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Título: [o que você precisa saber sobre ...

]
Filosofia para crian ças
Walter Omar Kohan

Coleção
[o q ue você precisa saber sobre ...]
COORDENAÇÃO
Paulo Ghiraldelli }r. e N adja Herman

Esta coleção é uma inicia tiva do GT-Filosofi a da Educação da Anped


na gestão de Paulo Ghiraldelli }r. e Nadja Herman

FicHA TÉc NICA Filosofia para crianças


Revisão de provas:
Paulo Telles Ferreira

Projeto gráfico e diagramação:


Maria Gabriel a Delgado

Capa: Walter Ornar Kohan


Rodrigo Murtinho

CIP-BRASIL. Catalogação-n a-fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

K85f
Kohan, Walter Omar
Filosofi a para crianças I Walter Omar Kohan. - Rio de Janeiro:
DP&A, 2000.
. - (0 que você precisa saber sobre)
14 x 21 em
133p.

Inclui bibliografia
ISBN: 85-7490-016-8
I. Filosofi a - Estudo e ensino. 2. Crianças e fil osofia I. Título. IJ.
Sé rie.

CDD372.81
-$--
DP&A.
CDD37.013.73 edit:ora.
Sumário

Introdução 9
As relações entre filosofia e infância
Filosofia para crianças: a descoberta de Matthew Lipman

Capítulo I
Os fundamentos teóricos do programa
filosofia para crianças de Matthew lipman 17
O ideal de filosofia e o papel do professor
O ideal de investigação em comunidade e o diálogo filosófico
O ideal de educação democrática e o pensar de "ordem superior"

Capítulo li
A metodologia do programa
filosofia para crianÇas de Matthew Lipman 59
O currículo: novelas e manuais filosóficos
As habilidades cognitivas desenvolvidas pela filosofia, segundo Lipman
Como se trabalha na sala de aula: análise crítica de alguns exemplos

Capítulo 111
A institucionalização de filosofia para crianças
linhas gerais do movimento no mundo 87
Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia para Crianças
(IAPC- Institute for the Advancement of Philosophy for Children) -
Estados Unidos
Conselho Internacional para a Investigação Filosófica com C rianças
(ICPIC- Intemational Council for Philosophical Inquiry with Children)
Os outros países da América
Associação Norte-americana para a Comunidade de Investigação
(NAACI- North-American Association for the Community of Inquiry)
Capítulo IV Introdução
Desafios atuais para pensar a prática
da filosofia com crianças no Brasil 119
Desafios teóricos
Desafios metodológicos
Desafios político-institucionais

Para saber mais sobre filosofia para crianças 125 As relações entre filosofia e infância
As RELAÇÕES ENTRE FILOSOFIA E INFÂNCIA vêm de longa data.
Já para os antigos filósofos gregos a infância n ão passou
despercebida. Nada disso. Nos testemunhos que conservamos
dos primeiros filósofos pré-socráticos, nos albores do século V a.C.,
aparece uma referência à criança como uma imagem que fala
do tempo-destino. Trata-se do fragmento 52 de Heráclito, um
texto obscuro, complexo. Ele diz: "o tempo é uma criança que
joga as damas: o reino de uma criança". Heráclito está falando
do tempo-destino, do tempo-devir, do tempo da vida humana
(utiliza a palavra grega Aiàn, em vez de chrónos), como se esse
tempo fosse uma criança que brinca um jogo que parece com
nosso jogo das damas. Nesse jogo o decisivo não é a sorte, mas a
capacidade de situar-se na luta, saber bloquear o caminho do
adversário e ultrapassar suas defesas (lembre-se que, para o
filósofo de Éfeso, a guerra é o comum, fragmento 80, e ela é
rainha de todas as coisas, fragmento 53). O tempo, enquanto
devir, é uma criança que joga, diz o enigmático Heráclito, como
se a lógica do devir fosse a mesma lógica de um jogo e como se
o tempo tivesse a mesma relação de poder sobre o nosso devir
que a criança tem sobre esse jogo. É muito ousado avançar mais
na interpretação desse texto; mas, em qualquer caso, parece
uma imagem poderosa da infância.
A antiga literatura grega oferece imagens com a mesma força
expressiva. Algumas delas expressam o poder atribuído à infância:
Aquiles matou um javali quando ele tinha apenas seis anos de
idade; Ciro foi eleito rei aos dez anos de idade; Alcibíades
fiL OSOF IA PARA CR I ANÇAS INTRODUÇÃO 11
1o

impediu a passagem de uma enorme carruagem sendo muito disciplina, valo r e con st ância, laboriosid ade e espírito de
pequeno; n o livro A ntígona de Sófocles, o sábio T irésias, cego, emulação, paixão pela honra (Alcibíades I, 122c). Na an tropologia
é conduzido por uma criança. Crítias testemunha que a infância platônico-aristotélica, a criança é o q ue o ser h uman o tem de
é , para os gregos , um período extraordinário para o aprendizado: p ior, na medida e m que n e la predomina aquilo que a alm a
"é comum dizer que o q ue se ap rende sendo criança fica de humana tem de mais baixo: as emoções, os desejos, as sensações
modo admirável n a memória" (Platão, Timeo 26b). Isócrates, que, nas crian ças, seriam dominantes, acima da razão. Por isso,
Platão, Aristóteles, todos os grandes teóricos da educação, dão Platão coloca as crianças junto às mulheres, aos escravos e aos
c ré dito a essa afirm ação. N a segunda metade do século V, animais (Platão, ReJJública IV, 43 1c; 441 a-b; Teeteto 17 l e) e
Sócrates, q ue ensina adolescentes a filosofar na Praça Pública, A ristóteles as agrupa junto aos bêbedos, lo ucos, doentes e fracos
afirma q ue sua paixão maior, ter um bom amigo, está com ele (Ética a Nicômaco V II, 14, 1154b 10; Ética a Eudemo I 1214b 30;
desde sua infância (Platão, Lísis 2lld). Inúmeros testemunhos V II, 1238a 33; Política V II, 1, 1323a 33) e diz que ninguém
coincide m e m afirma r qu e as crianças t êm aind a algumas gostaria de viver com a inteligência de uma crian ça (Ética a
caracte rísticas físicas posit ivas como o cheiro doce da respiração N icômaco X, 3, 1174a 1-2) nem voltar à infância uma vez tendo
e d a pele e, também, a leveza. Existe uma tendência na filosofia saído dela (Ética a Eudemo I, 12 15b 24).
e na cultura grega de conside rar a infân cia como uma fase A essa visão negativa da infância alia-se uma outra que
privilegiada d a vida humana. carac te riza a infância como um est ado n ão acabad o. Nesse
H á, contudo , uma forte t endência contrária. Com e feito, sentido, a infância é vista, sob o prisma do o lhar adulto, como
embo ra o q ue possam sugerir aqueles testemunhos, predomina aq uilo q ue será , mas ainda n ão é, como o n ão com pleto, o
entre os filósofos gregos do período clássico uma visão negativa indefinido. A ristóteles diz que o escravo carece por completo
da infância. No próprio H eráclito alguns outros fragmentos dão d e d eliberação , a mulhe r a possui, m as sem autoridade , e a
conta dessa visão: o homem pode ser chamado de criança frente criança também a possui, mas de forma inacabada (Política I, 13,
à divindade ; ele está fre nte à divindade na mesma relação em 1260a 12; VIII, 5, 1339a 30) . Como afirma Platão n a República,
que a criança está fren te a e le (fragmento 79). No período as crian ças são tão maleáveis que, nessa fase , se pode atribuir a
clássico, a criança é freqüentemente considerada como sendo cada indivíd uo o cará ter q ue se q uer. Diz e n tão Sócrates a
fisicamente débil, moralmente incompetente e intelectualmente A dimanto (li, 377a-b):
incapaz. Durante o século IV a .C., Platão e A ristó teles se ocupam
Portanto, sabes que o princípio de toda obra é o principal, sobretudo
repe tidame nte d a primeira fase da vid a human a nas suas
nos mais pequenos e ternos; porque é então que se plasma e imprime
con side rações éticas, ped agógicas, políticas. As image ns q ue
o tipo que alguém quer inseminar em cada pessoa.
eles o fere cem n ão são muito favoráveis à infâ ncia . Pla tão
compara a fraqueza de um A teniense frente à fortaleza de um Este parágrafo expressa a consumação dos ideais de uma
Espartano com a fraqueza de uma criança frente à fortaleza de educação formadora, fabricadora, aquela que assume que vai
um adulto. Os valores q ue marcam essa diferença são prudência plasmar certos modelos nos o utros, para garantir q ue esses ou tros
e m o d és tia , d estreza e b e n evolê ncia , m ag n a nimid ade e sejam o que se quer fazer deles. Por isso, considera Platão, deve-se
12 fiL OSO FII\ PI\RI\ CRI/\N Ç/\5 I N TROD U ÇÃO
13

cuidar de todos os detalhes da educação das crianças. Elas são metáfora do inumano que resiste ao terrorismo da totalidade do
tão importantes, não pelo que são, mas pelo que podem ser. sistema. Trata-se daquela singularidade excluída que não pode
A educação deve garantir, nesse paradigma, que elas possam ser assimilada.
ser os adultos que queremos que sejam. Poderíamos aprofundar essas referências e ampliá-las. Mas não
Durante a história da filosofia, muitos filósofos, além dos gregos, é esse o objetivo deste texto. Elas apen as pretendem ilustrar uma
se inte ressara m pela infância. A partir do século XVI, alguns primeira forma possível de relacionamento entre as duas áreas
rela tos ped agógicos oferecem imagens algo ma is benévolas da que nos ocupam: filosofia e infância. Apreciamos diversas reflexões
infância. Michel de Montaigne, por exemplo, reforça a importância filosóficas sobre a infância, que conformam o campo da filosofia da
de uma educação lúdica, aberta, que favoreça o desenvolvimento infância com uma história tão longa quanto a própria filosofia.
de um pensar autônomo nas crianças (1972, p. 81-82): Até aqui oferecemos apenas alguns exemplos, seus primeiros traços.
Poderíamos mencio n a r muitos outros nomes significativos
Nosso espírito, no sistema que condeno, não procede sen ão por crença
pa ra uma tal histó ria, como H obbes, Kant, H egel, e mais
e adstrito à fantasia de outrem, serve o cativo de e nsinamentos estranhos.
con temporaneamen te , Wittgenstein, Kierkegaard, Korczak.
Tanto n os oprimiram com andadeiras que j á não temos movimentos
livres. Vigor e liberdade, extinguiram-se em nós. (...) Q uem segue outrem N ão é dessa relação , porém, que trata este livro. Aqui não
n ão segue coisa nenhuma; ne m nada encon tra, mesmo porque n ão nos preocupam as reflexões filosóficas sobre a infância, mas a
proc ura. "Não estamos sob o domínio de um rei; que cad a qual se prática da filosofia na infâ ncia. Não é com as teorizações que
governe a si próprio . (Sên eca) Que ele ao menos tenha consciência de filósofos , antropó logos, escritores e outros membros de uma
que sabe. (... ) É a inte ligência, dizia Epicarmo, que vê e ouve; é a cultura fazem sobre a infância que estamos preocupados aqui,
inteligência que tudo aproveita, tudo dispõe, age, domina e reina. Tudo mas com o que a filosofia pode significar quando exercitada nas
o mais é cego, surdo e sem alma. Certamente, to rna remos a criança primeiras fases da vida de uma pessoa. Nesse campo , a tradição
servil e tímida se não lhe dermos a oportunidade de fazer algo por si. é bem mais restrita e enxuta: talvez aquelas discussões filosóficas
"Tornaremos a crian ça servil e tímida se não lhe dermos a que Sócrates desenvolvia com púberes, no espaço público e
oportunidade de fazer algo por si", diz Montaigne, o que significa privado de A ten as , sejam nosso interlocutor predileto n a história
que a criança não é servil e tímida enquanto criança, mas é d a disciplina. N a prá tica da filosofia com cria nças, n a s ua
uma educação autoritária, memorística e punitiva que a torna educação, é que estamos interessados. Por que, então, o título
de tal modo. Dois séculos mais tarde, Rousseau dirá no Emílio deste livro, filosofia para crianças em vez de filosofia na infância
(1999) que só uma educação n a experiência d a natureza ou filosofia com crianças? É que a própria denominação filosofia
preservará no Emílio a felicidade e a perfeição que n aturalmente para crianças tem uma história e ela exige alguns esclarecimentos.
dá razão a todo ser human o. No romantismo de Schiller, no século
XIX, a infância é idealizada como a unidade originária perdida Filosofia para crianças: a descoberta de Matthew lipman
(1991) , natureza divina que os adultos já foram algum dia e que Há mais de trinta anos existe um movimento que se propõe
devem tentar recuperar. Entre os pós-mode rnos, Lyotard (1997) a levar a filosofia à educação das crianças . A expressão filosofia
concebe a infância como figura paradigmática do indeterminado, para crianças expressa essa tentativa. Ela traduz a expressão em
fiLOSOFIA PARA CRIANÇAS I NTRODUÇÃO 15
14

inglês philosophy for children, cunhada pelo filósofo norte - ele se aplica em mais de 30 países do mundo, com o Brasil à
americano Matthew Lipman no final da década de 1960. Fora frente deles - , o estudaremos com algum detalhe neste livro.
de um ou outro momento na história da disciplina - como o já Na primeira parte, procuraremos explicitar os elementos
citado dialogar socrático com crianças e jovens, depois principais da fundamentação teórica de sua proposta. Num
duramente contestado por seu discípulo Platão -, Lipman é o segundo momento, adentraremo-nos em se us princípios
fundador do movimento por levar sistematicamente a prática metodológicos. Num terceiro momento, desenvolveremos seus
da filosofia à educação das crianças. O seu propósito é contribuir aspectos institucionais. Aqui apresentaremos um estado atual
com a reforma do sistema educacional para que esse desenvolva do desenvolvimento do campo filosofia para crianças em diversos
adequadamente o raciocínio e a capacidade de julgar dos alunos. países do mundo e, sobretudo, no Brasil. Todos esses capítulos
A prática da filosofia, o fazer filosofia é, segundo Lipman, não serão apenas descritivos. Neles, procuraremos explicar os
ferramenta indispensável dessa tarefa. Lipman não só pontos principais da proposta de Lipman e, também, contribuir
fundamentou teoricamente o papel da filosofia na educação das com elementos que nos permitam problematizá-la. Por último,
crianças, como também desenvolveu um.a metodologia e um num quarto momento, oferecemos alguns desafios da prática da
curr(culo para levá-la às escolas. filosofia com crianças no Brasil, nesse século que entra,
Deve-se entender, portanto, a expressão filosofia para repensando o caminho iniciado por Lipman.
crianças, nesse primeiro sentido, como uma tentativa de levar a Talvez seja esse um bom momento para nos determos no título
prática da filosofia às crianças, tentativa de tornar a história da que acompanha todos os volumes desta coleção, "O que você
filosofia acessível para que as crianças filosofem com ela. Pois precisa saber sobre ... " O campo de filosofia para crianças pertence,
bem, num sentido mais amplo, ela não só designa a tentativa como tal, à filosofia. Como campo filosófico ele é polêmico,
particular de Lipman, quanto uma nova área ou campo de controverso, espaçoso, inesgotável, de final aberto. Talvez seja
interesse da própria filosofia, a de fazer filosofia com crianças. bom deixar claro desde o início, portanto, que aqui estamos
Dentro desse campo, a proposta concreta de Lipman é a primeira longe de qualquer pretensão de oferecer a filosofia para crianças,
expressão sistemática das suas possibilidades, mas é também como se esta fosse a única forma de entendê-la. Neste pequeno
apenas mais uma tentativa dentre outras e merece ser livro, procuramos oferecer apenas alguns elementos básicos para
compreendida e problematizada nos seus fundamento s, que o leitor compreenda e pense criticamente essa nova área
metodologia c prática. A importância singular de Lipman deriva da filosofia. Na verdade, mais do que "o que é necessário saber",
de ser - como Freud para a Psicanálise, Saussure para a esperamos que o leitor encontre aqui "algo com o qual é possível
Lingüística, ou Weber para a Sociologia - um iniciador, um pensar" essa extraordinária chance da educação que chamamos
fundador e, ao mesmo tempo, de tentar levar à prática o caminho filosofia para crianças.
por ele fundado. Mas de forma alguma sua proposta esgota as Para facilitar a leitura do texto, não incluiremos em seu corpo
possibilidades de tal campo. Apenas as inicia. notas nem referências bibliográficas. Esperamos que o leitor seja
Precisamente por esse caráter fundacional, e também pela compreensivo com essa opção. Procuramos, antes de mais nada,
importância e impacto internacional de seu programa - hoje tornar a leitura do texto mais amigável. Para reparat; pelo menos
16 fiLOSOFIA PARA CRIANÇAS

CAPfTULO I
em parte, essa falta, ao final incluiremos uma seção intitulada
"Para saber mais sobre filosofia para crianças". Nela ofereceremos
~undamentos teóricos do programa
~ 'i:J::~fia para crianças de Matthew Lipman
as fontes principais que sustentam cada capítulo e referências
para os interessados em ampliar os temas apresentados neste
texto.
Finalmente, agradeço a Bernardina Leal, pela correção
atenta e carinhosa à primeira versão deste texto.

A FUNDAMENTAÇÃO QUE LIPMAN OFERECE para sua proposta é


claramente normativa. Isto significa que, nela, Lipman diz como
deveria ser uma educação filosófica das crianças. Para isso, propõe
uma argumentação na qual alguns ideais desempenham um
papel-chave. No intuito de apresentar as linhas principais de
sua proposta, nos concentraremos em três categorias que nela
possuem papéis centrais: filosofia, investigação e educação
democrática. Vamos apresentá-las enfatizando as influências
mais significativas na história da filosofia que contribuíram para
a proposta de Lipman.

O ideal de filosofia e o papel do professor


O propósito central da proposta de Lipman é levar a filosofia
às crianças. Mas, que filosofia é essa? Como compreendê-la?
Como reconhecê-la? Quais são as principais características de
sua normatividade filosófica?
Em muitos dos seus trabalhos (1990a, 1993a, 1995b, 1999b)
Lipman enfatiza a distinção entre filosofia e filosofar, entre a
filosofia como sistema ou teoria e ela como prática, como fa:er.
É essa última que Lipman tenta levar às crianças. Trata-se de
fazer com que elas pratiquem a filosofia, a façam, a exerçam,
a vivenciem. Claro que, nessa prática, a filosofia como teoria,
como conjunto de pensamentos, está presente. Por isso, Lipman
fez uma reconstrução da história da filosofia para que ela pudesse
ser experienciada pelas crianças. Porque, segundo Lipman, não
18 FILOSOF IA PARA CRIANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓRI COS DO PROG RAMA FilOSOFIA PARA CRIANÇAS DE MATTHEW li PMAN 19

se pode propriamente filosofar sem filosofia, não é possível fazer e dos filósofos. Eu sei o que o leitor pode estar pensando neste
boa filosofia sem o contato com aquilo que a filosofia tem momento: "Sócrates outra vez?" "Será que não se pode falar de
produzido de melhor, pelo menos nos vinte e cinco séculos de filosofia sem falar de Sócrates?" Compreendo essa inquietação.
história no Ocidente. Pode parecer que sobre Sócrates já tenha sido dito tudo. Como
Essa distinção vem, pelo menos, desde Kant, para quem não se isto fosse possível. Mais que isso. A história da filosofia mostra
é possível ensinar filosofia, mas se pode ensinar a filosofar (1983, que falar de Sócrates, além de necessário , torna-se
p. 407-9- B 865-9). Na opinião de Kant, a distinção está atrelada imprescindível quando se faz filosofia. Talvez por causa de sua
a uma concepção da filosofia e de um sujeito transcendental vida e sua morte; talvez pelo fato de ele ter inventado a filosofia,
que a fundamenta. Em sentido kantiano, a filosofia não pode pelo menos uma forma de filosofia ainda significativa até os dias
ser ensinada porque ela, enquanto idéia de uma ciência possível, de hoje. Também por isso, temos que falar de Sócrates.
sempre é inacabada e, portanto, não pode ser aprendida nem Mas falar de Sócrates não só é necessário, como também
apreendida. É possível, no entanto, exercer "o talento da razão muito difícil. Sócrates não escreveu nada. Escolheu não fazê-lo.
na observância dos seus princípios universais em certas tentativas Sabia que a palavra escrita é mais limitada do que a palavra
existentes". Por isso, para Kant só é possível aprender a filosofar, falada. Quando falamos, escolhemos o interlocutor; quando
reservando-se sempre à razão "o direito de investigar esses escrevemos, o leitor nos escolhe. Sócrates escolheu não ser
princípios nas suas próprias fontes e confirmá-los ou rejeitá-los". escolhido por leitores. Preferiu escolher seus interlocutores. Esse
Kant afirma, desse modo, a possibilidade do exercício autônomo silêncio escrito de Sócrates não tem sido fácil de digerir para os
de uma razão filosofante acima da existência de um sistema filósofos. Amando-o ou odiando-o, todos querem falar com
acabado de conhecimento filosófico. Sócrates. Como se, nesse diálogo, os filósofos encontrassem um
Mesmo que não seja de forma explícita, a distinção pode ato fundacional. Como se Sócrates tivesse instaurado não só a
remontar alguns séculos atrás, até o velho Sócrates. O próprio filosofia, mas a própria condição de filosofar.
Lipman faz inúmeras referências a Sócrates nos seus trabalhos Sorte para nós que Platão não fez muito caso do seu mestre
teóricos (em especial, 1990b, e 1993b, p. 437-476). A seguir, e o descreveu prolificamente. Dessa forma, o diálogo com
analisaremos em que medida há uma correspondência entre o Sócrates acaba sendo sempre indireto, mas, pelo menos, possível.
ideal de filosofia proposto por Lipman e aquele praticado por Dos testemunhos que falam de Sócrates, o de Platão é, sem
Sócrates. dúvida, o mais importante para a filosofia. Sendo Platão um
Há uma outra razão que torna necessário falar sobre Sócrates notável filósofo, o preço que pagamos para falar com Sócrates
neste livro. Aqui estamos ocupados com filosofia para crianças e, não é baixo. Na verdade, quando falamos com Sócrates, estamos
como já antecipamos na introdução, nenhum dos nomes ilustres falando com um Sócrates platônico. Não podemos ter muitas
da filosofia chegou tão próximo do diálogo filosófico com as pretensões de falar com o Sócrates histórico. Pelo menos para a
crianças quanto Sócrates. filosofia, o encontro entre Sócrates e Platão é indissociável.
Para falar de Sócrates, devemos primeiro fazer alguns Sócrates foi personagem de quase todos os diálogos
esclarecimentos. Em muitos sentidos, Sócrates é o pai da filosofia platônicos. Só não aparece no último, Leis. Como se Platão se
20 FI LOSOF IA PARA CRI ANÇAS ÜS FU NDAMENTOS TEÓR ICOS DO PROGRAMA FilOSOFIA PARA CRIANÇAS DE MATTHEW LIPMAN 21

tivesse apar tado gradativamente de Sócrates. Nos primeiros dos filósofos. As duas parecem inco mpa tíveis. Na arena da justiça
diálogos, sua presença é fundamental; ele é o condutor de todos instituída, a filosofia tem melhores argumentos, mas a política
eles. Nesses diálogos, ele coloca em prática uma certa forma de tem muito mais força. Por isso, Sócrates (a filosofia) é condenado
entender a filosofia . Como sabemos, Sócrates foi acusado de à morte.
introduzir novas divindades e de corromper os jovens de Atenas. No julgam ento, Sócrates rejeita a possibilidade de ganhar a
Foi julgado e conde nado. Três diálogos de Pla tão n arram o liberdade se o preço for deixar de filosofar: "uma vida sem exame
processo: a Apologia de Sócrates descreve o julgamento ; o Críton, não é digna de ser vivida por um ser humano" (A jJologia 38a) ,
uma tentativa de alguns amigos de Sócrates para que ele fugisse como se a prática da filosofia, o filosofar, não pudesse faltar numa
d a cadeia antes de ser executada a senten ça; o Fédon, as últimas vida propriamente human a; como se, para um ser humano, viver
conve rsas de Sócrates até o momento de beber a cicuta e morrer. sem perguntas não fosse viver de verdade. Sócrates mostra que
Na Apologia, como estratégia de defesa, Sócrates se identifica não só necessita da filosofia para viver, mas que necessita dela
com a filosofia. Considera a acusação contra ele uma acusação também para mo rrer, para terminar sua vida, para morrer de
contra a própria filosofia. Ninguém antes de Sócrates, pelo menos verdade, para humanizar sua morte, para aceitá-la como parte
com testemunhos que tenham chegado até nós, chegou tão perto da vida. Assim são as vidas e mortes filosóficas, q ue convidam a
da filosofia. Por isso, Sócra tes é o fund ador da cidade da filosofia, viver e morrer na filosofia, n a pergunta, na busca, na resistência.
dá-lhe um nome, desenha seus caminhos. Faz isso nada menos Nos primeiros diálogos de Platão, Sócrates coloca esse filosofar
que frente a um tribunal h ostil, liderado pelos representantes em prática. São con versas curtas. A maioria delas acontece em
da política instituída. Mostra que a filosofia e a política instituída locais públicos, sobre uma q uestão intrigante da vida human a:
de seu tempo são incompatíveis. A política instituída sabe tudo, a co ragem, a amizade , a justiça, a prudência, a piedade . N o
sacraliza o banal, descuida do mais importante. Ao contrário começo das con versas, os interlocutores acreditam saber o que
dessa , a fil osofia pergunta, reconhece limites, pergunta , significa determinado conceito. No final, o diálogo mostra que
desconstrói o aparente e o falso, pergunta, dessacraliza os valores aquele aparen te saber não era tal, e a pergunta fica aberta.
afirmados socialmente, pergunta, cuid a d e si e dos o ut ros,
O Eutífron é um bom exemplo desses primeiros diálogos .
perg unta , resis te à ordem instituída, pergunta , o utra ve z
Sócrates se encontra, por acaso, com esse especialista em
pergunta, sempre pergunta.
questões religiosas. Pede a ele que lhe ensine o que é o sagrado.
N esse contexto, a condenação de Sócra tes (da filosofia) à Q uem melho r para isso que o sacerdote Eutífron ? Esse aceita
morte é lógica. Inclusive, ele não parece incomodar-se muito prontamente. Não sabe com o que se mete. Suas respostas não
com esse resultado. Ele ri dos políticos, mostra-lhes que valoram satisfazem a Sócrates. E utífron dá exemplos, características,
o menos importante e desprezam o mais significativo. Têm os ins tâncias do sagrado, m as n ão consegue definir, mostrar a
valores tran smudados. C uidam de tudo, menos deles mesmos. "essência" do sagrado, aquilo que faz com que todas as coisas
Em nenhum momento Sócrates pretende mostrar a filosofia como que chamamos "sagradas" sejam efetivamente sagradas, aquela
prescindível ou inocente frente à política. N a verdade, são d uas única característica pela qual a lgo que chama mos sagrado é
políticas q ue se enfrentam, a política dos políticos e a política sagrado. O élenchos socrático é implacável. Não perdoa nenh uma
22 FILOSOFIA PARA CRIANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA FilOSO FIA PARA CRIANÇAS DE MATTHEW liPMAN 23

falta lógico~conceitual na argumentação do outro. Ao final do Pois bem, há alguns pontos de contato ainda mais
diálogo, Eutífron sai correndo ante sua própria impotência de significativos, na forma em que ambos concebem tal prática.
responder às perguntas socráticas. A pergunta "o que é o Lipman segue Sócrates em manter a ligação e o compromisso da
sagrado?" fica de pé, e a busca filosófica deve continuar. filosofia com a vida, projetando a pergunta e o exame muito
Em que sentido essa concepção de filosofia expressa e além das salas de aula onde se trabalha majoritariamente seu
praticada por Sócrates é compartilhada por Lipman? Quais são programa. A investigação filosófica não é, de acordo com
os seus pontos de contato, suas semelhanças e diferenças? Lipman, apenas um exercício retórico sobre questões externas
Vejamos. Há uma primeira similitude muito expressiva. Tanto aos que a praticam. Ela "coloca em questão" os dogmatismos
Lipman quanto Sócrates enfatizam a dimensão prática e dialógica que habitam a vida individual e coletiva.
da filosofia. Um e outro dão prioridade à filosofia como atividade Nos dois casos, a filosofia é compreendida como uma busca,
dialógica. Para ambos, a filosofia é algo que se exerce, se cultiva, como um exame, como um caminho que os participantes do
se vive em diálogo com outros. diálogo devem percorrer juntos. Para Lipman e para Sócrates, a
Além disso, para ambos a prática de filosofia tem implicações linguagem e o raciocínio desempenham um papel central no
educacionais de grande importância em uma unidade de sentido crescimento do diálogo. Ambos são cuidadosos no uso e no exame
sociopolítica. Isto significa que tanto um como outro consideram da linguagem e na análise das razões que fundamentam as
que a prática da filosofia é substancialmente educativa, na tessituras que vão sendo apresentadas no diálogo. Esse caminho
medida em que contribui para formar espíritos críticos, pessoas começa para ambos numa certa confusão conceitual, se projeta
dispostas a deixar de ter certeza sobre seus saberes e a se colocar no questionamento e continua num diálogo aberto que mostrará
atentas para questionar os valores e as idéias que formam suas ser ainda preciso manter e pensar aquelas perguntas originárias
vidas e as vidas dos seus semelhantes. Para os dois, uma e outras que se irão incorporando durante o diálogo.
verdadeira educação não pode deixar de ser filosófica e uma Nessa busca, tanto para Sócrates como para Lipman o exame
verdadeira filosofia não pode deixar de ser educativa. racional dos temas tem uma importância decisiva. O cuidado
Pois bem, as proximidades entre Lipman e Sócrates não se com a lógica do pensar e com a honestidade intelectual dos
encerram aqui. Além de terem dado uma importância singular participantes do diálogo é considerado igualmente decisivo.
à prática dialógica da filosofia na educação das pessoas, os dois Os dois consideram que o bom-pensar e a honestidade intelectual
acreditam numa certa popularização dessa prática. Não existem outorgam ao diálogo filosófico um caráter não somente cognitivo,
limites cronológicos ou de qualquer outro tipo que possam minar mas também ético, fortalecendo suas implicações educacionais.
tal importância. Não é necessária uma preparação prévia- como Se Sócrates afirmava que a excelência de uma pessoa depende
o extenso currículo que Platão ideou na República VIII -para em boa medida do que ela conhece ("quem age mal é porque
ter acesso à filosofia. Os dois consideram que não há requisitos não conhece o bem"), para Lipman o desenvolvimento das
prévios para participar dessa busca, a não ser o reconhecimento diversas dimensões (crítica, criativa, atenciosa) do pensar das
de sua necessidade e do não~saber sobre o assunto a ser crianças não vai fazer delas apenas mais rigorosos pensadores,
investigado, assim como o desejo de querer aprender. quanto melhores pessoas.
24 FiLOSOFIA PARA CRIANÇAS
ÜS FUN DAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇAS DE MATTH EW LI PMAN 25

Embora ocorram todas essas semelhanças, existem diferenças palavra grega historía, tinha muito mais a ver com narrar e
importantes no modo com que Sócrates e Lipman concebem entender uma realidade, do que com contextualizar um processo.
essa prática da filosofia. Em parte, essas diferenças explicam-se Mas Platão e Aristóteles, por exemplo, dão claras demonstrações
pelos contextos históricos tão diversos de um e outro. Mas elas de dialogar com seus predecessores, Sócrates inclusive. Eles têm
não se esgotam nessa historicidade. A seguir vamos destacar uma clara consciência, expressa nos seus escritos, de continuar
algumas dessas diferenças. uma tradição que para eles se inicia poucos séculos antes. Se
A idade dos participantes não é a mesma. Os interlocutores Sócrates não mostra uma relação tão forte com esse passado,
socráticos mais jovens eram adolescentes. O programa de Lipman Lipman se situa, ele mesmo, como continuador dessa tradição e
inclui crianças desde a pré-escola. A relação com a escrita considera o contato com a história da disciplina uma dimensão
também não é a mesma. Sócrates a considerava perigosa, insubstituível do diálogo filosófico.
inflexível e pobre frente à fala. Segundo Sócrates, na escrita Por outro lado, as conversações socráticas aconteciam na.
não é possível escolher o leitor como é possível escolher o praça pública, num ginásio ou numa casa. A filosofia de Lipman
interlocutor na fala; e não é possível questionar o que está escrito: se pratica, majoritariamente, em escolas. Certamente, nada
ele permanece insensível às inquietações do leitor. A lém de tudo impede de se aplicar o programa de Lipman fora delas e existem
isto, a escrita corrompe a memória na medida em que as pessoas algumas experiências nesse sentido. Mas o que queremos
se abandonam à segurança do escrito. Pelo contrário, Lipman destacar é que esse programa é proposto para a reforma dos
considera o texto escrito parte fundamental do diálogo filosófico, sist emas educacio nais instituídos . Mesmo que o cômico
até o ponto de apresentar todo um dispositivo didático para Aristófanes tenha satirizado Sócrates situando-o n uma escola
facilitá-lo. Os "instrumentos" de Sócrates são apenas sua denominada "Pensadeiro", não temos nenhum indício sério de
memória, sua arte no domínio da palavra e sua sensibilidade que ele tivesse se interessado em institucionalizar de qualquer
filosófica. No caso de Lipman, são os próprios professores, que forma sua prática filosófica. Ele defende os espaços públicos,
também ensinam outras artes na sala de aula, q ue facilitam o abertos da filosofia. Os se us interlocutores são poucos,
diálogo filosófico. Para isso, ele construiu um complexo arsenal heterogêneos e conversam com ele porque assim o desejam.
de textos (novelas e manuais), sem os quais considera que o Os alunos de uma escola, no entanto, são reunidos em grupos de
diálogo filosófico não poderia acontecer. A leitura e a escrita trinta a quarenta membros (ou mais!), segundo a idade, e não
são, para Lipman, formas de raciocínios que oferecem uma escolhem fazer filosofia. Essas diferenças ocasionadas, em parte,
contribuição singular à capacidade de pensar das pessoas. Por pelos diferentes contextos históricos, condicionam fortemente o
isso é tão impo rtante desenvolvê-las corretamente desde caráter que adquire a prática da filosofia num caso e noutro.
pequenos.
Existem outras diferenças mais significativas ainda ligadas à
De forma paralela, Lipman parece muito mais interessado dimensão político-educacional dessa prática filosófica. Para
na história da filosofia do que Sócrates. Sabemos que os gregos Lipman, a filosofia educa em e para a democracia. Isto significa
tinham, de um modo geral, pouca "consciência histórica". Para que a democracia é meio e fim de uma educação filosófica.
eles, contar a história, como denota o significado da própria Mas, para Sócrates, a democracia é apenas um sistema instituído
26 FILOSOFIA PARA CRIANÇAS Ü S FUNDAMENTOS TEÓ RICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇAS DE MATTHEW LIPMAN 27

que a pergunta filosófica deve pôr em questão. Da forma como ex-bloco soviético, ele vem sendo reconhecido oficialmente,
Lipman afirma um ideal sociopolítico democrático para o pelos respectivos ministérios de educação. Certamente, esses
exercício da filosofia, não nos parece que o ateniense tenha dados não pretendem impugnar a proposta de Lipman, mas situá-
afirmado qualquer prática política positiva fora de se colocar la em seu contexto real de atuação. Ele parece acomodar-se a
em questão o estado dominante das coisas, seja esse da forma contextos apenas formalmente democráticos, onde costuma ser
que for. Essa diferença se constata também no valor atribuído muito bem recebido. Uma vez mais, devemos esclarecer que a
por Sócrates aos "especialistas". Os especialistas são aqueles que compreensão das diferenças entre as concepções de Lipman e
deveriam ser especialmente ouvidos quando se trata do assunto Sócrates deve ser sensível à historicidade de ambas, mas não se
de sua incumbência, como o arquiteto quando devemos construir esgotar nelas.
uma ponte, ou um médico quando alguém tem um problema de Outras diferenças significativas entre Lipman e Sócrates
saúde. Para Sócrates, o diálogo filosófico t em também seus estão mais diretamente ligadas ao entendimento da prática da
especialistas. Para Lipman, no entanto, não parece que existam filosofia. Vamos colocar algumas delas. Para o ateniense, basta
pessoas com direito a uma palavra diferenciada neles, mesmo uma pergunta significativa para iniciar o diálogo; para o
reconhecendo que, tecnicamente, os filósofos profissionais estadunidense, deve haver, antes, uma narrativa compartilhada
possam estar muito mais preparados que as crianças nesse sentido. a ser problematizada pelos dialogantes: dessa narrativa surgirão
Mais ainda, a relação com os poderes ins tituídos parece as perguntas que motivarão o debate; para Sócrates, a pergunta
diferente. Sócrates foi perseguido politicamente por democracias, inicial é, quase sempre, única; trata-se de uma pergunta acerca
tiranias e oligarquias que o consideravam igualmente hostil, da definição ou essência de alguma "excelência"; não todos os
a ponto de ser julgado e condenado à morte . Ao contrário, dialogantes participam da gestação e eleição dessa pergunta
o programa de Lipman é inaplicável em contextos autoritários; (quase sempre a mesma está sugerida ou dada pelo próprio
mas em contextos democráticos parece debilitar-se sua dimensão Sócrates), e o diálogo busca "a" resposta verdadeira a essa
crítica. Ele tem uma crescente aceitação por parte do status quo pergunta. Para isso, devem desconsiderar-se as divergências em
dos diversos países de nosso mundo globalizado. Mesmo nos razão de que não há espaço, na compreensão de Sócrates, para
Estados Unidos, ainda que o programa seja recebido mais de uma resposta verdadeira sobre o que é a justiça, a
majoritariamente com certa indiferença, dada a relativa apatia valentia, a amizade, a piedade, ou aquela outra excelência que
dessa cultura para com a filosofia, ele faz parte da "National esteja em discussão. Certamente, em geral, não se afirma tal
Diffusion Network", e sua divulgação é considerada apropriada resposta "verdadeira", mas a mesma está no horizonte da busca.
pelo Ministério de Educação. Em vários países Latino-americanos, Para Lipman, no entanto, as perguntas iniciais são múltiplas, de
que atravessam reformas educacionais conservadoras, o programa diversas índoles, e cad a interlocutor do diálogo - d e forma
de Lipman tem uma alta aceitação. É o caso da Argentina, onde individual ou grupal - fará sua própria pergunta sobre o texto
é recomendado nos planos oficiais e seus livros teóricos foram compartilhado. Por sua vez, na busca da resposta, se valora muito
distribuídos gratuitamente em todas as escolas públicas do país mais o sentido do que a verdade (o que não significa que esta
pe lo Ministério da Educação Nacional. Em vários países do não tenha importância alguma) e , como os scnti.clos são sempre
26 FILOSOFIA PARA CRIANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA fiLOSOfiA PA RA CRIANÇAS DE M ATTHEW LI PMAN 29

múltiplos, de um único diálogo podem sair diferentes posturas, mencionados, deixam o diálogo com cara de poucos amigos.
igualmente legítimas, sobre o assunto em discussão. No entanto, na prática da filosofia à la Lipman, os interlocutores
O que faz com que uma pergunta seja filosófica? Para devem, dentre outras coisas, afirmar a empatia, o cuidado e o
Sócrates, esse caráter está dado fortemente pela interrogação respeito pelo outro; eles devem também propiciar a confiança
do "o que é" (tí esti), a definição, a essência. Para Lipman, no mútua entre os participantes do diálogo e se r sensíveis ao
entanto, uma pergunta é filosófica quando questiona um tema crescimento dos outros tanto quanto ao próprio.
que é comum, central e controverso. O tema é comum quando Enquanto modo de investigação, a filosofia pode ser avaliada,
tem a ver com todos os seres humanos, e não apenas com alguns segundo Lipman, pela contribuição que traz ao aperfe içoar a
poucos, quando tem a ver com a humanidade dos seres humanos; própria investigação, tanto n a consideração de seus métodos
ele é central quando não atinge detalhes ou assuntos sem como na deliberação que ela oferece sobre o que Lipman
importância, mas quando co loca questões de importância considera os temas controversos fundantes da experiência
singular para a vida, tais como liberdade, vida, morte, amizade. humana. Enquanto aliada da democracia, ela deve ser também
Que os temas da filosofia são controversos significa que eles uma prática cooperativa e deliberativa, que contribua para a
sempre geram polêmica, que nunca poderão ser esgotados pela consolidação de tais hábitos democráticos.
investigação. Respondendo àqueles que objetam questionando se sua
Também o trato entre os dialogantes é diferente. Sócrates normatividade filosófica é efetivamente filosófica e se as crianças
privilegia, sobre qualquer outra coisa, a busca da verdade; são capazes de praticá-la, Lipman tem proposto uma analogia
Lipman tem afirmado a importância do cuid ado entre os entre a filosofia e um jogo (beisebol). Como podemos dizer se
participantes do diálogo tanto quanto o desenvolvimento de alguém está ou não jogando beisebol? Pelo respeito que ele mostra
habilidades cognitivas ou o aprofundamento da discussão. pelas regras do jogo. Se alguém joga um jogo que segue as regras
Lipman está muito preocupado com o desenvolvimento de do beisebol, então está jogando beisebol. Seria o mesmo com a
algumas práticas sociais específicas. Espera- se que, numa filosofia. Alguém faz filosofia se pratica suas regras. Alguns
comunidade de investigação filosófica n ão se apresentem podem praticá-la mais brilhantemente do que outros; os filósofos
situações como as vividas por Eutífron, Trasímaco, Górgias ou profissionais podem ser mais hábeis no jogo que as crianças, assim
Polo, para citar apenas algumas das vítimas da agudeza das como os jogadores profissionais de beisebol jogam melhor esse
perguntas socráticas. O Sócrates q ue aparece nos primeiros esporte que um amador. Mas isto não é suficiente para dizer que
diálogos de Platão nem sempre cuida muito d os se us os jogad ores pouco destros n ão estariam jogando o jogo da
interlocuto res. A maneira em que Platão intitula os diálogos, filosofia. Certamente, a analogia é de duvidoso valor. A lguém
com o nome do interlocutor, parece uma forma de render tributo poderia argume ntar q ue a filosofia não pode ser considerada
a quem cai na batalha. Os diálogos filosóficos socráticos têm um jogo, ou que ela é muito mais do qu e isso. Mas ainda
muito de batalha, e Sócrates muitas vezes se mostra sarcástico, aceit ando a analogia, o po n to-ch ave es tá dado no que
irônico, hostil, cáustico, mordaz. Nem se mpre deixa falar compreendemos ser as regras do jogo que chamamos de filosofia.
li vremente se us interlocutores. V ários deles , como os já Para Lipman essas estão definidas pelos parâmetros lógicos e
30 FILOSOF IA PARA CR IANÇAS Ü S FUNDAM ENTOS TE ÓRICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PA RA CRIANÇAS DE M ATTH EW LI PMAN 31

me tacogmt1vos que o rientam o diálogo. Talvez Sócrates não filosóficas ou as perguntas podem ter uma intencionalidade
concordasse parcialmente com essa caracterização, na medida filosófica? O que caracteriza um diálogo para que ele seja
em que consideraria tais regras necessárias mas não suficientes. filosófico? Como poderíamos distinguir um tal diálogo de outras
Certamente, a lógica cumpre uma função significativa no diálogo formas de conversação? Qual é o papel da lógica no diálogo
filosófico, mas sua importância relativa bem como sua própria filosófico? Qual é o papel de um professor de filosofia? Qual a
modalidade são questões controversas. sua formação necessária? Em que medida a prática da filosofia
Por fim, podemos sintetizar essa relação afirmando que a de Sócrates se relaciona com a aplicação do programa de Lipman?
figura de Sócrates é altamente inspiradora da forma com a qual Seria Sócrates um bom professor de fi losofia para crianças?
Lipman concebe a filosofia como prática e, ao mesmo tempo, da Para Sócrates, um professor que ensinasse filosofia c't la Lipman
função que esse determina para tal prática. Para ambos, a mesma seria um bom filósofo (professor de filosofia)? Um bom educador?
tem um sentido político -pedagógico singular na formação dos Um bom cidadão?
cidadãos. Essas similitudes, porém, não devem ocultar diferenças
significativas ligadas ao modo em que um e outro concebem tal O ideal de investigação em comunidade e o diálogo filosófico
sentido político-pedagógico e a própria substância da prática O ideal de investigação proposto por Lipman (1995b; 1998)
filosófica. é crucial para a compreensão dos ideais de filosofia e educação
Para concluir, propomos alguns question amentos para democrática, na medida em que considera que todos esses são,
problematizar a apresentação feita neste capítulo. Em que medida ou deveriam ser, formas de investigação.
a concepção de filosofia de Lipman não contribui para consolidar Lipman concebe como investigação (1995b) toda prática
a dicotomia entre teoria (filosofia) e prática (filosofar)? Ela não autocrítica e autocorretiva que tem como propósito obter um
es tá também co ntribuindo para a consolid ação de outra saber compreensivo que, por sua vez, seja capaz de produzir juízos
dicotomia paralela à anterior entre a produção de trabalho mais apurados acerca do que a nossa experiência do mundo
intelectual (o filósofo) e sua divulgação (o professor de filosofia), tem de problemática. Pode-se perceber nessa caracterização o
mesmo que caracterize tanto a produção como a divulgação do caráter prescritivo do discurso de Lipman. Quando caracteriza
filosófico de forma diferente à "tradicional"? Em que medida a a fil osofia, a educação e a democracia como formas de
aplicação de um programa já pronto, feito por um "filósofo", não investigação, ele não fala da filosofia, educação ou democracia
condiciona, limita e desvirtua o trabalho de um professor de existentes, mas de uma normatividade para elas. Nesse sentido,
filosofia? Em que medida a institucionalização adotada e a forte a prática existente será considerada boa, a apartir de um ponto
dimensão econômica que marcam a divulgação dos materiais de vista filosófico, educacional ou democrático, pela aplicação
de Lipman e a formação de professores não co ndicio nam de um mesmo critério pragmático: em que medida ela contribui
decisivamente suas finalidades educacionais? O que faz com para uma sociedade melhor, sendo os critérios para determinar
que uma pergunta seja filosófica: seu conteúdo? A atitude com a bondade de uma sociedade também pragmáticos: promover o
a qual é apresentada? O que se espera como resposta? Em outras crescimento dos seus membros e o enriqu ecimento de sua
palavras, as perguntas podem ser classificadas em filosóficas e experiência pessoal e coletiva.
32 FILOSOFIA PARA CRIANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA fiLOSOfiA PARA CRIANÇA S DE M ATTH EW LIPMAN 33

Lipman tem proposto a criação da "comunidade de mais sólidas e confiáveis. Assim, a investigação vai percorrendo
investigação" como "novo paradigma" em educação: as aulas um caminho cada vez mais firme em relação à qualidade das
deveriam deixar de ser aquilo que são para converter,se em crenças que vão sendo estabelecidas na investigação. No horizonte
comunidades de investigação filosófica. O conceito deriva há um ponto no qual essas crenças já não poderão ser mais
sobretudo de uma longa tradição pragmatista, na qual alguns estáveis, sólidas e verdadeiras do que são. Claro que esse é um
nomes como Charles S. Peirce, William )ames, George H. Mead, ponto hipotético, regulador. Ele mesmo nunca poderá ser
John Dewey e Justus Buchler o influenciaram significativamente. alcançado pela comunidade humana de investigação científica.
Os dois termos, comunidade e investigação, ocupam um lugar Nesse caminho, a interpretação adquire um peso
central na filosofia de Charles S. Peirce (1955). Mesmo que ele fundamental, na medida em que a questão hermenêutica
não tenha utilizado explicitamente a expressão "comunidade atravessa todo o processo de fixação de crenças. Peirce faz uma
de investigação" e que estivesse mais interessado numa dura crítica ao realismo ontológico - aquele que afirma que
comunidade de cientistas do que de filósofos, alguns elementos existem entidades em si e por si mesmas -, mostrando que tanto
da comunidade de investigação proposta por Lipman remontam, nosso conhecimento da realidade quanto a própria realidade
sem dúvida, a Peirce. estão mediad as por um processo coletivo ilimitado de
Um desses elementos é a dinâmica que segue o próprio interpretaçã o que encontra na própria comunidade sua
processo de produção de conhecimento. Para Peirce, a expressão, corroboração ou refutação. Não existem critérios de
investigação científica empírica surge de uma dúvida e pressupõe validade nem questões a serem validadas fora da própria
a ausência de respostas prévias frente a essa questão inicial. comunidade que dá sentido a uns e a outros.
A partir do confronto com a experiência começa um processo Desta forma, Peirce polemiza não só com a ontologia
de investigação coletivo que procurará fixar uma crença que cartesiana mas também com sua teoria do conhecimento. Para
acalme aquela dúvida inicial. Uma vez estabelecida uma nova Descartes, além do eu individual ser fonte de toda realidade e
crença, porém, ela será submetida a uma contra,argumentação de toda certeza (cogito ergo sum, sendo o eu, a fonte d onde
ou a uma nova prova empírica que a colocará em questão. Assim, emana essa certeza, apenas um indivíduo, o próprio Descartes),
o processo de investigação científico é recriado indefinidamente. o critério da verdade de algo é a sua evidência. Os critérios que
Nessa visão, a ciência não é um mecanismo de produção de fazem com que algo seja evidente são, por sua vez, clareza e
verdade, mas um caminho que produzirá crenças cada vez mais distinção. Em outras palavras, segundo Descartes, algo é
confiáveis e sólidas, mas não verdadeiras. A verdade é apenas a verdadeiro quando é evidente e é evidente quando pode ser
certeza das tautologias oferecidas pela lógica ou a convergência percebido com clareza e distinção. Peirce considera esse critério
das linhas de investigação das ciências empíricas no infinito. pernicioso, na medida em que cria a ilusão de que a verdade
Nesse processo de investigação da comunidade científica, é pode emanar de uma mente individual e deixa de reconhecer
a própria comunidade - que Peirce pensou idealmente como que sem uma comunidade não existiriam os signos e, portanto,
universal, ilimitada, sem limites definidos - que estabelece os não haveria possibilidade de interpretação. A partir dessas
critérios de verdade e realidade na fixação de crenças cada vez considerações, Peirce amplia a argumentação mostrando que,
34 FILOSOfiA PARA CRIANÇAS ÜS FUNDAMEN TOS TEÓ RICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇAS DE MATT HEW LI PMAN 35

sem comunidade, não existiria verdade, nem realidade, nem a lógica - formal e informal - provê as regras às quais segue a
indivíduos. A comunidade é a condição de possibilidade do ser investigação filosófica, os saberes positivos dessa investigação,
e de conhecer o que existe. por outro, são sempre provisórios, falíveis. Para Lipman, nesse
Essa teoria se afirma no conceito epistemológico de falibilismo, reconhecimento peirceano (e também, como já vimos, socrático)
que Peirce lega à epistemologia contemporânea, onde encontrou radica a maior fortaleza da filosofia e nele se afirma a importância
uma enorme fertilidade. Que um conhecimento é falível significa, atribuída à autocorreção como um dos pilares da comunidade
para Peirce, que ele se mpre pode ser falseado na sua de investigação filosófica. É muito importante autocorrigir-se
confrontação com a experiência. Em outras palavras, se todo porque nunca podemos estar certos da verdade das nossas
conhecimento é falível, nunca poderemos estar certos de que crenças; mais ainda, porque sabemos que elas nunca são
qualquer conhecimento seja verdadeiro, na medida em que verdadeiras, que não podem sê-lo porque a verdade é algo que
sempre existe a possibilidade de que resulte falso em sua está em nosso horizonte, não em nossa possessão.
constatação empírica. Nesse sentido, nunca podemos ter certeza Também para Lipman a comunidade é o ponto de partida e
sobre aquilo que sabemos e sempre é necessário duvidar do que de chegada do diálogo filosófico, o marco de sentido da tarefa
sabemos. Por isso, sempre é preciso buscar saber mais e não colocar de cada investigador. Na sua perspectiva, a prática filosófica,
obstáculos para um processo de investigação sem limites ou na entendida como diálogo coletivo infinito sobre a dimensão
fixação de crenças cada vez mais sólidas. Nesse contexto adquire contestável da existência humana, requer não apenas o desejo
sentido o famoso apótema peirceano: "Não se devem colocar de saber (a philo-sophía) por parte dos co-investigadores e o seu
obstáculos no caminho da investigação". Peirce considera esse questionamento sem limites de todo saber adquirido, mas
corolário apropriado para todo saber humano e afirma que ele também a disposição em buscar caminhos de pensamento onde
deveria estar escrito "em todas as paredes da cidade da filosofia". a própria comunidade, e não apenas os indivíduos, seja doadora
Aliás, Peirce pensava numa comunidade de cientistas e falou de sentido a esse caminho.
apenas ocasionalmente de uma comunidade de filósofos. Lipman compartilha a crítica peirceana à antropologia
Segundo ele, o que essa comunidade de filósofos poderia fazer cartesiana. Os seres humanos são antes de mais nada seres
de melhor seria converter a filosofia numa ciência estrita, sociais. Como revela a evolução da linguagem na pessoa -
o paradigma de toda investigação. ela primeiramente é interpsíquica para só depois ser intrapsíquica
Lipman vê com bons olhos esses elementos da concepção (Vygotsky, 1987) -, assim também a mente e a pessoa humana
peirceana do processo de conhecimento científico, sua ligação vão se constituindo como tais num processo onde o social é
a uma comunidade de sentido e significação, o caráter falível fundante e o individual emerge de um processo dialógico como o
do conhecimento, a afirmação dele como um espaço de busca e social internalizado (George H. Mead, 1934). A mente é
a necessidade de "limpar os obstáculos" do caminho da considerada uma forma de conduta inteligente que surge da
investigação. Aquilo que Peirce propôs para a ciência, Lipman interação entre o indivíduo e a comunidade. Segundo
adota para a filosofia. Para Lipman, a filosofia é uma investigação Lipman, uma pessoa é um diálogo entre as normas, valores e
sem limites determinados. Isto significa que, se por um lado, crenças sociais que ela internaliza e a fo rma em que ela se
36 FI LOSOFIA PARA CRI ANÇAS ÜS FUNDAMEN TOS TEÓRICOS DO PROG RAMA FILOSOFIA PARA CR IANÇAS DE MATTHEW LIPMAN 37

posiciona frente a esse marco social internalizado. Fora de um propostas pelas personagens d as novelas ; 4) Identificar-se com
contexto social não há indivíduos . A partir desses pressupostos, o utras crianças da sala quando elas realizam certos atos mentais
seu raciocínio é simples: sem um marco social de razoabilidade ou investigativos (por exemplo, uma criança que questiona
não há indivíduos razoáveis; sem um marco social democrático um pressuposto pode permitir às outras perceberem que podem
não há indivíduos demo cráticos; se m um m arco social faze r isso sem que seja a professora a solicitar tal prá tica) ;
tolerante não há indivíduos tolerantes. Assim, a comunidade 5) A partir da repetição conjunta de atos mentais e atos de
de investigação se constitui num ideal cognitivo, social e político fala, adquirem-se algumas habilidades de investigação (por
que norteia a prática da filosofia nas escolas. Numa tal comunidade exe mplo , se cada vez que os co legas dizem algo eles são
de investigação, num marco de relações sociais de cooperação, questionados nas suas razões, podem aprender que ao expressar
diálogo e respeito, o contato com os bons hábitos cognitivos uma opinião é bom agregar razões que a fundamentam);
distribuídos entre os participantes dessa comunidade favorece a 6) As crianças mergulham nos textos procurando observações
constituição de bons pensadores e bons cidadãos, sendo o caráter problemáticas ou eventos intrigantes e oferecem intervenções
de "bom" definido pela lógica na dimensão cognitiva e pelos ideais desconexas desses po ntos; 7) A s crianças re lac ionam
democráticos no aspecto social. pensamentos e observações conectados entre si; 8) A professora
Como se vê, tan to para Peirce quanto para Lipman, trata-se coloca as perguntas das crianças no quadro e as enumera;
de comunidades ideais. Peirce não descreve como a ciência 9) Através do voto democrático das crianças as perguntas se
investiga de fato, mas como ela deveria investigar. O mesmo tornam uma agenda para a discussão; 10) Cada aluno do grupo
acontece com a comunidade de investigação filosófica de internaliza o pensamento distribuído no grupo; 11) Os estudantes
Lipman. Não se trata de uma categoria que descreva algum fazem mais perguntas exploratórias e comentários mais aguçados
processo que esteja acontecendo, mas de uma prescrição proposta sobre a temática; 12) À semelhança das personagens das
para retificar a forma em que a investigação filosófica acontece. novelas, os atos do pensar das crianças se tornam cada vez
Lipman tem procurado aproximar o ideal do real. Certamente, mais críticos, criativos e atenciosos; 13) Com o desenvolvimento
ele é consciente de que nem sempre a prática corresponde ao das discussões , surgem áreas de desacordo e posteriormente
modelo e, por isso, propõe quinze critérios mínimos, para avaliar controvérsias . O s estudantes reconhecem que dialogam e não
se numa sala de aula acontece uma inves tigação filosófica a pe n as co nversa m, sendo o diá logo um a inves tigação
propriamente dita. Eles são (1998, p. 22-24): progressiva e o desenvolvimento de um produto , o juízo;
14) Os estudantes esperam, no começo, uma conclusão racional,
1) Estabelecimento de um estado mental a propriado à
mas, através da deliberação, aceitam um compromisso razoável,
prática da filosofia (isto se consegue a partir da identificação
o que significa que ninguém tem que sacrificar sua integridade
das crianças com os estados mentais das personagens das
e que todos estão igualmente dispostos a cooperar para chegar
novelas de Lipman); 2) Identificar- se com os atos mentais que
a um ponto justo; 15) Sendo as comunidades diferentes, cada
realizam as personagens das novelas (atos mentais que, segundo
comunidade encontra sua maneira de desenvolver o pensar
Lipman, conformam as habilidades de um pensador de nível
de ordem superior, o raciocínio, a deliberação razoável e o juízo,
superior); 3) Identificar-se com o conteúdo das proposições
38 F ILOSOFIA PARA C RIA N ÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA FILOSOFI/1 PIIR/1 CRIIINÇIIS DE MATIHEW LIPMAN 39

bem como de preparar seus participantes para um democracia conveniente para o diálogo filosófico? Se numa sala de aula
guiada pela investigação. proliferam as opiniões infundadas e os preconceitos, não há riscos
Trata~se de c ritérios que pressupõem con cepções de que as crianças internalizem tais hábitos e que o diálogo se
questionáveis da investigação, da filosofia e das crianças, e que torne pseudofilosófico?
ainda são ideais, de forma tal que dificilmente uma comunidade Nos textos de Lipman sobre a comunidade de investigação,
de investigação preencha todos eles. Eles são propostos por ele dá muita ênfase ao diálogo como forma e substância de uma
Lipman, porém, como critérios provisionais ou explorató rios, tal comunidade (1990b; 1995b). Essa concepção do diálogo está
de forma que permitam identificar melhor o que acontece na muito influenciada pelo que Martin Buber (1947) denominou
prática. como diálogo genuíno, em oposição ao diálogo técnico e ao
Pois bem, também aqui podemos propor alg uns monólogo. O diálogo genuíno, segundo Buber, é aquele em que
questionamentos relativos a esse ideal de investigação. Em que cada um dos participantes considera os outros participantes como
medida uma tal normatividade não mascara a compreensão da seres únicos, estabelecendo com eles relações mutuamente
realidade da investigação científica e filosófica em nossas significativas e ativas.
sociedades? Em que medida é possível compreender a ciência e Lipman propõe a comunidade de investigação como um espaço
a filosofia sem uma adequada contextualização social e histórica? onde o diálogo genuíno possa acontecer através de um processo
Quais as implicações da forma missionária de propor a tarefa deliberativo, baseado no respeito, no mútuo reconhecimento,
educaciona l: "conve rte r as au las em comunid ades de na consideração das razões que sustentam as idéias propostas,
investigação"? Qual é o lugar que têm numa comunidade de em suma, na disposição para uma busca comum raciocinada
investigação algumas forças não reconhecidas por Lipman como que enriqueça a experiência compartilhada. Não se trata apenas
o poder e o desejo? O que diferencia a investigação científica de um procedimento didático, mas da própria forma que adquire
da filosófica? Quais são as características distintivas dessa a investigação filosófica.
investigação, quando desenvolvida por crianças e n ão por Uma outra característica fundame ntal do diálogo filosófico
adultos? Como se relacionam o individual e o social numa n as comunid ades de inves tigação é q ue ele deve es tar
comunidade de investigação? Como são compatíveis o pensar disciplinado pela lógica (entendida aqui como a analítica do
por si mesmo (autonomia) e o pensar com outros (cuidado)? raciocínio). Isto significa, por um lado, que é preciso dominar
Q ual o valor da diferença e do consenso numa tal comunidade certas ferramentas lógicas para que se possa fazer parte desse
de investigação? Como se determina o conteúdo do compromisso diálogo filosófico e, por outro lado, que os movimentos seguidos
razoável? Como se resolvem as diferenças irredutíveis - aquela pela investigação são movimentos lógicos, o que faz com que
situação em que não é possível uma única solução que não Lipman caracterize a lógica como "a metodologia da investigação".
violente "a integridade de todos os membros da comunidade"? Uma nova evidência empírica mostra, por exemplo, que outras
Que fazer com os membros da comunidade que questionam as evidências devem ser procuradas; uma inferência oportuna exige
idéias que a fund amentam, como o diálogo, a tolerância ou a considerar os pressupostos que permitiram chegar a ela. Segundo
razoabil.idade? O voto "democrático" garante um ponto de partida Lipman, quando a lógica "manda" no diálogo, cada movimento
40 FI LOSOF IA PARA CRIANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇA S DE MIITTHEW l iPMAN 41

clarifica e fortalece a investigação. De tudo isto se segue a rupturista frente à tradição acadêmica em filosofia, pode ser
fundamental importâ ncia que Lipman atribui à aprendizagem considerado também um filósofo sistemático. Em seus textos se
das ferramentas lógicas como condição para a prática da afirma uma proposta que deve ser institucion alizada e que se
filosofia. mostra compatível e con tinuadora de uma certa tradição; neles
Lipman diferencia o diálogo da conversação. Existem, porém, proliferam argumentos para tornar sua tentativa persuasiva, para
algumas similitudes: como o diálogo, a conversação é recíproca, deixar um legado que transcenda sua época, sendo, todas essas,
já que ninguém pode conversar com outro se esse n ão conversa marcas fortes de uma filosofia sistemática.
com ele. Mas existe uma diferença fundamental: na conversação Na verdade, em que pese uma tradição filosófica pragmatista
não existe um propósito principal ou finalidade fora dela mesma. compartilhada, as filosofias de Rorty e Lipman têm poucos pontos
Ela n ão pode ser guiada, manipulada ou dirigida em múltiplas em comum. A filosofia é para Rorty uma conversação, iniciada
direções porque só responde às suas próprias necessidades. Como por Platão, sobre temas que são acidentes históricos e não
já foi a ntecipado , Lipma n conside ra qu e o diálogo numa problemas perenes, como considera Lipman. Aliás, o próprio
comunidade de investigação filosófica não pode permitir-se essa Lipman seria um dos filósofos que, segundo Rorty, acredita na
liberdade. Nele, a lógica guia o diálogo, o conduz. Uma distinção, fábula de que, a respeito do conhecimen to, o filósofo sabe algo
um contra-exemplo, uma analogia (todos e les movimentos que ninguém ma is sabe da mesma forma. Como conversação,
lógicos, fo rmas de raciocínio), podem mudar radicalmente a para Rorty, a filosofia se opõe a uma investigação cooperativa,
direção do diálogo. O diálogo é uma forma de investigação e, tal como ela é definida por Lipman; a filosofia é apenas uma voz
enquanto tal, deve seguir a investigação até onde essa o indique. na conversação da humanidade, que tem uma única função social
Sendo a lógica a me todologia por excelência da investigação, significativa: persuadir para a democracia, que precede à filosofia
será a própria lógica que aca bará d irecionando o diá logo e tem o filósofo como o seu "escravo". Filosofia e democracia podem
filosófico. entrar em conflito, e nesse caso, diz Rorty (1991), a democracia
tem prioridade sobre a filosofia.
Lipman e dois contemporâneos: Rorty e Freire No e n tanto , para Lipma n a filosofia tem uma função
O termo "conversação" é muito importante para um dos educacional principal numa sociedade democrática: aprimorar
filósofos n eopragmatistas mais reconhecidos da atualidade, a forma e o conteúdo da investigação . Ele considera que
Richard Rorty. Rorty (1994) distingue dois tipos de filosofia, a democracia e filosofia são formas de investigação mutuamente
"edificante", com a qual ele identifica sua própria filosofia, e a cooperativas. A filosofia aperfeiçoa os métodos da investigação
filosofia "sistemática" que a confronta. A primeira é reativa, a e a compreensão dos conceitos centrais, comuns e con troversos
segunda é construtiva. Dewey, Wittgenstein, H eidegger, além da existência humana, que ela mesma problematiza. Desse forma,
dele mesmo, seriam exemplos de filósofos edificantes. Descartes, subsidia o modo cooperativo e deliberativo como são tratadas as
Kant e Hussed seriam exemplos dos sistemáticos. Acreditamos diferen ças, segundo Lipman, numa sociedade democrática.
que Lipman, em que pese sua contribuição para o surgimento A democracia contribui com a filosofia oferecendo o marco em
de novas temáticas para a filosofia e sua autopercepção como que se desenvolve a investigação filosófica, pautando de forma
42 f iLOSOFIA P ARA CR IANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇAS DE MATIHEW LIPMAN 43

distributiva, cooperativa e tolerante as relações sociais nas quais reconhece as contradições e as supera, aque le que procura a
ocorre. humanização do homem e o conduz à luta pela mudança radical
N o Brasil, alguns seguidores de Lipman procuram destacar do mundo.
semelhanças entre suas propostas e as de Paulo Freire (1970, Consideremos outra expressão comum a ambos, "pensamento
1996), ocupando um espaço importante nessa comparação a idéia crítico". Para Lipman , essa é uma forma do pensar sensível ao
de diálogo. Certamente, para ambos , o diá logo é o sustento con texto, autocorre tivo, que segue critérios e que tem como
epistemológico do processo educacional. Também para os dois o produto os julgamen tos. Como se vê, são critérios formais. Para
diálogo é uma exigência existencia l que requer humildade, Paulo Fre ire , essas carac terísticas de forma algum a se riam
abertura para a contribuição dos outros, cuidado por eles (amor, suficientes para um verdadeiro pensar crítico, na medida em que
diria Paulo Freire), esperan ça e confiança ne les. Para ambos, não lutem por uma sociedade mais igualitária. Para ele, um
o diálogo é uma dimensão inesquecível da condição humana. pensador crítico designa um espírito curiosamente insatisfeito,
Há, certamente, uma grande similitude na ênfase q ue Pau lo indócil, rebelde, que tira a máscara da ideologia dominante, que
Freire e Lipman dão a certas palavras, e "diálogo" é uma delas. luta contra a opressão e a favor da tran sformação radical da
O utras palavras muito significativas para os dois são: pensamento sociedade.
crítico, curiosidade e c riatividade, dentre ou tras. Esses exemplos são apenas uma amostra de ánalises conceituais
A lém dessas palavras compartilhadas, pode~se dizer que claramente diferenciadas. De um lado, existem diferentes marcos
tanto Freire quanto Lipman compartilham uma visão crítica da ideológicos para a tarefa educativa, sobretudo se se pen sa no
educação existente, o que Freire denomina de educação bancária Paulo Freire mais radical, aquele que marcou várias gerações
e Lipman de educação tradicional. Há alguns pontos em comum de educadores na América Latina. Lipman n ão compartilharia
nessa crítica, como a verticalidade da relação professor~aluno; uma análise da educação baseada em categorias marxistas, que
a falta de sentido, tanto para o professor quanto para o aluno, Paulo Freire utiliza prolificamente, como "lu ta de classes",
do processo de e ns ino~aprend izagem ; a n ecessidade da "contradição", "rebeldia", "ruptura", "resistência". Os fins são
investigação problematizadora nas salas de aula. outros. Enquanto o programa de filosofia de Lipman é reformista
Contudo, nos parece que as semelhanças têm limites muito - ele procura aprimorar as instituições democráticas existentes
precisos. Em filosofia, as mesmas palavras ocultam muitas vezes - , a prática alfabe tizadora de Paulo Freire tem pretensões
desacordos profundos n a forma como são ente ndidas. N ão se revolucion árias . N ão estamos explicitan do essas d iferen ças
trata apen as de concordar em palavras. Trata~se de compreender ideológicas para en altecer uma proposta e desqualificar a outra.
o que elas significam e o sentido que elas têm em cada contexto. O fa zemos ape n as porq ue con sideramos tais d ifer enças
Podemos vo ltar à própria palavra "diálogo". Para Lipm an, o fundamentais para a compreensão histórica do program a de
diálogo por excelência, a me lhor forma de diálogo é aquela que Lipman e como contribuição para tentar revisar alguns olhares
está regrada pela lógica, sendo essa a lógica clássica , d os românticos que pouco contribuem para uma tal compreen são.
princípios de identidade, d o terceiro excluído e d a não~ Também n as respectivas formas de conceber a organização do
contradição. Para Paulo Freire , o melhor diálogo é aquele que trabalh o pedagógico e em questões metodológicas, há diferen ças
44 FI LOSOFIA PARA CR IANÇAS Os FUNDAMENTOS TEÓ RICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇAS DE M ATTHEW li PMAN 45

significativas. Além de que um deles trabalhou especialmente O ideal de educação democrática


com adultos, e o outro com crianças, Paulo Freire dificilmente e o pensar de "ordem superior"
aceitaria manuais para professores e novelas para crianças que A forma com a qual Lipman compreende a educação está
funcionassem como "modelos", uma vez que universalizariam fortemente vinculada a sua leitura de John Dewey (em particular,
um contexto particular e colocariam o docente numa posição 1936, 1976). Mesmo que esses textos apresentem algumas
que inviabilizaria sua função libertadora, de si mesmo e dos seus diferenças entre si, em ambos Dewey concebe a educação como
alunos. Para ele, o próprio professor deveria ser, talvez, quem um processo contínuo de reorganização, recriação e reconstrução
participasse da elaboração do material que trabalharia com seus da experiência do estudante , sendo sua finalidade principal a
alunos. Mesmo que compartilhasse a idéia de que o professor transformação, o enriquecimento da qualidade dessa
não deve ocupar o lugar daquele que "sabe" na sala de aula, experiência. Esse enriquecimento pode acontecer de duas
mas o de quem facilita o processo de aprendizagem do aluno e maneiras complementares: através da potencialização do sentido
dele mesmo, certamente não aceitaria o caráter neutro definido dessa experiência (ampliando a percepção de conexões e
por Lipman para o professor no processo de pesquisa na sala de continuidades na experiência do estudante) e outorgando ao
aula, muito menos a necessidade dos filósofos propostos por estudante ferramentas que contribuam para aprimorar suas
Lipman para a correta aplicação da sua proposta. Mais ainda, experiências futuras. Nessa reconstruç ão contínua da
para Freire é condição de um educador progressista reconhecer experiência, os fins identificam-se com o processo. Não existe
o caráter ideológico da educação dominante e lutar pelos um fim que transcenda esse tal enriquecimento da experiência
"legítimos interesses humanos", quais sejam: um mundo mais vivida.
justo onde reine a "ética da solidariedade" acima da "ética de
Há dois princípios, segundo Dewey, que norteiam essa
mercado". Freire propõe também uma formação de professores
reconstrução transformadora da experiência: continuidade e
sustentada no princípio da reflexão crítica (no sentido aludido
interação. O primeiro assinala a conexão inseparável entre as
acima) constante sobre sua própria prática frente à ênfase
diversas dimensões temporais (passado, presente e futuro) de
colocada por Lipman na incorporação de ferramentas, o u
toda experiência individual e social, bem como a necessidade
habilidades de pensamento.
de que a escola reconstrua essa experiência sensível em um
Podemos concluir a partir dessas afirmações que existem, presente que articule o passado e o futuro. Em outras palavras,
certamente, similitudes significativas entre as propostas toda experiência educacional apenas deve considerar o passado
educacionais de Paulo Freire e Matthew Lipman. Essas e o futuro nas suas conexões com o presente. O segundo princípio
similitudes, porém, não devem impedir o reconhecimento de afirma a educação como um processo de troca ativa entre as
importantes diferenças teóricas, metodológicas e práticas, inquietações do estudante e as demandas sociais expressadas
advindas, basicamente, de uma diferente leitura da realidade pela escola. Em outras palavras, a escola é um espaço de negociação
contemporânea, da função e do papel da educação, a partir de entre as condições sociais que ela impõe - a partir de seus textos,
pressupostos ideológicos e filosóficos encontrados. programas, espaços, currículos, seus professores, sua disciplina,
46 FILOSOF IA rARA C RIANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓR ICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇAS DE M ATTHEW liPMAN 47

seus modos de avaliar e todos os dispositivos que organizam o da prática educacional, mas ela não poderia desempenhar nenhum
trabalho pedagógico - e os interesses dos estudantes. A forma papel especial na prática escolar. Esse papel está reservado para a
em que esses princípios se combinam numa instituição educacional ciência.
expressa, para Dewey, o significado e o valor de uma experiência Dewey estabelece uma relação estreita entre educação e
educacional. democracia. Propõe uma educação para a democracia, na medida
Dewey considera a escola como um espaço de construção em que ela deve providenciar aos estudantes as ferramentas
social do pensamento e de formação e exercício da capacidade que eles precisam para participar na geração e manutenção de
de julgar dos estudantes. Ele rejeita a concepção do processo formas de vida associadas que potencializem a qualidade de
de ensino~aprendizagem baseada na transmissão de conteúdos. sua experiência, sendo a democracia a forma de vida que dá
Segundo Dewey, tanto o pensar quanto o julgar desenvolvem mais qualidade à experiência humana. Ele propõe também uma
capacidades ativas, como a discriminação ou a seleção. No entanto, educação na democracia porque a história humana já deu
a incorporação da informação apenas promove um aprendizado diversas amostras de que fins democráticos precisam de meios
passivo. O julgar e o pensar são hipotéticos, projetam~se sobre democráticos para sua realização.
um futuro; o conhecer, no entanto, busca apropriar~se do dado. Para Dewey, num universo social cambiante, as instituições
O conhecimento é matéria insubstituívcl para o pensar, mas é educativas refletem e participam ativamente na produção da
apenas isso, um meio para pensar e julgar, um recurso para ordem social. Elas precisam cumprir uma função democratizante
aprimorar o processo de investigação que orienta o pensar e o da vida social. Devem propiciar que os estudantes compreendam
julgar. os fundamentos da ordem social e as causas que sustentam as
Para Dewey, existe uma disciplina que cultiva especificamente mudanças nessa ordem. Para isto, devem garantir sua
o pensar: a filosofia. Ela conceitua a experiência, reconhece participação na investigação livre e inteligente sobre as instituições
suas dificuldades e propõe~lhe alternativas. Prospectiva e e práticas sociais. Segundo Dewey, toda comunidade que adota
hipotética, como todo pensar, a filosofia problematiza a recreação para si os valores democráticos reflexiona, delibera e problematiza
da experiência. Dewey rejeita a concepção especulativa da a própria democracia. A escola deveria contribuir nessa tarefa,
filosofia, aquela que não se compromete com a experiência social como cenário privilegiado dessa deliberação.
de seu tempo. Assim, as finalidades da escola e da filosofia Mas que democracia é essa? Certamente, não é nenhuma
parecem coincidir. Mais ainda, a filosofia parece o melhor democracia existente, mas uma normatividade de forma de vida
caminho para potencializar aquilo que, segundo Dewey, social. Dewey distingue dois sentidos do termo democracia: um
as escolas devem promover: a capacidade de enriquecer o sentido sentido político e um sentido ético e social. No primeiro sentido,
da experiência. Porém, ele apenas traça um vínculo teórico da a democracia é uma forma de governo ou um sistema de
filosofia com a educação. Embora Dewey tenha questionado os instituições políticas. No seu segundo sentido, ela é uma forma de
alcances e métodos da filosofia tradicional, ele nunca objeta vida pessoal e coletiva. Dois critérios determinam o caráter
contra sua prática estreitamente acadêmica, que ele mesmo democrático de uma forma de vida social: a) o modo em que estão
compartilha. Segundo Dewey, a filosofia é apenas a teoria geral conectadas as ações e interesses dos seus membros; h) o modo
48 F ILOSOF IA PA RA CRIANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇAS DE MATTHEW l iPMAN 4 9

em que a livre interação entre seus membros possibilita a em termos de "nós" e "o nosso", e não apenas em termos de "eu"
reacomodação, retificação e correção dos hábitos e práticas e "meu", dispondo, portanto, seus desejos e ações para a realização
sociais. dos bens determinados socialmente como tais.
O primeiro c ritério co mpo r ta o reco nhecim ento d a Segundo Dewey, essa democracia exige um processo
interdepend ên cia dos integrantes de um a co munidade - permanen te de exame e revisão dos fins e interesses sociais,
sua constituição como seres sociais mutuamente dependentes bem como dos meios para atingi-los. Os dois critérios distinguidos
- e a inclusão de todos eles na deliberação e determinação dos por Dewey sublinham a importância da investigação contínua
fins sociais . Dewey pro põe uma democracia universa l que do significado, meios e fins da democracia ; portanto, sua reflexão,
permitirá superar divisões de classe , raça e nacionalidade. deliberação e revisão.
A mais ampla participação dos membros de uma comunidade Resulta no tório o acentuado caráter idealista e a-histórico
na determinação dos interesses sociais potencializa a diversidade, dessa concepção da "democracia". Dewey não fala de nenhuma
e dessa forma amplia a capacidade de eleição e ação ele cada democracia existe nte, mas de um ideal ético -po lítico ; não ·
indivíduo. Assim, uma forma de vida democrática precisa da caracteriza como são as relações sociais imperantes em nossas
maior interconexão entre os membros de uma comunidade. sociedades , mas como deveriam ser. Tal análise não leva em
A democracia, em todos seus aspectos, se nutre de um modo consideração a evolução histórica das instituições sociais e
cooperativo, deliberativo e pacífico ele assumir como próprias e políticas ocidentais, o que debilita as possibilidades de tal ideal
desejáveis as diversidades. ser algo mais do que isso. Dewey n ão ass ume como parte
O segundo critério afirma a mudança como um valor social. consubstanciai das democracias existentes as exclu sões e
Uma sociedade democrática fundamenta-se na convicção de iniqüidades econômicas, políticas, sociais, culturais, étnicas,
que sempre é necessário corrigir e aprimorar as práticas e hábitos religiosas, de idade e gênero que fizeram parte delas, desde a
sociais, bem como é desejável uma mobilidade social irrestrita, Atenas de Péricles até a democracia estadunidense. Preso a um
para a qual deve haver livre circulação de experiências e idéias. industrialismo e cientificismo que faz seus, esse ideal não parece
Uma sociedade democrática é uma sociedade q ue muda, que oferecer chances de transformar as sociedades burguesas que o
se a utocorrige, q ue se renova. impulsionam. Sua normatividade pode servir para medir e avaliar
Os distintos sentidos do termo democracia se en trelaçam: a as instituições e formas de vida existentes, para mostrar em que
democracia política é condição de possibilidade da democracia medida elas são antidemocráticas, mas pouco pode fazer para
pessoal e social, mas essas são também condição de possibilidade modificá-las. Nos últimos escritos de Dewey, o seu ideal de
daquela. Em outras palavras, se as pessoas e as instituições democracia adota um caráter estético e religioso, expressado
comunitárias e sociais, como a escola ou a família, não são numa "fé democrática" e num "credo comum democrático", mais
democráticas, as instituições políticas o serão apenas num sentido afastado ainda de qualquer transformação social efetiva.
formal. A ssim, a democracia se identifica com uma comunidade, Sobre esses ideais educacionais e políticos de Dewey, Lipman
forma de vida associada na qual todos seus integrantes pensam (1990b, 1993a, 1999a, b) afirma sua comunidade de investigação
ÜS FUN DAMENTOS TEÓR ICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇIIS DE MATTHEW LIPMAN 51
50 FILOSO FI A PA RA CR IAN ÇA S

filosófica. Seu aporte substantivo consiste no papel que ele atribui que por excelência se ocupa do pensar, seu aporte à educação é
à filosofia na experiência educacional, na idéia revolucionária vital e múltiplo. N um sentido, ela auxilia a pensar em e através
de que as crianças são aptas para praticar a filosofia tão cedo das outras disciplinas, refletindo sobre seus pressupostos e
quanto comece sua educação escolar. Segundo Lipman, se cada implicações e proporcionando-lhes as ferramentas de pensamento
disciplina escolar contribui com o processo de reconstrução da que elas precisam. Mais significativo ainda, a investigação
experiência individual e social de form a parcial, a filosofia filosófica baseada no pensamento problematizador, criterioso e
prepara as crianças para pensar nas outras disciplinas, pensando heurístico contribui para a transformação do modo de vida das
tanto no que acontece nelas quanto sobre elas, bem como pessoas que a praticam dentro e fora das escolas. A filosofia
outorgando unidade ao que aparece disseminado nelas. Lipman pode fazer de cada estudante um investigador de espírito crítico
amplia o caráter meramente acadêmico que Dewey atribui à e razoável, e isso, considera Lipman, nenhuma outra d isciplina
filosofia para uma prática "dadora" de sentido e de ferramentas está em condições de proporcionar.
indispensáveis à experiência educacional. Dessa forma, a prática da filosofia é, para Lipman, a base de
Para Lipman, os princípios de continuidade e interação uma educação para o pensar. M as que formas d o pensar
propostos por Dewey têm uma importância múltipla: a prática desenvolve a investigação filosófica? Em que consiste a
da filosofa nas salas de aula abre o diálogo entre as crianças e a contribuição da filosofia para o pensar?
tradição ocidental da filosofia. Para que esse passado seja vivido Lipman (1995a, 1995b, 1998) diferencia um pensar normal
e conectado a seu presente, Lipman fez aquela reconstrução ou cotidiano de um bom pensar ou pensar de nível superior.
novelada dessa tradição. Seu programa não contém nomes ou O primeiro é, segundo Lipman, acrítico e mecânico; ele
datas a aprender, linguagem técnica ou fórmulas alheias para desconhece categorias como a criatividade ou a responsabilidade.
conhecer, as posturas e problemas filosóficos são "traduzidos" No entanto, o pensar de nível superior é complexo e inventiva.
em linguagem e contexto considerados significativos para os seus Ele combina três aspectos, modos ou possibilidades do pensar:
leitores. Por outro lado, o interesse das crianças é o ponto de a criticidade, a criatividade e o cuidado. A penas a presença
partida de toda investigação n as salas de aula. Assim, a conjunta d esses três aspec t os r eve la um pensamento
experiência da filosofia na escola é produto da interação entre complexo ou de nível superior, segundo Lipman. A seguir,
os interesses, problemas e inquietudes das crianças e o que o vamos descrever como ele concebe cada uma dessas três
"dispositivo Lipman" preparou para desenvo lvê-los numa categorias.
investigação filosófica. O pensamento de nível superior, no seu aspecto crítico, está
Lipman adotou para si a distinção deweyana entre pensar e governado por r egras; ele é q uestionador e deliberativo
conhecer e a importância de priorizar o pensar e o julgar na (problematiza, distingue, examina e avalia os critérios e as razões
educação. Para ele, uma educação que n ão re conheça a que fundamentam as diversas crenças), autocorretivo e falibilista,
importância do pensar como fund amento de todo processo bem como sensível ao contexto. Ele conduz a emitir juízos
educativo é superficial e estéril. Por ser a filosofia a disciplina metódicos e criteriosos.
52 fiLOSOFIA PARA CRIANÇAS ÜS FUN DAMENTOS TEÓRICOS DO PROGR AMA FilOSOFIA PARA CRIA NÇAS DE MATT HEW LIPMA N 53

O pensamento de nível superior no seu aspecto criativo aplica do cuidar são formas de pensar que, segundo Lipman, afirmam,
critérios, mas não necessariamente está guiado por eles; busca entre outros valores, o preservar, restaurar, proteger, salvar,
produzir juízos expressivos e transcendentes a si mesmo. Ele é alimentar, nutrir, celebrar, respeitar, remediar, admirar, promover,
inovador, maiêutico e dialético (no sentido hegeliano), bem como cultivar e celebrar.
pluralista e independente. Está governado pelo contexto; coloca A distinção que Lipman propõe entre três modos, formas ou
ênfase na variedade, na unicidade e na diferença; por último, dimensões do pensar de ordem superior é paralela à classificação
afirma os valores do adequado e do íntegro acima do bom ou do funcional dos juízos oferecida pelo filósofo pragmatista Justus
correto. Buchler (1951). que amplia o conceito tradicional do julgar,
O pensamento de nível superior no seu aspecto atencioso restringindo-o a um âmbito lingüístico. Para ele, todos os âmbitos
(do cuidado) expressa aquilo que uma pessoa considera da vida humana - toda instância do dizer, fazer ou produzir -
importante ou valioso; é o pensar que aplica valores no próprio produzem juízos. Segundo Buchler, há três modos do julgar, que
pensar. Essa dimensão reconhece quatro formas ou modos mais correspondem ao fazer, ao produzir e ao dizer: juízo ativo,
específicos ainda: o valorativo, o ativo, o afetivo e o normativo. expressivo e assertivo. Os juízos cumprem uma função assertiva
Não se deve confundir a dimensão valorativa com o modo quando afirmam algo com relação ao verdadeiro e ao falso no
avaliativo: esse último implica perguntar-se pelo valor daquilo dizer; uma função ativa quando expressam algo com relação ao
que é objeto do pensar, é analítico; portanto uma forma da bom e ao ruim numa ação; e uma função mostrativa quando
criticidade, e não do cuidado. No entanto, o modo valorativo dão forma a materiais de todo tipo (como objetos, signos, sons)
leva consigo valores no próprio ato de pensar, sendo assim uma em termos do belo e do feio.
forma do cuidar muito mais que do analisar. Por exemplo, podemos Lipman considera que o modo crítico do pensar corresponde
avaliar e dar um valor monetário a uma obra-de-arte ou apreciá-la à função assertiva do julgar, o modo criativo do pensar à função
no que ela expressa; no primeiro caso, estaremos avaliando a expressiva do julgar, e o modo do cuidado à função ativa do
obra; no segundo, a celebraremos pelos valores que manifesta. julgar. Da mesma forma que as funções do julgar estão presentes
Neste último caso não teremos qualquer interesse em dar-lhe em todo juízo em diferente proporção, assim também em todo
um preço ou valor, nem em avaliá-la segundo qualquer outra pensar de ordem superior existe uma composição diversificada
escala; apenas a estaremos valorando. Quanto às outras de criticidade, criatividade e cuidado. Tanto as funções do julgar
dimensões do cuidado no pensar, a ativa é aquela afirmada em quanto os modos do pensar são apenas formas diferentes que
nossas ações: nossa conduta "fala" por nós; ela mostra o que têm uma presença relativamente distinta em cada caso. Cada
cuidamos e para que o fazemos . Por sua vez, o pensar afetivo pensamento e cada julgamento são um microcosmo que expressa
intenta quebrar a dicotomia "razão versus emoção", uma pluralidade de formas complementares.
considerando que as emoções revelam formas de pensar e julgar. Segundo Lipman, essa estrutura triádica do pensar
Finalmente, o pensar normativo dá conta da dimensão do ideal
corresponde aos seguintes antecedentes históricos:
no pensar, o dever ser, seu caráter prescritivo. Todos esses modos
54 fiLOSOFIA PARA CR IANÇAS ÜS FUNDAMENTOS TEÓR ICOS DO PROGRAMA FilOSOFIA PARA CRIANÇAS DE MA TTHEW liPMAN 55

Idéias regulativas tolerantes, respeitosas; em suma, democráticas. Em última


Verdade Beleza Bem
(Platão) instância, um pensador de ordem superior é, para Lipman, um
cidadão cabalmente democrático.
Ramos da
filosofia Teoria do Estética Ética Assim, o programa filosofia para crianças de Matthew Lipman
(Aristóteles) conhecimento tem uma normatividade sociopolítica. Não se educa apenas
para o pensar, mas para o pensar de ordem superior, e não só se
Formas de
educa para o pensar de ordem superior, se educa para uma
investigação Teórica Produtiva Prática
cidadania democrática. Em outras palavras, há, segundo
(Aristóteles)
Lipman, ganhos sociais significativos que justificam essa
Modos do julgar aventura filosófica com crianças. Se quisermos democratizar
Dizer Produzir Fazer
(Buchler) nossas sociedades, diria Lipman, é preciso educar nossas crianças
Objetivos na filosofia e na democracia. Por que as crianças? Porque -
cognitivos Analítico Sintético Avaliativo e aqui Lipman parece mais pragmatista do que nunca - para os
(Bloom) adultos talvez seja tarde demais. Porque uma socialização pouco
democrática e pouco filosófica já terá feito estragos neles.
Modos do pensar
Criticidade Criatividade Cuidado Por isso, a única esperança certa, segundo Lipman, está nas
(Lipman)
crianças. Porque se conseguirmos que elas pratiquem a filosofia
em comunidades de investigação deliberativas, então haverá
Fonte: Lipman, 1995c.
muito mais chances de que elas sejam pessoas razoáveis e
É bom reconhecer que esse programa de desenvolvimento democráticas e que, a partir dessa prática filosófica e democrática,
do pensar de ordem superior não está livre de valores. Alguém elas lutem para que as instituições e práticas sociais sejam mais
poderia pensar que ele é apenas formal, uma metodologia que igualitárias e menos autoritárias.
simplesmente passa ferramentas ou instrumentos, como as das Desse modo, para que nossas crianças sejam democráticas,
três dimensões do pensar distinguidas. Segundo essa precisamos envolver-nos em diálogos filosóficos com elas, porque
possibilidade, apenas estaríamos frente a uma educação para esses diálogos são parte insubstituível da deliberação
aprimorar a qualidade do pensar das crianças, sem que estivesse democrática. Lembremos que, para Lipman, a democracia é uma
determinado o conteúdo desse pensar. Mas essa possibilidade investigação, e nenhuma prática aprimora os métodos da
não dá conta da lógica interna do pensar. Não existe pensar investigação e o pensar dos investigadores tanto quanto a
vazio ou neutro. O pensar é sempre o encontro de alguém com filosofia. Por isso, é preciso considerar as crianças como pessoas
algo, a partir do que o marco conceitual permite a essa pessoa racionais. Porque se lhes negamos a racionalidade, fechamos as
distinguir e desconsiderar. No caso do programa filosofia para portas da filosofia para elas. Dessa forma, estaríamos
crianças de Matthew Lipman, as crianças que desenvolvam este enclausurando a possibilidade de qualquer reforma educacional
pensamento de ordem superior estarão sendo razoáveis, seriamente democratizante: sem a prática da filosofia, as crianças
56 fiLOSOFIA PARA CR IANÇAS
ÜS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANÇIIS DE MATTHEW LI PMAN 57

não poderiam ser cidadãos críticos, reflexivos e atenciosos, e a Vamos propor algumas interrogações relativas a essa
democracia não pode crescer onde há cidadãos acríticos, não- concepção de uma educação democrática para o pensar de
reflexivos e pouco a tenciosos. Por isso, diria Lipman, se a ordem superior: Em que medida as visões de Dewey e Lipman
democracia é desejável, a filosofia é necessária. sobre a escola dão conta d e sua função social n a socied ade
Ainda que simplificadora, essa apresentação resume os contemporânea? Quais os compromissos e implicações do
principais delineamentos da aposta de Lipman, quais sejam: dispositivo de Lipman perante a função social da escola
a prática da filosofia n a escola se justifica, em última instância, contemporânea? O que diria Lipman sobre as relações entre
pelos seus efeitos democratizantes: praticar a filosofia é formar poder e verdade n a sociedade e n a escola? Q u a is as
na de mocra cia; as c rianças são a esperança da educação; conseqüências da relação que Lipman estabelece com o passado
há razões sociopolíticas para considerar racionais as crianças, filosófico e quais outras possíveis formas de relação existem com
conseqüentes dos ganhos que isso traz; a educação é uma forma tal passado? Tomar o interesse dos estudantes como ponto de
de inves tigação que segue a filosofia no seu método e a partida da discussão filosófica n ão pode levar as aulas a ficarem
democracia no seu meio e fim; sem a prática da filosofia na presas ao senso comum, ou a debater apenas aquilo que os
escola h á poucas chances d e uma reform a educacional estudantes reproduzem a partir das forças sociais que lhes impõem
significativa. tais temas? Quais as implicações da distinção entre pensar normal
Talvez como estratégia para aproximá-la ainda mais da e pensar de ordem superior? A caracterização das formas de
filosofia, Lipman tenha enfatizado nos seus últimos escritos (1998, pensar propostas por Lipman é apen as formal? Sua caracterização
p. 12-13) o caráter deliberativo da democracia. Assim como uma d o pensar crít ico potencializa ou inibe suas possibilidades
pessoa n ão pode ser considerada razoável se não tem capacidade transformadoras? De que forma Lipman responde à pergunta "o
de a utocrítica, uma sociedade n ão pode ser considerada que é uma criança?" Quais as implicações da distinção entre a
democrática se não predomina nela uma investigação pública democracia como sistema político e como forma de vida social?
deliberativa. Para que essa última aconteça é preciso uma série Quais as re lações entre d emocracia e capita lismo? Qual a
de mecanismos, sendo representativos deles: a) explicitar razões natureza das "democracias" latino-americanas atuais? Quais as
implícitas; b) mostrar a importância da experiência de vida; relações, semelhanças e diferenças, entre a deliberação filosófica
c) dialogar, procurando aplicar princípios universais a casos e a deliberação democrática? Quais as funções políticas da prática
práticos particulares ; d) articular conceitos e relações vagas e da filosofia n a escola ? Pod e existir conflito entre filosofia e
abstratas; e) levar em consideração as perspectivas e atitudes democracia? Se possível, como resolvê-lo?
dos outros. Afinal, qual é a disciplin a que pode ensinar esses
mecanismos e aplicá-los? Lipman não tem dúvidas: a filosofia.
Por isso, se a democracia é uma forma de deliberação pública, a
prática da filosofia é a melhor preparação para essa deliberação
democrática.

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