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Bioengenharia e

Biotecnologia Aplicada à
Biomedicina
Autores: Profa. Adriana Taveira da Cruz Peres
Prof. Alexandre Torchio Dias
Profa. Gabriela Pintar de Oliveira
Colaboradores: Prof. Flávio Buratti Gonçalves
Profa. Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão
Professores conteudistas: Adriana Taveira da Cruz Peres /
Alexandre Torchio Dias / Gabriela Pintar de Oliveira

Adriana Taveira da Cruz Peres

Licenciada em Ciências e bacharela em Ciências Biológicas, em 2007 e 2008, respectivamente, pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Mestre (2010) e Doutora (2015) em Ciências pelo programa de pós-graduação de Microbiologia
e Imunologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com doutorado sanduíche na Queen’s University, Kingston
Canadá (2012). Professora titular na Universidade Paulista (UNIP).

Alexandre Torchio Dias

Doutor em Ciências na área de Citogenômica pelo Programa de Patologia pela FMUSP (2015); especialista em
Administração Hospitalar pelo IPESSP/Unicid (2011); especialista em Genética Médica e Citogenética pelo IAMSPE
(2004); graduado em Ciências Biológicas/Modalidade Médica (Bacharel em Biomedicina) pela Universidade de Mogi
das Cruzes (2002). Professor titular da Universidade Paulista (UNIP).

Gabriela Pintar de Oliveira

Graduada em 2008 em Ciências Biológicas, modalidade médica, pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Doutora em ciências (2014) na subárea Neurociência pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Pós-doutora na área de Neurociência (2016) pelo A.C. Camargo Cancer Center. Desde 2016, professora titular na
Universidade Paulista (UNIP).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P437b Peres, Adriana Taveira da Cruz.

Bioengenharia e Biotecnologia Aplicada à Biomedicina /


Adriana Taveira da Cruz Peres, Alexandre Torchio Dias, Gabriela Pintar
de Oliveira. – São Paulo: Editora Sol, 2021.

260 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Biotecnologia. 2. Nanotecnologia. 3. Bioinformática. I. Peres,


Adriana Taveira da Cruz. II. Dias, Alexandre Torchio. III. Oliveira,
Gabriela Pintar de. IV. Título.

CDU 663.1

U510.83 – 21

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcello Vannini
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Giovanna Oliveira
Jaci Albuquerque
Kleber Souza
Sumário
Bioengenharia e Biotecnologia Aplicada à Biomedicina

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................9
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................9

Unidade I
1 FUNDAMENTOS DA BIOTECNOLOGIA....................................................................................................... 11
1.1 Histórico da biotecnologia................................................................................................................ 11
1.1.1 Biotecnologia antiga (pré-1800)....................................................................................................... 12
1.1.2 Biotecnologia clássica............................................................................................................................ 14
1.1.3 Biotecnologia moderna......................................................................................................................... 17
2 PRINCÍPIOS DA BIOTECNOLOGIA MOLECULAR E ENGENHARIA GENÉTICA............................. 18
2.1 Tecnologia do DNA recombinante.................................................................................................. 18
2.1.1 Enzimas de restrição............................................................................................................................... 22
2.1.2 Vetores para clonagem: plasmídeos, bacteriófagos, cosmídeos e
cromossomos artificiais.................................................................................................................................... 36
2.1.3 Inserindo o DNA na célula................................................................................................................... 51
2.1.4 Mecanismo de seleção........................................................................................................................... 60
2.1.5 Bibliotecas de genes............................................................................................................................... 71
2.1.6 A tecnologia do DNA recombinante e o cotidiano.................................................................... 76
2.1.7 CRISPR/Cas 9............................................................................................................................................. 81
3 MÉTODOS DE PURIFICAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PROTEÍNAS RECOMBINANTES...................... 85
3.1 Centrifugação......................................................................................................................................... 86
3.1.1 Salting-out................................................................................................................................................. 92
3.2 Cromatografia......................................................................................................................................... 97
3.3 Eletroforese em gel.............................................................................................................................106
3.4 Eletroforese bidimensional (ou eletroforese-2D)...................................................................114
4 CULTURA DE CÉLULAS, CÉLULAS-TRONCO E OGM..........................................................................117
4.1 Cultura de células................................................................................................................................117
4.1.1 Cultura de células aderentes e não aderentes........................................................................... 118
4.1.2 Cultura de células primárias............................................................................................................. 120
4.1.3 Células tumorais.................................................................................................................................... 124
4.1.4 Linhagens celulares.............................................................................................................................. 126
4.2 Células-tronco......................................................................................................................................128
4.2.1 A biologia das células-tronco.......................................................................................................... 130
4.2.2 A divisão funcional das células-tronco........................................................................................131
4.2.3 As células-tronco de pluripotência induzida (iPSC)............................................................... 135
4.2.4 Ensaio de formação de teratoma................................................................................................... 137
4.2.5 Diferenciação dirigida......................................................................................................................... 137
4.2.6 Célula-tronco como modelo para teste farmacológico........................................................ 138
4.2.7 Terapia com células-tronco.............................................................................................................. 138
4.3 OGM..........................................................................................................................................................139
4.4 Biossegurança em biotecnologia..................................................................................................152
4.4.1 Biossegurança relacionada aos microrganismos geneticamente modificados........... 157

Unidade II
5 VACINAS E NANOTECNOLOGIA.................................................................................................................164
5.1 Vacinas.....................................................................................................................................................164
5.1.1 Tecnologia da produção de soros e vacinas............................................................................... 164
5.1.2 Mecanismos do sistema imune inato........................................................................................... 169
5.1.3 Mecanismo da imunidade adaptativa.......................................................................................... 172
5.1.4 O que é vacina?..................................................................................................................................... 176
5.1.5 Tipos de imunização............................................................................................................................ 178
5.1.6 Tipos de vacinas..................................................................................................................................... 179
5.1.7 Por que usar um adjuvante para algumas vacinas?............................................................... 182
5.1.8 Desenvolvimento de vacinas............................................................................................................ 183
5.1.9 Vacinas terapêuticas............................................................................................................................ 186
5.1.10 Desenvolvimento de soros.............................................................................................................. 187
5.2 Nanotecnologia....................................................................................................................................188
5.2.1 História e desenvolvimento de nanomateriais......................................................................... 189
5.2.2 Os nanomateriais e seu uso na área da saúde.......................................................................... 190
5.2.3 Lipossomos.............................................................................................................................................. 192
5.2.4 Nanopartículas lipídicas sólidas...................................................................................................... 195
5.2.5 Micelas...................................................................................................................................................... 196
5.2.6 Nanopartículas poliméricas.............................................................................................................. 196
5.2.7 Nanopartículas de albumina............................................................................................................ 197
5.2.8 Nanopartículas em cosméticos....................................................................................................... 197
6 SEQUENCIAMENTO AUTOMATIZADO DE ÁCIDOS NUCLEICOS: A REVOLUÇÃO DA
BIOTECNOLOGIA E A COMPREENSÃO DETALHADA DAS FERRAMENTAS “OMICS”..................199
6.1 Métodos de sequenciamento de ácidos nucleicos................................................................201
6.1.1 Sequenciamento capilar – método de Sanger..........................................................................201
6.1.2 Sequenciamento genético de segunda geração...................................................................... 203
6.1.3 Sequenciamento genético de terceira geração........................................................................ 204
6.2 Aplicações do sequenciamento genético em humanos, plantas
e microrganismos........................................................................................................................................205
6.2.1 O microbioma intestinal e a saúde humana.............................................................................. 205
6.2.2 O uso do DNA fingerprint na identificação humana............................................................. 206
6.2.3 O câncer e os novos testes genéticos........................................................................................... 208
6.2.4 Farmacogenômica e os fármacos inteligentes.......................................................................... 211
6.2.5 A nutrigenética e a nutrigenômica a serviço da saúde.........................................................214
7 A BIOINFORMÁTICA E O ESTUDO DAS VARIANTES GENÔMICAS................................................218
7.1 Como realizar a análise de uma variante em bancos de dados genômicos?.............221
7.2 Tipos de bancos de dados genômicos.........................................................................................222
8 A BIOTECNOLOGIA NO PROCESSAMENTO DE BIOMATERIAIS E
EQUIPAMENTOS BIOMÉDICOS......................................................................................................................227
8.1 Equipamentos biomédicos, a interface laboratorial e a gestão da
informação laboratorial...........................................................................................................................228
APRESENTAÇÃO

Este livro-texto possui um texto didático dirigido primordialmente para a fundamentação básica do
estudante, objetivando proporcionar o uso racional de horas de estudo, consolidação dos conhecimentos
teóricos que servirão de subsídio para outras disciplinas a serem cursadas adiante no curso.

A organização do presente material segue uma estrutura de apresentação de conceitos de forma


a facilitar o aprendizado, obedecendo também àquela utilizada nas aulas presenciais. Os tópicos
contemplam os aspectos que envolvem conceitos fundamentais em bioengenharia. Dessa forma,
primeiramente falaremos sobre histórico e definição de bioengenharia. Depois, serão abordados aspectos
básicos sobre engenharia genética, cultivo de células e transgenia. Adiante, o estudo estará mais
voltado para células‑tronco e os aspectos de biossegurança relacionados à utilização de ferramentas de
bioengenharia. Além disso, serão exibidos os conceitos e métodos de fabricação de soros e vacinas. Por
fim, serão tratados temas como sequenciamento genético, aplicações desta técnica na saúde, técnicas
de nanotecnologia e produção de biomateriais.

Desta forma, ao final da leitura deste livro-texto, você, aluno, deverá ser capaz de compreender os
principais conceitos envolvendo DNA recombinante, cultura celular, técnicas de transgenia, vacina e
sequenciamento. Além disso, você, estudante, deverá estar a par dos principais aspectos referentes à
biossegurança e produção de biomateriais, assim como desenvolver habilidades dentro do campo da
bioinformática, uma vez que esta vem sendo utilizada como ferramenta valiosa dentro da biotecnologia.

Boa leitura!

INTRODUÇÃO

Reparou quantos temas relacionados à bioengenharia fazem parte do nosso cotidiano? Isso
engloba desde algumas medicações produzidas por tecnologia do DNA recombinante, como a insulina
humana recombinante utilizada para tratamento de pessoas com diabetes, até os produtos contendo
plantas transgênicas nas prateleiras do supermercado. Podemos citar, ainda, as vacinas utilizadas para
prevenção de diversas doenças e os testes diagnósticos que são realizados utilizando sequenciamento
de nova geração.

Vamos estudar esses temas nesta disciplina, cujo objetivo é apresentar conceitos básicos
relacionados à bioengenharia e biotecnologia. O desafio principal é aplicar os conceitos aprendidos
em biologia molecular, para que então seja possível entender os avanços alcançados nesta grande
área. A aplicabilidade do conhecimento científico associado ao avanço tecnológico permitiu o
desenvolvimento de estratégias que foram cruciais para o aumento da expectativa e melhoria na
qualidade de vida dos indivíduos.

O presente material de estudo foi produzido considerando a profundidade necessária e suficiente


para, além de fornecer um alicerce adequado à formação de estudantes que exercem pensamento crítico,
instigar neles a curiosidade em relação aos novos desafios da sociedade que poderão ser solucionados
com a aplicação do conhecimento da biotecnologia.
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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Unidade I
1 FUNDAMENTOS DA BIOTECNOLOGIA

O termo biotecnologia se refere ao uso de sistemas biológicos, tais como células ou tecidos,
e moléculas derivadas, como as enzimas, para produção de produtos comerciais. Ela modificou a forma
como nos alimentamos, produzimos medicamentos, organizamos indústrias e nos relacionamos com os
animais. Também permitiu a criação de alternativas para uma forma de vida mais sustentável e menos
agressiva para o meio ambiente.

1.1 Histórico da biotecnologia

A biotecnologia se desenvolveu a partir de observações e das aplicações destas observações em


um cenário prático, conforme as necessidades das pessoas em um determinado contexto, com intuito
de solucionar problemas e contribuir com a melhoria de produtos e serviços. O aumento de sua
complexidade se deu com a evolução de novas tecnologias associada à expansão do conhecimento
científico. Embora o termo biotecnologia tenha sido cunhado pela primeira vez em 1919, pelo
engenheiro agrônomo húngaro Karl Ereky, e se popularizado posteriormente, técnicas de biotecnologia
já haviam sido registradas séculos antes.

A história da biotecnologia pode ser dividida em três grandes categorias – antiga, clássica e moderna –
organizadas de acordo com a tecnologia e conhecimento científicos vigentes. Como toda a transição
histórica, é difícil determinar um único evento que marca a mudança da biotecnologia antiga para
biotecnologia clássica e sucessivamente da clássica para moderna, sendo estas resultado de acúmulo de
eventos importantes.

Aonde chegaremos?
Eventos

Difícil prever
Projeto genoma humano
Clonagem
Transgênicos
PCR
Anticorpos monoclonais
Estrutura do DNA
Genética, vacinas e antibióticos

Fermentação, domesticação de plantas e animais

Antiga Clássica Moderna Categorias

Figura 1 – História do desenvolvimento da biotecnologia. Algumas descobertas importantes da biotecnologia


estão representadas na imagem, com a possibilidade de crescimento ilimitado no futuro

11
Unidade I

1.1.1 Biotecnologia antiga (pré-1800)

A base da biotecnologia antiga está sedimentada nas observações da natureza, que podiam ser
colocadas em teste e levar à melhoria da vida. Alimento, vestuário e abrigo correspondiam às maiores
necessidades dos seres humanos, independentemente do local em que vivam.

O homem primitivo era caçador-coletor, no entanto, há cerca de 10 mil anos, estes começaram a dedicar
tempo e esforço para cultivar e criar espécies de plantas e animais. A revolução agrícola permitiu uma
maior abundância de grãos e carnes à medida que o homem preparava o solo, espalhava sementes, aguava
plantas, arrancava ervas daninhas e conduzia ovelhas a pastos escolhidos. O cultivo do trigo possibilitou
maior quantidade de alimento por unidade de território e favoreceu o crescimento populacional.

Enquanto o homem aprendia técnicas relacionadas à domesticação de plantas e animais, acumulou


conhecimento que foi necessário para o desenvolvimento da biotecnologia. Fatores como água, luz,
estações do ano, período lunar foram reconhecidos como importantes no crescimento de plantações,
e o cruzamento específico entre certos animais acarretava linhagens mais saudáveis ou com alguma
característica desejável. É provável que os seres humanos tenham mudado a constituição de rebanhos
conforme conduziam uma seleção mais cuidadosa das ovelhas para adaptá-las às suas necessidades.
Animais mais agressivos, magros e desobedientes eram abatidos primeiro, e a cada geração as ovelhas
se tornavam mais gordas e submissas. Paralelamente, foram criados métodos para armazenamento e
preservação de alimentos, envolvendo desde a criação de recipientes até a utilização de cavernas frias.

Os queijos podem ser considerados um dos primeiros produtos derivados da biotecnologia.


O período e o local exato de sua produção não são conhecidos, mas possivelmente coincidem com a
domesticação de animais produtores de leite, primariamente, as ovelhas, entre 8.000 e 10.000 anos atrás.
A sua fabricação é mencionada na mitologia grega, e registros de sua manufatura foram encontrados
em murais de túmulos egípcios que datam de mais de 4.000 anos. É provável que os queijos tenham
sido descobertos acidentalmente pela prática de armazenar leite em recipientes feitos de estômago
de animais. No estômago de ruminantes encontra-se o coalho, contendo enzimas que promovem a
coagulação do leite, separando-o em coalhada e soro, processo fundamental na produção deste alimento.
Outras explicações para a descoberta do queijo envolviam o hábito de salgar o leite fermentado, com
objetivo de conservação, ou a adição de sucos de frutas ácidas, que também resultaria em coagulação.

Observação

O coalho é a denominação utilizada para as enzimas obtidas do


quarto estômago de ruminantes. Neste extrato animal existem duas
enzimas principais: a quimosina (também conhecida como renina) e a
pepsina. A quimosina apresenta ação proteolítica capaz de hidrolisar
ligações peptídicas da caseína do leite, promovendo a sua coagulação.
Este processo é utilizado na produção do queijo, no entanto, a quantidade
de enzima que se consegue obter dos bezerros é inferior às exigências de
mercado. Atualmente, técnicas de manipulação genética possibilitaram a
12
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

introdução de genes de ruminantes em microrganismos (Kluyveromyces


lactis, Aspergillus niger var awamori, Escherichia coli) que funcionam como
verdadeiras fábricas na produção da quimosina.

A origem do pão, assim como do queijo, também não é precisa, sendo a primeira mais antiga que a
segunda. Evidências sugerem que a preparação de produtos semelhantes ao pão por caçadores-coletores
natufianos remontam a 4.000 anos antes do surgimento do modo de vida agrícola neolítico. Ancestrais
selvagens dos cereais domesticados e tubérculos possivelmente constituíam sua matéria-prima. A massa
resultante do preparo era aquecida em rocha ou nas brasas de uma fogueira. Inicialmente, não se utilizava
leveduras na confecção, resultando em um pão achatado (flatbread), denso, difícil de mastigar e digerir.
Refeições à base de cereais, como pão, provavelmente se tornaram comuns quando os agricultores
neolíticos começaram a cultivar extensamente espécies de cereais domesticadas para sua subsistência.

Aos egípcios são creditados os primeiros pães feitos com levedura. A fermentação alterou
completamente seu caráter, deixando-o macio, leve e cheio de ar. Considera- se que esporos de leveduras
oriundos do ar tenham caído na massa do pão. A levedura consome os açúcares presentes na massa com
intuito de produzir energia (ATP) e, como subproduto deste metabolismo, libera gás carbônico e álcool.
O gás carbônico promove o crescimento da massa enquanto o álcool é evaporado durante o processo de
aquecimento. Os egípcios também construíram os primeiros fornos, necessários para assar o novo pão
aerado. Os princípios da fabricação deste produto são utilizados até hoje.

Figura 2 – Etapas envolvidas na fermentação alcóolica de Saccharomyces cerevisiae. As enzimas da via,


assim como seus intermediários, estão destacados na figura. No final do processo, ocorre liberação
de etanol e gás carbônico (CO2). Este último é o responsável pelo crescimento do pão

13
Unidade I

A levedura é um dos microrganismos mais explorados pelos seres humanos. Tem sido utilizado
amplamente para produção de pão, vinagre e outros produtos de fermentação, que incluem as bebidas
alcoólicas como vinho, saquê e cerveja. Historicamente, o vinagre tinha uma importância significativa,
devido ao seu baixo pH (acidez), era usado para preservação de alimentos. Outras fermentações
microbianas foram empregadas para tornar certas plantas comestíveis. A fermentação da semente de
cacau promove a liberação de produtos microbianos que conferem o sabor do chocolate. As descobertas
e benefícios em relação à fermentação levaram as pessoas a trabalharem em melhorias adicionais, ainda
que os princípios científicos que regiam este processo fossem desconhecidos.

Em relação aos animais, um dos exemplos mais antigos de cruzamento para o benefício dos seres
humanos é a mula. Esse mamífero foi empregado para transporte e agricultura, quando não havia
tratores ou caminhões. Mulas são provenientes do cruzamento entre um burro macho e uma égua.

1.1.2 Biotecnologia clássica

A biotecnologia clássica compreende entre 1800 até aproximadamente metade do século XX.
Enquanto a biotecnologia antiga foi fundamentada em observações empíricas e suas aplicações, a
biotecnologia clássica desenrolou-se em um período em que foram estabelecidas explicações científicas
para diversos fenômenos, contribuindo para a melhoria dos produtos e serviços até então desenvolvidos.
Por exemplo, os processos de fermentação foram elucidados, sendo possível alcançar níveis industriais.
Além disso, o conhecimento gerado permitiu o desenvolvimento de novos produtos que mudaram a
história, como as primeiras vacinas e antibióticos.

Louis Pasteur, um renomado cientista francês, em 1857, determinou que microrganismos eram
responsáveis pela fermentação. Este achado permitiu o estabelecimento de indústrias biotecnológicas,
no início dos anos de 1900, que usaram a fermentação na manufatura em larga escala de produtos
relacionados com alimentos, como ácido láctico a partir de laticínios, e etanol a partir da cerveja.
Produtos químicos orgânicos, não relacionados com a indústria alimentícia, como acetona e butanol,
também foram produzidos. Chaim Weizmann, um químico nascido na Rússia, na tentativa de resolver os
problemas de escassez de munição sofridos pela Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial, descobriu
como produzir acetona a partir da fermentação do amido. A acetona foi usada como matéria‑prima
para produção de produtos explosivos. Depois da Guerra, este processo forneceu meios para fabricação
de solventes usados nas tintas da crescente indústria automobilística.

Durante a Segunda Guerra Mundial, técnicas sofisticadas de fermentação em massa foram usadas
na produção da penicilina. O primeiro antibiótico produzido por processos de biotecnologia do mundo, a
penicilina, foi descoberta ao acaso, pelo bacteriologista Alexander Fleming, ao identificar que placas de
Petri contaminadas com fungo impediam o crescimento de bactérias. Após isolar o fungo e identificá-lo
como pertencente ao gênero Penicillium, Fleming obteve um extrato, nomeando seu agente ativo de
penicilina. Ele determinou que a substância tinha um efeito antibacteriano nos estafilococos e outros
patógenos gram-positivos.

Embora Fleming tenha publicado a descoberta da penicilina no British Journal of Experimental


Pathology em 1929, a comunidade científica recebeu seu trabalho com pouco entusiasmo. Além disso,
14
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Fleming achou difícil isolar esse precioso extrato em grandes quantidades. Alguns anos depois, dois
cientistas, Howard Florey e Ernst Chain, desenvolveram formas de cultivo e purificação em larga escala.
A cooperação sem precedentes dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha para a produção de penicilina
foi incrivelmente bem-sucedida. Em 1941, os Estados Unidos não possuíam estoque para tratar um
único paciente. No final de 1942, a penicilina estava disponível para tratar menos de 100 pacientes. Em
setembro de 1943, no entanto, o estoque era suficiente para satisfazer as demandas das Forças Armadas
Aliadas. Os três cientistas foram laureados com o prêmio Nobel, em 1945.

Figura 3 – Método de purificação da penicilina. Alguns fungos produzem substâncias capazes de matar bactérias.
A descoberta destas substâncias, assim como o desenvolvimento de métodos de purificação em larga escala,
revolucionaram a medicina. Em A, estão representadas as principais etapas do processo de purificação da
penicilina a partir do cultivo do Penicillium. Em B, é mostrado um biorreator de 1957, usado para o cultivo
do mesmo fungo para extração do antibiótico, em exposição no Museu de Ciências, em Londres

A descoberta ao acaso do Fleming só foi possível porque anteriormente a ele outros cientistas
determinaram como cultivar colônias de bactérias no laboratório. Estes microrganismos já eram
cultivados em meio líquido, no entanto, o cultivo em meio sólido possibilitou a formação de estruturas
visíveis, individuais, com características precisas e homogênias (as colônias), que foram essenciais ao
desenvolvimento da microbiologia. Em 1881, Robert Koch, um médico alemão, descreveu que as colônias
podiam crescer em fatias de batata. Ela foi considerada o primeiro meio sólido para o isolamento de
bactérias. Walter Hesse, um de seus colegas de trabalho, descobriu que o emprego ágar, que se tornou
um dos componentes mais usados para a solidificação dos meios, era extremamente eficiente no cultivo
das colônias. O ágar é extensamente usado até hoje nos laboratórios do mudo todo.

Outra descoberta importante na área da microbiologia durante este período foram as vacinas contra
a varíola e raiva desenvolvidas respectivamente por Edward Jenner, um médico britânico, e Louis Pasteur,
o mesmo que determinou que os microrganismos são responsáveis fermentação.

A elucidação das bases da hereditariedade foram crucias para o desenvolvimento da biotecnologia.


Alguns fundamentos da genética foram descritos a partir das observações feitas por Gregor Mendel
em seu trabalho com ervilhas (Pisum sativum). O seu rigor metodológico e a quantificação de seus
resultados o levaram a postular duas leis básicas da genética, atualmente conhecidas como leis de Mendel.

15
Unidade I

Ele determinou que unidades internas invisíveis eram responsáveis por características distinguíveis no
vegetal, tais como: cor de flor, de semente, altura da planta, entre outras. Essas entidades, denominadas
por ele de fatores, e posteriormente reconhecidas como genes, seriam transmitidas entre gerações,
sendo responsáveis pelos atributos dos descendentes.

Em 8 de fevereiro de 1865, Mendel apresentou seu trabalho à Brunn Society for Natural Science.
Seu artigo, Experiments on Plant Hybridization, publicado no ano seguinte, foi praticamente ignorado
por seus contemporâneos. Anos mais tarde, três pesquisadores, trabalhando de forma independente,
redescobriram os princípios formulados por Mendel. Cada um deles, Hugo de Vries, Carl Correns e Erich
von Tschermak, citou o artigo original de 1866, inaugurando o ramo da biologia conhecido como genética.

Charles Darwin propôs, de forma independente, que as características seriam transmitidas às


sucessivas gerações em pacotes os quais chamou de “gêmulas”. Ele também especulou que as gêmulas
viajavam de todas as partes do corpo para os órgãos sexuais, onde seriam armazenadas. A característica
mais notável das propostas de Mendel e Darwin é que nenhum dos dois cientistas conhecia os
nucleotídeos ou possuía qualquer informação sobre a estrutura do DNA.

Em 1869, o químico Johann Friedrich Miescher, trabalhando com curativos obtidos em um hospital
de pacientes de guerra, isolou do pus humano (neutrófilos mortos) uma substância que ele chamou de
nucleína. Em pouco tempo, esse componente passou a ser denominado ácido nucleico. Esta descoberta
foi quase concomitante com aquela realizada um ano antes por Robert Brown sobre a existência do
núcleo nas células.

A teoria da herança cromossômica foi construída com base nas descobertas de vários pesquisadores
trabalhando por um período de muitas décadas. As sementes dessa teoria foram plantadas quando
Mendel e Darwin propuseram a existência de possíveis elementos físicos da hereditariedade. Walther
Flemming descobriu o cromossomo e descreveu seu comportamento durante a mitose. Posteriormente,
a pesquisa de Theodor Boveri e Walter Sutton reforçou a ideia de uma conexão entre cromossomos
e elementos hereditários, até que experimentos realizados no laboratório Thomas Hunt Morgan com
as drosófilas demonstraram explicitamente que estes elementos hereditários estavam fisicamente
localizados nos cromossomos.

Figura 4 – Ilustrações de cromossomos de lírios. Walther Flemming registrou com desenhos


os cromossomos e seu comportamento durante a mitose. Os registros auxiliaram
nos estudos da área devido à sua fidedignidade

16
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

O marco do trabalho de Morgan ficou conhecido como A teoria do Gene, em 1926. No entanto,
antes desta publicação, o termo gene já havia sido cunhado por Wilhelm Johannsen, que o descreveu
como elemento da hereditariedade. A este cientista também são creditadas as palavras genótipo e
fenótipo. Genótipo descreveria a constituição genética de um organismo, enquanto fenótipo se
referiria ao organismo como um todo.

Estas descobertas ajudaram a germinar a era do DNA, que se tornou a base da biologia molecular
moderna. No entanto, alguns reveses também se desenvolveram a partir de todos estes achados.
À medida que a genética começou a ganhar importância, acabou contribuindo com o Movimento
Eugênico nos EUA, em 1924, atualmente reconhecido como uma organização solidificada nas frágeis
estruturas da pseudociência. Como consequência desta ação, a Lei de Imigração dos EUA foi usada para
restringir o influxo de imigrantes com baixa escolaridade do sul e do leste Europa, com base em sua
suspeita de inferioridade genética.

Assim, a biotecnologia clássica foi marcada por grandes conquistas que mudaram a história com o
desenvolvimento das vacinas, dos antibióticos e o nascimento da genética. Tais eventos contribuíram
para o envelhecimento da população e configuraram a semente da nova era do DNA, que estava por vir
com elucidação da dupla hélice e da tecnologia do DNA recombinante. No entanto, ao mesmo tempo,
eles também fomentaram o discurso da superioridade genética baseada em conclusões infundadas de
pessoas que manipularam as novas descobertas do mundo dos genes.

1.1.3 Biotecnologia moderna

A Segunda Guerra Mundial tornou-se um grande impedimento para o desenvolvimento da ciência.


Após o fim desta guerra, muitas descobertas cruciais foram relatadas, pavimentando o caminho da
biotecnologia ao seu estado atual. Em 1953, Watson e Crick revelaram pela primeira vez a estrutura
do DNA. O modelo da dupla hélice proposto foi capaz de explicar vários fenômenos relacionados
à replicação do material genético e seu papel na herança. Mais tarde, Jacob e Monod (1961)
determinaram como os genes em procariotos eram regulados em seus sistemas denominados operon,
e Köhler e Milstein (1975), com o conceito de fusão citoplasmática, foram capazes de produzir os
primeiros anticorpos monoclonais, revolucionando a área de diagnóstico.

A esta altura, a comunidade científica era detentora de conhecimento sobre diversos fenômenos
que aceleraram o caminho para importantes descobertas. Har Gobind Khorana foi capaz de sintetizar
DNA in vitro. Kary Mullis agregou valor a esta descoberta, amplificando o DNA em um tubo de ensaio,
produzindo uma quantidade mil vezes maior em relação ao material inicial. Usando este avanço
tecnológico, outros pesquisadores puderam inserir um segmento de DNA de um hospedeiro em outro e
ainda acompanharam a transferência deste DNA para as gerações seguintes.

O efeito do HIV/Aids como uma doença mortal impulsionou a aplicação de várias descobertas
científicas, muitas restritas ao ambiente das Universidades, para seu emprego no cotidiano. Nesse
ínterim, Ian Wilmut, um cientista irlandês, teve sucesso em clonar um animal adulto, usando ovelhas
como modelo, resultado no nascimento da “Dolly”. Craig Venter, juntamente com outros cientistas,
em 2000, foi capaz de sequenciar o genoma humano; a primeira sequência disponível foi obtida de
17
Unidade I

amostras de DNA do Watson (aquele mesmo que descobriu a estrutura da dupla hélice), e dele mesmo.
Essas descobertas tiveram implicações e aplicações ilimitadas.

Em 2010, Craig Venter teve sucesso em demonstrar que um genoma sintético poderia se replicar
de forma autônoma. Isso deveria ser considerada uma nova possibilidade de criar vida em um
tubo de ensaio, que poderia ser planejado e projetado por um ser humano usando uma caneta, lápis,
computador e bioinformática como ferramentas? No futuro, poderemos produzir vida de acordo com
nossa imaginação e caprichos?

Este livro-texto abordará de forma detalhada algumas das descobertas citadas, além de tantas outras
que abriram e expandiram a área da biotecnologia e mudaram a humanidade.

2 PRINCÍPIOS DA BIOTECNOLOGIA MOLECULAR E ENGENHARIA GENÉTICA

2.1 Tecnologia do DNA recombinante

A tecnologia do DNA recombinante permite a combinação de sequências de DNA entre dois organismos
diferentes, de forma que um gene (ou outra sequência qualquer) de um organismo da espécie A pode
ser transferido ao genoma de um organismo da espécie B. Desta forma, é possível combinar o DNA de
duas espécies completamente distintas, por exemplo, um gene de células eucariontes com o DNA
de células procariontes (gene da insulina humana com plasmídeos bacterianos); ou um gene de células
animais com o DNA de células vegetais (gene de camundongo com o genoma de uma planta).

Em 1989, foi relatada a primeira transformação bem-sucedida de plantas de tabaco com DNAs
complementares (cDNAs) das cadeias pesadas (H) ou leves (L) de imunoglobulina de camundongo. Foi
ainda demonstrado que, ao fazer a polinização cruzada entre essas plantas, parte da progênie expressou
as cadeias H e L, o que gerou anticorpo monoclonal de camundongo funcional. Estes foram secretados
das células vegetais da mesma maneira como ocorre nas células do sistema imunológico do camundongo.

Assim, atualmente é possível combinar o material genético de organismos tão diferentes de forma
que tal evento dificilmente aconteceria em condições naturais. Mas por que seria desejável fazer este
procedimento? A transferência de um gene permite que o organismo receptor seja capaz de produzir uma
proteína que não fazia parte de seu repertório molecular, ou ainda leva à aquisição de alguma característica
especial, condizente com o gene transferido. Lembre-se de que alguns genes são transcritos e traduzidos
em proteínas e que estas proteínas desempenham alguma função importante, outros são apenas
transcritos em RNAs com funções reguladoras, ou ainda a própria sequência transferida pode regular
elementos do genoma da célula receptora. Portanto, a transferência de genes pode se dar com intuito de
purificar um produto biológico (normalmente proteínas), ou de modular alguma atividade no organismo
receptor para que este desempenhe uma nova função. Desta forma, é possível induzir a produção de insulina
humana em uma bactéria, ou fazer com que uma planta seja capaz de produzir anticorpos monoclonais
de camundongo. Nestes dois exemplos, a proteína gerada pelo gene inserido deverá ser coletada para
posterior utilização; a insulina é utilizada como fármaco no tratamento do diabetes, enquanto um anticorpo
monoclonal pode ser empregado na área de pesquisa básica para detecção de proteínas específicas ou
ainda na terapia contra o câncer (imunoterapia). A transferência de genes pode ser utilizada ainda para
18
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

melhorar um determinado organismo, algo bastante utilizado hoje em dia na produção de alimentos
com maior valor nutritivo (como o arroz dourado, golden rice) ou na síntese de bactérias que conseguem
degradar contaminantes ambientais, em processos de biorremediação.

O arroz dourado foi engenheirado geneticamente para produzir betacaroteno, um precursor da


vitamina A. Por ser um alimento mundialmente consumido e de custo relativamente baixo, foi
desenvolvido para suplementar a alimentação de pessoas que vivem em locais onde o consumo de
alimentos ricos nesta vitamina é baixo. A deficiência da vitamina A durante a infância pode levar à
cegueira noturna.

É importante ressaltar que a tecnologia do DNA recombinante só é possível pois todos os seres vivos
compartilham o mesmo tipo de material genético. Apesar das peculiaridades moleculares existentes, a
estrutura bioquímica base do DNA é idêntica: seja o material genético proveniente da mais simples bactéria
ou de um eucarioto complexo, DNA sempre é formado por nucleotídeos que se ligam por meio de ligações
fosfodiéster (esta ligação ocorre entre a hidroxila do carbono 3’ – C3’ – do açúcar de um nucleotídeo
com a hidroxila do grupamento fosfato do carbono 5’ – C5’ – do açúcar do nucleotídeo subsequente).
Esta organização permite a formação de uma cadeia longa (polímero de desoxirribonucleotídeos) com
terminações 3´e 5´ livres. Duas destas cadeias se unem formando uma hélice, pela interação mediada por
ligações de hidrogênio entre as bases nitrogenadas complementares dispostas entre as fitas antiparalelas
(adenina pareia com timina e citosina pareia com guanina).

Figura 5 – Estrutura do DNA. A figura representa uma seção curta da dupla hélice. Os nucleotídeos estão ligados entre si covalentemente
por ligações fosfodiéster (esta ligação ocorre entre o grupo hidroxila ligada ao C3’ do açúcar de um nucleotídeo com uma hidroxila do
fosfato ligado ao C5’ do açúcar do próximo nucleotídeo). Assim, cada cadeia polinucleotídica tem uma polaridade química; isto é, suas
duas extremidades são quimicamente diferentes. O final 5’ do polímero de DNA é por convenção frequentemente ilustrado carregando
um grupo fosfato, enquanto a extremidade 3’ é mostrada com uma hidroxila. As fitas, dispostas de forma antiparalela, são mantidas
unidas pelas ligações de hidrogênio que ocorrem entre as bases de cada uma delas. As ligações de hidrogênio embora sejam fracas, em
grande número são capazes de estabilizar e manter a dupla fita unida. Em presença de altas temperaturas ocorre desnaturação da dupla
fita. Legenda: A, T, C e G = bases nitrogenadas adenina, timina, citosina e guanina, respectivamente

19
Unidade I

A tecnologia do DNA recombinante também é conhecida como clonagem molecular ou clonagem


gênica. Apesar de existirem diferentes metodologias para se combinar o DNA de espécies distintas,
normalmente todas elas seguem as seguintes etapas:

Lembrete

Clonar quer dizer “fazer cópias”. Clonagem molecular é fazer várias


cópias de um determinado segmento de DNA.

• O DNA do organismo doador é extraído, clivado enzimaticamente (cortado ou digerido) e ligado


a outro DNA (por exemplo, com um DNA plasmideal que funciona como um vetor de clonagem),
formando o DNA recombinante (o fragmento de DNA do organismo doador que é combinado com
DNA de outra fonte é conhecido como DNA clonado, DNA alvo, ou simplesmente inserto).

• Esta construção (vetor de clonagem + inserto) é transferida e mantida em uma célula hospedeira
(quando o DNA recombinante é inserido em uma célula de bactéria este procedimento recebe o
nome de transformação).

• As células que de fato recebem o DNA recombinante são identificadas e selecionadas.

• A proteína produzida pode ser purificada da célula hospedeira (o DNA recombinante pode ser
construído de forma que a célula hospedeira seja capaz de produzir proteínas específicas).

20
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 6 – Visão geral da tecnologia do DNA recombinante. Etapas envolvidas na


construção de uma célula recombinante e alguns exemplos de aplicação

A tecnologia do DNA recombinante foi desenvolvida a partir de descobertas em diferentes áreas,


como: biologia molecular, enzimologia e genética. O conhecimento sobre os vírus e bactérias, incluindo
os bacteriófagos e os plasmídeos, também foi crucial nesta empreitada. No entanto, a tecnologia do DNA
recombinante não seria possível sem o uso de enzimas que reconhecem sequências específicas do
DNA, clivando as ligações fosfodiéster das duas fitas: as famosas enzimas de restrição.

Lembrete

Os bacteriófagos, ou simplesmente fagos, são vírus que infectam


bactérias cujo material genético é o DNA.

21
Unidade I

2.1.1 Enzimas de restrição

As enzimas de restrição fazem parte de um grupo de moléculas capazes de clivar DNA, conhecidas
como nucleases. As nucleases que clivam o DNA a partir de suas extremidades livres (5’ ou 3’) são
denominadas exonucleases, enquanto aquelas que clivam o DNA internamente são designadas de
endonucleases. As enzimas de restrição fazem parte desta última categoria.

As endonucleases são normalmente encontradas em células de bactérias e servem como sistema de


defesa deste organismo contra ação de bacteriófagos. Elas reconhecem uma determinada sequência alvo
e clivam o DNA do vírus. Ao quebrar o DNA, elas impedem que estes subvertam as células das bactérias
para produção de novas partículas virais, ou seja, restringem a montagem de novos bacteriófagos. Este
mecanismo foi responsável pelo nome da enzima – enzimas de restrição.

Tal processo foi inicialmente reconhecido nos laboratórios dos cientistas Salvador Luria e Giuseppe
Bertani, no início da década de 1950. Eles detectaram que bacteriófagos λ, que se multiplicavam
normalmente na linhagem de bactéria Escherichia coli K tinham sua taxa de multiplicação reduzida
quando infectavam a linhagem de Escherichia coli C. Na década de 1960, Werner Arber e Matthew
Meselson demostraram que esta restrição no crescimento dos fagos λ era mediada pela ação de uma
enzima capaz de clivar o DNA do vírus.

A extração e purificação das enzimas de restrição a partir das bactérias permitiu a manipulação
do DNA de qualquer organismo para a produção de DNA recombinante. O isolamento e a
caracterização da primeira enzima de restrição, extraída da bactéria Haemophilus influenzae,
foi realizada pelos pesquisadores Hamilton O. Smith, Thomas Kelly e Kent Wilcox, na década de
1970. Hoje em dia, mais de 3.700 enzimas de restrição com mecanismo de ação semelhante foram
identificadas, sendo isoladas de diferentes bactérias. Conjuntamente, estas enzimas reconhecem
cerca de 250 sequências alvo distintas.

A nomenclatura das enzimas de restrição está relacionada com o organismo no qual elas
foram purificadas, a linhagem ou o sorotipo e a ordem de sua descoberta. Por exemplo, a enzima
EcoRI (leia‑se “eco-erre-um”) é derivada da Escherichia coli, linhagem RY13, sendo a primeira
endonuclease a ser descoberta neste organismo (portanto, o algarismo romano I). Assim,
a primeira letra do gênero da bactéria da qual a enzima foi extraída deve ser maiúscula, seguida
das duas primeiras letras do epíteto (indicativo da espécie) em minúsculo. A designação da cepa
é ocasionalmente adicionada ao nome, como R em EcoRI, ou o sorotipo da bactéria como d em
HindIII (Haemophilus influenzae). Os algarismos romanos são usados para designar a ordem de
caracterização de diferentes endonucleases de restrição do mesmo organismo. Por exemplo,
HpaI e HpaII são a primeira e a segunda endonucleases de restrição tipo II que foram isoladas
de Haemophilus parainfluenzae, respectivamente. O quadro a seguir apresenta o nome de outras
enzimas de restrição, assim como o sítio de reconhecimento no DNA de cada uma.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Quadro 1 – Enzimas de restrição

Tipo de extremidade gerada


Enzima Bactéria cuja enzima é isolada Sequência reconhecida após clivagem

5′…G↓GATCC …3' Extremidades coesivas (extensão


BamHI Bacillus amyloliquefaciens 5’ fosfato)
3′…CCTAG↑G…5'

5′…G↓ AATTC …3' Extremidades coesivas


EcoRI Escherichia coli (extensão 5’ fosfato)
3′…CTTAA ↑G…5'

5′…GG↓CC …3'
HaeIII Haemophilus aegyptius Extremidades cegas
3′…CC↑GG…5'

5′… A ↓ AGCTT …3' Extremidades coesivas


HindIII Haemophilus influenzae (extensão 5’ fosfato)
3′… TTCGA ↑ A …5'

5′…GC↓GGCCGC …3' Extremidades coesivas


NotI Nocardia otitidiscaviarum (extensão 5’ fosfato)
3′…CGCCGG↑CG…5'

5′…CTGCA ↓G…3' Extremidades coesivas


PstI Providencia stuartii (extensão 3’ hidroxila)
3′…G↑ ACGTC …5'

5′…C↓ TCGAG…3' Extremidades coesivas


XhoI Xanthomonas holcicola (extensão 5’ fosfato)
3′…GAGCT↑C …5'

Para entender como as endonucleases do tipo II atuam, tomemos como exemplo a enzima de
restrição EcoRI (foi uma das primeiras a ser caracterizada). Trata-se de uma proteína homodimérica (ou
seja, possui duas subunidades iguais) que reconhece uma região específica do DNA constituída por uma
sequência palíndromo de 6 pb. Os palíndromos representam sequências de nucleotídeos idênticas nas
duas fitas quando lidas na mesma polaridade, ou seja, no sentido 5’ → 3’.

Observação

Na língua portuguesa, os palíndromos, ao serem lidos da esquerda para


direita ou da direita para esquerda, refletem a mesma palavra, como, ama,
radar, arara, Hannah ou ainda, a mesma sentença, como em socorram-me
subi no ônibus em Marrocos.

A EcoRI cliva duas ligações fosfodiéster, uma em cada fita, entre a guanina e adenina dentro da
sequência alvo. Como resultado destas duas quebras, ocorre a separação dos nucleotídeos localizados
entre os sítios de clivagem das duas fitas, que se mantinham unidos por ligações fracas de hidrogênio.
As ligações de hidrogênio entre os 4 pares de nucleotídeos localizados entre os sítios de quebra não são
suficientes para manter as fitas unidas, após a clivagem das ligações fosfodiéster pela enzima. Desta
forma, são gerados dois fragmentos fita simples com extremidades 3’-OH e 5’-PO4- livres. Uma vez
23
Unidade I

que as bases das extensões são complementares, as ligações de hidrogênio podem ser reestabelecidas,
caracterizando as extremidades coesivas.

Figura 7 – Clivagem intercedida pela EcoRI. Na figura está representada a sequência de reconhecimento da EcoRI (tracejado
azul), o local de clivagem da enzima (setas vermelhas) e o resultado da quebra, com os segmentos gerados e suas respectivas
extremidades coesivas. Note as extremidades sobressalentes (fita simples), neste caso, correspondem à extremidade 5’ fosfato
(extensão 5’). Legenda: P = grupamentos fosfato; S = açúcar (desoxirribose); A, T, C e G = bases nitrogenadas adenina, timina,
citosina e guanina, respectivamente

Antes de darmos continuidade, sugerimos a seguinte atividade: em um pedaço de papel escreva


uma sequência de DNA qualquer, contendo a sequência alvo da enzima de restrição da EcoRI. Use uma
tesoura para recortar toda a sequência de DNA previamente desenhada de forma que reste apenas
uma tira de papel. Em seguida, identifique a sequência alvo e com uma caneta marque os locais de
clivagem mediados pela enzima EcoRI. Neste momento, atente-se e lembre-se de como as enzimas
de restrição agem. Elas são capazes de reconhecer uma sequência específica (no caso da EcoRI, esta
contém 6 pb) e clivar as ligações fosfodiéster. No entanto, elas não cortam estas ligações covalentes
na mesma posição em ambas as fitas. Recorte estes sítios mimetizando a ação da enzima. Apesar
do corte, a tira de papel ainda se mantém unida. Esta união representa as ligações de hidrogênio
estabelecidas entre os nucleotídeos das fitas antiparalelas que estão entre os sítios de clivagem.
Como as ligações são fracas, e mediadas por apenas 4 pares de nucleotídeos, não conseguem manter
as duas fitas unidas nesta posição. Faça um tracejado entre as ligações de hidrogênio e recorte-o.
Agora restarão em mãos dois fragmentos de DNA, ambos contendo uma pequena sequência fita
simples com extremidades livres que são complementares. Estas são as extremidades coesivas.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 8 – Mimetizando a ação da EcoRI em uma folha de papel. Para entender como as extremidades coesivas são geradas após a
clivagem mediada pela EcoRI, siga o passo a passo da atividade ilustrada. 1) Escreva em um papel uma sequência de DNA dupla fita,
de forma a incluir a sequência de reconhecimento da EcoRI; 2) Recorte esta sequência, liberando-a em uma tira de papel; 3) Destaque
com uma caneta ou lápis colorido a sequência alvo da EcoRI; 4) Marque o local de clivagem da enzima (ligações fosfodiéster entre os
nucleotídeos 5’GA3’); 5) Recorte apenas no sítio de clivagem da enzima (setas azuis); 6) Faça uma marcação nas ligações de hidrogênio
entre os quatro pares de nucleotídeos inseridos dentro dos sítios de clivagem; 7) Recorte nesta marcação; 8) Afaste os fragmentos
gerados; e 9) Identifique as extremidades livres como 3’ ou 5’ e analise a sua sequência. Repare que elas são complementares

Quando dois segmentos de DNA de fontes diferentes são clivados com uma mesma enzima de
restrição, com as propriedades descritas anteriormente, são geradas extremidades coesivas compatíveis,
ou seja, que podem se unir por complementariedade de bases. Assim, se os fragmentos gerados forem
misturados, uma nova combinação de DNA pode ser formada como resultado do estabelecimento de
ligações de hidrogênio entre as extensões compatíveis, produzindo moléculas de DNA recombinante.

Não obstante, apenas as enzimas de restrição não são suficientes para a produção de DNA
recombinante. Os fragmentos de DNA de organismos distintos não são mantidos unidos de forma estável
considerando-se apenas as ligações de hidrogênio estabelecidas por poucos nucleotídeos (por exemplo,
se a enzima de restrição usada for a EcoRI, a complementariedade entre as extremidades coesivas será
formada entre apenas 4 pares de bases). Além disso, se os fragmentos de DNA de fontes diferentes forem
misturados, uma grande parcela destes segmentos reestabelecerá as ligações de hidrogênio originais,
voltando a formar o segmento de DNA precursor. Tal evento acaba diminuindo o rendimento da
produção do DNA recombinante. A habilidade de unir diferentes moléculas de DNA também não possui
função prática se esta molécula resultante não for capaz de se perpetuar em uma célula hospedeira.
Assim, o DNA recombinante deve ter informação biológica que garanta a sua manutenção em uma célula.

Diferentes estratégias foram criadas para solucionar os problemas levantados. Imagine que se
deseje inserir uma sequência qualquer do DNA de um determinado organismo (hipoteticamente,
chamemos de sequência A) em um plasmídeo. Os plasmídeos correspondem a DNA circular
extracromossômico presente em algumas bactérias. Neste experimento, a escolha do plasmídeo
foi feita com o intuito de usá‑lo como veículo para “entregar” o DNA exógeno (sequência A) a
uma célula de bactéria, além de permitir que esta sequência A seja transcrita e traduzida por este
hospedeiro. De fato, os plasmídeos são frequentemente usados como vetores de clonagem.
25
Unidade I

Vamos supor que a sequência A contenha a informação necessária para a síntese da proteína insulina
humana. Logo, o desenho deste experimento consiste em criar um DNA recombinante, contendo uma
sequência de DNA humano (da insulina) e o DNA bacteriano (plasmídeo), visando inserir este gene
dentro da bactéria e usar esta célula para a produção da proteína insulina, com objetivo de purificá-la.

Inicialmente é necessário isolar a sequência do DNA que contenha a informação para a síntese de
insulina humana. O material de partida poderia ser o DNA de células humanas, pois estas possuem
o gene da insulina. No entanto, lembre-se de que os genes eucarióticos apresentam sequências
correspondentes aos íntrons e éxons (sendo estes últimos as sequências normalmente traduzidas em
proteínas) e, portanto, estas regiões polinucleotídicas podem ser extremamente longas. Existe um limite
do tamanho do DNA alvo capaz de ser inserido no plasmídeo. Assim, muitas vezes é preferível inserir no
plasmídeo não a sequência do gene propriamente dita, mas a sequência do cDNA (DNA complementar).
O cDNA é sintetizado a partir do RNA mensageiro (mRNA) através de uma reação de transcrição reversa.
Em geral, o mRNA maduro não apresenta íntrons, pois estes foram removidos pela maquinaria de
splicing. A transcrição reversa desta molécula produz DNA com tamanho muito menor que o gene
original, sendo, assim, mais fácil manipulá-lo para inserção em um plasmídeo.

Figura 9 – Síntese do cDNA. A figura ilustra as etapas envolvidas na síntese de cDNA a partir de um gene eucariótico. A enzima
transcriptase reversa sintetiza uma fita de DNA a partir de mRNA molde, formando a primeira molécula de cDNA (repare que ela
inicialmente corresponde a uma fita simples). Esta molécula de cDNA por sua vez serve de molde para a enzima DNA polimerase
sintetizar seu complemento, originando a molécula de DNA dupla fita. A DNA polimerase requer a presença de iniciadores para
catalisar a reação. Os fragmentos de mRNA digeridos funcionam como os iniciadores para esta reação, pois se anelam na primeira
molécula de cDNA para que então a DNA polimerase consiga agir

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

A estratégia que será escolhida pelo pesquisador, ou seja, se o material inicial isolado será o DNA ou
o RNA (para posterior síntese do cDNA), dependerá dos seus objetivos. Se o interesse for estudar regiões
reguladoras do gene, o material de partida deve ser o DNA e não o cDNA. Todavia, se o interesse for a
produção de uma proteína, o mRNA pode ser suficiente. No nosso exemplo, seria mais adequado então
extrair o RNA, produzir o cDNA e em seguida fazer uma PCR (reação da polimerase em cadeia) com
iniciadores (primers) específicos. A PCR produzirá uma grande quantidade de sequências codificantes
para a insulina, otimizando a produção do DNA recombinante.

Ao desenhar os iniciadores é necessário acrescentar nestes a sequência de reconhecimento da enzima


de restrição. Assim, após a extração do RNA de células humanas produtoras de insulina e obtenção do
cDNA, uma PCR com estes iniciadores é realizada, seguida de eletroforese em gel de agarose para
isolamento e purificação do produto amplificado. Em um tubo adequado, este cDNA correspondente
contendo a sequência para a produção da proteína da insulina humana será digerido com a enzima
de restrição. A endonuclease irá clivar as extremidades do cDNA produzindo as extensões de fita
simples livres. Neste protocolo é necessário garantir que a sequência do cDNA não apresente o sítio de
reconhecimento da enzima, ou então, ele será interrompido (digerido pela enzima).

Figura 10 – Inserção dos sítios de restrição de uma dada enzima no fragmento de cDNA capaz de sintetizar a insulina.
Em A, o cDNA da insulina pode ser amplificado por PCR utilizando-se iniciadores que possuam nas extremidades
sequências que são reconhecidas por uma determinada enzima de restrição. Em B, digestão do plasmídeo e
do DNA de interesse com as mesmas enzimas de restrição gera extremidades coesivas

27
Unidade I

O plasmídeo também deve ser digerido com a mesma enzima de restrição para que extremidades
complementares ao inserto de interesse sejam geradas. Como o DNA plasmideal é circular, a clivagem
mediada pela enzima o lineariza.

No entanto, existe uma chance muito grande de recircularização do plasmídeo, visto que suas
próprias extremidades são coesivas. Tal evento diminui as chances da formação do DNA recombinante
quando esta molécula for misturada com o gene purificado.

Desta forma, antes de misturar estes dois componentes, adiciona-se aos plasmídeos digeridos uma
enzima denominada fosfatase alcalina. Ela remove os grupos fosfatos das extremidades 5’ necessários
para ocorrer a ligação fosfodiéster. As ligações fosfodiéster entre os desoxirribonucleotídeos podem ser
reestabelecidas em presença da enzima DNA ligase, que de fato é usada nas etapas seguintes deste
protocolo. A enzima fosfatase alcalina pode ser purificada de bactérias ou do intestino de bezerros, a
primeira é mais estável, porém menos ativa do que a segunda.

Uma vez preparado o DNA plasmideal linearizado, este é misturado com o DNA do gene da insulina,
na presença de uma DNA ligase. Esta enzima normalmente é extraída do bacteriófago T4. Lembre-se
de que as ligações de hidrogênio entre as bases das extremidades complementares do plasmídeo e do
gene de interesse não são suficientes para manter a molécula de DNA recombinante. Na presença de
ATP, a DNA ligase de T4 é capaz de reestabelecer a ligação covalente entre os nucleotídeos adjacentes,
garantindo a manutenção da molécula híbrida. Contudo, ela não pode unir as extremidades do plasmídeo
linear desfosforiladas. Assim, apenas duas ligações fosfodiéster são formadas entre o DNA do inserto
com o DNA do plasmídeo, e não quatro, como seria previsto se os grupamentos fosfato do vetor ainda
estivessem presentes. Estas duas ligações fosfodiéster formadas são suficientes para manter as duas
moléculas juntas, apesar da presença de duas incisões (ou nicks). Após a transformação, ou seja, quando
o plasmídeo contendo DNA exógeno for colocado em uma célula de bactéria, esses cortes serão selados
pela DNA ligase da célula hospedeira.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 11 – Clonagem de um fragmento de DNA de interesse em um vetor plasmideal. Após digestão com uma dada enzima
de restrição e tratamento com fosfatase alcalina, o plasmídeo é misturado com o DNA de interesse digerido previamente
com a mesma enzima de restrição. Em presença de DNA ligase de T4, as ligações fosfodiéster entre as extremidades coesivas
do plasmídeo e do inserto são reestabelecidas apenas nos locais cujas extremidades 5’ ainda apresentam o grupamento fosfato.
Assim, são formadas duas ligações fosfodiéster e duas incisões. Esta configuração é estável e mantém as duas moléculas
de DNA de origens diferentes covalentemente ligadas. Após a inserção desta construção em células hospedeiras, a maquinaria
celular é capaz de reestabelecer as ligações fosfodiéster nas incisões remanescentes

29
Unidade I

Um provável questionamento diz respeito ao fato de sabermos se as moléculas de cDNA do gene


da insulina, após a digestão com enzimas de restrição, não poderiam se unir umas com as outras, pois
também apresentam extremidades coesivas. A resposta para esta pergunta é sim. De fato, isso acontece
dentro do tubo de ensaio. Todavia, esses produtos de ligação indesejados não contêm uma origem de
replicação (segmento de DNA necessário para ocorrer a replicação do DNA, pois favorece a ligação dos
componentes da maquinaria de replicação) e, portanto, não serão replicados após a introdução em uma
célula hospedeira.

Existem enzimas de restrição que clivam as ligações fosfosdiéter sem resultar em fragmentos com
extremidades coesivas. Veja o exemplo da enzima HindII, constante a seguir, em que o sítio de clivagem
promove a quebra do DNA, resultando em extremidades cegas (sem extensões fita simples). Para compreender
melhor as extremidades cegas geradas por estas endonucleases, é possível fazermos uma atividade semelhante
àquela apresentada na figura 8. Neste caso, basta trocar a sequência de reconhecimento da EcoRI pelo da
HindII e seguir o passo a passo. Analise como são as extremidades resultantes.

Figura 12 – Clivagem intercedida pela HindII. Na figura está representada a sequência de reconhecimento da HindII (tracejado
azul), o local de clivagem da enzima (setas vermelhas) e o resultado da quebra, com os segmentos gerados e suas extremidades
cegas. Legenda: P = grupamentos fosfato; S = açúcar (desoxirribose); A, T, C e G = bases nitrogenadas adenina, timina, citosina
e guanina, respectivamente

As enzimas de restrição que não produzem extremidades livres sobressalentes também podem
ser usadas na clonagem molecular, porém aquelas que deixam pontas coesivas facilitam o processo.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

As condições dos experimentos, usando cada uma destas endonucleases, são um pouco diferentes.
Por exemplo, a reação da DNA ligase para unir moléculas de DNA de fontes distintas ocorre em baixas
temperaturas e em longos períodos quando as extremidades dos produtos da digestão são coesivas.
Isto garante que tais extremidades permaneçam pareadas (altas temperaturas desnaturam o DNA).
Quando o experimento é realizado com moléculas de DNA cujas extremidades são cegas, são necessárias
concentrações de 10 a 100x maiores da enzima DNA ligase T4. Nesta condição é difícil controlar a
posição em que o inserto se associa ao plasmídeo, podendo ficar no sentido oposto àquele de leitura do
vetor. Como consequência, o DNA de interesse desta construção pode ser incapaz de sintetizar produtos
funcionais, como RNA e proteína. Para determinar qual foi a posição em que o DNA alvo entrou no
plasmídeo, podemos recorrer às enzimas de restrição. Para tanto, basta analisar o perfil de separação em
corrida eletroforética dos produtos desta digestão.

Figura 13 – Detecção da orientação do inserto após ligação ao vetor, em um protocolo de clonagem realizado com enzimas de restrição
que deixam extremidades cegas. Suponha que a soma do tamanho do plasmídeo + tamanho do inserto totalizem 5000 pb, e que apenas
o inserto apresente 1000 pb. Considere que a inserção do DNA alvo ocorra a uma distância de 10 pb aquém ao sítio da EcoRI presente
no vetor. Além disso, assuma que exista um sítio de reconhecimento para EcoRV que corta 190 pb bases a partir da extremidade 5’
da fita codificante do inserto. A digestão do DNA recombinante (plasmídeo + inserto), após a reação de ligação com a DNA ligase de
T4, com as enzimas de restrição EcoRI e EcoRV sozinhas ou em conjunto, produzirá tamanhos de fragmentos distintos, a depender da
orientação do inserto no vetor. Assim a parte de baixo da figura mostra o perfil de corrida da eletroforese esperado para os dois sentidos
de inserção do DNA alvo, nas seguintes condições: sem digestão com qualquer enzima de restrição; com somente EcoRI; com somente
EcoRV; e, com as duas enzimas simultaneamente. O resultado de uma dupla digestão EcoRI / EcoRV da construção em que o inserto
se encontra no sentido esperado seria: fragmentos de 200 pb (10 + 190) e de 4800 bp (5000 – 200) (à esquerda). Se a inserção fosse
na orientação reversa (à direita), os fragmentos seriam 820 pb (10 + 1000 − 190) e 4180 bp (5000 − 920). Repare que a digestão com
apenas uma enzima de restrição leva apenas à linearização da construção e que a eletroforese da construção circularizada (primeiro
poço, representado por nc) é diferente daquela do vetor linearizado. Legenda: nc = não cortado

31
Unidade I

Uma vez inserido o DNA recombinante na célula hospedeira, é preciso garantir que ele não seja
degradado e ainda apresente os elementos necessários para permitir sua replicação (produção de várias
cópias do inserto) e transcrição (vital para a síntese proteica). Outros componentes, como genes de
seleção são importantes, pois garantem ao pesquisador mecanismos de identificação das células que
de fato incorporaram a construção.

As enzimas de restrição possuem outro propósito bastante notável dentro da área da biologia
molecular. Em 1971, Daniel Nathans e sua então aluna de graduação, Kathleen Danna, publicaram um
artigo relatando os seus experimentos com estas moléculas. Eles mostraram que ao clivar o DNA do vírus
símio 40 (SV40) com a enzima de restrição extraída de Hemophilus influenzae, eram gerados fragmentos
de DNA constates quando analisados em eletroforese em gel de acrilamida. Estes resultados mostraram
que as enzimas de restrição também são úteis em mapear o DNA, surgindo então as análises de mapas
de restrição.

Figura 14 – Fragmentos de restrição do DNA do SV40 gerados com endonuclease de Hemophilus influenzae. A figura mostra 11
fragmentos de DNA, nominados de A até K, gerados após longo período de digestão do DNA do SV40 com uma endonuclease
extraída de Hemophilus influenzae. Cada banda possui tamanho distinto e por isso foram separados no gel de acrilamida

Os mapas de restrição são mapas físicos que indicam as posições relativas dos sítios de clivagem
de diferentes enzimas de restrição em um determinado segmento de DNA. Os mapas são construídos
tratando a molécula de DNA individualmente com endonucleases de restrição e depois com combinações
delas e em seguida analisando os fragmentos gerados pelas clivagens em separação eletroforética.

Quando o DNA genômico apresenta vários sítios alvos para uma dada enzima de restrição
(cortes frequentes), milhões de fragmentos de DNA são produzidos após sua quebra. A separação
desses fragmentos em eletroforese não resulta em bandas discretas (mas forma-se um perfil de
arraste de DNA no gel). Portanto, enzimas de cortes raros – aquelas cujo DNA alvo apresenta
poucos sítios de reconhecimento para a enzima – são úteis para mapeamento do genoma, pois
resultam em menor quantidade de fragmentos de DNA. Os mapas de restrição eram bastante
usados para caracterizar genomas de organismos menores como vírus e bactérias (a digestão de
genomas muito grandes produz muitas bandas, não distinguíveis no gel).

Após a digestão, os fragmentos de DNA podem ser separados em gel de agarose usando uma técnica
especial chamada eletroforese em gel de campos pulsados (PFGE, pulsed field gel electrophoresis).
Essa técnica permite a separação de fragmentos de DNA com massa molecular elevada (com até 10 Mb).
Na eletroforese em gel de agarose convencional, normalmente se separam fragmentos com até 40 kb.

A eletroforese em campo pulsado utiliza um campo elétrico direcionado de forma alternada. Quando
ocorre troca na direção do campo elétrico (inversão da polaridade), as moléculas de DNA são compelidas

32
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

à reorientação, para se posicionarem de forma paralela ao campo de força, antes de migrarem para a
direção do polo positivo. Os fragmentos menores se reorientam com maior facilidade que os maiores,
que demoram mais para se adaptarem à nova direção. A partir de 1984, vários protocolos surgiram com
o intuito de otimizar a separação DNA de alto peso molecular utilizando este princípio.

Figura 15 – Etapas envolvidas na construção de um mapa de restrição. Um segmento de DNA de 100 kb é digerido
separadamente, em três tubos distintos, com as enzimas de restrição: SaII (leia sal-um); BamHI (leia bam-agá-um); e, ambas
simultaneamente (SalI + BamHI). Os fragmentos gerados em cada uma das reações são separados em eletroforese em gel (de
agarose) em campos pulsados (PFGE), na presença de marcador molecular. O marcador molecular possui segmentos de DNA com
tamanhos conhecidos e serve como referência para estimativa do tamanho dos fragmentos de DNA das amostras. Após analisar
os resultados da eletroforese, as posições dos sítios de clivagem podem ser deduzidas. Assim, é construído um mapa de restrição,
indicando-se as posições relativas dos sítios de reconhecimento das enzimas de restrição. Montar mapas de restrições muitas
vezes equivale a montar um grande quebra-cabeça

33
Unidade I

Agora imagine que exista uma mutação no segmento de DNA analisado dentro da sequência
de reconhecimento da enzima de restrição. Neste caso, a enzima não será capaz de clivar neste
local e segmentos de tamanhos diferentes daqueles esperados serão produzidos, indicando a
presença da mutação.

Exemplo de aplicação

A técnica “impressão digital” molecular (DNA fingerprint) foi desenvolvida por Sir Alec Jeffreys em
1984, na Universidade de Leicester, na Inglaterra, enquanto pesquisava a estrutura do gene da mioglobina
(proteína que armazena oxigênio no tecido muscular). Ele identificou dentro de um íntron deste gene
sequências que atualmente são conhecidas como VNTR (regiões em tandem de número variado).

A VNTR corresponde a uma sequência curta de DNA que se repete várias vezes, uma seguida da
outra (daí a designação em tandem). O número de vezes que este bloco de nucleotídeos sequenciais
se repete, em uma determinada posição do genoma, pode variar entre os indivíduos. Por exemplo,
o indivíduo A pode apresentar 10 repetições de uma VNTR, enquanto o indivíduo B demonstra 7, na
mesma posição do genoma. Assim, a digestão do DNA com uma enzima de restrição que reconhece as
“bordas” das sequências VNTR e cliva próximo a estes locais, gera segmentos de tamanhos distintos. No
nosso exemplo, o fragmento gerado a partir da digestão do DNA do indivíduo A tem comprimento maior
que aquele originado por meio da digestão do DNA do indivíduo B.

A eletroforese em gel de agarose dos produtos da digestão mostrará então um perfil diferente
para estes dois indivíduos. Para visualizar o padrão de migração eletroforética do DNA, é necessário
transferi-lo do gel a uma membrana de nitrocelulose e, depois, incubá-la com sondas específicas.
A sonda corresponde a um fragmento de DNA curto, complementar ao DNA de interesse marcado com
alguma substância. Componentes radioativos são comumente usados para identificação das sondas
(esta técnica é conhecida como Southern blotting).

Agora amplie este exemplo de uma região para o genoma inteiro, em que temos várias destas
sequências VNTR espalhadas. O padrão da migração eletroforética dos fragmentos produzidos entre
os indivíduos acaba sendo único e funciona como uma “impressão digital” molecular. De fato, este é
o princípio que norteia os exames de paternidade clássicos e a análise do DNA de suspeitos em uma
cena de crime. Contudo, hoje em dia, testes mais atuais empregam metodologias de PCR, em virtude da
praticidade de análise dos resultados.

34
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 16 – Impressão digital molecular (DNA fingerprint)

Em A está representada a sequência utilizada para confecção de sonda empregada na detecção


de VNTR. O primeiro íntron do gene da mioglobina possui quatro repetições da sequência mostrada
(blocos contendo 33 pb cada). Dentro desta sequência existe um cerne de 13 pb (destaque em negrito)
que se repete em outros loci (“locais” diferentes no genoma) de VNTR (além de estar presente na VNTR I,
é encontrada na VNTR II e VNTR III). Em B, é mostrado o número de repetições nos três loci VNTR,
em três indivíduos. O resultado da separação dos fragmentos do DNA digerido resulta um padrão
diferente para cada indivíduo, configurando o DNA fingerprint de cada um. Em C, o DNA fingerprint
de mancha de sangue de uma cena de crime é comparada com o DNA fingerprint de sete suspeitos.
Você seria capaz de dizer quem estava na cena do crime? Reflita e diga-nos o resultado.

Em alguns casos, uma endonuclease de restrição clivará uma sequência apenas se as citosinas do
local de reconhecimento não forem metiladas, enquanto outra endonuclease de restrição cortará na
mesma sequência somente se essas citosinas estiverem metiladas. Por exemplo, HpaII cliva apenas locais
5′…C↓CGG…3'
não metilados, e MspI, um isosquizômero de HpaII, corta nesta mesma sequência
3′…GGC↑C …5'
independentemente da metilação da citosina. Este par de endonucleases de restrição é frequentemente
usado para determinar o estado de metilação do DNA genômico. Se uma molécula de DNA não
35
Unidade I

for cortada por HpaII, mas for clivada por MspI, o local de reconhecimento é metilado. Se ambas as
endonucleases de restrição clivam uma molécula de DNA, então o sítio não é metilado.

Figura 17 – Enzimas de restrição utilizadas no estudo do estado de metilação do DNA. As enzimas mostradas reconhecem a
mesma sequência alvo, porém HpaII não é capaz de clivar a sequência metilada (CH3), enquanto a MspI promove a quebra
independentemente do estado de metilação

2.1.2 Vetores para clonagem: plasmídeos, bacteriófagos, cosmídeos e cromossomos artificiais

Os vetores funcionam como veículos para entrega do DNA de interesse a uma célula. Além disso,
possuem características que são essenciais para o processo da clonagem molecular: eles permitem
a estabilidade do inserto, evitando a sua degradação e muitos deles, por apresentarem elementos
reguladores, auxiliam na replicação e transcrição do DNA recombinante.

Já foi mencionado que os plasmídeos podem funcionar como vetores. Eles correspondem a um DNA
dupla fita, circular, extracromossômico e com capacidade de autorreplicação encontrado em bactérias.

Figura 18 – Plasmídeos. Os plasmídeos são elementos genéticos independentes encontrados em células de bactérias

36
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Os plasmídeos podem ser classificados de acordo com a função dos genes que carregam. Alguns
deles apresentam genes que possibilitam a sobrevivência da bactéria em ambientes cuja concentração
de um determinado antibiótico (como clorafenicol ou ampicilina) é considerada tóxica, por
promover a produção de proteínas capazes de degradá-los. Esses genes são conhecidos como genes
de resistência aos antibióticos e configuram os plasmídeos R (resistência). Outros, denominados
plasmídeos degradativos, apresentam genes que conferem à bactéria a capacidade de metabolizar
certos componentes incomuns (como tolueno ou ácido salicílico). Os plasmídeos F (fertilidade) possuem
informação para a sua própria transferência a outras bactérias, enquanto os plasmídeos Col codificam
para colicinas, proteínas capazes de matar outras. Os plasmídeos de virulência estão relacionados com
a patogenicidade das bactérias que os possuem, os plasmídeos Ti (tumor-inducing) da Agrobacterium
tumefaciens fazem com que estas promovam a formação de tumores em plantas, caracterizando uma
doença conhecida popularmente como galha da coroa. Este plasmídeo é bastante utilizado na produção
de plantas transgênicas.

Figura 19 – Plasmídeos R. O plasmídeo R pRP4 possui três genes diferentes que conferem à bactéria E. coli
resistência aos antibióticos tetraciclina, ampicilina e canamicina. Quando esta bactéria é cultivada em meio
líquido em presença de qualquer um destes antibióticos, somente aquelas que apresentarem o plasmídeo serão capazes
de crescer. Em contrapartida, as bactérias sem o plasmídeo só poderão crescer em meio sem a presença destes componentes

37
Unidade I

Figura 20 – Plasmídeos F. O plasmídeo F é transferido entre bactérias por meio da conjugação. O pilus aproxima
as células bacterianas, permitindo a transferência de DNA da célula doadora para a célula receptora

Figura 21 – Galha da coroa. A figura mostra a galha da coroa, um tumor que se desenvolveu em uma roseira. Os plasmídeos TI
presentes na Agrobacterium tumefaciens induzem este crescimento descontrolado nos tecidos vegetais infectados pela bactéria

O tamanho e a quantidade (número de cópias) dos plasmídeos por célula são bastante variáveis e
correspondem a um fator bastante importante durante a clonagem molecular. Neste procedimento,
é desejável que a célula possua muitas cópias do plasmídeo, o que aumenta as chances de possuir
também grande quantidade de inserto. Plasmídeos que possuem entre 10 a 100 cópias na célula são
conhecidos como plasmídeos de alto número de cópias (high-copy-number plasmids), enquanto
aqueles que apresentam entre 1 a 4 cópias são designados como plasmídeos de baixo número de cópias
(low‑copy-number plasmids). Quando dois ou mais tipos diferentes de plasmídeos não podem coexistir
em uma mesma bactéria, eles são classificados em um mesmo grupo de incompatibilidade. Plasmídeos
de diferentes grupos de incompatibilidade podem ser mantidos juntos em uma mesma célula e esse
38
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

fato é independente do número de cópias de cada um. Alguns microrganismos possuem até 10 tipos de
plasmídeos; nestes casos, cada plasmídeo pode realizar funções diferentes, apresentar número de cópias
característico e pertencer a um grupo de incompatibilidade distinto.

O tamanho dos plasmídeos pode variar entre menos que 1 kb até mais que 500 kb. Os plasmídeos
menores utilizam as enzimas replicativas da própria célula hospedeira, enquanto plasmídeos maiores
podem carregar genes que codificam enzimas especiais, que são específicas a sua replicação. Alguns
tipos de plasmídeo também são capazes de se replicar, inserindo-se no cromossomo da bactéria.
Esses plasmídeos integrativos ou epissomas podem ser mantidos estáveis desta forma por meio de
várias divisões celulares, mas sempre, em algum estágio, vão aparecer como elementos independentes.
Os plasmídeos integrativos são mais raros. Apesar do tamanho, todos os plasmídeos possuem uma
origem de replicação, responsável pela sua capacidade de autorreplicação.

Figura 22 – Plasmídeo integrativo. A presente figura ilustra as estratégias de replicação de plasmídeos


não integrativos (acima) e dos plasmídeos integrativos (epissomos)

Alguns plasmídeos são capazes de se replicar apenas em células específicas devido às


características da sua origem de replicação, sendo chamados de plasmídeos espectro de
hospedeiro estreito. Ao contrário, os plasmídeos de espectro de hospedeiro amplo são aqueles cuja
origem de replicação pode ser reconhecida por um número maior de espécies bacterianas.

Como elementos genéticos autônomos e autorreplicantes, os plasmídeos têm os atributos básicos


para torná-los vetores potenciais a fim de transportar DNA clonado. No entanto, os plasmídeos de
ocorrência natural (não modificados ou não modificados) muitas vezes carecem de várias características
importantes que são necessárias para um vetor de clonagem de alta qualidade. Assim, muitos deles

39
Unidade I

foram modificados geneticamente para tal propósito. Mas, afinal, quais são as características desejáveis
de um plasmídeo para que este se torne um vetor ideal?
A origem de replicação (ori) é elemento fundamental neste processo, pois garante que a
molécula de DNA recombinante será copiada. Assim, o DNA plasmideal é capaz de se replicar
independentemente da replicação do DNA cromossômico na bactéria, permitindo a produção de
uma grande quantidade do inserto. Muitas cópias do inserto podem ser requeridas para posterior
purificação e inserção em outro organismo (o organismo que recebe inserto pode passar a apresentar uma
nova característica), ou ainda para garantir que uma quantidade elevada de seu produto proteico seja
sintetizada. A aplicação dependerá dos objetivos do pesquisador. Outro fator que deve ser considerado
na produção do DNA recombinante é a compatibilidade entre a origem de replicação do plasmídeo e a
célula hospedeira. Não adianta inserir a construção plasmídeo + inserto em uma célula hospedeira se
ela não for capaz de se replicar. Assim, é preciso ter bastante atenção entre a compatibilidade do vetor
plasmideal e a célula hospedeira escolhida, no que diz respeito à capacidade de replicação.
A inserção do DNA de interesse no plasmídeo confere estabilidade desta molécula dentro da célula
hospedeira. O DNA circular é estável na célula, enquanto segmentos lineares que não se integram ao
DNA cromossômico por recombinação são normalmente degradados.
Os plasmídeos também possuem sítios de reconhecimento de enzimas de restrição, que são
fundamentais para inserção da sequência de interesse e produção do DNA recombinante. Atualmente,
os plasmídeos são engenheirados para permitir uma maior eficiência da clonagem molecular. A maioria
possui uma região conhecida como sítio múltiplo de clonagem (MCS, multiple cloning site), contendo
sequências alvo de diferentes enzimas de restrição, comumente usadas em laboratórios de biologia
molecular. Com isso, o pesquisador possui opções de escolha em relação à enzima de restrição que
utilizará em seu experimento. Por exemplo, um pesquisador deseja inserir o gene A em um plasmídeo
cujo MCS apresenta sequências de reconhecimento para diversas enzimas, entre elas EcoRI, XhoI e NotI.
Ao analisar o gene A, observa a presença da sequência de reconhecimento para estas três enzimas
na seguinte configuração: os sítios de XhoI e NotI estão nas extremidades 5’ e 3’, respectivamente,
enquanto o sítio da EcoRI se localiza dentro do gene. Desta forma, é adequado utilizar XhoI e NotI, pois
a quebra com EcoRI interromperia a sequência do gene. Assim, a digestão do vetor e do inserto com
XhoI e NotI produz extremidades coesivas entre os dois elementos, sem clivar dentro da sequência de
interesse, o que garante a integridade da informação genética do inserto.
Alguns plasmídeos também são modificados geneticamente para inserção de elementos reguladores,
como promotores associados ao MCS. Se o interesse for produzir proteínas a partir do inserto, é
adequado usar um vetor que possua um promotor forte. A manipulação das extremidades coesivas do
inserto auxiliam na inclusão do DNA de interesse no plasmídeo na posição correta, de forma a coincidir
com o sentido de leitura do promotor. Assim, um inserto que é digerido como duas enzimas de restrição
gerando extremidades coesivas não complementares entre elas (como no exemplo citado, com XhoI e
NotI), mas complementares ao vetor (que também deve ser digerido com as mesmas enzimas), só poderá
se combinar com o vetor de uma única maneira. Se o inserto é digerido apenas com uma única enzima
de restrição (por exemplo, somente com BamHI – neste caso o inserto precisa ser digerido em ambas
extremidades com esta enzima), pode se inserir ao vetor de duas maneiras distintas e corre-se o risco da
sequência de leitura do gene ser diferente da do promotor. Neste caso, não haverá produção de proteína.

40
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

O vetor também possui genes de seleção para identificação das células hospedeiras que fato
internalizaram o DNA recombinante. O gene de seleção pode contar com diversas estratégias, como
genes de resistência a antibióticos ou sistema de diferenciação azul-branco.
Agora que conhecemos os plasmídeos, e sabemos quais as características desejáveis para utilizá‑los
como vetores, vamos avaliar o pBR322, que foi amplamente empregado nos protocolos de clonagem
molecular, na década de 1980. Atualmente, um extenso número de plasmídeos e substâncias
relacionadas são produzidas por várias empresas, com o intuito de facilitar os procedimentos envolvidos
com a técnica do DNA recombinante.
Os plasmídeos são geralmente designados pela letra p minúscula, seguida de alguma abreviação
descritiva, ou alguma que represente uma homenagem, como no caso do pBR322. “BR” correspondem
às iniciais dos sobrenomes dos pesquisadores F. Bolivar and R. Rodriguez, que criaram este plasmídeo.
O número 322 representa alguma designação relevante para o trabalho dos dois cientistas. Este
vetor possui 4.361 bp, uma origem de replicação que é reconhecida apenas em E. coli (espectro do
hospedeiro estreito), sendo encontrado na célula em grandes quantidades (plasmídeos de alto número
de cópias). Possui dois genes de resistência à antibióticos (ampicilina e tetraciclina), e sítios únicos de
reconhecimento para diversas enzimas de restrição como BamHI, HindIII, e SalI, PstI e EcoRI.

Figura 23 – Vetor plasmideal pBR322. A figura ilustra uma representação esquemática do vetor plasmideal pBR322. Algumas das
sequências de reconhecimento das enzimas de restrição encontradas neste vetor estão mostradas em azul. As setas em preto
representam o sentido da leitura dos genes de resistência aos antibióticos tetraciclina (tet) e ampicilina (amp) e da origem de replicação
(ori). Os números indicam em pares de bases a distância relativa em função de um marco que pode ser escolhido aleatoriamente

Os plasmídeos, apesar de bastante populares, não são os únicos vetores utilizados. Aliás, eles
apresentam algumas limitações consideráveis, como o tamanho do DNA alvo capaz de ser introduzido.
Geralmente, eles conseguem carregar insertos de até no máximo 10 kb. Neste contexto, outros sistemas
41
Unidade I

de clonagem de alta capacidade foram desenvolvidos. Os bacteriófagos foram engenheirados e são


empregados como ferramenta na clonagem molecular. O bacteriófago λ, que infecta E. coli, é capaz de
carregar insertos cujo tamanho varia entre 15 e 20 kb.
Os fagos apresentam morfologia complexa, sendo formados por uma cabeça (capsídeo), onde o
DNA do vírus está alocado e por uma cauda, que auxilia na adsorção viral, assim como na injeção do
seu material genético na bactéria. Os bacteriófagos podem se multiplicar por meio de dois ciclos que se
alternam, sendo conhecidos como lítico e lisogênico.

Figura 24 – Estrutura do bacteriófago λ. A figura mostra os componentes de um bacteriófago λ. O material genético do vírus está
alocado na cabeça. A cauda auxilia no reconhecimento das células hospedeiras (adsorção viral), assim como na injeção do DNA
durante a infecção de uma bactéria

Figura 25 – Ciclo lítico e lisogênico do bacteriófago λ. A figura representa as etapas envolvidas com
o ciclo lítico e lisogênico do bacteriófago λ e a alternância entre eles

No ciclo lítico, após a injeção do seu material genético na bactéria, o DNA viral circulariza (o que
evita sua degradação) e prontamente inicia-se a síntese de ácidos nucleicos e de proteínas virais.
A produção de proteínas do hospedeiro é interrompida pela degradação do RNA da bactéria ou pela
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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

interferência da tradução, ambos eventos mediados por proteínas virais. O genoma do vírus, apesar
de simples é regulado, e assim, os genes precoces levam à tradução das enzimas necessárias para
síntese de DNA. Os genes tardios, como aqueles que formam a cápsula e a cauda, são sintetizados
em seguida. Com os componentes dos vírus disponíveis (moléculas de DNA viral, cápsula e cauda),
ocorre a montagem espontânea desses elementos, e novos vírus são formados. Eventualmente, a célula
hospedeira se rompe e os vírus são liberados para infectar uma nova bactéria.
No ciclo lisogênico, o DNA do vírus também circulariza, mas não é imediatamente transcrito.
Na verdade, este acaba se recombinando com o DNA cromossômico da bactéria, formando o profago,
que fica latente. A maioria dos genes do profago é reprimida por duas proteínas repressoras sintetizadas
pelo próprio fago. Todas as vezes que a bactéria se divide, o DNA viral também é replicado. Em algumas
condições específicas, como ação da luz UV ou de determinadas substâncias químicas, pode ocorrer a
excisão do DNA do fago do genoma da bactéria, o que promove a conversão do ciclo lisogênico para o lítico.
Aproveitando esta capacidade que o bacteriófago possui de injetar seu DNA nas bactérias, os
cientistas desenvolveram uma estratégia para produção de DNA recombinante constituído pelo o
DNA do fago e pelo DNA alvo para que o próprio fago funcionasse como veículo na entrega do DNA
recombinante à célula hospedeira.
Para entendermos como o bacteriófago λ funciona como um sistema de vetor para clonagem,
é preciso mergulharmos na organização do seu genoma. Este fago possui uma molécula de DNA de
aproximadamente 50 kb no qual os genes estão organizados em clusters, ou seja, genes com funções
afins são agrupados em uma determinada posição. Genes que codificam para os componentes do
capsídeo e da cauda estão posicionados na extremidade esquerda do genoma; os genes que regulam a
integração e excisão, importantes para o ciclo lisogênico, estão na posição central; e genes reguladores
e que controlam a síntese do DNA viral e a lise do fago da bactéria estão posicionados na extremidade
direita. A clusterização de genes relacionados é muito importante para controlar a expressão do genoma,
permitindo que eles sejam ativados e desativados como um grupo, em vez de individualmente. Esta
organização foi relevante para transformar o fago λ em vetor de clonagem.

Figura 26 – Mapa genético do bacteriófago λ. A figura mostra a posição de genes importantes


do bacteriófago λ e ilustra a importância da formação dos clusters

43
Unidade I

As extremidades do DNA viral são constituídas de sequências simples fita (12 bases de extensão) que
são complementares entre elas, conhecidas como sequência cos. Estas sequências são responsáveis pela
circularização do DNA do vírus ao ser inserido na bactéria. Além disso, elas sinalizam o local de clivagem
do DNA viral à medida que novas moléculas são produzidas. O DNA viral é sintetizado pelo mecanismo
de replicação por círculo rolante. O resultado desta replicação consiste em uma corrente de genomas
lineares unidos pelos sítios cos. O papel dos sítios cos é atuar como sequências de reconhecimento para
uma endonuclease que cliva a corrente, produzindo genomas individuais, com extremidades coesivas.

Figura 27 – Forma linear e circular do DNA do bacteriófago λ. Em A, está representada a forma linear do DNA com as extremidades
fita simples complementares conhecidas como cos. O DNA nesta configuração é encontrado dentro do bacteriófago com capacidade
de infectar. Em B, é mostrado o pareamento de bases entre as extremidades coesivas cos, que resulta na circularização da molécula
de DNA. Nesta configuração, o DNA pode ser encontrado na célula da bactéria, após a inserção do DNA viral. Em C, verifica-se que
a replicação por círculo rolante gera uma corrente de DNA linear. Esta corrente é clivada nas sequências cos por endonucleases
específicas. As moléculas de DNA resultantes são empacotadas individualmente nas cabeças dos bacteriófagos, que são associadas às
caudas, no processo de montagem de novos vírus

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

A produção e a montagem de novas partículas virais são eventos altamente controlados.


Cada cabeça (capsídeo) recém-produzida é preenchida com uma unidade de 50 kb de DNA, seguida
da montagem da cauda, que é adicionada para completar a formação de uma partícula infecciosa.
O volume da cabeça do bacteriófago λ suporta cerca de 50 kb de DNA, se menos de 38 kb forem
compactados em uma cabeça, será produzida uma partícula de bacteriófago não infecciosa, enquanto
mais do que 52 kb não caberão neste espaço. Assim, a localização das sequências de cos, que separa
os genomas de 50 kb, garante que cada cabeça receba a quantidade correta de DNA.

Figura 28 – Empacotamento do DNA do bacteriófago λ durante ciclo lítico. Em A, o DNA replicado a partir
da sua forma circular produz uma corrente linear contendo várias moléculas de DNA contínuas de
aproximadamente 50 kb para montagem de diversos bacteriófagos. Em B, temos um bacteriófago recém-sintetizado.
A cabeça é preenchida com uma molécula de DNA linear de 50 kb, contendo extremidades cos, antes da adição da cauda

Dos 50 kb do DNA do bacteriófago λ, aproximadamente 20 kb apresentam informações necessárias


para eventos de integração-excisão. Ao serem removidas, estas sequências liberam 20 kb de espaço para
inserção do DNA alvo. Subsequentemente, a molécula de DNA resultante inserida pode ser perpetuada
como um bacteriófago λ “recombinante” através de ciclos líticos compulsórios (lembre-se que nesta
construção, o genoma responsável pela integração e excisão viral foi removida). Ao misturar cabeças
vazias, DNA do bacteriófago λ (50 kb) e conjuntos de cauda, partículas virais infectantes são produzidas
em tubo de ensaio no laboratório.

Alguns dos muitos vetores de clonagem de bacteriófago λ que foram desenvolvidos apresentam
dois sites BamHI, que flanqueiam a região I/E. Quando o DNA purificado deste bacteriófago é cortado
com BamHI, três segmentos são gerados: segmento L (left), com a informação genética para a produção
de cabeças e caudas; segmento R (right), que carrega os genes para a replicação do DNA e lise celular;
e fragmento do meio, que possui os genes para os processos de integração e excisão (I/E). O objetivo
desta digestão é substituir o segmento do meio, I/E, do DNA do vírus, pelo DNA de interesse, que deve
ter aproximadamente 20 kb de comprimento.
45
Unidade I

O segmento I/E deve ser removido por fracionamento por tamanho (isto pode ser feito por meio de
uma eletroforese em gel de agarose, seguida da purificação dos produtos desejados), enriquecendo-se
a amostra com os segmentos L e R. O tratamento do DNA alvo com BamHI ou Sau3AI gera extremidades
coesivas com os fragmentos L e R. O DNA de origem digerido e as regiões L e R são misturados
e incubados com T4 DNA ligase. Em seguida, o DNA recombinante é colocado em meio contendo
cauda e cabeças para montagem do bacteriófago funcional. Nessas condições, unidades de DNA de
50 kb, flanqueados por regiões L e R com extremidades cos, são empacotados nas cabeças e partículas
infectantes de bacteriófago são formadas. Outros produtos da reação, muito grandes (>52 kb) ou muito
pequenos (<38 kb) não formarão bacteriófagos funcionais. Além disso, quaisquer moléculas de DNA
de 50 kb sem uma origem funcional de replicação e as terminações cos não poderão ser perpetuadas.
O bacteriófago recombinante λ sofre ciclos líticos e é mantido pelo crescimento em E. coli.

Figura 29 – Sistema de clonagem do bacteriófago λ. O bacteriófago λ é projetado para ter dois sítios BamHI que flanqueiam o segmento
I/E (incisão-excisão). Para clonagem, o DNA de interesse é clivado com BamHI e fracionado por eletroforese para separação e purificação
do fragmento alvo cujo tamanho deve compreender entre 15 a 20 kb. O DNA do bacteriófago λ também é clivado com a mesma enzima
de restrição liberando o segmento I/E. Os fragmentos L e R são separados e purificados do I/E por eletroforese em gel. Em seguida as
sequências L, R e do DNA de interesse, todos com extremidades coesivas, são misturados em presença da DNA ligase de T4, resultando
no DNA recombinante. A reação de ligação também produz um número de moléculas de DNA diferentes, incluindo ligação entre apenas
moléculas do DNA de interesse, segmentos contendo exclusivamente os fragmentos L e R combinados e ainda moléculas com DNA
de origem flanqueada ou pelas sequências L ou pelas sequências R. Estas últimas moléculas formadas não produzem bacteriófagos
funcionais. O empacotamento da molécula de DNA recombinante de 50 kb (contendo segmento R, DNA de interesse e segmento R), com
as sequências cos são as únicas que podem produzir vírus com capacidade infecciosa, e com capacidade de se perpetuar. O bacteriófago
recombinado λ é então inserido em placa de cultura para infecção e perpetuação em E. coli

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Os cosmídeos são vetores capazes de comportar cerca de 45 kb de DNA exógeno e são


mantidos como se fossem plasmídeos em E. coli. Eles foram construídos mesclando-se características
dos plasmídeos e dos bacteriófagos λ, daí o seu nome: cos se refere às sequências simples fita das
extremidades do DNA do fago e mídeo remete à palavra plasmídeo.

O cosmídeo pLFR-5, comumente utilizado na clonagem molecular, é formado por extremidades cos
que flanqueiam os seguintes elementos: sequência de reconhecimento para enzima de restrição ScaI;
MCS para seis enzimas de restrição (HindIII, PstI, SalI, BamHI, SmaI, e EcoRI; uma origem de replicação; e
gene de resistência ao antibiótico tetraciclina. Todos estes componentes juntos formam uma construção
de aproximadamente 6 kb.

Se o material que se deseja clonar possuir cerca de 44 kb, é possível usar esta construção para produzir
o DNA recombinante. Para tanto, o DNA alvo deve ser clivado com uma enzima de restrição presente no
MCS do pLFR-5. O cosmídeo deverá ser clivado inicialmente com ScaI a fim de linearizar a construção e
em seguida com a mesma enzima de restrição utilizada para clivar o DNA de interesse, ou com alguma
compatível, para que extremidades coesivas entre o vetor e o inserto sejam geradas. Depois, ambos
serão ligados em presença de DNA ligase de T4. O DNA recombinante formado apresentará cerca de
50 kb e extremidades cos. Consequentemente, esta molécula poderá ser empacotada nas cabeças
dos bacteriófagos λ e após montagem os vírus podem infectar E. coli. A reconstituição do pLFR-5
sem inserto não pode ser empacotado; fragmentos de DNA menores ou maiores que 38 kb e 52 kb,
respectivamente, não são compatíveis com a cabeça dos bacteriófagos.

Ao injetar o DNA recombinante no citoplasma da bactéria, esta circulariza por causa das
extremidades cos e o DNA é mantido na célula como um plasmídeo. Isso acontece porque este vetor
apresenta todos os requisitos básicos de um plasmídeo, inclusive a origem de replicação. O gene da
tetraciclina será usado como estratégia de seleção.

47
Unidade I

Figura 30 – Sistema de clonagem do cosmídeo. O cosmídeo contém uma origem de replicação de E. coli (ori) que
permite que este seja mantido como um plasmídeo na célula desta bactéria; duas sequências cos que possibilitam
empacotar esta construção dentro de um bacteriófago, uma região MCS (o MCS está representado como um retângulo
amarelo no cosmídeo, com destaque para enzima BamHI, que foi usada como exemplo) e um gene de resistência a
tetraciclina (Tetr), que é usado para seleção. O DNA de interesse é cortado com BamHI e separado por tamanho para
isolar moléculas com cerca de 45 kb de comprimento. O cosmídeo é cortado com ScaI, para linearizá-lo e em seguida
com BamHI, para gerar extremidades coesivas com o inserto. Os fragmentos da digestão com BamHI são misturados e
tratados com DNA ligase de T4 para estabelecer ligações fosfodiéster das extremidades coesivas. O DNA recombinante
formado apresenta cerca de 50 kb e pode ser empacotado nas cabeças dos bacteriófagos e em seguida montado com a
adição da cauda para a formação de vírus com capacidade de infecção. Estes bacteriófagos injetam o DNA recombinante
com as extremidades cos em E. coli. Após a entrada na célula hospedeira, a molécula de DNA circulariza, formando uma
estrutura semelhante ao plasmídeo, que é mantido na célula. Neste caso, as células transformadas podem ser
identificadas porque são resistentes ao antibiótico tetraciclina

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Além dos cosmídeos, existem construções semelhantes como os fosmídeos, ou vetores derivados
de outros bacteriófagos além do fago λ, como o fago P1. Os fosmídeos são construídos a partir do
plasmídeo F de E. coli e por isso possuem este nome. Eles também apresentam extremidades cos
dos bacteriófagos λ e podem carregar insertos de até aproximadamente 40 kb. No entanto, ao
contrário dos cosmídeos, funcionam como plasmídeos de cópia única dentro das células, o que
diminui as chances de deleções e rearranjos do DNA do inserto (quanto mais o DNA se divide, mais
passível a erros no processo ele é exposto). O fago P1 possui genoma longo, de 115 kb. Sistemas de
vetores P1 podem carregar insertos cujo tamanho varia entre 80 kb e 100 kb.

A análise dos genomas de organismos superiores requer a clonagem de fragmentos muito maiores
do que os das bactérias. Como os genes eucarióticos contêm íntrons, eles podem ter centenas de
quilobases de comprimento. Tais fragmentos de DNA longos requerem vetores especiais. Os vetores
de maior capacidade derivados do bacteriófago podem lidar com no máximo 100 kb. Consequentemente,
cromossomos artificiais foram desenvolvidos para transportar grandes extensões de DNA eucariótico.

Tabela 1– Vetores e tamanho máximo do inserto correspondente

Vetor Tamanho máximo do inserto


Plasmídeo com sítio múltiplo de clonagem 10 kb
Bacteriófago λ 20 kb
Cosmídeo 45 kb
Bacteriófago P1 100 kb
PAC (cromossomo artificial P1) 150 kb
BAC (cromossomo artificial de bactéria) 300 kb
YAC (cromossomo artificial P1) 2.000 kb
HAC (cromossomo artificial humano) Ilimitado

Cromossomos artificiais (ACs, artificial chromosomes) são ferramentas promissoras na área de terapia
gênica e possuem muitas vantagens sobre outros sistemas vetoriais. Semelhantes aos cromossomos
endógenos, os ACs podem se replicar e segregar de forma autônoma, sem integração no cromossomo
hospedeiro. Apesar de apresentam grande potencial e diversos benefícios quando comparados com
outros vetores, são altamente complexos, tecnicamente desafiadores de se construir e difíceis de se
inserirem na célula hospedeira. Existem vários sistemas cromossômicos artificiais em desenvolvimento,
como cromossomos artificiais humanos (HACs, human artificial chromosomes), cromossomos
bacterianos artificiais (BACs, bacterial artificial chromosomes), cromossomos artificiais de levedura
(YACs, yeast artificial chromosomes) e cromossomos artificiais derivados de P1 (PACs, P1‑derived
artificial chromosomes).

Vamos entender como funcionam cromossomos artificiais? Tomemos como exemplo os YACs.
Segmentos de DNA de até 2.000 kb podem ser transportados nestes cromossomos artificiais de levedura.
Para que qualquer construção, seja plasmídeo ou cromossomo, sobreviva na levedura, o vetor deve
ter uma origem de replicação específica reconhecida pelos componentes da maquinaria de replicação
desta célula e uma sequência de reconhecimento do centrômero (sequência Cen). O YAC tem esses

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Unidade I

dois elementos. Além disso, conforme exigido por todos os cromossomos eucarióticos, as sequências
de telômeros devem estar presentes em ambas as extremidades. Uma célula de levedura tratará essa
estrutura, embora artificial, como um cromossomo. Obviamente, para uso prático, um marcador
selecionável e um local de clonagem múltipla adequado também estão incluídos.

Como as sequências de reconhecimento para origens de replicação, centrômeros e telômeros são tão
semelhantes entre os organismos superiores, um bônus é que os YACs podem se manter em células de
camundongos e até mesmo serem transmitidos entre gerações. É certo que nem todos os descendentes
herdarão os YAC, mas a possibilidade abre o caminho para a clonagem de enormes sequências de DNA e
constitui uma ferramenta poderosa para a identificação de componentes do genoma de animais superiores
(por meio da construção de bibliotecas genômicas) e para o desenvolvimento de animais transgênicos.

Figura 31 – Cromossomo artificial de levedura. O YAC tem duas formas, uma circular para crescimento em bactérias e outra
forma linear para crescimento em leveduras. A forma circular pode ser manipulada e cultivada como qualquer outro plasmídeo
em bactérias, uma vez que possui uma origem de replicação bacteriana e um gene de resistência a antibióticos. Para cultivo em
levedura, a forma circular é isolada e linearizada de modo que as sequências dos telômeros estejam em cada extremidade. Na forma
linearizada, esta construção pode acomodar até 2.000 kb de DNA clonado inserido no sítio de clonagem múltipla (MCS)

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2.1.3 Inserindo o DNA na célula

Como vimos, uma vez produzido o DNA recombinante, é necessário inseri-lo numa célula. Existem
diferentes estratégias para entregar o DNA de interesse, e a escolha entre elas depende muito das
características do vetor, do inserto, da célula hospedeira e dos objetivos do pesquisador.

A transformação, a conjugação e a transdução podem contribuir com o aumento da diversidade


genética nas bactérias. Estes procedimentos permitem a transferência horizontal de genes (HGT,
horizontal gene transfer). Ao estudar estes eventos que ocorrem naturalmente, cientistas reconheceram
mecanismos que poderiam ser usados para transferência de DNA in vitro. Ao manipular estes recursos,
os pesquisadores acabaram desenvolvendo protocolos eficazes para introdução do DNA recombinante
na bactéria. Vamos aprender o que estes cientistas fizeram?

Observação

A transferência horizontal de genes corresponde à introdução de


material genético de um organismo para outro na mesma geração.

A transformação é o processo de introdução de DNA livre em uma bactéria. Um dos sistemas


utilizados para a transformação considera a competência natural de alguns destes microrganismos.
A competência corresponde à capacidade inata que algumas bactérias possuem de incorporar
fragmentos de DNA presentes no meio em que se encontram. Este mecanismo é considerado um
programa de desenvolvimento em procariotos, uma vez que o DNA exógeno internalizado pode ser
usado pela célula como fonte de novos nucleotídeos (empregados para síntese e reparo do DNA), e de
diversidade genética. A possível similaridade do DNA internalizado com o DNA cromossômico viabiliza a
recombinação homóloga. Quando ocorre recombinação, chamamos este fenômeno de transformação
natural, que acaba promovendo aumento da variabilidade genética do microrganismo. Por que algumas
bactérias são naturalmente competentes, enquanto outras não?

51
Unidade I

Figura 32 – Potenciais benefícios da competência natural. As bactérias podem tirar vantagem do DNA incorporado
utilizando-o para fins nutricionais (reciclagem de nucleotídeos como novos blocos de construção de DNA), para a
aquisição ou exclusão de genes, para reparo de DNA, ou numa combinação destes eventos. Em azul está
representado o DNA exógeno e em cinza, o DNA da bactéria competente

A resposta está nos genes! A competência é geneticamente codificada; uma gama de genes que
está envolvida na regulação da competência e no processo de captação de DNA já foi identificada. Estes
genes sintetizam proteínas que são responsáveis, entre outras funções, por capturar o DNA exógeno,
degradar uma das fitas, permitir a entrada do DNA simples fita na célula e ainda controlar os eventos
de recombinação. Curiosamente, algumas bactérias acoplam a maquinaria de captação de DNA a outras
respostas fisiológicas, como a parada de crescimento ou competição interbacteriana, resultando em
vários eventos que estão associados com a regulação mediada pela competência.

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Figura 33 – Captação e transformação de DNA por bactérias Gram-negativas competentes. Em A, inicia-se o processo de captura do
DNA exógeno, que é associado à superfície da célula. Em B, o DNA é capturado e internalizado no espaço entre as membranas através
de um poro. Em C, uma proteína específica degrada uma das fitas do DNA exógeno e transloca a simples fita remanescente para
dentro da célula. Em D, a nova fita se recombina com uma sequência homóloga no cromossomo da bactéria

É possível aumentar a competência de bactérias através de seu cultivo em condições especiais.


Nos casos em que a competência não ocorra de forma natural, ela pode ser induzida quimicamente,
em um processo conhecido como transformação química. O primeiro protocolo para transformação
artificial de E. coli foi publicado por Mandel e Higa em 1970. Em 1983, Douglas Hanahan publicou um
método melhorado para preparar células competentes, identificando as condições ideais e os meios
para o crescimento a fim de aumentar a eficiência de transformação. É possível introduzir o DNA
recombinante em E. coli por meio do tratamento destas células com uma solução de cloreto de cálcio
gelada (CaCl2), em presença do DNA alvo, seguido pela exposição desta mistura, por cerca de 2 minutos,
a altas temperaturas (~42 °C – choque térmico). Este protocolo promove aberturas temporárias do
envoltório celular, permitindo que as moléculas de DNA exógeno entrem no citoplasma.

Figura 34 – Transformação química. As bactérias podem ser induzidas quimicamente à competência.


O DNA de interesse é incubado com a bactéria em solução com CaCl2 e em seguida esta mistura é submetida a
altas temperaturas (choque térmico). Após o choque, a membrana plasmática se reorganiza e os poros desparecem

53
Unidade I

A transformação química, nas condições descritas, tem uma frequência de transformação máxima
de cerca de 1 célula transformada a cada 1.000 células (ou seja, 1 a cada 10 3 células). Na prática,
o cientista pode estimar que cada micrograma do DNA recombinante permitirá uma eficiência por volta
de 107-108 colônias transformadas. Embora uma frequência de 100% seja ideal, estratégias de seleção
que permitam que células transformadas por plasmídeo sejam prontamente identificadas superam a
desvantagem de uma baixa frequência de transformação. Vale a pena ressaltar que a competência
natural é diferente da quimicamente induzida, a primeira é codificada pelos genes e a segunda é mediada
pela permeabilização artificial do envoltório celular.

Além deste, outros sistemas de entrega de DNA estão disponíveis para bactérias que não são
naturalmente competentes ou que são refratárias à competência induzida quimicamente. A captação
de DNA livre pode ocorrer submetendo bactérias a um campo elétrico de alta tensão. Este procedimento
é conhecido como eletroporação. Os protocolos de eletroporação variam entre as diferentes espécies
bacterianas. Para E. coli, as células e o DNA recombinante são colocados em uma câmara (cubeta)
equipada com eletrodos, e um único pulso de aproximadamente 25 μF (microfarad), 2,5 kV (quilovolt)
e 200 Ω (ohm) é administrado por cerca de 4,6 ms (milissegundo). O equipamento que controla este
choque elétrico é conhecido como eletroporador. Este tratamento apresenta eficiência de cerca de
109 células transformadas por micrograma de DNA para plasmídeos pequenos (~ 3 kb) e 106, para
plasmídeos grandes (~ 136 kb). Condições semelhantes são usadas para introduzir o vetor BAC em E. coli.
Assim, a eletroporação pode ser uma opção para transformar E. coli com plasmídeos contendo insertos
com mais de 100 kb. Como um conjunto apropriado de condições de eletroporação pode ser encontrado
em quase todas as espécies bacterianas, este procedimento tornou-se padrão para transformar muitos
tipos diferentes de bactérias.

Figura 35 – Eletroporação. As bactérias podem ser transformadas por eletroporação. O DNA de interesse é incubado com a bactéria e
em seguida esta mistura é submetida a choque elétrico. Após o choque, a membrana plasmática se reorganiza e os poros desparecem

Durante a eletroporação, o breve pulso elétrico induz à formação de poros transitórios na bicamada
fosfolipídica das células, por meio das quais o DNA de interesse pode ser introduzido. Ao mesmo tempo,
este pulso reorienta as cargas da membrana plasmática. Assim, forma-se uma região com predomínio
de cargas positivas em um lado da membrana e outra, com predomínio de cargas negativas, no lado
oposto. A distribuição diferencial de cargas promove movimento das moléculas de DNA, uma vez que
estas acumulam cargas negativas em pH fisiológico, sendo atraídas para o interior da célula.

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Figura 36 – Eventos que ocorrem durante a eletroporação. A figura mostra uma


representação esquemática (acima) e a microscopia (abaixo) das alterações da membrana
plasmática que acontecem durante e depois do choque elétrico, no procedimento de eletroporação

O processo bacteriano de conjugação também pode ser manipulado para clonagem molecular.
O DNA recombinante pode ser transferido por conjugação quando células bacterianas contendo um
plasmídeo F recombinante são misturadas com células bacterianas compatíveis sem o plasmídeo.
Os plasmídeos F codificam para o pilus, uma estrutura de superfície que facilita o contato entre duas
bactérias. No contato, uma ponte citoplasmática se forma entre as duas células, e aquela contendo o
plasmídeo F o replica e o transfere para a célula receptora. Uma vez recebido o plasmídeo F recombinante,
a célula receptora pode produzir seu próprio pilus e facilitar a transferência do plasmídeo F recombinante
a uma célula adicional. O uso de conjugação para transferir plasmídeos F recombinantes a células
receptoras é outra forma eficaz de introduzir moléculas de DNA recombinante em células hospedeiras.

Alternativamente, os bacteriófagos podem ser usados para introduzir DNA recombinante nas
células bacterianas hospedeiras por meio da manipulação do processo conhecido como transdução.
A transdução consiste na transferência do DNA de uma bactéria para outra por meio de um bacteriófago.
Este processo corresponde a um mecanismo natural de transferência horizontal de genes que pode
ocorrer durante o ciclo lítico, na transdução generalizada, ou durante a conversão do ciclo lisogênico
para o lítico, na transdução especializada.

55
Unidade I

Na transdução generalizada, qualquer pedaço do DNA cromossômico de uma bactéria pode ser
transferido para uma outra por meio dos bacteriófagos. Isto ocorre porque o DNA cromossômico
da bactéria infectada pelo fago é clivado pela ação das enzimas virais. Muitas vezes ocorre o
empacotamento acidental destes fragmentos de DNA durante a montagem de novos vírus. Assim, quando
o fago recém‑montado infecta outra célula hospedeira, acaba carregando não só o genoma viral, mas
pedaços do DNA da bactéria infectada anteriormente. Este DNA bacteriano pode então se recombinar
com o material genético da célula hospedeira, contribuindo com aumento da diversidade genética.

Figura 37 – Transdução generalizada. Na imagem estão representadas as etapas da transdução generalizada.


A) Durante o ciclo lítico de um fago, o DNA do hospedeiro é degradado. B) Um fragmento pode ser erroneamente
empacotado em um fago recém-sintetizado. C) É liberado no meio ambiente. D) Ao infectar uma nova célula
hospedeira, o fago libera seu DNA. E) Embora incapaz de se replicar, pode sofrer recombinação com uma sequência
homóloga no cromossomo hospedeiro. F) Qualquer sequência de DNA de uma bactéria pode ser transduzida desta forma

Na transdução especializada, apenas sequências específicas do DNA bacteriano podem ser


transferidas. Isso resulta da excisão imprecisa de um profago lisogênico. Assim, quando o DNA viral se
destaca do cromossomo da bactéria, carrega consigo as sequências do DNA bacteriano que flanqueavam
o DNA viral na forma de profago. Na conversão para o ciclo lítico, a montagem de novos bacteriófagos
resulta em fagos que possuem o DNA viral associado a segmentos do DNA da bactéria. As células
hospedeiras destes novos vírus podem então adquirir novas propriedades, pois acabam recebendo um
novo segmento de DNA de outra bactéria.

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Figura 38 – Transdução especializada. A figura mostra as etapas da transdução especializada. Durante o ciclo de replicação
de um bacteriófago lisogênico, o DNA do fago é incorporado ao cromossomo hospedeiro. Quando um ciclo lítico recomeça
e o DNA do fago é excisado, pode carregar consigo uma quantidade de DNA cromossômico circundante. Este é empacotado
em partículas de fago que infectam um novo hospedeiro. O material genético é, por sua vez, integrado ao cromossomo
bacteriano. Apenas genes que cercam o sítio de integração do profago podem ser transduzidos desta forma

No laboratório, como visto, o DNA de interesse pode inserido no genoma viral do fago, o que permite
que este seja empacotado em suas cabeças. Os vírus, ao infectar a célula hospedeira, inserem o DNA
recombinante, que pode se integrar no genoma bacteriano (lisogenia), ou existir como um plasmídeo no
citoplasma. Os vírus também podem ser utilizados para transferir material genético a células eucariontes.
Retrovírus e adenovírus engenheirados geneticamente são frequentemente usados neste processo.

Em comparação com as células bacterianas, as eucariontes tendem a ser menos receptivas como
hospedeiras para moléculas de DNA recombinante. Normalmente, estas não são competentes para
captar DNA, nem para manter plasmídeos. O DNA linear normalmente é degradado, sendo desejável
a sua integração no DNA genômico. Atualmente, diferentes protocolos de eletroporação em células
eucariontes estão sendo testados a fim de aumentar a eficiência deste processo. A inserção de material
genético em uma célula eucarionte por métodos químicos, físicos ou por vesículas de lipídeos é
conhecida como transfecção.

Existem vacinas de DNA em desenvolvimento cujos protocolos de entrega desta molécula envolvem
a eletroporação. A posição dos eletrodos do eletroporador em relação aos tecidos garante que o DNA
seja entregue para as células adequadas, por exemplo, para o tecido muscular ou o tecido conjuntivo.
O local da entrega dependerá dos princípios da vacina e dos objetivos dos pesquisadores.

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Unidade I

Figura 39 – Representação esquemática de uma vacina de DNA sendo entregue pelo protocolo de eletroporação. Visão esquemática
da imunização de DNA por eletroporação intramuscular e intradérmica. Em A), para eletroporação intramuscular, uma série de
eletrodos de agulha transportam uma corrente elétrica para as células na camada muscular. Depois de um choque elétrico,
a membrana celular das células musculares fica temporariamente permeável, permitindo que o plasmídeo de DNA entre na célula.
Em B), para a eletroporação intradérmica, os eletrodos de agulha são colocados ou introduzidos na pele. Os plasmídeos de DNA são
absorvidos pelas células dendríticas (células de Langerhans) da pele após pulsos eletrônicos na eletroporação

Um método alternativo de transfecção é denominado microinjeção. Como as células eucariontes


são normalmente maiores do que as procariontes, os fragmentos de DNA podem ser injetados
diretamente no citoplasma com o auxílio de uma micropipeta de vidro (ou agulha de microinjeção).
A microinjeção é utilizada na criação de organismos geneticamente modificados (OGM). Além disso, é
comum nos laboratórios de fertilização in vitro, em que o espermatozoide é inserido diretamente dentro
do ovócito II, para a entrega do DNA de origem paterna, possibilitando a formação de um embrião.

Figura 40 – Microinjeção. A microinjeção consiste em uma técnica para inserção do DNA em células eucarióticas. Uma agulha de
microinjeção contendo DNA recombinante é capaz de penetrar tanto na membrana celular quanto no envelope nuclear

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Transfectar células vegetais pode ser ainda mais difícil do que células animais devido à presença
de paredes celulares espessas. Uma abordagem que consegue transpor este problema envolve o
tratamento de células vegetais com enzimas para remover suas paredes celulares, produzindo
protoplastos (a remoção da parede celular facilita a introdução do DNA na célula). Em seguida,
um aparato que remete a uma “arma de genes” (gene gun) é usado para atirar partículas de DNA
recombinante revestidas de ouro ou tungstênio nos protoplastos da planta em altas velocidades.
As células receptoras protoplasmáticas podem então se recuperar (ocorre a reconstituição da parede
celular), e originar plantas geneticamente modificadas.

Figura 41 – Transfecção de DNA recombinante em células vegetais por meio de arma de genes (gene gun).
Em A e B, estão representados um esquema e uma fotografia de uma arma de genes, respectivamente.
Em C, observa-se as etapas envolvidas no processo de transformação de células vegetais com o uso da arma
de genes, para produção de plantas geneticamente modificadas. Moléculas de DNA recombinante revestidas
com partículas de metal pesado (ouro ou tungstênio) são atiradas em protoplastos de plantas com o auxílio da
arma de genes. As células transformadas resultantes podem se recuperar e dar origem a plantas recombinantes

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Unidade I

Outro método de transfecção de plantas envolve plasmídeos Ti que podem ser transferidos de
células bacterianas para as células vegetais. Os plasmídeos de virulência Ti originários da Agrobacterium
tumefaciens são comumente usados como vetores de transporte para transferência de genes para
plantas. Na natureza, os plasmídeos Ti fazem com que as plantas desenvolvam tumores quando são
transferidos das bactérias para células vegetais. Uma região do plasmídeo Ti conhecida como T-DNA
é capaz de se recombinar com o genoma da planta, transferindo genes que estimulam a proliferação
descontrolada do tecido vegetal infectados pela bactéria. Os pesquisadores foram capazes de manipular
esses plasmídeos de ocorrência natural para remover seus genes causadores de tumor e inserir fragmentos
de DNA desejáveis. Uma vez dentro da célula hospedeira, o gene de interesse se recombina no genoma
da célula da planta, fazendo com que esta adquira novas propriedades.

Figura 42 – O plasmídeo Ti é comumente usado como um vetor para a modificação genética de plantas. O plasmídeo Ti de
Agrobacterium tumefaciens é um vetor de transporte útil para a transferência de segmentos de DNA para células vegetais. O DNA
de interesse é clonado no plasmídeo Ti, que é então introduzido nas células vegetais infectadas com bactérias transformadas.
O DNA de interesse se recombina no genoma da célula vegetal, permitindo a produção de plantas geneticamente modificadas

2.1.4 Mecanismo de seleção

Após executar um protocolo para inserir um DNA exógeno nas células, é importante identificar quais
delas de fato internalizaram o DNA de interesse. Várias estratégias de seleção são possíveis.

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Tomemos como exemplo a transformação de uma bactéria com o vetor plasmideal pBR322.
Este vetor possui genes de resistência aos antibióticos tetraciclina e ampicilina. Vamos supor que
o pesquisador tenha decidido inserir o DNA de interesse na região do plasmídeo com MCS (sítio de
clonagem múltiplo), presente dentro do gene que confere resistência à tetraciclina. Para isso, digeriu o
DNA de interesse e o vetor com a enzima de restrição BamHI e procedeu com a reação de ligação em
presença de DNA ligase. Assim, se o inserto se integrar no vetor, o gene de resistência à tetraciclina não
poderá transcrever o seu produto.

Uma vez finalizada esta etapa da clonagem, podemos cultivar as bactérias em meio contendo o
antibiótico ampicilina. Assim, garantiremos que apenas as bactérias que incorporaram o vetor vão crescer
e desenvolver colônias. Aquelas que não foram transformadas serão eliminadas pela ação da ampicilina.
Em seguida, utilizaremos uma ferramenta semelhante a um carimbo para transferir as colônias desta
placa para outra. Esta segunda placa deve ser preparada com o meio de cultura contendo o antibiótico
ampicilina e tetraciclina. Ao fazer esta placa carimbo, é importante marcar a posição em que as colônias
foram transferidas de modo a identificá-las quando compararmos com a placa-mãe.

Nesta segunda placa, crescerão apenas as bactérias que contêm o gene da tetraciclina íntegro, ou
seja, aquelas que não apresentam o DNA de interesse inserido. Mas então, como poderemos isolar as
colônias que possuem o gene de interesse, uma vez que elas não crescem nestas condições?

É por isso que a marcação da placa carimbo em relação à placa-mãe é tão importante. O pesquisador
deverá recorrer à placa-mãe para selecionar a colônia equivalente, ou seja, aquela que está exatamente
na posição da placa-mãe em relação à mesma posição da placa carimbo em que não houve formação
de colônias. Após recuperação, estas colônias podem ser expandidas em meio de cultura líquido para
purificação.

61
Unidade I

Figura 43 – Estratégia para selecionar células hospedeiras que foram transformadas com pBR322. Em A, estão representadas as
etapas envolvidas com a seleção das células transformadas com o vetor de interesse. Em B, é mostrado como se emprega a estratégia
da placa carimbo no processo de seleção. (1 e 2) as colônias possivelmente transformadas serão transferidas para constituir, através
de um dispositivo constituído por uma superfície de veludo, (3) as células aderentes são transferidas para (4) placa com meio
contendo apenas ampicilina (placa-mãe) e (5) placa contendo ampicilina e tetraciclina. A colônia ausente (círculo tracejado) na placa
5 representa a colônia que incorporou o inserto na posição desejada. A colônia presente no local equivalente na placa 4 pode ser
coletada e (6) expandida em meio líquido

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Outro sistema conhecido como seleção azul-branca (blue-white screening) é baseado no controle
da expressão dos genes em procariotos, que é mediada pelos operons. Mas o que são os operons?

Recordando, em bactérias, a transcrição é iniciada pelo reconhecimento da região promotora pelo


fator σ da RNA polimerase bacteriana. Após a síntese de alguns nucleotídeos iniciais do mRNA, o núcleo
central da polimerase se dissocia do fator σ e progride ao longo do molde de DNA à medida que a
cadeia de RNA é sintetizada. Então, a transcrição continua até a polimerase se deparar com um sinal
de terminação.

Figura 44 – Transcrição em procariotos. A figura ilustra as etapas envolvidas na transcrição de procariotos

A disposição dos genes nos organismos procariontes é diferente daquela encontrada nos eucariontes.
Nas bactérias, os genes que participam de algumas vias metabólicas afins estão posicionados um ao
lado do outro, sendo transcritos como uma molécula de mRNA única. Este longo transcrito é por sua vez
processado, e então traduzido em várias proteínas distintas, equivalentes ao número de genes dispostos
em tandem no sistema de transcrição. Esta disposição permite uma economia de espaço. Lembre-se de
que o genoma dos procariotos é muito menor e mais simples do que o genoma dos eucariotos. Com
este arranjo, uma única sequência promotora e terminadora é necessária para regular um conjunto de
genes, e como estes possuem funções que se relacionam, são codificados em um mesmo momento na
célula. Muitos vírus também adotaram esta estratégia, a fim de comprimir um número máximo de genes
dentro de um genoma viral pequeno.

63
Unidade I

Lembrete

Em tandem significa que a disposição do gene, ou de uma sequência de


nucleotídeos qualquer, é consecutiva, uma seguida da outra.

Em eucariotos esta disposição é rara. O genoma é bastante grande, o que permitiu que praticamente
cada gene tivesse o seu conjunto de sequências regulatórias (promotores, terminadores e enhancers),
contribuindo com o controle extremamente fino da expressão gênica. Este controle ocorre de acordo
com a alta complexidade da célula eucarionte.

Em 1961, Jacob e Monod elucidaram o primeiro sistema de controle gênico de procariotos, conhecido
como operon lac. Estes pesquisadores, ao estudar a via de catabolismo da lactose, determinaram que o
conjunto de genes que participa desta via é regulado de forma coordenada. Vamos verificar como isso
funciona. Entretanto, primeiramente é preciso definir o que é um operon.

Um operon qualquer corresponde a um conjunto de sequências reguladoras e aos seus genes


associados. Estas sequências reguladoras controlam a expressão conjunta dos genes relacionados
conforme as necessidades da célula em um determinado contexto. Elas correspondem a um promotor
e a um operador. A ordem em que esses componentes aparecem e sua disposição é extremamente
importante para o funcionamento do operon. Tem-se que o promotor é disposto primeiro, em relação
ao sentido da transcrição, enquanto o operador está situado entre o promotor e os genes do operon.
Sabemos que o fator σ liga-se à região promotora, permitindo o recrutamento da RNA polimerase. Mas
e no operador?
Operon
Região de Genes
controle estruturais
I P O Z Y A
DNA

Gene Promotor Operador


regulador

Figura 45 – Estrutura de um operon. O operon é formado por um promotor (P), um operador (O) e por genes associados.
O gene regulador (I) codifica para a proteína repressora, que torna os operons indutíveis ou repressíveis ligados
ou desligados. O gene regulador nem sempre se localiza próximo ao sistema, conforme ilustrado na figura

A molécula que se liga ao operador é conhecida como proteína repressora ou repressor. E o que
um repressor gosta de fazer? Reprimir, é claro! Assim, um repressor ativo é aquele que está reprimindo.
Pense nisto quando for avaliar o funcionamento de qualquer operon. O repressor reprime quando
está ligado ao operador. Assim, o operador é uma sequência de nucleotídeos do sistema operon que
é reconhecida pelo repressor. Quando o repressor está ligado ao operon, forma uma barreira física
que impede que a RNA polimerase, associada ao promotor, deslize sobre o DNA e transcreva os genes que
estão dispostos após o operador. Em contrapartida, quando o repressor não está ligado ao operador,
64
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

dizemos que este está inativo. Repressor “gosta” de reprimir, se ele não está reprimindo é porque não
está desempenhando sua função e, portanto, está inativo. Desta forma, sem a presença do repressor no
operador, a RNA polimerase pode deslizar livremente pelo DNA e transcrever os genes dispostos à frente
do operador. O gene que codifica para a proteína repressora é independente do operon e pode estar
localizado em uma posição distante do genoma.

Figura 46 – Operon lac. A figura ilustra o funcionamento do operon lac, que é um operon indutível. Em A, o repressor está ativo, e,
portanto, o sistema encontra-se desligado. A proteína repressora liga-se ao operador e bloqueia a transcrição dos genes. Em B, o
repressor está inativo, permitindo a transcrição dos genes a jusante. A proteína repressora, ao se ligar à molécula indutora alolactose,
é inativada, não sendo capaz de se associar ao operador. Nestas condições, os genes do operon podem ser transcritos e traduzidos
resultando na produção das enzimas necessárias para o catabolismo da lactose

No caso do operon lac, os genes encontrados são conhecidos com lac Z, lac Y e lac A. O gene
lac Z codifica para a β-galactosidase, o gene lac Y, para uma permease e o gene lac A para uma
transacetilase. O que estas proteínas fazem?

A β-galactosidase catalisa a quebra do dissacarídeo lactose, liberando os monossacarídeos glicose


e galactose. A glicose, por sua vez, é prontamente usada para síntese de energia sob a forma de ATP.
A permease corresponde a uma proteína transmembrana que facilita a entrada da lactose do meio
extracelular ao intracelular. Assim, se a bactéria está precisando produzir ATP, mas a disponibilidade
de glicose é baixa, ela pode aumentar os seus níveis de glicose, quebrando a lactose. Logo, se existe
lactose acessível fora da célula, esta pode ser internalizada com auxílio da permease e quebrada
pela β-galactosidase. A verdade é que é interessante para a bactéria produzir ao mesmo tempo a
β-galactosidase e a permease. Ambas funcionam em conjunto para alcançar um objetivo: disponibilizar
glicose para a célula via metabolismo da lactose. E a transacetilase? Esta só foi descrita mais tarde. Ela
metaboliza outros dissacarídeos semelhantes à lactose, mas que não são clivados pela β-galactosidase.

Vamos agora simular algumas situações. O que acontece com o operon lac quando a bactéria é
colocada em um meio com elevada quantidade de lactose? Em ambientes com alta concentração de
lactose, encontramos também uma grande quantidade de seu isômero, denominado alolactose.
A alolactose é capaz de se ligar ao repressor, impedindo que este se associe ao operador. Com o operador
livre, a RNA polimerase pode transcrever conjuntamente os genes lac A, Y e Z. De fato, o sistema de
65
Unidade I

regulação do operon lac é conhecido como de indução (ou indutível), pois a molécula de alolactose, cuja
concentração determina a atividade do operon, regula a indução do operon quando está em excesso.
À medida que a lactose é degradada pela β-galactosidase, a disponibilidade de alolactose também
diminui e a quantidade de glicose na célula aumenta. Com a menor disponibilidade de alolactose, ocorre
aumento da quantidade de repressor livre (pois a alolactose deixa de se ligar ao repressor), que pode se
associar ao operador, levando ao bloqueio da transcrição dos genes deste operon.

Mas e quando a bactéria é colocada em um meio sem lactose? Quando não há lactose, também não
encontramos o seu isômero alolactose. Na ausência de alolactose, o repressor está livre para se ligar ao
operador. Com isso o repressor se encontra ativo e não há transcrição do operon lac.

Este mecanismo de regulação gênica é bastante econômico em termos energéticos. Por que a
célula sintetizaria β-galactosidase na ausência de lactose (e consequentemente alolactose)? Seria um
desperdício de recursos, uma vez que não há substrato disponível para a enzima para clivar. No sentido
oposto, na presença de lactose é vantajosa para a célula produzir a β-galactosidase, pois poderá utilizar
este dissacarídeo como fonte de glicose (e, portanto, energia sob a forma de ATP).

A regulação do operon lac também depende do nível de glicose no meio. Em condições de abundância
de glicose, a célula produzirá bastante ATP, e a quantidade de cAMP (AMP cíclico) será baixa. Quando os
níveis de glicose no meio caem, os níveis de cAMP aumentam, servindo como um sinal de alarme celular.

O que será que acontece então quando a bactéria é colocada em meio com baixa quantidade de
glicose, mas na presença de lactose? Nesta condição é pertinente dizer que a bactéria se encontra em
uma situação crítica, pois não há glicose em abundância. Logo, é preciso acelerar a quebra da lactose,
de modo a garantir disponibilidade de glicose. Outra proteína conhecida como CAP (proteína ativadora de
catabólito, catabolite activator protein), que é ativada em presença de cAMP, participa de uma “super
ativação do operon”. Mas como?

Primeiramente, precisamos introduzir um novo sítio regulador no operon lac. Este é conhecido como
sítio CAP, pois apresenta uma sequência que é reconhecida por esta proteína. O sítio CAP está disposto
a montante do promotor, ou seja, voltado em direção à extremidade 5’. Como vimos, em meio com baixa
quantidade de glicose, temos uma alta quantidade de cAMP. Quando em excesso, cAMP se liga a CAP,
ativando-a. CAP ativada é capaz de associar-se ao sítio CAP e aumentar a afinidade da RNA polimerase
pelo promotor. Como resultado, os genes do operon acabam sendo transcritos em uma velocidade
muito maior.

Desta forma, se a bactéria é colocada em meio com alta quantidade de glicose e na presença de
lactose, o sistema operon lac não precisa “trabalhar intensamente”. Na presença de glicose, os níveis
de cAMP são baixos, sem cAMP não há ativação de CAP e sem CAP, não há aumento da afinidade da RNA
polimerase pelo promotor e a transcrição dos genes do operon ocorre em uma taxa basal.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 47 – Regulação positiva do operon lac, mediada pela concentração de glicose. Em A, observa-se que se a glicose é escassa,
a elevada concentração de cAMP ativa CAP, e a RNA polimerase é capaz de transcrever prontamente elevadas quantidades
dos genes estruturais contidos no operon. Em B, verifica-se que em presença de alta quantidade de glicose, os níveis de cAMP
são baixos e, portanto, a proteína CAP permanece inativa. Nessas condições, o operon é transcrito em taxas basais

Dentre todas as condições existentes, faltou analisarmos duas:

• bactéria é colocada em meio com alta quantidade de glicose e na ausência de lactose;

• bactéria é inserida em meio com baixa quantidade de glicose e na ausência de lactose.

Nessas duas situações, não há presença de lactose, então sabemos que o operon estará inativo,
independentemente das concentrações da glicose.

Agora que sabemos como o operon lac funciona, podemos determinar como este sistema é utilizado
para selecionar as bactérias que internalizaram o DNA recombinante no processo de clonagem.

O vetor pUC19 é um de uma série de plasmídeos que foram criados por Joachim Messing
e colaboradores. A designação pUC é derivada do prefixo p que, como vimos, significa plasmídeo e
da abreviatura para a Universidade da Califórnia, onde o trabalho inicial na série de plasmídeos foi
conduzido. O vetor pUC19 possui 2.686 pares de bases, dentre os quais se abriga a sequência que
codifica para os primeiros aminoácidos da β-galactosidase, conhecida como LacZ α, e seus elementos
regulatórios. Repare que dentro deste segmento existem sítios de reconhecimento para diferentes
enzimas de restrição, ou seja, a inserção do DNA de interesse foi planejada para acontecer dentro desta
fração do lac Z α. Assim, se houver inclusão do inserto no plasmídeo pUC19, a sequência é interrompida,
impedindo a produção da cadeia polipeptídica correspondente.

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Unidade I

Figura 48 – Elementos do vetor de clonagem pUC19, que é um vetor plasmideal utilizado para clonagem na bactéria E. coli.
Ele possui uma origem de replicação, o gene de resistência ao antibiótico ampicilina (amp) e a sequência inicial do
gene lac Z, que codifica uma parte da enzima β-galactosidase. Os elementos reguladores do Lac Z, operador
e promotor, também estão presentes no vetor. O MCS (sítio de clonagem múltiplo) se localiza dentro do lac Z

O fenômeno conhecido como complementação α fez dos vetores puC uma ferramenta
importante no processo de seleção. Na clonagem, a cepa hospedeira de E. coli, ou seja, a bactéria que
será transformada após a preparação do DNA recombinante, apresenta uma mutação de deleção
no gene lacZ, presente no DNA cromossômico. Para identificar o gene lacZ mutado, vamos designá-lo
de lacZ ω. Este corresponde ao gene lac Z sem a sequência equivalente contida apenas no plasmídeo
pUC. Os segmentos lacZ α e lacZ ω codificam cada um para uma porção da enzima β-galactosidase.
Quando estas cadeias de polipeptídeos se associam, geram a enzima funcional.

Assim, durante a transformação, à medida que as bactérias competentes (lacZ ω) incorporam


o plasmídeo puC (lacZ α), β-galactosidase funcional é produzida. No entanto, se o plasmídeo
internalizado pela bactéria possuir o DNA de interesse ligado ao vetor por meio dos sítios de restrição
durante o processo de clonagem, o segmento lacZ α é interrompido. Sem a codificação deste
segmento, não ocorre a complementação α, e a β-galactosidase funcional não se forma.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 49 – Complementação. Cepas de bactérias E. coli com mutação de deleção do gene lacZ (lacZ ω) no DNA cromossômico, em
presença do vetor plasmideal pUC com a sequência lacZ α íntegra, produzem β-galactosidase funcional. Os polipeptídeos codificados
por estes dois segmentos de DNA se combinam para formar a proteína funcional, caracterizando o fenômeno da complementação α.
Quando estas cepas internalizam o vetor plasmideal contendo o DNA de interesse interrompendo a sequência lacZ α não são capazes
de sintetizar β-galactosidase funcional, devido à falta de complementação

O objetivo do pesquisador é selecionar a bactéria transformada com a construção do DNA


recombinante. Mas como distinguir dentre os quatro cenários possíveis: bactéria sem vetor (bactéria
não transformada, ou seja, sem a internalização do DNA recombinante na célula); bactéria transformada
com vetor vazio (por exemplo, quando há recircularização do plasmídeo); bactéria transformada com o
vetor contendo o inserto em posição não adequada e (a condição desejada) bactéria transformada com
o vetor contendo o inserto?

69
Unidade I

Figura 50 – Seleção azul-branca. A figura mostra uma representação esquemática


da triagem de colônias pelo método de seleção azul-branca

Após protocolo de transformação, a bactéria deverá ser cultivada em meio de cultura contendo
ampicilina. O pUC19 possui o gene de resistência à ampicilina. Assim, as bactérias que eventualmente
não foram transformadas, e, portanto, não possuem o plasmídeo, não serão capazes de crescer em meio
de cultura com este antibiótico.

Além disso, deverão ser adicionados no meio de cultura, duas substâncias, o IPTG (isopropil-β-D-
tiogalactopiranosídeo) e o X-Gal (5-bromo-4-cloro-3-indoxil-β-D-galactopiranosídeo). O IPTG funciona
como indutor do sistema operon, sendo equivalente à alolactose. O IPTG presente no meio se associa
ao repressor, inibindo‑o. Com o repressor inativo, as sequências lac Z α e lacZ ω podem ser transcritas.

Se a bactéria apresenta plasmídeo com o inserto, este último interrompe a sequência lac Z α e não há
produção de β-galactosidase. Em contrapartida, se a bactéria possui o plasmídeo vazio, sem o inserto, ou
com o DNA de interesse internalizado em outra porção do plasmídeo, ocorre a produção de β-galactosidase.
O X-Gal é substrato para a enzima β-galactosidase e ao ser clivado produz uma substância de cor azul
(a β-galactosidase quebra o X-Gal em 5-bromo-4-cloro-3-indoxil que oxida e se dimeriza, formando um
composto azul). Desta forma, é possível identificar pela coloração das colônias que cresceram neste meio,
quais apresentam o vetor vazio, ou com inserção inadequada – colônias azuis; e quais apresentam o vetor
com o inserto na posição desejada – colônias brancas.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 51 – Método de seleção branca-azul. A figura representa as etapas envolvidas na seleção


das bactérias recombinantes pelo método de seleção de colônias pela cor

2.1.5 Bibliotecas de genes

O processo de subdividir o DNA genômico em elementos contáveis e inseri-los em uma célula


hospedeira configura uma biblioteca de genes. Assim, a biblioteca de genes é composta de um conjunto
de clones de células contendo um vetor associado a diferentes insertos. É desejável que a somatória
do DNA dos insertos de cada clone represente o genoma completo de um determinado organismo.
Se fizermos uma analogia, cada livro de uma biblioteca representa um determinado clone, enquanto a
biblioteca toda corresponde ao genoma.

As primeiras bibliotecas de genes foram construídas logo no início do desenvolvimento da tecnologia


do DNA recombinante, nos anos de 1970. Os clones das bibliotecas funcionavam como fonte de DNA
para o estudo de genes ou de um segmento de DNA específico. Lembre-se de que os vetores plasmideais

71
Unidade I

das bactérias mantidas em cultura se duplicam, produzindo muitas cópias do DNA de interesse, que
pode ser extraído e utilizado posteriormente.

Para construir a biblioteca, é necessária a extração do DNA das células, seguida da sua clivagem
com enzimas de restrição. Após a digestão, os diversos fragmentos gerados são ligados a vetores.
As moléculas de DNA recombinantes produzidas são inseridas nas células, cultivadas em meio sólido,
produzindo clones. Cada clone originado conterá o vetor e um determinado fragmento do genoma.

Figura 52 – Construção de uma biblioteca genômica. As etapas gerais envolvidas na


montagem de uma biblioteca genômica estão representadas no esquema

É preferível que a digestão do DNA genômico pelas enzimas de restrição seja parcial. Esta estratégia
permite a produção de fragmentos com tamanhos diversos que se sobrepõem uns aos outros.
A sobreposição é importante, pois auxilia no processo de desvendar como os segmentos estão ordenados
no genoma, além de aumentar as chances de todas as sequências serem representadas nos clones.
Assim, amostras do DNA genômico devem ser incubadas com a enzima de restrição em concentrações
e por períodos diferentes. Ao final, a somatória dos produtos de cada reação consiste em fragmentos
de todos os tamanhos possíveis. Segmentos muito longos podem não se inserir nos vetores. Quando
isso acontece, é adequado fazer uso de outra enzima de restrição, para evitar que o genoma fique
sub‑representado nos clones.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 53 – Digestão parcial do DNA genômico para construção de uma biblioteca. Digestões parciais são geralmente realizadas
variando-se o tempo de reação ou a concentração de enzima de restrição usada na clivagem do DNA genômico. As reações
processadas nestas diferentes condições geram fragmentos de tamanhos variados. A molécula de DNA pode ser clivada em todos os
sítios de reconhecimento (indicados pelas setas vermelhas), ou em apenas alguns sítios (quanto menor a concentração ou o tempo
de exposição à enzima, menor o número de fragmentos produzidos). O resultado desejado é uma amostra com moléculas de DNA
com todos os comprimentos possíveis

Para garantir que todo o genoma, ou a maior parte dele, esteja contido nos clones de uma biblioteca,
a soma do DNA inserido nos clones deve ser três vezes ou mais a quantidade de DNA no genoma. Por
exemplo, se um genoma tem 4X106 pb e o tamanho médio de uma inserção no vetor é de 1.000 bp,
então 12.000 clones são necessários para uma cobertura tripla, ou seja, 3X[(4X106)/103]. Em relação
ao genoma humano, cujo tamanho equivale a 3,3X109 bp, para a construção de uma biblioteca em
cromossomo artificial bacteriano (BAC), que permite um tamanho médio de inserção de 150.000 pb,
estima-se cerca de 80.000 clones para compor uma biblioteca com quatro vezes de cobertura, ou seja,
4 X [(3,3X109)/(15X104)].

Desta forma, vetores escolhidos para a construção da biblioteca de genes dependerão do tamanho
do genoma do organismo estudado – os plasmídeos comportam apenas uma modesta quantidade de
DNA, enquanto cromossomos artificiais são capazes de carregar fragmentos muito maiores. Assim,
montar bibliotecas de organismos complexos pode ser uma tarefa laboriosa.

73
Unidade I

Uma alternativa para montar uma biblioteca de genes a partir de seres eucariontes, que possuem uma
grande quantidade de material genético, são aquelas construídas a partir do cDNA. O mRNA é extraído,
convertido em cDNA, que é então digerido pelas enzimas de restrição. Os fragmentos resultantes são
inseridos nos vetores de clonagem. É importante ressaltar que quando esta abordagem é selecionada,
apenas os éxons, segmentos de DNA que codificam proteínas – e não os íntrons nem os segmentos
intergênicos – farão parte das sequências armazenadas na biblioteca. Além disso, é preciso considerar
a diversidade e a quantidade de cada mRNA em um determinado tecido, pois ela é específica para os
diferentes tipos celulares. Assim, a abundância de determinado clone na biblioteca dependerá do número
de cópias do mRNA na célula. Quanto maior a riqueza de determinado mRNA, maior a facilidade para
seu isolamento.

Existem, basicamente, dois tipos de bibliotecas: a genômica e a de cDNA. A biblioteca genômica


contém todo o DNA de uma determinada amostra, enquanto a biblioteca de cDNA possui apenas os
genes que codificam produtos proteicos.

Uma vez montada a biblioteca, cada clone carregando uma sequência específica deve ser
identificado, isolado e caracterizado. Existem várias estratégias para identificar o clone que possui o
inserto de interesse. Na hibridização de colônias, sondas complementares ao segmento de DNA do
inserto que se deseja identificar são marcadas com elementos radioativos ou com corantes fluorescentes,
permitindo o rastreamento de uma determinada colônia.

Imagine que uma biblioteca foi criada a partir da transformação de bactérias com vetores plasmidiais
associados aos diferentes fragmentos do genoma de um organismo. Os clones da biblioteca mantidos
em meio de cultura podem ser transferidos para uma membrana de nitrocelulose. Como aprendemos
para a placa carimbo, a transferência das colônias para a membrana deve ser feita de forma cuidadosa
e a posição da placa em relação à membrana deve ser marcada, garantindo o rastreamento de uma
determinada colônia na placa original. Após a transferência, a membrana de nitrocelulose é tratada
com detergente SDS para promover a lise das células das bactérias, com deliberação do conteúdo
intracelular. As proteínas são digeridas e o DNA é desnaturado (com soluções alcalinas) e aderido de
forma irreversível à membrana de nitrocelulose. Esta é então incubada com sondas que irão se ligar ao
DNA dos clones quando houver complementaridade de bases. O excesso de sonda não ligada é removido
por lavagens da membrana de nitrocelulose, que em seguida é exposto, no caso das sodas radioativas,
ao filme de raio X. O filme revelado é comparado com a réplica da placa-mãe para identificar colônias
contendo o gene de interesse.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 54 – Hibridização de colônias para detecção do clone de interesse em uma


biblioteca de genes. A figura indica as etapas envolvidas na identificação do clone que
contém o DNA de interesse em uma biblioteca de genes, por hibridização com sonda radioativa

Alternativas à hibridização das colônias são os ensaios imunológicos, que detectam a colônia de
interesse indiretamente por meio da identificação da proteína produzida pelo DNA do inserto. Assim,
após transferir as colônias à membrana de nitrocelulose e lisar as células, expondo o material intracelular,
o DNA será degradado e as proteínas associadas de modo irreversível à membrana. A membrana, por sua
vez, é incubada com anticorpos que reconhecem as proteínas produzidas pelas colônias de interesse. Para
conseguir rastrear as colônias, o excesso dos anticorpos primários (porque são usados primeiramente) é
lavado e a membrana é incubada com um segundo anticorpo (anticorpos secundários) que reconhece a
fração constante dos anticorpos primários, ligando-se a eles. Os anticorpos secundários são associados
a enzimas, como a fosfatase alcalina que, ao clivar um substrato incolor, produzem uma substância com
cor. Portanto, se o anticorpo secundário se ligou ao anticorpo primário, o substrato incolor adicionado
à membrana de nitrocelulose é hidrolisado pela enzima ligada e produz um composto colorido que se
acumula no local da reação.

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Unidade I

Figura 55 – Ensaio imunológico para detecção do clone de interesse em uma biblioteca de genes.
A figura mostra as etapas envolvidas na identificação do clone que contém o DNA de interesse

2.1.6 A tecnologia do DNA recombinante e o cotidiano

A biotecnologia está presente na vida das pessoas mais do que comumente se imagina. Desde o
momento em que se acorda, quando alguém escova os dentes com uma pasta especial, vai ao trabalho
dirigindo um carro movido com combustíveis de biomassa, como o etanol, até a hora de dormir, com a
ingestão de medicamentos de “cabeceira” para controle de diferentes patologias.

Diversas abordagens envolvendo biotecnologia estão sendo utilizadas para a criação de pastas
dentais. Uma delas corresponde à adição de enzimas capazes de agir diretamente nas placas.
Estas enzimas podem ser extraídas de fontes naturais, tais como proteases purificadas do krill da
Antártida, que se mostraram promissoras neste processo; ou ainda podem ser produzidas, como enzimas
recombinantes com alta atividade de glucano/frutano hidrolase. Normalmente, estas metodologias
incluem técnicas como clonagem, sequenciamento, purificação e caracterização da molécula.

As principais doenças orais, periodontais e cáries possuem a placa dental em comum que, na
prática, constitui um biofilme. Diferentemente da maioria dos biofilmes naturais, são formados por
uma grande variedade de espécies de bactérias, sendo extremamente complexos. Os biofilmes também
possuem uma matriz hidratada de exopolissacarídeos sintetizados pelos próprios microrganismos,
na qual ficam embebidos. Após a ingestão de alimentos contendo sacarose, mesmo em pequenas
quantidades, alguns agentes da placa são capazes de sintetizar glucanos e frutanos que fornecem sítios
de adesão para novas bactérias. Muitas dessas aderem avidamente aos polissacarídeos, contribuindo
com o crescimento do biofilme.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Observação

As hidrolases glicosídicas (GHs) são enzimas que hidrolisam a ligação


glicosídica entre 2 carboidratos ou entre 1 carboidrato e uma porção não
carboidrato. Desta forma, as glucano/frutano hidrolase são capazes de
quebrar glucano e frutano, reduzindo os sítios de ancoragem das bactérias
no biofilme, acarretando redução das placas.

Outra estratégia utilizada no desenvolvimento de novas pastas dentais é o acréscimo de probióticos.


O emprego destas substâncias visa melhorar a saúde, alterando a microbiota nativa. Inicialmente o
seu uso estava relacionado com a regulação gastrointestinal, adicionando-se bactérias do ácido lático
nos alimentos. Bactérias do ácido láctico e as bifidobactérias são os tipos mais comuns usados como
probióticos. Elas inibem a ação de microrganismos patogênicos por competição inibitória e tendem
a não afetar as benéficas. O conceito de introdução de espécies bacterianas inócuas na boca para
suprimir o crescimento de patógenos orais também está sendo considerado. Um estudo realizado com
participantes alocados em grupos distintos revelou que aqueles que escovaram os dentes regularmente
com pasta contendo probióticos desenvolveram menos cáries do que os que escovaram os dentes com
pastas comuns.

O uso da biotecnologia no âmbito dos biocombustíveis permitiu aumento do rendimento sem afetar
a quantidade necessária de energia para a sua produção.

A atual força motriz para o desenvolvimento de tecnologias “limpas” para a geração de


combustíveis a partir de recursos renováveis decorre principalmente de preocupações ambientais e
daquelas referentes ao esgotamento das reservas de combustíveis fósseis e à instabilidade dos preços
do petróleo bruto.

Nas últimas décadas, melhorias significativas foram feitas com a ajuda da biologia molecular, a fim
de aperfeiçoar a atividade microbiana e enzimas. O uso de organismos geneticamente modificados
(OGM) é considerado o método mais eficiente e rápido para melhorar a conversão de biocombustíveis,
particularmente no caso da biomassa lignocelulósica (a lignina se associa às fibras de celulose,
aumentando a rigidez da parede celular vegetal; é encontrada em grandes quantidades na madeira).

Com auxílio da biotecnologia, a estrutura da parede celular e a composição lignocelulósica na


célula vegetal podem ser modificadas para aumentar o rendimento na produção de etanol por área
cultivada. A biotecnologia pode influenciar a densidade de produção por meio da manipulação de genes
que alteram a fisiologia, a arquitetura, e eficiência fotossintética da planta. Com isso é possível diminuir
os insumos agronômicos, por exemplo, herbicidas e pesticidas no momento do cultivo, barateando
o processo. O avanço está sendo feito rapidamente por meio da modificação de características que
contribuem com a produção de safras que absorvam e consumam nutrientes de forma mais eficiente,
equipando-as para serem cultivadas com menos quantidade de fertilizante.

77
Unidade I

A produção de safras de biomassa em hectares supostamente “marginalizados”, como terras


altamente secas ou com características de solo carentes, pode aumentar a escala de produção de
biocombustíveis sem qualquer influência nos hectares de produção de alimentos. A biotecnologia está se
concentrando no desenvolvimento de plantas capazes de sobreviver em uma ampla gama de condições de
solo. Para uma planta que será usada como matéria-prima para biomassa, um nível mais alto de conteúdo
de celulose e hemicelulose apresentaria melhor rendimento de fermentação e, consequentemente,
galões de etanol por tonelada de biomassa. Isso resulta em grande quantidade de energia líquida.

Pesquisas na área da a clonagem de genes que codificam para as enzimas celulases se mostraram
promissoras no desenvolvimento de estratégias para a biorrefinaria de baixo custo, eficaz para atingir a
conversão máxima de biomassa. Métodos aprimorados de cromatografia também foram desenvolvidos
por pesquisadores para a purificação dos compostos produzidos por meio da utilização da biotecnologia
que possibilitaram compreender a ação catalítica das enzimas expressas no processo de bioconversão.
As dificuldades enfrentadas pelos fabricantes de biocombustível em processos como digestão microbiana
e fermentação podem ser efetivamente reduzidas por processos biotecnológicos aprimorados.

Pesquisas realizadas desde os anos 1950 apontaram uma série de proteínas produzidas naturalmente
pelo corpo com um evidente papel terapêutico, como interferons e interleucinas, que regulam a resposta
imunológica; fatores de crescimento, como eritropoetina, que estimula a produção de eritrócitos;
e neurotróficos, que controlam o desenvolvimento e manutenção do tecido nervoso.

No entanto, o uso destas substâncias no tratamento de doenças de forma difundida era inviável
devido à pequena quantidade disponível e aos riscos de contaminação decorrente da fonte de extração.
A purificação de hormônio de crescimento realizada a partir da glândula pituitária de seres humanos
era uma ameaça na transmissão da doença Creutzfeldt-Jakob, uma condição neurodegenerativa que
provoca desordem cerebral com perda de memória e tremores, enquanto produtos provenientes de
sangue possivelmente contaminado aumentavam as chances de infecção por patógenos como os
vírus da hepatite B e C e o HIV.

Estes problemas foram superados com o desenvolvimento da engenharia genética, iniciando uma
nova era nas ciências farmacêuticas. Desta forma, questões como disponibilidade e segurança em
relação à origem foram resolvidas com a síntese de proteínas recombinantes, permitindo a produção de
virtualmente qualquer proteína e em qualquer quantidade, e a fabricação controlada destes compostos.
A biotecnologia moderna também possibilitou a modificação da estrutura das proteínas nativas, por
meio da deleção ou adição de resíduos de aminoácidos ou até mesmo pela alteração de domínios
inteiros, conferindo-lhes alguma vantagem clínica.

78
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 56 – Representação esquemática do hormônio de crescimento (GH) nativo e da proteína recombinante correspondente.
O hormônio nativo é capaz de se associar não apenas aos receptores do hormônio de crescimento, mas aos receptores da prolactina
presentes em diferentes tipos celulares. Em uma terapia realizada com GH, é adequado que este se ligue preferencialmente aos
receptores do hormônio de crescimento, a fim de evitar assim efeitos indesejáveis do tratamento. Mutações sítio‑dirigidas foram usadas
para modificar os aminoácidos da cadeia lateral da proteína nativa que atuam como ligantes do zinco. Este íon é necessário para que
ocorra ligação de alta afinidade do GH ao receptor da prolactina. Estas modificações foram responsáveis pelo estabelecimento de uma
proteína recombinante capaz de se associar ao receptor do hormônio de crescimento, mas não ao da prolactina

Observação

Algumas fontes de medicamentos não eram consideradas


particularmente adequadas: os hormônios folículo estimulante (FSH),
luteinizante (LH) e gonadotrofina coriônica humana (hCG) eram
coletados da urina de mulheres na menopausa ou grávidas e o ancrodo,
uma enzima com atividade anticoagulante, era extraído do veneno
da jararaca da Malásia (Agkistrodon rhodostoma). Atualmente, estas
substâncias são produzidas principalmente a partir da tecnologia do DNA
recombinante, minimizando os impasses relacionados com a variabilidade
entre lotes, disponibilidade de doadores e periculosidade relativos ao
processo de purificação.

Neste contexto, novos medicamentos foram desenvolvidos para tratar doenças como câncer,
diabetes mellitus, doenças infecciosas (como o HIV), respiratórias, neurológicas e cardiovasculares.
O desenvolvimento das bioformulações abrange diferentes etapas, como: entendimento dos princípios
relacionados com o processo de saúde e doença; elucidação das vias moleculares envolvidas; síntese e
purificação de moléculas; determinação da meia‑vida, estabilidade, toxicidade e imunogenicidade do
produto gerado; mecanismos de distribuição de fármacos (drug delivery), patente e estudos clínicos.

O termo biofármaco surgiu na década de 1980 para descrever uma classe de proteínas terapêuticas
produzidas por técnicas de biotecnologia moderna que envolvem engenharia genética e, no caso
dos anticorpos, os hibridomas. Atualmente, esta palavra também é utilizada para se referir aos fármacos
79
Unidade I

derivados de moléculas de DNA e RNA e de células inteiras. Alguns fármacos biotecnológicos e os


métodos de síntese estão listados a seguir. Observe que neste quadro são incluídos os antibióticos que
podem ser fabricados por técnicas de biotecnologia clássica e não necessariamente utilizam técnicas da
biotecnologia moderna.

Quadro 2– Medicamentos obtidos pelo uso da biotecnologia

Metodologia de Metodologia de
Medicamento produção aplicação/produção Material biológico
Penicillium notatum
(penicilina), Streptomyces
Antibióticos Fermentação Tratamento de infecções venezuelae (cloranfenicol),
Streptomyces griseus
(estreptomicina), entre outros

Fatores de coagulação Técnica do DNA Células CHO (células do ovário


Tratamento de hemofilia
sanguínea recombinante do hamster chinês)

Antitrombina
(Atryn foi o primeiro Utilizado em pacientes
Purificada do
medicamento produzido com alteração hereditária
leite de animais Cabra transgênica
utilizando animais da produção de
transgênicos
geneticamente engenheirados e antitrombina
aprovados pelo FDA*)
Insulina
(Humulin foi o primeiro Técnica do DNA Tratamento do diabetes Escherichia coli
fármaco biotecnológico recombinante mellitus
aprovado pelo FDA*)
Tratamento de anemia
Eritropoietina Técnica do DNA decorrente de doenças Células CHO (células do ovário
(Procrit, Epogen, Eprex e recombinante renais crônicas, infecções do hamster chinês)
NeoRecormon) por HIV e câncer

IL-2 Técnica do DNA Tratamento de câncer Escherichia coli


recombinante de células renais
Tratamento de sarcoma
Interferon-α
(Intron-A, Roferon-A e Técnica do DNA de Kaposi, hepatites B Escherichia coli e Pichia
Actimmume) recombinante e C, câncer de células pastoris
renais
Tratamento de esclerose
Interferon-β Técnica do DNA
(Avonex, Rebif e Betaseron) recombinante múltipla secundária Escherichia coli
progressiva

Técnica do DNA Tratamento de fibrose Células CHO (células do ovário


Alfadornase (Pulmozyme) recombinante cística do hamster chinês)

Dissolve coágulos
sanguíneos que podem
Ativador de plasminogênio Técnica do DNA cDNA obtido de linhagem
causar ataque cardíaco,
(Activase) recombinante celular de melanoma humano
embolia pulmonar e
derrame
OKT3 (primeiro anticorpo Tratamento contra
monoclonal a se tornar Técnica do rejeição de órgãos Linfócito B e mieloma
disponível para terapia hibridoma transplantados
em humanos)
*FDA: Food and Drug Administration

Adaptado de: Almeida; Amaral; Lobão (2011); Hao et al. (2007); Thistlethwaite et al. (1984); Sgro (1995).

80
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

2.1.7 CRISPR/Cas 9

É provável que você já tenha ouvido falar que a tecnologia CRISPR revolucionará a medicina, a forma
como combatemos doença, lutamos contra o câncer e quem sabe até como criamos seres humanos.
Mas, afinal, o que é o CRISPR?

Este sistema, como tantos outros, foi elucidado primeiramente nas bactérias. Vamos começar
desvendando o que significa esta sigla que compõe seu nome. Ela, na verdade, corresponde um
acrônimo da língua inglesa das palavras repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente
interespaçadas (clustered regularly interspaced short palindromic repeat) que remetem a dois de
seus componentes. Em primeiro lugar, tem-se as repetições dos nucleotídeos, e, em segundo, as
sequências palindrômicas (de aproximadamente 20 a 40 pb de comprimento), semelhantes àquelas
que aprendemos na seção sobre enzimas de restrição, que, quando lidas em ambas as fitas de DNA
antiparalelas, no sentido 5’ → 3’, trazem a mesma informação.

Assim, no genoma da bactéria, encontramos as repetições de nucleotídeos, todas idênticas entre si,
mas separadas por um DNA espaçador (spacer DNA) que apresentam sequências diferentes umas das
outras. Desta forma, cada segmento de DNA espaçador é único. Essa organização intrigou os cientistas
na final dos anos 1980.

Nos anos 2000, descobriu-se que esse DNA espaçador era muito importante e correspondia a
fragmentos de DNA viral incorporados no genoma bacteriano. Também foram identificados vários genes
associados com estas sequências CRISPR, denominadas genes Cas (CRISPR-associated). As proteínas Cas
codificadas por eles agem como nucleases, clivando as ligações fosfodiéster entre os nucleotídeos. Além
dos genes Cas, descobriu-se uma sequência importante responsável por produzir um RNA conhecido
como RNA transativador derivado do loco CRISPR (tracrRNA). Estes três elementos constituem o
loco CRISPR.

81
Unidade I

Figura 57 – CRISPR-Cas9 no sistema imune bacteriano e na edição gênica. Em A, loco genômico bacteriano CRISPR-Cas9,
evidenciando os genes que o compõem (tracrRNA, Cas9, Cas1, Cas2, Casn2, repetições diretas e espaçadores).
Em B, transcrição do pré-crRNA. Em C, pré-crRNA sofre processamento e maturação pela RNase III, além de
outras nucleases, permitindo a formação de um complexo contendo: a nuclease Cas9, o tracrRNA e o crRNA

No ciclo lítico, quando os bacteriófagos injetam o seu DNA na célula hospedeira, replicam-se e
promovem a lise da bactéria. Após bilhões de anos de coexistência, era de se esperar que as bactérias
acabassem desenvolvendo estratégias de defesa contra os bacteriófagos. Em 2007, pesquisadores que
estudavam Streptococcus thermophilus (microrganismo utilizado na produção de laticínios) observaram
que quando estes eram infectados por fagos, as bactérias sobreviventes apresentavam certo tipo de
imunidade adaptativa primitiva que lhes conferiam resistência àquelas cepas virais à qual haviam sido
previamente expostas.

Quando um vírus infecta uma bactéria pela primeira vez, um novo DNA espaçador é adicionado no
arranjo CRISPR. Este processo se inicia com a identificação e o reconhecimento do genoma viral por
um complexo de proteínas Cas, contendo Cas1 e Cas2, com a subsequente clivagem de um segmento
de tamanho específico, denominado protoespaçador. A integração deste fragmento no arranjo CRISPR
funciona como um registro para bactéria de que ela já foi infectada por este fago. Esta estratégia
permite que as bactérias consigam sobreviver a infecções posteriores causadas pelos mesmos fagos.

82
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 58 – Sistema de defesa CRISPR-Cas. As proteínas Cas integram o DNA exógeno (viral ou plasmidial) como
novo espaçador no loco CRISPR. No loco CRISPR não está representada a sequência gênica equivalente ao tracrRNA

Desta forma, a bactéria infectada novamente por uma partícula viral qualquer será protegida pelo
arranjo CRISPR. À medida que o arranjo CRISPR é transcrito, é produzido um RNA longo (precursor do
RNA de CRISPR ou pré-crRNA), que será posteriormente processado (lembre-se de que sequências de
DNA adjacentes e correlacionadas em procariotos são transcritas como uma molécula única). Ao ser
processado, este RNA será clivado em fragmentos, gerando os crRNAs, cada qual correspondendo a um
espaçador distinto. O crRNA é conhecido como RNA guia, cuja característica é apresentar sequência
complementar a um segmento de DNA viral, aquele que em um dado momento infectou a bactéria.
O gene contendo a sequência para formar o tracrRNA também é transcrito. A função do crRNA é
direcionar a clivagem do DNA viral ao se associar por complementaridade de bases com ele, enquanto a
função do tracrRNA é se associar em uma sequência do RNA guia, também por complementaridade de
bases, ao mesmo tempo que interage com uma proteína Cas, conhecida como Cas 9, permitindo então
a aproximação entre o RNA guia e a proteína Cas9. Este arranjo contendo o RNA guia, o RNA rastreador
(que reconhece Cas9 e RNA guia) e a própria proteína Cas9 forma um complexo de defesa. O sítio que
a sequência do RNA guia encontra correspondência com o DNA viral é clivado pela Cas9, resultando na
degradação do material genético do fago. Portanto, a bactéria que foi infectada acaba sendo protegida,
pois não haverá multiplicação viral em seu interior. Este processo em muitos aspectos recapitula o
mecanismo de interferência por RNA (RNAi) observado em eucariotos.

83
Unidade I

Se a sequência do DNA do vírus, inserido no genoma da bactéria no sítio CRISPR, é exatamente a


mesma daquela presente no DNA viral invasor, como a proteína Cas9 da célula hospedeira consegue
distinguir entre os dois, clivando apenas o DNA do fago recém-internalizado? A resposta envolve
uma pequena sequência de DNA presente no genoma do vírus, conhecida como PAM (protospacer
adjacent motif).

Estas sequências específicas são adjacentes ao segmento correspondente ao protoespaçador com


cerca de 2-6 pb. Por exemplo, em Streptococcus pyogenes, Cas 9 reconhece a sequência PAM “GG”
associada a um nucleotídeo adicional qualquer (n), que se posiciona entre ela e o protoespaçador.
As sequências PAM precisam estar presentes para que a Cas9 possa se associar e cortar aquela região
do DNA do vírus. Porém, como isso impede a bactéria de cortar seu próprio DNA? Em essência, o DNA
espaçador contido no arranjo CRISPR não é seguido por GG, mas por GTT. Isso significa que Cas9 é
incapaz de ligar ao arranjo CRISPR e clivá-lo, o que garante a integridade do DNA genômico da bactéria.

Durante a aquisição do DNA protoespaçador, que será inserido no genoma da bactéria, além do
complexo Cas1 eCas2, ocorre a participação de Cas9, que garantirá que a remoção do protoespaçador
seja realizada próxima a uma sequência PAM. Assim, no curso de uma infecção mediada por um fago, a
seleção de alvos com sequências PAM será garantida.

Nos últimos anos, pesquisadores estudando este mecanismo perceberam que poderiam manipular o
processo para edição de qualquer fragmento de DNA. Ou seja, ele poderia ser usado para cortar não só
a sequência do DNA viral, mas qualquer sequência de DNA escolhida, bastando fornecer a enzima Cas9
uma guia de RNA capaz de se parear com a sequência alvo. Tal estratégia poderia acontecer tanto em
um tubo de ensaio quanto no núcleo de uma célula viva.

Para que Cas9 possa executar sua função, ela precisa ser ativada e direcionada ao seu alvo. Em
bactérias isso é mediado pelos crRNA e tracrRNA, que atuam em conjunto. No intuito de tornar este
processo o mais simples possível para a aplicação, pesquisadores desenvolveram o RNA guia único (sgRNA
ou gRNA, single guide). Este é resultante da “fusão” do crRNA e tracrRNA, gerada para acumular as duas
funções, que são altamente dependentes de suas estruturas. Dessa forma, a técnica de CRISPR demanda
apenas dois elementos exógenos: a Cas9 e sgRNA, facilitando assim o procedimento experimental.
O sgRNA é composto de um dobramento em grampo formado pela sequência de reconhecimento do
alvo, também conhecida como sequência-guia (∼20 nt na extremidade 5´, específico para cada alvo)
mais uma sequência universal (~80 nt, o scaffold, extremidade 3´).

Assim, com a utilização do sgRNA é possível editar qualquer material genético. Tal ferramenta
tem sido amplamente aplicada nos laboratórios em diferentes contextos. CRISPR tornou-se a mais
importante ferramenta em engenharia genética desta década.

84
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Biologia sintética Xenotransplantes


Identificação da Terapia
função gênica gênica

Produção Pesquisa Combate a


de modelos Medicina patógenos e
básica
animais ao câncer

Outros CRISPR Outros

Combate a Agricultura e Produção de


Indústria
pragas veterinária fármacos
Plantas e animais
resistentes a Produção de
doenças biocombustíveis
Geração de variabilidade Produção de
genética biomaterias

Figura 59 – Diversidade de aplicações de CRISPR. Os vastos efeitos moleculares (ativação/repressão gênica,


substituição alélica, clivagem de DNA/RNA, deleção de genes, knock-in/out, inserção de transgenes, geração
de variação genética etc.) e abordagens possíveis (DNA labeling, mapeamento gênico, RNA tracking) por
meio de CRISPR se traduzem em inúmeras possibilidades para a ciência, tecnologia e mercado

3 MÉTODOS DE PURIFICAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PROTEÍNAS RECOMBINANTES

Após a síntese de proteínas recombinantes, pelos métodos já descritos, é necessário purificá-las para
tornar viável sua utilização dentro dos propósitos da biotecnologia moderna. A purificação consiste em
produzir uma amostra contendo um único tipo de proteína. No entanto, o grau de pureza depende da
intenção do uso. Para algumas aplicações, o extrato bruto pode ser suficiente, enquanto para outras,
como nas indústrias de alimentos e farmacêuticas, o elevado grau de pureza é requerido.

Este trabalho nem sempre é fácil, pois muitas vezes a proteína que se deseja purificar corresponde a
menos de 1% do material inicial, que pode provir de células em cultura, tecidos ou órgãos. Estratégias
envolvendo técnicas de engenharia genética, tais como a indução de alta expressão da proteína por
uma determinada linhagem, ou a adição de marcadores moleculares no produto proteico final, podem
auxiliar no processo de purificação.

Para a escolha da técnica mais adequada, é necessário considerar se a proteína é secretada, sendo
liberada, por exemplo: no leite, sangue ou meio de cultura; se permanece nas células, ou ainda, se
eventualmente está concentrada em compartimentos subcelulares, tais como: núcleo, mitocôndrias e
vesículas lisossomais. Com esta informação, pode-se estabelecer o material de partida mais apropriado
para purificação.

Muitas vezes ainda é preciso realizar testes bioquímicos baseados em alguma propriedade exclusiva
da proteína, para determinar se ela de fato está presente. Quanto mais específico o ensaio, mais eficaz
será a purificação. Para as enzimas, o ensaio geralmente é baseado na reação que ela catalisa. A enzima

85
Unidade I

lactato desidrogenase é um componente importante da síntese anaeróbica de energia a partir da glicose.


Ela é responsável pela seguinte reação:
Lactato
desidrogenase
Lactato + NAD+ Piruvato + NADH + H+

A nicotinamida adenina dinucleotídeo reduzida (NADH) é distinguível dos outros componentes


da reação devido a sua capacidade de absorver luz a 340 nm. Assim, é possível acompanhar
o progresso da reação, e, consequentemente, constatar a presença da enzima, em função do
aumento progressivo da absorbância.

Determinar o grau de pureza e a quantidade de proteína que se deseja obter também é


importante, uma vez que estes fatores podem contribuir com o elevado custo do processo. O alto
grau de pureza pode exigir a passagem por várias etapas sequenciais de purificação, acarretando
inevitavelmente perdas do produto. Pequenas quantidades de amostra da proteína podem ser
suficientes para fins de pesquisa e análise, em contrapartida, grandes quantidades podem
ser requeridas para uso industrial ou comercial.

Por fim, o método utilizado também dependerá da natureza da proteína e da solução em que se
encontra. Algumas podem estar imersas em uma matriz proteica, ao passo que outras podem estar
cercadas por elementos biológicos de natureza não proteica.

3.1 Centrifugação

A purificação de proteínas que permanecem associadas às células normalmente envolve lise, seguida
de fracionamento do extrato (ou homogenato) inicial para a redução de sua complexidade.

Figura 60 – Lise celular mediada por detergente. A membrana celular funciona como uma barreira entre
o meio intra e extracelular. Para se acessar os componentes presentes no interior da célula, é possível recorrer à
lise química realizada pela ação de detergentes. Os detergentes reagem com a membrana celular, formando
poros em sua superfície, o que resulta na liberação de componentes intracelulares, como DNA, RNA e proteínas

86
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Observação

A lise celular pode ser realizada por diferentes métodos. O produto


resultante dela recebe o nome de extrato ou homogenato.

Métodos de lise

Mecânicos Não mecânicos

– Maceração Físicos Químicos Biológicos


– Homogeneização por
alta pressão
– Ciclos de – Detergentes
– Esferas de vidro, aquecimento e Biológicos
cerâmica ou aço em – Alcalinização
resfriamento
alta agitação
– Choque osmótico
– Ultrassom

Figura 61 – Classificação dos métodos de lise. Na lise mecânica, a membrana celular é fisicamente rompida por atrito. Este método é
popular devido à combinação de alto rendimento e eficiência na liberação de componentes da célula. A lise não mecânica pode ser
categorizada em três grupos principais. O método físico, que utiliza força externa para romper a membrana celular e não envolve
atrito. O método químico, que pode empregar substâncias que alteram o pH ou ainda detergentes. E, por fim, o método biológico,
com uso de enzimas, conferindo maior especificidade ao processo; por exemplo, a lisozima é usada para lisar células de bactérias,
as quitinases, para lisar células de levedura e as pectinases, para lisar células vegetais

Combinações de métodos mecânicos e não mecânicos são utilizados para aumentar a eficiência
da lise. Os métodos químicos tornam a membrana permeável, permitindo a liberação de conteúdo
intracelular, como proteínas ou enzimas, no entanto, podem não ser suficientes para romper totalmente
a célula, dificultando a liberação de outros produtos, como ácidos nucleicos.

Após a formação do homogenato pelo rompimento da membrana celular, esta mistura é submetida
ao fracionamento por meio de sua centrifugação sequencial. Este procedimento é realizado em
centrífugas convencionais que permitem centrifugação em alta velocidade e preferencialmente
em condição refrigerada. A centrifugação do homogenato inicial resulta em um material pesado no
fundo do tubo, conhecido como pellet (precipitado), e em um material leve acima, o sobrenadante.
O sobrenadante é então centrifugado novamente em velocidades e períodos ainda maiores,
acarretando um novo pellet e novo sobrenadante. Este processo, que pode ser repetido várias vezes,
é conhecido como centrifugação diferencial, e possibilita diversos fracionamentos da amostra
à medida que o tamanho de seus componentes vai diminuindo. No entanto, ele permite apenas a
separação de componentes que diferem muito em tamanho, tais como núcleos ou agregados do
citoesqueleto (alto peso molecular) de mitocôndrias ou lisossomos (peso molecular intermediário)
e de ribossomos (baixo peso molecular). Apesar de possuir vários compostos distintos, as frações
acabam sendo enriquecidas, o que facilita a aplicação de técnicas de purificação mais específicas.

87
Unidade I

Célula intacta

Células dissociadas
A)

Núcleos
B)

Mitocôndrias e
C) lisossomos

D) Microssomos

E) Ribossomos

Membranas do retículo
F) endoplasmático

Figura 62 – Centrifugação diferencial. A lise pode acarretar o rompimento da membrana celular, deixando intactas
organelas como núcleo, mitocôndrias, aparelho de Golgi, lisossomos. Estes componentes mantêm a maioria de
suas características bioquímicas. Em A, um fragmento de tecido é picado com uma navalha de barbear ou com
tesoura e depois dissociado com um homogeneizador ou por ultrassom. Em B, o tecido dissociado permanece
em repouso durante cerca de 20 min para que grumos não dissociados e fibras da matriz extracelular precipitem.
Em C, o sobrenadante é centrifugado a 1.000 g por 20 min. Os núcleos são precipitados no fundo do tubo.
Em D, o sobrenadante é centrifugado a 10.000 g por 20 min. Mitocôndrias e lisossomos precipitam. Em E,
o sobrenadante é centrifugado a 105.000 g por 120 min. Os microssomos precipitam. Em F, se o sobrenadante
é tratado com desoxicolato de sódio antes da centrifugação, os microssomos se dissociam e precipitam
separadamente como ribossomos e membranas do retículo endoplasmático granuloso

88
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Observação

O método de centrifugação diferencial foi usado para determinar


que os lisossomos contêm enzimas digestivas, que as mitocôndrias
possuem enzimas oxidativas e que os cloroplastos apresentam
pigmentos fotossintéticos. O isolamento de organelas enriquecidas com
uma determinada enzima é comumente o processo de partida para
sua purificação.

Existem duas unidades usadas para indicar os parâmetros da centrifugação. Uma é caracterizada pela
quantidade de vezes que o rotor gira em torno de seu eixo, representando a velocidade de rotação, conhecida
como RPM (rotação por minuto). Por outro lado, a RCF (força centrífuga relativa, também conhecida como
força g) indica a quantidade de aceleração aplicada na amostra. A RCF depende do raio do rotor, da quantidade
de rotações por minuto (RPM) e da força gravitacional da Terra. Como o raio do rotor entre centrífugas pode
variar, o ideal é usar preferencialmente a unidade RCF. Nestas situações, a RCF é corrigida pelo tamanho do
raio do rotor, enquanto as rotações por minuto permanecem as mesmas. A fórmula de conversão entre as
duas unidades pode ser usada para manter a precisão em um protocolo de centrifugação.

Sendo:

r × ω2
RCF =
g

Em que:

r = raio do rotor (mm)

ω = velocidade angular (rad/s)

g = aceleração gravitacional (9807 mm/s2)

A conversão de RMP para força g (RCF) se dará conforme a equação a seguir:

RPM2 × 0,0112r
RCF =
10.000

A centrifugação diferencial produz frações grosseiras que podem ser então purificadas. O método
de centrifugação por densidade permite separação mais refinada dos componentes de cada fração.
Existem dois tipos de centrifugação por densidade: uma baseada na sedimentação por velocidade
e outra na sedimentação por equilíbrio de flutuação (ou separação isopícnica). Nestes dois

89
Unidade I

procedimentos é necessário utilizar ultracentrífugas que alcançam velocidade de rotação extremamente


altas (acima de 50.000 rpm).

No processo de sedimentação por velocidade, o tubo de centrifugação é inicialmente preenchido


com soluções com densidades crescentes (por exemplo, soluções com diferentes concentrações de
sacarose – 10% a 40%), da abertura em direção ao fundo do tubo. Este gradiente de densidades pode
ser preparado por um misturador especial, injetando-se diferentes quantidades de duas soluções com
concentrações distintas (normalmente, a de menor concentração e a de maior concentração), ou ainda,
manualmente, com auxílio de pipetas ou seringas, a depender do protocolo. A preparação automática
gera um gradiente contínuo e a preparação manual produz um gradiente descontínuo. A primeira
preparação permite uma resolução maior na separação dos componentes da mistura.

Figura 63 – Diferença entre gradiente de densidade contínuo e descontínuo. Em A, são mostrados tubos com gradientes
de densidade contínuo e descontínuo, respectivamente. Em B, destacam-se possíveis estratégias para produção
destes gradientes de densidade. Para gerar gradientes de densidade contínuos replicáveis, recomenda-se o uso
de equipamentos automatizados (por exemplo, Gradient MasterTM, BioComp). Soluções de baixa e alta densidade
são misturadas no tubo de centrifugação que, em seguida, é rotacionado em angulação adequada, produzindo o gradiente
contínuo. Outra maneira de formar gradientes de densidade contínuos é o congelamento de uma solução de densidade uniforme,
acompanhado de seu descongelamento à temperatura ambiente. Os gradientes de densidade descontínuos podem ser produzidos
manualmente. Uma das estratégias consiste em adicionar sucessivas camadas de soluções com diferentes concentrações, por meio
do uso de uma longa pipeta Pasteur ou seringa. Assim, uma solução contendo 10% de sacarose deve ser adicionada primeiramente
no fundo do tubo; a solução contendo 20% de sacarose deve ser adicionada abaixo da de 10%, e assim sucessivamente

Finalmente, a mistura que se deseja purificar é acrescentada no tubo como uma fina camada na
superfície da solução contendo o gradiente de concentração, sendo então submetida à centrifugação.
Cada componente da mistura, por apresentar tamanho e forma específicos, adquire uma
velocidade e se sedimenta como uma banda no tubo. Substâncias maiores tendem a adquirir
menor velocidade, formando bandas que permanecem próximas à superfície do tubo, enquanto
substâncias menores são propícias a apresentar maior velocidade, formando bandas no fundo do
tubo. A velocidade relativa de sedimentação é descrita como coeficiente de sedimentação ou
valor S. Como as centrífugas atuais são capazes de alcançar altas velocidades, produzindo forças
500.000 vezes maiores que a da gravidade, isto torna possível, inclusive, a separação de moléculas
muito pequenas. Por exemplo, moléculas de RNA transportador (tRNA) e enzimas simples alcançam
altas velocidades e se sedimentam como bandas diferentes.

90
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 64 – Centrifugação por densidade. Em A, ressalta-se o processo de sedimentação


por velocidade. Em B, a sedimentação por equilíbrio de flutuação

Na sedimentação por equilíbrio, as moléculas da mistura se separam de acordo com sua densidade
de flutuação. Normalmente se utiliza uma ampla variação no gradiente de concentrações (por exemplo,
sacarose 20% a 70%). Muitos compostos podem ser empregados para formação de um gradiente de
densidade. O cloreto de césio é amplamente utilizado para a formação de bandas de DNA e isolamento
de plasmídeos, nucleoproteínas e vírus. Brometo de sódio e iodeto de sódio são empregados para o
fracionamento de lipoproteínas e a formação de bandas de moléculas de DNA ou RNA, respectivamente.

Figura 65 – Sedimentação por equilíbrio de flutuação em gradiente de CsCl. Separação


do DNA total, do DNA plasmideal de E. coli, por sedimentação por equilíbrio de flutuação,
com a formação de bandas em gradiente de CsCl com brometo de etídeo, após centrifugação

91
Unidade I

Diferentemente do protocolo usado na sedimentação por velocidade, na sedimentação por


equilíbrio, o gradiente de densidades não é comumente preparado a priori. A diferença de concentração
gradativa na solução irá se formar durante a ultracentrifugação, juntamente com o material que se
deseja separar. A força centrípeta promove a sedimentação e redistribuição necessárias para formar
o gradiente de concentrações, com variações de densidade da superfície ao fundo do tubo. Durante a
centrifugação, os componentes da mistura se deslocam pelo gradiente de concentração até alcançar
uma posição em que a densidade da solução seja igual a sua própria densidade. Nesta posição, o
componente flutua e não pode mais mover adiante. O quadro a seguir resume os principais aspectos
da centrifugação diferencial e centrifugação por densidade.

Quadro 3– Centrifugação diferencial e por densidade

Centrifugação por Centrifugação por


Centrifugação diferencial densidade: sedimentação densidade: sedimentação
por velocidade por equilíbrio

Tipo de separação Separação grosseira Separação refinada Separação refinada


(tamanho e forma) (tamanho e forma) (densidade)
Tipo de centrífuga Convencional Ultracentrífuga Ultracentrífuga
Gradiente de Formado no tubo a priori, Em geral formado no tubo
densidade Não utiliza antes da centrifugação durante a centrifugação
Por velocidade, mas sem Por velocidade, com formação
Tipo de formação de bandas.
Material com maior massa de bandas devido ao Por densidade de
sedimentação gradiente crescente no tubo flutuação
ou tamanho se sedimenta de centrifugação
no fundo do tubo
Separação grosseira de Separação de moléculas Separação de moléculas
Aplicação componentes de uma com massas diferentes e com massas semelhantes
mistura densidades semelhantes e densidades diferentes

3.1.1 Salting-out

As proteínas em sua forma ativa podem ser separadas de uma mistura considerando-se
características como solubilidade, tamanho, carga e afinidade específica por outras substâncias.
A estratégia salting‑out para purificação de proteínas é baseada na alteração da solubilidade destas
moléculas em soluções com diferentes concentrações de sal. Normalmente, as proteínas apresentam
baixa solubilidade em soluções com altas concentrações de sal. No entanto, nem todas as proteínas
se precipitam exatamente nas mesmas concentrações salinas. Desta forma é possível alterar
progressivamente a quantidade de sal para a recuperação gradual de diferentes proteínas de uma mistura.

Mas por que isso acontece? É preciso lembrar que a solubilidade de um composto está relacionada
com a sua capacidade de interagir com a água. A água é uma molécula polar que interage com outros
compostos a partir de uma força fraca conhecida como ligação de hidrogênio. Esta atração intermolecular
é mediada por forças eletrostáticas. Assim, a água interage facilmente com outros compostos polares, ou
com cargas, formando uma camada de solvatação ao redor destas substâncias. Componentes apolares
ou com pequena quantidade de cargas não interagem muito bem com moléculas de água.

92
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 66 – Molécula de água e ligação de hidrogênio. Em A, evidencia-se a natureza dipolo da água em um modelo de bola e bastão;
as linhas tracejadas representam os orbitais sem ligação. Em B, duas moléculas de água estão unidas por uma ligação de hidrogênio,
representada por três linhas azuis. As ligações de hidrogênio são mais longas e mais fracas que as ligações covalentes O-H

As proteínas são formadas por aminoácidos que apresentam cadeias laterais com características
distintas, por exemplo, algumas são polares ou carregadas com cargas positivas e negativas (ou seja,
hidrofílicas), enquanto outras são apolares (isto é, hidrofóbicas). As cadeias laterais dos aminoácidos
são importantes na manutenção da forma tridimensional das proteínas, pois podem interagir entre si,
influenciando o dobramento da cadeia do polipeptídio. Proteínas que apresentam grande quantidade
de aminoácidos polares e/ou quando estes estão expostos na superfície de sua estrutura tridimensional
possuem maior solubilidade em água. As moléculas da água interagem com resíduos de aminoácidos
das proteínas, por meio de ligações de hidrogênio. Além disso, as proteínas sofrem várias modificações
pós‑traducionais, algumas das quais favorecem a sua solubilização em água. Em contrapartida, proteínas
em que predominam aminoácidos apolares, ou aquelas em que sua estrutura tridimensional favorece a
exposição destes resíduos hidrofóbicos, possuem menos capacidade de interação com a água, havendo,
assim, menor solubilidade em meio aquoso.

93
Unidade I

Figura 67 – Proteína hidrofílica e hidrofóbica. A figura representa diferenças na hidrofobicidade das áreas superficiais
entre uma proteína globular solúvel em água e uma proteína de membrana em formato de α-hélice, de tamanhos
semelhantes. A cor azul representa as superfícies hidrofílicas; a cor laranja, as superfícies hidrofóbicas; e a cor
salmão‑escuro, os resíduos neutros. Em A, é mostrada a proteína carbonil redutase 1 humana, que possui resíduos
de aminoácidos hidrofílicos expostos ao ambiente aquoso no qual a enzima é inserida. Esta configuração espacial faz
com que os resíduos hidrofóbicos fiquem organizados na porção central da proteína, revestidos por um escudo
hidrofílico. Em B, a proteína bacteriorodopsina, extraída da Halobacterium salinarum, expõe principalmente os resíduos
hidrofóbicos ao ambiente da bicamada de fosfolipídeo (membrana celular) em que está localizada. Os resíduos hidrofílicos
são encontrados em pequenas regiões que permanecem em contato com as cabeças hidrofílicas dos fosfolipídeos da
membrana celular e com a água. A porção central desta proteína é tão hidrofóbica quanto a da carbonil redutase 1 humana

Em solução, o sal dissocia-se formando íons; por exemplo, o NaCl – o famoso sal de cozinha –
é constituído pelo cátion Na+ e pelo ânion Cl-. Estes se associam por meio da ligação iônica
intercedida por cargas. A estabilidade eletrônica destes átomos é alcançada quando o Na perde
um elétron da sua camada de valência, que passa a fazer parte da camada de valência do Cl. O Cl,
com um elétron a mais (Cl-), fica negativo e o sódio com um elétron a menos (Na+), fica positivo.
Estes são atraídos formando o sal. Quando o sal é adicionado em meio aquoso, ele se dissocia,
pois a força de atração que as moléculas de água exercem sobre os íons é maior que a força de
atração que os mantêm unidos. Assim o Na+ e o Cl- ficam rodeados por moléculas de água (água
de solvatação). A força iônica é a medida da concentração de íons em uma solução específica. Ela
é determinada pela somatória de todos os íons presentes na solução.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 68 – Ionização do NaCl. A água dissolve muitos sais cristalinos, hidratando seus íons. A rede cristalina de NaCl é
interrompida quando as moléculas de água se agrupam em torno dos íons Cl- e Na+. As cargas iônicas são
parcialmente neutralizadas e as atrações eletrostáticas necessárias para a formação da rede são enfraquecidas

Mas o que acontece quando uma proteína é adicionada em solução salina? A solubilidade de uma
proteína em uma solução aquosa é sensível à concentração de sal dissolvido, já a de uma proteína em
solução com pequena força iônica (poucos íons dissolvidos) aumenta com a adição de novos íons. Este
fenômeno, conhecido como salting-in (solubilização), ocorre, pois os novos íons adicionados na solução
são capazes de interagir com os resíduos de aminoácidos da proteína. Assim, há o enfraquecimento das
forças de atração entre as próprias moléculas de proteínas (estas forças podem acarretar a agregação
e precipitação das proteínas) e o aumento da solubilidade. Em contrapartida, a solubilidade de uma
proteína em solução com alta força iônica (muitos íons dissolvidos) reduz a solubilidade das proteínas.
O salting-out (precipitação) é consequência da competição entre os novos íons dissolvidos na solução
e os outros solutos dissolvidos, pela água de solvatação. Com aumento da concentração de sal, os
novos íons adicionados acabam sendo solvatados, diminuindo a quantidade de solvente disponível para
dissolver outros solutos. Em termos termodinâmicos, a atividade do solvente diminui e as interações
soluto-soluto se tornam mais fortes que as interações soluto-solvente. Portanto, a proteína se precipita.

95
Unidade I

Figura 69 – Salting-in e salting-out. A adição de sal em uma solução com baixa força iônica aumenta a solubilidade da proteína.
Nesta condição, os íons adicionados interagem com as proteínas reduzindo as interações eletrostáticas entre elas. Em contrapartida,
ao passo que mais sal for adicionado à solução, ocorrerá o aumento da força iônica e a diminuição da solubilidade da proteína.
As interações proteína-proteína se tornam mais favoráveis em termos energéticos do que as interações
proteína-solvente e, assim, as proteínas precipitam da solução

Agora pense em uma mistura complexa de proteínas, em que cada uma delas apresente um
ponto de precipitação específico, diante de determinada concentração salina. Logo, variações na
concentração de sal podem levar à precipitação de algumas proteínas, enquanto outras ainda
permanecem em solução. A proteína precipitada pode ser removida da mistura (por exemplo, por
centrifugação convencional – de baixa velocidade), e assim purificada. O sulfato de amônio é o sal mais
comumente utilizado para precipitar proteínas. A sua alta solubilidade permite a obtenção de soluções
com altas forças iônicas, além de apresentar baixo custo e, em geral, não afetar a atividade de enzimas.

Figura 70 – Purificação de proteína por salting-out. Em A, o sal escolhido (normalmente sulfato de amônio) é
acrescentado em concentração um pouco abaixo daquela de precipitação da proteína‑alvo (esferas verdes).
Em B, após a centrifugação, as proteínas indesejadas (esferas vermelhas) se precipitam e são descartadas.
Mais sal é adicionado no sobrenadante, até alcançar a concentração de precipitação da proteína desejada.
Em C, após uma segunda centrifugação, a proteína de interesse é recuperada no precipitado e o sobrenadante é descartado

96
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Observação

A precipitação de proteínas por variação de concentração de sal de


uma solução (salting-out) pode ser utilizada para separar proteínas do
sangue. O fibrinogênio, por exemplo, precipita em uma solução 0,8 mol/L
de sulfato de amônio, enquanto uma concentração de 2,4 mol/L do mesmo
sal é necessária para precipitar a albumina sérica.

3.2 Cromatografia

O botânico russo Mikhail Tswett descreveu, em 1903, um método de separação de pigmentos de


folhas dissolvidos em solução através de sua passagem por um sólido absorvente. Ele chamou este
processo de cromatografia, provavelmente por causa das bandas coloridas que iam se formando no
sólido absorvente, à medida que os pigmentos da solução iam se separando.

Atualmente, a cromatografia é o método mais usado para isolar proteínas de extratos em laboratórios
químicos, e ainda é comumente empregada em processos químicos industriais como componente da
produção em pequena e larga escala. Ela corresponde a um conjunto de técnicas baseadas no princípio
da retenção seletiva de compostos de uma mistura com o intuito de separá-los.

As técnicas cromatográficas são muito variadas, mas em todas elas há uma fase móvel que
consiste em um fluido que arrastra a amostra através de uma fase estacionária, geralmente sólida.

As diferentes técnicas cromatográficas podem ser classificadas de acordo com as fases móvel
e estacionária. A fase móvel é caracterizada pelo fluido utilizado, que pode ser líquido, gás
ou fluidos supercríticos. A fase estacionária é dividida conforme o tipo de suporte em que se
encontra. A cromatografia plana é aquela cuja fase estacionária está fixada sobre uma placa
plana ou um papel. As principais técnicas de cromatografia plana são a cromatografia em papel e a
cromatografia em camada delgada. Na cromatografia em coluna, a fase estacionária encontra-se
dentro de uma coluna.

97
Unidade I

Cromatografia

Fluidos
Líquida Gás supercríticos

Cromatografia Cromatografia
plana em coluna

– Gel-filtração
Cromatografia – Troca iônica
em papel
– Afinidade
– Interação hidrofóbica

Cromatografia
Cromatografia em líquida de alta
camada delgada performance (HPLC)

Figura 71 – Técnicas de cromatografia. O diagrama representa algumas técnicas


cromatográficas classificadas de acordo com a fase móvel e fase estacionária.
A cromatografia líquida em coluna é comumente utilizada para separação de proteínas

Figura 72 – Cromatografias plana e em coluna. A figura representa duas estratégias cromatográficas para separação de componentes
de uma mistura, uma realizada em camada delgada (A) e outra em coluna (B). Imagine que os compostos de uma mistura, resultantes
de uma reação química – reagentes A e B se combinam para formar o produto C – precisem ser separados (no final da reação
a mistura contém remanescentes das substâncias A e B e o produto C desejado). Em A, é mostrada a cromatografia em camada
delgada, que é realizada em uma placa de vidro recoberto com uma fina camada de uma matriz (a sílica é comumente utilizada).
A mistura, decorrente da reação, é aplicada na base da placa (indicada por uma linha sólida). A placa é então colocada em um
recipiente contendo solvente orgânico apropriado (por exemplo, uma mistura 1 hexano: 1 acetato de etila), com volume suficiente
para mergulhar a borda inferior. Gradualmente, por ação capilar, o solvente começa a subir na placa pela matriz de sílica e a mistura
de reação é separada em três pontos com cores distintas à medida que o solvente avança. Em B, é mostrada uma coluna de vidro
empacotada com uma matriz. Na extremidade inferior da coluna, é colocada uma fibra como lã de vidro para evitar o escoamento da
matriz, muitas colunas também possuem uma torneira para controle do fluxo do solvente. Após a preparação da matriz, a mistura é
aplicada na porção superior da coluna, seguida da adição de solvente, que é constantemente vertido na coluna. A mistura da reação
é separada em três bandas distintas – amarelo, rosa e laranja, correspondentes a B não reagido, A não reagido e ao produto desejado
C, respectivamente e coletadas como bandas individuais em frascos separados. Assim é possível obter o produto C puro

98
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Para separação de proteínas, normalmente se recorre às cromatografias em coluna. O material


de partida é colocado na superfície de uma matriz, que por sua vez está imobilizada dentro da
coluna (fase estacionária). Imagine que a matriz escolhida seja sílica. O solvente é então adicionado
na coluna e, à medida que este flui, carrega juntamente consigo o extrato. O fluxo de solventes em
sistemas de cromatografia em coluna pode se dar pela força da própria gravidade, ou com o auxílio
de sistemas de pressão (bombas peristálticas).

Os diferentes componentes do extrato exibem graus variados de interação com a sílica e o solvente.
Como resultado, eles migram em velocidades diferentes através da fase estacionária. Os componentes
que aderem mais fortemente à fase estacionária percorrem mais lentamente o comprimento da coluna
em comparação com aqueles que se aderem mais fracamente a ela. Ou ainda, os componentes que
apresentam maior afinidade pelo solvente tendem a percorrer mais rapidamente a extensão da coluna,
deslocando-se em menor tempo que os componentes que apresentam baixa afinidade pelo solvente.
Desta forma é possível fracionar os componentes do extrato e coletá-los, pois estes são liberados da
coluna em momentos distintos. É importante ainda ressaltar que o solvente é adicionado continuamente
durante todo o procedimento, evitando-se, assim, o ressecamento da matriz. O quadro a seguir apresenta
o vocabulário normalmente empregado quando se realizam técnicas de cromatografia em coluna.

Quadro 4 – Termos usados durante a realização de técnicas


de cromatografia em coluna e suas definições

Termo Definição
Fase móvel Solvente que atravessa a coluna
Fase estacionária Substância fixa no interior da coluna
Eluente Fluido que entra na coluna
Eluato Fluido presente dentro da coluna, que é coletado nos frascos de coleta
Eluição Processo de recuperação de um composto retido na coluna, usando solvente adequado

As informações obtidas em cromatografia podem ser apresentadas sob a forma de um


cromatograma, um gráfico que expressa normalmente a quantidade relativa (em massa ou
concentração) dos elementos eluídos em função do tempo ou do volume da fase móvel percorrida
pela coluna. A quantidade relativa dos componentes presentes nas diferentes frações pode ser
estimada por técnicas espectrofotométricas, ou ainda por meio de detectores acoplados ao final
dos sistemas cromatográficos. O detector cromatográfico é um transdutor capaz de converter uma
propriedade física ou química de um analito em um sinal elétrico, em tempo real. Existem diferentes
tipos de detectores capazes de mensurar absorbância, fluorescência, sinais eletroquímicos, índice
de refração, condutividade, massa, atividade óptica, fotoionização, espalhamento de luz, entre
outros. No cromatograma, o eixo y normalmente representa as informações do detector ou aquelas
mensuradas manualmente, enquanto o eixo x corresponde ao volume da fase móvel eluído da coluna
ou o tempo decorrido.

Em praticamente todos os sistemas cromatográficos, o transporte dos solutos ocorre inteiramente


na fase móvel. A cromatografia de sucesso requer que as proteínas se movam pela coluna como zonas

99
Unidade I

discretas que dão origem a picos relativamente nítidos e simétricos em uma curva de eluente. Quando
a análise de eluição é empregada, um pico acentuado ocorrerá se a proteína exibir um coeficiente de
distribuição finito entre as fases estacionárias e fluidas de uma coluna.

Figura 73 – Separação ideal de componentes de uma amostra em cromatografia em coluna. Quando os


componentes de uma amostra se separam completamente, observam-se suas eluições em diferentes frações,
espaçadas por volume de solvente; o perfil do cromatograma resultante apresentará formato tal como a desta figura

A depender da composição da matriz sólida porosa inserida dentro da coluna, é possível separar as
proteínas de acordo com seu tamanho (cromatografia em gel filtração), com sua carga (cromatografia
de troca iônica), com sua capacidade de se associar a uma molécula em particular (cromatografia de
afinidade) e conforme sua hidrofobicidade (cromatografia de interação hidrofóbica).

Na cromatografia em gel filtração, a matriz inserida na coluna é constituída de uma resina


(polímeros sintéticos) contendo esferas (beads) e orifícios, que atuam como obstáculos. As proteínas
de menor tamanho (normalmente menor massa molecular) percorrem a resina passando pelo interior
das esferas, atrasando o seu fluxo através da coluna. As proteínas de maior tamanho (maior massa
molecular) são grandes demais para passarem pelos poros das esferas, desta forma escoam pelos
espaços entre elas, sem serem retardadas pelos obstáculos. Assim, o primeiro volume a ser recuperado
da coluna corresponde às proteínas da mistura com maior tamanho, seguida daquelas com tamanho

100
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

intermediário, e por fim as de menor tamanho. Pode- se dizer que a cromatografia em gel filtração
permite a separação dos compostos, tal como uma “peneira invertida”.

Figura 74 – Cromatografia em gel filtração. A figura ilustra as características da resina utilizada na cromatografia em gel
filtração e o cromatograma resultante da separação da amostra. A separação das proteínas da amostra ocorre pela variação
de tamanho/massa, sendo que as maiores proteínas fluem mais rapidamente que as menores, por encontrarem menos
resistência durante sua passagem pela fase estacionária. A cor azul representa as esferas da resina (note a presença
dos poros), a vermelha corresponde às proteínas de maior tamanho e a rosa, às de menor tamanho

Na cromatografia de troca iônica, a resina da matriz é constituída por esferas carregadas ou


negativamente, o que caracteriza a cromatografia de troca catiônica; ou positivamente, conhecida
como cromatografia de troca aniônica. Em uma cromatografia de troca catiônica, proteínas com
predominância de cargas positivas serão atrasadas na passagem pela fase estacionária. Neste cenário,
as proteínas com excesso de cargas negativas são ainda repelidas pelas cargas das esferas igualmente
negativas, percorrendo o trajeto da coluna primeiro. As proteínas neutras não sofrem influência das
esferas carregadas. A eluição das proteínas adsorvidas pode ser realizada pela mudança da fase móvel.
É importante lembrar que a quantidade de cargas de uma proteína é dependente do pH (que determina
o estado de ionização da molécula) e da disponibilidade de íons na solução em que esta substância se
encontra. Assim, a alteração gradual do pH e da concentração de sal da fase móvel, de modo a criar um
gradiente de pH ou de concentração de sal, otimiza a separação das proteínas na mistura.

Observação

Não confunda adsorção com absorção. Esta primeira representa um tipo


de adesão seletiva mediada por interações de natureza química ou física.

101
Unidade I

À medida que o comprimento da coluna aumenta, a resolução na separação de dois tipos de proteína
com cargas líquidas diferentes geralmente melhora. No entanto, a velocidade na qual uma solução de
proteína é capaz de fluir geralmente diminui com o aumento comprimento da coluna. Portanto, é preciso
ponderar sobre estes componentes no momento de realizar a cromatografia de troca iônica. Após a
coleta das diferentes frações, estas podem ser testadas quanto à presença de proteínas de interesse,
além de outras propriedades, como força iônica e concentração de proteínas totais.

Figura 75 – Cromatografia de troca iônica. A resina utilizada na cromatografia de troca iônica é carregada. Na figura, está
representada a cromatografia de troca catiônica, em que as esferas da resina possuem cargas negativas. A separação das proteínas da
amostra ocorre pelas diferenças de cargas líquidas das proteínas da mistura. Neste caso, proteínas com carga líquida positiva ficam
retidas na fase estacionária, enquanto as proteínas com carga líquida negativa fluem primeiro

A cromatografia de afinidade fundamenta-se na ligação específica entre um componente da


matriz com uma proteína da mistura. Se um substrato é acoplado covalentemente à uma matriz de
cromatografia, como uma esfera de polissacarídeo, o ligante que opera nesse substrato em geral é retido
especificamente e pode ser eluído na forma quase pura. Da mesma forma, oligonucleotídeos curtos
de DNA de uma sequência especificamente projetada podem ser imobilizados na matriz e usados para
purificar proteínas de ligação ao DNA que normalmente reconhecem essa sequência de nucleotídeos
nos cromossomos. Alternativamente, anticorpos específicos podem ser acoplados a uma matriz para
purificar moléculas de proteína reconhecidas pelos anticorpos. Devido à grande especificidade de todas
essas colunas de afinidade, purificações de 1.000 a 10.000 vezes podem ser alcançadas em uma única
passagem da mistura pela coluna. O quadro a seguir representa compostos que podem ser purificados de
uma mistura por cromatografia de afinidade e a estratégia utilizada no processo, ou seja, a característica
da molécula ligada à resina (ligante).

102
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Quadro 5 – Purificação por cromatografia de afinidade: interação entre


a molécula de interesse e o ligante da resina cromatográfica

Molécula Ligante
Antígeno Anticorpo
Enzima Substrato
Receptor Ligante
Proteínas que se ligam aos ácidos nucleicos Ácidos nucleicos
Polissacarídeos, glicoproteínas Lectina

Figura 76 – Cromatografia de afinidade. A resina (representada em azul) utilizada na cromatografia de afinidade é ligada covalentemente
a uma molécula (representada em verde-escuro) que possui afinidade por algum componente da mistura. As proteínas da mistura que
se associam aos ligantes (representadas em rosa) são retidas na fase estacionária, enquanto as demais fluem livremente. Para liberar
as proteínas associadas à resina, umas das estratégias possíveis consiste em eluir por competição, acrescentando grandes quantidades
de moléculas ligantes na fase móvel. Isto desloca o equilíbrio em favor do ligante livre, liberando a proteína da resina. Outra estratégia
utilizada é a mudança do pH da fase móvel que modifica as interações entre a proteína‑alvo e o ligante

Técnicas de engenharia genética permitiram separar proteínas por cromatografia de afinidade que
antes não podiam ser purificadas pela ausência de um ligante específico. As proteínas de fusão são
sintetizadas a partir da fusão da proteína de interesse com outra que possua um ligante útil disponível.
Por exemplo, proteínas de fusão cuja porção N-terminal consiste na enzima glutationa‑S-transferase,
associam‑se fortemente ao tripeptídeo glutationa e, portanto, são prontamente purificadas por
cromatografia de afinidade em resina de glutationa.

Outra estratégia bastante utilizada é a marcação da proteína com um componente qualquer que
permita a sua subsequente purificação. Esta marcação (tag) seria como uma etiqueta associada à proteína
de interesse capaz de se ligar à resina de cromatografia. Uma estratégia bastante utilizada é a adição de
uma sequência repetida de seis aminoácidos de histidina, conhecida como etiqueta His, que se liga a
íons metálicos como Zn2+ ou Ni2+. Desta forma, as técnicas de engenharia genéticas usadas para associar
uma pequena cadeia de histidina em quaisquer uma das porções terminais da proteína permitem a
sua retenção seletiva em uma resina cromatográfica contendo íons de níquel imobilizado. A proteína

103
Unidade I

é eluída alterando-se o pH da fase móvel, enquanto a etiqueta His pode ser removida pela ação de
proteases específicas cujas sequências de reconhecimento separam a cauda de histidina do restante
da proteína. Assim, a cromatografia de afinidade por metais pode ser usada para purificar proteínas
modificadas de uma mistura complexa.

Lembrete

A partir de técnicas de engenharia genética que envolvem métodos


de DNA recombinante, qualquer gene pode ser modificado para produzir
uma proteína de fusão ou uma proteína com uma marcação (tag) de
reconhecimento especial anexada a ela, de modo a tornar a purificação
subsequente da proteína simples e rápida.

Observação

O hormônio proteico insulina foi covalentemente ligado à agarose e


usado para isolar o receptor de insulina. Até então, algumas das funções
deste receptor de superfície celular não eram conhecidas e o fato de estarem
presentes nos tecidos apenas em pequenas quantidades, dificultava
sua purificação.

A cromatografia por interação hidrofóbica (HIC) baseia-se no fenômeno de que moléculas


hidrofóbicas tendem a se agregarem em ambientes aquosos espontaneamente. Neste protocolo, uma
amostra contendo proteínas com diferentes quantidades de regiões hidrofóbicas expostas em sua
superfície é adicionada a uma coluna contendo matriz com características hidrofóbicas. A fase móvel,
corresponde a uma solução com alta concentração de sal, e, portanto, alta polaridade. Quando esta
solução flui pela fase estacionária, os seus íons interagem com a água que envolvia a molécula da
proteína em seu estado hidratado. Com isso, as regiões hidrofóbicas das proteínas ficam expostas
e tendem a adsorver na matriz hidrofóbica, retardando o seu fluxo pela coluna. Quanto maior a
quantidade de resíduos hidrofóbicos expostos, mais lento será o deslocamento da proteína pela
coluna. A força dessa interação pode ser ajustada alterando a força iônica da fase móvel, ou seja,
diminuindo gradativamente as concentrações de sal do solvente, ou ainda sua polaridade (com
emprego de solventes orgânicos).

104
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 77 – Cromatografia de interação hidrofóbica. Em A, a estrutura básica da resina usada


na cromatografia de interação hidrofóbica. Em baixas concentrações de sal, as moléculas de água
que envolvem a proteína impedem a sua interação com a resina. Em B, com adição de sal, as
regiões hidrofóbicas do estado desidratado da proteína são expostas, ocorrendo a interação com a resina

105
Unidade I

Na cromatografia líquida de alta eficiência (HPLC, high performance liquid chromatography),


a separação das proteínas é baseada nos mesmos princípios já descritos como troca iônica, afinidade,
interação hidrofóbica ou exclusão por tamanho (gel filtração). No entanto, o processo de separação foi
melhorado consideravelmente com o emprego de colunas de alta resolução e da diminuição do tempo
que a amostra permanece nestas colunas (o sistema é operado em alta pressão).

Desta forma, a adoção deste sistema de cromatografia só foi possível com o desenvolvimento
de materiais resistentes à alta pressão e com porosidade adequada para separação de compostos
com alta resolução (por exemplo, foram confeccionadas partículas esféricas porosas de 1,7 µm
que permitem separação com alta resolução e eficiência em uma pressão de 30.000 pratos/15 cm).
Estas novas ferramentas demandaram uma instrumentação mais sofisticada para serem empregadas
com o máximo de desempenho cromatográfico.

Os aparelhos empregados em HPLC são chamados de cromatógrafos a líquido. Eles se caracterizam


por apresentarem a seguinte configuração instrumental: reservatório de fase móvel, sistema de
bombeamento da fase móvel, sistema de injeção, sistema analítico (coluna cromatográfica), sistema
de detecção e sistema de controle, aquisição e registro de dados.

O HPLC é capaz de separar uma grande quantidade de compostos em diversos tipos de amostras em
um espaço de tempo de alguns minutos, exibindo alta resolução. Nas análises clínicas, ele é utilizado
na detecção de metabólitos, proteínas, peptídeos, aminoácidos – por exemplo, tem-se a dosagem de
25-Hidróxi-vitamina D, Hemoglobina glicada, hormônios esteroides, entre outras.

3.3 Eletroforese em gel

Na eletroforese em gel, as proteínas podem ser separadas por tamanho. O gel é preparado com
diferentes materiais, como agarose ou acrilamida, que polimerizam/gelificam, formando uma rede cheia
de poros que funciona como obstáculo para a passagem das proteínas.

O gel de agarose pode ser utilizado na separação de proteínas de alto peso molecular, devido
às características da rede formada, no entanto é comumente empregado nas separações dos ácidos
nucleicos. A agarose é um polímero natural extraído de algumas algas marinhas, capaz de formar uma
matriz quando aquecida e resfriada a temperatura ambiente (a agarose pode ser dissolvida em tampão
fervente e um gel é formado após o resfriamento desta solução abaixo de 45 °C). Tal propriedade se dá
pela formação de extensas ligações de hidrogênio entre as moléculas de ágar. O tamanho dos poros dos
géis de agarose depende da sua concentração (soluções com agarose 6% são frequentemente usadas
e têm poro de tamanho médio de aproximadamente 30 nm, enquanto concentrações de 4 e 2% têm
poros de 70 e 150 nm, respectivamente).

106
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 78 – Gel de agarose. Em A, à esquerda, está representada a unidade de repetição do polissacarídeo agarose, conhecida como
agarobiose. A agarobiose é um dissacarídeo (D-galactose-β-1,4-(3,6)-anidro-L-galactose) formado pelos monômeros β-D-galactose
e (3,6)-anidro-α-L-galactose. À direita, destacam-se as ligações de hidrogênio (linha tracejada em vermelho), que participam da
gelificação da agarose. Em B, ilustra-se a formação gradual do gel de agarose até o seu aspecto final, com presença de poros

Os géis de agarose são simples e muito fáceis de preparar. Não há necessidade de agentes
catalisadores na sua gelificação, além disso, este material não é tóxico. No entanto, as bandas formadas
após a separação da amostra não são tão precisas e difundem-se pelo gel com o passar do tempo.
A estabilidade mecânica da agarose também é restrita, embora seja suficiente para formar um gel
horizontal estável, comprometendo as possibilidades de manipulação pós-eletroforese. O quadro a
seguir ressalta as vantagens e desvantagens do uso do gel de agarose em eletroforese.

Quadro 6 – Vantagens e desvantagens do uso do gel de agarose na eletroforese

Vantagens Desvantagens
Alto custo da agarose (proporcional ao seu
Agarose não é tóxica grau de pureza)
Fácil preparo Bandas difusas
Boa separação para moléculas de alto peso molecular Pequena resolução de separação para moléculas de
(DNA e proteínas) baixo peso molecular
Compostos podem ser recuperados do gel Gel com baixa estabilidade mecânica
(mais comum para DNA)

O estudo do perfil proteico do sangue ou urina tem como objetivo identificar presença anormal
de proteínas nestas amostras. A imunoeletroforese é um nome utilizado para se referir a diversos
protocolos bioquímicos envolvidos na separação e caracterização destas proteínas. Em termos gerais,
o protocolo consiste em submeter uma amostra à eletroforese em gel de agarose. As proteínas da
amostra se separaram de acordo com sua carga; aquelas com carga líquida negativa migram em direção
ao polo positivo e vice-versa. Após a separação, o gel é colocado em solução contendo anticorpos que
se difundem no gel reagindo com as proteínas específicas. Os imunocomplexos (anticorpos conjugados
107
Unidade I

com as proteínas) formam linhas ou arcos de precipitação. Os resultados obtidos são comparados com
um controle (amostra normal ou referência) possibilitando sua interpretação.

Esta técnica é utilizada para detecção de imunoglobulinas secretadas pelos plasmócitos.


As imunoglobulinas são constituídas por duas cadeias polipeptídicas pesadas da mesma classe
e subclasse (IgG, IgA, IgD, IgE e IgM) e duas cadeias polipeptídicas leves do mesmo tipo (kappa ou
lambda). Existem algumas patologias caracterizadas pela secreção anormal das imunoglobulinas, como
as gamopatias monoclonais, que são um grupo de desordens associadas com proliferação monoclonal
de plasmócitos, também conhecidas como paraproteinemias, disproteinemias ou imunoglobulinopatias.
A confirmação da presença da proteína monoclonal é essencial para diferenciar as gamopatias
monoclonais das gamopatias policlonais, uma vez que as primeiras são potencialmente neoplásicas,
enquanto as últimas resultam de processos inflamatórios ou infecciosos.

A eletroforese é considerada um método de triagem para a presença do componente monoclonal,


enquanto a imunofixação tem sido considerada atualmente o padrão ouro para confirmar sua presença
e distinguir entre cadeias dos tipos leve ou pesada. A figura a seguir ilustra o perfil de eletroforese em
gel de agarose para análise do perfil de separação das proteínas do soro em dois indivíduos.

Figura 79 – Eletroforese em gel de agarose de amostras de soro de um indivíduo sadio e de um paciente com mieloma múltiplo.
Em A, é mostrado o perfil da migração eletroforética das proteínas do soro de um indivíduo saudável. As proteínas do soro são
divididas em albumina (A) e imunoglobulinas. As imunoglobulinas são ainda subdivididas em α1, α2, β e γ. O gráfico representa a
densitometria (quantificação) de cada banda no gel. Em B, verifica-se o perfil da migração eletroforética das proteínas do
soro de um paciente com mieloma múltiplo, no qual obtém-se uma banda bem delimitada na região das imunoglobulinas,
com mobilidade bastante variável. No paciente em questão, verifica-se um pico maior na fração correspondente à γ globulina

108
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

O gel de poliacrilamida é formado pelos monômeros acrilamida e bis-acrilamida (N-N’-metileno-


bis-acrilamida). Pequenas quantidades de bis-acrilamida formam pontes cruzadas (cross linking) entre
a acrilamida, favorecendo sua polimerização. Esta reação ocorre na presença de radicais livres. Desta
forma, adiciona-se persulfato de amônio (APS) que funciona como peróxido iniciador. Para aumentar
a velocidade da reação, utiliza-se ainda N,N,N’,N’-tetrametiletilenodiamina (Temed) que age como
catalizador do processo. Durante a preparação do gel, deve-se evitar oxigenação excessiva da mistura
(agitação exagerada), uma vez que o oxigênio atmosférico (O2) remove radicais livres, inibindo a reação.
Para a separação de proteínas, a proporção usada entre acrilamida:bis-acrilamida é normalmente de
40:1, enquanto para a separação de DNA esta proporção é de 19:1.

Figura 80 – Gel de poliacrilamida. A polimerização da acrilamida ocorre por meio de


pontes cruzadas formadas pela bis-acrilamida (N-N’-metileno-bis-acrilamida)

Embora os géis de acrilamida sejam geralmente mais difíceis de preparar e manusear, consumindo
mais tempo do que os géis de agarose, eles possuem grandes vantagens: apresentam porosidade
altamente controlada e são mecanicamente estáveis. O tamanho dos poros dos géis de poliacrilamida
pode ser alterado de uma maneira fácil e controlável, dosando-se as concentrações dos dois monômeros
precursores (acrilamida e bis-acrilamida). Assim, é possível alcançar uma separação de alta resolução

109
Unidade I

de DNA e proteínas em uma ampla variação de massa. De qualquer forma, deve-se salientar que a
acrilamida é neurotóxica, mas com cuidados laboratoriais adequados, não é mais perigosa do que
vários produtos químicos comumente usados. Uma vez polimerizado, é quimicamente inerte. O gel
de poliacrilamida normalmente é montado em um aparato vertical com a utilização de um pente, que
permite a formação de poços, nos quais as amostras são aplicadas. Por ser mecanicamente estável,
o gel é de fácil manipulação pós-eletroforese. Algumas vantagens e desvantagens do uso de géis de
poliacrilamida para eletroforese são mostrados a seguir.

Quadro 7 – Vantagens e desvantagens do


uso do gel de poliacrilamida na eletroforese

Vantagens Desvantagens
Gel quimicamente inerte e mecanicamente estável Monômeros são tóxicos
Bandas precisas (sharp bands) Processo de preparo trabalhoso e demorado
Alto poder de separação e resolução, além de separar
moléculas de baixo peso molecular (em função da Novos géis são necessários a cada experimento
concentração de acrilamida empregada)

No protocolo de eletroforese em gel de poliacrilamida (polyacrylamide gel electrophoresis – Page),


as amostras são tratadas a fim de evitar a influência das cargas líquidas das proteínas no processo de
separação. Desta forma as proteínas serão separadas exclusivamente pelo tamanho/massa. Mas como
isso acontece?

Inicialmente, é necessário adicionar um tampão de amostra em condições desnaturantes no extrato


proteico a fim de linearizar as proteínas da mistura (favorecer a desconformação tridimensional). Estas
moléculas em seu estado ativo possuem um dobramento espacial específico, estabilizado por diferentes
tipos de ligações químicas fracas (ligações de hidrogênio e interações de Van der Waals, entre outras) ou
covalentes (como pontes dissulfeto). A conformação nativa da proteína influencia sua migração no gel.
Assim, algumas estratégias são comumente empregadas para desnaturá-la, tais como: aquecimento,
exposição a agentes redutores e adição de detergentes aniônicos fortes. A fervura favorece o rompimento
das ligações fracas. Agentes redutores, como β-mercaptoetanol ou ditiotreitol (DTT), são capazes de
quebrar ligações dissulfeto intra e entre cadeias polipeptídicas. Detergentes aniônicos fortes, como
dodecil sulfato de sódio (SDS), interagem com as regiões hidrofóbicas das proteínas, desestabilizando-as.
Assim, as moléculas de polipeptídios individuais são liberadas de suas associações com outras proteínas
ou moléculas lipídicas, deixando-as livres em solução, além de linearizá-las.

110
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 81 – Compostos utilizados na desnaturação de proteínas para a utilização na eletroforese em gel de poliacrilamida.
Em A, o agente redutor DTT desestabiliza as pontes dissulfeto que mantêm unidas duas cadeias polipeptídicas de
uma proteína qualquer. Em B, o efeito do detergente SDS na conformação e carga da proteína

Quando um detergente aniônico envolve as proteínas, reveste-as com cargas negativas.


Moléculas eletricamente carregadas podem ser separadas em um campo elétrico, sendo que
aquelas carregadas positivamente tendem a migrar em direção ao cátodo (polo negativo),
enquanto as carregadas negativamente deslocam-se em direção ao ânodo (polo positivo).
No entanto, as proteínas não migram apenas como consequência de suas cargas; o tamanho/massa
também influenciará. Proteínas de alta massa molecular, quando desnaturadas, apresentam maior
resistência no deslocamento eletroforético, se comparadas a proteínas de baixa massa molecular.
Assim, embora as proteínas revestidas por cargas negativas migrem em direção ao ânodo, por
sofrerem atrito contra a malha do gel, atingirão velocidades diferentes, a depender de suas massas
moleculares. Note que nestas condições, a razão carga/massa é igual para todas as proteínas da
amostra, uma vez que o efeito da carga líquida das proteínas nativas foi anulado no processo de
desnaturação e associação com SDS. Portanto, o processo de migração é mediado exclusivamente
pelo tamanho das proteínas. Como resultado, uma complexa mistura é fracionada em uma série de

111
Unidade I

bandas discretas de proteínas dispostas em ordem conforme a massa molecular. Esta malha atua
como uma peneira molecular, grandes proteínas são retardadas mais do que as pequenas.

Figura 82 – Movimento das proteínas durante a eletroforese. Os eletrodos são responsáveis por gerar uma
corrente elétrica que atrai as proteínas carregadas. Proteínas com carga líquida positiva tendem a migrar em
direção ao eletrodo negativo, o cátodo, enquanto proteínas com carga líquida negativa se deslocam
em direção ao eletrodo positivo, o ânodo

Neste processo, normalmente é preparado um gel com duas porções distintas, tanto em relação
à razão acrilamida:bis-acrilamida quanto em função do pH e molaridade dos tampões empregados,
um polimerizado sobre o outro. A porção mais superficial do gel, no qual as amostras são adicionadas,
favorecerá o empilhamento das proteínas (conhecido como gel de empilhamento ou stacking gel).
A porção que fica logo abaixo, conhecida como gel de separação (separating gel, resolving gel ou
running gel) é onde de fato ocorrerá a separação das proteínas. Mas por que é necessária a utilização
de um gel de empilhamento?

Ele garante que as proteínas sejam alinhadas e comecem a se separar em um mesmo ponto de
partida. Imagine uma corrida em que todos os competidores larguem do mesmo local. A ideia aqui é
semelhante. Ao penetrar no gel de empilhamento, as proteínas presentes na mistura poderão iniciar a
separação no gel subsequente ao mesmo tempo, como competidores em uma largada.

112
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 83 – Migração de proteínas de duas amostras e dos íons do tampão de corrida em sistema de eletroforese em condições
desnaturantes em gel de poliacrilamida descontínuo (gel de empilhamento e gel de separação). O tampão de corrida normalmente
utilizado para eletroforese em géis de poliacrilamida (1x concentrado) contém 0,025 M Tris [tris(hidroximetil)aminometano], 0,192 M
glicina e 0,1% SDS, ajustado para pH 8,3 com HCl. Em A, extratos preparados em tampão de amostra em condições desnaturantes
são colocados nos poços do gel. Em B, voltagem é aplicada e as amostras começam a se deslocar pelo gel. Os íons Cl- presentes no
tampão se difundem no gel e se deslocam mais rapidamente que as proteínas envolvidas por SDS, formando uma frente de corrida
de íons. Moléculas de glicina carregadas (íons seguidores) fluem do tampão de corrida para o gel e formam uma linha de frente, que
neste momento se encontra atrás das proteínas. Em C, um gradiente de voltagem é criado entre os íons Cl- e as moléculas de glicina
carregadas, formando um “sanduíche” entre as proteínas. Em D, as proteínas são empilhadas entre as frentes de íons Cl- e moléculas
de glicina carregadas. Na interface do gel de empilhamento com o gel de separação, a porcentagem de acrilamida aumenta e
o tamanho do poro na malha do gel diminui. O movimento de entrada das proteínas na porção do gel de separação encontra
grande resistência. Em E, os pequenos poros do gel de separação começam a separar as proteínas das amostras exclusivamente
pelo tamanho, uma vez que a razão carga/massa é a mesma para todas as proteínas da amostra. Em F, as proteínas da amostra são
separadas em bandas de acordo com a massa molecular. %T = concentração de monômero total no gel

Após a eletroforese, as bandas de proteínas podem ser visualizadas por meio da adição de corantes
ao gel, tal como o azul de Coomassie (Coomassie Brilliant Blue R-250), que se liga às proteínas,
mas não ao próprio gel, por interagir principalmente com resíduos de aminoácidos aromáticos presentes
nas cadeias polipeptídicas. Assim, um pesquisador pode monitorar o progresso de um procedimento de
purificação de proteínas à medida que o número de bandas de proteínas visíveis no gel diminui, após cada
nova etapa de fracionamento. Além do azul de Coomassie, as proteínas podem ser visualizadas após
tratamento do gel com nitrato de prata, de modo que mesmo pequenas quantidades de proteína (na
escala de ng) são detectadas em uma banda. Para alguns propósitos, proteínas específicas também podem
ser marcadas com isótopos radioativos; a exposição do gel a um filme resulta em uma autorradiografia,
pela qual é possível identificar o produto marcado. Na eletroforese, convém aplicar em um dos poços
no gel uma amostra contendo proteínas com massa molecular conhecida – comercialmente disponíveis
sob a alcunha de padrões de massa molecular ou protein ladder – permitindo, assim, a estimativa

113
Unidade I

das massas de proteínas desconhecidas. Em função das condições desnaturantes, subunidades de uma
mesma proteína tenderão a formar bandas separadas, caso possuam massas distintas.

Figura 84 – Bandas em gel de poliacrilamida coradas com azul de Coomassie, após eletroforese em condições desnaturantes.
Amostras de proteínas foram submetidas à eletroforese (origem de aplicação das amostras na porção superior da imagem)
em faixas paralelas em gel de poliacrilamida. Ao final da corrida, o gel foi então corado para revelar as proteínas.
As faixas 1, 2, 10 e 17 contêm padrões de massa molecular cujas massas são indicadas à esquerda (em kD). O padrão
de massa molecular é utilizado para estimar a massa das proteínas separadas em cada amostra. kD = quilodaltons

3.4 Eletroforese bidimensional (ou eletroforese-2D)

Na eletroforese bidimensional, diferentemente do que foi apresentado na eletroforese em


condições desnaturantes em gel de poliacrilamida, as proteínas serão separadas considerando-se tanto
a sua massa quanto a sua carga nativa. Para isso, as amostras são submetidas à focalização isoelétrica
(IEF), seguida de eletroforese em condições desnaturantes. Como a eletroforese bidimensional combina
dois métodos distintos de separação, apresenta um poder de resolução extremamente alto, sendo capaz
de separar mais de 5.000 proteínas na forma de mapa bidimensional.

A focalização isoelétrica é um procedimento empregado para determinar o ponto isoelétrico (PI)


de uma proteína ou para separar as proteínas de uma mistura de acordo com suas cargas. As proteínas
possuem grupos carregados de ambas as polaridades nas cadeias laterais de seus aminoácidos e nos
grupamentos amino e carboxila terminais. Assim, para cada proteína existe um pH específico em que
a quantidade de suas cargas positivas está em equilíbrio com a de suas cargas negativas. Neste pH, a
proteína está no seu PI, ou seja, sua a carga líquida é nula.

Se uma mistura de proteínas é submetida a campo elétrico em meio com gradiente de pH estável,
em que o pH aumenta suavemente do ânodo para cátodo, cada proteína migra para a posição no
gradiente de pH correspondente ao seu ponto isoelétrico. No ponto isoelétrico, as proteínas se tornam
imóveis, pois não sofrem mais atração em direção aos eletrodos.

114
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 85 – Focalização isoelétrica. Proteínas de uma mistura são submetidas a um campo elétrico em um gradiente estável de pH.
As proteínas são atraídas pelas suas cargas em direção aos eletrodos, no entanto, estas migram até alcançarem o seu PI, pois neste
ponto, suas cargas líquidas passam a ser nulas. Desta forma as proteínas são separadas de acordo com sua carga. Note que proteínas
de tamanhos diferentes, mas com PI semelhantes, ficam agrupadas em uma mesma faixa de pH

Após a separação das proteínas por focalização isoelétrica, estas são submetidas à eletroforese
em condições desnaturantes em gel de poliacrilamida para a segunda etapa do fracionamento.
O resultado da separação aparece como bandas ou pontos (spots) no gel, que deve ser corado para
análise. As bandas individuais das proteínas podem ser recortadas do gel, descoradas e eluídas
para identificação e caracterização. O quadro a seguir resume os métodos de separação abordados
relacionando a característica da proteína com a técnica empregada.

Saiba mais

A eletroforese bidimensional é uma ferramenta valiosa no estudo


da proteômica (conjunto de todas as proteínas de uma célula ou de um
organismo) que visa identificar, quantificar, determinar a localização,
descrever a atividade e possíveis modificações das proteínas. Variantes de
proteínas podem ser identificadas comparando-se posições e intensidades
das bandas nos géis bidimensionais de preparações similares. Essas
análises são feitas com auxílio de softwares após a digitalização das imagens
dos géis. Inúmeros géis 2D de referência estão disponíveis publicamente
para esse fim nos bancos de dados acessíveis na web listados a seguir:

VOET, D.; VOET, J. G.; PRATT, C. W. Fundamentals of biochemistry: life at


the molecular level. New Jersey: Wiley, 2008.

Tais bancos de dados contêm imagens de géis 2D de uma variedade


de organismos e tecidos e com identificação de muitas de suas
proteínas componentes.

115
Unidade I

Figura 86 – Eletroforese bidimensional. Em A, as proteínas são primeiramente separadas por focalização isoelétrica em um gel
cilíndrico contendo um gradiente de pH. Em seguida este é colocado horizontalmente sobre um segundo gel, em forma de placa,
e as proteínas são separadas por eletroforese em gel de poliacrilamida em condições desnaturantes. A separação horizontal
reflete diferenças no PI; a separação vertical reflete diferenças na massa molecular. Em B, autoradiograma de uma eletroforese
bidimensional. Mais de 1.000 proteínas diferentes de E. coli foram separadas usando esta técnica

Quadro 8 – Técnicas de purificação baseadas em


características específicas da proteína

Característica Técnica
Salting-in
Solubilidade
Salting-out
Cromatografia de troca iônica
Carga iônica
Focalização isoelétrica
Polaridade Cromatografia de interação hidrofóbica
Eletroforese em gel
Tamanho da molécula Cromatografia em gel filtração
Ultracentrifugação
Ligação Cromatografia de afinidade

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

4 CULTURA DE CÉLULAS, CÉLULAS-TRONCO E OGM

4.1 Cultura de células

A cultura de células envolve processos complexos de isolamento de células de seu ambiente natural
(in vivo) e subsequente crescimento em condição artificial em um ambiente controlado (in vitro). Na
primeira década do século XX, Ross Harrison desenvolveu as técnicas iniciais de cultura de células in
vitro, e Burrows e Carrel as aprimoraram.

Na verdade, no final do século XIX, Wilhelm Roux (1850-1924) demonstrou ser possível manter
células vivas (da placa neural de embriões de galinha) fora do corpo, em tampão salino, por alguns dias.
Ao mesmo tempo, Leo Loeb (1869-1959) conseguiu colocar em prática uma técnica que era conhecida
como “cultura de tecidos no corpo”. Ele colocou fragmentos de pele de embrião de cobaia em ágar e
soro coagulado, depois os enxertou em animais adultos. Usando este procedimento, Loeb obteve células
epiteliais em mitose. No entanto, a metodologia não foi considerada uma cultura clássica, pois envolvia
enxerto de tecidos e fluidos de animais vivos.

Desta forma, ao embriologista americano Ross Harrison (1870-1959) é creditado o desenvolvimento


das primeiras técnicas de cultura de células. Nos seus experimentos (1907-1910, na Universidade de
Yale), pequenos pedaços de tecido embrionário de rã vivos foram isolados para crescimento fora do
corpo. Ele colocou este tecido em uma gota de uma solução de linfa apoiada em uma lamínula e
inverteu o material em uma lâmina de vidro com uma depressão, de forma que o tecido explantado
ficasse na gota em suspensão. O método de Harrison, embora adaptado da técnica microbiológica usada
para estudos de bactérias (inventado por Robert Koch na década de 1880 e usado pela primeira vez para
o crescimento de bacilos do antraz), foi aplicado com sucesso para culturas das células eucariontes.

Infelizmente, algumas observações de Harrison sobre o comportamento das células em cultura foram
limitadas no tempo por rápidas contaminações bacterianas. Por esse motivo, ele introduziu técnicas
assépticas no trabalho com culturas de células. A vidraria era flambada, o equipamento cirúrgico (por
exemplo, agulhas, tesouras e pinças) fervido e os panos e filtros de papéis, autoclavados. A técnica
asséptica possibilitou a obtenção de preparações estéreis que puderam ser mantidas in vitro por mais de
cinco semanas. Devido às mudanças na preparação do tecido estéril, Harrison foi capaz de relatar vários
estágios do desenvolvimento celular de maneira contínua ao longo do tempo. Graças ao aprimoramento
de sua técnica, Harrison lançou luz sobre enormes possibilidades de aplicação de cultura de células
e tecidos não apenas como uma ferramenta em estudos de bacteriologia, embriologia, fisiologia ou
histologia, mas na produção de anticorpos monoclonais, vacinas e fármacos.

Em 1910, Montrose Burrows (1884-1947) visitou Harrison em Yale e adaptou o método de cultura de
células em uma gota em suspensão de forma a suprir às necessidades de seus próprios experimentos.
Burrows utilizou o plasma extraído de galinhas como meio de cultura. Este era muito mais fácil de
ser obtido e mais homogêneo em qualidade e, portanto, o processo de preparo acabava sendo mais
confiável. Então, com Alexis Carrel (1873-1944), no Rockefeller Institute for Medical Research em Nova
York, eles estabeleceram culturas de células de tecidos embrionários e adultos (conjuntivo, periósteo,
cartilagem, osso, medula óssea, pele, rins e glândula tireoide) de muitas espécies (por exemplo, cão,
117
Unidade I

gato, galinha, porquinho-da-índia, rato) que podiam ser mantidas in vitro, devido ao “meio de cultura
de plasma” – plasma fresco oriundo da mesma fonte dos tecidos cultivados.

Durante os seus estudos, Burrows e Carrel avaliaram outros meios de cultura compostos de plasma
diluído com diferentes soluções de sal e soro. Usando meios complexos, eles foram capazes de subcultivar
e manter culturas por vários meses. Eles trabalharam não apenas com tecidos normais de mamíferos
adultos, mas com tecidos de células tumorais. Essas mudanças distinguiram as culturas de Burrows e
Carrel das de Harrison e lhes deram a ideia de uma cultura contínua. Desta forma, eles começaram novas
culturas a partir das antigas, sem a necessidade de estabelecer culturas primárias a partir dos tecidos.
Os resultados obtidos por Carrel e Burrows foram publicados no Journal of the American Medical
Association em 1910, e o termo “cultura de tecidos” foi definido pela primeira vez em 1911 como um
meio plasmático inoculado com pequenos fragmentos de tecidos vivos. O termo introduzido cultura de
tecidos descreveu também o crescimento e reprodução fora do corpo.

Atualmente, as culturas de células animais e humanas são ferramentas amplamente utilizadas


em muitos ramos da ciência. Diferentes variantes encontram aplicação como modelo de estudo de
doenças, na tecnologia da reprodução assistida, em pesquisa de células-tronco e câncer, na produção
de anticorpos monoclonais e proteínas terapêuticas e na medicina regenerativa.

Uma das vantagens do uso da cultura de células para essas aplicações é a viabilidade de manipulação
de genes e vias moleculares. Além disso, a homogeneidade das populações de células clonais ou células
tipo-específicas e sistemas de cultura bem definidos removem as variáveis genéticas ou ambientais
interferentes e, portanto, permite a geração de dados de alta reprodutibilidade e consistência que não
pode ser garantida ao se estudar sistemas de órgãos inteiros.

Normalmente, o processo se inicia com uma cultura primária com o objetivo de atingir a confluência,
ou seja, a formação de uma monocamada de células em uma placa/frasco de cultura suplementado com
os nutrientes e fatores de crescimento necessários. Com a obtenção da confluência, as células são então
passadas ou subcultivadas da cultura primária para a secundária e subsequentemente para a terciária,
até que, em alguns casos, uma linhagem celular contínua seja estabelecida.

O oxigênio molecular é uma das variáveis mais importantes nos sistemas modernos de cultura
de células. Flutuações em sua concentração podem afetar o crescimento celular, a diferenciação,
a sinalização e a produção de radicais livres. Para manter a viabilidade da cultura, validade experimental
e reprodutibilidade, é imperativo que os níveis de oxigênio sejam mantidos de forma consistente dentro
dos limites fisiológicos “normóxicos”.

4.1.1 Cultura de células aderentes e não aderentes

As células animais são normalmente cultivadas como uma cultura aderente. Considere uma cultura
em uma placa preenchida com meio de cultura. Se você derramasse o meio para fora da placa, as células
permaneceriam no mesmo local porque estão presas ao fundo – elas estão aderidas.

118
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 87 – Cultivo de células aderentes e em suspensão

As células utilizam as integrinas, uma família de proteínas de adesão, para se manterem


associadas a diferentes superfícies. No corpo, esta superfície pode ser a matriz extracelular (MEC),
cujos componentes são secretados pelas próprias células, permitindo a aquisição da organização de
um tecido característico. No laboratório, a superfície pode ser uma placa ou frasco de cultura, ou uma
matriz sintética coberta com colágeno. A caderina corresponde a outra família importante na adesão.
No entanto, é constituída por proteínas adesivas dependentes de cálcio que medeiam interação entre
duas células (adesão célula-célula).

Proteínas como fibronectina, vitronectina, osteopontina, colágenos, trombospondina, fibrinogênio e


fator de von Willebrand podem ser usadas para promover a fixação de células a superfícies. Todas elas
compartilham uma característica comum: a sequência tripeptídica arginina-glicina-aspartato, abreviada
pela sigla RGD, de seus códigos de aminoácidos de uma letra. As sequências RGD podem ser usadas para
revestir superfícies de estruturas tridimensionais, que funcionam como arcabouços para promover a
fixação das células. O desenvolvimento destas estruturas está associado a um ramo da biomedicina
conhecido como engenharia de tecidos. Este segmento visa alcançar o cultivo tridimensional (3D) de
células, com intuito de desenvolver tecidos artificiais, para produção de pele, cartilagens e tecidos
ósseos. A fixação das células é alcançada através do reconhecimento da sequência RGD pelas integrinas.

Figura 88 – Desenvolvimento de tecidos artificiais. A estrutura de uma orelha humana foi esculpida
em um arcabouço de celulose e cultivada com a linhagem HeLA (em A) e impressa em 3D, em nanocelulose
fibrilada e cultivada com condrócitos (em B), para o desenvolvimento de uma cartilagem artificial

119
Unidade I

Alguns tipos celulares, como as células sanguíneas, não crescem aderidos ao substrato e, portanto,
ficam em suspensão no próprio meio de cultura. Muitas deles possuem formato arredondado em
contraste com as células aderidas que adquirem conformação característica devido à interação
mediada com o substrato e com outras células.

4.1.2 Cultura de células primárias

As células que foram retiradas diretamente de um corpo ou tecido são conhecidas como células
primárias. Elas podem ser obtidas por biópsia, cirurgia ou autópsia e cultivadas por um período finito
como culturas de células primárias.

Suponha que você tenha dado permissão para que uma amostra de suas próprias células fosse
coletada e cultivada em laboratório para fins de pesquisa. Seu médico faz a biópsia de um determinado
tecido de seu corpo e estabelece uma cultura via explante. O explante corresponde ao fragmento
de tecido usado para iniciar a cultura de células. As células do explante devem ser separadas da
matriz extracelular e isto pode ser feito de maneira mecânica, macerando-o com auxílio de um
almofariz e pistilo ou por meio químico, digerindo-o com enzimas proteolíticas como a papaína,
ou ainda pela combinação das duas abordagens. Após a maceração/digestão, o tecido processado é
colocado sobre uma superfície de crescimento apropriada, coberto com meio de cultivo e incubado
sem perturbações por vários dias. Algumas células se desprendem dos amontoados de tecido, se
aderem à superfície da placa e começam a proliferar.

Figura 89 – As células primárias extraídas de um órgão/tecido são utilizadas para estabelecer uma cultura primária. Um explante,
removido por exemplo de uma biópsia, é macerado e digerido com enzimas para liberação das células de sua associação com os
componentes da MEC. O tecido processado é colocado em uma placa com meio de cultura para a proliferação celular. Quando o
número de células se torna razoável, é possível utilizar meios específicos para seleção das células desejadas. Na figura é mostrado
como uma cultura primária de células renais pode ser estabelecida

Para acompanhar o desenvolvimento da cultura, utiliza-se um microscópio de luz, ou contraste de


fase. As pilhas de tecido que ficam na vizinhança das células em crescimento devem ser gentilmente
removidas para evitar os efeitos adversos da degradação tecidual ou do produto da morte celular.
Quando o número de células se torna razoável, meios seletivos podem ser empregados para prevenir
o crescimento de tipos celulares indesejáveis. Lembre-se de que o explante contém uma população
heterogênea de células representativas da área do tecido original.

120
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

À medida que a cultura se expande, esta pode ser transferida para novas placas. A passagem de
uma cultura significa que as células foram removidas (por meios químicos ou mecânicos) de um
recipiente de cultura e colocadas em um novo. Quando uma cultura primária é transferida uma vez,
a nova resultante é chamada de secundária, e esta representa a segunda passagem (p2).

Figura 90 – Subcultivo. A cultura primária pode ser subcultivada, por exemplo, quando em um dado momento, as células se
expandirem por toda a área de uma placa (confluência). Para isso, é necessário desestabilizar as interações das células aderidas
com a MEC, com a placa, e ainda com outras células. Proteases como a tripsina podem ser usadas para este fim. A tripsinização
permite a desadesão das células, que acabam se desprendendo do substrato e perdendo seu formato característico em cultura
(ficam circulares). Parte das células são replaqueadas, configurando a cultura secundária (ou cultura de segunda passagem).
As interações entre as células e a nova placa começam a ser reestabelecidas à medida que a célula se adere ao substrato.
Tal procedimento pode ser repetido um número limitado de vezes, pois estas células apresentam capacidade de proliferação em
cultura limitada (as células entram em senescência)

Voltando ao nosso exemplo, suponha que alguns meses depois, você retorne ao laboratório de seu
médico para visitar suas células. Ele ainda as possui, mas apenas congeladas. As que estavam em cultura
121
Unidade I

precisaram ser descartadas porque “ficaram velhas”. “Como pode ser?”, você exclama: “Estou no auge da
minha vida. Como minhas células podem estar velhas?” A resposta está relacionada (em parte) a algo
conhecido como limite de Hayflick, que ajuda a explicar a sobrevida limitada das células primárias
em culturas.

Em 1961, Hayflick e Moorhead publicaram uma explicação para a evidência que há muito era
observada: a célula primária em cultura tem capacidade limitada de divisão e frequentemente entra
em um estado conhecido como senescência. A ideia por trás do limite de Hayflick é que nem todo
o genoma de uma célula animal é replicado durante o ciclo celular. Como resultado, os cromossomos
são encurtados a cada divisão. Desta forma, depois de um certo número de mitoses, o tamanho dos
cromossomos é reduzido a um ponto crítico de tal forma que parte do genoma está faltando. Ao chegar
neste limite, as células não serão capazes de funcionar conforme necessário para continuar crescendo
e dividindo‑se.

Considere um cromossomo humano em replicação. Quando o DNA é duplicado, as fitas parentais


são separadas na forquilha de replicação. Cada uma das fitas filhas será polimerizada no sentido 5’ → 3’.
No caso da fita líder, o processo é contínuo, mas em relação à fita atrasada, ele acontece sob a forma
dos fragmentos de Okazaki. Quando a forquilha de replicação alcança o final do cromossomo, há um
pequeno prolongamento do DNA correspondente à fita atrasada que não será copiado. Essencialmente,
não é possível iniciar a síntese do fragmento de Okazaki terminal, uma vez que o local de inserção do
primer (essencial para começo da síntese de qualquer fragmento de DNA, pela DNA polimerase) estaria
aquém do fim do cromossomo. Como resultado, essa fita filha de DNA será mais curta. O encurtamento
ocorrerá a cada replicação até que, eventualmente, com a falta dos fragmentos de DNA não copiados, não
será possível garantir a sobrevivência celular. Neste ponto, a célula vai parar de se replicar (senescência)
ou morrer. Este é o conceito usado para justificar o limite de Hayflick.

Figura 91 – Replicação do DNA. Em A, a replicação do DNA envolve várias enzimas, incluindo uma helicase, que separa
as duas fitas e a DNA polimerase, que catalisa a ligação entre nucleotídeos. No esquema, a maquinaria de replicação
é representada por um anel (em preto com o centro não preenchido). Em B, à medida que a bifurcação de replicação
progride, a “fita líder” (em azul) é facilmente polimerizada no 5’ → 3′. A “fita atrasada” também é sintetizada no mesmo
sentido, mas para isso acontecer, é produzida sob fragmentos de Okazaki (em alaranjado). Em C, para a produção dos
fragmentos de Okazaki é necessária a adição do primer antes que a polimerização dos nucleotídeos possa ocorrer.
No final da fita, não há lugar para o primer, então o fragmento final de Okazaki não será criado
(vermelho e tracejado) e o final da fita não será replicado

122
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

As extremidades dos cromossomos eucarióticos são constituídas por sequências especiais de DNA
que se repetem muitas vezes. Essas extremidades especializadas são conhecidas como telômeros. Em
vertebrados, a sequência do telômero é TTAGGG, e é repetida várias vezes no final de cada cromossomo.
In vivo, elas protegem justamente a informação genética, do encurtamento do DNA que induz
a senescência. Foi sugerido que esta estratégia funciona, por exemplo, como uma barreira contra a
tumorigênese, pois impede que as células se multipliquem em condições de desequilíbrio genético
(perda dos segmentos de DNA). A descoberta de Hayflick de que a senescência é resultado do número
cumulativo de ciclos de divisão celular foi interpretada como se existisse um dispositivo de contagem
do número de divisões que ocorrem em uma determinada célula somática e que funcionaria como
um “relógio”. De acordo com a hipótese dos telômeros e senescência, o mecanismo do relógio é o
encurtamento progressivo dos telômeros que ocorre a cada divisão celular. In vitro, a diminuição do
tamanho das telômeros será responsável pela senescência de algumas células primárias em cultura, que
impede a sua divisão ilimitada.

Vários tipos de células primárias isoladas da biópsia de tecido ainda não foram isolados e
cultivados com sucesso. Muitas vezes, estas não são capazes de se aderir nas placas de cultura e se
proliferar in vitro. Frequentemente, as células semelhantes a fibroblastos se expandem rapidamente
em cultura em detrimento de outros tipos de células primárias que possuem crescimento mais lento.
Como discutido, as células que podem ser isoladas e cultivadas in vitro passam por um número
limitado de divisões celulares antes de entrar na senescência. Esse tempo de vida finito é a principal
limitação do uso de células primárias, pois impede que um número suficiente delas seja alcançado para
aplicações práticas, dificultando a funcionalidade de longo prazo destas culturas. Algumas abordagens
para resolver este problema envolvem a imortalização das células primárias, processo que acontece
quando a célula é capaz de se proliferar um número ilimitado de vezes. In vivo, este fenômeno favorece
a transformação maligna das células normais, corroborando o desenvolvimento do câncer. No entanto,
nos laboratórios, ela serve como ferramenta para aumentar o tempo de vida útil da célula em cultura.

Células imortalizadas, como células cancerosas ou algumas linhagens estabelecidas, muitas vezes têm
um agente chamado telomerase. A telomerase é uma enzima que adiciona sequências teloméricas
nas extremidades dos cromossomos cada vez que a célula se divide. No entanto, nem todas as
células imortalizadas expressam telomerase. Algumas contornam o problema de encurtamento dos
telômeros por uma via independente da telomerase conhecida como alongamento alternativo dos
telômeros (ALT). Tem sido mostrado que o mecanismo de alongamento dos telômeros pode ser alternado
entre um mediado pela telomerase (telomerase-positivo), e outro, em que a enzima não esteja presente
(telomerase‑negativo). No entanto, uma regra geral normalmente é utilizada: células somáticas, que
possuem capacidade de replicação limitada não apresentam telomerase, enquanto células imortalizadas
possuem estas enzimas ativas.

O assunto do encurtamento do telômero foi bastante relevante para o caso da ovelha Dolly. A
despeito de ter sido o primeiro grande animal resultante de uma clonagem bem-sucedida, ela viveu
apenas seis anos. Ao nascimento aparentava ser uma ovelha comum, mas envelheceu rapidamente.
A razão para isso foi que o DNA da célula somática usada para clonar a Dolly já tinha passado pelo
encurtamento dos telômeros. É como se aquele relógio celular já marcasse um certo número de divisões.
Nas células reprodutivas, em contrapartida, este relógio marca zero, e só começa a contar a partir das
123
Unidade I

replicações do zigoto. Assim, sabemos que as células diferenciadas apontam horas tardias. Quando o
DNA da célula somática usado para clonagem nuclear foi transferido para o ovócito anucleado, embora
o ovócito possa ser considerado uma célula “nova”, o material genético nele transplantado já havia
sofrido algum envelhecimento. Quando a Dolly começou a crescer e se desenvolver e suas células
continuaram a se dividir, no entanto, elas continuaram a envelhecer do ponto em que a célula somática
original foi coletada.

4.1.3 Células tumorais

Existem dois fatores principais que determinam se uma célula é considerada somática “normal” ou
tumoral: mortalidade e inibição de contato. Acabamos de discutir que a mortalidade nestas células
consideradas “normais” pode ser induzida quando estas atingem um número máximo de divisão, que
ainda permite estabilidade genômica. As células tumorais, que, por sua vez, apresentam telomerase
ou alguma via alternativa ativada que permite a conservação do tamanho dos telômeros, assumem
potencial de imortalidade. No entanto, é preciso avaliar com cautela esta informação. Por exemplo,
as células-tronco embrionárias, que veremos em mais detalhes posteriormente, podem se proliferar por
períodos mais longos em cultura, porém, esta característica não as qualifica como células tumorais.

Figura 92 – Imortalidade replicativa. As células tumorais geralmente exibem um aumento na atividade da telomerase,
o que as ajuda a se tornarem imortais; isto é, exibem a capacidade para se dividir indefinidamente, desde que os
requisitos nutricionais e de concentração de O2 sejam cumpridos. Nas células “normais” os telômeros não são
restaurados a cada divisão, e por isso, se apresentam números finitos de replicações

124
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Esclarecido que as células-tronco são distintas das tumorais, vamos entender agora o que seria o
segundo fator, a inibição de contato. Uma célula somática típica, em condições de cultura adequadas,
vai crescer, se dividir, e eventualmente migrar até que faça contato com outra célula ou com as bordas
da própria placa de cultura. À medida que mais células ocupam a placa, aumenta a probabilidade de que
estas façam contato umas com as outras. Eventualmente, a célula ficará circundada de todos os lados
por outras células e/ou bordas, formando uma monocamada. Então, estas param de migrar e proliferar,
mantendo a organização da monocamada. Se fôssemos avaliar a curva de crescimento das células em
monocamada, a cultura teria atingido a fase de platô, não por falta de nutrientes, mas por falta de
espaço. Circunstâncias semelhantes ocorrem em culturas tridimensionais (3D) e no próprio corpo, e
ajudam a explicar o porquê de normalmente não apresentarmos grandes massas de tecido crescendo
continuamente fora de nós.

Em contrapartida, uma célula tumoral é imortal e não é inibida por contato. Em uma cultura
bidimensional, após formar uma monocamada, e às vezes antes disso, estas começam a crescer umas
sobre as outras. Eles podem formar uma segunda camada, ou crescer verticalmente, ramificando-se e
adquirindo uma estrutura que se parece com um cogumelo, uma bola ou uma corrente. Estas estruturas
podem se quebrar e liberar pequenos agregados de células vivas, que podem por sua vez, serem
realocadas para outra área a fim de estabelecer uma nova colônia de células. Isto é uma característica
bastante comum entre culturas de células tumorais metastáticas.

Figura 93 – Padrão de crescimento das células tumorais em cultura. As culturas primárias formam monocamadas nas
placas, pois a proliferação celular é inibida pelo contanto entre as células. As culturas de células tumorais podem formar
várias camadas. As células podem crescer verticalmente e formar estruturas semelhantes a cogumelo, bola ou correntes.
Células tumorais são capazes de proliferar indefinidamente e o crescimento não é inibido pelo contato

Outra característica das células tumorais metastáticas em cultura é que muitas delas não se aderem
firmemente à placa. Tal fato favorece o seu deslocamento, permitindo que se desprendam para formar
novas colônias em áreas com mais espaço para crescer. A metástase no corpo ocorre de forma semelhante.
As células tumorais se dividirão para formar uma pequena massa; então uma ou mais células tumorais
se soltam (ocorre a perda do contato com os componentes da MEC) e migram através da corrente
sanguínea ou do sistema linfático para um local distante, caracterizando a metástase.
125
Unidade I

Figura 94 – Invasão e metástase. Células de alguns tumores são capazes de se deslocar do local de origem para
pontos distantes através do sistema circulatório, em um processo conhecido como metástase. A metástase é
favorecida quando ocorre desregulação da expressão de moléculas de adesão como integrinas e caderinas

4.1.4 Linhagens celulares

As linhagens celulares são criadas no laboratório para exibir as principais características de uma
célula tecido-específica e ao mesmo tempo serem imortalizadas. As linhas celulares são de grande
valor porque permitem o estudo de células específicas sem a necessidade de retornar ao mesmo
doador repetidamente, conforme atingem a senescência. Elas também funcionam como uma fonte
inesgotável de células que podem ser usadas em vários laboratórios em todo o mundo com pouca
variação entre culturas.

Elas podem ser produzidas de várias maneiras. Uma cultura primária que foi submetida a diversas
passagens pode espontaneamente passar por mudanças decorrentes deste cultivo. Eventualmente, uma
ou mais das células em cultura passará por transformação, que consiste na mudança de uma célula mortal
para uma imortal. A transformação de uma célula no corpo pode significar câncer para o indivíduo, mas
a transformação de uma célula em cultura pode refletir o estabelecimento de uma linhagem celular
imortalizada. Como as células de uma cultura primária possuem limitação em relação ao número de
vezes que podem se replicar, é relativamente fácil identificar as células transformadas conforme o
número das passagens aumenta. As células que não se transformaram acabam se tornando senescentes
ou sofrem apoptose, enquanto aquelas transformadas sobrevivem.

126
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Assim, em culturas de células, a transformação pode ocorrer espontaneamente, e o estabelecimento


de populações imortais foi observado em muitos laboratórios desde o início dos anos 1940 até o início
dos anos 1960. Células imortais surgem espontaneamente de células normais, e culturas de células
murinas são especialmente propensas a esse processo.

Outra forma de estabelecer uma linhagem celular é por explante de uma biópsia de um câncer.
Nestes casos, as células já foram transformadas in vivo, e são apropriadamente chamadas de linhagens
celulares tumorais. A primeira linhagem de células humanas é conhecida como HeLa. Ela foi derivada de
um câncer de colo de útero de uma paciente conhecida como Henrietta Lacks.

Em 1951, Henrietta Lacks foi diagnosticada com adenocarcinoma agressivo do colo do útero pelo
Dr. Jones no Hospital Johns Hopkins em Baltimore. Após a biópsia cervical, as amostras foram enviadas
para o Dr. George Gay (1917-1994), diretor do Laboratório de Cultura de Tecidos. Sua assistente, Mary
Kubicek, notou pela primeira vez que as células permaneceram viáveis em uma solução nutritiva de
plasma de galinha. Ela colocou a amostra de Lacks em meio de cultura e as cultivou em tubos.
As culturas de células estabelecidas cresceram robustamente, eram duráveis e se dividiam a cada 20 horas.

A linhagem celular HeLa foi cultivada em quase todos os meios de cultura conhecidos e rapidamente
foi distribuída aos laboratórios nos Estados Unidos e em outros países para cientistas interessados em
estudos de câncer. Ela também foi repassada para empresas farmacêuticas e, portanto, se tornou logo
um dos recursos mais populares e valiosos para estudos do câncer.

Como as amostras de tecido usadas para o estabelecimento da linhagem HeLa foram retiradas
durante o diagnóstico e tratamento de Henrietta, e as porções foram repassadas a um pesquisador sem
seu conhecimento ou permissão, existem várias questões polêmicas envolvendo este assunto e que
resultam em profundas discussões no âmbito da bioética.

Uma linhagem celular também pode ser estabelecida por meio da fusão de uma célula primária com
uma célula tumoral. A fusão pode ser realizada, por exemplo, colocando as células em contato umas
com as outras em polietilenoglicol e administrando uma corrente elétrica para causar perturbação
da membrana (hibridoma). Quando a corrente é interrompida, ocorre a fusão permanente das suas
membranas plasmáticas. Muitas células morrerão como resultado deste protocolo, mas, em teoria,
é necessário que apenas uma delas sobreviva para se iniciar uma nova linhagem celular. Tal protocolo tem
como objetivo conseguir manter as características específicas de uma célula primária e a imortalidade
das células tumorais. No entanto, a formação do hibridoma leva à formação de células com quantidade
de cromossomos bastante variável e isso pode ter implicações consideráveis em um estudo. Assim,
a maioria das tentativas de fundir duas células não produz uma célula híbrida viável. Quando uma
célula viável é produzida, ela não carregará consigo todas as propriedades da célula somática-mãe.
Essa é uma grande desvantagem de usar esta estratégia para criação de linhagens de células.

O tempo de vida finito é a principal limitação do uso de células primárias. Algumas abordagens para
resolver este problema envolvem a introdução de genes virais ou de pequenas moléculas para induzir a
proliferação celular e prevenir a senescência. Por exemplo, a linhagem celular HK-2 (human kidney 2),
também popular como a HeLa, é derivada de células renais adultas normais. Esta foi estabelecida a partir
127
Unidade I

da cultura de células do túbulo proximal modificadas pela inserção dos genes E6/E7 do papilomavírus
humano (HPV 15). Os produtos proteicos destes genes são capazes de interagir com proteínas que
regulam o ciclo celular, como a p53 e pRb, que atuam como supressoras de tumores, estimulando a
divisão. A linhagem HK-2 mantém algumas características do fenótipo das células do túbulo proximal,
como a produção de adenilato ciclase em resposta ao hormônio da paratireoide ao mesmo tempo que
são irresponsivas ao hormônio antidiurético.

As culturas de células podem ser então seres transformados por vírus oncogênicos, como HPV e
SV40, mas outros mecanismos, como por radiação e carcinógenos químicos, também são bastante
usados. Para aplicarmos o que aprendemos sobre o limite de Hayflick (2000), este mesmo pesquisador
definiu o termo de imortalidade como uma forma de vida capaz de sobrevivência indefinida em
condições em que nenhuma mudança ocorreu na composição molecular de algum começo arbitrário.
No quadro a seguir estão destacadas as primeiras linhagens celulares estabelecidas, bem como os
autores responsáveis por elas.

Embora as linhas de células sejam uma ótima ferramenta para pesquisa, os dados obtidos com
eles devem ser considerados com cautela. Elas não são capazes de mimetizar muitas das interações
complexas que acontecem dentro de um organismo.

Quadro 9 – Linhagens celulares comumente usadas

Nome Espécie e tecido Morfologia Autor e origem


L929 Tecido conjuntivo de camundongo Fibroblasto Earle, 1948
HeLa Colo uterino humano Epitelial Gay, 1951
CHO Ovário de hamster chinês Semelhantes a células epiteliais Puck, 1957
MDCK Rim canino Epitelial Madin e Darby, 1958
WI‐38 Pulmão humano Fibroblasto Hayflick, 1961
BHK‐21 Rim de hamster da Síria Fibroblasto Macpherson e Stoker, 1961
Vero Rim de macaco verde africano Epitelial Yasumura e Kawakita, 1962
NIH 3T3 Embrião de camundongo Fibroblasto Todaro e Green, 1962
MCR‐5 Pulmão humano Fibroblasto Jacobs, 1966
SH‐SY5Y Neuroblastoma humano Neuroblasto Biedler, 1970

4.2 Células-tronco

Todos já ouvimos falar sobre células-tronco, mas, afinal, o que elas são? Qual a importância delas?

A primeira coisa que pensamos é que elas são capazes de dar origem a outras células e atuar na
recuperação de tecidos lesionados. Nesta sessão, falaremos sobre o que são células-tronco, quais são
seus tipos e o porquê de elas serem importantes.

128
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Vamos começar com a definição. Células-tronco são células indiferenciadas, ou seja, são células não
especializadas do corpo humano. Elas são capazes de se diferenciarem em outros tipos celulares e têm a
capacidade de se autorrenovar (isso quer dizer que elas podem se dividir e originar novas células-tronco).

Dessa forma, as células-tronco possuem três características que as definem:

• Autorrenováveis: possuem a capacidade de se dividirem indefinidamente originando novas


células-tronco.

• Clonogênicas: capacidade de gerar uma réplica exata.

• Potentes: capacidade de se diferenciarem em um ou mais tipos celulares.

As células-tronco existem tanto em embriões quanto em tecidos adultos. Há vários níveis de


especialização e a potência de desenvolvimento é reduzida a cada nível, o que significa que uma
célula‑tronco unipotente não é capaz de se diferenciar em tantos tipos celulares quanto uma célula
pluripotente. Nesse sentido, de acordo com sua potência de diferenciação, as células-tronco são
classificadas em:

• Células-tronco totipotentes: capazes de se dividirem e se diferenciarem em qualquer célula


do organismo. Totipotência é o mais alto potencial de diferenciação e permite que as células
formem tanto estruturas embrionárias (qualquer tecido que faça parte do embrião) quanto
extraembrionárias (anexos embrionários, como a placenta). Um exemplo de célula totipotente
é o zigoto, que é formado depois que o espermatozoide fertiliza o óvulo. As células originadas a
partir do zigoto são consideradas totipotentes até o estágio de oito células. Estas células podem
se desenvolver em qualquer uma das três camadas germinativas ou formar a placenta. Depois
de aproximadamente quatro dias após a fecundação, as células da massa celular interna do
blastocisto se tornam pluripotentes.

• Células-tronco pluripotentes: dão origem às células de todas as camadas germinativas, mas


não aos anexos embrionários, como a placenta. As células-tronco embrionárias são um exemplo
de células-tronco pluripotentes. Estas são derivadas da massa celular interna do blastocisto de
embriões pré-implantação. Outro exemplo são as células-tronco de pluripotência induzida, das
quais falaremos adiante.

• Células-tronco multipotentes: possuem a capacidade de se diferenciarem em linhagens


celulares específicas. Um exemplo é a célula-tronco hematopoiética, que se diferencia em variados
tipos celulares do sangue.

• Células-tronco oligopotentes: podem se diferenciar em poucos tipos celulares, por exemplo,


a célula precursora mieloide.

• Células-tronco unipotentes: são as que possuem menor capacidade de diferenciação. Estas


células dão origem a um único tipo celular, por exemplo, as células-tronco da epiderme.
129
Unidade I

Figura 95 – Representação esquemática de como a potência das células evolui durante a embriogênese. Após a fertilização do óvulo
pelo espermatozoide forma-se o zigoto, que é uma célula totipotente, uma vez que pode originar tanto as células do corpo quanto
os anexos embrionários. Após 4 dias da fertilização, alcança-se o estágio de blastocisto, no qual é possível observar a presença de
células do trofoectoderma (que dará origem aos anexos embrionários) e das células da massa celular interna, que são pluripotentes,
uma vez que podem formar células das três camadas germinativas (endoderma, mesoderma e ectoderma). Tanto no embrião quanto
no indivíduo adulto, células-tronco multipotentes, oligopotentes e unipotentes podem ser encontradas em diferentes tecidos

4.2.1 A biologia das células-tronco

O blastocisto se desenvolve durante a embriogênese, em torno de 4 dias após a fecundação.


Blastocistos são compostos de dois grupos celulares distintos, a massa celular interna, a partir da qual se
desenvolverá o feto, e o trofoectoderma, que dará origem aos anexos embrionários. Durante o processo
de embriogênese, as células da massa celular interna formam agregações conhecidas como camadas
germinativas: endoderma, mesoderma e ectoderma. Cada uma delas dará origem a diferentes tecidos.
Quando as células-tronco embrionárias se diferenciam nestas células que formam as camadas, elas se
tornam multipotentes.

Os sinais que influenciam a especialização das células-tronco podem ser divididos em externos,
como contato físico entre as células, ou secreção química pelo tecido circundante, e interna, como os
sinais controlados pelos genes no DNA.

Mas o que significa se especializar?

Todas as células originadas a partir de um zigoto terão o mesmo DNA. Então, porque elas exibem
características distintas? O que faz com que uma célula se comporte como célula-tronco e o que faz
com que esta célula-tronco passe a se especializar em um tipo específico como do fígado, ou do rim,
ou do coração, e assim por diante? Como esses sinais externos ou internos fazem com que as células
se diferenciem?
130
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Caso você tenha pensado em expressão gênica, está correto.


Lembre-se de que o DNA é uma macromolécula formada por nucleotídeos e que armazena as
informações que serão utilizadas como “receita” para a síntese de proteínas. Quantas vezes já salvamos
uma receita que vimos na televisão ou na internet e não a fizemos? Isso quer dizer que não basta
ter a “receita”, para que ela tenha função, nós precisamos executá-la. Da mesma forma ocorre com
o nosso DNA. É como se todas as células tivessem o mesmo “catálogo de receitas”, mas cada grupo
produz apenas as proteínas que são importantes para sua função. Ou seja, após a formação do zigoto,
os sinais externos e internos fazem com que expressem proteínas características de células‑tronco
pluripotentes (no caso das células da massa celular interna do blastocisto). Estas, durante toda a
embriogênese, receberão sinais que farão com que elas deixem de expressar as proteínas que são
importantes para seu funcionamento como células-tronco e passem a expressar proteínas que
serão importantes para diferentes tecidos. Assim, teremos a formação dos órgãos do feto.
Veremos que os tecidos adultos conservam células-tronco residentes e que estas também podem
agir como sistemas internos de reparo no organismo.
4.2.2 A divisão funcional das células-tronco
Podemos identificar dois tipos de células‑tronco: as somáticas e as embrionárias. Células‑tronco
embrionárias são derivadas da massa celular interna do blastocisto, que é um estágio de pré‑implantação
do embrião aos 4 dias pós‑fertilização. Como vimos anteriormente, elas são capazes de se diferenciarem
em células de todas as três camadas germinativas (ectoderma, endoderma e mesoderma), e, portanto, são
capazes de originar todos os tipos celulares do corpo. Desde o início de seus estudos, existem restrições
éticas relacionadas ao uso médico das células-tronco embrionárias. A maioria das células‑tronco
embrionárias são obtidas a partir de zigotos que foram fertilizados in vitro. Quando as células da massa
celular interna do blastocisto são retiradas para obtenção das células-tronco embrionárias, o embrião é
destruído. Essa é a razão do conflito ético envolvendo este processo.

Saiba mais
Os aspectos bioéticos relacionados à pesquisa envolvendo células‑tronco
embrionárias são complexos e não existem consensos absolutos. É importante
ter opinião própria a respeito do assunto e para discuti‑lo com argumentos
pertinentes. Os links a seguir reúnem argumentações relacionadas aos
dilemas bioéticos ao redor das células-tronco.
BARBOSA, A. S. et al. Implicações bioéticas na pesquisa com células‑tronco
embrionárias. Acta Bioethica, v. 19, n. 1, p. 87-95, 2013. Disponível em: https://
scielo.conicyt.cl/pdf/abioeth/v19n1/art09.pdf. Acesso em: 9 dez. 2020.
ROSA, C. A. P. Células-tronco e bioética. Cremesp, [s.d.]. Disponível
em: http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=BioeticaParaIniciantes&id=29.
Acesso em: 9 dez. 2020.

131
Unidade I

Em 1996, os cientistas fizeram uma descoberta muito interessante e muito polêmica também.
Eles descobriram que é possível reprogramar células somáticas para que elas voltem ao seu estado de
pluripotência. Eles fizeram isso pela transferência do núcleo de uma célula adulta para o citoplasma
de um oócito ou por fusão com uma célula pluripotente. Parece confuso? Os termos “clonagem” e
“ovelha Dolly” parecem mais familiares?

Como assim?

Isso mesmo, em 1996 cientistas conseguiram, pela primeira vez na história, clonar um mamífero,
uma ovelha. O clone foi chamado de Dolly. A descoberta causou muita empolgação e também muita
polêmica na comunidade científica.

Para entender como Dolly foi gerada, vamos analisar o esquema a seguir.

Figura 96 – Clonagem reprodutiva. Reprogramação do núcleo de uma célula somática para o estágio de totipotência. Na clonagem
reprodutiva, o núcleo de uma célula somática adulta é transferido para o citoplasma de um óvulo anucleado. Os fatores presentes no
citoplasma do óvulo anucleado são capazes de reprogramar o DNA do núcleo da célula somática, fazendo com que a nova estrutura
gerada se transforme em totipotente e possa dar origem a um novo organismo inteiro

Exemplo de aplicação

Então, observando a figura anterior, poderíamos dizer que a Dolly tem o material genético da
ovelha 1, da ovelha 2 ou da ovelha 3?

Caso tenha respondido ovelha 1, está correto! O núcleo contendo o DNA foi retirado da ovelha 1, então esse
é o DNA que vai ter as informações para a síntese das proteínas necessárias em todo o restante do processo.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

E por que isso se relaciona com as células-tronco embrionárias?

Como dissemos, a descoberta da clonagem reprodutiva e geração da Dolly foi bastante polêmica,
uma vez que levantou discussões e temores relacionados à clonagem humana. Isso fez com que diversos
países, incluindo o Brasil, formulassem leis de proibição a essa prática. Entretanto, uma vertente
derivada desse processo abriu a possibilidade para obtenção de células-tronco embrionárias através
da clonagem terapêutica. Na clonagem terapêutica, diferentemente da clonagem reprodutiva, a
estrutura gerada a partir da reprogramação do núcleo da célula somática não é implantada em um
útero. Ao invés disso, a célula reprogramada é cultivada até o estágio de blastocisto, de onde as
células pluripotentes da massa celular interna do blastocisto podem ser obtidas.

Uma das vantagens desse método é a possibilidade de obtenção de células do próprio paciente
que precisa de um tratamento. Além disso, esta estrutura gerada não é um embrião que poderia
ser implantado.

Figura 97 – Clonagem terapêutica. A reprogramação do DNA nuclear da célula somática


é utilizada como estratégia para obtenção de células-tronco pluripotentes

Por sua vez, as células-tronco somáticas ou adultas são indiferenciadas e encontradas entre células
diferenciadas no organismo após desenvolvimento. A função destas células é permitir cicatrização,
crescimento e substituição de células que são perdidas todos os dias.

Estas células possuem uma faixa de opções de diferenciação. Entre os diferentes tipos de células‑tronco
adultas, podemos citar:
133
Unidade I

• Células-tronco da medula óssea: são células multipotentes capazes de se diferenciarem em


todos os tipos celulares sanguíneos. Duas populações de células-tronco podem ser encontradas na
medula óssea, as células-tronco hematopoiéticas e as células-tronco mesenquimais (também
chamadas de estromais). As células-tronco hematopoiéticas dão origem às células da linhagem
linfoide e mieloide (hematopoiética). As células-tronco mesenquimais residem no estroma da
medula óssea e são encontradas na medula óssea, músculo, tecido adiposo e pele. Na medula
óssea, as células-tronco mesenquimais se diferenciam principalmente em osso, cartilagem e
células de gordura. Como células-tronco, elas são uma exceção, porque agem como pluripotentes
e podem se especializar em tecidos de qualquer linhagem germinativa. Estas células podem se
diferenciar em diferentes tipos celulares sob estímulo adequado, como cardiomiócitos, células
endoteliais e neurônios.

O sangue do cordão umbilical contém tanto células-tronco hematopoiéticas quanto células-tronco


mesenquimais. Através da criopreservação (que é o congelamento utilizando técnicas adequadas),
imediatamente após o nascimento, suas células-tronco podem ser estocadas para serem usadas em
terapias para prevenção/tratamento de possíveis doenças.

O tecido adiposo também é uma fonte de células-tronco mesenquimais. Em 2007, pesquisadores


também conseguiram coletar células-tronco mesenquimais a partir do sangue menstrual.

• Células-tronco tecido‑específicas:

— Células-tronco da pele: formam, por exemplo, queratinócitos, que constituem a camada


protetora da pele.

— Os mioblastos esqueléticos (ou células satélite): são células existentes na membrana basal
do músculo esquelético. Estas são tipos de células musculares com capacidade de reparar o
tecido muscular esquelético danificado via proliferação e fusão com outras células.

— Células-tronco do tecido cardíaco: são células residentes no coração capazes de se


diferenciarem em cardiomiócitos, músculo liso e células endoteliais.

— Células-tronco neurais: dão origem a neurônios e algumas células gliais, como neurônios
e astrócitos.

Isolar células-tronco humanas pós-natais de alta qualidade de fontes acessíveis é um desafio para a
pesquisa com células-tronco. Uma estratégia que tem sido proposta é coletar células-tronco a partir de
esfoliados de dentes decíduos (popularmente conhecidos como dentes de leite). Essas células-tronco,
chamadas de SHED (stem cells from human exfoliated deciduous teeth), foram identificadas como uma
população altamente proliferativa e clonogênica, capaz de se diferenciar em uma variedade de tipos
celulares, incluindo células neurais, adipócitos e odontoblastos. Depois do transplante in vivo, em
modelos animais, foi observado que as células SHED foram capazes de induzir a formação de osso, gerar
dentina e sobreviver no cérebro de camundongos com a expressão de marcadores neurais.

134
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

As células-tronco da polpa dentária de dentes permanentes também possuem potencial


condrogênico e osteogênico. Entretanto, células-tronco de esfoliados de dente de leite possuem uma
taxa proliferativa maior do que as células da polpa dentária de dentes permanentes, e também se
diferenciam em um número maior de células.

Os estudos sobre a especificidade do desenvolvimento das células-tronco adultas são controversos.


Alguns estudos mostram que estas células podem gerar apenas os tipos celulares dos tecidos que as
contêm, enquanto outros estudos mostram que elas podem se diferenciar em outros tecidos.

4.2.3 As células-tronco de pluripotência induzida (iPSC)

Um grande avanço nas pesquisas sobre células-tronco ocorreu em 2006, quando os cientistas
Shinya Yamanaka e Kazutoshi Takahashi descobriram que é possível reprogramar células adultas
diferenciadas para o estágio pluripotente. Este processo evita uso de embriões. O processo era realizado
com a transdução mediada por retrovírus em fibroblastos de camundongo com quatro fatores (Oct‑3/4,
Sox2, Klf4 e c-Myc) que são principalmente expressos em células-tronco embrionárias e poderiam
induzir os fibroblastos a se tornarem células-tronco pluripotentes.

Figura 98 – Obtenção de células-tronco de pluripotência induzida (iPSCs). Células somáticas são obtidas e reprogramadas com os
fatores Oct-3/4, Sox2, Klf4 e c-Myc. Após reprogramação, as células passam a se comportar como células-tronco pluripotentes e
podem então ser tratadas com fatores específicos para direcionar sua diferenciação em tecidos específicos

135
Unidade I

Esta nova forma de célula-tronco foi chamada de célula tronco de pluripotência induzida (induced
pluripotent stem cells – iPSC). Um ano depois, o experimento foi bem-sucedido usando células humanas.
Este método abriu um novo campo na pesquisa com células-tronco com a geração de linhagens de
iPSCs que fossem customizadas e biocompatíveis com o paciente. Recentemente, estudos têm focado
na redução da carcinogênese e melhora no sistema de condução. A geração de iPSC pode ser realizada
através de métodos baseados e não baseados em vírus. Esses métodos variam em eficiência, período de
transdução, integração genômica e custo. Portanto, a escolha do método de reprogramação determina
a aplicação subsequente da iPSC produzida na medicina regenerativa.

Geralmente, métodos baseados em vírus levam à integração ao genoma e são de baixa segurança,
mas de alta eficiência. A maioria das iPSCs são produzidas utilizando vetores virais que integram fatores
de reprogramação ao genoma do hospedeiro. Vetores retrovirais podem infectar espontaneamente vários
tipos celulares e inserir seu material genético no genoma do hospedeiro usando transcriptase reversa,
permitindo expressão contínua do transgene durante a reprogramação. A expressão do transgene retroviral
continua até que as células se tornem iPSCs. O promotor viral torna-se, então, inativado, possivelmente
por mecanismos de modificação epigenética como metilação e acetilação de histonas. Reprogramação
guiada e silenciamento automático são considerados muito importantes para indução de iPSCs a partir
de células somáticas. Recentemente, diversas técnicas não baseadas em vírus têm sido desenvolvidas para
a produção de iPSCs sem impressão digital. Técnicas de cultivo eficientes também têm sido estabelecidas.

Apesar da melhor fonte de células-tronco para produção de iPSCs ser o fibroblasto, atualmente,
outras células podem ser usadas para geração de iPSCs, como células sanguíneas, queratinócitos e
células do epitélio renal encontradas na urina. Observe que todas essas células podem ser obtidas a
partir de procedimentos minimamente invasivos do paciente.

A partir da geração das iPSCs, elas precisam passar por diversos processos que garantam a sua
adequabilidade para serem usadas em diferentes processos. Uma dessas etapas de controle de
qualidade consiste no reconhecimento por diferenças morfológicas. A comparabilidade das linhagens
de células‑tronco de diferentes indivíduos é necessária para que as linhagens de iPSCs possam ser usadas
na terapia. Entre os procedimentos críticos de garantia da qualidade, podemos distinguir os seguintes:

• Análise citogenética e molecular: importante para avaliar a presença de polimorfismos e a


ocorrência de possíveis mutações.

• Análise de identidade: fundamental para garantir que não há contaminação com linhagens
celulares diferentes da linhagem de interesse.

• Testagem de vetor residual: o aparecimento de vetores de reprogramação integrados ao genoma


hospedeiro é perigoso, e a testagem da sua presença é um procedimento mandatório. Um limite
aceitável em iPSCs de alta qualidade é uma quantidade menor ou igual a uma cópia de plasmídeo
por 100 células.

• Teste viral: quando a qualidade das células-tronco é acessada, todos os testes para agentes
potencialmente danosos a humanos devem ser executados, como Hepatite C e HIV.
136
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

• Bacteriologia: testes de esterilidade (que verificará presença de contaminação por


microrganismos) podem ser feitos nas células e no meio de cultura.

• Ensaios de plutipotência fenotípica: reconhecer células indiferenciadas é crucial em


uma terapia com células-tronco. Entre outras características, células-tronco parecem ter uma
morfologia distinta com razão núcleo‑citoplasma grande e um nucléolo proeminente.

• Análise epigenética: avalia modificação de histonas e metilação do DNA. Quando as células‑tronco


se diferenciam, o processo de metilação silencia genes de pluripotência, que reduz o potencial de
diferenciação, enquanto outros genes podem ser desmetilados para começarem a ser expressos.
É importante enfatizar que a identidade da célula-tronco, com suas características morfológicas,
é também relacionada ao seu perfil epigenético.

4.2.4 Ensaio de formação de teratoma

Pensando no uso terapêutico das células-tronco, principalmente das iPSCs que ganharam interesse
significativo na ciência e na medicina regenerativa, além das análises de controle de qualidade citadas
acima, o ensaio de formação de teratoma se torna necessário. Teratomas são tumores em estágio inicial.
Eles são capazes de crescerem rapidamente in vivo e de se desenvolverem em tecidos das três camadas
germinativas simultaneamente.

A taxa de formação de teratoma é mais elevada em iPSCs comparadas àquela das células-tronco
embrionárias. Esta diferença pode estar relacionada aos diversos métodos de diferenciação e origens
celulares. Mais comumente, os ensaios de teratoma envolvem a injeção das iPSCs subcutaneamente, ou
sob o testículo ou sob a cápsula renal de camundongos imunodeficientes. Depois da injeção, um tecido
imaturo, mas reconhecível, pode ser observado, como: túbulos renais, osso, cartilagem ou neuroepitélio.
O sítio de injeção pode ter impacto na eficiência de formação do teratoma.

Ensaios de formação de teratomas são considerados o padrão-ouro para demonstração da


pluripotência das iPSCs humanas, comprovando suas possibilidades sob condições fisiológicas.

4.2.5 Diferenciação dirigida

Para ser útil na terapia, as células-tronco devem ser convertidas no tipo celular de interesse.
A diferenciação de células-tronco embrionárias é crucial, uma vez que células indiferenciadas podem
causar teratomas in vivo. Compreender e usar as vias de sinalização para diferenciação é um método
importante no sucesso da medicina regenerativa. Na diferenciação dirigida, os sinais recebidos pelas
células quando elas avançam nos estágios do desenvolvimento são mimetizados. O microambiente
extracelular exerce papel significativo no controle do comportamento celular. Através da manipulação
das condições da cultura, é possível restringir vias específicas de diferenciação e gerar culturas que são
enriquecidas em certos precursores in vitro. Entretanto, atingir um efeito similar in vivo é desafiador.
É crucial desenvolver condições de cultura que permitirão a diferenciação homogênea e enriquecida de
células-tronco embrionárias em tecidos funcionais e desejados.

137
Unidade I

A maioria dos protocolos de diferenciação mimetizam o desenvolvimento da massa celular interna


durante a gastrulação. Durante esse processo, as células-tronco pluripotentes se diferenciam em
progenitores do ectoderma, mesoderma e endoderma. Fatores de crescimento induzem a conversão de
células-tronco nos progenitores apropriados, os quais darão origem ao tipo celular desejado.

4.2.6 Célula-tronco como modelo para teste farmacológico

Uma área de pesquisa muito interessante está relacionada ao uso das células-tronco em testes de
novos fármacos. Antes de realizar o experimento em um tecido vivo, o teste inicial pode ser executado
com segurança em células específicas diferenciadas a partir de células pluripotentes. Se qualquer efeito
indesejado aparecer, as fórmulas dos fármacos podem ser mudadas até que atinjam um nível desejado
de efetividade. O fármaco pode entrar em um mercado farmacológico sem causar danos a nenhum ser
vivo. Entretanto, para testar fármacos adequadamente, as condições devem ser iguais quando os efeitos
de dois fármacos diferentes são comparados. Para isso, os pesquisadores precisam ter controle total
sobre o processo de diferenciação para gerar populações puras de células diferenciadas.

4.2.7 Terapia com células-tronco

Em 1968, o primeiro transplante de medula óssea bem-sucedido foi realizado. A medula óssea
contém células-tronco somáticas que podem produzir todos os tipos celulares que formam o sangue.
As células‑tronco hematopoiéticas são as células-tronco tecido‑específicas mais bem caracterizadas.
Atualmente, o transplante de medula óssea é usado para tratar uma variedade de doenças, como leucemia
e doenças do sistema imune. Mais recentemente, células-tronco circulantes no sangue (chamadas de
células-tronco de sangue periférico) e células-tronco do cordão umbilical têm sido usadas para tratar
algumas das doenças relacionadas ao sangue.

O procedimento pode ser autogênico (quando as células são do próprio paciente), alogênico (quando
as células-tronco são provenientes de um doador) ou singênico (de um gêmeo idêntico). Conforme dito
anteriormente, células-tronco hematopoiéticas são responsáveis pela geração de todas as linhagens
teciduais hematopoiéticas no sangue, incluindo eritrócitos, leucócitos e plaquetas. O transplante de
células-tronco hematopoiéticas resolve problemas que são causados por funcionamento inapropriado
do sistema hematopoiético, o que inclui doenças como leucemia e anemia (como a anemia falciforme).

Entretanto, quando fontes convencionais de células-tronco são levadas em consideração, existem


algumas limitações importantes. Primeiramente, existe um número limitado de células transplantáveis, e uma
forma eficiente de coletá-las ainda não foi desenvolvida. Existe também um problema em encontrar um
doador compatível para transplante, e contaminações virais ou qualquer reação imune podem ainda
causar uma redução na eficiência no transplante convencional das células-tronco hematopoiéticas.

O transplante de células-tronco hematopoiéticas deve ser reservado a pacientes com doenças com
risco de morte, uma vez que pode ser um procedimento perigoso. Neste cenário, o desenvolvimento
de tecnologia para uso de iPSCs é crucial. O uso de uma célula especializada do próprio paciente
como fonte para iPSC proporcionaria um material imunologicamente compatível e poderia aumentar
o sucesso do procedimento.
138
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Apesar de as células-tronco parecerem uma solução ideal para a medicina, existem ainda muitos
obstáculos que precisam ser ultrapassados no futuro. Um dos primeiros problemas é o aspecto ético.

As células pluripotentes mais comuns são as células-tronco embrionárias. Quando essas células são
coletadas para uso, um embrião com potencial para gerar um ser humano inteiro é destruído. Por causa
disso, cientistas focam seus esforços em tornar possível isolar células-tronco sem danificar sua fonte,
ou seja, o embrião.

Além disso, para que as células-tronco se tornem um procedimento popular e acessível, o risco de
tumor deve ser avaliado. Outro problema é conseguir tolerância imunológica entre as células-tronco
e as células do paciente. Por hora, uma das melhores ideias é usar as células do próprio paciente e
torná‑las pluripotentes.

Entretanto, um dos fatores que limita o uso das iPSCs é sua capacidade de gerar tumores. Existe o
risco de que a expressão de oncogenes possa aumentar quando as células são reprogramadas.

Saiba mais

Nesta palestra, o médico e cientista Chuck Murry compartilha sua


experiência em pesquisas que utilizam células-tronco para geração de
novas células cardíacas com objetivo de que elas possam ser usadas para
reparo de tecido cardíaco lesionado.

MURRY, C. Can we regenerate heart muscle with stem cells? TedxSeattle,


November, 2018. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chuck_
murry_can_we_regenerate_heart_muscle_with_stem_cells/up-next.
Acesso em: 9 dez. 2020.

4.3 OGM

A tecnologia do DNA recombinante permitiu a transferência horizontal de segmentos de DNA entre


organismos extremamente diferentes, cuja troca de material genético, em condições naturais, seria
improvável. Neste contexto, os organismos geneticamente modificados (OGM) foram estabelecidos.
Estes correspondem aos seres cujo DNA tenha sido editado por técnicas de engenharia genética.
É importante ressaltar que dentro da classe dos OGM reconhecemos uma específica: os transgênicos.
Então, os termos transgênico e OGM não são sinônimos?

A resposta é não. Os transgênicos equivalem aos seres que possuem genes, ou segmentos de DNA de
uma outra espécie, inseridos por técnicas de engenharia genética. Por exemplo, uma bactéria que tenha sido
transformada com o gene da insulina humana. Enquanto isso, o OGM não necessariamente é um organismo
que tenha recebido genes exógenos. O segmento de DNA inserido no genoma pode ser proveniente da
própria espécie ou ainda, a modificação pode ter ocorrido pela remoção de algum segmento de DNA.

139
Unidade I

Quando as técnicas de engenharia genética são usadas para retirar um segmento do DNA do genoma,
ou promover uma mutação em um gene específico que impede a produção de uma determinada proteína
funcional, estamos diante de um OGM knock-out. Em contrapartida, quando um segmento de DNA é
inserido no genoma, nos referimos a ele como OGM knock-in. Nos casos em que o fragmento de DNA
inserido pertence a um organismo de outra espécie, podemos dizer ainda que se trata de um transgênico
knock-in. Este segmento de DNA internalizado na célula hospedeira é conhecido como transgene.
Assim, é comum ouvirmos que todo transgênico é um OGM, mas nem todo OGM é um transgênico.

A seleção de organismos com características específicas decorrentes dos cruzamentos coordenados


pelo homem era a única maneira de melhoramento genético de animais domesticados. No entanto,
a combinação da transferência de genes para células de mamíferos e a possibilidade de criar animais
geneticamente idênticos por meio do transplante de núcleos de células somáticas em ovócitos
anucleados (transferência nuclear ou clonagem nuclear) possibilitou aos pesquisadores criarem
organismos superiores geneticamente modificados.

Os animais resultantes desta manipulação genética podem apresentar aplicações práticas. Imagine
que o produto de um gene injetado estimule o crescimento. Animais que adquiriram este gene podem
crescer mais rápido e exigir menos alimento. Tal característica teria um impacto profundo na redução
do custo de produção da carne. No entanto, o melhoramento genético de animais pela introdução de
transgenes não é uma tarefa simples. A inserção destes fragmentos de DNA pode alterar o equilíbrio
celular, resultando em animais inviáveis.

Até recentemente, nenhum animal geneticamente modificado havia sido aprovado para consumo
humano em qualquer lugar do mundo, devido ao temor de efeitos negativos no meio ambiente e na
saúde. O salmão do Atlântico transgênico (aquadvantage salmon), de rápido crescimento, definhou
no limbo regulatório por 20 anos com a FDA (Food and Drug Administration). No entanto, em 19 de
novembro de 2015, a agência americana aprovou o aquadvantage salmon como o primeiro animal
geneticamente engenheirado liberado para consumo. Apesar desta permissão, houve bastante
pressão da população em relação à rotulagem do produto. O Congresso dos EUA exigiu que o
FDA proibisse a importação do salmão transgênico até que fossem finalizadas as diretrizes de
rotulagem. O Canadá, por outro lado, aprovou o aquadvantage salmon para venda, deixando a
rotulagem aos critérios dos distribuidores.

Figura 99 – Salmão geneticamente engenheirado. O aquadvantage salmon geneticamente engenheirado é


aproximadamente duas vezes maior que a sua contraparte não manipulada. Ele é capaz de alcançar a
maturação do tamanho adequado para o consumo em 18 meses, enquanto o animal convencional leva até 3 anos

140
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

A criação de animais transgênicos também tem sido utilizada para produzir proteínas específicas
que apresentam algum interesse econômico ou ainda que possam funcionar como um medicamento
em potencial. Leite, clara de ovo, sangue, urina, plasma seminal e o próprio casulo do bicho-da-seda
de animais transgênicos são fortes candidatos a fonte das proteínas recombinantes para recuperação
em escala industrial. Tomemos como exemplo o leite. A utilização da glândula mamária para produção
de proteínas transgênicas liberadas no leite confere muitas vantagens. Esta substância é secretada
como um fluido renovável e pode ser coletada frequentemente sem causar danos ao animal. A proteína
sintetizada na glândula mamária fica confinada nesta parte do corpo, minimizando os efeitos colaterais
que poderia produzir sobre os processos fisiológicos normais do animal transgênico. Finalmente, a
purificação de uma proteína recombinante do leite, que contém apenas uma pequena variedade de
proteínas constituintes diferentes, é facilitada se comparada com outras fontes heterogêneas
(a composição proteica do leite é relativamente constante).

O leite e os demais fluidos produzidos pelos animais transgênicos podem funcionar como farmácias
(gene pharming) para purificação de proteínas que agem como medicamentos. Estes animais
transgênicos são tidos como biorreatores industriais e oferecem diversas vantagens em relação a
outros sistemas de produção de proteínas recombinantes.

Quadro 10 – Comparação entre diferentes sistemas de produção


de proteínas recombinantes usadas como fármacos

Bactérias Células de mamíferos Animais transgênicos


Nível do produto ++ + ++++
Custo do investimento +++++ + +++
Custo de produção +++++ ++ ++++
Capacidade de produção em escala industrial +++++ + ++++
Coleta +++++ +++++ ++++
Purificação +++ ++++ +++
Modificações pós-traducionais + ++++ ++++
Glicosilação + ++++ ++++
Estabilidade do produto +++++ +++ ++++
Patógenos contaminantes +++++ ++++ ++++
Produtos disponíveis no mercado ++++ +++++ +++

141
Unidade I

Figura 100 – Animais transgênicos utilizados como biorreatores. Proteínas de interesse humano podem ser
produzidas por animais transgênicos para posterior purificação. Estes animais podem ser projetados para
secretar a proteína recombinante nos fluidos corporais. Esta abordagem facilita a purificação

Camundongos transgênicos têm sido amplamente usados como ferramentas valiosas para entender
como os genes funcionam e como modelo para estudar muitas doenças humanas. Normalmente,
camundongos transgênicos são criados pela inserção do DNA de interesse em ovócitos fertilizados.
O material genético inserido pode se integrar em locais aleatórios do genoma da célula ovo.
Conceitualmente, a estratégia usada para atingir este fim é simples. Um gene clonado é injetado no
núcleo de um ovócito fertilizado. Os ovócitos fertilizados são implantados em uma fêmea receptiva
(o desenvolvimento gestacional completo em mamíferos ainda não é possível fora do útero). Alguns
dos descendentes derivados dos ovócitos fecundados implantados carregam o gene clonado. Animais
contendo o gene de interesse nas células germinativas (ovócitos ou espermatozoides) são utilizados
para a reprodução com o intuito de estabelecer novas linhagens genéticas.

Há várias técnicas possíveis para a entrega do DNA de interesse nos ovócitos fertilizados. Aqui
abordaremos o método do vetor retroviral e a microinjeção. Além disso, descrevemos uma metodologia
que possibilita direcionar a inserção do DNA exógeno em um locus específico no DNA da célula hospedeira.
Esta estratégia requer o uso de vetores com genes de seleção característicos que normalmente são
introduzidos em células‑tronco embrionárias.

Na técnica do vetor retroviral, retrovírus são utilizados para transferir o material genético de
interesse nos embriões de camundongos. Os retrovírus são capazes de infectar células de vertebrados.
O seu material genético constitui-se em duas cópias idênticas de RNA fita simples sentido positivo
de aproximadamente 7-10 kb de comprimento. Em partículas virais maduras, essas duas cópias
existem como um dímero não covalentemente ligado, inseridas no nucleocapsídeo, com as enzimas
transcriptase reversa e integrase. Diferentemente dos bacteriófagos, os retrovírus apresentam além da
cápsula (ou capsídeo), um envelope lipoproteico externo que se funde com a membrana plasmática
da célula hospedeira no momento da infecção. Dentre os diversos retrovírus existentes, destaca-se o

142
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

gênero Lentivirus que incluem as subespécies de HIV-1 e HIV-2 que infectam seres humanos e podem
promover a Aids.

Figura 101 – Estrutura do retrovírus. A figura mostra uma representação esquemática do HIV. Ele é envelopado com
uma membrada constituída por glicoproteínas na superfície, que auxiliam na adsorção do vírus à célula hospedeira.
Abaixo desse envelope, há uma primeira capa proteica (matriz), que envolve o capsídeo. No interior do capsídeo,
encontra-se o genoma de RNA associado à nucleoproteína e às proteínas virais, dentre elas, transcriptase reversa e integrase

A penetração das partículas virais no hospedeiro ocorre por meio da fusão de seu envelope com a
membrana plasmática. No interior das células, o capsídeo é desestabilizado, liberando o material genético
e as enzimas no citoplasma. A transcriptase reversa é capaz de usar o RNA viral para sintetizar uma fita
de DNA complementar, que é replicado, gerando DNA dupla fita. Esta molécula de DNA é direcionada
ao núcleo e por meio da ação da integrase que se integra ao genoma da célula hospedeira, constituindo
o provírus. Ao contrário do que acontece com o profago dos bacteriófagos lisogênicos, o provírus
não é capaz de excisão. Assim, permanece no cromossomo indefinidamente em estado latente, sendo
replicado com o DNA da célula hospedeira ou transcrito. Quando o DNA viral é transcrito e traduzido,
ocorre a produção de RNA e proteínas virais que possibilitam a montagem de novos vírus. Durante este
processo, o genoma é empacotado juntamente às enzimas transcriptase reversa e integrase no capsídeo.
Os retrovírus liberados infectam as células adjacentes.

143
Unidade I

Figura 102 – Ciclo de multiplicação viral de um retrovírus. A figura ilustra o ciclo de replicação do HIV, que inicia com a fusão do
envelope viral com a célula do hospedeiro. Assim, o capsídeo contendo o genoma e as proteínas do vírus penetra na célula. No
citoplasma ocorre o desnudamento (exposição do conteúdo do capsídeo no citoplasma) e a proteína transcriptase reversa transcreve
o RNA viral em DNA. Este DNA é então transportado para o núcleo, se integra ao hospedeiro, por meio da ação da integrase.
A maquinaria de transcrição do hospedeiro transcreve o DNA vírus em várias cópias de novas moléculas de RNA. Parte destas
moléculas será usada como genoma para montagem de um novo vírus, enquanto outras serão traduzidas para síntese das proteínas
virais. O RNA e as proteínas recém-produzidas se direcionam para a superfície da célula, para liberação do novo vírus, que ainda se
encontra na sua forma imatura. Finalmente, proteases virais clivam as poliproteínas para produção do vírus infeccioso maduro

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Com o objetivo de compreendermos como o retrovírus pode ser usado como ferramenta para criação
de camundongos transgênicos, primeiramente é necessário entender a organização de seu genoma.
As principais proteínas estruturais retrovirais são codificadas pelas sequências denominadas gag e env,
enquanto as proteínas com função enzimática são sintetizadas pelo fragmento pol. O gene gag codifica
para os componentes do capsídeo, os produtos do gene env formam o envelope, e o gene pol sintetiza
a transcriptase reversa e a integrase. Estes genes são flanqueados por sequências conhecidas como
terminação repetitiva longa (LTR, long terminal repeat). As sequências LTR permitem que o DNA produzido
pela transcriptase reversa seja inserido no genoma celular da célula hospedeira em pontos aleatórios pela
ação da integrase, gerando o provírus. Durante a montagem do vírus, uma sequência de nucleotídeos
denominada empacotadora, presente no genoma viral de RNA (frequentemente representada pela letra
grega psi ψ), é fundamental para direcionar o material genético no capsídeo. Sem este segmento,
o RNA genômico não pode ser empacotado e não há produção de vírus com capacidade de infecção.
Com intuito de tornar seguro o procedimento de montagem de um retrovírus para utilização na
produção de camundongos transgênicos, o genoma viral foi engenheirado geneticamente em três
vetores distintos. Um deles contém a sequência env; o outro possui as sequências gag e pol, e por fim o
vetor que carregará a sequência de interesse é construído de forma a apresentar sítio para inserir o DNA
de interesse (transgene), gene de resistência a antibiótico, LTR e sequência empacotadora ψ.

Figura 103 – Organização do genoma do retrovírus HIV-1 e os vetores plasmideais derivados. Em A, está representada a organização
do genoma do retrovírus HIV-1. Observe que as sequências LTR flanqueiam os genes env, gag e pol. Outros genes, que não
foram citados, também estão representados. Além dos genes, destaca-se a presença da sequência ψ, que corresponde ao sinal
de empacotamento do genoma viral de RNA durante a montagem de novos vírus. Em B, é mostrado como os retrovírus foram
engenheirados para serem utilizados como veículo para entrega do DNA de interesse. Por questões que envolvem segurança, porções
de seu genoma foram clonadas em três vetores distintos. Quando estes vetores são inseridos em células empacotadoras, estas serão
responsáveis pela montagem de novos vírus defectivos incapazes multiplicação

Uma célula denominada empacotadora (cuidado para não confundir a célula empacotadora com a
sequência empacotadora ψ) será utilizada para produção do vírus engenheirado geneticamente. Esta
célula carrega os vetores 1 e 2 descritos anteriormente, e, portanto, é capaz de produzir as proteínas
necessárias para montagem do retrovírus (o DNA dos vetores 1 e 2 é transcrito em RNA e traduzido em
proteínas virais). Apesar de as proteínas virais se organizarem espontaneamente para montagem dos

145
Unidade I

vírus, estes resultarão em “partículas vazias”, ou seja, sem material genético. Uma vez que as moléculas
de RNA transcritas a partir dos vetores 1 e 2 não possuem o sinal de empacotamento ψ, não serão
empacotadas no capsídeo. Como consequência desta estratégia, a célula empacotadora é capaz de
produzir proteínas virais, mas não de produzir partículas virais funcionais.
Assim, quando o vetor 3, já contendo a sequência de interesse, é inserido na célula empacotadora,
o DNA do vetor é transcrito em RNA. A molécula de RNA recém-sintetizada, por possuir a sequência
ψ, é introduzida nos capsídeos dos vírus vazios. Portanto, novas partículas virais são geradas. Estes
vírus resultantes, no entanto, não serão capazes de multiplicação em outras células, pois lhes faltam os
elementos genéticos necessários para a produção das proteínas do capsídeo e do envelope. Repare que
os vírus montados na célula empacotadora possuem como material genético apenas o RNA produzido
pelo vetor 3. Além disso, as proteínas transcriptase reversa e integrase (codificadas a partir dos
vetores 1 e 2) estarão contidas nestes vírus.

Figura 104 – Célula empacotadora. A figura representa a produção de vírus geneticamente engenheirados pelas células
empacotadoras para serem posteriormente utilizados na criação de animais transgênicos

Todas estas etapas são realizadas para garantir que o pesquisador não produzirá novos vírus
funcionais no laboratório. Isso poderia ter consequências desastrosas, pois a inserção de um DNA
exógeno sem essas medidas cautelosas poderia ser responsável pela criação de novos vírus patogênicos.

146
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Por fim, estas partículas virais engenheiradas são utilizadas para infectar embriões precoces de
camundongos (aproximadamente 8 células). Estes embriões são coletados de um camundongo fêmea
doador. Ao infectar estas células, o RNA do vírus é convertido em DNA pelas enzimas transcriptase
reversa e o DNA resultante é integrado no genoma pela integrase. Note que não serão gerados novos
vírus e que este só foi usado como ferramenta de entrega do DNA do transgene para a célula eucarionte
hospedeira. Assim, células do embrião infectadas possuirão o segmento de DNA exógeno.

O embrião do camundongo se desenvolve em meio de cultura específico até estágio de blastocisto


quando é introduzido no útero de um camundongo fêmea, onde ocorrerá o desenvolvimento
gestacional. No nascimento, os animais gerados são analisados para verificar quais de fato possuem
o transgene. Para geração de uma nova linhagem, é preciso que o DNA exógeno esteja presente nas
células germinativas.

Figura 105 – Diferentes estratégias para a criação de camundongos transgênicos. Em A, é mostrada a técnica que utiliza vetores
retrovirais como ferramenta para entrega do transgene. Em B, ilustra-se a estratégia da microinjeção do DNA livre de vetores
(naked DNA). Este se insere no genoma de maneira inespecífica. Em C, está representada a abordagem da introdução do
transgene em sítios específicos do genoma. Por meio da utilização de vetores que contêm sequências homólogas com o
DNA da célula hospedeira, a integração do DNA exógeno é direcionada. As células-tronco embrionárias transfectadas com
esta construção são expandidas, selecionadas e introduzidas em embriões precoces. Estes embriões são constituídos por duas
populações de células – com e sem o transgene – e ao serem transferidos para camundongos fêmeas pseudográvidas, originam
descendentes quiméricos. Estes devem ser selecionados e cruzados com animais selvagens para criação da nova linhagem

147
Unidade I

Uma alternativa para produção de animais transgênicos é a inserção direta do DNA no pronúcleo
masculino do zigoto inicial por meio da técnica de microinjeção. Por que a inserção do transgene deve
acontecer no pronúcleo masculino? Lembre-se de que ele é maior do que o pró-núcleo feminino, além
de já estar disponível no ovócito imediatamente após a fecundação. A meiose do ovócito ainda precisa
ser finalizada após a fecundação para que haja a formação do pronúcleo feminino.

O número de ovócitos fertilizados disponíveis é aumentado quando as fêmeas doadoras são


estimuladas à superovulação. Estas fêmeas de camundongos recebem uma injeção inicial de soro de
égua grávida, seguida de outra com o hormônio gonadotrofina coriônica humana, substâncias que
estimulam a superovulação. Um camundongo superovulado produz cerca de 35 ovócitos ao invés
dos esperados 5 a 10. As fêmeas superovuladas são acasaladas para que os ovos sejam fertilizados.
Após a cópula, estas são eutanasiadas e os ovócitos fertilizados são coletados de seus ovidutos. A
microinjeção dos ovócitos fertilizados ocorre imediatamente após sua coleta, com a introdução do DNA
de interesse livre de vetores (naked DNA) diretamente no pronúcleo masculino.

Após a microinjeção, 25 a 40 ovos são implantados microcirurgicamente em uma mãe adotiva


pseudográvida, previamente preparada para receber o embrião, e que se torna pseudográvida ao ser
acasalada com um macho vasectomizado. A cópula é a única maneira conhecida de preparar o útero para
a implantação. Assim, quando o embrião transgênico é inserido no útero, pode se desenvolver. Os animais
nascidos dessa gestação devem ser avaliados, a fim de identificar os que de fato são transgênicos.

Nas duas técnicas discutidas, o DNA exógeno se insere em locais aleatórios do genoma. A falta
de controle em relação ao sítio de inserção dos transgenes pode acarretar alguns efeitos adversos
que dificultam a criação do animal geneticamente modificado. Por exemplo, o DNA exógeno pode
interromper a sequência de leitura de um gene e impedir a produção de uma proteína vital. Em outra
situação, este fragmento pode ser alocado próximo a um promotor forte, levando à superexpressão
da proteína transgene, cujo excesso do produto proteico contribuiria para a inviabilidade celular.
Assim, estratégias que permitam determinar o local em que o transgene será inserido no genoma são
preferíveis, uma vez que podem corroborar o sucesso do experimento.

Um dos vetores utilizado neste processo apresenta: dois genes de seleção que agem de forma
distinta, sequências específicas que permitem a recombinação homóloga do DNA do vetor em local
pré-estipulado no genoma da célula hospedeira, além de um sítio para inserção do transgene. A posição
destes elementos no vetor é fundamental para o seu funcionamento. Assim temos: duas sequências do
gene da timidina quinase (responsável por uma seleção negativa) que flanqueiam duas sequências
homólogas ao genoma do hospedeiro (permitem recombinação entre o DNA do vetor e o genoma
da célula hospedeira em um sítio específico), que, por sua vez, ladeiam o sítio de integração do DNA
exógeno (que vai conferir à célula receptora uma nova característica) e o gene (Neor) que dá resistência
contra a substância tóxica sulfato neomicina (G-418) (que promove seleção positiva).

148
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 106 – Vetor seleção positiva-negativa. Em A, está representado o resultado de integração não específica. Ambos os genes
para timidina quinase (tk1 e tk2), as duas sequências de DNA homólogas a uma região cromossômica específica nas células
receptoras (HB1 e HB2), o gene que confere resistência ao composto citotóxico G-418 (Neor) e o transgene (TG) são incorporados
ao cromossomo. Após a transfecção, as células são selecionadas para resistência ao G-418 e ao composto ganciclovir, que se
torna citotóxico para células que sintetizam a timidina quinase. Outras integrações não homólogas podem ocorrer e produzem
inserções com um ou outro gene da timidina quinase. Após o tratamento com G-418 e ganciclovir, todas as células com integração
inespecífica do DNA do transgene, que inclui pelo menos um dos genes da timidina quinase, são mortas. Em B, temos o resultado
da recombinação homóloga. O produto da recombinação dupla entre os blocos homólogos (HB1 e HB2) do DNA vetor com do DNA
genômico da célula hospedeira não contém nenhum dos dois genes da timidina quinase (tk1 e tk2). Após o tratamento com G-418 e
ganciclovir, apenas as células que se submeteram à recombinação homóloga sobrevivem

Parte do vetor que foi inserido na célula hospedeira se integrará no DNA genômico. Esta integração
pode ocorrer de duas maneiras. De forma específica, controlada pelos sítios de recombinação
homóloga. O pesquisador insere no vetor a sequência homóloga que lhe convém, controlando, assim,
o local de integração do transgene em relação ao genoma do hospedeiro. Quando a integração ocorre
pelas sequências homólogas, os genes da timidina quinase não se integram no genoma. No entanto, a
integração pode acontecer de forma inespecífica. Neste caso, haverá também a inserção dos genes da
timidina quinase no DNA genômico. Como a intenção é selecionar as células cujo transgene tenha sido
inserido no local específico, é preciso eliminar as demais células em que tal evento não tenha ocorrido.

A sequência Neor faz com que as células sejam resistentes à ação citotóxica do G-418. Esta
substância é adicionada no meio de cultura para garantir que apenas as células que integraram o
vetor se multipliquem. Assim, ocorre a primeira seleção – seleção positiva – visto que as células que
não foram transfectadas não sobrevivem. A seleção negativa vai ser mediada pelo gene da timidina
quinase, que recebe o pseudônimo de gene suicida. Estas sequências foram extraídas do vírus herpes
149
Unidade I

simples tipo 1 e 2 (HSV-1 e HSV-2). O produto deste gene converte o fármaco ganciclovir em um
produto citotóxico. Assim, além de adicionar G-418 no meio de cultura, adiciona-se ganciclovir.

Se o gene da timidina quinase estiver presente, o que indica integração inespecífica, converterá
o ganciclovir em produto tóxico e a célula morrerá, caracterizando a seleção negativa. No entanto,
se a integração tiver ocorrido pelas sequências homólogas, ou seja, de forma específica, não haverá
presença do gene da timidina quinase e o ganciclovir não será convertido em substância tóxica. Nestas
condições, a célula sobreviverá.

A célula usada para inserção desta construção normalmente é uma célula-tronco embrionária. Estas
podem ser removidas de um embrião, engenheiradas e posteriormente usadas para gerar o camundongo
transgênico. Quando em cultura, é possível inserir o DNA de interesse nas células-tronco embrionárias
sem alterar sua pluripotência. Desta forma, com o auxílio do sistema de vetorial de dupla seleção,
é possível projetar o local do genoma em que se deseja introduzir o transgene.

As células-tronco embrionárias contendo o transgene em sítios específicos, selecionadas conforme


descrito, são inseridas em um blastocisto que se desenvolve em cultura. Em estágio adequado, este é
então transferido para uma fêmea pseudográvida. Após o nascimento, os descendentes produzidos serão
quimeras, animais formados pela fusão de dois zigotos diferentes e que, portanto, apresentam células com
conteúdo genético distinto. Neste protocolo as quimeras são produto da inserção de células‑tronco
previamente removidas de um embrião e manipuladas com técnicas de engenharia genética, em
outro embrião, contendo células-tronco não manipuladas e com material genético único. Os animais
quiméricos resultantes devem ser selecionados para se estabelecer a linhagem transgênica.

Para construção de um camundongo knock-out, é possível usar os vetores que permitem a


recombinação homóloga entre suas sequências com o DNA genômico da célula hospedeira. Uma das
estratégias consiste em projetar a recombinação homóloga de forma que ela envolva um segmento
da sequência do gene que se deseja remover. Com isso, o gene acaba perdendo alguma informação
e seu produto proteico não pode ser sintetizado. Vetores conhecidos como vetores de substituição
são usados para este propósito. Desta forma, a recombinação homóloga substitui uma porção do
gene da célula hospedeira por um fragmento do DNA do vetor. A parte do vetor integrada no genoma
normalmente apresenta um gene de seleção positiva, que é usado posteriormente para selecionar as
células de interesse. Tal procedimento pode ser realizado em uma célula-tronco embrionária, que é
expandida, selecionada e introduzida em um embrião em fase inicial de desenvolvimento, conforme
descrito anteriormente.

150
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Figura 107 – Vetor de substituição utilizado na criação de camundongos knock-out. Em A, está representada a estrutura de um vetor
de substituição. Duas sequências homólogas ao DNA genômico flanqueiam um marcador de seleção de fármacos positivo (Neor). Um
marcador de seleção negativa (tk, timidina quinase) também é inserido adjacente a uma das sequências homólogas. A sequência de
reconhecimento de uma enzima de restrição permite a linearização do vetor, necessária para sua integração no genoma da célula
hospedeira. Em B, é mostrado como ocorre a inativação de um gene por meio da utilização do vetor de substituição. Neste exemplo,
o vetor foi projetado para conter como sequências que participarão da recombinação homóloga, dois éxons do gene alvo, éxon 1
e éxon 3. Quando ocorre a recombinação entre o vetor e o DNA genômico (representados pelos cruzamentos), o éxon 2 do gene
original acaba sendo substituído pelo gene da neomicina contido no vetor. Desta forma, o gene da neomicina (Neor) interrompe a
sequência do gene endógeno da célula hospedeira. A inserção do gene Neor no genoma é selecionada pelo tratamento das células
com G-418. O marcador de seleção negativa (tk) não é recombinado no cromossomo e é perdido. No entanto, se a integração do
vetor for aleatória, ou seja, em qualquer lugar do genoma, o gene tk também é inserido no genoma. Nestes casos, as células são
negativamente selecionadas pelo tratamento com ganciclovir

151
Unidade I

4.4 Biossegurança em biotecnologia

A biotecnologia moderna pode ser definida como:

a aplicação de: a) técnicas de ácido nucleico in vitro, incluindo ácido


desoxirribonucleico (DNA) recombinante e injeção direta de ácido nucleico
em células ou organelas, ou b) fusão de células além da família taxonômica,
que ultrapassa as barreiras fisiológicas naturais de reprodução ou da
recombinação e que não são técnicas usadas na reprodução e seleção
tradicionais (BRASIL, 2018).

Conforme já vimos, o uso dessas tecnologias pode resultar em introdução de novas características
em plantas, animais e microrganismos que vão além do que seria possível por técnicas de reprodução
tradicionais. É esse cruzamento de barreiras entre espécies e o novo material genético introduzido nas
culturas de alimentos para animais que levanta uma variedade de preocupações ecológicas, de saúde
e segurança.

A disponibilização para a sociedade de produtos seguros obtidos pela biotecnologia depende de uma
avaliação de biossegurança rigorosamente estruturada. A área da biossegurança possui como premissa
básica a prevenção, a minimização ou a eliminação dos riscos associados às atividades de pesquisa,
ensino, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços. Riscos estes que podem comprometer a
saúde do homem, dos animais e do meio ambiente. As preocupações ecológicas incluem, por exemplo,
os potenciais impactos adversos sobre a biodiversidade a partir do fluxo de novos genes de plantas
modificadas, como a criação de ervas daninhas resistentes a herbicidas, ou impactos relacionados ao
desenvolvimento de resistência por pragas às toxinas introduzidas em plantas.

Preocupações com a saúde humana incluem potencial alergenicidade ou toxicidade pelo


consumo de ingredientes geneticamente modificados em alimentos. Ademais, várias apreensões
socioeconômicas e éticas incluem possíveis impactos adversos da dependência de intervenções de alta
tecnologia e intensivas em capital, como engenharia genética para sistemas de produção de alimentos
locais e de subsistência, a criação de monopólios patenteáveis e concentração de propriedade em
variedades de sementes e plantas de culturas vitais para alimentos e mercadorias, além da aceitabilidade
(ou não) de modificação da natureza.

Esses temores com relação aos impactos adversos ecológicos, relacionados à saúde ou
socioeconômicos, são contra-argumentados por aqueles que enfatizam os múltiplos benefícios que as
culturas transgênicas poderiam trazer. Para alguns estudiosos, esses benefícios incluem ampliação da
produção de alimentos, redução do uso de pesticidas sintéticos e aumento da segurança alimentar.

Uma característica central relacionada à biossegurança é a falta de consenso sobre a existência,


natureza e extensão dos riscos ou benefícios relacionados ao uso da biotecnologia moderna na
agricultura, se esses riscos e benefícios provavelmente se concretizarão, e como eles se distribuiriam
entre as sociedades e dentro delas. Como resultado, diversos fóruns globais se tornam locais de conflito
para negociar significados contestados de biossegurança.
152
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Os debates sobre os riscos da engenharia genética e segurança dos laboratórios tiveram início
com a Conferência de Asilomar, no ano de 1975, na Califórnia. Nesta ocasião, também foram
discutidos aspectos como a necessidade de contenção, equipamentos de proteção individual (EPIs)
e coletiva (EPCs), para diminuir os riscos aos trabalhadores. Os avanços biotecnológicos ocorridos
nos anos subsequentes foram acompanhados por novos debates que culminaram na Conferência
das Partes para a Convenção sobre Diversidade Biológica, em 29 de janeiro de 2000, a qual adotou
uma complementação à Convenção que ficou conhecida como Protocolo de Cartagena sobre
Biossegurança. O protocolo visa à proteção da diversidade biológica frente aos riscos potenciais
gerados pelos organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia moderna. Esse protocolo
prevê que anteriormente à importação de um OGM deverá ocorrer, entre países, troca de todas as
informações necessárias para realização de avaliações de risco.

O Brasil deu início ao processo de discussão da biossegurança a partir de 1995 com a


Lei de Biossegurança Brasileira (Lei n. 8.974, de 5 de janeiro de 1995), que aborda os processos
envolvendo OGMs.

Com as descobertas dos anos subsequentes, foi aprovada a Lei de Biossegurança n. 11.105,
de 24 de março de 2005, a qual estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de
atividades que envolvam OGMs e derivados. A mesma lei também criou o Conselho Nacional
de Biossegurança (CNBS), reestruturou a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e
dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança (PNB). Esta Lei foi regulamentada pelo decreto
n. 5.591, de 22 de novembro de 2005.

A CTNBio é uma instância colegiada multidisciplinar, integrante do Ministério da Ciência e


Tecnologia, cuja finalidade é:

[...] prestar apoio técnico consultivo e assessoramento ao Governo


Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de
Biossegurança relativa a OGM, bem como no estabelecimento de normas
técnicas de segurança e pareceres técnicos referentes à proteção da saúde
humana, dos organismos vivos e do meio ambiente, para atividades que
envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte,
comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e
derivados (BRASIL, 2005a).

A Lei de Biossegurança e seu decreto regulamentador constituem um marco regulatório que agrega
dispositivos jurídicos de diferentes áreas do direito (ambiental, sanitário, defesa do consumidor, civil,
propriedade intelectual, administrativo e penal). Parte desses dispositivos atua com o objetivo de
regulamentar os parâmetros para aprovação e uso comercial dos OGM e garantir os direitos privados
das empresas (sigilo comercial), enquanto outra parte volta-se à preservação do interesse público, por
exemplo, a penalização por possíveis irregularidades adotadas por produtores de engenharia genética.
De acordo com a Lei n. 11.105, para liberação comercial de um OGM, a CTNBio deverá solicitar estudos
de impacto ambiental.

153
Unidade I

Outro aspecto importante é que qualquer instituição que utilizar técnicas e métodos de engenharia
genética ou realizar pesquisas com OGM deverá criar uma Comissão Interna de Biossegurança (CIBio).
Uma vez que a CIBio estiver instalada em uma determinada instituição, a realização de atividades
de pesquisa envolvendo OGM dependerá de uma requisição perante a CTNBio de um Certificado de
Qualidade de Biossegurança, o qual corresponde a um atestado de que a instituição possui infraestrutura
adequada e condições técnicas, científicas e financeiras para a realização dos projetos. Dessa forma, as
organizações que financiam atividades ou projetos que envolvam OGMs devem exigir a apresentação
desse certificado.

Por sua vez, o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) é o órgão responsável pela formulação
e implementação da Política Nacional de Biossegurança. Sendo também encarregado pelo
assessoramento no estabelecimento de princípios e diretrizes para a ação administrativa dos órgãos e
entidades federais relacionados à biossegurança, análise de recursos interpostos pelos órgãos de registro
e fiscalização de decisões de liberação comercial de OGMs e derivados efetuadas pela CTNBio. A partir
da solicitação da CTNBio, o CNBS decidirá sobre os aspectos de interesse nacional na liberação para uso
comercial de OGM e seus derivados.

Quando a CTNBio considerar um OGM potencial ou efetivamente causador de degradação


ambiental, bem como determinar a necessidade de licenciamento ambiental, o processo será
encaminhado ao órgão competente do Ministério do Meio Ambiente, cabendo ao órgão ambiental
decidir sobre a necessidade de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de Impacto
Ambiental (Rima) ou de outros estudos para a avaliação do risco ambiental. A CTNBio decide
quando cabe licenciamento ambiental, mas é o órgão ambiental que delibera sobre a solicitação de
estudos relativos ao meio ambiente ou a impactos socioeconômicos ou o próprio EIA/Rima, dentro do
procedimento de licenciamento.

As avaliações de risco ambiental devem ser baseadas em dados científicos considerando:

• as características do transgene;

• as características da planta (fenótipo e genótipo) na qual o transgene foi inserido e o ambiente


onde essa planta será liberada;

• o fluxo de genes entre espécies distintas (fluxo gênico vertical) e gêneros distintos (fluxo
gênico horizontal);

• o impacto sobre organismos não alvo da tecnologia e a biodiversidade.

No processo de avaliação do risco, o avaliador deve considerar possibilidades diretas ou indiretas,


por exemplo, o deslocamento de populações de organismos. O avaliador determina, então, as
probabilidades de o perigo ocorrer, o nível de significância dos dados e as medidas de mitigação que
podem ser implantadas.

154
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

As medidas de mitigação também devem prever a ocorrência de imprevistos. O que seriam


imprevistos nesse contexto?

Os riscos potenciais das plantas geneticamente modificadas estão associados à presença do DNA
exógeno. Deve-se, portanto, pensar sobre os efeitos intencionais desse DNA exógeno (por exemplo,
conferir resistência a determinado herbicida), bem como sobre seus efeitos não intencionais, que podem
ser previsíveis ou não (como alterações que aumentam a toxicidade ou alergenicidade da planta). Dessa
forma, as informações geradas nos estudos de biossegurança oferecerão um cenário de situações ou
opções que permitam tomar medidas para que, mesmo com algum nível de risco, a tecnologia possa ser
adotada causando o menor impacto ambiental e alimentar possível.

Outro questionamento que é feito com relação às plantas geneticamente modificadas é quanto
à possibilidade da transferência, na natureza, de genes entre a planta geneticamente modificada e
espécies aparentadas. E se houver esse fluxo gênico, quais podem ser as consequências?

Conforme mencionado, o fluxo gênico vertical corresponde à transferência de genes entre e


dentro de populações de uma mesma espécie ou espécies semelhantes, que se cruzam naturalmente.
Ele pode ser resultante da migração de pólen da planta transformada para a planta selvagem ou pela
dispersão da semente quando é transportada por animais ou mesmo por transporte comercial. Quando
ocorre em populações naturais, esse fluxo é desejável, uma vez que aumenta a variabilidade genética da
espécie. Entretanto, quando ocorre entre plantas transgênicas e convencionais, ele é indesejável.

Para que o fluxo seja efetivo, o pólen tem que fecundar a flor, produzindo uma semente híbrida
viável, a qual deve germinar e produzir um adulto fértil, o qual produzirá novas plantas férteis. Ainda
assim, dependendo da pressão de seleção ambiental, o efeito da introdução do transgene na população
pode ser neutro (quando não confere nem vantagem nem desvantagem adaptativa), desfavorável
(quando o transgene desfavorece o organismo em um processo de seleção natural) ou favorável (quando
confere vantagem adaptativa).

Por sua vez, o fluxo gênico horizontal é a transferência de genes na natureza entre gêneros
distintos. Este fenômeno é normal entre microrganismos, podendo ter alta frequência em alguns casos.
A transferência gênica entre fagos (vírus) e bactérias marinhas, por exemplo, pode ocorrer uma vez
em cada 108 partículas infecciosas. Considerando o grande número de bactérias e vírus, estima-se que
a transferência de genes entre esses microrganismos ocorra a uma taxa de 20 trilhões de vezes por
segundo. Apesar de bastante comum entre bactérias e vírus, a transferência horizontal é muito menos
comum entre procariotos e eucariotos.

155
Unidade I

Figura 108 – Fluxo gênico horizontal. A) A transformação ocorre quando DNA é liberado após a lise de um organismo e captado
por outro organismo. Um gene da célula doadora pode ser integrado ao DNA cromossômico ou plasmideal da célula receptora.
B) Na transdução, os genes são transferidos de uma bactéria para outra por meio de um bacteriófago, e esses genes também
podem ser integrados ao DNA cromossômico. C) A conjugação ocorre por contato direto entre duas bactérias

Diversas estratégias podem ser adotadas no manejo do risco de fluxo gênico. Para adoção de uma
estratégia adequada, estudos de biologia reprodutiva e conhecimento dos sistemas agrícolas são
importantes. O uso de transgene com herança materna evita a dispersão por pólen, assim como a macho
esterilidade. A esterilidade da semente também pode ser utilizada.

Além de regulamentar as atividades relacionadas aos OGM, a CTNBio regulamenta questões


ligadas à pesquisa e terapia envolvendo a utilização de células-tronco embrionárias. De acordo com
a Lei n. 11.105, é permitida a utilização, para pesquisa e terapia, de células-tronco embrionárias
obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro. Para isso, é necessário que
o embrião seja inviável ou que tenha permanecido congelado por mais de 3 anos. Ademais, a
utilização apenas pode ocorrer a partir do consentimento dos genitores.

Qualquer instituição que tenha intenção de realizar pesquisa utilizando esse tipo de célula
precisa da autorização de um comitê de ética em pesquisa.

A lei trata ainda de outras questões importantes, como a proibição de engenharia genética
em células germinativas humanas, zigotos e embriões humanos, bem como a proibição de
clonagem humana.

156
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Saiba mais

Com o objetivo de consultar a Lei n. 11.105 na íntegra, acesse:

BRASIL. Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005. Brasília, 2005. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11105.
htm. Acesso em: 9 dez. 2020.

4.4.1 Biossegurança relacionada aos microrganismos geneticamente modificados

Técnicas de modificação genética têm sido aplicadas a plantas, células animais e microrganismos.
Um microrganismo geneticamente modificado deve ser capaz de se estabelecer no ambiente e expressar
de forma eficiente a característica introduzida.

A avaliação de risco dos microrganismos ou células geneticamente modificados leva em conta os


perigos que eles oferecem ao homem, a outros animais e/ou às plantas. Dessa forma, os microrganismos
são categorizados de acordo com seu potencial patogênico em grupos de risco, e esta classificação
é fundamental para a determinação do nível de contenção a ser aplicado. Cabe ressaltar que tal
classificação é válida para todos os microrganismos e não apenas aqueles geneticamente modificados.

Sobre a classe de risco dos patógenos utilizados na pesquisa, a Organização Mundial de Saúde (OMS)
define a classificação de acordo com a classe de risco (classes 1, 2, 3, e 4) referente aos perigos relativos
aos microrganismos infecciosos, conforme descrito a seguir:

• Classe de risco 1: organismos que oferecem baixo risco individual e baixo risco para a comunidade,
e que não causem doença ao homem ou aos animais.

• Classe de risco 2: organismos que oferecem risco individual moderado e risco limitado para a
comunidade. O patógeno causa doença ao homem ou aos animais, mas não oferece risco a quem
o manipula em condições de contenção, à comunidade, aos seres vivos e ao meio ambiente. São
exemplos de organismos desta categoria o Staphylococcus aureus e o Vibrio spp.

• Classe de risco 3: organismos que oferecem elevado risco individual e risco limitado para
a comunidade. O patógeno geralmente causa doenças graves ao homem ou aos animais e
pode representar sério risco a quem o manipula. Estão nessa categoria o Bacillus anthracis,
o Mycobacterium spp., a Salmonella paratyphi e a Shigella typhi.

• Classe de risco 4: organismos que oferecem elevado risco individual e elevado risco para a
comunidade. Patógenos que representam grandes ameaças para o ser humano e os animais,
representando grande risco a quem os manipula e tendo grande poder de transmissibilidade de
um indivíduo a outro. Encontram-se nessa categoria o vírus ebola e o vírus da varíola.
157
Unidade I

Os microrganismos geneticamente modificados para controle biológico encontram-se dentro do


Grupo 1. Para cada um desses grupos de risco, são estabelecidas medidas apropriadas de manipulação.

O modo mais simples de controlar o destino dos microrganismos geneticamente modificados e


evitar o fluxo gênico é limitar sua sobrevivência. A fim de evitar a transferência de material genético,
os microrganismos geneticamente modificados nos cromossomos são mais seguros que aqueles
modificados com plasmídeos.

Lembrete

Os plasmídeos são moléculas de DNA circular que podem ser transferidos


de uma bactéria para outra.

Algumas estratégias podem ser empregadas no desenvolvimento de microrganismos geneticamente


modificados reduzindo seu risco, como o uso de linhagens sensíveis a uma faixa determinada de
temperatura ou de um promotor ativado por estímulos induzidos específicos.

Não se pode negar que existem perigos em potencial, e que há necessidade de regulamentação
para que estes riscos sejam medidos de forma adequada. Caso algum risco seja detectado, devem ser
adotadas medidas que permitam manejá-lo ou contê-lo. As regulamentações sobre biossegurança
devem estabelecer práticas que tendam a diminuir a probabilidade de incidentes e devam prever as
etapas de avaliação e de manejo do risco.

A partir da determinação do grupo de risco ao qual pertence um microrganismo, são definidos os


elementos de contenção para redução da exposição da equipe de laboratório, das pessoas indiretamente
envolvidas nas atividades e do ambiente aos agentes patogênicos. A contenção pode ser realizada em
dois níveis diferentes:

• Contenção primária: objetiva a proteção da equipe de laboratório e do meio de trabalho,


estando relacionada às condutas e ao uso de EPIs e EPCs adequados. Dentre os EPIs podemos
citar: luvas, jalecos, máscaras, toucas, propé e óculos de proteção. Com relação aos EPCs, são
exemplos: autoclaves, kit de primeiros socorros, caixas amarelas para perfurocortantes e capelas
de exaustão química.

• Contenção secundária: envolve a proteção do meio externo ao local onde são manuseados os
agentes infecciosos, estando relacionada às condutas e às instalações físicas.

Os laboratórios que trabalham com os agentes de riscos necessitam aplicar normas para o trabalho
em contenção, cujo nível é determinado pelo agente da maior classe de risco presente no ambiente.
Nesse contexto, em relação ao nível de biossegurança (NB), os laboratórios podem ser classificados
como NB 1 – laboratórios básicos, NB 2 – laboratórios de diagnóstico e pesquisa, NB 3 – laboratórios de
contenção e NB 4 – laboratórios de contenção máxima, como veremos na sequência.

158
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Quadro 11 – Classificação dos laboratórios por nível de biossegurança (NB)

Exemplo de
Nível de biossegurança Descrição microrganismos
NB 1 (risco fraco na escala Microrganismos pouco suscetíveis a provocar doenças nos Escherichia coli
individual e coletiva) homens ou animais
Microrganismos patogênicos capazes de provocarem
NB 2 (risco individual moderado e doenças em seres humanos ou animais, mas que geralmente
limitado na escala coletiva) não representam um perigo sério para quem os manipula em Influenza e HIV
condições de contenção, para a comunidade ou o ambiente
Patógenos que geralmente causam doenças graves ao
NB 3 (risco na escala individual e homem e aos animais, podendo representar um risco sério Mycobacterium
limitado na escala coletiva) para quem os manipula e se disseminando na sociedade, tuberculosis
embora existam medidas de prevenção e tratamento
NB 4 – contenção máxima Agente patogênico que provoca geralmente uma doença
humana ou animal grave e que se transmite de um indivíduo Vírus ebola
(elevado risco individual e para a a outro direta ou indiretamente. Normalmente não existem
comunidade) medidas de prevenção e tratamento

Adaptado de: Fiocruz (2005).

Os laboratórios classificados como NB 3 e NB 4 devem conter as instalações de autoclaves para


descontaminação dos EPIs e de outros materiais a serem reutilizados, assim como uma autoclave
específica para o pré-tratamento de resíduos provenientes dessas instalações. Assim, esses materiais
serão descartados e encaminhados para uma área de armazenamento temporário e serão mantidos até
o transporte para uma estação de tratamento e disposição final.

A gestão de biossegurança de qualquer instituição deve ser construída levando em consideração


um levantamento detalhado dos agentes manipulados, as rotinas desenvolvidas, a tecnologia e a
infraestrutura disponíveis, de modo a definir as ações de biossegurança que devem ser adotadas e
contempladas nos programas de capacitação em sintonia com as normas nacionais e internacionais.

Resumo

Aprendemos as técnicas do DNA recombinante e como manipular


o DNA de qualquer organismo por meio das enzimas de restrição. Além
disso, discutimos sobre os vetores de clonagem, as variadas formas
de introduzi‑los no hospedeiro, bem como os diferentes mecanismos
envolvidos na seleção da célula de interesse. Também entendemos como
funciona o CRISPR, um sistema que ocorre naturalmente em bactérias e
que se tornou uma ferramenta revolucionária de edição gênica. Vimos
ainda que tão importante quanto a produção de proteínas recombinantes
é a sua purificação, a qual pode ser realizada por diferentes métodos.

A biologia das células-tronco foi outro assunto importante abordado


nesta unidade. Observamos que as células-tronco podem ser classificadas

159
Unidade I

de acordo com o seu potencial de diferenciação. Além das células-tronco


naturalmente encontradas em adultos e tecidos embrionários, já existem
tecnologias que permitem gerar células-tronco de pluripotência induzida,
bem como analisamos as vantagens de seu uso.

As ferramentas e tecnologias citadas possibilitaram a clonagem nuclear


e a geração de organismos geneticamente modificados, que abrem diversas
discussões e pontos relevantes que precisam ser considerados em termos
éticos e de biossegurança.

Exercícios

Questão 1. As endonucleases são enzimas utilizadas como importantes ferramentas experimentais.


Elas participam da clonagem de genes, da caracterização de polimorfismos e até mesmo da identificação
de pessoas a partir da análise do DNA.

A EcoRI foi uma das primeiras endonucleases caracterizadas. Ela reconhece a sequência palindrômica
5’GAATTC 3´ no DNA dupla fita e realiza a clivagem entre os resíduos de guanina e adenina presentes
nessa sequência.

A respeito das endonucleases e de seu uso experimental, avalie as afirmativas.

I – Endonucleases são utilizadas para se editarem genes específicos dentro das células
eucarióticas. A excisão da sequência 5’GAATTC 3´ reconhecida pela EcoRI, pode ser realizada in vivo
e resulta na correção de polimorfismos e de mutações responsáveis por alterar a sequência original
do gene-alvo.

II – A clivagem de um plasmídeo com a enzima EcoRI gera uma sequência de 5 nucleotídeos não
pareados, aos quais pode ser adicionado um fragmento de DNA cujas extremidades foram clivadas com
a mesma enzima. Essa estratégia permite a síntese de proteínas de maneira dirigida, a partir da inserção
do vetor de expressão contendo o DNA de interesse em células que atuam como biofábricas.

III – As enzimas de restrição são isoladas de bactérias e de outros organismos procariontes.


A EcoRI, por exemplo, é originária da bactéria Escherichia coli e faz parte do sistema de defesa desse
microrganismo contra bacteriófagos.

IV – Por ser uma endonuclease tipo II, a enzima EcoRI não é adequada para a realização de ensaios
de RFLP (Restriction Fragment Length Polymorphisms).

É correto o que se afirma somente em:

160
BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

A) I e II.

B) II e III.

C) I e III.

D) II e IV.

E) I e IV.

Resposta correta: alternativa B.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: as enzimas de restrição reconhecem e clivam sequências muito curtas de DNA, que
tendem a se repetir ao longo de genomas complexos, como o das células eucarióticas. Portanto, a adição
de enzimas de restrição a essas células resultaria na clivagem do material genético em múltiplos loci
e, portanto, não é uma estratégia terapêutica válida. Além disso, as enzimas de restrição não realizam
a excisão da sequência que reconhecem, mas, sim a clivagem das ligações fosfodiéster entre dois
nucleotídeos adjacentes que integram essa sequência.

II – Afirmativa correta.

Justificativa: a montagem de sistemas recombinantes constitui um dos principais usos


experimentais das endonucleases, também conhecidas como enzimas de restrição. Essa estratégia
consiste em amplificar, por PCR, o cDNA para a proteína que se deseja sintetizar, na presença de
primers que inserem, nas extremidades não codificadoras dos amplicons, a sequência reconhecida por
determinada enzima de restrição (por exemplo, a EcoRI).

Em seguida, os amplicons são clivados pela enzima de restrição escolhida, o que permite que eles se
encaixem, por complementariedade, em plasmídeos que foram linearizados pela ação da mesma enzima.

Como resultado, obtém-se a sequência de DNA que codifica a proteína de interesse inserida em um
plasmídeo, que passa a atuar como um vetor de expressão. Quando esse sistema é adicionado a uma
célula competente, ela sintetiza a proteína a partir da leitura do plasmídeo.

III – Afirmativa correta.

Justificativa: as enzimas de restrição são isoladas de bactérias, que as utilizam para combater a
infecção por bacteriófagos, que nada mais são do que vírus que infectam bactérias. A EcoRI, por exemplo,
foi isolada da linhagem RY13 de E. coli.

161
Unidade I

As sequências reconhecidas por determinada enzima de restrição estão presentes no genoma do


bacteriófago, mas não no genoma da bactéria que a contém. A enzima, ao clivar o material genético
do vírus, inibe sua replicação, o que impede a montagem de novas partículas virais.

IV – Afirmativa incorreta.

Justificativa: as enzimas de restrição são classificadas em três subtipos: endonucleases tipos I, II e III.
As endonucleases tipo II são as mais utilizadas na bioengenharia e nos ensaios de biologia molecular
e incluem a EcoRI. Elas cortam as sequências reconhecidas em locais específicos, diferentemente das
endonucleases tipo I, que reconhecem determinadas sequências, mas realizam cortes inespecíficos. Nos
ensaios de RFLP, é desejável conhecer exatamente a sequência que está sendo clivada e, portanto, as
endonucleases tipo II são a primeira escolha.

Questão 2. Um biomédico realizou a inserção da sequência de DNA que codifica a insulina em


plasmídeos de expressão que contêm o operon lac e o gene de resistência à ampicilina. Os plasmídeos
foram transfectados em bactérias E. coli competentes e, em seguida, as bactérias foram cultivadas em
meio de cultura sólido, suplementado com amplicilina, IPTG (isopropil-β-D-tiogalactopiranosídeo) e
X-Gal (5-bromo-4-cloro-3-indoxil-β-D-galactopiranosídeo). Após 24 horas, foram observadas colônias
brancas e colônias azuis na placa de cultura.

Assinale a alternativa correta quanto à interpretação dos resultados apresentados anteriormente.

A) As colônias brancas apresentam bactérias com plasmídeos que incorporaram o DNA que codifica
a insulina na posição correta. Esses plasmídeos podem ser isolados e utilizados na produção da
insulina recombinante.

B) As colônias azuladas são constituídas de bactérias que não incorporaram o plasmídeo durante a
transfecção. Essas bactérias devem, portanto, ser descartadas.

C) O gene de resistência à ampicilina garante que as bactérias produtoras de insulina, quando


inseridas em pacientes diabéticos, não sejam suscetíveis à ação dos antibióticos que porventura
sejam administrados ao paciente.

D) O IPTG tem como principal função reprimir a expressão do gene da insulina pelas bactérias que
incorporaram o plasmídeo.

E) Se o meio de cultura não for suplementado com X-Gal, todas as colônias de bactérias
apresentarão a cor azul.

Resposta correta: alternativa A.

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BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA

Análise das alternativas

A) Alternativa correta.

Justificativa: o sistema de seleção azul-branco serve para sinalizar quais bactérias incorporaram o
plasmídeo com o gene de interesse corretamente inserido. A inserção correta causa repressão do operon
lac e, como resultado, não há clivagem do X-Gal em seu metabólito, de cor azul. Portanto, as colônias de
cor branca são constituídas de bactérias cujo gene de interesse foi inserido corretamente no plasmídeo,
o que causa a repressão do operon lac.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: as bactérias que não incorporaram o plasmídeo não crescem no meio de cultura,
pois são suscetíveis à ação da ampicilina adicionada a ele. Lembre-se de que o plasmídeo utilizado no
experimento contém o gene que confere resistência à ampicilina e, portanto, somente as bactérias que
incorporaram o plasmídeo são resistentes à ação dela.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: nessa estratégia, as bactérias que contêm o plasmídeo de interesse não são
administradas no paciente, mas sim usadas como biofábricas para sintetizar a insulina, que então é
purificada e utilizada como medicamento.

O gene de resistência à ampicilina apenas garante que somente as bactérias contendo o plasmídeo
cresçam em meio de cultura suplementado com o antibiótico.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: o IPTG tem como papel induzir o sistema operon lac para que seja ativo nas
situações em que não houve inserção do gene de interesse no plasmídeo, ou nos casos em que houve
a inserção do gene de maneira incorreta. Na presença do IPTG, o gene LacZ, que codifica a enzima
lactase, é transcrito e, posteriormente, traduzido. Como consequência, o X-Gal é biotransformado
pela lactase, o que gera um metabólito de cor azul.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: o metabólito que dá a cor azul às culturas é resultante da biotransformação do X-Gal


pela lactase. Portanto, se o meio de cultura não for suplementado com X-Gal, todas as colônias terão
a cor branca.

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