Você está na página 1de 181

E ncruzilhadas filosóficas

Copyright desta edição ©2020 by Ape’Ku Editora e Produtora Ltda

Foi feito o depósito legal conforme Lei 10.994 de 14/12/2004


Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da editora

Produção gráfica: Ape’Ku Produções


Foto da capa: Mar Aberto, 2011 (Elisa de Magalhães)

Direitos desta edição reservados à


Ape’Ku Editora e Produtora Ltda
Rua Jornalista Orlando Dantas, 4 PV 3 - Botafogo
Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22.231-010
contato@apeku.com.br
www.apeku.com.br

ENCRUZILHADAS
dados internacionais de catalogação na publicação (cip)

B732b Borges-Rosario, Fábio


Encruzilhadas filosóficas / Fábio Borges-Rosario, Marcelo José Derzi
Moraes e Rafael Haddock-Lobo (organizadores). Coleção X (Organização
Rafael Haddock-Lobo) – Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.
FILOSÓFICAS
Organizadores Fábio Borges-Rosario Marcelo José Derzi Moraes Rafael Haddock-Lobo

360 p. ; 23 cm.

ISBN 978-65-86657-11-1  versão impressa

Inclui bibliografia.
1. Filosofia. 2. Filosofia Moral. I. Título. II. Autor.

CDD 170

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
editorial Ana Luisa Rocha Mallet - Universidade Estácio de Sá
Carolina Magalhães de Pinho Ferreira - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carlos Dimas Martins Ribeiro - Universidade Federal Fluminense
Cinara Maria Leite Nahra - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Cristiane Maria Amorim Costa - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Daniel Abreu de Azevedo - Universidade de Brasília
C onselho

Diana I. Pérez - Universidad de Buenos Aires


Diogo Gonçalves Vianna Mochcovitch - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fabio Alves Gomes de Oliveira - Universidade Federal Fluminense
Guilherme Dias da Fonseca – Université Clermont Auvergne | França
Jefferson Lopes Ferreira Junior - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Maria Clara Marques Dias - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Martina Davidson - Universidade Federal Fluminense
Manuel Villoria Mendieta - Universidad Rey Luan Carlos | Espanha
Maria Andréa Loyola - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Michelle Cecille Bandeira Teixeira - Universidade Federal Fluminense
Murilo Mariano Vilaça - Fundação Oswaldo Cruz
Paula Gaudenzi – Fundação Oswaldo Cruz
Rafael Ioris – University of Denver | EUA
Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Renata Ramalho Oliveira Ferreira - Instituto Nacional de Câncer
Rita Leal Paixão - Universidade Federal Fluminense
Suane Felippe Soares - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Vanessa Neitzke Montinelli - Instituto Nacional do Câncer & Universidade Federal do Rio
de Janeiro
Wallace dos Santos de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Todos os textos aqui reproduzidos são de inteira


responsabilidade de seus autores.
Odara, morador da encruzilhada

S umário
Firma seu ponto com sete facas cruzadas
Filho de umbanda, pede com fé Padê
Pra Seu Sete Encruzilhadas que ele dá o que você quer
(Ponto de Exu Rei das Sete Encruzilhadas) 12 Quem te disse que a rua anda vazia?, por Luiz Antonio Simas

13 Toco, farofa e marafo, por Fábio Borges-Rosario, Marcelo José


Derzi Moraes e Rafael Haddock-Lobo
Mas ele é capitão da encruzilhada, ele é. Mas ele é ordenança de Ogum
Sua divisa quem lhe deu foi Oxalá, sua coroa quem lhe deu foi Omolu 19 Aqui, na encruzilhada, entoo um oríkì fún Èsù, por Carlos
Ô salve o sol, salve a estrela, salve a lua, Henrique Veloso - Olùkó Baba Ònà
Saravá Seu Tranca Rua, que é dono da gira no meio da rua
Inã Inã mojubá! Inã Inã mojubá!
Saravá Seu Tranca Rua que é dono da gira no meio da rua Parte I – Cruzos e giras
(Ponto de Exu Tranca Rua)
26 poema em cruzo, por Luciana Pimenta

29 Nas encruzilhadas com Derrida, por Fábio Borges-Rosario


Vi um menino sentado na encruza
Perguntei o que que foi, perguntei o que que faz 43 Uma conversa (por telefone) entre seu Sete Encruzilhadas e a
Eu vim aqui desmanchar feitiço polaca Sophia Fleishmann, por Fernanda Siqueira Miguens
Mas pra Calunga eu já vou voltar
Vi um menino sentado na encruza 48 Os gêneros das (e nas) ruas, por Rafael Haddock-Lobo
Perguntei o que que foi, perguntei o que que faz
Eu sou Exu Mirim e aprendi a trabalhar 62 Becos, ruas, marquises e esquinas, por Marcelo José Derzi Moraes
Quem me ensinou foi Seu Tranca Rua
O seu feitiço eu vou quebrar 81 O Maraca era nosso: o futebol em tempos de arenização, por
Vi um menino sentado na encruza Adriano Negris
Perguntei o que que foi, perguntei, o que que faz
Quero um marafo pra beber e um charuto pra fumar 103 Samba, composição e espiritualidade, por Felipe Ribeiro Siqueira
O seu feitiço eu mandei embora para nunca mais voltar
(Ponto de Exu Mirim) 113 Mosquinha, por Teresa Dantas
114 O país do subúrbio: natureza incendiária, indústria de despejos, 275 Pensando uma Estética Africana, por Naiara Paula Eugenio
fábrica de ruídos, por Claudio Medeiros, Marcos Nascimento e Sérgio
Ortiz de Inhaúma 280 Onde vive a tua ancestralidade?, por Katiúscia Ribeiro Pontes

133 O Severino e a produção ética da Severinilidade, por Francisco 287 O pensamento filosófico de Rosa Egipcíaca e Estamira. Ensaios de
Veríssimo um apocalipse colonial, por Ulysses Pinheiro e Fabiano Lemos

150 Traço Cego, por Ana Emília Lobato


Oló

Parte II – Descolônias e Ancestralidade 314 Vidas Rasteiras, por Alberto Pucheu

152 O testemunho de uma mulher Guarani Nhandewa, por Sandra 329 Primeiro gole é do santo e a saideira é verso que não termina, por
Benites Guarani Nhandewa Luiz Rufino

160 O ressoar das palavras antigas, por Lucas Munduruku


333 Referências
165 Quando o vulcão olhou para mim: sobre o meu encontro com os
Mapuche, por Karine L. Narahara 351 Sobre os autores

187 Temejakrekatê: do gnosecídio à afirmação dos saberes Akrãtikatêjê 357 Nota final
no vale do Tocantins-Araguaia, por Ronnielle de Azevedo-Lopes

207 Sonho como exercício da diferença: o protagonismo ameríndio no


questionamento do fim, por Thamara de Oliveira Rodrigues

221 O ronco (ab)surdo das batalhas silenciadas: Foucault e o


colonialismo, por Diego dos Santos Reis

239 O Quilombismo: Uma expressão da filosofia política


afroperspectivista, por Lorena Silva Oliveira

260 Notas sobre educação pluriversal: África & Afrodiáspora, por Aza Njeri
P adê Eu vou, eu vou, eu vou mandar chamar meu povo Tu que és o senhor dos

EXU
Eu vou, eu vou, eu vou mandar chamar meu povo caminhos da libertação do teu povo
Eu vou mandar chamar meu povo lá nas sete encruzilhadas sabes daqueles que empunharam
Eu vou mandar chamar meu povo, sem exu não se faz nada teus ferros em brasa
contra a injustiça e a opressão
(Ponto de Chamada de Exu) Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama
Cosme Isidoro João Cândido
sabes que em cada coração de negro
há um quilombo pulsando
em cada barraco
outro palmares crepita
os fogos de Xangô iluminando nossa luta
atual e passada

Ofereço-te Exu
O ebó das minhas palavras
Neste padê que te consagra
Não eu
Porém os meus e teus
Irmãos e irmãs em
Olorum
Nosso pai
Que está
No Orum
Laroiê!

(Abdias Nascimento, Padê de Exu Libertador)


Luiz Antonio Simas Fábio Borges-Rosario

farofa e marafo
te disse que a rua anda vazia ?
Marcelo José Derzi Moraes
Rafael Haddock-Lobo
O feitiço que atiça o catiço
Rompe a noite sem fazer esforço
É o toque do tambor no rebuliço Quando passar na encruzilhada,
No fio da navalha num cafofo não se esqueça de olhar pra trás...

Marabô convocou seu Tiriri Isso não é um livro.


Calunguinha chegou lá da porteira É um ebó coletivo que arriamos nas encruzilhadas da filosofia
Exu do Lodo avisou: eu moro aqui para mostrar que seu ideal de pureza é ao mesmo tempo ingênuo e

T oco ,
Sete Saias chamou Tata Caveira perverso.
É uma saudação a Exu, patrono da palavra filosófica.
Tranca Rua chegou na encruzilhada Cada um que chega contribui com seu axé.
Acendeu no luar sua centelha Podíamos dizer que se trata de uma reunião de textos apresenta-
Vem cantando a Cigana da Estrada dos no Seminário Encruzilhadas ao longo do ano de 2019, somando-se
“Ganhei uma barraca velha” a esses textos algumas outras vozes. Mas não.
Não é apenas um livro, nem somente uma coletânea.
“Deu uma ventania, ô Ganga” Cada peça aqui oferecida participa de uma cerimônia de cru-
Gargalhando baixou Dona Maria zamentos, perspectivações e descolonizações que tem como objetivo
Q uem

Quem falou que na esquina ninguém anda? mostrar aos leitores e leitoras que a encruzilhada representa a maior
Quem te disse que a rua anda vazia?1 possibilidade de abertura de caminhos.
Reunindo aqui diferentes tipos de toque, destacamos aqui três
principais batidas: escrituras de cruzo, que buscam exuzilhar sul e nor-
te, amiudando este por justiça àquele; textos que atingem em cheio o
projeto colonial, a fim de derrubar seu edifício projetado no assassinato
e na escravidão; e artigos afrocentrados ou afroperspectivados, exaltan-
do a radicalidade, no duplo sentido do termo, destas filosofias.
Porém, dizer isso é muito pouco. Há muito mais aqui em jogo.

1 Disponível em:
Facebook: https://www.facebok.com/luizantonio.simas/videos/2931071063649042/
Instagram: https://www.instagram.com/tv/B-itsJkpxLj/?igshid=10g5arh60mk39
Twitter: https://t.co/hrIyt5P9b7
https://twitter.com/simas_luiz/status/1246416235098710023?s=20

12 13
fogo no pavio

dendê na farinha
Quem nos acendeu a chama foi Derrida. Ele, um filósofo do As travessias marcam nossos pertencimentos, desde a chegada
fogo e das cinzas; um filósofo nascido numa grande encruzilhada que é das etnias primevas, passando pela ocupação lusitana, translado das et-
o Mediterrâneo. Mas, do lado de lá. Africano sim, porém com qualquer nias africanas e imigração de europeus e asiáticos. Nos oceanos estão
traço de africanidade retirado pelo avanço colonial no Magrebe. soçobradas as memórias das inúmeras vidas que embarcaram, mas não
Africano, então? Nascido na África sem africanidade, com cer- desembarcaram em nossos portos. Memórias espectrais que clamam
teza. Por isso, sensível a toda despossessão, ainda que sem acreditar em pela confissão do preço que pagaram em navios que não prezavam a
propriedades, origens e nascimentos... dignidade humana.
O

Tentando, contudo, abandonar todos os grilhões desse euro- Confessar os crimes que foram cometidos contra a dignidade
peísmo da filosofia, em um constante flerte com outros saberes possíveis de inúmeras pessoas sequestradas de suas terras e transladadas para as

O
e impossíveis. senzalas e das pessoas que acreditaram na promessa que seriam coloni-
Esse morador dos dois lados do mar, e que sempre se sentiu zadoras numa terra vazia, mas que não eram ermas, eram habitadas por
estranho quando permaneceu em cada um dos lados apenas – e que, etnias que chegaram em idos tempos.
depois, passa a transitar também entre os dois lados do atlântico –, esse Situados na encruzilhada da narrativa que seria oficializada e
atravessador, que é Derrida, esse filósofo de duas cabeças, como firma empenhados na recusa de reconhecer que suas riquezas foram cons-
seu duplo vínculo e sua dupla ciência, é ele quem nos dá a vela que, truídas pelo suor de pessoas escravizadas e pela exploração das pessoas
aqui, acendemos. libertas e das imigrantes, além do genocídio das etnias primevas, as
Filosoficamente, é o fogo do Magrebe que nos ensina a exuzi- narradoras oficiais queimaram as memórias documentadas das lutas po-
lhar os pensamentos e que nos move a, aqui em outros tantos lugares, pulares por libertação e transformaram em heróis nacionais aqueles que
lançarmo-nos nas travessias. durante a vida haviam sido sequestradores e assassinos.
Vela acesa na encruzilhada. As aristocracias não falam pretuguês, não dançam nos calundus
Salve Derrida, salve Exu. e não acendem vela para Exu. Nunca compreenderam a necessidade de
conversar com os fantasmas. Mas, os guardiões escutam os lamentos
dos que sofrem.
Exu atravessou o mar de fogo sem que o fogo lhe queimasse
para atender aos pedidos que lhe eram feitos nesta banda. Não veio
sozinho. Trouxe Legba, Aluvaiá e Bombogira.
Sob os auspícios dos Voduns, Inkisses e Orixás das encruzilha-
das, nossos ancestrais que lutaram contra as opressões coloniais e im-
periais continuaram após à morte a ouvirem os clamores do seu povo.
Escolheram as encruzilhadas das cidades, vilas, cemitérios, matas, etc.,
para serem suas moradas, suas calungas. As calungas são os locais sagra-
dos que lhes dão força e onde os seus protegidos lhes ofertam os padês.

14 15
Ofertar um padê é comprometer-se com a luta pelo fim das opressões.

baforada de cachaça
Significa narrar às histórias dos heróis que lutaram pela dignidade e libertação
de cada pessoa neste país. É confessar que as condições adversas são superáveis Diante dessas múltiplas encruzilhadas em que nos encontra-
quando a coletividade dos vivos se une na profissão da memória dos ancestrais mos, só nos restou arriar um padê, uma padê para uma ontologia das
e promessa de um mundo igualitários aos que nascerão. encruzilhadas, com charuto, vela, farofa e cachaça. As escrituras produ-
Preparar um padê é fazer um convite à alimentação comunitária. Sig- zidas a partir dessas encruzilhadas têm suas origens embaraçadas e seus
nifica convidar a comunidade dos mortos, dos vivos e dos que nascerão à destinos incertos, uma vez que depois que se liberta a escrita, tal como
mesa. Alimentação simbólica, ritual e real que renova, rearticula, fortalece e o vento de Iansã, as folhas que se espalham serão colhidas a partir dos
compromete os participantes com a vida comunitária. encontros quase sempre não programados. E essas escrituras das encru-
Os ingredientes simbólicos do padê são as histórias dos que nos ante- zilhadas, com várias línguas, sotaques, histórias e espaços diferentes nos
cederam, os ingredientes rituais são nosso compromisso em contar essas his- trazem a potência do que é uma filosofia popular brasileira, uma filo-
tórias às novas gerações e os ingredientes reais são nossas ações, nossa luta pelo sofia que flerta, que se constitui com múltiplas heranças, africanas, in-
fim de toda e qualquer opressão no planeta. dígenas, europeias, que fecha junto com o que surgiu desses encontros;
Misturar os elementos, o dendê e a farinha, é conclamar a confluência que, sem dúvida nenhuma, foram violentos. Assim, a partir desse en-

A
todas e todos que sofrem. Padê não é síntese. É confluir os elementos, os per- contro, a filosofia popular brasileira, que parte da encruzilhada, não só a
tencimentos, as memórias, as lutas, as ações. encruzilhada de exu, mas, também, a encruzilhada do caboclo na mata;
Preparar o padê, pegar a vela e o fósforo, não esquecer o charuto e o a encruzilhada do negro evangélico, que se vê na aporia de assumir uma
marafo. Ir à encruzilhada. Eis o que se propõe neste livro. nova língua e não conseguir abandonar aquilo que lhe pertence a escrita
do seu corpo; a encruzilhada do texto; a encruzilhada dos pensamentos;
a encruzilhada entre as dicotomias impostas; a encruzilhada das línguas.
Se existe um programa de uma filosofia popular brasileira, esse
programa é o de propor uma coreografia da descolonialidade a partir da
própria desconstrução da colonialidade, uma filosofia que dança, canta,
torce ou reza enquanto promove pensamento.
A filosofia popular brasileira é uma filosofia na qual a separa-
ção entre corpo e espírito se confunde, e que se manifesta na pele, na-
quela coisa de pele. Considerando, portanto, os mais diversos espaços
– o terreiro, a esquina, o estádio de futebol, o puteiro, a universidade
(puteiro por excelência), o quilombo, a aldeia, a igreja, a favela, o su-
búrbio, o fundo do quintal, sambas, sertões e mares –, as escritas das
encruzilhadas se escrevem em corpos, muros, praias, matas, ruas, ca-
dernos e computadores. Nesse sentido, dançamos, cantamos e giramos
nas encruzilhadas. Nossas escritas, portanto, criam uma verdadeira gira
macumbística na qual pensamentos, epistemologias, saberes, modos de

16 17
ser e sentidos são forjados para que nossas mandigas e preceitos se configurem Carlos Henrique Veloso

È sù
como outros modos de fazer filosofia. Olùkó Baba Ònà
Sabemos a responsabilidade do que falamos e de quem falamos; assim,

na encruzilhada , entoo um oríkì fún


nossas consultas e nossas obrigações são pagas nas encruzas, nas matas, nos
mares, na pedreira, na estrada, mas, também, na universidade. Propor escritas Antes de começar essa toada em louvor a Èsù, Caminho e dono
desde as encruzilhadas a partir e de dentro da universidade é uma prática de de todas as encruzilhadas, autoridade suprema aqui, aí, ali e em qualquer
contra-colonização, que desconstrói a violenta colonialidade dos nossos seres, lugar, quero dizer que o meu português foi violentamente movido, meu
de nossos espíritos, de nossos corpos, de nossas línguas e de nossas escrituras. linguajar, meu falar e consequentemente meu escrever foi trans-vertido,
Essas escritas vão vadiar; às vezes, vão se perder; às vezes, vão se achar, cen- modificado, profundamente alterado pelo contato com a língua yoru-
tralizando quando for o caso, margeando sempre que possível, correndo gira, bá. Minha forma de pensar algumas palavras mudaram minha forma
virando noite, se banhando à luz da lua, se camuflando à luz do sol. Mas, tal de saber meu-ser no mundo e o mundo que deixou de ser objeto para
como os vadios e vadias, essas escrituras estão sempre operando no limite, na ser o que é, absolutamente independente de qualquer sujeito que pensa
margem, é uma filosofia das margens, e, como toda margem, está sempre ron- que o pensa, mas na verdade delira.
dando e espectrando o centro. Porém, sem inocência e sem romantismo, essas Então, não se assuste, nem estranhe, mas permita que esta for-
escritas entendem o jogo e participam do jogo, sabendo que jogo é jogado, e ma diferente de saber, sentir e narrar que me é própria, diferente da
no jogo das encruzilhadas, um lance de baralho jamais abole o acaso. normal, da dita norma (culta) universal, possa te embalar. E não se
Não se trata de negar nossas heranças europeias, nossas heranças do acanhe se no caminho se embolar. Sempre é possível voltar e re-sentir
pensamento ocidental que também nos constituem. Por esse motivo, não es- a toada.
tamos propondo uma destruição dessa herança, mas um reconhecimento e Aqui, por exemplo, não é advérbio de lugar. É onde habito e
uma assunção das nossas outras heranças. É buscar outras lições de escritura, sou (ser-aqui) esta narrativa que se afirma na realidade, portador da voz
tal como nos ensinou o filósofo do Magrebe a partir de suas encruzilhadas. É que conta e canta a própria história. Falo na primeira pessoa. Em ver-
aceitar que a filosofia é sempre feita a partir de encruzilhadas, basta escolher dade, falo da única pessoa que habita aqui: Eu! Aí ou ali também deixa-
de qual encruza você quer partir ou em qual encruza você quer chegar. Desta ram de fazer referência a uma segunda e terceira pessoas ou a um lugar,
maneira, nos reconhecemos na lógica do Unheimlich, naquela do estranho para dar lugar a uma afirmação: em existência ou aquele/aquela/aquilo
familiar, do estranho no ninho. Assim, nesse lugar em que estamos, que tam- que tem existência (circunstancial, é verdade), na minha presença.

A qui ,
bém é o nosso lugar, dançamos uma filosofia que escreve macumba, porque a A palavra “encruzilhada” é outra que também mudou. Usada
filosofia mora na encruzilhada. costumeiramente para nomear o lugar onde dois ou mais caminhos se
encontram, lugar que impõe ao de-ambulante, o ser-andante, a neces-
Rio de Janeiro, maio de 2020 sidade de escolher uma direção a seguir, aqui, nesta toada, é lugar de
Em meio à pandemia do COVID-19 habitação, encontros e trocas, as quais acontecem sempre e necessa-
Os organizadores riamente no lugar de autorreferência do narrador e aqui, onde habito,
quem narra sou eu.
Meu nome é Ònà, me chamam assim, Caminho, entre outros
nomes. Sou fruto de ìpàdé kan ìta méjì, um encontro entre dois cami-

18 19
nhos: meu pai, minha mãe. Eu nasci nesse cruzamento, sou filho dessa encru- sempre presente. Afinal, sou eu quem está falando a partir dessa encruzi-
zilhada. Nela fiz minha morada. lhada que sou e onde vivo. Logo, em minha perspectiva o que está aí (ou
Oríta ni ilé mi, a encruzilhada é a minha casa. Mas isso não é um ali, depende) é algo que eu afirmo a existência: está aí, nibè, ser existente,
privilégio meu. Todas as pessoas são filhas de um cruzamento, ainda que ne- na minha presença. Mas, convenhamos as histórias que se presentificam
nhuma delas esteja aqui. Aqui, somente eu. num dado momento, não ficarão para sempre e eternamente. Ou seja, essas
existências, com a quais cruzo são presenças circunstanciais, uma vez que
Desde que cheguei aqui, o pai de todos, que é a grande senhora, me podem ou não estar, sem deixarem de ser em si-mesmas outras histórias.
deu boas-vindas. Deu-me o que beber, deu-me o que comer, onde
Enquanto eu, sou-aqui permanentemente, pois nunca deixo de ser presença
dormir. A grande senhora, que é o pai de todos, me acolheu em si
em minha perspectiva.
com generosidade e festa.1

Eu até tentei sair do caminho. Sair, no entanto, não é uma opção.


Aqui, onde existo, é lugar das contradições. Aí e ali também, mas só
Quando tento sair do caminho preciso do caminho para sair. O
posso falar por mim. Aqui é lugar onde o erro pode virar acerto e o acerto virar caminho era um só. É um só… mas, apesar do caminho ser um, ele
erro. Lugar de derrota e vitória, de fracasso e sucesso, sendo todas, apenas, cir- oferece muitas possibilidades. Nele, eu posso ir a qualquer lugar. Só
cunstâncias resultantes da mesma ação e nenhuma delas é boa em si-mesma. não posso sair daqui. Estou sempre aqui... independente do lugar
É preciso sempre lembrar que aqui é o lugar das contradições (aí também, já para onde vá.
falei), logo, nem sempre ganhar é bom e perder é ruim. Aqui o caminho anda
dando voltas, estando sempre aqui sem, de fato, permanecer. Aqui os sentidos Èsù: o ser do lugar e do caminho: Não se meta comigo, porque não
têm seu próprio sentido, pois é possível matar um pássaro ontem com a pedra ando só.
que se lançou hoje.
Quando cheguei aqui, encontrei o Caminho. Em verdade, me en-
contrei no caminho. Eu estava aqui quando cheguei. Ele também.
Sem sentido arrumado, cheirei o som da terra, ouvi o gosto das
Eu estava aqui, no caminho e não tinha para onde ir, apesar do
águas e vi o barulho engraçado que as cores faziam. Sem senti-
caminho ter muitas direções.
do arrumado, mil olhos se abriram em minha pele e todos foram
emudecidos pelo som da luz que há na grande mãe, que é o pai de
todos… amei tocar o amor desarrumado do qual nasce a filosofia. O fato de ser-aqui, na encruzilhada, uma narrativa que é parte de uma
história que me antecede, implica numa total impossibilidade de qualquer
E aí? Bem, aí, no caso, são outros quinhentos, quero dizer, outras explicação sobre a Realidade ou sobre minha existência singular sem fazer re-
histórias. missão ao cruzamento primordial dos caminhos de meu pai e minha mãe, do
Com essas outras histórias (sejam elas animal, vegetal, mineral) que exis- qual sou fruto. Também preciso me referir a outras histórias que me encruzam
tem aí ou ali, depende da perspectiva, o meu ser encruzilhado vive em perma- (circunstancialmente) e que são frutos de outros cruzamentos primordiais (e
nente encontro - ìpàdé, realizando constantes trocas, as quais acontecem sempre circunstanciais), numa regressão que culmina na Terra, chamada em língua
e necessariamente no meu lugar, ou seja, acontecem necessariamente aqui. yorubá Ilé Ayé - Casa Viva, ou simplesmente Ayé - Viva.
Por princípio, toda existência é relativa ao fato de eu ser-aqui e estar Portanto, sou este ser singular, filho da Terra, provedora da vida.
1 Os textos em itálico que aparecerão no corpo do artigo são trechos de uma poesia escrita por mim, Sou uma narrativa, sou parte de uma história que me antecede, e ainda que
ainda não publicada.

20 21
eu seja em mim-mesmo completo, não sou um ser individual capaz de me Aqui é o meu lugar…
realizar na pseudo solidão de sua existência-individual cartesiana (ou esqui- Lugar onde sou e para onde devo ir.
zofrênica, dá no mesmo2). Eu não ando só, já falei. Não sou capaz, porque
sou uma parte indissociável do Todo, vivendo numa relação necessária de Acorde final
permanente encontro e trocas com outras narrativas, o que evidencia a mim Esse ser que sou e que não se sabe sozinho, pois vive e se realiza nas en-
e aos outros que estão por aí ou por ali, depende da pessoa, como seres que cruzilhadas, imerso numa relação empírica e necessária com outras histórias,
vivem e se realizam nas encruzilhadas. não produz teoria, ou seja, não se abstrai da Realidade para pensá-la. Falando
daqui, sou filho da encruzilhada, existo imerso numa relação empírica e neces-
Quando cheguei aqui muita gente já estava por aí. Todos seguindo sária com a Realidade que se presentifica como outras histórias de múltiplos
seus caminhos... seguindo nos seus caminhos. Percebo que tudo tem modos (animais, vegetais, minerais). Esta presença, apreendo-a através de to-
o seu caminho próprio. Se bem que a lua me segue, de sol a sol. Pa- dos os meus sentidos. Sobre estas percepções reflito, organizo e produzo uma
rece, quando ela aparece, que temos o mesmo caminho.
narrativa.
Eu, no meu caso, sigo o meu caminho sem sair daqui. Mesmo assim,
O conjunto das narrativas, fruto dessas reflexões, que por sua vez são
percebo que preciso seguir o caminho. Ele já foi na frente, apesar de
vê-lo sempre que olho para trás. Em verdade, ele é antes de mim e frutos dos cruzamentos, das encruzilhadas, produz o que chamo: cosmo-per-
eu preciso ser... Ou ir para ser? ... não sei agora se há diferença. O cepção. Esta cosmo-percepção, segundo a tradição que me orienta e me cons-
que sei é o que sinto e não sinto nada parado. Mesmo o caminho titui desde tempos imemoriais, tem como propósito compartilhar, não uma
que é sempre o mesmo e não sai do lugar, e eu, que não saio daqui, teoria sobre o Real, mas as vivências dos mais antigos (àgbàlágbà), a fim de
estamos em movimento. orientar os mais novos sobre a melhor forma de ser e viver no Mundo.
Assim, sem sentido arrumado, caminho sobre as águas, nado nos
Na cultura yorubá, a transmissão dessa cosmo-percepção acontece no
ventos e mergulho na terra, mas não saio daqui.
dia a dia pelo caminho, nas encruzilhadas, através das histórias (àwon ìtán),
Aqui é o meu lugar.
Eu amo a terra, os ventos, as águas e o pai de todos, que é a grande dos versos que compõem as suas poesias litúrgicas (àwon ese), dos provérbios
senhora, me ama. (àwon èwe) e dos demais gêneros que compõem a Oralitura yorubá.3 Não
Fizemos amor no primeiro dia e foi bom. Fizemos amor no segundo há um momento ou lugar específico para essa transmissão. Eles aprendem
e no terceiro e foi muito bom. Houve fogo, calor e luz no primeiro, quando acordam e quando vão se deitar. Quando estão brincando, também
no segundo e também no terceiro dia. Desde então, fazemos amor, quando estão ajudando nas tarefas da casa ou do campo. Na porta de casa,
todos os dias e todos os dias há luz, fogo, calor e filosofia, frutos desse
em uma conversa informal ou debaixo de uma árvore, onde os mais velhos se
nosso amor. Nunca, ninguém esteve aqui. As pessoas que encontro
sentam para contar histórias (ìtàn) ou fazer enigmas (àló). É ouvindo os mais
pelo caminho estão por aí, nunca aqui. Aqui, somente eu.
velhos que aprendem os mais novos. A formação dos mais jovens se dá desde o
2 O termo “esquizofrenia” de origem grega, significa literalmente “mente dividida”, referindo-se a ventre, sempre e necessariamente nas encruzilhadas.
dissociação existente entre o que a pessoa pensa e a realidade a sua volta. Na psiquiatria, esquizofre-
nia é um transtorno mental crônico que afeta o modo como uma pessoa pensa, sente e se comporta,
de tal forma que parece que a mesma perdeu o contato com a realidade. Aqui, faço a alusão a cultura
que nos foi imposta pelo advento da colonização européia, que nos lega uma forma esquizofrênica
de estar no mundo, por nos levar a essa perda de contato com a Realidade, conduzindo-nos a basear 3 Ayoh’Omidire lista treze gêneros de Oralitura (oríkì,, owe, rara, ijálá, ewì, ekún ìyàwó, àlo àpamo,
nossas vidas em novas, cada vez mais novas, teorias e não em experiências. O vivido e experienciado àlo àpagbé, ofo ou ògèdè, esà e iyere ifá), dos quais destaca o oríkì, ofo ou ògèdè, òdu e ese ifá e àlo
por nossos pais e pelos pais deles é tido como antiquado, conhecimento passado que deve ser supe- àpagbé, gêneros que o autor considera de grande valor pelo seu conteúdo histórico e epistemológi-
rado. O resultado? Olhe em volta. co, assim como por precisarem de vários suportes mnemônicos e gráficos.

22 23
Ele nasceu em mato grosso
E ncruzilhadas

Parte I – Cruzos e giras


Ele nasceu em mato grosso
E se criou em Nazaré
Ele é filho de um Xavante
É neto de um navegante
É Tranca-Rua de Embaré
É ou não é
Seu Tranca-Rua de Embaré
(Ponto de Tranca-Rua de Embaré)

Não mexe com quem não deve


Pensando que eu não faço nada
Matei meus 33 maridos
No meio da encruzilhada
Pra vocês eu sou Maria
Pros malandros eu sou Navalha
Não mexe com quem não deve
Meu castigo é dar risada
(Ponto de Maria Navalha)

Tava curiando na encruza quando a banda me chamou


Tava curiando na encruza quando a banda me chamou
Exu na encruza e rei no terreiro, ele e doutor
Exu na encruza e rei no terreiro, ele e doutor
Exu vence demanda, Exu e Marabô
Exu vence demanda, Exu e Marabô
(Ponto de Exu Marabô)

24
Luciana Pimenta quanto cruza?
poema em cruzo
de que modo cruza?

dedicatória aos que se dedicam madrugada cruzando


às encruzilhadas deuses na aurora
transpirando o sereno
nossos caminhos pólen das flores
cruzados no beco da fome
desde antes bocas sem nome
cruzantes poros sem travessia
desde para sempre a vespa fecundando figo
encruzilhados quando o outono varre
nas minúsculas coisas folhas engolidas pela terra
singulares cruzos a voz da terra
o ponto cruz
alinhavos desdobra

tecemos! um vírus entre


cruzando zumbis
que coisa chamar zombando todas as soberanias
nossa? que coisa uma fronteira?
que caminho uma bandeira?
nosso? um hino?
que casa uma língua perante outra?
nossa? estrangeiras
que livro cegas tateando
nosso? a face que cruza
que fé a outra face
entre-cruza? o fundo do olho

quando a vida cruza onde cruza (?)


o que cruza (?)
quem cruza? a encruzilhada (?)
o que cruza?

26 27
todos os corpos Fábio Borges-Rosario

D errida
todos os modos
verbos e versos
não sabidos
reescritos C om licença das encruzilhadas
tempos-presentes-idos

encruzilhadas com
filosofias-cruas Saúdo a Exu Rei das Sete Encruzilhadas, Exu
vidas-nuas Tranca Ruas das Almas, Exu Mirim, Exu Gira
mortos-vivos Mundo, Dona Cruzeiro, etc. Dona Jocília
o luto e a luta Borges, Dona Maria Barcelos, Dona Iara Joio;
dos fantasmas etc. Isto é, a todas e todos que estão espectral-
em cada uma e todas mente presentes para nos acolher e garantir
acontecimentos de resistência aos fantasmas que
palavras por vir tentam obsidiar a Filosofia amordaçando-a nas
margens e fronteiras da Europa.

Dedico este artigo a Dirce Eleonora Nigro

N as
Solis, Rafael Hadock-Lobo, Marcelo Moraes,
Andréia Barcelos, Barbara Barcelos, Feli-
pe Santana, Guilherme Cadaval, Rodrigo
Ferreira, etc., que aprenderam a ouvir nossos
ancestrais e acolhê-los. Pessoas que receberam
uma inestimável herança e que lutam pela
preservação deste legado que reúne inúmeras
histórias, vividas em diferentes continentes,
mas que singularmente apontam para um
mundo de justiça in–condicional.

As Encruzilhadas marcam nossas vidas. Exige a decisão diante


de qual caminho seguir ou retornar. Logo após vir ao Brasil, Derrida
faleceu. Desde então aos seus leitores e ouvinte cabe a decisão de repetir
cada uma de suas palavras ou continuar sua obra indo aonde o filósofo
não foi. Eis a encruzilhada onde mora Derrida. Como um espectro, um

28 29
retornante na memória de cada singularidade que acessa seu pensamento e se Retornantes que apelam por trabalho e renda para suas protegidas.
vê diante da fidelidade–infiel na transmissão de seu legado e de reconhecê-lo Maria Navalha lhe indicou uma senhora que mora no Cruzeiro ou
como um dos ancestrais da filosofia. que se chama Cruzeiro – quem o sabe. Derrida ficou em dúvida e indeciso.
Encruzilhada é o lugar onde dois caminhos se cruzam. Num processo Perambulou pelas ruas e vielas da cidade e chegou a um bairro periférico que
ou situação é o momento em que mais de uma alternativa se oferecem. Momen- recebera o nome de um oficial das forças armadas. Lembrou-se que aconteci-
to que exige a tomada de uma decisão. A encruzilhada é a morada da aporia. mento digno deste nome é sempre o inesperado, o não programado.
Talvez, o filósofo da desconstrução após ingressar no rol dos ancestrais, Quiçá, Cruzeiro é uma senhora que retorna para nos lembrar das
em nome da fidelidade–infiel, do dom, do perdão, da justiça, da hospitalidade bruxas e feiticeiras queimadas nas fogueiras das inquisições. Senhoras sábias
in–condicional tenha preferido morar na margem, na fronteira, na Encruzi- que desafiaram as religiões institucionalizadas noutras épocas ao defenderem e
lhada. E enquanto os espectros que retornam para obsidiar enclausuram-se praticarem uma religiosidade de respeito à Natureza e aos Ancestrais. Mulhe-
nas casas, bibliotecas, faculdades, departamentos para garantir a repetição res que reivindicam um mundo feminista.
da mesmidade e impedir a novidade, quiçá o filósofo da iterabilidade tenha Dona da noite, Cruzeiro já o esperava. Mas como sempre está cansa-
preferido atravessar o oceano e vir às terras brasileiras para conhecer outras da, pediu a sua cambona Iara para ir ao seu encontro. Mulher versada na es-
mitologias com os ancestrais que habitam as ruas, matas, cachoeiras, terreiros. crita e na escritura. Tradutora relevante. Enviou por Iara um cartão-postal da
Tenda erigida por uma senhora moradora da região outroramente conhecida
como Pedra Bonita, atualmente Itaborai.
A travessar o oceano No encontro com Dona Maria de Tranca Rua e com o Tranca Rua
de Dona Maria, Derrida ouviu que o território de nascimento, os lugares de
Um dia... Quando chegou ao Porto da cidade do Rio de Janeiro Der-
moradia ou o local de sepultamento não silenciam a voz dos que lutam por
rida avistou um malandro vestido de saia. Lembrou da malandragem parisien-
justiça. Ao narrar sua história Tranca Rua lembrou seu batismo no Oriente,
se, lembrou de Jean Genet. Talvez, pensou que aquela pessoa era não binária
narrou vivências sem citar os locais onde ocorreram, mas principalmente, afir-
ou transgênero. Percebendo o embaraço do argelino, Maria Navalha se apro-
mou que o sepultamento não encerrou sua jornada.
ximou e lhe deu um endereço.
Tranca Rua das Almas não precisou se atravessara o oceano junto com
Infelizmente como Derrida só fala uma língua que não lhe pertence e
os lusitanos ou com os judeus que fugiam da inquisição – continuaremos sem
Maria Navalha só escreve em pretuguês, não entendeu o endereço. Pensou na
o saber. De qualquer forma seu culto aportou nestas terras e encontrou aco-
ginga daquela mulher. Avistou uma menina trajada como mulher; outra que
lhida junto aos negros que cultuavam seus Pretos-Velhos e Cablocos. Desde
se portava como rainha; outra ainda que num raro momento de ócio, lem-
então, cumpre sua missão nos quatro cantos do Brasil e do mundo.
brou dos filhos que deixara chorando. Pensou novamente em Genet e decidiu
Dona Maria de Tranca Ruas apresentou-lhe ainda o Exu Gira Mundo.
seguir até que encontrasse a mulher que procurava.
Morador das Encruzilhadas e ao mesmo tempo das Florestas. Cabloco e Exu.
Talvez, essas mulheres retornam para proteger as meninas e mulheres
Gira Mundo personifica a hospitalidade das etnias primevas e seu encontro
que abandonadas pela sociedade só encontram na prostituição a forma de
com negros e brancos. Lembra-nos que hospedar o estrangeiro é ser violenta-
sobrevivência. Meninas expulsas de suas casas por terem sido violadas por ho-
mente transformado por este, mas que nem toda violência é exterminadora.
mens conhecidos ou desconhecidos. Mulheres abandonadas grávidas por seus
A violência também transforma, modifica, movimenta, abre caminhos nas
amores ou violadores. Mulheres que fogem das violências de seus maridos.
matas, faz chegar às encruzilhadas.

30 31
Gira Mundo não esclareceu se sempre morou nos encontros dos cami- Entretanto, preferira seguir o caminho do cristianismo. O caminho seguido
nhos abertos quando as etnias primevas migravam de um território para outro por muitos dos protegidos dos Exus.
antes da chegada dos europeus ou se decidiu morar nestes locais após a inva- Jocília disse a Iara que Derrida não viera ao Brasil para pensar a des-
são e como medida de defesa e proteção dos que procuravam paragens mais construção da Igreja, apesar de inúmeras vezes ter dito que nesta encruzilhada
seguras e isoladas. Deixou subentendido que quando aparece como caboclo se encontram os filósofos na Europa. Ou ainda que reconhecesse que logo
aponta para a situação de refém a que foram submetidos seus descendentes após aportarem na América, os europeus foram abalados pela desconstrução
e quando aparece como exu aponta para a resistência que empreenderam e que chegou pelas penas de Martinho Lutero, etc. Preferia, decerto, neste mo-
empreendem nas cidades, vilas, reservas. E marotamente sussurrou que retor- mento olhar para a desconstrução que chegou e chega aos terreiros brasileiros.
na como promessa de um tempo onde quilombos e reservas indígenas será o Donas Maria, Iara e Jocília lembraram que toda fala, todo texto, toda
orgulho da nação. escritura é disseminada. Refletiram sobre os destinatários do encontro com
Enquanto, Derrida ouvia atentamente Gira Mundo, sem que Dona Derrida e deixaram um recado para seus netos. Cabia aos seus netos pre-
Maria percebesse uma criança sentou-se entre eles. O moleque peralta estava servarem a memória e o culto aos ancestrais e aos filósofos refletirem com a
tranquilo e sorridente, não precisava fumar e nem beber. Mas trazia tanto o cultura produzida nos terreiros. Esclareceram que a tarefa da Filosofia não é
cigarro quanto a coité escondidos. Antes que Exu Rei – ou seria Lúcifer – vies- conceituar sobre a Macumba, antes sua tarefa é contaminar a Filosofia com a
se zelar por ele, Exu Mirim gritou o seu recado e apelo por creches, escolas, Macumba, é aprender com a Macumba.
universidades.
O menino que morava nas ruas, disse que agora retorna como ances-
tral para zelar e proteger nossas crianças. Proteger de um sistema que direta ou A encruzilhada dos leitores de D errida
indiretamente ainda expulsa infantes de seus lares. Reforçou ainda que quan-
Iniciamos1 nosso artigo estabelecendo sua morada na margem entre a
do bebe e fuma intenciona lembrar aos que lhe procuram que muitas crianças
1 A partir da leitura de “Fé e Saber” (In: DERRIDA e VATTIMO, 2000, p. 11-89) onde diz que a
ainda são vítimas de inescrupulosos que se aproveitam de sua fragilidade para religião é um dos lugares da abstração radical e que para pensar ou representar esta abstração provavel-
lhe arrebatar a esperança e o futuro. Mas que ele bebe e fuma para quebrar mente à saída seria o isolamento numa ilha ou deserto e contar uma história que não seja um mito e
que expresse a experiência de uma comunidade igualitária, amigável e fraterna.
feitiço, para dirimir querelas e anunciar um mundo onde não haverá crianças E de Morada (2004) quando reivindica que a literatura pode perverter todas as distinções, deixar-se
abandonadas à própria sorte. assombrar, morar no limite do indecidível, pôr-se como ameaça e oportunidade ao testemunho e a
ficção, ao direito e ao não-direito, a verdade e a não-verdade, a veracidade e a mentira, a fidelidade e
Iara incomodada com a permanência do ilustre retornante numa re- ao perjúrio.
gião tão distante. Pensava as motivações da indicação de Cruzeiro. Lembrou Os leitores das obras de Jacques Derrida são deputados a investigar outras mitologias e outras religiões,
a tarefa de ir além do que foi o autor nos autoriza a pensar nas religiões que nos outros cabos resistem
dos inúmeros terreiros famosos que poderiam ser indicados. Pensou também ao epistemicídio religioso promovido pela filosofia ocidental. Nesta direção investigamos quais são as
nos inúmeros terreiros humildes. Lembrou quando Cruzeiro chegara pela pri- contribuições que a Macumba nos oferta.
Entendemos por Macumba os Calundus, isto é, as religiosidades praticadas no estado do Rio de Ja-
meira vez no terreiro de Dona Carmela. Lembrou das consultas na favela... neiro desde os tempos coloniais. Práticas familiares de culto a ancestralidade negra e ameríndia, numa
Outrossim, o que mais lhe incomodava era as motivações do cidadão europeu, confluência de saberes miológicos e rituais que permitiram a sobrevivência, a existência e a resistência
das pessoas de descendência africana em nosso país.
que ela não se atentara que era africano de nascimento; com tantas igrejas
Ressaltamos que estes espaços familiares de resistência tornaram-se espaços inter-familiares denomina-
magníficas porquê alguém desejaria conhecer terreiros. dos de terreiros. Percebidos por outras etnias que também cultuavam suas ancestralidades e resistiam
Antes que alguém lhe respondesse, ouviu se aproximar uma senhora. ao epistemicídio religioso os terreiros acolheram outras ancestralidades. A macumba cultua além dos
ancestrais negros e ameríndios a ancestralidade rom, etc.
Dona Jocília conhecera bem as macumbas de Buena, Niterói e São Gonçalo. Notamos que devido à perseguição religiosa empreendida pelo Estado brasileiro as religiosidades de

32 33
Filosofia e a Literatura, entre a Ficção e a Autobiografia, entre a Filosofia e a outros cabos. E se temos morada no outro cabo, nossas moradas não se situam
Macumba. Indo com e além de Derrida, falando sobre a religião, sobre as re- entre os que se advogam herdeiros do cabo. Somos herdeiros dos outros cabos.
ligiões do outro do outro cabo. Contando uma história breve que ocorreu nas Moramos nas margens do outro cabo. Somos o outro do outro.
encruzilhadas e nos terreiros como metáfora para os mitemas e filosofemas. Ao afirmarmos que habitamos nas fronteiras do outro cabo queremos
Entendemos a Macumba como os cultos aos ancestrais que aconte- lembrar as vivências de nossos ancestrais nas senzalas e que após sairmos da-
cem no atual estão do Rio de Janeiro desde os tempos coloniais, quando eram quelas assentamos nossas famílias nos quilombos, nas favelas, nos mocambos,
conhecidos como calundus. O termo macumba deriva tanto do kimbundo nas cabeças-de-porco, nas casas-de-pau-a-pique etc, rememoramos nossa luta
quanto do kikongo. Os mbundos empregavam makumba no sentido de fecha- por condições mínimas de moradia até que chegue o dia que possamos reivin-
mento do corpo, os bawoyo utilizam makumba para designar as filhas de santo dicar condições habitacionais dignas.
e os bakongo makumba como os fatos prodigiosos feitos por um feiticeiro. O título deste artigo rememora algumas das questões que apresentei
Nesta direção a Macumba é a reunião das filhas de santo com o objetivo de in- ao Rafael Haddock-Lobo e ao Marcelo Moraes nas conversas que temos nos
vocação dos ancestrais e pedir a sua proteção sob orientação de um sacerdote. Cafés, Bares, etc. Assim como a acolhida da provocação da Professora da Uerj,
E se falamos2 do outro do outro cabo, é porque nascemos num dos Doutora Dirce Solis, quando pergunta se conseguimos identificar os fantas-
terreiro, percebendo a permissão estatal ao Espiritismo e o advento da Aumbhandhan–Umbanda, mas que ainda assombram a Filosofia brasileira. E nesta rota ousadamente
muitos terreiros adotaram como forma de resistência os nomes “Espírita” ou “Umbandista” sem que pensar em Derrida como um retornante, um fantasma, um espectro, um mo-
isso afetasse profundamente a prática ritual.
Mesmo nos terreiros contaminados pelas práticas espírita-umbandistas percebemos rastros e traços rador das Encruzilhadas3.
da Macumba no vocabulário, nos mitos, nas lendas, nos cânticos, nas rezas, etc. Estes terreiros con- Nosso amigo Rafael aprendeu a ouvir os mortos com a pomba-gira de
taminados resistem às pretensões ocidentalizadoras tanto dos espíritas quanto dos umbandistas de
explicaram a religiosidade nascida nas famílias negras a partir de cosmovisões que refutam a África e sua mãe. Antes que entendesse com quem conversava, ouvia e dançava com a
a América como o berço da Macumba e advogam a Europa ou um Oriente embranquecido como a pomba-gira ao som de Madona. Aprendeu naquela época o que é acolhimento. E
origem destas religiosidades.
Talvez, a Macumba seja um acontecimento que aponta um por–vir de descolonização e desconstrução
nos anos que se seguiram a lutar contra o esquecimento, contra o branqueamento.
da religião na medida em que apela a diversidade religiosa, quando permite que cada coletividade re- Nosso amigo Marcelo, nascido no dia que muitos terreiros dedicam a
unida no terreiro se autogoverne, quando reconhece que cada comunidade que habita nosso território
Exu Tranca Rua, frequentador de bailes e sambas, ogan e professor, é um des-
tem sua ancestralidade e tem o direito e o dever de reverenciá-la segundo suas tradições, e principal-
mente quando recusa toda e qualquer tentativa de universalização da prática religiosa, isto é, reconhece ses leitores de Derrida que ousam ir além do que foi proposto pelo argelino.
que as religiões resultam da necessidade dos descendentes de preservarem seus ancestrais vivos e de Percebendo que o racismo é um dos retornantes que obsidiam a filosofia, de-
contarem suas memórias. Logo, os negros de terreiros comprometem-se e prometem que a experiência
religiosa é um espaço de acolhida in–condicional dos mortos, dos vivos e dos que nascerão com o in- dica-se a abalar o pressuposto paradigma da origem grega. Atravessa a leitura
tuito de manutenção da vida humana, da vida dos animais não-humanos, dos vegetais e minerais, isto de Derrida com a ginga de Madame Satã, Leci Brandão, etc4.
é, a Macumba e outras religiões de terreiro deputam à preservação da Natureza.
Se compreendermos como Lélia Gonzales (1988) que os africanos e seus descendentes na América somo o outro dos euro-descendentes, o outro do outro.
reinterpretaram e ressignificaram as cosmos–sensações de suas etnias como estratégia de sobrevivên- Recordamos aqui de Djamila Ribeiro (2017) quando diz que a mulher negra é o outro do outro,
cia, que criaram táticas diversas para resistirem à escravização e ao genocídio podemos entender a se o homem negro e a mulher branca são o outro do homem branco, não podemos esquecer que a
Macumba como uma das táticas de resistência dos bantu nas terras fluminenses. Se empregarmos o mulher negra é o outro tanto do homem negro quanto da mulher branca.
termo amefricano a todas as experiências das pessoas sequestradas na África e transportadas para serem Deputamos que a descolonização e desconstrução da filosofia em nosso país chegou na escrita e che-
escravizadas na América, assim como às de seus descendentes, podemos afirmar que a Macumba é ga na escuta das mulheres negras quando deputam a interseção nas lutas contra as opressões raciais
uma religião amefricana. (étnicas e pigmentares), classistas, de gênero e sexualidade no apelo por uma democracia por-vir
2 Auscultamos O outro cabo (DERRIDA, 1995) quando apresenta a África e os demais continentes (GONZALES, 1984; CARNEIRO, 1995).
como o outro da Europa, o continente europeu como o cabo e os demais como o outro cabo. E 3 Lembramos aqui de Bachelard (1968) quando afirma que o lugar do filósofo é na encruzilhada dos
seguimos além e nos apresentamos como o outro do outro cabo, pois se entendemos que os descen- caminhos para que possa traduzir o pensamento contemporâneo em sua flexibilidade e mobilidade.
dentes dos europeus nos demais continentes são o outro do europeu, o outro do outro cabo, nós 4 Se formos além de Deleuze (2011) para quem a filosofia não se elabora nem nos bosques nem

34 35
Nosso amigo Guilherme abalou sua banca examinadora e os ouvintes e lhes imputam só proferirem o falso. Compreendemos que a proibição judai-
de sua argüição quando afirmou que é um escritor sobre a Filosofia. Sugeriu e ca, validada pelas confissões protestantes e pentecostais, de não comunicação
retomou que a fronteira entre a Literatura dita ficcional e as Literaturas ditas com os mortos não implica atribuir a estes pertencerem à comunidade forma-
filosóficas e científicas é tênue – se existem5. Mas principalmente ouviu e con- da pelo diabo e anjos decaídos. Afirmamos que as religiões se dividem entre as
versou com Exu Rei das Sete Encruzilhadas sobre o encontro entre a Filosofia que ouvem os mortos e as que se recusam a ouvir os mortos.
e a Macumba, sobre a Filosofia da Macumba ou a Macumba na Filosofia. Assim como trilhamos no desvio das leituras reformistas dos cultos
Na ANPOF ou no Terreiro de Inhaúma, Exu Rei das Sete Encruzilha- afro-brasileiros que tentaram silenciar o legado africano transmitido desde os
das, morador das ruas, das porteiras de nossos locais de trabalho e também de calundus. Alegando o universalismo branco, tais leituras negam a amefrica-
nossas casas, incumbiu ao Guilherme, Marcelo, Fábio, Cláudio e a quem ou- nidade dos pretos-velhos, caboclos, boiadeiros e demais ancestrais cultuados
vir suas palavras a macumbar a reflexão filosófica. Sugeriu a macumba como nos terreiros amefricanos. Negam que o termo umbanda seja uma palavra
metáfora para se pensar a filosofia e a filosofia como metáfora para se pensar umbundo, plural de mbanda. Mbanda são mulheres ou homens pretas que
a macumba. Apontou para a fronteira, para a margem, para as Encruzilhadas. empregaram sua sabedoria para curarem o espírito e o corpo adoecido pelas
Seguindo esta orientação, este artigo habita as encruzilhadas. E6 nas violências da escravização8.
margens entre a filosofia e a ficção, narra uma história ou estória sobre, com
e a partir de Derrida. Opta por economia pela macumba como metáfora para 8 O Espiritismo de Umbanda é um movimento espírita, universalista e reencarnacionista que se
auto-advoga herdeiro das religiões e filosofias da India. Reconhecem que a Umbanda chegou ao
inverter os pares binários da filosofia tradicional. Num gesto de apelo a des- país através dos africanos, mas entendem que os africanos são bárbaros e incapazes de criarem a
construção e descolonização do pensamento. Num apelo pela confissão dos Umbanda; quando empregam o termo África estão se referindo ao que chamam de África oriental,
isto é, ao Egito. Aumbhandan – Conjunto das Leis Divinas – revelada na mítica Lemúria, conti-
crimes cometidos contra a humanidade das etnias pretas e amarelas em nosso nente perdido formado por uma parte do que hoje é a África, Ásia e América pra uns e para outros
país ou no mundo e num apelo pela justiça in–condicional. partes da atual Austrália e ilhas do Pacífico. Recusam a origem umbundo do termo umbanda e a
entendem como uma corruptela do termo sânscrito Aumbhandhan. Lembramos ainda que segun-
Desviamos7 aqui de algumas leituras cristãs que negam aos fantasmas
do os relatos o Caboclo nomeou a religião que fundava de Allabanda, mas como a vibração não
das etnias não-brancas a potência de enunciar discursos válidos ou verdadeiros soou bem, trocou-a pelo sânscrito Aumbanda. Reconhecem o evento de desafricanização da Um-
banda iniciada por Zélio Fernandino em São Gonçalo – RJ em 1908, a fundação da Federação de
nas veredas e sim nas cidades e nas ruas, poderíamos afirmar com Marcelo Moraes (2019b e em Espiritismo de Umbanda em 1939 e o Primeiro Congresso de Espiritismo de Umbanda em 1941
“A força de Leci Brandão” In: SILVA, 2015, p. 139-153) que a filosofia deveria ser elaborada nas como os marcos iniciais de restabelecimento da Aumbhandhan–Umbanda. A despeito do médium
encruzilhadas das cidades, em seus becos e vielas, bailes e sambas, quilombos e favelas. Zélio ter recebido o Caboclo das Sete Encruzilhadas e o Pai Antonio Curador para anunciar que ali
5 Quiçá provocados pelas leituras de Friedrich Nietzsche (2007, 2012) reconheçamos que o conhe- os ancestrais dos pretos e ameríndios teriam um espaço de culto, manifestam-se contra os terreiros
cimento produzido na Europa põe a humanidade na encruzilhada entre o vegetal e o fantasma. E culto africanizados por considerarem o culto primitivo e fetichista. Imbuídos da desafricanização
que caberia ao filósofo na encruzilhada entre a montanha, o bosque e a cidade anunciar a humani- do Culto aos Caboclos e Pretos-Velhos praticados nos calundus desde os tempos coloniais, retira-
dade por–vir. ram das sessões o uso de atabaques ou tambores, autorizando apenas o uso das mãos (palmas) para
6 Indo além da leitura de Morada (DERRIDA, 2004) e “Do anti-semitismo porvir” (In: DERRI- ritmar as cantigas, os sacríficios de animais e o fumo e ingestão de bebidas alcoólicas pelos espiritos;
DA e ROUDINESCO, 2004, p. 130-165). fundaram a nova religião nas expressões culturais brancas do catoliscismo e do espiritismo (com
7 À medida que escutamos Márcia Moisés Ribeiro (2003) quando explica que os cristãos portu- predominância para os ensinamentos kardecistas). Entretanto, advogam ser Jesus uma reencarnação
gueses (cristãos romanos) expressaram seu estranhamento frente aos outros povos diabolizando da Entidade Suprema que os orientais chamam de Budha, Visnhu ou Brahma. Acreditam que a
suas religiosidades. Transportaram para as Américas seus temores do demônio. Mantiveram uma Aumbhandhan–Umbanda que professam é um espiritismo universalista e reencarnacionista que
relação ambígua com os líderes religiosos ameríndios e africanos, uns demonizavam absolutamente soma as diferenças e recusam que fariam uma fusão de crenças. Negam que os Orixás sejam os an-
tais religiosidades e outros dividiam os espíritos cultuados nas religiões ameríndias e africanas entre cestrais reais das cidades-estado dos yorubás, que os pretos-velhos sejam os ancestrais familiares dos
espíritos benfazejos e espíritos malignos (considerados demônios que deveriam ser expulsos da vida bantu e que os caboclos sejam ancestrais familiares dos ameríndios; entendem os Orixás, caboclos e
e do cotidiano das pessoas). Mas, em sua totalidade os cristãos romanos consideravam os líderes re- pretos-velhos como espíritos indianos que reencarnaram inúmeras vezes e em diferentes regiões do
ligiosos ameríndios e africanos como feiticeiros, o que deixava aberta a possibilidade da perseguição, planeta (BRITO, 2019; CONCOME e RESENDE, 2012; Federação de Espiritismo de Umbanda,
(I)inquisição, prisão ou condenação à morte de tais lideranças. 1942; FRANÇA, 2019; FRANÇA e SILVA, 2019; ISAIA, 2012; PINHEIRO, 2012).

36 37
Outrossim, entendemos os fantasmas que retornam nas macumbas res mais cruéis, ou à advinhação para saberem o que lhes reservava o futuro
como ancestrais. E entendemos a ancestralidade como definida pelos povos eram chamadas de calundus. O termo calundu remete a palavra quilundo
bantus. Ancestrais são os mortos que vivem na memória coletiva das comuni- (que em quimbundo designa a pessoa que está possuída por um espírito).
dades ou no sangue de seus descendentes. Logo, para além da sobrevivência Considerados como bruxos ou feiticeiros pelos portugueses e seus descenden-
mágica, os ancestrais têm uma sobrevivência histórica e hereditária9. tes, as pessoas que praticavam o calundu eram consideradas curandeiras pelas
Nossa ancestralidade é acolhedora10. Desde as senzalas ofertam aos comunidades e exerciam grande influência. Entendemos os calundus como a
seus descendentes um ambiente mítico de acolhida e resistência. Retornam continuação dos cultos aos espíritos ancestrais, considerados intermediários
para acolher seus filhos nos quilombos e nas favelas. Atentos aos seus gritos entre a humanidade e o Ser Supremo e Criador.
por ajuda nos jongos, congadas, nas capoeiras, etc. Atentos aos ritos das di- Nossos cultos aos espíritos ancestrais objetivam a manutenção do es-
versas bandas oficiadas pelo kimbandeiros nas macumbas, terecôs, juremeiras, pírito dos entes e das personalidades que foram importantes para a comunida-
candomblés de caboclos e até nas umbandas. Isto é, nossa ancestralidade ga- de. Acredita-se que com a morte a energia vital dissipa-se, cultuar os ancestrais
rantiu aos seus filhos cidades–refúgios onde puderam preservar suas memórias objetiva manter sua energia vital na comunidade após a morte. Os rituais
e encontrar a força, a solidariedade para resistirem aos seus inimigos. fúnebres e posteriormente as preces e oferendas ofertadas aos ancestrais ga-
Auscultamos11 quwe nos séculos XVII e XVIII as práticas dos africa- rantem que sua energia vital seja preservada, o ancestral só morre quando é
nos e de seus descendentes que acorriam aos espíritos ancestrais para serem esquecido e desprezado pela comunidade.
orientados quanto ao uso de ervas para curar suas enfermidades, ou aos cal- Somente as pessoas cuja existência foi repleta de ações dignas e reali-
mantes para tornar os senhores inofensivos, ou a venenos para matar os senho- zações importantes, cujos feitos devem ser legados as futuras gerações são con-
9 Como lemos em “Globalização e Ubuntu” (RAMOSE In: SANTOS et MENESES, 2009, p. 135- siderados ancestrais. As oferendas de alimentos e bebidas e as homenagens aos
174), “A importância vital do ‘Nós’” (RAMOSE, 2010), “A filosofia ubuntu e o quilombo: a an- ancestrais aconteciam em bosques, rios, debaixo de arvores, nas tumbas, nos
cestralidade como questão filosófica” (MORAES, 2019b), “Ubuntu, uma perspectiva para superar
cemitérios, nas encruzilhadas, isto é, no meio da natureza ou em altares cons-
o racismo (Entrevista concedida a João Vitor Santos)” (KASHINDI, 2016), “Ubuntu como ética
africana, humanista e inclusiva” (KASHINDI, 2017), “Ubuntu como crítica decolonial aos Direitos truídos com esse fim. O culto a ancestralidade funcionou como retomada da
Humanos: uma visão cruzada contra o racismo” (KASHINDI, 2019, p. 8-21), “Ubuntu como fun- religiosidade que a escravidão e a diáspora tentavam arrancar do escravizado,
damento” (NASCIMENTO, 2014, p. 1-4), “Infancialização, ubuntu e teko porá: elementos gerais
para educação e ética afroperspectivistas” (NOGUERA et BARRETO, p. 625-644), “Ubuntu como
através do culto expressavam suas visões de mundo e resistiam a desumaniza-
modo de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectivista” (NOGUERA, 2012, p. 147-150), ção promovia pela escravização.
“Aproximações brasileiras às filosofias africanas: caminhos desde uma ontologia ubuntu (FLOR DO
NASCIMENTO, 2016, p. 231-245), Ntu (CUNHA JUNIOR, 2010, p. 81-92).
10 Lembramos aqui das leituras de “Adeus” e “A Palavra Acolhimento” (In: DERRIDA, 2008).
11 Dada a brevidade deste trabalho não analisamos os cultos amefricanos noutros estados da fe- A encruzilhada das origens
deração. Biana Zacarais França e Fernanda Cristina de Oliveira e Silva (2019) apresentam relatos
de Calundus no estado de Minas Gerais desde o século XVIII. Ciani Sueli das Neves (2019) relata Derrida12 denunciou que a Filosofia ocidental nascida na Grécia é uma
o culto amefricano da Jurema, chamado por muitos de Carimbó; popular no nordeste brasileiro,
busca pelo apagamento de suas heranças. Apesar de toda uma vida dedicada à
datam do século XVIII os primeiros registros da existência de juremeiros na cidade do Recife, neste
são cultuados como ancestrais caboclos, pretos velhos, exus, pombagiras, malunguinhos. Luiz Au- pesquisa da filosofia europeia, nunca escondeu seu compromisso com a alteri-
gusto Ferreira Saraiva (2017) analisa o Terecô culto amefricano do estado do Maranhão assentado dade e o apelo pela investigação do pensamento produzido noutras paragens.
na cidade de Codó; reúnem-se nesta tradição descendentes dos fons, bawoyos e yorubás para cul-
tuarem seus ancestrais caboclos, boiadeiros e encantados. Guilherme Dantas Nogueira e Nilo Sérgio
Quando se destinava aos ouvintes de outros continentes preocupava-se em
Nogueira (2017) narram os traços da Cabula capixaba num terreiro em Minas Gerais, religiosidade 12 Partirmos das leituras de “Escolher sua herança” (In: DERRIDA e ROUDINESCO, 2004, p.
amefricana que cultua pretos velhos, pombagiras e exus. 9-31) e Gramatologia (DERRIDA, 2011).

38 39
não lhes transmitir a crise da filosofia europeia e portava-se como um ouvinte Quando Derrida dialogava com filósofos no Benin, no Japão, nos Es-
atento das reflexões dos que o hospedavam. tados Unidos, no Brasil, etc., preocupava-se em frisar que a crise da filosofia
Reconhecia13 o acontecimento que fora a chegada da Filosofia na atual europeia não deveria ser importada por estes. A descolonização política ocor-
Turquia, naqueles tempos das cidades-estados grega. Provavelmente, sabia que rida nos países africanos, reiterava, estava assombrada pela possível neocolo-
a Filosofia chegara a Mileto com Tales quando retornara de sua temporada nização. E cabe aos filósofos refletir a descolonização e a desconstrução da
de estudos em Kemet14. Salientava que a História da Filosofia na Europa é filosofia, da política, da economia, isto é, pensar a confissão, o perdão, o dom,
híbrida. Contagiada pelos kemetianos, hebreus, persas, etc; disseminada pelos a justiça, a hospitalidade por–vir.
latinos, árabes, judeus, etc. Encantado com a noção de ubuntu. Termo que apela a hospitalidade
Se o leitor15 for além do que foi Derrida16, se identificar que nas entre- dos que viveram, dos que vivem e dos que ainda nascerão, que expressa à
linhas este reconhecia que a singularidade grega manifesta-se pela expectativa plenitude da humanidade em e na comunidade, palavra que deputa que a
de silenciamento das viagens de Tales, Platão, Aristóteles e outros até ao Egito humanidade de cada singularidade chega quando cada pessoa reconhece a
e neste o seu encontro com a filosofia kemetiana. De todo modo, repudiava a humanidade de outrem. Escreveu sobre como a história recente da África do
pretensão grega e posteriormente europeia de impor suas filosofias regionais Sul foi abalada quando este quase–conceito foi apropriado na luta pela eman-
aos demais povos como se fossem a Verdade, recusava sua pretensão a univer- cipação política dos negros18.
salidade17. A filosofia europeia, denunciava, caminha junto com seu xenofo- Releu quando visitou o Brasil seu texto sobre Ubuntu. E talvez, neste
bismo, etnocentrismo, etc. texto encontremos pistas para uma nova filosofia da história do Brasil, para uma
nova ontologia do brasileiro, para uma nova epistemologia, filosofia da arte, filo-
13 Não precisamos aqui como Jacques Derrida lidou durante a escrita da Gramatologia das discussões
que os egiptólogos faziam a partir das descobertas e traduções para as línguas europeias dos textos sofia da ciência, antropologia filosófica ubantizadas, isto é, por uma democracia
kemetianos, percebemos na leitura da nota 4 de “Freud e a cena da escritura” (In: DERRIDA, 2011b, por–vir que acolha a todas e todos – mortos e vivos – na sua differance.
p. 305) que o filósofo leu a obra Essai sur Les hiéroglyphes des Égyptiens, où l’on voit l’origine et le
progrès du langage et de l’écriture, l’antiquité des sciences en Égypte, et l’origine du culte des animaux
de William Warburton e na nota 3 (DERRIDA, 2011, p. 332) que a obra chegou ao conhecimento
do filósofo durante a escrita da Gramatologia e como essa influenciou o autor; notamos seu interesse
em afirmar a existência da escritura kemetiana e a dívida grega para com este povo, com a etnia que
As encruzilhadas e o por - vir
lhes ensinou a escrita (o que é afirmado na Gramatologia e n’ A farmácia de Platão).
14 Mario José dos Santos (2001) advoga o nascimento de Tales em Mileto e atribui a visita de Entendemos que o anuncio da desconstrução chegou pelas Encru-
Tales ao Egito há uma suposição, entrementes, registre nas notas de rodapé o testemunho de zilhadas nas histórias cantadas pelos ancestrais do povo brasileiro. Tem sido
Diógenes Laércio que reconhece a ascendência fenícia do filósofo e não determina a cidade de
seu nascimento, também arrola os testemunhos de Écio, Proclo e Plutarco que afirmam que
reiterada nos inúmeros terreiros, e em diferentes ritos. Numa confluência rei-
Tales aprendera Filosofia e Geometria no Egito. Optamos aqui pelos testemunhos registrados vindicatória de direitos.
nas notas, e dizemos que Tales é um cidadão de Mileto, de origem fenícia e que após aprender
Nossos espectros cantam suas histórias, suas dores. Comprometem-se
Filosofia com os kemetianos, levou-a para Mileto.
15 Marcelo Moraes foi além de Derrida e demonstrou que a Filosofia aparece em Kemet (Egito) e a ajudar seus descendentes a não viverem as mesmas agruras. Apelam novas
que os gregos aprenderam a filosofar com os kemetianos em “Filosofia, ética e política de origem relações de justiça social.
africana egípcia” (2019, p. 216-237).
16 Gramatologia (DERRIDA, 2011), Esporas: os estilos de Nietzsche (DERRIDA, 2013), O car- 18 “O perdão, a verdade, a reconciliação: qual gênero?” (In: NASCIMENTO, 2005, p. 45-92).
tão-postal: de Sócrates a Freud e além (DERRIDA, 2007). Lembramos que Derrida refuta nesta obra a tese hegeliana de que negava os rastros de historicidade
17 Lembramos também do poema mítico-religioso de Parmênides “Sobre a Natureza” onde relata no continente africano e que fundamentava a escravização das pessoas nascidas em África. Decerto,
que a deusa lhe encontrou na encruzilhada entre o caminho da verdade absoluta e o caminho da podemos seguir seus passos e refutar a tese lockiana que negava aos ameríndios a propriedade de
falsidade absoluta. Segundo o filósofo o papel do filósofo seria abandonar o caminho das opiniões e suas terras, validava e legitimava a invasão e conquista da América e o extermínio das etnias que
seguir o caminho da verdade (SANTOS, 2001, p. 61-71; SOUZA, 2000, p. 117-138). resistissem à usurpação de seu território.

40 41
Ao escolherem morar na Natureza, apontam que somos parte da Na- 1
Fernanda Siqueira Miguens

polaca S ophia F leishmann


telefone ) entre seu S ete
tureza. Apelam a conscientização que destruir os ecossistemas resultaria na ex-
tinção de suas moradas. Deputam novas relações equilibradas entre o animal - Querida, eu tô morrendo de rir, mas entendendo tudo.
humano, os animais não-humanos, os vegetais, etc., isto é, nossa ancestralida- - Sim, seu Sete... Eu cansei. Não vou mais me submeter.
de é ecologicamente responsável. Mas eu amo homem e piroca. Tô rindo também!
Ainda que nossos fantasmas não tenham percebido, seus gestos são - Acho que assim você vai sentir mais dignidade, sabia?
desconstrutores. E sabendo que a desconstrução chega independentemente - Eu tô (quase) me sentindo maravilhosa! Essa ideia toda
da vontade do escritor. A tarefa do filósofo brasileiro na atualidade é ler as é pra eu poder gozar a piroca com alguma segurança mesmo...
escrituras da macumba e entender seus apelos pela desconstrução da socieda- Acho que é a única situação de dignidade possível pra mim. Vou
de atual. E nas margens entre a Filosofia e a Macumba deputar à democracia ter mesmo esses clientes que são os homens pra quem eu quiser
in–condicional. Entre a Macumba e a Filosofia chega à democracia por–vir. dar... Só que o sexo comigo agora vai ter essa intermediação do
dinheiro, colocada por mim, e não por eles... No fim das contas,
na atual conjuntura, só dá pra eu ser puta ou freira... Não con-
sigo mais nenhum caminho do meio de equilíbrio aristotélico,
não! Esse feminino, da média, tá quebrado em mim... E eu gosto
muito de sexo. Quero umas roupinhas novas de puta pra mim

U ma conversa ( por
muito clarinhas e suaves! E vou sempre usar a guia de Iansã pra

E ncruzilhadas e a
encontrar com os machos. Aquela da Iansã das Caveiras... De
Maria Madalena. Sabia que pra mim o sincretismo que mais faz
sentido é esse? Eu vejo sempre mais Maria Madalena do que
Santa Bárbara... Pra mim, minha mãe é Maria Madalena...
- Querida, eu acho que isso pode já ser fruto da coisa do
Caveira. E essa Madalena eu acho que faz sentido mesmo. É Oya
de Bale, né? Essa coisa de ter Iku na sua cabeça... Eu penso mais
no seu Omolu no mato do que no cemitério. Ele é um Odé, es-
queceu? Ele é quase Oxóssi... E eles comem juntos. Esse peso na
sua cabeça é Iansã, esse bando de morto em volta... Mas eles não
tão aqui pra te derrubar, ao contrário, é pra te fazer ficar em pé.
Lembra daquela coisa do Caveira? De quando ele te disse que você
ia passar a ver os homens com olhos de homem, lembra? Que ele
ia te dar esse presente? E o homem não vê a mulher como coisa?
As brigas entre você e aquele cão não começaram a ficar piores
quando você descobriu que não pode engravidar? Ele tinha um
1 Fleishmann significa açougueiro. Ou, literalmente: “o homem da carne”.

42 43
projeto de família... E no fim adotar sempre foi inadmissível pra ele... Sempre Como diziam as velhas, em um ditado iídiche, “um remendo feio é ainda mais
foi mentira dele dizer que isso era tranquilo pra ele... Então, eu acho que tudo útil do que um buraco lindo”. Eu agora sou esse remedo feio... Esse amor tão
tem muito a ver com isso mesmo, sabe? Com essa nova configuração mesmo do difícil entre homens e mulheres, sabe? Eu acho hoje em dia que o amor entre
seu olhar pros homens. Tanto é que isso ficou claro pra você no dia em que você os homens e as mulheres só pode acontecer com a intermediação do dinheiro...
tava passeando no cemitério e pensando na vida... Pensa nisso, se não tem a ver Isso pelo ponto de doença a que nós e eles chegamos. Eu tô falando isso mesmo
com esse novo olhar. dentro do paradigma mais hétero homem e mulher, sabe? Não tô pensando
- Eu acho que sim. A conversa com Iemanjá também foi muito im- outras coisas... Acho que as relações homem com homem são uma outra coisa.
portante, sabia? E a coisa com o moço do Zé que não deu em nada também E as de mulher com mulher também. O mesmo vale pros arranjos com mais de
foi, sabia? De repente não porque era aquele moço... Eu não sei... Mas porque duas pessoas envolvidas... Sabe que as minhas relações mais felizes (pelo menos
era o Zé de novo, sabe? É horrível também só ver uma coisa em alguém, né? ali, na hora) foram essas? Namoros a três? Mas, voltando, o dinheiro permite
Eu sei que uma pessoa é muita coisa... De todo jeito, foda-se... Porque sabe o que se crie o espaço pra uma abertura, sabe? Que não existe na vida... Eu acho
que eu pensei no cemitério também? Eu pensei que Zé ama mulher É O CA- mesmo que essa minha última ida ao Rio e ficar esperando no bar pelo primei-
RALHO! Eu não sei, sinceramente, de onde eu tirei essa porra! Acho que eu ro homem que realmente achei bonito, assim nesse sentido mais complexo da
sempre tive essa fantasia muito forte sobre a relação do Zé com as mulheres... palavra, desde as últimas desgraças que eu passei - até a hora em que eu entendi
Talvez também porque o Caveira seja um pai muito duro, no fim das contas... que ele não ia aparecer mesmo - fechou um ciclo, sabe? Ainda bem que Iemanjá
Embora ele me mime muito, cada presente dele é uma surra, né? Você tá en- tava no bar comigo e que eu não fui sozinha. Bebemos muito e depois, quando
tendendo bem o que eu tô tentando te explicar, Seu Sete? Me veio uma coisa cheguei em casa, fiquei lendo Conceição Evaristo. Já reparou que todo poema
mesmo importante sobre o Zé com isso tudo. Eu acho que ele era o último dela é uma gravidez? É lindo... Imagina isso também, que ridículo, uma pessoa
masculino ilusório... É... ilusório... Tô me sentindo muito bem na verdade. com tanto medo de homem que pede pra ex-namorada levar ela pra encontrar
Pensando que, de repente, eu posso voltar a fazer sexo com alguém... Voltar com um macho! De todo jeito, eu sabia, na cabeça, que ele não ia... Na verdade
a gozar, sabe como? Porque... Tipo... E aí eu tô pensando na chave de Maria ele nunca disse que ia, não. Daqui a pouco eu vou ser a viúva Perpétua, com
Madalena de novo, sabe? Acho que cabe às mulheres mesmo o papel, seja no uma piroca guardada embaixo da cama, numa caixa... E é por isso que também
casamento ou na rua, o que dá totalmente no mesmo, de vender pros homens quero publicar a minha tese logo... Se Iemanjá não tivesse tomado uma cerveja
um amor que na verdade eles não têm. comigo acho que eu ia ter até chorado no bar. Chorar eu não chorei, viu? Mas
- Mas é engraçado, né, querida? O último masculino ilusório ser justa- tentei puxar duas brigas... Que infelizmente não deram em nada. Ou quem
mente o mais cafajeste de todos... Nesse sentido, né? Pra você ver... É ilusório sabe se ela não tivesse lá eu também teria acabado chamuscando o nome dele na
mesmo, né? O Zé ser o que você ainda achava um masculino possível pra você fornalha do Caveira... Mas acho que macumba também não pega fácil naquele
já é muita ilusão, né? traste não... E, se eu tiver que escrever uma coisa melhor depois, eu escrevo. Se
- Sim, total. E, assim... Eu não quero viver assim, sabe? Nem me con- não tiver, não escrevo. E além de tudo o doutorado não é o texto, né, Seu Sete?
denar a ser uma velha raivosa e frígida por conta de não encontrar mais saídas Ainda falou mal da minha escrita, o filho da puta do Zé! E o doutorado não ser
minimamente saudáveis pra me relacionar com vocês, de nenhum jeito... Sabe só o texto é o que é a grande coisa! Eu acho que refletir sobre a prostituição e o
o que eu tô falando? Eu acho que o dinheiro acaba sendo uma proteção mesmo. casamento e entender que as duas instituições na verdade são a mesma foi extre-
Ele esclarece, no fim, a nossa condição miserável. Caiu o véu, sabe? O dinheiro mamente rico como processo! Valeu por uns trinta anos de análise lacaniana... E
revela a natureza das coisas... É... E na verdade ele acaba viabilizando o amor. também não é todo mundo que pode se dar ao luxo de dizer que teve uma tese

44 45
de doutorado orientada pelo próprio Exu sete Encruzilhadas. De todo jeito, eu sariamente relacionados. Não é culpa minha, nem sou eu que tô inventando
não sei escrever mesmo... A minha tese é psicografia... Noventa por cento do isso... Eu não posso mais operar nesse modo em que as mulheres que não
texto nem é meu. Foda-se o texto! A melhor coisa é o privilégio de poder me sabem que são putas vivem a vida, sabe? Não dá... Sempre que eu ouvia essas
vender com elegância. Eu sei com quem eu posso falar... E o que e como eu pos- teorias... Sabe? Que saem da boca das mulheres que falam que são prostitutas
so fazer. E como eu vou viver isso, sabe? Eu pensei muito isso durante a escrita porque gostam e que sexo é arte¿ Eu sempre olhei pra elas e achei que era uma
da tese, né? E, pra mim, se tem alguma coisa que não me agrada nela, foi certo fábula ridícula isso tudo... “Você fala isso porque não é a prostituta pobre e
moralismo que não me permitiu ver o lado mais solar dessa venda no fim... preta da rua...” Eu julgava assim, mesmo. Só que eu já sofri demais. E agora...
Embora eu tenha escrito o tempo todo que o casamento e a prostituição são a Olhando a minha vida... Eu pensei que ainda bem que eu não preciso me
mesma coisa, e essa seja a tese, eu só senti isso no coração no fim do processo... vender na rua. Glória a Deus, sabe como? E a minha prostituição é essa outra
E dar um ponto final pensando que eu nunca mais viveria nenhum amor, ne- mesmo. Eu posso viver ela assim, sabe? Deluxe. Como é a arte... Como filo-
nhuma paixão, nada... Foi duro e enlouquecedor. Quando eu acabei de escrever, sofia! Como amor! Como tudo o que eu quiser... Vou falar isso tudo quando
acabou o amor em mim também. Eu pensava muito nisso, né? É porque a nossa eu fizer o lançamento do livro com o texto da tese. Vou falar isso tudo... Vai
cabeça é ainda mais formatada do que a gente pensa. Eu ficava cheia de ai como ser essa a minha fala... Da minha experiência. Do meu processo. De outras
a gente vende o que mais ama? Como é que pode o capitalismo levar embora prostituições também... Eu queria que a gente tivesse um laboratório “Outras
as coisas mais preciosas que existem na gente? E não sei o que mais... Eu me prostituições”, aliás, pra pensar na multiplicidade de faces que a prostituição
perguntava isso o tempo todo no meio daquela merda toda... E na verdade não tem... E eu vou estar toda linda e de branco. Vai ser lindo! E foda-se o mun-
é nada disso, sabe? Eu tô mesmo vendendo as coisas que eu amo mais. Jogos de do... Vocês não sabem amar mulher, seu Sete? Tudo bem... A gente ensina!
cartas e sexo! Como também vendo comida! Tem venda maior de afeto do que Mas isso tem um preço. Igual a tudo que se ensina no capitalismo... Essa refle-
vender comida... ? Duvido que tenha! xão toda veio daquele galho bem grosso de árvore que o Zé derrubou quase na
minha cabeça... Amanhã eu vou colocar uma cerveja pra ele e agradecer pela
epifania, de todo jeito... Foi graças a tanto Zé que eu acabei resolvendo virar
Do you love what you sell ? puta de vez, assumida e de carteirinha. Puta que vende amor! Puta fun fun!
Amor e saúde mental pros machos doentes. E pra mim também que sou uma
(É só mais um slogan , comercial , de alguma coisa na internet que eu nem sei o que é ). fêmea purulenta e inflamada! É o meu trabalho espiritual agora. De limpeza.
- É isso, parar de pudor em vender o que se ama, querida. Seja isso É igual ao trabalho do urubu e ao de Maria Madalena. No fim da história,
fantasia sexual ou fantasia de vida. Vai com calma pra se entender... foi Zé Pelintra que transformou a mulher em prostituta... Prostituta escrava.
- É. E tem mais ainda... Eu posso inclusive, em determinado contexto, Porque ele alimenta na mulher o romantismo: e, na nossa história feminina, o
até casar de novo... Mesmo depois te ter passado aquele inferno todo com o romantismo sempre foi um senhor de escravas.
falecido (que o Caveira, graças a Deus, levou...) Só que casar seria também
uma negociação enorme e cheia de complexidades... Porque a verdade é que Fim.
eu adoro fazer comida pra macho, e quando vejo, já tô lavando cueca... Eu sou
uma merda de uma cuidadora maldita! É só isso, sabe o que eu tô dizendo? Ô Zé, faça tudo o que quiser
A questão é que pra mim caiu a ficha de que o dinheiro e o sexo tão neces- Só não maltrate o coração dessa mulher...

46 47
Rafael Haddock-Lobo Mulher, gênero, movimento e dança são, neste livro, dedicados a
gêneros das ( e nas ) ruas
Emma Goldman, a feminista que se perguntava de que valeria a revolução
Para Carla Rodrigues, Dona Padilha se ela não pudesse dançar, conquanto a imagem que o artista gráfico Gracco
e Pomba-Gira de Maceió Bonnetti cria a partir e para a obra de Carla Rodrigues nos diz mais: ele vê na
escrita de Carla as cores, matizes com as quais ela, aliás, sempre trabalhara, os
No canto do cisco, no canto do olho, a menina dança sexos, os gêneros e as raças – mostrando que a escrita da autora é, e sempre foi,
E dentro da menina, a menina dança tecida em perspectiva descolonizadora.
E se você fecha o olho, a menina ainda dança Mas quem é tal figura, ou quem são tais figuras que, dançando, corpo
Dentro da menina, ainda dança negro nu ou vestido vermelho flutuante, desenham a coreografia entre mascu-
Até o sol raiar, até o sol raiar lino e feminino? Tal é a fábula que, aqui, pretendo perseguir, através de um
Até dentro de você nascer, nascer o que há! passeio pelas ruas e pelas noites, à espreita de encontros possíveis e impossíveis
(Antonio Pires / Luiz Galvao) para pensar essa pluralidade de corpos, sexos e gêneros, transitantes, tran-
seuntes, transantes, entre vida e morte: espectros vadios, prostitutas, cafetões,
malandros, mendigas, ciganos que, apenas eles, podem nos ajudar a pensar
Abre a roda, deixa a pomba gira trabalhar
afirmativamente a precariedade do que entendemos por gênero.
Abre a roda, deixa a pomba gira trabalhar
Mas ela tem, ela tem peito de aço
Os

Ela tem peito de aço e coração de sabiá X


(Ponto de Pomba Gira)

Há dez anos, minha amiga e referência para questões de gênero P rimeiro P onto : “E xu que tem duas cabeças ”

Carla Rodrigues lançava seu livro Coreografias do feminino1. O texto, em sua A lógica do suplemento, que Preciado aprende com Derrida e trans-
quase totalidade, eu já conhecia, mas havia nele algo que, naquele momento, porta da relação fala / escrita para pensar a anterioridade do dildo3 com re-
gritava a meus olhos: sua capa. Sempre me chamou a atenção aquele corpo lação ao pênis e que se instaura como denúncia ao privilégio falocêntrico na
feminino, com os braços levantados, negro e nu, e um pano vermelho, entre cultura ocidental, pode também – e, talvez, em uma filosofia de terras tupi-
véu e capa, esvoaçante, cobrindo o rosto daquela enigmática figura, enquanto niquins4 – ser pensada afroperspectivamente, através de alguns personagens
o fundo, também vermelho, parecia servir de cenário para alguma dança que melanodérmicos, como nos ensinam Renato Nogueira e Marcelo Moraes5. E,
está para começar. Na contracapa, por sua vez, o fundo mais escuro contras- se é dos gêneros das ruas que pretendo aqui brevemente tratar, estes fragmentos
tava-se com o vestido vermelho que, sem corpo, flutuava entre-dois, como o não poderiam se iniciar sem que meu padê filosófico fosse arriado nessa en-
élitro aludido nas esporas de Nietzsche de Derrida2, enquanto, nas orelhas, cruzilhada da academia, e que a figura de Exu, o orixá iorubano, fosse, aqui e
mãos negras nos ofereciam as apresentações do livro e da autora.
3 Referência ao Manifesto contrassexual, de Paul B. Preciado.
1 Carla Rodrigues. Coreografias do feminino. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. 4 Referência à Crítica da razão tupiniquim, de Roberto Gomes, livro de 1977 que faz com que
2 “Deixemos o élitro flutuar entre feminino e masculino”(Jacques Derrida. Esporas: os Darcy Ribeiro diga que o Brasil enfim teria voltado a filosofar.
estilos de Nietzsche. Rio de Janeiro: NAU, 2013, pág. 24). Élitro é o nome de uma certa 5 Referência à introdução do livro Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o
asa de alguns insetos, que tem como função o equilíbrio. samba, escrita por Renato Nogueira e Marcelo Moraes.

48 49
agora, invocada. Mas pensar a desconstrução do falocentrismo a partir da fi- XX
gura de Exu, figura sempre considerada como o representante maior do poder
fálico, não seria um absoluto contrassenso? Acredito que não.
Quando desafiado a escolher entre uma cabaça que continha o mal e S egundo ponto : “M adeira que não dá cupim ”

outra que continha o bem, Exu saca uma terceira cabaça de sua bolsa, faz nela Em nossas terras, o nome Exu vira desígnio do “povo de rua”, e, nos
um furo, mistura os pós contidos nas duas e, entre veneno e remédio, inventa chamados exus de umbanda, toda masculinidade parece também permanecer
o phármakon6, tornando-se, por essa razão, Igba Ketá, o senhor da terceira caba- exaltada, através das canções que louvam essas entidades do sexo e do corpo,
ça7. Vários itans versam sobre os dois lados de Exu, vários pontos aludem a suas suas mulheres conquistadas, seu poder de sedução, seu charme e assim por
duas cabeças, e sua invocação, como nos ensina a Pedagogia das Encruzilhadas de diante. Talvez, aqui para nós, o melhor e mais conhecido personagem para
Luiz Rufino, significa cantar para baixarem seus princípios de mobilidade e de pensar tais questões genéricas seja Tranca Rua, o capitão das encruzilhadas e
criação de possibilidades8. Depois de passar dezesseis anos aprendendo com Oxa- ordenança de Ogum, pois, como canta o ponto, “Seu Tranca Rua é uma bele-
lá como este fabricava os pés, as mãos, os olhos, os pênis e as vaginas, Reginaldo za, eu nunca vi exu assim / Ele é madeira que não dá cupim”.
Prandi nos conta que Exu ganha sua morada na encruzilhada e, junto com sua Suas manifestações, que incorporam toda a performance masculina
casa e seu trabalho, ganha também sua ferramenta e sua arma, o Ogó, um pode- do começo do século vinte, trazem o terno, a gravata, a cartola e a bengala
roso porrete em forma de pênis de cuja base pendem duas grandes cabaças. Ou como símbolo de poder fálico-econômico, mas tanto estas como mesmo suas
seja, após observar e ter aprendido tudo sobre a criação dos sexos, ele se torna o alegorizações mais satânicas, com tridentes na mão e chifres, rabos ou outras
guardião dos caminhos que se cruzam e, só ele, pode propiciar e permitir que partes de animais, já mostram a precariedade dessa masculinidade europeia
haja cruzamento, só ele tem o poder do cruzo, mas também da dissimulação, da quando pensada sob a desconstrução diaspórica. Aquele que usa o traje euro-
mentira, da galhofa, da gargalhada e da transgressão. peu e que diz que na encruza é doutor, é o mesmo que é esculpido e pintado
E é também desde então que ele empunha seu símbolo do poder que, como animalesco e diabólico (chamando atenção também à dualidade do dia-
vindo do cruzo, não é um, mas sempre dois, e que, por ser o encontro entre- bo): negro e pobre, falando pretuguês, nessa paródia, ou melhor, nesse escracho
-dois, não sendo por isso nunca apenas dois, passa a ser três e daí em diante. O da pompa do branco elegante e rico, Tranca Rua, doutô das encruza, abala
ogó, para além do poder fálico tal como concebe o ocidente, é o instrumento radicalmente esse modelo branco masculino.
de guarda do local em que duas diferenças, dois caminhos se encontram e se Ele é madeira que não dá cupim, com certeza, porquanto isso não se
tornam mais-que-dois, é o poder de uma singularidade radical, constituída no dê por causa de sua dureza ou sua nobreza; Tranca Rua é uma beleza pois sua
cruzamento de duas forças que, nem bem nem mal, nem homem nem mu- madeira não é madeira de lei, mas sim a mais comum, a mais banal e, por isso,
lher, deixam-se representar dildologicamente por uma representação hiperbó- a mais flexível, aquela que, quando exu pisa no toco, pisa no galho, o galho ba-
lica do órgão masculino, feito de madeira e cabaças, que, artesanal, artificial, lança, mas exu não cai, ô ganga. Esse toco de um galho só, vagabundo e precário,
não pode nunca ser origem de coisa alguma, pois só adquire seu poder de é aquele justamente que não dá cupim, mostrando seu valor frente à madeira
força caso seja erguido, portado, por aquele que gargalha, dissimula e que, de lei corroída pelo carrego colonial9. Do mesmo modo, quando vestido com o
com suas duas cabeças, dança e reina em suas sete (ou mais) encruzilhadas. traje de doutor ou com a batina do padre cuja mancha de dendê fica aparente
6 Referência à Farmácia de Platão, de Jacques Derrida.
7 Luis Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas, pág. 114 9 Termo utilizado por Simas e Rufino em Flecha no tempo (Rio de Janeiro: Mórula, 2019). Indico
(Rio de Janeiro: Mórula, 2018). a leitura do capítulo “O carrego colonial”. Ver também o capítulo “Rolê e ebó epistemológico” de
8 Luiz Rufino. Pedagogia das encruzilhadas, págs. 44 e 45 (Rio de Janeiro: Mórula, 2019). Pedagogia das encruzilhadas, de Rufino.

50 51
para todos, Tranca Rua perverte estas performances coloniais, mostrando que sem blusa ou de terno de linho, descalço ou de sapato bicolor, bebendo a jurema
qualquer um pode encená-las e que, nelas, não há nobreza alguma. sagrada ou uma cerveja gelada, ele tem como elemento constante em suas estó-
Contudo, não esqueçamos, Tranca Rua é homem. Mas, com uma mas- rias a referência ao choro pelo amor não correspondido. Seu Zé, quando vem de
culinidade outra, escrachada e precária, ele debocha da retidão fálica em sua Alagoas ou mesmo da lagoa, ele toma cuidado com o balanço da canoa e pode
performance, como nos lembrando um ponto que eu adoro e que Rufino fazer tudo o que quiser, contando que não maltrate o coração de uma mulher.
firma em sua Pedagogia: “Exu Tranca Rua é homem / promete pra não faltar Ser em trânsito12, o malandro tem como sua característica maior a
/ quatorze carros de lenha / pra cozinhar a gambá / A lenha já se acabou / e a adaptação às mudanças para preservar sua existência. Por sua natureza móvel
gambá tá pra cozinhar”10. e, por sua transitoriedade, se torna o guardião dos corações femininos, aquele
que, com toda sua sedução, seus galanteios e mesmo sua canalhice, tem como
tarefa proteger as mulheres daqueles que escamoteiam sua malandragem e, es-
XXX ses sim, os homens hipócritas, pretensos cavalheiros e homens de bem, são os
verdadeiros cafajestes em sua performance masculina: os príncipes encantados
T erceiro P onto : “S ó não maltrate o coração dessa mulher ” perfeitos que querem suas esposas belas, recatadas e do lar – é sobre esses que
Zé Pelintra vem, nos terreiros, alertar.
O corpo encantado das ruas, de Simas, nos conta a saga de Zé Pelintra
que dos catimbós do nordeste chega à Lapa carioca. Pernambucano, depois de
um tempo morando em Recife, na rua da Amargura, perto da zona boêmia, XXXX
deixa a cidade e parte para percorrer os sertões devido à desilusão de seu amor
por uma certa Maria. Simas nos lembra o ponto que narra essa história e que
Q uarto ponto : “A quela casinha pequenina lá no alto da colina ”
diz que “Na rua da Amargura / onde seu Zé Pelintra morava / ele chorava por
uma mulher / chorava por uma mulher que não lhe amava”11. Em suas pere- Essa coexistência em uma mesma figura daquele que porta a navalha e
grinações por Alagoas e Paraíba, Seu Zé é iniciado no culto da Jurema sagrada que chora, que sempre está pronto para a briga e que se torna um guardião dos
e, herdeiro do saber dos caetés, torna-se mestre juremeiro. e das desprotegides, pode ser muito bem ilustrado por um dos personagens
Chegando ao Rio de Janeiro, trazido na diáspora nordestina, ele ganha melanodérmicos com uma das mais interessantes performances de gênero de
sua navalha e se transforma no malandro carioca, vadiando pela Lapa e moran- nossa história: Madame Satã.
do no morro de Santa Tereza. E o ponto, que antes falava da rua da Amargura Se seu nome, por si só, já não desconstruísse o dualismo dos gêneros,
do Recife onde seu Zé Pelintra morava, agora faz menção à morada na época de o malandro carioca, nascido João, também pernambucano como Zé Pelintra,
sua morte: “O morro de Santa Tereza está de luto / porque Zé Pelintra morreu foi menino de rua, capoeirista, transformista, presidiário, assumidamente ho-
/ ele chorava por uma mulher / chorava por uma mulher que não lhe amava”. mossexual, casado com uma outra Maria e pai zeloso de seis filhos de criação.
Interessante pensar que essa figura que transita entre cidades e sertões, do catim- Se Simas e Rufino dizem que “as travessias dos malandros são pelos caminhos
bó nordestino à umbanda carioca, que usa desde chapéu de palha ao Panamá, das ambivalências”13, Marcelo Moraes e Adriano Negris nos mostram a radi-
calidade específica desse malandro:
10 Pedagogia das encruzilhadas, pág. 29.
11 O corpo encantado das ruas, de Luiz Antonio Simas, págs. 17 a 20 (Rio de Janeiro: Civilização 12 Quase-conceito gingado a partir das diversas falas e escritas de Simas sobre a malandragem.
Brasileira, 2019). 13 Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato, pág. 87.

52 53
O único peso é a navalha que carrega no bolso e a única potencialidade de flutuar entre masculino e feminino15, as aspas de Niet-
leveza é a da mão que entra nos bolsos alheios e traz o zsche16 e as tesouras de Derrida17 tornem-se ainda mais hiperbólicas com
alimento do dia. (...) Um analfabeto que escreve. Um as navalhas de Satã.
marginal que é madame. Uma madame que é satânica.
Mas que operação esporante18 seria essa que, para além das meta-
Um gay viril. Madame Satã não era nem seu nome. Seu
nome era: João Francisco dos Santos. Três nomes que fa-
fóricas aspas e das desconstrutivas tesouras, apenas a Navalha pode fazer?
zem referência ao religioso, ao sagrado. Nomes de santo “Mulher de malandro tem nome / e se conhece pela saia / vara curta e
num corpo de satã. Uma Madame Satã dos Santos. Um onça brava / ela é Maria Navalha”, diz o ponto, mostrando que quando é
pecador com nome de santo. Salve todos os santos, salve a mulher quem toma para si e empunha a navalha (pois é ela a dona deste
Madame Satã, hoje padroeiro da Lapa.14 objeto de corte e transição), ela se torna os dois lados da relação, é ela a
vara que cutuca a onça e a onça que é cutucada, promovendo o giro, ou a
Essa sua navalha que escreve, que escreve através de uma política mar- gira radical, para a desconstrução do gênero e da sexualidade19.
ginal do corpo, fez desse herói-bandido uma potência de performances como Sujeito e objeto, nem sujeito nem objeto, a Maria que carrega a
talvez nunca se tenha visto, pois Madame Satã era também o Caranguejo, a Mu- navalha é aquela que entra em cena para botar tudo em seu lugar (pois,
lata do Balacochê, o Tubarão, Jamacy, a rainha da floresta, o Gato Maracajá e o como sabemos, “Ela é malandra não precisa trabalhar / Maria Navalha
afetuoso pai, João. Após seu último encarceramento no presídio da Ilha Grande, bota tudo em seu lugar”), ou seja, para desarrumar a navalhadas os eixos
ele passa a morar numa casinha pequenina, no alto da colina que Maria mandou bem organizados do masculino e do feminino, sendo ela, portanto, a mu-
fazer, e lá reside com sua família até sua morte, em 1976. Mas a pergunta que lher que briga, que corta e que escreve as cicatrizes nos rostos daqueles que
ainda ecoa, de acordo a constância das lágrimas na lógica da malandragem, é se, não aceitam sua arte. Outro ponto nos adverte: “Ela é mulher, ela é bonita
longe dos palcos, das fantasias, das brigas, de sua escrita-corpo, com sua nava- e formosa / mas não se engane, ela é muito perigosa”: Maria Navalha é
lha aposentada, essa casinha pequenina não seria aquela mesma que Mulambo aquela que sorri e que dança, com suas sete saias coloridas, mas que, para
mandou fazer, na qual, segundo o ponto, “o malandro chora e você não vê”. garantir o direito ao sorriso e à dança, precisa empunhar, sob estes sete
véus, a arma da desconstrução do falo e do deslocamento dos gêneros. E
ela conhece muito bem seu segredo, sua arma e a tarefa de seus golpes:
XXXXX como cantam, “traz um sorriso no rosto e uma arma na saia / O seu nome
é / é Maria Navalha”.
Q uinto P onto : “T raz um sorriso no rosto e uma arma na saia ”

Pensar a potência político-alegórica de Madame Satã é radicalizar


a potência pelíntrica da ambivalência dos malandros. Quem é Madame 15 Segundo a já mencionada citação da oscilação do élitro, de Esporas.
16 Leitura que Derrida faz de Nietzsche em Esporas e que pensa a operação realizada na filosofia
Satã quando baixa em um terreiro? É ele ou ela? Baixa como malandro pelo filósofo alemão através de sua utilização procedimental das aspas.
Caranguejo ou pomba-gira do Balacochê? Como cabocla Jamacy ou como 17 Leitura que Preciado faz de Derrida no Manifesto contrassexual e que pensa a desconstrução
o bondoso preto-velho Pai João de Pernambuco? Talvez, como a máxima empreendida por Derrida através da metáfora das tesouras.
18 O termo operação é utilizado por Preciado para apontar à potente desconstrução do gênero e de
14 Marcelo José Derzi Moraes e Adriano Negris. “Escrituras da cidade: ordem e desordem a partir sua relação com a materialidade dos corpos presente no pensamento da desconstrução.
de Derrida”. In: Dirce Eleonora Solis e Marcelo José Derzi Moraes. Políticas da cidade (Coleção 19 Lembrando que, em Esporas, Derrida, para pensar o jogo do feminino remete a diversos objetos
Querências de Derrida, moradas da arquitetura e filosofia, vol. 4). Porto Alegre: UFRGS, 2016. cortantes, como o par de esporas, o estilete e a adaga, da Lucrécia de Cranach.

54 55
XXXXXX lhadas reposicionam imagens e ressignificam as experiências do feminino.
São as suas tesouradas [e navalhadas, digo eu] que nos livram das amarras
coloniais vestidas sob o véu do pecado”21. A pomba-gira é mulher que
S exto P onto : “ mata sem tirar sangue / E ngole sem mastigar ”
vadeia, que gira, que gargalha, que tem sete maridos e cuja saia, sendo de
Nesse percurso oscilante que percorro, do Ogó de Exu, passando pela sete panos ou um mulambo só, promovem outra operação que apenas ela
bengala de Tranca-Rua, até chegar às navalhas de Zé Pelintra e dessa perigosa e Exu podem fazer: engolir e cuspir.
Maria que agora entra em cena, percebo que talvez a guerra que empreenda a A pomba-gira que mata sem tirar sangue e engole sem mastigar é
Navalha empunhada pela mulher seja o golpe fundamental para uma opera- aquela que rodeia sua saia nos terreiros e que carrega, como seu segundo as-
ção ainda mais radical para se pensar o feminino. Que força é essa que, debai- pecto ancestral, a tarefa de Enugbarijó ou “boca que come tudo”. Rufino nos
xo das sete saias rodadas, parece reunir todas as armas até agora apresentadas? explica que “O domínio de Exu intitulado como Enugbarijó, o senhor da
“Maria Navalha disse / cuidado pra não errar / ela jurou, jurou, tornou jurar boca coletiva, nos diz sobre (...) todas as dinâmicas de transformação, repro-
/ Que mata sem tirar sangue / Engole sem mastigar”. A saia da pomba-gira, dução, multiplicação, possibilidade, imprevisibilidade, criação, comunicação,
para além dos mistérios que guarda a capa dos exus, qual seja, o jogo dos véus mediação e tradução”22. Dona Sete Saias, Dona Mulambo e todas essas Marias
e do velamento como movimento do real, ainda guarda um poder a mais: rodopiantes engolem inclusive Exu e cospem nos terreiros suas mandingas,
como primeiro e fundamental aspecto da pomba-gira, a arma por baixo da suas cores, suas baforadas e, através de suas danças, empoderam os corpos
saia, ou melhor a saia como a verdadeira arma, traz consigo os segredos que femininos, de homens e mulheres, e promovem impensáveis, impossíveis e
se encontram desde o Exu iorubano até estas entidades femininas e dançantes incalculáveis coreografias.
da diáspora africana.
Esse encontro se dá no próprio nome pomba-gira, que ela ganha
do inquice banto Bombogira. Simas nos explica que “em quimbundo, XXXXXXX
pambu-a-njila é a expressão que designa o cruzamento dos caminhos, as
encruzilhadas. Mbombo, no quicongo é ‘portão’. Os portões, quem é do S étimo P onto : “E la bate com o pé e sai andando ”
santo sabe, são controlados por Exu. Bombogira, Pambu-a-njila, Pomba-
gira: as ruas, a encruzilhada, as porteiras, as diáporas, o mundo”20. Nesse “Sedução, amarração, provocação, abuso e desobediência”23, a potên-
cia encantada das pomba-giras, segundo Simas e Rufino, “é resultado entre a
sentido, nesse primeiro aspecto, o nome pomba-gira carrega a encruzilha-
força vital do poder das ruas que se cruzam, presente no inquice dos bantos,
da não apenas no que representa, mas seu próprio nome nasce no cruza-
e a trajetória de encantadas ou espíritos de mulheres que viveram as ruas de
mento disso que, para nossa sociedade, é perigosíssimo: a junção entre a
diversas maneiras”24. Essas personagens transgressoras, prostitutas, meninas
potência do inquice banto com o poder da mulher sobre o próprio corpo.
de ruas, ciganas, cafetinas, mendigas, malandras, feiticeiras, que macumbam
Não é à toa que vários pontos chamam a atenção ao fato de devermos ter
através de feitiços de amor e que limpam quem delas precisa com o pano de
medo das pomba-giras, não mexer com elas, não menosprezar seu poder,
suas saias, tinhosas e debochadas, promovem uma operação única na cultura
pois se “na boca de quem não presta, pomba-gira é vagabunda”, é porque
ela é mulher de domingo até segunda. Simas e Rufino nos chamam a aten- 21 Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato, pág. 90.
22 Luiz Rufino. Pedagogia das encruzilhadas, pág. 141.
ção para o fato de que “a saia rodada, as pitadas na cigarrilha e as garga- 23 Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato, pág. 89.
20 Luis Antonio Simas. O corpo encantado das ruas, pág 21. 24 Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato, pág. 92.

56 57
popular brasileira, o padilhamento. Essas muitas Marias, donas das ruas, navalham, giram, padilham e
Diz o ponto que Maria Padilha tem um mal costume, pois quando gargalham enquanto nós permanecemos aqui, presos às estruturas pretensa-
a chamamos, chamamos várias vezes, e “ela bate com o pé e sai andando”. mente fixas, buscando origens e fundamentos, criando ontologias e teleologias
Isso porque Padilha é aquela mulher que não tem medo; que quando jura- enquanto elas, sem dialéticas, sem fenomenologias, muito menos análises ou
ram que a matariam na porta do Cabaré, ela passa a andar por lá de dia e de deduções, deixam seus rastros como saias que parecem flutuar, escrevem com
noite, dizendo aos quatro ventos que só não a matam por que não querem; batons e piteiras e deslocam muito mais do que qualquer homem jamais ou-
Padilha é aquela que, quando encontrada sob o clarão da lua e perguntada sou sonhar. A ereção cai.
onde é sua morada, responde que mora numa estrada sem fim, pois seu
caminho é o de sempre estar em trânsito, transitando, transgredindo, tran-
sicionando, transando, libertando os corpos através de sua performance, em
uma palavra: padilhando. Desse modo, aquele “mal costume” da Padilha ao
qual o ponto se refere, o de bater com o pé e sair andando, nos mostra que
sua tinha consiste em andar por aí sem medo, seguir sua estrada sem fim e
só fazer o que quer, na hora em que quer, sendo o padilhamento, portanto, C antando para subir : “C uidado , amigo , ela é bonita , ela é mulher ”

a operação simbólica através da qual o corpo feminino empadilhado não se Não poderia terminar sem testemunhar as tantas danças e giras que
submete mais à ordem e às hierarquias, que, como bem sabemos, são sempre presenciei, mas uma em especial precisa ficar, aqui, registrada, por ser a minha
masculinas. primeira impressão de uma dessas mulheres que dançam. Tinha dez ou onze
“Ela gira no mar, ela gira na praça, ela gira na rua / Ela canta, ela anos quando minha mãe, ateia, não sabendo se estava louca ou o que poderia
dança, ela vive sorrindo em noite de lua”, canta o ponto, nos lembrando que a ser, começou a falar estranho, mexer os ombros e querer dançar. Eu era o filho
gira que constitui o nome dessas tantas moças é o que há de mais importantes mais velho e aquele que, também sequer sabendo do que se tratava, devia
nas macumbas brasileiras, e que, firmando as giras em nossos terreiros, essas então acolher os pedidos que eram feitos pela voz modificada de minha mãe,
mulheres que dançam talvez sejam a grande potência desconstrutora e desco- com um olhar penetrante do qual nunca me esqueço.
lonial de nossas terras. Cito Simas e Rufino, no brilhante capítulo “Quem tem Por algumas vezes a situação se repetiu e, em todas, tentei acolher a
medo da pomba-gira?”, de Fogo no mato: demanda da moça que queria dançar – pois, agora, já sabia que minha mãe,
quando a voz mudava, o olhar aguçava e os ombros e quadris balançavam, era
Torna-se emergencial rodas as saias a fim de incorporar
“a moça”, aliás, a moça que sempre queria dançar, que dizia que cresceu numa
movimentos que credibilizem outros conhecimentos.
Nessa encruza, a pomba-gira baixa para destravar os nós fazenda bem longe, e cujo pedido para dançar era sempre frustrado, pois meu
do corpo e praticar um giro enunciativo que opere a fa- repertório de pré-adolescente na cultura pop da década de oitenta era ple-
vor do combate às injustiças cognitivas, sociais e da dis- namente insatisfatório para as demandas rítmicas e melódicas da moça que
ciplinarização dos corpos. (...) Os giros das saias rodadas nasceu em Maceió. Um dia minha mãe resolveu procurar um centro espírita
nos indicam outras rotas, chamaremos uma dessas pers- perto de nossa casa (em plena Tijuca cujo conservadorismo consegue reunir o
pectivas transgressivas de padilhamento dos corpos.25
positivismo do espiritismo ao dos militares) e, neste centro, a moça também
baixou – e, como sempre, quis dançar. Minha mãe, pela indisciplina dessa
25 Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato, pág. 96.

58 59
moça, cuja falta fora apenas a de querer dançar, foi convidada a se retirar do Ela é bonita, ela é mulher
centro e, uma vez mais, a moça ainda não tinha podido dançar. E num canto da rua
Naquele momento, eu não sabia, é claro, mas já se mostrava a Zombando, zombando, zombando está
mim que as moças que querem dançar são um problema ao reacionarismo, Ela é moça bonita
e que sempre darão esse tipo de problema, pois seu desejo de dançar é a Girando, girando, girando lá...
afirmação daquilo que têm de mais próprio e de que tanto precisam: sua
identidade em movimento. Porém, um dia, pouco tempo depois, a moça
que queria sempre dançar encontrou um salão onde isso era possível, um
lugar que, qual um cabaré, era liderado por uma outra moça que dançava e
que se chamava justamente Maria Padilha. E, desde então e durante muito
tempo, vi a moça que queria dançar se encontrando, ao som do atabaque,
com um coletivo de moças dançarinas, girando, rodopiando, e que, com
suas rosas, faziam a gira girar.
A voz de Ângela Maria invade a escrita e, saudando as moças da noite,
cantando ô girando, larô iê!, ô girando, laro iê!, interrompe o texto para deixar as
vozes e as saias delas terminarem esse rodopio padilhante e, elas, assinarem o texto,

Pois sim, esse texto que começa com a moça dançante estampada nas
coreografias do feminino de Carla Rodrigues, deseja ecoar não apenas o pe-
dido para dançar de Emma Goldman, mas, também dedicado a ela e a Carla
Rodrigues, procura dar ouvidos à necessidade de dança que nos exigem Mada-
me Satã, a mulata do Balacochê, Pomba Gira de Maceió, Maria Padilha, mi-
nha mãe, e tantas outras moças bonitas que, girando, girando, girando lá, na-
valham os sexos e os gêneros que, enrijecidos, nunca poderiam proporcionar
uma pluralidade de coreografias como as que necessitamos nesta revolução.

De vermelho e negro, vestindo


À noite o mistério traz
De colar de ouro, Brincos dourados
A promessa faz
Se é preciso ir
Você pode ir
Peça o que quiser
Mas cuidado amigo

60 61
Marcelo José Derzi Moraes1 nóix não sabemos se somos muitos ou se somos poucos, talvez, mui-
ruas , marquises e esquinas
tos e poucos ao mesmo tempo. Não sabemos quantos somos, nem se somos,
Eu amo a rua muito menos de que conjunto ou grupo nóix fazemos parte, a não ser quan-
João do Rio do escolhemos fazer parte de um nóix, de uma galera, de um bonde, de um
movimento, de uma falange, por mais que saibamos que, às vezes, fazemos
De madrugada é que o bicho começa a pegar parte sem saber e estamos sempre acompanhados. Além disso, fazendo jus a
Bezerra da Silva um certo acento, uma certa singularidade, um sotaque, uma marca, uma par-
ticularidade de uma linguagem de um determinado lugar, reforçamos o nós
nóix somos a rua! Mas, quem é nóix? Antes de responder, vamos deixar enquanto nóix, visando tentar reproduzir, na escrita, algo que é reproduzido
claro, que becos, ruas, marquises e esquinas são operadores da cidade pelo som, mas que é negado pela escrita. O nosso nós é com i e x, reforçando
que vão se desenrolar nesse eterno. No freestyle, vamos para o acerto uma língua que é marcada por elementos de uma desobediência da lingua-
de contas com uma filosofia que só pensou as avenidas, a arquitetura, gem, que opera à margem do idioma dominante, que traz, na sua origem,
a praça, a casa, o centro e o sujeito, sempre submetida à violência da elementos de uma africanidade, de uma indigineidade, do subúrbio, dos bo-
língua dita culta com suas regras e imposições e do pensamento puro. tequins, das ruas, da favela, do samba, do funk e do futebol. Toda hora tem
Despachado na encruza, é da encruza que partimos, pois partimos an- gíria no asfalto e no morro, então, tá tudo amarrado, tudo junto e misturado.
tes mesmo de chegar e chegamos depois mesmo de ter partido: um nóix, então, seja lá quem for, somos a rua, porque a realidade é uma, é tudo
padê à ontologia das encruzilhadas. nosso, e nada deles, alemão. A rua é nóix.
B ecos ,

Em primeiro lugar, 5 minutinhos de alegria, esse nóix vai vir O motivo de recorrermos ao nóix está muito longe do sentido do zoo
sempre no minúsculo, para registar que esse nóix não é o Nós da tota- politicom ou do sujeito coletivo. A ideia é, reconhecemos, de que não somos
lidade, do demos, do todo. lançamos esse nóix e todos os momentos em únicos, sozinhos, mas, também não somos todos, e somos todos para além do
que recorrermos à primeira pessoa do plural em minúsculo (mesmo que humano. Tendo o fechamento como fundamento e a condição que possibilita
de forma oculta/implícita/apenas desinencial), para lembrar que esse que o nóix se realize, ao invocarmos um nóix, é preciso considerar aquele que
nóix nunca é um todo, que nunca sabemos quem faz parte desse nóix, fecha com a gente, aquele que assombra a gente, aquele que protege a gente e
que não podemos contar quantos somos, nem ver quem está entre nóix. aquele que ainda está por vir. Pensar a partir do fechamento é entender quem
Um outro motivo para que esse nóix se registre com a letra minúscula é fecha com nóix, uma vez que fechamento é abertura para aquele que chega, é
para reforçar que é preciso ler os códigos, ler os corpos, ler os nomes, ler reconhecimento e fidelidade àquele que chega. Fechamento é abertura ao outro.
as escrituras, ler as ruas, as peles e os muros, uma vez que pela voz, pelo Não pensamos aqui num eu centralizador que apaga o outro, pois
catuque dado, pelo kao contado, a história narrada, a conversa fiada, sabemos que esse eu nem sempre representa o outro. Nesse momento em que
podem não ser suficientes para passar uma visão, para a ideia dada. É nunca fomos tão cartesianos, eu só sou com o outro, com os outros. Esses
preciso lançar na escrita o que a cidade pede aos seus vadios e vadias, a outros, nos ensina a filosofia bantu, é qualquer um, seja humano ou não-hu-
saber, um empirismo selvagem de acordo com Felipe Filósofo. Então: mano, é aquele com o qual alguém se relaciona. Não conjugamos a partir da
Liberta DJ! primeira pessoa, uma vez que entendemos que ela é um mito. O nosso possí-
vel eu vem carregado e acompanhado de ancestrais, de desejos, de fantasmas,
1 Dedico esse desenrolo à memória de Charles, Sinistro, Xuxa, Fofinho, Rala, Cris e Cut:
vagabundos natos. de medos, de sonhos, vontades, lembranças, de amigos e de inimigos. Diante

62 63
disso podemos escolher nossas heranças europeias ou nossas heranças africa- ruas e os becos, que fazem desse amor uma relação indecidível entre o con-
nas. A rua, a esquina, o beco, a marquise, a cidade e todas as pessoas e não-pes- dicional e o incondicional, entre a luz e a sombra, entre amar o sol e amar a
soas (natureza, espíritos, entidades) que a constituem, forjam o espírito (ou lua. Pois amar, se ama nas sombras e nas luzes. Talvez amar seja uma constante
espíritos da cidade) na relação de fechamento constituem o nóix. instabilidade entre luz e sombra.
Para pensarmos a cidade, abolimos a cidade e seus operadores enquan- A partir desses operadores da cidade, percebemos como esses partici-
to objeto, ao mesmo tempo em que não pensamos os seus sujeitos no sentido pam do grande maquinário que é a produção de espectros e de corpos de uma
clássico que carrega uma identidade ou uma essência. nóix aqui é o humano e cidade, sem retirar aqueles que configuram a sua existência e seu sentido, que é
o não-humano. nóix, aqui ou lá, somos constituídos na relação, no fechamen- o elemento humano e não-humano. Será evidente que esse texto é regional e
to com o outro, com os outros, sejam humanos, não-humanos, becos, ruas, localizado, estamos falando de um espírito ou de espíritos, na verdade, de espec-
marquises, vielas, encruzilhadas, trens, ônibus, praia, esquinas, bailes, pago- tros, que se fundam e se reproduzem em um lugar, na cidade do Rio de Janeiro,
des, terreiros, campos de futebol, duras, motéis, transas, igrejas e trabalhos. em alguns lugares e contextos dessa cidade, que são espectrados por forças que
Na medida em que nas ruas nos sentimos livres, de cyclone, de cama- forjam existências nos mais variados sentidos do ato de forjar e até de existir.
leão ou olho de gato, percebemos que, pelo menos aparentemente, todos têm Além disso, é importante ressaltar que esse texto trata de um tempo que passou,
acesso, e livremente podem usufruir das ruas. Mas sabemos que ela é anárqui- mas que se repete de forma espectral nos mais variados corpos, humanos e não-
ca, ela é de qualquer um, e que, muitas vezes, pela força, pela violência, pela -humanos. Então não é uma nostalgia da origem ou do passado, muito menos
resistência ou, principalmente, pela sagacidade, sobrevivem os mais fortes, uma psicanálise da cidade, mas entender porque algumas forças resistem, ainda
seja em grupo, por uso do poder, pela força, pela esperteza, pela cautela ou hoje, como possibilidade de forjar uma cidade ou um povo.
pela inteligência. As ruas são mundos, mundos que se abrem, que se transfor- Esses espíritos e esses espectros, essas falanges de entidades formam o
mam, que se encolhem, que se fecham, mas que, antes de tudo, estão lançadas nosso mundo, um mundo regional, um lugar, limitado, mas que transborda em
a todas as possibilidades de encontros, de mundos. Mas, também, de mistério suas margens, que acolhe e exclui aqueles que penetram em seus limites. E essa
e de segredos. As ruas podem ser, e são, um mundo dos segredos. Ame ou postura, essa firmação de uma localidade, de um terreiro, de um terreno, de uma
odeie, a rua é aquilo que possibilita ser ou não-ser, estar ou não-estar, existir encruza, de uma esquina, de uma marquise ou de uma rua surgem no sentido de
ou não-existir, visível e invisível, tudo ao mesmo tempo: as ruas são espectrais. colocar e pensar questões, que muitas vezes a filosofia colocou como universais
Sendo a morada de Exu, tal como o senhor das ruas e das encruzilhadas, ela e respondeu com a pretensão de universalização. Colocar ou responder uma
devora tudo e todos, e se transforma em infinitas ruas, sempre abertas para de- questão ou muitas questões a partir de becos, ruas, marquises e esquinas é o que
vorarem ou presentearem àqueles que arriscam se lançar em suas vias, por isso nóix vamos arriscar. Porque sabemos que o kao tem sempre uma razão universal.
é possível uma ontologia das encruzilhadas. As ruas conseguem ser ao mesmo Assim forjamos nomes, existências, espaços, posições e posturas a fim de marcar
tempo democráticas e anárquicas, mas, podem ser tirânicas e despóticas. alguns pensamentos com a nossa cor, nosso cheiro, nosso sotaque.
O amor pela rua está para além de sentir-se acolhido ou rejeitado por O ato de forjar, ao mesmo tempo que cria e escamoteia, pode ser
ela. Essas questões acerca da rua poderiam ser reproduzidas por muitas pes- sempre um sete muito bem aplicado, cria corpos, corpos infinitos que se inter-
soas, pois muitas são as pessoas que amam, que vivem para, e, da rua, e, pela cruzam, se perpassam, se contaminam, se comem, se ejetam, se projetam, se
rua, muitos e muitas são nóix. nóix não vamos aqui pensar qual a relação desse lançam. Se lançam como flecha ao céu, que ao tocarem nas nuvens promovem
amor com a rua, nem pensar o que é o amor pela rua, mas tentar pensar com trovoadas, que respondem como raios que cruzam o céu em direção à terra.
a rua e alguns elementos que a compõem, como as marquises, as esquinas, as Flecha que penetra ao som do aguere o corpo da floresta de metal, a carne

64 65
do seu corpo úmido, a carne do corpo espectral. Esse encontro de corpos, de cruzilhadas e as ruas que compõem uma cidade estão espalhadas em diversos
flechas, de raios, no tempo, desenham o corpo que acolhe aquele que se delicia lugares, e é na encruza que se paga. Há encruzas e ruas nos centros e periferias,
por suas curvas e esquinas, becos e vielas. Corpos que buscam outros corpos cada uma com sua composição e sua singularidade e particularidade, com sua
que criam outros corpos, outras cidades, outras ruas. Corpos estranhos e cor- iluminação e sua sombra, algumas bem iluminadas, outras, completamente
pos perfeitos num só encontro de criação e de produção de mundo. escuras, com despachos e com moradores.
Deslizando pelo corpo dessa cidade veem-se grafando nomes, memó- As encruzilhadas e as periferias ajudam a dar uma imagem sobre o
rias, lembranças, marcas, traços, rastros, cheiros, suores na pele da cidade. As centro e a periferia, iniciando uma centralização ou uma marginalização do
marcas produzidas por esses corpos, pelo corpo, passam a espectrar, em for- lugar. Em geral, se começa do centro para as margens, ou, das margens para
ma de lembranças, que endurecem a carcaça, a pele, peles de crocodilos, que o centro, quando essa paisagem já está determinada segundo uma lógica de
produzem memórias, que condicionam o olhar, o caminhar, os sonhos e os poder ou ideológica. Esse mesmo cenário, se repete nas ciências humanas e
desejos. É conhecer onde caminhar, no chão liso ou no chão áspero, na hora naturais, um centro que observa e analisa aquilo que está à margem, a fa-
do perdido. Depois de deslizarem e acariciarem as curvas dessa cidade, desse mosa paisagem sujeito e objeto. nóix estamos tentando inflar as bordas que
mundo, de serem tocadas pelo raio produzido, só resta às flechas penetrarem, delimitam o centro e a periferia, o centro e a margem, ao falarmos de rua, de
cortarem, adentrarem as dimensões que se mostram diante de si. Porque não becos e de marquises. Não fechamos com a ideia de centro e margem, nem
dá pra fugir dessa coisa de pele. com a ideia de centro, de centralidade; nóix somos a margem, a periferia, e o
Nessa cidade, na qual o signo do sol é regente, o tesão de sol, o banho outro, aquele outro, os outros, que não são nóix, também são margens. Só há
de sol, o chopp gelado, o suor dos corpos, as roupas molhadas, o rosto molha- margem, só há periferia, e todo aquele que busca se centralizar, é tomado pela
do, influencia a busca pelas sombras. Mas até o anoitecer, quando o sol não força da margem.
mais brilhar, somos presenteados com o retorno do sol, seja quando refletir a nóix não sabemos se vamos conseguir ou até mesmo explicar, mas,
sua luz na lua ou quando a lua é o sol da meia-noite, até porque quem manda categoricamente, partimos, é sempre da partida que se trata, de que não há
de dia é o sol quem manda de noite é a lua. Não adianta, nessa cidade, luz e mais centro, ou só há centros, ou só há margens, é esta última que preferimos
sombra é uma coisa só. O corpo, o mundo, a cidade, o infinito se mostram e que vamos fechar, se trata de uma revolução das margens. acreditamos que
como luz e como sombra, e os caminhos que se percorrem pelas curvas, esqui- só há margens, só há periferias. Ao transbordar, não falamos de apagar, as
nas e vielas do corpo-cidade-mundo é condição de vida, de abandono total do margens, pensamos em termos de margens que se movem, que se empurram,
niilismo; só resta o corpo, que é carne, espírito, espectro, matéria, abstração, é que resistem, que transgridem, que são violentas. sabemos que a margem é
uma ideia-corpo, que é real até mesmo quando não se manifesta em presença, uma produção violenta da centralização de um centro, mas esquecemos que a
mesmo quando o clima tá sinistro. margem está sempre se expandido, crescendo para os lados e para cima; assim,
Quem é da rua sabe que ela tem leis, não, exatamente, a Lei. A rua o centro vai se sentindo sufocado e, por mais que ele promova o reforço das
possui uma lógica própria. Sendo o verdadeiro estado de exceção, a rua in- delimitações que o separam, essa unidade, esse centro, acaba se sufocando
venta, cria, manipula e conserva leis e Leis. Quem tá na rua faz a lei, mas, porque a margem não para de crescer. A margem é pura potência, e uma re-
também, pode ser vítima dela, pois justo ou injusto, a lei atua conforme as volução das margens, seja ela qual for, é uma marginalização do mundo. Não
situações que se apresentam. Não há rua sem saída, toda rua está aberta a um defendemos aqui a centralização das margens, mas a marginalização do cen-
plano de fuga. A rua tem dono, tem morador, nas esquinas e nas encruzilha- tro. Não importa de onde se parte ou de aonde quer se chegar, não interessa o
das. Por isso, ao passar na encruza, não se esqueça de olhar pra trás. Mas as en- referente, o que interessa é compor com os limites, empurrando as suas bordas

66 67
e pensando que toda transgressão é a transgressão desse limite que impõe o E nóix sempre volta. 17h, já sabendo que do túnel para cá ou do túnel para
centro como o lugar de maior valor. lá, as configurações mudam, as ruas, os cheiros e os sons. O fim de semana
nóix queremos começar de vários lugares, de várias margens, de vários produz muitas ressonâncias, da velocidade do cavaco, da marcação do surdo,
centros, de margens que se tornam centros e centros que se tornam margens. da mandiga do ijexá, resiste quem pode à força dos nossos pagodes. Entrou
Sempre retornando, voltando, indo e voltando, fazendo valer a lei do retorno. na quadra, firma o ponto, marca o passe, toma aquela, formou. Nessa cidade,
Sempre retornando, nos ensina a filósofa Andréia Lourenço: a lei do retorno o corpo e o espírito têm balanço, têm mandinga. Do Flor ao Verlaine, se o
vem devagarinho, chega sem avisar, fazendo o mundo girar. Então, vai ter corpo não balançar e o espírito não gemer depois do Bebeto a noite toda, que
volta, e não é praga, porque ninguém anda sozinho. A lei do retorno traz o pelo menos o sono seja tranquilo, porque quem gosta do sereno faz moradia
inesperado, o novo, mas, também, o mesmo, às vezes, na medida da cobrança, na luz do luar.
mas, às vezes, a medida é desproporcional, porque não se pode esperar e nem Nas ressonâncias das ondas do mar, na escrita de peito ou de prancha,
medir o retorno, porque o retorno é de Jedi. Não é á toa que se pede a Xangô o surf ganha outros movimentos e outros espaços, amanhecemos ao som do
que se faça Justiça, mas que tenhamos vitória, não sabemos o que nos espera Hassan. De 457 ou 464, o bonde tá formado. Quando o clima fica tenso; a
em termos de justiça: vai ter volta. maneira como escrevemos no mar azul reproduz, da água até o asfalto, passan-
Partindo de diversos horários, de um lugar onde a luz chega mais fraca, do pela areia ou pelas pedras, um corpo que quer continuar escrevendo pela
num amarelo mais escuro, ou num azul marinho bem mais escuro, em um céu cidade. No asfalto quente, queimando, o calor vem de baixo e de cima, 40⁰
estrelado, com cheiro das damas da noite, aos passos lentos de um gato sob o ao som do Spring Love. Corpo suado e salgado, em cima, na porta, na janela
trilho da via ferroviária. Começar num horário que não é o meio-dia, nem a do buzu, o surf continua desenhando a cidade. Por baixo ou por cima, o voo
meia-noite, mas 21:30 ou, quem sabe, 04:50. Partindo do pão na chapa com é certo na roleta. Na volta, é uma alegria só, o barró é de lei; na verdade, o
café preto, às sete e meia da manhã no boteco da esquina, contando a hora pro barró é a Lei, com L maiúsculo para registrar que é uma questão fundamental,
almoço, na saidinha pro duque de dezena, no grupo e no milhar, se é cobra na que passa pela necessidade, pela afirmação e pela sobrevivência, seja pelo sete,
cabeça, nada garante a volta pra casa. Madrugada adentro, céu nordestino, o seja pelo perdido ou seja pela zona mesmo. Mas a noite não termina, sombra
bicho começa a pegar, forrozear até o dia clarear, suor no rosto, álcool exalan- e luz, sol e lua, azul e negro, nóix sempre nos reunimos, na esquina, debaixo
do, cheiro de carne, carros passando, ônibus parando, faca na barriga, peixeira da marquise, na rua ou no beco. De lá partimos e lá chegamos, no momento
na cintura, alguns acordando, outros sem previsão de dormir, um momento estamos em trânsito, em movimento. Sempre dançando, cantando, zoando
em que não se parte e não se chega, só se passa. Do vermelho, às 4 da manhã, ou escrevendo pela cidade, nóix, com a Furacão ou com a ZZ, visamos mais
depois da madrugada inteira pelas ruas, resolvendo a larica, partimos de volta. longe. Marcado pelo surdo ou 808 Volt Mix, as batidas do coração pulsam
Às seis, partindo com o sol nascendo, quando o Santa Cruz chegar à Central, como o núcleo da terra, visionamos explosões, paredões, áreas neutras, gozos,
cortando a cidade, desenhando, pintando, escrevendo, mas, também, ecoan- tapas, gritos, socos, crocodilagem, chutes, alisadas, sarradas, mamadas, no-
do o seu som pela cidade. Mas quando partimos para Madureira no 254 ou mes, xarpis, corridas, perdidos, fechamentos: a noite é uma criança. Levando
no Deodoro, no balanço do trem, já vamos começar os preparativos. 16h, de ponta a ponta, entortando o corredor, de norte a sul, a cidade de mil graus
chegamos de bicho, o golpe é certo. Cerveja, feijoada e batuque na cozinha, é o termômetro do kaô por vir. Mil problemas, vários problemas, vacilações
passando pelo Império, pula pra Portela, parte pra Portelinha. Abandonando dogmáticas, o reino da vacilação é também o reino da busca pelo prazer, e o
o Buraco do Galo, parte pra Mangueira, subindo o Buraco Quente, entra na tesão não falta. Zona norte adentro, atravessamos a Brasil, resistimos à passa-
quadra e enquadra. Amanheceu, parte pra sul, perdeu. Pronto, fechou, é nóix. rela 9, cortando como flecha, brilhando como raio de sol das 18 horas, gigante

68 69
no horizonte no horário de verão. Rumo ao baile, com a esperança de que na é, mas pode ser, uma atitude de enganar ou enrolar alguém. Desenrolar é a
segunda ainda tenha meu emprego, que corre o risco devido às marcas e às característica daquele que sobrevive, que tá sempre num corre, que tenta se
memórias que são gravadas no corpo da noite anterior. São muitas partidas, adiantar para não ser passado pra trás, para não marcar bobeira, nem ficar de
alguns se atrasam, outros nem tanto, outros não possuem horário, mas esta- bucha. Desenrolar é abrir caminhos e possibilidades, é salvar o dia. Então, no
mos sempre partindo, partindo para algum lugar ou de algum lugar. Então, sufoco, não se pode gaguejar. A letra tem que ser dada, seja diante da Lei ou
vamo que vamo. vamo ao maraca, vamo ao coleginho, vamo ao chaparral. No diante da lei, o papo é reto. Não pode vacilar, porque de madrugada o bicho
fim de tarde, o crepúsculo dos ídolos se realiza na Radial, na Leopoldina, na pode pegar, tem que ter disposição, e quem tá devendo é cerol sem piedade,
Brasil, no corredor, na arquibancada, onde se encontram homens e mulheres quando o rodo passar. Apelar ao divino ou ao espiritual faz parte, mas, faz par-
do tempo de outrora, e quando se convoca geral: ninguém corre, porque se- te recorrer ao contexto e saber que se tem conceito, o conceito é fundamental
não a cobrança é certa. para valer a pena o fundamento, que é o que vai permitir que você saia da
A visita inesperada ou programada aos espaços de morte faz parte da- parada e volte para casa ou siga seu caminho. Em alguns casos, se pode vazar,
quele que vive na rua, na cidade, no mundo. A cidade é um verdadeiro espaço mas quase sempre, quando se roda, é contar com deus ou com o desenrolo;
da manutenção da morte, forças te empurram de lado a lado, te enclausuram é claro que a localidade e a hora fazem a diferença, rodar na sul ou na zona
numa atmosfera da morte, que te leva de ponta a ponta assombrado pela mor- norte faz uma grande diferença, rodar às 13horas e rodar à 01hora define o
te. Atravessando a cidade a pé, de ambulância ou de ônibus, do Carlos Chagas fim da partida. Mas perder à 00 hora na sul é diferente de perder à 00 hora na
ao Souza Aguiar, do Salgado Filho ao Getúlio, de emergência em emergência zona oeste, mesmo horário, lugares diferentes, distantes, mas de uma mesma
vai-se tentando escapar do Caju, o espaço soberano da incondicionalidade do cidade, o tempo já não é a questão, mas o lugar é que define quem perdeu e
acolhimento, seja numa vala ou numa gaveta. Em último caso, nos resta Ban- qual será do proceder, por isso já demos a ideia: são margens, no plural. Mas
gu, onde muitos irmãos e irmãs estão vivendo sua correria. Mas, nas ruas, os se marfo um oka, se garpe na tenoi, se laro um tese, se aparecer uma correria,
ensinamentos dos mais velhos têm sempre o sentido de formar, de educar e de esse mundo se abre a outros e novos fechamentos, novas partidas. Novas mis-
preparar para a vida e para a morte. O cuidado, talvez, seja o ensinamento que sões aparecem, porque o jogo é jogado, diz J. C. Diouf. Então, a gente segue
mais se repete das vozes dos mais velhos, sejam eles homens ou mulheres. O contrariando as estatísticas.
ensinamento de se proteger e proteger sua área é sempre fundamental. A ideia Esses corpos, essas pessoas e não-pessoas, reais e não-reais, que consti-
de que é preciso cuidar de si para que a comunidade também cuide de você é tuem essa cidade, essas ruas, esses becos, esses trens, essas encruzilhadas, essas
a base da formação da comunidade. A letra é: não vacila na sua área. Nesses praias, esses ônibus, esses bares, igrejas, terreiros, nunca estão sozinhas, há
ensinamentos, quando o cara é considerado e respeitado na comunidade, tem um espírito, há um espectro, na verdade, espectros, porque são muitos que
a proteção de todos. O sentido de família é mais amplo do que no núcleo rondam a cidade, as nossas vidas. Uma cidade nunca é constituída por um só
burguês de classe média. espírito, mas por muitos espíritos, não há uma só cidade, são cidades numa
Mesmo diante de retas e curvas, de esquinas e paredões, de muros só cidade, há inúmeros mundos diante do mundo em que nos encontramos,
e marquises, a rota de fuga nem sempre funciona. Nas tentativas de dar o e é enquanto espectros que vagueiam na cidade, que nóix vivemos mundos
perdido, seja nas quebradas ou naquela situação, as maiores manobras, mais possíveis. Mas qual mundo te constitui? Quantos mundos? Quem são seus
articuladas que sejam, às vezes, falham ao rodar, e não adianta querer lombrar. parceiros de rua, de oração, de alimentação, de sexo, de bebida, de solidão?
Rodar faz parte, e quando ecoa: perdeu, o abraço foi dado. O desenrolo tem Nessas múltiplas realidades que são iluminadas e escuras, em algumas delas
que ser certo, quando, o qual foi, não colar, sem dois papos. O desenrolo não estamos sempre acompanhados. É saber que se pode atravessar toda a cidade,

70 71
de norte a sul, e do sul à baixada, ao outro lado da poça d’água, rezando, oran- mesmo quando nela nos jogamos, e, assim, vamos invadindo, traçando os
do, escutando música ou a conversa de quem tá falando ao lado. compomos seus caminhos, porque nosso bonde é unido e só fecha com a zz. Ruas, trilhos,
nossa vida com o povo da rua, saindo de casa, cantando pra Oxum quando encruzas, praia, somos sempre movidos ao som em busca de som, essa cidade
chove, louvando Omulu quando o sol é soberano no céu azul, e na volta pra é barulhenta, é dançante, ao ritmo do funk, do forró, do samba, do pagode, ao
casa, é clássico, na madrugada, se louva pro povo de rua. Mas sempre na ativi- ritmo das sirenes, dos tiros, dos gritos, dos vendedores, do barulho do trem,
dade da dura, do barró ou do perdido. Aquele que vadia pela rua, sempre está das buzinas, das louças dos bares, dos gemidos de dor e de prazer. Essa cidade
na expectativa de uma dura por vir ou de um golpe para dar no risco da luz também tem cor, em sua maioria, a cor da noite, ela é preta, e o brilho da luz
iluminar quando o carro da carne passar. Ciente de que a dura na sul vai ser dessa cidade vem da cor preta. Mas tem muitas outras cores, brancas, verdes,
menos violenta do que a dura no subúrbio; aquele que vadia cantando, oran- cinzas, vermelhas, azul, rosa, arco íris, bicolor, não tem cor, morena, parda,
do ou louvando, fica sempre perambulando, atravessando luzes e sombras, loira. Essa cidade tem cheiro, ela fede a mijo, fede a esgoto, fede a sangue, à
ruas e calçadas. Passos firmes e corpo balanceado, a rua joga com o corpo e morte, à pobreza, fede a perfume francês em algumas ruas, cheira a Avon em
constitui um caminhar balançante, um gingado ao virar da madrugada, mas outras. Mas, também, tem cheiro de comida, de fritura, de alho, de feijão, de
de madrugada, o bicho começa a pegar e não é qualquer um que pode entrar. contra filé, tem cheiro de vida, de felicidades, de terra molhada, mas de asfalto
A vida espiritual de quem vive a cidade para além de sua existência ma- molhado também, cheiro de café, cheiro de carne molhada, cheiro da dama
terial cria o mundo tomado por falange de espíritos, espectros, santos, deuses, da noite, cheiro de frutas, verduras, de peixe, e, tristemente, cheiro de fome,
exus, pombagiras, fantasmas e entidades. É nesse mundo, nessa realidade, que fome de comida, fome de emprego, fome de racismo, de fascismo, fome de
podemos forjar cidades, uma cidade para alguns e uma cidade para outros. Não felicidade. Essa cidade possui muitos outros cheiros e muitas cores. Da Manga
importa se você parte rumo a sul ou se você sobe a floresta, se vai ao mar ou à ao Arara, da Farme à Glória, de Vila à Madureira, da Gávea a São Januário,
cachoeira, se vai passar o dia inteiro no boteco até deixar clarear, sobe e desce da Feira à Lapa, do Estácio ao Salgueiro, de Irajá a Realengo, da Ilha a Caxias,
morro, invade na missão, preto ou branco, e volta ao clarear, estar no mundo é passando pelos vermelhos e brancos, pretos e brancos, verdes e rosas, verme-
estar no seu mundo em relação aos outros mundos que vão sendo construídos lhos e pretos, azuis e brancos, verdes e brancos, é uma verdadeira mitologia
pelo outro, considerando, sem esquecer, que alguns são ruim de invadir. Alter- das cores. Desta maneira, a cidade vai ganhando vida, e por ela vai-se criando
mundo é, então, sempre o mundo do outro, que nos espectra e que queremos a atmosfera da cidade. Assim, vamos escrevendo a cidade.
trazer para o nosso. Muitas vezes tentamos impor ao outro o nosso mundo, A cidade é um corpo no qual podemos escrever nossas experiências,
a nossa cidade, a nossa reza. podemos pensar aonde queremos chegar, mas é experiências que vão marcar, que vão se apagar, que vão ser reforçadas. Mas
sempre bom lembrar de onde estamos partindo, porque uma ida sem volta, sem essa cidade responde marcando, e essas marcas a gente leva para a vida. Viven-
retorno, é a possibilidade de encontrar um novo mundo, um mundo por vir, no ciar a cidade é dar sentido a uma vida pública, de espaços comuns. É nesses
qual o risco de abandonar um corpo ao passado, diminui nossas aquisições de espaços comuns que vamos criando marcas em nossos corpos, registrando ras-
mundos possíveis. O assassinato de mundos possíveis foi e sempre é uma tenta- tros de quem se move pela cidade. Mas nem tudo é beleza, nem sempre essas
tiva daqueles que nos querem impor apenas um mundo possível. devemos nos escrituras trazem alegria e boas histórias, o que é comum não é tão comum ou
lançar, nos projetar, mas sempre considerando nossos espectros, seja para onde tão público. Nessas escrituras que se produzem na cidade, esses corpos que a
estejamos nos projetando ou de onde estamos partindo. escrevem se encontram com outros corpos que escrevem, mas que, também,
Essas partidas são a pé, de trem, de ônibus, de carro. De bonde, em se apagam. O apagamento, que também é a morte, é muitas vezes a cidade
dupla, no duque, no dois a dois, sozinho, não importa, a cidade se escreve que alguns queriam ter, a saber, uma cidade limpa, tal como a Lapa de hoje

72 73
para turistas e classe média ou, até mesmo, a arenização dos estádios como da metáfora da luz, na verdade, da violência da luz, tão cara à filosofia. A luz,
denuncia o filósofo Adriano Negris. seja na figura de um ser de luz, um ser iluminado, ou seja, uma rua iluminada
O sentido de cidade limpa para essas pessoas começa por limpar aque- é o elemento primordial para quem teme as sombras. Mas, esquecemos que
les que a escrevem, que a criam, que dão sentido à cidade, dão cor e som. O a luz também ofusca, cega, confunde, embaralha. A escritura é o elemento
caráter público dos espaços da cidade está ameaçado, já não é tão comum. Em espectral que opera dentro e fora, à luz e à sombra. Nesse vaguear que é a
alguns lugares não se pode passar; se passar, precisa ser num estilo kantiano, escritura, o povo da rua tece a cidade, ilumina os caminhos apagando as luzes,
que seja passageiro, e que não deixe sua marca. Não há, portanto, sentido de fazendo das sombras, luzes. A sombra não é a luz, muito menos ilumina. Mas,
hospitalidade e de acolhimento. Ser preto, pobre, gay, mulher, deficiente nessa seu caráter escritural, faz da sombra uma luz, não a luz como sinônimo de
cidade tem seu preço. O acolhimento se torna violência, e o banimento é a beleza, verdade, caminho, pureza ou sabedoria. entendemos a sombra como o
Lei. Nessa terra da Lei, da Luz, da Razão, ser fora da lei, contra a lei, é ser espectro, que não é luz nem escuridão, nem vivo, nem morto, não é verdade
um inimigo da ordem, inimigo da luz. Essa cidade da Luz, que não é a cidade nem mentira.
de neon, pretende-se a cidade do esclarecimento, das retas, da claridade, da A sombra é o não-lugar, a aporia, um espaço de condição de acolhi-
pureza, dos cálculos, da previsão e do condicionamento. Os amigos da ordem, mento e afastamento, uma realidade sem existência e sem limites. A sombra
os amigos da luz, declaram guerra aos vadios e às vadias, funkeiros e funkeiras, é aquilo que faz da luz a necessidade de se afirmar, uma vez que a sombra é
sambistas, macumbeiros, putas, travestis, camelôs, moradores de rua, picha- aquele lugar que sempre te leva ao indecidível, aquele caminho em que nun-
dores, e todo o povo de rua, nóix. ca se quer estar, porque sempre se quer a segurança de um lugar estável, ou
Não é possível pensar a cidade sem pensar as escrituras da lei, seja a lei seja, iluminado. Esses lugares ditos sem-luz, à sombra, sempre à margem, são
autorizada ou a lei espectrada. Essas compõem o corpo da cidade, ou, melhor, espaços e lugares de produção de existência, de sentido e de criação. As ma-
os corpos que são a cidade, uma vez que não há uma cidade, mas múltiplas neiras e as formas que os corpos humanos e não-humanos escrevem a cidade
cidades, cidades espectrais. escrevemos, eles escrevem, uma multiplicidade de ultrapassam nossa capacidade de falar aqui, mas alguns tentamos capturar, por
cidades, todos os dias. mantemos essa multiplicidade como todas as forças mais violento que seja. sabemos que faz parte, uma vez que desejamos compor
que a compõem, que dão sentido a ela, os sentidos de liberdade e felicidade, com essas escrituras para resistir à violência do aniquilamento, seja ele pela
mas também, de opressão e de violência. podemos falar da cidade a partir do memória ou pelo extermínio.
urbanista, do geógrafo, do historiador, pensar a cidade a partir do filósofo ou Os muros e as paredes, quase sempre, servem para criar limites entre o
do sociólogo. Mas outros corpos também podem ajudar a gente a pensar a dentro e o fora, preservar o que está dentro e se proteger do que vem de fora.
cidade. acreditamos que um povo de rua, da rua, que está na rua, que vive e Essa parede e esse muro são bases, plataformas, são estruturas, são telas que
vive da rua, o taxista, o gari, o office-boy, o vendedor, o camelô, o trabalhador, registram o desenho da cidade, às vezes de uma nação, de uma ideologia. Mas
a trabalhadora, o pichador, a prostituta, o travesti, o mendigo, o vadio, a va- sempre se tornam limites entre um espaço e o outro. Esses muros que sempre
dia, o ladrão podem ajudar a pensar como se escreve a cidade. A partir desses servem para que alguns encostem as mãos na parede para que a dura aconteça,
movimentos, podemos ler e escrever a cidade, em seus espaços, quase sempre a dureza da parede também é apoio para se encostar e dar um rala, sentir o
espectrais, que alguns desses promovem. Esse nóix quer fechar com a força úmido. Para além das digitais e dos fios de cabelo, que ali ficam, sempre existe
espectral dessa relação desses corpos e desses lugares que operam, vagando a possibilidade de naquele muro se escrever, inscrever, xarpi, e, assim, regis-
entre a luz e as sombras. tar, lançar, projetar um nome, um código, um protesto ou até mesmo uma
A história da cidade, em sua multiplicidade, pode ser contada a partir salvação. Com a lata, desenhamos, colorimos e damos mais um cheiro para a

74 75
cidade, algumas vezes em eternos. sentido originário da escritura ou do nome, de um perfume que já não pode
Muitos muros e paredes possuem marquises, talvez a marquise seja ser mais capturado, a escritura, por ser espectral, é aberta às mais variadas
um dos elementos mais singulares de uma cidade. Talvez seja aquele espa- interpretações e diversos usos. Porém, sempre sendo, pelos amigos da ordem,
ço que mais resiste às forças antidemocráticas, uma vez que, pela lógica do compreendida a partir da moralidade como algo perverso e imoral, precisando
choque de ordem, existe toda uma política para acabar com as marquises. A ser eliminada, no caso, apagada, seja a escritura ou aquele que escreve.
marquise também é condição de possibilidade de invenção, de acolhimento e Essas marquises e esses muros que operam pela lógica de acolher e
de transgressão. Muitas vezes sem ter para onde ir, onde morar ou para econo- excluir, de reprimir e de libertar, de conservar e de transgredir, muitas vezes,
mizar na passagem, quem vive da rua, vítima da violência de uma democracia possibilitam a constituição de outros espaços interessantes, como é o caso da
não-democrática, na rua, ou até para a rua, é debaixo da marquise que vai esquina. A esquina, seja ela do pecado ou do Jererê, pode ser entendida das
procurar abrigo, seja pra se proteger da chuva ou do sereno, do frio do abismo mais variadas formas e maneiras, produz uma infinitude de sentidos: a esqui-
que é o espaço aberto. Quando é para sobreviver, é em cima da marquise que na, seja debaixo ou não, da marquise, com ou sem luz, movimentada ou vazia,
vai passar a noite. Seja para acordar de manhã para trabalhar ou para voltar é ponto de encontro ou ponto de trabalho, ou para despachar um trabalho.
pra casa, ou mesmo, para continuar na rua, ou para curar a ressaca, uma vez A esquina é um lugar sem-lugar, se está ali e não se está, o seu território é de
que, forçado ou não, violentamente ou não, (considerando que às vezes a casa movimento, é um desvio, uma esquina, e não se pode fincar uma raiz. A es-
é mais violenta que a rua) a marquise na rua, na avenida, acolhe, seja embaixo quina é o sentido real do que é um não-lugar, do que é um eterno movimento.
ou em cima. E é esse caráter acolhedor da marquise em meio à violência de Na esquina só é capturado aquele que não possui experiência. O bobo que se
ser lançado à rua, de ter a rua como lar, que provoca nos amigos da ordem, o acha esperto. E na esquina, principalmente, se for formada por mais de três,
desejo de destruição das marquises. tem morador, mas você só vê se olhar pra trás. Mas eu na esquina só de olho
A marquise pode ser um espaço de transgressão, de invenção, de con- em você. Constituídas pelos mais diversos corpos, é claro que sua formação
dição de produção de novas línguas e novos códigos. O fim da marquise não é híbrida, sofre de metamorfose. Cada corpo corresponde a uma hora do dia
é só uma possível resposta antidemocrática, dependendo do contexto, mas, na esquina. A esquina tem muitos moradores, muitos frequentadores, po-
sobretudo, o fechamento das possibilidades de transgressão e de invenção. rém, poucos donos, tendo, por “essência”, a condição de liberdade, mas, que,
Além, é claro, a condição de lançar seu nome nas alturas. Aos seres noturnos também, é violenta. Mas o problema é que a esquina, tal como a marquise,
que pintam e perfumam a cidade, existe uma preocupação de comunicação; também é ameaçada pelos amigos da ordem.
essa comunicação com um idioma próprio, uma língua própria, uma escrita A condicionalidade promovida pelos órgãos morais, pelos dispositivos
particular compõe o elemento escritural de comunicação da cidade, por mais da ordem, quer condicionar quem pode ou não fazer ponto na esquina. Esses
que seja espectral, por mais que seja singular. A história de uma cidade pode que querem fazer uso da coisa pública, dos espaços comuns a partir de seus
ser lida pelos muros e pelas paredes alcançadas pelas marquises. Essas escritu- interesses privados, quase sempre mesquinhos e preconceituosos, além de ra-
ras ou nomes, além de darem cores, e perfumarem, no momento em que são cistas, operam novamente com a lógica da luz, afirmam que esses lugares são
forjadas, são constituídas por uma lógica da desobediência, fora da lei, trans- escuros. Iluminando, os amigos da luz apagam aqueles que fazem das sombras
gressora, além disso, inventiva. As escrituras, que ecoam espectralmente nas um espaço de luz. Via o dispositivo do choque de ordem, eles excluem, em-
paredes, promovem uma aliança de códigos de sobrevivência e transmissão purram cada vez mais à margem aqueles que faziam da esquina seu lugar de
que, mesmo fechadas ao outro, cria uma atmosfera geral em que a multiplici- existência e de conhecimento. Acabar com uma esquina, consiste em retirar
dade de sentidos é aberta incondicionalmente. Por mais que haja um suposto esse caráter de possibilidades de transgressão, de acolhimento e de criação,

76 77
em nome da reta, da luz, da ordem, do estável e do seguro. O movimento da nos ensina Rafael, o feiticeiro, o beco traz a temporalidade do úmido, no qual
esquina é assustador, a repetição dos movimentos, carregados com uma nova o seco ou o molhado não mais determinam um estado de um tempo, mas o
configuração, assustam aqueles que buscam a imobilidade, uma vez que a lei estar sempre molhado, sempre úmido, sempre na espreita de uma mudança de
do retorno espectra a esquina. É por esse motivo que ninguém marca bobeira estado, de criação de coisas, nem quente, nem frio, mas quente e frio, dando
ou vacila na esquina, porque sempre tem volta. lugar à vida.
Nessa cidade, tudo é movimento, desde o céu azul, os rasantes das O beco possui algo de sagrado, o movimento que dá vida ao beco é
gaivotas no mar ou as bicudas da pipa, seja pra escrever no céu ou para dar aquilo que lhe revela o seu lado profano. É sagrado porque não é permitido a
o aviso que a área tá babada. O vai e volta na esquina, escrevem uma nova qualquer um, mas, sim, aquele que penetra em sua escuridão se converte ao
paisagem da cidade: o movimento é inevitável, mesmo quando nos deixamos modo operante de sombras que promovem luzes. O beco é luz na escuridão,
enganar pela aparência do parado na esquina, na praça, na rua ou no beco. no beco se dá e tira a luz. E esse é o seu grande problema; por esse motivo,
Mesmo parado, formado, em forma, na atividade, na vigília, na escolta, na levar a luz ao beco é a solução dos amigos da ordem, amigos da luz, da cidade
observação, na espreita, o estar parado é estar sendo bombardeado por mo- da luz. Mas eles esquecem que esses becos têm histórias, têm nomes, beco do
vimentos, é saber que seu corpo está parado, mas que seu sangue circula, as rato, beco das sardinhas, beco de Anchieta, beco dos barbeiros, beco das car-
ideias não param de brotar, os olhos não param de virar. Sentado na praça, no melitas, beco do mercado, beco da Guaiuba, beco do índio, beco da Glória e
banco, sempre na atividade, o movimento de sobe e desce, de entra e sai, de tantos outros becos, becos e becos.
tensionamento, os sentidos ficam ligados, apreendem tudo, nada escapa, nem Na cidade e nos seus elementos, humanos e não-humanos, reais e não
uma gota, é tudo dentro. Um marcando toca, outro ocupando a boca. Passos reais, verdadeiros ou falsos, não há transcendência, nem imanência, há apenas
firmes e acelerados, corpos duros outros rebolados, saltos baixos, rasteiros, uma coisa: fechamento. Fechamento é abertura, abertura ao que chega. É
chão deslizante e outros emburacados, passando ou passado, sempre se lança assumir a responsabilidade, um proceder ético, que se projeta a modelos de
para o que ainda vai vir, sempre no aguardo. Há sempre uma vacilação por vir. sobrevivência, de papo de futuro, de criação, que se opõe à vacilação, à judaria
Mas há o beco. Com o fim da esquina e das marquises, só nos resta o e à covardia. Fechar, o fechamento é o fundamento geral do nóix, visto que é
beco? O que importa é o beco. E o beco resiste? Em épocas de luz e câmeras, o o que possibilita que o nóix aconteça. Fechar junto é acolher aquele que chega
beco resiste, assim como as esquinas e as marquises. O beco, ao mesmo tempo mesmo que você não saiba quem chega e quando chega, pois o que importa é
que encurrala, ele também esconde. A lógica paradoxal do beco é magnífica; se aquele que chega fecha com nóix. Quando outro chega, fechamos com ele
o beco, ao mesmo tempo em que é a condição de possibilidade do perdido, ao recebê-lo, fechar é receber. Fechar, portanto, é o que vai possibilitar que
é, também, o que possibilita se esconder. Nas sombras do beco, na solidão do mundos se realizem na cidade e nos seus operadores, não é possível pensar
beco, criamos aquilo que à luz não é permitido. No beco, tiramos e coloca- a vida na cidade, os espíritos da cidade sem considerar o fechamento, seja o
mos, mudamos e transformamos, escondemos e revelamos. O beco não é a fechamento com o outro humano ou não-humano. Ser fiel aqui é fundamen-
kohra, mas é um espaço fechado de criação nas sombras. Além disso, o beco tal, não o fiel no sentido de trair, do discurso cristão-burguês, mas ser fiel na
é uma aparente aporia, só os fracos de espírito não entendem que no beco cumplicidade, na rataria, naquela relação que o acordo é fechado no olhar, que
não há nada de aporético. Pelas sombras do beco, algumas coisas são criadas não há abandono, tá com nóix, fecha com nóix. O fiel não vem do outro pra
e outras eliminadas, lugar de vida e morte. O beco é aquele lugar em que mim, mas de mim para o outro, é o reconhecimento que o outro me constitui:
sempre te recomendam não passar, não entrar, é um lugar sinistro, estranho, ela é minha fiel. O fechamento é o que possibilita que se forje os corpos na
escuro, porém, sempre revelador. Muitas vezes, pela lógica do úmido, como sua relação com a cidade, nas ruas, nos becos, nas esquinas e nas marquises,

78 79
uma vez que, para além do contrato burguês e da tolerância cristã, que são Adriano Negris1

era nosso : o futebol em tempos de arenização


pautados no individualismo e no interesse privado, o fechamento é movido
pela cumplicidade: tá com nóix, fecha com nóix. Outra verdade eterna: — como bom brasileiro,
Assim fechamos nosso texto, entendendo que as leis são muitas, as ruas o Maracanã nasceu com a vocação da vaia.
são diferentes, os cheiros múltiplos, as escuridões são claras e as luzes escurecem. Tenho dito: — lá, vaia-se até minuto de silên-
Aprendendo que a lei do retorno é que rege o movimento da cidade e de nossas cio. Sem maldade, sem premeditação. A vaia
vidas, vamos aprendendo que cidades e vidas são construídas de diversas ma- rebenta sem querer, por um desses automatis-
neiras e de diversos lugares, que os seus limites são móveis e que são as relações mos inapeláveis. Nelson Rodrigues
que constroem as paisagens que movem nossos desejos e vontades pela cidade.
É assumir que só é possível sobreviver entendendo as éticas e as leis que mantêm “(...) Com meu manto sagrado
o espírito-corpo da cidade, e que é apenas pela lógica do fechamento que nóix Minha bandeira na mão
sobrevive, sabendo chegar e sabendo sair. É como nos ensinou Dona Ivone Lara: O Maraca é nosso
alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho. Vai começar a festa (...)”

As encruzilhadas e o futebol

A proposta para escrever este artigo surgiu de um feliz encontro.


De nossa parte, seguia a necessidade de expressar, ainda que de maneira
tímida e bem cambaleante, um pensamento sobre o futebol, mais especi-
ficamente sobre um lugar – o Maracanã. De outro lado, o filósofo e ami-
go Rafael Haddock-Lobo expressava a vontade de realizar uma compila-
ção de diversos textos sobre o que ele vem denominando de uma filosofia
popular brasileira2. Um dia, no cruzamento dessas intenções, nasceu este
texto. Descrevemos esse encontro de maneira bem suscinta, porém, o que
gostaríamos de acentuar é que se ele já não se deu numa encruzilhada, ele
nos forçou a pensar a partir das encruzilhadas.
Por que mencionamos especificamente as encruzilhadas? Se nos

O M araca
1 Doutor em Filosofia pela UERJ e Pós-doutorando em Filosofia na UFOP.
2 Sobre a filosofia popular brasileira, nada melhor do que dar passagem as próprias palavras
de Haddock-Lobo (2020): “É nesse sentido que venho tentando afirmar que a filosofia bra-
sileira, para ser digna desse nome, precisa ser uma filosofia popular brasileira. Uma filosofia
produzida com base em uma experimentação efetiva dos saberes e culturas produzidos por
aquilo que a elite chama de “popular”. É claro que esses saberes são elaborados independen-
temente da academia, mas meu intuito é, justamente, mostrar o quanto esta perde ao não
se conectar com a potente produção que se encontra em andamento nas ruas”.

80 81
reportamos a isso é porque pensamos as encruzilhadas como pontos de encon- árdua reflexão. A compreensão dessa experiência nos diz que sempre, por mais
tro, lugares de agenciamentos possíveis. Elas são lugares de chegada e, ao mes- uma vez, retornamos a um caminho, mas que nessa repetição as encruzilhadas
mo tempo, pontos de partida. Por meio das encruzilhadas podemos visualizar pedem que se faça a diferença.
uma espécie de trama de caminhos, mas no ponto em que todos os caminhos Pois bem, mas por que fizemos questão de situar o leitor nessa bre-
se cruzam, estranhamente, as encruzilhadas não representam caminho algum. ve exposição da “lógica das encruzilhadas”? Se gastamos algumas linhas com
No seu ponto central, as encruzilhadas representam a convergência de todos esse assunto foi para tentar mostrar ao leitor que a experiência mais vigorosa
os caminhos possíveis e caminho nenhum. das encruzilhadas é aquela em que somos jogados ao livre exercício do pen-
Vistas dessa forma, as encruzilhadas se fazem um lugar de passagem e sar. Entendemos o livre pensar como uma espécie de ato de criação. É nesse
ao mesmo tempo uma aporia. Trata-se de um ponto de suspensão, um lugar livre pensar que rearticulamos insistentemente outras possibilidades de agir,
de indecidibilidade, onde se desfaz toda a exatidão da razão identitária – nem refletir, pensar, conhecer, e, talvez o mais importante, é pelo livre pensar que
isto, nem aquilo; nenhuma coisa, nem outra. Mesmo que o ponto central das vislumbramos a abertura para outras possibilidades de existência.
encruzilhadas seja esse lugar do indecidível, é preciso seguir adiante e escolher Então a partir das encruzilhadas convidamos o leitor a pensar um
um caminho a se tomar, ainda que isso implique em prosseguir sem a certeza tema que nos é bastante caro: o futebol. Dada essa afirmação, não sem sentido
daquilo que poderá aparecer à nossa frente. o leitor poderia colocar as seguintes questões: por que trouxemos a encruzi-
Pelo que foi brevemente falado, acreditamos que é possível encarar lhada para dentro de campo? Por que convocamos a encruzilhada para esse
as encruzilhadas de dois modos. A primeira postura seria aquela da lógica amistoso? Por que resolver bater uma bola entre o futebol e a encruzilhada?
calculista, onde tudo o que é feito, é feito segundo uma previsão, uma ordem, Como ver o futebol na encruzilhada?
segundos critérios de clareza e distinção. Bem dizendo, é aquela situação em Respondemos a essas perguntas dizendo que chamamos as encruzilha-
que o sujeito chega à encruzilhada por meio de um caminho pré-visto (pre- das para o campo simplesmente para apontar que elas já fazem parte do jogo,
viamente ordenado) e, ignorando o fato de estar cruzando e ser cruzado por pois, na verdade, as encruzilhadas são o próprio jogo. E fazendo parte do que é
outros caminhos, já de antemão sabe para onde vai e qual a trilha a seguir. jogo, sendo jogo, a potência das encruzilhadas desloca o meio de campo, apa-
Aqui não há espaço para o imprevisível, muito menos para o erro. Não há exa- gando o meio de campo como lugar de início e fim da partida. Desta maneira,
tamente uma abertura para a errância. Nesse caso, não temos uma verdadeira o meio de campo é deslocado para vários outros momentos, vários inícios e
experiência das encruzilhadas e sim a execução de um programa anteriormen- vários fins, uma vez que, tal como as encruzilhadas, não sabemos onde o jogo
te estabelecido. começa ou onde termina. As encruzilhadas, o jogo, o futebol como jogo são
De outro lado, podemos ser levados pela experiência das encruzilha- todos espaçamentos atravessados pelo imprevisível e pelo indecidível.
das e sermos tomados pelo desespero. Desespero frente ao momento de in- Desse modo, propomos pensar o início da partida de futebol como
decidibilidade que marca o encontro de todos os caminhos da encruzilhada. anterior ao apito do juiz. Isso é uma maneira de retirar a soberania do juiz,
A partir desse lugar somos despidos de qualquer programação, qualquer cál- subtraindo, assim, a hegemonia e o comando do centro. Ao deslocar o centro,
culo prévio, e já não temos mais certeza do que nos espera. Sob essa ótica, nós ficamos livres para pensar muitos centros deslocados e, com isso, margina-
o desespero da indecisão deve vir acompanhado de um instante de reflexão. lizamos o meio de campo para as margens. Passamos a jogar pelas “margens do
Lugar de passagem-suspenção, desespero e reflexão, as encruzilhadas pedem aos campo”. O meio de campo e o apito “inicial” do juiz perdem sua centralidade,
seus viajantes que sigam por novos rumos e, acima de tudo, nos exigem uma se tornam marginais, visto que não há o centro soberano. Com isso os centros
transformação que somente é conquistada com incorporação do desespero e a e os meios de campo tornam-se margens, abrindo uma forma de margear

82 83
a realidade do jogo. Sendo assim, passamos a entender a concentração da criação, a partir das margens, não é para ocupar um lugar
torcida na arquibancada, a concentração no vestiário, a bagunça nos bares, a privilegiado numa hierarquia, nem a centralidade, mas
expectativa no sofá da sala, a tensão no caminho do jogo dentro do trem, do possibilitar que aquilo que é periférico seja visto como
uma outra possibilidade aos modelos centralizadores que
ônibus, carro ou a pé, como tensões que são produzidas como possíveis mo-
excluem e inferiorizam aquilo que não lhe é semelhante
mentos de inícios de jogo. O início do jogo já sempre se iniciou e, portanto, - o não-semelhante (BITETI; MORAES, p. 91, 2020).
o jogo se faz ressonância. Assim, compreendemos o futebol, e o próprio meio
de campo, como uma encruzilhada, já que o jogo teve início antes do apito do Na tentativa de periferizar o mundo, gostaríamos de abordar a temáti-
juiz e continuou tendo seus inícios após o apito, seja pelo drible, pelo chapéu, ca do futebol de uma forma desviada, deixando de lado as especulações sobre
pela caneta, pela defesa, pelo momento da cobrança de falta, pela defesa ou a prática esportiva nela mesma para abordá-lo sob um âmbito que poderíamos
no momento do gol3. chamar de ético-político. A nossa proposta é fazer um desvio das aproxima-
Esse deslocamento da centralidade do meio de campo é um movimento ções mais rotineiras do futebol para que possamos experimentá-lo sob uma
próximo do que a geógrafa Mariane Biteti e o filósofo Marcelo Moraes chamam perspectiva diferenciada. A ideia desse movimento é como bater uma falta
de gesto de periferização do mundo. Para melhor explicar essa atitude existencial perto da área do adversário. Ao ouvir o apito, avançamos e batemos na bola de
“passamos a bola” para que os autores possam melhor dizer sobre esse gesto: trivela, pois, ao pegar o efeito, a bola desvia da barreira e pode ir ao encontro
do gol livremente.
Para nós, periferia é por ela mesma, não estando remeti-
Nosso tipo de aproximação se torna plausível na medida em que o
da a um centro. Não operamos com a paisagem clássica
de centro-periferia, pois essa periferia já não seria mais futebol é uma prática esportiva que possui uma dimensão cultural, política
uma criação de um processo de exclusão, mas uma in- e existencial. Como diz o sociólogo Mauricio Murad (2013), o futebol é um
venção a partir do lugar em que estamos. Dito de outro fenômeno que nos ajuda na leitura de nossas próprias contradições. O fute-
modo, a periferização ou subalternização do diferente é bol, ainda nas palavras de Murad, pode ser visto como uma representação de
deslocada da dicotomia centro-periferia e cria seus mo- nossos dilemas culturais e inquietações históricas. Aliás, como bem já havia
dos a partir de si mesma. Não estamos aqui também fa- dito Luiz Antônio Simas (2019), “nossas maneiras de jogar bola e assistir aos
zendo da periferia um centro, a questão é fazer da perife-
jogos dizem muito sobre as contradições, violências, alegrias, tragédias, festas
ria a condição de periferização do mundo em termos de
não se constituir centros, uma vez que a periferia seria a e dores que nos constituíram como povo”.
condição de que algo se tornasse centro. Nesse sentido, A ideia neste texto é pensar a ressonância ético-política de um lu-
entendemos periféricos como condição de toda e qual- gar extremante significativo para o futebol nacional e, principalmente, para a
quer possibilidade de criação de saberes, modos de ser, de vida cultural da cidade do Rio de Janeiro. Falaremos especificamente do Está-
artes, de conhecimentos e de vida. Portanto, quando di- dio de Futebol Jornalista Mario Filho4, também conhecido como Maracanã
zemos que queremos pensar em termos de transgressão e
ou, para os mais familiarizados, simplesmente o Maraca. A palavra Maracanã
3 É interessante ressaltar que o parágrafo surgiu de uma “linha de passe” entre Mariane, Marcelo e (maraká`nà) na língua tupi guarani significa algo que imita o som do maracá
eu. Fizemos questão de inseri-lo no texto, pois ele é o produto do filosofar em forma de linha de pas-
se. Com expressão queremos no referir a maneira de filosofar em que alguém “levanta” um tema e, (instrumento semelhante ao chocalho usados nas celebrações indígenas) e de-
trabalhando-o com suas habilidades e conhecimentos, “passa a bola” para o outro, o qual deve rece-
bê-lo e trabalhá-lo, sem deixar o tema “bater no chão”. Trata-se de um fazer filosofia como se brinca 4 O jornalista Mário Filho foi defensor da construção do estádio na região do bairro Maracanã.
com a bola de “linha de passe” entre amigos. Isso também nos remete as formas descolonizadoras Seu irmão, o conhecido cronista Nelson Rodrigues, homenageou-o com o epíteto “o criador de
de filosofar, tal como o filósofo Renato Noguera fala sobre um filosofar na forma de roda de samba. multidões”, pela influência que ele teve na popularização do futebol no país.

84 85
signa uma espécie de ave. O termo tupi nos remete à nossa herança cultural um mal para sociedade, essa classe de pessoas deve ser combatida, excluída ou
e também nos liga ao espectro da colonização europeia que nos assombra até eliminada (fazer morrer ou deixar morrer). A chamada “classe perigosa”, em
os dias de hoje. Esse retorno do fantasma da colonização europeia não se dá regra, é formada por determinados grupos que foram alijados do processo de
por meio das grandes naus portuguesas, mas ele chega para nos frequentar produção do capital vigente em nossa sociedade neoliberal. No Brasil esses
atualmente por diversas outras maneiras, inclusive sob a forma da arenização grupos são formados, principalmente, pela parcela economicamente mais po-
(como veremos a seguir). bres da sociedade.
O Maracanã, para além de um estádio de futebol, é uma construção Atentos ao que acabamos de dizer, agora podemos nos perguntar: qual
arquitetônica por meio da qual podemos observar o espelhamento não só da a relação existente entre esse tipo de política com o Maracanã? Sem dúvida é
cultura de um povo, mas também as articulações das relações de poder que a esta pergunta que tentaremos responder daqui para a frente. No entanto, é
coordenam o espaço da cidade. Dissemos isso porque o Maracanã é um lugar preciso lembrar que pensamos desde as encruzilhadas. Assim, neste momento,
que transcende o seu caráter meramente funcional. Ele opera como uma marca nos situamos no “entre”, no cruzo das encruzilhadas. Perceberemos que mui-
deixada no corpo da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de um lugar de registro tos caminhos nos trouxeram até aqui, mas o caminho que posteriormente ire-
dos afetos que circulam pela cidade, mostrando-se como uma memória dos mos tomar não é possível de ser dito de antemão. Não pretendemos dizer que
corpos e suas relações no trânsito da cidade. Ele tem a possibilidade de tradu- o resultado de nossa reflexão será conduzido pela oposição do certo ou errado.
zir as perspectivas de força que atravessam nossa sociedade, dando-nos alguns Na verdade, o resultado, em sentido utilitário do termo, pouco importa. Em
indícios de saberes e práticas que podem ser utilizados para compreensão da contrapartida, se esta leitura instigar o leitor a retomada de um pensamento
estrutura que ordena nossas relações e a formação das nossas subjetividades. sobre o tema aqui proposto, tudo terá valido a pena. Afinal, escrever é sempre
Isso significa que ao olhar para o Maracanã procuramos dar revelo as um risco e um ato de coragem. O ato da escrita é como bater um pênalti ou
relações de poder que são travadas nesse espaço. Com isso nossa intenção é cruzar a bola na área do adversário – o resultado disso? Nunca sabemos qual
levar o leitor a pensar sobre as políticas que atualmente dominam esse espaço. será o resultado, mas sabemos que é preciso arriscar. Nesse sentido, podemos
Veremos que desde a sua concepção o Maracanã nunca deixou de ser objeto de afirmar que estamos muito mais comprometidos com risco (e também como
uma prática política, mas também notaremos que as sucessivas reestruturações o desejo) da disseminação de uma potência criadora do que com os rigores
em sua arquitetura correspondem ao exercício de uma política dominante, canônicos que a academia impõe ao livre pensar.
orientada para a promoção da segmentação da população em função de crité- Dito isso, voltemos ao nosso tema.
rios econômicos, sociais e até mesmo raciais. O Maracanã desde sua concepção sempre foi mais que futebol. O
Chamaremos essa estratégia política no tocante ao futebol de areni- próprio projeto de construção do estádio já nasce como produto de uma nova
zação. Mais adiante falaremos melhor sobre esse conceito, mas por ora pode- política de urbanização da cidade do Rio de Janeiro. No ano de 1948 come-
mos dizer que a arenização é uma prática política, em articulação com outras çaram as obras para a construção do estádio, mas ele só se torna acessível para
técnicas de poder, que objetiva a concretização de condutas discriminatórias o público e para as partidas de futebol em 1950, ano em que o Brasil foi pela
e a extinção ou achatamento da possibilidade da constituição de novas subje- primeira vez sede da Copa do Mundo de Futebol.
tividades. Obviamente tal prática é direcionada contra a uma espécie ideal de O lugar que inicialmente foi idealizado para servir de apoteose para o
“inimigo”, construído segundo práticas políticas discursivas e não-discursivas, júbilo nacional acaba em tragédia. A derrota do Brasil para o Uruguai no final
e que posteriormente passa a ser considerada uma classe perigosa. Essa classe da Copa de 1950, no Maracanã, é um fato registrado na memória cultural do
representa uma ameaça para saúde e bem-estar da sociedade. Existindo como país. A profundidade da tristeza e o trauma da derrota foram de tais propor-

86 87
ções que o acontecimento virou um substantivo – o maracanazo. Diamante negro; Nilton Santos, A Enciclopédia, Heleno de Freitas, o craque
Bem, o que inicialmente se mostrava como tragédia, logo passou para problema; Ademir da Guia, o Divino; Zico, o galinho de Quintino, entre ou-
história da cidade como um processo de mitologização. Dizem que a cultura tros tantos craques que brilharam no gramado do “maior do mundo”.
grega é marcada essencialmente pelo seu caráter inventivo, pois não copiaram Nós, homens comuns, meros torcedores, somos aqueles que cultuam
exatamente a cultura de outros povos, mas souberam como ninguém pegar deuses e heróis através das cores e bandeiras de um time de futebol. Nas mãos
elementos de outros povos e inventar uma cultura singular para seu povo. O do torcedor a camisa do seu time vira o manto sagrado. Por tudo isso é bom
mérito dos gregos consistiria no fato de ser um povo que “soube pegar a lança que se diga que o torcedor não é mero espectador. Aliás o futebol não é um
em um ponto e jogá-la para muito mais além”. Isso é o que se diz por aí. Se espetáculo (pelo menos não deveria ter sido transformado num espetáculo).
for assim, nós brasileiros, não ficamos atrás dos gregos, pelo menos quando Essa mitologia do futebol é completamente ritualizada. Não se trata
pensamos junto com o futebol. de ritos que seguem exatamente uma prescrição, regras ou uma liturgia pré-de-
Quanto ao futebol, nós conseguimos nos apropriar de um esporte es- terminada para torcer. Cada torcedor cria o seu ritual. Pode ser no encontro
trangeiro e transformá-lo no interior de um processo criativo, e isso a tal pon- com os amigos num bar, pode ser no churrasco, numa festa ou simplesmente
to que chegamos a inventar uma mitologia do futebol. Temos deuses, heróis, no retiro solitário da residência. Toda essa ritualística é escrita pelo povo e
homens, epopeias, tragédias e comédias no universo encantado do futebol. manifestada, principalmente, nas ruas, becos e vielas da cidade.
Não há dúvidas que o futebol é orquestrado por deuses. A fortuna de O torcedor é aquele que se vale de uma rede de afetos para produzir
uma partida muitas vezes é decida por um capricho divino. É aquele gol que uma nova subjetividade. Torcer para um time corresponde ao exercício de um
sai aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, a vitória através da infeli- modo específico de existência. Nesse sentido, o sujeito-torcedor, ao torcer,
cidade de um gol contra ou o gol perdido na cobrança de uma penalidade. Os constrói uma nova subjetividade para si, segundo o fluxo que aqui chamamos
exemplos são muitos, mas quantos esses que acabamos de mencionar, alguém de devir-torcida. Torcer também significa um movimento espiralado que cria
poderia negar o caráter divino desses acontecimentos? Se ainda restam dúvidas uma dobra sobre si mesmo, tornando-se um outro. Isso pode ser constatado
quanto a isso, então o que dizer do gol de Maradona na Copa do Mundo de nos estádios, nas ruas, nas moradias, pois nenhum jeito de torcer é igual ao
1986, que ficou conhecido como “la mano de dios”? outro. Há uma singularidade em jogo no torcer e em se fazer torcedor (entre-
Com o futebol somos capazes de transformar a existência criando um tanto, atualmente, vemos a progressiva planificação e unificação do modo de
outro modo de ser. Com o futebol transformamos o lúdico em sagrado e o sa- torcer, o que obscurece todo o processo poético do torcer).
grado em profano. Dissemos sagrado no sentido daquilo que transcende a or- O torcedor quando se encontra com o futebol produz vida. Do mes-
dem do comum, do ordinário, do corriqueiro e do previsível. Por meio do fu- mo modo que o amigo e filósofo Felipe Ribeiro (Felipe Filósofo) fala do agen-
tebol não só cultuamos deuses, mas também heróis. Esses heróis muitas vezes ciamento entre samba e sambista. No dizer de Felipe Filósofo (2015), o sam-
começam a realizar seus trabalhos nos campos de várzea, totalmente ânimos. bista quando se encontra com o samba produz vida. Nesse encontro dá-se
Como de súbito ou por um lance divino, homens são inscritos na memoria o agenciamento de forças apaixonadas que provoca um tipo de transborda-
popular como heróis. São eles seres finitos, mas que escreveram sua existência mento, desmesura, de que modo a linguagem se empobrece ao falar da vida.
na eternidade, pois dentro de campo realizaram feitos extraordinários, aquilo Falar da vida talvez seja tarefa dos poetas, artísticas e músicos (e por que não
que o homem comum só imagina fazer. Nossa mitologia popular do futebol também dos craques e torcedores?), pois por esses se denuncia o esgotamento
está repleta desses heróis, citemos apenas alguns: Garrincha, o gênio de pernas da vida para a entrada da arte. O sambista (tal como o jogador e o torcedor,
tortas; Didi, Mestre folha seca; Gerson, canhota de ouro, Leônidas da Silva, o diríamos nós) cria por planos de composição e rotas de fuga. Por esse motivo

88 89
não seria um exagero entender o futebol pelo aspecto estético e considerá-lo paço que nos anos 1970 viu-se crescer o número de torcidas organizadas, um
como uma arte. O jogador e o torcedor são artistas no sentido poético, pois fenômeno já se dava desde a década de 1920, porém, somente nos anos sub-
futebol é poesia, é criação de vida e na vida. sequentes ganhou complexidade e maior vulto. Nessa constelação de persona-
Tudo isso que acabamos de comentar tem um ponto de convergência: gens conceituais não podemos esquecer dos murilos, uma espécie de vadio que
o estádio de futebol. No nosso caso pensamos o Maracanã. O Maraca funcio- estava disposto a subverter a lógica do capital e a ordem da cidade pulando os
na como uma espécie de encruzilhada no corpo da cidade. Situado na zona muros do estádio (daí o apelido murilo) para ver uma partida.
norte do Rio de Janeiro, o Maracanã é cruzado por vários caminhos. Da zona
norte a sul, da zona leste a oeste, todas as direções podem que levar ao Mara-
canã. Pode-se chegar a ele de trem, carro, metrô, ônibus, a pé ou até mesmo O M aracanã e a arenização
de helicóptero (sim, Papai Noel já chegou de helicóptero ao Maraca). Entre o
O que se passou no Maraca após as reformas que começaram no ano
morro de Mangueira de Cartola e o asfalto da Vila de Noel, o Maraca era um
de 2005 e prepararam o estádio para a Copa do Mundo de 2014? Como se
ponto de encontro de afetos e campo aberto de possibilidades onde cada qual
sabe, a reforma estrutural alterou o espaço dentro do estádio e impôs uma
pode fazer um outro de si.
nova dinâmica entre o ver e o torcer. Não obstante ser um patrimônio cultural
Antes de todas as reformas, o Maracanã era um lugar democrático.
tombado pelo governo5, a arquitetura do Maracanã foi severamente alterada.
Claro que dizer “democrático” não significa que todos acessavam o espaço
A Geral foi extinta e o modelo de arquibancada foi drasticamente modificado
da mesma forma e nem em igualdade condições. Tratava de uma democracia
com a inclusão de cadeiras. Como se não bastasse, foram criados camarotes
um pouco capenga, mas o que não se pode negar é que a maioria das pessoas,
destinados ao público das grandes corporações e uma área “vip”.
independente da classe social, podia acessar o estádio e ver uma partida de
Após as reformas o Maracanã passou a ser um estádio limpo, organi-
futebol. Nesse sentido o Maraca representava uma tentativa de representação
zado e reservado ao “espectador de bem”. Morre o antigo e nasce um novo es-
de um modelo de cidade democrática. Essa representatividade era marcada
tádio em sintonia com os moldes das arenas esportivas europeias. Essas arenas
“geograficamente” pelos setores do estádio, que eram determinados pelo preço
são modelos de estádio caracterizados pelo alto grau de investimento finan-
do ingresso. O ingresso mais barato era reservado ao setor conhecido como
ceiro e tecnológico, que permitem aos espectadores conforto e uma grande
a Geral, passando pelas cadeiras, arquibancadas, cabines de rádio e a tribuna
visibilidade do espetáculo.
de honra. Todos os setores também se comunicavam entre si; fato que não se
Então, o que se passou com o nosso antigo Maracanã? Certamente ele
passa atualmente devido as reformas estruturais no estádio.
foi arenizado. Essa arenização não significa apenas a destruição e a reconstru-
Essa correlação entre o preço do ingresso e o espaço físico dentro do
ção arquitetônica para adequação a um novo conceito de estádio. Na verdade,
estádio atuava como elemento fundamental para a construção de diversas
ao tornar o Maracanã um estádio-arena, atendeu-se aos anseios de um con-
subjetividades. Assim surgiram os geraldinos, apelido popular para as pessoas
junto relacional de forças que comandam o contexto de uma racionalidade de
que assistiam as partidas de futebol na Geral. Tal setor, como todos sabem,
governo neoliberal. Essa técnica ou maquinário político atinente aos interesses
foi simplesmente extinto no ano de 2005, e com ele foi sepultada toda uma
do regime neoliberal nós estamos chamando de arenização.
forma específica de manifestação cultural do povo carioca. Voltaremos a esse
Arenizar é comumente compreendido como o processo de formação
tema mais adiante.
de bancos de areia no solo. Nesse fenômeno ocorre uma inundação de areia
Além dos geraldinos, temos ainda presente nos estádios os arquibaldos,
torcedores caracterizados por ficar nas arquibancadas do estádio. É nesse es- 5 Decreto Municipal Nº 21677/2002 (RJ).

90 91
sobre o solo, tornando-o infértil. O efeito disso é o ceifamento da produção de comportamentos individuais. Dessa forma as ações políticas são submetidas a
vida a partir do solo arenizado. A arenização encerra qualquer possibilidade de um novo crivo e passam a ser legitimadas desde que atendam ao equilibro da
cultivo, já que esse fenômeno impõe a extinção da vida biológica no local are- equação custo-benefício. A legitimidade de cada opção política é medida pela
nizado. Trata-se de algo semelhante a desertificação, mas que produz o mesmo eficiência, ou seja, por meio da otimização do cálculo entre o dispêndio de
efeito: a morte, a extinção da vida e com isso a aniquilação de qualquer possi- menores custos/gastos para maior obtenção de benefícios.
bilidade de criação. Arenizar nesse sentido é dar a morte. Na sociedade neoliberal sempre há o espaço de liberdade para os indi-
Pensamos que o mesmo fenômeno se passou com o Maracanã. O Ma- víduos perseguirem seus interesses, inclusive os interesses que movem as práti-
raca foi arenizado. Essa afirmação possui mais de um sentido. Dissemos que cas minoritárias. Entretanto, é sempre bom lembrar o “outro lado dessa histó-
o Maracanã foi arenizado no sentido de se adequar aos padrões internacionais ria”: nessa sociedade a tolerância para as práticas minoritárias está submissa a
das “arenas multiuso”, seguindo os formatos mais recentes de vários estádios lógica “mercadológica”. Tudo deve ser englobado e gerenciado racionalmente
europeus. Entretanto, o antigo Maracanã também foi arenizado no sentido de em termos de custo-benefício. Como se pode notar, o neoliberalismo impõe
ser objeto de uma política de morte. uma racionalidade calculadora e objetificante como a única perspectiva legí-
Aliás, esse movimento de arenização não se restringiu somente ao es- tima para nossa existência. Dito em outras palavras, o neoliberalismo lembra
tádio do Maracanã. É importante ser destacado que a arenização ultrapassou um pouco daquilo que Nelson Rodrigues chamava de idiotas da objetividade,
as fronteiras do estádio e alcançou a Aldeia Maracanã, grupamento indígena ou seja, aqueles que professam a crença de que o mundo é uma equação ma-
habitava o sítio contíguo ao estádio, numa construção datada do século XIX. temática e que seguir determinadas equações vai sempre produzir o resultado
No local da Aldeia Maracanã estava prevista a construção de um estaciona- esperado.
mento para veículos ou um novo complexo esportivo. Os índios pertencentes Como dissemos anteriormente, não temos dúvidas de que o Mara-
à Aldeia Maracanã foram removidos do espaço ocupado em 2013 e posterior- canã foi objeto dessa política arenizadora de cunho neoliberal. Mas o que
mente enviados para um abrigo no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio exatamente foi excluído ou completamente extinto nesse processo? Primeira-
de Janeiro. mente podemos dizer que foi extinta parte da memória cultural de um povo.
A caráter político do termo arenizar vem das práticas discursivas e Afirmamos isso porque dada a importância histórica, arquitetônica e afetiva,
não-discursivas que se inclinam para promoção de clivagens no seio da socie- o Maraca tornou-se parte de patrimônio cultural da cidade do Rio. Com o
dade, permitindo a exclusão, a separação ou a extinção de determinadas sub- processo arenização foi solapada parte dessa nossa memória afetiva que se ma-
jetividades que são indesejáveis no meio social. A arenização se concretiza por nifestava culturalmente pelo futebol.
meio de saberes e práticas que passam a se vincular aos mais diversos contextos Futebol no Brasil não é espetáculo, teatro ou propriamente um jogo
sociais, com a finalidade de produzir de segregação e extinção. Obviamente lúdico. O futebol com seus signos, suas expressões de subjetividades (singula-
esse conceito só faz sentido se o pensarmos como uma tecnologia pertencente res ou coletivas), sua corporeidade, espiritualidade e laços afetivos compõe o
ao neoliberalismo. arcabouço cultural que estamos a mencionar. Quando as reformas no Mara-
O programa neoliberal busca generalizar a “forma-mercado” não só canã foram finalizadas, deu-se o apagamento de parte da vida cultural da cida-
para o âmbito econômico, mas também deseja sua extensão para os mais di- de. Esse obscurecimento ocorreu na medida em que alguns modos de torcer
versos níveis do campo social. Podemos dizer que o primeiro aspecto da ge- já não seriam mais viáveis. Podemos dizer que houve a arenização de parte do
neralização desejada pelos neoliberais é a transformação da forma econômica modo de torcer que já integrava o patrimônio cultural da cidade.
do mercado em um princípio de inteligibilidade das relações sociais e dos Com arenização o futebol ganha um gosto insosso e tem sua atmos-

92 93
fera completamente transfigurada. Bem colocadas são as palavras de Luiz na entrada do Maracanã em dia de jogo para pedir a alguém com direito à
Simas (2019) sobre essa política de morte que vem empalidecendo as cores meia-entrada para comprar ingresso por eles); o Mister M do Vasco; a Vovó
do nosso futebol. Ele diz que nesse cenário arenizado, o craque se transfor- Tricolor e o Assis Tricolor, o Charuteiro, os clássicos Radinhos, dentre outros
ma em “jogador diferenciado”, o reserva é a “peça de reposição”, o passe vira inúmeros personagens anônimos que faziam uma festa brindada de alegria,
“assistência”, o campo é a “arena multiuso” e o torcedor é o “espectador”. As seja sob o sol do verão carioca ou mesmo debaixo de forte chuva.
conquistas não são mais comemoradas em campo; mas em eventos fechados, Conta-se que muitas vezes, tomados pelo encanto ou desespero da
sob a chancela de patrocinadores e com a participação do “torcedor virtual”, partida, os geraldinos conseguiam “voar” para o gramado do Maracanã. Alguns
aquele chamado a se manifestar pelas redes sociais a partir do que verifica geraldinos, sendo abruptamente tomados por forças afetivas, se faziam corpos
nas telas da televisão. capazes de num lance atravessar o fosso que separava a Geral do campo. A
Esse processo de arenização também feriu de morte o que era consi- invasão de campo era feita por corpos construídos pelas potências da rua. Por
derado por muitos a alma ou o coração do Maracanã – a Geral. A extinção da isso eram corpos dotados de rapidez, destreza e gingado. Essas capacidades
Geral é altamente significativa para compreendermos de uma vez por todas eram encarnadas pelos corpos-geraldinos e aplicadas para driblar os seguranças
o que estamos denominando de arenização. Dizer que a Geral do Maraca foi presentes no campo (bom lembrar que os geraldinos, igual aos craques, tam-
destruída e soterrada dentro do próprio estádio é o que pode ser verificado bém sabiam driblar). Dessa maneira, usando essas “habilidades”, os geraldinos
com os olhos de ver. Mas e quanto aquilo que os olhos não podem ver? O podiam para abraçar seus ídolos, incentivar ou dar esporro em algum jogador
que falar? de sua equipe. A Geral era isso, uma disseminação de possibilidades: encanto,
Como falávamos anteriormente, a Geral com seus geraldinos era um fantasia, perrengue, alegria, tristeza, crença, fé, ceticismo, santidade e profa-
lugar de possibilidades. Espaço criativo, a Geral era uma abertura do novo nação. Só da Geral era possível voar...
para cada sujeito que adentrasse naquele setor. A Geral era a possibilidade Com a arenização morre o geraldino como modo de torcer. Sua morte
das possiblidades. Os geralnidos ali encarnavam cada qual um devir-torcida tem como causa a extinção do lugar que lhe era próprio, seu solo e seu lugar
e, pelo menos no espaço de noventa minutos, criavam e produziam para de encantamento. Extingue-se também a abertura para a criação de um outro
si outras subjetividades. O geraldino criava possibilidades não só de torcer. de si, a chance de disseminar novas subjetividades; morre um sentido poético
Muitos deles apenas queriam entrar na Geral e não necessariamente ver o do torcer. A arenização acabou com um lugar de possibilidades e a existência
jogo, outros ficavam correndo entorno da Geral acompanhado seu time, do geraldino, um modo de ser caracterizado pela invenção e insubordinação às
outros ainda preferiam ficar gritando para dar “instruções” ao técnico, dar categorizações do discurso comum. Desse modo a arenização se traduz como
“conselhos” a alguns jogadores ou “comandar” o time aos berros da Geral. uma máquina de desencantamento.
Ou simplesmente podiam xingar todo plantel e, se fosse o caso, também A arenização do Maracanã também atingiu o público das arquibanca-
o árbitro da partida. Muitos geraldinos voltavam descalços para casa, pois das, em especial as torcidas organizadas. Não vamos nos aprofundar na com-
num momento de cólera ou euforia, sacavam seus calçados e atiravam no plexidade das torcidas, nem romantizar o tema, pois sabemos das contradi-
campo (ou em alguém dentro do campo, perto do banco de reservas). Os ções, da violência e das tragédias que acompanham as organizadas ao longo de
geraldinos podiam tudo isso (ou às vezes mais que tudo isso) e o que a ima- sua história. O que desejamos enfatizar são as festas que as organizadas faziam
ginação mandasse e o corpo aguentasse. no antigo Maracanã e o modo peculiar inerente a esse modo de torcer. Uma
Como negar que na Geral o indivíduo criava outro si? Exemplos his- forma singular de torcer inscrita numa coletividade, as organizadas enfeitiçam
tóricos não faltam: os rubro-negros Valderrama e Índio da geral (esses ficavam o público com os cantos, instrumentos de percussão, faixas, sinalizadores e

94 95
“bandeirões”. O torcedor das organizadas é a voz, o pulmão, um só corpo du- mo que são excluídos nos processos sociais da vida na cidade. Os excluídos
rante o tempo que transcorre a partida e também corpo espectral que ronda a formam a classe dos indesejados na sociedade, obviamente os pretos, pobres,
cidade antes e para além dos jogos. favelados, marginas, vagabundos, a mão de obra barata. Esses são os corpos
O processo de arenização, pelo menos no Maracanã, desmontou esse interditados no novo Maracanã. O efeito prático da arenização é a “for-
encantamento das organizadas. Como dissemos, a arenização se faz presente mação de muros” para que esses indivíduos não acessem o estádio. Outras
por meio de práticas discursivas e não-discursivas. Ao longo dos últimos práticas são adicionadas a essa clivagem social: o elevado custo no preço
anos, o discurso contra as organizadas ganhou força, o que as transformou dos ingressos, o aumento do número de transmissão televisiva das partidas
em uma espécie de inimiga contra a paz nos estádios. Tratadas como sob a por sistema pay-per-view, restrição severa quanto ao formatos das torcidas
figura do inimigo, um perigo para “sociedade de bem”, se convencionou organizadas, jogo com torcida única, entre outras medidas que determinam
que elas deviam ser excluídas, controladas e quando muito eliminada dos quem pode e quem não pode entrar no novo Maraca. Dito por outras pala-
estádios. O Maracanã da arenização facilitou esse desmonte. Nesse senti- vras, a arenização é uma política do fazer entrar e deixar de fora.
do, a alteração do espaço das arquibancadas afetou a forma de disposição A arenização do Maracanã pode ser entendida como uma faceta da-
das organizadas nos estádios. A proibição de bandeiras, faixas, sinalizados quilo que o filósofo e amigo Marcelo Moraes chama de cidade limpa. Uma
encurtaram as manifestações que eram mais próprias. Além disso, em anos cidade limpa, conforme diz Marcelo (2020), é uma cidade que funciona
mais recentes, algumas organizadas foram proibidas de ingressar nos está- mediante o apagamento de corpos indesejados. Ela é um projeto de cidade
dios, justamente sob o argumento de que eram organizações perigosas e que não está aberta ao acolhimento. Ao contrário, a lei da cidade passa a ser
vetores de disseminação da violência urbana. a violência e o banimento. Para atingir essa ideia reguladora de cidade, as
Aqui deve ficar bem claro que não desejamos defender qualquer tipo relações de poder se articulam no sentido de implantar um inimigo ideal e se
de violência. Contudo, devemos realçar os perigos de um discurso totaliza- esforçam para removê-lo da carne e do espírito da cidade. A arenização vem
dor como o da arenização dos estádios e os desdobramentos que ele suscita. a atender de forma conveniente esse projeto de cidade limpa. Poderíamos
A violência é um problema da cidade e é necessário o reconhecimento desse dizer, ainda com palavras de Marcelo, que estamos vivenciando um momen-
fato. Porém, no acaso da arenização, ele é aplicado às organizadas justa- to de construção de uma cidade da luz, cidade do esclarecimento, das retas,
mente para promover a exclusão de determinado público dos estádios. O da claridade, da pureza, dos cálculos, da previsão e do condicionamento, e
discurso de violência vem acompanhado de outros discursos e práticas que que tem por inimigos os vadios e as vadias, funkeiros e funkeiras, sambis-
fomentam a segregação em prol do capital corporativo, um dos pilares de tas, macumbeiros, putas, travestis, camelôs, moradores de rua, pichadores,
sustentação do sistema neoliberal. Só interessa ao estádio arenizado o torce- e todo o povo de rua.
dor de bem, aquele que torce comportado, se possível sentado e sem gritar O que a arenização do Maracanã proporcionou foi a exclusão da de-
muito. O estádio arenizado é para o espectador que outrora chamamos de nominada “classe perigosa” do estádio. Essa classe, como dissemos, é aquela
sujeito-instagram. Esse é tipo de espectador que vai ao estádio para fazer formada por determinados grupos que foram alijados do processo de produ-
um “self ”, participar do espetáculo, que compreende o estádio como zona ção vigente em nossa sociedade neoliberal. A arenização criou um ambiente
recreativa e assim o frequenta para passar alegremente seu tempo (o estádio odioso, formou um tipo de atmosfera de ódio, que viabiliza a prática de com-
vira um passatempo com ir ao cinema, por exemplo). A arenização transfor- portamentos direcionados à destruição da condição basilar para a lida com
ma o torcedor em consumidor e o jogo de futebol em espetáculo. o outro. Nessa atmosfera de ódio o espaço de sustentabilidade da abertura
Quem foram os excluídos na arenização do Maracanã? Ora, os mes- democrática entra numa espiral de erosão, enfraquecimento o vínculo ético-

96 97
-político e, por conseguinte, provocando a corrosão da lida respeitosa para Hoje a política de arenização delimitou o espaço físico e cultural do
com o outro. Como aponta o amigo, também filósofo, Leandro Assis (2020), torcedor mais pobre. A esse indivíduo restou apenas ver o Maracanã pela tele-
é nessa atmosfera de ódio que se colocam em marcha as afinações depreciati- visão ou do lado de fora, bem como o sol da labuta diária.
vas e negativas, objetificantes, pobres e redutoras, que transformam os outros Na arquibancada também vemos um novo perfil de torcedor. É uma
em joguetes, peões, no tabuleiro do poder. imagem pálida do antigo tempo em que o Maracanã suportava mais de cem
Nessa atmosfera nociva da arenização que foi sepultada a alma e o cor- mil pessoas. Qualquer arquibaldo do antigo Maraca sabe da experiência de
po do antigo Maraca. A morte dos geraldinos representa o fim de um encanto, ter o corpo tomado pela torcida. Sim, o corpo era tomado, pois fosse num
o término da possibilidade de abertura para outras possibilidades. Na Geral momento crítico da partida ou na hora do gol, era corpo coletivo da torcida
do antigo Maraca o nome próprio era deixado de lado para se assumir um era quem comanda a suposta individualidade corpos. Só se pulava, gritava ou
outro de si. Era ali que encontrávamos o torcedor-vovó da geral, torcedor-cha- abraçava no tempo oportuno da torcida. Numa arquibancada lotada de torce-
ruteiro, torcedor-radinho, entre outros, pouco importa. O que importava de dores, onde se equilibravam mais de quatro pessoas por degrau, muitas vezes
fato era a oportunidade ser outro, de existir de outro modo. Esse era, enfim, o se via o jogo por uma pequena fresta entre as pessoas. Era assim que se fazia a
espaço mais democrático do futebol brasileiro. A arenização com sua cultura festa na fresta, pelo menos nas antigas arquibancadas do Maraca.
e práticas de uniformização deu fim a essa democracia dos corpos da cidade e O mar de bandeiras e a ardência nos olhos provocada pela fumaça dos
planificou um jeito de ver o futebol (é sempre bom lembrar que ver um jogo sinalizadores são lembranças de tempos de outrora, de um tempo anterior à
de futebol é não o mesmo que torcer). arenização. Com a arenização também morre parte da cultura das torcidas
Não obstante todos os problemas, boa parcela da população mais ca- organizadas cariocas. As organizadas Raça Rubro-Negra, Torcida Jovem do Fla-
rente economicamente ainda podia frequentar o Maracanã por meio da Geral. mengo, Young Flu, Força Flu, Força Jovem do Vasco, Fúria Jovem do Botafogo e
Aos domingos, ainda que com poucos recursos financeiros, era possível a qua- Torcida Jovem do Botafogo hoje são espetros que vagam pela cidade, assom-
se qualquer cidadão carioca experimentar o encanamento e se fazer encantado. brando as ruas, becos, bares e vielas. Levar foguetes e bandeiras, com diz a
A antiga música do cantor Bebeto (1981) menciona um pouco desse ethos do letra do samba de Neguinho da Beija-flor (1979), já não é mais possível; e
torcedor do antigo Maraca: “ficar de arquibancada pra sentir mais emoção” parece ser uma experiência
pouco crível na atualidade.
Praia e Sol A arenização, como podemos notar, é uma política à serviço da ra-
Maracanã e futebol
cionalidade neoliberal que determina a industrialização e comercialização do
Domingo
futebol, desterrando-o da alegria que nasce do simples torcer e jogar futebol.
Praia e Sol
Maracanã e futebol Nos tempos de arenização o futebol padece, a fantasia definha, renuncia-se
Que lindo a alegria e a tecnocracia parece vencer. Como diz Eduardo Galeno (2019): o
Domingo eu vou ver meu time jogar jogo se transformou em espetáculo e o espetáculo se transformou num dos
Tomara que ele saiba ganhar negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado,
E se souber vai ser muito bonito mas para impedir que se jogue.
Ver de alegria esse povo sorrindo
Que maravilha essa vida maneira

98 99
P or uma nova forma de pensar o futebol : felicidade e suspensão do céu existencial, um modo de existir em que atualizamos algo que seria próprio a
todos nós, sendo um gesto existencial que nos abre a possibilidade e a parti-
Como dissemos no início, nós escrevemos este texto a partir de uma cipação na (re)constituição da realidade desse mundo que é o nosso. A feli-
encruzilhada. Chegamos até este ponto sendo atravessados pelo cruzo de vá- cidade é uma atmosfera que nos permite dar um passo em direção a outras
rios caminhos. Nos retemos na reflexão sobre uma política de corrosão dos experiências possíveis, e a demorar-se neste espaço que se abre e a coparticipar,
valores culturais de um povo: o futebol, o Maracanã e um modo de vida então, da (re)constituição de nosso mundo. É preciso que o torcedor seja to-
específico que é o torcer. Também lá no início do texto já tínhamos antecipa- mado por esse ethos de felicidade e volte, mais uma vez, a fazer da realidade
do que ao sair desta encruzilhada não teríamos o conhecimento sobre o que poesia, seja nos estádios ou seja nas ruas.
poderia vir ao nosso encontro. Da mesma forma, vamos deixando esta encru- Essa experiência existencial da felicidade que desejamos estender ao
zilhada sem saber o destino do futebol, da sua memória enquanto pertencente torcedor poderia ser descrita de outras formas. Contudo, para entendermos
à cidade e sobre os novos modos de torcer. Repetimos: a intenção ao sair deste um pouco melhor esse conceito, preferimos aproximá-lo da lição de Ailton
cruzamento de ideias e reflexões era poder jogar o leitor num caminho através Krenak, que nos ensina sobre a necessidade de suspender o céu como modo
do qual pudesse pensar o impensado sobre o futebol, outras formas de torcer de adiar o fim do mundo:
e a formação novas subjetividades para si, a partir de um devir-torcida.
Sobre esse novo caminho, neste instante, só podemos anunciar um Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender
“talvez”. Talvez o torcedor do antigo Maracanã tenha que descobrir as ruas. o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é
Talvez a rua seja o novo campo de possibilidades em que uma nova forma de ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo,
mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetivida-
torcer possa vir a acontecer. Talvez ao torcedor reste a opção de resistir à are-
des, que é a matéria que este tempo que nós vivemos
nização e descobrir outros modos de existência.
quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir nature-
Dissemos que novas formas de torcer podem ser desenvolvidas nas za, existe também uma por consumir subjetividades – as
ruas, mas é preciso estar ciente que as ruas também são regidas por políticas nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liber-
de exclusão e higienização. O importante é descobrir que marginalização não dade que formos capazes de inventar, não botar ela no
é só o depreciado, o negativo, o que não serve, não é útil, enfim, o nocivo. mercado (KRENAK, 2019, p. 15).
Temos que pensar segundo a marginalização e torná-la positiva, no sentido de
ganhar os espaços que hoje estão dominados pelos discursos e pelas práticas Ao acolher as palavras de Krenak, podemos notar que ainda temos
antidemocráticas, da qual a arenização é só um exemplo. Marginalização não uma visão parca sobre o que seja propriamente a experiência de suspender
é unicamente o gesto de retirar a subordinação hierárquica entre a oposição o céu. Nós hoje habitamos um espaço dominado por uma linguagem ob-
centro-periferia. Marginalizar é fazer o deslocamento do registro dicotômico jetificante que oblitera a rearticulação dos elementos históricos de nosso
(centro-periferia) para a produção de algo novo, abalando as estruturas, cau- mundo e, por conseguinte, obscurece a produção de outras experiências
sando fissuras na antiga estrutura hegemônica. existenciais possíveis.
Talvez seja necessário o torcedor se rearticular com a felicidade. Usa- Talvez seja necessário aprender a suspender o céu para darmos passa-
mos o termo no sentido descrito pelo amigo e filósofo Marcelo Rangel. Fe- gem ao porvir e, quem sabe, nessa experimentação, possamos voltar a gritar
licidade para Rangel(2019) não é um mero sentimento, um simples estado mais uma vez: O Maraca é nosso, aha-uhu!, O Maraca é nosso, aha-uhu!, O
anímico de um sujeito racional. Mais do que isso, a felicidade é uma condição Maraca é nosso, aha-uhu!....

100 101
Enquanto nos retemos no aprendizado das lições de Krenak surge, de Felipe Ribeiro Siqueira

composição e espiritualidade
outro lado, a necessidade de lidar com os espectros que nos rondam. Talvez
seja preciso aprender a lidar com os espectros que rondam no nosso mundo, a Permita-me o leitor para que eu escreva este texto em primeira
nossa cidade. Contudo, lidar com espectros é algo que demanda extrema aten- pessoa. É uma questão de intuição. O objetivo deste texto é de apenas
ção e habilidade, portanto, para fazer justiça ao tema, remetemos o trabalho pensar relações entre espiritualidade e o processo de criação dos com-
com os espectros para uma outra oportunidade. positores de samba amigos da beleza celestial. Contudo, só peço para que
Por isso, nos despedimos do caro leitor dedicando este texto a todos você, que estará lendo este texto, neste exato momento, tente entrar em
os geraldinos e as torcidas organizadas Raça Rubro-Negra, Torcida Jovem do sintonia com toda força de composição do samba que emana dos nossos
Flamengo, Young Flu, Força Flu, Força Jovem do Vasco, Fúria Jovem do Botafogo ancestrais.
e Torcida Jovem do Botafogo que, como espectros, assombram o Maracanã nos Pergunto a você e me pergunto também: como funciona o pro-
domingos de clássico. cesso de criação de um samba? Como é possível criarmos uma letra,
uma melodia, especificamente de um samba? Será que há algo que vai
além da minha medíocre vontade de compor? Você nunca se perguntou
o que vem primeiro se é a letra ou a melodia ou são as duas juntas na
composição de um samba? Em que sentido essas perguntas diferenciam
o samba das outras composições musicais? A criação de um samba é
algo específico dentro de todos os gêneros musicais.
Também te instigo a pensar sobre o momento em que vivemos.

S amba ,
De uns anos pra cá já era comum os compositores usarem whatsaaps e
outros recursos da internet para compor sambas em parceria. Agora que
estamos vivendo tempos de quarentena aumentaram, assustadoramen-
te, as composições de samba através destes recursos. Será que há alguma
diferença? Será o mesmo mecanismo de criação? Tendo em vista estas
questões, me sinto na obrigação de perguntar a você: afinal de contas
o que vem a ser uma parceria? Como diz um amigo e parceiro compo-
sitor da Estação Primeira de Mangueira, Deivid Domênico1, “parceria
requer intimidade”. E aqui, acrescento, a intimidade para a criação de
um samba requer a presença. Nada irá substituir a energia que emana
da presença. Vale frisar que essa minha posição sobre a necessidade da
presença num samba feito em parceria tem como total influência o con-
ceito de amizade em Aristóteles, mais especificamente seu livro Ética a
Nicômaco. Sobre essa questão da intimidade, há um belíssimo livro de

1 Deivid Domênico além de ser compositor e cantor de samba, é carteiro. É um dos autores
dos sambas de 2015 e 2019 da G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira.

102 103
Sobonfu Somé intitulado O espírito da intimidade que traz a seguinte passa- grande maioria os compositores de samba são inquietos. Eles estão compondo
gem: “Paciência é essencial. Ninguém na aldeia parece compreender o senti- a todo o momento. Às vezes a composição vem em forma de fragmentos. Em
do da pressa” (SOMÉ, 2003, p.21). Nesse contexto, articulando com Somé, se tratando desses fragmentos, aqui abre uma discussão sobre o tempo da com-
interessante pensar que a questão de um samba feito em parceria requer uma posição de um samba. Esses fragmentos são pedaços de melodia que podem ou
compreensão do tempo de cada um para fazer o melhor encaixe do verso com não vir com uma letra. É possível que esse fragmento seja conectado a outro,
a melodia, caso contrário poderá cair numa espécie de ansiedade artística que ou outros, muitos anos depois. Não há uma previsão para que isso aconteça.
prejudicará a beleza da obra. A intimidade numa parceria de composição de A composição não é regida por um tempo cronológico.
samba requer uma paciência melódica para buscar o verso mais belo. Entretanto, quando o assunto é samba de enredo quebra um pouco
Outro ponto importante é quando Somé afirma, nesse mesmo livro, com essa “liberdade” no ato de compor. Vale frisar que quando escolho, aqui,
que “Fogo relaciona-se com sonhar, manter nossa conexão com o ser e os utilizar a expressão samba de enredo e não samba-enredo, sou totalmente in-
ancestrais e manter nossa visão viva.” (SOMÉ, 2003, p. 23). Desse modo, fluenciado pelos pensadores Luiz Antonio Simas e Alberto Mussa. Foi a partir
interessante trazer essa passagem de Somé que está presente em um livro sobre da leitura do livro Samba de enredo: história e arte de Simas e Alberto Mussa
o tema da intimidade. Mesmo que Somé não esteja falando sobre composição que comecei a utilizar também a expressão samba de enredo. Concordo ple-
artística, podemos articular, aqui, pensando a composição de samba como namente com Simas e Mussa quando eles defendem samba de enredo e não
uma forma de se conectar aos ancestrais através de um mergulho na intimida- samba-enredo. Vira e mexe Simas e Mussa trazem à tona essa questão. Convido
de (seja em nossa própria intimidade ou na intimidade dos parceiros), e que o leitor a acompanhar as obras e palestras de ambos sobre a temática samba
no momento da criação, no momento que se encontra, através da batucada, o de enredo. Quando as escolas de samba fazem concurso para escolher seu
entrosamento entre verso e melodia, o corpo reage ao aquecimento do espírito. hino (samba de enredo) para o desfile, elas entregam uma sinopse para a ala
É como se fosse um fogaréu espiritual. O aquecimento espiritual como prin- dos compositores e os mesmos tem cerca de um mês para criarem suas obras
cípio de criação artística. É a chamada chama da inspiração acesa mais do que e gravarem em um cd. Dentro do universo do samba de enredo a sinopse é
nunca. Nesse contexto, o compositor Luiz Carlos da Vila trouxe, de uma for- uma espécie de resumo da proposta do enredo que será executado no desfile.
ma genial, em seu samba em homenagem ao compositor Candeia intitulado Atualmente tem vindo com bibliografia. A sinopse fica em média entre 1 e
O sonho não acabou, os seguintes versos que abordam essa questão “A chama 3 páginas. No final se tem menos de um mês para a criação. Várias escolas
não se apagou / nem se apagará / és luz de eterno fulgor / Candeia (...).” E por abrem seus concursos para compositores de outras agremiações. Atualmente
falar em Luiz Carlos da Vila, vale a pena mencionar que Luiz Antonio Simas esse debate ganha força para pensar até que ponto essa abertura pode ou não
e Diogo Cunha tem uma obra magistral sobre o poeta, cujo título é Princípio prejudicar nas características da escola. Entretanto aqui não iremos abordar
do infinito: um perfil de Luiz Carlos da Vila. Especificamente no capítulo Sim, essa questão. Afirmo que é altamente problemático estabelecer um prazo ten-
é o Cacique de Ramos, Simas e Diogo trazem relatos interessantes sobre este do em vista que a composição passa por um processo de transe. Segundo a
samba O sonho não acabou. tradição espírita, a dimensão espiritual não é regida pelo nosso tempo crono-
Nesse contexto, tendo como base a literatura da tradição espírita, num lógico. Outra questão marcante para esse problema na composição de samba
samba feito em parceria há uma grande troca de energia. Até que ponto tor- de enredo é que o mesmo, em sua grande maioria, é composto em parcerias
na-se interessante compor um samba com um parceiro ou parceiros que não que não necessariamente possuem essa intimidade. É comum parcerias se for-
possuem a mínima intimidade? marem apenas para o concurso daquele ano específico e depois se desfazerem.
Desse modo, o conceito de sintonia é de extrema importância. Em sua Voltando a questão da inquietação dos compositores de samba, eles

104 105
podem até não compreender da quantidade de energia que possuem, mas sen- Álbum intitulado Mais feliz, afirmou “Eu costumo dizer que eu não compo-
tem. Eles precisam estar compondo a todo o momento. Consequentemente nho, eu acho que eu psicografo. Acho que alguém fala na minha cabeça e eu
essa energia circula. A batida do samba, principalmente o chamado samba de escrevo. Depois eu me assusto com aquilo. Será que eu fiz isso? Toda vez foi
terreiro, muda a vibração do ambiente de forma intensa. Se ficarmos apenas assim, toda a vida.”4
na questão dos chamados desenhos melódicos já fica bem clara essa questão e A afirmação de Zeca Pagodinho é de extrema importância. Com isso,
com a letra fica mais forte ainda. pergunto: essa energia que emana dos compositores de samba e que produz
Convido ao leitor a imaginar o que ocorre com um compositor se reverberação é produzida de um processo racional? Será que o compositor de
o mesmo perde as forças para compor. Tente imaginar toda aquela energia samba, que é inquieto e a todo o momento quer compor sobre qualquer tema,
que ele sozinho, ou com seus parceiros, conseguem produzir e que pode decide racionalmente a hora, o lugar, etc. para compor? O leitor poderá se
contribuir para a reenergização de outras pessoas não ganhando atividade. inclinar para a discussão que é clássica na história da estética que é o conceito
Compor um samba para esses compositores é uma questão de vida ou de inspiração. Irei me posicionar a favor do que vários autores do espiritismo e
morte! É uma forma deles se sentirem vivos! Quantos compositores de da história da filosofia chamam de intuição. Mas que tipo de intuição acontece
samba amenizaram suas dores e sofrimentos da vida através de seus versos na composição de um samba? O que está por trás da fala de Zeca Pagodinho
e melodias? Talvez o filósofo Cartola2 seja o caso mais interessante. Quan- sobre seu processo de criação?
tas vidas foram resgatadas emocionalmente através da energia produzida e Há um livro muito interessante que se chama O mundo que encontrei
circulada pelas músicas de Cartola! do espírito de Luiz Sérgio de Carvalho e psicografado por Alayde A. Silva.
Nesse contexto, vale a pena mencionarmos que o Grêmio Recreati- Chamo a atenção do leitor para o terceiro capítulo intitulado A “intuição” Era
vo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense no ano de 2011 apresentou o Eu. Neste capítulo, o espírito de Luiz Sérgio nos relata como um desencarna-
enredo A Imperatriz adverte: sambar faz bem à saúde!. O samba foi feito por do atua orientando, nós encarnados, e consequentemente gerando em nós o
Flavinho, Me leva, Gil Branco, Tião Pinheiro e Drummond e os dois primei- que chamamos de intuição.
ros versos do refrão de cabeça3 eram: Eu quero é Sambar! / A cura do corpo e Nesse contexto, podemos transpor essa mensagem do espírito de Luiz
da alma no Samba está!. É justamente essa energia que emana do compositor Sérgio de Carvalho e pensarmos na possibilidade de que na composição de
(sozinho ou com seus parceiros) de samba e que circula no mundo irá contri- um samba, o compositor possa estar tendo intuições de caminhos melódicos e
buir para a possibilidade de reenergização de outras pessoas e que no enredo da escolha dos versos que no fundo são orientações de desencarnados. Temos
mencionado é apresentado como cura. muitos compositores de samba que não possuem o conhecimento técnico da
Considero Zeca Pagodinho não apenas um dos grandes intérpretes da música. Muitos não sabem tocar nenhum instrumento de cordas (cavaqui-
história do samba e sim, também, um dos grandes compositores. E aqui temos nho, violão, banjo) e sabemos que tocar um instrumento desses ajuda e muito
uma questão interessante. No dia 07 de outubro de 2019, em seu instagram, a encontrar caminhos melódicos. Muitos compositores de samba sequer sa-
Zeca Pagodinho comentando sobre o samba Nuvens brancas da paz de sua bem o que significa tom. Você, leitor, nunca se questionou como é possível,
autoria e parceria com Arlindo Cruz e Marcelinho Moreira, faixa de seu novo principalmente esses compositores conseguirem criar melodias lindíssimas?
2 Para que o leitor possa aprofundar essa questão indico o belíssimo artigo da filósofa Rosa Dias
Talvez o intérprete que teve mais compositores nesta situação foi o filósofo
intitulado Uma filosofia do amor em Cartola que se encontra no livro Arte brasileira e filosofia, livro Bezerra da Silva. A grande maioria dos compositores de Bezerra eram o que se
este organizado por ela, Gaspar Paz e Ana Lúcia de Oliveira. E mais do que nunca indico ouvir as
músicas do Mestre Cartola. 4 Disponível em https://www.instagram.com/p/B3UhHxPBEFj/?igshid=1wfkl25tb9fdr e pesqui-
3 Expressão muito utilizada pelos compositores de samba. sado em 24/04/2020.

106 107
chama de compositores intuitivos. Voltando a afirmação de Zeca Pagodinho que já mencionei acima, e
Nesse contexto, relato, para o leitor, que já presenciei várias vezes du- tendo em vista que meu posicionamento é seguir uma tradição que pensa o
rante o processo de composição de um samba em parceria, eu ou um dos processo de criação artística pelo viés espiritualista, nesse contexto, há uma
parceiros se isolar do meio do grupo e voltar cantarolando o que ele chama passagem em O Livro dos médiuns de Kardec que afirma “(...) todo mundo é,
de uma intuição, um caminho. A partir deste caminho, aí sim se recorre a um mais ou menos, médium.” (KARDEC, 2008a, p. 139). Desse modo, a ques-
instrumento de corda para o que se chama de lapidar a melodia ou a letra. tão concernente aos compositores se torna bem clara na questão 183 desse
Mas há vários casos em que o compositor consegue intuir uma melodia inteira mesmo livro:
já lapidada sem precisar recorrer ao instrumento de corda.
Vale a pena frisar que muitas intuições no processo de criação do samba - Um autor, um pintor, um músico, por exemplo, nos
momentos de inspiração, poderiam ser considerados mé-
ocorrem com os refrãos. É comum que muita gente conheça os sambas através
diuns?
de seus refrãos. Quando o refrão vem como intuição, dificilmente não cairá,
Sim, porque nesses momentos sua alma está mais livre e
como a sabedoria popular chama, na boca do povo. Já participei, inclusive, de como desembaraçada da matéria; recobra uma parte das
parcerias em que deixamos o refrão por último na composição, justamente suas faculdades de Espírito e recebe mais facilmente as
para esperar que a intuição chegasse através de mim ou de um dos parceiros. comunicações dos outros Espíritos que a inspiram. (KAR-
Há uma “disputa” muito grande entre os parceiros para ver quem conseguirá DEC, 2008a, p. 154, grifo do autor)
fazer o refrão. É como se fosse um “presente” da dimensão espiritual.
Cabe uma pergunta: será que essa intuição é fruto de uma criação to- Em O Livro dos Espíritos de Kardec, (KARDEC, 2007) há uma dis-
talmente, digamos, “original” do compositor ou será que este acontecimento cussão interessante sobre música na questão 251. Ali aparecem dois tipos
é uma espécie de conexão com uma dimensão espiritual? de música, a terrena e a celeste5. Nesse contexto, essa questão se aprofunda
Nesse sentido o leitor também pode se perguntar: como é possível em dois textos importantíssimos em Obras póstumas de Kardec. Os textos
uma composição de samba com sequência de acordes previsíveis conseguir são A música celeste e A música espírita. Desse modo, cito uma passagem
transmitir uma beleza suprema? de A música celeste:
É importante deixar bem claro que aqui me posiciono contra a
Se, no estado de vigília, os detalhes se apagaram de sua
qualquer leitura racionalista desse processo de composição do samba. Per-
memória, o Espírito se lembra; resta nele uma intuição
cebo que muitos compositores ditos intuitivos possuem uma espécie de que modifica os seus pensamentos; em lugar de fazer
receio de aprender a tocar um instrumento de corda justamente para não oposição, aceitará sem dificuldade as explicações que lhe
deixar contaminar a intuição. Muitas das vezes uma melodia de samba serão dadas porque as compreenderá, e, intuitivamen-
criada a partir do instrumento de corda pode soar como intelectual. Bo- te, as achará de acordo com o seu sentimento íntimo.
nita sim, mas não malandreada, vagabunda. Essa melodia intuitiva surge (KARDEC, 2008b, p. 123).
como uma melodia de vagabundo no sentido de sagacidade e consequen-
O contexto dessa passagem é sobre a música na dimensão espiritual
temente ótimo para o canto do povo. No linguajar dos compositores de
e demonstra o fato de, mesmo tendo acesso a essa música, não temos a total
samba quando uma melodia não possui essa leveza da malandragem ela
fica trepada. Essa melodia trepada não tem entrosamento ideal entre letra
5 Para se aprofundar na questão da música celeste, indico o livro magistral de Léon Denis intitulado
e melodia. Perde totalmente a leveza e o gingado. O espiritismo na arte, mais especificamente da parte VI até a parte XI.

108 109
recordação. Entretanto, a intuição fica como uma espécie de marca. E em ba com a vibração energética do ambiente que o mesmo circula. Esse tema
seguida Kardec afirma que “Essas ideias não fazem senão despertar nelas as da vibração energética é tema clássico da literatura da filosofia espírita e
que já possuíam; são espíritas de nascimento como outras são poetas, músicos a bibliografia é imensa sobre essa questão. Os compositores de samba,
ou matemáticos” (KARDEC, 2008b, p. 123-124).6 Desse modo, os compo- principalmente os que são oriundos das favelas, subúrbios... presenciam e
sitores de samba já tiveram acesso a música na dimensão espiritual antes de percebem a vibração desses mesmos ambientes e muitas vezes conseguem
encarnarem, entretanto ela não surge em sua totalidade e sim em forma de poetizar e embelezar um cenário e/ou uma situação, que como diz a tradi-
pequeníssimos fragmentos de lembrança como através de intuições. É clássica ção espírita, de baixa vibração.
a afirmação “achei uma melodia” no processo de composição de samba. Mas, Nesse sentido, Luiz Antonio Simas, em O corpo encantado das ruas,
de acordo com essa linha de leitura, ele não achou e sim recordou vagamente. afirma que:
Talvez aqui se pode explicar uma suprema beleza melódica de um Carinhoso
de Pixinguinha. Não custa recordar que o discurso do samba, e de toda
a múltipla musicalidade oriunda da diáspora africana,
Esse fragmento de melodia que é apreendido através da intuição, como
também está no fundamento do tambor, que fala daqui-
vaga lembrança, se perde rápido caso não anote num papel ou grave em um
lo que nossas gramáticas não nos preparam para ler. O
aparelho. Mas, hoje facilitou muito a vida do compositor devido os celulares tambor – e são tantos! – vai buscar quem mora longe, e
terem bons gravadores e até mesmo a possibilidade de deixar um áudio no isso é muito sério. (SIMAS, 2019, p. 114).
whatsaap. Quantos belos sambas saíram de suas primeiras anotações de guar-
danapos dos botequins? Essa bela passagem de Simas traz à tona a força vibracional do tambor.
Nesse contexto, outra passagem de Kardec, que vale a pena mencionar A musicalidade do tambor contribui para a limpeza de um ambiente. E aqui,
está no texto A música espírita: cabe ir além e trazer a questão de que não se precisa ter um tambor físico,
material para se ter uma musicalidade do tambor. Os compositores de samba
O compositor que concebe a harmonia a traduz na gros- já trazem o tambor em seu espírito. Digamos um tambor mental, que se ma-
seira linguagem que se chama música; concretiza a sua
nifesta quando esses compositores intuem suas melodias.
ideia, ele escreve. O artista estuda a forma e agarra o ins-
Julio Cesar Farias em Para tudo não se acabar na quarta-feira: a lin-
trumento que permite representar a ideia. O ar, posto
em movimento pelo instrumento, leva-a ao ouvido que guagem do samba-enredo relata palavras recorrentes no samba de enredo. In-
a transmite à alma do ouvinte. Mas o compositor ficou teressante notar que, não só no samba de enredo e sim em várias vertentes do
impossibilitado de representar inteiramente a harmonia samba, algumas palavras, que aparecem constantemente, possuem conexão
que concebera, por falta de uma linguagem suficiente; direta com questões da espiritualidade, como exemplo tem as palavras luz,
executando-a, por sua vez, não compreendeu toda a ideia magia, harmonia, clarear, mistérios, divino (a), paz...
escrita, e o instrumento indócil, do qual se serve, não lhe
Nesse contexto os compositores de samba se enquadram na questão
permite traduzir tudo o que ele compreendeu. (KAR-
183 de O livro dos médiuns de Kardec, quando se aborda sobre os artistas que
DEC, 2008b, p. 128-129)
“São médiuns sem o saberem. Têm, no entanto, uma vaga intuição de uma as-
Outro ponto importante é sobre a sintonia do compositor de sam- sistência estranha, porque quem apela à inspiração, não faz outra coisa senão
uma evocação;” (KARDEC, 2008a, p. 154, grifo do autor).
6 Importante mencionar aqui que há uma literatura vasta sobre as conexões de Platão com Kardec,
principalmente sore o conceito de reminiscência. A genialidade de alguns compositores de samba passa em torno dos

110 111
que conseguiram se aproximar mais da lembrança da música celeste. A malan- Teresa Dantas

M osquinha
dragem desses mestres é de estarem atentos a essas vagas intuições mencionadas
por Kardec. E esta percepção só experimentando a estética de um Cartola, Passam-se das onze da noite de sábado. Quarto fechado. Não
Noel Rosa, Candeia, Pixinguinha, Luiz Carlos da Vila, Paulinho da Viola, sei da onde, talvez de mim, veio uma mosca rondar minha cabeça e
Jorge Aragão, Dona Ivone Lara, Martinho da Vila, Ismael... A essência da assentar no teto. Insetos facilmente sentam contra a gravidade.
composição do samba está altamente conectada às questões da espiritualidade. O zumbir é implicante. Ela inteira é implicante.
O samba é uma forma malandreada de combater o materialismo. É possível que eu tenha parido essa mosca ou ela seja eu mesma.
Moscas deviam estar dormindo.
Abro a janela, a porta e jogo um travesseiro, pulseiras, um livro,
ligo o ventilador de teto. Ela faz apenas alguns milimétricos movimen-
tos, destemida. Eu só quero ler um pouco.
A mosca continua aqui. O barulho das asinhas roçando o teto
é nojento.
Vai embora, mosca!
Ou me leva junto, mosca, aqui é perigoso. Aqui a gente sangra
de tanto dar murro em ponta de faca. A mosca que se bate entre as
paredes e o teto e o chão e as cortinas e as portas quem é. Ninguém sai
desse quarto.
Vai acabar deixando a vida nesse quarto. Não me deixa sozinha,
mosca.

112 113
Claudio Medeiros nuína resistência ao mundo organizado, ao evangelho do trabalho e da deman-
país do subúrbio : natureza incendiária , indústria de
despejos , fábrica de ruídos Marcos Nascimento da. Fascinante. Toda vez q tentei ser militante fui frustrado de uma maneira ou
Sérgio Ortiz de Inhaúma de outra, justamente pq a militância é domesticada o suficiente para classificar e
podar tudo. Como sempre esteve aliada ao mundo organizado e a consciência,
nunca se abriu pra essa vida genuína q aflora entre o povo. Seja para o bem ou
I para o mal. Quando conveniente, dizia morrer de amores pelo povo, mas quan-
do este mesmo povo não se emparelhava ao discurso consciente e hegemônico
Seria o caso de começar pela origem da Cidade de São
dos ditos militantes, era acusado de burro e ignorante. E nessa boa lógica dos
Sebastião do Rio de Janeiro. Assim como as guerras das primeiras
centros de saber acadêmico cada vez mais o ovo da serpente é chocado, e agora
civilizações eram entre pedras e homens, aqui não foi diferente.
o povo volta a ser chamado de burro e ignorante. Como diria minha vó Fiota, a
Após naus ganharem os mares e tribos colonizadoras disputarem
criatura mais fascinante q conheci em minha vida, q inclusive era analfabeta, ou
recursos naturais à custa de sangue, a tribo vencedora precisou
seja, burra e ignorante: “agora Inês é morta”.
fundar a Cidade em um espaço geográfico mais amplo do que
a entrada de mar onde estavam situados até então. O canto de
difícil acesso na Baía de Guanabara – uma garganta de pedra e
III
areia na Urca suficientemente útil para conter ataques da tribo
rival – não era propício a abertura de negócios e ao conforto Jesuítas sabiam de engenharia e drenagens, mas eram incapazes de
imprescindível que a colônia de belezas e clima úmido impunha levantar uma pedra, só caso fosse a pedra de Pedro que era imaterial e que
aos seus conquistadores. não pesa mais do que o cristão possa carregar. Os pretos, como não sabiam
A decisão de tornar um Morro a base dessa nova Cidade de Pedro mas sentiam que a cruz poderia ser maior do que o calvário porvir,
era óbvia para gente tão necessitada de proteção e desejosa de ergueram a igreja com os indígenas que nessa altura já sentiam a indigestão
olhar à distância quem vinha sem ser convidado. Mas a primeira do banquete francês lhes atravessar o bucho feito sopa de crustáceo em dia de
proteção da recém-fundada sede se faz com pessoas que conver- ressaca.
sam com Deus, por isso uma Igreja foi erguida e nomeada com Um Araribóia só não faz nação, necessita-se gente de visão pra negó-
o Santo patrono, erguida por gente que seria convertida já que cios, o lucro é a ordem e a pilhagem é pra ontem. Jesuíta que esconde tesouro
os Jesuítas ganham por cabeça feita e não por peça quebrada. E vai pro buraco do morro e direto pro microondas virar carvão pra forno de
assim com o morro do Castelo formou-se a nova Cidade. locomotiva, que ninguém veio da Europa pra ser pobre e morar em cortiço,
já dizia Pereira Passos num papo animado com Carlos Sampaio, Mem de Sá e
Corbusier num café de azulejos portugueses ali na Praia de Santa Luzia.
II Até que num dia qualquer, deixa-se a ideia que lugar de cidade seja em
cima de Morro, mesmo que seja Morro do Castello, ele precisa cair e irá ruir
Ontem passei perto da favela da Coréia e tinha uns mole-
nem que seja a jatos d’água. A moda são avenidas, longas avenidas para que
O

ques soltando pipa rente a um valão q margeia a Linha Amarela.


nossos carros possam desfilar, para que casais finos com roupas elegantes pos-
Eles riam e gastavam uns os outros, tinha um q fazia gestos obsce-
sam andar sem que crianças correndo descalças venham cruzar seus caminhos.
nos para os demais e caía na gargalhada. Penso que isso seja a ge-

114 115
E desceu o Morro, e desceu as gentes do Morro, antes durante e de- sário projetaram um pouco a cidade; e, surpreendida com a descoberta das
pois das obras – quando se faz somente demolição também se chama obra? lavras de Minas, de que foi escoadouro, a velha São Sebastião aterrou apres-
– Vamos embora, botaram abaixo nossa casa, disse o último habitante sada alguns brejos, para aumentar e espraiar-se, e todo o material foi-lhe útil
que desceu junto com a pá da escavadeira e só levou de lembrança um tijolo para tal fim. (...) O tráfico de escravos imprimiu ao Valongo e aos morros da
com a inscrição em latim Dei aedificatio. Saúde alguma coisa de aringa africana; e a melancolia dos cais dos Mineiros
O bota abaixo veio feito operação policial em horário de escola. Para é saudade das ricas faluas, pejadas de mercadorias, que não lhe chegam mais
onde vai toda essa gente tão sozinha? Para onde vai toda essa gente sem pai de Inhomirim e de Estrela.”2
nem mãe, uma mão na frente e a outra a cobrir a cabeça contra o sol? Há
outros morros e outras terras só que não estão aqui, quem sabe lá eles deixem
essa gente existir. V
Existe em mim um vício de apenas escutar os homens quebrados.
Aprendi isso com os homens q conheci pelas ruas. O homem q mais amei
IV
em minha vida, meu tio-padrinho, irmão de minha mãe, era assim: quebrado,
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá foi o primeiro romance que rachado. Os homens quebrados sempre tem algo a nos dizer. Miller, Barreto,
Lima Barreto escreveu. Ele tem um capítulo chamado “O passeador”, é Suassuna, Rimbaud... Não dou ouvido aos vitoriosos. Eles querem a felicida-
quando descobrimos no Lima Barreto um cronista inventor de uma cidade de a qualquer custo. Precisam disso para justificar q tudo na vida se reduz ao
autenticamente desimportante para as concepções de pátria e positivismo lucro. Resumindo: é preciso estar atento ao q os homens quebrados tem a nos
dos símbolos da República. A cisma pela civilidade à europeia dramatizou dizer. São eles que tem a vida fluindo através de suas fendas.
contos de origem de um Rio de Janeiro oficial cujas datas e solenidades
serviram de pretexto para celebrar alvarás tristes, instituições e sesmarias. A
cidade de Lima Barreto construída nas Américas não foi produto da razão VI
abstrata dos engenheiros, ela existiu na geografia de ritos sociais que mobili-
– Guarde esse tijolo seu Zé, que será o primeiro a fincar a casa que
zaram a fisionomia dos nossos bares, terreiros e encruzilhadas. A substância
vamos subir lá nos subúrbios. Já diz o dito popular: remediados estão os que
da cidade, seu corpo, vem sendo perpetuamente “renovada nas miudezas
ficam sem remédio.
provisórias da rua”1, e na teimosa indiferença por qualquer cosmologia na-
A indústria da limpeza urbana vai tomar cada lar, cada cortiço, cada
cional inspirada na história de sucessões de elites políticas. Lima nos leva
vagabundo, cada trabalhador, cada um que olhava pro mar e rondava os por-
em direção diversa dos projetistas do higienismo social, folheados do mé-
tos, cada lenda do velho Centro, cada macumba da praça Onze, cada mesa de
todo e urbanismo, faculdades que, segundo Sérgio Buarque, comandaram
purrinha, cada punguista de carreira, cada entidade que girava as madrugadas e
o traçado das cidades bem-sucedidas. Alheio a isso, “o Rio de Janeiro não
cada boca sedenta de sereno vai ser removida pra outra cidade dentro da Cidade,
foi edificado segundo estabelecido na teoria das perpendiculares e oblíquas.
ainda precisando ser ocupada, mas que também já pertencia aos industriais e
Ela sofreu, como todas as cidades espontâneas, o influxo do local em que se
às famílias de nomes tão longos quanto suas posses. Não vai sobrar caixinha de
edificou e das vicissitudes sociais por que passou (...). O quilombola e o cor-
fósforo pra batucar nem patuá em pescoço de malandro. Já reparou que quanto
1 SIMAS, L. A. O corpo encantado das ruas, p. 151. 2 BARRETO, L. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, p. 66, 67.

116 117
mais longas as ruas e avenidas menos esquinas há? Não é questão de vida, é tudo é uma desolação. Comércios fechados, fachadas destruídas e pichadas,
questão de logística humana empresarial. Mas essa outra cidade ainda pode ser muito lixo transbordando pelas ruas. Eu tenho uma relação obscena com o
nossa e essa batalha levará mais tempo do que eles podem aguentar. Subúrbio. Não à toa, q meus escritos basicamente falam apenas dele. Eu amo
Se lá não tem Castello, quer dizer que não há rei. esse jeito miserável q o Subúrbio tem de sobreviver. Eu não romantizo a mi-
O que antes era zona rural carioca vai rapidamente modificar seus séria, ela em sua natureza incendiada, q existe desta forma. E eu amo. Espero
espaços e limites. No século XVIII, com as alarmantes epidemias os médicos estar morto no dia em q o Subúrbio progredir. Seu fascínio está no modo
sanitaristas iniciaram uma opinião pública de que os limites da cidade e da atrasado em q ele existe
região rural estavam próximos demais.
A Cidade era onde a habitação estava sediada pelas famílias da elite
carioca, casas em que a limpeza executada pelos serviçais era diária e onde os VIII
códigos de etiqueta eram obedecidos com disciplina militar. Basta pensar na
Tudo que é sólido se desmancha no ar: modernidade e progresso
quantidade de publicações de época que eram manuais de asseio, ditando
perseguiram a aniquilação do espaço através do tempo, mas nossas mito-
comportamentos diante das refeições e das regras a serem seguidas para que
logias reservaram à cidade outro destino. Rodante na gira de um mundo
houvesse um padrão do modus operandi, rígido e altamente segregador com
que há cinco séculos se desgasta, a cidade enraizou-se como uma árvore,
aqueles que não eram seguidores de tão vasto catálogo de condutas.
crescendo do tutano das suas raízes, teto de um mundo subterrâneo. Pri-
Você já ouviu falar em Favela do Esqueleto, Catacumba, Morro do
mordialmente a cidade foi plantada e assentada no intervalo dos dias em que
Pasmado, Praia do Pinto?
ritualizamos o território na forma da recriação de espaços de experiências
Assim como o Castello já não existem mais.
associativas minimamente possíveis. Ou repentinamente na aurora mítica,
Veio gente desses lugares e mais para morar na Zona Oeste: na Vila
quando nossas figuras de sagrado, nossos ancestrais encantados, receberam
Kennedy, Vila Aliança, Vila Progresso, Conjuntos da COHAB, IPASE de Ja-
da parte dos povos tradicionais alguma solidariedade hospitaleira, alguma
carepaguá, IAPI de Realengo, Cidade de Deus, Vila Militar, Vila Operária de
exogenia, algum ponto riscado do Tupinambá e o passe do caboclo, algum
Marechal Hermes, Santa Cruz, Padre Miguel, Comunidade do Aço, Favela do
desleixo com a pureza narcísica no europeu. Conforme o Lima, “a fundação
Sapo, Rebu, Apê de Bangu e a lista segue feito um poema infinito.
de uma cidade é, antes de tudo, um desejo de comunhão, de associação.”3
Saneamento básico e infraestrutura foram postergados, em muitos ca-
Desejo de comunhão e associação com o quê? A guerra que existiu segue o
sos ainda são.
curso, não há intervalos de história em que aldeias não foram pisoteadas,
A Antiga Freguesia de Campo Grande torna-se essa outra Cidade, a
rios não foram mortos, indígenas não sofreram exílio, morte e escravidão.
maior ocupação de gente de todo o Estado do Rio de Janeiro.
Qual cidade foi a fundada na comunhão e na associação que não é esta co-
nhecida nos precários livros acadêmicos?
Um complexo religioso da África Centro-Ocidental atravessa um
VII
Atlântico e uma floresta tropical para assimilar, de forma criativa, o indígena
Vindo agora de Belford Roxo, saltei na Pavuna, mas quis vir de metrô velho, o índio encantado. Qual a nacionalidade do Caboclo, por exemplo,
não. Preferi pegar um ônibus. Não sei, acho q eu precisava sentir um pouco na Umbanda carioca, nos Candomblés de Caboclo da Bahia? O Caboclo,
das entranhas famintas das ruas. Entre Pavuna e Colégio, mais ou menos,
3 BARRETO, L. Vida Urbana, p. 79.

118 119
na canjira dos encantados, qual seu protocolo? A prática banto – ativada no IX
Tambor de Mina – de cultivar os espectros dos antigos donos da terra tal-
vez dê pistas sobre os desejos de comunhão e associação característicos das Todo mundo ou quase todo mundo que habita a parte oeste é fruto de
nossas formas sociais. O Tambor de Mina, por exemplo, organizado como remoção, imigração, expulsão, deslocamento de corpos em busca de melhoria
culto de entidades de inegável procedência africana – como Orixás ioruba- de condições. Quando a saída é voluntária essa busca pode atravessar muni-
nos e Voduns do reino de Daomé –, como explicar que entidades espirituais cípios ou Estados. Quando por opressão do Estado, o destino de suas novas
de nacionalidades distintas, como Caboclos, comecem a ser recebidas, no casas e ruas pode ser um jogo de varetas.
Maranhão, na cabeça dos filhos-de-santo? (Sobre a entidade espiritual ca- As estórias que ouvi dos meus familiares, dos vizinhos, dos mais ve-
bocla, sequer poderíamos reconhecer sua unicidade, tendo em vista suas lhos e mais velhas das regiões vizinhas possuem a mesma fonte de narrativa.
identidades múltiplas, suas divisões em linhas, falanges, regiões, ou ainda Gente que precisou mudar de morada por ordem do Estado, ou que veio atrás
pela posição que ocupa na cabeça dos seus cavalos. Isto porque “os caboclos de promessas de casa própria e chances de trabalho. Os homens e mulheres
revivem seus mitos mas o comportamento ritual do caboclo tem o poder que vieram dar corpo de trabalho nas sessões da Fábrica Bangu, o primeiro
de transformá-los permitindo que sejam continuados e não apenas repeti- polo industrial da Zona Oeste, são da Região Fluminense que após a abolição
dos ou revividos”4. Historicamente, um devir-caboclo não apenas facilitou a procuravam oportunidades de independência após séculos de escravização no
readaptação da entidade aos terreiros em processo de “reafricanização”: são Vale do Café. Esse princípio de aglutinar pessoas que nada possuíam e que-
os próprios terreiros que se readaptam à obstinada insistência dos caboclos riam sobreviver de alguma forma começa a se projetar para esse lado da cidade
em divagar na sua errância anti-narcísica.) Seja então esta própria identi- que até então eram as freguesias rurais. Vastos hectares de terra para serem
dade múltipla – do Caboclo que retorna, da morte, completamente outro, ocupados e cultivados, mas que devido aos meios precários de locomoção e ao
ou seja, não como um ancestral revivido, mas como singularidade absoluta, arrendamento exclusivista dos antigos senhores da Casa Grande passaram um
uma vez que deportada tanto de um passado quanto de um mainstream – longo período sendo somente casas de descanso de imperadores ou engenhos
a morada de um tempo descarrilhado do progresso e do fim da História. de asseclas que haviam obtido as terras gratuitamente (com a única condição
Novamente: o Caboclo, na canjira dos encantados, qual será seu protocolo de que as tornassem produtivas, ou seja, lucrativas para condes e barões). Afe-
senão aquele desejo de comunhão e associação evocado? No nascimento tadas por novos modos de vida, grande parte de toda essa gente nunca mais
do Tambor de Mina, no Maranhão, assim como no nascimento das ruas, voltou a residir próxima dos lugares de onde foram removidas. Exceto, para
este desejo possibilitou entre nós um primado de linhas de fuga sobre a ir aos seus locais de trabalho, enfrentando horas de transporte e vendo pela
infraestrutura das fronteiras. As macumbas e a cidade colonial foram produ- janela a paisagem que um dia também foi testemunha.
zidas aí na fresta, para usar a expressão do Simas, na fresta de práticas que Do XVI ao XVIII o próprio significado do que é subúrbio começa
conseguiram transformar “o infame pau de bater nos corpos escravizados a sofrer sucessivas e ainda discutidas alterações. As terras quentes e distantes
em baqueta de bater no couro do tambor, para (...) inventar novamente o também passam a se chamar subúrbios (anteriormente a imprensa escolhia
mundo a partir da rua.”5 entre arraial, arrabaldes ou baixadas o que hoje é a Zona Oeste Carioca). Su-
búrbios até então eram os bairros que se localizavam fora da Região Central
da urbe, fosse a Gávea ou os arredores da Tijuca. Não havia a carga negativa
associada ao sujeito suburbano, fenômeno que ganha força após as reformas
4 FERRETTI, M. Desceu na guma: o caboclo no tambor de mina, p. 24.
urbanísticas iniciadas com a demolição do Morro do Castello e continuada
5 SIMAS, L. A. O corpo encantado das ruas, p. 155.

120 121
por Pereira Passos, Carlos Lacerda e, enfim, a completa redução do Centro a trando os amigos que estão lá desde que você saiu de casa às sete da manhã de
um lugar de passagem e não mais um local de troca de saberes e culturas. um dia abafado e bonito.
Os lugares originários da colonização e alvo das principais reformas
que modificaram os prédios e a sociedade são hoje os lugares de maior es-
peculação imobiliária da região metropolitana da Cidade do Rio de Janeiro. XI
Isso nos faz crer que os projetos de remoção do passado foram bem-sucedidos
O pirata (traficante de escravos) projetou fortalezas. O quilombola
em seus retornos financeiros aos patrocinadores, em seus planos de arqui-
(com seus caboclos) ritualizou os espaços. Então não foram só militares de Es-
tetura moderna em tempos de belle époque ou em suas ilusões higienistas
tado que levantaram as fortalezas, e não foram os bandeirantes que interiori-
que vendiam o combate às moradias precárias como únicos potencializadores
zaram o território. A cidade foi construída no intervalo dos dias oficiais, pelos
de epidemias e doenças. Colocar abaixo construções do Centro histórico e
esquecidos do calendário impresso, ou por aqueles que não têm passe em to-
Região Portuária da Gamboa e da Saúde são medidas que, apesar das leis de
dos os elevadores da cidade. O entrudo, os ranchos do quilombo na Pedra do
patrimônio, vivem sendo executadas quando a ansiedade civilizadora rompe a
Sal e posteriormente os desfiles das escolas de samba no boulevard da antiga
cabeça de governos e empreiteiras.
Avenida Central, estas procissões carnavalescas representavam possibilidades,
Há uma ansiedade que come concreto e areia e não conversa com
temporárias, de penetrar coletivamente territórios interditados. Eram reter-
nenhum espírito velho. Vive de aterrar praias, terreiros e tudo aquilo que faz
ritorializações que asseguravam a presença de tempos civilizatórios outros6,
do tempo uma espiral sem início, fim ou meio. Modificar o espaço somente
tempos tridimensionais que tensionaram as formas arcaicas do ocidentalismo.
pelo modo como se pisa e anda é habilidade para gente criada em outros co-
Voltando a enxergar a partir destas lentes, não estamos tão distantes assim
nhecimentos.
da remota cidade praticada por Lima Barreto. As batalhas de improviso nas
praças baldias dos subúrbios, o xarpi nos torpes viadutos da vida de auto-
móvel, as turmas de clowns e bate-bolas ventilando caos e essências, os rolés
X
dos motoboys e mototaxis em procissões gigantescas rumo ao mar, levam a
Não importa que sejam os nomes de figuras oficiais que decorem as sobressalto as viaturas da madrugada e as classes dos herdeiros da aristocracia.
placas de ruas e logradouros dessa cidade, os nomes de muitos amigos estão Porque renovam o estoque de pólvora e liberdade excedida que comandou a
pichados nos muros ao lado da palavra saudade. Isso é a história sendo conta- luta dos nossos ancestrais contra a escravidão. O mesmo estoque que atiçou o
da com potência e mesmo na brevidade das tintas e dos muros. povo, em mutirões, no assentamento dos seus terreiros e na vitalidade cultural
É nisso que penso quando passo de ônibus por essas fundações da pujante que definiu nossa histórica subida em direção aos subúrbios.
cidade indo pro trabalho no bairro nativo original do Itaóca (atual Humaitá),
por lá não anda Cacique de Ramos nem em dia de quaresma. O que preci-
samos é de gente de visão, como o arqueiro que acertou flechadas no peito XII
de Estácio de Sá e o transformou em Caboclo de Umbanda na mesma noite.
Ainda que haja um componente estelar em nosso organismo, o pó da
Mas o ritmo automatizado da Cidade só faz com que abram Lojas Americanas
terra e principalmente o pó da terra do Morro do Castello, é parte inseparável
por cada alma tupinambá que morreu nesse chão sem saber o que é o trem da
de todo morador originário, nativo ou herdeiro dos subúrbios, periferias, co-
Central às cinco e o abrir de uma cerveja ao chegar na esquina de casa encon-
6 SODRÉ, M. O terreiro e a cidade, p. 146.

122 123
munidades e favelas do Rio de Janeiro até os dias atuais. Creio que seja esse q me perdoem. Quase sempre estou em outro lugar q não o devido, e minha
cisco de terra que faz o olho lacrimejar quando inesperadamente vemos um matemática soma as subtrações.
bate-bola dobrar a esquina dos dias de carnaval.

XIV
XIII
Ruas correntes,
Toda vez q escrevo eu sinto as contrações de meu próprio parto. Su- Ruas desdentadas,
bitamente eu me vejo saindo do útero que fui germinado. Sinto cheiro de Os caminhos se fundem
querosene queimando nas lamparinas, em São José de Ubá, Terra de meus Em esquinas desânguladas.
ancestrais. Sinto a mão velha de minha vó entrando em minha boca, o cheiro Encruzilhadas,
de ferro da terra enchendo minha vida até o talo. Sinto a Acorizal de Inhaú- Quinas dependuradas,
ma emparalelepípedada, esbraseada pelo Sol, meu Totem-bastardo. Eu engulo Curvas desmaiadas,
raios solares através de meus olhos. Quando escrevi o Dioilson, por exemplo, Sábado de Aleluia,
senti amor por cacimbas, por paralelepípedos, pela tarde ensolarada avançan- Nasce um judas a cada paulada.
do sobre as lajes. Tudo q não sei eu invento, quase sempre pra menor. Nunca O mundo é espancado,
deixei de ser o moleque pobre que sempre fui, mas sem vítimas. Tenho, por- Estourado e envergado.
tanto, tanto amor pelas coisas q não são. Nunca poderiam ser. É preciso um As crianças na rua correm,
rasgo no tecido daquilo q chamamos de realidade pra parir o novo, sentir Gambiarras cruzam
as contrações da vida, do fundo fecundo da terra, dos bichos sacrificados. Os assobios,
Profetizar o absurdo, ainda q pleonasmo. Tudo sendo como na primeira vez, Os pássaros entrando
quando as cores ainda incertas, os barrancos deslizando na vista, o Sol incen- Nas sombras desmaiadas,
diando os insetos. O zumbido dos insetos fazendo nós nos murmúrios da vó. O vento serpenteando os
Eu nunca quis ser gente, mas pra vira-lata e parafusos sendo soldadinhos. Ali- Panos nos varais.
cates sendo jacarés q voam, nas mãos do ar quente da infância. Se não é a favor O Sol de Zambarambau se ergue
jamais poderia ser contra. Não é a pele q é retinta, mas o instinto, as dobras da Por detrás dos morros,
carne incendiada. Não possuo origens, pertenço ao Sol que me queima, a Ter- Sua luz desce enfogarada
ra q sonhou meus frutos. Eu queimo com todas as vozes q passam por baixo Invadindo as casas,
do Çubúrbio, me íntegro totalmente ao vento empoeirado q lambe os parale- Derrubando os temores
lepípedos e esquinas. Não tenho nenhuma solução. Não possuo nada. Tenho Que surgiram na madrugada.
apenas os pés q calço, os braços q tateiam o invisível, a cabeça tumultuada q A molecada zune na rua
lateja e balança. Estou sempre me transferindo para uma coisa qualquer: uma Chutando bola,
lasca de topázio, um hiato, uma hora do dia, um tritongo, uma pedra no can- Os vira-latas latem contra
to de rua, uma barata avoada... Não posso falar por mim, nem de mim, espero O dia surrupiando as lajes.

124 125
As lavadeiras descem A Acorizal soltando
Até as bicas Fogo pelas ventas.
Pra lavar os panos. E o saci despiroca
Dioilson olha o Correndo sobre os fios
Judas dependurado De alta tensão
No poste, Azedando a água da bica.
Língua de fora, Das covas se
Pernas de trapos Alevantam os anoitecidos
Esfiapadas e pichada por esferográfica. Por gume de faca,
Um urubu pousa em Ou quando o
Seu ombro e arranca Tempo se finda
Seus olhos com o bico. E a morte
Depois voa, e anoitece Conclama.
Durante o dia. O trem vazio
A luz sinaliza no céu Sacoleja suas ferragens,
E uma erupção de E atravessa os céus
Prata sai de suas Com seus vagões enferrujados.
Imediações. O tempo em volta treme,
Esqueletos de cães saem E se racha ao meio,
Dos becos, E o que passou,
Famintos retirando Retorna, e o
Dos antros Que estar por vir,
Pedaços de sombras Se adentra presente.
Com as presas acesas. O judas abre os olhos
Sombras desnudas E desce do
Se levantam dos bueiros, Poste.
Cuspindo Dioilson se ajeita
Sangue de seus Por entre a amendoeira,
Olhos que E o hidrante extinto.
Brilham duas E olha os instantes,
Esferas centelhas Não sabe se acordado
Vermelhas num Ou dormindo.
Profano lampejo. O céu desaba
A mula-sem-cabeça atravessa Por entre os becos

126 127
Em forma de sangue. E descem até as janelas.
Estilhaços de estrelas A manhã reluz
Caem sobre a fachada Em seus olhos.
Da noite explodida. Cheiro de café vindo
Dioilson fecha os olhos. Da cozinha.
É apenas um pesadelo. A nata boia
Ele abre, Sobre o leite
Os paralelepípedos se soltam Numa caçarola.
Como dentes Vó Fiota arrasta
Soltos que caem O couro brabo
Das mandíbulas. De sua pele entre
O sangue borbulha A cozinha e
Dos bueiros. Pega um pouco de café
Uma luz E molha o pão dentro dele.
Fantasmagórica Come, olha para
Sobe pelos ralos O quintal,
E devora as lâmpadas. O cachorro Charuto rói osso.
A atmosfera se torna vermelha. A bica mal fechada pinga.
O mundo implode. As luzes do dia
E na dilaceração dos Entram pelas frestas.
Postes envergados O feijão cozinha
As luzes salpicando e No fogão-a-lenha.
Estilhaçando, aparece
No horizonte sob incêndio, (Dioilson, de Sérgio Ortiz de Inhaúma)
O Crucificado,
Dormindo em sua Segunda Vinda
Como uma criança. XV
E Iemanjá agita suas águas.
Velhos corcéis engasgam
E Tupã é parido do Sol
Doentes de fuligem e baixa potência
E corre nu
Cães magros mordem
Entre os morros.
os cobres de seus calcanhares
Dioilson acorda.
coçando as patas entre as curvas
Tico-ticos cruzam
e os sinais de fumaça
Os ventos

128 129
crianças giram feito peões no chão de terra Perderemos uma a uma
de barrigas vazias correm para casa com sangue entre os dedos calmamente
do meio-fio pássaros bebem a chuva de ontem A boca úmida soluça
cabeças nos parapeitos das janelas esperam o jornal da próxima semana sereno e madrugada
engolindo pão e remédios Motoristas dirigem com faróis de neblina
cigarros fazem com se mantenham acordados
Na Margem Oeste da Estrada Corujas de cara branca
Paisagem de chaminés e dominós No cruzamento das almas
nas praças nada está sob descanso Desenterrei do fundo do quintal um coração
O tempo em galope rumo aos currais da via expressa Enegrecido
A ruína das torres e engenhos As bordas comidas por pequenos vermes
o futuro é uma estação de trens Minhas mãos o tocaram com o amor
Movidos a atraso porque os trens sempre se atrasam que guardei para os vencidos
Cada manhã vem fria como uma bandeja
servindo nuvens de zinco No universo que se expande
nas primeiras horas do dia da Margem Oeste da Pista
Sobre ti eu me deito Postos de gasolina exaustos
Assim como um raio solar nas frestas Esvaziam seus tanques
do teu quarto sem portas Batizados o combustível e os frentistas
só há saída sob os telhados 24 horas
insetos O neon apagado dos motéis vazios
envolvem suas presas com a paciência O sexo no olho do espelho embaçado
que os homens desprezam À beira da estrada
teu lábio um amuleto cansado de defesas Ebós ainda quentes cruzam o caminho
a memória é um corpo mutilado De sacerdotes agitados
um membro fantasma Fiéis da igreja batista entregam panfletos que dizem:
que não sabemos quem nos tirou - Desperte enquanto é tempo.
Cartazes com letras gigantes silenciam:
Na Margem Oeste da Avenida - Relaxe não há por que ter pressa.
A noite está para cair Não sabemos pra que direção
Feito um lençol pesado nos ombros Os desejos partiram
Atravessando a tenda das ciganas casulos pendurados começam a ganhar asas
Somos capturados pelos feitores da antiga fazenda e agora esse vento
Temos sete almas esse vento esse vento

130 131
vem querendo dizer nada Francisco Veríssimo

S everinilidade
Na Margem Oeste da Pista
Os mortos andam descalços e pedem carona 1. I ntrodução
A estrada aberta é toda cicatrizes
Eu dou boa noite a Ética [...] começou com Sócrates;
Aos viajantes aos andarilhos (DÍOGENES, 2008, p.17)
Na Margem Oeste da Pista
Saudade é pra quem fica de um acolhimento em que a ética interrom-

e a produção ética da
As Matinês chegaram ao fim pe a tradição filosófica do parto e desfaz a
Um beijo na última sessão de cinema astúcia do mestre quando este finge desapa-
Quando eu me chamar saudade recer atrás da figura da parteira.
Minha filha terá o nome de uma canção antiga (DERRIDA, 2013, p.35)
Tão antiga como um blues
Na Margem Oeste da Pista “a função do poeta é dar a ver”
Saudade é pra quem fica (NETO, 2008, p. XXXVII)
Há quem nasça para o deleite do dia
Há quem nasça para a noite infinita A história da Filosofia remonta, majoritariamente, ao perío-
Boa noite Margem Oeste da Pista do da democracia Ateniense e possui na tríade grega - Sócrates, Pla-
Salve Seu Sete da Lira e sua capa preta tão e Aristóteles – sua principal fundamentação teórica. Se os dois
Boa noite Margem Oeste da Pista últimos foram, sem dúvida alguma, os maiores sistematizadores do
Toda inocência é vã pensamento filosófico, o primeiro, Sócrates, foi o “inventor” de uma
Pois a vida é um milagre noturno. forma de procedimento investigativo que influenciaria para sempre

O S everino
todo proceder da cultura Ocidental. Sua maiêutica, sua forma de
(Na Margem Oeste da Pista, de Marcos Nascimento) buscar pelo diálogo a verdade, estabeleceu um procedimento cogni-
tivo que assombrou a história da filosofia por séculos.
Por outro lado, Jacques Derrida, muito argutamente, perce-
be que a fundamentação da teoria socrática está totalmente articu-
lada ao processo de perquirição, ou seja, a pergunta e ao questiona-
dor, neste caso, o filósofo grego. Assim, ao formular os assuntos, ao
questionar “a respeito de”, Sócrates – com seu jogo de construção
lógica – propõe inconscientemente ao interlocutor uma única pos-
sibilidade de resposta. Logo, a produção Ética idealizada por ele não

132 133
é, tão somente, uma estrutura que se produz enquanto um processo de derar que este “pensamento Severino” não é idealizado de forma filosófica,
racionalização ou dedução lógica, mas também de “apagamento” da voz mas apresentado ao longo da obra. Assim, cabe-nos agora a identificação dos
do “outro”. Suas derivações sobre “justiça”, “amor”, “coragem”, inspiraram elementos que vão compor esta produção.
não somente certas perspectivas de pensamento, mas institui – enquanto Chamo de fissuras os momentos de tensão na obra que, talvez in-
teoria do conhecimento – uma única forma de produção do pensamento, voluntariamente, provocam pequenas aberturas para o nascimento de outro
no tocante ao texto, da Ética. tipo de pensamento. Nestes momentos, a literatura de João encontra o pen-
Socraticamente falando, a “ação ética” só é capaz de ser produ- samento filosófico e, através deles, desenvolve-se a saga do pensamento Ético-
zida se antes foi definido o que seria este proceder ético, contudo, ao -severino. Sendo fissura, forçoso considerar que as partes não são coesas e/ou
desenvolver este raciocínio aparentemente natural, Sócrates não percebe a retilíneas. Lembrando o solo do Sertão pernambucano, estes momentos, são
possibilidade de questionamentos que são opostos ao seu. Por isso, na ten- imagens de pensamento que – em sua totalidade – formam o processo de tran-
tativa de romper com esta proposta, a produção deste texto utiliza-se do sição do pensamento poético-filosófico da obra. Seus encontros, formados por
pensamento poético – do fora, do externo, daquilo que não é obra apenas rupturas bruscas, desenham a estruturação rizomática da ética Severina. As
do procedimento racionalizado, classicamente – para discutir outra forma etapas não são condizentes, os processos não são lógicos, as decisões tomadas
de produção Ética. por reflexões demoradas não dão conta da vida. Afinal, trata-se de uma vida
Nas palavras do próprio João Cabral, o texto poético de “morte e tão Severina “que se morre de velhice antes dos trinta” e que, por isso mes-
vida Severina” é a instituição de uma nova possibilidade der ver, de en- mo, só pode ser vivida fora do seu contexto. Fora, aliás, radicalizado por um
xergar, novos signos, novos significantes, que articulados ao pensamento personagem sem passado, sem história, incapaz de demonstrar suas origens:
filosófico, permitem outras formas de compreender e agir no mundo. “O meu nome é Severino, não outro de pia” (NETO, 2009, p. 99) e que, por
Não se trata, pois, de um processo de negação de toda produção definição, se nomeia enquanto movimento: “passo a ser o Severino, que em
filosófica desenvolvida até aqui, ou ainda, de diminuir a relevância do pen- sua presença emigra” (NETO, 2009, 101).
samento produzido pela filosofia grega, mas de reconhecer a possibilidade Na obra, então, na tentativa de continuar vivo, de romper com esta
de produção de outras formas de reflexão sobre o mundo. “morte sempre viva” que nomeia o livro em morte vida severina, o retirante
mergulha – sob a orientação do Rio Capibaribe. Contudo, logo no início
do poema, vemos que este “primeiro plano” não funciona e Severino mer-
2. D o caminho É tico gulha, sem perceber, numa espécie de Devir-severino que o possibilitará ao
final do processo, realizar a decomposição do si e, por consequência, instituir
Escrito por encomenda na década de 50, mais precisamente em 1954,
os mecanismos iniciais da Ética-Severina. Sua escolha intuitiva, como tantas
Morte vida Severina é o terceiro texto de um “Tríptico poético” que conta a
outras, forma os elementos constitutivos de uma organização “não-lógica” que
história do sertão Pernambuco. Mais precisamente, a saga poética retrata o
só pode ser percebida do fim para o começo. Não há, obviamente, uma lógica
processo de “fuga” da severa condição de vida apresentada no Sertão pernam-
inicial que conduz ao fim desejado.
bucano e o sonho de conquista de uma vida mais “fácil” na capital. Contudo,
O caminho de “sobrevivência” do retirante, dos que estão postos à
além da problemática apresentada por João Cabral e do tenso viés sociológi-
margem da grande estrutura social, não acomoda as escolhas de quem se re-
co do texto, a obra apresenta elementos que nos possibilitam – através das
produz no núcleo das grandes capitais. Severino, como tantos outros, pratica
fissuras - pensar outra forma de produção Ética. Contudo, é forçoso consi-
sua existência, conduzem-na, sob o modus operandi da sobrevivência. Obvia-

134 135
mente que esta vida “obscurecida” não é exclusiva dos “retirantes nordestinos” cie de Devir coletivo “Somos muitos severinos / iguais em tudo na vida”
ou do personagem estético-filosófico produzido por João Cabral. Contudo, (NETO, 2009, 100). Devir que, se impõe de maneira mais clara na medida
a distância do centro urbano e o abandono de sua terra natal, a imersão no em que exercer o assumir o processo migratório em sua própria identidade.
Devir-severino, possibilita a produção de um pensamento, de uma forma de Identificada no título da obra “morte vida”, aparece ao longo do poe-
existência, com elementos constitutivos que se distanciam da vida dos grandes ma das mais diversas formas e, ao mesmo tempo em que adjetiva uma espécie
centros urbanos. de “morte” que se propõe viva todo o tempo, por isso morte vida, o título da
Assim sendo, não se trata de diminuir o sofrimento retratado pelo obra, lido separadamente, num exercício de contorcionismo literário, “morte”
Poeta, ou ainda, pelos milhares de pessoas que como o Severino são obriga- e “vida Severina”, também estabelece uma relação de dualidade interposta.
das a fugirem de seu lares. Trata-se de, com o olhar filosófico, se é que existe Assim, a “morte” é o processo de cruel da vida do sertanejo que vive as mar-
este “tipo de olhar”, perceber mecanismos na narrativa que produzem uma gens do Capibaribe e que, de tão severa, possibilita apenas a busca de uma so-
reflexão distinta sobre a existência. Em sua, passaremos agora, ponto a ponto, brevivência longe dali. Mas, ao mesmo tempo, esta sobrevivência, esta “vida”
identificar os elementos de transição e fundamentação da Severinilidade e, por distante do sertão, não é qualquer vida, mas uma vida Severina.
consequência, da Ética da Severina. Ainda na interpretação de “Morte” e “vida”, ou ainda, morte vida Se-
verina, esta interpolação, tão marcada ao longo do poema, registrada pelos
processos de “novos caminhos” e “novas desilusões”, estruturam uma espécie
2.1. A decisão de síntese não tradicional. O evento morte marca a presença da severidade,
da crueldade da existência em condições de violência (emocional e física),
Mas, para que me conheçam
enquanto, o evento vida, registra a ocorrência dos momentos de esperança e
Melhor Vossas Senhorias
sobrevivência que brotam da narrativa poética. Contudo, ambos os momen-
E melhor possam seguir
tos, são sempre substituídos por uma realidade que – obviamente, não suporta
A história de minha vida,
a somatização das estruturas anteriores. De certa, a estruturação poética, re-
Passo a ser o Severino
gistra a “morte” enquanto ausência/impossibilidade total e a “vida” enquanto
Que em vossa presença emigra.
plenitude idealizada, então, como pensar numa resolução sintética destas duas
(NETO, 2009, p. 101)
estruturas de maneira tradicional? Assim, gerada no desvio, num processo que
rompe com o movimento anterior, a “vida severina”, artifício da severinilida-
A tessitura severa do texto cabralino está marcada desde o início da
de, brota como brotam as fissuras do solo Pernambuco.
obra. As primeiras linhas do poema retratam a tentativa infrutífera de uma apre-
sentação do Severino que, por sua vez, culmina em uma espécie de se definir
numa espécie de “presença não presença”, na medida em que sua articulação
2.2. O s limites do C apibaribe
final é com o processo migratório. Assim, buscando identificar-se, estabelecer os
parâmetros que o caracterizam como individualidade, como ser histórico (do- Pensei que seguindo o rio
tado de um passado, de antepassados) seu termo final é a projeção do futuro. Eu jamais me perderia:
Ao mesmo tempo, por outro lado, assumindo sua anomia, sua im- Ele é o caminho mais certo,
possibilidade de nomeação, Severino acabar por articular-se em uma espé- De todos o melhor guia.

136 137
Mas como segui-lo agora nova realidade e “some” no meio do trajeto. Assim, em meio a esta “ausência-
Que interrompeu a descida? -rio” temos a primeira ruptura personalística do Severino.
(NETO, 2009, p. 107) A perda do caminho-rio, a não existência de uma “certeza”, ou seja, o
desespero provocado pela “ausência-rio” destitui uma característica importante
Capibaribe, presente nos dois outros poemas do Tríptico escrito por no personagem-estético Severino e o possibilita um mergulha na imagética filo-
João e que compõem a saga do retirante nordestino, é um grande Rio do Ser- sófica, assumindo, então, a prerrogativa das características do personagem-filo-
tão pernambucano que deságua no mar de Recife, ou seja, a grande trilha a sófico. Em suma, o Capibaribe até aquele representava para o Severino o esteio
ser seguida pelos Severinos em seu fluxo migratório. Sua presença, marcante de sua vida, do seu sustento físico e, por consequência moral. Perder o “veio”
nas narrativas de João, atesta a representatividade do Rio para uma região de não era tão somente perder a trilha, mas substancialmente, era perder “o norte
seca e, de certa forma, como a sobrevivência está articulada ao seu manancial. ético”, perder a trilha que fundamentava certa forma de existência, de vida, cer-
Alargando um pouco a compreensão deste processo, temos uma série tos padrões éticos. Ao reconhecer a impossibilidade de segui-lo, Severino é obri-
de perspectivas relevantes, contudo, destacarei duas de maneiras mais relevan- gado a modificar sua rota, sua forma de compreender e exercer sua existência.
tes: a certeza do caminho-rio e a ausência-rio. Nesta primeira, temos uma troca entre “a certeza” do caminho pelo
Na perspectiva primeira, Severino é um personagem – representante mergulho no devir. Ou seja, a transição do personagem estético – que é guia-
de uma coletividade, um inominável, representado por um nós – que foge de do pelos traços e condutas de uma existência premeditada, Severa – pelo mer-
seu local de formação na busca pela sobrevivência. Contudo, apesar de toda gulho não-condicionado do devir, do personagem filosófico. Perder o esteio,
dificuldades enfrentadas, crê o retirante que será uma busca possível na medi- os traços que até aquele conduziam a existência de Severino é o primeiro passo
da em que seu trajeto já está traçado pelo Rio. Capibaribe, neste contexto, não para a conquista de uma nova produção Ética, uma nova forma de existência,
é apenas aquele possibilita a vida no sertão, mas aquele que também permite mergulha inteiramente no devir.
a possibilidade uma sobrevivência longe do sertão. O rio, então, não é só um
rio, mas um “caminho-rio”, logo, ele assume um papel de conduta, um papel
que permite ao Severino o trânsito seguro para uma nova vida. 2.3. A morte é a única profissão

Numa visão lato, este caminho-rio, é também – e ao mesmo tempo –


Após perder a referência ética, o caminho-rio e mergulhar na ausência-
aquele que possibilita e, invariavelmente, limita as condições de vida. Num só
-rio, Severino se percebe sem rumo “tenho que saber agora / qual a verdadeira
tempo, a existência do Capibaribe – em consonância com a realidade do Sertão
via / entre essas que escancaradas / frente a mim se multiplicam” (NETO,
Pernambuco – estabelece as diretrizes temáticas da existência. O rio, antes de
2009, p. 107). Por outro lado, mesmo sem saber qual o caminho, Severino
tudo, é o condutor da vida do sertanista, ele estabelece o “certo e o errado”, ele
ainda espera certa “presunção de verdade”, um caminho – seguro – como o
condiciona entre a “morte” e a “vida”. Seguir o Rio é seguir a vida, mas negá-lo,
caminho que ele seguia até então. Contudo, isso não acontece e, coadunando
desarticular-se dos seus trilhos é a incerteza/impossibilidade, ou seja, a “morte”.
com a ruptura, um evento fundamental ocorre: “ouço somente à distância o
Nas palavras de Severino, até aquele momento, do sumiço do rio no
que parece cantoria” (NETO, 2009, p. 107). Não tendo mais aonde ir, sem a
solo, o Capibaribe representava o “único caminho certo”. Foi nele, com ele,
presença de uma “alma viva”, Severino ouve uma “cantoria” e se dirige até o
que o retirante “contou” durante toda sua vida no sertão e, claro, sabendo que
canto, o início do desvio.
ele desaguaria em Recife, era também ele o sustentáculo desta nova vida que
O movimento, seguro até então, é substituído por um processo de
ele buscava. Contudo, isto não acontece. O “caminho-rio” não dá conta da

138 139
mergulho na ausência-rio. Não se trata de negar até onde o Rio conduziu, de mas como “driblou” as dificuldades. Mas, para todos seus questionamentos,
não aceitar os procedimentos éticos vividos, mas de reconhecer que – daqui somente a morte era a resposta. Segundo ela, naquelas paragens, somente a
para adiante – ele não será suficiente e, reconhecendo isso, Severino mergulha Morte era “ofício ou bazar”.
no movimento, na busca pela música. Logo, seu novo percurso ético, sua nova Numa perspectiva literária, a narrativa se segue com João seguindo
condução de vida, não será pautada num processo racional, num procedimen- seu caminho, reconhecendo que viver naquele local seria impossível. Além
to até então aceito como seguro, Severino se embrenha no afeto, no afeto-mú- disso, percebe-se também, implicitamente, a necessidade de um tipo de expe-
sica. Numa outra perspectiva, é como se Severino tivesse saído de uma vida riência em que a Morte é uma presença ininterrupta e que, por isso mesmo,
“programada” (independente da severidade) para a trilha de um caminho sem exige que o vivente recorrentemente afirme a vida. Contudo, outra coisa ocor-
horizonte, é o passo fundamental do retirante no Devir. Por outro lado, como reu na transição de mero “personagem estético”, responsável pelo retrato de
já foi dito anteriormente, esta é a primeira ruptura, a segunda, como veremos, certa perspectiva, Severino deu “mais um passo” na estrada de uma espécie de
virá em seguida: produção filosófica, metamorfoseando-se em personagem-filosófico, ou seja,
na produção do pensamento da Ética Severina.
Como aqui a morte é tanta, Ao assumir outro caminho, deixando de lado sua trilha segura, orga-
Só é possível trabalhar nizada pelo Capibaribe, Severino segue a música (o afeto) e assume o “devir”
Nessas profissões que fazem como rota. Contudo, reconhecendo a dificuldade do caminho, tenta o retor-
De morte ofício ou bazar. no a sua vida anterior e procura um emprego. Mas, isso não era mais possível.
(NETO, 2009, p. 115) Severino, ao abrir-se para devir, modificava sua história e, por consequência,
todo seu conhecimento anterior, permeado pela presença do Rio, não era mais
Orientado pelo som que vinha das proximidades, o retirante – ao se suficiente, não se adequava a nova realidade apresentada. Não importava mais
aproximar – repara que a música cantada era na verdade uma ladainha – um “quem ele tinha sido”, Severino assumia a possibilidade de uma existência
canto fúnebre. Neste instante, vemos novamente o aparecimento da síntese singular, mas ele ainda não sabia disso.
“morte” e “vida”. O final da estrada, o começo de um novo caminho e a pre-
sença da morte. Em cada passo, em cada processo, a dualidade se apresenta.
Mas, como já dito anteriormente, ao mesmo tempo em que este encontro 2.4. A vida não tem sentido

“morte” e “vida” acontece, uma nova bifurcação é gerada. Desta vez não será
A impossibilidade de assentar-se nas terras da “mulher na...” pro-
diferente, pois, ao transitar neste vilarejo o retirante encontra a “mulher na
duz em Severino a necessidade de continuação do seu trajeto. Ao longo do
janela” e uma nova etapa da “vida Severina” se apresenta.
seu caminhar, novas desilusões, novas crueldades são impostas e percebi-
O diálogo com a “mulher...”, relevante personagem-estético, como
das. Aliás, a presença da morte, de uma morte cruel, da “Morte Severina”,
será visto em sequência, identifica três perspectivas importantes da dura vida
acompanha-o até sua chegada ao Recife – quando, descansando, percebe
no sertão: o chão de terra, o gado faminto e a ausência de trabalho. Assim, não
dois homens conversando sobre a realidade da sociedade recifense. Naquele
é apenas a presença da morte que ronda a existência do, mas também a secura
momento, ao escutar a narrativa sobre os enterros, Severino fica absorto em
da terra (daquilo que, simbolicamente, deveria significar vida). Sem “rumo”,
uma desilusão. Não há, segundo ele, uma perspectiva de melhora – jamais
em decorrência do sumiço do Capibaribe, Severino estabelece uma narrativa
haverá suavidade para os Severinos. Toda crueldade experimentada, toda
sobre suas qualidades e os trabalhos que já realizou, inclusive, relatando as for-

140 141
severidade vivida, não é uma etapa que seria dirimida em Recife, não há tudo fora abandonado: seu esteio Ético (o Capibaribe), sua profissão e seu
sentido para continuar vivo. gosto pela vida. Morrer, neste ponto, significa a última ruptura, o último está-
Num breve resumo, Severino: saiu de sua terra, encarou diversas vezes a gio de superação da lógica tradicional. Mas, obviamente, sendo um processo
morte e perdeu sua profissão. Ou seja, perdera tudo que o definiam, todas as notas de superação, não poderia os “argumentos do mestre Carpina” ser capaz de
que compunham sua existência, faltava a própria vida. Assim, dirige uma ponte: fazê-lo mudar de ideia. Esta nova ética que, neste momento, culmina para
nascer, não está atrelada apenas a procedimentos racionais, a Ética Severina1
Seu José, mestre carpina emula da própria vida. Assim sendo, no momento oportuno, chega uma mu-
Que habita este lamaçal, lher e anuncia que o filho do mestre Carpina nasceu.
Sabe me dizer se o rio Obviamente, sendo um auto de natal, existem muitos elementos re-
a esta altura dá vau? ligiosos neste processo e, talvez, a grande referência não seja a presença do
Sabe me dizer se é funda Mestre Carpina, mas a chegada da “vida nova”. Após o anuncio, Severino
Esta água grossa e carnal? desiste de se matar e vai, por puro automatismo, conhecer a criança que acaba
(NETO, 2009, p. 131) de chegar ao mundo. Novamente a dualidade “vida” e “morte” aparecem no
texto de João Cabral, mas neste momento a significação é outra, afinal, naque-
Se, por um lado, o Rio esteve presente no início da narrativa, como le momento “nasce o salvador” que retiraria Severino deste seu ciclo de “morte
princípio norteador, também “um rio” estará presente no grande clímax da vida” para a entrada numa forma de vida, a “severina”.
obra. Ao longo do poema, Severino encontrou com alguns personagens, to- Severino não se mata, pelo contrário, a culminância do poema reside
dos, de alguma maneira, produziam um processo de “decupagem do persona- na significação de uma “vida Severina”. Vida que, de tão cruel, dedicou-se a
gem”, retirando dele – pouco a pouco – toda “certeza de vida” que ele possuía. invenção. A distância dos grandes centros urbanos, o processo de sobrevivên-
Cada dificuldade apresentada, cada empecilho percebido, era na verdade, um cia ininterrupto, a presença sombria da morte, são elementos que compõe a
ponto de limpeza de sua personalidade. Limpeza, claro, radicalmente cruel. existência do personagem – de uma parcela da População brasileira – que,
Então, “sabe me dizer se é funda” (NETO, 2009, p. 131) é também um ques- querendo ou não, estabelece – como artifício – elementos de uma nova prá-
tionamento de quem não quer mais falhar, que quer colocar um fim na vida, tica existencial. Assim sendo, a premissa ética deste povo não é baseada no
mas que quer ter certeza disso. “conceito de virtude, coragem ou honra”; não há derivação sobre procedi-
Como é sabido, por outro lado, este processo não se concretiza, Seve- mentos de dedução conceitual para a ideação de uma “justa medida”; não há
rino sobrevive. Sobrevive, claro, pela presença do “mestre caprina”, este tipo condições para o exercício de um “tu deves” quando “nada se tem”. Enfim, as
sábio “estoico” que o conduz ao processo de clareamento das ideias. Mas, é derivações filosóficas, por mais profundas, são incapazes de se produzir numa
imperioso destacar que este aclaramento tem uma ruptura importante. No coletividade “anômala e retirante, marcada pela morte”. As Severas condições
poema, Severino decide se matar e acaba por dialogar com o Mestre Carpina; retratadas no auto de natal exigem uma Ética que também se produza en-
neste momento, Severino destila todas as dificuldades que enfrentou ao longo quanto resistência, não basta aceitar ou justificar a vida, é preciso reconhecer
da vida e, assim, procura justifica o Suicídio. Temos, claramente, a ruptura e articular-se com sua impermanência.
final do personagem e ideação de uma nova existência. Realizando a leitura,
percebe-se que o Severino não possui nada daquilo que – convencionalmente
1 O mergulho na vida, o mergulho no afeto, naquilo que realmente o afetou, marca o início do pen-
– utiliza-se para definir um “ser vivente, um ser social”. Tudo fora perdido, samento do devir e da construção dos princípios da Ética Severina (VERISSIMO, 2020, p. 129).

142 143
2.5. A vida é para ser vivível cada passo, da morte em meio à miséria; afirmação da
vida que sofrimento espessa (o real espesso de O cão sem
A impermanência da vida que João Cabral de Melo narra em morte plumas); provação do sofrimento transformado em ca-
vida severina é acompanhada por uma série de problemáticas que transfor- pacidade de luta – são as gradações temáticas do Auto
mam a experiência “morte vida” em “morte-vida”, ou seja, que não cria dis- de Natal pernambucano de João Cabral, que a ideia de
severidade ou de severinilidade na vida e na morte com-
sociações entre as duas instâncias fundamentais da existência humana. Para
põe.(SECCHINI, 2007, p. 61)
testificar tal estrutura a narrativa cabralina deixa claro que a vida dos retirantes
é “vida que é menos / vivida que defendida / e é ainda mais Severina / para
A esta condição, preexistente e que possibilita a constituição da mor-
o homem que retira” (NETO, 2009, p. 109). Ou seja, a experiência dos Se-
te-severina, SECCHINI derivará a palavra severinidade. Calcada mediante
verinos é acompanhada, estruturalmente, por uma prática de vida que exige
as dificuldades da existência e como condição de uma vida prenha de sofri-
uma defesa, uma resistência, uma afirmação. Tal pressuposto, por outro lado,
mentos, logicamente, esta palavra possui uma “rede de compreensão” que se
deixa claro ainda a presença de certa hierarquia na severidade entre o “fixo” e
articula com o Severino negativamente. Contudo, ao longo deste trabalho
o “retirante”. Assim, longe de ser uma consequência a determinado grupo, a
têm-se identificado que, enquanto sofre – e sofre mesmo – o Severino tam-
severinilidade é uma condição que permeia a vida de toda uma região.
bém passa por um processo de transformação (de personagem estético para
A morte é a única certeza da vida, por outro lado, numa vida “não–
personagem-filosófico). Nestas linhas, do encontro da “morte” com a “vida”,
severina” ela aparece com um processo natural e/ou em acontecimentos for-
ou ainda, da “vida” com a “morte”, linhas de desvio são criadas, são produzi-
tuitos, mas na existência social do poema analisado, não. A morte é presença,
das, que conduzem o personagem num processo de libertação de si próprio.
presença espectral que acompanha o Severino e o espera, insistentemente.
Desvio que, como já dissemos anteriormente, teve seu apogeu ao liberar-se da
Assim, forçoso reconhecer que esta não é uma morte comum, como comum
própria vida, seu último resquício. Assim sendo, mesmo tendo consciência
também não é a vida do Severina. Fala-se, neste caso, de uma morte-severina:
que este sufixo “idade” acrescido por SECCHINI não tem caráter axiológico
a certeza de uma morte-severina só é garantida a esta
negativo ou positivo, mostrou necessária a criação de uma nova terminologia,
coletividade (emigrante ou não) [...]. Morrer severina- uma nova palavra para, que representa esta narrativa de sofrimento, mas que
mente é a uma condição única de possibilidade, é um também possibilita o desvio para a construção de novas existências. Em suma,
equilíbrio perfeito. Morre-se severinamente de fome ao invés de uma palavra cunhou-se um conceito: a severinilidade2.
aquele que, experimentando uma vida de privação, re- Chamou-se por Severinilidade, então, o desvio3 provocado pela re-
siste às dificuldades da vida; morre-se assassinado, por
outro lado, aquele que não aceita a vida que se apresenta. 2 Assim sendo, desarticulando com a ideia trabalhada por Secchini, pensou-se o termo/conceito seve-
rinilidade. Neste ponto, a origem está também associada a “morte em vida” ou a “vida em morte”, mas
(VERÍSSIMO, 2020, p. 152)
se de um lado temos a severidade/severinidade que se postula como síntese negativa do conceito (que
atesta e aceita as condições os de existência) do outro temos a severinilidade, uma síntese positiva que
Esta condição de morte, por dedução lógica, não pode estar em diá- afirma a existência “apesar de...”. Assim, severinilidade é uma espécie de conceito “a-histórico” (afinal,
esta condição é anterior a vida/história e posterior a vida/ história), que deriva do encontro entre os
logo com uma condição natural. Assim, conceitos de “morte severina” e “vida severina”. Severinilidade é, então, o resultado sintético-disjuntivo
de duas aporias (morte e vida), duas estruturas significantes que só existem em oposição, mas que na
Fadário do retirante, que procura vida e encontra mor- obra de João Cabral, se articulam para a criação de outro tipo de Ética. A Ética Severina, ou ainda, a
ética da “vida em morte” ou “morte em vida”. (VERISSIMO, 2020, p. 154
te; paradigma da penúria, que é a morte em vida, bana-
3 O encontro destas duas estruturas que “não formam relação” e que, por sua vez, jamais se encon-
lizada como prosa do cotidiano; esperança, renovada a tram, estabelecem a possibilidade de uma síntese retorcida, ou seja, uma síntese disjuntiva. Sendo

144 145
sistência dos Severinos, pela forma de produção de vida no qual estão inse- Contudo, a vida Ética não está na quantidade de dinheiro que se possui e
ridos. Uma produção resistente, mas também de abandono; conduzida pela sim, claro, na maneira como se relaciona. Reconhecer que aquela vida teria os
prática capitalista (da terra, do trabalho, da vida melhor) e da ausência tudo. “mangues do Beberibe”, além de reconhecer uma nova vida de dificuldades,
Abandono/ausência retratado nas linhas do poema, mas que introjetado pelo é também reconhecer a produção de uma fissura, de uma vida que pode ser
“personagem-filosófico” acaba por se tornar um dos elementos constitutivos vivida para além do Capibaribe. Mas, claro, que, para ser vivida, esta vida só
desta nova forma de proceder Ético. pode ser vivida enquanto processo de “desarticulação” com a vida anterior –
Severino é o personagem filosófico que, em seu percurso, se destitui tanto quando fez o Severino.
dos elementos que o compunham enquanto representação individual para se Sendo pequena ou grande, não importa, a vida que nascia naquele
embrenhar nos elementos da coletividade Severina. Sendo muitos, em desejos momento era a prova de que a “vida sempre continua” e que a existência com-
e sofrimentos, ele se torna singular; sendo ausência radical ele se torna a re- porta, em si mesma, diversas práticas. Esta vida Severina, esta prática severina,
presentação filosófica da severinilidade. Representação conceitual que, em sua esta Ética severina4, é um o exercício de uma vida que - nascendo da ausência
prática, exerce uma espécie de Ética Severina. absoluta de tudo – fundamenta seus elementos na própria existência. Não
existe transcendência, não há uma carga teórica que justifica as ações, viver
é resistir. A Severinilidade, esta condição da vida severina, é articuladora de
3. O s elementos constituintes da É tica S everina uma vida em que somente a Ética Severina5 é capaz de ser sustentada. Assim,
a criança que nasce – pobre de todas as coisas materiais – se coaduna com ele-
mesmo quando é assim pequena
mentos constitutivos que a obrigam nascer “como explosão”, resistindo desde
a explosão, como a ocorrida;
sempre. Não basta abrir os olhos, chorar, uma vida Severina explode, resiste.
como a de há pouco, franzina;
Mas, sendo resistência, é fundamental que se pergunte: a que esta vida
mesmo quando é a explosão
resiste? Resiste a morte que a espreita constantemente, resiste a ausência das
de uma vida Severina.
condições mínimas de subsistência e, fundamentalmente, resiste a uma condi-
(NETO, 2009, p. 144)
ção social que se impõe sobre ela uma radicalização de inexistência. Uma con-
dição, tão cruel, que a afasta de tal maneira dos centros urbanos, bem como,
O último parágrafo do poema, quando o mestra Carpina tenta justi-
das possibilidades de posse/conquista, que sua vida resume-se a própria sobre-
ficar a vida ao Severino, é acompanhado por uma série de informações que –
vivência e, assim sendo, manifesta sua justificativa em continuar vivo; vivo da
por falta de espaço – não conseguiremos reproduzir. Ao realizar as predileções
melhor forma possível. E é exatamente por isso, exatamente por causa desta
sobre a nova existência que está se iniciando, três ciganas relatam as dificulda-
des que aquele novo ser iria enfrentar. No seu relato, por sua vez, desarticulam 4 A Ética Severina, ou ainda, a ética da “vida em morte” ou “morte em vida”. (VERISSIMO,
2020, p. 154)
a ideia de uma existência as margens do Capiberibe para os “mangues do 5 A Ética severina é, então, uma ética de resistência. Uma ética da aporia, uma produção ética que
Beberibe”. É claro que, não há narrativa, a representação de uma vida cheia não possui significado além da própria vida. A ética Severina é resultado prático do conceito de
severinilidade. Então, se a severinilidade é disjunção positiva da “morte em vida”, a Ética Severina é
de riquezas, ou ainda, fundamentada em luxos, mas de muitas dificuldades. a práxis subjetiva de uma vida que se explica por si própria. Viver “severinamente ético” é ser capaz
de resistir (contra a vida, contra a morte), e ser capaz de não escolher o “salto da ponte”, é ser capaz
claro, a existência de uma vida-severina (síntese) e de sua antítese (morte-severina), de duas estru- de resistir em todos os momentos, mas fundamentalmente, é ser capaz de apreciar o nascimento da
turas absolutas e não condizentes, se reorganizaram numa síntese (“morte em vida” ou “vida em própria vida. A Ética severina é uma ética dos afetos, não é à toa que as duas viradas significativas
morte”). Criando, por sua vez, uma nova possibilidade de vida e de morte. A esta síntese disjuntiva, da obra (o início do Devir e a escolha pelo não-suicídio) não são tomados por decisões racionais – a
daremos o nome de severinilidade. (VERISSIMO, 2020, p. 152) razão, sozinha não dá conta da vida. (VERISSIMO, 2020, p. 158).

146 147
“melhor forma possível” que Severino partiu do Sertão para o Mar. Partiu, poema fracassado. [escrito] para esse leitor ou ouvinte dos romances de cordel,
modificou-se, reorganizou-se “da melhor forma possível” e, por mergulhar no para esse Brasil de pouca cultura, e esse Brasil nunca manifestou interesse por
devir, acabou encontrando uma resposta que não procurava: a vida severina é ele” (NETO, 2008, XXXIII), foi este poema que permitiu a percepção de
justificada por si mesmo. certo agrupamento social e, por consequência, a produção do pensamento
Contudo, filosófico.
Pensamento Severino, elaborado por um Severino, cheio de severi-
A criança que nasce no mangue é uma criança qualquer. nilidade e que, por sua vez, tornou-se capaz de produzir uma Ética Severina.
Filha do Severino, também levará uma existência severi-
Uma ética feita, essencialmente, na junção do outro (entre filosofia e poesia),
na. Louvam-na o céu e a terra; os casebres transfiguram-
entre “morte” e “vida”, uma Ética do entre, do desvio. Sendo no entre, no
-se, virando “mocambos modelares”. Mas as implacáveis
ciganas anteveem o menino. (NUNES, 2007, p. 63) desvio, articulada nas fissuras, uma ética que aceita e pressupõe que o “outro”
não deve ser apagado/suplantado. Uma ética da escuta, da percepção de novas
A análise de Benedito Nunes, seguindo a SECCNHINI, mas em- práticas, de agenciamentos e produções de novos agenciamentos. Uma Ética
brenhada de um caráter sociológico, está intimamente ligada a representação que, como a Poesia, jamais se posta enquanto acabada e, que por isso mesmo,
negativa da narrativa. A severa vida levada, na compreensão de Benedito, ins- pode ser reinterpretada e aplicada infinitamente. Sua origem não é na razão, a
titui outras vidas severas. Claro, não se trata de negar este fato, de discordar/ Ética Severina está antes, no afeto, na explosão que compõe a vida e no esforço
concordar, bem como, de negar a realidade cruel retratada em morte e vida diário de quem faz do viver uma resistência. Uma ação “severinamente ética”
severina. A existência do Severino é cruel? Sim, ela é. Mas, ao mesmo tempo é uma ação, de condução do esteio – mesmo frente a uma estrutura social que
em que respondo esta interrogação, outras duas questões me saltam: (1) elas quer te despotencializar/sujeitar. Ser severinamente-ético é, em suma, criar
são menos vidas por serem cruéis? (2) elas são capazes de ensinar alguma coisa linhas de fuga para a organização de uma vida que basta por si própria.
ao Brasil das capitais.
Não se trata, tão somente, de reconhecer a crueldade e/ou a produção
sociológica que João Cabral descreve – o objetivo aqui é inverter a lente. É
reconhecer que a vida vivida pelas minorias também podem ter “belezas” e/
ou elementos filosóficos que nos asseguram outras práticas da existência. Não
se trata de banalizar as injustiças, mas de reconhecer a força do injustiçado;
não se trata de falar pelos retirantes, mas de reconhecer a relevância dos seus
discursos (não só para eles); não se trata de dar voz, mas de parar para ouvir
e, ouvindo, utilizar os elementos de sua fala para a ideação de novas constitui-
ções existenciais.
Se a função do filósofo é, através dos conceitos, produzir novas for-
mas de conhecimento e “a função do poeta é dar a ver” (NETO, 2008, XXX-
VII), como fez a obra morte e vida Severina. temos na junção da poesia com
a filosofia, a produção de um conhecimento sobre algo que foi “feito visto”.
Ou seja, apesar do lamento de João que afirmava que “morte e vida...” “é um

148 149
 Ana Emília Lobato Èsú Tirirí.
T raço C ego

Parte II – Descolônias e Ancestralidade


Bará ô bébé tirirí lónã Exú tirirí
Se eu fosse poeta escreveria um verso – cego. Bará ô bébé tirirí lónã Exú tirirí
Se eu fosse poeta escreveria um verso – cego – traçaria verdades. (Exú, ele realiza proezas maravilhosas,
Se eu fosse poeta escreveria um verso – patético – inventaria belezas. Tirirí é o Senhor dos Caminhos, Exú Tirirí)

Se eu fosse cega escreveria um verso – poético.


Se eu fosse cega escreveria um verso – poético – dissimularia verdades. Sabem, meus filhos...
Se eu fosse cega escreveria um verso – doente – desvelaria a morte. Nós somos marginais das famílias
Somos marginais das cidades
Se eu fosse poeta tatearia um verso. Marginais das palhoças...
Se eu fosse cega riscaria o mundo de poesia erótica. E da história ?

Não sou poeta Não somos daqui


Vejo o mundo Nem de acolá...
Sou vidente e nada me acontece Estamos sempre ENTRE
Sou eterno Entre este ou aquele
Sigo pisando por onde vejo Entre isto ou aquilo !
Quisera não ter olhos para escrever (Pankararu, Eliane Potiguara)

Escrevo em linha reta Hoje vi um beija flor assentado no batente de minha janela.
Ouço verdades Ele riu para mim com suas asas a mil.
Não seja ridícula! Pensei nas palavras de minha avó:
“Beija-flor é bicho que liga o mundo de cá com o mundo de lá.
Na cegueira da visão sigo à risca É mensageiro das notícias dos céus.
Sou absurda Aquele-que-tudo-pode fez deles seres ligeiros para que pudessem levar
Escrevo versos cegos – espaçados notícias para seus escolhidos.
Escrevo versos sem traçado – de poesia Quando a gente dorme pra sempre, acorda beija-flor.”
Como se fosse (Hoje acordei beija-flor, Daniel Munduruku)
Erro nos gêneros
Poeta tem todos os sexos
Bará ó bebe Tirirí l’ònòn
Èsú Tirirí, Bará o bebe Tirirí l’ònòn

150 151
1
Sandra Benites Guarani Nhandewa Apesar que nós alunos éramos falante Guarani e não sabíamos falar português,
G uarani N handewa
mesmo assim éramos obrigados a ler e escrever numa língua que não falavam
Sou Sandra Benites Guarani Nhandewa, minha origem é aldeia nem entendíamos nada. Lembro disso como se fosse ontem, agonia o medo,
Porto Lindo, município de Japorã, Mato Grosso do Sul, lugar que eu sabia ler o que estava escrito no papel mas não compreendia nada porque
nasci e vivi até ano 2000. Depois fui morar na aldeia Boa Esperança era numa língua estranha só ouvia na escola os professores falando e em casa
município de Aracruz Espirito Santo onde existe aldeia Tupinikins e todos falavam somente em Guarani. Muitas das vezes não sabia como respon-
Guarani. Fui professora durante oito anos na aldeia Três Palmeiras que der o professor. Pior sensação de ensino que passei naquele período. No lugar
fica ao lado da aldeia Boa Esperança é aldeia Guarani também. Minha ensino e aprendizado eu me sentia sufocado naquele espaço mesmo assim eu
formação acadêmica foi na Universidade Federal de Santa Catarina gostava de ir para escola porque no lugar que eu gostava de ir para encontrar
-UFSC. Num projeto de licenciatura direcionado especificamente para com meus colegas e professores. Naquele tempo mesmo sem entender porque
formação de professores indígenas . Começou em 2011 a “Licenciatura a escola, professores nunca contaram a história que a minha avó contava e do
Intercultural Indígenas do Sul da Mata Atlântica” primeira licenciatura jeito que a minha avó contava . Hoje depois que percorri em vários espaço
testemunho de uma mulher

que teve participação das etnias Xoklein, Kaingang e Guarani total de inclusive espaço acadêmico eu pude entender essa angustia, preocupação. Não
120 alunos 40 de alunos de cada etnia. Em 2016 iniciei mestrado em e atoa que o projeto de apagamento do nosso jeito de ser era importante para
Antropologia Social no Museu Nacional - UFRJ. Concluir mestrado nós dominar com jeito de branco a forma de nós excluir, dizer que somos
em fevereiro de 2018 fiz passagem direta para doutorado atualmente inferior por isso, os brancos que governam e decidem politicamente, social-
estou para concluir em fevereiro de 2022. Como eu tinha várias difi- mente os que tem jeito diferente de viver. Não estou falando de brancos da
culdades na minha infância para estudar, nunca imaginei que iria che- cor da pele, estou falando a forma de pensar branco e aqueles que se sentem
gar no doutorado. Nem sabia, o que era ser doutora onde serei quando superiores que nós indígenas. Teve um tempo que fiquei um pouco revolta-
concluir minha pesquisa de doutorado, ainda bem que não sabia que da pelas situações que estou enfrentando a cada esquinas, muitas das vezes
essa posição de doutor que é tão importante para os djurua, não indíge- sou confundida por Peruana, Boliviana e por vai, achei engraçado que nunca
nas. Porque se eu soubesse, talvez não chegaria, ou seja, não carregaria ninguém me identifica como brasileira. Como se aqui o Brasil não estivesse
comigo a essência do conhecimento que a minha avó me ensinou. nativos. Quando fico furiosa, pela situação que vivencio, sempre lembro que
Porque na época que eu estudava na escola ninguém podia falar na lín- a minha avó dizia que não responder atitudes de pessoas ignorante da mesma
gua materna como minha língua Guarani, nem escutava a história que situação, mesmo tom. Muitas das vezes isso dói machuca dá vontades de fazer
minha avó contava para nós. o mesmo que é legitimo por eu ser mulher indígenas tenho que mostrar ao
Os professores não são falantes Guarani, não era indígenas, contrario isso não e uma tarefa fácil ensinar educar pessoas. Meus sentimento
como atualmente na grande maioria das aldeias hoje professores que de crianças do medo e angústia continuam dentro de mim, agora consigo
O

atuam são da mesma etnia e falantes da língua daquela comunidades. controlar tentando traduzir e expressar aquilo que sinto dentro e fora da mi-
1 O texto aqui reproduzido foi mantido no original, tal como enviado por Sandra. Apesar nha aldeia. Apesar que eu comecei aprender falar e compreender a língua
de a autora ter indicado que o texto merecia uma revisão, os organizadores preferiram man-
português quando tinha entre 27 aos 30 anos. Quem me ensinou a superar e
ter o texto tal como foi enviado, para manter o caráter de oralidade presente e constituinte
do texto, bem como manter a força de sua composição. Fica, para nós, marcante que, na- ir além era minha avó materna com quem eu vivi maior parte da minha ado-
quilo que a ortografia e a gramática considerariam “erros”, reside, ao contrário, uma outra lescência. Como minha avó era parteira, geralmente os pais levava na casa dela
forma arquitetônica de pensar – e isso deve ser sublinhado como importante aprendizagem
aos não indígenas. para ouvir a história contada por ela, são crianças que ela deu banho como a

152 153
gente fala para as crianças que ajudou a vir no mundo. Ela era referência nossa fessores também não falava em Guarani nós crianças falante Guarani éramos
educadora ela os pais juntava lenha na casa dela para fazer fogueira e em tor- obrigados a entender e compreender a língua dos professores. As escola não
no da fogueira enquanto os pais assava batata doce, milho verde entre outros funcionava como funciona hoje, as escolas indígenas hoje tem leis que ampara
agente ouvia ela narrar história. Não somente ela que contava história quem no direito de funcionar que se refere ao respeito aos processos de transmitir
quisesse contar história era o momento de cada pessoa falar, cantar e contar conhecimentos próprios da sua comunidades na qual pertence. Escola que diz
suas histórias. Portanto irei citar dois motivos que marcou a minha vida como respeito ao direito a uma educação escolar intercultural, bilíngue/multilíngue
dificuldades e essas mesma barreiras que me encorajou para ir além daquilo e comunitária. Desde a constituição de 1988, os povos indígenas têm este
que eu nunca tinha planejado para minha vida. Mas nunca tive desânimo, direito a uma educação escolar diferenciado, especifico intercultural, bilíngue/
sempre desejei estar no espaço de diálogo, ou seja, nos espaços de encontro multilíngue e comunitária. Isso quer dizer que a educação escolar indígenas
com os outros de diferentes que pensam mim, sempre soube que saber escutar está inserido no sistema nacional, mas que respeita a diversidade e as especifi-
é ir além. Encontro de pessoas diversas significa produção de conhecimentos cidades das culturas dos povos nativos brasileiros, abrindo espaço para:
amplo, compreender o mundo amplo significa saber conviver em qualquer O ensino nas línguas indígenas além do português.
ambiente com pessoas diferentes. Aprendi isso desde da minha infância com Um calendário escolar adaptado às atividades rituais e cotidianas de
minha avó. Saber escutar palavras, mesmo não entendendo português quando cada contexto da aldeia;
eu era crianças, eu tentava entender atitudes das pessoas que falam português, A transmissão de conhecimentos tradicionais das comunidades local
me parece que as palavras que são usados nas escolas são palavras que não são dentro da escola;
sábia, generosa que ensinam para a vida como ouvia nas rodas de encontro. A participação da comunidade nas decisões dos objetivos da escola
Para mim existe palavras boas nas conversas de encontros e palavras duras que ,como proposta curricular introduzindo conteúdos universal. Dessa forma, é
são faladas nas escolas ou nas academia. Lembrando a minha presença na aca- assegurado o direito de os povos indígenas terem escolas que respeitem os seus
demia eu vi que continua o mesmo formato da escola na qual estudei quando modos de viver, deixando de impor uma educação colonizadora.
era criança. Não tem castigo de ajoelhar os alunos em cima das tampinhas de Atualmente de fato estão mudando aos poucos digo isso porque os
garrafa mas existe angustia e medo. Mesmo assim tive que buscar entender, sistemas das instituição como secretarias de educação continuam controlando
escutar e compreender a razão do mundo diferente lá fora da minha comuni- o funcionamento de muitas escolas mesmo dentro das aldeias. Existe uma
dade. Foi aí que tive compreender meu modo de pensar, me reconhecer en- diferença muito grande entre educação indígena e educação escolar indígena.
quanto indígena, enquanto mulher Guarani, assim que superei meus medos e Para que as escolas existentes nos tekoha guarani sejam de fato nossas – Gua-
minhas angustia para ir além não planejado. Pensando da minha dificuldades rani – é preciso que elas incorporem ou territorializem nossa educação Gua-
e meus medos que eu carregava comigo, me reconhecendo como tal, percebo rani e sejam mais um espaço/lugar – entre os nossos – de fortalecimento do
que as barreiras não e minha é sim os outros que não compreende a minha nhandereko. A escola é uma “embaixada” rigorosamente forte, podemos enten-
diferença. Voltando a relação da minha dificuldade, quero lembrar sobre meu dê-la como uma invasão cultural também, no sentido atribuído por Paulo
medo e angustia na época que eu estudava na escola. Embora que a escola Freire (1987). Para ele, quando acontece uma invasão cultural os invasores
era dentro da aldeia mas era tudo sistema não indígenas. Na época ainda dominam e os invadidos obedecem. Os opressores criam uma série de recursos
existia castigo de se ajoelhar em cima dos grãos de milho ou era tampinha de para dominar o sistema da escola é uma delas, como se fosse o sistema único
garrafas. Os alunos eram castigados se não decorarem, por não compreender de educação escolar no Brasil também cria mecanismos que nos silenciam,
as matérias que são todas na língua portuguesa, repassado no quadro, os pro- que distorcem nossos costumes. Na verdade, nos oprime, pressiona. É muito

154 155
simples de perceber essa opressão, as contradições das escolas indígenas nas crianças, ou seja, da pedagogia guarani e da oralidade. Temos nossos processos
aldeias. Lembro quando eu dava aula, quando as meninas ficam menstruada próprios de ensino e aprendizagem. Estes são pouco valorizados nas escolas
pela primeira vez no costume Guarani ficam nos cuidados das familiares que funcionam nos orerekoha, nossa aldeia. Por isso eu disse aos poucos está
quando ocorrem essa situação eu fui orientada para mandar atividades escolar funcionando porque as escolas indígenas deveriam ser mais um lugar de for-
para essas alunas como se ficar em casa com cuidados dos pais não fosse edu- talecimento dos ore arandu. Mas muitas das vezes São, no entanto, um lugar
cação .E outras situação que quero lembrar na escola de Três Palmeiras, a se- de opressão, silenciamento da nossa língua, dos nossos saberes, do nosso jeito
cretaria de educação teve um período que colocou uma máquina de ponto de ser. Apesar que temos, garantido por lei, o direito a uma escola diferencia-
digital com o objetivo de controlar a entrada e a saída dos funcionários. Nesse da, que respeite o nosso jeito particular, conforme o artigo 210. Direito este
caso, se um professor ou alguém que trabalha na escola ficar fora da aldeia garantido também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
como muitos professor também é liderança por demanda da comunidades e no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI). Na
muitas das vezes viaja para um encontro importantes para suas comunidades teoria – como os Artigos 210 e 215 da Constituição Federal, que dizem ser
e formação especifico não há como substituir a pessoa. Isso porque ela teria DEVER do Estado brasileiro PROTEGER nossas manifestações culturais – as
que passar o cartão em horários determinados. O professor, por exemplo, não escolas deveriam funcionar como instrumentos de “valorização dos saberes e
pode realizar uma atividade fora da sala de aula, em outro espaço da aldeia. processos próprios de produção e recriação” das culturas, conforme o RCNEI
Não podíamos atender ao convite de ficar longe da aldeia como de costumes (2005: 32). Mas, na prática isso não funciona. Neste sentido quero destacar
de viajar para outra aldeia também faz parte do nosso conhecimento, partici- que percebo uma série de contradições nos Projetos Políticos Pedagógicos –
par de um mutirão, reunião ou realizar uma viajem com os alunos. Se saísse- não muda nada, é a mesma coisa dos jurua kuery. Os nossos currículos não
mos, teríamos um dia descontado no nosso salário ou repor as aulas. Quando priorizam os nossos saberes. Como praticar a interculturalidade se não existe
se trata de formação especifico de professores Guarani nunca tivemos direito diálogo entre a nossa forma de educar e a forma que está sendo imposta aos
de levar conhecedores da saber Guarani nas nosso espaço de formação só por- professores guarani? Para que haja interculturalidade é necessário, primeiro,
que não tem diploma. Esses pessoas não precisa saber falar português para nós que os professores indígenas dominem os conceitos dos jurua. Afinal, o que é
ensinar. Nós sabemos a importância dos mais velhos são nossos arquivos vivos interculturalidade? Eu demorei muito tempo para entender o que isso signifi-
. São eles que orientam a entender e dar continuidade ao nosso modo de ser ca. Depois de ler, conversar com os professores, principalmente o professor
Guarani. Quando se trata de educação escolar e educação Guarani por exem- Melià, aprendi que interculturalidade é comparar, é fazer uma comparação
plo é diferente processos e metodologia de ensino. Como nós Guarani apren- entre o que eu – guarani – penso e o que os outros povos pensam. Geografia,
demos ouvindo, observando, praticando, acompanhando os mais velhos, se- por exemplo, o que é? Nós Guarani vemos o espaço como sagrado que é difícil
jam eles kyringue mais adultos, ou nossos pais, avós, tios. A criança tem que explicar porque não existe tradução do nosso mundo. As palavras conceito do
escutar, sentir, observar e isso é feito na prática, através das experimentações latim conceptio tem outra lógica de entendimento. Não estou dizendo que isso
desde pequenas. Elas praticam aos poucos, de acordo com a idade. É assim é ruim mas requer o tempo maior e encontro de conversa de fato para entrar
que aprendemos, que conhecemos. Ore arandu, nosso conhecimento, nossa em acordo. Acredito as universidades seria lugar/espaço de encontro onde
sabedoria, portanto, é transmitido em diversos lugares e momentos específi- possamos assar batata doce milho verde com pessoas desconhecido para escu-
cos. Para conhecer nosso jeito de fazer teko, modo de ser ,modo de vida. O tar, com amor, com emoção a história do outro. Não para mudar o pensa-
nosso jeito de transmitir nossos saberes e ensiná-los é algo especial para nós. mento do outro, não quero que ninguém mude seu jeito de ser mas sim para
Está ligado ao nosso modo de ser Guarani, o nosso modo de educar nossas me fortalecer e respeitar naquilo que acredito. Isso eu chamo de igualdade.

156 157
Por isso quando tive oportunidades de chegar na academia sempre luto para cia que carrega no seu corpo durantes esses processo de colonização dos nativos
me fortalecer respeitar e buscar compreender as pessoas que tem uma outra brasileiro talvez seremos mais sábios e fortalecidos. Os brasileiros foram tão
visão de mundo. Não cheguei na universidade em busca de conhecimento, fragilizado de chegar a ponto de aceitar e acreditar em qualquer fala dos es-
procuro ampliar minha visão sobre os conhecimentos, portanto as causas que trangeiros gringos brancos.
defendo eu já carrego comigo desde da infância, já vim com causa a ser forta-
lecido e defendida. São coisas que me marcou, minhas dificuldades e meus
medos como desafios. Entendo que até hoje é minha língua materna não es-
cutada e falada na sala de aula por isso geralmente nos indígenas somos guer-
reiros e guerreiras porque desafiamos nossos medos nossas angustia e saímos
dos nossos confortos privilégio de aprender português. Muitos brancos não
faz questão de fazer. É mais fácil ir longe em outro País aprender a língua es-
trangeira do que buscar a entender nós indígenas. Não estou pressionando
para aprender falar a língua indígenas porque atualmente são 274 línguas fa-
ladas no Brasil. Mas os brasileiros deveria saber que existem línguas indígenas
como se fosse 274 países dentro do próprio Brasil. Nossa educação é para vida,
como se relacionar com o mundo, isso quer dizer o nosso bem estar a saúde
está associado com espirito da natureza como plantas, água, rio, o ar (yytu), as
árvores, as frutas, etc. Por isso que todas as coisas nós preservamos, respeita-
mos, tratamos como parte de nós. Não vamos derrubar uma árvore para lu-
crarmos com isso. Já para o jurua, estão todos divididos inclusive a geografia é
fronteira, é divisão. Por isso, jurua kuery têm necessidade de medir, dividir, de
obter lucro em tudo. Não todos os jurua, mas a maioria deles. Por isso, costu-
mo dizer que existem muitos problemas que precisam ser superados quando o
assunto os indígenas em qualquer espaço institucional. Mas, sabemos que nós
indígenas também precisamos fazer a nossa parte portanto estamos de frente
dessa luta. Hoje eu pude entender que transmitir conhecimento é esforços,
porque percebi que não posso transmitir as ideias dos jurua, sem antes refletir
sobre o que elas significam e o que elas implicam para nós Guarani. Nesse
sentido, nós professores temos que lutar, nos organizar melhor e reivindicar
nossos direitos para conquistarmos nossa autonomia sem querer modificar o
outro . Só assim nossas casa serão parte de nós e não servir embaixadas. Nosso
próprios território somos tratados como hospedeiro estrangeiros. Continua-
mos recebendo ordem dos colonizadores como se tivéssemos dividas por ser-
mos colonizados se todos os brasileiros tivesse humildades de aceitar a violên-

158 159
Lucas Munduruku ram aos poucos definhando em meio ao crescimento das cidades, perdendo
ressoar das palavras antigas
de vista a própria origem e se esquecendo até mesmo do lugar de onde vêm,
Sempre estivemos em casa. Essa talvez seja a premissa funda- ainda que nunca tenham saído de casa, afinal esta é a terra que nos foi deixada
mental daqueles que insistem em não deixar morrer a memória dos pelos grandes criadores de outrora. E assim não nos deixam esquecer nossos
povos originários dessa parte do mundo, o Brasil, e fazem da própria mais velhos, como Davi Kopenawa que luta para que as palavras de Omama,
existência a ressonância de um tempo em que a vida não era conduzida o grande criador dos Yanomami, não desapareçam e o conhecimento do seu
como meio para a produção de mercadorias; o bem estar de todos era, povo não morra. Davi, um xamã, nos conta sobre como o coração do mundo
de fato, inegociável e seu valor muito mais importante que o de qual- pulsa na floresta e de lá os xamãs como ele continuam a cantar e a fazer dançar
quer sistema econômico. Através desses continuam vivos aqueles que os espíritos para segurar o céu e manter a floresta firme e espalhando vida pelo
foram calados ao longo desses anos de conflito colonial que se arrasta resto do planeta. A ciência já compreende, por exemplo, que a Amazônia é a
até aqui e adentra nosso tempo sem uma solução que traga paz às po- grande responsável pela regulação das chuvas e das águas na Terra, porém é
pulações originárias; é através das vozes dos que insistem em preservar Davi e outros xamãs vivos que detêm o conhecimento de fazer dançar o “espí-
valores que atravessam milênios que é ouvida e segue adiante a história rito” da chuva e então enviar estas chuvas mundo à fora. A medicina de nosso
que só pode ser contada a partir do centro das aldeias, à despeito da tempo é basicamente derivada dos conhecimentos tradicionais sobre as plan-
narrativa colonial que subjuga a pluralidade de experiências de vida que tas, assim como a botânica em geral que é ensinada nas faculdades de biologia.
sustentam nosso mundo, desde muito antes da chegada dos coloniza- E por maior que seja o avanço científico, segue sendo ínfima a parcela do que
dores às nossas praias, ao termo leviano e raso “índio”. E o que significa sabe a ciência em relação a biodiversidade total amazônida. Sem os nossos
ser “índio”? Bem, segundo a cartilha difundida pelo colono durante a anciões e sem a floresta todo o conhecimento ancestral se perderia e não teria
história mais recente em nosso território, ser “índio” é ser atrasado em encontrado um caminho para chegar até aqui. Esse é o legado de Omama para
O

relação ao que é ser humano, é estar eternamente preso ao tempo do os Yanomami, bem como Karosakaybu criador dos Munduruku, deixou um
passado, ou ainda enclausurado em reservas à margem da civilização, legado para seu povo e da mesma forma Jo’i para o povo Tikuna, entre tantos
vivendo como bicho. E tantas foram as vezes que colonos e seus filhos outros criadores e legados transmitidos de geração a geração.
chegaram a datar o fim dos “índios”, sem tomar conhecimento da terra Acontece que nunca fomos “índios”. Isso não é nada mais do que um
em que estavam pisando, com todo o seu encanto e as suas marcas. apelido atribuído por quem em nada nos conhecia. Somos populações origi-
Doenças e normas foram espalhadas aos montes, aos quatro cantos do nárias e já fomos milhares de povos antes de 1500. Hoje continuamos sendo
nosso continente, na tentativa de limpar da memória da gente daqui o em significativo número: só no território brasileiro há 305 povos contatados,
que de mais valor há naquilo que somos: a essência das nossas tradições. além daqueles que vivem em regime de isolamento voluntário; falamos mais
Alguns de nós fomos deixando costumes antigos de lado, ou- de 274 línguas, vivemos em aldeias e cidades e nos recusamos a esquecer de
tros esqueceram a maneira de falar as palavras deixadas pelos nossos onde e de quem viemos; permanecem vivas nossas práticas e as nossas pró-
ancestrais e tantos foram os que saíram de seus lares - e se tornaram prias cosmologias que organizam o mundo em que vivemos e respondem a
pardos, ribeirinhos, caboclos, bugres e tantas outras denominações atri- todos os nossos anseios; não paramos no tempo das navegações, passamos
buídas pelos invasores - pelos mais diversos desdobramentos da imposi- por mudanças como qualquer outro povo, e se muitos de nós se afastaram de
ção colonialista, sobretudo por meio do uso de armas de fogo e bíblias; suas respectivas tradições, nossa história ainda vive nas memórias dessa ter-
muitos dos nossos, sobrecarregados de violentos estigmas coloniais, fo- ra, na nossa corporeidade e sonhos e também no inconsciente coletivo desse

160 161
amontoado de gente que compõem o que hoje chamamos de Brasil. Temos foi cimentada e não consegue respirar; os animais foram acuados a territórios
nossos saberes e tecnologias que, se por um lado não se desenvolvem por uma cada vez menores bem como as pessoas que se acostumaram, em sua maioria,
diretriz bélica, ultrapassam e muito qualquer tecnologia da modernidade no a restringir suas vidas à espaços limitados como os dos apartamentos; o ar
que diz respeito ao conhecimento do funcionamento da natureza e seus ciclos. fresco deu lugar a fumaça da poluição e as águas das cidades são quase sempre
Estabelecemos entre nós e o mundo ligações profundas que não se resumem muito sujas e insalubres; falhamos, enquanto população mundial, na tarefa
à virtualidade das conexões contemporâneas. Assim nossos ancestrais viveram indispensável de alimentar a todos e já não conseguimos mais dar conta do
nesse canto do planeta pelos últimos milênios, de maneira harmoniosa junto à destino de todo o lixo que produzimos diariamente. Há décadas os povos
Terra, cultivando organismos da magnitude da floresta amazônica e contando originários, animais e as florestas vivem sob o eminente risco de extinção e
histórias que se relacionam com o mundo de maneira muito mais eficiente sob os ataques de grandes empreendimentos do capital globalizado que insiste
do que qualquer universidade de matriz ocidental já o fez. Aliás, as nossas em olhar para o mundo e enxergá-lo apenas como mercadoria. O pariwat
universidades estão em nossas aldeias, onde se aprende, desde muito pequeno, (não-“indígena”) insiste em ignorar a vida e os avisos dos povos tradicionais e
sobre um sentido de humanidade que é repassado através das brincadeiras. ao agir dessa forma não percebe a gravidade de seu comportamento autodes-
Junto aos nossos, junto à mata e aos animais que andam por seus caminhos, trutivo; a ferocidade com a qual consome os recursos naturais desse mundo
aprendemos sobre silêncio e escuta, para então poder dizer; aprendemos a não coloca em risco apenas a vida dos habitantes da floresta mas também a
observar para que se possa enxergar e perceber o lugar e o papel que cada parte vida do planeta como um todo. No entanto, seu ego, apartado do mundo e
desempenha no equilíbrio vital. do que realmente importa, faz com que queira ele também apartar a todos nós
No seio dos territórios tradicionais, os povos originários são responsá- do mundo, em nome de uma projeção de progresso de ordem particular. Se
veis pelo maior índice de preservação da vida no planeta, em suas mais diversas abrisse mão do seu ego e então voltasse sua atenção diretamente para onde a
manifestações de ser. Onde há presença de grupos originários a floresta ainda vida se mostra, o pariwat conseguiria ouvir a Terra que chora e perceber seus
é úmida, o ar é fresco e as águas são límpidas; a vida aflora através da inume- sinais, e além disso ouviria o lamento daqueles que não têm o que comer,
rável variedade de plantas e os animais correm livres; não há distinção entre antes que o mundo se acabe de vez.
humano e natureza, mas sim uma relação orgânica de cooperação e interde- Para nós, povos originários, o mundo começou a acabar em 1500
pendência. Não existem fronteiras entre sujeito e objeto como pressupõem as e desde então lutamos para adiar esse ultimato, o momento derradeiro em
teorias modernas do ocidente. O que há é um fluxo de vida que se estende e é que não fará diferença a quantidade de ouro ou de petróleo que tivermos
compartilhado por todos os seres que se relacionam durante a experiência de guardado, mas sim as nossas escolhas e tudo aquilo que fizemos em prol de
estar no mundo, além da compreensão de que este se trata de um macro orga- cuidarmos uns dos outros e da Terra. As grandes cidades com toda a sua so-
nismo, articulado por micro organismos, que somos nós seus habitantes. Em lidez aparente são efêmeras e não contam mais do que datações recentes de
outras palavras, sabemos que pertencemos à terra e que se não cuidarmos dela, uma história de esquecimento do que há de mais básico nesse mundo: a vida
como nos ensinaram nossos ancestrais, o caos e o desequilíbrio podem tomar coletiva. Ainda assim quando olhamos para elas podemos ter a dimensão exata
conta da superfície terrestre. Isso já aconteceu em outras ocasiões, no passado, dos processos que nos trouxeram até aqui e vislumbrar um passado não mui-
e está registrado nos fundamentos das nossas cosmologias que remontam es- to distante que só poderá desaparecer por completo quando não existirmos
ses tempos antigos nos quais a humanidade esteve por um fio. Mais uma vez mais. Nesse mergulho no passado, de alguma maneira, ganhamos o que foi
caminhamos para isso, como apontam os xamãs. Na maior parte da superfície perdido e então se abre a possibilidade de um futuro diferente deste para o
terrestre as florestas deram lugar às cidades, árvores foram derrubadas, a terra qual trilhamos a passos largos e que só poderá nos levar à desastrosos destinos.

162 163
Se a história oficial do colonizador insiste em nos aprisionar ao passado, nós Karine L. Narahara

o vulcão olhou para mim :


sobre o meu encontro com os M apuche
demonstramos através de exemplos, com nosso jeito de andar pelo mundo e
enxergar as coisas, que na verdade seguimos lutando para ser o futuro que um
dia nossos ancestrais sonharam para a Terra e que a luta de todos aqueles que I ntrodução
vieram antes de nós é a única razão pela qual ainda estamos aqui ocupando
A antropologia é um campo disciplinar que se desenvolve
espaços. É por esse motivo que lideranças e jovens cada vez mais saem de suas
baseada na ideia de uma outridade: as etnografias seriam produ-
aldeias rumo aos centros urbanos levando consigo o orgulho e o nome de seus
to do encontro do antropólogo com um “Outro”. Como afirma
povos; é por esse motivo que cada vez mais jovens na cidade, filhos, netos e
Marimba Ani (1994), em sua etnografia sobre o Ocidente1 e seus
bisnetos se posicionam contra as injustiças estruturais que ergueram o mundo
padrões de pensamento e comportamento, a “Antropologia não é
dos brancos e ameaçam o futuro de todos. Quando não houver mais espaços
simplesmente uma ´filha do imperialismo’” (ANI, 1994:3). His-
os quais possamos ocupar é porque não haverá mundo para mais ninguém. A
toricamente a antropologia operou como uma das várias engre-
possibilidade Terra, em sua vida e seu sentido de ser, estará esgotada.
nagens do colonialismo, ao se estabelecer como a disciplina que
Mas antes disso, enquanto a floresta viver, lá estarão seus habitantes e
tem como “objeto de estudo” esse Outro, distante espacialmente e
também os xamãs entoando seus cantos e reavivando histórias; os filhos dos
exótico “culturalmente”. Esse mesmo Outro que foi e segue sendo
povos originários estarão em suas aldeias e nas cidades lutando sem cansar por
assassinado, violentado e saqueado pelos diferentes empreendi-
um futuro que ultrapassa a eles mesmos: É que tudo isso é poderoso de ver-
mentos moderno-ocidentais.

Q uando
dade, essa terra toda sagrada precisa ser respeitada e protegida, porque essa é a
Este modelo que estruturou a antropologia tem, no
terra que conta a nossa história, nosso passado e o futuro, e isso não se vende.
entanto, passado por uma profunda desestabilização. Afinal
Disso não se faz mercadoria.
“uma série de pressões históricas começaram a reposicionar a
antropologia com respeito aos seus ´objetos´ de estudo” (CLIF-
SAWE!
FORD, 1986:9-10). Dentre essas transformações está a própria
produção antropológica por parte daqueles historicamente con-
siderados “nativos”, como indica o mesmo autor. Um processo
que observamos também no Brasil, com um notável aumento
no número de etnografias produzidas por antropólogos negros
e indígenas nos últimos anos2.

1 Não terei espaço aqui para me aprofundar sobre as implicações e nuances desta
categoria. Mas, seguindo a própria Marimba Ani, podemos considerar Ocidente
enquanto “aquelas coisas com as quais aqueles que chamam a si de Ocidente ou
Europa têm tradicionalmente escolhido para se identificar, e, similarmente, a ma-
neira na qual eles se veem em relação a outros povos” (1994:20).
2 Ver Franchetto (2010) para um referencial sobre a produção antropológica in-
dígena. Os encontros do Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi), conduzidos
por Márcio Goldman, no Museu Nacional/ UFRJ, têm sido um espaço privilegia-
do de debate sobre essa produção. Chamo atenção, em especial, para o encontro
“Outras antropologias”, realizado em novembro de 2018, sob mediação de Luis

164 165
O Outro parece ter cruzado uma fronteira: indo de “objeto” à “sujei- A vida em waj mapu , entre as petroleiras
to” etnográfico. E com isso, não só a separação sujeito-objeto se torna mais
instável. Também outra dicotomia, fundamental para a antropologia e que Os Mapuche constituem, na atualidade, um dos mais numerosos po-
advém desta primeira, por vezes fica em suspenso: a separação entre “campo” vos indígenas da América Latina (UNICEF, 2009), habitando principalmente
(aquele local distante onde se coletam os “dados etnográficos”) e “casa” (para a região da Patagônia, tanto do lado argentino quanto do lado chileno. Os
onde o antropólogo retorna para então escrever seu texto)3. O presente artigo últimos censos realizados por estes dois países indicaram um contingente de
está diretamente relacionado a essas desestabilizações. mais de um milhão e setecentas mil pessoas, de maneira que tanto na Argen-
Retomo aqui reflexões já apresentadas na minha tese de doutorado4, tina quanto no Chile os Mapuche conformam numericamente a maior po-
uma etnografia elaborada a partir do convívio com Mapuche que vivem em pulação indígena (INDEC, 2012; INE, 2012). Consequência direta dos pro-
Puel Mapu, o “território do leste” – o qual corresponde ao que hoje se considera cessos de usurpação territorial que se dão especialmente a partir das invasões
espaço nacional argentino5. O trabalho partiu do termo território, enquanto militares promovidas pela “Campanha do Deserto” (do lado argentino) e pela
um conceito mapuche, num cenário de profundos conflitos relacionados à “Pacificação da Araucanía” (do lado chileno), iniciadas na segunda metade do
presença de empresas de petróleo na província de Neuquén, norte da Patagô- século XIX, hoje os Mapuche vivem em sua grande maioria em áreas urbanas
nia argentina (NARAHARA, 2018). – do lado argentino, 86,4% vive em cidades (INDEC, 2015).
Meu principal objetivo aqui é levantar questões sobre o processo de Em consonância com a ideia de um espaço plurinacional, enquanto o
construção dessa etnografia no diálogo com os Mapuche. Veremos que neste território habitado pelos Mapuche a leste da cordilheira dos Andes é chamado
tecer não apenas a bagagem teórica que trouxe da antropologia foi importan- de Puel Mapu, o território a oeste da cordilheira é Gulu Mapu. Os Mapuche
te. Um outro conjunto de experiências tiveram um papel central: a minha que vivem em Gulu Mapu são referidos como guluce (≈ gente do oeste), en-
vivência enquanto filha de santo no terreiro de candomblé do qual faço parte. quanto os que vivem em Puel Mapu são chamados de puelce (≈ gente do leste),
Mas antes de entrar no tema propriamente dito, é necessário situar quem são numa clara oposição ao uso das identidades “chilena” e “argentina”.
os Mapuche com quem convivi. Porém, é fundamental destacar que waj mapu, o território mapuche
como um todo, ultrapassa essas fronteiras nacionais impostas após as invasões
militares do século XIX. Para os Mapuche a cordilheira é caminho e conexão,
e não uma “barreira natural” – por mais que as fronteiras nacionais impõem
Reyes Escate, o qual reuniu antropólogos negros e indígenas. Desde o Núcleo de Estudos Amerín-
limitações à circulação de pessoas e de coisas (como, por exemplo, plantas
dios do Laboratório Geru Maa, também temos nos debruçado sobre etnografias produzidas por medicinais).
antropólogos negros e indígenas, buscando que novas questões essas produções levantam para a
antropologia e no campo das filosofias.
Além disso, waj mapu não se limita a essa extensão tridimensional que
3 Por mais que essa problematização dessa distinção não seja absolutamente nova (CLIFFORD, engloba terras que hoje correspondem a parcelas dos espaços nacionais wigka
1990; INGOLD, 2011). (como os Mapuche se referem aos não Mapuche usurpadores). Waj mapu é
4 Produzida no âmbito do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/
UFRJ, sob orientação de Fernando Rabossi. Com relação especificamente ao presente texto, agra- multidimensional. Um território-cosmos formados por diversos planos, para
deço aos comentários e contribuições dele e de Octavio Bonet, Magnus Course, Katiúscia Ribeiro, cima e para baixo, atravessados por distintos fluxos de newen: as forças cir-
Márcio Goldman, Lucas Marques (e demais colegas do NAnSi) e Marco Tobón.
5 Todos os conceitos, palavras e expressões utilizadas pelos Mapuche são grafadas em itálico e
culantes que atravessam e se atualizam em tudo que existe no mundo. Uma
apresentadas de acordo com o grafemario Raguileo para o mapuzugun, quando for o caso. A única montanha, uma planta, pessoas, uma pedra, o vento, um rio, tudo são produ-
exceção no uso deste grafemario é o próprio termo Mapuche, aqui escrito em sua forma mais co-
tos e manifestações dessas forças: os newen perpassam tudo que é considerado
nhecida, com ch.

166 167
vivo e mesmo não vivo pelo pensamento Ocidental. dos anos 1970, quando a empresa argentina Yacimientos Petrolíferos Fiscales
Não se trata, importante frisar, de um aspecto “cultural”, como se uma S.A. (YPF) perfura os primeiros poços de Loma de La Lata. No início dos
camada “simbólica” se sobrepusesse à terra ou a uma base “natural”. Como se a anos 1980, este reservatório fez de Neuquén a principal produtora de gás do
waj mapu tridimensional fosse a base “real” sobre a qual repousa a waj mapu mul- país, sendo então o campo de gás mais relevante de todos os países latino-a-
tidimensional. Na vida mapuche os newen que circulam por esses planos são tão mericanos (FAVARO, 2005). Em 2016, a produção de Loma de La Lata re-
reais quanto a montanha que o olho vê ou o pote de argila que as mãos seguram. presentou 2,45% do petróleo produzido em toda Argentina e 12,82% de todo
O próprio kimvn, o conhecimento, é também newen, de maneira que gás extraído no país, tudo a cargo da YPF. Neste mesmo ano a produção de
ele ultrapassa o domínio exclusivamente humano. Assim como o mapuzugun petróleo proveniente província de Neuquén correspondeu a 20,6% do total
(mapu ≈ terra; zugun ≈ falar), o idioma falado pelos Mapuche antes da dissemi- produzido no país, enquanto o volume de gás produzido significou 48,11%
nação do espanhol, que é a “fala do mundo” e não só dos humanos. da produção nacional (SECRETARÍA DE ENERGÍA DE LA REPÚBLICA
O conhecimento circula pelo mundo-território, e a maneira que cada ARGENTINA, 2017).
ce, que cada pessoa se alinha a esse fluxo de conhecimento se relaciona, ao me- Além da relevância nacional da produção de hidrocarbonetos da pro-
nos em parte, ao seu kvpan: a sua origem familiar. Pois existem conhecimentos víncia de Neuquén, em um país cuja matriz energética é altamente pretrode-
que circulam numa determinada família6, de forma que um conhecimento, pendente8, é importante frisar que a extração de petróleo e de gás cumpre um
por exemplo, relacionado à produção de joias de prata, pode retornar após papel central na economia desta província (DÍAZ; FUENTES, 2008). Em
algumas gerações através de uma determinada pessoa. Fica claro então que os 2010, cerca de 50% do Produto Bruto Geográfico da província de Neuquén
newen estouram a divisão entre mente e matéria-corpo. Os newen não podem era composto pela extração de hidrocarbonetos (DINREP, 2012). Conse-
ser simplesmente subsumidos a um aspecto imaterial do mundo e da vida. Isso quentemente, o contexto da cosmopolítica estatal em Neuquén é fortemente
deverá ficar mais claro adiante. influenciado pelo setor petroleiro, como demonstram diversos autores (BAN-

Os territórios das comunidades mapuche e os territórios regionais, as- DIERI, 2000; IUORNO, 2000; FAVARO, 2001).
sociados às diferentes identidades territoriais que compõem o povo Mapuche Loma de La Lata consolidou Neuquén como uma província eminen-
em sua totalidade7, não podem então ser encarados em termos idênticos aos temente petroleira. E tudo isso se dá em pleno território mapuche, inicialmen-
quais os wigka pensam o território. Território, em qualquer uma das perspecti- te em duas comunidades: Kaxipayiñ e Paynemil. Nestes territórios são perfura-
vas, seja no singular seja no plural, implica uma malha atravessada e atualizada dos os primeiros poços de Loma de La Lata.
pelas distintas forças-newen, aparentemente humanas e não humanas.
Apesar de conviverem com a produção comercial de petróleo e de gás
A presença petroleira na província de Neuquén se consolida no início desde o início dos anos 1970, foi apenas nos anos 1990 que os Mapuche come-
çam a ter consciência de que os problemas de saúde que enfrentam são uma das
6 Quando falam em família os Mapuche costumam referir-se a parentelas e em certas situações às consequências dessa atividade. Começaram a entender, por exemplo, que os abor-
famílias nucleares.
7 Não terei espaço aqui para tratar das distintas identidades territoriais mapuche. Mas é relevante
tos espontâneos que ocorriam entre as mulheres em Kaxipayiñ não eram mera
pontuar que essas identidades foram, historicamente, tratadas pelos wigka como se correspondes- casualidade: resultavam da contaminação pela extração de hidrocarbonetos.
sem a distintos povos. E esse argumento ainda hoje tem sido utilizada para deslegitimar uma série
É neste momento que começa a luta mapuche em defesa de seu terri-
de demandas territoriais. Esta alegação está, de certa maneira, na base da chamada “teoria da arauca-
nização”, que se consolida especialmente a partir dos anos 1930 afirmando que os Mapuche seriam
supostamente originários do Chile (LAZZARI; LENTON, 2002). Discuti de maneira pormeno- 8 Em 2014, 88% do abastecimento energético da Argentina veio de hidrocarbonetos, sendo que
rizada todas essas questões anteriormente, mostrando como elas reverberam nos atuais conflitos 58% desse abastecimento foi proveniente do gás (SECRETARÍA DE ENERGÍA DE LA REPÚ-
relacionados à presença petroleira na província de Neuquén (NARAHARA, 2018). BLICA ARGENTINA, 2015).

168 169
tório. Em 1998, chegaram a ocupar durante três meses um canteiro de obras deste tipo explorado comercialmente em toda América Latina (U. S. ENER-
que deu origem a uma planta industrial localizada atualmente na comunidade GY INFORMATION ADMINISTRATION, 2015), e pode ser até trinta
de Kaxipayiñ – a qual inclui uma termoelétrica. Esta ação envolveu tanto a vezes maior que Loma de La Lata (SECRETARIA DE ENERGÍA, 2013 apud
comunidade de Kaxipayiñ quanto de Paynemil, e a Confederación Mapuche JACOMO, 2014). Especulações indicavam que a exploração do reservatório
de Neuquén, organização que congrega autoridades de diversas comunidades poderia dobrar a então produção de gás da Argentina (SCANDIZZO, 2014).
mapuche da província. Desde então, os Mapuche veem realizando uma série Para os Mapuche, no entanto, Vaca Muerta significa um agravamento
de ações direta desse tipo como forma de defesa do seu território. Muitas delas do cenário de contaminação gerado pelas empresas de petróleo. Isso porque o
envolvem os chamados cortes de estrada, em que o acesso a uma determinada método utilizado para perfurar poços neste tipo de reservatório – o “fracking”
área utilizada pelas petroleiras é impedido. ou faturamento hidráulico – gera muito mais impactos do que o método de
Também como um dos desdobramentos dessa luta, os Mapuche ar- perfuração utilizado nos reservatórios convencionais. A exploração de reser-
ticularam a realização de um amplo estudo sobre como a presença petroleira vatório não convencionais vem gerando diversas mobilizações em distintas
afeta a vidas nas comunidades Kaxipayiñ e Paynemil. Realizado por uma ins- partes do mundo, de forma que esse método vem sendo sistematicamente
tituição alemã (UMWELTSCHUTZ DE ARGENTINA S. R. L., 2001), o banido em função dos graves casos de contaminação associados ao seu uso
levantamento contou com uma série de estudos clínicos que indicaram uma (HOLANDA, 2017).
intoxicação crônica por hidrocarbonetos e metais pesados em função da ocor- A exploração de Vaca Muerta se dá a partir da área de Loma Campa-
rência entre os Mapuche de vertigem, fraqueza, nervosismo, dor e adormeci- na, exatamente no território da comunidade mapuche de Campo Maripe, loca-
mentos em extremidades do corpo, tosse irritativa, problemas dermatológicos, lizada próximo à cidade de Añelo e às comunidades de Kaxipayiñ e Paynemil.
irritabilidade, cefaleia, insônia, pesadelos, instabilidade emocional e abortos Aí também tem papel central a YPF, que começa a exploração de Vaca Muerta
espontâneos. Esta intoxicação era decorrente do contato com contaminantes através de um acordo com a petroleira norte-americana Chevron. Em Campo
gerados pela atividade petroleira presentes no ar, no solo, na água consumida Maripe já existem relatos de fetos de cabritos que nascem com alguma má for-
e da ingestão de vegetais e animais contaminados. mação, semelhantes aos de Kaxipayiñ. Sem contar os recorrentes “acidentes”
Dos anos 1970 para cá, a indústria petroleira segue expandindo-se cotidianos, com inúmeros vazamentos de petróleo, de gás ou de rejeitos de
pela região, com a atuação de diversas outras empresas além da YPF. Atual- perfuração de poços, e as recorrentes explosões e incêndios.
mente, pelo menos vinte e cinco comunidades mapuche rurais são afetadas Essa contextualização sobre o panorama da presença petroleira em Puel
de maneira direta pela indústria petroleira na província de Neuquén, com a Mapu situa em que cenário se deu meu encontro com os Mapuche. Inicialmen-
presença da infraestrutura necessária para a extração de petróleo e de gás em te, veremos que eu pretendia restringir o “trabalho de campo” à porção do terri-
seus territórios9. Além disso, uma nova conjuntura tem aumentado a pressão tório onde se encontram as petroleiras. Os caminhos, no entanto, acabaram me
petroleira sobre as comunidades mapuche em Neuquén: a “descoberta” do re- levando também a outros lados. Mas o ponto que quero destacar neste momen-
servatório de Vaca Muerta. to está relacionado ao exposto no início desta seção: waj mapu é conformada
Este reservatório de gás não convencional, anunciado, em 2010, como por diversos planos superpostos, atravessados pelos diversos fluxos newen. Essas
a promessa de salvação para a “crise energética” argentina, reposicionou o país forças, como vimos, se atualizam tanto naquelas coisas consideradas vivas pela
na geopolítica mundial do petróleo. Vaca Muerta é o primeiro reservatório metafísica Ocidental, como também aquilo considerado não vivo.
Assim, o que os wigka estão fazendo debaixo do subsolo, perfurando
9 Segundo dados de uma publicação do Observatório de Derechos Humanos de Pueblos Indígenas
- ODHPI (2008) e informações levantadas durante minha própria pesquisa. rochas, injetando elevadas quantidades de água e areia através do fracking, ex-

170 171
traindo petróleo, gás e outros compostos, têm afetado os newen que circulam importância do respeito com relação às forças de waj mapu que foi se estrutu-
pelo território. Pois existe um certo ordenamento da circulação dos newen por rando essa etnografia.
waj mapu, uma certa harmonia e equilíbrio nesse movimento de forças. Quan-
do se fala do território o que está em jogo fundamentalmente são as relações
não apenas entre humanos. R umo ao sul , rumo ao L ênin

[…] não apenas uma comunidade mapuche estamos falan-


Quando eu decidi ir para Chiuquilihuin com Ailin Piren Huenaiuen
do das pessoas mesmas, se não da relação entre um e ou- e Verônica Millahual, em mais uma de suas viagens de verão, eu pensava que
tro, pessoa e newenes. Somos todos newen, diferentes forças essa itinerância se restringiria a uma oportunidade de conhecer um pouco
que se necessita para chegar a um equilíbrio da natureza. mais sobre a vida Mapuche. Eu havia acabado de chegar do Brasil, e no dia
Equilíbrio que hoje em dia, por exemplo, quase todos os seguinte já estava tomando um ônibus em Neuquén (capital da província de
territórios são rompidos pelo tema do trabalho, ou seja, da mesmo nome) para a cidade de Junín de Los Andes. Em Junín encontraria Pi-
petroleira, da mineradora, das hidrelétricas, que alteram a
ren, para então seguir para a comunidade de Chiuquilihuin. Ainda no ônibus
harmonia da água, por exemplo. Então isso é o que fazem
ao território. E a essência mesmo da nossa vida é desde aí.
eu estava um tanto quanto preocupada. Parecia abandonar meu trabalho de
Assim que por isso é assim, há que ter um respeito, há que campo conforme o cenário de poços de petróleo, válvulas e gasodutos ficava
cuidá-lo, como se cuida um mesmo. Porque sabe que isso para trás. Era uma daquelas situações de deixar-se levar pelo campo que todo
é que vai lhe dar saúde, vai lhe dar trabalho, bem-estar (Es- antropólogo conhece bem. E que pode “fazer o campo render”… ou não.
meralda Cherqui, comunidade Kaxipayiñ, 08.11.2016). Um deixar-se levar que está sempre marcado por uma série de sensações
e afetos. Que nos levam aonde ou com quem nos sentimos mais cômodas ou
Os próprios ce também são newen e estão inseridos nesse emaranhado mais seguras. Este último sendo um critério por vezes comum para nós, mu-
de fluxos, de maneira que existe uma profunda continuidade entre pessoas e o lheres, quase sempre em situação de maior vulnerabilidade. No meu caso ainda
território. As pessoas não apenas fazem parte como devem estar de acordo, no com o agravante de ter a aparência associada ao circuito da prostituição11. E
sentido de harmonia ou sintonia, com este ordenamento de fluxos do mundo. tudo isso, que quase sempre costumamos invisibilizar em nossos textos, às vezes
E aí atividades extrativas como a exploração de petróleo e de outros minérios nos leva a tomar decisões que em muitos casos transformam o rumo das coisas.
vão contra o equilíbrio e a dinamicidade deste ordenamento. Estar com Piren e Verônica era para mim uma situação de bastante comodi-
Por isso é fundamental tratar com respeito às forças do território: é isso dade. Por sermos mulheres, mais ou menos da mesma idade, e por estarmos
que garante a uma pessoa o seu próprio bem-estar. Trata-se de um esquema de construindo uma relação de proximidade. Também havia a vontade de conhecer
cuidado recíproco: os ce cuidam do território, como, por exemplo, através da os seus territórios, as suas origens. Mas esta viagem foi muito além disso: acabou
realização de cerimônias ou de ações direta, assim como o território cuida dos gerando o ponto de virada do processo de construção da etnografia.
ce. Este circuito de cuidados envolve uma ética do respeito que marca a vida Chegando em Junín, fui com Piren para a casa mantida por seu avô
mapuche, e se manifesta principalmente na necessidade de se “pedir permiso” paterno na cidade, onde tomamos uns mates (como chamam o chimarrão),
(“pedir permissão, “pedir licença”)10. Foi a partir dessa rede de cuidados e da 11 Em Neuquén, por ser negra, eu era considerada “Dominicana”, o que é um eufemismo para
prostituta, num contexto de uma série de cidades petroleiras onde a prostituição tem presença
10 Comportamento amplamente registrado na literatura sobre os Mapuche (GREBE, 1993; BA- marcante. Na Argentina, há uma conhecida rede de tráfico de mulheres originárias da República
CIGALUPO, 2007; COURSE, 2011; SZULC, 2015), e que tratei de forma mais detalhada alhures Dominicana, que muitas vezes terminam por trabalhar na prostituição (ORGANIZACIÓN IN-
(NARAHARA, 2018). TERNACIONAL PARA LAS MIGRACIONES, 2003).

172 173
aguardando o horário da van que saía naquela mesma manhã para Chiuqui- sempre envolve compartilhar alguma comida, como pães, biscoitos, doces e
lihuin. Em Chiuqui12, além do avô paterno de Piren, vivem seu pai, tios e pri- queijos. E claro, envolve também compartilhar conversas.
mos paternos, e boa parte de seus tios e primos maternos. Piren, assim como Mais do que simplesmente um lugar de onde podíamos olhar para
seu pai, Miguel Huenaiuen, e sua mãe, Pety Piciñam (que atualmente vive na o vulcão, sentar-se ali fora era estar acompanhado do Lanín. Rapidamente
cidade de Neuquén), também nasceu em Chuiqui, tendo ido morar na cidade percebi que a escolha deste cenário para matear tinha a ver com o fato de que
de Neuquén ainda criança. não só para os Mapuche, mas também para mim o vulcão era uma presença
Conforme íamos seguindo pela estrada de Junín a Chiuquilihuin, em emblemática.
algum ponto comecei a ver o Lanín. Ou ao menos alguma parte dele, já que Aquela era a minha primeira viagem a Neuquén depois de ter passado
estava encoberto por nuvens. Conforme adentrávamos e subíamos por Chiu- pelo meu processo de iniciação no candomblé, ocorrido cerca de seis meses
quilihuin, o Lanín, por detrás das nuvens, engrandecia-se. Mas foi apenas antes. Desde a primeira vez que estive em Neuquén a vivência no terreiro do
quando cheguei ao campo do avô de Piren que vi o vulcão em toda sua gran- qual faço parte era ponto de partida para muitos dos diálogos com os Mapu-
diosidade13. che. Com Piren e Alen não era diferente, e eles de alguma maneira acompa-
No primeiro dia em que estive em Chuiqui o Lanín mostrou-se um nharam o meu processo de preparação para a iniciação. Estávamos ansiosos
pouco. Não pude ver seu cume. E durante a maior parte deste dia ele esteve para finalmente nos encontrar e conversar.
escondido por detrás das nuvens. No segundo dia, ele mostrou-se um pouco Mostrei a Piren e Alen algumas fotos do nosso terreiro. Através das
mais, apesar de ainda estar por detrás das nuvens. Aí já pude ver seu cume. imagens falávamos, por exemplo, sobre as contas feitas com miçangas, e o que
Piren me contava que o Lanín nem sempre se mostra para um visitante. suas distintas cores e formas remetiam. As mulheres Mapuche costumavam
Foi apenas no dia seguinte que pude ver o Lanín por completo e utilizar colares e adornos feitos de contas de pedras, que muito se parecem
por mais tempo. Foi quando então ele saiu detrás de todas as nuvens. Era com as miçangas. Hoje, muitas utilizam colares de miçangas de diversas cores
impactante e até mesmo hipnotizante olhar para ele. Todos os dias que estive em contextos rituais. Presenteei algumas amigas Mapuche com uma conta de
em Chiuqui, quando acordava, antes mesmo de nos sentar para tomar mate, miçangas verdes, que para nós está relacionado a Ògún, Òrìsà de quem sou
ia para fora da casa para olhar o vulcão. Os dias que íamos almoçar na casa filha. O presente era recebido com alegria, por ser algo relacionado à minha
do avô de Piren eram especiais, pois a janela de sua cozinha fica voltada para origem. E a origem de uma pessoa é um aspecto fundamental na vida mapuche.
o Lanín. Passávamos toda a preparação do almoço com sua presença. Já nos A origem se desdobra em dois aspectos: a origem familiar (kvpan) e a
primeiros dias em que estive em Chiuqui, a sensação era de que o Lanín era o origem territorial (tuwvn). Importante frisar, no entanto, que por mais que a
centro do mundo Mapuche. origem de uma pessoa seja pensada através desses dois termos, kvpan e tuwvn
O primeiro mate que compartilhei com Piren e com Alen Huenaiuen, não podem ser apartados completamente: um está diretamente vinculado ao
um de seus irmãos, foi ao redor de uma mesa ao ar livre, de onde víamos o outro. Isso fica claro, por exemplo, quando uma pessoa fala sobre “o meu ter-
Lanín. Alen havia perguntando onde eu gostaria que nos sentássemos, e eu ritório” ou “o território da minha família”. Neste contexto, território remete de
prontamente respondi: lá fora, onde possamos ver o Lanín. Carregamos então uma só vez a um lugar e à descendência familiar da pessoa, uma maneira de
uma pequena mesa, cadeiras, a cuia de mate, pães e geleias. Tomar mate quase falar sobre de quais pessoas-lugar alguém provém. É assim que Piren e Verôni-
12 Por vezes irei me referir a Chiuquilihuin desta forma reduzida, como os Mapuche costumam fazer. ca se referem, respectivamente, a Chiuquilihuin e Quetroleufu. Por mais Ve-
13 A palavra campo geralmente é utilizada, quando se está na cidade, como referência a alguma área rônica não tenha nascido em Quetroleufu e por mais que ambas não residam
mapuche rural (uma comunidade, em parte ou em sua totalidade), podendo equivaler a uma das
várias atualizações do conceito de território. atualmente nessas comunidades.

174 175
Enquanto Piren vive na capital, Verônica vive na cidade de Plottier, metais etc., os Mapuche por vezes os comparavam aos gen: donos ou forças
localizada também na província de Neuquén, próximo à capital. A comunida- ordenadoras presentes no mundo.
de de Chiuquilihuin é a origem tanto paterna quanto materna de Piren (afinal, Os gen são um dentre os diversos newen, as diversas forças que circu-
como dito anteriormente, seu pai e sua mãe nasceram lá), enquanto Quetro- lam pelo território, e remetem ao universo mais amplo de mestres de animais,
leufu, localizada próximo à cidade de Pucón, no Chile, é a origem materna de plantas, lugares, ambientes recorrentes nos mundos ameríndios16. Assim a
Verônica: sua mãe nasceu lá, e a maior parte de seus tios e primos maternos maestria mapuche deve ser necessariamente considerada a partir da perspecti-
ainda residem na comunidade. va de um cosmos que é resultante de fluxos de forças. Em geral os Mapuche as-
Também falávamos sobre os sabás (uma espécie de pulseira de ferro, sociam, de maneira explícita, os gen a cursos d´água (em especial, rios, quedas
que pertence à Ògún), sobre as roupas e a composição das anáguas de tecidos d´água e nascentes), montanhas, vulcões, partes de florestas nativas e lugares.
de algodão, ainda hoje engomadas com fécula de mandioca. Pelas fotos eles Na vida mapuche “[o] mundo não-humano nem é de todos, nem tampouco
também conheceram parte da minha família de santo, e a arquitetura mais é terra de ninguém” (FAUSTO, 2008:339).
geral da nossa roça-terreiro. Os detalhes presentes nas imagens, como as placas A reclusão pela qual passei durante minha iniciação era comparada
de madeira com os nomes dos terreiros fundados por nossa tataravó e nosso à reclusão pela qual passa um(a) macil para forma-se maci. Assim como a
avô, penduradas no barracão, eram tema para nosso diálogo. chamada festa do nome no candomblé – uma festa na qual ocorre a primeira
O virar no santo, o processo de “transe” no candomblé, comparáva- aparição pública daquele Òrìsà que acabou de nascer, já com suas roupas e pa-
mos ao kvymin vivenciado pelos maci. Os maci são autoridades relacionadas ramentas – era comparada também à primeira cerimônia pública de um novo
diretamente ao sistema médico mapuche: seriam o que a antropologia costu- maci. Quando conheci a maci Juana Zuñiga, naquele momento ainda uma
ma nomear de xamã. Se você tem algum problema de saúde e quer se tratar macil, dias antes do Wiñoy Xipantv de 2015 (cerimônia sobre a qual falarei
conforme os conhecimentos mapuche, é um maci que você irá procurar14. Eles adiante), estava completamente imersa nos preparativos para minha iniciação
são praticamente os únicos capazes de vivenciar o kvymin: um estado de altís- – e minha conversa com Piren girava em torno desse momento. Juana, que
simo conhecimento, ou o estado de maior conhecimento que um Mapuche naquele tempo se preparava para a cerimônia em que passaria a ser maci, co-
pode experimentar15. O diagnóstico de pacientes e a prescrição de tratamentos mentava sobre nosso diálogo: “nós, povos originários, temos tanto em comum...”
por vezes é feita pelos macia em kvymin. Esta é uma das formas, a mais privi- Dentre os vários paralelos na construção de comparações entre a vida
legiada, dos maci acessarem conhecimentos. mapuche e a vida em torno de um terreiro de candomblé, esse foi para mim o
Asè comparávamos a newen. E, claro, os Òrìsàs eram também matéria mais impactante. Fez com que eu enxergasse minha própria vivência no can-
no tecer de muitas de nossas conversas. De todo o panteão de Òrìsàs iorubás, domblé de outra maneira. E mais que isso: acabou por reverberar de maneira
Yemoja era a única cujo nome alguns Mapuche já haviam ouvido falar. “Tem a importante na produção da própria etnografia. Certa vez uma amiga de Piren
ver como o mar, né?”, eles perguntavam. A partir do entendimento dos Òrìsàs me perguntou o que é candomblé. Sem saber muito bem como explicar de
enquanto forças associadas aos mares, rios, pedras, vento, animais, plantas, maneira rápida e pontual, respondi: “é uma religião afro-brasileira”. Pronta-
mente Piren me corrigiu, dizendo que o candomblé não era uma religião, da
14 Explorei um pouco mais a centralidade dos maci na vida mapuche ao longo da tese (NARAH-
ARA, 2018). Para uma consideração mais aprofundada sobre essas autoridades, ver os trabalhos de
maneira que dizem os wigka. Ela então explicava que eu era parte de um povo
Bacigalupo (2007, 2016). originário no Brasil17.
15 A palavra kimvn deriva de kvymin. No passado, nas cerimônias de nomeação de jovens, por
vezes um estado de transe era induzido no menino ou na menina para que demonstrasse a caracte- 16 Cf. Viveiros de Castro (2011[1996]), Fausto (2008) e Arnold (2016).
rística que determinaria ou confirmaria seu nome. 17 Vale mencionar que Piren esteve durante um final de semana na nossa roça, na semana em que

176 177
Em um evento em uma biblioteca pública na cidade de Neuquén, Lanín quanto o Quetrupillán são considerados vulcões inativos pelos wigka
Pety Piciñam havia apresentado-me como uma “hermana originária do povo – uma classificação que não faz sentido para os Mapuche). Para nós, can-
afro-brasileiro”. O organizador do evento pediu então que eu fizesse uma fala domblecistas, o vulcão é Sàngó, Òrìsà que é o dono do nosso terreiro e que
sobre minha origem. Apresentei-me com meu nome iorubá, Ògún Lakijá, e é minha navalha, como costumamos dizer: foi através dele e de meu pai de
falei sobre a pesquisa que estava desenvolvendo entre os Mapuche. santo que eu (re)nasci no candomblé. Logo, estar rodeada por tantos vulcões
Com o tempo, e conforme ia vivendo episódios como esses, fui per- era um evento especial.
cebendo que a minha vivência no candomblé não apenas gerava um espaço Principalmente porque haviam se passado apenas alguns meses desde
de diálogo com os Mapuche: ela também me colocava numa posição pecu- a minha iniciação. O período de um ano após a iniciação no candomblé é de
liar – e, por vezes, confusa – enquanto antropóloga. Piren falava sobre mim uma série de restrições, no qual o recém-iniciado está, por assim dizer, mais
como alguém que “também está em seu processo de recuperação”. E parte da vida sensível ao mundo – às forças do mundo, diriam os Mapuche. No meu caso,
Mapuche na cidade, e mesmo na zona rural, passa por isso que eles chamam dentre muitas outras coisas, não podia me banhar diretamente em rios ou
de recuperação. A qual envolve, por exemplo, a retomada de práticas cerimo- cachoeiras.
niais, o uso de certas roupas e o próprio aprendizado do mapuzugun18. Se o A comunidade de Quetroleufu é entrecruzado por vários rios, onde
fazer antropológico é um processo de tradução (ASAD, 1992; VIVEIROS DE gente Mapuche e não Mapuche costuma se banhar durante o verão. Respeitei
CASTRO, 2004), no presente caso tratou-se de traduzir conceitos não apenas a interdição de tomar banho nos rios. Um dia, porém, por estar incomoda-
entre minha vida enquanto antropóloga e a vida dos Mapuche, mas também da com o alto valor que se pagava pelo consumo de água dentro da casa20,
entre esta última e minha vida enquanto candomblecista. fui sozinha lavar minhas roupas no rio bem ao lado da casa onde estávamos
Há ainda uma outra dimensão que, apesar do caráter aparentemente hospedadas. Não cheguei a colocar os pés na água: permaneci sentada nas
mais pessoal, acredito ser fundamental abordar, por também ter servido de pedras na sua margem, manipulando a água dentro de uma bacia. Terminada
base dos meus diálogos com os Mapuche. Numa conversa com Natty Huili- a tarefa retornei à casa, e comecei a sentir um profundo mal-estar. Eram con-
pan sobre minhas experiências nesta viagem mais ao sul, ela comentava que fusas sensações: um profundo cansaço, como se houvesse nadado por horas
“é no campo que se sente mais fortemente os distintos newen”. E eu pude expe- ininterruptamente, mesclada a uma sensação como se tivesse comido algo que
rimentar isso no meu próprio corpo, especialmente em Chiuquilihuin e em não me caiu bem, dentre outras experimentações corporais. Passei quase toda
Quetroleufu. a tarde com este mal-estar, e aos poucos fui me recuperando. Piren e Verônica
O Lanín foi o primeiro vulcão com o qual eu estive frente a frente explicavam que o que eu estava sentindo no meu próprio corpo era o newen
em toda a minha vida, e a viagem entre Chiuqui e Quetroleufu foi marcada relacionado ao rio Liucura.
pela presença deste e de outros dois pijan mawiza: o Villarica e o Quetrupil- Nesta mesma viagem, Verônica levava pela primeira vez seu recém-
lán, já em Gulu Mapu19. Em Quetroleufu, podíamos ver o cume do Villarica -comprado kulxug para “apresentá-lo ao seu território”. O kulxug foi feito sob
durante o dia e sua chama durante a noite (diferente do Villarica, tanto o encomenda por um senhor que vive em Chiuquilihuin. Numa das tardes na
casa de uma tia materna de Verônica, ela e Piren tocavam seus kulxug. Era um
defendi a tese de doutorado. Pretendo, em um escrito futuro, aprofundar os paralelos entre o mun-
do do candomblé e o mundo mapuche, partindo em especial das trocas com Piren depois dela ter
momento especial para Verônica, pois era uma das primeiras vezes que tocava
conhecido o nosso terreiro. seu kulxug, para uma de suas tias e em seu território21. Enquanto elas tocavam
18 Atualmente o espanhol é o idioma utilizado no cotidiano pelos Mapuche com quem eu convivi,
sendo que poucos falam mapuzugun fluentemente. 20 O consumo de água em todo o Chile é monetarizado, mesmo em comunidades mapuche.
19 Pijan ≈ sagrado, digno de ser respeitado; mawiza ≈ montanha ou floresta. 21 O kulxug é um instrumento percussivo feito de madeira e couro de animal. Ele é utilizado em

178 179
senti uma vontade incontrolável de chorar, e minhas vísceras movimentavam- começando o processo de escrita da tese, já no Brasil, num ritmo bem mais
-se de uma maneira que só costumo sentir quando estou no terreiro. Ao com- lento do que gostaria – era como se faltasse algo para fazer deslanchar. Con-
partilhar com Verônica e Piren minhas sensações, elas comentaram que eram versando com Pety e Alen sobre as dificuldades que estava tendo na escrita,
produtos das forças daquele lugar, ali em movimento. Pety disse então que eu fizesse uma pequena cerimônia na minha própria
Carmelita España Curihuil nasceu em uma comunidade em Gulu casa, despejando um pouco de mate na terra e pedindo para que os gen me
Mapu, mas vive na cidade de Neuquén há muitos anos. Seus sonhos costu- trouxessem kimvn para seguir com meu trabalho. Paralelamente, eles faziam
mam ser muito peculiares – e os sonhos compõem a vida mapuche de uma o mesmo desde Neuquén, com o mesmo pedido. A separação radical entre
maneira especial22. Em um deles, Carmelita encontrava-se com uma senho- campo e casa esmorece.
ra negra. Não lembro mais detalhes do seu relato, talvez ela não os tenha
mencionado. Ela contava sobre este sonho enquanto conversávamos sobre o
candomblé e minha iniciação. A sensação era de que esse sonho falava de um U ma antropologia de experiências densas e ordinárias
encontro entre memórias atemporais, que de certa forma se atualizavam ali,
Algumas das situações que descrevi anteriormente fizeram com que
naquele momento.
eu experimentasse corporalmente coisas que os Mapuche tentavam explicar
Senti esta mesma sensação quando estive no Wiñoy Xipantv da co-
a partir de palavras, muitas delas em mapuzugun. É como se estas experiên-
munidade urbana Puel Pvjv, em junho de 2015, na cidade de Neuquén. Esta
cias demonstrassem, de maneira radicalmente prática-corpórea, que mundo
é uma cerimônia central na vida mapuche, sendo realizada anualmente na
os conceitos mapuche, como o de newen, projetam (VIVEIROS DE CAS-
época do solstício de inverno. O Wiñoy Xipantv marca o início de um novo
TRO, 2002). Mundo em que forças do e no território são passíveis de serem
ciclo, sendo um momento de grande renovação das forças em waj mapu.
sentidas ou vivenciadas corporalmente pelas pessoas – assim também como
A celebração é realizada em diversas partes de waj mapu, e na cidade de
no mundo dos Òrìsàs.
Neuquén reúne Mapuche e não Mapuche, sendo um importante espaço
Muito refleti antes de decidir trazer vivências desse tipo para o texto
cosmopolítico, onde se dá visibilidade, por exemplo, aos conflitos relativos
acadêmico, as quais costumam estar restritas ao “bar ou restaurante”, como
às empresas petroleiras na região.
bem pontuou Stoller (1989). Basicamente o que pesava nesta decisão era a
No momento em que o maci Victor Caniullam, uma das autoridades
premissa de uma separação radical entre “observador” e “observado”, que in-
convidadas para a cerimônia, começou a tocar seu kulxug, fui tomada por
forma boa parte da produção antropológica. De acordo com essa premissa,
uma emoção que me fez chorar copiosamente. Conversando com Pety e
aquele que observa, ou seja, o antropólogo, “não pode falar a partir da expe-
Piren sobre o que havia acontecido, elas explicavam que esta era uma sen-
riência” (GOULET; MILLER, 2007:8). O caráter profundamente pessoal de
sação normal, já que um maci tocando seu kulxug põe-se em relação com as
experiências como as que acabei de descrever, por vezes confusas e intradu-
diversas forças do mundo.
zíveis em palavras, fazia parecer que não caberiam numa etnografia sobre os
Um outro contexto, também cerimonial, fez com que se estabele-
Mapuche. Pois, importante frisar, o intuito não foi produzir uma tese compa-
cesse um tipo de vínculo aparentemente menos usual entre nós. Eu estava
rando a vida mapuche ao candomblé.
contextos cerimoniais em especial, mas também em ações diretas, e mesmo em algumas outras Por muito tempo encarei esses episódios como “extraordinários”, os
situações, permitindo estabelecer uma comunicação com os newen. Para entender melhor a impor-
tância do kulxug na vida mapuche, ver Narahara (2018).
quais costumamos excluir do texto etnográfico e que por isso tendem a ser
22 Eles são formas privilegiadas de acesso ao conhecimento na vida mapuche, como discuti porme- marginalizados e invisibilizados, como sugere Tobón (2015). Este autor, a par-
norizadamente (NARAHARA, 2018).

180 181
tir de sua etnografia com os Muina, na Amazônia colombiana, demonstrou mesmas e suas sociedades por meio destas, mais do que a questão de saber o
a potencialidade dos seus próprios sonhos como “ferramentas etnográficas”, que são essas realidades […]” (WAGNER, 2010[1975]:195).
demonstrando que é plausível o antropólogo tratar das suas “experiências O fundamental é que esses episódios demonstram que ao “ser-afe-
sensoriais […] que tenham iluminado algumas de suas questões intelectuais” tada” por aquilo que também afeta os Mapuche (neste caso, segundo eles, as
(TOBÓN, 2015: 335). Como os sonhos de Tobón entre os Muina, era como forças do mundo), uma certa forma comunicativa, involuntária e não inten-
se minhas próprias vísceras também fossem uma ferramenta da elaboração cional, se estabelece entre nós (FAVRET-SAADA, 2005[1990]). No presente
etnográfica. caso, o repertório vivencial que trago do candomblé serviu como ferramenta
Hoje percebo que nos episódios que descrevo não há nada de ex- no estabelecimento dessa comunicação.
traordinário, pois estão longe de serem experiências incomuns ou inesperadas, “Ser afetad[a] por algo que os afeta” permitiu “estabelecer com eles
como as caracterizam Goulet e Miller (2007). Distinto, por exemplo, de ex- uma certa modalidade de relação” (GOLDMAN, 2003:465). É claro que
periências vivenciadas por Meintel (2007) entre “Espiritualistas” no Canadá, nunca saberei se eu e os Mapuche somos afetados de maneira semelhante, e
as quais “não correspondiam a sua autoimagem” (:135). No meu caso elas isso pouco importa nos termos da antropologia hegemônica, como demons-
eram absolutamente plausíveis e até mesmo esperadas, considerando minha trou Meintel (2007). A questão fundamental é que experiências que os Ma-
situação de recém-iniciada. Não é por um acaso que esta viagem de campo, puche vivenciam enquanto produto do efeito dos newen do mundo foram
especificamente, foi precedida de alguns cuidados que visavam uma maior comparadas às experiências que eu descrevia. E esse paralelo possibilitou cer-
proteção considerando meu estado mais sensível naquele momento. tas vinculações entre nós.
As próprias restrições referentes ao período de um ano após minha A antropologia pode então ser entendida não mais como um proces-
iniciação impediram que eu participasse da cerimônia junto ao vulcão La- so de “análise” ou de “exame”, mas sim enquanto uma “relação”, pela qual
nín, realizada em fevereiro de 2016. Diferente do Wiñoy Xipantv mais amplo, o “antropólogo experiencia, de um modo ou de outro, seu objeto de estu-
realizado na cidade de Neuquén, esta é uma cerimônia de participação quase do” (WAGNER, 2010[1975]:29, grifo do autor). Interessado nas diferentes
que exclusivamente Mapuche. No verão de 2015, a cerimônia do Lanín foi formas de “invenção da cultura”, Wagner demonstra que todos os humanos
realizada dias após eu ter voltado ao Brasil. Durante a realização da cerimônia objetivam ou inventam suas realidades (no sentido do que fazemos delas),
do Lanín, no verão de 2016, eu estava na província de Neuquén e havia sido assim como o antropólogo inventa sua própria “cultura” ao inventar a outra
convida para participar dela. Entretanto, por estar em um momento em que “cultura” que estuda. Sendo a relação que produz essas culturas “mais ‘real’ do
deveria ter certos cuidados no contato com as forças do mundo, fui orientada que as coisas que ela relaciona” (WAGNER, 2010[1975]).
pelo meu pai de santo a não participar. Como afirmou Viveiros de Castro (2004), “fazer antropologia signi-
Realmente talvez não importe se o antropólogo acredita que os “tam- fica comparar antropologias” (:2). Aqui também está em jogo uma crítica ao
bores” que se escuta são tocados por “vivos” ou por “mortos” – como demons- relativismo cultural, e seu pressuposto básico da separação natureza-cultura
tra Goldman (2003) a partir de sua pesquisa no sul da Bahia. A esta altura como algo dado, como a verdadeira realidade última, pois aquilo “que a an-
deve estar claro que eu acredito que se possa escutar não apenas os tambores tropologia […] põe em relação são problemas diferentes, não um problema
tocados pelos vivos – e foi importante expor isso para iluminar algumas li- único (´natural´) e suas diferentes soluções (´culturais´)” (VIVEIROS DE
mitações, e quiçá as potencialidades, da etnografia produto do meu encon- CASTRO, 2002:117).
tro com os Mapuche. Pois interessa, de um ponto de vista da antropologia Se todos humanos são capazes de inventar culturas, então uma “antro-
Ocidental “como as pessoas criam suas próprias realidades e como criam a si pologia reversa” é possível, de maneira que qualquer humano é ao seu modo

182 183
antropólogo (WAGNER, 2010[1972]). E a compreensão da antropologia sentenças no abstrato, mas de aprender a viver uma outra forma de vida
enquanto reversa e universal faz muito sentido para pensar minhas vivên- e de falar um outro tipo de linguagem” (ASAD, 1992:149, grifo do autor).
cias com os Mapuche. Pois também elas têm como base primordial “analo- Envolve experimentar, de alguma forma, uma outra vida a partir das relações
gias” utilizadas “para manejar e controlar os aspectos paradoxais” (WAGNER, construídas com as pessoas com quem nos encontramos.
2010[1972]:72). Se continuamos seguindo Wagner, as aproximações por nós Para Viveiros de Castro (2004) esta tradução passa necessariamente
tecidas – entre gen e Òrìsàs, por exemplo – eram tentativas de estabelecer por “equivocações”, sendo estas não um problema ou uma falha na comunica-
pontes entre nossos “contextos convencionais”. ção, mas uma dimensão constitutiva da tradução, logo da própria antropolo-
Fundamentalmente o que desmorona é a ideia de que se gia. O autor as define como um “processo envolvido na tradução de conceitos
práticos e discursivos dos ‘nativos’ em termos do aparato conceitual da antro-
faz trabalho de campo […] para reunir “dados” dos in- pologia” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004:4-5). No meu caso, os equívocos
formantes. Um coleta esses dados, os leva para “casa” e
participantes da tradução envolviam não apenas conceitos da antropologia,
então, de uma distância objetiva, os analisa. A análise
mas também aqueles provenientes da minha vida no candomblé – por mais
foca em um problema intelectual–parentesco, mudança
sociocultural, significado simbólico–a solução para ele que estes últimos, ao longo do texto, surjam de maneira explícita apenas no
refina a teoria social. A premissa subjacente dessa epis- presente capítulo.
temologia é fundamental: um pode separar pensamento
do sentir e agir (STOLLER, 1989:4, grifo do autor).
Considerações Finais
Era justamente esta perspectiva do trabalho de campo enquanto cole-
tas de dados que pairava sobre mim quando no ônibus em direção a Junín de A antropologia vem passando por uma série de processos de desesta-
Los Andes eu pensava: estarei abandonando meu projeto de pesquisa? Naquele bilização, produto de questionamentos relacionados aos “objetos” da “análise”
momento ainda não tinha dimensão da importância que esta viagem teria. Foi antropológica, à “autoridade” dos que produzem os textos etnográficos, e ao
apenas no seu transcorrer e posteriormente no desenrolar da própria pesquisa próprio paradigma que estruturou o surgimento de seu campo disciplinar – a
que percebi que foram essas andanças mais ao sul que fizeram a tese emergir divisão natureza e cultura23. Parte dessas reflexões, em especial aquelas rela-
mais claramente. Afinal, como chamam atenção Goulet e Miller (2007), é cionadas ao(s) objeto(s) de estudo da antropologia e à questão da autoridade
muitas vezes quando nos afastamos das pretensões iniciais da pesquisa que o etnográfica, alimentam-se da produção gerada por antropólogos negros e in-
trabalho etnográfico avança de forma mais significativa, e “a oportunidade de dígenas, como sinalizado inicialmente.
entrar profundamente no mundo de nossos anfitriões é abraçada” (:2). Ao falar sobre minhas experiências enquanto negra e candomblecista
A antropologia sendo uma relação, as metáforas ou analogias em território Mapuche, busquei apontar como contextos de produção etno-
que utilizamos podem se transformar por meio do trabalho de campo (WAG- gráfica que se distanciam de um modelo comum na antropologia – em que
NER, 2010[1975]), abrindo-se então a possibilidade da própria antropolo- um antropólogo, quase sempre branco, empreende uma viagem para um local
gia experimentar conceitualmente através dos mundos que analogias outras distante, onde espera vivenciar situações totalmente inesperadas – colocam
projetam (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Nesta antropologia-relação a novas questões à disciplina.
tradução, como vimos, é um processo central. Porém, importante ressaltar, 23 Não pretendo aqui produzir uma extensa lista de autores que tratam dessa(s) “crise(s)” na an-
tropologia, mas vale mencionar os trabalhos de Majefe (1971), Wagner (2010[1975]), Clifford e
“a tradução de um antropólogo não é meramente uma questão de combinar
Marcus (1986), Trouillot (1991), Ingold (2000), além de outros citados ao longo do texto.

184 185
As trocas estabelecidas com os Mapuche abalam à posição usualmente Ronnielle de Azevedo-Lopes

T emejakrekatê : do gnosecídio à afirmação dos saberes


A krãtikatêjê no vale do T ocantins -A raguaia
reservada aos negros e indígenas enquanto objetos antropológicos, ao mesmo
tempo em que colocam em xeque a própria divisão sujeito – objeto. Correla- A diferença de um unir é a mesma dife-
cionado a isso, também a separação entre campo e casa se desordenou. Não só rença de sempre, só quando aumenta ele
porque o trabalho de campo continuava quando eu já estava na minha casa, vai ser uma divisão... (PAIARÉ).
como eu indiquei em uma breve passagem. Mas principalmente porque estar
no campo, diante de um vulcão, era para mim estar de alguma maneira tam-
bém em casa. Como se em pleno território mapuche eu tivesse reencontrado o
meu próprio território. Esse processo é ainda mais complexo se consideramos S ou guerreiro , sou A krãtikatêjê
que para os Mapuche (e parece que também para mim) corpo e território
encontram-se em uma profunda continuidade, de maneira que uma pessoa Os Akrãtikatêjê experimentam o tempo , ao modo timbi-
carrega seu território em seu próprio corpo24. ra, enquanto acontecimento inesperado; todavia, segundo suas
Uma etnografia é produto de encontros. E se nesse encontro com os narrativas, ao ser percebido e assimilado na/o Temējakrekatê,
Mapuche a minha inserção no universo do candomblé cumpriu um papel o tempo pode ser traduzido e coletivamente planejado a partir
relevante, descrever etnograficamente essas situações ajuda a compreender as- de “quatro eixos norteadores”, a saber: “1. o tempo de fruto; 2.
pectos importantes do texto. Assim como é relevante explicitar qual aparato tempo de plantar; 3. Paiaré (memória luta e resistência); 4. sou
teórico acompanhou o processo de construção da tese, entendemos que foi guerreiro, sou Akrãtikatejê”. Compreendo que este último pode
importante também situar essa outra bagagem que levei comigo no encontro nomear a introdução deste ensaio.
com os Mapuche. Os Akrãtikatêjê, assim como os Parkatêjê (o povo que
domina a jusante do Rio) e os Kykatêjê (o povo que domina a
montante do Rio), são descritos pela etnologia e a etnolinguística
como pertencentes à família Timbira do tronco macro-Jê, tam-
bém designados de “Gavião”, “Gaviões do Oeste” ou “Gavião
da Mata” (NIMUENDAJÚ, 1946; ARNAUD, 1984; FERRAZ,
1984). Os Akrãtikatêjê, como os Parkatêjê e Kykatêjê, no estado
da arte, habitam a Terra Indígena Mãe Maria (T.I.MM) no mu-
nicípio de Bom Jesus do Tocantins-PA, próximo a Marabá-PA.
A autodenominação Akrãtikatêjê refere-se a Akrãti “montanha”,
“colina”, katê “o que comanda”, o “dono”, e Jê “povo”, “gente”,
“nós”, o povo que comanda as terras da montanha; refere-se ao
último assentamento que moraram, na antiga gleba de Ambaua,
às proximidades de Tucuruí-PA, antes da intervenção kupe͂ 1 (os
1 O termo kupe͂ , na contemporaneidade, para os povos designados de Timbira, re-
24 Tratei de maneira mais estruturada sobre como os Mapuche entendem e vivem essa continuida- fere-se ao ocidentalizado, ao que assume a performance do “branco”, o que pouco
de (NARAHARA, 2018). tem a ver com a pigmentação da pele. Kupe͂ aponta para o “outro” dos povos desig-

186 187
brancos) que os conduziram a T.I.MM. antigo contava muito. Tinha muitas guerras também. Eles contam guerras
Narrativas dos três povos e estudos etnográficos indicam que, antes também entre uns e outros porque se encontravam. Tinha que ter uma guerra
de serem alcançados pelo poder dos kupe͂ entre o final da década de 1950 e porque não se conhecia” (PAIARÉ, in, RIBEIRO JÚNIOR, 2014, p. 51).
início da de 1960, os Akrãtikatêjê juntamente com os Parkatêjê e Kykatêjê A primeira intervenção colonial contra os Akrãtikatêjê, talvez simulta-
já formaram grandes aldeias entre as cabeceiras dos rios Muju e Capim no neamente a invasão do seu território pelos kupe͂ , foi a outrificação “Gavião”. A
início do Séc. XX. Conflitos internos e a potência singularizante dos povos nomenclatura “Gavião” para coletivos chamados de Timbira no Vale do Tocan-
designados de Timbira conduziram a cisões que os dispersaram em um vasto tins-Araguaia, como os Parkatêjê, Kyikatêjê e Akrãtikatêjê – “Gavião do Oeste”,
território que, em diálogo com comunidades tradicionais, evoco como Vale do “Gavião das matas” ou “Gavião da montanha” – que hoje coabitam a T.I.MM,
Tocantins-Araguaia2. A época das cisões se desdobraria na constituição de não é uma autodenominação, mas uma designação kupe͂ para esses povos. O
pelo menos três povos distintos – Parkatêjê, Kykatêjê e Akrãtikatêjê; anciãos termo “Gavião” para a outreidade Gavião surgiu de um processo de constru-
e sábios/as dos três grupos a descrevem como o tempo das guerras3: “O povo ção racializadora kupe͂ em sua versão mais elaborada: o branco, o “civilizado”,
nados de Timbira que de algum modo precariza e desorganiza o modo de vida Jê-Timbira. É ainda o Estado, o colonizador, o cristão, o “colono”, os exploradores da castanha, os
uma experiência colonial: “Quando chegamos no Praialto, já tinha castanheiro, mas a terra não missionários, os jornais das décadas de 1930 a 1950, os viajantes, o senso co-
era do kupe͂ , a terra era nossa... o kupe͂ apareceu e aconteceu o primeiro ataque” (KRÔHÔKRE-
NHÛM, 2011, p. 53-54, grifos meus). mum colonial, os técnicos do Estado, os pesquisadores. Outrificar é um modus
2 A geopolítica de Estado chama de Sudeste Paraense, contempla ainda partes dos Estados do operandi do poder kupe͂ , um dispositivo da força dos brancos, que visa biologizar,
Tocantins e do Maranhão. A Academia vem chamando de Amazônia Oriental, destaco o Núcleo
de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará. O Vale do Tocantins-Ara- racializar, taxonomizar, em vista de colonizar, não raro, exterminar. De antemão
guaia aponta para territórios tradicionais irradiados pelos rios Tocantins e Araguaia. O Vale do To- faz-se necessário destacar que dada à designação, a posteriori esta foi remanejada
cantins-Araguaia é uma etnopaisagens, uma espacialidade em movimento elaborada e reelaborada
a partir de vivências e memórias experimentadas em contato com os rios Tocantins e Araguaia, suas semanticamente por estes mesmos povos como forma de agenciamento: “nós so-
proximidades e seus afluentes. mos o povo Gavião, povo guerreiro, né? _Povo que luta!” (TÔNKYRÉ, 2016).
3 Florestan Fernandes (2006) menciona a “função social da Guerra” na “organização social” Tu-
Doravante ao mencionar a designação agenciada, demarcando-a da outrificação
pinambá. Pontuo que, as “guerras” se contextualizavam para populações ameríndias amazônicas
a partir de uma experiência coletiva de ressalva a totalizações. Pierre Clastres aponta que está res- homônima, o ensaio o fará sob rasuras, Gavião. Memórias, resistências e tran-
salva é uma deliberação para evitar o Estado, um modo de não ser capturado pelo Estado-nação, sinvensões são evocadas nestas rasuras pelos Gavião:
pela lógica totalizante de coerção e comando: “O poder político como coerção (ou como relação
de comando-obediência) não é o modelo do poder verdadeiro, mas simplesmente um caso par-
ticular, uma realização concreta do poder político em certas culturas, tal como a ocidental (mas A minha vó conta assim que o Povo Gavião ficou co-
ela não é a única, naturalmente)” (2012, p. 37). Os povos tradicionais ameríndios, para Clastres, nhecido como “gavião” porque disse que apareceu um
seriam, portanto, “sociedades sem Estado” (Idem, p. 207). Esse enunciado, todavia, não pode ser
gavião. Disse que do tamanho de um avião na aldeia.
contemplado considerando que as “sociedades indígenas” tivessem uma falta, fossem privadas de
algo próprio à força dos brancos, o Estado-nação no caso. Tampouco o Estado seria uma meta das Disse que esse gavião era muito grande. Disse que veio e
sociedades sem Estado. Na visão etnocêntrica: “não se pode imaginar a sociedade sem o Estado, o
Estado é o destino de toda sociedade. Descobre-se nessa abordagem uma fixação etnocentrista tanto acirram cisões entre grupos próximos, não teria como finalidade o extermínio do divergente, como
mais sólida quanto é ela, o mais das vezes, inconsciente” (Idem). Neste sentido, o autor chama a se poderia inferir a partir de filtros ocidentais, mas: 1. a dispersão em um território; 2. a recusa do
atenção que mais do quê sociedades sem Estado seriam, na verdade, sociedades contra o Estado. unitarismo; 3. afirmações de dinâmicas singularizantes. O testemunho de Krôhôkrenhûm, a mais
O surgimento do Estado implica em um aprofundamento dessa cisão: “Existem por um lado as destacada liderança Parkatêjê, pode endossar tal compreensão: “Isso aconteceu pro lado do Muju...
sociedades primitivas, ou sociedades sem Estado; e, por outro lado, as sociedades com Estado. É a Mataram quase todos, uma parte da turma sumiu. Eu pensei que a gente ia acabar, mas voltaram a
presença ou a ausência da formação estatal (suscetível de assumir múltiplas formas) que fornece a ajuntar e ficou quase a mesma coisa. Do mesmo jeito que nós éramos antes. Antigamente era assim
toda sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de irreversível descontinuidade entre as socie- que nós fazíamos: quando era pouca gente no grupo, ficava escondido, para poder aumentar o
dades. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre selvagens e civilizados, grupo novamente e depois atacar de novo. Eram assim que caboco [indígena] aumentava e atacava
e traçou uma indelével linha de separação além da qual tudo mudou, pois o Tempo se torna Histó- de novo; precisava ficar bem escondido, porque as pessoas eram danadas! Elas procuravam para
ria.” (CLASTRES, 2012, p. 217). As guerras que cindem um grupo em ascensão numérica, ou que encontrar e matar” (2011, p. 44).

188 189
sentou. Disse que matou muita gente também, né? Ma- pescoço por uma taquara, conseguiu salvar-se, atiran-
tou gente mesmo. Aí disse que ficou conhecido como do-se resolutamente ao rio, sendo depois medicado em
Povo Gavião. Porque esse gavião ele sentou no meio da São João do Araguaya, para onde foi transportado. Em
aldeia. Mas disse que era muito grande. Grande demais! 1919, os mesmos indios atacaram a fazenda S. Pedro,
A pena dele era grande, aí ficou Povo Gavião. O Povo de propriedade da viuva Pedro Fontenelle, matando o
Gavião ficou conhecido por isso e porque também esse trabalhador João Branco e conduzindo uma creança do
gavião matou muita gente. E antigamente era um povo sexo masculino, depois de terem destruído tudo quando
muito brabo. Gavião matava na guerra. Quase acabou encontraram nas casas de moradia (1927, p. 23, grafia
com o Povo Parkatêjê. Brigava muito. Era um Povo de conforme a edição, negritos meus).
guerra mesmo! Povo de luta! (TÔNKYRÉ, 2019).
Os “Gaviões” seriam aqueles que atrapalhariam o progresso dos cas-
A outrificação “Gavião”, para coletivo indígenas no Vale do Tocantins- tanheiros – bem como mais tarde dos madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e
-Araguaia, buscava enfatizar o caráter “bravio” destes povos, bem como confor- mineradores – no Vale do Tocantins-Araguaia. Disciplinar seus corpos e colo-
me narrativas de viajantes, ressaltar a “brutalidade”, a “selvageria”, entre outros nizá-los seria um programa civilizatório kupe͂ . Em entrevista ao jornal Folha
significantes depreciativos. Os “Gaviões”, nestas ênfases, seriam atrasados, aves- do Norte em 29 de Outubro 1953, o prefeito de Marabá assim declarava: “a
sos ao Progresso, e precisariam urgentemente, em vista de se integrar ao “nós” região do Tocantins está ameaçada de um colapso econômico o que advirá
“civilizados”, da intervenção kupe͂ . Em relatos de Pelo Tocantins Paraense: uma forçosamente se continuar o atual estado de coisas, com os índios Gaviões
Viagem a Marabá, primeira obra especificamente acerca da cidade de Marabá atacando, frequentemente, os castanheiros que atemorizados abandonam os
e região, publicada em 1927, com autoria atribuída a Deodoro Machado de trabalhos” (In, DA MATTA, 1978, p. 140-1). Os desdobramentos não po-
Mendonça, se endossa tal imaginário em relação aos Gavião. Em seus termos: deriam ser outros, senão as diversas “expedições punitivas” aos Gavião e as
“fricções” entre os kupe͂ e os povos designados de Timbira no médio Tocantins
Os Gaviões pondo em pratica os seus instinctos selva-
nas décadas de 1930 a 1950. Nestes termos, a outrificação “Gavião”, e os
gens, trucidam os civilizados que encontram á mar-
significantes que a acompanhavam, justificava aos kupe͂ acionar sobre seus
gem do rio4, como aconteceu em 1907, no logar Ba-
cabal, pequeno ponto de fronte do povoado das Araras, corpos toda sorte de violência em um estado de exceção permanente com
com o lavrador Manuel, por acunha Explorador, que reverberações nos dias atuais: “Pra nós nunca acabou a ditadura. A ditadura
distraído, foi de súbito atravessado por uma flecha que existiu e existe, eu vivi a ditadura e estou vivendo de novo porque nós não
o prostou. Um seu companheiro, attigindo também no somos ouvidos como é pra ser ouvido” (TÔNKYRÉ, 2019).
Com a violência provocada pelo acirramento dos conflitos com os
4 Entre as décadas de 1930 e 1950, relatos como esses se tornaram cada vez mais sensacionalistas, se
intensificaram principalmente em manchetes de jornais da época como em “Fúria devastadora dos kupe͂ , os três povos se viram forçados a aceitarem a intervenção colonial que,
índios Gaviões” ou “Índios Gaviões ameaçam os habitantes de Marabá” de 1938 no Folha do Norte; gradativamente, os conduziriam ao deslocamento arregimentor e compulsório
“Dias tumultuosos e de inquietação vêm atravessando ultimamente as populações radicadas na vila
de Jacundá, no município de Marabá, motivados por constantes e perigosos ataques de índios das para o interior da T.I.MM5. Primeiros os Parkatêjê em 1956 no Praialta em
tribus Gaviões e Caiapós, ambas localizadas nas margens do rio Tocantins...” 1948 no jornal Estado
do Pará, o mesmo discurso poderia ser detectado em jornais de circulação nacional “em contato, 5 A T.I.MM era uma gleba de castanhais já reconhecida e reservada aos Gavião desde 1943 (Dec.
nas selvas do Tocantins, com os terríveis índios “Gaviões”, cuja ferocidade espalha o terror e a morte 4.503 de 28/12/1943). No entanto, como T.I só foi homologada pelo Decreto nº 93.148, assinado
entre as populações das margens daquele grande rio. (...) “Os “Gaviões” são índios absolutamente pelo Presidente José Sarney e publicado no Diário Oficial da União em 21/08/1986. Com uma área
selvagens. Dominam tôda a margem direita do Tocantins...” em 1951 no jornal O Cruzeiro (apud, de 62.488 ha, localizada no município de Bom Jesus do Tocantins-PA, é limitada a oeste pelo rio
FERRAZ, 1998, p. 32, 34, 35). Flecheiras e a leste pelo rio Jacundá, ao norte ao sul por duas linhas secas.

190 191
Itupiranga-PA, liderados por Krôhôkrenhûm: “Aí eu me criou coragem. Sem liderança de Paiaré (Hõpryre Rõnôre Jõpikti) e seus filhos, destaco Tônkyré
nada saber SPI, sem saber. Eu mesmo me criou coragem, eu disse: ‘Ah! Eu (Kátia Silene Valdenilson). O intento de singularidade, a assinatura cultural e
desse jeito... eu não aguenta não... Aí eu vou procurar no meio do ‘civilizado’” as experiências de cada povo guiaram estas cisões por meio da dinâmica Gavião
(KRÔHÔKRENHÛM, in, FERRAZ, 1984, p. 36). Em 1961, os Akrãtikatê- de heteroautodeterminação:
jê, guiados por Rônoré Pahiti estabeleceram relações e permanência próximo
ao posto do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) em Tucuruí-PA. Em 1968, Como que nós pensamos de vir pro lado da Parkatêjê?
Foi quando os Kyikatêjê saíram em 2000. Os Kyikatêjê
os Kykatêjê em Cidelândia-MA, nas proximidades do Rio Tocantins, entre os
desvinculou da Parkatêjê aí ficou nós né, aí nós chegamos
estados do Maranhão e Pará. À época do “contato”, os três grupos já estavam
para o nosso pai e falemos né: “pai, os Kyikatêjê foram
com número de componentes bastante reduzidos e sob o risco de total geno- embora dos Parkatêjê ficou nóis da Akrãtikatêjê, porque a
cídio. Desta feita, dizer como Krôhôkrenhûm ou Rônoré que “procuraram” gente não pensa também pai, de abrir um local e juntar
os kupe͂ – para não serem absorvidos na precarização e nos conflitos com os só o povo Akrãtikatêjê e nós também seguir nossa vida
próprios kupe͂ – compreendo como outro modo de agenciamento, nem sem- porque também a gente tem um costume diferente dos
pre percebido pelos pesquisadores: “quando a primeira expedição regressou Parkatêjê”. O trabalho deles é diferente do nosso. Em
termo de projeto a gente ver que não batia na hora das
com sucesso da empreitada do primeiro contato, a comunidade colocou-se
ideias não acatavam, não faziam. Aí meu pai dizia “bora
na expectativa de novos contatos e todos os trabalhadores de castanha senti-
tentar conversar”... (TÔNKYRÉ, 2017).
ram-se mais seguros” (DA MATTA, 1978, p. 149). A conclusão não poderia
ser outra senão a supressão da outreidade: “Foi esta a fase em que os Gaviões “Ser Akrãtikatêjê é ser guerreiro” me disse Kupepramre Valdenilson
desapareceram como grupo, passando, daí por diante, a se constituir num Toprawere (2019), filho de Tônkyré e uma das jovens lideranças da comunida-
bando de índios totalmente dependentes da sociedade nacional” (Idem, p. de. “Basta ver a nossa história” acrescentou ao comentar, ao lado de Tônkyré, o
151). A transferência para a T.I.MM se deu a partir de 1966 com a “remoção” “quarto eixo norteador” da Aldeia Akrãtikatêjê. Articulados em assentamentos
(ARNAUD, 1984, p. 6) dos Parkatêjê. Em 1968, os Kykatêjê seriam transferi- próprios na T.I, os Akrãtikatêjê gradativamente conquistaram reconhecimen-
dos. Por fim entre 1971 a 1983, os Akrãtikatêjê, principalmente por força da to, se afirmam como povo e promovem resistências distintas ao poder kupe͂ .
construção da Usina Hidroelétrica (UHE) de Tucuruí em suas terras. Paiaré, Como povo autodeterminado, entre outras formas pelos meios jurídicos dos
pai de Tônkyré, falecido em 2014, resistiu à transferência até 1983 quando sua kupe͂ , retomaram a luta contra a Eletronorte em vista do Mankatêjê, terra dos
permanência em Tucuruí ficou insustentável em função da área alagada, entre ancestrais, expropriada para a construção da UHE de Tucuruí.
outras devastações, provocada em decorrência da Hidroelétrica. Resistir e “ser guerreiro” ao modo de ser-viver Akrãtikatêjê não é uma
A precarização kupe͂ na vida dos Gavião orientou, na T.I.MM, por bandeira simplesmente dada. Exige arranjos e dinâmicas estratégicas firmadas
estratégia existencial, a reunião dos três povos em um único grupo sob a lide- por uma ancestral, afirmativa e ao mesmo tempo transcriativa sabedoria. Nos
rança Parkatêjê de Krôhôkrenhûm, falecido em 2016. Até a década de 2000, enfrentamentos cotidianos, nos embates jurídicos com os grandes projetos,
os Gavião no Vale do Tocantins-Araguaia estiveram agrupados em um mesmo bem como na organização da comunidade, na transinvenção de instituições/
coletivo. Não obstante, os três povos se reconheciam em suas singularidades dispositivos kupe͂ estratégicas como a escola, a escrita e o currículo, encontra-
culturais e reivindicavam à diferença. Em 2000, os Kykatêjê se mobilizam e -se a/o Temējakrekatê. Todavia, o que seria a/o Temējakrekatê? Que tradução,
conseguiram se reorganizar em suas próprias aldeias. Em 2009, foi a vez dos mesmo como tarefa impossível (DERRIDA, 2010), poderia fazer justiça a/o
Akrãtikatêjê, que se articularam e pleitearam seus próprios aldeamentos sob a

192 193
Temējakrekatê? Como se articula e opera nas mais variadas organizações, dis- caçadores e castanheiros; e se encontram mais uma vez assediados por consór-
positivos e ações Akrãtikatêjê? cios de empreiteiras que pretendem duplicar a ferrovia e Construir uma Nova
Hidrelétrica às margens da T.I que hoje habitam. Nestes termos, ao mesmo
tempo em que Tônkyré denúncia os mecanismos do poder, convida seu povo
O gnosecídio e a resistência A krãtikatêjê à resistência:
Todas as violências kupe͂ contra os Akrãtikatêjê foram acompanhadas A terra que nós vive é cheia de riquezas. Aqui é cheio de
de pareceres técnicos, discursos desenvolvimentistas, pregações catequéticas minério, de madeira, de ouro, de caça. Hoje, a nossa caça
e recomendações de órgãos de Estado. O poder metafísico-colonial, a força elas estão afugentadas, por causa do barulho da ferrovia.
dos brancos, se materializa e capilariza por meio de dispositivos diversos entre O nosso igarapé secou. A maioria de espécie de peixe foi
eles a cristianização, a escolarização e o gnosecídio (do grego “gnose” “saberes”, embora. Hoje nós cria tanque de peixe, como vocês ver.
“conhecimentos”, o que engloba a episteme e outras formas de conhecimentos Porque nossos igarapé tá aí oh, nós temos que dividir
com fazendeiro, com moradores da rua, tudo isso é para
e traduções culturais).
vocês refletir o que nós tamo vivendo hoje. O nosso fruto
O poder6 metafísico-colonial, em seus múltiplos mecanismos, se é dividido com invasores, a nossa madeira é retirada lá no
exerce e acontece a partir de efeitos variados tanto nas mais ínfimas como nas fundo, a nossa caça é dividido. Hoje o povo se multipli-
macros relações. O poder vem de baixo, de cima e de todos os lados. O poder cou e a terra para nós diminuiu. Quem vai brigar pra nós
se pulveriza e se capilariza de diversas formas a partir de diversas frentes: “O por mais terra? Será que nós vamo segurar essa terra? Nós
poder não é substancialmente identificado com um indivíduo que o possuiria tem a nossa voz: é ouvida de nós dizer não, eu não quero
ou que o exerceria devido a seu nascimento; ele se torna uma maquinaria de a barragem? Será que alguém vai ouvir nóis dizer não,
Presidente? Nós não quer a barragem aqui não... Vão pas-
que ninguém é titular. Logicamente, nessa máquina, ninguém ocupa o mes-
sar por cima de nós. Nós vamo ser atropelados outra
mo lugar” (FOUCAULT, 2016, p. 332). Em seus variados dispositivos, como vez. Nós perdemo nossa terra de Tucuruí... Nós pode não
o gnosecídio, enquanto normatividade, o poder é exercido por colonialidade: a ter carro do ano, nós pode não ter a melhor casa, mas
engenharia colonial da força dos brancos. Distintos dispositivos e elementos do nós ainda tem a melhor terra. O ar que nós respira não
poder, assim como dinâmicas de resistências a estes, podem ser percebidos em é igual ao de Marabá não. Porque chuva acontece? Por
diversos discursos de Tônkyré. Os Akrãtikatêjê foram atacados por castanhei- causa das nossas matas. Eu falo assim pra vocês [filhos]:
ros, remanejados compulsoriamente de suas terras em função da construção bate no peito que nós somos um povo rico, rico de
conhecimento. Nós pode não ser formado em uma fa-
da Hidrelétrica de Tucuruí; tiveram suas “novas” terras recortadas pela linha
culdade, mas nós tem nosso conhecimento de como nós
férrea da Companhia Vale e pela Rodovia BR 222, se veem constantemente proteger, de como nós não agredir a nossa mata. Todo
ameados pela pressão dos vizinhos fazendeiros e de invasões de madeireiros, esse cuidado nós tem. É diferente do homem branco né?
6 Compreendo o poder em seus efeitos coloniais a luz de Foucault. O poder como “multiplicidade Eles vêm modificando, eles vem devastando, para eles
de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização...
tudo quer fazer fazenda. Tu viu o que o homem falou?
A condição de possibilidade do poder (...) não deve ser procurada na existência primeira de um
ponto central, num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes... Se fosse eu, eu desmataria essa beira aqui tudinho e fazia
Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unidade, fazenda. Mas nós não pensa isso, porque nós fala oh, nós
mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um não vamos caçar, esse tempo os nosso porco tá de filhote,
ponto e outro... é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”
(FOUCAULT, 2011, p. 102-3). nós não vamo pegar jabuti, porque nossas jabota tão tudo

194 195
ovada. Mas homem branco eles vêm pegar as jabotas e outras, religiosidades outras, produções artísticas outras...). O gnosecídio é,
deixa só os macho. Macho vai aumentar? (TÔNKYRÉ, portanto, o modus operandi do conhecimento ocidental hegemônico que jus-
2017). tifica “a invasão, a conquista e a dominação de um pensamento sobre outras
epistemologias ou sobre outras cosmogonias” (KRENAK, 2019, p. 107).
A angústia na fala de Tônkyré não se dirige exclusivamente a Cia Vale,
Por meio do gnosecídio, entre outros dispositivos, a força dos brancos
ao consórcio de empreiteiras que invadem as terras dos Gavião no Vale do
intenta invisibilizar, desqualificar ou folclorizar saberes-vivências tradicionais
Tocantins-Araguaia para realizar estudos em vista de duplicar a ferrovia, aos
de povos não-ocidentais, como os Akrãtikatêjê. A filosofia ocidental, pelo me-
executivos dessas corporações, a possibilidade de uma Nova Hidrelétrica ou
nos a filosofia hegemonizada na modernidade ocidental, não está ausente des-
aos fazendeiros da região. A fala de Tônkyré se dirige a Cia Vale, ao consórcio
te processo. A filosofia hegemônica se articula por meio de enquadramentos
de empreiteiras, aos seus executivos, à própria ferrovia, à rodovia, aos fazen-
normativos que se desdobram marginalizando e precarizando os saberes-e-vi-
deiros, ao agronegócio, à ameaça de uma nova Hidrelétrica, ao governo, aos
vências tradicionais em nome do “nós” autoreferencial do Ocidente, o “nós”
“presidentes” (do país e das grandes corporações que saqueiam a Amazônia),
versus “eles” do humanismo: “o ‘nós’ que, de uma maneira ou de outra, sempre
ao Estado, às políticas de Estado, aos caçadores que invadem suas matas e ex-
teve de remeter para si mesmo na língua da metafísica e no discurso filosófico”
terminam “os bichos”, a FUNAÍ, àqueles que poluem, impactam e suprimem
(DERRIDA, 1991a, p. 163). O “nós” filosófico é a normatividade logocêntri-
os rios que cortam o território de seu povo, ao enquadramento territorial, às
ca do Ocidente, da força dos brancos, que ridiculariza tudo que não se alinha ao
políticas de identidade, à redução do tamanho da terra indígena frente ao
mesmo: “Por manterem a mente cravada em seus próprios rastros, os brancos
“povo” que nos últimos anos vem “crescendo”, ao próprio patriarcado e aos
ignoram os dizeres distantes de outras gentes e lugares. Se tentassem escutar
machistas que desconfiam de sua liderança, à postura do branco que degrada
de vez em quando as palavras dos xapiri, seu pensamento talvez fosse menos
e desrespeita a natureza. A fala de Tônkyré se dirige ao poder metafísico-colo-
tacanho e obscuro” (KOPENAWA, 2015, p. 455). Sob este “nós” filosófico-g-
nial pulverizado nas mais diversas formas, nas mais diversas frentes e que atin-
nosecida7, os Akrãtikatêjê reivindicam rasura, transinventam e promovem seus
gem os Akrãtikatêjê de diversos modos e de todos os lados. A fala de Tônkyré
7 Em nome do “nós” ocidentais – dos brancos –, a filosofia hegemônica opera por gnosecidização,
se dirige à força dos brancos. Percebe-se no desabafo de Tônkyré, os efeitos do inviabilizando o diálogo com a outreidade, suturando gnosiológica e ontologicamente os saberes
poder nos mais distintos dispositivos desde o “barulho da ferrovia” que afugen- tradicionais, impossibilitando a discursividade de experiência não-eurocêntricas de pensamento,
fechando seus tímpanos logocêntricos para tudo aquilo que não é o mesmo: “Eles tinha só que
ta as “caças”, a devastação ambiental, a burocracia do Estado, ao gnosecídio que escutar e respeitar o tempo. Se eles entendessem nóis, como a gente pensa, como nós queremos...”
inviabiliza a outreidade por meio da produção do “outro”, bem como a lógica (TÔNKYRÉ, 2018a). Uma tática gnosecida, neste processo, é a simplificação do pensamento da
outreidade. Tal dinâmica conduz as experiências outras ao plano do fetiche e do mítico. O “outro”
de ameaça e precarização kupe͂ . tem fetiche, o Ocidente, fatos! O “outro” tem mito, o Ocidente logos! O “outro” teria crença, o
O gnosecídio seria uma estratégia colonial da força dos brancos, endossa- Ocidente moderno, Ciência! “Por todos os lugares onde lançam âncora, estabelecem fetiches, isto
é, os modernos veem, em todos os povos que encontram, adoradores de objetos que não são nada...
da na teoria do conhecimento moderna, de tentativa de nivelamento, redução
É moderno aquele que acredita que os outros acreditam” (LATOUR, 2002, p. 15). Desta feita,
e-ou desqualificação de saberes outros. O gnosecídio implica nos procedimentos somente em um paradoxal ato de fé os filósofos brancos podem dizer: “O Ocidente e a Europa, e
e mecanismos, dentro da engrenagem da colonialidade, de enquadramentos e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história, originariamente ‘filosóficos’. Isto é atesta-
do pelo o domínio das ciências” (HEIDEGGER, 1999, p. 29). Haveria alternativas à colonialidade
assujeitamentos normativos-gnosiológicos e culturais da outreidade. Desta fei- e à sua sutura filosófica? Uma saída ao gnosecídio filosófico foi acenada por Derrida: descontruir
ta, compreendo gnosecídio enquanto o dispositivo tecnocientífico da colonia- este “nós” – dissolvê-lo na outreidade – e desarticular sua estratégia de simplificação [ou ainda
simplificar sua complexidade]; apontar o mítico do logos, o “nosso” mito; descortinar a metafísica
lidade, da potência da força dos brancos, que se desdobra por marginalização, ocidental como a mitologia da força dos brancos: “A metafísica – mitologia branca que reúne e
não raro de (tentativa de) extermínio ou sutura de gnosiologias outras (ciências reflete a cultura do Ocidente: o homem branco toma a sua própria mitologia, indo-européia, o seu
logos, isto é, o mythos do seu idioma, pela forma universal do que deve ainda querer designar por

196 197
próprios agenciamentos potencializados por sua Temējakrekatê: articuladas no bojo da/o Temējakrekatê: “o núcleo da sabedoria” Akrãtikatêjê
(Idem, 2019a).
Estado, professor, branco, kupe͂ , não tem como eles en-
tender nóis. Eles tinha só que escutar e respeitar o tempo.
Se eles entendessem nóis, como a gente pensa, como nós
T em E akrekatê : afirmação e resistência dos saberes A krãtikatêjê
queremos. Porque nós temos uma sabedoria, uma visão
enorme. Porque nóis enxerga longe, nóis sabe a necessi- A/o Temējakrekatê se perfomatiza em orientações pelos quais os Akrã-
dade que cabe pra nós: de nóis viver bem, tá bem com a tikatêjê afirmam seus saberes-vivências, ao mesmo tempo em que resistem ao
nossa terra, de tá bem com a natureza, de nós não pre-
gnosecídio, entre outros dispositivos da colonialidade. É uma forma de hete-
judicar a nossa natureza. É muito difícil alguém vim en-
sinar nóis. É mais fácil nóis aprender todo mundo junto
roautodeterminação frente às capturas e homogeneizações do poder metafísi-
(TÔNKYRÉ, 2018a). co-colonial. Nestes termos, Temējakrekatê não é um termo vago ou folclórico,
como a força dos brancos poderia fetichizar por meio do gnosecídio. A/o Temēja-
Demarcar um “jeito de ser” e um pensamento outro frente ao gnosecídio krekatê é um nome assumido pelos Akrãtikatêjê, e enquanto tal, como aponta
é outra agência Akrãtikatêjê, a fortiori, indígena: “Nós somos habitantes da flo- Tônkyré, conduz a fluxos de experiências, significados múltiplos e histórias,
resta. Nosso estudo é outro. Aprendemos as coisas bebendo o pó de yãkoana que se desdobram “fortalecendo a comunidade”:
com nossos xamãs mais antigos” (KOPENAWA, 2015, p. 458). Os saberes-vi-
O nome ele diz tudo para nóis: significa respeito, ele sig-
vências Akrãtikatêjê, enquanto saberes outros frente à lógica kupe͂ , reivindicam
nifica como você não vai xingar o outro, como você vai
à diferença: “Nóis existe! Nós tem uma organização diferenciada, né? E a nossa
crescer respeitando a sua cumadi, o seu cumpadi; como
organização é diferenciada, o nosso ensino é diferenciado, o nosso pensamento aquela mulher não vai casar com outro. Então tudo isso
é diferenciado” (TÔNKYRÉ, 2019b). Uma “organização diferenciada”, um é uma forma de saberes que elas têm que saber o nome
“pensamento diferenciado” e um “ensino diferenciado”, expressam performa- delas. Elas têm que saber com quem elas podem casar,
tividades gnosiológicas não submetidas ao logos e a paidéia que deste decorre. elas tem que saber para fortalecer a comunidade, for-
Essas diferentes estratégias de afirmações e agenciamentos do Povo Akrãti são talecer através do nome. O nome para nóis ele diz
tudo. Ele significa a tua vida... Tudo para nóis tem um
Razão” (DERRIDA, 1991b, p. 253). Isto implica em apontar os mecanismos simplificadores dessa significado, pro branco não tem, mas pra nós tem. (TÔ-
“simplificação” como o humanismo, o etnocentrismo, o preconceito, a outrificação, a racialização,
a distribuição diferencial da precariedade (BUTLER, 2015; 2018), o próprio gnosecídio, o hetero-
NKYRÉ, 2018a).
cídio, o “xenocídio” (VALENTIM, 2018)... a geofobia e o geocídio: o ódio a Terra (Gaia, Pacha,
Pjê) se desdobra na sua devastação e no extermínio de bilhões de terranos em nome de um suposto A/o Temējakrekatê é um nome que aponta para outros: acena para
cosmopolitismo (kantiano): A destruição das matas, o nicho dos encantados (dos xapiri) e outros-
-que-humanos, seria um projeto filosófico? O que há de filosófico no Antropoceno (ou Androceno Temēja-kre, a sabedoria do povo, e katê comando ou determinação. Com-
sendo mais razoável)? Ir ao encontro da outreidade, das tradições não-ocidentais, das práticas e preendo a/o Temējakrekatê, enquanto o modo como a sabedoria do povo Ak-
vivências outras sem tentar compartimentalizá-las, objetificá-las ou reduzi-las pode ser outra saída.
Nesta dinâmica é necessário problematizar mais uma vez o pensamento supostamente complexo rãti se determina, enquanto afirmação cultural e expressão onto-gnosiológica
ou quente: até que ponto este “complexo” não é um “simples” hegemonizado? “Nossas” certezas, desse coletivo. Seria, portanto, o nome de uma experiência de ser-saber-viver
“nosso” fetiche! De fato é preciso amiudar (HADDOCK-LOBO, 2019) a filosofia hegemônica e
suas metareferências (Platão, Descartes, Kant, Hegel, Marx, Heidegger...); o quê não significa redu-
Akrãtikatêjê. Um nome dado por Paiaré e por Tônkyré ao que chamam de
zir o pensamento. Mas ao contrário, ampliá-lo; quebrar seus muros autoreferenciais e colocar sob “núcleo da sabedoria” da aldeia Akrãtikatêjê: “Uma faculdade aqui é o nosso
suspeita os discursos monolinguísticos. Talvez uma proposta razoável seja desumbigar a percepção
filosófica! Faz-se urgente uma postura transcolonial.
centro de ensinamento, eu falo assim: quando meu pai teve essa ideia brilhante

198 199
de botar Temējakrekatê, o núcleo da sabedoria... Porque nós sabemos o que Por isso mesmo que nós deixa assim no ar livre8. Aqui
nós queremos” (TÔNKYRÉ, 2019a). você vai se sentir à vontade, vai renovar a tua mente,
O nome dado pelo pai, Paiaré, mas que aponta para a mãe, Rõnoré, onde tu olha, pro espaço aí vem ideias. Por isso a escola
tem que ser isso, ela tem que ser de acordo com a
avó de Tônkyré. Um nome assumido pela filha, pelos netos/as e por toda co-
comunidade. É por isso que vem ideias, surge ideias,
munidade, a qual traduz a ética, a estética e as dinâmicas onto-gnosiológicas de você olhar pro tempo e pro espaço. Porque o povo
Akrãtikatêjê. Temējakrekatê é o segundo nome de Rônoré Pahiti; entretanto, é movido pelo espaço, e quando você olha, aquilo te
reinventado em vista da alteridentidade do Povo Akrãti. Temējakrekatê enuncia inspira. Puxa eu olhei pra ali e me deu ideias. As ideias
uma interlocução intermitente entre ancestralidade, transformação cultural e ela vai se inovando assim como a própria linguagem do
transcriação do próprio povo: povo, só a linguagem se renova, vindo direto da lín-
gua. Assim como a língua vai inovando, vai inovando
Esse núcleo tem referência a minha avó, porque até hoje também o pensamento, enchendo de ideias, cada vez
ela está viva. Ela é uma biblioteca de ensinamento; ela mais você enriquece o seu conhecimento. Por isso digo
tem muito conhecimento, muitas qualidades, tem mais para os meus filhos: vocês nunca se coloca pra baixo,
de cem anos. O nome da escola é o nome da minha avó vocês se coloca lá em cima, porque o aprendizado você
em homenagem a ela, esse núcleo de ensinamento vem aprende no dia a dia, na fala, no andar, no gesto. Nós
através dela. Pois vem desde meu pai, onde ele pensou estamos compartilhando conhecimento. É sair do con-
dela, ela é uma história viva; pois ela é como se fosse um forto. Vocês saíram do conforto, quando vocês saem de
monumento vivo, não é que ela é uma estátua, ela ainda lá até aqui, vocês estão saindo do conforto. Porque o
tá viva... essa é a nossa referência (TÔNKYRÉ, 2019a). aprendizado que não tem o conhecimento e visão que a
gente tem é porque ele tá fechado, tá aprisionado, não
Temējakrekatê evoca que os saberes tradicionais dialogam com a an- tem ideia. Ele vai ter como ideia? Em quê que ele vai se
inspirar? (TÔNKYRÉ, 2019a).
cestralidade e apontam para uma tradição outra: uma tradição evocada sob
rasuras. Ancestralidade em devir. Uma tradição em que um povo, uma comuni-
O remanejo semântico, movimentado a partir do agenciamento e tran-
dade, uma experiência coletiva outra edificam a própria linguagem e a própria
sinvensão dos saberes tradicionais, produz escapes ao logos e a paidéia que este
cultura como afirmação e resistência ao poder metafísico-colonial, a força dos
demanda. A escola metamorfoseada em uma escola outra, “diferenciada”, tra-
brancos. Uma tradição, a despeito dos arranjos gnosedizadores, fecunda, viva
dução cultural torna-se afirmação da/o Temējakrekatê, expressão da educação
em devir. Tal tradição que se afirma nos saberes tradicionais perfomatiza an-
Akrãtikatêjê: “a nossa escola é diferenciada. Porque a nossa escola tá ligada
cestralidade e transcriatividade. A linguagem, a língua, o pensamento, o ter-
aos nossos projetos e nosso modo de vida. Por isso que a nossa escola é uma
ritório, a natureza, a cultura, as narrativas, as memórias são inseparavelmente
escola diferenciada. É por isso que eu falo pros professores para eles entender e
afirmados e elaborados nesta performatividade. Desta feita, é possível transco-
respeitar nossa cultura e costume” (TÔNKYRÉ, 2018b). A escola diferenciada9
lonizar e remanejar no interior de tal tradição termos, instituições, discursos,
não aponta para a diferenciação – para as políticas de identidade – todavia
ações e dispositivos diversos da força dos brancos, como a escola (skolé), o cur-
à diferença, ao imprevisível, ao respeito à temporalidade e à singularidade, as
rículo (currere), a escrita fonocêntrica... a filosofia ocidental. O agenciamento
8 Escolas em formatos de tapiris.
transcolonial transinventa o remanejado em escola outra, currículo outro, escrita 9 Tal como a escola, o currículo Akrãtikatêjê também é diferenciado: “O currículo nosso está de
outra, filosofia outra. Nas palavras da filosofa akrãtikatêjê: acordo com o nosso projeto. Todo o currículo está de acordo com nosso projeto, com nosso calen-
dário; está de acordo com a nossa cultura” (TÔNKYRÉ, 2018a).

200 201
quais não podem ser compreendidas de modo simplesmente dado: “a diferen- escola não tem capacidade de ensinar ninguém, dizendo
ça [différance] não é. Ela não é um ente-presente, por mais excelente, único, que não tem coragem de botar o filho lá. Não sabem o
principal ou transcendente que o desejemos... Não se anuncia por nenhuma que tá perdendo10 (TÔNKYRÉ, 2019a).
maiúscula. Não somente não há qualquer reino da diferença como esta fo-
A/o Temējakrekatê, o “núcleo da sabedoria” Akrãtikatêjê, não é uma
menta a subversão de todo e qualquer reino” (DERRIDA, 1991c, p. 55). A
esfera estática, um centro fechado pelo qual tudo se irradiaria. O núcleo aqui
escola diferenciada do Povo Akrãti reivindica a diferença e convida ao ser-viver
implica em resistência à força dos brancos, e, portanto, é aberto, dinâmico e es-
Akrãtikatêjê, abrindo horizontes transcoloniais em tudo que este ser-viver entra
praiado. Temējakrekatê está disseminado nas ações e discursos assumidos pelo
em contato:
povo Akrãti: encontra-se pulverizado na compreensão de escola Akrãtikatêjê,
Quando a gente fala de escola diferenciada eu falo muito. no currículo da escola, no “plano de vida” da comunidade, nas produções ar-
Esse aprendizado é diferenciado, porque a nossa casa é tísticas, nas festas, nos rituais, nas caçadas, na roça, na língua, na preparação
de palha. Não é por que o espaço não é adequado, mas do berarubu11, na corrida de torra, no pemp12, na percepção da temporalida-
sim uma escola diferenciada porque nós temos a opção, de. “Ela [Temējakrekatê] é à base de tudo né, é a nossa base, ela é da roça, de
a autonomia de escolher o que queremos estudar e isso
planejamento, é de projeto, é das histórias. Não é só na escola, é de todos os
é uma escola diferenciada. Porque lá o mundo do kupên,
cantinhos, onde estiver, é na roça, é no igarapé...” (Idem). A/o Temējakrekatê
eles estudam muito livro, uma história que não é verda-
deira [sobre indígenas]. A nossa escola ela estuda a his- acena que a gnosiologia está intrinsecamente vinculada ao modo de ser-viver
tória verdadeira. Não são mitos; é coisas da realidade, de um povo, no caso, Akrãtikatêjê. A/o Temējakrekatê, o “núcleo da sabedoria”,
são coisas do dia a dia, com rituais que acontecem com é a própria experiência de ser-saber-viver Akrãtikatêjê; o modo como se afir-
o nosso povo, por isso que a nossa escola é diferenciada. mam e se reinventam, não obstante, à colonialidade kupe͂ e sua precarização:
O privilégio que cada aluno tem em ter um professor só
pra si, porque se tiver um aluno que tem dificuldade, Esse núcleo de sabedoria trabalha com um formato em
ele vai ter uma professora só pra ele, e assim poder su- estilo indígena, que não é de sentar nas costas dos outros,
perar, e junto com os outros ver onde está a dificuldade, então até o modelo da escola, onde tenha uma escola
porque aquele aluno não tá evoluindo. Então assim, tem padrão de acordo com o nosso dia a dia, com a nossa
tudo, eu falo que é uma escola diferenciada até pela qua- convivência, com nosso aprendizado, é por isso mesmo
lidade dos professores, dele está adequado pra dar aula, que eu falo que aqui é uma universidade, aqui é um
mesmo que ele não seja indígena, mas assim, o cuidado
em quem você vai colocar na sua casa, e a comunidade 10 Ao término dessa fala de Tônkyré, Toprawere completa: “A escola é diferenciada também no
participando, acompanhando. A gente fala sempre para sentido da cultura, ela é mais uma ferramenta de incentivo a cultura, aonde nós aprendemos a can-
os professores que a gente quer que eles deem conta do tar, aprender o artesanato, aprender a escrever a nossa própria língua, a história do povo e como a
gente veio parar aqui na T.I Mãe Maria, conhecendo a história dos três povos também. Nesse senti-
recado. Eu quero aquele aluno falando, eu quero aque- do que a nossa escola é diferenciada, ensinando sempre o respeito, a escola é diferenciada nesse sen-
le aluno preparado porque aqui não é só formação do tido. Ela ensina o que nós achamos que é importante pra nós, que é realmente necessário aprender,
aluno, mas sim de liderança... Porque você tem que dar mas sem deixar de aprender os outros conhecimentos. Porque o importante pra nós hoje é estudar
sobre as leis, tanto indígena quanto não indígena também, que nos ampare e que também pode nos
continuidade na sua caminhada e o branco não entende
afetar pra saber nossos direitos, quais são? Vamos buscar e ensinar na sala de aula também” (2019).
como a nossa escola é diferenciada e dizem que a nossa 11 (Ou Kuputi) prato tradicional para diversos povos designados de Jê, como os Gavião no Vale do
escola é diferenciada porque a gente não tem condição, a Tocantins-Araguaia, feito a base de mandioca e carne de caça.
12 Ritual de iniciação dos jovens.

202 203
lugar de aprendizado, porque tudo se aprende aqui, a munidade ao preparo e partilha do berarubu. O que não depreende que não
história, o artesanato, o cântico, a identidade, o fortaleci- haja um tempo de caçada, de plantio ou de colheita; todavia, que a tempora-
mento, planejamento e se planejar pra caçada, pra roça, lidade timbira é experimentada como escapes que propiciam acontecimentos
pra plantio, colheita, por isso que chamamos de núcleo
inesperados e encontros e vivências que respondam a estes acontecimentos.
de ensinamento. Não só aqui nesse espaço [escolar], mas
em qualquer espaço da aldeia, qualquer espaço... (TÔ-
O tempo-timbira é marcado por convite: vamos preparar e comer o be-
NKYRÉ, 2019a). rarubu! Venham, joguem suas flechas! Corram conosco! O tempo timbira é uma
temporalidade-convite. Quer dizer, o tempo-timbira, a temporalidade experi-
Se o logos exige a paideia grega como condição cultural e educacional, mentada pelos Akrãtikatêjê, é um convite a experimentar a natureza-e-cultura
a fortiori, a homogeneização colonial e o etnocentrismo: “a história daquilo a a partir de uma cosmologia igualmente intempestiva e envolvente; um convite
que podemos com plena consciência chamar cultura só começa com os Gre- à experiência coletiva Gavião e Timbira.
gos” (JAEGER, 1995, p. 5). A heteroautodeterminação do nome Akrãtikatêjê Uma última questão poderia se lançar sobre este ensaio: como os
demanda a Temējakrekatê, como expressão de um ser-viver outro potenciali- Akrãtikatêjê transformam o convite do tempo-timbira em organização, insti-
zado em uma educação outra. Portanto, essa potência singularizante, não sub- tuições e resistências coletivas à força dos brancos? A resposta Akrãtikatêjê é
serviente a paideia grega-cristã, se articula transcolonizando o mundo kupe͂ , novamente a/o Temējakrekatê. Os saberes e as dinâmicas educacionais, que o
traduzindo instituições e empreendendo resistências. O modo de ser-saber- tempo-timbira provoca, se desdobram em narrativas e agenciamentos que se
-viver outro, que demanda uma educação outra, aponta para pensamentos e articulam elaborando o jeito de ser Akrãtikatêjê. Na/o Temējakrekatê, a expe-
investigações igualmente outras: “aprendemos a pensar direito com os xapiri. riência do tempo-timbira é traduzida em projeto de ser-saber-viver coletivo,
É esse o nosso modo de estudar e, assim, não precisamos de peles de papel” em uma complexa organização social, bem como em um calendário outro que
(KOPENAWA, 2015, p. 458). serve de suporte para o currículo da escola diferenciada, bem como, a “planos
de vida” estratégicos no trato com os kupe͂ :

C onsiderações finais ou temporalidade intempestiva Nós trabalhamos com os quatro eixos norteadores: 1. o
tempo de fruto; 2. tempo de plantar; 3. Paiaré (memória
Temējakrekatê é o devir ser-saber-viver que permeia todas as dimensões luta e resistência); 4. sou guerreiro – sou Akrãtikatejê. O
da existência Akrãtikatêjê e permite ao povo compreender a experiência de uma tempo de fruta é o tempo que os animais estão em repro-
temporalidade intempestiva, provocativa e criativa partilhada por coletivos Ga- dução. A mata tá cheia de fruta, então é um momento de
respeito, porque tem que haver respeito. Porque a natu-
vião ou mesmo Timbira. Não poderia deixar de acenar que, a temporalidade
reza se você trata ela bem, ela te dará o que é de bom
intempestiva timbira provoca os saberes de coletivos que recebem este nome.
em dobro, mas se você maltratar o dobro também de
O tempo, na experimentação dos povos Gavião, não está dado a prio- ruim vai vim. O tempo de plantar é o tempo que come-
ri; não se encontra no plano cronológico em uma sequência de agoras rígi- ça a preparação da terra, plantar nosso milho, a mandio-
dos e controláveis. O tempo-timbira, se assim pudéssemos nomear, implica ca pra fazer a farinha. Não é só o plantar em termo de
em eventos imprevisíveis que conduzem à experiência de ser-viver Timbira. O consumo pra comer, mas o tempo do respeito também,
tempo-timbira também não é da ordem do kayrós. Está mais para uma grata a paciência. É plantar no coração o sentimento de cada
aluno; aquele sentimento de ser Akrãtikatejê... de ser in-
surpresa, mesmo dentro de uma situação de precarização, que convoca a co-
dígena. Então precisa de paciência, não adianta você ir

204 205
afoito, plantar aqui hoje pra amanhã tá grande. É com o 1
Thamara de Oliveira Rodrigues

como exercício da diferença : o protagonismo


ameríndio no questionamento do fim
tempo, é cuidando, devagarzinho vai acontecer tudo que
você trabalhar, cuidar, vai!... Esses quatro eixos partiram Para o Caboclo Pena Branca, por ter
de nós mesmo, do nosso dia-a-dia, tanto que ele é voltado
entrado firme quando a porta abriu.
para o nosso próprio calendário 1. o tempo de fruto; 2.
tempo de plantar; 3. Paiaré (memória luta e resistência),
que é a nossa reflexão da luta do povo Akrãtikatejê; 4. sou No dia 20 de abril de 1997, o líder indígena Galdino
guerreiro, sou Akrãtikatejê, que é a afirmação da cultura Jesus dos Santos, da etnia pataxó-hã-hã-hãe, foi queimado vivo
e identidade, eles tem essa preocupação hoje em dia (TO- em um ponto de ônibus na W3 Sul em Brasília. Ele estava no
PRAWERE, 2019). Distrito Federal em razão das “comemorações” do Dia do Índio
organizado pela Funai, evento no qual foi tratar de questões
relativas à demarcação da terra indígena Caramuru-Paraguaçu
no sul do estado da Bahia em razão dos conflitos fundiários
com fazendeiros. Galdino participou de reuniões com o então
presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, e com ou-
tras autoridades. Após se perder e chegar tarde na pensão onde
estava hospedado, foi impedido de entrar. Abrigou-se em um
ponto de ônibus no bairro central da cidade e terminou vítima
do crime brutal cometido por cinco rapazes de classe média alta
de Brasília que no julgamento alegaram que queriam apenas
“dar um susto” e fazer uma “brincadeira”. Brincavam de matar
gente. Paulo Freire, sobre esse acontecimento, nos oferece uma
reflexão reunida na Pedagogia da Indignação com a qual eu gos-
taria de introduzir este texto.

Que coisa estranha, brincar de matar ín-


dio, de matar gente. Fico a pensar aqui,
mergulhado no abismo de uma profunda
perplexidade, espantado diante da perver-

S onho
sidade intolerável desses moços desgentifi-
cando-se, no ambiente em que decresceram
no lugar de crescer. Penso em suas casas,
em sua classe social, em sua vizinhança,
em sua escola. Penso, entre outras coisas

1 Este texto apresenta reflexões ainda iniciais do projeto de pesquisa No tempo dos
sonhos: Reinhart Koselleck e as filosofias ameríndias.

206 207
mais, no testemunho que lhes deram [aos assassinos] de ocupam nas perspectivas ameríndias, tendo em vista que o sonho é uma das
pensar e de como pensar (FREIRE 2000, p. 66). principais fontes de energia que alimentam suas formas de vida e de resistência.

No testemunho que lhes deram de pensar e de como pensar. Paulo Freire


apresentou o lugar a partir do qual o problema desse assassinato e de tantos ou- A L ei 11.645/08: a correção de uma ausência
tros historicamente constituídos contra os povos nativos do Brasil se estrutura:
no pensamento eurocêntrico, tecnicista e epistemicida herdado da experiência A concepção amplamente sistematizada nos anos 1930 de que o Brasil
colonial e do qual não nos emancipamos tão pouco. Ao mencionar as casas, a vivia uma democracia racial produziu o bloqueio durante muito tempo do
classe, a vizinhança e a escola dos assassinos, Freire desperta nossa atenção para debate em nível nacional sobre políticas de “ação afirmativa” e também sobre
a dimensão histórica, cultural e epistêmica desse crime, reafirmando seu caráter a necessidade de discussão do multiculturalismo no sistema educacional bra-
não ocasional e não isolado. Freire nos convoca também à responsabilidade de sileiro. A compreensão de democracia racial organizada por Gilberto Freyre
abertura para mundos e experiências distintas que precisam incorporar nossa (FREYRE 2003) – que expressava um imaginário de sua própria geração her-
formação existencial e institucional. Aprender a pensar, a ver a realidade a partir dado historicamente e de impacto expressivo para a cultura política brasilei-
de outras bases referenciais que não as nossas: esse é o compromisso básico do ra – em linhas gerais, pressupunha que as relações entre senhores e escravos
exercício da diferença que nossos currículos precisam vivenciar. teriam se dado de forma menos violenta e mais branda quando comparada
Soa óbvio, mas ainda é fundamental lembrar que as violações que gru- à experiência norte-americana, por exemplo, o que teria resultado em uma
pos étnicos têm sofrido ao longo da história brasileira (para falarmos apenas sociedade “menos” racista. Gerações seguintes de intelectuais e de ativistas
sobre o Brasil), inclui, sobretudo, a denegação de suas visões de mundo. A políticos dedicaram-se à desconstrução da suposta democracia racial brasi-
insistência no par “razão/sentido” pressupõe o esgotamento das experiências leira tratando-a como mito. A partir dos anos 1960, autores como Florestan
mais diversas em explicações e enunciados lógico-formais (GUMBRECHT Fernandes (1972, 1978), Octavio Ianni (1966), Abdias Nascimento (1978) e
2010). Essa compreensão está na base das discussões acadêmicas, dando su- Emília Viotti da Costa (1999) foram fundamentais nesse exercício de revisão
porte aos currículos estabelecidos. O assassinato dos povos nativos pelo Esta- expressivo. Desde então, uma série de demandas e dilemas históricos têm es-
do, por ruralistas e pela sociedade em geral, sua permanente evangelização por timulado, junto ao ativismo de grupos de resistência e de movimentos sociais,
grupos religiosos, a dificuldade que eles têm encontrado para viverem junto debates acadêmicos e políticas públicas que visam à mediação dos problemas
à sua ancestralidade são desdobramentos de práticas epistemológicas e onto- sociais, culturais, políticos e intelectuais herdados do genocídio e da escravi-
lógicas derivadas do pressuposto de uma razão universal que menosprezou o dão dos povos ameríndios e africanos.
corpo, calculou a natureza e impôs monopólios de interpretação que negam As leis 10.639/03 e 11.645/08 são marcos significativos desse proces-
e/ou hierarquizam a diferença, impedindo a diversificação de modos de expe- so (BRASIL 2003; 2008). Elas expressam a conquista política e legislativa da
rimentação da realidade. preocupação com a diversidade sociocultural nos currículos escolares, atuando
Neste ensaio procuro abordar alguns traços desse testemunho que negou como um dos elementos de combate às desigualdades historicamente sedi-
aos povos nativos a compreensão de que seriam eles próprios sujeitos históricos mentadas e procurando intervir na reeorientação das relações étnicas-raciais
e epistemológicos dotados de agência, de vontade e do direito à vida. Procuro no Brasil (ARAÚJO e CARDOSO 2003; MATTOS e ABREU 2006, 2008;
também fazer deste texto um caminho, ainda que modesto, para outras for- PEREIRA 2008). Elas também expressam a reinterpretação e a disputa dos
mas de pensar, incorporando uma breve reflexão sobre o lugar que os sonhos protocolos epistemológicos e éticos das Humanidades que ao longo do século

208 209
XX procuraram assumir o compromisso com a diferença e com a pluralidade 2014). Contudo, tendo sua história ligada aos movimentos sociais e intelec-
em contraponto ao pensamento, à historiografia e ao ensino essencialista que tuais que expressam às demandas das populações afrodescendentes, as histó-
caracterizaram o campo ao longo do século XIX. Vale ainda mencionar que rias dos povos nativos do Brasil ficaram de fora da proposta. Nesse aspecto, a
as Leis, além de resultado da luta política dos movimentos negros e indígenas, lei 11.645/08 procurou corrigir essa ausência, instituindo a obrigatoriedade
são também fruto de uma virada epistemológica que relativizou a preponde- do ensino de história e da cultura dos povos indígenas no currículo. A Lei
rância europeia na produção do conhecimento e do olhar sobre o mundo, também reflete lutas políticas e acadêmicas organizadas por indígenas e não
mas que ainda possuem desafios expressivos a serem percorridos (ARAUJO e indígenas, especialmente a partir dos anos 1970 e 1980, que resultaram nas
RANGEL 2015; DOMANSKA 2011; GUMBRECHT 2015; FOUCAULT primeiras conquistas constitucionais expressas na Carta de 1988. Em termos
2009; PEREIRA e ROZA 2012; RANGEL 2019). jurídicos, a Constituição de 1988 representou as primeiras garantias legais di-
Sobre a lei 10.639 implementada em 2003 é importante sublinhar que recionas às populações nativas, como o reconhecimento de direitos sociocultu-
ela tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasilei- rais e determinações de prazos para demarcações territoriais (ainda não cum-
ra na educação básica. Antes, contudo, da Lei e de suas diretrizes curriculares pridos), bem como o direito de utilização de suas línguas maternas e processos
nacionais sistematizadas em 2004, os anos 1990 já expressavam através da próprios de aprendizagem que iam na contramão das práticas integracionistas
lei 9.394 de Diretrizes e Bases de 1996, assim como das propostas dos Parâ- impostas histórica e violentamente. Faltava, contudo, às conquistas expressas
metros Curriculares Nacionais de 1998, a preocupação com a temática racial na Constituição, uma legislação específica voltada à orientação curricular. A
e com a história afro-brasileira e africana no ensino básico (BRASIL 1996; lei 11.645 buscava para além de determinação de conteúdos específicos sobre
1998). Esse processo deriva de umas das preocupações pós-redemocratização os povos nativos, estabelecer condições de possibilidade para desconstrução da
na contestação disciplinar do mito da democracia racial. Os PCN’s defini- consciência histórica que associa a imagem do indígena à ausência de história,
ram como prioridade a tematização da pluralidade cultural do Brasil, ques- à natureza e ao passado (BITTENCOURT 1994, 2013; SILVA 2014, 2019).
tionando a mistificação da formação do país proveniente do encontro entre o
indígena, o branco e o negro, a partir da qual os conflitos e a violência eram
obscurecidos. Mas faltava uma proposta específica sobre a questão da educa- No testemunho que lhes deram de pensar e de como pensar : o prognóstico do fim
ção das relações étnico-raciais no Brasil que a lei 10.639/03 e suas diretrizes
John Manuel Monteiro, um dos principais intelectuais na defesa do
procuraram suprir instituindo novas medidas que não se referiam apenas à
protagonismo dos povos nativos, diagnosticou no clássico texto O desafio da his-
questão da pluralidade cultural, mas que desenvolvessem propostas políticas
tória indígena no Brasil (1995) que a historiografia brasileira foi definitiva para
mais pragmáticas de reparação e de ação afirmativa para as populações afro-
o obscurecimento do protagonismo e da perspectiva desses povos, estruturando
descendentes. As diretrizes levaram para o âmbito escolar pela primeira vez
nossa consciência histórica limitada a respeito deles. Monteiro destacou que de
uma proposta mais sistemática de combate ao racismo, assumindo, portanto,
Francisco Adolpho Varnhagen, considerado o principal historiador do Brasil no
um caráter mais ético-político quando comparadas aos PCN’s (MATTOS &
século XIX, a Florestan Fernandes; apesar de suas diferenças ético-políticas sig-
ABREU 2006, 2008).
nificativas, a historiografia definiu um olhar para as essas populações a partir de
Muitas críticas e debates foram direcionadas à Lei e às suas diretri-
um pessimismo em relação ao seu futuro: prognosticaram seu desaparecimento
zes. Mas não nos interessa aqui abordá-los. O que importa sublinhar é que
fosse em razão da miscigenação ou da violência e da negação, impondo a vitória
a lei 10.639/03 foi um marco político e pedagógico importante para uma
da técnica sobre elas (MONTEIRO 1993, 1994, 995).
abordagem de valorização da diferença étnico-racial no Brasil (NOGUERA

210 211
Podemos destacar ao menos dois imaginários sistematizados ao longo do protagonismo indígena e pressupõem a negação de seu desaparecimento,
do século XIX, herdeiros de concepções coloniais, responsáveis pelo diagnósti- o adiamento constante e intermitente do fim dos seus mundos a despeito da
co que nos apresenta Monteiro. Denominamos os imaginários de negacionis- realidade que o Estado e a sociedade brasileira os condicionam. O vigor para
ta e de romântico. O primeiro caracterizou os povos nativos como violentos, negação desse prognóstico encontra nas experiências dos sonhos uma fonte de
guerreiros, bárbaros antropofágicos, primitivos e preguiçosos. Essa narrativi- energia fundamental.
zação foi usada para justificar a escravização e/ou o extermínio dos indígenas
uma vez que “atrapalhariam” o projeto de “civilização e progresso” orquestra-
do pelas elites colonial e imperial. Ao longo do século XIX, sistematizou-se O sonho e as filosofas amerindias : colocar a esperança em um lugar seguro
mais claramente o imaginário dos povos nativos como dóceis, mansos, ino-
Ao acompanharmos o pensamento e a trajetória de Ailton Krenak
centes, heróis, livres e ligados à natureza. Essa perspectiva popularizada pelos
e Davi Kopenawa – dois importantes pensadores e lideranças políticas que
românticos brasileiros e herdeira da presença jesuíta, embora tenha assegurado
atuam em defesa do direito de existir dos povos nativos do Brasil – percebe-
em algum nível a sobrevivência de alguns dos povos nativos, buscava justificar
mos que a luta política frente ao Estado Brasileiro e aos grupos econômicos
seu controle e sua integração à lógica ocidental a partir do pressuposto de que
que colocam em risco suas comunidades não passa apenas pela reinvindicação
deveriam ser “civilizados” e “contribuir” com o “progresso” do Brasil através
dos direitos civis. As conquistas expressas na Constituição de 1988 por méri-
da miscigenação.
to dos próprios povos nativos, embora importantes, não estão garantidas. É
Ambos os imaginários, apesar de suas diferenças, possuem uma base
nesse sentido que percebemos a ênfase de Krenak e Kopenawa, na condição
comum: uma concepção racionalista de mundo que nega as cosmovisões, as
de porta-vozes de seus povos, na explicitação para o mundo ocidental das epis-
epistemologias e as ontologias desses povos. Esses imaginários atuaram de for-
temologias, cosmovisões e ontologias que estão na base do cotidiano de suas
ma concorrente ou simultânea em nossa consciência história e em nossos cur-
comunidades. Os ambientes acadêmicos e escolares destacam-se (ou deveriam
rículos definindo nortes do comportamento político, cultural e epistêmico em
destacar-se) como espaços fundamentais para essa escuta, acompanhando e
relação aos ameríndios. E repetindo: esses imaginários alimentaram o prog-
realizando uma abertura mais radical para outros modos de pensar e de con-
nóstico do fim dessas populações fosse em razão do seu assassinato deliberado
ceber a realidade. Por essa razão eu gostaria de destacar a relação desses povos
ou mediante a miscigenação, resultando na ausência de políticas públicas que
com os sonhos.
assegurassem suas singularidades e sobrevivência.
Se na tradição ocidental, a relação com a vida onírica foi mediada por
O questionamento desse prognóstico foi/é resultado da convergência
um processo de racionalização e de consequente perda de protagonismo epis-
de ao menos três fatores: uma tendência ao aumento demográfico dessas po-
têmico e sociocultural, chegando à psicanálise freudiana como manifestação
pulações a partir do final do século XIX; o avanço dos movimentos políticos
de um processo regressivo e transferencial de um desejo inconsciente recal-
em prol dos direitos históricos dos nativos “brasileiros” e o começo de um
cado do indivíduo (KOSELLECK 2006, 2017; FREUD 1999; RIBEIRO
renovado diálogo entre a Antropologia e a História, que aumentou o número
2019); nas cosmovisões e filosofias ameríndias, ao contrário, sonhar é uma
de estudos sobre os povos colonizados questionando características perma-
experiência primordial para a experiência coletiva. Vale destacar de antemão
nentes do pensamento histórico em relação a eles (ALMEIDA 2010; BIT-
que o sonho nas perspectivas ameríndias além de comporem base estrutural de
TENCOURT 1994, 2013; CUNHA 1992; KOPENAWA e ALBERT 2019;
suas cosmovisões e filosofias, atua também epistemologicamente numa crítica
KRENAK 1992, 2019; MONTEIRO 1994, 1995, 1993; SILVA 2014,
e autodefesa política mediante à violência estrutural do Estado, da sociedade e
2019; VIVEIROS DE CASTRO 2002, 2009). Todos esses fatores partem

212 213
de grandes poderes econômicos que ameaçam histórica e cotidianamente seu povos nativos foram sendo expostos, e, sobretudo, diante do poder fascinante
direito à vida (VIVEIROS DE CASTRO 2019, p. 38). da técnica, ele começou a duvidar se a tradição e a cultura de seu povo seriam
Ailton Krenak, ao explicitar a função do intelectual para seu povo, isto capazes de resistir a esse poder ocidental concreto, prático e calculado. “Eu
é, a função que ele mesmo exerce como historiador, definiu a tarefa como uma comecei a duvidar [...] Eu fiquei com medo. Eu fiquei pensando: e agora?”
responsabilidade permanente de estar no meio de sua comunidade, narrando (KRENAK 1992, p. 203). Foi nessa conjuntura que ele “ganhou um sonho”.
junto a ela a sua história. Trata-se de um compromisso fundamental, pois O “sonho da verdade” capaz de sentir, comunicar e recuperar a memória an-
esse exercício é responsável pela atualização constante do sentido da herança cestral. Ele associa esse tipo de sonho ao mergulho num rio – “a gente entra
cultural a qual pertencem. Essa narrativa torna viva a memória da “criação do dentro dele, aprende e alimenta o espírito” (KRENAK 1992, p. 203).
mundo”, experiência ligada ao lugar onde habitam – a origem dos rios, das Nesse sonho, ele estava com o seu primeiro antepassado presente na
montanhas, da floresta a qual pertencem – e, a partir dessa rememorização, o criação do seu mundo. Não se trata de um deus. Mas de seu “irmão” mas ve-
acontecimento da criação é ritualizado no cotidiano de sua comunidade, nas lho (Kiãnkumakiã). Ambos viam juntos seus ancestrais, jovens guerreiros, em
danças, nos cantos, na relação de profunda reverência à natureza, tornando um campo vasto e bonito. Na mão esquerda traziam feixes de vara usados para
possível a luta política, por exemplo. O intelectual ameríndio é responsável, flechas, mas nas pontas não havia lâminas, mas pendões como trigo florescen-
portanto, pelo cuidado com essa memória, pois ela guarda o espírito de seu do. Havia um lago na mesma altura da terra. Andando em direção a esse lago,
povo, o sentido da tradição que dá suporte à vida, “a resposta verdadeira” que seus ancestrais se transportavam para a outra margem em uma canoa de luz,
justifica a existência/resistência coletiva de sua comunidade. Como explicita “com gesto de vontade, só com a vontade” (KRENAK 1992, p. 204).
Krenak, a ritualização dessa memória é a fonte que alimenta os sonhos, os Esse sonho tranquilizou Krenak em sua dúvida sobre o futuro de seu
“sonhos grandes”, aqueles a partir dos quais algum conhecimento é adquirido. povo em relação à técnica. Como ele mesmo nos explica, “esse ‘futuro’ já acon-
Cuidar da memória é cuidar dos sonhos, a casa da sabedoria, onde os apren- teceu na criação do mundo. Meus irmãos mais velhos já conhecem tudo isso”
dizados fundamentais são revelados. (KRENAK 1992, p. 204). A partir dessa experiência, ele revela ter aprendido
O sonho é definido como a casa da sabedoria porque se trata de uma que o futuro que temia para o seu povo estava de alguma forma “prognos-
experiência de troca e convívio com os seus ancestrais. Não apenas aqueles ticado” naquela origem. Não se trata da assimilação de um destino. Mas da
mais próximos, como, avós, pais..., mas com seus ancestrais mais antigos, compreensão da integração radical entre as realidades. A imagem onírica de
os fundadores de seu mundo, seus “encantados” (KRENAK 1992, p. 202). seus antepassados atravessando uma margem à outra “apenas” com o poder
O sonho é um espaço de conexão com a ancestralidade fundadora, pois é da vontade revelou, segundo Krenak, uma força mais fascinante e potente do
a memória dos ancestrais que projeta sentido à existência como sujeitos que a própria técnica. Esta parou de assustá-lo e ele passou a vê-la como uma
coletivos, reafirmando a ligação com a natureza e com o espaço (sagrado) simulação, um falso poder. E percebeu ainda, segundo seu próprio relato, que
que habitam e do qual cuidam e reverenciam. É importante esclarecer que o fundamento de sua origem ancestral é justamente a capacidade radical de
a vivência dessa memória busca mais que uma recordação do passado, mas acompanhar os diferentes mundos junto àquela força básica de sua existência:
uma atualização, uma experiência constante dele, a partir do qual o presente contar, viver, sonhar velhas e novas histórias.
e o futuro ganham significado, direcionando-os ao mundo que se (re)cria O sonho lhe deu a certeza de que seu modo de vida resguardaria uma
todos os dias. verdade, um modo real de viver – saber cultuar e criar o mundo (recontando
Contudo, Ailton Krenak revelou num relato registrado no texto Antes suas histórias). Um sonho como esse, segundo Krenak, só pode se ganhar a
o mundo não existia (1992), que após as ininterruptas violências às quais os partir de um caminho feito na tradição. O cuidado com essa memória garante

214 215
uma tranquilidade na aceitação do modo como se vive – tranquilidade que o A desvalorização epistêmica do sonho por parte dos
mundo ocidental teria perdido, daí o falseamento do poder da técnica. Essa Brancos vai de par com sua fascinação solipsista – sua
tranquilidade coloca a esperança em um lugar seguro: a aposta do modo como incapacidade de discernir a humanidade secreta dos exis-
tentes não humanos – e sua avareza ‘fetichista’ tão ridícu-
vivem na relação de profunda intimidade com a natureza, personificando-a.
la quanto incurável, sua crisofilia. Os Brancos, em suma,
“Colocar a esperança em um lugar seguro” 2 significa estar ciente de que sonham com o que não tem sentido. Em vez de sonhar-
não se pode estar no mundo temendo a perspectiva ocidental, aceitando o mos com o outro, sonhamos com o ouro (VIVEIROS
prognostico do fim que ela impõe aos povos ameríndios, pois pela ótica dela a DE CASTRO 2015, p. 37- 38).
guerra dos povos nativos pela sua sobrevivência já estaria perdida.
“Eu fiquei com medo. Eu fiquei pensando: e agora?” (KRENAK Bruce Albert reuniu na Queda do Céu as cosmovisões, ontologias,
1992, p. 203). Nesse momento, o prognóstico do fim, o qual nos revelou as filosofias e o modo de vida do povo Yanomami a partir das experiências
Monteiro, teria tomado Krenak. Esse medo se apresentou porque a técnica se do Xamã Davi Kopenawa. Nesse livro já clássico da antropologia recente,
“impôs” à sua perspectiva, mesmo que rapidamente. O sonho, contudo, veio Kopenawa deixa explícita a compreensão do sonho como um espaço da
lhe revelar a força existencial de seu próprio paradigma. É esse paradigma a verdade, tal como no modo de vida Krenak. Aquilo que para os bran-
fonte de Ideias para adiar o fim do mundo – “Então pregam o fim do mundo cos corresponde à escola, os espaços institucionais de aprendizado, para
como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos sonhos. E a mi- o povo Yanomami é realizado nos/com base nos sonhos, especialmente os
nha provocação de adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar dos xamãs. Estes ao beberem o pó de yãkoana, alimento dos xapiri – os
mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (2019, seres invisíveis do ar e da floresta –, conquistam as imagens do tempo dos
p. 27). A partir do que nos apresenta Ailton Krenak, a vida onírica é uma sonhos, experiência na qual o conhecimento do passado, do presente e
fonte de energia e experiência a partir da qual o convívio com os ancestrais e do futuro se realiza. Desse modo, dormir e sonhar são uma condição do
com a tradição realiza a abertura constante de futuro, de novas imaginações e aprendizado Yanomami e o lugar a partir do qual sua forma de vida con-
narrativas, junto e a despeito das realidades ameaçadoras e angustiantes mais quista orientação/estímulo permanente.
presentes e concretas. Sonhar diz respeito a um conhecimento antigo dado por Omama, o
grande sonhador e criador daquele mundo, mas esse conhecimento precisa
ser constantemente atualizado pelo xamã. Essa “atualização” se dá por razão
S onhar como exercício da diferença semelhante ao que fora apresentado por Krenak: é necessário acompanhar o
tempo e as demandas constantes da realidade na qual se encontram, embora
É algo semelhante que encontramos no livro A queda do Céu (2018).
a perspectiva fundadora e ancestral não se altere, os mundos mudam. “Por
No prefácio para a obra, Eduardo Viveiros de Castro destaca um trecho no
isso nossa memória é longa, é forte” (KOPENAWA; ALBERT 2019, p. 75)
qual Davi Kopenawa afirma que “os brancos não sonham tão longe quanto
– afirma Kopenawa – porque ela é fundada na necessidade da evocação da
nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos” (KOPENAWA; AL-
ancestralidade e de sua renovação pelos xamãs. Como nos explica Viveiros
BERT 2019, p. 390). Essa afirmação, segundo Viveiros de Castro, expõe um
de Castro, diferentemente da lógica ocidental, no perspectivismo ameríndio
dos juízos mais precisos a respeito da “característica antropológica central” ao
a forma de ver o mundo não se transforma (daí a permanente relação com a
Ocidente e às suas diferenças em relação ao pensamento ameríndio.
ancestralidade), o que se transforma é o próprio mundo. A nova antropologia
2 Ver: Ailton Krenak - O Sonho da Pedra. (Documentário). Marco Altberg, 2017. 52min. tem buscado afirmar uma equivalência entre o pensamento ocidental e não

216 217
ocidental a partir da afirmação de uma diferença radical. O pensamento ame- dendo das circunstâncias e dos encontros necessários (VIVEIROS DE CAS-
ríndio se difere do nosso, não porque possui diferentes pontos de vista sobre TRO 2009b, p. 237-268). Os xamãs gozam de dupla cidadania, possuem a
os mesmos objetos, mas porque pensam (vivem) outros mundos (VIVIROS condição de vivo e morto (sob condições especiais e controladas). Eles veem
DE CASTRO 2002). simultaneamente duas perspectivas incompatíveis. Ao realizarem a atualização
“Nós, xamãs, possuímos dentro de nós o valor dos sonhos dos es- de um mundo a partir do outro, não buscam uma referência comum para
píritos” (KOPENAWA; ALBERT 2019, p. 75). A experiência dos sonhos duas representações distintas.
corresponde para os Yanomami a uma experiência da verdade – porque um Rafael Haddock-Lobo, levando o exercício da desconstrução derri-
conhecimento sobre/para o real se realiza. Conhecer no perspectivismo ame- diana à frente enquanto crítica da colonialidade, nos apresenta uma reflexão
ríndio significa “personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser sobre a espectralidade e a diferença que associo à prática dos xamãs diante dos
conhecido” (VIVEIROS DE CASTRO 2009a, p. 51). Mas conhecer corres- mundos que lhes são apresentados em sonhos. Haddock-Lobo nos diz:
ponde também a uma experiência de exterioridade porque há o contato com
o mundo invisível tornado acessível aos xamãs pelo pó de yãkoana. “A noite Derrida nos ensina que, ao contrário da posição filosó-
fica tradicional, que se assemelha mais ao exorcismo, a
dormimos em estado de fantasmas” (KOPENAWA; ALBERT 2019, p. 461).
tarefa do filósofo precisa consistir em uma espécie de
Ao sonharem, há a saída do espírito do corpo a qual autoriza os Xamãs a per-
invocação, aceitação e acolhimento de todo outro que
correm terras distantes, a fazerem amizade com os xapiri e, assim conhecem, aparecer, pois a lógica da aparição é a do acontecimento,
por exemplo, as ameaças que rondam sua aldeia. já que nunca, de fato, saberemos o que ou quem virá
O continuado acesso às palavras de Omama pelos xamãs é o que nessa (HADDOCK-LOBO, 2019a, s/p.)
cosmologia se apresenta como o futuro. “O que vocês chamam de futuro para
nós é isso” (KOPENAWA; ALBERT 2019:506). Trata-se de pensar que filhos, Os xamãs não traduzem (exorcizam) as perspectivas com as quais se
netos, genros continuarão tendo o direito de tornar-se xamãs, encontrando os encontram no mundo dos sonhos buscando um sinônimo ou uma base refe-
xapiri, ampliando seu conhecimento sobre os ancestrais e realizando a cura rencial semelhante ao mundo da vigília, mas seu compromisso é justamente
de seu povo. A morte precoce dos xamãs, resultado da presença dos brancos o de resguardar a diferença do mundo que encontram, aceitando e acolhendo
nas terras indígenas, é um risco para o futuro dos povos nativos, mas também a dança e as palavras dos xapiri a partir mesmo da impossibilidade da acomo-
para o Ocidente uma vez que o trabalho dos xamãs não tem responsabilidade dação delas. Os sonhos dos xamãs, portanto, é uma experiência de “cruzo”, de
apenas com os seus, mas eles “seguram” o céu com o ajuda dos xapiri sob a incorporação do outro, a partir do qual o resguardo de sua alteridade garante
cabeça de toda a humanidade. O futuro depende, portanto, do direito dos as relações que se desdobram desse encontro.
xamãs continuarem a tornar-se “outros”, depende do direito ao sonho.
O sonho que dá acesso ao conhecimento é uma experiência de aber-
tura para mundos não-visíveis durante a vigília, é uma experiência de relação *
e acolhimento do que os “ocidentais” denominam espectros e fantasmas. Vi- Esse artigo repercute uma pesquisa ainda em fase inicial que busca
veiros de Castro define o xamanismo como a “habilidade para cruzar frontei- confrontar epistemologias, cosmovisões e filosofias ocidentais e não-ociden-
ras corporais e adotar perspectivas de sociedades estrangeiras” (VIVEIROS tais a partir do pensamento onírico tornando mais acessível aos currículos,
DE CASTRO 2009a, p. 49). O corpo assume, portanto, um conceito não à prática docente, ao mundo acadêmico e escolar outras perspectivas e pos-
biológico, mas metamórfico, passível de ser “vestido” e “desvestido”, depen-

218 219
sibilidades de relação com o conhecimento, com o todo. Ela soma-se a uma Diego dos Santos Reis

ronco ( ab ) surdo das batalhas silenciadas :


F oucault e o colonialismo
série de trabalhos recentes que têm se dedicado à afirmação e a dar voz a
essa diferença, a qual não pressupõe traduzir visões de mundo distintas, mas Se isso é verdade, a história do mundo
direcionar possibilidades de mundos coexistentes. O destaque ao perspecti- é a história, não de indivíduos, mas de
vismo ameríndio na Antropologia e na História é apenas um exemplo. Mas grupos, não de nações, mas de raças [...].
encontramos outros esforços de incorporação dessa pluralidade na literatu- W.E.B. Du Bois, The Conservation of
ra (LIBRANDI-ROCHA 2012, 2014) e na filosofia (HADDOCK-LOBO Races
2019b, 2020; RUFINO & SIMAS 2018, 2019). Esses trabalhos têm buscado
permitir que o outro nos atravesse, “criando brechas e inversões [...] em nos-
so pensar-dizer, interrompendo-nos, e fazendo aparecer coisas que nós não
somos capazes de ver ou dizer” (LIBRANDI-ROCHA 2012, p. 183). Creio I
que deixar-nos atravessar por esses exercícios deixará mais frágil os testemunhos
No campo dos estudos foucaultianos, não deixa de ser
que nos deram de pensar e de como pensar que nos determinam histórica, insti-
surpreendente as menções tímidas e esporádicas ao tema co-
tucional e existencialmente e com os quais tomamos a liberdade violenta de
lonial quando, insuflado pelos movimentos de descolonização
assegurar o fim de outros povos, dissimulando, assim, o nosso próprio.
das terras invadidas pelos europeus em África, o assunto pas-
saria a figurar como um dos tópicos mais debatidos pelas teo-
rias sociais e políticas das décadas de 50 e 60. A cumplicidade,
reiteradamente denunciada, entre o “impulso civilizatório” da
modernidade europeia, com seu projeto técnico-científico,
epistêmico, político e econômico, e a violência instaurada pe-
las relações coloniais de saber/poder ganhou espessura e relevo
nas discussões promovidas por Frantz Fanon, Aimé Césaire,
Édouard Glissant e uma série de intelectuais engajados com a
crítica e com a militância anti-colonial.
Ao denunciar as bases racistas, patriarcais e excludentes
do sistema-mundo capitalista colonial (Wallerstein, 2004), es-

O
ses pensadores não deixaram de endereçar sua crítica à violência
da ocupação territorial, resultante da partilha de África entre as
nações europeias, desde o final do século XIX, mas também aos
efeitos nefastos do colonialismo1 e às hierarquizações de humani-
1 Como destaca Aníbal Quijano (2010, pp. 84), “Colonialidade é um conceito
diferente de, ainda que vinculado a, Colonialismo. Este último refere-se, estrita-
mente, a uma estrutura de dominação/exploração por meio da qual o controle da
autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população
determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão,

220 221
dades produzidas por seus esquemas categoriais, fundamentadas na cisão en- tranacional, o que evidenciaria, em escala local, os modos de operação do
tre os “selvagens” e os “civilizados”. Por meio da crítica a esses mecanismos de colonialismo transnacional.
poder, tratou-se, então, de refletir sobre as estruturas intensivas e extensivas do
poder colonial e de tematizar a lógica de uma economia-mundo ancorada nos II
binarismos, nas opressões raciais e sexuais, além da perpetuação da estrutura
Na aula de 4 de fevereiro de 1976 do curso Em Defesa da Sociedade,
colonial em diversos domínios da vida social, da produção subjetiva, epistêmica
Foucault afirmará que:
e política, mesmo após a saída dos países invasores dos territórios ocupados.
Todavia, em que pese não ter sido esse um dos temas centrais das E temos, nesse final do século XVI, se não pela primeira
análises foucaultianas, nem de nenhum de seus livros, conferências ou cursos, vez, pelo menos uma primeira vez, acho eu uma espécie
apresentarei no presente ensaio a hipótese segundo a qual, nas incursões do de repercussão sobre as estruturas jurídico-políticas do
filósofo sobre o poder, é possível rastrear elementos fundamentais investigados Ocidente da prática colonial. Nunca se deve esquecer que
a colonização, com suas técnicas e suas armas políticas e
no campo dos estudos coloniais, a saber, a função do racismo na subjugação
jurídicas, transportou, claro, modelos europeus para ou-
dos saberes e na hierarquização de humanidades, pautada pela racialização dos
tros continentes, mas que ela também teve numerosas
sujeitos, bem como o lugar de uma biopolítica no controle das populações e na repercussões sobre os mecanismos de poder no Ociden-
administração dos genocídios. Mas, também, reitera-se a necessidade de inter- te, sobre os aparelhos, instituições e técnicas de poder.
pelar o silêncio do filósofo no que concerne à “presença ausente” da questão Houve toda uma série de modelos coloniais que foram tra-
colonial em seus trabalhos. zidos para o Ocidente e que fez com que o Ocidente pudesse
Assim, o movimento que se esboça nesse ensaio tem por objetivo praticar também em si mesmo algo como uma colonização,
um colonialismo interno. (Foucault, 2005 [1976], pp.
realizar, desde uma perspectiva decolonial, uma leitura crítica de alguns
120-121. Grifos meus.)
conceitos forjados por Foucault, localizando nesses marcos teóricos possí-
veis articulações epistemológico-políticas com as abordagens pós-coloniais,
A consideração tecida por Foucault acerca do efeito “bumerangue”
seu alcance interpretativo e os limites analíticos no que se refere aos proces-
da colonização nas tecnologias de governo e de poder europeias demonstra
sos coloniais e suas heranças. Soma-se a isto uma análise da categoria de “co-
que se, de um lado, as práticas geopolíticas da colonização europeia não eram
lonialismo interno”, de inspiração marxista, com expressiva disseminação
estranhas a ele, de outro, a ênfase de sua ponderação direciona-se ao impacto
na década de 70, utilizada algumas vezes por Foucault, e que parece recorrer
dos modelos coloniais em território europeu. O que revela, certamente, uma
a um modelo de compreensão segundo o qual os padrões de diferenciação
perspectiva analítica eurocentrada, mas que não deixa de chamar atenção para
sociais não se reduzem ao esquema de distinção das classes sociais, mas orga-
um fato importante: como as estruturas jurídico-políticas ocidentais são mar-
nizam-se pelas hierarquias internas a partir de diferenciações étnico-raciais
cadas por essas práticas e como elas reverberam na consolidação de hierarquias
e sexuais – e que, portanto, constituiria uma “estrutura social colonial” in-
de raça, classe e gênero, com a produção das identidades sociais racializadas,
além disso, localizadas noutra jurisdição territorial. [...] O colonialismo é, obviamente, mais antigo,
a normalização de populações marginalizadas e o estabelecimento de uma
enquanto a colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoura cultura punitiva.
que o colonialismo. Mas foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e, mais ainda, sem ele não
Pois se a colonização, com suas técnicas e estratégias jurídico-polí-
poderia ser imposta na intersubjetividade do mundo tão enraizado e prolongado. Pablo González
Casanova (1965) e Rodolfo Stavenhagen (1965) propuseram chamar Colonialismo interno ao po- ticas, consolida violentamente o domínio ocidental em outros continentes,
der racista/etnicista que opera dentro de um Estado-Nação”.

222 223
enquanto opera a periferização do mundo, ela impacta também no âmbito ideias de “perigo biológico”, de “hereditariedade”, de “degerenescência” e, en-
do Estado-nação europeu, tornando possível a “colonização interna” aventada fim, do “racismo de Estado”, nas pesquisas apresentadas pelo filósofo francês
por Foucault, inclusive, com o degredo dos apenados para os territórios de a partir de 1976.
além-mar. A “colonização” dos dispositivos do direito penal pelas tecnologias Em 1978, quando menciona o “racismo social” no texto Eugène Sue
elaboradas no contexto colonial evidencia, então, o seu reflexo na formação que j’aime (Foucault, 1994), publicado no Les Nouvelles Litérraires, para tratar
das relações modernas de poder, pois colonialismo e poder disciplinar, esses do racismo antissemita, é ainda uma referência à recomposição das práticas
dois modos de administração dos corpos assujeitados, entendidos como terri- coloniais que parece orientar o tratamento direcionado ao racismo. Como
tórios extrativos (e lucrativos), ancoram-se em uma tomada de posse da vida. racionalidade pautada pelo darwinismo social e pela ideia da “pureza” do san-
Não é de estranhar que, em 1972, em entrevista intitulada Sobre a gue, a base colonial do racismo estaria na raiz de uma série de outros regimes
justiça popular, publicada no Les Temps Modernes, Foucault já relacione a colo- políticos e práticas sociais, que inscreveriam sob o signo da morte e da ma-
nização ao problema racial, ao lembrar que: tabilidade uma expressiva parcela da população indesejada. Sobretudo, em
sociedades estruturadas pela lógica racial e por um sistema de desigualdades
A colonização constitui um outro meio de extração. As baseado em hierarquias epidermicamente construídas.
pessoas enviadas para as colônias não recebiam um es-
Além disso, em termos epistêmicos, a relação baseia-se na subjuga-
tatuto de proletário; serviam de quadros, de agentes de
ção de saberes dos povos dominados, reescrevendo a sua história a partir da
administração, de instrumentos de vigilância e controle
dos colonizados. E era, sem dúvida, para evitar que entre historiografia e da geografia colonial como marcos referenciais privilegiados.
esses “pequenos brancos” e os colonizados se estabeleces- É curioso, entretanto, que, apesar de fornecer instrumentos analíticos fun-
se uma aliança, que teria sido aí tão perigosa quanto a damentais para problematizar a modernidade europeia e a emergência das
unidade proletária na Europa, que fornecia a eles uma instituições de controle e vigilância como tecnologias sociais, Foucault não
sólida ideologia racista; “atenção, vocês vão para o meio aprofunde o lugar, o sentido e a função do colonialismo como pilar de funda-
de antropófagos”. (Foucault, 2011b [1972], pp. 52)
ção de uma relação espacial e temporal de poder, pautada pela “periferização”
do mundo, além das fronteiras europeias e pelo governo da “metrópole” como
A “ideologia racista” de que fala Foucault desempenha um papel fun-
expressão de uma racionalidade que redefiniu as linhas, os traçados e os rema-
damental nessa lógica colonial. É a partir dela que se estabelecem as fraturas
peamentos do mundo: a governamentalidade colonial.
no campo político, com apelo ao biológico, e as cisões que opõem colonizado-
A origem extra-europeia de muitas dessas técnicas de poder (Legg,
res e colonizados racialmente inferiorizados. A relação de dominação/explora-
2013), forjadas e “aperfeiçoadas” nos territórios coloniais, não pode ser dis-
ção e controle, seja pela constituição de uma burocracia estatal transplantada
sociada da experiência da escravidão, das navegações e das plantations, como,
para os territórios colonizados, seja pela via da obstaculização de alianças entre
aliás, o pensador camaronês Achille Mbembe tem apontado em seus livros.
colonizadores e colonizados – inclusive, por meio de uma série de dispositivos
Estas “topografias recalcadas da crueldade” (Mbembe, 2018b, p. 71), como a
legais e político-penais –, conheceria diferentes deslocamentos históricos, sen-
colônia e a plantation, inscrevem o imperialismo colonial na lógica de algumas
do a prisão um dos modos de manutenção da barreira racista das sociedades
das primeiras experimentações biopolíticas, com seleção de raças, políticas
contemporâneas. Trata-se, nessa perspectiva, de conectar racismo, colonização
eugênicas de embranquecimento, de proibição de relações interraciais, este-
e controle como mecanismos sociais inseparáveis nos processos de objetifica-
rilização forçada e aniquilação dos povos racialmente subjugados no mundo
ção de corpos racializados e na produção da diferença colonial, calcados nas
colonial.

224 225
Isto porque a desumanização de povos estrangeiros alçados à categoria padrões coloniais impostos pelos dominadores.
de “bárbaros” e a dominação exercida sobre eles justificou-se pela ideia de Foucault não deixou de pensar a raça e o racismo de Estado em co-
raça, ancorada nas diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, nexão com esses mecanismos e com as estruturas de poder das sociedades
como “referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses gru- modernas. Mas, talvez, tenha faltado adensar essas reflexões com base na crí-
pos” (Quijano, 2005, p. 117). A função da raça e do racismo aí torna possível tica à expansão do capitalismo europeu e ao silenciamento de tantos Outros,
não só a economia de morte gestada pelos Estados, mas “a condição para a imposto pela conquista e pela marginalização a que foram relegados os povos
aceitabilidade de tirar a vida” (Foucault, 2005 [1976], p. 306). Os estereó- inferiorizados. Isto é, o “genocídio colonizador” a que se refere o filósofo não
tipos raciais, nesse sentido, desempenham papel primordial na dinâmica do pode ser desvinculado das práticas expansivas da ordem colonial hegemônica
biopoder, na medida em que: nem dos processos de racialização pelos quais passaram estes grupos. Isto por-
que, como define Grosfogel, o racismo é:
[...] o racismo vai se desenvolver primo com a coloniza-
ção, ou seja, com o genocídio colonizador. Quando for [...] um princípio constitutivo que organiza, a partir de
preciso matar pessoas, matar populações, matar civiliza- dentro, todas as relações de dominação da modernidade
ções, como se poderá fazê-lo, se se funcionar no modo do [...], de tal maneira que divide tudo entre as formas e
biopoder? Através dos temas do evolucionismo, median- os seres superiores (civilizados, hiper-humanizados, etc.,
te um racismo. (Foucault, 2005 [1976], p. 307). acima da linha do humano) e outras formas e seres infe-
riores (selvagens, bárbaros, desumanizados, etc., abaixo
Deste modo, o massacre e a burocracia, como síntese da racionalidade da linha do humano). (Grosfogel, 2018, p. 59).
política ocidental, justapostos, seriam a dupla fase de um processo que culmi-
naria na “extensão dos métodos anteriormente reservados aos ‘selvagens’ aos Desta feita, racismo e experiência colonial não podem ser desvincu-
povos ‘civilizados’ da Europa” (Mbembe, 2018b, p. 32), isto é, uma vez mais, lados da produção da infrahumanidade ou do vazio ontológico que marca,
no “retorno do bumerangue” ao topos de seus arremessadores. Pode-se pensar, desde o final do século XV, a relação entre a metrópole europeia e os nativos
nesse viés, a afirmação foucaultiana segundo a qual stalinismo e nazismo não de suas colônias de além-mar. O fato de não compreender a modernidade
fizeram mais do que expandir uma série de mecanismos e tecnologias já exis- como fenômeno inextrincável da expansão da empresa colonial e do exercício
tentes na formação política europeia e que figuram, atualmente, na base do da violência racial endereçada às “alteridades” resulta na afirmação do projeto
funcionamento de todos os Estados modernos. moderno como intraeuropeu, e não como fenômeno global2.
De fato, a experiência colonial e os processos “civilizatórios” eviden- 2 Segundo a interpretação proposta do Enrique Dussel (1994), a modernidade teria como ponto
de partida a expansão hispano-lusitana iniciada em 1492. Esta “primeira modernidade” seria não
ciam a expressão da violência, da crueldade e da hostilidade em seu estado somente não reconhecida pela Europa, mas negada, em detrimento de uma “origem” bem menos
mais bruto. O massacre e a instrumentalização da vida do colonizado, on- violenta e idealizada, situada no interior do continente, qual seja, a emergência do sujeito pensante,
res cogitans; o momento kantiano da razão que estabelece os limites e as condições do conhecimen-
tologicamente destituída de valor, reafirmam o controle e as hierarquias de to; ou mesmo da saída da menoridade intelectual e da autodeterminação do sujeito. Dussel chama
humanidades inscritas em sistemas de classificação baseados na raça e na con- esse momento de “segunda modernidade”, cujos pensadores mais emblemáticos, Kant e Hegel,
ajudam a consolidar o lugar de relevo conferido à razão e ao esclarecimento. Foucault (1994b, p.
solidação de fronteiras intransponíveis entre nativos e colonizadores, domi-
574), por sua vez, inspirado em “O que é o esclarecimento?”, de Kant, chamará de “atitude de
nados e dominantes. A disseminação dos espaços de violência e as relações de modernidade” o êthos filosófico de uma tarefa que “consiste numa crítica do que somos, pensamos e
dominação se interligam pela assimetria das identidades raciais e dos papéis fazemos, através de uma ontologia histórica de nós mesmos”. Aqui, o que o filósofo compreende por
modernidade não se refere a um período da história, mas a “um modo de relação com a atualidade;
sociais que lhes são correspondentes, com a consequente naturalização dos uma escolha voluntária, que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e sentir, também uma

226 227
Sublinha-se que a articulação entre racismo e a tecnologia de governo do. Em outras palavras, é a mundialização do mercado
biopolítica se dá na tentativa de fomentar a emergência de um tipo de popu- que somos assim convidados – a partir do momento em
lação normalizada em seus processos vitais e em suas forças produtivas, com a que se erige em princípio e também em objetivo [...] um
enriquecimento indefinido. [...] Mas essa abertura do
consequente violência direcionada aos sujeitos racializados, em descompasso
jogo econômico para o mundo implica evidentemente
com os padrões e perfis delineados para a “modernização” e para o desenvol- uma diferença de natureza e de estatuto entre a Europa
vimento ótimo dos Estados. Nesse processo, a vulnerabilidade acentuada de e o resto do mundo. Ou seja, de um lado a Europa, os
vidas matáveis é “[...] cultivada por atos de incontestável terror, patrocinados e europeus é que serão os jogadores, e o mundo, bem, o
sancionados pelo Estado, que visam a controlar o que são categorizados como mundo será o que está em jogo. O jogo é na Europa,
‘corpos indomesticáveis’” (Flauzina, 2014, p. 135). Estigmatizados, os sujeitos mas o que está em jogo é o mundo. [...] Claro, não está
lançados na “zona do não ser” (Fanon, 2008) e passíveis de serem sumaria- aí, nessa organização [...] o início da colonização. Fazia
tempo que ele havia começado. Não creio tampouco que
mente exterminados pelas instituições repressivas do Estado, como sintomas
esteja aí o início do imperialismo no sentido moderno
que são de uma “condição-limite”, podem, por isso mesmo, ser associados “ao ou contemporâneo do termo, porque sem dúvida é mais
desperdício e ao dispêndio, sem reservas” (Mbembe, 2018, p. 73). tarde, no século XIX, que se vê a formação desse novo
Isto porque, em um enquadramento biopolítico, o revestimento polí- imperialismo. Mas digamos que temos aí o início de um
tico do corpo e da vida “natural”, nos quais os direitos se inscrevem, tem por novo cálculo planetário na prática governamental euro-
contrapartida o extermínio sistemático de grupos que não são “dignos” de viver. peia. (Foucault, 2008, pp. 75-77)
Essa fronteira de exclusão nada mais é do que uma fronteira racializada, quando
envolve processos de extermínio – ativo ou por omissão deliberada – movidos
pela aliança entre violência, desigualdade e exclusão de base étnico-racial. Pois a
III
designação racial constitui-se como “o meio pelo qual certas formas de subvida Daí a crítica que Spivak (2000, pp. 1449-1450) e Said (1984, p. 10)
são produzidas e institucionalizadas, a indiferença e o abandono justificados, a endereçam a Foucault, quando destacam que o filósofo francês produz uma
parte humana no outro violada, velada ou ocultada e certas formas de encarce- leitura miniaturizada do colonialismo, pautada estritamente na experiência
ramento e até mesmo de abate toleradas” (Mbembe, 2018, p. 70). sócio-política francesa. E que reposicionaria a história europeia no seio de um
A racialização das relações de poder foi um processo capital para a outro historicismo: a narrativa moderna retraçada em temporalização e espa-
elaboração das relações de dominação, tais como elas se estabeleceram histo- cialização históricas, incapaz de se abrir aos tensionamentos de além-mar e aos
ricamente. As identidades sociais constituídas, com base nas categorias raciais problemas colocados pelos movimentos de resistência nas margens coloniais e
e nas relações intersubjetivas de dominação, reiteram o “caráter eurocentrado suas contra-narrativas. Interessa notar, aqui, a importância da relação dissimé-
do padrão de poder” (Quijano, 2010, p. 120), que, não à toa, emerge quando trica entre centro e periferia, que hierarquiza geopoliticamente as diferenças
tornou-se necessário: (ontológicas, epistemológicas, econômicas, políticas, estéticas etc.) e tem na
violência epistêmica o seu corolário.
[...] convocar em torno da Europa, e para Europa, um
A geo-grafia política do pensamento, portanto, ao suprimir outras
mercado cada vez mais extenso e, no limite, a própria
possibilidades de enquadramento e de crítica, descentradas das representações
totalidade do que pode ser posto no mercado, no mun-
maneira de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo marca um pertencimento e se apresenta
espaciais e temporais que se consolidam nas tramas da modernidade/colonia-
como uma tarefa” (Idem, p. 568). lidade, culmina por se absolutizar, malgrado a atenção conferida à constitui-

228 229
ção histórica das práticas sociais, dos discursos, dos saberes e poderes, e sua ramento como paradigma da verve punitiva.
descontinuidade. O eurocentrismo, compreendido aqui como “uma específi- Pois a relação que se estabelece entre a instituição penal e o corpo do
ca racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmen- indivíduo privado de liberdade parece manter alguma analogia com a relação
te hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou colonizador/colonizado, na medida em que o racismo legitima a relação de
diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no dominação, ao mesmo tempo em que a lógica estigmatizante da justiça cri-
resto do mundo” (Quijano, 2005, p. 126), define um modo de produção do minal se concretiza na atuação dos agentes e das agências punitivas, na letali-
conhecimento e uma perspectiva específicos. Ele não apenas situa geográfica e dade policial, no superencarceramento, nas práticas sistemáticas de tortura e
cronologicamente um lugar de experiência e de produção epistêmica, mas se violação aos Direitos Humanos, que escancara “as hierarquias de humanidade
estabelece como perspectiva hegemônica de conhecimento legítimo, com suas herdadas do projeto moderno colonial de base escravista” (Flauzina; Pires,
instituições, conceitos e modelos interssubjetivos. 2018, p. 20). Não é fortuito que esse processo resulte na ampliação das vul-
Mas a recepção de Foucault pelas teorias pós-coloniais sugere tam- nerabilidades e das arbitrariedades, que agravam a violação da integridade
bém uma torção de seu instrumental teórico, com vistas a analisar relações dos sujeitos criminalizados e conferem o caráter racialmente genocida dos
de poder e de dominação inimagináveis pelo filósofo. Diante da gramática sistemas penais/coloniais3.
subalterna de resistência e dos enfrentamentos levados a cabo nos termos da Mas cabe, igualmente, uma crítica à teoria pós-colonial que tem se
crítica colonial, os regimes discursivos – alvos eles mesmos de lutas –, reposi- popularizado com maior notoriedade nos meios acadêmicos nos últimos anos.
cionam-se, tensionados, não raro, pelos arquivos coloniais e pela compreensão Pois, frequentemente, ela parece universalizar em suas abordagens as experiên-
política dos efeitos persistentes, materiais e simbólicos, desta experiência his- cias locais de determinados processos coloniais, como se eles tivessem sido os
tórica. Ora, como analisar as práticas coloniais e sua racionalidade de governo, mesmos em todo Sul Global. Sem dúvida, esses processos não podem ser ho-
conferindo a elas a legibilidade histórica da colonialidade do poder (Quijano, mogeneizados, apesar de terem traços comuns; tampouco, deve-se reivindicar
2005, 2010) e rastreando suas continuidades em conjuntos heterogêneos de o privilégio teórico de uma abordagem específica, que objetiva, justamente,
dispositivos e tecnologias que prolongam os efeitos coloniais, para além das criticar os domínios universalizantes e supostamente “neutros” de sistemas-
ocupações territoriais? -mundo que operam pelo apagamento de experiências e contextos locais em
Se o poder passa sempre pelo corpo, como declara Foucault em diver- detrimento de uma perspectiva totalizadora.
sas obras, é preciso enfatizar os nexos entre poder, conhecimento e represen- Desta feita, em As Palavras e as Coisas, Foucault atenta justamente
tação que, nos desdobramentos propostos pelos estudos coloniais, sublinham para a necessidade de confrontar permanentemente os postulados universalis-
a relevância da governamentalidade e do biopoder na reflexão acerca das prá- tas da história e, de modo especial, quando pensa na história social da cultura:
ticas e representações coloniais, bem como das estratégias anticoloniais. A 3 De acordo com Piza, Duarte e Queiroz (2016, p. 27) “[...] O sistema penal representa o
burocracia colonial e seu potencial poder de morte, seja amparado pelo racis- ponto de gravidade que estabiliza sentidos sobre o ser negro no projeto colonial da modernida-
de. [...] Aqui, raça e punição se encontram numa simbiose em que a racialização é produzida
mo institucional, seja nas malhas de um poder militarizado que não cessa de pelo sistema penal e o sistema penal não pode operar uma renúncia à racialização. A culpa
reestabelecer a relação de inimizade para justificar a morte dos adversários do atribuída aos negros para sua escravização, a condição de vida nua das práticas de repressão
aos insurgentes à subordinação, a tentativa de redução constante ao biológico e a expropriação
Estado, criminaliza identidades estereotipadas e corpos racialmente marcados
coletiva de saberes etc. reproduzem-se de novos modos na negação da dignidade humana pelas
como expressões materiais do “perigo biológico”. Daí a função primordial diversas estratégias de controle social. [...] A ideia e a prática da “raça” organizam os lugares
das instituições prisionais como controle endereçado aos corpos colonizados, de exclusão e o controle social. Nomear o racismo nas práticas de controle social não é criar
o racismo onde não há, ao invés disso, é descumprir o pacto da branquidade que consiste em
sustando a sua mobilidade, expropriando o seu tempo e definindo o encarce- silenciar as vozes negras”.

230 231
Há uma certa posição da ratio ocidental que se consti- IV
tuiu na sua história e que funda a relação que ela pode
ter com todas as outras sociedades, mesmo com aquela É importante ressaltar que o discurso pós-colonial, muitas vezes, ao
sociedade em que ela historicamente apareceu. Isto não amalgamar a crítica cultural e as perspectivas pós-estruturalistas, mobiliza di-
quer dizer, evidentemente, que a situação colonizado- ferentes entendimentos acerca da categoria política e cultural da “modernida-
ra seja indispensável à etnologia [...]. (Foucault, 2007
de”, que se transforma em um campo tenso de forças na disputa por sua (re)
[1966], p. 522).
definição e suas heranças. O que não significa que a própria teoria pós-co-
Os postulados pretensamente universais da história não passariam lonial esteja imune à racionalidade eurocêntrica, que, por vezes, define suas
incólumes à lógica colonial nas estratégias discursivas da modernidade. Por proposições, seus problemas e seus campos de investigação. Como ressaltam
isso, a novidade da etnologia e da antropologia radica no fato de que seus as pensadoras e os pensadores decoloniais latino-americanos, a abordagem
campos discursivos parecem escapar aos jogos circulares do historicismo, ao pós-colonial se restringe, frequentemente, à perspectiva dos departamentos
apresentar “as formas singulares de cada cultura, as diferenças que a opõem de estudos culturais do Norte global, especialmente centrada na Ásia e em
às outras, os limites pelos quais se define e se fecha sobre a sua própria coe- território indiano, sem aprofundar as especificidades de outras experiências
rência” (Foucault, 2007, p. 523). Contudo, para além dessa visão, é patente coloniais, como a latino-americana e a africana, ou questionar os lugares geo-
o papel desses saberes nos jogos de poder, sob a roupagem “culturalista”, políticos privilegiados a partir dos quais atuam – departamentos de renoma-
enredados em um modo de escrita da história marcado por um discurso das instituições, de língua inglesa, financiados pela iniciativa privada. E, não
essencialista e redutor, notadamente com referência à “tradição europeia” e menos relevante, é a dificuldade com que se deparam os Subaltern Studies
com argumentos que culminam por reforçar a subordinação dos “sujeitos diante de questões que envolvem a subjetividade, a história e a agência (Góes,
coloniais”. Isso quando o paradigma essencialista da biologia não dá lugar a 2015, p. 244), bem como os modos pelos quais as projeções político-geográ-
uma visão cristalizada e exótica da cultura e a uma retórica multiculturalista ficas implicam determinadas formas de construção do saber e da memória,
que, na prática, reinscreve as hierarquias sociais e as relações dissimétricas para além das representações do imaginário sócio-cultural dos subalternos.
de poder entre as culturas hegemônicas e as culturas subalternizadas. Como Recorda Castro-Gómez que:
lembra Olívia Cunha:
[...] Quase todos os autores mencionados [teóricos
pós-coloniais] argumentaram que as humanidades e as
[...] há algo muito mais intenso, aparentemente banal,
ciências sociais modernas criaram um imaginário sobre
cotidianamente perverso no processo histórico que cul-
o mundo social do ‘subalterno’ (o oriental, o negro, o ín-
minou na transformação de povos marcados pelo exo-
dio, o campesino) que não somente serviu para legitimar
tismo e subordinação, em indivíduos para os quais uma
o poder imperial em um nível econômico e político, mas
certa noção de humanidade vem sendo exclusivamente
também contribuiu para criar os paradigmas epistemoló-
aludida e corporificada através de retóricas da pureza,
gicos destas ciências e gerar as identidades (pessoais e co-
força física, masculinidade e da diversidade cultural.
letivas) de colonizadores e colonizados. (Castro-Gómez,
(Cunha, 2002, p. 159)
2005, p. 20. Tradução nossa.)

A despeito da convergência de uma série de temas analisados por essas

232 233
duas perspectivas, nota-se, nos estudos pós-coloniais, não raro, a tentativa de pensadores decoloniais da América Latina, com o devido recuo temporal e
trazer Foucault ao diálogo, com o intuito de problematizar o funcionamen- espacial, para estabelecer os marcos do projeto moderno/colonial na invasão
to das relações de poder no mundo subalternizado e de traçar uma crítica à da América (Dussel, 1994) e sua ligação com a economia-mundo capitalista.
economia de poder que coloniza, inclusive, as estruturas representacionais dos Nessa perspectiva, as relações de poder estabelecidas pela colonialidade ultra-
movimentos anti-coloniais (Legg, 2013). Analisar o efeito-subalterno por meio passam o fato histórico do colonialismo, pois se assentam em uma “lógica glo-
dessa chave demandaria, então, colocar em questão a cadeia discursiva do colo- bal de desumanização capaz de existir mesmo na ausência de colônias formais”
nialismo e seus imaginários, enquanto sistema produtivo – de comportamentos, (Maldonado-Torres, 2018, . 36). Isto é, para além da formação dos territórios
de saberes, de modos de vida etc. – e não meramente repressivo ou negativo, coloniais ou do modo pelo qual os impérios ocidentais esquadrinharam e co-
mas sem recair em uma história sem sujeito. Muito pelo contrário. Pode-se dizer lonizaram o mundo extra-europeu, trata-se de uma lógica cujos efeitos mate-
que a distância tomada da filosofia foucaultiana pelas pensadoras e pensadores riais, epistêmicos e simbólicos persistem e ganham corpo nos ordenamentos
pós-coloniais radica, justamente, na contraposição ao anti-humanismo teórico pautados pelos sentidos normativos de raça, classe, gênero e sexualidade, que
defendido pelo filósofo francês, e no uso que fazem de certos conceitos, estrate- continuam a hierarquizar humanidades e a submeter os grupos subalterniza-
gicamente essencialistas, para reivindicar deslocamentos discursivos e práticos, dos a formas redivivas de silenciamento e extermínio
com potencial emancipatório, contra a violência epistêmica. Percebem-se, portanto, as diferenças teóricas entre as concepções, mal-
É preciso, ainda, tecer outra consideração acerca da crítica que Spivak grado a crítica ao eurocentrismo que partilham e os padrões coloniais de poder,
direciona a Foucault em seus trabalhos. Diferente do que apresenta a teórica de gênero, de raça, de trabalho e de conhecimento que questionam. Pois bem,
indiana em seus artigos, não se trata na abordagem foucaultiana de represen- nesse contexto, seria possível aproximar o conceito de colonialidade do poder,
tar de modo não problemático – ou não problematizável – a voz de minorias formulado por Aníbal Quijano (2005, 2010), a algumas das premissas da racio-
e de sujeitos marginalizados. Mas, duplamente, reiterar a função política do nalidade do biopoder, tal como pensado por Foucault (2005, 2009)?
intelectual específico (Foucault, 2011 [1972]), que se recusa a falar univer- Ao remarcar que o racismo naturaliza as diferenças entre colonizado-
salmente em nome dos sujeitos social, racial, sexual ou etnicamente situados, res e colonizados através de uma relação de subjugação, pautada pelos signos
e colocar em xeque uma concepção essencialista do sujeito. Justamente aí a da supremacia branca, que define formas de controle e exploração sobre o
crítica que Spivak faz tanto a Foucault como a Deleuze parte da constatação trabalho, Quijano destaca os dois eixos que estruturam, em sua perspectiva,
de que eles recaem naquilo mesmo que imaginam se afastar: algo como uma o padrão colonial de poder vigente até a atualidade. Foucault, por sua vez,
fixação dos lugares e das narrativas de quem tomaria para si o papel de co- também pensará o biopoder como estratégia que articula racismo e majoração
nhecer o discurso do Outro (Spivak, 2000), sobretudo daquelas e daqueles de forças produtivas, mas irá se referir aos fenômenos massivos da população
invisibilizados pelo colonialismo (externo ou interno). alçados a estratégias de governo por parte dos Estados, como as taxas de na-
Guardadas as devidas proporções e contextos, uma leitura mais detida talidade, de mortalidade ou de morbidade. Nas duas concepções, ressalta-se
dos trabalhos de Foucault revela a inconsistência desse posicionamento, ape- uma analítica do poder da modernidade/colonialidade, com diferenças a serem
sar dele expor, com pertinência, o ponto cego desse “espírito filosófico” e de sublinhadas. Ainda que ambas se atenham aos processos de subjetivação e ao
sua teoria política, qual seja, o de não conferir atenção suficiente à divisão in- controle decorrentes dessas estratégias de poder, Quijano reposiciona no sécu-
ternacional do trabalho, à geopolítica do saber/poder e à produção ideológica lo XVI a consolidação dessa estrutura, centrada na dimensão racial que define,
hegemônica, concebidas enquanto realidades políticas materiais. tal como concebe Mbembe, uma espécie de biopolítica colonial. Além disso,
É também um dos pontos enfocados nas leituras de pensadoras e pensar essa analítica do poder desde o Sul Global significa redimensionar a

234 235
racionalidade de governo e de dominação indicando o papel fundamental O filósofo declararia, desse modo, ter atravessado na Tunísia “uma
desempenhado pela geopolítica do conhecimento, ou seja, pela necessária oci- experiência física do poder, das relações entre corpo e poder” (Foucault, 2006
dentalização do imaginário (Castro-Gómez, 2005). [1975], p. 89). A experiência física de uma violência insuspeita se, de um
É aí que as estruturas inerentes às formas epistemológicas de dominação lado, aponta para uma dimensão material do poder e para as distinções de
não seriam desatreladas do sistema-mundo capitalista, cuja economia política raça e de religião, que legitimam as penas, os castigos e o assassínio no âmbito
estaria inscrita no paradigma da colonialidade e no circuito da extração opera- das disputas políticas, de outro, demonstra a tensão de forças em sociedades
dos pelas potências ocidentais. Traçar a formação histórica e recolocar o proble- transpassadas pela continuidade dos rastros e dos “restos de uma colonização
ma do funcionamento político do saber exigiria, portanto, rastrear as formas capitalista” e suas tecnologias violatórias. Mormente, enquanto estratégia “ci-
de poder a que estariam ligadas. O enquadramento do saber/poder a partir de vilizatória”, que tem por alvo as populações racializadas pela via de um con-
uma lente racializada permitiria desenhar as fronteiras entre centro e periferia, junto de práticas moduladas pelo corte de raça, gênero, classe e sexualidade.
bem como uma “antropologia da (des)razão” e seus efeitos práticos e políticos Aqui, cabe um adendo: a análise da guerra de raças proposta por Foucault,
enquanto discursos com valor de verdade. A questão que se apresenta nessa ge- com fulcro biológico, não pode ser separada, nas sociedades colonizadas, de
nealogia da colonialidade é: como, historicamente, isto se tornou possível? uma epidermização das diferenças, segundo um pacto racial e um racismo
Ao inventariar as técnicas necessárias para gestão dos territórios e para fenotípico, baseado na cor da pele e nos traços fisionômicos. Talvez mais próxi-
o controle dos sujeitos coloniais, agrupados em populações, a geopolítica im- mo ao que apontaria Frantz Fanon (2008), em Pele Negra, Máscaras Brancas,
perial tem no biopoder, na soberania e na disciplina uma combinação de for- ao lembrar que é devido a essa “epidermização da inferioridade” que é possível
mas de governo que confluem para a governamentalidade colonial como exer- consolidar uma semiótica visível da cor da pele, que deve poder transmutar-se
cício de poder, que coloca na mesma linha de contato o corpo, o discurso, a no ódio racial.
vida e o poder político. Em contextos coloniais, assim, as técnicas de governo O fato é que, para Foucault, as técnicas governamentais produzem o
se estendem da execução sumária dos corpos racializados, ligados ao imaginá- Estado tanto quanto são utilizadas por ele, o que possibilita igualmente pensar
rio da ameaça e do perigo biológico, ao sistema de controle, normalização e o campo aberto pelas resistências como recusa da aniquilação da agência dos
punição, que enquadra os sujeitos em perfilamentos identitários, em políticas indivíduos marginalizados – mesmo que a efetividade das resistências locais
sexuais e nos jogos de gestão dos ilegalismos, primordiais para a manutenção possam ser, à primeira vista, irrisórias e corram o risco de serem sufocadas pela
da cultura punitivista endereçada a determinadas corporalidades. mesma violência estatal contra a qual se insurgem. Como sugere o cientista
É isto que Foucault percebe entre 1966 e 1968, quando vive na Tunísia: político e antropólogo indiano Chatterjee (2004, p. 23): “[...] ao buscarem
encontrar espaços éticos reais para sua operação em tempo heterogêneo, as re-
[...] Minha sociedade, eu só a conheci sob o ângulo de sistências incipientes a esta ordem podem ter êxito em inventar novos termos
um privilegiado [...]. Da sociedade capitalista, eu só ti-
de justiça política”. Enquanto corpo-política (Mignolo, 2017) de uma prática
nha conhecido o lado aveludado e fácil. Na Tunísia, des-
nascida das lutas a partir do vivido, o redimensionamento epistêmico, ontoló-
cobri o que poderiam ser os restos de uma colonização
capitalista e o nascimento de um desenvolvimento de gico, estético, político e sócio-econômico que emerge dos embates decoloniais
tipo capitalista, com todos os fenômenos de explora- e pós-coloniais não deixa de indicar que as transformações vislumbradas por
ção e de opressão econômica e política. (Foucault, 2006 essas perspectivas passam pela ressignificação de uma história atravessada por
[1975], p. 88) outras vozes, temporalidades e lugares epistêmicos de enunciação. Ademais, o
reposicionamento dessas lentes evidencia que as resistências múltiplas não ces-

236 237
saram de se proliferar, como indicam, historicamente, as revoltas, os motins e 1
Lorena Silva Oliveira

expressão da filosofia política


afroperspectivista
os levantes contra a ordem hegemônica, mas também as estratégias plurais de
enfrentamento à lógica objetificante da colonialidade. EXU
É para a necessidade da reescritura da história da modernidade que os Tu que és o senhor dos
trabalhos de Foucault podem ser analisados também. A despeito de, em suas caminhos da libertação do teu povo
análises, o limiar da modernidade não ser questionado nos próprios parâme- sabes daqueles que empunharam
tros de sua produção discursiva, tais como as enunciações formuladas pela teus ferros em brasa
maior parte dos intelectuais europeus do século XX. Porque, ao mesmo tempo contra a injustiça e a opressão
em que Foucault buscou “compreender em que consiste este limiar da moder- Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama
nidade”, o filósofo não aprofundou a análise geopolítica que culminou nos Cosme Isidoro João Cândido
“poderes gigantescos de universalização” do discurso europeu como “portador sabes que em cada coração de negro
de qualquer tipo de verdade, mesmo que esta verdade deva-se voltar contra a há um quilombo pulsando
Europa, contra o Ocidente” (Foucault, 2006, p. 93). Foucault, todavia, não em cada barraco
deixou de se colocar uma das questões fundamentais para a teoria pós-colo- outro palmares crepita
nial, a saber, investigar “o tipo de discurso que funciona no Ocidente, há al- os fogos de Xangô iluminando nossa luta
guns séculos, como discurso de verdade, e que passou agora para escala mun- atual e passada
dial” e como “este tipo de discurso está ligado a toda uma série de fenômenos
de poder e de relações de poder” (Idem, p. 94-5). Talvez, nesse exercício, nos Padê de Exu Libertador – Abdias Nas-
caiba reengendrar, nessas histórias eurocentradas, “seu próprio escândalo, seu cimento2
próprio paradoxo, até agora” (Idem, p. 98). O que demanda não apenas a rees-

O Q uilombismo : U ma
crita de uma outra história política, mas de uma política da história capaz de
ouvir o ronco (ab)surdo das batalhas silenciadas e suas ressonâncias em nossos F ilosofia P olítica A froperspectivista :
corpos e em nosso presente histórico. Afinal, “o ponto mais intenso das vidas,
aquele em que se concentra a sua energia, é realmente onde elas se chocam considerações

com o poder, se debatem contra ele, tentam utilizar suas forças ou escapar às Carxs leitorxs, intento nessas primeiras linhas apresentar
suas armadilhas” (Foucault, 1977, p. 17). alguns pensamentos que venho nutrindo acerca do que consi-
dero ser ou dever ser uma Filosofia Política Afroperspectivista.
O filósofo Renato Noguera define a afroperspectividade3 como
1 Este texto é fruto da minha atual pesquisa de doutorado, que pretende pensar
uma Filosofia Política Afroperspectivista, isto é: a partir de autores africanos e dias-
póricos. Foi publicado na Revista Problemata – Revista Internacional de Filosofia,
v. 10, pp. 128-146, 2019.
2 Esta poesia, dentre outras, de autoria de Abdias Nascimento podem ser acessadas
no site do IPEAFRO. Disponível em <http://www.abdias.com.br/poesia/poesia.
htm> Acesso em 10 jun. 2019
3 Conforme Renato Noguera “A expressão afroperspectividade é herdeira de um

238 239
uma abordagem filosófica pluralista que reconhece diversos territórios epistê- uma Filosofia Política Afroperspectivista? Tenho refletido que uma Filosofia
micos e está Política em Afroperspectiva, de modo geral, está preocupada em pluriversali-
zar a filosofia, ao buscar deslocar o Ocidente do centro para que outros povos
[...] empenhada em avaliar perspectivas e analisar mé- – em especial pensadores e filósofos/as africanos/as, afrodiaspóricos/as, den-
todos distintos e com uma preocupação especial para
tre outros comprometidos com o combate ao racismo, ao imperialismo, ao
a reabilitação e incentivo de trabalhos africanos e afro-
capitalismo, à necropolítica, o neocolonialismo e todos os tipos de opressões
diaspóricos em prol da desconstrução do racismo epistê-
mico antinegro e da ampliação de alternativas para uma – possam contribuir nos pensares sobre como desfazer as hierarquizações que
sociedade intercultural e não hierarquizada. Em outros advém desses processos.
termos, um tipo de ação afirmativa no campo epistêmico A Filosofia Política Afroperspectivista compreende a falaciosidade do
(NOGUERA, 2011, p. 35). universalismo das ciências. Por este fato, é uma filosofia que está preocupada
com o reconhecimento da agência política, intelectual, econômica e cultural
Neste sentido, é uma abordagem que busca por perspectivas afirmati- dos homens e mulheres africanos no continente e nas diásporas. Sendo assim,
vas, que reconheça, em todos os âmbitos, os povos historicamente destituídos é uma filosofia que está engajada com a Liberdade, pois a mesma é um deri-
do direito de participarem enquanto agentes e condutores da sua própria his- vado do pensamento africano que, conforme Ngoenha (2004), está assentado
tória. Para mais, é uma abordagem filosófica que busca trilhar novas possibi- sobre um único eixo: a Liberdade.
lidades e proporcionar a ampliação de alternativas para a construção de uma Nos diz Severino Ngoenha, em sua obra Os tempos da filosofia: filosofia
sociedade que não possua como estrutura, no campo intelectual e prático, o e democracia moçambicana que
racismo.
Assim, uma das principais importâncias da afroperspectividade está O substrato filosófico do pensamento africano é, sem
na possibilidade de esta trazer à tona dúvida, a busca da liberdade, devido à situação categorial
oprimido / escravo / colonizado / subdesenvolvido na
[...] alternativas e perspectivas quase desconhecidas que qual os povos africanos se encontram a seguir ao encon-
podem sugerir argumentos, ponto de vista, ideias e con- tro/choque com o ocidente (NGOENHA, 2004, p. 74).
ceitos em favor de caminhos inusitados criativos e pro-
positivos sobre ética, politica, ciência, religião, sexualida- Conquanto, essa liberdade não é de cunho metafísico ou moral. A
de, educação, relações etnicorraciais e de gênero, entre liberdade ambicionada é uma liberdade de natureza política, pois mesmo após
outros assuntos e temas (NOGUEIRA, 2011, p. 36). a independência nos países africanos e a abolição da escravatura nas diásporas,
devido ao racismo estrutural, o sistema político e econômico continua desu-
Logo, na esteira da afroperspectividade como eu tenho concebido
manizando, escravizando e tutelando política, econômica e ideologicamente a
debate a respeito da inclusão de vozes africanas e ameríndias nas áreas de filosofia e educação. Den- população africana no mundo, ou seja, continua nos mantendo colonizados.
tre as leituras e referências que delineiam o surgimento da abordagem afroperspectivista podemos Neste sentido, afirmo que o paradigma libertário, considerado critério
destacar, a antropóloga guarani nhandeva Sandra Benites; a antropóloga branca Tânia Stolze Lima;
a socióloga nigeriana Oyeronke Oyewumi; o filósofo quilombola Antônio Bispo dos Santos; o xamã de avaliação sobre o que é ou não filosofia africana para Ngoenha, baliza o
e filósofo yanomami Davi Kopenawa; o pan-africanista e sistematizador da afrocentricidade Molefi que considero por Filosofia Política Afroperspectivista, por acreditar que esta
Asante; o cientista social e ativista negro Abdias do Nascimento; o antropólogo branco brasileiro
Eduardo Viveiros de Castro e os pensadores brancos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari”(NO-
filosofia deve ser julgada como tal, a partir da conclusão sobre em que medida
GUERA, 2018, p. 627-628). ela busca maximizar ou não o campo das liberdades, ou seja, a emancipação

240 241
: autogestão e autodeterminação dos africanos no continente e na diáspora. o futuro deve ser encarado pela filosofia africana com responsabilidade, pois
Tal posição, se justifica pelo fato de que, a busca pela liberdade está nele está a possibilidade de construir uma nova história, uma nova sociedade,
concatenada com a compreensão de filosofia africana, trabalhada pelo filósofo vez que a história é feita por nós, homens e mulheres, e temos responsabili-
Ngoenha, na obra Filosofia Africana: Das Independências às Liberdades (1993), dade sobre o tipo de história e futuro que desejamos e projetamos para todxs
que vem nutrindo minhas reflexões. Nela, observamos que para o filósofo, viventes presentes ou não.
a filosofia africana tem um compromisso com o futuro, e não deve ter os As reflexões realizadas pelo filósofo moçambicano fez com que eu re-
olhos voltados, apenas, em direção ao passado, mas ao futuro, pois ela é “um fletisse sobre a importância da população negra brasileira projetar seu futuro a
projecto do futuro” (NGOENHA, 1993, p. 93), aberto e descontínuo. Uma partir de seus referenciais, mas não somente, fez com que eu refletisse sobre o
investigação perene, que se faz através de textos. quão legitimo é “que nos interroguemos sobre o lugar da filosofia na proble-
Logo, ao afirmar que “Na existência tudo se faz em função do futuro” mática da construção do futuro” (NGOENHA, 1993, p. 8).
(Idem, p. 11) e que a filosofia africana é um projeto do futuro, compreendo É evidente que vivenciamos/executamos, historicamente, projetos de
que a Liberdade é para o autor o fator primordial que deve constituir a nossa futuro eurocentrados que não condizem com as concepções de mundo e modo
contínua elaboração filosófica, dado ser a busca pela liberdade, em todas suas organizacional que os povos africanos e afrodiaspóricos advém. Por este fato,
expressões, o principal fator que nos possibilitará contribuir nos pensares so- considero urgente a filosofia política contemporânea assumir a responsabilidade
bre como construir outros modos de vida no presente e no futuro. de retirar o projeto do Ocidente do centro e contribuir na busca e elaboração de
Portanto, cabe à filosofia mostrar as luzes que iluminem os caminhos dos alternativas de projetos de sociedade que, no mínimo, estejam o mais próximos
povos africanos para a maximização dos campos das suas liberdades políticas, so- possíveis da maximização das Liberdades e da Igualdade para os povos subal-
ciais, culturais e econômicas, contribuindo na edificação de uma sociedade futura ternizados, pois o projeto ocidental, genocida, já demonstrou que é ruim para
libertária, democrática e soberana em que não tenhamos mais que “executar futuros todos povos colonizados e parte deste projeto foi assinado pela filosofia.
inventados por outros e em beneficio deles”(NGOENHA, 1993, p. 10). Assim sendo, a Filosofia Política Afroperspectivista deve estar engaja-
Mas, o futuro é entendido como o conjunto de projetos, de possíveis, da na construção de mundos habitáveis. Ela deve servir de instrumento para
de esperanças, de liberdades, que possui três aspectos: transformação da nossa situação atual. Logo, cabe a ela investigar, refletir,
construir, sobretudo, recuperar a memória da agência política negra buscando
[...] o primeiro, é já a sua antecipação no presente; o se- evidenciar alternativas já existentes, – que são combativas aos projetos de so-
gundo, é um futuro que será em parte nosso e em parte
ciedade genocidas, colonizadores, imperialistas, latifundiários, supremacistas,
dos outros; terceiro, (um futuro do futuro) que será dos
que foram a nós impostos pelo Ocidente – e verificar, em que medida, tais
que ainda não nasceram, um futuro que não podemos
e nem sequer devemos predeterminar na sua originali- alternativas podem ser consideradas inspirações e possibilidades revoluciona-
dade, mas que condicionamos de uma certa maneira; e rias, nos atuais dias de destruição4.
desta forma somos responsáveis. A relação com o futu- Amparada em Abdias do Nascimento (2019), acredito que a Filosofia
ro não é uma relação com o inexistente (NGOENHA, Política Afroperspectivista deve ser um campo do saber sistematizado e con-
1993, p. 133). sistente que esteja comprometido com a descolonização mental e a Liberdade,
pois como este filósofo político, acredito que
O filósofo acredita que o futuro é o agora, o pôr vir que diz respeito
aos outros viventes e aos que nem nasceram. Logo, em todos os seus aspectos 4 Refiro-me ao genocídio da população negra, projeto arquitetado pelo Estado brasileiro para ani-
quilar esse segmento da população.

242 243
O conhecimento cientifico que os negros necessitam é tenham o poder de decidirem sobre o que desejam (DUPUIS-DÉRI, 2019).
aquele que os ajude a formular teoricamente – de for- Penso que, parte do processo de dessacralização desse projeto ágoro-
ma sistemática e consistente – sua experiência de quase fóbico, passa pela necessidade de reconstruirmos no presente, uma sociedade
quinhentos anos de opressão. Haverá erros ou equívocos
dirigida ao futuro, que leve em conta o que é útil e positivo no acervo do
inevitáveis em nossa busca de racionalidade do nosso sis-
tema de valores, em nosso esforço de autodefinição de
passado, que muitas vezes não conhecemos, mas que existe e, por isso mesmo,
nós mesmos e de nosso caminho futuro. Não importa. foram negligenciados à população, por ter a capacidade de colocar em risco o
Durante séculos temos carregado o peso dos crimes e status quo da elite dominante.
dos erros do eurocentrismo ‘cientifico’, os seus dogmas O positivo, por exemplo, exerce um papel fundamental nesse proces-
impostos em nossa carne como marcas ígneas da verda- so, pois a Filosofia Política Afroperspectivista é uma filosofia comprometida
de definitiva. Agora devolvemos ao obstinado segmento com a reontologização e liberdade do povo africano e diaspórico e este pro-
‘branco’ da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua
cesso requer o reconhecimento/representatividade positiva do povo negro que
ideologia de surpremacismo europeu, a lavagem cerebral
que pretendia tirar nossa humanidade, a nossa identida-
contribua no fortalecimento de nossa autoestima para combatermos o que a
de, a nossa dignidade, a nossa liberdade. Proclamando a colonização nos legou: o auto - ódio, fator que prejudica o nosso agenciamen-
falência da colonização mental eurocentrista, celebramos to intelectual, político, econômico.
o advento da libertação quilombista (NASCIMENTO, Neste sentido, resgatar o útil e positivo é o exercício da filosofia afro-
2019, pp. 287-288) perspectivista, já que o que nos chega do acervo do passado, através dos livros
e grandes mídias é a imagem deturpada do povo negro e indígena, tidos ora
Em consonância com o pensamento de Abdias Nascimento e Severino como passivos e submissos aos desejos da elite ora como nocivos e prejudiciais
Ngoenha ratifico ser tempo da filosofia, que alicerçou o pensamento racista, a um país que se lançava ao desenvolvimento.
contribuir, interdisciplinarmente no processo de construção de um projeto Tais imagens prejudicaram, consideravelmente, a participação desses
de futuro emancipatório para todos os povos, que foram historicamente de- povos na vida política e ainda preenche e prejudica o imaginário sócio-político
sumanizados, explorados, subalternizados e negligenciados de participarem brasileiro, que tende a acreditar e ainda difunde a falsa ideia de que a popula-
da elaboração deste projeto de sociedade ocidental, que por sinal, nunca os ção negra nunca resistiu nem propôs mudanças.
considerou, verdadeiramente, cidadãos e partícipes da história. Gisele Santos (2002) em sua obra A invenção do Ser Negro: um per-
Neste sentido, é tempo da filosofia brasileira investigar, reconhecer e curso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros nos apresenta uma
tornar público a existência de pensamentos filosóficos pretos e indígenas que previa das ideias que foram construídas sobre os negros durante a escravidão e
há tempos demonstram e ressoam a necessidade de outro modo organizacio- no pós-abolição com o intuito de construir imagens deturpadas da população
nal, se de fato queremos bem viver. negra, de modo que estes, no imaginário coletivo, não alçassem as caracterís-
Investigar e evidenciar caminhos propositivos pretos e indígenas é ticas de cidadãos.
buscar dessacralizar este projeto de sociedade brasileira ágorafóbica5 em que Segundo a autora, nos jornais do século XIX circulavam ideias de cunho
uma elite, branca, detém o poder sobre o povo (dominação), e impede o exer- racista que buscavam dar ares de verdade às teorias cientificas eugenistas, ao
cício de ágora-filia política que garante que as pessoas sejam autônomas e retratar as pessoas negras, em todas as seções, como algo perigoso, animalesco,
5 Resumidamente, podemos compreender por ágora-fobia política “o medo e o ódio das pessoas lascivo, violento, imoral, dentre outras características que irão marcar o corpo
reunidas na ágora para deliberarem e governarem a si mesmas; por outro lado, a ágora-filia política,
isto é, o amor pelas pessoas reunidas na ágora para se autogovernarem” (DUPUIS-DÉRI, 2019, p. 5). negro, até os dias hodiernos, como corpos governáveis. Conforme Santos,

244 245
A reprodução no Brasil de todos os preconceitos europeus NEIRO, 2005, p. 109). É evidente nesta passagem, os reflexos do pensamento
se dava letra a letra. A perseguição aos africanos que eram racista e do discurso do racismo científico, que defendia ser a interação das ra-
símbolos de barbárie, de decadência cultural e de inferio- ças fator condicionante para o não desenvolvimento cívico de uma sociedade.
ridade era retratada nos jornais da época de forma corri-
Como também, fica evidente que “qualquer elite necessariamente so-
queira entre uma e outra notícia. Lidas e relidas com certa
frequência, essas noticiais em vez de informar a população,
fre de ágora-fobia política como resultado de sua posição socialmente domi-
disseminavam teorias racistas. Do escravo, artigo vendido nante, e a ágora-fobia política é em si uma emoção temerosa que prejudica
ou comprado, ao marginal negro não havia muito espaço. a racionalidade potencial de qualquer elite” (DUPUIS-DÉRI, 2019, p. 12).
O negro será retratado nos jornais: nas seções cientificas, Fato é que, a construção e disseminação dessas ideias racistas, anima-
como objeto de estudo ou comprovação das teorias racis- lescas e violentas sobre a população negra tinha o objetivo evidente de colocar
tas; nas seção de notícias, ora assassino, ora fugitivo, ora esta população à margem da sociedade e fora do exercício político dominante,
como um ser incapaz de viver em sociedade cometendo
vez que qualquer tipo de ameaça à supremacia branca – como a interação
graves erros por ignorância, ora por suas práticas de fei-
tiçaria ou canibalismo, ora por usa degeneração moral;
de africanos e seus descendentes no seio político da sociedade, ou o simples
na seção de anúncios, como mercadoria que se compra fato destes acreditarem em sua cidadania e exigir direitos iguais – poderia
e vende, procurada ou encontrada; na seção de contas, colocar em risco os interesses políticos do Estado, a saber: o desenvolvimento
como um semi-homem com características pouco civiliza- econômico, cultural e social da raça branca, a qual o Estado é protetor da
das. Não podemos nos esquecer das seções policiais e dos integridade.
obituários, em que a figura do negro era uma constante: Instaurou-se, neste ínterim, com o objetivo de impedir o florescimen-
é aquele que mata e também aquele que morre de forma
to da população negra no corpo social e político, um projeto de embranque-
quase sempre violenta (SANTOS, 2002, pp. 128-129).
cimento do país que não cabe, neste trabalho, debruçar-me sobre o tema.
A autora, demonstra-nos que a difusão de uma visão negativa sobre o Contudo, é imprescindível fazer algumas considerações sobre o papel exercido
negro tinha por intuito, também, representá-lo como um indivíduo que se dis- pelos meios de comunicação e o conhecimento cientifico para a manutenção
tanciava dos padrões de comportamento que a República requisitava. Difundia- do sistema escravagista, da supremacia branca, exclusão da população negra e
-se a ideia de que os negros eram pessoas em que não se podia confiar, por serem indígena da arena política nos pós abolição, dentre outras opressões.
compreendidos como sujeitos sem estrutura moral, psíquica e social. Ao observar o percurso das ideias racistas que contribuíram no pro-
Portanto, buscou-se no período de advento da República inverter a cesso de construção de um imaginário social que excluísse os povos negros e
imagem do negro de pacífico e passivo para um negro nocivo e prejudicial a indígenas do status de cidadãos, verifica-se a relação entre poder e saber e o
um país que buscava o desenvolvimento. Como salienta a autora “ao ressaltar quanto ambos expressam o que o historiador e cientista político Wallace de
o caráter selvagem e em nada propenso à civilização do negro tentava-se pro- Moraes (2018) conceitua como governança política e sociocultural.6
var que ele jamais poderia ser um cidadão (como o branco, como o imigran- Em um governo plutocrático, ou seja, em um “sistema político go-
te)” (SANTOS, 2002, p. 130). vernando por um grupo de pessoas que detém o poder econômico ou está a
Logo, a entrada do povo preto e indígena no organismo político era 6 Wallace de Moraes expõe-nos em sua obra Governados por quem? Diferentes plutocracias nas his-
considerado algo que iria “não somente retardar, mas praticamente entravar tórias políticas de Brasil e Venezuela, a existência de cinco governanças institucionais (econômica,
político, sociocultural, jurídica e penal) Considero serem todas chaves de leitura para compreender-
o nosso desenvolvimento cultural” (apud FISCHMANN, 2001 apud CAR- mos a história da população negra e indígena na sociedade brasileira. No entanto, dado os limites
deste trabalho abordarei apenas as governanças institucionais política e sociocultural.

246 247
seu serviço” (DE MORAES, 2018, pp. 39-40) é condição necessária para a Neste sentido, que é importante compreendermos a proposição de
manutenção do projeto de sociedade que os favoreça, que estes utilizem do Abdias Nascimento (2019) ao ressaltar a necessidade de resgatarmos do acervo
saber cientifico para legitimarem suas ações e controle político. do passado o que for útil e positivo para projetarmos o futuro, pois fomos/
Logo, para que se estabeleça uma sociedade de controle em que a go- somos vítimas de um processo que o filósofo em sua obra “O Quilombismo”,
vernança política e econômica se mantenha supremacista branca e garanta a conceitua como mentecídio9, ou seja, um processo de lavagem cerebral que
manutenção de seus privilégios, advindos, historicamente, da exploração dos visa entorpecer ou castrar a capacidade de raciocínio dos indivíduos negros,
povos não-brancos, é necessário determinar quais saberes podem e devem ser que nos impossibilitou e impossibilita conhecermos nossas produções revolu-
difundidos como verdades. cionarias, que poderia nos guiar rumo a um futuro melhor.
Com Michel Foucault compreendemos que saber e poder possuem Para o autor, o mentecídio, essa lavagem cerebral, é uma ferramen-
uma relação intrínseca. Consequentemente, a produção cientifica, sobretudo ta de controle social que contribui, significativamente, para a estratégia de
as teorias raciais do século XIX, não estavam desatreladas dos interesses dos que aniquilamento total da população negra (NASCIMENTO, 1980). Por isso
possuíam e ainda possuem o poder econômico e político no Brasil e no mundo. que encontramos com facilidade o que nos desfavorece, nos mata e busca
Ao difundir-se ideias e empenhar-se para a construção de uma ima- manter o estabelecido, no acervo disponibilizado pela governança ideológica.
gem pejorativa do negro, seus saberes e práticas, os governantes– dentre eles Diante disso, sua proposição sobre a necessidade um conhecimento cientifi-
os intelectuais executores desse projeto – visavam legitimar e justificar o status co que nos ajude a sistematizar, consistentemente, nossa história/experiencia/
quo, que significa a branquitude7 como governadora ideal de todos os povos. agenciamento, de séculos (mais de quinhentos anos), é de extrema lucidez e
Esse tipo de tática é conceituado dentro da governança sociocultural como urgência para uma existência com dignidade.
governança sociocultural ideológica, por ser um meio de buscar o adestramento Por este fato, convoco uma Filosofia Política em Afroperspectiva para
da população pela via ideológica (DE MORAES, 2018). nos ajudar nessa missão futuro de investigação, resgate, reconhecimento,
Evidentemente, atrelada à governança sociocultural ideológica está a construção e sistematização da atividade política/intelectual do povo preto no
governança sociocultural do saber escolar que tem como local privilegiado as continente africano e em suas diásporas. Como fora dito, esse processo é vital
escolas e universidades que possuem muitos professores formatados, propo- para o fortalecimento da subjetividade, para o processo de reontologização
sitalmente, para retroalimentarem um discurso a favor do estabelecido, com da população negra e para a construção de um processo revolucionário, que
a chancela do “saber cientifico” que, historicamente, esteve a serviço da bran- destrua essa estrutura racista e capitalista em que vivemos.
quitude (governantes) e seus projetos colonizados/exploradores. A exposição/apresentação/acesso da população negra a um conheci-
Mas, conforme o historiador, os governantes mantem as opressões/ mento que resgate nossa memória, para que tenhamos referenciais positivos
governanças sociais acadêmica-cientifica, “pois simultaneamente cometem o e reais, de organização social, amparado em nossos valores – que não são de
epistemicídio contra as produções revolucionarias e populares, colocando-as exploração e apropriação privada dos recursos – além de combater o episte-
como saberes sujeitados, inferiores, errados” (DE MORAES, 2018, p. 64)8. micídio e o mentecídio, pode (assim acredito) gradualmente, despotencializar
7 Sobre o conceito de branquitude e suas implicações, Cf.: CARDOSO, Lourenço. A branquitude acrí- o projeto de sociedade ocidental que é ágorofóbico, racista, capitalista e ne-
tica revisitada e a branquidade. Revista da ABPN, Florianópolis, v. 6, n. 13,p. 88-106, mar./jun. 2014.
cropolítico, por dar a nós, população preta, a consciência histórica e política
8 De acordo com a filósofa Sueli Carneiro, o epistemicídio deve ser compreendido como um pro-
cesso que “fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra” (CARNEIRO, 2005, p. 97). de que os governantes, historicamente estabelecidos, só estão onde estão, sobretudo,
O epistemicídio destitui de razão os indivíduos sobre os quais esta operação se volta, constituindo
um processo de indigência cultural por deslegitimar a possibilidade da produção de conhecimento 9 Este conceito aparece na obra “O Quilombismo” na edição de 1980, da Editora Vozes, na pági-
pelos povos subjugados. na 25. Na edição de 2019 o termo mentecídio é subtraído, mas a ideia permanece na página 45.

248 249
porque buscaram apagar a nossa memória e enfraquecer, pelo genocídio mental, Em 1944 cria o Teatro Experimental do Negro que, além de propagar
espiritual, cultural, político, nossa potência. e desenvolver a dramaturgia negra, possuía atividades que contribuíam para
Em uma via combativa ao mentecídio, intento nas próximas linhas a consolidação da cidadania dos atores, por meio da alfabetização e conscien-
apresentar uma proposta preta de organização social que é comprometida com tização deste sobre a situação da população negra no Brasil. O TEN (Teatro
um projeto de sociedade que combata todos os tipos de governanças, sejam Experimental do Negro) rompeu barreiras de cor nos palcos brasileiros, como
elas sociais e/ou institucionais; e resgata do acervo do passado o que é útil e também formou a primeira geração de atores e atrizes negras da dramaturgia
contribui para o processo emancipatório da população negra. brasileira.
Apresento o Quilombismo, um projeto de sociedade cunhado pelo filó- Dando um salto nos diversos aspectos que compõe sua trajetória, vale
sofo político Abdias Nascimento, essencial para o hall do pensamento político ressaltar que com a promulgação do Ato Institucional número 5, durante a
afrodiaspórico, que considero ser a expressão da existência de uma filosofia polí- ditadura militar, sendo alvo de vários inquéritos Policial-Militares, Abdias fica
tica afro-brasileira (afroperspectivista) que tem o paradigma libertário como eixo. 12 anos em exilio e ao retornar ao Brasil participa do processo de redemocra-
tização do país, ajudando a criar o PDT (Partido Democrático Trabalhista).
Anos após, foi deputado (1983 a 1987) e senador federal (1997 a 1999) do
O Q uilombismo Rio de Janeiro, tendo como uma das principais pautas a criação de políticas
públicas afirmativas de igualdade racial.
Antes de adentrar à proposta de sociedade conceituada como Qui-
Sua agência política é do tamanho de sua vida, logo não é meu intuito
lombismo, é preciso conhecermos, ainda que brevemente, Abdias Nascimento
descrever todos os feitos de nosso filósofo político, contudo, é importante
(1914-2011)10.
sabermos que Abdias, até os seus 97 anos, dedicou sua vida na luta pelo reco-
Abdias foi um homem negro, pan-africanista, ativista social, econo-
nhecimento da humanidade, direito à cidadania, liberdade e igualdade para
mista, artista plástico, poeta, dramaturgo e político brasileiro, comprometido
população negra.
com a defesa da cultura e igualdade para a população afrodescendente no Bra-
Em vida, Abdias Nascimento expressou o desejo de que, ao desencar-
sil. É autor de várias obras, dentre elas: O negro revoltado(1968), O genocídio
nar, suas cinzas fossem levadas à Serra da Barriga, local reconhecido como o
do negro brasileiro (1978) , Sortilégio – Mistério Negro (1978), O Quilombis-
antigo Quilombo dos Palmares, palco da construção da vida em liberdade dos
mo (1980), O Brasil na mira do Pan-Africanismo (2002), que expressam sua
africanos e seus descentes no Brasil. Desejo realizado em 13 de novembro de
imersão qualificada na análise dos mecanismos do racismo e seu potencial
2011 com uma bela e emocionante cerimônia, onde organizações da socieda-
colaborativo no processo de compreensão da realidade de negros e negras na
de civil do Brasil e do mundo estiveram presentes.
sociedade brasileira.
E o que isso nos importa? Essa informação importa para que tenha-
Desde jovem, Abdias estava engajado na vida política. Em 1930 par-
mos compreensão do amor e importância que Abdias dava ao território que
ticipa do Frente Negra Brasileira, uma das principais organizações a exigir
representa, para a população negra, o local onde foi possível construir uma
igualdade de direitos e a participação dos negros em nossa sociedade. A or-
vida em liberdade. Os Quilombos, genuínos focos de resistência física e cultu-
ganização desenvolvia atividades de caráter político, cultural e educacional,
ral dos descendentes de africanos que se recusavam à violência e submissão a
tornou-se partido político, no entanto, com a ditadura do Governo Vargas,
um modo de vida escravista, são para o filósofo, o maior acervo onde podemos
foi obrigada a encerrar suas atividades.
encontrar referencias úteis e positivas para o fortalecimento da nossa caminha-
10 Para mais informações biográficas de Abdias, visitar o site do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-
-Brasileiros- IPEAFRO. Disponível em < http://ipeafro.org.br/personalidades/abdias-nascimento/> . da rumo à emancipação.

250 251
Sejam os quilombos legalizados11 (associações, irmandades, confra- pulação negra, que parte de uma referência política que não é fruto de uma
rias, grêmios, escolas de samba, afoxés, terreiros, etc) como os quilombos “ile- maquinação mental, falsa e abstrata. Muito menos tem princípios importados
gais”, ambos “foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e de contextos diferentes.
cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o Para Abdias, nossa filosofia, assim como nossos princípios e estraté-
comando da própria história”(NASCIMENTO, 2019, p. 282).Por este fato, gias políticas deve advir da cultura e da práxis da coletividade negra. Por essa
o filósofo conceitua por Quilombismo todo este complexo de significações e ideia alimentar o filósofo, um dos objetivos da obra consiste em nos ajudar a
práxis afro-brasileira. compreender que para o restabelecimento da integridade de nossa família – a
Em 1980 Abdias lança, portanto, a obra O Quilombismo, composta de família africana, no continente e fora dele –, é imprescindível o reforço dos
10 ensaios produzidos em tempo-espaços diferentes, que podemos considerar nossos vínculos ideológicos e culturais como condição prévia de nosso suces-
ser a “escrevivência” de um ativista e político negro, exposto na trincheira, so” (NASCIMENTO, 2019, p. 37).
para transformar a vida da população negra no Brasil racista (MUNANGA, Nesta perspectiva, para que isso aconteça é imprescindível a destrui-
2019). Com a seguinte dedicatória, o autor abre a obra: ção do projeto de sociedade que o Ocidente nos legou. Abdias é consciente do
rígido monopólio do poder político e da concentração racial dos recursos pela
Em memória dos trezentos milhões de africanos branquitude, que é minoria no Brasil, e permanece nos governando, desde
assassinados por escravistas, invasores, saqueadores, os tempos coloniais, como se isso fosse algo natural, um direito democrático,
torturadores e supremacistas brancos;
considerado justo pela intelligentsia brasileira.
Dado esse modus operandi da branquitude racista e tendo testemunha-
Dedico este livro aos jovens negros do Brasil
e do mundo, continuidade da luta por um tempo de do nos diversos movimentos negros a ocorrência da cooptação branca das or-
justiça, liberdade e igualdade onde os crimes ganizações e dos indivíduos negros e seus objetivos, buscando desintegrá-las e
do racismo não possam jamais se repetir estimulando traição e exploração da comunidade negra pela esquerda branca,
Abdias compreende que a luta pela emancipação do povo negro e indígena só
Com amor fraterno do ocorrerá através da autogestão e autodeterminação destes povos.
AUTOR.
Compreende que o negro só “poderá ter um futuro melhor quando
houver a transformação de toda estrutura do país, em todos seus níveis: na
Essa dedicatória possui um simbolismo extraordinário para mim, pois
economia, na sociedade, na cultura, na política.” (NASCIMENTO, 2019,
enquanto uma jovem negra, pesquisadora de uma filosofia afroperspectivista
p. 42). Como também, entende e afirma que necessitamos produzir a nossa
que faça sentido para minha coletividade, que nos reconheça como humanos,
intelligentsia, pois
detentores de racionalidade e agência política; me sinto a continuidade da luta Um futuro de melhor qualidade para a população afro-
por um tempo de justiça, liberdade e igualdade para que os meus, no agora e -brasileira só poderá ocorrer pelo esforço enérgico de orga-
no futuro não sofra o que nossos ancestrais sofreram e eu ainda sofro. nização e mobilização coletiva, tanto da população negra
E este, para mim, é o sentido desta obra. Sobretudo, do documento como das suas inteligências e capacidades escolarizadas,
7 titulado “Quilombismo”. Nele, compreendo que há uma filosofia afropers- para a enorme batalha no fronte da criação teórico-cienti-
fica. Há de se consolidar uma teoria cientifica inextricavel-
pectivista, um projeto de sociedade, um projeto de futuro autêntico pra po-
mente fundida à nossa pratica histórica que efetivamente
11 Aceitos pela sociedade dominante. contribua à salvação da comunidade negra, a qual vem

252 253
sendo inexoravelmente exterminada seja pela matança di- interessa a proposta de uma adaptação aos moldes da so-
reta da fome, seja pela miscigenação compulsória, seja pela ciedade capitalista e de classes. Esta não é a solução que
assimilação do negro aos padrões e ideais ilusórios do lucro devemos aceitar como se fora mandamento inelutável.
ocidental (NASCIMENTO, 2019, pp. 290-291). Confiamos na idoneidade mental do negro, e acredita-
mos na reinvenção de nós mesmos e de nossa história.
Urge, para Abdias, que nós codifiquemos nossa experiencia por nós Reinvenção de um caminho afro-brasileiro de vida funda-
mesmos e tiremos dessa experiencia de elaboração, interpretação e sistemati- do em sua experiencia histórica, na utilização do conhe-
cimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas
zação da história, as lições teóricas e práticas que interessa a população negra
pelo colonialismo e pelo racismo. Enfim, reconstruir no
para a resolução de suas demandas e de sua respectiva visão de futuro, para que
presente uma sociedade dirigida ao futuro, mas levando
não continuemos executando projetos de futuro impostos. em conta o que ainda for útil e positivo no acervo do
Sua parte nesse processo ele fez. O documento 7 denominado O passado. (NASCIMENTO, 2019, p. 288).
Quilombismo é, ao meu ver, o início da edificação de uma ciência histórico-
-humanista do povo negro, por sistematizar um projeto de Estado Nacional Verifica-se nesta passagem as características da sociedade almejada pelo
Quilombista, inspirado nas organizações quilombolas que tem como o eixo a povo preto. O projeto esboçado por Abdias é um projeto de revolução que é
Liberdade e a Igualdade, a autodeterminação e autogestão do negro. fundamentalmente antiautoritário, antirracista, anticapitalista, anti-imperia-
É uma filosofia que sistematiza e expõe o agenciamento político negro lista, antineocolonialista, antiburocrata, antilatifundiária. Combate todos os
ao evidenciar que os negros sempre quiseram, querem e podem arquitetar, tipos de governanças sociais e institucionais que visam procrastinar o advento
consciente e consistentemente, um outro projeto de sociedade, antagônico da emancipação e fazer com que a população negra se adeque aos moldes da
ao projeto ocidental, capitalista e racista. Vejamos o projeto apresentado por sociedade capitalista e de classes que estão assentadas no racismo.
Abdias. Diz o autor: O projeto do povo negro é fundado na liberdade, na justiça, na igual-
dade e no respeito a todos seres humanos e é por isso que seu nome advém da
O negro tragou até à última gota os venenos da submis- única organização que possibilitou o negro experimentar a liberdade: os quilom-
são imposta pelo escravismo, perpetuada pela estrutura
bos, pois tanto o Estado colonial português quanto o Brasil – colônia, império e
do racismo psicossócio-cultural que mantém atuando até
república – foi um estado de terror organizado contra a população negra.
os dias de hoje. Os negros tem como projeto coletivo a
ereção de uma sociedade fundada na liberdade, na justi- Portanto, ratifico ser o quilombo o acervo que Abdias se volta para
ça, na igualdade e no respeito a todos os seres humanos; se inspirar e recuperar o que é útil e positivo para a construção e implemen-
uma sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível tação de um projeto de sociedade que ele denomina como Estado Nacional
a exploração econômica e o racismo; uma democracia Quilombista. Os quilombos, para o filósofo, em especial, A República de Pal-
autêntica, fundada pelos destituídos e deserdados deste mares, no século XVI, nos legou um patrimônio de prática quilombista que
país, aos quais não interessa a simples restauração de ti-
possui um valor dinâmico na estratégia e na tática de sobrevivência e progresso
pos e formas caducas de instituições políticas, sociais e
das comunidades negras.
econômicas as quais serviriam unicamente para procras-
tinar o advento de nossa emancipação total e definitiva, Na obra O genocídio do negro brasileiro, Abdias salienta sobre a impor-
que somente pode advir com a transformação radical das tância política de Palmares:
estruturas vigentes. Cabe mais uma vez insistir: não nos

254 255
Em toda a história dos africanos no Novo Mundo nenhum produção diferem do modelo de economia espoliativo (capitalista) fundado
acontecimento é tão excepcional quanto aquele que se re- na lógica do lucro. É um projeto que combate a propriedade privada da terra,
gistra no século XVI: a República dos Palmares, verdadeiro dos meios de produção, por defender que todos os fatores e elementos básicos
estado africano constituído no seio das florestas de Alagoas
são de propriedade e uso coletivo.
por rebeldes e fugitivos escravos. Desde 1630 até 1697, a
chamada “Troia Negra” resistiu a mais de 27 expedições
Também, defende que os trabalhadores, que produzem as riquezas
militares enviadas por Portugal e pelos holandeses, até que são os únicos donos do produto de seu trabalho. Para além disso, são apresen-
finalmente foi destruída pela força mercenária comandada tados na obra, dezesseis princípios e propósitos chaves do Quilombismo que
por um bandeirante. Palmares – cuja população, se cal- estruturam o projeto de Abdias de implementação de um Estado Nacional
cula, chegou à casa das trinta mil pessoas entre homens, Quilombista, que devido os limites do trabalho, não cabe a apresentação de
mulheres e crianças – possuía uma sociedade organizada todos. Mas, vale fazer algumas considerações:
com eficaz sistema de produção comunal e de trocas; sua
É evidente que Abdias apresenta-nos um projeto de sociedade e/ou
organização defensiva, bem como a liderança política e
militar, demonstram notável capacidade. A longa duração
Estado com base na autodeterminação da população negra que tem como
de Palmares testemunha a seu favor e a dos seus líderes, o exemplo inspirador o Quilombo dos Palmares, que traz uma proposta comu-
último deles tendo sido o rei Zumbi; representa a primeira nalista tradicional de alguns povos do continente africano, que demonstra a
e heroica manifestação de amor à liberdade em terras do inexistência da relação exploradores e explorados.
Brasil. (NASCIMENTO, 2017, p. 72) Projetar uma sociedade que tem como base o comunalismo africano
atualizado significa propor um projeto de futuro revolucionário para todxs
Vale lembrar que quilombo “não significa escravo fugido. Quilom- nós, que está comprometido com a emancipação e real conquista da liberdade
bo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão dos povos pretos e indígenas que são, historicamente, explorados e subtraídos
existencial” (NASCIMENTO, 2019, pp. 289-290). E essa comunhão, nasce do direito à terra, a moradia, à uma alimentação adequada, há um mundo
da exigência vital dos povos escravizados por liberdade, dignidade e uma or- habitável, ao trabalho digno, dado o sistema econômico capitalista neoliberal
ganização social livre onde possam ser felizes. Por este fato, ao listar alguns que massacra a população negra e indígena, por servir unicamente para garan-
princípios e propósitos deste projeto de sociedade, na obra O Quilombismo, tir as riquezas advindas da escravização e expropriação das riquezas das terras
encontramos no 3º princípio que, dos povos colonizados.
Além de tudo, o projeto proposto pelo filósofo ao deslocar o ocidente
A finalidade básica do Estado Nacional Quilombista é a
de promover a felicidade do ser humano. Para atingir sua
do centro e evocar Palmares, e as organizações quilombolas como referência,
finalidade, o Quilombismo acredita numa sociedade de propondo caminhos criativos e possíveis de vivência, torna-se um projeto com
base comunitário-cooperativista no setor da produção, possibilidades reais de realização, pois não se ampara em algo ideal, abstrato.
da distribuição e da divisão dos resultados do trabalho É pautado em organizações sociais que existiram e resistiram, por anos ao
coletivo (NASCIMENTO, 2019, p. 305). modelo espoliativo.
Logo, é um projeto revolucionário que deve ser, sobretudo, pela filo-
Esse princípio demonstra um dos caracteres mais revolucionários do sofia política brasileira alcançado, analisado, proposto se é que queremos de
projeto apresentado na obra. O Quilombismo reivindica como sistema econô- fato pensarmos e projetarmos futuros que: não exista privilégios econômicos,
mico o comunitarismo ou ujamaaísmo da tradição africana, onde as relações de políticos, culturais e sociais; que combata o genocídio, o epistemicídio e o

256 257
mentecídio, resgate a memória e o agenciamento político dos povos negros e Mais que nunca, amparada na filosofia ngoenhiana, acredito ser tem-
indígenas; contribua no processo de reontologização dos povos colonizados e po da filosofia brasileira se reconciliar com a cultura, com o substrato cultural
caminhe rumo à emancipação dos povos subalternos. do nosso país e resgatar práticas de organização que tornem possível o ama-
Fato é que os princípios e propósitos do Quilombismo são revolucio- nhã, pois o genocídio que assola as famílias pretas/pobres é consequência de
nários, também, por ser um projeto de Estado que não tem, em sua essência, um projeto de sociedade que o lado esquerdo e o direito fazem parte de um
condicionantes para a existência de uma Estadolátria que, em suma, somente mesmo corpo, o Estado.
em uma sociedade pautada na desigualdade e na propriedade privada dos re- E, esse projeto de Estado não é por nós. É contra nós. Logo, enquanto
cursos, estimula-se. uma pesquisadora de filosofia afroperspectivista acredito que o Quilombismo é
O projeto de futuro, de sociedade, que é arquitetado e fora, breve- uma proposta organizacional revolucionaria que precisa chegar, interdiscipli-
mente, esboçado aqui, tem o intuito de evidenciar e apresentar ao leitor/leito- narmente, na população preta dentro e fora das universidades.
ra que um projeto que, em sua essência, busca a autoderminação, autogestão A filosofia afroperspectivista pode e deve ser instrumento de investi-
do povo negro , que combate a supremacia branca, o imperialismo, o capita- gação, recuperação, proposição e divulgação de vias, verdadeiramente, liber-
lismo, o autoritarismo, o neocolonialismo é um projeto possível, pois Palma- tárias. E é por isso que apresento O Quilombismo para que, como Abdias e
res existiu e resistiu ao sistema supremacista branco e nós, organizados como José Carlos Limeira (poeta), saibamos que é possível construirmos um outro
nossos ancestrais, também podemos fazer outros Palmares! projeto de mundo e de sociedade, mas é preciso que olhemos nosso processo
histórico e ousemos partir do sul, para que tenhamos Palmares como farol e
possamos dizer que:
C onsiderações F inais
Por menos que conte a história
Não é à toa que as governanças políticas e, por sua vez, econômica e
Não te esqueço meu povo
ideológica apostou em um projeto de sociedade que, em primeira instância,
Se Palmares não vive mais
buscasse apagar a nossa memória pelo mentecídio e epistemicídio, pois sábios
Faremos Palmares de novo
e medrosos que são, estes arquitetos tem consciência que se 54% da população
(José Carlos Limeira)
brasileira resgatar sua memória revolucionaria, sua autoestima, autoconfiança
e se formarem politicamente, não há projeto ocidental que se mantenha.
O povo indígena e o povo negro são os artífices deste país! É dever da
filosofia, em especial, política se comprometer em investigar, resgatar, sistema-
tizar e apresentar outros paradigmas sociais e se empenhar a não retroalimen-
tar e fortalecer propostas de mundo que, em suma, servem ao eterno projeto
colonial europeu.
Afinal, até quando vamos ratificar teorias que negam a humanidade
de povos que construíram a filosofia, ciência e a tecnologia e possuem uma
cosmopolítica solidária, para servirmos a um projeto econômico que não nos
considera e só existe por se apropriar, violentamente, dos nossos recursos?

258 259
Aza Njeri dicar nossa humanidade ainda é objetivo básico para luta antirracista e
Á frica & A frodiáspora
antigenocida.
Além das referências supracitadas, utiliza-se como fio suleador dos
I. I ntroduzindo a problemática meus estudos as elaborações dos filósofos e intelectuais africanos e afrodiaspó-
ricos como Mogobe Ramose, B. Fu Kiau, Cheikh A. Diop, Bas’llele Maloma-
Na história [...] o Negro não tinha lugar neste lo, Kabengele Munanga, Marimba Ani, Molefi Kete Asante, Maulana Karen-
currículo. Ele foi retratado como um ser huma- ga, Bell Hooks, Wade Nobles, Frantz Fanon, Sueli Carneiro, Renato Noguera,
no de ordem inferior, incapaz de sujeitar a pai- Azoilda Trindade, Neusa Santos, Henrique Cunha Jr., Beatriz Nascimento,
xão ao motivo e, portanto, útil apenas quando Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez. Também recorro às contribuições de
fez a escultura de madeira e baldes de água para
Bakhtin, Theodor Adorno, Edward Said, Roland Barthes, Anibal Quijano,
outros. Nenhum pensamento foi dado à história
Alberto Costa e Silva, entre outros.
da África, exceto pelo fato de ter sido um cam-
po de exploração para o caucasiano. (Woodson, A minha formação em letras me levou a atuar como professora língua
2018, p. 39.) portuguesa. Passei, rapidamente, pela educação básica e em seguida me estabe-
leci no ensino superior. Essa trajetória me fez entender que os educadores do
Este artigo é fruto das minhas pesquisas de doutorado/UFRJ ensino básico tinham uma grande responsabilidade no gestar a potência daque-
sobre educação pluriversal :

em Literaturas Africanas e pós-doutorado/UFRJ em Filosofias Africa- les educandos e que muitas vezes, se sentiam enclausurados em um modelo de
nas sobre África e Diáspora ministrado em diversos formatos educacio- ensino limitador das suas próprias potencialidades enquanto educadores.
nais - cursos, palestras, conferências, roda de conversa, debates etc. - Acessando aos escritos de B. Fu Kiau e Lukondo-Wamba (2000) e a
para docentes, estudantes, pesquisadores, artistas - em diferentes partes filosofia do Kindezi presente na obra Kindezi: the Kôngo art of babysitting en-
do país e que foi ministrado no Seminário Encruzilhadas com o título tendi que Kindezi é a arte banto-congo de Acender o Sol interior das crianças
“África e diáspora: cultura, história e sociedade” e também faz parte como parte da responsabilidade comunitária. Seria
das discussões oriundas do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório
Geru Maa que eu coordeno no IFCS/UFRJ. (...) basicamente a arte de tocar, cuidar e proteger a vida
da criança e do ambiente, Kinzungidila, em que o desen-
Pesquiso África desde a graduação em Letras na UFRJ no ano
volvimento multidimensional da criança ocorre. A pa-
de 2004. Primeiramente nas Literaturas Africanas - em que sou mestre lavra “Kindezi”, um termo da língua “Kikôngo”, deriva
e doutora -, mas logo o diálogo com a história, sociedade, culturas e do verbo raíz Ieia, que significa desfrutar de tomar e dar
artes africanas aconteceu de forma a tornarem indissociáveis na minha cuidados especiais.
atuação e na compreensão do desdobramento na afrodiáspora. Cuidar de crianças – Ieia, ou seja, dar cuidados especiais
Em 2017, com a necessidade de fomentar minhas reflexões - é, antes de tudo, uma forma de transferir padrões so-
artístico-filosóficas, iniciei o pós-doutorado em Filosofia Africana, ciais para os membros mais jovens da comunidade. E,
em segundo lugar, é a orientação da criança para a vida
sob a orientação do professor dr. Rafael Haddock Lobo, em que, a
que compreende orientações muito bem determinadas
partir da perspectiva afrocêntrica de Molefi Kete Asante (2009) e da de acordo com as normas e valores comunitários. (ANI,
N otas

afroperspectiva de Renato Noguera (2012) refleti, discuti, tensionei 2018, trad. livre)
acerca dos caminhos para a reumanização dos negros, já que reivin-

260 261
E Ndezi, aquele que pratica a Kindezi, seria o responsável por “ajudar cresçam com mais empatia, menos racistas e conscientes
esse ‘sol vivo’ a brilhar e crescer em seu estágio inicial” (ANI, 2018). Assim, ao de seu papel no mundo. (NJERI, 2019, p. 7)
pensarmos a educação a partir de eixos pluriversais (RAMOSE, 2011), pode-
mos utilizar a afroperspectiva do Kindezi para compreendê-la - não apenas a O que quero dizer é que, ao acessarmos exclusivamente uma educação
educação formal e institucional, mas também, todas as pluriformas de educar apenas de agência eurocêntrica universalizante, temos mais dificuldades em
- como possibilidade de acender o Sol interno dos nossos educandos para que resolver problemas de ordens plurais, já que a experiência para a resolução
eles tenham um livre caminhar na Vida. destes dramas parte de um único paradigma. Essa é sem dúvida, uma das
Esta compreensão me deu um fôlego para encampar uma perspectiva maiores questões da Universalidade Ocidental diante da Pluriversalidade das
emancipadora da educação. Agora, me entendo como uma Ndezi, aquela que nossas existências, sendo importante pontuar acerca da necessidade de pluri-
busca acender o Sol do outro, e que no meu o foco, é o Sol interno que con- diversificarmos as maneiras de Acender o Sol do outro. E é isso que pretendo
fere a nossa humanidade. neste artigo.
Quando me deparo, portanto, com a realidade histórico-social brasi-
leira, percebo que as falhas em acender o Sol das pessoas causam limitações
em seu livre pensar e nas suas livres escolhas, já que se retira as possibilidades
II. O que todos deveríamos saber sobre

de compreender a pluralidade de caminhos da Vida, apresentando, muitas das


Á frica e a afrodiáspora mas a escola não nos contou
vezes, trilhas para morte física, psicológica, cognitiva e espiritual.
É claro que o debate sobre educação libertadora não se esgota neste
artigo, mas pensar a pluriversalidade é tecer reflexões acerca do modelo limita- Você pode estudar a história como foi oferecida no nosso
sistema a partir da escola primária em toda a universida-
dor vigente praticado em nossa sociedade. Assim, esse artigo objetiva agregar
de, e você nunca saberia que os Africanos domesticavam
fôlego à discussão e não esgotá-la.
as ovelhas, as cabras e as vacas, desenvolveram a ideia
Uma educação emancipadora e dialogante com a contemporaneidade é de julgamento pelo júri, produziram os primeiros instru-
aquela que se preocupa com a pluralidade de formas de Ser e Estar no mundo, mentos de ferro. Você nunca saberia que antes da invasão
abandonando o único olhar excludente e homogeneizador universal da perspec- maometana cerca de 1000 dC, esses nativos no coração
tiva eurocêntrica sobre a compreensão de educar. Principalmente porque uma da África desenvolveram reinos poderosos que posterior-
educação que só apresenta uma forma de lidar com as problemáticas da Vida, mente foram organizados como o Império Songhai de
ordem como a dos romanos e se vangloriam de grandeza
tende a construir indivíduos limitados nas soluções de seus problemas.
semelhante. (WOODSON, 2018, p. 39)
Assim sendo, uma educação antirracista e emancipadora
deve preparar o sujeito negro para ser lúcido e crítico Molefi Kete Asante (2014) apresenta o paradigma da afrocentricida-
diante desta realidade, permitindo a sua autodetermina- de que pressupõe localização e a agência para uma mudança de paradigmas
ção e autoproteção enquanto ser humano, pois ele é o sociais: “Assim, a afrocentricidade é uma perspectiva filosófica associada com
alvo principal deste monstro e não pode ser alienado em a descoberta, localização e realização da agência africana dentro do contexto
relação a este fato. E, as crianças não-negras que acessa- de história e cultura” (Asante, 2014, p. 4). Agência significa que toda a ação
rão essa educação, compreenderão que o mundo não gira
que coloca na centralidade de seus fenômenos o olhar/interesse de seus agen-
em torno de si, seus valores e culturas, fazendo com que

262 263
tes. Isso quer dizer que, diante da realidade da afrodiáspora brasileira, seria 4. O Nilo, o mais longo rio do mundo, possui o nome original Hapi
interessante a aplicação da agência dessa população de forma a fazer cumprir ou Iteru2, cujas margens testemunharam o surgimento dos Impérios de Ke-
não só a lei 10639/03, mas sobretudo, a mudança de paradigma para uma met (Egito), Kush (Núbia) e Abissínia (Etiópia) há cerca de 5 mil anos a.e.c..
equidade racial. (Diop, 2012, 1974; Asante, 2015, Silva, 1992)
Desta forma, começo aqui algumas notas informativas do que deve- 5. O Egito fica no continente africano, sua população atualmente é
ríamos ter aprendido na escola, mas a educação eurocêntrica universal nos ne- miscigenada entre negros, brancos e árabes, mas na sua origem era um territó-
gou1. Vale ressaltar que Educação é uma complexidade que envolve sistemas, rio negro. Seu nome original é “Kemet” que em medu neter (língua kemética/
pessoas e lugares, não sendo foco deste artigo procurar culpados, mas sim, hieróglifos) significa Terra Negra. (Diop, 2012, 1974). Kemet foi fundada a
convidar a todos a refletirem em conjunto sobre quais caminhos podemos nos partir da unificação de 42 cidades do Alto e Baixo Kemet, em uma confede-
lançar para a melhoria da Educação de maneira geral, e a educação escolar de ração pelo faraó Nemer em 3150 a.e.c.3. Sabe-se que em 3000 a.e.c. havia
forma específica. em Kemet cidades com até 100 mil habitantes, desenvolvidas, muitas vezes,
1. Raça é um conceito político e não biológico, já que biologicamente em torno de alguma construção artístico-arquitetônica como a esfinge ou as
somos pertencentes ao conjunto denominado Homo Sapiens. Sendo um conceito pirâmides, conforme descobertas arqueológicas que apontam a existência de
sócio-político, trago a definição de Molefi Asante (2010) acerca do racismo: cervejarias, padarias, casernas e áreas coletivas em torno do Complexo de Kar-
nak e das Pirâmides de Gizé, que até o século XIX foi a maior construção da
Racismo é uma estrutura de poder que privilegia uma humanidade com os seus 146 metros de altura e 240 metros de base.
raça em detrimento de todas as outras, desta forma,
6. Os núbios ou cuxitas são outro povo que desenvolveu experiência
pessoas brancas se beneficiam, mesmo que inconscien-
urbana, sua existência data de 1700 a.e.c. a 600 a.e.c.., fundado a partir da
temente, desta estrutura de poder e cabe a todos nós en-
tendermos tal dinâmica e combatê-la a fim de chegarmos união dos reinos de Kush e Meroë (Asante, 2007). Localizado à margem leste
a uma igualdade” (Asante, 2010, p. 17) do rio Nilo, onde hoje encontra-se o Sudão, a Núbia possuía uma rede de
distribuição de água do rio para as suas cidades, sobretudo Meroë (Napata), a
2. Diante da percepção da pluriversalidade da educação (Njeri, 2019), capital, onde se encontram as 117 Pirâmides de Meroë.
parece mais interessante desvincular da perspectiva cristã ocidental a marcação
temporal secular a.C. (antes de Cristo) e d.C. (depois de Cristo), para adotar Aquela cidade, que fica também com o nome de Napata,
devia, já então, ser o término da rota caravaneira de Mehei-
uma forma ampla e neutra a partir do A.E.C para Antes da Era Comum e
la. Vindo de Kawa, esse caminho reduzia a viagem entre as
E.C., Era Comum. Que em termos ocidentais, ainda tem o marcador tempo-
duas urbes (...) Napata pode ter sido importante escalada
ral zero (ano 0) no nascimento de Jesus Cristo, mas simbólica e linguistica- comercial para os produtos que, do sul da Núbia e das ter-
mente questiona a perspectiva cristã adotada na contagem do tempo. ras que lhe ficavam além, iam ter ao Egito, e dos antigos
3. A paleontologia já aponta evidências fósseis do surgimento do ser hu- egípcios vindo de volta. Foi também um ponto de partida:
mano (homo erectus) estar localizado no leste do continente africano a cerca de 2 do outro extraído das minas próximas à Quarta Catarata ou
milhões de anos e a espécie que pertencemos, Homo Sapiens, também compro- que se espalhavam entre Abu Hamed e o Mar Vermelho.
E um pólo de atração e chegada. (Silva, 1992, pp. 97-98)
vadamente surgiu na África Oriental a cerca de 200 mil anos. (Diop, 2012, 1974)

1 Essa notas são exemplos da omissão de África e Afrodiáspora no currículo escolar, estando muito 2 Nomes do rio em Medu Neter, a língua de Kemet (Egito). Asante, 2007.
longe de encerrar o debate ou esgotar as possibilidades de exemplificação. 3 a.c.e equivale a “antes da era comum”, termo que vem substituir a.c., antes de cristo.

264 265
7. Abissínia é o nome original da região ao sul do Egito que os gregos 12. Em 760 a.e.c. a maior marinha mercante e bélica do mundo era
chamaram de Etiópia, e passou, a partir do século I e.c.4, a praticar a fé cristã Núbia. (Diop, 2012; Asante, 2015)
copta. A Etiópia também é herdeira do reino de Punt, constantemente refe- 13. Os Olmecas, descendentes de núbios que se estabeleceram no Mé-
renciado pelos Keméticos, principalmente no período da importante per-aat xico, são uma sociedade mesoamericana, cuja cosmovisão é africana e que
(faraó) Hatshepsut do século XV a.e.c., que constantemente enviava expe- desenvolvia comércio e possuía estrutura social semelhante à encontrada em
dições a este reino, sobretudo para trocas comerciais. E no século IV e.c.. o África. Além disso, construíram pirâmides como as encontradas em Moröe
território torna-se parte do Reino de Axum, um grande império africano que que circundam as cabeças olmecas, um conjunto de esculturas em pedra úni-
durou até século XII e.c.. (Asante, 2015; Silva, 1992) ca de basalto, no formato de cabeças com fenótipo negro portando elmos
8. Na região de Kemet, Kush e Abissínia surgiram a escrita, literatura, semelhantes aos usados pelos núbios. (Sertima,1976).
filosofia, matemática - que origina da palavra, categoria filosófica-espiritual e 14. O Império de Ghana/Wagadu (830ª.e.c./1235 e.c.) foi detentor
deusa da Justiça, Maat - yoga kemética, astronomia, medicina. (Diop, 1974) de uma grande reserva de ouro, estabeleceu comércio com povos norte-afri-
9. Imhotep ou “aquele que vem em paz” viveu no século XXVII a.e.c. canos, asiáticos e europeus. Essa história está registrada pelos historiadores
e foi um polímata de Kemet. Atuou como vizir do per-aa (faraó) Djoser da árabes, Ibn-Khaldun (1332 e.c.), Ibn-Hawkal (Séc.X e.c.), Ibn-Batouta (1302
Terceira Dinastia e como sumo-sacerdote do deus-sol Rá, em Heliópolis. Ele e.c.). A origem desse império remonta ao povo Soninke (mandê) e ao rio
é considerado o primeiro engenheiro, arquiteto e médico da história, embo- Níger, cuja palavra Gana, em sua língua, significava o título de rei supremo
ra dois outros médicos, Hesi-Rá e Merite-Ptá, tenham sido contemporâneos e, por serem negociadores de sal e ouro, o reino de Gana recebe a alcunha
seus. (Asante, 2015; Diop, 1974; Silva, 1992) de “Kaya Maghan”, isto é, o mestre do ouro. Este reino, também conhecido
10. Hatshepsut foi a primeira rainha da humanidade que se tem notí- como Império Uagadu, controlava e regulamentava a exportação de ouro,
cia, filha de Amenófis II e Akhoptou II, neta de Tutmósis I. Ela ocupou o pos- possuindo vigoroso comércio com outros povos da região como os Wolof,
to de faraó (per-aat) durante 21 anos, entre 1479 a.e.c. e 1458 a.e.c. (Diop, Serer, Amazighs e outros, além de ser reconhecido por sua habilidade em co-
1974, 2012; Asante, Mazama, 2010) mércio, negociação e guerra. A capital do império era Cumbi-Salé, localizada
11. Os gregos, assim como outras pessoas de diferentes regiões, estu- na atual Mauritânia, que
davam nas escolas keméticas desenvolvedoras de saberes filosóficos, artísticos
e matemáticos desde o século XXVII a.e.c.. Essas escolas eram compreendi- foi uma cidade de mercadores ricos, um grande centro
comercial com entre 15 e 20 mil habitantes. (...) As ca-
das como templos de sapiência e evolução. O George James na obra “Stolen
sas, muitas delas de dois andares, são sólidas, de paredes
Legacy” (1954), aponta a relação dos filósofos clássicos gregos com o Egito.
grossas , com nichos triangulares e retangulares, seme-
lhantes aos encontrados em Tegdaoust. Deviam estar re-
Em relação à Sócrates e Aristóteles e a maioria dos filó-
vestidas por um reboco amarelo e polido, que há ainda
sofos pré-socráticos,a história parece ser omissa sobre a
poucos restos. Algumas moradias eram grandes. Uma
questão da sua viagem para o Egito, (...) com o propósito
tinha 19,8m por 12,6m e sete cômodos, distribuídos em
de sua educação. É o suficiente dizer que, neste caso, as
dois pavimentos, ligados por excelente escada. Outra,
exceções provaram a regra, que todos os estudantes, que
nove quartos. Desvendaram-se também umas ruínas de
tinham os meios, foram para o Egito para completar sua
mesquita e amplas áreas de palhoças e pequenas casas de
educação. (JAMES, 1954, p. 53, trad. livre)
barro - as habitações mais pobres. (Silva, 1992, p. 253)
4 e.c. equivale a “era comum”, termo que vem substituir a d.c., depois de cristo.

266 267
15. O islã, a partir da expansão almorávida nos séculos XI e XII, passa o Mali. Neste convite, chega Abu Ishaq Ibrahim al-Sahili responsável pela am-
a dominar a região do Gana, Mali e Mauritânia, estendendo-se pelo Marro- pliação e construção de mesquitas de Gao (Songai) e Timbuktu, empregando
cos, atravessando o Mediterrâneo até chegar ao centro da Península Ibérica, tijolos pela primeira vez nessa parte do mundo, mesclando com toda uma
influenciando permanentemente as culturas, concepções filosóficas, linguísti- tradição milenar arquitetônica de construção destes povos, criando assim, o
cas e tecnológicas de todos os povos dessas geografias. que a História atribuiu chamar de arquitetura sudanesa: “(...) novo estilo ar-
quitetônico, dito sudanês, com suas torres em forma de pirâmides truncadas,
A empresa almorávida deixara no Sael marcas permanen- suas pequenas janelas, seus extensos terraços” (Silva, 1992, p. 297).
tes. Em primeiro lugar, porque contribuiu para a isla-
18. As invasões europeias ao continente africano vão ocorrer a partir
mização de grande parte das populações do Sudão Oci-
das grandes navegações e da lógica do dividir para conquistar (Fanon, 2005) e
dental, (...) depois, porque destruiu o equilíbrio entre a
agricultura e a pecuária existente do Sael. (...) Em 1203 terão como consequência o início do sequestro do Atlântico, onde foram reti-
ou 1204, os sossos [povo mandinga] tomaram militar- rados oficialmente de África cerca de 20 milhões de pessoas, sendo 11 milhões
mente Gana. Cumbi, se a ela correspondem realmente as destinados à Amérikkka6. Acredita-se que 2/4 dos sequestrados morriam na
ruinas de Koumbi Saleh, continuaria, porém, a ser uma travessia e ⅓ dos navios tumbeiros sofriam rebeliões e eram destruídos e afun-
importante urbe até o século XV. (Silva, 1992, p. 260). davam. “A escravidão do Atlântico é a única voltada para um grupo étnico
específico, mesmo que se convertessem ao cristianismo” (M’Bokolo, 1998).
16. As invasões árabes ao continente africano são as introdutoras do
19. A escravidão árabe tinha como foco principal o ouro sudanês e as
regime de escravidão em África. A colonização árabe na região baseia-se na
especiarias africanas e era utilizada para fins domésticos; a escravidão europeia
miscigenação e islamização, confrontando-se diretamente com o matriarca-
tinha como foco o comércio de pessoas como foco na objetificação de seres
do africano. Cerca de 13 milhões de africanos foram escravizados pelos rei-
humanos para obtenção de lucro. (M’Bokolo, 1998; Asante, 2015)
nos muçulmanos e 4 milhões por árabes e orientais. (Moore, 2012; Diop,
20. Toda a Europa se beneficiou da cadeia escravista e compartilhou
2012,1974; Asante, 2015).
de seu espólio: França, Inglaterra, Portugal, Holanda, Espanha, Dinamarca,
17. O Império do Mali (séc. XIII – XVI e.c.) foi fundado por Sun-
Itália, Suécia e Brandemburgo; Rússia e países balcânicos receberam seu con-
diata Keita, homem pertencente a linhagem clânica dos caçadores Keita, cuja
tingente de escravos através do Império Otomano.(Asante, 2015)
história é envolta de aura mitológica, digna de epopéia5. Este império é cheio
21. Escravidão dentro do continente africano cresceu junto com o
de histórias de mansas (soberanos) desbravadores como Mansa Abubakari II
comércio do Atlântico. Assim como há o alinhamento de africanos à prática
(ou Mansa Gao) que “mandou preparar uma frota com 2000 canoas, metade
escravista, em muito maior proporção foram as guerras de resistência a esse
das quais com água e provisões. E partiu ele próprio numa delas. Nada mais se
sistema como a Guerra dos Marabus e Movimento Iorubano no século XVII.
soube da expedição” (Silva, 1992, p. 294), ou o Mansa Musa, seu filho, que é
(Asante, 2015; Silva, 1992)
considerado o rei mais rico da história da humanidade, passando a figurar na
22. Portugueses se envolveram diretamente nas redes africanas de
cartografia mundial como o rei que em sua viagem à Meca, distribuiu ouro, de
guerra e comércio e trocavam seres humanos por rifles, pólvora, ferragens,
tal forma “que o metal se desvalorizou, durante muitos anos, no Oriente Pró-
panos, conhaque etc.. (Asante, 2015; Silva, 1992)
ximo, em relação à prata.” (Silva, 1992, p.295). Ao retornar de Meca, Mansa
23. Nzinga Mbande é um dos símbolos de resistência às invasões eu-
Musa convida artistas, intelectuais, arquitetos e engenheiros para desenvolver
6 Utilizando da faceta semiótica da linguística, utilizo a grafia de Amérikkka como referência ao
5 Referência à obra de Djibril T. Niane chamada “Sundjata Ou a Epopéia Mandinga”. Ocidente supremacista, materializado no símbolo da Ku Klux Klan.

268 269
ropeias, viveu entre 1583 e 1663 e foi governante do reino dos Reinos Ndon- sas de reação ideológica, social, político-militar” (...) “O quilombo foi uma
go e Matamba (Congo-Angola). Ela resistiu aos portugueses a partir de estra- forma de organização política e social com implicações ideológicas muito for-
tégias militares e alianças, sendo uma delas a conversão para fins políticos ao tes na vida do negro no passado e se projeta, após a abolição, no século XX”
cristianismo, sendo batizada de Ana de Souza. Entretanto a aliança foi rompi- (Nascimento, 2018, p. 74/98). Ou seja, quilombos eram mais do que lugares
da e um longo processo de guerra se estabeleceu. Após a sua morte em 1663, para onde fugiam os negros escravizados, eram espaços de reontologização
cerca de 7 mil soldados de seu reino foram encarcerados e sequestrados para africana dentro do território da América.
o brasil7, onde Nzinga passou a figurar memória em várias manifestações 28. Quilombo dos Palmares, cujo nome original é Ngola Jaga ou
culturais como folguedos da festa de reis dos negros do Rosário, na congada e Angola Janga, foi a primeira república africana dentro do território da
no candomblé angola. (Silva, 1992; Nascimento, 2018) Amérikkka. A historiadora Beatriz Nascimento (2018) aponta que essa
24. Kimpa Vita (1684/1706) é outra figura de destaque na resistência república chegou a ter 20 mil pessoas em seu auge e foi construída em
em África. Foi uma profetiza e líder política no Congo, que desafiou o cris- formato de 7 cidades de modelos africanos, cuja capital era chamada de
tianismo questionando a figura de Jesus e localizando-o como um homem Macaco. Após a destruição de Palmares, os remanescentes fundaram qui-
negro. Foi acusada como herege e queimada viva sob a alcunha de D. Beatriz. lombos menores que foram ao longo do tempo se deslocando para o norte
(Asante;Mazama, 2010) e sudeste do Brasil.
25. A diáspora africana surge desse processo que Marimba Ani chamou de 29. Com o fim da escravidão, os europeus passaram a olhar o conti-
Maafa, isto é, o grande desastre/holocausto negro que se moderniza a cada século. nente africano com fins de colonização e apropriação/exploração de riqueza.
A descolonização do continente se dá a partir da segunda metade do século
O processo ontológico pelo qual passaram as pessoas XX após longos períodos de guerra colonial. (Asante, 2015; Unesco,2010,
negras durante os últimos 500 anos causou uma fratura
Fanon, 2005),
epistêmico-ontológica que se reflete em um permanente
30. Outros nomes importantes da resistência africana à invasão e colo-
desenraizamento de sua subjetividade. A diáspora africa-
na, cortada de seus laços-pilares como família, cultura, nização europeia ao continente: Shaka Zulu, Ngungunhane, Yaa Asantewaa,
história, saberes, é um produto da Maafa (Ani, 1994) Titina Silá, Patrice Lumumba, Steve Biko, Kwame Nkrumah, Amílcar Ca-
- holocausto negro -, que em sua complexidade, abarca e bral, Samora Machel, Graça Machel, Thomas Sankara, Jomo Kenyatta Win-
descarrila (Nobles, 2009) o ser e o estar do sujeito negro. nie Mandela, Nelson Mandela.
A escravidão iniciada no continente africano pelos inva- 31. A escravidão no brasil termina oficialmente em 1888, não por
sores árabes (Diop, 2014) é sofisticada e potencializada
conta do mito da Princesa Isabel, mas pelo árduo trabalho organizado pelos
pelos brancos europeus, que a utilizaram como a base
próprios negros. Nomes como Luís Gama, Maria Firmina dos Reis, Machado
de seu enriquecimento, exploração e dominação. (Njeri;
Sisi; Aziza, 2018, p. 120) de Assis, André Rebouças e José do Patrocínio recebem destaque, mas muitos
outros anônimos construíram este momento histórico.
26. Data de 1538 o primeiro registro da chegada de africanos ao terri- 32. Com o fim da escravidão não se criaram políticas públicas para
tório brasileiro iniciando a rota de destino para mais de 5 milhões de seques- absorver a parcela da população brasileira, levando-os ao descaso e abandono.
trados e originando a maior diáspora africana do mundo. (Nascimento, 2018) O regime brasileiro também criou leis como a da vadiagem que encarcerou
27. Quilombo, que em bantu significa união, “são tentativas vitorio- homens negros capoeiristas e aqueles que não tinham emprego formal.(Sch-
7 Utilizando a faceta semiótica e política da linguística, utilizo a grafia brasil com letra minúscula. warcz, Starling, 2015)

270 271
33. O Brasil república adotou uma política de embranquecimento da Apesar deste cenário, a população negra, agarrada em seu conjunto de
população brasileira que incentivou a imigração europeia a fim de miscigenar crenças e valores civilizatórios, resiste a séculos de violências genocidas atua-
e clarear a população. Nina Rodrigues é um dos nomes importantes dessa lizando-se nas estratégias de sobrevivência. Sendo relevante que a educação
política. (Schwarcz, Starling, 2015) lance um olhar nutridor para essas experiências a fim de incorporá-las tam-
34. Surge o mito da democracia racial brasileira enfatizada e defendi- bém como possibilidades para si, não só porque, cerca de 54% da população
da pelo lusotropicalismo de Gilberto Freire. brasileira se declara negra e parda, mas sobretudo, porque quanto mais plu-
riperspectivas na educação, melhor é o processo de acendimento do sol dos
E (...) nos localizamos na maafa brasileira, que, como educandos para o seu livre caminhar na Vida, pois a ampliação de seu olhar
alertam Abdias Nascimento (2017) e Lélia Gonzalez
para a Vida é imprescindível para a resolução dos problemas da existência. A
(2018), é ultrassofisticada no grau de alienação negra.
educação, portanto, não deve perder de vista que a escrevivência8, perpassa
Estabeleceu-se uma cegueira racial por parte dos negros
e pardos a partir de uma crença imposta na propaganda estar vivo no sentido integral do termo.
da democracia racial e de um recorte focado em classe
ou gênero, colocando-se em segundo plano o item ver-
tebral de discussão que é a raça. (Njeri; Ribeiro, 2019, III. P luripráticas e P luriperspectivas : reflexões
pp. 598-599)

35. Wade Nobles (2009) nos apresenta a metáfora do descarrilamento O que agora os negros estão sendo ensinados não guia
africano e afrodiaspórico, isto é, a violência desumanizadora da imposição suas mentes em harmonia com a vida (...).
europeia sobre os negros africanos foi tamanha que retirou essas pessoas de (Woodson, 2018)
seu trilho civilizatório, e que, como um trem, esses seres humanos se descar-
O desafio do século XXI é fazer com que sejamos seres humanos mais
rilaram e passaram a vagar pelos séculos a margem de seu próprio eixo, sem
conscientes e responsáveis pelo nosso papel enquanto agentes neste mundo e
sua própria agência.
isso só será possível no momento em que a educação se permitir olhar a partir
A metáfora do descarrilamento é importante porque de outros ângulos os fenômenos e as leituras que ela comporta. Assim, interes-
quando isso ocorre o trem continua em movimento sante observar a matemática a partir das geometrias das tranças nagôs (Santos,
fora dos trilhos; o descarrilamento cultural do povo 2013), ou estudar geologia com práticas e saberes ameríndios, ou ainda cantar
africano é difícil de detectar porque a vida e a expe- cantigas de jongo e capoeira na educação infantil.
riência continuam. A experiência do movimento (ou Lançar mão de recursos audiovisuais também é interessante. Por meio
progresso) humano continua, e as pessoas acham difícil
do cinema conhecemos a história e nos inspiramos em personalidades de des-
perceber que estão fora de sua trajetória de desenvol-
vimento. A experiência vivida, ou a experiência dos
taque, como o filme “Malcolm X” de Spike Lee fez comigo criança; com po-
vivos, não permite perceber que estar no caminho, se- dcast podemos discutir os livros da Carolina Maria de Jesus ou os quadrinhos
guindo sua própria trajetória de desenvolvimento, pro- de Marcelo D’Salete; pelas músicas refletimos sobre problemas sociais como
porcionaria a eles uma experiência de vida mais signifi- nas letras de Emicida e Racionais. Toda arte é material de educação e podemos
cativa. (Nobles, 2009, p. 284) fazer uso livremente disso.
8 Conceito elencado por Drª Conceição Evaristo ao longo de sua obra literária.

272 273
Desta forma, acessaríamos, ainda nas fases da aprendi- 1
Naiara Paula Eugenio

E stética A fricana
zagem infanto-juvenil, informações sobre grandiosidade
do Império do Mali, tal qual aprendemos sobre o im- Considerando o questionamento sobre a existência de uma es-
pério romano; leríamos nas creches as obras infantis de
tética no continente africano apontamos os estudos da doutora Ka-
Lívia Nathália, Ondjaki, Bell Hooks assim como lemos
as de Ruth Rocha e Ana Maria Machado; aprenderíamos
riamu Welsh-Asante acerca das numerosas discussões sobre o assunto:
geometria a partir da etnomatemática; além de cantar-
A ciência da percepção sempre existiu na África.
mos no recreio canções de jongo junto da “ciranda-ci-
Se você define a estética como uma ciência da
randinha”. Acredito que os ganhos de conhecimento de
percepção, então uma discussão sobre a estética
mundo e a aprendizagem aguçam-se a partir da multipli-
na arte africana pode começar. Uma definição
cidade de abordagens e faz com que tanto crianças negras
funcional de arte precisa ser empregada para
e pardas, quanto as brancas tornem-se respeitadoras, éti-
nossos propósitos aqui. Eu gosto desta definição:
cas, empoderadas e tolerantes. (Njeri, 2019, p. 8)
‘Onde quer que materiais recebam forma, onde

uma
quer que o movimento tenha direção, onde quer
A própria concepção de educação deve ser tensionada para que novos
que a vida tenha, por assim dizer, linha e com-
cenários e práticas pedagógicas possam ser integradas no fazer escola. Uma posição, lá temos inteligência e então temos essa

P ensando
educação plural, portanto, é aquela que também escuta as epistemologias não transformação de um determinado caos em uma
eurocêntricas e constrói saberes a partir de plurivisões, permitindo que en- ordem desejada e desejável,’ Novamente, se você
contremos soluções mais adequadas e criativas aos problemas impostos pela usa essa definição, a arte existirá na África tra-
contemporaneidade. dicional.2
Pensar novos olhares paradigmáticos nas relações ensino-aprendiza-
gem e escola-professor-aluno significa questionar certas verdades históricas Na África tradicional, mais especificamente na Iorubalândia
e adotar novos comportamentos que visam a ampliação de saberes e, conse- tradicional, para onde direcionamos essa parte do estudo, todas as coi-
quentemente, novas redes de solidariedade entre os seres humanos. sas são avaliadas esteticamente: comidas, comportamentos, ensinamen-
tos da tradição, um objeto de arte, elementos naturais… Para garantir
que cada coisa esteja em perfeito equilíbrio social existe um indivíduo
chamado Amewa, o conhecedor de beleza, o estudioso da beleza, aquele
que procura a beleza nas coisas. O Amewa é um filósofo das artes e do
comportamento humano; ele especula sobre o belo e procura pelo belo

1 Nesse texto escolho não notificar a acentuação Iorubá por motivos técnicos.
2 WELSH-ASANTE, Kariamu. The African Aesthetics: Keeper of the Traditions. Londres:
Praeger, 1994, pp. 1-2. Tradução nossa: “The science of perception has always existed in
Africa. If you define aesthetics as a science of perception then a discussion about aesthetics
in African art can begin. A working definition of art needs to be employed for our purposes
here. I like Edman’s definition, wherever materials are given form, wherever movement has
direction, wherever life has, as it were, line and composition, there we have intelligence and
then we have that transformation of a given chaos into a desired and desirable order. Again
if you use Edman’s definition of the arts then art exists in traditional Africa.”

274 275
nas manifestações culturais, seja na produção de objeto de arte ou em com- claramente uma estética que ponha uma grande ênfase
portamentos humanos. no cabelo liso vai apresentar um problema para pessoas com
Por que beleza e equilíbrio social estão relacionadas nesse texto? Por- cabelos crespos. Uma estética que glorifica o cabelo loiro e
os olhos azuis, consequentemente, promove cabelos loiros e
que para o Iorubá tradicional, beleza é um conjunto de características aplicá-
olhos azuis. Um povo que é naturalmente sombrio não deve-
veis que moldam e refletem um todo comunitário. Essas características podem ria ter que esperar por tal transformação. E aí está o problema.
habitar um corpo natural ou um objeto; se eles contêm tais características, Uma estética define e estabelece submissões culturalmente
são considerados belos. Um Amewa é o estudioso dessas características e das consistentes e depois entroniza padrões baseados nos melho-
relações e marcas sociais que fazem um objeto ser considerado belo. res exemplos históricos e artísticos. Se a estética reivindica a
universalidade em virtude do uso ou imposição, então ela
deve acomodar várias culturas em sua estrutura estética para
A lgumas particularidades da estética africana funcionar como uma estética relevante. Não fazer isso cria um
limitado panorama elitista de um grupo étnico específico”.6
Molefi Kete Asante afirma que, para ele,

forma, sentimento e tempo (ritmo) são os critérios-chave S obre a beleza


na discussão da estética para os Africanos. A forma, o sen-
timento e o ritmo devem sair da nossa consciência cultural Com isso, para os iorubá, a beleza é um conjunto de fatores que apare-
ou memória. Os pretos podem internacionalmente recor- cem interligados para a percepção, a experiência estética é um conjunto inter-
rer a um banco coletivo que abriga imagens, símbolos, ligado de sensações conectado ao todo pluriversal. Um exemplo da experiência
referências e recursos baseados em história e mitologia.3 estética iorubá pode ser descrita no entendimento de Ewá, a beleza, percebida
como a ação do bom caráter (iwa rere), que deve estar acompanhado da sere-
Robert Farris Thompson define a estética africana como “um modo de nidade, generosidade dedicada do caráter (iwa pele). A beleza está junto, faz
energia intelectual que só funciona quando usado” 4, o que significa dizer que parte. Observamos isso numa poesia Iorubá descrita por Thompson.7
nossa arte está viva, está em movimento, por conseguinte, o modo como conce-
bemos a beleza e como a entendemos, é num conjunto e em composição. Por esse Um homem pode ser muito, muito bonito
motivo, “a fim de entender uma forma de arte específica de africanos e afro-dias- Bonito como um peixe na água
póricos, é preciso olhar para certas particularidades dentro de sua própria cultura Mas se ele não tem caráter
estética”, explica Welsh-Asante5. Um exemplo disso é que, continua explicando: Ele nada é além de um boneco de madeira
3 WELSH-ASANTE, Kariamu. “The Conceptualization of Nzuri”. In: Idib., p. 3. Tradução nossa: 6 Ibid., p. 5. Tradução nossa: “Clearly, an aesthetic that put a great emphasis on straight hair is
“Molefi K. Asante states that for him “form, feeling and time (rhythm) are the key criteria in dis- going to present a problem for people with curly hair. A aesthetic that glorifies blond hair and blues
cussing the aesthetic for black people. The form, feeling, and rhythm must come out of our cultural ayes consequently promotes blond hair and blues eyes. A people who are naturally dark should not
consciousness or memory. Black people internationally can draw upon a collective bank that houses even have to hope for such a transformation. And therein lies the problem. An aesthetic defines and
images, symbols, references and resources based upon history and mythology.” establishes culturally consistent elements and then enthrones standards based on the best historical
4 WELSH-ASANTE, Kariamu. “The Conceptualization of Nzuri”. In: Idib., p. 2. Tradução nossa: and artistic examples. If the aesthetic claims universality by virtue of use or imposition, then it must
“Robert Farris Thompson defines the African aesthetic as ‘an intellectual mode of energy that is only accommodate various cultures into its aesthetic frame in order to function as a relevant aesthetic.
operative when used.’» Failure to do so creates as elitist limited panorama of a particular ethnic group.”
5 Id. p. 5. Tradução nossa: “In order to understand a specific art form of Africans and African 7 THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. trad.
Americans, one must look at certain particulars within the aesthetic.” Tuca Magalhães. - São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011, p. 27.

276 277
Frank Willett, analisando os estudos de Thompson sobre a beleza io- Podemos compreender, com isso, que a apreciação estética, passa pela
rubá, observou que, além dos padrões estéticos que podem ser encontrados compreensão da necessidade da transmissão dos bons costumes iorubás. Esses
de modo geral em culturas diversas, existem também padrões específicos. costumes estão talhados em objetos, em atitudes, na comida, nas cores, na
No caso da cultura iorubá, o autor destaca alguns atributos essenciais. Na maneira de tratar com a natureza externa e interna. Quando nos perguntamos
arte escultórica, o objeto de arte precisa ter jijora (equilíbrio) para ser con- o que é beleza para os povos iorubá, uma das respostas pode ser que a beleza é
siderado belo. Caso o objeto de arte represente alguém, ele precisa conter um padrão moral aplicável sobre as coisas que representam a cultura, baseado
características moderadas do representado, traço que também aparece nos na transmissão de ensinamentos que fortalecem os laços comunais e o caráter
dans, da Libéria. Esta característica, segundo Willett8, é a que aparece mais coletivo.
frequentemente. É importante haver “um equilíbrio entre os extremos do
retrato e a abstração”, é preciso que a escultura tenha traços do indivíduo
sem, contudo, ser sua cópia. Um artista precisa ser bom o suficiente para
criar sobre aquilo que vê ou sente. Ifarahon é a segunda característica mais
requisitada ao apelo estético, tratando-se da visibilidade da obra. É preciso
que todas as partes da obra sejam facilmente identificadas desde o início
ao final do entalhe; “as diversas partes da escultura devem ser nitidamente
formadas”. O didon indica que um “jogo de luz e sombra” na escultura é
absolutamente admirável, “uma lisura brilhante” que forneça luminosidade
adequada para a apreciação das formas da obra. O gigun, a postura corporal
representada numa escultura. Odo, representa um indivíduo no apogeu de
sua vida. Tutu (serenidade), é também uma característica muito importante
e requisitada numa obra iorubá, representa um traço cultural marcante nas
esculturas.
Dentre todas as características desse conjunto do entendimento sobre
a beleza para um iorubá destaca-se ainda que, segundo Thompson9, aquilo
que está próximo do divino e é progressivamente imbuído de bom caráter,
porque Deus, o divino, é louvado como o senhor do bom caráter (olu iwa).
O bom caráter se origina do Deus. Panos brancos são agregados às esculturas
dando a elas o caráter de bom. O que faz uma conexão direta com o culto a
Obatalá que não coincidentemente é o deus da criatividade. Note-se que, para
um iorubá, aquilo que contém bom caráter, contém beleza. Há, portanto,
uma relação entre bom, bom caráter e belo”.
8 WILLETT, Frank. Arte africana. Trad. Tiago Novaes. São Paulo: Edições Sesc São Paulo; Im-
prensa Oficial do Estado de São Paulo, 2017, p. 220.
9 Cf. THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: arte e filosofia Africana e afro-americana.
Op. cit., p. 27.

278 279
1
Katiúscia Ribeiro Pontes mergulhei na pergunta que fiz no início desse trabalho. Porque eu mesma ain-
vive a tua ancestralidade ?
da não estava totalmente conectada, todas as definições que achava do tema,
Tal mundo espiritual envolve e afeta absolu- sempre de forma superficial, sem compreensão da grandiosidade deste concei-
tamente a todos no mundo. Sem o espírito, to e de como ele pode ser um caminho possível para repensar outros modelos
nunca teríamos chegado aqui. Sem espírito, sociais e perspectivas ontológicas.
fica realmente difícil saber se vamos acordar Faz alguns anos que me debrucei em investigar e detalhar o que an-
vivos amanhã; fica realmente difícil saber que cestralidade tem de princípio organizador e modelo societário, pois o que eu
teremos vida. descobri – e convido aos leitores dessas estrofes a descobrirem também – que,
Sobonfu Somé 2 na verdade, a ancestralidade é compreendida, encontrada e vive em vários lu-
gares, além do que se pode contar e está mais dentro do que fora, mais na terra
Onde vive a sua ancestralidade? Pare, pense, respire.... Se ouça! que no ar... Mais dentro de nós do que em outro lugar... Saber, compreen-
Esse pode ser um momento limite que nos faz repensar sobre nossa der e reconhecer a presença da ancestralidade pode ser um caminho possível
própria existência, certa vez, em uma de minhas palestras, esta foi a para repensar outros modelos sociais, civilizatórios e porque não... filosóficos.
pergunta chave: “Qual o sentido da vida? “. Existir sempre permeou Quem sabe, olhar para traz nos espelhando nas experiências do passado nos
os desafios da filosofia, o elemento primordial que motivou diversos ajudará a recriar caminhos por estradas já trilhadas?
pensadores ao longo dos percursos filosóficos... Se fizermos uma aná- Quando comecei a estudar filosofia, essa ciência que pensa o ser e
lise sincera vamos perceber que quase não falamos sobre esse assunto como ele se configura no mundo, me dei conta que o único caminho que
e a maioria das pessoas não tem interesse e acham que desconhecem existia para esse pensamento, partia de um olhar, na qual, sua gênese não tinha
O nde

a sua, mas pensar sobre nossa ancestralidade é respirar a vida. Como nenhuma relação comigo e de pessoas como eu, e que o pensamento universal
compreender quem somos se não nos perguntamos o que éramos ou tinha suas determinações e pensava sempre dentro do mesmo círculo. Logo,
melhor de onde éramos? Ancestralidade não pode ser apenas a definição na fase de escolha de um tema para desenvolver no curto período de quatro
de sua raiz genealógica, está muito além de percorrer a linha sanguínea anos e suas complexidades, essas inquietações se fizeram presente, principal-
do tempo e identificar à hereditariedade afim de representar de uma mente pelas motivações que uma pesquisa ou uma pesquisadora possui duran-
forma respeitosa de honrar e lembrar dos nossos antepassados e/ou rela- te um percurso que tende a aparecer inúmeras mudança, mas com o avançar
tar quais foram as pessoas (parentes que já morreram) que fizeram parte do tempo percebia que era preciso voltar no tempo, em tempos imemoráveis.
de uma determinada família. Desse modo, a escolha acadêmica em permanecer pesquisando um princípio
Nem mesmo o significado pueril segundo a definição do dicio- filosófico específico, ancorada nas realidades africanas, desde a graduação até o
nário que é: “particularidade ou estado do que é ancestral (que se refere doutorado, é uma posição sobretudo política que em muito facilita, tanto para
aos antepassados ou antecessores)”, não é essa definição que busco para desenvolver, como para tornar público a própria leitura de certo problema.
alcançar a compreensão do que é ancestralidade. Faz alguns anos que Entretanto, quando se decide romper com o que já estava confortável, quais
1 Este artigo compõe o capítulo inicial de minha tese de doutorado, provisoriamente inti-
as consequências? Lembrando de todas as minhas escolhas da graduação até
tulada “A MatriGestão pela gota do Ib: O Coração como elemento que gesta a reconstrução o doutorado partem de uma ruptura com a pertença hegemonia ocidental na
do Sujeito”. filosofia que não dão conta de todos os Seres por completo. Desde a graduação
2 Somé, Sobonfu . O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre rela-
cionamentos, p. 27. até o trajeto deste doutorado pretendo mostrar uma outra forma de pensar o

280 281
Ser, de pensar esse Ser... De nos pensar. ve para compreender uma epistemologia que interpreta
Ao retomarmos a ancestralidade abriremos as portas para essa com- seu próprio regime de significados a partir do território
preensão do sujeito, nos perguntar onde vive a ancestralidade, se torna um que produz seus signos de cultura. 4
problema filosófico e passa a ser a pergunta chave que costura cada estrofe des-
Dessa importante passagem incorrem duas perguntas que são fio con-
te trabalho, ancestralidade neste trabalho aparece como um conceito analítico
dutores desta seção: Onde vive a ancestralidade? De que maneira a “humani-
da existência humana e suas projeções futuras.
dade do ser” pode ser reconfigurada a partir de um princípio ancestral? Para
Fruto do agora, a ancestralidade resinifica o ontem. Ex- responder tais perguntas é importante observar que o conceito ancestralidade
periência do passado ela atualiza o presente e desdenha trata-se de uma análise filosófica da antiguidade, um procedimento filosófico
do futuro, pois não há futuro no mundo da experiência. ontológico galgado no antes. Sendo ela, inicialmente o princípio que organiza
A cosmovisão africana é, então, a epistemologia dessa um sistema filosófico e arregimenta todos os valores e imperativos na dinâmi-
ontologia que é a ancestralidade. 3
ca civilizatória africana.
Este texto compreende que o conceito de ancestralidade não se fixa
O filósofo brasileiro Eduardo Oliveira, descreve os percursos que o
em uma era histórica, tão pouco se limitou há um modo de antigo de produ-
levaram ao tema da Filosofia Africana, principalmente, pelo fato de Oliveira
zir filosofia ou mesmo se limitou há pessoas, mas, sim, se encontra como um
tornar possível o encontro entre Filosofia e Ancestralidade, reintegrando a
modo de produção de filosofia holística africana estendendo-se a diáspora.5
filosofia ao seu lugar de origem sem deslocá-la do diálogo metafísico. Não há,
E tal fato, é presente nesta filosofia que Oliveira tem uma digressão, que rela-
em suas concepções, filosofia sem o devido exercício espiritual, partindo de
ciona o grau simbiótico entre sujeito e ancestralidade como presença viva em
uma perspectiva holística da existência. O deslocamento e/ou rompimento
ambas realidades.
de mitos e logos para a realidade filosófica africana não é pressuposto filosó-
fico. Quando nos aprofundamos no pretenso pensamento antigo da Filoso- O real não se repete nem como farsa, nem como tragédia,
fia, percebemos que para alcançar a destreza do pensamento era necessária pois cada evento na história terá o seu próprio sabor e as
esta conjugação com a ancestralidade. Ancestralidade aqui será apresentada cores do momento. Não tenho, entretanto, como perce-
como um conceito determinante para a realização de uma filosofia, por isso o ber o real por ele mesmo, de maneira essencial. Não há
mesmo converte-se como o elemento primordial no antigo e moderno pen- essência! Não tenho como apreender a totalidade do ser.6
samento filosófico africano, este conceito nos ajuda a interpretar o regime e
A semiótica já decretou que somos capazes apenas de remeter um sig-
os significados de como surge as epistemologias africanas e como serve de
no a outro de maneira particular e até mesmo falsamente. Não há verdade (no
interpretação para formação dos sujeitos e a organização de seus territórios e
sentido platônico da palavra)! Não há totalidade!
princípio organizacional tornando-se o signo de resistência africana dentro e
fora do continente. Há, no entanto, múltiplas formas de acesso ao real: me-
mória, experiência, afeto, percepto, discurso, razão, mas,
Ancestralidade, aqui, é empregada como uma categoria
neste artigo, vou privilegiar a ancestralidade. Antes, po-
analítica e, por isso mesmo, converte-se em conceito-cha-
4 Idem, p. 30.
3 Oliveira , Eduardo. Filosofia da Ancestralidade como filosofia africana: Educação e Cultura 5 O terceiro capítulo da tese se dedicará a demostrar a presença deste modelo de filosofia na diáspora.
Afro-brasileira, 2012, p. 40. 6 Oliveira, Eduardo. Epistemologia da Ancestralidade, p. 3.

282 283
rém, de maneira sintética, afirmo que a cultura é o rela- O filósofo afro-brasileiro Renato Noguera nos brinda com uma pers-
cionamento das singularidades no plano de imanência pectiva muito interessante e assertiva nos estudos em Filosofia africana antiga,
concomitante aos valores produzidos no plano de trans- Noguera traz a espiritualidade como elemento filosófico. A finalidade da filo-
cendência. Reitero, também, que o plano de imanência
sofia estava em atingir qualquer pressuposto do ser a partir de exercícios espi-
é o plano da ação e que o plano de transcendência, é o
lugar do conceito. Para apreender a ação de um povo
rituais, espiritualidade e filosofia se nutrem para perceber a existência do su-
preciso averiguar qual o conceito produzido pela ação jeito. Não havendo neste contexto o deslocamento impositivo do senso mítico
axiomática desse mesmo povo, ou seja, compreender para o senso real, realidade aqui leia-se como espiritualidade e/ou ancestrali-
qual o sentido (os sentidos) atribuído às ações dos su- dade que se alcançava a partir de uma prática filosófica de exercitar a mente
jeitos que produzem suas experiências e interpretações. 7 pelo bombear coronária8 , isto, porque razão, emoção, espírito, mente e corpo
não foram concebidos como entidades antitéticas, matéria e espírito não são
Desse modo, para aprofundarmos nesse conceito é importante com- dicotômicos para existir e/ou coexistir. Neste contexto, os filósofos poderiam
preender que quando estamos falando de ancestralidade não estamos falando recorrer aos elementos de constituição de seu ser, para o exercício da filosofia.
necessariamente de espiritualidade, mas em se tratando de filosofia africana
antiga – Filosofar é um ato espiritual. Minha referência da conjugação entre A expressão “exercícios espirituais” fornece a extensa e
Ancestralidade e Filosofia nasce as margens do Rio Nilo, nas antigas terras do profunda dimensão de uma atividade que é, ao mesmo
Egípcias e com outros povos do continente africano. Essa junção coletiva, nos tempo, escolha e elaboração de uma maneira de viver
no mundo. Ou seja, não estamos a falar de um discurso
constitui como o povo da gota ancestral, sagrado e com saberes coletivo, cuja
separado da vida; mas, de uma orientação existencial
proposta de busca pela ancestralidade é fundamental na constituição de nossa
que exige transformação de quem pratica a atividade
existência, como um princípio de reorganização humanitária. (filosófica).9
Esse projeto “suleador” de nossa existência, floresce no meu pensamen-
to, no território brasileiro africanizado e divinizado através das práticas que se Por esse modo, a vivencia intelectual da filosofia antiga não se produ-
mantém pulsante por toda a “eternidade”. A ancestralidade, inicialmente, é o zia apenas para percepções humanas, mas para uma profunda dimensão de
princípio organizacional e a Filosofia arregimenta todos os conceitos e modos de uma atividade que é, ao mesmo tempo uma escolha de elaboração e manei-
promoção do pretenso pensamento filosófico na dinâmica civilizatória dentro ra de viver, ou seja o ato de pensar a vida não está distante do modo de viver
e fora de África. Adiante percebe-se que a ancestralidade se alinha a ordem de a mesma. Isto porque, a reflexão simultânea filosofia e espiritualidade remete
como filosofia fora exercida em África Antiga – Egito – Kemet. a uma perspectiva holística da existência a partir de uma filosofia produzida
A construção de um pensamento que não privilegia as categorias ociden- em Kemet, o território raiz do conhecimento ontológico e cosmológico de
tais e seus modos de promover Filosofia ganham corpo e legitimidade. A ances- uma ética singular, para um projeto integral comunitário de equilíbrio entre
tralidade é o conceito chave para compreensão de uma filosofia africana antiga de matéria, espírito conduzida pela ancestralidade.
cunho ético, organizacional político... isso porque em se tratando de filosofia afri- Ancestralidade aqui serve como um conceito chave para compreender
cana antiga, filosofar é um ato espiritual e conforme nos debruçamos nas leituras a relação do sujeito com a espiritualidade. Nossa análise dessa relação outra,
e estudos em Kemet, percebemos que a noção de filosofia que compreendemos na com esse saber, advém das experiências filosóficas que surgiram há quase 6 mil
atualidade é totalmente distante do princípio deste conhecimento.
8 Esse aspecto será tema de um subcapítulo de minha tese de doutorado.
7 Idem, p. 4. 9 Noguera, Renato. Amenemope, o coração e a filosofia do coração, 2013, p. 3.

284 285
anos, às margens do Rio Nilo no antigo Egito [Kemet]. Ulysses Pinheiro

pensamento filosófico de R osa E gipcíaca e E stamira .


E nsaios de um apocalipse colonial
Diante disso, parece-me fundamental voltar ao útero civilizacional Fabiano Lemos
como solo que fertilizou a vida ancestral e a coloca como centro, uma inves-
tigação que nos remete ao antigo povo africano que coloca a ancestralidade
como princípio filosófico. I ntrodução
O Kemet, a concepção de ser e existência está imbricado nesta reali-
O contexto mais amplo no qual este texto deve ser com-
dade ao se perceberem como seres cósmicos, logo a forma de ser e estar no
preendido é o do registro da presença das mulheres brasileiras na
mundo está imbricado no valor ancestral: o ser coexiste neste princípio.
história da filosofia moderna. O problema central desta proposta
Hotep!
de investigação, no entanto, é que não existiu algo como uma
“filosofia moderna” no Brasil, pelo menos não no sentido que o
mundo acadêmico geralmente dá a essa expressão. Além disso, o
registro de textos escritos por mulheres brasileiras é parco entre
os séculos XVI e XVIII, período no interior do qual geralmente
se inscreve a “filosofia moderna” – e tal ausência documental, a
ser reparada talvez por novas pesquisas, vale não apenas no con-
texto da filosofia, mas também no da literatura –, o que faz do
desenvolvimento desse tema uma tarefa ainda mais difícil. Para
ser bem-sucedido, nosso exame deve enfrentar, pois, um triplo
deslocamento: temporal, geográfico e de gênero. Para dar conta
dessas dificuldades e, de certo modo, para fazer delas o centro de
nossa investigação, desenvolveremos uma análise comparativa da
produção de duas pensadoras que viveram em momentos mui-
to distintos da sociedade brasileira, mas que, veremos, têm suas
teorias conectadas em mais de uma maneira, a saber: Rosa Egip-
cíaca, escritora mística e escrava1 alforriada que viveu de 1719 a
1778, circulando entre a África, o Brasil e Portugal, e Estamira,
uma junção improvável de pensadora metafísica e catadora de
lixo que viveu no Rio de Janeiro de 1941 a 2011. Ao comparar a
produção de uma pensadora que viveu durante o período classi-
ficado como “moderno” – ao menos quando essa classificação se

1 Algumas vezes, preferimos manter neste texto o termo “escrava”, ao invés da

O
alternativa mais exata de “escravizada”, para enfatizar os mecanismos simbólicos
utilizados pelos colonizadores para encriptar e, no limite, calar a produção intelec-
tual da população de origem africana no Brasil.

286 287
refere à Europa – com o pensamento de uma nossa contemporânea, a distân- e debatidas ainda hoje, Rosa Egipcíaca e Estamira viveram no mais absoluto
cia temporal que as separa nos levará a problematizar a questão da temporali- descentramento. Ambas, além de mulheres e negras, poderiam ser diagnosti-
dade em geral, especialmente a partir do confronto entre o tempo messiânico, cadas (e Estamira o foi de fato) com a doença que os psiquiatras costumam
tal como conceituado por Rosa Egipcíaca, e o ponto de vista da eternidade, chamar de esquizofrenia ou psicose2. Mesmo quando tomadas como objetos
adotado por Estamira. De suas concepções gerais sobre o tempo, poderemos de estudo, elas foram geralmente tratadas mais como sintomas que ilustrariam
extrair algumas consequências particulares sobre a inserção de uma nação co- certos esquemas de dominação política do que como elaboradoras de sistemas
lonial e periférica como o Brasil na temporalidade abstrata e ideal da história filosóficos que mereceriam ser explorados por si mesmos. É o contrário do
da filosofia – ou, pelo menos, naquela que uma certa concepção de história da que acontece, para ficar apenas em um exemplo, com nomes como o de Nísia
filosofia se faz de si mesma. Floresta, intelectual feminista branca do começo do século XIX e correspon-
Mas serão as relações geográficas que nos interessarão sobretudo; nesse dente de Auguste Comte; nesse caso, seu pertencimento de classe fazia de sua
caso, trata-se de investigar de que modo duas pensadoras situadas nas perife- exclusão um ato que era, ainda em sua época, ele mesmo, visível socialmente
rias de sua própria sociedade – literalmente na escravidão, bem como nesse – e que podia, por essa razão, ser tematizado e até mesmo denunciado. Devido
outro tipo de escravidão, o trabalho informal –, sociedade essa que pertence, à invisibilidade social de Rosa Egipcíaca e de Estamira, o mesmo procedi-
ela mesma, a uma nação periférica em relação ao ordenamento imperial-capi- mento não lhes estava disponível. O resultado desse apagamento é que, até
talista, podem articular uma perspectiva desde onde a produção filosófica das hoje, os conceitos elaborados por ambas não foram devidamente apreciados, e
mulheres no sistema colonial, racial e patriarcal torna-se concebível e, pode- seus nomes são desconhecidos até mesmo pela maioria de nossa comunidade
mos dizer, visível. A periferia da periferia, ou a margem da margem, serão, pois, acadêmica, especialmente a filosófica. De fato, se pensarmos no século XVIII
tomadas aqui como o signo que torna pensável a situação colonial e o registro, brasileiro, o nome feminino que talvez venha à memória mais rapidamente
em seu interior, das marcas do gênero e de raça na construção do pensamento por certo não é o de Rosa Egipcíaca, mas o de Bárbara Heliodora – apesar de
filosófico. É somente essa duplicação da marginalidade que tornará possível a quantidade de documentos escritos deixada pela primeira ser incompara-
proceder ao exame de um outro tipo de duplicidade, a saber, a exclusão da velmente mais extensa do que aquela deixada pela segunda, de quem só nos
exclusão, ou a destruição da destruição, dobrando-nos sobre nós mesmos para restaram dois poemas3. Antes de tratar do conteúdo do pensamento de Rosa
ver, assim, nossa imagem refletida, – e, se possível, para criticá-la. Egipcíaca e de Estamira, apresentaremos, pois, um esboço biográfico de am-
Trata-se aqui, portanto, de uma questão de imagem e de visibilidade bas, para tentar suprir, ainda que imperfeitamente, tal desconhecimento. Mas
das imagens, mas de tal forma que esse espaço ótico seja constituído a par-
tir do pensamento dessas duas autoras, ao invés de tomá-las apenas como 2 A certa altura do documentário que a tornou conhecida por um público mais amplo, Estamira lê
seu próprio diagnóstico: “Atesto que Estamira Gomes de Souza, portadora de quadro psicótico de
ilustrações de doutrinas que lhes são extrínsecas. De fato, Rosa Egipcíaca e evolução crônica, alucinações auditivas, ideias de influências, discurso místico, deverá permanecer
Estamira são duas pensadoras que, em grande parte, permaneceram invisíveis em tratamento psiquiátrico continuando, continuado” (ESTAMIRA & PRADO (2013), p. 53).
Veremos mais adiante de que forma a consciência da própria condição dita insana estrutura suas
até mesmo no interior dos meios acadêmicos que se dedicam cada vez mais à críticas às instituições médicas.
reescrita do cânone historiográfico, incluindo nele as mulheres. Comparadas 3 Sobre a produção literária de Bárbara Heliodora (inclusive no que diz respeito à autoria dos poe-
mas a ela atribuídos), cf. COELHO (2002), pp. 85-86. Uma das razões que explicam essa discre-
a outras mulheres intelectuais que, se não ocuparam os centros de prestígio
pância entre os estudos dedicados às duas escritoras, é verdade, encontra-se no fato que a produção
intelectual de sua época, ao menos habitaram em espaços que tiveram algum escrita de Rosa Egipcíaca só foi descoberta na década de 1980; ainda assim, é notável como seu
tipo de reconhecimento institucional, atuando em jornais, publicando livros nome é menos reconhecido do que o de sua sucessora mineira. Essa deficiência começa aos poucos
a ser suprida; ver, por exemplo, o verbete “Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz” no Dicionário mu-
e dando aulas em escolas, e que, por isso mesmo, têm suas ideias examinadas lheres do Brasil, publicado em 2000 (SCHUMAHER & VITAL BRAZIL (2000), p. 487).

288 289
esta introdução biográfica não consistirá apenas em uma digressão externa Foi presa e torturada em 1749, ainda em Minas Gerais. Partindo para o
aos argumentos a serem examinados aqui; ao contrário, como já observamos Rio de Janeiro depois de conseguir sua alforria, ouviu uma instrução da
acima, a concepção de autoria dessas duas pensadoras será essencial não só para voz que, a partir de então, nunca mais a abandonou: que aprendesse a ler
compreender o conteúdo de suas reflexões filosóficas, mas também para arti- e a escrever. Ao voltar à cidade que fora seu primeiro destino de escrava na
cular uma compreensão geral sobre a situação da produção filosófica das mu- vinda para o Brasil, adotou o nome de Rosa Maria Egpcíaca da Vera Cruz,
lheres brasileiras na dinâmica colonial e pós-colonial, e sobre sua exclusão, até em homenagem à santa asceta, primeiramente prostituta, Maria Egipcía-
mesmo no interior dessa última. Ou seja, sua biografia nos permitirá ter mais ca, nascida no século IV. No Rio de Janeiro, na década de 1750, fundou
clareza sobre o lugar de enunciação fundante do espaço geográfico-simbólico o Recolhimento do Parto5, vinculado à Igreja de Nossa Senhora do Parto
que tentaremos mapear em linhas gerais. (ainda hoje existente, na rua Rodrigo Silva, perto da rua da Assembleia,
embora a construção original tenha sido destruída), onde acolhia ex-pros-
titutas e mulheres devotas em geral. Tornou-se uma líder carismática im-
R osa E gipcíaca portante na cidade, tendo como guias espirituais, além do já mencionado
padre Lopes, os padres franciscanos do Convento de Santo Antônio, que
Muito do que sabemos sobre Rosa Egipcíaca se deve à descoberta
até o presente domina o Largo da Carioca. Entrando em confronto com
admirável do antropólogo Luiz Mott, que encontrou, nos arquivos da In-
as autoridades eclesiásticas locais, foi acusada de heresia e, depois de um
quisição da Torre do Tombo, em Lisboa, os processos que contêm todos
primeiro julgamento pelo Tribunal do Santo Ofício sediado no Rio de Ja-
os documentos conhecidos relativos a ela. Mott publicou, em 1993, um
neiro, a enviaram, juntamente com o padre Lopes, para Lisboa no ano de
livro intitulado Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil4, no qual
1763. Após essa segunda travessia do Atlântico, a primeira como escrava
reconstitui sua trajetória. Rosa Egipcíaca chamou-se, por boa parte de sua
e a outra como herética, é submetida a longos interrogatórios na capital
vida, apenas Rosa – nome dado (e a questão dos nomes e dos processos
portuguesa, morrendo esquecida na prisão oito anos depois.
batismais terá sua importância, veremos) por seu primeiro proprietário no
Graças ao processo da Inquisição, muitos textos de Rosa Egipcíaca
Brasil. Capturada como escrava na África, chegou ao Brasil com apenas
foram preservados: cartas dela e de seus correspondentes, depoimentos de
seis anos de idade, vinda da Costa da Mina, correspondendo aproximada-
testemunhas de acusação e de denunciantes, cartas e testemunhos do padre
mente à faixa litorânea dos atuais estados de Gana, Togo, Benim e Nigéria.
Lopes6. Tal modo de preservação nos coloca um desafio epistemológico
Foi comprada por uma habitante de Minas Gerais, que a explorava como
considerável, uma vez que, na maior parte dos casos, sua voz está modu-
prostituta entre os mineiros de ouro – prática comum no escravismo bra-
lada e mesmo soterrada sob a escrita de seus juízes. Infelizmente, aquele
sileiro. Aos trinta anos, vítima de uma doença misteriosa, foi submetida a
que seria seu material mais valioso, um livro manuscrito de aproximada-
vários exorcismos por seu guia espiritual, o padre Francisco Gonçalves Lo-
mente 250 páginas, e que pode ser, portanto, o primeiro livro escrito por
pes. Inicialmente, acreditava estar possuída pelo demônio, pois entrava em
uma mulher brasileira de que se tem notícia, intitulado Sagrada teologia
transes, tinha visões e ouvia vozes, até que entendeu a natureza divina de
sua missão e dedicou-se, com grande sucesso, a pregar a palavra de Deus. 5 Mott argumenta, de forma convincente, a favor da tese de que devemos atribuir a Rosa Egipcíaca
4 MOTT (1993). Mott optou por fazer um livro dirigido a um público mais amplo do que o a fundação dessa instituição, embora a história oficial da Igreja brasileira omita seu nome (certa-
círculo acadêmico, o que significa que ele não contém indicações precisas das fontes utilizadas, mente devido ao fato de se tratar de uma mulher, negra e ex-escrava), atribuindo a criação do Reco-
especialmente dos números dos processos e das páginas a partir dos quais faz suas transcrições do lhimento do Parto ao bispo da cidade do Rio de Janeiro à época. Cf. MOTT (1993), pp. 255-278.
texto original. Essa opção editorial tem seu preço – o que ocorre, aliás, como toda opção editorial 6 Para uma lista dos processos e suas referências no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, ver o
–, que é o de não fornecer ferramentas muito exatas que serviriam de base para pesquisas ulteriores. Apêndice ao final deste texto.

290 291
do amor divino das almas peregrinas, foi conservado durante algum tempo senta uma enumeração que é também uma contraposição: “Eu, Estamira”,
por seu confessor, frei Agostinho, que, tempos depois, o queimou7. En- diz ela a certa altura. Tal diferença onomástica que separa em direções opostas
contramos, no processo da Inquisição lisboeta, duas páginas que restaram Rosa Egipcíaca e Estamira será refletida em outras diferenças conceituais mais
da obra original8. profundas, como veremos mais adiante. Desde já deixemos anotado que essas
diferenças são fundadas pelos cognomes que nomeiam cada uma das duas
perspectivas refundadas e refundantes instauradas pelo batismo de si mesma.
E stamira Mas a que texto o nome “Estamira” responde? Ele exerce a função de
assinatura de uma obra, supondo-se que uma assinatura seja possível10? A res-
Estamira, de certa forma, também se rebatizou, mas com um procedi-
posta aqui só pode ser negativa: ela nunca escreveu um texto – como tampou-
mento peculiar que reteve seu nome de batismo, submetendo-o a uma deriva
co o fizeram tantos outros fundadores de linhagens filosóficas, como Sócrates
antonomástica. Ao contrário da extensão régia e teológica do nome Rosa Ma-
e Cristo –, e todos os registros que temos dela se resumem ao filme documen-
ria Egpcíaca da Vera Cruz, seu nome foi reduzido até se transformar em um
tário (inclusive com as cenas não incluídas na montagem original) do diretor
puro dêitico: batizada como Estamira Gomes de Sousa, o cognome “Estamira”
Marcos Prado, lançado em 2005 e ganhador de vários prêmios nacionais e
não se limita a reter seu prenome; como ela mesma explica a certa altura de
internacionais11. Nesse sentido, Estamira não é a autora de uma “obra”. Ori-
seu discurso, o nome “Estamira” deve ser entendido a partir da articulação de
ginalmente, Prado pretendia documentar as condições de vida miseráveis dos
duas palavras, “esta mira”, ou seja, esta perspectiva desde onde uma revelação
catadores de lixo de Jardim Gramacho, um aterro sanitário para onde ia boa
é enunciada (“Ó lá, os morros, as serras, as montanhas... Paisagem, e Estami-
parte dos dejetos produzidos no Rio de Janeiro. Ao encontrar Estamira entre
ra... Estamar... Estasserra... Estamira tá em tudo quanto é canto, tudo quanto
os trabalhadores precarizados, o filme mudou de direção – poderíamos dizer,
é lado. Até meu sentimento mesmo vê... todo mundo vê Estamira”9). Daí a
sem exageros, que ele passou a ser dirigido, colonizado e parasitado por Esta-
referência a si mesma em terceira pessoa: quando ela diz “Eu sou esta mira”,
mira, que se tornou, assim, sua verdadeira autora.
tal designação cria uma antonomásia que emerge do interior de seu nome.
O que nos restou de Estamira, foi, pois, seu discurso inflamado – apa-
De fato, ao invés de ser ouvida como uma apresentação convencional, como
rentemente com um certo tom apocalíptico12, para mencionar um conceito de
quando dizemos: “Eu sou Ulysses”, “Meu nome é Fabiano”, Estamira apre-
Jacques Derrida –, em um registro que talvez só encontre paralelo na emissão
7 Maria Theresa de Jesús Arvelos afirma, em seu depoimento no processo contra o padre Lopes, que radiofônica gravada em 1947 (mas censurada na época, só indo ao ar anos
o livro se encontrava na sua casa, mas que não sabe mais de seu paradeiro. A própria Rosa Egipcíaca
informa aos inquisidores o título de seu livro, afirmando que uma voz que ouviu “no entendimen- depois) de Antonin Artaud, intitulada Para acabar com o julgamento de Deus.
to” lhe havia ordenado a composição da obra. Segundo a ré, ela escreveu “mais de meya resma de Tanto quanto Artaud, o desafio de Estamira a Deus exigiu a criação de uma
papel, explicando a doutrina christã e dando avisos para a salvação dos homens, meyos para fugirem
das culpas e offensas de Deos”. Porém, continua Rosa Egipcíaca em seu depoimento, “o especial nova locução, e de uma nova postura corporal: as imagens que captam seu
assumpto era a vinda daquelles coraçoens de Jesus, Maria, José, SantaAnna e São Joaquim, e tudo corpo se movendo no abrigo final dos objetos e alimentos rejeitados pela so-
quanto escrevia lhe dizia húa voz no entendimento, e assim como lhe dizia hia escrevendo, e algúas
vezes lhe succedeo escrever estando sem sentidos, como fora de si” (Tribunal do Santo Ofício, In- ciedade de consumo são tão parte de seu “texto” quanto suas palavras. Assim,
quisição de Lisboa, processo 09065, fl. 73r).
8 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 14316, fls. 59r-60r. Não é preciso 10 Sobre a impossibilidade de se assinar um texto, cf. DERRIDA (1972), pp. 365-393.
assinalar a ironia do destino do livro, queimado por um homem pertencente à estrutura eclesiástica 11 O filme tem acesso livre no Archive.org: https://archive.org/details/Interativismo_Estami-
– antecipando-se, assim, à Inquisição. Mesmo que movido pelo impulso de proteger Rosa Egipcíaca ra_Filme Ele também se encontra no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=jSZv8jO9SAU
da acusação de heresia, destruindo evidências contra ela, tal gesto se inscreve de modo exemplar nos Consultado em: 11/06/2019.
procedimentos gerais destinados às mulheres negras na colônia. 12 Voltaremos mais adiante a examinar as proximidades e distâncias entre o discurso apocalíptico
9 ESTAMIRA & PRADO (2013), p. 12. e a tonalidade das vozes de Estamira e de Artaud.

292 293
em seu clímax, o filme mostra Estamira esbravejando contra os trovões, tendo viu uma luz emanando da imagem de Nossa Senhora e ouviu um sussurro.
ao fundo a rica Zona Sul do Rio de Janeiro, distante apenas cerca de trinta mi- Rosa Egipcíaca então perguntou à voz quem era ela, ao que recebeu a seguinte
nutos da mais absoluta pobreza e degradação; ela encontrava-se, aí, no único resposta: “Eu sou o Sol do Oriente [digo] o Sol da meya noute que ando ve-
lugar desde onde poderia anunciar o fim de tudo – do Brasil, do mundo, do sitando aquelles que andão no meu serviço nesta hora como es tu e tuas com-
capitalismo (“Comunismo superior, o único comunismo”13). panheiras”14. Rosa Egipcíaca lhe inquire mais duas vezes sobre sua origem, até
finalmente obter uma resposta; o registro que o inquisidor faz de sua resposta
é o seguinte:
O apocalipse chega à colônia
etornando lhe apreguntar dondeera lhe Respondeu = que
Ao comparar as posições autorais que Estamira e Rosa Egipcíaca no Imperio e que hia para ooccidente e preguntando lhe
construíram para alojar seu pensamento, procedamos em ordem cronológica donde este era lhe disse que no peito della Ré com o que
– afinal, situamos nossa investigação no contexto da história das mulheres na ella estremeçeo [....] Continuando ella Ré apreguntar
filosofia. Como vimos, o amplo corpus da obra de Rosa Egipcíaca comporta que significavão os Raios Vermelhos que sahião dehum
registros os mais variados: cartas autógrafas, textos avulsos e correspondências Resplendor que cercava a ditta luz lhe Respondeo a ditta
voz que erão as offenças que lhe farião os filhos da Igreja
ditadas, processos da inquisição lavrados por notários eclesiásticos, depoimen-
elogo dezapareçeu a ditta luz e ficou a Igreja na mesma
tos de terceiros. Como se trata aqui de entender a autoconcepção de autoria escuridão em que estava15.
de Rosa Egipcíaca no interior dessa polifonia de níveis de discurso, optaremos
por tematizar dois textos proféticos pertencentes a registros diferentes: o pri- Devemos notar, nesse trecho, a preocupação espacial, propriamente
meiro corresponde a um trecho de seu depoimento aos inquisidores do Santo geográfica, que orienta o raciocínio de Rosa Egipcíaca: ela quer saber, antes de
Ofício de Lisboa; o segundo é um longo trecho ditado a uma de suas segui- tudo, de onde vinha e para onde ia a voz. Que a resposta seja “do Império” in-
doras (e é interessante notar que quem a seguia eram sobretudo mulheres). dica que se trata de uma origem europeia e metropolitana, dirigida à colônia.
Sob a superfície dessa escrita produzida por terceiros – a primeira, feita pelo Essa origem ao mesmo tempo espacial e política marcará, como veremos mais
inimigo, e a segunda, por uma aliada – poderemos, talvez, ouvir, desde que à frente, uma dimensão decisiva do apocalipse colonial de Rosa Egipcíaca.
estejamos atentos a seus deslocamentos e a suas hesitações, a voz de Rosa Egip- Qual era a mensagem que a voz dirigia à colônia brasileira? A ré narra,
cíaca. Será o tom e o estilo dessa vocalização que nos permitirão identificar o nas páginas seguintes do interrogatório, novas revelações que se sucederam a
que se poderia chamar de um “apocalipse colonial”, distinto conceitualmente,
em alguns aspectos importantes, do gênero apocalíptico tradicional (supon- 14 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 09065, fl. 32r.
do-se, no entanto, que haja algo como um “gênero apocalíptico tradicional” 15 Idem, ibidem. Tentamos manter, na medida da inteligibilidade do texto, a grafia original do
século XVIII, seguindo, em linhas gerais, os procedimentos adotados pela equipe do P.S. Post Scrip-
– voltaremos a esse ponto mais adiante). tum, mencionado no Apêndice, no final deste texto. Para as regras de transcrição adotadas pelo Post
O primeiro texto está contido no processo número 09065 da Inqui- Scriptum, ver URL: http://ps.clul.ul.pt/pt/index.php?. A tentativa de reproduzir, tanto quanto
possível, e ainda que muito indiretamente, a locução de Rosa Egipcíaca é o que nos motiva a adotar
sição lisboeta, intitulado Processo da pretta Rosa Maria Egyçiaca, datado de esse procedimento, o qual não deixa, no entanto, de se comprometer com decisões de transcrição
1765. Nele, a ré relata uma das visões que teve em 1760: no terceiro dia da que poderiam ser questionadas, e que divergem pontualmente das normas adotadas pelo próprio
Post Scriptum. Deve-se notar que não pretendemos, dessa forma, atingir uma certa pureza origi-
novena do Menino Deus, indo à noite no coro do Recolhimento do Parto,
nária que nos ligaria sem desvios à fala de Rosa Egipcíaca, mas apenas esboçar um gesto em sua
direção. Sugerimos aos leitores que consultem os manuscritos nos endereços eletrônicos assinalados
13 ESTAMIRA & PRADO (2013), p. 48. no Apêndice, de modo a compará-los com nossas transcrições.

294 295
essa primeira, uma delas bastante perturbadora: a voz lhe comunicara que um mente em sua enunciação, uma vez que é nela que encontraremos as marcas
dilúvio arrasaria, em 1762, as províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, da concepção de autoria de Rosa Egipcíaca. Há, nesta enunciação, uma inde-
“a prender os que estão soltos e a soltar os que estão presos”16 (é significativo, terminação do emissor da profecia: essa última é, na verdade, um texto ditado
como veremos adiante, que os dois lugares da catástrofe anunciada fossem as por Rosa Egipcíaca, mas descreve uma voz ouvida “no entendimento” pela
províncias onde Rosa Egipcíaca habitou no Brasil, pois é em torno dela que própria copista, Maria Theresa do Sacramento, voz essa que lhe pede para
o destino escatológico da colônia se realizaria). Nessa frase sucinta, o que se dizer a sua “Mãe e Mestra” o que acontecerá, referindo-se a uma visão tida por
indica é a subversão de toda a ordem jurídico-política vigente na colônia. essa última anos antes, agora elucidada através da discípula. O texto é, pois,
O segundo texto a ser examinado aqui também se encontra no proces- o resultado da interpretação que Rosa Egipcíaca faz da revelação tida por sua
so 09065 do Tribunal do Santo Ofício, mas não é, como o texto anterior, uma apóstola, que, por sua vez, copia essa interpretação ditada pela mestra. Man-
transcrição do depoimento da ré pelos padres responsáveis pelo processo, e tenhamos em mente essa cadeia complexa de mensageiros: Rosa Egipcíaca dita
sim um documento anexado a esse último como uma das provas de suas here- uma carta narrando uma profecia comunicada verbalmente a ela pela própria
sias, a saber: uma profecia ditada por Rosa Egipcíaca à irmã do Recolhimento voz da copista e apóstola, profecia essa que teve origem em uma outra voz,
do Parto que era sua escriba, Maria Theresa do Sacramento. Nela, encontra- sobrenatural, que, por sua vez, interpreta uma revelação visual ocorrida a Rosa
mos um elemento central da teologia escatológica de Rosa Egipcíaca17; eis o Egipcíaca anos antes – e tudo isso, por sua vez, deve ser transmitido a algumas
que diz um de seus trechos: pessoas especiais nomeadas no texto20. Escrita, audição e visão criam essa lon-
ga série de telecomunicações21.
... ha de Ser hũ deluvio q͂ nunca Se vio outro em todo o O enunciado da profecia, por sua vez, é, em uma nova mediação, pa-
mundo [....] eSe deluvio ha de vir dar o mar deRubando
rafraseado e comentado por uma das testemunhas ouvidas pelo Tribunal do
todos eSes montes e hunir Se com eSe mar Salgado q͂
Santo Ofício, Faustina Maria de Jesus, uma das internas do Recolhimento
ves defronte do palaSio18 eq͂ todos os mais Rios se haõ
de Soltar eomar ha de Sahir fora de seus limites ficando do Parto – mas não devemos nos esquecer, e por isso vale a pena repetir, que
toda aSidade dentro das Suas emtranhas. [....] eq͂ quando os depoimentos eram registrados por um padre, um homem e um europeu,
vir huã estrela aparecer no Ceo mui ResplandeSente dei- ligado à estrutura eclesiástica. Uma nova série se apresenta aqui: o Tribunal,
tando de si mtos Raios eesta estrela hade apareSer tres lan- que escuta a testemunha, registra, por escrito, o que essa última ouviu da voz
Sas do Sol fora; e vir ahoras mortas hũ tropel grandeozo de Rosa Egipcíaca. Segundo a interna do Recolhimento, a parte final da pro-
Como de besta q͂ todo o povo das Minas Seprepare, porq͂
fecia afirmava que Deus “deo aella para o novo Imperio, em que ella havia de
está chegado o numero des que são os des Mandamentos
Reynar” com Dom Sebastião, “e que então se converterão todos os infiéis”22.
quebrantados [....] o emCoberto está pa Sedescobrir...19
20 E essas poucas pessoas privilegiadas poderão comunicar a profecia a outras, sob a condição
do anonimato do emissário (“este avizo o poderá mostrar a varias pessoas mas naõ dizendo quem
Antes de examinar o enunciado da profecia, detenhamo-nos breve- lho mandou” (Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 09065, fl. 83v)). Note-se
também que, por ser uma carta ditada por Rosa Egipcíaca, essa forma indireta de dicção mistura o
16 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo 09065, fl. 32v. escrito e o falado em um registro peculiar.
17 Repetindo, neste momento, uma atitude condescendente que perpassa todo o seu livro, Mott 21 Sobre esse termo, ver DERRIDA (1972), pp. 369-381.
afirma que o relato é “pueril”, solicitando “que o leitor tenha paciência com o estilo claudicante” 22 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 09065, fl. 109v. Como consta no arra-
(MOTT (1993), p. 549-550). Não é preciso dizer que procuramos nos distanciar dessa atitude. zoado inicial do Auto de denúncia lavrado em 1762, ainda durante a fase do processo instituído no
18 Trata-se do Paço Imperial, na atual Praça XV, que, na época ficava em frente ao mar, agora Rio de Janeiro, acrescentado posteriormente ao processo da Inquisição de Lisboa, Rosa Egipcíaca
aterrado. também teria profetizado que havia de se “inundar, e subverter esta Cidade”; apenas o Recolhimen-
19 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 09065, fl. 83v. to do Parto, transformado em uma nova Arca de Noé, escaparia da destruição, bem como “todas

296 297
O conteúdo da profecia muitas vezes encontra variações nos escritos de Rosa com pretensão à verdade, a tal ponto que, uma vez engajados neles, é preciso ir
Egipcíaca e nos depoimentos que prestou à Inquisição: ora ela seria a nova sempre além e desvelar as obscuridades presentes no próprio discurso apocalíp-
encarnação de Deus – “Eu sou Deus”, repetia frequentemente23 –, ora seria a tico, e em seu objetivo final de propagar a clareza. Daí também por que, sen-
nova mãe do Cristo, filho de seu um casamento místico com Dom Sebastião, do a estrutura mesma da linguagem, nós, que compartilhamos a vontade de
ou, em algumas versões, de seu casamento com a própria Santíssima Trindade. verdade (o que implica dizer a verdade sobre a essência da verdade), estamos
Os fiéis abrigados com ela no Recolhimento do Parto seriam salvos da trom- condenados a articular linguisticamente um apocalipse do próprio apocalipse,
ba d’água porque o prédio seria transformado milagrosamente em uma nova sem nunca podermos estar certos de ter chegado à identificação precisa de seu
Arca, flutuando sobre a destruição. emissor e de seu destinatário: por trás de um emissor identificado, é preciso
Apesar de termos proposto examinar separadamente o ato enuncia- sempre ir além, buscar, sob sua voz, uma voz mais originária, o verdadeiro
tivo e o enunciado da profecia roseana, tal separação, começamos a perceber, autor (o espírito, o inconsciente, a história). O que se mostra no discurso
não é realmente possível: enunciado e enunciação coincidem perfeitamente. apocalíptico é, pois, nada mais do que o próprio apocalipse26. A conclusão de
Derrida, em seu texto “De um tom apocalíptico adotado recentemente em Derrida aplica-se claramente ao discurso escatológico de Rosa Egipcíaca; diz
filosofia”24 – e é esse tom que procuramos escutar nos registros escritos da Derrida: “desde que não se saiba mais muito bem quem fala ou quem escreve,
Inquisição –, fornece uma explicação clara para a indistinção entre forma e o texto se torna apocalíptico”27.
conteúdo, comum, segundo ele, a todos os discursos proféticos: a própria Se aceitarmos essa premissa sobre a identidade fundamental entre
estrutura da verdade, tal como ela é concebida pelo que chamamos, desde há enunciado e ato enunciativo, podemos agora nos perguntar sobre a pecu-
muitos séculos, de “filosofia”, é apocalíptica: “A verdade”, diz Derrida, “é o fim liaridade do apocalipse colonial articulado por Rosa Egipcíaca (e pela mul-
e a instância do juízo final”25. De fato, é usual propor uma elucidação dos tidão indefinida que esse nome carrega consigo, como acabamos de ver),
fenômenos apocalípticos a partir do sentido literal da palavra “apocalipse”, frente ao que poderíamos chamar, sob um certo risco, de gênero apocalíp-
o de “revelação”; Derrida propõe inverter esse procedimento hermenêutico, tico tradicional. Esse último comporta, de fato, uma grande diversidade de
entendendo a ideia mesma de “revelação” (e de “desvelamento” e de “verda- variantes, ao ponto de podermos mesmo duvidar de sua unidade como um
de”) a partir do campo semântico escatológico. Todos os que dizem a verdade, gênero. Em seu livro A imaginação apocalíptica. Uma introdução à literatura
ou que pretendem dizer a verdade, são tomados por essa paixão violenta da apocalíptica judaica, John Collins propõe uma definição preliminar do apo-
consumação dos tempos: a palavra apocalíptica tem a vocação de ser a última calipse nos seguintes termos:
palavra, a que encerra o debate por finalmente afastar as ilusões e mostrar a
iminência do que vem, da coisa mesma. O desejo de luz, de esclarecimento, que um gênero de literatura revelatória com estrutura narra-
tiva, no qual a revelação a um receptor humano é media-
uns poucos escolhidos sabem reconhecer, seria a vocação mesma da filosofia,
da por um ser sobrenatural, desvendando uma realidade
sua definição e seu fim. É por isso, continua Derrida, que um “certo tom
transcendente que tanto é temporal, na medida em que
apocalíptico” pertence à estrutura transcendental dos discursos verdadeiros ou vislumbra a salvação escatológica, quanto espacial, na
medida que envolve outro mundo...28
as Creaturas, que nelle se recolhessem, e que em húa delas havia de encarnar o Divino Verbo para
estabelecer hu novo mundo mais perfeito que o presente” (Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
Lisboa, processo 02901, fl. 130v). Para outras versões dessa mesma profecia, ver fl 132r e fl. 138r. 26 Idem, p. 471.
23 Sobre o uso recorrente dessa frase, ver MOTT (1993), p. 566. 27 Idem, ibidem.
24 DERRIDA (1981), pp. 445-486. 28 COLLINS (2010), p. 22. Collins remete o leitor para o estudo realizado pelo Projeto de Gêne-
25 DERRIDA (1981), p. 468. ros da Society of Biblical Literature, Apocalypse: The Morphology of a Genre (COLLINS, 1979).

298 299
Retenhamos, dessa definição, o aspecto espacial ou geográfico, que Comfeço a meu senhor, que estou com tão grande Sus-
é o que nos interessa no momento, tendo em vista a caracterização de um to, que não sei que faça, porque se castigou o Reyno de
apocalipse propriamente colonial, ou seja, tendo em vista uma cosmologia Portugal a quem elle chamou seu amado que fara a Ame-
rica, a quem elle chama seu contrario mas com tudo isto
que se situe, essencialmente, nas periferias das metrópoles modernas – o que,
sempre elle he piedozo, pois na America, he que nos deu
já deve estar claro, inclui os sistemas de pensamento nelas gerados. Sob o o seu coração, para nos ensinar que sempre Deos fas bem
aspecto geográfico, ou geopolítico, das narrativas apocalípticas tradicionais, a quem lhe fas mal29.
o apocalipse é, quase sempre, uma literatura de resistência. Naquele que é o
paradigma literário de todo o gênero apocalíptico no Ocidente, o Apocalipse No apocalipse de Rosa Egipcíaca, pois, o retorno à situação plane-
de João, a revelação indica a destruição do Império romano, o mesmo que, tária pré-colonial lhe empresta um curioso tom anti-escatológico. De fato,
segundo uma já longa tradição, havia banido João para a ilha de Patmos, onde enquanto o Apocalipse de João inscreve-se na tradição milenarista do Antigo
o texto teria sido composto. Testamento, especialmente a presente no livro de Daniel, a síntese salvífica de
Como vimos, no apocalipse de Rosa Egipcíaca, o meio de destrui- Rosa Egipcíaca – e, como sabe qualquer leitor de Hegel, toda síntese é salvífica
ção do mundo – as águas oceânicas – é, ao mesmo tempo, o meio de fuga – aponta não para o futuro, mas para o passado. Se o sebastianismo sempre
de sua comunidade mística, pelo mar. Lembremos que o oceano Atlântico foi um milenarismo, o apocalipse colonial de Rosa Egipcíaca transforma o
representa, para as colônias americanas, não apenas a distância física que retorno do Encoberto, o Rei/Cristo místico, na reconstituição de um passado
as separa das metrópoles europeias, mas também a fronteira epistemológi- no qual a existência mesma da experiência colonial seria negada, e todos os
ca – um verdadeiro abismo – que permite que se projetem, sobre elas, as seus rastros, apagados da existência.
imagens alternadas e não exclusivas de um novo paraíso na Terra e/ou das Para concluir esta breve apresentação da cosmologia de Rosa Egipcíaca,
profundezas de um inferno desconhecido. O mapeamento teológico que gostaríamos de fazer uma observação suplementar: em um dos poucos comen-
os europeus foram forçados a projetar sobre o território americano, de tal tários que encontramos sobre seu pensamento, um artigo de Rachel Spaulding
modo a consumar sua colonização simbólica, incluía, de modo essencial, a intitulado “Covert Afro-Catholic agency in the mystical visions of early modern
travessia do oceano insondável como o espaço epistêmico que separava os Brazil’s Rosa Maria Egipçíaca”30, a autora sugere (seguindo, nesse ponto, Mott)
dois mundos, o antigo e o novo. Ao habitar o oceano em seu navio místico, que haveria um caráter sincrético na experiência religiosa de Rosa Egipcíaca.
Rosa Egipcíaca percorreria, em sentido contrário, o caminho do tráfego de Segundo Spaulding, “Na devoção Yorubá, as mulheres usualmente ocupam o
escravos, encontrando-se com dom Sebastião em algum lugar indeterminado papel de sacerdotisas. A sacerdotisa funciona como uma mediação entre este
do mar, no meio da travessia. Ao propor que o encontro com o Encoberto mundo e o próximo”31. A partir dessa constatação, Spaulding trata de inter-
se daria nessa pura medianidade, ela deixa para trás não uma terra firme, pretar certas passagens dos testemunhos de Rosa Egipcíaca à Inquisição para
mas apenas o mar, no qual a colônia em ruínas submergiu e desapareceu. O mostrar que, sob seu catolicismo, é possível encontrar sinais híbridos de reli-
oceano deixou de ser a mediação entre a metrópole e a colônia, e o mundo giões afro-americanas. Para que sua interpretação se sustente, porém, Spaulding
pré-colonial foi restituído pela destruição da colônia: a partir de então, só
29 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 14316, denúncia de Maria Theresa
existiria o velho mundo, a Europa e a África. Assim, em uma carta a seu de Jesús de Arvelos, in: Post Scriptum, CARDS3047. “1756. Carta não autógrafa de Rosa Ma-
amigo e protetor Pedro Rodrigues Arvelos, pai de algumas de suas internas, ria Egipcíaca, escrava forra, a Pedro Rodrigues Arvelos, lavrador”. In: http://ps.clul.ul.pt/pt/index.
php?action=file&id=CARDS3047). Consultado em 30 de maio de 2019.
Rosa Egipcíaca escreve:
30 SPAULDING (2017).
31 Idem, p. 44.

300 301
tem de supor que o testemunho de Rosa Egipcíaca para a Inquisição no Brasil O além do além é um transbordo. [....] Então, o poder supe-
foi mais sincero do que o de Portugal, pois nesse último, por encontrar-se em rior, o real, a natureza superior contorna tudo pra lá, pr’aquele
solo metropolitano e no centro da estrutura eclesiástica portuguesa, a ré teria lugar. Assim como as reservas, tem as reservas nas beiradas,
ninguém pode ir lá... [....] Pra esse lugar que eu to falando,
tentado disfarçar suas opiniões (e suas descrições no Rio de Janeiro, diz Spaul-
o além do além, lá pr’as beiradas, muito longe, muito longe,
ding, “poderiam ser lidas como mais abertamente sincréticas”32). Os inúmeros muito longe..., sanguíneo nenhum pode ir lá...34.
problemas metodológicos de uma “hermenêutica da suspeita”, para usar a ex-
pressão de Paul Ricoeur em seu comentário da teoria da leitura de Leo Strauss33, Situando-se a si mesma na “beira do mundo” (“Eu sou a beira do
aparecem aqui claramente: quando o intérprete, ao invés de se ater à letra do mundo. Eu sou esta mira. Eu estou lá, eu estou cá, eu estou em tudo quanto é
texto, imagina que sua superfície encobre um sentido oculto e mais verdadeiro, lugar. E todos dependem de mim. Todos dependem de Estamira. Todos!”35),
mantido em sigilo por prudência diante da perseguição política e religiosa, as sua “missão” é menos apontar para um além do mundo do que denunciar a
portas estão abertas para atribuições incontroláveis de intenções secretas aos au- mentira de Deus (“... esse Deus desse jeito, esse Deus deles, esse Deus sujo,
tores examinados. Portanto, ao invés de apostar em uma interpretação como a esse Deus estuprador, esse Deus assaltante de qualquer lugar, de tudo quanto
de Spaulding, talvez seja mais prudente simplesmente não interpretar o texto de é lugar, esse Deus arrombador de casa, com esse Deus eu não aceito. [....] Eu
Rosa Egipcíaca, mas apenas desconstrui-lo nesse jogo de remissões intertextuais sou a verdade, eu sou a verdade”36). Nesse sentido, porque está em toda parte,
com outros textos apocalípticos, fazendo, assim, emergir a singularidade – que sua mirada mantém o mundo a partir de um ponto de vista que não se insere
é também uma repetição – de seu apocalipse colonial. neste espaço demasiadamente humano e planetário (“eu estou num lugar bem
longe... num espaço bem longe... Estamira está longe. [....] Estamira está em
todo lugar... Estamira podia ser irmã ou filha, ou esposa de espaço, mas não
S ub specie æternitatis
é”37). Na verdade, o espaço, para Estamira, não é compreendido principal-
Se o apocalipse de Rosa Egipcíaca é não-milenarista, a destruição total mente a partir da geografia, mas antes, a partir de uma espécie de geometria
do mundo, e particularmente desta parte colonial do mundo que chamamos de celeste: “A criação toda é abstrata: os espaço inteiro é abstrato [....] Tudo é abs-
Brasil, antecipada por Estamira, é não-apocalíptica. De fato, ao retomarmos a trato, Estamira também é abstrato”38. Ao invés de nos remeter para um outro
definição de “apocalipse” proposta por Collins, segundo a qual esse gênero lite- espaço, pois, Estamira anuncia a irrealidade deste espaço em que habitamos,
rário remete a “uma realidade transcendente que tanto é temporal, na medida bem como sua verdadeira natureza, abstrata.
em que vislumbra a salvação escatológica, quanto espacial, na medida que en- Como a manutenção do mundo em sua existência depende de um seu
volve outro mundo”, percebemos, ouvindo Estamira, que o conceito de destrui- ato de vontade – a saber, do ato de querer mirar o mundo –, a ação de encerrar
ção elaborado por ela não apresenta uma dimensão transcendente, quer ela seja o mundo, de fechar os olhos, está sempre presente como uma possibilidade. Em
temporal ou espacial, ainda que seu nome mesmo, tomado como antonomásia, uma longa especulação sobre seu destino, inteiramente tomado pela tarefa de
remeta para a ideia de perspectiva espacial. Trata-se, no entanto, de um espaço
34 Transcrição do filme Estamira pelo blog Brainstorm: https://brainstormtche.blogspot.
sem promessa de salvação, e, na verdade, de um espaço para além do espaço, de com/2018/04/transcricao-do-filme-ESTAMIRA.html Publicado em 16 de abril de 2018. Publica-
tal modo que destruir o mundo não significa migrar para um outro espaço, tal do em 25 de abril de 2013. Consultado em 27 de dezembro de 2019.
35 ESTAMIRA & PRADO (2013), p. 33.
como ocorre no discurso milenarista. Ouçamos/leiamos Estamira: 36 Idem, p. 55.
32 Idem, p. 42. 37 Idem, pp. 36-37.
33 RICOEUR (1978) (apud LEVENE (2000), p. 62). 38 Idem, p. 16.

302 303
combater Deus, a conclusão sempre entrevista é explicitada da seguinte forma: pior eu sou!”42. Os homens se renegaram a si mesmos como os “únicos
condicionais” – expressão que, em seu vocabulário, designa o estatuto es-
A solução é fogo. A única solução é o fogo. Queimar pecial do homem diante dos outros seres do mundo43 –, mas a luta não
tudo os espaços, os seres, e pôr outros seres nos espaços.
acabará em um ato decisivo, depois do qual a salvação seria alcançada:
A Terra disse, ela falava, agora que ela já tá morta, ela
ela continuará sua tarefa de destruição até o fim, sem promessas nem re-
disse que então ela não seria testemunha de nada. [....]
Se queimar os espaço todinho, e eu tô no meio, pode missão. Na verdade, como, segundo ela, “tudo é imaginário”, inclusive o
queimar, eu tô no meio, invisível39. espaço e o tempo, sua perspectiva é deslocada para a eternidade.
Em uma resenha do filme de Marcos Prado publicada na revista Ciné-
Identificando-se com um puro olhar abstrato que tudo percorre e tica, o crítico cinematográfico Cléber Eduardo observa que Estamira era uma
tudo mantém na existência, Estamira promete a destruição do mundo visível, “demiurga consciente de seu grau de perturbação”44. Embora o crítico a ins-
mas assegura que ela, o olhar que tudo vê, invisível, no centro de tudo e na creva na tradição do discurso messiânico, sem as ambiguidades que tornam
beira de tudo, permanecerá, indestrutível. Por mais que uma certa imagem problemática, como vimos, tal classificação, há, em seu texto, um ponto im-
apocalíptica tradicional seja reconhecível nessa passagem, deve-se notar que portante relativo à autoconsciência que Estamira tem de sua própria condição
ela não vem acompanhada da promessa de salvação, ainda que restrita a al- psiquiátrica. De fato, a certa altura de seu discurso, ela lê o diagnóstico de psi-
guns poucos eleitos. Há, na verdade, uma inversão da promessa escatológica: cose grave dado por um médico, para, logo em seguida, recusá-lo, assimilando
enquanto essa última anuncia um outro espaço até onde estas mesmas pessoas sua condição à de todos os homens (“É, bem, deficiência mental eu acho que
poderiam ser elevadas, o espaço calcinado de Estamira permanece o mesmo, tem é quem é imprestável, né? [....] Perturbação [....] também é, mas não é
e ela considera povoá-lo com “outros seres”. E a consumação da carne e dos deficiência [....]. Perturbação é perturbação, qualquer um pode ficar pertur-
sentimentos não afetará esse ponto geométrico a partir de onde as coisas são bado”45). A reflexão sobre sua posição enunciativa envolve, pois, uma crítica
substituídas em um espaço que é ele mesmo, como vimos, abstrato e ideal. política das instituições médicas das quais sempre foi vítima, a qual ocupa uma
Como a geometria pura é eterna, a luta de Estamira também igno- parcela considerável do filme.
ra, pois, o tempo – ou, pelo menos, o tempo messiânico. E, enquanto hou- Logo após a leitura de sua guerra visando à destituição de Deus de seu
ver continuidade temporal, ela será conduzida rumo ao pior. Logo após autoproclamado cargo de juiz supremo, o metafísico francês Artaud também
anunciar que “todos dependem de mim”, ela acrescenta: “E quando de- realiza uma reflexão, similar à de Estamira, sobre sua própria sanidade men-
sencarnar vou fazer muito pior”40. Essa ameaça de “fazer o pior” refere-se à tal, na obra já mencionada anteriormente, a emissão radiofônica Para acabar
guerra contra o “Trocadilo” (seria esse termo uma corruptela de “trocadi- com o julgamento de deus. Naquilo que é uma espécie de apêndice ao ato de
lho”, isto é, de “sofisma”, e epíteto de Satanás, ou seja, de Deus?41), numa destituição de Deus, mas que também faz parte da emissão radiofônica, Ar-
continuação da batalha já em curso. Diz Estamira pouco antes: “Quanto taud desenvolve uma reflexão sobre o que os psiquiatras dizem a seu respeito
mais essas desgraça, esses piolhos de terra suja maldiçoada, excomungada, 42 Idem, p. 33.
que renegou os homens como único condicional, mais ruim eu fico, mais 43 Ainda assim, sua relação com os outros animais é marcada pelo cuidado e pela afeição: “Vi-
sivelmente, naturalmente, se eu me desencarnar, eu tenho a impressão que eu serei muito feliz e
talvez eu poderia ajudar alguém. Porque o meu prazer sempre foi esse: ajudar alguém, ajudar um
39 Idem, pp. 55-56. bichinho” (idem, p. 16).
40 Idem, p. 33. 44 “Estamira, de Marcos Prado (Brasil, 2004)”, por Cléber Eduardo, revista Cinética. In: http://
41 “Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra [...]? Não é ele que é o próprio Tro- www.revistacinetica.com.br/estamira.htm Consultado em 11/06/2019.
cadilo?” (Idem, p. 32). 45 ESTAMIRA & PRADO (2013), p. 53.

304 305
e – é importante notar esse ponto – associa a validade de sua perspectiva à dos lalias os unem em uma linguagem intraduzível. Mas esse tom, o que Artaud
índios americanos, principalmente quando viviam em uma situação pré-co- partilha com Estamira, não é propriamente apocalíptico51, pois ele não visa a
lombiana, ou seja, pré-colonial. Diz aí Artaud: “É que os Índios de antes de salvação do homem. Assim como Artaud, Estamira precisa destruir o homem
Colombo eram, contrariamente a tudo o que se pôde crer, um povo estranha- para poder destruir deus. Mas nenhum dos dois se exprime com um tom
mente civilizado, e que eles justamente conheceram uma forma de civilização “apocalíptico”: eles não querem “dizer a verdade” nem construir um “homem
baseada sobre o princípio exclusivo da crueldade”46. Logo a seguir, ele define novo”, na medida mesma em que é a veridicção como tal que encontra, em
assim o sentido da palavra “crueldade”: “A crueldade é extirpar pelo sangue, e suas falas, um limite. Se o ser e o verdadeiro são convertíveis, como supunham
até ao sangue de deus, o acaso bestial da animalidade inconsciente humana, certos filósofos medievais, então a nulificação do ser enquanto ser é também a
por toda parte onde se a pode encontrar”47, de forma não tão distante assim aniquilação da verdade, sem um horizonte escatológico que limitaria o poder
da acusação de Estamira contra Deus, o qual teria transformado os homens destrutivo das palavras. Tratava-se, em suma, da apresentação do que já estava
em quadrúpedes48. Para Artaud, o homem deve ser extirpado dessa maldição dado, e não de uma promessa de renovação. Lembremo-nos da advertência
nele inscrita por deus; sem esse ato radical, ele permanece como um “animal final de Artaud: “encontrei o meio para acabar de uma vez por todas com o
erótico”, “produtor de bestas sem número que são a forma que os antigos macaco [isto é, deus]”, ele diz, e continua: “se ninguém mais crê em deus to-
povos terrestres atribuíam universalmente a deus”. Deus, continua Artaud, dos creem cada vez mais no homem. Ora, é o homem que é preciso agora se
é os micróbios que causam doenças, e é os átomos da bomba. Neste ponto, decidir a emascular”52.
a exposição é interrompida, e Artaud introduz, sob a forma de um diálogo O filósofo Peter Pál Pelbart, em sua introdução ao livro que reproduz
ficcional, uma interpelação: “Vós delirais, senhor Artaud. Sois louco”, ao que as falas de Estamira, logo após transcrever o trecho sobre a destruição do mun-
ele responde: “Eu não deliro. Eu não sou louco”49. O fim de deus, ele conclui, do, dos homens e de deus – ou, em uma palavra, o ato de incinerar o ser –,
deve coincidir com o fim do homem. trecho esse já citado acima (“a única solução é o fogo. Queimar tudo os espa-
O texto de Artaud não deve ser lido; o fato de ser uma transmissão ços, os seres”), surpreendente desdiz o que Estamira havia dito e conclui que
radiofônica indica que ele foi feito para ser escutado. O som da voz de Artaud tal destruição “não é o que de fato ela prega”. “A saída que ela inventa”, afirma
lendo Para acabar com o julgamento de Deus, com suas inflexões propriamente Pelbart, “é mais aguda, talvez até mais incendiária, da qual a vida dela e suas
sobrenaturais, ou infranaturais, em uma voz que parece vir de outro mundo, palavras, filmadas ou transcritas, são um testemunho maior”. Para confirmar
ou de uma outra dimensão deste nosso mundo, é acessível hoje em um ca- sua interpretação, Pelbart cita uma vez mais Estamira: “Tudo que é imaginário
nal do YouTube50; suas variações vocais são tão ou mais importantes do que tem, existe, é”. Na edição cinematográfica feita por Marcos Prado, esta frase,
aquilo que nós costumamos, de maneira irrefletida e superficial, chamar de dita por Estamira diante de um mar bravio – o mesmo mar que trouxe e levou
significado. Não é acidental que Artaud e Estamira encontrem-se neste regis- Rosa Egipcíaca, da África e para Lisboa –, são as últimas palavras do filme. O
tro vocal e auditivo em sua guerra comum – mas separada, pois não é possível que, nos parece, Pelbart não levou em conta é que a criação de mundos não
lutar de outra forma que não sozinho esta batalha – contra deus. As glosso- é incompatível com sua destruição. No contexto em que essa frase foi dita,
especialmente no livro em que os registros gravados são registrados sem a
46 ARTAUD (1974), p. 101-102. Os trechos aqui citados dessa obra foram traduzidos por nós.
47 Idem, p. 102. edição do filme, vemos que a frase se insere no seguinte raciocínio: “A criação
48 ESTAMIRA & PRADO (2013), p. 26. toda é abstrata. O espaço inteiro é abstrato. A água é abstrato. O fogo é abs-
49 ARTAUD (1974), p. 103.
50 Antonin Artaud, Pour en finir avec le jugement de dieu (Version intégrale). In: https://www. 51 Ver acima, nota 14.
youtube.com/watch?v=EXy7lsGNZ5A Consultado em 11/06/2019. 52 ARTAUD (1974), pp. 103-104. O trecho citado aparece, na emissão radiofônica, aos 36’.

306 307
trato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrato”. E a conclusão vem logo repetição – como, aliás, indica a etimologia da palavra “revolução”. Ao con-
depois: “Porque eles, os astros negativos ofensivos, sujam o espaço e quer-me. trapor Estamira a Rosa Egipcíaca, o que pretendemos sugerir foi que houve
Quer-me, e suja tudo”53. Portanto, até mesmo o fogo, que destruirá tudo, é um percurso que tornou visível nosso passado escravocrata e inquisitorial,
abstrato, e é por isso que a destruição se inscreve no mesmo registro de realidade percurso esse encerrado, em nossa narrativa, por Estamira. De alguma ma-
que a criação, o espaço e a água – ou seja, no mesmo registro que o ser. É essa neira, só ela realiza a destruição colonial prevista por Rosa Egipcíaca, ao se
simultaneidade entre criação e destruição que é percebida pela escuta do tom desembaraçar do ideário milenarista em favor de uma centralidade do olhar
de voz com que Estamira afirma que “tudo que é imaginário tem, existe, é” – e que não precisa mais se unir ao Encoberto (masculino, branco, europeu) para
agora é preciso ouvir/ver o filme: sua locução pausada e séria não é um elogio cumprir sua tarefa apocalíptica. É, de certa forma, a partir do momento em
do sentido usual de um poder inventivo da imaginação, mas sim o do desvela- que nós, hoje, depois de Artaud, podemos, ainda que com algum risco, incluir
mento das camadas secretas de uma realidade insuspeita pelos homens, a qual o nome de Estamira em uma publicação filosófica que, retrospectivamente,
inclui a destruição mais terrível. A afirmação de que tudo o que é imaginário Rosa Egipcíaca pode surgir como uma sua precursora sombria. Foram, em
existe introduz uma multiplicação ontológica perturbadora no mundo, que suma, os conceitos de Estamira sobre o feminino e o tempo histórico o meio
passa a ter infinitos níveis de “abstratos” coexistindo, para além do homem e que usamos para entender o duplo deslocamento, temporal e espacial, que nos
de sua “salvação”. leva a (re)pensar o papel das mulheres na filosofia moderna em uma sociedade
colonial. Estamira, talvez mais do que ninguém, conseguiu tratar da situação
de se estar nas margens a partir de múltiplas perspectivas: da sociedade oci-
Em lugar da conclusão dental, da metrópole europeia, do gênero masculino, do ser branco em uma
sociedade escravocrata.
Concluamos, embora ainda de forma inconclusiva, este percurso que
Para concluir, desta vez de forma conclusiva, esta apresentação prelimi-
nos levou de Rosa Egipcíaca a Estamira, fazendo agora o caminho inverso,
nar dos pensamentos de Rosa Egipcíaca e Estamira, devemos nos voltar, refle-
de Estamira em direção a Rosa Egipcíaca. Em sua Filosofia da história, He-
xivamente, para nossa própria posição enunciativa e autoral. Encerremos nosso
gel diz que “Por repetição, aquilo que em primeiro lugar aparece meramente
texto com duas questões, mais do que com afirmações. Nós, os autores deste
como uma questão de acaso e de contingência torna-se uma existência real e
texto, somos, segundo o discurso de uma certa biologia normativa, homens e so-
ratificada”54. O exemplo escolhido por Hegel aqui é a morte de César: seu
mos homens brancos – ou, ao menos, somos brancos no contexto da divisão de
assassinato, visando a destruição do tirano, produziu exatamente aquilo que
cores e de classes vigente em nossa sociedade colonial –, e, além disso (embora
tal feito pretendia negar, a saber, a ascensão da tirania de Augusto; em cer-
haja controvérsias também a esse respeito), somos classificados, pela psiquiatria,
to sentido, César “voltou” da morte para ser imperador, não, obviamente,
como “normais”. Haveria então algo em comum entre nossa posição autoral e a
como um indivíduo concreto, mas como uma função. A inevitabilidade da
das duas pensadoras situadas à margem do centro de poder sexual, racial e psí-
duplicação a torna condição necessária da própria primeira ocorrência “ori-
quico que estrutura nossa sociedade? Esta é a primeira questão.
ginal”. Nesse sentido, seria, propriamente falando, impossível que um evento
A segunda questão é: os autores mobilizados, nesta apresentação, para,
só ocorresse uma única vez, pois é apenas na sua repetição que ele ganha um
de alguma forma, fornecer os parâmetros de leitura do pensamento de Rosa
estatuto simbólico e, portanto, efetivo, na medida em que as realidades sociais
Egipcíaca e Estamira eram, também eles, como nós, homens brancos: Derrida
só existem se são representadas. Também nesse sentido, toda revolução é uma
e Artaud. E, além disso, ambos eram – e isso nos separa deles – inseridos na
53 PRADO (2004), p. 117.
54 HEGEL (1970), p. 380. sociedade europeia. É verdade que Derrida era judeu em uma sociedade cristã

308 309
e argelino migrante na metrópole parisiense, e que Artaud partiu da França diria respeito à “nossa” realidade singularizadora (nova imagem do Éden que
em busca dos Tarahumaras mexicanos e foi trancado por anos em instituições os europeus não cansaram de projetar sobre nós, e que nós, desde pelo menos
psiquiátricas, diagnosticado como esquizofrênico. Mas, ainda assim, algo de nosso modernismo brasileiro – o das décadas de 1920 e 1930 –, muitas vezes
incomensurável parece se anunciar nas diferenças que os separam – que nos se- aceitamos, ingenuamente, como missão), que, talvez (pois nada é garantido),
param, a nós e a eles – de Rosa Egipcíaca e de Estamira, bem como das demais algo de novo possa ser produzido aqui. Trata-se, em suma, de circular entre
mulheres que se dedicaram a pensar e foram caladas porque eram mulheres (no as duas séries, a metropolitana e a colonial, embaralhando seus signos, e não
caso que examinamos aqui, mulheres, negras, escravizada e catadora de lixo, fixando um suposto “lugar” especificamente “nosso”, ilusão dos nossos na-
loucas e heréticas). Nessa nova projeção da masculinidade europeia sobre as cionalistas, especialmente os situados à direita no campo político, os quais,
duas pensadoras, não haveria uma traição fundamental de suas ideias? Esta é, durante muito tempo, procuraram reconstruir, em nomes como Farias Britto
como dissemos acima, a segunda questão. e Tobias Barreto (homens, brancos, europeus), algo que nos fosse próprio. É
Não temos uma resposta para estas questões. Mas suspeitamos que, só no impróprio que reside nosso não-lugar; como diz Gilles Deleuze na 6ª
apesar de termos tentado tematizar o lugar desde onde o pensamento de Rosa série da Lógica do sentido: “Da instância paradoxal, é preciso dizer que não
Egipcíaca e de Estamira foram elaborados, o que dissemos aqui não é assi- está nunca onde a procuramos e, inversamente, que nunca a encontramos
milável – ou, pelo menos, não o é sem muitas modificações – ao conceito lá onde está”55. Ao invés de um lugar comum, talvez possamos, como o fez
contemporâneo de lugar de fala. Talvez uma primeira tentativa de responder Rosa Egipcíaca, buscar por uma deriva comum – o que significa, entre outras
a essas questões seja confrontá-las a uma outra questão, mais fundamental. Tal coisas, uma deriva paradoxal que vá em ambas as direções, afastando-se e apro-
questão ou metaquestão pode ser formulada assim: uma leitura fiel precisa ximando-se da Europa, ou indo em direção a ela como quem parte para um
realmente alcançar algo em comum a diversas perspectivas de enunciação? Ou combate. Só então, em suma, seria, talvez, possível, em um dia distante – ou
ainda: o quão fiel deve ser uma leitura fiel? O quanto de traição é constitutivo seja, agora – visar algo como uma exclusão da exclusão.
do ato mesmo de leitura, qualquer que seja ele? E como expressar essa traição
no próprio ato de sua realização? (Ou seja, como trair às claras, em plena
luz do dia?). Se essa “questão sobre as questões” aponta para algo, talvez seja A pêndice
justamente para um destino colonial comum a todas as pensadoras e a todos
Os três processos da Inquisição envolvendo Rosa Egipcíaca estão arquivados
os pensadores, a todas as filósofas e a todos os filósofos que se situam (ou são
no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, na seção dedicada aos
situados) às margens da metrópole europeia, a saber: nós que, habitando a
documentos do Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Os proces-
periferia do sistema cultural dominante, temos de aprender a ocupar – e penso
sos e uma minuta a eles associada podem ser consultados on-line no seguinte
aqui no uso desse termo associado às ocupações de prédios abandonados e
endereço eletrônico: https://digitarq.arquivos.pt/results?t=PROCESSO+-
terras improdutivas por movimentos populares – as periferias dessa periferia,
DE+ROSA+MARIA+EGIPC%C3%8DACA
sabendo reconhecer, dessa forma, um tipo peculiar de descentramento que,
paradoxalmente, nos leva de volta à Europa, mas agora com algum vírus es-
Algumas cartas anexadas aos processos estão transcritos pelos pesquisadores
condido nas bagagens. Nosso regresso europeu tem de ser o caminho de Rosa
do projeto P.S. Post Scriptum (CLUL (Ed.). 2014. P.S. Post Scriptum. Arqui-
Egipcíaca em direção à Inquisição lisboeta: mística, louca e herética. É só
vo Digital de Escrita Quotidiana em Portugal e Espanha na Época Moderna.
com essa dobradura da situação periférica sobre si mesma, longe da ilusão de
criação ex nihilo de um pensamento colonial autêntico, o qual supostamente 55 DELEUZE (1969), p. 55.

310 311
[2014]. URL: http://ps.clul.ul.pt). Se disser que mato, eu mato,

O ló
Se disser que dou, eu dou,
Nesses casos, indicamos abaixo os endereços eletrônicos das transcrições dis- Se quiser que eu lhe defenda
poníveis. Eu serei seu defensor
1- Processo 02901 de Francisco Gonçalves Lopes e Rosa Egipcíaca Galo cantou, é hora, é hora
Código de referência: PT/TT/TSO-IL/028/02901 Seu Sete Encruzas se despede e vai embora
2- Processo 09065 de Rosa Maria Egipçíaca Galo cantou, é hora, é hora
Código de referência: PT/TT/TSO-IL/028/09065 Seu Sete Encruzas se despede e vai embora
Transcrição: http://ps.clul.ul.pt/pt/index.php?action=rawsearch&prefi-
x=ID%20do%20Caderno&query=%3Cidno%3EProcesso%209065 xxxxxxx
3- Processo 18078, Minuta da certidão da fé de notários e auto de falecimento
da ré Rosa Maria Egipcíaca Cambono, camboninho meu, meu cambono
4- Processo 14316, denúncia de Maria Theresa de Jesús de Arvelos Olha que exu vai oló
Código de referência: PT/TT/TSO-IL/028/CX1587/14316 Cambono, camboninho meu, meu cambono
Transcrição: http://ps.clul.ul.pt/pt/index.php?action=rawsearch&prefi- Olha que exu vai oló
x=ID%20do%20Caderno&query=%3Cidno%3EProcesso%2014316 Vai, vai, vai, ele vai numa gira só
Vai, vai, vai, ele vai numa gira só
Nesse Processo 14316, contendo a denúncia de Maria Theresa de Jesús Arve-
los, fls. 59r-60r, encontramos o que sobrou do livro de Rosa Egipcíaca: xxxxxxx
https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=2314467
Vai exu, exu vai passear
Vai exu, exu vai passear
numa estrada tão bonita
numa noite de luar
numa estrada tão bonita
numa noite de luar

(Pontos de subida de exu)

312 313
Alberto Pucheu desses cactos
V idas R asteiras
espetados por ponteiras
tensionando a vida em cabos de aço de ferro
estendidos a espetarem-nos 
do extremo norte qual será o som 
ao sul das Américas do espetado
pontuando os vazios qual será o som
e as imensidões do que espeta
que atravessam nessa guerra sem fim
e os atravessam cada vez mais acirrada
buscando saídas qual será o som 
da morte  dessas vidas
em barcos inflados rasteiras miúdas
sobrecarregados mimosas
de perdas mesmo que frágeis
pelo mediterrâneo  tentando vingar
em campos  tentando se vingar
de refugiados tentando
onde apesar de tudo se fazer
ainda tentam valer tentando
sobreviver se adequar
por todos os lados ao que encontrar
são os Estados pelo caminho
os exércitos as polícias tentando se desviar
as bombas as balas para não
as fronteiras as moedas  se ferir qual será
as línguas as cercas o som dessas vidas
eletrificadas os muros  montanhosas
as discriminações cruzando continentes
a morte qual será o som  com seus 
desses cabos excessos
tensionados cruzando continentes
desses aços pelas montanhas
desses mares com suas 

314 315
carências moradoras de rua
qual será o som que ruídos 
dessas vidas emitem
marítimas essas vidas
cruzando oceanos doentes
em botes infláveis perambulando
superlotados pelas cidades
prestes buscando
a naufragarem em algum lugar
qual será o som uma ancoragem
dessas vidas qualquer
afundadas impossível
precárias que ruídos
grunhindo que sons
entre o excesso são esses 
e a falta escutados
na beira por quase ninguém
de bares que grunhidos
essas vidas  são esses
indígenas a jamais
desterradas ecoarem
desaldeadas por outros
tornadas pobres ouvidos
mendigas por outros
mulheres poros
desempregadas por outras
sem conseguirem vidas
pagar mas que quando
seus aluguéis  se está em um
suas roupas bar qualquer
suas comidas num sábado
pobres até à noite
virarem do centro
mendigas de uma grande

316 317
cidade  debaixo
arruinada de seus
podem emergir sessenta anos
bem ali sem ter conseguido
ao seu lado os R$12,00
à sua frente para pagar
dentro de você a pensão
adentrando você em que dorme
por ser a voz e toma banho
de uma filha quando raramente
de potira  consegue
que a escuta vender 3kg
perdida de latinhas
esparramando para o ferro velho
mostarda explicando-me
na mesa que 1kg são 45
movimentando latinhas
os dedos que quem lhe dá
na pasta amarela comida
levando-os depois de uma hora
à boca da manhã
para falar escondido do dono
o que seria é o toninho
inaudito um dos garçons
contando do restaurante
que na noite em que estamos
de ontem que ele é
choveu muito como um filho
debaixo para ela
da marquise que tem leucemia
tendo ficado mas que o médico
toda molhada disse que ela não vai
encharcada morrer disso não
ensopada afinal ela é dona laura

318 319
filha de potira assassinadas
ela saiu doentes estupradas
de sua aldeia pobres mendigas
na amazônia pelas ruas becos
na fronteira docas rios
da venezuela mas ela
aos 27 anos é filha de potira
porque chico mendes ela sobreviveu
fora assassinado se mandou
e o cacique para o rio grande
da tribo do norte
e os caciques para o rio de janeiro
das tribos onde ficava
aliadas pela central
de chico mendes do brasil
que tanto ajudou onde jogaram
indígenas gasolina nela
resolveram vingar enquanto dormia
sua morte para tocarem
declarando guerra fogo nela para
de homens matarem ela
guerreiros guerra indígena pobre mulher
de indígenas aos homens mendiga pela central
brancos do brasil
guerra perigosa onde tentaram
a tornar perigosa estuprá-la
a permanência mas ela é filha
das mulheres de potira
nas aldeias se safou
a levar as mulheres sobreviveu
para o primeiro se mandou
exílio a levá-las para são Paulo
para manaus em cujas ruas
onde morreram do centro vive

320 321
até hoje eu era mulher
amando os gays do pajé
amando as travestis não posso voltar
cheia de sonhos para eles
de línguas se eu voltar
estrangeiras para a aldeia
mas por que a senhora eu mato eles
não volta com as doenças
para sua tribo que trago no corpo
eu perguntei já voltei
a ela ela me disse algumas vezes
porque meu corpo nem me sinto mais
é um corpo doente muito bem
um corpo vacinado por lá
um corpo eles não falam
doente minha aldeia português
não tem contato ela me disse
com branco chorando
não fala português tragicamente
eu falo tupi-guarani desenraizada
se eu voltar de todos os lugares
para minha tribo desenraizada
meu corpo doente mata de todas as pessoas
as pessoas de lá desenraizada da aldeia
você não está da cidade
entendendo de todos os lugares
meu irmão desenraizada
tem cento e dois anos dela
é o cacique da tribo num bar
minha mãe teve 22 de uma grande
filhos homens cidade 
só depois eu nasci arruinada
a primeira filha onde
a única mulher pode emergir

322 323
bem ali da galeria
ao seu lado reocupa
à sua frente na qual mostra
aqui a instalação
adentrando você de nelson
a voz de outro felix para nós
alguém a voz dizendo que quer
de outra mulher ver o trabalho
a voz dele na bienal
de dona leila apontando
uma voz igualmente para nós
inesperada a horta comunitária
sofrida que um projeto
pobre da universidade
que sem está fazendo
conseguir pagar na ocupação
seu aluguel que tem show
por 7 meses de muito artista
encontrou na ocupação
o movimento que dória mora
dos sem teto perto só botou
do centro polícia e lata
conseguindo de lixo na rua
morar no hotel que a políca
cambridge chega logo
ao qual voltará que eles ocupam
quando acabar que haddad ia sempre
a obra financiada na ocupação
pela caixa econômica almoçava sempre
e pelo governo com ela e com todos
estando comia no prato
no momento deles a comida
na 9 de julho que elas faziam
tendo a chave contando para nós

324 325
sua vida da ocupação
sofrida ele não pode mais
sua vida voltar para ali
de pobre outro dia
sua vida houve uma tentativa
de desempregada de estupro
a ter encontrado de uma adolescente
o movimento os homens foram lá
dos sem teto e expulsaram
do centro quem tentou estuprar
na praça a menina
dizendo que a dona carmen
as pessoas é muito forte
dizem que tem botou câmeras
bandidos na ocupação em todos os andares
que tem drogas é ela quem escolhe
na ocupação os prédios
não tem nada ilegais a serem
disso ali ocupados
na ocupação beneficiando
ela disse um monte de gente
eles não deixam pobre desempregada
ali dentro não como ela que ela
dona carmen tem muito orgulho
não deixa da ocupação
de jeito nenhum quer ocupar mais
semana passada prédios ilegais
no quarto andar que não pagam
um marido bateu impostos
na esposa para beneficiar
os homens foram lá outras pessoas
botaram o marido como ela
para fora na rua foi beneficiada
expulsaram-no pelo movimento

326 327
ao ter um lugar Luiz Rufino

gole é do santo e a saideira é verso que não termina


para morar
para não morar Aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro
na rua E apesar dos pesares ainda se orgulha de ser
por não conseguir brasileiro
pagar aluguel Aquele que sai da batalha
por estar Entra no botequim, pede uma cerva gelada
desempregada E agita na mesa logo uma batucada
por ser pobre Aquele que manda o pagode
ela quer ajudar E sacode a poeira suada da luta e faz a brin-
outras pessoas cadeira
pobres a terem Pois o resto é besteira
onde morar E nós estamos pelaí...
porque se a pobreza (Gonzaguinha)
é indigna
mais indigno ainda Nasci e me criei no subúrbio do Rio, a condição forjada na
é a pobreza fronteira e nos ritos de consagração do cotidiano me permite mirar a
de quem não tem cidade como terreiro. A lâmpada vermelha e miúda acesa pro santo no
onde morar alto da casa de vila alumia as batalhas e a vadiação que riscam a vida e
me fazem sentir outro tempo. Na cidade fundada pelos portugueses o
padroeiro é São Sebastião, porém naquela praticada no fuzuê do dia-a-
-dia quem comanda a gira é São Jorge. O santo guerreiro é o catedrático
do povo comum, seus altares são de suor, músculos e goles de cervejas
arriados no chão. O santo de gente simples espreita a vida do alto dos
botequins e escanchado nos pescoços de seus devotos.
Se nos impuseram modos de civilidade rasuramos com as da
rua, é por isso que uma tramada entre o imprevisível e o possível de-
manda de um santo valente que guarde os seus praticantes. Os que ca-
valgam em sua companhia incorporam seu axé para substanciar a ginga
diária, a esquiva, o rolê e quando se vislumbra o vazio damos o bote.
Não à toa, São Jorge é o signo abraçado pelos praticantes das sabedorias

P rimeiro
de fresta, aquelas paridas na remontagem de mundos despedaçados.
Assim, minha gente, para fazer valer o caminhar nessa cidade há
de se trilhar caminhos pelas suas dobras e entroncamentos. É cercando

328 329
os sete lados que a boca que tudo come engole tudo que há para devolver guerrear. Sem a sutileza de moldar o ferro no calor o guerreiro jamais empu-
de maneira transformada. Nas bandas daqui pisaram aqueles que fizeram a nharia a espada.
travessia do não retorno, reinventaram a vida e plantaram segredos. Terra de Eu matuto com o Brasil, me embolo com ele, me embrenho nos seus
caboclos de lança, aqueles que bradaram e pisaram firme no chão da aldeia, dizeres cheios de dilemas, sortes e tristezas. Como sementes do universo foi
tem no vermelho, sangue dos guerreiros da Guanabara, e no verde das matas aqui que brotamos, em um chão profundo de mistérios e ensinamentos. Bai-
o ornamento do capacete dos guias. xei nesse canto do planeta em que cada casa tem um lugar para guardar o
A sabedoria transladada pelos povos africanos encruzou-se a dos mo- guerreiro e é com esse corpo que observo os rumos da vida e as batalhas de
radores da macaia carioca. Se um dos princípios da invenção do Novo Mundo nossa gente. É desse lugar também que forjo os sonhos e belezas que lançarei
é a guerra, a violência, a subordinação e o desvio, por aqui tiveram de inventar aos céus em explosão de cores e palavras de força quando virar o novo dia.
formas de esquiva e afronta. Assim, vamos diariamente aos campos de batalha O santo guerreiro não pode estar de fora dessa quizumba que vivemos. Afinal,
invocando um signo guerreiro que nos vista, seja trajado de mariô, de capa- só é popular porque sabe ouvir as contendas e demandas dos comuns. É ele,
cete de pena ou de capa vermelha. O que se deu por aqui é como a ginga dos imantando no altar de sangue, suor e músculos que guarda a minha proteção
vadios, a elegância dos malandros e o encanto das moças. O princípio é um e a minha única fragilidade, a própria vida.
estalo no vazio, o fim é pedra lançada às avessas no tempo.
O rito é a festa de estar vivo, sem miséria os moleques brincam,
lógica que confronta o desperdício provocado por um mundo desencantado
e monológico. Nos fuzuês se invocam a fartura e o avivamento em contra-
posição à escassez. É por isso que reinventamos nossos padroeiros, aqui eles
bebem e comem com a gente, dão o papo reto e nos convocam a responsa-
bilidade do agora.
O signo guerreiro que nos guarda ordenou que o dono da rua zele
pelas esquinas que iremos dobrar. O general de nossa banda, apadrinhou o
mestre encantado para não esquecermos que luta é como o balanço da canoa,
é preciso ter ginga. O capitão de nossa Nau guardou na proteção de sua fa-
lange as faixas de areia para ouvirmos o canto de Janaina, rompeu mato para
fincarmos as tendas de nossos velhos guerreiros e nos guardou o segredo do
mariô para que nossas casas estejam protegidas sob a graça de sua bandeira.
A sina dos batalhadores é manter os corpos aquecidos e as esperanças
acesas com a quentura de seus corações. Os campos de batalha ensinam que
mais do que conquistas ou derrotas há um sentido na vida que se tece nos
ciclos, nas transformações e trocas. Daí, que ser guerreiro não é algo que se faz
só, mas sim na companhia de um mar de gente, pois não existe glória que se
desfrute sozinho e a principal honra é viver. Não se confundam, mas quanto
mais manso o palavreado mais profundo é o conhecimento sobre as artes de

330 331
Alvorada ALMEIDA, M. R. Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010.

R eferências
Lá no morro, que beleza AMITRANO, Georgia; RANGEL, Marcelo de Mello; HADDOCK-LOBO, Rafael. Rosas e
pensamentos outros (Orgs.). Rio de Janeiro: Ed. Ape´ku. RJ, 2020.
Ninguém chora, não há tristeza
ANI, Marimba. Yurugu: an afrikan-centered critique of European cultural thought and behavior.
Ninguém sente dissabor Baltimore: Afrikan World Books, 2014.
O sol colorindo
ANI, Marimba. Yurugu: An African-Centered Critique of European Cultural Thought and
É tão lindo, é tão lindo Behavior. Trenton: África World Press, 1994. Disponível em: https://estahorareall.wordpress.
E a natureza sorrindo com/2015/08/07/dr-marimba-ani-yurugu-uma-critica-africano-centrada-do-pensamento-e-com-
portamento-cultural-europeu/
Tingindo, tingindo
ANI, Marimba. Let the Circle Be Unbroken: The Implications of African Spirituality in the Diaspo-
Você também me lembra a alvorada ra. New York : Nkonimfo Publications, 2004.
Quando chega iluminando ANI, Marimba. “Introdução”. In: FU KI.AU, K. Kia Bunseki; LUKONDO-WAMBA, A. M.
Meus caminhos tão sem vida Kindezi: a arte de cuidar de crianças. Trad. Mo Maiê. Disponível em: http://terreirodegriots.
blogspot.com/2017/09/kindezi-arte-kongo-de-cuidar-de.html
Mas o que me resta
ARAÚJO, Joel, & CARDOSO, Patrycia de Resende. “Alforria curricular através da Lei 10.639”.
É bem pouco, quase nada Revista Espaço Acadêmico, nº 30, nov. 2003.
Do que ir assim vagando
ARAUJO, Valdei L; RANGEL, Marcelo de Mello. “Teoria e história da historiografia: do giro
Numa estrada perdida linguístico ao giro ético-político”. In.: História da Historiografia. N. 17, p. 318-332, 2015.
ARISTÓTELES. Metafísica: livro 1 e livro 2; Ética a Nicômaco; Poética. Trad. de Vincenzo Cocco.
(Alvorada no morro, Carlos Cachaça/Cartola/Hermínio Bello de Carvalho) São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores).
ARNAUD, E. Os índios gaviões de Oeste: Pacificação e integração. Publicações Avulsas nº 28.
Belém, Museu Emilio Goeldi, 1975.
ARNAUD, E. O comportamento dos índios Gaviões de Oeste face à sociedade nacional. Vol. 1
De manhazinha quando eu vou descendo o morro Belém, Boletim do Museu Emilio Goeldi, 5-66, 1984.
A nega pensa que eu vou trabalhar ARNOLD, D. “Territorios animados: los ritos al Señor de los Animales como una base ética
De manhazinha quando eu vou descendo o morro para el desarrollo productivo en los Andes”. In: DOLLINGER, A. E. R; MENDOZA, H. T. G.
Símbolos, desarrollo y espiritualidades. El papel de las subjetividades en la transformación social. La
A nega pensa que eu vou trabalhar Paz: ISEAT, 2016.
Eu boto meu baralho no bolso
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Documentos do Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
meu cachecol no pescoço e vou pra Barão de Mauá Lisboa. Processos 2901, 9065, 18078, 14316. URL: https://digitarq.arquivos.pt/results?t=PRO-
Eu boto meu baralho no bolso CESSO+DE+ROSA+MARIA+EGIPC%C3%8DACA As transcrições de alguns documentos
desse processo encontram-se em P.S. Post Scriptum (CLUL (Ed.). 2014. P.S. Post Scriptum.
meu cachecol no pescoço e vou pra Barão de Mauá Arquivo Digital de Escrita Quotidiana em Portugal e Espanha na Época Moderna. [2014]. URL:
Trabalhar, trabalhar, trabalhar pra quê? http://ps.clul.ul.pt).

Se eu trabalhar eu vou morrer ARTAUD, Antonin. Pour em finir avec le jugement de dieu. In: Œuvres complètes, XIII. Paris:
Gallimard, 1974.
Trabalhar, trabalhar, trabalhar pra quê?
ASAD, T. “The concept of culture translation in british social anthropology”. In: CLIFFORD,
Se eu trabalhar eu vou morrer J.; MARCUS, G. Writing Culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of
California, 1992.
(Ponto da malandragem) ASANTE, Molefi K. Afrocentricidade. Trad. Ama Mizani. Rio de Janeiro: Afrocentricidade
Internacional, 2014.

332 333
ASANTE, Molefi K. “Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar” In: NASCIMENTO, Elisa bases da educação nacional. Brasília, 1996.
L.(Org.). Afrocentricidade - uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história/ Secretaria de
93-110.
Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1998.
ASANTE, Molefi K. Afrocentricity: The theory of Social Change. Illinois: African American Images, 2003.
BRITO, Cristina. “O puro e o híbrido: o jogo de alteridade na formação representacional da umbanda
ASANTE, Molefi; MAZAMA, Ama. Afrocentric infusion for urban schools: fundamental knowledge for branca”. In: Revista Calundu. Brasília, Volume 3, Número 1, jan-jun, 2017, p. 37-63.
teachers. Pennsylvania: ANKH, 2010.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia.
ASANTE, Molefi K. Revolutionary Pedagogy. Primer for teachers of black children. NY: Universal Write Tradução: Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
Publications, 2017.
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto. Tradução: Sérgio Lamarão e Arnal-
ASANTE, Molefi K. The history of Africa. 2ed. New York: Routledge, 2015. do M. da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
AUTORIA ANÔNIMA. Viagem ao Tocantins [1927]. 2ª. Ed. Belém: Editora Grafisa, 1983. CARDOSO, Lourenço. A branquitude acrítica revisitada e a branquidade. Revista da ABPN, Florianópolis,
v. 6, n. 13,p. 88-106, mar./jun. 2014.
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Tradução de Juvenal Hahne Júnior. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1968. CARNEIRO, Sueli Aparecida. A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese
(Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. 339p.
BACIGALUPO, A. M. Shamans of Foye tree: gender, power and healing among Chilean Mapuche. Austin:
Disponível em <https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-
Univ. of Texas Press, 2007.
-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf> Acesso 01 jun. 2019
BACIGALUPO, A. M. Thunder shaman: Making history with Mapuche spirits in Chile and Patagonia.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte, Letramento, 2018.
Austin: University of Texas Press, 2016.
CARNEIRO, Sueli. “Gênero, raça e ascenção social”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, Ano 3,
BANDIERI, S. Neuquén: grupos de poder, estrategias de acumulación y prácticas políticas. Anuario del IEHS,
Número 2, 1995.
n. 15, 2000.
CASTRO-GÓMEZ, S. (2005). “La Poscolonidad explicada a los niños”. Bogotá: Universidad Javeriana.
BARRETO, Lima. Vida Urbana: artigos e crônicas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956.
CHATTERJEE, P. (2004). “The Politics of the Governed: Reflections on Popular Politics in Most of the
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1956.
World”. New York: Columbia University Press.
BEBETO. Praia e Sol. Álbum: Batalha Maravilhosa. São Paulo: RCA Victor, 1981.
CLASTRES, Pierre. Sociedade contra o Estado. Tradução: Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
BITETI, Mariane. O mal-estar pedagógico e o desafio do Eros. Revista Ensaios Filosóficos, 18, (2018).
CLIFFORD, J. MARCUS, G. Writing Culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University
BITETI, Mariane; MORAES, Marcelo Derzi. “Vidas e Saberes periféricos como Potências Transgressora”. of California, 1986.
Tlalli. Revista de Investigación en Geografía / Universidad Nacional Autónoma de México, año 1, núm. 2
CLIFFORD, J. MARCUS, G. Introduction: Partial Truths. In: CLIFFORD, J. MARCUS, G. Writing
/ julio-diciembre de 2019 / pp. 79-96.
Culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California, 1986.
BITTENCOURT, C. M. F. “Ensino de história para populações indígenas”. Em Aberto, Brasília, v. 14,
CLIFFORD, J. MARCUS, G. “Notes on fieldnotes”. In: SANJEK, Roger (Ed.). Fieldnotes: The makings
n.63, p. 105-116, 1994.
of anthropology. Cornell University Press, 1990.
BITTENCOURT, C. M. F. “História das populações indígenas na escola: memórias e esquecimentos”.
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras. São Paulo: Escrituras Editora e Distri-
In: PEREIRA, Amilcar; MONTEIRO, Ana Maria. (Org.). Ensino de História e culturas afro-brasileiras e
buidora de Livros, 2002.
indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013, v. 1, p. 101-132.
COLLINS, John. A imaginação apocalíptica. Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo:
BOAHEN, Albert Adu (edit.) História geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935. –
Paulus, 2010.
2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010. 1040 p.
COLLINS, John. Apocalypse: The Morphology of a Genre, published in Semeia 14; Missoula, MT: Scholar’s
BORGES-ROSARIO, Fábio. A desconstrução do Ensino de filosofia e a legislação antirracista. Rio de Janei-
Press, 1979.
ro: Ed. Ape´ku. RJ, 2020.
CONCOME, Maria Helena Villas Boas e RESENDE, Eliane Garcia. “Entre passes, plantas e garrafadas:
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20
a busca da cura”. In: ISAIA, Artur Cesar e MANOEL, Ivan Aparecido (Orgs.). Espiritismo & religiões
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
afro-brasileiras: história e ciências sociais. São Paulo: Unesp, 2012, p. 203-219.
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras
providências. Brasília, 2003. COURSE, M. Becoming Mapuche: Person and ritual in indigenous Chile. Urbana: University of Illinois
Press, 2011.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e

334 335
CUNHA JR., Henrique. “Bairros negros: a forma urbana das populações negras no Brasil”. In. Revista Lessa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
ABPN. Caderno temático: raça negra e educação 30 anos depois: e agora, do que mais precisamos falar?
DERRIDA, Jacques. O outro cabo. Tradução Fernanda Barreto. Coimbra: A Mar Arte, 1995.
Vol. 11. Abril de 2019, 65-86.
DERRIDA, Jacques. “Signature événement contexte”. In: Marges de la philosophie. Paris, Editions de
CUNHA JR., Henrique. “Ntu”. In: Revista espaço acadêmico. n.108, maio 2010. Disponível em: http://
Minuit, 1972.
periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/9385/5601
DERRIDA, Jacques et ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã...: diálogo. Tradução André Teles.
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992.
DERRIDA, Jacques et VATTIMO, Giannini (Orgs.). A religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
CUNHA, O. M. G. da. “Reflexões sobre biopoder e pós-colonialismo: Relendo Fanon e Foucault”.
Mana, vol. 8, n. 1, 2002, pp. 149-163. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex- DÍAZ, N.; FUENTES. V. Explotación de Recursos Hidrocarburíferos: base de la economia neuquina. Terce-
t&pid=S0104-93132002000100006 (Acessado em 20 de outubro de 2019). ras Jornadas de Historia de la Patagonia. 2008.
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, DINREP. Informe Sectorial. Complejo Hidrocarburífero. Parte I: Petróleo. Provincia del Neuquén. Años
2010. 1991/2010. Serie 4. 2012.
DA MATTA, Roberto. & LARAIA, R. de B. Índios e castanheiros: a empresa extrativa e os índios no médio DIOGENES, L. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução: Mário da Gama.
Tocantins. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
DIOP, Cheikh Anta. A unidade cultural da África Negra. Luanda: Edições Mulemba, 2014.
DELEUZE, Gilles. “Platão e o simulacro”. In: Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas. São
DIOP, Cheikh Anta. Naciones negras y cultura. Barcelona: Edições Bellaterra, 2012.
Paulo: Perspectiva, 2011.
DIOP, Cheikh Anta. The african origin of civilization, myth or reality. Chicago: Lawrence Hill, 1974.
DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Les Éditions du Minuit, 1969.
DOMANSKA, Ewa. “El ‘viaraje performativo’ en la humanisticaatual”. Criterios, La Habana. N. 37, p.
DENIS, Léon. O espiritismo na arte. Trad. de Albertina Escudeiro Sêco. 2º edição. Rio de Janeiro: CELD,
125-142, 2011.
2014.
DUPUIS-DÉRI, Francis. Quem tem medo do povo? O debate entre Ágora-fobia Política e Ágora-filia
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. Tradução: Fábio Landa. Ed. Perspectiva, SP, 2013.
Política. Revista Estudos Libertários (REL), UFRJ, vol.1. Disponível em < https://revistas.ufrj.br/index.php/
DERRIDA, Jacques. “A diferença”. in: Margens da Filosofia. Tradução: Joaquim Torres Costa e António estudoslibertarios/article/view/24084/13884> Acesso em 22 mai. 2019.
M. Magalhães. São Paulo: PAPIRUS EDITORA, 1991a.
DUSSEL, Enrique. “1492: El Encubrimiento del Outro: Hacia el origen del ‘mito de la Modernidad’”.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz Marques Nizza, Pedro Leite Lopes La Paz: Plural Editores, 1994.
et Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2011b.
ESTAMIRA e Marcos PRADO. Estamira. São Paulo: N-1 Edições, 2013.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de fora: Editora UFJF, 2005.
DERRIDA, Jacques. “A mitologia branca: a metáfora do texto filosófico”. in: Margens da Filosofia. Tradu-
FANON, Frantz. Pele negras, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.
ção: Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. São Paulo: Papirus Editora, 1991b.
FARIAS, Julio Cesar. Pra tudo não se acabar na quarta-feira: a linguagem do samba-enredo. Rio de Janeiro:
DERRIDA, Jacques. A universidade sem condição. Tradução Evando Nascimento. São Paulo: Estação
Litteris Ed., 2002.
Liberdade, 2003.
FAUSTO, C. Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, n 14, v. 2, 2008.
DERRIDA, Jacques. “D’un ton apocalyptique adopté naguère em philosophie”. In: Les fins de l’homme.
A partir du travail de Jacques Derrida. Colloque de Cerisy. Paris: Galilée, 1981, p. 445-486. FAVARO, O. “Estado, politica y petroleo. La historia política neuquina y el rol del petróleo en el modelo
de provincia, 1958-1990”. 2001. 336 f. Tese (Doutorado em História)– Facultad de Humanidades y
DERRIDA, Jacques. Esporas: os estilos de Nietzsche. Tradução Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues.
Ciencias de la Educación, Universidad Nacional de La Plata, La Plata, 2001.
Rio de Janeiro: NAU, 2013.
FAVARO, O. “El ´modelo productivo´ de provincia y la politica neuquina”. In: FAVARO, O. (Org.)
DERRIDA, Jacques. Força da Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São
Sujetos sociales y políticas. Historia reciente de la Norpatagonia Argentina. Buenos Aires: La Colmena/
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
CEHEPYC. 2005.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo:
FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 1, 2005[1990].
Perspectivas, 2011.
FRANCHETTO, B. Pesquisas Indígenas na Universidade. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2010.
DERRIDA, Jacques. Morada. Tradução Silvina Rodrigues Lopes. [S.l.]: Vendaval, 2004.
FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA. Primeiro Congresso de Espiritismo de Umbanda. Rio de
DERRIDA, Jacques. O cartão postal: de Sócrates a Freud e além. Tradução Simone Perelson e Ana Valéria

336 337
Janeiro: Federação Espírita de Umbanda, 1942. Graal, 2011.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo, 1972. FOUCAULT, Michel. “Sobre a justiça popular. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução
de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011b..
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática. Ensaios 34,
1978. FRANÇA, Bianca Zacarias e SILVA, Fernanda Cristina de Oliveira. “Noite da libertação: visibilidades, co-
munhão e aprendizagens em uma festa afro-brasileira”. In: Revista Calundu. Brasília, Volume 3, Número
FERRAZ, Iara. Os Parkatêjê das matas do Tocantins: a epopéia de um líder Timbira. Disponível: [http://
2, 2019, p. 80-100.
etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Aferraz-1984/ferraz_1984_parakateje.pdf].
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000.
FERRAZ, Iara. De ‘Gaviões’ a ‘Comunidade Parkatêjê’: uma reflexão sobre processos de reorganização social.
Rio de Janeiro, RJ, (Tese de Doutorado) 1998. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FERRETTI, M. Desceu na guma: o caboclo no Tambor de Mina. São Luís: EDUFMA, 1996. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. A formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. São Paulo: Global, 2003.
FLAUZINA, A. L. P. “As fronteiras raciais do genocídio”. Direito – UnB, Brasília, vol. 01, n.º 01, pp.
119-146, jan./jun. 2014. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/article/ FU-KIAU, Kia Bunseki. A visão bântu kôngo da sacralidade do mundo natural. Trad. Valdina O. Pinto.
view/24625 (Acessado em 18 de outubro de 2019). Disponível em: https://estahorareall.files.wordpress.com/2015/07/dr-bunseki-fu-kiau-a-visc3a3o-bantu-
-kongo-da-sacralidade-do-mundo-natural.pdf
FLAUZINA, A. L. P.; PIRES, T. (2018) “Apresentação – Vozes do Cárcere: entre encruzilhadas da justiça
e os caminhos da resistência política”. In: PIRES, T.; FREITAS, F. (Org.). “Vozes do Cárcere: Ecos da FU-KIAU, Kia Bunseki. Kindezi: The Kongo art of babysitting. Baltimore: Inprint Editions, 2000.
Resistência Política”. Rio de Janeiro: Kitabu.
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Trad. Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito, Porto
FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. “Aproximações brasileiras às filosofias africanas: caminhos Alegre: LM&P, 2019.
desde uma ontologia ubuntu”. In: Prometeus. Ano 9, nº 21, edição especial, dezembro, 2016.
GÓES, C. M. de. “Análises de poder em disputa: Foucault e a virada pós-estruturalista nos Subaltern
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. Studies”. Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, vol. 22, n. 2,
2015, pp. 222-246. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/101364 (Acessado em
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma
17 de outubro de 2019).
Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GOLDMAN, Marcio. “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976)”. Tradução de
política em Ilhéus”, Bahia. Revista de Antropologia, v. 46, n. 2, p. 445-476, 2003.
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GOMES, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. 14ª ed. Curitiba, PR: Criar Edições, 2008.
FOUCAULT, Michel. “Eugène Sue que j’aime [1978]”. In: FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits III. Paris:
Gallimard, 1994. GONZALEZ, Lélia. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janei-
ro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988.
FOUCAULT, Michel. Entrevistas. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. São Paulo:
Graal, 2006. GONZALEZ. Lélia. Primavera para rosas negras. São Paulo: Diáspora Africana UCPA, 2018.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Revista Ciências Sociais Hoje. [s.l.]:
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009. Anpocs, 1984.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução: Maria Thereza da Costa GOULET, J. A.; MILLER, B. G. Introduction. In: GOULET, J. A.; MILLER, B. G. Extraordinary
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. Anthropology: transformations in the field. Lincoln: University of Nebraska, 2007.
FOUCAULT, Michel. “La vie des hommes infames”. “Cahiers du Chemin”, n. 29, jan. 1977. GREBE, M. E. “El subsistema de los ngen en la religiosidad mapuche”. Revista Chilena de Antropología,
n. 12, 1993. p. 45-64.
FOUCAULT, Michel. “Le sujet et le pouvoir [1982]”. In: FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits IV. Paris:
Gallimard, 1994b. GROSFOGEL, R. (2018). “Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda
ocidentalizada”. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGEL, R.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad.: Roberto machado. Rio de janeiro: 4ª Ed. Paz e Terra,
(Org.). “Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico”. Belo Horizonte: Autêntica Editora.
2016.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente. O tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979)”. Tradução de
Unesp, 2015.
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janei-
FOUCAULT, Michel. “Os intelectuais e o poder – Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze”.
ro: Contraponto/PUC-Rio, 2010.
In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições

338 339
HADDOCK-LOBO, Rafael “O filósofo diante dos espectros”. Palestra apresentada no “I Encontro de JAEGER, Werner. Paidéia: A formação do homem grego. Tradução: de Artur M. Parreira. 3ª.ed. São Paulo:
Filosofia e História/ UFOP” em setembro de 2019. No prelo para publicação, 2019a. Martins Fontes, 1995.
HADDOCK-LOBO, Rafael. “Por que Filosofia popular brasileira?” In.: HH Magazine: humanidades JAMES, George G.M. Stolen Legacy. Stolen Legacy: Greek Philosophy is Stolen Egyptian Philosophy. Ore-
em rede. 22 de janeiro de 2020. Disponível em: https://hhmagazine.com.br/por-que-filosofia-popular- gon. Allegro Editions, 1954.
-brasileira/. Último acesso em: 02/02/2020.
KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos: filosofia espiritualista. Trad. de José Herculano Pires. 8º edição. São
HADDOCK-LOBO, Rafael. “Por uma filosofia das matas”. HH Magazine: humanidades em rede. Paulo: LAKE, 2007.
12/06/2019b. Disponível em: http://hhmagazine.com.br/809-2/. Último acesso em: 05/02/2020.
KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Trad. de Salvador Gentile. 86º edição. Araras, SP: IDE, 2008a.
HADDOCK-LOBO, Rafael. Os fantasmas da colônia: notas de desconstrução e filosofia popular brasileira.
KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. de Salvador Gentile. 28º edição. Araras, SP: IDE, 2008b.
Rio de Janeiro: Ed. Ape´ku. RJ, 2020.
KARENGA, Maulana. “A função e o futuro dos Estudos Africana: reflexões críticas sobre sua missão,
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira
seu significado e sua metodologia”. NASCIMENTO, Elisa. L. (Org.) Afrocentricidade: uma abordagem
Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. In: G. W. F. Hegel.
KASHINDI, Jean Bosco. “Ubuntu como crítica descolonial aos Direitos Humanos: uma visão cruzada
Werke 12. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, I970. https://digitarq.arquivos.pt/results?t=PROCES-
contra o racismo”. In: Ensaios filosóficos. V. XIX, julho, 2019.
SO+DE+ROSA+MARIA+EGIPC%C3%8DACA
KASHINDI, Jean Bosco. “Ubuntu como ética africana, humanista e inclusiva”. In: Cadernos IHU ideias.
HEIDEGGER, Martin. “O Que é Isto – a Filosofia”. In Os pensadores. Tradução Ernildo Stein. São Paulo:
Ano 15, nº 254, v. 15, 2017.
Nova Abril, 1999.
KASHINDI, Jean Bosco. “Ubuntu, uma perspectiva para superar o racismo (Entrevista concedida a João
HOLANDA, J. (Org.) Fracking e exploração de recursos não convencionais no Brasil: riscos e ameaças.
Vitor Santos)”. In: Revista do Instituto de Humanitas Unisinos. Tradução Suzana Rocca. Edição 486, maio,
Rio de Janeiro: IBASE, 2017. 99 p.IANNI, Octávio. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro, 1966.
2016.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir. São Paulo, Martins Fontes, 2017.
KI-Zerbo, Joseph. Para quando África? Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
INDEC. Censo nacional de población, hogares y viviendas 2010: censo del Bicentenario: resultados de-
KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. Queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Com-
finitivos. Serie B nº 2. 1ª ed. Buenos Aires: Instituto Nacional de Estadística Y Censos – INDEC. 2012.
panhia das Letras, 2019.
378 p.
KOSELLECK, Reinhart. “Posfácio”. In.: Sonhos do Terceiro Reich. Com o que sonhavam os alemães
INDEC. Censo nacional de población, hogares y viviendas 2010. Censo del Bicentenario. Pueblos Origi-
depois da ascensão de Hitler. São Paulo: Trêsestrelas, 2017, p. 163-182.
narios. Buenos Aires: INDEC. 2015
KOSELLECK, Reinhart. “Terror e sonho – Anotações metodológicas para as experiências do tempo no
INE. Síntesis de Resultados Censo Chile 2012. Disponível em: http://www.iab.cl/wp-content/themes/
Terceiro Reich”. In.: Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
IAB/download.php?archivo=11803%7Cresumencenso_2012.pdf Acesso em 28.08.2015. 2012.
Contraponto, PUC-Rio, 2006.
INGOLD, T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London:
KRENAK, Ailton. Ailton Krenak. Lisboa: Oca editorial, 2019.
Routledge, 2000. 465 p.
KRENAK, Ailton. “Antes, o mundo não existia”. In.: NOVAES, Adauto. Tempo e História. São Paulo:
INGOLD, T. Anthropology is not ethnography. In: Being Alive: essays on movement, knowledge and
Companhia das Letras, 1992, p. 201-204.
description. London: Routledge, 2011. p. 229-243.
KRENAK, Ailton. Ideais para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2019.
ISAIA, Artur Cesar. “A república e a teleologia histórica do espiritismo”. In: ISAIA, Artur Cesar e MA-
NOEL, Ivan Aparecido (Orgs.). Espiritismo & religiões afro-brasileiras: história e ciências sociais. São Paulo: LEGG, S. “Para além da província europeia: Foucault e o pós-colonialismo”. Espaço e Cultura – UERJ,
Unesp, 2012, p. 103-117. Rio de Janeiro, n. 34, jul./dez. 2013, pp. 259-289. Tradução de Daniel Dutra. Disponível em: https://
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/article/view/12985 (Acessado em 20 de outubro de
IUORNO, G. La historia política en Neuquén. Poder y familias libanesas. Neuquén: CEHEPYC, 2000.
2019).
18 p.
LACLAU, Ernesto. Emancipação e diferença. Coordenação e revisão técnica: Alice C. Lopes e Elizabeth
JACOMO, J. C. P. Os hidrocarbonetos não convencionais: uma análise da exploração do gás de folhelho
Macedo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.
na Argentina à luz da experiência norte-americana. 2014. 145 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento
Energético) – Instituto Alberto Luiz de Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, Universida- LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34,
de Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1994.
JACKSON, John G. Introduction to African Civilizations. Nova York: Citadel Press, 2001. LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru: EDUSC, 2002.

340 341
LAZZARI, A.; LENTON, D. Araucanization and nation, or how to inscribe foreign indians upon the Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 32, n. 94, jun. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/
Pampas during the last century. In: BRIONES, C.; LANATA, J. L. Contemporary perspectives on the scielo.php?pid=S0102-69092017000200507&script=sci_abstract&tlng=pt (Acessado em 18 de outubro
native peoples of Pampa, Patagonia and Tierra del Fuego: living on the edge. Westport: Bergin & Garvey, de 2019).
2002.
MIGUENS, Fernanda Siqueira. A sociedade sagrada das polacas:uma tradução da palavra de Deus pelas
LEVENE, Nancy. “Ethics and Interpretation, or How to Study Spinoza’s Tractatus Theologico-Politicus donas de casa / prostitutas. Rio de Janeiro: Editora Ape’Ku, 2020.
without Strauss”. In: The Journal of Jewish Thought and Philosophy 10 (2000), p. 57-110.
MONTEIRO, John M. “A Dança dos Números: a população indígena do Brasil desde 1500”. Tempo e
LIBRANDI-ROCHA, Marília. “A Carta Guarani Kaiowá e o direito a uma literatura com terra e das Presença, Rio de Janeiro RJ, n.271, p. 17-18, 1994.
gentes”. In.: estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 44, p. 165-191, jul./dez. 2014.
MONTEIRO, John M. “O desafio da história indígena no Brasil”. In: LOPES DA SILVA, Aracy; GRU-
LIBRANDI-ROCHA, Marília. “Escutar a escrita: por uma teoria literária ameríndia”. O eixo e a roda, v. PIONI, Luís Donisete Benzi (Orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de
21, p. 179-202 n. 2, 2012. 1º. e 2º. graus. Brasília: MEC/ Mari/ Unesco, 1995. p. 221-28.
LIMEIRA, Jose Carlos. Insônias. Disponível em <http://leituraspretas.blogspot.com/2014/11/jose-carlos- MONTEIRO, John M. História Indígena: Recuperando o Passado, Olhando para o Futuro. Temporaes, São
-limeira-paginas-negras.html> Acesso 10 jun. 2019. Paulo, v. 2, n.4, 1993.
LOPES, Nei. Novo dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2012. MORAES, Marcelo Derzi. “Becos, ruas, marquises e esquinas”. In: BORGES-ROSARIO, Fabio;
MAJEFE, A. The ideology of tribalism. The Journal of Modern African Studies, v. 9, n. 2, p. 253- 261, MORAES, Marcelo José Derzi; HADDOCK-LOBO, Rafael. Encruzilhadas filosóficas. Rio de Janeiro:
1971. Editora Ape’Ku, 2020.
MATTOS, H.; ABREU, M. “Subsídios para uma leitura crítica dos PCNs e das Diretrizes Curriculares MORAES, Marcelo José Derzi e NEGRIS, Adriano “Escrituras da cidade: ordem e desordem a partir de
Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e Derrida”. In: SOLIS, Dirce Eleonora e MORAES, Marcelo José Derzi. Políticas da cidade. Porto Alegre:
africanas”. In: José Marcio Barros...[et al.]. (Org.). Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. UFRGS, 2016.
Belo Horizonte: PUC Minas Virtual, 2006, v. 1, p. 49-59.
MORAES, Marcelo José Derzi. “A filosofia ubuntu e o quilombo: a ancestralidade como questão filosófi-
MATTOS, H.; ABREU, M. “Em torno das Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações ca”. In: Revista África e Africanidades. Ano XII, nº 32, novembro, 2019b.
étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana: uma conversa com historiado-
MORAES, Marcelo José Derzi. “Filosofia, ética e política de origem africana egípcia”. In: Voluntas: revista
res”. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), v. 21, p. 5-20, 2008.
internacional de filosofia. Santa Maria, v. 10, setembro, 2019.
MAZAMA, Ama. “A afrocentricidade como um novo paradigma”. In: NASCIMENTO, Elisa L.(Org.).
MORAES, Viviane. (Aza Njeri). Canto em Lira quebrada: uma leitura da poética de Guita Jr.. Maputo:
Afrocentricidade - uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 111-128.
Editora Alcance: 2015.
MAZAMA, Ama. Fundamentos Africanos: inserção do currículo afrocêntrico. Filadelphia: Afrocentricity
MORAES, Viviane. (Aza Njeri). “Canto em Lira quebrada: uma leitura da poética de Guita Jr.” Disserta-
Internacional, 2013.
ção de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. 112 f.
M’BOKOLO, Elikia. O impacto da tráfico de escravos na África. 1998. Disponível em: https://mondedi-
MORAES, Viviane. (Aza Njeri) “Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geo-
plo.com/1998/04/02.africa
poética de Rui Knopfli”. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
MBEMBE, Achile. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 Edições, 2015. 250 f.
2018a.
MORAES, Wallace de. Governados por quem? Diferentes plutocracias nas histórias políticas de Brasil e Vene-
MBEMBE, Achile. “Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte”. Tradução zuela. Curitiba: Editora Prismas, 2018.
de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018b.
MOORE, Carlos. Racismo & sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte:
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata Nandyala, 2012.
Santini. São Paulo: n-1 edições, 2019.
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2005.
MEINTEL, D. When the Extraordinary hits home: experiencing Spiritualism. In: GOULET, J. A.; MIL-
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
LER, B. G. Introduction. Extraordinary Anthropology: transformations in the field. Lincoln: University
of Nebraska, 2007. p. 124-157. MUNDURUKU, Daniel. Hoje eu acordei beija-flor. 03 de março de 2015,
MENDONÇA, Deodoro Machado. Pelo Tocantins Paraense: uma viagem a Marabá. Belém: Officinas http://danielmunduruku.blogspot.com/2015/03/hoje-acordei-beija-flor.html
Graphicas do Instituto Lauro Sodré, 1927. In: [www.fcp.pa.gov.br. Acessado: 26/02/2020].
MURAD, Maurício. “Práticas de violência e mortes de torcedores no futebol brasileiro”. Revista USP, São
MIGNOLO, W. D. “Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade”. Tradução de Marco Oliveira. Paulo, n. 99, p. 139-152, SETEMBRO/OUTUBRO/NOVEMBRO 2013.

342 343
NARAHARA, K. L. Em território mapuche: petroleiras, conhecimento e newen em Puel Mapu (Argen- NJERI, Aza. “Educação afrocêntrica como via de luta antirracista e sobrevivência na maafa”. Revista
tina). 2018. 321 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas)– Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 31: mai.-out./2019, p. 4-17.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.
NJERI, Aza; SISI, Ayana; AZIZA, Dandara. “Psicologia africana como ferramenta de mudança social”.
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro. O processo de um racismo mascarado. Rio de In: Congresso Alfepsi. Rio de Janeiro: Alfepsi, 2018.
Janeiro: Paz e terra, 1978.
NJERI, Aza; RIBEIRO, Katiúscia. “Mulherismo africana: práticas na diáspora brasileira”. In: Currículo
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2017. sem Fronteiras. v. 19. n. 2, p. 595-608, maio/ago. 2019.
NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. NJERI, Aza. Canal no Youtube: www.youtube.com/azanjeri
NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. São Paulo: Editora Perspectiva, Rio de Janeiro: Ipeafro, NJERI, Aza. Canal osh1: https://www.youtube.com/channel/UCBGq91OdtiP0Ue9p3VWX1ag
2019.
NOBLES. Wade. “Sakhu Sheti: retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado”. In:
NASCIMENTO, Abdias. “Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da po- NASCIMENTO, E. L. (Org.) Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo
pulação afro-brasileira”. In: NASCIMENTO, Elisa L.(Org.). Afrocentricidade - uma abordagem epistemoló- Negro, 2009.
gica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 197-218.
NOGUEIRA, Guilherme Dantas e NOGUEIRA, Nilo Sérgio. “Seu Canjira deixa a gira girar: a Cabula
NASCIMENTO, Alexandre. “Ubuntu como fundamento”. In: Ujima – revista de estudos culturais afro- capixaba e seus vestígios em Minas Gerais”. In: Revista Calundu. Brasília, Volume 1, número 2, 2017, p.
-brasileiros. Nº XX, ano XX, 2014. 71-90.
NASCIMENTO, Evando. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. NOGUERA, Renato et BARRETO, Marcos. “Infancialização, ubuntu e teko porã: elementos gerais para
educação e ética afroperspectivista”. In: Childhood £ philosophy. Rio de Janeiro, v. 14, nº 31, setembro-de-
NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual. Diáspora Africana. Editora Filhos da África, 2018.
zembro, 2018.
NASCIMENTO, Elisa. L.; GÁ, L.C.(Org.) Adinkra: sabedoria em símbolos africanos. Rio de Janeiro:
NOGUERA, Renato. “Afrocentricidade e educação: os princípios gerais para um currículo afrocentrado”.
Pallas 2009.
In: Revista África e africanidades. v. 3. n.11. nov 2010. Disponível em: http://www.africaeafricanidades.
NASCIMENTO, Elisa. L. (Org.) Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: com.br/documentos/01112010_02.pdf .
Selo Negro, 2009.
NOGUERA, Renato. “Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectivis-
NASCIMENTO, Elisa. L. A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008. ta”. In: Revista da ABPN. v.3. n.6. p. 147-150, nov./fev., 2011-2012.
NEGUINHO DA BEIJA-FLOR. O campeão. Top Tape, 1979. NOGUERA, Renato. “Infantilização, ubuntu e teko porã: elementos gerais para educação e ética
afroperspectivistas”. Childhood & Philosophy, Rio de Janeiro, v. 14, n. 31, set.-dez. 2018, pp. 625-644.
NETO, João Cabral de Melo. Morte e Vida Severina: e outros poemas. Ed. Objetiva, RJ, 2009.
Disponível em<https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/childhood/article/view/36200/26377>
NETO, João Cabral de Melo. Poesia completa. Organizador. SECCHIN, Antonio. C. Ed. Nova Aguilar, Acesso em 30 jun.2019.
RJ. 2008
NOGUERA, Renato. O Ensino de Filosofia e a Lei 10639. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas: Biblioteca Nacio-
NEVES, Ciani Sueli das. “E a Jurema se abriu toda em flor: práticas e discursos para efetivação de direitos nal, 2014.
humanos na Jurema do Ilé Asé Orisalá Talabé”. In: Revista Calundu. Brasília, Volume 3, Número 2, 2019,
NOGUERA, Renato. “A ética da serenidade: o caminho da barca e a medida da balança na filosofia de
p. 34-57.
Amenemope”. Ensaios Filosóficos Volume VIII, 2013, p. 139-155.
NGOENHA, Severino Elias. Filosofia africana das independências às liberdades. Maputo. Edições Paulistas
NUNES, Benedito. João Cabral: a máquina do poema. Organizador Adalberto Müller. Ed.
– África, 1993.
OBENGA, Théophile. Ancient Egypt and Black Africa. Chicago, IL: Karnak House, 1992.
NGOENHA, Severino Elias. Os tempos da filosofia: filosofia e democracia moçambicana. Maputo. Imprensa
Universitária, 2004. OBENGA, Théophile. “Egypt: Ancient History of African Philosophy” In: WIREDU, Kwasi. A compa-
nion to African Philosophy. Oxford: Blackwell Publishing, 2004, p. 31-49.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução Mario
Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. OBENGA, Théophile. La philosophie africaine de la période pharaonique (2780-330 a. C.), Paris: L’Har-
mattan, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre a educação. Tradução Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de
Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2012. ODHPI. Informe de situación de los Derechos Humanos del Pueblo Mapuce en la Provincia del Neu-
quén. Neuquén: ODHPI, 2008. 89 p.
NIMUENDAJU, Curt. The Eastern Timbira, Berkley/Los Angeles, University of California Press. Univer-
sity of California Publications in American archeology and ethnology, vol. XLI, Kroeber, A. L., Gifford, E. OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente.
W. & Olson, R. L., (eds.). 1946. Curitiba: Gráfica e Editora Popular, 2006.

344 345
OLIVEIRA, Eduardo. A ancestralidade na Encruzilhada. Curitiba: Gráfica e Editora Popular, 2007a. to histórico, a democracia e a experiência de felicidade”. ARTEFILOSOFIA, Nº25, dezembro de 2018,
P. 52-67.
OLIVEIRA, Eduardo. Filosofia da Ancestralidade como filosofia Africana: Educação e Cultura Afro-Brasilei-
ra. Curitiba: Gráfica e Editora Popular, 2012a. RANGEL, Marcelo de Mello. “The urgency of the ethical: the ethical-political turn in the theory of
history and in the history of historiography”. PONTA DE LANÇA (UFS), v. 13, p. 27-46, 2019.
ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL PARA LAS MIGRACIONES. Migración, prostituición y
trata de mujeres dominicanas em la argentina. Buenos Aires: OIM: Oficina Regional para el Cono Sur, REIMER, Ivoni Richter. Vida de mulheres: na sociedade e na Igreja. São Paulo: Paulinas 1995.
2003. 113 p.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
OYEWÙMÍ, Oyèrónké. “Conceituando gênero”. In: Pensamento Preto. Vol. III. São Paulo: Editora
RIBEIRO, Katiúscia. “Kemet,escolas e Arcádeas: A importância da Filosofia Africana no combate ao ra-
Filhos da África, 2019.
cismo epistêmico e a Lei 10.639/0”. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Centro Federal de Educação
OYEWÙMÍ, Oyèrónké. The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Tecnologico Suckow da Fonseca, 2017.
Minneapolis; London: University of Minnesota Press, 1997.
RIBEIRO, Márcia Moraes. Exorcitas e demônios: demonologia e exorcismos no mundo luso-brasileiro. Rio
PEREIRA, Júnia Sales. “Reconhecendo ou construindo uma polaridade étnico-identitária? Desafios do de Janeiro: Campus, 2003.
ensino de história no imediato contexto pós-Lei no 10.639”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 21,
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite. A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras,
nº 41, janeiro-junho de 2008, p. 21-43.
2019.
PEREIRA, Júnia Sales; ROZA, Luciano Magela. “O ensino de história entre o dever de memória e o
RIBEIRO JÚNIOR, Ribamar. Akrãtikatêjê: Dominação e Resistência na luta por seu território. Dissertação
direito à história”. Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 89-110 – 2012.
de mestrado PDTSA, 2014. Disponível [https://pdtsa.unifesspa.edu.br/images/Ribamarfinal.pdf].
PINHEIRO, André de Oliveira. “Revista Espiritual de Umbanda: representações, mito fundador e diver-
RICOEUR, Paul. “The Critique of Religion”. In: REAGAN, Charles; STEWART, David (Ed.). The Phi-
sidade do campo umbandista”. In: ISAIA, Artur Cesar e MANOEL, Ivan Aparecido (Orgs.). Espiritismo
losophy of Paul Ricoeur. Boston: Beacon Press, 1978 (apud LEVENE, Nancy. “Ethics and Interpretation,
& religiões afro-brasileiras: história e ciências sociais. São Paulo: Unesp, 2012, p. 221-256.
or How to Study Spinoza’s Tractatus Theologico-Politicus Without Strauss”. In: The Journal of Jewish
PIZA DUARTE, E.; QUEIROZ, M. V. L.; COSTA, P. A. “A hipótese colonial, um diálogo com Michel Thought and Philosophy, Leiden, v. 10, p. 57-110, 2000, n. 12).
Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal”. Uni-
RODRIGUES, Carla. Coreografias do feminino. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009.
versitas Jus, vol. 27, n. 2, pp. 1-31, 2016. Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/
jus/article/view/4196 (Acessado em 21 de outubro de 2019). RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
PLATÃO. Fédon. In: Coleção Os Pensadores. Trad. de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 3º edição. São SAID, Edward. “Michel Foucault, 1927–1984”. Raritan, vol. 4, n. 2, 1984, pp. 1–11.
Paulo: Abril S.A. Cultural, 1983.
SANTOS, Boaventura de Souza et MENESES, Maria Paula. Epistemologias dos sul. Coimbra: Almedina,
POTIGUARA, Eliane. “Pankararu”, in: POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade mascara. Lorena: 2009.
DM, 2018.
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do “ser negro”: um percurso das ideias que naturalizaram a
PRADO, Marcos. Jardim Gramacho. Rio de Janeiro: Argumento, 2004. inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp, Rio de Janeiro: Pallas, 2002, 176p.
PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual. São Paulo, n-1, 2017. SANTOS, Leandro Assis. A questão da convivência sob a ótica das tonalidades afetivas. 2020. No prelo.
QUIJANO, A. “Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina”. In: QUIJANO, A. A colo- SANTOS, Luane Bento. “Para além da estética: uma abordagem etnomatemática para a cultura de tran-
nialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, çar cabelos nos grupos afro-brasileiros”. Dissertação. Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorra-
2005. ciais/CEFETRJ, 2013.
QUIJANO, A. “Colonialidade do poder e classificação social”. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. SANTOS, Mario José dos. Os pré-socráticos. Juiz de Fora: UFJF, 2001.
(Org.). “Epistemologias do Sul”. São Paulo: Cortez, 2010.
SARAIVA, Luiz Augusto Ferreira. “De Vodum a Cabloco: trajetória de Legbá no terreiro de tambor de
RAMOSE, Mogobe. “A importância vital do “nós” (Entrevista concedida a Moisés Sbardelotto)”. In: Mina e Terecô”. In: Revista Calundu. Brasília, Volume 1, Número 1, 2017, p. 7-20.
Revista do Instituto de Humanitas Unisinos. Tradução Luís Marcos Sander. Edição 353, dezembro, 2010.
SARTRE, Jean-Paul. Sartre no Brasil: a conferência de Araraquara; filosofia marxista e ideologia existencia-
RAMOSE, Mogobe B. “A ética do ubuntu”. Tradução para uso didático de: RAMOSE, Mogobe B. The lista. Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Unesp, 1986.
ethics of ubuntu. In: COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy Reader.
SCANDIZZO, H. Un fetiche llamado Vaca Muerta. Fractura Expuesta, n. 3, 2014. p. 4-8.
New York: Routledge, 2002, p. 324-330, por Éder Carvalho Wen Disponível em: https://filosofia-africa-
na.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/mo gobe_b._ramose_-_a_%C3%A9tica_do_ubuntu.pdf SCHUMAHER, Schuma & VITAL BRAZIL, Érico (org.). Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a
atualidade. Biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
RANGEL, Marcelo de Mello. “Temporalidade e Felicidade hoje: uma relação possível entre o pensamen-

346 347
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia SOMÉ, Sobonfu. O Espírito da intimidade. São Paulo: Odysseus, 2003.
das Letras, 2015.
SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre relacionamentos (trad.
SECCHINI, A. João Cabral: uma fala só lâmina. Ed. Cosac Naify, SP, 2014. Deborah Weinberg). São Paulo: Odysseus Editora, 2007.
SECRETARÍA DE ENERGÍA DE LA REPÚBLICA ARGENTINA. Balance Energetico 2014. 2015. SOUZA, José Cavalcante de (Selecionador). Os pré-socráticos. Tradução José Cavalcante de Souza (et al.).
Rev A. Disponível em: <http://www.energia.gov.ar/contenidos/verpagina.php?idpagina=3366> Acesso em São Paulo: Nova Cultural, 2000.
2 de agosto de 2015.
SPAULDING, Rachel. “Covert Afro-Catholic agency in the mystical visions of early modern Brazil’s
SECRETARÍA DE ENERGÍA DE LA REPÚBLICA ARGENTINA. Reportes de Producción. 2017. Rosa Maria Egipçíaca”. In: Women’s Negotiations and Textual Agency in Latin America, 1500-1799. Ed.
Disponível em: <https://www.se.gob.ar/datosupstream/consulta_avanzada/reporte.php>. Acesso em 7 de por Mónica Díaz, Rocío Quispe-Agnoli. London & New York: Routledge, 2017, p. 38-61.
set. de 2017.
SPIVAK, Gayatri C. “Can the Subaltern Speak?” In: D. Brydon (ed.) “Postcolonialism: Critical Concepts
SÉRGIO, LUIZ (Espírito). O mundo que eu encontrei. Psicografado por Alayde de Assunção e Silva. 11º in Literary and Cultural Studies”. London: Routledge, 2000.
edição. Editora Recanto, 1990.
STOLLER, P. The taste of ethnographic things: the senses in Anthropology. Philadelphia: University of
SÉRTIMA, Ivan Van. They came before Colombus. The African presence in Ancient America. Nova York: Pennsylvania, 1989.
Random House, 1976.
SZULC, A. La niñez Mapuche: sentidos de pertenencia en tensión. Buenos Aires: Biblos, 2015. 209 p.
SILVA, A. Costa e. A enxada e a lança. São Paulo: Edusp, 1992.
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. trad. Tuca
SILVA, A. Costa e. Imagens da África. São Paulo: Penguin; Cia das Letras, 2012. Magalhães. - São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011.
SILVA, Giovani José da. “História indígena, Antropologia e Historiografia: perspectivas e desafios aos TOBÓN, M. Los sueños como instrumentos etnográficos. Revista de Antropología Iberoamericana, v.
ofícios do historiador em fronteiras disciplinares”. Fronteiras & Debates, v. 1, p. 117-139, 2014. 10, n. 3, 2015. p. 332-353.
SILVA, Giovani José da. “O desafio da História Indígena (e de seu ensino) no Brasil”. Coluna da. TÔNKYRÉ, Akrãtikatêjê. Diálogo informal registrado por Ronnielle de Azevedo-Lopes em 12 de Julho de
Associação Brasileira de Ensino de História. In.: HH Magazine: humanidades em rede. Publicado em 2016.
31/01/2019.Disponível em: https://hhmagazine.com.br/o-desafio-da-historia-indigena-e-de-seu-ensino-
TÔNKYRÉ, Akrãtikatêjê. Diálogo registrado por Ronnielle de Azevedo-Lopes em 09 de Agosto de 2019b.
-no-brasil/
TÔNKYRÉ, Akrãtikatêjê. Entrevista concedida a Ronnielle de Azevedo-Lopes em 09 de Agosto de 2018a.
SILVA, Wallace Lopes (Org.). Sambo logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba. Rio de
Janeiro: Hexis: Fundação Biblioteca Nacional, 2015. TÔNKYRÉ, Akrãtikatêjê. Entrevista concedida a William Bruno S. Araujo em 05 de Maio de 2017.
SIMAS, Luiz Antonio e CUNHA, Diogo. Princípio do infinito: um perfil de Luiz Carlos da Vila. Rio de TÔNKYRÉ, Akrãtikatêjê. In Reunião sobre o Projeto Político Pedagógico da Escola. Aldeia Akrãtikatêjê. Fala
Janeiro: Numa, 2018. registrada em áudio por Ribamar Ribeiro Júnior em 17 de Maio de 2018b.
SIMAS, Luiz Antonio e MUSSA, Alberto. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização TÔNKYRÉ, Akrãtikatêjê. Roda de Conversa registrada por Ronnielle de Azevedo-Lopes em 25 de Junho de
Brasileira, 2010. 2019a.
SIMAS, Luiz Antonio. “A perversidade do bem”. Extraído do site: http://luizantoniosimas.blogspot.com/, TOPRAWERE, Kupepramre Valdenilson. In Roda de Conversa registrada por Ronnielle de Azevedo-Lo-
(último acesso: 10/04/2020). pes em 25 de Junho de 2019.
SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. TRINDADE, Azoilda Loretto. Valores afro-brasileiros na educação. 2008. Disponível em: http://www.
diversidadeducainfantil.org.br/PDF/Valores%20civilizat%C3%B3rios%20afrobrasileiros%20na%20
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
educa%C3%A7%C3%A3o%20infantil%20-%20Azoilda%20Trindade.pdf
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: A ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro:
TRINDADE, Azoilda Loretto. “Valores civilizatórios afro-brasileiros e educação infantil: uma contribui-
Mórula, 2018.
ção afro-brasileira”. In: BRANDÃO, Ana P.; TRINDADE, Azoilda L.. Modos de brincar: caderno de
SIQUEIRA, Felipe Ribeiro. “Bezerra da Silva, A máquina de Guerra do Samba. Do que é feito samba? atividades, saberes e fazeres. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2010.
Provocações na travessia do pensamento tectônico”. In: Sambo, logo, penso: afroperspectivas filosóficas para
TROUILLOT, M. Anthropology as Metaphor: The Savage’s Legacy and the Postmodern World. Review,
pensar o samba. Wallace Lopes Silva (org.), 1. ed. Rio de Janeiro: Hexis: Fundação Biblioteca Nacional,
v. 14, n. 1, p. 29-54, 1991.
2015, p. 127-138.
UMWELTSCHUTZ DE ARGENTINA. Evaluación del daño cultural/ambiental por la actividad pe-
SLAVERY VOYAGES. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/
trolera em la región Loma la Lata/Neuquén. Território Paynemil y Kaxipayiñ – Comunidades Mapuche.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2002. 2001. 180 p.

348 349
UNICEF. Atlas sociolingüístico de pueblos indígenas en América Latina. Cochabamba, 2009. Adriano Negris é Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do

os autores
U. S. ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION. Shale gas and tight oil are commercially Rio de Janeiro - UERJ. Pós-doutorando pelo PPGIL-UFOP. Membro
produced in just four countries. 2015. Disponível em: https://www.eia.gov/todayinenergy/detail.
php?id=19991. Acesso em: 04 de maio de 2020.
do projeto de extensão: Ressonâncias descoloniais em Filosofia e Edu-
VALENTIM, Marco Antonio. Amazona vittata: Notas sobre cosmopolítica e xenocídio. In Direito & Práxis,
cação. Membro do projeto de pesquisa: Por uma  filosofia da Educação
revista. 2018. descolonial.
VERISSIMO, Francisco. Por uma Ética Severina. Rio de Janeiro: Ed. Ape´ku. RJ, 2020. Alberto Pucheu é Poeta e professor de Teoria Literária da Faculdade
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São de Letras da UFRJ. É bolsista de produtividade do CNPq e Cientista
Paulo: Cosac &Naify, 2002.

S obre
do Nosso Estado pela FAPERJ. Como poeta, publicou, entre muitos
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. Elementos para uma antropologia pós-estruturais.
São Paulo: Ubu, 2009a. outros,  mais cotidiano que o cotidiano,  Para que poetas em tempos de
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002. terrorismos? e Poemas para serem lidos nas posses de presidentes; como en-
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectival anthropology and the method of controlled equivoca- saísta, publicou, entre muitos outros, Giorgio Agamben: poesia, filosofia,
tion. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, v. 2, n. 1, p. 3-22, crítica, apoesia contemporânea e Que porra é essa - poesia?
2004.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena. In:
Ana Emília Lobato é Graduada em História pela UFPA, mestra em
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. História Social pela USP e em Filosofia pela UFRJ. Atualmente cursa o
2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2011[1996]. p. 347-399.
doutorado em Filosofia na UFRJ e é membro do Laboratório Filosofias
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Prefácio – O recado da mata”. In.: Queda do céu. Palavras de um do Tempo do Agora e do Laboratório X de Encruzilhadas Filosóficas.
xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “The gift and the given: Threenano-essays on kinship and magic”. Aza Njeri (Viviane Moraes) é Doutora em Literaturas Africanas/UFRJ,
BAMFORD, Sandra; LEACH, James (Ed.). Kinship and beyond: the genealogical model reconsidered. pós doutora em Filosofia Africana/UFRJ, professora/UGB-NI, pesqui-
New York: Berghahn Books, 2009b, p.237-268.
sadora de África, Afodiáspora e Mulherismo Africana, coordenadora do
WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac & Naify, 2010[1975].
Núcleo de Filosofia Política do Laboratório Geru Maa/UFRJ, integran-
WALLERSTEIN, E. “Capitalismo histórico y movimientos antisistémicos: un análisis de sistemas-mun-
do”. AKAL, Barcelona, 2004. te do premiado Segunda Black, multiartista, crítica teatral e literária,
WELSH-ASANTE, Kariamu. The African Aesthetics: Keeper of the Traditions. Londres: Praeger, 1994.
mãe e youtuber (youtube.com/azanjeri)
WILLETT, Frank. Arte africana. Trad. Tiago Novaes. São Paulo: Edições Sesc São Paulo; Imprensa Oficial Carlos Henrique Veloso (Olùkọ́ Bàbá Ọ̀nà), nascido no terreiro,
do Estado de São Paulo, 2017.
criado aqui e ali, formado em línguas da rua, sou o vazio, prenhe de
WOODSON, Carter G. A deseducação do negro. Trad. Kwame A. N. Atunda. São Paulo: Medu Neter possibilidades. Também doutor em bioética, ética aplicada e saúde co-
Livros, 2018.
letiva, mestre em filosofia, graduado e licenciado em filosofia, aprendiz
de feiticeiro e pesquisador da cultura e da língua yorubá. 
Claudio Medeiros é carioca, natural de Vicente de Carvalho, cresceu
em Campo Grande e em muitos lugares. Mora em Campos dos Goyta-
cazes desde a quarentena. Luta boxe, tem um cachorro e trabalha com
ensino de filosofia. Sente saudades.
Diego dos Dantos Reis é Pós-Doutorando na Faculdade de Educação

350 351
da Universidade de São Paulo. Doutor e Mestre em Filosofia pelo Programa Francisco Veríssimo é Mestre e Doutor em Filosofia pela UERJ, com estudo
de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. que procura demonstrar a importância do pensamento de João Cabral de
Licenciado em Filosofia pela mesma instituição. É filho de santo do Ilé Àṣẹ Melo Neto (especificamente em Morte e vida Severina) para o desenvolvi-
Omiójùaró. mento, em consonância com os pressupostos filosóficos de Gilles Deleuze,
Fabiano Lemos é Doutor em Filosofia. Professor da graduação e da pós-gra- de uma outra perspectiva Ética. É membro do grupo de pesquisa «Derrida e
duação em filosofia da UERJ, nas áreas de filosofia política e estética. De- aproximações» (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e do Laboratório
senvolve trabalho acerca das tradições românticas alemãs, da epistemologia X de Encruzilhadas Filosóficas. É poeta e autor do livro Por uma ética severina
política foucaultiana e, mais recentemente, da história política da filosofia no (Rio de Janeiro: Editora Ape’Ku, 2020).
Brasil, com ênfase no jesuitismo, a respeito dos quais publicou vários artigos. Karine L. Narahara é Doutora em Sociologia e Antropologia pela UFRJ.
É autor de Soldados e Centauros (Mauad, 2016) e O ofício da origem (Kotter, Coordenadora do Núcleo de Estudos Ameríndios do Laboratório Geru Maã
2018). de Africologia e Filosofia Ameríndia da UFRJ. Pesquisadora colaboradora da
Fábio Borges-Rosario é Doutorando em Filosofia na UFRJ. Mestre em Fi- Universidad Nacional del Comahue (Argentina). Analista Ambiental do IBA-
losofia e Ensino. Professor de filosofia na Seeduc-RJ. Pesquisador no Instituto MA.
Maria e João Aleixo (IMJA). Pesquisador do Laboratório de Licenciatura e Katiúscia Ribeiro Pontes é É graduada em Filosofia pela UFRJ e mestre
Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia (LLPFIL) e no grupo Grupo de pesquisa em Filosofia e Ensino pelo programa de Pós-graduação de Filosofia e Ensino
e extensão Ressonâncias descoloniais em filosofia e educação da Faculdade de do CEFET-RJ. Atualmente é Doutoranda em Filosofia no PPGF-UFRJ com
Formação de Professores (FFP) na UERJ. Pesquisador no Laboratório X de pesquisa sobre Filosofia Kemética É Coordenadora Geral do Laboratório de
encruzilhadas filosóficas na UFRJ. Pesquisador no Grupo de pesquisa Mídias Africologia e Estudos Amerindios (Geru Maã – IFCS/UFRJ).
e repertórios culturais na construção de identidades etnorraciais no CEFET- Lorena Silva Oliveira é Doutoranda em Filosofia pelo Programa de Pós-
-RJ. Pesquisador no Grupo de pesquisa Culturas e Decolonialidades do IFRJ -Graduação em Filosofia/UFRJ.  Pesquisadora Associada ao Núcleo de Es-
campus São Gonçalo. Pesquisador no Grupo de Pesquisa Grupo de pesquisa tudos Afro-brasileiros – NEAB/UFU e ao  Laboratório  X de Encruzilhadas
Arquitetura, Derrida e aproximações na UFRGS. Filosóficas. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Felipe Ribeiro Siqueira, conhecido como Felipe Filósofo, é mestre e doutor Tecnológico (CNPQ). Email: professoralorenaoliveira@gmail.com  
em Filosofia pela UERJ, professor de Filosofia e compositor de samba. Lucas Munduruku é estudante de filosofia da UFRJ e pesquisador de povos
Fernanda Siqueira Miguens é Tradutora. Doutora em Filosofia pela UFRJ originários e suas filosofias no núcleo de estudos ameríndios do laboratório
com tese sobre a tradução dos dogmas judaicos do leste-europeu para a rea- Geru Mâa; artesão e escritor indígena de origem Munduruku do baixo tapa-
lidade carioca, no século XIX, pelas mulheres judias apelidadas de polacas. jós; ativista na resistência da Aldeia Marakanà, que é ponto de referência cul-
Mestra em Filosofia pela UFRJ, com dissertação sobre algumas das traduções/ tural e de apoio aos povos indígenas no Rio de Janeiro, acolhendo indígenas
versões do que chamamos de “filosofia oriental” para o Ocidente. A tradução em trânsito pela cidade ou que nela moram.
de Corpos em aliança e a política das ruas - notas sobre uma teoria performativa Luciana Pimenta é Doutora em Direito, pela PUC Minas; Mestre em Filoso-
da assembleia, da filósofa Judith Butler, é um dos seus trabalhos mais recentes. fia Social e Política, pela UFMG; Professora de Filosofia do Direito e Herme-
Atualmente, se dedica ao estudo e outras traduções de obras da mesma autora nêutica e Argumentação Jurídica, no curso de Direito da PUC Minas; Coor-

352 353
denadora do Projeto Direito e Literatura, na PUC Minas e Líder do Grupo Naiara Paula Eugenio é escritora, editora, bacharel e licenciada em Filosofia,
de Pesquisa Direito e Literatura: um olhar para as questões humanas e sociais mestra em Crítica e História da Arte, doutoranda em Filosofia bolsista CA-
a partir da Literatura (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6833527945435589). PES-UERJ, formada em artes pela EAV-Parque Lage, professora orientadora
Luiz Antonio Simas é carioca, botafoguense, filho de pai catarinense e mãe de pesquisa LLPEFIL-UERJ e Laboratório Geru Maa-UFRJ. Endereço de
pernambucana. Trabalha como professor de História e faz pesquisas sobre cul- email: naiarapaula.e@gmail.com
turas populares do Brasil. É autor, entre outros, do “Almanaque Brasilidades” Rafael Haddock-Lobo é Professor do Departamento de Filosofia da UFRJ,
(Bazar do Tempo, 2018), de “Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias do PPGBIOS (UFRJ) e do PPGFIL (UERJ). Coordena o Laboratório X de
e terreiros” (Mórula, 2013), de “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da Encruzilhadas Filosóficas (CNPq/UFRJ), o Seminário Encruzilhadas e a Co-
várzea” (Mórula, 2017), do “Dicionário da História Social do Samba” (Civi- leção X na Editora Ape’Ku. É autor de Da existência ao infinito: ensaios sobre
lização Brasileira, 2015), em parceria com Nei Lopes, de “O corpo encantado Emmanuel Lévinas (Loyola/PUC-Rio, 2005), Derrida e o labirinto de inscri-
das ruas” (Civilização Brasileira, 2019) e de “Fogo no mato: a ciência encanta- ções (Zouk, 2009), Para um pensamento úmido – a filosofia a partir de Jacques
da das macumbas” (Mórula, 2018) e «Flecha no tempo» (Mórula, 2019), estes Derrida (NAU/PUC-Rio, 2011), Experiências abissais ou sobre as condições de
dois últimos com Luiz Rufino.  (im)possibilidade do real (Via Verita, 2019) e Os fantasmas da colônia: notas
Luiz Rufino é carioca, filho de pai e mãe cearenses, pedagogo, doutor em de desconstrução e filosofia popular brasileira (Ape’Ku, 2020). Foi fundador,
Educação pela UERJ, pós-doutorado em Relações étnico-raciais, aprendiz de coordenador e hoje é membro do GT Alteridade e Desconstrução da ANPOF.
capoeira e curimba. É professor e autor de “Histórias e Saberes de Jongueiros” Contato: outramente@yahoo.com
(Multifoco, 2014), «Pedagogia das encruzilhadas» (Mórula, 2019) e dos livros Ronnielle de Azevedo-Lopes é Professor de Filosofia no Campus Rural de Ma-
“Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas” (Mórula, 2018) e “Fle- rabá-PA – do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará. Dou-
cha no Tempo” (Mórula, 2019) em parceria com o historiador Luiz Antonio torando em Educação na UERJ, possui graduação em Filosofia pela PUC-GO,
Simas). Nasceu no Estácio e se criou no subúrbio do Lins e de Madureira, Especialização em Educação Ambiental pela UFPA e Mestrado em Filosofia
devoto de São Jorge e Cosme e Damião. Batizado na igreja, no terreiro e na pela PUC-SP. Trabalhou na Educação Básica na Rede Pública Estadual do Pará
roda admira a inocência dos malandros e dos otários e não confia naqueles que com um projeto vinculando Filosofia e a Educação Prisional em Marabá-PA.
não sabem dobrar uma esquina. Sérgio Ortiz de Inhaúma é nascido e criado na  Vilarrua  Acorizal, em
Marcelo José Derzi Moraes é Doutor em Filosofia e Professor do depar- Inhaúma, Império Barroco-Macumbeiro, Çubúrbio do Rio de Janeiro. Tor-
tamento de educação da FFP/UERJ. Coordenador do projeto de extensão: ce pelo Mengão, Mangueira e Império Serrano. É autor de  Zona da Mata
Ressonâncias descoloniais em Filosofia e Educação e do projeto de pesquisa: Eletrônica (Editora RBX, 2011), A Guerra de Plástico (Editora Oito e Meio,
Por uma uma filosofia da Educação descolonial. 2015),  Dioilson  (Editora CLAE, 2017) e  Jaína-máquina Divino  (Editora
Marcos Paulo Nascimento é Poeta, publicou «O filho estrangeiro» (Multi- CLAE, 2019). É professor da rede estadual do Rio de Janeiro.
foco, 2018); «A margem oeste da pista» (LUG, 2019). Historiador e no mo- Sandra Benites Guarani Nhandewa tem experiência de docência em escola
mento graduando de Ciências Sociais pela Fundação Getulio Vargas (FGV/ indígena guarani, com séries iniciais entre os anos de 2004 a 2012. Entre os
CPDOC). Desenvolve pesquisas no campo da cultura popular e sobre o mo- anos de 2010 a 2013, em Aracruz, ES, na Associação Indígena Guarani e
vimento de ocupação nos subúrbios e periferias da cidade do Rio de Janeiro. Tupinikin - AITG, fez parte do grupo de mulheres indígenas representando

354 355
sua aldeia (Aldeia Boa Esperança). Cursou a UFSC (Universidade Federal de Este livro foi finalizado em 13 de maio de 2020, data em que

final
Santa Catarina), no Departamento de História, Centro de Filosofia e Ciências nada se tem a celebrar.
Humanas em Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica.
Atualmente é Coordenadora Pedagógica de Educação Indígena, prestando as- Precisamos, contudo, trazer à memória que em 13 de maio de

N ota
sessoria à Secretaria de Educação do Município de Maricá, RJ. Presta atendi- 1833, na Freguesia de Carrancas, nas Minas Geras, ocorria a primeira
mento às Aldeias Guarani Tekoa Mboy ty (São José de Imbassaí) e Céu Azul de uma série de levantes, como se seguiriam a Revolta dos Malês (em
(Itaipuaçu). Faz parte do Instituto dos Saberes dos Povos Originários-Aldeia Salvador, Bahia, no dia 24 de janeiro de 1835) e a revolta de Manuel
Jacutinga, onde junto com um grupo de várias etnias faz palestras e trabalhos Congo (Vassouras, Rio de Janeiro, em 6 de setembro de 1838).
com alunos de vários níveis da educação básica. Foi pesquisadora bolsista de A Revolta das Carrancas, como ficou conhecida, marca, então,
2010 a 2015 pelo OEEI (Observatório da Educação Escolar Indígena), cuja um momento decisivo na História do Brasil, momento este que se pre-
área de atuação têm sido o processo de ensino-aprendizagem da criança gua- tendeu apagar através da farsa encenada pela Princesa Isabel 55 anos
rani nas escolas diferenciadas e na comunidade guarani. Desde 2010 é pesqui- depois e que, por isso, pelo teatro feito para literalmente inglês ver,
sadora da UFMG/FAE (Universidade Federal de Minas Gerais / Faculdade de precisa hoje e sempre ser lembrado.
Educação). É mestra em Antropologia Social no Museu Nacional da UFRJ, Como memória da Revolta das Carrancas e como denúncia da
onde atualmente cursa o doutorado. pantomima imperial para des-negrir com sua tinta branca este dia de
Teresa Dantas é o outro nome da escritora, roteirista e jornalista Suelen Car- luta de diferentes povos sequestrados de sua terra, como que para nos
valho. Nascida em 1982, em Castanhal do Pará, é autora do romance O pas- lembrar que a abolição nunca aconteceu e que a luta é ainda tão neces-
sado é lugar estrangeiro, publicado em 2017, pela Editora Patuá. Mora, atual- sária quanto nos séculos passados, como vemos nas favelas, nas perife-
mente, no Rio de Janeiro, onde é mestranda no Programa de Pós Graduação rias, nos elevadores de serviço, nas portas dos fundos e nos quartos de
em Filosofia da UFRJ. empregada, os pretos e as pretas velhas entoam seus pontos, para nos
assombrar com a dura realidade, com um assombro que deveria ser
Thamara de Oliveira Rodrigues é Professora da Universidade do Estado de cotidiano.
Minas Gerais (UEMG). Doutora em História pela Universidade Federal de Isso fica patente nos pontos cantados desses remanescentes dos
Ouro Preto, com estágio doutoral no Departamento de Literatura Compara- calundus que, festejados também nesse dia de luta, denunciam a violên-
da da Universidade de Stanford. Desenvolve pesquisas em Teoria da História, cia policial contra pretos e pobres que, antes ou depois da assinada mas
História da Historiografia e História do Brasil. Também trabalha com  His- não assegurada abolição da escravidão, são cantadas por Pai Joaquim
tórias, Culturas e Epistemologias Populares. Editora executiva do portal HH de Angola.
Magazine: humanidades em rede. 
Ulysses Pinheiro é Doutor em Filosofia pela UFRJ, Professor do Depar- No dia treze de maio tava tocando meu tambor
tamento de Filosofia da UFRJ e do Programas de Pós-Graduação Lógica e Pai Joaquim estava dançando quando a polícia chegou
Metafísica (PPGLM/UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia Entra preto, branco não entra, se entrar pau vai levar
(PPGFIL/UERJ). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. É autor Esse nêgo é meu, vem cá! Esse nêgo é meu, vem cá!”
do livro Descartes e o ódio à escrita (Kotter). Suas áreas de atuação são História
da Filosofia Moderna, Política e Estética. No dia treze de maio, no dia da abolição, a polícia entre na festa

356 357
dos pretos para resgatar um escravo fugido. Isso foi antes da assinatura da lei?
Foi isso que provocou a Revolta das Carrancas? Isso aconteceu esse ano em Quem pede às almas
algum canavial? Pai Joaquim estava, ontem, em seu barraco em alguma favela as almas dá
carioca? Só sabemos que esse problema é a razão de nossa luta, política e epis- filho de pemba é que não sabe aproveitar
temológica, dentro e fora dos muros da academia, onde os capitães do mato Quem pede às almas
ainda querem agrilhoar saberes e cunhar a ferro pessoas. as almas dá
Contra tais capatazes da universalidade se dirige, hoje, nossa luta, nes- filho de pemba é que não sabe aproveitar
sas linhas de mandinga e de batalha (como ensinam Simas e Rufino) para que
a filosofia venha a se tornar um lugar de resistência. (Clementina de Jesus, Fui pedir às almas santas)
Essa é, para nós, a tarefa do filósofo hoje: firmarmos um terreno no
qual tantas outras vozes possam ser ouvidas, outras histórias possam ser con-
tadas e outras experiências possam ser vividas, pois, ao contrário do que conta
nossa história oficial, “O preto velho é um nego feiticeiro. Se não fosse o preto
velho, não acabava o cativeiro”.

Por fim, depois de cruzos e giras, descolônias e saudações aos ances-


trais, gostaríamos de invocar a voz de Clementina de Jesus1, fechando nossa
gira e abrindo para tantas outras:

Eu andava perambulando
sem ter nada pra comer,
Fui pedir às almas santas
para vir me socorrer

Foi as almas que me ajudou


Foi as almas que me ajudou
Meu divino espírito santo
Louvo a Deus Nosso Senhor

Foi as almas que me ajudou


Foi as almas que me ajudou
Meu divino espírito santo
Louvo a Deus Nosso Senhor
1 Disponível em: https://www.letras.mus.br/clementina-de-jesus/1554399/

358 359
360

Você também pode gostar