Você está na página 1de 40

MATERIALISMO E MARXISMO

Unidade III
7 ADORNO: DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO

Theodor Wiesengrund‑Adorno nasceu em 1903, na cidade alemã de Frankfurt. Em 1923, obteve


o título de doutor em Filosofia. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, foi para a Inglaterra e
trabalhou na Universidade de Oxford. Em 1947, publicou a obra Dialética do Esclarecimento, escrita
em parceria com Horkheimer, a qual se tornou referência para os estudos das relações entre mito,
dominação e trabalho no sistema capitalista. Em 1950, retornou para a Alemanha.

Um dos principais pensadores da Escola de Frankfurt, Adorno apresentava‑se como marxista não
só no sentido político, mas principalmente no sentido científico. Segundo ele, o marxismo podia ser
compreendido em três vertentes: como sistema econômico, como visão de mundo e como posição
metodológica de investigação científica da sociedade.

A concepção materialista dialética adotada por Adorno para a investigação da sociedade capitalista
firmou o pensamento da Escola de Frankfurt. Essa posição gerou uma vasta análise crítica e, ao mesmo
tempo, ampliou as reflexões do pensamento marxista para diversas áreas, particularmente a arte e a
manipulação da produção cultural que o sistema capitalista propiciou.

Como os demais componentes da Escola de Frankfurt, Adorno elaborou em suas obras uma
contundente crítica ao desenvolvimento tecnológico do sistema capitalista, particularmente ao
estabelecimento da razão técnica como determinante para obter a humanização da categoria trabalho.
Cabe destacar a diferença entre técnica e tecnologia.

Por técnica, entende‑se a habilidade de fazer e/ou de utilizar as ferramentas e os maquinários para
a produção de produtos. Portanto, é uma característica que pertence ao sujeito, no sentido de que é
um saber‑fazer utilizando a matéria‑prima e o maquinário necessário. Por tecnologia, entende‑se o
conjunto de ferramentas e maquinários, isto é, o que é posto como meio de produção, no sentido de
que, empregando tal ou qual ferramenta ou maquinário, é possível produzir isto ou aquilo.

Ao juntar técnica com tecnologia e matéria‑prima, obtém‑se exatamente o necessário para a


produção. As críticas elaboradas pelos pensadores da Escola de Frankfurt acerca da relação entre os dois
fatores (técnica e tecnologia) envolvem o predomínio do conhecimento técnico e tecnológico sobre o
conhecimento humanista. Esse predomínio permitiu a formação de um poder manipulador por parte
das grandes corporações, por usarem o conhecimento para a produção não só de maquinário, mas
principalmente de mercadorias.

O desenvolvimento da ciência direcionou‑se notadamente para a produção de tecnologias. Por


conseguinte, a ciência passou para a condição de instrumento de domínio tanto da natureza quanto do
71
Unidade III

social. É possível dizer que ela se tornou o caminho para a produção e, como consequência, se converteu
em conhecimento pragmático. Em outras palavras, o conhecimento científico passou para a esfera do
controle não apenas da produção, mas também do comportamento.

Desde o século XIX, havia uma íntima ligação entre a ciência e a tecnologia. As ciências,
especialmente as físico‑químicas, já apresentavam uma enorme quantidade de pesquisas, o que
demonstrava a consolidação do conhecimento das denominadas ciências da natureza. Estas
proporcionavam um avanço significativo na construção de tecnologias, processo diretamente
relacionado com a produção industrial.

No período de afirmação do poderio capitalista na versão industrial, fortaleceu‑se o vínculo entre


a ciência e a indústria. Esse vínculo se dava de tal modo que o conhecimento científico começou a se
tornar um verdadeiro esquema unitário. Dito de outra maneira, a ciência deixava de ser pesquisa pura
e tornava‑se ciência para a tecnologia.

O que havia sido iniciado no século XIX, na segunda fase da Revolução Industrial, firmou‑se de
vez no século XX. A investigação na esfera da ciência associou‑se com a investigação industrial,
passando‑se da ideia para a pesquisa, e daí para a produção de mercadorias. As configurações sociais
que se apresentaram no século XX permitiram a formação do domínio tanto do Estado sobre a sociedade
quanto do capital sobre a prática política.

O conhecimento científico, portanto, não ficou à margem dessa constituição sociocultural. Em vez
disso, fortalecido seu papel estabelecido no século XIX, passou a integrar de vez a dinâmica social e
política. A preocupação maior dos filósofos da Escola de Frankfurt residia no fato de que, ao mesmo
tempo que havia a dimensão social e política da ciência, havia o desenvolvimento e a orientação da
ciência, com sérias implicações na indústria e interferências nas relações de produção, interferências
que precipitavam ainda mais a exploração da classe operária.

A ciência, que teve seu início como fenômeno social na Revolução Industrial, tanto na primeira
quanto na segunda fase, passa a ser um fenômeno social de dominação cultural e política. A dominação
nessas duas esferas da existência – cultural e política – também tem implicações como fator de ordem
econômica, ou melhor, como fator econômico determinante nas relações entre o capital e o trabalho. A
interferência do capital se dá inclusive no âmbito do Estado, particularmente na condução das decisões
de política econômica.

A posição da ciência no contexto social e político, isto é, o desenvolvimento de pesquisas científicas


voltadas para a produção de mercadoria, é também a posição do progresso técnico e tecnológico que a
industrialização impulsionou – o progresso foi apresentado como benéfico e satisfatório para melhorar
a condição das pessoas.

É nesse contexto social, econômico e, por que não, cultural que ocorrem as críticas à sociedade
formuladas pela Escola de Frankfurt, críticas essas que se dirigem para a razão instrumental, isto é, a
razão como instrumento e técnica para a exploração do homem pelo homem mediante a produção
capitalista de bens.
72
MATERIALISMO E MARXISMO

7.1 Sobre o termo esclarecimento

A análise da obra Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, exige algumas considerações


sobre o uso do termo esclarecimento. A Tradução: que adotamos aqui foi a realizada por Guido Antônio
de Almeida, publicada pela editora Zahar em 1985. Nela, há uma nota do tradutor explicando por que
traduziu Aufklärung por esclarecimento, e não por Iluminismo.

A Tradução: de Aufklärung por esclarecimento requer uma explicação:


por que não recorremos ao termo Iluminismo, ou Ilustração, que são
as expressões mais usuais entre nós para designar aquilo que também
conhecemos como Época ou Filosofia das Luzes? Em primeiro lugar,
como não poderia deixar de ser, por uma questão de maior fidelidade: a
expressão esclarecimento traduz com perfeição não apenas o significado
histórico‑filosófico, mas também o sentido mais amplo que o termo
encontra em Adorno e Horkheimer, bem como o significado corrente de
Aufklärung na linguagem ordinária. É bom que se note, antes de mais
nada, que Aufklärung não é apenas um conceito histórico‑filosófico,
mas uma expressão familiar da língua alemã, que encontra um
correspondente exato na palavra portuguesa esclarecimento – por
exemplo, em contextos como: sexuelle Aufklärung (esclarecimento
sexual) ou politische Aufklärung (esclarecimento político). Nesse sentido,
as duas palavras designam, em alemão e em português, o processo pelo
qual uma pessoa vence as trevas da ignorância e do preconceito em
questões de ordem prática (religiosas, políticas, sexuais etc.) (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 7).

É oportuno ainda acrescentar um comentário do tradutor acerca do uso do termo por Adorno
e Horkheimer:

Em Adorno e Horkheimer, o termo é usado para designar o processo de


“desencantamento do mundo” pelo qual as pessoas se libertam do medo
de uma natureza desconhecida, à qual atribuem poderes ocultos para
explicar seu desamparo em face dela. Por isso mesmo, o esclarecimento
de que falam não é como o Iluminismo, ou a Ilustração, um movimento
filosófico ou uma época histórica determinados, mas o processo pelo
qual, ao longo da história, os homens se libertam das potências míticas da
natureza, ou seja, o processo de racionalização que prossegue na filosofia e
na ciência (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 7).

Com essas explicações em mente, passemos à análise da obra, começando com a questão do
significado de mito.

73
Unidade III

7.2 Significado de mito

Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer apontam de modo significativo para a relação


entre mito, dominação e trabalho. A obra estabelece como referência a narrativa da Odisseia, de Homero,
a qual permite aos dois autores elaborar uma profunda crítica da exploração por parte do capitalismo
em todas as esferas da atividade humana. A dominação refere‑se ao modo de produção dos bens de
consumo, entre eles os bens produzidos pela indústria cultural, e evidentemente ao trabalho, no sentido
de que o capital apropria‑se do resultado final do trabalho realizado pelo operário.

Para melhor compreender a Dialética do Esclarecimento, são necessárias algumas considerações


acerca do significado do mito como narrativa. Para isso, podemos recorrer ao Dicionário de Mitos
Literários, organizado por Pierre Brunel (1997). A escolha desse dicionário não foi feita aleatoriamente,
mas pelo fato de ser o mais importante dicionário na área publicado no Brasil.

Segundo esse dicionário, o mito representa, de modo bem definido e complexo, tudo aquilo que
pode ser chamado de linguagem simbólica. Os símbolos formam, com outras características, o
conjunto das manifestações culturais. Essas outras características são a transmissão, a transformação e
o compartilhamento. Assim, se juntarmos a essas características os símbolos, teremos um conjunto de
manifestações que permitem identificar pela observação o que efetivamente é cultura.

Os símbolos são profundamente marcados pela abstração. Em outras palavras, são expressão de certas
percepções do mundo natural e do mundo social. Por serem abstrações, eles são conceituais, isto é, não
têm as características do objeto ou da ideia. Dito de outra maneira, os símbolos são construções mentais.
Como são abstrações, eles permitem o retirar‑se daquilo que é posto de modo mediato, percebido ou
mesmo vivido. Portanto, possibilitam a transmissão e o compartilhamento. É pela passagem mediante
narrativas que as gerações futuras conhecem o mito, seja para o bem individual, seja para o bem coletivo.

Pelas características apontadas e pela descrição do que é mito, podemos dizer ainda que o fator
cultural é construído historicamente. Assim, apesar de ser um manifesto universal, a cultura adquire
significados distintos em cada sociedade particular. O Dicionário de Mitos Literários também ressalta
que o mito é uma verdade simbólica, ou seja, uma proposição para a compreensão do mundo e da vida; é
a exposição ou mesmo a explicação de um sentido que não é possível expor ou explicar cientificamente.
Portanto, o mito é construído como forma de conhecimento da complexidade da natureza e do social.

Como indicado, na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer fazem uma construção


analítica do sistema capitalista de produção com base na Odisseia, de Homero. O personagem principal
dessa narrativa mitológica, Ulisses, é tomado como parâmetro para inúmeras considerações sobre a
dominação e o trabalho. Destaca‑se particularmente a passagem em que Ulisses obriga os remadores a
pôr cera nos ouvidos para não ouvirem o canto das sereias, enquanto ele fica amarrado ao mastro para
suportar e não reagir aos cantos sedutores da ilusão:

As medidas tomadas por Ulisses quando seu navio se aproxima das Sereias
pressagiam alegoricamente a dialética do esclarecimento. Assim como a
substituibilidade é a medida da dominação e o mais poderoso é aquele
74
MATERIALISMO E MARXISMO

que pode se fazer substituir na maioria das funções, assim também a


substituibilidade é o veículo do progresso e, ao mesmo tempo, da regressão
[…]. Ulisses é substituído no trabalho. Assim como não pode ceder à
tentação de se abandonar, assim também acaba por renunciar enquanto
proprietário a participar do trabalho e, por fim, até mesmo a dirigi‑lo,
enquanto os companheiros, apesar de toda a proximidade às coisas, não
podem desfrutar do trabalho, porque este se efetua sob coação (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 40).

7.3 Do desenvolvimento da obra Dialética do Esclarecimento

Nessa obra, pela primeira vez é empregado o termo indústria cultural no lugar de cultura de
massa, pois este pode ser apreendido como cultura que surge de modo espontâneo das massas. Desde
então, a expressão indústria cultural tem sido usada para referir‑se à produção realizada de forma
industrial, cuja consequência é a dominação e alienação das massas.

Além das críticas à produção industrial da cultura, a obra tece longas e profundas críticas à atividade
científica. Para Adorno e Horkheimer, o progresso científico está intimamente ligado ao desenvolvimento
de tecnologia para a produção, em detrimento da atividade científica das ciências sociais ou humanistas.

Lembrete

O desenvolvimento da tecnologia para a aplicação na indústria


corresponde ao aumento da mais‑valia. Máquinas mais eficientes produzem
mais e melhor.

De modo geral, segundo Adorno e Horkheimer, a liberdade de determinada sociedade é inseparável


do pensamento esclarecedor. No entanto, há um paradoxo, pois o esclarecimento apresentado pelo
Iluminismo é, antes de tudo, um pensamento que limita o pensamento esclarecedor. O Iluminismo
produziu uma forma de conhecimento científico cujo pressuposto é o domínio da natureza. Como os
homens fazem parte dela, o domínio se estende também ao mundo social.

Para a perspectiva filosófica iluminista, o que importa é o operacional, não a verdade. O Iluminismo
se volta para a construção e o desenvolvimento da razão instrumental, visando ao pragmático. Mas,
enfim, o que é o Iluminismo? É a concepção filosófica elaborada a partir do século XVII, no período da
Revolução Científica, que formulou leis de caráter universal para o conhecimento da natureza.

A Revolução Científica propiciou reflexões que formaram o pensamento filosófico do Iluminismo.


Por exemplo, a noção de que o homem e a sociedade por ele formada eram integrantes da natureza.
Assim, as leis que governavam de modo universal a natureza também governavam de modo universal
a sociedade. Conhecer, compreender e interpretar o homem e as sociedades eram passos científicos
possíveis pelos mesmos métodos empregados em relação à natureza.

75
Unidade III

O Iluminismo entendia que, por meio da razão, o homem poderia dominar tanto o mundo natural
quanto o mundo social. O que não era passível de ser observado não podia, evidentemente, ser posto
na perspectiva do conhecimento. O que não estava no campo da experiência empírica ou de laboratório
era colocado no campo da abstração, como se não tivesse muito sentido para o desenvolvimento da
humanidade. Portanto, o Iluminismo se voltava para o conhecimento que pudesse levar ao domínio da
natureza e, por conseguinte, do social e do político.

Com o vínculo entre o conhecimento científico e a indústria, houve um desenvolvimento excepcional


do capitalismo, com a produção de mercadorias em larga escala e o aumento da produtividade econômica.
No entanto, desse processo decorreram dois polos antagônicos:

• Polo positivo: a criação de condições para um mundo mais confortável e mais justo.

• Polo negativo: a criação de condições para a superioridade das grandes corporações capitalistas,
superioridade essa estabelecida mediante a exploração da população.

O saber desenvolvido pelo esclarecimento concentra‑se no poder, o qual não conhece nenhum
limite, seja na guerra, seja na competição entre as fábricas. É um saber voltado para a conquista do
poder econômico e, por conseguinte, do poder político. O conhecimento científico, direcionado para a
produção de mercadorias, propicia a construção de um mundo social caótico.

A ciência moderna abandona o significado do sentido e substitui por completo o conceito, como
instrumento, pela fórmula. Em outras palavras, a ciência moderna abdica das relações causais pela regra
da probabilidade. Ocorre a matematização e a construção do mundo positivo das máquinas, as quais vão
substituir os próprios construtores.

Desse modo, as relações do conceito com a lógica, que eram a condição da produção científica,
modificam‑se. Passa‑se para uma relação em que o conceito e a lógica fundamentam a dominação do
real, o que possibilita identificar a verdade com a ordem.

Observação

O conceito é a expressão da abstração na esfera do universal. Portanto,


é possível dizer que o conceito é o instrumento da reflexão filosófica. O
conceito exprime o que há de mais universal no objeto ou no fato que está
sendo analisado.

As junções estabelecidas entre conceito e lógica propiciaram a divisão do trabalho entre ciência
e poesia, isto é, a divisão entre áreas, o que ocasionou interferências no emprego da linguagem. A
ciência, como conhecimento interpretativo na esfera do pensamento positivista, faz uso da linguagem
de signos desligados de intenções, tornando‑se o campo da matemática e levando à matematização
do mundo. A arte, por sua vez, pelo uso de uma linguagem de “copiabilidade”, incorpora de vez
somente a técnica, no sentido mais positivista, isto é, para a produção. Portanto, ocorre na arte uma
76
MATERIALISMO E MARXISMO

separação que causa grande prejuízo estético: o signo separa‑se da imagem. Dito de outro modo: de
um lado, fica o conhecimento científico com o conceito; do outro, as artes com a intuição, intuição
essa que se utiliza da técnica.

Vejamos agora as análises que Adorno e Horkheimer fazem comparando as sociedades nômades
com as sociedades industrializadas. As primeiras manifestações de poder e de obediência que se
verificam nas sociedades industrializadas são as mesmas que ocorreram nas sociedades mais simples.
Essa analogia permite uma digressão sobre a divisão do trabalho social como uma categoria muito
importante para compreender a sociedade capitalista. Para isso, vamos recorrer às ideias de Émile
Durkheim (1858‑1917), citado por Adorno e Horkheimer.

Segundo Durkheim, pensador francês considerado um dos fundadores da sociologia, a organização


social ocorre pela solidariedade. Esta é ocasionada exatamente pela divisão do trabalho social, ou seja,
pela divisão do trabalho entre as pessoas de determinada sociedade a fim de produzir os bens necessários
para a sobrevivência. Assim, a solidariedade estabelecida entre os participantes das diversas atividades
necessárias para a produção de bens permite haver uma dinâmica que integra as pessoas e, mais do que
isso, propicia certa harmonia. Durkheim diz que a solidariedade pode ser de dois tipos:

• Orgânica: própria das sociedades mais simples ou tradicionais.

• Mecânica: presente nas sociedades industriais.

Adorno e Horkheimer afirmam que a integração proveniente da divisão do trabalho que se verifica na
realidade social não é aquela indicada por Durkheim. Na sociedade concreta, não há solidariedade, mas
separação entre os que mandam e os que obedecem. Portanto, na sociedade capitalista, a integração
é mera aparência, uma vez que o que se presencia efetivamente é o conflito entre o poder econômico
que tudo domina e os que se encontram na condição de obedecer por uma questão de sobrevivência.

Na Dialética do Esclarecimento, também ocorre uma análise comparativa entre o processo de


raciocínio dedutivo e as características da divisão do trabalho social. É essa proximidade que confere
uma unidade quase impenetrável à esfera do poder. A forma dedutiva da ciência reflete de modo direto
a hierarquia e a coerção social, pois o todo é ativado pela razão e, por tal ativação, ele se converte em
particular. Para compreender melhor, voltemos ao significado de raciocínio dedutivo.

A dedução encontra‑se, nas reflexões filosóficas, na esfera da epistemologia, no sentido de que é


uma conduta para o conhecimento. Nessa esfera estão também a indução, a analogia e, em algumas
escolas filosóficas, a intuição. Deve‑se notar que todas as condutas de raciocínio são estudadas, de
modo geral, em todos os campos do conhecimento científico, isto é, nas ciências sociais e nas ciências
da natureza. O raciocínio dedutivo parte do que é mais geral no objeto ou evento investigado e termina
no que é mais particular. Segue estes três passos:

• Estabelece o que há de mais geral do que se pretende conhecer.

• Reparte esse geral em tantas partes quanto possível.


77
Unidade III

• Na última parte encontrada, identifica o particular ou, mesmo, o singular – a própria conclusão
do raciocínio dedutivo aplicado.

O que é encontrado como o mais particular, isto é, impossível de ser repartido, já está presente no
mais geral. Assim, o raciocínio dedutivo não permite encontrar na conclusão qualquer elemento que não
esteja incluído no mais geral. É imperioso que a conclusão pertença ao mais geral. Sendo o particular a
conclusão, não há como concluir o que não foi logicamente analisado antes por partes distintas.

Assim, o raciocínio dedutivo se desenvolve a partir de consequências que decorrem


obrigatoriamente do que foi estabelecido como o mais geral, que já é conhecido, embora não as
partes que o compõem. Portanto, o raciocínio dedutivo é uma ordenação lógica em sua metodologia
de aplicação, que por sua vez é uma aplicação de consequências: o mais geral reparte‑se em
particulares, que são consequentes.

A relação entre o raciocínio dedutivo e a hierarquia social pode ser apresentada da seguinte forma:
a dominação põe o indivíduo na condição de universal, ou seja, o mais geral, e esse poder põe todos os
indivíduos numa situação sem saída; a divisão do trabalho estabelece uma hierarquia, de tal modo que
a condição mais geral do indivíduo é particularizada por cada segmento da produção especializada, isto
é, repartida racionalmente.

Evidentemente, a repartição das atividades profissionais no interior da fábrica e a divisão


das diversas atividades profissionais na sociedade são as partes que se integram num todo geral,
formando a universalidade da sociedade capitalista, que domina, ao mesmo tempo, o todo e as
partes que o constituem.

Aprofundar‑se na leitura da Dialética do Esclarecimento envolve abordar o que foi construído ao


longo da história da filosofia, particularmente nas obras de Platão e Aristóteles. Adorno e Horkheimer
consideram esses filósofos gregos como os representantes da filosofia na questão da desigualdade
social, e a linguagem como o instrumento de expressão dessa desigualdade.

Os conceitos elaborados tanto por Platão quanto por Aristóteles apresentavam o mundo com alcance
de universalidade, e as relações formadas se fundamentavam como verdades da própria realidade social.
No entanto, na realidade do mundo grego, o que efetivamente havia era não a igualdade da pureza do
raciocínio, mas a desigualdade – pela inferioridade das mulheres, das crianças e dos escravos.

Segundo Adorno e Horkheimer, mais do que a diferença entre os conceitos utilizados e as distinções
sociais que construíram o mundo social grego no período clássico, havia a linguagem, que colocava o
sentido da dominação nas realidades sociais de modo universal, isto é, a linguagem era a própria sanção
das ideias e das normas sociais e jurídicas – a expressão da dominação social.

Portanto, o esclarecimento terminou por transformar e neutralizar não só os símbolos, mas também
a linguagem e os conceitos universais, pois pela análise da realidade verifica‑se que não há convergência
dos conceitos e da linguagem empregada com a configuração social.

78
MATERIALISMO E MARXISMO

De acordo com Adorno e Horkheimer, a conduta dialética, diferentemente da conduta positivista,


centrada na dedução, permite evitar a desintegração do objeto ou evento social investigado. Isso porque
ela não exclui a negação, ou seja, não exclui o que é oposto. Com isso, há uma integração tal que
permite apreender a universalidade.

A investigação realizada pelo pensamento positivista, ou mesmo neopositivista, ao excluir o que é


contraditório, ao negar a inclusão do diferente, apresenta‑se de modo autoritário. O processo já está
decidido de antemão. Não se aceitam as críticas que são feitas. É uma posição não só arbitrária, mas
também totalitária.

A Dialética do Esclarecimento, por meio de suas críticas, aponta para todos os momentos em que
o esclarecimento, seja pela filosofia, seja pela ciência, ocasionou ou firmou o poder em detrimento dos
demais componentes da sociedade. O esclarecimento, de fato, produziu um paradoxo na história da
humanidade: de um lado, o conhecimento; do outro, um conhecimento voltado para o poder de alguns
sobre muitos.

Para melhor abordar esse paradoxo, é oportuno expor a relação entre o conhecimento produzido
pelo mito e o conhecimento produzido pela filosofia e pela ciência. Apesar de o pensamento científico se
afastar do mito, Adorno e Horkheimer afirmam que tanto um quanto o outro são formas de conhecer o
mundo. No mundo esclarecido, segundo os autores, a mitologia entra para a esfera profana, e a ciência
e seus demônios estabelecem vínculos com a desigualdade e a alienação.

Voltemos um pouco na história da humanidade e consideremos o ponto de rompimento do


conhecimento mítico com o conhecimento filosófico – o início da filosofia ocidental na Grécia. Antes
do pensamento filosófico, o pensamento mítico respondia a todas as perguntas, isto é, o conhecimento
verdadeiro era aquele que provinha dos deuses, aquele que os deuses transmitiam aos homens. Havia
uma profunda segurança no conhecimento mítico, pois o que se conhecia era conhecido mediante as
palavras dos deuses. Não era necessário nenhum esforço para obter conhecimento do que quer fosse.
Os deuses respondiam a tudo.

No entanto, em determinado momento da história, os deuses abandonaram os homens à própria


sorte e se recolheram no Olimpo. Com isso, não havia mais a quem recorrer para adquirir conhecimento
senão à razão. A única opção era trilhar um caminho bem distante daquele que os deuses colocavam à
disposição dos homens. O mítico dos deuses não estava mais presente.

É possível inferir o seguinte: a filosofia ocidental começou com a fatalidade do homem, fatalidade
essa posta por uma condição bastante perversa para a humanidade – o homem sem amparo, que precisa
buscar e encontrar o sentido das coisas. A criação do mundo, a criação do cosmo, enfim, a criação de
tudo – o que até então se explicava pelo recurso ao divino – tinham que ser explicadas de outra forma.
O sentido de tudo estava na reflexão racional da filosofia. Assim, o mitológico ficou de um lado e a
filosofia do outro.

O processo capitalista de produção tem o poder de dominar todas as construções materiais e


mentais e, mais do que isso, tem o poder de determinar as relações sociais que se estabelecem entre as
79
Unidade III

pessoas. Ocorre uma verdadeira coisificação pelo processo de produção industrial, particularmente pela
produção de bens culturais alienantes.

A ligação entre o valor econômico e a mercadoria produzida se baseia de tal modo na alienação
que é possível falar em fetiche da mercadoria. Segundo Adorno e Horkheimer, o preço que as pessoas
pagam pela dominação do capital vai muito além da mera alienação em relação ao todo da sociedade:
há uma coisificação do espírito, isto é, as próprias interações sociais são enfeitiçadas. A dominação
é tamanha que ela alcança a psique das pessoas. Em decorrência do enfeitiçamento interno, surge o
comportamento enfeitiçado e alienado.

O sistema econômico decide de antemão o comportamento humano em relação aos valores. Valor é,
antes de tudo, atribuir qualidade a algo, considerar algo importante para a vida. Os valores individuais e
os valores sociais determinam, em última instância, nossos comportamentos socioculturais. Praticamos
isto ou aquilo de acordo com os valores que atribuímos a certas práticas individuais ou coletivas.

A partir do momento em que as mercadorias não têm mais o poder econômico, mas tão somente o
poder de fetiche, acontece a atribuição de valores já determinados pelo sistema que as produziu. Sob o
domínio das corporações industriais, a sociedade se configura sob uma situação da qual não vê saída,
ficando presa à submissão aos valores que produzem e reproduzem a mesma sociedade e, mais do que
isso, o mesmo poder político.

Diante desse domínio, Adorno e Horkheimer propõem que a luz do esclarecimento é uma luz
que distorce a realidade social. Na configuração produzida nesse processo de alienação e de fetiche
da mercadoria, o eu está simplesmente colocado em meio a imposições, entre as quais se destaca a
imposição da sobrevivência.

Observação

De modo geral, o comportamento alienado é entendido pelos pensadores


da Escola de Frankfurt como resultado da ausência de autonomia do
indivíduo em relação às estruturas sociais.

Pela maneira como a sobrevivência é imposta, ocorre uma submissão à tecnologia produzida.
Por conseguinte, elimina‑se a ação individual, no sentido de ação particularizada. A sobrevivência é
garantida pela obediência, pois todo o perigo que a natureza representa pertence ao mito, e não ao
conhecimento esclarecido da ciência. Portanto, a subordinação ao sistema oferece a uma minoria todo
o poder, no sentido de que é ela, a minoria, que garante a segurança.

O esclarecimento proporcionado pela ciência voltada para a produção industrial é ilusório, uma
vez que o que a economia mercantil burguesa estabelece, pelo domínio da técnica a ser aplicada e do
desenvolvimento tecnológico, é, no limite das configurações sociais, a própria maquinaria da dominação
do capital.

80
MATERIALISMO E MARXISMO

A concepção positivista da ciência e da sociedade, bem como da política, tem na ordem das
coisas a sustentação do progresso. Os detentores do poder atendem à máxima positivista a fim de
aparentar o progresso como um benefício para todos. No entanto, essa máxima mascara a realidade,
sendo muito mais uma ideologia de dominação do que, efetivamente, a base para um progresso que
beneficie a todos.

O que se verifica é que, quanto mais racional o modo produção, maior o empobrecimento da
vivência das pessoas. O trabalho sustentado pelo esclarecimento, pela racionalização, ocasiona uma
dupla alienação: a alienação no processo de produção das mercadorias e a alienação do indivíduo em
relação à sociedade. Essa dominação é uma consequência lógica da sociedade industrial.

É oportuno citar a seguinte passagem da Dialética do Esclarecimento:

A limitação do pensamento à organização e à administração, praticada pelos


governantes desde o astucioso Ulisses até os ingênuos diretores‑gerais,
inclui também a limitação que acomete os grandes tão logo não se trate
mais apenas de manipulação dos pequenos. O espírito torna‑se de fato
o aparelho da dominação e do autodomínio como sempre havia suposto
erroneamente a filosofia burguesa. Os ouvidos moucos, que é o que sobrou
aos dóceis proletários desde os tempos míticos, não superam em nada a
imobilidade do senhor (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 41).

Pela leitura desse fragmento, pode‑se compreender que a dominação do sistema ocorre em todas as
esferas de existência humana, isto é, há dominação pela linguagem, pela coerção física e pela coerção
das técnicas de produção. O domínio atinge a todos – é a objetivação do poder econômico para todos.

Quanto ao progresso, lema da concepção filosófica e política do positivismo, o que se verifica nas
relações sociais é o progresso por meio da dominação de poucos sobre muitos, dominação da qual não
escapa absolutamente nada, desde o conhecimento científico até as formas de entretenimento.

Enfim, o sucesso do esclarecimento, da iluminação decorrente do conhecimento afastado do mítico,


é exatamente o sucesso da alienação das massas em relação à produção e aos valores socioculturais
provenientes da ideologia esclarecedora. É um esclarecimento bem distante da liberação do homem da
exploração a que está submetido no sistema capitalista de produção de bens.

O esclarecimento na versão Iluminista, ou seja, o domínio pela razão, é criticado por Adorno e
Horkheimer. Em “O Que É Iluminismo?”, Kant diz que o esclarecimento é a única forma de o homem sair
de sua condição de menoridade, situação da qual ele próprio é o culpado. A menoridade é compreendida
por Kant como a incapacidade do homem de fazer uso do entendimento sem o auxílio de alguém. Assim,
o esclarecimento é o uso da razão sem o auxílio de outro; a racionalidade é a utilização do conhecimento
da filosofia e da ciência para alcançar o domínio de si e da natureza.

Segundo Adorno e Horkheimer, a menoridade a que Kant se refere é, antes de tudo, a incapacidade
do homem de conservar a si mesmo. Houve, portanto, uma profunda transformação do homem ao
81
Unidade III

longo da história. Nesse processo, o conhecimento propiciado pelo esclarecimento voltou‑se para a
funcionalidade do sistema de domínio social, político e econômico.

Existe uma íntima relação entre o esclarecimento e a indústria cultural. O esclarecimento permite a
mistificação das massas. Há uma homogeneização das manifestações culturais, uma verdadeira unidade
cultural de alienação e entretenimento, sem nada de efetivo esclarecimento.

A homogeneização cultural é tamanha que até mesmo na arquitetura e no urbanismo se


verificam o planejamento e a execução das intenções de poder das corporações internacionais. As
construções se mostram de modo imponente, correspondente ao poderio econômico de seus donos.
Já as construções para moradia concentram‑se em projetos de células habitacionais organizadas,
que formam unidades de um microcosmo que expressa o macrocosmo social, marcado por uma
cultura opressiva.

A manipulação econômica da produção cultural propicia a dominação do capital. Nessa produção, as


diferenças são uma ilusão, estão somente na superfície, uma vez que a unificação cultural ocorre desde
as palavras até as imagens. Mesmo no lazer, as pessoas se orientam para a unidade do que é produzido
culturalmente.

Saiba mais

Os livros mencionados a seguir podem contribuir para sua formação:

ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Tradução:


Verlaine Freitas. São Paulo: Unesp, 2015.

ADORNO, T. W. Três estudos sobre Hegel. Tradução: Ulisses Razzante


Vaccari. São Paulo: Unesp, 2013.

8 MARCUSE E BENJAMIN: PSICANÁLISE E FILOSOFIA CRÍTICA

Consideremos mais dois pensadores da Escola de Frankfurt, importantes não só pela influência
que exerceram no pensamento ocidental, mas também por sua singular posição conceitual:
Marcuse e Benjamin.

A obra de Marcuse destaca‑se pelas profundas investigações da sociedade capitalista com


base na obra de Freud – ele propôs uma interação conceitual entre o indivíduo e o coletivo
pelas categorias da psicanálise. A obra de Benjamin, por sua vez, volta‑se para o significado
da linguagem e da arte na esfera da produção cultural de massa. Dos pensadores da Escola de
Frankfurt, Benjamin foi o que mais desenvolveu análises conceituais e críticas sobre a produção
artística na sociedade capitalista.

82
MATERIALISMO E MARXISMO

8.1 Herbert Marcuse

Herbert Marcuse (1898‑1979) foi um filósofo e sociólogo alemão. Com a ascensão do nazismo, foi
para os Estados Unidos, onde lecionou em diversas universidades. Desenvolveu profundos e influentes
estudos sobre a obra de Sigmund Freud. Considerava que a teoria da psicanálise, em seus aspectos
individuais, poderia ser aplicada na análise tanto filosófica quanto sociológica e política, permitindo
uma melhor compreensão das configurações culturais da sociedade contemporânea.

Observação

Sigmund Freud (1856‑1939) foi médico e fundador da psicanálise.


Elaborou uma teoria que revolucionou tanto as investigações sobre a
mente quanto o método de tratamento das patologias psíquicas.

O conjunto teórico formulado por Marcuse pode ser mais bem compreendido tendo por base o
significado de cultura exposto por Freud (2014) na obra O Futuro de uma Ilusão. Os estudos de Freud
sobre cultura são fundamentais para uma antiga discussão em inúmeros campos do conhecimento,
a saber, a oposição entre o natural e o cultural – o que determina o comportamento humano é sua
condição natural ou sua condição cultural?

A questão ultrapassa os limites da análise sociológica quanto à interferência do social no


comportamento individual e coletivo. Ultrapassa também as discussões antropológicas sobre a cultura
ou a natureza serem determinantes do comportamento individual. O mais razoável em relação a essa
questão é entender que não há uma resposta conclusiva.

Um motivo para isso é o fato de inúmeros comportamentos, tanto individuais quanto coletivos,
expressarem a ordem natural e, ao mesmo tempo, terem um componente cultural, ou seja, são
comportamentos que provêm da condição natural, mas também são claramente influenciados pela
coerção imposta categoricamente pelo cultural.

Observação

Uma das inúmeras distinções feitas pela literatura tanto filosófica


quanto antropológica é a seguinte: cultura é qualquer produção realizada
pelos processos históricos ou culturais.

É possível dizer que a natureza por si mesma não é um cenário montado para o humano interpretar
seu papel cultural – ela não se constitui simplesmente como um pano de fundo ou um acessório para
as realizações humanas. A natureza é o próprio habitat humano. Portanto, não há como propor uma
interrogação que, de uma forma ou de outra, coloca em campos opostos a natureza e a cultura. Não há
oposição, mas complementaridade entre as duas. O mundo natural é uma condição de sobrevivência.

83
Unidade III

Freud, nas análises que servem de base para Marcuse interpretar a sociedade capitalista, detém‑se
sobre a natureza individual humana e a construção cultural social. Portanto, o individual é posto como
referência para o coletivo. Nas interpretações freudianas do significado da cultura em relação ao
indivíduo, destacam‑se as profundas implicações das regras e das leis, que orientam o comportamento
social das pessoas.

Essa influência no comportamento independe das condições naturais – aqui entendidas como
condições geográficas. Não se trata da natureza como cenário, conforme o senso comum, nem
como o mundo natural para a sobrevivência humana. Os mesmos ambientes geográficos podem
desenvolver culturas diferentes. O que de fato importa é como as sociedades se configuram para se
sustentar e, principalmente, para se desenvolver.

A cultura se manifesta em todas as sociedades, porém em cada uma essa manifestação é muito
particular, ou seja, a cultura é universal, mas tem suas particularidades. A cultura é universal no sentido
de que todas as sociedades sempre apresentaram profundas marcas culturais.

Em princípio, as sociedades humanas são organizações naturais, pois o homem é um animal social.
No entanto, além da organização social natural, o homem construiu uma organização sociocultural, que
direta e indiretamente permitiu não só a sobrevivência da humanidade, mas também o desenvolvimento
das configurações construídas culturalmente, isto é, o desenvolvimento de tecnologias que terminaram
por dominar as condições naturais.

A cultura, segundo Freud, pode ser considerada pela capacidade adquirida para satisfazer as
necessidades e pelas relações que se estabelecem de forma institucional para regular a divisão dos bens
acessíveis. Pensando nesses parâmetros, é possível inferir a existência de um profundo paradoxo entre
o individual e o coletivo. Isso porque, quando se fala na satisfação de necessidades, de antemão se
apresenta um desacordo: o indivíduo tem interesses que, de modo direto ou indireto, não correspondem
aos do coletivo.

No momento em que cada um dos componentes da sociedade – cada um dos indivíduos – busca
satisfazer suas necessidades segundo seu interesse particular, surge um antagonismo entre ele e a
sociedade, e esta passa a criar meios de se proteger, estabelecendo as coerções necessárias para isso.
Desse modo, há um conflito entre cada pessoa e o contexto social em que ela está inserida, uma vez que
não há como cada um se satisfazer sem prejudicar os demais.

Configura‑se, assim, uma estrutura de proteção do coletivo em relação ao individual. Fundam‑se


usos, costumes e tradições para impor ao indivíduo as restrições necessárias. Institui‑se a cultura para o
controle dos comportamentos, tanto individuais quanto coletivos.

Freud diz que o primeiro e mais violento inimigo da cultura é o próprio construtor dela, isto é, o
homem. Entre os homens, o outro é sempre um inimigo em potência. Isso decorre, como vimos, das
diferenças de interesse. Cada um tem suas necessidades, que em geral não são compatíveis com as da
sociedade. Por conseguinte, as atitudes comportamentais precisam ser controladas.

84
MATERIALISMO E MARXISMO

A cultura é, portanto, um sistema de controle social, um modo de exercer a coerção vista como
necessária para evitar práticas individuais que coloquem em risco a convivência social. As regras
estabelecidas, sejam elas sociais, morais, religiosas ou jurídicas, têm o poder de restringir as satisfações
individuais capazes de desmontar as estruturas de convivência coletiva.

A cultura dispõe de meios coercitivos que tanto protegem a sociedade das agressões quanto
possibilitam a reconciliação e, por que não, a recompensa cultural – a recompensa para os que mantêm
seu comportamento de modo compatível com os valores considerados válidos para a manutenção e o
desenvolvimento social. É fundamental existir uma recompensa social, pois o sacrifício para reprimir
os impulsos é enorme. Com isso, quem tem uma conduta individual conforme às regras estabelecidas
sempre espera uma recompensa pela forma de viver.

É assim que se compreende a existência da coerção: não há outra maneira de proteger o social – a
cultura – de seu maior inimigo, o próprio homem. Freud considera os meios coercitivos patrimônios
psíquicos da cultura. Em suas reflexões acerca do tema, ele diz haver:

• Frustração: o impulso que não pode ser satisfeito.

• Proibição: os limites estipulados pelas instituições.

• Privação: o estado que resulta da proibição.

Segundo Freud, as proibições culturais são geralmente aceitas na mesma medida em que as coerções
são estabelecidas. A imposição cultural permite, de um lado, a identificação do indivíduo com o coletivo e,
de outro, a repressão, no sentido de reprimir os impulsos individuais. As práticas culturais, realizadas pela
continuidade dos usos, dos costumes ou das tradições, são sempre difundidas pelo processo de socialização,
isto é, pelo processo de transmissão dos símbolos, das ideias e, principalmente, das tecnologias.

Podemos agora iniciar a análise das concepções de Marcuse em relação à obra de Freud. A cultura é
o parâmetro para as realizações humanas, sejam elas de caráter material ou imaterial, incluindo‑se aí as
realizações dos mais variados campos, como as científicas, as artísticas, as tecnológicas e as da produção
de bens. A estrutura cultural, portanto, é a expressão dos valores que permeiam determinada sociedade.
São esses valores que impulsionam o fazer ou o não fazer das pessoas, isto é, que as estimulam a só
realizar aquilo que tem valor do ponto de vista coletivo.

Segundo Marcuse (2015a), as categorias por ele estudadas e investigadas em Eros e Civilização
pertencem à esfera da psicologia por um único motivo: elas se converteram em categorias políticas.
A separação clássica e tradicional entre psicologia de um lado e política ou filosofia política de outro
não faz mais sentido, porque a condição do homem na sociedade configurada pelo desenvolvimento
industrial tornou os processos psíquicos cada vez mais concentrados na função do indivíduo no Estado.

Dito de outra maneira: as angústias, que se concentravam no interior da psique individual, passou
para o todo, para a sociedade. De acordo com Marcuse, a cura das patologias psíquicas individuais
envolve a cura da desordem social. A configuração social organizada pela produção industrial capitalista
85
Unidade III

não só ocasiona uma esmagadora e imensa desordem social como também projeta no interior de cada
um a desorganização de ordem psicológica que causa uma série de frustrações e angústias individuais.

Lembrete

A sociedade capitalista configura‑se estruturalmente por duas classes


sociais: os capitalistas, que detêm os meios de produção, e os operários, que
possuem somente a mão de obra.

Marcuse diz haver a construção de uma estrutura cultural que pode ser entendida como totalitária
mesmo sem a presença de um Estado totalitário. Mas o que isso significa? A resposta está na análise de
Marcuse da produção capitalista.

De início, o autor faz contundentes críticas à civilização ocidental pela glorificação do herói, dos
sacrifícios que as pessoas fazem na vida para conquistar isto ou aquilo, pela cidade, pelo Estado, pela
nação e pela pátria. No entanto, segundo Marcuse, a civilização ocidental nunca se perguntou se tais
sacrifícios valem a pena, se tais sacrifícios são dignos de ser vividos.

O que efetivamente há na sociedade capitalista é uma série de contradições que, de uma forma ou
de outra, não são percebidas pelas pessoas, ou melhor, pela massa. Das contradições que são verdadeiros
paradoxos, destaca‑se de imediato a perpetuação da cada vez mais obsoleta necessidade de trabalho em
tempo integral. Essa perpetuação implica um crescente desperdício de recursos na criação de empregos
e serviços cada vez mais desnecessários.

Cabe considerar que a criação desses empregos tem um limite. Chegará o momento em que o sistema
não a comportará mais. O progresso tecnológico, por si mesmo, é imprescindível para a manutenção da
sociedade do modo como ela está configurada. Portanto, essa é uma sociedade que provoca necessidades
antagônicas à própria organização social do trabalho.

Ao associar a perpetuação do trabalho em tempo integral e o desenvolvimento tecnológico, Marcuse


mostra que há um ambiente muito prejudicial para a convivência humana na configuração sociocultural
capitalista. Quanto mais se desenvolvem tecnologias para o sistema produtivo, menor é o tempo de
trabalho social necessário para satisfazer as demandas da produção.

Como consequência do declínio do tempo de trabalho social, surge um vácuo, que tem de ser
preenchido por atividades improdutivas. Ou seja, uma enorme quantidade de trabalho realizado torna‑se
desnecessária, supérflua e de custo muito alto. É um trabalho que só tem significado, segundo Marcuse,
para preencher o tempo.

O limite dessa situação é atingido quando a mais‑valia criada pelo trabalho produtivo deixa de ser
suficiente para pagar o trabalho não produtivo. A contínua redução da mão de obra vai obrigar a mudar a
configuração sociocultural, pois o sistema de produção terá que criar empregos sem trabalho, terá que criar
necessidades que ultrapassem os limites impostos pelo mercado e que talvez sejam incompatíveis com ele.
86
MATERIALISMO E MARXISMO

A sociedade afluente, na análise de Marcuse, é aquela que está se preparando para tais transformações.
De acordo com o Dicionário do Pensamento Social do Século XX:

Sociedade afluente: sociedade em que existe suficiente riqueza para garantir


a contínua satisfação das necessidades básicas particularmente atendidas da
maioria da população (como alimento e vestuário), com o resultado de que
indivíduos empregam suas rendas disponíveis para satisfazer necessidades
efêmeras e insaciáveis, ao mesmo tempo que verbas insuficientes podem ser
dirigidas para a satisfação de necessidades publicamente assistidas (como
saúde e educação) (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996, p. 716).

A sociedade afluente, portanto, é aquela em que a produção de riqueza é tamanha que permite o
emprego do excesso para a satisfação de demandas que podem ser entendidas como necessidades de
luxo. São exatamente as sociedades afluentes que se preparam para (ou já praticam) o atendimento
de uma demanda do supérfluo.

Esse movimento se concretiza, por exemplo, em torno do mercado da beleza – ou melhor, do desejo
de beleza –, dos anseios de pertencimento a uma comunidade e da procura por maior contato com a
natureza ou pelo consumo de produtos o mais naturais possível. Nessas configurações socioculturais,
também se encontra com muita facilidade o enriquecimento do espírito por meio de inúmeras ações
voltadas para o desenvolvimento do “eu interior”, além da ideia da criação pela criação, o que em muito
ultrapassa os limites do mercado.

Segundo Marcuse, há algo de muito falso nessas práticas das sociedades afluentes. A falsidade a
que ele se refere consiste no fato de que as aspirações são transportadas para as atividades culturais, as
quais são administradas e patrocinadas pelos governos, ou então, pelas grandes empresas. Não há como
reconhecer nas proclamações presentes nas sociedades afluentes as posições de Eros e a transformação
de um contexto social repressivo num contexto social de liberdade e realização interior das pessoas.

Observação

Na mitologia grega, Eros é o deus do amor; na mitologia romana,


corresponde a Cupido. Eros, apaixonado por Psiquê, sua esposa, abandona‑a
por ela tê‑lo desobedecido. Posteriormente, pelo envolvimento de outros
deuses, a relação entre os dois se reata.

A análise de Marcuse mostra que as condições nas sociedades afluentes não são efetivamente de
libertação do homem de sua situação de opressão do sistema, de modo que se envolva numa vida pessoal
ou coletiva para as benesses do prazer, do amor. Muito pelo contrário, o que ocorre é o aumento de sua
submissão ao sistema. De acordo com o autor, o desenvolvimento das necessidades não econômicas,
que permitiria a ideia de abolição do trabalho, entra em conflito com a conveniência em manter a
necessidade de ganhar a vida.

87
Unidade III

Uma importante característica da sociedade afluente, além das já elencadas, é o predomínio do


capital financeiro, que, junto com o aumento da prestação de serviços e do conhecimento científico,
proporciona concentração de renda e, por conseguinte, contradição com as próprias forças produtivas
direcionadas pelo mercado. A sociedade afluente apresenta profundos paradoxos: de um lado, há riqueza
abundante; de outro, pobreza. A competição individual é estimulada, e os interesses econômicos não
facilitam a coesão social.

O conhecimento, em concomitância com a informação, permite que na sociedade afluente ocorra


a valorização do tecnológico e da técnica, como mercadorias que são disputadas no mercado, pois
em muito favorecem a produção, ou melhor, a automação do processo produtivo. Quanto maior a
possibilidade de determinado conhecimento científico ou tecnológico interferir de modo positivo
na produção de mercadorias – quanto maior a possibilidade de o conhecimento se transformar em
mercadoria –, maior é seu valor de mercado.

Desse modo, o que efetivamente se verifica é o predomínio da exploração do homem pelo homem, o
que se realiza pelo sistema que a tudo domina e a tudo submete. O predomínio de alguns sobre todos se
ampara no Estado e é mantido pela cultura, no sentido de que ela submete o homem e o torna passivo
diante do mundo cultural.

Segundo Marcuse, a teoria de Freud de que a civilização está fundamentada na subjugação dos
instintos humanos, na repressão dos impulsos, foi aceita como axiomática, como algo não questionável
por ser evidente ou, mais precisamente, como algo que não pode ser posto no campo da dúvida. Por
causa disso, não houve suficiente ponderação a respeitos dos benefícios desse sacrifício, isto é, se o
subjugar compensou.

Marcuse diz que o sacrifício compensou em várias esferas. O domínio da natureza permitiu um
avanço extraordinário na produção de bens, atendendo‑se assim às necessidades de um número cada
vez maior de pessoas. Não há dúvidas, porém, de que o preço pago pela civilização por essas conquistas
benéficas foi elevado: a prática cotidiana de uma cultura de sujeição.

O aspecto mais visível do processo cultural da civilização, de acordo com Marcuse, é a disciplina do
trabalho como ocupação integral – a dedicação em tempo total ao exercício profissional ou à preparação
para a execução de atividades profissionais. A cultura foi de tal modo impositiva que subjugou tudo ao
sistema de produção de bens.

Ainda que haja um polo positivo, como indicado antes, há também um polo negativo, a submissão de
todos ao processo cultural, à pressão da disciplina do trabalho. Marcuse diz que do sacrifício resultaram:

• a mecanização e, como consequência dela, a padronização da vida;

• o empobrecimento mental em todas as áreas;

• a crescente e avassaladora destrutividade do progresso.

88
MATERIALISMO E MARXISMO

Esses fatores, contudo, não puseram em dúvida o progresso trazido pela produtividade, não indicaram
qualquer senão em relação ao que foi conquistado. Em razão da ausência desse apontamento negativo,
a civilização continua a se submeter à prática cultural direcionada para a produtividade do sistema de
produção capitalista.

Se o progresso é cada vez maior, a ausência de liberdade também o é. O desenvolvimento de


tecnologias que ampliam em escala impressionante a vida das pessoas é paralelo ao estreitamento
dos limites da liberdade para que cada um se dedique a suas aspirações. Verifica‑se, então, ausência de
liberdade nas decisões pessoais, pois estas são sempre resultado de um processo de imposição cultural,
processo que determina o que o indivíduo deve fazer para satisfazer as necessidades criadas pelo sistema
que o envolve.

Nesse contexto, diz Marcuse, é fundamental reabrir a questão apontada por Freud acerca da
relação entre civilização e repressão. A civilização, particularmente a ocidental, foi e é repressora;
a cultura produzida é a forma de reprimir os impulsos humanos. Com base na teoria freudiana,
na obra Eros e Civilização Marcuse examina a ideia de uma civilização não repressora. No início
dessa obra, o autor faz referência negativa ao que ele denomina de revisionismo neofreudiano,
pois de maneira geral as posições revisionistas em nada contribuíram para o desenvolvimento das
concepções elaboradas por Freud.

De acordo com Marcuse, seu objetivo não é abordar as construções teóricas freudianas sobre o que
é e como é a psicanálise, não é examinar o conteúdo psicanalítico, mas propor interpretações de ordem
filosófica. Desse modo, sua investigação pretende começar e terminar em conceituações filosóficas, a
fim de elaborar um conjunto de interpretações que partam do indivíduo em direção ao coletivo. Marcuse
afirma ser importante passar o que Freud empreendeu do ponto de vista individual para a história da
humanidade ou, mais precisamente, para as análises sociológicas, com o intuito de compreender a
sociedade capitalista.

Como vimos, Freud diz que a história do homem é a história de sua própria repressão, a história da
construção da cultura, que reprime seus impulsos naturais. No entanto, a repressão exercida pela cultura
é, paradoxalmente, sua própria condição de sobrevivência e, mais do que isso, sua própria condição de
desenvolvimento e progresso.

Para melhor entender a concepção de Freud, consideremos o significado do princípio do prazer e do


princípio de realidade. Segundo o autor, o princípio de realidade sempre supera o princípio do prazer; a
realidade sempre se apresenta de uma forma que sufoca o princípio do prazer. Contudo, há algo que
a realidade não consegue sufocar, que é a fantasia. Esta permanece no campo do prazer e não alcança a
realidade, sendo sempre fantasia.

Pelo predomínio do princípio de realidade, verifica‑se que a realidade está unida à razão,
à racionalidade do mundo, à racionalidade da vida. O prazer e a fantasia, portanto, são afastados.
A repressão dos impulsos naturais é a construção das práticas culturais que se estabelecem de forma
racional; é a elaboração da capacidade dessas práticas para alterar a realidade de acordo com o que é
útil; é a conduta direcionada pelo pragmático, pelo que funciona.
89
Unidade III

Como consequência do pragmatismo, altera‑se a realidade, alteração que deixa de pertencer ao


indivíduo e passa para o coletivo, para a sociedade, pelo fato de a realidade se materializar em
instituições sociais. O sistema criado mostra para cada indivíduo que o princípio de realidade é a
realidade construída pela lei e pela ordem; mais ainda, transmite esse princípio, de geração para
geração, pelo processo de socialização.

Marcuse diz que a civilização não põe fim à repressão; em vez disso, aumenta‑a muito. A restrição
da satisfação dos instintos por parte da sociedade ocorre pela substituição do prazer pela disciplina
do trabalho. Verifica‑se que há efetivamente a criação e o desenvolvimento do aparelho mental com
objetivos repressivos.

Para um bom entendimento das noções de princípio do prazer e princípio de realidade, cabe
apresentar as camadas da estrutura mental. Essas camadas trazem todas as características que, de modo
geral, permitem a compreensão do comportamento individual e do comportamento social. Freud fala
em três camadas: id, ego e superego.

O id é a camada fundamental mais antiga, e também a maior. É o domínio do inconsciente, dos


instintos primários. Portanto, é uma camada que está isenta das formas que constituem o indivíduo
consciente e social. O id ignora os valores, o bem e o mal, a moralidade. O único foco dele é a satisfação
do prazer pelo próprio princípio do prazer.

O ego corresponde à mediação entre o id e o mundo externo. Em consequência dessa mediação, a


ocupação do ego é representar o mundo externo para o id e, ao mesmo tempo, exercer a proteção do
indivíduo, pelo fato de o id ter completo desprezo pela força superior da realidade. É possível dizer que
a principal função do ego é coordenar, alterar, organizar e controlar os impulsos instintivos do id. O ego
tira o id de contexto, ou melhor, de cena – tira o prazer e põe o princípio de realidade.

O superego recebe uma enorme quantidade de influências sociais e culturais, que são aceitas
até que se consolidem no poderoso representante da moralidade estabelecida pela sociedade. As
restrições externas que primeiro se internalizam são as paternas, e depois as das demais entidades
sociais. É por consequência dessa passagem de forças externas para o superego que surge o
sentimento de culpabilidade.

Pode‑se dizer que o princípio de realidade se define e se firma através de uma profunda contração
do ego consciente. Por causa dessa contração, o desenvolvimento autônomo dos instintos é congelado
e, em razão disso, o indivíduo se pune e é punido por feitos que há muito já foram anulados. O superego
impõe não só a realidade presente, mas também a realidade passada.

Com o desenvolvimento da humanidade, o progresso da civilização e a evolução do indivíduo, a


unidade formada por liberdade e necessidade fica submersa na aceitação da não liberdade. Por conta
da racionalização da conduta individual, a própria memória fica submetida ao princípio de realidade.

Em todos os estágios da civilização, sempre houve dominação, com maior ou menor grau de
intensidade. A civilização está marcada pelo domínio do homem sobre o homem, seja esse domínio
90
MATERIALISMO E MARXISMO

realizado às claras ou camuflado de mil maneiras. O princípio do prazer é destronado não só porque
se opõe ao desenvolvimento e ao progresso da civilização, mas principalmente porque se opõe à
dominação e ao trabalho.

O princípio do prazer é contrário à disciplina dos horários e rotinas de trabalho, principalmente do


trabalho produtivo, conforme definido pelo sistema de produção de mercadorias. Pelo conceito que
Marcuse denomina de princípio de desempenho, é possível compreender melhor o motivo pelo qual o
princípio do prazer foi posto à margem.

O princípio de desempenho é a marca de uma sociedade cuja estrutura se conforma ao desempenho


econômico de seus membros – de uma organização social que propicia a dominação crescente pelos
processos racionalizados, em que os interesses de dominação e os interesses do todo são perfeitamente
compatíveis. Pelo princípio de desempenho, verifica‑se que as pessoas trabalham não para satisfazer
suas necessidades, mas para atender às funções preestabelecidas pelo sistema produtivo. O trabalho é
uma alienação no sentido mais próprio do termo.

As atividades desenvolvidas são penosas e árduas, pois são impostas muitas restrições ao prazer.
O trabalho realizado não corresponde às faculdades individuais e, muito menos, aos próprios desejos.
Desse modo, as pessoas passam a vida fazendo atividades alienadas. Por ser assim colocado no interior
do sistema, ocorre um paradoxo que o indivíduo não percebe: ele vive de tal maneira que não desconfia
estar vivendo livremente sua própria repressão.

Essa situação se firma cada vez mais porque as pessoas sentem que, sendo produtivas ao todo,
ao sistema, podem desfrutar de certos benefícios proclamados como recompensas sociais. Conforme
Marcuse, o conflito entre o id e a cultura desenrola‑se no desenvolvimento da dominação, isto é, o
corpo e a mente tornam‑se instrumentos de trabalho, mas trabalho alienado.

Evidentemente, Marcuse considera o trabalho uma necessidade não só individual, mas também
social, uma vez que é por meio dele que ocorre a produção de bens necessários para a sobrevivência
de todos. A crítica direciona‑se ao trabalho alienado, isto é, ao trabalho imposto como regra para o
desempenho econômico.

A civilização pode ser entendida como o processo de disciplina para o trabalho, com seu tempo
determinado. Pelo princípio de desempenho, a civilização é sempre posta no campo do trabalho
produtivo, explorado pelo sistema de dominação. Há oposição entre o trabalho agradável e o
trabalho penoso. Este é imposto de tal forma que não causa nenhuma satisfação ao indivíduo.

As técnicas elaboradas para a execução do trabalho, bem como a racionalidade tecnológica, propiciam
o estabelecimento de um padrão mental. Esse padrão mental permite a formação e a execução de
comportamentos socioculturais para o desenvolvimento da civilização. Há, portanto, uma correspondência
entre o desempenho da produção e a civilização. Em outras palavras, são a mesma coisa.

No entanto, Marcuse apresenta certo alento para a questão do trabalho alienado, isto é, indica
um lado que é por ele considerado positivo, pois os estudos da alienação apontam claramente para
91
Unidade III

a situação de insatisfação e de infelicidade. Haveria, assim, um limite para a repressão, ou melhor,


para a dominação:

Os aspectos positivos da alienação progressiva mostram‑se em seguida.


As energias humanas que sustentavam o princípio de desempenho
tornam‑se cada vez mais dispensáveis. A automatização da necessidade e
da superficialidade, do trabalho e do entretenimento, impede a percepção
das potencialidades do indivíduo nesse domínio. Repele a catexe libidinal
(MARCUSE, 2015a, p. 79).

Essa observação de Marcuse está perfeitamente de acordo com a possibilidade de uma reconsideração
da teoria de Freud, inferindo‑se daí que a civilização, ou seja, a cultura, não é necessariamente contrária
ao princípio do prazer.

Saiba mais

As seguintes obras podem contribuir para sua formação:

GOMBRICH, E. H. A história da arte. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de


Janeiro: LTC, 2000.

MARCUSE, H. O homem unidimensional: estudos da ideologia da


sociedade industrial avançada. Tradução: Robespierre de Oliveira, Deborah
Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: Edipro, 2015b.

Para melhor compreender a hipótese de Marcuse em relação a uma cultura/civilização não repressora,
que funcione como condição de desenvolvimento e de libertação da dominação, vale retomar dois
pontos fundamentais da teoria freudiana:

• a civilização enquanto inibição metódica dos instintos primários;

• a existência de dois modos de organização instintiva:

— inibição da sexualidade;

— inibição dos instintos destrutivos.

Observemos o seguinte comentário de Marcuse em relação à possibilidade de uma configuração


sociocultural não repressora:

Segundo Freud, a civilização começa com a inibição metódica dos instintos


primários. Podem‑se distinguir dois modos principais de organização
instintiva: a) a inibição da sexualidade, resultando em duradouras e
92
MATERIALISMO E MARXISMO

crescentes relações grupais; e b) a inibição dos instintos destrutivos,


conduzindo ao domínio do homem e da natureza, à moralidade individual
e social. Como a combinação dessas duas forças sustenta cada vez mais
efetivamente a vida de grupos sucessivamente maiores, Eros leva a melhor
sobre seu adversário; a utilização social obriga o instinto de morte a servir
os instintos vitais (MARCUSE, 2015a, p. 81).

Segundo o autor, já se verificam na complexa realidade sociocultural da sociedade afluente, na


manutenção da estrutura social dominada pelo princípio de desempenho, duas importantes modificações:

• O progresso da civilização alcançou um estágio de produtividade em que a energia consumida no


trabalho alienado pode ser bastante reduzida.

• A filosofia do mundo ocidental, que desenvolveu o conceito de razão concomitantemente aos


conceitos de dominação e desempenho, de modo paradoxal desenvolveu também uma forma
bem superior de razão, isto é, a razão que permite elaborar a negação daquela racionalidade
produtiva e estabelecer uma visão marcada por receptividade, contemplação e mesmo fruição do
prazer, isto é, de uma vida menos opressiva.

Essas modificações permitem falar na construção de uma sociedade menos opressora, e portanto
menos dominadora, no sentido de deixar em liberdade os indivíduos:

Assim, a hipótese de uma civilização não repressiva tem de ser teoricamente


validada, primeiro, demonstrando‑se a possibilidade de um desenvolvimento
não repressivo da libido, nas condições de civilização amadurecida. A direção
de tal desenvolvimento é indicada por aquelas forças mentais que, de acordo
com Freud, conservam‑se essencialmente livres do princípio de realidade e
transmitem essa liberdade ao mundo de consciência madura (MARCUSE,
2015a, p. 107).

Ao prosseguir em sua análise, Marcuse retoma as considerações referentes ao domínio que a


sociedade exerce sobre o indivíduo, que não é percebido como tal. Ele diz que é possível construir uma
civilização não opressora a partir de uma reformulação do princípio de realidade e, por consequência,
do princípio de desempenho, reduzindo‑se o trabalho alienado e os fatores repressivos impostos aos
princípios do prazer.

8.2 Walter Benjamin

Walter Benjamin (1892‑1940) foi um sociólogo e filósofo vinculado aos estudos desenvolvidos pela
Escola de Frankfurt. Sua obra se volta muito mais para as concepções estéticas, e é considerada um
referencial para os estudos contemporâneos da arte, do conhecimento e da manifestação de percepção
da realidade social e da realidade natural.

93
Unidade III

Para as análises referentes às investigações da filosofia crítica, particularmente da história, o texto


que de modo geral é visto como o mais significativo é o ensaio “Teses sobre a Filosofia da História”.
Inicialmente, cabe considerar o que significa filosofia da história. Pode‑se identificar como objeto
dessa disciplina o conhecimento, a compreensão e as interpretações do desenvolvimento da história da
humanidade, na perspectiva mais universal possível.

Ao longo da história da filosofia, alguns pensadores elaboraram concepções que podem ser designadas
como filosofia da história. Entre eles, destacam‑se Voltaire, Schopenhauer, Comte e Hegel. A filosofia da
história é uma reflexão que tem como pressuposto argumentativo as condições de desenvolvimento
da humanidade – o desenvolvimento compreendido como positivo (na obra de Comte, por exemplo) ou
o desenvolvimento compreendido como negativo (na obra de Schopenhauer, por exemplo).

A concepção filosófica da história de Walter Benjamim está no limite entre certas angústias políticas
ou mesmo existenciais e as críticas que ele formula em relação à visão positivista da história. É possível
retirar do próprio texto do autor a ideia de que ele estava mais influenciado pelas análises do materialismo
histórico do que por qualquer outra concepção filosófica da história.

A perspectiva materialista apresenta‑se a Benjamin como mais adequada para o conhecimento


e a compreensão da realidade social do que aquelas que, de modo direto ou indireto, defendem a
positividade da técnica como instrumento de dominação, por ele denominadas de historicismo. No
texto em estudo, Benjamin também critica a social‑democracia, que para ele não apresenta nenhum
avanço na compreensão da história, seja ela da Alemanha ou do mundo.

Entre as ideias que fundamentam as teses desenvolvidas por ele, podemos citar:

• a defesa da concepção materialista histórica;

• a compreensão do progresso como efeito do desenvolvimento da técnica empregada pelo capitalismo;

• a crítica às considerações historicistas e positivistas do progresso.

Acerca da luta de classes, Benjamin observa:

A luta de classes, que um historiador formado na escola de Marx nunca


perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais
nada existe de refinado e espiritual. Mas na luta de classes esses aspectos
refinados e espirituais apresentam‑se de modo completamente diferente
do de um despojo que caberá ao vencedor; aqui, manifestam‑se como
confiança, como coragem, como amor, como astúcia, como inabalável
firmeza, vivendo e agindo retrospectivamente em toda a extensão do tempo
(BENJAMIN, 2012, p. 132).

Em várias passagens das “Teses sobre a Filosofia da História”, o autor se vale de metáforas e de outros
recursos poéticos. Não raro, apresenta aspectos pictóricos – como quando alude ao heliotropismo,
94
MATERIALISMO E MARXISMO

comparando o movimento das flores em direção ao sol com o movimento do passado em direção ao sol
que se levanta no céu da história.

Ainda quanto aos recursos linguísticos que Benjamin utiliza para mostrar a superioridade analítica
do materialismo histórico em relação à concepção historiográfica positivista, pode‑se recorrer à imagem
que ele constrói para falar do passado e do presente:

Em cada época é preciso tentar arrancar mais uma vez a tradição ao


conformismo que quer apoderar‑se dela. O messias não vem apenas como
redentor, ele vem como vencedor do anticristo. O dom de atiçar através
do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo
perfeitamente convencido de que diante do inimigo, e no caso de este
vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não
tem cessado de vencer (BENJAMIN, 2012, p. 133).

O não reconhecimento do passado no presente é, portanto, algo que escapou à história,


ocasionando sérios prejuízos, tanto teóricos quanto práticos, particularmente no que diz respeito
às ações políticas, pois desconsiderar o aspecto temporal dos fatos é o mesmo que desqualificá‑los
como construções sociais.

De acordo com Benjamin, a conduta de análise do materialismo histórico tem a responsabilidade


não só de reter os fatos passados, mas principalmente de estabelecer as imagens desse mesmo passado
com o todo da história, para evitar ao máximo o perigo da apropriação da classe dominante:

Articular historicamente o passado não significa conhecê‑lo “tal como ele foi
efetivamente”. É muito mais apropriar‑se de uma recordação que brilha num
momento de perigo. Cabe ao materialismo histórico reter firmemente a imagem
do passado tal como ela se impõe, sem que ele saiba, ao sujeito histórico no
momento do perigo. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como
aqueles que a recebem. Para ela, como para eles, o perigo está em entregá‑los
como instrumento à classe dominante (BENJAMIN, 2012, p. 133).

Podemos nos aprofundar nas críticas que Benjamin faz às considerações historicistas, as quais
direta ou indiretamente comungam com os vitoriosos, isto é, com os defensores do progresso contínuo
sustentado na tecnologia aplicada pelo processo industrial de produção capitalista. O autor recorre a
uma passagem de Fustel de Coulanges para demarcar de forma precisa o historicismo, corrente que
busca apagar a linha temporal dos fatos:

Fustel de Coulanges recomenda ao historiador que quer reviver dada época


que se esqueça de tudo aquilo que se passou em seguida. É impossível
caracterizar melhor o método que o materialismo histórico derrotou. É o
método da entropia. Nasceu da preguiça do coração, da acedia, que desiste
de dominar a verdadeira imagem histórica, a que brilha de modo fugidio
(BENJAMIN, 2012, p. 134).
95
Unidade III

Observação

Fustel de Coulanges (1830‑1889) foi um historiador francês, considerado


positivista por suas concepções metodológicas. Sua obra mais importante
e influente é A Cidade Antiga, referência na historiografia das sociedades
arcaicas ou ágrafas.

Benjamin diz que fazer cortes na história gera uma percepção de falsidade e, mais ainda, de espanto
diante da realidade que se apresenta como atual. Em relação a esse espanto, o autor menciona os
horrores do fascismo:

A possibilidade de sucesso do fascismo reside em última análise no fato de


seus adversários o combaterem em nome do progresso, entendido como
uma norma histórica. Não é de modo algum filosófico espantarmo‑nos
pelo fato de serem “ainda” possíveis no século XX os acontecimentos que
vivemos. Um tal espanto não tem lugar no início de um saber, a menos que
esse saber seja o que reconhece como insustentável a concepção da história
de que nasce uma tal surpresa (BENJAMIN, 2012, p. 135).

A crítica formulada por Benjamin em relação ao desenvolvimento da técnica está diretamente ligada
ao que se concebia (e se concebe) acerca do domínio da natureza. A tecnologia do sistema de produção
industrial é, em última instância, o domínio da natureza, não um conhecimento referente às condições
socioculturais das pessoas: “Só é capaz de considerar os progressos no domínio sobre a natureza, não as
regressões da sociedade. Já prefigura, assim, os traços dessa tecnocracia que mais tarde haveremos de
reencontrar no fascismo” (BENJAMIN, 2012, p. 137).

Pela leitura das teses de Benjamin, é possível dizer que há um sujeito histórico, sujeito esse apontado
por Marx, no sentido de que o sujeito histórico é a classe submetida à opressão e, ao mesmo tempo, a
classe combatente que leva até o fim a luta de classes, a fim de alcançar a libertação.

Observação

Deve‑se ressaltar que a obra de Benjamin, apesar de concentrar‑se


na análise da linguagem e da arte, preocupa‑se sempre em mostrar
como o domínio histórico dos meios de produção em massa influencia
profundamente os elementos analisados.

As investigações de Benjamin apontam também para a teoria e a prática política da social‑democracia


alemã, que entendeu o progresso como o progresso da humanidade – um progresso ilimitado pelo
avanço industrial e, por ser assim, em contínuo desenvolvimento. O autor diz que houve um equívoco
enorme por parte das ações políticas apoiadas nessas ideias.

96
MATERIALISMO E MARXISMO

O materialismo histórico, segundo Benjamin, tem como pressuposto de análise a noção de que o
presente não é mera passagem, mas o momento fixo no aqui e agora, isto é, que se mantém imóvel no
tempo. O materialismo histórico, portanto, faz do passado um momento único e não estabelece relações
causais simplistas:

Aquele que professa o materialismo histórico não pode renunciar à ideia


de um presente que não é passagem, mas que se mantém imóvel no limiar
do tempo. Essa ideia define precisamente o presente no qual ele escreve a
história para si próprio. O historicista compõe a imagem “eterna” do passado,
o teórico do materialismo histórico faz desse passado uma experiência
única em seu gênero. Deixa aos outros o trabalho de se esgotar no bordel
do historicismo com a prostituta “Era uma vez”. Mantém‑se senhor de
suas forças, suficientemente viril para fazer saltar o conteúdo da história
(BENJAMIN, 2012, p. 139).

A ideia do presente é o referencial para as análises que tem o materialismo como concepção da
história. Enquanto o historicismo pretende a história universal, o materialismo histórico se distancia de
forma brutal dessa pretensão, pois o que falta ao historicismo é o conjunto teórico, ao passo que para
o materialismo o que vale é exatamente o esquema teórico.

Desse modo, o materialismo histórico apreende os fatos tais como são efetivamente, isto é, como
produtos e produtores da própria história da humanidade, com as condições materiais presentes em
cada momento. Benjamin aponta o significado do objeto histórico na perspectiva do materialismo: é
um objeto que se apresenta no devir dos acontecimentos, como verdadeira oportunidade revolucionária
para “combater o passado oprimido”.

Assim, em cada momento histórico analisado pela perspectiva metodológica do materialismo


histórico surge a oportunidade de compreender o significado do tempo – do tempo considerado em
sua permanência, não em seus cortes epistemológicos, como faz o historiador positivista. Enquanto o
positivismo se concentra na fragmentação dos acontecimentos, pois o que lhe importa é o registro parcial
da realidade dos fatos, o materialismo histórico compreende a história num contínuo transformador –
um contínuo sem fragmentação do tempo.

Na oposição conceitual e metodológica entre as concepções historicista e materialista dialética,


sobressai a seguinte condição: a razão instrumental apropria‑se de tal modo da configuração sociocultural
que propicia a adesão das pessoas ao projeto de progresso; no entanto, esse projeto pode muito bem ser
apresentado pela forma de dominação do poder, como no fascismo.

A concepção historicista, que fragmenta o real histórico e mostra a realidade por parcelas do
passado, sem estabelecer relações satisfatórias com o presente, e muito menos com o futuro, é o
vazio da própria história.

Nos estudos históricos na perspectiva do materialismo, o passado é entendido como resultado de


uma experiência vivenciada e construída, que projeta suas consequências no presente, e este no futuro,
97
Unidade III

mas não de modo mecanicista. A pressuposição metodológica dialética, que sustenta as análises do
materialismo, permite compreender os contrários e as superações, ao mesmo tempo que retém tudo
aquilo que ainda se mantém na contradição.

No fragmento a seguir, também das “Teses sobre a Filosofia da História”, Benjamin aborda a diferença
entre a prática da metodologia historicista e a prática da metodologia dialética materialista:

O historicismo contenta‑se em estabelecer um laço causal entre os diversos


momentos da história. Mas nenhuma realidade de fato é nunca, desde o
início, a título de causa, um fato já histórico. Torna‑se tal, a título póstumo,
através de acontecimentos que podem ser separados dela por milênios.
O historiador que tem isso em conta deixa de engrenar a sequência dos
acontecimentos como as contas de um rosário. Ele abarca a configuração na
qual sua época entrou em contato com uma época anterior perfeitamente
determinada. Funda assim um conceito do presente como “agora”, no qual
penetram estilhaços messiânicos (BENJAMIN, 2012, p. 141).

Benjamin critica o historicismo por fragmentar os fatos, procedimento que leva à desconsideração
do todo, isto é, do próprio passado. Da mesma maneira, o positivismo fraciona os fatos e não estabelece
nenhuma relação entre eles. O máximo que o positivismo faz, segundo o autor, é propor uma relação
mecanicista causal entre os fatos, não uma relação dialética.

Essas duas formas de escrever a história da humanidade em nada contribuem para mostrar o
significado do poder político e do poder econômico. Por não apresentarem as faces do poder, tanto
o historicismo quanto o positivismo, de modo direto ou indireto, favorecem o processo de dominação.

Qualquer leitura que se faça do texto de Benjamin não pode deixar de lado as reflexões que ele
desenvolveu sobre o significado da arte, as quais enriquecem as considerações sobre o significado da
filosofia crítica da história que ele formulou.

Foi, desde sempre, uma das mais importantes tarefas da arte criar uma
procura para cuja satisfação plena ainda não chegou a hora. A história de
qualquer forma de arte apresenta épocas críticas, em que determinada
forma aspira a obter efeitos que só mais tarde, perante um novo padrão da
técnica, podem ser facilmente obtidos, ou seja, uma nova forma de arte. As
extravagâncias e excessos da arte que se manifestam principalmente em
períodos ditos de decadência surgem realmente de suas energias históricas
mais ricas (BENJAMIN, 2012, p. 87).

Para reter o significado de arte, é imperiosa a definição do que é arte. Pode‑se iniciar pelo que ela
representa em termos de conhecimento do mundo, seja o mundo social, constituído pelas inúmeras e
multifacetadas relações sociais, seja o mundo natural, que em muito encanta nos momentos em que
observamos a natureza.

98
MATERIALISMO E MARXISMO

Das formas de conhecer o mundo, a arte é uma das mais antigas. Assim como as concepções de
senso comum e as de inspiração religiosa, as manifestações de representação da realidade sempre se
fizeram presentes, formando um conjunto com os demais modos de apreensão e interpretação.

A arte é, antes de tudo, a representação de uma configuração sociocultural bem determinada. Ao


longo da história, cada sociedade apresentou uma forma particular de representar a realidade. Em
cada momento histórico, portanto, verifica‑se uma consideração diferente do que é arte e de como
se expressa a representação em termos de arte. Benjamin diz que a tarefa da arte de criar é algo que
ainda não atingiu o ápice. Pode‑se acrescentar que a função de conhecimento da arte talvez nunca
chegue ao fim.

O texto em análise também trata dos momentos de decadência. Quando acontece a decadência
da ética, a estética – qualquer estética – é valorizada. A decadência atinge não só a arte, mas todas as
formas de conhecimento, como a ciência, a filosofia e a religião.

As formas de conhecimento são sempre postas num campo de pouca importância, o que favorece a
manipulação ideológica. O aprofundamento do significado de manipulação ideológica atualmente pode
ser identificado, por exemplo, na valorização do entretenimento a qualquer custo e no gasto de energia
com coisas pouco significativas para a vida social.

Resumo

Nesta unidade, tratamos de três pensadores da Escola de Frankfurt:


Adorno, Marcuse e Benjamin. Na obra de Theodor Adorno, vimos o mito
como parâmetro para a análise do significado do controle social exercido
pelas estruturas sociais capitalistas. A filosofia ocidental propiciou o
abandono do pensamento mítico, passando a considerar as reflexões
racionais as únicas propícias para o conhecimento, a compreensão e a
interpretação do mundo, tanto o natural quanto o social.

Em seus escritos, Adorno teceu inúmeras críticas ao desenvolvimento


tecnológico promovido pelo sistema capitalista, o que levou à imposição
da razão técnica em detrimento da razão voltada para a humanização
das relações sociais. Ao mesmo tempo que havia uma dimensão social e
política na ciência, havia a construção de um conhecimento científico a
ser aplicado diretamente nos meios fabris. Desse modo, o conhecimento
científico foi direcionado para a exploração do trabalho, não para a
humanização da produção de bens.

O conhecimento científico, disposto para a produção industrial, abandona


por completo o sentido de conteúdo e assume o sentido de fórmula, de
instrumento. Não há mais preocupação com as relações causais, mas com
um saber que permita produzir mercadorias para satisfazer o mercado.
99
Unidade III

Quanto a Herbert Marcuse, podemos observar que as análises formuladas


em Eros e Civilização em muito contribuíram para a compreensão da obra
de Freud e para a expansão conceitual. O autor estabeleceu inter‑relações
entre o individual e o coletivo por meio das categorias psicanalíticas
elaboradas por Freud.

Segundo Marcuse, o progresso tecnológico por si mesmo é necessário


para a manutenção da sociedade. No entanto, as tecnologias propiciam
um enorme declínio na quantidade de trabalho produtivo. Com isso, o
preenchimento das horas vagas é efetuado com trabalhos desnecessários,
trabalhos que só tem um sentido: ocupar o tempo.

Com base nas reflexões de Marcuse, é possível dizer que as condições


das sociedades desenvolvidas não libertam efetivamente o homem de sua
situação de opressão. Muito pelo contrário: o envolvimento de sua vida
pessoal com a coletiva, isto é, com a produção, só faz aumentar ainda mais
a opressão que ele sofre.

O último pensador estudado foi Walter Benjamin, cuja obra se detém


na análise da linguagem e da arte. Aqui, o pensamento marcante da Escola
de Frankfurt se faz presente particularmente nas intensas críticas ao
significado da arte na produção capitalista.

Segundo Benjamin, no sistema capitalista, a arte e, por conseguinte,


as linguagens de comunicação estão voltadas para um único objetivo:
satisfazer as pessoas – ou melhor, as massas – por meio do consumo, de
maneira imediata e alienante. Desse modo, a arte está muito mais direcionada
para o entretenimento do que efetivamente para o desenvolvimento e a
divulgação de produções com sentido de apreensão estética da realidade.

Exercícios

Questão 1. Theodor Adorno foi um dos grandes teóricos vinculados à Escola de Frankfurt. Suas
contribuições ao marxismo contemporâneo foram fundamentais. Ele ficou conhecido como um marxista
científico, mas extremamente político. Sobre Adorno e seu pensamento, considere as seguintes afirmativas:

I – O marxismo pode se constituir como uma forma de investigar e conhecer a realidade.

II – O conhecimento científico não tem potencialidade de exercer influência e controle sobre os corpos.

III – O trabalho mais enfático de Adorno foi escrito em parceria com Horkheimer e pressupõe que
não existe relação entre o mito e a dominação de uma classe sobre outra.

100
MATERIALISMO E MARXISMO

IV – A dominação se relaciona ao modo de produção dos bens de consumo. Adorno se contrapõe à


vinculação dos bens produzidos pela indústria cultural aos bens de consumo.

V – O predomínio do conhecimento técnico e tecnológico sobre os valores humanistas viabilizou a


construção de um poder manipulador por parte das grandes corporações econômicas.

Estão corretas as afirmativas:

A) I e II.

B) I e V.

C) III e IV.

D) II e IV.

E) II e V.

Resposta correta: alternativa B.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: para Adorno, o marxismo se caracteriza por uma visão de mundo, pela análise econômica
e por uma forma científica de conhecimento da realidade.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: Adorno diz que o conhecimento científico facilita e sustenta o controle dos corpos.
Aquele que detém o conhecimento científico é o que consegue exercer esse controle.

III – Afirmativa incorreta.

Justificativa: Horkheimer e Adorno escreveram conjuntamente a obra Dialética do Esclarecimento.


Nela, os autores indicam haver correspondência entre a consolidação do mito, o trabalho e a dominação.

IV – Afirmativa incorreta.

Justificativa: os bens culturais, conforme Adorno, devem ser entendidos como bens de consumo
produzidos pela sociedade contemporânea. Assim, não é correta a suposta desvinculação entre bens
culturais e bens de consumo.

101
Unidade III

V – Afirmativa correta.

Justificativa: Adorno realizou uma sólida análise sobre técnica e tecnologia e mostrou que a junção
desses aspectos em favor dos grandes conglomerados financeiros confere a estes o poder de manipulação.

Questão 2. Leia o texto a seguir:

“Amala e Kamala, também conhecidas como as meninas‑lobo, foram duas crianças selvagens
encontradas na Índia no ano de 1920. A primeira delas tinha 1 ano e meio e faleceu um ano após o
resgate. Kamala, no entanto, já tinha 8 anos de idade, e viveu até 1929. Em 1920, o reverendo Singh
encontrou, numa caverna, duas crianças que viviam entre lobos. Suas idades presumíveis eram de 2 e
8 anos. Deram‑lhes os nomes de Amala e Kamala, respectivamente. Após encontrá‑las, Singh levou‑as
para o orfanato que mantinha na cidade de Midnapore. Foi lá que ele iniciou o penoso processo de
socialização das duas meninas‑lobo.

Elas não falavam, não sorriam, andavam de quatro, uivavam para a Lua e sua visão era melhor à
noite do que de dia. Amala, a mais jovem, morreu um ano após ser encontrada. Kamala viveu durante
oito anos na instituição que a acolheu, humanizando‑se lentamente. Ela necessitou de seis anos para
aprender a andar e, pouco antes de morrer, só tinha um vocabulário de cinquenta palavras.”

Disponível em: <http://www.oarquivo.com.br/variedades/curiosidades/2612‑amala‑e‑kamala‑a


‑historia‑das‑meninas‑lobo.html>. Acesso em: 24 jul. 2019.

Analisando a história apresentada com base no pensamento de Marcuse, podemos afirmar que:

A) As condutas de Amala e Kamala são inatas e instintivas e não guardam relação com a cultura em
que estavam inseridas.

B) Amala e Kamala não tinham valores éticos e estéticos, uma vez que não herdaram esses valores
dos pais, que as abandonaram.

C) As práticas sociais são fornecidas pela cultura. Portanto, Amala e Kamala agiam de acordo com a
cultura da qual se apropriaram.

D) As relações humanas não são influenciadas pela cultura – tanto é que, mesmo após a inserção
numa sociedade humana, Amala e Kamala não mudaram seus hábitos.

E) A cultura não impulsiona o fazer das pessoas. A adoção de atos é uma escolha individual, e Amala
e Kamala representam a nula influência da cultura em atos cotidianos.

Resolução desta questão na plataforma.

102
REFERÊNCIAS

Textuais

ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Tradução: Verlaine Freitas. São Paulo:
Unesp, 2015.

___. Textos escolhidos. Tradução: Zeljko Loparic et al. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores).

___. Três estudos sobre Hegel. Tradução: Ulisses Razzante Vaccari. São Paulo: Unesp, 2013.

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução: Guido


Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

ANDERSON, P. Considerações sobre o marxismo ocidental: nas trilhas do materialismo histórico.


Tradução: Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2004.

BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de
Janeiro: Zahar, 2005.

___. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Tradução: José Gradel. Rio de
Janeiro: Zahar, 2008.

BENJAMIN, W. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Tradução: Manuel Alberto, Maria Amélia Cruz
e Maria Luz Moita. Lisboa: Relógio D’Água, 2012.

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. Tradução: Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BRUNEL, P. (Org.). Dicionário de mitos literários. Tradução: Carlos Sussekind et al. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1997.

COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.

DUARTE, R. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução: Leandro Konder. 6. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

___. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução: B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010.

FREUD, S. O futuro de uma ilusão. In: ___. Obras completas. Tradução: Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014. v. 17, p. 231‑301.
103
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991.

GOMBRICH, E. H. A história da arte. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2000.

GRAMSCI, A. Textos selecionados. In: MONASTA, A. Antonio Gramsci. Tradução: Paolo Nosella. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010. p. 49‑137.

HALL, S. A identidade cultural na pós‑modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes
Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HARVEY, D. Para entender O capital, livro 1. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. Tradução: Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Unesp, 2015a.

___. Teoria crítica: uma documentação. Tradução: Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2015b.

JINKINGS, I.; DORIA, K. (Org.). 1917: o ano que abalou o mundo. São Paulo: Boitempo, 2017.

KORSCH, K. Marxismo e filosofia. Tradução: José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.

LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Tradução: Therezinha


Monteiro Deutsch. Barueri: Manole, 2005.

LÖWY, M. A evolução política de Lukács (1909‑1929). São Paulo: Cortez, 1998.

LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Tradução: Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARCUSE, H. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução:


Álvaro Cabral. 8. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2015a.

___. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Tradução:


Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: Edipro, 2015b.

MARX, K. O capital. Tradução: Reginaldo Sant’anna. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. 2 v.

___. Manuscritos econômico‑filosóficos. Tradução: Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução: Luis Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.

NOVAES, M. Do czarismo ao comunismo: as revoluções russas do início do século XX. São Paulo: Três
Estrelas, 2017.

104
OUTHWAITE, W.; BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento social do século XX. Tradução: Álvaro
Cabral e Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

SLATER, P. Origem e significado da Escola de Frankfurt: uma perspectiva marxista. Tradução: Alberto
Oliva. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução: Regis Barbosa


e Karen Elsabe Barbosa. 3. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. 2 v.

WIGGERSHAUS, R. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política.


Tradução: Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

105
106
107
108
Informações:
www.sepi.unip.br ou 0800 010 9000

Você também pode gostar