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Cenografia e Vitrinismo

Autora: Profa. Mylene Goudet


Colaboradores: Profa. Patrícia Scarabelli
Prof. Adilson Silva Oliveira

Professora conteudista: Mylene Goudet

Doutora em Comunicação e Semiótica (2010) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em
Psicologia Clínica no Núcleo de Subjetividades Contemporâneas pela mesma universidade (2005). Graduada em
Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Engenharia de São Carlos – USP (1992).

É professora da Universidade Paulista – UNIP no curso de Arquitetura e Urbanismo desde 2011 e no curso de Design
de Interiores desde 2013. Ministrou as disciplinas Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo; História da Arte;
Seminários de Arquitetura Contemporânea; Projeto Arquitetônico Espaço Forma; Projeto Arquitetônico Habitação
Unifamiliar; Projeto Arquitetônico Habitação Coletiva e Habitação Coletiva de Alta Densidade; Cenografia; História da
Arte Moderna e Contemporânea; Projeto do Objeto.

Atua como profissional liberal na área de cenografia em TVs educativas, como TV Senac, Sesc TV e TVT desde 1993.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

G688c Goudet, Mylene.

Cenografia e Vitrinismo / Mylene Goudet. São Paulo: Editora


Sol, 2019.

196 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-003/19, ISSN 1517-9230.

1. Cenografia teatral. 2. Cenografia promocional. 3. Elementos


de cenografia. I. Título.

CDU 7

U501.40 – 19

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Vice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Sheila Folgueral
Giovanna Oliveira
Sumário
Cenografia e Vitrinismo

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 BREVE HISTÓRIA DA CENOGRAFIA TEATRAL DO OCIDENTE:
UMA ABORDAGEM A PARTIR DA TECNOLOGIA....................................................................................... 13
1.1 Teatro antigo, teatro clássico e barroco: origens e desenvolvimento
da cenografia, uma abordagem a partir da tecnologia................................................................ 13
1.1.1 O cinema rupestre: o homem primitivo e a caverna de Chauvet........................................ 14
1.1.2 Grécia e a origem da cenografia....................................................................................................... 17
1.1.3 Cenografia da tragédia.......................................................................................................................... 21
1.1.4 Roma e os edifícios teatrais................................................................................................................ 21
1.1.5 Idade Média............................................................................................................................................... 24
1.1.6 Renascimento............................................................................................................................................ 26
1.1.7 Commedia Dell’Arte (séculos XVI‑XVIII).......................................................................................... 29
2 AS MÁQUINAS TEATRAIS DO SÉCULO XVII............................................................................................ 32
2.1 O Barroco e o surgimento da ópera.............................................................................................. 34
2.2 Cenografia e Revolução Industrial: do lampião à luz elétrica............................................ 36
2.2.1 Romantismo............................................................................................................................................... 37
2.2.2 Realismo...................................................................................................................................................... 39
2.2.3 Antinaturalismo........................................................................................................................................ 41

Unidade II
3 CENOGRAFIA: HABILIDADES DE UM CENÓGRAFO............................................................................. 52
3.1 Cenografia teatral................................................................................................................................. 52
3.2 Cenografia: diálogos interdisciplinares........................................................................................ 53
3.3 Arquitetura efêmera............................................................................................................................. 56
3.3.1 Italo Calvino............................................................................................................................................... 59
3.3.2 Carnaval, um caso brasileiro: cenografia em festa.................................................................... 63
3.4 Cinema....................................................................................................................................................... 65
3.5 Cenografia virtual................................................................................................................................. 71
3.6 Cenografia para televisão.................................................................................................................. 79
3.7 Expografia: cenários para a arte..................................................................................................... 86
4 CENOGRAFIA PROMOCIONAL..................................................................................................................... 90
4.1 Estandes.................................................................................................................................................... 90
4.1.1 Desfiles de moda...................................................................................................................................... 95
4.2 Eventos corporativos e festas........................................................................................................... 97
4.2.1 Pontos de venda: PV.............................................................................................................................102
4.3 Vitrinismo...............................................................................................................................................103
4.3.1 Harmonia das cores.............................................................................................................................. 110
4.3.2 As cores e suas sensações..................................................................................................................113

Unidade III
5 TEORIAS DA COMUNICAÇÃO E DESENHO UNIVERSAL APLICADAS À CENOGRAFIA..........124
5.1 Desenho universal...............................................................................................................................124
5.2 Gestalt, ou o todo unificado...........................................................................................................126
6 CONCEITOS SEMIÓTICOS.............................................................................................................................132
6.1 Cenografia, um simulacro?..............................................................................................................136

Unidade IV
7 ELEMENTOS DE CENOGRAFIA: ABORDAGEM CONSTRUTIVA.......................................................142
7.1 Cenógrafo ou cenotécnico?............................................................................................................142
7.2 O saber técnico teatral......................................................................................................................143
8 METODOLOGIA DE PROJETO DE CENÁRIO TEATRAL.........................................................................146
8.1 Colocar as ideias em prática: desenhos e maquetes............................................................147
8.2 Importância do conhecimento técnico......................................................................................149
8.2.1 Montagem: alguns detalhes construtivos e seus elementos...............................................151
APRESENTAÇÃO

A disciplina de Cenografia, abrigada no curso de Design de Interiores, vem ampliar a capacidade


do aluno em reconhecer e interpretar espaços e ambientes, além da habilidade em trabalhar junto de
outros especialistas.

Este livro‑texto é dedicado ao campo profissional da cenografia e oferta um repertório de conteúdos


históricos com ênfase na estreita relação entre a cenografia e a aquisição de tecnologias inovadoras em
cada uma das épocas destacadas. Esclarece sobre a diversidade dos campos de trabalho abarcados pela
cenografia. No decorrer dessa explanação, serão vistos alguns casos emblemáticos com comentários e
informações adicionais. O livro-texto aborda teorias da linguagem que são aplicadas às artes cenográficas
e possui um glossário de termos próprios da práxis cenográfica.

É pretendido neste material que o aluno adquira competências conceituais e habilidades para
o exercício prático da profissão. As inserções teóricas, os estudos de caso e as atividades propostas
municiarão os alunos de métodos para maior consciência espacial, desenvolvimento conceitual,
exploração de linguagem cênica, pesquisa e desenvolvimento de montagem cenográfica.

Espera‑se que o livro‑texto seja um material auxiliar no desenvolvimento da capacidade de analisar


criticamente espaços cênicos de diversos tipos. Para isso, o conhecimento histórico torna‑se a chave
para a leitura da cenografia na sociedade contemporânea. Deseja‑se, ainda, que ele seja uma ferramenta
de apoio no desenvolvimento da percepção crítica dos campos de atuação do cenógrafo no mercado de
trabalho. O material se propõe a apresentar o desenvolvimento do instrumental cenográfico apontando
para as vertentes mais atuais da profissão, provocar a interação entre espaços virtuais e reais nos
espetáculos, assim como incentivar a aplicação dos conteúdos adquiridos no desenvolvimento de
projetos autorais através de desenhos e maquetes.

INTRODUÇÃO

A cenografia é um campo profissional muito interessante por articular uma série de conhecimentos
técnicos, históricos e artísticos para compor os espaços. Esse é o motivo pelo qual o exercício dessa
profissão vai muito além da mera distribuição de objetos de forma estética em um ambiente, por
exemplo, quando em uma festa nos divertimos sem sentir o tempo passar, é quase certo que o evento
foi realizado com a colaboração de um cenógrafo. É esse profissional que cuida de todos os aspectos
estéticos e funcionais dos ambientes para que a atmosfera do evento esteja de acordo com as expectativas
e necessidades do cliente.

Quando comparecemos a um evento como convidados, pode ser que o esforço despendido para
orquestrar todos os itens da festa passe despercebido – desde o mobiliário e flores, até os itens de
conforto disponibilizados nos toaletes. O bom cenógrafo é aquele que faz a organização parecer
mágica, mas o que está por trás dessa sensação é o profundo conhecimento de todas as etapas e itens
que devem ser contemplados para, no fim, tudo se combinar harmoniosamente. Por isso, também é
importante ressaltar que nada está ali por acaso ou somente por um gosto pessoal do profissional. Todos
os elementos têm um papel importante no funcionamento fluido e eficiente do evento.
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É tarefa da cenografia escolher os móveis, seu estilo e quantidades. O cenógrafo saberá dispor sofás
e cadeiras em posições estratégicas para o descanso depois de uma dança, por exemplo, a combinação
da iluminação com cores e estilo dos itens decorativos, os elementos florais, o tipo de música, enfim,
tudo o que compõe a atmosfera desejada, que é sentida pelo convidado através de uma sinfonia afinada
com as sensações.

A cenografia, como a entendemos hoje, é uma atividade que nunca parou de se desenvolver e
ampliar sua atuação. Sua origem remonta ao teatro da Grécia Antiga e continua a se desenvolver,
é por sua alta capacidade de adaptar‑se ao seu tempo, mantendo o leque de atividades aberto para
novas especialidades: cinema, televisão, teatro, cenografia virtual, desfiles de moda, aberturas de
jogos esportivos, proposições de novos usos para antigos edifícios, vitrines, exposições, estandes
de vendas, festas temáticas, espetáculos, feiras, enfim, há muitas frentes de trabalho possíveis
para o profissional. Por conta dessa enorme variedade é que o cenógrafo é, por definição, um
generalista e deve se colocar sempre em processo de aprendizagem, antenado nas mais diversas
tendências estéticas e técnicas da atualidade, mas sem jamais deixar de estudar a história que
nos trouxe até o século XXI.

A cenografia sempre foi considerada um campo profissional derivado da Arquitetura ou do


Design de Interiores, isso porque os três campos lidam com questões convergentes: a organização
e a composição de ambientes. A diferença entre a cenografia e essas outras duas disciplinas está
na duração, a Arquitetura parte da ideia da perenidade, ou seja, da permanência de suas obras
por longos períodos temporais e a escolha dos materiais tem o intuito de prolongar sua duração.
A Arquitetura relaciona‑se com o bom emprego formal desses materiais, já o Design de Interiores
preza por materiais que gerem conforto, de acordo com as escolhas estéticas do cliente; contempla
a questão da duração que justifique seus custos econômicos e ambientais. No entanto, está claro
que a decoração ou o arranjo físico de mobiliário de um ambiente pode ser alterado, substituído ou
complementado com maior periodicidade do que a arquitetura.

Além da duração, o Design de Interiores e a Arquitetura estabelecem um vínculo indissociável com a


funcionalidade. Não é difícil, portanto, concluir que a cenografia tem como prerrogativas a efemeridade
e a escolha de materiais que privilegiem a forma em detrimento da função.

Uma cozinha em um cenário teatral, por exemplo, não precisa ser funcional, bastando que evoque
símbolos representativos do ambiente que se deseja encenar. Daniela Thomas, importante cenógrafa
brasileira (responsável pela direção de arte da abertura das Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2016)
faz crítica a cenários realistas porque estes tiram do espectador a possibilidade de interpretação.
Em entrevista concedida à revista de teatro da USP, Sala Preta, ela disse que o conceito do espaço
cenográfico deve ser algo mais elaborado, menos óbvio do que a simples imitação do espaço real.
A cenografia precisa instigar a imaginação do espectador, trazendo à tona referências que estão no
imaginário coletivo, que podem ser compartilhadas.

Se a gente consegue falar em conceitos, eu consigo trabalhar. E aí eu tenho


preconceitos com sofás, portas que se abrem para corredores, sabe, toda uma
série de, sabe, cenário baixo, altura de pé‑direito de casa, a coisa doméstica,
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o Realismo no palco – a tentativa de imitar um apartamento, a tentativa de
imitar um quarto, uma sala de época, tudo isso me incomoda, isso não tem
interesse para mim (THOMAS, 2004, p. 179).

J. C. Serroni, um dos mais importantes cenógrafos do Brasil, arquiteto e professor, concorda com
Thomas e complementa seu ponto de vista:

Qual a real contribuição do cenógrafo, como artista, ao construir uma


cenografia realista? Costumo dizer aos jovens que teatro e cenografia não
precisam de tradução. Quando trabalhamos como o Realismo na cenografia,
parece que estamos legendando os cenários, traduzindo aqueles espaços
para o público. Isso parece empobrecedor para os espetáculos (SERRONI,
2013, p. 31).

Sobre a efemeridade dos cenários, há que se prestar atenção na sustentabilidade das nossas
propostas. Muitas vezes, um cenário ou ambientação cenográfica serão utilizados apenas uma vez
devido às particularidades do cliente ou do evento ao qual serviu. Diante das preocupações atuais
com a sustentabilidade, torna‑se fundamental que o cenógrafo se mantenha alinhado com as
preocupações ambientais da contemporaneidade, para que faça escolhas de materiais e de soluções
que causem o menor impacto possível, optando por objetos reutilizáveis e destinando seu refugo
para um descarte responsável.

Outra qualidade vital para aqueles que querem entrar nesse mercado de trabalho – além do
domínio técnico das etapas do projeto, produção e montagem de um cenário – é o espírito de equipe.
O profissional precisa saber trabalhar em colaboração, administrando as competências da equipe,
estabelecendo parcerias complementares. São necessárias muitas especialidades para compor uma
cenografia e, para isso, ele contará, necessariamente, com a ajuda de marceneiros, pintores, costureiros,
aderecistas, floristas, iluminadores, cenotécnicos etc. Saber coordenar essa diversidade de tarefas é uma
das chaves do sucesso nessa profissão, e o cenógrafo é aquele que ouve a todos, recolhe as demandas e
necessidades para então traduzi‑las materialmente.

No teatro, por exemplo, há o texto que precisa ser lido junto com o diretor, produtor, roteirista e
elenco, em seguida o diretor dará uma ideia de como pensa em encená‑lo. O roteirista vai adaptar o
texto para a linguagem teatral, o produtor vai delimitar as possibilidades orçamentárias e a partir desse
momento começa o trabalho do cenógrafo.

Em uma exposição de obras de arte, o papel do cenógrafo também será, em primeiro lugar, o da
escuta atenta – conhecer as obras e o autor, entender qual a proposta curatorial, qual o público‑alvo,
fazer diversas visitas técnicas ao local onde será realizada a exposição, conhecer suas possibilidades,
limitações físicas etc. Depois de cumprir essas etapas, é hora de esboçar propostas para o espaço
expositivo, seus materiais e custos, é importante que se saiba que depois de apresentada a primeira
proposta, muitas outras reuniões e reconsiderações serão feitas até a decisão final. É necessário ter
muita disposição e empenho para reformular muitas vezes os desenhos, abrir mão de soluções que
pareciam boas, mas que deixaram de fazer sentido na medida em que o trabalho se desenrola.
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A cenografia, de qualquer forma, é sempre coadjuvante, sempre um apoio para a narrativa que se
desenvolve, seja ela uma peça teatral, uma exposição ou uma instalação.

A seguir veja a importância do cenógrafo em saber se colocar adequadamente no ofício, sempre


como um tradutor de várias falas, através do relato de uma situação do diretor Abujamra (1932‑2015):

O Antônio Abujamra fala muito isso: ele convida um cenógrafo e diz


“quero que você venha fazer a minha peça, mas olha, não se preocupe,
não vai ter nada. ” E o cara responde: “Se não vai ter nada, não precisa de
um cenógrafo”. Então ele rebate, “não, eu preciso de alguém que assine
esse nada” (FENTI, 2014).

A cenógrafa e artista Pamela Howard (2015, p. 19‑23) na tentativa de circunscrever e definir o que
seria a cenografia, exibe uma coleção interessante de definições extraídas de diversos cenógrafos e
diretores teatrais do mundo todo que responderam à pergunta: Afinal, o que é cenografia? Serroni, um
grande mestre das artes cenográficas, arquiteto e professor, responde à autora que a “cenografia é a
dramatização do espaço, sempre complementada pela atuação. ”.

Jose Svoboda, ilustre cenógrafo checo (cuja importância será reiterada neste livro‑texto), afirmava
que “A cenografia é a interação do espaço, tempo e luz no palco”. Já a cenógrafa neozelandesa Dorita
Hannah segue ampliando a discussão ao afirmar que “ A cenografia é projeto como ação, e não como
mero apêndice à visão do diretor”.

A brasileira Lidia Kosovski define que a cenografia é “a dramatização do espaço”, já a canadense


Kathleen Irwin diz que “A cenografia considera as várias maneiras pelas quais o espaço cênico gera
significados”. Lilja Blumenfeld, cenógrafa estoniana, acha que “A cenografia é uma conspiração
(espacial/visual/auditiva) em que o cenógrafo é o agente secreto”, Fiona Sze‑Lorrain, nascida em
Cingapura e atuante na França, diz que “A cenografia é o reaproveitamento das energias novas e ocultas
de um espaço”. Bob Schmidt, norte‑americano, diz que “A cenografia é a articulação do espaço e da
informação visual em artes temporárias”.

Antunes Filho, diretor teatral brasileiro, dispara com sua língua afiada: “O cenário do teatro é um
prolongamento fundamental do jogo de atores, assim como a quadra demarcada e a rede são para um
jogo esportivo. Decorações ficam bem nas lojas da Oscar Freire”. Ele é um senhor muito inteligente e
muito crítico, quis dizer que a cenografia não pode ser meramente decorativa, mas deve assumir parte
da mensagem que se quer transmitir, portanto não deve estar relacionada somente com o gosto estético.

Para inspirar, finalizamos essa lista de definições interessantes com uma extraída de um registro
atribuído ao professor, cenógrafo e arquiteto Flavio Império (1935‑1985), que circulou no meio artístico
na década de 1980, reunindo divertidamente um conjunto de ações e sentimentos relacionados com o
estado criativo da profissão e que podem ser traduzidos como funções verbais:

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Quadro 1 – Funções verbais de um cenógrafo em ação

fuçar sombrear explorar apresentar varrer achar sacar parar puxar despregar ordenar juntar
escarafunchar iluminar gritar comparecer lavar perder segurar se envolver comprar destruir coordenar unificar
remexer escurecer falar ligar tingir decifrar largar se afastar descolar construir misturar esperar
mexer combinar colar desligar ler aceitar distanciar subir‑descer colar pintar costurar, desesperar
misturar descombinar cobrar empurrar pesquisar errar olhar tecer cortar raspar serrar estrear
separar brigar pagar puxar procurar ouvir ver pegar desenhar rasgar lixar
juntar pedir receber sujar tropeçar esquecer juntar rezar desfiar montar amar
colorir implorar marcar limpar trocar aguentar disjuntar carregar pregar desmontar projetar

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

Unidade I
1 BREVE HISTÓRIA DA CENOGRAFIA TEATRAL DO OCIDENTE: UMA
ABORDAGEM A PARTIR DA TECNOLOGIA

1.1 Teatro antigo, teatro clássico e barroco: origens e desenvolvimento da


cenografia, uma abordagem a partir da tecnologia

Muitos alunos perguntam o porquê da atenção especial à história da cenografia teatral. São várias
as respostas, uma delas é a facilidade que o teatro ocidental teve (e tem) de incorporar inovações
tecnológicas de sua época. Os recursos sempre foram incorporados no sentido de aumentar as metáforas
espaciais e efeitos de convencimento do jogo teatral. O teatro também é um desenvolvedor de linguagens
expressivas que traduzem a espacialidade em sua forma, luz, sonoridades, materiais, ritmos e símbolos
através de relações formais surpreendentes, interessantes e eficientes.

A cenografia não começa com os teatros gregos, como poderíamos imaginar, ela existe como
expressão humana antes mesmo de receber esse nome, desde os tempos mais remotos da humanidade.
Embora os gregos tivessem seus eficientes teatros de pedra instalados nas encostas, cuja acústica
exemplar se tornou referência e origem do teatro ocidental, os povos primitivos já utilizavam efeitos
de luz gerados por tochas de fogo, maquiagem e decorações para suas sessões divinatórias (de cura
ou transe), para festas de colheita e de caça. Todos esses efeitos tinham por objetivo criar uma
atmosfera diferente do cotidiano para aumentar a dramaticidade do acontecimento, chamar a
atenção do espectador, causando espanto e surpresa. Todas as manifestações humanas, religiosas ou
não, fizeram uso de algum recurso para aumentar a importância do fato comemorado. Portanto, a luz
difusa que incidia através da fumaça, da queima de fumos e de ervas tinha a mesma função que os
sofisticados refletores de led possuem atualmente.

O grande mérito da Grécia Antiga foi aproveitar toda essa cenografia intuitiva e atribuir‑lhe
intencionalidade com a introdução da narrativa, do texto dramático. Assim, foi fundado o teatro ocidental,
que se diferenciou definitivamente das demais celebrações primitivas conhecidas pelo ocidente.

O teatro, tão importante no desenvolvimento da profissão da cenografia, merece ter sua


história estudada para que percebamos o quanto o desenvolvimento da tecnologia, desde o
século VII a.C. até o século XXI, está ligado ao desenvolvimento da práxis cenográfica. O teatro
nunca deixou de se desenvolver e sempre foi permeável às tecnologias disponíveis em sua época,
aproveitando as inovações para sofisticar os espaços cênicos, e, por consequência, melhorar a
transmissão das mensagens. Ainda que conceitualmente a prática dessa profissão seja muito
diferente do que era feito em suas origens gregas, podemos perceber que desde os tempos mais
remotos a cenografia teatral se apropriou de tecnologias de outros campos para contar uma
história. A título de exemplo, a tecnologia naval foi aproveitada pelos gregos para fazer deuses
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Unidade I

surgirem em cena vindos do alto (deus ex machina) através dos mesmos guindastes usados para
içar a carga e fixá‑la dentro dos navios da época.

A excelente relação entre desenvolvimento tecnológico e cenografia é percebida quando tomamos as


impressionantes transformações nas sociedades dos séculos XVIII e XIX, época das revoluções industriais,
do advento da luz elétrica, do desenvolvimento da fotografia, do telégrafo, do cinema, da aviação, das
reformas urbanísticas de grande vulto etc., só para elencar algumas das mudanças que transformaram
radicalmente as sociedades da época e que são sentidas até os dias de hoje. Por isso, este material
também se dedicará a uma breve história da cenografia na chave da sua relação com o desenvolvimento
tecnológico da humanidade.

As revoluções tecnológicas dos séculos XVIII e XIX trouxeram em seu bojo as sociedades de consumo,
predominantemente urbanas, nas quais a cenografia, antes circunscrita ao teatro, era demandada pelo
crescente mercado comercial. Nesses séculos sua linguagem foi absorvida pelas feiras mundiais, cinema,
moda e tantos outros eventos resultantes da consolidação da cultura urbana.

O trabalho do cenógrafo se transformou em uma potente ferramenta para a comunicação de


mensagens relacionadas ao universo do consumo, da publicidade e da comunicação, sem deixar
de contemplar o universo artístico e técnico, simultaneamente. Sua expressão é a combinação de
formas e materiais tendo como objetivo espaços que comuniquem um conjunto de emoções e ideias.

No entanto, o cenógrafo tem que estar consciente de que seu trabalho nunca é o protagonista
da cena, e sim coadjuvante. A cenografia é o exercício permanente de “estar a serviço de”, pois deve,
em primeiro lugar, solucionar problemas práticos para que as situações possam se desenvolver no
espaço proposto, com materiais e medidas adequadas. Obviamente que quando criamos um cenário,
participamos ativamente da narrativa ou da ação que acontece ali, traduzindo em forma de espaço a
ambiência da cena ou da ação. A cenografia é como um texto não verbal, mas multissensorial, que ajuda
a comunicar uma mensagem, seja ela explícita ou subentendida.

1.1.1 O cinema rupestre: o homem primitivo e a caverna de Chauvet

Em dezembro de 1995, o caçador de cavernas Jean Chauvet resolveu explorar uma fenda em
uma rocha nos arrabaldes de Vallon‑Pont‑dArc, no sul da França, e acabou encontrando uma rede de
galerias que, devido à descoberta, foi batizada com seu sobrenome. Através desse achado, podemos
saber mais sobre os enigmas da vida social da Pré‑História e rever nossos conceitos sobre os povos
primitivos, pois a sofisticação dessas pinturas revela um desenvolvimento cerebral do homem
paleolítico muito diferente do que a ciência estimava.

Qual seria o intuito de desenhar manadas de animais de caça no fundo escuro de uma caverna?
Nessa época, o homem já construía suas cabanas cobertas por peles de animais e fabricava ferramentas
sofisticadas com marfim, pedra e ossos.

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

Figura 1 – O Xamã na caverna de Chauvet

Esse desenvolvimento tecnológico indica que a caverna, por não ser moradia, serviu a algum
propósito social, como reunir o grupo de pessoas responsáveis pela caça daquela tribo. É claro que ainda
não podemos falar em arte antes de corridos 60 mil anos da existência humana.

Acredita‑se que a arte nasce no desenvolvimento das relações de troca comercial que surgiram entre
tribos porque se tornaram cada vez mais complexas e dependentes do desenvolvimento da comunicação.
E a arte é comunicação no mais alto grau de sofisticação, quanto mais contato entre grupos diversos,
maior a necessidade de desenvolver a comunicação.

Portanto, o surgimento da arte está, segundo diversos autores, ligado ao nascimento da consciência
humana. A partir do homo sapiens, o cérebro estaria aparelhado para dominar diferentes estados da
mente: a consciência, o estado de vigília, o sono, o devaneio e o sonho. Isso não quer dizer que os
homens primitivos soubessem que sua obra era arte da forma como a compreendemos atualmente. A
consciência é uma das chaves para o nascimento da arte, mas para os homens neolíticos o desenho dos
bisões correndo pareciam ser a mesma coisa que os bisões reais, reencarnados através da representação
gráfica nas paredes.

Na caverna de Chauvet, há cerca de 36 mil anos, homens e mulheres neolíticos se juntaram diante
de desenhos traçados em suas profundezas escuras. Os “artistas” neolíticos que desenharam manadas
de bisões, cavalos e rinocerontes aproveitaram‑se das formas e texturas das paredes de rocha para criar
uma ilusão de tridimensionalidade que em nada se parece com um fruto do acaso. O aproveitamento
das irregularidades é nitidamente intencional e reforça o movimento e a ideia de tridimensionalidade
dos desenhos.

As pinturas eram feitas nas áreas mais profundas e escuras das cavernas, e os desenhos apenas
poderiam ser revelados através da iluminação das tochas de fogo. Podemos imaginar um grupo humano
reunido em torno dos desenhos e um líder ou xamã incitando o grupo a interagir com os desenhos. As
tochas de fogo, posicionadas atrás dos homens, projetavam suas sombras sobre as manadas, que, nesse

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Unidade I

ritual, tornavam‑se reais, e o efeito bruxuleante sobre as imagens auxiliava na ilusão de movimento. Em
decorrência disso, os desenhos da caverna são simpaticamente chamados de cinema rupestre.

O cineasta Werner Herzog realizou, em 2010, um documentário percorrendo toda a caverna que foi
exibido no formato 3‑D nos cinemas do mundo todo, revelando a preciosidade da descoberta que não
pode mais ser visitada por risco à sua integridade. Os desenhos sofrem em consequência do contato com
a luz, pois bactérias e fungos poderiam proliferar e destruir as pinturas milenares. Como a descoberta foi
muito importante, a França investiu 55 milhões de euros para construir a réplica da caverna e atrair o
turismo para a região. Uma equipe multidisciplinar (composta por cientistas, arqueólogos, espeleólogos
e arquitetos) levou oito anos para concluir o trabalho, vários espaços foram construídos em tamanho
natural utilizando modelos em 3‑D e imagens digitais para recriar os originais, muitos deles em tamanho
natural. A réplica da caverna tem a forma externa de aparência calcária, mas na verdade é uma estrutura
de metal coberta com concreto e internamente foram utilizados diversos materiais artificiais, como a
resina acrílica para reproduzir a aparência interna.

Nesse contexto, a cenografia tem como objetivo a narração da história dos nossos ancestrais e
segundo um dos especialistas envolvidos na construção da réplica, Jean Clottes, a ilusão de realidade
tem função narrativa. Para ele é necessário imitar o original para contar da melhor maneira às massas
modernas a origem de seus ancestrais.

(A) (B)

Figura 2 – Pavilhão construído para abrigar a réplica da caverna de Chauvet

Há muitas controvérsias sobre a expressão através da réplica, alguns preferem pensar em ampliar
a experiência por meio de recursos audiovisuais, dessa forma seria impossível reviver as emoções e
sensações que os nossos ancestrais tinham ao entrar nessa caverna apenas através da reprodução de sua
materialidade, por mais semelhante à original que seja. Atualizar a experiência com o uso de recursos
técnicos contemporâneos parece contemplar a sociedade atual, mais acostumada à interatividade do
que à contemplação.

Quando nos colocamos diante da produção desses desenhos, é como se nos encontrássemos com
nossas origens mais profundas. Assim, percebemos que nossos ancestrais eram tão humanos como nós,
que possuíam religiosidade e excelentes artistas.
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CENOGRAFIA E VITRINISMO

Saiba mais

O filme a seguir, título original Cave of Forgotten Dreams, pode propiciar


uma inter‑relação com os conteúdos vistos até agora:

A CAVERNA dos sonhos esquecidos. Dir. Werner Herzog. EUA: IFC Films,
2013. 90 minutos.

1.1.2 Grécia e a origem da cenografia

Nascida no século V a.C., na Grécia Antiga, a cenografia era a forma de representar graficamente
um ambiente para encenação, mais concretamente, era um painel de fundo pintado. Sua aplicação
era muito rudimentar se compararmos com as possibilidades da cenografia atual, esses fundos eram
pinturas sobre biombos, atrás dos quais os poucos atores trocavam de roupa e máscaras. A partir disso,
origina‑se o nome cenografia, do grego skenographia, que é composto de skené (cena) e graphein
(escrever, desenhar, pintar, colorir).

Os painéis eram ilustrados com fachadas de palácios e templos. No entanto, antes da criação das
skenes, o público se posicionava ao redor do espetáculo sentado em roda. Se considerarmos como sendo
cenografia um simples círculo de giz traçado em uma praça pública, podemos concluir que seu conceito
sofreu modificações ao longo da história, mas o teatro grego nos indica uma origem a partir da qual a
cenografia nunca parou de se desenvolver.

Dionísio e os ciclos vitais

Imagine como seria uma festa na Grécia Antiga para comemorar uma boa colheita por volta dos
séculos VII e VI a.C., nesse tempo, a Grécia era rural e as festividades celebravam os acontecimentos do
campo nos terreiros de forma circular, de terra batida, conhecidos por eiras. Ali os grãos eram moídos
na mó (uma pedra especial para moinhos), cuja engrenagem era girada por bois, no terreiro as uvas
também eram desidratadas, em decorrência disso o teatro tem muito a ver com as festas para Dionísio,
o deus do vinho.

Dionísio, deus da colheita, da vinha e da fertilidade, era celebrado em festas inebriantes que acabaram
por dar origem ao teatro. Os cantos e hinos a Dionísio foram se transformando em textos dramatizados,
acrescentando relatos de façanhas e grandes feitos de heróis venerados pelo povo grego narrados de
forma poética. Assim, surge o teatro grego, que, a partir do século VI a.C., passa a ter grande importância
na cultura daquele povo.

O teatro de Dionísio, construído em Atenas nessa época, foi o mais importante dentre os teatros da
Antiguidade, onde foram encenadas as clássicas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Há relatos
da realização de concursos teatrais que davam muito prestígio aos vencedores. Com a existência desse
teatro, as cerimônias rurais foram transferidas para lá, a área destinada à plateia, uma arquibancada, era
17
Unidade I

denominada théatron, o que basicamente significa “o lugar de onde se vê” e, é claro, sempre os lugares
com melhor visibilidade eram reservados a convidados ilustres.

Esse teatro foi erigido ao lado do santuário do deus, sendo composto de um altar ao ar livre, a
orchestra (palco em madeira no qual os atores encenavam) e a plateia (também em madeira), os
espectadores acomodavam‑se nas colinas naturais do terreno. Posteriormente (330 a.C.) foram feitas
as arquibancadas de pedra, uma skene e uma orquestra de mármore, elementos que resistiram até
os dias de hoje. Você deve estar se perguntando o que é uma skené, ela foi o embrião daquilo que
conhecemos como cenografia atualmente, mas veremos como se deu essa evolução no decorrer deste
livro‑texto. Até o século VI a.C., as apresentações eram monólogos, com apenas um ator, logo, as trocas
de figurino eram praticamente desnecessárias. Foi Ésquilo quem introduziu o segundo ator e Sófocles,
o terceiro, esses atores representavam todos os papéis, incluindo os femininos, usando máscaras para
trocar de personagem. Por isso, foi necessário criar um espaço para trocas de indumentária que era
enfim chamado de skené. No início a skené era um simples painel atrás do qual os atores se trocavam,
mas, pouco a pouco, esse painel foi aproveitado para a pintura de murais com portas de entrada e
saída dos personagens. O que antes era um altar e uma mesa de sacrifícios se transformou em uma
plataforma para os atores se representarem, a plateia acomodava‑se no aclive natural da colina, o que
permitia uma boa visão geral do que acontecia na orchestra.

Aproveitando o perfil natural dos terrenos, os gregos construíram teatros com desempenho acústico
impecável. No teatro grego, a audição era perfeita, mas a distância entre a última fileira e os atores
era muito grande, e a expressividade do ator era reforçada pelo uso de máscaras, que serviam para
identificar exatamente qual personagem estava em cena. O teatro de Dionísio tinha capacidade para até
17 mil espectadores e os atores usavam máscaras de expressão exagerada.

São considerados elementos do teatro grego:

• Theatrón ou teatro: a palavra theatrón queria dizer “área ou lugar de onde se vê” e por isso é
destinada à plateia.

• Orchestra: não era o espaço destinado aos músicos que vemos atualmente em bons teatros. Era
simplesmente o círculo de terra batida de onde se originou o espaço teatral, e à época mantinha a
forma circular em torno da qual os bois moíam os grãos, ali atuava o coro, composto de figurantes
que auxiliavam a compreensão da narrativa através de cantos e de ações expressivas. No centro
da orquestra, estava o altar, local de tributo a Dionísio.

• Skené ou cenário: de frente para o Théatron, fazendo fundo para a orquestra, estava a skené, que
evoluiu de espaço em trocas de roupas para o embrião da cenografia. A fim de esconder as trocas
de atores, havia uma parede cuja pintura retratava o ambiente da ação.

• Proskénion ou proscênio: é um terraço há três metros de altura, posicionado longitudinalmente


à skené, como uma passarela. É o espaço dedicado à atuação dos atores, forma que perdurou até
fins da Renascença.

18
CENOGRAFIA E VITRINISMO

• Theologuêion ou tribuna dos deuses: bancada alta que representava a morada dos deuses,
quando acontecia o deus ex machina, era ali que o ator se posicionava. A aparição de uma divindade
era acompanhada por efeitos especiais de relâmpagos e trovões: archotes de fogo agitados faziam
as vezes de relâmpagos e os trovões eram feitos com panelas de metal, cheias de seixos.

Máscaras e figurino do teatro grego

Figura 3 – Partes básicas que compunham o teatro grego

A roupa era praticamente a mesma usada no cotidiano, os sapatos eram plataformas de


aproximadamente dez centímetros e tinham apenas o intuito de deixar o personagem mais alto
e imponente. Já as máscaras eram fundamentais na encenação do teatro grego porque ajudavam
a comunicar as emoções dos atores a distância, além de amplificarem a voz, eram propositalmente
exageradas em suas características: rugas profundas, olhos esbugalhados, sobrancelhas arqueadas ou
contraídas etc. Eram elaboradas em couro e com forros macios para não ferir o ator.

As máquinas teatrais gregas

Deus ex machina

Deus ex machina, ou “deus vindo do céu”, era uma máquina (como um guindaste) que servia para
fazer o ator representar um deus surgido do Olimpo para dar um desenlace à trama.

Como seria possível fazer um deus aparecer entre humanos? Através do aplauso! No teatro grego
o aplauso não acontecia ao fim da trama, como reconhecimento do talento dos atores, ele vinha um
pouco antes, era um recurso do qual dispunha a plateia para chamar a ajuda de um deus quando a
ação não poderia ser resolvida sem um toque divino. Conforme a narrativa ia se complicando ou o

19
Unidade I

herói humano se encontrava em uma cilada, a plateia batia palmas para chamar uma divindade em
socorro do herói desprotegido, nesse momento entrava a máquina cênica, uma grua que içava o deus
(personagem) de trás do cenário e o colocava em uma plataforma mais elevada. Depois do assunto
solucionado, divinamente, a grua o fazia desaparecer de novo, voando pelos ares.

Atualmente a expressão deus ex machina é usada no teatro quando uma narrativa não segue
nenhuma lógica realista e é tão inverossímil que o autor pode solucionar a situação de uma maneira
improvável. Um exemplo bem atual de deus ex machina é o fim da saga O Senhor dos Anéis, nos últimos
momentos do filme, quando os personagens Frodo e Sam finalmente jogam o anel no vulcão em Mordor,
parecem estar fadados a morrer, pois não há como escapar do mar de lava ao redor deles. Eis que surge
uma águia gigante que os resgata! De fato, são inúmeros os filmes ficcionais que utilizam esse recurso
mágico para amarrar as pontas soltas da trama.

Figura 4 – Mecanismo para realizar o efeito deus ex machina no teatro grego

Exemplo de aplicação

Com as novas tecnologias de imagens geradas em computador para cinema, é possível acontecer
tudo nas tramas. Pesquise filmes recentes nos quais o recurso do deus ex machina é utilizado.
20
CENOGRAFIA E VITRINISMO

A escada de Caronte

Caronte é o barqueiro que conduz os mortos ao Tártaro, reino de Hades, nas profundezas subterrâneas.
No teatro grego são dois os métodos para conduzir mortais ao reino de Hades ou mesmo para trazê‑lo
das profundezas, um deles é um simples fosso com escada no proscênio (palco grego), o outro era
uma plataforma movimentada mecanicamente do subsolo à altura do palco (e vice‑versa) fazendo o
personagem surgir das profundezas e a elas retornar.

O teatro grego surge como expressão de uma sociedade que prezava a palavra, a oralidade.
Sentavam‑se às portas dos templos para conversar ou reuniam‑se na ágora (espaço vazio, como uma
praça utilizada para decisões e debates políticos e filosóficos), até os sanitários públicos eram lugar de
trocar ideias. Em casamentos e vitórias olímpicas, sempre havia recitais de poesia lírica (para ser ouvida
ao som da lira). A oralidade desse povo era altamente desenvolvida, o grego tinha amor à palavra e aos
conceitos, por isso, não é de se estranhar que os textos dramáticos, assim como a filosofia ocidental,
tenham nascido nessa civilização.

1.1.3 Cenografia da tragédia

A tragédia é uma forma dramática que nasceu na Grécia Antiga, sua narrativa é sempre séria e
nunca acaba bem, seu tema deriva das paixões humanas e da decadência humana. Na Antiga Grécia, as
tragédias narravam episódios ou a vida de heróis, reis e deuses (Édipo Rei, Medeia, Elektra etc.).

As tragédias eram ambientadas em uma habitação ou templo com três portas: a do palácio, a que
leva à cidade e a que vai para o campo. Sempre que havia alguma ação violenta, ela acontecia atrás
dessas portas, nunca eram mostradas à plateia.

Saiba mais

Sobre a forma dramática da tragédia, recomenda‑se assistir aos filmes:

ELEKTRA. Dir. Rob Bownan. Canadá; EUA: 20th Century Fox, 2005. 97 minutos.

SEM destino. Dir. Dennis Hopper. EUA: 1969. 94 minutos.

1.1.4 Roma e os edifícios teatrais

O teatro romano foi fundado a partir da tradução de textos gregos, enquanto os romanos tinham a lei
(Direito Romano), o poder militar e a engenharia, a Grécia tinha os filósofos, a arte e a língua. A cultura
grega estava disseminada por todo o Mediterrâneo e, no lugar de competir com tão rica cultura, os romanos
passaram a assimilá‑la, o que fazia parte de sua forma de conquista. A arte romana, embora tenha nas
pinturas de retrato o caráter realista, chega a ser cruel na honestidade da representação dos retratados, as
demais formas de expressão artística imitavam muito mais a Grécia do que elaboravam formas.

21
Unidade I

A verdadeira expressão romana foi a engenharia e seus espaços teatrais que refletem sua capacidade
de construir espaços monumentais com técnicas inovadoras.

Quando os romanos chegaram à Grécia, encontraram um brinquedo político


extraordinário, chamado teatro. Mediante adaptações que executaram
no edifício teatral e a promoção do esvaziamento de ideias em favor do
espetáculo, ele viria a servir como o melhor instrumento de distração nas
regiões onde a pax romana era imposta. Pão e circo: um programa de
dominação (DEL NERO, 2009, p. 153).

O ambiente teatral, de texto e do palco romano era utópico, sempre tendo como referência a sua
interpretação idealizada da cultura grega. Segundo o professor Cyro Del Nero (2009, p. 164) “Dionísio
era demais para a tradição de ordem e disciplina dos romanos que indicaram Minerva, a deusa da
sabedoria e das artes, como patrona do teatro”. Nem tudo foi cópia da cultura grega no teatro romano,
foram criações deles a farsa e o melodrama que, segundo Del Nero (2009, p. 165), serviram como
referências para a obra de Shakespeare. Outro ponto interessante sobre os romanos foi a arquitetura,
como o clima de Roma é rigoroso no inverno, é sabido que os romanos se especializaram em construir
espaços e edifícios cobertos para abrigar um grande número de pessoas, o edifício teatral romano
foi migrando, paulatinamente, de construções provisórias em madeira para grandes festivais para
edificações modernas.

Os gregos se aproveitavam da topografia para construir a plateia e, sendo ao ar livre, os ventos e a


inclinação contribuíam para a propagação natural do som.

Figura 5 – Diferença entre teatro grego e romano

22
CENOGRAFIA E VITRINISMO

Os romanos construíam seus edifícios teatrais em sítios planos e a inclinação da plateia


tinha que ser edificada, um desafio de engenharia construtiva dominado pelos romanos, basta
tomarmos como exemplo a construção do Coliseu para provar sua habilidade em edificar grandes
construções. Como excelentes engenheiros que eram, os romanos se esmeravam em construções
monumentais, o Coliseu de Roma é o mais notável edifício teatral de pedra erigido pelos romanos.

O palco romano era mais alto e mais profundo que o grego, chegando a três andares, incorporando
elementos arquitetônicos gregos na fachada da cena, como colunas, nichos, capitéis e esculturas. Toda
essa decoração concorria em ganhar mais atenção do que a dramaturgia, tudo indica que a plateia
era coberta por velames, que poderiam ser abertos e fechados a partir de maquinaria semelhante às
utilizadas nas velas das embarcações.

Uma das inovações mais interessantes do teatro grego foi o auleum, a cortina de frente do palco
que, ao contrário do que ocorre atualmente, caía e não subia. O teatro grego não usava cortinas, os
romanos também ampliaram o vocabulário formal do teatro, incluindo eventos meramente recreativos,
como corridas de cavalos, esportes e circo. É dos romanos a criação de edifícios multiuso. Enquanto
o teatro de Dionísio ainda estava, de uma certa forma, ligado a celebrações religiosas, os romanos
emprestavam seus teatros a atividades de propaganda política, funerais, casamentos etc. A variedade
de atividades acabou por sofisticar cada vez mais os edifícios – a segurança da plateia, por exemplo, era
cuidadosamente planejada.

Saiba mais

O filme a seguir ambienta os espetáculos teatrais que aconteciam nos


teatros romanos:

O GLADIADOR. Dir. Ridley Scott. EUA: Scott Free Productions; Red


Wagon Entertainment, 2000. 154 minutos.

Império Romano do Oriente: os bizantinos

O Império Romano começa a se desagregar diante das dificuldades em manter a economia e


o domínio militar de Roma sobre o vasto território conquistado. Nesse contexto, após sucessivas
invasões dos povos bárbaros, o império perde Roma e em 410 d.C. O último imperador romano
migra para Bizâncio. O império bizantino durou mais de mil anos, sendo extinto em 1453, quando
os turcos otomanos conquistaram a capital. Para muitos, não é o Renascimento italiano que
marca os tempos modernos, e sim a retomada otomana que põe fim ao longo período de mistura
entre o Oriente e Ocidente. O império bizantino exerceu forte influência em um vasto território
que se estendia desde a Ásia Menor, Síria, Palestina, Sardenha, Itália e Espanha e é transmissor
do legado clássico da cultura greco‑latina.

23
Unidade I

Os imperadores eram seres supremos indicados por Deus e não por hereditariedade ou por eleição.
Por isso, as contendas durante o período de império foram acompanhadas de muita violência, mas ao
mesmo tempo essa foi uma cultura que desenvolveu os mosaicos de Ravena, as iluminuras, os ícones
e dez séculos de preservação da cultura greco‑latina. No entanto, não se tem registro relevante de
atividades teatrais importantes ou inovadoras nesse período.

Havia um número considerável de atores, mas não eram bem aceitos socialmente. Chamados para
entreter ricos em banquetes ou em festivais de colheitas, possuíam um caráter performático e não
foram poucas as vezes em que os eclesiásticos se manifestaram a favor de bani‑los, não tinham direitos
civis e não podiam se casar. Como a população era analfabeta, o teatro foi aos poucos assimilado pela
Igreja para a doutrinação católica e cenas da vida de Cristo passaram a ser encenadas em locais públicos,
passagens bíblicas da vida e morte de Jesus eram encenadas inclusive fora das igrejas, em espaços
públicos e procissões.

Talvez, em consequência disso, tenha surgido o florescimento do drama litúrgico, como esclarece
Del Nero:

Um bispo enviado a Constantinopla pelo imperador Otto descreve uma


encenação que retrata o profeta Elias subindo ao céu em um carro de fogo,
o que prova que o drama religioso poderia estar muito desenvolvido. E que
havia cenógrafos (2009, p. 180, grifo nosso).

Durante o Império Bizantino, entre os séculos VIII e IX , houve um importante conflito político‑religioso
entre os católicos e não católicos, que disputavam o poder da região. Os não católicos empreenderam
uma batalha proibindo a adoração de imagens religiosas que eram tão exaltadas pela igreja católica.
Durante quase 100 anos o culto às imagens de Maria, de Cristo e dos santos foi proibido e as imagens,
destruídas. Os católicos acabaram vencendo a contenda, mas durante esse período, a arte escultórica
bizantina e outras artes acabaram se desenvolvendo com dificuldades. É possível que o teatro tenha
evoluído, mas com pouco registro, por acontecer internamente nas igrejas e não em espaços públicos.

A palavra iconoclasta surge da união dos termos gregos eikon (imagem) e klastein (quebrar),
significando que os iconoclastas se opunham às crenças que veneravam as imagens de Cristo, da Virgem,
de santos, anjos, líderes religiosos (que eram considerados divinos). Religiões muçulmanas, judaicas e até
mesmo cristãs, ainda hoje, não cultuam imagens por considerarem que Deus não pode ser representado
humanamente por sua superioridade divina.

É importante ressaltar que o período bizantino acaba por modelar a cultura medieval da Europa, na
qual o teatro se desenvolveu, tanto dentro das igrejas como nas ruas e praças.

1.1.5 Idade Média

Desde a queda do Império Romano do Oriente, localizado em Bizâncio, a Igreja reprimiu o teatro
até o século XII, pois considerava seus temas profanos e contrários à fé cristã. Mesmo assim, a própria
Igreja fez uso do teatro para disseminar os ensinamentos da religião, foi quando surgiram as primeiras
24
CENOGRAFIA E VITRINISMO

transformações no conceito cenográfico. As representações dos dramas religiosos usavam o interior da


igreja como cenário, confundindo‑se com a própria liturgia, aos poucos a encenação passou a se dar
diante das igrejas, nos pórticos dos templos.

Figura 6 – Teatro sacro de rua, encenado por membros do clero durante parte da Idade Média

Quando finalmente o teatro sacro medieval encenado pelo clero passa a acontecer nas praças
públicas, consegue reunir um grande número de pessoas. A população era analfabeta e a Igreja promovia
eventos de alto impacto visual, com fins didáticos. Os temas eram as passagens mais importantes da
vida de Cristo, dos santos, de seus mistérios e milagres, e também os sermões, cumprindo o calendário
de festas sagradas indicado no Novo Testamento.

Com a exteriorização das encenações surge uma forma de representação até então nunca utilizada,
o cenário simultâneo, que usava indicações muito sumárias para mostrar os ambientes onde estava
acontecendo a passagem bíblica. Os elementos eram simples, justapostos sobre um estrado, um portão
sugeria a entrada de uma cidade, uma pequena elevação significava uma montanha etc.

25
Unidade I

Não foi só de teatro sacro que viveu a Idade Média, o teatro popular e pagão se manifestou através
de apresentação dos jograis, com os temas de caráter popular, cômico. Posteriormente o teatro medieval
incluiu a representação de temas relacionados aos vícios e virtudes humanas, os quais ofereciam uma
lição didática e moralizante. Esse foi o momento de emancipação do teatro, pois não mais participavam
das peças apenas os religiosos, mas também pessoas comuns, a partir disso se introduziram personagens
burlescas como a dança e a música.

Quando o teatro sai da Igreja, passa a ser patrocinado pelas guildas, ou seja, pelas corporações
de ofício (artesãos) que tinham interesse em atrair mais e mais pessoas para o ambiente urbano. Os
grupos populares começaram a improvisar palcos em carroças para se deslocarem pela cidade, parando
onde houvesse público. Com a reunificação da Europa através de Carlos Magno, a própria Igreja apoiou
as manifestações do teatro que estavam ligadas às tradições greco‑romanas. Isso quer dizer que o
teocentrismo (pensamento medieval no qual Deus está no centro) dava lugar aos ideais humanistas do
Renascimento, no qual o homem ocupa o lugar central.

Lembrete

Durante a Idade Média, a Igreja serviu-se do teatro para difundir os


preceitos católicos à população, que era majoritariamente analfabeta.

1.1.6 Renascimento

A cenografia a partir do Humanismo: Idade Moderna

A transição da Idade Média para a Idade Moderna acontece a partir do desenvolvimento urbano das
cidades e do fortalecimento do capital comercial da burguesia, o que acaba modificando as estruturas
de poder vigentes até a Idade Média.

A burguesia toma os lugares de controle da economia, da política e da ciência, desbancando


a nobreza e o clero, que perdem prestígio. Ao mesmo tempo, os conhecimentos adquiridos fora
do controle da Igreja deram origem ao pensamento abstrato, desenvolvendo a Matemática e
a Geometria. A arte tira partido do conhecimento erudito para fazer gerar um tipo de arte
que se utilizava de todos esses novos recursos técnicos e tecnológicos: tintas, argamassas e,
principalmente, a perspectiva.

Esse é o contexto do Renascimento (principalmente italiano), a partir do qual podemos dizer que teve
início a Idade Moderna: o Humanismo. O Renascimento se desenvolve graças à ascensão da burguesia
comercial que cultiva o conhecimento intelectual para rivalizar com o clero. Por isso, o interesse em
redescobrir textos e temas greco‑romanos que se distanciavam por serem pagãos dos conhecimentos
escolásticos (ligados ao clero). Os artistas e arquitetos também queriam deixar de ser artesãos para
também serem reconhecidos como intelectuais.

26
CENOGRAFIA E VITRINISMO

A dramaturgia clássica retornou ao teatro greco‑romano trazendo a trama de volta, acontecendo


em um cenário fixo e único. Nos cenários, os panos de fundo desenhados em perspectiva conseguiam
dar a ilusão de profundidade para uma paisagem que era estática e centrada no texto, ou seja, um único
cenário prestava‑se a qualquer tipo de diálogo.

Bramante, um arquiteto italiano, foi quem criou o cenário em perspectiva que resolvia a necessidade
de representar um ambiente grandioso em uma sala pequena. Ele define que o desenho em perspectiva
deveria conter ruas, praças, bosques cujas linhas convergissem para um único ponto de fuga, essa
técnica acrescentava ilusão de ótica e sensação de infinitude, dissolvendo a percepção das dimensões
reais do teatro.

As contribuições do teatro renascentista foram, sem sombra de dúvida, fundamentais para o


desenvolvimento da arquitetura teatral, mas por suas referências nos textos clássicos, acabava por ser
excessivamente acadêmico e pomposo, não empolgando o público popular por sua temática pouco
aderente. Por isso, ao mesmo tempo, reflorescia o teatro popular de origem medieval que se dava fora
dos meios intelectuais. Essas encenações eram, ao contrário das acadêmicas, cheias de humor, de vigor
e de ação; onde o centro das questões era o ser humano comum.

O Bobo da Corte é revivido no Renascimento, pois representa as dúvidas e incertezas desse momento
de grandes transformações sociais, econômicas, científicas e políticas. Então teremos acontecendo ao
mesmo tempo, nesse período, o teatro erudito e o teatro popular. O popular, de origem veneziana,
é a Commedia Dell’Arte e o erudito será aquele profundamente atrelado às inovações derivadas do
desenvolvimento da perspectiva.

O Teatro Olímpico

Vitrúvio, arquiteto romano que viveu no século I a.C., tem seus livros de arquitetura redescobertos
e reinterpretados pelos arquitetos do Renascimento. Nesses antigos livros ele já determinava regras
geométricas de construção do edifício teatral, estabelecendo medidas e relações entre as partes segundo
as leis da geometria sagrada.

De posse das regras vitruvianas, o arquiteto Andrea Palladio (1508‑1580) interpretou‑as por meio
da perspectiva, projetando o Teatro Olímpico de Veneza, aquele que foi considerado o modelo máximo
do teatro renascentista. As ideias de Vitrúvio foram representadas com a soma da grande novidade, a
perspectiva nos cenários pintados, o que permitiu uma ilusão perfeita de realidade desde o ponto de
vista do observador.

Palladio emulou a forma de um antigo teatro grego, chegando mesmo a ter o forro pintado
como um céu, lembrando que os teatros gregos não tinham cobertura e as peças teatrais ocorriam
ao ar livre.

27
Unidade I

Figura 7 – Vista do palco do Teatro Olímpico, de Palladio e Scamozzi

Lembrete

Os teatros gregos sempre aconteciam ao ar livre, a céu aberto.


Os primitivos aproveitavam a inclinação natural do terreno para
acomodar a plateia.

A obra foi finalizada em 1584, quatro anos após a morte de Palladio, mas seu discípulo, Vincenzo
Scamozzi (1548‑1616), realizou um feito interessante. Palladio havia utilizado a perspectiva para fazer
um painel pintado na parede dos fundos do palco retratando vielas da cidade, a aplicação da perspectiva
daria a ilusão de profundidade realista, servindo como cenografia fixa incorporada ao edifício. Scamozzi
ousou incorporar a perspectiva no espaço arquitetônico. Aquilo que Palladio projetou como pintura
de paisagem urbana no fundo do palco, ele transformou em vielas tridimensionais, reproduzindo a
perspectiva, porém de forma material e real.

(A) (B)

Figura 8 – A) Corte esquemático do Teatro Olímpico, fundo de palco de Scamozzi,


perspectiva tridimensional; B) planta esquemática do Teatro Olímpico

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

O Renascimento consolidou três tipos de cenários que se estabeleceram de acordo com os diferentes
tipos de encenação da época:

• Tragédia: para a qual o cenário ideal era a arquitetura palaciana, refinada, com elementos clássicos.

• Comédia: encenada no espaço urbano e público, nas ruas. A inspiração formal era o gótico,
associado a uma existência menos sofisticada e mais popular ou vulgar, lembrando que as cidades
da Europa mantinham seus traçados medievais. O Renascimento promoveu alguns espaços de
representação clássica nas cidades, principalmente aqueles que falavam a respeito da burguesia
comercial: as ruas e praças representavam as camadas mais populares, associadas a esse tipo de
arquitetura desprezada na época.

• Peças pastorais: nelas a cenografia representava a paisagem campestre. Sebastiano Serlio


(1475‑1554), grande teórico e arquiteto, foi quem releu Vitrúvio para definir essa configuração. A
perspectiva e suas formas de aplicação ditam os projetos eruditos desse período.

1.1.7 Commedia Dell’Arte (séculos XVI‑XVIII)

Figura 9 – Personagens da Commedia Dell’Arte de Callot

A Commedia Dell’Arte pode ser considerada a base da comédia atual, seus temas eram variados
e ela trabalhava sempre com personagens e tramas estereotipadas, por exemplo, a questão do casal
apaixonado que precisava fugir para se casar, pois o pai da heroína era contra o enlace. Geralmente
há oposições claras, se um personagem é inteligente e ardiloso, seu opositor será apalermado. Usava
dança, música e mímica em suas apresentações, formato que prolongou seu sucesso nos ambientes
populares para os príncipes e intelectuais.

A estrutura da dramaturgia estava dividida em um prólogo e três atos recheados de disfarces,


intrigas, duelos e brigas. Sua estrutura cômica básica ainda é referência nas comédias atuais. Uma das
características mais interessantes da Commedia Dell’Arte é que seus textos são resultado daquilo que
os atores viam e ouviam nas praças e ruas. As histórias eram sacadas da vida do povo e da vivência

29
Unidade I

real é que nasceram seus personagens arquetípicos, existe um número e tipos fixos de personagens
nessa modalidade de teatro, não sendo necessária uma sala ou teatro fixos, nem cenário ou roteiro.
Bastava um pano simples para servir de skene e depois, ao final da apresentação, passavam o chapéu
para recolher moedas, o que não era muito lucrativo, mas dava muita liberdade aos atores que não
respondiam a nenhum patrocinador fixo, como a igreja ou a casa aristocrática. Muitas vezes eram
convidados pelos intelectuais e comerciantes para atuarem em ambientes privativos (festas e jantares).
Caso não houvesse convites, chegavam às cidades e pediam autorização para atuar nas praças.

O texto encenado na Commedia Dell’Arte é considerado uma obra teatral coletiva, elaborada pelo
elenco, que consistia em criar um mote em torno de um assunto, a partir disso, a improvisação fluía.
A Commedia Dell’Arte ofereceu uma contraposição ao teatro literário e erudito dos humanistas, como
também os teatros da corte se distraíam com as histórias que deixavam de lado a moral desgastada das
peças religiosas.

A dramaturgia da Commedia Dell’Arte serve‑se de personagens‑tipo já conhecidos pelo público e por


essa razão tinha a facilidade de se espalhar por toda a Europa. Suas tramas faziam alusão aos últimos
acontecimentos sociais, satirizando a vaidade humana e ironizando os costumes. Em cada paragem
montavam suas cenografias precárias em carroças ou em pequenos palcos improvisados.

Dizemos que a Commedia Dell’Arte continua atual porque seus personagens oferecem soluções
quando é necessário desembaraçar alguma cena com leveza, anarquia e graça. Além dos exemplos de
improviso e da energia do teatro de rua, seus personagens eram caracterizados por figurinos e máscaras
que nunca mudavam, pois, dessa, forma o público não teria dificuldade em reconhecê‑los, como o velho,
o malandro, o doutor, a mulher sedutora etc.

Entre os personagens mais conhecidos estão o Arlequim, o Pantaleão, a Colombina, a Pulcinella


e o Pierrô. O Arlequim é um personagem pouco inteligente e trapalhão, mas astuto e sedutor, sua
forma de andar assemelha‑se a uma dança, já a Colombina é uma criada, mulher de Pierrôt, que o
trai com Arlequim, suas vestimentas são simples, dada a sua condição social. Pulcinella é um escravo,
corcunda, narigudo e com uma barriga proeminente, seu espírito é ora astuto, ora covarde, apaixonado
por Colombina, a filha patrão. Enquanto Pantaleão é um mercador rico, sua função é a representação
de um ego aliado ao dinheiro e poder, apesar de velho, sempre tenta seduzir as mulheres, no entanto, é
sempre rejeitado. Pierrô é um personagem triste, mas de confiança, sua mulher, Colombina, abandona‑o
frequentemente para se lançar nos braços de Arlequim, que é um dos poucos personagens da Commedia
dell’Arte que atuava sem máscara. Com a cara pintada de branco, vestia roupas brancas, calças e blusa
larga com grandes botões.

Os atores incorporavam um personagem em particular, escolhiam um papel que exerciam durante


toda a vida e eram conhecidos por aquele tipo, raramente trocavam de personagem. As companhias
e trupes da Commedia dell’Arte se consolidavam e os espectadores já sabiam o que esperar de cada
um dos personagens e isso era interessante para o formato. Jacques Callot (1592‑1635), um célebre
desenhista da época, forneceu muitos registros dessa modalidade teatral através de seus trabalhos,
retratando como eram e se comportavam os atores da Commedia Dell’Arte.

30
CENOGRAFIA E VITRINISMO

Renascimento inglês

Período elisabetano (séculos XVI‑XVII)

Nessa época a Inglaterra, sob o governo da rainha Elizabeth I (1558‑1603), estava encabeçando a
economia do continente europeu, por isso o período se chama elisabetano. Essa pujança econômica
tinha reflexos no grande desenvolvimento cultural dos ingleses, a cultura estava fervilhante e o teatro
era uma forte expressão da sociedade inglesa. Três teatros públicos foram construídos e entre eles o
The Globe, edifício disponibilizado para a companhia de Shakespeare. Nessa época, os nobres e até
mesmo a rainha saíam do palácio para assistir aos espetáculos junto a seus súditos nos teatros.
O que causava confusão era a chegada de Sua Majestade ao local, havia uma ala reservada a
convidados nobres.

William Shakespeare (1564‑1616) buscou na Commedia Dell’Arte inspiração para os temas de


seus espetáculos teatrais, pois, embora suas comédias alcançassem grandes públicos, ele desejava se
aprofundar em temas humanos. As peças inglesas dessa época eram niveladores sociais, todos iam ao
teatro, portanto as tramas tinham que agradar a todos: para as moças, o romance; para os soldados, as
batalhas por honra e assim por diante.

Figura 10 – Teatro de Shakespeare, The Globe

Shakespeare conseguiu transformar Romeu e Julieta, uma temática bem comum na popularesca
Commedia dell’Arte (casal apaixonado que precisa fugir para consumar o amor), em um drama
universal, uma verdadeira tragédia. Shakespeare foi um dos maiores dramaturgos desse período, suas
histórias envolviam a nobreza, a vida na corte, mas no fundo o drama era sempre e simplesmente,
humano. É o homem lutando contra suas paixões e angústias, tendo diante de si o inevitável da
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Unidade I

vida descrito com a mais poética das linguagens, esse é o caráter que tornou a obra de Shakespeare
universalmente conhecida.

Na dramaturgia elisabetana, o mais importante é o diálogo e os traços psicológicos das personagens,


a cenografia é realista e os adereços são secundários. Desde a primeira apresentação de Romeu e Julieta,
a peça alcançou sucesso entre o povo e entre a nobreza, objetivo de Shakespeare foi alcançado e obteve,
com as graças da Coroa, o seu teatro.

O teatro elisabetano era popular, mas tinha má reputação, o que fez com que autoridades municipais
exigissem que os edifícios teatrais fossem instalados do outro lado do rio Támisa, nos arrabaldes de
Londres. A existência desses teatros persistiu por conta de seu êxito financeiro, sua forma era muito
rudimentar e simples, diferente dos teatros renascentistas italianos, a construção circundava um pátio
interno, descoberto, no qual estava disposto um palco, o ator ficava exposto à participação da plateia,
como na Idade Média. Por não usar adereços, figurinos especiais e nem cenografia complexa, o drama
era baseado na capacidade dramática e criativa dos atores.

2 AS MÁQUINAS TEATRAIS DO SÉCULO XVII

As traquitanas teatrais dos gregos são herdeiras diretas das máquinas navais, como carretilhas,
contrapesos, embarque e desembarque, passarelas, terças etc. Todos esses termos náuticos absorvidos
pelo teatro grego permaneciam atuais (e são usados ainda hoje) por volta de 1638 quando Nicola
Sabbatini – engenheiro, maquinista teatral, matemático – escreve seu livro sobre cenografia, Pratica di
Fabricar Scene e Macchine ne’Teatri.

Sabattini dividiu seu tratado em duas partes: o “Tratado das Cenas” e o “Tratado dos Meios e
das Máquinas”, no qual descreve e desenha diversos desses elementos em um momento do teatro
em que as trocas de cenário eram constantes. Em seu livro é possível encontrar subcapítulos, como
“Primeira maneira de fazer aparecer o mar”, “Como fazer aparecer um inferno” ou ainda, “Como
fazer que uma nuvem desça diretamente do céu sobre a cena com pessoas dentro”, entre outros
subtítulos demonstrando que a cenografia ocupava um lugar de destaque no período entre o
Renascimento e o Barroco.

O espetáculo teatral, daquele momento em diante, solicitou textos cheios de


imaginação para o uso abundante de recursos cênicos. Criaram‑se nuvens
cinéticas em painéis pintados, sons, luzes e voos para as Glórias; fogo, fumaça
e terremotos para o Inferno; bastidores recortados e perspectivas diagonais
para palácios e viagens. Em espaços abertos os fogos de artifício, fireworks;
e as naumaquias, evoluções náuticas e bélicas em grandes tanques de água,
tornaram‑se espetáculos extasiantes. (URSSI, 2006. p. 38)

Nicola Sabattini sistematizou o formato de palco conhecido e até hoje utilizado, o chamado palco
italiano ou caixa preta:

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

Figura 11 – Quatro modelos de palco italiano

A caixa preta surge no momento em que o homem é o centro do universo, a visualidade proporcionada
por esse tipo de edifício teatral favorece o olhar da perspectiva, pois os espectadores assistem ao
espetáculo frontalmente. Dessa forma, por volta de 1630, é inaugurado, em Veneza, o primeiro teatro
público de ópera nesses novos moldes, dentre as inúmeras revoluções técnicas e artísticas pela primeira
vez há boca de cena arredondada, cortina, luzes na ribalta e telões pintados que permitiam efeitos de
perspectiva e maquinaria que criava efeitos especiais.

O palco é delimitado pela boca de cena e cortina, além do urdimento, das coxias e varandas. Coxia se
refere ao corredor não visível ao público em torno do palco, por onde circulam os atores sem que sejam
vistos pela plateia, onde também esperam sua vez de entrar no palco, ou seja, o século XVII viu suas
caixas cênicas serem equipadas com as mais importantes máquinas cenotécnicas já existentes, munidas
de efeitos até hoje utilizados na produção de ambiências como fogo, ventos, tempestades.

Mesmo sendo singelas, as traquitanas eram muito criativas: potes de vidro com água colorida
defronte velas aumentando seu brilho e refletindo a chama em uma bacia metálica para obter efeitos de
cor e de iluminação. Eram capazes de simular, por exemplo, o amanhecer ou o pôr do sol com a
ajuda de outra engenhoca, penduravam cilindros de metal polido movidos por roldanas que subiam
e desciam em frente às velas, iluminando ou escurecendo a cena. Havia máquinas para fazer ondas,
baixar nuvens, fazer cavalos e carros voarem, tudo para impressionar a plateia ávida por espetáculos.

Observação

O teatro merece ter sua história estudada para que percebamos o quanto
a tecnologia sempre esteve ligada ao desenvolvimento da práxis cenográfica.

Del Nero enxerga a poesia na história da cenografia como somente um apaixonado pela profissão
pode fazer, ele percebe a capacidade de fazer uso criativo de tecnologias duras, como as navais fazem
do cenógrafo um timoneiro, que conduz o barco em segurança em meio ao dinamismo do mar.
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Unidade I

Há uma expressão corrente no meio cenográfico que é tributária da navegação marítima: dar um
vento, utilizada quando se quer inclinar um pouco o cenário ou um elemento cenográfico, ou puxá‑lo
para o lado, torcê‑lo. É uma expressão oriunda do ambiente ao ar livre, da lida com a brisa do mar e que
entrou na caixa do palco com as técnicas de marinhagem que nos ensinaram a armar o cenário, como
se um marinheiro corrigisse a vela que, inflada, tivesse perdido na sua verga a posição desejada, é só dar
um vento (DEL NERO, 2009).

2.1 O Barroco e o surgimento da ópera

O Barroco encarna a crise do classicismo racionalista do Renascimento, pretendendo trazer de volta


o homem à Igreja Católica, mas nesse momento a fé é carregada de emoção e dinamismo. Curvas e
contracurvas buscando a verticalidade dinâmica, fundindo arquitetura, pintura e escultura, o que no teatro
foi aproveitado como um resultado decorativo, como profundidade e relevo que se apresentavam nos
elementos cênicos. São os representantes do Barroco os arquitetos Francesco Borromini (1599‑1667) e Gian
Lorenzo Bernini (1598‑1680), Bernini presenteou a humanidade, entre tantas obras, com sua magnífica
escultura O Êxtase de Santa Tereza, enquanto Borromini realizou o famoso Baldaquino da Basílica de São
Pedro, do Vaticano, além de inúmeras obras arquitetônicas exemplares do Barroco romano.

Na música a desordem aparente entre formas melódicas e dinâmicas gera grande riqueza cromática,
muito apropriada para o teatro, tendo como representante máximo Johann Sebastian Bach. O Barroco
incorpora na ópera aspectos humanos não idealizados, contrário ao clássico – o feio, o trágico, o ridículo
e o cômico. Molière, na França, faz rir, criticamente.

Figura 12 – Cenário pintado com dois pontos de fuga, por Giuseppe Galli Bibiena

No Barroco até mesmo as aparições dos governantes (como entradas solenes e festivas) tornam‑se fatos
emocionantes e espetaculares, pois a teatralidade traduz o espírito da época. É possível que o cenógrafo
vivesse bem, de festa em festa, mas não usufruindo, e sim trabalhando arduamente. Os cenógrafos de teatro
do Barroco desenvolviam cenários grandiosos, servindo‑se de imensos painéis de fundo em perspectiva,
com um ou dois pontos de fuga, somente os elementos de cena mais próximos da boca de cena eram
tridimensionais, o efeito era de gigantismo já que, para desenhos, não há limites de escala.
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CENOGRAFIA E VITRINISMO

A família de cenógrafos Galli Bibbiena (Ferdinando, Francesco, Giuseppe, Antonio e Carlo) por volta
de 1700, introduz no palco as pinturas de fundo em vistas surpreendentes e monumentais, utilizando
dois pontos de fuga, o que os distingue das criações anteriores, nas quais se utilizava um único ponto de
fuga. Seus cenários eram divididos em duas partes: uma área destinada à atuação e movimentação de
atores onde havia elementos de cena tridimensionais e o fundo pintado de maneira realística, que dava
uma visão de infinito. Os Galli Bibbiena desmontam a simetria e o rigor geométrico do Renascimento,
introduzindo formas sinuosas e extravagantes, seu estilo de pintura se perpetuou até o século XIX,
quando surgem os mestres da Luz, Appia e Craig, os quais veremos mais adiante.

A ópera é um gênero que floresceu da tendência a musicar textos dramáticos e logo ambicionou unir em cena
todas as artes: poesia, canto, dança, pintura etc. O drama barroco se desenrola utilizando os mesmos elementos
do teatro – cenografia, figurinos e atuação, mas ao invés dos diálogos convencionais, as conversas eram cantadas,
casando perfeitamente o teatro e a música. Ela surge no século XVII, e se desenvolve primeiramente na Itália. O
novo gênero requer novos tipos de cenário e amplia a arte da transformação cênica do palco.

Muito popular, a ópera teve que levar em conta o grande público ao projetar suas salas. A maquinaria
existente nesses teatros permitia realizar espetáculos complexos, os teatros à italiana são patrimônio
cultural, muitos foram remodelados com recursos tecnológicos atuais, tornando‑se verdadeiras caixas
mágicas. As glorias são o momento de clímax do teatro barroco, por exemplo, a cena apoteótica na
qual se esbanjavam efeitos especiais e traquitanas cenotécnicas para gerar surpresa e aumentar a
dramaticidade da narrativa. Os cantores de ópera surgiam do fundo do palco sentados em nuvens, como
a ascensão de Cristo nas imagens sacras.

Figura 13 – Glórias barrocas

Essas nuvens eram recortes de madeira pintados que escondiam os assentos dos cantores, que eram
maquinadas para subirem juntas ou em tempos diferentes, conforme a música evoluía. A estrutura que
sustentava os cantores funcionava novamente com o mesmo raciocínio dos barcos à vela, que içavam
carga ao ar através de cordas contrapesadas, a plateia vibrava com o gran finale.
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Unidade I

O teatro barroco na França, a Idade de Ouro

Uma das figuras mais fulgurantes no contexto da cena teatral parisiense dos setecentos é Molière,
a cidade respirava teatro. Podemos citar também outros autores, como Racine e Corneille, que também
gozaram de fama na época.

Molière desenvolveu o formato da comédia como instrumento de crítica social ferrenha, e, por fazer rir,
foi muito aclamado pelo público aristocrático que é ao mesmo tempo alvo de sua crítica e patrocinador de
sua companhia teatral. Com Escola de Mulheres, por exemplo, ele respondeu às críticas de seus opositores
e a peça foi um retumbante sucesso. O início de sua vida profissional foi deveras atribulado, marcado por
falências e prisões, entretanto acabou caindo nas graças da nobreza, conseguindo atraí‑la para suas peças.

A irreverência e acidez de seu texto geraram diversos desafetos no meio aristocrático e religioso e
por eles passa a ser perseguido, só não foi banido da sociedade porque, felizmente, foi protegido de
Luís XIV, o Rei Sol, até o final de seus dias. Foi esse rei que fundou a Comédie Française por decreto em
1680, fundindo as mais importantes companhias teatrais da época, a de Molière e a de Jean Racine. A
Comédie Française foi abrigada no teatro Palais‑Royal, atualmente o teatro é estatal, com cerca de 300
atores contratados e é conhecido como o teatro da Comédie Française.

Molière foi responsável pela popularidade da comédia no teatro moderno, não abria mão de recursos
cênicos, mas dirigia seus atores para agirem com naturalidade no palco. Os diálogos também eram mais
coloquiais, bem diferentes dos textos clássicos. Já sobre a cenografia da Comédie Française, vale dizer que
usavam todos os recursos cênicos disponíveis, mas, como a trupe de Molière se apresentava em palácios e
salões nobres, a cenografia tendia para uma boca de cena mais neutra, para que pudesse ser montada em
qualquer lugar e para que a atenção da plateia fosse concentrada nos personagens e seus diálogos.

Ele criava personagens que expunham de maneira ácida as contradições humanas – os padres, os
burgueses pedantes, os nobres decadentes, os carolas, os avarentos etc. Esses tipos acabavam expondo
temas espinhosos através do riso crítico, em formato pouco erudito, alcançando públicos de todos os
tipos. Dizem que Molière morreu praticamente no palco, passou mal, desmaiou e faleceu poucas horas
depois em sua casa, aos 51 anos, deixando um legado de mais de 30 peças.

Observação

Nas obras de Molière, quando o personagem fala através do texto, é


o próprio autor lançando um olhar crítico sobre o século XVI e sobre os
personagens que mobilizaram aqueles tempos.

2.2 Cenografia e Revolução Industrial: do lampião à luz elétrica

No final do século XIX, a cenografia tornou‑se uma verdadeira indústria a serviço do teatro, introduzindo
elementos cênicos dinâmicos através de técnicas de iluminação possibilitadas pela luz elétrica – uma grande
novidade que tira partido da iluminação elétrica são os dioramas de Daguerre. Façamos um exercício de
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CENOGRAFIA E VITRINISMO

imaginação e tentemos conceber o mundo no século XIX, não havia aparelhos celulares, nem televisão ou
computadores, as viagens eram limitadas pelo escasso transporte de longas distâncias, os navios. Eis que
nesse mundo surge uma tecnologia que permite a qualquer pessoa conhecer a vastidão do mundo sem sair
de seu país, ou fazer uma viagem ao passado para assistir a cenas de uma batalha histórica, essa tecnologia
existiu e encantou a Europa do século XIX. Eram os dioramas, painéis translúcidos com pinturas realísticas
cuja utilização para efeitos visuais foi criada e desenvolvida por Louis Daguerre.

A população se juntava para assistir a cenas de belezas naturais ou desastres históricos, tal qual a
erupção do vulcão Vesúvio ou o pôr do sol na distante China. Se pensarmos em termos de inovação,
os dioramas de Daguerre eram similares aos cenários de realidade virtual em 3‑D dos dias de hoje, os
espaços para a exibição de espetáculos com dioramas foram feitos em salas construídas especialmente
para acomodar o aparato técnico para sua reprodução, neles as pinturas eram feitas em camadas,
misturadas a objetos reais. Efeitos de som e de ruídos acompanhavam a projeção, eram camadas de
tecidos transparentes pintados com paisagens diversas com objetos reais misturados entre os planos.

O teatro estava equipado com janelas e venezianas que podiam ser abertas e fechadas para iluminar
as imagens, ora de frente, ora por trás. Assim, áreas transparentes mudavam porque imagens sobrepostas
surgiam, dessa forma, uma cena diurna se tornava noturna, e assim por diante. Os assuntos eram cenas
de paisagem, cenas da imolação de Cristo, recriações de ruínas e cenas históricas conhecidas do público.

2.2.1 Romantismo

O Romantismo foi uma estética e orientação intelectual característica do fim do século XVIII e que
perdurou até meados do século XIX. Ele manifestava uma forte rejeição às regras rígidas de harmonia,
simetria e equilíbrio próprias do Classicismo, que o precedeu. O Romantismo produziu arte, literatura,
teatro e arquitetura embalados pelo espírito imaginativo, subjetivo, irracional, emocional e espontâneo.
É o tempo dos viajantes que visitam lugares de cultura e paisagem exóticas, também é quando florescem
heróis com seus problemas internos, psicológicos e espirituais. Os heróis atestam a origem histórica da
nação, toda essa carga emocional é transferida para o teatro e a cenografia através de movimento,
efeitos ilusionistas e temas históricos.

Romantismo alemão: Richard Wagner e a obra de arte total

Enquanto isso, na Alemanha, o compositor de óperas representante máximo do neorromantismo alemão,


Richard Wagner (1813‑1883), concebe uma forma de espetáculo que ocasionou mudanças radicais nos
modos de encenar óperas, influenciando até mesmo a arquitetura cênica dos teatros. Wagner cuidava desde
a concepção musical, passando pela encenação até a cenografia, para ele todas as suas obras tinham que
alcançar uma estética homogênea, coletiva e universal. Apesar de a música ser central em sua obra, ele
entendia que seus dramas se completavam na integração entre as partes – música, poesia, dança, cenografia,
pintura, iluminação e arquitetura, reunidos sob um conceito único, que ele denominou “obra de arte total”.

Ele acreditava que, para haver um sentido real no drama representado pelos atores, deveria ocorrer a
fusão de todos os elementos, e só assim o drama existiria de verdade. Para atingir seu objetivo utilizava
vários recursos cênicos, por isso a cenografia ocupa um lugar importante na obra wagneriana. Partindo
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Unidade I

do princípio da ópera como “arte total”, Wagner concebe em 1876 a arquitetura do Teatro de Bayreuth
(em conjunto com o arquiteto Otto Bruckwald). Esse teatro abre mão da caixa cênica italiana, rejeitando
barreiras, tais quais galerias e camarotes, que afastavam o público do palco.

O teatro torna‑se um fenômeno de alcance mundial e seus atores passam a ser estrelas reconhecidas até
mesmo em outros continentes, o diretor passa a ser reconhecido em sua autoria, assim como o cenógrafo.
O impulso extraordinário da cenografia do período ocorre com o desenvolvimento da iluminação pública a
gás de fluxo controlável, que rapidamente é assimilada pelos palcos teatrais. Pela primeira vez na história, a
plateia ficou escura e toda luz foi concentrada no palco, transportando o público para um mundo à parte.
Assim também as técnicas de pintura cênica tiveram que ser aprimoradas, já que ficaram mais visíveis.

Quem já foi ao teatro sabe que, ao chegarmos à plateia, encontramos o palco oculto por uma cortina
fechada, geralmente vermelha. Não sabemos de antemão como será o cenário e como estarão vestidos
os atores. Após três sinais sonoros as cortinas se abrem e anunciam que o jogo cênico vai começar, os
três sinais servem para que a plateia vá se acomodando e fazendo o silêncio necessário para que a peça
comece. Quando as cortinas se abrem, é esperado que o público esteja concentrado no palco.

Esse preparo não existia antes de Wagner, foi ele quem estabeleceu essas regras para a ópera, que acabaram
sendo incorporadas à cultura teatral do mundo todo. Outra inovação dele foi acomodar a orquestra em um
plano abaixo do palco, para que seja ouvida sem se confundir com a encenação dos atores‑cantores. É claro
que se algum diretor encenar uma ópera com a presença dos músicos no palco, atualmente, será uma opção
estética, mas na época de Wagner essa separação não havia ainda sido programada.

Figura 14 – Teatro de Bayeuth, mostrando a orquestra em um plano abaixo do palco,


oculta da plateia. Essa foi uma das inovações de Richard Wagner

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

Esse teatro ainda está em pleno funcionamento na Alemanha e nele é realizado o concorrido ciclo
da ópera wagneriana, O Anel do Nibelungo.

Figura 15 – Mecanismo de abertura da Cortina de Wagner

Observação

O tratamento wagneriano à ópera modifica radicalmente a


experiência do público, que passa a ter uma vivência imersiva no mundo
imaginário do palco.

2.2.2 Realismo

No final do século XVIII e início do século XIX a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, foi
disseminada pelo restante da Europa, fazendo com que a população do campo, sem trabalho na
agricultura, migrasse para as cidades. Além dos camponeses, os próprios artesãos perdem a concorrência
para os produtos industrializados e ficam sem trabalho, uma imensa massa de trabalhadores forma
a classe chamada de proletariado. O pensamento romântico de liberdade, igualdade e fraternidade,
presente na filosofia da Revolução Francesa, que alimentava ainda a intelectualidade e a produção
artística, é contraposto pela força das mudanças econômicas, políticas e sociais do capitalismo industrial.

O artista, perceptivo das desigualdades sociais, passa a usar a arte de forma a descrever os fatores
humanos e sociais sob forma de denúncia. Para o espírito do Realismo, toda a arte deveria ser feita para
o povo. O artista propõe‑se a retratar o homem em sua vida cotidiana, engajado nas lutas por equidade
social. A pintura, a literatura, a poesia e o teatro devem denunciar as mazelas sociais provocadas pela
desigualdade econômica.
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Unidade I

No teatro as encenações colocam os atores conversando naturalmente entre si ao invés de se


dirigirem ao público em longos monólogos com voz empostada. A linguagem deve assemelhar‑se ao
máximo à linguagem comum, embora esse tipo de teatro tenha se proposto didático, desejando mostrar
à plateia a verdadeira situação social em que se encontravam na Europa industrial.

A cenografia se distancia de ilusionismos e mágicas, os cenários deveriam ser os mais realistas


possíveis, inclusive no que tange aos materiais utilizados. Buscou‑se uma nova concepção arquitetônica
para os teatros, que permitia boas condições visuais e acústicas para todo o público, eliminando
a possibilidade de assentos especiais para autoridades, por exemplo. A unidade entre cenografia e
atores, ou seja, o conceito cenográfico, passa a ser inseparável do espetáculo, começa no século XIX,
deixando de cumprir o papel de mera decoração, isto é, não é supérfluo, mas sim outro tipo de texto
não verbal, mas imagético.

A invenção que determinou a maior interação entre ator e cenário foi o advento da luz elétrica.
Castiçais, velas e cachepôs antes usados para iluminar os palcos caem em desuso, o palco pode, com
a eletricidade, ser iluminado por inteiro e os atores, que anteriormente desenvolviam as tramas mais
importantes na boca de cena, passam a ficar mais visíveis à plateia. Com a luz mais uniformizada, a cena
ganha profundidade de palco para ocorrer.

A peça A Dama das Camélias (1852), do francês Alexandre Dumas, conta a história do amor que
regenera uma prostituta, o texto afasta‑se do moralismo cristão ao afirmar que o homem é fruto do
meio e que, portanto, a prostituta não tinha como ser outra coisa dadas as condições em que ela
fora criada. O teatro, mesmo de cunho realista/naturalista é sempre uma representação da realidade,
ou seja, nada no teatro é, mas tudo pode parecer ser. No Realismo, essa representação desejava ser
a mais fiel possível ao real, então, para essa aproximação máxima da realidade, a única saída é a
utilização do recurso da cenografia. O que significa que a cenografia é um artifício necessário para
produzir uma ideia de realidade.

Dessa forma, a negação do ilusionismo no palco será fruto do bom uso do ilusionismo da cenografia.
Confuso, não? Não, se pensarmos no caráter didático desse teatro que deseja diminuir a distância
entre arte e cotidiano, entre o ator e a plateia para revelar verdades sociais. A diferença entre verdade e
encenação era oculta por uma atmosfera de realidade perfeitamente aceitável.

Lembrete

A cenografia tem como prerrogativas a efemeridade e a escolha de


materiais que privilegiem a forma em detrimento da função.

O Realismo enseja a verossimilhança através do uso de materiais e objetos cênicos com desgaste, peso
e características próprias. A caixa cênica italiana permite ocultar em sua estrutura todo o equipamento
necessário para que pareça que não há nada artificial no palco: a iluminação, os equipamentos de
sonoplastia, varas etc. A luz tem que ser autêntica, nada de teatralidade, foco no rosto do ator ou drama.

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

A luz compõe a atmosfera em sintonia com a realidade, reproduzindo fielmente as nuances da luz
natural em função da hora, do lugar e do clima. O iluminador do Realismo deverá ser um tradutor das leis
da ótica que regem a luz no espaço real e transpor esses efeitos para o espaço controlado da caixa cênica.

No fim do século XIX, a luz elétrica mostra algo que deve ser ponderado na evolução da cenografia.
Adolphe Appia, cenógrafo que refuta o naturalismo dos cenários, escreveu, em 1921, A Obra de Arte
Viva, que põe na pauta a questão da iluminação elétrica no teatro e como essa tecnologia sugere um
teatro de morfologias não realistas.

2.2.3 Antinaturalismo

Adolphe Appia: um cenógrafo que pensava fora da caixa (cênica)

Figura 16 – Cenário de Adolphe Appia

Adolphe Appia (1862‑1928) foi um teórico e cenógrafo suíço cujo trabalho é um divisor de águas
no universo da cenografia. No final do século XIX, Appia publica A Música e a Encenação, obra na qual
desenvolve a constatação de que os telões pintados eram um recurso pouco interessante, que não
explorava as potencialidades do espaço cênico. O surgimento da luz elétrica e sua posterior aplicação
no teatro sugeriam novas possibilidades para as montagens teatrais porque sua presença no palco
desvendava a precariedade e os defeitos do espaço gerado pela perspectiva pictórica dos grandes telões
românticos. Para Appia, a pintura em telões e a iluminação eram dois elementos que não se afinavam, o
ilusionismo era desmascarado pela luz elétrica, perdendo sua função de veracidade. Ele também achava
que os telões achatavam o espaço, restando pouca opção para o ator se mover de maneira interessante,
empobrecendo a encenação.

A grande contribuição de Appia para o teatro foi dedicar‑se em fundamentar conceitualmente a


cenografia em um caminho diametralmente oposto à imitação ou mimese da realidade. No lugar do
espaço figurativo, o cenário realista entraria no espaço sugestivo, isto é, o espaço simbólico. O cenário
não é mais simplesmente um espaço de fundo para a ação do ator, o espetáculo seria integrar todos os
seus elementos, como uma obra de arte. Todas as partes são interdependentes e conectadas por uma
coerência formal que tem, como centro irradiador de sentidos, o ator e seu corpo. Appia participava do
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Unidade I

movimento simbolista que, no lugar do naturalismo, propunha que a única realidade possível era o que
o ator conseguia fazer com seu corpo, e, para isso, a cenografia era um suporte que ajudava o ator a
realizar com plenitude os movimentos previstos.

Isso quer dizer que, em um cenário de Appia, jamais teríamos um painel pintado com um
palácio ao fundo ou a representação de um espaço urbano como era o costume dos cenários
operísticos. Ele se dedicaria a estabelecer relações de cheios e vazios, alto e baixo, luz e sombra;
gerando valores simbólicos explorados na movimentação do ator em cena, essas ideias surgem da
tarefa do cenógrafo em recriar um cenário para a ópera Parsifal, de Wagner. Appia entende o que
deveria se tornar o espaço cênico a partir de uma fala do personagem wagneriano, o cavaleiro
Gurnemanz que, ao encontrar‑se diante da magnificência do reino do Santo Graal, diz que ali o
“tempo se converte em espaço” (WAGNER, 2013, p. 14).

Se Wagner propunha que a cenografia original fosse uma floresta, Appia destacaria da floresta
seus elementos simbólicos traduzidos em planos verticais e horizontais, luz e sombra, em um arranjo
tridimensional no palco. Para Appia, a sombra era tão importante quanto a luz e o desenvolvimento da
luz elétrica em sua cenografia permitia estudos de controle de luz e cor que modificaram definitivamente
o vocabulário da iluminação cênica.

Appia acreditava que a cenografia deveria oferecer um sistema de formas e de volumes reais,
construídos sem ornamentos representativos ou narrativos. O ator, nesse tipo de cenário, encontraria
modos de agir e de se mover plasticamente, interagindo fisicamente com essas formas. Em seus projetos,
aboliu o telão pintado do fundo do palco e criou espaços compostos de rampas, escadas e elevações do
piso, que obrigavam o corpo a dialogar com eles e transformar essa interação em formas expressivas.

Com esses elementos, Appia criou “espaços rítmicos”, incorporando a eurritmia, um método de ensinar
um ritmo musical por meio dos movimentos corporais da dança. Appia criou uma série de cenários
baseados no corpo humano e sua relação com a música. Trabalhava o conceito musical e o corpo do ator,
traduzidos em plataformas, rampas, esteiras, cortinas e pilares de diferentes alturas. O ator se utilizava
desses elementos cênicos para criar movimentos variados tendo maior variabilidade nessa atividade.

Gordon Craig e a supermarionete

Este cenógrafo, nascido em família de artistas, foi contemporâneo de Appia, suas ideias radicalizariam
o antinaturalismo que Appia preconizara. Para Craig, em última instância, o espetáculo aconteceria sem
a presença do ator, pode parecer antipático e mal‑humorado, mas na verdade era uma crítica à tendência
vigente na época de os atores improvisarem em cena, o que ia totalmente contra seus princípios.

O que Craig queria enfatizar no ator era a qualidade plástica, não individual, mas do corpo humano
em geral através do movimento do ator no espaço cenográfico. Por isso, o ator, nesse tipo de teatro
não narrativo, desenvolvia movimentos estilizados compreensíveis universalmente, seus desenhos
demonstram bem essa visão, os atores e gestos eram representados por elementos gráficos. Assim
como Appia, ele recusou o Realismo em seus cenários e propôs a substituição definitiva dos painéis
realisticamente pintados por cenas tridimensionais, constituídas por painéis horizontais, destacados por
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CENOGRAFIA E VITRINISMO

luz e cor. Seu conceito norteador apostava na mobilidade total das peças cenográficas que poderiam
deslocar‑se vertical e horizontalmente de acordo com a movimentação e o controle do ator. Para Craig,
a emoção poderia vir da plateia espontaneamente, por meio da reação a uma composição dos elementos
de cena das formas cenográficas, associadas à música, cores e iluminação.

Ele foi reconhecido internacionalmente após a estreia da cenografia de Hamlet, de Shakespeare, e em


1912, a pedido do diretor Stanislavski. Para a cenografia da peça, Craig utilizou‑se de vinte painéis que
acabaram não funcionando muito bem, o que lhe rendeu críticas. Por outro lado, sua cenografia ofereceu
uma nova perspectiva nunca imaginada nas versões até então realizadas da obra de Shakespeare.

Craig lançou um ensaio que foi muito polêmico, o ator e a supermarionete, no qual ele igualava
o ator a qualquer outro elemento da cena, como uma marionete que deveria reagir passivamente às
ordens do encenador, cogitando a ideia de substituir o ator pela supermarionete. Appia e Craig tinham
diferenças fundamentais, mas se afinavam na ideia do antinaturalismo, para Appia o corpo do ator e sua
relação com a música (Appia era versado em óperas) resultavam na movimentação do ator, o cenário
derivaria desse conjunto, facilitando o fluxo em cena.

Figura 17 – Cena do filme expressionista O Gabinete do Dr. Caligari

Expressionismo

O Expressionismo surge como mais um estado de ruptura com os espetáculos naturalistas.


Diferente de Craig e Appia, o Expressionismo fazia uso de narrativas, mesmo que fragmentadas, que
recuperavam a dimensão da tragédia no teatro. Os cenógrafos expressionistas não consideravam os
cenários representações de lugares e que não tinham nada a ver com representações realistas do espaço.
O dilaceramento da alma humana moderna era traduzido através da luz contrastante, dos volumes
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Unidade I

e planos distorcidos, dos recortes angulosos; a inconstância do mundo moderno era sintetizada por
elementos arquitetônicos, como escadas, pontes suspensas e planos giratórios, tudo o que gerasse
sensação de instabilidade.

Os expressionistas do teatro tiveram como referência a obra pictórica de Van Gogh. Além do teatro,
o Expressionismo explorou também o ainda incipiente cinema como meio expressivo.

Construtivismo

A mobilização política da Revolução Russa gerou também uma grande revolução estética na Europa,
especialmente para as nascentes vanguardas artísticas. Os espetáculos teatrais passam a ser eventos de
mobilização política de massa, os grandes comícios eram festivais culturais, misturando canto e dança
com canhões e armas. A obra de arte seria, em última instância, a própria sociedade que nascia da união
do proletariado, o homem era parte de uma coletividade indissociável e esse pensamento norteou as
características da cenografia construtivista: imagens, engrenagens, elementos da estética industrial que
utilizou projeção de imagens, filmes, motores, máquinas, tipografia e estruturas de metal criando inúmeros
planos para a ação e misturando elementos da realidade cotidiana do proletariado às criações artísticas.

Oskar Schlemmer e o ballet triádico da Bauhaus

Antes das vanguardas artísticas a abstração na arte ocidental não existia. A Escola de Artes e Arquitetura
da Bauhaus captou o espírito da época e colocou no palco a experimentação de novas formas de percepção
do corpo humano em relação com as novas realidades da industrialização em direção a um teatro abstrato
onde a geometria definia as relações do corpo com o espaço. Os estudos de Oskar Schlemmer o afastaram
das representações realistas, suas ideias idealizavam um novo ser humano.

Figura 18 – Figurinos para o Balé Triádico em 1926

Schlemmer, pintor, coreógrafo e professor do departamento de teatro da Escola de Artes Bauhaus


passou a pesquisar a anatomia humana, seus princípios mecânicos no tempo e no espaço. Foi através
do Balé Triádico (1922) que esses conceitos se concretizaram em forma de arte abstrata. Os figurinos do

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

balé impediam a movimentação natural dos corpos dos bailarinos, exigindo dos atores novas relações
com seu corpo e os movimentos no espaço. Oskar Schlemmer buscava novas possibilidades de percepção
do corpo do ator, ora restringindo o livre movimento, ora exigindo novas atitudes e gestos.

As oficinas de Schlemmer na Bauhaus geraram adereços, máscaras, figurinos e cenários que


pesquisavam efeitos óticos e mecânicos. Em vista disso, os espetáculos eram rigorosamente coreografados,
sem espaço para o improviso, a dramaticidade convencional dos espetáculos teatrais não funcionava em
seu palco. Seus desenhos de figurinos eram como projetos de espaços, exploravam a lógica estrutural e
as articulações entre as partes.

Erwin Piscator e o teatro total

Piscator foi um encenador cujo texto era montado a partir de atualidades da época, compondo
notícias de jornal com memórias, artigos, discursos e textos diversos. Sua encenação acontecia em
cenários não naturalistas, compostos por palcos com cenografia construída básica, mas usando a
projeção de filmes e imagens. O texto dramático era expandido com a inclusão de informações visuais
diretamente ligadas à realidade recente da época, sua cenografia e forma de encenação foi chamada
de arte total.

Um dos cenários desenvolvidos por Piscator incluía duas esteiras rolantes em sentidos contrários
que eram usadas pelo único ator em cena que circulava ininterruptamente por elas, cujo funcionamento
era mecânico. Essa era a metáfora dos tempos da indústria, no qual viveu e atuou Piscator.

Em 1927, Walter Gropius, então diretor da Bauhaus em Dessau, projetou para Erwin Piscator o Teatro
Total (Total Theater), um edifício teatral pensado como o espaço ideal para os novos tipos de espetáculo que
surgiam da estética das vanguardas artísticas da Europa daquela época. O projeto do Total Theater resultou
em espaços teatrais polivalentes e multifuncionais, sua configuração interna era móvel e possibilitava
reconfigurações espaciais internas, poderia ser utilizado como anfiteatro, arena ou palco lateral. Sua
estrutura incluía palcos giratórios, passarelas laterais e outros dispositivos cênicos inovadores.

Figura 19 – Tetro Total – Projeto de W. Gropius para Piscator, 1926, nunca realizado

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Unidade I

Josef Svoboda (1920‑2002)

Josef Svoboda foi um designer cênico que nasceu na atual República Checa, formou‑se em arquitetura
e veio a se interessar por teatro e design no final da Segunda Guerra Mundial, quando deu início à sua
formação no Conservatório de Praga.

Tornou‑se o principal designer de cena do Teatro Nacional checo. Suas instalações multimídia,
ainda em uma época desprovida de recursos eletrônicos informatizados, foram reconhecidas
internacionalmente mesmo o cenógrafo vivendo em um país comunista, com limitações de intercâmbio
cultural com países fora do território da União Soviética.

Svoboda é o pai do uso de projeções de luz e imagem no palco teatral, sua influência estética e técnica
no campo da cenografia mundial veio a colaborar para a criação da quadrienal de cenografia de Praga,
evento que congrega estudantes e profissionais do mundo inteiro para expor trabalhos e trocar experiências.
A cidade respira teatro e o grande difusor dessa vocação da capital checa foi Svoboda e a geração de artistas
contemporâneos a ele, esse evento ainda é o mais forte no mundo a se debruçar nas técnicas cenográficas.
Sua arte atravessou fronteiras políticas e uniu profissionais do mundo em torno do amor à cenografia.

Figura 20 – O nascimento do Mundo, Expo 1967, Montreal

No final da década de 1950, Svoboda e o diretor Alfréd Radok apresentaram em Bruxelas uma peça
inaugurando um tipo de palco nunca antes experimentado, nasciam as técnicas do Lanterna Magika e o
Polyekran. A inovação consistia em misturar elementos do cinema com o teatro e o forte apelo visual das
imagens projetadas em diversas telas colocadas paralelamente interagindo na mais absoluta precisão e
sincronicidade com os atores e cenografia construída. Dessa experiência nasce, em Praga, o espaço de
pesquisas teatrais, o Lanterna Magika, que continua sendo um centro de importantes pesquisas formais,
cenográficas e dramáticas.

Nas pesquisas estéticas do Lanterna Magika, os atores contracenavam com elementos virtuais, como
a luz e as projeções filmadas anteriormente, os materiais que eram utilizados na cenografia também eram

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

inovadores. Até então, os cenários eram confeccionados com madeira e tecido, Svoboda introduz grandes
planos de tecidos e materiais plásticos que, aliados ao trabalho de iluminação, geravam espaços com
atmosfera de sonho não reais, por isso podemos dizer que a abordagem de seu teatro era não naturalista.

Nos anos de 1960, os espaços cenográficos eram pensados de maneira tridimensional, volumes
construídos materialmente adequados à percepção visual cotidiana – altura, largura e profundidade
reais. Mas Svoboda engajou uma nova concepção: trouxe através de luzes e projeções a quebra da
sensação de unidade do lugar mesclando no palco espaços reais e virtuais.

A atmosfera de sonho conduz a uma viagem ao tempo simbólico na direção de uma conexão entre
o espaço real e o psicológico que só o teatro alcança. Svoboda incidia no palco projeções simultâneas e
múltiplas de um mesmo objeto ou pessoas, interferindo psicologicamente no espectador, que vivencia
a sensação de hiperespaço.

Figura 21 – Cenário para a ópera Lucia de Lammermoor, 1993

O Lanterna Magika caracterizou‑se por apresentações não verbais que pudessem ser apreendidas
por pessoas de qualquer nacionalidade. As realizações de Svoboda, aproximadamente setecentas ao
longo da vida, reuniram cenografias para dança, ópera e outros eventos cênicos de grande magnitude,
como ainda cinema e televisão.

Há inúmeros outros cenógrafos teatrais que gostaríamos de incluir aqui, o assunto é apaixonante,
mas a cena contemporânea e suas relações com a tecnologia não serão tratadas neste livro‑texto.

Resumo

A cenografia, como a entendemos hoje, é uma atividade que nunca parou


de se desenvolver e ampliar sua atuação. Os gregos foram os fundadores
do teatro e o dedicavam festas e rituais a Dionísio, deus do vinho, da boa
safra de boas colheitas. Quando os rituais agregam os textos e se tornam
encenações dramáticas, as peças se transferem para teatros construídos,
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Unidade I

mas como os gregos exerciam a cidadania nos espaços públicos, o teatro


também era descoberto, ao ar livre e a plateia participava ativamente
das narrações. Os gregos aproveitavam as técnicas navais da época, um
guindaste de porto marítimo servia para içar personagens pelos ares.

Depois foi a vez de os romanos desenvolverem os edifícios teatrais.


Embora suas peças fossem adaptações dos gregos, os romanos eram
engenheiros excepcionais e construíram edifícios teatrais majestosos, entre
eles o Coliseu, que, ao contrário dos teatros gregos, podia ser coberto com
tecidos retráteis.

O teatro sacro, depois da afirmação da religião católica, se estendeu pela


Europa, principalmente na Idade Média. Como a maior parte das pessoas
era analfabeta, a igreja católica apoderou‑se do teatro para disseminar a
religião, dessa forma, as peças litúrgicas saíam do âmbito da Igreja para
juntar multidões nas praças.

Conforme o humanismo cresce como filosofia, o teatro vai ganhando


independência temática. Os teatros construídos na Renascença incluem no
palco a cenografia, através de grandes painéis fixos desenhados a partir
da maior invenção do Renascimento italiano: a perspectiva, que permite
realizar fundos cada vez mais ousados.

O Barroco inaugura a ópera, o que significa unir música, canto e


atuação juntos nos palcos, e que palcos! Nesse período, os palcos eram
cheios de efeitos especiais, pois as óperas eram eventos muito disputados
pelo público.

Temos ainda a iluminação a gás, a revolução industrial, a luz elétrica e


as projeções de imagens. Tudo foi e continua sendo aproveitado pelo teatro,
por isso é tão importante estudarmos sua história, para entendermos que
a cenografia sempre foi e sempre será uma práxis conectada ao seu tempo,
às expressões de sua época.

Desde as tochas dos neolíticos até a descoberta da luz elétrica, o que


podemos notar é que o teatro, através da cenografia, sempre absorveu com
naturalidade as novas tecnologias em benefício da comunicação de suas
mensagens. A ligação da cenografia com o desenvolvimento tecnológico é
inerente à sua prática.

O teatro parece ser uma expressão artística que reúne no palco a


ancestralidade do homem e a mais avançada tecnologia, sem cisões, como
sendo partes compositivas da natureza humana.

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

Exercícios

Questão 1. Leia o texto e as afirmativas a seguir:

Caverna de Chauvet e a arte da Pré‑História

Tales Pinto

São 425 figuras de animais, sendo principalmente 65 rinocerontes, 74 leões e 66 mamutes, gravados
nas paredes e estalactites das paredes da Caverna de Chauvet. Descoberta ao acaso por espeleólogos
amadores, em 1994, as pinturas presentes na caverna são consideradas as mais antigas produções
artísticas que se têm conhecimento.

As pinturas da Caverna de Chauvet, localizada no sul da França, no Vallon‑Pont‑d’Arc, são datadas


de algo entre 30 mil e 40 mil anos atrás. Essa datação das pinturas da Caverna de Chauvet torna‑as as
mais antigas já conhecidas pelo homem. Mas não é só isso que torna fascinante as pinturas da Caverna
de Chauvet.

O mais interessante é o nível de elaboração das representações pictóricas. Técnicas de sombreamento


das imagens, de raspagem das paredes antes de pintá‑las e o esfumaçamento das cores evidenciam a
complexidade técnica desenvolvida pelos seres humanos do Paleolítico para expressar artisticamente as
experiências de sua vida.

A caverna é composta de várias salas onde estão pintados animais e seres humanos, principalmente
partes do corpo humano, como as mãos ou o ventre de mulher. As pinturas em perspectiva e a impressão
de movimento dadas às pinturas de animais impressionam pela complexidade artística em um período
tão longínquo da existência das pessoas.

A explicação para a preservação dos desenhos está no fato de a entrada principal da Caverna de
Chauvet ter sido fechada por volta de 21 mil anos atrás por rochas que se precipitaram após abalos
sísmicos na região. Tal situação impediu alterações climáticas no interior da caverna que contribuíssem
para a deterioração das obras de arte presentes em seu interior.

Por esse motivo, logo que foi descoberta e comunicada às autoridades francesas, a Caverna de
Chauvet transformou‑se em Patrimônio Histórico e teve sua visitação proibida. Uma porta blindada fecha
a única entrada do local, sendo instalados ainda um moderno sistema de vigilância e acompanhamento
climático de seu interior.

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Unidade I

A) B)
Figura

Disponível em: <https://historiadomundo.uol.com.br/pre‑historia/


caverna‑de‑chauvet‑e‑a‑arte‑da‑prehistoria.htm>. Acesso em: 22 nov. 2018.

I – De acordo com o texto, o que torna as pinturas da Caverna de Chauvet fascinantes é o fato de
serem as mais antigas já conhecidas pelo homem.

II – A Caverna de Chauvet, fechada para visitação há 21 mil anos, só pode ser conhecida através
do documentário A Caverna dos Sonhos Esquecidos, sendo possível ao espectador percorrer todas
as galerias da caverna e acompanhar as explicações e descrições dadas pelos historiadores e demais
cientistas que trabalham no local.

III – Os pintores da Caverna de Chauvet tinham conhecimentos artísticos, pois o nível de elaboração
das representações pictóricas demonstra um saber apurado. Técnicas de sombreamento das imagens, de
raspagem das paredes antes de pintá‑las e o esfumaçamento das cores evidenciam esse conhecimento
técnico e artístico.

É correto apenas o que se afirma em:

A) I.

B) II.

C) III.

D) II e III.

E) Nenhuma afirmativa é verdadeira.

Resposta correta: alternativa E.

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CENOGRAFIA E VITRINISMO

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: as pinturas da Caverna de Chauvet são fascinantes, de acordo com o texto, pelo nível
de elaboração das representações pictóricas. A riqueza de técnicas cria espanto nos pesquisadores.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a Caverna de Chauvet não foi fechada há 21 mil anos para visitação. O motivo do
fechamento foi em função de rochas que se precipitaram após abalos sísmicos na região.

III – Afirmativa incorreta.

Justificativa: não se pode afirmar que os pintores da Caverna de Chauvet tinham conhecimentos
artísticos. O saber deles era mais implícito, um pendor para a representação do vivido.

Questão 2. Sobre os teatros grego e romano, considere as afirmativas a seguir:

I – O teatro romano, como estrutura arquitetônica, ainda é popular na atualidade, estando presente
em diversos projetos atuais, de parques a edifícios públicos. O surgimento do teatro romano é atribuído
aos ritos de fertilidade e aos cultos a Dionísio.

II – Os primeiros festivais tinham, em sua gênese, origem religiosa. Os sacerdotes ocupavam a primeira fila
da orquestra. As peças teatrais abordavam temas humanísticos em uma concepção de uma nova ordem social
e urbana grega, como o destino, as fatalidades, as injustiças e a justiça, as oportunidades, as desgraças e o livre
arbítrio, culminando nas grandes obras de Sófocles, Ésquilo, Eurípedes, Aristófanes e Menandro.

III – O conceito de catarse no teatro grego deve‑se a Aristóteles, na Arte Poética. Nessa obra, o autor
fala sobre purgação e purificação da alma através da descarga emocional provocada pelo drama.

Está correto o que se afirma apenas em:

A) I, II e III.

B) I e III.

C) I e II.

D) II e III.

E) II.

Resolução desta questão na plataforma.


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