ça emite luzes para inaugurar novas formas de reflexão sobre a
concepção de religião – no caso, o cristianismo. A ideia de re-
ligião, como um fenômeno eminentemente humano e de uma
dimensão comunitária, pode ser enxergada, dicotomicamente,
pelo prisma da proposta do princípio antropológico da origem
de Deus, pelo qual se aproximam preceitos opostos: a teologia e
a antropologia do ato de crer.
Presente, porque há de vir demonstra fenomenologica-
mente que o mistério do ser apresenta-se como uma verdade es-
condida num jogo de unidade entre o advento e a retirada, entre
o homem que realiza a sua própria existência e o mistério do ser
na sua verdade profunda para uma abertura de existência históri-
ca singularizada. Com o título de Escasso ateísmo e vigoroso Deus
em Gianni Vattimo, a reflexão parte da questão problematizadora
“creio que creio”, no sentido de compreender a relação polarizada
entre a crença incerta e o pensamento convicto e certo da crença,
que secunda a afirmação de que o Deus morto é o da metafísica,
indicando assim que, com a secularização, o crente está liberto
das imposições religiosas, podendo escolher que Deus cultuar.
Entre a crença e a descrença como duas formas de acre-
ditar em algo, a proposta O ateísmo e suas contradições semânticas
diz respeito à identificação de pontos e características comuns de
significados que fundamentam tanto a religião como o ateísmo,
considerando-se que ambos esbarram em algum modus de crer e
de descrer. É o ser humano que dá sentido aos seus próprios víncu-
los e, em seu existir, ele encontra significado para estar no mundo.
Com a pressuposição de que a religião e as ciências so-
ciais não se apresentam como campos de fácil compreensão, o
artigo Religião e relação desta com a sociedade objetiva descrever de
modo crítico a análise da religião por meio de categorias sociais
clássicas de Marx, Durkheim, Weber, visando olhar o fenôme-
no religioso como um sistema simbólico e como uma estrutu-
ra fundadora e formadora da experiência humana no campo da
religiosidade. Demais disso, os Novos Movimentos Religiosos
(NMRs) se destacam, desafiando as estruturas internas e a coe-
são da tradição, e, segundo Bauman, abrindo de forma acelerada
outras dimensões e interações socioculturais – que são líquidas.
Em A religiosidade popular no Brasil sob o prisma de
Mikhail Bakhtin, as categorias de dialogismo e alteridade foram
aplicadas para identificar o ponto central da manifestação da re-
ligiosidade popular: a relação do sagrado na vida e o ser huma-
no em processo de interação, encontros e diálogos entre iguais
e diferentes num mesmo contexto de partilhas, aprendizados e
experiências e na relação com o outro.
Este livro que ora se publica é fruto de vários pensa-
mentos que se entrecruzam, mas não se justapõem em suas epis-
temologias; diálogos se firmam num contrato de contrários e em
pontos comuns de inacabamento humano; oposições se superam
pela própria dinâmica dos fenômenos da vida, desde instâncias
simples às complexas possibilidades em sociedade. A noção de
religião e as relações de religiosidade formam um corpus plúrimo,
que se constitui metodologicamente diante de reflexões críticas
e de inexauríveis investigações antropológicas, filosóficas, reli-
giosas, históricas e culturais. A análise e a compreensão de ser
humano implicam trabalho árduo numa tarefa que não encontra
consenso. Identificar o que é o “humano” nas relações incom-
possíveis e nas composições desenvolvidas social e culturalmente
continua sendo preocupação e aspiração de pesquisadores. Várias
tendências e transversalidades se encarregam de expressar as re-
flexões enriquecidas pelos estudos interdisciplinares, marcados
pela proposta de superação do reducionismo e pelo propósito de
legar novas discussões e diálogos.
Sumário

A eucharistia em Epicteto ...................................................... 17


Antônio Carlos Rodrigues
Aldo Dinucci
É possivel unir política e religião? ........................................ 55
José João Neves Barbosa Vicente
Totalidade ontológica na fenomenologia hegeliana ............ 69
Pedro Gomes Neto
Antropologismo religioso em Ludwig Feuerbach .............. 109
Clóvis Ecco
José Reinaldo F. Martins Filho
Presente, porque há de vir: acenos à questão do divino no pen-
samento tardio de Heidegger .............................................. 135
Daniel Rodrigues Ramos
Escasso ateísmo e vigoroso Deus em Gianni Vattimo ....... 165
Ricardo Delgado de Carvalho
O ateísmo e suas contradições semânticas ......................... 179
Celma Laurinda Freitas Costa
Gláucia Borges Ferreira
Katiuska Florencia Serafin Nieves
Religião e a relação desta com a sociedade ......................... 203
Carolina Teles Lemos
A religiosidade popular no Brasil sob o prisma de Mikhail
Bakhtin ................................................................................ 223
Nanci Moreira Branco
Sobre os autores................................................................... 243
A eucharistia em Epicteto

Antônio Carlos Rodrigues


Aldo Dinucci

Aquele que é plenamente feliz e imortal não tem preocupações,


nem perturba os outros; não é afetado pela cólera ou pelo favor,
já que tudo isso é próprio à fraqueza.1

Introdução

Há alguns anos, lendo a dissertação de mestrado de


Antônio Tarquínio, deparei-me com uma descoberta: a graça
para Epicteto, ao contrário da noção homônima de Agostinho, é
para todos os seres humanos, bastando que cada um deles tome
ciência dela. Comentei isso com Tarquínio, e combinamos de-
senvolver o tema por escrito. Passaram-se os anos, e outros afa-
zeres nos levaram alhures. Então, há alguns meses, fui convidado
para participar deste livro sobre filosofia e religião, e nos veio
a oportunidade para concretizar nosso antigo anseio. Convidei
Tarquínio que, entusiasticamente, pôs mãos à obra. Nas páginas
seguintes, avaliaremos o histórico da reflexão sobre a providência
divina na Grécia. A seguir, deter-nos-emos sobre as reflexões de
Crisipo sobre o tema. Feito isso, nos voltaremos ao estudo dessa
questão em Epicteto2.

1 EPICURO, Máximas Principais, I.


2 Parte considerável do que vem a seguir é da lavra desse meu grande amigo, que ajei-
tei aqui e ali como achei que devia, com o devido consentimento do autor. Pelo menos
sete páginas são de minha lavra: aquelas nas quais rastreio o verbo charizesthai e termos

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 17


Histórico da reflexão sobre a providência
divina na Grécia

Na farmácia da mente de Epicuro figura em primeiro


lugar aquele remédio cuja função foi a de curar um dos maiores
males do homem do período helenístico: o temor às divindades
astrais condutoras supremas e implacáveis do destino.
Suprimir-lhes a ação na vida de cotia do homem co-
mum ou dar-lhes voz e vez, no círculo das atividades humanas,
formará o horizonte espiritual em que as escolas filosóficas – na-
quela faixa de tempo – fixarão pela primeira vez a discussão mi-
lenar em torno à Providência Divina.
Ora, para o ser humano antigo o que contava – o que
possuía efetividade perante ele – eram as ocorrências que o desti-
no lhe entregava como a parte que lhe cabia no caminho da vida.
A voz das circunstâncias da estrada era ouvida e entendida por
constituir-se uma única linguagem capaz de falar-lhe diretamen-
te ao coração – assim se lhe afigurava o peremptório.
E os acontecimentos mais marcantes, semelhantemente
ao que ocorre nos dias atuais, eram os matizados por grandes difi-
culdades ou os portadores de pesadas cargas de aflição e transes de
angústia. Os benefícios, os favores e as boas horas, geralmente eram
vistos ao modo de situações naturais, assim como o bom tempo em
uma viagem – enquanto que os acidentes do percurso se apresenta-
vam aos viajantes a guisa de praga enviada por algum deus.
Ipso facto, a questão da Providência desde esses tempos
surge conectada ao problema do destino. É porque aquela, por
um lado, apresentava-se ao olhar dos seres humanos como neces-
sidade inflexível – ananke. Ela, no alvorecer da literatura grega,

associados, tirando algumas conclusões. O trabalho todo, porém, sentimos como nosso,
cousa que temos debatido e conversado ao longo dos anos por e-mail, telefone e, mais
recentemente, também na mútua presença.

18 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


representava o princípio de causalidade universal, a ordem regu-
ladora das coisas contra a qual nem deuses nem seres humanos
podiam opor forças no intento de enfrentá-las, restando-lhes tão
somente a total rendição.
Por outro, a Divina Providência era divisada como moi-
ra: Na vida todos têm o seu quinhão de alegrias e tristezas, a sua
parte de ocorrências inevitáveis e certeiras ante as quais deve se
prostrar para não cair em hybris.
Ananke e moira simbolizavam a lei suprema. Uma lei
sem inteligência, sem amorosidade, traduzindo simplesmente a
sorte fortuita e cega de cada um.
Com a evolução da reflexão, pouco a pouco, a ideia de
justiça interveio, e a ananke tornou-se dike. A introdução da jus-
tiça na ordem do mundo trouxe em seu bojo a necessidade da
existência de uma inteligência ordenadora que ao mesmo tem-
po regulasse o seu funcionamento. Ademais, Zeus, de entidade
subordinada à ananke será alçado à condição de sócio da divina
senhora do destino:

Anaximandro foi o primeiro a transferir a noção de


dike do mundo da polis ao mundo da natureza e en-
tendeu o liame causal no nascer e no perecer das coi-
sas com a lei que preside uma contenda judiciária na
qual os seres, diz ele: “devem reciprocamente sofrer o
castigo de sua injustiça no tempo”. Heráclito por sua
vez concebia esta lei como a própria razão ou logos: da
qual, como ele dizia “se nutrem as leis humanas”.3

De modo que, no círculo da vida, devido à nova ordem


do mundo, comparecem gradativamente os princípios do mérito
para quem faz o bem, e do demérito para os que exercem o mal.
A filosofia de Platão, enquanto oriunda da meditação
dos ensinamentos de Sócrates, representa o perfeito acabamento
da aplicação da norma ética por excelência, a do merecimento,

3 ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 573.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 19


mostrando-nos claramente que nenhum mal pode atingir o ho-
mem de bem: “Em nada poderia me arruinar Meleto ou Ânito,
seria impossível, pois não creio que é dado a um homem melhor
ser arruinado por um pior”4.
Ainda que condenado à cicuta, o filósofo ateniense con-
tinuou tão livre e senhor do próprio destino quão intimorata-
mente sereno ante o mais temível e fatídico evento da vida, a
própria morte.

Sócrates: Chegaste há pouco ou há muito? – Críton:


há um bom bocado. Sócrates: Então por que não me
acordaste logo, em vez de ficares aí sentado, em silên-
cio? Críton: Por Zeus, Sócrates, não seria eu que que-
reria estar de vigília em tão grande aflição. Por isso me
encontro aqui há muito tempo a apreciar como dor-
mes serenamente e foi de propósito que não te acordei,
para aproveitares este tempo o mais agradavelmente
possível. Muitas vezes já, na tua vida passada, te feli-
citei pelo caráter, mas é sobretudo a triste conjuntura
presente que me faz admirar a facilidade e a calma
com que a suportas.5

Epicteto haurirá deste episódio da vida do mestre de


Platão um princípio da mais alta significância ética: que os aconte-
cimentos, sejam quais forem, não determinam a “sorte” de ninguém.
É quase como se defendesse que de males podem surgir bens.6
Se à época helenística havia ingredientes suficientes
para que fosse estruturada uma noção robusta da Providência,
mormente a partir do demiurgo do Timeu de Platão – que ha-
veria organizado o mundo com vistas ao bem – existia também a
metafísica de Aristóteles que entre muitas outras coisas ensinava
que o ato puro – motor imóvel do universo – era totalmente in-
diferente ao que em razão dele acontecia.
4 PLATÃO, Apologia, 30c.
5 PLATÃO, Críton, 43a – b.
6 Cf. Epict. Ench. 5.1.

20 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


O curso dos acontecimentos nesta faixa de tempo no-
meada helenística é marcado por grandes mudanças. Com a
morte da cidade, o homem se sentia desamparado ante o caótico
panorama que se desenhava, a recrudescência do egoísmo dos
senhores, a ambição crescente dos que desejavam sê-lo, e a mul-
tiplicação das guerras e dos massacres por todos os lados.
Como já havíamos comentado, os quadros gerais nega-
tivos impressionam mais do que os benefícios recebidos ao longo
da existência, e o resultado desse engranzamento de circunstân-
cias foi a renascença da pura moira que, notadamente no deseno-
velar do século IV a.c., será chamada de Heimarmene7, entidade
divinal intimamente conexa a Tyche – a deusa Fortuna de olhos
vendados sobre uma roda.
Se no plano filosófico fora possível a algumas indivi-
dualidades formular ideias que as salvassem do caos social que
se instaurou no desenrolar dos fatos que caracterizam a era he-
lenística, o homem comum mergulhou em profunda desolação,
atormentado por estes deuses superpoderosos ante os quais ab-
solutamente ninguém tinha a condição de se esquivar.
É altamente significativa a passagem de Metrodoro de
Lâmpsaco, filósofo do jardim, recolhida por outro epicurista -
Diógenes de Enoanda – por oferecer um testemunho do espírito
daqueles tempos em que o inimigo que se tinha de combater era
a fortuna (tyche)8:

Eu me antecipei a ti, ó fortuna, e fechei todos os aces-


sos a tua insidiosa entrada. Por mais que me seduzas, tu
ou qualquer outra, eu não me entregarei. Mas, quando

7 A raiz e o sentido de Heimarmene são os mesmos que de moira: é a parte fatal


entregue a cada um, seu destino. O termo aparece nos pré-socráticos, em Platão e nos
oradores do séc. IV, contudo torna-se predominante com Zenão de Cítio (362-264
a.C.). A moira é constante em todas as épocas, já a Tyche (divindade má) é frequente a
partir da época helenística. Cf. FESTUGIÈRE, 1932, p.104, n. 1.
8 O exposto até aqui é um resumo das noções apresentadas por A.J. Festugière no II
capítulo do livro L’idéal religieux des grecs et l’evangile (1932), intitulado: l’Eimarméne,

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 21


a hora fatal chegar, com um grande desprezo pela vida
e seus vãos embaraços, eu a deixarei, cantando um belo
canto, clamando, eu felizmente venci.9

A suspensão de qualquer intervenção divina na vida do


ser humano foi a solução de Epicuro perante o problema espi-
nhoso da influência caótica de deuses injustos e irracionais nos
caminhos humanos, como podemos verificar no excerto com que
iniciamos este estudo.

A providência divina em Crisipo

O temor às divindades definitivamente foi uma das mar-


cas fortes desse período conturbado que se tornou o palco onde se
discutirão os problemas alusivos à Providência Divina. Ora, sem
a compreensão de que não eram os deuses que promoviam o mal,
uma vez que tanto males quanto bens são oriundos exclusivamen-
te do arbítrio humano10 - é o que defendiam os estoicos -, não
havia como avançar para uma visão da Divina Providência que
incluísse a munificência e a justiça perfeita com que ela coordena,
desde o microcosmo ao macrocosmo, a harmonia de tudo.
Como veremos, Epicteto é o homem da eucharistia. Não
poderia efetivamente sê-lo sem a base que herdou de Crisipo.
Aquele além de ser fonte de muitas das ideias deste, deixou-nos
um dos testemunhos mais bonitos de admiração pelo segundo
fundador do Pórtico:

9 FESTUGIÈRE, 1932, p. 104, n. 60.


10 Ποῦ τὸ ἀγαθόν; { – } Ἐν προαιρέσει. { – } Ποῦ τὸ κακόν; { – } Ἐν προαιρέσει. { – }
Ποῦ τὸ οὐδέτερον; { – } Ἐν τοῖς ἀπροαιρέτοις. L., II, 16, 1. Onde o bem? – Na escolha.
Onde o mal? Na escolha. Onde nenhum, nem outro? – Nas coisas fora da escolha.
Tradução do grego feito pelo autor.

22 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Então o que nos oferece Crisipo? “Que saibas – diz
<Crisipo> - que não são falsas essas coisas das quais
resultam o curso sereno da vida e a ausência de sofri-
mento na mente: Toma meus livros e sabe como são
conformes e harmoniosas à natureza as coisas que me
tiram o sofrimento na mente”. Ó grande boa fortuna!
Ó grande benfeitor que <nos> mostra o caminho! Ora,
todos os homens erguem templos e altares a triptólemo,
porque ele nos deu os alimentos do cotidiano. Porém,
àquele que descobriu e iluminou a verdade e a exibiu a
todos os homens, não só <a verdade> sobre o viver, mas
<a verdade> sobre o bem viver, qual de vós lhe construiu
um altar, ou lhe ergueu um templo ou estátua, ou agra-
deceu a Deus por ele: Oferecemos sacrifícios porque
<os deuses> nos deram as vinhas ou o trigo, mas não
damos graças aos deuses porque produziram fruto de
tal qualidade no pensamento humano, pelo qual deseja-
ram mostrar-vos a verdade sobre a felicidade?11

Crisipo foi o paladino da Providência Divina, defen-


dendo-a contra tudo e contra todos os que apresentavam argu-
mentos contrários a sua atuação, ao seu cuidado, a sua justiça,
a sua perfeição. No desenovelar do fio do tempo, o estoicismo
foi esculturando a sua história, moldando seus dogmas, muita
vez em franca oposição ante as escolas rivais. Max Pohlenz12 no-
meou-o “movimento espiritual”, haja vista ser um processo em
constante andamento, conduzido pelos que integravam o corpo
da escola, como um Crisipo, que, atento às questões prementes
que o circundavam, não só ofereceu respostas, como também não
se furtou ao debate, apresentando argumentos geniais com vistas
á defesa dos ideais do Pórtico.
O discípulo de Cleantes, conforme Cícero13, discute
com Diodoro a possibilidade do possível no futuro, buscando

11 Epict. Diss. 1.4.28-32.


12 POHLENZ, 2005.
13 CÍCERO, Sobre o destino.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 23


preservar a liberdade humana. Para Crisipo, o destino não tem
poder para determinar o destino do homem.
Entretanto, foi à frente do argucioso raciocínio de
Caneades – aquele que indicava haver contradição interna no
princípio estoico que defendia ao mesmo tempo o caráter deter-
minista do destino (como causa anterior) e o modo de ser livre
do assentimento, totalmente incompatíveis na visão do chefe da
nova academia – que Crisipo apresentou o arrazoado genial que
revelou o perfeito ajuste existente entre as partes conflitantes de
Carneades, a fina demonstração acerca do movimento do cilindro:

Portanto, diz ele, como aquele que empurrou o cilin-


dro lhe deu princípio de movimento, porém não lhe
deu rotação, assim aquela representação apresentada
imprimirá certamente e mais ou menos gravará sua
imagem em nossa mente, mas nosso assentimento es-
tará em nosso poder, e, do mesmo modo que se disse
do cilindro, impulsionado de fora, ele se moverá quan-
to ao resto por sua própria natureza. Por isso que, se
alguma coisa se produzisse sem causa antecedente, se-
ria falso que todas as coisas acontecem pelo destino;
mas se a todas as coisas quaisquer que acontecem é
verossímil que uma causa anteceda, que razão poderá
ser aduzida para que não se reconheça que todas as
coisas aconteçam pelo destino? Somente se entenda
qual seja das causas a distinção e diferença14.

Enfim, contra Epicuro ainda, segundo Cícero, defende


a tese da intervenção dos deuses no mundo como decorrência de
sua bondade, inteligência e filantropia.
Os dogmas estoicos encerram as teses da escola desen-
volvidas ao longo de extensa faixa de tempo no embate com outras
doutrinas e hairesis de gênero de vida cujos pontos de vista for-
mavam a zona de atrito que movia para frente o carro das ideias.

14 CÍCERO, Sobre o destino, XIX, 43.

24 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


No que tange à Providência Divina é significativo este
fragmento alusivo a Crisipo:

Apoiando-se em noções que temos dos deuses, quan-


do os imaginamos serem benevolentes e filantropos,
Crisipo combate principalmente Epicuro e aqueles
que eliminaram a providência. Porquanto os estoicos
escreveram e disseram, por todos os cantos, que de
nada serve citar suas palavras.15

Os estoicos compartilham do sentimento, muito antigo


– há quem diga – inato em todos os seres humanos – de entender
o fenômeno do mundo como manifestação divinal. Do esplendor
do universo deduziam a existência necessária dos deuses. Se a
beleza e a ordem do todo os impressionavam, a regularidade dos
fenômenos celestes os fascinava a ponto de acreditarem que os
corpos celestes fossem, eles próprios, deuses.
A constância dos movimentos dos astros lhes indicava
a presença de uma inteligência regente, não só por trás das even-
tualidades e ocorrências celestes e terrestres, mas precipuamente
por dentro do mundo.

Sobre a existência da providência, Protágoras e


Diágoras negaram sua existência: entretanto, todos os
outros filósofos e, em particular, os estoicos, os contra-
disseram com grande vigor, ensinando que o mundo
não poderia haver sido criado sem uma razão divina,
e que ele não poderia subsistir se não fosse governado
por uma razão suprema.16

Por entenderem a ordem, a regularidade e a harmonia


quais sinais da perfeição da inteligência ou do intelecto regente,
foram levados a sustentar que apesar do mundo apresentar seve-
ras contradições, como os crimes, as guerras, os vícios e erros sem

15 PLUTARCO, Des contradictions des stoïciens cap. 38, 1051d11-E4.


16 LACTANCE, Institutions divines, I, 2,2.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 25


fim dos que aqui vivem – quando propriamente considerado - é
perfeito em si mesmo.
O que equivale a afirmar que a perfeição do mundo é
maior e se sobressai as suas partes imperfeitas, ou uno verbo que
as imperfeições do mundo não o tornam imperfeito, antes con-
tribuem para a completude da totalidade.

Do mesmo modo que as comédias, disse Crisipo, con-


tém réplicas engraçadas que consideradas em si mes-
mas são vulgares, mas acrescentam um charme ao con-
junto da produção, podes igualmente criticar o vício
tomado em si próprio, contudo ele não é sem utilidade
para o mundo.17

Inquerido a respeito dos tremores de terra, e também em


relação às grandes catástrofes que ceifam populações inteiras no
mundo, a guisa de prova de sua falta de acabamento – Crisipo con-
tra-argumentava que o benefício resultante destas calamidades ha-
veria sido a diminuição da superpopulação em determinada região.
Crisipo escreveu isto no terceiro livro de seu tratado
Sobre os deuses:

Assim como as cidades, quando estão excessivamen-


te povoadas, deslocam as populações para as colônias
e iniciam guerras com alguns, do mesmo modo deus
fornece começos de destruição. E evoca como teste-
munho Eurípedes e os outros que dizem que a guerra
de Troia foi feita pelos deuses para fazer desaparecer
um grande número de homens.18

O modo de pensar inaugurado pelos estoicos e, particu-


larmente, por Crisipo, é aquele que fará parte de todas as teodi-
ceias que virão depois dele, inclusive a cristã. Epicteto sintetizará
o pensamento do discípulo de Cleantes e de toda sua escola assim:

17 OGEREAU, Essai sur Le système philosophique des stoïciens, pag. 308.


18 OGEREAU, Essai sur Le système philosophique des stoïciens, pag. 310.

26 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


“Do mesmo modo que um alvo não é fixado para não ser atingido,
assim também a natureza do mal não existe no Cosmos”.19

O prohairético e o aprohairético em Epicteto

Com o advento de Epicteto inicia-se, ao nosso ver, uma


nova fase na Stoá, pois, se antes os estoicos ratificavam veemen-
temente a atuação e interferência divina nos “negócios” humanos,
num contexto de medo profundo das divindades, o escravo liberto
de Epafrodito transcenderá a simples defesa da intervenção divina
para ensinar reconhecimento e gratidão profunda perante aquele
que entre muitos nomes que utilizava chamava de o “outro”.

Das coisas que existem, algumas estão sobre nós [são


encargos nossos]20, outras não estão sobre [não estão
sob seu encargo]. É propriamente nosso21: julgamento
de valor22, impulso para agir, desejo, aversão, - em uma
palavra - quantas sejam nossas obras. Não são de nossa
alçada23: o corpo, os teres, as opiniões dos outros sobre
nós, os cargos públicos, - em uma palavra – quantas
sejam as obras que não nos pertencem propriamente.
E as coisas que nos competem são por natureza livres,
sem impedimentos, sem entraves, e as que não, são fra-
cas, escravas, impedidas, de outrem.24

19 Epict. Ench. 27.


20 São de nossa alçada.
21 É de nossa competência.
22 Aceito a tradução de Pierre Hadot da palavra hypolepsis.
23 Não são de nossa competência, não são propriamente nossos.
24 Tradução de Antônio Tarquínio de Ench. 1.1-5. Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ’ ἡμῖν,
τὰ δὲ οὐκ ἐφ ‘ἡμῖν. ἐφ’ ἡμῖν μὲν ὑπόληψις, ὁρμή, ὄρεξις, ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα
ἡμέτερα ἔργα· οὐκ ἐφ’ ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα, ἡ κτῆσις, δόξαι, ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ
ἡμέτερα ἔργα. καὶ τὰ μὲν ἐφ’ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα, ἀκώλυτα, ἀπαραπόδιστα,
τὰ δὲ οὐκ ἐφ’ ἡμῖν ἀσθενῆ, δοῦλα, κωλυτά, ἀλλότρια.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 27


Demonstrou-se noutro lugar25 que o constructo epic-
tetiano, a saber: das coisas que são, umas estão sobre nós (sob
nosso encargo), outras não estão sobre nós (não estão sob nosso
encargo), com que Arriano iniciou, tanto o Enquirídio, quanto As
Lições de Epicteto (Diatribai) constitui uma síntese de princípios,
axiomas e theoremas que é a mais pura expressão das raízes sobre
as quais descansa a árvore frondosa do Pórtico.
Aliás, o Enquirídio, do seu capítulo primeiro ao quin-
to desenvolve amplamente os quilômetros de sabedoria estoica
concentrados na afirmativa simplória – muitos são os que se ilu-
dem com sua aparente simplicidade – que estabeleceu duas or-
dens bem claras e distintas na realidade: o próprio e o impróprio.
Sobre elas, Epicteto derramou toda sua piedade, toda a
sua eucharistia.
O “sobre nós e o não sobre nós”, na verdade, é um ajuste
piedoso na medida que tem por fim fixar dois campos de atuação
– o humano e o divino. O prohairético (elegível) e o aprohairético
(inelegível). Aquele diz respeito à esfera das escolhas humanas.
Este se refere à ordem do cuidado divino.
A prohairesis está associada ao hegemonikon – pneuma
que, em certo grau de tonicidade, se estende para criar as oito
funções da mente humana, além da própria prohairesis:

Desditado, qual de tuas coisas vai mal? A propriedade?


Não, porque és rico em ouro e bronze. O corpo? Não.
O que vai mal? Quiçá aquilo que tens descuidado e
estropiando-se, com o que desejamos, com o que re-
chaçamos, com o que sentimos impulsos e repulsas.
Descuidado como? Ignora a essência do bem para a
qual nasceu e a do mal e o que é seu e o que é alheio.
E quando algo alheio vai mal diz: ai de mim que os

25 RODRIGUES, Antonio Carlos (Antônio Tarquínio). A áskesis de desapropriação


epictetiana à luz da kátharsis do Fédon de Platão. 2015. 117 p. Tese (doutorado em filo-
sofia) PUC/SP.

28 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


gregos correm perigo! (pobre hegemonikon descuidado
e desatendido!)26

Os exercícios espirituais27 preceituados por Epicteto, as


três asceses ou disciplinas, quais sejam, a do desejo, da ação e do
assentimento, nada mais objetivam que circunscrever o âmbito
de atividades do hegemonikon a fim de armá-lo, fortificá-lo e pro-
tegê-lo contra as investidas do mundo exterior, isto é, para auxi-
liá-lo, preparando-o no sentido de saber utilizar as ferramentas
para lidar com tudo que lhe for aprohairético (inelegível).
Sendo a prohaíresis (ato de escolher) o hegemonikón em
ação , este não deve em momento algum confundir aquilo que
28

lhe pertence propriamente com aquilo que absolutamente não


lhe diz respeito, dado que toda vez que comete semelhante equí-
voco coloca em risco sua integridade espiritual, seu equilíbrio,
sua paz ontológica.
Ora, o que não é do âmbito do hegemonikon pertence ao
“outro”, categoria genérica em que está incluída a divindade. Não
há nunca que misturar estes campos em que se separam e se dis-
tinguem as duas ordens de responsabilidades que entranham as
ações correspondentes: o cuidado do homem e o cuidado de Deus.
A simples substituição de um pelo outro (o que não é
de sua alçada com o que é) por parte do homem desencadeará o
processo que resultará seja em sua queda na infelicidade – com

26 EPICTETO, Diss. 3.22.31-33.


27 “São três os domínios a respeito dos quais o homem precisa se exercitar para se
tornar bom e honrado, o a respeito ao ato de desejar e de evitar (tas orekseis kai tas
enkliseis), para que não se veja frustrado em seus desejos nem venha a cair em volta do
evitado; o relativo aos impulsos e repulsas (tas hormas kai aphormas) ou simplesmente
o domínio da convivência (dever) para que atue em ordem, com reflexão, e sem ne-
gligência ou descuido; o terceiro é aquele que concerne à fuga do erro, à prudência do
julgamento, em uma palavra o que se refere aos assentimentos (tas sunkatatheseis)”.
EPICTETO, Diss. 2.1-3.
28 RODRIGUES, Antonio Carlos. A áskesis de desapropriação epictetiana à luz da
kátharsis do Fédon de Platão, p. 18.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 29


o agravo da perda da liberdade – seja em sua salvação – com o
benefício da conquista da liberdade e da felicidade.
A liberdade feliz ou a feliz liberdade que o escravo grego
de Roma promete a guisa de conquista adveniente da observação
rigorosa dos princípios estoicos, que ele próprio ensinou e exem-
plificou, descansa inteiramente no separatismo com que abre sua
filosofia para o mundo. Tudo emana disso, tudo ganha sentido,
a partir deste punhado de palavras que discerne a totalidade da
vida em dois hemisférios, em duas estâncias que se entrecruzam
sem poder se misturar - palavras tão simples - quão soem ser as
verdades fundamentais da existência.
A escola estoica para Epicteto – todos sabemos – não
era pretexto para verborragia inútil – antes significava um cami-
nho de conversão do espírito que encerrava, a laia de atividade
central, o desprendimento corporal com vistas à vida kata physin
(em conformidade com a natureza).

Epicteto: o radical desapego e o mergulho em


Deus

O exercício espiritual de contenção do desejo abrange


justamente o campo das ações kata physin por englobar o espaço
de intercurso entre a vontade divina e o querer humano. Nessa
ascese ou exercício específico Epicteto propõe o desenvolvimen-
to gradual da contenção do desejo em face das circunstâncias
que o destino entrega a cada um como a sua parte, para eduzir a
virtude máxima conducente à aceitação do destino.
Ora, somente está em condições de aceitar o destino
aquele que se desapegou de todas as pessoas e haveres – incluindo
o próprio corpo – que sabemos pertencer à categoria das coisas

30 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


escravas e impedientes29, portanto, fora daquelas que encerram a
verdadeira propriedade em sentido epictetiano – radical desapego!
No seio desta ginástica espiritual, desta psicascética, há de
se notar uma diretriz fundamental que nomeamos como sendo uma
katharsis de fundo piedoso. Esforço acirrado e permanente de des-
prendimento capaz de facultar ao homem a libertação de todos os
laços que o jungem às ações para physin (contra a natureza).
Existindo entre o que lhe é próprio, o hegemonikón e sua
prohaíresis, e o que lhe é impróprio, ou seja, todas aquelas coisas,
pessoas, posses, etc., cuja coordenação, governo e mando perten-
cem à divindade, terá de aprender para saber a que se ater.
Disso deriva o telos da filosofia, sua serventia, sua mis-
são no mundo, oferecer aos seres humanos os instrumentos que
lhes facultem o acesso à liberdade e à felicidade. Entretanto, nada
disso se faz, nada disso se alcança sem antes se tomar em consi-
deração a existência e o papel da divindade no mundo:

Vemos então, que o carpinteiro, havendo aprendido al-


gumas coisas, devém carpinteiro; o timoneiro, havendo
aprendido algumas coisas, devém timoneiro. Talvez,
por isso, também aqui não será o caso de se iniciar que-
rendo o homem ser bom e honrado, mas ser necessário
aprender algumas coisas. Procuramos quais seriam elas.
Dizem os filósofos que necessário é aprender primeiro
isso: que Deus existe e cuida de tudo, e que não há
como esconder dele, não somente nossas ações, como
também nossas intenções ou nossos pensamentos.30

Coerente com a vetusta doutrina dos dois princípios


que os antigos defendiam constituir e integrar qualquer realidade
no mundo, Epicteto jamais poderia admitir, tampouco defender
a ideia de um Deus transcendente – ergo, distante de sua criação.

29 Epict. Ench. 1.1.


30 Epict. Diss. 2.14.10-11.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 31


Segundo Diógenes Laércio, os dois princípios eram o
ativo e o passivo, sendo que este se referiria à matéria, enquanto
aquele ao logos divino31. Ora, o simples casamento desses dois
ingredientes essenciais de tudo que existe já representa, por si, a
impossibilidade de haver um “fora”, de onde supostamente agisse
a divindade. Esta, ao passo que constitui, habita o mundo em
todas as suas estâncias, departamentos e seções, em todos os seus
átomos, por assim dizer.

Quando alguém indagou como persuadir-se de que


cada uma das coisas feitas por ele são vistas por Deus,
<Epicteto> disse:
– Não te parece que todas as coisas estão unidas?
– Parece – disse <o outro>.
– E então? Não te parece que as coisas terrenas são
influenciadas pelas celestes?
– Parece – disse <o outro>.
– Pois como as coisas são ordenadas assim, como que
por comando de Zeus? Quando ele manda que flo-
resçam as plantas, elas não florescem? Quando ele
manda que germinem as plantas, elas não germinam?
Quando ele manda que frutifiquem, elas não frutifi-
cam? Quando ele manda que amadureçam os frutos,
eles não amadurecem? Quando, novamente, manda
que <as árvores> lancem ao chão os frutos, percam
suas folhas, recolham-se em si mesmas e em repouso
permaneçam e descansem, elas não permanecem em
repouso e descansam? E por que se contempla, du-
rante as fases da lua e a aproximação e a recessão do
avanço do Sol, tal variação e transformação em con-
trários entre as coisas terrenas? Estariam as plantas e
os nossos corpos ligados à totalidade e sendo igual-
mente afetados, mas nossas mentes não o estariam

31 Δοκεῖ δ’ αὐτοῖς ἀρχὰς εἶναι τῶν ὅλων δύο, τὸ ποιοῦν καὶ τὸ πάσχον. τὸ μὲν οὖν
πάσχον εἶναι τὴν ἄποιον οὐσίαν τὴν ὕλην, τὸ δὲ ποιοῦν τὸν ἐν αὐτῇ λόγον τὸν θέον.
D.L., VII, 134. Nossa tradução.

32 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


muito mais? <Se> as mentes estão assim tão ligadas
e conectadas a Deus, como partes e fragmentos dele,
não percebe Deus todos os movimentos delas como
próprios e conatos?32

Epicteto pertence àquela escola cujo pensamento fun-


damental era, ele mesmo o diz, o de Odisseu e Sócrates que ale-
gava “movendo-me, não te escapo”33.
Ora se Deus não está do lado de fora, está dentro34, e
exatamente por isso o encaixamento de Deus no mundo divi-
nizou a natureza. Aquilo que ela entrega, é Deus quem entrega.
Eis porque é possível enxergar por trás de todos os movimentos,
mudanças e alterações da natureza a manifestação da presença
divina regendo todos esses fenômenos.
A observação e conscientização dessa realidade, ou seja,
que há providência, é condição essencial para que o homem al-
cance aquele estado de espírito em que possa viver contente e
satisfeito, em paz.
Pode-se afirmar genericamente que só é feliz aquele que
deixa de se ocupar com o campo aprohairético de questões da
vida. Para Epicteto, então, a felicidade é conquista daqueles que
aprenderam a reconhecer que a divindade cuida impreterivel-
mente de tudo aquilo que dela dependa ser cuidado. Semelhante
posição, admitamos, é essencialmente religiosa: “Na verdade, que
mal governado seria o mundo se Zeus não se ocupasse de seus
próprios cidadãos para que fossem semelhantes a ele: felizes”35.

32 Epict. Diss. 1.14.1-6.


33 Epict. Diss. 1.12.3. .
34 “Entretanto, <ele> pôs ao lado de cada um nada menos que um divino <guardião>,
e pôs nas mãos deste guardar, incansável e infalível, cada um. Que outro guardião, me-
lhor e mais solícito, poderia Zeus pôr ao lado de cada um de nós? De modo que, quan-
do fechardes as portas e colocardes dentro a escuridão, lembrai-vos de jamais dizer que
estais sós. Pois não estais, mas Deus está dentro de vós, e o vosso divino <guardião> está
dentro de vós. E que precisão tem ele de luz para ver o que estais fazendo?” Epict. Diss.
1.14.12-14. O grifo é nosso.
35 Epict. Diss. 1.24.19.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 33


Desde o princípio, a distinção entre bens, males e indi-
ferentes – pedra angular de sua filosofia – está fortemente fun-
dada na ideia de divindade cuidadora (associada ao conceito que
separa o que depende de nós daquilo que não depende).
Essa visão é simplesmente contrária a de Heidegger –
que estabeleceu em sua obra Ser e Tempo ser o cuidado a essência
do homem36. Para Epicteto, a divindade é que cuida - ela é a
cuidadora de tudo e de todos – ao homem cabe tão somente se
responsabilizar por aquelas coisas que a divindade lhe entregou
para tutorar. Se assumir a tarefa a ele designada, se fizer a sua
parte – poderá descansar em paz, porque sempre estará guardado
nas mãos generosas de Deus.
A felicidade fronteia com a piedade desde o momento em
que o homem separa os âmbitos de responsabilidade e pertença:

As coisas para physin [contra a natureza] do outro não


vêm a ser um mal para ti. Pois não nasceste para ser
humilhado, nem para ser desventurado [em relação ao
outro], mas, para ser feliz [com ele]. Se alguém é desa-
fortunado, lembra-te de que o é por sua própria falta.
Porque a divindade fez todos os homens para a felici-
dade e para a tranquilidade. Para isso nos deu recursos,
entregando a cada um, uns como próprios, e outros
como alheios. Os que podem ser impedidos, tomados e
obrigados não são próprios, e são próprios os livres de
impedimentos. Quanto à ousia do bem e do mal, como
convinha fizesse quem se preocupa conosco e nos guar-
da paternalmente, fez residir nas que são próprias37.

Sua compreensão de Deus, de sua presença e atuação –


não lhe permitia estabelecer seja o mais insignificante código de
conduta sem levá-LO em conta na economia da vida. Quando
ensinou a notória divisão, estabeleceu no mesmo passo a parte
36 HEIDEGGER, Ser e tempo, 1984, p. 211.
37 Epict. Diss. 1.3.24.1-3.

34 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


que caberia a divindade e a atitude que os seres humanos deviam
ter para com ela. Então com Epicteto tudo começa a partir do
instante em que aprendemos o que nos pertence propriamente –
difereciando-o do que pertence à divindade.

A eucharistia em Epicteto

Vejamos as principais ocorrências do verbo eucharistéo


(“dar graças”) em Epicteto38, analisando as principais que se rela-
cionam ao ato de dar graças a Deus no pensamento epictetiano.
A argumentação epictetiana envolvendo a noção de
“dar graças” parte de quatro premissas fundamentais. Passemos à
primeira que já analisamos acima:

(1) O ser humano que põe seu bem em coisas fora de seu
encargo (aprohairéticas) acusará a Deus quando essas coisas
lhe forem retiradas; não será, portanto, grato a Deus.

Essa tese já se encontra expressa no capítulo 31 do


Enquirídio. Há dois argumentos suportando essa tese. O pri-
meiro é que se o ser humano põe seu bem em coisas que não
estão sob seu encargo (ouk eph’hemin) e são externas, se colocará
contra quem quer que for concebido como obstruindo o acesso
a essas coisas, pelo que o ato de dar valor por si a coisas externas
é uma das razões da impiedade (Ench. 31.2)39. O segundo é que
faz parte da própria natureza humana buscar o que é visto como
38 Tal verbo ocorre 18 vezes em 16 passagens da obra epictetiana.
39 Correlativamente, mesmo mantendo essas coisas externas às quais equivocada-
mente dá valor, o ser humano não é verdadeiramente pio, pois será grato a Deus por
coisas que são de fato sem valor (cf. Epict. Diss. 1.10.4.1).

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 35


um bem e evitar o que é visto como um mal (Ench. 31.3). Assim,
quando se dá valor a algo externo, busca-se esse algo e se vê como
inimigo quem obstrui o acesso a esse algo. No caso de Deus, o ser
humano que põe valor nas coisas externas o acusará quando essas
coisas forem retiradas e vir Deus como o causador dessa retirada.
O resultado será uma revolta contra Deus, o que tornará o revol-
toso tanto ímpio quanto incapaz de ser grato à divindade. Assim,
diz Epicteto: “Mas quem alguma vez ofereceu um sacrifício para
desejar belamente? Para desejar segundo a natureza? Pois damos
graças aos Deuses pelas coisas nas quais colocamos nosso bem”
(Epict. Diss. 1.19.25.3).40
Portanto, por contraposição, o ato de dar graças supõe,
em Epicteto, a correta aplicação do teorema relativo às coisas que
estão sob nosso encargo ou não, que é apresentado em Ench. 1 e
Diss. 1. Por esse teorema, só têm valor por si as coisas que estão
sob nosso encargo, que são, como veremos abaixo, a capacidade
de escolha (prohaireis) e as operações diretamente relacionadas a
ela. Isso nos leva à segunda premissa do argumento epictetiano
sobre o ato ser grato a Deus, que decorre da primeira:

(2) Será grato a Deus o ser humano que põe seu bem em coisas
sob seu encargo, coisas que não podem de forma alguma ser
suprimidas e sobre as quais temos plena responsabilidade.

Pois aquele que põe seu bem nas coisas sob seu encargo
reconhece que apenas elas têm para si valor por si mesmas e que,
portanto, seu próprio valor como ser humano depende unica-
mente de si, i.e. do cultivo de sua capacidade de escolha e, con-
sequentemente, de suas próprias escolhas, pelo que será grato a

40 ἐκεῖ γὰρ καὶ θεοῖς εὐχαριςτοῦμεν, ὅπου τὸ ἀγαθὸν τιθέμεθα. Cf. Ench. 31.4
(“Pois aí onde está o interesse, aí também está a piedade”); Mateus, 6.21 (“Pois onde
está teu tesouro, aí também está teu coração”). Nosso negrito.

36 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Deus. Portanto, quem educa seus juízos, seus desejos, suas incli-
nações e aversões (as operações diretamente associadas à prohai-
resis) será grato a Deus “pelo que é preciso ser grato” (Epict. Diss.
4.4.18)41. Diz-nos Epicteto:

São postas diante de ti coisas adequadas à força que


possuis. Tu, contudo, neste momento, antes a pões de
lado, quando é preciso tê-la desperta e atenta. Não da-
rás, ao invés disso, graças aos Deuses por te porem aci-
ma das quantas coisas que não fizeram sob teu encar-
go, mas te proclamarem somente responsável pelas sob
teu encargo? Não te puseram como responsável pelos
teus pais nem pelos teus irmãos, nem pelo teu corpo,
tuas posses, tua morte, tua vida. Então pelo que te
fizeram responsável? Somente pelo que é teu encargo:
o uso das representações como é preciso42. Então por
que arrastas43 para ti mesmo essas coisas pelas quais
não és responsável? Isso é causar44 problemas para si
mesmo! (Epict. Diss. 1.12.31-35)

O uso das representações (phantasiai) engloba as ativi-


dades da capacidade de escolha. A noção de representação (phan-
tasia) é de fundamental importância para a compreensão da filo-
sofia estoica por se relacionar a questões lógicas, epistemológicas
e éticas, estabelecendo a relação entre o hegemonikon (a parte di-
retriz da mente humana) e o mundo e possuindo simultaneamen-
te um caráter corpóreo (na medida em que é uma alteração do
hegemonikon causada por um objeto exterior), lógico (pois o mais
importante tipo de phantasia dos seres racionais possui conteú-
do proposicional) e epistemológico (pois através da phantasia os

41 <...> καὶ οὕτως ἂν ηὐχαριςτοῦμεν τῷ θεῷ ἐφ’ οἷς δεῖ εὐχαριςτεῖν


42 Chreseos hoias dei phantasion.
43 Epispais: presente indicativo ativo, 2ª do singular de epispao, que significa prima-
riamente “arrastar atrás de si”.
44 Parechein é infinito presente ativo de parecho, que significa primariamente “forne-
cer”, “suprir” e, derivativamente, “causar”.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 37


seres racionais podem efetivamente conhecer o mundo). Assim,
ao perceber algo no mundo através dos sentidos, a parte pensante
do ser humano (o hegemonikon) instantaneamente julga o que a
coisa é e que valor tem para si. À percepção liga-se um juízo, o
qual, por sua vez, move o desejo e a repulsa e que pode modelar os
impulsos. Por exemplo, se vemos um cão e o julgamos perigoso,
buscaremos evitá-lo, e nossos impulsos serão moldados de acordo
com nosso juízo, nos levando a fugir, caso o cão venha em nossa
direção. Entretanto, se mudarmos nosso juízo quanto ao cão, não
mais o vendo como um ser maligno, podemos alterar nosso de-
sejo de modo que possamos abordá-lo através da modelagem de
impulsos (por exemplo, interagindo com o cão da forma correta).
Por aí se vê o papel importantíssimo da análise das pró-
prias opiniões para Epicteto: são elas que orientam nossa capaci-
dade de escolha: caso sejam equivocadas, nossa escolha, que tem
que operar tomando as nossas opiniões (juízos, suposições, etc.)
como parâmetros, igualmente se equivocará.
O teorema sobre as coisas que estão sob nosso encargo
ou não serve justamente para corrigir em larga escala nossas opi-
niões, reestruturando deontologicamente o âmbito de nossa es-
colha e repartindo-o entre o das coisas internas e o das externas,
retirando destas o valor por si e investindo aquelas desse valor.
Mas qual evidência Epicteto apresenta para nos mostrar
que a capacidade de escolha está realmente sob nosso encargo e não
é externamente determinada? Epicteto fala sobre isso nas Diatribes:

Homem, tens a capacidade de escolha por natureza


desimpedida e não constrangida [...] Demonstrar-
te-ei isso primeiro sobre o tópico do assentimento.
Pode alguém te impedir de inclinar-te para a verdade?
Ninguém pode. Pode alguém te constranger a aceitar
o falso? Ninguém pode [...] Vês que, nesse mesmo tó-

38 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


pico, possuis a capacidade de escolha45 desimpedida,
não constrangida, desembaraçada? Vejamos: é dife-
rente em relação à capacidade do desejo e à capacida-
de do impulso? Então o que pode vencer um impulso
senão outro impulso? O que <pode vencer> o desejo e
a repulsa senão outro desejo e outra repulsa?”46 (Epict.
Diss. 1.20. 21-24)

Assim, a capacidade de escolha é por natureza desimpe-


dida e não constrangida. Prova disso é que (i) não se pode impedir
alguém de se inclinar para o que parece ser para ele verdadeiro e
(ii) não se pode impedir alguém de se negar a aceitar o que lhe
parece falso. Por exemplo, pode-se obrigar alguém a dizer que crê
em algo, mas nenhuma tortura ou algo do gênero pode fazê-lo to-
mar como verdadeiro o que se lhe afigura como falso e vice-versa,
pois, como vimos, esse processo é totalmente interno, dependen-
do somente das opiniões que a capacidade de escolha tem diante
de si e do assentimento que tal capacidade confere a elas ou não.
Entretanto, a atribuição de valor às coisas internas e a re-
tirada do valor por si das coisas externas é condição necessária, mas
não suficiente para o ato de dar graças. Será preciso também ter uma
visão abrangente da realidade pela qual se reconheça a providência
divina, tanto (3) em relação à capacidade de escolha desimpedida
que lhe foi conferida quanto (4) em relação às coisas que concorrem
para sua subsistência no Cosmos. Analisemos tais premissas:

(3) Será grato a Deus o ser humano que reconhece que


Deus concedeu a todos os humanos a capacidade de escolha
desimpedida.

45 To proairetikon.
46 Portanto, os três tópicos – escolha (prohairesis), desejo ou repulsa (orexis ou ekklisis) e
impulso (horme)— são cobertos, demonstrando-se que funcionam de modo desimpedido.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 39


Epicteto funda a tese da autodeterminação da escolha
na tese de paternidade divina. Para Epicteto, Zeus não predes-
tinou os seres humanos à escravidão, mas concedeu a todos os
seres humanos a capacidade de escolha desimpedida, pela qual
podem se tornar livres. Quanto a isso, Epicteto nos diz: “Zeus
me fez livre. Pensas que predestinou seu próprio filho a ser escra-
vo?” (Epict. Diss. 1.19.947)
Para o Pórtico, dois princípios fundamentais perfazem
o cosmos: um ativo, chamado ora de logos (a razão universal), ora
de fogo inteligente, e identificado com a divindade que estrutura
o mundo (cf. D.L. 7.134); outro passivo, a matéria inerte. Dos
quatro elementos, dois são ativos (fogo e ar) e dois são passivos
(água e terra). Os dois ativos se combinam para produzir pneuma,
que, ao perpassar todos os corpos, sustém cada um deles através
de um movimento simultâneo para dentro (que mantém cada
corpo unificado) e para fora (que confere a cada corpo suas qua-
lidades). Esse duplo movimento constitui o tônus de cada coisa.
Há quatro níveis de tonicidade: hexis, dos corpos inanimados;
physis, das plantas; psyche, dos animais; hegemonikon, a capacidade
racional e diretriz dos seres humanos (cf. D.L. 7.138-9). As demais
funções psíquicas humanas (os cinco sentidos, a função procria-
tiva, a função da fala e a razão) são extensões do hegemonikon (cf.
D.L. 7.157). Podemos entender por esse viés a afirmação da pa-
ternidade divina dos humanos em Epicteto como uma metáfora
pela qual se indica que os seres humanos possuem em si o mes-
mo princípio ativo e inteligente que estrutura o mundo. Como
este não é determinado, mas determinante, assim também o é sua
instância em cada ser humano48.
47 ‘πόθεν σύ; ἐμὲ ὁ Ζεὺς ἐλεύθερον ἀφῆκεν. ἢ δοκεῖς ὅτι ἔμελλεν τὸν ἴδιον υἱὸν
ἐᾶν κατα δουλοῦσθαι;
48 Em Diss. 4.5.35, Epicteto fala sobre Sócrates, que tolerou pacientemente sua mu-
lher irascível e seu filho distante, o que, para nosso estoico, só se tornou possível pelo
correto exercício da capacidade de escolha, que independe do que querem tiranos ou
multidões, pois esse correto uso é dado desimpedido a todos (τοῦτο γὰρ ἀκώλυτον
δέδοται ὑπὸ τοῦ θεοῦ ἑκάστῳ). Para Epicteto, quem compreende tal coisa e acalenta
tais opiniões “cria a amizade em casa, a concórdia na cidade, a paz entre as nações, é
grato a Deus”.

40 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Mas, como dissemos, o mero reconhecimento do ca-
ráter desobstruído dessa capacidade não é suficiente para o ser
humano ser grato a Deus. É preciso que ele reconheça o caráter
providencial de Deus que se evidencia em cada uma das coisas
úteis do mundo. Essa será a próxima premissa do argumento de
Epicteto quanto ao ato ser grato a Deus.

(4) Será grato o ser humano capaz de reconhecer a providência


divina nas coisas que lhe foram dadas para o suprimento de
sua própria vida.

Para Epicteto, embora as coisas externas, consideradas


individualmente, não tenham valor por si, quando tomadas em
conjunto revelam a providência e a bondade de Deus. Entretanto,
para que o ser humano seja grato a Deus pelas coisas que lhe
foram dadas por Deus para o suprimento de sua própria vida,
é preciso que desenvolva a capacidade de ver conjuntamente as
coisas que ocorrem no Cosmos. Assim, diz-nos Epicteto:

Se alguém possui em si mesmo estas duas capacidades,


é fácil elogiar a providência49 por cada uma das coisas
que acontecem no Cosmos: ver em conjunto50 o que
acontece a cada um e ser grato51. Caso contrário, não
verá a utilidade do que acontece e não dará graças por
elas nem se as vir. (Epict. Diss. 1.6.2.1-2)

Assim, como dissemos, para nosso estoico, embora as


coisas externas, consideradas individualmente, não tenham va-
lor por si mesmas, revelam a providência e a bondade de Deus.
Entretanto, para que o ser humano se dê conta disso, é preciso

49 Pronoia: a providência divina.


50 O termo aqui é synoratike.
51 Eucharistos.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 41


tanto ter uma visão abrangente da realidade quanto ser capaz
de ser grato. Essa última capacidade é desenvolvida pela correta
aplicação do primeiro teorema quanto às coisas que estão e que
não estão sob nosso encargo. A primeira capacidade requer algo
mais. Após retirar o valor por si das coisas externas, é preciso
também reconhecer nelas um caráter instrumental, pois são ma-
téria para o exercício da escolha. Isso requer uma visão da reali-
dade que conecte uma coisa às outras, como a grama ao carneiro,
o carneiro à lã e o leite, e estes a nós, por exemplo. Essa visão
não supõe que se conheça cada coisa da realidade. Para Epicteto,
basta uma contemplar uma só dessas coisas para perceber isso e
ser corretamente grato a Deus52. Epicteto fala-nos sobre isso na
diatribe 1.16, intitulada “Sobre a Providência”:

(7) E certamente, por Zeus e pelos Deuses, uma só das


coisas produzidas pela Natureza leva o homem digno
e grato a perceber a Providência53. (8) E não me fale
agora sobre as grandes coisas. Mesmo o surgimento
do leite a partir do pasto; e, a partir do leite, o queijo;
e, a partir da pele, a lã <...> (9) Vamos! Deixemos as
obras da Natureza, contemplemos as suas obras in-
cidentais54. (10) Há algo mais inútil que os pelos do
queixo? E então? Ela não fez uso deles e do modo
mais adequado possível? Não se distinguem por eles
o macho e a fêmea? (11) Não exclama à distância a
natureza de cada um de nós: “Homem sou – assim
aproxima-te de mim, assim fala comigo, nada mais
busques: vê os símbolos”? (12) De novo, em relação
às mulheres, do mesmo modo que misturou à voz algo
mais delicado, também retirou os pelos do queixo. Não
<,tu me dizes,> é preciso deixar o animal sem distin-
ções, e que cada um de nós anuncie: “Sou homem”.

52 Cf. Epict. Diss. 1.16.7. E certamente, por Zeus e pelos Deuses, uma só das coisas
produzidas pela Natureza leva o homem digno e grato a perceber a Providência (Pronoia).
53 Pronoia.
54 Parerga: “ações subordinadas, acessórias”.

42 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


(13) Mas quão belo, formoso e digno de reverência o
símbolo <é>! Quão mais belo que a crista do galo!
Quão mais formoso que a juba dos leões! <...> (15)
São somente essas as obras da Providência sob nosso
encargo55? E que discurso basta, para, de modo seme-
lhante, elogiar ou apresentar essas obras? Pois se pos-
suímos intelecto56, o que precisamos fazer, tanto em
público quanto a sós, senão celebrar em cantos, louvar
a Deus e fazer jus às suas graças?57 (16) Não é preciso,
ao arar, ao semear e ao comer, cantar um hino a Deus?
“Grande é Deus, que nos concedeu estes instrumentos
com os quais lavramos a terra; (17) grande é Deus, que
nos deu as mãos, que nos deu a capacidade de comer,
que nos deu o ventre, que nos deu a capacidade de
crescer sem que percebamos, que nos deu a capacidade
de respirar enquanto dormimos!” (18) É preciso cantar
um hino sobre cada uma dessas coisas, e o melhor e
mais divino hino porque Deus nos deu a capacidade
de compreendê-las e, por meio dela, <a capacidade>
de utilizá-las. (19) E então? Já que muitos de vós sois
cegos, não é preciso haver alguém que cumpra esse pa-
pel e cante por todos o hino a Deus? (20) Pois de que
é capaz um velho coxo senão cantar um hino a Deus?
Se eu fosse um rouxinol, eu cantaria os cantos do rou-
xinol. Seu fosse um cisne, cantaria os cantos do cisne.
Ora, sou um <animal> racional. É-me preciso cantar
um hino a Deus. Essa é a minha obra. Eu a cumprirei.
Não abandonarei este posto que me foi dado. E vos
convido a essa mesma ode! (Epict. Diss. 1.16.15-20)

Correlativamente, em Diss. 2.20.32., Epicteto chama iro-


nicamente de “homens gratos e com senso de pudor” os que não cre-

55 Eph’hemon. Dobbin traduz a expressão por “in our case”; Georg Long, por “in us”. Talvez
Epicteto chame essas ações da natureza como “dependentes de nós” porque podemos alterá-las em
alguma medida, embora não sejam eph’hemin em sentido estrito.
56 Nous.
57 Cf. MAA, 5.33.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 43


em nos deuses, que “comem pão todo dia e não sabem se há Demeter,
que usufruem tudo o que o Cosmos lhes oferece sem qualquer senso
de gratidão e ainda por cima propagam entre os jovens as doutrinas
que prescrevem tal ingratidão” (nosso estoico tem em mente nessa
diatribe especificamente os epicuristas e acadêmicos).
Em Diss. 2.23.5., Epicteto refere-se ao ato de ser grato
tanto em relação à capacidade de escolha por natureza desimpe-
dida quanto às demais coisas do Cosmos que concorrem para a
nossa existência:

Homem, não sejas ingrato nem esquecido das melhores


coisas, mas sê grato por tua visão, por tua audição e,
por Zeus, sobre tua própria vida e sobre as coisas que
cooperam com ela, pelos frutos secos, pelo vinho, pelo
azeite. Lembra que ele te deu outra coisa melhor que
todas essas, que avalia a utilidade delas, que as testa, que
calcula o valor de cada uma delas. (Epict. Diss. 2.23.5)58

Epicteto prescreve a gratidão até mesmo em relação ao


fato de haver a filosofia que ensina ao ser humano o que é a ver-
dadeira felicidade:

Oferecemos sacrifícios porque <os Deuses> nos deram


as vinhas ou o trigo, mas não damos graças a Deus
porque produziu fruto de tal qualidade no pensamen-
to humano, pelo qual predestinou mostrar-vos a ver-
dade sobre a felicidade? (Epict. Diss. 1.4.32.5)59.

É também preciso que o ser humano dê graças por seu


caráter mortal. Mais uma vez, a visão abrangente é requerida,
pois, para nosso estoico, é necessário que os mais velhos morram
para dar lugar aos mais jovens:

58 Epicteto refere-se aí à capacidade de escolha. Mais adiante, Epicteto ob-


serva que quem não dá valor a essa capacidade é ignorante, ímpio e ingrato em
relação a Deus (Cf. Epict. Diss. 2.23.23.4).
59 Epicteto refere-se aí à filosofia que Crisipo nos legou.

44 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Não queres, então, pelo tempo que é dado, contemplar
a solene procissão e o festival e, então, quando saíres,
ir-te sendo obediente e sendo grato pelo que ouviste e
viste? <...> Talvez também em Olímpia outros atletas
lutem, mas a solene procissão tem seu fim: sai, par-
tindo da vida como um <homem grato>, como um
homem que tem senso de pudor, dá espaço a outro.
É preciso também que os outros nasçam, do mesmo
modo que tu nasceste, e os que nascem precisam de
terra e de casas. (Epict. Diss. 4.1.105- 106)

Para Epicteto, só é possível ser grato a Deus o ser hu-


mano que, em primeiro lugar, põe seu e bem seu mal nas coisas
que estão sob seu encargo, quais sejam, a capacidade de escolha e
as operações a ela associadas, o juízo, o desejo e o impulso. Além
disso, embora retirando o valor que as coisas externas tenham
por si mesmas, deve ser capaz de perceber a ação da Providência
Divina no Cosmos e reconhecer Deus como seu benfeitor, em
primeiro lugar, em razão de perceber-se como não predestinado
à escravidão e de se dedicar a desenvolver sua capacidade de es-
colha; em segundo lugar, por tudo que lhe é dado como material
para concretizar sua liberdade, as coisas que, mesmo não sendo
seu encargo, são ocasião para desenvolver-se como ser moral.

Conclusões

Ponderemos o caminho trilhado até aqui a fim de


avançarmos um pouco mais. Dissemos que Epicteto condensou
numa fórmula singela e descomplicada toda uma filosofia. Ele
sumarizou trezentos e poucos anos de sabedoria estoica neste
pugilo de palavras: “Das coisas que são, umas estão sobre nós

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 45


(sob nosso encargo), outras não estão sobre nós (não estão sob
nosso encargo)”. Entre as “coisas sobre nós” situou “as obras da
mente”60, obras estas que são executadas pelo hegemonikon, a fa-
culdade diretriz da mente humana.
Do outro lado da equação dos valores, dispôs as coisas
que não estão categorizadas no âmbito de pertença do homem,
ou seja, tudo aquilo que é de domínio alheio – inclusive aquelas
que pertencem à divindade.
Afirmamos no início desse estudo que, enquanto o ho-
mem não alçara o entendimento das regras axiológicas que co-
mandavam a atribuição de bens e males às próprias ações, tudo
esteve a depender dos deuses e de suas irracionais idiossincrasias.
À vista disso, em geral, a relação predominante dos seres huma-
nos com as divindades era marcada pelo medo e pela insegurança.
Com o advento do modo estoico de pensar, o sistema de
valores que regula as ações humanas, instaurou-se a nova visão que
estabeleceu o princípio ético que dispôs a realidade na tripartite
divisão (bens, males e indiferentes) que fez cair por terra o vetusto
mirante do qual nasceu a ideia de serem os humanos vítimas de
divindades injustas. Isso porque desde então os bens e os males
passaram a pertencer unicamente ao campo das escolhas humanas.
Semelhante conquista, reconheçamos não é pouca coisa.
A afirmativa “Das coisas que são, umas estão sobre nós,
outras não estão sobre nós” não só reflete o sistema axiológico
da velha Stoa, como também revela um pequeno e sutil ajuste
que será o sinal distintivo do escravo grego nascido à época do
Império Romano - sua contribuição pessoal à história da filosofia.
Debaixo da categoria das coisas “sobre nós”, situou os
bens e os males - quanto aos indiferentes, classificou-os na or-
dem daquelas coisas “não sobre nós”. E entre as que não nos
pertencem propriamente, incluiu o manejo do universo por parte

60 “E as obras da mente são o impulso para agir, o impulso de se afastar, o desejar, o


preparar, o intentar, o assentir” (Epic. Diss. 4.11.6).

46 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


da divindade que, segundo ele, executa sua tarefa demonstrando
não só inteligência superior, como também revelando beleza ex-
celente e perfeita justiça61.
Tendo-se assentado o novo paradigma, descortina-se a
nova era. A era da gratidão, a era da eucharistia. Doravante o sen-
timento piedoso de reconhecimento perante a graça divina, eli-
minará por completo o tempo do medo e da insegurança diante
da divindade. Epicteto considera o modus operandi que consagrou
em sua filosofia como a transcrição de uma lei divina.

Qual é a lei? A divina é: guardar o próprio, não re-


clamar o alheio, mas usar o que foi dado, não ansiar
pelo que não foi dado e, quando algo te for arrebata-
do, devolvê-lo com facilidade e pleno de gratidão pelo
tempo que usaste, se não queres seguir chorando pela
babá e pela mamãe.62

A compreensão dessa lei, ao invés de vir por intermédio


de uma revelação, nasce no próprio coração do homem. A con-
templação da ordem e da harmonia universal desperta nele a ra-
zão de sua existência, o sentido de sua vida. O fragmento mortal
da divindade se defronta com seu “para que”:

Deus introduziu o homem como seu expectador e de


suas obras. E não só como expectador, mas também
como exegeta delas [...] E ela (natureza) o determinou
para a contemplação, para a compreensão e para um
modo de vida em harmonia com a natureza.63

61 Quanto à piedade em relação aos Deuses, sabe que o mais importante é o seguinte:
que possuas juízos corretos sobre eles que eles existem e governam todas as coisas de
modo belo e justo – e que te disponhas a obedecê-los, a aceitar todos os acontecimen-
tos e segui-los espontaneamente como realizados pela mais elevada das inteligências.
(Epict. Ench. 31.42).
62 Epict. Diss. 2.16.28-29.
63 Epict. Diss. 4.19 e 21.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 47


A contemplação para Epicteto pode ser tudo menos
uma ação desinteressada. Ela serve em primeiro lugar para se
chegar à compreensão de que o mundo não é uma embarcação
sem rumo, sem leme:

Raras pessoas vêm à feira por amor ao espetáculo: que


é o mundo? Quem o governa? Ninguém? E como uma
vila ou casa poderia subsistir, mesmo por pouco tempo,
se não houvesse alguém para governá-la, e uma cons-
trução tão vasta e bela seria administrada com tanta
ordem se fosse pelo acaso, e de qualquer maneira? Há,
pois, alguém que a governa.64

Logo em seguida conclama à observação sobre como


esse governo opera. E se depois de análise, chegar à conclusão
de que a divindade governa com justiça, sabedoria e providência,
deve-se então depositar confiança incondicional no seu cuidado
de nós, além de firmar o compromisso de empenharmo-nos em
ser como o divino.65
Tal convite à assemelhação com a divindade revela,
para alguns cristãos, a “soberba diabólica” de Epicteto.66 No en-
tanto, para nós outros que sabemos o quão humilde ele foi, não
só quanto aos haveres – pois praticamente nada possuía – mas,
principalmente, pelo preito incondicional que rendia à graça di-
vina, aceitando a vida por ela ofertada.
Não entenderam que no estoicismo não há a ideia de
queda do paraíso. Não existe o conceito de que a humana na-
tureza desde sua origem fosse corrompida, dissoluta, desonesta.

64 Epict. Diss. 2.14.25-26.


65 Epict. Diss. 2.14.12-13. Depois do primeiro passo, ou seja, em saber que há deuses
e que são providentes, o segundo é descobrir o que são e buscar se assemelhar a eles.
66 “Ces príncipes d’une superbe diabolique le conduisent à d’autres erreurs, come: que
l’âme est une portion de la substance divine, que la douler et la mort ne sont pas des
maux ; qu’on peut se tuer quand on est persécuté qu’on doit croire que Dieu appelle;
et à d’autres”. PASCAL, Entretien avec M. de Sacy sur Épictète et Montaigne, p. 98-99.

48 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


A natureza humana, no estoicismo de Epicteto, é divina! Se o
homem é parte da divindade, como decifrá-lo de outro modo?
Como conceber nele alguma mancha moral que lhe fosse intrín-
seca e de nascença?

Se é verdadeiro o que é dito pelos filósofos, que para


todos os homens há um único princípio, de acordo
com qual assentir é sentir que é o caso, negar é sen-
tir que não é o caso e –por Zeus— suspender o juízo
é sentir que é não-evidente, bem como desejar algo
é sentir que me é vantajoso, sendo impossível julgar
vantajosa uma coisa e desejar outra, e a uma julgar
conveniente, mas ser impulsionado para outra, então
porque ainda nos irritamos com os muitos?
– São ladrões – diz <alguém>– e salteadores.
– O que é roubar e furtar? Eles erram acerca das coisas
boas e das más. É preciso nos irritar com eles ou ter
pena deles? Mostra o erro e verás como se afastarão
das faltas. Entretanto, se não possuem visão, nada mais
têm senão o que lhes parece <bom>.
“É preciso matar esse larápio e esse adúltero?”
– De modo algum, <indaga> antes, porém, que “É pre-
ciso matar esse homem que errou e se enganou acer-
ca das melhores coisas e tornou-se cego, não quanto
à visão que distingue as coisas brancas e negras, mas
quanto à inteligência que distingue as boas e más?” Se
assim falasses, saberias quão desumano é o que dizes
e que é semelhante a isto: “Então não é preciso matar
esse cego e esse surdo?” Pois se o maior mal é perda
dos maiores bens, e o maior bem de cada homem é a
escolha do modo que é preciso, e disso esse <indiví-
duo> está privado, por que ainda te irritas com ele?67

Não. O único “mal” de que o homem deve ser salvo é o


“mal” da ignorância. E o quod todo aquele que aprende a cami-

67 Epict. Diss. 1.18.1-9.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 49


nhar com a filosofia – o que implica - aceitar a existência com
é, confiando na providência divina, na medida em que pratica a
separação do próprio do impróprio – agrega as condições ideais
de realização da felicidade e da plena liberdade.
A contemplação é epifenômeno do nous, este constitui
a diferença específica do homem – a compreensividade. Através
dela, o homem consegue captar pela contemplação não só a or-
dem inscrita na natureza, mas também segui-la. Daí nasce um
dos motivos de agradecimento à divindade para Epicteto:

São somente essas as obras da Providência sob nosso


encargo? E que discurso basta, para, de modo seme-
lhante, elogiar ou apresentar essas obras? Pois se possuí-
mos intelecto68, o que precisamos fazer, tanto em público
quanto a sós, senão celebrar em cantos, louvar a Deus
e fazer jus às suas graças? Não é preciso, ao arar, ao
semear e ao comer, cantar um hino a Deus? “Grande
é Deus, que nos concedeu estes instrumentos com os
quais lavramos a terra; grande é Deus, que nos deu
as mãos, que nos deu a capacidade de comer, que nos
deu o ventre, que nos deu a capacidade de crescer sem
que percebamos, que nos deus a capacidade de respirar
enquanto dormimos!” É preciso cantar um hino sobre
cada uma dessas coisas, e o melhor e mais divino hino
porque Deus nos deu a capacidade de compreendê-las
e, por meio dela, <a capacidade> de utilizá-las.69

A compreensividade também orienta o homem na dire-


ção da aceitação do destino, porquanto “compreender” é tradução
do verbo parakoloutho que significa “eu sigo de perto, acompanho
de perto, marcho ao lado de”. Portanto, a compreensividade vem
a ser a capacidade de entender a vontade da divina natureza, con-
dição sem a qual ninguém poderia segui-la e, simultaneamente,

68 Nous.
69 Epict. Diss. 1.16.15-18.

50 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


viver em harmonia com ela. Então ser estoico significará exata-
mente isto: colher a vida como se apresenta, naqueles aspectos
que escapam ao nosso controle, naquilo que não depende de nós.

Ser estoico, afinal, o que é? Do mesmo modo que


chamamos “fidíaca” a estátua modelada segundo a arte
de Fídias, mostrai-me igualmente um homem enfer-
mo e feliz, em perigo e feliz, desprestigiado e feliz.
Mostrai-me. Pelos deuses! Desejo ver um estoico. Mas
não podeis mostrar-me um homem assim modelado.
Mostrai-me, ao menos, o que se modela, aquele que
se orientou nesta direção. Fazei-me este favor. Não
privais um ancião de ver um espetáculo que até agora
não viu. Imaginais que deveis mostrar-me Zeus ou a
Atenas de Fídias – obras de marfim e ouro? É uma
mente de homem, que queira ter a mesma opinião
que a da divindade e não queira recriminá-la, nem os
homens, nem falhar em nada. Tampouco cair em di-
ficuldades, nem enfurecer-se, nem sentir inveja, nem
rivalizar com ninguém (usar circunlóquios por quê?)
que anseie transformar-se de homem num deus e que
pretenda a companhia de Zeus neste pobre corpo
mortal. Mostrai-o, mas não podeis70.

Epicteto vê o verdadeiro estoico como uma espécie de


testemunha da ação providencial dos deuses diante dos seres hu-
manos, haja vista saberem reagir com espírito de obediência e
desprendimento perante aquelas coisas que não dependem deles.
O aprendiz veraz de sabedoria estoica tem de adquirir a habili-
dade de reger a sua vida buscando a conformidade com a vontade
divina – que se expressa na natureza na forma das eventualidades
que ocorrem no mundo. Ele tem de aprender que aquilo que a
natureza lhe entrega, na verdade, é Deus quem lhe entrega:

70 Epict. Diss. 2.19.23-27.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 51


Levanta a cabeça como um homem livre da servitu-
de, ou eleva teu olhar em direção a Deus e diz-lhe:
serve-te de mim doravante como queiras. Estou uni-
do a ti, sou teu, nada recuso do que queiras, veste-me
como quiseres. Queres que eu tenha cargos públicos,
que leve vida particular, que permaneça aqui, que sofra
desterro, que seja pobre, que seja rico? Eu te defende-
rei por tudo isso perante os homens, mostrarei como é
a natureza de cada coisa71

Assim como o timoneiro não escolhe os ventos que


chegam à embarcação, igualmente na vida, porquanto o autor do
drama nos destina um papel para desempenhar sem que o tenha-
mos elegido, cabendo-nos tão somente interpretá-lo da melhor
maneira possível:

“Não quero <matéria> de tal qualidade”, diz alguém.


Pois depende de ti tomar o material que desejas? Foi-
te dado um corpo tal, tais pais, tais irmãos, tal pátria,
tal posição nela. Então vens a mim e dizes: “Muda
para mim a matéria”. Não possuis meios, porém, para
fazeres uso das coisas dadas? “Isso te é dado, meu é
praticar belamente” [...] Também aqui: “Toma o co-
mando”. Tomo-o e, ao tomá-lo, mostro como o ho-
mem instruído vive. “Tira a toga senatorial e, toman-
do nas mãos estes farrapos, aparece em tal papel”. E
então? Não me foi dado apresentar uma bela voz?
“Como, pois, te apresentas agora?” Fui chamado como
testemunha de Deus.72

O simples fato de viver, de se estar no mundo, basta,


para Epicteto agradecer a honra, o privilégio de participar do que
para ele é um milagre – o milagre da vida! Lembremo-nos de que
quando Epicteto ensinou aquela vez o real significado de se ser um

71 Epict. Diss. 2.14.42.


72 L., I, 29, 39-46.

52 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


estoico, tinha a seu favor o testemunho da própria vida. Aquele
ancião de pequena estatura física era um gigante do espírito – pois
havia transposto muitos daqueles obstáculos que ensinava a sobre-
pujar, ultrapassar, vencer. Nem o desterro, nem a pobreza, tampouco
a velhice ou o fato de ser coxo o impediu, de acima de tudo, e de
todas essas circunstâncias agradecer e ensinar a todos que o ouviam
a render incansável e prodigamente graças à divindade.
A teoria epictetiana afirma que a graça divina consiste
na dádiva – oferecida igualmente a todos os seres humanos –
de uma capacidade de escolha desobstruída e na matéria para
que tal capacidade se exercite. Segundo essa visão, o ser humano
pode por si mesmo alcançar a serenidade, a felicidade e, conse-
quentemente, ser grato a Deus, sob a condição que desenvolva a
capacidade de escolha, livrando-a das falsas opiniões, e que ado-
te uma visão conjunta da realidade, capacitando-o a perceber a
Providência nas coisas que tornam possível sua vida e que são
matéria para sua escolha.

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54 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


É possivel unir política e religião?73

José João Neves Barbosa Vicente

Se é verdade que política e religião muitas vezes propor-


cinam esperança para o homem, nao é menos verdade também
que, em termos gerais, elas defendem interesses distintos: a pre-
ocupação religiosa está voltada para as questões espirituais que
se relacionam com as ideias da divindade, cujo lugar por exece-
lência não pode ser o mundo terreno; por ourtro lado, a política
está preocupada com as coisas terrenas e com a vida material de
cada cidadão inserida no seio de uma comunidade politicamente
organizada, ou em outras palavras, a característica fundamental
da religião como, por exemplo, o cristianismo, é a exigência da
lealdade a um reino espiritual que é claramente diferente da ju-
risdição temporal do cidadão. Pelo fato de defenderem interesses
divergentes, política e religião estiveram em conflitos várias vezes
ao longo da história, mas alguns pensadores tentaram apaziguar
tais conflitos e minimizar suas histórias problematicas; entre eles
está, por exemplo, Rousseau, para quem religião e política são
“duas potências”, a saber, “espiritual” e “temporal”. A primeira
encontra-se alicercada na autoridade da Igreja ou de um líder, a
segunda tem como base a autoridade soberana do Estado ou de
um “corpo político”, mas “quando os ditames da religião e da na-
ção”, como sublinhou Wraight74, “sao coexistentes, não há confli-
tos entre os dois”; por outro lado, “se as exigências da religião se
separam das exigências do Estado, então o tecido social corre o
risco de ser danificado”.

73 Este texto foi modificado parcialmente em sua forma e em seu conteúdo para
integrar este livro. Sua versão original foi publicada na Revista Ipseitas, sob o título:
Política e religião: uma relação possível? Meus mais sinceros agradecimentos a toda a
equipe da revista.
74 WRAIGHT, Rousseau’s The Social Contract, 2008, p. 114.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 55


Rousseau é um pensador que tinha prazer em “nadar
contra a corrente”, como ele mesmo gostava de dizer, “não me
preocupo com agradar nem aos letrados pretensiosos, nem às
pessoas em moda”75. Seu modo de ser e o seu estilo de pensar
fizeram dele, pelo menos aos olhos de alguns dos seus contempo-
râneos e leitores, um pensador polêmico. Fama essa que ecoaria
mais uma vez de forma amplificada ao defender de modo firme e
decidido a necessidade de uma união entre política e religião. Na
verdade, para ele, como aparece em sua obra Do contrato social,
principalmente no capítulo VIII do Livro IV, um pensamento
político que ignore a religião, ou em outras palavras, que se pre-
tende firmar contra ela, nasce fadado ao fracasso, pois nunca será
um pensamento completo e acabado. É por isso que Rousseau
nunca imaginou e jamais concebeu uma política, um Estado, ou
uma sociedade humana sem religião. É essa postura que faz dele
também uma figura importante na história das relações entre
política e religião. Para ele, como observou Wraight76, religião é
“uma questão de consciência pessoal” que deve “respeitar a liber-
dade de cada indivíduo”, de cada cidadão acerca da sua conclusão
sobre questões referentes, por exemplo, à “existência de Deus” e
“vida após a morte”.
Percebe-se, portanto, que apesar de reconhecer a im-
portância da religão para a política e a necessidade de uní-las
para um bom funcionamento da sociedade civil, é preciso desta-
car que, para Rousseau, não é qualquer religião que deve se unir
à política, não é qualquer uma que serve para tal propósito. O
pensador genebrino está convencido que a religião é um estímulo
importante para ação e, por isso mesmo, ela deve ser acomodada
em perfeita harmonia com a política justa para que esta possa
sobreviver e perpetuar o máximo de tempo possível, mas ele tam-
bém está ciente que uma escolha errada é capaz de colocar todo

75 ROUSSEAU, Discurso sobre as ciências e as artes, 1983a, p. 331.


76 WRAIGHT, Rousseau’s The Social Contract, 2008, p. 116.

56 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


o projeto em perigo, ou até mesmo destruí-lo completamente.
Nesse sentido, assim como Helvétius77 que atacou de forma sis-
temática o cristianismo e sempre acreditou e defendeu que tal
religião não seria um bom aliado para a política, uma vez que não
proporciona nenhum bem aos cidadãos, pois seus representan-
tes mais “ilustres” apenas comandam “supersticiosos e escravos”
e, por isso mesmo, são todos odiados pelos “bons cidadãos” que,
em termos gerais, os chamam de instrumentos da desgraça das
nações, Rousseau também considera a religião cristã como um
perigo e uma ameaça para a política e, portanto, deve ser afastada
das pretensões desta.
Para o pensador genebrino, o cristianismo é uma reli-
gião convicta de que é preciso cegar os povos afim de subjugá-los,
ela apenas sabe dizer aos poderosos quais são os seus direitos, e
aos humildes ela insiste em lembrá-los dos seus deveres. Nesse
sentido, a religião cristã surge aos olhos de Rousseau como um
perigo ou uma ameaça para a política, por isso ela é dispensável
para o propósito político da sociedade, pois apenas serve para
sufocar os cidadãos: “o cristianismo só prega servidão e depen-
dência”, assim, diz Rousseau78, “seu espírito é por demais favorá-
vel à tirania” e todos “os verdadeiros cristãos são feitos para ser
escravos; sabem-no e não se comovem absolutamente, porquanto
esta vida curta pouco preço apresenta a seus olhos”. Para o pen-
sador genebrino existe apenas uma forma de religião capaz de se
unir à política ou ao Estado e contribuir verdadeiramente para o
bom funcionamento da comunidade, tal religião se realiza na so-
ciedade por meio do contrato, e se realiza no indivíduo atraves da
educação. Trata-se, portanto, da “Religião Civil”, cuja profissão de
fé é puramente civil e “encomendada”, como disse Fernandez79,

77 HELVÉTIUS, De l’Homme, de ses facultés intellectuelles et de son éducation, 1773,


p. 96-102.
78 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 143.
79 FERNANDEZ, La religión civil y el pensamiento politico de Rosseau, 1993, p. 273.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 57


pelo “soberano”, não necessariamente como dogma da religião,
mas sim como normas da sociabilidade, pois sem estas normas
torna-se impossível ser um “bom cidadão” e um fiel sujeito. Para
o pensador genebrino, como sublinhou Wraight80, “no interesse
do bem comum, o Estado tem um papel na regulação das crenças
de seus constituentes”, ainda que seja uma regulaçao particular-
mente restrita.
Portanto, para Rousseau, como observou Beiner81, não
há qualquer possibilidade de existir uma “política sadia na au-
sência de uma religião civil”, tal religião é politicamente indis-
pensável, pois ela “representa”, nas palavras de O’hagan82, “o pon-
to em que o poder coercitivo do Estado” tem o direito também
de “limitar” as “crenças dos seus cidadãos”. Apenas desse modo,
como disse Dent83, é possível não apenas obter uma união per-
feita entre política e religião, mas também “consolidar os laços”
dessa “união entre os membros de uma comunidade civil”. A
consolidação desses laços possibilita a cada membro da socieda-
de civil tratar o “bem de todos” como “prioridade sobre o seu pró-
prio bem individual” e a “seus companheiros com igual respeito
e cuidado”. A religião civil com a sua profissão de fé puramente
civil serve, em termos da teoria política de Rousseau, para refor-
çar a autoridade das leis com a da religião e resolver, de uma vez
por todas, o problema da relação entre religião e política que ao
longo da história inclinou-se muito mais para a guerra do que
para a paz. Em uma sociedade constituída através do pacto social
e não do pacto de submissão, a estabilidade e a serenidade serão
encontradas quando o “povo soberano”, como observou Cohen84,
seja capaz não apenas de “legislar uma religião civil que contém
princípios úteis para a sociedade”, mas também “banir do Estado
qualquer indivíduo que não endossa os dogmas dessa religião”.

80 WRAIGHT, Rousseau’s The Social Contract, 2008, p. 114.


81 BEINER, Civil religion, 2011, p. 13.
82 O’HAGAN, Rousseau, 1999, p. 153.
83 DENT, Rousseau, 2005, p. 170.
84 COHEN, Rousseau, 2010, p. 46-47.

58 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


A religião civil como pensada por Rousseau e que exige
a adesão de todos os cidadãos, ou nas palavras de Trachtenberg85,
essa religião que, para o pensador genebrino, é “um elemento
central na vida cultural da sociedade como poderia ser”, é algo
absolutamente sem qualquer tipo de fanatismo, superstições e
“reinos”. A religião civil que, como disse Iston86, “cria” de forma
ideal “um contexto no qual as fé plurais podem coexistir, en-
corajando o reconhecimento da sua relativa igualdade”, tende
apenas a uma união sólida com o corpo do Estado em benefício
da coletividade dos cidadãos. Nesse sentido, se ela é importan-
te para o funcionamento perfeito do Estado como imaginado
por Rousseau, é precisamente porque nela não existe qualquer
pretensão em contribuir para a infelicidade dos cidadãos e nem
impedí-los de gazarem os prazeres que são compatíveis com o
bem público. Na verdade, pode-se dizer que, para Rousseau87,
não se deve permitir nenhum tipo de movimento ou organização
“que rompe a unidade social”, pois não contribuem de nenhuma
forma para o bom desempenho e funcionamento da comunidade
politicamente organizada. Para o pensador genebrino, qualquer
tipo de comunidade, organização ou instituição cujo funciona-
mento coloque em risco a unidade social, “nada vale”, pois quan-
do isso ocorre, o cidadão membro da coletividade é colocado “em
contradição consigo mesmo”.
Para Rousseau88, é preciso às vezes seguir o exemplo
das religiões pagãs para que seja possível pensar política e re-
ligião de forma unida, harmoniosa e sem comflito, pois no “pa-
ganismo, cada Estado possuía seu culto e seus deuses, não havia
guerras de religião”, e o motivo para essa união e essa paz, se
explica fundamentalmente pelo seguinte: “cada Estado, tendo

85 TRACHTENBERG, Making citizesns, 1993, p. 238.


86 ISTON, Rousseau and radical democracy, 2010, p. 122.
87 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 141.
88 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 138.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 59


tanto seu culto quanto seu Governo próprio, de modo algum
distinguia seus deuses de suas leis”, toda “a guerra política”, por
assim dizer, era também uma guerra “teológica” e toda “a juris-
dição dos deuses ficava, por assim dizer, fixada pelos limites das
nações”. Nenhum Deus de um determinado povo “dispunha de
qualquer direito sobre os outros povos”; portanto, “os deuses dos
pagãos não eram, de modo algum, invejosos; dividiam entre si o
império do mundo”89. um comportamento totalmente ausente,
por exemplo, na religião cristã. Ainda de acordo com o pensador
genebrino, em sua argumentação para destacar a religião pagã
como uma religião que pode servir de exemplo para se pensar
a política e a religião de forma unida no seio da sociedade mo-
derna do seu tempo, algumas características se destacam, a saber,
que a religião pagã, diferente, por exemplo, da religião cristã, era
totalmente tolerante e jamais se preocupou em fazer a distinção
entre deuses e leis, ela também nunca pregou a dependencia dos
indivíduos para torná-los seres fracos e infelizes.
Portanto, a religião pagã, em termos do pensamento
político de Rousseau, proporcionou, de início ao fim, aquilo que
pode ser denominado de uma perfeita união entre o sistema teo-
lógico e o político,ou em outras palavras, entre política e religião.
Nesse sentido, para o pensador genebrino, se já se viveu, ou ainda
se vive uma guerra ou uma separação entre política e religião,
é preciso dizer que a culpa disso tudo está fundamentalmente
alicerçada no cristianismo e o seu perssonagem principal, a sa-
ber Jesus. Para Rousseau90, é de se lamentar que com a vinda de
Jesus, cujo objetivo fundamental não era “estabelecer na terra um
reino espiritual”, acabou por separar de forma radical “o sistema
teológico do político”. A vinda de Jessus, portanto, não apenas
contribuiu para que o “Estado deixasse de ser uno”, mas também
“determinou as divisões intestinas que jamais deixaram de agitar

89 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 138.


90 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 139.

60 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


os povos cristãos”. A partir desse fato marcante, diz Rousseau91,
muitos povos, tanto no continente europeu quanto “nas vizi-
nhanças, quiseram conservar ou restabelecer o antigo sistema,
sem sucesso”. Isso ocorreu principalmente porque “o espírito do
cristianismo tomou conta de tudo. O culto sagrado sempre per-
maneceu ou tornou-se independente do soberano e sem ligação
necessária com o corpo do Estado”.
De todo modo, é preciso ressaltar que apesar de rejeitar
a religião cristã, Rousseau nunca almejou, em nenhuma parte
dos seus escritos, o fim da religião ou o seu banimento definiti-
vo da sociedade políticamente organizada, mas sim se esforçou
seriamente no sentido de fazer uma união perfeita entre as duas
potências, a espiritual e a temporal, pois como ele mesmo disse,
“jamais se fundou qualquer Estado cuja base não fosse a reli-
gião”92. Mas a base religiosa capaz de ser útil ao Estado, não pode
ser jamais a religião cristã ou qualquer outra religião cujas carac-
terísticas se aproximam dos princípios e das práticas do cristia-
nismo; é preciso, portanto, uma religião que jamais contribuirá
para a decadência do Estado e para a corrupção da comunidade
política, tal religião, como já foi mencionado anteriormente, res-
ponde pelo nome de “religião civil” e contem, nas palavras de
Pezzillo93, “a razão de ser do moralismo existencial de Rousseau”.
A questão que se deve levantar a partir de agora é saber como
é possível estabelecer essa religião totalmente compatível com
a política ou com o bem público, ou em outros termos, como
estabelecer uma religião que, em essência, possa contribuir para
reforçar os sentimentos de sociabilidade e da fidelidade à pátria,
servir para que os cidadãos possam cumprir os seus deveres e se
comprometer com as leis temporais sem qualquer tipo de con-
flito ou antogonismo com o Estado, se no estágio em que os

91 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 139.


92 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 140.
93 PEZZILLO, Rousseau et le contrat social, 2000, p. 19.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 61


homens se encontram já não é mais possível sequer restabelecer
o paganismo? Em primeiro lugar, para Rousseau94, como já foi
dito anteriormente, esse tipo de religião não pode possuir lei ou
princípio que, como na religião cristã, “é mais prejudicial do que
útil à firme constituição do Estado”.
De acordo com Rousseau95, a “religião civil”, em termos
gerais, não pode ser classificada como sendo a religião do homem
que diz respeito à humanidade como um todo e nem como a
religião do cidadão que se refere exclusivamente à sociedade, ou
melhor dizendo, à uma sociedade específica. Uma análise cui-
dadosa das ideias do pensador gemnebrino sobre o significado
da religião do homem, revela que ela não aceita, por exemplo,
nenhum tipo de manifestacao externa e seu objetivo encontra-se
voltado para a interioridade do homem em sua relação com o seu
Deus. Esse tipo de religião, portanto, aos olhos de Rousseau, é a
religião cristã do Evangelho para além da história humana e, por
isso mesmo, não consegue, em hipotése alguma, contribuir no
sentido de reforçar a obediência e a fidelidade dos cidadãos em
relação ao Estado; por outro lado, a religião do cidadão, apesar
de insistir em ensinar os homens a servir não apenas a Deus, mas
também o seu próprio pais, é uma religião fundada, infelizmen-
te, sobre mentiras e erros. Nesse sentido, ela prefere cerimônias
supersticiosas ao verdadeiro culto da divindade, assim, ela surge
aos olhos do pensador genebrino, como uma religião na qual a
intolerância, o assassinato e a guerra contra aqueles que pertecem
a uma religião diferente sejam vistos como algo justificável.
Para Rousseau, portanto, se nem a religião do homem e
nem a religião do cidadão são importantes para a política, a reli-
gião que oferece aos homens “duas legislações, dois chefes, duas
pátrias” também não serve. Esse tipo de religião é extremamente
prejudicial, pois ela se assemelha ao cristianismo ou à religião

94 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 40.


95 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 140-141.

62 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


do padre, uma religião que, aos olhos do pensador genebrino, foi
uma das causas da corrupção da vida social por pregar o pecado e
a salvação sobrenatural. Se ela conquistou o conceito de comuni-
dade universal, foi apenas em nível espiritual, pois no plano das
relações sociais e terrenas deixou indefesa a comunidade e abriu
as portas a toda a forma de tirania e egoísmo, é uma religião, por-
tanto, que não contribui para aperfeiçoar a política e nem garantir
a sua estabilidade. A religião, portanto, capaz de contribuir para
o fortalecimento e a estabilidade do Estado, ou que, em outros
termos, possa se unir à política, só pode ser uma religião baseada
em uma “profissão de fé”, diz Rousseau96, “puramente civil, cujos
artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas
de religião, mas como sentimento de sociabilidade sem os quais
é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel”; uma religião, por-
tanto, que traz a marca da “santidade do contrato social e das leis”
e que seja tolerante com as religiões desde que seus dogmas não
contenham nada de contrário aos deveres do cidadão.
Mas deve ficar claro, diz Rousseau97, que qualquer um
que resolver afirmar que “fora da Igreja não há salvação – deve
ser excluído do Estado a menos que o Estado seja a Igreja, e o
príncipe, o pontífice”. Todos os dogmas da profissao de fé civil,
ou em outras palavras, da “religião civil”, devem ser entendidos
como sentimentos de sociabilidade e, por isso mesmo, devem ser
simples para guiarem os cidadãos no seio da comunidade polí-
tica, pois o soberano, diz Rousseau98 “nada tem a ver com o des-
tino dos súditos na vida futura, desde que sejam bons cidadãos
nesta vida”. O que se pede no seio da comunidade políticamente
organizada é apenas que os cidadãos respeitem a “religião civil”,
e qualquer crença que venha a se mostrar nociva à sociedade é

96 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 143-144.


97 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 145.
98 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 143.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 63


direito do Estado impedir que ela se alastre. O que Rousseau99
pretende dizer com a sua ideia de uma “religião civil”, em termos
gerais, é que qualquer um pode acreditar no que bem entender,
basta que sua crença, no entanto, não prejudique a comunidade
politicamente organizada. É por isso que em sua teoria “os súdi-
tos” apenas “devem ao soberano contas de suas opiniões enquan-
to elas interessam à comunidade”.
Portanto, se Rousseau defende a “religião civil” com to-
das as forças, é porque ele quer preservar a sociedade ou o “pacto
social”, esse tipo de observação pode ser encontrado, por exemplo,
nos estudos de Burgelin (1952) e de Masson (1971), mas tam-
bém pode ser observado por qualquer leitor atento de Rousseau,
afinal, em seus escritos está claro que apenas defendendo uma
“religião civil” no seio da comunidade politicamente organizada
é possível evitar conflitos entre as duas potências, ou melhor di-
zendo, entre a religião e a política, e o Estado pode, então, propor
“princípios” sob os quais todas as religiões deverão se submeter.
Esse esforço de Rousseau também é uma forma de combater a
degradação social provocada pelo advento do cristianismo que
contribuiu para uma separação radical entre a religião e a política
deixando os homens nas mãos de dois reinos e dois chefes e, con-
sequentemente, sob duas leis; uma situação altamente prejudicial
ao Estado e a toda a comunidade política. É preciso, portanto,
unir necessariamente religião e política, mas sob o prisma do
Estado e sob a responsabilidade do soberano, esse tipo de religião
que se submete ao prisma do Estado, não corresponde a nenhu-
ma das crenças conhecidas e aplicadas às religiões tradicionais,
em essência ele não é, de fato, uma religião, mas um plano para
o bom funcionamento da sociedade. Portanto, apenas como uma
“religião civil” é possivel, de acordo com o pensamento político
de Rousseau, a religião ser algo importante para a política ou

99 ROUSSEAU, Do contrato social, 1983, p. 143.

64 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


para o Estado, ou em outros termos, a importância da religião
para a política só pode concretizar efetivamente se ela se consti-
tuir em uma “religião civil”.
Rousseau sempre acreditou que a inclinação do homem
para acreditar na religião é algo que não se pode impedir, assim
como estava convicto, também, que a religião é fundamental para
a estabilidade social e, por isso mesmo, sempre defendeu que ne-
nhum Estado deve ser indiferente aos assuntos religiosos. Para
ele, nenhum governo pode ser chamado de bom, ou até mesmo
de governo ou de Estado, sem o suporte da religião que, de forma
alguma, deve ser o cristianismo, pois este aos seus olhos é inútil
para tal propósito. De acordo com o pensador genebrino, a reli-
gião cristã prega o amor fraterno, mas todas as suas virtudes estão
voltadas exclusivamente para os valores espirituais; na verdade, a
sua preocupação maior está voltada em conduzir os homens para
um mundo vindouro, a saber, o reino dos céus, em nehum mo-
mento, portanto, o cristianismo coloca como preocupação fun-
damental ensinar os homens a forma correta de proceder para
tornar as suas vidas um sucesso no seio de comunidade terrena
politicamente organizada, ou transformar a prórpia comunida-
de política em um lugar proprício para se viver, por isso, para
Rousseau, ele é algo pior do que inútil.
A religião, para Rousseau, não é algo prejudicial ao
Estado, desde que ela não ultrapasse o próprio Estado, não
ameaçe a “santidade do contrato” e permaneça sempre como uma
“religião puramente civil” na qual todos os artigos são fixados
exclusivamente pelo soberano. Ela deve permanecer, portanto,
sempre como uma religião cujo objetivo principal é encorajar as
virtudes civis de cada cidadão membro da comunidade políti-
ca como, por exmplo, a coragem e o patriotismo, virtudes que
não apenas fortelecem os cidadãos, mas também beneficiam e
fortalecem o próprio Estado. Para dizer de outro modo, para
Rousseau, a religião útil ao Estado e que possa conviver em união

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 65


com ele, só pode ser, portanto, uma religião com um mínimo de
elementos religiosos, mas que ao mesmo tempo servisse para en-
corajar nos cidadãos as virtudes políticas e marciais. Como disse
Kawauche100, quando se pensa em “termos mais propriamente
políticos” a religião civil como apresentada por Rousseau, capaz
de conviver harmoniosamente com a política ou Estado, “encon-
tra seu fundamento na necessidade de uma (in)tolerância mode-
rada”. Ainda de acordo com Kawauche101, pode-se afirmar “que a
religião civil se apresenta” aos olhos de Rousseau, não como uma
proposta radical, mas sim “como um meio-termo, ou uma via
média, entre as exigências conflitantes e contraditórias de uma
relação difícil, porém necessária, entre poder civil e poder ecle-
siástico no interior do corpo político”. Entre os “prós e contras
implicados nas relações entre Igreja e Estado”, pode-se dizer que,
para Rousseau, a religião civil representa “o ponto de equilíbrio”.

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100 KAWAUCHE, A santidade do contrato e das leis, 2011, p. 39.


101 KAWAUCHE, A santidade do contrato e das leis, 2011, p. 40.

66 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


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Epistemologias da religião e relações de religiosidade 67


Totalidade ontológica na
fenomenologia hegeliana

Pedro Gomes Neto

Introdução

A obra Phänomenologie des Geistes de 1807, de G. W. F.


Hegel (1170-1831) é estruturalmente redigida por figurações, fi-
guras e momentos. As figurações se subdividem em Consciência,
Consciência-de-si, Razão, Espírito, Religião e Saber Absoluto.
As figuras da seção Consciência são: a certeza sensível, a percep-
ção e força e entendimento; fenômeno e mundo suprassensível.
Na figuração Consciência-de-si há a figura independência e de-
pendência da consciência de si: dominação e servidão e liberdade
da consciência de si: Estoicismo, Ceticismo e Consciência infe-
liz. A seção Razão se compõe pelas figuras da razão observadora,
a efetividade da consciência-de-si racional através de si mesma [a
razão ativa] e a individualidade que é para si real em si e para si
mesma. A figuração Espírito, assim como ocorre na seção Razão,
se subdivide em treze figuras: o espírito verdadeiro – a eticidade,
o espírito alienado de si mesmo – a cultura e o espírito certo de
si mesmo – a moralidade. A seção Razão também se subdivide
em três figuras: a religião natural, a religião da arte e a religião
manifesta. A última figuração é a do Saber Absoluto. Dentro
dessas figuras existem momentos que, articulados, permitem a
experiência da consciência em um processo pelo qual o saber se
encaminha ao ser ou a descoberta consciente do absoluto na par-
ticularidade do saber sensível.
Trata-se de uma obra que se constitui mediante um di-
álogo entre uma consciência natural e outra filosófica. A primei-
Epistemologias da religião e relações de religiosidade 69
ra faz as suas primeiras experiências, enquanto a segunda ana-
lisas as suas experiências pelo exercício da primeira. Enquanto
a seção Consciência trata da exterioridade do saber, a figuração
Consciência-de-si o investiga na interioridade. A seção Razão
une a exterioridade da Consciência com a interioridade da
Consciência-de-si, de forma objetiva. A figuração Espírito pro-
move a mesma união realizada pela Razão, mas de forma efetiva.
A Religião surge como a síntese das figurações anteriores ou une
a exterioridade objetiva com a interioridade efetiva ou, a obje-
tividade mundana com a efetividade do Si. O Saber Absoluto
encerra todo esse processo de forma ontológica. O texto a seguir
enfoca as seções Religião e Saber Absoluto, defendendo que na
figuração Religião, Hegel alcança a sua metafísica, mas que ne-
cessita do Saber Absoluto para que a totalidade se torne ontoló-
gica. Hegel funda uma nova metafísica dialética, cujo fundamen-
to se põe de forma ontológica.
O problema que se põe em questão neste escrito é a
possibilidade de edificação de uma totalidade ontológica, uma
vez esquecida ou reduzida à parcialidade, travestida como finali-
dade, ou como totalidade. O projeto hegeliano requer uma fun-
damentação ontológica, esquecida no caudal cultural ocidental, o
que, com certeza, converteu em espelunca de laboratório a opor-
tunidade de uma vida veraz. Hegel (1986c) havia se pronuncia-
do, em sua tese de doutoramento apresentada em 1801, sobre o
perigo edificado pela metafísica do eu, convertendo a filosofia em
lógica. Esse perigo tomou corpo no mundo pós século XIX, con-
vertendo não somente a natureza, mas os próprios seres humanos
em patamares imagético e virtuais. Somente por esse problema é
necessário revisar a filosofia hegeliana, pelo menos como inspi-
ração à retomada reflexiva acerca da ontologia.

70 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Totalidade crítica: religião e metafísica

Há enorme riqueza teórica contida na seção Religião


(Die Religion) da obra Phänomenologie des Geistes de 1807, de
G. W. F. Hegel (1770-1831). Há nela desde a antecipação do
saber absoluto até a permissão de se discutir a arte, a ideia de
representação e o Si propriamente dito. O caudal que deságua
nessa figuração, resultante do percurso percorrido pela consci-
ência, desde a imediatidade do objeto da ‘Certeza Sensível’ até
a efetividade do espírito, que culminou na ‘Religião’, apresenta a
metafísica dialética edificada por Hegel. O momento da criação,
a arte, é de suma importância nos desdobramentos necessários
dessa passagem. A religião, especificamente, é, para Hegel, dife-
rente da moral. A religião de um povo traduz certa visão original
do mundo, mas considerando a contingência da história. A figu-
ração ‘Religião’ retoma a positividade do mundo, ultrapassando a
objetividade da razão e a efetividade do espírito.
Desde a primeira figuração da Phänomenologie des
Geistes, a ‘Consciência’, a religião já vinha sendo apresentada. A
objetividade do objeto, a necessidade do mundo e a permanência
do Eu já anunciavam que a religião se manifestava, mesmo que
ainda de forma restrita à consciência e de maneira absolutamente
geral. Restrita ao ponto de vista que a consciência tinha dessa
essência absoluta. O mundo suprassensível, expresso na figura
‘Força e entendimento’; já se referia a esse interior que é mundo,
ser-aí ao mesmo tempo em que é espírito, aquém e além manti-
dos numa síntese aparentemente objetiva, mas efetivamente pro-
cessual. Trata-se de um interior carente de si mesmo, universal
sem a presença da efetividade do conceito, sem a presença do
espírito sabedor de si mesmo.
Na ‘Consciência-de-si’, a religião também já se encon-
trava presente. A figura da ‘consciência infeliz’ a expressa. Nela,

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 71


a consciência-de-si reuniu a razão e a efetividade, marcadas por
suas características ainda muito elementares; ela trouxe para si a
dor resultante do pensamento estóico livre de toda dependência
singular do ser-aí – restringindo-se à essencialidade simples do
pensamento – e do pensar cético, a realização oca, a liberdade
efetiva, mas vazia. Lá, a religião se encontra presente. O objetivo
e o efetivo é o que se buscava. O estoicismo, que relega a vida ao
pensar, só o fazer por viver. O ceticismo que instaura a consci-
ência negativa frente ao ser-Outro e o põe na inessencialidade e
inautonomia, coloca-se no vazio da determinação, no ato mesmo
em que se determina. Ambos reunidos na ‘consciência infeliz’ a
determinam enquanto resultado dessa cisão interna, presente em
sua constituição, ou a contradição de sua essência. Daí a sua dor
de anunciar a impossibilidade de eliminação de uma dessas cons-
ciências; sua tristeza em não poder sair da objetividade do ser-aí
mundano nem de se fechar a este, resguardando-se no pensa-
mento. A figura ‘consciência infeliz’ já carregava em si a religião;
expressava tanto o acaso quanto a necessidade, o externo quan-
to o interno ou, em termos hegelianos, a objetividade do ser-aí
mundano e a efetividade do espírito. Exatamente o ponto inicial
no qual se encontra a seção ‘Religião’.
A ‘razão’, oriunda dessa situação de dor e sofrimen-
to, tenta se garantir restringindo-se na objetividade mundana,
no imediato do mundo, entendidos pela congregação entre a
essência objetiva geral da consciência e a presença do Si ainda
não espiritualizado da consciência-de-si. Em outras palavras, a
‘Razão’ se restringe a um imediato, distinto daquela da figuração
‘Consciência’, bem como de uma consciência-de-si enriquecida
em relação à segunda seção da Phänomenologie des Geistes. O ime-
diato do ser-aí ao qual se refere a ‘Razão’ é o mundo objetivo.
Nele não há religião.
Ela retorna no mundo ético. Mas só o faz porquê de lá
nunca saiu. Fora abafada pela ânsia de determinação, de objeti-

72 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


vação, de eliminação da dor iniciada com a ‘consciência infeliz’.
Herança de uma consciência desesperada que não admitia se re-
duzir à dúvida; consciência que questionava a possibilidade de
seu reconhecimento pelo viés gnosiológico; consciência que não
pretendia se reduzir à objetividade mundana sem a presença do
Si. Com o mundo ético, universalidade e singularidade se recolo-
cam imbricados. A presença inseparável do externo e do interno
no Princípio Lógico é novamente posta. Em termos metafísicos,
a tese ‘ser é pensar’ ressurge dos escombros da razão suprassumi-
da em espírito. Os mundos: ctônico e eumênico, a noite e a luz, a
universalidade e o Si compõem, agora, na essência absoluta: Eu,
Ser, Si como ser-em-si-e-para-si.
No mundo ético, presencia-se, de um lado, a religião do
mundo ctônico, a crença na noite do destino, negatividade pura,
sob a forma universal e, de outro lado, a negatividade da figura da
singularidade, do simples que partiu, a Eumênia. De um lado, ur-
gem os espíritos do mundo terráqueo (ctônico) e, de outro, ainda,
as divindades olímpicas, telúricas, opostas ao mundo subterrâ-
neo, as Erínias, deusas encarregadas de castigar os crimes. Do
lado ctônico, apresenta-se a universalidade do mundo. Do lado
eumênico, a forma singular. O primeiro se rende ao mundo; o se-
gundo, aos deuses olímpicos, ao céu. O primeiro é o Si como algo
presente, forma singular, mas como sombra que se separou de si,
como a universalidade que é o destino. É um Si suprassumido
e, por isso, universal. O segundo se apresenta como Si universal.
Na “religião do iluminismo”,102 a fé veiculava no pensa-
mento sem conteúdo, enquanto a razão se colocava como pura
intelecção contra a fé. Ambas anunciam, em verdade, a necessi-
dade de inseparabilidade no Princípio entre externo e interno,
102 Cf. HEGEL, G.W.F. Phänomenologie des Geistes. Hamburg: Felix Meiner, 1952,
p. 474. A seguir, essa obra será indicada pela sigla Ph.G. Ver a tradução brasileira de
Paulo Meneses: HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes: Bra-
gança Paulista: USP, 2002, p. 459. Doravante essa obra será citada pela sigla FE, segui-
da pelo número da página.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 73


no tocante ao saber, ou entre Ser, Si e si, no aspecto metafísico.
Contrapunham-se, mas validando seu contrário; pensavam-se
distintas e opostas, mas encontravam-se opositivas. Não se trata-
va de fé e razão. A fé se resguardava no Além; a razão, no aquém.
A religião do iluminismo reinstaura o Si, sem sabê-lo, bem como
revive a potência e o Além vazio e distante, desembocando no
Eu como parâmetro universal do saber. No Iluminismo histórico,
se expressa a religião da razão.
Com a moralidade, o espírito se encontra certo de si
mesmo, ponto máximo do espírito naquele momento. Neste,
vontade e saber absorvem toda a objetividade do mundo e dese-
jam desesperadamente manter-se no caudal gnosiológico – tra-
çado equivocadamente como Princípio Lógico pelo qual o reco-
nhecimento da consciência se efetivaria. O saber de sua liberdade
se transforma em substância. Torna-se fim nele mesmo e conte-
údo exclusivo do Eu. A moralidade se transforma em essência
absoluta, mas enquanto objetividade mundana. O Si se encerra
em si mesmo; coloca-se enquanto diferente e absoluto. No en-
tanto, percebe-se sucumbido na contradição, pelo destino de ser,
ao mesmo tempo, objetivo e efetivo.
Na “Religião”, a consciência-de-si se põe enquanto ob-
jetiva e efetiva. Ela é resultado suprassumido das diversas figuras
pelas quais a consciência tentou se resguardar no mundo, mas que
obteve, como resultado, a falência de não se reconhecer pelo fluxo
do saber. Na ‘Religião’, o espírito sabe de si como consciência
presente na objetividade do mundo, mantendo-se na efetividade
do mesmo. Atinge-se como ser que se põe enquanto ser-sendo.
Na figura da ‘boa-consciência’, o espírito se submete ao mun-
do objetivo, mas mantendo-se como consciência-de-si no fluxo
da história. Ele consegue elevar-se a espírito universal enquanto
toda essência e toda efetividade, mas pelo aspecto do pensamen-
to. Deu-se conta de que saber e ser se mantêm interligados, mas
somente pelo pensamento. A ‘Religião’ retoma a polaridade en-

74 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


frentada na ‘Dialética da dominação e servidão’, suprassumida
nas figuras do estoicismo, do ceticismo e da consciência infeliz e
tenta transformá-la em efetividade. Contudo, somente enquan-
to universalidade pensada. Ainda não é saber conceituante; ain-
da não alcançou o Eu como consciência absoluta. Enfim, com a
‘Religião’, essa dicotomia desaparece e o espírito é o mesmo em
ambos os polos.
A ‘Religião’ surge como a perfeição do espírito cons-
ciente da essência absoluta. Ela tanto pressupõe os momentos
descritos pelas figuras precedentes quanto se põe como totali-
dade, ainda simples, desses momentos. Nela se encontra a tota-
lidade de todas as figurações e figuras anteriores atingidas pela
consciência que, como sadio senso comum, percorre e se man-
tém crítica em todas as suas passagens. Ela se inaugura com o
projeto de demonstrar que a efetividade seja compreendida pela
religião, bem como o espírito se torne efetivo e objetivo da cons-
ciência-de-si. Hegel reúne nessa secção o mundo ctônico com o
eumênico, a totalidade do saber com a crítica, e tenta estabelecer,
em novos parâmetros, sua metafísica, distinta daquela instituída
por Kant na modernidade. Na ‘Religião’, o ser-aí é livre e in-
dependente, todavia, nele falta a perfeição, ou não é atingido o
que deveria representar, que é o espírito consciente de si mesmo
enquanto saber conceituante.
Hegel tenta conjugar universalidade e singularidade
num movimento reflexivo, de forma que o primeiro momento
que se apresenta nessa empresa é a necessidade de demonstrar
como o espírito pode exprimir-se como espírito consciente de si
mesmo. E isso só se torna possível se o objeto de sua consciência
for efetivamente livre. O movimento da consciência até a seção
‘Religião’ percorreu as figuras-de-espírito presentes nas figura-
ções ‘Consciência’, ‘Consciência-de-si’, ‘Razão’ e ‘Espírito’; nestas,
o espírito ainda se apresentava de forma imediata. A ‘Religião’ su-
prassume essas figuras. Trata-se do seu segundo momento. Ela é

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 75


a Totalidade delas tomadas em conjunto e que expressa a reunião
suprassumida da objetividade do mundo iniciada na ‘Consciência’
e objetivada na ‘Razão’, com a efetividade do mundo, inicialmente
apresentada na ‘Consciência-de-si’ e efetivada no ‘Espírito’. Por
isso, Hegel se refere a ela como totalidade ou Si absoluto. Mas
acrescenta que se trata de totalidade simples. Isto significa que
a ‘Religião’ requer o absoluto, momento ulterior, no qual razão e
efetividade se põem absolutamente congregadas uma à outra.
Por fim, o terceiro momento é sua determinação singu-
larizada. As figurações são as determinações ou meio termo pelos
quais o absoluto desce de si para, e por meio delas, permitir ao
espírito, em sua forma singularizada ou efetivada, de se reconhe-
cer. De forma que no Absoluto, figurações e figuras se articulam.
A Phänomenologie des Geistes, que se compõe estruturalmente de
figurações, figuras e momentos, é obra metafísica na qual o ab-
soluto, por meio das figurações, apresenta-se à consciência que,
através das figuras-de-espírito, pode alcançar o mesmo absoluto
posto no início de forma não enriquecida para a consciência e que
ressurge no final, enquanto desenvolvido, enriquecido para ela.
A ‘Religião’ expressa, portanto, a liberdade do espírito
que percorre a si mesmo como totalidade e que permite à consci-
ência, em sua singularidade, se reconhecer nesse absoluto. A seção
‘Religião’, ao mesmo tempo em que elabora a metafísica dialética
erigida por Hegel, anuncia a necessidade de se rever o percurso
percorrido pela filosofia ocidental que teria abandonado sua ori-
gem metafísica e que, desde Sócrates, deslocou o Princípio Lógico
do ser ao saber, distinguindo-os no começo. Com a ‘Religião’, a
tese ‘ser é pensar’ é novamente recolocada de forma total, supras-
sumida, de maneira que o absoluto se deixa desvelar pela consci-
ência. Como o espírito alcançou o estágio da efetividade, o ‘ser é
pensar’ ocorre na medida em que ‘pensar é ser’.
Com a ‘Religião’, a substância se faz patente, apresen-
tando-se como ela realmente é. Não há mais o princípio singular

76 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


como totalidade isolada dentro de si. “Esse espírito certo de si, e
seus momentos, é sua verdadeira efetividade e o ser em si e para
si que a cada Singular corresponde”.103 O ser-em-si e o ser-para-
-si se constituem em momentos e não como partes do vir-a-ser.
Sujeito é predicado na medida em que predicado é sujeito. “No
que se refere à efetividade do espírito, só importa saber qual é, em
sua consciência, a determinidade na qual ele exprime o seu Si; ou
em que figura o espírito sabe sua essência”.104
O significado desse resultado se encontra no espírito
que, agora, é absoluto. As figuras precedentes da consciência são
ultrapassadas em forma de espírito. Em verdade ele já se apre-
sentava desde o princípio do processo das experiências da cons-
ciência. A novidade que agora se apresenta é que a consciência-
-de-si se preenche consigo mesma; seu objeto deixa de ser figura
e passa a ser espírito. Essa passagem da consciência ao espírito
já tinha sido anunciada nos primeiros embates da consciência,105
mas sua efetivação enquanto espírito absoluto só se completa
na ‘Religião’. O espírito é a substância: unidade entre consciên-
cia e consciência-de-si, o sujeito: “unidade imediata do espírito
consigo mesmo”.106 Não há mais dualidade, mas unidade. É no
interior dessa unidade que ocorre a dissociação entre sujeito e
objeto, porém, enquanto criação. A consciência alcança o espírito
criador em sua própria manifestação. Trata-se da arte, momento
no qual o sujeito se coloca no ato mesmo de sua extrusão.
Três efetividades marcam o espírito nesse momento:
enquanto figura para a própria consciência, a religião natural;
como religião da arte, na qual objetividade (‘Razão’) e efetividade
(‘Espírito) se encontram imbricadas e a religião revelada – como

103 Cf. Ph.G: 478. FE: 463.


104 Cf. Ph.G: 479. FE: 463.
105 Sobre este assunto ver IBER, Christian. “Mudança de paradigma da consciência
para o espírito de Hegel”, in: Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito”
de Hegel. Fortaleza: UFC, 2007.
106 Id. Ibid.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 77


unidade e síntese das figuras precedentes. Esse caminho do espí-
rito ao conceito ainda está marcado por duas características, fi-
gura e representação. Essas categorias distam-se da forma como
eram definidas anteriormente. Ambas se encontram no conceito.
Não se trata de uma figura que se apresenta à consciência, como
antes ocorria, mas da própria consciência-de-si que se desdobra
por si, devido a ter suprassumido em si a objetividade e a efetivi-
dade, o mundo e o Si. A representação também não veicula mais
à exclusividade gnosiológica. Representa-se no momento mes-
mo da representação. É necessário que se conceba que o que está
sendo representado não é mais a consciência na oposição com o
espírito absoluto, mas o próprio conceito. Antes somente capta-
do, tal conceito, afirma Hegel,107 atinge, agora, o espírito. Ambos,
figura e representação, situam-se no conceito que é espírito.
A ‘religião natural’ é a primeira figura que surge dessa
alteração conceitual. Nela ocorre a verdade da fé, momento pelo
qual o espírito se reconcilia com a fé, o espírito tomando consci-
ência de si mesmo. Trata-se do espírito que quer saber-se como
consciência de si mesmo. Ele está para si; a oposição entre objeti-
vo e efetivo, somente acentuada na figura da ‘religião da arte’, recai
no interior da consciência-de-si. Entretanto, após os desdobra-
mentos suprassumidos das figuras precedentes, pretende saber-
-se consciência-de-si mesmo. A consciência tenta se manter no
caudal gnosiológico no qual se edificou grande parte da filosofia
ocidental. O espírito na ‘religião natural’ quer sair da carência-de-
-consciência e tornar-se expressão consciente-de-si-mesmo.
O que se apresenta na ‘religião natural’ é o espírito em
sua forma imediata, descrita por três figuras: a essência lumino-
sa (das Lichtwesen), centrada na consciência-de-si ciente de ser
toda a verdade, na efetividade e no Si; a ‘religião da percepção’, o

107 Cf. Ph. G: 480: “Alsdann hat der Geist den Begriff seiner selbst erfaßt, wie wir
nur erst ihn erfaßt haben, und seine Gestalt oder das Element seines Daseins, indem
sie der Begriff ist, ist er selbst”. FE: 465.

78 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


panteísmo, marcado pela pluralidade espiritual e a ‘religião do ar-
tesão’ ou o espírito que se faz coisa na combinação entre natureza
e consciência-de-si. A essência luminosa é apenas conceito, rela-
ção simples do espírito consigo mesmo, afirma Hegel.108 É puro
conceito que a tudo reduz, como luminosidade aposta às trevas,
mantendo-se, no entanto, sem forma; é o ser imediato coincidido
com o Si; pulverização das diferenças. O resultado não é outro do
que o espírito ter-se tornado sabedor de si mesmo na forma do
Si. Há determinação de um senhor, mas sem a positividade que
ocorreu na ‘Dialética da dominação e servidão’. Não se trata de
um senhor determinado, mas de mil caras e formas díspares. Não
se trata exatamente de um sujeito, mas de um Si, como pura luz,
capaz de dar forma às coisas.
A passagem do espírito ao Si ou da necessidade de
busca de um Princípio Lógico pelo qual as diversas formas da
natureza possam a ele retornar, como expressão de um sistema
bem organizado, volta a se apresentar como aquela plasticidade
descrita pela ‘Dialética da dominação e servidão’. Agora supras-
sumida na figura de um senhor sem determinação, Ser-puro, pelo
qual coisas e seres se originam, pulverizando-se no mundo. De
forma que sua determinação recai em um ser-para-si ou num
panteísmo, multiplicidade de coisas criadas que se espalham
numa variedade infinda de seres vivos, em que se vê a religião
das plantas e dos animais. Consequência dessa situação é a efe-
tivação de espíritos diversos, expressos na multiplicidade de es-
píritos-de-povos em luta constante, em ódio recíproco. Posição
negativa que somente revela a inconsistência objetiva e efetiva
desse Si carente-de-essência, exatamente por ter assumido como
princípio de sua formação não a si mesmo em processo, não o
Ser, mas o saber como critério de verdade. Contra isso, Hegel
edifica sua metafísica. O artesão, próxima figura, apresenta-nos o
espírito transformando-se em coisa ao recair no âmbito do saber.

108 Cf. Ph.G: 483. FE: 468.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 79


Com a figura do artesão presencia-se, novamente, a ten-
tativa da consciência em si conservar nesse caudal gnosiológico.
Ela recorre a um nível mais elevado de saber, reconhecendo-se
em sua obra. Não que se entenda pela obra, mas que a obra é ela;
a obra de arte recebe o espírito do artesão; exatamente aí ela é
morta. Ser separado, mas destituído de espírito; a realização do
artesão foi trabalhar e objetivar uma obra. Trata-se de transfe-
rência vazia e morta de um eu-aí, artesão, a um objeto-aí, a obra.
Logicamente que o artesão encontra-se na ‘Religião’. Nesta, o
espírito está presente, mas ainda não de forma absoluta. É espí-
rito simples que não se encontra vivo e efetivo, mas se converte
em coisa, produção externa, na qual o espírito do artesão está
presente, infundindo alma em um corpo aqui estranho.
Evidentemente que a figura do ‘artesão’ dá um passo
adiante; serve-se do ser-aí, como a vida vegetal, mas destituindo-a
de sacralidade. Mantém-se na congruência entre as duas figuras
anteriores, o céu e a terra, o que antes fora denominado ctônico
e eumênico. Apresenta a necessidade de objetividade do saber e
se coloca como espírito simples. Cria coisas e nela imprime sua
alma, mas ao se colocar na coisa transforma-se a si mesmo em
coisa. Cria a alma da coisa, mas como um Si exterior e não como
interior; é mudo; fora transferido. O artesão unifica o natural com
a consciência-de-si, expresso nas duas figuras anteriores, resul-
tando na linguagem de um interior, o artesão, que se expressa em
forma de produção – sua obra. O artesão alcança o espírito como
espírito. O espírito se eleva à figura da ‘religião da arte’.
Com essa nova situação, o artesão se eleva da forma ao
espírito. O que ocorre inicialmente na religião da arte é a passa-
gem do artesão ao artista. É o momento no qual o artesão se tor-
nou trabalhador espiritual, afirma Hegel.109 Há a transmutação
da individualidade natural e dispersa à substancialidade universal

109 Ph.G: 490: “ist er geistiger Arbeiter geworden”. FE: 473.

80 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


do espírito objetivado, obra consciente de si, um espírito univer-
sal individualizado e concreto. Antes o homem era esmagado
pela religião da natureza, nela não se encontrando. Na religião da
arte, a consciência-de-si do espírito se apreende como essência.
Ela é meio termo entre a religião da natureza e a religião cristã.
São três os momentos que se apresentam: a obra e a arte abstrata,
a obra de arte viva e a obra de arte espiritual.
A obra de arte abstrata suprassume a imediatidade e a
objetividade de sua realização, elevando-se ao patamar da cons-
ciência-de-si. Por essa situação, ela é considerada correlata ao
espírito ético, unidade do povo com a substância. Move-se nes-
sa relação da apresentação objetiva do espírito, sua efetividade
e sua encarnação. Presencia-se o avançar do espírito simples ao
espírito absoluto, a individualidade ética à substância enquanto
encarnação de um povo, universal. O soçobrar da individualidade
revelou o que lá se encontrava, mas estava velado, a substância.
Antes, na religião do artesão, ocorria o conflito entre o pensa-
mento e a linguagem, a presença da coisa muda, mera transferên-
cia de linguagem do artesão à sua obra. Desse conflito, erige-se
a retomada da individualidade, mas em nível da universalidade
da substância. Trata-se do surgimento da religião da arte. O re-
sultado da obra de arte viva expressa essa situação da linguagem
em se mostrar por um conteúdo que seja claro e universal. Daí
Hegel enfatizar a tragédia e a comédia, representantes de obras
de arte superiores. Suas efetividades somente podem ser realiza-
das pela linguagem. Nesta há condições da consciência entrecru-
zar exterioridade com interioridade; nela há como intercambiar
a exterioridade-interior com a interioridade-exterior, a própria
efetividade da consciência-de-si.
Com a obra de arte espiritual, os espíritos se reúnem na
linguagem expressa no silogismo dessa epopeia, tendo em Zeus
a universalidade, nos heróis, o meio termo e, no aedo, as pro-
posições enquanto singularidades. Há o acaso e a necessidade.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 81


Esta representa a unidade do conceito. A tragédia é expressão de
uma linguagem superior, na qual ocorre a reunião entre essência
e mundo, edificada no conceito. Ela expressa uma consciência-
-de-si sabedora de seus desejos e direitos, de suas necessidades,
dando a parecer que sabem do seu interior, realçando-o. Expurga
de si o contingencial e se põe como necessário, mas ainda sempre
inconclusa. As máscaras anunciam a necessidade de apresenta-
ção da substância em sua absolutez, ao mesmo tempo em que
urge serem retiradas, não por algum agente ou situação externas,
nem por uma interioridade vazia. O que nos apresenta é a subs-
tância, expressa por Zeus, na tragédia grega arcaica, polarizada
entre Apolo, representante do saber, e as Erínias, o que se oculta.
A tragédia se desenrola no retorno a Zeus, a substância, exata-
mente o que ocorre na seção ‘Religião’: o espírito simples que se
passa ao espírito universal; deste à substância e desta ao sujeito.
A comédia, por sua vez, é a consumação desse processo
trágico. Os heróis retiram suas máscaras; atingem a substância
e se fazem sujeitos nela. Retorna o problema do saber, inicia-
do ainda na ‘Introdução’ da Phänomenologie des Geistes. O he-
rói tira sua máscara e se põe como consciência consciente-de-si;
apresenta-se como aquele que sabe, como consciência universal.
Ainda não se dá conta de que o saber não o expressa em sua
universalidade, mas somente em sua totalidade. Há algo mais: a
consciência-de-si deve se encaminhar para a essência absoluta,
que não se encontra na forma de conceito, pensamento, saber,
mas de forma manifesta, revelada.
Duas características da figura ‘Religião manifesta’ são
importantes a esta tese: consciência religiosa e representação.
Consciência religiosa por se tratar de momento no qual a cons-
ciência-de-si se realiza enquanto essência absoluta, não pelo as-
pecto cognoscente, mas metafísico, anunciado e ainda não im-
plementado. Por outro lado, há a representação, reunião entre
o imediato e o universal, mas o imediato sensível com a uni-

82 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


versalidade do pensamento. Trata-se do sujeito como espírito se
movendo nele mesmo, reflexo dentro de si, mas ainda lhe falta
o conceito. O espírito manifesta essa sua revelação por três mo-
mentos: a essência simples igual a si mesma; o seu-outro como
negativo de si e o retorno à universalidade da essência.
A ‘Religião’ promove a reconciliação entre consciência
(externo) e consciência-de-si (interno) efetuada em seus dois
lados: no espírito religioso e na própria consciência como tal.
Ela conclui as séries de figurações do espírito. Mas ainda não se
encontra efetivada, já que o espírito chega a se saber nela como
em si e para si. Mas essa reconciliação, que afirma Hegel já ter
acontecido em si, pois dela nunca se saiu, que ocorreu também
na ‘Religião’, assume somente o lado do em si contraposto ao
movimento da consciência-de-si. De forma que o ser-em-si’ não
se tornou ser-para-si-absoluto, o que é desenvolvido na seção
‘Saber Absoluto’. Precisa-se do lado da reflexão sobre si mesma,
contendo o ser-em-si e seu conteúdo na inseparabilidade entre
externo e interno no princípio – enquanto em si, mas da neces-
sidade de sua exteriorização como atualização do conteúdo pelo
tempo ou pelo puro Si exterior intuído, mas não compreendido
pelo Si, o conceito apenas intuído e a natureza, o espírito extru-
sado, a eterna extrusão de sua substância, o vir-a-ser do espírito,
seu vivo e imediato vir-a-ser.
A consciência atinge, dessa forma, o saber absoluto ou a
última figura do espírito que, ao mesmo tempo, dá ao seu conte-
údo perfeito e verdadeiro a forma do Si e, com isso, tanto realiza
seu conceito quanto permanece em seu conceito nessa realização.
A ‘religião revelada’ manifesta o espírito em seu retorno à uni-
versalidade da essência. Esta não se encontra apartada, separada
do mundo. Não há mais a distinção entre razão e sensibilidade,
entre númeno e fenômeno, res cogitans e res extensa, sujeito e ob-
jeto. Apresenta-se a essência eterna situada na inseparabilidade,
no começo, entre externo e interno. A seção ‘Religião’ reúne em

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 83


forma de totalidade as figuras pelas quais a consciência passou e
promove a metafísica hegeliana: reunião entre ser-em-si e ser-
-para-si-absoluto, ainda no aspecto da representação, mas apre-
sentando o absoluto imerso na congruência entre a consciência-
-de-si reflexiva e o mundo efetivo.

Metafísica ontológica

O ‘Saber Absoluto’ aparece como resultado desse pro-


cesso descrito pela ‘Religião’ e que tanto dá ao seu conceito a
forma do Si quanto se realiza na realização desse conceito, per-
manecendo nele. O ‘Saber absoluto’ é, portanto, “... o espírito que
se sabe em figuras-de-espírito, ou seja: um saber conceituante”.110
Um posto que se põe, o interno na inseparabilidade, no princípio,
com o externo. A ‘Religião’, portanto, é figuração que apresenta
uma segunda revolução metafísica opositiva àquela instituída por
Kant na modernidade. Contrapõe-se Hegel à distinção entre fe-
nômeno e númeno, diferença na qual o absoluto se punha como
algo apartado da realidade.
Na ‘Religião’, o espírito que já se sabe a si mesmo é ime-
diatamente sua própria consciência-de-si. Trata-se do espírito
consciente de si como espírito, não mais simples, mas absoluto.
Promove a perfeita reunião, como iguais, entre o espírito no seu
mundo e o espírito consciente de si como espírito. Reúne o espí-
rito singular com o universal. E é assim que ele se apresenta como
ser-aí livre independente. Dessa forma, a ‘Religião’ descreve o
ser-aí na totalidade do espírito, expondo a si mesmo. Retorna
Hegel ao tema descrito ainda na ‘Introdução’ à Phänomenologie,

110 Ph.G: 556: “ist das absolute Wissen; es ist der sich in Geistsgestalt wissende
Geist oder das begreifende Wissen”. FE: 537.

84 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


na qual o Absoluto não figura como algo afastado da realidade,
mas se põe nela, apresentando-se e se afastando, mas não se es-
condendo. O ser-aí que se apresenta, descreve ao mesmo tempo
o espírito que se deixa mostrar. É o sujeito que, ao se pôr, coloca,
ao mesmo tempo, o espírito atualizado. De forma que a ‘Religião’
é a perfeição do espírito e Hegel, nesse momento, promove uma
segunda revolução metafísica: aquela da inseparabilidade entre
absoluto e realidade, expressa formalmente na também insepara-
bilidade entre externo e interno.
Os momentos que se seguiram da efetividade do espí-
rito como seu próprio objeto ou o conceito da religião mesma
(a figura da ‘Religião Natural’), a efetividade do espírito na fi-
gura do Si (a figura da ‘Religião da Arte’) e a junção de ambas
(a figura da ‘Religião Revelada’), na qual reúne a efetividade da
consciência com o Si da consciência-de-si ou a expressa na figura
do ser-em-si e do ser-para-si, dão os fundamentos da metafísica
dialética instituída por Hegel. De forma que o Absoluto se mos-
tra no ato mesmo de apresentação da consciência na busca inces-
sante, processual e suprassumida da reunião entre saber e concei-
to, inaugurando uma metafísica dialética. Trata-se do Absoluto
que se põe enquanto figura-de-pensamento da consciência e da
consciência-de-si em busca de sua atualização.
O desenvolvimento acima descrito relatou as experiên-
cias pelas quais a consciência passou em seu processo de forma-
ção (bilden/formieren). Viu-se, da ‘Certeza Sensível’ à ‘Religião’,
um embate entre ser e pensar. Esse processo só se tornou possível
porque, no Princípio Lógico, que norteia a Phänomenologie des
Geistes e que permitiu esses desdobramentos, não era algo de-
terminado. Não se tratou da consciência como autoconsciência,
como defenderam Karl Marx, Heidegger, Gadamer e Labarrière.
Muito menos era condicionado pela exterioridade do discurso,
movido por entidades cristalizadas, como queriam Alexandre
Kojève e Jean Hyppolite. Por ser exatamente indeterminado no

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 85


começo é que o Princípio Lógico permitiu à consciência acom-
panhar-se ao se dispor, como sadio senso comum, ao processo do
ser que é saber ou ao saber conceituante de certa consciência que,
ao se pôr, não se afasta, mas se encontra imbricada no Absoluto.
Enfim, exatamente porque o Princípio Lógico é indeterminado é
que foi possível à consciência ultrapassar-se a si mesma.
Esse Princípio Lógico, no entanto, articula-se na inse-
parabilidade entre externo e interno, dado ser a Phänomenologie
des Geistes pilar para uma metafísica e uma ontologia futuras ou
a co-edificação conceitual das mesmas. No aspecto ontológico,
porém, o absoluto está posto desde o início do processo. Saber
e pensar estão postos desde o começo da Phänomenologie. Lá na
‘Introdução’, Hegel já os tinha articulado. De um lado, afirma
Hegel que, no âmbito ontológico, “só o absoluto é verdadeiro,
ou só o verdadeiro é absoluto”.111 De outro, que a tarefa da filo-
sofia era fornecer esse conceito.112 Ser e pensar são apresentados
no começo. O título da obra ienense de Hegel é sugestivo nesse
sentido. Phänomenologie se põe como o estudo do aparente em
contraste com o real e daquilo que aparece, o que se põe. Em ou-
tros termos, Hegel nos indica que a forma que se deve referir aos
seres e às coisas deve preservar o sentido daquilo que se mani-
festa e, ao mesmo tempo, que o que se apresenta carrega em si o
absoluto, o ser, de forma tal que ser e pensar não se distinguem. A
particularidade carrega no seu aparecer a totalidade; o simples, a
unicidade. Dessa forma, fez-se necessário um estudo meticuloso,
sem pretender esgotar o assunto, dos momentos, figuras e figura-
ções que compõem a Phänomenologie des Geistes para apresentar
por dentro da própria obra o tema em questão: a totalidade crí-
tica que se articula com a ontologia hegeliana ou o problema da
metafísica na Phänomenologie des Geistes.

111 Ph.G: 65: “Diese Konsequenz ergibt sich daraus, daß das Absolute allein wahr
oder das Wahre allein absolut ist”. FE: 72.
112 Cf. Ph.G: 65-66. FE: 73.

86 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


No início da figura ‘Saber Absoluto’, Hegel retorna a
essa tese inicial da ‘Introdução’ e afirma ser a seção ‘Religião’ a to-
talidade dos momentos pelos quais a consciência passou: “É isso
o movimento da consciência, e nesse movimento ela é a totalida-
de de seus momentos”.113 Essa totalidade expressa em suas fases
pelas figuras pelas quais a consciência foi passando teve como
propósito fazer com que a consciência concebesse o objeto cons-
tituído na imbricação de três partes constituintes: ser imediato,
tornar-se outro de si e essência, universal. Ou seja, no aspecto da
totalidade e da ontologia.
Mas se, desde o começo, o absoluto estava presente,
porque se enveredar por essa busca se lá ele já se encontra? Esse
problema foi exaustivamente debatido pela vulgata hegeliana.
Defende-se, nesse artigo, que o início é o começo não desenvolvi-
do e o fim é o começo desenvolvido. Por isso mesmo é que se re-
fere à totalização. As fases pelas quais a consciência foi passando
promoveram seu inflar, de forma que o ser possa aparecer na con-
gruência com o pensar, mas não como um achado, como no caso
da conversão platônica ou como no da transcendência kantiana,
mas como um resultado do processo mesmo do ser como pensar.
É nesse sentido que Hegel reinaugura a problemática so-
bre o saber. A Phänomenologie des Geistes não é obra de teoria do
conhecimento, mas de filosofia da história. O saber é, nessa obra,
consequência importantíssima e necessária de se ver imbricado no
absoluto. O saber à consciência se mostra por momentos, figuras e
figurações que vão se encorpando ao ponto de a consciência estar
ciente de si na confluência de sua consciência-de-si. O que ocorreu
de forma externa, objetiva e totalizante no aspecto da consciência,
nas seções ‘Consciência’, ‘Razão’ e ‘Religião’, por um lado e, por
outro, de forma interna e efetiva no âmbito da consciência-de-si,
nas figurações ‘Consciência-de-si’ e ‘Espírito’. No entanto, com a

113 Ph.G: 548-49: “Dies ist die Bewegung des Bewußtseins, und dieses ist darin die
Totalität seiner Momente”. FE: 530

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 87


‘Religião’, ocorre o que Hegel denominou por “totalidade simples
ou o Si absoluto dos mesmos”.114 No entanto, afirma Hegel:

[...] o que na religião era conteúdo ou forma do re-


presentar de um outro, isso mesmo é aqui agir do pró-
prio Si: o conceito o obriga a que o conteúdo seja o
agir próprio do Si; pois esse conceito é, como vemos,
o saber do agir do Si dentro de si como saber de toda
a essencialidade e de todo ser-aí: o saber sobre este su-
jeito como [sendo] a substância, e da substância como
[sendo] este saber de seu agir.115

O que está por detrás do saber e o garante é a substância


que se põe enquanto sujeito, à medida que o absoluto nele se en-
contra, mas que por meio dos desdobramentos das experiências
da consciência a totalidade se apresenta e de forma crítica é en-
frentada para que daí o absoluto se apresente de forma efetiva. Ou
seja, a substância se torna sujeito, ser é pensar, enquanto ser-sen-
do. De forma tal que conhecimento é mais consequência do que
princípio ou tema central dessa obra. Não há como separar ser de
pensar. E isso é defendido desde o início da Phänomenologie. Se
Hegel começa a figura ‘Certeza Sensível’ afirmando que o saber
é o objeto da obra em questão, no ‘Saber absoluto’ ele também
afirma que a efetividade é o saber, de uma parte como singular e
de outra como universal. Ou seja, o saber é necessário para que a
consciência venha a ter ciência de si mesma e isso só é possível se
ela se abrir ao absoluto e se expor diante dos momentos, figuras
e figurações até que conceba que ser é pensar em sua absolutez.

114 Ph.G: 476: “Die Religion setzt den ganzen Ablauf derselben voraus und ist die
einfache Totalität oder das absolute Selbst derselben”. FE: 461.
115 Ph.G: 556: “Was also in der Religion Inhalt oder Form des Vorstellens eines Ande-
ren war, dasselbe ist hier eigenes Tun des Selbsts; der Begriff verbindet es, daß der Inhalt
eigenes Tun des Selbsts ist; denn dieser Begriff ist, wie wir sehen, das Wissen des Tuns
des Selbsts in sich als aller Wesenheit und alles Daseins, das Wissen von diesem Subjekte
als der Substanz und von der Substanz als diesem Wissen seines Tuns”. FE: 536.

88 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


É nesse sentido que Hegel critica as teorias monistas
e dualistas. Platão, por exemplo, apresenta-nos, em seus diálo-
gos, perguntas que se remetem aos pressupostos irrefutáveis de
todo e qualquer tipo de conhecimento ou pelos pressupostos
sem os quais o pensamento não se efetivaria. Trata-se sempre
de apresentar pensamentos que diferenciem algo de algo e pos-
sam retê-lo, mesmo que enquanto indagação. Sem essa condi-
ção primeira, não seria possível o conhecimento. Aristóteles, por
exemplo, fazia ciência discriminando seres da mesma espécie e
separando-os diferentemente de outros seres, às vezes de mesmo
gênero, mas espécie diferente, realizando assim o intento de, pela
semelhança, encontrar a diferença. Em outros termos, fazer ci-
ência era (pela semelhança) identificar a diferença entre os seres.
A tese não é outra do que a de determinação. Melhor, todo ato
de conhecimento tem de captar algo determinado ou, de outra
forma, somente o determinado é cognoscível. Pensar, portanto, é
diferenciar e reter nessa indiferenciação. Esse algo determinado
é o próprio ser, tema central da filosofia grega clássica.
Na filosofia moderna, o enfoque se desloca do ser ao
Eu. Os critérios do saber passam pelo crivo do Eu. Não há mais
a pergunta por critérios lógico-ontológicos. A questão é outra.
Altera-se o olhar. Passam a concentrar suas análises no processo
de ação mediante o qual um conhecimento surge. A questão que
se põe é: o que significa conhecer algo? Esse é um dos senti-
dos relevantes da Phänomenologie de Hegel, mas que necessita
de fundamentação metafísica, de forma que se torne possível cri-
ticar tanto a metafísica tradicional e kantiana quanto erigir daí
uma nova metafísica dialética. O problema do saber que abre a
Phänomenologie é parte integrante desse processo, como forma
única de compreensão do mundo, mas consequência do absoluto
que, pelas figuras-do-espírito, abre-se à consciência.
Hegel enfrenta tal problema, mas diante da filosofia
crítica. Kant promoveu a revolução copernicana na filosofia ao

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 89


assumir a problemática cética humeana em relação à metafísica
moderna e o procedimento proposto por Hume para enfrentar
os problemas acerca do conhecimento e propor um novo méto-
do. Em última palavra: trata-se de relacionar pensamento, lin-
guagem e realidade. Melhor, altera-se ontologia para epistemo-
logia, cujo projeto básico é conhecer o que pode ser conhecido,
a aparência. Daí a filosofia não ter, para Kant, questões de fato,
mas somente demonstrar a validade ou legitimar ou não conhe-
cimentos empíricos.
Acordado pelo sono dogmático ao ler Hume, Kant ten-
ta ultrapassá-lo. Este se contrapõe a Hume na medida em que
aquele pretende encontrar elo entre subjetivo e objetivo, procu-
rando demonstrar que possuímos categorias universais e válidas,
afirmando o conhecimento como objetivamente válido. Todas
as informações que nos chegam são contingenciais. Podem ser
para mim de uma forma distinta da que seria para outra pessoa.
Mas ela se torna compreensível para o sujeito que a experimenta,
sendo estruturada e constituída enquanto objeto. Portanto, Kant
transforma algo aleatório em necessário.
Hegel se põe esse mesmo problema, mas tenta resolvê-
-lo de forma distinta. Recorre antes às categorias kantianas como
funcionais ao Eu. Retorna ao Princípio Lógico a partir do qual se
torna possível um pensamento. O primeiro é a contraposição entre
objetividade e subjetividade e, assim, todo conhecimento possível
se dá na não separabilidade no princípio entre sujeito e objeto. Ou
seja, a primeira tarefa da Phänomenologie de Hegel seria desfeno-
menalizar-se ou superar a cisão entre sujeito e objeto como princí-
pio fundamental do pensar. Nesse sentido, Hegel retorna, em sua
forma específica, à dimensão onto-lógica dos filósofos clássicos, o
que significa dizer que as determinações do pensamento são, ao
mesmo tempo, determinações do pensamento e das coisas, retor-
nando ao problema do ser é pensar, mas na medida em que pensar
é ser. Ou seja, no âmbito do sujeito e da história. E é dessa forma

90 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


mesma que Hegel compreende a sua Phänomenologie – como a
exposição do espírito que se manifesta.116
Passo seguinte à ultrapassagem da dicotomia entre ser
e pensar efetuado por Hegel: trata-se de explicitar a dimensão
da explicação de algo. Nesse sentido, Hegel retorna à tese da fi-
losofia arcaica da identidade entre ser e pensar, mas a desloca ao
sujeito da história. Algo pode ser pensado como alguma coisa
determinada exatamente porque o Princípio Lógico é indeter-
minado e aí nos dá a liberdade de determinação dos seres-aí.
As determinações não são exposições lógicas e válidas do pensa-
mento, mas determinações das próprias coisas.
Não se trata de elevação do pensamento puro ao trans-
cendente, mas de representar a coisa como exposição do absoluto
que se põe no processo mesmo do saber, pleno de conteúdo e
de determinação. Daí se tratar de auto apresentação do absoluto
compreendido como totalidade, mas conhecido enquanto figu-
ras-do-espírito que se põem à consciência. Por detrás da consci-
ência se instaura o absoluto que permite a substância se consti-
tuir como Eu e este como consciência em seu elo conceitual com
a história. É nesse sentido que a Phänomenologie des Geistes tenta
conciliar totalidade e crítica, mantendo-se no aspecto relacional
e reflexivo do saber, na junção de certeza e verdade. Ou a base
da Phänomenologie des Geistes é metafísica uma vez que “... a ci-
ência das coisas captadas em pensamentos considerados capazes
de exprimir as essencialidades das coisas”117 empurra a consci-
ência adiante de si. Ou mesmo, que a metafísica é justamente a
exposição das determinações universais de pensamento que toda
consciência necessariamente pressupõe. A Phänomenologie, nesse
corpus filosófico, é, portanto, a forma como a consciência expõe

116 Ver o artigo de OLIVEIRA, Manfredo, de Araújo. “Hegel, síntese entre raciona-
lidade antiga e moderna”. In: Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito”
de Hegel. Fortaleza: UFC, 2007.
117 Id. Ibid: p. 56.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 91


em-si e para-si, ou no momento mesmo de sua representação, o
representar-se a si mesma. Ela é a maneira pela qual a consciên-
cia encontra guarida; é a exposição da experiência da consciência
na apresentação das figuras-do-espírito ou a exposição do espí-
rito que se manifesta.

Conclusão

Se na ‘Religião’ ocorre o desenvolvimento do proces-


so de reunião da ‘Consciência’/’Razão’ com a ‘Consciência-de-
si’/‘Espírito’ de forma que a consciência-de-si como espírito se
põe como consciência da essência absoluta em geral, no ‘Saber
Absoluto’ apresenta-se o saber conceituante. Hegel necessita se fun-
damentar metafisicamente para dar conta dessa sua novidade acer-
ca da ciência e do conhecimento complexo em detrimento do co-
nhecimento generalista dos filósofos que o antecederam. Ainda na
Phänomenologie des Geistes, Hegel promove uma segunda revolução
metafísica opositiva àquela primeira estabelecida por Kant, na mo-
dernidade. Sua novidade consiste em conjugar história e dialética
num fluxo constante. Tentar resolver o problema da metafísica em
contraposição à herança moderna no conjugar ontologia e totali-
dade de forma crítica: o Princípio Lógico da Phänomenologie des
Geistes movido pela inseparabilidade lógica principial entre exter-
no e interno, assentada no espírito que se sabe enquanto figuras-
-de-espírito, e, mediante tal processo, é possível escapar à armadi-
lha kantiana do númeno separado do fenômeno.
Hegel encerra a Phänomenologie des Geistes reunindo
conceito e ser-aí, em termos metafísicos, e o espírito manifes-
tando-se à consciência, em termos gnosiológicos. De forma que
o saber – expressão e não princípio desse processo – congrega o

92 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Eu simples com o Eu universal ou se põe como imediatamen-
te mediatizado. O Eu se mostra como consciência. Ele está na
consciência refletindo-se sobre si mesmo. É conteúdo conceitua-
do. Trata-se do espírito que percorre a si mesmo e se realiza para
ele mesmo ou na sua objetividade.118 O conteúdo é conceito,119
mas um conteúdo no qual o espírito alcança o puro elemento do
ser-aí ou que apreende o seu conceito. Trata-se do espírito que se
sabe a si mesmo ou a igualdade de si mesmo, a certeza sensível,
imediata, ou o início da Phänomenologie des Geistes.
A meta estava posta no começo. A ciência – que é to-
talidade crítica – tem a necessidade de se extrusar. Esta ocorre
mediante duas formas interligadas: natureza e tempo. A primeira
é o imediato vir-a-ser ou o próprio espírito extrusado. A segunda
é a história. A primeira é o sujeito. A segunda é o tempo. A meta
desse processo, afirma Hegel, é o conceito absoluto ou o espírito
que se sabe como espírito.120 Hegel retoma o pensamento filo-
sófico metafísico originário do Ocidente. Tenta estabelecer, na
Phänomenologie, a necessidade de se manter nesse veio metafísico
118 Cf Ph.G: 556-557: “Die Natur, Momente und Bewegung dieses Wissens hat
sich also so ergeben, daß es das reine Fürsichsein des Selbstbewußtseins ist; es ist Ich,
das dieses und kein anderes Ich und das ebenso unmittelbar vermittelt oder aufgehobe-
nes allgemeines Ich ist. - Es hat einen Inhalt, den es von sich unterscheidet; denn es ist
die reine Negativität oder das Sichentzweien; es ist Bewußtsein. Dieser Inhalt ist in
seinem Unterschiede selbst das Ich, denn er ist die Bewegung des Sichselbstaufhebens
oder dieselbe reine Negativität, die Ich ist. Ich ist in ihm als unterschiedenem in sich
reflektiert; der Inhalt ist allein dadurch begriffen, daß Ich in seinem Anderssein bei
sich selbst ist. Dieser Inhalt, bestimmter angegeben, ist nichts anderes als die soeben
ausgesprochene Bewegung selbst; denn er ist der Geist, der sich selbst und zwar für
sich als Geist durchläuft, dadurch, daß er die Gestalt des Begriffes in seiner Gegen-
ständlichkeit hat.” FE: 537.
119 Cf. Ph.G: 562: “Der verschiedene Inhalt ist als bestimmter im Verhältnisse, nicht
an sich, und [ist] seine Unruhe, sich selbst aufzuheben, oder die Negativität; also ist
die Notwendigkeit oder Verschiedenheit, wie das freie Sein, ebenso das Selbst; und
in dieser selbstischen Form, worin das Dasein unmittelbar Gedanke ist, ist der Inhalt
Begriff.” FE: 542.
120 Cf. Ph.G: 564: “Das Ziel, das absolute Wissen, oder der sich als Geist wissende
Geist hat zu seinem Wege die Erinnerung der Geister, wie sie an ihnen selbst sind und
die Organisation ihres Reichs vollbringen.” FE: 545.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 93


erigido por Parmênides e Heráclito. A Phänomenologie des Geistes
descreve o caminho do Eu que vai se descobrindo como substân-
cia, ao mesmo tempo em que retoma, de um lado, a metafísica
ocidental originária, estabelecida por Heráclito e Parmênides, e,
de outro, mostra, de forma crítica, a insistente busca de reconhe-
cimento pelo viés gnosiológico.
O absoluto que sustenta o edifício metafísico erigido na
Phänomenologie é o todo fundido nele mesmo. Ele se mantém no
limite da necessidade da consciência natural que busca se reco-
nhecer nesse caudal metafísico, mas que contraditoriamente, e de
forma constante, o enfoca gnosiologicamente. Trata-se da dicoto-
mia entre ser e pensar. O resultado é sempre fugidio. Hegel retor-
na à tese parmenideana, segundo a qual o pensar é idêntico ao ser
– uma vez não ser possível conceber algo fora do ser – e defende
que o pensamento se produz e o que se produz é pensamento. A
Phänomenologie discorre sobre a necessidade de se pôr o ser como
verdadeiro, identificando sensação e pensamento ou retomando
a tese ‘ser é pensar’ ou do pensamento que se abarca no ser de
Parmênides. A substância alcançada pela consciência, no final da
Phänomenologie des Geistes, já se encontrava presente no seu início.
O processo dialético percorrido desde a ‘certeza sensí-
vel’ apresenta-nos uma consciência como ser-sendo ou como se
colocando no momento mesmo do seu desaparecimento. Hegel
retorna à filosofia de Heráclito transportando a tese do pensa-
mento imediato à determinação do processo. O absoluto que se
põe, de forma velada, no começo da Phänomenologie, não pode
ser determinado de maneira abrupta como algo existente. Esta
provável determinação do Princípio Lógico colocaria o ser sepa-
rado do não-ser, o que denotaria o conceito infinito. Hegel reto-
ma Heráclito ao definir o Princípio como processo especulativo
e o tempo como primeira categoria da natureza.
A Phänomenologie des Geistes se encerra com as catego-
rias do tempo e da natureza. O tempo não é entendido como

94 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


momento específico, passado ou futuro, mas como o conceito
mesmo ou a harmonia que se mantém no opositivo. A nature-
za, por sua vez, é a realização do conceito objetivo puro, infinita
e processual em si mesma, ou o último vir-a-ser do espírito. A
consumação dessa natureza que nunca descansa é o que Hegel
denominou por re-memoração (Er-Innerung),121 o interior ou a
forma mais elevada da substância, sustentáculo da Phänomenologie,
expressa pelo todo como trânsito da necessidade ao seu desdobramento
e deste ao uno. É nesse sentido que o processo especulativo se põe não
somente como pensamento, mas como ser.
Na ‘Certeza Sensível’, início do processo dialético da
Phänomenologie des Geistes, presencia-se a ausência de verdade
que garante a permanência da consciência. Não em si mesma,
mas para ela. A consciência, ao invés de pensar enquanto é ou
coincidir certeza e verdade, se distancia do veio metafísico ori-
ginário do Ocidente e tenta se estabelecer gnosiologicamente.
A consciência se apresenta na busca de si mesma, o ser, mas
anuncia sempre o seu contrário, o não-ser. Esse percurso des-
crito por Hegel é a insistente e desesperada busca da consciên-
cia em se reconhecer pelo viés do saber, ao mesmo tempo em
que ele propõe outro caminho. A consciência deve se desenrolar
da necessidade, do absoluto e da substância presente no começo
da Phänomenologie des Geistes. Esta, antes de obra gnosiológica,
é texto metafísico. Hegel retoma a tese parmenideana do ‘ser
é pensar’, elevando esse pensamento imediato à determinação
do processo heracliteano. O absoluto está posto no começo da
Phänomenologie como unidade entre ser e não-ser ou entre inter-
no e externo ou entre consciência e consciência-de-si, ainda não
conceituada, mas que, exatamente pelo absoluto, a consciência é
arrastada da totalidade ao conceito.
A Phänomenologie des Geistes é, portanto, obra metafísi-
ca. Essa posição implica uma nova concepção do conhecimento

121 Cf. Ph.G: 564. FE: 544.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 95


mais próximo do que hoje se denomina complexidade. Hegel,
ao mesmo tempo em que sente a necessidade de conjugar on-
tologia e totalidade de forma crítica – em uma concepção me-
tafísica dialética – promove uma anti-metafísica ao discordar da
elaboração filosófica edificada de Aristóteles a Kant. Há sempre
um distanciar o absoluto do fenômeno, de maneira que aque-
le permanece escondido no processo do saber. De forma que o
Princípio Lógico no qual se assenta o edifício hegeliano retorna,
como ponto de partida, a Heráclito e Parmênides, recolocando o
pensamento como metafísico e se afastando do princípio gnosio-
lógico que sustenta, equivocadamente, a filosofia ocidental.
A vulgata hegeliana que se dedica à análise e interpre-
tação da Phänomenologie des Geistes a considera obra de cunho
gnosiológica. Hegel a teria elaborado com propósito claro de
criticar a forma como os modernos interpretam o saber. A re-
tomada desse texto pelo mundo ocidental, iniciada nos anos 30
e 40 do século XX, por Kojève e Hyppolite, consecutivamente,
estendida na metade superior do século XX, Labarrière, Pinkard,
Hösle, Robert Pippin – dentre outros –, ainda a concebe como
obra na qual a proposta de Hegel consiste em discordar da teoria
do conhecimento dos filósofos modernos e edificar ou uma nova
teoria do conhecimento ou uma filosofia da história. Vale dizer,
situam a Phänomenologie no âmbito do conhecimento, interpre-
tando-a como obra epistemológica.
Nossa tese sustenta que a Phänomenologie des Geistes
é obra metafísica e, por isso mesmo, Hegel retoma as teses de
Heráclito e Parmênides e se mantém no caudal metafísico do
Ocidente, criticando seu viés gnosiológico. A partir dessa consi-
deração é que Hegel se propõe o problema do saber e do método –
expostos na obra em questão. A sustentabilidade dessa tese é exa-
tamente defender que, por ser obra metafísica, a Phänomenologie
se assenta na substância que, pela figuras-de-espírito, permite
à consciência se experenciar no processo mesmo do saber, ga-

96 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


rantido pelo Princípio Lógico que a sustenta, a inseparabilidade
inicial entre externo e interno. Portanto, tomá-la como obra gno-
siológica, baseando-se no pressuposto de que o ponto de partida
da Phänomenologie é o saber, seria enveredar pela consequência e
não pelo princípio a partir do qual esse edifício teórico se estabe-
lece. A Phänomenologie des Geistes deve ser retomada pelo enfo-
que metafísico, o que fora esquecido, apesar de ser exatamente a
tese de Hegel, mediante a qual é possível recolocá-la como obra
basilar ao referencial metafísico que ampara o Ocidente.
Nesse sentido, a reflexão hegeliana pode auxiliar no em-
bate com relação a um mundo no qual o aspecto lógico e formal
se imperou, que o sujeito morreu, que o ser cedeu lugar ao fenô-
meno, à aparência e à virtualidade. Parece-me necessário que se
revisite reflexões que nos alertem sobre a necessidade de novos
construtos teóricos que possam nos inspirar a reflexões e elabo-
rações de um mundo no qual a aparência ceda lugar à verdade.
Obviamente que os pilares de uma metafísica tradicio-
nal não se sustentam na atualidade. Mas permanecer na alçada
da metafísica do eu, na conversão de metafísica e ontologia ao
aspecto lógico e formal é insistir na falência dos seres e das coisas
ou manter-se na esteira da cultura da morte que hoje, mais do
que nunca, se anuncia como ameaça global.
Que Hegel nos sirva de inspiração ao pensamento, o
qual somente tem serventia se elevar-se acima de si mesmo, pela
alteridade, e, com simplicidade própria dos grandes sábios, possa
permitir que uma nova metafísica ontológica erija dos escombros
da particularidade, convertendo o simples em universal ao reto-
mar o sentido do absoluto.

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Antropologismo religioso em
Ludwig Feuerbach122

Clóvis Ecco
José Reinaldo F. Martins Filho

Introdução

Pensar a religião requer defrontar-se com um fenômeno


eminentemente humano, como defende Ludwig Feuerbach no en-
sejo de abertura de seu ensaio A essência do cristianismo, publicado
pela primeira vez no ano de 1841: “a religião repousa na distinção
essencial entre homem e animal; os animais não têm religião. É
bem verdade que os mais antigos naturalistas atribuíam ao elefan-
te, entre outras louváveis qualidades, também a da religiosidade;
a religião dos elefantes, no entanto, pertence ao reino das fábu-
las”123. A despeito, contudo, de este ser um fator decisivo para um
entendimento mais profundo sobre o ser humano – levando em
conta, inclusive, o âmbito de sua integração com os demais, isto é,
a dimensão comunitária – o percurso desenvolvido por Feuerbach
traz à tona um segundo elemento no tocante à esta compreensão:
o caráter restritivamente antropológico da religião, tomado como
fundamento de caracterização do homem, é, ao mesmo tempo,
indicação de que o pressuposto para a crença não está em outro
lugar senão no próprio indivíduo – tornado senhor de si e de seu
Deus, um Deus como pura exteriorização de sua própria subjetivi-

122 Este capítulo constitui-se como um desdobramento do que já apresentamos em


nosso artigo “Ateísmo e Religião em Ludwig Feuerbach: uma aposta na essencialidade
do humano”, publicado no volume 14, número 2 da Revista Caminhos, em 2016.
123 FEUERBACH, A essência do cristianismo, 1988a, p. 43.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 109


dade. A partir desta constatação o pensamento feuerbachiano viria
a se desenvolver tomando como base um único núcleo condutor,
norteado por seu irresoluto interesse em desmistificar a teologia
e, unindo-se a ela, tudo o que pudesse dizer respeito à realidade
objetiva de uma dimensão transcendente – domínio, segundo ele,
relegado à obscuridade da experiência religiosa.
Voltado para o que considera como um impulso de
valorização do humano, ente efetivamente real e concreto, eri-
ge-se como um dos principais genitores do ateísmo metafísico,
dando margem para o desenvolvimento de trabalhos como os
de Nietzsche, Marx e/ou Freud. Em se tratando do trabalho
feuerbachiano tomado em sentido estrito, caso nossa intuição
possa ser confirmada, julgamos não se tratar de simplesmente
estabelecer o ateísmo e a descrença como únicas possibilidades
legítimas de existência. O princípio antropológico como origem
necessária de Deus não significaria, porquanto, levantar o ateís-
mo como único prisma para a compreensão do mundo circun-
dante. Ao contrário, enveredar-se pelo curso da argumentação
deste autor requer a perspicácia de enxergar, antes da simples
descrença, uma nova maneira de se conceber a religião e sua con-
tribuição para os indivíduos e a sociedade como um todo. Isso
porque para Feuerbach é necessário que o homem, lançando-se
integralmente à multiplicidade que o circunda, tome consciência
de seu posto privilegiado. Para isso é necessário que a própria
filosofia repense sua relação com a religião, de modo que o futuro
seja tomado como o resultado de uma construção iniciada no
aqui e agora e não em um hipotético amanhã. Tal irrupção no
seio das religiões parece ter operado uma verdadeira revolução
copernicana, de modo que os séculos seguintes testemunhariam,
mais que todos os outros que nos antecederam, uma estreita
aproximação entre fé e prática, com o advento das mais variadas
teologias e notáveis repercussões para a análise contemporânea
do fenômeno religioso – mais fortemente vinculado à terra que,

110 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


propriamente, aos céus. Ora, tal empreendimento implicou não
apenas o rompimento com um modelo teológico obsoleto, com
o qual a filosofia mantivera-se ligada, mas a releitura da própria
filosofia como possibilidade de exercício da vida religiosa – assim
como ocorrera em sua fase germinal. Mesmo nisso não existiria
qualquer paradoxo, já que a religião é aqui tomada em seu senti-
do primitivo de uma experiência existencial e integral, de modo
que, nos termos de Alice Aleixo, o segredo da religião, aquilo que
constitui a sua essência, deverá, pois, se converter em objeto da
filosofia; neste caso, o homem, tomado em sua essencialidade.
Com o propósito de nos incluirmos no circunspecto des-
tas discussões, tomaremos como foco de análise duas das princi-
pais obras nas quais Feuerbach se debruça sobre os fenômenos da
religião e da crença, quais sejam: A essência do cristianismo e, parti-
cularmente, a Preleções sobre a essência da religião, este de 1851, no
qual o autor, mesclando episódios de sua vida pessoal, desenvolve
sua principal argumentação sobre os limites do cristianismo e da
religiosidade metafísica como um todo. Dando, portanto, segui-
mento a este capítulo, tentaremos apresentar os principais pontos
realçados por Feuerbach, contrapondo, sempre que necessário,
impressões críticas de nossa parte. Não é de nosso alvitre simples-
mente defender a posição adotada por Feuerbach, mas aferir em
que medida ela contribui para repensarmos a religião em sua rela-
ção com a filosofia e, no liame desta relação, aprofundarmos nosso
entendimento sobre a condição humana e seu modo de expor-se
no mundo. Se for verdade o que advertiu Rubem Alves, uma ou
outra queimadura certamente resultarão da travessia deste “rio de
fogo”. Afinal, não há itinerários sem riscos.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 111


Da experiência religiosa: um fenômeno
humano

Com a intenção de verificarmos como se origina o


conceito feuerbachiano de religião, tomaremos em análise os
dois primeiros capítulos de A essência do cristianismo, de 1841.
Primeiramente, o autor parte da tentativa de mensurar em que
consiste a essência humana, considerando que outro elemento,
à revelia da religião, poderia, de fato, distanciar um humano dos
demais animais, frente ao que sentencia: a consciência. Na esteira
da tradição precedente, por consciência almeja-se aqui a quidi-
dade, o eidos, ou, como nomearam os medievais, a essentia. No
curso do livro, contudo, o termo adquire a conotação de uma
voz interior – semelhante àquela referida por Agostinho em suas
Confissões – e daí a implicação do conceito interioridade. A con-
sideração de uma interioridade é, ao que parece, a principal dife-
rença entre homens e animais:

[...] por isso tem o animal apenas uma vida simples,


mas o homem uma dupla: no animal é a vida interior
idêntica à exterior – o homem possui uma vida inte-
rior e uma exterior. A vida interior do homem é a vida
relacionada com o seu gênero, com a sua essência. O
homem pensa, isto é, ele conversa, fala consigo mes-
mo. [...] O homem é para si ao mesmo tempo EU e
TU; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente
porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua
individualidade, é para ele objeto.124

Mas em que, então, consiste a essência do homem, da


qual este é consciente e na qual a própria humanidade é pos-
ta em questão? Diz Feuerbach: na razão, na vontade e no cora-

124 FEUERBACH, A essência do cristianismo, 1988a, p. 44.

112 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


ção. A razão existe para dedicar-se ao entendimento conceitual
do mundo, a vontade para desejá-lo e o amor para amá-lo. Esta
é, em poucas palavras, a essência do gênero humano – ao seu
modo trinitária, é verdade, como também o seria a essência do
Deus cristão. Razão, amor e vontade são perfeições humanas, são
os mais altos poderes, são, portanto, a essência absoluta do ho-
mem enquanto homem e a finalidade radical de sua existência.
Conforme Feuerbach, seguindo esta articulação é possível che-
garmos ao entendimento da relação entre Deus e a essência do
humano. Isso porque o ser absoluto, o Deus do homem é a pro-
jeção de tais atribuições inerentes à natureza humana, exteriori-
zadas e reconhecidas como objetividades detentoras de estatuto
ontológico. Enquanto o objeto sensorial está fora do homem, “o
religioso está nele, é mesmo íntimo (por isso um objeto que não
o abandona como não o abandonam a sua consciência de si mes-
mo e a sua consciência moral), é na verdade o mais íntimo, o mais
próximo”125. Nesta direção, talvez seja de fato possível estabelecer
alguma aproximação entre Feuerbach e a filosofia agostiniana,
como antevimos anteriormente. Afinal, em ambos os casos a
divindade é descoberta como elemento essencial ao homem –
em sentido figurado: como “voz” da interioridade. No entanto,
se, para Agostinho, trata-se de um reconhecimento a partir de
dentro, de um mergulho no mais profundo recôndito da própria
consciência, em se tratando da leitura feuerbachiana opera-se o
justo inverso. É a partir de fora, da objetividade e exteriorização,
que o homem reconhece sua essencialidade. Isso porque

[...] ao ser a religião a consciência de Deus, definida


como a consciência que o homem tem de si mesmo,
não deve ser aqui entendido como se o homem re-
ligioso fosse diretamente consciente de si, que a sua
consciência de Deus é a consciência que tem da sua

125 FEUERBACH, A essência do cristianismo, 1988a, p. 55.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 113


própria essência, porque a falta de consciência deste
fato é exatamente o que funda a essência peculiar da
religião. [...] A religião é a consciência primeira e in-
direta que o homem tem de si mesmo.126

É importante, a nosso ver, dar a devida ênfase a este


aspecto: “a religião é a consciência primeira e indireta que o ho-
mem tem de si mesmo”. Isso porque ao estabelecer o nexo de
causa e consequência entre o humano e Deus, Feuerbach não
pretende afirmar a antecipação de qualquer reconhecimento, isto
é, não intui que o homem tenha clareza deste fenômeno como
relativo a sua subjetividade. Muito pelo contrário, pois a força da
religião reside justamente em sua capacidade de atribuir à en-
tidade divina todos os anseios pertinentes ao ser humano, for-
jando-a como uma fonte inesgotável de inspiração e estímulo127.
Aliás, trata-se de um forte elemento psíquico: “como o homem
pensar, como for intencionado, assim é o seu Deus: quanto valor
tem o homem, tanto valor e não mais tem o seu Deus. A cons-
ciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo. Pelo
Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o
seu Deus; ambos são a mesma coisa”128. De maneira geral, este
é o argumento principal. Para Feuerbach o homem transporta
primeiramente a sua essência para fora de si antes de encontrá-
-la dentro de si. Reconhece a Deus como a um outro, como uma
outra essência distinta da sua, enquanto, na verdade, nada seria
senão a projeção de sua autoimagem:

A religião, pelo menos a cristã, é o relacionamento do


homem consigo mesmo ou, mais corretamente: com a

126 FEUERBACH, A essência do cristianismo, 1988a, p. 56.


127 Cf. Zilles (1991, p. 112), “em resumo Feuerbach tenta uma nova hermenêutica da
religião. Pergunta: por que o homem produz religião? O que ela significa? [...] Diz que
os símbolos religiosos não são vazios, nem se referem a Deus, mas ao próprio homem.
Religião é antropologia. Tudo o que o homem fala acerca de Deus, através da lingua-
gem religiosa, nada mais é do que confissão de seus desejos, projetos e aspirações”.
128 FEUERBACH, A essência do cristianismo, 1988a, p. 55 – grifos do autor.

114 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


sua essência; mas o relacionamento com a sua essên-
cia como uma outra essência. A essência divina não é
nada mais do que a essência humana, ou melhor, a es-
sência do homem abstraída das limitações do homem
individual, isto é, real, corporal, objetivada, contempla-
da e adorada como uma outra essência própria, diversa
da dele – por isso todas as qualidades da essência divina
são qualidades da essência humana.129

Por um lado, Feuerbach não quer com sua análise negar


o valor positivo oriundo da religião, já que se trata de um fenô-
meno mobilizador, com inegável impacto sobre a vida prática
dos indivíduos. Por outro, não deixa de reconhecer os efeitos ne-
gativos de uma concepção que retira do homem a sua carga de
dinâmica e de vitalidade, dito de outro modo: retira do homem
seu protagonismo. Até mesmo o conceito de verdade aqui passa
a ser recebido como produto de uma exterioridade sobrenatural,
que, segundo Feuerbach, nada mais é que a própria essência do
homem projetada sobre si mesmo. O homem, que é a referência
primeira deste movimento, submete-se ao domínio do seu predi-
cado130 – o que incorre em um grave equívoco lógico. O homem
não está acima de sua contemplação original, imperando o opos-
to: ela o anima, determina e domina. Daí que o real sentido do
ateísmo para Feuerbach não seja propriamente voltar-se contra
o sujeito dos predicados, mas contra os próprios predicados, pois
estes não podem elevar-se à categoria de sujeitos. O verdadeiro
ateu para ele seria, então, aquele para o qual os predicados da
essência divina – a bondade, o amor, a verdade, a justiça – nada
significam como advindos da exterioridade. Isso porque tudo o

129 FEUERBACH, A essência do cristianismo, 1988a, p. 57 – grifos nossos.


130 Em outro lugar Feuerbach desenvolve que “a verdadeira relação entre pensamen-
to e ser é apenas esta: o ser é o sujeito, o pensamento é o predicado. O pensamento
provém do ser, mas não o ser do pensamento” (FEUERBACH, Princípios da filosofia do
futuro, 1988b, p. 31). Trata-se da mesma relação entre o estatuto ontológico do sujeito
humano e a noção de Deus como sua predicação.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 115


que atribuímos a Deus é, na verdade, característica da própria
essência do homem, embotada, camuflada, sob o que nada mais
representa senão seu mero reflexo. O Deus da teologia e da filo-
sofia, e, portanto, o Deus do conceito, impede que a centralidade
recaia sobre o homem. Torna-se ele o epicentro e a referência a
partir da qual cada indivíduo irá proceder: “o homem – e este é o
segredo da religião – objetiva a sua essência e se faz novamente
um objeto deste ser objetivado, transformado em sujeito, em pes-
soa; ele se pensa, é objeto para si, mas como objeto de um objeto,
de um outro ser”131. Noutras palavras, insiste Feuerbach,

Deus é a essência do homem mais subjetiva, mais pró-


pria, separada e abstraída, e assim não pode ele agir de
si, assim todo bem vem de Deus. Quanto mais sub-
jetivo, quanto mais humano for o Deus, tanto mais
despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua hu-
manidade, porque Deus é em e por si o seu ser exterio-
rizado, mas do qual ele se apropria novamente.
[...]
Somente Deus é o ser que age de si – este é o ato da
repulsão religiosa; Deus é o ser agente em mim, comi-
go, através de mim, sobre mim e para mim, é o prin-
cípio da minha salvação, das minhas boas intenções e
ações, logo, do meu próprio bom princípio e essência
– este é o ato da atração religiosa.132

O cúmulo dessa auto exposição seria a ideia cristã de


um Deus que se encarnou, tornando-se humano. Segundo a ava-
liação de Feuerbach, reportando-nos à ideia de um Deus que
é reflexo da essência do homem – e o que pode haver de mais
sedutor que o nosso próprio reflexo?!, conviria Narciso – a reli-
gião contribui para o empobrecimento de uma consciência capaz
de colocar-se como ponto de partida para a ação, frustrando a

131 FEUERBACH, A essência do cristianismo, 1988a, p. 71.


132 FEUERBACH, A essência do cristianismo, 1988a, p. 72.

116 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


humanidade ao estabelecer valores inalcançáveis como meta da
existência. Noutras palavras, o exercício do bem não deveria, ne-
cessariamente, ser o efeito de uma intervenção divina no curso
da história dos homens, mas da plena vivência da política, do res-
peito mútuo, da justiça. Isso porque a ideia de bem diz respeito
à essencialidade do homem, mensurada na convivência com os
demais. Apesar disso, os desafios plantados em A essência do cris-
tianismo fizeram eco em outros momentos da obra de Feuerbach,
com especial ressalva ao texto das preleções, sobre o qual também
gostaríamos de dedicar algumas observações.

Deus e religião nas Preleções sobre a essência da


religião

Novos indícios sobre a relação entre Feuerbach e a reli-


gião estão em Preleções sobre a essência do cristianismo (1851), em
cujo desenvolvimento há constantes referências ao texto anterior
– Sobre a essência do cristianismo. Para além de elementos de ordem
mais periférica, chama-nos a atenção a forma como o autor cor-
robora sua argumentação, num processo contínuo e, não poucas
vezes, mesclado entre a análise filosófica e as impressões pessoais
adquiridas nas mais diversas experiências pessoais e, até, profis-
sionais. Sobre isso Urbano Zilles nos oferece o seguinte resumo:

[...] o jovem Feuerbach queria ser teólogo. Seu primei-


ro pensamento foi Deus. Desejava tornar-se pastor lu-
terano. Desde 1823 estudou teologia em Heidelberg.
Através dos professores de dogmática interessou-se
por Hegel e foi a Berlin. Num segundo momento
voltou-se para a razão. [...] Num terceiro momento
Feuerbach distanciou-se de Hegel e dedicou-se ao

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 117


homem. De hegeliano transformou-se em ateu. [...]
Quando Hegel afirma que a consciência do homem
sobre Deus é autoconsciência de Deus, Feuerbach res-
ponde que o ser absoluto, o Deus dos homens, é seu
próprio ser”.133

Pouco a pouco estaria completo o ambiente propício


para a elaboração de seus principais conceitos relativos à reli-
gião, desde os primeiros esboços de seu distanciamento – par-
ticularmente com relação à teologia cristã – até a aberta recusa
do modus religioso como forma autêntica de se empreender a
existência. Com especial ênfase recorda os doze anos de solidão
em exílio, tempo em que se ocupou unicamente com o estudo e
a atividade literária. Neste tempo de acurada solidão e recolhi-
mento, descobriu-se mais prontamente disposto a compreender
os dramas que atravessam a existência humana como um todo, o
que o levaria a confessar:

[...] despedi-me para sempre do currículo acadêmico


e passei a viver no campo. Foi uma época tão terrível,
triste e obscura, que uma tal lembrança nunca podia
me voltar à mente. Foi aquela época em que todas as
relações públicas estavam tão envenenadas e contagia-
das, que só se podia conservar a própria liberdade de
espírito e a saúde através da recusa a qualquer serviço
público, a qualquer papel público, até mesmo ao de
professor particular, uma época em que todas as pro-
moções do serviço público, todas as licenças autoritá-
rias, mesmo a vênia docendi, eram apenas o preço do
servilismo político e do obscurantismo religioso, onde
somente era livre a palavra científica escrita.134

Este seria o contexto originário não apenas de obras


como A essência do cristianismo, mas da assumência do ateísmo

133 ZILLES, Filosofia da religião, 1991, p. 103-104.


134 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 12.

118 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


como ideal de vida não apenas em sentido racional e/ou moral,
mas, particularmente, de ordem epistemológica. A esta altura, a
religião tornara-se para ele sinônimo de fracasso e irracionalida-
de – não, porém, no sentido positivo do irracional, como evocaria
Rudolf Otto. Feuerbach via-se disposto em pleno auge de uma
Alemanha abalada por disputas políticas e intelectuais. Também
a forte universidade alemã, em cujos ares ainda pairava o ranço
do idealismo hegeliano, não havia passado isenta. Apesar disso,
o recolhimento experimentado não poderia ser atribuído uni-
camente ao descrédito com relação à política e à vida pública
de outrora: “assim como eu vivia em constante oposição interna
com o sistema político do governo da época, da mesma forma
eu havia rompido também com os sistemas de governo espiri-
tuais, isto é, com as doutrinas filosóficas e religiosas”135. Além
de dar tempo para o pleno restabelecimento do corpo, surgia-
-lhe a oportunidade de arrefecer a mente. Desse modo, se até
ali Feuerbach via-se identificado entre os que compartilhavam
a crença em um Deus comum, único e onipotente, não apenas
Criador, mas Redentor – e aqui o traço marcadamente cristão
de sua formação – ao passo que afastava-se da vida ordinária, de
suas funções como professor e das relações que mantinha com
importantes ícones da cena teológica da época, via-se obrigado
a dar razão de sua descrença, cumprindo, sem que pudesse ima-
ginar, um papel precursor para tudo o que viria a se desenvolver
com respeito ao ateísmo metafísico adotado por vários autores
do século seguinte.
Procurava, com esta atitude, levantar-se contra toda teo-
logia conhecida que, segundo lhe parecia, mais servia à manuten-
ção das ideologias partidárias e dominantes que, propriamente,
ao sufrágio espiritual de seus fieis. Daí, como dissemos, o fato de
não apenas se tratar de um confronto com o que há de essencial

135 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 13.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 119


na experiência religiosa, mas com as ulteriores consequências de
sua formulação institucional para o exercício do poder. Seguindo
por este curso, não seria gratuita sua identificação entre religião e
cristianismo – sendo este, segundo julgava, o modo mais acabado
de corrupção de toda e qualquer forma religiosa possível. Desse
modo, a raiz do ateísmo feuerbachiano, como indicam abundan-
tes passagens de sua obra, parece manifestar-se mais fortemen-
te como recusa política à hegemonia de uma força institucional
e não simplesmente teológica. Além disso, há, ainda, um novo
elemento para ser considerado. Ao defrontar-se com a religião
Feuerbach possuía em vista um confronto com a própria filoso-
fia, àquela altura completamente formatada ao modelo religioso
vigente. Entre outros, tal incontentamento pode ser notado no
que respeita às filosofias de Espinosa e Leibniz, para não dizer do
próprio Hegel, de quem permanecia em grande parte tributário.
No que se refere a Espinosa, sua dívida se devia ao fato de, na
avaliação de Feuerbach, ter feito da filosofia uma ancilla da teo-
logia. Em se tratando de Leibniz, o motivo era semelhante, posto
que este parece ter sido o primeiro filósofo alemão a novamente
depositar a filosofia aos pés da teologia, diz Feuerbach: “já na pri-
meira edição, aparecida em 1837, tomei, portanto, como objeto
de crítica o ponto de vista teológico de Leibniz e, por causa dele,
toda a teologia em geral”136. Leibniz, desse modo, impunha-se
como ícone de um movimento que em muito o ultrapassava: o
movimento da religião, com traços marcadamente cristãos, como
alvo para as incursões da nova antropologia filosófica aos moldes
feuerbachianos. De ancilla da teologia, a filosofia passou ao posto
de sua maior inimiga, não medindo esforços em demonstrar a
inviabilidade da existência exterior de uma divindade constante-
mente geradora e provedora do mundo. A esta altura o elemento
antropológico novamente seria posto em pauta, como Feuerbach
mesmo parece advertir da segunda preleção em diante.

136 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 15.

120 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Sobre o caráter antropológico da religião

Ao desenvolver sua crítica a todo e qualquer sistema re-


ligioso Feuerbach possui, na verdade, um inimigo bastante espe-
cífico, como segue: o cristianismo. Como ponto de partida, nova-
mente pretende enfatizar o caráter opositor entre os ditames da
fé e da ciência. De um lado, o universo material da racionalidade
científica. De outro o que considera como meras elucubrações da
fantasia religiosa:

A teologia baseia-se num princípio especial, num li-


vro especial no qual ela crê contidas todas as verdades
necessárias e salvadoras para o homem, é por isso es-
treita, exclusiva, intolerante, limitada; mas a filosofia
e a ciência não se baseiam num livro especial e só en-
contram a verdade no todo da natureza e da história,
baseiam-se na razão essencialmente universal, não na
fé, que é essencialmente particular.137

Ao que parece, consegue atingir o ponto fulcral da ex-


periência religiosa, já que esta está pautada sobre a perspectiva
do indivíduo, isto é, num itinerário que se estende desde uma
experiência, que é sempre particular, até o seu prolongamento
na convivência social, ao contrário da ciência ou da filosofia que,
partindo de deduções que, no mais das vezes, possuem caráter
universal, confirmam ou infirmam seus resultados por meio da
experimentação, da prova e da contraprova. Tal entendimento,
contudo, constitui-se como uma aberta recusa a uma compreen-
são polissêmica da natureza do homem, um todo formado por
diferentes dimensões, entre as quais a dimensão da fé encontra
seu espaço entre as demais. O reconhecimento do homo simbo-
licus exigiria, com igual intensidade, a assumência de sua identi-
dade como homo religiosus. Isto porque também nos ditames da

137 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 18.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 121


ciência e da filosofia – como hoje podemos observar com maior
clareza – o elemento da crença é algo que não pode, em hipó-
tese alguma, ser desconsiderado pela análise. O pressuposto da
crença é, então, nascedouro para o conhecimento formal. É, nou-
tras palavras, sua condição de possibilidade – abundantemente
encontrada nos exemplos científicos e, por que não, filosóficos,
por meio de metáforas, referências ao imaginário e, enfim, como
combustível para a insaciável busca por um fundamento inabalá-
vel (senão também inatingível).
Por conseguinte, a julgar pelo tom utilizado pelo au-
tor ao referir-se aos adjetivos impostos à teologia, não é possível
tomar com precisão aonde reside, de fato, o verdadeiro ponto
de intolerância. Ao levantar-se em militância contra a religião,
Feuerbach reproduz o mesmo modelo contra o qual originaria-
mente se rebelou – firmando-se como um novo corpus dogmático
a ser seguido. Como se não bastasse, também no que se refere à
lógica de sua argumentação, algumas contradições no que toca à
história do pensamento ocidental como um todo chamam-nos a
atenção. Julgando “reduzir a diferença entre a filosofia e a religião
simplesmente em que a religião é sensorial, estética, enquanto
que a filosofia é algo suprassensível, abstrato”138, Feuerbach se es-
quece que justamente o abstrato, supra-sensível e/ou imaterial
no âmbito do conceito pode ser apontado como um dos pontos
de intersecção possíveis entre a filosofia e a religião, afinal, ambas
lidam com uma direta referência à categorias que ultrapassam a
matéria simplesmente dada. Desse modo, longe de se oporem
uma à outra, filosofia e religião tocam-se em muitos aspectos.
Ao falar sobre a essência da religião, evocando alguns
aspectos psicológicos da natureza humana, Feuerbach prenun-
cia uma espécie de discurso sobre a essência da própria subje-
tividade, segundo ele o verdadeiro elemento refletido em toda

138 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 20.

122 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


prática religiosa. Entre outros, estarão em jogo noções como o
limite, o medo e a finitude, intrínsecos à humanidade em sua
condição mais originária. Nesse sentido, tanto a história das re-
ligiões quanto os desígnios da divindade devem ser encarados
como uma forma de manifestação da própria natureza do ho-
mem, fadada, conforme a indicação feuerbachiana, a projetar-
-se em uma “pseudo-existência” exterior, a qual contém em si
mesma, como o pólo oposto de um imã, eternidade, onipotência,
vitalidade plena, atribuições que não se apresentam nos seres hu-
manos. Em contrapartida, uma adequada compreensão da na-
tureza humana deveria incitar a consciência de que justamente
nestes limites tornar-se-ia possível encontrar a chave de leitura
para um comportamento saudável e racionalmente coerente; isto
é, o descortinamento de um horizonte intersubjetivo, aberto à
experiência dos outros reais no mundo, em relação aos quais o
indivíduo estabelece profunda dependência, traço fundamental
na consideração de sua humanidade:

O homem possui um desígnio, uma situação e um de-


ver limitados na grande comunidade da humanidade,
na história, mas exatamente com isso não se pode con-
ciliar uma subsistência infinita. [...] Tudo aquilo que
o homem ama e exerce apaixonadamente é que é a
sua alma. A alma do homem é tão diversa e específica
quão diversos e específicos são os próprios homens.139

Segundo Feuerbach, apenas na relação com os outros


o indivíduo pode encontrar o pleno sentido de sua existência. A
religião, ao contrário, o obrigaria a projetar-se em uma exteriori-
dade irreal. De um modo geral, trata-se da máxima que subjaz a
toda a argumentação presente nas Preleções. Para Feuerbach teo-
logia é antropologia, de sorte que a única possibilidade de crença
legítima seria aquela depositada sobre o próprio homem, como
139 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 22.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 123


origem efetiva (e afetiva) tanto da religião, como de Deus140. Ao
menos para Feuerbach, portanto, o ateísmo nada mais represen-
ta senão uma forma específica de teísmo antropológico, isto é,
a crença em uma divindade radicada no próprio homem, com
vista à satisfação de seus anseios mais íntimos. Nesse sentido,
caso entendamos Deus como o fruto de uma vitalidade dinâmica
do homem é possível, inclusive, justificar a sua existência como
máxima externalização de uma inteligência finita:

[...] teologia é antropologia, ou seja, no objeto da reli-


gião a que chamamos theós em grego, Gott em alemão,
expressa-se nada mais do que a essência do homem,
ou: o deus do homem não é nada mais que a essência
divinizada do homem, portanto a história da religião
ou, o que dá na mesma, de Deus [...] nada mais é do
que a história do homem.141

O mesmo se aplica seja ao Deus cristão ou a qualquer


outra forma de crença exterior. Como ponto de partida, segundo
Feuerbach, sempre estará o homem. Cristianismo e idealismo
identificam-se, porquanto, pelo fato de ambos justificarem-se a
partir de uma abstração sem natureza, um Deus ou espírito capaz
de criar o mundo como fruto de sua inteligência e volição. Trata-
se de um ponto de vista que pode ser resumido na relação entre
duas palavras: natureza e homem. Diz Feuerbach: “o ser que para
mim pressupõe o homem, o ser que é a causa ou o fundamento
do homem, a quem ele deve seu aparecimento e existência, não

140 Há quem aponte os limites dessa avaliação: “nas suas afirmações sobre o cristia-
nismo, Feuerbach ignora totalmente as afirmações sobre a alteridade de Deus que, por
isso, não se sujeita simplesmente ao esquema da projeção do desejo. Ignora também
que a teologia sempre acentuou que, em seu discurso analógico sobre Deus, há mais
diferenças que semelhanças. Mas nem por isso deve-se menosprezar a crítica que ele
faz da religião e do cristianismo. Apesar das unilateralidades, propõe problemas ainda
não resolvidos” (ZILLES, Filosofia da religião, 1991, p. 117).
141 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 23.

124 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


é para mim Deus – uma palavra mística, indefinida e ambígua
– mas a natureza – uma coisa e uma palavra clara, sensível, indu-
bitável”142. Talvez haja aqui outro elemento sobre o qual possa-
mos discordar da avaliação imposta pelo autor das Preleções. Isto
é, a própria noção de natureza não pode ser considerada como
um conceito esclarecido de per si. Ainda que pretenda estabele-
cer uma ligação direta com o âmbito do sensorial, este conceito
não parece, por si só, esgotar o sentido atribuído à noção de hu-
manidade – especialmente haja vista na querela posteriormente
instaurada entre natureza e cultura. De outro lado, também é
necessário admitir que ao falar de natureza Feuerbach aponta
para o estreito vínculo entre a ideia de um Deus criador e a pró-
pria essência do homem, de tal forma a compartilharem, ambas,
de uma mesma natureza. Tal intuição, na verdade, fundamenta a
intenção que perpassa, de uma ponta à outra, o raciocínio desen-
volvido pelo autor, cujo objetivo não é outro senão

[...] mostrar que o ente diante do qual o homem se


coloca na religião e na teologia, como um ser distinto
dele próprio, é sua própria essência, para que o homem
uma vez que é sempre dominado inconscientemente
só por sua própria essência, faça no futuro, conscien-
temente, de sua própria essência, isto é, da essência
humana, a lei e o fundamento, a meta e o critério de sua
moral e de sua política.143

Consoante a esta tomada de consciência estaria o ama-


durecimento de um indivíduo autônomo, fundamento e senhor
de sua própria conduta moral e política. Nesse caso, assumir as
rédeas da história, sem a necessidade de uma constante referência
a outro plano que não a existência concreta de um mundo com-
partilhado com outros, exigiria emancipar-se da tutela de um

142 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 27.


143 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 28 – grifos do autor.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 125


Deus exterior, o que, noutras palavras, podemos tomar como um
dos benefícios deste ateísmo concebido, paradoxalmente, a partir
da aceitação de um teísmo antropológico, tal como Feuerbach
tenta aludir. Em suma, significa assumir uma “doutrina” – termo
utilizado pelo próprio autor – segundo a qual não existe, nem
jamais existiu, nenhum Deus ou força cósmica diversos da na-
tureza e do homem, cuja presente negação expressa-se apenas
como uma “consequência do conhecimento da essência de Deus,
do conhecimento de que esse ser nada mais expressa do que, por
um lado, a essência da natureza, do outro lado, a essência do ho-
mem”144. Não há, desse modo, qualquer intenção de tornar ilegí-
tima a religião como tal, desde que, para tanto, sejam esclarecidos
os pressupostos segundo os quais não há diferença entre a essên-
cia de Deus e a essência do homem. Entendida como produto do
homem a religião pode, inclusive, contribuir para a saúde mental
de uma sociedade – aspecto que não é ignorado por Feuerbach
– afinal, “o que importa é o que cada um entende por Deus” e
não, propriamente, o que este conceito representa por si mesmo,
a existência que detém de per si – neste caso, nada senão a conso-
lidação de todo o vigor do homem, a força para o enfrentamento
de seus medos mais profundos, do reconhecimento da finitude
como único modo possível de ser145.

144 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 29.


145 “Deus, nesta perspectiva é a autoconsciência do homem. O si mesmo: a essência
de Deus é a autoconsciência do homem. O homem afirma em Deus o que nega em si.
O ateísmo é, então, o caminho necessário para o homem redescobrir sua dignidade,
reconquistando sua essência perdida” (ZILLES, 1991, p. 106). Ver também FEUER-
BACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 29.

126 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


E quanto ao ateísmo? Pistas para uma leitura
crítica

Respondendo à demanda por nós sugerida, Feuerbach


recorre a uma antiga interpretação de religião como derivação
do medo146, especialmente em face da elaboração e crença em
um Deus onipotente: “os antigos ateus e mesmo muitos deístas
tanto antigos quanto recentes declararam ser o medo, que nada
mais é do que o aspecto mais popular e mais evidente do senti-
mento de dependência, a mola-mestra da religião”147. É verdade
que alguns autores da fenomenologia da religião identificaram o
medo como uma das primeiras experiências suscitadas pelo ar-
rebatamento do sagrado, entre os quais poderíamos destacar o
trabalho de Rudolf Otto, que entre outras definições, refere-se a
este fenômeno por meio do conceito mysterium tremendum, isto
é, o que faz arrepiar e tremer148: “qualitativamente diferente [...],
aquilo que nos é estranho e nos surpreende, o que está fora do
domínio das coisas habituais, compreensíveis, bem conhecidas e,
portanto, familiares”149. Além disso, já em filosofias anteriores o
sentimento do medo fora considerado como fundamento da reli-
gião. Observe-se, por exemplo, o seguinte fragmento de Thomas
Hobbes, utilizado pelo próprio Feuerbach em sua argumentação:
146 Cf. Feuerbach (1989, p. 30), por exemplo, “muito conhecida é a expressão do
poeta romano: Primus in orbe Deos fecit Timor, o medo foi o primeiro que criou deuses
no mundo. Entre os romanos tem até mesmo a palavra medo, metus, o sentido de
religião, e inversamente tem a palavra religio, às vezes, o sentido de medo; por isso é
para eles um dies religiosus, um dia religioso, o mesmo que um dia infeliz, um dia que
se teme. Até mesmo a nossa Ehrfurcht alemã (a expressão da mais elevada adoração,
da adoração religiosa) é composta, como a própria palavra demonstra, de Ehre (honra,
dignidade) e Furcht (medo)”.
147 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 30.
148 Vale, no entanto, recordar que Otto (O Sagrado, 1985) fez opção por uma consi-
deração do sagrado pelas vias da dimensão não racional (irracional) do homem, o que
insere sua abordagem na contra mão do que pretende Feuerbach.
149 OTTO, O Sagrado, 1985, p. 30 – grifo do autor.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 127


Este medo perpétuo que acompanha os homens igno-
rantes das causas, como se estivessem no escuro, deve
necessariamente ter um objeto. Quando portanto não
há nada que possa ser visto, nada acusam, quer da boa
quer da má sorte, a não ser algum poder ou agente
invisível. Foi talvez neste sentido que alguns dos anti-
gos poetas disseram que os deuses foram criados pelo
medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses
(quer dizer, aos muitos deuses dos gentios) é muito
verdadeiro.150

Por isso, esconder-se sob a sombra de uma religião sig-


nificaria, na verdade, apenas a busca por uma forma de vencer
o medo, encontrar segurança e proteção. Logo, todo e qualquer
pavor daria lugar ao conforto espiritual, à “libertação do perigo,
do medo e da angústia, [...] o sentimento do arrebatamento, da
alegria, do amor e da gratidão”151. Para Feuerbach, no entanto,
tal conversão não consegue indicar a consciência plena de sua
essência, isto é, da real relação com o grande Outro – aquele que
faz tremer. O que, por acaso, ofereceria medo?, perguntar-nos-í-
amos. Medo da natureza, responderia o autor152. A religião seria,
por consequência, uma resposta ao sentimento de dependência
ante as forças aterrorizantes e ameaçadoras da natureza. “Para
escapar do domínio da natureza, o homem inventou Deus, ou
seja, um Ser cujo aniquilamento é impossível. Deus é, portan-

150 HOBBES, Leviatã, 1997, I, XII.


151 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 33.
152 “Embora a concepção de natureza de Feuerbach não seja atomístico-mecânica,
- já que para ele a natureza não e nenhuma máquina, nenhuma pura ‘res extensa’, sem
vida, nenhuma grandeza lógico-matemática, isto é, nenhum universo que se movi-
menta necessariamente segundo leis mecânicas -, toca a ele ‘sensibilidade’, ‘vivacidade’,
‘vitalidade’, ‘fisicalidade’, ‘exterioridade’ conceitos similares para a existência material
da natureza, pois a natureza que existe real, objetivamente, expressa sua existência ma-
terial através de efeitos físicos, fenômenos naturais, que existem não apenas idealmente
no entendimento, mas constituem também para o homem efeitos sensíveis, observados
sensivelmente” (CHAGAS, Majestade da natureza em Ludwig Feuerbach, 2009, p. 39).

128 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


to, a representação fantástica do domínio da vontade humana
sobre a natureza e da completa satisfação dos desejos huma-
nos”153. Concordando com Hobbes, também para Feuerbach a
religião é, em grande medida, a resposta humana à totalidade do
medo. Não a qualquer medo, mas ao medo da natureza, o medo
da única força que realmente pode aplacá-lo. Cria-se, então, um
sentimento de dependência a um Deus todo-poderoso, utiliza-
do como artifício para esconder a fragilidade inerente a todo e
qualquer humano. Insistiria Feuerbach: apenas um homem fraco
necessita de um Deus forte154.
Não obstante ser o medo, contudo, o impulso originá-
rio para a criação de uma divindade à qual se reportar (note-se a
mudança de eixo, neste caso o Criador tem sua origem na criatu-
ra), trata-se de um movimento que simultaneamente coloca outro
aspecto em jogo, desta vez relativo à morte, isto é, a dimensão da
finitude. A esse respeito encontramos uma frase de bastante im-
pacto no texto da quinta preleção: “somente o túmulo do homem
é o berço dos deuses”155. Tal sentença vem ao encontro do que
já mencionamos acerca do que Feuerbach entende como a auto
projeção do homem em Deus. Por assim dizer, a religião torna-se
apenas uma característica ou qualidade de um ente cuja consti-

153 MONDIN, Quem é Deus?, 1997, p. 145.


154 Nomeadamente nos séculos XIX e XX a mesma intuição também serviu de
mote para algumas outras abordagens críticas da religião, tais como as de Freud e
Marx – para não dizer também a de Nietzsche. Identificando-se com Feuerbach, para
estes autores o aspecto negativo derivado da dependência originária da criatura em
relação ao Criador deve-se, sobretudo, à ausência de uma postura encarnada frente à
realidade circundante. Depositando toda a sua expectativa em um ente de outra ordem
o indivíduo despreocupa-se com o hoje da história – na avaliação de Marx – e, ao
mesmo tempo, sucumbe à própria neurose compulsiva – nos termos de Freud – ambos
comportamentos responsáveis pela frigidez social e pela estagnação infantil à qual a
sociedade contemporânea se vê submetida. Cf. VIEIRA, 1996, Filosofia marxiana: uma
análise de Marx das teses de Feuerbach; cf. ASSUMPÇÃO, 2014, Sobre a fé: confrontando
Kant e Feuerbach; cf. também PAULA, 2007, O futuro de uma ilusão: algumas reflexões
entre Feuerbach e Freud.
155 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 36.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 129


tuição mais elementar aponta para a necessidade de transcendên-
cia rumo a um outro que, contudo, não precisa, necessariamente,
ser um deus, autosuficiente, independente e infinito. Nesse caso,
o sentimento de dependência equivale à recusa da finitude, in-
trínseca à natureza humana: “[...] o sentimento de finitude mais
delicado, mais doloroso para o homem é o sentimento ou a cons-
ciência de que ele um dia certamente acaba, de que ele morre.
Se o homem não morresse, se vivesse eternamente, não existi-
ria religião”156. Se, em termos religiosos, a morte é compreendida
como a libertação deste vale de angústias e sofrimentos, a pers-
pectiva adotada por Feuerbach parece apontar para um caminho
absolutamente inverso. Para este autor, justamente essa crença em
uma realidade além dessa, realidade como promessa, cujo cum-
primento deve ser esperado, encarcera o ser humano numa visão
infantilizada de mundo, impedindo-o de reconhecer a sua essên-
cia e condição de ente finito. Por finitude, nesse caso, devemos
compreender “não uma substância ou essência ‘fora’ do tempo que
passa, que morre, ‘que devora seus filhos’, mas como um poder-ser,
aberto e livre para possibilidades finitas, porque é, em si mesmo,
esse modo de ser finito, isto é, circunstancial, segundo limites”157.
A nosso ver, trata-se de uma interpretação positiva da finitude, o
que, no entanto, não impede que a filosofia feuerbachiana esbarre
em alguns problemas alusivos à ordem interna de sua argumenta-
ção, e este será o último ponto de nossa análise158.
A guisa de conclusão, talvez seja oportuno indicarmos
elementos que, segundo julgamos, podem contribuir para uma
leitura crítica da filosofia feuerbachiana. É certo que ao tentar

156 FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, 1989, p. 36.


157 PISETTA, Morte e finitude, 2007, p. 233.
158 Cf. GAYTAN (Feuerbach: dios como esencia del hombre, 2014), “en el fondo, en es-
tas reacciones a la crítica a la filosofía idealista, resuenan todavía los acentos kantianos
y sobre todo, hegelianos de los conceptos de límite, finitud-infinitud como relaciones
recíprocas. La conciencia de límite y de finitud no puede no exigir el paso al no límite
o la no finitud”.

130 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


reduzir a teologia à antropologia Feuerbach inaugura uma nova
forma de conceber a religião – em muitos pontos procedente,
diríamos. Isso porque tal incursão não impediria o discurso te-
ológico e a validade de sua argumentação como fonte legítima
para o conhecimento do homem e do mundo que o circunda, es-
pecialmente haja vista que uma compreensão mais ampla acerca
do ser humano e de seus fenômenos constitutivos jamais poderá
estar limitada ao fulcro desta ou daquela ciência unicamente. Ao
contrário de tomar a velha política partidária e/ou corporativista
em favor de um ou de outro polo – do ateísmo ou da religião
– a manutenção da crise instaurada por Feuerbach possibilitou
à própria teologia reavaliar muitas de suas posições, abrindo-se,
não raras vezes, a uma nova forma de portar-se como ciência que
simultaneamente se interessa pelo homem e por sua relação com
o sagrado. O ponto de partida e contínua referência para o as-
pecto material e objetivo da religião continua a ser o homem em
seus conflitos, mobilizações, simbolizações, criatividade etc. Ao
mesmo tempo, tal impulso por transcendência parece indicar que
toda esta dinâmica não pode ser encerrada na bitola de uma for-
malização que tome simplesmente o plano da materialidade dos
fatos – como pretenderam no áureo período das ciências empí-
ricas. A vitalidade espiritual do humano, refletida nas artes plás-
ticas, na música, na literatura e, certamente, na religião, é o que
de fato nos instiga e atrai na busca por uma compreensão sempre
mais profunda. Apesar de Feuerbach distanciar-se da tradicional
concepção de Deus, condenando, por isso, o âmbito da metafí-
sica como desvestido de comprovação fática, de igual modo não
podemos reduzir a vitalidade humana ao universo da materia-
lidade. Seja, então, para concordar ou refutar o posicionamento
por ele empreendido, não podemos negar a atualidade da crítica
feuerbachiana e o seu significado para as instituições religiosas
do presente – e não apenas para as discussões teológicas em nível
conceitual. Trata-se da fonte a partir da qual muitos dos novos

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 131


ateísmos e movimentos de contestação religiosa continuam bus-
cando sua fonte – para retomar suas teses e, mesmo, superá-las.
Com os olhos dirigidos para a sociedade contemporânea é pos-
sível afirmar que se a religião entrou em crise, o ateísmo também
se viu submetido a semelhante desfecho. Em face deste cenário,
mais do que nunca colocamo-nos o seguinte dilema: acaso reli-
gião, política, teologia, trabalho, oração, céu e terra são realidades
realmente inconciliáveis? Pelo menos no âmbito das atuais rela-
ções humanas, os opostos estão sempre muito próximos.

Referências

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132 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


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ZILLES, Urbano. “Feuerbach: sua crítica da religião e seu ateísmo”.
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Filosofia)

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 133


Presente, porque há de vir:
acenos à questão do divino no
pensamento tardio de Heidegger159

Daniel Rodrigues Ramos

1. O(s) deus(es) de outro princípio

A questão de deus (ou dos deuses) no pensamento de


Heidegger é, no mínimo, uma controvérsia, sobretudo para um
pensador que, ao longo de seu percurso, posicionou-se sempre
mais numa radical oposição ao cristianismo, em favor de um
pensamento laico, mas que também igualmente se despede cada
vez mais da tradição metafísica em sua tentativa de fundamentar
a entidade do ente em uma causa primeira, imutável e incon-
dicionada160, que seria Deus ou, ao menos, aquilo que poderia
ser tomado como princípio inteligível da existência de um ente

159 O presente texto amplia e revisa reflexões e discussões anteriormente pulicadas.


A primeira versão se encontra em D. R. Ramos, O Ereignis em Heidegger, Teresópolis:
Daimon, 2015, p. 349-59. Para esta obra, remete-se o leitor, dado que uma visão mais
ampla da questão e conceitos fundamentais do pensamento da história do ser é fator
imprescindível para colocar a questão do divino em Heidegger. A segunda versão,
com pequenas ampliações relação à primeira, foi publicada pela Revista Brasileira de
Filosofia da Religião (ABRF), em dezembro/2015, sob o título A existência, a fuga e o
advento dos deuses nos Beiträge zur Philosophie de Heidegger. Em relação à última publi-
cação, excluem-se considerações a respeito da penúltima seção desta obra fundamental
de Heidegger, mas se acrescenta uma ampla introdução, em vista de colocar a proble-
mática discutida a partir da questão fundamental deste pensador.
160 Para uma reconstrução do itinerário de pensamento de Heidegger, sob o prisma
dos elementos teológicos nele presentes e do desenvolvimento da questão de Deus,
bem como um resumo das principais posições que se encontram na literatura crítica,
cfr. o último capítulo de G. Strummiello, L’Altro inizio del pensiero. I «Beiträge zur
Philosophie» di Martin Heidegger, Bari: Levante Editori, 1995, em especial p. 237-70.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 135


supremo como fundamento de todo o real. E, não obstante tal
distanciamento tanto do Deus cristão como dos Deu dos filóso-
fos, trata-se de uma questão que se impôs progressivamente no
itinerário filosófico de Heidegger, ocupando uma posição central
no pensamento tardio deste pensador161. Não é por acaso, então,
que a última seção dos Beiträge zur Philosophie (1936-38), obra
sem qual é quase impossível compreender a intenção fundamen-
tal e os rumos tardios de questionamento do pensamento heide-
ggeriano, é toda ela dedicada a invocar a passagem de um deus
último e derradeiro, como aquele acontecimento capaz de decidir
o que há de mais profundo e mais difícil em outro princípio da
história da metafísica e do Ocidente162. Deste modo, em base da
experiência de questionamento da questão do ser que se cum-
priu depois dos anos 30 e da consoante busca de dizer em modo
pensante e poético a essência do sagrado, Heidegger chegou a
declarar, em 1966, na entrevista que concedeu ao Der Spiegel, que
“somente um deus ainda poderia nos salvar”163, isto é, destinar a
história presente para além da consumação e declínio da época,
ainda em vigor, cuja essência se pode evocar com o evento da
morte de Deus.

161 O papel central da questão do último Deus é explorado, por exemplo, por G.
Figal, Gottesvergessenheit. Über das Zentrum von Heideggers „Beiträgen zur Philosophie“,
in Zu Heidegger. Antworten und Fragen, Frankfurt a. M., 2009, 145-62. O autor conclui
que, a partir do pensamento heideggeriano nos Beiträge zur Philosophie, que o pensar
filosófico necessita de uma própria e original “experiência religiosa”, para colocar de
modo mais fundamental a questão do ser. Para além de um misticismo racional, isto
quer dizer que a teologia do último Deus é uma radicalização da questão de Heide-
gger e de temas fundamentais do seu pensamento, por exemplo, a compreensão do
ser (Seinsvertändnis). Veja também, C. Esposito, L’essere (di) Dio nei «Contributi alla
filosofia», in Heidegger. Storia e fenomenologia del possibile, Bari, 2003, 315-32.
162 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), Frankfurt a. M.:
Vitorrio Klostermann, 2003, p. 405; tr. esp. Aportes a la filosofía. Acerca del Evento,
Buenos Aires: Biblos, 2006, p. 325.
163 M. Heidegger, Martin Heidegger entrevistado pelo Der Spiegel, in Escritos Po-
líticos, Lisboa: Piaget, 1997, p. 233. Sobre o sentido desta polêmica declaração, cfr. F.
Dastur, Heidegger et la pensée à venir, Paris: Vrin, 2001, p. 94-95.

136 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Todavia, uma questão tão central não necessita ser, pri-
mariamente, investigada na perspectiva de reconstruir historio-
graficamente a controvérsia, malgrado seja sempre tentador que-
rer reforçar o não-dito e aclarar o enigmático em torno de afir-
mações a respeito da questão, como a alocução acima. Com isto,
somente se entrega, porém, a questão ao mercado das polêmicas,
em vez de fazer daquele não-dito o mais digno a ser pensado.
É que qualquer afirmação de um pensador não é compreendida
senão num sério esforço de pensamento, mas também porque
precisamente a questão do divino em Heidegger aponta para um
silêncio e para um recolhimento que não só torna a ser pensado
o mais digno, justamente na época do predomínio do ente na
sua pura efetividade e mera disponibilidade num arcabouço de
relações exploratórias e utilitárias, mas que constitui o mais dig-
no de ser pensado de modo inelutável por ser o mais abissal e
misterioso. Assim, nenhuma historiografia, menos ainda aquelas
que nutrem as controvérsias, estaria em condição de decifrar a
verdade da história comum aos homens e aos deuses, sobretudo
quando se está por se decidir outro início desta mesma história
por meio da chegada silenciosa e inesperada do sagrado164.
Por tudo isto, tal como é frequentemente sublinhado
por Heidegger, a compreensão do significado deste divino passa
não só pela experiência de um pensamento meditativo, que abre
o acontecimento historial e escondido de como os homens cons-
truíram sua morada sobre a terra na íntima referência com os
seus deuses165. Trata-se de um pensar que também é poesia, pois
é aquele que deixa ver, num jogo de relações entre os mortais e os

164 Cfr. M. Heidegger, »Wie wenn am Feiertag...«, in Erläuterungen zu Hölderlins


Dichtung, Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 1996, p. 76-77; tr. it., «Come quando
al dì di festa…», in La poesia di Hölderlin, Milano: Adelphi, 1981, p. 91-92.
165 Sobre o sentido de pensamento como meditação (Besinnung), cfr. M. Heideg-
ger, Wissenschaft und Besinnung, in Vorträge und Aufsätze, Sttutgart: Klett-Cotta,
2004, p. 64-66; tr. por., Ciência e pensamento de sentido, in Ensaios e conferências,
Petrópolis: Vozes, p. 58-60.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 137


divinos e entre os céus e a terra166, cada qual destes elementos se-
gundo o seu próprio aparecer, salvaguardando a essência de cada
um destes quatro elementos e o mistério da simplicidade do jogo
de íntima pertinência entre ambos. Nisto, mostra-se que o divino
pertence essencialmente ao mundo familiar, enquanto o habitar
dos homens sobre a terra e debaixo dos céus, como aquilo de ain-
da há de mais estranho e desconhecido167, apesar da precedente e
longa história do Deus cristão e do Deus metafísico.
Daí o recurso à poesia de Hölderlin, a quem Heidegger
considera aquele que pensou mais profundamente, numa palavra
poética, o desenraizamento da história ocidental e vislumbrado
o destino desta história a partir da intimidade desta com o di-
vino em suas várias faces168. Então, para além de Kierkegaard e
Nietzsche, a poesia de Hölderlin teria trazido à palavra que no
seio das densas trevas ou no interior do deserto que avança sem-
pre mais – acontecimento histórico que todos os três teriam so-
frido no pensar e poetar, cada qual a seu modo -, está por vir, em
modo silencioso, uma iluminação de algo já muito antigo, porém,
totalmente desconhecido, como o resplender repentino de um
raio, nomeado o sagrado. A instauração deste seria, justamente
no seu modo paradoxal de uma presença essencialmente vindou-
ra, condição para o princípio da história. E isto por ser a chegada
do sagrado o único evento ainda capaz de (re)configurar radical-
mente o tempo-espaço da existência humana, o sítio em que se
decide em caráter principial a “conjunção essencial (Wesensgefüge)
da história vindoura dos deuses e da humanidade”169.

166 Cfr. M. Heidegger, Bauen Wohnen Denken, in Vorträge und Aufsätze, Sttu-
tgart: Klett-Cotta, 2004, p. 144-46; tr. por., Construir, habitar, pensar , in Ensaios e
conferências, Petrópolis: Vozes, p. 130-31.
167 Cfr. M. Heidegger, «...dichterisch wohnet der Mensch...», in Vorträge und Au-
fsätze, Sttutgart: Klett-Cotta, 2004, p. 194-95; tr. por., “... poeticamente o homem
habita..”, in Ensaios e conferências, Petrópolis: Vozes, p. 176-77.
168 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 204; tr. esp., p. 171; “Wie wenn
am Feiertag...”, p. 74; tr. it., p. 90.
169 Cfr. M. Heidegger, »Wie wenn am Feiertag...«, p. 77; tr. it., p. 93.

138 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Mas o que se pensa de tão digno nesta experiência de
pensamento? Se tal dignidade se anuncia nesta perspectiva histó-
rica de uma decisão, no presente, a respeito do passado, em vista
de outro princípio do Ocidente, em que sentido fundamental se
toma a história? Como este sentido comporta a questão do divi-
no? Um trecho na célebre carta Über den »Humanismus«, oferece
alguns indícios para a resposta às perguntas acima, sem, porém,
dar-lhes uma resposta cabal. No entanto, trata-se de um escri-
to importante para a questão em discussão, justamente por nele
ter vindo a público, pela primeira vez, em que lugar Heidegger
questiona a questão do ser a partir da transformação após Sein
und Zeit. O trecho diz o seguinte: “... o pensar que pensa a partir
da questão da verdade do ser pergunta de modo mais originário
do que pode questionar a metafísica. É só a partir da verdade do
ser que se pode pensar a essência do sagrado. É só a partir da
essência do sagrado que se pode pensar a deidade (Gottheit). É só
a luz da deidade que se pode pensar e dizer o que deve nomear a
palavra ‘Deus’”170.
Ora, o trecho é, em certo modo, claro. Note-se que,
para o questionamento do significado da palavra Deus para os
homens, necessita-se operar a recondução a um prévio cada vez
mais originário: do mais próprio do divino (a deidade) para a
essência do sagrado; e desta para a verdade do ser. Trata-se, então,
de pensar o divino, naquilo que o caracteriza como um misté-
rio abissal, porém, a partir do evento, pelo qual o ser se mostra
historialmente na sua verdade, isto é, ilumina a sua essência. A
história, então, é entendida como a história do ser, isto é, o evento
em que o ser se lança, de época em época, mais profundamen-
te na recusa de si, abandonando o ente à pura efetividade – a
história da metafísica. Para aquém e no seio da metafísica, en-

170 M. Heidegger, Brief Über den »Humanismus« in Wegmarken, Frankfurt a. M:


Vittorio Klostermann, 2004, p. 351; tr. por., Carta sobe o humanismo, Marcas do cami-
nho, Petrópolis: Vozes,2008, p. 364.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 139


tão, desdobra-se um evento tão primordial que gera a história
do predomínio do ente e da busca da fundamentação última de
toda entidade num ente supremo, a própria metafísica, mas que
permaneceu não pensado por ela: o acontecimento da verdade do
ser (Ereignis). Justamente porque a este acontecimento perten-
cem fenômenos de esquecimento e abandono do ente da parte
do ser, a história ocidental qua metafísica é alijada da verdade do
ser, pois o esquecimento coloca o ente em primeiro plano como
algo cuja realidade se restringisse unicamente no estar diante do
homem ou na efetividade dada à mão, como se não houvesse
uma verdade do ser que lhe suportasse ao fundo171, legitimando
o ente como algo representável e produtível.
Para a questão aqui perseguida, é digno de nota que o
fenômeno do esquecimento do ser é o mesmo que faz surgir deu-
ses como causas ou explicações últimas do real ou ainda objetos
de uma comoção religiosa172. Assim, a metafísica é o longo cami-
nho pelo qual o Ocidente se desenraiza da verdade do ser e, como
isto, é o longo tempo em que faltam as condições fundamentais
para acolhimento do divino a partir da própria deidade. Grosso
modo, por causa deste desenraizamento, a metafísica somente
opera com um cálculo da deidade do divino, na medida em que o
ser humano promove uma divinização representacional e desfi-
guradora, certa forma de idolatria, pela qual se busca no uma ex-
plicação do real, mesmo que tal explicação seja o inexplicável173.
O mistério e o sagrado, dito com a compreensão cotidiana, é me-
ramente o incompreensível, mas a causa de tudo. Numa compre-
ensão mais refinada, o divino seria o para além de toda medida,
o desmedido, porém, que continua mensurado com a medida da
racionalidade humana e com os padrões sutis de mensurabilida-

171 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 115; tr. esp., 105.
172 Cfr. M. Heidegger, Besinnung, Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 1997, p.
240-41; tr. por., Meditação, Petrópolis: Vozes, 2010, p. 200.
173 Cfr. M. Heidegger, Besinnung, p. 239-40; tr. por., p. 199-200

140 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


de da causalidade. Sem a verdade do ser, então, a metafísica não
pode ser senão o envio e a consumação histórica de uma profun-
da ausência e silenciamento do divino, confunde-se com o de-
senvolvimento de um “a-teísmo” (Gott-losigkeit) que está inscrito
na sua estrutura, mesmo quando o seu destinar-se encontra com
o Cristianismo. Esta inscrição, entretanto, não diz que a metafí-
sica se constrói na base da denegação da divindade ou que tenha
crescido na perda de Deus. Ao contrário, somente diz que, pela
metafísica, enquanto a possibilidade pela qual os homens erigem
a sua existência histórica, esta está assinalada por uma profunda
“ausência de fundamento para a deidade dos deuses”174. Sem um
saber da verdade do ser, então, para os homens não seria claro
que mistério originário a palavra Deus significa, não pela falta
de correta fundamentação teórico-metafísica-teológica, mas sim
porque a essência metafísica do homem, historicamente deter-
minada como aninal rationale, não é ainda apropriada para um
encontro decisivo com o divino a partir de sua deidade.
A metafísica, então, é um evento histórico que interdita
um saber essencial sobre o ser e a deidade dos deuses. Mas por-
que, ao mesmo tempo, interdita uma plena transformação da es-
sência humana. Enquanto, pois, o homem compreender o seu ser
como animal racional, será sempre um animal metaphysicum175.
E, como tal, como se mostra no fim da metafísica, é o sujeito que
entrega a sua essência, em maquinações e vivências, ao querer
dominar de modo ilimitado e gigantesco o ente, por meio da
representação, objetificação, produção e asseguração e planifica-
ção técnicas176. Com a violência deste poder, outrora não visto

174 M. Heidegger, Besinnung, p. 237-38; tr. por., p. 197. Tradução ligeira-


mente modificada.
175 Cfr. M. Heidegger, Einleitung zu »Was ist Metaphysik?«, in Wegmarken,
Frankfurt a. M: Vittorio Klostermann, 2004, p. 367; tr. por., Introdução a “O que é
Metafísica?”, Marcas do caminho, Petrópolis: Vozes,2008, p. 379.
176 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p.135-36; tr. esp., p. 120; Die Zeit
des Weltbildes, in Holzwege, Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 2003, p. 95; tr.
por., O tempo da imagem de mundo, in Caminhos da Floresta, Lisboa: Coluste Gul-
bekian, 1998, p.119.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 141


sem a emergência da técnica moderna, instaura-se uma crescente
desertificação177, isto é, o tempo de uma nova ordenação, na qual,
na forma do mais apressado e mais amplo progresso, tudo o que
é, somente o é como meio para que aquele poder de asseguração e
planificação se faça superponte, cada vez mais. Nisto, propaga-se
o mais extremo esquecimento da verdade do ser. Assim, o animal
metaphysicum é a figura histórica da humanidade adestrada para
o controle pelo cálculo do ser do ente e para a planificação, do
homem inapto, em sua essência, para o mistério qua mistério.
Ele há ser, por natureza, um sem-deus, por sua existência ainda
não ser o tempo-espaço do mistério do ser e, consequentemente,
daquela deidade esquecida ao longo da história da metafísica.
Por isto, aquela redução à verdade do ser não é só necessária para
compreender quem seja o divino a partir de sua deidade, mas
também quem seja propriamente o homem a partir de uma deter-
minação mais originária de sua própria essência.
Esta recondução, entretanto, diz respeito à decisão fun-
damental de dispor-se, em um tempo que é urgente a superação
da metafísica, de “converter-se no fundador e cuidador da verda-
de do ser, ser o aí (o Da do Da-sein) como o fundamento usado
pela essência do ser mesmo: o cuidado (Sorge)”178. O homem, vin-
douro em sua própria essência não é só aquele que busca a verda-
de ser, esquecida e nem sequer pressentida nos tempos do cálculo
e planificação, mas que também a guarda e a custodia no modo
de um dipor-se a ser o mais próprio de si mesmo179, ofertando-se
ao ser mesmo. Deste modo, no pensamento da história do ser,
a essência mais originária do homem se anuncia e se confor-
ma na disposição fático-existencial do homem ser tomado pelo

177 Cfr. M. Heidegger, Das Ereignis, Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann,


2009, p. 101-102.
178 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 16; tr. esp., p. 31. Tradução minha.
179 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 17-18; tr. esp., p. 32-33. Inclui a
referência, no final do parágrafo, aos traços fundamentais da essência humana segundo
o pensamento da história do ser.

142 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


acontecimento da verdade do ser, de tal forma que o seu ser se
definira numa essencial insistência em abrir sua existência como
o tempo-espaço em que justamente este acontecimento é guar-
dado e protegido. Nos termos da carta Über den »Humanismus«,
que sintetiza esta essência já pensada a partir da verdade do ser
com a seguinte afirmação: “ek-stático postar-se no interior da
verdade do ser (Sein)”180. Em outros termos, mas como o mesmo
sentido, como é salientado na meditação 197 dos Beiträge, tal ex-
posição no interior na clareira do ser (Sein) é obra da insistência
(Instängikeit) no acontecimento de surgimento e essencialização
do Da-sein, que é a origem da propriedade (Eigentum)181. Assim,
insistindo em ser o tempo-espaço do acontecimento da verdade,
homem se transforma em si mesmo, o que significa a passagem
do animal racional ao Da-sein e, concomitantemente, a supera-
ção da metafísica. Todavia, esta transformação da essência, em
primeira instância, não compete ao homem182; aquela decisão
não está em suas mãos, como estaria à escolha do sujeito como
fim e meta por ele estabelecida por meio de sua vontade de po-
der. Primeiramente, compete-lhe a insistência em assentar sua
abertura na clareira em que, de intensificação em intensificação
de sua retração, o ser mostra a sua verdade; sua tarefa é oblação
de sua própria existência, deixando ser solicitado pela essência
ser mesmo (o cuidado) para a obra de conformar-se segundo o
traços fundamentais de sua essência: ser buscador (Sucher), cui-
dador (Wahrer) e custódio (Wächter) da verdade do ser.
Por conseguinte, a metafísica, não sendo saber originá-
rio sobre a verdade do ser, também não é o lugar de uma autên-
tica experiência do divino, como também não é o envio históri-
co em que os homens sabem de si mesmos de modo originário.
Obstruindo o acesso à verdade do ser, a metafísica obstrui a che-

180 M. Heidegger, Brief über den »Humanismus«, p. 325, 330; tr. por., p. 338, 342.
181 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, 319-20; tr. esp., 259.
182 M. Heidegger, Brief über den »Humanismus«, p. 330-31; tr. por., p. 343.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 143


gada e a ausência do divino, impede que os homens cheguem a
ser si mesmos e, assim, até agora barrou o encontro entre os ho-
mens e os deuses, dos céus e da terra. Ela se põe fora do medium
mesmo ou hiato abissal, onde tal encontro é possível. Apesar de
tudo isto, o acontecimento, que está na base da metafísica, base
como fonte e origem, não pode ser julgado como negativo, como
também não é positivo. Nenhum julgamento aqui é conveniente,
mas sim compreender uma ambiguidade que não se pode elimi-
nar. Se de um lado a metafísica é a história do esquecimento do
ser, de outro, considerada desde o seu fundamento, ela é o evento
mesmo em que o ser apropria do que é mais próprio. Ela, então,
é ainda o lugar onde se pode saber que a história do ser, como
dito, é aquele desdobrar e anunciar de sua verdade, mas este é o
evento em que ser se recusa, iluminando-se numa ocultação, cada
vez mais intensamente.
Este saber, então, é o saber da recusa. Pela recusa
(Verweigerung), o ser se revela na sua verdade misteriosa, a saber,
como clareira de ocultamento abissal. Assim, neste recusar no
mistério de seu ocultamento, o ser não se aniquila em um nada
negativo, mas sim se apropria183 de sua essência. Esta, porém,

183 Embora constantemente na literatura e nas traduções portuguesas, em especial


no Brasil, acentua-se a compreensão do termo Ereignis (o acontecimento da verda-
de do ser) como acontecimento apropriador, deve-se ressaltar que este significado de
apropriação (Ereignis como Er-eignis, Er-eignung como constante Heidegger grafa,
remetendo ao verbo sich eignen, apropiar-se), no etanto, é secundário. A este respeito,
são elucidativas as observações de E. Carneiro Leão, O último Heidegger, Ereignis
por Παρουσια, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014/2015, p.
16: “... o primeiro uso de Er-eignis é por à vista, mostrar. Aqui, Er-eignis transmite um
processo que se abre e se deixa ver, que se mostra e ostenta, possibilitando a visão, que
dá, portanto visibilidade, tornando possível uma visão. Trata-se de um processo que
faz aparecer e deixa sair do encoberto e revelar-se. E somente por manifestar e mostrar
que Er-eignis pode significar, em decorrência, evento, acontecimento mas primordial e
principalmente designa processo de fazer aparecer, de dar lugar, de revelar”. Primeira-
mente, Ereignis diz a revelação do oculto do ser. Como iluminação do âmbito oculto
de outro princípio da história do ser, pois, que Heidegger defini o sentido primordial
do termo em questão, como em M. Heidegger, Das Ereignis, p. 147.

144 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


não é um gênero ou abstração qualquer, mas uma vigência que
vige ao se retrair, afastando-se e diferenciando-se de qualquer
entidade. O ser, pois, se essencializa, na medida em que à sua
verdade pertence originariamente a ocultação promovida pela
sua vigência no modo mais próprio, a recusa. Por isto, o ser não
é, como é o ente (Das Seinde ist); o ser vigora (Das Seyn west)184;
e nem mesmo o ser, aqui, é o ser da metafísica, de tal modo que
nem a subsistência em si mesma, mesmo que absoluta, realíssi-
ma, é digna de dita, de ser nomeada como tal. Mas somente um
acontecimento antigo, arcaico e primordial (o ser é Seyn). Sendo
este acontecimento da verdade como recusa o mais originário,
é este o mais digno de ser pensado daquela experiência acima
acenada, pois nisto o ser se concede como o mais misterioso. E,
no entanto, é uma concessão é indigente, na medida em que se
dá só enquanto é acolhida e fundada, pois ela requisita e interpe-
la o homem no seu ser (o Da-sein) para se decidir como o sítio
da verdade do ser185. Esta vigência ocultante e recusante, pois,
faz do homem o fundador da verdade do ser, lançando-o para
si mesmo. Por isto, o ser, justamente na sua recusa, precisa do
homem. Mas não só, precisa também do divino, pois também,
nesta mesma recusa, o ser se revela como plenitude de doação
de si mesmo na forma de presença, fuga e advento dos deuses. A
doação é também feita aos deuses, solicitando deles o resguardo
mais profundo de seu mistério, na medida em que eles revelam
sua deidade no jogo de subtração entre fuga e advento. De ambos
do lado, da possibilidade dos deuses serem propriamente deuses,
segundo a sua misteriosa deidade, como da possibilidade dos ho-
mens serem propriamente homens, no fundamento originário de
seu ser, a recusa é a condição destas possibilidades, na medida
184 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 74; tr. esp., p. 74. Observe-se que
o ser, pensando como Ereignis ou o acontecimento da verdade do ser, é questionado
como a origem abissal e arcaica de qualquer ente. Por isso, Heidegger preferirá grafá-lo
como Seyn e não Sein, como regula a moderna ortografia do alemão.
185 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 407; tr. esp., p. 327.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 145


em que é “a suprema nobreza da doação e o traço fundamental
do ocultar-se”186, constituinte da verdade ser. A indigência do ser,
como concessão de uma recusa, doa tanto os deuses como os ho-
mens para si mesmos. Para ali, então, para essa doação abissal da
recusa, deve ser reconduzida a questão do divino e do humano,
assim como da relação de ambos, revelando o que cada um é e
possui por próprio e abissal, já que é a propriedade mediada por
esta recusa, num jogo íntimo e unitário de recepção e oblação.
Ora, saber de modo fundamental um saber tão originá-
rio sobre o ser, já é saltar para a fora da metafísica. É lançar-se
para outro princípio da metafísica, lançada, agora, para as suas
fontes. O saber do ser como Seyn, portanto, é necessário para
outro início da história e para um vir-ao-encontro, novamente,
dos homens e dos deuses187. Contudo, este é um saber que está a
caminho; é saber que só inicia e prepara a transição. Que tran-
sição é esta? Esta transição é a passagem do primeiro princípio
da história do ser (a metafísica) para a história, ainda em decisão,
por isto, prévia de outro início do Ocidente. É a transição em
que os homens e os deuses se afastam de sua determinação me-
tafísica. Pensada a partir da questão do divino, é a passagem da
história, ao longo da qual “Deus é, enquanto o incondicionado e
infinito, o fundamento do ser (entidade) e causa do ente”188, para
outra história, em que o “Seyn é o acontecimento apropriativo
(Ereignis) do abismo do vir-ao-encontro da penúria dos deuses
e da custódia do homem”. Importante, porém, ressaltar que o
caráter preparatório desta transição se mostra de modo tão grave
e radical pelo fato que esta passagem é ponte para outra margem
da história, porém, da qual a margem mesma não está definida.
Tão provisório é o saber, porém, não só pelo fato que a margem
é indecisa, visto que a passagem exige o abandono da metafísica,

186 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 405; tr. esp., p. 325. Tradução minha.
187 Cfr. M. Heidegger, Besinnung, p. 254-55 ; tr. por., p. 212-13.
188 M. Heidegger, Besinnung, p. 242 ; tr. por., p. 202. Inclui a próxima citação.

146 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


mas também porque, de antemão, há ausência radical de pon-
tes. É que aqueles, mediante os quais a ponte se constrói, estão
também eles em apropriação: os homens e os deuses, mediante a
revelação da verdade do ser.
Deste modo, aquele salto que principia outro princípio,
saltando para além da metafísica, é o movimento de surgimento
do Da, do tempo-espaço da existência humana, porém, “enquan-
to pertencente apropriado no clamor”189, isto é, como sítio do
acometimento do ser (Seyn). Na disposição dos homens, portan-
to, de sofrer aquela transformação de sua essência que este saber
preparatório pode encaminhar a história para outro princípio.
Mas esta disposição tem que trazer em si nenhuma pretensão
de meta e fim, mas tão somente plena acolhida do principiar
do princípio, isto é, da revelação da doação oculta e imprevisível
do Seyn, deixando o princípio ser, como origem, o puro movi-
mento de desabrochar da verdade (do Seyn), sem proveniência
nem fim predeterminado. Tal radicalidade de disposição, porém,
precisa de um encontro, para não dizer de um embate com os
deuses. É que estes só podem ser os deuses também indecisos,
pois, no mistério de sua deidade, jamais são determinados e pre-
determináveis; com efeito, os deuses não são algo dado à mão,
nem mesmo um recurso às necessidades provisionais do homem.
Como o movimento de doação da origem, tal como acontece no
principiar de outro princípio da história do ser, assim são os deu-
ses: puro advento do mistério. Assim, tais deuses, tão diferentes
dos deuses precedentes da história da metafísica e das religiões,
se revelam, conforme o saber que se conforma nesta passagem,
na deificação (Götterung) de sua deidade. E isto não como fato
casual, mas porque é um traço fundamental do divino, posto que
eles são os que não apenas conservam como o mais digno de ser
questionado, mas aprofundam a abissal recusa do ser190. Sem os

189 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 236; tr. esp., p. 195. Tradução minha.
190 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 279; tr. esp., p. 400.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 147


deuses de outro início, então, impotente é aquele acometimento
da indigência do ser, que impele os homens à transformação de
sua essência metafísica. Em outras palavras, necessita-se que os
homens se coloquem à disposição do deuses:

À disposição dos deuses – o que significa isso? Quando


os deuses são o indeciso, não é porque ainda, antes
de tudo, o aberto da deificação permanece recusado?
Aquela palavra significa: À disposição para ser empre-
gado na inauguração desse aberto. E os empregados
no modo mais rigoroso são aqueles que devem pre-
determinar a abertura desse aberto e deixar atuar sobre
eles a tonalidade afetiva, à medida que eles pensam
originariamente a essência da verdade e a elevam à
questão. À ‘disposição dos deuses’ – isso significa: estar
muito longe e fora – por fora do corrente do ‘ente’ e
de suas significações -; pertencer aos mais distantes,
para os quais a fuga dos deuses permanece na sua mais
ampla subtração o mais próximo”191

Por graça dos deuses, então, os homens estão muito


aquém e muito além da metafísica. Depende da teofania deles,
para que os homens possam, talvez, ainda chegar a este saber que
preparara a emergência de outro princípio, sabendo de si mesmos
como guardas e custódios do mistério do ser. “Os deuses são aque-
les que forçam o ser-aí (Da-sein), a guarda do homem; mas forçam
de um tal modo que sua indigência, a divindade que lhes é própria,
emerge do Seyn como acontecimento apropriativo (Ereignis)”192.
Assim, em certo modo, deles depende a história, sem, porém, que
os homens deixem de ser propriamente entes e agentes históricos
desta decisão em favor de outro princípio. Mas como? Em resumo,
por instaurarem algo último e derradeiro. E, assim, impelem a deci-

191 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 18; tr. esp., p. 33: Tradução minha,
grifos de Heidegger.
192 M. Heidegger, Besinnung, p. 242; tr. esp., p. 202.

148 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


são. E por que a decisão? Porque com ela, na síntese de Heidegger,
“a necessidade do ser é elevada a suma questionabilidade e a li-
berdade do homem, para que ele possa por no mais profundo a
realização de sua essência, impelida para baixo na a-bissalidade”193.
Eis a extrema necessidade de um Deus derradeiro.

2. O Deus derradeiro – quem é?

Pergunta-se: quem é esse enigmático Deus? Ou quem


seriam os deuses, já que Heidegger frequentemente também uti-
liza a expressão “os deuses”? De imediato, a resposta não é ne-
nhum Deus que tenha sido anunciado na história precedente,
sobretudo, o Deus cristão194 – o que Heidegger adverte já com o
mote, com o qual introduz a sexta seção do Beiträge zur Philosophie
(o último Deus, der letzte Gott). O último Deus, entretanto, não
se identifica com os precedentes, não porque seria um novo deus
que, em reação a esses, tomaria o lugar deles. Antes, a razão apre-
sentada é: ele é o totalmente outro (der ganz Andere) ou o mais
extremo195. A questão, no entanto, é definir em que consiste tal
“alteridade”. Com certeza, não sendo um deus que se coloca em
último lugar na fila dos divinos, não se trata da alteridade, como
a humana, advinda do reconhecimento da diferença quando os
semelhantes se colocam face a face. Então, a alteridade está fora
do âmbito de equiparação com os deuses metafísicos ou de com-

193 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 279; tr. esp., p. 400.


194 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 403; tr. esp., p. 323.
195 Para G. Strummiello (L’altro inizio del pensiero, p. 314), a tradução mais ade-
quada para a expressão “Der letzte Gott” seria “o Deus extremo”. Indubitavelmente,
a autora possui em vista o sentido dessa figura no pensamento da história do ser,
interpretando-a, para além de um conceito ôntico-metafísico, como o dar-se de uma
possibilidade extrema do ser.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 149


paração das tradições religiosas. Contudo, isso nada diz de es-
sencial a respeito dessa “alteridade”. A resposta presente na seção
dedicada à sexta junção (Fügung) da manifestação da verade do
ser toma ponto de partida do tempo-espaço da existência em
passagem, retendo, de início, essa estrutura enquanto o âmbito
de decisão da fuga e advento dos deuses196. De igual modo em
que a inessência do ente não atesta mera privação, mas sim como
o ser se entrega ao ente, protegendo-se na ocultação de toda ma-
nobra calculadora, assim também se pensa em relação ao fugir ou
vir do(s) deus(es): esses dois verbos denotam “algo originário, a
plenitude da concessão do ser (Seyn) na recusa (Verweigerung)”.
Como o ser, esse Deus, então, é o totalmente outro, porque ele
se recusa a toda e qualquer entificação (por exemplo, como sum-
mum ens), para proteger a essência do divino. Uma equiparação
entre o ser e o divino, no entanto, é interdita, não somente por-
que “o último Deus não é o Ereignis mesmo”197, mas principal-
mente porque, em relação ao ser (Seyn), há de se admitir uma
exacerbação ou radicalização da recusa198: “a maior proximidade
do último Deus apropria-se, quando o Ereignis, enquanto o hesi-
tante denegar-se (zögernde Sichversagen), intensifica-se na recusa
(Verweigerung)”199. O último Deus, então, é o mais recluso de toda
a recusa do ser, não no sentido de fechamento absoluto, ao ponto
de impossibilitar o aceno do misterioso presente no divino, mas

196 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 405; tr. esp., p. 325. Tradução
minha. Inclui a próxima citação.
197 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 409; tr. esp., p. 328. Tradução minha.
198 Consequentemente, admitir, como diz C. Esposito (L’essere (di) Dio nei «Con-
tributi alla filosofia», p. 330), a “insuperabile ‘autosufficienza’ del rifiuto” como o ser (de)
Deus nos Beiträge.
199 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 411; tr. esp., p. 330. Tradução mi-
nha, grifo de Heidegger. Faz-se notar que a expressão zögernde Sichversagen, até agora
traduzida por hesitante recusar-se, foi alterada em vista de evitar repetição do termo
“recusa”. A distinção será feita, justapondo à tradução o termo alemão. No contexto
da sexta seção da obra em análise, tenha-se em mente que Verweigerung conecta-se à
recusa do divino, enquanto Versagen aponta para a recusa do ser como tal.

150 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


totalmente ao contrário, porque é justamente o que possibilita tal
aceno, ao extremar a recusa. Nesse velamento extremo, que retrai
a toda apologética, a qualquer fundamentação, normalmente, ba-
seadas na categoria de causa sui, e às tentativas ou à vontade de
comprovação, então, residiria a alteridade desse Deus em relação
aos revelados ou aos convertidos em objeto da razão.
Ora, daqui se entrevê que há a pretensão de pensar o
divino fora de qualquer discurso da fé (teologia) ou onto-teoló-
gico (metafísica)200, mas sim na (inter)dependência do ser como
Ereignis, como se o ser fosse o dorso do divino que passou201, in-

200 M. Zarader (A dívida impensada, Lisboa: Piaget, 1990, p. 150-59) demonstra


que o Deus, que é entrevisto pelo pensamento heideggeriano, já não é o Deus dos filó-
sofos nem o Deus bíblico. Com efeito, o último Deus não se identifica com uma causa
sui absoluta. Também Heidegger evita pensar a questão de Deus a partir da histórica
aproximação do Deus redentor e salvador à ontologia grega, mantendo uma separação
entre fé cristã e pensamento, como também se recusa pensar ambos (o ser grego e o
Deus divino, der göttliche Gott) conforme a estrutura onto-teo-lógica da metafísica (cfr.
M. Heidegger, Identität und Differenz, in Identität und Differenz, Frankfurt a.M.:
Vittorio Klostermann, 2006. p. 64, 77; tr. por., Identidade e Diferença. In Martin Heide-
gger. Conferências e escritos filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 191, 199) . A
questão do ser, para ele, deve permanecer uma questão grega e questionada a partir da
experiência do impensado da essência da metafísica, o qual permite que essa seja a uni-
dade do ôntico e do teológico. Contudo, a autora acima citada, nas páginas seguintes,
tenta mostrar que, quando Heidegger esforça por manter o antagonismo entre Deus/
ser, fé/pensamento, teria se servido de categorias hebraico-cristãs. Ademais, Heidegger
não teria reconhecido essa herança, sobretudo, a influência sobre o seu pensamento da
teologia do Antigo Testamento e da mística judaica. Em relação a essa dívida impen-
sada, é pertinente a interrogação de C. Esposito (L’essere (di) Dio nei «Contributi alla
filosofia», 318): “Ci chiediamo però se qui – e a maggior ragione, poi, per quanto riguarda il
cristianesimo – più che di un impensato, no si tratti di qualcosa che è ben stato pensato, come
impensabile, appunto, o semplicemente impossibile”.
201 Paráfrase à narrativa bíblica do encontro de Moisés com Yahwé sobre a mon-
tanha (Ex 34, 18-23), de quem foi dado ver apenas as costas, depois de sua passagem
diante do patriarca. Moisés, pois, pereceria, se visse o rosto de Yahwé, já que nenhum
homem suporta estar face a face diante de toda a glória de Deus. O ser, então, seria as
costas do divino, isto é, a abertura finita que dele se pode experimentar historicamente,
porque a manifestação do divino mediante o ser como Ereignis é Kehre para a recusa
e ausência extremadas. Ao homem, portanto, está reservada a “face oculta” do ser do
último Deus. Cfr. J.-f. Courtine, Les traces et le passage du Dieu dans les Beiträge zur
Philosophie de Martin Heidegger, in Archivio di Filosofia 62(1994), Pisa – Roma, p.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 151


tervindo na história dos homens. Sem essa dependência do ser,
o divino não poderia divinizar-se: o Deus precisa do retraimento
do ser, sem o qual não se mostraria radicalmente distinto de toda
presença do ente, o “totalmente outro”. Absolutamente indepen-
dentes do ser, os deuses não seriam o retraimento do mistério.
Por essa razão, o último Deus é um divino que se encontra plena-
mente inserido na estrutura do Ereignis. Com efeito, é na oscila-
ção entre o clamor do ser, potenciado pela recusa do divino, e na
pertinência do homem a esse clamor, que se interpreta a fuga e
o advento dos deuses202. Por força mesma da exigência de pensar
até o fim a estrutura essencial desse acontecimento histórico, so-
bretudo, em relação a esse movimento de intensificação da recusa,
que entra em cena a figura de um Deus que remete a recusa do
ser para um nível mais extremo. Em virtude disso, então, os deuses
comparecem, na teofania dos Beiträge, na temporalidade da pas-
sagem, no advir discreto e silencioso ao homem, o qual já é, em
si mesmo, retirada fugidia na subtração. Todavia, é justamente na
intensificação da recusa, a qual permite pensar o divino a partir de
um evento instantâneo e fugaz, que o Deus se torna imprevisível
a toda antecipação lógico-metafísica, conquistando sua indepen-
dência e sua alteridade do Ereignis e de todos os demais deuses.
Sobre esse modo de se mostrar independente e, no en-
tanto, continuar precisando participar do Ereignis, para acenar-se

523-24, que nota como Heidegger toma em empréstimo figuras bíblicas. Aliás, em
concordância com esse autor, a razão apresentada logo a seguir para a introdução de
uma figura divina no pensamento da história do ser, nos Beiträge, não é a única. De-
monstrar a necessidade dessa introdução a partir da questão do niilismo, evidenciando
a decisão de pensamento que essa questão comporta para a crítica situação presente,
isto é o mérito desse estudo.
202 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 407-8; tr. esp., p. 327-28. O
dinamismo dessa estrutura, compreendido a partir do acontecimento da fuga e do
advento dos deuses, é resumido no seguinte modo: „Kehre ist Wieder-kehre“, “a viragem
é contraviragem”. O apelo do Deus (através do ser) ao homem requer que esse se volte
àquele, consumando a contraviragem ao guardar silenciosamente, no tempo-espaço de
sua existência, o aceno do divino.

152 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


no acontecimento histórico, aqui, não é permitido dizer muito.
Limita-se a reforçar o seguinte: trata-se de uma relação de ca-
rência: “o Deus extremo precisa do ser (Seyn)”203. O Deus carece
do ser, para apropriar o Da-sein como fundador da sua abertura
espacial-temporal e fazer dela o aceno do (extremo) abissal204. E,
no entanto, é um carecer jamais saciável, porque nele o ser como
Ereignis vira cada vez para seu abismo, tracionado pela passagem
do divino em sua recusa (mostrando-se como o centro da Kehre),
consequentemente, intensificando-a. Por outro lado, a pertinên-
cia do homem tanto mais se elevaria sobre o fundamento abissal,
oferecendo ao Deus, como se fosse a dignificação mais própria do
divino, a abertura do Da-sein, o entre de sua passagem em meio
aos entes e de acontecimento da história205. Assim, é o divino, ao
precisar do ser, que concede esse último ao homem. Na passa-
gem do último Deus, então, o ser é transformado no medium da
referência entre ambos (ou de luta entre os deuses e o homem).
Essa referência entre o homem e o divino, por conseguinte, seria
autenticamente experimentada somente na renúncia à assegura-
ção do divino e pensada como questão senão como a constrição
constitutiva do tempo-espaço da existência humana para a de-
cisão de dispor-se a um retraimento insuperável. Nesse sentido,
que é essencialmente espacial-temporal, em toda época, pensar
e existir é suportar o espaço da permanente “fuga e advento dos
deuses” e o instante fugidio e silencioso da passagem do último
Deus. Isso pode ser entrevisto no seguinte:

A recusa (Verweigerung) coage o Da-sein a ele mes-


mo como fundador do sítio da primeira passagem do
Deus como aquele que está a recusar-se (sichverwei-
gernden). Primeiramente, a partir desse instante pode
ser medido, como o ser (Seyn) enquanto o âmbito do

203 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 408; tr. esp., p. 327. Tradução minha.
204 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 409; tr. esp., p. 328.
205 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 413; tr. esp., p. 331.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 153


Ereignis deve devolver o ente àquela coação, em cujo
domínio do ente deve-se consumar a dignificação do
Deus. Nós estamos nessa luta pelo último Deus, isto
é, pela a fundação da verdade do ser (Seyn) como pelo
tempo-espaço do silêncio de sua passagem (não pelo
Deus mesmo somos capazes de lutar) necessariamente
no âmbito de poder do ser (Seyn) como apropriação e,
com isso, na amplidão extrema do mais agudo turbi-
lhão da Kehre”206.

3. Tempo e espaço da passagem do último


Deus

Mediante a citação acima, também se percebe neces-


sidade de compreender a temporalidade-espacial da incidência
do Deus no tempo-espaço da existência humana, para melhor
esclarecer em que modo a deificação do divino impele a história
para outro princípio. Em termos tempo-espaciais, esta deificação
se dá como passagem o último Deus. Primeiramente, é a passa-
gem do Deus que deve inaugurar a fundação da verdade. O que
significa isso? Paradoxalmente, isso é o sentido da ulterioridade
do último Deus, porque aquilo que é extremo, na verdade, é o
primeiro. Nesse sentido, o último Deus possui tal caráter porque
é pre-cursor207. A primeira passagem, a que a citação acima se
refere, portanto, não classifica a primeira de uma série de muitas.
Antes, o termo indica que, antes de tudo, esse Deus é subtração
tanto no que se foi quanto no porvir, impondo a constrição ao

206 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 412-13; tr. esp., p. 330-31. Tradução
minha, grifo de Heidegger.
207 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 405; tr. esp., p. 325.

154 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


homem de se apropriar enquanto Da-sein, como a “coisa primei-
ra” ou a “única coisa” de sua existência histórica. Mas essa subtra-
ção quer dizer que a verdade do ser está protegida na recusa mais
abscôndita, porém não significa que reside uma eternidade sem
fim; pelo contrário, significa que se eterniza somente aquilo que
entra no movimento finito da história, dando-se a reconhecer
como o mesmo, porém, cada vez, de um modo diverso208. Assim,
a qualquer momento, pode-se iluminar o aceno do divino e dar
princípio a outra época da história, como busca humana de fun-
damentar e custodiar a verdade. Aqui, a história toma o seu ca-
minho mais curto, porque a incidência do último Deus é a súbita
iluminação da recusa do divino, porém, não em si, mas como o
repentino relampejar do ser.
Com esse aceno, porém, o ente na sua totalidade é in-
serido no acontecimento da verdade, o qual, a partir de dentro,
ilumina-se como abandono do ser. Por isso, o ente é devolvido à
coação da incidência do ser e, nisso, o Deus vem a ser dignificado.
Ora, dignificar o Deus, então, é pensar o ente no seu todo a partir
de uma recusa mais extrema, assentando-o e abrigando-o nesse
fundamento abissal. Mas esse assentamento, por meio da qual a
dignificação acontece, é também o caminho mais longo da histó-
ria, porque aquele aceno do divino deve madurar na apropriação
histórico-epocal do homem209. Desse modo, na maturação do
primeiro instante da revelação da recusa, o divino percorre por
antecipação todo o curso da história. Explica Heidegger: “madu-
reza é a prontidão para tonar-se fruto e uma doação. Nisso aqui
se essencializa o último”. O fruto que o homem pode dar é a fun-
dação do Da como entrega do tempo-espaço, no qual se prepara
longamente a humanidade futura para ser capaz de receber o
divino do ser sempre como o último relance de uma extrema re-

208 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 371; tr. esp., p. 297.
209 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 410; tr. esp., p. 329. Tradução
minha, grifos de Heidegger. Inclui a próxima citação.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 155


cusa. Por conseguinte, a temporalidade da incidência desse Deus
é a história da atual passagem para o outro princípio e, conjun-
tamente, da humanidade, na qual o último do divino vigora pro-
priamente como último, isto é como ulterioridade (aquele extre-
mo para o presente que se cumpre exclusivamente como futuro).
Essa passagem é ainda imprevisível na sua demora: “O último
Deus é o princípio da mais longa história na sua mais curta via.
Necessita-se de longa preparação para o grande instante de sua
passagem [do último Deus]”210.
Desse modo, está-se diante de uma circularidade: o
último é aquele que, por ser o precursor, é capaz de transpas-
sar todo acontecimento da apropriação do homem. Assim, ele
pode consumar-se no fim. Contudo, ele chega ao fim, porque
é por-vir. Se assim não fosse, restaria como um fato do início.
Certamente essa oscilação entre último e primeiro se revolveu,
na seção anterior, na qual se discutia na espacialidade-temporal
dos por-vindouros, que são os primeiros homens já presentes de
uma humanidade que se define a partir do porvir, que anteci-
pam uma humanidade a advir, por isso, são os poucos e raros.
Por outro lado, segundo a epifania do último Deus na estrutura
dos Beiträge, em última instância, a resolução definitiva pertence
à temporalidade do divino. Nesse sentido, o último Deus é o
primeiro que há de vir e, por isso, como tantas vezes se insis-
te na obra, a decisão dos homens é apenas dar-lhe âmbito de
sua chegada ou de definitivo eclipse dos deuses e, com isso, do
obscurecimento do mundo. Apesar da decisão dos homens, me-
diante o seu tempo-espaço, participar essencialmente do Ereignis
do advento ou fuga do Deus, é prioritariamente a partir da tem-
poralidade do divino e, ao fim, da recusa do ser, que também se
deve entender a noção de passagem dos deuses. Assim, a fuga
dos deuses não é meramente o acontecimento que ficou para trás,

210 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 414; tr. esp., p. 332. Tradução minha.

156 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


embora a história da metafísica também tenha experimentado a
chegada de um Deus, o qual Nietzsche declarou morto no seu
combate a todas as formas idolátricas. Do mesmo modo, o ad-
vento do último Deus não é fato adequado ao “ainda não se sabe
quando”, a um futuro como algo dado e, portanto, que não carece
de ser preparado desde já. Pelo contrário, a passagem do último
Deus diz que todo chegar é fuga, assim como, no fugir do ins-
tante do ser acontece o advento do divino. Para os deuses, passar
significa se revelarem como imprevisíveis e, nessa incontornável
imprevisibilidade, permanecerem em constante vacilação entre
advento e fuga. Nisso, dimensiona-se, então, a decisão de abrir o
tempo-espaço na existência humana para a passagem do divino.
Aqui, segundo os Beiträge, somente é possível projetá-lo como
uma dimensão, cuja medida deve respeitar a lei da deificação dos
deuses como sendo a constante oscilação entre fuga e advento e
que, portanto, obriga o homem a existir em contínua dimensão
“escatológica” – condição essa que retoma dos primeiros cursos
heideggerianos, em modo reelaborado, a temporalidade kairoló-
gica da vida fática. Fugir dessa condição seria desrespeitar essa
lei e ofender os deuses. Com certeza, nessa “escatologia da passa-
gem”, o principal modo de conceder-se a essa ofensa é entregar a
realização do tempo-espaço da existência ao pensamento calcu-
lador e maquinador.
Também a partir do que se poderia chamar de espacia-
lidade do último Deus se define a lei de dimensionamento do
tempo-espaço da existência em passagem e em transformação.
A respeito dessa espacialidade do divino poderia se resumir ao
seguinte: “A mais extrema distância do último Deus é a recusa
(Verweigerung) em uma singular proximidade”211. A ulterioridade
do divino, então, é experimentada também em afastamentos e
aproximações espaciais, não somente temporais, ou seja, como

211 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 412; tr. esp., p. 330. Tradução minha.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 157


fuga e ad-vento. Assim, o Da-sein é o sítio que subverte a com-
preensão dominante de raso e fundo, longe e perto. De fato, ter a
abissal e imprevisível recusa do divino como o mais próximo re-
vira pelo avesso as determinações fisico-matemáticas do espaço:
esse é o aceno do último Deus que, em estremecendo a existência
humana, portanto, torna-se próximo na forma de um ab-rupto
acometimento inerente ao existir; porém, não sendo a essenciali-
zação do ser, muito menos uma “propriedade” da existência, afas-
ta-se e recolhe-se na distância da imprevisibilidade do divino212.
Além disso, o último Deus unifica as duas dimensões, as quais,
na física, são apenas construtos teóricos relacionados posterior-
mente no cálculo do movimento. Contudo, o dimensionamento
da existência como o sítio da incidência do último Deus pede
algo muito mais além que essa subversão, porque requer a trans-
formação da existência em aceno do mistério da unidade entre
próximo e distante, existente na divinização dos deuses: “na es-
sência do acenar reside o mistério da unidade da mais íntima
aproximação e do mais extremo distanciamento, o dimensiona-
mento do mais amplo espaço-jogo-temporal do ser (Seyn)”213.
Em se tratando de um âmbito de espacialização do ser,
aquilo que se essencializa como o mais perto do homem é, tam-
bém, o que mais lhe escapa, tanto que nunca pode prolongar sua
existência numa eternidade infinda. Por isso, a lei para o dimen-
sionamento do tempo-espaço da existência voltada para ulterio-
ridade requer outra espacialidade daquela em que se instaura o
pensamento calculador, na qual proximidade equivale à justapo-
sição e, ao contrário, distância é disjunção. Para a espacialidade
que é o acolhimento da temporalidade passageira do divino e,
assim, imersa no retraimento do mistério, portanto, próximo é
aquilo que está intimamente conjungido com o ser, irreduzível
à mera representação do ser ou a conexão lógica dentro de um

212 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 262; tr. esp., p. 216.
213 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 408; tr. esp., p. 327. Tradução minha.

158 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


sistema. Por ser recusa e retração, a proximidade com o ser no
seu mistério deve ser necessariamente experiência da disjunção,
deficientemente experimentada no cotidiano como perda e re-
núncia e assim por diante. No entanto, todas essas expressões de
vazio seriam testemunhos da proximidade do mistério. Nos ter-
mos dessa paradoxal espacialidade, a mesma pela qual o homem
se põe concretamente em meio aos entes, na labuta ordinária de
sua existência, experimenta-se no Da do Dasein a outra “lógica”
da disposição da espacialidade ao Deus último. Essa correspon-
de à postura que, tantas vezes, está aquém e esquecida na época
em que o religioso é apenas um dos campos dominados pelas
vivências: não se deve esperar uma manifestação do sublime em
meio às coisas, certa potenciação extraordinária do ordinário. Ao
contrário, é no prosaico da existência cotidiana que tudo está as-
sentado no mistério da unidade da proximidade mais íntima e da
distância mais extrema.
Nesse caso, a ofensa contra os deuses seria, então, di-
mensionar a existência a partir do tempo-espaço, no qual os en-
tes aparecem exclusivamente na proximidade à mão, dispostas
para a utilidade, o cultivo racional e a planificação sem fim (na
religião, assim como também na arte, no agir político, o conhecer
e todos os demais âmbitos do espírito, ao serem interpretados
apenas como setores da cultura214). Em todo caso, é preciso dei-
xar aberta uma questão que, à primeira vista, sem senso, para não
dizer absurda: seria tal “escatologia” do pensamento da história
do ser uma valiosa provocação para repensar as diversas manifes-
tações atuais do fenômeno religioso? Essa provocação, em nível
mais fundamental, poderia colaborar a pensar a raiz escondida
das teologias vigentes? Em todo caso, uma coisa é certa: para
esse pensamento, já que o divino remete ao mais abissal do ser,
o banimento dos deuses da experiência cotidiana dos homens

214 Cfr. M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik, Tübingen: Max Niemeyer,


1998b, p. 36; tr. por., Introdução à metafísica, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 73.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 159


vai lado a lado com a destruição da terra, o obscurecimento do
mundo, a massificação do homem, a instrumentalização do pen-
sar, a total indiferença ao sentido da história como tal e da época
presente, em síntese, como está no curso de 1935, na máxima
despotencialização do espírito215. Tendo em mente essa concreta
situação fático-histórica, com efeito, que se deve tentar esclare-
cer a temporalidade-espacial dos por-vindouros como o sítio da
passagem instantânea do último Deus, assim como o sentido da
ulterioridade desse e do mistério de sua proximidade distante.

4. Deus ou deuses?

Por fim, é preciso retomar a pergunta a respeito de quem


é o divino, na sua forma no plural. Para tanto, não se deve des-
considerar o anteriormente exposto: sendo o divino uma extrema
recusa, a resposta não há ou, melhor, haverá uma resposta somen-
te à medida que se ofereça para esse Deus (ou deuses), por meio
do pensamento, o tempo-espaço para que ele possa acenar. E
mesmo que venha a acenar, algo que está sob a decisão do Deus
mesmo, o que acontecerá será a teofania de uma ulterior auto-
-subtração. Para além de uma teologia negativa ou positiva, isso
quer dizer: quem é esse Deus, se um ou muitos, mostra-se como
total indecisão (Unentschiedenheit)216. Nesse sentido, a noção
“Deus” guarda protegida e intacta a essência mesma do divino e,
com isso, aquilo que é o mais elevado para o questionamento. Por
causa dessa indecisão, então, justifica-se Heidegger, permite-se

215 Cfr. M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik, p. 34-8; tr. por., p. 71-5. A
situação fático-histórica descrita nessas páginas como desvigoramento epocal do espí-
rito, não como crise de fim de século, é analisada por J. Derrida, Dello Spirito. Heide-
gger e la questione, Milano: SE, 2010, p. 66-79.
216 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 437; tr. esp., 348-49.

160 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


referir ao divino também no plural, fazendo o discurso vacilar
ambiguamente entre “os deuses” e o “Deus” em sua ulterioridade.
Assim, não se trataria de determinar a quantidade de deuses, não
seria o caso interrogar se há um único ou uma multiplicidade de
deuses. Antes de tudo, o essencial é evitar toda a contabilidade
dos deuses, sob o título “mono-teísmo”, “pan-teísmo”, “a-teísmo”
e todas as outras concepções metafísicas em torno do divino ou
de Deus217. Ao contrário, estaria em questão experimentar pelo
pensamento a mais extrema constrição que o nome “Deus” no-
meia. Em resumo: “a pluralidade dos deuses não é subordinada
a qualquer número, mas sim à íntima riqueza de fundamentos e
abismos no sítio-do-instante do iluminar e do ocultar do aceno
do último Deus”. Se muitos ou um único Deus, isso não importa,
à medida que não está em questão apenas uma contabilidade,
mas sim se a existência histórica dos homens, na especificidade
de cada época, está pronta para acolher o divino em seu caráter
último, imprevisível e não decidido.
Desse modo, o último Deus ou os deuses pertencem
sempre à história, são os divinos dos homens em via, ora de con-
sumação, ora de transformação, como na época atual. Reverter o
pensamento ao abismo sem fundo na figura dos deuses, que sem-
pre podem se oferecerem na figura do Deus último para cada épo-
ca, significa, então, que não está impedido pensar o divino como
finitização do ser e no horizonte das contingências e vicissitudes
históricas do ser. Pelo contrário, isso seria uma exigência, sobretu-
do, para o tempo atual, que é ensejo longo e instantâneo de uma
ultrapassagem. Há tantos deuses, isto é, tantos abismos por serem
fundados, tantas as vias de deificação do(s) deus(es), tanto quanto
são os espaços-tempo dos homens que estão em travessia.

217 Cfr. M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie, p. 411; tr. esp.,329-30. Tradução
minha. Inclui a próxima citação.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 161


Referências218

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COURTINE, Jean-François. Les traces et le passage du Dieu dans
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Vozes, Bragança Paulista: USF, 2002. p. 39-60.

218 Excepcionalmente, as obras de Heidegger são ordenadas não segundo o ano


da publicação do volume consultado, mas sim conforme o número volume das obras
completas (Gesamtausgabe), indicado pela sigla GA.

162 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


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164 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Escasso ateísmo e vigoroso Deus em
Gianni Vattimo

Ricardo Delgado de Carvalho

Questionado se ainda cria em Deus, Gianni Vattimo,


filósofo e político italiano, responde “creio que creio”219. Diante
de resposta inusitada e paradoxal, o mesmo explica que o pri-
meiro crer refere-se a acreditar em algo que não se tem tanta
certeza, uma crença incerta. Já o segundo, indica um pensamento
convicto e certo. Como pode uma crença incerta que se tem cer-
teza? Não se trata de saber que se desconhece a exatidão de sim-
ples crença, mas de que a crença de modo geral está em terreno
incerto. Embora imediatamente pareça incoerente, o ‘creio que
creio’ abre portas para entender os pressupostos pós-modernos
desse filósofo italiano. Não apenas Deus está na incerteza, mas as
crenças derivadas desse acreditar, erigindo um problema de fun-
damento. Afinal, se as crenças são nossas concepções, Vattimo
questiona se são tão certeiras e seguras assim. E como estamos
imersos na cultura judaico-cristã por séculos, Deus possivelmen-
te esteja no âmago de muitas construções do pensamento e inú-
meras edificações institucionais do ocidente.
Não obstante, com Nietzsche – filósofo pesquisado por
Vattimo –, a crença em Deus sofre colapso e, junto à metafísica,
transformados em fumaça, começam a desvanecer-se. Quando o
filósofo certificou no aforismo 125: “Deus está morto! Deus conti-
nua morto! E nós o matamos!”220 não estava propagando o ateísmo
como se afirmasse a não existência de Deus. Se o fizesse, estaria
propagando uma verdade absoluta que encerraria uma estrutura

219 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 8.


220 NIETZSCHE, A gaia ciência, 1981, p. 131.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 165


do real, uma metafísica, que tanto combateu. “Onde quer que haja
algo de absoluto, mesmo que seja a afirmação da não-existência de
Deus, ainda existe sempre a metafísica, ou seja, justamente aquele
Deus que Nietzsche acredita ter descoberto que é supérfluo”221.
Segundo Vattimo, o que Nietzsche sustentava com o
anúncio da morte de Deus era a ausência de fundamento último
do real222. Desta maneira, sem critério fora do tempo, Nietzsche
afirmou que “somente o Deus moral foi superado”223 – uma ima-
gem de Deus, o Deus dos filósofos –, e que esta sombra moral
muito perduraria pela história. Assim, a anunciação da morte di-
vina, não exclui outras imagens do Deus do cosmos e abre portas
para novos sentidos e valores224. Para Vattimo, se aquela imagem
de Deus faleceu, não significa que a religião e a experiência reli-
giosa também estejam mortas.
Mesmo a velha imagem divina morta, Vattimo entende
que a crença em Deus foi poderoso motivo de racionalização e
disciplinamento dos instintos humanos que “permitiu ao homem
sair da selva primitiva do bellum ominium contra omnes225”226 favo-
recendo-lhe uma visão científica e técnica do mundo. Diante desse
mundo ‘organizado’, o humano civil descobriu-se sendo ludibriado
ao longo das eras, e viu Deus como grande responsável por essa vi-
são obscurecida. Por isso, Nietzsche admite que foram os próprios
fieis que mataram Deus, e esse assassinato ainda não terminou.

221 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 9.


222 Com esta concepção, Nietzsche vai contra o considerado pai do ateísmo, Par-
mênides, pois este ainda possuía uma visão metafísica, mesmo sendo materialista. Para
este filósofo grego, a ‘essência’ da realidade do mundo físico estava no uno absoluto
(MINOIS, História do ateísmo, 2014, p. 47).
223 NIETZSCHE apud VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 19.
224 Valores que não são mais os niilistas, ligados à metafísica. Tais valores, devido às
verdades definitivas, dão à vida posturas morais ascéticas e pusilânimes, segundo Bilate
(Nietzsche, niilismo e verdade, 2008, p. 02).
225 Famosa expressão da filosofia de Thomas Hobbes: “bellum ominium contra omnes”
do latim, significando “guerra de todos contra todos”.
226 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 21.

166 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Surgem outros deuses, para fiéis e ateus

Com a morte desse Deus, o peso da salvação estava ali-


viado da condição humana, liberta de injunções religiosas qua-
se impossíveis e, agora, tornada condição corporal, terráquea.
Atualmente a salvação passa ao largo da ascese227, com o advento
de novos deuses. De acordo com Nietzsche, a vida valorada está
na Terra: “Agora, o que há de mais terrível é ultrajar a terra e dar
mais apreço às entranhas do inescrutável do que ao sentido da
terra!”228. Valorizar a terra, eis aí a proposta do super-homem, do
quase deus-humano. Conforme Almeida:

A terra é o lugar do sagrado em Nietzsche, lugar no


qual reside a possibilidade de uma transvaloração de
todos os valores, ‘religião dos espíritos livres’, onde
nós, humanos, nesse processo incessante de superação
e criação, nos tornamos deuses, sendo ao mesmo tem-
po artistas e obras de arte229.

Apesar da proximidade sacralizada das ideias de


Nietzsche, as quais ele mesmo combatia – parece ser este um
substituto à divindade, um novo deus –, este filósofo foi o primei-
ro lenhador da árvore da metafísica e Martin Heidegger o pró-
ximo (outro filósofo investigado por Vattimo). Para Heidegger,
o fim de Deus corresponde ao término da metafísica, que “é,
na verdade, a crença em uma ordem objetiva do mundo que o

227 Para Dany-Robert Dufour, a salvação continua a todo vapor através das receitas
alienantes dadas pelo deus Mercado, um deus que supervaloriza o egoísmo, o laisser-
-faire, a esquizofrenia e o acúmulo das ‘admiráveis’ mercadorias. Nesse Mercado divino,
repleto de bravatas hedonistas, Dufour questiona o sujeito liberal ou ultraliberal que se
diz ateu: “O que há de mais triste do que essas fanfarronadas atéias que não sabem que
obedecem aos desejos de um novo deus?” (DUFOUR, O mercado divino, 2008, p. 89).
228 NIETZSCHE apud ALMEIDA, Para além da morte dos deuses, 2009, p. 228.
229 ALMEIDA, Para além da morte dos deuses, 2009, p. 228, aspas da autora.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 167


pensamento deveria reconhecer para poder adequar tanto suas
descrições da realidade, quanto suas escolhas morais”230. Não há
mais uma ordem ideal de um mundo além das realidades empí-
ricas, e estas, engendram proposições científicas, mormente na
física. Se o ser corresponde ao ser das realidades científicas, então
a existência do humano não pode ser mais pensada como objeti-
vidade, como fez a ciência. Eis aí a autodissolução da metafísica,
já que o ser do humano não é objeto e nem pode ser pensado
com objetividade. Foi tratando o humano como ser-objeto que
se originou Auschwitz e Gulag, evidenciando que as consequ-
ências da metafísica na ciência são de ordens teóricas e prático-
-políticas. De acordo com Heidegger, a metafísica desprezou o
ser e elevou o ente: “[...] Também as coisas demoníacas e divinas
fazem parte do ente. Tudo isto não apenas é também, mas é mais
ente que as simples coisas”231. A linguagem conceitual construída
pela metafísica sobre o ente do ser passou a ter mais primazia que
o próprio ser, submetendo-o e esquecendo-o.
Como na natureza e na sociedade, o fim de algo propi-
cia o surgimento de outra coisa no pensamento; o óbito da me-
tafísica adveio da morte do Deus moral e abriu novos horizontes.
Nesse sentido,

Mais ainda do que a organização total da sociedade,


aquilo que desmente a metafísica e a torna impossível
como crença em uma ordem objetiva, estável e bem
fundamentada do ser é a explosão incontrolável das
imagens do mundo. A especialização das linguagens
científicas, a multiplicidade das culturas [não mais
unificadas hierarquicamente pelo mito eurocêntrico],
a fragmentação das esferas da existência e o pluralis-
mo babélico da sociedade de fins da modernidade fi-
zeram, de fato com que se tornasse impensável uma
ordem unitária do mundo232.

230 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 22.


231 HEIDEGGER, Conferências e escritos filosóficos, 1989, p. 30.
232 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 23-24.

168 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Esta série de eventos, incluindo o fim das metanarrati-
vas de Lyotard, mostram que a pós-modernidade verifica e for-
nece uma interpretação válida do mundo; mais uma, distante da
visão objetiva – esta também falecida. Graças a esses eventos, se-
gundo Vattimo, a religião e as experiências religiosas receberam
potência roborativa.
Levando em conta que a própria filosofia não pode tra-
tar de Deus objetivamente no mundo numênico (contribuições
de Kant e sua crítica da razão), nem negar a existência dele; que
não há mais narrativas centrais ou hierarquizadas e que a lingua-
gem “metafórica” pode legitimar algo ou desacreditar, o humano
é livre para associar ao objeto a imagem que desejar233. Desta
forma, não se é obrigado a dar crédito às metáforas que os do-
minadores criaram ou às metáforas hegemônicas, na expectativa
de depreciar as outras. Assim, pode-se compreender que a lin-
guagem própria e a metafórica não têm muitas diferenças, tra-
tando apenas de palavras em contextos apropriados. A liberação
da metáfora na filosofia, na poesia e em outras áreas científicas
evidencia a queda das instâncias de controle e a multiplicação
de narrativas para que “o diálogo continue”234. Como consequ-
ência, inúmeras criações surgem para legitimar antigos hábitos
humanos, sejam divindades relacionadas à fé ou ao materialismo
da metafísica, como visto anteriormente, ou simplesmente novas
interpretações sobre fé e materialismo.

233 Vattimo concorda com o pensamento nietzscheano, de que “todo acontecimento


do mundo orgânico é um assenhorar-se, e todo subjugar e assenhorar-se é uma nova
interpretação” (NIETZSCHE, Genealogia da moral, 2008, p.66). Se os fatos são, no
fundo, interpretação, o resultado lógico nos mostra que tudo são interpretações, e que
estas podem se transformar em crenças.
234 RORTY apud VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 26.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 169


A interpretação origina o fato

A manifestação da metáfora é consequência direta do


fim da metafísica e da morte do Deus moral. Esta radicalidade se
expressa igualmente no extermínio das “bases filosóficas do ate-
ísmo. Os filósofos hoje parecem ser, em sua maioria, irreligiosos
ou antirreligiosos somente por inércia e não em função de fortes
razões teóricas”235. Desde o Iluminismo, Deus tinha sido negado
porque não é experimentável cientificamente, ou porque fez par-
te de passado histórico ultrapassado da sociedade (positivismo
de Comte), no entanto, tais metanarrativas saíram de circulação.
Todas essas condições históricas, somadas à valorização plura-
lista das culturas multiétnicas, possibilitaram o renascimento da
religião. Estas mudanças culturais fizeram surgir novas religi-
ões, denominadas em conjunto ‘Nova Era’, como apontadas por
Terrin236, movimentos de regressão às raízes religiosas – reve-
lando temeridade e segurança, características psicanaliticamente
paternais – e grupos fundamentalistas, entre eles, os radicais.
Porém, Vattimo questiona se o descrédito que a meta-
física obteve como dissolução das verdades do ser, fundamenta
este retorno religioso. Como visto anteriormente, várias con-
dições históricas possibilitaram tal ressurgimento, mormente a
liberação da metáfora na busca de um sentido ‘particular’, e foi
justamente esse ponto que o fim da metafísica promoveu. O re-
viver religioso, viabilizado pela metáfora, impulsiona buscas por
experiências místicas assaz individuais, dando à fé o peso racio-
nal que essas experiências trouxeram, não havendo oposição en-
tre elas, mas interação. Porque não dizer que esse reaparecimento
também seja o da aposta pascalina237?

235 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 27.


236 TERRIN, Nova era, 1996.
237 Blaise Pascal, filósofo francês (1623-1662), argumentou que se apostarmos na

170 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


No entanto, a precaução de Vattimo está em mostrar
que a derrota da metafísica não se resume simplesmente na ‘re-
-validação’ de outro Deus, da metáfora, do mito, da ideologia ou
da aposta pascalina na fé. Se localiza, preferencialmente, no lega-
do de Heidegger; na discussão do ser como evento. Desse modo,
não há uma estrutura objetivando o mundo, em que as imagens
do pensamento são reflexos ou fotocópias dadas; ao contrário, o
ser está enraizado em um horizonte de eventos e acontecimentos.
“Poderíamos dizer, portanto, que os objetos da nossa experiência se
dão somente dentro de um horizonte e que este horizonte, como
uma luz que faz que as coisas apareçam, não é, por sua vez, obje-
tivamente visível”238. Como genitivo, o ser está no horizonte que
lhe pertence. Assim, um horizonte instável “na relação” com um
ser similar. Como corolário, na índole de intérprete, se “o evento
é o evento que acontece para nós hoje, aqui”239, o ser se move na
história da tradição a qual tenta entender e superar. Esta tradição
histórica se parece muito com as estruturas ontológicas da metafí-
sica, porém, agora, são reconhecidas como eventos históricos do ser.

Da semente às folhagens

Todos sabemos que uma árvore é basicamente compos-


ta de raízes, tronco, ramos, raminhos e folhagens. Assim como
a semente “traz” em potência uma árvore completa, a “semen-
te Deus” originou um complexo de pensamentos-troco e insti-
tuições-ramo-raminhos na multiplicidade de circunstâncias da

probabilidade da existência de Deus, mesmo sem prova empírica, a vida será mais pro-
veitosa que se formos ateus. Apostando que Deus existe, “se ganhardes, ganhareis tudo;
se perderdes, não perdereis nada” (PASCAL, Pensamentos, 1979, p. 95, seção 233).
238 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 31.
239 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 33.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 171


existência em sociedade ao longo da história; talvez a solidarie-
dade e democracia sejam respectivamente raminho e folhagem.
É esta a interpretação que temos de Vattimo ao compreender
“heideggerianamente” o Deus metafísico que a histórica nos le-
gou. Longe de darmos uma “objetividade” a essa metáfora, nossa
intenção na imagem se resume em sustentar que o humano, ao
decifrar o Deus histórico da ortodoxia, impulsionou uma série de
acontecimentos e edificações culturais.
Investigar todas essas construções histórico-cultu-
rais (são sobremodo abundantes), ultrapassa ao largo o objetivo
desse capítulo, sem contar que resvala na prepotência da razão.
Compreender tal árvore-sagrada é trabalho de vidas dedicadas e
décadas de investimento. Sendo assim, com as devidas precau-
ções e cônscios dos limites, optamos por enumerar algumas des-
tas obras dando prioridade ao tratamento de uma que Vattimo
enaltece: a história da salvação. Outro destaque: saber se deter-
minada construção é raiz, tronco, ramo, raminho ou folhagem
tomando parte na leitura do observador (talvez da observação
do leitor), ou na montagem “mais coerente” dos frutos-históricos
que o intérprete opta em traduzir.
A história da salvação é antiga para Vattimo, muito an-
tes da era cristã. Como nos mostra a antropologia cultural, tra-
ta-se da história do ser, do seu enfraquecimento, da experiência,
da secularização e outros eventos tendo como fundamento-raiz
o Deus metafísico. Refere-se a uma espécie de família arboral
semelhante e seus parentescos que originam o binômio sagrado-
-profano, ou antes, o sagrado se tornando profano. Assim, flores-
ceu a filosofia do ramo religião – um dos primeiros assassinatos
de Deus –, e daquela, a ciência moderna240. Desta forma, a secu-
larização, ou seja, o distanciamento do sagrado, é interno à histó-
ria da religiosidade, à sua tradição de aceitação e questionamento
da experiência religiosa.

240 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004; CHAUI, Convite à filosofia, 2000.

172 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


À vista disso, das germinações parentais, Vattimo en-
tende que há na sociedade uma decomposição do sagrado em
vários aspectos civilizacionais, a exemplo da ética protestante que
propiciou o capitalismo, estudada por Max Weber na obra Ética
protestante e o espírito do capitalismo; da força da ciência em virtu-
de do monoteísmo bíblico; do sentido da democracia graças aos
princípios cristãos de fraternidade; da separação entre público e
privado advindo das experiências religiosas; da Carta da ONU
com seus pressupostos religiosos; da interpretação autoritária da
Bíblia abrindo espaço para a simbólica e outros. Tais expressões
culturais estão vinculadas ao “passado religioso, não só por uma
relação de superação e emancipação, mas também, inseparavel-
mente, por uma relação de conservação-distorção-esvaziamento
[...]”241. No texto Deus ornamento, Vattimo declara: “[...] estou
convencido de que a história da salvação anunciada pela Bíblia
se realize nos eventos da história mundana [...]”242. Tais aconte-
cimentos faziam e fazem parte da história da salvação, seja em
Gioacchino de Fiore ou em Vattimo.
Gioacchino de Fiore, teólogo italiano do século XII –
no qual Vattimo se inspira para desenvolver suas ideias sobre a
história da salvação –, entende a salvação da Bíblia como “[...]
uma compreensão sempre mais ‘plena’, mais perfeita, mas não
simplesmente mais ‘objetiva’ e literal, da própria mensagem”243;
uma espécie de entendimento maior e melhor do anúncio da
mensagem bíblica. Isto, para além de uma leitura ou encontro ca-
sual, criou constituições e forneceu um modo de vida prático que,
com o decorrer do tempo, paradoxalmente, distanciou a própria
Bíblia. Vattimo alerta ser o próprio Deus se fazendo em Jesus
Cristo a iniciar sua dissolução transcendente; quando Deus, infi-
nito e perfeito, se tornou Jesus, mostrou-se finito e natural, origi-

241 VATTIMO, A sociedade transparente, 1992, p. 48.


242 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 55.
243 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 39.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 173


nando o dogma da encarnação244. Este dogma possibilitou uma
abertura para o futuro e construções de momentos históricos ao
longo do tempo. Assim sendo, as ocorrências histórico-sociais
foram sendo comparadas às figuras bíblicas – interpretadas ape-
nas como simbologias, não mais fatos literais – possibilitando a
formação de parábolas na edificação religiosa e social.
Pelo significado de salvação, Vattimo concebe que
Gioacchino de Fiore inferiu que a história humana passava por
um processo de transformação em fases. Utilizando as pessoas
da Trindade como inspiradora destas, o teólogo profetizou que a
fase que chegaria seria a do Espírito Santo, isto é, a liberdade245.
Para Vattimo, a “historicidade” descoberta pelo teólogo, “cor-
responderia ao caráter eventual do ser teorizado pela filosofia
pós-moderna”246, o que, pela “leitura dos sinais”, coloca a tercei-
ra fase como a época pós-moderna. No entanto, para Vattimo,
ainda não vivemos a plena fraternidade e a caridade, porém, se
o espírito sopra para onde quer ( Jo 3,8), mostra que as esco-
lhas constituem o ser pós-moderno, reforçando que a salvação
desta fase ainda se encontra em curso. De acordo com Vattimo,
pode-se dizer que Gioacchino de Fiore, distante de ser viden-
te, identificou os rastros da história, presumindo o aumento da
secularização e o fim da metafísica.
Isto posto, o ser da história da salvação que Vattimo
assevera é o mesmo que na atualidade está preocupado com: o
244 Vattimo argumenta que a dissolução da transcendência começou com São Paulo
na tese do kénõsis, mormente na Carta aos Filipenses 2,6-7. De outra feita, Vattimo
aponta que o Deus do Antigo Testamento não é o mesmo Deus encarnado no Novo
Testamento. “[...] o Deus totalmente outro ao qual se refere grande parte da filosofia
religiosa de hoje, não apenas não é o Deus cristão encarnado; é ainda e sempre, o velho
Deus da metafísica [...] (VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 53).
245 As três fases que Gioacchino de Fiore indica são: a do Pai, que vigora a lei, a
escravidão e o temor; a do Filho, sob o signo da graça, prevalece a servidão filial e a fé
e, por último; a do Espírito Santo, onde vivifica-se um estado de graça notável, tendo
a liberdade por insígnia, a caridade e o reino dos amigos (VATTIMO, Depois da cris-
tandade, 2004, p. 43).
246 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 44.

174 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


meio ambiente; os direitos dos animais; o respeito às diferen-
ças; os problemas relacionados ao ecumenismo e à violência e;
principalmente, a abertura para o “totalmente outro”, seja cultu-
ra, religião, Deus ou diverso. Todo esse processo manifesta o que
Vattimo denomina de pensamento fraco, ou seja, um pensamen-
to que não tem raiz sólida, palpável e imutável, um pensamento
que se constrói nos eventos, portanto, um pensamento pós-mo-
derno, com destino fraco.

Considerações finais

Gianni Vattimo reflete que o Deus morto é o Deus da


metafísica, o mesmo Deus que disciplinou o homem e também
lhe favoreceu o autoritarismo e um mundo imutável. Desta ma-
neira, o autor assevera que o Deus falecido é o herdado da cul-
tura antiga, não seu ente, em mutação, sempre renascendo. Este
renascimento revigorou o ressurgimento da religião na Europa e
no mundo. O “nós o matamos” de Nietzsche refere-se àquela ima-
gem moral, porque Deus continua sendo ressuscitado em novas
crenças, em pensamentos cada vez mais complexos e robustos.
O Deus da metafísica foi morto e os ateus dançaram em
sua tumba, porém, o próprio Vattimo afirma que tal dança está
assentada igualmente na metafísica, isto é, na crença “absoluta”
da ausência de Deus, o que também faleceu. Não se trata mais
de saber se Deus existe ou não, mas de novas interpretações que
ganham legitimidade pelas construções veiculadas. A pós-mo-
dernidade (com todos seus fatores e eventos) nos apresenta um
mundo secularizado, mas não irreligioso. A vida secular, em mui-
to, apresenta indícios da religião que continua presente em for-
mas dissimuladas ou evidentes. Assim, entrevemos que a própria

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 175


secularização, antes de comprovar a morte de Deus, reitera-o.
Porém, atualmente, libertos das imposições religiosas, podemos
escolher a imagem secularizada de Deus ou não.
Com a libertação da metáfora, fé e razão não são mais
opostas, mas interagem nas experiências do mundo que o ser
opta interpretar em suas eleições – segundo Vattimo, predileções
individuais ou políticas. Todo esse movimento do ser parece estar
contido na história da salvação que Vattimo lega de Gioacchino
de Fiore. Os acontecimentos ocorridos e que estão a ocorrer, de
certa forma, corroboram a história da salvação. O que vivemos
hoje é, de modo parco, o reflexo do pensamento de Gioacchino
sobre liberdade, caridade e fraternidade. Utilizando nossa livre
interpretação, aprendida com Vattimo, a história da salvação pa-
rece mostrar um vigoroso Deus, bastante atuante, a impulsionar
o fim da metafísica e a chegada da pós-modernidade.

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TERRIN, Aldo N. Nova era: a religiosidade do pós-moderno. São Paulo:
Loyola, 1996.
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Rio de Janeiro: Record,
2004.
VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio D’Água,
1992.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 177


O ateísmo e suas contradições
semânticas

Celma Laurinda Freitas Costa


Gláucia Borges Ferreira
Katiuska Florencia Serafin Nieves

Introdução

Na atual sociedade multifacetada e midiática, múltiplas


são as processualidades no modus de crer e de (des)crer. Variadas
exegeses foram oferecidas para explicar o mundo. Muitas são,
portanto, as epistemologias filosóficas e científicas, os saberes, as
experiências e as religiosidades. Nesse contexto de pluralidades,
o ateísmo – tema polêmico, delicado e tão antigo como novo –
destaca-se como uma doutrina e uma prática sociocultural “não-
-religiosa”, desinstitucionalizada e agnóstica, e desponta como
um campo de investigação no qual se apresentam as mais diver-
sas discussões, opiniões e concepções teóricas.
Desde a tradição clássica, quiçá de tempos subtraídos
pela memória dos ancestrais, às contemporâneas experiências
globalizadas, o ser humano vem recebendo diferentes formas
de investimentos para justificar a sua vida terrena e além dela, a
exemplo de dogmas religiosos e científicos e da própria proposta
do mercado de relações fluidas. Assim, o ideário explicativo da
dupla realidade (a vida e o que há depois da morte) compõe-se
de racionalização, imaginário, crenças, metafísica, desejos, sonhos
(pesadelos), religião sem o religioso, mercado religioso, filosofia,
arte, poética, estética, racionalidade virtual, descoberta científica
da física quântica, etc.
Com isso, tanto a metafísica divina quanto a metafísica
filosófica se (re)inventam em significativas interpretações e de-
Epistemologias da religião e relações de religiosidade 179
nunciam ressignificações semânticas sobre o sagrado e o profano,
antes possuidores de fronteiras nitidamente delimitadas, e que
passam, na atualidade, a ter relações justificadoras materiais-es-
pirituais e espirituais-materiais para satisfazer de imediato sub-
jetividades do religioso, do crente sem religião, do descrente e do
ateu. O vir a existir talvez seja uma condição humana e não uma
finalidade em si mesma.
Nas interfaces da razão, fé, crença e desejo de criativida-
de humanos, é de se perguntar que traços há no ateísmo que possam
implicar significados comuns com as religiões reveladas e o que essas
religiões guardam de aspectos característicos do ateísmo, pressupondo-
-se que a crença em algo tanto fundamenta as religiões reveladas
quanto o ateísmo. As religiões reveladas baseiam-se em verda-
des absolutas que constituem e determinam o conteúdo do modus
de crer, delimitando a tessitura das religiosidades tradicionais e
contemporâneas; enquanto o ateísmo, contrastando com a reli-
giosidade institucionalizada de Deus único – vivificado como ser
supremo na metafísica divina –, resulta da indiferença do indiví-
duo em relação à religião. O ateísmo, de regra, traz a ideologia de
que a matéria, para existir, independe de um princípio superior e
eterno. Por outro viés, o transcendente para o teísta, muitas vezes
não-religioso, é de outra ordem, a da metafísica filosófica, qual a
do ateu, que possui um modus de crer em algo (ou des-crer), em
doutrinas e dogmas constitutivos de instituições religiosas.
Considerando a possibilidade de um movimento dialé-
tico crítico-desconstrutivo (e não destrutivo) acerca das estrutu-
ras duais, polarizadas e dicotômicas da realidade social observa-
da, extensiva às religiões e ao ateísmo (crer, não-crer, des-crer),
busca-se com este estudo fazer uma análise teórica de algumas
noções e características fundamentais do fenômeno religioso e
do ateísmo, objetivando a identificação de que “crer em algo”
consiste em formas de crença ou (des)crença que entrecruzam
esses dois processos socioculturais (religiosidade e ateísmo).

180 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Pela concepção estruturalista, as polaridades conceitu-
ais (natureza-cultura, alma-corpo, homem-mulher, céu-inferno,
razão-fé, religião-ateísmo, etc.) dividem e hierarquizam o pen-
samento, a ciência, a religião e a arte, seja para definir subjetivi-
dades de um jeito de ser e conviver, seja para classificar o mundo
cientificamente, seja para estabelecer uma distribuição de poder.
Entretanto a dinâmica das relações sociais promove outras rea-
lidades, desafiando estudos criativos por outros moldes paradig-
máticos, a exemplo da teoria da desconstrução de Derrida, da
teoria da modernidade líquida de Bauman247, da religião invisível
de Luckmann248, da sociedade transparente e do religioso sem
religião de Vattimo249, da invenção do cotidiano de Certeau250 ou
da religião em movimento de Daniéle Hervieu-Léger251.
A partir de conceitos do ideário da sociologia e do fe-
nômeno religioso, a primeira parte deste estudo aborda as religi-
ões reveladas: crenças e modus de crer, destacando algumas formas
religiosas institucionalizadas que tradicionalmente definem um
sujeito crente por força da sua concepção ideológica, a fim de
entender, por outro lado, a deslegitimação da fé religiosa no ateísmo,
que, apesar da negação de Deus ou de qualquer ente transcen-
dente, aporta traços característicos de múltiplas expressões de
crenças. Por fim, vem o item contradições semânticas entre religi-
ões reveladas e ateísmo, que não significa negação e/ou oposição
de postulados, mas tem por objetivo apresentar outra forma de
abertura, que amplia a concepção de crenças e modus de crer para
compreender a existência.

247 BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade, 1998.


248 LUHMANN, La religión de la sociedad, 2007.
249 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004.
250 CERTEAU, A invenção do cotidiano: artes de fazer, 2014.
251 HERVIEU-LÉGER, O peregrino e o convertido, 2008.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 181


Religiões reveladas: crenças e modus de crer

As origens, crenças e desenvolvimento das grandes re-


ligiões do mundo passaram por diferentes etapas de concepções
para compreender o universo e a natureza dos seres humanos
como pessoas capazes de se elevarem espiritualmente (religiões
de diferentes dogmas e crenças), em pensamento (filosofias di-
versas) e no exercício da razão imanente e experiencial (as ciên-
cias e seus desdobramentos técnicos), rompendo primitividades
instintivas e barbáries, em nome da construção da sociedade/
comunidade, e criando, por eleições culturais arbitrárias con-
sensuadas, conceitos acerca da verdade da vida e das múltiplas
existências que nela se compõem de forma plural. Assim, contra-
ditoriamente, a realidade do universo e dos seres humanos pas-
sou a ser fragmentada, dividida e estruturada,devido a uma busca
profunda de unidade de sentidos, mesmo que em polaridades:
bem-mal, sagrado-profano, razão-fé, etc.
Em qualquer das fases do desenvolvimento humano
e religioso e do progresso científico, os indivíduos, possuidores
de subjetividades e de culturalidades, ainda que invisibilizado-
sem muitos momentos da história no jogo de poder, manejaram
ideias e pensamentos para decifrar o limite da razão, no seu sen-
tido filosófico e na acepção mais científica. A religião, antes tida
como um conhecimento acerca de tudo, desliga-se da filosofia,
que estava a seu serviço, e também passa a ser algo separado em
relação à ciência. A comunidade científica define a sua episte-
mologia de exigência de método, observação e comprovação de
objetos. Ao passo que a religião continua com a sua metafísica
e dogmas absolutos da verdade, ditada por um Criador (Deus)
supremo e definidor (julgador) das ações humanas.
Nas sociedades ditas cristãs, impõe-se a veneração ao
ancestral primeiro: Deus. Abre-se assim o mecanismo para com-

182 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


preender a dimensão espiritual dos seres humanos. Isso depois
de ultrapassadas as crenças no panteão de adorações de ídolos e
deuses. Surge então a institucionalização da religião, que se erige
a partir das narrativas fundantes (mitos) como teologia que se
motiva em dogmas e ritos; ritualiza-se a experiência religiosa.
De modo ilustrativo, a religião, desde as sociedades ori-
ginárias em Israel, forma um corpus arbitrário na comunidade
como meio de compromisso social e religioso. Nasce o Judaísmo.
Nele estão os dogmas assimilados nos pilares da fé em um Deus
único, cuja narrativa se fundamenta na Torá (Deuteronômio 6,4-
5). Do seio do Judaísmo, os cristianismos primitivos mantêm a
experiência do Deus único como referência de unidade espiritual
e salvação, a partir das narrativas oriundas da memória de Jesus,
que encarnava o Deus vivo, morto e ressuscitado.
Sem olvidar a espiritualidade histórico-temporal de
antigas civilizações, como a dos povos africanos e indígenas de
diferentes continentes que cultuavam (ou ainda cultuam) an-
cestrais e mitos diversos; de alguns povos árabes e muçulmanos,
que têm em Alá o Deus Sagrado, anunciado nas narrativas do
profeta Maomé pelo Islamismo; da Índia, com a diversidade de
deidades que constituem um sistema social e religioso à luz do
Hinduísmo, formadopor Brahma; do Budismo, que indica um
caminho prático de iluminação e libertação, com alcance medi-
tático e resultado em busca do nirvana. Essa diversidade de con-
cepões religiosas demonstra que os indivíduos constituem uma
organicidade múltipla de índole cultural, cuja dimensão espiritu-
al faz parte da cosmologia de sua existência. Albert Schweitzer,
refletindo sobre o tema aprendendo sobre a fé de cada um, afirma
que “as diversas formas através das quais a verdade foi revelada,
praticada, e que foram aceitas, estabeleceram, sempre, as caracte-
rísticas da busca universal”252.

252 SCHWEITZER apud BACH, As grandes religiões do mundo: origens, crenças e


desenvolvimento, 2002, p. 21.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 183


Em busca de compreender a natureza do universo, a me-
tafísica dos filósofos ocidentais, com as suas metanarrativas, dei-
xou um legado dicotômico: a relação com o saber, um mundo sem
Deus, em que o materialismo se propôs a dar respostas às inquie-
tações e explicar a natureza humana; e, por outro lado, o indivíduo
e sua crença religiosa, um mundo com Deus, no qual o indivíduo
transfere a sua precariedade humana a outrem (um ser divino:
Deus, deuses, ancestrais), tendo a religião como “um esplendor”
ou como “o ópio do povo”253. Contrastando com essa concepção,
Herculano Pires, numa visão pedagógica, faz a seguinte reflexão:

É assim que o materialismo aparece na História, como


uma flor de estufa, um produto artificial da razão, ela-
borado pelas elites intelectuais, sem jamais penetrar as
camadas profundas da vida social. É por isso que nunca
houve, e jamais haverá um povo materialista e ateu254.

A cosmovisão do mundo humano e da divindade apre-


senta-se sem fronteiras e sem divisões para os poetas, cuja lin-
guagem é a beleza, o prazer e a felicidade – aspectos que inte-
gram o manancial das religiões ou o atual maná dos religiosos
sem religião, inclusive dos ateus.
Dando sentido às vozes do poder sociocultural, a reli-
gião, no seu aspecto institucionalizado depreendido pelas ciências
humanas, “só pode ser um fenômeno humano, ao mesmo tempo
psicológico, histórico e social”255. Criam-se igrejas. Definem-se
fiéis. Estruturam-se conteúdos dogmáticos de fé. Escrituram-
se ritos. O lugar e o significado disso eclodem nos mais com-
plexos discursos de fundamentalismos religiosos. Em nome de

253 MARX, Manuscritos econômicos e filosóficos, 2004, p. 46.


254 PIRES apud INCONTRI, Pedagogia Espírita: um projeto brasileiro e suas raízes,
2006, p. 77.
255 COMTE-SPONVILLE, O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade
sem Deus, 2007, p. 23.

184 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Deus, sacralizam-se pessoas e ambientes, e santificam-se pessoas
mortas que realizaram obras milagrosas consoante cânones do
Catolicismo. Mas também se persegue e mata em nome de Deus,
como nas denominadas guerras santas.
Com visão funcionalista, Émile Durkheim explica que
“uma religião é um sistema solidário de crenças seguintes e de práti-
cas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças
e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja,
todos os que a ela aderem”256. De modo que o sagrado e o profano
são duas realidades separadas no mundo ordinário e que auxiliam
o indivíduo a superar a sua rotina por instantes extraordinários
promovidos pelos rituais nas cerimônias religiosas, o que, diale-
ticamente, dá sentido de vida ao fiel, pois a religião cria coesão
social, refazendo-se constantemente. Noutras palavras, afirma
Durkheim “se a religião engendrou tudo o que há de essencial na
sociedade é porque a idéia de sociedade é a alma da religião”257.
Com o avanço da formação do espírito científico na
metade do século XX, com a teoria da relatividade de Albert
Einstein, a ciência divide a crença, mas ao mesmo tempo lança
novas propostas de unidade a serem equacionadas: o mundo não
pode ser explicado somente pelo ferramental da razão científica.
A física quântica identificou novas aberturas e outras conexões
na natureza do ser e do universo.
A razão e a fé, a priori, são traduzidas como singula-
ridades separadas por hermenêuticas inconciliáveis – verdades,
portanto, não-absolutas:

Ao olhar a história da igreja moderna – e falo aqui


sobretudo da Igreja Católica, mas penso que também
não estou muito distante da história das igrejas cristãs
em geral –, vê-se que o desafio principal que ela teve

256 DURKHEIM, As formas elementares da vida religosa, 1989, p. 79.


257 DURKHEIM apud MINOIS, História do ateísmo: os descrentes no mundo oci-
dental, das origens aos nossos dias, 2014, p 14.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 185


diante de si foi a pretensão da ciência de valer como
única fonte de verdade258.

Todavia nenhuma das duas crenças separadas (ciência e


religião) logrou responder plenamente à busca da explicação da
natureza humana e do próprio universo – o que induz a dizer que
ambas as crenças são, pois, projetos de aberturas que se inscrevem
historicamente, provocando o indivíduo a rever ou transformar a
sua forma de crer.

Ateísmo: desletigimação da fé e outras


religiosidades

Weber259, dando primazia à razão e seus mecanismos na


cultura moderna, imprimiu outro modo de interpretar o mundo:
a predominância das ações racionais está no indivíduo. É o indiví-
duo que, em função de seus próprios conhecimentos e/ou valores
(estéticos, éticos, religiosos, sociais, culturais, políticos), dá senti-
do à vida e espera sentidos oriundos da expectativa e reação da
dimensão social. Na visão weberiana de racionalização, a religião
sofre uma mudança de significado sobre as intermediações com
o sobrenatural e passa a ser centrada no indivíduo. O carismático
religioso firma-se como um agente de dominação, cuja legitima-
ção é estabelecida pelo próprio carisma (distinção por qualidades
pessoais ou por dons), com probabilidade de obediência. Isto é,

Nenhuma dominação contenta-se voluntariamente


com motivos puramente materais ou afetivos ou ra-
cionais referentes a valores, como possibilidades de

258 RORTY; VATTIMO, O futuro da religião, 2006, p. 68.


259 WEBER, Economia e sociedade, 1991, p. 279-320.

186 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


sua persistência. Todas procuram despertar e cultivar
crenças em sua ‘legitimidade’260.

Diversas outras formas de legitimação da religião foram


manipuladas pelo jogo de poderes políticos e religiosos, e “as téc-
nicas do ‘fazer crer’ desempenham um papel mais decisivo onde
se trata daquilo que ainda não é”261. Criam-se – de acordo com
Certeau262 – instituições do real como formas visíveis da dog-
mática contemporânea (mídia, igreja, política, economia, esporte,
etc.). Entretanto Certeau também denuncia que vozes cotidianas
têm o seu sentido no mundo da crença e podem transformar as
histórias do crer, inclusive desvinculando-se de instituições re-
ligiosas. Ou seja, “o religioso não está no crer (modo), nem no
crido (conteúdo), mas nas articulações entre ambos, nas forma-
lidades que produzem conjuntamente, relacionando-os com as
demais condutas”. E “a descristianização não é, pois, necessaria-
mente uma extenuação do crer, mas uma saída do religioso”263.

As Igrejas, e até as religiões, seriam não unidades re-


ferenciais, mas variantes sociais em suas relações pos-
síveis entre o crer e o crido. Elas têm estado em con-
figurações (e manipulações) históricas particulares de
relações que podem estabelecer modalidades (formais)
do crer e do saber com as séries (quase lexicais) dos
conteúdos disponíveis264.

Pela secularização, decorrente dos meios de moderniza-


ção socioeconômica e cultural, do avanço de liberdade de cren-

260 WEBER apud LEMOS, A racionalidade moderna no pensamento de Max Weber:


religião e sentido da ação na vida cotidiana, 2015, p. 19.
261 CERTEAU, A invenção do cotidiano: artes de fazer, 2014, p. 258.
262 CERTEAU, A invenção do cotidiano: artes de fazer, 2014, p. 260.
263 MAIGRET, As três heranças de Michel de Certeau: um projeto fragmentado de
análise da modernidade, 2000, p. 7.
264 CERTEAU, A invenção do cotidiano: artes de fazer, 2014, p. 258.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 187


ças, do pluralismo religioso e da consolidação de um mercado re-
ligioso global, segundo as críticas feitas por Ricardo Mariano265,
as religiões sofrem abalos em suas instituições e se reinventam
ritualisticamente com o objetivo de permitir o trânsito do reli-
gioso e do não-religioso em seus espaços de atuação da fé.
Também é de se pensar que o poder não estaria somen-
te com as instituições, mas com o indivíduo, que busca sentido
para a sua forma de existir, denotando-se que a força institucio-
nal levantada em nome da religião e de imposição de dogmas de
fé reconfigura-se em razão dos fluxos permitidos pela sociedade
informacional, que provoca um chamamento individual para es-
colhas de suas próprias crenças.
Assim, a legitimação da fé, outrora institucionalizada,
desloca-se, sem a ruína da igreja, para legitimar outras opções de
religiosidade do indivíduo, com base no fato de que

Cada um tem o direito de desenvolver a sua própria


forma de vida, fundada sobre sua própria percepção
daquilo que realmente é importante ou tem realmente
valor. Os seres humanos são chamados a serem fiéis a
si mesmos e a buscar a própria auto-realização. Em
que isto consiste, cada um, homem ou mulher, deve
em última análise decidir por si266.

A ideia de civilização traz em si a importância de ações


humanas (religiosas, políticas, culturais e sociais) serem forças
motrizes da estruturação dos grupos, comunidades e nações –
obviamente que nessas ações encontram-se outras ações que im-
pactam e geram conflitos ou guerras, quando a tolerância deixa
de ser condição ensejadora do estabelecimento pacífico e de res-
peito às diferentes crenças, sejam elas de natureza religiosa, sejam
de cunho científico. A ciência também se estrutura como um

265 MARIANO, Mudanças no campo religioso brasileiro no censo de 2010, 2013, p. 120.
266 ARAÚJO DE OLIVEIRA, Bases antropológicas da espiritualidade humana, 2016.

188 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


lugar de crenças, na medida em que delimita suas fronteiras na
dinastia da epistemologia do conhecimento, afastando a metafí-
sica (filosofia) e a religião.
Muito provavelmente, para se afastarem os efeitos da
barbárie ou o seu retorno, a tolerância pode ser o liame para
compreender a natureza múltipla das crenças. Nesse aspecto,
o ateísmo, como uma das esferas definidas pela negação da fé
em um Deus das religiões reveladas, foi tido como um período
de movimento contra a igreja, a política, o estado, e o “ateu um
inimigo irrecuperável da humanidade”, [...] “o elemento excluí-
do”267; porém, na verdade, o ateu é o outro diferente, se colocado
na perspectiva da sociedade multicultural, que se enaltece com a
alteridade. Segundo Walzer,

A tolerância de escolhas individuais e das versões perso-


nalizadas de cultura e religião constitui o regime máximo
(ou mais intenso) de tolerância. Mas não está claro se o
efeito a longo termo dessa maximização não será a di-
minuição ou mesmo a dissolução da vida dos grupos268.

No campo da religião e mesmo do ateísmo, a diferença


não é caso que implique apenas tolerância, mas motivo de per-
seguição em prejuízo ao direito de esclarecimento. Dizendo que
a tolerância não é apenas virtude do indivíduo, mas detentora de
caráter eminentemente político, Adauto Novaes elucida:

A prática da tolerância exige, assim, mais do que a


passiva aceitação de conviver com a presença da multi-
plicidade humana, ela requer a contínua construção de
uma identidade coletiva, que não pode jamais preten-
der ultrapassar sua própria particularidade e por isso
não pode pretender ser válida para todo o sempre. O
tolerante que apenas assume sua condição de inércia

267 NOVAES, Civilização e barbárie, 2004, p. 67.


268 WALZER apud NOVAES, Civilização e barbárie, 2004, p. 66.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 189


em face do resto do mundo em que vive se esquece da
força inequívoca de todos os mecanismos de exclusão,
eles mesmos produtores de sentido. A diferença, como
indica Walzer, exige a tolerância, mas também que ela
seja desenhada com todas as cores de nossa própria
humanidade, para que não seja empurrada para o cin-
za indistinto da barbárie.269

Diante do estruturalismo hierarquizado dicotômico, po-


larizado, oposição bipolar da filosofia, do pensamento, da ciência,
da sociedade, da religião, os pensadores modernos e críticos da
metafísica e do próprio estruturalismo funcional, como Derrida,
Bauman, Vattimo, apresentam que o indivíduo, no projeto do
liberalismo da sociedade contemporânea, pode entre “dizer sim”
ou “dizer não” optar por outra alternativa, saindo da imposição de
escolha entre um polo e outro da dicotomização da verdade ou
da realidade. O real tem outras nuances, cujas incertezas levam o
ser humano a fazer uma terceira escolha, mobilizado por novas
abstrações que passam a fazer sentido, segundo a ideia caracteri-
zada na teoria da desconstrução de Derrida.
Quanto à religião de mero culto e de ordem moral,
Derrida assevera que:

Em relação a todas essas forças de abstração e dissocia-


ção (desenraizamento, deslocalização, descarnação, for-
malização, esquematização universalizante, objetivação,
telecomunicação, etc.), a “religião” encontra-se ao mes-
mo tempo no antagonismo reativo e supervalorização
reafirmadora. Exatamente onde o saber e a fé, a tecno-
ciência (“capitalista” e fiduciária) e a crença, o crédito,
a fiabilidade, o ato de fé terão estado sempre compro-
metidos, no próprio lugar, no cerne da aliança de sua
oposição. Daí a aporia – uma certa ausência de caminho
de via, de saída, de salvação – e as duas fontes.270

269 NOVAES, Civilização e barbárie, 2004, p. 77.


270 DERRIDA, As duas fontes da religião. In VATTIMO, Gianni e DERRIDA,
Jacques (Orgs.). A religião: o seminário de Capri, 2000, p. 12.

190 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Na mutação da fidedignidade religiosa, a segurança onto-
lógica de previsibilidade da rotina da vida diária, à luz de Anthony
Giddes271, entra em oposição com a ansiedade existencial que evi-
dencia que “a aptidão da rotina diária para autoperpetuar-se tem
limites intransgredíveis no tempo”. Bauman272 sugere que “a mais
importante das realizações da rotina diária é precisamente cor-
tar as tarefas da vida conforme o tamanho da auto-suficiência
humana”. “Talvez no caso da religião mais do que em todos os
outros casos, porque a religiosidade não é, afinal, nada mais do
que a intuição dos limites até os quais os seres humanos, sendo
humanos, podem agir e compreender”273. E em outras palavras:

A ideia da auto-suficiência humana minou o domínio


da religião institucionalizada não prometendo um ca-
minho alternativo para a vida eterna, mas chamando a
atenção humana para longe desse ponto; concentran-
do-se, em vez disso, em tarefas que os seres humanos
podem executar e cujas consequências eles podem ex-
perimentar enquanto ainda são “seres que experimen-
tam” – e isso significa aqui, nesta vida274.

Do “desencantamento do mundo” pela racionalização de


sentido material, segundo Weber, ao “encantamento do mundo”
com as possibilidades finitas da autossuficiência humana, à luz
das reflexões derridadianas, as crenças, fundamentais pela tole-
rância e reconhecimento das diferenças de credos, evidenciam-se
com dupla natureza nas religiões reveladas, pois o crente que se-
para a sua teologia em relação a outro crente de dogma diferente
acaba, num sentido separatista, agindo pelo mesmo sentido que
o ateísmo, com sua espiritualidade singular (crença ou des-cren-

271 GIDDENS apud BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 209.


272 BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 209.
273 BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 208.
274 BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 213.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 191


ça), confrontando-se com a religião cristã. “A complexidade e as
múltiplas nuances entre correntes filosóficas e religiosas mostram
quão vagos são os limites que separam a crença da descrença”275.
Logo, a religião e o ateísmo não são duas realidades totalmente
separadas. Há crenças ritualizando esses dois fenômenos.

Religiões reveladas e ateísmo: contradições


semânticas

Na história da humanidade, relata-se que, desde a anti-


guidade, o indivíduo traz consigo o desejo da criatividade como
mola propulsora de construção de realidades e em razão disso
constrói uma sociedade cultural, integra-se em grupos e em co-
munidades, tendo por elo códigos arbitrários, porém ele também
é capaz de destruir sistemas de existência e de reconstruir outros
para dar curso à vida. Nesse emaranhando de fatores materiais ou
imateriais, a decifração do universo, do mundo e da natureza de-
safiou a razão humana para dar sentido a tudo que poderia estar
ao alcance do pensamento e do ato de fazer e crer.
A filosofia da inerência do próprio ser – metafísica
como um ápice do saber – serviu à teologizada cosmogonia; à re-
ligião em seus diversos momentos de diálogo entre o humano e o
divino; à arte como criatividade, que pode implicar respostas sem
se propor a isso; à poética, que revela o simbólico e as imagens
para desvelar o indizível; à ciência para que ela desse respostas da
verdade, mesmo subtraindo a força do real; e, porque não dizer,
à própria filosofia racional. Noutras palavras, “o homem é um

275 MINOIS, História do ateísmo: os descrentes no mundo ocidental, das origens aos
nossos dias, 2014, p. 31.

192 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


animal metafísico”276. Portanto, ele se constitui tanto de saberes
físicos como de verdades transcendentes e

A crença em Deus foi um fator poderoso de raciona-


lização e disciplina que permitiu ao homem sair da
selva primitiva do bellum omnium contra omnes, além
de ter favorecido a constituição de uma visão “científi-
ca” do mundo, que abriu caminho à técnica, com seus
efeitos de assegurar e facilitar existência277.

Nesse percurso, a filosofia clássica greco-romana se se-


para da religião e da ciência, definindo-se duas grandes fronteiras
da verdade: razão e fé. Facultou-se também a abertura de novas
compreensões em busca da verdade – empreitada que ainda per-
dura. Ademais, a filosofia também não logrou apresentar defini-
ção para o ateísmo – “O filósofo começa por uma constatação: o
ateísmo está por toda parte difundido; tais doutrinas foram, ‘por
assim dizer, semeadas entre todos os homens’”278.
As frestas que ocorrem tanto na ciência (razão) quanto
na religião (fé) permitem que as crenças, antes estabelecidas em
seus significados religiosos e científicos, respectivamente, possam
mudar, ser criadas e recriadas, como, por exemplo, no resultado
científico da técnica e do instrumento; na experiência religiosa,
em que o sagrado alimenta o mito e o rito; no milagre da oração,
que promove êxtase; na filosofia agnóstica, que constrói a sua
constelação; na filosofia metafísica, que se estrutura na dinastia
dos conceitos e das noções; no ateísmo, que se molda semantica-
mente em crenças de outra natureza (dialeticamente, do positivo
pela negatividade e do negativo pela positividade); etc.

276 SCHOPENHAUER apud COMTE-SPONVILLE, O espírito do ateísmo: in-


trodução a uma espiritualidade sem Deus, 2007, p. 127.
277 VATTIMO, Depois da cristandade, 2004, p. 21.
278 PLATÃO apud MINOIS, História do ateísmo: os descrentes no mundo ocidental,
das origens aos nossos dias, 2014, p. 47.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 193


Em toda essa processualidade, denota-se que o ateís-
mo, embora advogue um terreno próprio, aproxima-se de diver-
sos elementos das religiões reveladas, entre eles o significado das
(des)crenças. Falando de relações de perseguições entre crentes e
descrentes e de civilizações antigas, Georges Minois elucida que
“o ateísmo é tão antigo quanto as religiões”279 e faz o seguinte
destaque histórico:

É claro, a história do ateísmo foi moldada durante


muito tempo por suas relações com as religiões, que
o perseguiram, antes que ele mesmo se tornasse per-
seguidor em certas culturas não crentes do século XX.
[...] No que diz respeito ao cristianismo em particular,
que gosta de se gabar de seus 2 mil anos de existência,
o ateísmo goza de uma anterioridade que deveria lhe
valer respeitabilidade280.

Então o ateísmo data de uma existência anterior à vida


de Jesus e de seus desdobramentos no Cristianismo, nas suas di-
versas expressões institucionalizadas e em outras religiões revela-
das, de modo que o ateu crê em algo, pois é da natureza humana,
no sentido epicuriano, criar, crer e dar resposta a si mesmo no
mundo, porém pelo prazer (em busca da felicidade), sem negar o
transcendente do mundo e a vivência harmônica dos deuses, mes-
mo longe dos humanos. Por um ateísmo moral, “Epicuro (341
a.C – 270 a. C.) afirma a existência dos deuses: ‘os deuses existem,
o conhecimento que temos deles é uma clara evidência’”281.
Com ou sem a crença num Deus monoteísta, o mundo
ateísta apresenta uma realidade que não se contradiz de modo

279 MINOIS, História do ateísmo: os descrentes no mundo ocidental, das origens aos
nossos dias, 2014, p. 4.
280 MINOIS, História do ateísmo: os descrentes no mundo ocidental, das origens aos
nossos dias, 2014, p. 4.
281 MINOIS, História do ateísmo: os descrentes no mundo ocidental, das origens aos
nossos dias, 2014, p. 57.

194 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


contundente com o mundo politeísta (ou ateísta), pois “os pante-
ístas não acreditam num Deus sobrenatural, mas usam a palavra
“deus” como sinônimo não sobrenatural para a natureza, ou para
o universo, ou para a ordem que governa seu funcionamento”282.
E “em muitos sistemas teítas de fé, a divinidade está intimamen-
te envolvida nas questões humanas”283.
As questões humanas também são situações expe-
rienciadas no ateísmo por um processo de transferência não ao
transcendente, mas à visão materialista da vida, como algo muito
similiar às culturas não-crentes. De qualquer modo, a ideia ou
o som de Deus, com letra maiúscula, ou deuses, com “d” minús-
culo, ressoa e tem eco no espaço do mundo crente e do mundo
do não-crente (no território do ateísmo), como afirma Bach: “é
impossível conceber o universo sem princípios espirituais, e uma
pessoa não pode visualizar a vida sem que estes principios este-
jam funcionando como Causa Criativa. Até os ateus proclamam
a divindade, ao negá-la” 284.
No entanto, a semântica do “crer” (“des-crer”) do ateu
difere no sentido particular do “crer” da teologia cristã bultman-
niana, que preconiza que o “crer é compreender que não se per-
tence ao mundo, espaço da caducidade, do pecado e da morte
(de-mundização) e sim ao mundo do Deus da vida”285. Logo, o
conceito e a experiência que a vida proporciona ao indivíduo es-
tão no centro da existência para o religioso e para o ateu.
Independentemente da classificação acerca do ateísmo,
o que se percebe é que o ateu se constitui numa positividade de
crença(s) por acreditar em algo, ainda que as suas crenças possam,
à primeira vista, estar afastadas das ditas crenças experimentadas
pela maioria que está no solo das religiões. Ou seja,

282 DAWKINS, Deus, um delírio, 2007, p. 33.


283 DAWKINS, Deus, um delírio, 2007, p. 32.
284 BACH, As grandes religiões do mundo: origens, crenças e desenvolvimento, 2002, p. 13.
285 GIBELLLINI, A teologia do século XX, 1998, p. 37.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 195


O ateu parece não ter positividade e identidade, e, por
isso, se firma como negador, isto é, como aquele que
não possui teísmo algum. Curiosamente, entretanto, o
termo ateu serviu para designar não apenas aquele que
não crê em algo, mas aquele que acredita em algo que
não corresponde à crença da maioria286.

Na lógica da crença, como condição de “toda vida espi-


ritual”287, a exemplo do que Comte-Sponville fala sobre a espiri-
tualidade dos ateus, é preciso fazer duas distinções básicas sobre
a noção de crenças, seja para as religiões, seja para o ateísmo. No
ateísmo, há a pretensão de uma separação entre crer e não-crer
ou “descrer”, rompendo-se com a divindade de Deus ou deuses
que regulam e asseguram a vida noutro mundo ou no terreno
mundano, ao passo que, nas religiões reveladas, quando os seus
crentes optam por determinada teologia ou doutrina, acabam
também por exercer dicotomicamente algum tipo de“crença ver-
sus des-crença” em relação aos dogmas de outras expressões reli-
giosas ou de culturas não-crentes. Nesse sentido, as crenças, por
si mesmas, são sentidos construídos e absorvidos, numa rede de
significados culturais interpretativos – segundo Geertz288, con-
forme a resposta pretendida ou intencionalizada pelos indivídu-
os, grupos, comunidades como verdade que sustente a existência,
ou, “noutros termos, uma ‘modalidade’ da afirmação e não o seu
conteúdo” 289, como afirma Certeau. Logo,

As formas e a intensidade da crença variam em uma cer-


ta época e ao curso do tempo. Elas adéquam-se a objetos
às vezes idênticos, às vezes diferentes. O deslizamento

286 ONFRAY apud PAULA, Márcio Gimenes de. Resenha do livro tratado de ateo-
logia, 2007, p, 282.
287 COMTE-SPONVILLE, O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade
sem Deus, 2007, p. 127.
288 GEERTZ, A interpretação das culturas, 1989, p. 66.
289 CERTEAU, A invenção do cotidiano: artes de fazer, 2014, p. 252.

196 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


do substantivo ao verbo (da crença ao crer) é encarrega-
do de sublinhar o abandono de uma modelização com
único objetivo cristão, podendo carregar a reflexão para
um dado histórico universalizável, da mesma forma que
a distinção entre religioso e não-religioso290.

Nos significados tecidos pelos religiosos, des-crentes,


não-religiosos e ateus, as crenças, como um engendramento vi-
tal, místico e racional, não diferem em sua semântica constituída
pela racionalidade humana, pois o indivíduo crê em algo – sagra-
do ou mundano sacralizado. A filosofia ontológica do sentido do
ser, em Heiddegger, pode sustentar o homem para o seu próprio
retorno, metafisicamente, se religioso ou não-religioso, crendo,
por vez também descrendo.

Considerações finais

Se a ciência separa-se da religião e da filosofia por ra-


zões de atribuições específicas delimitadas pela racionalidade
humana, nem por isso a questão da verdade do vir a existir no
mundo está superada, pronta e acabada. À ciência cabe investir-
-se de competência para comprovar a verdade das coisas e dos
fenômenos pelo exercício do pensamento científico mediado
pelos seus próprios métodos, instrumentos e teorias; não tendo,
portanto, atribuição e condições de estabelecer a verdade ou não
da existência de Deus. Apesar das últimas revoluções científicas
apresentadas pelas teorias da física quântica (massa é energia),
rompe-se a noção dicotômica de massa versus energia. Muda-se
a equação para perquirir sobre o mundo real. A filosofia clássi-
290 MAIGRET, As três heranças de Michel de Certeau: um projeto fragmentado de
análise da modernidade, 2000, p. 6.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 197


ca, com a noção polarizada de transcendente e matéria no rei-
no da infinidade na visão aristotélica, é superada com a filosofia
heideggeriana do sentido prático da vida (experiências do ser).
Com a ideia de um ser supremo e eterno, segundo doutrina da
eternidade, aprofundada pela metafísica oriental, o ser humano
convive e estabelece coexistência entre o sagrado e o profano. A
religião, com a força e o poder de um Deus único, cristianizada
e institucionalizada, elege e determina ritos salvíficos aos indiví-
duos e sacraliza espaços distintos: o sagrado versus o profano. Há
outro mundo além da morte. No entanto, tendências religiosas
contemporâneas inventam que Deus não só salva como distri-
bui abundâncias de bens de salvação na terra mesmo. A salvação
acontece no rito religioso mesmo em tempo real, e o discurso da
salvação imediata retroalimenta o mercado religioso. Tudo isso
para valorizar a existência e a salvação do ser humano pela cren-
ça, ou por aquilo que se denomina no meio religioso de fé.
Afastando-se da proposta de salvação do ser humano por
um ente invisível, transcendente, infinito, eterno, superior, supremo
e criador de tudo a partir do caos ou do nada, o ateísmo desenvolve
seus fundamentos de realização humana na própria existência, mas
nem por isso deixa de estabelecer suas crenças, ritos e rituais.
Nesse sentido, embora o ato de vontade humana possa
exercer a divisão do mundo em racionalidades (ciências e filo-
sofias) e irracionalidades (religiões), de algum modo esses dois
mundos se cruzam em razão da potência que a crença exerce
em sua manifestação: modus de crer e des-crer. Assim, é a razão
humana, independentemente da classificação em que se queira
colocá-la (imanente, empírica, racionalista), que autoriza a cren-
ça ou não em Deus, em um criador de tudo, em um ser trans-
cendente de infinidades e realidades eternas. Como também
permite que o ser humano tenha ou não fé religiosa e continue
acreditando em Deus, sem uma religião revelação. A razão, me-
tafisicamente, cria a crença. É do ser humano o estabelecimento

198 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


de crenças para se relacionar consigo, com o outro, com o mundo,
com o além-mundo.
Entre religiões reveladas e ateísmo, a fronteira não é tão
objetiva e nítida. A crença (a des-crença) permeia ambos os es-
paços do existir humano, como também abre fecundo espaço de
liberdade na própria fronteira, superando-se a explicação dicotô-
mica inventada culturalmente para identificar razão e fé, ciência
e religião. Como disse Salvatore Natoli, “não existe mais um rio
da história que unifica os diferentes destinos dos seres humanos”
291
, é preciso, na deriva do mundo, que cada indivíduo se consti-
tua “ponto de resistência” e “ponto de abertura”.
Pelo impulso originário da filosofia primeira, a vida (as
experiências do ser, segundo Heidegger) desafia e provoca mu-
danças paradigmáticas de explicação da verdade: a física quântica
se aproxima do desconhecido, para explicá-lo. A razão inventa
a sua fé, a sua crença. A religião a manifesta, pois, como enten-
de Voltaire: “se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”292.
O ateísmo conecta-se pelo crer (ou des-crer) em algo acerca da
metafísica da vida (produto da ciência, fé sem religião, criador
sem instituição religiosa). O processo de buscar explicação da
existência prenuncia que o ser humano não é um simples indife-
rente ao desconhecido. Ele crê em algo.
A natureza da vida sem um criador para crer, a partir de
algo, dilui-se. O ser humano é agente de criação de seus próprios
vínculos. A divisão e a classificação do mundo contradizem a
própria semântica da unidade da vida: o existir dá significado de
se estar no mundo.

291 NATOLI, Filosofia e formação do caráter, 2010, p. 89.


292 VOLTAIRE, O ateu e o sábio, 2006, p. 9.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 199


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202 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Religião e a relação desta com a
sociedade

Carolina Teles Lemos

Introdução

A tarefa a que nos propusemos enfrentar neste espaço,


a de estabelecer a relação entre religião e ciências sociais, não
se nos apresentou muito fácil. Por onde começar: pelas ciências
sociais? Pela religião? Pela sociedade? Onde começa uma? Onde
termina a outra? Como não sabíamos responder a nenhuma des-
sas questões, nossa decisão foi, então, abordá-las conjuntamen-
te. Ou seja, colocaremos no centro da cena a religião, mas para
colocá-la aí, o faremos ao modo das ciências sociais ou, melhor
dizendo, recorreremos a alguns cientistas sociais que lançaram
seu olhar sobre a religião e a relação desta com a sociedade.
Isto porque o modo como se dá a religião, e como as
sociedades se organizam a partir das práticas e das crenças reli-
giosas, têm sido temas de reflexão de muitos autores do campo
da sociologia, de tal forma que se criou uma ciência especializada
nessa temática, a Sociologia da Religião. A posição dos autores
sobre este tema varia muito. De modo geral todos afirmam que
a religião é um elemento constituinte da sociedade e influencia
na maneira em que os indivíduos interagem entre si. Mas sobre
o modo como a religião influencia nessas interações há diferen-
ças significativas de compreensão entre eles. Este texto pretende,
portanto, trazer a contribuição de alguns cientistas sociais sobre
este tema. Fizemos a opção por esta forma de abordagem tendo
consciência de que, como se trata de objeto muito complexo e

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 203


amplo, corremos o risco de apresentar uma visão por demais pa-
norâmica e superficial, mas nos dispomos ao risco.

Religião enquanto fenômeno estruturado e


estruturante

Destacamos, em primeiro lugar, que a religião tem sido


analisada a partir de muitas perspectivas, dentre elas uma abor-
dagem mais fenomenológica, que se centra no fenômeno em si,
enquanto sistema simbólico, com estrutura própria. E outra, mais
sociológica, que está mais centrada no funcionamento da socie-
dade, em suas dimensões políticas, nas instituições sociais e nas
interações sociais cotidianas. Neste caso a religião é considerada
em sua dimensão estruturante da sociedade ou em seu papel de
legitimadora da ordem ou de protestos sociais.
Para a fenomenologia, a religião se apresenta como uma
categoria fundadora e formadora da experiência humana que
resulta de uma função humana subjetiva: a religiosidade293. Nessa
perspectiva, o ser humano relaciona-se com o sagrado como uma
realidade infinitamente poderosa, diferente dele. Essa realidade
a ele se dirige, no entanto, e coloca sua vida numa ordem dotada
de significado: é o cosmo sagrado que enfrenta o caos294. O ser
humano que se encontra em uma relação correta com o cosmos
sagrado possui um escudo contra o terror da anomia295. É ela, a
religião, um sistema de símbolos296 estruturado e estruturante297,

293 Cf. SIMMEL, Religião, 2009, p. 96.


294 Cf. OTTO, O Sagrado, 1985; ELIADE, Mito e realidade, 1972 e O sagrado e o
profano, 1992.
295 Cf. DURKHEIM, As formas elementares da vida religiosa, 1989.
296 Cf. GEERTZ, A interpretação das culturas, 1989.
297 Cf. BOURDIEU, A economia das trocas simbólicas, 1998.

204 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


que contém e expressa o ethos de uma determinada população298.
Desta forma, a religião influi na compreensão que os indivíduos
têm de quem são e do que são, da identidade deles, apresentando
valores e crenças a respeito da natureza humana e do destino.
Para estes fenomenólogos, a religião se liga ao crescimento e à
manutenção do indivíduo e à sua passagem pelos vários estágios
de idade que sua sociedade distingue e valoriza299.
Para alguns autores300 a religião é um fenômeno estru-
turante da sociedade. E é nessa condição que ela pode desempe-
nhar suas mais diversas funções. Nesse sentido, afirma Bourdieu
que a religião, por ser um sistema simbólico estruturante, delimi-
ta o campo do que pode ser discutido em oposição ao que está
fora de discussão. Realiza esta função, graças ao seu efeito de
consagração ou de legitimação de diferentes situações (submete
o mundo natural e social a uma mudança de natureza). Ela está
predisposta a assumir uma função ideológica (prática e política)
de absolutização do relativo e de legitimação do arbitrário.
Buscando explicitar como percebemos as afirmações de
Bourdieu sobre o funcionamento da religião, e aqui nos referimos
mais particularmente ao catolicismo, em sua condição estrutura-
da e em sua função de estruturadora, elaboramos os esquemas
abaixo, nos quais destacamos uma correspondência entre as es-
truturas sociais e a simbólico-religiosa. Ao apresentar-se como
um sistema simbólico estruturado em forma de pirâmide, a reli-
gião estaria consagrando e legitimando as ordens política e eco-
nômica que também se estruturam dessa mesma forma. Estaria,
portanto, desempenhando uma função ideológica, absolutizando
o relativo e legitimando o arbitrário.

298 Cf. GEERTZ, A interpretação das culturas, 1989.


299 Cf. MALINOWSKI, Mágica, ciência, religião, 1988.
300 Ver, entre outros, DURKHEIM, As formas elementares da vida religiosa, 1989;
GEERTZ, A interpretação das culturas, 1989; BOURDIEU, A economia das trocas sim-
bólicas, 1998.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 205


Estrutura política

Estrutura econômica

206 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Estrutura simbólico-religiosa

Outro exemplo em que podemos perceber a religião


desempenhando as funções de consagração e de legitimação da
rodem social são os processos de construção e de manutenção
das identidades de gênero masculino, feminino e homossexual. A
forma hierárquica e masculina em que a tradição judaico-cristã
se apresenta estruturada na sociedade, constitui-se em um dos
fatores que contribuem para a construção de representações do
masculino, do feminino e do homossexual também hierárquicas.
Vejamos, por exemplo, o processo de construção da identidade
feminina a partir da tradicional hermenêutica do texto bíblico so-
bre a criação, no livro do Gênesis, capítulo dois. Na perspectiva da
hermenêutica tradicional, Eva teria sido criada em segundo lugar,
de uma costela do homem, para lhe dar uma “ajuda que o comple-
te”301. Na sequência, no episódio da desobediência de Adão e Eva

301 Cf. Gn 2,20.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 207


às ordens divinas, é a mulher que se deixa seduzir pela serpente e
arrasta o seu companheiro à desobediência. Por esse motivo, ela
recebe a parte mais pesada das maldições de Javé: “Eu multiplica-
rei os sofrimentos das tuas gravidezes, no sofrimento darás à luz
aos teus filhos. O teu desejo impelir-te-á para o teu marido, e ele
dominará sobre ti”302. No momento de ser banida do paraíso, ela
recebe outro nome, outro sinal de dominação, e torna-se Eva, “a
mãe de todos os vivos”. Na sequência do plano de salvação da hu-
manidade, segundo essa tradição hermenêutica, Javé não escolhe
mulheres, a não ser para intermediar suas aparições e ações. É aí
que, em contraposição à fragilização das representações do femi-
nino, se constrói um reforço na composição da identidade mascu-
lina. Os patriarcas fazem parte de uma sequência masculina nas
escolhas divinas: Javé chamou Abraão; depois Isaac e Jacó; então,
veio José; na sequência estava Moisés, Josué, Davi, Salomão... e
culminou na hierofania principal em Jesus, que, por acaso, é tam-
bém do sexo masculino. É claro que tinha mulheres nessa história,
mas a hermenêutica tradicional não as vê ou mostra. Na sequ-
ência do processo de institucionalização da Igreja Católica, e de
algumas outras igrejas evangélicas, o poder sagrado é masculino.
O monopólio do poder religioso a eles pertence.
Que consequências pode ter na elaboração e na manu-
tenção das identidades de gênero masculina, feminina e homos-
sexual uma tradição religiosa que se apresenta com tal estrutura?
Segundo Erickson, para entender as relações de gênero através
da sociologia da religião, nenhuma ferramenta é mais crítica,
nenhum preconceito é mais importante do que o conceito ge-
nericamente determinado da vida “sagrada” e “profana”303. As
autoras destacam que, nas formas elementares da vida religiosa,
Durkheim localiza o totem como o “espaço” em que as coisas
são classificadas como sagradas e profanas. Em contato com o

302 Cf. Gn 3,16.20.


303 Cf. ERICKSON, Onde o silêncio fala, 1996, p. 11-13.

208 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


totem, o crente tem a impressão de estar se relacionando com
dois tipos de realidades distintos: de um lado as coisas profa-
nas (cotidiano insípido e monótono), de outro as coisas sagradas
(encontros estimulantes e excitantes).
Que relação pode ser apreendida entre essa separação
entre o sagrado e o profano e as identidades de Gênero? O acesso
à sociedade sagrada que se identifica com um Deus, só é permiti-
do aos homens; quando o indivíduo adquire o totem (através de
rituais de violência, geralmente por meio da infusão de sangue),
passa a ter uma dupla natureza: humana e divina; as mulheres não
podem aproximar-se do sangue derramado durante o ritual de
iniciação (este possui virtudes também sagradas); as relações com
o ordinário (entendidas como insípidas) “pertencem” às mulhe-
res: às vezes a dignidade religiosa, que por este motivo é inerente
a cada membro do clã, não é igual para todos. Os homens as pos-
suem num grau mais elevado do que as mulheres; com relação a
eles, as mulheres são como seres profanos. Assim, todas as vezes
que há uma assembleia, seja dos grupos totêmicos ou da tribo,
eles têm um campo separado, distinto do das mulheres, e em
que estas últimas não podem entrar: elas são segregadas. A partir
da análise de Erickson, e também da hermenêutica tradicional
sobre os textos da tradição judaico-cristã apresentada acima, po-
demos concluir que as mulheres não só não são sagradas, mas
não podem nem tocar as coisas sagradas. O crente, em contato
com as coisas sagradas, se sente mais forte. Ser homem significa
viver num mundo ideal, portanto, excluir as mulheres: mulheres
significam seres naturais, profanos, enquanto homens significam
seres sociais, religiosos, sagrados. Se a função do sagrado é gerar
o poder, a força que mantém a divisão entre sagrado e profano304
é também a força que contribui para a manutenção das identida-
des de gênero masculina, feminina e homossexual de tal forma
que as relações resultantes do encontro de tais identidades tam-
304 Cf. ERICKSON, Onde o silêncio fala, 1996, p. 50.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 209


bém sejam hierárquicas, com prejuízo para as mulheres e para os
homossexuais. Com isso, mantém-se também a hierarquia entre
os gêneros. Para romper com essa hierarquia é imprescindível
uma nova concepção teológica que coloque a mulher em um lu-
gar mais favorável em relação ao sagrado.

Religião sob o olhar dos clássicos da


sociologia

Para Durkheim, a religião faz parte do âmago dos pri-


meiros sistemas de representações que o homem produziu do
mundo e de si mesmo: “a religião não só enriqueceu o espírito hu-
mano previamente já formado, mas ela contribuiu para formá-lo”.
Isto porque “na raiz de nossos julgamentos existe certo número
de noções essenciais que dominam toda nossa vida intelectual; é
as que os filósofos denominam de categorias do intelecto: noções
de tempo, de espaço, de gênero, de número, de causa, de subs-
tância, de personalidade etc. Elas correspondem às propriedades
mais universais das coisas”. Para o autor, essas categorias são como
molduras sólidas que engastam o pensamento que parece não po-
der desvencilhar-se delas sem se destruir. Estas noções são como
que a ossatura da inteligência. Quando analisamos as crenças re-
ligiosas primitivas, afirma Durkheim, encontramos as principais
dessas categorias. Nasceram na religião e da religião; são produtos
do pensamento religioso. O alcance desta constatação é o de le-
var-nos a concluir que a religião é coisa eminentemente social. As
representações religiosas são representações coletivas e estas são
o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas
no espaço, mas no tempo; para produzi-las, uma multidão de es-
píritos diversos associaram, misturaram, combinaram suas ideias

210 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


e seus sentimentos; longas séries de gerações acumularam aí sua
experiência e o seu saber. Uma intelectualidade muito particu-
lar, infinitamente mais rica e mais complexa que a do indivíduo
aí está concentrada. Essas categorias, pelo fato de serem religio-
sas, são também produtos do pensamento coletivo: ex. a noção
de tempo, só se constitui colocando-se os eventos em torno de
um eixo de significados. O que confere significado àquele centro
é a experiência de nossa vida pessoal colocada em um contex-
to (portanto em relação com) da história da humanidade. Desta
forma, as divisões em dias, semanas, meses, anos etc. correspon-
dem à periodicidade dos ritos, das festas, das cerimônias públicas.
Um calendário exprime o ritmo da atividade coletiva ao mesmo
tempo que tem por função assegurar a sua regularidade. Processo
semelhante ao da concepção de tempo ocorre com a concepção de
espaço e as outras categorias.
Como se dá, para Durkheim, a relação entre religião e
sociedade? Para este autor, não há propriamente duas dimensões
em diálogo, mas sim duas dimensões fundidas em uma só. Ela
é mais bem percebida na forma como o ser humano se insere
na vida e em sociedade. Há no ser humano dois seres: um ser
individual que tem a sua base no organismo e cujo círculo de
ação encontra-se, por isso mesmo, estreitamente limitado; e um
ser social que representa em nós a mais alta realidade, na ordem
intelectual e moral, que possamos conhecer pela observação, ou
seja, a sociedade. Nas sociedades australianas, o totem expressa
essa força que é ao mesmo tempo física (age mecanicamente, ge-
rando efeitos físicos) e moral (impõe obrigações). É essa espécie
de força vaga, dispersa entre as coisas, a matéria-prima com a
qual foram construídos os seres de toda a espécie que as religiões
de todos os tempos consagraram e adoraram (espíritos, demô-
nios, gênios, deuses). O totem exprime e simboliza: 1) é a forma
exterior e sensível do deus totêmico (poder, força) e 2) é o símbo-
lo da sociedade (clã). Se ambos são representados por uma única

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 211


coisa, então há uma identidade de natureza entre ambos, portan-
to deus (totem) e sociedade (clã) são a mesma coisa. À medida
que participa da sociedade o indivíduo vai naturalmente além de
si mesmo, seja quando pensa, seja quando age. É a própria auto-
ridade da sociedade que se estende a determinadas maneiras de
pensar que são como que as condições indispensáveis de toda a
ação comum. A força é, então, a própria sociedade. Ela é superior
aos indivíduos e estes acreditam depender dela e dela receber sua
força pela experiência coletiva e aprovação social. Como a força
da sociedade é real, a base da religião também é real.
Marx305 também considera a religião como estruturante
da sociedade, mas diferentemente de Durkheim, o autor não a
vê como uma necessidade, mas sim como um reflexo de outras
necessidades sociais. Para o autor, o homem fabrica a religião,
uma imagem invertida do mundo, porque o mundo mesmo está
invertido. Graças às convenções dos homens, a ideia de Deus
existe e tem incidência real na vida dos homens. As provas da
existência de Deus são as provas (explicações) da autoconsciência
essencial do homem. Mas, por que esta mania da humanidade
de projetar na ideia de Deus seus próprios atributos, em lugar de
tomá-los para si mesmos?
A resposta está nos antagonismos sociais, nas contradi-
ções do Estado burguês e nas contradições entre as forças e as
relações de produção. Se a religião é a expressão de uma deficiên-
cia do homem, suas causas têm que ser buscadas nos condiciona-
mentos reais do homem e não na religião (fazer o contrário seria
tomar o efeito pela causa). Se é o mundo mesmo que está falsifi-
cado, colocado ao contrário, a luta contra a religião é a luta contra
este mundo, do qual ela é o aroma espiritual: “a religião é a ex-
pressão da miséria real, mas é também o protesto contra a miséria

305 Ver MARX, Para a crítica da economia política, 1987; A ideologia alemã, 2002;
Manuscritos econômicos e filosóficos, 2004a; A questão judaica, 2004b; Contribuição à crítica
da filosofia do direito de Hegel, 2004c – vide referências.

212 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


real. O homem que é vítima da miséria cotidiana e que não tomou
consciência do mecanismo da mesma, articula em linguagem re-
ligiosa seu inconformismo”306. A religião é, portanto, um protesto,
e como tal, está mais próxima da redenção que a indiferença ou
a resignação total. O trágico desse protesto é sua impotência; e
o perigoso é que a religião sirva de consolo, de narcótico: “a reli-
gião é o ópio do povo”. A raiz da religião é a cisão, a separação, a
abstração. Ela não reconcilia, ao contrário, rompe o homem pela
metade: em relação a si mesmo (crítica filosófica)307, em relação à
sociedade (crítica política)308, (e em relação à sua própria sobre-
vivência (crítica econômica)309. Deus não une o homem com seu
ser concreto, com seu destino, ao contrário, o distrai, incapacita
para realizar-se. A religião é um fetiche: se toma a religião por
realidade e se reforça esta ilusão até que esta adquire vida própria,
independente e superior ao próprio homem que a criou310.
No caso de Max Weber, para se entender a religião, é
necessário relacioná-la com o sentido conferido pelos sujeitos
às ações sociais. Como a principal preocupação dos sujeitos está
centrada na vida cotidiana, também a motivação para a qual os
indivíduos buscam a religião é garantir sua vida no aqui e ago-
ra. A ação religiosa, portanto, “está orientada para este mundo;
são realizadas “para que vás muito bem e vivas muitos e mui-
tos anos sobre a face da terra”311; Faz parte das ações cotidianas
ligadas a um fim (na grande maioria, de natureza econômica);
Todos querem viver muitos anos (se possível não morrer nunca)
e viver muito bem, gozando de boa fartura e segurança. Quem
vai prevalecer enquanto objeto de crença: Deuses ou demônios?
depende da eficácia cotidiana: “na prática, porém, o que sempre

306 MARX, Manuscritos econômicos e filosóficos, 2004a, p. 46.


307 MARX, Manuscritos econômicos e filosóficos, 2004a, p. 46.
308 Cf. MARX, A questão judaica, 2004b.
309 Cf. MARX, Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, 2004c.
310 Cf. MARX, O capital, 1997.
311 WEBER, Economia e sociedade, 1991, p. 279.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 213


importou e ainda importa é quem mais interfere nos interesses
do indivíduo na vida cotidiana, se o deus teoricamente ‘supremo’
ou os espíritos e demônios ‘inferiores’. “Se são os últimos, então a
religiosidade cotidiana está determinada, sobretudo pela relação
com estes, independentemente de como se apresente o conceito
oficial do deus da religião racionalizada”312. Independentemente
de a forma de interação com a divindade ser coação sobre o deus
ou serviço divino, o “toma lá, da cá” é o caráter inerente à reli-
giosidade cotidiana e das massas de todos os tempos e povos
e também de todas as religiões313. Para o autor, coerentemente
com os processos de racionalização presentes em outras dimen-
sões da sociedade, a religião também faz seu processo: indo desde
seu nascedouro (magia e carisma), passando pelos processos de
institucionalização das religiões (com seus sacerdotes, profetas,
magos e leigos), crenças e práticas religiosas éticas (teodiceias),
indo até as formas burocráticas de religião ou mesmo ao ápice da
racionalidade moderna, que implica no “conhecimento ou a con-
vicção de que, se o quisermos, poderemos obter o conhecimento
geral das condições sob as quais vivemos a qualquer momento.
Portanto, significa que, no essencial, não intervém forças miste-
riosas incalculáveis, mas que, em princípio, podemos controlar
todas as coisas mediante o cálculo”314. No entanto, às pessoas que
não suportarem sozinhas o peso da vida cotidiana, resta apenas
uma saída: voltar silenciosamente, sem a publicidade habitual
dos renegados, mas simples e quietamente aos braços das velhas
igrejas que estão abertos para eles. De uma forma ou de outra, ele
terá que fazer seu “sacrifício intelectual”, isso é inevitável: “procu-
remos, portanto, trabalhar e atender às ‘exigências do momento’
nas relações humanas e em nossa vocação. Isto, porém, é claro e
simples, se cada um de nós encontrar e obedecer ao demônio que
controla os cordões de nossa própria vida”315.

312 WEBER, Economia e sociedade, 1991, p. 289.


313 WEBER, Economia e sociedade, 1991, p. 294.
314 WEBER, A ciência como vocação, 1982, p. 165.
315 WEBER, A ciência como vocação, 1982, p. 183.

214 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Pelo exposto neste item, podemos perceber que, embora
com diferentes enfoques, os clássicos da sociologia deram des-
taque à dimensão religiosa da sociedade e aos diferentes papeis
desempenhados por esta. Se a sociedade é o que é, a religião o é
também com ela. Mas, e no contexto sociocultural atual, o que
tem sido dito sobre a religião? Ou como ela tem sido olhada?

Sociologias atuais

As análises da religião na sociedade atual têm consi-


derado vários aspectos com os quais ela se depara. Entre eles,
vamos destacar a relação que é feita entre religião e secularização.
A secularização tem sido entendida como: redução drástica da
influência das igrejas em todos os setores da vida social, especial-
mente no campo da cultura e da educação; processo em que a re-
ligião perde sua autoridade em dois níveis: o nível da consciência
humana e o nível institucional316; subjetivação das crenças, onde
os indivíduos, no processo de individuação, vão formando sua
identidade como um fenômeno privado (com elementos daqui
ou dali, conforme os gostos ou as necessidades)317; processo de
laicização, de autonomia da sociedade em relação à esfera reli-
giosa. Subtração do saber, do poder e do agir social do controle
ou da influência de instituições eclesiásticas ou de universos sim-
bólico-religiosos; dessacralização (flexão em intensidade e difu-
são da experiência do sagrado; redução, até o esgotamento, da
experiência psicológica do radicalmente Outro), que permanece
apenas como arquétipo na mente humana318.

316 Cf. BERGER, O dossel sagrado, 1985.


317 Cf. LUCKMANN, La religione invisible, 1969.
318 Cf. ACQUAVIVA, L’eclissi del sacro nella civilità industriale, 1981.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 215


Como forma de ilustrar por onde andam as discussões
atuais sobre o lugar da religião na sociedade, apresentamos a se-
guir a síntese do pensamento de Bauman319. O escolhemos por
considerar que em seu texto aparecem as principais argumenta-
ções presentes nos debates sobre tal fenômeno.
Para o autor320, para saber se na pós-modernidade há
mais religião que antes, importante não é o conceito de religião
adotado, mas analisar sobre que espécie de pensamento se assen-
tam as práticas que aceitamos. E as bases do pensamento pós-
-moderno apresentam-se com a seguinte lógica: a necessidade da
religião não é ontológica, mas fruto da sensação de insuficiência
humana criada pelos filósofos. As preocupações das pessoas hu-
manas não são com questões existenciais, mas com problemas
cotidianos. Portanto a religião, que só soube preocupar-se com os
mistérios da existência e da morte tronou-se desnecessária.
Assim como a idade média havia dado ênfase exagerada na
morte e na necessidade de martirizar-se para ter um pós-morte feliz,
a modernidade deu ênfase na vida aqui e agora. Com isto repeliu a
obsessão pela morte. A morte tornou-se banal e algo para especialis-
tas. A religião, que se ocupava com ela, perdeu sua utilidade.
Como na modernidade as respostas às incertezas são
encontradas nas identidades individuais, e isto é problema para
especialista, a religião que se ocupava com as incertezas, jogan-
do-as para a escatologia, tornou-se inútil.
Como a religião oferecia o êxtase e este é encontrado
em outras substâncias ou espaços proporcionados por especialis-
tas, a religião se torna desnecessária.
Desta forma, se as funções tradicionalmente desempe-
nhadas pela religião, tais como: segurança ontológica, morte e
vida pós-morte e suas incertezas, êxtase e experiências do ili-
mitado estão sendo desempenhadas na pós-modernidade por

319 BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 205-230.


320 Cf. BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade, 1998.

216 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


especialistas e por ocupações com a vida aqui e agora, a religião
perdeu sua razão de ser.
A única forma de religião plausível na pós-moderni-
dade é o fundamentalismo, pois esta forma religiosa oferece a
segurança por não impor a necessidade de escolha, sem negar o
usufruto das ofertas de mercado.
Como vimos a partir dos posicionamentos dos auto-
res acima sobre a religião na atualidade, parece-nos que pouco
espaço resta a esta enquanto fenômeno definidor das estruturas
sociais. No entanto, de nossa parte entendemos que, embora os
processos de secularização possam ser percebidos na sociedade
atual, há também a possibilidade de que, a partir desses mesmos
processos, ocorra a emergência de uma novas formas de religião,
ou mesmo de (re)construção de formas tradicionais desta.

Considerações finais

Temos consciência de que apenas anunciamos os prin-


cipais aspectos da relação entre religião e sociedade. Também te-
mos consciência que aspectos importantes, como toda dimensão
das religiões e da cultura populares ficaram sem tocar. Aspectos
importantes e necessários para se entender a relação entre reli-
gião e sociedade, como etnias, gênero, classe social também não
foram categorias consideradas neste texto. No entanto, como
parte integrante destas considerações finais, gostaria de levantar
outra possibilidade de análise da relação entre ciências sociais
e religião: trata-se da proposta de um retorno ao conceito de
afinidade eletiva, proposto por Weber321, e a dinâmica das reli-
giões atuais em nossa sociedade. Weber destaca que há um ethos

321 Cf. WEBER, Ética protestante e o espírito do capitalismo, 2004.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 217


comum entre o protestantismo e o capitalismo. Ou seja, há um
íntimo parentesco entre estranhamento do mundo, ascese e de-
voção eclesial, por um lado, e participação na vida de aquisição
capitalista, por outro322. Para Löwy323 pode-se deduzir dos escri-
tos de Weber que ele se refere a um relacionamento de atração
mútua e de mútuo reforço, que, em certos casos, leva a uma espé-
cie de simbiose cultural entre as duas dimensões.
O desafio a que estou propondo é o de, a partir da me-
todologia proposta por Weber, tentar verificar em que pontos se
pode perceber afinidade eletiva entre as formas religiosas da atu-
alidade, mais particularmente os novos movimentos religiosos e
outras dimensões da cultura e das interações sociais atuais, mais
particularmente aquelas caracterizadas por Bauman324 como lí-
quidas. Isto porque, segundo Guerriero, os Novos Movimentos
Religiosos (NMRs) são muito diversificados; não há uniformida-
de em nível de organização e coesão internas. Afirma Guerriero
que um caso típico desses movimentos é a Nova Era, que “não
pode ser classificada como um movimento, pois não há uma or-
ganização formal, é composta por uma plêiade de agências por
vezes tão diferentes que algumas nem podem ser chamadas de
religião”325. Para o autor, “os estudos sistemáticos sobre os NMRs
nos ajudam a perceber que as pessoas da modernidade não são
menos religiosas que as de outrora, que a religião não é mais
prerrogativa exclusiva das Igrejas (no seu sentido clássico) e que
a dinâmica dessas novas religiões não pode ser separada das mu-
danças que ocorrem no meio social”326.
A proposição de análise de Guerriero abriria a possi-
bilidade de que se possa perceber alguma afinidade eletiva en-

322 WEBER, Ética protestante e o espírito do capitalismo, 2004, p. 36 e 39.


323 LÖWY, A guerra dos deuses, 2000, p. 35.
324 Cf. BAUMAN, Modernidade líquida, 2001; Amor líquido, 2004; Tempos líquidos,
2007; Vida líquida, 2009 – vide referências.
325 GUERRIERO, Novos movimentos religiosos, 2006, p. 38.
326 GUERRIERO, Novos movimentos religiosos, 2006, p. 41.

218 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


tre essas formas religiosas e a modernidade líquida, conforme a
concebe Bauman? Isto porque a liquidez, a qual Bauman propõe
vem do fato que os líquidos não têm uma forma, ou seja, são
fluídos que se moldam conforme o recipiente nos quais estão
contidos, diferentemente dos sólidos que são rígidos e precisam
sofrer uma tensão de forças para moldar-se a novas formas. Os
fluídos movem-se facilmente, quer dizer: simplesmente “fluem”,
“escorrem entre os dedos”, “transbordam”, “vazam”, “preenchem
vazios com leveza e fluidez”. Muitas vezes não são facilmente
contidos, como por exemplo, em uma hidrelétrica ou num túnel
de metrô, lugar que se pode observar as goteiras, as rachaduras ou
uma pequena gota numa fenda mínima. Os líquidos penetram
nos lugares, nas pessoas, contornam o todo, vão e vem ao sabor
das ondas do mar327.
Os desafios apontados no início destas considerações e
mais a proposição de verificar a possibilidade de afinidade eletiva
entre os NMRs e a modernidade líquida são todas questões que
permanecem postas para próximas análises a cada um/a de nós,
pesquisadores desta área acadêmica.

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327 BAUMAN, Modernidade líquida, 2001, p. 8-10.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 219


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Epistemologias da religião e relações de religiosidade 221


A religiosidade popular no Brasil
sob o prisma de Mikhail Bakhtin

Nanci Moreira Branco

Este estudo traz uma pequena reflexão acerca de alguns


aspectos da religiosidade popular no Brasil atrelados aos estudos
sobre cultura popular do filósofo russo Mikhail Bakhtin, bem como
a conceitos-chave de suas reflexões como dialogismo e alteridade.
Vislumbrar essas manifestações de religiosidade popu-
lar é olhar para o sagrado, mas compreender, essencialmente, o
humano que o envolve, as pessoas que o expressam e que o vi-
venciam; é reconhecer, ainda, todo um processo de interação, de
diálogo que permite o encontro do igual e do diferente se dando
no mesmo espaço, juntos, o que, para Bakhtin, é o ponto central
da Cultura Popular.
A expressão religiosa é uma forma de conceber, de va-
lorar o mundo. É, ainda, um evento que celebra a vida e, ao mes-
mo tempo, permite que as pessoas respondam a outros contex-
tos, a situações que lhes provocam positiva ou negativamente.
Portanto, pela religião, as pessoas se colocam como sujeitos no
mundo, numa atitude responsiva. E isso tem a ver com a alte-
ridade, pois o meu ato responsável328 é assumido em resposta ao
outro. Por esse processo de interação, entendemos que “a respon-
sabilidade abarca, contém, implica necessariamente a alteridade

328 Sobre Ato responsável, nos estudos bakhtinianos, Amorim ressalta que “A ação é
um comportamento qualquer que pode ser até mecânico e impensado. O ato é respon-
sável e assinado: o sujeito que pensa um pensamento assume que assim pensa face ao
outro, o que quer dizer que ele responde por isso. Uma ação pode ser uma impostura:
não me responsabilizo por ela e não a assino. Ao contrário, escondo-me nela. O ato
é um gesto ético no qual o sujeito se revela e se arrisca inteiro. Pode-se mesmo dizer
que ele é constitutivo de integridade. O sujeito se responsabiliza inteiramente pelo
pensamento”. (AMORIM, 2009, p. 22-23)

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 223


perante a qual o ato responsável é uma resposta.”329. E a alterida-
de, por sua vez, implica instabilidades, visto que, nessas relações,
não há o previsto, mas o inusitado, as surpresas que o Outro nos
possibilita ter. A religião, como a cultura, é, portanto, o lugar da
resposta, da construção de identidades e da constituição desses
atos responsáveis. Oferecer uma contrapalavra faz parte do ato
de interação que demonstra uma compreensão ativa, a qual per-
mite uma atitude responsiva. Viver é, exatamente, entrar nesse
grande diálogo do mundo.

A vida é dialógica por natureza. Viver significa partici-


par do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar,
etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com
toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma,
o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente
na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da
vida humana, no simpósio universal330

A compreensão de Bakhtin331 sobre o homem e a vida


é, portanto, norteada pelo princípio do diálogo, que permite, em
relação a um determinado discurso, observarmos a sua interação
com os que o precederam e com os quais ele provoca.

Por sua precisão e simplicidade, o diálogo é a forma


clássica de comunicação discursiva. Cada réplica, por
mais breve e fragmentária que seja, possui uma con-
clusibilidade específica ao exprimir certa posição do
falante que suscita resposta, em relação à qual se pode
assumir uma posição responsiva.332

Já alteridade marca o ser humano, cuja constituição da


identidade se dá exatamente pelo olhar do Outro, que tem de
329 GERALDI, J. W. Ancoragens – estudos bakhtinianos, 2010, p. 85.
330 BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal, 2006a, p. 348.
331 Muitas reflexões se estendem, ainda, ao Círculo de Bakhtin (Bakhtin, Maria
Yúdina, Valentin Voloshinov, Lev Pumpianski, Pável Medvédev e Váguinov).
332 BAKHTIN, Estética da Criação verbal, 2006a, p. 275.

224 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


nós um excedente de visão, um olhar que não temos (assim como
nós o temos em relação a ele) – e esse fato é que revela a nossa
incompletude. Segundo João Wanderley Geraldi,

[...] o pensamento bakhtiniano alicerça-se em dois pi-


lares: a alteridade, pressupondo-se o Outro como exis-
tente e reconhecido pelo ‘eu’ como Outro que não-eu
e a dialogia, pela qual se qualifica a relação essencial
entre o eu e o Outro. Evidentemente, assumir a rela-
ção dialógica como essencial na constituição dos seres
humanos não significa imaginá-la sempre harmonio-
sa, consensual e desprovida de conflitos333.

As relações refletidas à luz da alteridade nos permitem


olhar, escutar o estranhamento; nos “oferecem espaços e tempos
de outras aprendizagens”. E é esse o modo como contemplo a
religiosidade popular: repleta de diálogos, num entrelaçamento
do oficial e do não-oficial, mas, sobretudo, fruto de encontros que
nos ensinam sempre uma nova forma de conceber o mundo.
Para abranger mais essa trama envolvente que é a re-
ligiosidade popular, busco em Cultura popular na Idade Média
e no Renascimento – o contexto de Rabelais334, tese de Bakhtin, a
contribuição para refletir o complexo encontro que se dá entre
diferentes culturas. Nessa obra, Bakhtin defende que o diálogo
entre a cultura oficial e a não-oficial não é delineado pela incom-
patibilidade entre classes ou grupos, mas pelo caráter da perme-
abilidade e pela sempre presente possibilidade de transgressão,
infiltração e comutação de práticas e representações entre esses
grupos. Bakhtin ressalta, nesse estudo, a qualidade de Rabelais de
estar ligado às fontes populares, o que nos permite compreender
que toda manifestação popular, cultural, religiosa, tem como gê-
nese as relações humanas de seu povo e a construção/reafirmação
de identidade como fruto dessas relações.
333 GERALDI, J. W. Ancoragens – estudos bakhtinianos, 2010, p. 103.
334 Cf. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, 2010a.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 225


Nessa obra, o autor destaca que a cultura celebrada nas
praças públicas existia paralela a um mundo oficial, ligado à cul-
tura de elite, ou seja, estava incorporada a um conjunto de tradi-
ções e valores que conviviam no mesmo espaço. Essa constatação
nos permite um novo olhar sobre as diversas manifestações reli-
giosas que se espalham pelo Brasil, as quais dialogam (de forma
consensual ou não) com o catolicismo tradicional.
Na relação do oficial e do não-oficial, nem sempre se
pode demarcar o limite entre as duas culturas na obra de Rabelais
e este autor explorava exatamente esse hibridismo. Sobre as ma-
nifestações da praça pública, Bakhtin ressalta:

Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira


cômica [...] ofereciam uma visão do mundo e das rela-
ções humanas totalmente diferente, deliberadamente
não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mun-
do e uma segunda vida aos quais os homens da Idade
Média pertenciam em maior ou menor proporção, e
nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso
criava uma espécie de dualidade do mundo [...].335

Nessa perspectiva, a cultura pode ser tomada como um


campo de batalha, uma arena, onde estão em luta, e dialogam,
signos ideológicos, ou seja, lado a lado, aparecem uma cultura
oficial e outra que se desenvolve no cotidiano – e o embate se dá
exatamente neste encontro, nesta fronteira sempre e necessaria-
mente permeável, móvel, inconstante, pois que não são isoladas,
nem estão acabadas.
Em relação às manifestações de religiosidade popular,
é possível percebê-las, nessa abordagem, como uma ressignifica-
ção, especialmente, do catolicismo tradicional. Dessa forma, ela
dialoga com o oficial, oferecendo uma valoração de acordo com

335 Cf. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, 2010a.

226 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


as necessidades e o contexto social que a incorpora. Essas mani-
festações são, antes de tudo, formas de resistência que possibili-
tam uma sempre transformação da religiosidade tradicional. E
esse movimento, certamente, nunca ocorre pacificamente, pois a
história da religião é marcada por conflitos, já que ela se constitui
como uma arena de lutas ideológicas.
Quando falamos em religiosidade popular, estamos fa-
lando de identidades construídas nas relações humanas e que
marcam a vida social de um povo. Por isso, percebemos que todas
as manifestações dessa religiosidade popular estão intimamente
ligadas ao seu lugar, ao seu povo, à determinada comunidade. E
como fruto dessas relações humanas, elas fazem dialogar dife-
rentes modos de conceber o sagrado, incluindo o oficial. Nelas,
muitas vezes, o sagrado se associa ao profano e, ainda, a tradições
provindas de diferentes religiões.
Como exemplo desse diálogo, apresento, brevemente336,
duas manifestações de religiosidade popular que percorrem o
caminho do diálogo, da alteridade e desafiam a oficialidade. Por
coincidência da escolha, são eventos que marcam a mesma festivi-
dade litúrgica da Igreja Católica: o dia de Santos Reis. Na Bahia,
especificamente na cidade de Salvador, a lavagem das escadarias e
do adro da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim e, no interior de alguns
estados, como Minas Gerais e São Paulo, a Folia de Reis.

336 Ressalto que não se trata de uma pesquisa aprofundada do assunto, mas uma
alusão a essas manifestações religiosas, pelas características que me permitem refletir
alguns pensamentos de Bakhtin. Para uma compreensão, mesmo que superficial de
tais eventos, recorro a pesquisadores e pesquisadoras que dedicaram um estudo mais
profundo ao assunto, as/os quais cito ao longo deste artigo.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 227


A imagem acima337 é uma cena da lavagem das escada-
rias e do adro da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim que integra
os ritos e representações religiosas da Festa do Senhor Bom Jesus do
Bonfim. Tal rito compõe o calendário litúrgico e o ciclo de Festas de
Largo da cidade de Salvador desde 1745. As celebrações ocorrem
em janeiro e seu calendário segue Epifania ou o Dia de Santos
Reis (06 de janeiro). Tal celebração integra “duas matrizes reli-
giosas distintas, a católica e a afrobrasileira, e incorpora diversas
expressões da cultura e da vida social soteropolitana. Está pro-
fundamente enraizada no cotidiano dos habitantes de Salvador, e
possui grande poder de mobilização social”. Se, no passado, havia
proibições e críticas, essa expressão de fé, hoje, superou as posições
mais puristas e, desde 2013, a Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim
foi transformada em patrimônio imaterial brasileiro pelo Instituto
do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN), estando
registrada no Livro das Celebrações.338
Essa festividade tem sua origem na forma de celebra-
ção dos arraiais portugueses, sendo depois o Senhor do Bonfim
sincretizado com Oxalá339, o que possibilitou uma nova forma

337 Imagem capturada por João Alvarez/Folhapres, em janeiro de 2014, e que está
disponível, junto a outras imagens do evento, no site https://noticias.uol.com.br/al-
bum/2014/01/16/baianas-realizam-lavagem-do-bonfim-em-salvador.htm#fotoNav=4
338 Informações recolhidas de e disponíveis nos portais: http://www.palmares.gov.
br/?p=40402 e http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/85
339 O fato da “Lavagem do Bonfim” é atribuído à promessa de um devoto, um solda-

228 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


de celebrar. Assim, quando pensamos em Religiosidade Popular,
não podemos dissociar esta prática de uma manifestação religio-
sa oficial, pois é esse diálogo que contribui para ressignificações,
como pelo sincretismo religioso.
O que chama a atenção nessa festa, hoje oficializada,
mas, por muito tempo, discriminada, é exatamente o seu caráter
polifônico. Ao lado de uma voz que se reconhecia dominante,
a da igreja católica, ressoa a voz daquela comunidade e sua his-
tória. Não é uma simples relação hierárquica, de permissão, de
inclusão, mas de diálogo, num movimento de confluência dessas
diferentes vozes, que ali dialogam em paridade. Por esse seu ca-
ráter de encontro de diferenças, não podemos ignorar o poder de
resistência dessa voz que manifestou junto à oficial.
Esse poder de resistência é revelado como uma contrapa-
lavra a um contexto de dominação e opressão do povo negro desde
a época da escravidão. À marginalização social e política, respon-
dem com manifestações religiosas, que indicam não apenas a deter-
minação, mas a construção da identidade e a celebração da memó-
ria ancestral de seu povo, ressignificando a herança religiosa de seus
ancestrais, num outro contexto. Esse recordar o passado carrega um
jogo de associações com outros discursos: o que o enunciador quer

do sobrevivente da Guerra do Paraguai. Acredita-se que o ritual da lavagem teve ori-


gem nos tempos em que os escravos eram obrigados a levar água para lavar as escada-
rias da Basílica para a festa dos brancos, desde esta época um agradecimento do povo
às graças concedidas pelo Nosso Senhor Bom Jesus do Bonfim. Considera-se o ano
de 1804 como o da primeira lavagem oficial. O ponto alto da festa acontece no Largo
do Bonfim, bem em frente à igreja, no alto da Colina Sagrada, na última quinta-feira
antes do final do novenário e é marcada pela lavagem da escadaria e do adro da igreja
por baianas vestidas a caráter, trazendo na cabeça potes com água de cheiro (muito
disputada entre os fiéis) para lavar o chão da igreja, além de flores para enfeitar o altar.
Nos cultos afro-católicos, o Senhor do Bonfim é sincretizado com Oxalá, segundo
Pierre Verger, “sem outra razão aparente senão a de ter ele, nesta cidade, um enorme
prestígio e inspirar fervorosa devoção aos habitantes de todas as categorias sociais”
(VERGER, 1997, p. 259). Ocorre também uma aproximação entre a festa católica e a
dos cultos afro-brasileiros, as “Águas de Oxalá”. (BONFIM, L.A. Lavagem do Bonfim:
Tradições e Representações da Fé na Bahia, 2000, p.2).

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 229


trazer do passado e o que ele quer suscitar no futuro; os enunciados
que o precederam e os que ele provocará. Esse jogo de associações
é que produz sempre novos sentidos às memórias.

A memória, ou perda dela, é sempre conservação e fil-


tragem, é uma atualização do passado. A conservação se
dá por conta dos significados, e a filtragem é uma rede
de relações que conserva aquilo que de alguma forma
precisamos. A “memória do passado” tem a cara que o
presente lhe atribui. Ela é constantemente revisitada
pelos interesses atuais, pelos sentidos presentes. E re-
formatada. O passado tem seu sentido presentificado340.

Pensando numa relação entre memórias coletivas e in-


dividuais, entendemos o coletivo não como elemento de coerção,
mas como “o lugar das afinidades e tensões e também das traje-
tórias comuns”341. Esse diálogo estabelecido é o que faz vivificar
e gerar novos sentidos.
É, assim, uma memória da alteridade, memória dos an-
cestrais que foram oprimidos, memória de um passado ao mes-
mo tempo individual e coletivo; mas, ainda, uma memória de fu-
turo que quer provocar respostas, mostrar que aquela situação
ainda persiste, numa sociedade hierarquizada. Historicamente,
reconhecemos que a independência do Brasil e mesmo a procla-
mação da república submeteram a população afro-brasileira à ex-
clusão social, econômica e política. É a memória desse povo que
sofreu as mazelas da escravidão e, posteriormente, todo cercea-
mento pela condição de negro/mestiço numa sociedade elitista,
que é rememorada com um projeto de dizer daquela comunidade.
Uma compreensão geral dessa festa nos mostra que

[...] pelo valor artístico ou pelo valor religioso, as práticas


votivas dedicadas ao Senhor Bom Jesus do Bonfim são

340 MIOTELLO, Valdemir, in Veredas bakhtinianas – de objetos a sujeitos, 2006.


341 MIOTELLO, Valdemir, in Veredas bakhtinianas – de objetos a sujeitos, 2006.

230 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


essencialmente distintas da maioria do que se pode en-
contrar por todo o Brasil. A começar pelo caráter trans-
canônico da devoção: Senhor do Bonfim é sincretizado
com Oxalá, o que faz com que as matrizes religiosas
católica e afro-brasileira (especialmente o Candomblé)
criem uma simbiose de harmonia poucas vezes verifi-
cada em qualquer outro lugar do país. A Lavagem do
Bonfim é uma prova indiscutível disso, o Museu de Ex-
votos e a tradicional “sala dos milagres” são outras.
[...] Nas grades que protegem o adro, as “medidas do
Bonfim” (famosas fitinhas) são ordenadamente amar-
radas pelos devotos, criando um cercado colorido e vi-
brante ao movimento dos ventos que sopram naquele
lugar de vista privilegiada. O que se vê dentro e fora da
igreja é um fervor religioso que permanece vivo pelo
ano todo, há mais de dois séculos e meio. [...]
A graça da relação entre o “sagrado” e o “profano” se
mantém vigorosamente viva, espalhada por todas as
partes, dentro e fora da igreja, nas barracas de comi-
das típicas e bebidas, na malandragem dos vendedores
ambulantes, nas danças sensuais e na vestimenta dos
fiéis que ocupam toda a Colina Sagrada.
Ao contrario do que se pode pensar, a Festa do Bonfim
sempre teve um cunho profano escandaloso.
Tudo se mistura: a virtude e o pecado; a devoção cató-
lica expressa pela “fitinha do Bonfim” e a tradição afro-
-brasileira, presente nos patuás e figas, que disputam
o mesmo espaço dos tabuleiros de venda de artigos
religiosos. É a mistura que se vê também na “Sala dos
Milagres” e no Museu dos Ex-votos, recentemente re-
aberto após longo período de reforma.342

Como festividade popular descrita acima, a Lavagem do


Bonfim envolve as diferentes classes da sociedade baiana com a
participação notável da comunidade afrodescendente343, porém

342 BONFIM, L.A. Lavagem do Bonfim, 2000, p.3.


343 Segundo Manoel Querino (apud Salles, Soares, 2005) a festa teria se originado

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 231


tem significado diferente para cada um desses grupos que a in-
tegram. Essa diversidade revela que a religião é uma experiência
concreta, “construída no interior de uma cultura e fruto de for-
mas diversas de se relacionar com o sagrado”344, que ali se en-
contram e celebram a vida e a fé. Nela se concretizam a relação
com o Outro e os frutos de estranhamento, mas, sobretudo, de
aprendizado que esse encontro permite.
Outro evento que escolhi para refletir alguns pensa-
mentos do filósofo Bakhtin é a Folia de Reis. Essa me traz recor-
dações de infância, pois é festividade comum no interior de São

do culto a Oxalá. Essa era uma cerimônia realizada às escondidas e fora da cidade,
devido às perseguições por parte das autoridades. Com o retorno dos Voluntários da
Pátria3 este ritual teria sido juntado ao da lavagem, por gratidão, por estes negros e
mestiços, dando notoriedade, no espaço urbano, ao culto a Oxalá. Para Ordep Serra
(1995), a tradição da lavagem teria assumido tais características devido à promessa
de um soldado que lutou na Guerra do Paraguai. Este tipo de promessa religiosa era
comum na cultura luso-brasileira. A partir do século XIX, principalmente de meados
do século, a festa assumiu características diferentes, tendo uma maior participação de
negros que implantaram seus costumes. Para participarem da tão popular festa do
Bonfim, os negros pediam permissão para fazerem parte da festa utilizando seus ins-
trumentos e cantando em suas línguas maternas (Verger, 1987). (MENDES, Érika do
Nascimento Pinheiro, s/d, p.2-3). Os nagôs, que no século XIX, formavam a maioria
dos escravos baianos, celebravam em suas terras o culto ao Orixá criador, a quem atri-
buíam à condição de filho do Deus supremo e o status de Pai Soberano entre as outras
divindades. Prestavam-lhe um culto especial em colinas fazendo procissão com potes
de águas para lavagem do lugar sagrado. O Senhor do Bonfim, orago da sagrada colina,
de um templo onde se celebrava com escorrer de água um rito periódico, é Jesus Cristo,
o filho de Deus, invocado como Pai Soberano de todos os Santos. (Serra, 1995). Desta
forma, a cerimônia da lavagem do Bonfim trouxe à memória desses escravos nagôs
da Bahia os ritos lustrais, praticados por seus antepassados, característicos do culto a
Oxalá. Mas essa memória não é vista aqui como um resgate de um determinado tipo
de culto praticado em África. Ela tem uma função social. Ela ocorre no presente e é
englobante e hierarquizante, segundo Gilberto Velho (1988), pois nestas festas popu-
lares religiosas as comunidades estreitam seus laços e mantêm sua identidade de grupo,
celebrando também sua vida cotidiana. (MENDES, Érika do Nascimento Pinheiro, A
lavagem das escadarias do nosso senhor do Bonfim da Bahia: Identidade e memória no final
dos oitocentos.UERJ, s/d, p. 3). Texto disponível em: http://www.educadores.diaadia.
pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/ENSINORELIGIOSO/artigos/3lava-
gem_escadarias.pdf
344 MENDES, Érika do Nascimento Pinheiro, s/d, p. 1.

232 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Paulo, assim como no interior de outros estados. Dos arredores
da minha região, a mais famosa é a da cidade de Florínea, cele-
brada desde 1928345.
A seguir, exponho algumas imagens dessa festa que
capturei no ano de 2008.

345 O ritual religioso e festivo do grupo de Florínea é iniciado no dia 25 de dezem-


bro, na casa do festeiro do ano, onde ocorre o encontro entre as duas bandeiras que
representam Jesus, São José e Santa Maria, e os seguidores que compreendem não
só o grupo de folia de reis, mas também os fiéis e simpatizantes da celebração. Após
o primeiro momento de realização das rezas e do canto das músicas em tributo ao
nascimento do “Menino Jesus”, o planejamento da festa acordado no ano anterior e os
rumos do giro que está para ser iniciado são discutidos. Ao saírem da casa do festeiro,
as bandeiras seguem rumos diferentes, sendo que cabe ao escrivão, também conhecido
como ponteiro, entrar em contato com algumas famílias para marcar a data do almoço
e do jantar do grupo a ser servido para os foliões. Além do compromisso de alguns
proprietários de residências com as principais refeições do grupo, as bandeiras também
fazem o giro em outras casas, a fim de angariar prendas (dinheiro, animais, bebidas) e
de fazer suas cantorias. Os versos cantados, em geral, remetem a acontecimentos pas-
sados, promessas, rememorações de entes queridos, agradecimentos, oferendas, sauda-
ções ao presépio, entre outras expressões musicais e falas que, segundo um dos mestres
da bandeira, Benedito da Silva14, são entoados pelo próprio mestre em formato de
“repente” (PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. GOULART, Raphaela Sales. His-
tórias e memórias: a folia de reis de Florínea/São Paulo p. 58-59. In. Revista Geografia e
Pesquisa, Ourinhos, v. 8, n. 2, p. 53-69, 2014).

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 233


Obviamente, que há toda uma diversidade simbólica
que envolve as esferas desta festa, mas, como breve olhar, quero

234 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


destacar, como indicam as imagens, os palhaços e suas indumen-
tárias, talvez porque guarde deles uma recordação nada agradável
da infância (cada visita deles ao sítio onde morava, bem pequena,
representava, para mim, o medo que só as crianças entendem).
Um novo olhar de pesquisadora, hoje, me faz compreendê-los
nessa linha tênue da fronteira entre o sagrado e o profano; uma
incógnita para muitos e uma aberração para outros. Eles cer-
tamente provocam pelo diferente que representam de todas as
imagens encantadoras que envolvem a Sagrada Família. A ima-
gem dos palhaços346 desvia o nosso olhar do sublime e nos apro-
xima do vulgar, do baixo, do grotesco. A começar pelas máscaras.

Através do mascaramento, um sem número de seres


animalescos, divinos e diabólicos tomam corpo e divi-
dem o espaço ritual com os devotos de boa parte das
manifestações do catolicismo popular. É este tipo de
religiosidade que mantém elementos intrinsecamen-
te ligados a uma concepção grotesca do mundo que,
na maioria das vezes, vai ser vista pelos órgãos oficiais
da igreja Católica como uma espécie de manifestação
profana. Mesmo que cada um dos devotos praticantes
não tenham a menor dúvida sobre a natureza de sua
devoção, muitos membros do clero insistem em fechar
as portas de suas igrejas para este tipo de celebração,
fora raras exceções347.

346 Segundo os foliões, os palhaços representam os soldados do rei Herodes que, ao


chegarem na manjedoura, se arrependeram de ter seguido os Reis Magos para matar o
Menino Jesus, se converteram ao cristianismo, se disfarçaram com as máscaras que a Vir-
gem Maria fez com um couro de cabrito e saíram distraindo as pessoas com palhaçadas,
permitindo que os Santos Reis e a Sagrada Família pudessem fugir. Esta narrativa deixa
claro que o que motiva a ação dessas máscaras é chamar atenção para si, justificando tan-
to o exagero na sua performance, como na sua caracterização. Apesar de convertidos ao
cristianismo, os palhaços não são considerados como figuras muito confiáveis, justamen-
te por terem sido soldados de Herodes, considerado como o próprio diabo pelos foliões.
É como se o caráter dos palhaços fosse contaminado pelas “forças do cão”.
347 PAULINO, R. S. As máscaras dos palhaços da folia de reis, 2008, p. 3.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 235


Bakhtin348, ao estudar as práticas cotidianas, na praça
pública e nas feiras, ou seja, nesses ambientes plenos de povo,
“revela os lugares que refletiam e também de onde emergiam in-
dícios que identificam as ideologias que circulavam na sociedade
medieval. Assim, em seus estudos da cultura popular esse filósofo
voltou suas lentes para o corpo grotesco materializado no espaço
público”349. Ao investigar o corpo grotesco nessa cultura popular,
Bakhtin reconhece os ideais de liberdade e de universalidade.

No realismo grotesco (isto é, no sistema de imagens


da cultura cômica popular), o princípio material cor-
poral aparece sob a forma universal, festiva e utópica
[...]; [o] princípio material e corporal é percebido como
universal e popular, e como tal opõe-se a toda separação
das raízes materiais e corporais do mundo, a todo isola-
mento e confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal
abstrato [...]
O porta-voz do princípio material e corporal não é
aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indiví-
duo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolu-
ção cresce e se renova constantemente. [...]350

Vale, ainda, destacar que um dos traços que marcam


esse realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, “a transferência ao
plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolú-
vel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato”351.
Rebaixar é aproximar da terra, corporificar, e essa é a qualidade
348 BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, 2010a.
349 PAJEÚ, A estética da cultura popular na folia de Momo do Recife, 2014 p. 136.
350 BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, 2010a, p. 17.
351 “A orientação para baixo é própria de todas as formas da alegria popular e do
realismo grotesco. Em baixo, do avesso, de trás para frente: tal é o movimento que
marca todas essas formas. Elas se precipitam todas para baixo, viram-se e colocam-se
sobre a cabeça, pondo o alto no lugar do baixo, o traseiro no da frente, tanto no plano
do espaço real como no da metáfora. A orientação para baixo é própria das lutas, das
brigas e golpes: esses reviram, lançam por terra, espezinham. Enterram. Ao mesmo
tempo, são criadores: ressecam e ceifam” (BAKHTIN, 2010a, p. 325).

236 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


fundamental que distingue o realismo grotesco de outras formas
de literatura da Idade Média, voltadas para o alto. E é exatamen-
te essa característica de rebaixamento que consigo vislumbrar nos
palhaços. Essa percepção se completa pela lembrança alegórica
dessas figuras: o riso. Para Bakhtin, o que ordena todas as formas
desse realismo grotesco é o riso popular, que está ligado ao baixo
material e corporal. “O riso degrada e materializa”352 e é esse pro-
cesso que permite a renovação353.
Os palhaços representam essencialmente isso: a morte
do velho e o nascimento do novo. Essa ideia é bem definida
nesta descrição:

Um dos momentos em que fica mais evidente a tesão


dos foliões em relação ao uso da farda dos palhaços
ocorre, geralmente, no dia da “entrega da bandeira”,
que marca o encerramento das atividades da Folia
naquele ano, ocasião em que é realizada a “captura
do palhaço”. Presenciei este episódio na folia de seu
Dulcino Gasparelo em Muqui, mas ele é bastante co-
mum em boa parte das folias em que os palhaços estão
presentes. Os foliões prendem simbolicamente os pa-
lhaços e os obrigam a se arrependerem de seus pecados
e a despirem as fardas, ajoelhados diante da bandeira.
Trata-se de um momento de forte emoção para alguns
palhaços que chegam até a chorar, enquanto estão di-
zendo versos como: Despeço de minha farda/ De todo o
meu coração/ Porque ela a mim não pertence/ E é da parte
do cão. É como se os palhaços não tivessem como se
livrar da sua afinidade diabólica advinda de sua ante-
rior relação com Herodes, e talvez por isso suas ações

352 BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, 2010a, p. 18.


353 Essas reflexões sobre a Cultura popular integram a minha pesquisa de douto-
rado. BRANCO, Nanci Moreira. Memórias do samba carioca na voz dos compositores
populares: uma análise discursiva de depoimentos do projeto “Puxando Conversa”. UFS-
CAR/SP, 2016. Texto disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/
ufscar/8175/TeseNMB.pdf ?sequence=1&isAllowed=y

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 237


permaneçam sempre no limite entre o sagrado e o re-
ligioso, a brincadeira e a agressão, seja física ou verbal,
conferindo-lhes um caráter ambíguo, como aparece
em alguns dos versos do palhaço Gigante. Dessa for-
ma, o palhaço parece ser um exemplar emblemático do
princípio grotesco que opera na folia354.

Esse é um processo de renovação, de se despir do velho


para que o novo possa aflorar.
Esse diálogo entre as coisas de baixo e as coisas do alto
personificado na figura do palhaço é o que o torna essa verdadei-
ra ambivalência da fé.

Ele traduz a necessidade desses devotos de não igno-


rarem nenhuma dimensão do fenômeno religioso, in-
cluindo dentro de sua manifestação um elemento que
claramente está ligado ao diabo e às forças da nature-
za. Trata-se de uma figura tão peculiar, que ela se quer
permite que sua máscara seja transferida para outra
pessoa; cada folião que se aventura em tornar presente
esse ser tem sua própria máscara e uma performance
característica. Apesar de ser possível perceber ações
cênicas e passos de dança comuns entre eles, cada pa-
lhaços é único. Assim, mais do que representarem os
palhaços, os foliões tornam-se canal de manifestação
de uma energia poderosa ligada à desordem, à anima-
lidade e às forças da natureza. Ao mesmo tempo que
teriam a incumbência de proteger a Família Sagrada
e os Santos Reis, eles personificam tudo o que haveria
de perigoso no espaço da rua nessa jornada. O que
acaba por relativizar uma concepção puramente ma-
niqueísta, fazendo com que o palhaço torne-se uma
espécie de mal necessário dentro das folias de reis355.

354 PAULINO, R. S. As máscaras dos palhaços da folia de reis, 2008, p. 19-20.


355 PAULINO, R. S. As máscaras dos palhaços da folia de reis, 2008, p. 19-20.

238 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


A imagem do palhaço ainda nos transporta para a am-
bivalência do riso, o que Bakhtin revela, na obra de Rabelais,
como riso grotesco, ou seja, não é o riso sarcástico, irônico, mas o
riso que desafia qualquer tipo de autoritarismo, de hegemonia, de
hierarquia; é o riso libertador, regenerador.
À época de Rabelais, o carnaval incorporava uma trans-
formação social, ao desafiar, mesmo que provisoriamente, a ver-
dade oficial baseada nos princípios de reafirmação da hierarquia,
do medo e da vigilância do período da Idade Média. A variedade
de formas e manifestações do riso “opunha-se à cultura oficial, ao
tom sério, religioso e feudal da época”356.

De fato, essas formas tinham uma relação capital com


o tempo, a mudança, o devir. Elas destronavam e re-
novavam o poder dirigente e a verdade oficial. Faziam
triunfar o retorno de tempos melhores, da abundância
universal e da justiça. A nova consciência histórica se
preparava nelas também. Por esse motivo, essa consci-
ência encontrou sua expressão mais radical no riso357.

A expressão do riso era um meio de quebrar certos pa-


radigmas da época. E assim, o faz desde sempre, quando é liber-
tador, regenerador. Dessa forma, essa expressão do riso sempre
povoou as manifestações religiosas populares, pois que integram a
sua condição de desafiar as hierarquias e as imposições. O riso, em
Rabelais, aparece como regenerador por ser subversivo em relação
ao pensamento unilateral da época. É sempre um riso festivo.
Toda essa atmosfera festiva que povoa o imaginário po-
pular é que move a cultura, a religião nela inserida, pois que, ao se
entrelaçar com a tradição, não permite que esta se estagne e mor-
ra. É esse o movimento que possibilita a renovação. Se esta é dada
pelo sincretismo inevitável de Salvador, na lavagem do Bonfim,

356 BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, 2010a, p. 3.


357 BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, 2010a, p. 85.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 239


é também consagrada pela celebração cultural da Folia de Reis e
toda a sua alegoria e seu riso libertador, pelo interior do país.
Toda experiência, “as ações do outro, os dizeres do ou-
tro, prenhes de sua cultura, quando confrontados com objetos
e fenômenos que nos escondem as valorações que nós mesmos
lhes atribuímos, mostram-nos o que não mais conseguimos en-
xergar”358. É esse o nosso maior aprendizado. A renovação da
nossa experiência do Sagrado passa pela alteridade, passa pela
minha relação com o Outro.
Como ressaltei, no início, não tenho a menor intenção
de fechar esse assunto. Nenhum bakhtinano o faz. Mais do que
discorrer sobre conceitos-chave do filósofo Mikhail Bakhtin (e
seu Círculo), procuro olhar para a religiosidade popular de forma
dialógica. Portanto, quero provocar um diálogo, suscitar respostas.
Que venham outros olhares dispostos a olhar o diferente, a rir
com o Outro (e não do Outro), pois é assim que renovamos o
nosso aprendizado de participantes do grande diálogo do mundo.
O popular é o lugar do encontro, do acolhimento, mas sem excluir
as diferenças, pois a recusa na relação com a alteridade produz
desigualdades. “Diferença não é sinônimo de desigualdade. Com
diferenças muitas vezes escondemos desigualdades. Diferenças só
são percebidas nas familiaridades compartilhadas; desigualdades
são recusas de partilha”359. É essa a lição de alteridade que Geraldi
nos traz: a diferença identifica. A desigualdade deforma. Esse apren-
dizado é o que ganhamos quando procuramos nos abrir à diver-
sidade e a essas formas de conceber o sagrado e a vida. O que
produz a intolerância é exatamente essa recusa de partilha.

358 GERALDI, Ancoragens, 2010, p. 89-90.


359 GERALDI, Ancoragens, 2010, p. 114.

240 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


Referências

AMORIM, Marília. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no


contexto”. In. BRAIT, B. (org). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São
Paulo: Contexto, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4ª ed. Trad. Paulo
Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª ed. Trad.
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2006b.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
o contexto de Francois Rabelais. 7ª Ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Hucitec, 2010a.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos:
Pedro&João Editores, 2010b.
GERALDI, João Wanderley. Ancoragens. Estudos bakhtinianos. São
Carlos: Pedro&João Editores, 2010.
MIOTELLO, Valdemir. A memória do passado em jogo com a me-
mória do futuro constitui sentidos agora. Daí que os projetos de dizer
dos sujeitos têm importância. In. Veredas bakhtinianas – de objetos a su-
jeitos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2006.
PAJEÚ, Hélio M. A estética da cultura popular na folia de Momo do
Recife - questões de alteridade, corporeidade e transgressão. Tese de
doutorado. UFSCar, 2014.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 241


Sobre os autores

ALDO DINUCCI

Doutor em Filosofia Clássica pela Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro. Pós-Doutor pela Universidade de
Kent, Canterbury (Reino Unido). Pós-Doutor pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Pós-Doutor pela Universidade de
Brasília. Membro da Cátedra UESCO ARCHAI. Editor da
Revista Prometeus. Bolsista em produtividade pelo CNPq.
Membro de diversos comitês editoriais de periódicos científi-
cos. Atualmente é professor associado nível 2 da Universidade
Federal de Sergipe, lecionando nos níveis de Graduação e Pós-
Graduação. Atualmente trabalha no projeto intitulado “O pro-
blema da consistência do conceito estoico de phantasía”, dupla-
mente financiado pelo CNPq através dos editais de Ciências
Humanas e Universal do CNPq do ano de 2013.

ANTÔNIO CARLOS RODRIGUES

Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de


São Paulo. Desenvolve pesquisas na área de Filosofia Antiga,
com ênfase em helenismo, estoicismo na era imperial e, particu-
larmente, sobre o autor Epicteto. Possui publicações utilizando o
pseudônimo “Antônio Tarquínio”.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 243


CAROLINA TELES LEMOS

Doutora em Ciências Sociais e da Religião pela Universidade


Metodista de São Paulo (UMESP), Graduada em Pedagogia e
Psicologia. É uma das Fundadoras do Programa de Pós-Gradução
Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, no qual é docente titular e coordenadora do
Núcleo de Pesquisa em Ciências da Religião.

CELMA LAURINDA FREITAS COSTA

Doutora e Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade


Católica de Goiás. Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Universidad del Museo Social Argentino (UMSA). Doutoranda
em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica
de Goiás e Mestranda em Direito pela Escola Paulista de
Direito. Instrutora em mediação e mediadora judicial capacitada
pelo Conselho Nacional de Justiça. Professora universitária da
Faculdade de Inhumas.

CLÓVIS ECCO

Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade


Católica de Goiás, Graduado em Filosofia e Teologia, com es-
pecialização em Psicopedagogia. É professor titular e coordena-
dor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências
da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Desenvolve pesquisas na área de Antropologia da Religião e
Ateísmos Contemporâneos.

244 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


DANIEL RODRIGUES RAMOS

Doutor em Filosofia pela Pontificia Universitas Antonianum, de


Roma. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás.
Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
de Goiás e em Odontologia pela Universidade Federal de
Uberlândia. Atualmente é professor efetivo no curso de Filosofia
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e desenvolve
pesquisas na área de fenomenologia.

GLÁUCIA BORGES FERREIRA

Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade


Católica de Goiás, na linha de pesquisa Religião e Movimentos
Sociais. Bacharela em Direito pela Universidade Paulista.
Pesquisadora-estudante do Grupo de Pesquisa Religião, Cultura
e Sociedade, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da PUC-Goiás.

JOSÉ JOÃO NEVES BARBOSA VICENTE

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia. Mestre


em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente
é professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia e editor chefe da Griot – Revista de Filosofia. Tem expe-
riência na área de Filosofia, com ênfase em Ética, Filosofia da
Educação, Filosofia Política e História da Filosofia.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 245


JOSÉ REINALDO F. MARTINS FILHO

Doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade


Católica de Goiás. É Mestre em Filosofia (2014) e em Música
(2016), ambos pela Universidade Federal de Goiás. Bacharel e
Licenciado em Filosofia e Bacharel em Teologia, com especia-
lização em Sociologia da Religião pelo Centro Universitário
Claretiano. Atua como professor de Filosofia no Instituto
de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG) e na Pontifícia
Universidade Católica de Goiás. É membro colaborador do
Círculo Latinoamericano de Fenomenologia (CLAFEN), do
Laboratório de Musicologia da Universidade Federal de Goiás e
do Grupo de Estudos Religião, Cultura e Sociedade da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás.

JOSÉ TERNES

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Mestre


em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. É graduado em Filosofia e em Letras Vernáculas. Atou
como professor titular da Pontifícia Universidade Católica de
Goiás e da Universidade Federal de Goiás. É professor perma-
nente do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado
e Doutorado) e colaborador no Mestrado em Letras, ambos da
PUC Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase
em Epistemologia e Filosofia Francesa Contemporânea, atuan-
do principalmente nos seguintes temas: educação, Foucault, ci-
ência, Bachelard, filosofia e literatura.

246 Epistemologias da religião e relações de religiosidade


KATIUSKA FLORENCIA SERAFIN NIEVES

Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade


Católica de Goiás. Possui graduação em Teologia pela Universidad
Católica Andrés Bello, Colômbia, e especialização em Assessoria
Bíblica e Liturgia, ambas pelo Instituto de Filosofia e Teologia
de Goiás (IFITEG).

NANCI MOREIRA

Doutora e Mestra em Linguística pela Universidade Federal


de São Carlos, na linha de pesquisa Linguagem e discurso.
Especialista em Ensino do Texto, pela Universidade Estadual
Paulista. Integra o Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso
(GEGe), vinculado à Universidade Federal de São Carlos.
Desenvolve pesquisas na área de Teoria e Análise Linguística,
com ênfase nos Estudos Bakhtinianos. Atua junto à rede pública
de ensino do Estado de São Paulo.

PEDRO GOMES NETO

Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio


Grande do Sul. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal
de Goiás. Atualmente é professor adjunto IV da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência
na área de Filosofia, com ênfase em Ética e Filosofia Política,
Metafísica, Ontologia e Filosofia da Educação.

Epistemologias da religião e relações de religiosidade 247


RICARDO DELGADO DE CARVALHO

Doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade


Católica de Goiás. É Mestre em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas e especialista em psicolo-
gia pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da
Universidade Federal de Goiás, na Cidade de Goiás, Goiás

248 Epistemologias da religião e relações de religiosidade

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