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Biotecnologia Farmacêutica

Autores: Prof. Juliano Rodrigo Guerreiro


Profa. Enny Fernandes Silva
Colaborador: Prof. Luiz Henrique Cruz de Mello
Professores conteudistas: Juliano Rodrigo Guerreiro / Enny Fernandes Silva

Juliano Rodrigo Guerreiro

Graduado em Farmácia-Bioquímica pela Universidade de São Paulo (FCF/USP – 2004) e Doutor em Bioquímica
pelo Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ/USP – 2009). Realizou pós-doutorado com ênfase em
Bioquímica de Plantas pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP)
entre 2009 e 2012. Tem formação de especialista em Mariologia pela Universidade Dehoniana (2017). É coordenador
do curso de Farmácia desde 2008 e professor titular da UNIP desde 2009.

Enny Fernandes Silva

Graduada em Ciências Biológicas – modalidade médica (bacharel em Biomedicina) – pela Universidade Santo
Amaro (Unisa – 1981), possui especialização em Clonagem em Bacillus subtilis pelo Public Health Department of
the City of New York (1982), mestrado em Bioquímica, na área de Biologia Celular e Molecular (1989) e doutorado
em Bioquímica, na área de Biologia Celular e Molecular (2003), ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Tem
pós-doutorado na Faculdade de Medicina da USP com Dr. Roger Chammas, na área de Adesão Celular. Atualmente, é
docente titular da Universidade Paulista (UNIP).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

G934b Guerreiro, Juliano Rodrigo.

Biotecnologia Farmacêutica / Juliano Rodrigo Guerreiro, Enny


Fernandes Silva. – São Paulo: Editora Sol, 2022.

140 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Fermentação. 2. Cultura. 3. Nanotecnologia. I. Guerreiro,


Juliano Rodrigo. II. Silva, Enny Fernandes. III. Título.

CDU 663.1

U514.76 – 22

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Vice-Reitora de Unidades do Interior

Unip Interativa

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Vannini
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático

Comissão editorial:
Profa. Dra. Christiane Mazur Doi
Profa. Dra. Angélica L. Carlini
Profa. Dra. Ronilda Ribeiro

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista
Profa. Deise Alcantara Carreiro

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Larissa Wostog
Kleber Souza
Sumário
Biotecnologia Farmacêutica

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................9
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................9

Unidade I
1 INSUMOS E PRODUTOS OBTIDOS POR PROCESSOS BIOTECNOLÓGICOS.................................. 13
1.1 Ingrediente farmacêutico ativo (IFA)............................................................................................ 13
1.2 Insumos para antibióticos β-lactâmicos: penicilina e cefalosporina.............................. 14
1.3 Insumos para proteínas terapêuticas recombinantes............................................................ 19
1.4 Insumos para fatores de coagulação sanguínea recombinantes
e anticoagulantes (heparinas)................................................................................................................. 22
1.5 Insumos para anticorpos.................................................................................................................... 24
1.6 Insumos para eritropoetina (EPO) – fator de crescimento hematopoiético................. 27
1.7 Insumos para vacinas.......................................................................................................................... 29
1.7.1 IFAs para vacinas contra covid-19.................................................................................................... 31
2 TIPOS DE PROCESSOS FERMENTATIVOS.................................................................................................. 32
2.1 Início do processo................................................................................................................................. 34
2.1.1 Meios de culturas e seus suplementos (mosto), temperatura e pH.................................... 34
2.1.2 Microrganismo selecionado – microrganismos de importância
para a indústria farmacêutica....................................................................................................................... 35
2.1.3 Presença ou ausência de oxigênio estéril (ar comprimido).................................................... 35
2.1.4 Método de esterilização da dorna.................................................................................................... 35
2.1.5 Agitadores................................................................................................................................................... 36
2.2 Durante o processo............................................................................................................................... 38
2.3 Final do processo................................................................................................................................... 38
3 EXEMPLOS DE PROCESSOS FERMENTATIVOS....................................................................................... 39
3.1 Fermentação alcoólica – cana-de-açúcar................................................................................... 39
3.2 Fermentação alcoólica – cerveja..................................................................................................... 40
3.3 Fermentação alcoólica – vinho........................................................................................................ 41
3.4 Fermentação lática – iogurte........................................................................................................... 43
3.5 Fermentação do pão............................................................................................................................ 44
3.6 Fermentação para a produção de vitaminas.............................................................................. 44
3.7 Fermentação para a produção de soros e vacinas................................................................... 45
3.8 Fermentação para a produção de antibióticos......................................................................... 46
3.9 Fermentação para a produção de esteroides............................................................................. 46
4 MÉTODOS DE EXTRAÇÃO E PURIFICAÇÃO DE DNA E RNA: TÉCNICAS E APLICAÇÕES......... 47
4.1 Métodos de extração e purificação de DNA e RNA................................................................. 47
4.2 Técnicas de DNA recombinante, clonagem molecular, construção
de vetores e enzimas de restrição ......................................................................................................... 48
4.3 Sequenciamento de DNA................................................................................................................... 53
4.4 Aplicações................................................................................................................................................. 57

Unidade II
5 DESENVOLVIMENTO FARMACÊUTICO DE MEDICAMENTOS BIOLÓGICOS (BIOFÁRMACOS)........65
5.1 Técnica de produção de proteínas recombinantes.................................................................. 66
5.2 Medicamentos fabricados por DNA recombinante................................................................. 68
5.3 Biossimilares............................................................................................................................................ 71
5.4 Comercialização..................................................................................................................................... 71
5.5 Produção de biofármacos em cultura de células animais (hibridomas)......................... 72
5.5.1 Cultura celular.......................................................................................................................................... 72
5.5.2 Cultura de células primárias................................................................................................................ 73
5.5.3 Células tumorais....................................................................................................................................... 76
5.5.4 Linhagens celulares................................................................................................................................. 78
5.6 Produção de fármacos........................................................................................................................ 80
6 NANOTECNOLOGIA: FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES......................................................................... 81
6.1 Aplicação da nanotecnologia no desenvolvimento de vacinas......................................... 85
6.1.1 O que é vacina?........................................................................................................................................ 86
6.1.2 Tipos de imunização............................................................................................................................... 88
6.1.3 Tipos de vacina......................................................................................................................................... 89
6.1.4 Desenvolvimento de vacinas............................................................................................................... 92
6.1.5 Aplicação da nanotecnologia no desenvolvimento de novas vacinas............................... 95
7 TECNOLOGIAS DE PREPARAÇÃO DE SISTEMAS ORAIS DE LIBERAÇÃO MODIFICADA.......... 96
7.1 Projeto racional de sistemas de liberação modificada........................................................... 97
7.2 Formas de dosagem oral de dispersão rápida........................................................................... 99
7.3 Liberação entérica modificada......................................................................................................... 99
7.4 Liberação pulsátil.................................................................................................................................100
7.5 Técnicas de formação de floss.......................................................................................................100
7.6 Tecnologia de impressão tridimensional (3D) na preparação de sistemas
de liberação oral..........................................................................................................................................100
7.7 Tecnologia de deposição eletrostática para revestimento
farmacêutico em pó..................................................................................................................................101
7.8 Vantagens e desvantagens da liberação modificada............................................................101
7.9 Nanotecnologia aplicada aos cosméticos inteligentes........................................................102
7.9.1 Lipossomas...............................................................................................................................................104
7.9.2 Niossomas.................................................................................................................................................107
7.9.3 Nanocristais.............................................................................................................................................108
7.9.4 Nanopartículas lipídicas sólidas (SLN)...........................................................................................108
7.9.5 Nanopartículas superparamagnéticas e magnéticas..............................................................109
7.9.6 Nanopartículas metálicas................................................................................................................... 110
7.9.7 Nanoesferas............................................................................................................................................. 110
7.9.8 Dendrímeros..............................................................................................................................................111
7.9.9 Nanotubos de carbono.........................................................................................................................111
7.9.10 Cubossomos...........................................................................................................................................112
8 NANOTECNOLOGIA NA ÁREA FARMACÊUTICA: APLICAÇÕES......................................................113
8.1 Medicamentos biológicos no tratamento do diabetes........................................................113
8.1.1 Vias de administração da insulina.................................................................................................. 116
8.2 O microambiente tumoral como estratégia de direcionamento
de nanopartículas.......................................................................................................................................122
8.3 Medicamentos biológicos para o tratamento de doenças raras......................................125
APRESENTAÇÃO

Este livro-texto possui linguagem didática dirigida primordialmente para a fundamentação básica
do aluno, com o objetivo de proporcionar o uso racional de horas de estudo e a consolidação dos
conhecimentos teóricos que servirão de subsídio a outras disciplinas durante o curso.

A organização do presente material segue uma estrutura de apresentação de conceitos de forma


a facilitar o aprendizado, obedecendo também aquela utilizada nas aulas presenciais. Os tópicos
contemplam os aspectos que envolvem conceitos fundamentais em bioengenharia.

Dessa forma, primeiramente, falaremos sobre o histórico e a definição de bioengenharia. Depois,


abordaremos aspectos básicos sobre engenharia genética, cultivo de células e transgenia. Adiante,
o estudo estará mais voltado para as células-tronco e os aspectos de biossegurança relacionados à
utilização de ferramentas de bioengenharia. Além disso, exibiremos os conceitos e os métodos de
fabricação de soros e vacinas. Por fim, trataremos de temas como sequenciamento genético, aplicações
dessa técnica na saúde, técnicas de nanotecnologia e produção de biomateriais.

Assim, ao final da leitura deste livro-texto, você, aluno, deverá ser capaz de compreender os
principais conceitos que envolvem DNA recombinante, cultura celular, técnicas de transgenia, vacinas e
sequenciamento. Além disso, você deverá estar a par dos principais aspectos referentes à biossegurança
e à produção de biomateriais, assim como desenvolver habilidades dentro do campo da bioinformática,
uma vez que esta vem sendo utilizada como ferramenta valiosa dentro da biotecnologia.

Boa leitura!

INTRODUÇÃO

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), ““biotecnologia” significa qualquer aplicação
tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou
modificar produtos ou processos para utilização específica” (ONU, 1992, p. 9).

Podemos sugerir que a biotecnologia se iniciou há muito tempo, talvez milhares de anos atrás, com
processos de fermentação, que utilizava seres vivos como bactérias e leveduras para produzir bebidas ou
alimentos como pão ou queijo, e que, após muitos anos, foram aprimorados para obtenção de proteínas de
diferentes funções, antibióticos ou outros medicamentos, aminoácidos, vitaminas, solventes industriais,
pigmentos, pesticidas, entre outros produtos.

Há alguns anos, estamos acompanhando um aprimoramento na área da biotecnologia, principalmente


nas ciências ômicas (epigenômica, genômica, proteômica, transcriptômica e metabolômica) e no estudo
de dados epidemiológicos, levando-nos ao melhor entendimento do funcionamento das células isoladas,
dos tecidos e dos órgãos, chegando a relacionar vários mecanismos que levam a doenças, bem como
identificar potenciais alvos terapêuticos.

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Caso, em uma via metabólica, ocorra deficiência de determinada enzima ou proteína, elas poderão
ser produzidas em diferentes sistemas de expressão, por exemplo, bactérias, leveduras, células de plantas,
insetos e mamíferos, sendo posteriormente purificadas e comercializadas. Quando administradas, essas
proteínas aumentam a expectativa de vida do paciente.

Após a primeira aprovação do biofármaco insulina humana recombinante (Humulin®) para o uso em
seres humanos, em 1982, produzida pela indústria farmacêutica Eli Lilly, novos biofármacos entraram no
mercado farmacêutico e impulsionaram a tecnologia.

No que se refere a medicamentos produzidos por biologia molecular, podemos citar aqueles que
usam bactérias (por exemplo, Escherichia coli) ou leveduras (por exemplo, Saccharomyces cerevisiae
e Pichia pastoris) como hospedeiros de vetores construídos para a produção de produtos biológicos
que não necessitam de modificações pós-traducionais mais complexas. Caso haja necessidade dessas
modificações para se ter estabilidade proteica e atividade biológica completa, são necessárias outras
células eucarióticas como hospedeiros que tenham condições de inserir, por exemplo, cadeias de
carboidratos em regiões específicas da cadeia de aminoácidos de determinada proteína, no processo
chamado glicosilação. Como exemplo podemos citar diversas linhagens celulares que são empregadas
na expressão de proteínas recombinantes, como as células de mamíferos HEK 293 (células de rim
humano embrionário), CHO (Chinese hamster ovary ou células de ovário de hamster chinês) e BHK
(baby hamster kidney ou células de rim de filhotes de hamster). Atualmente, já existem estudos com
uso de coelhos e cabras transgênicas como biorreatores industriais cujo produto de interesse, a proteína
recombinante, é produzida pelo tecido das glândulas mamárias geneticamente modificadas desses
animais e liberada solúvel no leite. Como exemplo de medicamento produzido dessa maneira destaca‑se
o Atryn (antitrombina alfa recombinante).

A biotecnologia, como é muito abrangente, pode ser relacionada e classificada em cores, mediante
o setor de atuação:

• Biotecnologia verde: aplicada na agricultura, especialmente na criação de sementes e plantas


geneticamente modificadas, para obter plantações mais resistentes às pragas e substâncias
químicas (pesticidas e agrotóxicos, por exemplo), além de poder melhorar o teor vitamínico e
levar a produção mais sustentável de baixa agressão ao meio ambiente.

• Biotecnologia vermelha: associada à cor do sangue, está relacionada com o desenvolvimento de


novos tratamentos, diagnósticos ou medicamentos.

• Biotecnologia azul: visa procurar moléculas em plantas ou animais marinhos, como algas, para
o tratamento de doenças.

• Biotecnologia marrom: analisa plantas, solo, animais e clima de ambientes desérticos.

• Biotecnologia branca: ligada a processos industriais com substâncias menos poluentes,


matérias-primas reaproveitáveis, processos enzimáticos e fermentativos, biorreatores para
microrganismos, plantas, animais e células modificadas geneticamente ou não. São exemplos
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a produção de imunobiológicos, alimentos, biocombustíveis, compostos bioquímicos, vacinas,
fármacos, cosméticos, tratamento de efluentes e águas.

• Biotecnologia laranja: voltada aos campos de informação, divulgação científica e ensino, para
disseminar os conhecimentos da área que envolvam materiais e estratégias educacionais para que,
ao ser ensinada nas escolas, possa angariar novos discípulos para seu desenvolvimento.

• Biotecnologia roxa: relacionada com questões legais e de regulamentação abordadas em


biodireito, bioética, proteção intelectual e industrial, regulamentações e bioempreendedorismo.

• Biotecnologia dourada: relacionada com as chamadas “ciências ômicas” e bioinformática.


Envolve a compreensão do funcionamento molecular dos seres vivos, com o estudo de genômica,
proteômica, transcriptômica, metabolômica, sequenciamentos e mapeamento de relações entre
moléculas e funções biológicas.

• Biotecnologia cinza: ligada à preservação do meio ambiente e da biodiversidade,


principalmente da biodiversidade genética. Como exemplos podemos citar a construção de
banco de materiais genéticos, banco de células e organismos, monitoramento da biodiversidade
e do meio ambiente, caracterização genética e biomolecular(ômicas), manejo e conservação da
biodiversidade e de ecossistemas, hábitats e biomas brasileiros, evolução, cuidados com solos e
águas, biorremediação etc.

• Biotecnologia preta: ligada ao malefício do saber, usa o conhecimento para o mal, como no
bioterrorismo, que tem como lema desenvolver armas biológicas com toxinas e microrganismos
desenvolvidos em laboratórios que podem causar doenças em seres humanos, animais e
vegetações, na intenção de “escravizar” uma parte da população.

Se adicionarmos à área da biologia a área de exatas, como engenharia (mecânica, biofísica,


eletroeletrônica e de materiais), chegamos à produção de próteses, biomateriais para enxertos,
biossensores e equipamentos inovadores de diagnóstico médico.

Gregor Mendel, em um trabalho publicado em 1866, discutiu mecanismos da hereditariedade ou


herança biológica com estudos de cor e forma das ervilhas e, desde então, o conhecimento nessa área
não parou mais.

Observação

A área da genética como alvo da biotecnologia também será contemplada


neste livro-texto.

O melhoramento genético de plantas e animais pode trazer vários benefícios, como o aumento na
produção de proteína animal, entre outras qualidades. Em relação às plantas, podemos citar mudanças
no tempo de amadurecimento, o que ampliaria o tempo de prateleira, e, em relação aos seres humanos,
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podemos citar experiências enfocando a terapia gênica, que permitiria identificar a predisposição a
algumas doenças genéticas e intervir nos genes responsáveis ainda na fase de gestação, como em
síndrome de Hunter, atrofia muscular espinhal (AME) e outras.

Contudo, é importante ter em mente que a edição de genes em plantas e animais racionais ou
irracionais deve seguir conceitos éticos que nunca devem beirar a discriminação ou o benefício de uns
em detrimento de outros.

Saiba mais

Para saber mais a respeito do uso da genética no tratamento de doenças


raras, leia o artigo a seguir.

GIUGLIANI, R. Terapia gênica: uma esperança para as pessoas com


doenças raras. Veja Saúde, 20 maio 2021. Disponível em: https://cutt.ly/SUndHtS.
Acesso em: 28 dez. 2021.

Como a genética se complementa com a bioquímica, podem ser observados neste livro-texto a
biologia molecular e o uso da bioinformática para a análise de dados. O avanço do conhecimento
modificou completamente o mundo atual, tornando possível, por exemplo, criar clones, alimentos
transgênicos resistentes às pragas, realizar testes de paternidade e solucionar crimes, mapear doenças e
realizar aconselhamento genético.

Em nosso livro-texto, enfocaremos mais as biotecnologias vermelha, dourada e branca, que


estão relacionadas aos processos médicos e de saúde-doença, tanto humana quanto veterinária,
principalmente na área de reprodução artificial, que nos leva ao cultivo celular in vitro de órgãos e
tecidos animais, inseminação artificial, fertilização in vitro, novas terapias e métodos de diagnóstico.
Técnicas usadas em genética, imunologia, fisiologia, biofísica, biologia molecular, células-tronco,
oncobiologia, neurobiologia, entre outras, são estudadas e adaptadas para terapia celular, terapia gênica
e manipulação cromossômica, fabricação de anticorpos, análise citogenética e diagnóstico molecular –
conforme veremos a seguir.

12
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Unidade I
1 INSUMOS E PRODUTOS OBTIDOS POR PROCESSOS BIOTECNOLÓGICOS

Matérias-primas, também conhecidas como insumos, são as substâncias que serão transformadas
nos produtos ou no próprio produto final, caso elas sejam o elemento importante do medicamento,
o princípio ativo, como antibióticos, proteínas terapêuticas recombinantes, anticorpos, eritropoetina e
vacinas. Os insumos biológicos (ou bioinsumos) podem ser provenientes de microrganismos, materiais
vegetais, orgânicos ou naturais, essenciais para a produção de determinado produto farmacêutico ativo
ou ingrediente farmacêutico ativo (IFA).

1.1 Ingrediente farmacêutico ativo (IFA)

Ingrediente ou insumo farmacêutico ativo (IFA), também chamado de princípio ativo, é a substância
que possui efeito terapêutico ou ação farmacológica, por exemplo, o vírus inativado, no caso de vacina.
Em alguns casos, o IFA é o nome da molécula usada nos medicamentos genéricos (por exemplo, ácido
acetilsalicílico ou AAS, associado com a concentração correspondente no medicamento: 10 mg, 40 mg),
que pode ser comercializada com o nome comercial ou “fantasia” Aspirina®.

O Brasil não fabrica mais IFAs para diversos medicamentos, pois as indústrias farmacêuticas
transferiram a produção para outras filiais. Cerca de três décadas atrás, o Brasil fabricava metade de todo
o IFA usado no país, mas atualmente somente 5% é feito no território brasileiro; o restante é importado.
No início dos anos 1990, houve a transferência da fabricação de penicilina e de outros medicamentos
como heparina para outros países, fato que nos leva ao aumento de dependência em relação à China e
à Índia (países que concentram a produção de insumos e IFAs mundiais).

Lembrete

A empresa farmacêutica deve comprovar que o nível de risco dos IFAs é


baixo ou está controlado, sendo necessário o gerenciamento de riscos e de
boas práticas de fabricação dos medicamentos (ANVISA, 2019), inclusive a
validação da limpeza, levando-se em consideração que a exposição diária
permitida (PDE, do inglês, permitted daily exposure) dos funcionários
é uma importante ferramenta de análise toxicológica e do sistema de
qualidade farmacêutica.

Com esse tipo de dependência, qualquer problema nos países fabricantes irá impactar em nossa
produção interna, como foi possível perceber no caso da produção das vacinas CoronaVac e Covishield
(AstraZeneca/Oxford), que são purificadas e envasadas nos laboratórios do Instituto Butantan, em São
13
Unidade I

Paulo, e da Fiocruz, no Rio de Janeiro, a partir dos IFAs provenientes da China e da Índia. Pensando em se
precaver, o Brasil realizou acordos de transferência de tecnologia, respectivamente, com os laboratórios
Sinovac e AstraZeneca.

Sofrendo com a submissão aos países mais desenvolvidos em termos farmacológicos, em 1996, foi
aprovada a Lei de Patentes (Lei n. 9.279/1996), a qual estabelece que um fármaco só pode ser produzido
no país pela empresa detentora da patente, ou seja, a que detém a propriedade intelectual. Geralmente, o
prazo de uma patente farmacêutica é de 20 anos para que seu titular possa explorar economicamente
o ativo. Quando chega a data de expiração da patente de um medicamento, sua fórmula entra em
domínio público, ou seja, todos terão acesso aos detalhes técnicos daquela invenção e qualquer
laboratório poderá produzir aquele medicamento sem ter que pagar algo para o titular da patente.

É nessa fase que surgem os medicamentos genéricos, cujas fórmulas já são de domínio público.
O fato de qualquer laboratório poder produzir os medicamentos de domínio público justifica o fato de
os medicamentos genéricos serem mais baratos.

Entretanto, nem sempre o percurso da patente até sua expiração segue esse caminho. A legislação
que trata de patente – Lei n. 9.279/1996 – permite algumas flexibilizações, e uma delas se chama licença
compulsória. A licença compulsória é uma antecipação da expiração da patente, ou seja, a patente entra
em domínio público antes do prazo comum. Da mesma forma que ocorre em qualquer processo de
expiração de patente, o titular não deixa de ter lucros com o ativo, e sim uma queda deles, caso outros
laboratórios queiram produzir o medicamento.

A primeira quebra de patente na América Latina ocorreu no Brasil em 2007 com o medicamento
Efavirenz, utilizado no tratamento de síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids), tornando o acesso
ao fármaco mais facilitado, pois seu custo diminuiu e, consequentemente, sua oferta aumentou. Em
alguns casos, a indústria farmacêutica reduz o preço do medicamento no período próximo à expiração
da patente, na tentativa de deixá-lo mais popular.

1.2 Insumos para antibióticos β-lactâmicos: penicilina e cefalosporina

Podemos conceituar antibiótico como uma substância capaz de matar bactérias (bactericidas) ou
inibir o crescimento de bactérias (bacteriostáticos), não afetando nossas células da mesma forma que
afeta os microrganismos.

Observação

Caso ocorra alguma manifestação de bactérias, ou seja, se formos


afetados de alguma maneira, esses sinais são chamados efeitos adversos.

Os antibióticos naturais são produzidos por microrganismos, cada um com necessidades diferentes,
o que leva ao uso de matérias-primas ou meios de cultura diferentes. Esse medicamento natural
produzido por um ser vivo (bactéria, fungo ou planta) pode ser modificado na indústria, recebendo,
14
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

então, a denominação semissintético. Os medicamentos sintéticos diferem dos semissintéticos por serem
sintetizados totalmente em laboratório/indústria com o auxílio de técnicas de química farmacêutica.

Para fabricar, por exemplo, penicilina G ou V, tipos de antibiótico natural, necessitamos de inóculo
(microrganismo), meio de cultura, agitação, bem como condições de pH e temperaturas controlados,
dorna ou tanque de fermentação e métodos físico-químicos de purificação.

O microrganismo inicial para produção de penicilina é um fungo filamentoso (chamado inóculo), que
pode ser Penicillium chrysogenum, Penicillium notatum ou Aspergillus nidulans. Estes serão inoculados
em dornas, biorreatores ou tanques de fermentação de aço inoxidável com meio de cultura microbiológico
(“sopa” de nutrientes) devidamente esterilizados, ou seja, sem contaminação com outros microrganismos.
O meio de cultura pode ter, por exemplo, água de milho, arroz ou trigo como fonte de nitrogênio,
glicose ou melaço como fontes de carbono e substâncias especiais, como aminoácidos essenciais ácido
α-aminoadípico, valina e cisteína, que são fundamentais para o crescimento desses fungos.

Para o processo de esterilização, a dorna e o meio de cultura são expostos ao calor úmido (vapor)
por determinado tempo. Nessa dorna ocorrerá o processo chamado fermentação, que modifica o meio
de cultura, chamado mosto, por conta das reações provenientes do metabolismo do microrganismo,
mudando o nome de mosto para vinho. O tema fermentações será abordado mais adiante.

A penicilina foi o primeiro antibiótico descrito em literatura. Apesar de ter sido descoberta por
Alexander Fleming em 1928, foi usada em seres humanos para tratar tuberculose apenas em 1940,
sendo o primeiro de muitos outros antibióticos descobertos provenientes de diversos microrganismos
e de diferentes ecossistemas aquáticos ou terrestres, como a estreptromicina (a partir de colônias
de Streptomyces griseus), descoberta em 1944; a cefalosporina (proveniente de Cephalosporium
acremonium), em 1945; o cloranfenicol (proveniente de Streptomyces venezuelae), em 1947; o
antibiótico vancomicina, em 1956; e a gentamicina (proveniente de Streptomyces orientalis), em 1963,
entre outros.

Observação

Em bioquímica, caracterizamos como fermentação um processo que


ocorre nas células quando não há ou há pouco oxigênio. Na indústria, o
termo é usado por ser um processo que utiliza microrganismos.

Apesar de o processo para obtenção de antibióticos ser chamado fermentação, necessita de ar


estéril, pois não é possível contaminar o crescimento de determinada cepa, bem como de seu produto,
com ar que contenha milhões de bactérias, esporos, sólidos e líquidos indesejáveis, além de necessitar
de agitação e temperatura controlada, quase sempre entre 25 °C e 27 °C, e pH em torno de 6,5.

No caso específico da produção de penicilina, o vinho (ou meio de cultura modificado) será filtrado
para retirar o micélio (hifas do fungo) e serão iniciadas várias extrações com diferentes solventes
orgânicos, como acetato de butila ou amila em pH baixo e temperatura baixa, adsorção em resinas,
15
Unidade I

filtração e precipitação da penicilina com acetona. Em seguida, a partir da fração líquida, faz-se a
cristalização por meio de isopropanol, centrifugação e secagem.

Pelo processo de fermentação do fungo Penicillium chrysogenum, é possível produzir formas


diferentes de penicilinas, como F, G, K, O, X e V. Na prática clínica, são usadas somente as penicilinas
G e V, produzidas mediante os percursores adicionados ao meio de cultura (que ficarão ligados na
cadeia lateral), os quais determinam características antibacterianas e farmacológicas distintas.
Se adicionar à dorna sais de ácido fenilacético (AFA), será produzida a penicilina G (ou benzilpenicilina); se
forem adicionados sais de ácido fenoxiacético (AFNA), obtém-se penicilina V (ou fenoximetilpenicilina)
e, a partir destes, obtém-se o 6-APA (constituído de um anel com quatro carbonos chamado de
β-lactâmico e um anel de cinco carbonos chamado tiazolídinico) ligado a AFA ou a AFNA. O ácido
6-aminopenicilânico (6-APA) é precursor para a família de penicilinas, conforme mostrado na figura
a seguir. Caso sejam adicionados outros radicais ao 6-APA, teremos outras penicilinas chamadas
semissintéticas (uma parte natural e outra fabricada em laboratório), de acordo com o quadro a seguir.
Cadeia lateral Anel tiazolidina

O H H
S
R C N CH3

C CH3
N
O
COOH
Anel betalactâmico

Figura 1 – Estrutura geral das penicilinas no R (radical) do 6-APA, onde serão adicionados os radicais

Quadro 1 – Penicilinas e seus radicais mais comuns

Radical R Penicilina correspondente (nome usual)

CH2 Benzilpenicilina (penicilina G)

CH3CH2CH = CHCH2 2 pentenilpenicilina (penicilina F)


CH3CH2= CHCH2CH2 3 pentenilpenicilina
CH3(CH2)4 N amilpenicilina (di hidropenicilina F)
CH3(CH2)6 N heptilpenicilina (penicilina K)

HO CH2 P hidroximetilpenicilina (penicilina X)

OCH2 Fenoximetilpenicilina (penicilina V)

Fonte: Campbell et al. (2001, p. 78).

16
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

As penicilinas naturais são penicilina G cristalina, penicilina G procaína, penicilina G benzatina ou


benzilpenicilina e penicilina V. As penicilinas semissintéticas atualmente disponíveis para uso clínico no
Brasil são as aminopenicilinas: ampicilina e amoxacilina. Como algumas bactérias patogênicas possuem
a enzima β-lactamase, que pode clivar o anel penicilânico (anel 6-APA), a indústria farmacêutica pode
associar as penicilinas com inibidores de betalactamases como o ácido clavulânico, que também possui
ação bactericida.

O uso descontrolado dos antibióticos pela população sem prescrição médica e em posologia errada,
chamado automedicação, juntamente com a facilidade de compra nas farmácias, levou à resistência
bacteriana, ou seja, a adaptação a esses medicamentos sem que haja morte dos microrganismos,
refletindo no aumento do tempo de internação e da piora do estado do paciente, que só se recuperará
com o auxílio de outros antibióticos.

Essa foi uma das causas que levou à necessidade de produção de outras penicilinas, com cadeias
laterais diferentes e os grupos funcionais adicionados à sua estrutura, mudando a ação biológica.

Observação

Desde 24 de outubro de 2010, foi determinado pela Agência


Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da Resolução da
Diretoria Colegiada n. 44, que os antibióticos vendidos nas farmácias
e drogarias do país só poderão ser entregues ao consumidor mediante
receita de controle especial em duas vias. A primeira deve ficar retida
no estabelecimento farmacêutico, e a segunda deve ser devolvida ao
paciente com carimbo para comprovar o atendimento (ANVISA, 2009).

No caso da produção da cefalosporina, outro antibiótico betalactâmico, é usado o fungo


Acremonium, anteriormente conhecido como Cephalosporium. O antibiótico é obtido como produto
da fermentação do ácido 7-aminocefalosporânico (7-ACA) (figura a seguir) e, da mesma forma que
acontece na produção das penicilinas, pode ter radicais incorporados em R1, R2 e R3, o que gera as
cefalosporinas de 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª gerações, cada uma com o espectro de ação e resistência à degradação
enzimática diferenciadas.
O
COH
O
3 R2
N
B A
R1 NH 7
S
R3 H

Figura 2 – Estrutura de 7-ACA. Observe a presença de R1, R2 e R3,


que podem ser substituídos por vários ligantes

17
Unidade I

A descoberta da cefalosporina se deu com o pesquisador italiano Giuseppe Brotzu. Ele não
compreendia por que a febre tifoide era menos virulenta em sua cidade e por que muitos jovens que
nadavam no mar, perto de onde era liberado esgoto, não eram acometidos pela doença. Esse fato
intrigante o levou, em 1945, a analisar uma amostra de água dos esgotos que eram liberados no mar.
Ele isolou um fungo produtor de uma substância que atacava bactérias Gram-negativas (como a
Enterobacteriaceae, a Salmonella spp. e a Salmonella typhi), que recebeu o nome de Cephalosporium
acremonium (atualmente, Acremonium chrysogenum). Para estudos complementares, Brotzu enviou
uma amostra para Oxford, e tão logo relatado à comunidade científica, em 1960, a indústria farmacêutica
norte-americana Eli Lilly, fundada em 1876, lançou as primeiras cefalosporinas no mercado.

Para a produção de cefalosporina, as matérias-primas (insumos), em termos de fonte de carboidratos,


são glicose, usada na primeira parte da fabricação para o crescimento celular, chamado metabolismo
primário, e sacarose, para o chamado metabolismo secundário, que tem a função de produzir a
cefalosporina C, encontradas em água de maceração de milho ou adicionadas separadamente. O meio de
fermentação deve conter metionina, ácido α-aminoadípico, valina e cisteína, que podem estar contidos
em extrato de carne ou serem adicionados separadamente, além de ácido oleico, fosforo e acetato de
amônio como maior fonte de nitrogênio, em pH 7,0, com temperatura de 25 °C a 28 °C e oxigênio.

Na estrutura do 7-ACA, podemos observar R1, R2 e R3 no 7-ACA (cefalosporina C), ao qual pode
se ligar vários radicais que permitem o aparecimento de muitas combinações, levando a diferentes
propriedades farmacocinéticas e espectros de atividade. Em geral, o radical R1 leva a mudanças no
espectro de atividade antibacteriana, e no R2, altera propriedades farmacocinéticas, até mesmo
possibilitando o uso por via oral ou via parentérica.

As cefalosprinas podem ser sintetizadas das seguintes maneiras:

• Primeiras cefalosprinas (cefalotina, cefaloridina, cefradina, cefadroxil, cefazolina, cefalexina


e cefatrizina): a partir da união do 7-ACA com acilo do cloreto de ácido.

• Cefalosporinas de segunda geração (cefamandol, cefaclor, cefuroxima, cefonicida, cefoxitina


e cefotetan): pela união 7-ACA com o grupo metoximino na posição 7.

• Cefalosporinas de terceira geração (cefotaxima, cefsulodina, ceftazidima, cefoperazona,


ceftriaxona e cefixima): com o radical acetil.

• Cefalosporinas de quarta geração (cefepime e cefpiroma): com a adição de grupos acídicos


na posição 7.

• Cefalosporinas de quinta geração: muito usadas contra estafilococos meticilinorresistentes,


como MRSA, VISA e VRSA, e como opção para alérgicos a oxacilina ou glicopeptídeos (ceftaroline
e ceftobiprole) com o anel 1,3-tiazol ligado ao núcleo na posição 3 e ao grupo oximino em C7.

18
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Da mesma maneira que ocorre na purificação da penicilina, ocorrerão centrifugação e filtrações,


extrações com solventes orgânicos e adsorção, e, por fim, cromatografia de troca iônica para
posterior cristalização.

Saiba mais

Além de agir em microrganismos, existem antibióticos que agem em


células tumorais. Seu mecanismo de ação não é exatamente o mesmo dos
antimicrobianos, pois, em sua maioria, são agentes intercalantes do DNA,
como as antraciclinas doxorrubicina e daunorrubicina. No tratamento do
câncer, podem ser feitas associações entre medicamentos quimioterápicos
para tentar interromper o desenvolvimento das células cancerígenas,
levando-as à citotoxicidade.

Para saber mais, leia o seguinte artigo:

ALMEIDA, V. L. et al. Câncer e agentes antineoplásicos ciclo-celular


específicos e ciclo-celular não específicos que interagem com o DNA: uma
introdução. Química Nova, v. 28, n. 1, p. 118-129, 2005. Disponível em:
https://cutt.ly/dUnMfdX. Acesso em: 28 dez. 2021.

1.3 Insumos para proteínas terapêuticas recombinantes

De forma geral, sabemos que a expressão gênica ocorre quando o DNA gera um RNA mensageiro
que será traduzido pelos ribossomos em proteínas. Ao utilizar DNA recombinante inserido em células de
bactérias, fungos ou mamíferos, podemos utilizar a maquinaria de tradução de tais células e obter essas
proteínas de estudo, cuja origem é o DNA manipulado. Em 1978, a empresa Genentech desenvolveu o
primeiro biofármaco a partir de bactérias, a insulina recombinante humana. Em 1982, a empresa fez
parceria com a Eli Lilly and Company e iniciou sua produção após obter aprovação para uso humano pela
Food and Drug Administration (FDA). Atualmente, utiliza-se Saccharomyces cerevisiae para a produção
em larga escala.

Podemos classificar as várias proteínas terapêuticas conforme sua função em: anticorpos monoclonais
usados como biofármacos, peptídeos, anticorpos e vacinas. A produção de medicamentos biológicos
(biofármacos) e biossimilares (produtos biológicos semelhantes aos biofármacos de referência)
geralmente são destinados ao tratamento de enfermidades complexas como câncer, artrite reumatoide
e outras doenças autoimunes.

Desde 1980, com os primeiros biofármacos obtidos a partir da utilização de células geneticamente
modificadas que produzem proteínas terapêuticas, o uso da tecnologia do DNA recombinante, bem
como os avanços biotecnológicos, foram determinantes para produzir os medicamentos biológicos
de alta complexidade, impossíveis de serem produzidos por via sintética pelo fato de as reações de

19
Unidade I

síntese serem extremamente complicadas em larga escala e via fermentação, cujos princípios ativos são
extraídos e purificados para serem usados pelos pacientes.

O exemplo mais comum é o dos anticorpos monoclonais recombinantes, muito importantes no


tratamento de doenças como câncer, pois têm como alvo específico uma via metabólica ou uma célula
transformada, e não as células sadias, porque tais células possuem receptores de membrana expressos de
maneira diferente, levando ao menor comprometimento da estrutura e funcionalidade das células sadias.

Esses biofármacos podem ser classificados como de primeira ou de segunda geração, mediante
a sequência de aminoácidos: se for semelhante à das proteínas naturais, são chamados de
primeira geração; caso as proteínas tenham sequência alterada para aumentar o tempo de vida ou
imunogenicidade, são chamados de segunda geração.

Um dos exemplos de proteínas recombinantes mais famoso é o hormônio insulina, cuja estrutura
pode ser visualizada na figura a seguir. Anteriormente, esse hormônio era extraído de bovinos e suínos,
mas havia problemas quanto à sua imunogenicidade. Dessa forma, a primeira proteína produzida
por meio da técnica de DNA recombinante foi esse hormônio hipoglicemiante, recebendo, inclusive,
alterações na molécula para se obter ação prolongada ou ação rápida.

Figura 3 – Estrutura da insulina glargina (nome dado à insulina produzida pela metodologia do DNA
recombinante, que difere da insulina humana pela substituição da asparagina da posição 21 pela
glicina, e pela adição de duas argininas no final, que prolongam a duração da ação)

Fonte: Campbell et al. (2001, p. 224).

Após esse feito, em três anos a indústria farmacêutica colocou à disposição o primeiro hormônio
de crescimento humano recombinante, cuja estrutura é apresentada na figura a seguir, por meio da
mesma técnica, mas produzido em culturas de E. coli. Foi um grande benefício, pois o hormônio do
crescimento era extraído de cadáveres, que, além de encarecer o produto, poderia ser contaminado com
20
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

príon, transmissor da doença degenerativa cerebral conhecida como doença de Creutzfeldt-Jakob –


descoberta em 1982 como a versão humana da “doença da vaca louca”.

Figura 4 – Estrutura do hormônio do crescimento humano

Fonte: Guyton e Hall (1997, p. 177).

O terceiro fármaco a ser produzido com a técnica do DNA recombinante foi o grupo de medicamentos
que congrega os interferons α utilizados no tratamento de hepatites B e C, linfoma não Hodgkin,
algumas formas de leucemia e carcinoma renal. As citocinas, como os interferons e as interleucinas, são
produzidas em células da bactéria E. coli ou em células CHO. Já os interferons β, usados em tratamento
de esclerose múltipla, podem ser produzidos em E. coli, pois não precisam ser glicosilados, levando à ação
rápida no corpo humano. Caso a proteína seja produzida a partir de células CHO, recebe modificações
pós-traducionais como a glicosilação, que, no caso do interferon, reflete em ação farmacêutica lenta.
Para cultivo dessas células, o insumo sintético ou matéria-prima que é o meio mínimo essencial de
cultivo (MEM) é constituído de muitos sais minerais, como cloreto de cálcio, cloreto de potássio, cloreto
de sódio e sulfato de magnésio, bem como vitaminas, podendo ser acrescidos soro bovino fetal ou
outros aminoácidos.

21
Unidade I

Observação
Originadas em 1956, as células CHO são hospedeiras seguras, utilizadas
há muito tempo e aceitas pelas agências reguladoras na obtenção de
biofármacos, sendo uma linhagem de células responsável por 70%
da produção de proteínas ou glicoproteínas recombinantes com fins
terapêuticos ou diagnósticos. Pelo fato de serem provenientes de mamíferos,
podem fazer modificações pós-traducionais em proteínas, que somente
os mamíferos conseguem realizar, como a glicosilação (ou glicação),
assemelhando-se às moléculas que produzimos em nosso organismo
– fato que não ocorre com as proteínas expressas por bactérias como
E. coli, que são procariotos e não possuem as enzimas necessárias para essa
modificação pós-traducional, apesar de serem muito mais fáceis de cultivar.
Outros pesquisadores obtiveram linhagens derivadas da primeira, ao
implantar deleções de genes para melhor controle do crescimento e da
produção de proteínas. Entre as várias proteínas produzidas nessa linhagem
celular, podemos citar os ativadores de plasminogênio (tPA) – potente
antiagregante plaquetário, proteína que ativa o plasminogênio à plasmina e
degrada a fibrina, diminuindo os efeitos da trombose, da embolia pulmonar
e do infarto agudo do miocárdio –, bem como a molécula da eritropoetina
humana recombinante (EPOhr), proteína que estimula a medula óssea a
produzir mais glóbulos vermelhos.
Os interferons γ e α, usados no tratamento da doença granulomatosa crônica, são obtidos em
E. coli K12, que são bactérias derivadas da E. coli, modificadas por mutação para não serem capazes
de crescer em qualquer meio de cultura. Geralmente, usa-se meio Luria Bertani (LB), que fornece as
necessidades nutricionais de cepas recombinantes de E. coli, como triptona ou peptona (que fornece
nitrogênio e carbono), vitaminas e alguns oligoelementos provenientes do extrato de levedura crescido
de cloreto de sódio, com pH final = 7,0 ± 0,2.
Entre as interleucinas recombinantes, podemos citar a IL2, proteína que regula as atividades dos
leucócitos, frequentemente linfócitos, em resposta a infecções microbianas e a fatores externos,
induzindo a maturação de linfócitos B e de células T. Também são utilizadas na quimioterapia do
controle do câncer, principalmente o renal, com o intuito de fortalecer o sistema imunológico das
células e induzir a produção de mais citocinas, além de serem responsáveis pela imunidade produzida
por biologia molecular usada no tratamento do carcinoma renal e do melanoma metastático.
1.4 Insumos para fatores de coagulação sanguínea recombinantes e
anticoagulantes (heparinas)

Neste momento, estudaremos a importância da obtenção de proteínas recombinantes que levam


à falta de coagulação (por exemplo, na doença hemofilia) ou ao excesso de coagulação (trombose).
A hemostasia mantém o sangue fluindo em nossos vasos sanguíneos corretamente e impede a

22
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

hemorragia, que é contida pela coagulação, bem como a destruição desses trombos ou coágulos. O
esquema da cascata de coagulação pode ser observado na figura a seguir.

Via intrínseca

Ativação
por contato

CAPM
PK
XII XIIa

XI XIa Via extrínseca

IX
X
IX IXa Fator tecidual
VIIIa
Xa
Va

II IIa

Fibrinogênio Fibrina

Figura 5 – Esquema da cascata de coagulação

Fonte: Macfarlane (1964, p. 325).

A hemofilia é um distúrbio hemorrágico hereditário causado pela deficiência de fator VIII ou de


fator IX e é classificada em dos tipos: A e B. A hemofilia do tipo A é caracterizada pela deficiência
de fator VIII e, na hemofilia do tipo B, os pacientes são deficientes de fator IX. As pessoas com essas
deficiências têm sangramentos relacionados à quantidade menor do fator presente no plasma.

Anteriormente, isolavam-se os fatores de coagulação obtidos a partir do sangue de doadores


(chamados pdFVIII e pdFIX, que são derivados de plasma) para o tratamento da hemofilia, fato que
provocou vários casos de contaminação por Aids e hepatite C, o que foi sanado quando houve a produção
de fatores VIII e IX pela técnica de DNA recombinante (chamados rFVIII e rFIX, que são recombinantes),
com risco mínimo de transmissão por agentes infecciosos. Clonado desde 1984, o gene do FVIII, proteína
altamente glicosilada, pode ser expresso em cultivo de células CHO e em linhagem de fibroblastos
BHK-21 isolada de cinco hamsters de um dia de idade.

Os insumos ou as matérias-primas para o cultivo dessas células se baseiam na necessidade de serem


semelhantes ao fluido biológico que as permeia, que contém açúcares, sais, vitaminas, lipídios, proteínas,
ácidos orgânicos, aminoácidos, com ou não suplementação de soro bovino fetal, sempre com controle
das condições de temperatura, pH, osmolaridade, concentração de oxigênio e concentração de dióxido

23
Unidade I

de carbono. Os meios comerciais, ou seja, vendidos comercialmente são GMEM-S, BD Animal Component
Free, BD Cell Quantum Yield, DMEM e F12.

Na trombose, há o impedimento do fluxo sanguíneo normal nas veias e artérias por trombos que
podem se soltar do local em que foram criados e ir para o cérebro, os pulmões, o coração ou outros
órgãos, semelhante ao que ocorre na trombose venosa profunda (TVP). Extraída anteriormente da mucosa
intestinal do porco, a heparina, agora purificada via DNA recombinante, previne o tromboembolismo
venoso ou arterial e a embolia pulmonar, pois esse carboidrato da família dos glicosaminoglicanos tem
forte função anticoagulante.

Outros trombolíticos ou fibrinolíticos (“destruidores” de trombos ou coágulos) produzidos pela


técnica de DNA recombinante, como o r-tPA (fator ativador do plasminogênio tecidual recombinante),
são usados principalmente na fase aguda do infarto de miocárdio (IAM) e do acidente vascular encefálico
(AVE, antigamente chamado de AVC – acidente vascular cerebral), podendo, inclusive, ser inseridas
algumas mutações no DNA original para prolongar seus efeitos farmacológicos.

1.5 Insumos para anticorpos

Os anticorpos ou imunoglobulinas são glicoproteínas produzidas pelos linfócitos B capazes de


reconhecer e inativar moléculas estranhas ao organismo, chamadas antígenos, como bactérias e vírus.
Com formato de Y, apresentam quatro cadeias polipeptídicas: duas cadeias pesadas, chamadas H (com
5 tipos: α, µ, γ, δ e ε), e duas cadeias leves, chamadas L (com 2 tipos: κκe λ), idênticas entre si e ligadas
por ligações não covalentes e pontes dissulfeto. Tais combinações entre as cadeias resultam em vários
tipos de imunoglobulinas, classificadas em: IgA, IgM, IgG, IgD e IgE.

NH
NH 2 2 NH
NH 2 2

Cadeia leve (L)


SS
SS
H COO
COO SS H

SS
Cadeia pesada (P)

COOH COOH

Figura 6 – Esquema da estrutura da imunoglobulina humana

Fonte: Abbas e Lichtman (2013, p. 88).

As regiões amino das cadeias L e H se ligam ao antígeno pelas chamadas regiões determinantes
da complementaridade (CDR), uma zona variável, pois modifica seus aminoácidos para melhor ligação
ao antígeno.
24
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Existem dois tipos de anticorpos: os policlonais e os monoclonais. Os anticorpos policlonais são


produzidos em mamíferos como coelhos, camundongos, equinos, bovinos, ovinos ou aves, normalmente
galinhas, como resposta a diferentes porções do antígeno, enquanto o animal imunizado fabrica
anticorpos diferentes, a chamada resposta policlonal, a partir do linfócito B. Caso esses anticorpos sejam
produzidos em laboratório, o processo é simples e de baixo custo.

Os anticorpos policlonais recebem esse nome, pois há formação de muitos clones (células-filhas) ou
cópias de células linfócito B, cada uma reconhecendo uma porção diferente de determinado antígeno
presente em um vírus ou bactéria, obtendo-se, assim, centenas de linfócitos B, que reconhecem centenas
de diferentes “pedaços” de diversos antígenos de um mesmo patógeno.

Ao utilizar o princípio de que o antígeno é aplicado e gera um anticorpo neutralizante, um anticorpo


pode ser produzido em laboratório por biotecnologia e neutralizar ou “atacar” qualquer tipo de alvo
molecular, como uma enzima ou receptor de alguma via metabólica, que faria papel de determinante
antigênico ou epítopo. O anticorpo produzido, por sua vez, agiria nesses alvos, atacando e interrompendo
doenças cardiovasculares, autoimunes, câncer e a rejeição a transplantes. Por serem muito específicos,
vão direto para a célula que possui essa enzima ou receptor, não atacando células não transformadas ou
sadias, diminuindo os efeitos adversos. Esses anticorpos podem sinalizar a quantidade de determinado
receptor ou proteína, o que possibilita sua utilização em kits diagnóstico de laboratório clínico.

Observação

O fator de crescimento epidermal (EGF) se liga ao receptor do fator de


crescimento epidérmico (EGFR; em inglês, epitelial growth factor receptor),
que se dimeriza e se fosforila, ativando as proteínas citoplasmáticas GRB2
e SOS, que, por sua vez, ativam as proteínas RAS, RAF, MEK, ERK e MAPK,
as quais se dirigem ao núcleo e estimulam o DNA e a proliferação celular.

Essa via é normal, mas caso alguma dessas proteínas esteja mutada
ocorre proliferação descontrolada, culminando no câncer. O princípio ativo
cetuximabe (Erbitux®), fabricado pela Merck, é um anticorpo monoclonal
quimérico que inativa o receptor do fator EGFR porque se conecta em seu
domínio extracelular de ligação do EGF, sendo um antagonista competitivo
que bloqueia a regulação do crescimento e da proliferação celular.

Produzidos a partir de células de camundongos (por isso são chamados murinos), os primeiros
anticorpos monoclonais (mAb; em inglês, monoclonal antibodies) foram obtidos por volta de 1986 e
tinham por objetivo diminuir a rejeição a transplantes, mas, por serem murinos e não humanos, foram
observadas reações adversas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu regras para a nomenclatura dos anticorpos
monoclonais, elencadas a seguir:

25
Unidade I

• Anticorpos monoclonais: terminação com o sufixo -mabe (de monoclonal antibodies).

• Restante dos anticorpos:

— Provenientes de murinos: o-. Exemplo: omabe.

— Quiméricos: xi- (ximabe: fragmentos murinos unidos a humanos).

— Humanizados: zu- (maior parte humana e com o componente murino minimizado). Exemplo:
zumabe = anticorpo monoclonal humanizado.

— Humanos: u- (umabe anticorpo monoclonal humano, gerado em ratos).

— Oncológicos: tu-. Exemplo: tumabe.

— Imunológicos: li- ou lim-. Exemplo: limabe.

Caso a proteína esteja ligada por biotecnologia a uma parte do receptor, são chamadas proteínas de
fusão e receberão o sufixo -cepte, por exemplo, etanercepte (segmento de um anticorpo + receptor do
fator de necrose tumoral). Entre outros exemplos podemos citar:

• Infliximabe: Inf + li (imunológico) + xi (quimérico) + mabe (mAb imunológico) – usado para


artrite reumatoide e doença de Crohn.

• Adalimumabe: ada + lim (imunológico) + u(humano) + mabe – usado para artrite reumatoide.

• Imunoconjugados para uso oncológico:

— Ibritumomabe: ibri + tum (oncológico) + o (murino) + mabe.

— Rituximabe: ri + tu (oncológico) + xi (quimérico) + mabe.

— Trastuzumabe: tras + tu (oncológico) + zu (humanizado) + mabe.

Observação

Em 2019, o primeiro biossimilar Vivaxxia® foi produzido pela


farmacêutica Libbs (empresa farmacêutica 100% brasileira), na fábrica
de biossimilares Biotec, primeira fábrica de anticorpos monoclonais em
escala industrial do país, localizada em Embu das Artes (SP). O fármaco
original, anticorpo monoclonal rituximabe, foi desenvolvido pela empresa
norte-americana Genentech e comercializado no Brasil com o nome de
MabThera®, indicado para o tratamento de linfoma não Hodgkin, artrite
reumatoide e outras doenças autoimunes.

26
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Para a produção do insumo farmacêutico ativo (IFA) final que será o anticorpo monoclonal (mais
usado que o policlonal), deverá ser estudado qual é o melhor animal a receber o antígeno (em geral,
camundongo, pela facilidade). Uma vez escolhido o animal produtor de anticorpos, inocula-se o
antígeno e verifica-se a produção dos anticorpos. Se tudo estiver correto, isolam-se células B do baço
desse animal e é feita uma cocultura (cultura conjunta) com células de mieloma (tipo de câncer), que se
fundem e se tornam uma colônia ou hibridoma. Essas colônias são isoladas e estudadas para a escolha
do melhor anticorpo, visto que serão vários hibridomas a produzir diversos tipos de anticorpos, cada
um específico para uma região do antígeno. Os hibridomas que produzem o anticorpo desejado são
colocados em cultura, isolados e purificados.

Observação

A produção industrial in vitro é um método caro, pois é realizado em


biorreator de uso único equipado com saco de plástico especial descartável.
Nesse método, ocorre pouco crescimento celular e há grande chance
de ocorrer contaminação, mas, por outro lado, o saco plástico usado é
incinerado, respeitando o meio ambiente.

O processo industrial in vivo é mais econômico e rápido, pois utiliza


líquido retirado de ascite de ratos, sendo necessário maior treino de
funcionários e muito controle em relação aos animais (idade, espécie e
gênero). Contudo, há restrições em alguns países quanto ao uso de animais
para produção em larga escala de anticorpos.

Para obter o insumo purificado, ou seja, o anticorpo monoclonal produzido a partir de células crescidas
em meio de cultura, foram desenvolvidas estratégias de purificação com alta taxa de recuperação e
com elevado grau de pureza do produto, mas como a complexidade do processo de purificação é alta,
eleva-se o custo final. Vários processos físico-químicos serão usados, como centrifugação, cromatografia
de filtração molecular (separação por tamanho), precipitação por sulfato de amônio (separação por
solubilidade), cromatografia de troca iônica (separação por carga) e cromatografia de afinidade (coluna
de cromatografia com a proteína escolhida como antígeno imobilizada na coluna, levando o anticorpo
a se ligar a ele).

1.6 Insumos para eritropoetina (EPO) – fator de crescimento hematopoiético

Os rins (mais especificamente, o córtex renal) produzem um hormônio da classe das glicoproteínas
chamado eritropoetina (EPO), com peso molecular de 34 kDa, que é liberado devido à hipóxia ou a
grandes altitudes, estimulando a eritropoiese, ou seja, estimulando a medula óssea a produzir mais
glóbulos vermelhos, o que promove a diferenciação de células-tronco precursoras de glóbulos vermelhos
nesse local que expressam os receptores de EPO (EpoR), pois quando os eritrócitos estão maduros não
apresentam mais os EpoR.

27
Unidade I

Cadeias glicídicas

Figura 7 – Estrutura da EPO humana. Observe as pontes dissulfeto e as glicosilações

Fonte: Lai et al. (1986, p. 35).

Observação

Fígado, cérebro e útero também produzem uma fração pequena de EPO


e podem estar relacionados com outras funções, como redução do estresse
oxidativo, modulação da inflamação e diminuição da apoptose das células
epiteliais tubulares. No sistema nervoso central, a EPO está envolvida na
neuroproteção e na angiogênese, ligadas à neurovascularização de uma
zona isquêmica e ao aumento da chegada do oxigênio.

Situações como anemias graves causadas por quimioterapia e problemas renais graves levam ao
uso de EPO, pois esta é responsável por manter a concentração de hemoglobina (Hb) constante e
evitar a transfusão de sangue no tratamento de anemia (por esse motivo é chamado de medicamento
antianêmico) e em situações em que pode ocorrer diminuição na fabricação da eritropoetina pelos rins,
como, por exemplo, na insuficiência renal crônica ou na necessidade de diálise.

A expressão da eritropoetina humana recombinante (rhEPO) foi testada em plantas, insetos,


bactérias, leveduras, e em células COS-1, CHO e BHK, mas o melhor resultado foi obtido a partir das
células CHO e BHK.

Existem cinco isoformas de rHuEPOs (EPO recombinante humano) que diferem entre si pela
glicosilação: alfa, beta, gama, episilon e ômega. As terapêuticas são alfa e beta epoetina α, epoetina β,
epoetina Ω2. A glicosilação pode ter até 14 ácidos siálicos (carboidrato de 9 carbonos) na EPO, que
terá como resultados direcionamento do hormônio aos sítios-alvo, influência na semivida plasmática,

28
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

diminuindo a metabolização rápida pelo fígado, fato que afeta a eficácia clínica, e mudanças nas
propriedades biológicas e farmacocinéticas.

Para se obter o insumo farmacêutico ativo EPO, deve-se ter controle das condições de cultivo de
células, pois é a partir desse ambiente (nutrientes, oxigênio, temperatura, pH) que se obtém crescimento
satisfatório e biofármaco uniforme e com qualidade técnica. Recentemente, o Centro de Engenharia
Genética e Biotecnologia (CIGB) entrou em processo de transferência parcial ou total da produção do
IFA – a eritropoetina humana recombinante (EPOhr) – para o Instituto de Tecnologia em Imunológicos
Bio-Manguinhos/Fiocruz, culminando na fabricação nacional.

Após crescimento das células, a purificação ou processamento downstream do sobrenadante do


cultivo pode ser realizada por métodos físico-químicos, como precipitação diferencial, cromatografia de
interação hidrofóbica, iônica de exclusão molecular ou líquida de alta pressão e concentração e filtração.

1.7 Insumos para vacinas

Pode-se dizer que a história das vacinas se inicia com Edward Jenner (1749-1823), que se atentou
quando as ordenhadoras de vacas acometidas por cowpox (doença parecida com a varíola humana)
tinham imunidade contra a varíola humana ou uma versão mais suave da doença. Fazendo uma analogia
com o acontecido, Jenner inoculou o pus extraído de feridas de vacas contaminadas em um menino de
8 anos com arranhões no braço e, após certo tempo, a criança teve o líquido da ferida de um paciente
com varíola inoculado. Como resultado, não desenvolveu a doença, demonstrando a imunização por uma
vacina antivariólica (“vacina” provém do latim vaccinae; vacca significa vaca). Esse fato, juntamente
com o processo de vacinação anual, levou ao sucesso na erradicação da varíola em 1980. No Brasil, a
vacinação foi responsável pela erradicação não só dessa doença infecciosa, mas também da poliomielite
(paralisia infantil).

Quanto ao IFA das vacinas, em primeiro lugar, devemos analisar contra qual patógeno ele será
usado: bactéria ou vírus. Deve-se fazer crescer esses microrganismos, no caso de bactérias ou célula de
eucarioto, em meio de cultura; e os vírus, em outro organismo, como embriões de galinha, e purificá-los.
Em algumas situações, um IFA eficaz não precisa ser o microrganismo, pode ser uma proteína ou toxina;
se for vírus ou bactéria inteira, pode estar morta ou atenuada.

As vacinas para bactérias e vírus podem ser produzidas com:

• bactérias inteiras mortas (ou inativadas), usando formalina, óxido de etileno ou radiação (raios X
ou gama) para neutralização. Exemplos: vacina inativada meningocócicas B, C e ACWY, hepatite A,
hepatite B, HPV e dTpa – difteria, tétano e coqueluche;

• bactérias vivas atenuadas ou enfraquecidas com calor, produtos químicos ou radiação. Exemplos:
BCG, rotavírus, febre amarela, tríplice viral, tetraviral, varicela, herpes-zóster e dengue;

• com polissacarídeos, proteínas nativas que estimulam a resposta imune;

29
Unidade I

• com toxoides diftérico e tetânico e componentes da cápsula da bactéria da coqueluche


(Bordetella pertussis);

• ácido nucleico, que usa DNA ou RNAm do patógeno como hepatite A. São encontradas em
algumas vacinas de RNAm contra covid-19, expressas em diferentes vetores. São as chamadas
vacinas inovadoras.

Para as vacinas contra vírus, usa-se como célula hospedeira o embrião da galinha contido no ovo
para proliferação dos vírus (são necessários cerca de 120-140 mil ovos para a produção de 1L de vacina,
de forma que cada mL equivale a, aproximadamente, 400 doses, e todo o processo de produção leva
entre 20 e 28 semanas). Retirados dos embriões, os vírus passam por algumas etapas de purificação,
como câmara trituradora, centrifugação e liofilização. Entre os exemplos de doenças que são alvo de
vacinas e que são causadas por vírus podemos citar: gripe (influenza), catapora (varicela), sarampo,
rubéola, caxumba, poliomielite, hepatite B, hepatite A, Aids, herpes-zóster, raiva, febre amarela e dengue.

Muitas vacinas, bem como o antígeno, utilizam o sal de alumínio como adjuvante, uma vez que
este potencializa a resposta imunológica; o fenoxietanol como conservante, pois impede que a vacina
seja contaminada depois de aberto o frasco; açúcares, aminoácidos (glicina), gelatina ou proteínas
como estabilizadores, visto que impedem reações químicas entre componentes e a adesão de moléculas
no frasco; cloreto de sódio para se assemelhar ao conteúdo de sal do sangue; e água esterilizada
como diluente.

Observação

O Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) comunicou a comunidade


científica a respeito da realização de testes clínicos em seres humanos
com a vacina antiparasitária Sm14, nome da proteína do verme
Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose (doença também
conhecida como barriga d’água). Muitos estudos realizados para uma
vacina contra malária foram comunicados e, recentemente, a fabricante
indiana de medicamentos Serum Institute, juntamente com a empresa
norte-americana de desenvolvimento de vacinas Novavax, comunicaram
estudos sobre a vacina R21/Matrix-M contra a malária, que é uma das
principais causas de mortalidade infantil na África.

Depois de isolado o IFA, podem ser agregados água estéril, soro fisiológico, conservantes e
estabilizantes (por exemplo, albumina, fenóis e glicina), além dos chamados adjuvantes, que
potencializam a resposta imune, ou seja, melhoram a eficácia da proteção da vacina. Algumas vezes,
o IFA pode conter quantidades pequenas de proteína do ovo de galinha, empregada para crescimento
do vírus patogênico, algum antibiótico usado no processo de produção com o meio de cultura ou no
armazenamento do produto para evitar contaminação ou timerosal (conservante com mercúrio), com a
finalidade de evitar a contaminação e o crescimento de bactérias potencialmente prejudiciais.

30
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

A pesquisa clínica demonstra que, para uma vacina ser comercializada, deve-se respeitar as fases:

• Fase laboratorial: na qual se estuda o tipo de resposta imunológica in vitro e in vivo, e são
escolhidos o melhor antígeno e a melhor composição ou desenvolvimento da formulação (mortos
ou atenuados, por exemplo).

• Fase clínica: na qual se estuda a resposta imunológica em seres humanos, que culmina na
fase seguinte.

• Fase de vigilância farmacêutica: na qual haverá avaliação dos pacientes após vários anos de uso.

Geralmente, um lote de vacina demora entre 6 e 22 meses para o produto final estar pronto para uso.
Podem ser utilizados os seguintes sistemas celulares de expressão: procariotos (Escherichia coli e Bacillus
subtilis), leveduras (Saccharomyces cerevisiae e Pichia pastoris), fungos (Aspergillus e Trichoderma),
células de mamíferos CHO e células de insetos (Autographa californica).

No Brasil, a primeira vacinação ocorreu no ano de 1804, contra a varíola. Em torno de 1830, muitas
pessoas pararam de se vacinar quando descobriram que o IFA era obtido de vacas doentes, fato que
culminou na Revolta da Vacina de 1904, no Rio de Janeiro. Esse levante da população teve como fato
preponderante o decreto imperial que determinava a vacinação obrigatória, na tentativa de diminuir o
número de internações, mas muitas pessoas se negavam a se vacinar, então o governo as perseguiu e as
prendeu, sendo algumas até mortas. Após análise dos fatos, houve a revogação desse decreto.

1.7.1 IFAs para vacinas contra covid-19

Para produzir o IFA das vacinas contra covid-19, é necessário selecionar o tipo de vacina a ser usada:
algumas utilizam o vírus inteiro, partes do vírus ou o RNA mensageiro (RNAm). Apesar da etapa inicial
ter sido a proliferação do vírus em células vivas, geralmente embriões de galinha, seja para obter o vírus
inteiro ou para obter partes ou material genético, o vírus deverá ser isolado e, nos casos de vacinas
que tenham somente a proteína spike ou o RNAm dessa proteína, deverá ser isolado o adenovírus
de chimpanzé, que receberá, via técnica de biologia molecular, essas informações e se proliferará
em biorreatores.

Uma vez realizado o cultivo, o IFA (vírus da covid-19 ou o manipulado geneticamente em hospedeiro
como adenovírus) deve ser purificado a fim de remover restos celulares ou outras proteínas que não são
de interesse e podem ocasionar reações na população. Os IFAs importados são embarcados em aviões
em câmaras frigoríficas controladas para armazenamento dentro dos parâmetros de qualidade e, após
receber a licença de exportação, chegam ao Brasil para serem envasados.

Para se chegar à imunidade de rebanho ou imunidade coletiva, que ocorre quando aproximadamente
70% da população está vacinada e a cadeia de transmissão é interrompida, deve ser realizada a vacinação
(ou recuperação da doença). As vacinas mais usadas contra a covid-19 são:

31
Unidade I

• CoronaVac (Butantan/Sinovac): vacina de vírus vivo inativado com duas injeções com intervalo
de 2 a 4 semanas, desenvolvida pela empresa farmacêutica chinesa Sinovac, parceira do Instituto
Butantan, que envasa as doses no Brasil.

• Pfizer e BioNTech: proveniente da empresa farmacêutica alemã BioNTech, é administrada em


duas doses com intervalo maior ou igual a 21 dias. Utiliza RNAm com o trecho do código genético
da espícula ou proteína spike do Sars-CoV-2.

• Covishield (AstraZeneca/Oxford): fabricada pela empresa inglesa parceira da Fundação Oswaldo


Cruz (Fiocruz) unidade Bio-Manguinhos, que envasa as doses no Brasil. Produzida por meio de um
vetor viral não replicante com a proteína spike do coronavírus, deve ser usada em duas doses, com
intervalo entre 4 e 12 semanas.

• Moderna: também utiliza a tecnologia de RNAm da proteína spike específica do vírus Sars-CoV-2,
que tem a função de auxiliar na invasão das células humanas.

• Janssen: fabricada pela companhia Johnson & Johnson, é administrada em dose única. Possui
adenovírus não replicante com parte da proteína spike, semelhante à Covishield.

• Sputnik V: usada em duas doses diferentes. É fabricada pela empresa russa Instituto Gamaleya e
foi construída com adenovírus que carrega a proteína spike.

Saiba mais

Para mais explicações sobre as vacinas contra covid-19, sugerimos a


consulta ao seguinte artigo:

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Os diferentes tipos de


vacinas COVID-19. Genebra, 2021. Disponível em: https://cutt.ly/UUWWFPo.
Acesso em: 29 dez. 2021.

2 TIPOS DE PROCESSOS FERMENTATIVOS

Desde 6.000 a.C., bebidas alcoólicas são fabricadas por fermentação. Em 2.000 a.C., já se tem
conhecimento da fabricação de pães e, em 1875 d.C., Louis Pasteur demonstrou que o vinho azedava
por causa de microrganismos que o contaminaram e fermentavam o açúcar existente, transformando-o
em vinagre; assim, foi desenvolvido o processo de pasteurização para eliminar os contaminantes. Por
volta de 1950, os processos fermentativos para obtenção de antibióticos já estavam sendo aprimorados
e, em 1982, ocorreu a produção de insulina humana por biologia molecular.

Em bioquímica, quando falamos a palavra “fermentação”, rapidamente pensamos em um processo


metabólico em que há pouco ou nenhum oxigênio, cujo início se dá a partir da glicose (figura a seguir),
resultando em produtos como ácido lático (fermentação lática), etanol (fermentação alcoólica) e ácido
32
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

acético (fermentação acética). Em termos industriais, podemos citar como exemplos dessas fermentações
citadas os produtos: iogurte, pão, cerveja ou outras bebidas alcoólicas e vinagre.
CO2

Etanol

Glicose Ácido pirúvico Ácido acético


Glicólise
Ácido lático

Figura 8 – Esquema das fermentações alcoólica, lática e acética

Contudo, na prática industrial, não é esse o significado da palavra “fermentação”. Usa-se esse
nome para indicar que são utilizados microrganismos como protagonistas do processo industrial.
A fermentação passa por várias escalas, iniciando na bancada, aumentando para piloto e terminando
na escala industrial.

Neste momento, estudaremos várias etapas que levarão à obtenção de vacinas ou medicamentos
como antibióticos em larga escala. Após o estudo em laboratório ou planta piloto, é utilizado um
sistema de fermentação dessas culturas, e o produto será purificado de alguma forma, como por meio
da cromatografia.

Na figura a seguir, podemos observar um resumo de um processo fermentativo genérico.

Microrganismo Meio de cultura


selecionado Matérias-primas selecionado

Preparo do inóculo: Esterilização


etapa de laboratório

Células
Preparo do inóculo:
etapa industrial
(germinadores) Separação das
células

Ar Caldo fermentado

Biorreator
Compressor Esterilização do ar industrial Recuperação do
produto

Produto Tratamento de
efluentes

Figura 9 – Esquema geral de uma fermentação

Fonte: Schimidell at al. (2001, p. 81).

33
Unidade I

Analisando-se o esquema genérico de fermentação, podemos dividi-lo em partes, que serão estudadas
posteriormente:

• Início do processo: quando analisamos os meios de cultura (matéria-prima ou insumos) e seus


suplementos (mosto), o microrganismo selecionado, a presença ou a ausência de oxigênio estéril,
o material da dorna ou do tanque fermentador, a temperatura e o pH ideais.

• Durante o processo: quando o mosto se transforma em vinho (mosto modificado) a partir de reações
metabólicas que se realizam nas células dos microrganismos para que sobrevivam.

• Depois do processo: também chamado downstreaming. Ocorre quando serão retiradas substâncias,
restos celulares e ocorrerá a separação e a purificação do produto.

Lembrete

A fermentação é um processo de obtenção de energia que ocorre sem


a presença de gás oxigênio, portanto, trata-se de uma via de produção
de energia anaeróbia. Nesse processo, o aceptor final de elétrons é uma
molécula orgânica. Essa via é muito utilizada por fungos, bactérias e células
musculares esqueléticas de nosso corpo que estão em contração vigorosa.

2.1 Início do processo

2.1.1 Meios de culturas e seus suplementos (mosto), temperatura e pH

O meio de cultura escolhido deve levar em consideração o preço dessas matérias-primas, além de
como e por quanto tempo será realizada a armazenagem. Também se deve pensar na facilidade da
separação e no tratamento de efluentes.

Os meios de cultura podem ser naturais e artificiais ou sintéticos. Entre os naturais podemos
citar: melaço, farinhas, caldo de cana e água de maceração de milho, mas tenhamos em mente que
a composição química dessas substâncias será desconhecida e, possivelmente, variável, pois depende
de solo, safra, clima etc. Os meios de cultura sintéticos são aqueles vendidos comercialmente e que
apresentam composição fixa e definida, como extrato de levedura, extrato de carne e peptona. Deve-se
lembrar que a composição do meio reflete no pH e na formação de espuma, características que podem
complicar a condução da fermentação.

A temperatura varia conforme o organismo utilizado: leveduras mesófilas geralmente se mantêm


entre 25 °C e 35 °C, a maioria das linhagens celulares humanas, de mamíferos e de bactérias são
mantidas entre 36 °C e 37 °C, enquanto as células de insetos são cultivadas a 27 °C.

O pH do meio varia com o organismo e deve ser tamponado. Se forem usadas células de mamíferos,
estas geralmente são tamponadas para ficarem semelhantes ao sangue, com o sistema bicarbonato-CO2.
34
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

2.1.2 Microrganismo selecionado – microrganismos de importância para a indústria


farmacêutica

A fermentação é empregada para a obtenção de alimentos, bebidas e medicamentos, vitaminas


etc. Lactobacillus, Saccharomyces cerevisiae, por exemplo, são responsáveis, por si só, pela produção
de iogurte, bebidas, pães, entre outros produtos. Com o uso de técnicas de biologia molecular, várias
proteínas podem ser clonadas em diversos veículos de clonagem e expressas pelos hospedeiros, também
chamados sistema celular de expressão, que podem ser: procariotos (Escherichia coli e Bacillus subtilis),
leveduras (Saccharomyces cerevisiae e Pichia pastoris), fungos (Aspergillus e Trichoderma), células de
mamíferos CHO e células de insetos (Autographa californica).

2.1.3 Presença ou ausência de oxigênio estéril (ar comprimido)

Na indústria, o conceito de fermentação é diferente do conceito bioquímico em si, pois o processo


fermentativo pode ser classificado quanto à presença ou não de oxigênio em:

• Anaeróbicos: sem utilização de oxigênio. Exemplo: fermentação alcoólica.

• Aeróbicos: necessitam de oxigênio. Exemplo: fermentação acética.

• Sem aeração forçada: não necessitam de anaerobiose estrita, como a produção de etanol por
Saccharomyces cerevisiae.

• Com aeração forçada: o ar deve ser estéril, sem umidade, sem óleo etc.

Para inserir ar estéril dentro dos fermentadores, deve-se retirar esporos, fungos, bactérias e vírus
superiores a 0,01 µm de tamanho, que podem contaminar o produto. Para isso, usam-se filtros especiais
que retêm 99,9999% dos contaminantes.

Antes de passar pelos filtros, a esterilização de ar começa com calor ou por radiações, pois
produtos químicos podem contaminar o ar. O ar é enviado por um compressor, o qual passa por um
filtro industrial que utiliza calor (cerca de 218 °C, por pelo menos em 24 segundos), por radiações,
principalmente ultravioleta (raios gama não são usados, pois os custos de investimento inviabilizam o
uso) ou por energia sônica, que são raios catódicos de alta energia, podendo depois desse tratamento
passar por membranas que retêm 99,99% das bactérias (uma vez que algumas bactérias e esporos são
resistentes ao calor seco ou outra modalidade de esterilização escolhida).

2.1.4 Método de esterilização da dorna

O fluxo de vapor d’água é liberado na linha, que funciona como canos, os quais levam o meio
de cultura ao biorreator, geralmente em aço inoxidável. O vapor (agente esterilizante) segue para o
biorreator e o mosto, se for em grande quantidade, ou autoclave, se for em pequena quantidade. Após
esfriar, coloca-se o inóculo.

35
Unidade I

Na esterilização em batelada ou descontínuo (uma só operação ou “tudo junto”), o tempo de


esterilização é maior em comparação à esterilização contínua (meio e equipamentos esterilizados
separadamente). A vantagem da esterilização em batelada é que evita contaminações nas diferentes
etapas, mas há prejuízo na composição do meio de cultura, pois os nutrientes podem se degradar em
altas temperaturas por longos períodos.

A esterilização contínua por injeção direta de vapor ou aquecimento indireto com vapor tem como
vantagem a preservação da integridade dos constituintes do meio, em que os ciclos de esterilização são
mais curtos; usa-se menos energia elétrica e reduz-se a perda de nutrientes.

2.1.5 Agitadores

Os agitadores, geralmente produzidos em material inoxidável e acoplados ao tanque, não serão


usados apenas para misturar as substâncias com as células, mas apresentam outras finalidades, como
proporcionar maior fluxo de ar e dissipar gases e calor. Entre os agitadores usados na indústria há vários
tipos, como hélice, turbina, âncora, serra e roda dentada – cada um priorizando um tipo de movimento
ou fluxo.

Os tipos de fluxos adotados podem ser os seguintes:

• Fluxo tangencial: atua na direção da tangente e gera fluxo circular em torno do eixo que impulsiona
o meio de cultura líquido para a parede, formando vórtex de superfície. Apresenta alto consumo
de potência e elevado investimento inicial. Tem como principais funções homogeneizar resinas,
misturar fluidos viscosos e dissolver materiais sólidos. Não mistura o líquido longitudinalmente.

• Fluxo radial: apresenta fluxos perpendiculares ao eixo do agitador e às paredes do fermentador,


impulsionando as partículas contra a parede. Com alto consumo de potência, é usado para
dispersão de gases, transferência de massa e dissolução de materiais sólidos. Tem como exemplos
turbina, pás, âncora e grade.

• Fluxo axial: fornece fluxo paralelo ao eixo do agitador e impulsiona as partículas contra o fundo
do tanque. Com baixo consumo de potência, é usado para misturar produtos líquidos, deixar
sólidos em suspensão e transferência de calor. Como exemplos, destacam-se hélice e turbina de
pás inclinadas.

Axial Radial Tangencial

Figura 10 – Fluxo dos diferentes tipos de agitadores

Adaptada de: Joaquim Jr. et al. (2012, p. 28).

36
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Hélice propeler (naval) Hélice turbina (rushton) Hélice caules

Hélice pbt Hélice pbtd Hélice retrátil


(palhetas inclinadas)

Figura 11 – Exemplos de agitadores ou impelidores

Fonte: Joaquim Jr. et al. (2012, p. 45).

Observação
Há três tipos de fermentação: alcoólica, lática e acética. A fermentação
alcoólica, comumente utilizada na produção de cervejas e vinhos, recebe
essa denominação devido à produção de etanol + CO2 em seu produto,
possibilitada inicialmente pela descarboxilação do ácido pirúvico; é
realizada principalmente pela levedura Saccharomyces cerevisiae.
A fermentação lática é realizada de maneira exclusiva por bactérias,
especificamente por lactobacilos, e ocorre quando a glicólise tem como
principal mediador a glicose ou a galactose, obtida a partir da quebra de
uma molécula de lactose (açúcar presente no leite). Na glicólise com os
derivados da lactose, temos a formação de ácido pirúvico, ATP e NADH2, em
vez de NADH. Usa-se esse tipo fermentativo na produção de leites e iogurtes.
A fermentação acética caracteriza-se pelo ácido acético (principal
composto do vinagre) como seu componente final e ocorre quando
o etanol entra em contato com espécies específicas de bactérias
(Pseudomonadaceae, Acetobacter ou Gluconobacter), transformando-o
em ácido acético por oxidação.
Esses processos biológicos para obtenção de energia são comumente
observados no estudo bioquímico para a compreensão do funcionamento
de diversos organismos e seu papel no meio ambiente, bem como para nos
auxiliar no dia a dia nas atividades industriais. Assim, podemos concluir que
a ciência está sempre mais perto do que imaginamos!
37
Unidade I

2.2 Durante o processo

A fermentação pode ocorrer mediante a entrada do meio de cultura na dorna. O processo de


fermentação pode ser classificado em:

• descontínuo ou em batelada;

• descontínuo alimentado;

• semicontínuo;

• contínuo.

O método mais empregado é o descontínuo ou em batelada, em que o inóculo (microrganismo


inicial) é colocado na fase log junto à dorna já completamente cheia de meio de cultura e, depois de
certo tempo, o processo é finalizado com a retirada do produto. Classificamos o processo como fechado,
ou seja, nada é adicionado durante a fermentação, o que faz que o volume seja constante, diminuindo
muito a chance de contaminação.

Na fermentação descontínua alimentada, ocorre a alimentação do meio na dorna de forma


intermitente até chegar ao volume final destinado ao processo, o que aumenta a massa celular e evita
o fenômeno de repressão catabólica, em que alguns subprodutos podem inibir enzimas importantes,
dificultando o crescimento celular.

A fermentação semicontínua é mais lenta. O meio e o inóculo são colocados (como na fermentação
descontínua ou em batelada), retira-se uma parte (geralmente a metade do mosto fermentado, chamado
agora de vinho), que é colocada em outra dorna limpa, e completa-se o volume com meio. Assim, esse
processo se torna descontinuo do tipo em batelada.

A fermentação continua inicia-se como descontínua e, após certo tempo, começa a ser retirado o
vinho e ser colocado mosto ou meio de cultura na mesma vazão, geralmente por transbordamento –
por isso é chamado processo aberto. Nesse procedimento, ficou demonstrada a diminuição do uso de
funcionários (mão de obra), tempos mortos (no que se refere a esvaziamento, limpeza e enchimento
de dorna); contudo, a desvantagem é o aumento da possibilidade de contaminações e mutações das
cepas de microrganismos usados.

2.3 Final do processo

Uma vez terminada a fermentação, os componentes encontrados no vinho (mosto modificado)


devem ser separados e alguns subprodutos, por exemplo, restos celulares, células vivas e substâncias
do meio de cultura, como extrato de carne, extrato de levedura, glicose, ácidos graxos, aminoácidos e
proteínas, podem ou não ser aproveitados. O produto esperado, por sua vez, será isolado e purificado.

38
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Em primeiro lugar, devemos retirar as células, em geral, por um processo unitário chamado
centrifugação, por meio de centrífugas industriais. O líquido é separado, passa por tratamentos com
diversos solventes e até colunas com resinas de troca iônica. Verificada a pureza do produto (geralmente
por HPLC-cromatografia líquida de alta performance), haverá um encaminhamento a depender de
sua finalidade, podendo ser desidratado e comprimido – como o que ocorre com os produtos das
fermentações de antibióticos.

A seguir, veremos as fermentações com grande importância nas áreas alimentícia e econômica.

3 EXEMPLOS DE PROCESSOS FERMENTATIVOS

3.1 Fermentação alcoólica – cana-de-açúcar

No processo de fermentação alcóolica da cana-de-açúcar, esta é colhida na plantação, lavada e


moída. O bagaço é queimado e gera energia, e o caldo de cana (garapa) vai para a dorna, onde pode ou
não ser diluído. O inóculo (levedura Saccharomyces cerevisiae em fase log) é acrescentado ao mosto,
sem a necessidade de injeção de ar. Depois de certo tempo, o mosto se transforma em vinho de cana,
pois as leveduras se “alimentam” de alguns dos componentes e secretam os produtos da fermentação,
entre eles o etanol. Para purificar esse produto, deve-se separar as células (que poderão se tornar ração
para gado). O líquido, por sua vez, será submetido à destilação, que gera álcool hidratado ou anidro.
O processo de produção do etanol pode ser visualizado na figura a seguir.

Bagaço Moagem

Outras utilizações Queima Filtração

Decantação

Produção de açúcar
Diluição do caldo mascavo e/ou
10% a 20% rapadura

Fermentação

Vinho

Cachaça Destilação Vinhoto

Padronizadora Comercialização Ração Adubo


Engarrafadora
Envelhecedora
Distribuição

Figura 12 – Fluxograma da produção de etanol

39
Unidade I

Caso o etanol proveniente da garapa seja usado como bebida alcoólica, é chamado cachaça ou
pinga, sendo caracterizado como aguardente de cana-de-açúcar. Os produtores de álcool podem usar a
garapa, cozinhá-la e, após a centrifugação, obter o mel e o açúcar de primeira linha. Em uma segunda
centrifugação, agora do mel, a garapa pode ser novamente cozida e centrifugada, produzindo melaço e
açúcar de segunda linha.

Observação

Aguardente é qualquer bebida obtida a partir da fermentação de


vegetais doces.

3.2 Fermentação alcoólica – cerveja

Com as matérias-primas água, levedura, lúpulo e uma fonte de amido, que pode ser malte (cevada
germinada), trigo ou milho, colocados juntos em uma dorna, chegaremos ao produto final cerveja.

A primeira etapa, chamada maltagem ou malteação, é dividida em molha ou maceração, que dura,
no mínimo, 2 dias; germinação, de, no mínimo, 5 dias; e secagem. A cevada é colhida e molhada para
que ocorra a germinação, transformando-se em malte. Na fase de germinação, as enzimas, como
amilases e proteases, são parcialmente ativadas e digerem açúcares fermentescíveis, como o amido,
em açúcares mais simples, como maltose, e, posteriormente, frutose e glicose. Logo após o malte sofrer
secagem, passa pela moagem – no processo que se chama brassagem – e expõe o interior do grão, onde
está o amido (processo também chamado de sacarificação, em que ocorre a ativação das enzimas do
malte, digerindo todo amido em outros açúcares). Depois, ocorre a torrefação. O malte mais torrado
deixa a cerveja escura e o menos torrado deixa a cerveja mais clara, fato que confere características
aromáticas à cerveja.

Em seguida, inicia-se a etapa de filtração e clarificação, na qual ocorre a separação do líquido (mosto)
e do bagaço do grão – fase em que se usa muita água para lavar os grãos. O mosto filtrado sofrerá o
processo de ebulição junto ao lúpulo. Esse cozimento tem várias funções: esterilizar o líquido, coagular
as proteínas, extrair e solubilizar os alfa-ácidos e os beta-ácidos do lúpulo, e eliminar substâncias
voláteis indesejáveis.

O lúpulo (Humulus lupulus) é uma planta trepadeira encontrada em locais frios da Europa, de cuja
planta se retira a flor que contém lupulina e vários óleos essenciais responsáveis pelo sabor amargo e
pelo aroma, além de proteger a cerveja contra contaminações microbiológicas.

Posteriormente, inicia-se o resfriamento, em que o mosto lupulado é resfriado até aproximadamente


25 °C e colocado na dorna. As leveduras são inoculadas e, em um primeiro momento que dura cerca
de 12 horas, elas absorvem o oxigênio e se multiplicam; e, em um segundo momento que dura cerca de
7 dias, agora com pouco oxigênio, realizam a fermentação, ou seja, os açúcares do mosto são transformados
em etanol e dióxido de carbono. A fermentação para obtenção da cerveja é um processo descontínuo

40
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

com dornas de fermentação fechadas para evitar a perda de CO2 e ter controle de temperatura. Durante
a fermentação, são produzidos outros metabólitos, tais como aldeídos, álcoois superiores e ésteres.

Finalizada a fermentação, a cerveja passará por um processo chamado maturação, no qual, em


temperatura adequada, ocorre a liberação dos componentes voláteis indesejáveis ao aroma e ao sabor.
Após a estabilização ao frio (0 °C - 10 °C), será submetida à clarificação (decantação das leveduras, que
auxilia a remoção de outros compostos turvadores, como polifenóis e proteínas) e ao processo mecânico
de retenção de sólidos, chamado filtração, deixando a cerveja clara e brilhante.

Nesse momento, a cerveja pode ser acondicionada em barris, em garrafas e/ou em latas por
enchimento asséptico com pasteurização ou filtração estéril prévia. O chope não passa por pasteurização,
e a cerveja, sim. Outra diferença é que a cerveja contém conservantes, antioxidantes e estabilizantes,
enquanto o chope não os tem.

As leveduras para a produção de cerveja podem ser de fermentação alta, pois as leveduras
S. cerevisiae são encontradas na parte superior da dorna em temperatura entre 18 °C e 24 °C, resultando
em cervejas do tipo Ale, que passam por uma fermentação mais rápida, de poucos dias ou semanas de
duração, atribuindo a elas a característica de serem mais alcoólicas. Na fermentação baixa, em que as
leveduras ficam no fundo da dorna (S. uvarum) em temperaturas de 9 °C a 13 °C, a fermentação é mais
lenta, resultando em cervejas tipo Lager, mais carbonatadas e mais consumidas no Brasil.

A água tem um importante papel nessa fermentação, pois as cervejas apresentam, em média, de
90% a 95% de água potável e filtrada, com pH em torno de 6,5 a 7. A água deve ser livre de sais, pois
magnésio, sódio, bicarbonatos, cálcio, cloretos e sulfatos influenciam diretamente o gosto da cerveja.
Para cada litro de cerveja produzida, são necessários de 5 a 7 litros de água.

Lembrete

A produção de cerveja se inicia na preparação dos ingredientes e se


estende até a embalagem. O conceito da fabricação da bebida é a conversão
da fonte de amido em mosto (líquido em que se coloca a levedura). As
etapas são as seguintes: maltagem, brassagem, fervura, resfriamento,
fermentação, condicionamento e embalagem.

3.3 Fermentação alcoólica – vinho

Alguns dizem que Noé plantou um vinhedo e produziu o primeiro vinho do mundo, apesar de haver
indícios de que sua origem remonta a 7.000 anos, no Oriente Médio, próximo a Síria, Líbano e Jordânia.
Algumas pinturas e registros egípcios também mostram o vinho em celebrações e rituais datados de
3000 a.C. Do Egito, em 2000 a.C., a viticultura propagou-se para o norte da África, Grécia, Itália, França e
Espanha. A partir de 2500 a.C., os vinhos egípcios já eram exportados para Europa, África Central e Ásia.
Os gregos, por volta de 700 a.C. provavelmente introduziram as primeiras plantações de uvas na França,
chegando logo após na Itália.
41
Unidade I

O vinho é resultante da fermentação por leveduras do mosto, que é o suco de uvas frescas. No Brasil,
pode ser encontrado na Serra Gaúcha (Bento Gonçalves, Garibaldi, Caxias do Sul e outros municípios),
no Nordeste (Vale do Rio São Francisco), em Santa Maria da Boa Vista (PE), e nos estados de Minas
Gerais, Paraná, Santa Catarina e São Paulo (municípios de Jundiaí e São Roque).

A colheita da uva madura se faz manualmente, com muito cuidado, para não romper a casca e
dar início à fermentação, pois as leveduras são encontradas na casca. Logo depois, são retirados os
engaços (cabos), em um processo de nome desengace. Logo após, a uva é esmagada, formando um suco
que, ainda na presença das cascas, além de liberar as leveduras Saccharomyces cerevisiae e S. uvarum,
responsáveis pela fermentação alcoólica, também libera substâncias que se agregam ao mosto, o que
resulta em sabor e cor.

Para a produção de vinhos branco e rosê, a temperatura de fermentação é mais baixa que para
produção de vinhos tintos. O vinho branco é preparado com uvas claras, e o tinto, com uvas mais
escuras, por essa razão possui maior quantidade de polifenóis que o branco. O rosê pode ser produzido
por mistura de vinho tinto com vinho branco ou por uma leve maceração das uvas escuras.

Na verdade, o vinho não passa apenas por um, mas por dois processos (tipos) de fermentação.
A primeira fermentação é chamada tumultuosa, pois libera muito gás carbônico enquanto ocorre a
digestão dos açúcares por vários tipos de fermentação, gerando diversos produtos, como etanal ou
aldeído acético (descarboxilação do ácido pirúvico), ácido acético (constituinte essencial da acidez
volátil), ácido succínico e ácido lático.

Após a separação do bagaço (descuba) pela gravidade, pois fica na parte de baixo do tanque, e
a transferência (trasfega) do vinho para outro tanque, a fermentação tumultuosa ainda persiste por
alguns dias, apesar de diminuir a intensidade pelo fato de a maioria dos açúcares já ter sido consumida,
iniciando a chamada fermentação lenta.

A última fase de obtenção do vinho de uva é a fermentação malolática, em que bactérias láticas
(Oenococcus oeni e Lactobacillus sp) fermentam e transformam o ácido málico em ácido lático,
suavizando a acidez com a liberação de gás carbônico. Os cocos usam o ácido málico em pH de,
aproximadamente, 3,23; e os bacilos, em pH de, aproximadamente, 3,38 para transformação em ácido
lático e gás carbônico.

A maturação ou o envelhecimento do vinho acontece, geralmente, em tanques de aço inoxidável


ou barris de carvalho e podem levar muitos anos. Nessa fase, ocorre a estabilização da cor e do sabor,
a diminuição da acidez, e a adição dos aromas e sabores provenientes da madeira (baunilha, coco,
nozes, frutas vermelhas, entre outros). Finalmente, a pasteurização (com temperatura de cerca de 80 °C)
elimina as bactérias restantes e neutraliza as enzimas indesejáveis, além de auxiliar na precipitação das
proteínas que porventura estiverem no vinho.

42
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

3.4 Fermentação lática – iogurte

O iogurte é o resultado da fermentação do leite pelas bactérias Streptococcus thermophilus e


Lactobacillus bulgaricus. Na primeira fase, chamada pré-aquecimento, o leite é aquecido a uma
temperatura de 50 °C a 60 °C para otimizar homogeneização, consistência, cremosidade, sabor
e digestibilidade do iogurte. A próxima fase será a pasteurização, na qual haverá destruição dos
microrganismos, para que somente os que sejam colocados junto ao leite sejam responsáveis pela
mudança das características dele.

Saiba mais
O iogurte é um produto lácteo obtido através da fermentação lática
do leite por meio da ação de duas bactérias ácido-láticas específicas:
Lactobacillus bulgaricus e Streptococcus thermophilus. As etapas de
fabricação do iogurte são: recepção do leite, mistura, pasteurização,
homogeneização, fermentação, resfriamento e embalagem.
Para saber mais sobre o processo fabricação do iogurte, recomendamos
a leitura do seguinte artigo:
SILVA, A. M. T. da et al. Elaboração de iogurte com propriedades
funcionais utilizando Bifidobacterium lactis e fibra solúvel. Revista Brasileira
de Produtos Agroindustriais, Campina Grande, v. 16, n. 3, p. 291-298, 2014.
Disponível em: https://cutt.ly/3PSU5Iz. Acesso em: 29 dez. 2021.

Para a fermentação ocorrer, deve-se resfriar o leite entre 42 °C e 43 °C, temperatura que será ideal
para a inoculação das bactérias. O início do processo ocorre com S. thermophilus em acidez maior que
20 °D (graus Dornic), chegando até 46 °D, quando o S. thermophilus para de crescer e é dado início ao
crescimento de L. bulgaricus, que produz acetaldeído, responsável pelo aroma do iogurte. Quando a
acidez aumenta, por volta de pH = 4,6, ocorre a precipitação da caseína, mas a fermentação continua
até acidez de 85 °D a 90 °D. Após a coagulação, o iogurte é colocado em embalagens individuais e
acondicionado em câmaras de fermentação (geralmente a 42 °C), onde permanece por 2 a 3 horas até
que a acidez atinja de 90 °D a 95 °D. A consistência e a viscosidade do iogurte estão relacionadas com
o teor de proteínas.

Observação

Grau Dornic (ºD): é a unidade de valor do índice de acidez, quando a


solução de hidróxido de sódio utilizada tem normalidade igual a N/9. 3.3.

Índice de acidez: é o número de mililitros de hidróxido de sódio


necessários para neutralizar o ácido lático presente em 1 mL de amostra.

43
Unidade I

3.5 Fermentação do pão

Para a fermentação do pão, os ingredientes essenciais são farinha de trigo, água, fermento biológico
(Saccharomyces cerevisiae) e sal, enquanto os ingredientes não essenciais são açúcar, gordura, leite,
enzimas e outros. Quando ocorre a mistura dos ingredientes e é formada uma massa, esta deverá
permanecer em repouso para que ocorra a mudança da estrutura do glúten e a fermentação dos
açúcares, cujo produto é o CO2, que infla a massa, ou seja, é responsável pelo crescimento dela.

A fermentação anaeróbica principal resulta em produção de álcool e gás carbônico, responsáveis


pelo sabor e pelo aroma do pão. A fermentação secundária faz com que a massa fique mais maleável
para o boleamento e, depois, de a massa descansar por 5 a 20 minutos, vai para a câmara de fermentação
a uma temperatura mais alta, onde ocorre a fermentação final, por cerca de 40 a 120 minutos, bem
como a destruição das leveduras e a evaporação do álcool. A massa fica mais um período descansando
(descanso final) para finalizar sua textura.

Lembrete

No processo de fabricação do pão ocorrem outras fermentações, como


a lática, a butírica e a acética.

3.6 Fermentação para a produção de vitaminas

As vitaminas são classificadas em lipossolúveis (vitaminas A, D, E e K), que são solúveis em lipídios e
absorvidas quando a bile é liberada no intestino, e hidrossolúveis (vitaminas do complexo B e C), solúveis
em água e liberadas pela urina. Como nosso corpo não produz vitaminas e necessita delas para fazer
reações básicas, se não forem ingeridas na alimentação devem ser suplementadas por intermédio de
fórmulas farmacêuticas. Caso contrário, podem ocorrer doenças carenciais, como anemia, bem como
problemas neurológicos e oculares.

Geralmente, o mosto pode ter água de maceração de milho, sorbitol, glicose, glicerol e amido
de milho, e entre os microrganismos usados em várias fermentações submersas podemos citar
Propionibacterium freudenreichii, Propionibacterium shermanii, Pseudomonas denitrificans, Bacillus
megaterium, Streptomyces olivaceus, Acetobacter suboxidans e Saccharomyces cerevisiae.

Para a produção industrial via fermentação em anaerobiose de vitamina B12, são usados os
microrganismos Propionobacterium freudereichii, P. shermanii e Pseudomonas denitrificans. Na
fermentação industrial para produção de riboflavina (vitamina B2), usa-se Ashbya gossypii, que
transforma a glicose em D-ribose, e esta pentose em riboflavina.

O betacaroteno tem como precursor a vitamina A e seu inóculo é Blakeslea trispora.

Fusarium sp., Saccharomyces cerevisiae e Candida podem ser usados na produção de ergosterol ou
provitamina D2. O ergosterol é transformado em vitamina D sob ação da luz (raios ultravioletas).
44
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Para produzir vitamina C, utiliza-se Saccharomyces cerevisiae e Zygosaccharomyces bailii em


fermentação submersa. O ácido L-ascórbico (vitamina C) é produzido industrialmente a partir de glicose,
que é reduzida a sorbitol e oxidado a L-sorbose pelo Acetobacter suboxydans, que posteriormente
resulta em um composto chamado ácido 2-ceto-gulônico. Este é oxidado a ácido 2-L-oxogulônico, que
após a remoção dos grupos isopropilidênicos, obtém-se o ácido L-ascórbico. Foi estudada a bactéria
geneticamente modificada de Erwinia herbícola, que pode converter diretamente a D-glicose em ácido
L-oxogulônico, precursor da vitamina C.

A produção industrial de α-tocoferol (vitamina E) tem como microrganismo responsável a alga


verde Euglena gracilis.

A forma de isolamento das vitaminas, em geral, se baseia em separação da biomassa de bactérias ou


fungos por centrifugação ou filtração, enquanto a fase líquida é enviada a cromatografias com vários
solventes diferentes para que sejam cristalizadas.

3.7 Fermentação para a produção de soros e vacinas

A primeira vacina descoberta foi a de varíola, em 1796, por Edward Jenner. Em 1885, Louis Pasteur
descobriu a vacina de raiva; em 1888, Roux e Yersin descobriram a vacina da difteria; em 1898, Dr. Vital
Brazil descobriu a vacina da peste bubônica.

Os soros contêm anticorpos já prontos para o uso, necessários para combater determinada doença ou
intoxicação, e as vacinas contêm antígenos que induzem o sistema imunológico a produzir anticorpos.
Entre os soros, podemos citar os destinados a veneno de animais peçonhentos ou a toxinas de agentes
infecciosos, como os causadores de difteria, botulismo e tétano.

Os soros, geralmente, são de origem equina por hiperimunização de cavalos por cerca de 40 dias.
Na produção de soros antipeçonhentos, é retirada a peçonha (veneno) de animais peçonhentos, como
serpentes, aranhas, escorpiões e taturanas. O veneno é liofilizado (antígeno) e, quando for usado, deve
ser reconstituído com soro fisiológico, diluindo-o e injetando-o no cavalo até que, depois de certo
tempo, o animal fique imune ao veneno, período em que se irá fazer a sangria. Nessa fase, ocorre a
sangria exploratória, com a qual se mede a quantidade de anticorpos, e, quando se chega na quantidade
desejada, é feita a sangria final, com a retirada de cerca de quinze litros de sangue de um cavalo de
500 kg em três etapas, com um intervalo de 48 horas.

Para a fabricação de soros contra difteria, botulismo e tétano, usa-se toxoide (toxina atenuada)
como antígeno, enquanto no soro antirrábico é utilizado vírus rábico inativado como inóculo no
cavalo. A sangria final é feita depois de certo tempo, sendo necessários 15 litros de sangue em um
animal de 500 kg, para purificação e concentração do plasma, que é o soro repleto de anticorpos. Esse
soro é submetido a testes físico-químicos de controle de qualidade, e as hemácias são devolvidas ao
cavalo (plasmaferese).

Como explicado anteriormente, as vacinas possuem diversas origens, entre elas, viral e bacteriana.
Quando é necessário obter vírus para seu isolamento, ocorre replicação em alguma célula, por exemplo,
45
Unidade I

em ovos (embrião de galinha). Já se a vacina é bacteriana, deve crescer em caldo de fermentação para
se obter a bactéria e proceder à fabricação e ao posterior processamento final.

3.8 Fermentação para a produção de antibióticos

Conforme anteriormente explicado, os antibióticos, em sua maioria, têm origem biológica e são
subprodutos do crescimento de microrganismos, ou seja, do metabolismo secundário de fungos e
bactérias com capacidade de impedir o crescimento ou levar à morte outros microrganismos, podendo
ser sintéticos ou naturais.

3.9 Fermentação para a produção de esteroides

As glândulas suprarrenais e as glândulas sexuais produzem os hormônios esteroides que têm como
estrutura principal o núcleo esteroide também chamado de ciclo pentanoperidrofenentreno, obtido a partir
do colesterol. Podem ser classificados em glicocorticoides, por exemplo, a cortisona; mineralocorticoides, por
exemplo, a aldosterona; e hormônios sexuais, por exemplo, a testosterona, a progesterona e o estrógeno –
cada um com função orgânica determinada, fundamental para o bom funcionamento do corpo humano. Por
isso, se houver deficiência de algum deles, algumas doenças surgirão.

Em 1937, Mamoli e Vercellone isolaram a cortisona de uma fermentação com determinadas leveduras;
e, em 1949, Hench percebeu que poderia usar essa substância para aliviar a dor de pacientes com
artrite reumatoide. Já em 1952, Peterson e Murray, usando Rhizopus arrhizus, obtiveram progesterona.
A biotransformação ou fermentação para obtenção de esteroides, como as demais, necessita de mosto,
microrganismos e condições adequadas de temperatura e pH.

O mosto pode conter estigmasterol (encontrado no feijão de soja), que é o substrato que
resulta na progesterona, além do β-sitosterol e do campesterol, intermediários da androstenediona,
androstadienediona ou diosgenina, encontrada no barbasco (Dioscorea mexicana, planta herbácea
encontrada nas Américas e na Europa) e o colesterol, que pode ser obtido a partir da lanolina (cera de
lã), o qual é transformado nos intermediários androstenediona e androstadienediona.

O processo se inicia com o crescimento do microrganismo e, depois, adiciona-se o esteroide à cultura,


que terá sua estrutura modificada por transformações químicas produzidas durante a cultura. Logo
após, remove-se os microrganismos a fim de extrair o esteroide.

As transformações bioquímicas mais importantes são: hidroxilação, epoxidação e desidrogenação,


realizadas geralmente pelos fungos filamentosos Rhizopus arrhizus e Rhizopus nigricans, obtendo‑se
progesterona; Septomyxa affinis, que produz prednisolona e prednisona; e Septomyxa affinis e
Arthrobacter simplex, que produzem hidrocortisona.

A fermentação pode ser direta quando se tem o crescimento do microrganismo em meios sólidos
juntamente com o esteroide como substrato, que é adicionado diretamente ao meio de cultura. Também
pode ocorrer fermentação dupla, na qual primeiramente, há o crescimento microbiano e, depois,
muda-se o meio de cultura utilizado.
46
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Lembrete

Esteroides são hormônios produzidos pelo córtex da glândula suprarrenal


ou pelas gônadas, os quais são responsáveis por diversas funções no
organismo, como controle metabólico ou de características sexuais.

4 MÉTODOS DE EXTRAÇÃO E PURIFICAÇÃO DE DNA E RNA: TÉCNICAS E


APLICAÇÕES

A biologia molecular, antigamente chamada de engenharia genética, analisa, estuda e manipula


DNA, RNA e proteínas. A história se inicia em 1866, com Gregor Mendel, que analisou a herança genética
em ervilhas. Johann Friedrich Miescher, em 1869, descobriu os ácidos nucleicos quando estudava o
núcleo de glóbulos brancos do pus de feridas. Rosalind Franklin, desde 1946, estudava difração dos
raios X de DNA até que, em 1953, James Watson e Francis Crick mostraram para a comunidade científica
a estrutura de dupla hélice do DNA.

Graças ao estudo dos genes no Projeto Genoma, que mapeou o código genético de diversos tipos de
organismos, temos agora a Genômica Funcional, que pode ser classificada em Transcriptoma (estudo do
conjunto de RNAs mensageiros), Proteoma (estudo das proteínas produzidas por parte de um genoma),
Epigenoma (que estuda, por exemplo, o perfil de metilação de indivíduos com quadros sindrômicos sem
variantes genéticas detectadas) e Metaboloma (estudo dos metabólicos: aminoácidos, nucleotídeos,
carboidratos, proteínas etc. de um organismo).

4.1 Métodos de extração e purificação de DNA e RNA

Para se obter DNA retirado das células (procariotas – bactérias; ou eucariotas – sangue, plantas,
fungos, insetos etc.), deve-se lisar (“quebrar”) a membrana plasmática e separar ou precipitar tudo que
não é material genético, como restos celulares, organelas, proteínas e só depois precipitar o material
genético para suspendê-lo em volume pequeno de solução tampão. Para isso, existem muitos protocolos
ou kits comerciais, mas, de maneira geral, usa-se lisozima para clivar a membrana juntamente com uma
grande concentração de sal e detergente SDS (dodecil sulfato de sódio). Após essa ruptura, deve-se
centrifugar a mistura e submeter o sobrenadante ao tratamento com fenol/clorofórmio para extração
das proteínas. O material resultante deve ser precipitado com álcool absoluto e ressuspenso em tampão
e, se não for usado no mesmo momento, deve ser estocado em geladeira.

Vários são os cuidados que se deve ter durante a extração de DNA, por exemplo, utilizar material esterilizado
para diminuir a contaminação, luvas e bancada limpa. Para se saber a pureza e a concentração do DNA,
podemos usar gel de agarose ou análise em espectrofotômetro. Em gel de agarose, compara-se a amostra
com um DNA padrão do bacteriófago Lambda que corre no mesmo gel em concentrações conhecidas.

Podemos avaliar por análise da densidade óptica (DO) a quantidade de DNA presente na amostra,
pois o DNA absorve luz no comprimento de onda de 260 nm, e as proteínas, em 280 nm. Mediante a

47
Unidade I

relação: 1 DO260 = 50 µg de DNA de dupla hélice, a concentração de DNA na amostra pode ser obtida
pelo seguinte cálculo:

• Concentração de DNA = leitura da DO260 × 50 × fator de diluição usado na leitura. Caso se faça a
relação DO260/DO280 e resulte em valores menores que 1,8, significa que há contaminação com
proteínas e a amostra deve ser purificada novamente.

Na extração do RNA, deve-se tomar mais cuidados que na extração do DNA, pois o RNA é muito
instável e pode ser degradado por enzimas chamadas RNAses, encontradas na saliva, na mão etc.

Há kits que usam um método muito rápido de extração, por meio da solução de TRIZOL (solução
pronta produzida na indústria que contém fenol, isotiocianato de guanidina e outros componentes).
Após a mistura das células com TRIZOL, deve-se fazer extração com clorofórmio e álcool isopropílico, e
precipitar com álcool etílico. O precipitado é ressuspenso em solução tampão estéril e pode ser analisado
em espectrofotômetro 260 nm e 280 nm para se conhecer sua concentração e pureza. Preparações
puras de RNA têm uma relação A260/A280 de entre 1,8 e 2,0. Se houver contaminação com proteínas
ou fenol, a relação A260/A280 é menor, devendo ser reprecipitado e purificado novamente.

As aplicações práticas após a extração desses ácidos nucleicos são várias e vão desde o estudo
de identificação de doenças genéticas, o estudo de vírus e bactérias, testes de paternidade até a
modificação de plantas ou animais (OGM-organismos geneticamente modificados) que se adaptam
melhor ao ambiente ou nos causam benefícios variados, como produção de antibióticos ou hormônios.
O sequenciamento do DNA pode ser usado para vários fins, até mesmo para validar matérias-primas e
insumos, bem como para a validação da higienização.

4.2 Técnicas de DNA recombinante, clonagem molecular, construção de vetores


e enzimas de restrição

Após purificação do DNA, deve-se fazer a digestão da amostra e, dependendo do que se deseja
fazer, deve-se analisar o DNA, fazendo um mapa de restrição – que consiste em submetê-lo à digestão
de enzimas de restrição, correr um gel e verificar o tamanho dos fragmentos de DNA, e, a partir desses
fragmentos, construir um mapa com os locais onde determinada enzima faz o “corte”.

Observação

As enzimas de restrição são exemplos de endonucleases, ou seja,


clivam DNA internamente (caso clivassem nas extremidades, se chamariam
exonucleases). Em meados do século XX, cientistas descobriram que algumas
enzimas produzidas por bactérias eram capazes de “cortar” moléculas de
DNA em pontos específicos, na mesma sequência de nucleotídeos. Elas
foram denominadas enzimas de restrição ou endonucleases de restrição.
Acredita-se que é uma forma de proteção das bactérias contra patógenos
que queiram parasitá-las.
48
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

As enzimas de restrição funcionam como uma espécie de “tesoura molecular”: elas identificam
sequências de pares de bases nitrogenadas específicas nas moléculas de DNA e as cortam
nessas regiões. Cada tipo de endonuclease de restrição identifica e corta somente dada série de
nucleotídeos, geralmente composta de quatro ou seis pares de bases. O local onde a molécula
de DNA é clivada pela enzima recebe o nome de sítio de restrição, cujos exemplos podem ser
observados no quadro a seguir.

Quadro 2 – Sítio de clivagem de algumas enzimas de restrição

Tipo de extremidade gerada


Enzima Bactéria cuja enzima é isolada Sequência reconhecida após clivagem

5′…G↓GATCC …3' Extremidades coesivas


BamHI Bacillus amyloliquefaciens (extensão 5’ fosfato)
3′…CCTAG↑G…5'

5′…G↓ AATTC …3' Extremidades coesivas


EcoRI Escherichia coli (extensão 5’ fosfato)
3′…CTTAA ↑G…5'

5′…GG↓CC …3'
HaeIII Haemophilus aegyptius Extremidades cegas
3′…CC↑GG…5'

5′… A ↓ AGCTT …3' Extremidades coesivas


HindIII Haemophilus influenzae (extensão 5’ fosfato)
3′… TTCGA ↑ A …5'

5′…GC↓GGCCGC …3' Extremidades coesivas


NotI Nocardia otitidiscaviarum (extensão 5’ fosfato)
3′…CGCCGG↑CG…5'

5′…CTGCA ↓G…3' Extremidades coesivas


PstI Providencia stuartii (extensão 3’ hidroxila)
3′…G↑ ACGTC …5'

5′…C↓ TCGAG…3' Extremidades coesivas


XhoI Xanthomonas holcicola (extensão 5’ fosfato)
3′…GAGCT↑C …5'

É muito provável que as enzimas de restrição tenham sido desenvolvidas pelas bactérias ao longo de
seu processo evolutivo, com uma forma de proteção contra os ataques de bacteriófagos. Assim, quando
uma molécula de DNA do vírus é introduzida na bactéria, rapidamente é clivada nos sítios de restrição,
deixando de funcionar. Isso não acontece com as moléculas de DNA da própria bactéria, pois existem
enzimas protetoras que evitam a ação das endonucleases de restrição no genoma bacteriano.

Os fragmentos de DNA obtidos a partir do corte da molécula com uma enzima de restrição podem ser
isolados uns dos outros por meio de uma técnica chamada eletroforese. Após a corrida de eletroforese,
os fragmentos das moléculas de DNA são analisados, permitindo, por exemplo, o reconhecimento preciso
de uma pessoa. A análise do padrão eletroforético de fragmentos de DNA é, hoje, largamente utilizada
em investigações policiais e em processos judiciais, como os de comprovação de paternidade.

49
Unidade I

Para se obter determinada proteína, em grandes quantidades por fermentação, deve-se fazer
uma clonagem molecular, de preferência por meio da técnica do DNA recombinante. Para isso,
necessitamos de um enxerto ou DNA-alvo, um veículo de clonagem e um hospedeiro. Em primeiro
lugar, devemos escolher o chamado enxerto do DNA do organismo doador, que é o gene que tem a
informação da proteína. Esse fragmento que contém o gene de estudo deve ser isolado em gel de
agarose e purificado.

Classes de risco

A OMS define a classe de risco mediante o microrganismo a ser estudado em classe de


risco (classes 1, 2, 3 e 4) da seguinte maneira:

• Classe de risco 1: organismos que oferecem baixo risco individual e baixo risco para
a comunidade, e que não causam doença ao homem ou aos animais.

• Classe de risco 2: organismos que oferecem risco individual moderado e risco


limitado para a comunidade, ou seja, não oferecem risco a quem os manipula.
Podem ser provenientes de pessoas com doenças, como o Staphylococcus aureus e
o Vibrio spp.

• Classe de risco 3: organismos que oferecem elevado risco individual e risco limitado
para a comunidade. Apresentam risco para quem os manipula e para pessoas ou
animais. Causam sérias doenças, como Bacillus anthracis, Mycobacterium spp.,
Salmonella paratyphi e Shigella typhi.

• Classe de risco 4: organismos que oferecem elevado risco individual e elevado risco
para a comunidade, por exemplo, o vírus ebola e o vírus da varíola.

O veículo pode ser um fago, cosmídeo ou plasmídeo, que deve ter seu DNA purificado e clivado
com a mesma enzima com a qual se obteve o gene enxerto. Logo após, são ligados em enzima DNA
ligase, e o conjunto (vetor de clonagem + enxerto), colocado em um hospedeiro que pode ser bactéria,
fungo, planta ou animal, em um processo chamado transformação. Os organismos que têm o material
construído são identificados e selecionados. O próximo passo é analisar a proteína que é produzida e
purificá-la para que seja usada, conforme a figura a seguir.

50
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

Bactéria 1 Um vetor, como um 2 O DNA é clivado em DNA contendo o gene


plasmídeo, é isolado fragmentos por uma enzima de interesse

3 O gene é inserido
no plasmídeo
Cromossomo Plasmídeo
bacteriano
DNA recombinante Gene de
(plasmídeo) interesse

4 O plasmídeo é incorporado por uma


célula, como a de uma bactéria

Bactéria
transformada

5 As células com o gene de


interesse são clonadas
ou
O objetivo pode ser a O objetivo pode ser a obtenção do
produção de cópias do gene produto proteico do gene
Plasmídeo
RNA 6B As células
Produto proteico produzem
a proteína

6A As cópias do gene são purificadas 7 As proteínas desejadas


são purificadas

Um gene para resistência a uma Um gene altera bactérias, de modo que elas Amilase, celulase e outras
peste é inserido em plantas possam fazer a limpeza de resíduos tóxicos enzimas preparam os tecidos O hormônio do crescimento humano
para a fabricação de roupas é utilizado no tratamento de casos de
deficiência do crescimento

Figura 13 – Visão geral da tecnologia do DNA recombinante. Etapas envolvidas na construção de uma
célula recombinante e alguns exemplos de aplicação

Fonte: Tortora, Funke e Case (2012, p. 248).

Os plasmídeos são pequenas moléculas de DNA com pelo menos um gene que confere resistência
a um antibiótico. Essas moléculas são inseridas em bactérias e podem receber um enxerto de DNA
pequeno, o fago ou bacteriófago λ, funcionando como um vírus da E. coli e aceitando enxertos maiores,
de até 15 kb. Já os cosmídeos, uma mistura de plasmídeo e fago, aceitam sequências para clonagens
maiores, entre 35 kb a 40 kb, como mostra a figura a seguir.

51
Unidade I

DNA plasmideal DNA de interesse (inserto)


Quebra mediada por Quebra mediada por
enzima de restrição enzima de restrição
Tratamento com
fosfatase alcalina
HO OH P OH
HO OH OH P

DNA ligase de T4

O
-O Ligação fosfodiéster
P
O O

OH
OH
Incisão

O
O-
P
OH O O
HO Ligação fosfodiéster
Incisão

Transformação

Célula hospedeira

Figura 14 – Esquema de clonagem de um fragmento de DNA de interesse em um plasmídeo. Note


a necessidade de digestão com enzima de restrição no vetor e no enxerto. Em um mesmo tubo é
colocado tampão, nucleotídeos e DNA ligase, que ligará o conjunto

Fonte: Glick, Pasternack e Patten (2010, p. 61).

Atualmente podemos dizer que as principais técnicas usadas nos estudos de biologia molecular são
Reação em Cadeia da Polimerase (PCR), utilizada para ampliar cópias do DNA e aprimorar a análise de
suas mutações, clonagem e manipulação de genes; eletroforese em gel de agarose ou acrilamida, usada
para separar proteínas, DNA e RNA, através da diferença entre suas massas; Southern Blot, que usa a
transferência da corrida do gel para um papel específico que permite a hibridização do DNA com uma
pequena sequência de DNA (“sonda”) marcada com material radioativo ou fluorescência, demonstrando
ser homólogo; Northern Blot, que é semelhante à Southern Blot, mas utiliza o material RNA; e Western
Blot, semelhante à Southern Blot, mas é usada para analisar proteínas.
52
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

4.3 Sequenciamento de DNA

Em 2003, o genoma humano foi totalmente sequenciado com a ajuda de muitos pesquisadores. Ao
conhecer a sequência dos nucleotídeos (que contêm as bases nitrogenadas A, T, C e G) do DNA, podemos saber
qual seria a sequência do RNA mensageiro e, por consequência, da proteína. Conhecendo a sequência correta,
podemos entender como as mutações (sequências incorretas) podem, por exemplo, levar a doenças genéticas.
Essa técnica é chamada cDNA (complementary DNA), pois é a sequência que complementa a do molde de RNA
onde o DNA é sintetizado a partir de um molde de RNAm maduro (do qual já houve a retirada dos íntrons)
extraído pelas técnicas de extração de RNA discutidas anteriormente, no qual as enzimas, transcriptase reversa
e DNA polimerase são usadas. Esse procedimento é empregado para criar bibliotecas de cDNA, nas quais as
sequências dos RNAsm de determinada célula ou organismos são armazenadas para estudos futuros.

Lembrete

Íntrons e éxons são sequências de nucleotídeos de um gene, porém os


íntrons são removidos do RNAm pelo processo chamado splicing, sobrando
apenas os éxons no RNAm maduro, que serão efetivamente expressos.
Procariotos não têm maturação do RNA, somente os eucariotos.É

DNA de Éxon Íntron Éxon Íntron Éxon Núcleo


um gene
eucariótico
1 Um gene composto de éxons
e íntrons é transcrito em RNA
pela RNA-polimerase
RNA

2 Enzimas processadoras no núcleo


renovam o RNA derivado dos
íntrons e unem o RNA derivado dos
éxons para formar o RNAm

RNAm

3 Isolamento de RNAm
da célula e adição de
transcriptase reversa
4 A primeira
fita de DNA é
sintetizada
Fita de DNA sendo 5 O RNAm é digerido pela
sintetizada transcriptase reversa

Adição de DNA-polimerase
para sintetizar a segunda
fita de DNA
cDNA: DNA
do gene
sem íntrons Citoplasma

Figura 15 – Síntese do cDNA. A figura ilustra as etapas envolvidas na síntese de cDNA a partir de um gene eucarioto

Fonte: Tortora, Funke e Case (2012, p. 255).

53
Unidade I

Uma vez com o fragmento de DNA ou gene separado, podemos descobrir sua sequência; analisando-a
podemos descobrir sequências diferentes que ocasionam doenças genéticas. Há várias metodologias
para sequenciamento, desde a primeira, chamada de sequenciamento capilar por Sanger, até os novos
métodos ou “nova geração” de sequenciamento.

Para a análise de pequenas regiões genômicas ou microssatélites, são empregadas as seguintes


técnicas:

• SNP (em inglês, single nucleotide polymorphism): variações pontuais encontradas ao longo
do DNA, isto é, são diferenças em um único nucleotídeo em uma população.

• SNV (em inglês, single nucleotide variant): substituição de um único nucleotídeo por outro,
em um único indivíduo da população.

• InDel (em inglês, insertion-deletion): variações de comprimento por inserção ou deleção de


um ou mais nucleotídeos e pequenas duplicações de um único paciente.

Para esses métodos, utiliza-se o sequenciador capilar ou método de Sanger, que, apesar de caro, é a
melhor opção.

Apesar de SNP e SNV estarem relacionadas com a mudança em um só nucleotídeo, as SNPs estão
diretamente relacionadas com a predisposição a certas doenças genéticas, como câncer, e são observadas
em uma frequência maior na população, enquanto as SNVs, não.

Observação

A série de TV CSI (Criminal Scientific Investigation) apresenta um


grupo de policiais que desvendam crimes a partir de várias técnicas
laboratoriais de biologia molecular, extraindo DNA de fios de cabelo,
gotas de sangue ou sêmen em roupas. Com a técnica de fenotipagem
por DNA forense (FDP; em inglês, forensic DNA phenotyping),
utilizam-se análises dos SNPs para desvendar características do dono da
amostra, como a cor dos olhos, da pele e do cabelo, ou, ainda, informações
sobre sua ancestralidade.

Para sequenciar grande número de regiões ou fragmentos de mais de um paciente de uma vez
só em um mesmo experimento, adota-se a técnica NGS (next-generation sequencing), que possibilita
construir “painéis” (estudo de mais de um gene) oncológicos, de doenças raras, de distrofinopatias, de
epilepsias etc.

54
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

No sequenciamento capilar (método de Sanger), também chamado método de terminação de cadeia


enzimática, são colocados no mesmo tubo de reação nucleotídeos que não permitem a continuidade da
polimerização ou o crescimento da cadeia de DNA.

O procedimento se inicia com o DNA-alvo que será sequenciado submetido a aquecimento para que
ocorra a desnaturação (separação das fitas do DNA molde) e, depois, resfriamento. No mesmo tubo de
reação, são colocados primers ou iniciadores (chamada etapa de PCR) que se ligam a uma pequena parte
da fita do alvo, que agora está simples, e não dupla, enzima e nucleotídeos. Esse tubo de reação tem
sua temperatura elevada para que a enzima DNA polimerase sintetize um novo DNA começando pelo
primer com os quatro nucleotídeos do DNA (dATP, dTTP, dCTP e dGTP) até que um dideoxinucleotídeo
(ddATP, ddTTP, ddCTP e ddGTP marcados com fluoróforos) entre na fita. Quando isso ocorre, nenhum
outro nucleotídeo se unirá, pois não possuem um grupo hidroxila no carbono 3 e a fita para de crescer,
gerando fragmentos de diferentes comprimentos.

P P P OCH2 O Base

H H
H H

H H

Dideoxinucleotídeo (ddNTP)

P P P OCH2 O Base

H H
H H

OH H
Deoxinucleotídeo (dNTP)

Figura 16 – Estrutura de dNTP e ddNTP. Note que o ddNTP não possui um


grupo hidroxila no terceiro carbono da desoxirribose

Fonte: Rye et al. (2016).

O aparelho de sequenciamento é programado para fazer vários ciclos de “aquece/esfria” para que no
aquecimento as fitas se separem e outro primer se ligue a outra fita e comece a crescer, amplificando
várias vezes a quantidade de DNA. Após a eletroforese, observamos diferentes bandas de DNA marcadas
com cores quando iluminadas com laser, permitindo uma leitura do menor fragmento para o maior,
conforme mostrado na figura a seguir.

55
Unidade I

Extensão do primer com ddNTPs Eletroforese e leitura

Sequência-alvo
3’ TACGATGTCAACGGTT... 5’
5’ ATGCTACA 3’ Primer
ATGCTACAG —
ATGCTACAGT —
Produtos de amplificação

Produtos de amplificação
ATGCTACAGTT —
ATGCTACAGTTG —
ATGCTACAGTTGC —
ATGCTACAGTTGCC —
ATGCTACAGTTGCCA —
ATGCTACAGTTGCCAA —

Figura 17 – Esquema de sequenciamento de primeira geração desenvolvido por Fred Sanger (1977), em que cada um
dos dideoxinucleotídeos (A, T, C, G) é marcado com uma fluorescência diferente, cuja leitura é feita pelas cores

Fonte: Garrido-Cardenas et al. (2017, p. 4).

Há plataformas de sequenciamento que foram se aprimorando para segunda, terceira e quarta


gerações de sequenciadores. Os sequenciamentos genéticos de segunda geração chamada de
“técnica de Shotgun” podem decifrar por reações de Sanger, grande número de pequenos fragmentos
resultantes de digestão ou sonicação de um fragmento maior de DNA e os resultados são montados
como um quebra-cabeça.

Observação

Usando a tecnologia de Shotgun, Craig Venter fundou: a Celera


Genomics, o The Institute for Genomic Research e o J. Craig Venter Institute,
que desvendou e sequenciou o genoma humano em 2001.

Podem ser usadas várias plataformas ou equipamentos de diversas indústrias de biotecnologia.


O sequenciamento de nova geração (NGS) e de segunda geração pulam a etapa de PCR. Como exemplos
dessas plataformas, podemos citar 454-Roche, Illumina Genome Analyser (SOLEXA) e ABI-SOLID
(sequencing by oligonuclotide ligation and detection), que podem sequenciar DNA em algumas horas ou
vários dias, dependendo da capacidade dos equipamentos, criando painéis completos (sequenciamento
de alguns genes) em exomas, transcriptomas e metilomas.

• A técnica de pirosequenciamento, como na plataforma 454-Roche, permite que, a cada nucleotídeo


colocado, seja emitida fluorescência (que gera um pico referente ao nucleotídeo adicionado em
tempo real e, com isso, um rápido sequenciamento).
56
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

• No sequenciamento baseado em cores (Illumina Genome Analyser), no qual os fragmentos são


amplificados e se ligam a primers que estão presos em uma matriz, crescendo e se dobrando para
alcançar o outro primer, formam uma ponte e, após a polimerização, têm sua sequência analisada
pela emissão de cores.

• No sistema ABI-SOLID, o DNA fragmentado é ligado a esferas e é combinado com primers


universais de sequenciamento, enzima ligase e a sondas marcadas. O sequenciamento ocorre
por hibridização de sondas fluorescentes com o alvo. O sequenciamento genético de transição
entre a segunda e a terceira gerações são mais sofisticados e tem as plataformas Ion Torrent
(Thermo Fisher Scientific) e PacBio-RS como exemplos.

• O sequenciamento Ion Torrent ou sequenciamento com semicondutor é semelhante ao SOLid,


mas o fragmento de DNA é ligado a uma matriz (beads), sendo oferecido um nucleotídeo por
vez a esse local, que será lavado. Se houver a ligação, o pH é mudado e um sinal na tela aparece
(Thermo Fisher Scientific).

• PacBio, da Pacific Biosciences, conhecida pela sigla SMRT (single-molecule real time), tem DNA
polimerase ligada a nanotubos, enquanto o DNA se liga a enzimas. Quando ocorre a adição de
nucleotídeos fosfoligados com fluorescência, ocorre a liberação de fluorescência.

A 3ª geração usa sequenciadores portáteis, chamada tecnologia de MinION, da Oxford Nanopore


(sequenciador em forma de uma espécie de pendrive), que possui um chip chamado flow cell (membranas
com vários poros) por onde o DNA entra e são emitidas variações na corrente elétrica da flow cell que
identificam o nucleotídeo que está passando.

A partir do ano de 2016, a Fiocruz iniciou o Projeto ZIBRA, que pretende sequenciar o genoma do
zika vírus, obtendo amostras de pessoas infectadas no Brasil para serem sequenciadas com o MinION,
sendo expandidas para análises de arboviroses emergentes, como o vírus da chikungunya e o vírus da
febre amarela.

Em 2020, fomos surpreendidos com a pandemia de Sars-CoV-2, também conhecido como novo
coronavírus, um vírus de RNA que interferiu na vida de todas as pessoas do mundo. O genoma desse
vírus, desde os primeiros casos confirmados no Brasil, foi sequenciado e identificado no início da
pandemia por meio da tecnologia Nanopore com o software MinKNOW, que permite a aquisição de
dados e sua análise em tempo real, viabilizando o gerenciamento de protocolos de qualidade. Com esse
conhecimento, as informações foram cruzadas com bancos de dados internacionais e os estudos de
origem e disseminação do vírus foram iniciados em nosso país.

4.4 Aplicações

Identificação de pessoas por perfil genético de regiões denominadas variable number of tandem
repeats (VNTRs) e de regiões compostas chamadas short tandem repeats (STRs) têm relação com os
polimorfismos, que são variações nas sequências de bases que compõem o gene. Caso haja troca de

57
Unidade I

uma única base, será chamada single nucleotide polymorphism (SNP); se houver repetição em série de
número variado de bases, será chamado VNTR.

Os STR são repetições curtas em sequência, chamadas também marcadores microssatélite (MMS),
que auxiliam na identificação genética individual humana, como usados em medicina forense na análise
de restos cadavéricos e em testes de paternidade.

Para uso cotidiano, há vários kits comerciais, como o Minifile (Applied Biosystems), formado por nove
marcadores de STRs que, após a ligação no DNA, são amplificados e separados em um sequenciador para
a análise dos perfis de STRs em um software, usando-se para isso o estudo de MMS do DNA do pai, da
mãe e do filho.

Outra aplicação, entre várias, está relacionada com o estudo genético de pacientes com tumores e sua
predisposição. O câncer é uma neoplasia maligna, de origem genética, que acomete aproximadamente
uma em cada quatro pessoas em todo o mundo. Pode ter origem hereditária (5% a 10% dos casos)
ou esporádica (90% a 95% dos casos), e seu desenvolvimento está ligado a SNPs. Essas mutações
SNPs podem ser do tipo missense e nonsense, e, caso a proteína produzida seja mutada, sua função
também pode ser mudada, até mesmo levando ao aumento ou à diminuição da expressão de proteínas
que controlam a proliferação e o reparo do DNA; ou pode ser uma mutação silenciosa, quando não
interfere na produção de proteínas. Contudo, não são só as mutações que irão iniciar o câncer, mas são
necessários fatores externos, como o tabagismo, que irão colaborar para seu desenvolvimento.

Há várias técnicas usadas para esse tipo de estudo, entre elas, sequenciamento genético baseado na
metodologia de NGS (focado em SNPs e InDels em diferentes painéis poligênicos), FISH (fluorescence
in situ hybridization), que procura em biópsias de tecidos algum gene relacionado com câncer, MLPA
(multiplex ligation-dependent probe amplification), que detecta microdeleções/duplicações nos genes
relacionados com determinados tipos de câncer, microarrays ou chips de DNA, que consistem em um
suporte com vários fragmentos de DNA presentes em diferentes tipos de câncer, servem como sondas e,
quando colocados com o DNA da amostra, ligam-se a seus semelhantes.

Saiba mais

Para complementar as técnicas citadas, os alunos poderão assistir aos


seguintes vídeos:

FLUORESCENT in situ hybridization (FISH) assay. 2018. 1 vídeo (4 min).


Publicado pelo canal Creative Bioarray. Disponível em: https://cutt.ly/JIr98kt.
Acesso em: 11 jan. 2022.

HOW does MLPA work? 2017. 1 vídeo (7 min). Publicado pelo canal MRC
Holland. Disponível em: https://cutt.ly/vPHXfjq. Acesso em: 11 jan. 2022.

58
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

NEXT generation sequencing (NGS): an introduction. 2015. 1 vídeo


(9 min). Publicado pelo canal Applied Biological Materials.. Disponível em:
https://cutt.ly/pIr3Yh1. Acesso em: 11 jan. 2022.
MICROARRAYS. 2008. 1 vídeo (2 min). Publicado pelo canal Genome BC.
Disponível em: https://cutt.ly/kIr8XRa. Acesso em: 11 jan. 2022.

Resumo
Nesta unidade, estudamos primeiramente os principais insumos
farmacêuticos utilizados e como eles são obtidos ou produzidos. Eles
representam o início da cadeia produtiva da indústria farmacêutica. Para
assegurar a qualidade na produção de medicamentos, a Anvisa é responsável
pela autorização de funcionamento das empresas e pelo controle sanitário
dos insumos farmacêuticos, mediante a realização de inspeções sanitárias e
a elaboração de normas. A Anvisa também implementou o cadastramento
dos insumos farmacêuticos ativos para as empresas que exerçam as
atividades de fabricação, importação, exportação, fracionamento,
armazenamento, expedição, embalagem e distribuição. As notificações de
insumos farmacêuticos com desvios de qualidade comprovados também
são avaliadas pela Anvisa.
Posteriormente, foram estudados os processos fermentativos, os
equipamentos e as estratégias utilizadas para que a fermentação ocorra,
bem como tipos ou exemplos de aplicação. Inicialmente, os processos
fermentativos são caracterizados pela ausência de oxigênio em seu processo
bioquímico em meio a fungos e bactérias como forma de obtenção de energia
para manutenção de sua sobrevivência no meio. Independentemente do
que esteja realizando a fermentação, ela sempre ocorre no citosol da célula
com ajuda de enzimas catalizadoras com a finalidade de obtenção de ATP
(molécula responsável pelo fornecimento de “moeda” de troca energética
da célula). Pode-se dizer, então, que a fermentação é uma via de produção
energética que ocorre após a glicólise. A glicólise, por sua vez, é um processo
químico no qual fosfatos (P) são incorporados à molécula de glicose para
obtenção de energia após a quebra da mesma molécula.
Finalmente, foram estudados e apresentados princípios da biologia
molecular, da manipulação genética e da produção de proteínas
recombinantes. A biologia molecular tem como campo de estudo as interações
bioquímicas celulares envolvidas na duplicação do material genético e na
síntese proteica. É uma área intimamente ligada à genética e à bioquímica. A
biologia molecular consiste principalmente em estudar as interações entre os
vários sistemas da célula, partindo da relação entre o DNA, o RNA e a síntese
de proteínas, e o modo como essas interações são reguladas.

59
Unidade I

Exercícios

Questão 1. Leia o texto a seguir.

Indubitavelmente, as estratégias de garantir qualidade dos medicamentos disponibilizados no


mercado nacional são altamente desejáveis, tanto para os segmentos dos medicamentos industrializados
e magistrais quanto para o usuário final desses produtos. Nesse contexto, parece evidente que o foco
principal está centrado na qualidade do medicamento final direcionada fundamentalmente para
a garantia do efeito terapêutico isento de efeitos colaterais provocados por interferências externas,
derivadas de sistemas e processos envolvidos na produção dos IFA ou de insumos inertes.

Por outro lado, a certificação em torno da importação de IFA traz à tona a discussão do problema da
dependência externa do país em torno da importação dos IFAs. Uma avaliação da história da indústria
farmacêutica e de química fina brasileira em termos dessa dependência externa torna evidente que
nunca houve esforços nem políticas de Estado no sentido de, pelo menos, minimizar esse problema.

Adaptado de: Oliveira e Silveira (2021).

Conforme destacado no texto, a produção de IFA é um processo que exige tecnologia e muito cuidado
para que seja criado um produto de qualidade e seguro para os profissionais da saúde e seus usuários,
com altos índices de eficácia e pouco ou nenhum efeito colateral. Diante de todas essas exigências, não
são todos os países que têm capacidade de produzir tal insumo, ficando dependentes de importações,
que são processos demorados e custosos.

Considerando a importância do IFA e as exigências de alta qualidade em sua produção, avalie


as afirmativas.

I – Quando o tema é vacina, apenas os IFAs de vacinas contra bactérias podem ser produzidos, já
que os vírus apresentam uma estrutura muito complexa para serem trabalhados, além de termos de
considerar as frequentes mutações que afetam esses patógenos.

II – O procedimento padrão para a produção do IFA envolve o crescimento de bactérias em meios de


cultura, enquanto os vírus são colocados para crescer em outro organismo, como embriões de galinha.

III – Após o processo de crescimento dos patógenos, a amostra deve passar pelo processo de
purificação para que sobrem apenas os materiais necessários à estimulação da resposta imune.

IV – O IFA não é composto apenas de patógenos ou moléculas derivadas deles. A esse material podem ser
acrescentadas substâncias (por exemplo, água estéril, soro fisiológico, conservantes, albumina, fenóis e glicina)
que irão facilitar o transporte e o armazenamento e, principalmente, irão aumentar a resposta imune e
a proteção gerada pela vacina.

60
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

É correto o que se afirma em:

A) II, III e IV, apenas.

B) II e III, apenas.

C) I, III e IV, apenas.

D) III e IV, apenas.

E) I, II, III e IV.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a tecnologia envolvida na produção de IFA permite o desenvolvimento desses insumos


para vacinas contra bactérias, vírus e, até mesmo, parasitas eucariontes, como o Schistosoma mansoni.
O processo de produção sofre alterações para cada um desses patógenos.

II – Afirmativa correta.

Justificativa: a produção do IFA necessita de grandes quantidades do patógeno antes da purificação.


Esse crescimento é realizado em condições específicas e controladas, respeitando-se as exigências de
cada patógeno, ou seja, meios de cultura para bactérias e células eucariontes/seres vivos para vírus.

III – Afirmativa correta.

Justificativa: a etapa da purificação do IFA envolve, por exemplo, câmara trituradora e equipamentos
para centrifugação e liofilização. Trata-se de uma fase importante para retirar da amostra eventuais
substâncias que poderão diminuir a eficácia da vacina e/ou causar efeitos colaterais mais graves.

IV – Afirmativa correta.

Justificativa: de fato, parte do IFA corresponde a água estéril, soro fisiológico, conservantes e
estabilizantes, que estão ali para garantir que o insumo tenha alta qualidade e possa gerar vacinas
eficientes e seguras para a população.

Vale destacar que, para a composição do IFA, deve-se optar pelo material que for mais adequado
à estimulação da resposta imune e que apresentar o menor grau de efeitos colaterais. Assim, podem
ser usados patógenos inteiros mortos (ou inativados), inteiros vivos, porém atenuados (enfraquecidos),
proteínas ou ácidos nucleicos.
61
Unidade I

Cabe notar que o IFA


é fundamental na formulação de um fármaco porque está nele a
substância capaz de produzir o efeito desejado. Nas vacinas, é o IFA que
tem a informação que faz com que o organismo comece a preparar suas
defesas contra um microrganismo invasor. No caso de imunizantes como a
CoronaVac, chamados de vacinas de vírus inativado, o IFA é o ingrediente
que contém o corpo do microrganismo “morto”, incapaz de se replicar e
provocar uma infecção. Ao receber a vacina, o corpo da pessoa vacinada
passa a conhecer a estrutura do coronavírus e produz defesas específicas
contra suas formas de ataque.

Outras vacinas usam plataformas tecnológicas diferentes, como as vacinas


genéticas da Pfizer/BioNTech e da Moderna, que utilizam o RNA mensageiro
do coronavírus para que o corpo humano conheça a proteína S, chamada
de spike. Nesse caso, o IFA contém tal RNA, que é produzido sinteticamente.

Já vacinas como a Oxford/AstraZeneca e Sputnik V têm a tecnologia de vetor


viral, em que um vírus inofensivo é modificado para transportar informações
do coronavírus. A vacina de Oxford usa adenovírus de chimpanzé como
vetor de informações da proteína spike, que é inserida dentro do antígeno.
O IFA, então, é um concentrado viral que contém esses vírus modificados
geneticamente (LISBOA, 2021).

Questão 2. Leia o texto a seguir.

A biologia sintética é a tentativa de criar sistemas vivos a partir do início e dotá-los de novas funções.
Esses novos organismos criados podem ter diferentes funções de que a humanidade necessita para sua
sobrevivência. Portanto, a biologia sintética é um ramo da ciência que está avançando exponencialmente,
devido às descobertas com que os pesquisadores e estudantes da área estão deparando. No entanto,
com o foco em sintetizar novos remédios, bactérias antipoluentes, novos tecidos biológicos e demais
outras possibilidades, ela está se tornando uma área atraente, pela qual vários pesquisadores de outras
linhas de pesquisa estão se interessando e ingressando nesse grupo.

Adaptado de: Souza et al. (2018).

O texto faz considerações acerca dos esforços realizados na chamada biologia sintética para o
desenvolvimento de novos seres vivos que colaborem em diferentes situações de sobrevivência do
ser humano. Sobre a biologia sintética e os procedimentos envolvidos nesse ramo da ciência, avalie
as afirmativas.

I – O sequenciamento do DNA é uma importante etapa que permite a observação da sequência


inteira de nucleotídeos que formam o DNA das espécies. De posse dessa informação, pode-se estabelecer
a sequência correspondente ao RNA mensageiro e quais proteínas serão produzidas a partir dele, bem
como eventuais mutações que podem levar a doenças genéticas.
62
BIOTECNOLOGIA FARMACÊUTICA

II – Outra técnica importante no âmbito da biologia sintética é o DNA recombinante (ou clonagem
molecular). Nesse procedimento, um trecho de DNA escolhido é adicionado ao DNA de outra espécie
(isto é, plasmídio) para que, então, seja inserido em um hospedeiro (por exemplo, bactéria, fungo, planta
ou animal). Assim, pode-se controlar a produção de proteínas específicas e que tenham alguma função
para os seres humanos ou outros animais.

III – Um dos processos envolvidos é o que faz a extração e a purificação de DNA/RNA. A partir dessas
moléculas extraídas, é possível fazer a identificação de doenças genéticas, o estudo de patógenos (por
exemplo, vírus e bactérias) e a modificação de plantas ou animais podem ser benéficos ao ser humanos,
produzindo antibióticos ou hormônios.

Assinale a alternativa correta.

A) Apenas a afirmativa I é correta.

B) Apenas a afirmativa II é correta.

C) Apenas as afirmativas II e III são corretas.

D) Todas as afirmativas são corretas.

E) Nenhuma afirmativa é correta.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: de fato, o sequenciamento genético (ou do DNA) é um procedimento fundamental


para a biologia sintética porque, ao revelar a sequência de monômeros dessa molécula (nucleotídeos),
fornece a chave para que sejam identificados os trechos do DNA ligados a determinadas características
físicas, fisiológicas e até doenças genéticas. Em muitos casos, essas sequências específicas podem
ser editadas ou alteradas no âmbito da biologia molecular (por exemplo, DNA recombinante e
clonagem molecular).

II – Afirmativa correta.

Justificativa: a clonagem molecular é, no campo da biologia molecular, um importante ramo que


tem ajudado diferentes áreas, como a medicina humana, a medicina veterinária, o setor agropecuário, o
mapeamento genético e o meio ambiente. São muitas as suas aplicações e, em farmacologia, destacam‑se
a produção de insulina humana em escala comercial, fatores de coagulação, hormônio do crescimento
e, mais recentemente, medicamentos para o tratamento de câncer e Aids. As etapas fundamentais são
aquelas indicadas na afirmativa.
63
Unidade I

III – Afirmativa correta.

Justificativa: a extração e a purificação de ácidos nucleicos são procedimentos básicos dentro da


chamada biologia sintética. Isso ocorre porque a criação de novos seres vivos capazes de nos auxiliar
está fundamentada no uso e na manipulação do material genético. O conhecimento dessa molécula
e do código genético a ela associado permite uma variedade de aplicações, algumas delas citadas na
própria afirmativa.

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