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Farmacologia

Aplicada à Biomedicina
Autoras: Profa. Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão
Profa. Sandra Heloísa Nunes Messias
Colaboradores: Prof. Flavio Buratti Gonçalves
Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano
Professoras conteudistas: Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão /
Sandra Heloísa Nunes Messias

Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão

Graduada em 2002 pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Ciências Biológicas – Modalidade Médica.
Mestre (2005) e doutora (2009) em Ciências, com ênfase em Farmacologia, pela Unifesp e licenciada em Química pelas
Faculdades Oswaldo Cruz (2011).

É professora titular da UNIP desde 2010, onde leciona disciplinas como Análise Físico-Química, Bases Analíticas
do Laboratório Clínico, Embriologia e Farmacologia para os cursos de Biomedicina, Enfermagem e Nutrição. Também
ministrou a disciplina de Farmacologia para o curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo (2010-2011).

É coordenadora auxiliar do curso de Biomedicina da UNIP, campus Chácara Santo Antônio, desde 2011. Na mesma
instituição, foi membro do Comitê de Ética no período de 2011 a 2017 e, desde 2012, atua na Comissão de Qualificação
das Avaliações (CQA).

Sandra Heloísa Nunes Messias

Biomédica graduada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mestre em Farmacologia pela mesma
instituição e doutora em Patologia Ambiental e Experimental da Universidade Paulista (UNIP).

É professora titular de Farmacologia e, atualmente, é coordenadora geral do curso de Biomedicina da UNIP,


conselheira honorária do CFBM-CRBM, membro do Comitê de Ética de Pesquisa em Animais da UNIP, do Corpo
Editorial do Journal of the Health Sciences Institute – Revista do Instituto de Ciências da Saúde (UNIP) – e do Banco
de Avaliadores (BASis) do Inep, e delegada do Conselho Regional de Biomedicina (CRBM-1) na região de Descalvado,
em São Carlos.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P314f Patrão, Marília Tavares Coutinho da Costa.

Farmacologia Aplicada à Biomedicina / Marília Tavares Coutinho


da Costa Patrão, Sandra Heloísa Nunes Messias. - São Paulo: Editora
Sol, 2020.

248 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Farmacologia. 2. Farmacocinética. 3. Farmacodinâmica. I.


Patrão, Marília Tavares Coutinho da Costa. II. Messias, Sandra Heloísa
Nunes. III. Título.

CDU 615

U508.12 – 20

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
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Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


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Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Lucas Ricardi
Jaci Albuquerque
Sumário
Farmacologia Aplicada à Biomedicina

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................9
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................9

Unidade I
1 FARMACOCINÉTICA......................................................................................................................................... 11
1.1 Formas farmacêuticas e vias de administração........................................................................ 14
1.1.1 Vias de administração local................................................................................................................. 16
1.1.2 Vias de administração sistêmica........................................................................................................ 17
1.2 Absorção................................................................................................................................................... 21
1.2.1 Transporte através das membranas biológicas............................................................................ 22
1.2.2 Características teciduais que influem na absorção dos fármacos....................................... 24
1.2.3 Influência do pH na absorção dos fármacos................................................................................ 27
1.2.4 Interações medicamentosas que alteram a absorção dos fármacos.................................. 33
1.3 Distribuição.............................................................................................................................................. 33
1.3.1 Cinética de distribuição dos fármacos............................................................................................ 36
1.3.2 Interações medicamentosas que alteram a distribuição dos fármacos............................ 36
1.4 Biotransformação.................................................................................................................................. 37
1.4.1 Reações de fase I...................................................................................................................................... 39
1.4.2 Reações de fase II.................................................................................................................................... 41
1.4.3 Interações medicamentosas que alteram a biotransformação dos fármacos................ 41
1.5 Excreção.................................................................................................................................................... 42
1.5.1 Excreção renal........................................................................................................................................... 43
1.5.2 Excreção biliar........................................................................................................................................... 44
1.5.3 Outras vias de excreção......................................................................................................................... 45
1.5.4 Interações medicamentosas que alteram a excreção dos fármacos.................................. 46
1.6 Parâmetros farmacocinéticos de importância na prática clínica...................................... 46
1.6.1 Concentração máxima (Cmax) ou pico de concentração plasmática................................ 47
1.6.2 Área sob a curva (AUC).......................................................................................................................... 47
1.6.3 Tempo de meia-vida plasmática (t1/2)........................................................................................... 47
1.6.4 Volume de distribuição.......................................................................................................................... 48
1.6.5 Clearance..................................................................................................................................................... 49
2 FARMACODINÂMICA...................................................................................................................................... 49
2.1 Alvos moleculares da ação de fármacos: enzimas, canais iônicos e
proteínas transportadoras......................................................................................................................... 51
2.1.1 Enzimas........................................................................................................................................................ 51
2.1.2 Canais iônicos............................................................................................................................................ 53
2.1.3 Proteínas transportadoras.................................................................................................................... 54
2.2 Alvos moleculares da ação de fármacos: receptores.............................................................. 55
2.2.1 Receptores ionotrópicos....................................................................................................................... 56
2.2.2 Receptores enzimáticos........................................................................................................................ 57
2.2.3 Receptores acoplados à proteína G.................................................................................................. 58
2.2.4 Receptores intracelulares..................................................................................................................... 62
2.2.5 Regulação da atividade dos receptores.......................................................................................... 65
2.3 Farmacologia experimental: estudos da interação fármaco-receptor............................ 66
3 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO SIMPÁTICO....................................................................... 72
3.1 Sistema nervoso autônomo: visão geral..................................................................................... 72
3.1.1 Principais características anatômicas.............................................................................................. 73
3.1.2 Principais aspectos da fisiologia do sistema nervoso autônomo........................................ 74
3.1.3 Neurotransmissores autonômicos: biossíntese e biotransformação.................................. 75
3.1.4 Subtipos de receptores adrenérgicos e muscarínicos............................................................... 79
3.1.5 Etapas da neurotransmissão autonômica..................................................................................... 81
3.1.6 O mecanismo de retroalimentação negativa e o controle da atividade
dos nervos autonômicos.................................................................................................................................. 82
3.1.7 Principais ações do sistema nervoso autônomo......................................................................... 83
3.2 Farmacologia do sistema nervoso simpático............................................................................. 85
3.2.1 Simpatomiméticos de ação direta: visão geral............................................................................ 85
3.2.2 Simpatomiméticos de ação direta: catecolaminas endógenas............................................. 86
3.2.3 Simpatomiméticos de ação direta: catecolaminas sintéticas............................................... 89
3.2.4 Simpatomiméticos de ação direta: outras monoaminas......................................................... 91
3.2.5 Simpatomiméticos de ação indireta ou mista............................................................................. 92
3.2.6 Simpatolíticos de ação direta............................................................................................................. 93
3.2.7 Simpatolíticos de ação indireta/mista............................................................................................. 97
4 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO PARASSIMPÁTICO, DO GÂNGLIO E
DA JUNÇÃO NEUROMUSCULAR.................................................................................................................... 98
4.1 Farmacologia do sistema nervoso parassimpático.................................................................. 98
4.1.1 Parassimpatomiméticos de ação direta.......................................................................................... 98
4.1.2 Parassimpatomiméticos de ação indireta....................................................................................103
4.1.3 Parassimpatolíticos de ação direta.................................................................................................106
4.1.4 Parassimpatolíticos de ação indireta............................................................................................. 110
4.2 Farmacologia do gânglio autonômico e da junção neuromuscular..............................110
4.2.1 Fármacos que atuam sobre o gânglio autonômico................................................................. 110
4.2.2 Fármacos bloqueadores neuromusculares.................................................................................. 112
4.2.3 Outros fármacos que atuam sobre a junção neuromuscular.............................................. 114

Unidade II
5 FARMACOLOGIA CARDIOVASCULAR E RENAL...................................................................................120
5.1 Antiarrítmicos e cardiotônicos......................................................................................................120
5.1.1 Antiarrítmicos........................................................................................................................................ 122
5.1.2 Cardiotônicos......................................................................................................................................... 125
5.2 Anti-hipertensivos e diuréticos.....................................................................................................129
5.2.1 Fisiopatologia da hipertensão arterial......................................................................................... 129
5.2.2 Regulação da hipertensão arterial................................................................................................ 130
5.2.3 Fármacos anti-hipertensivos............................................................................................................ 134
5.2.4 Associações de fármacos no tratamento da hipertensão arterial.................................... 140
6 FARMACOLOGIA DA DOR E DA INFLAMAÇÃO....................................................................................141
6.1 Mecanismo de transmissão da dor..............................................................................................141
6.2 Papel dos prostanoides na regulação da sensação dolorosa.............................................145
6.3 Atuação de fármacos sobre a transmissão do estímulo doloroso...................................146
6.4 Anti-inflamatórios não esteroidais (Aines)...............................................................................147
6.4.1 Mecanismo de ação dos Aines........................................................................................................ 148
6.4.2 Principais Aines...................................................................................................................................... 154
6.5 Anti‑inflamatórios esteroidais.......................................................................................................155
6.5.1 Mecanismo de ação dos glicocorticoides................................................................................... 157
6.5.2 Principais glicocorticoides utilizados na clínica........................................................................161
6.5.3 Principais efeitos adversos................................................................................................................ 162
6.6 Analgésicos opioides..........................................................................................................................164
6.6.1 Mecanismo de ação dos analgésicos opioides......................................................................... 164
6.6.2 Principais opioides utilizados na clínica...................................................................................... 167
6.6.3 Tratamento da sobredosagem e da dependência aos opioides......................................... 168
6.7 Anestésicos............................................................................................................................................169
6.7.1 Anestésicos locais................................................................................................................................. 169
6.7.2 Anestésicos gerais..................................................................................................................................171
Unidade III
7 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL..........................................................................178
7.1 Aspectos funcionais...........................................................................................................................178
7.1.1 Atividade neuronal............................................................................................................................... 178
7.1.2 Neurotransmissores..............................................................................................................................181
7.1.3 Relação entre as disfunções na neurotransmissão e as patologias do SNC................. 185
7.2 Fármacos de ação central................................................................................................................185
7.2.1 Ansiolíticos, sedativos e hipnóticos............................................................................................... 186
7.2.2 Antidepressivos...................................................................................................................................... 189
7.2.3 Estabilizadores do humor.................................................................................................................. 196
7.2.4 Neurolépticos......................................................................................................................................... 197
7.2.5 Anticonvulsivantes................................................................................................................................201
7.2.6 Antiparkinsonianos.............................................................................................................................. 203
7.2.7 Tratamento da doença de Alzheimer............................................................................................ 206
8 FARMACOLOGIA DO SISTEMA ENDÓCRINO........................................................................................208
8.1 Mecanismos de ação hormonal....................................................................................................209
8.2 O eixo hipotálamo-hipófise e a secreção hormonal.............................................................211
8.2.1 O eixo hipotálamo-hipófise-tireoide.............................................................................................212
8.2.2 O eixo hipotálamo-hipófise-testículo...........................................................................................216
8.2.3 O eixo hipotálamo-hipófise-ovários..............................................................................................221
APRESENTAÇÃO

A presente disciplina tem como objetivo estudar os aspectos básicos da farmacocinética e da


farmacodinâmica aplicados aos principais fármacos de uso terapêutico e experimental, com enfoque
nas alterações fisiológicas que eles provocam.

Este livro-texto foi elaborado de modo a apresentar, inicialmente, os conceitos relativos à cinética
do fármaco no organismo (que compreende as etapas de absorção, distribuição, biotransformação e
excreção) e a ação do fármaco em alvos moleculares específicos, o que explica os mecanismos pelos
quais ocorrem os efeitos terapêuticos e adversos dessas substâncias. Em seguida, serão abordados os
fármacos que atuam sobre o sistema nervoso autônomo e sobre o sistema nervoso somático (junção
neuromuscular), o que é de extrema importância, visto que o sistema nervoso autônomo regula o
funcionamento de virtualmente todos os órgãos e tecidos do organismo, e o sistema nervoso somático,
a atividade do músculo voluntário.

Na sequência, iremos estudar a ação de fármacos sobre os principais órgãos e sistemas. Serão
abordados os fármacos que atuam sobre o sistema cardiovascular (antiarrítmicos, cardiotônicos e
anti-hipertensivos) e renal (diuréticos), sobre a dor e a inflamação (anti-inflamatórios, analgésicos
simples, anestésicos locais e gerais e analgésicos opioides), sobre o sistema nervoso central (ansiolíticos,
antidepressivos, antipsicóticos, antiparkinsonianos e anticonvulsivantes, além do tratamento do mal de
Alzheimer e do transtorno bipolar) e sobre o sistema endócrino (fármacos que atuam sobre a tireoide e
sobre os órgãos sexuais masculinos e femininos).

Durante o seu estudo, é importante ficar atento às seguintes informações:

• Qual o mecanismo de ação do fármaco?

• Como eu explicaria sua ação terapêutica?

• Quais os principais efeitos adversos e como posso explicá-los?

Ao final da disciplina, esperamos que você esteja familiarizado com o uso de diferentes fármacos,
tanto na terapêutica como na experimentação.

Bom estudo!

INTRODUÇÃO

De acordo com Katzung (2017), a farmacologia é a ciência que estuda os fármacos (do grego
pharmacon – fármaco e logos – estudo). Em um sentido amplo, estuda a interação entre substâncias
químicas e os sistemas orgânicos. No campo da farmacologia, qualquer substância química que possa
produzir uma resposta biológica num organismo vivo é considerada um fármaco.

9
Observação

O termo droga é utilizado por alguns autores para designar as


substâncias farmacologicamente ativas. O uso desse termo não é
recomendado, devendo ser utilizada a designação fármaco.

A farmacologia é uma ciência que integra o conhecimento de diferentes áreas (como a bioquímica,
a fisiologia e a patologia) e abordagens diversas a respeito dos fármacos. A partir do estudo da ação das
substâncias no organismo, é possível explorar não só alternativas terapêuticas, mas também aspectos
da fisiologia que são elucidados através do estudo da interação de diferentes substâncias com os
sistemas orgânicos.

Há divisões teóricas da farmacologia, dependendo do aspecto a ser estudado. A farmacocinética


estuda o caminho percorrido pelo fármaco no organismo vivo, desde sua administração até sua
completa eliminação. A farmacodinâmica estuda o local e o mecanismo de ação, ações e efeitos, efeitos
terapêuticos e efeitos tóxicos dos fármacos. A farmacoterapêutica refere-se à orientação do uso dos
medicamentos para prevenção, tratamento e diagnósticos das enfermidades. A farmacognosia estuda
a origem, as características, a estrutura e a composição química dos fármacos no seu estado natural e
na forma de extratos. A farmacologia clínica preocupa-se com os padrões de eficácia e segurança da
administração de medicamentos aos animais ou seres humanos, comparando informações obtidas na
população saudável com as obtidas na população doente. Outras subáreas têm surgido nos últimos
anos (imunofarmacologia, farmacogenômica, entre outras), em função dos avanços biotecnológicos na
área biomédica.

10
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Unidade I
1 FARMACOCINÉTICA

O estudo das ações dos produtos naturais sobre o organismo tem suas origens nos primórdios da
humanidade, desde quando o homem começou a usar substâncias obtidas na natureza com finalidades
medicinais, ou até mesmo visando efeitos nocivos. No entanto, foi somente a partir de meados do século XIX
que a farmacologia se consolidou como ciência, como consequência da evolução de outras áreas afins
de conhecimento (fisiologia, patologia, bioquímica etc.). Desde então, os fármacos têm sido purificados,
caracterizados quimicamente e até mesmo sintetizados em laboratório. Até o momento, desenvolveu-se
uma ampla variedade de novos fármacos altamente potentes e seletivos, cujo mecanismo de ação, na
maioria das vezes, já foi elucidado. Esse conjunto de informações faz da farmacologia a espinha dorsal
da terapêutica racional.

Os principais termos utilizados no estudo da farmacologia estão listados a seguir:

• Fármaco é qualquer substância ou produto que é usado ou se destina a ser usado para modificar
ou explorar sistemas fisiológicos ou estados patológicos. Em outras palavras, os fármacos são
substâncias químicas que, ao interagirem com alvos específicos presentes nas células, são capazes
de promover alterações das funções fisiológicas pré-existentes. Existem fármacos que são usados
como parte da terapêutica de diferentes doenças, enquanto outros apresentam importância
puramente experimental. O termo princípio ativo é um sinônimo de fármaco.

• Medicamento refere-se ao fármaco (princípio ativo) ou à associação de fármacos que apresentam


alguma aplicação terapêutica e/ou diagnóstica, ou seja, destinadas a curar, diminuir, prevenir ou
diagnosticar enfermidades.

• Remédio é um termo usado para todos os agentes que curam, aliviam ou evitam uma enfermidade,
usado de forma abrangente não só para substâncias químicas (fármacos), como também para
agentes físicos (massagens, duchas etc.).

• Placebo é toda e qualquer substância sem propriedades farmacológicas que é administrada a


pessoas ou grupo de pessoas como se tivesse propriedades terapêuticas. O placebo não contém
os princípios ativos e é elaborado de forma a ter a aparência exata de um medicamento real,
porém é constituído somente de substâncias químicas inativas (como o amido, o açúcar e outros
excipientes). Como as pessoas às quais foi administrado o placebo não o sabem, algumas sentem-
se melhor e outras chegam até a apresentar efeitos adversos, pois estão sugestionadas a acreditar
que estão recebendo uma substância farmacologicamente ativa. Na atualidade, o placebo só
pode ser utilizado na pesquisa clínica, que é o estudo da ação de novos medicamentos sobre
voluntários saudáveis e doentes e, mesmo assim, com ressalvas.
11
Unidade I

De acordo com Fregnani (2015), no processo de desenvolvimento de um novo medicamento, os


pesquisadores realizam estudos para compará-lo com o medicamento de escolha já disponível
comercialmente. Na ausência de terapia medicamentosa já estabelecida, a comparação é feita
com o placebo.

Geralmente, metade dos participantes do estudo recebem o novo medicamento e os demais


recebem um placebo, de aspecto idêntico. Idealmente, nem os participantes e nem os
investigadores devem saber quem recebeu o medicamento e quem recebeu o placebo (esse tipo
de estudo chama-se estudo duplo-cego). Quando o estudo é concluído, todas as alterações
observadas nos participantes dos dois grupos são comparadas e, para que se justifique seu uso,
o novo medicamento deve ter um desempenho substancialmente melhor do que o placebo ou
do que o medicamento já comercializado para tratar a doença.

• Forma farmacêutica corresponde ao conjunto de características físicas (apresentação) e químicas


(composição) do medicamento. É comum um medicamento ser preparado com o mesmo princípio
ativo e apresentar doses e formas diferentes. Por exemplo, o Diazepam é comercializado em
dosagem de 5 mg e de 10 mg em comprimidos e ampolas. Nesse caso, as formas farmacêuticas
são: comprimidos e ampolas. No preparo de uma forma farmacêutica, os fabricantes incorporam
excipientes (“veículos” para o princípio ativo), que têm como função aumentar o volume do
medicamento, melhorar o seu visual e sabor (por meio de revestimentos e corantes) e também
definir o padrão de liberação do princípio ativo, para que ele seja absorvido. Além disso, eles
também ajudam a conservar o medicamento.

Os medicamentos geralmente têm vários nomes. Para melhor entendermos essa nomenclatura,
vamos descrever brevemente como é feito o processo de pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos.

A primeira etapa consiste na descoberta de um composto (substância química) com atividade sobre
um organismo vivo. Nessa etapa, o fármaco recebe um nome químico, que descreve sua estrutura
atômica ou molecular. O nome químico é geralmente muito complexo para uso geral.

Na segunda etapa é feito o estudo pré-clínico, que inclui testes in vitro para avaliação das
propriedades biológicas das moléculas ativas e também testes in vivo em animais para avaliação da
farmacocinética e farmacodinâmica da substância química. É frequente nessa etapa já o uso de uma
versão abreviada do nome químico ou um nome em código (por exemplo, PN200110) para facilitar a
referência entre os pesquisadores.

Na terceira e última etapa do processo, denominada estudo clínico, são realizados estudos em
humanos. Esses estudos, de acordo com Rang (2011), são divididos em quatro fases:

• Fase 1: o medicamento é testado em voluntários saudáveis. São testadas diferentes vias de


administração e doses, e o padrão de absorção e de excreção do fármaco (perfil farmacocinético)
é estabelecido.

12
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

• Fase 2: envolve estudos em um pequeno número de pessoas que têm a doença contra a qual o
medicamento possivelmente é eficaz.

• Fase 3: uma quantidade maior de pacientes, tratadas em diferentes centros médicos de pesquisa,
recebe o medicamento. Essa amostra maior de pacientes fornece informações sobre efeitos
adversos raros ou pouco frequentes. A agência governamental (no Brasil, a Anvisa) aprovará o uso
do novo medicamento se os estudos de fase 3 forem satisfatórios.

• Fase 4: é voluntária e envolve a farmacovigilância pós-mercado dos efeitos do medicamento.


O fabricante do medicamento recebe relatos de médicos e de outros profissionais da área de
saúde a respeito dos resultados terapêuticos e de efeitos adversos do medicamento. Alguns
medicamentos, por exemplo, apresentaram efeitos tóxicos e foram retirados do mercado depois
de seu lançamento inicial.

Quando um medicamento é aprovado para comercialização, o princípio ativo recebe um nome


genérico (oficial) e um nome comercial (proprietário ou de marca). Por exemplo, a dipirona é um
nome genérico, e Novalgina®, Neosaldina® e Anador® são nomes comerciais das formas farmacêuticas
produzidas por diferentes laboratórios. Os nomes genéricos e comerciais devem ser exclusivos, para
impedir que um medicamento seja confundido com outro. Para evitar possível confusão, todo nome
comercial proposto deve ser aprovado pela Anvisa.

O nome comercial é desenvolvido pela empresa que solicita aprovação para o medicamento e o
identifica como propriedade exclusiva de tal empresa (patente). O medicamento comercializado pelo
laboratório que o desenvolveu em primeiro lugar é denominado medicamento de referência, pois foi
a partir dele que foram realizados os estudos pré-clínicos e clínicos que descrevemos anteriormente
(exemplo: Novalgina® é o nome comercial de referência do medicamento dipirona).

Quando o medicamento não está protegido por patente, a empresa pode comercializar seu produto
com o nome genérico ou com um nome comercial. Os medicamentos genéricos são comercializados pelo
nome oficial (exemplo: dipirona), enquanto os medicamentos similares são comercializados por outros
laboratórios, utilizando outros nomes comerciais, diferentes do medicamento de referência (Neosaldina® e
Anador®, por exemplo). Assim, em resumo:

• Os medicamentos de referência são os primeiros a serem comercializados, utilizando-se um


nome comercial. Passaram por testes pré-clínicos e clínicos para a avaliação de sua eficácia e
são patenteados.

• Os medicamentos genéricos são produzidos por outros laboratórios e comercializados pelo nome
oficial do princípio ativo, após a queda ou a quebra da patente.

• Os medicamentos similares são produzidos por outros laboratórios e comercializados utilizando‑se


outros nomes comerciais, após a quebra ou a queda da patente.

13
Unidade I

Por determinação da Anvisa, os medicamentos de referência, genéricos e similares de um mesmo


princípio ativo precisam ser bioequivalentes, ou seja, apresentar a mesma dosagem e a mesma taxa
de absorção, o que garante que, em qualquer tempo, a concentração plasmática seja a mesma nos
três casos.

A maioria dos medicamentos genéricos, embora mais baratos do que os medicamentos de nome
comercial correspondentes, possuem a mesma eficácia e a mesma qualidade deles, exatamente pela
necessidade de se realizar testes de bioequivalência com o medicamento de referência.

A farmacocinética é o estudo do movimento do fármaco no interior de um organismo vivo e envolve


a avaliação de como o fármaco é absorvido, distribuído, biotransformado e excretado. Na prática, um
fármaco deve ser capaz de alcançar seu local de ação pretendido após a administração, em quantidade
e por tempo adequado para que seja observada ação farmacológica.

A partir de agora, vamos estudar as principais formas farmacêuticas e vias de administração dos
fármacos. Em seguida, serão abordadas cada uma das quatro etapas da farmacocinética: absorção, que
é a passagem do fármaco do local de administração para a circulação sistêmica; distribuição, que é a
passagem do fármaco do sangue para os diferentes órgãos e sistemas; biotransformação ou metabolismo,
que se refere às alterações da estrutura química do fármaco, visando sua eliminação; e excreção, que é a
saída do fármaco do organismo. Veja a figura a seguir:
Fármaco no local da administração

1 Absorção (entrada)

Fármaco no plasma

2 Distribuição
Fármaco nos tecidos

3 Biotransformação
Metabólitos nos tecidos

4 Excreção (saída)

Fármaco ou metabólitos na
urina, na bile ou nas fezes

Figura 1 – Etapas da farmacocinética

1.1 Formas farmacêuticas e vias de administração

Os medicamentos são apresentados em diferentes formas farmacêuticas, e esse parâmetro influencia


a velocidade e a extensão da absorção do fármaco. As principais formas farmacêuticas estão descritas
no quadro a seguir:

14
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Quadro 1 – Principais formas farmacêuticas

Estado físico Forma farmacêutica Principais características


O medicamento apresenta-se na forma de cristais, necessitando
Pó de diluente para sua administração
É um cristal submetido a uma compressão em molde, geralmente
Comprimido discoide
O medicamento em pó é envolvido por uma camada de amido ou
Cápsula gelatina de consistência dura, a fim de impedir seu contato com
a mucosa oral e facilitar a deglutição
É um comprimido revestido com uma camada de açúcar,
geralmente polido, com ou sem corante. O revestimento faz com
Sólidos Drágea que a absorção ocorra preferencialmente no intestino. Quando as
drágeas são pequenas, são denominadas pílulas
É uma forma sólida revestida por gelatina ou manteiga de
Supositório cacau, que se desfazem à temperatura do corpo, possibilitando a
absorção. Indicada para aplicação retal
Forma sólida, revestida por gelatina, de formato ovoide, para
Óvulo aplicação vaginal.
Comprimido achatado e circular indicado para dissolução na
Pastilha boca e absorção pela mucosa oral
O fármaco é dissolvido em uma base gordurosa, de consistência
Pomada macia, devendo ser aplicado topicamente na pele ou nas
mucosas
Semissólidos O fármaco é dissolvido em uma base aquosa e oleosa. Também
Creme utilizado para aplicação tópica
É uma forma farmacêutica de consistência macia, aquosa, que
Pasta contém 20% de pó
É um preparado líquido que apresenta uma ou mais substâncias
Solução dissolvidas, formando uma mistura homogênea
À solução aquosa do fármaco são adicionados açúcar e
Xarope aromatizantes
O pó contendo o medicamento encontra-se disperso no meio
líquido, sem estar dissolvido, formando um sistema heterogêneo,
Líquidos Suspensão bifásico. Quando em repouso, as partículas se depositam no
fundo do frasco
É um preparado de álcool que contém o princípio ativo extraído
Tintura de um vegetal ou mineral
Solução composta de álcool, açúcar, água e agente medicinal,
Elixir destinada à administração oral
Para administração inalatória de substâncias que, à temperatura
Gás ambiente, encontram-se no estado gasoso. Exemplo: o anestésico
Gasosos inalatório óxido nitroso (N2O)
As partículas sólidas ou líquidas do fármaco são distribuídas em
Aerossol névoa ou acondicionadas em recipiente pressurizado (“bomba”)

Fonte: Pivello (2014, p. 3-10).

Cada uma das formas farmacêuticas descritas é adequada para a administração por uma ou mais
vias específicas. A escolha da via de administração apropriada em uma determinada situação depende
de fatores relacionados ao fármaco e ao paciente.

15
Unidade I

São fatores que podem interferir na escolha da via de administração de um fármaco:

• propriedades físico-químicas (estado físico, solubilidade, estabilidade, pH, irritação);

• local da ação desejada (localizado e acessível ou sistêmico e não acessível);

• taxa e extensão da absorção do fármaco a partir de diferentes locais da administração, bem como
volume a ser administrado;

• ação do suco gástrico e/ou de enzimas do trato digestório e metabolismo de primeira passagem;

• rapidez com a qual o efeito do fármaco tem que ser observado (tratamento de rotina ou de emergência);

• necessidade de se ter precisão na quantidade de fármaco absorvido (por exemplo, na via


intravenosa, existe a certeza da quantidade de fármaco que atingiu a circulação sistêmica);

• condição clínica do paciente (idade do paciente e se ele se encontra consciente, presença de


vômito e diarreia etc.).

Observação

O metabolismo de primeira passagem é a biotransformação do fármaco, pelo


fígado e/ou pela microbiota intestinal, antes de ele atingir a circulação sistêmica.

De forma geral, as vias de administração podem ser divididas em locais e sistêmicas.

1.1.1 Vias de administração local

Conforme Yellepedi (2016), as vias de administração local só podem ser usadas para lesões localizadas
em regiões acessíveis e para administração de fármacos cuja absorção sistêmica seja mínima ou ausente.
Assim, as concentrações ideais do fármaco são atingidas no local desejado, sem que haja exposição do
restante do organismo ao fármaco. Consequentemente, os efeitos adversos sistêmicos ou a toxicidade
são mínimos ou ausentes.

Para os fármacos que são absorvidos a partir de uma via local de administração (por exemplo, a pele),
ela pode servir como via de administração sistêmica. Um exemplo é o adesivo transdérmico de fentanila
(Durogesic®) aplicado na pele.

As vias de administração locais são divididas em:

• Tópica: refere-se à aplicação externa do fármaco numa superfície, para uma ação localizada.
É geralmente mais conveniente para o paciente. Os fármacos podem ser administrados com
eficiência nas lesões localizadas na pele, na mucosa orofaríngea e nasal, nos olhos, no canal
auditivo, no canal anal ou na vagina.
16
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Outras formas de administração tópica incluem os fármacos não absorvidos e administrados por
via oral para ação na mucosa gastrointestinal (por exemplo, o sucralfato), a inalação de fármacos
que atuam nos brônquios (por exemplo, o salbutamol) e as soluções aplicadas na uretra (por
exemplo, a iodopovidona).

• Tecidos mais profundos: certas áreas profundas podem ser acessadas usando uma seringa e
uma agulha, mas o fármaco deve estar em uma forma que a absorção sistêmica seja limitada,
como ocorre na injeção intra-articular (por exemplo, o acetato de hidrocortisona na articulação
do joelho) e na infiltração ao redor de um nervo ou injeção intratecal (por exemplo, a lidocaína).

• Suprimento arterial: a injeção intra-arterial próxima é usada para meios de contraste na


angiografia; medicamentos antineoplásicos podem ser infundidos na artéria femoral ou braquial
para localizar o efeito em condições de câncer nos membros.

1.1.2 Vias de administração sistêmica

O fármaco administrado por vias sistêmicas deve ser absorvido até a corrente sanguínea e distribuído
por todo o organismo, incluindo o local da ação, através da circulação.

As principais vias de administração sistêmica são:

Oral

A administração por via oral é o modo mais frequente de administração de fármacos. É mais segura,
mais conveniente, não invasiva e geralmente indolor. Para a administração por essa via, o fármaco não
precisa ser estéril e geralmente não é necessária assistência de profissional qualificado para realizar a
administração ao paciente, o que faz da via oral a via mais econômica.

As formas farmacêuticas sólidas (pós, comprimidos, cápsulas, drágeas, comprimidos) e líquidas


(elixires, xaropes, emulsões, misturas) podem ser administradas por via oral. Fármacos administrados
por essa via precisam ser engolidos, e a absorção ocorrerá principalmente na mucosa do estômago e
do intestino.

Entre as desvantagens ou limitações da administração de fármacos por via oral, temos:

• O início da ação dos fármacos é mais lento e, portanto, não é uma via adequada para emergências.

• Fármacos com sabor desagradável (por exemplo, o cloranfenicol) são difíceis de administrar. Para
contornar esse problema, eles podem ser acondicionados em cápsulas, por exemplo.

• A administração por via oral pode causar náuseas e vômitos.

• Não pode ser usado em pacientes não cooperantes, inconscientes ou apresentando vômitos.

17
Unidade I

• Após a administração por via oral, a absorção do fármaco pode ser variável e irregular, sendo que
certos fármacos não são absorvidos (por exemplo, a estreptomicina).

• Há fármacos que são destruídos pelas enzimas digestivas (por exemplo, a penicilina G e a insulina)
ou pelo fígado (por exemplo, a testosterona e a lidocaína). Esses fármacos geralmente são
administrados por outras vias.

Sublingual

Na via sublingual, o comprimido contendo o fármaco é colocado sob a língua ou é esmagado na


boca e espalhado sobre a mucosa oral. Apenas medicamentos lipossolúveis e não irritantes podem ser
administrados por essa via.

A absorção é relativamente rápida, sendo que o início da ação pode ser observado em minutos. Embora
seja um pouco inconveniente, pode-se cuspir a forma farmacêutica após a obtenção do efeito desejado.
A principal vantagem é que o medicamento, uma vez absorvido, passa diretamente para a circulação
sistêmica, sem sofrer metabolismo hepático de primeira passagem. Infelizmente, poucos medicamentos
disponíveis no mercado podem ser administrados por via sublingual (por exemplo, gliceril trinitrato).

Retal

A via de administração retal pode ser usada quando o paciente está inconsciente ou está apresentando
vômitos recorrentes. No entanto, a maioria dos pacientes a considera como uma via de administração bastante
inconveniente e, muitas vezes, constrangedora. Certos medicamentos irritantes ou de sabor desagradável
também podem ser colocados no reto, como supositórios ou como enema para efeito sistêmico.

A absorção pela via retal é lenta, irregular e muitas vezes imprevisível. O medicamento absorvido
após a administração pela via retal passa para as veias hemorroidais externas (cerca de 50%) e cai na
circulação sistêmica sem atingir o fígado, porém o medicamento absorvido que passa para as veias
hemorroidais internas atinge o fígado, ou seja, sofre metabolismo de primeira passagem. Medicamentos
irritantes podem causar inflamação retal.

Cutânea

Fármacos altamente lipossolúveis podem ser aplicados sobre a pele e serão absorvidos de forma
lenta e prolongada até a circulação sistêmica. O fármaco pode ser incorporado em uma pomada, creme
ou gel e ser aplicado em uma área específica da pele.

Sistemas terapêuticos transdérmicos são adesivos de várias formas e tamanhos que liberam o
fármaco numa taxa constante na circulação sistêmica através da pele. Nesses sistemas, ele é mantido
em um reservatório entre um filme de suporte oclusivo e uma membrana de microporos de controle de
taxa, cuja superfície inferior possui um adesivo impregnado com a dose inicial do fármaco. A camada
adesiva é protegida por outro filme que deve ser retirado imediatamente antes da aplicação.

18
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

O fármaco é liberado na superfície da pele por difusão para absorção percutânea na circulação.
Embora mais caros, eles fornecem concentrações plasmáticas do fármaco sem flutuações, minimizando
as variações interindividuais e os efeitos adversos. Eles também são mais convenientes – muitos
pacientes preferem adesivos transdérmicos aos comprimidos orais do mesmo fármaco, o que garante
maior adesão ao tratamento. Em alguns pacientes pode ocorrer irritação local e eritema, mas geralmente
são manifestações leves.

Inalatória

Líquidos e gases voláteis são administrados por inalação para ação sistêmica (por exemplo, os
anestésicos gerais halotano, isoflurano e o óxido nitroso). A absorção ocorre na ampla superfície dos
alvéolos, e o início da ação do fármaco é muito rápido.

Quando a administração é interrompida, o medicamento difunde-se novamente do tecido para a


circulação sistêmica e é rapidamente eliminado no ar expirado. Vapores irritantes (por exemplo, éter)
causam inflamação do trato respiratório e aumentam a secreção.

Nasal

A membrana mucosa do nariz pode absorver facilmente alguns poucos medicamentos (por exemplo,
insulina, agonistas do GnRH e desmopressina). Com isso, evita-se a ação dos sucos digestivos e o
metabolismo hepático de primeira passagem.

Observação

Em junho de 2019, a Anvisa autorizou a comercialização da insulina


inalável. Trata-se de um pó, comercializado em cartuchos com três tipos
de dosagem, semelhante às “bombinhas” para asma. A substância é levada
ao pulmão e absorvida pela corrente sanguínea e, assim, reduz os níveis de
glicemia (CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA, 2019).

Além de evitar as injeções de insulina após cada refeição, o pico de


ação da insulina inalável (50 minutos) é menor do que o da aplicada por
via subcutânea (30 a 40 minutos), o que proporciona melhor controle
da glicemia.

Parenteral

Convencionalmente, o termo parenteral refere-se à administração por injeção, que leva o fármaco
diretamente ao fluido tecidual ou sangue, sem ter que atravessar a mucosa enteral (gastrointestinal).
Assim, as limitações relacionadas à administração oral (enteral), como as náuseas e os vômitos decorrentes
da irritação gástrica, podem ser contornadas com a administração parenteral.

19
Unidade I

O início da ação do fármaco administrado por via parenteral é mais rápida, o que é um aspecto
importante em emergências. As vias parentéricas (ou parenterais) podem ser empregadas em pacientes
inconscientes, não cooperativos ou com vômito. Não há riscos de interferência de alimentos ou sucos
digestivos com o fármaco. Não há metabolismo de primeira passagem.

Quanto às desvantagens das vias parenterais, as principais são: a preparação deve ser esterilizada, o
que torna essa via mais cara; a técnica é invasiva e dolorosa; é necessária a assistência de outra pessoa,
embora a autoinjeção seja possível (por exemplo, insulina para diabéticos); há possibilidade de lesão
tecidual local e, em geral, a via parenteral é considerada mais “arriscada” que a oral.

As principais vias parenterais são:

• Subcutânea (s.c.): o fármaco é administrado no tecido subcutâneo, que é ricamente suprido pelos
nervos (fármacos irritantes não podem ser injetados), mas é menos vascularizado (a absorção é mais
lenta que a intramuscular). Apenas pequenos volumes podem ser injetados pela via subcutânea. A
autoinjeção é possível, porque não é necessária uma penetração profunda. Preparações de repositório
(depósito) que são suspensões aquosas podem ser injetadas para ação prolongada.

• Intramuscular (i.m.): o fármaco é injetado em um dos grandes músculos esqueléticos –


deltoide, tríceps, glúteo máximo, reto femoral etc. O músculo é menos rico em suprimentos de
nervos sensoriais (irritantes leves podem ser injetados) e é mais vascularizado, o que aumenta a
velocidade de absorção. É menos dolorosa, mas a autoinjeção geralmente é impraticável, porque
é necessária uma penetração profunda (veja a figura a seguir). Preparações de depósito (soluções
oleosas e suspensões aquosas) podem ser injetadas por essa via. Injeções intramusculares devem
ser evitadas em pacientes tratados com anticoagulantes, pois podem produzir hematoma local.

Injeção
Injeção intramuscular
subcutânea
Epiderme

Derme

Músculo Tecido
subcutâneo

Figura 2 – Diferença entre a injeção intramuscular e a subcutânea

20
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

• Intravenosa (i.v.): o fármaco pode ser injetado na forma de bolus (administração da quantidade
total do fármaco de uma só vez) ou pode ser infundido lentamente durante horas em uma
das veias superficiais. O fármaco atinge diretamente a corrente sanguínea, e os efeitos são
produzidos imediatamente, o que é extremamente útil em emergências. A camada íntima das
veias é insensível, e o fármaco é diluído no sangue; portanto, mesmo fármacos altamente
irritantes podem ser injetados pela via intravenosa, mas os riscos são tromboflebite da veia
injetada e necrose dos tecidos adjacentes, se ocorrer extravasamento. Devem ser injetadas por
via intravenosa apenas soluções aquosas (não é possível a administração de suspensões, pois as
partículas do fármaco podem causar embolia). A dose necessária do fármaco é menor pela via
intravenosa, pois a etapa de absorção é ultrapassada (100% do fármaco administrado atinge a
circulação sistêmica) e podem ser infundidos até grandes volumes (veja a figura a seguir). Essa
é a via de administração mais “arriscada”, pois os órgãos vitais como coração, cérebro etc. são
expostos a altas concentrações do fármaco.
200
Concentração no plasma

5 mg de midazolam por via intravenosa


(ng/mL)

100

5 mg de midazolam por via intramuscular


0
0 30 60 90
Tempo (minutos)

Figura 3 – Concentração plasmática do midazolam no plasma, após injeção de doses equivalentes (5 mg)
por via intravenosa e intramuscular. Observe que o pico de concentração plasmática é maior quando
o fármaco é administrado por via intravenosa, uma vez que, nesse caso, o fármaco é administrado
diretamente na circulação sistêmica

• Injeção intradérmica: é uma rota utilizada apenas para fins específicos. O fármaco é injetado na
pele, produzindo uma espécie de bolha (por exemplo, vacina BCG, testes de sensibilidade).

1.2 Absorção

Conforme Tracy (2011), absorção é a passagem do fármaco do local de administração para a


circulação sistêmica. Essa passagem ocorre através do tecido íntegro e, portanto, envolve vários
processos específicos, que incluem a administração do fármaco, sua dissolução nos líquidos corporais e
a passagem pela membrana plasmática das células.

A medida da quantidade de fármaco que é absorvido a partir do local é denominada


biodisponibilidade. Por definição, a biodisponibilidade é a fração do fármaco inalterado que
atinge a circulação sistêmica. Quando duas formas farmacêuticas contendo uma mesma dose de
determinado fármaco apresentam a mesma biodisponibilidade, dizemos que as formas farmacêuticas
são bioequivalentes.
21
Unidade I

Lembrete

Quando afirmamos que um medicamento genérico é bioquivalente ao


medicamento de referência, estamos dizendo que a velocidade e a extensão
da absorção desses dois medicamentos é a mesma.

Para que o fármaco seja absorvido, ele deverá atravessar barreiras biológicas, como as camadas
da pele, o endotélio vascular, o epitélio gastrointestinal e a barreira hematoencefálica. Essas barreiras
são constituídas de células, unidas entre si por diferentes tipos de junções intercelulares e banhadas
por um líquido intersticial que apresenta composição química própria. A composição química desse
líquido e as características físico-químicas da molécula do fármaco influenciam grandemente a
absorção dos fármacos.

As principais características físico-químicas do fármaco que influem na absorção são:

• Lipossolubilidade: quanto mais apolar a molécula for, maior a solubilidade da droga na membrana
plasmática, e mais fácil a travessia pelo mecanismo de difusão passiva.

• Hidrossolubilidade: fármacos polares e/ou muito grandes só atravessam a membrana das


células quando existem sistemas transportadores específicos ou poros hidrofílicos que facilitam a
passagem pela membrana. Esse parâmetro também influi na velocidade de dissolução do fármaco
nos meios biológicos.

• Estabilidade química da molécula do fármaco: permite um maior tempo de ação.

• Massa molecular: é a estimativa do tamanho e do volume das moléculas do fármaco. Quanto


maior a molécula do fármaco, maior a massa molecular e mais difícil será a passagem pela
membrana plasmática.

• Comportamento da molécula do fármaco em diferentes pHs: fármacos de caráter ácido e de


caráter básico comportam-se de maneira específica de acordo com o pH da solução.

1.2.1 Transporte através das membranas biológicas

Para que um fármaco possa atingir seus alvos intracelulares ou atravessar uma barreira, deve ser
capaz de atravessar a membrana plasmática. Esse processo ocorre por difusão simples, por difusão
facilitada, por transporte ativo ou por endocitose/pinocitose (veja a figura a seguir).

22
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Difusão passiva Difusão facilitada Endocitose/pinocitose


Fármaco Fármaco com alta
Proteína massa molecular
Difusão passiva de um Difusão passiva de um
fármaco hidrosolúvel fármaco lipossolúvel a transportadora
através de um canal partir da dissolução na
ou poro aquoso membrana plasmática
(aquaporina)
Fármaco Fármaco

Transporte ativo
Meio ATP ADP
extracelular
Membrana
plasmática
Ciroplasma Proteína
transportadora com
atividade ATPase

Figura 4 – Mecanismos de transportes do fármaco através da membrana

Todas as células do organismo humano são delimitadas por uma membrana plasmática constituída
de uma bicamada de fosfolipídeos. Esses fosfolipídeos apresentam uma região hidrofóbica e uma região
hidrofílica, posicionada em contato com os ambientes aquosos de dentro e de fora da célula.

Além dos componentes lipídicos, as membranas biológicas contêm numerosas proteínas diferentes.
Algumas dessas proteínas estão apenas ancoradas à superfície interna ou externa da membrana
plasmática, enquanto outras (proteínas transmembranares) atravessam a membrana plasmática e,
portanto, estão em contato tanto com o meio intra quanto com o meio extracelular.

A porção hidrofóbica da membrana plasmática representa uma importante barreira para o transporte
dos fármacos. As pequenas moléculas apolares são lipossolúveis e, portanto, são capazes de difundir‑se
facilmente através das membranas e atingir o meio intracelular. Um exemplo são os hormônios esteroidais
(cortisol, estrógeno, testosterona etc.). Sintetizados a partir do colesterol, eles atravessam livremente a
membrana plasmática das células, onde irão ativar seus alvos moleculares.

Conforme já discutido anteriormente, as moléculas apolares dissolvem-se livremente na camada lipídica


da membrana, difundindo-se prontamente através das membranas celulares. A solubilidade do fármaco
na membrana é função de seu coeficiente de partição óleo/água, parâmetro que indica a porcentagem de
fármaco dissolvido nos compartimentos aquoso e oleoso do tecido, e de seu coeficiente de difusão, que é
a medida da mobilidade das moléculas na camada lipídica. O transporte do fármaco através da membrana
plasmática também depende da sua concentração no microambiente em que a célula está localizada.

O problema é que a maioria dos fármacos usados na terapêutica são moléculas grandes e polares
(hidrossolúveis) o suficiente para que a passagem pela membrana plasmática seja prejudicada. As
moléculas que não são suficientemente lipossolúveis precisam de processos especiais para atravessar as
membranas biológicas, como canais hidrofílicos funcionais e sistemas específicos de transporte.
23
Unidade I

Algumas proteínas transmembranares possibilitam a passagem dos fármacos e de outras moléculas


polares através da membrana. Essas proteínas podem ser carreadoras especializadas em transportar
determinada substância endógena e, por extensão, também transportam o(s) fármaco(s) que apresentam
estrutura química semelhante a ela. Após a ligação do fármaco com a superfície extracelular dessas
proteínas carreadoras, ocorre uma alteração conformacional, que permite que tenha acesso ao interior
da célula. O transporte realizado por proteínas carreadoras pode depender de energia, na forma de ATP
(transporte ativo) ou não (difusão facilitada).

Alguns fármacos ligam-se a receptores de superfície celular específicos, deflagrando um processo


denominado endocitose, em que a membrana celular sofre invaginação e forma uma vesícula, a partir
da qual é subsequentemente liberado no interior da célula.

A difusão através das aquaporinas, glicoproteínas de membrana que formam um poro que atravessa
a membrana também é importante. No entanto, os poros formados por essas proteínas apresentam
diâmetro muito pequeno – em torno de 0,4 nm – para possibilitar a passagem da maioria das moléculas
de fármacos (que geralmente excedem 1 nm de diâmetro).

O processo de transporte através das células pode ocorrer por endocitose ou por pinocitose.
A pinocitose envolve a invaginação de parte da membrana celular e a captação, dentro da célula, de
uma pequena vesícula contendo constituintes extracelulares. O conteúdo da vesícula pode, então, ser
liberado dentro da célula ou estruído no outro lado desta. Esse mecanismo parece ser importante para o
transporte de algumas macromoléculas (por exemplo, a insulina, que cruza a barreira hematoencefálica
por esse processo), mas não para moléculas pequenas.

Em um modelo biológico ideal, o fármaco irá penetrar na célula por difusão simples até que suas
concentrações nos meios intracelular e extracelular sejam iguais. A velocidade de difusão depende da
área de exposição da membrana ao fármaco e da espessura e da permeabilidade da membrana e do
gradiente de concentração do fármaco através dela.

1.2.2 Características teciduais que influem na absorção dos fármacos

No tecido epitelial, as células são justapostas, ou seja, mantêm muito pouco espaço entre si, pois
estabelecem muitas junções intercelulares com as células vizinhas. Há muito pouco material extracelular
entre essas células. Assim, para atravessar a barreira epitelial, as moléculas devem atravessar pelo menos
duas membranas celulares (a interna e a externa). Isso também ocorre em relação à passagem pela
mucosa gastrointestinal e do túbulo renal.

A passagem do fármaco pela célula endotelial, por sua vez, é facilitada, devido ao espaço entre elas.
A célula endotelial é do tipo achatada, de espessura variável que recobre o interior dos vasos sanguíneos.
Nos capilares, elas são organizadas de maneira descontínua, formando lacunas, que são preenchidas
por uma matriz frouxa de proteínas que atuam como filtros, de forma que só permitem a passagem de
moléculas menores.

24
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

A permeabilidade do endotélio varia de um tecido para outro: em alguns órgãos, especialmente no


sistema nervoso central e na placenta, existem junções firmes (zônulas de oclusão ou tight junctions)
entre as células endoteliais, e o endotélio vascular é envolvido numa camada impermeável de células
periendoteliais, de forma que as substâncias pouco lipossolúveis não penetram facilmente, o que evita
lesões no cérebro ou no feto. Em outros órgãos, como o baço e o fígado, o endotélio não é contínuo,
tornando possível a livre passagem de substâncias químicas entre as células.

Outros fatores, como a vascularização do tecido no qual o fármaco foi administrado e a extensão de
tecido disponível para a absorção, também interferem na absorção dos fármacos.

A via oral é a principal via de administração de fármacos e, por esse motivo, iremos estudar mais a
fundo os fatores que regulam a absorção por essa via.

Em geral, cerca de 75% de um fármaco administrado por via oral é absorvido no período de 1 a
3 horas, mas numerosos fatores, alguns fisiológicos e outros relacionados com a formulação, alteram
essa absorção. Os principais fatores são: a presença ou não de conteúdo intestinal, a intensidade e a
frequência dos movimentos peristálticos, o fluxo sanguíneo esplâncnico, o tamanho das partículas do
fármaco e suas características físico-químicas, a forma farmacêutica etc.

Durante a primeira fase dos ensaios clínicos, a influência da alimentação sobre a absorção dos
fármacos é analisada. A presença de alimento no tubo digestório altera fluxo de sangue esplâncnico e,
quanto mais vascularizada a área de absorção, maior tende a ser a velocidade dela. De fato, diversos
fármacos (por exemplo, o propranolol) alcançam uma concentração plasmática mais alta se tomados
após uma refeição, provavelmente porque o alimento aumenta o fluxo sanguíneo esplâncnico.

No entanto, a absorção dos fármacos pela mucosa do trato gastrointestinal também resulta de
outros fatores, como o perfil de lipossolubilidade/hidrossolubilidade do fármaco, as características
do alimento ingerido e até mesmo a frequência dos peristaltismos. O movimento excessivamente
rápido do conteúdo intestinal observado em alguns tipos de diarreia pode, por exemplo, comprometer
a absorção.

O tamanho da partícula e a formulação exercem importantes efeitos sobre a absorção. Duas


formas farmacêuticas contendo a mesma dose de determinado fármaco podem apresentar padrões
distintos de absorção, por conta das características da formulação, daí a necessidade da realização
dos testes de bioequivalência. Esses testes são realizados dissolvendo-se as formas farmacêuticas
em condições controladas; elas serão bioequivalentes se o padrão de liberação do princípio ativo for
idêntico entre elas.

Os produtos terapêuticos são formulados de modo a produzir as características de absorção desejadas.


As cápsulas podem ser projetadas para permanecer intactas por algumas horas após a ingestão para
retardar a absorção; os comprimidos podem ter um revestimento resistente para produzir o mesmo efeito.
Em alguns casos, faz-se uma mistura de partículas de liberação lenta e rápida na mesma cápsula, a fim
de promover uma absorção rápida, mas sustentada. Sistemas farmacêuticos mais elaborados incluem
diversas preparações de liberação modificada que tornam possível administração menos frequente.
25
Unidade I

Tais preparações não somente aumentam o intervalo entre as doses, como também reduzem os efeitos
adversos relacionados com os altos picos de concentração plasmática após a administração de uma
formulação convencional (veja a figura a seguir).

Forma farmacêutica:
1. Revestimento entérico
2. Comprimido cápsula
3. Xarope, solução
4. Liberação estendida
5. Liberação retardada

1 2 3 4 5

Figura 5 – Padrão de absorção dos fármacos por via oral, de acordo com a forma farmacêutica.
As regiões do tubo digestório nas quais a absorção ocorre em maior velocidade estão sombreadas em vermelho

Quando os fármacos são engolidos, geralmente a intenção é que sejam absorvidos e causem efeito
sistêmico, porém existem exceções. A administração da vancomicina por via oral, por exemplo, visa
a eliminação do Clostridium difficile da luz intestinal em pacientes com colite pseudomembranosa.
Caso se deseje que esse antibiótico produza efeitos sistêmicos, deve-se administrá-lo por via
intravenosa, pois sua absorção por via oral é lenta e incompleta. Outros exemplos são a mesalazina, que
é comercializada em formulações contendo revestimento acrílico que somente sofre degradação no íleo
terminal, e cólon proximal, que constitui seu local de ação.

Fármacos administrados por via oral são absorvidos através do revestimento do estômago ou do
intestino delgado. Em alguns casos, alguns alimentos ou algum outro fármaco podem reduzir a absorção
de outro fármaco. Por exemplo, a tetraciclina é um antibiótico com capacidade quelante de íons cálcio,
ferro, magnésio e alumínio. Dessa forma, a tetraciclina não é absorvida adequadamente se for tomada

26
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

no período de uma hora após a ingestão de alimentos ou de complexos vitamínicos que contenham
cálcio (por exemplo, o leite e os laticínios).

Além disso, a presença de alimentos no sistema digestório pode alterar a motilidade intestinal e
interferir com a absorção do medicamento. Uma precaução importante é evitar a administração de
alimentos por uma hora antes ou algumas horas depois de ter tomado um fármaco, ou tomar diferentes
fármacos com um intervalo de pelo menos duas horas.

A forma farmacêutica de um fármaco pode interferir na absorção, de forma que os fármacos na


forma líquida são mais bem absorvidos que aqueles na forma sólida, pois nesse último caso deve ocorrer
dissolução para que haja absorção do princípio ativo.

Em relação à área de absorção e à concentração do fármaco, existe uma correlação positiva entre
esses fatores e o grau de absorção. Ou seja, quanto maior a circulação sanguínea e/ou a concentração do
fármaco na área de absorção, maior a taxa de absorção. A aplicação local de calor ou massagens pode
aumentar a circulação local, aumentado a taxa de absorção do fármaco administrado. Por outro lado, o
emprego de vasoconstritores pode limitar a circulação local e, consequentemente, a taxa de absorção.

1.2.3 Influência do pH na absorção dos fármacos

A capacidade de atravessar barreiras hidrofóbicas é fortemente influenciada pela lipossolubilidade


do fármaco. A velocidade de difusão de uma substância depende principalmente de seu tamanho
molecular, pois o coeficiente de difusão é inversamente proporcional à raiz quadrada da massa molecular
da substância. Consequentemente, enquanto moléculas grandes se difundem mais lentamente do que
as pequenas, a variação de acordo com a massa molecular é pouco significativa.

Os fármacos, em sua maioria, são substâncias químicas com propriedades de ácidos fracos ou bases
fracas e, portanto, em solução aquosa se apresentam parcialmente ionizados. A proporção entre a fração
ionizada e a fração não ionizada de um fármaco é determinada pelo pH do meio onde ele se encontra
dissolvido e da sua constante de dissociação (pKa). A difusão desses fármacos através das membranas
biológicas é grandemente afetada pelo seu grau de ionização.

A concentração do fármaco em cada um dos lados da membrana é determinada pela constante de


dissociação de ácido (pKa) do fármaco e pelo gradiente de pH através da membrana.

Para os fármacos que são ácidos fracos – como o fenobarbital e a aspirina –, a forma protonada
(HA) não apresenta carga elétrica e, portanto, atravessa a membrana plasmática com facilidade. Essa
forma protonada predomina em pH ácido e, portanto, fármacos que são ácidos fracos apresentam alta
velocidade de absorção em pHs ácidos, como no estômago. Ao atingir o meio intracelular, mais básico, o
fármaco de caráter ácido é desprotonado, e passa a ter carga elétrica (A-), o que faz com que ele tenha
menor probabilidade de atravessar novamente a membrana apical das células da mucosa e voltar para
a luz do estômago (“sequestro”).

27
Unidade I

Observação

O pKa é um parâmetro que representa o valor de pH em que 50% das


moléculas do fármaco encontra-se em sua forma ionizada (com carga elétrica).

No caso dos fármacos que são bases fracas, é observado o oposto: a forma protonada apresenta
carga elétrica (BH+) e, portanto, a absorção não é favorecida em pH ácido. Por outro lado, a forma
não protonada (B), que predomina em pH básico (por exemplo, no intestino), conseguirá atravessar a
membrana com facilidade. Ao atingir o meio intracelular, ocorre nova protonação, e a forma ionizada
fica “sequestrada” no interior da célula (veja a figura a seguir).

A. Ácido fraco Membrana A. Base fraca Membrana


lipídica lipídica

Compartimento Compartimento Compartimento Compartimento


corporal corporal corporal corporal

Figura 6 – Difusão da forma não ionizada de um ácido fraco (A) ou de uma base fraca (B) através da bicamada lipídica

Para um ácido fraco, A, a reação de ionização é:


Ka
HA H+ + A-

Sendo:

HA = forma molecular, protonada, do fármaco de caráter ácido.

H+ = próton livre.

A- = forma ionizada, não protonada, do fármaco de caráter ácido.

Ka = constante de dissociação do ácido, que indica a relação entre as concentrações da forma


protonada e da forma não protonada nas condições do equilíbrio.

No equilíbrio, a constante de dissociação do ácido, Ka, é expressa como:

28
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

 A − ]·[ H+ 
Ka =  
[HA ]
Onde:

[A-] = concentração, em mol/L, da forma ionizada do fármaco.

[H+] = concentração, em mol/L, de prótons livres.

[HA] = concentração, em mol/L, da forma não ionizada do fármaco.

Rearranjando a equação e transformando-a em uma função logarítmica, que é a melhor forma de


trabalharmos com concentração de prótons livres (H+) em solução, uma vez que a concentração deles
cresce exponencialmente em resposta às condições do meio, temos:

H+  = Ka· [ ]
HA
  A − 
 

− log H+  =
− logKa − log
[HA ]
A − 
 

Por definição, o valor negativo do logaritmo, na base 10, da concentração de H+ em solução (-log[H+])
é denominado pH (potencial hidrogeniônico). De maneira semelhante, -logKa passa a ser denominado
pKa. Assim, temos:

= pKa − log
pH
[HA ]
A − 
 

ou, reorganizando a fórmula,

A − 
= pKa + log  
pH
[HA ]
Essa equação chama-se equação de Henderson-Hasselbalch. Ela estima a relação entre as
concentrações da forma não ionizada e ionizada do fármaco em determinado pH, de acordo com seu
pKa (que expressa o pH no qual 50% das moléculas do fármaco encontram-se na forma não ionizada e
a outra metade, na forma ionizada).

29
Unidade I

Podemos expressar a equação da seguinte maneira:

= pK + log
pH
[ forma não protonada]
[ forma protonada]

De maneira semelhante, aplicando-se a fórmula a uma equação de dissociação de uma base fraca
que, em solução, comporta-se da seguinte maneira:
Kb
BH+ B + H+

Sendo:

BH+: forma ionizada, protonada, do fármaco de caráter básico.

H+: próton livre.

A-: forma molecular, não protonada, do fármaco de caráter básico.

A equação de Henderson-Hasselbach correspondente é a seguinte:

=
pH pKb + log
[B ]
BH+ 
 

Onde:

[B] = concentração, em mol/L, da forma não ionizada do fármaco de caráter básico.

[H+] = concentração, em mol/L, de prótons livres.

[BH+] = concentração, em mol/L, da forma ionizada do fármaco.

Por exemplo, consideremos o exemplo hipotético de um fármaco fracamente ácido com pKa = 4.
No estômago, que apresenta pH = 1, temos:

A − 
= pKa + log  
pH
[HA ]

A − 
= 4,0 + log  
1,0
[HA ]

30
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

A − 
log   = −3,0
[HA ]

A − 
  = 10 −3
[HA ]
Ou seja, a proporção entre a concentração da forma ionizada e a forma molecular é igual a 10-3 ou
0,001 (para cada uma partícula na forma ionizada A-, existem 1.000 partículas na forma molecular):

A − 
 = 1
[HA ] 103
A − 
 = 1
[HA ] 1000
Sob o ponto de vista da absorção, podemos afirmar que, no estômago, a forma protonada (HA, não
ionizada) do fármaco encontra-se numa concentração 1.000 vezes maior do que a forma desprotonada
(A-, ionizada), ou seja, 99,9% do fármaco estão na forma molecular, não ionizada, nesse ambiente ácido.
Como a forma molecular consegue atravessar a membrana plasmática com maior velocidade, a absorção
do fármaco, nessas condições, é favorecida.

Se realizarmos o mesmo cálculo considerando o pKa do fármaco (pKa = 4) e o pH do plasma (pH = 7,4,
porém vamos usar o valor aproximado de pH = 7), teremos o seguinte:

A − 
= pKa + log  
pH
[HA ]
A − 
= 4,0 + log  
7,0
[HA ]
A − 
  = 103
[HA ]
 A −  1000
 =
[HA ] 1
31
Unidade I

Portanto, no plasma, a relação entre a concentração das formas não protonada e protonada se inverte,
e temos 99,9% do fármaco na forma ionizada, forma que praticamente não atravessa de volta a membrana
plasmática das células. Portanto, nessas condições, o fármaco tende a ficar “sequestrado” no plasma.

Utilizando o mesmo raciocínio, para uma base fraca (por exemplo, petidina, pKa de 8,6) em um
meio alcalino (por exemplo, no intestino), a maior parte do fármaco está na forma protonada (B, não
ionizada). Em um compartimento de pH = 7,6, por exemplo, a forma protonada encontra-se numa
concentração 10 vezes maior do que a da forma desprotonada (BH+, ionizada), de forma que 90% do
fármaco encontra-se na forma molecular, sem cargas, nesse ambiente básico, e a absorção é favorecida.

Um cálculo semelhante para o estômago, cujo pH é de cerca de 1, demonstra que a situação é


invertida, com a maior parte do fármaco na forma desprotonada, com cargas. Portanto, no estômago a
absorção ocorre lentamente, pois a maioria das moléculas do fármaco encontram-se na forma ionizada.

Concluindo, a razão entre as formas ionizada e não ionizada de um fármaco é determinada pelo seu
pKa e pelo pH do compartimento. Presume-se que a forma não ionizada possa atravessar a membrana
e consequentemente alcançar concentrações iguais em cada compartimento do organismo, e que a
forma ionizada não consegue atravessá-la.

O resultado é que, no equilíbrio, a concentração total (ionizada + não ionizada) do fármaco será
diferente em cada compartimento do organismo, sendo possível fazer as seguintes generalizações:

• Fármacos de caráter ácido apresentam maior velocidade de absorção em compartimentos de pH


ácido (nos quais predomina a forma HA) e maior velocidade de excreção em urina básica (na qual
predomina a forma A-).

• Fármacos de caráter básico apresentam maior velocidade de absorção em compartimentos de pH


alcalino (nos quais predomina a forma B) e maior velocidade de excreção em urina ácida (na qual
predomina a forma BH+).

Deve-se mencionar que a partição pelo pH não é o principal determinante do local de absorção
de fármacos no trato gastrointestinal. Isso ocorre em razão da enorme área de absorção das vilosidades e
microvilosidades intestinais, comparada com a área de absorção do estômago, que é muito menor, diminuindo,
assim, sua importância. Desse modo, a absorção de um fármaco ácido, como a aspirina, é aumentada por
fármacos que aceleram o esvaziamento gástrico (por exemplo, metoclopramida) e retardada por fármacos que o
reduzem (por exemplo, a propantelina), apesar de o pH ácido do estômago favorecer a absorção de ácidos fracos.

A partição pelo pH tem algumas consequências muito importantes na clínica:

• A acidificação da urina acelera a eliminação de bases fracas e retarda a de ácidos fracos, enquanto
a alcalinização da urina tem o efeito oposto: reduz a eliminação de bases fracas e aumenta a de
ácidos fracos.

• O aumento do pH do plasma (por exemplo, pela administração de bicarbonato de sódio) faz


com que ácidos fracos sejam extraídos do SNC para o plasma. O oposto é verdadeiro, ou seja, a
redução do pH do plasma (por exemplo, pela administração de um inibidor da anidrase carbônica,
32
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

como a acetazolamida) faz com que ácidos fracos sejam concentrados no sistema nervoso central,
aumentando sua neurotoxicidade.

Portanto, caso um paciente apresente intoxicação por ácido acetilsalicílico, por exemplo, deve-se alcalinizar
a urina, o que pode ser atingido com a administração de bicarbonato de sódio ou de acetazolamida. Ambas
aumentam o pH urinário e, portanto, facilitam a eliminação dos salicilatos. Por outro lado, o bicarbonato
reduz a distribuição de salicilatos no sistema nervoso central, enquanto a acetazolamida a aumenta.

1.2.4 Interações medicamentosas que alteram a absorção dos fármacos

Em algumas situações, pode ser desejável retardar a absorção, para produzir um efeito local prolongado
ou para prolongar as ações sistêmicas. Essas interações são denominadas benéficas ou intencionais, pois são
vantajosas do ponto de vista terapêutico. Por exemplo, a adição de epinefrina (adrenalina) ao anestésico
local reduz a absorção do anestésico na circulação sistêmica, prolongando apropriadamente seu efeito; a
formulação de insulina com protamina e zinco produz uma forma de ação prolongada.

Outras interações causam prejuízo terapêutico e são, por esse motivo, denominadas interações
não intencionais ou fortuitas. Por exemplo, o fármaco A pode interagir física ou quimicamente com
o fármaco B no intestino e inibir a sua absorção: tanto os íons cálcio quanto os íons ferro formam
complexos insolúveis com a tetraciclina, retardando a sua absorção; a colestiramina, uma resina de
ligação ao ácido biliar, se liga a diversos fármacos (por exemplo, a varfarina e a digoxina), inibindo a sua
absorção se for administrada simultaneamente.

A absorção gastrointestinal é retardada por fármacos que inibem o esvaziamento gástrico, como a
atropina e os opioides, ou acelerada por fármacos que promovem o esvaziamento gástrico (por exemplo,
a metoclopramida). Por esse motivo, é necessário examinar atentamente a bula dos medicamentos, a
fim de saber se o medicamento em questão pode ou não ser associado aos medicamentos que alteram
o trânsito intestinal.

1.3 Distribuição

Conforme Tracy (2011), distribuição é o movimento do fármaco pela circulação sanguínea sistêmica
até os diversos tecidos do organismo (por exemplo, tecidos adiposo, muscular e cerebral) e dos tecidos
para a circulação sanguínea sistêmica.

A distribuição de um fármaco ocorre primariamente através do sistema circulatório, enquanto


o sistema linfático contribui com um componente menor. Na maioria das vezes, uma vez
administrado, o fármaco será absorvido e passará para a circulação sistêmica, sendo distribuído
rapidamente pelo organismo.

A distribuição não é uniforme em todo o organismo, sendo que os fármacos hidrossolúveis têm
tendência de permanecerem no sangue e no líquido ao redor das células (espaço intersticial) e os
fármacos lipossolúveis tendem a concentrar-se nos tecidos adiposos. Há ainda alguns fármacos que se
concentram em órgãos específicos, porque os tecidos nessa região têm uma afinidade diferenciada pelo
fármaco, promovendo sua retenção (por exemplo, o iodo na glândula tireoide).
33
Unidade I

A velocidade de penetração dos fármacos nos diferentes tecidos também é desigual, de forma que um
fármaco altamente lipossolúvel atravessa rapidamente a barreira hematoencefálica, atingindo de forma eficiente
o cérebro, ao passo que um fármaco hidrossolúvel não tem a mesma facilidade de atravessar essa barreira.

Alguns fármacos têm capacidade de se acumular em determinados tecidos, que atuam, portanto,
como reservatórios. Esses tecidos liberam lentamente o fármaco na circulação sanguínea sistêmica,
evitando a redução rápida dos níveis sanguíneos da substância e prolongando, assim, seu efeito. Alguns
fármacos, como os que se acumulam nos tecidos adiposos, saem dos tecidos tão lentamente que
circulam na corrente sanguínea por dias após a pessoa ter parado de tomar o medicamento.

A maioria das moléculas do fármaco, uma vez no compartimento sanguíneo, se ligam de maneira
reversível às proteínas presentes no plasma – principalmente à albumina, mas também à betaglobulina e à
glicoproteína ácida, entre outras. Esses fármacos geralmente são transferidos da corrente sanguínea para
os tecidos muito lentamente, uma vez que somente a fração livre do fármaco tem capacidade de deixar
o plasma para alcançar seu local de ação. Entre as frações livre e ligada do fármaco existe um equilíbrio
dinâmico, de forma que quando a fração livre abandona a circulação, uma nova porção do fármaco ligado
se libera das proteínas, refazendo esse equilíbrio. Dessa forma, a ligação às proteínas plasmáticas atua
como um reservatório de fármaco potencialmente ativo na corrente sanguínea (veja a figura a seguir).
Fármaco que Fármaco
não se liga que se liga
às proteínas às proteínas
plasmáticas plasmáticas

Efeito Efeito
Célula-alvo Célula-alvo

Biotransformação Biotransformação

Excreção renal Excreção renal


Concentração plasmática Concentração plasmática

Fármaco ligado
às proteínas
plasmáticas

Tempo Tempo

Figura 7 – Efeitos da ligação do fármaco às proteínas plasmáticas sobre a ação,


a biotransformação e a excreção do fármaco

34
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Se houver alterações nos níveis dessas proteínas plasmáticas, como nas hipoproteinemias, ocorre
aumento da toxicidade dos fármacos que apresentam alta afinidade a essas proteínas, pois a concentração
do fármaco livre no plasma aumentará. De maneira semelhante, a administração concomitante de
dois ou mais fármacos que se ligam à mesma proteína plasmática pode resultar numa concentração
plasmática da forma livre de um ou de ambos os fármacos mais alta do que o esperado, devido à
competição pelo mesmo sítio de ligação.

A concentração aumentada de fármaco livre (desligado das proteínas plasmáticas) pode resultar
em efeitos terapêuticos e/ou tóxicos exacerbados. Nesses casos, podemos deduzir que será necessário
ajustar o esquema de dosagem de um ou de ambos os fármacos, de modo que a concentração de
fármaco livre possa retornar à sua faixa terapêutica. Entretanto, na prática, esse tipo de ajuste é difícil
de ser realizado, pois, muitas vezes, a taxa de excreção é aumentada quando os fármacos são deslocados de
seus sítios de ligação nas proteínas plasmáticas e passam a se encontrar livres no plasma.

Os fármacos abandonam a via circulatória para o espaço intercelular pela difusão através das
membranas celulares dos capilares ou ainda por poros ou fenestrações presentes nas paredes dos
capilares. A velocidade com que a concentração de um determinado fármaco livre atinge o equilíbrio
entre o plasma e o líquido dos demais compartimentos depende basicamente do grau específico de
vascularização de um determinado tecido. Esse equilíbrio é atingido mais rapidamente em órgãos bem
perfundidos, como o coração, o fígado, os rins e o cérebro (denominados compartimentos centrais), do
que em outros órgãos, cujo aporte de sangue é menor (pele, ossos e depósitos de gordura, denominados
compartimentos periféricos).

A distribuição de um determinado fármaco pode variar de pessoa para pessoa. Por exemplo, pessoas
obesas e idosos (que apresentam, em geral, maior proporção de gordura corporal) tendem a armazenar
uma grande quantidade de fármacos lipossolúveis, ao passo que pessoas muito magras podem armazenar
relativamente pouco.

Os distúrbios hepáticos reduzem a síntese proteica, podendo produzir proteínas anômalas,


alterar enzimas hepáticas ou promover variações na bilirrubinemia. Em particular, a cirrose hepática
e a hepatite por vírus podem diminuir a ligação de diversos fármacos às proteínas plasmáticas,
como a fenitoína, o diazepam e o clordiazepóxido, o que acarreta mudanças farmacocinéticas
importantes. Algumas disfunções renais podem levar a hipoproteinemia, causando também
alterações farmacocinéticas relevantes.

A idade do indivíduo determina alterações fisiológicas importantes que podem levar a alterações
significativas na farmacocinética. Assim, os recém-nascidos têm níveis menores de proteínas plasmáticas,
além da presença de uma proteína chamada alfafetoproteína, que não tem a capacidade de se ligar
aos fármacos. Isso resulta em uma maior proporção de fármaco livre e, consequentemente, maior
disponibilidade dele, o que pode causar aumento da ação farmacológica ou até mesmo um efeito tóxico.
Em contrapartida, nos indivíduos idosos há redução do clearance, do volume total de água e da massa
muscular e aumento dos depósitos de gordura corporal. Esses fatores, em conjunto, podem acarretar
aumento do volume de distribuição de fármacos lipossolúveis e diminuição desse parâmetro farmacocinético
nos fármacos hidrossolúveis.
35
Unidade I

Na gravidez, ocorre aumento do volume plasmático da gestante e também alteração na concentração


plasmática das proteínas, o que pode levar a alterações nas proporções das ligações dos fármacos a
essas proteínas e, consequentemente, mudanças nos parâmetros farmacocinéticos.

1.3.1 Cinética de distribuição dos fármacos

À medida que os fármacos vão sendo absorvidos, sua concentração plasmática aumenta, até atingir um
pico (concentração plasmática máxima). Em seguida, o fármaco presente no compartimento intravascular
distribui-se rapidamente para outros compartimentos do corpo, o que faz com que a concentração plasmática
do fármaco caia gradativamente. Mesmo quando se atinge o equilíbrio dessas concentrações plasmáticas do
fármaco no compartimento vascular e nos locais de distribuição, a sua concentração plasmática continua
declinando, devido à biostransformação e à eliminação do fármaco livre no plasma. À medida que este vai
sendo excretado, suas moléculas presentes nos diferentes tecidos vão sendo gradativamente difundidas
novamente para o sangue, até a total excreção. Por esse motivo, quando existe um reservatório para o
fármaco, sua excreção tende a ser lenta.

O declínio da concentração plasmática de um fármaco pode ser estudado com o uso de um modelo
de quatro compartimentos, constituídos pelo sangue, tecidos altamente vascularizados, tecido muscular
e tecido adiposo.

Imagine um medicamento administrado por bolus intravenoso: a concentração plasmática máxima


do fármaco (pico de concentração) é alcançada logo após a administração e corresponde à dose
administrada. Em seguida, a concentração do fármaco aumenta em primeiro lugar no compartimento
que engloba os tecidos altamente vascularizados, visto que o elevado fluxo sanguíneo recebido favorece
cineticamente a entrada do fármaco nessas regiões. No entanto, geralmente o tecido muscular e o
tecido adiposo exibem maior capacidade de captar o fármaco do que o compartimento altamente
vascularizado. O tecido adiposo, em particular, devido à grande quantidade de lipídeos no interior de
suas células, é frequentemente aquele que apresenta maior potencial de captar um fármaco lipossolúvel.
Ele irá se difundir lentamente desse tecido, devido à baixa vascularização deste: por conta dos diferentes
graus de vascularização, em geral os fármacos tendem a sair mais rapidamente do compartimento
altamente vascularizado, seguidos do tecido muscular e, por fim, do tecido adiposo.

O padrão de distribuição do fármaco também depende do estado geral do paciente. Por exemplo,
a massa muscular tende a diminuir com a idade, o que diminui a contribuição da captação muscular
nesse parâmetro. Observa-se o efeito oposto em um atleta, que apresenta maior massa muscular. Como
terceiro exemplo, podemos esperar que um indivíduo obeso tenha maior capacidade de captação de um
fármaco no tecido adiposo.

1.3.2 Interações medicamentosas que alteram a distribuição dos fármacos

Quando dois fármacos, A e B, competem pela ligação a uma mesma proteína plasmática, sua
distribuição é afetada de maneira dependente da afinidade do fármaco por essa proteína. Suponha
que o fármaco A apresente alta afinidade de ligação a uma proteína plasmática e o fármaco B baixa
afinidade. O fármaco A, que apresenta maior afinidade pela proteína, permanece ligado a ela por mais
36
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

tempo e, como consequência, sua liberação para o plasma ocorre de maneira mais lenta e gradual. Assim,
podemos dizer que o tempo de meia-vida plasmática do fármaco A aumenta na presença do fármaco B.

Observação

Tempo de meia-vida plasmática é o tempo necessário, a partir do


momento da aplicação, para que a concentração plasmática do fármaco
caia pela metade.

Por outro lado, o fármaco B, que apresenta menor afinidade pela proteína plasmática, tende
a permanecer livre no plasma, o que, em um primeiro momento, resulta em uma maior quantidade
de fármaco distribuído aos diferentes órgãos e tecidos. Isso pode resultar em aumento das respostas
terapêuticas induzidas pelo fármaco B – afinal, a maioria das respostas farmacológicas é dose-dependente –,
mas também no aparecimento de efeitos tóxicos, geralmente observados frente a concentrações mais
elevadas. Em paralelo, o fármaco B é eliminado mais rapidamente do organismo: a concentração de
fármaco B livre no fígado e em outros órgãos metabolizadores também aumenta, o que leva a uma
maior taxa de biotransformação e excreção. O resultado final é diminuição do tempo de meia-vida
plasmática do fármaco B na presença do fármaco A.

Um exemplo desse tipo de interação é a associação da varfarina, um anticoagulante, com o


pentobarbital, um sedativo hipnótico. O pentobarbital se liga com maior afinidade à albumina e, como
consequência, a concentração plasmática da varfarina livre aumenta. Essa condição resulta, em um
primeiro momento, numa maior probabilidade de se desenvolver hemorragias (pois o efeito terapêutico
da varfarina sobre a coagulação é exacerbado), mas também na diminuição do tempo de meia-vida
plasmática desse anticoagulante (pois existe uma maior proporção de fármaco livre no plasma disponível
para ser biotransformado e excretado).

Há muitos exemplos em que fármacos, além de competirem com outras substâncias pela ligação às
proteínas plasmáticas, também reduzem a excreção do fármaco deslocado, o que aumenta a chance de
desenvolvimento de efeitos tóxicos. Os salicilatos, por exemplo, deslocam o metotrexato de sua ligação
com a albumina e reduzem a sua secreção para o interior do néfron. Diversos antiarrítmicos (quinidina,
verapamil e amiodarona, por exemplo) deslocam a digoxina, usada no tratamento da insuficiência
cardíaca, do seu sítio de ligação no tecido, enquanto reduzem, ao mesmo tempo, a sua eliminação
renal. Como consequência, aumenta a chance de desenvolvimento de efeitos tóxicos relacionados ao
aumento das concentrações plasmáticas de digoxina (alterações cardiovasculares, como arritmias e
contraturas, aumento do tônus parassimpático, confusão mental, convulsões etc.).

1.4 Biotransformação

Tracy (2011) afirma que a biotransformação consiste na alteração, mediada por enzimas, da estrutura
química do fármaco, visando sua eliminação do organismo. As reações de biotransformação consistem na
adição de moléculas conjugadas que aumentam a hidrossolubilidade do fármaco, favorecendo sua eliminação.

37
Unidade I

Diversos órgãos têm a capacidade de biotransformar diferentes substâncias, incluindo os fármacos.


Os rins, o trato gastrointestinal, os pulmões, a pele e outros tecidos expressam uma série de enzimas
capazes de alterar a estrutura química de uma variedade de fármacos. No entanto, o fígado é o órgão
que contém a maior diversidade e quantidade de enzimas e, portanto, é o principal órgão envolvido na
biotransformação dos fármacos.

Na biotransformação hepática, os fármacos que são suficientemente lipossolúveis adentram os


hepatócitos e, além disso, alguns fármacos hidrossolúveis são transportados para o citoplasma dessas
células por intermédio de proteínas transportadoras localizadas na membrana plasmática. Uma vez
no interior dos hepatócitos, as moléculas do fármaco ligam-se às enzimas de maneira específica,
obedecendo o modelo chave-fechadura. A enzima atua como um catalisador, ou seja, diminui a
energia de ativação necessária para que seja realizada determinada alteração na molécula do seu
substrato (que, neste caso, é o fármaco). Como resultado, é gerado um metabólito, que é o produto
da biotransformação do fármaco. Na maioria das vezes, o metabólito não apresenta atividade
farmacológica e é excretado mais rapidamente.

Alguns fármacos só apresentam atividade farmacológica depois de biotransformados, são os


denominados pró-fármacos, por serem administrados na forma inativa, e apresentarem atividade
farmacológica somente após a passagem pelo órgão que o metaboliza. Alguns exemplos são
a glutamildopamina, a levodopa, a codeína etc. Essa estratégia pode ser utilizada para facilitar a
biodisponibilidade oral, diminuir a toxicidade gastrointestinal e/ou prolongar a meia-vida plasmática
do fármaco.

Observação

Pró-fármaco é um medicamento cujas ações só são observadas após


sua biotransformação. O fármaco, portanto, é ingerido na forma inativa e
convertido na forma ativa após a biotransformação.

Nos medicamentos administrados por via oral, é necessário considerar que todo fármaco absorvido
pela mucosa do trato gastrointestinal (com exceção da mucosa oral e dos 2/3 distais da mucosa retal) é
obrigatoriamente conduzido para o fígado através da veia porta, antes de ser distribuído para a circulação
sistêmica. Uma vez que a maioria dos fármacos é biotransformada nos hepatócitos, esse metabolismo
de primeira passagem pelo fígado resulta em diminuição da biodisponibilidade do fármaco.

Lembrete

Biodisponibilidade é a fração do fármaco inalterado que atinge a


circulação sistêmica.

38
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

As reações de biotransformação são classificadas em reações de fase I e de fase II. As reações


de fase I promovem alterações químicas que tornam a molécula do fármaco mais reativa (oxidação,
redução e hidrólise), enquanto as reações de fase II promovem a adição de um conjugado à molécula
do fármaco, o que aumenta sua hidrossolubilidade.

1.4.1 Reações de fase I

O fígado possui uma série de enzimas que catalisam a oxidação, a redução ou a hidrólise de uma
série de substâncias químicas. Essas reações tornam a molécula mais instável e, portanto, mais propensa
a participar de outras reações químicas. Nesse contexto, podemos dizer que o maior objetivo das reações
de fase I é preparar as moléculas do substrato para as reações químicas da fase II, durante as quais
ocorrem alterações estruturais mais significativas.

O principal sistema enzimático que participa das reações de fase I é o sistema microssomal do
citocromo P450 (CYP450), e a reação oxidativa mais comum envolve a adição de um grupo hidroxila
ao fármaco. As reações catalisadas incluem N- e O-dealquilação, hidroxilação do anel aromático e da
cadeia lateral, formação de sulfóxido, N-oxidação, N-hidroxilação, desaminação das aminas primárias e
secundárias e substituição de um átomo de enxofre por um de oxigênio.

Até o momento, foram identificados 57 genes que codificam enzimas do CYP450. Essas enzimas
são organizadas em 18 famílias diferentes, de acordo com suas características funcionais, e estão
envolvidas na biotransformação de substâncias exógenas, incluindo fármacos e toxinas, e também na
síntese de muitos substratos importantes para o funcionamento do organismo, como os hormônios
esteroidais (cortisol, estrógeno, testosterona etc.), os ácidos graxos e os esteróis (como o colesterol e
os ácidos biliares).

Embora algumas enzimas se liguem especificamente a um único ou a poucos substratos (como


a aromatase, que se liga especificamente aos andrógenos, para convertê-los em estrógenos), outros
apresentam uma ampla gama de funções, como resultado da ligação a diversos substratos diferentes.
Isso garante que uma ampla gama de moléculas seja biotransformada por esse sistema enzimático.

A enzimas do citocromo P450 são classificadas de acordo com a organização de seus genes. Elas
recebem um número, de acordo com a família à qual pertencem (por exemplo, CYP1, CYP2), e uma letra,
que indica a subfamília (por exemplo, CYP1A, CYP2D). Em seguida dessa última letra, é adicionado mais
um número, que indica a isoforma (por exemplo, CYP1A1, CYP2D6).

Seis enzimas do CYP450 estão envolvidas no metabolismo de 90% dos fármacos. Essas enzimas
são a CYP1A2, a CYP2C9, a CYP2C19, a CYP3A5, a CYP2D6 e a CYP3A4. As duas últimas são as mais
importantes (veja a figura a seguir).

39
Unidade I

CYP2D6
19%

CYP3A4/5
36%
CYP2C8/9
16%

CYP1A2
11%
CYP2B6 CYP2C19
3% 8%
CYP2A6
3% CYP2E1
4%

Figura 8 – Contribuição relativa das principais isoformas do CYP450 na biotransformação dos fármacos

As enzimas do CYP450 estão ligadas à membrana das células e contêm pigmento heme. Nos seres
humanos, essas enzimas são encontradas principalmente no retículo endoplasmático e nas mitocôndrias
das células hepáticas. No entanto, elas também são encontradas em muitas outras células do corpo.

Existe uma grande variabilidade interindividual na sequência genética das enzimas do CYP450, o que
influencia bastante a taxa de decomposição dos fármacos em cada indivíduo. Um exemplo é a atividade
diminuída da N-acetiltransferase, que ocorre principalmente na população negra e acarreta aumento
da meia-vida plasmática de uma série de fármacos. O estudo das variações genéticas, denominadas
polimorfismos, dos genes que codificam proteínas envolvidas na resposta aos fármacos é realizado pela
farmacogenética e pela farmacogenômica.

O sequenciamento dos genes que codificam as enzimas do CYP450 permite avaliar se o indivíduo
se comportará como um metabolizador lento, intermediário ou rápido de determinado grupo de
fármacos. Isso ocorre porque vários dos polimorfismos podem resultar em enzimas que apresentam
atividade maior ou menor do que o normal. Assim, conhecer de antemão como se comporta a enzima
que será responsável pela biotransformação do fármaco que você está tomando permite que a dose do
medicamento seja ajustada, levando-se em conta a velocidade com que suas enzimas trabalham.

Saiba mais

O site da Universidade portuguesa do Algarve tem um banco de dados


com diversas dissertações e teses sobre aspectos da farmacogenômica.
Acesse e se atualize:

https://sapientia.ualg.pt/

40
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Além da variabilidade genética, outros fatores podem influenciar a função das enzimas do CYP450.
O suco de toranja (grapefruit) contém uma molécula chamada flavanol, que apresenta efeitos inibitórios
sobre vários representantes do CYP450, o que resulta no retardo da biotransformação de uma série de
fármacos e aumenta a chance de ocorrerem efeitos adversos e intoxicação.

Outros alimentos ativam as enzimas do CYP450. Os grelhados a carvão e os vegetais crus (por
exemplo, brócolis, couve-flor, rúcula, nabo e agrião) são dois exemplos. O fumo ativa o CYP1A2, o
que leva ao aumento da biotransformação hepática e à diminuição dos níveis plasmáticos de uma
série de fármacos. É por isso que o fumo diminui a eficácia de alguns analgésicos (como o propoxifeno)
e de alguns fármacos utilizados para asma (como a teofilina). O etanol é outro agente responsável por
induzir uma série de reações enzimáticas.

Observação

Você já ouviu dizer que o álcool “corta” o efeito de uma série de


medicamentos? Isso ocorre porque essa substância atua como um
indutor enzimático.

A biotransformação de medicamentos catalisados por isoenzimas do sistema microssomal hepático


(CYP) pode estar aumentada (por exemplo, CYP3A4, CYP2D6, CYP2C9) ou diminuída (por exemplo,
CYP1A2, CYP2C19) durante a gestação. Portanto, pode ser necessário ajustar a dose dos fármacos
administrados durante esse período.

1.4.2 Reações de fase II

Os metabólitos de fase I, de modo geral, são mais hidrossolúveis do que seus fármacos de origem, porém
essa maior hidrossolubilidade, na maioria das vezes, não é suficiente para assegurar sua eliminação renal.
Por esse motivo, esses metabólitos sofrem reações enzimáticas adicionais de fase II que, em geral,
inativam os fármacos quando estes ainda apresentam atividade farmacológica e adicionam conjugados
altamente hidrossolúveis, que são facilmente excretados na urina ou na bile.

As reações de fase II também são conhecidas como reações de conjugação. Elas envolvem o
acoplamento de um grupamento químico ao substrato (que é o metabólito formado nas reações de
fase I). Os principais grupamentos adicionados são o glicuronato (reações de glicuronidação), os radicais
sulfatos (reações de sulfatação), os acetatos (acetilação), os radicais metil (metilação), a glutationa
(conjugação com a glutationa) etc. As reações de metilação e acetilação, ao contrário das demais, não
aumentam a polaridade do metabólito, apenas contribuem para sua inativação.

1.4.3 Interações medicamentosas que alteram a biotransformação dos fármacos

Uma série de fármacos atuam inibindo ou induzindo a atividade de enzimas relacionadas com as
reações de fase I e fase II. Se o indivíduo estiver tomando dois fármacos, A e B, e o primeiro induzir
a enzima que biotransforma o fármaco B, o resultado será a diminuição da ação e da meia-vida
41
Unidade I

plasmática do fármaco B. Se, ao contrário, o fármaco A for um inibidor da enzima que biotransforma
o fármaco B, será observado aumento da meia-vida plasmática deste, com consequente aumento do
seu tempo de ação.

A rifampicina e o fenobarbital, por exemplo, são indutores das enzimas CYP2C9 e CYP2C10, o que
resulta no aumento da velocidade de biotransformação da varfarina, da fenitoína, do ibuprofeno e
da tolbutamida.

Pelo fato de os barbitúricos, como o fenobarbital, aumentarem a atividade enzimática no fígado,


fármacos como a varfarina tornam-se menos eficazes quando administrados concomitantemente. Por
isso, às vezes é necessário aumentar a dose de certos fármacos para compensar esse tipo de efeito.
Mas se a administração do fenobarbital for interrompida mais tarde, o nível de outros fármacos poderá
aumentar de forma drástica, levando a efeitos colaterais potencialmente graves.

A cimetidina, um fármaco utilizado no tratamento de úlceras, e os antibióticos ciprofloxacina e


eritromicina são exemplos de drogas que inibem (retardam) a atividade das enzimas hepáticas,
prolongando a ação da teofilina. A eritromicina afeta o metabolismo da terfenadina e do astemizol
(antialérgicos), levando a um acúmulo potencialmente importante desses fármacos.

Após administração do fármaco por tempo prolongado, pode ocorrer aumento da atividade do
sistema microssomal hepático induzida por ele. Esse fenômeno é definido como indução enzimática
microssomal e leva ao aparecimento de tolerância; o exemplo mais conhecido desse fenômeno é a
indução enzimática causada pelo uso contínuo do fenobarbital sódico (Gardenal®).

1.5 Excreção

Conforme Tracy (2011), as principais vias de excreção são a renal, a biliar, a pulmonar e a fecal.
Outras vias apresentam importância secundária, como a salivar, a mamária, a sudorípara e a lacrimal.
A excreção está intimamente ligada à biotransformação, já que uma das funções da biotransformação é
gerar compostos mais hidrossolúveis, que possam ser eliminados do organismo com mais facilidade.

Os fármacos e seus metabólitos são, na maioria das vezes, eliminados do organismo com a urina e/ou
com a bile. A excreção renal é a principal via, uma vez que a urina é o líquido de base aquosa que tem
como principal função a eliminação de produtos do metabolismo. Por outro lado, apenas um pequeno
número de fármacos é excretado juntamente à bile, sendo eliminado nas fezes.

Deve-se salientar que os mesmos fatores que afetam a absorção e a distribuição também poderão
afetar o processo de excreção, mas de modo inverso, ou seja, a excreção é mais facilitada caso o fármaco
possua elevada massa molecular, seja polar e esteja em sua forma ionizada. A velocidade de excreção renal
também sofre influência do pH da urina e do pKa ou pKb do fármaco, de maneira semelhante ao observado
na absorção.

42
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Observação

De maneira geral, fármacos de caráter ácido são bem absorvidos em pH


ácido e bem excretados em urina básica. Por outro lado, fármacos de caráter
básico são bem absorvidos em pH básico e bem excretados em urina ácida.

1.5.1 Excreção renal

O rim tem papel fundamental na homeostase do nosso corpo, pois é o responsável por filtrar os
líquidos corporais e eliminar substâncias tóxicas do organismo, além de participar da regulação do
equilíbrio ácido-base.

Os três mecanismos envolvidos na excreção renal são: a filtração glomerular, a secreção e a reabsorção
tubular renal.

A filtração glomerular renal é a primeira etapa, que ocorre quando o sangue passa pelo rim, mais
especificamente pelo glomérulo. A parede do capilar glomerular é formada por células endoteliais
fenestradas, que funcionam como uma barreira filtrante. A diferença de pressão faz com que as
substâncias saiam dos vasos do glomérulo e passem para a cápsula de Bowman, formando o filtrado
glomerular. Esse processo não é seletivo, e todas as moléculas e substâncias pequenas saem em direção
à cápsula de Bowman, enquanto as macromoléculas ficam retidas no sangue. Assim, fármacos de baixa
massa molecular que não estejam ligados a proteínas plasmáticas, assim como seus metabólitos, são
filtrados do sangue. O estado de ionização do fármaco também afeta a velocidade de filtração, de
forma que substâncias com carga elétrica negativa têm mais dificuldades em serem filtrados do que
aquelas em sua forma molecular, pois ocorre uma interação eletrostática entre o ânion e as cargas
negativas do poro capilar.

O filtrado glomerular segue por uma série de alças e ductos até atingir o ducto coletor. Durante
esse percurso, algumas substâncias podem ser secretadas diretamente nos túbulos renais e outras são
reabsorvidas e voltam para a circulação sistêmica.

Muitas substâncias de caráter ácido são transportadas para o filtrado glomerular por um sistema que
é destinado à secreção de substâncias de ocorrência natural, como o ácido úrico. O ácido acetilsalicílico,
por exemplo, pode competir com o ácido úrico pelo mesmo transportador, e com isso pode ocorrer o
surgimento da gota, devido ao acúmulo desse excreta nitrogenado no sangue.

A reabsorção tubular renal de ácidos e bases fracas em suas formas não ionizadas (lipossolúveis)
se processa por difusão passiva no nível dos túbulos proximal e distal. A relação entre a concentração
da forma ionizada e a da forma molecular depende do pH da urina e do pKa do fármaco (veja a figura
a seguir) e pode ser estimada pela equação de Henderson-Hasselbach, de maneira similar à observada
durante o processo de absorção (conforme vimos no tópico Influência do pH na absorção dos fármacos).

43
Unidade I

Fármaco de Fármaco de
caráter ácido Membrana caráter básico Membrana
do néfron do néfron
Sangue Urina Sangue Urina
pH 7,4 pH 6,0 pH 7,4 pH 6,0

Figura 9 – Ionização de fármacos de caráter ácido e básico e partição na urina e no sangue em função do pH urinário

Fatores fisiológicos ou patológicos que alteram a função renal influenciam a excreção renal de
fármacos. Na insuficiência renal, fármacos e metabólitos ativos excretados fundamentalmente pelo rim
podem se acumular, ocasionando efeitos tóxicos. Para evitar tal ocorrência, são necessários ajustes nos
esquemas terapêuticos. O fator idade figura como um dos principais interferentes na excreção renal de
fármacos, pois, com a idade, a velocidade de excreção renal tende a diminuir.

Em recém-nascidos e prematuros, a filtração glomerular e o fluxo plasmático renal são,


aproximadamente, 30% a 40% inferiores aos dos adultos, somente aproximando-se destes aos três
meses de idade. Logo, os parâmetros farmacocinéticos nos recém-nascidos são totalmente diferentes
dos observados em adultos, o que deve ser levado em consideração na escolha dos regimes terapêuticos.

1.5.2 Excreção biliar

Alguns fármacos e seus metabólitos são excretados com a bile, contra um gradiente de concentração.
Transportadores semelhantes aos que existem nos rins também estão presentes nos hepatócitos e
secretam ativamente fármacos para a bile. Os fármacos com massa molecular elevada e de natureza
anfipática têm maior probabilidade de serem excretados também na bile. Moléculas menores são, em
geral, excretadas apenas em quantidades mínimas. A conjugação, especialmente com ácido glicurônico,
facilita a excreção biliar.

Os fármacos excretados pela bile caem no intestino e podem ser reabsorvidos ativamente pela
mucosa intestinal. Esse fenômeno é denominado circulação êntero-hepática, na qual o metabólito
de uma substância é excretado por via biliar e, ao chegar no intestino, é reabsorvido pela mucosa
intestinal, em um processo que envolve a retirada prévia do conjugado (que, na maioria das vezes, é o

44
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

glicuronato) pelas enzimas das bactérias que compõem a microbiota intestinal. Ao atravessar a mucosa
intestinal, essas substâncias são direcionadas ao fígado, via sistema porta-hepático, onde voltam a ser
biotransformadas e excretadas na bile (veja a figura a seguir).

Hepatócito
Sinusoide
Excreção biliar
Vias biliares
Conjugação com
glicuronato

Veia porta

Desconjugação
Circulação por enzimas
entero-hepática bacterianas
Fármaco Absorção
Excreção reanal lipossolúvel pela mucosa
intestinal
Metabólito
hidrossolúvel

Figura 10 – Circulação êntero-hepática

As disfunções hepáticas podem afetar de forma marcante a excreção biliar, não somente por
reduzirem a produção de bile, mas também por reduzirem a atividade metabólica. Essas ocorrências
podem levar ao acúmulo do fármaco no organismo.

1.5.3 Outras vias de excreção

A excreção pulmonar envolve dois aspectos de interesse farmacológico: a excreção pelas glândulas
de secreção bronquiolar e a excreção através dos alvéolos. Através dos alvéolos são excretados
principalmente gases e substâncias voláteis por difusão simples, não existindo sistemas de transporte
especializados. O grau de solubilidade de gás na corrente sanguínea é o fator determinante da excreção
pelas vias aéreas, de forma que gases pouco solúveis são mais rapidamente excretados.

Outras vias de excreção são de menor importância. A excreção de fármacos no suor, na saliva, no
leite e na lágrima depende basicamente de difusão de forma lipossolúvel não ionizada através das
células epiteliais das glândulas. Assim, o pKa e o pH são fatores determinantes na quantidade total
de fármaco a ser secretado. As substâncias secretadas pela saliva costumam ser deglutidas; logo, seu
destino será o mesmo dos fármacos administrados por via oral.

45
Unidade I

1.5.4 Interações medicamentosas que alteram a excreção dos fármacos

Dois fármacos que competem pela mesma proteína transportadora podem alterar o padrão de
excreção de um dos fármacos. Por exemplo, a probenicida e a benzilpenicilina competem pelo transporte
para a cápsula de Bowman. A probenecida é preferencialmente transportada, o que retarda a excreção
urinária da benzilpenicilina e aumenta sua meia-vida plasmática e a duração da ação farmacológica.

Alguns fármacos atuam inibindo a circulação êntero-hepática dos fármacos. O carvão ativado e
as resinas de troca iônica podem ser utilizados para esse fim, uma vez que essas substâncias se ligam
fortemente à molécula do fármaco, impedindo que ele seja novamente biotransformado e absorvido.

1.6 Parâmetros farmacocinéticos de importância na prática clínica

Conforme já mencionado, a farmacocinética é o estudo quantitativo do desenvolvimento temporal


dos processos de absorção, distribuição, biotransformação e excreção dos fármacos, que acontecem em
sequência e simultaneamente e que determinam uma curva concentração plasmática versus tempo
(veja a figura a seguir).
Pico de concentração
plasmática
Concentração plasmática

Início do
efeito
Faixa
terapêutica

Duração da ação

Tempo
Período de AUC
latência

Figura 11 – Curva de concentração plasmática versus tempo de um fármaco,


após administração única, indicando os principais parâmetros farmacocinéticos

O conhecimento dos parâmetros farmacocinéticos e de como eles são regulados por vários fatores é
importante para que a posologia do medicamento seja ajustada com mais precisão e rapidez. A aplicação
dos princípios farmacocinéticos para individualizar a farmacoterapia é denominada de monitoramento
farmacológico terapêutico. Os parâmetros farmacocinéticos de maior relevância são:

• o pico de concentração plasmática, que representa a concentração máxima (Cmax) no


compartimento vascular;

• a área sob curva (AUC, do inglês area under the curve), que representa a medida fiel da quantidade
de fármaco que é absorvido;
46
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

• o tempo de meia-vida plasmática (t1/2), que é o tempo que um fármaco leva para reduzir sua
concentração plasmática à metade e independe da dose administrada;

• o volume de distribuição (Vd), que se refere ao volume total do líquido corporal no qual o fármaco
está distribuído;

• o clearance, ou depuração do fármaco, que é uma medida da excreção deste.

Para a maioria dos fármacos, existe uma relação entre os efeitos farmacológicos e a concentração
do fármaco disponível no sangue. As condições fisiopatológicas dos pacientes podem alterar esses
parâmetros farmacocinéticos e comprometer o desfecho clínico.

1.6.1 Concentração máxima (Cmax) ou pico de concentração plasmática

Após a administração de uma dose padronizada de um fármaco, sua concentração plasmática


aumenta, até atingir a concentração sérica máxima. Isso ocorre porque, num primeiro momento, a
velocidade de absorção é maior do que a velocidade de distribuição, biotransformação e excreção.
O pico de concentração plasmática depende da forma farmacêutica e da via de administração.

Na medida em que o fármaco é distribuído, biotransformado e excretado, a concentração no


sangue vai diminuindo progressivamente até tornar-se nula. Na administração de doses múltiplas, a
concentração do fármaco detectada no sangue antes da administração da dose seguinte (respeitando o
intervalo padronizado) corresponde à concentração sérica mínima.

1.6.2 Área sob a curva (AUC)

No gráfico da concentração plasmática do fármaco em função do tempo, a área sob a curva é


considerada representativa da quantidade total de fármaco absorvido.

A biodisponibilidade de um fármaco pode ser determinada pela razão entre a AUC para uma forma
de dosagem particular e a AUC para a forma intravenosa, uma vez que, por definição, a concentração do
fármaco que atingiu a circulação sistêmica após administração intravenosa corresponde ao total da dose,
ou seja, todo o fármaco administrado entra em circulação.

Assim, se a AUC do fármaco administrado por via intravenosa é igual a 1 e a AUC após a administração
da mesma dose do fármaco por via oral é igual a 0,6, temos que a biodisponibilidade do fármaco é de 60%.

1.6.3 Tempo de meia-vida plasmática (t1/2)

A meia-vida é um parâmetro que indica o tempo necessário para que uma grandeza tenha seu valor
reduzido para 50% do total. Por exemplo, a meia-vida de um isótopo radioativo é o tempo que demora
para que a radiação emitida pelo isótopo caia pela metade. No contexto da farmacocinética, o tempo de
meia-vida plasmática representa o tempo gasto para que a concentração plasmática ou a quantidade
original de um fármaco no organismo se reduza à metade. É importante não confundir esse termo com
47
Unidade I

o termo vida média, que indica o total do tempo necessário para que haja total depuração do fármaco
do organismo.

O tempo de meia-vida é um importante parâmetro farmacocinético. A partir dele, pode-se estimar


a rapidez com que ocorre a biotransformação e a excreção, o que permite estimar a duração do efeito
farmacológico e o regime posológico adequado. Geralmente, a segunda dose do medicamento é
administrada no tempo de meia-vida plasmática.

Após a administração de doses repetidas em intervalos que representam a meia-vida plasmática,


estabelece-se um equilíbrio, no qual o platô de concentração se mantém constante. Diz-se que a
concentração do estado de equilíbrio (Css) é alcançada após 4-6 intervalos de meia-vida: o paciente
alcançará 50% de equilíbrio dinâmico após uma meia-vida do fármaco, 75% de equilíbrio dinâmico após
duas meias-vidas, 87,5% após três meias vidas e 94% após quatro meias-vidas (veja a figura a seguir).

Aumento da concentração Estabelecimento do equilíbrio


Concentração plasmática

plasmática do fármaco após (velocidade e extensão de


sucessivas doses eliminação é igual à de absorção)

Meia-vida

Tempo

Doses

Figura 12 – Gráfico concentração plasmática versus tempo após administração de doses múltiplas

O tempo de meia-vida plasmática dos fármacos varia de pessoa para pessoa e pode ser influenciado
por muitos fatores, como o sexo, a idade, a presença de patologias, a interação com outros fármacos etc.

1.6.4 Volume de distribuição

O volume de distribuição (Vd) representa o volume total de líquido necessário para conter todo o
fármaco absorvido, de maneira que a concentração dele seja igual à concentração plasmática no estado
de equilíbrio dinâmico.

O Vd é baixo para os fármacos que ficam retidos no compartimento vascular (o fármaco distribui‑se
preferencialmente no volume sanguíneo) e alto para aqueles que sofrem amplas distribuição pelos
tecidos do organismo (o fármaco encontra-se distribuído em diferentes compartimentos do corpo, além
do sangue). Por esse motivo, fármacos que são amplamente distribuídos muitas vezes apresentam Vd
48
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

maior do que o volume de líquido corporal total. Um exemplo é o antiarrítmico amiodarona: seu Vd
é de 4.620 L, ou seja, seriam necessários 4.620 L de água para que a amiodarona absorvida atingisse
a mesma concentração observada no plasma. Na prática, isso significa que esse fármaco se encontra
muito diluído no sangue, pois foi preferencialmente distribuído para outros tecidos.

Esse parâmetro, embora não represente de maneira literal o que acontece no corpo, nos fornece
uma ideia da dose necessária para se obter efeito terapêutico: para dois fármacos de potência igual,
aquele que apresentar maior Vd geralmente necessitará de dose inicial maior para estabelecer uma
concentração plasmática terapêutica, pois ele tende a ficar retido em reservatórios.

Lembrete

Reservatórios são tecidos nos quais os fármacos tendem a permanecer


mais concentrados do que no plasma.

1.6.5 Clearance

O clearance, ou depuração plasmática, é um parâmetro que permite quantificar o fármaco eliminado


na urina, em relação à quantidade presente na circulação sistêmica. É definido como o volume de
plasma do qual o fármaco é completamente removido por unidade de tempo e, assim, é expresso em
volume por unidade de tempo (mL/min ou L/h).

A excreção de um fármaco pode ocorrer por diferentes vias. Somando-se as depurações individuais,
obtém-se a depuração sistêmica total. Quando o fármaco é totalmente excretado pelos rins sem sofrer
alterações, o clearance renal é calculado dividindo-se a velocidade de excreção urinária (mg/min) pela
sua concentração sanguínea (mg/mL).

Saiba mais

Um exemplo da aplicação dos parâmetros farmacocinéticos pode ser


visto em:

SOUZA, F. C. et al. Variações interindividuais na farmacocinética clínica de


cardiotônicos. Revista Brasileira de Cardiologia, v. 26, n. 3, p. 213 -220, 2013.

2 FARMACODINÂMICA

Antes de iniciar mais uma etapa de nosso aprendizado, vamos relembrar a definição de fármaco: é a
molécula que, ao interagir com alvos moleculares específicos presentes nas células e/ou tecidos de um
organismo, é capaz de alterar sua fisiologia – na maioria das vezes, no sentido da homeostase. Conhecer de
que maneira os fármacos interagem com esses substratos biológicos, e as consequências de tal interação,
é de essencial importância na farmacologia e constitui o estudo da farmacodinâmica.

49
Unidade I

Observação

A farmacodinâmica é o estudo da interação dos fármacos com alvos


moleculares específicos, a partir da qual gera-se uma resposta celular e/
ou tecidual.

De maneira simplificada, podemos dizer que, enquanto a farmacocinética avalia “o que o corpo
faz com o fármaco”, desde a administração até sua eliminação, a farmacodinâmica estuda “o que o
fármaco faz com o corpo”, ou seja, de que maneira determinadas substâncias são capazes de modular
mecanismos fisiológicos e, assim, alterar o funcionamento do organismo.

Observação

Você já se perguntou como, ao tomar um medicamento, o fármaco


“sabe” onde tem que atuar?

Na verdade, a sua ação é garantida pela combinação de seus parâmetros


farmacocinéticos e farmacodinâmicos: o fármaco atinge o local afetado
durante a etapa farmacocinética da distribuição e, uma vez nesse local,
interage com moléculas-alvo específicas, a fim de alterar o funcionamento
das células presentes no local afetado.

O estudo da farmacologia remonta do início do século XX. Nessa época, a natureza dos substratos
biológicos da ação dos fármacos não era conhecida. Em outras palavras, os pesquisadores da época
ainda não conheciam os componentes celulares capazes de interagir com os fármacos, nem como essa
interação acontecia. Em 1905, surge o conceito de “substância receptora”, introduzido pelo cientista inglês
John Newport Langley, que resume o conhecimento da época: as “drogas” exercem sua ação a partir da
combinação química com substâncias receptoras, o que resulta na modulação da fisiologia das células.

Lembrete

Em farmacologia, “droga”, do inglês drug, é sinônimo de “fármaco”. O


uso do termo “droga” não é mais recomendado pela Sociedade Brasileira de
Farmacologia e Terapêutica Experimental (SBFTe).

No decorrer do século XX, com o advento de técnicas experimentais que permitiram o estudo mais
aprofundado da bioquímica e da biologia molecular, foi possível entender exatamente no que consistem
as substâncias receptoras: são macromoléculas, de natureza proteica. Elas são responsáveis, por exemplo:

• pela manutenção da estrutura da célula (proteínas estruturais);

50
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

• pelo transporte de íons e de outras substâncias para fora ou para dentro da célula (proteínas
transportadoras);

• pela catálise das reações bioquímicas (enzimas);

• pela passagem de íons através da membrana plasmática (canais iônicos);

• pela ativação de mecanismos intracelulares que resultam na modulação da fisiologia celular


(receptores farmacológicos).

O quadro a seguir exemplifica cada uma das interações fármaco-receptor descritas anteriormente.
Observe o uso do termo mecanismo de ação, que descreve a natureza da interação química entre
fármacos e seus alvos moleculares:

Quadro 2 – Exemplo de interações entre fármacos e seus alvos moleculares

Alvo molecular Exemplo de fármaco Mecanismo de ação


Proteínas estruturais Colchicina Se liga à tubulina e, assim, desestabiliza os fusos mitóticos
Anti-inflamatórios Inibem a enzima ciclo-oxigenase (COX), responsável pela
Enzimas não esteroidais produção de prostaglandinas inflamatórias
Bloqueiam canais de sódio nos nervos nociceptivos e,
Canais iônicos Anestésicos locais assim, impedem a condução do estímulo doloroso para o
sistema nervoso central
Inibem a ATPase de sódio/potássio no músculo cardíaco, o
Proteínas transportadoras Glicosídeos cardíacos que aumenta a força de contração dos cardiomiócitos
Agonista dos receptores de glicocorticoides (GR),
Receptores farmacológicos Glicocorticoides importantes na modulação do metabolismo, da inflamação
e da imunidade adaptativa

A partir de agora, vamos entender melhor como os fármacos interagem com seus principais alvos:
as enzimas, os canais iônicos, as proteínas transportadoras e os receptores farmacológicos.

2.1 Alvos moleculares da ação de fármacos: enzimas, canais iônicos e


proteínas transportadoras

2.1.1 Enzimas

Enzimas são macromoléculas proteicas responsáveis por catalisar reações químicas que, na sua
ausência, normalmente não aconteceriam. As enzimas, portanto, atuam como agentes catalisadores
das reações bioquímicas que ocorrem nos meios intra e extracelular.

Observação

Catalisador é a substância que aumenta a velocidade de uma reação


química sem ser consumido durante o processo.
51
Unidade I

As enzimas diminuem a energia de ativação necessária para que uma reação química aconteça, o
que resulta no aumento da velocidade da reação e possibilita a formação de produtos que participam
do metabolismo das células.

Nas reações enzimáticas, a(s) molécula(s) de substrato se liga(m) ao sítio catalítico da enzima,
dando origem a uma ou mais moléculas de produto. Nesse processo, outras substâncias também
podem se ligar ao sítio catalítico ou ainda em outros sítios (sítios alostéricos) da enzima e, assim,
induzir ou inibir a atividade dela. Essas substâncias são denominadas, respectivamente, indutores e
inibidores enzimáticos.

Alguns fármacos são substratos de enzimas específicas e, ao serem administrados ao paciente,


resultam no aumento da formação de um produto enzimático com propriedades terapêuticas. Destes,
serão estudados na disciplina de farmacologia aplicada à biomedicina:

• Levodopa: é convertida em dopamina pela ação da enzima dopa descarboxilase. É utilizada no


tratamento da doença de Parkinson, que está relacionada à diminuição dos níveis de dopamina
no sistema nervoso central.

• Dopamina: substrato da enzima dopamina beta-hidroxilase, que a converte em norepinefrina. É


utilizada para aumentar o tônus simpático sobre o sistema cardiovascular.

• Metildopa: após duas etapas enzimáticas, resulta em metilnorepinefrina, um falso


neurotransmissor que diminui o tônus do sistema nervoso simpático e, assim, diminui a pressão
arterial. É utilizada no tratamento da hipertensão em gestantes.

Outros fármacos atuam sobre enzimas específicas, inibindo-as. São exemplos de fármacos
inibidores enzimáticos:

• Anticolinesterásicos: inibem a enzima acetilcolinesterase, responsável pela hidrólise do


neurotransmissor acetilcolina. Como resultado, a acetilcolina permanece por mais tempo na
fenda sináptica, o que resulta em aumento do tônus parassimpático.

• Carbidopa: inibe a enzima dopa-descarboxilase periférica. É administrada com a levodopa, para


que sua conversão a dopamina fique restrita ao sistema nervoso central.

• Inibidores da MAO: inibem a enzima monoamina oxidase (MAO), responsável pela hidrólise
das monoaminas (dopamina, norepinefrina e serotonina). Assim, o tempo de ação desses
neurotransmissores na fenda sináptica é aumentado, estratégia útil no tratamento da depressão.

• Inibidores da ECA: inibem a enzima conversora de angiotensina II (ECA). Com a diminuição da


produção de angiotensina II, potente vasoconstritor, ocorre diminuição da pressão arterial.

• Anti-inflamatórios não esteroidais: são os medicamentos mais utilizados no mundo, e apresentam


atividade analgésica, antitérmica e anti-inflamatória. Inibem a enzima ciclo-oxigenase (COX),
52
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

cuja atividade é essencial para a formação de prostaglandinas inflamatórias. Ao inibir a produção


dessas prostaglandinas, os sinais cardinais da inflamação são abolidos.

• Vigabatrina: inibe a enzima GABA-transaminase, responsável pela degradação do neurotransmissor


ácido gama-aminobutírico (GABA). Como consequência, ocorre aumento do tempo de ação desse
neurotransmissor no sistema nervoso central, o que é útil no tratamento da epilepsia.

Um esquema ilustrativo de inibição enzimática pode ser observado a seguir (veja a figura):
(a) Reação enzimática normal
Substrato
Sítio
ativo
Enzima

(b) Inibição Ligação do substrato Formação de


à enzima produtos
Substrato
Sítio
ativo
Enzima
Ligação do Inibição da
inibidor formação de
à enzima produtos

Figura 13 – Representação esquemática de uma reação enzimática (a) e da inibição


competitiva dela, pela ligação do inibidor ao sítio ativo da enzima (b)

Saiba mais

Os mecanismos de ação dos inibidores enzimáticos são abordados na


página 144 da obra a seguir:

BROWN, T. A. Bioquímica. Rio de janeiro: Guanabara Koogan, 2018.

2.1.2 Canais iônicos

Canais iônicos são proteínas que atravessam a membrana plasmática, formando um poro aquoso
que é permeável a determinados íons. Participam, assim, do equilíbrio iônico entre os meios intra e
extracelular, e ajudam a estabelecer a diferença de potencial elétrico entre esses dois meios.

Diversos fármacos atuam bloqueando a passagem de íons através desses canais. São classificados,
portanto, como bloqueadores de canais iônicos. Os principais são:

53
Unidade I

• Anestésicos locais: bloqueiam os canais de sódio presentes nos nervos nociceptivos, o que impede
o influxo de sódio e, portanto, a deflagração de potenciais de ação relacionados ao estímulo
doloroso. Curiosamente, esses fármacos, quando administrados por via intravenosa, apresentam
propriedade antiarrítmica, pois também são capazes de bloquear os canais de sódio presentes nas
células de condução do potencial de ação cardíaco.

• Bloqueadores dos canais de potássio: são antiarrítmicos que bloqueiam os canais de potássio das
células de condução cardíaca e, assim, impedem o efluxo de potássio relacionado à repolarização
dos cardiomiócitos.

• Bloqueadores dos canais de cálcio: popularmente conhecidos como “antagonistas” do cálcio,


bloqueiam o seu influxo e, assim, apresentam atividade antiarrítmica e anti-hipertensiva.

2.1.3 Proteínas transportadoras

Proteínas transportadoras também atravessam a membrana plasmática e são responsáveis pela


transferência de íons e de outras moléculas do meio intra para o extracelular, ou vice-versa. A transferência
é realizada a favor do gradiente de concentração (transporte passivo) ou contra ele (transporte ativo,
dependente de ATP). Serão estudados no decorrer da disciplina:

• Glicosídeos cardíacos: inibem a Na+/K+ ATPase presente nos cardiomiócitos, o que aumenta a
força de contração cardíaca.

• Inibidores da bomba de prótons (omeprazol e fármacos relacionados): inibem a H+/K+ ATPase nas
células parietais do estômago, o que diminui a concentração de ácido clorídrico no suco gástrico.

• Diuréticos de alça: inibem o cotransportador de Na+/K+/2Cl- nas células da alça de Henle do


néfron, o que promove aumento pronunciado da diurese.

• Diuréticos tiazídicos: inibem o cotransportador de Na+/Cl- nas células do túbulo contorcido


distal do néfron, o que promove aumento discreto da diurese.

• Antidepressivos tricíclicos: inibem a proteína que promove a recaptação das monoaminas da


fenda sináptica para o interior do neurônio. Com isso, o tempo de ação desses neurotransmissores
no sistema nervoso central aumenta.

• Fluoxetina e fármacos relacionados: inibem seletivamente a proteína que promove a recaptação


de serotonina. Usado no tratamento da depressão e dos transtornos da ansiedade.

• Tiagabina: anticonvulsivante que inibe a proteína que promove a recaptação de GABA da fenda
sináptica para o interior do neurônio.

54
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

2.2 Alvos moleculares da ação de fármacos: receptores

Os receptores farmacológicos, ou simplesmente receptores, são de especial interesse no estudo da


farmacologia, uma vez que constituem o alvo de grande parte dos fármacos disponíveis na atualidade.
Por esse motivo, vamos estudá-los em maiores detalhes.

Os receptores são macromoléculas proteicas, localizadas na membrana plasmática, no citoplasma


ou no núcleo das células, que apresentam algumas particularidades em relação aos demais alvos
moleculares estudados até o momento: ao serem ativados por um neurotransmissor, por um
hormônio ou mesmo por um fármaco, os receptores iniciam uma cascata de eventos bioquímicos
que resultam na resposta desejada. Assim, podemos dizer que os receptores intermedeiam a ação
dos fármacos, mas não são suficientes para que essa ação se manifeste, pois ela depende dos
mecanismos moleculares subjacentes.

Os receptores são, portanto, as moléculas que medeiam as ações dos neurotransmissores, dos
hormônios e de outras moléculas. Essas moléculas, produzidas pelo próprio organismo, são denominadas
ligantes endógenos. Elas são capazes de ativar seus receptores e, assim, iniciar a cascata de eventos
que culmina na resposta final.

De maneira simplificada, podemos dizer que os fármacos atuam sobre os receptores de duas
maneiras distintas: ativando-os ou impedindo sua ativação. Os primeiros são chamados de agonistas
e os segundos, de antagonistas. Os ligantes endógenos, uma vez que ativam os receptores, podem
ser classificados como agonistas. Em relação aos fármacos exógenos, eles podem ser agonistas ou
antagonistas do receptor, de acordo com a resposta final observada.

Na verdade, os conceitos de agonista e antagonista são mais complexos e serão trabalhados em maior
profundidade adiante, no tópico Farmacologia experimental: estudos da interação fármaco‑receptor,
porém as definições apresentadas até agora já permitem fazer a seguinte generalização: na maioria das
vezes, utiliza-se um agonista quando se pretende aumentar/reforçar a resposta fisiológica mediada por
determinado receptor; por outro lado, utiliza-se um antagonista quando se pretende que tal resposta
seja diminuída/atenuada.

Um exemplo é o adrenoceptor alfa-1, o receptor que responde aos estímulos do sistema nervoso
simpático sobre os vasos: a resposta mediada por ele é a vasoconstrição e, portanto, em casos de
hipotensão, pode-se administrar um agonista para que ocorra constrição nos vasos e a pressão
seja aumentada; por outro lado, em casos de hipertensão, tal vasoconstrição é evitada pelo uso
de um antagonista.

As etapas envolvidas na resposta mediada por receptores são as seguintes:

• Ligação do fármaco ao receptor: assim como para os demais alvos moleculares estudados
até o momento, a ligação do fármaco ao sítio de ligação do receptor obedece ao esquema de
chave-fechadura, ou seja, fármaco e sítio de ligação apresentam estruturas complementares.

55
Unidade I

• Ativação do receptor: é consequência da alteração conformacional do receptor promovida pela


ligação do fármaco. A ativação do receptor é responsável por desencadear a ativação das vias de
transdução de sinal que culminam com a alteração na fisiologia celular.

• Ativação de vias de transdução de sinal: após a ativação do receptor, uma cascata de eventos é
iniciada, e resultará na resposta final. Essa etapa varia significativamente quando comparamos as
diferentes classes de receptores. Nos casos em que a via de transdução de sinal envolve a ativação de
outras moléculas, presentes no interior da célula, elas recebem a designação “segundos mensageiros”.

As etapas da ativação dos receptores farmacológicos estão resumidas na figura a seguir:

Agonista

Receptor Alteração conformacional


(ativação)

Transdução de sinal

Resposta

Figura 14 – Etapas envolvidas nas respostas mediadas pelos receptores farmacológicos

Existem quatro classes de receptores, cada uma com características particulares: (1) os acoplados ao
canal iônico, ou ionotrópicos; (2) os que apresentam função enzimática; (3) os acoplados à proteína G,
ou metabotrópicos; e (4) os intracelulares.

2.2.1 Receptores ionotrópicos

Os receptores ionotrópicos são canais iônicos operados por ligantes e que, portanto, atravessam
a membrana plasmática. Nesses receptores, a abertura do poro iônico ocorre como consequência da
ligação do agonista ao sítio de ligação, localizado na porção extracelular de uma ou mais subunidades
que constituem o receptor. Portanto esses receptores diferem dos canais iônicos propriamente ditos,
nos quais a abertura do poro iônico depende de outros fatores relacionados ao microambiente celular
(geralmente, o potencial de membrana).

Uma das principais características da resposta mediada pelos receptores ionotrópicos é a velocidade
com que se estabelece a resposta final, cerca de milissegundos. Isso ocorre porque, no caso desses
receptores, não ocorre ativação de segundos mensageiros após a ativação do receptor: a abertura do
poro iônico, com a consequente passagem dos íons por ele, já é suficiente para se alcançar a resposta
final. Quando a abertura do poro iônico permite a entrada de íons positivos na célula (por exemplo, os
íons sódio), o resultado é a despolarização (excitação) dela; quando ocorre a entrada de íons negativos,
por outro lado, o resultado é a hiperpolarização (inibição celular).
56
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Dois exemplos dos fenômenos citados são a ativação dos receptores nicotínicos e dos receptores
gabaérgicos GABAA.

Os receptores nicotínicos são receptores ionotrópicos presentes na junção neuromuscular, no gânglio


autonômico e no sistema nervoso central. Esses receptores são constituídos de cinco subunidades
proteicas que atravessam a membrana plasmática das células. Independentemente da localização,
os receptores nicotínicos são ativados pelo neurotransmissor acetilcolina (que é, portanto, o ligante
endógeno). Como consequência, ocorre abertura do poro iônico, permeável a íons sódio (principalmente)
e cálcio (veja a figura a seguir).
Na+
Ach Ach

Extracelular

Intracelular

Na+

Figura 15 – Representação esquemática do receptor nicotínico, exemplo de receptor ionotrópico.


As subunidades do receptor estão indicadas, assim como os sítios de ligação à acetilcolina (ACh)

Na junção neuromuscular, a consequência da ativação do receptor nicotínico é a despolarização da


célula muscular esquelética e a consequente contração dela. Por outro lado, a ligação de um antagonista
ao receptor, como o pancurônio, desencadeia o bloqueio neuromuscular.

Os receptores GABAA também são receptores ionotrópicos, constituídos por cinco subunidades
transmembranares, amplamente distribuídos nos neurônios do sistema nervoso central. O ligante
endógeno desses receptores é o neurotransmissor ácido gama aminobutírico (GABA), que, ao se
ligar ao receptor, promove a abertura de canais de cloreto, o que hiperpolariza o neurônio (diminui
sua excitabilidade).

Os benzodiazepínicos e os barbitúricos são fármacos que potencializam a ação do GABA. Eles são
usados em condições do sistema nervoso central nas quais o rebaixamento da atividade é uma estratégia
terapêutica interessante, por exemplo, na ansiedade e na epilepsia.

2.2.2 Receptores enzimáticos

Os receptores enzimáticos são polipeptídeos que atravessam uma vez a membrana plasmática.
São constituídos de um domínio extracelular, no qual se localiza o sítio de ligação, e de um domínio
intracelular com função de tirosina quinase – ou, em alguns casos, de serina quinase ou guanilil ciclase.

57
Unidade I

Os receptores do fator de crescimento epidérmico (EGF, epidermal growth factor) e de insulina são
exemplos de receptores com função enzimática.

A sinalização mediada pelos receptores com função enzimática, em especial aqueles com função de
tirosina quinase, envolve a dimerização de dois domínios receptores e a autofosforilação dos resíduos
de tirosina presentes na sua porção intracelular (um domínio fosforila os resíduos de tirosina do outro,
e vice-versa). A seguir, ocorre a fosforilação de uma série de outras proteínas intracelulares (segundos
mensageiros), o que permite que um único receptor module uma série de processos bioquímicos
diferentes, que incluem a modulação do ciclo celular e da transcrição gênica. Alguns exemplos
de processos bioquímicos ativados são a via da ERK (extracelular regulated kinases), a via da PI-3
(phosphatidil inositol 3) quinase, entre outras (veja a figura a seguir).

EGF, TGF-alfa etc.

Fosforilações

Transcrição gênica
Cilco celular

Proliferação Inibição da apoptose


Angiogênese Migração, adesão e invasão

Figura 16 – Representação esquemática do receptor de EGF (EGFR), exemplo de receptor com função enzimática.
As principais vias de transdução de sinal ativadas (mTOR, STAT e ERK) estão indicadas

2.2.3 Receptores acoplados à proteína G

Os receptores acoplados à proteína G, ou receptores metabotrópicos, são macromoléculas


proteicas que apresentam 7 domínios transmembranares, isto é, atravessam sete vezes a membrana
plasmática, dando origem a três alças extracelulares e três alças intracelulares. O domínio amino‑terminal
encontra‑se na porção extracelular e o carboxi-terminal na região intracelular (veja a figura a seguir).

58
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Região GPCR
amino-terminal

Extracelular

Intracelular
Região
carboxi-terminal

Figura 17 – Estrutura dos receptores acoplados à proteína G (GPCR). A região amino-terminal extracelular, os sete domínios
transmembranares, as três alças extracelulares e as três alças e a região carboxi-terminal intracelular estão representadas

Cada uma das regiões dos receptores acoplados à proteína G apresenta uma função: o domínio
amino-terminal extracelular e/ou as três alças extracelulares estão relacionadas com a ligação ao
agonista, as três alças intracelulares são as regiões de ligação à proteína G e a região carboxi-terminal
constitui um domínio regulatório.
A proteína G é uma proteína ligadora de guanina constituída de três subunidades: alfa, beta e gama. No
estado de repouso (enquanto o receptor encontra-se no estado inativo), as três subunidades permanecem unidas,
e a subunidade alfa encontra-se ligada a uma molécula de GDP (guanina difosfato), de baixo valor energético.
A partir do momento em que o receptor é ativado pela ligação do agonista, ocorre o desligamento
da molécula de GDP da subunidade alfa, a ligação de uma molécula de GTP (guanina trifosfato), de
alto teor energético a ela, e a dissociação das subunidades alfa e beta-gama. A partir desse momento,
a proteína G encontra-se ativada e é capaz de ativar outras moléculas no interior da célula, iniciando
cascatas de eventos bioquímicos que culminarão na resposta final (veja a figura a seguir).

Receptor Proteína G Proteína Agonista


efetora

GDP
GTP

Figura 18 – Representação esquemática da ativação das proteínas G. Como consequência da ativação do receptor pelo agonista,
ocorre a liberação do GDP da proteína G e a ligação do GTP a ela. A proteína G ligada ao GTP é capaz de interagir com uma série
de moléculas efetoras, ativando-as. O término da resposta ocorre a partir da desfosforilação do GTP, que perde um
fosfato inorgânico (Pi), transformando-se em GDP

59
Unidade I

Existem diferentes subtipos de proteínas G, e cada uma delas é capaz de ativar uma via de sinalização
intracelular diferente. Assim, os segundos mensageiros ativados dependem do subtipo de proteína G
acoplada ao receptor.

Os principais subtipos de proteína G que serão estudados no decorrer da disciplina são: Gs (estimulatória),
Gi (inibitória) e Gq.

• A proteína Gs, quando ativada, ativa a enzima adenilil ciclase, ancorada à face interna da
membrana plasmática. A adenilil ciclase converte as moléculas de ATP presentes dentro da célula
em AMPc (monofosfato cíclico de adenosina), um importante segundo mensageiro capaz de
ativar uma série de enzimas, como a proteína quinase A (PKA, protein kinase A). A PKA, por sua
vez, fosforila outras enzimas e proteínas intracelulares, levando à ativação/inativação delas e à
consequente geração da resposta final.

• A proteína Gi, quando ativada, inativa a enzima adenilil ciclase. Como consequência, caem os
níveis intracelulares de AMPc e diminuem as fosforilações dependentes da PKA. É por esse motivo
que essa proteína G é denominada inibitória.

• A proteína Gq, quando ativada, ativa a enzima fosfolipase C, também ancorada à face interna
da membrana plasmática. Essa enzima converte fosfolípides de membrana em diacilglicerol
(DAG) e inositol trifosfato (IP3). O DAG ativa a proteína quinase C (PKC, protein kinase C), que
é sensível aos íons cálcio e a fosfolipídeos e é responsável por fosforilar proteínas específicas. O
IP3 se liga a seus receptores no retículo sarcoplasmático, o que desencadeia a liberação de íons
cálcio e, consequentemente, aumento de seus níveis intracelulares. Essa classe de proteína G está
relacionada, entre outras ações, à contração da musculatura lisa de vários tecidos.

No citoplasma das células, os íons cálcio, cujos níveis intracelulares podem estar aumentados
em decorrência da ativação dos receptores acoplados à Gq e à Gs, podem se ligar a uma proteína
denominada calmodulina. Essa proteína possui quatro sítios distintos para ligação de cálcio; quando
três ou quatro desses sítios estão ocupados pelo íon, ocorre alteração conformacional da estrutura
molecular da calmodulina, o que desencadeia múltiplos efeitos no interior da célula, como a ativação
da enzima miosina quinase, que atua diretamente sobre a miosina do músculo liso e desencadeia a
sua contração.

A figura a seguir ilustra as vias de sinalização intracelular envolvidos na ativação de cada um dos
subtipos de receptores acoplados à proteína G:

60
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Adelinil ciclase
DAG

Proteína quinase C
Fosfolipase C
GS Gi
Gq

ATP
AMPc IP3

Ca2+

Proteína quinase A
Ativação

Fosforilações
Fosforilações

Glicogenólise
Contração do músculo liso
Lipólise
Secreção glandular
Ativação de canais de cálcio
etc.
etc.

Figura 19 – Resumo das vias de sinalização intracelular relacionadas à ativação das proteínas Gs, Gi e Gq

Saiba mais

Leia mais sobre proteínas G em:

MOURA, P. R.; VIDAL, F. A. P. Transdução de sinais: uma revisão sobre


proteínas G. Scientia Medica, v. 21, n. 1, p. 31-36, 2011.

O quadro a seguir indica os principais receptores acoplados à proteína G, que são alvos de fármacos de
importância terapêutica e experimental. Na maioria dos casos, estão disponíveis agonistas e antagonistas
para cada um desses receptores, o que permite modular significativamente a fisiologia celular.

Lembrete

A ligação de um agonista ao receptor resulta na sua ativação. Por outro


lado, a ligação de um antagonista impede a ativação do receptor.

61
Unidade I

Quadro 3 – Principais receptores acoplados à proteína G

Receptor Classificação Importância terapêutica


Alfa-1: acoplado à Gq Agonistas e antagonistas dos receptores
Adrenoceptores adrenérgicos são capazes de modular a atividade
Alfa-2: acoplado à Gi
alfa e beta do sistema nervoso simpático e apresentam
Beta-1, 2 e 3: acoplados à Gs diversos usos terapêuticos
Agonistas e antagonistas dos receptores
Receptores M1, M3 e M5: acoplados à Gq muscarínicos são capazes de modular a atividade
muscarínicos M2 e M4: acoplados à Gi do sistema nervoso parassimpático e apresentam
diversos usos terapêuticos
Antagonistas desse receptor impedem sua
Receptores AT1 Acoplados à proteína Gq ativação pela angiotensina II, o que resulta em
de angiotensina II
diminuição da pressão arterial
Agonistas que ativam os receptores opioides
Receptores Acoplados à proteína Gi apresentam efeito analgésico, pois potencializam
opioides a via inibitória da dor
Receptores D2 de Antagonistas desses receptores são utilizados no
Acoplados à proteína Gi
dopamina tratamento da esquizofrenia

2.2.4 Receptores intracelulares

Os receptores intracelulares antigamente eram chamados de receptores nucleares, uma vez que o
resultado final de sua ativação envolve a regulação da expressão dos genes, que se encontram no núcleo
da célula. Isso resulta em alterações do tipo e da quantidade de proteínas produzidas pelas células.

A superfamília dos receptores intracelulares inclui duas subclasses. Os receptores de hormônios


esteroidais encontram-se predominantemente no citoplasma da célula quando estão inativos. Os demais
receptores intracelulares – que respondem aos hormônios tireoidianos, à vitamina D, à vitamina A (ácido
retinoico) etc. – encontram-se no núcleo da célula, em ambas as formas inativa e ativa.

Receptores de hormônios esteroidais

Quando inativos, os receptores dos hormônios esteroidais encontram-se no citoplasma, ancoradas


ao citoesqueleto celular. Nesse estado, os receptores estão associados a proteínas de choque térmico
(HSP, heat shock proteins).

Os principais hormônios esteroidais são a testosterona, os estrógenos, a progesterona, o cortisol e a


aldosterona. A molécula precursora desses hormônios é o colesterol e, por esse motivo, eles atravessam
facilmente a membrana plasmática em direção ao meio intracelular. Uma vez dentro da célula, se ligam
aos respectivos receptores, o que desencadeia a ativação deles e o desligamento das HSP.

Na ausência da ligação com as HSP, o complexo ligante-receptor ativado migra para o núcleo e
interage com regiões promotoras de genes específicos, ativando ou reprimindo a expressão gênica, a
depender do gene. Em outras palavras, a ativação dos receptores intracelulares leva ao aumento da
expressão de alguns genes e à diminuição da expressão de outros (veja a figura a seguir).

62
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Citoplasma
Núcleo

Transcrição
Tradução
Hormônio Proteína
esteroidal

DNA mRNA

Receptor

Figura 20 – Representação esquemática da via de transdução de sinal ativada pelos receptores de hormônios esteroidais

A transcrição do DNA é a formação de uma fita de RNA complementar à sequência do gene-alvo. Esse
RNA é processado e dá origem ao RNA mensageiro (RNAm), que sai do núcleo e é lido pelos ribossomos,
que produzem a proteína correspondente. Portanto, em última instância, ocorre o aumento dos níveis de
algumas proteínas e a diminuição de outras, o que resulta na mudança da fisiologia da célula.

Observação

A puberdade é marcada por uma série de alterações no organismo,


como a maturação da genitália externa, o início da espermatogênese no
sexo masculino e da ovulação no sexo feminino, o crescimento dos pelos
corporais, o aumento de oleosidade da pele etc. Essas alterações são causadas
pelo aumento da secreção dos hormônios sexuais masculinos e femininos
que, como acabamos de ver, ativa receptores intracelulares nas células-alvo e
mudam a expressão gênica nessas células, alterando suas funções.

Todos os hormônios esteroidais produzem seus efeitos após um período que varia de 30 minutos a várias
horas. Esse é o tempo requerido para que haja síntese de novas proteínas. Isso significa que os hormônios não
são capazes de alterar um estado patológico logo após sua administração (por exemplo, os corticoides não irão
aliviar os sintomas da asma brônquica alguns minutos após a administração). Por outro lado, os efeitos desses
agentes podem persistir por horas ou dias após a administração do agonista, pois as enzimas e demais proteínas
produzidas pelo estímulo do receptor ativado podem permanecer na célula por um tempo prolongado.

No decorrer da disciplina, vamos estudar o efeito da ativação dos receptores de glicocorticoides (GR –
glucocorticoid receptor, cujo ligante endógeno é o cortisol) pelos anti-inflamatórios esteroidais, também
conhecidos como corticoides. Dependendo da dose de corticoide utilizada, altera-se a expressão genes
responsáveis pela inflamação ou pela imunidade adaptativa, o que possibilita o uso desses fármacos
como anti-inflamatórios e como imunossupressores.
63
Unidade I

A espironolactona, um antagonista dos receptores de mineralocorticoides (MR), cujo ligante


endógeno é a aldosterona, e seu uso no tratamento da hipertensão e de outras condições renais também
serão abordados.

Os derivados estrogênicos, progestagênicos e androgênicos, com atividade agonista ou antagonista


dos receptores de andrógeno (AR, cujo ligante endógeno é a testosterona), de estrógeno (ER) e de
progesterona (PR), são utilizados na contracepção, no tratamento de condições catabólicas e no
tratamento do câncer de mama e de outras afecções endócrinas.

Outros receptores intracelulares

A segunda subclasse de receptores intracelulares é representada pelos receptores dos hormônios


tireoideanos (TRs), do ácido retinoico (RAR), da vitamina D (VDR) e dos fatores ativadores dos peroxissomos
(PPAR). Esses receptores, quando inativos, estão localizados predominantemente no núcleo, difusos no
nucleoplasma ou ligados em sequências específicas do DNA (sequências de repetições diretas).

Os hormônios tireoidianos T3 e T4 são os ligantes endógenos do TR. Na ausência do ligante, esses


receptores encontram-se dimerizados com os receptores do retinoide X (RXR) e ligados ao DNA e a
proteínas que reprimem a transcrição gênica (proteínas correpressoras). A ligação do T3 e do T4 a esses
receptores provoca o desligamento dos correpressores e a subsequente ligação a proteínas coativadoras,
que se ligam à RNA polimerase e promovem a transcrição (formação do RNA mensageiro) dos genes-
alvo, conforme mostra a figura a seguir:
Modificação
da atividade
T3, T4 celular
Citoplasma
Proteína

Poro nuclear Núcleo Poro nuclear


RNA
polimerase
RNAm
Coativador Correpressor

Correpressor Coativador
po
RN er
lim
A ase

HRE gene-alvo HRE gene-alvo

Figura 21 – Mecanismo de ação do receptor de hormônios tireoidianos (TR)

64
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Vários receptores órfãos pertencem à classe dos receptores intracelulares. Um exemplo são os
receptores ativados por proliferador de peroxissoma (PPAR), que estão envolvidos na regulação da
diferenciação celular, no desenvolvimento, no metabolismo (carboidratos, lipídios, proteínas) e na
carcinogênese de organismos superiores.

Lembrete

Receptores órfãos são aqueles cujos ligantes endógenos ainda não


foram caracterizados.

2.2.5 Regulação da atividade dos receptores

As principais características da resposta mediada por receptores, tanto do ponto de vista fisiológico
quanto do ponto de vista terapêutico, são apresentadas a seguir:

• Especificidade da resposta: a interação entre os agonistas/antagonistas e o receptor obedece


ao esquema de chave-fechadura, ou seja, de complementariedade química. Trata-se, portanto,
de uma interação específica. Quanto mais seletiva for a ligação entre o fármaco e o receptor,
menor a ocorrência de seus efeitos adversos relacionados à interação com outros sítios de ligação
inespecíficos. Existem fármacos pouco seletivos, que atuam sobre mais de um receptor diferente
e, portanto, apresentam respostas sistêmicas mais disseminadas do que aqueles que apresentam
maior especificidade.

• Amplificação do sinal: a especificidade da ligação entre o agonista e o receptor, aliada à presença


de segundos mensageiros, garante que a resposta fisiológica seja observada mesmo na presença de
pequenas concentrações de agonista. Isso porque os segundos mensageiros atuam como
amplificadores de sinal: cada receptor é capaz de ativar vários conjuntos de segundos mensageiros,
o que aumenta significativamente a intensidade da resposta gerada.

• Capacidade de se obter respostas específicas de acordo com o tipo celular estudado: a


resposta final resultante da ativação de um receptor varia conforme o tipo celular analisado, pois
depende do repertório de substratos proteicos disponíveis para a ação dos segundos mensageiros.
Um exemplo são os adrenoceptores beta-1 e beta-2, que respondem aos estímulos da epinefrina
(adrenalina): mesmo que ambos sejam acoplados à proteína Gs – que, quando ativada, culmina
no aumento de níveis intracelulares de AMPc –, a ativação de beta-1 no coração leva à contração
do músculo cardíaco, enquanto a ativação de beta-2 nos pulmões leva ao relaxamento do
músculo liso. Portanto podemos concluir que, nos cardiomiócitos, as moléculas-alvo do AMPc
são diferentes das observadas nas células musculares lisas do pulmão, o que resulta respostas
finais diferentes.

É também importante que a resposta celular resultante da ativação dos receptores não seja
exacerbada, isto é, que a ativação dos receptores ocorra somente pelo tempo necessário para que
seja mantida a homeostase.
65
Unidade I

Com o tempo, os níveis plasmáticos das moléculas efetoras – por exemplo, o AMPc resultante da
ativação de receptores acoplados à proteína G, ou ainda o sódio que adentra a célula após ativação de
um receptor ionotrópico – tendem a diminuir, mesmo quando o agonista continua a ser administrado.
Geralmente, a dessensibilização é reversível, e a resposta passa a ser observada novamente após alguns
minutos após a resposta inicial.

Os mecanismos de dessensibilização foram bem estudados nos receptores acoplados à proteína G e


envolvem os seguintes mecanismos:

• Fosforilação do receptor, principalmente em sua região carboxi-terminal intracelular, o que


pode alterar a estrutura terciária do receptor e dificultar o acoplamento dele à proteína G, ou
ainda direcionar o receptor para o compartimento intracelular, onde permanecerá inacessível
ao agonista.

• Internalização do receptor por endocitose. Nesse mecanismo, os receptores ligam-se a moléculas


denominadas arrestinas e, logo após, forma-se uma rede de clatrina que envolve o receptor e o
internaliza em uma vesícula endocitótica. O receptor, então, poderá ser reciclado para a membrana
plasmática ou ainda direcionado para a proteólise nos lisossomos.

2.3 Farmacologia experimental: estudos da interação fármaco-receptor

Até meados do século XX, não existiam ferramentas experimentais que permitissem a observação
da resposta mediada pelos receptores em nível molecular. O estudo da interação entre os fármacos e os
receptores só podia ser realizado a partir da verificação dos efeitos finais, macroscópicos, observados
nos tecidos após a administração da substância. Nesse contexto, a contração muscular mostrou-se um
excelente instrumento para mensurar os efeitos dos fármacos, uma vez que (1) a contração dessas células
pode ser facilmente observada a olho nu e (2) a contração muscular lisa é uma resposta mediada por
uma série de sinais fisiológicos diferentes, o que implica na expressão de diversas classes de receptores
na superfície de suas células, maximizando o número de fármacos e de receptores que podem ter sua
atividade avaliada.

No modelo experimental da contração da musculatura lisa, o estudo da interação entre agonistas


e receptores farmacológicos pode ser realizado a partir da construção de curvas concentração-efeito,
também conhecidas como curvas concentração-resposta.

Para a obtenção dessas curvas, um órgão isolado, retirado de um animal de experimentação (por
exemplo, um fragmento de arteríola ou um fragmento de ducto deferente de ratos), é mergulhado em
um líquido nutritivo devidamente oxigenado e então posicionado em um fisiógrafo, aparelho capaz
de quantificar a força e a frequência de contração da musculatura lisa do órgão. O órgão é então
submetido a concentrações crescentes do agonista, que, ao se ligar a seus receptores, desencadeará a
contração do tecido (veja a figura a seguir).

66
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Líquido nutritivo

Alavanca de
ampliação

Aorta

Registrador
Câmara

Figura 22 – Fisiógrafo

Ao relacionarmos as concentrações do agonista com a magnitude das contrações musculares


correspondentes, obtemos uma curva hiperbólica, denominada curva concentração-resposta. Na prática,
é mais comum grafar a resposta em função do logaritmo da concentração do agonista, obtendo-se uma
curva sigmoidal denominada curva log concentração-resposta, mostrada na figura a seguir:

100%
Agonista total
Resposta

50%

Agonista parcial
23%
11,5%
0%
13 12 11 10 9 8 7 6 5
-log[Agonista, mol/L]

Figura 23 – Curva log concentração-resposta de agonista total e agonista parcial

Da análise do gráfico, concluímos que a contração da musculatura lisa depende da concentração


do fármaco adicionado ao meio nutritivo, ou seja, quanto maior a quantidade de fármaco adicionada,
maior a magnitude da contração.

A partir de determinada concentração de agonista, é visualizado um platô (plataforma) na curva,


decorrente do fato de a resposta máxima da musculatura ao fármaco ter sido alcançada. A partir desse
momento, não será mais observado aumento na contração muscular em resposta à incubação com o

67
Unidade I

fármaco, e podemos dizer que a eficácia máxima do fármaco foi alcançada. Se essa eficácia máxima
coincidir com a resposta tecidual máxima (no caso, a contração máxima da musculatura lisa), estamos
diante de um agonista total. Se a eficácia máxima do fármaco for menor do que a resposta tecidual
máxima, temos um agonista parcial.

A eficácia, portanto, é o parâmetro que avalia a magnitude da resposta tecidual desencadeada após
a incubação com o agonista, ou, em outras palavras, trata-se da habilidade relativa de um complexo
fármaco-receptor de produzir uma resposta máxima funcional. Esse parâmetro é representado pelo
Emax, que é o valor máximo de resposta alcançado pelo tecido, ou seja, é o valor, no eixo y, que
corresponde ao platô. Eficácia igual a 100%, ou 1, indica que o agonista é capaz de desencadear a
resposta máxima (agonista total); enquanto eficácia menor do que 100%, mas maior do que 0, indica
que o agonista somente é capaz de desencadear uma resposta submáxima, mesmo com o aumento
crescente das concentrações do agonista.

Na figura anterior, temos que a eficácia do agonista total é 100% (como observado em todos os
agonistas totais), enquanto a eficácia do agonista parcial é de 23%.

Além da eficácia, a análise do gráfico concentração-resposta permite a avaliação de outro parâmetro


muito importante, tanto do ponto de vista experimental quanto do ponto de vista terapêutico: a potência,
que está relacionada com a concentração do fármaco necessária para se obter 50% da resposta final
desencadeada pelo agonista.

Para se avaliar a potência de um fármaco, devemos, no gráfico, achar o ponto de intersecção dos
eixos x e y à curva, levando-se em conta, no eixo y, o ponto que representa a metade da resposta total
do tecido ao fármaco. O valor correspondente no eixo x é a concentração do fármaco que foi necessária
para se obter tal resposta, e corresponde a sua potência.

O valor que expressa a potência do fármaco é o EC50 ou CE50 (concentração efetiva 50), que
significa “a concentração necessária para que seja observada 50% da resposta a determinado agonista”.

Na figura anterior, o EC50 dos fármacos é igual a 10-9 mol/L: a concentração necessária para se
obter 50% da resposta máxima do agonista total e 50% da resposta máxima do agonista parcial
(11,5%, que correspondem à metade de 23%) são iguais a 10-9 mol/L. Não esqueça que o eixo x, das
concentrações, é fornecido no formato do valor negativo do logaritmo da concentração e, portanto,
“9” corresponde a 10-9.

As curvas concentração-resposta também podem ser utilizadas para se avaliar a ação de antagonistas
sobre a contração da musculatura lisa.

Os antagonistas são fármacos capazes de se ligar ao receptor, porém incapazes de desencadear uma
resposta celular, e podem ser classificados em competitivos e não competitivos.

68
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Os antagonistas competitivos são assim denominados porque efetivamente competem com o


agonista pelo mesmo sítio de ligação ao receptor, sendo, portanto, capazes de bloquear a ligação
do agonista ao receptor. Essa ligação é reversível: aumentando-se a concentração do agonista, este
é capaz de deslocar (retirar) o antagonista do sítio de ligação e desencadear uma resposta.

Os antagonistas não competitivos, como o próprio nome já presume, não competem com o agonista
pelo sítio de ligação ao receptor. Em vez disso, ligam-se a um sítio diferente daquele envolvido com a
ligação ao agonista ou interagem com a via de transdução de sinal desencadeada após a ativação do
receptor. Nesse caso, o efeito máximo do agonista é diminuído.

Uma vez que os antagonistas em si não são capazes de desencadear uma resposta celular, seu
estudo, a partir da elaboração de curvas concentração-efeito, exige o seguinte método:

• o antagonista é pré-incubado no órgão isolado em fisiógrafo;

• após cerca de 30 minutos, é realizada a incubação com concentrações crescentes de um agonista


que atua sobre o mesmo sistema receptor;

• é feito o registro da resposta celular (contração) obtida com o agonista na presença de antagonista;

• a curva obtida é comparada com aquela obtida na ausência de antagonista.

A análise das curvas obtidas visa à observação da alteração que o antagonista é capaz de causar na
curva concentração-resposta, conforme descrito a seguir:

• Diminuição da resposta máxima do órgão ao agonista, após pré-incubação com


antagonista não competitivo. O antagonista não competitivo não interfere na ligação do
agonista ao receptor, mas sim em outras etapas da transdução de sinal. Assim, observa-se
principalmente a diminuição da resposta máxima (veja a figura a seguir, nas curvas vermelha e
amarela). Em outras palavras, dizemos que, na presença de um antagonista não competitivo, a
eficácia do agonista é diminuída.

• Deslocamento da curva para a direita obtida após pré-incubação do órgão com


antagonista competitivo. Por interagir com o sítio de ligação do agonista ao receptor, o
antagonista competitivo é capaz de deslocar a curva concentração-resposta para a direita. É
necessário aumento na concentração do agonista para deslocar o antagonista do sítio de ligação,
“desbloqueando” o receptor. A resposta celular, portanto, é observada somente na presença de
maiores concentrações do agonista, mantendo-se a resposta máxima do órgão (veja a figura a
seguir, nas curvas vermelha e magenta). Em outras palavras, dizemos que, na presença de um
antagonista competitivo, a eficácia do agonista é mantida, porém a potência desse agonista
diminui (o EC50, portanto, aumenta).

69
Unidade I

Agonista na presença de Agonista na presença de


antagonista não competitivo antagonista competitivo
Somente agonista
100%

Resposta
50% EC50 do agonista na
presença de antagonista
não competitivo
EC50 do agonista na
ausência de antagonista e
na presença de antagonista -log[Agonista, mol/L]
não competitivo

Figura 24 – Curva log concentração-resposta demonstrando antagonismo


não competitivo (A) e antagonismo competitivo (B)

O estudo das curvas concentração-resposta é realizado até hoje, devido a sua versatilidade, e é o
experimento de escolha quando se deseja classificar um agonista em total ou parcial ou um antagonista
em competitivo ou não competitivo.

Mais recentemente, foi caracterizada uma classe de fármacos capaz de se ligar aos receptores
constitutivamente ativados (receptores que se encontram no estado ativado na ausência de um ligante). Ao
se ligar a esses receptores, essa classe de fármacos é capaz de induzir a sua inativação, ou seja, é capaz de
levá-los para a conformação inativa. Esses fármacos são denominados agonistas inversos, ou seja, “agentes
capazes de se ligar ao mesmo receptor que um agonista, mas induzindo uma resposta farmacológica oposta”.

É importante diferenciar os agonistas inversos dos antagonistas: os antagonistas impedem a


ativação de um receptor que se encontra no estado inativo, enquanto os agonistas inversos são capazes
de inativar os receptores que se encontram constitutivamente ativados. Em outras palavras, o agonista
inverso é capaz de diminuir a atividade basal dos tecidos, que acontece na ausência de ligantes. Portanto,
enquanto os antagonistas apresentam eficácia (Emax) igual a zero, os agonistas inversos apresentam
Emax menor do que zero (veja a figura a seguir).
100% Agonista total

75%
Aumento da
atividade basal 50% Agonista parcial
do órgão
Resposta

25%

0%
Diminuição da
atividade basal -25%
do órgão
-50% Agonista inverso
9 8 7 6 5
-log[Agonista, mol/L]

Figura 25 – Comparação entre as respostas induzidas por um agonista total,


um agonista parcial e um agonista inverso

70
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

As curvas concentração-resposta não são a melhor escolha para se estudar os agonistas inversos, afinal,
não é possível distinguir se a resposta observada no fisiógrafo é decorrente da ativação de um receptor inativo
ou se é decorrente da inativação de um receptor constitutivamente ativado. Por esse motivo, são usados
experimentos que visam à avaliação dos segundos mensageiros formados após a ligação do agonista inverso
com o receptor: caso a concentração dos segundos mensageiros seja alterada de maneira oposta à observada
na vigência de um agonista total ou parcial, esse agonista é classificado como agonista inverso.

Além das curvas concentração-resposta e da avaliação dos níveis de segundos mensageiros


intracelulares, outros experimentos podem ser utilizados para caracterizar um fármaco. Um desses
experimentos são os ensaios de ligação, ou binding, que se referem à incubação de uma preparação de
membrana com um antagonista marcado radioativamente, seguido da adição de doses crescentes do
agonista frio (não marcado). Caso o antagonismo seja do tipo competitivo, a adição do agonista frio
(não marcado) irá deslocar o antagonista do seu sítio de ligação, diminuindo assim a intensidade da
radiação associada à membrana plasmática de maneira dependente da dose de agonista adicionado.

Você sabe como os receptores são descobertos e caracterizados?

Novos receptores são potenciais alvos de fármacos e, portanto, é importante que o


profissional biomédico conheça como eles são descobertos, já que pode participar ativamente
dessa busca.

A caracterização de novos receptores geralmente começa pelo estudo das relações entre
a estrutura e função de um grupo de fármacos e uma resposta facilmente mensurável. Nesse
primeiro momento, são realizados ensaios de contração realizados em fisiógrafos, ensaios de
ligação com fármacos radioativos e até mesmo ensaios computacionais. Esses ensaios permitem
conhecer em detalhes o tipo de resposta mediada pelo sistema receptor que se deseja caracterizar.

Em seguida, é feita a purificação bioquímica do receptor. Nessa etapa, o receptor é


isolado da célula que o expressa. Nesse processo, são utilizadas técnicas de cromatografia e
de western blotting, por exemplo.

A análise do receptor purificado permite a identificação de suas subunidades, de


seu tamanho e, algumas vezes, de como o receptor funciona (por exemplo, se ocorre
autofosforilação após a ligação do agonista, ou se uma proteína G é ativada). Isso permite
determinar o mecanismo de ação do receptor.

Avaliações adicionais da estrutura e da função do receptor são possíveis graças à clonagem


de seu gene e à subsequente análise de sua sequência de DNA. A partir dessa análise, é
possível identificar regiões homólogas a outros receptores, o que auxilia na determinação do
ligante endógeno e na compreensão do papel desse receptor na manutenção da homeostase.
A partir desse ponto, é possível avaliar a viabilidade desse receptor enquanto alvo terapêutico.

Mesmo após todas essas análises, alguns receptores permanecem sem ter seu ligante
endógeno caracterizado. A avaliação do papel desses receptores na manutenção da fisiologia
71
Unidade I

é prejudicada, uma vez que se desconhece qual o estímulo interno capaz de promover
sua ativação. Receptores cujos ligantes endógenos não são conhecidos são denominados
receptores órfãos. A sua identificação é de grande interesse, pois pode elucidar novas vias
de sinalização intracelular e potenciais alvos terapêuticos.

Fonte: Rivera e Gilman (2012, p. 3).

3 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO SIMPÁTICO

Didaticamente, o sistema nervoso é dividido em periférico (subdividido em somático e autônomo) e


central (constituído pelo encéfalo e medula espinal).

As vias eferentes do sistema nervoso periférico podem ser divididas em duas categorias principais: o
sistema nervoso autônomo e o sistema nervoso somático.

É com a subdivisão eferente do sistema nervoso que iniciaremos o estudo da farmacologia dos
sistemas, que visa a explorar os fármacos que atuam nos diferentes órgãos e tecidos, seus mecanismos
de ação, usos terapêuticos e experimentais e principais efeitos adversos. Esses conhecimentos são
essenciais para o entendimento mais aprofundado da fisiologia humana e das bases da terapêutica
medicamentosa e como esta interfere nas funções orgânicas.

As ações de muitos fármacos sobre a musculatura lisa, o músculo cardíaco e as glândulas podem ser
compreendidas em termos de sua simulação ou modificação da ação dos neurotransmissores liberados
pelas fibras do sistema nervoso autônomo nos gânglios ou nas células efetoras, enquanto os fármacos que
atuam no músculo esquelético atuam diretamente na subdivisão somática do sistema nervoso eferente.

O sistema nervoso autônomo é o ramo do sistema nervoso que medeia ações viscerais, que são
independentes do controle voluntário: a frequência cardíaca, a pressão arterial, a digestão, a respiração,
o controle da temperatura corporal etc. O sistema nervoso somático, por sua vez, controla as funções
que são comandadas de maneira consciente: o movimento, a respiração e a postura.

3.1 Sistema nervoso autônomo: visão geral

O sistema nervoso autônomo é o principal responsável pelo controle automático do corpo frente às
modificações do ambiente, no sentido de se conservar a homeostase e garantir a sobrevivência do organismo.

A ação do sistema nervoso autônomo caracteriza-se pela ativação de arcos reflexos de diferentes
complexidades por estruturas do sistema nervoso central, em resposta a estímulos sensoriais de
diferentes naturezas.

Os estímulos sensoriais são sinais, enviados por nossos órgãos e tecidos, que refletem as condições às
quais nosso organismo está exposto em um determinado momento. Trata-se de estímulos relacionados
com a sensibilidade visceral (dor e dor referida) e com os reflexos vasomotores, respiratórios e
viscero-somáticos. Esses sinais geram potenciais de ação que percorrem os nervos aferentes em direção a
72
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

estruturas do sistema nervoso central que decodificam as informações recebidas e ativam seletivamente
diferentes seções do sistema nervoso autônomo.

Um exemplo de sistema aferente autônomo é o das terminações barorreceptoras e quimiorreceptoras


na carótida e no arco aórtico: esse sistema é importante para o controle reflexo da pressão arterial, da
frequência cardíaca e da respiração.

O estímulo do sistema nervoso central, causado pelas informações trazidas pelos nervos aferentes, faz com
que os nervos autonômicos eferentes conduzam potenciais de ação para os órgãos e tecidos, que respondem a
esses estímulos modulando sua atividade a fim de se atingir a condição mais próxima ao possível do equilíbrio.

Os reflexos autonômicos podem se manifestar, por exemplo, como aumento da sudorese, alterações da
pressão arterial, respostas vasomotoras, esvaziamento reflexo da bexiga, do reto e da vesícula seminal ou
ainda como alteração da frequência respiratória, da regulação da temperatura corporal e do equilíbrio hídrico.
Até mesmo as emoções e o sono podem ser afetados, devido ao fato de o sistema nervoso autônomo receber
estímulos de outras regiões superiores do sistema nervoso central, como o sistema límbico e o neoestriado.

3.1.1 Principais características anatômicas

O sistema nervoso autônomo é constituído por 23 pares de nervos, que nada mais são do que feixes
de neurônios que emergem da medula espinal, do tronco encefálico e do hipotálamo, atravessam os
espaços intervertebrais e se distribuem pelo organismo. Esses feixes de neurônios constituem nervos,
gânglios e plexos, que inervam diferentes órgãos e tecidos. Praticamente todos os órgãos e tecidos são
inervados por um ou mais pares de nervos (veja a figura a seguir), que regulam as ações autônomas, as
quais ocorrem sem controle consciente.

Em vermelho = efeitos simpáticos Glândulas lacrimais


Em azul = efeitos parassimpáticos
Estimula a secreção
Olho
Midríase (dilatação da pupila) Glândulas salivares
Miose (constrição da pupila) Secreção espessa, viscosa
Trato respiratório Secreção abundante, aquosa
Broncodilatação
Broncodilatação e secreção Coração
Glândula suprarrenal Aumenta a força e a frequência
Secreção da epinefrina Dimimui a força e a frequência
Rins Trato gastrointestinal
Secreção de renina Diminui a atividade
Aumenta a atividade
Trato urinário Trato reprodutor (feminino)
Inibição da micção Relaxamento uterino
Estímulo da micção Vasos sanguíneos (m. esqueléticos)
Trato reprodutor (masculino) Dilatação
Estimula a ejaculação Vasos sanguíneos (pele,
Estimula a ereção mucosas e área esplâncnica)
Constrição

Figura 26 – Ações do sistema nervoso simpático e parassimpático nos órgãos efetores

73
Unidade I

De acordo com a localização ao longo da medula espinal e da resposta que são capazes de
induzir, os nervos do sistema nervoso autônomo são divididos em dois grandes componentes: o
sistema nervoso simpático e o sistema nervoso parassimpático. Uma terceira subdivisão do sistema
nervoso autônomo refere-se ao sistema nervoso entérico, responsável por regular a atividade do
trato gastrointestinal.

Os nervos do sistema nervoso simpático e parassimpático emergem, respectivamente, das regiões


tóraco-lombar e crânio-sacral da medula espinal. Em ambos os sistemas, cada nervo é formado por
dois feixes de neurônios em série, que constituem sinapses em uma estrutura denominada gânglio
autonômico. Os neurônios que emergem do sistema nervoso central em direção ao gânglio são
denominados pré-ganglionares e os neurônios que emergem do gânglio em direção aos sistemas
orgânicos são denominados pós-ganglionares.

Nos nervos que constituem o sistema nervoso simpático, o gânglio autonômico localiza-se
próximo à medula espinal, e são observados vários neurônios pós-ganglionares fazendo sinapse
em um mesmo neurônio pré-ganglionar, em uma proporção que pode chegar a 1:20. Isso garante
que o estímulo desencadeado pelo sistema nervoso simpático apresente um padrão difuso e
disseminado. Nos nervos do sistema nervoso parassimpático, por outro lado, o gânglio autonômico
fica localizado próximo ao órgão-alvo e a proporção entre os neurônios pré e pós-ganglionares é
de 1 para 1, o que justifica o padrão mais direcionado e pontual das respostas desencadeadas por
essa subdivisão autonômica.

3.1.2 Principais aspectos da fisiologia do sistema nervoso autônomo

Assim como ocorre na grande maioria das sinapses neuronais, no gânglio autonômico ocorre a
conversão do estímulo elétrico, representado pelo potencial de ação, em estímulo químico, representado
por um neurotransmissor.

Tanto no nervo simpático quanto no nervo parassimpático, o neurotransmissor liberado pelos


neurônios pré-ganglionares é a acetilcolina, e o receptor ativado é o nicotínico, presente na membrana
dos neurônios pós-ganglionares. A partir dessa ativação, são gerados potencias de ação que percorrem
os nervos pós-ganglionares em direção aos órgãos-alvo.

Os neurônios pós-ganglionares estabelecem sinapses com os diferentes órgãos e tecidos. Nessa


sinapse, os nervos simpáticos liberam norepinefrina (noradrenalina), e os nervos parassimpáticos,
acetilcolina. As exceções são a inervação da glândula suprarrenal, constituída de um único feixe
de neurônios colinérgicos, sem que haja sinapse no gânglio, e a inervação simpática das glândulas
sudoríparas, na qual os neurônios pós-ganglionares são colinérgicos e não noradrenérgicos (veja a
figura a seguir).

74
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

ACh ACh
N M Parassimpático
Músculo cardíaco, músculo
liso, glândulas
ACh
N
Simpático
ACh Glândulas sudoríparas
M
ACh
N
NE Simpático
α, β Músculo cardíaco, músculo
liso, glândulas

Medula espinal

ACh ACh
N Epi, NE
N Somático
Glândula suprarrenal Músculo esquelético

Nervo motor

Figura 27 – Esquema representativo da inervação parassimpática, simpática e somática.


Os neurotransmissores (Ach, acetilcolina; NE, norepinefrina; Epi, epinefrina)
e os receptores ativados em cada caso (N, nicotínico; M, muscarínico;
α, adrenoceptor alfa; β, adrenoceptor beta) estão indicados

Nos órgãos-alvo, a norepinefrina ativa receptores adrenérgicos (também conhecidos como


adrenoceptores ou adrenorreceptores), enquanto a acetilcolina ativa receptores colinérgicos muscarínicos.
É a ativação desses receptores que culmina na resposta final do órgão ao estímulo autonômico.

É importante ressaltar que, além do neurotransmissor norepinefrina, a ativação do sistema nervoso


simpático também pode envolver a secreção de um hormônio, a epinefrina. Também conhecida como
adrenalina, essa catecolamina é importante na mediação das reações classicamente envolvidas com
luta e fuga. Para que ocorra liberação de epinefrina, é necessário que as fibras simpáticas que inervam
a glândula suprarrenal sejam ativadas. Essas fibras não estabelecem sinapse no gânglio e, portanto,
um único feixe de neurônios emerge do sistema nervoso central em direção às células secretoras de
epinefrina da suprarrenal. Sua ativação resulta na secreção de epinefrina e de pequenas quantidades
de norepinefrina para a corrente sanguínea.

3.1.3 Neurotransmissores autonômicos: biossíntese e biotransformação

A diferença mais marcante entre os nervos simpáticos e parassimpáticos são os neurotransmissores


liberados nas sinapses com os órgãos-alvo e, como consequência, os receptores ativados em cada caso.

Neurônios que sintetizam e secretam acetilcolina (neurônios colinérgicos) estão presentes nas
fibras pré-ganglionares de todo o sistema nervoso autônomo (simpático e parassimpático), nas
75
Unidade I

fibras simpáticas que atingem a medula da suprarrenal (pois, nesse caso, não há gânglio), nas fibras
pós‑ganglionares do sistema nervoso parassimpático e, como uma exceção, nas fibras simpáticas que
inervam as glândulas sudoríparas. Além disso, a acetilcolina é liberada na placa motora e, no sistema
nervoso central, é responsável por modular a memória e a cognição.

A biossíntese de acetilcolina se dá pela acetilação da colina, que é obtida da alimentação e da


degradação da própria acetilcolina (principal fonte). No citoplasma do neurônio colinérgico, ocorre
doação de um radical acetil, presente na molécula de acetil-coA (acetil-coenzima A) à colina livre.
A enzima que catalisa essa reação é a colina acetiltransferase (CAT) (veja a figura a seguir).
CH3
HO
N+ Colina

H3C CH3

Acetil-S-CoA Colina acetiltransferase (CAT)

H3C
O CH3
N +
Acetilcolina
H3C O CH3

Figura 28 – Biossíntese de acetilcolina

Observação

A colina também atua como vitamina do complexo B. Ela é encontrada


em alimentos como o ovo, o fígado de galinha, a vitela de vaca, a mostarda,
os cereais integrais etc.

O término das ações da acetilcolina se dá pela hidrólise do neurotransmissor, que ocorre graças
à ação da enzima acetilcolinesterase (achE) presente na fenda sináptica. Ancorada à membrana do
neurônio pré-sináptico, essa enzima é responsável por converter a acetilcolina nos resíduos acetil e
colina e, assim, interromper o estímulo do sistema nervoso parassimpático.

As etapas da biossíntese, do armazenamento, da liberação e da degradação de acetilcolina estão


resumidas na figura a seguir:

76
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Colina Colina
Na+ Na+ AcCoA 1. Síntese de acetilcolina
O transporte da colina é inibido
pelo hemicolínio

Ach
2. Captação nas vesículas de
armazenamento
A Ach está protegida da degradação
no interior da vesícula
6. Reciclagem da colina
A colina é captada pelo +
Ca2+
neurônio Ca 2+
3. Liberação do neurotransmissor

Receptor A liberação da Ach é bloqueada pela


pré-sináptico toxina botulínica

Ach
Colina

4. Ligação do receptor
5. Degradação da acetilcolina Acetato A ativação do receptor pós-sináptico
A Ach é rapidamente degradada leva à resposta final
pela enzima acetilcolinaterase
na fenda sináptica
Resposta intracelular

Figura 29 – Etapas da neurotransmissão do sistema nervoso parassimpático

Neurônios que sintetizam e secretam norepinefrina (neurônios noradrenérgicos) estão presentes


nas fibras pós-ganglionares do sistema nervoso simpático e no sistema nervoso central, onde estão
relacionados com a promoção da vigília.

A biossíntese da norepinefrina ocorre em várias etapas, e tem o aminoácido tirosina como precursor
(veja a figura a seguir):

• a tirosina é sintetizada no fígado, a partir da fenilalanina, e atinge a circulação;

• o neurônio noradrenérgico capta resíduos de tirosina da circulação;

• a tirosina captada é convertida a DOPA pela ação da enzima tirosina beta-hiroxilase;

• a DOPA é convertida em dopamina pela ação da enzima dopa-descarboxilase;

• a dopamina é armazenada em vesículas de secreção, onde é convertida em norepinefrina pela


enzima dopamina beta-hidroxilase;

77
Unidade I

• na medula da glândula suprarrenal, pode ocorrer, ainda, a conversão de norepinefrina a epinefrina.


Essa conversão ocorre por ação da enzima feniletanolamina N-metiltransferase.
H

HO C CH NH2 Tirosina

H COOH
Tirosina-hidroxilase

HO H

HO C CH NH2 Dopa

H COOH Dopa-descarboxilase

HO H

HO C CH2 NH2 Dopamina

H Dopamina beta-hidroxilase

HO H

HO C CH2 NH2 Norepinefrina

OH Norepinefrina N-metil
transferase
HO H H

HO C CH2 N Epinefrina

OH CH3

Figura 30 – Biossíntese dos transmissores do sistema nervoso simpático, epinefrina e norepinefrina

O término das ações da norepinefrina é intracelular e ocorre por duas vias: o neurotransmissor
pode ser captado pelo neurônio pós-ganglionar e degradado pela enzima monoamina oxidase (MAO),
presente nas mitocôndrias, ou então é captado pelos órgãos-alvos, e degradado pela enzima catecol
orto-metiltransferase (COMT). A via mais importante é a mediada pela enzima MAO.

As etapas da biossíntese, do armazenamento, da liberação e da degradação de norepinefrina estão


resumidas na figura a seguir:

78
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

1. Síntese de norepinefrina
A hidroxilação da tirosina é a
etapa limitante

Urina Metabólitos NE
inativos MAO 2. Captação em vesículas de
Tirosina Tirosina armazenamento
Na+ Na+ A dopamina entra na vesícula e é
convertida em NE
DOPA
Metabólitos
Urina inativos
MAO
Dopamina
3. Liberação do neurotransmissor
Dopamina
O influxo de cálcio causa a exocitose
5. Recaptação da da NE
norepinefrina Ca2+ A liberação é bloqueada pela
A NE liberada é Ca2+ guanetidina
rapidamente captada pelo +
neurônio. Essa recaptação
é inibida pela cocaína Receptor
pré-sináptico

4. Ligação do receptor
Metabólitos NE
Urina inativos A ativação do receptor pós-sináptico
leva à resposta final
COMT
6. Metabolismo Fenda
sináptica
A NE é metilada pela COMT
e oxidada pela MAO

Resposta intracelular

Figura 31 – Etapas da neurotransmissão simpática: NE = norepinefrina

3.1.4 Subtipos de receptores adrenérgicos e muscarínicos

No gânglio, mais especificamente no corpo celular dos neurônios pós-ganglionares, são expressos
receptores nicotínicos, que são acoplados a um canal iônico permeável aos íons sódio e cálcio. Quando
esses receptores são ativados, ocorre influxo desses íons pelo neurônio pós-ganglionar, o que altera
seu potencial de membrana no sentido da despolarização (potencial excitatório pós-sináptico – Peps) e
consequente condução de potenciais de ação.

Quando os potenciais de ação atingem a sinapse entre o neurônio pós-sináptico e o órgão-alvo,


ocorre a liberação de neurotransmissores e a ativação dos receptores presentes em suas células.

Nos órgãos-alvo, são expressos receptores adrenérgicos e/ou receptores colinérgicos muscarínicos,
ambos acoplados à proteína G. A partir da ativação desses receptores, estabelece-se a resposta final do
sistema nervoso simpático e parassimpático, respectivamente.

79
Unidade I

Existem diferentes subtipos de receptores adrenérgicos e muscarínicos. Esses receptores são


acoplados à proteína G e expressos em um padrão que varia de acordo com o tecido e com o sistema a
ser estudado, o que garante a vasta gama de efeitos que podem ser obtidos a partir do estímulo desses
transmissores químicos.

Os receptores adrenérgicos, adrenorreceptores ou adrenoceptores medeiam as respostas do sistema


nervoso simpático e são subdivididos em dois grupos: alfa e beta. O grupo alfa é subdividido nos
subtipos alfa-1 e alfa-2 e o grupo beta nos subtipos beta-1, beta-2 e beta-3. Cada um desses subtipos é
codificado por um gene diferente e, como consequência, apresenta características estruturais distintas
(veja a figura a seguir).
Epinefrina
Norepinefrina

Alfa-1 Alfa-2 Beta


Gq Gi Gs

PLC AC AC

PIP2 DAG ATP AMPc ATP AMPc


IP3

Ca2+
Ca2+

Contração do Inibição da Contração do Contração do


músculo liso liberação dos músculo liso músculo cardíaco,
neurotransmissores relaxamento do
músculo liso,
glicogenólise

Figura 32 – Subtipos de adrenoceptores. As vias de sinalização intracelular estão indicadas:


PLC, fosfolipase C; AC, adenilil ciclase; PIP2, fosfoinositídeo bifosfato; IP3, inositol trifosfato;
DAG, diacilglicerol; ATP, trifosfato de adenosina; AMPc, monofosfato de adenosina cíclico

• Os adrenoceptores alfa-1 são acoplados à proteína Gq e sua ativação resulta em vasoconstrição,


midríase, contração dos esfíncteres do trato gastrointestinal e da bexiga e secreção de saliva.

• Os adrenoceptores alfa-2 são acoplados à proteína Gi e estão relacionados à inibição da secreção


de norepinefrina, à inibição da secreção de insulina e à contração de alguns leitos vasculares.

• Os adrenoceptores beta-1 são acoplados à proteína Gs e são responsáveis pelo aumento do


trabalho cardíaco, pela indução da secreção de renina e pela lipólise.

80
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

• Os adrenoceptores beta-2 são acoplados à proteína Gs e medeiam a broncodilatação, o


relaxamento uterino, a vasodilatação, a glicogenólise e a liberação de glucagon.

• Os adrenoceptores beta-3 são acoplados à proteína Gs e estão relacionados à lipólise. Esses


receptores não foram completamente caracterizados e não apresentam importância terapêutica.

Os adrenoceptores alfa-1 e alfa-2 apresentam, ainda, subtipos adicionais. O receptor alfa-1 apresenta
os subtipos alfa-1A, alfa-1B e alfa-1D. O receptor alfa-2, por sua vez, os subtipos alfa-2A, alfa-2B e
alfa‑2C. A diferença entre essas isoformas é a afinidade por alguns fármacos e também os mecanismos
que regulam sua função.

Os receptores muscarínicos, por sua vez, medeiam as respostas do sistema nervoso parassimpático e
são subdivididos nos subtipos M1 a M5. Novamente, cada receptor é codificado por um gene diferente.

• Os receptores M1 são acoplados à proteína Gq e são expressos no sistema nervoso central e nas
células parietais do estômago, onde estimulam a síntese de HCl.

• Os receptores M2 são acoplados à proteína Gi e estão relacionados ao controle da secreção de


acetilcolina e também à inibição da função cardíaca.

• Os receptores M3 são acoplados à proteína Gq e estão relacionados com a contração da musculatura


lisa e com a secreção em diferentes órgãos.

• Os subtipos M1, M2, M3, M4 e M5 também estão presentes no sistema nervoso central, onde
medeiam a memória e a cognição, eventos não relacionados ao sistema nervoso parassimpático.

3.1.5 Etapas da neurotransmissão autonômica

Agora que já revisamos a estrutura do sistema nervoso autônomo e os neurotransmissores e os


receptores envolvidos na resposta autonômica, vamos relembrar quais são as etapas da neurotransmissão
autonômica simpática e parassimpática. Vamos começar com a neurotransmissão simpática, cujas
etapas são as seguintes:

• Estímulos sensoriais chegam à região tóraco-lombar da medula espinal através de nervos aferentes
vindos dos diferentes órgãos-alvo. Esses estímulos são responsáveis por sinalizar se existe algum
ajuste funcional a ser realizado a fim de se manter o correto funcionamento do sistema.

• De acordo com a natureza do estímulo aferente, um ou mais pares de nervos que compõem
sistema nervoso simpático são ativados. Nesse processo, são disparados potenciais de ação que
percorrem os neurônios pré-ganglionares dos pares de nervos autonômicos que foram ativados.

• Quando o estímulo elétrico que percorre o neurônio pré-ganglionar atinge o gânglio, ocorre
aumento das concentrações intracelulares de íons cálcio e, consequentemente, a liberação do
neurotransmissor acetilcolina na sinapse.
81
Unidade I

• A acetilcolina ativa receptores nicotínicos presentes nos neurônios pós-ganglionares. O


influxo iônico decorrente da ativação do receptor é responsável por despolarizar o neurônio
pós-ganglionar.

• O neurônio pós-ganglionar dispara potenciais de ação que percorrem o nervo autonômico em


direção aos órgãos-alvo.

• Quando o estímulo elétrico atinge a sinapse do neurônio pós-ganglionar com as células do


órgão-alvo, há uma nova onda de liberação de neurotransmissores, que ativam os receptores
adrenérgicos (adrenoceptores) neles. Conforme previamente descrito, o neurotransmissor liberado
é a norepinefrina.

• Em situações de luta e fuga, neurônios eferentes emergem do sistema nervoso central em direção
à medula da suprarrenal, que libera epinefrina para a circulação sanguínea. A epinefrina também
é capaz de ativar os adrenoceptores presentes nos órgãos-alvo.

O estabelecimento da resposta depende dos subtipos de adrenoceptores e, consequentemente, da


ativação de segundos mensageiros expressos de maneira específica em cada tipo celular.

A neurotransmissão parassimpática ocorre de maneira muito semelhante à simpática. As únicas


diferenças são:

• Os nervos eferentes emergem da região crânio-sacral.

• Os neurônios pós-ganglionares também são colinérgicos. Portanto, no nervo parassimpático,


quando o estímulo elétrico atinge a sinapse do neurônio pós-ganglionar com as células do
órgão‑alvo, há uma nova onda de liberação de acetilcolina.

• Nos órgãos-alvo, a acetilcolina ativa receptores colinérgicos muscarínicos neles. Os receptores


muscarínicos, portanto, são os mediadores das respostas do sistema nervoso parassimpático nos
órgãos-alvo.

3.1.6 O mecanismo de retroalimentação negativa e o controle da atividade dos nervos


autonômicos

O controle da atividade dos nervos autonômicos é possível graças ao estabelecimento de um


mecanismo de retroalimentação negativa, que garante que a ativação das fibras nervosas ocorrerá
somente pelo tempo e com a intensidade desejados.

A retroalimentação negativa ocorre da seguinte maneira: nas fibras colinérgicas, tanto pré quanto
pós-ganglionares, são expressos receptores muscarínicos do subtipo M2. Esses receptores são ativados
pela acetilcolina liberada pelos próprios neurônios.

82
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Uma vez que os receptores M2 são acoplados à proteína Gi, sua ativação é responsável por diminuir
os níveis intracelulares de AMPc e cálcio. Como resultado, ocorre inibição da excitabilidade neuronal e
interrupção da liberação de mais acetilcolina.

Observação

Os receptores M1 também participam da regulação da liberação de


acetilcolina pelos nervos colinérgicos

Nas fibras noradrenérgicas, observa-se o mesmo mecanismo, com a diferença de que o


neurotransmissor é a norepinefrina e o receptor é o adrenoceptor alfa-2.

3.1.7 Principais ações do sistema nervoso autônomo

Apesar de desencadearem efeitos opostos na maioria dos órgãos, podemos considerar que, do
ponto de vista fisiológico, o sistema nervoso simpático e o parassimpático são complementares. É até
comum nos depararmos com a generalização de que o ramo simpático está relacionado com situações
de “luta e fuga”, enquanto o ramo parassimpático do sistema nervoso autônomo está relacionado com
as condições de “repouso e digestão”. Na realidade, ambos os sistemas estão ativados, de modo que o
balanço da atividade de ambas as subdivisões seja suficiente para garantir o funcionamento adequado
de órgãos e sistemas que compõem o organismo.

Na maioria dos órgãos, as ações do sistema nervoso simpático e parassimpático são opostas e,
portanto, a acetilcolina e a norepinefrina/epinefrina podem ser encaradas como antagonistas fisiológicos
ou funcionais: se um ramo do sistema nervoso autônomo inibe determinada função, o outro, em geral,
a exacerba.

Algumas das situações responsáveis por desequilibrar, mesmo que sutilmente, o organismo geram
sinais que são detectados pelos nervos aferentes e levados às estruturas do sistema nervoso central
que participam da regulação autonômica. Dependendo do sinal, ou o ramo simpático ou o ramo
parassimpático são ativados, no sentido de se restabelecer a homeostase.

Um exemplo é a regulação da pressão arterial. Situações que culminam na queda da pressão arterial
levam à ativação do sistema nervoso simpático, cujo efeito sobre os vasos é a constrição da musculatura
lisa e, assim, o restabelecimento da pressão normal. Por outro lado, o aumento da pressão arterial acima
dos níveis normais tende a ativar o sistema nervoso parassimpático, responsável por diminuir o trabalho
cardiovascular e, indiretamente, a pressão arterial.

Portanto podemos, no máximo, afirmar que o sistema nervoso simpático predomina em situações
de luta e fuga – via secreção de epinefrina pelas suprarrenais, como veremos a seguir –, enquanto o
sistema nervoso parassimpático predomina em situações de repouso e digestão. Em nenhuma situação
somente um dos dois ramos do sistema nervoso autônomo estará exercendo sua função isoladamente
sobre o organismo.
83
Unidade I

O quadro a seguir resume as principais ações do sistema nervoso autônomo sobre os órgãos e
tecidos. A partir dessas ações, é possível prever a ação dos fármacos que simulam ou inibem a ação dos
nervos autônomos em cada órgão.

Quadro 4 – Ações do sistema nervoso autônomo nos diferentes


órgãos e tecidos e principais receptores envolvidos

Sistema nervoso simpático Sistema nervoso parassimpático


Órgão
Receptor Ação Receptor Ação
Contração do músculo radial Contração do músculo
Olho Alfa-1 M3
da íris → midríase circular da íris → miose
Diminuição da frequência
Aumento da força e da
Coração Beta-1 M2 (principalmente) e da força de
frequência de contração contração
Alfa-1 Vasoconstrição
Vasos sanguíneos M3* Vasodilatação*
Beta-2 Vasodilatação
Broncoconstrição
Pulmão Beta-2 Broncodilatação M3
Secreção de muco
Contração dos esfíncteres M1 Secreção de HCl
Trato Alfa-1
gastrointestinal Beta-2 Contração do músculo liso
Relaxamento do músculo liso M3 (peristaltismo)
-------
Rim Beta-1 Secreção de renina -----------
---
Contração dos esfíncteres
Alfa-1 Contração do músculo liso
Bexiga Relaxamento do músculo liso M3
Beta-2 (esvaziamento)
(retenção)
-------
Útero Beta-2 Relaxamento do músculo liso -----------
---
Músculo Aumento da contratilidade -------
Beta-2 -----------
esquelético Glicogenólise ---
Glicogenólise -------
Fígado Beta-2 -----------
Gliconeogênese ---
Inibição da secreção de -------
Pâncreas Alfa-2 -----------
insulina ---
* Via ativação de receptores M3 do endotélio, com subsequente liberação de NO (óxido nítrico).

Saiba mais

Leia mais sobre o sistema nervoso autônomo em:

SILVERTHORN, D. U. Fisiologia humana. Porto Alegre: ArtMed, 2017.

84
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

As respostas mediadas pelo sistema nervoso autônomo apresentam estabelecimento rápido e


intenso. Em poucos segundos, a alteração do tônus simpático e/ou parassimpático pode levar à alteração
da frequência cardíaca, da pressão arterial e do grau de dilatação dos brônquios, por exemplo.

São essas variações extremamente rápidas que são medidas no polígrafo do detector de mentiras.
Ao mentir, o indivíduo passa por uma situação estressante capaz de alterar o equilíbrio entre o sistema
nervoso simpático e o parassimpático: o primeiro é ativado e se sobressai sobre o segundo, o que resulta
na alteração da relação entre os estados de vigília e de repouso do indivíduo.

3.2 Farmacologia do sistema nervoso simpático

Os fármacos que atuam sobre o sistema nervoso simpático o fazem por uma ação direta ou indireta.
Os fármacos de ação direta são aqueles que se ligam aos receptores adrenérgicos nos órgãos-alvo e, de
maneira geral, promovem (agonistas) ou impedem (antagonistas) a ativação deles. Os fármacos de ação
indireta atuam em outras etapas da neurotransmissão, como a síntese de norepinefrina, sua liberação,
recaptação, degradação etc.

Outra maneira de classificar esses fármacos é pela resposta final desencadeada: aqueles que
promovem estímulo das respostas do sistema simpático são denominados simpatomiméticos e os
que promovem inibição delas, simpatolíticos.

A partir de agora, vamos utilizar ambas as designações para descrever os fármacos que atuam sobre
o sistema nervoso simpático.

3.2.1 Simpatomiméticos de ação direta: visão geral

Os simpatomiméticos de ação direta são os fármacos que ativam os adrenoceptores presentes nos
órgãos-alvo e, como consequência, exacerbam as respostas relacionadas ao sistema nervoso simpático.

As ações dos simpatomiméticos de ação direta são:

• Contração de determinados tipos de músculo liso (vasos sanguíneos que irrigam a pele, os
rins e as mucosas) e secreção das glândulas salivares: são ações mediadas pela ativação dos
adrenoceptores alfa-1, acoplados à proteína Gq. Como resultado da ativação desses receptores,
ocorre aumento das concentrações intracelulares dos segundos mensageiros IP3 e PKC (para mais
detalhes, ver o tópico Receptores acoplados à proteína G). O IP3 mobiliza cálcio das reservas
intracelulares, enquanto a PKC fosforila uma série de proteínas presentes no citosol. Tanto o
aumento nos níveis intracelulares de íons cálcio quanto a alteração no padrão de fosforilação de
diferentes proteínas são relacionados à contração do músculo liso e à secreção glandular.

• Efeito inotrópico e cronotrópico positivos (aumento da força e da frequência de contração


cardíaca): ocorrem graças à ativação de beta-1, acoplado à proteína Gs. No coração, o segundo
mensageiro AMPc, cujos níveis intracelulares estão aumentados em resposta à ativação do
receptor, leva à ativação de PKA, que fosforila diversas proteínas relacionadas com a regulação da
85
Unidade I

contração do músculo cardíaco (troponina e fosfolambano, por exemplo). Além disso, a proteína
Gs ativada promove a abertura de canais de cálcio do tipo L na membrana plasmática das células
musculares cardíacas, outro evento relacionado com a resposta contrátil.

• Relaxamento do músculo liso da árvore brônquica, do útero e dos vasos sanguíneos que
suprem a musculatura esquelética: são ações mediadas por beta-2. Embora o receptor beta-2
também seja acoplado à proteína Gs, o conjunto de proteínas fosforiladas em resposta à ativação
da PKA pelo AMPc difere no músculo liso em relação ao músculo cardíaco. Um exemplo é a
fosforilação, mediada por PKA, da quinase da cadeia leve da miosina para uma forma inativa.
Isso explica por que, nos cardiomiócitos, a ativação da proteína Gs promove contração, enquanto,
na musculatura lisa, promove relaxamento: o repertório de proteínas disponíveis para a fosforilação
da PKA nessas células é diferente e, portanto, o efeito final também o é.

• Aumento da taxa de glicogenólise no fígado e no músculo e liberação de ácidos graxos livres


do tecido adiposo: também são ações mediadas por beta-2. No fígado, uma cascata de fosforilações
iniciadas pela PKA culmina na ativação da fosforilase do glicogênio hepático, enzima envolvida na
glicogenólise, e também na inativação da sintetase do glicogênio. No tecido adiposo, a PKA fosforila e,
assim, ativa a lipase dos triglicérides, com aumento da liberação de ácidos graxos para a circulação.

• Ações pré-sinápticas, que resultam na inibição ou na facilitação da liberação de


neurotransmissores: mediada pela ativação de alfa-2, acoplado à Gi. A ativação da proteína Gi,
inibitória, leva à diminuição dos níveis intracelulares de AMPc.

• Ações endócrinas: a ativação de adrenoceptores alfa-2 presentes nas ilhotas pancreáticas são
responsáveis por inibir a secreção de insulina, e a ativação de adrenoceptores beta-1 nas células
justaglomerulares promovem liberação de renina. Os mecanismos moleculares envolvidos ainda
não foram completamente caracterizados.

Nem todos os simpatomiméticos exibem todas essas ações descritas com a mesma intensidade, por
conta da diferença de seletividade desses agentes pelos subtipos de receptores alfa e beta disponíveis
nos órgãos e tecidos.

3.2.2 Simpatomiméticos de ação direta: catecolaminas endógenas

Conforme o Conselho Federal de Farmácia (2012), os fármacos que ativam os receptores adrenérgicos
são classificados quimicamente como monoaminas. As monoaminas endógenas são a norepinefrina, a
epinefrina e a dopamina. Essas moléculas apresentam um grupo catecol central (benzeno com duas
hidroxilas laterais nos carbonos 1 e 2) ligado a uma cadeia lateral de amina. Por apresentarem o grupo
catecol em sua estrutura, são denominadas catecolaminas (veja a figura a seguir).

86
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

OH OH
HO HO HO

NH2 NH2 HN
HO HO HO CH3
A) B) C)
Dopamina Norepinefrina Epinefrina

Figura 33 – Estrutura química das catecolaminas endógenas

Existem diferenças na afinidade da epinefrina e da norepinefrina pelos diferentes subtipos de


receptores adrenérgicos: ambos apresentam afinidade semelhante pelos adrenoceptores beta-1, ou
seja, são aproximadamente equipotentes na estimulação desses receptores. A norepinefrina é potente
agonista alfa e exerce muito pouca ação sobre adrenoceptores beta-2.

Como consequência da diferença de afinidade pelos receptores, essas catecolaminas endógenas são
usadas terapeuticamente em diferentes condições clínicas.

A epinefrina apresenta diferentes efeitos de acordo com a dose utilizada. Esses efeitos incluem (a)
o aumento da frequência e da força da contração cardíaca; (b) o aumento da circulação sanguínea em
músculos esqueléticos (que é reduzida em altas doses); (c) a redução da circulação sanguínea nos rins,
nas mucosas e na pele; (d) o relaxamento da musculatura lisa brônquica; (e) a hiperglicemia e o maior
consumo de oxigênio, devido a seus efeitos metabólicos; (f) a broncodilatação e o relaxamento uterino.
Seus usos terapêuticos incluem: promover vasoconstrição no local de administração de anestésicos
gerais; reversão da parada cardíaca; tratamento do estado de mal asmático; e reversão da anafilaxia e
do choque anafilático, secundária a seus efeitos cardiovasculares e brônquicos.

A epinefrina está disponível em uma variedade de formulações, desenvolvidas para diferentes


indicações clínicas e vias de administração: subcutânea (promove vasoconstrição local e é usada para
retardar a absorção dos anestésicos locais, por exemplo), intravenosa (no tratamento das condições
cardiovasculares), inalatória (uma opção no tratamento das desordens respiratórias) e tópica.

Os principais efeitos adversos relacionados com o uso da epinefrina são: ansiedade, tensão, cefaleia
e tremores, por sua ação no sistema nervoso central; hemorragia cerebral, secundária ao aumento da
pressão arterial; arritmias; e edema pulmonar.

Observação

O uso da epinefrina é pontual e não deve se estender por várias doses,


por conta de seus efeitos adversos.

A norepinefrina induz intensa vasoconstrição periférica, devido a sua atividade agonista dos
receptores alfa, o que aumenta a pressão arterial sistólica e diastólica, acompanhada da diminuição
reflexa da frequência cardíaca. Apresenta uso terapêutico limitado, podendo ser utilizada em situações

87
Unidade I

de emergência de hipotensão, como o choque cardiogênico. Seus efeitos adversos são semelhantes aos
da epinefrina e podem, ainda, causar necrose vascular devido à intensa vasoconstrição.

A dopamina, mesmo não sendo uma catecolamina endógena relacionada à ativação do sistema
nervoso simpático, também pode ser utilizada para induzir o trabalho cardíaco, pois é precursora
da norepinefrina e da epinefrina (ver tópico Neurotransmissores autonômicos: biossíntese e
biotransformação para mais informações). Em doses baixas a moderadas, exerce efeito inotrópico
positivo no miocárdio (aumento da força de contração cardíaca) devido à ação direta sobre os receptores
beta-1 e uma ação indireta mediante ao aumento da síntese e secreção de norepinefrina pelos nervos do
sistema nervoso simpático. Com doses mais elevadas, ocorre ativação dos receptores alfa adrenérgicos,
produzindo um aumento da resistência periférica, o que resulta em aumento da pressão arterial sistêmica
e vasoconstrição renal.

Em relação às catecolaminas endógenas que participam da neurotransmissão simpática, é importante


considerar que os efeitos cardiovasculares sistêmicos da epinefrina e da norepinefrina são distintos
entre si, devido às diferentes afinidades desses receptores pelos subtipos de adrenoceptores.

No coração, a administração sistêmica de epinefrina induz o aumento do trabalho cardíaco em


consequência da ativação de receptores beta-1, e o aumento da pressão arterial sistêmica devido à
ativação de receptores alfa-1. No entanto, os efeitos da epinefrina variam consideravelmente de acordo
com o leito vascular considerado, pelo fato de esse transmissor também ativar receptores beta-2,
relacionados à vasodilatação. Assim:

• Na maioria dos leitos vasculares, os receptores alfa-1 são mais abundantes do que os beta-2 e,
portanto, predomina a vasoconstrição. Isso pode ser percebido pelo aumento da pressão arterial
sistêmica e pela vasoconstrição pronunciada da pele e das mucosas.

• Nos vasos que irrigam a musculatura esquelética, há predomínio de receptores beta-2 e, portanto,
ocorre vasodilatação. Esse efeito leva ao aumento da quantidade de sangue que irriga o tecido,
o que é importante do ponto de vista fisiológico para o estabelecimento das reações clássicas de
luta e fuga que dependem de uma maior eficiência do músculo voluntário.

Na maioria dos leitos vasculares, a vasoconstrição mediada pela administração sistêmica de


norepinefrina é mais intensa do que a promovida por uma dose equivalente de epinefrina. Isso ocorre
porque a norepinefrina praticamente não ativa receptores beta-2 e, portanto, não ocorre vasodilatação.
Como consequência dessa intensa vasoconstrição, ocorre bradicardia reflexa decorrente da ativação de
barorreceptores e do sistema nervoso parassimpático (via nervo vago, que inerva praticamente todos
os orgãos abaixo do pescoço), que predomina sobre os efeitos da ativação do receptor beta-1 cardíaco.

É importante ressaltar que a administração de norepinefrina a um coração isolado e acoplado a


fisiógrafo leva ao aumento do trabalho cardíaco de maneira semelhante ao observado com o uso de
epinefrina, pois, nesse caso, a resposta vascular está ausente.

88
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Em resumo, podemos generalizar os efeitos da epinefrina e da norepinefrina sobre o sistema


cardiovascular da seguinte maneira: a epinefrina promove aumento da pressão arterial sistêmica e
do trabalho cardíaco, com vasodilação muscular esquelética concomitante, e a norepinefrina promove
vasoconstrição, de maneira mais intensa do que a epinefrina, e bradicardia reflexa, como consequência
da ativação dos barorreceptores.

Seguindo o mesmo racional, podemos deduzir que os efeitos desses dois transmissores sobre a árvore
brônquica também são diferentes: enquanto a epinefrina promove broncodilatação, pela ativação dos
adrenoceptores beta-2 presentes na musculatura lisa dos brônquios, a norepinefrina não é capaz de
promover esse efeito, por praticamente não exercer ação sobre esse receptor.

3.2.3 Simpatomiméticos de ação direta: catecolaminas sintéticas

A maioria dos agonistas disponíveis comercialmente consistem em análogos estruturais da


epinefrina ou da norepinefrina que recebem a designação comum de monoaminas simpatomiméticas.
A dobutamina e o isoproterenol são monoaminas simpatomiméticas que conservam, em sua estrutura
química, o anel catecol. São, portanto, denominadas catecolaminas sintéticas.

As catecolaminas sintéticas apresentam substituições no anel benzeno do grupo catecol, o que


gera diferentes afinidades desses fármacos pelos subtipos de adrenoceptores alfa e beta e culmina em
diferentes respostas finais nos tecidos. Nesse aspecto, a dobutamina é um agonista seletivo beta-1 e o
isoproterenol é um agonista beta não seletivo (ativa beta-1 e beta-2) (veja a figura a seguir).

Observação

O isoproterenol também é conhecido como isoprenalina.


OH
H OH H
HO N HO N

HO HO
A) Dobutamina B) Isoproterenol

Figura 34 – Estrutura química das catecolaminas sintéticas

As catecolaminas sintéticas apresentam uma série de vantagens terapêuticas em relação


às endógenas, sendo as principais: (a) o aumento da biodisponibilidade; (b) a possibilidade de
administração por via oral; (c) a ação prolongada; e (d) a maior seletividade do fármaco por subtipos
específicos de adrenoceptores.

Na prática, algumas situações terapêuticas que requerem uma resposta mais pontual, direcionada,
são tratadas com sucesso utilizando-se os agentes sintéticos, mais seletivos (um exemplo é o tratamento
da insuficiência cardíaca aguda pela dobutamina). Outras situações mais complexas, que envolvem mais
89
Unidade I

de um sistema receptor, são tratadas mais efetivamente com agentes não seletivos (como a reversão do
choque anafilático pela epinefrina).

A dobutamina é um agonista beta-1 seletivo utilizado no suporte inotrópico de condições em que


se deseja aumentar especificamente a força de contração do coração – por exemplo, na insuficiência
cardíaca aguda. O aumento da força de contração cardíaca, nesse caso, muitas vezes é suficiente para
que haja reversão do quadro. Esse fármaco não altera significativamente a fisiologia da vasculatura: a
alteração da pressão arterial é sutil e ocorre por mecanismos indiretos, já que praticamente não ocorre
ativação dos adrenoceptores que modulam a atividade contrátil dos vasos (alfa-1 e beta-2).

Em comparação, a epinefrina, que não é seletiva, pois ativa significativamente os subtipos alfa‑1, alfa‑2,
beta-1 e beta-2, é um fármaco essencial na reversão do choque anafilático. Essa condição, decorrente
de uma reação alérgica grave e potencialmente fatal, é caracterizada por vasodilatação, diminuição do
trabalho cardíaco e fechamento das vias aéreas. A epinefrina é capaz de promover o aumento do trabalho
cardíaco (por ativação de beta-1), o aumento da pressão arterial sistêmica (resultado do balanço entre a
ativação de alfa-1 e beta-2 nos diferentes leitos vasculares) e a dilatação dos brônquios (por ativação de
beta-2).

A outra catecolamina sintética é o isoproterenol, que apresenta atividade agonista beta não
seletiva, ou seja, ativa tanto os receptores beta-1 quanto os beta-2. Esse fármaco é usado no
tratamento das arritmias cardíacas (por ativar beta-1) e dos broncoespasmos (por ativar beta-2), e
também teve importante papel na farmacologia experimental, por participar da caracterização dos
subtipos de receptores adrenérgicos em uma época em que as ferramentas de biologia molecular
ainda eram incipientes. Foi a partir da comparação entre as ações da epinefrina, da norepinefrina e do
isoproterenol em diferentes tecidos, que expressam diferentes sistemas receptores, que se estabeleceu
a seguinte relação:

alfa-1 e alfa-2: afinidade da epinefrina ≥ norepinepinefrina >> isoproterenol

beta-1: afinidade do isoproterenol > epinefrina = norepinefrina

beta-2: afinidade do isoproterenol > epinefrina >> norepinefrina

Essa conclusão foi possível porque se observou que algumas ações induzidas pelo isoproterenol
e pela epinefrina também foram induzidas pela norepinefrina, enquanto outras ações foram
induzidas pelos dois transmissores endógenos, mas não pelo isoproterenol.

A norepinefrina, por exemplo, tem relativamente pouca capacidade de aumentar o fluxo de ar nos
brônquios, visto que os receptores presentes na musculatura lisa desse órgão são, em grande parte, do
subtipo beta-2; já o isoproterenol e a epinefrina são potentes broncodilatadores. Por sua vez, tanto a
norepinefrina quanto a epinefrina são capazes de promover vasoconstrição cutânea, pois esses vasos
expressam, quase que exclusivamente, receptores alfa-1. Por esse motivo, o isoproterenol exerce pouco
ou nenhum efeito sobre esse parâmetro.

90
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

3.2.4 Simpatomiméticos de ação direta: outras monoaminas

Compostos que não apresentam os grupos catecol em sua estrutura têm meias-vidas mais longas do que
as catecolaminas, pois, ao contrário destas, não são inativados pela COMT e são maus substratos para a MAO.
Além disso, em geral, são mais lipossolúveis do que as catecolaminas e, portanto, penetram o sistema nervoso
central (atravessam a barreira hematoencefálica), o que não é observado em relação às catecolaminas.

A partir de agora, serão apresentados os principais fármacos simpatomiméticos diretos não


catecolaminas, e seus usos serão discutidos de acordo com a seletividade para os diferentes subtipos
de adrenoceptores.

A oximetazolina é um agonista alfa não seletivo, que ativa tanto alfa-1 quanto alfa-2. É usada
topicamente (gotas) como descongestionante nasal e para alívio da vermelhidão dos olhos. Esses
efeitos são decorrentes da ativação de alfa-1 nos vasos da mucosa e da conjuntiva, o que reduz o
fluxo sanguíneo e diminui a congestão. Os principais efeitos adversos são: congestão rebote, no uso
prolongado (secundária à vasodilatação observada após o término das ações do fármaco), e efeitos
centrais (cefaleia, sono agitado e nervosismo).

A fenilefrina apresenta maior seletividade pelos adrenoceptores alfa-1 e, portanto, é um agonista


seletivo alfa-1 com efeito vasoconstritor, causando, assim, aumento das pressões sistólica e diastólica.
Do ponto de vista químico, difere da epinefrina somente pela ausência de um grupamento hidroxila na
posição 4 do anel benzeno, e essa alteração é suficiente para praticamente abolir sua ação em receptores beta.

A fenilefrina induz bradicardia reflexa quando administrada por via parenteral ou quando as doses
administradas topicamente são muito elevadas. É aplicada por via tópica na mucosa nasal por promover
efeito descongestionante, e no olho para promover midríase (dilatação da pupila), como resultado
da contração da musculatura radial da íris. A administração parenteral promove aumento da pressão
arterial em casos de hipotensão grave.

Doses elevadas de fenilefrina podem causar cefaleia hipertensiva, hipertensão arterial sistêmica e
até mesmo necrose da mucosa no local da aplicação, devido à intensa vasoconstrição.

Outro exemplo de agonistas alfa-1 seletivos são a nafazolina (usada como descongestionante nasal)
e a metoxamina (usada no tratamento dos estados hipotensivos).

Os agonistas beta-2 (salbutamol, fenoterol, formoterol, pirbuterol e terbutalina) são utilizados para
promover broncodilatação em pacientes asmáticos ou com outras afecções respiratórias, e também na
prevenção do parto prematuro, pois promovem relaxamento uterino (o agente mais utilizado para essa
finalidade é a terbutalina).

A seletividade desses agentes pelos adrenoceptores beta-2 não é absoluta, e a administração de doses
mais elevadas causa taquicardia, devido à ativação de beta-1 no coração. Para diminuir a probabilidade
de ocorrer esse efeito adverso, geralmente esses agentes são administrados por via inalatória, o que
possibilita o uso de doses menores, pois o fármaco é administrado próximo ao local de ação (brônquios).
91
Unidade I

Um efeito adverso bastante frequente é o desenvolvimento de tremores, devido à ativação de beta-2


presente nas células musculares esqueléticas. Com o uso prolongado, é comum se desenvolver tolerância
a esse efeito. Outros efeitos adversos incluem intranquilidade, apreensão e ansiedade.

Os agonistas beta-2 administrados por via inalatória devem ser usados com cautela, pois foram
registradas mortes devido ao uso excessivo dessa medicação, em razão de seus efeitos cardíacos.

3.2.5 Simpatomiméticos de ação indireta ou mista

As anfetaminas exercem ação estimulatória sobre o sistema nervoso central e são usadas
para promover o controle do apetite nas dietas de emagrecimento (femproporex e anfepramona) e
também no tratamento do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (ritalina). Outro uso, não
regulamentado, visa a manutenção do estado de vigília – é relativamente comum o uso de anfetaminas
por caminhoneiros (o chamado “rebite”), para que consigam dirigir por mais horas, e o MDMA, também
conhecido como “ecstasy”, como droga de abuso.

O mecanismo de ação das anfetaminas envolve o estímulo da liberação de aminas biogênicas


(norepinefrina, dopamina e serotonina) no sistema nervoso central. O efeito de alerta e a diminuição
do apetite são consequência do aumento da liberação de norepinefrina no sistema nervoso central; as
alterações locomotoras e o comportamento estereotipado são decorrentes do aumento da liberação de
dopamina; os distúrbios da percepção e o comportamento psicótico são observados em doses mais altas
em consequência do aumento da liberação de serotonina.

Embora sejam fármacos de ação central, alguns de seus efeitos adversos são decorrentes do
aumento da liberação de norepinefrina pelos nervos do sistema nervoso simpático. Assim, é comum
a presença de taquicardia, aumento da pressão arterial e até mesmo hemorragia intracraniana em
decorrência do uso de anfetaminas.

As anfetaminas, mais especificamente a anfepramona e o femproporex, eram utilizadas como


agentes anorexígenos para auxiliar o emagrecimento até o ano de 2011, quando seu uso foi proibido
para esse fim pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

A decisão da Anvisa se baseou nos seguintes fatos: até 2007, o Brasil era o maior usuário do
mundo de anfetaminas para esse fim, uso este que está relacionado ao desenvolvimento de distúrbios
cardiovasculares e neurológicos, como a dependência, a ansiedade e a depressão. No entanto, um
projeto de lei que visa ao retorno da comercialização das anfetaminas para fins de emagrecimento
(PL n. 2.431/11) foi aprovado pela câmara dos deputados em 2017.

A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica e a Sociedade


Brasileira de Endocrinologia e Metabologia se posicionaram favoravelmente à liberação. Por outro
lado, organizações como a Anvisa e o Instituto de Defesa do Consumidor se posicionaram de maneira
contrária à decisão.

92
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

A efedrina é um agonista não seletivo que ativa tanto os receptores alfa quanto os receptores
beta. Além disso, aumenta a liberação de norepinefrina nos neurônios simpáticos. Por esse motivo,
é considerada um simpatomimético de ação mista. Ela aumenta a atividade cardíaca e promove
vasoconstrição, além de broncodilatação e retenção urinária. Devido à grande exacerbação simpática
que causa, atualmente seu uso terapêutico é muito restrito. Por apresentar efeito anorexígeno, é utilizada
para promover o emagrecimento, embora esse uso não seja regulamentado.

Mais utilizada na atualidade é a pseudoefedrina, que também aumenta a liberação de norepinefrina


pelo nervo simpático, porém apresenta fraca atividade alfa e beta. Promove constrição dos vasos
da mucosa e, por esse motivo, é usada como descongestionante nasal por via oral, geralmente em
combinação com analgésicos e anti-histamínicos. Os efeitos adversos (ansiedade, hiperatividade,
taquicardia, aumento da pressão arterial, retenção urinária, tremores etc.) são o motivo pelo qual o uso
desse fármaco não deve ser prolongado por mais de uma semana.

A ioimbina, embora seja um antagonista seletivo dos adrenoceptores alfa-2, apresenta efeito
simpatomimético. Isso acontece porque, ao promover bloqueio alfa-2 em estruturas do sistema nervoso
central que participam da neurotransmissão simpática, o fármaco impede a inibição desencadeada por
esse receptor e, como consequência, ocorre aumento do tônus simpático. Seu uso não é regulamentado,
porém é comercializado como suplemento alimentar para tratar a impotência sexual. A ioimbina não
deve ser utilizada quando há alteração do sistema nervoso central ou cardiovascular, porque é um
estimulante dessas estruturas.

3.2.6 Simpatolíticos de ação direta

Os simpatolíticos de ação direta são os antagonistas adrenérgicos. Esses fármacos ligam‑se


aos adrenoceptores de maneira reversível ou irreversível e, assim, evitam sua ativação pelas
catecolaminas endógenas.

Da mesma maneira que observado em relação aos agonistas, os antagonistas adrenérgicos


também apresentam diferentes seletividades pelos subtipos de adrenoceptores, o que direciona
seu uso terapêutico.

Os antagonistas alfa não seletivos bloqueiam tanto alfa-1 quanto alfa-2 e, por esse motivo, apresentam
uso terapêutico limitado. Isso ocorre por conta dos seus efeitos cardiovasculares: o bloqueio alfa-1 promove
vasodilatação, enquanto o bloqueio alfa-2 promove aumento do tônus simpático, o que causa aumento do
trabalho cardíaco. Portanto podemos dizer que esses fármacos apresentam ação simpatolítica sobre os vasos
e simpatomimética sobre o coração (veja a figura a seguir).

Lembrete

A norepinefrina promove a inibição da sua própria liberação pela


ativação de alfa-2 no neurônio simpático.

93
Unidade I

A) B)

NE - NE -

α2 α2

NE NE

β1 α1 β1 α1

Músculo Músculo liso Músculo Músculo liso


cardíaco vascular cardíaco vascular

Figura 35 – Efeito dos antagonistas alfa não seletivos (barras vermelhas) sobre o músculo cardíaco
e sobre a pressão arterial. No painel A, a ação da norepinefrina (NE) na ausência desses antagonistas
é demonstrada sobre os adrenoceptores alfa-1 (α1) dos vasos, alfa-2 (α2) do neurônio pré-sináptico
e beta-1 (β1) cardíacos. Na presença do antagonista (B), observa-se o aumento da liberação
de norepinefrina, devido ao bloqueio de alfa-2 pré-sináptico, com consequente aumento
do trabalho cardíaco via ativação de beta-1, e o bloqueio de alfa-1 nos vasos,
o que impede o aumento da pressão arterial

A fenoxibenzamina liga-se de maneira covalente aos adrenoceptores alfa-1 e alfa-2 e, portanto, é


considerada um antagonista não competitivo. A fentolamina, por sua vez, é um antagonista competitivo,
ou seja, promove bloqueio reversível do sítio de ligação do receptor. Esses dois fármacos são usados
principalmente no tratamento do feocromocitoma, um tumor da glândula suprarrenal caracterizado
pelo aumento da secreção de catecolaminas endógenas, pois promovem reversão da epinefrina, ou seja,
inibem a vasoconstrição mediada por esse transmissor (por bloqueio alfa-1), sem que haja alteração na
função cardíaca.

Os antagonistas seletivos alfa-1 são bloqueadores competitivos que apresentam, como principais
efeitos, a diminuição da pressão arterial e o relaxamento da musculatura lisa de alguns órgãos. Dentro
dessa classe, a prazosina, a terazosina e a doxazosina são utilizados no tratamento da hipertensão arterial,
enquanto a tansulosina e a alfuzosina são indicadas no tratamento da hipertrofia prostática benigna.

Esses agentes não são a primeira escolha no tratamento da hipertensão arterial, por apresentarem
muitos efeitos adversos, que incluem tontura, falta de energia, congestão nasal, cefaleia, sonolência
e hipotensão ortostática – essa última causada principalmente em decorrência da administração de
primeira dose (“efeito de primeira dose”).

Em relação ao tratamento da hipertrofia prostática benigna, a tansulosina é um dos fármacos de


escolha por possuir maior afinidade pelo subtipo de receptor alfa-1A, que predomina na musculatura

94
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

lisa da próstata. O bloqueio desse receptor leva ao relaxamento das células musculares lisas do órgão,
com consequente diminuição do volume prostático.

Os antagonistas beta, ou betabloqueadores, são a classe de simpatolíticos de ação direta mais


importantes do ponto de vista terapêutico. São utilizados no tratamento de uma série de condições, que
incluem as arritmias cardíacas (pois são bradicardizantes), a hipertensão arterial sistêmica (pois ocorre
diminuição da pressão arterial em decorrência da bradicardia), a angina pectoris (diminuem o consumo de
oxigênio pelo músculo cardíaco), o glaucoma (pois causam diminuição da síntese de humor aquoso pelo
olho), o hipertireoidismo (pois promovem normalização da atividade cardíaca) e a profilaxia da enxaqueca.

Os betabloqueadores não seletivos estão relacionados à incidência de uma gama de efeitos adversos
e contraindicações decorrentes do bloqueio de beta-2, como broncoconstrição e hipoglicemia. Os
betabloqueadores cardiosseletivos apresentam maior afinidade por beta-1 e são uma das classes mais
prescritas para o controle de diversas condições cardiovasculares. Esses fármacos também apresentam
diferenças quanto à atividade simpaticomimética intrínseca, aos efeitos sobre o sistema nervoso central
e aos aspectos farmacocinéticos (veja a figura a seguir).

Isoproterenol Pindolol Propranolol Atenolol

Receptores Receptores Receptores


Beta Beta Beta
Agonista Agonista Antagonista Antagonista
parcial Inibição das respostas

Seletividade

Figura 36 – Comparação entre os efeitos do isoproterenol (agonista total beta não seletivo),
do pindolol (agonista parcial beta não seletivo), do propranolol (antagonista beta não seletivo)
e do atenolol (antagonista beta-‘1 seletivo) sobre o coração e o pulmão

95
Unidade I

O propranolol é o protótipo dos betabloqueadores não seletivos. Esse fármaco bloqueia os


receptores beta-1 e beta-2 com mesma afinidade. As ações mediadas pelo propranolol são as seguintes:

• No coração, observa-se efeito cronotrópico e inotrópico negativos (diminuição da força e da


frequência de contração cardíaca), que pode resultar em bradicardia. A diminuição do débito
cardíaco, do trabalho e do consumo de oxigênio são úteis no tratamento da angina e das arritmias
supraventriculares. Em doses mais elevadas, o propranolol pode causar efeito estabilizador de
membrana no coração, mas esse efeito é insignificante se o fármaco é administrado na faixa
terapêutica e melhor observado em ensaios de contração de coração isolado acoplado a fisiógrafo.

• No sistema vascular, ocorre diminuição da pressão arterial sistêmica. Esse efeito é secundário
à diminuição do trabalho cardíaco, à diminuição da secreção de renina pelos rins (devido ao
bloqueio de beta-1 nesses órgãos) e à regulação dos barorreceptores (esse último, por mecanismos
ainda desconhecidos). No entanto, nos vasos periféricos, observa-se vasoconstrição, que se traduz
em palidez cutânea e na diminuição da temperatura da superfície. Isso ocorre principalmente
devido ao bloqueio beta-2 nesses vasos e à diminuição do fluxo sanguíneo para a pele e para
as mucosas em decorrência da diminuição da pressão arterial. Não ocorre hipotensão postural,
pois os receptores alfa-1, que controlam a resistência vascular, não são afetados. No entanto, é
necessário que a retirada da medicação seja gradual (“desmame”), a fim de se evitar um quadro
de hipertensão de rebote.

• No sistema respiratório, ocorre broncoconstrição, por conta do bloqueio dos receptores beta-2 na
árvore brônquica. Isso pode precipitar uma crise respiratória. Por esse motivo, os betabloqueadores,
em particular os não seletivos, são contraindicados para os pacientes com afecções respiratórias,
como a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e a asma.

• Nos rins, a diminuição da pressão arterial promove redução na perfusão renal, o que causa
aumento na retenção de íons sódio. Como resultado, essa resposta compensatória tende a elevar
a pressão arterial, motivo pelo qual é comum a associação entre betabloqueadores e diuréticos no
tratamento da hipertensão arterial.

• Em relação ao metabolismo da glicose, ocorre diminuição da glicogenólise no fígado e na


musculatura esquelética e diminuição da secreção de glucagon pelo pâncreas. Por isso, se
for administrado propranolol a um paciente com diabetes melito do tipo 1, é necessário
monitorar cuidadosamente a glicemia, pois pode ocorrer hipoglicemia acentuada depois da
injeção de insulina.

• Outros efeitos metabólicos incluem o aumento dos triglicérides e a diminuição do HDL, o que
deve ser considerado no tratamento de pacientes hipertensos com dislipidemias.

• Por interação com o sistema nervoso central, pode ocorrer depressão, diminuição da libido,
letargia, fadiga, fraqueza, distúrbios visuais, alucinações, perda de memória de curta duração,
fragilidade emocional, sonhos intensos e insônia.

96
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Outros exemplos de betabloqueadores não seletivos são o timolol e o nadolol. Eles são mais
potentes que o propranolol, ou seja, a dose necessária para que esses efeitos sejam notados é menor
do que a de propranolol.

Os betabloqueadores seletivos beta-1 (atenolol, metoprolol, bisoprolol, betaxolol, nebivolol e


esmolol) foram desenvolvidos a partir da modificação da molécula do propranolol, a fim de eliminar
o efeito broncoconstritor indesejado do propranolol em pacientes asmáticos, decorrente do bloqueio
beta-2. No entanto, a cardiosseletividade é perdida em doses mais elevadas, o que também contraindica
seu uso por pacientes com afecções respiratórias graves.

Os betabloqueadores com atividade simpatomimética intrínseca (acebutolol e pindolol) não


são antagonistas, mas sim agonistas parciais dos adrenoceptores beta-1 e beta-2. Estes, por serem
parciais, ativam os receptores beta, mas não são capazes de desencadear uma resposta máxima. Por esse
motivo, eles inibem a ação das catecolaminas endógenas, que apresentam maior eficácia. O resultado
é um efeito bem diminuído na frequência e no débito cardíaco se comparado ao efeito dos outros
betabloqueadores, efeito útil no tratamento de pacientes hipertensos que já apresentam bradicardia
moderada. Além disso, esses fármacos causam menos distúrbios no metabolismo da glicose, o que é
importante para o tratamento de hipertensos diabéticos.

O labetalol e o carvedilol são betabloqueadores com atividade antagonista dos adrenoceptores


alfa-1, o que impede a vasoconstrição periférica causada pelo bloqueio de beta-2 nos vasos. Além disso,
não alteram significativamente o metabolismo da glicose.

Saiba mais

O uso dos betabloqueadores na hipertensão é discutido em:

NOGUEIRA-SILVA, L. et al. Cochrane Corner: eficácia anti-hipertensora


dos betabloqueadores seletivos beta-1 na hipertensão essencial. Revista
Portuguesa de Cardiologia, v. 36, n. 5, 2017.

3.2.7 Simpatolíticos de ação indireta/mista

A metildopa é um simpatolítico de ação central, usado como anti-hipertensivo. A metildopa é


metabolizada para alfa-metilnorepinefrina, um “falso neurotransmissor” que ativa receptores alfa-2 no sistema
nervoso central e, assim, diminui o tônus simpático. É utilizado no tratamento da hipertensão em gestantes.

A metiltirosina é um fármaco utilizado no tratamento do feocromocitoma. Inibe a tirosina


hidroxilase, responsável por converter a tirosina em dopa e, assim, diminui a quantidade de
norepinefrina sintetizada pelo nervo autonômico simpático e pela medula da suprarrenal (ver tópico
Neurotransmissores autonômicos: biossíntese e biotransformação para mais informações sobre a
biossíntese de norepinefrina).
97
Unidade I

A reserpina e a guanetidina são fármacos de utilização experimental que atuam em diferentes


etapas da neurotransmissão noradrenérgica. Essas substâncias promovem a inibição do transporte de
norepinefrina do citoplasma para as vesículas de armazenamento (reserpina) e a sua liberação nas
sinapses (guanetidina). Como consequência, observa-se a depleção gradual da norepinefrina nos
terminais nervosos, exceto naqueles localizados no SNC.

A clonidina, embora seja um agonista seletivo alfa-2, apresenta efeitos simpatolíticos. Ao ativar os
receptores alfa-2 presentes no sistema nervoso central (centros vasomotores), ocorre inibição do tônus
simpático, o que resulta em diminuição da pressão arterial. É utilizada no tratamento da pressão arterial
resistente e também para minimizar os sintomas que acompanham a retirada dos opiáceos, do cigarro
ou dos benzodiazepínicos. Os efeitos adversos mais comuns incluem letargia, sedação, constipação e
xerostomia, o que explica por que não são utilizados como primeira escolha no tratamento da hipertensão.

4 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO PARASSIMPÁTICO, DO GÂNGLIO E


DA JUNÇÃO NEUROMUSCULAR

4.1 Farmacologia do sistema nervoso parassimpático

Assim como os fármacos que atuam sobre o sistema nervoso simpático, os fármacos que atuam sobre
o parassimpático o fazem por uma ação direta (agonismo ou antagonismo dos receptores colinérgicos
muscarínicos) ou indireta (atuam em outras etapas da neurotransmissão, por exemplo, impedindo a
hidrólise da acetilcolina).

Além disso, esses fármacos também podem ser classificados de acordo com a resposta final
desencadeada: os parassimpatomiméticos promovem estímulo das respostas do sistema nervoso
parassimpático e os parassimpatolíticos, inibição.

A principal diferença entre os agentes que atuam sobre o sistema nervoso parassimpático, em relação
aos que atuam sobre o simpático, é a falta de seletividade dos primeiros: até o momento, praticamente
não existem agentes suficientemente seletivos para cada subtipo de receptor muscarínico, o que limita
sua utilização terapêutica.

4.1.1 Parassimpatomiméticos de ação direta

Os parassimpatomiméticos de ação direta são os agonistas dos receptores muscarínicos e, de


acordo com sua estrutura química, podem ser classificados em ésteres da colina de ocorrência natural
(acetilcolina) ou sintética (metacolina, carbacol e betanecol, por exemplo) e em alcaloides de ocorrência
natural (muscarina, arecolina e pilocarpina).

A acetilcolina é o transmissor endógeno do sistema nervoso parassimpático, do gânglio autonômico,


da junção neuromuscular e de algumas estruturas do sistema nervoso central, primariamente relacionadas
com a memória e a cognição. Portanto as respostas mediadas por esse neurotransmissor ultrapassam
aquelas dependentes da ativação do sistema nervoso parassimpático.

98
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

As ações muscarínicas e nicotínicas foram caracterizadas com base nos efeitos da acetilcolina (o
transmissor endógeno), da muscarina (princípio ativo isolado do fungo Amanita muscaria), da atropina
(isolada da planta Atropa belladonna) e da nicotina (extraída das folhas de tabaco).

Em alguns órgãos efetores, mas não em outros, a administração da muscarina induz ações
semelhantes às decorrentes da administração de acetilcolina. As ações induzidas pela muscarina foram
compatíveis com as ações do sistema nervoso parassimpático e os receptores que medeiam essas ações
foram denominados receptores muscarínicos.

A administração de atropina, previamente à administração de muscarina ou de acetilcolina, foi capaz


de impedir os efeitos induzidos por esses fármacos no sistema nervoso parassimpático. A atropina,
portanto, foi caracterizada como um antagonista dos receptores muscarínicos (esse fármaco será
estudado no tópico Parassimpatolíticos de ação direta).

No entanto, algumas ações da acetilcolina, principalmente aquelas relacionadas com a contração da


musculatura esquelética, não foram bloqueadas pela atropina e, além disso, foram induzidas pela nicotina
e bloqueadas especificamente pela d-tubocurarina. A partir dessa observação, deduziu-se que existem dois
tipos de receptores colinérgicos que medeiam as ações da acetilcolina: os receptores muscarínicos, ativados
pela acetilcolina e pela muscarina e bloqueados pela atropina, e os receptores nicotínicos, ativados pela
acetilcolina e pela nicotina e bloqueados pela d-tubocurarina (veja a figura a seguir).
A. Receptores muscarínicos
Muscarina Acetilcolina Nicotina

Alta afinidade Baixa afinidade

S
B. Receptores nicotínicos
Muscarina Acetilcolina Nicotina

Alta afinidade Baixa afinidade

Figura 37 – Atividade da muscarina, da acetilcolina e da nicotina sobre os receptores colinérgicos

99
Unidade I

Conforme já estudado no tópico Subtipos de receptores adrenérgicos e muscarínicos, os


receptores muscarínicos e nicotínicos são completamente diferentes do ponto de vista estrutural e
funcional: os muscarínicos são metabotrópicos, acoplados à proteína G, e os receptores nicotínicos
são ionotrópicos, acoplados a canal iônico.

Os receptores nicotínicos (N) são classificados em dois subtipos. O subtipo Nn predomina nos
neurônios, enquanto o subtipo Nm está presente no músculo esquelético. Nos dois casos, a ativação
desses receptores leva à abertura dos canais de sódio, o que desencadeia alteração do potencial de
membrana e culmina no desencadeamento de potenciais de ação (receptores Nn) ou na contração da
musculatura esquelética (receptores Nm).

Os receptores muscarínicos (M) medeiam as ações da acetilcolina no sistema nervoso parassimpático


e no sistema nervoso central (nesse último caso, em conjunto aos receptores nicotínicos Nn). Os subtipos
envolvidos nas respostas do sistema nervoso parassimpático são o M1, o M2 e o M3.

• Os receptores M1 são acoplados à proteína Gq e, no sistema parassimpático, estão relacionados com


o aumento da secreção de HCl pelas células parietais do estômago, efeito mediado pelo aumento
do cálcio intracelular e da fosforilação de uma série de proteínas pela PKC. Essa classe de receptores
também está presente no córtex e no hipocampo, e é importante na fisiopatologia do mal de Alzheimer.

• Os receptores M2 são acoplados à proteína Gi e sua ativação leva à inibição da frequência e da


força cardíaca. Esses efeitos são mediados não só pela diminuição dos níveis intracelulares de AMPc
e pela redução da condutância dos canais de cálcio do tipo L dos cardiomiócitos, mas também
pela abertura de canais de potássio sensíveis à acetilcolina (K+ach). O aumento das concentrações
intracelulares de potássio causa encurtamento da duração do potencial de ação e aumento do
período refratário nas células cardíacas. Como consequência dos efeitos inotrópico e cronotrópico
negativos no coração, ocorre diminuição da pressão arterial como um mecanismo compensatório.

• Os receptores M3 são acoplados à proteína Gq e são mais amplamente distribuídos pelo organismo
do que os subtipos M1 e M2. Medeiam a contração da musculatura lisa do tubo digestório, da árvore
brônquica, da bexiga e da íris (musculatura circular), e a secreção de muco na árvore brônquica, de
saliva e de suor. As ações de contração da musculatura lisa e de secreção exócrina estão classicamente
relacionadas com a ativação de receptores acoplados à proteína Gq tanto no sistema parassimpático
quanto no sistema simpático (veja o tópico Subtipos de receptores adrenérgicos e muscarínicos),
e esses efeitos dependem da ação do cálcio e também do padrão de fosforilações iniciado pela PKC.

• A ativação de M3 no endotélio vascular também é responsável pela vasodilatação mediada pela


acetilcolina, evento que envolve a secreção de óxido nítrico, um potente vasodilatador, por essas células.
No entanto, a relevância fisiológica desse mecanismo ainda é incerta, uma vez que a acetilcolina teria
acesso a esses receptores somente por via plasmática (não existe inervação parassimpática nos vasos),
e é sabido que sua meia-vida, no plasma, é muito curta, devido à ação da butirilcolinesterase.

A acetilcolina apresenta alta afinidade por todos os subtipos de receptores muscarínicos e nicotínicos.
Trata-se de um composto polar formado a partir da acetilação de um resíduo de colina e, por esse
motivo, não é capaz de atravessar a membrana plasmática.

100
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Ao contrário da epinefrina e da norepinefrina, que podem ser utilizados em uma série de condições
clínicas, a acetilcolina não tem importância terapêutica devido à inespecificidade de suas ações (pois
apresenta alta afinidade por todos os subtipos de receptores nicotínicos e muscarínicos) e pela sua rápida
inativação pelas colinesterases, enzimas que são encontradas sinapses (acetilcolinesterase), nas hemácias
(colinesterase eritrocitária) e no plasma (butirilcolinesterase). Como consequência, foram sintetizados
vários derivados na tentativa de obter fármacos com ação mais seletiva (por ativarem preferencialmente
receptores muscarínicos) e prolongada (por apresentarem resistência à hidrólise pelas colinesterases).

Ensaios em diferentes tecidos e simulações computacionais da relação estrutura-função dos ésteres


de colina sintéticos mostraram que, de acordo com a modificação realizada na molécula de acetilcolina,
esses parâmetros são alterados em diferentes graus (veja o quadro a seguir).

Os parassimpatomiméticos com potencial terapêutico são aqueles que apresentam alta seletividade
pelos receptores muscarínicos, pouca ou nenhuma hidrólise pela acetilcolinesterase e, idealmente
(mas nem sempre), pouca penetrância no sistema nervoso central. São eles o betanecol, a metacolina
e o carbacol, que são ésteres sintéticos da colina, e a pilocarpina, um alcaloide de ocorrência natural.
Os demais fármacos apresentam uso experimental.

Quadro 5 – Relação estrutura-função dos ésteres da colina e dos alcaloides de ocorrência


natural que atuam sobre os receptores colinérgicos muscarínicos e/ou nicotínicos

Seletividade
Fármaco Fórmula estrutural Hidrólise pela achE
M N
O
Acetilcolina + || ++ ++ +++
(H3C)3 - N - CH2 - CH2 - O - C - CH3

O
+ ||
Metacolina (H3C)3 - N - CH2 - CH - O - C - CH3 ++ + ++
|
CH3
O
Cabacol + || ++ ++ +
(H3C)3 - N - CH2 - CH2 - O - C - NH2
O
+ ||
Betanecol (H3C)3 - N - CH2 - CH - O - C - NH2 ++ -- +
|
CH3
CH2 — CHOH
+ | |
Muscarina (H3C)3 - N - CH2 - CH CH - CH3 ++ -- --
O
H3C - N - C - CH2 - CH - CH - C2H5
| || | |
Pilocarpina HC CH H2C C = O ++ + --
N O

101
Unidade I

Seletividade
Fármaco Fórmula estrutural Hidrólise pela achE
M N
CH
H2C C - COOCH3
| |
Arecolina H2C CH2 ++ + --
N
|
CH3
CH3
N N
Nicotina -- ++ --

• O betanecol estimula a musculatura lisa do trato gastrointestinal e da bexiga e é utilizado no


tratamento do íleo paralítico e da atonia vesical, por estimular a contração nesses órgãos.

• A metacolina é utilizada no diagnóstico da hiper-reatividade brônquica, pois promove


broncoconstrição, de maneira mais acentuada em asmáticos.

• O carbacol, quando aplicado topicamente no olho, promove contração da musculatura circular


da íris, provocando miose, o que aumenta a drenagem do humor aquoso. Por esse motivo, é
utilizado no tratamento do glaucoma.

• A pilocarpina também é utilizada no tratamento do glaucoma, quando administrada diretamente no


olho, e suas ações são semelhantes às do carbacol. A administração por via oral é útil no tratamento
da xerostomia (boca seca, cujo tratamento está sendo substituído pela cevimelina, que apresenta
menos efeitos adversos). Por se tratar de uma molécula apolar, penetra no sistema nervoso central.

Devido à pouca seletividade diferencial desses fármacos pelos diferentes subtipos de receptores
muscarínicos, os efeitos adversos são semelhantes entre si e envolvem o aumento do sistema nervoso
parassimpático, o que limita seu uso terapêutico. Os principais efeitos adversos são: sudorese (lembre-se
que o aumento da secreção de suor, embora participe do sistema nervoso simpático, é desencadeado pela
acetilcolina); cólicas abdominais e vômitos (devido ao estímulo do peristaltismo e ao aumento da secreção
de suco gástrico); dificuldade de acomodação visual (principalmente após administração tópica de colírios
e secundária à miose, fator que dificulta a acomodação do cristalino); salivação (devido à secreção de
grandes quantidades de saliva fluida) e cefaleia pulsátil (secundária à queda da pressão arterial).

Os parassimpatomiméticos de ação direta são contraindicados para asmáticos (promovem


broncoconstrição e aumento da secreção de muco por ativação de M3 no pulmão); indivíduos hipotensos
(diminuem a pressão arterial pela ativação de M3 do endotélio como consequência da diminuição
do trabalho cardíaco, o que pode causar insuficiência coronariana secundária à diminuição do fluxo
sanguíneo para o órgão); pacientes com distúrbios pépticos ácidos (pois aumentam a secreção de HCl
no estômago) e pacientes com hipertireoidismo (pois podem causar arritmias e fibrilação).
102
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

4.1.2 Parassimpatomiméticos de ação indireta

Os parassimpatomiméticos de ação indireta são os anticolinesterásicos, agentes que inibem a enzima


acetilcolinesterase. O resultado da inibição dessa enzima é o aumento do tempo de ação da acetilcolina
na fenda sináptica e, portanto, a exacerbação das ações mediadas por esse neurotransmissor.

Os anticolinesterásicos podem desencadear respostas em todos os receptores colinérgicos do


organismo (nicotínicos e muscarínicos), tanto nos órgãos-alvo do sistema nervoso parassimpático
quando na junção neuromuscular e no cérebro. Portanto, seu uso deve ser realizado com cautela em
relação à dose e à duração do tratamento.

A acetilcolinesterase apresenta dois sítios ativos: o sítio aniônico e o sítio estearásico. Os carbamatos
são moléculas que se ligam ao resíduo de serina do sítio estearásico da enzima e geram um resíduo de
carbamil-serina, que é rapidamente hidrolisado, restituindo-se a atividade da enzima. Os organofosforados,
por sua vez, fosforilam o resíduo de serina do sítio estearásico, de maneira praticamente irreversível.
Portanto sua ação é prolongada e perdura até que sejam sintetizadas novas enzimas. A grande maioria
dos agentes usados terapeuticamente são os carbamatos, exatamente pela menor duração da ação, que
varia de curta a intermediária (veja a figura a seguir).

Neurônio

Acetato
Acetilcolina

Colina -

Ecotiofato
Edrofônio
Neostigmina
Fisostigmina Resposta intracelular
aumentada

Figura 38 – Mecanismo de ação dos anticolinesterásicos

103
Unidade I

Os principais usos terapêuticos dos anticolinesterásicos são:

• Diagnóstico da miastenia gravis: a miastenia gravis é uma doença autoimune causada por
anticorpos contra o receptor nicotínico muscular (Nm) na placa motora. Como consequência, ocorre
redução do número de receptores disponíveis para interação com acetilcolina. A administração
intravenosa do edrofônio, um inibidor da acetilcolinesterase de ação curta (que varia de 10 a 20
minutos) leva a um rápido aumento da força muscular nos pacientes com a doença, que volta a
diminuir após o tempo de ação do fármaco. Portanto, se houver melhora na função motora após
a administração de edrofônio, é fechado o diagnóstico de miastenia gravis.

— Tratamento sintomático da miastenia gravis: para aumentar o tempo de ação da acetilcolina


na junção neuromuscular e, assim, normalizar a função contrátil do músculo esquelético em
pacientes com miastenia gravis, são usados anticolineterásicos de ação intermediária, como a
fisostigmina, a neostigmina, a piridostigmina e o ambetônio.

• Tratamento sintomático do mal de Alzheimer: os pacientes com a doença de Alzheimer têm


deficiência de neurônios colinérgicos no sistema nervoso central, conforme será descrito de
maneira detalhada no tópico Tratamento da doença de Alzheimer. Essa observação levou ao
desenvolvimento de anticolinesterásicos para o gerenciamento da perda da função cognitiva.
A tacrina foi o primeiro disponível para esse fim, mas, por ser hepatotóxica, seu uso foi
descontinuado. Atualmente, são utilizadas a donepezila, a rivastigmina e a galantamina. Embora
esses fármacos retardem o avanço da doença, não impedem sua progressão. Os efeitos adversos
gastrointestinais (náuseas, vômitos e diarreia) limitam seu uso por alguns pacientes.

• Tratamento do íleo paralítico e da atonia da bexiga: a neostigmina é capaz de promover significativo


aumento da ação da acetilcolina na musculatura lisa do trato gastrointestinal e da bexiga.

• Tratamento do glaucoma: soluções oftálmicas de fisostigmina provocam miose e melhoram a


drenagem de humor aquoso no glaucoma de ângulo fechado. O organofoforado irreversível
ecotiopato pode ser utilizado para essa finalidade nos casos de glaucoma refratário a outros agentes.

• Reversão do bloqueio neuromuscular causado pela tubocurarina: a d-tubocurarina é um


bloqueador neuromuscular não despolarizante que será estudado no tópico Fármacos bloqueadores
neuromusculares. Esse fármaco promove bloqueio dos receptores nicotínicos musculares, e
o aumento do tempo de ação da acetilcolina causado pela administração do anticolinesterásico
neostigmina possibilita a reversão desse quadro.

Por desencadearem efeitos inespecíficos, os efeitos adversos do uso dos anticolinesterásicos sobre o
sistema nervoso parassimpático são semelhantes aos observados com o uso dos parassimpatomiméticos
de ação direta. Os efeitos sobre a musculatura esquelética (fraqueza, fasciculações e paralisia) e sobre
o sistema nervoso central (confusão mental, depressão respiratória e convulsões) são observados em
maiores doses e estão relacionados à intoxicação por esses agentes.

Intoxicações por agentes anticolinesterásicos são comuns, pois essas substâncias são usadas para
outros fins que não a terapêutica.
104
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Os anticolinesterásicos, tanto os carbamatos quanto os organofosforados, são o princípio ativo de


vários pesticidas e agrotóxicos. O “chumbinho”, por exemplo, é um carbamato usado ilegalmente para
matar pequenos animais e é responsável por inúmeros casos de intoxicação, principalmente de crianças.

O malation e o aldicarbe são, respectivamente, exemplos de organofosforado e carbamato usados


na lavoura. Como essas substâncias, em especial os organofosforados, podem ser absorvidas pela
pele, sua manipulação deve ser feita com o uso de equipamentos de proteção individual. Além disso,
os trabalhadores da lavoura devem realizar mensalmente um exame para verificar a atividade da
butirilcolinesterase e da colinesterase eritrocitária, uma vez que a inibição dessas enzimas indica que
também houve inibição da acetilcolinesterase das sinapses parassimpáticas, da junção neuromuscular e
do sistema nervoso central.

Os efeitos da intoxicação por esses agentes são observados no sistema nervoso parassimpático, na
junção neuromuscular e no sistema nervoso central, e variam desde náusea, palidez, cólica abdominal e
fraqueza muscular na intoxicação leve até sialorreia (aumento da salivação), lacrimejamento, broncorreia,
incontinência urinária e fecal, insuficiência respiratória, tremores, fasciculações e convulsões nos casos
mais graves.

Você consegue reconhecer quais dessas manifestações são decorrentes da exacerbação do sistema
nervoso parassimpático? Essas manifestações são revertidas pela administração do antagonista
muscarínico atropina durante o período de observação, até que haja restituição da atividade enzimática.

Para reverter especificamente a intoxicação por organofosforados, administra-se pralidoxima, que


se liga ao resíduo de glutamato presente no sítio aniônico e restabelece a função enzimática a partir da
transferência do grupamento fosfato para sua estrutura.

Observação

A atropina não é capaz de reverter os efeitos do excesso de acetilcolina


sobre o músculo esquelético, uma vez que esses efeitos são mediados por
receptores nicotínicos.

Saiba mais

Os efeitos tóxicos dos agrotóxicos são revisados em:

LOPES, C. V. A.; ALBUQUERQUE, G. S. C. Agrotóxicos e seus impactos na


saúde humana e ambiental: uma revisão sistemática. Saúde Debate, v. 42,
n. 117, 2018.

105
Unidade I

4.1.3 Parassimpatolíticos de ação direta

Os parassimpatolíticos de ação direta bloqueiam os receptores muscarínicos e, por esse motivo, são
também denominados fármacos anticolinérgicos. Assim como observado para os agonistas, também
carecem de seletividade diferencial para os subtipos de receptores muscarínicos. No entanto, não
bloqueiam significativamente os receptores nicotínicos e, assim, não exercem efeito sobre o gânglio e
sobre o músculo. Por outro lado, seus efeitos, decorrentes da inibição parassimpática, são percebidos em
todo o organismo.

Os antagonistas muscarínicos são classificados, de acordo com a estrutura química, em alcaloides


naturais (atropina e escopolamina, ou hioscina) e em derivados sintéticos semissintéticos destes
(metilatropina, metescopolamina e homatropina, ipratópio, tiotrópio, pirenzepina, tropicamida,
tolteridina etc.).

Os alcaloides naturais, atropina e escopolamina, são extraídos da planta conhecida como beladona
(Atropa belladonna) e de outras plantas. Estruturalmente, são ésteres formados pela associação de um
ácido aromático (ácido trópico) e bases orgânicas complexas, a tropina ou a escopina. A diferença entre
a atropina e a escopolamina é somente a presença, na segunda, de uma ponte de oxigênio entre os
carbonos 6 e 7 (veja a figura a seguir).
H3C H3C N
N
OH
O
O
H OH
H
O
O
A) B)
O
Atropina Escopolamina

Figura 39 – Estrutura química da atropina e da escopolamina

Essa diferença estrutural é suficiente para promover ações distintas quando os dois fármacos são
comparados: em doses terapêuticas, a atropina praticamente não exerce efeitos detectáveis no sistema
nervoso central, enquanto a escopolamina exerce efeitos predominantemente centrais. Essa observação
é decorrente da maior penetração da escopolamina no sistema nervoso central e explica por que, na
maioria das situações terapêuticas, a atropina é preferível à escopolamina.

Doses maiores de atropina, no entanto, também causam alterações no sistema nervoso central,
que se manifestam como agitação, irritabilidade, desorientação, alucinações e delírios. Esses efeitos
excitatórios são opostos aos observados com o uso da escopolamina, que causa sonolência, amnésia,
fadiga e sono sem sonhos. No entanto, dependendo da dose, a atropina pode ter efeito depressor e a
escopolamina efeito excitatório.

106
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Os demais antagonistas, sintéticos e semissintéticos, apresentam modificações no grupo tropina


(a homatropina, por exemplo, apresenta um radical ácido mandélico ligado à tropina) ou no grupamento
amônio terciário ou quaternário (o ipratrópio e o tiotrópio, por exemplo, são análogos quaternários da
tropina esterificados com ácidos aromáticos sintéticos). Esses últimos são moléculas altamente polares e
não atravessam significativamente a barreira hematoencefálica nem são significativamente absorvidos
quando administrados por via não parenteral (veja a figura a seguir).

N+
+
O S
N
OH
OH
O O

A) O B) O S
Ipratrópio Tiotrópio

Figura 40 – Estrutura química do ipratrópio e do tiotrópio. Observe as cargas elétricas positivas


presentes em ambas as moléculas, responsáveis por dificultar a absorção desses agentes

A atropina é o protótipo dos parassimpatolíticos de ação direta, e suas ações estão resumidas a seguir:

• Quando instilada no olho, causa midríase (dilatação da pupila) persistente, acentuada, com
ausência de resposta à luz e incapacidade de focar (ciclopegia). Sua ação pode durar dias e, por
esse motivo, os parassimpatolíticos sintéticos, como a tropicamida, são preferíveis para promover
dilatação da pupila em exames oftálmicos (alternativamente, pode-se usar a fenilefrina, um
simpatolítico de ação direta seletivo para adrenoceptores alfa-1, conforme discutido no tópico
Simpatolíticos de ação direta).

• No trato gastrointestinal, a atropina apresenta efeito antiespasmódico, pois reduz o


peristaltismo. No tratamento dos espasmos intestinais, é utilizadas a atropina ou a escopolamina
(Buscopan®), na maioria das vezes. Embora a motilidade gastrointestinal seja reduzida por esses
fármacos, a secreção de ácido clorídrico não é afetada e, portanto, a atropina e a escopolamina
não são eficazes no tratamento da úlcera péptica.

De acordo com Clark (2013, p. 351), a pirenzepina é um antagonista seletivo M1, que era utilizado no
tratamento da úlcera péptica. No entanto, devido ao fato de inibir somente cerca de 30% da secreção
de HCl, ele não é mais utilizado para esse fim.

A secreção de HCl pelas células parietais do estômago é regulada pela acetilcolina, pela histamina
e pela gastrina, e os principais agentes farmacológicos utilizados para inibi-la são os antagonistas do
receptor H2 de histamina, como a cimetidina e a ranitidina, que inibem cerca de 70% da secreção ácida,
e os inibidores da bomba de prótons (H+/K+ ATPase), como o omeprazol, o rabeprazol e o pantoprazol, que
impedem o cotransporte de prótons e íons potássio do interior da célula parietal para a luz do estômago,
processo que participa da secreção ativa de HCl. Esses fármacos inibem mais de 90% da secreção ácida.

107
Unidade I

• No sistema urinário, ocorre inibição da micção, o que é útil no tratamento da incontinência


urinária e da hipermotilidade vesical. Para esse fim, no entanto, são mais utilizados os análogos
sintéticos oxibutinina e tolteridina.

• No sistema cardiovascular, os efeitos da atropina dependem da dose administrada. Em doses


baixas, o efeito predominante é a diminuição da frequência cardíaca, devido ao bloqueio de
receptores M2 inibitórios pré-sinápticos, o que resulta em aumento da liberação de acetilcolina
sobre o coração. Em doses mais elevadas, ocorre o bloqueio de M2 no nodo sinoatrial, o que resulta
em aumento da frequência cardíaca. Em doses terapêuticas, a pressão arterial não é afetada
(lembre-se de que não existe inervação parassimpática direta sobre os vasos). Devido ao aumento
da frequência cardíaca causada pela atropina, até pouco tempo atrás esse agente era utilizado
na reversão da parada cardíaca, porém nos últimos consensos é indicada a descontinuação da
atropina para esse fim.

Lembrete

A ativação de receptores M2 no coração promove a abertura de canais


de potássio nas células de condução cardíaca, ocasionando a repolarização
dessas células e, consequentemente, a diminuição da frequência cardíaca.

• Em relação às secreções, a atropina bloqueia os receptores M3 das glândulas salivares, provocando


secura da boca (xerostomia), das glândulas sudoríparas, ocasionando pele quente e seca (efeito
denominado “flush atropínico”), e das glândulas lacrimais, ocasionando secura nos olhos.

• No pulmão, a atropina causa broncodilatação e diminuição da secreção de muco. No entanto, não


existem preparações para administração por via inalatória e, mesmo que houvesse, seria observada
absorção e consequentes efeitos sistêmicos desse agente. Por esse motivo, o ipratrópio e o
tiotrópio são os parassimpatolíticos de ação direta utilizados no tratamento da asma e da doença
pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), geralmente em conjunto com a agonistas beta‑2, que atuam
sobre o sistema nervoso simpático. Conforme já discutido, esses fármacos são administrados por
via inalatória e, devido a sua estrutura química polar, são pouco absorvidos.

No tratamento da asma e da bronquite, é comum a associação, por via inalatória, dos agonistas
beta-2 (conforme vimos no tópico Simpatomiméticos de ação direta: outras monoaminas) com os
antagonistas muscarínicos. O exemplo clássico é a associação do fenoterol (Berotec®) e do ipratrópio
(Atrovent®). Você consegue deduzir o racional por trás dessa associação?

O fenoterol é um agonista beta-2 que promove intensa broncodilatação, semelhante à observada


com o uso da epinefrina, e promove alívio respiratório. No entanto, esse fármaco não é completamente
seletivo e, ao cair na circulação sistêmica e atingir o coração, também ativa os receptores beta-1
cardíacos e causa taquicardia.

108
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

O ipratrópio, por sua vez, bloqueia receptores M3 no pulmão, o que evita a broncoconstrição e a
secreção de muco no paciente com distúrbios respiratórios, sem promover taquicardia intensa, devido
a sua baixa taxa de absorção pulmonar.

Assim, o uso concomitante de ipratrópio permite a diminuição da dose de fenoterol, o que promove
a melhora dos sintomas respiratórios sem que haja aumento significativo da frequência cardíaca.

Os efeitos da atropina sobre o coração, as secreções e os pulmões viabilizam seu uso como adjuvante
da anestesia geral: a taquicardia protege o coração de uma estimulação acidental do nervo vago durante
a cirurgia, o que resultaria em intensa bradicardia; a diminuição da secreção salivar facilita a intubação
do paciente; e a broncodilatação e inibição da secreção de muco melhoram a ventilação.

Lembrete

O vago é o nervo parassimpático que inerva praticamente todos os órgãos


abaixo do pescoço (coração, pulmão, estômago, intestino delgado etc.).

A atropina também é utilizada na reversão da intoxicação por anticolinesterásicos, pois, ao


bloquear os receptores muscarínicos, inibe a ativação exacerbada deles pelo excesso de acetilcolina
na fenda sináptica.

Assim como os anticolinesterásicos, os anticolinérgicos que atuam sobre os receptores muscarínicos


também são importantes do ponto de vista toxicológico.

Várias plantas apresentam substâncias que são antagonistas dos receptores muscarínicos, e sua
ingestão pode levar a um quadro de inibição do sistema nervoso parassimpático, somado a manifestações
centrais (alucinações e convulsões, por exemplo). Um exemplo é a Datura stramonium, popularmente
conhecida como figueira-do-diabo, e a Brugmansia suaveolens, conhecida como trombeteira.

A ingestão de sementes e folhas dessas plantas causa uma diminuição dos estímulos parassimpáticos
sobre o organismo e resulta em midríase pronunciada, constipação, retenção urinária, broncodilatação,
taquicardia, boca seca, pele quente e aumento da temperatura corporal (flush atropínico). Além disso,
são observadas alucinações, pensamentos psicóticos e convulsões, causadas pelo bloqueio de receptores
muscarínicos no sistema nervoso.

Trata-se de uma condição potencialmente fatal que é revertida com o uso da neostigmina, um
anticolinesterásico que, ao aumentar a meia-vida da acetilcolina na fenda sináptica, permite que o
excesso do neurotransmissor retire o antagonista do sítio de ligação no receptor, restabelecendo assim a
atividade normal, tanto no sistema nervoso parassimpático quanto no sistema nervoso central.

Os efeitos adversos mais frequentemente observados com o uso dos anticolinérgicos são boca seca
(devido ao bloqueio dos receptores M3 nas glândulas salivares), taquicardia (decorrente do bloqueio
M2 cardíaco), visão borrada (resultado da midríase provocada principalmente por agentes de uso
109
Unidade I

tópico), dificuldade de micção e diminuição da motilidade intestinal (devido ao bloqueio de M3 no trato


gastrointestinal e na bexiga) e flush atropínico.

Observação

O flush atropínico é uma manifestação cutânea decorrente do bloqueio


de receptores muscarínicos nas glândulas sudoríparas, o que causa secura
na pele e aumento da temperatura corporal.

4.1.4 Parassimpatolíticos de ação indireta

Os parassimpatolíticos de ação indireta inibem diferentes etapas da neurotransmissão parassimpática


e apresentam uso experimental. Uma vez que a neurotransmissão colinérgica é semelhante nos neurônios
pré e pós-ganglionares parassimpáticos e na junção neuromuscular, os fármacos de ação indireta são
capazes de alterar todas as respostas mediadas pela acetilcolina, ou seja, suas ações não se restringem
ao sistema nervoso parassimpático.

O vesamicol atua no neurônio pré-sináptico ao bloquear, de maneira reversível, o transportador de


acetilcolina presente na membrana das vesículas de secreção. Como consequência, ocorre diminuição
da quantidade de acetilcolina liberada na fenda sináptica.

O hemicolínio é um potente inibidor do sistema de captação de alta afinidade da colina. Uma vez
que a colina é um dos componentes da acetilcolina, a administração de hemicolínio pode depletar os
estoques de acetilcolina dos terminais colinérgicos.

4.2 Farmacologia do gânglio autonômico e da junção neuromuscular

4.2.1 Fármacos que atuam sobre o gânglio autonômico

Os fármacos que atuam sobre o gânglio autonômico ativam (nicotina) ou bloqueiam


(mecamilamina) os receptores nicotínicos presentes nos neurônios pós-ganglionares dos nervos
simpático e parassimpático e, por esse motivo, apresentam efeitos complexos.

A nicotina é um agonista dos receptores nicotínicos que apresenta maior afinidade pelos
receptores neuronais Nn do que pelos receptores musculares Nm. Portanto seus efeitos são percebidos
principalmente no sistema nervoso central e nos órgãos-alvo do sistema nervoso autônomo simpático
e parassimpático.

A nicotina exerce seus efeitos a partir da despolarização neuronal. Como resultado da ativação do
receptor nicotínico Nn no neurônio pós-ganglionar, ocorre abertura do canal iônico acoplado e, como
consequência, tem-se influxo de íons sódio e cálcio. Esse influxo provoca a despolarização da membrana,
em um evento denominado potencial excitatório pós-sináptico (Peps). A somatória de diversos Peps é
capaz de desencadear potenciais de ação no neurônio.
110
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Em doses maiores, segue-se o bloqueio da transmissão nervosa por hiperpolarização e, em


administrações contínuas, é observada a dessensibilização dos receptores nicotínicos, prolongando-se o
bloqueio (veja a figura a seguir).

Neurônio pré-ganglionar Neurônio pós-ganglionar


-70 mV

Acetilcolina

Frequência de disparos
de potencial de ação

-55 mV Despolarização
persistente
Baixa concentração
Atividade ganglionar
Nicotina

-30 mV Despolarização

Alta concentração
Bloqueio ganglionar
Nicotina

Figura 41 – Ação da nicotina sobre os gânglios autonômicos

Os efeitos da nicotina sobre o sistema nervoso central são resultado da interação desse fármaco com
receptores Nn pré-sinápticos presentes nos terminais dos axônios. A ativação desses receptores resulta
no aumento da liberação de vários receptores e, portanto, é estimulatório e promove a melhora na
atenção, do aprendizado, da resolução de problemas e do tempo de reação. Também promove estímulo
do sistema mesolímbico, o que está relacionado ao desenvolvimento de dependência.

No sistema nervoso autônomo, a nicotina excita ou bloqueia (de maneira dependente da dose e da
duração do estímulo) tanto a inervação simpática quanto a parassimpática. Os efeitos são maiores sobre
o sistema nervoso simpático, cujo estímulo resulta em forte vasoconstrição nas vísceras e nos músculos
esqueléticos. Como resultado da estimulação do parassimpático, observa-se principalmente aumento
da atividade gastrointestinal.

Podemos notar os efeitos duais (excitatórios e inibitórios) da nicotina observando indivíduos


fumantes: ao começar a fumar, o indivíduo se sentirá eufórico a cada cigarro consumido. Porém, quando
o hábito de fumar é prolongado, acumula-se maior quantidade de nicotina no organismo, e seu efeito
passa a ser de bloquear principalmente a ação do sistema nervoso simpático.

111
Unidade I

Saiba mais

A dependência à nicotina é abordada em:

PUPULIM, A. F. et al. Mecanismos de dependência química no tabagismo:


revisão da literatura. Revista Médica da UFPR, v. 2, n. 2, p. 74-78, 2015.

A nicotina, devido ao seu mecanismo de ação, é considerada um bloqueador ganglionar


despolarizante, pois o bloqueio do receptor é decorrente de sua sucessiva ativação pela nicotina.
A segunda classe de bloqueadores ganglionares engloba os agentes não despolarizantes, que atuam
bloqueando de maneira competitiva o receptor nicotínico neuronal.

As respostas aos bloqueadores não despolarizantes são dependentes do tônus predominante em


cada sistema orgânico. Por exemplo, o tônus predominante nas arteríolas é o simpático e, portanto,
esses agentes induzem à vasodilatação. No trato gastrointestinal, por outro lado, predomina o sistema
nervoso parassimpático, e o resultado do bloqueio é a diminuição do peristaltismo.

O bloqueio ganglionar raramente é usado em terapêutica, mas com frequência serve como
ferramenta na farmacologia experimental. Um exemplo de bloqueador não despolarizante é
a mecamilanina.

4.2.2 Fármacos bloqueadores neuromusculares

Os bloqueadores neuromusculares bloqueiam a transmissão colinérgica entre o terminal nervoso


motor e o receptor nicotínico na placa motora presente no músculo esquelético. De maneira semelhante
aos fármacos que atuam sobre o gânglio, os bloqueadores neuromusculares atuam como agonistas
(bloqueadores despolarizantes) ou antagonistas (bloqueadores não despolarizantes). O principal uso
desses agentes é para promover o relaxamento muscular completo durante as cirurgias.

Os receptores Nm, quando ativados, iniciam os eventos que culminam no acoplamento


excitação‑contração no músculo esquelético, que é o mecanismo pelo qual o potencial de ação se
converte em uma ação mecânica (contração). A entrada de íons sódio e cálcio está relacionada com
a despolarização do músculo esquelético, o que leva à abertura de outros canais iônicos presentes na
membrana dessas células e à abertura de canais de cálcio no retículo sarcoplasmático, o que inicia o
processo de contração muscular.

Os bloqueadores neuromusculares não despolarizantes também são conhecidos como


bloqueadores competitivos, pois competem com a acetilcolina pelo sítio de ligação nos receptores
nicotínicos, bloqueando-os e, assim, impedindo a abertura do poro iônico e a consequente despolarização
do receptor.

Como são bloqueadores competitivos, sua ação pode ser superada pelo aumento da concentração
de acetilcolina na fenda sináptica – por esse motivo, a reversão de seus efeitos é realizada com a
112
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

administração de anticolinesterásicos como a neostigmina. Porém, em doses elevadas, esses fármacos


podem bloquear diretamente o canal iônico, o que torna ineficaz a reversão do efeito pela administração
de anticolinesterásicos.

A ordem de paralisia observada após a administração dos bloqueadores competitivos é a seguinte:


músculos da face e olhos → dedos → membros → pescoço → tronco → músculos intercostais →
diafragma. A recuperação segue a ordem inversa.

O primeiro fármaco dessa classe a ser caracterizado foi o curare (d-tubocurarina), utilizado por
índios da América do Sul para paralisar a caça. Seu uso clínico foi substituído por outros agentes, como
o pancurônio e o atracúrio. O mecanismo de ação desses agentes está representado na figura a seguir:

Tubocurarina Acetilcolina
Na+

Receptor nicotínico na
unção neuromuscular

Figura 42 – Mecanismo de ação dos bloqueadores não despolarizantes, representados pela tubocurarina

Os bloqueadores neuromusculares despolarizantes atuam por despolarização da membrana


plasmática da fibra muscular. Esses fármacos são relativamente resistentes à degradação pela
acetilcolineterase e, assim, permanecem na junção neuromuscular por tempo suficiente para
despolarizar as fibras musculares de modo mais persistente. A succinilcolina é o único relaxante
muscular depolarizante usado atualmente.

A succinilcolina liga-se ao receptor nicotínico muscular, ativando-o e desencadeando a


despolarização da célula muscular esquelética. Ao contrário da acetilcolina, que é rapidamente
hidrolisada pela ação da acetilcolinesterase na junção neuromuscular, a succinilcolina permanece
na junção neuromuscular por tempo suficiente para que ocorra sua dessensibilização. Os eventos
observados, em ordem temporal, são os seguintes:

• O fármaco liga-se ao receptor Nm e promove sua ativação, com consequente abertura do canal
de sódio associado.

• Ocorre despolarização da célula muscular e acoplamento excitação-contração, com a observação


de contrações transitórias (fasciculações).

• A ligação persistente da succinilcolina torna o receptor incapaz de transmitir impulsos adicionais.


Com o tempo, a despolarização contínua dá origem a uma repolarização gradual, que ocorre

113
Unidade I

quando o canal de sódio se fecha ou é bloqueado. Isso causa a resistência à despolarização e


paralisia flácida. Assim como observado com o uso dos bloqueadores competitivos, o diafragma é
paralisado por último.

Como você deve ter percebido, a ação da succinilcolina sobre o receptor nicotínico muscular é muito
parecido com aquela observada em resposta à nicotina em relação ao receptor nicotínico do gânglio
autonômico: em um primeiro momento, ocorre ativação e consequente despolarização e, depois,
observa-se a dessensibilização do receptor, com cessação da resposta mediada por ele.

Observação

A ação da succinilcolina perdura somente por alguns minutos, devido


à hidrólise pela butirilcolinesterase plasmática. Por isso, ela geralmente é
administrada por infusão contínua.

O mecanismo de ação da succinilcolina é apresentado na figura a seguir:


Fase I
A membrana despolariza, resultando em uma
descarga inicial que produz fasciculações Succinilcolina
transitórias seguidas de paralisia flácida

---- Na+ ----

Despolarizado
++++ ++++
Na+
Receptor nicotínico na
junção neuromuscular

Fase II
A membrana repolariza, mas o receptor é
dessensibilizado aos efeitos da acetilcolina
Succinilcolina
++++ ++++
Repolarizado
---- ----

Figura 43 – Mecanismo de ação da succinilcolina

4.2.3 Outros fármacos que atuam sobre a junção neuromuscular

A toxina botulínica é uma neurotoxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum. Existem
sete sorotipos diferentes de toxina (A, B, C1, D, E, F e G), dos quais o sorotipo A é o mais potente e o que
apresenta utilização terapêutica.
114
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Os alvos moleculares da ação da toxina botulínica são as proteínas SNARE e SNAP25, que estão
envolvidas na fusão de vesículas contendo neurotransmissores com a membrana plasmática, no momento
da liberação do neurotransmissor nas sinapses. A toxina atua como uma protease dependente de zinco e,
ao degradar essas proteínas, impede que a acetilcolina seja liberada nas sinapses das placas motoras.

Observação

Botox® é a marca de toxina botulínica tipo A, produzida pela


farmacêutica americana Allergan. Ela é utilizada no tratamento de rugas
faciais, estrabismo, blefaroespasmo (tremores nas pálpebras), espasmo
hemifacial, distonias, espasticidade, bruxismo e hiperidrose axilar e palmar,
ao ser aplicada diretamente nos músculos comprometidos e provocar
relaxamento.

O efeito começa após 24 horas da aplicação e é bem notável após


3 dias. Se necessária alguma complementação, ela deverá ser realizada
20 dias após a aplicação.

Resumo

A farmacologia é a ciência que estuda a interação dos fármacos


com seus alvos moleculares. Trata-se de um ramo do conhecimento
que permite a melhor compreensão dos fenômenos fisiológicos e da
terapêutica medicamentosa.

Por fármaco, entende-se a molécula que, a partir da interação


com alvos moleculares específicos, altera a fisiologia da célula. Os
fármacos podem ser utilizados para fins terapêuticos e, nesse caso, são
denominados medicamentos.

O estudo do percurso do fármaco pelo organismo, desde a


administração até a eliminação, é denominado farmacocinética e envolve
as etapas de absorção, distribuição, biotransformação e excreção. A ação
do fármaco sobre seus alvos moleculares específicos, por outro lado, é
estudada pela farmacodinâmica.

Devido a seu papel essencial na regulação das ações da grande maioria


dos sistemas orgânicos, iniciamos o estudo da farmacologia de sistemas pelo
sistema nervoso autônomo. Agonistas e antagonistas, assim como fármacos de
ação indireta, podem atuar aumentando (simpatomiméticos) ou diminuindo
(simpatolíticos) as respostas do sistema nervoso simpático. De maneira
semelhante, os fármacos que atuam sobre o sistema nervoso parassimpático
115
Unidade I

são denominados parassipatomiméticos e parassimpatolíticos. Outros


fármacos alteram a função do sistema nervoso autônomo por interferir
especificamente sobre a atividade do gânglio autonômico.

Por fim, a ação de fármacos que bloqueiam a junção neuromuscular


é abordada, devido a sua fundamental importância como adjuvante da
anestesia nos procedimentos cirúrgicos.

Exercícios

Questão 1. (Enade 2013) A latenciação de fármacos consiste na transformação do fármaco em


forma de transporte inativo que, in vivo, mediante reação química ou enzimática, libera a porção ativa
no local de ação ou próximo dele. Várias macromoléculas biológicas naturais e sintéticas têm sido
empregadas como transportadores de agentes quimioterápicos, partindo-se do conhecimento de que
as características anatômicas e fisiológicas dos tecidos tumorais são diferentes dos tecidos normais. Os
vasos dos tecidos tumorais apresentam as propriedades de permeabilidade e retenção aumentadas, as
quais desempenham papel essencial na distribuição do fármaco no espaço intersticial. A figura a seguir
ilustra uma representação esquemática de pró-fármaco.

CHUNG, M. C.; SILVA, A. T. A. Latenciação e formas avançadas de transporte de fármacos.


Brazilian Journal of Pharmaceutical Sciences, v. 41, p. 155-179, 2005 (adaptado).

Fármaco
Pró-fármaco

Barreira biológica

Efeito Transportador Pró-fármaco


farmacológico

Hidrólise química ou
enzimática

BUNDGAARD, H., ed. Prodrug design. Amsterdam: Elsevier, 1985. 360 p.,
apud CHUNG, M. C.; SILVA, A. T. A. Latenciação e formas avançadas de transporte de fármacos.
Brazilian Journal of Pharmaceutical Sciences, v. 41, p. 156, 2005 (adaptado).

Figura 44

116
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

O desenvolvimento de pró-fármacos tem como objetivo resolver diversos problemas relacionados aos
fármacos atuais. Para permitir o aprimoramento das propriedades do fármaco matriz, os pró-fármacos
devem possuir características como:

I – Aumento da estabilidade.

II – Redução da biodisponibilidade.

III – Aumento da seletividade de ação.

IV – Ausência de toxicidade do transportador.

É correto apenas o que se afirma em:

A) I e II.

B) I e III.

C) II e IV.

D) I, III e IV.

E) II, III e IV.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: a latenciação é utilizada para otimizar a ação dos fármacos e, para aumentar a
estabilidade, deve assegurar níveis eficazes do fármaco no local de ação.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: os pró-fármacos devem possuir características como inatividade ou menor atividade


do que o fármaco matriz, mas não reduz a biodisponibilidade.

III – Afirmativa correta.

Justificativa: os pró-fármacos aumentam a seletividade de ação porque a síntese é menos complexa


que a do fármaco matriz.

117
Unidade I

IV – Afirmativa correta.

Justificativa: a ausência de toxicidade do transportador e a cinética de biotransformação direta


assegura a eficácia de ação do fármaco.

Questão 2. (Enade 2013) No desenvolvimento de um novo medicamento, várias etapas estão


envolvidas no processo, incluindo a determinação da biodisponibilidade, que indica a velocidade e a
extensão em que uma substância é liberada e absorvida, tornando-se disponível na circulação sistêmica.
A figura a seguir apresenta curvas de concentrações plasmáticas em função do tempo obtidas a partir
de quatro preparações de digoxina (baixo índice terapêutico), de mesma composição, concentração de
princípio ativo, forma farmacêutica e via de administração, porém, de fabricantes diferentes.
Concentração plasmática de digoxina (mol/L)

2
A

0
0 1 2 3 4 5
Horas

RANG, H. P. et al. Farmacologia. 6. ed.


Rio de Janeiro: Elsevier, 2007 (adaptada).
Figura 45

Considerando o exposto, avalie as afirmações a seguir:

I – As preparações C e D podem apresentar diferenças entre si no tamanho das partículas e na


formulação farmacêutica.

II – A preparação A apresenta o maior valor de tempo para atingir a concentração máxima.

III – A área sob a curva de concentração sanguínea em função do tempo é diferente para as quatro
preparações de digoxina.

IV – As preparações são consideradas bioequivalentes, pois apresentam a mesma composição,


quantidade e forma farmacêutica.

118
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

É correto apenas o que se afirma em:

A) I e II.

B) I e III.

C) II e III.

D) II e IV.

E) III e IV.

Resposta correta: alternativa B.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: de acordo com o enunciado, as quatro preparações possuem a mesma forma


farmacêutica; no entanto, não necessariamente possuem a mesma formulação. O tamanho da partícula
e a formulação exercem importantes efeitos sobre a absorção. O fato de serem de fabricantes diferentes
aumenta a probabilidade de que os excipientes utilizados sejam diferentes. Estudo em voluntários
saudáveis revelou que comprimidos de digoxina de diferentes fabricantes resultavam em concentração
plasmática muito diferentes, apesar de o conteúdo de digoxina nos comprimidos ser o mesmo, em
virtude de diferenças no tamanho das partículas.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: ao observar o gráfico, verifica-se que a preparação A disponibiliza uma quantidade


muito maior do fármaco para o sistema circulatório em menos tempo do que as demais preparações.

III – Afirmativa correta.

Justificativa: de acordo com a figura, pode ser observado que todas as curvas de concentração estão
projetadas de forma diferente. Consequentemente, a área sobre a curva em função do tempo é diferente
para as quatro preparações de digoxina.

IV – Afirmativa incorreta.

Justificativa: para que as formulações possam ser consideradas bioequivalentes, elas devem
apresentar biodisponibilidade semelhante. Ao analisar a figura, fica evidente que as biodisponibilidades
são completamente diferentes (conforme parâmetros de área sobre a curva, Tmax e Cmax); desse modo,
não possuem bioequivalência.

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