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Aplicada à Biomedicina
Autoras: Profa. Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão
Profa. Sandra Heloísa Nunes Messias
Colaboradores: Prof. Flavio Buratti Gonçalves
Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano
Professoras conteudistas: Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão /
Sandra Heloísa Nunes Messias
Graduada em 2002 pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Ciências Biológicas – Modalidade Médica.
Mestre (2005) e doutora (2009) em Ciências, com ênfase em Farmacologia, pela Unifesp e licenciada em Química pelas
Faculdades Oswaldo Cruz (2011).
É professora titular da UNIP desde 2010, onde leciona disciplinas como Análise Físico-Química, Bases Analíticas
do Laboratório Clínico, Embriologia e Farmacologia para os cursos de Biomedicina, Enfermagem e Nutrição. Também
ministrou a disciplina de Farmacologia para o curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo (2010-2011).
É coordenadora auxiliar do curso de Biomedicina da UNIP, campus Chácara Santo Antônio, desde 2011. Na mesma
instituição, foi membro do Comitê de Ética no período de 2011 a 2017 e, desde 2012, atua na Comissão de Qualificação
das Avaliações (CQA).
Biomédica graduada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mestre em Farmacologia pela mesma
instituição e doutora em Patologia Ambiental e Experimental da Universidade Paulista (UNIP).
CDU 615
U508.12 – 20
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Lucas Ricardi
Jaci Albuquerque
Sumário
Farmacologia Aplicada à Biomedicina
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................9
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................9
Unidade I
1 FARMACOCINÉTICA......................................................................................................................................... 11
1.1 Formas farmacêuticas e vias de administração........................................................................ 14
1.1.1 Vias de administração local................................................................................................................. 16
1.1.2 Vias de administração sistêmica........................................................................................................ 17
1.2 Absorção................................................................................................................................................... 21
1.2.1 Transporte através das membranas biológicas............................................................................ 22
1.2.2 Características teciduais que influem na absorção dos fármacos....................................... 24
1.2.3 Influência do pH na absorção dos fármacos................................................................................ 27
1.2.4 Interações medicamentosas que alteram a absorção dos fármacos.................................. 33
1.3 Distribuição.............................................................................................................................................. 33
1.3.1 Cinética de distribuição dos fármacos............................................................................................ 36
1.3.2 Interações medicamentosas que alteram a distribuição dos fármacos............................ 36
1.4 Biotransformação.................................................................................................................................. 37
1.4.1 Reações de fase I...................................................................................................................................... 39
1.4.2 Reações de fase II.................................................................................................................................... 41
1.4.3 Interações medicamentosas que alteram a biotransformação dos fármacos................ 41
1.5 Excreção.................................................................................................................................................... 42
1.5.1 Excreção renal........................................................................................................................................... 43
1.5.2 Excreção biliar........................................................................................................................................... 44
1.5.3 Outras vias de excreção......................................................................................................................... 45
1.5.4 Interações medicamentosas que alteram a excreção dos fármacos.................................. 46
1.6 Parâmetros farmacocinéticos de importância na prática clínica...................................... 46
1.6.1 Concentração máxima (Cmax) ou pico de concentração plasmática................................ 47
1.6.2 Área sob a curva (AUC).......................................................................................................................... 47
1.6.3 Tempo de meia-vida plasmática (t1/2)........................................................................................... 47
1.6.4 Volume de distribuição.......................................................................................................................... 48
1.6.5 Clearance..................................................................................................................................................... 49
2 FARMACODINÂMICA...................................................................................................................................... 49
2.1 Alvos moleculares da ação de fármacos: enzimas, canais iônicos e
proteínas transportadoras......................................................................................................................... 51
2.1.1 Enzimas........................................................................................................................................................ 51
2.1.2 Canais iônicos............................................................................................................................................ 53
2.1.3 Proteínas transportadoras.................................................................................................................... 54
2.2 Alvos moleculares da ação de fármacos: receptores.............................................................. 55
2.2.1 Receptores ionotrópicos....................................................................................................................... 56
2.2.2 Receptores enzimáticos........................................................................................................................ 57
2.2.3 Receptores acoplados à proteína G.................................................................................................. 58
2.2.4 Receptores intracelulares..................................................................................................................... 62
2.2.5 Regulação da atividade dos receptores.......................................................................................... 65
2.3 Farmacologia experimental: estudos da interação fármaco-receptor............................ 66
3 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO SIMPÁTICO....................................................................... 72
3.1 Sistema nervoso autônomo: visão geral..................................................................................... 72
3.1.1 Principais características anatômicas.............................................................................................. 73
3.1.2 Principais aspectos da fisiologia do sistema nervoso autônomo........................................ 74
3.1.3 Neurotransmissores autonômicos: biossíntese e biotransformação.................................. 75
3.1.4 Subtipos de receptores adrenérgicos e muscarínicos............................................................... 79
3.1.5 Etapas da neurotransmissão autonômica..................................................................................... 81
3.1.6 O mecanismo de retroalimentação negativa e o controle da atividade
dos nervos autonômicos.................................................................................................................................. 82
3.1.7 Principais ações do sistema nervoso autônomo......................................................................... 83
3.2 Farmacologia do sistema nervoso simpático............................................................................. 85
3.2.1 Simpatomiméticos de ação direta: visão geral............................................................................ 85
3.2.2 Simpatomiméticos de ação direta: catecolaminas endógenas............................................. 86
3.2.3 Simpatomiméticos de ação direta: catecolaminas sintéticas............................................... 89
3.2.4 Simpatomiméticos de ação direta: outras monoaminas......................................................... 91
3.2.5 Simpatomiméticos de ação indireta ou mista............................................................................. 92
3.2.6 Simpatolíticos de ação direta............................................................................................................. 93
3.2.7 Simpatolíticos de ação indireta/mista............................................................................................. 97
4 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO PARASSIMPÁTICO, DO GÂNGLIO E
DA JUNÇÃO NEUROMUSCULAR.................................................................................................................... 98
4.1 Farmacologia do sistema nervoso parassimpático.................................................................. 98
4.1.1 Parassimpatomiméticos de ação direta.......................................................................................... 98
4.1.2 Parassimpatomiméticos de ação indireta....................................................................................103
4.1.3 Parassimpatolíticos de ação direta.................................................................................................106
4.1.4 Parassimpatolíticos de ação indireta............................................................................................. 110
4.2 Farmacologia do gânglio autonômico e da junção neuromuscular..............................110
4.2.1 Fármacos que atuam sobre o gânglio autonômico................................................................. 110
4.2.2 Fármacos bloqueadores neuromusculares.................................................................................. 112
4.2.3 Outros fármacos que atuam sobre a junção neuromuscular.............................................. 114
Unidade II
5 FARMACOLOGIA CARDIOVASCULAR E RENAL...................................................................................120
5.1 Antiarrítmicos e cardiotônicos......................................................................................................120
5.1.1 Antiarrítmicos........................................................................................................................................ 122
5.1.2 Cardiotônicos......................................................................................................................................... 125
5.2 Anti-hipertensivos e diuréticos.....................................................................................................129
5.2.1 Fisiopatologia da hipertensão arterial......................................................................................... 129
5.2.2 Regulação da hipertensão arterial................................................................................................ 130
5.2.3 Fármacos anti-hipertensivos............................................................................................................ 134
5.2.4 Associações de fármacos no tratamento da hipertensão arterial.................................... 140
6 FARMACOLOGIA DA DOR E DA INFLAMAÇÃO....................................................................................141
6.1 Mecanismo de transmissão da dor..............................................................................................141
6.2 Papel dos prostanoides na regulação da sensação dolorosa.............................................145
6.3 Atuação de fármacos sobre a transmissão do estímulo doloroso...................................146
6.4 Anti-inflamatórios não esteroidais (Aines)...............................................................................147
6.4.1 Mecanismo de ação dos Aines........................................................................................................ 148
6.4.2 Principais Aines...................................................................................................................................... 154
6.5 Anti‑inflamatórios esteroidais.......................................................................................................155
6.5.1 Mecanismo de ação dos glicocorticoides................................................................................... 157
6.5.2 Principais glicocorticoides utilizados na clínica........................................................................161
6.5.3 Principais efeitos adversos................................................................................................................ 162
6.6 Analgésicos opioides..........................................................................................................................164
6.6.1 Mecanismo de ação dos analgésicos opioides......................................................................... 164
6.6.2 Principais opioides utilizados na clínica...................................................................................... 167
6.6.3 Tratamento da sobredosagem e da dependência aos opioides......................................... 168
6.7 Anestésicos............................................................................................................................................169
6.7.1 Anestésicos locais................................................................................................................................. 169
6.7.2 Anestésicos gerais..................................................................................................................................171
Unidade III
7 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL..........................................................................178
7.1 Aspectos funcionais...........................................................................................................................178
7.1.1 Atividade neuronal............................................................................................................................... 178
7.1.2 Neurotransmissores..............................................................................................................................181
7.1.3 Relação entre as disfunções na neurotransmissão e as patologias do SNC................. 185
7.2 Fármacos de ação central................................................................................................................185
7.2.1 Ansiolíticos, sedativos e hipnóticos............................................................................................... 186
7.2.2 Antidepressivos...................................................................................................................................... 189
7.2.3 Estabilizadores do humor.................................................................................................................. 196
7.2.4 Neurolépticos......................................................................................................................................... 197
7.2.5 Anticonvulsivantes................................................................................................................................201
7.2.6 Antiparkinsonianos.............................................................................................................................. 203
7.2.7 Tratamento da doença de Alzheimer............................................................................................ 206
8 FARMACOLOGIA DO SISTEMA ENDÓCRINO........................................................................................208
8.1 Mecanismos de ação hormonal....................................................................................................209
8.2 O eixo hipotálamo-hipófise e a secreção hormonal.............................................................211
8.2.1 O eixo hipotálamo-hipófise-tireoide.............................................................................................212
8.2.2 O eixo hipotálamo-hipófise-testículo...........................................................................................216
8.2.3 O eixo hipotálamo-hipófise-ovários..............................................................................................221
APRESENTAÇÃO
Este livro-texto foi elaborado de modo a apresentar, inicialmente, os conceitos relativos à cinética
do fármaco no organismo (que compreende as etapas de absorção, distribuição, biotransformação e
excreção) e a ação do fármaco em alvos moleculares específicos, o que explica os mecanismos pelos
quais ocorrem os efeitos terapêuticos e adversos dessas substâncias. Em seguida, serão abordados os
fármacos que atuam sobre o sistema nervoso autônomo e sobre o sistema nervoso somático (junção
neuromuscular), o que é de extrema importância, visto que o sistema nervoso autônomo regula o
funcionamento de virtualmente todos os órgãos e tecidos do organismo, e o sistema nervoso somático,
a atividade do músculo voluntário.
Na sequência, iremos estudar a ação de fármacos sobre os principais órgãos e sistemas. Serão
abordados os fármacos que atuam sobre o sistema cardiovascular (antiarrítmicos, cardiotônicos e
anti-hipertensivos) e renal (diuréticos), sobre a dor e a inflamação (anti-inflamatórios, analgésicos
simples, anestésicos locais e gerais e analgésicos opioides), sobre o sistema nervoso central (ansiolíticos,
antidepressivos, antipsicóticos, antiparkinsonianos e anticonvulsivantes, além do tratamento do mal de
Alzheimer e do transtorno bipolar) e sobre o sistema endócrino (fármacos que atuam sobre a tireoide e
sobre os órgãos sexuais masculinos e femininos).
Ao final da disciplina, esperamos que você esteja familiarizado com o uso de diferentes fármacos,
tanto na terapêutica como na experimentação.
Bom estudo!
INTRODUÇÃO
De acordo com Katzung (2017), a farmacologia é a ciência que estuda os fármacos (do grego
pharmacon – fármaco e logos – estudo). Em um sentido amplo, estuda a interação entre substâncias
químicas e os sistemas orgânicos. No campo da farmacologia, qualquer substância química que possa
produzir uma resposta biológica num organismo vivo é considerada um fármaco.
9
Observação
A farmacologia é uma ciência que integra o conhecimento de diferentes áreas (como a bioquímica,
a fisiologia e a patologia) e abordagens diversas a respeito dos fármacos. A partir do estudo da ação das
substâncias no organismo, é possível explorar não só alternativas terapêuticas, mas também aspectos
da fisiologia que são elucidados através do estudo da interação de diferentes substâncias com os
sistemas orgânicos.
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FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Unidade I
1 FARMACOCINÉTICA
O estudo das ações dos produtos naturais sobre o organismo tem suas origens nos primórdios da
humanidade, desde quando o homem começou a usar substâncias obtidas na natureza com finalidades
medicinais, ou até mesmo visando efeitos nocivos. No entanto, foi somente a partir de meados do século XIX
que a farmacologia se consolidou como ciência, como consequência da evolução de outras áreas afins
de conhecimento (fisiologia, patologia, bioquímica etc.). Desde então, os fármacos têm sido purificados,
caracterizados quimicamente e até mesmo sintetizados em laboratório. Até o momento, desenvolveu-se
uma ampla variedade de novos fármacos altamente potentes e seletivos, cujo mecanismo de ação, na
maioria das vezes, já foi elucidado. Esse conjunto de informações faz da farmacologia a espinha dorsal
da terapêutica racional.
• Fármaco é qualquer substância ou produto que é usado ou se destina a ser usado para modificar
ou explorar sistemas fisiológicos ou estados patológicos. Em outras palavras, os fármacos são
substâncias químicas que, ao interagirem com alvos específicos presentes nas células, são capazes
de promover alterações das funções fisiológicas pré-existentes. Existem fármacos que são usados
como parte da terapêutica de diferentes doenças, enquanto outros apresentam importância
puramente experimental. O termo princípio ativo é um sinônimo de fármaco.
• Remédio é um termo usado para todos os agentes que curam, aliviam ou evitam uma enfermidade,
usado de forma abrangente não só para substâncias químicas (fármacos), como também para
agentes físicos (massagens, duchas etc.).
Os medicamentos geralmente têm vários nomes. Para melhor entendermos essa nomenclatura,
vamos descrever brevemente como é feito o processo de pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos.
A primeira etapa consiste na descoberta de um composto (substância química) com atividade sobre
um organismo vivo. Nessa etapa, o fármaco recebe um nome químico, que descreve sua estrutura
atômica ou molecular. O nome químico é geralmente muito complexo para uso geral.
Na segunda etapa é feito o estudo pré-clínico, que inclui testes in vitro para avaliação das
propriedades biológicas das moléculas ativas e também testes in vivo em animais para avaliação da
farmacocinética e farmacodinâmica da substância química. É frequente nessa etapa já o uso de uma
versão abreviada do nome químico ou um nome em código (por exemplo, PN200110) para facilitar a
referência entre os pesquisadores.
Na terceira e última etapa do processo, denominada estudo clínico, são realizados estudos em
humanos. Esses estudos, de acordo com Rang (2011), são divididos em quatro fases:
12
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
• Fase 2: envolve estudos em um pequeno número de pessoas que têm a doença contra a qual o
medicamento possivelmente é eficaz.
• Fase 3: uma quantidade maior de pacientes, tratadas em diferentes centros médicos de pesquisa,
recebe o medicamento. Essa amostra maior de pacientes fornece informações sobre efeitos
adversos raros ou pouco frequentes. A agência governamental (no Brasil, a Anvisa) aprovará o uso
do novo medicamento se os estudos de fase 3 forem satisfatórios.
O nome comercial é desenvolvido pela empresa que solicita aprovação para o medicamento e o
identifica como propriedade exclusiva de tal empresa (patente). O medicamento comercializado pelo
laboratório que o desenvolveu em primeiro lugar é denominado medicamento de referência, pois foi
a partir dele que foram realizados os estudos pré-clínicos e clínicos que descrevemos anteriormente
(exemplo: Novalgina® é o nome comercial de referência do medicamento dipirona).
Quando o medicamento não está protegido por patente, a empresa pode comercializar seu produto
com o nome genérico ou com um nome comercial. Os medicamentos genéricos são comercializados pelo
nome oficial (exemplo: dipirona), enquanto os medicamentos similares são comercializados por outros
laboratórios, utilizando outros nomes comerciais, diferentes do medicamento de referência (Neosaldina® e
Anador®, por exemplo). Assim, em resumo:
• Os medicamentos genéricos são produzidos por outros laboratórios e comercializados pelo nome
oficial do princípio ativo, após a queda ou a quebra da patente.
13
Unidade I
A maioria dos medicamentos genéricos, embora mais baratos do que os medicamentos de nome
comercial correspondentes, possuem a mesma eficácia e a mesma qualidade deles, exatamente pela
necessidade de se realizar testes de bioequivalência com o medicamento de referência.
A partir de agora, vamos estudar as principais formas farmacêuticas e vias de administração dos
fármacos. Em seguida, serão abordadas cada uma das quatro etapas da farmacocinética: absorção, que
é a passagem do fármaco do local de administração para a circulação sistêmica; distribuição, que é a
passagem do fármaco do sangue para os diferentes órgãos e sistemas; biotransformação ou metabolismo,
que se refere às alterações da estrutura química do fármaco, visando sua eliminação; e excreção, que é a
saída do fármaco do organismo. Veja a figura a seguir:
Fármaco no local da administração
1 Absorção (entrada)
Fármaco no plasma
2 Distribuição
Fármaco nos tecidos
3 Biotransformação
Metabólitos nos tecidos
4 Excreção (saída)
Fármaco ou metabólitos na
urina, na bile ou nas fezes
14
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Cada uma das formas farmacêuticas descritas é adequada para a administração por uma ou mais
vias específicas. A escolha da via de administração apropriada em uma determinada situação depende
de fatores relacionados ao fármaco e ao paciente.
15
Unidade I
• taxa e extensão da absorção do fármaco a partir de diferentes locais da administração, bem como
volume a ser administrado;
• ação do suco gástrico e/ou de enzimas do trato digestório e metabolismo de primeira passagem;
• rapidez com a qual o efeito do fármaco tem que ser observado (tratamento de rotina ou de emergência);
Observação
Conforme Yellepedi (2016), as vias de administração local só podem ser usadas para lesões localizadas
em regiões acessíveis e para administração de fármacos cuja absorção sistêmica seja mínima ou ausente.
Assim, as concentrações ideais do fármaco são atingidas no local desejado, sem que haja exposição do
restante do organismo ao fármaco. Consequentemente, os efeitos adversos sistêmicos ou a toxicidade
são mínimos ou ausentes.
Para os fármacos que são absorvidos a partir de uma via local de administração (por exemplo, a pele),
ela pode servir como via de administração sistêmica. Um exemplo é o adesivo transdérmico de fentanila
(Durogesic®) aplicado na pele.
• Tópica: refere-se à aplicação externa do fármaco numa superfície, para uma ação localizada.
É geralmente mais conveniente para o paciente. Os fármacos podem ser administrados com
eficiência nas lesões localizadas na pele, na mucosa orofaríngea e nasal, nos olhos, no canal
auditivo, no canal anal ou na vagina.
16
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Outras formas de administração tópica incluem os fármacos não absorvidos e administrados por
via oral para ação na mucosa gastrointestinal (por exemplo, o sucralfato), a inalação de fármacos
que atuam nos brônquios (por exemplo, o salbutamol) e as soluções aplicadas na uretra (por
exemplo, a iodopovidona).
• Tecidos mais profundos: certas áreas profundas podem ser acessadas usando uma seringa e
uma agulha, mas o fármaco deve estar em uma forma que a absorção sistêmica seja limitada,
como ocorre na injeção intra-articular (por exemplo, o acetato de hidrocortisona na articulação
do joelho) e na infiltração ao redor de um nervo ou injeção intratecal (por exemplo, a lidocaína).
O fármaco administrado por vias sistêmicas deve ser absorvido até a corrente sanguínea e distribuído
por todo o organismo, incluindo o local da ação, através da circulação.
Oral
A administração por via oral é o modo mais frequente de administração de fármacos. É mais segura,
mais conveniente, não invasiva e geralmente indolor. Para a administração por essa via, o fármaco não
precisa ser estéril e geralmente não é necessária assistência de profissional qualificado para realizar a
administração ao paciente, o que faz da via oral a via mais econômica.
• O início da ação dos fármacos é mais lento e, portanto, não é uma via adequada para emergências.
• Fármacos com sabor desagradável (por exemplo, o cloranfenicol) são difíceis de administrar. Para
contornar esse problema, eles podem ser acondicionados em cápsulas, por exemplo.
• Não pode ser usado em pacientes não cooperantes, inconscientes ou apresentando vômitos.
17
Unidade I
• Após a administração por via oral, a absorção do fármaco pode ser variável e irregular, sendo que
certos fármacos não são absorvidos (por exemplo, a estreptomicina).
• Há fármacos que são destruídos pelas enzimas digestivas (por exemplo, a penicilina G e a insulina)
ou pelo fígado (por exemplo, a testosterona e a lidocaína). Esses fármacos geralmente são
administrados por outras vias.
Sublingual
A absorção é relativamente rápida, sendo que o início da ação pode ser observado em minutos. Embora
seja um pouco inconveniente, pode-se cuspir a forma farmacêutica após a obtenção do efeito desejado.
A principal vantagem é que o medicamento, uma vez absorvido, passa diretamente para a circulação
sistêmica, sem sofrer metabolismo hepático de primeira passagem. Infelizmente, poucos medicamentos
disponíveis no mercado podem ser administrados por via sublingual (por exemplo, gliceril trinitrato).
Retal
A via de administração retal pode ser usada quando o paciente está inconsciente ou está apresentando
vômitos recorrentes. No entanto, a maioria dos pacientes a considera como uma via de administração bastante
inconveniente e, muitas vezes, constrangedora. Certos medicamentos irritantes ou de sabor desagradável
também podem ser colocados no reto, como supositórios ou como enema para efeito sistêmico.
A absorção pela via retal é lenta, irregular e muitas vezes imprevisível. O medicamento absorvido
após a administração pela via retal passa para as veias hemorroidais externas (cerca de 50%) e cai na
circulação sistêmica sem atingir o fígado, porém o medicamento absorvido que passa para as veias
hemorroidais internas atinge o fígado, ou seja, sofre metabolismo de primeira passagem. Medicamentos
irritantes podem causar inflamação retal.
Cutânea
Fármacos altamente lipossolúveis podem ser aplicados sobre a pele e serão absorvidos de forma
lenta e prolongada até a circulação sistêmica. O fármaco pode ser incorporado em uma pomada, creme
ou gel e ser aplicado em uma área específica da pele.
Sistemas terapêuticos transdérmicos são adesivos de várias formas e tamanhos que liberam o
fármaco numa taxa constante na circulação sistêmica através da pele. Nesses sistemas, ele é mantido
em um reservatório entre um filme de suporte oclusivo e uma membrana de microporos de controle de
taxa, cuja superfície inferior possui um adesivo impregnado com a dose inicial do fármaco. A camada
adesiva é protegida por outro filme que deve ser retirado imediatamente antes da aplicação.
18
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
O fármaco é liberado na superfície da pele por difusão para absorção percutânea na circulação.
Embora mais caros, eles fornecem concentrações plasmáticas do fármaco sem flutuações, minimizando
as variações interindividuais e os efeitos adversos. Eles também são mais convenientes – muitos
pacientes preferem adesivos transdérmicos aos comprimidos orais do mesmo fármaco, o que garante
maior adesão ao tratamento. Em alguns pacientes pode ocorrer irritação local e eritema, mas geralmente
são manifestações leves.
Inalatória
Líquidos e gases voláteis são administrados por inalação para ação sistêmica (por exemplo, os
anestésicos gerais halotano, isoflurano e o óxido nitroso). A absorção ocorre na ampla superfície dos
alvéolos, e o início da ação do fármaco é muito rápido.
Nasal
A membrana mucosa do nariz pode absorver facilmente alguns poucos medicamentos (por exemplo,
insulina, agonistas do GnRH e desmopressina). Com isso, evita-se a ação dos sucos digestivos e o
metabolismo hepático de primeira passagem.
Observação
Parenteral
Convencionalmente, o termo parenteral refere-se à administração por injeção, que leva o fármaco
diretamente ao fluido tecidual ou sangue, sem ter que atravessar a mucosa enteral (gastrointestinal).
Assim, as limitações relacionadas à administração oral (enteral), como as náuseas e os vômitos decorrentes
da irritação gástrica, podem ser contornadas com a administração parenteral.
19
Unidade I
O início da ação do fármaco administrado por via parenteral é mais rápida, o que é um aspecto
importante em emergências. As vias parentéricas (ou parenterais) podem ser empregadas em pacientes
inconscientes, não cooperativos ou com vômito. Não há riscos de interferência de alimentos ou sucos
digestivos com o fármaco. Não há metabolismo de primeira passagem.
Quanto às desvantagens das vias parenterais, as principais são: a preparação deve ser esterilizada, o
que torna essa via mais cara; a técnica é invasiva e dolorosa; é necessária a assistência de outra pessoa,
embora a autoinjeção seja possível (por exemplo, insulina para diabéticos); há possibilidade de lesão
tecidual local e, em geral, a via parenteral é considerada mais “arriscada” que a oral.
• Subcutânea (s.c.): o fármaco é administrado no tecido subcutâneo, que é ricamente suprido pelos
nervos (fármacos irritantes não podem ser injetados), mas é menos vascularizado (a absorção é mais
lenta que a intramuscular). Apenas pequenos volumes podem ser injetados pela via subcutânea. A
autoinjeção é possível, porque não é necessária uma penetração profunda. Preparações de repositório
(depósito) que são suspensões aquosas podem ser injetadas para ação prolongada.
Injeção
Injeção intramuscular
subcutânea
Epiderme
Derme
Músculo Tecido
subcutâneo
20
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
• Intravenosa (i.v.): o fármaco pode ser injetado na forma de bolus (administração da quantidade
total do fármaco de uma só vez) ou pode ser infundido lentamente durante horas em uma
das veias superficiais. O fármaco atinge diretamente a corrente sanguínea, e os efeitos são
produzidos imediatamente, o que é extremamente útil em emergências. A camada íntima das
veias é insensível, e o fármaco é diluído no sangue; portanto, mesmo fármacos altamente
irritantes podem ser injetados pela via intravenosa, mas os riscos são tromboflebite da veia
injetada e necrose dos tecidos adjacentes, se ocorrer extravasamento. Devem ser injetadas por
via intravenosa apenas soluções aquosas (não é possível a administração de suspensões, pois as
partículas do fármaco podem causar embolia). A dose necessária do fármaco é menor pela via
intravenosa, pois a etapa de absorção é ultrapassada (100% do fármaco administrado atinge a
circulação sistêmica) e podem ser infundidos até grandes volumes (veja a figura a seguir). Essa
é a via de administração mais “arriscada”, pois os órgãos vitais como coração, cérebro etc. são
expostos a altas concentrações do fármaco.
200
Concentração no plasma
100
Figura 3 – Concentração plasmática do midazolam no plasma, após injeção de doses equivalentes (5 mg)
por via intravenosa e intramuscular. Observe que o pico de concentração plasmática é maior quando
o fármaco é administrado por via intravenosa, uma vez que, nesse caso, o fármaco é administrado
diretamente na circulação sistêmica
• Injeção intradérmica: é uma rota utilizada apenas para fins específicos. O fármaco é injetado na
pele, produzindo uma espécie de bolha (por exemplo, vacina BCG, testes de sensibilidade).
1.2 Absorção
Lembrete
Para que o fármaco seja absorvido, ele deverá atravessar barreiras biológicas, como as camadas
da pele, o endotélio vascular, o epitélio gastrointestinal e a barreira hematoencefálica. Essas barreiras
são constituídas de células, unidas entre si por diferentes tipos de junções intercelulares e banhadas
por um líquido intersticial que apresenta composição química própria. A composição química desse
líquido e as características físico-químicas da molécula do fármaco influenciam grandemente a
absorção dos fármacos.
• Lipossolubilidade: quanto mais apolar a molécula for, maior a solubilidade da droga na membrana
plasmática, e mais fácil a travessia pelo mecanismo de difusão passiva.
Para que um fármaco possa atingir seus alvos intracelulares ou atravessar uma barreira, deve ser
capaz de atravessar a membrana plasmática. Esse processo ocorre por difusão simples, por difusão
facilitada, por transporte ativo ou por endocitose/pinocitose (veja a figura a seguir).
22
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Transporte ativo
Meio ATP ADP
extracelular
Membrana
plasmática
Ciroplasma Proteína
transportadora com
atividade ATPase
Todas as células do organismo humano são delimitadas por uma membrana plasmática constituída
de uma bicamada de fosfolipídeos. Esses fosfolipídeos apresentam uma região hidrofóbica e uma região
hidrofílica, posicionada em contato com os ambientes aquosos de dentro e de fora da célula.
Além dos componentes lipídicos, as membranas biológicas contêm numerosas proteínas diferentes.
Algumas dessas proteínas estão apenas ancoradas à superfície interna ou externa da membrana
plasmática, enquanto outras (proteínas transmembranares) atravessam a membrana plasmática e,
portanto, estão em contato tanto com o meio intra quanto com o meio extracelular.
A porção hidrofóbica da membrana plasmática representa uma importante barreira para o transporte
dos fármacos. As pequenas moléculas apolares são lipossolúveis e, portanto, são capazes de difundir‑se
facilmente através das membranas e atingir o meio intracelular. Um exemplo são os hormônios esteroidais
(cortisol, estrógeno, testosterona etc.). Sintetizados a partir do colesterol, eles atravessam livremente a
membrana plasmática das células, onde irão ativar seus alvos moleculares.
O problema é que a maioria dos fármacos usados na terapêutica são moléculas grandes e polares
(hidrossolúveis) o suficiente para que a passagem pela membrana plasmática seja prejudicada. As
moléculas que não são suficientemente lipossolúveis precisam de processos especiais para atravessar as
membranas biológicas, como canais hidrofílicos funcionais e sistemas específicos de transporte.
23
Unidade I
A difusão através das aquaporinas, glicoproteínas de membrana que formam um poro que atravessa
a membrana também é importante. No entanto, os poros formados por essas proteínas apresentam
diâmetro muito pequeno – em torno de 0,4 nm – para possibilitar a passagem da maioria das moléculas
de fármacos (que geralmente excedem 1 nm de diâmetro).
O processo de transporte através das células pode ocorrer por endocitose ou por pinocitose.
A pinocitose envolve a invaginação de parte da membrana celular e a captação, dentro da célula, de
uma pequena vesícula contendo constituintes extracelulares. O conteúdo da vesícula pode, então, ser
liberado dentro da célula ou estruído no outro lado desta. Esse mecanismo parece ser importante para o
transporte de algumas macromoléculas (por exemplo, a insulina, que cruza a barreira hematoencefálica
por esse processo), mas não para moléculas pequenas.
Em um modelo biológico ideal, o fármaco irá penetrar na célula por difusão simples até que suas
concentrações nos meios intracelular e extracelular sejam iguais. A velocidade de difusão depende da
área de exposição da membrana ao fármaco e da espessura e da permeabilidade da membrana e do
gradiente de concentração do fármaco através dela.
No tecido epitelial, as células são justapostas, ou seja, mantêm muito pouco espaço entre si, pois
estabelecem muitas junções intercelulares com as células vizinhas. Há muito pouco material extracelular
entre essas células. Assim, para atravessar a barreira epitelial, as moléculas devem atravessar pelo menos
duas membranas celulares (a interna e a externa). Isso também ocorre em relação à passagem pela
mucosa gastrointestinal e do túbulo renal.
A passagem do fármaco pela célula endotelial, por sua vez, é facilitada, devido ao espaço entre elas.
A célula endotelial é do tipo achatada, de espessura variável que recobre o interior dos vasos sanguíneos.
Nos capilares, elas são organizadas de maneira descontínua, formando lacunas, que são preenchidas
por uma matriz frouxa de proteínas que atuam como filtros, de forma que só permitem a passagem de
moléculas menores.
24
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Outros fatores, como a vascularização do tecido no qual o fármaco foi administrado e a extensão de
tecido disponível para a absorção, também interferem na absorção dos fármacos.
A via oral é a principal via de administração de fármacos e, por esse motivo, iremos estudar mais a
fundo os fatores que regulam a absorção por essa via.
Em geral, cerca de 75% de um fármaco administrado por via oral é absorvido no período de 1 a
3 horas, mas numerosos fatores, alguns fisiológicos e outros relacionados com a formulação, alteram
essa absorção. Os principais fatores são: a presença ou não de conteúdo intestinal, a intensidade e a
frequência dos movimentos peristálticos, o fluxo sanguíneo esplâncnico, o tamanho das partículas do
fármaco e suas características físico-químicas, a forma farmacêutica etc.
Durante a primeira fase dos ensaios clínicos, a influência da alimentação sobre a absorção dos
fármacos é analisada. A presença de alimento no tubo digestório altera fluxo de sangue esplâncnico e,
quanto mais vascularizada a área de absorção, maior tende a ser a velocidade dela. De fato, diversos
fármacos (por exemplo, o propranolol) alcançam uma concentração plasmática mais alta se tomados
após uma refeição, provavelmente porque o alimento aumenta o fluxo sanguíneo esplâncnico.
No entanto, a absorção dos fármacos pela mucosa do trato gastrointestinal também resulta de
outros fatores, como o perfil de lipossolubilidade/hidrossolubilidade do fármaco, as características
do alimento ingerido e até mesmo a frequência dos peristaltismos. O movimento excessivamente
rápido do conteúdo intestinal observado em alguns tipos de diarreia pode, por exemplo, comprometer
a absorção.
Tais preparações não somente aumentam o intervalo entre as doses, como também reduzem os efeitos
adversos relacionados com os altos picos de concentração plasmática após a administração de uma
formulação convencional (veja a figura a seguir).
Forma farmacêutica:
1. Revestimento entérico
2. Comprimido cápsula
3. Xarope, solução
4. Liberação estendida
5. Liberação retardada
1 2 3 4 5
Figura 5 – Padrão de absorção dos fármacos por via oral, de acordo com a forma farmacêutica.
As regiões do tubo digestório nas quais a absorção ocorre em maior velocidade estão sombreadas em vermelho
Quando os fármacos são engolidos, geralmente a intenção é que sejam absorvidos e causem efeito
sistêmico, porém existem exceções. A administração da vancomicina por via oral, por exemplo, visa
a eliminação do Clostridium difficile da luz intestinal em pacientes com colite pseudomembranosa.
Caso se deseje que esse antibiótico produza efeitos sistêmicos, deve-se administrá-lo por via
intravenosa, pois sua absorção por via oral é lenta e incompleta. Outros exemplos são a mesalazina, que
é comercializada em formulações contendo revestimento acrílico que somente sofre degradação no íleo
terminal, e cólon proximal, que constitui seu local de ação.
Fármacos administrados por via oral são absorvidos através do revestimento do estômago ou do
intestino delgado. Em alguns casos, alguns alimentos ou algum outro fármaco podem reduzir a absorção
de outro fármaco. Por exemplo, a tetraciclina é um antibiótico com capacidade quelante de íons cálcio,
ferro, magnésio e alumínio. Dessa forma, a tetraciclina não é absorvida adequadamente se for tomada
26
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
no período de uma hora após a ingestão de alimentos ou de complexos vitamínicos que contenham
cálcio (por exemplo, o leite e os laticínios).
Além disso, a presença de alimentos no sistema digestório pode alterar a motilidade intestinal e
interferir com a absorção do medicamento. Uma precaução importante é evitar a administração de
alimentos por uma hora antes ou algumas horas depois de ter tomado um fármaco, ou tomar diferentes
fármacos com um intervalo de pelo menos duas horas.
Em relação à área de absorção e à concentração do fármaco, existe uma correlação positiva entre
esses fatores e o grau de absorção. Ou seja, quanto maior a circulação sanguínea e/ou a concentração do
fármaco na área de absorção, maior a taxa de absorção. A aplicação local de calor ou massagens pode
aumentar a circulação local, aumentado a taxa de absorção do fármaco administrado. Por outro lado, o
emprego de vasoconstritores pode limitar a circulação local e, consequentemente, a taxa de absorção.
Os fármacos, em sua maioria, são substâncias químicas com propriedades de ácidos fracos ou bases
fracas e, portanto, em solução aquosa se apresentam parcialmente ionizados. A proporção entre a fração
ionizada e a fração não ionizada de um fármaco é determinada pelo pH do meio onde ele se encontra
dissolvido e da sua constante de dissociação (pKa). A difusão desses fármacos através das membranas
biológicas é grandemente afetada pelo seu grau de ionização.
Para os fármacos que são ácidos fracos – como o fenobarbital e a aspirina –, a forma protonada
(HA) não apresenta carga elétrica e, portanto, atravessa a membrana plasmática com facilidade. Essa
forma protonada predomina em pH ácido e, portanto, fármacos que são ácidos fracos apresentam alta
velocidade de absorção em pHs ácidos, como no estômago. Ao atingir o meio intracelular, mais básico, o
fármaco de caráter ácido é desprotonado, e passa a ter carga elétrica (A-), o que faz com que ele tenha
menor probabilidade de atravessar novamente a membrana apical das células da mucosa e voltar para
a luz do estômago (“sequestro”).
27
Unidade I
Observação
No caso dos fármacos que são bases fracas, é observado o oposto: a forma protonada apresenta
carga elétrica (BH+) e, portanto, a absorção não é favorecida em pH ácido. Por outro lado, a forma
não protonada (B), que predomina em pH básico (por exemplo, no intestino), conseguirá atravessar a
membrana com facilidade. Ao atingir o meio intracelular, ocorre nova protonação, e a forma ionizada
fica “sequestrada” no interior da célula (veja a figura a seguir).
Figura 6 – Difusão da forma não ionizada de um ácido fraco (A) ou de uma base fraca (B) através da bicamada lipídica
Sendo:
H+ = próton livre.
28
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
A − ]·[ H+
Ka =
[HA ]
Onde:
H+ = Ka· [ ]
HA
A −
− log H+ =
− logKa − log
[HA ]
A −
Por definição, o valor negativo do logaritmo, na base 10, da concentração de H+ em solução (-log[H+])
é denominado pH (potencial hidrogeniônico). De maneira semelhante, -logKa passa a ser denominado
pKa. Assim, temos:
= pKa − log
pH
[HA ]
A −
A −
= pKa + log
pH
[HA ]
Essa equação chama-se equação de Henderson-Hasselbalch. Ela estima a relação entre as
concentrações da forma não ionizada e ionizada do fármaco em determinado pH, de acordo com seu
pKa (que expressa o pH no qual 50% das moléculas do fármaco encontram-se na forma não ionizada e
a outra metade, na forma ionizada).
29
Unidade I
= pK + log
pH
[ forma não protonada]
[ forma protonada]
De maneira semelhante, aplicando-se a fórmula a uma equação de dissociação de uma base fraca
que, em solução, comporta-se da seguinte maneira:
Kb
BH+ B + H+
Sendo:
=
pH pKb + log
[B ]
BH+
Onde:
Por exemplo, consideremos o exemplo hipotético de um fármaco fracamente ácido com pKa = 4.
No estômago, que apresenta pH = 1, temos:
A −
= pKa + log
pH
[HA ]
A −
= 4,0 + log
1,0
[HA ]
30
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
A −
log = −3,0
[HA ]
A −
= 10 −3
[HA ]
Ou seja, a proporção entre a concentração da forma ionizada e a forma molecular é igual a 10-3 ou
0,001 (para cada uma partícula na forma ionizada A-, existem 1.000 partículas na forma molecular):
A −
= 1
[HA ] 103
A −
= 1
[HA ] 1000
Sob o ponto de vista da absorção, podemos afirmar que, no estômago, a forma protonada (HA, não
ionizada) do fármaco encontra-se numa concentração 1.000 vezes maior do que a forma desprotonada
(A-, ionizada), ou seja, 99,9% do fármaco estão na forma molecular, não ionizada, nesse ambiente ácido.
Como a forma molecular consegue atravessar a membrana plasmática com maior velocidade, a absorção
do fármaco, nessas condições, é favorecida.
Se realizarmos o mesmo cálculo considerando o pKa do fármaco (pKa = 4) e o pH do plasma (pH = 7,4,
porém vamos usar o valor aproximado de pH = 7), teremos o seguinte:
A −
= pKa + log
pH
[HA ]
A −
= 4,0 + log
7,0
[HA ]
A −
= 103
[HA ]
A − 1000
=
[HA ] 1
31
Unidade I
Portanto, no plasma, a relação entre a concentração das formas não protonada e protonada se inverte,
e temos 99,9% do fármaco na forma ionizada, forma que praticamente não atravessa de volta a membrana
plasmática das células. Portanto, nessas condições, o fármaco tende a ficar “sequestrado” no plasma.
Utilizando o mesmo raciocínio, para uma base fraca (por exemplo, petidina, pKa de 8,6) em um
meio alcalino (por exemplo, no intestino), a maior parte do fármaco está na forma protonada (B, não
ionizada). Em um compartimento de pH = 7,6, por exemplo, a forma protonada encontra-se numa
concentração 10 vezes maior do que a da forma desprotonada (BH+, ionizada), de forma que 90% do
fármaco encontra-se na forma molecular, sem cargas, nesse ambiente básico, e a absorção é favorecida.
Concluindo, a razão entre as formas ionizada e não ionizada de um fármaco é determinada pelo seu
pKa e pelo pH do compartimento. Presume-se que a forma não ionizada possa atravessar a membrana
e consequentemente alcançar concentrações iguais em cada compartimento do organismo, e que a
forma ionizada não consegue atravessá-la.
O resultado é que, no equilíbrio, a concentração total (ionizada + não ionizada) do fármaco será
diferente em cada compartimento do organismo, sendo possível fazer as seguintes generalizações:
Deve-se mencionar que a partição pelo pH não é o principal determinante do local de absorção
de fármacos no trato gastrointestinal. Isso ocorre em razão da enorme área de absorção das vilosidades e
microvilosidades intestinais, comparada com a área de absorção do estômago, que é muito menor, diminuindo,
assim, sua importância. Desse modo, a absorção de um fármaco ácido, como a aspirina, é aumentada por
fármacos que aceleram o esvaziamento gástrico (por exemplo, metoclopramida) e retardada por fármacos que o
reduzem (por exemplo, a propantelina), apesar de o pH ácido do estômago favorecer a absorção de ácidos fracos.
• A acidificação da urina acelera a eliminação de bases fracas e retarda a de ácidos fracos, enquanto
a alcalinização da urina tem o efeito oposto: reduz a eliminação de bases fracas e aumenta a de
ácidos fracos.
como a acetazolamida) faz com que ácidos fracos sejam concentrados no sistema nervoso central,
aumentando sua neurotoxicidade.
Portanto, caso um paciente apresente intoxicação por ácido acetilsalicílico, por exemplo, deve-se alcalinizar
a urina, o que pode ser atingido com a administração de bicarbonato de sódio ou de acetazolamida. Ambas
aumentam o pH urinário e, portanto, facilitam a eliminação dos salicilatos. Por outro lado, o bicarbonato
reduz a distribuição de salicilatos no sistema nervoso central, enquanto a acetazolamida a aumenta.
Em algumas situações, pode ser desejável retardar a absorção, para produzir um efeito local prolongado
ou para prolongar as ações sistêmicas. Essas interações são denominadas benéficas ou intencionais, pois são
vantajosas do ponto de vista terapêutico. Por exemplo, a adição de epinefrina (adrenalina) ao anestésico
local reduz a absorção do anestésico na circulação sistêmica, prolongando apropriadamente seu efeito; a
formulação de insulina com protamina e zinco produz uma forma de ação prolongada.
Outras interações causam prejuízo terapêutico e são, por esse motivo, denominadas interações
não intencionais ou fortuitas. Por exemplo, o fármaco A pode interagir física ou quimicamente com
o fármaco B no intestino e inibir a sua absorção: tanto os íons cálcio quanto os íons ferro formam
complexos insolúveis com a tetraciclina, retardando a sua absorção; a colestiramina, uma resina de
ligação ao ácido biliar, se liga a diversos fármacos (por exemplo, a varfarina e a digoxina), inibindo a sua
absorção se for administrada simultaneamente.
A absorção gastrointestinal é retardada por fármacos que inibem o esvaziamento gástrico, como a
atropina e os opioides, ou acelerada por fármacos que promovem o esvaziamento gástrico (por exemplo,
a metoclopramida). Por esse motivo, é necessário examinar atentamente a bula dos medicamentos, a
fim de saber se o medicamento em questão pode ou não ser associado aos medicamentos que alteram
o trânsito intestinal.
1.3 Distribuição
Conforme Tracy (2011), distribuição é o movimento do fármaco pela circulação sanguínea sistêmica
até os diversos tecidos do organismo (por exemplo, tecidos adiposo, muscular e cerebral) e dos tecidos
para a circulação sanguínea sistêmica.
A distribuição não é uniforme em todo o organismo, sendo que os fármacos hidrossolúveis têm
tendência de permanecerem no sangue e no líquido ao redor das células (espaço intersticial) e os
fármacos lipossolúveis tendem a concentrar-se nos tecidos adiposos. Há ainda alguns fármacos que se
concentram em órgãos específicos, porque os tecidos nessa região têm uma afinidade diferenciada pelo
fármaco, promovendo sua retenção (por exemplo, o iodo na glândula tireoide).
33
Unidade I
A velocidade de penetração dos fármacos nos diferentes tecidos também é desigual, de forma que um
fármaco altamente lipossolúvel atravessa rapidamente a barreira hematoencefálica, atingindo de forma eficiente
o cérebro, ao passo que um fármaco hidrossolúvel não tem a mesma facilidade de atravessar essa barreira.
Alguns fármacos têm capacidade de se acumular em determinados tecidos, que atuam, portanto,
como reservatórios. Esses tecidos liberam lentamente o fármaco na circulação sanguínea sistêmica,
evitando a redução rápida dos níveis sanguíneos da substância e prolongando, assim, seu efeito. Alguns
fármacos, como os que se acumulam nos tecidos adiposos, saem dos tecidos tão lentamente que
circulam na corrente sanguínea por dias após a pessoa ter parado de tomar o medicamento.
A maioria das moléculas do fármaco, uma vez no compartimento sanguíneo, se ligam de maneira
reversível às proteínas presentes no plasma – principalmente à albumina, mas também à betaglobulina e à
glicoproteína ácida, entre outras. Esses fármacos geralmente são transferidos da corrente sanguínea para
os tecidos muito lentamente, uma vez que somente a fração livre do fármaco tem capacidade de deixar
o plasma para alcançar seu local de ação. Entre as frações livre e ligada do fármaco existe um equilíbrio
dinâmico, de forma que quando a fração livre abandona a circulação, uma nova porção do fármaco ligado
se libera das proteínas, refazendo esse equilíbrio. Dessa forma, a ligação às proteínas plasmáticas atua
como um reservatório de fármaco potencialmente ativo na corrente sanguínea (veja a figura a seguir).
Fármaco que Fármaco
não se liga que se liga
às proteínas às proteínas
plasmáticas plasmáticas
Efeito Efeito
Célula-alvo Célula-alvo
Biotransformação Biotransformação
Fármaco ligado
às proteínas
plasmáticas
Tempo Tempo
34
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Se houver alterações nos níveis dessas proteínas plasmáticas, como nas hipoproteinemias, ocorre
aumento da toxicidade dos fármacos que apresentam alta afinidade a essas proteínas, pois a concentração
do fármaco livre no plasma aumentará. De maneira semelhante, a administração concomitante de
dois ou mais fármacos que se ligam à mesma proteína plasmática pode resultar numa concentração
plasmática da forma livre de um ou de ambos os fármacos mais alta do que o esperado, devido à
competição pelo mesmo sítio de ligação.
A concentração aumentada de fármaco livre (desligado das proteínas plasmáticas) pode resultar
em efeitos terapêuticos e/ou tóxicos exacerbados. Nesses casos, podemos deduzir que será necessário
ajustar o esquema de dosagem de um ou de ambos os fármacos, de modo que a concentração de
fármaco livre possa retornar à sua faixa terapêutica. Entretanto, na prática, esse tipo de ajuste é difícil
de ser realizado, pois, muitas vezes, a taxa de excreção é aumentada quando os fármacos são deslocados de
seus sítios de ligação nas proteínas plasmáticas e passam a se encontrar livres no plasma.
Os fármacos abandonam a via circulatória para o espaço intercelular pela difusão através das
membranas celulares dos capilares ou ainda por poros ou fenestrações presentes nas paredes dos
capilares. A velocidade com que a concentração de um determinado fármaco livre atinge o equilíbrio
entre o plasma e o líquido dos demais compartimentos depende basicamente do grau específico de
vascularização de um determinado tecido. Esse equilíbrio é atingido mais rapidamente em órgãos bem
perfundidos, como o coração, o fígado, os rins e o cérebro (denominados compartimentos centrais), do
que em outros órgãos, cujo aporte de sangue é menor (pele, ossos e depósitos de gordura, denominados
compartimentos periféricos).
A distribuição de um determinado fármaco pode variar de pessoa para pessoa. Por exemplo, pessoas
obesas e idosos (que apresentam, em geral, maior proporção de gordura corporal) tendem a armazenar
uma grande quantidade de fármacos lipossolúveis, ao passo que pessoas muito magras podem armazenar
relativamente pouco.
A idade do indivíduo determina alterações fisiológicas importantes que podem levar a alterações
significativas na farmacocinética. Assim, os recém-nascidos têm níveis menores de proteínas plasmáticas,
além da presença de uma proteína chamada alfafetoproteína, que não tem a capacidade de se ligar
aos fármacos. Isso resulta em uma maior proporção de fármaco livre e, consequentemente, maior
disponibilidade dele, o que pode causar aumento da ação farmacológica ou até mesmo um efeito tóxico.
Em contrapartida, nos indivíduos idosos há redução do clearance, do volume total de água e da massa
muscular e aumento dos depósitos de gordura corporal. Esses fatores, em conjunto, podem acarretar
aumento do volume de distribuição de fármacos lipossolúveis e diminuição desse parâmetro farmacocinético
nos fármacos hidrossolúveis.
35
Unidade I
À medida que os fármacos vão sendo absorvidos, sua concentração plasmática aumenta, até atingir um
pico (concentração plasmática máxima). Em seguida, o fármaco presente no compartimento intravascular
distribui-se rapidamente para outros compartimentos do corpo, o que faz com que a concentração plasmática
do fármaco caia gradativamente. Mesmo quando se atinge o equilíbrio dessas concentrações plasmáticas do
fármaco no compartimento vascular e nos locais de distribuição, a sua concentração plasmática continua
declinando, devido à biostransformação e à eliminação do fármaco livre no plasma. À medida que este vai
sendo excretado, suas moléculas presentes nos diferentes tecidos vão sendo gradativamente difundidas
novamente para o sangue, até a total excreção. Por esse motivo, quando existe um reservatório para o
fármaco, sua excreção tende a ser lenta.
O declínio da concentração plasmática de um fármaco pode ser estudado com o uso de um modelo
de quatro compartimentos, constituídos pelo sangue, tecidos altamente vascularizados, tecido muscular
e tecido adiposo.
O padrão de distribuição do fármaco também depende do estado geral do paciente. Por exemplo,
a massa muscular tende a diminuir com a idade, o que diminui a contribuição da captação muscular
nesse parâmetro. Observa-se o efeito oposto em um atleta, que apresenta maior massa muscular. Como
terceiro exemplo, podemos esperar que um indivíduo obeso tenha maior capacidade de captação de um
fármaco no tecido adiposo.
Quando dois fármacos, A e B, competem pela ligação a uma mesma proteína plasmática, sua
distribuição é afetada de maneira dependente da afinidade do fármaco por essa proteína. Suponha
que o fármaco A apresente alta afinidade de ligação a uma proteína plasmática e o fármaco B baixa
afinidade. O fármaco A, que apresenta maior afinidade pela proteína, permanece ligado a ela por mais
36
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
tempo e, como consequência, sua liberação para o plasma ocorre de maneira mais lenta e gradual. Assim,
podemos dizer que o tempo de meia-vida plasmática do fármaco A aumenta na presença do fármaco B.
Observação
Por outro lado, o fármaco B, que apresenta menor afinidade pela proteína plasmática, tende
a permanecer livre no plasma, o que, em um primeiro momento, resulta em uma maior quantidade
de fármaco distribuído aos diferentes órgãos e tecidos. Isso pode resultar em aumento das respostas
terapêuticas induzidas pelo fármaco B – afinal, a maioria das respostas farmacológicas é dose-dependente –,
mas também no aparecimento de efeitos tóxicos, geralmente observados frente a concentrações mais
elevadas. Em paralelo, o fármaco B é eliminado mais rapidamente do organismo: a concentração de
fármaco B livre no fígado e em outros órgãos metabolizadores também aumenta, o que leva a uma
maior taxa de biotransformação e excreção. O resultado final é diminuição do tempo de meia-vida
plasmática do fármaco B na presença do fármaco A.
Há muitos exemplos em que fármacos, além de competirem com outras substâncias pela ligação às
proteínas plasmáticas, também reduzem a excreção do fármaco deslocado, o que aumenta a chance de
desenvolvimento de efeitos tóxicos. Os salicilatos, por exemplo, deslocam o metotrexato de sua ligação
com a albumina e reduzem a sua secreção para o interior do néfron. Diversos antiarrítmicos (quinidina,
verapamil e amiodarona, por exemplo) deslocam a digoxina, usada no tratamento da insuficiência
cardíaca, do seu sítio de ligação no tecido, enquanto reduzem, ao mesmo tempo, a sua eliminação
renal. Como consequência, aumenta a chance de desenvolvimento de efeitos tóxicos relacionados ao
aumento das concentrações plasmáticas de digoxina (alterações cardiovasculares, como arritmias e
contraturas, aumento do tônus parassimpático, confusão mental, convulsões etc.).
1.4 Biotransformação
Tracy (2011) afirma que a biotransformação consiste na alteração, mediada por enzimas, da estrutura
química do fármaco, visando sua eliminação do organismo. As reações de biotransformação consistem na
adição de moléculas conjugadas que aumentam a hidrossolubilidade do fármaco, favorecendo sua eliminação.
37
Unidade I
Observação
Nos medicamentos administrados por via oral, é necessário considerar que todo fármaco absorvido
pela mucosa do trato gastrointestinal (com exceção da mucosa oral e dos 2/3 distais da mucosa retal) é
obrigatoriamente conduzido para o fígado através da veia porta, antes de ser distribuído para a circulação
sistêmica. Uma vez que a maioria dos fármacos é biotransformada nos hepatócitos, esse metabolismo
de primeira passagem pelo fígado resulta em diminuição da biodisponibilidade do fármaco.
Lembrete
38
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
O fígado possui uma série de enzimas que catalisam a oxidação, a redução ou a hidrólise de uma
série de substâncias químicas. Essas reações tornam a molécula mais instável e, portanto, mais propensa
a participar de outras reações químicas. Nesse contexto, podemos dizer que o maior objetivo das reações
de fase I é preparar as moléculas do substrato para as reações químicas da fase II, durante as quais
ocorrem alterações estruturais mais significativas.
O principal sistema enzimático que participa das reações de fase I é o sistema microssomal do
citocromo P450 (CYP450), e a reação oxidativa mais comum envolve a adição de um grupo hidroxila
ao fármaco. As reações catalisadas incluem N- e O-dealquilação, hidroxilação do anel aromático e da
cadeia lateral, formação de sulfóxido, N-oxidação, N-hidroxilação, desaminação das aminas primárias e
secundárias e substituição de um átomo de enxofre por um de oxigênio.
Até o momento, foram identificados 57 genes que codificam enzimas do CYP450. Essas enzimas
são organizadas em 18 famílias diferentes, de acordo com suas características funcionais, e estão
envolvidas na biotransformação de substâncias exógenas, incluindo fármacos e toxinas, e também na
síntese de muitos substratos importantes para o funcionamento do organismo, como os hormônios
esteroidais (cortisol, estrógeno, testosterona etc.), os ácidos graxos e os esteróis (como o colesterol e
os ácidos biliares).
A enzimas do citocromo P450 são classificadas de acordo com a organização de seus genes. Elas
recebem um número, de acordo com a família à qual pertencem (por exemplo, CYP1, CYP2), e uma letra,
que indica a subfamília (por exemplo, CYP1A, CYP2D). Em seguida dessa última letra, é adicionado mais
um número, que indica a isoforma (por exemplo, CYP1A1, CYP2D6).
Seis enzimas do CYP450 estão envolvidas no metabolismo de 90% dos fármacos. Essas enzimas
são a CYP1A2, a CYP2C9, a CYP2C19, a CYP3A5, a CYP2D6 e a CYP3A4. As duas últimas são as mais
importantes (veja a figura a seguir).
39
Unidade I
CYP2D6
19%
CYP3A4/5
36%
CYP2C8/9
16%
CYP1A2
11%
CYP2B6 CYP2C19
3% 8%
CYP2A6
3% CYP2E1
4%
Figura 8 – Contribuição relativa das principais isoformas do CYP450 na biotransformação dos fármacos
As enzimas do CYP450 estão ligadas à membrana das células e contêm pigmento heme. Nos seres
humanos, essas enzimas são encontradas principalmente no retículo endoplasmático e nas mitocôndrias
das células hepáticas. No entanto, elas também são encontradas em muitas outras células do corpo.
Existe uma grande variabilidade interindividual na sequência genética das enzimas do CYP450, o que
influencia bastante a taxa de decomposição dos fármacos em cada indivíduo. Um exemplo é a atividade
diminuída da N-acetiltransferase, que ocorre principalmente na população negra e acarreta aumento
da meia-vida plasmática de uma série de fármacos. O estudo das variações genéticas, denominadas
polimorfismos, dos genes que codificam proteínas envolvidas na resposta aos fármacos é realizado pela
farmacogenética e pela farmacogenômica.
O sequenciamento dos genes que codificam as enzimas do CYP450 permite avaliar se o indivíduo
se comportará como um metabolizador lento, intermediário ou rápido de determinado grupo de
fármacos. Isso ocorre porque vários dos polimorfismos podem resultar em enzimas que apresentam
atividade maior ou menor do que o normal. Assim, conhecer de antemão como se comporta a enzima
que será responsável pela biotransformação do fármaco que você está tomando permite que a dose do
medicamento seja ajustada, levando-se em conta a velocidade com que suas enzimas trabalham.
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40
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Além da variabilidade genética, outros fatores podem influenciar a função das enzimas do CYP450.
O suco de toranja (grapefruit) contém uma molécula chamada flavanol, que apresenta efeitos inibitórios
sobre vários representantes do CYP450, o que resulta no retardo da biotransformação de uma série de
fármacos e aumenta a chance de ocorrerem efeitos adversos e intoxicação.
Outros alimentos ativam as enzimas do CYP450. Os grelhados a carvão e os vegetais crus (por
exemplo, brócolis, couve-flor, rúcula, nabo e agrião) são dois exemplos. O fumo ativa o CYP1A2, o
que leva ao aumento da biotransformação hepática e à diminuição dos níveis plasmáticos de uma
série de fármacos. É por isso que o fumo diminui a eficácia de alguns analgésicos (como o propoxifeno)
e de alguns fármacos utilizados para asma (como a teofilina). O etanol é outro agente responsável por
induzir uma série de reações enzimáticas.
Observação
Os metabólitos de fase I, de modo geral, são mais hidrossolúveis do que seus fármacos de origem, porém
essa maior hidrossolubilidade, na maioria das vezes, não é suficiente para assegurar sua eliminação renal.
Por esse motivo, esses metabólitos sofrem reações enzimáticas adicionais de fase II que, em geral,
inativam os fármacos quando estes ainda apresentam atividade farmacológica e adicionam conjugados
altamente hidrossolúveis, que são facilmente excretados na urina ou na bile.
As reações de fase II também são conhecidas como reações de conjugação. Elas envolvem o
acoplamento de um grupamento químico ao substrato (que é o metabólito formado nas reações de
fase I). Os principais grupamentos adicionados são o glicuronato (reações de glicuronidação), os radicais
sulfatos (reações de sulfatação), os acetatos (acetilação), os radicais metil (metilação), a glutationa
(conjugação com a glutationa) etc. As reações de metilação e acetilação, ao contrário das demais, não
aumentam a polaridade do metabólito, apenas contribuem para sua inativação.
Uma série de fármacos atuam inibindo ou induzindo a atividade de enzimas relacionadas com as
reações de fase I e fase II. Se o indivíduo estiver tomando dois fármacos, A e B, e o primeiro induzir
a enzima que biotransforma o fármaco B, o resultado será a diminuição da ação e da meia-vida
41
Unidade I
plasmática do fármaco B. Se, ao contrário, o fármaco A for um inibidor da enzima que biotransforma
o fármaco B, será observado aumento da meia-vida plasmática deste, com consequente aumento do
seu tempo de ação.
A rifampicina e o fenobarbital, por exemplo, são indutores das enzimas CYP2C9 e CYP2C10, o que
resulta no aumento da velocidade de biotransformação da varfarina, da fenitoína, do ibuprofeno e
da tolbutamida.
Após administração do fármaco por tempo prolongado, pode ocorrer aumento da atividade do
sistema microssomal hepático induzida por ele. Esse fenômeno é definido como indução enzimática
microssomal e leva ao aparecimento de tolerância; o exemplo mais conhecido desse fenômeno é a
indução enzimática causada pelo uso contínuo do fenobarbital sódico (Gardenal®).
1.5 Excreção
Conforme Tracy (2011), as principais vias de excreção são a renal, a biliar, a pulmonar e a fecal.
Outras vias apresentam importância secundária, como a salivar, a mamária, a sudorípara e a lacrimal.
A excreção está intimamente ligada à biotransformação, já que uma das funções da biotransformação é
gerar compostos mais hidrossolúveis, que possam ser eliminados do organismo com mais facilidade.
Os fármacos e seus metabólitos são, na maioria das vezes, eliminados do organismo com a urina e/ou
com a bile. A excreção renal é a principal via, uma vez que a urina é o líquido de base aquosa que tem
como principal função a eliminação de produtos do metabolismo. Por outro lado, apenas um pequeno
número de fármacos é excretado juntamente à bile, sendo eliminado nas fezes.
Deve-se salientar que os mesmos fatores que afetam a absorção e a distribuição também poderão
afetar o processo de excreção, mas de modo inverso, ou seja, a excreção é mais facilitada caso o fármaco
possua elevada massa molecular, seja polar e esteja em sua forma ionizada. A velocidade de excreção renal
também sofre influência do pH da urina e do pKa ou pKb do fármaco, de maneira semelhante ao observado
na absorção.
42
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Observação
O rim tem papel fundamental na homeostase do nosso corpo, pois é o responsável por filtrar os
líquidos corporais e eliminar substâncias tóxicas do organismo, além de participar da regulação do
equilíbrio ácido-base.
Os três mecanismos envolvidos na excreção renal são: a filtração glomerular, a secreção e a reabsorção
tubular renal.
A filtração glomerular renal é a primeira etapa, que ocorre quando o sangue passa pelo rim, mais
especificamente pelo glomérulo. A parede do capilar glomerular é formada por células endoteliais
fenestradas, que funcionam como uma barreira filtrante. A diferença de pressão faz com que as
substâncias saiam dos vasos do glomérulo e passem para a cápsula de Bowman, formando o filtrado
glomerular. Esse processo não é seletivo, e todas as moléculas e substâncias pequenas saem em direção
à cápsula de Bowman, enquanto as macromoléculas ficam retidas no sangue. Assim, fármacos de baixa
massa molecular que não estejam ligados a proteínas plasmáticas, assim como seus metabólitos, são
filtrados do sangue. O estado de ionização do fármaco também afeta a velocidade de filtração, de
forma que substâncias com carga elétrica negativa têm mais dificuldades em serem filtrados do que
aquelas em sua forma molecular, pois ocorre uma interação eletrostática entre o ânion e as cargas
negativas do poro capilar.
O filtrado glomerular segue por uma série de alças e ductos até atingir o ducto coletor. Durante
esse percurso, algumas substâncias podem ser secretadas diretamente nos túbulos renais e outras são
reabsorvidas e voltam para a circulação sistêmica.
Muitas substâncias de caráter ácido são transportadas para o filtrado glomerular por um sistema que
é destinado à secreção de substâncias de ocorrência natural, como o ácido úrico. O ácido acetilsalicílico,
por exemplo, pode competir com o ácido úrico pelo mesmo transportador, e com isso pode ocorrer o
surgimento da gota, devido ao acúmulo desse excreta nitrogenado no sangue.
A reabsorção tubular renal de ácidos e bases fracas em suas formas não ionizadas (lipossolúveis)
se processa por difusão passiva no nível dos túbulos proximal e distal. A relação entre a concentração
da forma ionizada e a da forma molecular depende do pH da urina e do pKa do fármaco (veja a figura
a seguir) e pode ser estimada pela equação de Henderson-Hasselbach, de maneira similar à observada
durante o processo de absorção (conforme vimos no tópico Influência do pH na absorção dos fármacos).
43
Unidade I
Fármaco de Fármaco de
caráter ácido Membrana caráter básico Membrana
do néfron do néfron
Sangue Urina Sangue Urina
pH 7,4 pH 6,0 pH 7,4 pH 6,0
Figura 9 – Ionização de fármacos de caráter ácido e básico e partição na urina e no sangue em função do pH urinário
Fatores fisiológicos ou patológicos que alteram a função renal influenciam a excreção renal de
fármacos. Na insuficiência renal, fármacos e metabólitos ativos excretados fundamentalmente pelo rim
podem se acumular, ocasionando efeitos tóxicos. Para evitar tal ocorrência, são necessários ajustes nos
esquemas terapêuticos. O fator idade figura como um dos principais interferentes na excreção renal de
fármacos, pois, com a idade, a velocidade de excreção renal tende a diminuir.
Alguns fármacos e seus metabólitos são excretados com a bile, contra um gradiente de concentração.
Transportadores semelhantes aos que existem nos rins também estão presentes nos hepatócitos e
secretam ativamente fármacos para a bile. Os fármacos com massa molecular elevada e de natureza
anfipática têm maior probabilidade de serem excretados também na bile. Moléculas menores são, em
geral, excretadas apenas em quantidades mínimas. A conjugação, especialmente com ácido glicurônico,
facilita a excreção biliar.
Os fármacos excretados pela bile caem no intestino e podem ser reabsorvidos ativamente pela
mucosa intestinal. Esse fenômeno é denominado circulação êntero-hepática, na qual o metabólito
de uma substância é excretado por via biliar e, ao chegar no intestino, é reabsorvido pela mucosa
intestinal, em um processo que envolve a retirada prévia do conjugado (que, na maioria das vezes, é o
44
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
glicuronato) pelas enzimas das bactérias que compõem a microbiota intestinal. Ao atravessar a mucosa
intestinal, essas substâncias são direcionadas ao fígado, via sistema porta-hepático, onde voltam a ser
biotransformadas e excretadas na bile (veja a figura a seguir).
Hepatócito
Sinusoide
Excreção biliar
Vias biliares
Conjugação com
glicuronato
Veia porta
Desconjugação
Circulação por enzimas
entero-hepática bacterianas
Fármaco Absorção
Excreção reanal lipossolúvel pela mucosa
intestinal
Metabólito
hidrossolúvel
As disfunções hepáticas podem afetar de forma marcante a excreção biliar, não somente por
reduzirem a produção de bile, mas também por reduzirem a atividade metabólica. Essas ocorrências
podem levar ao acúmulo do fármaco no organismo.
A excreção pulmonar envolve dois aspectos de interesse farmacológico: a excreção pelas glândulas
de secreção bronquiolar e a excreção através dos alvéolos. Através dos alvéolos são excretados
principalmente gases e substâncias voláteis por difusão simples, não existindo sistemas de transporte
especializados. O grau de solubilidade de gás na corrente sanguínea é o fator determinante da excreção
pelas vias aéreas, de forma que gases pouco solúveis são mais rapidamente excretados.
Outras vias de excreção são de menor importância. A excreção de fármacos no suor, na saliva, no
leite e na lágrima depende basicamente de difusão de forma lipossolúvel não ionizada através das
células epiteliais das glândulas. Assim, o pKa e o pH são fatores determinantes na quantidade total
de fármaco a ser secretado. As substâncias secretadas pela saliva costumam ser deglutidas; logo, seu
destino será o mesmo dos fármacos administrados por via oral.
45
Unidade I
Dois fármacos que competem pela mesma proteína transportadora podem alterar o padrão de
excreção de um dos fármacos. Por exemplo, a probenicida e a benzilpenicilina competem pelo transporte
para a cápsula de Bowman. A probenecida é preferencialmente transportada, o que retarda a excreção
urinária da benzilpenicilina e aumenta sua meia-vida plasmática e a duração da ação farmacológica.
Alguns fármacos atuam inibindo a circulação êntero-hepática dos fármacos. O carvão ativado e
as resinas de troca iônica podem ser utilizados para esse fim, uma vez que essas substâncias se ligam
fortemente à molécula do fármaco, impedindo que ele seja novamente biotransformado e absorvido.
Início do
efeito
Faixa
terapêutica
Duração da ação
Tempo
Período de AUC
latência
O conhecimento dos parâmetros farmacocinéticos e de como eles são regulados por vários fatores é
importante para que a posologia do medicamento seja ajustada com mais precisão e rapidez. A aplicação
dos princípios farmacocinéticos para individualizar a farmacoterapia é denominada de monitoramento
farmacológico terapêutico. Os parâmetros farmacocinéticos de maior relevância são:
• a área sob curva (AUC, do inglês area under the curve), que representa a medida fiel da quantidade
de fármaco que é absorvido;
46
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
• o tempo de meia-vida plasmática (t1/2), que é o tempo que um fármaco leva para reduzir sua
concentração plasmática à metade e independe da dose administrada;
• o volume de distribuição (Vd), que se refere ao volume total do líquido corporal no qual o fármaco
está distribuído;
Para a maioria dos fármacos, existe uma relação entre os efeitos farmacológicos e a concentração
do fármaco disponível no sangue. As condições fisiopatológicas dos pacientes podem alterar esses
parâmetros farmacocinéticos e comprometer o desfecho clínico.
A biodisponibilidade de um fármaco pode ser determinada pela razão entre a AUC para uma forma
de dosagem particular e a AUC para a forma intravenosa, uma vez que, por definição, a concentração do
fármaco que atingiu a circulação sistêmica após administração intravenosa corresponde ao total da dose,
ou seja, todo o fármaco administrado entra em circulação.
Assim, se a AUC do fármaco administrado por via intravenosa é igual a 1 e a AUC após a administração
da mesma dose do fármaco por via oral é igual a 0,6, temos que a biodisponibilidade do fármaco é de 60%.
A meia-vida é um parâmetro que indica o tempo necessário para que uma grandeza tenha seu valor
reduzido para 50% do total. Por exemplo, a meia-vida de um isótopo radioativo é o tempo que demora
para que a radiação emitida pelo isótopo caia pela metade. No contexto da farmacocinética, o tempo de
meia-vida plasmática representa o tempo gasto para que a concentração plasmática ou a quantidade
original de um fármaco no organismo se reduza à metade. É importante não confundir esse termo com
47
Unidade I
o termo vida média, que indica o total do tempo necessário para que haja total depuração do fármaco
do organismo.
Meia-vida
Tempo
Doses
Figura 12 – Gráfico concentração plasmática versus tempo após administração de doses múltiplas
O tempo de meia-vida plasmática dos fármacos varia de pessoa para pessoa e pode ser influenciado
por muitos fatores, como o sexo, a idade, a presença de patologias, a interação com outros fármacos etc.
O volume de distribuição (Vd) representa o volume total de líquido necessário para conter todo o
fármaco absorvido, de maneira que a concentração dele seja igual à concentração plasmática no estado
de equilíbrio dinâmico.
O Vd é baixo para os fármacos que ficam retidos no compartimento vascular (o fármaco distribui‑se
preferencialmente no volume sanguíneo) e alto para aqueles que sofrem amplas distribuição pelos
tecidos do organismo (o fármaco encontra-se distribuído em diferentes compartimentos do corpo, além
do sangue). Por esse motivo, fármacos que são amplamente distribuídos muitas vezes apresentam Vd
48
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
maior do que o volume de líquido corporal total. Um exemplo é o antiarrítmico amiodarona: seu Vd
é de 4.620 L, ou seja, seriam necessários 4.620 L de água para que a amiodarona absorvida atingisse
a mesma concentração observada no plasma. Na prática, isso significa que esse fármaco se encontra
muito diluído no sangue, pois foi preferencialmente distribuído para outros tecidos.
Esse parâmetro, embora não represente de maneira literal o que acontece no corpo, nos fornece
uma ideia da dose necessária para se obter efeito terapêutico: para dois fármacos de potência igual,
aquele que apresentar maior Vd geralmente necessitará de dose inicial maior para estabelecer uma
concentração plasmática terapêutica, pois ele tende a ficar retido em reservatórios.
Lembrete
1.6.5 Clearance
A excreção de um fármaco pode ocorrer por diferentes vias. Somando-se as depurações individuais,
obtém-se a depuração sistêmica total. Quando o fármaco é totalmente excretado pelos rins sem sofrer
alterações, o clearance renal é calculado dividindo-se a velocidade de excreção urinária (mg/min) pela
sua concentração sanguínea (mg/mL).
Saiba mais
2 FARMACODINÂMICA
Antes de iniciar mais uma etapa de nosso aprendizado, vamos relembrar a definição de fármaco: é a
molécula que, ao interagir com alvos moleculares específicos presentes nas células e/ou tecidos de um
organismo, é capaz de alterar sua fisiologia – na maioria das vezes, no sentido da homeostase. Conhecer de
que maneira os fármacos interagem com esses substratos biológicos, e as consequências de tal interação,
é de essencial importância na farmacologia e constitui o estudo da farmacodinâmica.
49
Unidade I
Observação
De maneira simplificada, podemos dizer que, enquanto a farmacocinética avalia “o que o corpo
faz com o fármaco”, desde a administração até sua eliminação, a farmacodinâmica estuda “o que o
fármaco faz com o corpo”, ou seja, de que maneira determinadas substâncias são capazes de modular
mecanismos fisiológicos e, assim, alterar o funcionamento do organismo.
Observação
O estudo da farmacologia remonta do início do século XX. Nessa época, a natureza dos substratos
biológicos da ação dos fármacos não era conhecida. Em outras palavras, os pesquisadores da época
ainda não conheciam os componentes celulares capazes de interagir com os fármacos, nem como essa
interação acontecia. Em 1905, surge o conceito de “substância receptora”, introduzido pelo cientista inglês
John Newport Langley, que resume o conhecimento da época: as “drogas” exercem sua ação a partir da
combinação química com substâncias receptoras, o que resulta na modulação da fisiologia das células.
Lembrete
No decorrer do século XX, com o advento de técnicas experimentais que permitiram o estudo mais
aprofundado da bioquímica e da biologia molecular, foi possível entender exatamente no que consistem
as substâncias receptoras: são macromoléculas, de natureza proteica. Elas são responsáveis, por exemplo:
50
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
• pelo transporte de íons e de outras substâncias para fora ou para dentro da célula (proteínas
transportadoras);
O quadro a seguir exemplifica cada uma das interações fármaco-receptor descritas anteriormente.
Observe o uso do termo mecanismo de ação, que descreve a natureza da interação química entre
fármacos e seus alvos moleculares:
A partir de agora, vamos entender melhor como os fármacos interagem com seus principais alvos:
as enzimas, os canais iônicos, as proteínas transportadoras e os receptores farmacológicos.
2.1.1 Enzimas
Enzimas são macromoléculas proteicas responsáveis por catalisar reações químicas que, na sua
ausência, normalmente não aconteceriam. As enzimas, portanto, atuam como agentes catalisadores
das reações bioquímicas que ocorrem nos meios intra e extracelular.
Observação
As enzimas diminuem a energia de ativação necessária para que uma reação química aconteça, o
que resulta no aumento da velocidade da reação e possibilita a formação de produtos que participam
do metabolismo das células.
Nas reações enzimáticas, a(s) molécula(s) de substrato se liga(m) ao sítio catalítico da enzima,
dando origem a uma ou mais moléculas de produto. Nesse processo, outras substâncias também
podem se ligar ao sítio catalítico ou ainda em outros sítios (sítios alostéricos) da enzima e, assim,
induzir ou inibir a atividade dela. Essas substâncias são denominadas, respectivamente, indutores e
inibidores enzimáticos.
Outros fármacos atuam sobre enzimas específicas, inibindo-as. São exemplos de fármacos
inibidores enzimáticos:
• Inibidores da MAO: inibem a enzima monoamina oxidase (MAO), responsável pela hidrólise
das monoaminas (dopamina, norepinefrina e serotonina). Assim, o tempo de ação desses
neurotransmissores na fenda sináptica é aumentado, estratégia útil no tratamento da depressão.
Um esquema ilustrativo de inibição enzimática pode ser observado a seguir (veja a figura):
(a) Reação enzimática normal
Substrato
Sítio
ativo
Enzima
Saiba mais
Canais iônicos são proteínas que atravessam a membrana plasmática, formando um poro aquoso
que é permeável a determinados íons. Participam, assim, do equilíbrio iônico entre os meios intra e
extracelular, e ajudam a estabelecer a diferença de potencial elétrico entre esses dois meios.
Diversos fármacos atuam bloqueando a passagem de íons através desses canais. São classificados,
portanto, como bloqueadores de canais iônicos. Os principais são:
53
Unidade I
• Anestésicos locais: bloqueiam os canais de sódio presentes nos nervos nociceptivos, o que impede
o influxo de sódio e, portanto, a deflagração de potenciais de ação relacionados ao estímulo
doloroso. Curiosamente, esses fármacos, quando administrados por via intravenosa, apresentam
propriedade antiarrítmica, pois também são capazes de bloquear os canais de sódio presentes nas
células de condução do potencial de ação cardíaco.
• Bloqueadores dos canais de potássio: são antiarrítmicos que bloqueiam os canais de potássio das
células de condução cardíaca e, assim, impedem o efluxo de potássio relacionado à repolarização
dos cardiomiócitos.
• Glicosídeos cardíacos: inibem a Na+/K+ ATPase presente nos cardiomiócitos, o que aumenta a
força de contração cardíaca.
• Inibidores da bomba de prótons (omeprazol e fármacos relacionados): inibem a H+/K+ ATPase nas
células parietais do estômago, o que diminui a concentração de ácido clorídrico no suco gástrico.
• Tiagabina: anticonvulsivante que inibe a proteína que promove a recaptação de GABA da fenda
sináptica para o interior do neurônio.
54
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Os receptores são, portanto, as moléculas que medeiam as ações dos neurotransmissores, dos
hormônios e de outras moléculas. Essas moléculas, produzidas pelo próprio organismo, são denominadas
ligantes endógenos. Elas são capazes de ativar seus receptores e, assim, iniciar a cascata de eventos
que culmina na resposta final.
De maneira simplificada, podemos dizer que os fármacos atuam sobre os receptores de duas
maneiras distintas: ativando-os ou impedindo sua ativação. Os primeiros são chamados de agonistas
e os segundos, de antagonistas. Os ligantes endógenos, uma vez que ativam os receptores, podem
ser classificados como agonistas. Em relação aos fármacos exógenos, eles podem ser agonistas ou
antagonistas do receptor, de acordo com a resposta final observada.
Na verdade, os conceitos de agonista e antagonista são mais complexos e serão trabalhados em maior
profundidade adiante, no tópico Farmacologia experimental: estudos da interação fármaco‑receptor,
porém as definições apresentadas até agora já permitem fazer a seguinte generalização: na maioria das
vezes, utiliza-se um agonista quando se pretende aumentar/reforçar a resposta fisiológica mediada por
determinado receptor; por outro lado, utiliza-se um antagonista quando se pretende que tal resposta
seja diminuída/atenuada.
Um exemplo é o adrenoceptor alfa-1, o receptor que responde aos estímulos do sistema nervoso
simpático sobre os vasos: a resposta mediada por ele é a vasoconstrição e, portanto, em casos de
hipotensão, pode-se administrar um agonista para que ocorra constrição nos vasos e a pressão
seja aumentada; por outro lado, em casos de hipertensão, tal vasoconstrição é evitada pelo uso
de um antagonista.
• Ligação do fármaco ao receptor: assim como para os demais alvos moleculares estudados
até o momento, a ligação do fármaco ao sítio de ligação do receptor obedece ao esquema de
chave-fechadura, ou seja, fármaco e sítio de ligação apresentam estruturas complementares.
55
Unidade I
• Ativação de vias de transdução de sinal: após a ativação do receptor, uma cascata de eventos é
iniciada, e resultará na resposta final. Essa etapa varia significativamente quando comparamos as
diferentes classes de receptores. Nos casos em que a via de transdução de sinal envolve a ativação de
outras moléculas, presentes no interior da célula, elas recebem a designação “segundos mensageiros”.
Agonista
Transdução de sinal
Resposta
Existem quatro classes de receptores, cada uma com características particulares: (1) os acoplados ao
canal iônico, ou ionotrópicos; (2) os que apresentam função enzimática; (3) os acoplados à proteína G,
ou metabotrópicos; e (4) os intracelulares.
Os receptores ionotrópicos são canais iônicos operados por ligantes e que, portanto, atravessam
a membrana plasmática. Nesses receptores, a abertura do poro iônico ocorre como consequência da
ligação do agonista ao sítio de ligação, localizado na porção extracelular de uma ou mais subunidades
que constituem o receptor. Portanto esses receptores diferem dos canais iônicos propriamente ditos,
nos quais a abertura do poro iônico depende de outros fatores relacionados ao microambiente celular
(geralmente, o potencial de membrana).
Uma das principais características da resposta mediada pelos receptores ionotrópicos é a velocidade
com que se estabelece a resposta final, cerca de milissegundos. Isso ocorre porque, no caso desses
receptores, não ocorre ativação de segundos mensageiros após a ativação do receptor: a abertura do
poro iônico, com a consequente passagem dos íons por ele, já é suficiente para se alcançar a resposta
final. Quando a abertura do poro iônico permite a entrada de íons positivos na célula (por exemplo, os
íons sódio), o resultado é a despolarização (excitação) dela; quando ocorre a entrada de íons negativos,
por outro lado, o resultado é a hiperpolarização (inibição celular).
56
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Dois exemplos dos fenômenos citados são a ativação dos receptores nicotínicos e dos receptores
gabaérgicos GABAA.
Extracelular
Intracelular
Na+
Os receptores GABAA também são receptores ionotrópicos, constituídos por cinco subunidades
transmembranares, amplamente distribuídos nos neurônios do sistema nervoso central. O ligante
endógeno desses receptores é o neurotransmissor ácido gama aminobutírico (GABA), que, ao se
ligar ao receptor, promove a abertura de canais de cloreto, o que hiperpolariza o neurônio (diminui
sua excitabilidade).
Os benzodiazepínicos e os barbitúricos são fármacos que potencializam a ação do GABA. Eles são
usados em condições do sistema nervoso central nas quais o rebaixamento da atividade é uma estratégia
terapêutica interessante, por exemplo, na ansiedade e na epilepsia.
Os receptores enzimáticos são polipeptídeos que atravessam uma vez a membrana plasmática.
São constituídos de um domínio extracelular, no qual se localiza o sítio de ligação, e de um domínio
intracelular com função de tirosina quinase – ou, em alguns casos, de serina quinase ou guanilil ciclase.
57
Unidade I
Os receptores do fator de crescimento epidérmico (EGF, epidermal growth factor) e de insulina são
exemplos de receptores com função enzimática.
A sinalização mediada pelos receptores com função enzimática, em especial aqueles com função de
tirosina quinase, envolve a dimerização de dois domínios receptores e a autofosforilação dos resíduos
de tirosina presentes na sua porção intracelular (um domínio fosforila os resíduos de tirosina do outro,
e vice-versa). A seguir, ocorre a fosforilação de uma série de outras proteínas intracelulares (segundos
mensageiros), o que permite que um único receptor module uma série de processos bioquímicos
diferentes, que incluem a modulação do ciclo celular e da transcrição gênica. Alguns exemplos
de processos bioquímicos ativados são a via da ERK (extracelular regulated kinases), a via da PI-3
(phosphatidil inositol 3) quinase, entre outras (veja a figura a seguir).
Fosforilações
Transcrição gênica
Cilco celular
Figura 16 – Representação esquemática do receptor de EGF (EGFR), exemplo de receptor com função enzimática.
As principais vias de transdução de sinal ativadas (mTOR, STAT e ERK) estão indicadas
58
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Região GPCR
amino-terminal
Extracelular
Intracelular
Região
carboxi-terminal
Figura 17 – Estrutura dos receptores acoplados à proteína G (GPCR). A região amino-terminal extracelular, os sete domínios
transmembranares, as três alças extracelulares e as três alças e a região carboxi-terminal intracelular estão representadas
Cada uma das regiões dos receptores acoplados à proteína G apresenta uma função: o domínio
amino-terminal extracelular e/ou as três alças extracelulares estão relacionadas com a ligação ao
agonista, as três alças intracelulares são as regiões de ligação à proteína G e a região carboxi-terminal
constitui um domínio regulatório.
A proteína G é uma proteína ligadora de guanina constituída de três subunidades: alfa, beta e gama. No
estado de repouso (enquanto o receptor encontra-se no estado inativo), as três subunidades permanecem unidas,
e a subunidade alfa encontra-se ligada a uma molécula de GDP (guanina difosfato), de baixo valor energético.
A partir do momento em que o receptor é ativado pela ligação do agonista, ocorre o desligamento
da molécula de GDP da subunidade alfa, a ligação de uma molécula de GTP (guanina trifosfato), de
alto teor energético a ela, e a dissociação das subunidades alfa e beta-gama. A partir desse momento,
a proteína G encontra-se ativada e é capaz de ativar outras moléculas no interior da célula, iniciando
cascatas de eventos bioquímicos que culminarão na resposta final (veja a figura a seguir).
GDP
GTP
Figura 18 – Representação esquemática da ativação das proteínas G. Como consequência da ativação do receptor pelo agonista,
ocorre a liberação do GDP da proteína G e a ligação do GTP a ela. A proteína G ligada ao GTP é capaz de interagir com uma série
de moléculas efetoras, ativando-as. O término da resposta ocorre a partir da desfosforilação do GTP, que perde um
fosfato inorgânico (Pi), transformando-se em GDP
59
Unidade I
Existem diferentes subtipos de proteínas G, e cada uma delas é capaz de ativar uma via de sinalização
intracelular diferente. Assim, os segundos mensageiros ativados dependem do subtipo de proteína G
acoplada ao receptor.
Os principais subtipos de proteína G que serão estudados no decorrer da disciplina são: Gs (estimulatória),
Gi (inibitória) e Gq.
• A proteína Gs, quando ativada, ativa a enzima adenilil ciclase, ancorada à face interna da
membrana plasmática. A adenilil ciclase converte as moléculas de ATP presentes dentro da célula
em AMPc (monofosfato cíclico de adenosina), um importante segundo mensageiro capaz de
ativar uma série de enzimas, como a proteína quinase A (PKA, protein kinase A). A PKA, por sua
vez, fosforila outras enzimas e proteínas intracelulares, levando à ativação/inativação delas e à
consequente geração da resposta final.
• A proteína Gi, quando ativada, inativa a enzima adenilil ciclase. Como consequência, caem os
níveis intracelulares de AMPc e diminuem as fosforilações dependentes da PKA. É por esse motivo
que essa proteína G é denominada inibitória.
• A proteína Gq, quando ativada, ativa a enzima fosfolipase C, também ancorada à face interna
da membrana plasmática. Essa enzima converte fosfolípides de membrana em diacilglicerol
(DAG) e inositol trifosfato (IP3). O DAG ativa a proteína quinase C (PKC, protein kinase C), que
é sensível aos íons cálcio e a fosfolipídeos e é responsável por fosforilar proteínas específicas. O
IP3 se liga a seus receptores no retículo sarcoplasmático, o que desencadeia a liberação de íons
cálcio e, consequentemente, aumento de seus níveis intracelulares. Essa classe de proteína G está
relacionada, entre outras ações, à contração da musculatura lisa de vários tecidos.
No citoplasma das células, os íons cálcio, cujos níveis intracelulares podem estar aumentados
em decorrência da ativação dos receptores acoplados à Gq e à Gs, podem se ligar a uma proteína
denominada calmodulina. Essa proteína possui quatro sítios distintos para ligação de cálcio; quando
três ou quatro desses sítios estão ocupados pelo íon, ocorre alteração conformacional da estrutura
molecular da calmodulina, o que desencadeia múltiplos efeitos no interior da célula, como a ativação
da enzima miosina quinase, que atua diretamente sobre a miosina do músculo liso e desencadeia a
sua contração.
A figura a seguir ilustra as vias de sinalização intracelular envolvidos na ativação de cada um dos
subtipos de receptores acoplados à proteína G:
60
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Adelinil ciclase
DAG
Proteína quinase C
Fosfolipase C
GS Gi
Gq
ATP
AMPc IP3
Ca2+
Proteína quinase A
Ativação
Fosforilações
Fosforilações
Glicogenólise
Contração do músculo liso
Lipólise
Secreção glandular
Ativação de canais de cálcio
etc.
etc.
Figura 19 – Resumo das vias de sinalização intracelular relacionadas à ativação das proteínas Gs, Gi e Gq
Saiba mais
O quadro a seguir indica os principais receptores acoplados à proteína G, que são alvos de fármacos de
importância terapêutica e experimental. Na maioria dos casos, estão disponíveis agonistas e antagonistas
para cada um desses receptores, o que permite modular significativamente a fisiologia celular.
Lembrete
61
Unidade I
Os receptores intracelulares antigamente eram chamados de receptores nucleares, uma vez que o
resultado final de sua ativação envolve a regulação da expressão dos genes, que se encontram no núcleo
da célula. Isso resulta em alterações do tipo e da quantidade de proteínas produzidas pelas células.
Na ausência da ligação com as HSP, o complexo ligante-receptor ativado migra para o núcleo e
interage com regiões promotoras de genes específicos, ativando ou reprimindo a expressão gênica, a
depender do gene. Em outras palavras, a ativação dos receptores intracelulares leva ao aumento da
expressão de alguns genes e à diminuição da expressão de outros (veja a figura a seguir).
62
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Citoplasma
Núcleo
Transcrição
Tradução
Hormônio Proteína
esteroidal
DNA mRNA
Receptor
Figura 20 – Representação esquemática da via de transdução de sinal ativada pelos receptores de hormônios esteroidais
A transcrição do DNA é a formação de uma fita de RNA complementar à sequência do gene-alvo. Esse
RNA é processado e dá origem ao RNA mensageiro (RNAm), que sai do núcleo e é lido pelos ribossomos,
que produzem a proteína correspondente. Portanto, em última instância, ocorre o aumento dos níveis de
algumas proteínas e a diminuição de outras, o que resulta na mudança da fisiologia da célula.
Observação
Todos os hormônios esteroidais produzem seus efeitos após um período que varia de 30 minutos a várias
horas. Esse é o tempo requerido para que haja síntese de novas proteínas. Isso significa que os hormônios não
são capazes de alterar um estado patológico logo após sua administração (por exemplo, os corticoides não irão
aliviar os sintomas da asma brônquica alguns minutos após a administração). Por outro lado, os efeitos desses
agentes podem persistir por horas ou dias após a administração do agonista, pois as enzimas e demais proteínas
produzidas pelo estímulo do receptor ativado podem permanecer na célula por um tempo prolongado.
No decorrer da disciplina, vamos estudar o efeito da ativação dos receptores de glicocorticoides (GR –
glucocorticoid receptor, cujo ligante endógeno é o cortisol) pelos anti-inflamatórios esteroidais, também
conhecidos como corticoides. Dependendo da dose de corticoide utilizada, altera-se a expressão genes
responsáveis pela inflamação ou pela imunidade adaptativa, o que possibilita o uso desses fármacos
como anti-inflamatórios e como imunossupressores.
63
Unidade I
Correpressor Coativador
po
RN er
lim
A ase
64
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Vários receptores órfãos pertencem à classe dos receptores intracelulares. Um exemplo são os
receptores ativados por proliferador de peroxissoma (PPAR), que estão envolvidos na regulação da
diferenciação celular, no desenvolvimento, no metabolismo (carboidratos, lipídios, proteínas) e na
carcinogênese de organismos superiores.
Lembrete
As principais características da resposta mediada por receptores, tanto do ponto de vista fisiológico
quanto do ponto de vista terapêutico, são apresentadas a seguir:
É também importante que a resposta celular resultante da ativação dos receptores não seja
exacerbada, isto é, que a ativação dos receptores ocorra somente pelo tempo necessário para que
seja mantida a homeostase.
65
Unidade I
Com o tempo, os níveis plasmáticos das moléculas efetoras – por exemplo, o AMPc resultante da
ativação de receptores acoplados à proteína G, ou ainda o sódio que adentra a célula após ativação de
um receptor ionotrópico – tendem a diminuir, mesmo quando o agonista continua a ser administrado.
Geralmente, a dessensibilização é reversível, e a resposta passa a ser observada novamente após alguns
minutos após a resposta inicial.
Até meados do século XX, não existiam ferramentas experimentais que permitissem a observação
da resposta mediada pelos receptores em nível molecular. O estudo da interação entre os fármacos e os
receptores só podia ser realizado a partir da verificação dos efeitos finais, macroscópicos, observados
nos tecidos após a administração da substância. Nesse contexto, a contração muscular mostrou-se um
excelente instrumento para mensurar os efeitos dos fármacos, uma vez que (1) a contração dessas células
pode ser facilmente observada a olho nu e (2) a contração muscular lisa é uma resposta mediada por
uma série de sinais fisiológicos diferentes, o que implica na expressão de diversas classes de receptores
na superfície de suas células, maximizando o número de fármacos e de receptores que podem ter sua
atividade avaliada.
Para a obtenção dessas curvas, um órgão isolado, retirado de um animal de experimentação (por
exemplo, um fragmento de arteríola ou um fragmento de ducto deferente de ratos), é mergulhado em
um líquido nutritivo devidamente oxigenado e então posicionado em um fisiógrafo, aparelho capaz
de quantificar a força e a frequência de contração da musculatura lisa do órgão. O órgão é então
submetido a concentrações crescentes do agonista, que, ao se ligar a seus receptores, desencadeará a
contração do tecido (veja a figura a seguir).
66
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Líquido nutritivo
Alavanca de
ampliação
Aorta
Registrador
Câmara
Figura 22 – Fisiógrafo
100%
Agonista total
Resposta
50%
Agonista parcial
23%
11,5%
0%
13 12 11 10 9 8 7 6 5
-log[Agonista, mol/L]
67
Unidade I
fármaco, e podemos dizer que a eficácia máxima do fármaco foi alcançada. Se essa eficácia máxima
coincidir com a resposta tecidual máxima (no caso, a contração máxima da musculatura lisa), estamos
diante de um agonista total. Se a eficácia máxima do fármaco for menor do que a resposta tecidual
máxima, temos um agonista parcial.
A eficácia, portanto, é o parâmetro que avalia a magnitude da resposta tecidual desencadeada após
a incubação com o agonista, ou, em outras palavras, trata-se da habilidade relativa de um complexo
fármaco-receptor de produzir uma resposta máxima funcional. Esse parâmetro é representado pelo
Emax, que é o valor máximo de resposta alcançado pelo tecido, ou seja, é o valor, no eixo y, que
corresponde ao platô. Eficácia igual a 100%, ou 1, indica que o agonista é capaz de desencadear a
resposta máxima (agonista total); enquanto eficácia menor do que 100%, mas maior do que 0, indica
que o agonista somente é capaz de desencadear uma resposta submáxima, mesmo com o aumento
crescente das concentrações do agonista.
Na figura anterior, temos que a eficácia do agonista total é 100% (como observado em todos os
agonistas totais), enquanto a eficácia do agonista parcial é de 23%.
Para se avaliar a potência de um fármaco, devemos, no gráfico, achar o ponto de intersecção dos
eixos x e y à curva, levando-se em conta, no eixo y, o ponto que representa a metade da resposta total
do tecido ao fármaco. O valor correspondente no eixo x é a concentração do fármaco que foi necessária
para se obter tal resposta, e corresponde a sua potência.
O valor que expressa a potência do fármaco é o EC50 ou CE50 (concentração efetiva 50), que
significa “a concentração necessária para que seja observada 50% da resposta a determinado agonista”.
Na figura anterior, o EC50 dos fármacos é igual a 10-9 mol/L: a concentração necessária para se
obter 50% da resposta máxima do agonista total e 50% da resposta máxima do agonista parcial
(11,5%, que correspondem à metade de 23%) são iguais a 10-9 mol/L. Não esqueça que o eixo x, das
concentrações, é fornecido no formato do valor negativo do logaritmo da concentração e, portanto,
“9” corresponde a 10-9.
As curvas concentração-resposta também podem ser utilizadas para se avaliar a ação de antagonistas
sobre a contração da musculatura lisa.
Os antagonistas são fármacos capazes de se ligar ao receptor, porém incapazes de desencadear uma
resposta celular, e podem ser classificados em competitivos e não competitivos.
68
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Os antagonistas não competitivos, como o próprio nome já presume, não competem com o agonista
pelo sítio de ligação ao receptor. Em vez disso, ligam-se a um sítio diferente daquele envolvido com a
ligação ao agonista ou interagem com a via de transdução de sinal desencadeada após a ativação do
receptor. Nesse caso, o efeito máximo do agonista é diminuído.
Uma vez que os antagonistas em si não são capazes de desencadear uma resposta celular, seu
estudo, a partir da elaboração de curvas concentração-efeito, exige o seguinte método:
• é feito o registro da resposta celular (contração) obtida com o agonista na presença de antagonista;
A análise das curvas obtidas visa à observação da alteração que o antagonista é capaz de causar na
curva concentração-resposta, conforme descrito a seguir:
69
Unidade I
Resposta
50% EC50 do agonista na
presença de antagonista
não competitivo
EC50 do agonista na
ausência de antagonista e
na presença de antagonista -log[Agonista, mol/L]
não competitivo
O estudo das curvas concentração-resposta é realizado até hoje, devido a sua versatilidade, e é o
experimento de escolha quando se deseja classificar um agonista em total ou parcial ou um antagonista
em competitivo ou não competitivo.
Mais recentemente, foi caracterizada uma classe de fármacos capaz de se ligar aos receptores
constitutivamente ativados (receptores que se encontram no estado ativado na ausência de um ligante). Ao
se ligar a esses receptores, essa classe de fármacos é capaz de induzir a sua inativação, ou seja, é capaz de
levá-los para a conformação inativa. Esses fármacos são denominados agonistas inversos, ou seja, “agentes
capazes de se ligar ao mesmo receptor que um agonista, mas induzindo uma resposta farmacológica oposta”.
75%
Aumento da
atividade basal 50% Agonista parcial
do órgão
Resposta
25%
0%
Diminuição da
atividade basal -25%
do órgão
-50% Agonista inverso
9 8 7 6 5
-log[Agonista, mol/L]
70
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
As curvas concentração-resposta não são a melhor escolha para se estudar os agonistas inversos, afinal,
não é possível distinguir se a resposta observada no fisiógrafo é decorrente da ativação de um receptor inativo
ou se é decorrente da inativação de um receptor constitutivamente ativado. Por esse motivo, são usados
experimentos que visam à avaliação dos segundos mensageiros formados após a ligação do agonista inverso
com o receptor: caso a concentração dos segundos mensageiros seja alterada de maneira oposta à observada
na vigência de um agonista total ou parcial, esse agonista é classificado como agonista inverso.
A caracterização de novos receptores geralmente começa pelo estudo das relações entre
a estrutura e função de um grupo de fármacos e uma resposta facilmente mensurável. Nesse
primeiro momento, são realizados ensaios de contração realizados em fisiógrafos, ensaios de
ligação com fármacos radioativos e até mesmo ensaios computacionais. Esses ensaios permitem
conhecer em detalhes o tipo de resposta mediada pelo sistema receptor que se deseja caracterizar.
Mesmo após todas essas análises, alguns receptores permanecem sem ter seu ligante
endógeno caracterizado. A avaliação do papel desses receptores na manutenção da fisiologia
71
Unidade I
é prejudicada, uma vez que se desconhece qual o estímulo interno capaz de promover
sua ativação. Receptores cujos ligantes endógenos não são conhecidos são denominados
receptores órfãos. A sua identificação é de grande interesse, pois pode elucidar novas vias
de sinalização intracelular e potenciais alvos terapêuticos.
As vias eferentes do sistema nervoso periférico podem ser divididas em duas categorias principais: o
sistema nervoso autônomo e o sistema nervoso somático.
É com a subdivisão eferente do sistema nervoso que iniciaremos o estudo da farmacologia dos
sistemas, que visa a explorar os fármacos que atuam nos diferentes órgãos e tecidos, seus mecanismos
de ação, usos terapêuticos e experimentais e principais efeitos adversos. Esses conhecimentos são
essenciais para o entendimento mais aprofundado da fisiologia humana e das bases da terapêutica
medicamentosa e como esta interfere nas funções orgânicas.
As ações de muitos fármacos sobre a musculatura lisa, o músculo cardíaco e as glândulas podem ser
compreendidas em termos de sua simulação ou modificação da ação dos neurotransmissores liberados
pelas fibras do sistema nervoso autônomo nos gânglios ou nas células efetoras, enquanto os fármacos que
atuam no músculo esquelético atuam diretamente na subdivisão somática do sistema nervoso eferente.
O sistema nervoso autônomo é o ramo do sistema nervoso que medeia ações viscerais, que são
independentes do controle voluntário: a frequência cardíaca, a pressão arterial, a digestão, a respiração,
o controle da temperatura corporal etc. O sistema nervoso somático, por sua vez, controla as funções
que são comandadas de maneira consciente: o movimento, a respiração e a postura.
O sistema nervoso autônomo é o principal responsável pelo controle automático do corpo frente às
modificações do ambiente, no sentido de se conservar a homeostase e garantir a sobrevivência do organismo.
A ação do sistema nervoso autônomo caracteriza-se pela ativação de arcos reflexos de diferentes
complexidades por estruturas do sistema nervoso central, em resposta a estímulos sensoriais de
diferentes naturezas.
Os estímulos sensoriais são sinais, enviados por nossos órgãos e tecidos, que refletem as condições às
quais nosso organismo está exposto em um determinado momento. Trata-se de estímulos relacionados
com a sensibilidade visceral (dor e dor referida) e com os reflexos vasomotores, respiratórios e
viscero-somáticos. Esses sinais geram potenciais de ação que percorrem os nervos aferentes em direção a
72
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
estruturas do sistema nervoso central que decodificam as informações recebidas e ativam seletivamente
diferentes seções do sistema nervoso autônomo.
O estímulo do sistema nervoso central, causado pelas informações trazidas pelos nervos aferentes, faz com
que os nervos autonômicos eferentes conduzam potenciais de ação para os órgãos e tecidos, que respondem a
esses estímulos modulando sua atividade a fim de se atingir a condição mais próxima ao possível do equilíbrio.
Os reflexos autonômicos podem se manifestar, por exemplo, como aumento da sudorese, alterações da
pressão arterial, respostas vasomotoras, esvaziamento reflexo da bexiga, do reto e da vesícula seminal ou
ainda como alteração da frequência respiratória, da regulação da temperatura corporal e do equilíbrio hídrico.
Até mesmo as emoções e o sono podem ser afetados, devido ao fato de o sistema nervoso autônomo receber
estímulos de outras regiões superiores do sistema nervoso central, como o sistema límbico e o neoestriado.
O sistema nervoso autônomo é constituído por 23 pares de nervos, que nada mais são do que feixes
de neurônios que emergem da medula espinal, do tronco encefálico e do hipotálamo, atravessam os
espaços intervertebrais e se distribuem pelo organismo. Esses feixes de neurônios constituem nervos,
gânglios e plexos, que inervam diferentes órgãos e tecidos. Praticamente todos os órgãos e tecidos são
inervados por um ou mais pares de nervos (veja a figura a seguir), que regulam as ações autônomas, as
quais ocorrem sem controle consciente.
73
Unidade I
De acordo com a localização ao longo da medula espinal e da resposta que são capazes de
induzir, os nervos do sistema nervoso autônomo são divididos em dois grandes componentes: o
sistema nervoso simpático e o sistema nervoso parassimpático. Uma terceira subdivisão do sistema
nervoso autônomo refere-se ao sistema nervoso entérico, responsável por regular a atividade do
trato gastrointestinal.
Nos nervos que constituem o sistema nervoso simpático, o gânglio autonômico localiza-se
próximo à medula espinal, e são observados vários neurônios pós-ganglionares fazendo sinapse
em um mesmo neurônio pré-ganglionar, em uma proporção que pode chegar a 1:20. Isso garante
que o estímulo desencadeado pelo sistema nervoso simpático apresente um padrão difuso e
disseminado. Nos nervos do sistema nervoso parassimpático, por outro lado, o gânglio autonômico
fica localizado próximo ao órgão-alvo e a proporção entre os neurônios pré e pós-ganglionares é
de 1 para 1, o que justifica o padrão mais direcionado e pontual das respostas desencadeadas por
essa subdivisão autonômica.
Assim como ocorre na grande maioria das sinapses neuronais, no gânglio autonômico ocorre a
conversão do estímulo elétrico, representado pelo potencial de ação, em estímulo químico, representado
por um neurotransmissor.
74
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
ACh ACh
N M Parassimpático
Músculo cardíaco, músculo
liso, glândulas
ACh
N
Simpático
ACh Glândulas sudoríparas
M
ACh
N
NE Simpático
α, β Músculo cardíaco, músculo
liso, glândulas
Medula espinal
ACh ACh
N Epi, NE
N Somático
Glândula suprarrenal Músculo esquelético
Nervo motor
Neurônios que sintetizam e secretam acetilcolina (neurônios colinérgicos) estão presentes nas
fibras pré-ganglionares de todo o sistema nervoso autônomo (simpático e parassimpático), nas
75
Unidade I
fibras simpáticas que atingem a medula da suprarrenal (pois, nesse caso, não há gânglio), nas fibras
pós‑ganglionares do sistema nervoso parassimpático e, como uma exceção, nas fibras simpáticas que
inervam as glândulas sudoríparas. Além disso, a acetilcolina é liberada na placa motora e, no sistema
nervoso central, é responsável por modular a memória e a cognição.
H3C CH3
H3C
O CH3
N +
Acetilcolina
H3C O CH3
Observação
O término das ações da acetilcolina se dá pela hidrólise do neurotransmissor, que ocorre graças
à ação da enzima acetilcolinesterase (achE) presente na fenda sináptica. Ancorada à membrana do
neurônio pré-sináptico, essa enzima é responsável por converter a acetilcolina nos resíduos acetil e
colina e, assim, interromper o estímulo do sistema nervoso parassimpático.
76
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Colina Colina
Na+ Na+ AcCoA 1. Síntese de acetilcolina
O transporte da colina é inibido
pelo hemicolínio
Ach
2. Captação nas vesículas de
armazenamento
A Ach está protegida da degradação
no interior da vesícula
6. Reciclagem da colina
A colina é captada pelo +
Ca2+
neurônio Ca 2+
3. Liberação do neurotransmissor
Ach
Colina
4. Ligação do receptor
5. Degradação da acetilcolina Acetato A ativação do receptor pós-sináptico
A Ach é rapidamente degradada leva à resposta final
pela enzima acetilcolinaterase
na fenda sináptica
Resposta intracelular
A biossíntese da norepinefrina ocorre em várias etapas, e tem o aminoácido tirosina como precursor
(veja a figura a seguir):
77
Unidade I
HO C CH NH2 Tirosina
H COOH
Tirosina-hidroxilase
HO H
HO C CH NH2 Dopa
H COOH Dopa-descarboxilase
HO H
H Dopamina beta-hidroxilase
HO H
OH Norepinefrina N-metil
transferase
HO H H
HO C CH2 N Epinefrina
OH CH3
O término das ações da norepinefrina é intracelular e ocorre por duas vias: o neurotransmissor
pode ser captado pelo neurônio pós-ganglionar e degradado pela enzima monoamina oxidase (MAO),
presente nas mitocôndrias, ou então é captado pelos órgãos-alvos, e degradado pela enzima catecol
orto-metiltransferase (COMT). A via mais importante é a mediada pela enzima MAO.
78
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
1. Síntese de norepinefrina
A hidroxilação da tirosina é a
etapa limitante
Urina Metabólitos NE
inativos MAO 2. Captação em vesículas de
Tirosina Tirosina armazenamento
Na+ Na+ A dopamina entra na vesícula e é
convertida em NE
DOPA
Metabólitos
Urina inativos
MAO
Dopamina
3. Liberação do neurotransmissor
Dopamina
O influxo de cálcio causa a exocitose
5. Recaptação da da NE
norepinefrina Ca2+ A liberação é bloqueada pela
A NE liberada é Ca2+ guanetidina
rapidamente captada pelo +
neurônio. Essa recaptação
é inibida pela cocaína Receptor
pré-sináptico
4. Ligação do receptor
Metabólitos NE
Urina inativos A ativação do receptor pós-sináptico
leva à resposta final
COMT
6. Metabolismo Fenda
sináptica
A NE é metilada pela COMT
e oxidada pela MAO
Resposta intracelular
No gânglio, mais especificamente no corpo celular dos neurônios pós-ganglionares, são expressos
receptores nicotínicos, que são acoplados a um canal iônico permeável aos íons sódio e cálcio. Quando
esses receptores são ativados, ocorre influxo desses íons pelo neurônio pós-ganglionar, o que altera
seu potencial de membrana no sentido da despolarização (potencial excitatório pós-sináptico – Peps) e
consequente condução de potenciais de ação.
Nos órgãos-alvo, são expressos receptores adrenérgicos e/ou receptores colinérgicos muscarínicos,
ambos acoplados à proteína G. A partir da ativação desses receptores, estabelece-se a resposta final do
sistema nervoso simpático e parassimpático, respectivamente.
79
Unidade I
PLC AC AC
Ca2+
Ca2+
80
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Os adrenoceptores alfa-1 e alfa-2 apresentam, ainda, subtipos adicionais. O receptor alfa-1 apresenta
os subtipos alfa-1A, alfa-1B e alfa-1D. O receptor alfa-2, por sua vez, os subtipos alfa-2A, alfa-2B e
alfa‑2C. A diferença entre essas isoformas é a afinidade por alguns fármacos e também os mecanismos
que regulam sua função.
Os receptores muscarínicos, por sua vez, medeiam as respostas do sistema nervoso parassimpático e
são subdivididos nos subtipos M1 a M5. Novamente, cada receptor é codificado por um gene diferente.
• Os receptores M1 são acoplados à proteína Gq e são expressos no sistema nervoso central e nas
células parietais do estômago, onde estimulam a síntese de HCl.
• Os subtipos M1, M2, M3, M4 e M5 também estão presentes no sistema nervoso central, onde
medeiam a memória e a cognição, eventos não relacionados ao sistema nervoso parassimpático.
• Estímulos sensoriais chegam à região tóraco-lombar da medula espinal através de nervos aferentes
vindos dos diferentes órgãos-alvo. Esses estímulos são responsáveis por sinalizar se existe algum
ajuste funcional a ser realizado a fim de se manter o correto funcionamento do sistema.
• De acordo com a natureza do estímulo aferente, um ou mais pares de nervos que compõem
sistema nervoso simpático são ativados. Nesse processo, são disparados potenciais de ação que
percorrem os neurônios pré-ganglionares dos pares de nervos autonômicos que foram ativados.
• Quando o estímulo elétrico que percorre o neurônio pré-ganglionar atinge o gânglio, ocorre
aumento das concentrações intracelulares de íons cálcio e, consequentemente, a liberação do
neurotransmissor acetilcolina na sinapse.
81
Unidade I
• Em situações de luta e fuga, neurônios eferentes emergem do sistema nervoso central em direção
à medula da suprarrenal, que libera epinefrina para a circulação sanguínea. A epinefrina também
é capaz de ativar os adrenoceptores presentes nos órgãos-alvo.
A retroalimentação negativa ocorre da seguinte maneira: nas fibras colinérgicas, tanto pré quanto
pós-ganglionares, são expressos receptores muscarínicos do subtipo M2. Esses receptores são ativados
pela acetilcolina liberada pelos próprios neurônios.
82
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Uma vez que os receptores M2 são acoplados à proteína Gi, sua ativação é responsável por diminuir
os níveis intracelulares de AMPc e cálcio. Como resultado, ocorre inibição da excitabilidade neuronal e
interrupção da liberação de mais acetilcolina.
Observação
Apesar de desencadearem efeitos opostos na maioria dos órgãos, podemos considerar que, do
ponto de vista fisiológico, o sistema nervoso simpático e o parassimpático são complementares. É até
comum nos depararmos com a generalização de que o ramo simpático está relacionado com situações
de “luta e fuga”, enquanto o ramo parassimpático do sistema nervoso autônomo está relacionado com
as condições de “repouso e digestão”. Na realidade, ambos os sistemas estão ativados, de modo que o
balanço da atividade de ambas as subdivisões seja suficiente para garantir o funcionamento adequado
de órgãos e sistemas que compõem o organismo.
Na maioria dos órgãos, as ações do sistema nervoso simpático e parassimpático são opostas e,
portanto, a acetilcolina e a norepinefrina/epinefrina podem ser encaradas como antagonistas fisiológicos
ou funcionais: se um ramo do sistema nervoso autônomo inibe determinada função, o outro, em geral,
a exacerba.
Algumas das situações responsáveis por desequilibrar, mesmo que sutilmente, o organismo geram
sinais que são detectados pelos nervos aferentes e levados às estruturas do sistema nervoso central
que participam da regulação autonômica. Dependendo do sinal, ou o ramo simpático ou o ramo
parassimpático são ativados, no sentido de se restabelecer a homeostase.
Um exemplo é a regulação da pressão arterial. Situações que culminam na queda da pressão arterial
levam à ativação do sistema nervoso simpático, cujo efeito sobre os vasos é a constrição da musculatura
lisa e, assim, o restabelecimento da pressão normal. Por outro lado, o aumento da pressão arterial acima
dos níveis normais tende a ativar o sistema nervoso parassimpático, responsável por diminuir o trabalho
cardiovascular e, indiretamente, a pressão arterial.
Portanto podemos, no máximo, afirmar que o sistema nervoso simpático predomina em situações
de luta e fuga – via secreção de epinefrina pelas suprarrenais, como veremos a seguir –, enquanto o
sistema nervoso parassimpático predomina em situações de repouso e digestão. Em nenhuma situação
somente um dos dois ramos do sistema nervoso autônomo estará exercendo sua função isoladamente
sobre o organismo.
83
Unidade I
O quadro a seguir resume as principais ações do sistema nervoso autônomo sobre os órgãos e
tecidos. A partir dessas ações, é possível prever a ação dos fármacos que simulam ou inibem a ação dos
nervos autônomos em cada órgão.
Saiba mais
84
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
São essas variações extremamente rápidas que são medidas no polígrafo do detector de mentiras.
Ao mentir, o indivíduo passa por uma situação estressante capaz de alterar o equilíbrio entre o sistema
nervoso simpático e o parassimpático: o primeiro é ativado e se sobressai sobre o segundo, o que resulta
na alteração da relação entre os estados de vigília e de repouso do indivíduo.
Os fármacos que atuam sobre o sistema nervoso simpático o fazem por uma ação direta ou indireta.
Os fármacos de ação direta são aqueles que se ligam aos receptores adrenérgicos nos órgãos-alvo e, de
maneira geral, promovem (agonistas) ou impedem (antagonistas) a ativação deles. Os fármacos de ação
indireta atuam em outras etapas da neurotransmissão, como a síntese de norepinefrina, sua liberação,
recaptação, degradação etc.
Outra maneira de classificar esses fármacos é pela resposta final desencadeada: aqueles que
promovem estímulo das respostas do sistema simpático são denominados simpatomiméticos e os
que promovem inibição delas, simpatolíticos.
A partir de agora, vamos utilizar ambas as designações para descrever os fármacos que atuam sobre
o sistema nervoso simpático.
Os simpatomiméticos de ação direta são os fármacos que ativam os adrenoceptores presentes nos
órgãos-alvo e, como consequência, exacerbam as respostas relacionadas ao sistema nervoso simpático.
• Contração de determinados tipos de músculo liso (vasos sanguíneos que irrigam a pele, os
rins e as mucosas) e secreção das glândulas salivares: são ações mediadas pela ativação dos
adrenoceptores alfa-1, acoplados à proteína Gq. Como resultado da ativação desses receptores,
ocorre aumento das concentrações intracelulares dos segundos mensageiros IP3 e PKC (para mais
detalhes, ver o tópico Receptores acoplados à proteína G). O IP3 mobiliza cálcio das reservas
intracelulares, enquanto a PKC fosforila uma série de proteínas presentes no citosol. Tanto o
aumento nos níveis intracelulares de íons cálcio quanto a alteração no padrão de fosforilação de
diferentes proteínas são relacionados à contração do músculo liso e à secreção glandular.
contração do músculo cardíaco (troponina e fosfolambano, por exemplo). Além disso, a proteína
Gs ativada promove a abertura de canais de cálcio do tipo L na membrana plasmática das células
musculares cardíacas, outro evento relacionado com a resposta contrátil.
• Relaxamento do músculo liso da árvore brônquica, do útero e dos vasos sanguíneos que
suprem a musculatura esquelética: são ações mediadas por beta-2. Embora o receptor beta-2
também seja acoplado à proteína Gs, o conjunto de proteínas fosforiladas em resposta à ativação
da PKA pelo AMPc difere no músculo liso em relação ao músculo cardíaco. Um exemplo é a
fosforilação, mediada por PKA, da quinase da cadeia leve da miosina para uma forma inativa.
Isso explica por que, nos cardiomiócitos, a ativação da proteína Gs promove contração, enquanto,
na musculatura lisa, promove relaxamento: o repertório de proteínas disponíveis para a fosforilação
da PKA nessas células é diferente e, portanto, o efeito final também o é.
• Ações endócrinas: a ativação de adrenoceptores alfa-2 presentes nas ilhotas pancreáticas são
responsáveis por inibir a secreção de insulina, e a ativação de adrenoceptores beta-1 nas células
justaglomerulares promovem liberação de renina. Os mecanismos moleculares envolvidos ainda
não foram completamente caracterizados.
Nem todos os simpatomiméticos exibem todas essas ações descritas com a mesma intensidade, por
conta da diferença de seletividade desses agentes pelos subtipos de receptores alfa e beta disponíveis
nos órgãos e tecidos.
Conforme o Conselho Federal de Farmácia (2012), os fármacos que ativam os receptores adrenérgicos
são classificados quimicamente como monoaminas. As monoaminas endógenas são a norepinefrina, a
epinefrina e a dopamina. Essas moléculas apresentam um grupo catecol central (benzeno com duas
hidroxilas laterais nos carbonos 1 e 2) ligado a uma cadeia lateral de amina. Por apresentarem o grupo
catecol em sua estrutura, são denominadas catecolaminas (veja a figura a seguir).
86
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
OH OH
HO HO HO
NH2 NH2 HN
HO HO HO CH3
A) B) C)
Dopamina Norepinefrina Epinefrina
Como consequência da diferença de afinidade pelos receptores, essas catecolaminas endógenas são
usadas terapeuticamente em diferentes condições clínicas.
A epinefrina apresenta diferentes efeitos de acordo com a dose utilizada. Esses efeitos incluem (a)
o aumento da frequência e da força da contração cardíaca; (b) o aumento da circulação sanguínea em
músculos esqueléticos (que é reduzida em altas doses); (c) a redução da circulação sanguínea nos rins,
nas mucosas e na pele; (d) o relaxamento da musculatura lisa brônquica; (e) a hiperglicemia e o maior
consumo de oxigênio, devido a seus efeitos metabólicos; (f) a broncodilatação e o relaxamento uterino.
Seus usos terapêuticos incluem: promover vasoconstrição no local de administração de anestésicos
gerais; reversão da parada cardíaca; tratamento do estado de mal asmático; e reversão da anafilaxia e
do choque anafilático, secundária a seus efeitos cardiovasculares e brônquicos.
Os principais efeitos adversos relacionados com o uso da epinefrina são: ansiedade, tensão, cefaleia
e tremores, por sua ação no sistema nervoso central; hemorragia cerebral, secundária ao aumento da
pressão arterial; arritmias; e edema pulmonar.
Observação
A norepinefrina induz intensa vasoconstrição periférica, devido a sua atividade agonista dos
receptores alfa, o que aumenta a pressão arterial sistólica e diastólica, acompanhada da diminuição
reflexa da frequência cardíaca. Apresenta uso terapêutico limitado, podendo ser utilizada em situações
87
Unidade I
de emergência de hipotensão, como o choque cardiogênico. Seus efeitos adversos são semelhantes aos
da epinefrina e podem, ainda, causar necrose vascular devido à intensa vasoconstrição.
A dopamina, mesmo não sendo uma catecolamina endógena relacionada à ativação do sistema
nervoso simpático, também pode ser utilizada para induzir o trabalho cardíaco, pois é precursora
da norepinefrina e da epinefrina (ver tópico Neurotransmissores autonômicos: biossíntese e
biotransformação para mais informações). Em doses baixas a moderadas, exerce efeito inotrópico
positivo no miocárdio (aumento da força de contração cardíaca) devido à ação direta sobre os receptores
beta-1 e uma ação indireta mediante ao aumento da síntese e secreção de norepinefrina pelos nervos do
sistema nervoso simpático. Com doses mais elevadas, ocorre ativação dos receptores alfa adrenérgicos,
produzindo um aumento da resistência periférica, o que resulta em aumento da pressão arterial sistêmica
e vasoconstrição renal.
• Na maioria dos leitos vasculares, os receptores alfa-1 são mais abundantes do que os beta-2 e,
portanto, predomina a vasoconstrição. Isso pode ser percebido pelo aumento da pressão arterial
sistêmica e pela vasoconstrição pronunciada da pele e das mucosas.
• Nos vasos que irrigam a musculatura esquelética, há predomínio de receptores beta-2 e, portanto,
ocorre vasodilatação. Esse efeito leva ao aumento da quantidade de sangue que irriga o tecido,
o que é importante do ponto de vista fisiológico para o estabelecimento das reações clássicas de
luta e fuga que dependem de uma maior eficiência do músculo voluntário.
88
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Seguindo o mesmo racional, podemos deduzir que os efeitos desses dois transmissores sobre a árvore
brônquica também são diferentes: enquanto a epinefrina promove broncodilatação, pela ativação dos
adrenoceptores beta-2 presentes na musculatura lisa dos brônquios, a norepinefrina não é capaz de
promover esse efeito, por praticamente não exercer ação sobre esse receptor.
Observação
HO HO
A) Dobutamina B) Isoproterenol
Na prática, algumas situações terapêuticas que requerem uma resposta mais pontual, direcionada,
são tratadas com sucesso utilizando-se os agentes sintéticos, mais seletivos (um exemplo é o tratamento
da insuficiência cardíaca aguda pela dobutamina). Outras situações mais complexas, que envolvem mais
89
Unidade I
de um sistema receptor, são tratadas mais efetivamente com agentes não seletivos (como a reversão do
choque anafilático pela epinefrina).
Em comparação, a epinefrina, que não é seletiva, pois ativa significativamente os subtipos alfa‑1, alfa‑2,
beta-1 e beta-2, é um fármaco essencial na reversão do choque anafilático. Essa condição, decorrente
de uma reação alérgica grave e potencialmente fatal, é caracterizada por vasodilatação, diminuição do
trabalho cardíaco e fechamento das vias aéreas. A epinefrina é capaz de promover o aumento do trabalho
cardíaco (por ativação de beta-1), o aumento da pressão arterial sistêmica (resultado do balanço entre a
ativação de alfa-1 e beta-2 nos diferentes leitos vasculares) e a dilatação dos brônquios (por ativação de
beta-2).
A outra catecolamina sintética é o isoproterenol, que apresenta atividade agonista beta não
seletiva, ou seja, ativa tanto os receptores beta-1 quanto os beta-2. Esse fármaco é usado no
tratamento das arritmias cardíacas (por ativar beta-1) e dos broncoespasmos (por ativar beta-2), e
também teve importante papel na farmacologia experimental, por participar da caracterização dos
subtipos de receptores adrenérgicos em uma época em que as ferramentas de biologia molecular
ainda eram incipientes. Foi a partir da comparação entre as ações da epinefrina, da norepinefrina e do
isoproterenol em diferentes tecidos, que expressam diferentes sistemas receptores, que se estabeleceu
a seguinte relação:
Essa conclusão foi possível porque se observou que algumas ações induzidas pelo isoproterenol
e pela epinefrina também foram induzidas pela norepinefrina, enquanto outras ações foram
induzidas pelos dois transmissores endógenos, mas não pelo isoproterenol.
A norepinefrina, por exemplo, tem relativamente pouca capacidade de aumentar o fluxo de ar nos
brônquios, visto que os receptores presentes na musculatura lisa desse órgão são, em grande parte, do
subtipo beta-2; já o isoproterenol e a epinefrina são potentes broncodilatadores. Por sua vez, tanto a
norepinefrina quanto a epinefrina são capazes de promover vasoconstrição cutânea, pois esses vasos
expressam, quase que exclusivamente, receptores alfa-1. Por esse motivo, o isoproterenol exerce pouco
ou nenhum efeito sobre esse parâmetro.
90
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Compostos que não apresentam os grupos catecol em sua estrutura têm meias-vidas mais longas do que
as catecolaminas, pois, ao contrário destas, não são inativados pela COMT e são maus substratos para a MAO.
Além disso, em geral, são mais lipossolúveis do que as catecolaminas e, portanto, penetram o sistema nervoso
central (atravessam a barreira hematoencefálica), o que não é observado em relação às catecolaminas.
A oximetazolina é um agonista alfa não seletivo, que ativa tanto alfa-1 quanto alfa-2. É usada
topicamente (gotas) como descongestionante nasal e para alívio da vermelhidão dos olhos. Esses
efeitos são decorrentes da ativação de alfa-1 nos vasos da mucosa e da conjuntiva, o que reduz o
fluxo sanguíneo e diminui a congestão. Os principais efeitos adversos são: congestão rebote, no uso
prolongado (secundária à vasodilatação observada após o término das ações do fármaco), e efeitos
centrais (cefaleia, sono agitado e nervosismo).
A fenilefrina induz bradicardia reflexa quando administrada por via parenteral ou quando as doses
administradas topicamente são muito elevadas. É aplicada por via tópica na mucosa nasal por promover
efeito descongestionante, e no olho para promover midríase (dilatação da pupila), como resultado
da contração da musculatura radial da íris. A administração parenteral promove aumento da pressão
arterial em casos de hipotensão grave.
Doses elevadas de fenilefrina podem causar cefaleia hipertensiva, hipertensão arterial sistêmica e
até mesmo necrose da mucosa no local da aplicação, devido à intensa vasoconstrição.
Outro exemplo de agonistas alfa-1 seletivos são a nafazolina (usada como descongestionante nasal)
e a metoxamina (usada no tratamento dos estados hipotensivos).
Os agonistas beta-2 (salbutamol, fenoterol, formoterol, pirbuterol e terbutalina) são utilizados para
promover broncodilatação em pacientes asmáticos ou com outras afecções respiratórias, e também na
prevenção do parto prematuro, pois promovem relaxamento uterino (o agente mais utilizado para essa
finalidade é a terbutalina).
A seletividade desses agentes pelos adrenoceptores beta-2 não é absoluta, e a administração de doses
mais elevadas causa taquicardia, devido à ativação de beta-1 no coração. Para diminuir a probabilidade
de ocorrer esse efeito adverso, geralmente esses agentes são administrados por via inalatória, o que
possibilita o uso de doses menores, pois o fármaco é administrado próximo ao local de ação (brônquios).
91
Unidade I
Os agonistas beta-2 administrados por via inalatória devem ser usados com cautela, pois foram
registradas mortes devido ao uso excessivo dessa medicação, em razão de seus efeitos cardíacos.
As anfetaminas exercem ação estimulatória sobre o sistema nervoso central e são usadas
para promover o controle do apetite nas dietas de emagrecimento (femproporex e anfepramona) e
também no tratamento do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (ritalina). Outro uso, não
regulamentado, visa a manutenção do estado de vigília – é relativamente comum o uso de anfetaminas
por caminhoneiros (o chamado “rebite”), para que consigam dirigir por mais horas, e o MDMA, também
conhecido como “ecstasy”, como droga de abuso.
Embora sejam fármacos de ação central, alguns de seus efeitos adversos são decorrentes do
aumento da liberação de norepinefrina pelos nervos do sistema nervoso simpático. Assim, é comum
a presença de taquicardia, aumento da pressão arterial e até mesmo hemorragia intracraniana em
decorrência do uso de anfetaminas.
A decisão da Anvisa se baseou nos seguintes fatos: até 2007, o Brasil era o maior usuário do
mundo de anfetaminas para esse fim, uso este que está relacionado ao desenvolvimento de distúrbios
cardiovasculares e neurológicos, como a dependência, a ansiedade e a depressão. No entanto, um
projeto de lei que visa ao retorno da comercialização das anfetaminas para fins de emagrecimento
(PL n. 2.431/11) foi aprovado pela câmara dos deputados em 2017.
92
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
A efedrina é um agonista não seletivo que ativa tanto os receptores alfa quanto os receptores
beta. Além disso, aumenta a liberação de norepinefrina nos neurônios simpáticos. Por esse motivo,
é considerada um simpatomimético de ação mista. Ela aumenta a atividade cardíaca e promove
vasoconstrição, além de broncodilatação e retenção urinária. Devido à grande exacerbação simpática
que causa, atualmente seu uso terapêutico é muito restrito. Por apresentar efeito anorexígeno, é utilizada
para promover o emagrecimento, embora esse uso não seja regulamentado.
A ioimbina, embora seja um antagonista seletivo dos adrenoceptores alfa-2, apresenta efeito
simpatomimético. Isso acontece porque, ao promover bloqueio alfa-2 em estruturas do sistema nervoso
central que participam da neurotransmissão simpática, o fármaco impede a inibição desencadeada por
esse receptor e, como consequência, ocorre aumento do tônus simpático. Seu uso não é regulamentado,
porém é comercializado como suplemento alimentar para tratar a impotência sexual. A ioimbina não
deve ser utilizada quando há alteração do sistema nervoso central ou cardiovascular, porque é um
estimulante dessas estruturas.
Os antagonistas alfa não seletivos bloqueiam tanto alfa-1 quanto alfa-2 e, por esse motivo, apresentam
uso terapêutico limitado. Isso ocorre por conta dos seus efeitos cardiovasculares: o bloqueio alfa-1 promove
vasodilatação, enquanto o bloqueio alfa-2 promove aumento do tônus simpático, o que causa aumento do
trabalho cardíaco. Portanto podemos dizer que esses fármacos apresentam ação simpatolítica sobre os vasos
e simpatomimética sobre o coração (veja a figura a seguir).
Lembrete
93
Unidade I
A) B)
NE - NE -
α2 α2
NE NE
β1 α1 β1 α1
Figura 35 – Efeito dos antagonistas alfa não seletivos (barras vermelhas) sobre o músculo cardíaco
e sobre a pressão arterial. No painel A, a ação da norepinefrina (NE) na ausência desses antagonistas
é demonstrada sobre os adrenoceptores alfa-1 (α1) dos vasos, alfa-2 (α2) do neurônio pré-sináptico
e beta-1 (β1) cardíacos. Na presença do antagonista (B), observa-se o aumento da liberação
de norepinefrina, devido ao bloqueio de alfa-2 pré-sináptico, com consequente aumento
do trabalho cardíaco via ativação de beta-1, e o bloqueio de alfa-1 nos vasos,
o que impede o aumento da pressão arterial
Os antagonistas seletivos alfa-1 são bloqueadores competitivos que apresentam, como principais
efeitos, a diminuição da pressão arterial e o relaxamento da musculatura lisa de alguns órgãos. Dentro
dessa classe, a prazosina, a terazosina e a doxazosina são utilizados no tratamento da hipertensão arterial,
enquanto a tansulosina e a alfuzosina são indicadas no tratamento da hipertrofia prostática benigna.
Esses agentes não são a primeira escolha no tratamento da hipertensão arterial, por apresentarem
muitos efeitos adversos, que incluem tontura, falta de energia, congestão nasal, cefaleia, sonolência
e hipotensão ortostática – essa última causada principalmente em decorrência da administração de
primeira dose (“efeito de primeira dose”).
94
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
lisa da próstata. O bloqueio desse receptor leva ao relaxamento das células musculares lisas do órgão,
com consequente diminuição do volume prostático.
Os betabloqueadores não seletivos estão relacionados à incidência de uma gama de efeitos adversos
e contraindicações decorrentes do bloqueio de beta-2, como broncoconstrição e hipoglicemia. Os
betabloqueadores cardiosseletivos apresentam maior afinidade por beta-1 e são uma das classes mais
prescritas para o controle de diversas condições cardiovasculares. Esses fármacos também apresentam
diferenças quanto à atividade simpaticomimética intrínseca, aos efeitos sobre o sistema nervoso central
e aos aspectos farmacocinéticos (veja a figura a seguir).
Seletividade
Figura 36 – Comparação entre os efeitos do isoproterenol (agonista total beta não seletivo),
do pindolol (agonista parcial beta não seletivo), do propranolol (antagonista beta não seletivo)
e do atenolol (antagonista beta-‘1 seletivo) sobre o coração e o pulmão
95
Unidade I
• No sistema vascular, ocorre diminuição da pressão arterial sistêmica. Esse efeito é secundário
à diminuição do trabalho cardíaco, à diminuição da secreção de renina pelos rins (devido ao
bloqueio de beta-1 nesses órgãos) e à regulação dos barorreceptores (esse último, por mecanismos
ainda desconhecidos). No entanto, nos vasos periféricos, observa-se vasoconstrição, que se traduz
em palidez cutânea e na diminuição da temperatura da superfície. Isso ocorre principalmente
devido ao bloqueio beta-2 nesses vasos e à diminuição do fluxo sanguíneo para a pele e para
as mucosas em decorrência da diminuição da pressão arterial. Não ocorre hipotensão postural,
pois os receptores alfa-1, que controlam a resistência vascular, não são afetados. No entanto, é
necessário que a retirada da medicação seja gradual (“desmame”), a fim de se evitar um quadro
de hipertensão de rebote.
• No sistema respiratório, ocorre broncoconstrição, por conta do bloqueio dos receptores beta-2 na
árvore brônquica. Isso pode precipitar uma crise respiratória. Por esse motivo, os betabloqueadores,
em particular os não seletivos, são contraindicados para os pacientes com afecções respiratórias,
como a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e a asma.
• Nos rins, a diminuição da pressão arterial promove redução na perfusão renal, o que causa
aumento na retenção de íons sódio. Como resultado, essa resposta compensatória tende a elevar
a pressão arterial, motivo pelo qual é comum a associação entre betabloqueadores e diuréticos no
tratamento da hipertensão arterial.
• Outros efeitos metabólicos incluem o aumento dos triglicérides e a diminuição do HDL, o que
deve ser considerado no tratamento de pacientes hipertensos com dislipidemias.
• Por interação com o sistema nervoso central, pode ocorrer depressão, diminuição da libido,
letargia, fadiga, fraqueza, distúrbios visuais, alucinações, perda de memória de curta duração,
fragilidade emocional, sonhos intensos e insônia.
96
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Outros exemplos de betabloqueadores não seletivos são o timolol e o nadolol. Eles são mais
potentes que o propranolol, ou seja, a dose necessária para que esses efeitos sejam notados é menor
do que a de propranolol.
Saiba mais
A clonidina, embora seja um agonista seletivo alfa-2, apresenta efeitos simpatolíticos. Ao ativar os
receptores alfa-2 presentes no sistema nervoso central (centros vasomotores), ocorre inibição do tônus
simpático, o que resulta em diminuição da pressão arterial. É utilizada no tratamento da pressão arterial
resistente e também para minimizar os sintomas que acompanham a retirada dos opiáceos, do cigarro
ou dos benzodiazepínicos. Os efeitos adversos mais comuns incluem letargia, sedação, constipação e
xerostomia, o que explica por que não são utilizados como primeira escolha no tratamento da hipertensão.
Assim como os fármacos que atuam sobre o sistema nervoso simpático, os fármacos que atuam sobre
o parassimpático o fazem por uma ação direta (agonismo ou antagonismo dos receptores colinérgicos
muscarínicos) ou indireta (atuam em outras etapas da neurotransmissão, por exemplo, impedindo a
hidrólise da acetilcolina).
Além disso, esses fármacos também podem ser classificados de acordo com a resposta final
desencadeada: os parassimpatomiméticos promovem estímulo das respostas do sistema nervoso
parassimpático e os parassimpatolíticos, inibição.
A principal diferença entre os agentes que atuam sobre o sistema nervoso parassimpático, em relação
aos que atuam sobre o simpático, é a falta de seletividade dos primeiros: até o momento, praticamente
não existem agentes suficientemente seletivos para cada subtipo de receptor muscarínico, o que limita
sua utilização terapêutica.
98
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
As ações muscarínicas e nicotínicas foram caracterizadas com base nos efeitos da acetilcolina (o
transmissor endógeno), da muscarina (princípio ativo isolado do fungo Amanita muscaria), da atropina
(isolada da planta Atropa belladonna) e da nicotina (extraída das folhas de tabaco).
Em alguns órgãos efetores, mas não em outros, a administração da muscarina induz ações
semelhantes às decorrentes da administração de acetilcolina. As ações induzidas pela muscarina foram
compatíveis com as ações do sistema nervoso parassimpático e os receptores que medeiam essas ações
foram denominados receptores muscarínicos.
S
B. Receptores nicotínicos
Muscarina Acetilcolina Nicotina
99
Unidade I
Os receptores nicotínicos (N) são classificados em dois subtipos. O subtipo Nn predomina nos
neurônios, enquanto o subtipo Nm está presente no músculo esquelético. Nos dois casos, a ativação
desses receptores leva à abertura dos canais de sódio, o que desencadeia alteração do potencial de
membrana e culmina no desencadeamento de potenciais de ação (receptores Nn) ou na contração da
musculatura esquelética (receptores Nm).
• Os receptores M3 são acoplados à proteína Gq e são mais amplamente distribuídos pelo organismo
do que os subtipos M1 e M2. Medeiam a contração da musculatura lisa do tubo digestório, da árvore
brônquica, da bexiga e da íris (musculatura circular), e a secreção de muco na árvore brônquica, de
saliva e de suor. As ações de contração da musculatura lisa e de secreção exócrina estão classicamente
relacionadas com a ativação de receptores acoplados à proteína Gq tanto no sistema parassimpático
quanto no sistema simpático (veja o tópico Subtipos de receptores adrenérgicos e muscarínicos),
e esses efeitos dependem da ação do cálcio e também do padrão de fosforilações iniciado pela PKC.
A acetilcolina apresenta alta afinidade por todos os subtipos de receptores muscarínicos e nicotínicos.
Trata-se de um composto polar formado a partir da acetilação de um resíduo de colina e, por esse
motivo, não é capaz de atravessar a membrana plasmática.
100
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Ao contrário da epinefrina e da norepinefrina, que podem ser utilizados em uma série de condições
clínicas, a acetilcolina não tem importância terapêutica devido à inespecificidade de suas ações (pois
apresenta alta afinidade por todos os subtipos de receptores nicotínicos e muscarínicos) e pela sua rápida
inativação pelas colinesterases, enzimas que são encontradas sinapses (acetilcolinesterase), nas hemácias
(colinesterase eritrocitária) e no plasma (butirilcolinesterase). Como consequência, foram sintetizados
vários derivados na tentativa de obter fármacos com ação mais seletiva (por ativarem preferencialmente
receptores muscarínicos) e prolongada (por apresentarem resistência à hidrólise pelas colinesterases).
Os parassimpatomiméticos com potencial terapêutico são aqueles que apresentam alta seletividade
pelos receptores muscarínicos, pouca ou nenhuma hidrólise pela acetilcolinesterase e, idealmente
(mas nem sempre), pouca penetrância no sistema nervoso central. São eles o betanecol, a metacolina
e o carbacol, que são ésteres sintéticos da colina, e a pilocarpina, um alcaloide de ocorrência natural.
Os demais fármacos apresentam uso experimental.
Seletividade
Fármaco Fórmula estrutural Hidrólise pela achE
M N
O
Acetilcolina + || ++ ++ +++
(H3C)3 - N - CH2 - CH2 - O - C - CH3
O
+ ||
Metacolina (H3C)3 - N - CH2 - CH - O - C - CH3 ++ + ++
|
CH3
O
Cabacol + || ++ ++ +
(H3C)3 - N - CH2 - CH2 - O - C - NH2
O
+ ||
Betanecol (H3C)3 - N - CH2 - CH - O - C - NH2 ++ -- +
|
CH3
CH2 — CHOH
+ | |
Muscarina (H3C)3 - N - CH2 - CH CH - CH3 ++ -- --
O
H3C - N - C - CH2 - CH - CH - C2H5
| || | |
Pilocarpina HC CH H2C C = O ++ + --
N O
101
Unidade I
Seletividade
Fármaco Fórmula estrutural Hidrólise pela achE
M N
CH
H2C C - COOCH3
| |
Arecolina H2C CH2 ++ + --
N
|
CH3
CH3
N N
Nicotina -- ++ --
Devido à pouca seletividade diferencial desses fármacos pelos diferentes subtipos de receptores
muscarínicos, os efeitos adversos são semelhantes entre si e envolvem o aumento do sistema nervoso
parassimpático, o que limita seu uso terapêutico. Os principais efeitos adversos são: sudorese (lembre-se
que o aumento da secreção de suor, embora participe do sistema nervoso simpático, é desencadeado pela
acetilcolina); cólicas abdominais e vômitos (devido ao estímulo do peristaltismo e ao aumento da secreção
de suco gástrico); dificuldade de acomodação visual (principalmente após administração tópica de colírios
e secundária à miose, fator que dificulta a acomodação do cristalino); salivação (devido à secreção de
grandes quantidades de saliva fluida) e cefaleia pulsátil (secundária à queda da pressão arterial).
A acetilcolinesterase apresenta dois sítios ativos: o sítio aniônico e o sítio estearásico. Os carbamatos
são moléculas que se ligam ao resíduo de serina do sítio estearásico da enzima e geram um resíduo de
carbamil-serina, que é rapidamente hidrolisado, restituindo-se a atividade da enzima. Os organofosforados,
por sua vez, fosforilam o resíduo de serina do sítio estearásico, de maneira praticamente irreversível.
Portanto sua ação é prolongada e perdura até que sejam sintetizadas novas enzimas. A grande maioria
dos agentes usados terapeuticamente são os carbamatos, exatamente pela menor duração da ação, que
varia de curta a intermediária (veja a figura a seguir).
Neurônio
Acetato
Acetilcolina
Colina -
Ecotiofato
Edrofônio
Neostigmina
Fisostigmina Resposta intracelular
aumentada
103
Unidade I
• Diagnóstico da miastenia gravis: a miastenia gravis é uma doença autoimune causada por
anticorpos contra o receptor nicotínico muscular (Nm) na placa motora. Como consequência, ocorre
redução do número de receptores disponíveis para interação com acetilcolina. A administração
intravenosa do edrofônio, um inibidor da acetilcolinesterase de ação curta (que varia de 10 a 20
minutos) leva a um rápido aumento da força muscular nos pacientes com a doença, que volta a
diminuir após o tempo de ação do fármaco. Portanto, se houver melhora na função motora após
a administração de edrofônio, é fechado o diagnóstico de miastenia gravis.
Por desencadearem efeitos inespecíficos, os efeitos adversos do uso dos anticolinesterásicos sobre o
sistema nervoso parassimpático são semelhantes aos observados com o uso dos parassimpatomiméticos
de ação direta. Os efeitos sobre a musculatura esquelética (fraqueza, fasciculações e paralisia) e sobre
o sistema nervoso central (confusão mental, depressão respiratória e convulsões) são observados em
maiores doses e estão relacionados à intoxicação por esses agentes.
Intoxicações por agentes anticolinesterásicos são comuns, pois essas substâncias são usadas para
outros fins que não a terapêutica.
104
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Os efeitos da intoxicação por esses agentes são observados no sistema nervoso parassimpático, na
junção neuromuscular e no sistema nervoso central, e variam desde náusea, palidez, cólica abdominal e
fraqueza muscular na intoxicação leve até sialorreia (aumento da salivação), lacrimejamento, broncorreia,
incontinência urinária e fecal, insuficiência respiratória, tremores, fasciculações e convulsões nos casos
mais graves.
Você consegue reconhecer quais dessas manifestações são decorrentes da exacerbação do sistema
nervoso parassimpático? Essas manifestações são revertidas pela administração do antagonista
muscarínico atropina durante o período de observação, até que haja restituição da atividade enzimática.
Observação
Saiba mais
105
Unidade I
Os parassimpatolíticos de ação direta bloqueiam os receptores muscarínicos e, por esse motivo, são
também denominados fármacos anticolinérgicos. Assim como observado para os agonistas, também
carecem de seletividade diferencial para os subtipos de receptores muscarínicos. No entanto, não
bloqueiam significativamente os receptores nicotínicos e, assim, não exercem efeito sobre o gânglio e
sobre o músculo. Por outro lado, seus efeitos, decorrentes da inibição parassimpática, são percebidos em
todo o organismo.
Os alcaloides naturais, atropina e escopolamina, são extraídos da planta conhecida como beladona
(Atropa belladonna) e de outras plantas. Estruturalmente, são ésteres formados pela associação de um
ácido aromático (ácido trópico) e bases orgânicas complexas, a tropina ou a escopina. A diferença entre
a atropina e a escopolamina é somente a presença, na segunda, de uma ponte de oxigênio entre os
carbonos 6 e 7 (veja a figura a seguir).
H3C H3C N
N
OH
O
O
H OH
H
O
O
A) B)
O
Atropina Escopolamina
Essa diferença estrutural é suficiente para promover ações distintas quando os dois fármacos são
comparados: em doses terapêuticas, a atropina praticamente não exerce efeitos detectáveis no sistema
nervoso central, enquanto a escopolamina exerce efeitos predominantemente centrais. Essa observação
é decorrente da maior penetração da escopolamina no sistema nervoso central e explica por que, na
maioria das situações terapêuticas, a atropina é preferível à escopolamina.
Doses maiores de atropina, no entanto, também causam alterações no sistema nervoso central,
que se manifestam como agitação, irritabilidade, desorientação, alucinações e delírios. Esses efeitos
excitatórios são opostos aos observados com o uso da escopolamina, que causa sonolência, amnésia,
fadiga e sono sem sonhos. No entanto, dependendo da dose, a atropina pode ter efeito depressor e a
escopolamina efeito excitatório.
106
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
N+
+
O S
N
OH
OH
O O
A) O B) O S
Ipratrópio Tiotrópio
A atropina é o protótipo dos parassimpatolíticos de ação direta, e suas ações estão resumidas a seguir:
• Quando instilada no olho, causa midríase (dilatação da pupila) persistente, acentuada, com
ausência de resposta à luz e incapacidade de focar (ciclopegia). Sua ação pode durar dias e, por
esse motivo, os parassimpatolíticos sintéticos, como a tropicamida, são preferíveis para promover
dilatação da pupila em exames oftálmicos (alternativamente, pode-se usar a fenilefrina, um
simpatolítico de ação direta seletivo para adrenoceptores alfa-1, conforme discutido no tópico
Simpatolíticos de ação direta).
De acordo com Clark (2013, p. 351), a pirenzepina é um antagonista seletivo M1, que era utilizado no
tratamento da úlcera péptica. No entanto, devido ao fato de inibir somente cerca de 30% da secreção
de HCl, ele não é mais utilizado para esse fim.
A secreção de HCl pelas células parietais do estômago é regulada pela acetilcolina, pela histamina
e pela gastrina, e os principais agentes farmacológicos utilizados para inibi-la são os antagonistas do
receptor H2 de histamina, como a cimetidina e a ranitidina, que inibem cerca de 70% da secreção ácida,
e os inibidores da bomba de prótons (H+/K+ ATPase), como o omeprazol, o rabeprazol e o pantoprazol, que
impedem o cotransporte de prótons e íons potássio do interior da célula parietal para a luz do estômago,
processo que participa da secreção ativa de HCl. Esses fármacos inibem mais de 90% da secreção ácida.
107
Unidade I
Lembrete
No tratamento da asma e da bronquite, é comum a associação, por via inalatória, dos agonistas
beta-2 (conforme vimos no tópico Simpatomiméticos de ação direta: outras monoaminas) com os
antagonistas muscarínicos. O exemplo clássico é a associação do fenoterol (Berotec®) e do ipratrópio
(Atrovent®). Você consegue deduzir o racional por trás dessa associação?
108
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
O ipratrópio, por sua vez, bloqueia receptores M3 no pulmão, o que evita a broncoconstrição e a
secreção de muco no paciente com distúrbios respiratórios, sem promover taquicardia intensa, devido
a sua baixa taxa de absorção pulmonar.
Assim, o uso concomitante de ipratrópio permite a diminuição da dose de fenoterol, o que promove
a melhora dos sintomas respiratórios sem que haja aumento significativo da frequência cardíaca.
Os efeitos da atropina sobre o coração, as secreções e os pulmões viabilizam seu uso como adjuvante
da anestesia geral: a taquicardia protege o coração de uma estimulação acidental do nervo vago durante
a cirurgia, o que resultaria em intensa bradicardia; a diminuição da secreção salivar facilita a intubação
do paciente; e a broncodilatação e inibição da secreção de muco melhoram a ventilação.
Lembrete
Várias plantas apresentam substâncias que são antagonistas dos receptores muscarínicos, e sua
ingestão pode levar a um quadro de inibição do sistema nervoso parassimpático, somado a manifestações
centrais (alucinações e convulsões, por exemplo). Um exemplo é a Datura stramonium, popularmente
conhecida como figueira-do-diabo, e a Brugmansia suaveolens, conhecida como trombeteira.
A ingestão de sementes e folhas dessas plantas causa uma diminuição dos estímulos parassimpáticos
sobre o organismo e resulta em midríase pronunciada, constipação, retenção urinária, broncodilatação,
taquicardia, boca seca, pele quente e aumento da temperatura corporal (flush atropínico). Além disso,
são observadas alucinações, pensamentos psicóticos e convulsões, causadas pelo bloqueio de receptores
muscarínicos no sistema nervoso.
Trata-se de uma condição potencialmente fatal que é revertida com o uso da neostigmina, um
anticolinesterásico que, ao aumentar a meia-vida da acetilcolina na fenda sináptica, permite que o
excesso do neurotransmissor retire o antagonista do sítio de ligação no receptor, restabelecendo assim a
atividade normal, tanto no sistema nervoso parassimpático quanto no sistema nervoso central.
Os efeitos adversos mais frequentemente observados com o uso dos anticolinérgicos são boca seca
(devido ao bloqueio dos receptores M3 nas glândulas salivares), taquicardia (decorrente do bloqueio
M2 cardíaco), visão borrada (resultado da midríase provocada principalmente por agentes de uso
109
Unidade I
Observação
O hemicolínio é um potente inibidor do sistema de captação de alta afinidade da colina. Uma vez
que a colina é um dos componentes da acetilcolina, a administração de hemicolínio pode depletar os
estoques de acetilcolina dos terminais colinérgicos.
A nicotina é um agonista dos receptores nicotínicos que apresenta maior afinidade pelos
receptores neuronais Nn do que pelos receptores musculares Nm. Portanto seus efeitos são percebidos
principalmente no sistema nervoso central e nos órgãos-alvo do sistema nervoso autônomo simpático
e parassimpático.
A nicotina exerce seus efeitos a partir da despolarização neuronal. Como resultado da ativação do
receptor nicotínico Nn no neurônio pós-ganglionar, ocorre abertura do canal iônico acoplado e, como
consequência, tem-se influxo de íons sódio e cálcio. Esse influxo provoca a despolarização da membrana,
em um evento denominado potencial excitatório pós-sináptico (Peps). A somatória de diversos Peps é
capaz de desencadear potenciais de ação no neurônio.
110
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Acetilcolina
Frequência de disparos
de potencial de ação
-55 mV Despolarização
persistente
Baixa concentração
Atividade ganglionar
Nicotina
-30 mV Despolarização
Alta concentração
Bloqueio ganglionar
Nicotina
Os efeitos da nicotina sobre o sistema nervoso central são resultado da interação desse fármaco com
receptores Nn pré-sinápticos presentes nos terminais dos axônios. A ativação desses receptores resulta
no aumento da liberação de vários receptores e, portanto, é estimulatório e promove a melhora na
atenção, do aprendizado, da resolução de problemas e do tempo de reação. Também promove estímulo
do sistema mesolímbico, o que está relacionado ao desenvolvimento de dependência.
No sistema nervoso autônomo, a nicotina excita ou bloqueia (de maneira dependente da dose e da
duração do estímulo) tanto a inervação simpática quanto a parassimpática. Os efeitos são maiores sobre
o sistema nervoso simpático, cujo estímulo resulta em forte vasoconstrição nas vísceras e nos músculos
esqueléticos. Como resultado da estimulação do parassimpático, observa-se principalmente aumento
da atividade gastrointestinal.
111
Unidade I
Saiba mais
O bloqueio ganglionar raramente é usado em terapêutica, mas com frequência serve como
ferramenta na farmacologia experimental. Um exemplo de bloqueador não despolarizante é
a mecamilanina.
Como são bloqueadores competitivos, sua ação pode ser superada pelo aumento da concentração
de acetilcolina na fenda sináptica – por esse motivo, a reversão de seus efeitos é realizada com a
112
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
O primeiro fármaco dessa classe a ser caracterizado foi o curare (d-tubocurarina), utilizado por
índios da América do Sul para paralisar a caça. Seu uso clínico foi substituído por outros agentes, como
o pancurônio e o atracúrio. O mecanismo de ação desses agentes está representado na figura a seguir:
Tubocurarina Acetilcolina
Na+
Receptor nicotínico na
unção neuromuscular
Figura 42 – Mecanismo de ação dos bloqueadores não despolarizantes, representados pela tubocurarina
• O fármaco liga-se ao receptor Nm e promove sua ativação, com consequente abertura do canal
de sódio associado.
113
Unidade I
Como você deve ter percebido, a ação da succinilcolina sobre o receptor nicotínico muscular é muito
parecido com aquela observada em resposta à nicotina em relação ao receptor nicotínico do gânglio
autonômico: em um primeiro momento, ocorre ativação e consequente despolarização e, depois,
observa-se a dessensibilização do receptor, com cessação da resposta mediada por ele.
Observação
Despolarizado
++++ ++++
Na+
Receptor nicotínico na
junção neuromuscular
Fase II
A membrana repolariza, mas o receptor é
dessensibilizado aos efeitos da acetilcolina
Succinilcolina
++++ ++++
Repolarizado
---- ----
A toxina botulínica é uma neurotoxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum. Existem
sete sorotipos diferentes de toxina (A, B, C1, D, E, F e G), dos quais o sorotipo A é o mais potente e o que
apresenta utilização terapêutica.
114
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
Os alvos moleculares da ação da toxina botulínica são as proteínas SNARE e SNAP25, que estão
envolvidas na fusão de vesículas contendo neurotransmissores com a membrana plasmática, no momento
da liberação do neurotransmissor nas sinapses. A toxina atua como uma protease dependente de zinco e,
ao degradar essas proteínas, impede que a acetilcolina seja liberada nas sinapses das placas motoras.
Observação
Resumo
Exercícios
Fármaco
Pró-fármaco
Barreira biológica
Hidrólise química ou
enzimática
BUNDGAARD, H., ed. Prodrug design. Amsterdam: Elsevier, 1985. 360 p.,
apud CHUNG, M. C.; SILVA, A. T. A. Latenciação e formas avançadas de transporte de fármacos.
Brazilian Journal of Pharmaceutical Sciences, v. 41, p. 156, 2005 (adaptado).
Figura 44
116
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
O desenvolvimento de pró-fármacos tem como objetivo resolver diversos problemas relacionados aos
fármacos atuais. Para permitir o aprimoramento das propriedades do fármaco matriz, os pró-fármacos
devem possuir características como:
I – Aumento da estabilidade.
II – Redução da biodisponibilidade.
A) I e II.
B) I e III.
C) II e IV.
D) I, III e IV.
I – Afirmativa correta.
Justificativa: a latenciação é utilizada para otimizar a ação dos fármacos e, para aumentar a
estabilidade, deve assegurar níveis eficazes do fármaco no local de ação.
II – Afirmativa incorreta.
117
Unidade I
IV – Afirmativa correta.
2
A
0
0 1 2 3 4 5
Horas
III – A área sob a curva de concentração sanguínea em função do tempo é diferente para as quatro
preparações de digoxina.
118
FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA
A) I e II.
B) I e III.
C) II e III.
D) II e IV.
E) III e IV.
I – Afirmativa correta.
II – Afirmativa incorreta.
Justificativa: de acordo com a figura, pode ser observado que todas as curvas de concentração estão
projetadas de forma diferente. Consequentemente, a área sobre a curva em função do tempo é diferente
para as quatro preparações de digoxina.
IV – Afirmativa incorreta.
Justificativa: para que as formulações possam ser consideradas bioequivalentes, elas devem
apresentar biodisponibilidade semelhante. Ao analisar a figura, fica evidente que as biodisponibilidades
são completamente diferentes (conforme parâmetros de área sobre a curva, Tmax e Cmax); desse modo,
não possuem bioequivalência.
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