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Biogeografia/

Sociobiogeografia
e Ambiente
Autores: Prof. Guilherme Francisco
Profa. Ivete Maria Soares R. Ramirez
Prof. Fernando Paiva Santos
Profa. Cláudia Martins
Colaborador: Prof. Adilson Rodrigues Camacho
Professor conteudista: Guilherme Francisco / Ivete Maria Soares R. Ramirez /
Fernando Paiva Santos / Cláudia Martins

Guilherme Francisco aulas no programa Atualidades On‑line do Sistema Objetivo de Ensino


e realiza comentários nos exames do Enem e vestibulares. Coordena,
Bacharel e licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade ministra aulas e elabora materiais didáticos para o curso de Licenciatura
Estadual Paulista (Unesp campus Rio Claro), mestre em Oncologia em Geografia, na modalidade de ensino a distância (EaD), na Universidade
pela Fundação Antônio Prudente – Hospital AC Camargo e doutor em Paulista (UNIP).
Oncologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(FM‑USP). Atua como editor científico nos periódicos na área de genética Fernando Paiva Santos
humana e revisor científico em periódicos da área de genética. Possui
experiência em docência no Ensino Médio na disciplina de Biologia e Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana
no Ensino Superior na área de Epidemiologia e Bioquímica. Atualmente, Mackenzie, pós‑graduado em Gestão e Organização Escolar pelo Instituto
atua como professor do colégio e curso pré‑vestibular do Colégio e AVM e graduando em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo
Sistema Objetivo. (USP). Desenvolveu estágio no Departamento de Ciências Biológicas da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) como crédito necessário
Ivete Maria Soares R. Ramirez para o mestrado em Ornitologia. Cursou disciplinas de pós‑graduação
no Instituto Federal de Ensino Tecnológico de São Paulo (Cefet‑SP). É
Mestranda em Educação, pós‑graduada em Jornalismo Científico professor de Biologia do Ensino Médio do Colégio Objetivo e do curso
pelo Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo Científico da pré‑vestibular do Sistema Objetivo. Ministra encontros pedagógicos
Universidade de Campinas – Labjor‑Unicamp, bacharel e licenciada para professores de Biologia do Sistema Objetivo em São Paulo e outros
em Ciências Sociais e Geografia pela Universidade de São Paulo – USP. estados brasileiros.
Em 2006, estudou em nível de pós‑graduação stricto sensu no Núcleo
de Pesquisas Ambientais (Nepam‑Unicamp) como aluna especial do Cláudia Martins
Programa de Doutorado. É autora de material didático de Geografia
do Ensino Médio do Sistema de Ensino Objetivo e do livro Tiwanaku: Mestre e bacharel em Geografia pela Universidade de São Paulo
um Olhar sobre os Andes, resultado de pesquisa de campo e residência (USP) e doutora em Filosofia das Ciências Humanas pela Pontifícia
durante seis anos no Chile, na região de Atacama, elaborado em parceria Universidade Católica de São Paulo (PUC‑SP). Atua como docente
com o laboratório de editoração da ECA‑USP em 2005. Realiza trabalho nas áreas de Epistemologia e História do Pensamento e em questões
de assessoria de coordenação do Ensino Médio no Departamento de temáticas da Geografia Urbana. Realizou estágio de iniciação científica
Programação Geral (DPG), apoio pedagógico, do Colégio Objetivo, em no Laboratório de Planejamento Urbano e Territorial em Geografia pela
São Paulo. Ministra cursos para professores nos encontros pedagógicos USP e atuou como geógrafa nas Centrais Elétricas de São Paulo e na
promovidos pelo DPG, departamento este que assessora as unidades Fundação de Desenvolvimento Administrativo (Fundap), ocupando‑se
conveniadas do Sistema Objetivo no Brasil e as unidades situadas no de questões ambientais e de políticas públicas de saneamento, recursos
Japão, com cursos para professores e atendimento aos alunos. Ministra hídricos e educação ambiental.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F818b Francisco, Guilherme.

Biogeografia/Sociobiogeografia e Ambiente. / Guilherme


Francisco, Ivete Maria Soares Ramirez Ramirez, Fernando Paiva Santos,
Cláudia Martins. – São Paulo: Editora Sol, 2016.

200 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2-007/16, ISSN 1517-9230.

1. Biogeografia. 2. Biomos brasileiros. 3. Ecologia urbana. I.


Ramirez, Ivete Maria Soares Ramirez. II. Santos, Fernando Paiva. III.
Martins, Cláudia. IV. Título.

CDU 574

A-XIX

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Unip Interativa – EaD

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Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Lucas Ricardi
Giovanna Cestari
Sumário
Biogeografia/Sociobiogeografia e Ambiente

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................9
INTRODUÇÃO......................................................................................................................................................... 12

Unidade I
1 ORIGEM DA VIDA............................................................................................................................................. 19
2 TEORIAS EVOLUTIVAS..................................................................................................................................... 25
2.1 Darwinismo.............................................................................................................................................. 25
2.2 Lamarckismo............................................................................................................................................ 30
2.3 Neodarwinismo...................................................................................................................................... 30
3 ESPECIAÇÃO....................................................................................................................................................... 32
3.1 Mecanismos de especiação............................................................................................................... 35
3.2 Mecanismos de isolamento reprodutivo..................................................................................... 44
4 EVOLUÇÃO HUMANA...................................................................................................................................... 46
4.1 Evolução dos hominídeos.................................................................................................................. 48
4.1.1 Australophitecus...................................................................................................................................... 49
4.1.2 Homo............................................................................................................................................................ 51
4.1.3 Origem africana: primeiros do gênero Homo.............................................................................. 52
4.1.4 Homo habilis.............................................................................................................................................. 52
4.1.5 Homo rudolfensis.................................................................................................................................... 53
4.1.6 Homo ergaster.......................................................................................................................................... 53
4.1.7 Homo erectus............................................................................................................................................ 53
4.2 Últimos passos da evolução dos hominídeos............................................................................ 54
4.3 Homo sapiens......................................................................................................................................... 55
4.4 Evolução do homem moderno........................................................................................................ 56
4.4.1 Modelo de evolução multirregional................................................................................................. 56
4.4.2 Modelo de substituição......................................................................................................................... 57
4.4.3 Modelo de hibridação e assimilação................................................................................................ 57
4.5 H. sapiens são originais....................................................................................................................... 59

Unidade II
5 BIOMAS................................................................................................................................................................ 67
5.1 Biomas mundiais................................................................................................................................... 67
5.1.1 Tundra........................................................................................................................................................... 68
5.1.2 Taiga.............................................................................................................................................................. 70
5.1.3 Florestas temperadas.............................................................................................................................. 72
5.1.4 Campos........................................................................................................................................................ 73
5.1.5 Desertos....................................................................................................................................................... 74
5.1.6 Floresta pluvial tropical......................................................................................................................... 76
5.1.7 Bioma aquático........................................................................................................................................ 77
5.2 Biomas brasileiros.................................................................................................................................. 80
5.2.1 Bioma amazônico.................................................................................................................................... 81
5.2.2 Bioma caatinga......................................................................................................................................... 83
5.2.3 Bioma Pantanal Mato‑Grossense...................................................................................................... 84
5.2.4 Bioma Mata Atlântica............................................................................................................................ 85
5.2.5 Bioma pampa (pradarias e campos)................................................................................................. 86
5.2.6 Bioma cerrado........................................................................................................................................... 88
6 BIOGEOGRAFIA DE AMBIENTES AQUÁTICOS........................................................................................ 88
6.1 Ambientes marinhos............................................................................................................................ 88
6.2 Estrutura oceânica................................................................................................................................ 89
6.3 Biogeografia marinha.......................................................................................................................... 91
6.4 Biogeografia do mar aberto.............................................................................................................. 93
6.5 Padrões de circulação de águas oceânicas................................................................................. 96
6.6 Biomas e províncias oceânicas........................................................................................................ 98
6.7 Biogeografia de mares rasos............................................................................................................. 99

Unidade III
7 TEORIAS E ESTUDOS BIOGEOGRÁFICOS................................................................................................110
7.1 Biogeografia de ilhas.........................................................................................................................110
7.1.1 Tipos de ilhas e biogeografia............................................................................................................. 110
7.1.2 Evoluindo nas ilhas: exemplos e tendências para irradiação adaptativa....................... 116
7.1.3 Enfrentando dificuldades: como chegar e sobreviver nas ilhas?....................................... 118
7.1.4 Teoria da Biogeografia de Ilhas....................................................................................................... 123
7.2 Ecologia de Paisagens........................................................................................................................126
7.2.1 Abordagens da Ecologia de Paisagens......................................................................................... 128
7.2.2 Os elementos de uma paisagem diferem entre si................................................................... 130
7.2.3 Fronteiras dos patches influenciam a dinâmica ecológica................................................. 132
7.2.4 O contexto do patch é importante............................................................................................... 133
7.2.5 Conectividade é a característica‑chave da estrutura da paisagem................................. 134
7.2.6 Processos e padrões espaciais são dependentes de escalas................................................ 134
7.3 Sucessão ecológica.............................................................................................................................139
7.3.1 Importância e conceito de sere........................................................................................................141
7.3.2 Um exemplo de sucessão ecológica.............................................................................................. 143
7.3.3 Sucessão primária................................................................................................................................. 147
7.3.4 Sucessão secundária............................................................................................................................ 148
7.3.5 Comunidades clímax........................................................................................................................... 150
7.3.6 Interação entre feedbacks positivos e negativos na sucessão ecológica.......................151
7.3.7 Sucessão urbana................................................................................................................................... 152
7.3.8 Sucessão induzida por atividades humanas.............................................................................. 152
7.3.9 Degradação de pastagens por sobrepastoreio.......................................................................... 153
7.3.10 Desertificação...................................................................................................................................... 153
8 ECOLOGIA URBANA E A SOCIOBIOGEOGRAFIA.................................................................................159
8.1 Organização do espaço.....................................................................................................................159
8.2 PNUD e Ps para o desenvolvimento sustentável....................................................................162
8.3 Atmosfera e os gases.........................................................................................................................166
8.4 Crescimento das metrópoles..........................................................................................................166
8.5 Clima local e microclimas urbanos: interferência na qualidade de vida
da população................................................................................................................................................167
8.5.1 A questão metodológica das escalas nos estudos do clima............................................... 167
8.5.2 O ambiente urbano e clima local....................................................................................................171
APRESENTAÇÃO

A Biogeografia constitui‑se no estudo da distribuição das espécies e ecossistemas em um


determinado espaço geográfico por meio do tempo geológico. Sabemos que os organismos e as
distintas comunidades biológicas variam de uma forma altamente regular ao longo dos distintos
gradientes geográficos como a latitude, a altitude, a sua posição em termos de isolamento e o
lugar onde se encontra o seu hábitat.

Nos estudos biogeográficos, pretendemos identificar e compreender a diversidade e a complexidade


dos biomas e sua relação com a ocupação e os modos de vida dos grupos humanos.

É importante reconhecer a disponibilidade dos recursos e sua apropriação pelas distintas comunidades.
A ideia é interpretar e relacionar os conceitos sociológicos e biológicos com os conceitos geográficos e
a qualidade de vida.

Pretendemos com este estudo descrever e identificar, por meio de indicadores cartográficos,
a evolução histórica de algumas doenças endêmicas e diferenciá‑las das doenças epidêmicas que
acometem os grupos humanos, sua evolução e possível contenção ou erradicação.

Nossa preocupação também está fundamentada na interpretação e no relacionamento dos


conceitos geográficos, transferindo‑os para situações concretas, destacando a ação humana e os
impactos ambientais.

Pretendemos também diferenciar os ambientes terrestres e aquáticos, destacando suas características


e especificidades.

Herrera (1982, p. 161‑189) aborda a questão da natureza humana afirmando que ela difere
biologicamente de outras espécies, mas questiona: qual seria a sua especificidade? O autor define a
natureza humana como um “mecanismo de relojoaria” extremamente complexo e seleciona traços
distintos da espécie humana: Homo sapiens, Homo faber e animal metafísico. Como define o
filósofo Schopenhauer (2005), ele conhece a morte e se questiona sobre o significado do Universo
e de sua própria vida.

Para complementarmos a questão da natureza humana, lembramos da leitura da obra Natureza


Humana: Justiça vs. Poder, de Michel Foucault, na qual ocorre um debate entre o filósofo e o linguista
Noam Chomsky. Foucault (2014, p. 2‑3) pergunta a Chomsky:

A minha primeira pergunta é dirigida ao senhor, Sr. Chomsky: por que o


senhor emprega com frequência o conceito de natureza humana, chegando
a relacionar a ela termos como “ideias inatas” e “estruturas inatas”? Que
argumentos o senhor infere da linguística para atribuir uma posição central
ao conceito de natureza humana?

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Resposta de Chomsky:

Bem, gostaria de começar com algumas pinceladas técnicas. Toda pessoa que
se interessa pelo estudo de línguas depara com um problema empírico bem
definido. Ela depara com um organismo, digamos um organismo maduro,
adulto, falante, que de alguma forma adquiriu uma fantástica gama de
habilidades que lhe permitem especialmente se fazer entender, compreender
o que as pessoas lhe dizem, e fazer isso de uma forma que, penso, podemos
chamar de altamente criativa. Ou seja, muito daquilo que uma pessoa diz
numa comunicação normal com os outros é novo, muito do que houve é
original. A pessoa tem habilidades, tem inteligência (FOUCAULT, 2014, p. 2‑3).

Mas façamos outras perguntas: o que realiza o ser humano a si mesmo em termos ambientais? Até
que ponto a natureza humana está comprometida e compromete a biosfera? Existe algo que o relaciona
à biosfera de forma específica, a seu hábitat e a sua cultura, como os seres humanos os organizam?
Como se reproduzem e como sobrevivem?

Para tanto, Herrera avalia a Teoria Malthusiana (dos rendimentos decrescentes) e a posição marxista
quanto ao possível colapso dos meios de produção e de sobrevivência no que tange aos recursos naturais. O
autor menciona em sua análise as sofridas regiões pobres e dominadas e o neomalthusianismo, relacionando
crescimento populacional e subdesenvolvimento. Para ele, o ser humano está exposto ao perigo, mas fugir
para onde? Os riscos que corre são originados de suas próprias ações em relação à natureza. Mas o ser
humano, ao contrário de outras espécies, é uma criatura cultural, e Herrera questiona: por que não utilizar
os avanços científicos em seu benefício em vez de ampliar a situação de crise?

As interpretações são múltiplas acerca do problema da autodestruição e variam sob os pontos de


vista do biológico ao psiquiátrico. Historicamente, a razão ocidental enlouqueceu?

A concepção marxista da história fundamentada na ideia de progresso material, segundo Hegel (apud
HERRERA, 1982, p. 69), fala de forças materiais conflitantes: “toda a história da humanidade desde a
dissolução da primitiva sociedade tribal, que mantinha a terra em propriedade comum, tem sido uma
história de luta de classes, contendas entre explorador e explorado, classes governantes e oprimidas”.

Herrera propõe partir de um enfoque unificado para compreender a evolução histórica do Homem
e se ele é produto de um desajuste biológico condenado a se extinguir ou se existe uma explicação
alternativa para a crise atual. Ele pergunta se há uma mutação cultural.

A sociedade mundial proposta pelo marxismo já demonstrou suas limitações de caráter prático
durante a vigência da Guerra Fria, de ordem bipolar. A luta entre “exploradores e explorados”, povos
“opressores e oprimidos”, é uma realidade ainda observada em nossa cotidianidade no contexto da Nova
Ordem Mundial, multipolar e globalizada.

O que a Biogeografia e a Sociobiogeografia têm de compatibilidade com tal situação? A irracionalidade


na gestão dos ambientes, a expropriação dos recursos, o descaso com a natureza e com a utilização dos
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recursos como a água, os recursos minerais, a falta de saneamento e tudo o que possa afetar a saúde e
a sobrevivência dos grupos humanos relacionaria a Biogeografia e a Sociobiogeografia.

A irracionalidade da crise da destruição ainda não tem explicações conclusivas. A vida nos
distintos continentes está em jogo, na relação entre as espécies existentes, suas especificidades,
os biomas nos quais se inserem e as condições geográficas apresentadas pelos distintos ambientes
continentais e oceânicos.

A Biogeografia envolve distintas teorias e conceitos que se referem à Botânica, à Zoologia, à Ecologia, à
Antropologia, à Biologia da Conservação e à Geografia da Conservação. No caso específico da Geografia,
os estudos relacionam‑se à espacialidade dos seres vivos com atributos físicos do ambiente, o modo
como as sociedades humanas atuam sobre esses atributos e os seus hábitos de consumo.

Os objetivos gerais da presente disciplina para o curso de Licenciatura em Geografia devem


possibilitar ao aluno, futuro docente, trabalhar conceitos que auxiliem na compreensão da distribuição
dos seres vivos no tempo e no espaço. A discussão do caráter interdisciplinar da Biogeografia visa
promover um encontro entre as abordagens geográficas e ecológicas, possibilitando ao aluno a análise,
discussão e interpretação das teorias, métodos e técnicas de interpretação biogeográfica por meio
do desenvolvimento de projeto didático, e, finalmente, dar oportunidade teórica para que os alunos
realizem futuramente trabalhos práticos de campo em suas respectivas comunidades, em ambientes
distintos, estabelecendo relações entre a Biogeografia, a Sociobiogeografia e a conservação da natureza.

Devemos considerar para nossos estudos a questão da vulnerabilidade como um conceito


flexível e que deve ser ajustado e absorvido conforme se apresentam as disciplinas que o
utilizam. No que se refere às mudanças ambientais globais, a Biogeografia, a Sociobiogeografia
e a Geografia se associam para desenvolver estudos contextualizados sobre a vulnerabilidade e a
exposição às quais estão submetidas as espécies em situações de estresse e à própria sobrevivência
frente aos impactos e rupturas socioambientais que comprometem a manutenção dos indivíduos
ou coletividade. Adger (1999) traduziu o termo vulnerabilidade –exposição ao estresse e ruptura
ambiental – baseado nos impactos ambientais, políticos, econômicos e históricos, na capacidade
de transformações socioculturais contemporâneas e nos desastres ambientais que interferem na
qualidade de vida. Assim, pretendemos identificar e compreender a diversidade e complexidade
dos biomas e sua relação com o processo de ocupação e modos de vida dos grupos humanos. A
ideia é reconhecer a disponibilidade dos recursos e a sua apropriação pelas distintas comunidades
humanas, interpretando e relacionando os conceitos sociológicos e biológicos com os conceitos
geográficos e sua relação com a qualidade de vida.

Nesta disciplina, pretendemos descrever e identificar, por meio de indicadores cartográficos, a


evolução histórica de algumas doenças que acometem os grupos humanos, sua evolução e erradicação,
interpretando e relacionando os conceitos geográficos, transferindo‑os para situações concretas e
destacando a ação humana e os possíveis impactos ambientais.

Entre os objetivos gerais, destacamos a distinção dos ambientes terrestres e sua biodiversidade,
a relação entre os grupos humanos e os ambientes, a contextualização entre os aspectos naturais, a
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biodiversidade e a ação humana construtiva e destrutiva e, acima de tudo, o estabelecimento de um
diálogo entre a Geografia, a Biologia e a Sociologia, dentro do contexto de saúde e qualidade de vida.

Bons estudos!

INTRODUÇÃO

Iniciamos o nosso trabalho com uma indagação: o que se estuda em Biogeografia? Podemos defini‑la
como a dimensão espacial da evolução que permite documentar e compreender modelos espaciais de
biodiversidade, de acordo com definições de Brown e Lomolino (1998), que falam ainda em dimensão
espacial da evolução, como evidenciam certas imagens.

Figura 1

Observamos em estudos biogeográficos que algumas espécies estão confinadas a uma determinada
região, caracterizando o que em Geografia e Biologia chamamos de endemismo, e outras semelhantes
são aparentadas, vivendo em regiões separadas por barreiras biogeográficas (disjunção).

A teoria que explica a grande biodiversidade existente em algumas áreas do mundo, como a Floresta
Amazônica, denomina‑se Teoria dos Refúgios. O Prof. Dr. Aziz Ab’Saber falava a respeito dela em suas
aulas e obras. Segundo ele, teria ocorrido na era Cenozoica (no período quaternário) uma instabilidade
climática, com alternância de períodos secos e frios, e foi no Holoceno que surgiu a espécie humana. De
acordo com essa teoria, a Floresta Amazônica foi fragmentada, formando alguns pequenos acúmulos
(redutos) em lugares mais úmidos, com maiores índices pluviométricos, que foram sendo intercalados
com uma vegetação arbustivo‑herbácea – o cerrado –, e, por ter sido desmembrada em “refúgios” com
distintas vegetações e climas, ocorreu uma alta concentração de processos evolutivos distintos.

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Nos períodos interglaciais, o clima apresentava‑se mais úmido, o que favoreceu o maior contato
entre os diferentes tipos de ambientes, bem como as populações que habitavam os refúgios. Isso
permitiu maior contato entre distintas espécies, o que explicaria a diferença de concentração de espécies
endêmicas em certas áreas da atual Floresta Amazônica.

Já no Pleistoceno, período caracterizado pela presença de espécies de mamíferos e pássaros de grande


dimensão, a Floresta Amazônica viu‑se inundada pelo que foi denominado Grande Lago Amazonas, uma
vez que a vazão do Rio Amazonas foi interrompida pela formação na parte ocidental da América do
Sul, pela formação da Cordilheira dos Andes. Vamos recordar que o Rio Amazonas nasce no Peru em
região andina e que tem seu curso direcionado para Leste, ou seja, com foz no Oceano Atlântico. Em
decorrência desses fatos, separaram‑se as paisagens vegetais oriental – norte e oriental‑sul, o que
contribuiu para caracterizar a maior divergência da biodiversidade.

Ocorre então uma regressão do lago amazônico, o que acabou impulsionando a distribuição
da formação florística da Amazônia central. Novamente nos períodos interglaciais ocorreram as
transgressões marítimas, o que representa o avanço do mar sobre o continente, inundando vastas áreas.
Isso teria contribuído para isolar as áreas vegetadas tanto ao Norte quanto ao Sul do Rio Amazonas e
para o fortalecimento das hipóteses de que a floresta teria se expandido e regredido, o que contribuiu
para a variação de espécies que compartilham um mesmo gênero.

Aí está, portanto, a concentração de riqueza em termos de biodiversidade existente nesse bioma.


Dando continuidade a isso, foram observadas mudanças climáticas que na contemporaneidade
assumem um nível cada vez mais intenso, o que, conforme muitos estudos afirmam, é agravado pelas
ações antrópicas.

As mencionadas mudanças climáticas foram constantes, o que ampliou o desenvolvimento de novas


espécies que se tornaram endêmicas (particulares daquela área). Por outro lado, as áreas dominadas pelo
cerrado acabaram recebendo espécies que haviam crescido nos refúgios.

Dessa forma, apresentaremos em nosso curso a Ecobiogeografia, a Biogeografia Evolutiva, com a


informação da origem da vida e evidências evolutivas, e as teorias evolutivas, com o Lamarckismo e o
Darwinismo/Neodarwinismo, seguindo com a especiação e a evolução humana.

Também procuraremos destacar os biomas mundiais e a Fitogeografia e daremos especial ênfase


aos biomas brasileiros, sua caracterização e conservação. Diferenciaremos os ambientes aquáticos: a
limnologia e a oceanografia básicas.

Quanto às teorias biogeográficas, falaremos sobre a corologia, as ecorregiões, os refúgios e os redutos


dos domínios morfoclimáticos. Destacaremos a Teoria Biogeográfica das ilhas, a ecologia das paisagens
e a sucessão ecológica, inclusive com sugestões para recuperação de áreas degradadas.

Quanto à Ecologia Urbana, destacaremos o uso do solo: verticalização, áreas verdes, tipos de
moradias e contrastes existentes. Também consideramos importante falar sobre os microclimas urbanos
e as influências na qualidade de vida a partir do saneamento básico e os aspectos nocivos da poluição
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e agressão aos ecossistemas afetando as florestas urbanas e os recursos hídricos, bem como a exclusão
espacial e a valorização imobiliária das áreas verdes.

Nas ciências ambientais, nosso foco será relativo à natureza das questões ambientais, ao cenário
socioambiental mundial e aos principais problemas decorrentes: perda da biodiversidade, miséria,
pobreza, desertificação, mudanças climáticas, crescimento populacional, poluição ambiental e
os princípios da ecologia humana, além dos modelos de desenvolvimento e sustentabilidade e a
responsabilidade socioambiental.

Complementamos nossos estudos com a Biotecnologia aplicada, a adaptação para distintas áreas
de conhecimento e a sugestão de práticas de educação ambiental e estudo do meio. As abordagens
se inserem na montagem de roteiros e em sua própria trajetória no que concerne às alterações e
transformações que acontecem no planeta Terra.

Devemos ter presente que as atividades humanas acabaram gerando transformações regionalizadas
no que se refere à escala econômica. Portanto, podemos dizer que existe um sentido econômico e
social na apropriação de recursos naturais e na organização do espaço. As questões biogeográficas e
sociobiogeográficas estão dessa forma diretamente relacionadas com as questões ambientais globais,
bem como com os riscos que decorrem dessa interação, e estão associadas à economia ecológica e suas
tentativas de sustentabilidade, desenvolvimento e capacidade de renovação.

Estamos diante de preocupações relativas às mudanças ambientais globais, que podem ser entendidas
por meio da construção da modernidade e da cultura, ambas presentes nos conceitos teóricos da
Biogeografia, Sociobiogeografia e da Geografia, de uma forma contextualizada, relacionada às mudanças
econômicas e sociais vividas no passado e na contemporaneidade. Os estudos sociobiogeográficos estão
associados às questões ambientais e à subjetividade, uma vez que não podemos ignorar a existência de
um entrelaçamento da historicidade das ações humanas e seu desempenho em termos de atividades
produtivas.

Existem algumas indagações que são feitas quando nos referimos a estudos específicos, como é o
caso da Biogeografia. Vamos procurar respondê‑las ao longo do nosso livro‑texto.

Com certeza, em algum momento de sua vida lhe ocorreu perguntar por que existem espécies
semelhantes convivendo num mesmo hábitat (lugar)? São áreas de endemismo, como matas de igapó,
ou matas de terra firme, como se observa ao longo do Rio Negro, na Amazônia, onde coabitam aves
representativas das afinidades biogeográficas. Mas existem também espécies aparentadas vivendo em
hábitats semelhantes, mas disjuntos. É o caso do baobá (Andasonia baobá), da família Malvaceae e da
Ceiba glaziovii barriguda.

Comparando as distintas paisagens, observamos diferenças na distribuição dos seres vivos e


questionamos: como explicar a diversidade da vida e sua espacialidade?

Podem ser espécies bem diferentes – por exemplo, de pássaros que desenvolveram um mesmo
tipo de canto e de territorialidade: eles protegem uma área, que é o seu nicho alimentar, e
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alimentam‑se de vegetais ou de pequenos seres que compartem com eles esse lugar. O que foi
observado é que os padrões de cantos são distintos para cada uma das espécies. No entanto,
existe outra situação, na qual as mesmas espécies de pássaros ocupam hábitats distintos, como a
Hypocnemis suflava, que dá prioridade aos bambuzais, e a Hypocneperuviana, que vai ocupar áreas
de floresta mais densas e mais altas.

Dessa forma, comparando diferentes paisagens, constatamos diferenças na distribuição das espécies,
e essa questão é que pertence aos estudos biogeográficos. Como explicamos essa variedade de vidas em
determinados espaços? Percebemos que o tempo e o espaço são determinantes para a constituição de
padrões da natureza.

Saiba mais

Para saber mais, consulte a revista a seguir:

CIÊNCIA HOJE. São Paulo: Instituto Ciência Hoje, ed. 319, v. 53, out. 2014.

Essa edição fala sobre a anta e quanto essa espécie pode ensinar
aos cientistas.

Outras questões são aventadas nos estudos biogeográficos e se relacionam às transformações que
ocorreram em outras épocas na história da vida na Terra. Tais transformações permitiram que algumas
espécies estivessem confinadas a uma região (endemismo) e outras espécies semelhantes (aparentados)
vivessem em regiões separadas por barreiras biogeográficas (disjunção).

Mas existem outros questionamentos, por exemplo: como planejar e utilizar os recursos ecossistêmicos
sem liquidá‑los?

As necessidades dos grupos humanos foram sendo alteradas ao longo da sua historicidade, de
simples consumo para sobrevivência, relações de troca, comércio mais amplo e centralizado na ideia
de lucro entremeado pela exploração. Dessa maneira, a natureza e seus recursos também sofreram
transformações, nem sempre com preocupações sustentáveis.

Outra questão refere‑se às diferentes sociedades e a como elas pensam e classificam os seres vivos.

Os organismos variam em suas formas ao longo dos distintos ambientes geográficos, determinados
por fatores climáticos, altitude do relevo e condições de solo. A evolução da biogeografia teve seu
desempenho graças aos biólogos e pesquisadores Alexander Von Humboldt, Hewett Cottrell Watson,
Alphonse de Candolle, Alfred Russel Wallace, Philip Lutley Sclater, Charles Darwin, entre muitos outros.

Podemos dividir os estudos biogeográficos em Biogeografia Histórica e Biogeografia Ecológica. Cada


um deles apresenta conceitos específicos e marcados por um padrão de distribuição dos organismos. A

15
fim de facilitar os estudos nessa área, mapearam‑se as distintas regiões do planeta, que foram nomeadas
como regiões biogeográficas:

• Região paleártica: o continente europeu, o norte da África até o Deserto do Saara, o norte da
Península Arábica e toda a Ásia, desde o norte da Cordilheira do Himalaia, incluindo‑se o Extremo
Oriente, com o Japão, a China e a Península Coreana.

• Região neoártica: da América do Norte até a fronteira com o México.

• Região neotropical: do centro do México até a América do Sul.

• Região afro‑tropical ou etiópica: a África Subsaariana e os dois terços localizados mais ao sul da
Península Arábica.

• Região indo‑malaia: subcontinente indiano, sul da China, Península da Indochina, Filipinas e


porção ocidental da Indonésia.

• Região australiana: porção oriental da Indonésia, ilha de Nova Guiné, Austrália e Nova Zelândia.

• Região oceânica: ilhas do Oceano Pacífico.

• Região antártica: abrange o continente e o oceano de mesmo nome.

Devemos ter presente que o padrão que rege a distribuição dos organismos em termos espaço‑temporais
decorre de uma interação dos organismos vivos (bióticos) e do planeta (abióticos), considerando‑se três
tipos: a extinção, a dispersão e a especiação (vicariância, com evolução desencadeada por um ou mais
eventos geológicos em uma determinada área).

Uma questão que está presente nos temas ambientais é: como explicar as transformações que
ocorreram em outras épocas da história da vida na Terra? Segue um exemplo.

Após análises palinológicas, foram observadas na paisagem atual da área urbana de Ponta Grossa, cidade
do norte do estado do Paraná, mudanças não só climáticas, mas também na paisagem vegetal em amostras
de Araucária, datadas de 40.000 e 43.600 anos aproximadamente, e que ela estaria associada a elevados
valores de pólen de Poaceae (Gramineae), sugerindo que no passado teriam existido campos úmidos nessa
região em um período que antecedeu a última glaciação no hemisfério Norte. Os resultados sugerem que
aumentou a vegetação de floresta e a de campos e que ambas coexistiram durante os últimos 40.000 anos.

Este é só um exemplo de estudo biogeográfico que apresenta uma mudança – no caso, vegetacional
e climática – que ocorreu por volta de 21.400 anos A.P., observada cientificamente pelos valores
encontrados de pólen de Araucária e um pequeno decréscimo de pólen herbáceo.

O que apresentamos representa algumas das hipóteses alternativas e explicativas da distribuição e


escolas biogeográficas com abordagens históricas, como a dispersão, que indica que as espécies estão
16
num determinado espaço geográfico porque dispersaram de outro espaço para esse atual (neste caso, a
barreira geográfica é um fator limitante da distribuição).

Você já deve ter se questionado: como explicar de forma científica a evolução geológica da vida na
Terra? Sob o sentido criacionista, as distintas religiões a explicam de acordo com suas interpretações.
Trata‑se de uma outra visão e devemos acima de tudo respeitá‑la, mas embora a ciência não interfira
nas interpretações religiosas, os cientistas, por meio da Biologia, da Antropologia, da Geologia, da
Arqueologia e da Geografia, mostram uma outra visão. Em Geologia e Geomorfologia, estudamos as
eras geológicas, você deve se recordar, pois por meio delas construímos uma cronologia que estabelece
o surgimento das espécies através dos tempos, no caso, muito longos.

Observação

As eras geológicas são: Cenozoica, Mesozoica, Paleozoica, Proterozoica,


Arqueozoica e Azoica. Elas se dividem em períodos – por exemplo, na
Cenozoica há o Terciário e o Quaternário.

17
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Unidade I
1 ORIGEM DA VIDA

O termo “ecologia” foi criado – ou, melhor dizendo, utilizado – pela primeira vez pelo cientista Ernest
Haeckel em 1869 para definir os estudos científicos das interações entre organismos vivos e o meio
ambiente. Tal palavra deriva do termo grego oikos, que se refere à casa. Segundo Krebs (1972), a ecologia é
o estudo científico das interações que determinam a distribuição e a abundância dos organismos. Nota‑se
aqui que Krebs não faz uso do termo ambiente, uma vez que o ambiente de um indivíduo consiste em um
conjunto de influências que agem sobre ele, sendo elas representadas por fatores bióticos e fenômenos
abióticos. Dessa forma, entendemos que a ecologia é o estudo científico da distribuição e da abundância
dos organismos e também das interações que determinam a distribuição e a abundância.

Trata‑se então de um termo abrangente que, à luz da interdisciplinaridade, pode ser compreendido
também por outras ciências, ou seja, não só pela Biologia, como outrora, mas também pela Geografia.
Sabemos que os fenômenos ambientais têm suas origens e/ou manifestações explicadas por essa ciência,
por isso o estudo da distribuição e da abrangência dos organismos vivos depende do entendimento das
características geográficas do meio ambiente, como o clima, o relevo, a composição do solo, entre
outros tantos fatores.

Ampliando‑se a visão desse contexto, vemos que o mundo vivo pode ser encarado como uma
composição hierárquica quimiobiológica, que se inicia com partículas subcelulares – os átomos – passando
por células, tecidos, órgãos e sistemas até chegar aos organismos complexos. Então, necessitamos antes
de mais nada entender, não aceitar, como esses organismos apareceram em nosso planeta.

Para descrevermos como a vida se originou, é necessário, inicialmente, estabelecermos uma escala
de tempo. A Terra tem aproximadamente 5 bilhões de anos. As rochas mais antigas, cerca de 3,9 bilhões
de anos. A datação da primeira célula, 3,5 bilhões de anos, segundo diversas estimativas.

Contudo, antes mesmo de essa escala ser criada (afinal, baseia‑se em estudos mais recentes que
se referem, entre outras coisas, ao Big Bang – teoria que busca explicar a origem do Universo e dos
corpos celestes nele existentes mesmo sem ter a noção de quanto tempo tem a vida na Terra), muitos
pensadores tentaram elucidar como a vida surgiu no planeta.

Um desses pensadores foi Aristóteles, que, como outros na Grécia, defendia a teoria de que da
matéria inanimada pode surgir vida. Para Aristóteles, existia um princípio vital na matéria bruta capaz
de produzir matéria viva quando em condições favoráveis. Segundo ele, esse princípio não se tratava
de algo palpável, concreto, mas sim de uma força capaz de gerar vida. Essa teoria se tornou conhecida
como Abiogênese ou Geração Espontânea, sendo aceita por cerca de dois mil anos desde sua criação.

19
Unidade I

Durante todo o tempo em que a teoria foi aceita, até receitas para criar seres vivos foram difundidas
mundo afora. O belga Jean Baptiste van Helmont, que fez experimentos significativos na Botânica, foi
um dos que propuseram tais receitas. Segundo ele, era possível produzirmos camundongos a partir de
roupas sujas guardadas com germe de trigo em local tranquilo. Isso em 21 dias, segundo ele!

O naturalista Alexander Ross (apud BALME, 1962), também defensor da Abiogênese, em resposta às
dúvidas que pairavam sobre a teoria, afirmou:

Então pode ele duvidar se do queijo ou da madeira se originam vermes;


ou se besouros e vespas das fezes das vacas; ou se borboletas, lagostas,
gafanhotos, ostras, lesmas, enguias etc. são procriadas da matéria putrefeita,
que está apta a receber a forma de criatura para a qual ela é por poder
formativo transformada. Questionar isso é questionar a razão, senso e
experiência. Se ele duvida, que vá ao Egito, e lá ele irá encontrar campos
cheios de camundongos, prole da lama do Nilo, para a grande calamidade
dos habitantes.

O primeiro passo para a derrubada dessa teoria foi dado somente em 1668, pelo biólogo italiano
Francesco Redi. Para tal, Redi realizou um experimento no qual colocava pedaços de peixe em vidros
abertos. Ele notava que, após alguns dias, surgia grande quantidade de larvas de insetos. Em frascos
agora fechados, repetia o procedimento e notava que as larvas não apareciam. Outro ponto observado
por ele foi que as moscas que surgiam das larvas eram semelhantes àquelas que rodeavam o peixe antes
do nascimento das larvas.

Figura 2 – Livro de Redi sobre seus experimentos a respeito da origem da vida

20
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Apesar dos trabalhos de Redi terem sido executados com critério e rigor científicos, ele não conseguiu
derrubar a teoria. Os defensores da Abiogênese refutavam suas ideias dizendo que por estarem fechados,
os frascos não permitiam a entrada do princípio ativo. Então Redi passou a cobrir os frascos com gaze
perfurada e, mesmo assim, continuou a não observar o surgimento das larvas. Redi afirmava que seres
vivos só aparecem a partir de outros seres vivos, afirmação esta que é a base da teoria denominada
Biogênese, que começava a surgir.

Pouco tempo depois, com a invenção do microscópio óptico, o inglês John Needham realizou
experimentos para tentar confirmar a Abiogênese, dando novo fôlego à teoria. Needham produzia
caldos nutritivos com frutas e carnes que, depois de aquecidos, eram fechados e posteriormente
aquecidos outra vez. Com o microscópio, o pesquisador verificava o aparecimento de microrganismos
no caldo após o procedimento. Dessa maneira, afirmava ele que os microrganismos tinham surgido
por geração espontânea.

O padre italiano Lazzaro Spallanzani refez os experimentos de Needham, em 1776, mas em


vez de somente aquecer, ele ferveu o caldo nutritivo. Como o simples aquecimento não era
suficiente para matar os microrganismos preexistentes, estes perduravam, voltando a aparecer
no experimento de Needham. Já no experimento de Spallanzani, a fervura matava os organismos,
que, assim, não reapareciam.

Needham contestou duramente os experimentos de Spallanzani, afirmando que este teria destruído
o princípio vital com a fervura. Apesar desse argumento parecer superficial aos nossos olhos, na época
foi suficiente para derrubar as conclusões de Spallanzani e manter a Abiogênese aceita.

As ideias de Spallanzani podem não ter acabado com a teoria da Abiogênese, mas, por outro lado,
influenciaram a indústria alimentícia, pois Nicolas Apert, um industrial francês, aproveitou as conclusões
do trabalho de Spallanzani e as aplicou à produção de alimentos em conserva.

Para pôr um fim à Teoria da Geração Espontânea, o francês Louis Pasteur realizou experimentos
semelhantes aos que já haviam sido feitos, não deixando, contudo, margem às contestações sobre
a destruição ou impedimento da força vital. Pasteur ferveu um caldo nutritivo, como havia feito
Spallanzani, mas deixou‑o em um frasco de pescoço de cisne, o que permitia a entrada de ar. Dessa
forma, não era possível argumentar que o princípio vital fora destruído ou impedido de ter contato
com o caldo.

Enquanto o tubo em forma de pescoço de cisne estava intacto, os microrganismos não cresciam no
caldo estéril, mas, ao quebrar‑se o pescoço, então havia crescimento deles. Com isso foi possível afirmar
que os microrganismos não surgiam a partir do caldo, e sim eram transportados pelo ar; portanto,
surgiam de outros preexistentes.

21
Unidade I

Figura 3 – Louis Pasteur

A partir desse momento, a Teoria da Abiogênese caiu definitivamente e a Teoria da Biogênese


consolidou‑se no meio científico. Além disso, Pasteur criou também um processo industrial muito
utilizado até os dias de hoje, a pasteurização – processo em que se eliminam os microrganismos dos
alimentos para que estes se mantenham por um longo período.

Figura 4 – Rascunho de Louis Pasteur sobre seus experimentos

Além dessas duas teorias, que são as que receberam maior respaldo científico ao longo da história,
outras também surgiram com o passar do tempo. Talvez dessas outras menos conhecidas a que mais se
22
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

destacou foi a da Panspermia. Tal ideia defende que a vida na Terra teve origem extraterrena, ou seja, os
seres vivos que aqui habitam tiveram sua origem a partir de outros vindos de fora do planeta, através
de meteoros ou cometas que aqui caíram. O grande defensor dessa ideia no final do século XIX foi o
cientista alemão Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz.

De fato, atualmente sabemos que restos de compostos orgânicos, como hidrocarbonetos,


aminoácidos e outros compostos de carbono, já foram identificados em meteoritos. Contudo, a
teoria da Panspermia não resolve como surgiu a vida, e sim transfere a dúvida para outra parte da
galáxia. Ela também pode ser contestada pelo fato de que, para entrar na Terra, esse ser vivo teria
que ter resistido às intensas radiações no espaço, às temperaturas extremas e à entrada dos corpos
na atmosfera terrestre.

Apesar da discussão sobre qual teoria era a correta, temos que conceber que o surgimento do
primeiro ser vivo – o coacervado – não está de acordo com a Teoria da Biogênese, uma vez que, se não
havia nenhum ser vivo, como surgiu então o primeiro deles?

Com o passar dos anos e do desenvolvimento científico, principalmente nos campos da Geologia e
da Astronomia, os cientistas começaram a estudar questões como idade e composição química da Terra,
das estrelas e do Sistema Solar e a propor teorias de como elas poderiam ter surgido. Essas questões
também influenciaram os pesquisadores da área biológica, que começaram a questionar como surgiu a
vida em nosso planeta.

O bioquímico russo Aleksandr I. Oparin, em 1924, e o geneticista inglês John B. S. Haldane,


em 1928, propuseram um esquema para estudar a questão da origem da vida em nosso planeta.
A hipótese de Oparin‑Haldane é baseada no fato de que por meio de reações químicas entre
moléculas simples, tais como CH4, CO, CO2, H2, H2S, HCN, NH3, H2O, se formariam moléculas mais
complexas (aminoácidos, açúcares, ácidos nucleicos, lipídeos); depois de milhões de anos; tendo
um grande acúmulo dessas moléculas, elas se combinariam, formando biopolímeros (peptídeos,
polissacarídeos, nucleotídeos), que reagiriam entre si e formariam estruturas coacervadas
(estruturas que parecem célula). Dentro dessas estruturas e após milhões de anos, reações
químicas começariam a ocorrer e seriam tão complexas que poderíamos considerar as estruturas
coacervadas como vivas.

Stanley L. Miller e Harold C. Urey (Prêmio Nobel de Química em 1934) conseguiram produzir
aminoácidos em laboratório a partir de condições que simulavam o ambiente da Terra primitiva. Tal
experimento utilizava água aquecida a 80 ºC, simulando o mar, e uma mistura de gases metano, amônia
e hidrogênio; além disso, também foram usadas faíscas como fonte de energia para as reações químicas,
representando as descargas elétricas dos raios que eram constantes naquele momento. Algum tempo
depois, a análise da solução do experimento detectou a presença de aminoácidos.

23
Unidade I

Figura 5 – Harold C. Urey (ao centro)

Sidney Fox, em 1957, inspirado pelo trabalho de Miller, realizou um experimento onde aqueceu
uma mistura de aminoácidos para comprovar que eles poderiam ter se agrupado realizando ligações
peptídicas no meio ambiente para formar complexos proteicos – as proteínas. Isso corroborou com as
conclusões de Oparin e Haldane ao constatar que moléculas mais simples presentes na Terra primitiva
eram capazes de produzir espontaneamente moléculas complexas como os aminoácidos, que são a
base das moléculas orgânicas mais abundantes nos seres vivos, as proteínas, sendo que estas ainda são
responsáveis por grande parte das reações químicas nas células vivas até hoje.

Tais experimentos construíram a hipótese heterotrófica da origem da vida. Segundo essa hipótese,
o primeiro ser vivo foi um heterótrofo simples formado pela reação entre as substâncias simples que
existiam no planeta, e a partir da organização das substâncias complexas formadas nesse momento
surgiu o primeiro ser vivo, que, por sua vez, nutria‑se de outras substâncias livres no ambiente, como
a glicose, formada por processo semelhante às demais. A formação da glicose, fonte de energia
primária aos seres vivos, foi comprovada por outro experimento famoso na história da bioquímica – o
experimento de Calvin.

Figura 6 – Melvin Calvin

24
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Melvin Calvin, bombardeando gases primitivos com radiações, obteve entre outros compostos um
tipo de carboidrato. Esse material, acredita‑se, foi a fonte de alimento para os primeiros seres vivos, e a
partir do processo de fermentação desse carboidrato surgiu, em quantidade, outro composto que seria
fundamental para a evolução dos seres vivos: o gás carbônico.

Com a eliminação do gás carbônico na atmosfera, foi possível a evolução das células vivas e o
aparecimento de um fenômeno fundamental para a manutenção da vida no planeta: a fotossíntese.
Com o aparecimento dos organismos autótrofos, capazes de sintetizar a glicose por meio da fotossíntese,
ocorreu a modificação do ambiente, transformando primeiramente a atmosfera, pois pela fotossíntese
ocorre a liberação de gás oxigênio, devido à quebra da molécula de água. Sendo assim, nota‑se uma
gradual transformação do meio por conta de processos biológicos ocorridos nos organismos primitivos
heterótrofos e depois autótrofos. Foi só então que as células heterotróficas modernas, se é que assim
podemos chamá-las, puderam aparecer no planeta e perdurar até a atualidade, sofrendo, é claro,
modificações ao longo do tempo – a evolução.

2 TEORIAS EVOLUTIVAS

Durante muito tempo, a origem das espécies foi atribuída a um ou mais deuses que teriam “criado”
os seres vivos como eles são no presente, ordenados em uma escala hierárquica imóvel, sendo a espécie
humana o ponto mais elevado (MARTINS, 2001).

Na Antiguidade, Platão (428/7–348/7 a.C.) defendia que a verdadeira natureza das coisas se
encontrava na essência delas, por baixo de sua superfície. A essência das coisas seria feita de ideias
fixas, que eram ocultadas pela multiplicidade de maneiras como os indivíduos se manifestavam.
Assim, as diferentes espécies seriam apenas variações da espécie essencial ou verdadeira. O homem
seria a expressão mais perfeita da ideia e todos os outros seres, estágios degenerativos. Aristóteles
(384–322 a.C.), discípulo de Platão, via a natureza de uma forma estática, mas diferentemente do
seu mestre, acreditava que as variações individuais eram devidas a imperfeições, visto que a forma
original era fixa desde a sua criação. A essência dos indivíduos era transmitida aos descendentes
pelos genitores (ROSE, 2000).

A ideia judaico‑cristã de origem das espécies, descrita no Livro do Gênesis, no qual um único Deus
teria criado a Terra e todas as espécies, sendo o homem o último ser vivo criado e que deveria dominá‑la
e povoá‑la, perdurou da Antiguidade ocidental até o Renascimento no século XVI, sem grandes
contestações (SALATINO, 2001).

Porém, os maiores teóricos conhecidos sobre tal aspecto são Charles Darwin e Jean Baptiste Lamarck.
Não que estes sejam os únicos a discutir tais ideias sobre a evolução das espécies, mas sem dúvida foram
os que alcançaram maior notoriedade.

2.1 Darwinismo

O grande biólogo russo‑americano Theodosius Dobzhansky é autor da frase: “Em Biologia nada
tem sentido, exceto à luz da evolução!”. Essa é uma verdade na Biologia e na Ecologia. Assim, tentamos
25
Unidade I

explicar os processos pelos quais as propriedades de diferentes tipos de espécies lhes possibilitam viver
em determinados ambientes e não em outros.

No linguajar popular, o termo utilizado mais amplamente é adaptado. Costuma‑se dizer que o
organismo é mais ou menos adaptado ao ambiente em referência a sua sobrevivência ou morte ali. Para
um evolucionista, o termo adaptado significa que o ambiente estabeleceu forças de seleção natural que
afetaram a vida de ancestrais, e, assim, moldaram e especializaram a evolução do organismo.

Contudo, a adaptação implica que os organismos estão moldados aos seus ambientes atuais, sugerindo
intenção ou previsão. Todavia, os indivíduos não foram planejados ou moldados para o presente: eles
foram moldados (por seleção natural) por ambientes passados. Suas características refletem os sucessos
e as falhas de ancestrais. Eles parecem estar moldados pelos ambientes presentes apenas porque estes
assemelham‑se aos ambientes passados.

Figura 7 – Folha de rosto do livro A Origem das Espécies

A Teoria da Evolução por Seleção Natural é uma teoria ecológica. Foi inicialmente elaborada por
Charles Darwin em 1859, embora sua essência tenha sido também examinada por Alfred Russel Wallace,
seu contemporâneo e correspondente. A teoria baseia‑se em cinco pontos:

• Os indivíduos que constituem uma população de uma espécie não são idênticos.

• Ao menos parte dessa variação é hereditária.

• Todas as populações têm a potencialidade de povoar toda a Terra, e o fariam se cada indivíduo
sobrevivesse e deixasse descendentes.

26
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

• Ancestrais diferentes deixam números diferentes de descendentes.

• O número de descendentes deixados por um indivíduo não depende inteiramente, da interação


entre as características do indivíduo e do ambiente.

Segundo Begon, Harper e Townsend (1996), em todo ambiente, alguns indivíduos tenderão a
sobreviver, a se reproduzir melhor e a deixar mais descendentes do que outros. Se, devido ao fato de
alguns indivíduos deixarem mais descendentes do que outros, as características hereditárias de uma
população mudarem de uma geração para outra, considera‑se que ocorreu evolução por seleção natural.

Figura 8 – Charles Darwin

Quando nos maravilhamos com a diversidade e a complexidade das especializações, existe uma
tentação em considerar cada caso como um exemplo de perfeição evolutiva. Mas isso seria um grande
erro! O processo evolutivo atua sobre a variabilidade genética disponível. Consequentemente, é
improvável que a seleção natural leve à evolução de indivíduos perfeitos.

O próprio Darwin não era concreto sobre a origem das modificações nos indivíduos. De forma geral,
ele deixava claro que os organismos sofriam modificações de origem desconhecida ou não clara até
aquele momento, mas que, após seu desenvolvimento, tais modificações eram fundamentais para o
processo de seleção natural.

Tais explicações sobre o surgimento dessas modificações nos organismos vieram a ser elucidadas com
a redescoberta de trabalhos contemporâneos aos de Darwin, mas que relatavam como as características
são transmitidas de um indivíduo aos seus descendentes. Tais trabalhos foram realizados por Gregor
Mendel e ficaram esquecidos por cerca de trinta e cinco anos, até serem publicados.

27
Unidade I

Mendel descreve a partir de suas experiências como as características de um indivíduo são transmitidas
aos descendentes e destes às próximas gerações, fato que reforça a ideia da seleção natural, em que cada
organismo que se reproduz mais pode deixar mais descendentes adaptados ao meio e assim modificar
o padrão das populações de um determinado local.

Observe as ponderações de Edmac Trigueiro (2015, p. 5) sobre esse episódio:

[...] Entretanto, assim como Darwin, Mendel era um homem à frente de seu
tempo que fez todo o trabalho de pesquisa em hereditariedade cruzando
ervilhas que mantinha no mosteiro em que exercia também seu ofício de
pároco.

Na época de Darwin, não se entendia como os filhos se pareciam com os


pais, nem qual mecanismo biológico explicava isso. As chamadas leis da
hereditariedade só foram compreendidas após os experimentos de Mendel
com as ervilhas no jardim de seu mosteiro.

Dessa maneira, Mendel revolucionou a ciência e a genética, sendo chamado até hoje de Pai da
Genética. Seus trabalhos foram essenciais para a sedimentação da Moderna Teoria da Evolução, ou
Neodarwinismo.

Sobre o tema, leia o texto a seguir:

Ideias e pessoas que influenciaram Darwin

Darwin foi influenciado pelos trabalhos de cientistas famosos, como o astrônomo


John Herschel (1792–1871) e o naturalista e viajante Alexandr Humboldt (1767–1835).
Este último foi responsável, segundo o próprio Darwin, pelo impulso de viajar a terras
desconhecidas em expedições científicas. O trabalho do geólogo e amigo Charles Lyell
(1797–1875) também marcou o estudo de Darwin. Além de levar uma cópia do Princípios
de Geologia, de Lyell, em sua viagem a bordo de Beagle, as primeiras anotações de viagem
de Darwin eram sobre os temas de Geologia.

Malthus

Darwin também aponta a influência das ideias do vigário inglês Thomas R. Malthus
(1766–1834) na elaboração do conceito de seleção natural. Em 1798, Malthus sugeriu que a
principal causa da miséria humana era o descompasso entre o crescimento das populações
e a produção de alimentos. Disse ele: “O poder da população é infinitamente maior do que
poder da terra de produzir os meios de subsistência para o homem. A população, se não
encontra obstáculos, cresce de acordo com uma progressão aritmética”.

Malthus não se referiu apenas às populações humanas, mas tentou imaginar a


humanidade submetida às mesmas leis gerais que regem populações de outras espécies de
28
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

seres vivos. Esse foi um dos méritos de seu trabalho, que chamou a atenção de Darwin para
as ideias de “luta pela vida” e “sobrevivência dos mais aptos”.

Seleção artificial

Um dos argumentos apresentados por Darwin em favor da seleção dos mais aptos
baseou‑se no estudo das espécies cultivadas pelo homem. Sabia‑se que pelo menos alguns
animais domésticos e vegetais cultivados pertenciam a espécies com representantes
ainda em estado selvagem. Os exemplares domésticos, entretanto, diferiam em tantas
características dos selvagens que podiam, quanto ao seu aspecto geral, até ser classificados
como espécies diferentes.

Darwin se dedicou à criação de pombos, cujas variedades domésticas eram sabidamente


originadas de uma única espécie selvagem, a Columba livia, a partir da seleção artificialmente
conduzida pelos criadores. Sua conclusão foi que a seleção artificial podia ser comparada
àquela que a natureza exercia sobre as espécies selvagens.

A publicação da teoria de Darwin

Em 1844, Darwin escreveu um longo trabalho sobre a origem das espécies e a seleção
natural. Não o publicou, porém, porque tinha receio de que suas ideias fossem um tanto
revolucionárias. Amigos de Darwin, conhecedores da seriedade de seu trabalho, tentaram
inutilmente convencê‑lo a publicar o manuscrito antes que outros publicassem ideias
semelhantes.

A teoria selecionista de Wallace

Em junho de 1858, Darwin recebeu uma carta do naturalista inglês Alfred Russel Wallace
(1823–1913), que continha conclusões fundamentalmente semelhantes às suas. Wallace
havia estudado as faunas da Amazônia e das Índias Orientais, chegando à conclusão de
que as espécies se modificavam por seleção natural. Darwin ficou assombrado com as
semelhanças do trabalho de Wallace em relação ao seu próprio trabalho, entre outras coisas
pelo fato de Wallace ter também se inspirado em uma mesma fonte não biológica, o livro
de Malthus, Ensaio sobre a Lei da População.

Darwin escreveu, então, um resumo de suas ideias, que foram publicadas juntamente
com o trabalho de Wallace, em 1º de julho de 1858. Um ano mais tarde, Darwin publicou
o trabalho completo no livro A Origem das Espécies. As anotações de Darwin confirmaram
que ele concebeu a sua teoria de evolução cerca de 15 anos antes de ter recebido a carta de
Wallace, e este admitiu que Darwin tinha, realmente, sido o pioneiro.

Fonte: Só Biologia ([s.d.]).

29
Unidade I

2.2 Lamarckismo

Outro grande nome quando se trata de evolução é o do pesquisador francês Jean Baptiste Lamarck,
ou simplesmente Lamarck. Em 1809 ele publicou seu livro Filosofia Zoológica, no qual expôs suas ideias
sobre o fenômeno da evolução. Sua ideia central era de que uma grande mudança no ambiente de
qualquer espécie animal causaria uma alteração nas suas necessidades. Essas alterações implicariam a
necessidade de a espécie se modificar e, consequentemente, formar novos hábitos.

Com base nesse argumento, Lamarck enunciou duas leis, nas quais afirmava estarem contidas a
essência da evolução e as alterações dos caracteres biológicos das espécies:

• A 1ª Lei de Lamarck, ou a Lei do Uso e do Desuso: em qualquer animal que não ultrapassou o
limite do seu desenvolvimento, o uso mais frequente e contínuo de qualquer órgão gradualmente
fortifica, desenvolve e aumenta esse órgão. Assim, o desuso permanente de qualquer órgão
imperceptivelmente o enfraquece e o deteriora, diminuindo a sua capacidade funcional, até que
ele finalmente desapareça.

• A 2ª Lei de Lamarck, ou a Lei da Herança dos Caracteres Adquiridos: todas as aquisições


ou perdas feitas pela natureza nos indivíduos devido ao uso ou desuso são preservadas pela
reprodução de novos indivíduos que surgem.

A explicação de Lamarck para a evolução, pelo uso e desuso, tem grande repercussão até hoje, contudo
é considerada equivocada por não poder ser cientificamente comprovada. Além disso, experimentos
comprovam que suas ideias não se concretizam como ele previa.

A sua teoria foi desenvolvida numa das épocas mais revolucionárias da história da humanidade, tanto em
termos políticos quanto intelectuais: a época da Revolução Francesa. Esse contexto muito provavelmente
contribuiu para a ousadia de suas conjecturas (ALMEIDA, 2007; ALMEIDA; DA ROCHA FALCÃO, 2005).

Embora o objetivo central de Lamarck não fosse a evolução orgânica e tampouco a origem das
espécies, a sua teoria é considerada pelos historiadores da Biologia como a primeira explicação sistemática
da evolução dos seres vivos. Ele pode ser considerado o fundador do transformismo (CORSI, 1994).

2.3 Neodarwinismo

A união dos trabalhos de Mendel e de Darwin resultou na síntese conhecida como Neodarwinismo
ou Teoria Sintética da Evolução, que integra a ideia de mudanças evolutivas graduais e estabilidade
genética (FUTUYMA, 2003).

De acordo com a teoria neodarwinista, a evolução consiste no surgimento de novas variantes de


genes em grupos isolados de uma espécie. Essas variantes surgem ao acaso provocadas por mutações e
não ocorrem de maneira homogênea em toda a espécie. Gradualmente, sob a ação da seleção natural,
as variantes genéticas que conferem vantagens adaptativas aos indivíduos do grupo são incorporadas
ao seu patrimônio genético e repassadas aos seus descendentes (WAIZBORT, 2001).
30
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

A Teoria Moderna da Evolução é tão completamente identificada com o nome de Darwin que
muitos acreditam tratar‑se de um conceito inteiramente proposto pelo próprio. Entretanto, a Teoria
Sintética da Evolução agrupa num só contexto a seleção natural proposta por Darwin com as bases
da hereditariedade propostas por Mendel, além de utilizar‑se da genética como fonte das variações
nos organismos vivos. A junção delas forma uma teoria que explica como as modificações surgem
nos indivíduos, coisa que Darwin não elucidou, e a genética, sim. Ela explica também como elas são
transferidas aos descendentes, contribuição de Mendel, e a forma com a qual o meio seleciona os mais
adaptados, teoria de Darwin.

Não diferentemente das demais teorias evolucionistas, o Neodarwinismo também apresenta falhas,
na visão de alguns cientistas. Para Lynn Margulis, por exemplo, a falha do Neodarwinismo se encontra
na base matemática dessa teoria. Para ela, a linguagem da vida é a Química, e não a Matemática (CAPRA,
1996). Outros cientistas afirmam que seria necessária uma grande combinação de eventos aleatórios
para criar estruturas tão complexas como o olho humano, porque a formação de uma estrutura como o
olho humano depende da atividade de vários genes. Portanto, esses eventos deveriam ocorrer em todos
os genes relacionados (BEHE, 1997).

Em relação a esse aparente problema, Dawkins (1998, p. 102) rebate:

Olhos, ouvidos e corações, a asa de um urubu, a teia de uma aranha,


tudo isso nos impressiona por sua perfeição óbvia de engenharia, não
importando o contexto em que se encontrem: não há necessidade de que
sejam apresentados a nós em seu ambiente natural para que notemos
que são adequados para algum propósito e que, se suas partes fossem
rearranjadas ou alteradas de qualquer forma, seriam piores [...]. Essa é a
outra maneira de dizer que não se pode explicar objetos como se tivessem
surgido ao acaso [...]. É a sobrevivência lenta, cumulativa, passo a passo
e não casual de variantes que surgem aleatoriamente, ao que Darwin
denominou seleção natural.

Dawkins (1998) defende que existem fundamentos científicos distorcidos que delimitam a não
compreensão da teoria ou a visualização de falhas. O Neodarwinismo é sempre visto como uma teoria de
puro acaso, isso porque as mutações e recombinações que acontecem no genoma são aleatórias. Essas
mutações e recombinações aleatórias fornecem à seleção natural as variações genéticas necessárias ao
processo evolutivo. Assim, fica evidente que a seleção natural não é aleatória e pode ou não utilizar
mecanismos aleatórios para realizar seu trabalho.

Observação

O conceito da influência do ambiente é bem diferente para Darwin e


Lamarck. Segundo Lamarck, o ambiente induz mudanças nas espécies. Para
Darwin, o ambiente seleciona as melhores adaptações.

31
Unidade I

Saiba mais

Sobre o tema, leia as obras a seguir:

CARROLL, S. B. Infinitas formas de grande beleza: como a evolução


forjou a grande quantidade de criaturas que habitam o nosso planeta. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

MAYR, E. O que é evolução. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. (Ciência Atual).

Outra sugestão é o filme:

O DESAFIO de Darwin. Dir. John Bardshaw. EUA: Paramount Pictures,


2011. 104 minutos.

3 ESPECIAÇÃO

Segundo a Teoria da Evolução baseada nos ensaios de Charles Darwin, todas as espécies têm
ancestrais em comum. Ao tomarmos essa premissa como base, assumiríamos que todas as espécies,
sejam vivas ou até mesmo extintas, são descendentes de uma espécie ancestral. Nesse sentido, toda a
biodiversidade existente e até mesmo a extinta seria decorrente de processos de especiação, ou seja,
mecanismos que favorecem o desenvolvimento de espécies diferentes. No entanto, se a especiação
fosse um evento raro, a biodiversidade seria consideravelmente menor, não só atualmente como em
períodos geológicos passados. A especiação é um processo fundamental para a diversidade de espécies
e a irradiação evolutiva, portanto, fundamental para a evolução.
B

C
D

1
A

Figura 9 – Réplica do esboço dos cadernos de Darwin, onde se faz alusão ao grau de parentesco das espécies

32
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Figura 10 – Charles Darwin

Se a especiação é um processo fundamental na evolução e tem como produto final uma nova espécie,
temos neste caso que a espécie é o principal agente do processo. Antes de entendermos os processos
que levam à formação de espécies, temos de entender o que é uma espécie. A palavra espécie significa,
em latim, “tipo” ou “aparência”. No sentido biológico, espécie significa o indivíduo, a unidade básica do
sistema taxonômico de classificação dos seres vivos. Desde que foi criado, o conceito de espécie vem
sendo alterado conforme foi-se avançando no conhecimento e o conceito anterior apresentando falhas.
O primeiro conceito utilizou‑se de características morfológicas, denominando espécies como seres que
possuem as mesmas características morfológicas em um nível maior que outros conjuntos semelhantes.
No entanto, com o desenvolvimento dos conhecimentos do tema, verificou‑se que organismos até
morfologicamente parecidos na verdade apresentavam outras características que não suportariam
denominá‑las como mesma espécie, como exemplo espécies crípticas, e ao contrário também: espécies
politípicas (organismos da mesma espécie, mas com morfologias diferentes), dimorfismos sexuais e
plasticidade fenotípica que algumas espécies podem apresentar. Dessa maneira, esse conceito acabou
por ser pouco usado.

O conceito, no entanto, foi sendo construído progressivamente. Nessa construção do conceito


foi adicionada primeiramente a capacidade de reprodução dos indivíduos. Assim, um dos conceitos
propostos foi de que os organismos da mesma espécie deveriam ter a capacidade de cruzamento entre
si. Essa definição também acabou por ser considerada insuficiente quando se observou que indivíduos
diferentes conseguiam cruzar entre si dando origem a descendentes, como exemplo leões e tigres ou
cavalos e burros. O passo seguinte então foi considerar que os descendentes fossem férteis, ao contrário
dos descendentes originados dos cruzamentos citados.

33
Unidade I

Figura 11 – Exemplo do cruzamento de espécies diferentes, originando um híbrido infértil. O cruzamento de uma égua (A) com um
jumento (B) origina a mula (C)

A definição de espécie que tem sido mais utilizada – a chamada de conceito biológico de espécie
– advoga que espécies são grupos de populações naturais que se intercruzam ou potencialmente se
intercruzam, estando isolados reprodutivamente de outros grupos. Tal definição foi proposta pelo biólogo
evolucionista Ernst Mayr em 1940 (MAYR, 2001). Nesse conceito, o autor deixa em sugestão que mesmo
que membros da espécie não estejam no mesmo lugar, os indivíduos não devem ser classificados como
espécies diferentes, uma vez que poderiam intercruzar‑se caso houvesse possibilidade. O termo “natural”
na definição também tem papel importante, uma vez que reforça a posição de que o cruzamento, ou
seja, a troca de genes, ocorra de maneira natural, e não por cruzamentos de espécies diferentes em
cativeiros, pois apenas na natureza essa troca de genes tem importância evolutiva. A troca de genes é a
principal razão que define uma espécie.

Embora a troca de genes seja mais utilizada, o conceito biológico de espécie tem como pilar de
definição a reprodução sexuada dos indivíduos, e dessa maneira acaba por excluir organismos que
tenham reprodução assexuada, como bactérias e protozoários. Como pode ser visto ao longo do texto,
o conceito de espécie ainda não apresenta uma definição que seja consensual. Para tentar contemplar
diferentes aspectos relacionados à espécie, existem diferentes conceitos além do conceito biológico já
explicitado. Conceitos diferentes sobre espécie então podem ser encontrados, citando alguns exemplos:
conceito tipológico, conceito ecológico, conceito evolutivo, conceito genealógico, conceito fenético,
dentre outros (FUTUYMA, 2009). De qualquer maneira, a discussão do conceito de espécie não é o foco
principal do texto. Dada a definição mais utilizada (conceito biológico), o foco mais importante se
relaciona aos processos que levam à formação das espécies, ou seja, os mecanismos de especiação.

Lembrete

Embora mais aceito e utilizado, o conceito de espécie segundo Mayr


apresenta limitações. Em organismos que apresentam reprodução assexuada
(bactérias e fungos), esse conceito não pode ser aplicado na integra.

34
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

3.1 Mecanismos de especiação

A especiação se refere ao surgimento de barreiras que de algum jeito impeçam o fluxo gênico entre
populações que tenham em comum uma população ancestral. Uma vez que ocorra essa barreira de fluxo
gênico, as frequências dos genes e alelos podem mudar como resultado da ação de forças evolutivas.
Durante esse período de isolamento, se as diferenças adquiridas forem persistentes, as populações que
anteriormente se intercruzavam podem agora não mais trocar genes, caracterizando, assim, o isolamento
reprodutivo, passo crítico na especiação.

As barreiras genéticas para se evitar o intercruzamento, ou mecanismos de isolamento, podem


originar‑se por vários caminhos, e a especiação pode dessa forma ser classificada em diferentes tipos. Os
modos de especiação mais discutidos, e que serão apresentados, são: especiação alopátrica, parapátrica
e simpátrica.
Alopátrica

Vicariância Efeito Peripátrica Alopátrica


fundador
População
original

Passo inicial da
especiação

Evolução de isolamento
reprodutivo

Novas espécies distintas


após equilíbrio das novas
áreas

Figura 12 – Comparação entre os tipos de especiação

O primeiro caso, também pensado como a forma predominante de formação de espécies, a especiação
alopátrica (também chamada de especiação geográfica) ocorre quando uma população é separada
por uma barreira geográfica. Quanto ao processo de separação de uma população por uma barreira
geográfica, dois processos podem acontecer. No primeiro processo, uma população original pode ser
separada pelo surgimento de uma barreira geográfica (processo também conhecido como vicariância) –
por exemplo, um curso d’água entre organismos terrestres, cadeia de montanhas, deriva de continentes.
Neste caso, a população separada costuma ser constituída por uma grande quantidade de indivíduos.
Essas duas populações separadas por tal barreira geográfica acabam acumulando diferenças entre elas
conforme o passar das gerações, sendo essas diferenças responsáveis pelo impedimento de fluxo gênico
entre as populações. Mesmo com um eventual fenômeno que faça as espécies voltarem a se encontrar,
as diferenças acumuladas irão impedir o cruzamento, seja por mecanismos pré ou pós‑zigóticos.

Já no segundo processo, a especiação ocorre quando um pequeno número de indivíduos acaba


cruzando a barreira geográfica imposta e coloniza esse novo ambiente, onde formará uma nova população.

35
Unidade I

Essas populações recém‑formadas apresentam grande diferença genética em comparação à população


ancestral porque o pequeno número de indivíduos fundadores representava apenas uma pequena parcela
da diversidade genética encontrada na população fonte. Nesse tipo de separação, no caso de pequenas
populações, a população migrante está mais sujeita aos efeitos do fundador, em que os processos como
deriva genética e seleção natural podem atuar de maneira mais evidente, acarretando importantes
alterações gênicas que culminem com o isolamento reprodutivo da população ancestral e especiação.

Quando falamos de especiação alopátrica, diversas evidências existem apoiando esse tipo mais
frequente de especiação. De maneira bem comum, populações geograficamente distantes apresentam
maiores níveis de esterilidade ou diferenças comportamentais quando comparadas com populações
vizinhas. Outra evidência forte a favor da especiação por alopatria está na frequente correspondência
entre descontinuidade biológica e topográfica (FUTUYMA, 2009). Por exemplo, em regiões montanhosas
onde os sistemas de rios se apresentam mais isolados, é possível verificar maior diversidade de animais
aquáticos. Em ilhas, onde a especiação alopátrica é mais evidente, as espécies apresentam maiores
diversidades de morfologia, ecologia e comportamentos quando comparadas a espécies continentais,
que tendem a apresentar maior grau de homogenia. Um dos exemplos mais próximos e que ilustram
muito bem esse tipo de especiação está relacionado aos famosos tentilhões de Galápagos, também
conhecidos como tentilhões de Darwin, por terem sido estudados primeiramente por esse importante
naturalista. O arquipélago de Galápagos está distante 1.000 km da costa do Equador e apresenta hoje 14
espécies de tentilhões, sendo todas muito diferentes da espécie mais próxima continental. O isolamento
que as ilhas do arquipélago apresentam é importante para as espécies de tentilhões, de maneira a
dificultar a migração entre as ilhas. E não apenas a distância física, mas também diferenças ambientais
entre as ilhas acentuam as diferenças entre elas. Todos esses fatores proporcionaram, ao longo do
tempo, diferenças entre as populações de tal maneira que mesmo que alguns indivíduos migrem para
outras ilhas, eles não se cruzam com a população residente, e mesmo se o fazem, a prole não tem
uma capacidade de sobrevivência tão eficiente. Essas características demonstram que as diferenças
genéticas adquiridas pelo tempo de isolamento nas ilhas mantêm as populações de tentilhões diferentes
e consequentemente são tidas como espécies diferentes. Importante salientar que a eficiência de uma
barreira geográfica em impedir o fluxo gênico depende da capacidade de uma determinada espécie
em transpor essa barreira. Por exemplo, barreiras que seriam instransponíveis para animais terrestres
podem não ter o mesmo efeito para animais voadores. Em angiospermas, o isolamento da espécie estará
atrelado a até onde o pólen pode chegar pelo vento ou à distância que animais polinizadores poderão
percorrer. Outra evidência da importância da especiação alopátrica na formação de espécies decorre da
comparação entre ambientes aquáticos. Em água doce, mesmo esta representando apenas 1% do total
de água no mundo, graças aos ambientes muito fragmentados, se encontram 36% das 20 mil espécies
de peixes ósseos que vivem no ambiente. Isso é consequência da característica do ambiente de água
doce, que permite a formação de inúmeras populações geograficamente isoladas.

A figura a seguir representa a especiação alopátrica por vicariância. Uma população inicial (A) acaba
sendo separada por algum evento ambiental – no caso, a separação por um rio (B). Conforme o passar
das gerações, as mudanças genéticas que ocorrem de maneira diferencial em cada população podem
levar a diferenças comportamentais, fisiológicas e morfológicas (C). Essas diferenças podem ocasionar
isolamento reprodutivo em tal ponto que, quando juntas novamente, essas populações não mais se
reproduzem, levando, assim, à formação de novas espécies.
36
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

A B

C D

Figura 13

Na especiação por simpatria, ou especiação simpátrica, diferentemente da especiação alopátrica,


não há uma barreira geográfica que separe a população. Nesse sentido, a especiação simpátrica resulta
de eventos que proporcionam o isolamento reprodutivo sem que para isso ocorra a necessidade de
um isolamento geográfico. Quanto à especiação simpátrica, dois principais mecanismos podem estar
relacionados: poliploidia, que resulta em um aumento no número de cromossomos, e por seleção
diversificada, a qual favorece determinados alelos. Enquanto o primeiro caso é bem documentado e
mais simples de visualização, o segundo é mais raro e por muitas vezes desacreditado, contudo, novos
estudos têm dado subsídios a este tipo de especiação simpátrica. Além disso, a poliploidia exemplifica
um tipo de especiação instantânea, enquanto a especiação por seleção diversificada é resultado de um
processo gradual.

A poliploidia pode surgir de duas formas diferentes. Na primeira, por erros no processo de divisão celular,
uma célula diploide (com dois conjuntos cromossômicos) acaba originando células tetraploides (com quatro
conjuntos cromossômicos). Nesse processo, denominado autopoliploidia (veja a figura a seguir), tal indivíduo
será incapaz de originar descendentes férteis se cruzar com um indivíduo normal diploide. A reprodução só
seria possível por meio da reprodução assexuada ou mesmo um outro indivíduo tetraploide. Uma segunda
maneira de surgimento de poliploidia diz respeito à chamada alopoliploidia, em que, a partir do cruzamento
de dois espécimes diferentes (produzindo um descendente estéril devido ao não pareamento dos cromossomos
na formação de gametas), o descendente resultante pode passar por processos de duplicação cromossômica
através das gerações, o que possibilitaria novamente sua fertilidade. Nesse meio tempo, entre a infertilidade
e a fertilidade, os organismos poderiam se reproduzir assexuadamente.

Veja na figura exemplos de autopoliploidia. Em A, temos a meiose e a fecundação normal, em


que indivíduos diploides 2n sofrem meiose, originando gametas n, que por fecundação originam
descendentes férteis 2n. Na autopoliploidia (B), defeitos na meiose originam gametas diploides que por
fecundação originam novas espécies tetraploides (4n). Em outro caso (C), um organismo pode produzir
gametas diploides, e que por autofecundação originam organismos novos tetraploides (4n).
37
Unidade I

A B C

2n 2n 2n 2n 2n

Meiose Meiose Meiose


anormal anormal

n n 2n 2n 2n
Fecundação Fecundação

2n 4n 4n

Figura 14 - Autopoliploidia

Na figura a seguir, os alopoliploides originam‑se da duplicação dos genomas de um híbrido diploide


resultante de cruzamento interespecífico.

Espécie A X Espécie B
2n 2n

Gametas
n

Híbrido X
2n

Gametas
2n

Híbrido
4n

Figura 15 – Esquema demonstrando a formação de um alopoliploide a partir da espécie A com a B

Em uma primeira leitura, pode parecer pouco provável o surgimento de espécies dessa maneira, mas
esse processo é de longe muito mais provável em espécies de plantas do que em animais, simplesmente
porque várias espécies de plantas são capazes de reproduzirem‑se por autofecundação. A especiação
por poliploidia tem sido muito importante na evolução das angiospermas – se acredita que cerca de
70% das angiospermas são poliploides. As espécies de plantas de café com 22, 44, 66 e 88 cromossomos
são conhecidas, servindo de exemplo para tal processo de especiação simpátrica. Isso sugere que a
condição ancestral foi uma planta com um número haploide (n) de 11 e um número diploide (2n) de 22,
a partir do qual os diferentes descendentes poliploides evoluíram. De fato, o conteúdo cromossômico da
maioria dos grupos de plantas sugere que o genoma de base angiospérmica consiste em uma variação

38
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

de 7‑11 cromossomos. Outro exemplo, o trigo comum, apresenta 42 cromossomos e é provavelmente


hexaploide (6n), sendo n (o número haploide ancestral) de 7 cromossomos. Outros exemplos de vegetais
poliploides que surgiram por autopoliploidia podem ser visualizados na tabela e na figura a seguir.
Quando uma planta tetraploide (4n) recém‑surgida tenta reproduzir com suas espécies ancestrais (um
retrocruzamento), uma descendência triploide é formada. Esta é estéril porque não consegue formar
gametas com uma variedade equilibrada de cromossomos. No entanto, as plantas tetraploides podem
reproduzir uns com os outros. Assim, em uma geração, uma nova espécie foi formada.

Tabela 1 – Espécies vegetais que são exemplos de especiação por poliploidia

Número cromossômico
Organismo Número cromossômico Nível de ploidia
provável do ancestral
Aveia comum 7 42 6n
Amendoim 10 40 4n
Cana-de-açúcar 10 80 8n
Banana 11 22, 33 2n, 3n
Batata 12 48 4n
Tabaco 12 48 4n
Algodão 13 52 4n
Maçã 17 34, 51 2n, 3n

Figura 16 – Trigo (A), algodão (B) e cana‑de‑açúcar (C) são exemplos de plantas que surgiram por poliploidia

No caso da alopoliploidia, um clássico exemplo experimental foi apresentado pelo geneticista de


plantas russo Karpechenko. Em 1928, ele produziu uma nova espécie do cruzamento de um repolho
com um rabanete. Embora pertencentes a diferentes gêneros (Brassica e Raphanus, respectivamente),
ambos os parentais têm um número diploide de 18. A fusão de seus respectivos gametas (n = 9) produziu
principalmente híbridos inférteis. No entanto, algumas plantas férteis foram formadas, provavelmente pela
duplicação espontânea do número de cromossomos nas células somáticas, que passou a formar gametas
(por meiose). Assim, estes continham 18 cromossomos, um conjunto completo de ambos: repolho (n =
9) e rabanete (n = 9). A fusão desses gametas produziu plantas poliploides com 36 cromossomos. Essas
plantas tinham as raízes do repolho e as folhas de rabanete e podiam cruzar entre si, mas não tanto
com o repolho ou os antepassados rabanetes, então Karpechenko havia produzido uma nova espécie.
Plantas poliploides não só têm células maiores, mas as próprias plantas são muitas vezes maiores. Isso
levou à criação deliberada de variedades poliploides de plantas como melancias e margaridas. O processo
39
Unidade I

também ocorre na natureza. Três espécies da família da mostarda (Brassicaceae), por exemplo, parecem
ter surgido por hibridação e poliploidia de outras três espécies ancestrais. Um exemplo bem documentado
sobre aloploidia na natureza diz respeito a plantas do gênero Trapogon, da mesma família do girassol,
consistindo de plantas herbáceas originadas da Eurásia. Três espécies diploides da planta foram introduzidas
na América do Norte no início do século XX. Já em 1950, dois híbridos haploides originados a partir dos
ancestrais diploides foram documentados. Interessantemente, essas novas espécies resultantes pareceram
se adaptar com mais facilidade ao ambiente onde se encontravam, ocupando uma área até maior que seus
ancestrais diploides. Estudos posteriores demonstraram que a formação dos híbridos se deu mais de uma
vez, sugerindo que possa ter ocorrido nesse meio tempo entre a introdução dos ancestrais diploides e a
documentação dos híbridos tetraploides pelo menos 21 vezes (LIPMAN et al., 2013).
n=9
Gametas
Raphanus n=9
2n = 18

Pais X
Brassica F1 híbrido estéril Raphanobrassica
2n = 18 n+n=9+9
2n = 18 Anfidiploide fértil
2n + 2n = 18 + 18
4n = 36

Figura 17 – Caso de alopoliploidia resultante do experimento de Karpechenko sobre rabanetes

Há evidências crescentes de que a poliploidia também existe em animais. Cerca de 200 exemplos
independentes de poliploides têm sido relatados em insetos e vertebrados, além dos muitos mais casos
conhecidos entre outros invertebrados. Em invertebrados, os poliploides em grupos como os Turbelários
e Oligochaeta geralmente são hermafroditas, podendo assim apresentar autofecundação, enquanto
outros grupos como os braquiópodes são assexuados. São estimados de 2,5 a 3 milhões de tipos de
insetos, mas menos do que 100 são conhecidos por serem poliploides. Insetos poliploides sobrevivem
por partenogênese. A maioria deles não pode voar, e em geral eles são menores. Seu ambiente de vida é
relativamente estável e assim eles podem viver uma vida mais longa. Já nos animais vertebrados, desde
a evolução do grupo, o aparecimento de organismos poliploides tem sido relatado, inclusive sendo
esse fenômeno importante na evolução do grupo. A duplicação do genoma de vertebrados parece ter
exercido papel importante na adaptação de peixes e vertebrados terrestres (OTTO, 2007).

Figura 18 –Oligochaeta (A) e Braquiópodes (B) são exemplos de grupos animais que podem ter espécies poliploides

40
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Entre os vertebrados, a poliploidia é especialmente grande entre os peixes, mas há inúmeros exemplos
conhecidos também entre anfíbios e répteis. Pesquisas têm sugerido que a duplicação do número de
cromossomos precedeu a diversificação de peixes do grupo dos teleósteos, o que significa que é provável que
o grupo inteiro seja poliploide. Na verdade, esse grupo é de longe o grupo de vertebrados mais diversificado,
contendo cerca de metade de todos os táxons de vertebrados tratados como espécie. A grande maioria de
todos os peixes existentes é de teleósteos. Há algumas grandes famílias dentro do grupo dos teleósteos,
como a família dos salmonídeos, à qual o salmão pertence, sem dúvida, por ser poliploide. Outras famílias são
conhecidas por conterem muitas formas poliploides de origem recente. Mesmo entre os não teleósteos (uma
minoria distinta de peixes se enquadram nesta categoria), muitos poliploides são conhecidos.

Gregory e Mable (2005) afirmam que uma antiga duplicação do número de cromossomos na
linhagem de vertebrados tem sido seguida por muitos mais eventos de poliploidização recentes
(inclusive nos teleósteos em geral). Embora a poliploidia recente seja um evento raro entre os mamíferos
e aves, esta certamente não é a verdade de grupos como peixes e anfíbios. Nos répteis também há
inúmeros casos conhecidos. Tal como em plantas, há sinais de formação de repetidas poliploidias em
certas linhagens, sugerindo de fato complexas redes de hibridização entre espécies relacionadas. Por
causa da forte associação entre poliploidia e hibridação (reprodução sexuada), a grande prevalência de
poliploidia indicando hibridação natural é amplamente predominante. A alopoliploidia (que, lembre‑se,
é poliploidia resultante da hibridação) tem sido relacionada como importante na evolução das plantas,
devido ao grande número de conhecidos vegetais naturalmente alopoliploides tratados como espécies.
A hibridação produz poliploides não só em cruzamentos de plantas, como discutido anteriormente, mas
também nos cruzamentos entre animais. Por exemplo, Kobayasi e Hashida (1977) descreveram machos
triploides da descendência produzida pelo cruzamento de duas espécies diploides de peixe‑dourado
(Carassius auratus) e outro peixe do mesmo gênero (Carassius carassius). A poliploidia na espécie Bulinus
truncatus de caracóis africanos também é resultado da hibridação.

Já em relação ao segundo tipo de especiação simpátrica, a seleção diversificada exemplifica como


a diferença entre locus gênicos pode contribuir para o isolamento reprodutivo. Para exemplificar esse
tipo de especiação, imaginemos um organismo que apresente os genótipos AA e aa, cada um dos
genótipos conferindo maior adaptação a um determinado ambiente, por exemplo, ambientes 1 e 2.
Nesse sentido, cada organismo homozigoto teria mais chance de adaptação ao determinado ambiente
caso se acasalasse com um indivíduo de mesmo genótipo, ao contrário de se intercruzar com outro
organismo de genótipo diferente, gerando assim um heterozigoto com adaptabilidade menor. A partir
desses cruzamentos preferenciais, é possível que outros locus gênicos que influenciem diretamente o
acasalamento ou a preferência por parceiros acabem por se alterar ao longo das gerações, favorecendo
fortemente essa seleção de acasalamento e culminando com o isolamento reprodutivo dessas populações.
Em muitos grupos de insetos herbívoros, como gafanhotos do gênero Enchenopa (WOOD; GUTTMAN,
1983), as espécies muito aparentadas restringem‑se a plantas hospedeiras diferentes para alimentação
e acasalamento, sugerindo que de fato tal mecanismo de especiação simpátrica pode ocorrer. Pesquisas
têm demonstrado que um certo grau de cruzamento preferencial dentro de uma população pode ocorrer
de maneira simpátrica. O trabalho publicado por Thoday e Gibson (1962) demonstrou que em moscas
Drosophila, as quais foram selecionadas previamente para apresentarem alto ou baixo número de cerdas
dentro de uma população de laboratório, apresentaram tendências de acasalamento preferencial de
acordo com o número de cerdas conforme o passar das gerações.
41
Unidade I

Outro bom exemplo está relacionado à mosca Rhagoletis pomonella do espinheiro, também conhecida
como mosca larva da maçã, que demonstra estar passando por especiação simpátrica. Diferentes populações
da mosca se alimentam de frutas diferentes. Uma população distinta da mosca começou a surgir após a
introdução de maçãs, até então uma espécie não nativa da região. Essa população passou a se alimentar
apenas nas maçãs, e não mais na fruta historicamente anterior, a fruta do espinheiro. Já a população que
se alimenta no espinheiro normalmente não se alimenta nas maçãs. Algumas evidências, como o fato de
que seis de treze loci enzimáticos são diferentes, as diferenças no amadurecimento e as poucas evidências
de miscigenação sugerem que especiação simétrica esteja ocorrendo nessa espécie de mosca (BUSH, 1969).

Em determinados momentos, o isolamento reprodutivo pode acontecer em populações adjacentes nas


quais não exista uma barreira geográfica entre elas. Neste caso, tem‑se a chamada especiação parapátrica.
Esse tipo de especiação se assemelha à especiação alopátrica, sendo que, no entanto, a separação que
proporciona o isolamento reprodutivo está relacionada a diferentes condições, e não a uma barreira
física. Para que ocorra esse tipo de especiação é necessário que a seleção natural exerça sua força mais
acentuadamente do que o fluxo gênico, pois a ocorrência de tal fluxo acaba por evitar a diferenciação
entre as duas populações. Em resumo, qualquer fator que diminua o fluxo gênico ou aumente o gradiente
de pressões seletivas entre pequenas distâncias pode favorecer esse tipo de especiação.

Um exemplo desse tipo de especiação é a erva Anthoxanthum, que sofreu especiação parapátrica
em áreas onde o solo foi contaminado por metais devido a uma atividade mineradora. No caso, houve
uma grande pressão favorecendo a tolerância a metais pesados nas plantas que cresciam no local. Nas
plantas que cresciam no ambiente, a necessidade de adaptação a essa nova condição ambiental fez
que com houvesse seleção contra os híbridos dessas populações, favorecendo a autopolinização da
população resistente e resultando na diminuição do fluxo gênico. Além disso, diferença nos tempos de
floração aumenta o isolamento reprodutivo.

A distribuição geográfica de muitas espécies é, às vezes, muito maior do que a capacidade de


dispersão ou de acasalamento, o que acaba criando oportunidades para a geração e manutenção
diferenças genéticas extensas entre populações geográficas da mesma espécie. Variações nas condições
ambientais podem resultar em diferenças nos padrões de seleção que atuam em diferentes partes da
espécie, levando ao aumento da diferenciação geográfica. Além disso, para a maioria das espécies,
variações geográficas extensas estão bem documentadas (GAVRILETS; LI; VOSE, 2000).

O contexto geográfico da especiação parapátrica pode proporcionar a ocorrência de uma zona híbrida
entre as duas populações que estão em processo de formação de espécies, região esta onde ambas
as populações devem ser facilmente reconhecidas. Nessa zona híbrida, os indivíduos nascidos desses
acasalamentos entre as populações podem apresentar diferentes graus de viabilidade e fertilidade, que
favorecem a interrupção de um fluxo gênico entre as extremidades populacionais.

Tem sido descrito que determinar a importância da especiação parapátrica é difícil devido à
mudança que a área ocupada pode apresentar ao longo do tempo. Desse modo, espécies cujas áreas
ocupadas são adjacentes podem ter surgido justamente por especiação peripátrica, mas também por
especiação alopátrica, em que a posterior expansão da sua área de abrangência leve à formação das
zonas hibridas já descritas.
42
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

A figura a seguir representa a especiação parapátrica. Mesmo na ausência de uma barreira geográfica,
a redução do fluxo gênico entre grupos de espécies pode incentivar a especiação. Os indivíduos são mais
propensos a cruzar com seus vizinhos geográficos do que com indivíduos de uma parte diferente de um
grupo da população. Desse modo, divergências podem ocorrer por causa do reduzido fluxo gênico entre
as populações e as diferentes pressões de seleção em toda a faixa da população. Veja:
Espécie original Espécies filhas com híbridos

Após muitas
gerações

80%
50% Probabilidade de acasalamento em
20% função da distância
0%

Figura 19 – Especiação parapátrica

Os primeiros passos de novas espécies

Plantas e animais se diferenciam por meio de mecanismos surpreendentes

Orquídeas de flores róseas, ainda consideradas da mesma espécie, vivem em dunas


próximas às praias de Marambaia, no Rio de Janeiro, e de Alcobaça, na Bahia. Embora
estejam separadas por 900 quilômetros (km), deveriam gerar sementes se um dia suas células
reprodutivas se encontrassem. No entanto, nenhum embrião se formou após a polinização
entre plantas das duas localidades induzida por botânicos em São Paulo. Estas orquídeas [...]
parecem seguir seus próprios caminhos evolutivos e talvez já formem espécies diferentes,
embora ainda sejam idênticas no tamanho, nas flores, nas cores e nas estruturas externas.

“Estamos vendo algo muito raro, o surgimento de novas espécies”, diz Fábio Pinheiro,
pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo. Ele detectou a formação de espécies – ou
especiação – entre representantes de uma mesma espécie. “Darwin já falava em variações
entre espécies, mas não poderia imaginar que fossem relevantes a ponto de inviabilizar os
cruzamentos entre populações de uma mesma espécie.” Em 2010 Pinheiro colheu pólen e
induziu o cruzamento entre 258 exemplares de 13 populações de Epidendrum denticulatum,
encontradas em matas no interior e no litoral da Bahia, Espírito Santo, Minas, Rio e São
Paulo, mantidas no orquidário do instituto. Algumas populações, até mesmo do próprio
ecossistema, acumularam diferenças genéticas que inviabilizaram a formação de embriões
viáveis. A impossibilidade de as células reprodutivas de uma mesma espécie gerarem
descendentes férteis – a incompatibilidade reprodutiva – “é uma das primeiras etapas da
diferenciação genética que, em milhares de anos, pode levar a uma nova espécie”, diz.
43
Unidade I

Ele examinou a separação entre linhagens de uma única espécie, enquanto o enfoque
habitual compara espécies distintas – e depois de terem se formado. “Essa abordagem
permitiu a Pinheiro não só quantificar a intensidade de isolamento entre linhagens novas
como também associar esses estágios iniciais de diferenciação com os eventos históricos
de expansão e fragmentação de florestas e campos, que catalisaram a diferenciação entre
populações e moldaram os padrões de isolamento reprodutivo observados”, comenta
Salvatore Cozzolino, especialista em orquídeas da região do Mediterrâneo e professor
da Universidade de Nápoles Federico II, na Itália, onde o botânico brasileiro fez parte de
suas análises. “Conhecer os primeiros estágios de isolamento reprodutivo envolvidos na
formação de novas espécies é um passo importante para entender como a extraordinária
biodiversidade do Brasil, e das regiões tropicais em geral, é gerada e mantida.”

Em paralelo, um estudo com duas espécies de bromélias do Pão de Açúcar e outras


formações rochosas da cidade do Rio de Janeiro – uma de flores brancas e outra de flores
vermelhas – expôs um pouco mais dos tortuosos caminhos da evolução dos seres vivos.
De acordo com um conceito clássico, para serem considerados da mesma espécie, os
organismos devem trocar genes entre si e não com seres de outras espécies. No entanto,
as análises de Clarisse Palma Silva, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro,
indicaram que as populações da mesma espécie de bromélia já são geneticamente bastante
diferentes entre si e muito raramente trocam genes uma com a outra, mesmo estando em
morros muito próximos. Além disso, as bromélias de espécies diferentes de um mesmo lugar
trocam genes, formando híbridos férteis que podem cruzar entre si e com os representantes
das espécies puras de que se originaram. O inesperado rege a evolução.

Estudos recentes com forte fundamentação genética indicam que os processos observados
em orquídeas e bromélias se passam também em outras plantas e animais. Os fenômenos
que estão sendo descritos mostram a fragilidade das supostas regras de funcionamento de
um dos processos biológicos básicos, a especiação. Agora se vê que esse processo ocorre por
mecanismos mais diversificados do que se pensava. Tanto com plantas quanto com animais,
seres que deveriam cruzar normalmente entre si perdem a afinidade reprodutiva, às vezes em
consequência de uma alteração genética ínfima, e os que aparentemente não poderiam se
reproduzir entre si geram descendentes, muitas vezes férteis. Sutis diferenças genéticas podem
inviabilizar o cruzamento entre seres morfologicamente idênticos. Outras vezes, porém, as
diferenças genéticas, ainda que grandes, permitem que lagartos ou anfíbios com parentesco
distante, por exemplo, cruzem e – às vezes de modo rápido – formem outras espécies. Os
estudos que descrevem esses fenômenos são descritos nos artigos de Pinheiro e colaboradores
(PINHEIRO et al., 2013) e Palma‑Silva e colaboradores (PALMA‑SILVA et al., 2011).
Fonte: Fioravanti (2013).

3.2 Mecanismos de isolamento reprodutivo

Mecanismos de isolamento são particularmente importantes no conceito de espécie biológica, em que as


espécies de organismos sexuais são definidas por isolamento reprodutivo, isto é, uma falta de mistura de genes.

44
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Dois tipos gerais de mecanismos de isolamento entre as espécies geralmente são descritos. O primeiro
diz respeito a mecanismos de isolamento pré‑acasalamento, em que alguns fatores impedem que os
indivíduos se acasalem entre si. Dentre esses fatores, podemos destacar:

• isolamento temporal: indivíduos de espécies diferentes não se acasalam porque eles são ativos
em diferentes momentos do dia ou em diferentes estações do ano;

• isolamento ecológico: indivíduos acasalam no seu hábitat preferido – portanto, não se acasalam
com indivíduos de outras espécies com diferentes preferências ecológicas;

• isolamento comportamental: potenciais companheiros se encontram, mas escolhem os membros


de sua própria espécie;

• isolamento mecânico: diferenças de tamanho, bem como diferenças na forma dos órgãos
reprodutivos, acabam por evitar a união de gametas de espécies diferentes.

Já no segundo tipo, temos os mecanismos de isolamento pós‑acasalamento, os quais podem ser


descritos como processos que demonstram incompatibilidade genômica, inviabilidade do híbrido ou
mesmo esterilidade. Nesse contexto, podemos citar:

• incompatibilidade gamética: nesse processo ocorre o acasalamento, mas os espermatozoides


de uma espécie podem não ser atraídos pelos óvulos da outra espécie por incompatibilidade
química apropriada, ou mesmo os espermatozoides podem não ser aptos a penetrar no óvulo;

• mortalidade zigótica: o óvulo é fertilizado, mas o zigoto não se desenvolve;

• inviabilidade do híbrido: os embriões são formados, mas sua viabilidade é bem reduzida;

• esterilidade do híbrido: o híbrido é viável, mas resulta em um organismo adulto estéril;

• desagregação do híbrido: a primeira geração (F1) dos híbridos é viável e fértil, mas as gerações
seguintes (F2 e retrocruzamentos) podem ser inviáveis ou estéreis.

No caso da formação de descendências que consigam sobreviver e mesmo assim apresentar, mesmo
que de forma fraca, capacidade de se reproduzir, é possível que barreiras pré‑zigóticas sejam reforçadas.
O reforço de barreiras pré‑zigóticas foi demonstrado em alguns trabalhos realizados em laboratórios,
mas evidências na natureza ainda são pouco descritas. Em outros casos, o isolamento reprodutivo pode
chegar a ser incompleto. Quando duas populações que foram separadas geograficamente acabarem por
reestabelecer contatos antes mesmo que diferenças genéticas tenham surgido para evitar o isolamento,
essas populações podem se intercruzar produzindo descendência tão potencialmente viável quanto a prole
que seria produzida por cruzamentos dentro de cada população. Caso esses mesmos híbridos acabem por
se incorporar a ambas populações e sejam aptos a se reproduzirem em tais populações, nenhuma espécie
nova resultará do período de isolamento. Quando o processo acontece apenas em regiões de contato entre
as populações, não sendo esse contato por completo, tem‑se a formação de uma zona híbrida.
45
Unidade I

Quando se analisa a distribuição de espécies entre os organismos, é possível verificar diferenças


muito consideráveis. Enquanto alguns organismos possuem centenas de espécies, como as espécies do
gênero Drosophila, para outros organismos pouquíssimas espécies existem, o que demonstra variações
nas taxas de especiação.

Alguns fatores contribuem fortemente para a taxa de especiação. O primeiro fator que pode pesar
para o aumento da taxa de especiação diz respeito à quantidade pré‑existente de espécies. Quanto maior
for o número de espécies, maior o número de espécies que podem ser formadas a partir destas. Isso pode
ser mais bem exemplificado para, por exemplo, especiação por poliploidia, em que mais espécies podem
surgir por cruzamentos ou mesmo por autopoliploidia, como discutido anteriormente. Especiação do
tipo alopátrica também pode se beneficiar de um maior número de espécies, pois com o aparecimento
de barreiras geográficas, maior a probabilidade de separar espécies que vivem em uma determinada
área. Um segundo fator também influente está no tamanho do hábitat, pois quanto maior o hábitat
de uma espécie, maior a probabilidade de que uma barreira física apareça para separar as populações
e contribuir para especiação. Interligado a hábitat, o comportamento de uma espécie também parece
influenciar na especiação. Nesse contexto, indivíduos de pouca mobilidade têm maior dificuldade em
ultrapassar barreiras e mesmo pequenos obstáculos, permanecendo assim isolados de outras populações
com as mesmas dificuldades.

Dentre as forças que determinam a taxa de especiação, as mais influentes são as mudanças
ambientais. Desde o início do tempo geológico, as mudanças climáticas não determinavam apenas as
extinções em massa como também a explosão de espécies que se seguia. Mudanças ambientais criam
novos hábitats e nichos ecológicos, os quais permitem a exploração e estabelecimento de populações
que acabam por originar novas espécies.

4 EVOLUÇÃO HUMANA

Achados científicos modernos indicam que o universo como conhecemos começou a se desenvolver
entre 10 bilhões e 20 bilhões anos atrás. Há cerca de 4,6 bilhões de anos, o Sol e a Terra já se encontravam
desenvolvidos, e aproximadamente um bilhão de anos depois, as primeiras formas de vida apareceram no
mar. Com o passar das eras geológicas, plantas, peixes, anfíbios, répteis e, eventualmente, os mamíferos
evoluíram ao longo de milhões de anos de mudança ambiental. Cerca de 67 milhões de anos atrás, uma
família de mamíferos conhecidos como primatas – um grupo diversificado que compartilha semelhanças
tais como o aumento do tamanho do cérebro, visão estereoscópica, mãos e pés modificados, períodos
mais longos de dependência da prole, vida social complexa e melhorarias na habilidade de aprendizagem
– apareceram pela primeira vez no registro fóssil.

Os primeiros primatas incluem ancestrais dos prossímios modernos, como os lêmures. Posteriormente,
apareceu no registro fóssil o grupo dos primatas, que inclui os antropoides, como macacos e seres
humanos, os quais compartilharam um ancestral comum e apresentam semelhanças fundamentais
entre eles. Podemos traçar as semelhanças marcantes entre primatas a uma série de relacionamentos
evolutivos em comum. Muitas pessoas cometem um equívoco comum sobre a evolução humana: a
crença errônea de que os seres humanos descendem dos macacos modernos, como o gorila e chimpanzé.

46
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Figura 20 – Exemplos de primatas: lêmure (A), gorila (B), chimpanzé (C) e homem (D)

Em sua tese, Charles Darwin postulou que os seres humanos compartilham um ancestral
comum (já extinto) com os macacos modernos, mas evoluíram divergentemente dos gorilas
e chimpanzés modernos. Recentemente, os paleontólogos descobriram na Espanha fósseis
significativos de um primata que foi classificado como um ancestral comum entre as diversas
espécies de macacos antropoides (gorilas, chimpanzés, orangotangos e seres humanos). Essa
criatura, chamada Pierolapithecus catalaunicus, apresenta traços físicos que o conectam
com macacos precoces e com os primeiros hominídeos ou ancestrais da linhagem humana. O
Pierolapithecus catalaunicus tinha um rosto muito plano, com narinas que estavam quase no
mesmo plano que as suas órbitas. Sua cara seria semelhante à de um gorila moderno hoje. Os
pesquisadores acreditam que essa criatura existiu na África e na Europa durante a época do
Mioceno, cerca de 13 milhões de anos atrás (MOYÀ‑SOLÀ et al., 2004).

Sobre a descoberta, leia o texto a seguir:

Parente distante

Paleontólogos espanhóis desenterraram perto de Barcelona, noroeste da Espanha, o fóssil de


uma nova espécie de grande macaco: o Pierolapithecus catalaunicus ou, numa tradução livre,
macaco catalão de Pierola – uma referência à região em que foi encontrado, Els Hostalets de
Pierola, na Catalunha. Descrito em artigo publicado na Science, o exemplar recém‑identificado
era um macho de quase 55 quilos que viveu há cerca de 13 milhões de anos.

A idade do fóssil e suas características levaram os pesquisadores a crer que o


Pierolapithecus seja o mais recente ancestral compartilhado pela espécie humana e pelos
grandes macacos – gorilas, chimpanzés e orangotangos, entre outros –, que começaram a
evoluir separadamente entre 16 milhões e 11 milhões de anos atrás.

A coluna vertebral mais rígida, o tronco curto e a articulação do punho mais forte
são particularidades que permitiam ao Pierolapithecus subir verticalmente nas árvores. Por
outro lado, suas mãos são mais curtas que as de espécies de macacos atuais, uma indicação

47
Unidade I

de que o P. catalaunicus não era capaz de se dependurar em galhos e balançar, característica


que pode ter evoluído em tempos diferentes nas distintas espécies de macacos. “Nosso
fóssil tem a estrutura básica dos grandes macacos, mas guarda características que não se
encontram nas espécies atuais”, disse o paleontólogo Salvador Moyà‑Solà, descobridor do
fóssil, à revista Newscientist.
Fonte: Parente... (2004).

4.1 Evolução dos hominídeos

Os cientistas têm tradicionalmente usado características físicas que refletem semelhanças nas
histórias adaptativas na classificação primatas, colocando‑os em várias famílias, gêneros e espécies.
Os seres humanos e seus ancestrais, com base justamente na anatomia, eram classificados na família
Hominidae. Contudo, o desenvolvimento da Biologia Molecular revelou também as estreitas relações
genéticas existentes entre as espécies de primatas. Com os dados oriundos desses estudos moleculares
das sequências de DNA, foi possível verificar que os humanos e os macacos africanos são mais próximos
evolutivamente entre si do que são em relação aos orangotangos. Em reconhecimento dessa relação,
orangotangos, chimpanzés e gorilas, bem como os seres humanos e os seus ancestrais, são colocados
na família Hominidae. A subfamília Ponginae é então usada apenas para os orangotangos, enquanto
a subfamília Homininae inclui os gorilas, chimpanzés, e seres humanos. Os seres humanos e os seus
antepassados são, então, colocados em sua própria tribo, Hominini, justamente para indicar as suas
características únicas.

Os hominídeos, família dos primatas que inclui os ancestrais diretos dos humanos, compartilham
certas características sutis em seus dentes, mandíbulas e cérebro. No entanto, de longe, a principal
característica que os identifica como um grupo distinto é a anatomia estrutural necessária para o
bipedalismo, ou seja, capacidade de andar ereto sobre duas pernas. Bipedalismo não é uma característica
dos macacos modernos, como os chimpanzés e gorilas, que podem ficar de pé, mas realizam a maioria
dos movimentos andando sobre os quatro membros.

A evidência fóssil da evolução inicial dos hominídeos continua a ser muito incompleta. Uma
coleção significativa de 110 fósseis de hominídeo descoberta pelo paleontólogo Tim White e colegas
na Etiópia, datada em 4,4 milhões de anos, apresentou novos entendimentos para a evolução dos
hominídeos primitivos (WHITE; SUWA; ASFAW, 1994; LOVEJOY et al., 2009). Esses fósseis são tão
diferentes dos primeiros australopitecos que foram classificados como um novo gênero Ardipithecus
ramidus. Os fósseis do A. ramidus combinam dentição e características cranianas que sugerem o
bipedalismo. Mais uma vez, bipedalismo é a principal característica que define hominídeos a partir
de primatas anteriores.

48
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Saiba mais

As reportagens a seguir discutem o impacto do Ardipithecus ramidus


na evolução humana:

HOMINÍDEO “Ardi” foi a descoberta mais importante de 2009,


diz revista. Folha de São Paulo, 18 dez. 2009. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/ciencia/2009/12/668538‑hominideo
‑ardi‑foi‑a‑descoberta‑mais‑importante‑de‑2009‑diz‑revista.shtml>.
Acesso em: 12 jan. 2016.

BONALUME NETO, R. Cientistas debatem se fóssil da Ardi era de


humana ou macaca. Folha de São Paulo, 21 fev. 2011. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/878724‑cientistas‑debatem
‑se‑fóssil‑da‑ardi‑era‑de‑humana‑ou‑macaca.shtml>. Acesso em: 12 jan. 2016.

LOPES, R. J. Estudo diz que Ardi, de 4,4 milhões de anos, não é


ancestral do homem. Folha de São Paulo, 28 maio 2010. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2010/05/741876‑estudo‑diz‑
que‑ardi‑de‑44‑milhoes‑de‑anos‑nao‑e‑ancestral‑do‑homem.shtml>.
Acesso em: 12 jan. 2016.

4.1.1 Australophitecus

Uma enorme quantidade de evidências fósseis de pelo menos seis espécies diferentes de
australopithecinos foi descoberta na África. A forma inicial mais completa desse gênero, encontrada na
região de Afar, na Etiópia, é conhecida como Australopithecus afarensis. Ele foi descoberto em 1974,
e cerca de 40% do esqueleto do indivíduo foram preservados, permitindo que os paleoantropólogos
conseguissem determinar suas características físicas. Lucy, como ficou conhecido o fóssil, é um
Australopithecus feminino que apresenta fragmentos de crânio semelhantes ao de um chimpanzé
moderno, no entanto, abaixo do pescoço, a anatomia da coluna vertebral, pélvis, quadris, ossos da coxa
e pés tem características de uma criatura bípede, embora também pudesse ser capaz de escalar. Tinha
aproximadamente 30 quilos e 1,1 m de altura e seus fósseis datam de cerca de 2,9 milhões de anos atrás.

Outros fósseis de Australophitecus também foram descobertos ao longo dos anos, assim como de
outras espécies. Dentre estas, destaca‑se o achado próximo ao lago Turkana, no Kenya (LEAKEY et al.,
1998). Essa espécie, que foi chamada de Australopithecus anamensis e é mais velha do que a A. afarensis
em 3,9–4,2 milhões de anos, se encaixa muito bem com o que seria de se esperar para uma espécie que
antecede o afarensis: muitas semelhanças, mas características dentárias mais próximas aos símios.

Uma variedade de descobertas referentes aos fósseis de Australopithecus revelou espécies que
provavelmente representam ramos laterais na árvore genealógica humana devido a diferenças
49
Unidade I

encontradas. Esses fósseis incluem três espécies diferentes, A. aethiopicus, A. robustus e A. boisei,
datando de 2,7 a 1 milhão de anos atrás. Apesar de possuírem certo número de características distintas,
essas espécies são claramente hominídeos e estão, portanto, intimamente relacionadas com espécies
que eram provavelmente ancestrais dos seres humanos. Os australopitecos hominídeos apresentam um
quadro cada vez mais complexo da evolução dos hominídeos, que enfatiza a diversidade dentro dos
hominídeos. Em vez de uma evolução unidirecional dos hominídeos bípedes, no sentido do simples ao
complexo ou formas progressivas, várias espécies de hominídeos percorriam a África ao mesmo tempo.

Veja a seguir a notícia da descoberta:

Antepassado da Lucy é descoberto

Um grupo internacional de cientistas concluiu que um esqueleto parcial encontrado


recentemente na Etiópia é de um Australopithecus afarensis. Trata‑se da mesma espécie da
famosa Lucy, descoberta pelo norte‑americano Donald Johanson em 1974. A diferença é
que o novo esqueleto viveu há 3,6 milhões de anos, ou cerca de 400 mil anos antes da Lucy,
o que implica que características avançadas nos hominídeos, como a postura ereta ao andar,
ocorreram antes do que se estimava.

Os resultados da análise preliminar dos ossos encontrados na região de Afar, na Etiópia,


serão publicados esta semana no site e em breve na edição impressa da revista Proceedings
of the National Academy of Sciences. Escavações na área de Woranso‑Mille vem sendo
conduzidas desde 2005, após a descoberta do fragmento de um osso do braço. Desde então os
antropólogos recuperaram alguns dos ossos mais completos já encontrados de hominídeos.
O exemplar do antepassado da Lucy foi denominado Kadanuumuu, que significa “homem
grande” em dialeto da região. Os ossos pertenceram a um hominídeo do sexo masculino
com cerca de 1,6 metro – Lucy tinha apenas 1,07 metro.

“Esse indivíduo era totalmente bípede e capaz de caminhar como os humanos modernos.
Como resultado da descoberta, podemos dizer com confiança que a Lucy e seus parentes
eram quase tão eficientes como nós ao andar sobre as duas pernas e que o alongamento
de nossas pernas ocorreu antes, em nossa história evolutiva, do que achávamos”, disse
Yohannes Haile‑Selassie, do Museu de História Natural de Cleveland, nos Estados Unidos.
Fonte: Antepassado... (2010).

Agora, leia outra notícia:

Passos quase humanos

Há três milhões de anos, os ancestrais dos seres humanos ainda passavam grande parte
de suas vidas nas árvores. Mas, de acordo com um novo estudo, é possível que naquela
época eles já caminhassem como bípedes. Segundo pesquisa coordenada por David
Raichlen, professor da Faculdade de Antropologia da Universidade do Arizona (Estados

50
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Unidos), novas evidências experimentais indicam que hominídeos primitivos, há 3,6 milhões
de anos, caminhavam com postura ereta e marcha a passos largos, de forma semelhante à
dos humanos modernos.

Há mais de 30 anos havia sido descoberto em Laetoli, na Tanzânia, um rastro de pegadas


fósseis depositadas há 3,6 milhões de anos e preservadas em cinzas vulcânicas. A importância
dessas pegadas para a evolução humana tem sido intensamente debatida desde então. As
pegadas, que mostravam clara evidência de bipedalismo – a habilidade para caminhar na
posição vertical –, haviam sido produzidas, provavelmente, por indivíduos da única espécie
bípede que vivia naquela área na época: os Australopithecus afarensis. Essa espécie inclui
Lucy, um dos fósseis de hominídeos mais antigos encontrados até hoje e cujo esqueleto é o
mais completo já conhecido.

Uma série de características dos quadris, pernas e costas desse grupo indica que os
indivíduos teriam caminhado em duas pernas quando se encontravam no chão. Mas
os dedos e artelhos curvados, assim como a posição das omoplatas, voltados para cima
fornecem evidências sólidas de que Lucy e outros membros de sua espécie também deviam
passar tempo considerável escalando árvores. Essa morfologia é claramente distinta do
gênero Homo, ao qual pertencem os humanos, que abandonou a vida arbórea há cerca de
dois milhões de anos e, a partir daí, passou a ser irreversivelmente bípede. [...] “Os registros
fósseis indicam que nossos ancestrais, por pelo menos um milhão de anos a partir das
pegadas de Laetoli, não aderiram integralmente à passagem das árvores para a caminhada
no chão. O fato de que animais que viviam parcialmente nas árvores, como Lucy, tinham um
estilo de marcha de passos largos tão moderno caracteriza um importante testemunho da
importância da eficiência energética na passagem para o bipedalismo”, afirmou.
Fonte: Passos... (2010).

4.1.2 Homo

Como mencionado anteriormente, um grande desafio para os paleoantropólogos é determinar quais


desses ramos dos hominídeos levou ao ramo principal do gênero Homo. A evidência fóssil para as
espécies dos primeiros do gênero Homo está localizada em todo o sul e leste da África. O tamanho
médio do crânio de Homo habilis é maior que o dos australopitecos, e a datação dessa espécie do gênero
Homo está entre 2,2 e 1,6 milhões de anos atrás, fato este que sugere que a espécie coexistiu com
aquelas posteriores do Australopithecus. Isso é o que seria esperado a partir de uma perspectiva sobre
o processo evolutivo.

Veja a figura a seguir. Ela representa a árvore evolutiva dos hominídeos. Nessa árvore, a mais aceita,
as barras verticais mostram as datas conhecidas de primeira e última aparição das espécies propostas;
as barras que estão quebradas indicam datas incertas. Seis espécies de Australopithecus e sete de Homo
estão incluídas. No eixo Y está representado tempo em milhões de anos atrás.

51
Unidade I

H. sapiens H. neanderthalensis
0

0.5
H. nerectus
A. robustus
1.0
A. boisei
H. ergaster
1.5 H. habilis
H. heidelbergensis
H. rudolfensis
2.0

A. africanus
2.5

A. aethiopicus
3.0
A. afarensis
3.5

Australopithecus anamensis
4.0
Ardipithecus
ramidus
4.5

Figura 21

4.1.3 Origem africana: primeiros do gênero Homo

Os primeiros seres humanos evoluíram de ancestrais australopitecinos cerca de 2 milhões de anos


atrás. O ancestral exato não foi claramente definido, mas é comumente pensado ser o A. afarensis.
Somente nos últimos 30 anos, um número significativo de fósseis dos primeiros do gênero Homo foram
descobertos. Com os novos achados, uma explosão de interesse sobre o assunto tem aumentado nos
últimos anos, sendo novas descobertas anunciadas regularmente. Com isso, novas informações sobre a
base da árvore evolutiva humana são adicionadas periodicamente.

4.1.4 Homo habilis

No início de 1960, ferramentas de pedra foram encontradas espalhadas entre ossos de hominídeos,
próximo ao local onde exemplares de Australopithecus boisei haviam sido desenterrados. Embora os
fósseis estivessem em mau estado, uma reconstrução meticulosa das muitas peças sugeriu um crânio
com um volume cerebral de cerca de 680 centímetros cúbicos, maior do que o intervalo apresentado
por australopitecinos, que é de cerca de 400–550 centímetros cúbicos. Por causa de sua associação com
ferramentas, foi chamado Homo habilis, que significa “homem prático”. Esqueletos parciais descobertos
em 1986 indicam que o H. habilis era pequeno em estatura, com braços mais longos do que as pernas e
um esqueleto muito parecido com o do Australopithecus.

52
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

4.1.5 Homo rudolfensis

Em 1972, Richard Leakey descobriu um crânio quase completo com a mesma idade de H. habilis.
O crânio, com 1,9 milhões de anos, tinha um volume cerebral de 750 centímetros cúbicos e muitas
das características dos crânios humanos – era claramente humano, e não australopiteco. Alguns
antropólogos consideram esse crânio como sendo de um H. habilis, argumentando que seria um macho
de grande porte. Já outros antropólogos consideram como espécie separada o H. rudolfensis, por causa
de sua expansão cérebro‑substancial em comparação com o H. habilis.

4.1.6 Homo ergaster

Alguns dos primeiros fósseis dos Homo, quando descobertos, não foram facilmente identificados
entre as duas espécies anteriormente descritas. Tais fósseis apresentavam volume cerebral maior até
do que o H. rudolfensis, cujo esqueleto apresentava menor semelhança com um australopiteco e maior
semelhança com um humano moderno, tanto em tamanho com em proporção. Curiosamente, os fósseis
também apresentavam dentes pequenos, como os seres humanos modernos. Alguns antropólogos
acabaram por classificar estes espécimes em uma terceira espécie dos primeiros Homo, H. ergaster
(ergaster é o grego para trabalhador).

Quão diversos foram os primeiros do gênero Homo?

Devido aos poucos fósseis encontrados relativos às primeiras espécies do gênero Homo, há um
importante debate sobre se esses fósseis devem ser todos classificados como H. habilis ou se de fato
deveriam ser considerados como as espécies diferentes rudolfensis, habilis e ergaster. Se as denominações
das três espécies são aceitas, como um crescente número de pesquisadores tem considerado, então
parece que Homo passou por uma irradiação adaptativa com o H. rudolfensis como espécie mais antiga,
seguido pelo H. habilis e, em seguida, pelo H. ergaster. Devido ao seu esqueleto mais moderno, o H.
ergaster é tido como o ancestral mais provável de espécies posteriores do gênero Homo.

4.1.7 Homo erectus

Outros fósseis indicando evolução dos hominídeos foram descobertos na África, bem como
em demais lugares do globo. Na China, Java (a maior ilha da Indonésia), Oriente Médio, Europa e
África, paleoantropólogos investigaram restos fósseis de uma população de hominídeos conhecida
como H. erectus. Esses fósseis apresentam uma distribuição temporal datada entre 1,8 milhões e
250 mil anos atrás. Em seus períodos iniciais, na África, o H. erectus coexistiu com outras espécies
de hominídeos anteriores, como o Paranthropus boisei. Os restos mais antigos de H. erectus foram
encontrados na África, sendo um dos fósseis mais bem preservados e completos o pertencente a um
menino de aproximadamente 8 anos, medindo cerca de 1,55 m, encontrado em Nariokotome perto do
Lago Turkana, posteriormente conhecido como o “menino de Turkana”. O esqueleto demonstra que o
exemplar apresenta morfologia idêntica aos humanos abaixo do pescoço. O crânio indica capacidade do
cérebro de cerca de 900 cm3, volume que compreende o intervalo esperado para o H. erectus (STRINGER;
ANDREWS, 2005). Anatomicamente, os fósseis de H. erectus representam uma importante nova etapa
da evolução dos hominídeos, especialmente no que diz respeito ao tamanho do cérebro. A capacidade
53
Unidade I

craniana do H. erectus varia entre 895 e 1040 cm3, um volume cerebral não muito menor do que o dos
humanos modernos (KRAMER, 2002; STRINGER; ANDREWS, 2005). Essa evidência indica que a maioria
do crescimento no tamanho do cérebro ocorreu na região do neocórtex. As populações de H. erectus
apresentavam como diferença em relação aos humanos modernos uma testa inclinada baixa e espessa,
além de enormes mandíbulas com dentes grandes. A partir do pescoço para baixo, as características
do esqueleto são semelhantes às dos seres humanos modernos, mas os ossos são muito mais pesados,
indicando uma musculatura poderosa. Durante esse período de evolução dos hominídeos, as mudanças
anatômicas entre os H. erectus parecem ter sido muito raras.

Dado que os primeiros hominídeos viviam na África, surge a questão de como o H. erectus tornou‑se
tão amplamente disperso por todo o mundo, sendo os casos mais importantes China e Java. A hipótese
mais relevante é que, como consequência do aumento populacional, certos grupos migraram para
novos territórios seguindo animais de caça conforme estes seguiam para fora da África. Se cada grupo
se moveu por cerca de 25 km em cada geração (25 anos), seria possível a chegada à Europa em 5.000
anos e à China em 15 mil anos. A migração por terras longínquas da África permitiu a essas populações
entrarem em contato com diferentes climas e ambientes durante o Pleistoceno. No período, diversas
mudanças climáticas estavam acontecendo no planeta como um todo, caracterizando‑se por produzir
climas mais frios nas zonas temperadas, como a Europa e o norte da Ásia, além de aumento das chuvas
nas áreas tropicais, levando à criação de pastagens e novos lagos. Essa grande variedade climática e
ambiental levou as populações de H. erectus a se adaptarem ou mesmo a migrarem para outras áreas.

O H. erectus sobreviveu por mais de um milhão de anos, mais tempo do que qualquer outra espécie
de humano. A espécie, muito adaptável, só desapareceu na África cerca de 500.000 anos atrás, conforme
os seres humanos modernos foram emergindo. Curiosamente, ele sobreviveu mais tempo ainda na Ásia,
até cerca de 250.000 anos atrás.

Provavelmente, o H. erectus não poderia ter sobrevivido nos climas mais frios sem a utilização de fogo.
Os primeiros registros da utilização de fogo, no entanto, parecem ter ocorrido na África (SILLEN; BRAIN,
1990). Mais tarde, o fogo também foi associado com sítios de H. erectus, tanto na Europa e na Ásia. A
utilização de fogo para o cozimento dos alimentos acrescentou um elemento importante para a dieta da
espécie. Ao cozinharem, os alimentos se tornaram muito mais digeríveis e mais seguros para o consumo.
O uso do fogo também permitia manter predadores à distância, favorecendo, assim, a sobrevivência. Não
está claro se o H. erectus sabia como fazer fogo, mas não há dúvida de que o fogo foi controlado.

4.2 Últimos passos da evolução dos hominídeos

A história evolutiva para os hominídeos entrou na sua fase final quando os humanos modernos
apareceram pela primeira vez na África, cerca de 600.000 anos atrás. Os pesquisadores que se concentram
em estudar a diversidade humana consideram ter existido três espécies de seres humanos modernos: H.
heidelbergensis, H. neanderthalensis e H. sapiens. O mais velho humano moderno, o H. heidelbergensis,
é conhecido a partir de fósseis de 600.000 anos de idade da Etiópia. Embora tenha coexistido com o H.
erectus na África, o H. heidelbergensis apresenta características anatômicas avançadas, com algumas
estruturas ósseas muito semelhantes às do H. sapiens. Conforme o H. erectus estava se tornando extinto,
cerca de 130 mil anos atrás, uma nova espécie de humano chegou à Europa a partir de África, o H.
54
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

neanderthalensis. Esse espécime provavelmente se ramificou a partir do ancestral da mesma linha que
leva aos humanos modernos, cerca de 500 mil anos atrás. Em comparação com os humanos modernos,
os Neandertais eram mais baixos e com corpo mais musculoso. Seus crânios eram enormes, com faces
salientes e cristas ósseas ao longo das sobrancelhas, além de apresentarem um volume cerebral até
maior que o do H. sapiens.

O Neandertal é comumente mostrado como um ser bruto e grotesco, contudo, essa imagem de
criatura pré‑histórica brutal é enganosa. Seu crânio era grande, variando de 1.200 a 2.000 cm3, e podia
acomodar um cérebro tão grande como, ou mesmo maior do que o de um ser humano moderno. Além
disso, estudos recentes do crânio dos Neandertais indicam que o estrutura do cérebro era essencialmente
a mesma que a dos seres humanos modernos, sugerindo capacidades intelectuais semelhantes.

Testes moleculares a partir de material genético obtido em ossos de Neandertais forneceram


importantes pistas sobre o seu grau de parentesco com os humanos modernos. Tais resultados sugerem
que a separação entre o homem de Neandertal e os seres humanos modernos ocorreu em torno de 370.000
a 500.000 anos atrás (NOONAN et al., 2006), mostrando, assim, uma distância genética significativa
entre humanos e Neandertais. As análises que indicavam que os Neandertais não contribuíram para o
conjunto de DNA mitocondrial das populações humanas modernas têm sido reavaliadas por trabalhos
mais recentes que mostram que, em populações europeias sem descendência africana, a contribuição
Neandertal pode variar de 1 a 4%. Os estudos que se seguirem irão contribuir cada vez mais para entender
essa relação de parentesco e eventual cruzamento entre os humanos modernos e os Neandertais.

Os fósseis do H. sapiens moderno anatomicamente datam entre 130.000 e 70.000 anos atrás
(STRINGER, ANDREWS, 2005). Fósseis humanos modernos datando de 155 mil anos atrás foram
descobertos em Herto, na região do Médio Awash, Etiópia. Em Omo, na Etiópia, dois crânios de hominídeos
foram classificados como H. sapiens, enquanto alguns fósseis intermediários, com traços tanto arcaicos
como modernos, foram encontrados no norte da África. Tais descobertas de fósseis africanos podem
representar os primeiros exemplos dos humanos modernos encontrados em qualquer lugar no mundo.

Entre 60.000 e 10.000 anos atrás, essas populações migraram para lugares em todo o mundo,
adaptando‑se tanto física quanto culturalmente às condições em diferentes regiões. Fisicamente,
as populações de H. sapiens modernos eram como os seres humanos modernos. Partindo dos climas
frios do norte da Ásia para os desertos da África, grupos de H. sapiens compartilhavam características
semelhantes, como parte de uma espécie. No entanto, como as populações de hoje, esses primeiros
grupos apresentam traços físicos diferentes, como o tamanho do corpo e características faciais, resultado
de condições ambientais locais e pressões seletivas.

4.3 Homo sapiens

O H. sapiens é a única espécie sobrevivente do gênero Homo – de fato, é o único hominídeo


sobrevivente. Alguns dos melhores fósseis de H. sapiens são 20 esqueletos bem preservados com crânios,
encontrados em uma caverna perto de Nazaré, em Israel. A datação desses fósseis sugere uma idade
entre 90.000 e 100.000 anos de idade. Os crânios são modernos em aparência com capacidade craniana
de cerca de 1.550 cm3, características que se encaixam nos seres humano modernos.
55
Unidade I

Os registros fósseis sugerem que o H. sapiens substituiu o homem de Neandertal. Inicialmente


raro fora da África, o Neandertal tornou‑se progressivamente mais abundante na Europa e na Ásia,
e por volta de 70.000 anos atrás tornou‑se comum. Entre os costumes observados, eram capazes de
fabricar ferramentas, incluindo raspadores, pontas de lança e machadinhas. Eles viviam em cabanas
ou cavernas e apresentavam costumes relacionados ao enterro dos mortos, pois adornos e até mesmo
flores foram encontrados nos túmulos dos Neandertais. Essa atenção aos mortos sugere fortemente que
eles acreditavam em vida após a morte, o que consiste na primeira evidência do pensamento simbólico
característico dos seres humanos modernos.

Os fósseis de H. neanderthalensis desapareceram abruptamente do registro fóssil cerca de 34.000


anos atrás e foram substituídos por fósseis de H. sapiens chamados de Cro‑Magnon (nome relacionado
a um vale na França onde os seus fósseis foram descobertos). Apenas especulações explicam essa súbita
substituição, mas ela foi completa por toda a Europa em um curto período. Existem evidências que
sugerem que o homem de Cro‑Magnon é originado de fósseis de humanos modernos da África. Ele
parece ter substituído os Neandertais completamente no Oriente Médio há cerca de 40 mil anos, e,
em seguida, ter se espalhado pela Europa, convivendo e possivelmente até mesmo cruzando com os
Neandertais por vários milhares de anos. O Cro‑Magnon tinha uma organização social complexa e
possivelmente apresentava capacidades linguísticas completas.

Observação

Outras espécies do gênero Homo também podem ser encontradas,


como H. floresiensis e H. naledi, este último descrito em 2015.

4.4 Evolução do homem moderno

Embora paleoantropólogos geralmente concordem que o H. erectus evoluiu para H. sapiens, eles
discordam sobre como, onde e quando essa transição ocorreu. As primeiras interpretações foram baseadas
em informações limitadas, muitas vezes destacando a singularidade de achados individuais. Pesquisadores
têm oferecido uma série de teorias diferentes que caem em vários modelos globais (SUSSMAN, 1993;
STRINGER, 2001). Há um crescente, porém não completo, consenso de que anatomicamente os humanos
modernos evoluíram primeiramente na África e depois se espalharam para outras áreas do mundo. No
entanto, diversas interpretações continuam a ser avaliadas.

4.4.1 Modelo de evolução multirregional

O H. erectus apresentava a mais ampla distribuição geográfica dos homínideos, excluindo‑se


o homem moderno. De acordo com o modelo de evolução multirregional, a evolução gradual do
H. erectus para o H. sapiens arcaico e, finalmente, o H. sapiens moderno teve lugar em várias partes
da Ásia, África e Europa ao mesmo tempo. Esse modelo, inicialmente proposto na década de 1940,
representou a opinião que muitos antropólogos tinham da evolução humana moderna. A partir de
pressões seletivas naturais e diferenças genéticas, as populações locais de H. erectus desenvolveram
traços particulares que variavam de região para região. Consequentemente, a variação nas características
56
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

físicas observadas em populações humanas modernas estaria profundamente enraizada no passado


(WOLPOFF; CASPARI, 1997). Já o fluxo gênico entre as populações impediu a evolução de espécies
distintas. Assim, o surgimento do H. sapiens seria, portanto, um fenômeno generalizado, embora
populações regionais distintas continuassem a exibir traços diferentes.

Assumindo‑se o modelo de evolução multirregional, esperaria‑se ver uma continuidade regional


genética, o que significa que um fóssil encontrado a partir de uma determinada área geográfica deveria
exibir semelhanças desde os primeiros H. erectus até os humanos modernos. Entusiastas desse modelo
argumentam que tais continuidades podem de fato existir. Por exemplo, restos de esqueletos dos
primeiros H. Sapiens de diferentes regiões da China, norte da África e Europa se assemelham em alguns
aspectos às populações modernas nessas áreas (WOLPOFF; CASPARI, 2002).

4.4.2 Modelo de substituição

A segunda maior teoria para explicar a evolução dos humanos modernos é o modelo de substituição,
ou o modelo de fonte única (STRINGER; ANDREWS, 2005). Ele sustenta que o H. sapiens evoluiu primeiro
em uma área do mundo e posteriormente migrou para outras regiões. Chama‑se modelo de substituição
porque assume que os H. sapiens foram contemporâneos do anterior, o H. erectus, mas eventualmente
o substituíram. Assim, embora as espécies modernas e arcaicas fossem contemporâneas em seu período
na Terra, elas foram muito diferentes geneticamente. De acordo com a hipótese de substituição, todas as
populações de H. sapiens descendem de um único grupo ancestral comum. Nessa visão, há 400 mil anos,
o H. heidelbergensis deu origem ao H. sapiens moderno na África e ao H. neanderthalensis na Europa.
No entanto, o Neandertal extinguiu‑se e foi substituído pelo H. sapiens.

Alguns pesquisadores acreditam que a evidência fóssil que suporta a hipótese de substituição pode ser
encontrada no continente africano. Como discutido anteriormente, fósseis de H. sapiens anatomicamente
modernos são datados de 155 mil anos atrás, na Etiópia. Esses fósseis africanos podem representar os
primeiros exemplos de seres humanos modernos encontrados em qualquer lugar no mundo. Alguns
defensores do modelo de substituição alegam que depois de evoluir na África, os primeiros H. sapiens
migraram para outras regiões, substituindo populações de hominídeos anteriores que chegaram naquelas
mesmas regiões centenas de milhares de anos antes. Tem‑se referido a essa hipótese de substituição na
mídia como a “hipótese de Eva”, pois ela sugere que há uma ligação genética direta entre uma mulher ou
um grupo de mulheres na África cerca de 200.000 anos atrás e os modernos H. sapiens. Esse modelo foi
baseado em evidências genéticas, principalmente amostras moleculares do DNA mitocondrial a partir de
populações de mulheres em todo o mundo (CANN; STONEKING; WILSON, 1987).

4.4.3 Modelo de hibridação e assimilação

É possível que nenhum dos dois modelos descritos para o surgimento dos humanos modernos
esteja completamente correto. Os processos envolvidos no aparecimento dos humanos modernos
foram provavelmente mais complexos e englobam mais variáveis do que apenas as abordadas pelas
duas perspectivas discutidas anteriormente. Populações humanas emergentes podem ter incorporado
uma grande diversidade física, comportamental, social e linguística. Além disso, é improvável que
as migrações para fora da África tenham sido unidirecionais e envolvido apenas movimentos de
57
Unidade I

populações homogêneas. Migrações diferentes, a partir de diferentes rotas, da recolonização dos


territórios ocupados anteriormente e do fluxo gênico com outras populações são variáveis que foram
mais prováveis de terem acontecido, e o entendimento de tais variáveis pode fornecer informações
não apenas sobre o surgimento dos seres humanos modernos, mas também a fonte da diversidade das
populações subjacentes atuais.

Muitas das interpretações das origens humanas modernas propostas ao longo das últimas três
décadas têm tentado conciliar os aspectos conflitantes dos modelos multirregional e de substituição. A
mais recente interpretação pode ser referida como modelo de hibridação e assimilação, o qual permite
adotar vários graus de fluxo gênico entre H. sapiens e populações anteriores do arcaico H. sapiens, como
recentes pesquisas sobre DNA e Neandertal têm demonstrado. Nesse modelo de hibridação e assimilação,
o homem moderno surgiu na África, mais de 100.000 anos atrás, e depois migrou em direção a outras áreas
do mundo. Como resultado de cruzamentos, os seres humanos anatomicamente modernos hibridizados
com populações arcaicas anteriores substituíram os homens arcaicos. De fato, evidências fósseis do
Oriente Próximo, bem como Europa e Ásia Oriental, indicam que diferentes espécies de hominídeos
coabitaram essas regiões no tempo e no espaço. Essas interpretações reforçam uma maior quantidade
de fluxo de genes do que o modelo de substituição permite. O modelo de hibridização e assimilação
pode representar mais corretamente a natureza complexa e gradual dos processos representados.

A figura a seguir apresenta três interpretações diferentes da emergência de H. sapiens. O modelo


evolutivo multirregional sugere continuidade regional e evolução gradual de todos os H. erectus e H.
sapiens arcaicos em populações de seres humanos modernos. Em contraste, apoiadores do modelo de
substituição veem os seres humanos modernos como evoluindo da África e espalhando‑se, substituindo as
populações dos primeiros hominídeos. Já o referido modelo de hibridação e assimilação explica a evolução
de seres humanos anatomicamente modernos como resultado de diferentes graus variados de gene fluxo
entre o H. sapiens e populações anteriores do H. sapiens arcaico via gene fluxo ou mistura genética.
Modelo multirregional Modelo de substituição Modelo de hibridação e
assimilação
Europa África Ásia Europa África Ásia Europa África Ásia
H. sapiens H. sapiens H. sapiens
Fluxo Fluxo
gênico gênico

Fluxo Fluxo
gênico gênico
Extinção Extinção

H. sapiens H. sapiens H. sapiens


Arcaico Arcaico Arcaico

Formas Formas Formas


transicionais transicionais transicionais

H. erectus H. erectus H. erectus

Ancestral hominídeo Ancestral hominídeo Ancestral hominídeo

Figura 22

58
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

4.5 H. sapiens são originais

Nós, seres humanos, somos animais e produto da evolução. Nossa evolução tem sido marcada
por um aumento progressivo do tamanho do cérebro, distinguindo‑nos dos outros animais de
várias maneiras. Em primeiro lugar, os seres humanos são capazes de fazer e usar ferramentas de
forma eficaz – capacidade que, mais do que qualquer outro fator, tem sido responsável por nossa
posição dominante no reino animal. Em segundo lugar, embora não sejamos o único animal
capaz de pensamentos conceituais, temos refinado e estendido essa capacidade, sendo esta a
marca registrada de nossa espécie. Por fim, usamos linguagens simbólicas e somos capazes com
palavras de formar conceitos a partir de nossas experiências. Nossa capacidade de linguagem
permitiu a acumulação de experiências, que podem ser transmitidas de uma geração para outra.
Assim, temos o que nenhum outro animal nunca teve: grande evolução cultural. Por meio da
cultura, temos encontrado maneiras de mudar e moldar o nosso meio ambiente, em vez de mudar
evolutivamente em resposta às suas exigências. Nós controlamos o nosso futuro biológico de
uma forma nunca antes possível, um potencial emocionante e ao mesmo tempo uma assustadora
responsabilidade.

Sobre o tema, leia o texto a seguir:

A disputada conquista das Américas

Análises sugerem que humanos chegaram ao continente entre 23 mil e 15 mil anos
atrás e que alguns indígenas do Brasil têm DNA oriundo de povos da Oceania

Um tema controverso voltou à cena no final de julho: a chegada dos seres humanos
às Américas. No dia 21, duas equipes independentes publicaram estudos em duas revistas
concorrentes, a Science e a Nature, comparando as características genéticas de populações
nativas americanas com as de povos de outras regiões do mundo. Os trabalhos analisaram o
mais amplo conjunto de informações genéticas disponíveis de povos do Novo Mundo para
tentar reconstruir a história da ocupação do último continente, exceto a Antártida, em que
o Homo sapiens se estabeleceu. Os artigos chegaram a conclusões aparentemente distintas,
mas ambos indicam que alguns grupos indígenas atuais do Brasil apresentam algum grau
de parentesco com povos da Oceania.

No estudo da Science, o grupo do biólogo Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague,


na Dinamarca, afirma que os primeiros humanos chegaram às Américas em uma única leva
migratória. Eles teriam partido do leste da Ásia em algum momento nos últimos 23 mil
anos e alcançado o Novo Mundo depois de ter permanecido quase 8 mil anos na Beríngia,
uma vasta extensão de terras (hoje submersa) que conectava a Sibéria, na Ásia, ao Alasca,
na América do Norte.

Willerslev e seus colaboradores – entre eles a arqueóloga Niède Guidon, da Fundação


Museu do Homem Americano (Fumdham), no Piauí – chegaram a essa conclusão depois
de sequenciar o genoma de 31 indivíduos de 11 populações atuais nativas das Américas,
59
Unidade I

da Sibéria e da Oceania e de comparar esses dados com os do genoma de 23 indivíduos


de povos extintos das Américas do Norte e do Sul e com variações genéticas de outras
28 populações.

Os resultados sugerem que, uma vez no Novo Mundo, essa população ancestral teria se
separado em duas, por volta de 13 mil anos atrás. Uma delas teria permanecido no norte
do continente e originado o povo Atabascano, do Alasca, e os grupos indígenas Chipewyan,
Cree e Ojibwa, do Canadá. A outra teria se espalhado pelo sul da América do Norte e pelo
restante do continente, gerando a maior parte das demais etnias.

Mesmo com mais dados à disposição, Willerslev não propõe algo totalmente novo.
Nos últimos 15 anos, outros grupos, brasileiros inclusive, já haviam sugerido que os
primeiros humanos a chegar às Américas poderiam ter vindo do leste da Ásia em um único
deslocamento, até mesmo com uma parada na Beríngia. Tanto a proposta apresentada na
Science como suas versões anteriores confrontam ideias mais antigas, segundo as quais
duas, três ou até mais levas teriam sido necessárias para originar a diversidade genética e
de feições de crânio encontrada nas Américas.

Como a maior parte dos trabalhos que falam de uma só entrada no continente americano,
o modelo de Willerslev funciona bem para explicar como surgiram os povos nativos das
Américas geneticamente mais próximos dos asiáticos atuais, com os quais compartilham
algumas características anatômicas, como a face mais plana e o crânio arredondado. Mas
falha em outros pontos. A ideia de uma só viagem torna difícil justificar, por exemplo,
a semelhança genética encontrada entre os índios Suruí, da Amazônia brasileira, os
Atabascanos e os nativos das ilhas Aleutas, no Alasca, e os povos nativos da Oceania, no
Pacífico Sul.

Diferente, mas quanto?

Para Willerslev e seus colegas, esses dados podem indicar que houve um intercâmbio
genético posterior ao povoamento inicial. Uma leva mais modesta de indivíduos aparentados
dos aborígines da Austrália e da Melanésia teria se miscigenado com populações asiáticas
que, mais tarde, teriam entrado nas Américas, possivelmente a partir das ilhas Aleutas.

Enquanto Willerslev e seus colaboradores falam em uma chegada, talvez complementada


por uma segunda, o geneticista David Reich, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e
seus colegas dizem ter evidências de que foi necessária a entrada de duas populações distintas
em momentos diferentes para explicar a diversidade genética dos nativos americanos. Não
estariam os dois grupos fazendo a mesma afirmação? Bem, sim e não.

No artigo da Nature, Reich e seus colaboradores, quatro deles brasileiros, argumentam


que só a vinda de duas levas com características distintas ajudaria a entender por que os
Suruí e outros grupos indígenas brasileiros guardam uma afinidade genética com povos do
Pacífico Sul. Mas essa não é toda a história.
60
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

O estudo deste ano é um refinamento de um trabalho anterior. Em 2012, Reich e os


pesquisadores Maria Cátira Bortolini e Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Maria Luiza Petzl‑Erler, da Universidade Federal do Paraná, e Tábita Hünemeier,
da Universidade de São Paulo (USP), além de outros colaboradores, compararam cerca de
365 mil trechos do genoma de 493 indivíduos de 52 populações nativas das Américas com
os de 245 integrantes de 17 povos da Sibéria e os de 1.613 pessoas de 52 populações do
restante do mundo. Na época, em artigo também publicado na Nature, concluíram que as
Américas haviam sido povoadas por três levas migratórias diferentes: uma primeira e mais
densa, com indivíduos de características genéticas e traços asiáticos, que teria chegado às
Américas, via Beríngia, há pelo menos 15 mil anos e originado a maior parte das populações
americanas extintas e atuais; uma segunda, que, ao se miscigenar com a inicial, contribuiu
para gerar os esquimós, na Groenlândia, e os habitantes das ilhas Aleutas, no Alasca; e uma
terceira, que, ao chegar, misturou‑se com os primeiros habitantes do continente e levou ao
surgimento dos grupos indígenas canadenses.

Agora, ao analisar mais trechos (cerca de 600 mil) do genoma de mais populações
nativas (25) das Américas Central e do Sul e comparar com os dados de 197 populações de
outras partes do mundo, eles encontraram algo semelhante ao que Willerslev observou e
propuseram mais uma migração – a quarta, que teria alcançado a América do Sul há mais
de 6 mil anos – para justificar a diversidade étnica do continente.

Além dos Suruí, que vivem na floresta amazônica em Rondônia, essa migração mais
recente teria originado também o povo Karitiana, de Rondônia, e os índios Xavante, do
cerrado do Mato Grosso. Esses três grupos compartilham de 1% a 2% do seu genoma com
os povos da Oceania. “Essa proporção parece ser pequena, mas é importante”, afirma Tábita.
“Temos de imaginar que ela era muito mais elevada na população ancestral que chegou às
Américas e depois se diluiu ao longo de centenas de gerações”, explica.

Filhos de Ypykuéra

Essa leva migratória mais recente – a quarta segundo o artigo de 2012 ou segunda no
de 2015 – não seria composta por indivíduos com características genéticas exclusivas dos
povos do Pacífico Sul. Esses viajantes seriam descendentes de uma população mestiça,
resultante do cruzamento de nativos da Oceania com asiáticos. Os pesquisadores deram
a esse grupo o nome de população Y, inicial da palavra Ypykuéra, que significa ancestral
em tupi. Para Reich e seus colaboradores brasileiros, os Suruí, os Karitiana e os Xavante
atuais seriam descendentes da tal população Y, que ainda não se sabe dizer como teria
chegado por aqui.

“O fato de os Suruí, os Karitiana e os Xavante compartilharem características genéticas


com povos do Pacífico Sul sugere que houve uma miscigenação em uma área menos restrita
do que se pensava”, explica Tábita, coautora dos artigos da Nature. Afinal, os dois primeiros
vivem em Rondônia, na Floresta Amazônica, a centenas de quilômetros dos Xavante, que são
do cerrado, em Mato Grosso. Além da distância física, há também uma divergência cultural. Os
61
Unidade I

Karitiana e os Suruí falam tupi; os Xavante, jê. “Essa miscigenação tem de ter acontecido antes
de 6 mil anos atrás, quando esses troncos linguísticos se separaram”, diz Tábita.

A possível existência de uma população Y não surpreendeu alguns antropólogos físicos


que estudam a ocupação das Américas. “Indiretamente esses resultados publicados na
Nature são favoráveis à ideia que defendo, há 25 anos, da vinda de duas migrações para as
Américas”, afirma o bioantropólogo Walter Neves, da USP. Com base na análise da morfologia
de crânios de populações atuais e extintas de diferentes regiões das Américas – entre elas a
do povo que viveu entre 12 mil e 7 mil anos atrás na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais
–, Neves e o arqueólogo argentino Héctor Pucciarelli propuseram que as Américas foram
colonizadas por duas levas migratórias: a primeira, há 14 mil anos, integrada por indivíduos
com morfologia semelhante à dos nativos da África e da Austrália, seguida por outra com
traços asiáticos, que teria substituído o grupo inicial.

Para Rolando González‑José, antropólogo físico e diretor do Centro Nacional Patagônico,


em Puerto Madryn, Argentina, as evidências apresentadas nos artigos da Science e da
Nature são de certo modo semelhantes. “O parentesco com os australo‑melanésios que
eles encontraram já era esperado havia anos, pois indica que as populações das Américas
compartilharam ancestrais comuns”, afirma. “Os dados são interessantes, mas, nesses artigos,
são pouco discutidos e não levam em conta todos os cenários possíveis.” Em 2008, González
e colegas brasileiros apresentaram a hipótese de que as Américas teriam sido colonizadas
por uma população inicial de indivíduos com alta diversidade genética e de morfologia
de crânio, seguida de outra menor, que deu origem aos esquimós. Segundo essa versão,
contestada há cerca de três anos por Walter Neves, durante os milhares de anos que existiu
a Beríngia teria havido contato entre populações da Ásia e das Américas.
Fonte: Zorzetto (2015).

Lembrete

A Paleoantropologia é uma ciência que apresenta muitas discussões


e novidades a cada ano. Muitas novas descobertas estão para ser feitas e
novas classificações também o serão.

Saiba mais

Leia a seguinte matéria:

CARDOSO, R. Em busca do Brasil Ancestral. Revista Planeta, ed. 504, ano


42, p. 36‑41, nov. 2014. Disponível em: <http://www.revistaplaneta.com.br/
em‑busca‑do‑brasil‑ancestral/>. Aceso em: 13 jan. 2016.

62
BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

Resumo

O entendimento da Biogeografia exige do interessado um conhecimento


inicial dos principais aspectos e bases que compõem a própria biologia das
espécies. Uma vez que a ciência da Biogeografia resulta do conhecimento da
Biologia em relação à Geografia, fica evidente a necessidade da intersecção
das duas ciências.

No que consiste a história do pensamento biológico quanto ao


surgimento da vida, temos um grande debate sobre as Teorias da Abiogênese
e da Biogênese. Enquanto a primeira advogava a favor de que a vida poderia
surgir a partir de matéria não viva, a segunda afirmava que a vida só tem
origem em outras vidas. Os estudos sobre a origem da vida são um campo
limitado de pesquisa, apesar do seu profundo impacto na Biologia e na
compreensão do mundo natural. O progresso na pesquisa sobre origem da
vida é geralmente lento e esporádico, apesar de atrair a atenção de muitos
devido à importância da questão.

Dentre as hipóteses mais importantes, temos a Teoria sobre a Sopa


Primordial de Oparin e a Teoria do Mundo do RNA, que a complementa.
Os principais pensadores da Teoria da Abiogênese foram Needham e
Spallanzani, enquanto Francesco Redi e Louis Pasteur foram os principais
defensores da biogênese – este último, crucial para pôr fim à hipótese
de abiogênese e consolidar a biogênese. Outra base fundamental para
a biogeografia consiste nas teorias evolutivas. Nesse contexto, duas
importantes linhas de pensamento moldaram o conhecimento de que as
espécies se modificam, evoluem ao longo do tempo geológico. A primeira
linha, baseada na hipótese de Lamarck, colocava que o ambiente causava
alterações nos indivíduos, alterações essas que surgiam pela necessidade de
adaptação. Além disso, essas alterações adquiridas ao longo da vida de um
organismo seriam transmitidas à descendência. Por outro lado, as ideias de
Darwin colocam o ambiente como um fator que selecionava as melhores
adaptações, o que seria chamado de seleção natural. No conceito de
evolução de Darwin, haveria variações naturais existentes nos organismos,
sendo elas selecionadas por situações do ambiente.

Embora a teoria de Darwin tenha sido mais aceita, apenas com o


advento dos conhecimentos da genética pode‑se compreender melhor a
origem dessas variações. No que ficou conhecido como Neodarwinismo, à
seleção natural originalmente proposta por Darwin foram adicionados os
conhecimentos sobre mutação e recombinação genética. A partir da evolução
das espécies, temos outro componente fundamental da Biogeografia,

63
Unidade I

a especiação, processo que determina a formação de novas espécies. Os


principais processos de especiação são: alopátrica, peripátrica, parapátrica
e simpátrica. Na especiação alopátrica, a população original é separada
geograficamente, e mecanismos como alterações genéticas e seleção
natural levam à formação de novas espécies. Na especiação peripátrica,
em que uma das populações isoladas é bastante menor do que a outra, a
primeira sofre alterações devido ao efeito fundador, acelerando mudanças
genéticas que culminem em especiação. Na especiação parapátrica, não
há separação geográfica completa entre as duas populações isoladas, mas
a diminuição do fluxo gênico culmina com isolamento reprodutivo. Já na
especiação simpátrica, as populações divergem quando ainda ocupam a
mesma área devido a alterações cromossômicas bruscas por poliploidia.

Por fim, tratamos da evolução humana, processo no qual se verifica a


existência de diversos organismos de ancestralidade ou parentesco com
a espécie humana. Entre os ancestrais mais antigos, temos as espécies de
Australophitecus, ancestral humano que desenvolveu o bipedalismo, mas
que não tinha o grande cérebro do homem moderno. Já dentre o gênero
Homo, mesmo gênero da espécie humana (Homo sapiens), temos uma
diversidade de organismos de parentesco com os atuais seres humanos,
entre eles o H. habilis, o H. erectus, o H. rudolfensis, o H. heidelbergensis, e o
H. neanderthalensis. Todos eles apresentam volume craniano diferenciado,
mostrando também o conhecimento do uso de ferramentas, inclusive
exibindo certo grau de cultura.

Exercícios

Questão 1. (UFBA, 2012). Há centenas de milhares de anos, nas noites frias de inverno, a escuridão era um
grande inimigo. Sem a lua cheia, a negritude da noite, além de assustadora, era perigosa. Havia muitos predadores
com sentidos aguçados e que poderiam atacar facilmente os hominídeos primitivos enquanto dormiam. O frio
intenso era outro inimigo.

Até que, um dia, talvez ao observar uma árvore atingida por um raio, os hominídeos descobriram
algo que modificaria completamente o rumo da evolução: o fogo, que surge do processo de rápida
combustão de um material liberando luz, calor e produtos da reação. Ao dominar o fogo, o homem
primitivo pode se aquecer, proteger-se dos predadores e, ainda, cozinhar os alimentos.

Fonte: OLIVEIRA, A. A descoberta que mudou a humanidade. Ciência Hoje. Disponível em: <http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/
fisica-semmisterio/a-descoberta-que-mudou-a-...>. Acesso em: 12 jul. 2011. Adaptado.

Considerando-se as condições de vida do homem primitivo e a compreensão do processo que produz


o fogo, descrito no texto, pode-se afirmar:

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BIOGEOGRAFIA/SOCIOBIOGEOGRAFIA E AMBIENTE

A) Não está claro se o Australopithecus anamensis sabia como fazer fogo, mas não há dúvida de que o fogo
foi por ele controlado.

B) O Homo sapiens no período terciário, da era cenozoica, incorporou prontamente os benefícios do fogo.

C) É sabido que as técnicas para fazer fogo surgem, espontaneamente, para os Homo habilis.

D) Cientistas antigos defendiam que o cozimento dos alimentos facilitou a sua ingestão pelos hominídeos,
proporcionando menor esforço biomecânico dos dentes molares, evento marcante na evolução humana,
o que é negado modernamente.

E) “A conquista do fogo” (criação e manutenção) foi revolucionária, no sentido de permitir novas formas de
lidar com o tempo e com a simbolização

Resposta correta: alternativa E.

Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: a afirmação correta seria sobre o homo erectus, não Australopithecus anamensis.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: a afirmação correta seria sobre o Homo erectus, no período quaternário cenozoico.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: surgem para o homo erectus, supondo-se que em decorrência de observação, tentativas
e aprendizado; envolvendo certo processo.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: é uma tese contemporânea, normalmente aceita.

E) Alternativa correta.

Justificativa: com o preparo dos alimentos no fogo, a mastigação diminui a frações o que era antes
do engenho do cozimento. Liberando tempo, a atenção (o cérebro, a mente) e o organismo (melhoria
da digestão e sanitização dos alimentos) poderiam dedicar-se a outras atividades até então impossíveis.

Questão 2. (ENADE, 2017) O geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber (1970), considerando características
climáticas, botânicas, pedológicas, hidrológicas e fitogeográficas, classificou o território brasileiro em
seis domínios morfoclimáticos e, entre eles, faixas de transição.
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Unidade I

Domínios morfocliméticos brasileiros

Amazônico
Cerrado
Mares de morros
Caatingas
Araucárias
Pradarias
Faixas de transição

Disponível em: <http://educacao.globo.com>. Acesso em: 18 ago. 2017 (adaptado).

A partir das informações apresentadas, é correto afirmar que no domínio

A) amazônico, os solos, apesar de geologicamente jovens, apresentam alta fertilidade, embora, em


algumas áreas, a remoção da vegetação e o uso intensivo da superfície acarretem o processo
chamado de arenização.

B) do Cerrado, o relevo é predominantemente composto por planaltos, onde os solos, que são
antigos e muito lixiviados, apresentam composição ácida, sendo a técnica da calagem utilizada
para viabilizar a agricultura.

C) das Pradarias, constituído predominantemente por depressões, os solos, antigos, apresentam


baixa fertilidade, mas o excesso de matéria orgânica disponível viabiliza sua ocupação com a
agricultura.

D) da Caatinga, o relevo é marcado por chapadas cercadas por planaltos, onde os solos se formam pela
ação predominante dos intemperismos químico e biológico, o que faz que, apesar de pedregosos,
sejam solos profundos.

E) das Araucárias, formado predominantemente por planícies, os solos são profundos e muito férteis,
destacando-se a “terra roxa”, originada a partir da decomposição da matéria orgânica disponível
nas camadas superficiais.

Resolução desta questão na plataforma.


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