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Filosofia da Religião

Autores: Prof. Wellington Lago


Prof. Renato Bulcão de Moraes
Prof. Vanderlei da Silva
Colaboradora: Profa. Tânia Sandroni
Professores conteudistas: Wellington Lago / Renato Bulcão de Moraes /
Vanderlei da Silva

Wellington Lago apresentou uma tese de doutorado em Educação e História da


Cultura, sendo aprovado com louvor e distinção. Desde 2014,
Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Bandeirante publica regularmente no país e no exterior, em especial sobre
de São Paulo (2000) e em Teologia pela Universidade Presbiteriana humanidades digitais. Sua linha de pesquisa inclui a análise de
Mackenzie (2004). Licenciado em Filosofia, tem as seguintes textos através de processamento digital.
pós-graduações: Direito Público, com ênfase em Medicina Legal,
pela Instituição Toledo de Ensino (2012); Estado Constitucional Vanderlei da Silva
e Liberdade Religiosa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
(2016), pela Universidade de Oxford (2016) e pela Universidade Doutor em Educação pela Universidade de Sorocaba (2013) e
de Coimbra (2016); Direito Penal e Educação a Distância (EaD) mestre em Educação pela mesma instituição (2009). Especialista
pela Universidade Paulista (UNIP) (2016). Atualmente, está no em EaD pela UNIP (2017). Advogado pela Universidade de
Programa de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Sorocaba (2004). Especialista em Direito do Terceiro Setor
Presbiteriana Mackenzie. É professor-tutor de Filosofia e Direito pela Fundação Getulio Vargas (2005). Professor do curso de
da UNIP e é servidor público do Estado de São Paulo (Secretaria graduação em Serviço Social presencial e EaD (UNIP) e do curso
de Segurança Pública). É sacerdote de ordem religiosa na Igreja de pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas EaD (UNIP).
Presbiteriana do Brasil. Professor no curso de especialização em Gestão Ambiental e
Sustentabilidade da Universidade Federal de São Carlos. Gerente
Renato Bulcão de Moraes administrativo e financeiro do Serviço de Obras Sociais (Sorocaba).
Diretor de projetos do Lar Escola Monteiro Lobato. Conselheiro
Formado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e fiscal da Fundação Ubaldino do Amaral, da Vila dos Velhinhos
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). de Sorocaba e da Associação Protetora dos Insanos. Sócio do
Com mestrado em Comunicação pela Escola de Comunicações e escritório de advogados Ranuzzi & Silva, Vieira. Autor dos livros
Artes (ECA-USP), foi professor nessa escola até 2001. Em 2003, A participação da loja maçônica Perseverança III na educação
voltou à USP como pesquisador em EaD pela Escola do Futuro, escolar em Sorocaba e O terceiro setor e a escola. Participante
função em que permaneceu até 2007. No mesmo período, convidado do Fórum de Inovação Social e Ética Global, realizado
trabalhou em cinema e televisão, primeiro como editor, depois em 2014 e 2015 em Genebra, na Suíça, e em 2016 em Marrakech,
como produtor, e finalmente como diretor de marketing. Desde no Marrocos. Participante dos Prêmios América Latina Verde 2016,
2009, é professor da EaD da UNIP, e desde 2010 ensina também realizados em Guayaquil, no Equador. Embaixador dos Prêmios
nos cursos presenciais de Pedagogia e Filosofia. Em 2017, América Latina Verde no Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L177f Lago, Wellington.

Filosofia da Religião / Wellington Lago, Renato Bulcão de


Moraes, Vanderlei da Silva. – São Paulo: Editora Sol, 2020.

204 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Filosofia da religião. 2. Religião na idade média. 3. Religião


na idade moderna. I. Moraes, Renato Bulcão de. II. Silva, Vanderlei
da III. Título.

CDU 291.1

U505.68 – 20

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Unip Interativa – EaD

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Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Ricardo Duarte
Aline Ricciardi
Sumário
Filosofia da Religião

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 CONCEITO DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO.................................................................................................... 11
1.1 Elementos das religiões mundiais.................................................................................................. 15
1.2 A relação do homem com o divino................................................................................................ 18
2 PRIMEIROS ESTÁGIOS DA RELIGIOSIDADE............................................................................................ 29
2.1 Elementos das religiões egípcias..................................................................................................... 31
2.1.1 O mito de Osíris........................................................................................................................................ 34
2.1.2 O significado religioso do mito de Osíris........................................................................................ 34
2.2 Aquenáton e o monoteísmo............................................................................................................. 36
3 AS RELIGIÕES AFRICANAS............................................................................................................................ 40
3.1 Candomblé............................................................................................................................................... 44
3.2 Umbanda.................................................................................................................................................. 47
3.3 Quimbanda............................................................................................................................................... 50
4 DO POLITEÍSMO AO MONOTEÍSMO........................................................................................................... 51
4.1 A importância da filosofia grega para a formação da teologia cristã............................. 54
4.2 Platão e o demiurgo............................................................................................................................. 57
4.3 Aspectos da mitologia grega............................................................................................................ 58
4.4 A religião das leis: o judaísmo.......................................................................................................... 63
4.5 A construção da religião muçulmana........................................................................................... 66

Unidade II
5 A RELIGIÃO NO MUNDO ROMANO........................................................................................................... 76
5.1 A convivência com os deuses........................................................................................................... 76
5.2 Elementos do cristianismo................................................................................................................ 84
6 A RELIGIÃO NA IDADE MÉDIA..................................................................................................................... 92
6.1 Constantino e o Concílio de Niceia................................................................................................ 92
6.2 Carlos Magno e a conversão em massa....................................................................................... 99
6.3 A expansão da Igreja Católica........................................................................................................102
6.4 A invenção do Diabo e do purgatório.........................................................................................107
6.5 A organização da Igreja Católica..................................................................................................113
6.5.1 O Estado da Igreja.................................................................................................................................. 116
6.5.2 A feudalização do clero....................................................................................................................... 116
6.6 O reformismo na Igreja Católica...................................................................................................117
6.6.1 O reformismo das ordens monásticas........................................................................................... 117
6.6.2 O reformismo dos papas.....................................................................................................................118
6.7 O papado e o império........................................................................................................................119
6.7.1 O papado no século XIII..................................................................................................................... 120
6.8 A religiosidade medieval...................................................................................................................121
6.8.1 A Igreja e a cavalaria........................................................................................................................... 122
6.8.2 As heresias............................................................................................................................................... 123
6.8.3 A Inquisição............................................................................................................................................. 124
6.9 As Cruzadas...........................................................................................................................................124
6.9.1 Os resultados das Cruzadas.............................................................................................................. 126
6.9.2 O fim das Cruzadas.............................................................................................................................. 127

Unidade III
7 A RELIGIÃO NA IDADE MODERNA...........................................................................................................131
7.1 Renascimento, religião e Inquisição............................................................................................131
7.2 Descartes e o gênio maligno..........................................................................................................136
7.3 Inácio de Loyola...................................................................................................................................140
7.4 Martinho Lutero...................................................................................................................................143
7.5 João Calvino..........................................................................................................................................151
7.6 Consequências da Reforma.............................................................................................................156
7.7 Crescimento e consolidação do protestantismo na Europa..............................................160
7.8 Immanuel Kant.....................................................................................................................................165
8 A RELIGIÃO NA CONTEMPORANEIDADE...............................................................................................170
8.1 O catolicismo no Brasil.....................................................................................................................171
8.2 A teologia da libertação...................................................................................................................171
8.3 O pluralismo religioso na Europa e nos Estados Unidos.....................................................178
8.4 A Igreja Pentecostal e a Neopentecostal...................................................................................182
APRESENTAÇÃO

A filosofia da religião é um ramo filosófico que investiga a esfera espiritual inerente ao homem, do
ponto de vista da metafísica, da antropologia e da ética. Ela levanta questionamentos fundamentais, como:

• O que é a religião?

• Deus existe?

• Há vida depois da morte?

Essas e outras perguntas, ideias e postulados religiosos são objeto de estudo desta disciplina.
A proposta deste livro-texto é estabelecer um diálogo entre autor e aluno, oferecendo a este indicações
e sugestões para a melhor compreensão do assunto.

Entendemos que o papel pedagógico da filosofia da religião é ser um mediador reflexivo entre
as diversas instâncias do saber, as quais processam discursos a ser interiorizados pelo aluno em suas
práticas de aprendizagem. Com isso, o aluno ganhará uma nova capacidade interpretativa, que, aplicada
a qualquer fatia da realidade, servirá para trazer à luz direcionamentos baseados em saberes científicos.

Como a filosofia tem uma tradição e uma história de mais de 25 séculos, os textos dos principais
filósofos configuram um plano de análise a ser privilegiado também pela filosofia da religião, pois esses
textos constroem conceitos por meio dos quais pensamos até hoje, ou seja, eles são as raízes de nosso
pensamento conceitual.

O desenvolvimento deste livro-texto tem como princípio básico a contraposição entre mythos e
lógos, religião e ciência, procurando-se questionar o quanto cada um desses modos de pensamento
nega ou completa o outro. Buscaremos analisar as diferentes formas de olhar para a realidade do
mundo, tematizando o olhar do homem religioso, que experimenta a participação do sagrado na vida
do cosmos; e o olhar do homem científico, que investiga as leis causais do que acontece.

Desde já, esclarecemos que o mythos é um modo de representação das ideias pensadas de
maneira que os signos possam ser interpretados como símbolos, isto é, por meio da participação
afetivo-emocional do intérprete. Nesse sentido, o mythos corresponde a atitudes de pensamento
intuitivo do intérprete e manifesta-se na linguagem sob a forma de linguagem simbólica.

Já o lógos é um modo de representação das ideias pensadas de maneira que os signos possam ser
interpretados como conceitos, e não como símbolos. Por esse motivo, o lógos corresponde a atitudes de
pensamento analítico do intérprete e manifesta-se na linguagem sob a forma de linguagem conceitual.

Visando alcançar os objetivos desta disciplina, também vamos nos valer da Bíblia como um importante
documento histórico para a filosofia da religião. Nessa mesma linha, aspectos históricos e sociais serão
utilizados como referência para a investigação sobre o lugar da religião e da ciência na explicação dos
mistérios e dos problemas da natureza e da vida.
7
No entanto, o contexto social e histórico que envolve a experiência científica e a experiência religiosa
será abordado de um modo que não prejudique a elaboração dos conceitos em questão, o de ciência e
o de religião.

De maneira geral, a filosofia da religião é o exame filosófico dos conceitos envolvidos nas tradições
religiosas. Engloba algumas das principais vertentes da filosofia – metafísica, epistemologia, lógica,
ética, teoria do valor, filosofia da linguagem, filosofia da ciência, direito, sociologia, política, história
etc. – e inclui uma investigação sobre o significado religioso de eventos históricos e sobre as características
gerais do cosmos.

Historicamente, a teologia foi influenciada pela filosofia. O platonismo e o aristotelismo tiveram


papel de destaque na articulação da doutrina cristã clássica. Na era moderna, teólogos muitas
vezes utilizaram a obra de filósofos como Hegel, Heidegger e Derrida para confirmar sua crença.
Essa interação não se limitou ao Ocidente, podendo ser encontrada também em diversas visões
budistas do conhecimento e do eu.

Da mesma forma que as ideias filosóficas alimentaram o trabalho teológico, os grandes temas da
teologia – a transcendência de Deus, os atributos divinos, a Providência etc. – causaram impacto em
muitos projetos filosóficos importantes, como a construção da razão moderna por Descartes.

Foi no século XVII, na Universidade de Cambridge, que Ralph Cudworth e Henry More cunharam
a expressão filosofia da religião. Os dois começaram a discussão sobre os pressupostos da existência
de Deus, o significado do pluralismo religioso, a natureza do bem e do mal em relação a Deus, e várias
outras questões presentes até hoje.

Como a religião é anterior à filosofia, a reflexão filosófica buscará refletir sobre sua maneira
de ser e sobre sua essência. Tal reflexão, porém, também terá consequências, ou seja, a religião
criticamente refletida.

INTRODUÇÃO

Neste livro-texto, a partir dos períodos da filosofia da religião, abordaremos os argumentos


ontológicos, a experiência e a manifestação do religioso, analisando os elementos que o compõem: o
sagrado, o fenômeno e o profano.

No Egito antigo, veremos o choque entre a tradição politeísta e o monoteísmo, o que causou sérias
consequências para o povo; na Grécia antiga, a peculiar relação entre deuses e homens e a valorização
da vida presente.

Quanto às religiões de matriz africana, além de examinar suas particularidades, seus deuses e suas
práticas, trataremos de sua reação à repressão das autoridades: o sincretismo com o catolicismo.

Discorreremos também sobre o judaísmo e o islamismo, analisando filosoficamente seu contexto de


desenvolvimento, comparando-os com outra grande religião monoteísta, o cristianismo.
8
Traçaremos um percurso histórico, passando pelo mundo romano, pelo mundo medieval, pelo mundo
moderno, até chegarmos aos desdobramentos da religião no mundo contemporâneo.

Nossa proposta é refletir sobre o significado do pensamento filosófico, que tem o homem como seu
objeto privilegiado de investigação, do ponto de vista das relações sociais determinantes da existência
deste enquanto ser criador de pensamentos.

A ideia é que os homens fazem filosofia porque estão em relações sociais determinadas, responsáveis
pelos padrões de civilização e de justificação teórico-argumentativa que sua consciência reflexiva e
crítica pode revelar.

A partir dos princípios organizadores da identidade ocidental, pós-Renascimento, pós-Reforma


Protestante, pós-Revolução Científica e pós-Revolução Industrial, surgem as perspectivas de realização
e justificação últimas do homem moderno. Esses princípios organizadores são engendrados no confronto
das tradições helênica e judaico-cristã.

Entendemos que o choque entre essas tradições tem o mérito de fornecer os fundamentos para
as pretensões de uma época da história que julga ter levado o progresso ao limite. Contudo, é preciso
compreender que as possibilidades são sempre maiores do que nossa compreensão alcança.

Os objetivos deste livro-texto são:

• proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir
das experiências religiosas percebidas no contexto do aluno;

• subsidiar o aluno na formulação do questionamento existencial, em profundidade, para dar sua


resposta devidamente informado;

• analisar o papel das tradições religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e
manifestações socioculturais;

• facilitar a compreensão do significado das afirmações e verdades de fé das tradições religiosas;

• refletir o sentido da atitude moral, como consequência do fenômeno religioso e expressão da


consciência e da resposta pessoal e comunitária do ser humano;

• possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de estruturas religiosas que


têm na liberdade seu valor inalienável.

Bons estudos!

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FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Unidade I
1 CONCEITO DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO

As obras que tratam da filosofia mostram que a religião é uma fé, ou seja, uma devoção a tudo que
é considerado sagrado. Assim, podemos entender que a religião é um culto que aproxima o homem
das entidades às quais, culturalmente, são atribuídos poderes sobrenaturais. Podemos dizer ainda que
a religião é uma crença em que as pessoas buscam a satisfação nas práticas religiosas ou na fé, para
superar o sofrimento e alcançar a felicidade.

Também é possível conceituar a religião como um conjunto de princípios, crenças e práticas de


doutrinas religiosas, baseado em livros sagrados, que une seus seguidores numa mesma comunidade
moral chamada Igreja.

Além dessas considerações preliminares, observemos que todos os tipos de religião têm seus
fundamentos: algumas se baseiam em análises filosóficas, que explicam o que somos e por que viemos
ao mundo; outras se sobressaem pela fé; outras, ainda, por extensos ensinamentos éticos.

A religião é estudada pela história, pela psicologia, pela fenomenologia, pela


psicanálise e pela sociologia. Todas essas ciências estudam metodologicamente
a consciência religiosa concreta e suas múltiplas objetivações na história.
A filosofia da religião tenta esclarecer a possibilidade e a essência formal da
religião na existência humana (ZILLES, 1991, p. 5).

Pensando nessas proposições, se a filosofia nos faz refletir sobre o entendimento racional das coisas,
e a religião se apresenta como a ligação do indivíduo ao ser ou objeto que considera sagrado, o que a
filosofia da religião estuda? Zilles (1991, p. 17) ensina:

A filosofia da religião […] não deve ser identificada simplesmente com religião
filosófica ou com filosofia religiosa. Trata-se de indagação filosófica que usa
métodos filosóficos com objetivos filosóficos. Mas não é qualquer filosofia
capaz de criticar corretamente o mundo humano da fé e da religião. As filosofias
que pretendem simplesmente explicar a religião ou reduzi-la a elemento não
religioso, como libido ou situação socioeconômica alienada, não servem.

Da mesma forma, as filosofias que se põem diretamente a serviço da fé também não servem para
estabelecer corretamente o sentido da religião. Não se trata da simples recuperação de certos dogmas,
como a transcendência do absoluto, pela filosofia. A ideia é investigar se o fenômeno religioso é originário
e irredutível ao homem, e se leva, por sua natureza, a um termo supremo chamado Deus. A discussão
central diz respeito a se toda religião é uma invenção humana ou se Deus existe.
11
Unidade I

Observação

Ao usar a palavra deus com D maiúsculo, não estamos fazendo menção


ao deus dos protestantes (pai de Jesus Cristo), dos judeus (Javé) ou dos
muçulmanos (Alá), mas a um ser que é totalmente outro, o inexplicável.

Por esses motivos, a filosofia da religião se propõe a estudar de forma reflexiva o fenômeno religioso,
desenvolvendo no pensador uma atitude que o leve a considerar criticamente esse fenômeno em suas
principais características.

Uma vez que a religião se realiza na existência humana, é a partir do sagrado que se alcança a
existência religiosa. A filosofia da religião avalia o imanente, ou seja, o que permanece, o que persiste, o
que reside em sua própria essência como o todo, e analisa o transcendente, aquilo que se conhece como
Deus, cuja existência ultrapassa a si mesmo por estar num nível mais elevado que a criação. Sobre essa
questão, Calvino (2015, p. 53) diz:

Existe na mente humana – e, de fato, por instinto natural – alguma percepção


da divindade. Consideramos que é algo indubitável, visto que o próprio Deus,
para impedir que alguém alegasse ignorância, imbuiu todos os homens de
alguma ideia de sua divindade, cuja memória ele constantemente renova
e ocasionalmente amplia, de forma que o homem, estando ciente de que
Deus existe e é seu criador, seja condenado pela própria consciência quando
não o adora nem consagra sua vida ao serviço dele […]. Visto, pois, que
nunca houve, desde o início, nenhum canto do globo, nenhuma cidade, nem
mesmo algum lar sem religião, isso significa uma confissão tácita de que há
uma percepção da divindade inscrita em cada coração.

Essa observação de um teólogo cristão protestante se refere a toda existência humana,


independentemente de sua crença religiosa. Nessa relação, há pelo menos dois entes: de um lado, o
sagrado, o divino, o inalcançável, o superior, o sublime, o ser cuja existência ultrapassa a experiência e por
isso é desconhecido — somente através da busca por compreendê-lo vamos assimilar nossa experiência;
de outro lado, o fiel, o devoto, o crente, o profano, ou seja, a pessoa que demonstra qualquer tipo de
devoção a esse ser superior.

A compreensão do sagrado torna-se uma ferramenta para assimilar perspectivas diferentes da nossa
e aceitar o mundo religioso. Quando prestamos atenção ao outro e ao modo como ele se relaciona
com o sagrado, começamos a entender melhor nossa própria relação com os que nos cercam e com a
religiosidade, pois confrontamos nosso mundo religioso com o do outro.

Por isso, a percepção do lugar do fenômeno religioso na vida social e cultural das pessoas é
considerada de suma importância, inclusive no âmbito educacional. Nesse sentido, dada a relevância
de tais considerações e da amplitude das ações religiosas, culturais, antropológicas, sociais e políticas

12
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

que envolvem o ensino religioso, torna-se imprescindível a ponderação fundamentada acerca de


uma educação que realmente priorize a qualidade de vida do ser humano, refletindo sobre uma nova
dimensão da religiosidade humana, procurando construir referenciais de acordo com a sociedade atual,
que reivindica cada vez mais participação e respeito à diversidade cultural, repudiando práticas pautadas
no autoritarismo e na doutrinação.

A religião é importante para a vida humana porque oferece pelo menos três tipos de orientação:

• Espacial: a referência do sagrado posiciona o homem diante da própria existência.

• Social: o sagrado é a origem da ordem, a fonte das normas, a garantia da harmonia, o centro do mundo.

• Psicológica: sociólogos como Peter Berger e Émile Durkheim, em suas reflexões sobre a religião,
apresentam argumentos de que, quando a secularização avança, aumenta a possibilidade de
crescimento da anomia.

Berger (1985, p. 34-35 e 45) considera que “a mais importante função da sociedade é a nomização”,
que a ordem social é a mais básica das necessidades humanas e que a anomia – situação em que
o diálogo que sustenta e legitima o mundo esmorece, o faz vacilar e desorienta o indivíduo – constitui o
maior perigo. Concebe também a religião como o “instrumento mais amplo e efetivo de legitimação da
sociedade e de suas instituições”.

Acerca da secularização, Martelli (1995, p. 18) afirma:

A condição pós-moderna representa uma fase ulterior à do processo de


secularização, a fase na qual a própria experiência da secularização já está
esgotada. O pós-moderno caracteriza-se pela ausência daquelas oposições
fortes das quais a tese da secularização tomava vigor. […] Em outras palavras,
a sociedade pós-moderna seria uma sociedade pós-secular, na qual a ênfase
do trend secularizante foi finalmente deixada de lado, permitindo que
percebêssemos numerosos fenômenos de dessecularização.

No século XX, ocorreu um fenômeno de abandono da crença no divino. Nesse sentido, secular é
algo que se refere à convivência humana. No final do século XX, com a falta da crença em Deus, cresceu
a anomia, ou seja, a desorganização social. No século XXI, no entanto, não há mais uma constante
descrença, mas sociedades que toleram que cada um acredite no que quiser.

Observação

O conceito de anomia foi cunhado pelo sociólogo francês Émile


Durkheim e quer dizer ausência ou desintegração das normas sociais.

13
Unidade I

Ainda que utilizemos o termo sagrado, não devemos confundir filosofia da religião com teologia.
Enquanto esta avalia a relação entre homem e Deus, pautada numa revelação especial, aquela é
esclarecida a partir de si mesma, e esse pensar filosófico se dá pela possibilidade da liberdade humana.

Observação

Teologia é o estudo crítico da natureza do divino, seus atributos e sua


relação com os homens.

Hoje quase toda introdução à filosofia inclui algo da filosofia da religião. A importância desta pode ser
vista em assuntos como crenças alternativas a respeito de Deus, variedades da experiência religiosa, interação
entre ciência e religião, natureza do bem e do mal, e percepções religiosas sobre o nascimento e a morte.
A investigação filosófica desses tópicos envolve questões fundamentais sobre nosso lugar no cosmos e nossa
relação com o que pode transcender o cosmos. Isso requer uma investigação sobre a natureza e o limite do
pensamento humano. Com esses projetos complexos, a filosofia da religião contribui para a filosofia geral.

Em filosofia, esbarramos o tempo todo na religião, ou pelo menos em crenças e conceitos religiosos.
São poucas as áreas da filosofia destituídas de implicação religiosa. As tradições religiosas são tão
abrangentes em seus enunciados que quase todos os domínios da filosofia podem ser utilizados para
investigar sua coerência, justificação e valor. Além disso, ao longo da história das ideias, a maioria dos
filósofos examinou temas religiosos. Por conseguinte, não se pode abordar a história da filosofia sem
levar em conta a filosofia da religião.

No discurso religioso ocorrem conceitos que se opõem à filosofia,


como revelação e redenção. Estes expressam uma realidade oriunda da
transcendência, enquanto a religião expressa uma série de atos espirituais e
criações culturais do homem. A revelação fala do divino, de algo que penetra
na vida; a religião refere-se a uma realidade de vida e a uma realidade
cultural (ZILLES, 1991, p. 7).

Quando o homem pensa, vai além de sua subjetividade. Quando reflete, organiza as ideias, diferencia-se
dos animais, os quais “não têm nenhuma religião” (FEUERBACH, 2009, p. 4). Por meio do pensamento, ele se
desenvolve e busca o verdadeiro sentido das coisas e da vida. A indagação filosófica tematiza o ser do ente.

Observação

Segundo Ziles (1991, p. 100), “Ludwing Feuerbach (1808-1872) elaborou


um materialismo para o qual só existe o homem e a natureza e ‘nada mais’.
Seres superiores são apenas reflexo de nossa realidade”.

Cabe destacar de modo mais abrangente o que compreendemos por teologia, para diferenciá-la
da filosofia da religião. De maneira específica, as teologias se referem ao conjunto de afirmações e
14
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

conhecimentos elaborados pela religião sobre o transcendente e repassados para os fiéis de forma
organizada ou sistematizada.

No entanto, como o transcendente é a entidade ordenadora e o senhor absoluto de todas as


coisas, a teologia se expressa como um estudo das verdades de fé. A participação na natureza do
transcendente é entendida como graça e glorificação, respectivamente no tempo e na infinidade.
Assim, para alcançar essa infinidade, o ser humano necessita passar pela realidade última da
existência do ser, interpretada como ressurreição, reencarnação, ancestralidade, havendo espaço para
a negação da vida além da morte, sinais do transcendente que podem ser encontrados nas mais
variadas expressões religiosas.

Por outro lado, a filosofia da religião, em sentido estrito, investiga filosoficamente uma realidade
propriamente humana, ou seja, as expressões religiosas da humanidade, que também podem ser objeto de
estudo de ciências positivas, como a psicologia, a sociologia, a antropologia cultural, a etnologia e a história.

1.1 Elementos das religiões mundiais

A realização de estudos comparativos entre as características das principais religiões praticadas no


mundo é importante, inclusive para o diálogo inter-religioso. Isso se dá pelo fato de que, com o conhecimento
das peculiaridades de cada uma das religiões e com a busca por pontos de convergência, haverá muito
mais chances para o diálogo e para a convivência pacífica entres as várias denominações religiosas.

Nesse sentido, as abordagens científicas sobre as diferentes tradições religiosas podem oferecer
chaves de leitura para o confronto crítico e, consequentemente, possibilitar avanços no campo da
filosofia da religião.

Embora cada religião tenha características próprias, há elementos que são comuns a várias
denominações – por exemplo, o sagrado, um elemento fundamental, sempre presente em religiões de
qualquer parte do mundo.

Lembrete

Sagrado é tudo aquilo relativo a Deus, à religião, ao culto ou aos


ritos religiosos.

Dessa forma, não se pode falar numa religião sem um ser superior, pessoal ou impessoal, ou ainda
sem um objeto numinoso, que pode inclusive ser um animal. Segundo Rudolf Otto (2007, p. 38),

o elemento de que estamos falando e que tentaremos evocar no leitor está


vivo em todas as religiões, constituindo seu mais íntimo cerne, sem o qual
nem seria uma religião. Ele tem presença marcante nas religiões semitas,
de forma privilegiada na religião bíblica. Ali ele também apresenta uma
designação própria, que é o hebraico qadôsh, ao qual correspondem o grego
15
Unidade I

hágios e o latino sanctus, e com maior precisão ainda sacer. Não há dúvida
de que em todos os três idiomas esses termos, no ápice do desenvolvimento
e da maturidade da ideia, designam também o bom, o bem absoluto.

Observação

Numinoso é o estado de vivência que o ser possui sobre as questões


sobrenaturais, geralmente sagradas, transcendentais ou de divindade,
comportando-se com base nelas.

Para Otto (2007, p. 44), esse bem absoluto é irracional e não pode ser explicado em conceitos, mas apenas
apontado pela reação que produz, pois “sua natureza é do tipo que arrebata e move a psique humana com
tal e tal sentimento”. Isso implica dizer que o religioso, ao se deparar com o ser, acredita (em sua psique)
que está diante do mysterium tremendum, o mistério que faz tremer, porque começa a experimentar um
sentimento forte de espiritualidade, podendo acreditar que sente um estrondo duradouro, passando por
surtos ou convulsões, ou ser induzido por estranhas sensações, como êxtases ou delírios.

Muitas vezes, o sagrado do outro tem formas selvagens e demoníacas. O que para um é santo, para
o outro, pode ser uma imagem de horror, parecida com uma assombração.

Otto (2007, p. 46) denomina o sagrado de diversas formas – “Grauen (assombro), sich grauen (ficar
assombrado), erschauern (arrepiar-se), Schauervoll (arrepiante), Schauer (arrepio), ou ainda heiliger Schauer
(arrepio sagrado)” – e enfatiza que o misterioso sempre é algo que foge ao alcance do conhecimento e da
compreensão. Esse assombro decorre do caráter inibidor do majestoso, do eterno, do inefável, do arrepiante.
A sensação de pequenez, dependência e impotência leva ao receio da ira deorum (ira dos deuses).

De acordo com a fenomenologia, uma corrente da filosofia que se propõe a pensar como se
chega ao conhecimento dos fenômenos da consciência, observamos o fenômeno a partir da redução
fenomenológica, através da epoché. A redução fenomenológica foi proposta por Husserl, e é feita em
dois níveis: no primeiro, buscamos a essência abstrata das coisas, dos sentidos idealizados, por oposição
ao que existe realmente; no segundo, empreendemos a redução transcendental, a fim de descobrir por
que a consciência de uma pessoa produz essas ideias específicas, que fornecem certo sentido às coisas.
A redução eidética (redução à ideia) determina que todo campo empírico ou mesmo a religião são
transcendentais, porque os significados que atribuímos a qualquer coisa são sempre infinitos.

Observação

O termo fenomenologia foi criado no século XVIII, por J. H. Lambert,


para designar o estudo puramente descritivo dos fenômenos, da forma
como eles se apresentam à consciência. Enquanto corrente filosófica, a
fenomenologia foi fundada por Edmund Husserl na Alemanha, entre o fim
do século XIX e o começo do XX.
16
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Dito de outra forma: para tentar entender alguma coisa, verificamos o que conseguimos perceber
dessa coisa com nossos sentidos; esse processo, porém, não se esgota na forma como percebemos com
nossos sentidos, como faz todo ser vivo, mas conserva a transcendentalidade, ou seja, conserva uma
série de qualidades ou defeitos que conferem a identidade absoluta. Quando observamos a figura de
uma divindade, o máximo que percebemos num primeiro momento é sua forma física, mundana. Depois,
quando consideramos aquilo que a imagem representa, verificamos que há uma série de atributos
ligados a ela, e esses atributos nos fazem pensar numa série de valores que temos.

Segundo Mircea Eliade (1992), é o sagrado, em seu aspecto mediador no interior de uma hierofania,
que dá ao homem religioso a possibilidade de estabelecer uma relação com a fonte do sagrado, com o
sagrado em sua dimensão absoluta, com a transcendência.

É interessante notar que o homem religioso assume uma humanidade


que tem um modelo transumano, transcendente. Ele só se reconhece
verdadeiramente homem quando imita os deuses, os heróis civilizadores ou
os antepassados míticos. Em resumo, o homem religioso se quer diferente do
que ele acha que é no plano de sua existência profana. O homem religioso
não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar-se dos modelos divinos.
Esses modelos, como dissemos, são conservados pelos mitos, pela história
das gestas divinas. Por conseguinte, o homem religioso também se considera
feito pela História, tal qual o homem profano (ELIADE, 1992, p. 52).

Observação

A palavra hierofania vem de duas palavras gregas: hierós (santo,


sagrado) e fanein (manifestar). Hierofania é, então, toda e qualquer
manifestação do sagrado.

Isso é estudado pela fenomenologia da religião, área que pretende examinar e categorizar o
invisível e identificar as forças que dominam as mais variadas manifestações da práxis religiosa.
Ela utiliza aspectos visíveis e palpáveis, como posturas, gestos, ações, palavras, ritos, roupas e
acessórios, para tentar descrever por que somos religiosos. Busca descobrir o sentido ontológico da
religião e de seus fenômenos.

Cabe esclarecer que práxis tem origem no grego prâksis, que significa “conduta” ou “ação”.
Dessa forma, corresponde a uma atividade prática em oposição à teoria. Esse termo é abordado por
vários campos do conhecimento, como filosofia e psicologia, que classificam práxis como uma atividade
voluntária orientada para determinado fim ou resultado.

Nesse sentido, a religião opera no crente incentivando os valores da solidariedade, da moral,


da disciplina, do amor e da ética. Poderíamos mesmo inferir que o surgimento do ser humano está
intimamente ligado à religião, pois o processo de humanização teve início com o aparecimento da
linguagem e da religião.
17
Unidade I

Assim, a religião é um fenômeno do ser humano que o faz refletir sobre seu fim último, sobrepondo-se
a todas as deficiências de justificativa que porventura venham a surgir em sua mente. Esse fenômeno
se encontra presente inclusive em quem é avesso à religião.

Quando, por exemplo, estudamos de forma mais aprofundada o judaísmo, o islamismo e o hinduísmo,
percebemos que as três religiões apresentam muitos pontos em comum. Isso acontece porque o
sentimento de criatura, um estado psíquico de solene devoção e arrebatamento, que muitas vezes se
traduz em gratidão, esperança, amor, confiança, humilde sujeição e submissão, está presente em todas
as situações em que alguém acredita na presença de um ser superior a sua condição humana.

O sentimento de criatura ocorre tanto por causa da própria nulidade, quando sentimos ou acreditamos
estar diante de um poder aniquilador, quanto por causa da autopercepção, uma sensação sobre nossa
ínfima condição.

Lembrete

A filosofia da religião não pretende dizer se uma religião é certa ou


errada, mas levantar indagações por meio de métodos filosóficos para
atingir seus objetivos.

1.2 A relação do homem com o divino

Quando falamos de filosofia em sentido mais amplo, usamos como definição a investigação racional
dos problemas do mundo e do homem, seus princípios, fundamentos e relações. A filosofia da religião
também se nutre de uma história milenar de pensadores que questionaram e foram questionados,
argumentaram, publicaram, ensinaram e, algumas vezes, se calaram.

A religião é a forma mais típica de manifestação do ser humano. Ela não está presente em nenhum
outro ser. O homem desenvolveu atividades religiosas desde seu surgimento na terra – todas as tribos,
populações e culturas elaboraram um modo de cultivar a religião e suas crenças. Além disso, todas as
manifestações artísticas e literárias buscaram inspiração em motivos religiosos.

Por terem fundamentações aparentemente distintas – a filosofia apoia-se na atividade da razão, a


religião sustenta-se na fé –, o primeiro movimento que pressupomos entre a filosofia e a religião é o
estranhamento. De fato, muitos filósofos pretenderam refutar os argumentos religiosos e mostrar que
o homem não necessita da religião em sua vida. As motivações para o estranhamento com a religião são
diversas e caminham por áreas como ética, antropologia, epistemologia, lógica e metafísica.

Entretanto, é claro para a filosofia que a busca pela verdade sobre o divino não desqualifica a religião
como manifestação própria da natureza humana ou caminho para o alcance do transcendente.

Percorremos um longo caminho através dos tempos modernos e


contemporâneos indagando pela questão de Deus e da religião. Quando
falamos de religião na filosofia moderna ocidental, evidentemente, nos
referimos, quase sempre, ao cristianismo. Em nosso caminho encontramos
18
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

três questões básicas levantadas pelo Iluminismo: a relação entre a razão


e a fé, a Igreja e a sociedade e o sentido do homem e do mundo (ZILLES,
1991, p. 189).

Em geral, a filosofia da religião no Ocidente se debruçou sobre as diferentes versões do teísmo.


Platão, por exemplo, defendeu um Deus singularmente bom no lugar dos deuses que, muitas vezes,
se mostravam imperfeitos e sujeitos ao vício e à ignorância. O desenvolvimento do judaísmo, do
cristianismo e do islamismo como religiões mundiais confirmou a ideia de Deus único, o teísmo.
Dessa noção, floresceram tradições e práticas religiosas, e podem-se encontrar elementos teístas, ainda
que fragmentados, no confucionismo, no hinduísmo e em algumas versões do budismo. O debate sobre
o teísmo também tem importância para o humanismo secular e para as formas religiosas de ateísmo.

Saiba mais

Leia mais sobre o teísmo em:

SCHMAELTER, M. M. Teísmo. InfoEscola, [s.d.]. Disponível em: https://


www.infoescola.com/religiao/teismo/. Acesso em: 6 jan. 2020.

Muitos termos usados para descrever Deus nas tradições teístas são analogias – por exemplo, pai,
pastor ou fonte. Mais difíceis de classificar são as descrições de Deus como bom, pessoal, consciente,
onipresente e criativo. As discussões filosóficas e teológicas mais fervorosas se concentram em determinar
o significado dessas descrições.

Ao atribuir onisciência a Deus, alguém poderia alegar que Deus conhece todas as verdades de
maneira semelhante a como conhecemos as verdades sobre o mundo. Um movimento na filosofia tem
sido afirmar que na alegação “Deus sabe alguma coisa” emprega-se a palavra sabe univocamente,
quando na verdade esse termo significa muitas coisas, como “entender”, “compreender”, “apreender”,
“adivinhar” e “sentir”, o que torna difícil determinar que saber é esse que é atribuído a Deus
(SWINBURNE, 1977).

Outro paradoxo surge quando consideramos que alguém possa existir fora do tempo. Na tradição
monoteísta, em todas as religiões, Deus é visto como um ser que existe, sem qualquer tipo de começo ou fim.
Deus nunca poderá deixar de existir. Alguns teístas filosóficos sustentam que a temporalidade de Deus é muito
parecida com a nossa, no sentido de que há um antes, um durante e um depois para ele, ou um passado, um
presente e um futuro. Essa visão é por vezes referida como a tese da eternidade de Deus. Aqueles que adotam
uma postura mais radical afirmam que Deus existe independentemente da temporalidade, argumentando
que ele não está no tempo ou que está simultaneamente em todos os tempos.

Como percebeu Agostinho (2000, p. 1037-1038), se Deus não está vinculado ao tempo, pode haver
uma solução para o problema anterior de reconciliação entre a liberdade e a predestinação:

19
Unidade I

Ele vê com um olhar absolutamente imutável, sem levar seu pensamento de


um objeto para outro. Por conseguinte, o que se passa no tempo compreende,
certamente, não só acontecimentos futuros que ainda não são, mas também
presentes que já são e passados que já não são. Mas ele abarca-os a todos
em sua estável e sempiterna presença.

Assim, se Deus está fora do tempo, pode haver também um fundamento seguro que explique a
imutabilidade, a incorruptibilidade e a imortalidade de Deus. Além disso, o autor sugere a possibilidade
de usar a posição de Deus fora do tempo para afirmar que Deus é o criador do tempo.

Outra constatação importante é que todas as religiões conhecidas abordam a natureza do bem e do
mal e recomendam formas de alcançar o bem-estar humano, seja isso pensado em termos de salvação,
libertação, iluminação, tranquilidade ou estado sem ego no nirvana. Apesar de haver diferenças significativas
entre elas, existe uma sobreposição substancial entre muitas concepções de bem. Uma regra encontrada
em diversas religiões é a que diz: “Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você”.

Observação

Nirvana, palavra relacionada ao budismo, refere-se ao estado de


libertação atingido pelo ser humano ao percorrer sua busca espiritual.

Determinadas religiões interpretam o divino como algo além de nossas noções humanas de bem
e mal. Em certas formas de hinduísmo, por exemplo, o brâmane é exaltado como detentor de uma
espécie de transcendência moral. Alguns teólogos e filósofos cristãos, por sua vez, insistem que Deus
é apenas um agente moral num sentido qualificado. Para eles, dizer que Deus é bom é muito diferente
de chamar um ser humano de bom.

Observação

Segundo a mitologia hinduísta, os brâmanes, representantes da


autoridade espiritual e intelectual, teriam nascido da boca do deus Brahma,
considerado a representação da força criadora do universo.

Nas religiões cristãs, há uma tendência a explicar a bondade de Deus por meio de padrões que
não são criação dele – portanto, independentes da vontade de Deus. Esse pensamento é chamado
voluntarismo teísta. Numa versão comum dessa perspectiva, afirma-se que bom ou certo é o desejado
por Deus, e que mal ou errado é o proibido por ele.

Os voluntaristas teístas enfrentam várias dificuldades para fazer valer sua forma de pensar, já que a
linguagem moral parece compreensível sem precisar ser explicada em termos de vontade divina. De fato,
muitas pessoas expressam juízos morais objetivos sem fazer qualquer referência a Deus.

20
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Outra dificuldade para o voluntarismo está em explicar o aparente conteúdo significativo de uma
afirmação como “Deus é bom”. Parece que, ao chamar Deus de bom, o crente religioso está dizendo que
a própria noção de bondade tem algum significado independente da vontade de Deus.

Ao entender a bondade de Deus em termos do ser Deus, chegamos perto da posição de Tomás
de Aquino, que afirma que Deus é essencialmente bom em virtude do próprio ser de Deus. Segundo
essa perspectiva, para algo ser bom, não é necessário que Deus queira que seja assim. A bondade de
Deus pode ser compreendida de várias maneiras – por exemplo, pelo argumento de que a perfeição
de Deus requer que ele seja bom. Nesse sentido, é possível afirmar que o conhecimento é bom em
si mesmo, e assim a onisciência é um bem supremo. Deus também tem sido considerado bom na
medida em que criou e conservou a existência de um universo bom.

No entanto, as coisas se complicam quando discutimos o mal. Se Deus é de fato onipotente e


perfeitamente bom, por que existe o mal? Se Deus não pode tornar a crueldade boa, ele pode fazer ou
querer que algumas ações sejam moralmente obrigatórias ou moralmente proibidas.

Outro esforço para vincular os juízos de bem e mal com os julgamentos de Deus encontra-se na
teoria da ética do observador ideal. Segundo essa teoria, os juízos morais poderiam ser analisados em
termos de como um observador ideal julga as coisas. Dizer que um ato é correto implica sustentar que,
se houvesse um observador ideal, ele o aprovaria. Dizer que um ato é errado implica sustentar que, se
houvesse um observador ideal, ele o desaprovaria (TALIAFERRO; MEISTER, 2010). O observador ideal é
descrito de várias maneiras por diversos filósofos, mas sempre é considerado um observador onisciente
imparcial em relação aos fatos. Se é verdade que os juízos morais são de fato coerentes, então a ideia de
um observador ideal é coerente. Na concepção das três grandes religiões monoteístas, Deus se encaixa
na descrição do observador ideal. Se a teoria do observador ideal for considerada convincente, um teísta
terá razão ao afirmar que os ateus que se mantêm comprometidos com julgamentos éticos normativos
também estão comprometidos com a ideia de um Deus ou de um ser divino (TALIAFERRO, 2005b).

Em alguns textos de filosofia da religião, debatem-se os argumentos para a existência de Deus.


Por exemplo, o argumento da ordem aparente e da natureza intencional do cosmos é criticado com
base na ideia de que, na melhor das hipóteses, esse argumento estabelece que há uma inteligência
proposital e projetista atuando no cosmos, o que está longe de provar que existe um Deus onipotente,
onisciente, benevolente etc. A esse respeito, vale destacar que poucos filósofos conseguem oferecer hoje
um argumento único como prova da existência ou da não existência de Deus; em geral, trabalha-se com
argumentos cumulativos, acompanhados de toda uma gama de considerações.

Uma das razões para o recurso a argumentos cumulativos é o descontentamento com o


fundamentalismo. A forma clássica de fundamentalismo afirma, em primeiro lugar e acima de tudo,
uma base para a crença, base que se pretende verdadeira, indubitável e infalível. A partir daí, constrói-se
a justificativa para outras crenças, sobre si mesmo e sobre o mundo. Muitos pensadores, no entanto,
entendem que o objeto da investigação filosófica é a coerência geral, não uma série de operações de
construção da verdade sobre uma fundação inquestionável.

21
Unidade I

Um modo de pensar a filosofia da religião de maneira não fundamentalista é considerar de forma


comparativa as visões religiosas do mundo. Certo argumento diz que a integridade intelectual de uma
visão religiosa do mundo poderá ser assegurada se for possível demonstrar que ela não é menos racional
do que as alternativas disponíveis. Para uma ideia religiosa fazer sentido, ela precisa apenas alcançar
uma paridade intelectual com as demais ideias sobre o mesmo assunto.

A forma religiosa de ver o mundo pode não ser incompatível com a ciência, mas complementar.
Há quem diga que a tendência a acreditar em Deus segue a natureza da mente humana. Essa postura
compreende o que é comumente chamado epistemologia reformada, devido a sua conexão com a
obra do teólogo reformado João Calvino, que afirmava que o ser humano tem um sentido de Deus.

Observação

Em filosofia da religião, epistemologia reformada é uma escola de


pensamento que se debruça sobre a epistemologia das crenças em Deus e
que foi desenvolvida por um grupo de filósofos cristãos protestantes.

Quem tem o ônus da prova num debate entre um teísta e um ateu? A necessidade de prova é associada
a um fundamentalismo antiquado. Hoje, concorda-se que qualquer ônus de prova é compartilhado
igualmente por ateus e teístas. Há uma série de argumentos ontológicos para provar a existência de
Deus. Todos eles se baseiam principalmente em fundamentos conceituais a priori, que não envolvem
uma investigação empírica a posteriori.

Observação

Argumento ontológico é qualquer argumento que defenda a existência


de Deus através da ideia de que ele é obrigatoriamente um ser perfeito e
que, portanto, deve existir.

O foco dos argumentos ontológicos é a tese de que, se existe um Deus, então a existência dele é
necessária. A existência de Deus não é contingente, porque ele não é o tipo de ser que acontece ao
existir. Essa imagem plausível do que se entende por Deus pode ser demonstrada apelando-se para
a maneira como as tradições judaica, cristã e islâmica o concebem. O defensor de um argumento
ontológico pode buscar convencer os outros de que o conceito de Deus é o conceito de um ser que existe
necessariamente partindo da noção de um ser que expressa a ideia de máxima excelência. Se houvesse
um ser maximamente excelente, como ele seria? Suas qualidades maiores, a onisciência e a onipotência,
seriam necessárias para sua existência. Um ser maximamente excelente, que exista necessariamente,
poderia ser chamado de Deus.

O primeiro argumento ontológico remonta a Santo Anselmo (c. 1034-1109). O fato de que o conceito
de Deus como uma realidade necessariamente existente venha sendo formulado através do tempo, e em
muitas culturas, sugere-se que esse conceito é coerente. É possível que exista um Deus, pois a existência
22
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

dele é plausível. Um velho preceito filosófico afirma que, se algo existe em pensamento, deve existir de
fato. O problema é sempre a negação, que entende que, se há evidência de que algo existe, também há
evidência da possibilidade de que esse algo não exista. Se é possível que não haja Deus, então não
há Deus. Mas como podemos defender a inexistência de Deus? Ver uma contradição num ser descrito
ao mesmo tempo como onisciente e onipotente pode ser uma boa razão para concluir que a existência
de Deus é impossível.

Outra objeção ao argumento ontológico: em sua premissa de que, se existe um Deus, ele existe
necessariamente, pede-se apenas que se considere um estado de coisas ostensivo, sem precisar admitir
se esse estado de coisas é possível ou impossível.

Também se encontram argumentos cosmológicos para provar a existência de Deus. Alguns


afirmam que o cosmos tem uma causa inicial fora dele, uma primeira causa no tempo. Outros dizem
que o cosmos tem uma causa necessária e sustentada a cada instante. Essas duas versões não são
mutuamente excludentes, pois é possível que o cosmos tenha tido uma causa primeira e que tenha
atualmente uma causa de sustentação. Simplesmente não sabemos.

Observação

O argumento cosmológico tenta provar a existência de Deus através da


observação do mundo que nos rodeia, ou seja, do cosmos.

O argumento cosmológico baseia-se na inteligibilidade da noção de algo que não é em si causado a


existir por qualquer outra coisa. Esse argumento fornece a razão para pensar que há pelo menos um ser
com um poder extraordinário e que é responsável pela existência do cosmos. Isso pode não justificar a
imagem onipotente e onisciente do Deus da religião, mas ainda assim desafia as alternativas do ateísmo.

Quem propõe o argumento cosmológico sustenta que sabemos a priori que, se algo existe, há uma
razão para sua existência. Então, por que o cosmos existe? Se explicarmos a existência contingente do
cosmos apenas em termos de outras coisas contingentes – estados anteriores do universo, por exemplo –,
então uma explicação cósmica definitiva nunca será alcançada. Há argumentos, como em Aristóteles,
que dizem que a regressão temporal contínua de uma existência contingente a outra nunca explicaria
a existência do cosmos. Seria mais razoável aceitar que houve uma causa primeira do que aceitar que o
cosmos nasceu do nada.

Alguns teístas chegam perto de concluir que era de fato essencial que Deus criasse o cosmos. Se Deus é
supremamente bom, deve haver algum transbordamento de bondade na forma de um cosmos. As escolhas
de Deus podem ser contingentes, mas não a existência de Deus, e a escolha divina de criar o cosmos pode
ser entendida como profundamente simples em seu supremo objetivo primordial de criar algo bom.

Há ainda argumentos teleológicos, os quais descrevem características do cosmos que parecem


refletir o desígnio ou intencionalidade de Deus. Faz parte desses argumentos o fato de serem formulados
como prova de que o cosmos é o tipo de realidade que seria produzido por um ser inteligente. Por meio
23
Unidade I

deles, defende-se também que postular essa origem é mais razoável do que negá-la. Como no caso do
argumento cosmológico, o defensor do argumento teleológico pode alegar que está apenas nos dando
alguma razão para pensar que existe um Deus.

Observação

A palavra teleologia vem de telos, que significa “objetivo” ou “propósito”.


Na teleologia, acredita-se que os seres humanos e outros organismos têm
finalidades e objetivos que orientam seu comportamento.

É possível usar os argumentos mencionados de maneira complementar. O argumento teleológico


fornece alguma razão para pensar que a causa primeira do argumento cosmológico é intencional,
enquanto o argumento ontológico fornece alguma razão para pensar que faz sentido postular um ser
que tenha atributos divinos e que exista necessariamente.

Certa refutação das versões da prova de existência de Deus não acredita que o cosmos é bom ou que
é o tipo de coisa que seria organizada por um ser inteligente, completamente benevolente. Isso nos leva
de volta à questão do mal, a maior objeção ao teísmo na filosofia ocidental e oriental. Esse problema
tem duas versões principais:

• Dedutiva ou lógica: afirma que a existência de qualquer mal, independentemente de seu papel
na produção do bem, é incompatível com a existência de Deus.

• Probabilística: afirma que, dada a quantidade e a gravidade do mal que realmente existe, é
improvável que Deus exista.

O problema dedutivo é atualmente menos debatido, porque se reconhece que um ser completamente
bom pode permitir ou infligir algum dano sob certas condições moralmente constrangedoras – pode,
por exemplo, permitir que sintamos dor por causa de uma queimadura. O debate mais intenso diz
respeito à probabilidade, ou mesmo à possibilidade, de que exista um Deus completamente bom, dada
a vasta quantidade de mal no cosmos.

Pode-se argumentar, por exemplo, que a bondade de Deus difere da bondade moral de uma pessoa.
Outra estratégia é negar a existência do mal. No entanto, não é fácil conciliar o monoteísmo tradicional
com o ceticismo moral. Além disso, na medida em que acreditamos num Deus digno de adoração, o
argumento do ceticismo moral tem pouco peso. A ideia de que o mal é uma privação ou uma distorção
do bem serve para pensar o problema do mal, mas é difícil ver como isso poderia contribuir para a crença
na bondade de Deus.

As três grandes religiões monoteístas, com sua insistência na realidade do mal, não oferecem
nenhum motivo lógico para a tentativa de elucidar o problema por esse caminho. De fato, o judaísmo, o
cristianismo e o islamismo estão tão comprometidos com a existência do mal que uma razão para rejeitá-lo
seria uma razão para rejeitar as próprias tradições religiosas. Como seria o ensinamento judaico sobre
24
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

o êxodo (Deus libertando o povo de Israel da escravidão), ou o ensinamento cristão sobre a encarnação
(Cristo revelando Deus como amor e liberando um poder divino que no final superará a morte), ou o
ensinamento islâmico de Maomé (o santo profeta de Alá, que é todo justo e todo misericordioso) se a
escravidão, o ódio, a morte e a injustiça não existissem?

Se em nossa ética pessoal sustentamos que não deve haver sofrimento, independentemente da
causa ou da consequência, então o problema do mal entra em conflito com nossa aceitação de uma
religião tradicional. Além disso, se sustentamos que qualquer solução para o problema do mal deve
ser evidente para todas as pessoas, então novamente as religiões tradicionais não trazem soluções
universais. Poderia haver razões pelas quais Deus permitiria males cósmicos? Se não conhecemos essas
razões, estamos em posição de concluir que não há nenhuma ou que não poderia haver nenhuma? Se
acreditarmos, por exemplo, que não há livre-arbítrio e que tudo está escrito, não seremos movidos por
qualquer apelo ao valor positivo do livre-arbítrio e a seu papel de trazer o bem como compensação de
seu papel de trazer o mal.

Os religiosos dizem que a existência do mal não torna improvável a existência de Deus. Por esse
motivo, escrevem teodiceias. A proposta nelas não é dar conta de todo e qualquer mal, mas fornecer
uma estrutura abrangente, que permita entender como o mal que ocorre é parte de algum bem maior.
A superação do mal seria em si um grande bem.

Observação

Teodiceia é um ramo da teologia que trata da coexistência de um Deus


todo-poderoso, de bondade infinita, com o mal.

O mal pode ser entendido como necessário para bens maiores ou como parte desses bens.
Numa concepção frequentemente denominada defesa do livre-arbítrio, propõe-se que criaturas
livres, capazes de cuidar umas das outras e cujo bem-estar depende da ação livremente escolhida,
constituem um bem. Para que isso se realize, argumenta-se, deve haver boa-fé das pessoas quando elas
se prejudicam mutuamente. A defesa do livre-arbítrio é às vezes usada de forma restrita, apenas para
cobrir o mal que ocorre como resultado, direto ou indireto, da ação humana. Nesse sentido, o livre-
arbítrio é entendido como a capacidade de escolha autônoma realizada pela vontade humana.

Outra questão ligada ao mal é a especulação da vida após a morte. É possível aceitar que
Deus permita o mal no mundo só para depois as vítimas da maldade passarem a vida eterna no
paraíso e viverem em completa felicidade? Nesse sentido, como devemos entender a morte? Ela é
a aniquilação das pessoas ou um evento obrigatório de transfiguração para um estado superior?
Se não achamos importante o fato de as pessoas continuarem a existir depois da morte, essas
conjecturas pouco importam. Mas suponhamos que a vida após a morte seja entendida como
uma continuidade moralmente entrelaçada com esta vida; que a vida após a morte seja uma
oportunidade de reforma moral e espiritual, transfiguração dos ímpios, rejuvenescimento e início
de uma nova vida, talvez até de reconciliação e comunhão entre opressores que buscam o perdão e
suas vítimas. Na medida em que não podemos descartar a possibilidade de uma vida após a morte
25
Unidade I

moralmente ligada a nossa vida secular, não podemos descartar a possibilidade de que Deus traga
algo de bom dos males cósmicos. O raciocínio é o mesmo.

Nesse sentido, se não somos metafisicamente idênticos a nosso corpo, então talvez a aniquilação
dele não seja a aniquilação de nós mesmos. Em outras palavras, na medida em que nossa alma é diferente
de nosso corpo, talvez a morte dele não seja o fim de nossa existência.

Uma das justificativas mais comuns para a crença diz respeito à vivência de uma experiência
religiosa. Outra é o peso cumulativo do testemunho dos que afirmam ter tido experiências religiosas.
Do ponto de vista teísta, a argumentação apela para o fato de que muitas pessoas testemunharam sentir
a presença de Deus. Esses testemunhos fornecem evidências de que Deus existe? Até hoje há posições
contrárias e favoráveis à importância de alguém se sentir experimentando um estado de plenitude
religiosa. Esboçamos a seguir algumas dessas posições filosóficas, segundo Taliaferro (1998).

Posição A

• Hipótese de objeção: a experiência religiosa não pode ser uma experiência de Deus porque a
experiência é apenas sensorial. Se Deus é não físico, ele não pode ser sentido.

• Resposta: existe a possibilidade de um forte sentimento de presença de outra pessoa (como a mãe
ou o filho) sem nenhuma outra sensação que a proximidade em consciência. A noção segundo a
qual Deus não poderia ser sentido demonstraria uma concepção limitada de experiência.

Posição B

• Hipótese de objeção: o testemunho de ter experimentado a Deus comprova apenas que alguém pensa
que experimentou a presença de Deus – é o testemunho de uma convicção, não de uma evidência.

• Resposta: a literatura sobre a experiência religiosa mostra a existência da experiência de algum ser
divino, com base na qual o sujeito passa a acreditar que a experiência é de Deus. Se lido com caridade,
o testemunho não remete a uma convicção, mas a uma vivência que fundamenta a convicção.

Posição C

• Hipótese de objeção: uma vez que a experiência religiosa é única, como alguém poderia
determinar se ela é confiável? Não somos capazes de examinar o objeto da experiência religiosa
para estabelecer se os relatos têm fundamento.

• Resposta: como aprendemos em Descartes, todas as nossas experiências de objetos externos


enfrentam um problema de singularidade. É possível, em princípio, que todos os nossos sentidos
estejam errados e que nossa vida externa, fora da mente, seja completamente diferente daquilo
que acreditamos ser. Se não podemos sair da subjetividade de nossa própria mente para ter certeza
das informações de nossos sentidos, por que seria diferente no caso da experiência religiosa?

26
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Posição D

• Hipótese de objeção: os relatos de experiência religiosa diferem radicalmente, e o testemunho


de um grupo religioso neutraliza a fé dos outros. A fé dos hindus anula a fé dos cristãos. A fé dos
ateus em experienciar a ausência de Deus anula a fé dos que acreditam.

• Resposta: há várias maneiras de responder a essa objeção. A fé para experienciar a ausência


de Deus pode ser mais bem entendida como o testemunho de não experienciar a presença de
Deus. Deixar de experienciar a presença de Deus pode ser uma justificativa para acreditar que
ele não existe, mas apenas na medida em que podemos acreditar que, se Deus existe, ele tem
de ser experienciado por todos. Os teístas podem até contestar a alegação de muitos ateus de que
é possível ser virtuoso e viver eticamente com a crença ateia. Se existe um Deus, talvez ele não
considere isso ruim, mas prefira que a vida virtuosa seja acompanhada de uma crença religiosa
sob determinadas condições de fé. A diversidade de experiências religiosas fez a argumentação de
alguns de seus defensores não evoluir muito. Há teístas que afirmam que esse argumento não é
forte o suficiente para justificar plenamente uma tradição religiosa específica, mas que é forte o
bastante para derrubar um naturalismo antirreligioso. Outros defensores teístas usam a tradição
específica de sua crença para lidar com afirmações ostensivamente concorrentes, baseadas em
diferentes tipos de experiência religiosa. Os teístas acreditam que experiências mais impessoais
do divino representam apenas um aspecto de Deus. Deus é uma pessoa ou um ser, mas também
pode ser experimentado, por exemplo, como pura unidade luminosa. Os hindus afirmam que a
experiência de Deus como pessoa é apenas um estágio da grande jornada da alma para a verdade,
e a maior verdade é que o brâmane transcende a personalidade do ser.

Como resolvemos nossa questão com Deus depende muito de nossas convicções gerais em relação
à filosofia. Podemos inclusive misturar de forma holística argumentos teístas e ateístas. Se não
acreditamos nas implicações da experiência religiosa e precisamos de uma prova contundente para
qualquer tipo de perspectiva religiosa, é muito provável que os argumentos clássicos para a existência
de Deus não nos convençam.

Ao analisar o pensamento dos principais filósofos modernos, vemos que, para Freud, a religião era
uma forma de lidar com nossos desejos; para Marx, um modo de manter as pessoas felizes para servirem
de mão de obra no capitalismo; para Durkheim, uma expressão coletiva de forças da sociedade.

Se entendemos que o quadro teísta é coerente e que o testemunho da experiência religiosa fornece
alguma evidência para o teísmo, apoiamos pelo menos um dos argumentos teístas clássicos, pois isso serve
para corroborar ainda mais aquilo em que já acreditamos. Desse ponto de vista, as explicações científicas das
ciências humanas do século XIX podem até esclarecer alguma coisa, principalmente por que algumas pessoas
não conseguem ter experiências de Deus. Mas combateremos a ideia de que não há realidade religiosa.

Reafirmamos que aqui não vamos discutir a crença ou não em Deus. Queremos apenas enfatizar a
existência de várias manifestações de espiritualidade, que são importantes elementos das religiões. Alguns
defendem a ocorrência de milagres como eventos extraordinários e insistem que eles servem de razão para
acreditar em agentes sobrenaturais. Desde que David Hume rejeitou os milagres, o debate se concentrou
27
Unidade I

principalmente em como alguém define esse fenômeno. Como devemos especificar os princípios de
evidência que explicam determinadas ocorrências históricas muito incomuns (TALIAFERRO, 2005a)?

Há diferentes argumentos para motivar a crença religiosa. Um dos mais interessantes em filosofia
relaciona-se a uma conjectura de Blaise Pascal (1623-1662). Essa conjectura foi feita com o intuito de
oferecer razões práticas para a crença em Deus. Imaginemos não estar seguros da existência de Deus.
Podemos viver a vida inteira sem precisar decidir se ele existe ou não. Por um lado, há bons motivos
para acreditar em Deus. Independentemente de nossa crença ser falsa ou verdadeira, nós nos sentiríamos
próximos de um bem maior. Por outro lado, também há bons motivos para não acreditar em Deus. Nesse
caso, nada mudaria se estivéssemos corretos. Se, no entanto, acreditássemos não haver Deus e estivéssemos
errados, nós nos arriscaríamos a perder o bem maior dos que seguem a crença de que Deus existe. Com
base nisso, parece mais razoável acreditar que Deus existe (SWINBURNE,1979).

Segundo Pascal, espírito e razão são conhecimento por conclusões,


mediado, enquanto o sentimento é conhecimento intuitivo e imediato.
Claro, sentimento aqui não significa sentimentalismo. Pascal opõe o
coração à razão, mas com a palavra coração não designa simplesmente
o irracional-emocional em oposição ao lógico-racional. A palavra coração
designa o núcleo ou o centro da pessoa humana (ZILLES, 1991, p. 35).

Note-se que o conflito entre ciência e religião se alastrou pelos séculos XVII e XVIII, e no mundo das
instituições sociais a ciência triunfou. Com a criação do Estado laico, administrado inteiramente por
princípios não religiosos, tudo o que antes era feito em nome da vontade de Deus passou a ser feito em
nome da vontade do homem e de seus modos de organização.

Hoje, com o surgimento das preocupações ecológicas de respeito e preservação do meio ambiente,
essa institucionalizada concepção científica da natureza volta a ser confrontada. Não podemos negar que
a ciência é uma conquista humana importante, mas é possível relativizar seu valor e passar a considerar
também a pertinência e a dignidade de outros modos de olhar para o universo e para o próprio homem.

Entendemos que o olhar do homem científico não deve excluir o olhar do homem religioso, pois
ambos refletem a forma de adaptação do ser humano a seu meio, que é ao mesmo tempo misteriosa,
operacional, poética e muitas outras coisas que nem sequer podemos ainda imaginar.

Uma questão que vem crescendo nos últimos anos é se podemos confiar na ciência cognitiva da
religião como comprovação da verdade ou da racionalidade do compromisso religioso. De acordo
com essa vertente, a crença em agentes sobrenaturais parece ser cognitivamente natural e de fácil
disseminação (BOYER, 2001). Assim, os cientistas estão tentando medir as experiências místicas e
religiosas com detectores de ondas que nossos sentidos não conseguem captar. Por enquanto, porém,
é muito cedo para afirmar qualquer coisa como resultado desses testes.

Atualmente, alguns autores afirmam que se está diante de uma realidade que apontaria para uma
possível implosão do conceito de religião e o próprio fim da religião. Fala-se ainda de decomposição
do religioso.
28
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

O fato é que se assiste a uma perda crescente de autoridade das instituições religiosas, um processo
de desinstitucionalização, de indiferentismo religioso e de carência de “vocação” ou interesse pelo
ingresso em ordens religiosas. Os pesquisadores do tema percebem que esse processo teve início na
década de 1990, época em que a religião teria virado artigo de consumo descartável.

2 PRIMEIROS ESTÁGIOS DA RELIGIOSIDADE

Desde o século XVII, no mundo ocidental, estudiosos têm especulado sobre o problema dos primórdios
da cultura humana, fazendo uso de dados empíricos sobre as crenças e práticas religiosas entre as
culturas do Novo Mundo, da África, da Austrália, do Pacífico Sul e de outros lugares.

Com isso, a religião se tornou uma das áreas de estudo que moldaram as ideias atuais sobre as
origens da consciência humana e das instituições. Nessas pesquisas, a religião é interpretada como
experiência humana e também como expressão dessa experiência, sendo vista como um modelo
primitivo da consciência humana, mais claramente observada em culturas primitivas.

Um dos modos mais generalizados de comportamento religioso em culturas primitivas se expressa


no uso de rituais e ações ritualizadas. As formas e funções dos rituais são variadas. Eles podem ser
realizados para assegurar o favor do divino, afastar o mal ou marcar uma mudança cultural no Estado.
Na maioria dos casos, mas não em todos, um mito etiológico fornece a base para o ritual, em um ato
divino ou de injunção.

A manifestação religiosa mais primitiva que o pesquisador Kipkoeech araap Sambu (2007) pôde
coletar em seus estudos sobre a constituição das religiões africanas foi a do povo Xhosa, que após
diversas migrações hoje se encontra na África do Sul. Esse povo canta com o intuito de convidar os
antepassados para uma festa. Durante o canto, conduzido pelo líder da unidade genealógica patrilinear,
eles oferecem aos antepassados um sacrifício. Amarram as patas traseiras de um bode ou de um boi e
penduram o animal. Puxam as cordas para esticar o tórax até que o animal emita um som. De acordo
com esse som, percebem se estão em comunicação com os antepassados e se a oferenda foi aceita por
eles. Se o animal grunhe ou berra, a ocasião é considerada um mau presságio.

Essa forma de sacrifício para o contato com os ancestrais também é utilizada pelo povo Kalenjiin.
A diferença é que eles buscam os presságios nas entranhas do animal abatido. Uma evolução do
pensamento religioso dos Xhosa para o dos Kalenjiin consiste no seguinte: para os Xhosa, a comunicação
é feita com os ancestrais; para os Kalenjiin, o emissor do presságio é Asiis, a divindade das profundezas
da terra. Com base no trabalho de Sambu (2007), podemos notar que uma transformação cultural
moldou todas as religiões monoteístas, processo que começou na África há milhares de anos.

Para os Xhosa, existe um Deus (Thixo), mas o povo não tem acesso a ele. O contato é feito por
meio dos espíritos ancestrais, izinyanya. Estes vivem perto de Deus e ao lado dos descendentes vivos.
Se os ancestrais desagradam a Deus, eles deixam os descendentes doentes ou lhes causam tristeza ou
sofrimento. Às vezes, quando estão felizes, os ancestrais aparecem nos sonhos das pessoas, e estas
conversam de forma alegre e vívida com pais, avós ou outros parentes falecidos. Outras vezes, porém,
os ancestrais estão zangados ou descontentes. Nesse caso, os espíritos dizem ter fome e querer carne,
29
Unidade I

e descrevem o animal que deve ser sacrificado – sempre um bode ou um boi; nunca uma fêmea.
Toda a família tem de assistir ao sacrifício e comer a carne. O espírito se alimenta apenas do aroma do
prato e fica feliz por ver que é amado e lembrado pela família. Como consequência, restaura a saúde e
a felicidade dos descendentes.

Sambu (2007) destaca os seguintes pontos sobre a religião Xhosa, os quais permitem a elucidação
filosófica da prática da veneração ancestral, uma preocupação em toda a África e a base para suas religiões:

• Existe um criador, mencionado como Deus único. O povo Xhosa sabe que ele existe, mas não o
conhece pessoalmente.

• O povo conhece pessoalmente seus antepassados, que por sua vez conhecem pessoalmente a Deus
porque se juntaram a ele. Os antepassados residem agora em algum lugar entre os vivos e Deus. Eles são
intermediários entre o homem e a divindade, não substitutos desta aos olhos dos vivos.

• Quem solicita alguma coisa conversa diretamente com os antepassados em sonhos, fazendo o
pedido para alguém a quem conhece, numa atitude familiar entre o vivo e o espírito ancestral.
Essa oração é retransmitida ao verdadeiro destinatário (Deus) pelos ancestrais, que estão agora
próximos dele e têm tal privilégio.

• Quem pede sabe que não pode desagradar aos ancestrais; que não pode ser egoísta ou agir de
forma repulsiva com os outros; que não pode ser negligente com a família e omisso no dever para
com os ancestrais. Se fizer isso, estará pecando.

• Se quem demanda algo de Deus ignorar as regras de boa conduta e se comportar sem pensar,
poderá ser punido imediatamente aqui na terra, por meio de doença, tristeza e melancolia.
A punição pelo divino é, portanto, aqui e agora.

Os espíritos que partiram tomam a iniciativa de se comunicar com os descendentes em sonho.


Eles orientam as pessoas e requerem alimentos. Pelo ato de alimentar o espírito falecido com animais
sacrificados, as virtudes da generosidade e da atenção plena aos outros são impostas ao mortal, que
através do sacrifício de animais que lhe são caros, demonstra suportar a amargura da separação, da
perda e da resignação.

Apenas mediante o sacrifício, a pessoa entra em comunhão com a família estendida e o espírito dos
antepassados falecidos. A fome do espírito do ancestral não é especificamente dele. É a fome coletiva
dos membros da linha genealógica da pessoa. Não é uma fome física nem uma exigência gananciosa.
É a fome da comunhão, o desejo de ver a manutenção e a continuidade do amor familiar, de constatar a
identidade como fator unificador, mesmo na ausência daqueles que se foram. Para isso, o que poderia ser
melhor que a fumaça e o aroma das oferendas queimadas, signos evidentes de um banquete em conjunto?

Mesmo que os espíritos pareçam tão exigentes, eles são atenciosos e só escolhem um boi ou um bode,
e não a fêmea dos animais. Esta deve ser mantida viva para ajudar a aumentar o bem-estar da família.
O divino, portanto, está interessado na felicidade e na prosperidade do povo. É possível lembrar-se
30
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

dele e dos demais membros da linhagem sem que isso implique custos ou despesas que, de alguma
forma, empobreçam a família. O que se exige é uma parte do lucro, não uma parte do capital.

Se tudo for feito no momento certo e de boa-fé, os antepassados, representantes de Deus, vão ficar
felizes e, no devido tempo, restaurar a saúde, a prosperidade e a felicidade. Se com boas ações, atenção
plena e generosidade, alguém tiver agradado às pessoas a seu redor, bem como aos ancestrais que
partiram, esse alguém terá conseguido agradar a Deus ao máximo. Se cada pessoa de uma família seguir
o caminho correto, a nação inteira, composta de unidades familiares, vai viver uma vida justa, que levará
à saúde e à prosperidade de todos (SAMBU, 2007).

A caracterização dessa forma muito antiga de crença religiosa revela padrões que depois serão
sofisticados pelas diversas culturas. Mas a base está dada. No desenvolvimento das religiões, cada uma
das etapas descritas ganha elementos que vão diferenciar um rito religioso de outro.

Uma problemática antiga dos estudos de religião diz respeito a se ela seria ou não um fenômeno
universalmente humano (Homo religiosus). Após muitos séculos de pesquisa sobre o tema, apenas se
pode afirmar que todas as civilizações passadas e atuais das quais se dispõe de documentação confiável
apresentaram ou apresentam algum tipo de manifestação religiosa. Somente essa constatação, porém,
não é suficiente para elaborar conclusões universalistas quanto a sociedades antigas sobre as quais
pouco se sabe ou quanto a sociedades futuras.

Também é relevante notar que o termo religião pertence a uma matriz latina e, portanto, é estranho
à linguagem das culturas antigas (excluída a romano-latina) e das culturas não europeias. Diante disso,
as interpretações que, historicamente, se fizeram do termo são muitas: escrúpulo, consciência, exatidão,
lealdade; um estilo de comportamento marcado por rigidez e precisão. Só a partir dos estudos de
Agostinho (354-430), enfatiza-se a exortação do homem para Deus, articulando-se religio a religando.
Com essa nova interpretação de religião, inicia-se a ideia de ligação, baseada na submissão e no amor
entre o homem e Deus.

Na atualidade, a ideia mais corrente é a de religare (tendo como fonte o termo latino relegere ou
religáre), que não significa, necessariamente, religação com um Deus, mas sim com a existência, o
cosmos, as dimensões invisíveis, o divino, o misterioso.

2.1 Elementos das religiões egípcias

Considera-se que uma das civilizações antigas mais preocupadas com as questões espirituais era
a egípcia. Esse povo se inicia cedo nas práticas religiosas. Sabe-se que suas expressões místicas mais
antigas provêm de 5000 a 4000 a.C.

A religião era indissociável da vida política e da rotina dos egípcios: tudo era uma expressão da
vontade divina, e os faraós eram sempre reverenciados como deuses encarnados. A crença religiosa
influenciava consideravelmente a vida das pessoas.

31
Unidade I

Por serem politeístas, os egípcios acreditavam em vários deuses e adoravam distintas divindades, as
quais poderiam representar forças da natureza, animais e figuras humanas. Alguns desses deuses eram
adorados por toda a população, enquanto outros estavam inseridos nas práticas religiosas de uma única
região. Além de politeístas, os egípcios costumavam homenagear figuras antropozoomórficas, seres cujo
corpo tinha partes humanas e partes animais.

Há séculos, os egípcios e sua religião têm exercido grande atração sobre o mundo ocidental. No Egito
antigo, todos os segmentos sociais praticavam a religião, sobretudo após a expansão faraônica durante
o Novo Império (1550-1070 a.C.). Pensavam o mundo a partir de sua experiência. Viviam num deserto
fecundado pelas águas “milagrosas” do rio Nilo. Para eles, o sol nascia e morria todos os dias, pois
desconheciam os movimentos de rotação da terra, interpretando o mundo como resultado de forças
superiores que se submetiam ao deus sol.

Duas características muito importantes da religiosidade dos egípcios eram os conceitos maat e heka.
O conceito de maat definia a importância de viver uma vida correta, a fim de manter a existência
harmônica no universo. O conceito de heka se relacionava à magia e afirmava a importância dela tanto
na criação do universo quanto na manifestação do poder dos deuses.

Um dos mitos mais importantes e antigos é o da cidade de Heliópolis, que se tornou o principal
centro religioso e sede do culto solar na época da construção das pirâmides de Quéops, Quéfren e
Miquerinos. Destacamos a seguinte narrativa:

No princípio era o Nu (Num), o oceano celestial, com sua característica de


imobilidade e totalmente estático – a visão do caos na concepção egípcia.
De seu interior surgiu o deus Atum autogerado (não confundir com Aton,
que surgiria na 18ª dinastia e representa o disco solar). Uma vez emerso
do Num, a primeira porção de terra também emergiu para acolher o deus.
Tal porção de terra era identificada por uma forma piramidal, frequentemente
associada a um obelisco (BREMMER-RHIND apud FUNARI, 2012, p. 48).

Segundo George Hart (1992), esse outeiro primitivo tornou-se formalizado como benben (bnbn),
uma elevação piramidal firme para sustentar Atum (ou Rá, o deus sol). As relíquias reais de pedra,
talvez consideradas o sêmen petrificado de Atum, eram citadas como sobreviventes no hewet-benben
(hwt-bnbn), a mansão do benben ou a mansão da pedra benben. O termo benben pode ser interpretado
como o raio de sol petrificado, e não necessariamente o sêmen.

Uma vez sustentado, o deus Atum inicia o processo de criação dos deuses, por atos oriundos da fala
ou da boca. Em outras variantes, essa criação foi produzida pela masturbação do deus. Diz-se ainda
que tudo ocorreu com a união de Atum com sua sombra (kaibit). Uma vez autogerado, Atum expeliu
o deus Shu e cuspiu a deusa Tefnut, estabelecendo a primeira tríade. Shu designava o ar, a atmosfera,
entre outros elementos (esse deus pode aparecer com a qualidade da luz solar). Tefnut simbolizava a
umidade do céu. Então, o casal Shu e Tefnut continuou a criação, gerando o casal Geb (terra) e Nut (céu).
Atum não tomou mais parte na criação, a não ser para gerar, de suas lágrimas, a raça humana.

32
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

O deus Geb tinha um caráter masculino, ao contrário do que ocorria em muitas sociedades
antigas, que estabeleciam uma sociedade feminina com a terra – “a mãe terra”. A deusa Nut,
por outro lado, representava o céu com estrelas, planetas e outros deuses. A barca de Atum-Rá
navegava 12 horas por dia em seu corpo. Tal jornada se iniciava em seu ventre, situado no leste,
e terminava aparentemente em sua boca, no crepúsculo, no oeste. Em seguida, uma nova fase foi
levada a cabo, com a geração dos quatro filhos do casal Geb e Nut: Osíris, que se tornaria o rei do
mundo inferior; Ísis, a senhora do trono; Seth, uma configuração das forças caóticas da natureza;
e Néftis, a senhora do castelo.

Um aspecto importante nessa fase da criação é o papel de Osíris e Seth, que expressavam certa
dualidade de princípios na forma masculina. Coexistem, assim, a terra fértil e a terra estéril, o vale do
rio Nilo e o deserto, a luz e as trevas, a ordem e o caos, Osíris e Seth. Ísis traduzia o aspecto materno, a
grande maga e consorte de Osíris, senhora do trono (de Osíris ou do Egito). Néftis, senhora do castelo ou
mansão, é chamada em árabe Nebthet. Esse castelo pode ser entendido como um lugar no firmamento
e a casa de Hórus. Assim, os deuses Atum, Shu, Tefnut, Geb, Nut, Osíris, Ísis, Seth e Néftis formaram a
Enéada de Heliópolis, ou seja, os nove deuses da criação. Aos deuses é agregado Hórus ou Heru, que
espelhava o faraó ou a própria raça humana.

Depois da partida de Atum-Rá para o firmamento, Hórus permanece vivo na terra, e Osíris reina
no mundo inferior. O processo da criação estava estabelecido. A natureza surgiu em algum ponto das
quatro fases da criação. A espécie humana, formada a partir das lágrimas de Atum-Rá, passou por um
processo diferente daquele do mundo natural.

Os deuses do panteão egípcio eram representados de três maneiras diferentes:

• Antropomórfica: forma humana.

• Zoomórfica: forma animal.

• Antropozoomórfica: forma humana e animal ao mesmo tempo.

Cada deus exercia uma função diferente e tinha sacerdotes específicos responsáveis por sua
adoração. Os sacerdotes no Egito antigo poderiam ser tanto homens quanto mulheres. Em geral, as
sacerdotisas prestavam culto a uma deusa; e os sacerdotes, a um deus, mas isso não era algo obrigatório.
Os sacerdotes do Egito enfrentavam um longo processo de capacitação e podiam constituir família
como qualquer outra pessoa.

Esses religiosos eram responsáveis pela adoração dos deuses e pela manutenção do templo,
bem como pela realização dos festivais. Também cumpriam um papel com a comunidade local,
realizando funerais e casamentos e atuando como curandeiros. A adoração aos deuses nos templos
era restrita a eles.

33
Unidade I

2.1.1 O mito de Osíris

O mito de Osíris, um dos mais antigos do Egito, foi fundamental para a religião do Estado egípcio.
Através dele, muitos fatos do cotidiano passaram a ser explicados e legitimados, como o direito ao trono
por Hórus e pelos faraós, as guerras, a vida após a morte e a criação do grande adversário, Seth.

Osíris casou-se com sua irmã Ísis. Como ele era o deus dos cereais, Ísis tornou-se a deusa dos cereais.
Eles eram rei e rainha do Egito. Seu irmão Seth, porém, casado com sua irmã Néftis, tinha ciúmes do casal
governante. Osíris havia ensinado os homens a trabalhar tanto na agricultura quanto na fabricação de
produtos de metal. Seus súditos, que nutriam um profundo amor por ele, narravam a história de que seu
enciumado irmão o matou, pôs seu corpo num cofre e o jogou no rio Nilo. Osíris, a vítima, era lavrador,
e Seth, o assassino, era pastor.

Na Bíblia, vemos esses papéis invertidos: Caim, o assassino, era lavrador; e Abel, a vítima, era pastor.
Talvez essa inversão de profissões no relato bíblico, a mais tardia das duas versões, se deva à atividade
pastoral dos hebreus.

Osíris foi assassinado antes de ter gerado um herdeiro ao trono egípcio. No entanto, Ísis encontrou
o corpo dele e o trouxe de volta, escondendo-o num pântano. Mais tarde, Seth o localizou e o cortou
em 14 pedaços, os quais espalhou pelo Egito. Ísis recuperou os pedaços em putrefação (exceto o órgão
reprodutor) e, com o auxílio de outros deuses, devolveu-lhe a vida, reconstituindo o falo perdido.
Com isso, Osíris foi capaz de engravidar Ísis antes de ir para o submundo (possível modelo para o céu
judaico-cristão) julgar os mortos. Osíris e Ísis deram vida a Hórus, o qual posteriormente vingou a morte
do pai e recuperou o trono (SAMBU, 2007).

Se por um lado o mito de Heliópolis retoma questões que explicam a origem dos deuses, do mundo
e do homem, o mito de Osíris demonstra os modos de conduta da sociedade antiga equiparando dois
reis: um justo e bom (Osíris), o outro mau e obcecado pelo poder a todo custo (Seth). Ressalta-se o papel
de Ísis como mulher dedicada e esposa leal, que busca o marido de forma incansável e o reconstitui
completamente, a ponto de conseguirem ter um filho, Hórus.

2.1.2 O significado religioso do mito de Osíris

Um elemento central na religião dos egípcios era a crença na continuidade da vida após a morte.
Os egípcios acreditavam que a vida terrena era apenas uma etapa de uma jornada que continuaria;
por isso, seria necessário levá-la da maneira mais justa possível. Os atos realizados em vida eram
extremamente importantes, porque definiriam o destino de cada pessoa.

Os egípcios viam o corpo humano como um conjunto de potencialidades que não se esgotavam
na vida terrestre, mas que se completavam na existência do além-túmulo. Aquele que obtivesse
sucesso em viver segundo os princípios de Maat, deusa da justiça, adquiriria os méritos para se tornar,
ele também, um osíris, revivendo num mundo ideal.

34
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Eis por que o corpo humano não podia desaparecer com a morte, pois de sua conservação dependia
a preservação de algumas das potencialidades que o defunto necessitaria para viver feliz na outra vida.

Esse mito era utilizado pelos sacerdotes egípcios para cultuar o poder regenerador da terra, em
especial no que se referia a sua íntima ligação com a agricultura. Da mesma maneira que a semente
lançada ao solo, após morrer, renasce, o homem que morre e é sepultado de acordo com os ritos
instituídos pelos deuses renasce revigorado e com a capacidade de viver eternamente. Seu espírito,
iluminado pela luz de Rá, torna-se um deus na forma de uma estrela. Assim, toda estrela no céu é a
representação de uma alma lá admitida.

A crença na vida após a morte explicava a preocupação dos egípcios com a conservação dos corpos,
uma vez que a continuidade da vida estava condicionada a sua preservação na terra. Desse ponto de
vista, era necessário que os corpos fossem cuidados. Por isso, os egípcios mumificavam seus mortos.

Pelas informações obtidas por pesquisadores egípcios, a mumificação era realizada em um longo
processo, que se estendia por aproximadamente setenta dias. Durante a mumificação, os órgãos eram
retirados, e o corpo era limpo e banhado com óleos e resinas especiais, sendo em seguida enfaixado.

No túmulo eram colocados alimentos e uma série de objetos, como joias e estátuas. No entanto, o
processo mais conhecido era restrito à nobreza, a única que tinha condições financeiras de pagar por ele.

A religião egípcia partia do princípio de que, antes dos registros históricos, existia uma estreita relação
de criação entre deuses e homens: os primeiros eram os mestres da construção universal; os outros,
seus aprendizes. As ações feitas no céu refletiam na terra, e vice-versa, havendo uma responsabilidade
recíproca na formação e no equilíbrio do cosmos. Isso ocorreu até o momento em que esse elo foi
rompido, com desordem, desarmonia e injustiça no universo, e só voltará a acontecer quando as virtudes
da justiça e da perfeição forem restabelecidas.

O modo como os egípcios enterravam seus semelhantes era uma forma de celebrar a vida: as
ilustrações que enfeitavam o interior das catacumbas exaltavam a cultura, a caça e a pesca, e os
ornamentos de alto valor enterrados com os mortos os guiavam para a vida eterna, na qual seu labor
continuaria normalmente. Os egípcios eram apaixonados pela vida, não pela morte.

Entre as religiões antigas, a egípcia é considerada uma das mais preocupadas com questões espirituais,
repleta de rituais e deuses. Estes variavam de região para região e, além de sábios, eram detentores de
uma poderosa magia. Não havia um sistema teológico dogmático. A fé egípcia era centrada no acúmulo
de incontáveis mitos antigos, no culto à natureza e a inumeráveis divindades.

É interessante notar que os deuses egípcios formavam várias famílias aparentadas e representavam
uma hierarquia. Quando lembramos que nos ritos antigos eram os parentes falecidos que intercediam
pelos vivos, entendemos que os deuses egípcios eram representações adotadas por crenças familiares
ligadas à atividade produtiva e ao local geográfico de residência.

35
Unidade I

No tocante à criação, os egípcios acreditavam que Nu, o espírito da água primeva, na imensa
escuridão, sentiu o desejo de exercer a atividade criadora, e o mundo passou a existir imediatamente
por intermédio da pronúncia de sua palavra, de uma maneira previamente traçada em seu espírito, com
uma semente (algumas versões falam em ovo ou flor) na qual habitava o deus sol (Rá), que tinha uma
forma brilhante e o poder absoluto do espírito divino.

O deus Seth tornou-se a encarnação do espírito do mal, existindo em eterna oposição ao espírito
do bem. Ele era duro e selvagem desde o dia em que nasceu, quando abriu violentamente o ventre de
sua mãe. As lendas descrevem Seth com a pele branca e o cabelo vermelho, uma abominação para os
egípcios, que comparavam sua pele com a de um asno sem pelos.

Os gregos, como nos informa Heródoto, adotaram muitos deuses egípcios, entre eles, Seth, o qual
renomearam de Tufão. Este era um deus da violência e do tumulto. O vermelho ficou associado tanto a
Seth quanto a Tufão, motivo pelo qual egípcios e gregos tinham prevenção contra ruivos e animais de
cor vermelha.

Observação

Os reis egípcios eram considerados deuses vivos, e o povo egípcio


acreditava que essas autoridades eram descendentes de Rá e a encarnação
de Hórus.

2.2 Aquenáton e o monoteísmo

Aquenáton, faraó da 18ª dinastia egípcia, é considerado o primeiro reformador religioso da


história da humanidade. Governou o Egito antigo entre 1353 a.C. e 1336 a.C. Também conhecido
como Amenófis IV, passou para a história como aquele que fez importantes transformações sociais e
religiosas no Egito.

Observação

Para seus súditos, o faraó era filho de deuses e deus ele próprio. Tinha
poder absoluto, dispensava justiça e era o administrador supremo do país.

Os deuses egípcios costumavam ser representados com cabeças de animal sobre corpos humanos.
Eles dominavam todos os aspectos da vida no Egito, tanto da realeza quanto das pessoas comuns.
Os deuses menores protegiam as pessoas do mal. Os poderosos, como Osíris, deus dos cereais, tomavam
conta da fertilidade ao redor das margens do Nilo. Amon-Rá era o maior de todos os deuses e, com o
auxílio de Mut, Tot, Anúbis, Sekhmet e Uadjit, controlava as coisas visíveis e invisíveis no Egito antigo.

36
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Observação

Durante o Novo Império, fundiram o deus Amon com Rá, formando


Amon-Rá.

Curiosamente, foi também no Egito que surgiu a ideia de monoteísmo. Em 1390 a.C., Amenófis III tornou-se
faraó. Seu segundo filho, igualmente chamado Amenófis, foi proclamado rei aos 15 anos de idade, governando
com o pai até este falecer. Em 1353 a.C., ao assumir o trono, mudou o próprio nome para Aquenáton e deu
início a uma revolução religiosa, abolindo a devoção politeísta e privilegiando o monoteísmo.

Desde o início de seu reinado, Aquenáton e sua mulher, Nefertiti, decidiram desafiar todo o sistema
religioso do Egito antigo. Dispostos a sacudir as bases de sua sociedade, criaram ideias que levariam o
império à beira do abismo. O casal começou a reinar durante os anos dourados da civilização egípcia,
quando o império era o mais rico e poderoso do mundo. As colheitas eram abundantes, a população era
bem alimentada, os templos e palácios reais estavam cheios de tesouros e o exército alcançava inúmeras
vitórias contra todos os inimigos.

Após o quinto ano de reinado, Aquenáton transferiu a capital religiosa do Egito de Uaset (também
designada como Tebas depois que o Egito foi dominado pelos gregos) para um novo centro de adoração
situado entre Luxor e Cairo, conhecido atualmente como Tell el-Amarna ou Amarna. Hoje essa cidade tem
palmeiras e campos, mas naquela época era um local árido e desértico, ou seja, foi uma escolha pouco popular.
Quando os arqueólogos buscaram evidências que explicassem essa decisão sem precedentes, encontraram
17 estelas demarcando os limites externos da cidade. Uma delas trazia uma espécie de decreto, que dizia a
todos que entravam na nova cidade que ela havia sido criada para a adoração do único deus: Aton.

Observação

Estelas são placas de pedra, madeira ou faiança com inscrições e


imagens. Através delas, se conhece muito da história do Egito.

Aton era originariamente um pequeno deus simbolizado pelo disco solar. Depois da determinação de
Aquenáton de que Aton era o único e verdadeiro deus do povo egípcio, o próprio sol passou a representar
Aton, que tinha de ser adorado como o criador universal da vida. A prática religiosa abandonou os vários
deuses e adotou apenas um deus poderoso, criador de todas as coisas.

A ideia era revolucionária: pela primeira vez na história, um faraó queria substituir o panteão de
deuses egípcios por uma única divindade, o deus sol, ou Aton, o criador de todos. Além de revolucionária,
a proposta era uma heresia. No entanto, uma vez que o faraó era considerado um deus na terra, ele
tinha poderes ilimitados para modificar o que quisesse. Decretou que os 2 mil deuses adorados no Egito
havia mais de um milênio estavam extintos. Suas aparências humanas e animalescas foram substituídas
pela forma abstrata do sol e de seus raios.

37
Unidade I

Observação

Sabemos que a câmara cerimonial sagrada e outras estruturas religiosas


em Amarna foram erigidas sem telhado para que o disco sagrado do sol
fosse adorado diretamente.

Depois de dez anos, Aquenáton transformou o deserto numa capital movimentada, mas esse feito
teve um custo: muitos trabalhadores morreram por conta dos castigos físicos e das severas condições
impostas. Esse período ficou conhecido como os anos sombrios, chegando a pôr a sobrevivência do
império em risco: em 1344 a.C., a corte real tinha em torno de 30 mil súditos.

Os arqueólogos supõem que, para realizar os caprichos do faraó, exigia-se fisicamente muito do
povo. Num cemitério encontrado em Amarna, onde estão enterrados servos, trabalhadores e pessoas
comuns, chegaram à constatação de que muitos morriam jovens e poucos viviam além dos 32 anos.
As ossadas de trabalhadores foram estudadas por bioarqueólogos, os quais concluíram que a maioria
dos esqueletos tinha traumas lombares, o que sugere quedas devido ao peso da carga.

Quando Aquenáton morreu (1336 a.C.), depois de 17 anos no trono, reinava o caos no país. Seu filho
de 9 anos de idade, Tutancâmon, assumiu o comando sob a regência de Nefertiti. A antiga religião foi
restaurada pelos sacerdotes de Amon-Rá, que estavam ansiosos para reaver seu prestígio. Com isso,
a capital do império no deserto foi abandonada e destruída, o deus solar Aton foi tirado do panteão
egípcio e seus monumentos foram arrasados. O nome de Aquenáton nunca mais apareceu em qualquer
lista de reis feita pelos faraós subsequentes. O legado de Aquenáton ficou oculto por mais de 3 mil anos.

Saiba mais

Foi Tutancâmon quem resgatou os antigos deuses e restaurou o poder


e a prosperidade do Egito. Os sacerdotes recuperaram seu antigo poder, e a
vida retornou à normalidade. Nenhum outro faraó egípcio voltou a tentar
mudar a ordem estabelecida e desafiar a religião tradicional. Os que vieram
após Aquenáton se esforçaram por destruir todos os registros de seu culto
herege. Suas estátuas foram derrubadas, e as pedras dos templos, usadas
como material para a construção de novos prédios. As rochas esculpidas
foram escondidas para que ninguém voltasse a vê-las. Isso acabou
preservando-as para a posteridade. Na década de 1920, elas começaram
a reaparecer. Muito do que sabemos de Aquenáton e do culto a Aton vem
delas. Leia mais em:

A REVOLUÇÃO de Aquenáton, o faraó que acabou com 2 mil deuses e


instaurou o monoteísmo no Egito. BBC Brasil, 15 jul. 2017. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-40602931. Acesso em: 6 jan. 2020.

38
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Figura 1 – Busto da rainha Nefertiti, esposa do faraó Aquenáton

Uma questão que ainda não foi resolvida refere-se à intenção de Aquenáton ao adotar o deus
sol. Uma teoria muito polêmica diz que ele tinha um problema visual grave devido a sua herança
genética. No Museu do Cairo, a estátua que representa Aquenáton parece demonstrar que ele tinha uma
doença nos olhos, provavelmente miopia. Ele adoraria o disco solar porque seus raios brilhantes o fariam
enxergar melhor, ou seja, essa adoração ocorreria mais por necessidade fisiológica do que por devoção.
Interpretações contemporâneas, por outro lado, sugerem um rompimento na maneira de acreditar na
divindade. O deus Aton não era retratado numa forma antropomórfica, mas como o próprio disco
solar, elevado aos céus, estendendo seus múltiplos raios sobre a família real. Cada raio terminava numa
pequena mão com a qual Aton podia oferecer a vida.

Os dogmas religiosos que Aquenáton adotou em sua adoração a Aton não estão detalhados em lugar
nenhum. Algumas suposições foram levantadas a partir da reconstituição da iconografia de relevos, das
estelas do templo (que descrevem tanto o templo quanto a divindade) e do extenso texto religioso
encontrado nas escavações de vários túmulos em Amarna, o hino de Aton. Nas incontáveis cenas de
oferenda preservadas, Aquenáton não é retratado olhando o deus cara a cara, como era a regra para
representar as práticas tradicionais de devoção, mas erguendo oferendas ao disco solar, que o banha
com seus raios. O faraó se colocava, portanto, abaixo do deus sol, criador da vida.

Os diálogos recíprocos entre rei e divindade, que aparecem regularmente nas cenas tradicionais
pintadas nos templos egípcios, validando as bênçãos proferidas pelos deuses, não existiam na religião
de Aquenáton, pois a divindade principal não tinha boca para falar. Sentia-se sua luz e seu calor, e assim
seu poder divino.

O hino de Aton é, em grande parte, uma descrição de efeitos naturais. Ele apresenta o disco solar como
o principal motor da vida, cuja elevação diária rejuvenesce todas as coisas vivas na terra e em cujo ambiente
todas as criaturas vão dormir. Embora esteja escrito que Aton criou o mundo para os seres humanos, parece
que o objetivo maior da criação era realmente o próprio rei, que tinha uma conexão íntima e privilegiada

39
Unidade I

com o deus. A revelação e o conhecimento divino eram reservados apenas a Aquenáton. O hino, porém,
não explica os mistérios da divindade. Certas passagens dele são compartilhadas por uma tradição literária
mais abrangente, ou seja, não são exclusivas da religião de Aquenáton.

Embora Aquenáton seja considerado o primeiro monoteísta do mundo, a religião de Aton pode ser
mais bem descrita como uma monolatria, a adoração preferencial de um deus sobre todos os outros.
De fato, o deus de Aquenáton incorporou vários aspectos do sol divinizado tradicional, como
Re-Harakhte (o sol nascente), Shu (atmosfera e luz solar) e Maat (filha de Re). Ainda assim, não podemos
deixar de considerar que essa proposta de religião monoteísta aconteceu setecentos anos antes do
primeiro registro dos hebreus, quando a Bíblia começou a ser escrita (MARK, 2014).

É de supor que a ideia de Aton como uma divindade todo-poderosa, todo-amorosa, criadora
suprema e mantenedora do universo, tenha tido uma forte influência no desenvolvimento da fé religiosa
monoteísta. Não sabemos se Aquenáton foi motivado por uma questão política para suprimir o poder
do culto de Amon, a religião principal em todos os reinados anteriores, ou se ele teve alguma revelação
religiosa. O caso é que esse foi o primeiro registro de alguém que vislumbrou a ideia de divindade única
e suprema, preocupada com a vida individual e o destino dos seres humanos.

Aquenáton fracassou ao tentar mudar para sempre a religião egípcia, mas êxitos menores lhe
proporcionaram a imortalidade que reivindicou em vida. Promoveu um vibrante movimento artístico
que gerou quadros realistas da vida cotidiana na época. Seus engenheiros criaram blocos de construção que
se tornaram material útil para estruturas posteriores, permitindo que as narrativas neles inscritas
sobrevivessem por milênios. E hoje Amarna, sua capital abandonada, é o único local onde visitantes
podem caminhar pelas ruas de uma antiga cidade egípcia.

Segundo Sigmund Freud, no livro Moisés e o monoteísmo, de 1939, Moisés era um egípcio que teria
sido adepto do culto de Aton e expulso do Egito após a morte de Aquenáton. Freud cita o arqueólogo
James Henry Breasted, o qual dizia que o próprio nome Moisés era egípcio – a palavra egípcia mose
significa “criança”. Freud afirma que o culto de Aton existia muito antes de Aquenáton promovê-lo,
mas ressalta que o faraó acrescentou um novo componente na religiosidade: a doutrina de um deus
universal, exclusivo (MARK, 2014).

3 AS RELIGIÕES AFRICANAS

Antes de abordar as principais características das religiões africanas, é importante voltar ao significado
do conceito de religião e, principalmente, à aplicabilidade do conceito de religião à vida e ao pensamento
africano. Essa discussão é necessária não só pelo fato de que a palavra religião não é africana como
também por ser duvidoso que haja uma palavra única ou até mesmo uma tradução perifrástica da
palavra em qualquer língua africana. Vale destacar, porém, que o fenômeno existia entre os povos
africanos. Os primeiros observadores europeus perceberam que esses povos eram preeminentemente
religiosos, nem mesmo sabendo viver sem religião.

Ocorre que alguns dos primeiros visitantes europeus opinaram livremente sobre a mente africana,
dizendo que ela estava numa condição muito rude para ser capaz de sentimento ou percepção religiosa.
40
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Atualmente, diversos estudiosos têm demonstrado interesse em provar que os povos africanos, por
suas próprias luzes e bem antes de um europeu pisar na África, foram capazes de desenvolver a
crença em Deus.

As religiões tradicionais africanas não têm textos escritos ou livros sagrados, mas se baseiam na
tradição – ou narração passada de geração para geração – sobre o conteúdo e a maneira de viver sua
religiosidade. Isso se dá em forma de histórias, ritos, provérbios, danças, músicas e festas. Um erro
comum é supor que todos os povos africanos sejam da mesma raça e compartilhem a mesma origem, o
que também leva a pensar que tenham os mesmos costumes e a mesma religião. Isso não corresponde
à verdade, pois o continente africano é muito grande e abriga uma infinidade de culturas diferentes.

Apesar dessa diversidade, a religião tradicional africana distingue dois aspectos da realidade:
aquilo que é visível, físico e material; e aquilo que é invisível e espiritual. Esses dois aspectos fundem-se
entre si, ou seja, nenhuma coisa do mundo físico é tão material que não contenha em si elementos
do mundo espiritual. Isso conduziu à crença de que há espíritos nas pedras, nas montanhas, nos rios,
nas árvores, nos trovões, no sol e na lua. Por esse motivo, a religião tradicional africana é muitas vezes
chamada de animista.

Observação

Animismo é a ideia de que todas as coisas, incluindo pessoas, animais,


características geográficas, fenômenos naturais e objetos inanimados,
possuem um espírito que as conecta umas às outras.

Enquanto o relato bíblico do Gênesis sugere uma antiga influência egípcia, visto que o registro
egípcio antecede a escrita da Bíblia, a narrativa Dogon, de uma cultura tribal que se espalha entre
Níger, Mali e Burkina Faso, sugere um caráter pan-africano. Segundo a religião Dogon, Deus começou
a criação com dois gêmeos masculinos. Um deles, Yurugu, se rebelou e se transformou numa raposa
pálida, o inimigo da luz – a raposa é um animal noturno, da água e da fertilidade. Conceitualmente,
Yurugu pode ser considerado um deus da escuridão, como Seth, o qual também é um rebelde e também
é representado como uma raposa (SAMBU, 2007).

O gêmeo de Yurugu, Nommo, foi sacrificado e ressuscitado por Deus para mitigar a desordem causada
pela raposa. Esse gêmeo corresponde a Osíris, que foi morto por Seth e depois ressuscitado por Ísis. Assim,
Nommo e Yurugu representam princípios opostos: ordem e desordem, vida e morte, secura e umidade.
Yurugu, a raposa, teve a língua cortada, mas ainda podia predizer o futuro com as patas, sendo respeitado
por isso. Yurugu se assemelha a Seth de outras maneiras – por exemplo: ele também nasce prematuramente,
saindo primeiro de sua mãe, perturbando a sequência ordenada de nascimento de gêmeos.

Hórus, filho de Osíris, era representado pelos artistas como um homem com cabeça de falcão. Ele era o
deus do céu e mais tarde foi adotado pelos gregos sob o nome de Apolo, divindade cujas sacerdotisas também
podiam predizer o futuro. Hórus era o herdeiro do trono de Osíris. Por conseguinte, todos os faraós tornaram-se
herdeiros do trono, porque se acreditava que fossem encarnações de Hórus. Ele era o símbolo da realeza
41
Unidade I

divina. A palavra para rei divino era um hieróglifo com um falcão em seu poleiro. A escolha de um falcão
para representar Hórus, assim como de um chacal ou um cão para representar Seth, talvez tenha origem no
totemismo egípcio antigo. A luta entre Seth e Hórus pode, portanto, ser apenas uma representação tardia da
luta pelo trono entre dois homens, um do clã dos chacais, o outro do clã dos falcões (SAMBU, 2007).

Os Kalenjiin acreditam não apenas na vida após a morte, mas também na retomada da vida na
terra, regressando o indivíduo como um bebê humano. A transferência de alma de um corpo para outro
é chamada metempsicose pelos gregos, sendo ainda conhecida como reencarnação, transmigração
da alma ou renascimento. Os Kalenjiin creem na infinitude do ciclo dos espíritos, entrando e saindo
de corpos por toda a existência. Até hoje muitas religiões africanas consideram o espírito muito mais
importante que o corpo, o qual é uma morada temporária do espírito.

Segundo Heródoto, a crença grega no fenômeno da metempsicose seria originária do Egito.


A reencarnação foi defendida tanto por Platão quanto pelos neoplatônicos. Acredita-se que o
desenvolvimento dessa noção decorra do exame das características familiares nas crianças e da
dedução de que as similaridades entre avós, pais, netos e bisnetos sejam propriedades reencarnadas.
A reencarnação está associada a religiões dominadas por uma deusa mãe, como a de Ísis (do Egito
antigo) e a de Asiis (dos Kalenjiin). Sambu (2007) chega a afirmar que Asiis seria uma apropriação de Ísis.

De acordo com os Kalenjiin, a alma de uma pessoa falecida será lembrada por meio de um bebê vindo à
luz depois de sua morte, o qual deverá nascer de um homem da linhagem paterna da pessoa que morreu.
A criança assumirá o nome da pessoa falecida e, às vezes, até mesmo sua persona nos afazeres da tribo. É de
esperar que isso aconteça, pois o espírito que a guarda, seu anjo da guarda, é o falecido. A alma que carrega
e suas qualidades, enquanto duplicata, não permitirão que ela seja melhor do que o original. O falecido duplo
estará continuamente guiando sua duplicata viva. Para isso, porém, é importante seguir o caminho de Maat,
da justiça. Os criminosos, os desajustados sociais e os fracassados economicamente, quando morrem, não
costumam voltar à vida na terra por meio da reencarnação. Tais pessoas são aquelas que vão para o “inferno”.

Os romanos adotaram uma ideia religiosa semelhante. Eles acreditavam que cada homem tinha seu
gênio e cada mulher, sua juno, em alusão à esposa de Júpiter. Na perspectiva deles, esses espíritos lhes
davam a existência e eram seus protetores durante a vida. No dia de seu aniversário, os homens faziam
oferendas ao gênio, e as mulheres, à juno (SAMBU, 2007).

A crença na reencarnação também esteve presente nas religiões celta e teutônica, no gnosticismo e
em algumas formas esotéricas do judaísmo, entre as quais se incluía a irmandade dos essênios, a seita
a que muitos estudiosos consideram que Jesus pertencia. As religiões e as culturas que não acreditam
na visão cíclica do tempo, como o judaísmo dominante, o cristianismo e o zoroastrismo, tendem a ser
aquelas que não acreditam no conceito de reencarnação.

O inferno no sentido de fogo eterno, ou de outras formas de tortura sádica sem fim, não existe
na teologia de Asiis. Há uma ideia de abaixo, que nesse contexto é a tradução correta para ng’wony.
Esse termo, que significa ainda “solo” ou “subterrâneo”, no âmbito espiritual, refere-se ao oposto dos
céus, o lugar onde Asiis vive sozinha. Os espíritos encontram-se num local abaixo do plano da terra, o
que não é a mesma coisa que no mundo subterrâneo.
42
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Acreditava-se que a diligência e a justiça levavam à acumulação de riqueza espiritual. A diligência ampliava
a riqueza do indivíduo através do aumento de seu rebanho. Seu viver justo e a abundância de bênçãos
advindas dele eram uma garantia contra punições divinas, civis e criminais, as quais reduziriam a riqueza e ao
mesmo tempo a espiritualidade do indivíduo. Uma doutrina religiosa próxima disso é o hinduísmo.

De acordo com a crença hindu, o efeito cumulativo do carma de uma pessoa, segundo seus deveres
desempenhados na terra, a impulsiona para o próximo status, para uma nova vida compatível com seu nível
de diligência e retidão. Um hindu procura a moksha, a salvação, que significa sua reunião final com Brahman.
Para alcançar a moksha, ele deve completar três objetivos na vida: dharma, a conduta correta; artha, a aquisição
de bem-estar econômico, a prosperidade terrena; e kama, os prazeres mundanos, o gozo das coisas na vida.

Tanto a religião de Asiis quanto o hinduísmo afirmam que a posição de alguém no além é criada por
cada um para si mesmo, por meio de sua conduta social, religiosa e econômica na terra.

Saiba mais

Para se aprofundar no hinduísmo, leia:

MATHUR, S. N.; CHATURVEDI, B. K. Deuses e deusas hindus: sua


hierarquia e outros assuntos sagrados. Tradução: Selma Muro Borghesi. São
Paulo: Madras, 2008.

Essa filosofia teológica remonta aos tempos egípcios. No Egito, o falecido desejava ser incluído na
equipe de oficiais do deus sol. Nessa perspectiva, a forma de existência na terra se espelhava entre os
deuses no outro mundo; muitas características do futuro eram a continuação do estado das coisas na
terra. No caso dos Kalenjiin, a hierarquia na esfera divina se refletia na riqueza expressa pelo número de
cabeças de gado que Asiis tinha. Todo indivíduo aspirava a estar mais perto do divino, cuja proximidade
aparentemente se media pela quantidade de gado que possuía (SAMBU, 2007).

As almas que partiram guiam e protegem as pessoas vivas. No entanto, há almas penadas, que
desorientam os vivos, os fazem cometer pecados e às vezes causam doenças. São almas perversas,
que na terra foram fracassados morais e econômicos. Também podem ser almas que partiram e que
sentem ter sido prejudicadas pelos ainda vivos, seja na morte, seja antes dela. Alguns espíritos, mesmo
os bons, que desejam reencarnar em recém-nascidos, podem incomodar os membros da família até que
sejam ritualmente persuadidos a desistir, ou até que finalmente ganhem a oportunidade de reencarnar.

Como era crença entre os antigos egípcios, o espírito dos mortos incomoda apenas os membros
da própria família. Ser impedido de reencarnar é a verdadeira e séria condenação do espírito, e isso
pode significar para ele estar no inferno, estar perdido para sempre. Os espíritos que reencarnam são
afortunados, e seu prazer só pode ser descrito nos termos associados à vida no céu, no sentido cristão.

43
Unidade I

Considerando esses elementos, verificamos que as religiões africanas, desde a crença mais antiga dos
Xhosa até a construção de panteões pelos egípcios, algo posteriormente refletido nos diversos cultos
africanos, criaram não só um padrão para o politeísmo, mas também as bases para o monoteísmo, na
medida em que este é uma reinterpretação daquele, como vimos no culto de Aton.

As religiões de matriz africana foram incorporadas à cultura brasileira há muito tempo, quando
os primeiros escravizados desembarcaram no país e encontraram em sua religiosidade uma forma de
preservar tradições, idiomas, conhecimentos e valores trazidos da África. Roger Bastide (1971) diz que as
derivações no Brasil das religiões africanas criaram os candomblés. Vamos examinar essas derivações e
seu sincretismo com o catolicismo.

3.1 Candomblé

O candomblé é uma religião monoteísta que acredita na existência da alma e na vida após a morte.
A palavra candomblé significa “dança” ou “dança com atabaques” e designa uma das religiões africanas
mais praticadas no mundo. Essa religião cultua os orixás, normalmente, reverenciados por meio de
danças, cantos e oferendas.

No Brasil, a história do candomblé se mistura com a do catolicismo. Proibidos de continuar com


sua religião, os escravos usavam as imagens dos santos para escapar da censura imposta pela Igreja.
Isso explica o sincretismo encontrado no candomblé brasileiro, algo que não se verifica na África.

De forma geral, as religiões africanas no Brasil podem ser definidas como o conjunto de práticas religiosas
caraterizadas por invocação e adoração de entidades de origem africana. Tais cultos foram trazidos por
indivíduos negros da África, importados para serem escravos nas plantações de cana-de-açúcar e em outras
atividades entre os séculos XVI e XIX. Dois grupos se destacavam: os que vinham do Congo, de Angola e de
Moçambique, conhecidos como Banto; e os que vinham do Benin, da Nigéria e do Sudão, conhecidos como
Ioruba, Nagô e Jeje.

Nessa época, o catolicismo, trazido pelos brancos portugueses, era a religião oficial do Brasil.
A junção de práticas religiosas dos escravos de diversas regiões constituiu o culto afro-brasileiro,
reprimido pelas autoridades por ser visto como bruxaria. Com isso, os africanos tiveram de levar uma
vida religiosa velada, cultuando seus deuses secretamente, muitas vezes, identificando-os com os
santos da Igreja Católica, praticando o sincretismo. Uma das formas de disfarce era a reza para Santa
Bárbara ou para Nossa Senhora da Conceição, santas católicas. Na verdade, eles estavam cultuando,
respectivamente, Iansã e Iemanjá.

Observação

Sincretismo é a prática religiosa que provém da fusão de outras.


O sincretismo religioso tem suas maiores expressões no Brasil em razão da
colonização e da formação do povo brasileiro.

44
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

As continuidades e rupturas da prática religiosa segundo o povo de origem das entidades estão
fixadas na base do surgimento do candomblé e de suas divisões, a umbanda e a quimbanda, todas
marcadas pelo sincretismo, com o uso de velas, rezas, santos etc., elementos típicos do catolicismo.
Os africanos que vieram ao Brasil trouxeram sua cultura: dialetos, costumes, tradições e práticas
religiosas, elementos sustentados como forma de manutenção da etnicidade que os definia.

Lembrete

A mistura de práticas religiosas de escravos oriundos de várias partes da


África consolidou o que hoje se chama culto afro-brasileiro.

O candomblé é uma manifestação religiosa de origem africana que se caracteriza pelo uso de batuques,
instrumentos percussivos, curas, magias, adivinhações, bem como pela adoração, invocação e oferenda
aos orixás, Exu e Oxalá. Os orixás podem ser bons ou maus, pois no candomblé o bem e o mal não existem
isolados. Cada um exerce uma função na interação com os seres humanos (D’OBALUAYÊ, 2017).

No tocante aos praticantes do culto, inicialmente, incluíam apenas a população negra das senzalas, dos
quilombos e dos terreiros (moradas dos escravos). Após a abolição da escravatura, a proclamação da República
e o crescimento dos centros urbanos, criou-se um ambiente propício para a organização de experiências
religiosas mais estáveis e regulares, com a participação de indivíduos de todos os estratos sociais.

No Brasil destacam-se quatro subdivisões do candomblé:

• Queto: praticada majoritariamente na Bahia, da nação Nagô, com o uso da língua ioruba (advinda
de Benin, Nigéria e Sudão).

• Angola: praticada principalmente na Bahia e em São Paulo, da nação dos povos Banto, de Angola,
Moçambique e Congo. Espalhou-se também por Minas Gerais, Goiás e Rio de Janeiro, sendo
representada por caboclos, as entidades da mata.

• Batuque: praticada no Rio Grande do Sul.

• Xangô: praticada em Pernambuco.

As principais diferenças entre os vários tipos de candomblé remetem à origem das entidades invocadas:

• Ioruba, Iorubano ou Nagô: grupos étnicos da Nigéria e do Sudão. Falam a língua ioruba.

• Jeje: também conhecido por Ewe, é um grupo étnico proveniente de Gana, Benin e Togo. Fala a
língua ewe.

• Fon ou Fon Nu: são a população da região sul de Benin e Togo, do reino Daomé. Falam a língua fon.

45
Unidade I

Para ordenar e celebrar da melhor maneira os cultos, existem sacerdotes e instrumentistas, além de
outras funções geralmente associadas à organização social (D’OBALUAYÊ, 2017). Os sacerdotes, líderes
das cerimônias, são chamados babalorixá (masculino) e ialorixá (feminino). Qualquer pessoa pode
participar dos cultos de louvor aos orixás. Estes, quando satisfeitos, incorporam nos fiéis para fortalecer
o axé (a energia vital), a fim de proteger tanto a eles quanto ao local de culto.

É importante observar que, embora qualquer pessoa possa participar da cerimônia, a condução dela só
pode ser feita pelos iniciados, ou seja, por aqueles que passaram pela observância ritualística: sacrifício de
animais e vegetais, uso de vestimentas especiais e obediência às rígidas regras e preceitos. Nesses cultos, o
homem interage com a natureza através das entidades. Portanto, essa é uma religião panteísta.

Vale notar que o sincretismo religioso foi também fruto do desenraizamento dos africanos,
obrigados a buscar uma nova religiosidade fora do contexto cultural ou familiar. Vimos antes que as
religiões africanas tinham importância para as linhagens familiares entre diferentes grupos étnicos.
Originalmente, cada família era adepta de determinada entidade em seu país de origem. Mesmo que os
rituais fossem semelhantes, eles eram realizados em louvor de divindades específicas, que beneficiavam
um clã específico.

Essa devoção em relação a uma entidade se assemelha ao que acontece no catolicismo, em que há
devotos de São Jorge, de Santo Antônio, de São Francisco, de Santa Lúcia, e assim por diante. Nos templos
católicos, porém, vemos muitas figuras santas convivendo sob um mesmo teto. Diante da necessidade
de comportar diversas etnias e rituais diferentes, seria um despropósito imaginar que na reorganização
das religiões africanas no Brasil, tenha-se decidido abrigar o culto de várias entidades solitárias num
mesmo terreiro. A própria palavra candomblé é uma junção do termo quimbundo candombe (dança
com atabaques) com o termo ioruba ilé ou ilê (casa), significando assim “casa da dança com atabaques”.

Dados do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia mostram que, na


cidade de Salvador, “existem aproximadamente 2.300 terreiros registrados na Federação Baiana de
Cultos Afro-Brasileiros, e há registros também em Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, México, Panamá
e Argentina” (D’OBALUAYÊ, 2017, p. 16). Hoje advoga-se que o candomblé seja a religião afro-brasileira
mais influente no país.

Saiba mais

Para se aprofundar nesse tema, leia:

BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil. Tradução: Maria Eloisa


Capellato e Olívia Krähenbüll. São Paulo: Pioneira, 1971.

46
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

3.2 Umbanda

A umbanda é uma religião monoteísta e afro-brasileira. Surgida nos subúrbios do Rio de Janeiro,
rapidamente se espalhou por todo o Brasil e outros países da América Latina. Suas crenças misturam
elementos do candomblé, do espiritismo e do catolicismo. Por isso, para muitos estudiosos, a umbanda
seria apenas o candomblé sem o sacrifício de animais, sendo assim mais aceita pela população branca
e urbana.

Saiba mais

Espiritismo é o conjunto de princípios e leis – revelados pelos espíritos


superiores e contidos nas obras de Allan Kardec – que constituem a
codificação espírita: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho
segundo o espiritismo, O céu e o inferno e A gênese. Leia mais no site da
Federação Espírita Brasileira:

https://www.febnet.org.br/

De acordo com Barnes (1997, p. 91), a umbanda é uma “religião brasileira que sintetiza vários
elementos das religiões africanas e cristãs, porém sem ser definida por eles”. O termo é oriundo de
Angola, do idioma quimbundo, e significa “magia”, embora alguns autores digam ser originário da
palavra mbanda (o além, onde moram os espíritos), passando a ter como significado “a arte de curar”.

As fontes divergem quanto à data precisa de sua fundação: alguns mencionam 15 de novembro
de 1907; outros, 15 de novembro de 1908 (MARTINS, 2006). Segundo os relatos que contam a história
da criação da umbanda, à época, um jovem do Rio de Janeiro chamado Zélio Fernandino de Moraes,
prestes a se alistar na marinha, passou a se comportar de maneira anormal: ora parecia ser um idoso,
falando em línguas estranhas, ora agia como um felino. Seus familiares consultaram um médico, e
este os aconselhou a levá-lo a um padre. No entanto, encaminharam-no para a Federação Espírita de
Niterói, onde ele incorporou um espírito e fez algo que um possesso não poderia fazer: levantou-se, foi
ao jardim buscar uma flor e colocou-a no centro de uma mesa. Então, Zélio incorporou espíritos que
afirmavam ser negros escravos e índios.

Ainda de acordo com esses relatos, no dia seguinte, os membros da Federação Espírita foram à casa
da família em São Gonçalo. Lá, Zélio incorporou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, o qual declarou que
“velhos espíritos de negros escravos e índios de nossa terra podem trabalhar em auxílio dos irmãos
encarnados, independentemente de cor, raça ou posição social” (MARTINS, 2006, p. 17). Nesse dia foi
fundado o primeiro terreiro de umbanda, Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, que ainda existe,
embora em outro endereço.

Quanto à organização da religião, pode variar conforme a quantidade de membros, sendo dividida
em grupo administrativo e grupo espiritual.

47
Unidade I

Pai de santo e mãe de santo: responsáveis por toda a atividade espiritual que
ocorre no terreiro, como iniciar, conduzir e encerrar as jiras e estabelecer as
ordens e doutrinas passadas pelo astral.

Pai-menor e mãe-menor: responsáveis na ausência do pai ou da mãe, têm


os mesmos ensinamentos e participam de todos os rituais.

Curimbeiro ou atabaqueiro: responsável por tocar e cantar os pontos


entoados nas jiras, bem como pelo ensino a novos ogãs.

Ogã, calofé ou alabê: responsável pela curimba e instrutor dos toques


de atabaque.

Cambono: médium designado a auxiliar a entidade, trabalhando como um


intérprete entre a entidade e o consulente.

Médium de trabalho, médium feito ou médium coroado: médiuns que


prestam consultas nas jiras de atendimento e já passaram por todos os
preceitos e obrigações (batismo, amaci e coroação).

Médium em desenvolvimento: médiuns em processo de desenvolvimento.

Samba: médium feminina em desenvolvimento.

Iaô: médium feminina com feitura de santo.

Médium iniciante: médiuns que ainda não incorporam, sendo às vezes


colocados como cambonos até adquirir experiência.

Transa ou porteira: responsável por orientar e distribuir fichas ou senhas


aos frequentadores.

Iabá: responsável pela cozinha do terreiro, pela confecção de ageuns, amalás


e comidas necessárias nos trabalhos.

Cota: subordinada ou substituta da Iabá (MARTINS, 2006, p. 19).

Os ritos visam evocar o orixá ancestral e toda a sua hierarquia, composta de orixás menores,
guias e protetores, não tendo uma forma ou modo definido, variando de terreiro para terreiro. Estão
subordinados à decisão de cada pai de santo e de cada entidade protetora do terreiro.

Bater cabeça: reverência dada ao chefe do terreiro, prostração que pode


variar de terreiro para terreiro.

48
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Defumação: do ambiente, do corpo mediúnico e da assistência, no sentido


de desfazer todo ato negativo e expulsar todos os espíritos trevosos.

Cantar pontos: elementos fundamentais do rito umbandista, que servem


para criar uma atmosfera vibracional que favoreça o trabalho realizado na
casa: limpeza do ambiente, incorporação dos guias ou psicosfera do terreiro
(o equilíbrio de seus trabalhadores).

Pontos riscados: diagramas desenhados no chão, como ângulos, retas,


símbolos representativos, desenhos geométricos e pontos cardeais, e que
representam a assinatura do guia.

Oferendas: comidas ou objetos específicos que são entregues em templos


ou em locais ao ar livre, em dias especiais e para fins especiais, e que são
agradecimentos aos guias e orixás.

Passe: imposição de mãos que está presente também no kardecismo.

Descarrego: rituais para limpeza espiritual, para livrar-se de cargas negativas,


podendo ser com ervas especiais e inclusive pólvora (roda de fogo).

Batismo: só pode ser realizado por líderes religiosos: babalorixá ou ialorixá


(PEIXOTO, 2008, p. 130).

Observação

Kardecismo é a doutrina reencarnacionista formulada por Allan Kardec,


pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, escritor francês (1804-1869).

As entidades são espíritos organizados em linhas, falanges ou legiões de forma quase militar, sendo
chamados espíritos de luz, pois trabalham para o bem.

A religião cresceu e se diversificou, dando origem a várias ramificações, que têm a mesma essência
por base: a manifestação dos espíritos para a caridade. As principais vertentes são: umbanda branca e
demanda, umbanda kardecista, umbanda mirim, umbanda popular, umbanda omolokô, umbanda de
almas e Angola, umbandomblé, umbanda eclética maior, aumbhandã, umbanda guaracyana, umbanda
dos sete rios, aumpram, ombhandhum e umbanda sagrada.

Peixoto (2008, p. 140) apresenta alguns conceitos comuns a todas essas vertentes:

Um deus onipresente e único, chamado Zambi ou Olorum. A crença nos


orixás ou divindades. A crença na existência de entidades espirituais ou
guias. A eternidade da alma. A crença nos ancestrais. A reencarnação.
49
Unidade I

O carma. A lei de causa e efeito, pela qual os umbandistas pagam o mal com
a justiça divina e o bem recebido com o bem.

A umbanda se fundamenta na obediência aos ensinamentos básicos dos valores humanos, como
a fraternidade, a caridade e o respeito ao próximo. Além desses preceitos, faz-se necessária a prática
mediúnica, na qual o indivíduo serve de aparelho (médium) para viabilizar a comunicação dos espíritos
e orixás com os seres humanos.

Vale ressaltar que tanto a umbanda como o candomblé não são religiões puramente africanas, mas
de matriz africana, fundadas no Brasil. Destacamos ainda que, apesar da raiz em comum, o candomblé
está mais próximo dos cultos africanos, por ter sido mais preservado, não se misturando tanto com
outras religiões. Assim, nos ritos do candomblé, são celebradas as energias trazidas pelos orixás, que
provocam um efeito de transe nos adeptos dessa religião, os quais dançam em meio a cantos, batuques
e comidas oferecidas aos orixás.

Já a umbanda misturou, de maneira mais visível, catolicismo, espiritismo e candomblé, fundando uma
doutrina baseada em ideias dessas três religiões. Por ter sido mais difundida, a umbanda consolidou-se
melhor enquanto doutrina e instituição religiosa, o que a fortaleceu no Brasil.

3.3 Quimbanda

Ao tratar deste tema, é fundamental observar que existe uma significativa diferença entre as palavras
quimbanda e kimbanda, visto que elas designam coisas distintas.

Kimbanda vem da palavra africana em bantu que significa “curador” ou “xamã”, e também pode se
referir a “aquele que se comunica com o além”. É a denominação do curandeiro africano angolano.

Quimbanda, por sua vez, termo da língua portuguesa, apesar de se originar da palavra africana antes
citada, pode designar tanto o chefe de um terreiro de quimbanda quanto uma linha diferenciada de
trabalhos espirituais dentro da umbanda.

Embora menos praticada, não podemos falar de religiões afro sem fazer menção à quimbanda. Um dos
pioneiros a escrever sobre ela com propriedade foi Lourenço Braga, com as obras Umbanda e quimbanda
(1942), Trabalhos de umbanda e quimbanda (1946) e Umbanda e quimbanda: volume 2 (1956).

Segundo Roger Bastide (1971, p. 94), a quimbanda, a umbanda e o batuque, “apesar de constituírem
três modalidades distintas, têm em comum o fenômeno da possessão – quando seus adeptos, em
transe, recebem entidades variadas”. Alguns dizem que a quimbanda não é apenas mais uma das linhas
existentes nas religiões afro-brasileiras, por ser influenciada em larga escala por vários aspectos das
religiões indígenas, do catolicismo, do espiritismo moderno, da alquimia, bem como pelo estudo da
natureza e de correntes orientais.

A quimbanda é uma ramificação da umbanda em que atuam os exus e as pombajiras, que manipulam
forças negativas (embora seus praticantes asseverem que eles não precisam ser necessariamente
50
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

malignos). Esses espíritos, que trabalham para o desenvolvimento espiritual e a proteção de seu médium,
são entidades que apresentam muitas semelhanças com os humanos por serem bem próximas à faixa
vibratória dos encarnados.

Como na umbanda, também existe a entrega de oferendas, o que pode variar conforme a entidade.
É possível oferecer bebida alcoólica (uísque, cachaça e conhaque), além de velas e charutos. A quimbanda
não tem qualquer ligação com a quiumbanda, a magia negra africana.

Saiba mais

Leia sobre os significados do termo macumba em:

O QUE é macumba? Superinteressante, [s.d.]. Disponível em: https://super.


abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-macumba/. Acesso em: 6 jan. 2020.

4 DO POLITEÍSMO AO MONOTEÍSMO

Politeísmo é um sistema religioso que consiste na crença em diferentes divindades. Nas sociedades
politeístas, admite-se a existência de múltiplos deuses, normalmente, cada um dedicado a uma
característica particular da natureza: deus do trovão, deus do sol, deusa da chuva, deusa da terra etc.

O politeísmo era bastante comum em sociedades da Antiguidade, como no Egito antigo, na


Grécia antiga e na Roma antiga. Atualmente, continua presente em algumas religiões de origem
africana e asiática.

Ao contrário do politeísmo, o monoteísmo consiste na crença em apenas um único deus (ou Deus,
nesse caso). As principais religiões monoteístas são o cristianismo, o judaísmo e o islamismo.

Enquanto as divindades politeístas podem ser representadas sob formas antropomórficas (junção da
figura humana com a figura animal), no monoteísmo, Deus é normalmente descrito como semelhante,
em aparência, aos seres humanos.

Como se sabe, os gregos eram politeístas e reverenciavam os deuses do Olimpo. Embora com
poderes sobrenaturais, cada um era reconhecido por comportamentos e traços visivelmente humanos.
No panteão, cada deus tinha sua própria função, com um modo particular de agir e um tipo de poder
específico. Não se caracterizavam por ser onipotentes, oniscientes e onipresentes, dotados de infinitude
e absoluto. Distinguiam-se por fazer parte do mundo e por ter nascido nele, ou seja, não o criaram,
como explica Vernant (2006, p. 4-5):

Os deuses nasceram do mundo. A geração daqueles aos quais os gregos


prestam um culto, os olimpianos, veio à luz ao mesmo tempo que o
universo; diferenciando-se e ordenando-se, assumia sua forma definitiva

51
Unidade I

de cosmos organizado. Esse processo de gênese operou-se a partir de


potências primordiais, como vazio (Kháos) e terra (Gaia), das quais saíram,
ao mesmo tempo e pelo mesmo movimento, o mundo, tal como os humanos
que habitam uma parte dele podem contemplá-lo, e os deuses, que a ele
presidem invisíveis em sua morada celeste.

Assim, quanto ao mundo religioso grego, é possível entender que existe algo de sagrado no profano
e algo de profano no sagrado. O homem grego não pode separar o mundano do divino, porque não são
domínios opostos, permanecendo antes intrinsecamente ligados um ao outro. O culto não é feito a um ser
extramundano, cuja ordem de existência seja absolutamente distinta da ordem do universo físico. Não se
deve pensar a religião grega como uma religião da natureza, nem seus deuses como a personificação de
forças ou fenômenos naturais. Raios, trovões e chuvas são manifestações de Zeus, e não Zeus.

Situada entre os séculos VIII e IV a.C., a religião grega arcaica e clássica caracteriza-se por:

• não ter um livro sagrado com o registro de dogmas, verdades ou histórias;

• não contar com profetas que propaguem a verdade na qual se fundamenta a religião ou um
messias que seja aguardado como salvador;

• não dispor de uma Igreja ou de sacerdotes que conduzam o povo helênico numa verdade específica,
num credo imposto aos fiéis como um conjunto de crenças que os levará ao além.

Sobre o que recaíam e como se manifestavam as crenças de foro íntimo dos gregos em matéria
de religião?

Elas estavam profundamente ligadas à cultura e ao dia a dia dos cidadãos. O cumprimento dos
ritos, situado num plano doutrinal desde a infância, era o suficiente para crer que este fosse o caminho
correto. Dentro desse quadro, a crença nos deuses se fortalece, mormente porque faz parte do conjunto
equivalente ao falar, ao viver e ao ser grego.

Como os gregos não veem seus deuses como seres de um mundo sobrenatural, estes se sobressaem de
forma direta à ordem natural das coisas. Diferentemente do exclusivismo do deus hebraico, muçulmano
ou cristão, não se limitam a uma Igreja ou a um povo escolhido. Os deuses gregos são reconhecidos em
sua presença absolutamente natural na ordem do mundo, da mesma forma que as pedras, os homens,
a justiça, o amor e o choro.

A religião grega estava estreitamente relacionada com a comunidade. Cada pólis tinha sua divindade
protetora, o que constituía um traço distintivo da cidade, assim como um sistema de valores. Um desses
valores era a crença numa concepção politeísta do divino, segundo a qual determinadas práticas rituais
eram indispensáveis para adquirir o favor dos deuses.

52
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Observação

Pólis significa cidade-Estado. Na Grécia antiga, a pólis era um pequeno


território localizado geograficamente no ponto mais alto da região e cujas
características eram equivalentes às de uma cidade.

As manifestações públicas em honra aos deuses faziam parte das responsabilidades cívicas.
Essas atividades comunitárias, além de um sentido espiritual, buscavam um denominador comum diante
das diferentes opiniões. Os gregos faziam uso constante da palavra, do diálogo ou da dialética, o que se
tornou o principal instrumento de realização da vida política.

É preciso diferenciar a palavra que surge na pólis (através da dialética) da palavra usada pelos
poetas gregos, como Homero e Hesíodo, pois estes concebiam suas palavras como revelação divina, algo
recebido por meio de uma palavra mítico-religiosa, que revelava a origem dos deuses e o princípio do
mundo (kósmos).

Tais discursos tinham um peso bem maior do que o dos diálogos, pois a fala do poeta era investida
de autoridade divina – era uma revelação dos deuses e, por isso, incontestável. Na Teogonia, que
narra a origem dos deuses, Hesíodo dá um exemplo concreto dessa noção mítica da palavra como
manifestação da verdade:

Um dia, as musas ensinaram a Hesíodo belo canto,

Quando ele pastoreava as ovelhas

No sopé do divino monte Hélicon.

Esta palavra primeiro disseram-me as deusas,

Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:

Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,

Sabemos dizer muitas mentiras semelhantes aos fatos

E sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações (alétheia)

(apud VERNANT, 2006, p. 74).

Desde que o ser humano se tornou pensante e consciente de sua própria condição no mundo, muitos
foram os filósofos que buscaram explicar as perspectivas e os princípios éticos, morais e religiosos que
regem a trajetória do homem na terra. Para tentar entender seu papel, primeiramente, surgiu a teogonia,

53
Unidade I

que vem do grego theos (deus) + genea (origem). Nas religiões politeístas, o termo está relacionado com
a narração do nascimento dos deuses e a apresentação de sua genealogia.

O vocábulo grego alétheia corresponde a “verdade” em nossa língua. No entanto, no texto de Hesíodo,
vemos que ela foi traduzida por “revelações”. Isso se deve ao que explicamos há pouco: as musas, deusas
consideradas filhas de Zeus e de Mnemosine (memória), manifestavam-se ao poeta e lhe concediam o
privilégio de revelações que seriam a verdade dos fatos. Por isso, os poetas não se julgavam inventores
de suas histórias, nem se apresentavam como seus autores. Pelo contrário, diziam ser porta-vozes dos
deuses. Esclareciam a origem do mundo aos que não tinham o mesmo relacionamento com as musas.

Em primeiro lugar nasceu Kháos (caos),

Em seguida Gaia (terra) de amplo seio […]

Gaia primeiro pariu, igual a si mesma,

O céu constelado, para cercá-la toda ao redor […]

Pariu altas montanhas, belos abrigos das deusas,

Ninfas que moram nas montanhas frondosas.

E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas,

O mar, sem o desejoso amor. Logo depois pariu,

Do coito com Urano (céu),

O oceano de fundos remoinhos

(HESÍODO apud MADUREIRA, 2008, p. 133).

4.1 A importância da filosofia grega para a formação da teologia cristã

Há uma estreita relação entre a filosofia grega e a teologia cristã, sendo o helenismo o movimento
que mais influenciou os novos teólogos. Destacam-se as ideias dos estoicos, dos epicuristas, dos
neopitagóricos, dos céticos e dos neoplatônicos. No entanto, foi principalmente o pensamento de Platão
que forneceu as bases para a teologia cristã patrística.

Observação

Patrística é o termo usado para expressar a junção do mundo antigo


grego, elaborado pela razão, com o mundo cristão, concebido pela revelação.
54
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Embora a filosofia grega tenha passado por diversas etapas, nenhuma delas foi tão significativa para a
formação do pensamento ocidental quanto a resultante de seu encontro com a teologia cristã. Dois grandes
modelos de pensamento da filosofia grega, o platonismo e o aristotelismo, foram reinterpretados pelos
teólogos Agostinho e Tomás de Aquino, que usaram esses modelos para explicar a realidade de Deus e do
mundo. Sob a ótica da revelação cristã, eles reconsideraram a busca pela verdade. No pensamento deles,
filosofia e teologia se encontraram, e conhecer a verdade passou a ser sinônimo de conhecer a Deus.

Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, nasceu no norte da África, na cidade de Tagaste, atual
Souk Ahras, Argélia. Mônica, sua mãe, era uma cristã devota, e Patrício, seu pai, um pagão que se
converteu ao cristianismo apenas no leito de morte. Aos 17 anos, por volta do ano 370, Agostinho
se mudou para a cidade de Cartago a fim de estudar retórica, época em que se converteu ao maniqueísmo,
adotando um estilo de vida hedonista.

Assim como os jovens de seu tempo, Agostinho era versado na tradição platônica. Essa foi a corrente
filosófica que mais influenciou o pensamento cristão primitivo. As coisas materiais não são as realidades últimas,
pois existe uma realidade espiritual, que é a verdadeira. Logo, a felicidade no mundo material é mera aparência,
mero engodo, e só alcançaremos a verdadeira no mundo celestial, pois é lá que veremos a Deus face a face.

Agostinho se valeu da noção platônica de que o ser humano teria dois tipos de conhecimento, o
intelectual e o sensorial, sendo o segundo inferior ao primeiro por depender da sensação para atingir
o conhecimento. Visão, audição, tato, olfato e paladar são uma espécie de vivência de alma realizada
por intermédio dos órgãos sensoriais, os instrumentos que captam o mundo sensível e produzem um
conhecimento apenas aparente.

O intelecto, por outro lado, permite obter conhecimento pelas ações da mente. Esta tem a faculdade
de captar as ideias, as verdades eternas e absolutas, e interpretar as coisas exatamente como elas são.
Da mesma maneira que Platão, Agostinho acreditava que o conhecimento verdadeiro é sempre
o intelectual, pois seus objetos são absolutamente imutáveis, ao contrário do que ocorre com o
conhecimento sensorial, que é mutável.

O conhecimento sensorial tem sua importância, em especial se consideramos o dia a dia das pessoas.
No entanto, Agostinho afirma que, quando concentramos nossa atenção na esfera do que é transitório
e mutável, perdemos a visão do que é eterno e imutável. Nosso objetivo, que deveria ser alcançar a
verdade em toda a sua plenitude, ficaria obnubilado, e perderíamos o alvo de nossa busca.

Nesse sentido, cabe observar que não se trata apenas de o conhecimento sensorial ser inferior ao
intelectual; o próprio objeto do conhecimento sensorial é inferior ao do conhecimento intelectual.
Por isso, Agostinho dizia que as coisas sensíveis são absolutamente distintas das coisas inteligíveis.
Gilson (2007, p. 134-135) explica:

Existem, pois, duas espécies de ser: os modelos e as cópias. O mundo dos


modelos (exempla) é o mundo inteligível; o das cópias ou imagens (simulacra)
é o mundo sensível (mundus sensilis), produzido à semelhança de seu modelo.
O nome técnico de um modelo é ideia. É uma substância incorpórea, sem cor,
55
Unidade I

sem fisionomia, impalpável, compreensível apenas pelo intelecto e pela razão,


causa dos seres que participam de sua semelhança […]. É um fato que temos
dois meios distintos de conhecer: o sensorial e o intelectual. Seus objetos devem
ser, pois, igualmente distintos: são os sensíveis e os inteligíveis. Os sensíveis são
mutáveis, temporais, perceptíveis pelos sentidos e só se prestam a opiniões; os
inteligíveis são imutáveis, eternos, conhecíveis pela razão e objetos de ciência
propriamente dita. Por natureza, os inteligíveis são anteriores aos sensíveis, mas
os sensíveis nos são mais facilmente acessíveis.

Se as verdades eternas são essências objetivas e imateriais, surge a pergunta: onde elas estão?

Essa questão não se refere a um lugar concreto, mas ao status ontológico da verdade. No tempo de
Agostinho, havia um tipo de platonismo ou neoplatonismo que pretendia resolver essa dificuldade afirmando
uma ideia não mencionada por Platão: a de que as verdades eternas estão em Deus e dele emanam.
Quem representou esse tipo de platonismo foi Plotino, argumentando que Deus ou ser inefável é aquele que
está acima de qualquer nome que seja atribuído a ele, ou ainda de toda essência que possa ser conhecida.

Apesar de Agostinho concordar com a perspectiva de que as verdades eternas estão em Deus,
ele discordava da concepção de Plotino de que a criação do mundo inteligível e do mundo sensível
resultou de um processo de emanação semelhante ao da luz solar no universo, ocorrido não de acordo
com a vontade de Deus, mas em conformidade com a natureza de sua emanação. Para Agostinho,
que como todos os cristãos considerava Deus um ser pessoal, transcendente, criador e sustentador
do universo, foi necessário repensar o platonismo. Embora o aceitasse como a filosofia que mais se
encaixava nas doutrinas cristãs, certamente, a divindade de Platão e de Plotino não era a mesma que
se revelou em Jesus Cristo.

Agostinho pensava que os filósofos gregos não conheciam a revelação cristã e por isso julgavam que
a única via para o conhecimento da verdade era a razão.

O poder da razão era exaltado como o mais alto poder do homem. Mas o
que o homem jamais poderia ter sabido, até ser iluminado por uma revelação
divina especial, é que a própria razão é uma das coisas mais questionáveis e
ambíguas do mundo. A razão não nos pode mostrar o caminho para a clareza,
a verdade e a sabedoria, pois é em si mesma obscura em seu sentido, e sua
origem está envolta em mistério – um mistério que só pode ser solucionado
pela revelação cristã. Para Agostinho, a razão não tem uma natureza simples
e única, mas antes dupla e dividida; e seu estado original, no qual saiu das
mãos de Deus, era igual a seu arquétipo (modelo). Mas tudo isso foi perdido
com a queda de Adão. A partir desse momento, todo o poder original de
raciocínio ficou obscurecido. E a razão, sozinha, deixada a si mesma e a suas
próprias faculdades, nunca pôde encontrar o caminho de volta. Não pôde
reconstruir-se; não pôde, por seus próprios esforços, retornar a sua pura
essência anterior. Se tal transformação for algum dia possível, será apenas por
ajuda sobrenatural, pelo poder da graça divina (CASSIRER, 2005, p. 22-23).
56
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Platão supunha que as almas humanas já viviam no mundo inteligível antes de habitarem o mundo
sensível. Em razão disso, não adquiriam novos conhecimentos, apenas se lembravam de verdades
anteriormente sabidas. A geração da vida e do cosmos tem como ideia principal e distintiva a introdução
do demiurgo na condução da ordenação cósmica, como veremos a seguir.

4.2 Platão e o demiurgo

O pensamento cosmológico de Platão ficou registrado no Timeu, um diálogo que deveria fazer parte
de uma trilogia envolvendo três personagens: Timeu, Crítias e Hermócrates, além de Sócrates, que teria
discursado um dia antes de Timeu.

No Timeu, Platão (2011) designa como demiurgo o deus que ordena a matéria original e dá forma
ao universo. Ou seja, o demiurgo é um “fabricante” que cria ele próprio a “alma do mundo”, ao passo que
os deuses inferiores, que são também criação do demiurgo, se encarregam da criação dos entes mortais.

No cenário cultural grego do século VI a.C., acreditava-se que os deuses interferiam nos fenômenos
da natureza e participavam das relações humanas. Havia, porém, resistência à crença no sobrenatural,
pois este seria uma atuação não explicitada da divindade no mundo. A resposta desenvolvida por Platão
oferece um sentido para a vida cósmica, que surge da intervenção inteligente do demiurgo.

Diversos filósofos pré-socráticos buscaram seu próprio caminho para explicar a physis (natureza).
Tales, Anaximandro e Anaxímenes formaram o trio da chamada Escola de Mileto. A elaboração desses
physiologoi (os que discursam sobre a natureza) foi marcada pela cosmogonia e pela cosmologia.
A primeira se refere à origem e à destinação do cosmos, destacando-se a análise da causa e do fim.
A segunda considera o mundo como eterno e infinito.

A visão dos physiologoi sobre a relação entre a divindade e o universo não é uniforme. Nem todos
eliminam a figura de um ser divino atuante no cosmos ou o diferenciam dos deuses gregos tradicionais,
com suas características passionais. O demiurgo de Platão, ao contrário das divindades do Olimpo grego,
é de todo bom e não interfere em sua obra. Depois de criá-la, ele se retira.

Na concepção platônica, o demiurgo é um ordenador ou coordenador. Ao criar o mundo dos sentidos


mediante a imitação do arquétipo, assemelha-se em grande medida a um artífice que trabalha em
consonância com o material que manuseia, agindo sobre ele com o intuito de dotá-lo de ordem, tendo
em vista que tudo estava desordenado.

Platão introduz no pensamento filosófico a função de um deus criador. Sua atitude é revolucionária
por contestar o senso comum da sociedade grega de que os homens não devem aspirar ao divino, sob
pena de serem atingidos por Nêmesis (deusa da vingança e da justiça distributiva). De acordo com
Cornford (1977, p. 34), Platão “defende que o homem, por ter uma razão divina, deve aspirar a uma vida
divina, tomando como referência a beleza e a harmonia presentes no cosmos. Esta é a ideia central da
ética platônica: assemelhar-se ao divino tanto quanto possível”.

57
Unidade I

O pensamento de que o demiurgo se assemelharia ao Deus bíblico não se baseia em Platão. Para
este, o demiurgo não é um ser abundante em amor e altruísta. Cornford (1977, p. 34) diz que, “se isso
é intencionado como uma paráfrase das palavras de Platão, é enganoso”. A esse respeito, é preciso
considerar três pontos:

• Deus, enquanto sugestão de uma ideia monoteísta presente em Platão, é injustificável.

• Não há proposta de adoração, pois o demiurgo não é uma figura religiosa.

• A instigante noção criadora de amor transbordante não existe na Grécia pré-cristã.

Para Platão, a razão não tem poder ilimitado diante da necessidade. Por isso, não existe o atributo de
onipotência nas ações do demiurgo. É preciso haver domínio do caos e da necessidade, os dois fatores
com os quais a inteligência divina se confronta. Passagens da obra Timeu consideram o resultado da
ação do demiurgo algo relativamente bom, e não algo perfeito e acabado.

O argumento de Platão quanto ao demiurgo é de ordem estética: serve-se do modelo inteligível


porque é belo. Consequentemente, se o mundo ordenado é belo, e o demiurgo é bom, este certamente
olhou para o que é infinito. Ainda no campo estético, vemos ser a satisfação o motivo de ele constituir
o universo. Sendo ele bom e sem inveja, quis tornar da melhor forma possível tudo semelhante a si
próprio, uma vez que as coisas se moviam de modo desordenado. Nesse momento, aconteceu a criação
cósmica, com o demiurgo providenciando ordem a tudo o que estava visivelmente fora dela.

Em seu trabalho produtivo, o demiurgo modela um material preexistente, leva a cabo uma
configuração baseada na matriz (matemática) do substrato pré-cósmico. Ao agir como organizador,
assemelha-se a um administrador ou, em última análise, a um político, pois sua principal tarefa é pôr
ordem onde não existe, alterando o panorama de anarquia do caos para sociedade cósmica.

Ao deter-se na forma sensível do cosmos a fim de declarar sua relação com o aspecto inteligível, o
personagem Timeu passa da consideração de um visível desordenado para os elementos que são a causa e
a essência do cosmos, os quais alguns filósofos pré-socráticos pensavam ser o fogo, a água, o ar e a terra.
Rejeitando serem esses os formadores últimos da realidade e os dirigentes das causas pelo movimento,
Platão defende que a alma tem poder de movimentar a si mesma, sempre no sentido evolutivo.

O que devemos ter em mente sobre a forma sensível do cosmos é a característica de movimento
desordenado. É sobre esse aparato pré-cósmico que o artífice divino, o demiurgo, trabalha, com o
propósito de conceder beleza e bondade ao que não possui tais qualidades. Acontece aqui o encontro
de duas causas ou forças: a racional/inteligível e a irracional/sensível.

4.3 Aspectos da mitologia grega

Podemos definir a mitologia grega como a ligação de ensinamentos e de mitos da Grécia antiga,
sobre a natureza do mundo, as práticas e os rituais; sobre os heróis, os deuses, o significado e as origens
de seu culto.
58
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Dessa forma, a mitologia grega é o estudo do conjunto das narrativas referentes aos mitos e à
relação entre os gregos antigos e os outros povos, narrativas que envolvem heróis, centauros, titãs,
deuses e ninfas.

Para compreender melhor essa mitologia, é preciso recordar que na Grécia antiga a religião praticada
era politeísta, ou seja, adoravam-se diversos deuses. Porém, sobre esse assunto, não existem escrituras
sagradas. As principais fontes foram escritas por Homero (Ilíada e Odisseia) e Hesíodo (Teogonia) no
século VIII a.C.

Na Ilíada e na Odisseia, Homero descreve grandes acontecimentos envolvendo deuses e heróis. Já na


Teogonia, Hesíodo narra a origem dos deuses gregos.

Os gregos constituíram sua identidade cultural a partir da influência de diversos povos. De forma
bastante sucinta, podemos dividir a história da Grécia em:

• Período arcaico: séculos VIII a V a.C.

• Período clássico: séculos V a IV a.C. Conhecido como fase de aperfeiçoamento cultural.

• Período helenístico: séculos IV a I a.C. Inicia-se com Alexandre Magno e termina com a conquista
romana da região oriental do Mediterrâneo.

Foi no primeiro período que se destacou a figura de Homero. Ele teria nascido na cidade de Esmirna,
atualmente, território turco. Heródoto, considerado o primeiro historiador grego a deixar registro do
passado para a posteridade, diz que Homero foi um dos idealizadores da mitologia grega. Ao fazer
observações sobre a convivência entre homens e deuses, desprezou o pós-morte e desvalorizou a religião
anterior e os planos subterrâneos, distantes dos elevados planos do Olimpo, onde se encontravam os
deuses sob o domínio de Zeus.

Com isso, a cultura grega criou uma extrema valorização da vida presente, formando uma religião
imanente, com um culto voltado para a vida imediata, não havendo qualquer tipo de medo da morte ou
de um além irracional. Era visto como covarde quem tivesse qualquer sentimento de receio em relação
a esses assuntos, por menor que fosse.

A primeira ideia ocidental de alma está contida no conceito de psykhé elaborado por Homero.
Essa alma é como um fantasma, um simulacro, um duplo que forma o homem real e vivo. Quando
alguém morre, a psykhé perde as três características inerentes à vida humana: o nóos (intelecto racional
e emocional), o thymós (ânimo) e a phrénes (inteligência).

A vida do homem grego era regida pelo conceito de areté (excelência). A areté devia ser alcançada
através de façanhas heroicas, normalmente, por intermédio de conflitos bélicos. Só assim se poderia
ser lembrado como um homem honrado, de boa fama, valente, vitorioso, belo e habilidoso. A maior
vergonha era ser covarde, morrer de maneira desonrada, cair no esquecimento ou perder as capacidades
físicas com o envelhecimento.
59
Unidade I

Quando lemos os poemas de Homero, encontramos vários outros aspectos relevantes. Por exemplo,
as dimensões físicas e psicológicas se confundem, como na palavra thymós, que pode significar tanto
“ânimo” ou “vontade” quanto “coração” (o órgão). Também é possível considerar Homero um naturalista,
pois em muitos de seus escritos encontramos o divino representado pela excelência da natureza.

Em suas obras, ele destaca um modo de obter imortalidade: mediante a memória pública de feitos
excepcionais, tornando-se um símbolo, um ídolo. O grande desejo do homem grego era alcançar fama
e glória imortal. Esse conceito de imortalidade entre os homens, como decorrência da narrativa de
grandes feitos, foi uma das maiores contribuições gregas para a cultura. Homero foi o primeiro a louvar
heróis humanos.

Assim, para o mundo grego, o homem era aquilo que conseguia fazer ou realizar em vida.
Existia uma correlação entre os conceitos e a realidade sociocultural. A areté, a característica
de excelência adotada pela sociedade aristocrática, podia ser alcançada de duas formas: erga, a
excelência no campo dos feitos bélicos ou heroicos, e logói, a excelência nas disputas intelectuais,
que demonstravam eloquência. A areté era diferente de kléos (glória) e timé (honra), as quais eram
alcançadas apenas nas divisas deste mundo.

A descrição do divino em Homero era fundamentada pelo conceito de athanatói (imortal). Os deuses
eram caracterizados como eternamente felizes, ignorando por completo a velhice e a morte. A religião
homérica era pautada pela estética: os deuses, que tinham uma aparência humana, eram jovens, fortes
e viris. Isso os diferenciava dos deuses das religiões pré-homéricas, que tinham formas de animais,
bestas ou monstros.

Outra marca desses deuses era seu relacionamento com os humanos. Embora concebessem uma
dimensão intransponível entre o homem e a divindade, eles interferiam intensamente no plano terreno.
Por exemplo, visitavam e namoravam seres humanos. Estes, por sua vez, sentiam-se possuídos pelos
deuses em suas ações não racionais. Uma pessoa podia ser iluminada por Atena e fazer um bom
raciocínio, ou agir irracionalmente porque Lissa, a daemon da ira, se apossou dela.

Observação

Um daemon era uma divindade menor. Desse termo grego, nasceu a


palavra portuguesa demônio.

Os deuses gregos eram, além disso, todos parentes, formando uma família. Apesar de a ideia de
família de deuses estar presente em quase todas as religiões antigas, os deuses gregos e sua forma
humana inspiravam uma proximidade entre o divino e o humano.

Os gregos também tinham em sua mitologia deuses inspirados por animais ou elementos da natureza.
Eram as figuras ctônicas. O termo ctônico, que significa “relativo à terra”, referia-se às divindades
(ou espíritos) do mundo subterrâneo, as quais diferiam dos deuses com características humanas que
habitavam o Olimpo.
60
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Como em outras religiões da época, muitas divindades nasciam de estranhos cruzamentos. Isso mostra
que a mitologia grega evoluiu da adoração de figuras monstruosas – como podemos encontrar na cultura
de muitos povos antigos descritos na Bíblia – para a adoração de seres com todas as características físicas
humanas. De alguma forma, essa aceitação da figura humana imbuída de qualidades divinas permitiu que
os romanos fizessem o mesmo e, finalmente, que os cristãos aceitassem a figura de Cristo como Deus.
Posteriormente, a santificação de mártires seguiu a mesma linha, atribuindo mistérios a seres humanos.

Uma maneira de compreender a mudança de entendimento e a adoção de um novo patamar


religioso pode ser encontrada na história de Édipo, que muito influencia o pensamento contemporâneo.
Segundo a mitologia grega, a Esfinge, um ser com corpo de leão, cabeça de mulher, cauda de serpente e
asas de águia, matava e trazia má sorte para quem a visse. Hera (deusa do casamento, da maternidade
e das esposas), ou seu filho Ares (deus da matança e da carnificina), buscou a Esfinge na Etiópia, no sul
do Egito, e a levou para Tebas.

A Esfinge propunha aos que se dirigiam à cidade seu enigma: “Decifra-me ou devoro-te: que criatura
pela manhã tem quatro patas, ao meio-dia tem duas e à tarde tem três?”.

Foi Édipo quem derrotou a Esfinge respondendo corretamente: o homem, que engatinha quando
pequeno, anda sobre dois pés quando adulto, e usa uma muleta ou bengala quando velho.

Essa resposta é um dos primeiros exemplos registrados do uso da razão através da consciência.
É como se os gregos estivessem cientes de que não havia nada que uma divindade ctônica pudesse
esconder em seus mistérios que os seres humanos não fossem capazes de entender.

Reza a lenda que, furiosa com a resposta que desvendava o mistério, a Esfinge teria se atirado de um
precipício e cometido suicídio. Ou seja, não foram os humanos que acabaram com as antigas divindades
misteriosas e animalizadas, mas foi essa forma de ídolo que perdeu o sentido na religiosidade grega.

Figura 2 – Estátua da Esfinge no Museu Arqueológico de Delfos

61
Unidade I

Hoje consideramos a religião grega como a mitologia mais antiga da cultura ocidental.
Quem reintroduziu a importância dessa mitologia foi Sigmund Freud, que utilizou a família dos deuses
gregos como exemplo universal de comportamentos psíquicos. Quando Freud fala de Édipo, fala de um
mito (e de uma peça de teatro) sobre homens que cumprem o destino anunciado pelos deuses olímpicos,
os quais dominam os seres humanos.

Na história de Édipo, a Esfinge é só uma das etapas para um destino muito humano. Laio, o rei de
Tebas, cidade afligida pela Esfinge, numa consulta ao Oráculo de Delfos, foi avisado de que havia uma
maldição contra ele e sua família. Um dia, seu filho o mataria e se casaria com a mãe, a rainha Jocasta.
O Oráculo de Delfos era um templo onde sacerdotisas em transe respondiam a questões dos que iam
se consultar, muitas vezes, predizendo o futuro. A sacerdotisa suprema era chamada Pítia. Os gregos
acreditavam que ela era a porta-voz do deus do sol, Apolo, e que através de seu transe ela transmitia o
que era dito a Apolo por Zeus, seu pai e Deus superior do Olimpo.

Durante séculos, a Pítia do Oráculo de Delfos foi considerada a intermediária entre deuses e
humanos. A concepção de que o atendimento era feito durante um transe e de que os deuses podiam
incorporar em seres humanos, fazendo-os comportar-se de um modo que não se explicava pela razão,
é bastante semelhante à de outras práticas religiosas da época, e até hoje há ecos disso em cultos que
sustentam que podemos ser tomados por divindades e fazer o que não queremos.

Com medo da profecia de Delfos, quando nasce seu primeiro filho, Édipo, Laio o abandona no
monte Citerão, cravando um prego em cada pé da criança para tentar matá-la. Édipo significa “aquele
que tem os pés furados”. A criança é encontrada por um pastor, o qual a cria como filho. Já adulto,
Édipo decide se consultar com o Oráculo de Delfos, que lhe diz que ele mataria o pai e se casaria
com a mãe. Sem saber que o Oráculo não se referia a seus pais adotivos, Édipo vai para longe deles.
Na estrada, cruza com Laio, que estava justamente indo consultar-se com o Oráculo mais uma vez.

Quando Laio encontra Édipo no caminho, com a arrogância e a prepotência típicas de um rei, manda
o rapaz dar passagem. Édipo, sem reconhecer no homem alguém em especial, resolve não obedecer.
Luta com ele e o mata durante o embate. No trajeto para Tebas, depara-se com a Esfinge. Ultrapassado
esse obstáculo, chega finalmente à cidade, onde encanta a rainha Jocasta.

Passa muito tempo, e Laio não volta para casa, sendo declarado morto. Jocasta resolve se casar com
Édipo, com quem tem quatro filhos, cumprindo assim a profecia por completo. Quando Tebas é assolada
por uma peste, Édipo faz uma investigação e descobre que ele e Jocasta são mãe e filho. Da mesma
maneira que a Esfinge, Jocasta comete suicídio. Édipo, por outro lado, fura os próprios olhos, para se
lembrar de que esteve cego o tempo todo ao não reconhecer nem o pai nem a mãe.

Vemos, então, que a relação entre homens e deuses tinha muitas peculiaridades da época. A religião
servia de base para a sociedade da Grécia antiga e exercia um papel de extrema influência cultural no
comportamento dos indivíduos. Freud percebeu que o mito de Édipo era uma forma muito acurada de
descrever o processo psíquico das pessoas nas relações familiares, permitindo entender o sofrimento do
indivíduo a partir dessa experiência.

62
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Os gregos influenciaram os romanos e os persas. Hoje em dia essa visão comum de mundo é chamada
cultura helenística. Os romanos não apenas dominaram a Europa, mas também difundiram seu padrão
cultural. Esse padrão, depois de se espalhar pela Europa, foi exportado para a América, imprimindo nas mentes
um modelo civilizatório. Podemos dizer que a cultura grega, associada aos valores medievais cristãos e aos
postulados da Idade Moderna, acrescida da influência dos ameríndios e dos africanos, culminou na formação
histórico-cultural da contemporaneidade e sua constante reavaliação espiritual e religiosa da realidade.

4.4 A religião das leis: o judaísmo

Vamos estudar agora a primeira grande religião monoteísta, o judaísmo, que surgiu em Israel há
cerca de 4 mil anos.

O judaísmo é a mais antiga das quatro religiões monoteístas do mundo e a que tem o menor número
de fiéis. Ao todo são cerca de 15 milhões de seguidores. Segundo analistas, se não tivesse havido o
Holocausto (a matança em massa de judeus ocorrida entre as décadas de 1930 e 1940), o número de
judeus seria de 25 a 35 milhões em todo o mundo, e muitos deles viveriam na Europa.

Tanto o cristianismo como o islamismo, de certa forma, derivam do judaísmo. O judaísmo não
estabelece doutrinas ou credos, mas segue a Torá, interpretada como a orientação de Deus através
das Escrituras.

O começo do judaísmo como religião estruturada acontece com a transformação dos judeus em
um povo influente, por obra de reis como Saul, Davi e Salomão (o qual construiu o primeiro templo
em Jerusalém). No entanto, por volta de 920 a.C., o reino de Israel se dissolve, e os judeus começam
a se dividir em grupos. Essa época foi chamada de Era dos Profetas. Em cerca de 600 a.C., o templo é
destruído e a liderança israelita assassinada.

Segundo os judeus, existe somente um Deus, todo-poderoso, que criou o universo e tudo o que nele
há. Os judeus acreditam que Deus tenha uma relação especial com seu povo, consolidada no pacto que
fez com Moisés no Monte Sinai, 3,5 mil anos atrás.

A história do povo judeu é contada no Pentateuco, composto dos cinco primeiros livros da Bíblia,
também chamado Torá, que contém o relato sobre a criação do mundo, a origem do homem, o pacto de
Javé com Abraão e seus filhos, a libertação dos filhos de Israel do cativeiro egípcio, a peregrinação em
direção à terra prometida, bem como as leis e ordenanças que foram dadas a Moisés para a instrução
do povo de Israel.

Os 39 livros que integram o Antigo Testamento narram o desenvolvimento histórico de Israel até o fim
do século V a.C. Eles foram escritos entre 1400 e 400 a.C. por cerca de trinta autores, predominantemente
em hebraico, embora haja diversos trechos em babilônico, assírio, árabe e até fenício. O material usado
como suporte foi o pergaminho, feito da pele de animais – material durável, que media cerca de 28 cm
(largura) x 10 m (comprimento).

63
Unidade I

Até 1448, todas as versões da Bíblia eram manuscritas. Nesse ano, na Itália, ela foi impressa pela
primeira vez. O desvelo na cópia do material ao longo dos séculos pôde ser comprovado na recente
descoberta no Mar Morto (Egito) de manuscritos de aproximadamente 900 a.C., contendo todos os
livros do Antigo Testamento, com exceção de Ester. Verificou-se, nessa ocasião, que os textos não tinham
alterações significativas desde o século I a.C.

Observação

Os Manuscritos do Mar Morto são uma coleção de centenas de textos e


fragmentos de textos encontrados em cavernas de Qumran.

A Septuaginta, versão grega do Antigo Testamento, começou a circular no Egito em meados do


século III a.C., sendo usada tanto por judeus quanto por cristãos. Com o passar do tempo, ela perdeu o
predomínio entre os judeus. Ainda que a tivessem utilizado por muitos anos, eles passaram a rejeitar a
tradução rabínica dos setenta tradutores, alegando que a Torá não podia ser traduzida com exatidão.
Nesse momento, os judeus começaram a usar uma nova tradução grega, que estava em consonância
com os conceitos rabínicos. Essa obra foi elaborada por um prosélito judeu chamado Áquila no século II.

Para judeus e cristãos, o Antigo Testamento, além de conter um relato da cultura e da história
secular, representa a revelação que Deus fez ao homem de si mesmo, registrando o que realizou no
passado e o que pretende realizar no futuro para a humanidade. Numa das principais narrativas, Javé,
criador do homem e do universo, conduziu seu povo escolhido (Israel) em direção à terra prometida, de
acordo com o compromisso firmado com o patriarca Abraão, morador de uma pequena cidade chamada
Ur, ao sul da Mesopotâmia. Sobre esse patriarca, Schultz (2008, p. 33) observa:

A religião de Abraão é um tema vital nos relatos bíblicos, patriarcais.


Procedente de um mundo politeísta no qual a deusa lunar Nannar era
reconhecida como o deus principal na cultura da Babilônia, Abraão chega a
Canaã. Que sua família serviu a outros deuses fica claramente estabelecido
em Josué 24,2. Em Canaã, em meio de um entorno idólatra e pagão, a meta
de Abraão foi a de “construir um altar ao Senhor”. Depois de resgatar a
Ló e ao rei de Sodoma, recusou uma recompensa, reconhecendo que ele
estava por completo dedicado por devoção única a Deus, o “fazedor dos
céus e da terra”. A íntima comunhão e camaradagem existentes entre Deus
e Abraão estão belamente retratadas no capítulo 18 [de Gênesis], no qual
ele intercede por Sodoma e Gomorra. Talvez seja sobre a base de Isaías 41,8
e Tiago 2,23 que a Septuaginta inseriu as palavras “meu amigo” em 18,17.
Através dos séculos, a porta meridional de Jerusalém, que conduz a Hebrom
e Berseba, tem sido sempre citada como a “porta da amizade”, em memória
da relação íntima entre Deus e Abraão.

Cabe acentuar que a amizade entre Deus e Abraão deveria se perpetuar a seus descendentes – daí a
razão do “sacrifício” de seu filho Isaque. É interessante lembrar que, desde o início, a prática do sacrifício
64
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

envolvia justamente um animal que fosse precioso para seu dono, de modo que a pessoa demonstrasse
seu grau de devoção.

Saiba mais

Muitos filósofos e teólogos têm abordado a questão da devoção.


Confira, por exemplo:

KIERKEGAARD, S. Temor e tremor. Tradução: Elisabete M. de Sousa.


Lisboa: Relógio d’Água, 2010.

Algumas gerações após o compromisso firmado com Abraão, os descendentes dele foram
aprisionados e escravizados pelo rei mais poderoso da época, o faraó do Egito. Por meio de Moisés,
Deus anunciou que iria libertar seu povo e guiá-lo em direção à terra prometida. Em troca, pediu
obediência irrestrita a suas leis e adoração exclusiva.

A população foi salva e começou a peregrinar no deserto. No entanto, por conta de sucessivas
quebras do pacto anteriormente estabelecido, levou quarenta anos para percorrer um caminho que
deveria ser superado em quarenta dias. Isso trouxe sérias consequências aos israelitas, com toda uma
geração perecendo no deserto, só entrando na terra prometida seus descendentes, momento em que
Javé cumpriu a promessa feita a Abraão.

Observação

Esses quarenta anos de peregrinação não são comprovados, havendo


discordância entre os autores quanto ao tempo decorrido.

A aliança fixava um decálogo, leis que definiam a conduta correta dos fiéis, a edificação do
tabernáculo, a organização do sacerdócio, a instituição das ofertas e a observação das festas e estações
do ano. Esse conjunto de ordenanças criou finalmente a religião que fez o povo de Israel aprender a
servir a Deus de forma efetiva.

Analistas definem a essência de ser judeu como participar de uma comunidade judaica e viver de
acordo com as tradições e leis judaicas. O judaísmo é um modo de vida fortemente associado a um
sistema de fé e convicções religiosas.

Os judeus vivem sob um pacto com Deus – segundo eles, não para benefício próprio, mas para
benefício de todos. O grande estudioso do judaísmo Hillel (que viveu entre 70 a.C. e 10 d.C.) resumiu
assim o significado da religião: “Não faça a seu próximo aquilo que não gostaria que fosse feito a você.
Esse é o centro da lei judaica. O resto são meras observações” (JUDAÍSMO…, [s.d.]).

65
Unidade I

4.5 A construção da religião muçulmana

A religião muçulmana é o islã, ou seja, muçulmanos são os seguidores dessa religião. Embora seja um
equívoco recorrente, muçulmano não é sinônimo de árabe. Ser árabe significa pertencer ao grupo étnico
que habita principalmente o Oriente Médio e a África setentrional, enquanto ser muçulmano significa
apenas ter fé no islamismo.

É fato que a maioria dos árabes são muçulmanos, porém a maioria dos muçulmanos não são árabes,
pois existe um considerável percentual de fiéis muçulmanos na população asiática, principalmente na
Índia e na Indonésia.

Datado do século VII da era cristã, período de início do calendário islâmico (distinto do calendário
gregoriano, o qual seguimos), o islamismo foi fundado por Maomé (Muhammad, em árabe), profeta que
teria recebido do anjo Gabriel os princípios básicos que norteiam a fé islâmica.

A palavra islã tem valor nominal e também verbal, isto é, nomeia e indica ação. Significa “submissão”,
“submeter-se”, “obediência” ou “obedecer” a Deus.

O Alcorão (ou Corão) é o livro sagrado que os muçulmanos acreditam ter sido ditado por Alá ao
profeta Maomé. Este, proveniente de uma família tradicional, nasceu no ano de 571 na cidade de Meca,
Arábia, e foi comerciante durante a maior parte da vida (GONZÁLEZ, 1995b).

Foi somente por volta dos 40 anos que Maomé iniciou sua carreira religiosa. Isolou-se num lugar
onde costumeiramente meditava e orava. Ali, de acordo com o relato, o anjo Gabriel apareceu a ele
pedindo que “proclamasse a única mensagem do Deus verdadeiro” (GONZÁLEZ, 1995b, p. 132) numa
montanha perto de Meca.

Como ele não recebeu mais nenhuma revelação, teve dúvidas quanto a sua missão como profeta.
Depois, convenceu-se dela e passou a desenvolvê-la, proclamando a existência de um Deus único, justo
e misericordioso, governador de tudo, e que exige obediência dos seres humanos. Ele não pretendia criar
uma nova religião, mas dar continuidade à revelação que os profetas do Antigo Testamento tinham
recebido e à mensagem de Jesus.

Entretanto, a aceitação das palavras de Maomé não foi algo simples. Os árabes que lideravam
Meca impugnaram sua pregação, principalmente porque a cidade era um centro de difusão da
religião politeísta da Arábia, havendo com isso grande lucratividade no local. Os comerciantes
da cidade, principais interessados na religião politeísta, voltaram-se contra Maomé e seus
seguidores, obrigando-os a se refugiar num oásis nas proximidades, que depois recebeu o nome
de Medina.

Isso ocorreu no ano de 622, data a partir da qual os muçulmanos contam os anos. Nesse local foi
estabelecida a primeira comunidade muçulmana, iniciando-se também o culto, a vida civil e a política.
Em 630, após uma série de campanhas militares, Maomé conquistou Meca, mas munido de compaixão
proibiu qualquer vingança contra seus antigos inimigos, restringindo-se apenas a destruir os ídolos
66
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

do templo e a instituir o culto monoteísta. Em 634, dois anos depois de sua morte, grande parte da
Península Arábica tinha se convertido ao islamismo.

O primeiro sucessor de Maomé foi Abu Béquer, seu principal acompanhante. Ele e os demais substitutos
ganharam o nome de califas. Sob o domínio dos califas, os ensinamentos do islã se consolidaram na
Arábia ocidental. Também começaram os primeiros conflitos com o exército bizantino, derrotado em
634. Omar, o terceiro sucessor, continuou as conquistas por dez anos. O general Calid comandou as
tropas que venceram os romanos, tomaram Damasco (em 635) e subjugaram Jerusalém (em 638).

Inicialmente, os muçulmanos não perseguiram judeus nem cristãos. Ao entrar em Jerusalém, Omar
decretou que os cristãos

tivessem garantidos seus bens, suas igrejas e suas cruzes […]. Em assuntos
religiosos, não haverá pressão nem coação. Os judeus podem morar em
Jerusalém junto com os cristãos, e os que residem na cidade pagarão o
mesmo tributo que os habitantes de outras cidades (GONZÁLEZ, 1995b,
p. 135-136).

Essa política foi adotada pelos primeiros califas nas terras controladas, sendo vetados apenas a
idolatria e o politeísmo. A tolerância com os judeus também era ampla, e eles tinham o direito de
continuar com seus rituais religiosos. A única ressalva era respeitar o profeta e o Alcorão. Posteriormente,
foi proibida a conversão dos árabes ao judaísmo ou ao cristianismo. Para converter alguém, era preciso
pagar um tributo ao Estado. Só a conversão ao islã estava isenta. Assim, se por um lado os muçulmanos
se interessavam em aumentar o número de convertidos, por outro era conveniente ter fiéis de outras
religiões, por causa do pagamento de impostos. Certamente, os impostos fomentaram o crescimento
dos adeptos da fé islâmica.

As conquistas árabes não pararam por aí. Em 639, invadiram a maior parte do Egito, dominando
a Fortaleza de Babilônia em 640, que atualmente é a cidade do Cairo. Em 642, conquistaram todo o
país. Em 647, obtiveram o controle de Tripolitânia, onde hoje fica a Líbia. Em 657, Ctesifom, a capital
dos persas, também foi tomada pelos árabes. Com isso, os muçulmanos continuaram sua implacável
expansão para o leste: o último rei persa foi executado e, um ano depois, todo o antigo Império Persa
foi subjugado.

No entanto, quando o califa Otoman começou seu reinado, as conquistas arrefeceram.


Os berberes, as tribos nômades do deserto que habitavam principalmente o atual Marrocos, opuseram-se
a seus avanços a oeste. A leste, o Império Bizantino, cujas fronteiras tinham sido empurradas até a
Ásia Menor, finalmente, conseguiu deter a expansão muçulmana nessa direção. Ademais, lutas
internas contribuíram para enfraquecer o exército, o que levou ao assassinato de Otoman por um
dos descendentes de Abu Béquer. Seu sucessor, Ali, não se manteve muito tempo no poder. Quando
morreu, assumiram o controle os califas omíadas, que se fixaram em Damasco e se dedicaram a
fortalecer seu poder. As invasões no decorrer da segunda metade do século VII se tornaram mais
lentas. Cartago foi subjugada apenas em 695.

67
Unidade I

Observação

O povo berbere, também conhecido como amazigh ou imazighen, é tido


como um dos mais antigos do continente africano.

Como muitos berberes tinham se convertido ao islã, uma milícia de muçulmanos – composta de
mouros e árabes – cruzou o estreito de Gibraltar em 711 sob o comando de Tarik, vencendo Rodrigo, o
último rei godo. Pouco tempo depois, praticamente toda a Espanha estava sob o domínio muçulmano.
Do outro lado do mundo, os califas viram seu exército enfraquecer quando, em 718, tentaram tomar
Constantinopla. O papa Leão III defendeu vigorosamente a cidade. Em 720, houve outro fracasso,
dessa vez contra a Sicília. Em 721, marcharam sobre Toulouse e conseguiram êxito, controlando
boa parte da costa sul da França. Em 732, porém, foram derrotados pelo exército de Carlos Martel,
próximo à cidade de Poitiers.

Lembrete

Califa é um título atribuído ao líder religioso da comunidade islâmica,


considerado pelos muçulmanos um dos sucessores do profeta Maomé.

O período de cem anos entre a morte de Maomé e a batalha de Poitiers foi suficiente para promover
grandes transformações. As invasões árabes mudaram o futuro da Igreja Católica e da região, pois os
muçulmanos dominaram o Mediterrâneo desde a Antioquia, na Ásia Menor, até Narbonne, no sul da
França. Com isso, o comércio cristão ficou limitado aos mares Egeu, Adriático e Negro.

Tanto no ápice do Império Romano quanto no período das invasões bárbaras, sempre existiu uma
grande importação de produtos do Oriente para o Ocidente, como papiro, seda e especiarias. Com as
conquistas dos árabes, o comércio cessou, o que fez o Ocidente depender de seus próprios recursos e
avançar exclusivamente com sua própria civilização.

Em relação à fé muçulmana, em que se fundamenta e como é praticada? O Alcorão nomeia como


única religião verdadeira o caminho do patriarca bíblico Abraão, em especial pela sua incansável
demonstração de fé. É por isso que ele recebe de Deus o título de servo amado, nunca dado a ninguém
antes dele, ou ainda a alcunha de Khalil. Todos os demais profetas que pertencem a sua descendência,
como Isaque, Ismael, Jacó (Israel) e Moisés, têm o dever de guiar os muçulmanos na mesma verdade.

Apesar de o Alcorão não fornecer minúcias da vida de Abraão (no livro, chamado Ibrahim ou
Ibraham), alguns aspectos importantes devem ser mencionados. Ele nasceu aproximadamente em
2166 a.C., na cidade mesopotâmica de Ur, a 300 km de onde hoje fica a cidade de Bagdá. Aazar, seu
pai, era descendente de Sem, filho de Noé, tendo migrado com alguns parentes para a cidade de Haran
durante a infância de Abraão. Jesus, por sua vez, também é considerado um grande profeta. Contudo,
diferentemente da apologética cristã, não é Deus.

68
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

A lei sagrada do islamismo é chamada xaria, termo que significa “estrada”, ou seja, o caminho
pelo qual Deus determina que os muçulmanos trilhem. A xaria regulamenta diversos aspectos da vida
e abrange deveres religiosos essenciais conhecidos como cinco pilares, com o objetivo principal de
evoluir o espírito de submissão a Deus. Vejamos algumas definições:

1. Shahada: é a porta de entrada do indivíduo no islã e nenhuma pessoa


é considerada muçulmana sem que a tenha feito; ela é naturalmente
feita pelo muçulmano todos os dias, durante as orações e súplicas,
consistindo em dizer “Não há divindade além de Allah, e Muhammad é
mensageiro de Allah”.

2. Salat: é a oração obrigatória dos muçulmanos, que deve ser praticada


cinco vezes ao dia em horários específicos, de acordo com a posição do sol.
Durante o salat, o muçulmano recita o Alcorão e faz as súplicas prescritas
pelo profeta Muhammad, de acordo com o que foi revelado por Deus a ele.

3. Zakat: é a doação compulsória de 2,5% para aqueles que têm capacidade


de pagá-la, ou seja, que possuem valor de bens acima de 85 gramas de ouro.
O valor é pago sobre a parte que excede esses 85 gramas de ouro, o que
geralmente é feito para instituições que fazem a distribuição dos valores
entre pobres e necessitados.

4. Jejum no mês do ramadã: dura todo o mês lunar do ramadã e deve ser
praticado por todo muçulmano com capacidade para jejuar, iniciando antes
de o sol nascer e encerrando após o sol se pôr.

5. Hajj ou peregrinação a Meca: é a viagem que deve ser feita pelo menos
uma vez na vida pelos muçulmanos com condições para tal; nela, vários
rituais são praticados de acordo com a tradição abraâmica da peregrinação,
tendo esse pilar sido iniciado com o profeta Abraão em suas visitas a Meca
(5 PILARES…, [s.d.]).

Os muçulmanos professam a unidade de Deus (monoteísmo). Além dos livros sagrados criados para
guiar a humanidade, seguem os profetas, os anjos e o fatalismo. Dividem-se em dois grupos principais:
os sunitas e os xiitas. Essa divisão ocorreu logo após a morte de Maomé. Os sunitas correspondem
a algo entre 80% e 90% do total dos muçulmanos. Eles baseiam sua crença na suna (prática) do
profeta e de seus seguidores, e acreditam que a comunidade islâmica se manterá unida em torno desse
preceito. Embora a maioria dos sunitas creia que seus princípios são derivados daqueles estabelecidos no
século VIII, uma minoria afirma que seu nome advém de uma palavra que significa “um caminho mais
moderado”, referindo-se à ideia de que o sunismo tem uma posição mais neutra do que a dos xiitas,
vista como mais extremada.

69
Unidade I

Observação

Fatalismo é a concepção de que tudo o que acontece, seja o que for,


está destinado a acontecer, independentemente do que façamos.

Ainda que compartilhando os mesmos dogmas da fé islâmica, os dois grupos divergiram na questão
da sucessão do profeta Maomé. Para os sunitas, o califa deveria ser escolhido pelos próprios muçulmanos,
o que acabou acontecendo. Para os xiitas, porém, o sucessor de Maomé deveria ser Ali, mas ele foi
assassinado, e seus dois filhos, Hassan e Hussein, tiveram o mesmo destino. Isso desencadeou um forte
sentimento de aversão entre os dois lados. Os xiitas foram oprimidos, marginalizados, ficando com
a pior situação econômica do mundo árabe. Quando determinado país é governado por sunitas, em
geral os xiitas são o grupo mais pobre da sociedade, e por vezes sunitas radicais pregam o ódio contra
eles. Quando ocorreu a guerra civil no Líbano (1975-1990), os xiitas ganharam força política com as
atividades militares do grupo Hezbollah.

Um ponto precisa ser esclarecido: em que pese o senso comum afirmar que o islamismo propaga
a violência, uma análise mais acurada prova que isso não é verdade. Há fundamentalistas dispostos a
executar pessoas em nome de Deus em todas as religiões, e a história nos mostra que cristãos e
judeus também o fizeram. No tocante ao Alcorão, certos trechos dão a entender que existe certa
apologia da intolerância, mas isso não é exclusividade do islamismo, tendo em vista que a Torá
e a Bíblia também são utilizadas por grupos minoritários para incentivar a violência. Observe os
fragmentos a seguir:

Uma vez expirados os meses sagrados, matai os idólatras onde quer que
os encontreis, e apanhai-os e tornai-os prisioneiros, e ficai a sua espreita;
mas se eles se convertem, se observam a oração, se concedem a esmola,
então deixai-lhes livre o caminho, pois Deus é indulgente e misericordioso
(O ALCORÃO…, 1994, Sura 9,5).

Quando o Senhor, seu Deus, os fizer entrar na terra, para a qual vocês estão
indo para dela tomar posse, ele expulsará de diante de vocês muitas nações:
os hititas, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os
jebuseus. São sete nações maiores e mais fortes do que vocês; e quando o
Senhor, seu Deus, as tiver entregue a vocês, e vocês as tiverem derrotado,
então vocês as destruirão totalmente. Não façam com elas tratado algum, e
não tenham piedade delas (BÍBLIA…, [s.d.], Deuteronômio 7,1-2).

Eu lhes digo que a quem tem, mais será dado, mas a quem não tem, até o
que tiver lhe será tirado. E aqueles inimigos meus, que não queriam que
eu reinasse sobre eles, tragam-nos aqui e matem-nos na minha frente!
(BÍBLIA…, [s.d.], Lucas 19,26-27).

70
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Grupos como Estado Islâmico, Al-Qaeda, Talibã e Boko Haram se consolidam em regiões de minorias
excluídas, dentro de países que até hoje sofrem com ditaduras e graves violações aos direitos humanos.
Eles podem ser considerados células terroristas, que formam alianças e dão apoio uns aos outros.
Esses grupos têm em comum o fundamentalismo religioso, baseado numa interpretação radical da lei
islâmica, que apoia a guerra santa, a jihad.

Saiba mais

Leia mais sobre grupos extremistas islâmicos em:

QUEM são e o que querem os grupos extremistas que propagam o


terror. G1, 27 nov. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/
noticia/2015/11/quem-sao-e-o-que-querem-os-grupos-extremistas-que-
propagam-o-terror.html. Acesso em: 6 jan. 2020.

A história revela que fundamentalistas violentos não foram somente muçulmanos. Quando olhamos
para a época das Cruzadas e da Inquisição, vemos que judeus e muçulmanos conheceram as espadas
cristãs ou as chamas da fogueira apenas porque professavam outro credo. O ódio de grupos extremistas
como Al-Qaeda e Boko Haram certamente põe em evidência o islã, mas é preciso estabelecer diferenças.

De acordo com Armstrong (2009, p. 97), “os extremistas representam uma minoria que perverte a
religião”, sendo um equívoco considerar o islã intrinsecamente violento. No entanto, esse posicionamento
não é unânime. A pesquisadora de origem síria Wafa Sultan, uma das maiores críticas do islamismo, diz
que “o islã não é só uma religião: é também uma ideologia política que prega e aplica sua agenda pela
força”. Por sua vez, a escritora Ayaan Hirsi Ali, que nasceu na Somália e foi criada na Arábia Saudita, na
Etiópia e no Quênia, afirma: “Crianças islâmicas em todo o mundo são ensinadas como eu fui: a desejar
e a perpetuar a violência contra o inimigo – o judeu e o satã americano” (apud SZKLARZ, 2016).

Desse modo, o islamismo se ramifica em diversos tipos de ativismo político-religioso no mundo


muçulmano, com várias correntes ideológicas, podendo ser extremistas ou moderadas. O único ponto
convergente é a construção de um Estado islâmico, tendo como base a religião islã, que fundamente
tanto a vida social quanto a vida política.

71
Unidade I

Resumo

Aprendemos que a filosofia da religião é um dos segmentos da filosofia.


Seu principal objetivo é estudar a dimensão espiritual do homem a partir
de uma perspectiva filosófica, com indagações e pesquisas sobre a essência
do fenômeno. Os métodos usados para esse estudo são o antropológico, o
filológico e o histórico-crítico comparativo.

Vimos também sobre o que a filosofia da religião se debruça, seus


objetivos e seus métodos. Verificamos a relevância que a religião tem
na vida humana, fornecendo orientação nos aspectos espacial, social e
psicológico. A presença da religião é importante porque pode diminuir a
anomia – ausência de leis ou normas que regulam a vida em sociedade.

Observamos ainda que, embora o termo sagrado seja muito utilizado,


não devemos confundir filosofia da religião com teologia, pois a primeira
parte de si mesma em busca de um pensar filosófico, enquanto a segunda
estuda a relação entre os homens e o divino, pautada numa revelação
especial, e normalmente procura defender seu sistema ou dogma.

Fizemos uma breve análise das religiões politeístas, como a grega, a


egípcia e as de matriz africana. As últimas há muito foram incorporadas na
cultura brasileira, sob a forma de candomblé, umbanda e quimbanda.

Destacamos ainda algumas religiões monoteístas, como a judaica


(deus Javé) e a islâmica (deus Alá). O judaísmo é considerado a religião
monoteísta – ou seja, que acredita em somente um Deus – mais antiga do
mundo. Atualmente existem judeus em quase todos os países do mundo,
mas a maioria está localizada em Israel e nos Estados Unidos.

O islamismo é uma religião surgida na Península Arábica, no começo


do século VII, com o profeta Maomé. Essa crença religiosa atualmente é a
segunda maior do mundo, possuindo cerca de 1,8 bilhão de fiéis, a maioria
deles localizada nos continentes asiático e africano.

O islamismo, assim como o judaísmo e o cristianismo, é uma religião


monoteísta, ou seja, os muçulmanos acreditam na existência de apenas um
Deus. Essas três crenças são as três grandes religiões monoteístas do mundo.

De acordo com a filosofia da religião, podemos dizer que todas as


religiões do Ocidente têm um ponto em comum: a fé em Deus. Dessa forma,
a divindade é um ser incorpóreo, eterno, visto como o criador de todas

72
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

as coisas. Além disso, segundo essas religiões, Deus é generoso, perfeito,


onipotente, onisciente e onipresente.

Destacamos que a questão religiosa é demasiado central na vida de


cada pessoa e na história da humanidade para ser simplesmente ignorada.
Não é possível refletir sobre a condição humana sem se dar conta do
fenômeno religioso. Por isso, quem pretende entender o que é o homem
não pode deixar de confrontar-se com as convicções e atitudes religiosas e
antirreligiosas que se manifestam através dos tempos.

Exercícios

Questão 1. Observe os quadrinhos a seguir:

Figura 3

Com base na leitura e nos seus conhecimentos, analise as afirmativas:

I – Os quadrinhos contrapõem o conhecimento científico, baseado na razão e na observação, ao


conhecimento mitológico, desprovido de sentido e de valor.

II – Nos quadrinhos, Zeus fica irritado, o que não condiz com o comportamento dos deuses gregos,
que eram considerados imortais e libertos das paixões humanas.

III – A afirmação do primeiro quadrinho refere‑se ao fato de que os filósofos gregos tiveram influência
sobre muitos pensadores ao longo da história.

73
Unidade I

É correto o que se afirma em:

A) I, II e III.

B) I e III, apenas.

C) II e III, apenas.

D) I, apenas.

E) III, apenas.

Resposta correta: alternativa E.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: o pensamento mitológico não é desprovido de sentido e de valor.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: os deuses gregos eram suscetíveis às paixões humanas.

III – Afirmativa correta.

Justificativa: Sócrates, Platão e Aristóteles, por exemplo, serviram de base para muitos pensadores
que vieram depois deles.

Questão 2. (Enade 2017) “A religião, quando chega a falar de conhecimento, não entende por
isso o comportamento noético de um sujeito pensante para com um objeto pensado neutro, mas a
real reciprocidade de um contato presente na plenitude da vida, de existência atuante para exigência
atuante; e a fé é entendida por ela como o ingressar nessa reciprocidade, como unir‑se a um ser que
não pode ser apontado nem constatado, mas ainda assim ao que se pode estar unido, que pode ser
experimentado, um ser do qual todo sentido procede.”

BUBER, M. Eclipse de Deus: considerações sobre a relação entre religião e filosofia.


Tradução Carlos Almeida Pereira. Campinas: Versos, 2007. Adaptado.

Considerando‑se as ideias defendidas pelo autor no texto apresentado, é correto afirmar que:

A) A religião pressupõe uma reciprocidade dialogal entre seres em posição de sujeito.

B) A religião estabelece um pensamento que torna a divindade o objeto do sujeito consciente.

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FILOSOFIA DA RELIGIÃO

C) A fé é acreditar em algo sagrado, mesmo que esse algo seja representado por um objeto, como
um amuleto.

D) O ser humano é quem faz a divindade para atender suas necessidades e fraquezas, superando
assim suas debilidades.

E) A religião está ligada aos ritos, e não à plenitude da existência.

Resposta correta: alternativa A.

Resolução da questão

O enunciado pede a alternativa correta de acordo com o texto. Nele, é afirmado que, na religião,
existe “a real reciprocidade de um contato presente na plenitude da vida, de existência atuante para
exigência atuante”.

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