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Antropologia

da Alimentação
Autoras: Profa. Sirlei Pires Terra
Profa. Vânia Cristina Lamônica
Colaboradores: Profa. Mônica Teixeira
Prof. Welliton Donizeti Popolim
Professoras conteudistas: Sirlei Pires Terra / Vânia Cristina Lamônica

Sirlei Pires Terra

É graduada em Ciências Políticas e Sociais, pelo Instituto Municipal de Ensino Superior (Imes), de São Caetano do
Sul, atual Universidade São Caetano do Sul (USCS). É licenciada em Sociologia, pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC‑SP), universidade pela qual também é graduada e licenciada em Geografia. É especialista em
Didática do Ensino Superior e em Educação e Saúde, pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie; em Formação em EaD,
pela Universidade Paulista (UNIP); e em Saúde Coletiva pela Universidade Católica Dom Bosco/Portal Educação.
Tem título de mestrado em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e de
doutorado em Sociologia do Trabalho, pela PUC‑SP. Em 1990, ingressou na UNIP, na qual leciona disciplinas de graduação
e licenciatura, bem como atua em educação a distância, desde 2014, como orientadora de estágio na Coordenadoria de
Estágio em Educação, no curso de Licenciatura em Sociologia, além de ser responsável, na EaD, pelas disciplinas Sociologia
do Trabalho, Antropologia da Alimentação e, em andamento, Antropologia Brasileira.

Vânia Cristina Lamônica

Nutricionista pela Universidade do Sagrado Coração (USC) de Bauru em 1985; mestrado concluído em 2006 e
doutorado em 2013, ambos pelo Programa de Bases Gerais da Cirurgia da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp,
Botucatu (SP). Possui os cursos de especialização em Administração de Serviços de Alimentação e Nutrição (USC‑1985)
e especialização em Cuidados Nutricionais do Paciente Hospitalizado (FMB‑Unesp‑2003). Com ampla atuação na
área de Nutrição Clínica e Docência. É coordenadora do curso de graduação em Nutrição e de pós‑graduação (lato
sensu) em Nutrição Esportiva da Universidade Paulista – UNIP, campus Bauru (SP) e atua como docente dos cursos
de graduação em Nutrição, Enfermagem, Biomedicina e Fisioterapia na mesma Universidade. Atualmente cursa
graduação em Filosofia pela Universidade Paulista Interativa (EaD). Na EaD, é responsável pela disciplina Antropologia
da Alimentação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

T323a Terra, Sirlei Pires.

Antropologia da Alimentação / Sirlei Pires Terra, Vânia Cristina


Lamônica - São Paulo: Editora Sol, 2019.

88 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-093/19, ISSN 1517-9230.

1. Práticas alimentares. 2. Significado dos alimentos. 3. Sistemas


alimentares. I. Lamônica, Vânia Cristina. II. Título.

CDU 641

U501.75 – 19

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
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Prof. Fábio Romeu de Carvalho


Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças

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Vice-Reitora de Unidades Universitárias

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Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez


Vice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Vera Saad
Vitor Andrade
Sumário
Antropologia da Alimentação

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 CONCEITO SOBRE ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO........................................................................9
1.1 Paladar e fome....................................................................................................................................... 10
1.2 Alimento e comida................................................................................................................................ 10
1.3 Refeição..................................................................................................................................................... 10
1.4 Sistema culinário................................................................................................................................... 11
1.5 Alimentação no Brasil......................................................................................................................... 11
1.6 Comida e alimento............................................................................................................................... 12
1.7 Hábito alimentar.................................................................................................................................... 12
1.8 Gosto.......................................................................................................................................................... 13
1.9 Diferença conceitual entre alimento e comida......................................................................... 14
1.10 Hábito alimentar brasileiro............................................................................................................. 15
1.11 Gosto e sabor........................................................................................................................................ 16
1.12 A gastronomia...................................................................................................................................... 16
2 FUNÇÕES SOCIOCULTURAIS DA ALIMENTAÇÃO.................................................................................. 17
2.1 O quanto se come................................................................................................................................. 18
2.2 O que se come........................................................................................................................................ 21
2.3 Comer junto – comensalidade......................................................................................................... 22
3 AS DIFERENTES PRÁTICAS ALIMENTARES E O ATO DE COMER..................................................... 23
3.1 As diferentes práticas alimentares................................................................................................. 23
3.2 Alguns aspectos sobre o processo de mudanças das práticas alimentares................... 28
3.3 Algumas considerações sobre as práticas contemporâneas em relação
às camadas sociais, gênero e etnia........................................................................................................ 30
3.4 A respeito dos gêneros alimentícios.............................................................................................. 31
3.5 Café da manhã....................................................................................................................................... 31
3.6 O almoço: a refeição do meio‑dia.................................................................................................. 33
3.7 O jantar: refeição noturna................................................................................................................. 34
3.8 As frutas e as verduras........................................................................................................................ 35
3.9 O papel dos líquidos............................................................................................................................. 36
3.10 Os alimentos industrializados e os alimentos naturais....................................................... 36
3.11 Os alimentos light............................................................................................................................... 37
3.12 O consumo de açúcares, doces e chocolates.......................................................................... 37
4 RELAÇÃO ENTRE CORPO, SAÚDE E ALIMENTAÇÃO............................................................................ 37
4.1 A contribuição das ciências sociais................................................................................................ 37
4.2 Algumas considerações sobre o corpo na contemporaneidade......................................... 38
4.3 O mundo moderno e o corpo........................................................................................................... 39
4.4 A saúde perfeita..................................................................................................................................... 39
4.5 O autocuidado........................................................................................................................................ 39
4.6 As formas do corpo.............................................................................................................................. 39
4.7 Emagrecimento...................................................................................................................................... 40
4.8 A questão do prazer e a questão da saúde................................................................................. 42

Unidade II
5 O SIGNIFICADO DOS ALIMENTOS.............................................................................................................. 48
5.1 Significado político‑social................................................................................................................. 53
5.2 Significado emocional......................................................................................................................... 54
5.3 Significado biológico‑científico...................................................................................................... 55
6 O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA ALIMENTAÇÃO...................................................................... 57
7 ALIMENTAÇÃO NA ATUALIDADE................................................................................................................ 63
7.1 Tradições culinárias convencionais................................................................................................ 65
7.2 Gastronomia moderna........................................................................................................................ 66
8 OS DIVERSOS FATORES QUE INTERFEREM NOS SISTEMAS ALIMENTARES............................... 68
8.1 Fatores biológicos e naturais............................................................................................................ 68
8.2 Fatores familiares, culturais e religiosos...................................................................................... 69
8.3 Fatores socioeconômicos................................................................................................................... 72
APRESENTAÇÃO

A disciplina Antropologia da Alimentação oferece ao graduando estudos sobre a simbologia que


permeia a alimentação humana, com seus rituais próprios de cada cultura, em especial da cultura
alimentar brasileira.

Trata‑se de desvelar como a alimentação humana foi construindo, ao longo do tempo, preferências
diversas, transformando o alimento em comida e, ao mesmo tempo, interiorizando gostos e hábitos
alimentares, revelando a identidade cultural alimentar de indivíduos e de povos.

Também aborda como as distinções de classe se configuram nas escolhas, nos preparos, nos serviços à
mesa, na forma de partilhar o alimento e de comê‑lo e na geografia da mesa, que ainda tem importância
simbólica e é meio de distinção de valores sociais.

O objetivo da disciplina é contribuir para a formação de profissionais, capazes de elaborar análises


que permitam a apreensão da realidade social e simbólica no tocante à alimentação. Para tanto, a
disciplina pretende:

• Capacitar o aluno a entender a complexidade do fator alimentar na espécie humana e em


particular na sociedade brasileira, levando em consideração a diversidade biológica, ecológica,
tecnológica, econômica, social, política e ideológica. Entender o que leva o humano a eleger
determinado tipo de alimento, condicionando‑se a ele as interferências das crenças que
o permeiam, a adaptação a sabores, odores, entre outras características, considerando o
desenvolvimento histórico de cada sociedade, com o objetivo de ter uma atuação capaz de
contribuir para a qualidade de vida da sociedade.

• Entender e discutir o significado dos alimentos, seus condicionantes culturais, ecológicos,


tecnológicos e econômicos.

• Entender e discutir a importância das crenças religiosas e dietéticas, bem como as funções
socioculturais da alimentação, o comportamento alimentício e as tradições culinárias das
diferentes sociedades humanas, instrumentalizando‑se para a atuação profissional.

• Refletir sobre as construções culturais e simbólicas que demarcam o campo da saúde‑doença.

A Antropologia da Alimentação permite a reflexão sobre como a capacidade de simbolização


impactou o processo alimentar, de forma a permitir o surgimento de uma diversidade alimentar que
permeia o mundo globalizado, bem como a diversidade encontrada em nosso próprio país, em suas
regiões, apresentando preferências alimentares distintas, além da distinção existente nos diferentes
extratos sociais.

7
INTRODUÇÃO

Este livro‑texto tem a intenção de contribuir para que o graduando de Nutrição tenha acesso a um
conteúdo que o torne capaz de desenvolver uma reflexão acerca da alimentação humana e de sua carga
simbólica, fato que permitirá a construção de um diálogo que tenha significado para si e para aqueles
que orientará em sua prática profissional, além de contribuir para a eficácia dessa relação.

A discussão se inicia em torno dos conceitos que embasam a disciplina, tais como: alimento, comida,
refeição, hábito, gosto, sabor, entre outros.

Serão abordadas as funções socioculturais da alimentação, abrangendo aspectos vinculados a toda


simbologia voltada para o quanto se come, o que se come, com quem se come e para a comensalidade.

Essa importante temática será contemplada no que diz respeito às diferentes práticas alimentares e
ao ato de comer as refeições diariamente, enfatizando o café da manhã, almoço e jantar, sem deixar de
mencionar a importância das refeições intermediárias, entendendo que estas também seguem padrões
alimentares próprios de suas culturas. Serão abordados os aspectos das práticas alimentares antigas e
contemporâneas relacionadas às camadas sociais, ao gênero e à etnia, bem como o processo de mudança
dessas práticas alimentares.

Desenvolveremos conhecimentos sobre a relação entre corpo e saúde, idade e alimentação, assim
como a contribuição das Ciências Sociais na compreensão da importância do processo alimentar
humano. Apresentaremos considerações sobre o corpo na contemporaneidade, a saúde, o autocuidado,
o emagrecimento e a questão do prazer e da saúde, como formas de escolhas que podem ser feitas
visando a construção do corpo perfeito na contemporaneidade.

Posteriormente discutiremos os diversos símbolos dos alimentos e suas representações na vida de


um indivíduo ou comunidade, desde o início da história da alimentação até a gastronomia atual e os
diversos fatores que interferem na relação entre o homem e os alimentos.

A leitura permitirá a compreensão das relações simbólicas de cada alimento, por exemplo, carnes,
verduras, legumes, frutas, grãos, cereais, líquidos, óleos etc., e de como os alimentos representam mais
do que apenas um conjunto de nutrientes capazes de manter a vida biológica.

Serão abordados os primeiros comportamentos alimentares na espécie humana e suas transformações


no tempo, bem como seus aspectos simbólicos em cada fase, da caça e coleta à agricultura e pecuária,
contemplando as mudanças históricas e simbólicas da mundialização até a industrialização dos alimentos.

Discutiremos a miscigenação, do período colonial, como fator determinante para nossa tradição culinária
e o desenvolvimento de nossos gostos e costumes e quais os rumos para o futuro de nossa alimentação.

Ao fim abordaremos as diversas influências que contribuem para a individualização dos hábitos
alimentares e como estas podem interferir no estado nutricional.

8
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

Unidade I
1 CONCEITO SOBRE ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

Ao discorrer sobre o tema alimentação, é importante citar Cascudo (2015), cuja publicação História
da Alimentação no Brasil fez dele um dos primeiros estudiosos da cultura brasileira enfocando a
alimentação. Ele realizou estudos etnográficos importantes sobre vários temas, como comidas, bebidas,
entre outros, em meados do século XX.

Os trabalhos de Cascudo embasaram a produção antropológica de Gonçalves (2004), que afirmou:


“Nem tudo que alimenta é bom ou socialmente aceitável, do mesmo modo, nem tudo que é alimento é
comida”. O antropólogo destaca o fato de Cascudo considerar que a preparação e o consumo de comidas e
bebidas estão sempre carregados de valores simbólicos contidos no sistema de relações sociais estabelecidas
nas festas, religiões e medicinas populares, provérbios, narrativas e nas relações mágico‑religiosas, o que
levou Cascudo a criar, em suas etnografias, categorias como: nutrição, alimentação, comida e refeição,
fome e paladar, cru e cozidos, cujos conceitos apresentaremos na sequência.

Saiba mais

Você encontrará mais informações sobre essas categorias nos capítulos


“A Nutrição e a Fome” do livro Comida e Sociedade, de Henrique Carneiro, e
“Sobre Comidas e Mulheres”, do livro O que faz o brasil, Brasil?, de Roberto
DaMatta, além do livro de Cascudo:

CARNEIRO, H. Comida e sociedade: uma história da alimentação.


Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2003. p. 23‑43.

CASCUDO, L. da C. História da alimentação no Brasil. 3. ed. São Paulo:


Global, 2015.

DaMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.


Disponível em: <hugoribeiro.com.br/biblioteca‑digital/Da_Matta‑O_que_
faz_Brasil_Brasil.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2019.

9
Unidade I

1.1 Paladar e fome

Cascudo (2015) trabalha a alimentação focando o “paladar”, que é determinado por comportamentos
culturais influenciados por regras, padrões e proibições, por isso a alimentação é poderosa na delimitação
das preferências alimentares humanas. A escolha de nossos alimentos diários se dá em relação aos
valores de nossa cultura e de acordo como nosso menu foi construído ao longo de milênios, qualquer
mudança no paladar deve demorar praticamente o mesmo tempo que se levou para tê‑lo.

Fome e sede podem ser satisfeitas por qualquer alimento ou bebida, porém o paladar é construído
e está vinculado a formas específicas e particulares de apresentação, preparação e consumo. Por meio
do paladar tem‑se a distinção e oposição entre diferentes indivíduos e grupos, sendo que por essa
razão, para Cascudo (2015), o paladar faz parte do processo de construção das identidades individuais e
coletivas. Nesse aspecto, as regras culturais e as trocas sociais definem a natureza do ser humano, e não
suas necessidades biológicas, que podem ser satisfeitas por qualquer alimento.

Gonçalves (2004) traz uma importante contribuição sobre os estudos etnográficos de Cascudo, indicando
que para Cascudo a categoria “paladar” é oposta à categoria “fome”, como necessidade natural, e está presente
em todos os seus estudos antropológicos sobre comidas e bebidas, expressando uma visão sobre o cotidiano
da sociedade brasileira. Portanto, os alimentos carregam em si a expressão da celebração de diferentes tipos
de relações sociais e culturais, desempenhando assim diversas funções, além das de alimentar ou satisfazer a
fome como se fosse apenas uma necessidade somente natural.

Verificaremos a seguir alguns conceitos fundamentais que conformam a disciplina Antropologia


da Alimentação.

1.2 Alimento e comida

Cascudo (2015) faz a distinção entre alimento e comida, associando alimento às experiências
fisiológicas da subsistência e da fome. A comida transcende o ato de se alimentar, pois tem significado
social e cultural, diferenciando‑se do simples ato de se alimentar. Comida tem a ver com apetite e
paladar e está associada ao corpo culturalmente formado.

1.3 Refeição

Existe oposição entre o ato social e cultural de comer e o ato social e cultural de participar
de uma “refeição”. A comida pode estar presente em diversas situações sociais e culturais, porém
a refeição carrega em si situações sociais e culturais particulares e ritualizadas, por exemplo,
a ceia de Natal ou de ano‑novo, com suas formas específicas de comprar, preparar, servir e
consumir. Dessa forma, para Cascudo (2015), participar de uma refeição não é o mesmo que
simplesmente comer, sendo que a diferença entre ambas está na transformação de uma situação
informal e casual em uma situação mais estruturada em termos sociais e culturais. As refeições
seguem ritmos de tradição, são coletivas, estabelecem conexões entre os seres humanos, no
contexto doméstico e em situações ritualizadas, que podem ser com parceiros distantes, como
santos, mortos e divindades, divindades e os humanos, mortos e vivos. O ato de comer é casual e
10
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

individual, solitário e conectado com necessidades passageiras, individuais e eventuais, podendo


ser rapidamente modificado pela moda.

Para Cascudo (2015), as sequências antigas ou tradicionais diárias das refeições consistiam em almoçar
às 7 horas da manhã, jantar cerca das 12 horas, merenda às 15 horas, e a ceia por volta das 18 horas.
Na contemporaneidade tem‑se a seguinte sequência: café da manhã, normalmente vinculado ao horário
de sair de casa para trabalhar, almoço, cerca das 12 horas, lanche e jantar cerca das 19 horas, quando volta
para casa, do trabalho. São possibilidades que formam um sistema culinário.

1.4 Sistema culinário

É considerado um sistema culinário um conjunto de ingredientes, condimentos e procedimentos


compartilhados num determinado momento histórico e num determinado território. São conjuntos de
práticas e representações que unem a pessoa, a sociedade e o universo.

Fazem parte de um sistema culinário o modo de cozinhar, a estética, o sabor, as maneiras à mesa,
tudo dentro de um determinado código cultural mediado social e simbolicamente pelos diferentes
grupos sociais em diferentes tempos e espaços e em diferentes estratos sociais, que são transformados
simbolicamente da natureza à cultura, da fome ao paladar, do alimento à comida e da comida às
refeições (GONÇALVES, 2004).

Para estudar o sistema culinário popular brasileiro, Cascudo (2015) baseou‑se em pesquisas
bibliográficas, arquivos e memórias referentes ao Brasil tradicional do século XVI ao Brasil contemporâneo
do século XX, incluindo as preferências brasileiras tradicionais por determinadas comidas e bebidas, suas
formas, estética de preparo, de apresentação e de consumo, bem como seus gostos. A cozinha nacional
brasileira se cristaliza no fim do século XVIII, constituindo‑se da cultura portuguesa e dos reflexos dos
sistemas indígenas e africanos de alimentação.

Os sistemas culinários são culturalmente organizados, sendo que o sistema culinário tradicional
é dominado pela categoria “paladar” e o sistema culinário moderno é dominado pela fome, satisfeita
de forma ocasional e irregular pela alimentação cotidiana, que pode ser realizada em fast‑food,
o qual nos priva de saborear a comida caseira, causando a substituição das relações sociais pelas
relações imediatistas, não levando em conta o apetite e o paladar, e sim a necessidade de saciar a
fome. Fome e paladar nos contextos tradicionais são categorias perceptíveis, na modernidade são
individualizadas e autônomas, tornando‑se bom gosto (CASCUDO, 2015).

1.5 Alimentação no Brasil

O interesse sobre a alimentação no Brasil está mais voltado para o prazer da comida, e menos voltado para os
nutrientes nela contidos. No Brasil, normalmente a comida do povo tem muita composição de massas, gorduras,
açúcares e carne, cujo prazer alimentar está centrado na mistura desses alimentos. Não há muito interesse em
frutas, legumes e hortaliças, indicando a necessidade de trabalhar mudanças nesses hábitos alimentares, visando
a valorização e o prazer da ingestão desses alimentos.

11
Unidade I

1.6 Comida e alimento

Para DaMatta (1986), nossa expressão cultural alimentar indica que nem todo alimento é bom ou
socialmente aceitável, assim como nem tudo que alimenta pode ser considerado comida ou ter aceitação
social. Dessa forma, alimento é tudo que pode ser ingerido para a manutenção da vida da pessoa, é como
uma moldura que contém a possibilidade da comida, sendo universal, pois interessa a todos os seres
humanos, tanto aos amigos quanto aos inimigos, pessoas de perto ou de longe etc. Comida é o quadro,
isto é, o que foi valorizado e escolhido entre os alimentos disponíveis, e deve ser visto e saboreado
com os olhos e posteriormente com a boca, o nariz, a barriga, em companhia de alguém, é tudo que se
come com prazer, de acordo com regras sagradas de comunhão e comensalidade. Comer vai além da
ingestão de um alimento, pois inclui relações pessoais, sociais e culturais. Assim, a cultura alimentar está
diretamente ligada com a forma como a pessoa se comporta na sociedade, na qual a comida refere‑se
a algo costumeiro, e contribui para o estabelecimento da identidade de uma pessoa, de um grupo, de
uma classe social, ao constituir‑se em um modo, um estilo de se alimentar.

DaMatta (1986) faz uma relação simbólica entre o cru e o cozido, entendidos como modalidades
de transformações sociais. Relaciona o cru com o masculino, selvageria, coisas difíceis, opostas ao
mundo da casa, e o cozido com o feminino, tempero e coisas elaboradas, algo social, a boa mesa,
sendo que a oposição entre o cru e o cozido permite pensar o mundo integrado, o intelectual e o
sensível. Ele considera a comida uma mediação entre a cabeça e a barriga, o corpo e a alma, numa
operação conjunta de vários códigos culturais como a casa, a intimidade, além dos órgãos do sentido
gustativo, olfativo, visual e digestivo.

1.7 Hábito alimentar

O hábito alimentar tem a ver com as escolhas e consumos alimentares de um indivíduo ou grupo,
sendo influenciado por fatores fisiológicos, psicológicos, culturais e sociais. O hábito alimentar do
brasileiro é formado pelas culturas alimentares dos índios, dos negros e dos portugueses:

• Os índios viviam da caça, pesca e raízes, como mandioca, inhame, milho verde, batata‑doce,
banana‑da‑terra, brotos preparados em fogo de chão. Basicamente amidos e raízes, ricos em
energia e calorias.

• Os africanos misturavam comidas em uma só panela cozinhando alimentos, por exemplo, o


arroz com algum outro alimento, fato esse que melhorou o cozimento do que o índio comia.
Daí a origem do cozido. Eles utilizavam fubá, farinha, rapadura, goma e polvilho. Herança
composta de carboidratos, cozidos, massas e caldos.

• Os portugueses tinham como base cultural o azeite de oliva, que o brasileiro substituiu por outros
óleos. Sua herança constitui‑se de requintes à mesa e manuseio de melhores pratos. Alimentos
como oliva, gordura, pastéis, massas e doces contribuíram para a criação de pratos como frango com
quiabo, doce de leite e doces de compotas, que têm alto teor de gordura e açúcar.

12
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

Curiosamente, a alimentação do europeu e do americano é focada no que conhecemos como


caráter analítico, por ser uma alimentação bem definida e bem separada no prato, que não mistura os
alimentos. Há uma distinção na ordem das refeições e nos pratos, pois a cozinha deve respeitar os limites
do natural, os pratos são autônomos, então sopa de couve deve ter o gosto da couve (MONTANARI,
2008). Ingleses e franceses têm molhos específicos para cada prato, mantendo uma separação entre o
sólido e o líquido, já o brasileiro prefere a mistura do sólido com o líquido, preferência emblemática na
nossa cultura representada pelo cozido, indicando que temos uma culinária relacional numa sociedade
igualmente relacional, marcada pela ligação.

A comida brasileira contempla a mistura dos alimentos num mesmo prato, pois gostamos do
terceiro sabor que se forma pela mistura que fazemos na boca, por exemplo o arroz com feijão, o
cozido, a feijoada... Trata‑se do caráter sintético romano, renascentista e medieval que existe ainda
hoje na cozinha conservadora europeia. A culinária alemã, em que há carne com fruta, comida típica
da Idade Média, é um bom exemplo. Nesse tipo de cozinha, mistura‑se o sabor, mantendo os alimentos
juntos, considerando ser equilibrada a comida que contém todas as qualidades nutricionais. O prato
perfeito tem todos os sabores, isto é, todas as virtudes. Há alteração das características do produto.
Essas preferências marcam nossa noção de gosto ou paladar, que afirma nossa identidade culinária
no gosto, na aparência, nos gestos e ritos alimentares (MONTANARI, 2008).

1.8 Gosto

Em relação ao gosto, nossa identidade cultural é bem marcada nas nossas escolhas alimentares.
Assim uma comida pode ser boa ou ruim, dependendo da cultura na qual é consumida. Por exemplo,
comer gafanhotos na cultura ocidental é quase impossível, no entanto é uma iguaria para outros
povos. Esse fato acontece porque o órgão do gosto não é a língua, e sim o cérebro, que é um órgão
culturalmente determinado e obedece a critérios variáveis no tempo e no espaço, permitindo que os
gostos mudem no decorrer do tempo. O gosto como sabor, como sensação da língua e do palato, é
subjetivo e incomunicável, embora condicionável pelo gosto saber, e pode se perder no tempo, mas
o gosto saber, ao avaliar se o alimento é bom ou ruim, é determinado também e principalmente pelo
cérebro, e não somente pela língua, sendo uma realidade coletiva, portanto comunicável. É possível
saber o gosto que imperava no passado por meio de documentos que relatam as formas de consumo de
uma determinada época (MONTANARI, 2008).

Interessante também é como os talheres foram introduzidos na alimentação. A utilização da colher


é antiga, para a ingestão dos líquidos e das sopas, por exemplo, já o garfo começa a ser usado no fim da
Idade Média, em especial na Itália, por consequência da cultura da massa, embora não fosse bem visto
por significar extremo refinamento e ser visto como antinatural, pois o natural era comer com as mãos.

Durante muito tempo, principalmente na Idade Média, a mistura dos alimentos sempre esteve presente
e as técnicas de cozimento se sobrepunham e mais amalgamavam os sabores do que os separavam.
Entretanto, essa cozinha, assim como a relação com a comida, foram sendo alteradas a partir de meados
do século XIX com o uso do “serviço à russa”, que significa servir um mesmo prato a todos, em detrimento
das formas anteriores e atuais em alguns países, que colocam todos os pratos à mesa e cada um escolhe
e monta seu prato.
13
Unidade I

Mesmo considerando o gosto sintético ou o analítico, escolhas, formas de preparo, apresentação


e consumo estão vinculados ao alimento que a cultura considera comida. Pontuando novamente os
conceitos de alimento e de comida, estes serão representados, a seguir, por algumas figuras ilustrativas.

1.9 Diferença conceitual entre alimento e comida

Alimento é tudo que pode ser ingerido para manter a pessoa viva; uma grande moldura que contém
as possibilidades de comida; algo universal e geral, que diz respeito a todos os seres humanos.

Comida é tudo que se come com prazer de acordo com as regras de comunhão e comensalidade;
um quadro, a parte valorizada e escolhida entre os alimentos disponíveis; aquilo que é visto e
saboreado com os olhos, o nariz, a boca, a barriga; em companhia de alguém; algo costumeiro e sadio
que estabelece uma identidade, seja de um grupo, seja de uma pessoa ou classe; um modo, um estilo,
um jeito de alimentar‑se.

Conforme a figura subsequente, estão disponíveis vários grupos alimentares, como os alimentos
de origem animal, vegetal, mineral e industrial. Temos também os subgrupos, por exemplo, os de
origem animal, que compreendem carne branca, carne vermelha, frutos do mar, leites, ovos etc. Ainda
nesses subgrupos, temos outras formas de classificação, como carne de vaca, carne de porco, peixes,
moluscos, além dos alimentos de origem vegetal, tais como legumes, verduras, frutas, ervas, cereais,
sementes, e os alimentos minerais, como o sal, lembrando que a água é um elemento da natureza que
faz parte dos alimentos.
60%
55%

50%

40%

30%
30%

20%

10%
10%
5%

0%
Vegetal Animal Mineral Industrial

Figura 1 – Ilustra aleatória e proporcionalmente a disponibilidade dos diversos grupos alimentares

Entretanto, a escolha dos grupos e de seus subgrupos será própria de cada cultura e se constituirá
no que será reconhecido como comida. No entanto, cada cultura escolherá apenas alguns dos grupos
de alimentos para ser considerado como comida. Podemos visualizar diferentes escolhas de alguns
alimentos como comida, conforme figura a seguir. Preste atenção no primeiro grupo e verifique que
não possui a opção por alimentos de origem animal, configurando uma cultura alimentar vegetariana.
14
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

80% 75%
70%

60% 55%
50%
45%
40%
30%
30%
20% 20% 20%
20% 15%
10%
10% 5% 5%
0%
0%
Vegetal Animal Mineral Industrial

Figura 2 – Ilustra aleatória e proporcionalmente as preferências em três supostas culturas

Sendo assim, comida só pode ser definida como tal dentro de determinada cultura. Por exemplo, a
carne de vaca é considerada comida para os brasileiros, mas não para aqueles que são vegetarianos.
A mesma carne de vaca na Índia não é comida, da mesma forma que para os brasileiros carne
de cachorro não é comida, no entanto, na China, ela o é. Podemos então concluir que a comida
depende da cultura, seja ela local, seja regional ou nacional, ou até mesmo de determinada classe
econômica ou faixa etária. Se pensarmos no leite, que é também um alimento para o ser humano,
para um bebê, é mais que um alimento, é uma comida, comida de bebê, que marca a identidade
dessa faixa etária, é o alimento valorizado, saboreado, costumeiro. E assim podemos dizer que o osso
é comida de cachorro; o milho, de galinha; o macarrão, de italianos; o churrasco, comida de gaúcho
etc. A comida do brasileiro é arroz e feijão, combinação que comemos com muita frequência, em
todas as regiões do País. É um prato saudável e valorizado, que se partilha com parentes e amigos.
São dois alimentos cozidos que se unem, misturando o preto e o branco, construindo uma comida
única, a síntese da sociedade brasileira. Os exemplos de alimento são as classificações como carne,
verduras, legumes, frutas, cereais etc. Dentro dessas classificações gerais e universais, escolhemos
um conjunto que consideramos como comida, por exemplo, a carne de vaca ou de porco, porém
não consideramos como tal a carne de cachorro ou de rato, que é comida para a cultura chinesa.

1.10 Hábito alimentar brasileiro

Refletindo sobre o hábito alimentar brasileiro, percebemos que esse povo dá sempre preferência
ao cozido, seja a peixada, seja a feijoada, o pirão, os molhos, as dobradinhas e papas. Já o assado não é
um prato típico de celebração em família, pois não permite a mistura. A farinha de mandioca é outra
comida típica, pois serve de cimento para as comidas líquidas e sólidas, ligando todos os pratos. Entre
o sólido e o líquido, preferimos uma forma intermediária, o cozido. Entre a carne e a verdura, que nos
pratos europeus estão separadas, optamos por um prato que ligue os dois, como a feijoada, a moqueca
e a peixada. São essas escolhas e preferências que formam o hábito alimentar de uma cultura e que
diferenciam uma da outra.

15
Unidade I

Grande parte da nossa herança culinária tem influência portuguesa, mas temos também influências
africana e indígena, que fazem parte da combinação de nossos pratos. Nós não privilegiamos o prato
separado, como na China e no Japão, nem a combinação de pratos separados, como na França e na
Inglaterra. Para nós existe uma comida que é a central e todas as outras periféricas, que permitem a
mistura ou a união de todas elas.

1.11 Gosto e sabor

Para Carneiro (2003), historiador brasileiro, essas preferências do brasileiro marcariam a noção de
gosto ou de paladar, que afirma a nossa identidade culinária, parte integrante do universo da estética
alimentar, composta de gosto, aparência, gestos e ritos alimentares. “Os sabores são mais que o desfrute
de um sentido que indica a comestibilidade das coisas” (CARNEIRO, 2003, p. 124).

Os gostos diferenciados caracterizam os vários povos e as diferentes épocas de uma mesma cultura,
que amadurecem com suas conquistas espirituais, realizações materiais, elaboração de técnicas e criação
de alimentos.

Assim, o gosto depende da cultura alimentar na qual o indivíduo está inserido. Gostamos daquilo que
temos o hábito de comer, ou seja, de determinadas comidas. Ninguém vai gostar de um alimento que nunca
provou ou que não sabe como fazer, o gosto é predeterminado pela comida local. Para se construir o gosto, é
necessário habituar‑se à comida, considerar tal alimento como comida e, posteriormente, após criar o hábito
de comê‑lo, considerá‑lo como algo gostoso.

1.12 A gastronomia

O termo gastronomia se refere ao uso requintado e delicado dos alimentos e da boa mesa.
A alimentação, após o século XIX, libertou‑se das imposições dietéticas e medicinais, das restrições
morais e religiosas, e passou a ser associada aos prazeres da mesa e da gula, ao prazer carnal como
o ato sexual. Podemos compreender que a alimentação humana é uma característica cultural mais
que biológica. A antropologia da alimentação foca seus estudos nesse aspecto do gosto, deixando os
aspectos da fome e do alimento para outras ciências. Sendo assim, para a antropologia, o que separa o
homem dos animais é o gosto, a comida, uma vez que os animais comem por fome qualquer alimento
que seja assim considerado em sua espécie.

Observação

A alimentação na época romana renascentista era baseada na


mistura dos sabores. A ciência dietética considerava equilibrado o prato
que contivesse todas as qualidades nutricionais, o que significava a
combinação de diversos sabores (todas as virtudes) simultaneamente, por
isso, o cozinheiro precisava intervir no produto. São misturas como doce e
salgado, agridoce, mistura de mel e vinagre, pratos que resistem até hoje.
As peras ou maçãs que acompanham a carne são características da cozinha
16
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

medieval (pouco presente no Brasil por sermos um país de colonização


pós‑renascentista). As técnicas de cozimento também eram uma forma de
transformar o sabor: escaldar, assar, fritar, aquecer, grelhar, representavam,
além de modos de cozinhar, momentos diversos do preparo do alimento,
que poderiam sobrepor mais de uma técnica para alcançar a textura e o
sabor ideal, conservando o alimento (MONTANARI, 2008).

Entre os séculos XVII e XVIII, os franceses começaram uma revolução culinária, na qual cada alimento
tinha de possuir seu próprio sabor, o natural. Outra característica da gastronomia pré‑moderna é a
cozinha fundamentalmente magra: os molhos eram à base de ingredientes ácidos e não gordurosos,
tais como vinho, vinagre, sucos cítricos. Os molhos à base de laticínios e óleos, muito comuns na
nossa mesa, são essencialmente modernos e industriais (MONTANARI, 2008). Com esse levantamento
histórico, começamos a observar quais eram os hábitos alimentares de diferentes povos e o que
consideravam como comida e conheciam como gosto e predileção.

Neste capítulo, tivemos a intenção de discorrer sobre os conceitos necessários à compreensão da


disciplina Antropologia da Alimentação. Conceitos esses elaborados por pesquisadores que dominam o
conhecimento sobre a alimentação em nosso país.

A seguir, vamos trabalhar a produção do conhecimento, a respeito da importância da compreensão


de como a alimentação carrega consigo valores simbólicos e socialmente partilhados.

2 FUNÇÕES SOCIOCULTURAIS DA ALIMENTAÇÃO

Neste capítulo temos o objetivo de ajudar o aluno a compreender os ritmos da comensalidade e a


refletir sobre o quanto, com quem, o que, quando e como se come, uma vez que os comportamentos
sociais trazem em si momentos de escolha, sendo que cada cultura tem suas próprias preferências, por
exemplo, em relação ao gosto dos alimentos; entretanto, estes se formam e se modificam ao longo
da história. Também é importante destacar que fome e abundância geram escolhas diferenciadas, isso
quando falamos de gosto, e não de fome, pois muitas pessoas se alimentam por fome, e não por
prazer da escolha, a assinalar que o gosto existe principalmente nas classes sociais mais abastadas, que
possuem a possibilidade de opção, sendo então o gosto de poucos (MONTANARI, 2008).

Dessa forma, as escolhas dos alimentos por um grupo ou uma pessoa decorrem basicamente de sua
condição financeira para adquiri‑los, e, à medida que os alimentos escolhidos são frequentes no dia a dia,
formam os hábitos alimentares, bem como a distinção do alimento entre bom e ruim, tornando a escolha
um valor cultural positivo. Formar um hábito alimentar, nessas condições, é próprio de classes menos
favorecidas, que optam por cereais, legumes, pães, bolos, massas e batatas (HARRIS, 1990).

Entretanto, Montanari (2008) faz algumas objeções às colocações de Harris, por entender que não
necessariamente os hábitos alimentares têm relação com o gosto dos indivíduos. Citando Flandrin, Montanari
(1998) diz que se pode comer algo esporadicamente ou mesmo por hábito, o que difere de apreciar o alimento.
Por exemplo, o pão preto elaborado com grãos inferiores como o centeio, trigo espelta ou cevada foi apreciado
pela população mais pobre e posteriormente pela elite, talvez não por gostar, mas sim pela possibilidade de

17
Unidade I

se sentirem condescendentes com os mais pobres. Nesse contexto de riqueza, o mecanismo de formação do
gosto pode se inverter, sendo que dessa forma o objeto do desejo deixa de ser o abundante e passa a ser o
raro, que estimula a vontade e nos faz querer mais. Como exemplo podemos citar as especiarias, objeto de
desejo da elite antigamente que, ao se tornar popular, deixou de sê‑lo, porque não era mais indicativo de
distinção. A distinção passou a pertencer à manteiga, na confeitaria e nas verduras frescas da horta, num
movimento de reabilitação dos modelos camponeses, fato esse parecido com as atuais dietas pobres.

Harris (1990) analisa que o percurso vai do hábito ao gosto e do comer ao pensar. Montanari (2008) discorda.
Ele considera que o objeto de desejo para o pobre e para o rico não são os alimentos abundantes, mas aqueles
raros ou ocasionais, restritos. Consumir esses produtos alimentares raros é símbolo de status, de distinção social,
e isso formará o gosto social, aquele que distingue as classes socioeconômicas nas escolhas alimentares. Assim, a
fruta, que é muito perecível, torna‑se um alimento do rico, que não se interessa pelo alimento abundante.

Saiba mais

Para conhecer mais sobre o gosto e as classes socioeconômicas, leia


os capitolos 3 e 4 “O Gosto é um Produto Social” e “Comida, Linguagem,
Identidade” do livro:

MONTANARI, M. Comida como cultura. São Paulo: Senac, 2008.


p. 109‑130; p. 157‑164.

Você também encontrará mais informações no artigo:

FERNANDES, A. T. Ritualização da comensalidade. Revista da Faculdade


de Letras da Universidade do Porto, v. 7, 1997. Disponível em: <http://ojs.
letras.up.pt/index.php/Sociologia/article/view/2579/2364>. Acesso em:
17 fev. 2019.

2.1 O quanto se come

Le Goff (1981) escreveu que, na Idade Média, a melhor forma de as camadas dominantes se
definirem enquanto tais era pelo luxo e pela ostentação alimentar, pois a quantidade de comida era
uma das principais características de distinção de classe. O luxo e a ostentação alimentar mostram um
comportamento de classe que não podia ser imitado pelas camadas populares. A abundância alimentar
é um privilégio social e mostra o poderio do homem. Assim, na Idade Média o luxo e a ostentação
alimentar produziam um recorte de classe na qual a abundância da comida significava situação de
privilégio e de poder; desejava‑se, portanto, quantidade, o que demonstra que a proximidade com
a localização dos recursos alimentares era uma das primeiras grandes preocupações da humanidade.
O poderoso era aquele que comia muito, pois o que comia pouco era considerado fraco, sem condições
de reinar. Era preciso ser forte e guerreiro, portanto uma boa caçada afirmava essa possibilidade, como
fruto da coragem, do comando e da força, qualidades necessárias a um nobre, ao mesmo tempo que

18
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

comia carne, pois esta lhe proporcionava a força para um combate. Na época, os tratados médicos
indicavam que comer carne era um excelente alimento para crescer com vigor (MONTANARI, 2008).

A ilustração a seguir demonstra como nos séculos XIV e XV, época do Renascimento, a saúde associava‑se
ao corpo gordo, pois nesse período a peste negra dizimou um terço da população medieval. Na poesia e
literatura associava‑se a mulher amada com a comida, considerando‑as delicadas, suculentas etc.

Figura 3 – Beleza feminina

As sociedades e culturas da época eram marcadas pelo temor à fome decorrente de epidemias, guerras
ou escassez, fatalidades contra as quais ainda hoje pede‑se a proteção divina (MONTANARI, 2008).
Entretanto, em séculos passados, além do medo, existia a necessidade de se compartilhar para a sobrevivência
diária – compartilhamento que hoje, na nossa sociedade da abundância, tende a ficar para segundo plano.
Para sobreviver no Renascimento era preciso manter a barriga e a dispensa cheias, mesmo em momentos
de abundância alimentar, em detrimento da qualidade e do gosto, que ficavam no segundo plano.

A história retrata reis, monarcas e aristocratas sempre como pessoas gordas, grandes comedoras, que
de certa forma assim o eram por obrigação social, um comportamento de classe, necessário. Homens
magros e com pouca capacidade de comer eram sinônimo de fraqueza e inferioridade, portanto não
serviam para governar. O chefe tinha que ter a figura de um valoroso guerreiro capaz de comer muito,
cuja força estava principalmente associada à ingestão da carne vermelha, por isso muitos escudos que
eram os emblemas de distinção familiar tinham animais carnívoros como símbolo: leões, ursos, lobos,
leopardos. Simbolicamente, ao nutrir o corpo, consolidar os músculos, o consumo da carne dava ao
guerreiro a legitimidade do comando, juntamente com a força. Comer carne significava matar animais,
ou seja, caçar, o que exigia habilidades inerentes à prática da guerra, como o manuseio com as armas,
além de fornecer o alimento necessário para tal prática.

Na Modernidade, a ciência dietética reforça a importância da carne para o homem, sendo considerada
o alimento perfeito para se crescer com vigor. Essa valorização é encontrada nos tratados médicos
medievais e difere das civilizações grega e romana, ambas agrícolas, em que o pão era o centro da
refeição, necessário aos soldados, e sinônimo de civilidade.
19
Unidade I

Ao longo do século, a abundância alimentar deixa de ser o símbolo central de poder e de prestígio
social, e a demonstração e conquista da força física no campo de batalha deixam de ser necessárias,
pois o poder passa a ser adquirido por hereditariedade. Ocorre a passagem de uma nobreza de fato para
uma nobreza de direito, ambas, porém, têm relação com modelos alimentares. Já não se trata de comer
muito, e sim de ter muitos alimentos à mesa, imprimindo a ostentação na linguagem alimentar, como
comportamento de classe, tendo como ideal estético o corpo robusto; ser gordo significa riqueza, beleza.

O excesso alimentar e o corpo gordo passaram a ser uma escolha, e não um dever do soberano.
O importante era a quantidade e variedade de comida à disposição, para depois ser distribuída entre
companheiros, hóspedes, servos e cães. A quantidade continuava a corresponder a uma distinção de
classe, mas o exagero alimentar diminuiu. O comportamento trouxe consequências aos comilões, que
começaram a ter doenças relacionadas ao exagero da carne, como a gota. Posteriormente, com o
estabelecimento da relação entre gordura e doença, a imagem do corpo gordo torna‑se imagem de
falta de saúde e descontrole alimentar.

A valorização da magreza, da ligeireza, da produtividade e da eficiência representou o novo modelo


cultural e estético no decorrer do século XVIII, em decorrência dos novos burgueses intelectuais, com
novas ideologias e hipóteses políticas, que se opunham à velha ordem.

Outro alimento que passou a ser distintivo de classe por estar vinculado à inteligência e à
eficiência foi o café, consumido pela burguesia em ascensão, opondo‑se ao vinho e à cerveja
da aristocracia ociosa. Juntamente com a nova simbologia do café, o corpo magro e esbelto
significa sacrifício produtivo, que gera riquezas e bens. Assim, ao longo dos séculos XIX e XX, ser
gordo não significava mais poder ou privilégio e novas classe sociais passaram a fazer parte da
comilança. A indústria democratizou o consumo e a comilança, invertendo então a distinção das
classes em relação à ostentação alimentar, e comer muito se redefine como uma prática popular.
Novos comportamentos começaram a marcar o modo nobre de alimentar‑se, por exemplo, ter boas
maneiras à mesa, como forma de educar e controlar o corpo da nobreza e classe média, para se
distinguirem das demais classes sociais, adotando a prática de comer pouco e de comer vegetais,
e tendo como modelo alimentar de estética e de magreza o corpo magro, que passa a significar
saúde. Esse novo modelo, por um tempo em meados do século XX, acaba substituído pela retomada
da apreciação do corpo gordo, por causa das guerras, que trouxeram muita fome, fazendo com
que o medo do excesso substituísse o medo da fome, isso até as décadas de 1970‑1980, quando a
ideologia do corpo magro se reafirma (MONTANARI, 2008).

Nas sociedades industriais pós‑modernas, surgem novas ambiguidades diferentes das históricas,
marcadas pelo medo da fome e pelo desejo de comer muito, com atitudes e comportamentos
condicionados a esses medos, bem como o desejo do excesso, que, por sua vez, traz novas situações:
temos países ricos com crescimento de doenças por excesso alimentar, como fenômeno de massa, que
substitui as doenças decorrentes das carências alimentares, como o raquitismo. Um medo novo se
instala, o medo da obesidade, em substituição ao medo da fome, levando pessoas a acharem que estão
obesas mesmo quando não o estão.

20
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

2.2 O que se come

Também o modo de comer carrega em si uma distinção de classe capaz de revelar um comportamento
social, portanto coletivo, e o que se come pode revelar essa distinção. A qualidade da comida também
é um indicativo de pertencimento social determinante e revelador, pois revela a identidade social dos
grupos e indivíduos.

Lembrete

Como já vimos, na Idade Média a comida do camponês é diferente da


de um soberano na medida em que o camponês se alimentava de frutos
da terra, cereais, hortaliças, sopas e o soberano se alimentava de carne
de caça, sobrando para o camponês a carne de porco. Com o passar do
tempo, o nobre já não é mais um guerreiro forte e seu novo atributo é a
cortesia e, com isso, a capacidade de se controlar diante da comida e de
saber distinguir o bom do ruim passa a ser marca da nobreza, bem como
recusar um alimento que não esteja à sua altura, distinguindo, pelo olhar,
o que fosse mais conveniente.

Carregando uma identidade social mediada pela comida, religiosos também demarcaram diferenças por
meio de suas regras, por exemplo, os monges e religiosos que tinham como a principal delas a restrição parcial
ou total de algumas carnes, especialmente de quadrúpedes. Simbolicamente, negar a carne significava afastar
de si a sedução do poder e curvar‑se à humildade dos alimentos pobres vindos da dieta do camponês, como
hortaliças, legumes e cereais, demonstrando humildade espiritual, como uma escolha deliberada, e não por
restrição ou por falta de condições econômicas para a obtenção de alimentos. Faziam associações de carnes
com corpos, algo terreno, e quem quisesse se dedicar ao espírito deveria comer coisas leves. Por isso as aves
eram liberadas, pois voavam aos céus com leveza e eram animais tidos como mais elevados. As aves podiam
ser consideradas, portanto, comidas de monge. Para esses religiosos, o alimento que nutre a carne e fortalece
o corpo não serve para a manutenção da espiritualidade. Com o passar do tempo, as aves, que simbolicamente
voavam por serem mais elevadas e leves, passaram a ser mais frequentes nas mesas europeias, como o faisão
ou a perdiz, e as carnes de grandes animais, cada vez mais raras, o que demostra uma nova mudança de
pensar e de se comportar (MONTANARI, 2008).

Como as guerras diminuíram, a preocupação se volta para a necessidade de dedicação maior à


administração e às políticas, portanto são imperativas nem tanto as atividades físicas, e sim as intelectuais.
Nesse sentido, as aves são a comida ideal para quem se dedica às artes e ao intelecto.

O tipo e a qualidade dos alimentos, além das quantidades menores, continuam como fatores de
distinção social. O café mantém a mente aberta para produzir, já o chocolate quente é ideal para um
momento de relaxamento. Com o passar do tempo, o café e os chás se tornam populares. As batatas,
antes restritas aos camponeses e animais, passam a fazer parte das grandes cozinhas europeias.
De forma similar, a sociedade da fome e a sociedade da abundância invertem valores e sinais de qualidade:
alimentos antes tradicionalmente pobres, como painço, centeio, cevada e espelta, hoje são símbolos de
21
Unidade I

dietas saudáveis, e o trigo dos ricos passa a ser esnobado. Assim, a sociedade contemporânea recupera o
passado, atribuindo‑lhe novos significados, e se constrói uma nova cultura alimentar. É possível verificar
que os símbolos são construídos histórica e culturalmente e são mutáveis.

2.3 Comer junto – comensalidade

O ser humano desenvolveu o hábito cultural de comer junto. Outros animais também o fazem, mas
nós partilhamos culturalmente. Comportamentos e gestos específicos comunicam, permitindo que as
substâncias e as circunstâncias se liguem de forma que algumas substâncias sejam próprias para algumas
circunstâncias, por exemplo, durante o expediente de trabalho, tomar café significa dar uma pausa, uma
substância própria para essa circunstância. A circunstância pode conflitar com a substância, conforme pode
ser observado usando, ainda, o exemplo do café, que é uma bebida excitante, mas pode ser considerada
relaxante durante a pausa no ambiente de trabalho. A carga simbólica da comida é ainda mais forte
quando percebida como instrumento de sobrevivência diária. A fome leva à busca imediata de algo para
comer, podendo delimitar, nesses momentos, um rico universo simbólico, que configure a mesa como
metáfora da vida, traduzido no comer junto. Na Era Medieval dividir a comida era quase o mesmo que
dizer que se pertencia a uma família, e ainda hoje é possível identificar a comida com a casa, como sinal de
pertencimento a um grupo, a uma família com quem nos identificamos (MONTANARI, 2008).

A divisão da mesa também tem lugares marcados simbólica e distintivamente. Nas grandes indústrias
o refeitório para o trabalhador no chão de fábrica é composto de uma mesa igual para todos, entretanto
os patrões e funcionários com cargos elevados comem em outro ambiente. Comer junto é um sinal
de pertencimento a uma família ou a uma comunidade, como uma confraria, corporação, associação,
reafirmando uma identidade coletiva. Comer sozinho é a atividade do eremita, que está negando a
cozinha (come o cru), a comida e a cultura, fugindo do convívio (MONTANARI, 2008).

A mesa como metáfora da vida representa também o pertencimento e as relações que se estabelecem
no grupo, cujos posicionamentos mostram as igualdades e as diferenças existentes; por exemplo, se está
sentado ou se servindo, se está na cabeceira ou nas laterais, à direita ou à esquerda do anfitrião ou do
chefe, tudo demarca a posição social dos participantes, assim os lugares à mesa marcam o prestígio de
cada integrante, demonstrando que o lugar não é indicado por acaso e, de acordo com cada época, o
contexto social e político marca a importância e o prestígio dos indivíduos. Antigamente, o chefe estava
no centro, e a distância de cada um em relação a ele era diretamente proporcional à sua importância,
esse ritual ainda existe em situações formais. Quando não se queria demarcar hierarquias, utilizava‑se
a mesa redonda, que contribuía para a democratização do posicionamento das pessoas, mas esta já era
uma mobília moderna, já que antes as mesas eram retangulares, feitas assim para demarcar diferenças e
hierarquias. A mesa redonda do rei Artur foi algo excepcional para a época (MONTANARI, 2008).

Também os gestos podem marcar as distinções de relevância, pois excluem da comunicação


aqueles que não conhecem as regras. Com regras viviam as comunidades monásticas e compreendiam
o silêncio, a concentração, a sobriedade e a moderação. Os primeiros manuais de regras à mesa,
datados dos séculos XII e XIII, distinguem quem participa e quem não participa de uma refeição,
fazendo do comportamento alimentar também uma barreira social, com impossibilidade de infringi‑la
(MONTANARI, 2008).
22
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

Uma outra questão de comer junto é a questão da partilha da comida, pois as atribuições dos pedações
não são casuais e também podem exprimir relações de poder e hierarquia no grupo. Via de regra, em
diferentes épocas, o melhor pedaço sempre é ofertado ao hóspede, sendo o corte um momento de ritualismo
convival com grandes implicações simbólicas, daí a importância técnica e política de quem faz a partilha.
Por esses motivos é importante decodificar a gramática da comida. Hoje, ainda possuímos algumas regras
já naturalizadas, mesmo nas refeições mais simples em ambiente doméstico, pois há alguém que prepara,
que se serve, quem começa a se servir, é identificado qual alimento vem antes ou depois, qual o tamanho
destinado a cada um etc. Como é possível verificar, há comportamento simbólico em tudo que fazemos ou
deixamos de fazer (MONTANARI, 2008).

No próximo capítulo, temos como objetivo discorrer sobre diferentes formas de comprar, preparar e
servir, bem como o simbolismo contido no ato de comer.

3 AS DIFERENTES PRÁTICAS ALIMENTARES E O ATO DE COMER

Neste capítulo procuramos contribuir para a compreensão do ritmo alimentar nas três principais
refeições humanas.

3.1 As diferentes práticas alimentares

Historicamente, a partir do século XX, temos cerca de quatro momentos de refeição: café da
manhã, almoço, lanche da tarde e jantar, que prevalecem ainda hoje, sendo o lanche um momento
mais casual. Cada um desses momentos possui um código específico de técnicas culinárias, tipos
de cozinha, apresentação e consumo, que formam o “sistema culinário brasileiro”, no qual se pode
observar desde as formas de aquisição até o consumo de nossa cultura alimentar, incluindo nossas
preferências e paladar, formas de escolha, técnicas e tecnologias culinárias e maneiras à mesa.

As refeições, cada vez mais raras, foram substituídas por práticas de alimentações rápidas e
irregulares, marmita feita em casa ou pelos restaurantes e fast‑foods. As relações sociais ao redor da
comida mudaram e, o mais importante, passaram a ser necessidades imediatas: comer para voltar ao
trabalho, matar a fome, enganar a fome em vez de satisfazer o apetite e o paladar. A mídia dita o que
comer nos intervalos roubados. Comidas já vêm enlatadas ou empacotadas, prontas para o consumo.
No mundo moderno, o trabalho para ganhar dinheiro é mais importante que a comida para garantir
forças para o trabalho, ou seja, mantém‑se vivo para trabalhar.

O padrão das refeições principais do dia e os horários estabelecidos são influenciados pelos ritmos
corporais associados especialmente aos ritmos do trabalho, ou seja, ao ritmo social.

Para tanto, ilustra perfeitamente a temática, de modo geral, no Brasil, um estudo realizado na cidade
de Salvador (BA), quando Santos (2008) procurou verificar como homens e mulheres vivenciavam
suas práticas corporais e práticas alimentares e se dispunham a realizar mudanças nessas práticas.
Constatou‑se que é a atividade física a primeira opção para tanto e que as necessidades de mudanças
nos hábitos alimentares surgiam quando a nova prática corporal já estava em andamento. Podemos
generalizar, ressalvando algumas particularidades regionais, seus achados para o Brasil, inclusos nos
grupos delineados em sua pesquisa, que consideramos emblemáticos.
23
Unidade I

O primeiro grupo foi chamado de “eu como de tudo”. Era composto de sujeitos que praticavam atividade
física, mas que não estavam dispostos a mudar a alimentação, mesmo sabendo de sua importância.
Eles entendiam que a atividade física era suficiente para a aquisição e manutenção da boa forma.
Consideravam que estavam no peso ideal e que tinham muito prazer em comer, eram afeitos aos hábitos
alimentares tradicionais, mas com perspectivas de mudanças de hábitos alimentares, identificando o princípio
da qualidade em prol da quantidade, mas procurando não ter o contraponto do que gostavam de comer.
Dessa forma, o prazer, as referências e gostos alimentares constituem a conduta dos sujeitos desse grupo,
embora não descartem totalmente as orientações alimentares atuais, o que pode significar a possibilidade de
mudança futura.

O segundo grupo foi chamado de “sempre cuidei de minha alimentação”, grupo este que havia
tempo cuidava da alimentação, optando por uma alimentação natural, em consonância com uma
alimentação saudável. Na alimentação natural incluíam alimentos orgânicos, não químicos, puros, reais
e não preservativos. Tinham uma boa relação com a comida, que consideravam uma fonte de prazer, isto
é, comiam coisas prazerosas e saudáveis, demonstrando ter cuidados sanitários com o alimento, fato
que consideravam tão importante quanto a qualidade nutricional.

O terceiro grupo foi chamado de “não consigo me controlar”, composto de sujeitos que não conseguiam
controlar suas práticas alimentares e que não estavam satisfeitos com seus corpos, vivenciando épocas
de controle, com dietas radicais, podendo até utilizar inibidores de apetite, alternando com épocas de
descontrole, que os levavam a comer tudo que viam pela frente. Nesse grupo existia, aliás, um caso de bulimia.
O padrão alimentar era o tradicional e havia relatos de conflitos decorrentes dessa postura alimentar. Alguns
entrevistados afirmaram terem dificuldade de se controlar nos fins de semana, levando‑os a desenvolver
sentimento de culpa, a ser resolvido no decorrer da semana. Eles procuravam se esquecer da vontade de
comer dormindo ou ficando muito tempo com o estômago vazio. De certa forma, eles tentavam um controle
alimentar com o consumo de leite desnatado, adoçante, sucos naturais, refrigerante diet, arroz sem óleo,
feijão com carne e sem toucinho, frango sem pele e evitando farinhas, macarrão e lasanha. Resumindo, o
comer no seu cotidiano é repleto de conflito, oscilando entre o controle e o descontrole a todo instante.

Nesse grupo, o controle alimentar vem com dietas curtas e restritivas “dietas da moda”, condenadas
pela ciência e pelos profissionais da saúde. Essas dietas são bastante variadas, readaptadas a todo momento.
Seus componentes optam, no almoço, pelo frango grelhado, salada e arroz, de preferência arroz integral.
Consomem iogurte light, pão integral e soja. Há uma predileção ainda maior pela ingestão somente de frango
com salada, visando a perda de peso rápida. Eles sempre tencionam começar a dieta na segunda, em virtude
dos exageros nos fins de semana, ou ainda quando se sentem com gorduras a mais. Para fazer tais dietas,
torna‑se necessária a compra de gêneros alimentícios apropriados, tomada de decisões sobre o que comer,
como deve ser composta a dieta, descobrimento de formas adequadas de preparação, desenvolvimento de
estratégias e táticas capazes de contornar a monotonia alimentar e a fome. Esses descontroles podem levar
a algumas patologias do comer verificadas em anorexias, bulimias, transtornos de compulsão alimentar
episódica, síndrome do comer noturno, entre outros (SANTOS, 2008).

A bulimia é um problema recorrente no universo feminino de jovens entre 14 e 18 anos, e atualmente


até em meninas com 12 anos de idade, sendo a maioria pertencente às classes alta e média, embora
tal comportamento já possa ser identificado nas demais classes socais. Sua discussão, pela sociologia,
24
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

apresenta novas considerações acerca das tentativas de compreender esse fenômeno ao reconhecer o
processo de ocidentalização e modernização, bem como o impacto das mudanças sociais na identidade
feminina e na relação das mulheres com seus corpos (MORGAN; AZEVEDO, 1998).

A bulimia nervosa caracteriza‑se por compulsão alimentar seguida de comportamento purgativo.


Diferencia‑se da anorexia nervosa, que é caracterizada pela perda de peso voluntária e pelo grande
temor à obesidade. Para Bordo (1993), esses fenômenos estão atualmente ligados à construção da
feminilidade; a autora considera, ainda, a anorexia uma caricatura do ideal contemporâneo de esbelteza
exagerada pelas mulheres.

A anorexia constitui‑se num fenômeno do século XX, socioculturalmente situado, assim como a
histeria o foi no século XIX. Essas patologias são similares e incidem majoritariamente nas mulheres,
nas classes mais elevadas e nas sociedades mais avançadas industrialmente falando. Bordo (1993)
considera que essas patologias surgiram da condição feminina do século XIX, por necessitarem manter
as concepções domésticas de feminilidade, localizando a mulher numa determinada divisão do trabalho
e como chefe emocional responsável pela nutrição da família, e não de si mesma. Por outro lado, sua
entrada no mundo profissional dos homens faz com que as mulheres necessitem incorporar linguagem
e valores masculinos, como autocontrole, determinação, disciplina emocional e domínio. Dessa forma,
a magreza passa a ser vista como triunfo da determinação do corpo, numa associação do corpo magro
com a pureza absoluta, hiperintelectualidade e transcendência da matéria.

Nesse grupo, Santos (2008) encontrou relatos que indicavam sentimentos de transgressão, impotência
e angústia, o que assinala que os transtornos alimentares representam desordens no metabolismo e nas
relações sociais. Essas desordens repercutem no próprio corpo, e a comida acaba sendo um grande canal
de expressão.

O quarto grupo foi chamado de “encontrei a verdade dentro de mim”, composto de sujeitos que
estão mudando ou já mudaram suas práticas alimentares, visando uma reeducação alimentar. Noção que
ganha aliados a partir do fim de século XX e início do século XXI e que se contrapõe às dietas rígidas.
Tal noção atualmente representa a possibilidade de construção da disciplina alimentar, visando perder
peso progressivamente e não sendo, assim, uma postura imediatista. Eles tinham múltiplas estratégias
para alcançar o corpo, a saúde ideal e o emagrecimento de forma saudável e definitiva, por meio de
novos hábitos alimentares, compostos de dietas balanceadas, equilibradas e naturais, comendo de tudo
sem grandes privações e sacrifícios, mantendo, assim, o prazer de comer, sem deixar de lado a vida social.
Desejos, ansiedades e compulsões para comer eram educados. Ao obter êxito, o sujeito melhora sua
autoestima, mantendo‑se em harmonia com o próprio corpo.

Segundo Santos (2008), a reeducação alimentar indica que é preciso aprender a se alimentar.
A autora introduz o conceito de “emagrecimento sustentável”, que se contrapõe ao efeito
experimentado pelos que vivenciam dietas rígidas ciclicamente. Essa aprendizagem diz respeito ao
próprio indivíduo em suas escolhas do que, quanto, como e quando comer, assim como a aprender
a ter autocontrole. A reeducação alimentar propõe também a flexibilidade em contraponto à rigidez
de algumas dietas alimentares.

25
Unidade I

Ainda, neste capítulo, discutiremos sobre as práticas alimentares tradicionais e sobre as práticas
alimentares modernas, bem como sobre as mudanças das práticas alimentares atualmente relacionadas
a aspectos como: noção de refletividade alimentar, cacofonia alimentar, processo de aprendizagem;
controle da fome e dos desejos; reconstrução do gosto e as novas sensibilidades alimentares. E também
a discussão sobre as mudanças no plano coletivo relativos a classes sociais, etnia e gênero.

Sobre o quarto grupo, em relação às práticas alimentares tradicionais, Santos (2008) verificou nas
entrevistas de sua pesquisa informações que lhe possibilitaram verificar as práticas alimentares existentes
antes do processo de mudança, cujas estruturas foram marcadas pelas seguintes características:

• O modelo de três refeições diárias se manteve (café da manhã, almoço e jantar), embora houvesse
quem saltasse as refeições ou que comesse fora dessa estrutura, caracterizando uma alimentação
de certa forma desordenada.

• A composição das refeições presentes na alimentação foi considerada pesada e a culpa recaiu
principalmente na farinha e no feijão.

• Os lanches, geralmente consumidos na rua e sem horário fixado, compostos de frituras de


coxinhas, quibes, pastéis, salgadinhos, sanduíches, batata frita, cachorro‑quente, entre outros,
acompanhados de refrigerantes, também foram considerados pesados.

• A alimentação em fins de semana regadas com bebidas alcoólicas, como churrasco, feijoada,
rabada, sarapatel, dobradinha, acarajés, moquecas, cozido, e comidas de praia, como peixe e
frutos do mar fritos, acarajés, arrumadinhos, entre outras, refeições essas que estão presentes nos
almoços familiares, foram consideradas pesadas.

No geral, o padrão alimentar tradicional foi relatado pela maioria e se referia às três refeições diárias,
que incluíam o café da manhã traduzido no café com leite, pão com manteiga e um pouco de inhame,
aipim, banana‑da‑terra cozida, cuja tradição diz respeito a práticas afro‑indígenas, principalmente nas
classes populares. No almoço, estavam presentes arroz, feijão, farinha de mandioca, carne bovina, ou
frango, ou peixe, este em menor proporção. O jantar poderia ser similar ao almoço, embora mais leve,
por se retirar o feijão ou a farinha, ou ainda poderia ser a repetição do café da manhã com leite e
pão, uma raiz ou ainda o cuscuz. Ultimamente, a lasanha pode se impor às feijoadas no domingo, e o
consumo de macarrão passa a compor o prato junto com o arroz e feijão, nas classes mais populares.
Frutas e saladas não têm grandes aceitabilidades.

Santos (2008) identificou nas entrevistas uma alimentação desordenada, em consonância com a
desestruturação das práticas alimentares e com o ato de comer sem pensar.

Observação

Nos Estados Unidos, a desestruturação alimentar, segundo Fischler (2001),


caminharia para algo mais flexível em relação aos horários, simplificação
26
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

das refeições, individualização do comer, mudanças essas associadas


principalmente ao trabalho feminino, à urbanização e à industrialização
da cadeia alimentar, reduzindo o peso das tarefas domésticas, entre
outros fatores. A tese de Fischler foi criticada por não apresentar dados
comprobatórios e por não considerar as diversidades sociais.

Para Santos (2008), o padrão de três refeições diárias corresponde a uma visão etnocêntrica e
historiocêntrica. Ele teve início na França no século XIX e foi imposto para todas as classes sociais no
século XX, período de configuração do trabalho industrial assalariado.

Em contraposição ao alimento saudável, comer fora de hora recebeu várias denominações pelos
entrevistados, tais como: comer besteiras, comer muita “porcalhada”, entendidas como formas de se
alimentar que precisam ser alteradas por causa da preocupação com a saúde futura. Já o comer sem
pensar demonstrou a falta de atenção ao que se come.

Em relação às práticas alimentares modernas referidas pelos entrevistados, Santos (2008) destacou
dois pontos centrais, compreendidos como a ordem das refeições ao longo do dia e a recomposição
das refeições incluindo e excluindo, reduzindo ou aumentando o consumo de determinados alimentos,
como segue:

• Inclusão de duas refeições entre as refeições principais, no intento de comer mais vezes e em
menor quantidade, com lanches mais leves.

• Reeducação da quantidade nas principais refeições e melhoria da qualidade, com alimentos


menos calóricos e com menos lipídios, ampliando o consumo de frutas e verduras. Incluindo
frutas e cereais no café da manhã, saladas no almoço e reduzindo alimentos mais calóricos com
novas combinações, por exemplo, não comendo macarrão com arroz, entre outras recombinações
menos calóricas.

• Supressão do jantar, ou sua substituição por frutas, sopas, café com leite, sanduíche ou por
alguma raiz.

• Substituição de outros itens como adoçante no lugar de açúcar, margarina no lugar de manteiga,
peixes e frangos, em vez de carne vermelha, alimentos integrais em detrimento dos processados,
sucos em vez de refrigerantes, obedecendo a uma hierarquia do que é mais ou menos saudável.

• Ampliação do consumo de frutas como a maçã e o abacaxi, combinação de peixe com verduras,
e inclusão de grelhados, saladas, iogurte, queijo branco, pão integral, leite de soja, cereais e
barras de cereais.

• Consumo de guaraná em pó, suplementos nutricionais, açaí, sanduíche natural, produtos


desnatados e os light e diet entre os praticantes de atividade física. Reinclusão de raízes, como
inhame, banana‑da‑terra, batata‑doce, fruta‑pão, granola, aveia e mel, água de coco, que estão
passando por reinterpretações.
27
Unidade I

• Mudanças na forma de preparo das refeições, como frango sem pele, substituição de frituras por
assados e grelhados, alimentos cozidos sem gordura, como o arroz sem gordura e exclusão ou
diminuição de alguns itens, como a feijoada. A salada‑grelhado‑fruta passa a se contrapor ao
doce‑fritura‑refrigerante/frituras‑gordura‑sal.

• Liberação sutil do consumo nos fins de semana.

• Corte no consumo de bebidas alcoólicas e liberação do consumo sem limites de água.

Houve uma reformulação na distribuição das refeições ao longo do dia, pregando a necessidade
de comer mais vezes e em menor quantidade, o que pressupõe a disponibilidade, a qualquer
momento, de algum alimento saudável. Toda essa prática pode ter orientação científica, mas Santos
(2008) entende que pode ser uma prática adaptada à necessidade de comer fora de hora e a todo
momento, flexibilizando as condutas alimentares. Além dessa distribuição das refeições durante o dia,
ela destaca o equilíbrio alimentar, a relação quantidade e qualidade, a moderação e os cortes, como
novos elementos nas práticas alimentares atuais. A autora entende que o equilíbrio nas dietas reflete,
também, a necessidade do reequilíbrio das relações entre o homem e o seu meio natural. Em relação à
qualidade, esta passa a ser importante para a saúde e resulta da forma como pensamos o ato de comer
atualmente, na qual o termo qualidade vincula‑se ao conceito de saudável, assim como à moderação e
ao corte‑restrição, contrapondo‑se à noção de exagero alimentar, levando à ideia de flexibilidade, que
vai contra a polarização entre o que é proibido e o que é permitido.

No grupo quatro há a satisfação com as mudanças alimentares e existem algumas incertezas sobre
o retorno às práticas anteriores, permanecendo o desafio de ter essas práticas de forma definitiva e sem
grandes conflitos, num jogo que contém negociações de restrições, inclusões, exclusões, (re)inclusões,
permitindo múltiplas variações que contemplam pequenas restrições e mudanças radicais nos hábitos
alimentares. Também há uma busca por novos prazeres em vez de abdicá‑los. Dessa forma é preciso
construir um novo gosto e nova sensibilidade alimentar.

3.2 Alguns aspectos sobre o processo de mudanças das práticas alimentares

As falas registradas durante a pesquisa desenvolvida por Santos (2008) levaram ao entendimento de
que era consolidada uma nova ordem alimentar, baseada na noção de redução alimentar.

Para Santos (2008), sempre foi projeto da ciência a construção de uma dieta universal capaz de
prevenir as doenças e prolongar a vida; dessa forma, é possível constatar a existência da dieta ideal e
da dieta possível, além da existência do descompasso entre aqueles que preferem ter uma alimentação
ideal, mesmo não sendo o que acontece por vários motivos, o que os obriga a se equilibrar entre o prazer
e a tolerância, muitas vezes buscando um novo gosto, o gosto light, e recusando o gosto tradicional.

Para a adaptação a esse novo gosto é preciso dar início a uma aprendizagem de alta complexidade,
que suscita a necessidade de aprender novas práticas alimentares relativas à formação do gosto e às
condutas de comer, de regras, e de normas éticas, tratando‑se de uma educação fisiológica e psíquica
que configura uma segunda natureza, conforme Bourdieu (1988). Nesse sentido, o espaço familiar já
28
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

não é o de legitimidade para a aprendizagem alimentar correta, nem a mãe a principal personagem
do processo de adesão aos discursos dos profissionais e das instituições de saúde, resultando na
medicalização da vida cotidiana. Por exemplo, à transição da mãe do conhecimento da família para
o conhecimento da instituição médica, conforme Poulain (2002), some‑se o descontrole dos pais na
formação dos hábitos alimentares das crianças e o próprio papel da mídia na criação de desejos e
necessidades. Santos (2008) entende que, para que haja a instituição de novas práticas alimentares,
são precisas novas aprendizagens sobre novas atitudes relacionadas ao comer, aprendizado de novos
gostos – o gosto light. Há também a necessidade de novas formas de aprender, pois reeducação
alimentar significa educar de novo, negando os hábitos anteriores e abrindo espaço para uma nova
ordem alimentar no cotidiano das pessoas, cujos modos de aprendizagem são próprios e, portanto,
mais flexíveis, o que implica um aumento de poder decisório de cada um, num processo lento e
gradual, que leva a novos costumes e à recriação de novas necessidades fisiológicas alimentares e
psíquicas, por exemplo, a educação do estômago (SANTOS, 2008).

Santos (2008) afirma que, em relação às políticas alimentares e nutricionais, a preocupação em


criar políticas de saúde iniciou‑se no fim do século XIX, e hoje políticas são elaboradas na tentativa de
mudar hábitos alimentares de uma grande parte da população. No Brasil, as primeiras políticas de saúde
eram voltadas para o combate à fome e à desnutrição, o que levou ao surgimento de uma quantidade
grande de gêneros alimentícios populares. Entretanto, atualmente essas políticas são voltadas para o
combate ao sobrepeso e à obesidade, abrindo novo espaço para o mercado que visa o emagrecimento das
pessoas. Para Santos (2008), as atuais políticas voltadas para a alimentação e nutrição têm fundamentos
científicos que, por sua vez, transferem o fracasso para setores que não os científicos e para a própria
pessoa, indicando que esta não tem a responsabilidade adequada para seu corpo e saúde, pois tais
políticas baseiam‑se na ideia de livre escolha das pessoas, ao que Santos renega, considerando que essas
decisões não são nem somente individuais nem somente racionais.

Santos (2008) considera que uma das piores condições para a promoção de novas práticas
alimentares refere‑se ao controle da fome e dos desejos alimentares, que passa pelo autocontrole e pela
determinação. Para o controle da fome, várias estratégias são utilizadas cotidianamente.

Em relação à construção do gosto, este também tem sua historicidade e é construído socialmente,
sendo produto e produtor de classificações, o que leva a distinções sociais, pois as preferências
alimentares se constroem no âmago das classes sociais cujas relações incluem fatores econômicos,
educativos e determinantes sociais, que têm influência e influenciam na forma como nos relacionamos
com o mundo.

Para Kaufmann (2005), a história do gosto também foi construída pela ordem religiosa dos alimentos,
em que a sensação degustativa de cada um precisa se conformar às regras religiosas; pela emergência do
conceito de bom gosto, moldado por distinções sociais; e, na atualidade, pelas múltiplas possibilidades
de escolha, diversificando as ações e impondo, como regulação interna, o gosto.

Atualmente, a reconstrução do gosto é representada pela adoção do gosto light, que, por
sua vez, significa um gosto saudável e leve, incorporando, além dos produtos alimentícios, a
leveza da mesa, dos alimentos, do corpo e da vida (FREITAS, 2002). Assim, o gosto light pode
29
Unidade I

se vincular à flexibilidade, aos exercícios da criatividade, entre outros fatores contemporâneos,


além de ter a indústria dos alimentos e da publicidade como seus agentes de concretização,
que possibilitaram também a deslocalização do sistema alimentar, ampliando o território e a
circulação geográfica dos alimentos industrializados, apresentando facilidade e rapidez em sua
elaboração. Featherstone (1991) entende que o gosto light está vinculado à difusão consumista
por apresentar um mundo mais fácil e mais confortável, porém privilégio da elite, além de embutir
imagens de juventude, beleza, fitness, energia, movimento, liberdade, romance, exotismo, luxo,
diversão, contrapondo‑se aos valores tradicionais. Assim, a mídia contribui para que as pessoas
confundam a liberdade com a liberdade de consumir. Para Santos (2008), tudo isso permite a
naturalização do light, apesar de o natural real estar ligado a frutas, verduras e legumes sem
agrotóxicos e cozidos a vapor.

O gosto light traz em si a distinção entre a animalidade e a civilidade, pois uma pessoa distinta
normalmente é considerada uma pessoa light, que não consome frutas tropicais, e sim ameixas, pêssegos
frescos, entre outros produtos light, o que simbolicamente implica o gosto da ascensão social, a modernidade
e o pertencimento ao mundo globalizado e ao prazer sem culpa, num lugar repleto de regras, que tem na
moderação seu fundamento, o que também representa um prazer racionalizado, secularizado, disciplinado
e moderno, num mundo com novas perspectivas de comer, em que os alimentos devem ser saudáveis e
com validação sanitária, capazes de promover a saúde, e ter uma produção sustentável como os produtos
orgânicos, isto é, um mundo sem veneno. Porém, por outro lado, o gosto light pode ser considerado
artificial, falso, o gosto das aparência e ilusões (CHALANSET, 1996). Tudo isso pode levar a entendimento
que o gosto light traz em si um paradoxo entre o bem e o mal (SANTOS, 2008).

3.3 Algumas considerações sobre as práticas contemporâneas em relação às


camadas sociais, gênero e etnia

Atualmente, as orientações sobre dietas diferem das orientações anteriores por se pretenderem
universais, embora não sejam feitas da mesma forma nos diferentes segmentos sociais. Normalmente,
as dietas partem das camadas médias e só depois atingem as camadas populares, sendo afetadas pelos
signos da elite, mas não se resumindo nelas, quando as classes populares acrescentam suas idiossincrasias
nesse jogo de reformulações alimentares, por meio do uso da criatividade em suas culinárias. As formas
de apropriação da feijoada, por exemplo, em relação aos produtos usados, à apresentação, ao servir e
ao modo de comer, quando e onde se come, podem demonstrar a distinção social. É possível afirmar
que a dieta alimentar na atualidade é de alto custo e pouco acessível às camadas mais populares, as
quais, para segui‑la, adaptam‑na à sua realidade, principalmente por meio de revistas populares. Alguns
produtos consumidos pelas classes populares, como queijo branco, saladas e folhas, são determinados
pela mídia, sua principal referência. A popularização do consumo de adoçantes artificiais, leite desnatado
e alimentos light não somente representa a busca por uma saúde melhor, mas também pode significar
simbolicamente a ascensão social. Além da situação financeira, a ausência do gosto nas novas práticas
alimentares é um dos obstáculos para o seu sucesso.

Há também diferenças em relação ao gênero. Em seus estudos, Santos (2008) verificou maior diferença
relacionada às práticas alimentares entre homens e mulheres das classes populares, indicando que os
homens são menos adeptos de dietas saudáveis do que as mulheres. Normalmente, as classes populares
30
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

escolhem alimentos mais pesados, pela necessidade, procuram alimentos que possam reproduzir a força
de trabalho com baixo custo, enquanto o gosto pelo luxo e liberdade se caracteriza por refeições rápidas,
sem gorduras e de fácil digestão (BOURDIEU, 1988).

O comer masculino, segundo Bordo (1993), pode ser vinculado a animalidade, é mais aceito
socialmente e pode legitimar a masculinidade e o comer feminino deve ser controlado e limitado ao
mundo privado.

Para Bourdieu (1988), o gosto alimentar e a forma como cada classe social percebe o próprio corpo,
além dos efeitos que a alimentação pode trazer para a saúde e a beleza diferem, uma vez que as classes
populares farão escolhas para reforçar a força do corpo e do trabalho, e não a forma do corpo.

3.4 A respeito dos gêneros alimentícios

É sabido que a realização das três principais refeições diárias foram determinadas em decorrência
do trabalho, e que a maneira de comer e a composição das refeições seguem particularidades culturais
e histórias vinculadas a cada região do País e a outros países. Em síntese, o café da manhã, o almoço e
o jantar podem se dar da seguinte maneira:

O café da manhã (desjejum/espanhol; breakfast/inglês; petit‑déjeuner/francês) é a primeira


refeição do dia, cujos horários e alimentos normalmente variam de acordo com cada cultura, sendo
que o café composto de bebidas quentes, como café, chocolate e chá, é recente. Segundo Poulain
(2002), na França no início do século XX o comum era o consumo do pão, vinho e sopa; o café teve
sua propagação a partir dos fins do século XVIII, na aristocracia, e devagar foi substituindo o vinho.
Poulain (2002) fez a seguinte classificação:

• Café da manhã continental: composto de uma bebida quente, que pode ser café, chá ou chocolate,
com ou sem leite, pão com manteiga ou geleia, croissant, pão com chocolate, com passas, biscoitos,
podendo ser complementado com suco de fruta.

• Café da manhã anglo‑saxão: com as possibilidades do café continental, complementado com


frutas ou saladas e cereais, queijo e presunto, ovos com bacon e omeletes.

• Café da manhã simplificado: uma bebida quente acompanhada ou não de leite.

3.5 Café da manhã

No Brasil, o café já teve conotação política, quando da aliança entre São Paulo e Minas Gerais, grandes
produtores de café e de leite, que difundiu a ingestão do café com leite junto com o pão com manteiga ao
longo do século XX. Entretanto, no Brasil, há uma grande variedade de refeição matinal tradicional à base
de cuscuz de milho e raízes como aipim, inhame, mingaus ou refeições salgadas, que variam regionalmente,
assim como refeições mais modernas compostas de Sucrilhos, de origem norte-americana (SANTOS, 2008).

31
Unidade I

O café com leite continua tradicional, mas com possibilidades da substituição do café por café
descafeinado, orgânico, e do açúcar por adoçantes artificiais. O açúcar refinado, outrora símbolo de
pureza e saúde, com supostas propriedades medicinais, cuja brancura o identificava como superior e
como símbolo de civilidade e leveza, atualmente tem outra simbologia. Foi muito utilizado durante as
Guerras Mundiais e questionado quanto à sua ação na saúde dentária, obesidade e diabetes. A partir
dos anos de 1960, o açúcar foi criticado e substituído pelo açúcar mascavo e pelo mel, estes assinalados
como produtos saudáveis. Apesar do potencial cancerígeno, os adoçantes artificiais têm sido cada vez
mais utilizados como símbolo de uma alimentação mais natural e saudável, assim como da opção por
uma vida light ou não. O não consumo de açúcar atualmente pode significar uma separação entre
animalidade ou civilidade (SANTOS, 2008).

O consumo do leite era prescrito como um produto composto de muitas vitaminas e considerado
alimento protetor da saúde. As autoridades municipais faziam campanhas para o consumo do leite, tido
como um dos principais alimentos nos programas de ajuda alimentar em todo o mundo. A ciência e a
tecnologia do início do século XX ajudaram a criar a ideia de alimentos nutritivos, sabendo‑se que o leite,
assim como as verduras, possui vitamina A. Porém, essa noção começa a deixar de ter credibilidade, com
o surgimento da noção de que o leite também é responsável pelo aumento do colesterol. Daí o aumento
do consumo de diferentes tipos de leite como: desnatado, semidesnatado, zero gordura, melhorado com
ferro, vitaminas, além de outras possibilidades. Dessa forma, o café da manhã light passa a ser o café
descafeinado com leite desnatado e adoçante artificial (SANTOS, 2008).

Já o pão com manteiga está presente na humanidade há muito tempo e passou a compor a mesa
do café da manhã, sendo considerado seu principal item. É o tipo de alimento que todos querem cortar
quando fazem dieta, ou mesmo substituí‑lo por outros como a torrada e os biscoitos, que, por sua vez,
também são calóricos. Atualmente, há uma enorme variedade de pães, como pão francês, pão de leite,
de milho, de fôrma, sírio, italianos, integrais, com passas, outros grãos, castanhas etc., entretanto o pão
integral tornou‑se símbolo do consumo de quem faz dietas, apesar de trazer em si uma contradição ao
não representar leveza, e sim digestão mais complexa em relação à farinha refinada, que contém maior
fonte de carboidratos e é mais digestiva (SANTOS, 2008).

Como complemento, a manteiga vem sendo substituída pela margarina, que, apesar de ser
industrializada, é tida indevidamente como um alimento mais natural. Para quem tem condições,
queijos e geleias são partes importantes do café da manhã. Alimentos industrializados, como margarina,
frituras, biscoitos e fast‑foods contêm gordura transaturada, ou trans, considerada atualmente como
muito prejudicial à saúde. Existem margarinas vegetais light reforçadas com vitaminas ou gorduras
poli‑insaturadas, ômega 3, entre outras, visando apresentá‑la como produto saudável. Assim, os laticínios
presentes no café da manhã, como leite, queijo, iogurte, quando são desnatados ou light, possuem
valor simbólico de dieta saudável, mesmo que o preço e o sabor não sejam acessíveis às camadas mais
populares (SANTOS, 2008).

Já os cereais matinais, misturas de cereais levemente açucaradas, tornam‑se símbolos de


alimentos saudáveis e vegetarianos, além de virem prontos para o consumo e serem considerados
higiênicos. Antes da incorporação desses hábitos, o café da manhã era composto de raízes cozidas
e comidas quentes com manteiga, frutos cozidos com banana, beijus ou tapioca, cuscuz, bolo de
32
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

fubá, canjica, bolo ou pão de milho, broas e pão. Essa variedade, porém, não era constante durante
o ano todo, tampouco estava presente na mesa de toda a população, pois o leite, por também ser
caro, era muito pouco consumido pelos mestiços, contribuindo para que o café do pobre fosse ralo
e com muito açúcar, e ingerido com pão sem manteiga.

3.6 O almoço: a refeição do meio‑dia

Conforme Santos (2008), as diferenças culturais podem ser verificadas se compararmos o almoço
na França, onde os pratos seguem uma ordem, embora os restaurantes a quilo tenham mudado essa
sequência e as pessoas já coloquem tudo num mesmo prato, com o almoço no Brasil, onde normalmente
há a mistura dos alimentos num mesmo prato e também na boca.

Lembrete

Convém lembrar que o almoço à francesa é composto de entrada, prato


principal e sobremesa. Já o almoço brasileiro, como já vimos, é composto
de um prato único, que mistura vários alimentos, tendo como base da
alimentação o arroz e feijão, a carne e os complementos, como verduras,
legumes e saladas, e as frutas e doces de sobremesa.

O arroz com feijão é considerado um bom exemplo do que o brasileiro mais come cotidianamente,
e, segundo DaMatta (1986), faz parte de uma culinária relacionada à miscigenação e à cultura
brasileira, ao misturar, por exemplo, o feijão preto com o arroz branco. É uma combinação
simbólica de fato, porém existem outras combinações regionalizadas como feijão e farinha, feijão
e milho/angu e feijão com macarrão, além de uma combinação mais ampla como feijão, arroz,
macarrão e farinha. Há a mistura de arroz e carne em geral. É importante citar a participação
da batata, que hoje se constitui como um alimento básico das culturas europeias e nos pratos
brasileiros aparece como complemento, em forma de salada, purê ou frita, e a substituição do arroz
pelo macarrão, como prato único.

O feijão é simbolicamente um alimento completo, forte, fonte de ferro, que dá energia, força e faz
crescer, mesmo que para alguns o alimento seja pesado e de difícil digestão. É também considerado um
alimento calórico (SANTOS, 2008).

O arroz começou a fazer parte da alimentação brasileira muito depois do feijão e conota de modo
simbólico ser mais fraco e mais leve que o feijão, embora anteriormente tenha sido considerado alimento
que engorda, mas que enche a barriga (SANTOS, 2008).

A farinha de mandioca é considerada pobre nutricionalmente, mas é a principal fonte de energia para
500 milhões de pessoas no mundo, sobretudo em países tropicais, por ser de fácil cultivo, adaptável a
climas quentes, resistente à seca e a doenças. É o sexto alimento mais produzido no Brasil, situa‑se entre
os nove produtos principais e participa com 15% da produção mundial. Tem sido a base de sustentação
dos corpos das classes populares brasileiras. A farinha não tem status, mas persiste em muitas mesas,
33
Unidade I

principalmente das classes mais populares. Muitas vezes é cortada da dieta quando a meta é emagrecer
(SANTOS, 2008).

A carne produz, no homem, uma relação ambivalente, por ser motivo de desejo ou repulsão, apetite
ou aversão, com sua proibição ou restrições temporárias ou permanentes por motivos religiosos.
Como alimento, há separação entre animais comestíveis ou não. Na definição de animais comestíveis,
as espécies não devem estar nem tão próximas, nem tão distantes do homem, pois não se comem
animais domésticos que passam a fazer parte da família e não se comem animais desconhecidos e
exóticos. De maneira geral, os homens comem as espécies que sejam intermediárias entre proximidade
e distância (SANTOS, 2008).

Antes dos hábitos atuais, era consumida uma variedade de carne de animais como jacarés,
cobras, tatus, capivaras, antas, tartarugas, patos, marrecos e galinhas. O consumo dessa variedade é
reduzido à medida que o consumo da carne bovina aumenta, consequência também do crescimento
urbano (SANTOS, 2008).

As carnes de vaca e de frango têm produção intensificada na industrialização, e os peixes continuam


com a pesca artesanal em sua maior parte, embora sejam cada vez mais industrializados. As caças
passaram a ser cada vez mais estranhas na mesa dos brasileiros urbanos e industriais. As carnes chegam
à mesa já transformadas, cortadas e embaladas de forma a não se ter ideia de que se come parte de
um animal. Um ser urbano não está habituado a participar do ato de matar o alimento para comer, o
abate é feito longe dos olhos da cidade. Assim, o animal se transforma em uma matéria alimentar como
fonte de proteína. Esse novo hábito alimentar foi possível como resultado de preços favoráveis, que
carregavam políticas e estratégias industriais de apresentação do alimento como um produto, e não
um animal morto. Se vier já limpo, desossado, em porções e congelado, mas pronto para assar, ainda
melhor. Entretanto, por exemplo, o frango branco, que é produzido em grande escala, não tem o mesmo
sabor de uma galinha caipira; além disso, possui excesso de hormônios utilizados durante sua criação
(SANTOS, 2008).

A carne vermelha, muito consumida, é considerada um alimento forte e importante para satisfazer
o corpo e saciar a fome. A carne branca é reconhecida como alimento saudável. A carne de frango
ainda é considerada apropriada para os convalescentes, mulheres após o parto e doentes de cama,
sob a receita da famosa canja de galinha. Já os peixes fritos vêm sendo substituídos pelos grelhados,
cozidos ou assados, de preferência com ervas e condimentos para explorar o paladar e reconstruir o
gosto (SANTOS, 2008).

3.7 O jantar: refeição noturna

Mudanças nas práticas alimentares levam a uma grande modificação do jantar. Dessa forma,
se for uma repetição do almoço, o jantar pode não conter o feijão ou a farinha de mandioca,
considerados alimentos pesados, que não devem ser consumidos antes de dormir. Pode ser uma
sopa, considerada leve, sanduíches, ou mesmo a repetição do café da manhã. Existe a crença de que
o jantar engorda e que pode ser evitado, fatos que contribuem para que essa refeição não seja tão
importante nas novas práticas alimentares.
34
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

3.8 As frutas e as verduras

Há chamamentos para um maior consumo de frutas e verduras. A Organização Mundial da Saúde


(OMS) recomenda o consumo de 400 g por dia de frutas e vegetais, bem como o aumento de consumo
de alimentos ricos em fibras e de castanhas. Tal chamamento induziu o Ministério da Saúde brasileiro a
fazer publicação do documento “A Iniciativa de Incentivo ao Consumo de Legumes, Verduras e Frutas no
Brasil”, em 2005, por causa do consumo insuficiente desses alimentos em nosso país, apesar de estar entre
os países com rica variedade e maior produção desses alimentos (SANTOS, 2008).

Os avanços tecnológicos absorvidos na produção, distribuição, transporte, armazenamento


e processamento dos alimentos permitem uma oferta muito variada de frutas e legumes, já não
presas às suas sazonalidades, podendo ser também aliadas à oferta regional. As frutas e verduras são
preferencialmente consumidas cruas e frescas, mas também podem servir como complemento de doces
ou de carnes. Por causa dos avanços tecnológicos, chegam em grande variedade e com rapidez aos
supermercados urbanos.

As verduras e hortaliças, também saudáveis, aparecem principalmente nas saladas, como brócolis,
tomates, caquis e berinjelas.

Santos (2008) fez o seguinte agrupamento das frutas normalmente comercializadas nos
supermercados e nas cidades:

Quadro 1

Características Tipos de frutas


Banana, abacaxi, laranja, tangerina, mamão, lima, melão, melancia,
Frutas tropicais produzidas entre outras, encontradas facilmente em qualquer época do ano em
em larga escala supermercados de todo o Brasil.
Uva, pera, maçã possuem preços mais elevados, mas na produção nacional
Frutas nobres são mais acessíveis. Encontradas facilmente em qualquer época do ano
em supermercados de todo o Brasil.
Ameixas frescas, pêssegos, kiwis, nectarinas. São encontradas nas redes de
Frutas importadas supermercados das capitais.
Frutas tropicais locais que Umbu, seriguela, acerola, cajá, caju, goiaba, jaca, cajarana, jambo,
não são produzidas em carambola, cupuaçu, entre outras. São sazonais, raras nos supermercados,
grande escala além de serem caras.

Outro paradoxo é engendrado à medida que as frutas globais passam a ser mais conhecidas que
as locais, que muitas vezes se configuram como estranhas e exóticas. Também as frutas podem marcar
distinções de classe, dependendo da variedade e do preço.

De qualquer forma, as frutas trazem consigo a recomendação de serem consumidas em todas as


refeições, na forma sólida ou como suco. Estão presentes no café da manhã, na sobremesa do almoço,
em substituição aos doces, no lanche da tarde e na última refeição antes de dormir, além de substituírem
a água e o refrigerante num momento de fome inesperada. São vistas como alimentos saudáveis, e não
restritivos. Não se pode deixar de mencionar o açaí, bastante consumido por quem faz atividades físicas,
35
Unidade I

que se tornou um vício da juventude sadia semelhante ao vício do chocolate, e é associado à energia
física e espiritual, combinando multiculturalismo na procura da diferenciação, inovação e criatividade e
abrindo novos mercados, como se trouxesse a magia de modificar quem os consome, ao transmitir suas
características aos seus consumidores.

3.9 O papel dos líquidos

Há dificuldade de assimilação de novas práticas alimentares quando se trata das bebidas alcoólicas,
em especial para os homens das classes populares. Além disso, historicamente nas sociedades tradicionais
essas bebidas têm ligação com um símbolo de comunhão divina. Segundo Kaufmann (2005), as bebidas
alcoólicas são utilizadas como psicoativas, capazes de ligar o mundo profano com o sagrado nas
sociedades tradicionais.

Atualmente, o excesso de ingestão de bebidas alcoólicas é considerado um risco para a saúde, seu
consumo é disciplinado por meio de campanhas e restrições para menores e motoristas. Entretanto, o
vinho é tido como benéfico na prevenção de doenças cardiovasculares, mas sob a recomendação de
apenas um cálice por dia.

A cerveja é a bebida alcoólica preferida dos brasileiros, em momentos de socialização nos


períodos de lazer.

Já os refrigerantes são historicamente associados ao que é artificial, calórico e não nutritivo,


além de serem responsabilizados pela celulite. Fischler (2001) relata que a Coca‑Cola era vendida
em farmácias, pois acreditavam que a bebida continha propriedades medicinais, só posteriormente
foi difundida para o mundo. Atualmente há o consumo de refrigerantes light, vendidos como
menos prejudiciais.

Os sucos já foram impactados pelo uso do liquidificador e pelos sucos engarrafados em caixinhas,
além de serem comercializados como polpa de frutas, independendo da sazonalidade.

O consumo de água tem uma carga simbólica positiva e pode ser relacionado com pessoas saudáveis
(SANTOS, 2008).

3.10 Os alimentos industrializados e os alimentos naturais

O desenvolvimento tecnológico promoveu o surgimento de grandes corporações como Swift,


Armour, Wilson, entre outras, pelas quais as dietas alimentares foram impactadas, não só na América do
Norte como também em diversos países. Segundo Montanari (2008), essa industrialização dos alimentos
contribuiu para o desenvolvimento da mudança progressiva e radical, ainda que lenta, nos hábitos
alimentares e em como a alimentação é pensada. Houve uma ampliação na oferta de alimentos, que
começam a demonstrar um traço distintivo ligado à qualidade, determinada como de primeira ou de
segunda, ou ainda rebaixada pelos falsificados. Ainda, conforme Cascudo (2015), a industrialização dos
alimentos transformou a cozinha num armário de latas.

36
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

Entretanto, se a industrialização permitiu maior disponibilidade e acesso aos alimentos, também


provocou problemas como comer em excesso, produção de alimentos com veneno e toxidade. Esses
venenos não são necessariamente visíveis, mas contêm aditivos, colorantes, entre outros elementos
químicos que fazem mal à saúde. Constituem‑se, atualmente, em fontes de doenças. A incerteza no
que se está consumindo levou à “reidentificação” desses alimentos pelos rótulos, etiquetas e garantia de
originalidade, ocasionando uma aparente reconciliação entre o consumidor e a indústria. A indústria de
alimentos demonstrou que a teoria de Malthus, ao permitir grande disponibilidade de alimentos, não se
confirmou, apesar de ter homogeneizado o sabor e rompido laços culturais. Embora permita aumento
no controle sanitário dos alimentos e a extinção de várias patologias associadas ao comer, produz outras
patologias alimentares (SANTOS, 2008).

3.11 Os alimentos light

O Brasil tem apresentado um crescente consumo de alimentos tidos como saudáveis e em


especial de produtos light. É importante mencionar que as empresas produtoras de light ou diet
são responsáveis pela veiculação desses produtos como estilo de vida light e feliz. Entretanto, há
uma preocupação, principalmente entre as mulheres, de que esses produtos sejam consumidos com
cuidado. Existem alimentos sem o rótulo de light, mas que também têm calorias reduzidas, como o
leite desnatado. O termo light é utilizado ainda em sabonetes, demonstrando ser promotor de vendas
na medida em que é vinculado ao um estilo de vida ideal. Entretanto, sempre é preciso moderação
(SANTOS,2008).

3.12 O consumo de açúcares, doces e chocolates

O açúcar já foi marco de distinção social, pois era raro e caro, a marca, portanto, do bom gosto, em
especial entre os burgueses. Foi bastante consumido pelos ingleses protestantes, que de certa forma não
viam com bons olhos a gordura e o sangue. Ele era utilizado para combater o estresse e a fadiga mental;
até hoje permanece a ideia de que água com açúcar acalma os nervos. Desde os tempos coloniais
fazem‑se muitos doces, no Brasil, como quindins, cocadas, bolos típicos, mas atualmente há esforços
para reduzir o consumo de açúcar e chocolate, como também para a redução da cota de açúcar e para
a utilização de adoçantes naturais. As barras de cereais, ricas em fibras e com baixo teor calórico, têm
sido vistas como fontes energéticas que substituem o chocolate. As gelatinas também são preconizadas
como saudáveis pela sua consistência e baixo teor calórico e vistas como produto natural.

4 RELAÇÃO ENTRE CORPO, SAÚDE E ALIMENTAÇÃO

Este capítulo pretende demonstrar como as ciências sociais, em especial a antropologia, incorporaram
em suas teorias a importância da alimentação, permitindo o desvelamento das relações simbólicas entre
a ingestão do alimento e composição corporal, bem como sua relação com a saúde ou a doença.

4.1 A contribuição das ciências sociais

A partir de meados do século XX, as ciências sociais começam a eleger objetos de estudos relativos ao
corpo, com temáticas como corpo e conhecimento, corpo e gênero, corpo e arte, corpo e história, corpo e
37
Unidade I

tecnologia, entre outras, cujos objetos de estudo se consolidam a partir do início no século XXI, mesmo assim
pesquisas sobre a relação entre o corpo e práticas alimentares ainda carecem de estudos. Existem estudos
sobre o culto ao corpo e a respectiva preocupação com a dieta alimentar, assim como sobre a anorexia e a
obesidade. A comida, além de fazer parte da construção corporal, é carregada de valores culturais e simbólicos
(SANTOS, 2008). Segundo Fischler, “nós nos tornamos o que comemos” (2001, p. 66). Para Korsmeyer (2002),
é um consumo íntimo formado por riscos e confianças. Segundo Poulain (2002), o consumo alimentar não
apenas contribui para a formação da identidade como também faz parte de sua construção. Dessa forma,
estudos antropológicos e sociológicos sobre a antropologia da alimentação têm se difundido em alguns
países, inclusive no Brasil.

No âmbito do conhecimento sociológico e antropológico, autores franceses têm se destacado, tais como
Igor de Garine, Claude Fischler, Annie Hubert e Jean‑Pierre Poulain, e defendem que as práticas alimentares
são socialmente construídas e fazem parte da identidade cultural de cada sociedade. São autores que
procuram explicar como a mundialização, a industrialização e novos modos de vida impactam nas práticas
alimentares e como suas regras são interiorizadas. O risco alimentar é também motivo de preocupação na
França, com patologias decorrentes da doença da vaca louca, alimentos transgênicos e gripe aviária, mesmo
em época de muita segurança alimentar. A França tem como contraponto em seus estudos a cultura alimentar
americana, que vive uma epidemia de doenças como a obesidade, anorexia e bulimia. Os norte‑americanos
preocupam‑se mais com a relação entre comida e corporalidade e gênero. Resumindo, os americanos focam
mais a obesidade e a anorexia e os franceses, a interferência em sua identidade alimentar, embora a questão
da obesidade também tenha se tornado bastante recorrente (SANTOS, 2008).

No Brasil, a produção nas ciências sociais voltada para a alimentação já é encontrada desde
meados do século XX, com o estudo de Josué de Castro sobre o delineamento da geografia da fome;
a pesquisa de Luís da Câmara Cascudo sobre a história da alimentação no Brasil, além de algumas
referências sobre a cultura alimentar brasileira em Gilberto Freire. A preocupação com os riscos
alimentares, também, em menor escala, faz parte de temáticas sobre alimentação e nutrição, assim
como sobre tabus e modificações nos hábitos alimentares. Fazem parte do universo de estudos
das ciências sociais a segurança alimentar e nutricional, que se concentram principalmente no
campo das pesquisas qualitativas e no crescimento da obesidade e sobrepeso, no Brasil, fatos que se
tornaram preocupações científicas, pois temos uma parte da população que ainda sofre privações
alimentares e outra parte que sofre de doenças decorrentes da obesidade. Outro problema é a
necessidade da construção do corpo magro, num país multifacetado pela variedade de padrões
corporais vinculados à variedade de grupos étnico-raciais. Resumindo, de forma geral, a relação
entre corpo e alimentação ainda traz grandes desafios para a ciência (SANTOS, 2008).

4.2 Algumas considerações sobre o corpo na contemporaneidade

As preocupações da humanidade em relação ao corpo são antigas, mas vamos nos ater à
contemporaneidade, que as trabalha expondo exageradamente a sexualidade bem como o interior do
corpo por meio das radiografias, ultrassonografias, ressonância magnéticas, entre outros, não escondendo
nada que se refere ao corpo. Também a biotecnologia possibilita muitas intervenções corporais e tem
contribuído para a manipulação do corpo com cirurgias plásticas, implantes, transplantes, mudança de
sexo, entre outros, demonstrando que vivemos uma antropomorfia que reconstrói o corpo; quanto mais
38
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

transformações o corpo sofrer mais válido ele se torna, segundo Couto (2004). Também é importante
destacar o papel da engenharia genética e das técnicas de reprodução artificial com suas questões
éticas sobre a vida (SANTOS, 2008).

4.3 O mundo moderno e o corpo

No âmbito das ciências sociais, há discussões sobre o sentido do corpo em relação aos valores
da atualidade realizados por Anthony Giddens, Christopher Lasch, Richard Sennett, Zygmunt
Bauman e Gilles Lipovetsky, que veem o corpo como objeto de reflexão sobre a vida em sociedade
e sobre a atual condição humana, bem como a questão do corpo como parte permanente de
construção do ser, o que indica que ao construirmos nosso corpo também construímos nossa
identidade, o corpo traduz o self, confundindo aparência e essência, segundo Giddens (2002).

Na contemporaneidade, o corpo participa da construção da identidade demonstrando hedonismo,


individualismo, estilo de vida e sociabilidade. A construção do corpo pode se dar de incontáveis maneiras
e o individualismo não engloba todos os povos, como nas culturas não ocidentais de Índia, China,
Sudeste Asiático e África, que perfazem 80% da população mundial, cujas identidades são construídas
na família e nas normas éticas, com valores coletivos. Já o Brasil também tem a cultura africana, que
contribui em como pensamos o corpo (SANTOS, 2008).

4.4 A saúde perfeita

O ser humano sempre buscou preservar e cuidar do corpo e atualmente pode contar com a ajuda da
biologia e da informática na produção de recurso, tecnologias e produtos para tais fins na busca do mito
da saúde perfeita, hedonista, que coaduna com juventude‑saúde‑beleza. Hoje, também temos mais
informações sobre os riscos, orientando nosso comportamento de forma diferenciada, contribuindo
para que nos preocupemos com nosso futuro e com o que fazemos hoje, sendo importante estimar as
possibilidades de ter saúde, já que a ciência, mesmo bem avançada, ainda traz incertezas.

4.5 O autocuidado

Considera‑se o autocuidado uma atividade composta por aspectos cognitivos, conscientes e


volitivos, contemplando o cuidado consigo mesmo, com a saúde e com a aparência, segundo Castiel
e Vasconcelos‑Silva (2002), o que envolve atividades físicas e práticas alimentares saudáveis, os dois
pilares que fundamentam as orientações, recomendações, prescrições e as formas de lidar com o corpo,
uma vez que para se chegar a um corpo ideal é preciso constante disciplina e dedicação, que envolvem
eficácia, controle e aptidão, bem como ansiedade, angústia e sofrimento para manter o corpo ideal,
comportamentos esses incrementados pela mídia mundializada. É preciso desenvolver a compreensão
de como as dominações ou resistências interagem nas diferentes culturas (SANTOS, 2008).

4.6 As formas do corpo

Atualmente, o corpo magro, leve, flexível e ao mesmo tempo rígido é referência do corpo ideal, que
deve ser assim entendido em toda variedade do corpo como o corpo obeso, desnutrido, anoréxico e magro,
39
Unidade I

gordo, musculoso, deformado, estruturado, feminino, masculino, negro, branco, pobre, rico, jovem, adulto,
envelhecidos, baixos e altos etc. O corpo marca nossa identidade e é marketing de nós mesmos. A obesidade
passa a não ser mais tolerada nem física nem moralmente. No passado, o homem gordo era associado
com o poder e com o comando, enquanto a mulher obesa era tida como macia, passiva e desamparada.
Atualmente, há uma grande mudança nessas características simbólicas, que levam a considerar a obesidade
como representante da perda de juventude e de status social, significando falta de controle corporal e de
apetite e mesmo falta de controle de si, em que a autoestigmatização gera a culpa sobre os seus prognósticos,
e o corpo magro, ao contrário, significa controle e racionalidade (SANTOS, 2008).

4.7 Emagrecimento

Hoje em dia, busca‑se emagrecer independentemente da classe social, etnia, gênero e geração,
almeja‑se ainda a esculturação do corpo e o fortalecimento do tônus muscular, sem a presença de
gorduras, consideradas ruins. Há o enobrecimento do músculo, tornando o emagrecimento o foco da
vida de muitas pessoas, por questões estéticas que podem às vezes entrar em conflito com as questões
médicas, que questionam alguns métodos de emagrecimento bem como o consumo de chás, shakes,
pílulas, programas, receitas e dietas milagrosas, que prometem às pessoas sensação de bem‑estar consigo,
com os outros, com a profissão e com o mundo, podendo levar ao sucesso amoroso e profissional e à
felicidade, mudando as relações sensuais com o corpo e reconstruindo o eu partindo da reconstrução
do corpo (SANTOS, 2008).

A dieta alimentar unida à atividade física é a base da construção do corpo na sociedade do


século XXI, comportamento que implica rotina para a construção do corpo ideal. As atividades físicas
precisam de um tempo específico reservado para sua prática, no tempo de não trabalho. Já a dieta
alimentar faz parte do dia a dia por ser uma necessidade básica, o que muda é o pensar sobre essa
prática. Não é uma decisão diária, mas uma decisão constante durante o dia, como e quando se
deve ou não comer. Essas decisões envolvem o controle permanente dos desejos, sensações, fome e
ansiedade com a reconstrução do gosto alimentar.

As mídias, a medicina, a publicidade e os nutricionistas estão a todo momento informando ao


consumidor, ao paciente, ao leitor, ao telespectador, ao cidadão e ao aluno sobre o que se pode e se deve
comer, misturando as lógicas do mercado com as necessidades sociais materiais e simbólicas. De alimentos
naturais a alimentos exóticos e produtos industriais, tudo está à disposição para consumo e repleto de
informações nutricionais da natureza dos alimentos e das adições ou não de produtos naturais ou químicos.
É importante o consumidor saber sobre a cadeia alimentar, bem como sobre os componentes alimentares,
desde a origem da produção, formas de conservação, distribuição e transporte até as transformações dos
gêneros alimentícios.

O alimento que começa a ser triturado na boca passa pelo esôfago para chegar ao estômago, que transforma
e decompõe os nutrientes por meio de enzimas. Quando esse bolo chega ao intestino, começam a ser absorvidos
os nutrientes que são interessantes e importantes para o corpo. Glândulas produzem as enzimas e neurônios
respondem aos estímulos, passando informações para o cérebro. Os nutrientes percorrem todo o organismo via
circulação sanguínea, reconstruindo, hidratando, combatendo doenças, renovando as células. Quando se ingere
um nutriente em excesso ou muitos nutrientes nocivos à circulação e às células, o corpo receberá parte disso,
40
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

causando doenças e má circulação do sangue e dos líquidos. No entanto, a ideia de energia nem sempre está
associada à de calorias, de alimentos energéticos, como açaí ou bebidas tônicas, que são muito calóricos, mas que
no imaginário preenchem nosso corpo com vitalidade, como num jogo de video game, em que se encontram
a comida e a barrinha de vitalidade, cujas calorias vão se desgastando conforme se joga ou se anda. Energia,
vitalidade e força para desenvolver as atividades do dia a dia dependem das calorias reservadas no corpo, mas
não das calorias acumuladas. A publicidade alimentar tanto pode ajudar quanto maquiar os riscos e o imaginário
ao redor de um produto (SANTOS, 2008).

É no dia a dia que se constrói o hábito alimentar; seleção, comparação, prioridades, resistências e
restrições são partes desse processo complexo. Existe uma suposta liberdade, aproveitada apenas se
temos consciência e controle sobre nossas escolhas. Precisamos ter em mente que estamos limitados
a um sistema alimentar cultural, nacional e regional, aos hábitos alimentares familiares ou grupais, os
quais podemos ampliar e diversificar.

O ser humano é onívoro, ou seja, come uma variedade de alimentos, diferente de animais herbívoros,
carnívoros ou ovíparos, que comem somente uma classe de alimentos, como ervas, carnes ou ovos.
Sendo onívoro, o homem tem uma oferta maior de alimentos que o nutrem, no entanto precisa de uma
variedade maior de alimentos para manter a saúde. Assim, o homem oscila entre a neofobia (medo do
novo) e a neofilia (desejo pelo novo), que se expressa também na relação aversão e desejo. O alimento
pode ser tanto uma fonte de prazer como de mal‑estar e até de doenças; ao mesmo tempo que é fonte
de energia, vitalidade e saúde, pode ser um vetor de intoxicação, envenenamento e carência.

A desestruturação das práticas alimentares no Brasil é visível. Nosso sistema alimentar tem influência das
três raças fundadoras da sociedade brasileira: indígena, portuguesa (europeia) e africana. No entanto, nas últimas
décadas, a cultura alimentar norte‑americana tem contribuído para a desestruturação de nossas refeições.

O controle da alimentação pela razão é um fenômeno muito antigo, mas nem sempre com o objetivo
da perda de peso, que é uma preocupação recente da humanidade. Desde o século XVII, a ideia de dieta
alimentar tenta impor uma disciplina ao ato de comer como uma forma de controle sobre o corpo e desejos.
É no século XIX que dieta alimentar passa a ter uma conotação de controle da massa corporal, visando à
dieta mínima com o máximo de produção de energia para alimentar soldados em guerra e prisioneiros a
baixo custo, raciocínio também usado para alimentar as massas de trabalhadores nas indústrias, como se
o corpo fosse uma máquina à espera de combustível – que consiste em proteínas e calorias – para poder
funcionar. Com a evolução das ciências nutricionais, descobre‑se que o corpo precisa de muitos outros
nutrientes para manter seu bom funcionamento. No século XX, o termo dieta aborda uma preocupação
médica de saúde. Começa a se pensar em uma dieta humana universal perfeita, que possa alimentar
qualquer etnia, geração ou classe. Médicos, farmacêuticos, nutricionistas e nutrólogos passam a ver o
alimento como um remédio ou uma droga usada para prevenção ou tratamento de doenças, uma nova
construção social. No mundo contemporâneo, dieta é uma modalidade de autocontrole, autodisciplina
para construir a aparência corporal e a identidade, prescrita e recomendada para todos os indivíduos.
Os temas dieta, saúde e magreza fazem parte do discurso desde revistas femininas até o discurso médico,
com a palavra de ordem moderação. Essa disciplina e controle reconstroem o gosto alimentar para o
light. A percepção da alimentação não é mais uma questão quantitativa, mas qualitativa. Pensa‑se o
nutriente em primeiro plano para depois avaliar o que comer e em que proporção (SANTOS, 2008).
41
Unidade I

As dietas são diversas: para cura, saúde, modulação corporal, beleza, espírito, prazer, bem‑estar,
socialização. Nessas dietas os fatores socioculturais são vistos como barreiras, pois as preferências, o
gosto e o hábito são considerados secundários no momento de prepará‑las, já que a preocupação está
mais em nutrir do que com o comer.

4.8 A questão do prazer e a questão da saúde

Segundo Montanari (2008), o uso do fogo no processamento dos alimentos contribuiu para
melhorá‑lo, torná‑lo mais saboroso e duradouro, além de mais seguro para a saúde. A cozinha e a ciência
dietética andam juntas e são originárias da cultura alimentar desde a invenção do fogo, indicando que
a dietética nasceu com a cozinha, foi se elaborando até tornar‑se uma ciência dietética na reflexão de
prática médica desde a Grécia antiga, entre os séculos V e IV a.C., quando Hipócrates de Cós fundou
uma tradição de pensamento que durou dois mil anos, assim como as civilizações indianas e chinesas
desenvolveram o pensamento médico‑filosófico ligado às práticas de cozinha.

Na época pré‑moderna, séculos XV e XVI, a medicina, conhecida como galênica em homenagem ao


médico romano Galeno, no século I d.C., retomou os ensinamentos de Hipócrates, que se mantiveram
até os séculos seguintes. O princípio fundamental dessa medicina se baseava no princípio de que todo
ser vivo como plantas, animais e homens possuía na sua natureza uma combinação de quatro fatores
agrupados dois a dois – quente/frio, seco/úmido, correspondendo aos quatro elementos (fogo, ar,
terra e água) constitutivos do universo. Havia a crença de que a saúde perfeita do homem dependia
da combinação e equilíbrio desses quatro elementos. Quando um deles prevalece, por doença ou
idade, causa um desequilíbrio, pois os jovens são mais quentes e úmidos e os velhos mais secos e frios.
E, ainda, os homens são quentes e secos e mulheres, frias e úmidas. Acreditava‑se que o ambiente,
o trabalho, a idade, o clima ou qualquer outra razão podiam causar impactos no homem, que devia
restaurar o equilíbrio tomando atitudes preventivas adequadas, a começar pelo controle alimentar.
Assim, quem era afetado por uma doença considerada úmida deveria preferir alimentos de natureza
seca e vice‑versa; se a saúde estivesse equilibrada, devia‑se comer de modo equilibrado, ou seja,
temperado (MONTANARI, 2008).

Segundo Montanari (2008), a cozinha era uma arte de manipulação e de combinação dos alimentos
para atingir a qualidade certa do produto, uma vez que esta não é encontrada em perfeito equilíbrio na
natureza. Portanto, era necessário corrigir as qualidades do produto para que atingisse a medida certa.
Assim, se o alimento é muito quente, é preciso esfriá‑lo ou combiná‑lo com alimentos frios, ou mesmo
acompanhá‑lo com os alimentos frios, corrigindo e equilibrando não só a alimentação, como também
o próprio produto alimentar, por meio da utilização de técnicas de cozimento e de combinações dos
ingredientes. Uma carne muito seca deve ser fervida e uma muito úmida deve ser assada. Quando o
animal é jovem se pode assá‑lo, quando é velho, deve‑se fazer dele um cozido, por isso “galinha velha dá
bom caldo”. É a ideia de que a cozinha é feita de uma arte combinatória que tende a valorizar a natureza
do produto e a retificá‑la ou corrigi‑la. Esse pensamento esteve presente na cultura antiga, medieval e
renascentista. Daí as indicações, encontradas em receituários de cozinha e em textos sobre dietética, de
como os alimentos devem ser processados.

42
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

Da mesma forma, a cozinha pré‑moderna criou a combinação de melão, este perigosamente úmido,
com presunto‑seco (úmido com seco) ou pera com queijo, enxugando a natureza dos produtos. Em relação
ao melão, sendo este acompanhado por um vinho forte e doce resolve‑se o problema. As peras eram
cozidas em vinho, hábito conservado até hoje. Os enólogos, conhecedores de vinho, são especialistas nessa
combinação de equilibrar os quatro elementos, pois temos o vinho seco ou suave ou o vinho doce, cada
um destinado a acompanhar um tipo de alimento inverso à sua qualidade. Os cozinheiros galênicos, que
tinham a arte de cozinhar e o saber médico, preocupavam‑se também com a elaboração dos molhos; estes,
no acompanhamento de carnes e peixes, têm a mesma função de equilíbrio dos elementos e tempero dos
pratos, tornando‑os digestíveis e saborosos e ao mesmo tempo dentro do princípio da pré‑modernidade
no tocante à cozinha e à dietética, na qual o alimento, para ser bem assimilado, deve estimular os sucos
digestivos, pelo prazer de comer (MONTANARI, 2008).

A cozinha e a dietética pré‑modernas pretendem juntar a digestibilidade ao prazer de comer.


O desejo é uma necessidade e o prazer um incentivo à saúde. Pensava‑se: “o que é mais agradável para o
gosto é melhor para a digestão”, pois o desejo já é um sinal de necessidade, cujo prazer de ser satisfeito
incentiva a saúde do corpo. Até os médicos faziam tratados de dietética que pareciam receitas de cozinha.
As regras eram compartilhadas, pois a dietética tinha a mesma linguagem da cozinha, obedecendo à
lógica do quente/frio e seco/úmido. Era uma linguagem social com conhecimentos eruditos e camponeses,
reflexões científicas e práticas cotidianas, cuja forma de consumo estava presente nas tavernas e nos
castelos. A ordem dos pratos durante a refeição também devia favorecer a boa absorção e digestão.
Orientava‑se iniciar a refeição com alimentos leves, como frutas, doces perfumados e verduras cruas
ou cozidas, que podiam ser condimentadas com azeite ou vinagre, e as frutas ácidas e adstringentes
ficavam para o fim da refeição (MONTANARI, 2008).

No imaginário contemporâneo a relação prazer‑saúde é conflituosa, porém nas culturas pré‑modernas


foi pensada como complementar. Assim, a ideia de que o prazeroso é saudável vem da Antiguidade
Medieval, quando dieta e restrição alimentar significavam a construção de uma cultura gastronômica,
tempos em que a dietética e a gastronomia andavam juntas, mesmo quando havia exageros por causa
do prestígio social, da gulodice ou por outras razões. Entretanto, a ciência dietética e a gastronomia
falavam a mesma linguagem.

A partir do século XVII, a dietética começou a analisar os alimentos pelas suas características
químicas, que em nada estão associadas às experiências sensoriais do sabor, do gosto e do prazer.
Sendo assim, a nova dietética introduz conceitos, fórmulas e palavras já não decorrentes das
experiências sensoriais, e sim ligadas ao carboidrato e à vitamina, que não possuem gosto, mas
visam à saúde do indivíduo à mesa. Assim, atualmente saúde e prazer estão dissociadas na ciência
dietética ou nutricional, embora ainda impliquem sobre o modo de se aproximar da mesa. Sendo
assim, a relação prazer‑saúde outrora estabelecida, formulada e reformulada, ainda faz parte das
experiências culturais do humano.

43
Unidade I

Saiba mais

Para mais informações sobre o conteúdo estudado, consulte os capítulos


“O Corpo e o Comer nas Ciências Sociais” e “Sobre os Gêneros Alimentícios”
do livro de Ligia Amparo da Silva Santos.

SANTOS, L. A. da S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre


as práticas corporais alimentares e cotidianas a partir da cidade de
Salvador – Bahia. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <https://
static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos‑9788523209087.pdf>.
Acesso em: 6 jan. 2019.

Resumo

Ao longo dos capítulos, ao discorrer sobre o tema alimentação, foram


trabalhadas as produções científicas dos principais pensadores que
desvelaram toda simbologia contida nas práticas alimentares do mundo
ocidental ao longo de sua história.

Por exemplo, alguns trabalhos demonstraram que nem tudo que


comemos é alimento e nem todo alimento é comida. Há um vínculo
simbólico na preparação e consumo de comidas e bebidas que transparece
no sistema de relações sociais estabelecidas nas festas, religiões e medicinas
populares, provérbios, narrativas e nas relações mágico‑religiosas.

Trabalhamos a compreensão sobre os ritmos da comensalidade e a reflexão


sobre o quanto, com quem, o que, quando e como se come, uma vez que os
comportamentos sociais trazem em si momentos de escolha, sendo que
cada cultura tem suas próprias preferências. Procuramos pontuar que fome e
abundância geram escolhas diferenciadas, isso quando se fala de gosto, e não
de fome, pois como vimos muitas pessoas se alimentam por fome, e não por
prazer, indicando que o gosto é para pessoas e grupos sociais mais abastados, que
possuem opção, sendo, então, o gosto de poucos.

Também procuramos contribuir para a compreensão do ritmo


alimentar das três principais refeições humanas, no mundo ocidental,
como café da manhã, almoço e jantar presentes nas práticas alimentares
tradicionais e modernas. Acentuamos o consumo de produtos leves, os
diet e light, entre outros, presentes na composição das alimentações
voltadas para a obtenção e manutenção do corpo magro, símbolo
atual de saúde, uma vez que a popularização do consumo de
44
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

adoçantes artificiais, leite desnatado e alimentos light não representa


somente a busca por uma saúde melhor, mas também pode significar
simbolicamente ascensão social. Porém, a situação financeira é um dos
obstáculos para o sucesso de novas práticas alimentares, e também a
questão da falta do gosto que podem conter.

Procuramos demonstrar como as ciências sociais, em especial a


antropologia, incorporaram em suas teorias a importância da alimentação,
suscitando o desvelamento das relações simbólicas entre a ingestão do
alimento e composição corporal, bem como sua relação com a saúde ou
a doença.

Por fim, trabalhamos a ideia de que atualmente vivemos uma


antropomorfia que reconstrói o corpo, o qual quanto mais transformações
sofrer mais validade simbólica terá. Destacamos o papel da engenharia
genética e das técnicas de reprodução artificial com suas questões éticas
sobre a vida, entre outras temáticas que foram bem explicadas no decorrer
dos capítulos.

Exercícios

Questão 1. (Enade 2006)

Figura 4

Tendo em vista a construção da ideia de nação no Brasil, o argumento da personagem expressa:

A) A afirmação da identidade regional.

B) A fragilização do multiculturalismo global.

C) O ressurgimento do fundamentalismo local.

D) O esfacelamento da unidade do território nacional.

E) O fortalecimento do separatismo estadual.


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Unidade I

Resposta correta: alternativa A.

Análise das alternativas

A) Alternativa correta.

Justificativa: dizer que doce de jerimum é melhor que doce de abóbora e lembrar que “a diferença
tá na pitada cultural” é uma forma cordial de afirmar a positiva particularidade de uma identidade
regional, dentre outras da mesma ordem. Essa afirmação ocorre por meio de uma reivindicação de
positividade a uma dada diferença cultural. Percebe‑se, portanto, que o que está em foco nesta questão
é a temática da “diversidade cultural”.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: a charge não trata do multiculturalismo global, considerado um fenômeno do


modelo econômico capitalista, que consiste na interligação econômica, política, social e cultural
em âmbito mundial.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: não há relação da mensagem da charge com o fundamentalismo (termo usado para se
referir à crença na interpretação literal dos livros sagrados).

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: a unidade do território nacional não é esfacelada por diferenças culturais em


determinadas regiões de um país por si só. Pode ser fator de diversidade e identidade, inclusive.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: contrariamente ao que se coloca na alternativa A, ou seja, a reivindicação de positividade


a uma dada diferença cultural, e não o separatismo estadual, que, no caso da figura, pode se entender
de forma mais ampla, no âmbito regional.

Questão 2. (Enade 2007) Em estudo realizado com o objetivo de analisar a quantidade e a qualidade
de produtos alimentícios veiculados por três redes de canal aberto da televisão brasileira, observou‑se
que, dos 5.338 anúncios transmitidos no período de acompanhamento, 1.395 (26%) eram anúncios de
produtos alimentícios. A figura a seguir mostra o percentual desses 1.395 anúncios correspondente a
cada grupo de alimentos.

S. S. Almeida et al. Revista de Saúde Pública, 2002, 36(3):353‑5 (com adaptações).

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ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO

21,2% Pães, cereais, arroz e massas


Gorduras, óleos, açúcares e doces
57,8%
11,7% Carnes, ovos, leguminosas
Leites, queijos e iogurtes
9,3%

Figura 5

Tendo as informações apresentadas no texto e no gráfico apenas como referência inicial e


considerando os fatores determinantes para a formação de hábitos alimentares, julgue os itens a seguir:

I – Existe correlação entre exposição à propaganda de alimentos veiculada na mídia televisiva e


formação de hábitos alimentares.

II – Os resultados do estudo representam uma pirâmide alimentar invertida com relação à sua base,
fenômeno típico de transição nutricional.

III – No Brasil, a inexistência de regulamentação de estratégias de propaganda e marketing de


alimentos prejudica a promoção de hábitos alimentares saudáveis.

IV – Raízes, tubérculos e legumes pertencem ao mesmo grupo alimentar que responde, de acordo
com a pesquisa, por 21,2% dos anúncios de produtos alimentícios transmitidos pelas três redes de canal
aberto de televisão estudadas.

V – O fenômeno da globalização bem como a variedade e a disponibilidade de produtos alimentícios


são fatores que influenciam a formação do padrão alimentar contemporâneo.

Estão certos apenas os itens:

A) I, II e III.

B) I, II e V.

C) I, III e IV.

D) II, IV e V.

E) III, IV e V.

Resolução desta questão na plataforma.

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