Você está na página 1de 109

PEDACOS DA FOME

~ ay

7
RAN Sais
: CAROLINA MARIA BE JESUS

EDITGRA AQUILA LTDA.


S30 Paulo. Brasil
— 1963 —
Capa e ilustracgées de Jodo K. Suzuki

Direitos desta edigéo reservados a Editéra “Aquila” Ltda.


Rua Dom José de Barros, 301 — 1.4 sobreloja — Conj. 105
S40 Paulo — Brasil
ALGUNS TRECHOS DA OPINIAO
Copyrights reserved to the Editéra “Aquila” Ltda. INTERNACIONAL
Rua Dom José de Barros, 301 — ist entresol — ensemble 105
Sao Paulo — Brazil
“Agora temos visic de mundo da pequena burguesia, dos in-
telectuais e da grande burguesia através os sihos observadores
e realistas de quem vele de uma favela”.
JORGE AMADO

OBRAS DA AUTORA “4 sexualidade e a vida mundana nas favelas sio abordadas


pela escritora, que se via constantemente em presenca da
FOME e, apesar de queixar-se das suas precarias condicées de
Publicadas:
vida, nunca tinha pena de si, ndo desistia de melhorar a si e
QUARTO DE DESPEJO aos outros”.
CASA DE ALVENARIA Editorial da E. P. DUTTON & CO — New York

A publicar: tdo pro-


“ nfo se cousegue nem mesmo saborear o pitoresco,
DR. SILVIO funda é a miséria humana gue éle revela”,
REMINISCENCIAS
Do critico francés ROGER. GRENIER, por
ocasiio da edicgio franeésa “Le Dépotoir”

“Yivendo cereada por téda sorte de imoralidade, Carolina


ainda acredita no amanhd e sonka com a felicidade”.

Professor NOBUG HAMAGUCHI,


Printed in the United States of Brazil
prefaciador da edigio japonésa
Impresso nos Estados Unidos do Brasil
7
a
6 Estou
certo de que, na luta pela emancipacio econémica da linguisticas felizes e, principalmente, com uma quantidade de
nossa Patria, contaremos com seu entusiasmo e solidariedade”. comparagies exatas e por vézes hilariantes”.

LEONEL BRIZOLA De JOHANES GEROLD, da edicao alemai


“Tagebuch der Armut”

“...em uma negra de baixa condigie social nés esperariamas


de encontrar, pelo menos, aquéle estado de sineretismo misto “Para nés, porém, Carolina é a prova abalizada sébre o sacri-
de catolicismo e magia africana; entretanto, nada disto en- ficio des trabalhadores na. sociedade, que os condena 4 mais
contramos. Carolina nao fala de Xangé, macumba, eandombié. pobres existéncia. E a demonstragio da inumanidade do mun-
Neste sevogao vai direta aos livros, 4 palavra eserita e falada. do eapitalista e sua moral de lobo. EK o caminho que de passo
8 ido, Carolina compartilha do ideal da maioria da em passo cresce para chegar até o consciente ato revoluciondrio”.
humanidade mais humilde e sofredora. Como o colono eubano,
© negro do Congo, o camponés indiano, Carolina tem fé naquilo
De ZDENEK HAMPEISZ
que constitui a superioridade dos povos brancos sébre os demais editorial da Nakladatelstvi politické literatury
povos, ou seja, a Cultura.
“Carolina Maria De Jesus es negra. Y también esta orguliosa
de serlo. Ama su piel negra. Y sus cabellos crespos y duros.
Por eso nos dice que el dia de la Abolicién es um dia especial-
A chave do sucesso de Carolina esta ainda, mais uma vez, mente simpdtico para ella. Pero su nueva tarea es luchar
naquilo que chamamos 0 seu ideal de cultura.
E evidente que, contra la esclavitud actual —: el HAMBRE”,
para Carolina, escrever 6 tio importante
e sagrado como rezar,
Ela é uma alma religiosa, mas da religido do nossa tempo, isto BEATRIZ BROIDE DE SAROVALER,
é, da religigo da cultura”, edicioe argentina.

Da edicado italiana, ALBERTO MORAVIA


“Eu nao trago uma reportagem, mas uma revolucis.”

“« Carolina
tg € um produto AUDALIO DANTAS
de seu tempo e profundamente cénscia
da epoca € do meio em que vive. Ela fala da sociedade con-
temporanea e do impacto a sua volta. Nao tenta ser artista.
“O jornal “Sosial demokraatti* (Finlandia) — a jornalista Eva
S6 € simplesmente sincera’.
Vastari, em seu artigo — “Kurjuuden suur ihettilas” (Grande
DAVID SAINT CLAIR Embaixatriz da Miséria) que julga Carolina “uma pérola preta
que o Brasil criou do seu sofrimento” diz: “Na minha primeira
conversa com ela foram varios os aspectos de interésse, e como
_“E a linguagem simples de uma mulher que apenas aprendeu aconteceu com todo mundo naquela época, entre éles éste: foi
a ler e a eserever. Transparece, aqui e acold4, uma relagio mais ou n4g foi ela mesma quem escreveu o livre? Acho que nesta
estética para com o idioma, mas a linguagem cotidiana predo- altura ja nao ha mais ninguém com dividas a respeito, porque
mina... com 0 correr dos tempos muita gente tem tide a oportunidade
Carolina alegra o leitor com uma série de criacgées

. 9
ge falar com Carolina, o que serve para dissipar as suspeitas.
de
Se é verdade que alge que Carclina escreveu o faz depois
ser estimulada por outros, também é verdade que a expressio
literdria nata, ela a tem em abundancia e que cada frase sua
foi ela mesma quem esereveu / / Ela é uma artista, espelho
da vida que viveu, da sociedade em que nasceu, das pessoas
com quem conviveu. Carolina, como expresso espontanea do
Brasil, representa a realidade de uma grande parte de seu povo,
queiram ou n&o queiram aceita-la.”
EVA VASTARI

APRESENTACGAO
“As expressGes de Carolina Maria de Jesus retratam uma des-
ericdo social Gnica no seu estilo, fascinante na sua frangueza,
sua humanidade nua, seu patético e sua honestidade. E um
Vocé sabe o que poderia acontecer a uma pessoa rica, que
livro que conta algo essencial sébre as condigdes de vida dos
_. perdesse tudo da noite para o dia e se visse obrigada a morar
homens.”
Editoriaii da Tidens Férlag — Siockhelm, Suécia na favela? Ndo? Pois bem. Carolina Maria de Jesus, com
“Pedacos da Fome”, the dard a surpreendente resposta. Sem
artificios ou tecnismos, usando apenas o bisturi da sua
“Com sémente 2 anos de Escola Primaria, Carolina nie esereveu instituicdo literdria, projeta um talho profundo e vertical na
uma obra prima da literatura, perém seu estilo é direto e
carnadura do panorama social da nossa terra, déle extraindo
fascinante. Ela tem & sua disposicio surpreendente filosofia a figura mimada e singela da romantica Maria Clara que arre-
de vida.” batada pelos impulsos de seu jovem coracdo, resolve, entéo,
acompanhar, iludida, o falso doutor — rapaz atilado e auda-
Editorial da Van Leghum Slateras — Arnhem, Holand
cioso de nome Paulo -—- vindo com éle conhecer a capital.
Aqui, padece idda sorte de privacdes fisicas e vexames morais,
esmagada por uma sociedade decadente, de alma metalizada,
que se nutre de valores fdtuos, acalentando o adordvel sonho
de construir um lar decente e feliz. E uma historia pungente,
dolorosa, narrada com a simplicidade de quem nasceu assina-
lado pela vocacdo de escrever. Seus episddios poderiam ser
vividos por qualquer criatura em qualquer lugar: onde had o
homem haverd histérias; onde houver historias haverd Marias
Claras, Paulos, Coronéis. Sendo “Pedacos da Fome” uma obra
de pura criacdo imaginativa, ndo deiza de trazer, todavia,
aquele sabor de depoimento sem o que jamais teria o seme-
lhante interésse social. Ao oferecermos éste livro aos leitores
que sabem apreciar as mensagens do mais acendrado contetido
humano, pela oportunidade que thes propicia vislumbrar um

10 11
um queije déste tamanho, O casal que viver aqui na terra
ainda que nédo traga @
mundo novo e de novas dimensGes, sem arrufos, hd de parti-lo no céu”. Dentro da sua rudeza
e fulguranie da estilistica machadiana, e da fé,
moldura portentosa primitiva, Curolina carrega as virtudes da bondade
exigiv el pelos esteta s da literatura, a esperan¢a nos
nem o apuro de lingu agem sofre com resignacéo sem nunca perder
mais ndo seja, € uma auténtica
“Pedacos da Fome”, quando fatores vdlidos da humana. Desta
espécie feita, lancando
incom ensur dveis prodi gios da alma
afirmacdo reveladora dos mdo dos recursos faz veemente
da ficedo, critica aos nossos
rar pequeninos acon-
humana. O mistér de escrever, de regist costumes, observa, austero Coronel,
através do co comportamen-
a autora é algo téo vital, tdo
tecimentos cotidianos, para to do homem publico, a vida angustiada do homem eo
trdgico
vinculado &@ sua condi¢ée de ente
intimo, tdo organicamente realismo dos novos tempos. E diz, com a mdxima naturalidade
ato j& se transformou, em seu tempera-
pensante, que éste pela boca dos seus personagens: “Se Jesus voltar ao mundo
numa segunda natureza.
mento irriguieto e inconformado, ha de ficar horrorizado. Porisso é que éle ndo vem’. “Peda¢os
vereda , um camin ho dspero
Neste sentide, a sua vida é uma da Fome”’ vale por uma radiografia franca, direta e corajosa
todo éle ilumi nado por uma obstanta
e pedregoso, sem divid a, mas
de uma instituicdo cheia de possibilidades e que, néo
supremo esforco para elevur-se superando
luta heréica, num o seu progresso material, ndo oferece a necessdria seguranga
destus perspectivas é que devemos
a si propria, No ambito e tranquilidade para que os homens sintam-se irmdos dentro
da personalidade de Carolina e
visualizar €sse novo dngulo de uma sé e grande familia. A “romancista das favelas” com-
rentes. Poderidmos aduzir, em
tédas as implicacées dat decor preende que “um governo deve construir escolas, casas, colé-
deira de papel’ , no momento lavradores”.
verdade, que a escritora “cata gios, dar trabalho ao povo, destinar terra para
be a singul ar imagem da heroina o seu povo bem
em que escrev e é€ conce Sabe também que “a grandeza de um pats é
eza e abneg acdo — é violen-
Maria Clara, — simbolo de fraqu nutrido”. Nota que “Um govérno tem o dever de fiscalizar os
ftriae inrreprimivel de um deleit
tamente arrastada pela precos dos géneros de primeira necessidade’, Verifica entre-
os mais elevados paramos da
espiritual, atingindo destarte tanto melanecdlicamente que nuda disso acontece. A autora de-
, néo se estiol a e nem se desca rna
emocdo criadora. Eniretanto pois de revelar a Sdo Paulo, ao Brasil e ao Mundo que a “miséria
num mero € ocasional diletantismo. Carolina Maria
confinada material produz a niséria moral”, na arguta andlise de Zdenek
consciente ou néo, participando da luta e da vida
de Jesus, Hampejz, e que @ chaga exposta a purulenta do marginglismo
ao futuro. Este seu novo
de seu tempo, liga-se estreitamente no seio das cidades modernas é o fruto da mais desapiedada
é uma peca propriamente
livro néo é uma obra de arte, ndo injustica, com ésse seu novo trabalho, “Pedacos da Fome”,
tenha sido isso uma das suas
literéria, talvez tdopouco aponta-nos, num plano subjetivo e metafisico, as fraquezas,
e “Peda cos da Fome”. Mesmo e a falta
preocupacées quand o escrev as mistificacdes, os vicios, as ambigGes desmedidas
dois anos incompletos de bancos escolares,
porque, com seus de esptrito patridtico dos nossos homens, bem como os respon-
escrever sendo com @ alma e coracao
néo Ihe seria permitido sdveis por grande parte dessa atmosfera pesada e asfixiante
e de ealor humanos. Carolina conserva
trdnsidos de emocio em.que nos debatemos. O leiter hd de surpreender-se ao passar
dos seus didrios: sua palavra
a@ mesma forma de escrever os olhos por estas pdginas timidas de lagrimas, ao ouvir saltar,
avelm ente clara’. O enrédo 6
continua “tOsca , mas admir aqui e ali, o grito surdo, impotente, patético mesmo de Carolina
é despido dos monumentos
ingénuo, leve, correntio e o estilo Maria Jesus, como a voz clamante do deserto, sofrendo por
de
“Pedacos da Fome” tem ésse s6pro
da retorica, Ainda assim, milthares de séres andnimos, cruelmente agredidos e apedre-
verossimilhanca. E arrancado do
de vida, traz lampéjo de jados pelos-“Pedaeos da Fome”’. Neste livro, o fantasma cin~
que foi feita a humanidade. Livro duro,
mesmo barro de zento da Fome toma a sinistra configuracdo de permanente
quadros de muita ternura e@
cortante, ndo deiza de trazer ameaca, prestes a dizimar as esquecidas populagées dos campos
coloca nos lébios trémulos de Maria
poesia quando a autora e dos grandes centros urbanos. Dai o aspecto dramdtica da
esta: “ouvi dizer que ld no céu tem
Clara observagées como
13
12
indagacdo tocante de Maria Clara: Onde vou encontrar um
senhorio que me aceite com as criancas? seis filhos hoje em
dia € como se fésse mil quilos de chumbo”. Em sintese, com
essa obra, a estranha criadora dos sombrios didrios “Quarto
de Despejo” e “Casa de Alvenaria”, levanta a cortina didfana
da hipocrisia, atrds da qual uma minoria indiferente e distante
dos problemas humanos se locupleta a@ custa da fome e da
miséria generalizadas, expondo a quantos insistam em defen-
der o atual estado de coisas, ndo reconhecendo a hora funesta
gue atravessamos, em que a brutal realidade dos fendmenos
sociais lanca um apocalitico desafio ds consciéncias dos
homens de responsabilidades. Que éste livro, antes de encarnar O tépo de uma colina, donde se avistava téda
os andtemas de uma terrivel e derradeira acusacdo, lhes valha propriedade, o Coronel Pedro Fagundes edificou a sua
para despertar os sentimentos de compreensdo e de amor a fazenda. /
Humanidade. Mandou construir uma resicdéncia suntuosa. Dava gésto
contemplaé-la; todos que a viam, exclamavam — “que casa
EDUARDO DE OLIVEIRA
linda! {sto n&éo parece obra do homem, parece obra da
natureza! E uma pena construir uma casa tdo bonita no
campo”. E queriam saber o nome do arquifeto que cons-
truiu aquéle recanto téo poético.
© Coronel, envaidecido com os elogios, sorria, € sor-
ria, principalmente, quando sentado na sua cadeira de
balanco, fumancdo um bom charuto, contemplava as pétalas
das rosas e as félhas desprendidas espalhadas que o vento
impelia de um lado para outro, deixanclo o ar impregnado
do seu perfume.
0 Coronel, homem de quarenta e cinco anos, era enér-
gico e lépido. Era homem ce acgdo. Nao conhecia a tibieza,
© que. iniciava concluia. Dizia: — “O homem indecisd nao’
prospera, o homem nao deve estacionar-se”.
Estava afastado do Exército, onde prestara Indmeros
servigos, e pelos quais foi concdecorado com a patente de
Coronel: titulo que prezava e ostentava com orgulho.
Nao havia dduvida, nascera sSbre o dominio de uma
boa estréla, pois até essa idade n&o encontrava impecilhos

14 15
na vida, tudo era amplo, igual ao espago, via tédas as Trocaram um beijo e sorriam. O coronel prosseguiu:
aspiragdes realizadas, as vézes ficava pensando “consigo — Se estou lhe fazendo estas perguntas é porque, em
tudo o que almejo, tenho a impressdo que a felicidade é geral, os casais apés um certo tempo de casaclos, comegam
minha madrinha e que me proteje com seu manio”. a encontrar defeitos mUtuos; e a pior coisa num casamento
Sabia-se benquisto por todos, mesmo assim, vez por &é quando um homem percebe e propala que a espdésa nao
outra, meditava profundamenite fazendo uma reviséo de é sua companheira por ser inculta, Portanfo, creio que cabe
sua vida. Era integro, e nao prevalecia de sua posicéo eo homem introduzir e guiar a mulher num nucleo culto,
social em proveito prdéprio; n&o apreciava as polémicas, para que ela possa se tornar a sua companheira em todos
porque arrefecem as amizades; nado discutia com ninguém os Campos. E o homem, se ao casar-se nao estiver com a
e, taopouco, desconfiava dos que o rodeavam, pois a des- personalidade formada, ou seja, com o espirito maduro,
confianga gera inquietacdo interior, Pagava bem os que com o decorrer clo tempo abandona o lar. E a mordacidade
0 serviam, pois quem é correto para pagar o que deve nao da mulher reduz a férca moral do homem, regredindo o
promove atrifos. Elogiava a todos que conhecia, por isso seu valor.
pensava que nao tinha inimigos. —— Eu nao sou futil. Imagina sé se eu vou lhe desmora-
Homem conservader, ndo abandonava os seus habitos. lizar, vocé que é o meu tesouro! Que é a Unica coisa de
Deixava o leito logo que o sol despontava, para ouvir o valor que eu tenho no mundo. Apenas agradego-lhe por
gorjeio das aves saudando o romper da aurora, quando vocé tratar-me bem.
— Obrigado Dona Virginia. Eu ouvi dizer que 14
sentia-se felicissimo dentro de seus dominios, fitando aque-
no céu tem um queijo déste tamanho. E que o casal que
la imensidade de terras que éle amava profundamente.
viver aqui na terra sem arrufos, sem desfazer-se do lar,
Adorava sua espésa, dona Virginia, e sua filha Maria
Clara. Dizia: “O meu lar 6 o meu tesouro; vinte anos que quando morrerem vao partir o queijo é dividir com seus
estou casaco e sou deveras feliz”. descendentes.
Aquéle, era o dia do aniversdério do seu casamento, e Falando assim, ela aproximou-se acariciando o resto
seria para éles um dia de festa. Ele nao sairia de casa. velhusco do coronel e continuou a dizer:
Seria um dia de consagragdéo mutua. Os dois passariam o — Quando estou sentada no teu colo tenho a impres- -
dia conversando, e iriam: também orar para agradecer a s3o que sou uma rainha num trono. Os bragos de um
Deus por lhes proteger, pois além de tudo tinham afini- homem honesto é o maior trono do mundo. Vocé é o
dades intelectuais e disto o Coronel Pedro estava certo, meu ilustre espdso. Foi e hé de ser sempré a razdo de
pois lembrava-se ainda do ultimo colédquio que tivera com minha vida. Nds estamos envelhecendo e° havemos de
a espésa apds ter-Ihe dado um presente. chegar na decrepitude sempre unidos iguais as pétalas de
rosas: :
momeen"="Vocé ainda gosta de mim?
— Ainda n&o aborreceu-se de minha companhia? E o corone!l dava uma risada estentéria e alisava 0 seu
— Ainda sente prazer de viver ao meu lado? vasto bigode.

17
16
PF-=2
Fitava o-rosto de sua espdsa e manifestava. todos os —- Vim Ihe dizer que as malas ja estéo prontas. Tudo
seus pensamentos: “eu conheci &ste rosto, o. mais bonito “em ordem para irmos para a cidade amanha.
que eu ja-vi até hoje. Vi os teus cabelos negros. Agora — A probresinha da Maria Clara ha de aborrecer-se
estéo prateados. O. nosso amdér nao se restringe a terra, com esta exist@ncia de eremita. Ela nao tem uma amigui-
medra como o espago. N&o arrefece. £ quenie como as nha para palestrar. E é dever dos paes propocionar alegria
lava de um vulcéo”. Dava um suspiro e dizia: “pois é minha aos filhos.
lustre Virginia. Eu ainda gosto de vocé, por que é boa -~ Eu também penso assim. E bem possivel que ela
dona de casa, boa espésa € boa enfermeira, quando estou ndo aprecia éste recanto.
doente cuida de tudo com desvélo. Porque tudo que custa —~ Isto aqui é prdéprio para nds dois que ja estamos
dinheiro merece cuidado. Voc& n&o deu-me-motivos para idosos e queremos tranquilidade. Mas, ela é flér desabro-
que eu lhe repreenda em nada. Em fim estou: contenie chando. E a personificagdo da plenitude. E o que eu tenho
com vocé minha Virginia divina. Quando o teu pae apre- notado, pretendo satisfazer todos desejos de minha filha.
sentou-me tuas irm&s para eu escolher-lhe a minha com- — Esta filha foi quem estimulou-me. ao ‘trabalho.
panheira para acompanhar-me nos alpes..da. vida, gostei Depois que ela nasceu eu passei a negociar, eu ‘prosperei.
mais:-de vocé". E-ficou divagando. -“Era miudinha, parecia Creio que posso dizer: a minha filha dev sorte.
uma-boneca. Jd & tempo de agradecer a-tua dedicagao. E.o seu olhar percorria o espaco.
Quando eu era pobre vocé contentava-se com o-que eu — Penso que deviamos contratar uma dama de com-
podia lhe. dar. N&o exigia nada. Soube suportar herdica- panhia para ela. Dona Virginia gostava de ouvir o coronel
mente as agruras da vida. Percebendo que vocé era digna falar. A voz era acustica.
de. melhor condigaéo de melhor -existéncia resolvi lutar. O Ela gosta de ler ou
—— Penso que é desnecessdrio.
que sempre admirei em vocé, 6 o saber ter paciéncia. bordar. Vou consultd-la, se ela quiser... como é bom vir
Esiou tranquilo. Se eu morrer de um momento para outro, ao mundo, e ter um pae como vocé carinhoso. O coronel
vocé e a Maria Clara, ndo precisam preocupar-se com o sorria. O que the deixava realmente confente, era os elo-
futuro, Minha filha ja completou dezoito- anos e em.breve
gios de sua espdsa. Era com ela que éle consultava suas
ha de aparecer um bom pretendente. Um homem honesto apreensdes. E ela Ihe orientava to bem que éle as vézes
e compreensivo. Ninguém sofre ao laclo de uma pessoa cor- dizia: “vocé é a minha bussola. Vocé é o meu ordculo”.
reta”.:.Dona Virginia. chegou.subitamente.e perguntou-Ihe.
Ergueu a vista fitando o céu acompanhando com 6
—--Em que estava pensando? oe 5 clhar as nuvens que gifavam no espace, perguntou-the.
— Em vocé e Maria Clara. -Alids os nossos:pensamen- —- A nossa filha lamenta a vida aqui no campo sem
tos .sdo. reciprocos. _ Vaguei- pelo pomar~ procurando-te. atragao? ,
Depois fui ao escritério, the procurei nos lugares de-ssua- -- Nao. 86 que nao é alegre. Penso que ela tem algum
predilegao. vor . _ desejo recéndito, que tem receio de nos relatar.. Ou quem
—— O que vocé quer? - sabe é impress8o minha. Na sua idade, ev era -fagueira.

18 49
As vézes eu a encontrava cismando; parece que esté fal-
tando algo. Mas os temperamentos nao sao iguais. A mi- — Esté bem coronel. Esté bem. Eu vou festejar o
nha av6 era assim. Eu penso assim. E vocé? Sao Pedro sexta-feira e vim convidar o senhor. O coronei
Dona Virginia sempre concordava com o coronel. A ergueu a cabecga para fitar o rosio do seu compadre Raul
porteira bateu. Dona Virginia virou a cabega para ver e disse-lhe sorrindo:
quem chegava. —- Ent&o o senhor vai festejar o xara?
~— Ah. Eo Raul. O que sera que éle quer? Raul sorrindo disse-lhe:
Raul era um dos antigos colonos e era compadre do — Peco ao senhor levar dona Maria Clara.
coronel e Dona Virginia. Os olhares se encontravam e les — Esté bem. Se ndés vivemos até |4 havemos de
sorriam. aparecer.
-— Bom dia, comadre! Dona Virginia fitava o seu compadre que distanciava.
— Bom dia, compadre. — Eu acho os filhos dos colonos mais alegres do que
~~ Bom dia, compadre! nossa filha.
— Bom dia, coronel. © coronel ficou apreensivo, perguntou-lhe:
— Bom dia, compadre Raul. -— Serdé que Maria Clara esté doente? Mas é melhor
—— Sabe; disse o coronel: Eu jé observei que o senhor irmos para a cidade para ela distrair-se um pouco. Vou
quando nos visita, cumprimenta a dona Virginia’ em_ pri- procuré-la e avisd-la que daqui uns dias iremos para a
meiro lugar. cidade. Nds iamos amanhaé, mas temos que comparecer
Raul ficou vermelho e perguntou-lhe: na festa do compadre.
-— Isto magoa-te? O coronel pegou o charuto e levou-c a boca. Meditou
— Oh! Nao. Dd-me prazer. £ outra coisa, porque a um pouco e disse:
Gona Virginia é tratada por comadre, e @U, SOU oO coronel? -~ Observa-o e sorri. O sorriso € o comprovante do
~—— Hé tempo desejava esclarecer &ste assunto. E que contentamento.
eu acho o titulo coronel muite bonito e gosto de pronun- — Pois no, concordou dona Virginia, retirando-se e
cid-lo. . pisando t&o forte no assoalho que o éco ia repercutindo-se,
:
—-Ah!... bem. parecia que o assoalho ia ceder. ,
E 0 coronel ‘sorriu. E ‘a> comadré
Malvina como: vai? os O ceronel reclinou-se na cadeira de balango e come-
ve 7
—— Esté boa. Esté torrando farinha. cou a ler uma revista, o sono foi surgindo. Ele adormeceu.
/
~- Quer dizer que vamos ter farinha’ de mitho! Recolhida nos seus aposentos, consiruido especial-
— Eo mitho é colheita nova déste ano. Eu vou ‘re: mente para ela, Maria Clara evocava o seu passado na
servar escola, com grande ressentimento.. Era considerada a me-
um saco para o senhor. :
— N&o, um saco 6 muito. lhor aluna da classe. Se errava nas ligdes nao era castigada.
£-s6 eu e a Maria Clara
que comemos farinha. Era aprovada em tudo. Reinava na classe e nunca foi
Quero sé vinte quilos.
castigada e recebia as melhores notas. Ninguém mencio-
20
21
nava seu ‘nome. Dizia: “A filha do coronel.” Quando atin- bordado, talheres de prata e um jarro de fléres nos centro
giu a juveniude com seus sonhos deslumbrantes, a reserva da mesa e a criada trajada a rigor. Sua mae usava toilletes
com que lhe tratavam foi. magoando-lhe profundamente. de alto prego e a casa estava rigorosamente limpa.
Ninguém ousaria tocar-lhe. A filha do corone! era uma “Quando éle nao esta, ela usa um pegnoir de veludo
boneca de porcelana. desbotado e permanecia o dia todo com o rosario nas maos,
Quando alguém Ihe convidava para uma festa é por- e os seus ldbios ndo paravam, com o “padre nosso .que
que pretendia pedir um favor ao seu pee. estais no céu fazei com que Pedro seja feliz nos seus
Bajulavam @ filha para cativar o pae.- Se tocava uma negécios. Livrae-lhe de alguns desastres”.
valsa era aplaudida. Ninguém the criticava. N3o observa- Maria Clara pensava: “O que sera que jen¥ co homem
vam seus atos. Na festa de formatura o Unico que dancou no pensamento de uma mulher. Sera que o homem pro-
com ela foi o seu pai. Depois sentou-se e ficou olhando porciona tanto prazer assim? A ponto de empolgar a
suas colegas dangar com seus pares prediletos. razéo? Quando o homem briga com a mulher, que chera-
O titulo de coronel de seu pae era uma muratha im- deira! Quando agracda outra mulher, vem o ciumes. De-
pedindo que alguém Ihe aproximasse. pois vem as discusses. Depois vem a luta corporal. Depois
Quando Ihe serviam bebidas serviam-lhe em primeiro vem a interferéncia-da dona lei. Depois vem a incompa-
lugar. So nas preferéncias dos homens ela percebeu ‘que tibilidade. Depois vem a separagdo. Depois vem a dévida,
nao tinha classificagao. sera que éle tem outra? €LE: Sera que ela tem outro?
Os jovens lhe despresavam. Quando éle olha outro homem pensa: seré ésie 0 meu
Foi ficando ressentida interiormente. Mirava-se no rival? E passam a espionar-se. E recomegam os olhares. e
espélho, procurando em si defeitos fisicos. N&o encon- a namorar outra vez: reconciliam-se.”
trava-os. Pensou: “porque & que sou pretérida”? Quando ela ouvia falar dos namorados néo interfiria
Ouvia as filhas dos colonos falar dos namorados com porque nao conhecia as caricias masculinas. Vdrias vézes
‘tanto prazer, enaltecendo as caricias como se os homens presenciou seus progenitores trocando beijos e. abragos.
fossem divindades. Cepois clhavam-se extasiados e sorriam. “Pelo que vejo, a
Aquéle entusiasmo que elas demonstravam the dei- coisa de mas valér neste mundo é6 o homem.” Como inve-
xava iInquieta. As vézes ela via sua mae sentar-se no colo java as heroinas dos romances. Sabia que era pecado ter
de seu pae e acaricid-lo. Alisar-Ihes os cabelos e puxar-lhe inveja. Mas ela n&o podia dominar-se. De uma -coisa
as orelhas. Quando seu pae viajava sua mae n&o se preo- estava certa: sejam as pessoas ricas ou pobres desejavam
cupava com as refeigdes. Dizia-lhe. alguém ao seu lado.
— O teu pai néo esié em casa. Nés comemos qual- Ficava pensando quando via as filhas dos colonos
quer coisa 14 na cozinha. chorando porque queriam casar-se com um. jovem e os
Porém quando o coronel estava em casa ela era exi- pais interferiam. impedindo a unido. Ela também era mu-
gente com a mesa que devia sér posta, as toalhas de linho ther e cesejava ser amada, ser.venerada, Ocupar um lugar

22 23

|
ETT
NT FERI ore
de destaque no coragéo de um homem._ Receber seus se passa com vocé? Os filhos n’o devem ocultar suas
olhares de ternuras. Os seus afagos. Por mais que ela se apreensdes as maes. Tudo o que eu sentia relatava a minha
esforcasse nao era notada. Confeccionava e bordava seus mae. Vocé nao tem algo para dizer?
vestidos e nunca recebeu os elogios de um homem. — Né&o senhora.
Em geral quando uma mulher passa perto de um Dona Virginia retirou-se.
homem olha da cabeca aos pés, faz um exame. E ela... E Maria Clara ficou refletindo e repetindo as palavras
ninguém olhava. Deixou de cismar quando sua mae bateu Ge sua mae que ficavam gravadas na sua meméria: “Vocé
na porta, sobressaltou-se, e foi atender. Cumprimentaram precisa distrair-se precisa dansar.”
e beijaram-se. i — Dansar com quem?: Ela bem que sonhava. Ja que
— Entra marmiae. iam para a cidade iria ao cinema. Admirava os dramas de
Ela entrou, sentou-se, perpassou o olhar pelo aposento amor na tela. Ficou mais alegre. Rejubilou-se interior-
como se estivesse entrando num templo sagrado, pergun- mente, pensou:
tou-lhe: —— Quem sabe se desta vez eu encontro um namo-
—— Como vae minha filha?
rado?
— Vou indo bem... Minha mae. jovem ousava
Maria Clara era riquissima, nenhum
—— © teu olhar prova o contrdrio. Vocé esta sempre
aproximar-se dela com receio do Coronel Fagundes. © ho-
triste, pensativa. O que te falta? Dad-nos a impressao que
mem mais rico da Noroeste. As mas linguas diziam que
a tua vida esta incompleta, parece que as tuas idéias estado
© corone! tinha jaguncos. E era um homem malvado, Ou-
além do mundo. Vocé esté doente?
tros diziam que éle era bom igual ao pao. Mas o boato
— Oh mamée! Gracas a Deus nao!
que predominava era o de homem malvado, E éstes boatos
— Foi teu pai quem mandovu perguntar.
pouco recomendaveis deixava o povo de sobreaviso.
— — até quando a senhora vai servir de pombo cor-
E o coronel mandou avisar o caseiro que preparasse a
reio para o papai?
casa porque gostava de tudo em ordem: é o impulso do
— E que nds falavamos de vocé. O compadre Raul
triunfo.
veio nos convidar para irmos na festa de Sao Pedro.
Enfim chegou o esperaco dia de Séo Pedro. Apareceu
Depois da festa nés vamos & cidade. Vocé precisa dis-
tanta gente porque a festa do Raul era propalada pela
“frair-se.
abundancia, dec&ncia e harmonia.
Dona Virginia observava a expressdo de sua filha.
Ela recebeu a noticia com indiferenga. Dona Virginia Depois a presenca do coronel impunha respeito. Nin-
prosseguiu. guém embriagava-se com receio de cometer algum deslise.
Reservaram um lugar para o coronel. Maria Clara nao
-— Vocé precisa dansar. Manifestar seus desejos.
Vocé parece que evita-me. E£ eu, vivo bajulando-te. Os tomou parte na festanga; olhava os pares dansando e pen-
filhos Unicos s8o tratados com preferéncia especial. O que sava: — “Deve ser bom dansar! Porque éles demonstram

25
24
contentamento?” As onze horas forarn embora, porque no
ligente e as terras da fazenda sdo férteis, o que se planta
outro dia iam para a cidade.
é lucro & vista“
Quando deixaram a fazenda, o automével ia desli- Dona Virginia surgiu e anunciou o almégo. Na mesa,
zando na estrada. Ela ia pensando que nao era nada
Dona Virginia insistiu com Maria Clara para tomar sopa:
agradavel ser filha de pessoa de destaque. A casa da — Eu nao gésto, mamae!
cidade estava maravilhosa. Era uma casa de construcgao
Havia muitas coisas para comer, a mesa era farta e
antiga. Um aspecto magnifico. A sala de musica era ador-
varida. Terminando a refeig¢go Maria Clara foi ler o jornal
nada corn ricos quadros de autores célebres. A ordem para ver os filmes. Pretendia ir ao cinema a noite.
imperava naquele Jar. Tuco mos lugares. Maria Clara Depois foi repousar um pouco. Quando o sol des-
achava tudo tao triste! Eles n3o tinham amigos, nao rece-
cambou no poente, ela foi prostar-se na janela para
biam visitas para dissipar aquela tristeza incSmoda e contemplar os casais de namorados que passavam, t&o
perpétua.
unidos, trocando juras de amor. E suspirou:
Maria Clara tocava piano. Quando parou de tocar foi
-~- E eu... quando seré que vou encontrar o meu
aplaudida. Girou na banqueta Para ver quem apiaudcia.
principe encantado?
Seu olhar pousou no rosto sorridente do Corone! que
Cansou de ficar na janela, foi para o portdo. Fitou o
clisse-Ihe:
espago. A sua vista foi elevando-se até pousar no centro
— Vim ouvir e aplaudir-ihe. Vocé esté tocando ad-
de céu onde a lua estava parada. Quieta como se estivesse
miravelmente.
meditando. O sol ia recluindo-se com seus reflexos cor de
Maria Clara pensou: “todos bajulam-me. Até meu pail
oure. As aves estavam fagueiras e percorriam o espago.
E o Coronel prosseguiu: “a tua musica j4 nao fere os ouvidos.
Urmas em diregdo ao sul. Outras dirigiam para o norie,
Vocé tem vocacg3o, parece que nasceu predestinada a ser chilreando, demonsitrando contentamento. O olhar de Maria
pianista. Vocé deslumbra esta casa, pode continuar tocan- Clara circundava indeciso, pousava ora aqui ora ali, sem
do minha filha. Quero ver-te sempre contente. Eu pensei
fixar-se em nenhuma parie. Sobressaltou-se quando viu
que vocé esté doente, porisso é que vim para a cidade.”
um jovem de 22 anos ou 24 anos fitando-a com os seus
— Ora papai! Eu gosto de tudo dentro do normal.
alhos pretos e ovais. Aquele olhar terno perturbou-a. Era
Obrigado meu carinhoso pai.
@ primeira vez que um homem the dirigia um olhar de
— Se eu pudesse, abandonava a fazenda definitivé:
edmiragao. O jovem aproximou-se e. sorriu-ihe. Exibindo
mente para morar na cidade. Mas eu nao posso, por que
seus dentes nivios e refos como pauta.
ninguém olha methor o que é seu do que o préprio dono.
— Boa tarde, senhorita.
— N&o se preocupe papai. Estou bem. ~-— Boa tarde, cavatheiro, respondeu Maria Clara, emo-
E Maria Clara continuou tocando. O Coronel folheava cionada com aquela atengdo.
o album de musica pensando — “gracas a Deus sou ‘um O jovem parou e perguntou-ihe: —- Pudia dizer-me as

sean
homem realizado. Tenho uma boa espésa, uma filha inte- horas?
26
Maria Clara fitou seu reldgio de pulso e Maria Clara sorriu, achando engragado as palavras.
disse-lhe em
voz trémula: — Cinco para irés. Porque ela n&o conhecia as lutas da existéncia. Para ela
: _
— Obrigado, &le respondeu-the sorrindo as palavras sofrimento eram abstratas. Olharam-se e
e disse-lhe:
— vou tomar nota désse hordrio, por ser sorriam.
um-momento em
que vi a jovem mais bonita désse mundo Ela perguntou-lhe: —- O teu nome, por favor.
. Era a primeira
vez que ela falava com um homem estra — Paulo Lemes.
nho, estava com
receio ‘de cometer alguma gaffe.. Mas ficou contente -— Profisséo?
quando ouviu a frase “ela era bonita“. -~ Sou destista. E o teu nome?
— © senhor de onde vem? —~ Maria Clara.
— Da Capital. £ a primeira vez que visito —~ O teu nome combina com a tua cér. A senhorita
o interior,
confesso que estou apreciando a tua é nivea, parece que nunca tomou sol; para mim a senho-
cidade tranquila ‘e
ridente... j& estou fatigado da vida agitad rita & igual a orquidea que n&o recebe os raios solares.
a da Capital.
Os atropélos didrios esgofam uma pessoa. ~— Mas a orquidea 6 maravilhosa, comentou Maria
Eu ja estou fi-
cando neurético. Lé pensa-se em excesso. Clara.
E é horrivel a
intranquilidace interior. As pessoas que -+ E a senhorita também.
residem na Capital
pensam e agem ccm intensidade. Desde o operério da Maria Clara sorriu apreciando o exame que Paulo f&z
Tabrica até o cientista, permanecem horas de sua pessoa. ;
’e horas nas filas
a espera da conducao. E todos querem tomar aquele — Oh! O senhor n&éo é o primeiro a dizer-me isto.
Gnibus. Os que nao conseguem penetrar O papai também. Eu nunca conversei com homem a nao
no dSnibus ficam
Rervosos porque ninguém quer chegar ser o papai. O senhor é o primeiro.
atrazado no focal
de trabalho. Eo retorno para o alméco, Paulo prosseguia: — Eu sempre apreciei os dois nomes
o retorno para o
trabalho. Aqui a vida desliza sem aborr prdéprios nas pessoas, mas o teu é muito bonito. A senho-
ecimentos. Maria
Clara ouvia aquela voz suave e ritimada. rita sabe a origem do seu nome?
Tinha a impressio de estar ouvindo — Na&o sei. Quer explicar-me? Eu S0u curiosa...
um anjo falar
num recanto celeste. — Clara quer dizer: Branco, puro, exclarecido.
-— Pois ev jd estou farta desta vida apatic ’ Ela sorriu & pousou seu olhar no rosto de Paulo, ob-
a. Eu -nasci
aqui. Aqui fiz os meus estudos. Sei servando os tragos fisiondmicos; © perguntou-lhe: —- O
que existem outros
paises e ouiras cidades porque If na senhor tem gabinete dentaério em Sao Paulo?
geografia, sei que
cada pais tem seus hdbitos e alguns Paulo pertubou-se. um pouco, Vacilou com a pergunta
o idioma é préprio.
E que ha varios pafses com coldnias derivadas. de Maria Clara. : .
Mas eu
gostaria de conhecer &stes paises. Deve — Eu trabalho numa Clinica. Aindanao--conseguil
ser belfssimo!
— Para mim, o lindo pais &é onde dinheiro para montar um gabinete dentdrio; o que é difi-
o ente humano nado
Sofre. E &ste pals nao existe, disse o rapaz. cil & formar-se.

23 29
— O senhor jd esté formado; para
as pessoas que
tem oficio a vida é uma linha reta,
para os que nao tem
com. que ocupar-se a vida é uma
linha curva.
Maria Clara esforcava para ser sensa
ta nas palavras
porque estava conversando com um
doutor. Um homem
de Sdo Paulo, de uma cidade importante
.
—~ A Clinica onde o senhor trabalha.é
concéituada e
tem afluéncia popular?
—— Estamos iniciando. Mas a Clinica
promete. O que
cesejo & que a senhorifa nao va neces
sitar dos meus ser-
Vigos € que os seus denies nao se detu
rpem; n3o quero
maguar a sua linda boquinha. Eu estou de -férias e pre-
tendo partir daqui alguns dias.
Maria Clara estava emocionada. Ali estav
a um homem
falando com ela, prestando atenc3o nas suas palavras.
Paulo convidou-a para ir com éle ao jardim
.. O jardim
publico estava em frente a sua casa. Ela
nao viu inconvi-

a
niente em acompanhé-lo e sorrindo atend
ev-lhe o convite.
Ela ficou t80 contente que nao esperou
um segundo con-
vite. Como & sublime realizar um sonho
!
Dirigiu-se contente para o jardim, senti
a-se importante
andando ao lado daquele jovem.
A brisa perpassava conduzindo um aroma
: suave das
fiores que os envolvia. Paulo perpassou
um olhar ao redor
e disse-lhe:
— Como é linda essa Praga. Como & o nome dessa
Praga?
:
—— Praga Cel. Pedro Fagundes.
~— O Cel. deve ser dono da Cidade. £ a mania dos
Super-ricos mandar nas cidades atuando como dradées.
Maria Clara sobressaltou-se e perguntou-lhe:
—— Ouvindo-te, tenho a impress8o de que vocé nao
gosta de ricos!
,
39
—- £ que tem duas classes de ricos: Os passivos e os
ativos. Hd os ricos que cuidam tnicamente dos seus negd-
clos, dé servicos aos operdrios. Sao industriais, auxiliam
um grupo a viver. Ha o segundo que s&o os ativos. Os
Coroneis, Generais, homens que enriqueceram no oficio,
interferem na politica, ndo permitem que um homem go-
verne um pais tranquilamente. Emfim, o que éles tem de
bonito & a farda e seus brasdes. Mas o homem para ter
valor 6 preciso ter intelig&nciai.
E o olhar de Paulo perpassava...
— Aqui pode-se andar sem atropélos.
Maria Clara tinha a impressio que estava andando no
ar, seus pensamentos estavam inestros igual ao baldo
quando atingem o cima.
— Nés iemos o nosso banco aqui no jardim.
£ Maria Clara dirigiu-se para o local onde estava o
seu banco.
Dois senhores que estavam sentados olharam para ela
e retiraram-se sem protestar. Paulo leu o que esfava no
banco: “Coronel Pedro Fagundes”. E perguniou-lthe:
-— Quem é o Coronel Pedro Fagundes?

E meu pai.
— Ah...” Exclamou Paulo, preocupado. Refletinde
no que havia dito, sentindo intranquilidade interior. Mas
procurou dominar seus receios. Perguntou-lhe:
— Porque é que aquéles dois senhores deixaram o
banco sem protesto?
~~ S80 empregacios do papai.
-—- Sendo empregados de teu pai sdo teus emprega-
cos também.
Maria Clara perpassou o olhar pelos bancos todos
ccupados com casais e pensou: “Porque seré que a mulher
ERC aoe

33
PF-3
i
ao lado de um homem fica to contente e sorrindo? Qual —-
E quem irda levar-me?
serd a atragdo que existe entre dois sexos que um procura —Eu, ou outro qualquer que tiver a ventura de
© outro?”
casar-se com vocé.
E os casais mostravam felicidades iquais siameses. — Eu prefiro que seja vocé. Ouvi dizer que a mulher
“Se éste homem nao abandonar-me eu também vou que se casar com um homem paulista nao sofre, esta am-
conhecer esta atrag3o. Quero conhecer a felicidade que o parada na vida, que o paulista é atilado. E nobre e sensato.
homem proporciona a muiher; creio. que sou mais feliz do Que s3o homens decentes. Que prezam a sua dignidade.
que as jovens do interior porque tive a felicidade de ser Que tem noc3o de deveres. Que sdo previdentes apren-
preferida por um homem da capital.” dendo um officio. Quem nasce em Sado Paulo tem possi-
Deu um longo suspiro e pensou: “Eu sou uma feli- bilidades de aprender um offcio, porque Sdo Paulo é a
zarda!” Capital da industria. E todos encontram trabalho. Quem
Paulo sobressaltou-se com o suspiro de Maria Clara e nasce em S80 Paulo nasce em um escrinio de ouro por
perguntou-lhe: ser bom elemento. Paulo mordia os ldbios, as palavras de
~- Em que pensa querida? O que te agita? Maria Clara o incomodava.
—~ Estou pensando em vocé. -— Oh! Muito obrigado pela boa impressdo que vocé
— Muito obrigado. tem do homem paulista. Eu sou paulista, sinto-me honrado,
Prosseguiu pensando em sua felicidade. “Ela ali sen- vocé transformou meu coragado em seu escravo.
tada ao lado de um doutor. Um dentista. Um homem no- Maria Clara sorriu-lhe.
bre. Que estudou para lenir a d&r do corpo humano! — E bom ter um escravo perpétuo.
Porque iédas as dores afligem. Este homem tem que ser — Mas éle vai ter uma sinhd carinhosa. O teu coragdo
meu! Um homem que suplantava os pés rapacdos do inte- sendo meu escravo seré amarrado numa corrente de ouro.
rior que Ihe despresavam. Mas Deus auxiliou-me, encon- Paulo fitou-a no rosto e disse: “Vocé é muito bonita,
trei um elemento que sabe falar bonito e tem cultura para pretendentes que nao the falta.”
falar com o prefeito, a maior autoridade da cidade.” Paulo — Voc& perturbou-me, monopolisa-me. Vou custar
Ihe falava na béca igual aos artistas de cinema, com halito ouvidar-te. Que suplicio quando eu estiver em S&o Paulo
quente e perfumado. e nao mais ver €stes olhos cdr de esmeralda que fasci-
— Fala-me de So Paulo! Ougo dizer que é uma nou-me e deixou meu coragdo inquieto, oscilando igual um
cidade empolgante, a princeza do Brasil, que o paulista é navio ao dispor das ondas.
um bom filantrépico, é laborioso e amigo:'do progresso. Maria Clara olhou o relégio e exclamou: “Ja onze
Paulo satisfazia-lhe, Maria Clara estava contente por- horas?” Paulo sobressaltou-se:
que foi sempre obedlecida. N&o conhecia contrariedades. —-- Meu Deus, o jardim esta deserto!
— A capital € digna de ser vista e nado descrita. ——- Vou-me embora, o meu pai deve estar preocupado,
Algum dia ha de conhecé-la. Ao levantar-se, sua pernas estavam dormentes, Paulo

34 35

Sea
_— Oh! minha filha, onde andaste, eu e tua mae esta-
segurou-lhe as maos e disse-lhe: “espero-lhe aqui neste coisas num segundo. — Vocé
vamos aflitos. Pensei mil
banco as sete horas em ponto.”
feu a biblia quando Jesus desapareceu, seu pai e sua mae
~—— Esté bem, concordou Maria Clara, sorrindo inte- E foram encontra-Lo
ficaram preocupacos procurando-o?
riormente e exteriormente.
entre os doutores, concluiu Maria Clara sorrinco.
~~ Ah! De manhé néo é possivel. Terei que ir a missa a alegria da sua
Doria Virginia ficou séria observando
porque eu fiz uma promessa, quando estiver na cidade, ir falou-lhe: “Vocé
filha, gesto que ela desconhecia. E assim
a missa todos os dias. Agora estou confiando nos santos. de uma mée em
sorri porque n&o conhece a preocupagdo
Eles n@o falam. Estou senco atendida no pedido que fiz.
relagdo ao filho."
A noite eu estou disponivel.
— Eu fui passear mamae.
— Vocé trabalha?
Maria Clara queria ficar sé para pensar naquele
— Oh! nao. la dizer-lhe que era rica, mas conteve-se. Parece que ainda sentia o
homem bonito. Tipo aftleta.
O seu amado podia zarpar-se. Ela tinha a impresso que
calor dos seus ldbios carnudos quando se uniam nos seus.
certas pessoas afastam-se dos ricos, pensou:
e quatro horas,

aiosres
Olhou o relégio. Eram vinte
—~ Esta bem, concordou Paulo que olhou por todos os
— Faltam dezenove horas para eu ver aquéle homem. Si
lados € nao vendo ninguém tomou-a em seus bracos e
eu pudesse permanecer sempre ao lado déle! Maria Clara
beijou seus candides ldébios murmurando: “Maria... Ma-
galgou. a escada e foi para o seu quarto. Abriv o guarda

ONE
ria... Maria Clara meu doce amor. “Apertou tanto a jovem roupa para vér com que vestido devia ir ao encontro com
que Ihe embargou a respirag’o deixando a pobre moga
seu fdolo.
com a mentalidade confusa e empoigada com aquelas Queria que o Paulo ihe achasse atraente e bonila,
caricias. Continuando disse:
fitou os seus vestides um a um e ficou indecisa. Deitou-se
— Depois de amanha retorno a Sdo Paulo.

ED
e pegou um livro para ler. Mas nado conseguiu concentrar-
~— Oh! Paulo, nado vai. Eu vou sentir saudades. Vocé se na leitura. O seu pensamento parecia poeira agitada
agradou-me tanto. Ensinou-me a gostar de vocé, creio que
pelo vento, a presenca de Paulo periurbava a sua mente.
se um homem n&o tem pretensSdes de se unir com uma © coronel Fagundes e Dona Virginia também nao conse-
mulher, nao deve atrai-la e depois despresd-la. Como é guiram conciliar o sono. Pensando na filha que ja come-
horrivel sentir saudades! ¢ava a causar-lhes sérios aborrecimentos; passaram a noite
Despediram-se.
contando as badaladas do relégio centendrio da cidade.
Maria Clara olhou sua casa. As luzes estavam acesas.
Eram cinco horas quando Maria Clara deixou o leito
O jardim, a garage e o porao. Entrou em casa répida como
para ir na missa. Nao foi de carro pois a promessa era ir
a briza, tio coniente como se estivesse regressando do contente por haver cumpricdo os-seus----—-
a pé. Retornou-se
céu. O coronel assim que a viu correu ao seu enconiro. matinal prepa-
deveres religiosos. Encontrou sua refeigéo
Prendendo-a nos bragos com ardor e com receio de que
rada com desvelo.
alguém the roubasse a filha, disse:
37
36
Abluiu-se para dissipar o sono. Tocou piano e foi até O relédgio badalou cinco horas, ela cirigiu-se ao ba-
a janela) O’seu olhar dirigiu-se da janela e pousou no: nheiro, abluiu-se, penteou os cabelos castanho claro e
banco onde ela e Paulo estavam sentados. Sentiu sono e vestiu-se.
foi deitar-se. Estava impaciente achando o dia t&o lento, Quando entrou na sala de jantar, a mesa estava posta
era treis horas da tarde, quando despertou-se com o tintilar e ao seu dispor.
do relégio. Deixou o leito indisposta, recebeu um raio de Pediu a refeigdo. O coronel saiu de manha e recomen-
sel que penetrava pelo quarto rapido como o som de um dou a espdsa para interrogd-la e descobrir onde ela esteve
sino que repica, os reflexos do astro rei iluminou suas até aquela hora.
faces. Fitou as arvores que adornavam o jardim e o seu — "N&o admito que ninguém transvie a minha filha.”
olhar seguia de uma lado para outro e voltando a olhar no Gesto pouco recomenddvel para uma pessoa do
banco onde os dois estiveram sentacdos na noite anterior. interior.
Pensava: — Ev ei de amar &ste jardim. Foi neste Dona Virginia abriu a béca varias vézes para interro-
jardim que eu recebi o meu primeiro beijo de amor. As ga-la, mas faltou-Ihe coragem. Amava imensamente aquela
fléres deu-me felicidades. Oh meu Deus! como eu sou filha e n&o queria magod-la. Nao ousava dar-lhe ordem.
feliz, tenho um namorado! “Ela estava radiante. Agora ja Ela era a princesa do lar.
tenho em quem pensar, ia ter um homem que the acom- © coronel entrou e sentou-se.
panhasse ao cinema. Que ia discutir com ela os problemas — Oh! Bom dia. Olvidei-me de cumprimeniar-lhe.
do futuro. Enfim ela ia ter responsabilidade. Nao preten- Estou nervoso. E por isso que estou esquecendo as regras
cia ser uma madame inutil, ou melhor, madame futil que sociais. E que eu senti um choque emocional, parece que
passa o tempo preocupando-se com futilidades; eu ei de os meus ossos estado desligacios...
fazer tudo para Paulo ser feliz. Ele ha de acompanhar-me Elas responderam o cumprimento do coronel. Ele que
aos cinemas e vamos de carro! O mundo para ser bonito era tolerante aquéle dia estava irritado. Ele que sabia re-
para uma mulher é preciso que ela tenha um homem em solver suas preocupagdes em dois segundos. Mas quando
sua vida! Enfim, ela ia ter responsabilidade. Como seria a tratava de sua filha ficava sem a¢do.
sua vida conjugal? Residir na capital, uma cidade bela! E ali estava 6le sentado ao seu lado com olhos fixos
Frequentar teatros, dpera, ier uma casa suntuosa, téda no seu rosto admirando-a como se fésse uma imagem. Ela
ajardinada, usar foiletes de alto prego, ser notada quando era o talisma do lar.
passasse pelas ruas, ser indicada!... — “Olha a senhora Maria Clara estava agitada, olhava o relégio, achava
Paulo Lemes!” E o Paulo ha de trabalhar para pessoas de que os ponieiros néo se moviam.
renomes. Com cerieza ha de apresentar-me, para o pre- Queria que o dia terminasse logo para ela ver o seu
feito e ao governador e para falar com o governador eu vou dileto Paulo Lemes.
com toilete especial. O meu colar de brilhantes! Sorria e E pensava: — E éie... Ha de ser o leme da minha
pensava: Eu custeia ser feliz! Mas agora sou uma felizarda! vida. Terminou a refeiggo e foi para o seu quarto, perfu-

- 38 39.
I
:
i
onion

mou as rouvpas internas e externas. Adornou-se com as ficando louca. Os pensamentos invadiram o cérebra do
péroias que seu pai deu-ihe de presentes e que pertence- coronel. Quem sera &ste homem? Sera realmente um
ram as suas avés. Aquelas jdias eram usadas nas ocasides homem dinamico e arrojado? Ou sera um homem no fisico
excepcionais de grande contentamento. Um aniversdrio do e irresoluto nas agGes? A minha filha ha de casar-se com
primeiro filho, um pedide de casamento vantajoso! Ou um homem enérgico.”
ent&o o primeiro enconiro com o homem amado. Enquanto Maria Clara e Paulo foram para o jardim.
preparava, pensava: — A minha mé@e considera tanto o -— Como passaste o dia?
meu pai! Qual sera o valor do homem na vida de uma — Pensancdo em ti! foi a resposta rapida e sincera de
mulher? Maria Clara.
Porisso quando Maria*Clara surgiu na sala o coronel — Obrigado. Um homem sempre fica contente quan-
respirou aliviado. As pérolas eram simbolo da alegria. do ocupa o lugar proeminente no cérebro de uma mulher.
Maria Clara tocou piano e cantou. — Vocé foi a missa?
— Meu Deus! A minha filha esid cantando! Ela toca — Fuji... E rezei pedindo a Deus para auxiliar-te.
e canta... que bonita voz! Qualidacdes que eu desconhe- -— Agradego-te porque vocé é a primeira mulher que
cia ou entéo ela deve estar muito alegre! Os pais deviam reza para mim. Deus ha de ouvir tuas oragées porque
ser telepdticos para saber o que pensam os filhos! O
vocé & um anjo falando com anjos.
que sera que esté se passando meu Deus? ~~. Mas as m@es rezam para os filhos. A tua mae
Maria Clara foi até a janela, permaneceu uns minutos, ha de rezar por vocé.
depois saiu para o terracgo, desceu os degraus e parou no
Paulo deu um suspiro tdéo triste que deixou Maria
portado. E ergueu os olhos ao céu para agradecer a Deus
Clara condoida.
que enviou-lhe um namorado e certificar-se se nao ia cho-
— Eu nao conheci minha mae!
ver. Pediu a Deus para néo enviar chuvas, para nao impe-
~~ Oh! que pena... Lamento e aceite o meus pézames.
cir-lhe de sentar-se ao lado de Paulo, que era o hdéspede
Eu gracas a Deus tenho pai e mai! Por isso sou feliz. E
de honra de seu pensamento.
agora tive a ventura de conhecer-ie. Passei o dia rezando,
Divagava no dia anterior quando 6le surgiu.
pedindo a Deus para a noite surgir e ver-te novamente.
Reclinou a cabega nas grades do porao. Através das

LO
Foi o dia mais longo para mim. Chegaram ao jardim.
venezianas quatro olhos amiges the observava. Os olhos
Dois senhores estavam sentados no banco:
de seus pais. LL ae a
— Vamos noutro banco, deixemo-los em paz.
Ficou radianie quando Paulo surgiu.
— Nao, eu quero sentar-me no mesmo lugar.
Foi a primeira vez que o coronel achou lindo o sorriso
aR RE

de sua filha. Era um sorriso de sua-filha,;-umrsorriso de Paulo nado apreciava os debates, calou-se. Maria Ciara
contentamento. Fitou Paulo longamente e pensou: “Ah! aproximou-se e disse-lhe:
E éste o motivo! Antes isso, eu pensava que ela estava — Eu quero sentar-me neste banco.

40 41

:
5
inertia
spent Sesto

i
i
/

Eles olharam. Era a filha do coronel, levaniaram e — Amanha vou partir! falou Paulo quebrando o
sairam do jardim. siléncio. .
Paulo ficou admirado. — Oh! exclamou Maria Clara. Seu corpo tremeu vé-
— Como éles te obedecem? As mulheres a quem os rias vézes, parecia que estava a mercé de um vento im-
homens obedecem ficam petulantes e deixam de ser mu- petuoso e supéz que ia desfalecer.
her. E bonito a mulher meiga e amavel. Uniu-se mais ao lado. Recebeu a noticia como uma
seta retalhando-ihe o coragéo. Ela que hd longos anos
— Pretendo ser amdvel com vocé, sorriu Maria Clara
sonhava encontrar um namorado agora ia perdé-lo.
fitando-o.
— Porque vocé quer partir?
-— Vocé parece uma ditadora, pois eu esperava uma
-— Porque nao sou daqui e tenho os meus negdcios
discussao. Eu sendo um cavalheiro tinha que defender-te. l4 em Sao Paulo.
Eu ia lutar com dois homens. As vézes a luta com um ho- -— Passo saber do que se trata?
mem j4 é funesta e ter que enfrentar uma dupla, nao sei — Pode, como nao, respondeu Paulo delicadamente.
se ia levar vantagem ou desvaniagem porque eu nunca E que eu deposito dinheiro no Banco Francés e o mesmo
lutei. nado tem filiais no interior. S6 nas capitais, E eu estou
— Eles sao empregacos de meu pai. Tomam conta com pouco dinheiro.
dos armazens. Maria Clara ouviu em siléncio e disse-lhe:
Paulo meneou a cabega e disse-lhe: — Se 6 questéo de dinheiro eu posso resolver. E
— Ah! Compreendo... Eles tém filhos... vocé poderg ficar mais uns dias. A tua companhia agra-
da-me. Para que possamos revelar a nossa sapiéncia, é
— E um déies tem. um que 6 afiliado de papai.
preciso encontrar outra pessoa com igual compreensao.
— Quem tem filhos aprende a tolerar e€ a usar o
Voc& 6 doutor, ha de ser um companheiro magnifico.
senso, sdo poderados e se tem razdo, nao dao alteragao.
— E vocé tem dinheiro disponivel que possa empres-
Todo hormem tem o dever de ser educado, mas se casa
tar-me?
e tem filhos, os filhos reeduca o casal. Um pai de familia
— Ev tenho a minha mesada que o papai me da
€ um afdnico. todos os meses. Mas, nao gasto porque. nao saio de casa.
Paulo parou de falar e ficou pensando. Maria Clara -N&o viajc: N&o tomo parte nas festas porque permanego
ficou constrangida. mais tempo na fazenda do que na cidade. A casa é bonita
Ela n&o sabia que os homens gostam de ser obede- mas eu nado gésto de viver nos prades. A Unica distragdo
cidos... é o gorgeio das aves.
CREE

A temperatura amena e a lua surgiu com seus reflexos — Querida-Maria:--: feliz aquéle que tiver uma casa,
prateados e enviava uma luz opaca na extremidade do em qualquer lugar do mundo. Sendo assim eu aceito
banco em que Paulo estava sentado. porque... : ‘
at

42
sc
Ele parou de falar.
— Por que nao ha de ser vocé? Ou eu nao sou o
— © que foi Dr. Paulo? Cita-me o que te aflige?
tipo predileto?
—- Vocé mesclou-se na minha vida. E eu nao admito
Paulo ficou pensativo.
que vocé sofra por minha causa os aborrecimentos. Ei de
deixar-ie em paz. Se o teu pai souber que vocé me dé — Amanha vocé me espera na estagdo @& uma hora.
dinheiro, hé de prender-me dizendo que estou prevale- Vou levar doces e frutas para vocé. Esté bem?
cendo da tua inocéncia. Que sou um oportunista. E um — Est&é bem, querida.
homem desclassificado encontra muitas dificuldades para — O meu nome 6 Maria Clara Fagundes, mas voc&
viver neste mundo, pelo que vi aqui nesta cidade até as crismou-me de querida.
pedras curvam-se aos teus desejos j4 que vocé quer favo- ' Sorriram.
recer-me, desde j4 os meus agradecimentos. Paulo ja sabia que Maria Clara era filha do Coronel.
— E vocé permanecerd aqui mais uns dias. E que éle tinha jagunco. Mas a pequena estava gostando
— Esté bem minha querida, para te ser agraddvel, eu déle e ninguém rejeita o afeto de uma menina rica. Resolveu:
fico, concordou Paulo, acariciando
despedir-se antes das dez horas.
as maozinhas de Maria
Clara. As nove e quarenta e cinco minutos Maria Clara en-
trou dentro de sua casa. Dna. Virginia estava sentada
Aquela frase “querida“ foi alojar-se diretamente no
seu coragao. Ela ndo podia perder aquéle fazendo tricot.
homem que Ihe
dizia tudo que ela queria ouvir, pensava: “Este homem — Quem é aquéle homem?
veio do céu!“ Amanha eu Ihe dou o dinheiro e vamos Perguntou Dna. Virginia, enérgica e disposta a pér
passear! Subiremos num trem e desceremos no outro um ponto final naqueles encontros.
vagao que desce as cinco horas para divertir-se. —- E de Sao Paulo! E quem é de Sao Paulo é impor-
— Quando termina tuas férias? tante! Quem nasce em Sdo Paulo por férga tem que ser
— Demora uns dias. um homem culto porque é uma cidade industrial. E um
nucleo em que as pessoas vdo crescendo e emancidan-
— Vocé no deseja trabalhar por conta prdépria?
clo-se.
—~ Desejo. Mas n3o posso manter um gabinete, jé
expliquei oniem. — Que profissio exerce éste homem?
Perguntou o coronel que estava com o jornal aberto
— Eu lhe empresio o dinheiro.
mas prestava atengdo nas palavras de Maria Clara.
Paulo sorriu e perguntou-lhe:
— € dentista. Disse-me que estava saturacdo dos
— Vocé é muito boa para mim. Reza por mim e me
bulicios da cidade. Que a vida na Capital é muito agitada.
empresta dinheiro! HA de ser muito feliz quem tiver a
Aproveitou as férias para conhecer o interior.
ventura de ser teu espédso.
Dna. Virginia deu suspiro e disse-lhe:
44
— Eu nao simpatizo com aquéle homem. Aquela intranquilidade interior impediu-lhe o sono.
— Oh! i Mame!
3 Poisi j 5 poder dizer-lhe
eu sinto nao Quando o sol surgiu cOm seus raios colorides galgando o
mesmo, o
retrucou Maria Clara resoluta. cimo celeste Maria Clara estava no seu quarto preparan-
-— Minha filha, imploro-the. do-se para sair com o seu idolo. Dirigiu-se a cozinha. Féz
Afaste-se daquele ho-
mem. N&o quero que fale com le! bélo, café com leite e pds na garrafa térmica, garfos de
i E impossivel, mamae. sobremesa, refrescos e pds dentro de uma sacola, pen-
A nossa amizade é indis-
solivel. sando: “Agora eu vou me casar. E necessdrio ir habituan-
Dna. Virginia reuniu suas energias do-me a trabalhar na cozinha.”
e disse-lhe, 7 adver-
tindo-lhe: Estava fatigada. ;Quando Dna. Virginia levantou-se
— Lembre-se que nds ternos possibilidades ficou horrorizada com aquéle rebolico na cozinha. Aquéles
para des- acontecimentos inesperacos a abalara profundamente. Ela
fazermos déle num segundo.
prescentia que sua filha ndo ia ser feliz com aquela uniao.
_ E ev também tenho possibilidades para eliminar O coronel estava preocupado, ia enviar seu advogado
a minha vida num segundo, Posso
atirar-me debaixo de a Sao Paulo para tirar informagdes de Paulo. Queria en-
um trem, retrucou Maria Clara, com
decis3o na voz. contrd-lo para pedir-lhe seu enderéco. Ja havia percorrido
© Coronel dobrou o jornal, ergueu
a cabecga e fitou as pensGes, os hdteis, e em nenhum estava hospedado o
© ieto. Aquéle didlogo nao estava
the agradando. Dr. de Sado Paulo.
Maria Clara recluiu-se no seu quarto. — Se éle far um homem decente, hei de acatd-lo.
Eia que sempre
sonhava com éstes momentos. Ter um home Pedir para namorar a minha filha deniro de casa. Mas se
m sé para ela!
Receber suas cartcias, compartilhar de fér um malandro, vou mandar prendé-lo e dar-lhe borra-
suas agruras e de
seus friunfos. Estava disposta a lutar. chadas até &le desmaiar. Queria saber se &le era formado
Fazer © possivel
para nado perdé-lo. e se exercia a sua profissao.
Abriu a gaveta da escrivaninha, retiroy os cinquenta © coronel nao considerava os desconhecicdos. E a sua
mil cruzeiros e guardou-os na bélsa. filha conversando com um desconhecido no jardim, ia dar
Deitou-se, mas estava
tdo nervosa que teve a impressdo margem aos comentarios desairosos.
de estar deitada numa
fornalha. O seu coracio estava acelerado A uma hora Maria Clara saiu com uma sacola azul na
preparando-se
para receber o Dr. Paulo Lemes.
mao. la de chapéu,.luvas e bolsa azul. E um casaco de
Por que sera que sua
mae interferia? Era
linho. Atravez da janela, Dna. Virginia olhava sua filha
a primeira rusga na familia. No que- distanciando-se. Chamou um taxi e ordenou ao motorista
ria inimizar-se com seus pais, por gratid&o moral os filhos
“devem“cohisiderar que a seguisse. O motorista estava nervoso porque nao
seus progenitores. Nao queria ser con- gostava de trabalhar para o Cel. O seu ddio ta avultan-
siderada filha rebelde. Mas os beijos de Paulo dominou-lha do-se. Mas 6le nao comenfava com ninguém porque
@ razéo. Passou a noite -pensando.
tinha receio. Ninguém gostava do Cel. Mas nao faltava
46
47
quem nao bajulasse o Cel. Ele era um homem que nao cédulas de mil cruzeiros, ficou petrificacio. Tinha a impres-
tolerava as falhas dos homens. As ordens do Cel. eram s30 que estava sonhancio, comegou a pensar no terno de
ordens que deviam ser executadas. Ele era um homem jinho, um par de sapatos e um reidgio de pulso. fle nao
que falava uma sé vez. Ele e Maria Clara chegaram juntos podia perder aquela jovem arqui-miliondria e ingénva...
a estac&o. Voltou-se para junto dela e foram saboriando as gostosas
Maria Clara desceu sorridente e foi sentar-se ao lado quioseimas. Foram falando de musica, poesia e pinturas.
Maria Clara convidou-o para ouvi-la tocar piano, Ovuvia
de Paulo.
= Boa tarde Dr. Paulo. embevecida tudo que Paulo dizia.
~—— Boa tarde Dona Maria Clara. O motorista voltou rapido como a eletricidade nos fios,
Ela sorriu-lhe e perguntou-Ilhe: — Como vai? foi entrando pela casa dentro sem tocar a campainha, cifou
-— Bem. Porque tive a ventura de conhecer-te. que Maria Clara viajara na companhia de um estranho.
Dona Virginia congelou-se. Ela que pensava que la
— Oh! Paulo. Como vocé é amavel.
— E pretenclo ser sempre assim. Vocé é minha es- passar pela vida sem provar o calice da amargura! Estava
enganada. Ela era muito rica, e adotou as manias dos
tréla d’alva.
Maria Clara dirigiu-se a bilheteria. Paulo nao impediu. ricos, que confiam muito no dinheiro e querem viver como
fendmenos. Mas ninguém passa sem sofrer. Telefonou
Recebeu os bilhetes e dirigiu-se sorrindo e disse-lhe:
para o escritério e avisou o Cel. O Cel. chegou em casa
~—- Aqui esté a tua passagem. E de primeira classe. Foi eu
amarelo como manteiga ceteriorada, tremendo como se
quem convidou, as despesas correm por minha conta.
estivesse com maleita.
Paulo recebeu as passagens e abriu bem os olhos em
— Ela fugiu!
sinal de contentamento. Maria Clara retirou o envelope da
bolsa e entregou-lhe. Disse-lhe: — Aqui esta o dinheiro Dona Virginia comegou a chorar.
que prometi. Como vé, eu tenho nogdéo de palavra: sou © Cel., vendo D. Virginia chorar disse-lhe: ~~ Abor-
recimento cde [4grimas s3o hdéspeces indesejaveis. Séo
a Maria Clara Fagundes. Os que confiam nos Fagundes
visitas que n3o agradam. O Cel. disse ao motorist a:
nao sofrem. Nds nao decepcionamos.
Paulo bateu palmas e aplaudiu-a: —- Explica-me tudo. E fala alto, porque quando fico
— Muito bem. Vocé é étima oradora. Féz.um bonito Nervoso nao escuto bem.
discurso. Voc&é & uma Fagundes bajulando os Fagundes. O motorista falava e o Cel. andava de um lado para
Alias, ninguém maldiz a sua genealogia. Sorriam. O cutro. O motorista explicava tudo rapidamenie porque o
monstro de ago fof se aproximando. Eles entraram e aco- seu des@jo era sair daquela casa, porque aquela casa lhe
modaram-se. O trem apitou e singrou-se. O éco estridente.............. dava mal estar.
— —, deve ser algum “gangester". Raptou-a. Com
ecuou-se no espacgo. Paulo estava emocionado e curioso.
Queria ver a quantia que a sua prédiga namorada lhe certeza firou informacdes, soube que sou rico, ha de exigir
muito dinhelro pelo resgate. Ele estava armado?
dera. Pediu licenga e foi ao lavatério. Quando viu as
49
48
PR~4
~-- Nao notei senhor Coronel. — Boa tarde Senhor Coronel. O que deseja? .
O Coronel parou de andar e olhou o reldgio de pulso —— Venho dizer-te que deve buscar minha filha e o
dizendo: ~~ Vamos até a estacao. cavalheiro que a acompanha.
Entraram no carro e partiram. O carro nao corria, Em um minuto a noticia circulou, que Maria Clara havia
parecia que avoava no espaco. Quando chegaram na es- fugido com um homem desconhecido e que o delegado
tagdo, o Coronel deu ordem ao chefe para mandar parar foi busca-la.
o trem até segunda ordem. O chefe ficou nervoso e A cidade agitou-se. Os comentarios eram os mais va-
disse-Ihe: riados. Se fdsse filha de pobre vinha algemada, mas é
—- Mas Coronel! filha do Coronel...“ Os amigos condoiam-se. Os inimigos
© Coronel exaltou-se, pois estava habituado a falar sorriam dizendo: “chegou sua vez de pagar o mal que nos
e ser obedecido: — Vim ao mundo para dar ordens, nao féz", Os viajantes ficaram nervosos com a interrupgao da
vim recebé-las. viajem, mas Paulo e Maria Clara desceram e foram tomar
Foram estas as palavras enérgicas do Coronel e ent&o um refresco. Estavam t&o contentes que nao notaram as
o chefe olhou o relégio: a esta hora, o trem j4 percorrera reclamagdes dos companheiros de viajem. O delegado
mais de cem quildmetros. O Coronel dava ardens com chegou e iniciou a busca nos carros. Encontrando-os,
tanta energia que os empregados ficavam atemorizados. deu-Ihes voz de prisio. Paulo quis protestar, mas o dele-
Quem &€ que ia desobedecer um homem daquela fibra? gado disse que era ordem do Coronel.
~~ Vamos a delegacia. Vocé e o delegado vao buscar — O senhor deve apenas obedecer-me, eu recebo
a minha filha! Eu levo dois minutos para esquentar e cem ordens e obedeco, e quando dou ordens quero ser obe-
para esfriar. Eu sou um homem que vim ao mundo para decido.
mandar nos homens. O trem seguiu. Paulo e Maria Ciara entrararn no av-
© Coronel estava esfregando as maos como se estas tomével e ficaram descontentes porque idealizaram a viagem
Ihe encomodassem. de um geito e ela ocorreu-se de outro.
O motorista estava nervoso e arrependido de nao ter Maria Clara ficou admirada quando chegaram em casa
arranjado outra profissdo, pois nao tolerava a presenca do e encontraram um verdadeiro pandeménio. Pensou consigo,
Coronel. Deus devia ‘selecionar as pessoas para envid-las com olhar estasiado: -— Que confuséo, meu Deus! —. Em
ao mundo. Infelizmente séo os prepotentes que se tornam pouco tempo chegou o padre e o juiz.
Coroneis.. Maria Clara olhou Paulo, que havia ficado parado na
Chegaram a delegacia. O delegado assustou-se quan- porta indeciso e trémulo, ladeado pelo delegado, até que
do ouviu a voz estridente do Coronel, cogando a cabega e o Coronel aceverou: — vo entrando!, e a voz enérgica
pensando: avolumou-se dentro do cérebro de Paulo.
Vamos ter confusSes porque o Coronel nao era ho- © delegado alterou sua voz e disse mansamente:
mem que se preocupasse com futilidades. — Senhor Coronel, aqui esté o homem!

50 51
ay

— Ele n3o anda armado? um -passeio. Subir num trem e descer no outro. Fui eu que
—— Nao. convidei. Sou maior e quero ter o direito de fazer o que
© Coronel examinava Paulo de todos os &angulos desejo. Creio que posso dispor de minha vontade. Ele é
um grande homem e um homem de Sao Paulo.
como se estivesse examinando um objeto antes de com-
— Maria Clara! Advertiu o coronel asperamente.
pra-lo. Paulo sentia as pernas tremer e um calafrio a per-
Quando estou falando com um diamanie nado admito a
correr-the o corpo. Depois sentiu frio. Tinha a impressao
que estava dentro de uma geladeira ou um “iceberg”. interferéncia de vidro jaminado. Quem faz as ieis na mi-
Outrora tinha a impressao que estava dentro de um forno nha casa sou eu! A senhorita sé se emanciparé quando
de uma padaria. casar-se.
— Muito obrigado, disse o Coronel. Falaremos depois. E dirigindo a Paulo:
Vou pedir ao Prefeito, senhor delegado, para aumentar. o -~ O senhor veio perturbar a paz no meu lar! E
comprometeu o nome de minha filha! A minha voniade
teu soldo.
Paulo pensou: -—— Que homem que fala com deciséo e é de acertarmos &ste negécio de outra forma. Por mim eu
ninguém duvida. te quebraria os ossos até que coubesses dentro de uma
© Coronel continuou a falar: —- E vocé motorista, o caixa. de fésforos e o senhor n3o perturbava mais ninguém
meu reconhecimenio. Vocé hoje foi utilissimo. Enquanto neste mundo!
eu viver, vocé estara livre dos imposios e das multas, mas Paulo engulia iudo e tinha a impressdo que 9 seu
coragdo aumentava dentro de seu peito.
nao prevalessa porque nado pretendo anular a minha
— Pois bem, continuou o Coronel, o senhor vai casar
promessa.
com minha filha, vai ser genro do Coronel Pedro Fagundes.
O motorista ficou tao contente que alterou a voz: —
Espero que o senhor nao.vé dissipar a fortuna de minha
Muito obrigado Coronel. — Até o padre assustou-se. E o

CoP
filha. No sou avarento, sou limitado e prudente. Féz
motorista saiu pensando: — Que homem bom, meu Deus!
uma pausa e prosseguiu:
pequena

omen gS
A voz enérgica do Coronel deixava Paulo inquieto
interiormente. Ergueu os olhos e enfrentou o olhar rigido — O senhor disse que é dentisia. Eu sé admiro o
que o Coronel! Ihe dirigia. O Coronel perguntou-lhe com homem de u’a palavra. Dizem que sou descendente de
cobra porque nao gosto dos fransviados, ésses so arranjam

ga a
ironia: : :
complicagdes. Bem, o senhor que é doutor, € um homem
~~ Quer dizer que o senhor 6 de Sao Paulo? € resol-
veu vir ao interior demonstrar suas. proezas e -perturbar esclarecido, © nucleo que o senhor frequenta é um nucleo
seleto e culto.. Um homem para casar-se com minha filha
nee

minha tranquilidade. A minha filha disse-me que o-senhor


deve ter belas qualidades. E o senhor pode transferir-se
& um dentista, que & um doutor. Mas a tua atitude prova
aqui para o interior porque eu ndo vou admitir que o
ce contrério. Um doutor nao rapta minha filha.
senhor leve minha filha para Sdo Pauio, E desde ja esta
Maria Clara interferiu:
-— Mas papai, nés n&éo fugimos. famos apenas dar casa estaré a seu dispor.

53
52
Paulo ficou ouvindo o coronel falar e apreensivo com gia oportuna. Todos demonstravam calma na presenga do
© roteiro que a sua Vida tomava em poucos segundos. Coronel, o homem que predominava: —- Vamos realizar a
© coronel vendo-o pensativo e resignado pergun- ceriménia!
tou-lhe: “Eu sempre pensei neste momento mas noutra forma,
— O senhor 6 afdnico? como uma festa inesquecivel e um niveo véu", pensava
Paulo decidiu falar para certificar-se se a sua voz ainda Maria Clara.
existia, porque o coronel lhe atemorizava. — Quando terminou a cerimdénia, Paulo impediu o
-—- Eu estava disposto a me casar com ela. N&o previa Coronel de pagar. Deixe que eu pago, Senhor Coronel. —
estas ocorréncias. O que é precipitado nao é certo. E retirou a carteira com duas cédulas de mil cruzeiros...
— Isto ev sei. O pior de tudo isto & que nds nao O Coronel observa o gesto de Paulo. Disse-lhe: —
Ihe conhecemos. N&o sei se vocé é um homem porque ha Vocé esta demonstrando que nao é um tipo despresivel
milhares de homens que sdo homens no fisico e verdadei- porque tem dinheiro para gastar nas horas dificeis da nossa
ros biltres. Ha certos tipos de homens piores que as meri- vida.
irizes. E h&é os mentirosos. O mentiroso ndo tem nogao de Dona Virginia chorava ininterruptamente e lamentava:
prever o que a mentira acarreta, Eu classifico a mentira -- Eu casei minha filha com um homem desconhecido. &
como um furacéo. Eu deixo de falar com um homem isto que me preocupa. Para mim éle é um espectro, tenho
mentiroso. ‘ um pressentimento que ela vai sofrer muito.
-— Da-me licenga de falar senhor Coronel? Maria Clara sorria: -- Nao se aflija, mam&e, o Paulo
—- Pois nao, Doutor Paulo, é um santo e eu hei de ser uma felizarda.
-- E que ev pretendia falar com o senhor:. — Assim espero, advertiu o Coronel, porque se ela
sofrer... eu tenho que interferir na sua vida. E eu nao

ESE EAT LN
--- Eis uma coisa que eu nado gosto. Detesto e fico
furioso. Na primeira oportunidade, o senhor devia vir quero, Espero que o meu genro, o Sr. Paulo Lemes, tenha
falar. Os que ficam transferindo o que pretendem fazer nog&oe dos seus deveres. Enquanio eu viver hei de ser a
nao triunfam. A vida é feita para um fim, tem que exercer sua sombra.

OT
aquela finalidade. Veja um foguete e o seu engenho, é As promessas do Coronel deixavam Paulo palido como

HEA LR
para explodir no ar, éles explodem no ar. Mas é tolice se estivesse enférmo, Tinha a impressdo que era uma gota
"eu estar perdendo tempo dando-ihe ligdes porque o senhor de orvalho absorvida pelos raios solares.
AERA O escrivao, 0 juiz, e o vigdrio despediram-se. O Coro-
é de Sdo Paulo e os paulistas sio dinamicos. O homem que
nasceu em S&o Paulo nao precisa mendigar, pode estudar nel acompanhou-os até o portéo. Os curiosos aglomera-
€ aprender um oficio. O homem que vadia em Sio Paulo ram-se na rua, em frente a casa do Coronel para ver o
nao é um homem, @ um semi-homem. que se passava. Dava a impressdo que todo pessoal da
O escrivaéo, o padre e o juiz estavam impacientes com cidade estava em frente a casa do Coronel. Mas quando
© discurso tao confuso do Coronel. Mas era uma gamolo- 9 povo viu o Coronel surgir no terrago, debandaram-se.

54 55

tH
os outros! Cinco minutos — O senhor nao pode ir deixando minha casa sem
Que p&nico uns empurrando
ficou deturpado: mais e nem menos, eu nao creio nesta histéria de Dentista.
depois a praca ficou deserta e o jardim
Amanha eu-vou chamar um dentista para discutir odonto-
as roseiras quebradas, pedagos de seda depenclurados nos
sapatos e brincos e contas de colares logia. Se o senhor provar conhecimentos odontolégicos e
galhos das arvores,
até o padre achou gracé ficar provado que estudou, af eu the entrego a minha filha.
espalhades. Com aquela correria
que ninguem Eu sou como Séo Tomé, quero ver para crer. N&o vou
e todos sorriam menos o Corone!, um homem
consentir que ela sem experiéncia da vida va Ihe acom-
sabia se estava alegre ou triste.
panhar.
-—— Obrigado, senhor escrivao.
— Esté bem, senhor Coronel, concordou Paulo com
— Obrigade, senhor vigdério. Quando precisar de
habifo pagar o muita calma na voz.
mim, estou as ordens. Eu nado tenho por
Dona Virginia serviu-o jantar. Paulo estava tao agi-
que devo com ingratiddo.
tado, comia mas nfo sentia o sabor, tinha impresséo que
© Coronel entrou, viu Paulo beijando sua filha ea
estava mastigando esponja. Como éie sentia-se mal deniro
tempo de ouvi-lo: Ter-
hoje mesmo daquela casa, O olhar do Coronel fhe atemorizava.
— Vai preparar suas roupas porque
leve tudo que 6 teu. Vocé minaram a refeicao.
vamos para So Paulo. Mas
para mim, obedecer tados os meus Maria Clara convidou-lhe para ouvi-la tocar piano.
promete ser boazinha
Paulo ficou tao contente porque queria ficar sozinho com
desejos?
ela. Dirigiram-se. para a sala de. musica, por infelicidade
—- Prometo, meu ilustre espdso.
sua o Coronel thes.acompanhou, . Paulo esiava de pé ou-
Maria Clara estava radiante. Os seus sonhos de longos
vindo-a tocar.
anos realizou-se, nado mais invejava as mulheres que pas-
—- O senhor conhece musica? perguntou -grosseira-
savam de carro ao lado dos esposos. “Quanco eu chegar
mente o Coronel.
em So Paulo vou comprar um automével.”
-— N&o senhor, apenas os nomes dos grandes musicos
—- Quer dizer que o senhor pretende partir para
do passacio.
Sao Paulo!
quando ouviu a voz baritona © Coronel acendeu o charuto e acompanhou com o
Paulo sobressaltou- -se
olhar a fumaca que subiu para o teto.
do Coronel,
— Vocé disse que é benquisto, e um dentisia 6 um
-—— Eu pretendia partir hoje!
intelectual e um intelectual conhece de tudo.um pouco
— Ah! — mesmo, 6 0 que éle me disse oniem. Eu the
e vocé nZo conhece nada. Para mim vocé é um jodo sem
pedi para ficar, éle obedeceu-me. Se éle quizer partir,0
diregdo na vida, um andarilho.
senhor’ n3o tem direito de. impedi-lo.
© Coronel -continuou a inqueri-lo sempre grosseira-
O Coronel revoliava com a interferéncia de Maria o
mente como era seu costume: —- O senhor serviu
Clara. Tolerava porque percebia que ela era inocente.
exército?
Parou no centro da sata e cruzou os bragos.
87
56
—-N&o senhor, fui dispensado. Tenho certificado de conhece preocupagSes. Eu sempre fui o cérebro pensante
segunda categoria. na minha casa.
Paulo estava nervoso com os interrogatérios do coronel. Enquanto o coronel falava, Paulo fitava o solo pensa-
— Entdo, vocé foi dispensado? tivo. Maria Clara fechou o piano e convidou Paulo para ir
-- Fui, sim senhor. ver a casa.
-— Bem, isto é coisa que hei de saber porque eu agora — Vou mostrar-lhe tédas dependéncias.
quero saber até quem foi a tua parteira. Quero saber se
© coronel com voz forte impediu-the.
o senhor veio ao mundo normal ou se foi cesariana.
~— Hoje nao! Sé6 depois que éle provar que é deniista.
Maria Clara parou de tocar, perguntou sorrindo:
Vou mandar o meu advogado, em Sao Paulo, averiguar
— Que tal, gostou Paulo?
que espécie de homem é& o senhor, sua categoria social,
Vocé toca admiravelmente bem. £ meus parabens!
N&o posso dar liberdade a um estranho na minha casa.
— O teu elogio envaidece-me e estimula-me a tocar
N&o sei se éle 6 um ladrao!
melhor. Hoje eu estou tocando para vocé. E o meu pre-
O ambiente ficou carregado e silencioso e entio o
sente de nupcias.
coronel prosseguiu com mais calma:
Paulo sorriu e agradeceu-lhe novamente,
— Obrigado pela deferéncia, j4 que vocé esté tocando — Se éle f6r um bom elemento, af sim, vou tratdé-lo
para mim. com desvélo e com as devidas honras. Vou apresenta-lo ao
prefeito. O senhor tem tiberdade de andar nesta sala e no
— Quero uma casa bem bonita. Quando estivermos
teu quarto.
na nossa casinha hei de tocar tédas as noites para vocé.
Ouviu, meu ilustre espdso? — Mas papai, éle agora é da familia!
— Ouvi, Dna. Maria Clara Fagundes Lemes. — Nao defenda-o. Nem vocé, nem eu, conhecemos
Maria Clara sorriu dizendo: éste homem. Minha filha, &ste homem é de Sao Paulo,
— Até eu habituar com éste Lemes no meu nome vou uma cidade grande. E |4 existe homens que tem aparén-
estranhar um pouco, cia de santo e sdo verdadeiros deménios. Sado as pragas
-— Com o decorrer dos tempos, vocé hé de habituar- das grandes cidades. E contra os desconhecidos que deve-
se, porque a vida é yma coisa que vai modificando-se, mos precaver-nos.
respondeu Paulo, com a voz mais triste que j4 se viu num O coronel retirou um cigarro- da-cigarreira e ofere-
ente humano. ceu-lhe.
O coronel, jogando a fumaga do charuto para cima, in- —~ Eu nado fumo, senhor coronel. Muito obrigado.
terrompe o casal com o seu entrar barulhento. -— Eu sempre desejei para a minha filha um tipo que
— Eu também vou com vocés para Sao Paulo, preciso néo cultivasse vicios, porque um vicio atra@
“Oo Outre:
ver se éste homem tem possibilidades para proporcionar-lhe — Vocé nio bebe? O bébedo é péssimo espéso. Nao
y
o conférto de que vocé esta habituada. A minha filha n3o dé conforto moral, nao da conforto fisico a sua familia. E

58 59
nao prospera. A espdsa do ébrio nao lhe tem amor. Se — Maria! prepara as tuas malas e vamos embora
tolera-o 6 por formalidades. Ev vou buscar um cafezinho. hoje mesmo!
Paulo se viu aliviado quando viu o coronel desapa- ~— Mas Paulo, retrucou Maria, e delicadamente expds
recer no interior da casa. seus planos intimos...
Paulo se viu a sds com a sua linda espdsa. Correu —- N&o tenha receio! Papai nao Ihe faré mal algum,
para junto dela e beijou-a carinhosamente. As faces e os pretendo levar-lhe a nossa fazenda e vocé hd de apre-
jdbios rubros. —- Maria! Minha dileta Maria. Quero-lhe cid-la. E um fugar preferido para a nossa lua ce mel.
tanto! Vamos para o nosso quarto. O teu pai ndo tem o Vamos andar a cavalo, nadar e navegar na barca a vela.
direito de interferir-se na nossa vida. Voc€ pertence-me! Vocé vai conhecer os colonos de papai. Eles séo compacires
— E hé de ser sempre meu maricdo Paulo. de papai, vocé vai ver os cafesais, os canaviais. Temos
varias qualidades de orquideas, voc& gosta de botdnica?
— Oh! minha sublime MARIA! Quando penso que
&éle ha de querer nos separar fico alucinado. Paulo nao respondeu-lhe.

Maria Clara acariciava o lindo rosto de Paulo Lemes. ~~ Temos vacas e um pomar com frutas de tédas as
qualidades; sé vendo que fortuna! o papai exporta as
E esiava tao contente porque éle the pertencia. Disse-ihe:
frutas para Sdo Paulo. Vocé pode ser gerente de papai!
— Juro-Ihe que néo hei de deixar-ihe por nada neste
Eu tenho roupas e jdias que estéo no cofre de papai, pre-
mundo. Vocé ha de ocupar o primeiro lugar nas. minhas
cisamos levar uma criada para cuidar da nossa casa, o
preferéncias. Tédas mulheres adoram os esposos. Fu pre-
nosso casamento foi precipitado, mas nossa vida precisa
tendo adorar-te. Se vocé sofrer hei de sofrer ao teu lado.
ser organizada com calma.
—— Oh! Maria! como hei de agradecer-Ihe. Tuas pala-
~~ Tudo isto é muito bonito, mas eu nao posso con-
vras reconforta a minha alma combalida. Teu pai 6 severo. cordar com vocé: leve o que esta aqui e deixe o que esta
Ao lado déle eu fico sem acéo.. O teu pai tem hdbitos de na fazenda. Depois voltaremos para Jevar tudo que lhe
escravocrata. Na sua presenga ev tenho a impressdo. que pertence.
estou vivendo na época da escravidao. Eu n&o posso e — Oh! Paulo. N&o posso! Nao’ devo fazer isto!
n&o devo ter sinhé. Eu aqui sou rato nas garras do gato,
-— Esté bem, j4 que vocé nao quer acompanhar-me,
vamos para um lugar onde ninguém nos ouca. O teu pai
fique e eu vou sdzinho, E vocé nunca mais ha de ver-me!
pode esiar ouvindo.
=— Oh! Paulo! Vocé tem coragem de abandonar-me?
~— O meu quarto. Lé vocé poderd dizer-me tudo que ...Quer dizer que o amor do homem 6 fragil? Nao é
sente. sdlido? Para mim.o amor 6 igual a uma massa que vai
Paulo pegou a sua espdsa nos bracos e galgou as condensar até solidificar-se. Ja pensou na critica em t6rno
escadas de dois em dois degraus. O seu deséjo era ter de meu nome? Vou ficar mal vista aos olhos da socie-
azas para voar e deixar aquela casa! dade com seus comentérios maldosos. A repercussdo .que

é0 61
pcre punse
vai ter a tua aus€ncia? Oh! Paulo o homem quando casa
deve ser um pilar na vida de uma mulher.
— Esté bem, Maria. Vocé fica. E eu vou-me embora!
Aqui dentro desta casa 6 que nado fico! Vocé aqui tem
tudo. E eu nao tenho nada. Nem tranquilidade, nem li-
berdade! Quem é que vocé prefere... eu, ou teu pai?
~~ Esta claro que é vocé, meu doce amor!
Maria Clara abriu o guarda-roupa e foi retirando os
vestidos. Paulo retirou os cobertores, estendeu no as-
soalho e foi colocando os vestidos com cabides e tudo. Os
lengois de linho iam amarrotando-se, mesclando-se com os
casacos de peles e os sapatos.
— Maria, eu vou sair para arranjar um automdovel. E
vocé nao deixa o teu pai entrar aqui. Vae ficar perto de
tua mée. E dentro de uma hora estarei de volta.
Paulo saiu. Maria Clara foi procurar sua mae. Dona
Virginia estava chorando e ao vé-la disse:
~-- Minha filha! Os bons casamentos festejam-se com
sorrisos e musicas. E os péssimos casamentos com lagrimas
e lutos. Oh! Minha filha! porque fizeste isto? Vocé nao
estava bem ao lado dos teus pais? Nunca fizemos uma
observagado porque tinhamos receio de magoar-te. Os teus
desejos eram uma ordem para nds. Este homem nao me
inspira confianga. Eu considero o teu gesto como loucura
do momento. Quando vocé conhecer éste homem o teu
amor por éle vai arrefecer.
-— Ora, mamade! Eu penso que o homem 6 um enie wwe . BROR RY «ONES Ses 0 .
oD. Ramee + Fatone ae ae
humano, que sabe pensar, n3o pode errar, o pensamento . .
Fores, a pe

é um guia do homem. E o homem ainda tem o auxilio das


palavras. Falando entende-s .
— Minha filha, vocé est4é desabrochando na vida. Lh NaN Sten
ren,
Muitas coisas para vocé é ilusdo de ética, Faz apenas vinte :
i Eel oO. RRne ee
€ quatro horas que vocé ficou conhecendo éste homem e

62
éle ja é teu espdso. Foi um fato irefletido. Nem eu e nem
o teu pai nao tivemos tempo de intervir, Hd certos atos
que praticamos sem refletir que nos acompanha e nos pre-
judica o resto de nossa vida. A gente leva anos para
conhecer uma pessoa profundamente, porisso é que eu
penso: Quem seré éste homem?!
—. N3o se preocupe, mamae! O meu coragao néo me
engana. Hei de ser muito feliz com Paulo. —- A senhora
vai dar-me o piano?
—- €ste piano sé pertence aos netos. Quando vocé me
der um netinho poderd levd-lo. A mamée deu-me quando
voc& nasceu. No sei se continuarei vivendo quando vocé
partir para Sdo Paulo. €stes aborrecimentos abalou-me
profundamente. Minha filha, se vocé sofrer retorna. Os
pais séo amigos dos filhos em qualquer circunst&ncias.
Minha filha, voc@ ndo conhece o nosso passado: Eu e teu
pai j4 sofremos tanto. J& fomos pobres. E a pior condigao
no mundo é do homem pobre, que ganha saldrio para
viver.
— Qh! mame, mas Paulo nao é pobre. Ele é doutor.
Ele tem dinheiro no Banco Francés!
— Que tudo isto seja verdade! Exclamou apreensiva,
D. Virginia. Quando vocé nasceu, o curso de nossa vidas

transformou-se, comecamos a trabalhar com assiduidade. O


teu pai deixou de jogar. Vocé amadureceu o senso do teu
a
pai. Para mim, vocé é uma filha bendita. Comegamos
* economizar e a pensar no feu futuro. Deposita mos dinheiro
no banco.
Paulo entrou exausto. Perpassou o olhar pela sala. O
coronel nao estava. Ficou mais tranquilo. Sentou-se na
Balanco do coronel e pensou
déira
cade “como eu seria
feliz se pucesse residir aqui. Isto nao é casa, &é um paraiso”.
Olhou os ricos quadros que adornavam as paredes. ©. ri-

65
PE-5
quissimo [ustre de cristais, as lindas estatu
as cde porcelana
espaihadas pelos méveis. bm suspiro e entdo entrou no quarto. O coronel estava
Maria Clara e dona Virginia entraram Jendo um jornal.
na sala.
— Eu vou dormir, mam3e. — Vocé ainda encontra calma para ler? Perguntou
Estou com sono.
Deu um beijo nas faces de sua mae. Dona Virginia com a voz rouca de tanto chorar.
Ela estava gelaca. i
Ficou apreensiva. Era a primeira vez que via a sua mae — O que devo fazer? A vida tem dessas coisas. A
chorar. fatalidade vem inesperadamente. Enquanto leio desvio do
meu pensamento esta tragédia.
Dona Virginia e Paulo olharam-se. Um olhar
de hosti- :
lidades. Paulo estava exausto. Fazia o possivel para dominar-
O pensamento de Paulo dizia-lhe: Vae embor se; tinha impétos de chorar e bradar ao mesmo tempo.
a. Parecia
© tic-tac de um relégio. -— Se eu ficar Ocultar-se numa caverna ou labirinto. Ele e Maria Clara
como rebotalho!
aqui, serei fratado

Dona Virginia tristemente disse entre


:
:
subiram e entraram no quarto e segredou:
salucos: — A uma hora o motorista estaré aqui no portao;
— Ev também vou dormir, o dia de hoje vocé desce e espera-me no carro e eu vou atirando as
foi muito
agitacdo, tenho pressentimento que a4 tranq trouxas de roupas pela janela e o motorista vae colocan-
uilidade jamais
reinaré nesta casa. Faz dois dias que vivem do-as no carro. Ndés vamos para Sdo Paulo, o moforista
os sobressal-
tados. Se o senhor nao provar que é um que vae nos levar nao gosta de teu pai. E eu também nao
dentista, vae pas-
Sar um grande vexame com o coronel, éle posso tolerd-lo. E um homem de educagao antiga, tem a
detesta os per-
nésticos. Para &le o senhor é um indovio. mania de dominar, gosta de observar e criticar. Mas nao
Nés somos uma
familia culta. E pretendiamos para a nossa filha um homem
culfo porque... & hortivel a uniao de
| admite criticas e nem observagdes. Ele classifica-se de ho-
mem pautado. Tem a prepoténcia dos fidalgos; @le preva-
um superior com
um inferior. lece porque tem muito dinheiro e é& patente do exército.
Maria Clara encolerisou-se.
Seu pai e sua mae diminuiam muito
© seu espdso.
i Mil vézes ser genro do diabo do que dé&ste tal de
coronel. Se me contive, 6 porque éle é teu pai. Hei de
Reconheceu que havia cde ser horrivel para provar-fhe quanto sou superior. Nao pretendo pedir-lhe
éle permanecer.
mesclado com seus parentes. Paulo havia aigo. Ele 6 um homem rude como o cactus, inconquistaével
percebido isto
8 esiava explicando o seu desejo de partir nas palavras. - cot
naquela noite.
Uma pessoa criticada fica neurdtica &
vai desiludindo-se. Paulo andava de um lado para outro.
E uma pessoa elogiada vai readquirindo
confianca em si e — Vim solteiro e retorno-me casado, confesso que
prospera; comegava admirar o bom senso
do seu espéso, n&o aprecio &ste género de aventura.
tolerando os ditos picantes de seus pais sem revoltar-se, Desfez uma trouxa e retirou um casaco de peles.
Dona Virginia subiu os degrdus lentamente. Quando — A noite esté muito fria, vocé precisa agasalhar-se.
atingiu 0 t6po parou e fitou © lindo rosto
de sua filha. Deu Maria Clara vestiu o casaco sorrindo e pensando:
66
67
— Oh! Que espéso modélo. Tem cuidado comigo”. Pe- um advogado ou um engenheiro. Um homem de persona-
gou © rosto de Paulo nas maos e beijou-o vérias vez lidade. Bateu na porta varias vézes. Nao obieve resposia.
demonsirando um prazer imenso.
Ele olhava o reld io Girou o trinco e abriu a porta. Deu um grito e caiu no
impaciente. “— Se eu estivesse
na prisdo estaria mais assoalho. O coronel ouviu o grito da espdsa e galgou os
tranquilo do que aqui nesta casa”
. A meia noite paulo degréus de dois a dois. Quando atingiu o tépo e viu sua
abriu a janela, antes tendo o cuidado
de apaga ‘ ‘ue espdésa desfalecida no assoalho, ficou nervoso e agitado.
O carro jd estava a seu dispor.
Disse teenie fas Ergueu-a nos bragos e deifou-a na cama de Maria Clara.
ruidos para n3o despertar o seu pai.
E entra no carro” “ Perpassou o olhar nos méveis: As gavetas abertas e vasias.
: Amarrou as trouxas na corda que a pensar nas noites de vigilia ao lado de Maria
havia retirado do Comegou
bau e deixou-as deslizar pela janela. Paulo respirou Clara quando adoeceu. As oragdes que dirigiu a Santo
alivi
do quando desceu a Ultima trouxa. Depois desce se Antonio para prolongar a sua exist€ncia. As esmolas que
degraus lentamente. Quando o cafro partiu
ێle veep Ou distribuira aos pobres para pagar as promessas, 0 SeU
calmamente € pensou: “— Tenho a impressdo de qu . fou sonho de pai. Ver a sua filha sair t6da de branco com um
retirando o meu pescogo da férca. Grac
as a Deus! tiv Si ne longo véu nivio, igual as nuvens que vagueiam no espaca
do inferno.” Passqu o braco em torn
o da cintura de Maria e num cortejo imenso penetrar na igreja conduzindo sua
Clara e disse-lhe:
© Mars filha ao altar, tda adornada de flores de laranjeira, espa-
ion Agora ‘
vocé & minha! Quero passar o resto da thando seu odor agraddvel no recinto. E fazer uma festa
minha vida a teu lado. Sé a morte hé de no:
que havia de ser comentada por todos.
dos bragos do outro.
» areebater um A mente do homem dita-lhe coisas bonitas. Sonhos
© moforista corria a idda velocidade. Nao tinha
vu deslumbrantes. Mas a realidade é a seta. E o dardo. &
carro na estrada, o transito estava livre. Maria
nou-se no
Clara re i. rdstica igual ao cactus. Had certos acontecimentos na vida
ombro de Paulo. Sentia-se feliz
rainha no dia de sua
igual ma que nos roubam o prazer de viver. E &quela casa sem sua
coroaga&o. “me
; No outro dia, eram onze horas, Dna. filha era pior que um deserto.
Virginia est
impaciente. Maria Clara nao descia Para tomar Fitou sua espésa inerte. Ela podia nao resistir o cho-
café "O
coronel acabava de chegar com o dentis que... e sucumbir. E com aquéle pressentimento foi medi-
ta, Perguntou lhe:
—— Como é, 0 meu genro jd levantou-s fando. Desceu e despediu o dentista: — Nao mais preciso
e? Preciso es-
clarecer tudo isto. Se &le fr dentista vou traté-
lo do teu servigo. — O coronel ficou parado, imdével no centro
frases
; de velud
v o. Ele hé de tornar-se mey sécio ja eststou da sala. Aquéle sil€ncio comegou inervé-lo. Subiu nova-
. se ela
senil, preciso de um sucessor. mente. Vasculhou a quarto pensando quem sabe

ertseeeesanesemens — Vai desperté-lo. O dentista n3o pode esperar deixou algum bilhete. Por fim desistiu, passou a preo-
Dna. Virginia subiu os degraus aborre
cida. Pretendia cupar-se Unicamente com sua espésa. Chamou um médica
casar sua filha com um homem formado e dindm e levou-a a um hospital.
ico. Visava

68 69
sagen
Ao meio‘ dia, s Maria CI ara indicou
e Paulo che 4 Quando o carro chegou em Guarulhos, Paulo
Paulo. Ela fitava a cidade admirando-a: verem em S80 o lugar. Desceram numa ruela.
— Que deslumbra mento! { Que monumentos
gantes! empol- — Que lugar horrivel! disse Maria Clara. Dirigiram-se
para uma habitagdo coletiva, Paulo empurrou o portao. A
Ao che gar na praca da Sé,3 Paulo des
pediu o motorista casa era muito velha. Maria Clara acompanhava-o descon-
~— Que praca maravilhosa!
. fiada. “Que ambiente esquisito”. Foram para um quartinho
Paulo disse:
14 nos fundos. No fim do quintal. Maria Clara fitava os
~~ E aqui que vamos residir.
varaes cheios de roupas, as criancas brincando naquele
bs ns jaciidede Para encontra
r criada? corredor sujo e mal cimentado. Paulo deu um longo sus-
: Tomeaulo
’, ingiia_no a ouviri as perguntas de sua espd
sa piro, reuniu suas férgas e disse-lhe:
° outro taxi e colocou as trouxas no porta mala. E — £ aqui a minha casa.
.Mandou tocar para Guarulhos. Quando Maria Clara viu o quartinho, ficou petrificada.
ve ,
Mariica Clara quase sufocada com a poeira Meu Deus, pobre
reclama —- Meu Deus, ent3o vocé é pobre?
ve : —~ Dize m que em S&o
a Paulo chove todos os dias ; néo presta! Nao tem valor.
aulo, para onde vamos?
—_p No tinha méveis, apenas uma cama de arame. E um
on ne vocea e€4 cacete! Espera e verg colch3o sujo e roto. No tinha assoalho! Apenas uns ladri-

sfspidos ! Paulo! Eu nao e stou habi
ha ituada com respostas lhos gastos pelo tempo. Ergueu os olhos para o feto. Nao
tinha férro. Ficou imdével, olhou ao redor procurando ao
No jard ~~ inSim. Si im, Dna. Mariai Clara
Fagundes, eu percebi. menos um caixote para ela descansar-se porque estava
No ter : com aquéles infelizes que est Era a primeira vez
avam sentados no exausta. Nao adormeceu na viagem.
al nco, ane é fem a mesma mania de
bes
lugar tao pobre. Desconhecia as
i pretensdo do teu que ela entrava num
pe implode ny de cangaceiro aprende a mata existia paupérri mos, médios
r classes sociais; ndo sabia que
ohanne edosos. Vocé dede ve estar habiituad aa diri encoleri zado. Ela enfrentou o
gir
trigi e ricos. Fitou o seu espdso
ore nes 30s eens Vocés ricos vivem bajulando-se
. Um seu olhar.
; gost
osta a « de inim)izar-se com outr é vocé? Entéo é esta a
o rico,
i : ma Ss nds5 os — Que espécie de homem
p pres vocés nao consideram.
Vocés é quem predominam sua casa?
®e sre selecion
e m as classes. S6 5 porque pod
em frequentar os —&
ment ros e OS pobres vocés classifi
cam de gente ~- £& -Respondeu Paulo observando-a.
MANGE... € existe cada quadru O galinheiro de
pede rico! — Eu niio fico aqui neste quartinho.
— Oh!hi ! Paul
Pa o , vocéé magoa-me! ! Po. r que
; €é que vocé papai é mais confortaével do que isto aqui. O papai estava
disse-me “Maria Clara Fagundes”?
~ : coma razSo. Ele n&o te conhece e disse que vocé nao era
— Porque eu t enho certeza qu Eu nao
ie VOCE& ni
nao va i ~ grande coisa. O homem conhece outro homem,
zer de usar o meu nome. Vou voltar!
| Ter pra estou habituaca com as preocupagées da vida.
70 Th
Vou Para
a casa de papai. Quando eu {é chega
r o papai — Ev vou sair e volto j4 minha querida.. Fechou a
Paga a viagem.
porta a chave.
7 Oh! Maria, nao vai pelo amor de Deus!
pai
Se o teu Maria Clara comegou sentir tonturas. Sentou-se na
souber que eu sou um Jogo Ning
uém, mata-me. O teu
pal fem cem qualidades, noventa e nove cama, 0 sono dominou-a.
de maldades e
uma de bondade. Eu vou sair, @ Quande Paulo chegou ela estava dormindo. Tao linda
compro um guarda-roupa
eum colcho, e uma mesa e no meio dos capins que saiam do colchao digno de aposen-
umas cadeiras para vocé, E
vamos vivendo, com o tempo tadoria. Deu-lhe um beijo. Ela abriu os olhos e sentou-se
a nossa vida haé de modifi-
car-se. Que culpa tenho eu de ter nascido pobre? Sei que
na cama.
voces ricos do preferéncia a outros
mais ricos. Mas o meu -— Vou modificar &ste quario e vocé vai ver como vai
«Mor por vocé turbou-me a mente. ficar bonito; daqui uns dias vocé estaré habituada. Ha cer-
Maria, eu quero viver
dentro de uma casca de noz, mas
com voc& ao meu lado. tas coisas que no inicio nos horrorisam. Mas depois vamos
Abragou a espdésa, e acariciou seus cabelos
sedosos. resignando e conformando. Existem muitas pessoas que
— Paulo, mesmo que eu tolera
r a vida aqui neste vivem assim e sao felizes.
quartinho, quem é que vai
cozinhar? ~~ S80 os que necessitam. Eu nao! Foi a resposta
— Vocé, minha querida.
enérgica de Maria Clara. Vocé podia nos dizer que é pobre.
oT Eu n&o entendo nada de cosin
ha! L4 em casa nés Ser pobre nao 6 fendmeno. E o papai nos dava uma casa
tinhamos fogo elétrico.
confortaével em qualquer lugar do mundo. Mas vocé apa-
— Aqui vai ser a carv3o.
receu contando vantagens. Dizendo que é dentista. Agora
— Voce vai compreender que nado
se pode exigir de compreendo a tua apreensdo e a razdo de tua fuga. Vocé
quem nao fem nada. Eu sou pobre
. Um pobre resignado,
nao & o dovtor, temeu o confronto com o dentista.
porque © pobre revoltado pensa em roubar, pens
ando que Bateram na porta, Paulo atendeu.
assim Modificaré sua condicéo de
vida. E deturpa a sua
vida. Percebo © teu horror a pobreza! — Ah 6a cama que comprei para vocé! Ele retirou a
A Gnica coisa que
posso darte em abundancia é amor. cama de arame e armou a cama nova e arrumou a cama
‘Sei que vocé pre-
feriria dinheiro... mas.eu nao com os alvissimos lengois de Maria Clara.
tenho. E o meu amor por
vecé ha de medrar-se sempre, : -Desfez-as trouxas & procura dos travesseiros @ oS co-
se Deus quiser.
_Maria Clara Prorrompeu-se em bertores de 1/a.
pranto, Aquéle pranto
copiose deixou Paulo constrangido.
Aquéles lamentos irri- Maria Clara deitou-se.
tavam seus nervos. — Vocé deve estar fatigada. Minha querida, meu
-— Que hei de fazer, meu Deus?
Viver deniro de um doce amor. Eu n&o quero que vocé adoeca. Nés pobres
Unico quart
; o, sem co nfdrt
Orto, sairi de u m p aldciio p para
res idresidi devemos conservar a satide. Temos que economisar tudo.
num estabulo,
— ‘(Varreu as paredes, e foi comprar pao e leite.)
12
Quando éle voltou, Maria Clara estava sentada diante Paulo mordeu os labios e percebeu que havia perdido
do espélho ajeitando os cabelos. Paulo deu-the leite, ela a férga moral com sua espdésa. Corou. Nao disse nada
foi sorvendo-o aos poucos, deglutindo desinteressada. mais. la colocando os objetos nos lugares. Maria Clara
Paulo passou todos os seus vestidos para 0 guarda- permanecia deitada. Estava cansada de tanto chorar, o
‘roupa e cisse-Ihe: — eu jd trabalhei numa tinturaria, os Unico jeito era resignar-se com as condigées de vida e
pobres entendem de tudo um pouco. Somos felizes porque entéo comegou a pensar no passacdo. Ela também fora
nao escolhemos servicos. Enfrentamos as contingéncias da feliz quando estava aos cuidados de sua mae e de seu pai,
vida com seriedade e resignacdo. Vocés ricos podem esco- como dentro de uma muralha, protegida dos infortunios da
iher profissdo, tem meios, podem estudar. Tém possibili- vida. Os ricos deviam permitir o introsamenito dos pobres
dades de fransformar o sonho em realidade. no seu nicleo para que seus filhos nado ignorassem os
Quando 0 ferro esfriava, éle esperava esquentar e as- cramas da vida. E os dos pobres,
sim passou todos os vestidos de Maria Clara e pediu-lhe “Minha mae, pensava.ela, proporcionou-me os mais
aprovagao. Se estava a seu gésto. belos quadros da vida.” Sua vida infantil, acrescentava, era
Ela ergueu a cabega fitando os vestidos, retirou o a sua melhor recordagao. E sonhava em brincar nos prados,
olhar do guarda-roupa e nao disse nada. consiruir castelos de areia. E a voz de sua mae: — Que
— Olha, Maria! Eu nao deixei uma ruga! Escovei os
filha boazinha e bonita. Nao lhe encontro defeitos! Eu
casacos de pele. quero que seja feliz. Quando vocé casar-se ha de ser feliz.
Os casacos de pele de Maria Clara — Ela era tio pequena, nao sabia o que era. Nao devia
eram trés porque
ela ndo os guardava na fazenda. ser infeliz. Ignorava as reviravoltas da vida. Tudo que a
—— Aqui nao tem luz elétrica? sua made lhe disse estava atingindo-a como se fdsse uma
— Tem, mas eu n&o tinha dinheiro para pagar o profecia. O coragéo é um ordculo que as vézes define o
depdsito e comprar fios Para fazer as instalagdes. futuro dos filhos: ela se opds tenazmente ao seu casamento
Uso com Paulo. — Minha filha, ste homem, nao te fara feliz,
querosene.
tenho muitas dividas, parece que ja estou vendo as atri-
Maria Clara fitou a fraquissima luz de querosene e |
bulagdes que’ vocé ird passar.
retrucou: - i
-— Que uniao fatidica!
— Eu sempre ouvi dizer que o querosene é prejud?- As vézes a vida infantil 6 mais ridente. Tudo se trans-
cial a sadde.
forma quando a gente comega a ter voniade prépria. A
Paulo ergueu a cabeca: — Eu sempre ouvi' dizer isto.
gente mesma procura sarna para se cocar. “Que bom
Mas néo creio.. Nem nos ditos que andam de béca em
aquéle tempo que a mamée dirigia-me, como errei ndo
béca, pois hé sempre uma dose de inverdade, dando crédito as suas palavras.”
— Vocé € amigo da verdade? — perguntou Maria Mée nao fala banalidades. “Que érro. Venerei o Paulo
Clara, com ironia na voz, como se éle fdsse um sarito. Uma estréla caindo do céu...
4
| 75

|
Era 0 tipo do homem que eu idealizava, alto, meigo, bonito. Paulo acendeu um cigarro e fumou calmamente. Per-
Nao procurei saber suas qualidades porque eu pensei que cebia-se que éle nao estava preocupado com a angustia
os homens eram todos iguais, superiores e dindmicos por- que afligia sua linda espdsa.
que.os amigos de papai eram todos assim. Porisso nao -— Minha vida n3o me preocupa. Sou igual aos fild-
pedi suas credenciais. Quando cheguei em Sao Paulo 6 sofos que vivem indiferentemente, sem preocupagdes com
que tomei conhecimento de quem era éle. O meu espdso a vida e suas afligdes.
& apenas um tipo humano. Nao tem profissao e nao me — Oh! Paulo, vocé decepcionou-me. Como é horrivel
diz a verdade. Que cruel desilusdo. viver em habitagdes coletivas!
— Ora, tolinha, todes os namorados gostam de jactar- Paulo fitou a espdsa com seus cabelos revéltos. Bela
como a Vénus. Aquela pele nivea e acetinada... Aproxi-
se perto das namoradas para atrai-las. Ey nao sou roman-
ticol! Ndo conservo na mente as frases poéticas que leio, mou-se meigamente.
digo o que me vem na cabega. — Vocé vai aprender a lutar. As mulheres inteligen-
~- Oh! Paulo! Porque vocé tinha que dizer que era tes nado sofrem. Vocé sabe tocar piano, pode ser artista.
dentistal! Oh! Paulo. Se acatei-te, foi porque pensei que Aproveita enquanto vocé tem roupas.
vocé era formado. E queria dar-me conforto como estou -— Oh! Paulo. Eu nao tenho verve. Nao sou doutada
habituada. Fui criada na opuléncia. de bom humor. Nao tolero as imposigdes de um empre-
— E ev na indigéncia, suspirou Paulo tristonho. sério. No suporto ser resignada e ouvir uma vaia. Vocé
-— Quem so os teus pais? Que espécie de gente sdo compreende?
os meus sogros? — Vocé nao estudou?
Aquéles lamentos, aquéles in- — Nao. Eu era rica. Estudava com displicéncia. Eu
Paulo cogou a cabega.
por esta vida, nem por esta ecatombe. Eu
~ terrogatérios ininterruptos j4 estavam Ihe aborrecendo. n3o esperava
— So uns pobres coitados, dignos de piedade. Mi- sempre pensei: sou uma Felizarda. Papai queria que eu
nha mae morreu na Santa Casa. E o meu pai é mendigo, estudasse. Como sofre um filho que n3o obedece o pai!
pece esmola. Creio que vou herdar a sua profissdo. oO Quando eu lia as histérias de guerra, eu admirava a intre-
que venho observando é que o homem quando fica rico pidez dos heréis. E porisso eu desejava ardentemente ter
implanta tantas confusdes para humanidade! Vocés ainda um homem sé para mim. Quando eu ia aos circos e via
ndo obrigam o pobre a escrever o nome em letra de for- um homem [utar com a fera e domind-la, eu pensava: o
minha com letra maitscula. homem é o éleo do mundo. Agora que estou vivendo ao
- — Vocé é jovem no fisico e velho nas agoes. teu lado 6 que vejo que vocé de homem sé tem a forma,
,
é assim, Maria Clara. E que o meu pai nasceu creio qué papai deserdou-me.
ve
sem sorte tamibém como eu. — Isto é que é mau. Eu jd contava com o dinheiro do-
vocé precisa reagir. Como é que velho, lamentou Paulo tristonho.
— Paulo, Paulo,
— Paulo, vocé estudou?
vamos viver?
Tt
16
— Cursei apenas trés meses de grupo escolar. num hospital terés que suportar as importunagdes dos en-
—- Com trés meses de grupo um homem nao adquire férmos. E uma bela carreira, mas sera sacrificada. Nao
cultura para conduzir-se na vida. O que aprende é a jerés horas para repouso. Nao me deixe! Imploro-lhe, seja
mentir mesmo. rico ou seja pobre, desejo ter uma muther. Vocé despertou
Maria Clara compreendeu que nado podia desanimar-se. as glAndulas do meu organismo. Aquela apatia que estava
Resolveu-se a estimulé-lo. dominando-me esta dissipando. Primeiro aprendi a amar-
Ihe, segundo a desejar-Ihe s6 para mim. Tenho ciumes de
--- Nés somos jovens. Vamos lutar e unidos vence-
remos. vocé. Um sentimento que desconhecia. Queria ser rico
Paulo fitou o teto pensativo. para satisfazer-lhe, poupar-lhe as tuas lagrimas. E Paulo
~— Em todos os lugares onde vou pedir emprégo sou continuava: —- Evitar éstes lamentos que constrange-me.
Vendo-te sofrer, eu sofro também, Ninguém quer perder.
preterido. N&o mais tenho férgas para lutar. JA estou
disposto a parar. J& estou descrente de tudo, cansei mo- os entes queridos e eu te quero.
ralmente e fisicamente. Estou exausto. Ela fitava aquéle homem bonito. Belo porte. E uma
Maria Clara. olhou as quatro paredes enegrecidas. O alma tao fragil. Comegou a recordar-se de seu pai quando
ar peneirava pelo teto. Ela sentia frio. dizia algo e imprecionava tanto. E agia. Mas ela nao podia
— Ev vou voltar para a casa dos meus pais e pedir maldizer-se tanto. Ela era a Unica culpada de sua derrota.
perddao. Preciso do apéio moral de meus pais. Depois, Desvencilhou-se dos bragos de Paulo. Dirigiu-se ao espélho.
interno-me num colégio e vou estudar. Pretendo ser en- As céres rosadas ausentavam-se do seu rosto. O seu olhar
fermeira. No convento, estudarei o resto da vida e estarei perdeu aquéle brilho de outrora. O seu aspecto era cada-
livre para o resto da vida. Consagrarei minha vida & cari- vérico. A aflicdo que sentia interiormente estava visivel.
dade, auxiliando os pobres j4 que 4@les tanto sofrem no Olhou a Paulo que dormia tranquilamente como se nao
mundo. E Deus ha de ter pena de mim. Deus ha de tivesse responsabilidade alguma. Tinha a impressdo que
auxiliar-me. féra transportada de um mundo para outro. Ja estava
Paulo, concordando, estreitou-a nos bracos por instan- sentindo grandes saudades de casa. De sua mae téo améa-
vel cada vez que seus olhos se cruzavam e ela fhe enviava
tes e ela olvidou sua preocupagao e retribuiu suas caricias.
um sorriso. Seu pai, quando saia a cavalo pelo bosque e
Aquéle homem domiriou-a por completo, Disse-Ihe coisas
ela acompanhava-o, aspirando o perfume que exala das
belas e fernas. - _
— Entdo a minha ilustre espdsa jé esté pensando em flores, o zumbido das abelhas a pousar aqui e ali e mais
ir embora e deixar-me para sempre. E recluir-se num acol4. E, agora, residindo numa cela, pois o quarto era tao
convento. Quer deixar-me aos cuidados da saudade que pequeno! E ela supunha estar encerrada numa masmorra.
hei de sentir na tua auséncia? Ao meu lado, vocé hd de O homem que ela, sem refletir, dera sua vida era um inutil.
Que grande érro comete uma mulher que ama um homem
aborrecer-se porque sou indpio. Mas num convento as
disciplinas sio severas. E se féres disignada para trabalhar 86 porque éle é bonito! O seu caso era insolucionavel.

1
1

RENENP es e ¥
Deu um longo suspiro e resolveu deixar de pensar. “Nao Maria Clara sentiu uma revolta interiormente. Paulo
fenho outra alternativa a ndo ser deixar a minha vida aos era seu espdéso. Nao ia admitir que the diminuisse. Preci-
cuidados do futuro”. Abriv a valise e retirou suas jdias, sava defendé-lo.
colocou-as na bdlsa e saiu sem pintura. Estava trio, resol- — Agora, éle tem responsabilidades, respondeu Maria
veu vestir o casaco de pele. “Vou vender essas jéias, disse Clara resoluta.
consigo mesma, néo vou mais usé-las. Quem perde a As vizinhas ouviam e se estreolhavam.
iluséo n&o se preocupa em engalanar-se. Andando pelas — Pode ser. Mas eu nado creio que éste homem rege-
ruas como autémata, dirigiu-se & casa de méquinas, per- nere-se. Ele vive aqui, mas n&éo paga aluguel e nado faz
guntando pelo gerente. Um empregado conduziu-a ao nada, retrucou uma das vizinhas fazendo gesios, enquanto
escritério. Depois dos cumprimentos, ela explicou o que a outra continuou:
desejava: trocar as jéias por uma mdquina de costura. — Quem lhe auxilia é a tia, dizem que ela é muito
O gerente examinou as jédias minuciosamente e con- rica. Esta vila lhe pertence.
cluiu: “S30 auténticas. A senhora pode escolher a maquina — Ele dormia no albergue, ela ficou com dé e deu
e deixar o ender&co que nés Ihe enviaremos. Amanha a isto aqui para éle morar. N&o espere nada déste traste
senhora retorna para liquidarmos o negécio. Creio que de homem. Ele hé de ser um reboque na tua vida. &
ainda vai sobrar dinheiro para a senhora.” melhor a senhora ir praticando no corte e costura. Se a
Maria Clara chegou em casa radiante. Convidou os senhora n3o trabalhar hd de sofrer muito, (comentario éste
vizinhos para ver a maquina. feito com escarnio que feriu fundo a pobre Maria Clara).
As vizinhas examinavam a maquina. Algumas demons- E continuando disse:
travam inveja. Por intermédio da maquina, iniciou a ami- -- Eu sou mulher e tenho dé das mulheres que sofrem.
zade de Maria Clara com a vizinhanga, Se a senhora precisar o meu quarto é o numero nove. O
~~ A senhora é do interior? meu nome é Dona Maura. Perguntando:
— O que pretende fazer?
— Sou, sim senhora. Respondeu com cortesia porque — Oh! Nao sei. Estou téo confusa, suspirou Maria
queria saber o motivo da pergunta.
Clara demonstrando profunda tristeza.
— Eu logo vi que a senhora n&o era de Sao
Paulo. — Agora a senhora tem a maquina; pode pegar rou-
— Por acaso as pessoas do interior sdo diferentes das pas de fora para costurar em casa. E nao adianta pensar
pessoas cle So Paulo? Aquela ironia feriu-a imensamenie. nas contingéncias da vida. Quanto mais se pensa na vida
— Porque uma jovem de Sdo Paulo n&o se casaria mais confusa se forna.
com o Paulo Lemes. Todos admiram a grande coragem da Dona Maura circunvagou o olhar pelo quario pobre-
senhora casar com um homem que sé sabe dormir e la- mente mobiliado e condoeu-se de Maria’Clara.
mentar-se. Agora éle esté bem, continuou, uma espésa -— Voc&s n3o im vtensilios domésticos?
costureira lhe garante 0 pao de cada dia. ~-- N&o, senhora. O Paulo ainda nado comprou.

80 PR-6 81
Don Maura deu um i ong
longo suspiro que vais costurar? perguntou-ihe sor-
iro” e disse condoida —— Quer dizer

nia
- _ a senhora esperar pelo Paulo tanto mais animado.
nunca Os tera. ridente, um
de fo
— Ela nao cré e m nds,5 , exclamou uma
voz metalAliica , ig4 — N&o sei, Paulo. Nao sei.
-— Mas meu amor, ninguém vive sem trabalhar.
bel A noticia espathou que o Paulo havia
casado com uma — Vocé sabe dar a receita para os outros. Mas nao
ela mulher. Que era a mais bonita da vila.
do-thDona
sabe utiliza-la.
e Ruth olha va o lindo
i rosto de Mariai Clara dizen-
Paulo mordeu os ldbios; sentou-se na cama e redar-

Vocé podia candidatar-se a miss. guiu:
net Maria Clara pensou, “porque seré que —- De manha vocé nJo me dava respostas felinas. Era
éles no me
inciuiram nos concursos de beleza na minha ferna e meiga, parecia estar disposta a compartilhar-se de
terra? Ahi ser do
E porque, sou filha... minha vida, tal qual corno é E voc& n&o parece
do coronel”, ,
interior. Logo no primeiro dia que sai a rua ja conseguiu
7
Vocé jd almogou? perguntou Dona Maura
alisando de costura; ja esté aprendendo. a exaltar-se.
os cal elos ondulados de Maria Clara. Faz quinze uma maquina
dias que O
voces esfao aqui e nao os vi cosinhar. -— Meu Deus, obtemperou Maria Clara, Meu Deus!

—~ Eu passo a sanduiches. homem para ter farca moral necessita ter dinheiro! Se éle
M -— Pobre menina! Foi a
nao tiver dinheiro, 6 humilhado.
exclamacao sincera de Dona
auta, Que nao se conformava com a vida desajustada — Quem sera que inveniou o dinheiro? murmurou o
da
quem quer que fésse. Era uma mulher t3o nobre. espéso meio absdrto.
Quando
rezava, suas preces eram suplicando a Deus
para prote Sei que a espésa é uma coisa muito delicada, que
todos os habitantes do mundo.
oer merece o desvélo de um homem sensato. Eu nao posso
—— E que nds nado temos dinheiro. Paulo disse viver com vocé porque nao tenho recursos para conser-
vai pedir emprestaco.
“ve var-te ao meu lado. Vocé esté se transformando, continuou
profess6ras. Ja esta mesclanclo com as
7 Nunca tera porque ninguém the empresta, ale Paulo, teve otimas
deve nao residia
muito @ néo paga e, quando cobram, éle exalta, vizinhas... Otimas amizades. Se eu pudesse
A reuniao se desfez. em habitagdes coletivas. Que disse as vizinhas?
Quando Paulo chegou Maria Clara estava — Nada que possa lhe interessar.
suspirando
e lamentando aquéle casamento. Paulo despiu o paleté o olhou o rosto de sua espdsa
; — Oh! i Exclamou Paulo admiri ado, e disse:
observando © novo
evel introduzido em seu quarto. por habito defender os espésos.
Uma maquina? Que — As espésas tém
eleza! Como conseguiu dinheiro para compré e inquieta pés-se a estalar os
d-la? Maria Clara nervosa
— Por af. Respondeuy Maria Clara indiferente dedos lembrando as cénas com os vizinhos:
82 83
car —- Elas Ss disseram de vocé. Que a nossa amizade era indissoldvel,
di que os seus esposos nao" gostam de separar-me
de mi-
em casa, gostam de trabalhar: : que eu também tinha possibilidades para desfazer
i o de um trem. N&o com-
— Senndo assim...
i o meu nome est&ve em evidéncia. riha vida, Podia atirar- me debaix
E agora que
Flsfletnds de. todos e de tudo... Ai, ai, suspirou Paulo
prendera bem os sentidos daquelas palavras.
nao tenho corage m para
in 0 @ meneando a cabeca, Sabe, Maria, eu hoje no me encontro numa situagdo frégica
posso adapta r-me neste
Consegui os sanduiches... eliminar-me, embora saiba que n&o
nao sabem educar
com —woesEst“am Paulo. J& A sei sei que n3o poderia contar ambiente. Como sofre as pessoas que
os meus. Na
€. Vou transformar-me em penitente os seus desejos. E eu... nao soube educar
Ja estou a. E me sentia
com saudades de papai! casa de papai eu tinha tudo que desejav
ilidade de es-
Eu sinto nao pode
infeliz. La havia abundancia, confério, tranqu
dizer ° esmo, ndida da grande
pirito, criados ao meu dispor. Estou arrepe
rep! cou Paulo

Uma mu-
Fe pnsiy ndo ouvir as palavras insensatas de Paulo. loucura que cometi amando-ie e desposando-ie.
nZo tem quali-
Recordando oe, com fome, nada temos para corner. ther espera tudo de um homer, mas vocé
ades. E, num desespero
gue fatturs recon i ventude, aludiu com voz saudosa dades dominantes. Nao tem habilid
: Clara a jamentar a sorte.
mimes foe le Papai! La ninguém passa fome. Os desorientado, continua Maria
Nem férga moral, nem cré-
E ov penser Isa SdO mais bem alimentados do que eu. —— Nao tem tenacidade.
que ficamos nos
felicia po era o dinheiro que impedia a minha dito. infelizmente foi depois de casados
fatalidade. Nao
ane 2 a reconhego conhecendo. A nossa unido é obra da
quanto sou infeliz.
nervosiono sane na testa e apertou, demonstranda yivernos tempo para conhecermos.
VO0z estentérea de
ee oe murmurou: ’ Ambos sobressaltaram-se com @
infausia ara “ pane [orses para suportar esta existénc Dona Maura chamando-thes:
ia empresta a md-
Quando eu vio vee le meus dias, ° que podera ocorrer. —- Dona Maria Clara, a senhora me
eu dou-te um prato
dim ou dew tor i “ seu pal escrito no banco do jar- quina para eu fazer um vestide que
Monte fan oe y vg 0 de voce. $6 agora comprendo que de sopa.
Um praio de
are eu fie oe em inteligente. Quando li Coronel era -_ Aceita, Maria Clara, insistiu Paulo.
baixin ho nes seus ouvidos .
each : prevengao. Em vez de Paulo Lemes eu sopa te fara bem, falou
ordens, Dona Maura, respondeu Maria
‘a chamar Patlo Tolo. Parece que vim ao mund _— Esta as suas
destinado a cometer tolices, Clara, com uma Voz de desolacdo.
“ wee Pe vou estread-la, a sua
Faz-ece um siléncio
nondero ilénci tumular 1
antes que Maria Clara — Oh! que bom! sou eu que
maquina.
maquina. Acionou
_ — Quando mama U-me pata afastar-me de Dona Maura entrou e seniou-se na
Vo.
vee que 0 papai retinha possibilida
wage
des para desfazer-se de o pedal, dizendo téda satisfeita:
© num segundo, eu the respondi qué nao: pretendia __ Eu vou buscar a sopa para a senhora.

85
84
Levantou e saiu apds experimentar a —. Necessito resolver uns negdécios. Abluiu-se e saiu
maquina de
costura. as pressas. ,
Maria Clara enxugou uma lagrima Paulo quiz segui-la. Mas ela néo o convidou.
que surgiv contra
@ sua vontade e perdeu-se em recordacdes. Ficou nervoso com os pensamentos a bailar-lhe no
Pensava: “na
ne de papai eu n3o tomava sopa. E 0 papai insistia tanto. cérebro. Interrogando a si prdprio.
ona Maura voltou com um calderao de
sopa e dois peda- — Onde seraé que vai a minha espésa? Ela nao co-
gos de pao. la sentar-se quando notou que nhece a cidade. Sera que j4 encontrou algum pretendente?
Maria Clara
nao finha pratos e nem colher. Quando Dona
Maura saiu Ontem. ela saiu e trouxe uma madquina! E hoje... o que
para buscar a vasitha Maria Clara ajuntou: sera que ela. vai trazer novamente? E mais apreensivo
— Como hei de bendizer prosseguia seus pensamentos. Ela era uma ave que esta-
esta senhora! Estou com
tanta fome! Recebo esta sopa como dédiva do céu. va encerrada numa gaiola de ouro. Nao vai habituar-se
Dona Maura retornou-se, entregou-lhe os pratos numa gaiola de ferro.
e as Maria Clara foi direta a loja para terminar o negécio.
colheres,
Paulo forrou a mesa com um jornal para no . O gerente recebeu-a amavelmente dizendo-lhe:
sujar a — Avaliei tuas jédias, valem vinte mil cruzeiros.
tealha de linho. E colocou o caldeirgo em cima
da mesa. —.Eu desconio os 3 mil da maquina e ainda sobra
E serviu a sua espdsa. Ela comia tudo, com tanto prazer
comose fésse a primeira vez que comia na sua vida. desessete mil cruzeiros para a senhora. Onde adquiriste
— Como esté gostosa!
estas jéias? perguntou-lhe.
Exclamou, j4 com acenos de
alegria. Seu apetite era grande. Agora ela sabia dar valor — Nos meus. aniversérios os amigos de papal me da~-
vam jéias auténticas. Pretencia guarda-las... mas, a minha
a uma cédea de pao
vida esté sem: leme, preciso ce dinheiro para dar-lhe rota
Finda a refeicg0 sentiu os membros desfalecer-s
e. A certa.
rabese Pesar como se fésse de concreto. Quiz
erguer oO O gerenite entregou-lhe o dinheiro sorrindo. “Assine
raco e nao conseguia. O brago estava pesando
tanto que 9 recibo".
a desanimava. Reclinou-se no travesseiro e adormeceu,
Maria Clara depois de. assinar guardou o dinheiro na
Despertou-se no ouiro dia e perguntou: bolsa.
~— A Dona Maura ja foi? com o
© gerente aconselhou-a a tomar cuidado
tal Paulo deu-Ihe um ésculo e fitando-a com interésse, dinheiro. -:
alou: e saiu.
Maria Clara’ despediu-se
-—— Vocé dormiu téda a noite. A sopa foi Foi a uma loja comprar utensilios domésticos. Fogao,
reconfor-
tante. Passacio alguns instantes Maria Clara “"TSTa” para .g@neros, uma bacia, laias de doces, um radio,
disse ao espdso
que precisava sair.
sapatos,’camisas e um relédgio de pulso para Paulo. Deu
— Onde vai? indagou Paulo. o: ender&cgo para evar-em casa.

86 87
Quando chegou, Paulo estava impaciente, andando de para o patrdo nos mencionar nas suas reunides. E se
um lado para outro.
necessaério fér, dar boas referéncias para vencer na vida.
— Demorei, querido? disse-lhe Maria Clara quase Devemos ser bons porque todos preferem o que é bom.
sorridente.
Esse didlogo foi abrutamente interrompido por uma
—— Até que enfim retornaste! Paulo com a presenca
voz de homem que perguntava:
da espdsa sentiu-se mais aliviado.
— E aqui a residéncia de Dona Maria Clara Lemes?
— J& estou habituado com vocé. Fiquei nervoso, A visinha indicou-lhe. .
pensei que vocé nao ia acertar o retérno, que ia confun-
O que irritava Maria Clara era a curiosidade dos visi-
dir-se com as ruas, porque vo? nao conhece a Capital.
nhos. Quando alguém mencionava seu nome as. visinhas
-~ Olha 0 que eu trouxe ‘para vocé, Entregou-lhe um
saiam de seus quartos para averiguar o que havia ocorrido.
embrulho,
fram umas curiosas, uma bisbilhoteiras. Ela admirava de
Paulo cesfez o embrulho rapidamente.
ver uma familia de cinco pessoas residir num Unico quarto.
—- Oh! que maravilha, um estojo para barbear-me. Como é diferente a vida dos pobres! Quando saiam, iam
Cigarros! Que espésa nobre! Parece que advinha meus bem.vestidos que nas ruas era dificil distinqui-ios dos ricos.
desejos.
Maria Clara ia recebendo as compras e conferindo na
-— Paulo, a Unica coisa que imploro-te é nao pedir fista. Paulo fitava tudo extasiado, tudo em proporcdes.
cigarros a ninguém. Ja estou farta de ouvir isso: “Puxa
—— Veja, Paulo. Ele ficou deslumbrado quando viu os
que homem... n&o faz nem pros cigarros“! Isso ja &
hu- ternos de 1a e linho.
milhante demais para mim e para vocé. Aprenda a
ter —~ Que camisas chics. Quando os visinhos ver-me bem
opinido. Esforga-te para vencer e suplantar as tuas fra-
vestido vao invejar-me.
quesas. Maria Clara prossequiu com seus sermées: —— Paulo eu n&o comprei éstes ternos para que os
—- © papai sem conhecer-te classificou-te. E eu, sa
visinhos ihe invejem, mas para voc& conseguir um bom
néo te desse aquéle dinheiro como é que vocé ja pagar o
emprégo. N&o mais estamos na época das infantilidades;
nosso casamento? Ja fazem quinze dias que nos casamos e

re
jA que nos casamos, vamos ser corfeses mituamente, vocé
eu tenho a impressdo que j4 faz um ano. Quando é que
pensa na minha felicidade e eu na tua. No pretendo
vai trabalhar? perguntou Maria Clara um tanto indignada.
continuar lamentando.
~—— Nenhum patrao tolera-me! aontorisn:
Prosseguiu Maria Clara:
— Se vocé portar-se como um principe, esté claro -—~ Quem sabe, se Deus nos auxilie, a boa aparéncia
gue nenhum pairaéo suporta um empregado moroso.
Mas favorece. Estou disposta a viver modestamente.. Eu vou
se vocé demonstrar interésse pelo trabalho o patrao
ha de aprender costurar para auxiliar.
rotar o teu esfér¢go. Eu nunca trabalheil. Mas se algum
dia
eu precisar trabalhar,.hei de fazer o possivel para
nao Quando ouviu pronunciar seu nome, pensou: — Serd
Cecepcionar o patro. Precisamos trabathar com eficiéncia @ coronel? Ai, meu Deus, &le vai matar-me!

88
89
|
E perguntou assustado, manos. O Paulo ndo deixa dé ter razao. Como é sacrificada
—— Maria, é teu pai? a vida dos assalariados. E por isso que éles reclamam da
: —- Oh! Paulo, é 0 carroceiro que veio trazer os sacos existéncia. Serao os ricos os causadores d&ste descontenta-
3i
de arroz e o feijdo que eu comprei. Mas no ato da compra mento? “Sem atinar pela resposta, divagando no alto
dei o teu nome. E vocé o dono da casa. mundo dessas cogitagées, Maria Clara sem querer estava
As visinhas aglomeravam nas portas para ver o carro- competindo com as mulheres pobres, Mas se reconhecia
ceiro empilhar os sacos. inferior. Quando ela era rica imaginava que era superior
Quando Maria Clara acendeu o fogao o quarto ficou em tudo e sempre pensava: “Vim ao mundo para ser uma
mais alegre. boneca-de vitrine”. Mas agora estava triste e desanimada;
Paulo foi buscar um balde de dgua. Sorriu vendo Foi aprendendo a lavar roupas desajeitadamente, o
Maria Clara com avental descascando batatas. Dona Maura sab&o ia enrugando a sua pele e ela olhava para suas maos
deu-lhes um guarda-comida. Ela pediu a Dona Maura para e mostrando para Paulo dizia:
ligar a luz. Quando o radio tocou, Paulo acompanhou a — Olha a méo da pianista.
musica com um assobio. Deu um suspiro e comentou: E éle sorria dizendo-the:
— A nossa vida esté melhorando. — Vocé agora toca outro piano. O piano da vida,
— A tua vida pode ser... disse Maria Clara, mas-a de teclas de pedras enegrecidas pela fome.
minha esté igual a um novelo de linha quando emaralha-se. Maria Clara continuava apreensiva e amargurada pelas
Ja & tempo de levarmos a vida a sério.. Breve seremos circunstancias. Ela nao quiz dizer a sua origem para os
trés. Eu jé comprei agulhas e lA para confeccionar os sapa- vizinhos, A Unica que lhe agradava era Dona Maura que
tinhos. nao the jogava indiretas aludindo o passado. Era a Unica
— Eh! Um filho! exclamou Paulo admirado. Que espésa que procurava orienta-la, estimulando-a.
maravilhosa! Melhor nao podia ser. Oferece-me tudo que -~ A senhora agora tem a maquina, aprende a costu-
eu desejo ter. Eu devia ter ido ao interior hd mais tempo! rar, aludia Dona Maura. E continuando: uma boa costu-
Maria Clara depositou o resto do dinheiro no. Banco. reira vive melhor que uma doméstica. .
E comegou a procurar trabalho. Pegou roupas da oficina Maria Clara sobressaltou-se, perguntando sem querer:
para costurar. Mas, aborreceu-se logo. Doia-lhe as costas. — Meu Deus, seré que vou ser empregada doméstica?
Quando ia entregar as roupas, a patroa examinava tudo e Quem jem profisso vive mais tranquilo.
reclamava perguntando-lhe: Dona ‘Ruth inierferia-se, dirigindoa Maria Clara um
— A senhora aprendeu costurar no inferno?. A se- bombardeio de perguntas:
nhora precisa costurar com mais capricho. — Quem € a senhora?
Ela pensava: “néo tem nada de agradavel ter patroa — A-senhora tem parentes?
que humilha o pobre trabalhador. Tédas pessoas que sao =+ A senhora nao é do nosso nivel social?
ricas deviam conhecer a pobresa; haviam de ser mais hu- ~- A senhora tem sangue fidalgo?

90 91
Dava-lhe dor de cabeca e ela revoltava-se.
Maria Clara eram os susurros, Carlos o filho de Dona Ruth,
— Como é insipida a vida nas habitagdes_cole
tivas. no conhecia a Maria Clara, perguntou a Paulo:
Uns querem saber a vida dos outros. E as discérdias — Onde 6 que vocé encontrou esta fada?
Quando Maria Clara via as vizinhas brigando, ela unia °
Seu corpo ao de Paulo e estremecia dizendo-lhe: Respondeu Paulo envaidecido:
~— Paulo! Paulo! Se elas brigarem comigo eu nao sei — E milha espdsa.
lutar, — E com que vocé sustenta a tua espdsa? retornou
Era uma confuséo no quintal; © rapaz.
a rddio-patrutha
chegava; elas iam présas e dormiam — Com ar! disse Paulo ironizando.
na prisdo. As que
tinham filhos voltavam Para casa. Carlos prosseguia com risos de mdfa. Paulo e o tra-
_ Meu Deus! Que mundo é éste que estou balho s&0 inimigos irreconcilidveis.
! Eu desco-
nhecia tudo isto. Pensava com repugnancia: Daf seguiu-se um doloroso siléncio.
“o meu filho
vai nascer © crescer nesta pocilga? Ohi Maria Clara comeégou a chorar.
Meu Deus! Porqua
nao morri quando nasci! Que exisféncia — Que espécie de gente vocé escolheu para fazer
negra e hedionda“
A tia de Paulo foi cobrar o aluguel e ficou amizade? E continuou. "“Precisamos escolher pessoas de
encantada
com
a beleza de Maria Clara e perguntou-lhe incré cultura que nos respeite e saiba nos considerar, percebo
dula:
— Minha filha! Vocé teve coragem de casar que 6 muito tarde para vocé reabilitar-se. Juro que jamais
-se com
© meu sobrinho? Com esta beleza vocé ‘podia hei de sair com vocé. Que casamento eu fiz, meu Deus!
jer-se casa-
do com um doutor! Estraquei minha vida"!
Maria Clara suspirou e disse-the: Seguiram sem trocar palavras até a suntuosa residéncia
— Eu pensei que tinha me casado com um doutor. de Dona Raquel.
—— Vocé f€z um péssimo negécio, prepara-te para Maria Clara admirou a vivenda, chegou dizendo estu-
sofrer e lutar, vai passar uns dias 14 em pefada:
casa. Vocé aqui
€ como a flér fora da estufa. O Paulo nao assim.
tem muito juizo — Que primor! Eu sonhei com uma residéncia
Vocé hd de necessitar do meu auxilio, porisso
& bom tor- Que jardim magnifico!
nar-nos amigos. Vou dar-te o ndmero do
meu telefone Qual ser4 o prego de uma residéncia assim?
Espero-te amanha. . - coe , Paulo perpassou o olhar ao redor de tudo e respondeu
Maria Clara selecionou seus vestidos de gala
e arrumou Cistraido.
as malas. Quando o dia surgiu ela e Paulo foram para casa
—- Uns quatro milhdes de cruzeiros.
de Dona Raquel. Foi ostentando um lindo casaco de peles, Maria Clara retirou o lengo do bélso e enchugou uma
Paulo levou seus lindos ternos novos, étant dé “qual
idade 6 lagrima.
° corte impecavel Ihe transformou, Parecia um artista — A trés meses atrés esta quantia era insignificante
Quando os vizinhos the viram, admiraram. O
que irritava para mim, pensou. Mas cesci...
92
93
Um automével parou e dona Raquel desceu,.ga
lgou as
escadas de mérmore e ao chegar no limiar
desta foi logo
dizendo:
— Bom dia! Chegaram bem? £ fécil o caminho!
Maria Clara respondeu o cumprimento e beijou
sua tia.
-—— Aprecio as pessoas de palavras. Eu estava the
esperando,
Abriu a porta e convidou-os a entrar. la dizend
o:
— Eu fui fazer umas compras para mim; 6 um
verda-
deiro suplicio, j4 estou senil Para qualquer
exercicio,
fatiga-me.
Penetraram na linda sala de visita. Os olhos de
Maria
Clara pousou no piano. Paulo observava suas
expressdes.
Vendo o piano ela comesou a sentir saudades
da fazenda
e da casa de sua cidade. Ela ficou triste de repente, Paulo
compreendeu a causa daquela tristeza. Dona
Raquel tam-
bém ‘notou algo de errado e ficou apreensiva
e a seguir
indagou afetuosamente:
— Minha filha! vocé est4 doente. Aproximou-
se da
espdsa, de ‘seu sobrinho. “Est&é sentindo alguma
coisa?”
-— NGo sei, ando tao nervosa. .
~—— Senta. Eu vou buscar um calmante Para vocé. O
teu estado me perturba o sistema nervose. Paulo, vocé
deve levd-la ao médico. Ouviu-me?
-— Ouvi sim, titia! :
Maria Clara ficou pensativa, Dona Raquel deu-lhe o
calmante, o qual sorveu lentamente. Bebeu
para n@o ma-
goar sua tia. Mas ela sabia que no existia calman
te para
acalmar suas perturbagdes interiores,
Paulo aproximou-se.
— No fique triste. A nossa vida hé de transformar-se
se Deus quiser.
-— A tua vida n&o teve alteragao, disse..Maria Clara,

94
A minha sim, e percebo que ela vai piorar cada vez mais.
Vivo téo agitada que néo consigo adormecer para olvidar
esta tragédia. Até éste direito a felicidade negou-me. E
vocé nao procura trabalho. Ndo existe coisa mais cara do
que o corpo humano. Eu j4 estou precisando.de dentista.
Ch! eu desejo tanto a morte. Mas ela néo vem quando a
gente deseja. Ela parou de falar quando ouviu oS passos
de Dona Raquel.
" — Vocé deve tirar o casaco de pele, isso é um tanto
incémodo.
Maria Clara tirou o casaco de pele e em seguida
ofereceu-se para ir a cosinha preparar o alméco.
Maria Clara descascou as batatas, moeu a carne e lavou
as lougas. Suas maos ardiam, respirou aliviada quando
Dona Raque! disse-Ihe que o almdéco estava pronto e que
iria esperar o pessoal da familia. Apdos o que, indicaria
os aposentos superiores.
Disse 4 Maria Clara: “agora vou indicar onde 6 o seu
quarto. Venha comigo”.
Ela ia apreciando os lindos objetos artisticos, quase
perdida no meio de tanto luxo.
Gaigaram as escadas internas.
Dona Raquel abrindo uma das fdlhas da porta mos-
trou o quarto. Maria Clara apreciou tudo aquilo. Dormi-
tério completo. As cortinas cor de rosa. Desfez as malas
e guardou seus vestidos no quarda-roupa.
Deitou-se um pouco. Que sensa¢do deliciosa quando
© seu corpo teve contacto com © colch&o de molas. Mas,
nao sentiu tranquilidade. Ela estava sempre apreensiva a
espera de alguma coisa imprevista.
Paulo ficou sentado na sala de visita fumancdo. E
Maria Clara adormeceu preocupada com os problemas de

PE-7 97
encontrar matérnidades gratuitas e que se 1/4, the iriam vestido de linho que ela usava combinava com a cér de
tratar bem. seus olhos verdes.
Paulo jogava as fumagas do cigarro e ficava pensando: Paulo apresentou-a ao seu tio e ao Renato, que obser-
“vou ser pail” vava os gestos e a posicgdo correta da nova parenta.
Ao meio-dia o seu tio Gabriel chegou para almogar. — Vocés j4 conheciam a-minha espdésa?, perguntou
— Bom dia! Paulo, nado sabia que vocé estava aqui. Paulo meio autoritdrio a seu tio.
— Bom dia! titio, chegamos agora. a pouco. Um. siléncio féz-se sem respostas.
— A iua tia disse-me que vocé casou-se e que a tua -—~ Porque nao nos partilhou o seu casamento. O
esposa € muito bonita, Que é calma, tolerante e muito
homem casaco duplica o seu valor na sociedade. Onde
educada. vocés se casaram? No Interior? Em que igreja?
Paulo sorriu, comentando: Paulo n&o respondeu por motives convencionais.
— Ainda nado the enconirei defeitos. Pretendia ocultar a verdade para evitar que Renato fésse
~— Quantos meses faz que vocés est3o casados? averiguar e o coronel por qualquer cargas d‘dgua viesse a
— Trés meses e alguns dias. O casamento estimula saber o seu enderégo.
um homem a trabalhar.
Paulo apenas respondeu-lhe aquilo que era necessa-
— Meus parabéns, vocé jd esté trabalhando? rio responder. Ja estava de mau humor querendo terminar
— Ainda nao, responcdeu Paulo meio sem jeito, aquela conversa que lhe desagradava.
~— Como vocés estao vivendo? — Onde estivesie o més atrasado?
~~ De qualquer jeito, a vida vai...
— No interior. Mas Paulo nao disse onde estéve,
Paulo remoia interiormente porque nio gostava de Paulo tinha impetos de gritar, nado queria relatar sua vida
dar satisfagdes a ninguém. a ninguém, mas precisava conter-se. Nao podia exaltar-se
Renato, seu primo, chega também para o alméco. porque éle era pobre e precisava do auxilio de sua tia.
—- Bom dia, Paulo! Renato n&o retirava os olhos do lindo rosto de Maria Clara.

ep
Paulo ergueu os olhos, mas n3o respondeu-ihe. -~ Eu soube que vocé foi préso, disse Renato com
-— Mamie nos disse, insistiu Renato, que a fua espdsa sarcasmo. O que me informaram foi que vocé brigou la
é muito bonita: Eu até pretendia ir em Guarulhos para na vila e quando fui com meu advogado para libertar-lhe
conhecé-la. Sou capaz de viajar mil quilémetros para da policia, esta ja havia te mandado para uma casa
conhecer uma bela mulher. de deteng3o fora da capital. E agora vocé me aparece
Paulo galgou as escadas e foi dizer que o alméco casado. Isto dé o que pensar.
estava na mesa. “Tera Raquel retirou os pratos e serviu a sobremesa.
Ela desceu ricamente trajada, seus cabelos castanho Maria Clara se dirigiu para a cosinha e foi lavar os
claro caidos aos ombros formando ondas e cachos. O lindo pratos e serviu a sobremesa.

98 99
—- Vocés bem que podiam vir morar aqui, retrucou Maria Clara no primeiro dia lavou tanta roupa que
Dona Raquel.
ficou completamente abatida e exausta. Sentia os ombros
Renato sorriu, um sorriso de malicia. doloridos. © seu des&jo era deitar para descansar. Renato
; Paulo mordeu os ldébios. Maria Clara j@ estava mais chegou em casa mais cédo. O seu olhar percorreu a casa
resignada, havia terminado de lavar os pratos, deixando com ansiedade: “onde serd que esta ela?”
tudo em ordem e dirigiu-se A sala de visita. — Creio que foram descansar. Respendeu, Dona Ra-
Paulo percebeu que ela ia tocar piano e que os olhares quel de mau humor.
e os didlogos sarcdsticos contra a sua pessoa iriam pelo Renato abriu a janela e fitou o céu estrelado. A noite
menos sentir uma pausa. era tépida e maravilhosa.
Ela tocou admiravelmente. Quando o senhor Gabriel chegou, dona Raquel serviu
Renato circundava-a com seus olhos e 0 ofhar de Paulo o jantar. Maria Clara foi arrumar a cosinha. Estava cansa-
estava fixo no seu rosto. Um olhar triste de inferior
e que da. Respirou aliviada quando terminou e disse:
nao podia se levantar. — fu vou dormir, estou indisposta. Vamos deitar
— Fiquei to contente ouvindo-a. Paulo?
E Renato aproxi-~
mou-se e beijou a testa de Maria Clara. Onde estudaste? —- Se vocé esta indisposta nada melhor do que dar
Maria Clara deu um sorriso como resposta. umas voltas de automével, retrucou Renato.
Se ela
revelasse o nome do colégio onde féz seus estudos Dona Raquel insistiv e Maria Clara saiu contravontade.
Renato
podia investigar e descobrir o seu passado. E ela nao queria © carro deslisava no asfalto. Ela se sentia irrealizada porém
revelar sua descend&ncia. assim que ela sonhava um espéso, uma boa casa, um bom
Renato estava inquieto e preo-
cupado. automével, noites de luar...
Renato comprou déces, fléres e frutas e Cisse:
A familia anfitrid. mantinha em si um pensamenio
— Amanha vou levar-te ao cinema, vocé vai ser mi-
coerente: “N&o se pode compreender-como é que uma
nha amiguinha, sabe? eu nao tenho amizade feminina.
Jovem tao culta tenha coragem de casar com um homem
Estou tao contente com vacé!
irresoluto como Paulo. S6 mesmo um amor profundo que
— Se o Paulo deixar, eu vou ao cinema com vocé!
perturba os sentidos e domina a raz3o."
.- Ah! & mesmo, eu pensei que vocé era livre. Des-
—— Oh! Paulo, vocé nao pode maldizer a sorte, Renato culpe-me! 7 co
disse, suspirando irénicamente.
© sil€ncio pairou no ambiente. Uns desciam outros
Paulo estava nervoso. O inter€sse de Renato por sua
subiam com fidéres nos bragos. Todos passavam alegres ou
espdsa preocupava-lhe. Ele tinha dinheiro, automével.
tristes. Era a mesma coisa. Que importa o mundo?
Maria Clara passou a fazer os servicos de casa, acei-
tando morar na casa em troca de ajudar arrumé-la e fazer Logo que chegou, Maria Clara retirou-se
tivesse dinheiro”!
a comida.
para seu: quarto.

100 101
7 Bonita ndo é, papai? retrucou Renato euférico de a liberdade. “Se eu fdsse préso em crianga, teria aprencido
jer iniciado a conquista. —- Para mim ela é uma muther um offcio, pelo menos teria um oficio...”
de valor. Casou-se por amor com Paulo. Nao pertence Paulo sempre féra preterido. E nunca adquiriu agao;
a Classe das mulheres fiteis. Dona Raquel mordia os lébios perdeu a fé em si prdoprio. Porisso éle nunca conseguiu
pensando que o seu espdso estava lhe jogando indiretas. um bom emprégo, passou a sua infancia dormindo nas
Mas ouvia sem interferir. Dona Raquel sentia também que casas abandonadas. Naquela noite tude corria-Ihe pela
ela tinha tédas as qualidades de ser mulher agraddvel e cabega porque Renato estava tentando cativar-lhe a espésa.
atraente. Percebeu que ela havia sido criada na opuléncia.
O dia despontou-se, Paulo desceu. Renato vestia-se e
A conversa de pai e filho continuava.
dirigiu apenas um sorriso de télogo para Paulc, que se
— Viu o lindo casaco de pele? disse Renato e admi- sentiu angustiado profundamente.
rado ajuntou: “Nao descansarei enquanto n3o descobrir a
-— Vou fazer o que te horrorisa! Vou trabalhar. Nao
sua genealogia!”
sei como é que vocé consegue manter a sua espésa!
; Renato retirou-se para seu quarto perguntando a si
Paulo dirigiu-lhe um olhar colérico, respondendo:
proprio:
-—— Isto compete a mim. Vocé nao precisa interfirir-se
— Quem serd esté mulher?
na minha vida. Nds ainda n3o estamos precisando de ad-
Paulo contemplava a sua espésa que dormia tranqui- Nao
vogados. Se vocé casar-se juro que serei neutro.
lamente. Os pensamentos lhe atormentava a jovem que comigo e desde
jimiscuir-me-ei na tua vida. Faca o mesmo
dormia. E o pensamento de Paulo foi vislumbrado:
§€ os meus agradecimentos. Ela aceitou-me tal e qual
~— Quando ela perder a ingenuidade, hé de deixar-me.
como sou. E nao lamenia.
Ela ha de aborrecer-se de mim, E o que ha de ser de mim sofrer.
— Mas é pena deixar uma mulher tao bonita
quando perder o seu afeto? E o homem gosta de tudo porisso, se eu me
Eu sempre dei muito valor as mulheres,
que hd no mundo, Das mulheres principalmente. Tenho a
impressao formar em advocacia pretendo protegé-las.
que arrebatei uma rosa da roseira e n3o tenho
um vaso de cristal para depositd-la. Para proteger a minha espdsa, aqui estou eu!
Paulo. cogou a cabega em sinal de protesto,, duvidando.
Paulo falava sussurado e nfo conseguia de forma
alguma dormir. Maria Clara que trabalhara o dia inteirinho — Voc& nao me considera um rebotalho s6 porque
dormia de cansaco. nao consegui fortuna, estou disposto a nao mais procurar-
e eu preciso
. Paulo revoltava-se contra o destino impiedoso que lhe vos, a sua interferéncia so pode prejudicar-me
féz desposar uma mulher arquimiliondria. Reconhecia que e quero viver bem com a minha espésa.
olhou o relégio. Vestiu o paleté e deu um
- estava cada vez mais apaixonado por ela e n&o podia Renato
afastar aquéle amor ardente, impetuoso e sincero. Come- longo suspiro e disse:
estou apenas advertindo-te. Eu
gou a recordar o seu passado. Nao conheceu a sua mae. i\ — Esta bem, Paulo,
que vocé no tinha senso. Mas vocé esta pro-
Vivia correndo da justica com receio de ser préso e perder supunha
i
|
L 103
102 |
i
vando ao contrario. Lembra-te que quem fala e naa age — Vocé é uma estréla que veio iluminar éste reino,
néo tem valor e nao prospera. comenitou o senhor Gabriel que ia descendo as escadas
— N&o pretendo te desagradar, vocé é o meu Unico sorrindo. Fitava Maria Clara igual! a um pintor que fita a
primo, queria ver-te reajustado, vé se consegue emprégs.. . tela que esta pintando.
e completo: a mulher espera tude de um homem. Porisso Maria Clara sorria e se mosirava muito contente.
o homem que decide possuir uma mulher deve provar-lhe O contentamento de Maria Clara deixava Paulo intran-
que é um homem. Até logo! quilo que se punha a pensar: Ela nasceu predestinada a
Fechou a porta e saiu. Estava atrasado. viver na opuléncia.
Paulo ficou $6, néo apregiava aquela casa e as obser- Terminado o café, Dona Raquel ordenou a Maria Clara
vacdes mordazes. . que fdsse lavar as xicaras e tirar a mesa.
O sil€ncio comegou a enervd-lo. Dona Raquel desceu. Depois ela foi vestir-se para sair com Dona Raquel,
-- Bom dia! Paulo. Porque deixaste o Jeito tao cédo? que ia guiando o automdvel. Maria Clara pensava: “se eu
Paulo disse a queima roupa. tivesse dinheiro e pudesse comprar um carro, irla aprender a
—- Bom dia! Eu quero volver a minha casa! guiar. Deixava de viver na realidade para viver as preten-
— Oh! nao vae! Renato esta encantado com a Maria sdes”, sonhava. Visitaram varias lojas. Virarn coisas boni-
Clara. Ele que nado vinha almogar mais em casa agora vase tas. Maria Clara teve deséjo de possui-las. Mas, era
vir. Assim Maria Clara convenceré o Renato a prosseguir pobre. Precisava fazer economia. Ja estava aprendendo a
nos estudos. Ele foi reprovado e perdeu o interésse. O costurar. Fez um avental para proteger seus vesticios.
titulo de doutor dara mais importancia ao Renato. Vocés Comia pao amanhecido, porque o pao fresco era des-
devem ficar aqui, terao tude que desejem. Melhor do que tinado ao Renato e Dona Raquel. Requentava os alimentos.
aquela vida de padrias que vocé dava & Maria Clara. Que Dona Raquel the pedia opinido quando ia comprar
ambiente! algo. Maria Clara sorria porque sabia que Dona Raquel
Houve um sil€ncio. Dona Raquel! continuou: nao ja acatar a sua opinido. Dona Raquel era rica! Maria
— Aqui ela tem o piano para distrair-se. Dona Raquel Clara gostou das fléres que Dona Raquel comprou. Sabia
foi abrir as janelas. E os raios de sol penetrava e pousava que nao podia comprar as fidres desconhecidas que via e
nos méveis de jacarandé. ~ o$ paéssaros que tanto gosiou, pois nao podia gastar dinheiro
em futilidades, apenas olhava e desejava, mas nao se ma-
Maria Clara desceu, os olhos de seu espdso fitavam-na
atentamente. Ouve a troca de bom dia e logo em seguida nifestava.
Maria Clara disse: Quando chegaram ao Jardim Europa eram dez e meia.
— Dona Raquel, a sua casa esté um amor com essa Foram para a cozinha preparar o alméco. Maria Clara pre-
entrada de raios solares mesclando a casa... parou salada de frutas.
Os elogios de Maria Clara envaidecia Dona Raquel que Enquanto aguatdavam a chegada de Renato e do
gostava de ser bajulada. Senhor’ Gabriel para o almdco, Dona Raquel mostrou-lhe o

105
104

pepe
Meu PLES:
album de fotografias da familia’ O retrato dos pais de certa. Estou mostrando o nosso album para Maria Clara.
Paulo, Paulo. quando era pequeno. Um menino raquitico Precisamos incluir aqui o seu retrato, Maria Clara. O
e tristonho. teu retrato de noiva.
— Olha o meu retrato de noiva! Maria Clara fitou o marido, que estava com o rosto
— Vocé tirou retrato, Maria? pélido e os olhos vermelhos.
— Nao, Senhora, foi a resposta de Maria Clara acom- — Sabe, Maria Clara, quando as nossas familias fo-
panhada de um longo suspiro. ram apresentadas, o meu pai féz uma festa. A mesa de
-— O meu enxoval foi confeccionado com todo o ca- déces tinha dez metros de comprimento. Eu enfeitei a
rinho. Eu e Gabriel fomos noivos dois anos. Como é mesa com fléres cér de rosa e os pratos eram brancos.
de tudo. E uma recordagio para os descendentes. Ouvi Renato dirigiu o olhar a Maria Ciara, que folheava o
dizer que eu fiquei muito bonita vestida de noiva. album e mirava as fotografias atentamente.
Guardei o meu véu e a minha grinalda, como recordagaéo.
Dona Raquel! aproximou-se, mostrando uma fotografia.
Ouvi dizer que da sorie. isso n’o é supersticdo porque
—~ Este casal eram meus pais. A minha mae era muito
eu sou muito feliz. O Gabriel adora-me. O meu casamento
bonita. A Unica coisa que trago na bolsa de passeio é o
foi muito comentado na alta sociedade porque eu era pobre
retrato de meus pais. E vocé, Maria. Clara, tem fotogra-
e o Gabriel rico. Minha vida transformou-se. Eu ganhei fia de teus pais?
presenies ricos, jéias finfssimas. -— Nao, Senhora!
Maria Clara ouvia atenta o que dizia Dona Raquel. Agora que ela estava alf tao distante é que pensava
Nesse instante, o seu olhar e o de Paulo cruzaram-se. fle nos seus pais. Ndo foi uma filha atenciosa. Seus pais nao
recebeu as palavras de Dona Raquel como indireta. Pensou: foram hdédspedes de seu pensamenio. Ela sé pensava em
“sera que Maria Clara revelou o episédio de nosso casa- ter um homem para ela.
mento?” Acendeu um cigarro e ficou fitando a fumaca que
Quando folheava o aibum, Dona Raquel! aproximou-se
desvanecia-se no ar. e disse-lhe:
Dona Raquel continuou folheando o album e disse:
— Este aqui é o Renato, quando bebé. Eu mando
-~ Habjituei-me com esta vida fausta. Se eu chegar a fotografd-lo de seis em seis meses.
ficar pobre, creio que terei poucos dias de vida. Eu pas- Renato aproximou-se fitando seu retrato em varias
sei a lua de mel na Europa, comprei jdias na Suissa, pais da pdses.
arte. Seis meses viajando, hospedando nos melhores héteis. — Amanha vou fotografar-te para incluir-te no nosso
Como é bom casar com um homem rico! album. Ja que vocé agora é da familia deve vir morar
Maria Clara curvou a cabeca meditando. aqui, ste & o segundo convite que faco-te. E voc& faz
A campainha tilintou. Era Renato, que entrou sorrindo. companhia a mi vézes 14 no escritério eu fico
Dona Raquel levantou-se para recebé-lo, Deu-lhe um pensando nela, aqui em casa, sozinha. Se dar-lhe uma dér
beijo e disse-Ihe: —- meu filho pontual! Chegou na hora de repenfe, quem ira socorré-la?

106
107
ARE
seen om
ites caupgnc
— Oh! Renato... Vocé pensa em mim? Muito obri- Convence o Renato a prosseguir nos estudos. Diz-lhe que
gacdo pelos teus cuidados. Que filho bom. os estudos € um bordao de um homem”,
— Viu, Maria Clara... eu posso dizer... sou feliz. O senhor Gabriel chegou reclamando contra o traéfego
Bom filho! Bom espdéso! Jd que no mundo tem valor sé o que estava congestionado,
que é bom. E dona Raquel abracou seu filho e beijou-lhe. Depois de correr o olhar pela sala, perguntou:
Maria Clara fechou o album. —. .O Renato ja chegou?
EF o Renato abriu a porta e saiu para a rua. Dirigiu-se —— Ja, gragas a Deus, o nosso filho comega a criar juizo.
ao seu automoével, abriu a porta do auto, voltou'com livros — Um filho sem cabecga é uma cruz para os pais.
e fldres dizendo: & um romance para a senhora. Isso aqui — Se é! Reafirmou o senhor Gabriel tirando o paleté.
sao musicas cldssicas, vou fazer uma festa no meu aniver-
Renato desceu cantarolando a sua musica preferida.
saério e apresentar-te aos meus amigos, Vamos ensaiar para
Maria Clara observava-lhe os gestos. Era um homem
tocarmos a quatro maos. Espero que a nossa amizade nao
enérgico e decidido.
arrefecga, seriamos o melhor casal de pianistas. Eu faco
Dona Raquel serviu o almégo. Enquanto almogavam,
questéo que a nossa amizade nao regrida”.
Maria Clara foi incumbida de falar procurando estimular
Paulo tossiu para se fazer notar.
Renato a prosseguir nos estudos. Que o titulo de doutor
—~ Oh Paulo, bom dia! Vocé nao fala nada? Nao é é um passaporte na vida. Que ela admirava os doutores.
descendente de girafa. E aduziu: Que a vida dos que estudam é mais amena.
— Eis o homem que nao gosta de falar.. Vocé devia Renato concordou. Disse-lhe: “para agradar-te, vou
ser um eremita. Um homem. enigmatico. E mesmo assim estudar e juro que jamais serei reprovado”.
conseguiu uma espésa magnifica. Ela é uma jdia! E quando
— Otimo,; que bom! E dona Raquel batia palmas de-
vocé quizer desfazer-se dela oferega-me que hei de con-
monstrando contentamento. Comegava a apreciar Maria
feccionar um escrinio de ouro para encerré-la, disse galho-
Clara profundamente.
fando com Paulo. A nossa casa transformou-se com a vinda
Todos ouviam o Renato falar expondo seus projetos
de vocé. Maria Clara nos proporciona alegria da vida.
para o futuro. ,
Renato depositou as fléres e as musicas no colo de Maria
Clara e dirigiu-se para a sala de jantar. Galgou as escadas ‘ Terminov a refeicdo, Maria Clara subiu. Foi repousar,
assoviando uma vaisa que Maria Clara tocou no piano. sentiu tonturas e nduseas.
Renato ficou nervoso com a auséncia de Maria Clara,
Dona Raquel acompanhou seu filho com o olhar &
aludiu: “Ele é sincero, sé agrada as pessoas que éle sim- queria que ela tocasse piano.
patiza. Faz todo o possivel para néo magoar a nenhum Dona Raquel subiu as escadas de mau humor. Empur-
de -vocés. Ele gosta de dar presentes! Também estou rov.a porta. Maria Clara estava deitada.
contente com vocé. Agora quero que preste-me um favorl. — O que esta sentindo? Porque esté deltada? -

108 "109
— Indisposiggo e vontade de chorar. Comecou a cho- Maria Clara revoltou-se interiormente. Ela que estava
rar, os solucgos de Maria Clara irritavam Dona Raquel! que habituada a n&o ser incomodada por ninguém, agora era
queria ver as loucgas lavadias. joguete naquela casa.
-— N&o sei qual a raz3o déste chéro. Voce pode-se Que vida hedionda o destino reservara-lhe. Se estava
dar por feliz porque o Renato gosta de vocé. Te dé atengao. no seu quartinho, sofria com o desconforto. E ali no sun-
E quer incluir o teu retrato no nosso album, Vocé veio ao tuoso palacete de Dona Raquel nao tinha vontade prédpria.
mundo para ser feliz! — Vamos, Maria Clara, insistiu Dona Raquel. O Renato
Maria Clara retirou os cabelos dos othos e disse: gosta de ser obedecido. Maria Clara desceu as escadas
-— Eu era muito ambiciosa! Eu queria ser feliz! Queria compassadamente. Estava nervosa. .
ser uma FELIZARDA. Comecgo a compreender o mundo. — Oh! Até que enfim! Eu ja ia embora. Tenho ho-
Acho a vida tao sacrificada, principalmente a vida dos rério no escritério, Sao Paulo é uma bela cidade do Brasil,
pobres. Fu pensava que a gente nio softia. Agora que mas anda nos compassos dos reldgios. Para viver-se bem
perdi a iluso sinto-me t& sé e desalojada no mundo! aqui é necessdério trabalhar e ser honesto. Os homens de
Parece -que eu sou um objeto que, onde é colocado, estd Sdo Paulo nao apreciam os homens indolentes. Sdo Paulo ha
sempre incomodando os outros. de ser a maior cidade do mundo. Mas para isso é preciso
que os homens sejam arrojados, que aprendam a ler e
—— Ora, nao lamentes, Maria Clara, aconselhou Dona
aprender um officio. Temos que falar diariamente com as
Raquel. Nunca devemos desesperar da vida ou da sorte.
criangas que elas devem escolher uma profisséo. “Maria
Vocé é jovem. E melhores dias ho de vir. Existem outros
Clara mordeu os labios. Sabia que aquelas indiretas eram
que sofrem mais do que vocé. Vocé tem o Renato. E éle para Paulo. Decidiu defendé-lo. “O senhor pensa assim
simpatizou-se com vocé. Quando éle simpatiza com alguém porque fem mée para auxiliar-te na vida. E os que nao
transforma-se em protetor. Isto é para vocé compreender as tem? Um orfdo criado na casa extranha sente-se
que os ricos nao sdéo maus e protegem os pobres. A Unica cesajustado.”
coisa que imploro-te & n3o magod-lo em nada. Eu preciso
— Asenhora fala como se fésse orfa, redargiu Renato.
do teu auxilio. Ele te obedece, ajude o meu filho a ser um
Maria Clara ndo respondeu-lhe.
verdadeiro homem. Nés as mulheres devemos unir-nos
— Bem, vamos tocar piano, vocé toca tao bem! Parece
Para educarmos os nossos filhos. A pdtria requer homens
que vocé anda esquivando-se de mim!
decentes.
—— Oh! Renato! N&o penses nisto! E que eu senti
~— Como é, mamae! Vem, ou nao vem? indisposigao, respondeu Maria Clara com voz quase apa-
vem Vou-{8, Renato! gada. Porisso fui deitar um pouquinho.
-- Vamos, Maria Clara, o Renato reclama a tua pre- — Depois da musica quero que vocé va lavar as lou-
senga! gas ordenou-lhe Dona Raquel.

110
111
-— Esté bem, disse Maria Ciara, j4 que aqui em sua Fu pagava uma senhora para fazer @stes afazeres. Mas
casa sdo os desejos de Renato que predominam, depois eu vocé esta aqui, vocé faz.
vou lavar as lougas. Maria Clara e Paulo galgaram as escadas novamente.
Maria Clara sentou-se ao piano, procurou reter as Quando entraram no quarto, fecharam a porta com a chave.
lagrimas que brotavam-ilhe dos olhos. Seus dedos ageis Ela comegou a chorar, abragou o espdso e suplicou-lhe:
deslisavam no teclado. Sentiu dor de cabega, o som do ~~ Oh! Paulo, meu amor! Eu quero ir-me embora!
piano penetrava-lhe nos ouvicdos e alojava-se no cérebro, Mal por mal prefiro o nosso quartinho. Ao menos, eu
parecia agulhas a perfurar-lhe os miolos. Agora, ela com- tenho sossego, posso dispdr da minha vontacde. Ndo nasci
preendia o suplicio dos pobres para agradar os ricos. E | para ser dirigida. Eu aqui nao tenho tranquilidade. A tua
ha ricos incontentaveis. tia quer transformar-me em ama-séca déste tal Renato. Ele
Renato ouvia atentamente. . é petulante.
Quando ela parou de tocar Renata quis saber se ela Maria Clara se desmanchava em solugos.
tocava desde crianga. — — um homem detestaével. A gente pode aprecid-lo
— A vové tocava. A mamae toca. E eu comecei apenas por uns minutos, Ela pensa que é a Unica mulher
estudar aos seis anos. rica neste mundo.
— Percebe-se. Meus parabens. Paulo fitava a sua espdsa, estava de pleno acdérdo com
Maria Clara fechou o piano e dirigiu-Se ao Paulo. ela, € acrescentou:
-—— Vamos subir. Preciso falar-te. -—— O dinheiro em excesso 4s vézes deixa as pessoas
Paulo acompanhou-lIhe, iam galgando os degraus estupidas.
quando Dona Raquel impedciu-thes. — Mas a tua tia nao tem dinheiro em excesso. E
—— N&o, Maria Clara, desce que vocé vae lavar as uma burguesa enriquecida. Tipes incultos que quando en-
lougas. riquecem ficam
desumanos.
Maria Clara desceu novamente e dirigiu-se para a ~~ Querida Maria! Eu nunca fui rico. Nao tenho
cosinha. Dona Raquel acompanhou-the altiva como se fdsse autoridade para falar. Isto é com vocé e titia. Falei insen-
uma deusa grega. Disse-ihe: “eu gosto que lave as loucas satamente uma vez. E as consequéncias foram funestas.
com agua quente”. Fiscalizava tudo, obrigando-a Javar Como as palavras arruinam um hornem!
novamente. Ela obedecia resignada. Paulo recordava da mentira empregada para conquis-
Quando terminou pediu permissio para ir ao seu far as boas gracas de Maria Clara: “Eu sou dentista”. Agora
quarto. . é que compreendia a férga que tém as palavras.
— Vae depressa porque o Renato quer’ que vocé — Eu pensei que vocé estava apaixonada pelo Renato.
passe suas camisas. E éle ndo gosta de rugas no colarinho. Agora vejo que me enganei. Ele tem automdvel e é rico
Amanha vocé vai encerrar a casa e limpar as. vidracas. na verdade, Dizenco isso, abragou a espdsa e ordenou-lhe:

112 113

PF-8
7 Prepara as malas e vamos embora. Eu nao sou Maria Clara fingiu nao ouvir.
FICO. Mas 0 que eu puder fazer para contentar-te juro que — Eu quero que éle, se casar algum dia, que se case
hei de fazer com todo prazer. com uma moca rica. Eu ja fui pobre e conhego as agruras
Estas palavras tinha um calor de resolugdo. Prosse- da pobreza. N&o quero que meu filho sofra o que eu
guiu Paulo: softi. Quantas vézes desejei comprar algo e nao podia.
oT Vocé percebe que sou despresivel, que nac sou Sonhos de pobre nao realizam. Se vocé fésse rica eu gos-
cugno de vocé. N&o nasci para ser chefe de familia, eu taria de ter como nora vocé, compete com o meu filho na
nao tencionava casar-me com vocé... Alids, com ninguém. educacgdo. Mas ndo compete em finangas. Vocé é atraente.
N&o sonhava com as ricas e nao desejava as pobres. Foi E pena ser pobre.
@ fatalidade que nos univ. Arrebatou-lhe as malas das mos e ordenou-lhe enér-
Maria Clara foi retirancdo seus vestidos co guarda- gicamente:
-~ Vai passar as roupas! Porque essa pressa pata ir
roupa € colocando-os na mala e murmurava um pouco mais
caima. embora?
~— Ngo Maria Clara ja nado podia suportar a presenga de Re-
me
adapto a ser dirigida. Eu no sei passar
nate, galgando as escadas novamenie, Paulo conduzia as
roupas. Nunca encerei casa. Sem muita ceriménia, desce-
ram @ foram procurar Dona Raquel para despedir-se. malas. Entraram no quarto e fecharam a porta. Ela dei-
— Oh! Que é isto? Exclamou a tia de Paulo, admi- fou-se e comecou a chorar.
rada. Fica Maria Clara. Eu preciso de vocé. Infelizmente — A Unica coisa que eu penso 6 no papai e na minha
nds neste mundo vivemos precisando uns dos outros. Vocé volta a seus bracos. Tenho a impressdo que estou num
© a pessoa que estava faltando-me. Agora a minha feli- degredo. Que sou uma escrava ou uma encarcerada. Como
cidade esté completa. Voc€ toca piano para’ agradar ao deve sofrer a ave que quer voar e nao pode. E o pri-
Renato. Faz o servico doméstico, posso economisar um sioneiro que anseia a liberdade. O paralitico que deseja
pouco. Depois o Renato vai sentir muifo a tua auséncia, andar, o c&go que deseja ver.
vai ficar triste. E eu no temos uma prisdo, ou de um jeito ou
gosto de vé-lo triste. Nao va —— Todos nés
insistir. E por &le que imploro-te! Ele vai fazer uma festa de outro, disse Paulo, com a intencdo de confortd-la.
€ conta com vocé para auxilid-lo, convidou-te para tocar -—— Oh! Se eu pudesse conformar-me com esia vida!
a quatro mos, oe : Tua tia prevalece da riqueza para nos humilhar!
Dona Raquel quando falava punha fogo nas palavras. ’ Paulo suspirou tristonho, como que confirmando: as
Sorriu-lhe e perguntou a Maria Clara que trazia um ar de palavras de Maria Clara e acrescentou:
aflita por tudo aquilo. — Todos os ricos sdo assi linha filha.
——~ Vocé nfo acha o meu filho notdvel? disse Dona Maria Clara ergueu os olhos em diregaéo a janela e
Raquel caminhando em diregéo do retrato de seu filho disse, entre murmUrios e solugos: -— invejo as nuvens que
sobre um mével da sala. seguem fentamente, livre de preceptores; € prosseguiu

Lid 115
lamentando: — Eu nao conhecia a mania dos ricos porque sdgro. E porisso que os jovens do interior ndo te namoravam.
quando somos ricos néo percebemos o quanto a nossa O homem que casasse com vocé e ficasse residindo perto do
exigéncia escravisa uma pessoa. Mas eu também obriguei Coronel nao ia ter tranquilidade de espirito, ia ficar neu-
muitos pobres a curvar-se aos meus pés. Eu era uma pe- rético, ia ficar louco. O teu pai prevalece do dinheiro e
tulante, igual ao Renato. O meu casamento com vocé & quer ser um semi-deus. Depois éle é coronel. Titulos que
uma expiagdo daquelas faltas. Dizem que o que se faz os homens inventaram para agradar tipos como oO Seu pai.
paga-se. Agora estou quase acreditando nisso. Os ricos E eu sé dou valor aos titulos da natureza. Quem & poeta
pensam que os pobres desconhecem os sentimentos; que é santo porque sdo tipos humanos que iém dé dos pobres.
sdo insensiveis. Aos ricos nunca podemos fazer advertén- A histéria n3o nos revela que os poetas sdo amiges cos
cias porque éles & que predominam. Agora que sou opressores; pelo contrdrio, éles sio amigos dos oprimidos, E
pobre é que tenho dé dos pobres. Porque compreendo o as pessoas que santificaram-se mesclavam-se com os pobres.
seu sofrimento. Quantos pobres hao de estar ressentidos Paulo ao dizer essas coisas punha um amargor na voz:
comigo. Mas eu nunca vi um rico mais cac&te do que o ~—- Eo teu dinheiro afugeniava os pretendentes. Nin-
Renato. Ele néo tem nenhuma qualidace para prender um quém ousava casar-se com uma arquimiliondria como vocé.
coragéo feminino. E entre triste e arrependida ajuntou: Talvez o teu casamento comigo foi castigo de Deus para
— Se eu voliar a ser rica um dia, juro que hei de ser pagar os crimes que o teu pai deve ter cometido. Eu sendo
filantrépica. Eu nunca dei uma esmola a um pobre. O o seu espaso nao estou tranquilo. Eu nao aprecio as mortes
meu dinheiro era destinado ao luxo. Queria ser bonita, tragicas. Mas tenho pressentimento que hei de morrer
atraente para arranjar um namorado. Ela alisou os cabelos tragicamen te porque tive a infelicidade de tornar-me genro
e concluiu: do coronel Pedro Faguncles.
~-- O que imporia agora é sair d&ste cdrcere. No ambiente, naquele momento, pairava uma atmos-
Paulo estava horrorisado com a confissio de Maria fera pesada e desagradavel.
Clara. Paulo continuvava:
— Existem outros ricos piores de que a minha tia e -— © teu pai esté precurando-me. E quando encon-
do que o Renato. O teu pai é 0 pior rico que eu ja vi trar-me ha de matar-me. Sd pego a Deus para éle matar-
porque tem jagunco. me logo. No torturar-me como torturaram Sdo Bartolomeu,
Maria Clara sobressaltou-se com a revelagdo que ouvia, Joana D’Arc, Sao Lourenco e outros. Ele pode eliminar

pensou um pouco.
Depois defendeu seu pai com energia: quantas vidas quiser. Tem um grande “o defensor,
— Eu nao sabia. Eu nao creio, o meu pai é bom. Nao dinheiro”.
tem coragem de eliminar um semelhante. Dona Raquel bateu na porta. Paulo foi abrir.
-— E s6 vocé queixar-se ao teu pai que esté sofrendo, — Terminou a conferéncia? Qual foi o resultado?
éle manda eliminar-me, aduziu Paulo. O dia que vocé Posso saber? Resolveram ficar? E Dona Raquel esperou a
cansar-se de mim e quizer ficar vidva, é sé procurar o meu resposta.

116
— Eu vou estudar corie e costura, disse Maria Clara Vendo que nao podia dormir foi até a janela contem-
como quem contava um segrédo, — JA paguei as aulas, plar as drvores frondosas que comecgavam fiorecer. Mas
preciso ir, A professéra no gosta que as alunas faltem. aquéle quadro nao lhe interessava.
Eu venho passar os domingos aqui com a senhora. Queria — Bem, eu vou descer, disse Dona Raquel, e desde
deixar aquela casa sem inimizar-se com Dona Raquel. ja aconselho-te a abolir o desejo de estudar corte e costura.
Esta
claro que ela dizia isso de boca para fora. Mas tencionava © teu estado requer repouso.
nao mais repdr os pés naquela casa. Quando Dona Raquel saiu, Maria Clara resignou-se:
~~ Quer dizer que vocé quer estudar corte e costura?
-— Até que enfim ficamos sdzinhos. Acompanhava
perguntou Dona Raquel admirada,
Dona Raquel com o olhar que descia as escadas com
— Quero, sim senhora.
iraponéncia igual uma rainha no castelo. Fechou a porta e
- — Vocé pode lecionar piano, E muito mais rendoso. suplicou: :
tem outro valor as pessoas que conhece musica. Vocé —- Paulo. Eu quero sair daqui! Vocé ainda nao com-
pode lecionar no piano de Renato. Vocé limpa
a casa de preendeu isso. E a primeira e a Ultima vez que hei de vir
manhaé e a tarde vocé leciona.
nesta casa. N&o suporto esta mania de dominio. Paulo
| Maria Clara pensou: —~ Como é horrivel as sugest
ées camecou andar de um lade para outro.
alheias. Ela sabia pensar e decidir seus projetos.
-—~ O teu pai, também dominava-me, por isso dou-te
— Eu queria que vocé vivesse aqui como se estivesse
razao. Mas, eu nao posso ir deixando a casa da titia, assim
na tua casa. Este € um dos bairros chiques de Sao Paulo,
vocé deve sentir-se sem mais nem menos. Fla é vingativa. E eu preciso dela.
mal entre aquéles. operdrios.
os Pelo contrario,
Fla deu-me aquéle quartinho. Bela dédiva... se eu fdsse
gésto muito déles; pelo menos sao
simples rico dava-te coisas melhores.
€ sinceros. A senhora ja foi operéria, n3o pode
ciminuir os seus ex-colegas de infortunio -— Um quarto que nao se pode usar nem para quarto
, Dona Raquel ficou vermetha. Corou, talvez de despéjo. Se oferecesse aquéle quartinho para as gali-
de vergo-
nha de um dia também ter sido uma operaria nhas de papai tenho certeza que elas fariam greve em
e pobre,
dizendo-Ihe o seguinte: sinal de protesto.
— Fui e no tenho saudades. Quando a gente Paulo meneou a cabeca varias vazes. E porque vocé
enri- ¢ muito difi-
quece esquece estes pormenores desagradavei n&o conhece a vida nas grandes cidades, casa
s,
E acrescentou: — Quem foi que falou que cil e os precos so elevadissimos. A noite iremos embora.
eu fui
operdéria? Vocé esté com sono. Deita um pouco para vocé descansar;
M 7 A senhora. Ontem, quando vocé tem trabalhado demais. Nds os pobres temos que
eu folheava o Album.
aria Clara comecava antipatisar viver aproveitando as oportunidades.
com Dona Raquel. Era
jatanciosa. Dizem os filésofos que a mulher rica & mais vai- _._ N&o vou deitar, Eu estou t3o nervosa que nao
dosa do que o homem. Que o dinheiro Ihe turva a razho. encontro tranquilidade em parte alguma.

118 119
— —, Dona Maria Clara. Assim é a vida dos pobres. que corria como se estivesse sendo perseguida por um
Uma vida agitada e cheia de sobressaltos e inquietagdes. exército. Vendo-a correr, Paulo sorria.
Eu nao lamento porque nasci pobre. E ja me habituei com Maria Clara ocultou-se na esquina e esperou Paulo
as reviravoltas da vida. Eu vou ocultar as malas no jardim.
aproximar-se.
A noite eu saio na frente, vocé espera eu distan- — Até que enfim livres. Livres como um passarinho.
ciar Uns metros para vocé poder sair sem a titia perceber.
Até esqueco que sou pobre. Como é bela a liberdade,
Néo fagas ruidos quando pisar.
passei tras dias na casa de tua tia, tenho a impressdo que
— Esta bem, concordou Maria Clara. Nés podiamos
passei tras mi! anos! Nao me sinto bem ao lado dela. Ela
adotar o pseudénimo de “os fugitivos”. Outro dia era voc&
nao articula o que diz e eu sou sensivel.
fuginde de papai por ser rico. E hoje sou eu fuginde de
tua tia porque 6 rica. E quer oprimir-me. Que coincid&ncia Entraram no Onibus e dirigiram-se para o quartinho
na nossa vida! miserdével de Vila Galvao.
Paulo desceu com as malas, pisando com muito cui- Ela reclinou a cabeca no ombro de Paulo e sentiu sono.
dado para nado fazer ruido, chegou ao hall, abriu a porta Dona Raquel ficou impaciente com a demora de Maria
e ocultou as malas atrés de um vaso de samambaia. Quan- Clara mas resolveu esperar, foi ao quarto dela, ndo viu
do entrou na sala de jantar encontrou Dona Raque! tomando as malas, disse:
café, que ordenov-ihe: -- Ah! sairam. Foram-se embora sem siquer despedir
~- Va chamar a tua espdsa para vir tomar café. de mim.
-~ Ela estd indisposta. Eu levo café para ela na cama. As dezcito horas Renato chegou para jantar. Despiu
— Ora... faga ela descer. Nem eu tenho essas fine- para o inferior da casa, cheio de
© paleté e dirigiu-se
sas. Maria Ciara j4 estava na sala e poude ouvir as Ultimas
alegria egojistica.
palavras de Dona Raquel. Seus olhares cruzaram-se.
—- Boa Noite, mamae. Onde esta a Maria Clara?
— Oh! Venha tomar café, disse-Ihe Dona Raquel,
— Ela ndo esté. Foi-se embora sem falar bolacha;
esta quentinho.
nem os vi partir.
~~ Obrigada, Dona Raquel. Nao me apetece nada. O
meu ideal era estar numa campina. — Fezpapelum ridiculo, retrucou Renato cheio de
Nao sei o que se passa
em mim. Anseio estar indignag3o e braveza de rico. Saiu grosseiramenie sem
livre. Receber o sopro da brisa;
correr livremenie de um lado para outro, Tenho despedir-se. Ingratos!
a impres-
880 que estou encerrada num tubo. Maria Clara saiu para — Ela esté apaixonacda pelo espdso. E aqui... éles
© jardim bruscamenie. no podiam continuar a lua de mel, ponderou Dona Ra-
-— Vou andar na calgada e volto ja. “ quel, j4 um pouco conformada.
abs RE sso

Dona Raquel fechou a porta de mau humor. Renato mordeu os labios, ainda sob a influéncia de
Paulo saiu e retirou as malas e seguiu Maria Clara sua raiva impotente.

120 121
— Que qualidades possué 6 Paulo para meérecer t3o Ela 6 um aguilhao. E como sabe dar aguilhoadas na gente.
grande afeto? Beleza? fle é muito bonito. Riqueza? Ele L4 eu nao dispds de fempo para abluir-me siquer,
nao possue um vintem.
Mais reanimada ordenou a Paulo que fasse comprar
As preocupagdes de Renato nao eram normal nem
leite e pao. Estava com fome. La em casa da tia se sentia
cabivel no caso. Renato sentia cidmes.
to mal que até perdia o apetite e o gésto pela vida.
— Paulo n&o nasceu para ser chefe de familia. —- Oh! Como me horrorisava aquela casa importante.
Quando a miséria thes rondar a porta éles h3o de nos
Mil vézes aqui no meu quartinho onde tenho liberdade e
procurar. Eles me pagam! Esperemos com paciéncia. vontade prdépria. Se eu fasse rica, talvez ela me conside-
— J& que Maria Clara nos deixou, a casa perdeu o rasse. Eu néo me aborrego ao teu lado, porque vocé n&o
encanto. Como é& horrivel amar alguém que n3o nos é contraria-me apesar da sua falta de energia para dirigir
possivel possuir, confessou Paulo. Oh! meu Deus, dai-me
a casa.
férgas para esquecer aquela mulher. Mamae, eu vou lutar
Paulo saiu e foi fazer as compras. Demorou o menos
com o Paulo mas aquela mulher hd Ge ser minha. Com possivel. Estava com dé de sua espésa por estar com fome.
ela a casa era alegre. Tinhamos boa musica e boa prosa.
A fome &é um monstro terrivel que destrdi nagoes.
E recriminou a prépria mae: Paulo preparou-lhe o banho. Ela deitou-se.
-—— A senhora devia agradé-la.
Ele pds dois cobertores na cama. Deu-lhe café com
Houve um momento de siléncio e de inresolugdo.
leite. Percebia-se que ela estava abatida moralmente e
—— Bem, eu vou dar umas voltas; se ela voltar, pega-a
fisicamente. Era por pensar em excesso nos problemas da
para ficar aqui... pelo menos. vida.
—- Vem jantar, meu filho? & melhor esquecer &sso Ela fitou as paredes enegrecidas e perguntou-the:
episodio desagraddvel e dar o caso por encerrado.
—— Que dia é hoje?
— Eu janto na cidade. Até logo mamae. Renato saiu
—~ Quarta feira.
pensando. “Com certeza ela aborreceu-se de ficar retida.
—- A data do més?
Ela é uma pequena notdvel, apesar de insensata e impul-
~~ Vinte e um de fevereiro.
siva. Esse gesto era a prova de seu norvosismo.”
— A minha mae faz anos no dia dezessete de feve-
Dona Raquel ficou sdzinha; sentou-se numa cadeira e reiro. Sera que o papai féz festa? A festa era na fazenda.
comegou a pensar na vida desajustada do filho. Revol- © dezessete de fevereiro era o. dia esperado pelos colonos
tou-se conira Maria Clara. Ela sé apreciava as pessoas que
porque era o dia dedicado a Dona Virginia. O papai
nao maguasse o seu filho em nada.
comprava bebidas. Era um comes e bebes que fazia gésio.
Quando Maria Clara chegou no seu quartinho reani-
Eu assistia aquilo desinteressada porque eu_nao tinha a
mou-se. Solicitou ao espéso:
exata nocdo da vida. As festas locais e populares tem um
— Paulo, acende o fogo para aquecer dgua. Quero
sentido social; é uma espécie de higiene mental. E a noite
tomar um banho. Tua tia nao me dava tempo para nada.
era o baile. Como era comentado as festas do coranel,
122
123
como diziam todos! Creio que os colonos devem extranhar nossos sofrimentos sao idénticos. Somos como dois cora-
as festas do coronel sem a minha presenga. Devem estar goes gémeos. Paulo continuava:
comentando: “Onde ser& que esta a filha do coronel?” — Se eu pudesse dava-te um paldcio confortdvel.
Embora eu nao participasse quase da alegria geral, nao Vocé merece. E boa. Eu admiro-te porque vocé tem
desagradava ser notada. Agora sou tratada como rebotalho paciéncia, tolera-me. Outra ja teria desaparecido. As vézes
e que tenho saudades de quando eu era causa de admi- penso como devo denominar-te: “santa” ou “heroina”?
ragao. Paulo falava com entusiasmo e com o ardor de um
artista. E prasseguia cheio de bondade:
— Olha a filha do Coronel! Que moga bonita, parece
~—— Lamento nao poder ao menos pagar uma lavacei-
um anjo do outro mundo.
de ra... Eu penso tanto em vocé. Se eu morrer, como 6 que
As idéias pareciam vultos de fumaga na cabeca
vocé vai levar a vida? N&o quero que se inclua entre os
Maria Clara.
marginais. Se eu morrer, vocé nao vacila, procura o teu
~- No sei. Nao sei! Hoje... eu estou to triste. Estou
pai. As mulheres que degradam-se n&o tem classe no
com saudades da mamae! Nunca separei-me dela. Ela ¢
mundo, onde a selegaéo impera. Vocé nado é infeliz porque
t3o habilidosa. Com prazer ela havia confeccionar os de tem o teu pai. E eu? Nao tenho ninguém.
casaquinhos para o nosso filho... Est& fazendo-me Agora a voz de Paulo tinha um tom de magoa, de
falta. Minha maezinha me faz e... acho que me fara falia derrota e de preocupagéo. — Sou preferido igual a falsa
eternamente. Estou com vontade de escrever-lhe uma carta. moeda. N&o tenho pai, nem mae, nem sogro, nem sogra.
Quando eu estava atribulada os conselhos dela reanima- O othar de despréso de tua mae revelou-me que ela nao
va-me. ia considerar-me; olhar que imprecionou-me. A Unica coisa
Paulo acendeu um cigarro sem pensar em coisa que eu trouxe da casa do teu pai como recordagéo foram
alguma. Quando a espdsa falava éle interrormpia o que os insultos. O seu pai agiu severamente e desorientou-me.
estava fazendo para ouvi-la. Sua m&e ndo quis me compreender; ndo teve complacéncia
— Se vocé escrever para a tua mae. o teu pai ficara comigo. Quando percorro as ruas da cidade tenho receio
sabendo o nosso enderéco. E sé o teu pai aparecer para de encontré-lo, n’o 6 nada agraddvel a existéncia quando
eu desaparecer para sempre. Quando vocé por a carta no sabemos que temos um inimigo poderoso oculio na nossa
correio aconselho-te a comprar um vestido preto para o propria sombra.
luto porque seu pai por certo hé de querer me matar. Ele Paulo olhou a sua espdésa que jd estava.comecando a
deve odiar-me tanto que hé de querer por fim na minha embranquecer os cabelos. Ainda n&o completara desenove
exist€@ncia. Reconhega que nao sou o espdéso ideal nem anos. €le, que nunca acreditou em: velhice prematura!
para vocé nem para teus pais. N&o disponho de recursos Maria Clara nao tinha tido siquer o primeiro fijho.
nem para vocé divertir-se. Ndo apreciei os modos de mi- Paulo sem querer comecgou pensar no filho que ia
nha tia em relagdo a vocé. Mas pode ficar ciente que os nascer. Teve um caléfrio:

124 125
ac
sa RAE panne
-—— Até eu vé-lo criado... O verdadeiro amor de pai.
se mostra no instante de sustentar a prole. Dai o pensa-
mento de Paulo.
— E um filho fica num prego extraordindrio para um
pai! Um homem bem empregado luta para criar um filho;
quanto mais um que nao tem. emprégo... A minha vida
agrava-se cada vez mais. Este filho vai ser um transtérno
para mim. Uma crianga quando nasce ja é um consumidor.
Enquanto mamar nao é nada e... depois? Eu nao posso
enfrentar a vida. N&o sei agir. Nao tenho instrucaéo, nem
agao, nem resolucao.
Pousou novamente o olhar no rosto de sua espdésa que
estava difinhando-se. Os ossos de suas faces estavam
salientes. Sentiu cansaco, deitou-se ao lado de sua espédsa.
N3o dormia. Pensava apenas que vinha de um passado
triste para um futuro sombrio. Pensava. Nasci e cresci e
nao conheci a “felicidade“. Vivi uma vida sem presente.
Paulo estava com dois anos quando a mae morreu. Nao
teve o apdio do amor materno. Os filhos criados com as
maes levam uma existéncia mais amena. O amor de mae
ainda é tudo neste mundo.

Dona Raquel esperou o Renato a noite téda. De


manha, ela e o seu_espdso estavam inquietos. Ela lamen-
tava: Se
— Meu Deus, o que serd que aconteceu? Ele nunca
dormiu -fora de casa! E melhor vocé ficar em casa até éle

que brigou com o Paulo e foram presos?


O senhor Gabriel concordou-se com esta segunda pos-
sibilidade. Mas ao sair acalmou a patroa.

126
|
rr
As horas iam passando e as afligdes de Dona Raquel
iam multiplicando-se. :
Ao meio dia o telefone tilintou. Era da policia, avisan-
do que o Renato estava feride em consequéncia de uma
trombada e pedia calma que a coisa parecia nao ser fdo
grave. A voz era uma voz abafada e atrds daquela acver-
téncia, Dona Raquel parecia compreender téda a extengdo
tragica do acontecimento.
Quando chegaram no hospital a enfermeira conduziu-
thes ao necrotério. Dona Raquel nado teve duvidas. Um
sexto sentido, a intuicao de mae lhe confirmava o infausto.
Dona Raquel ficou nervosa quando viu varios corpos
inertes em cima das mesas cobertos com lengois. Suas
pernas enfraqueceram-se. Seus passos eram vacilantes. O
seu olhar triste pousava ora aqui, ora ali, fitando aquéle
quadro tétrico.
A enfermeira retirou um lengol e Dona Raquel viu o
corpo de seu filho. Mordendo os dedos e com os olhos
lacrimejantes reconhecia o filho pelas roupas porque o
rosto deformado pela pancada era quase irreconhecivel.
Atirou-se ao filho chorando e the chamando pelo nome
num desespero espantoso:
—Oh! Meu Deus! Assim como ressuscitaste Lazaro res-
suscita o meu filho. Era a Unica coisa de valor que eu tinha
na vida. Minha bussola neste mar de misérias! Quando
- um filho morre, a mae morre com éle. Filho é uma estaca
que depois que nasce firma seus pais nesta vida. Deus
deu-me apenas um filho. E agora arrebata-o... Ontem
eu supliquei para nao sair. Ele ndo obedeceu-me. Ele, que
sonhava-com-uma existéncia deslumbrante sem as desven-
turas que as vézes n3o atinge; ter um fim trégico coma
ésie.

PF-9 129

ii
i!
— A realidade, as vézes é pior que a seta a nos re- assim reuniu fércas suficientes para perguntar, irada, e
talhar o coragdo. F uma azagaia terrivel. : montada no desespero e na sua superioridade:
Na saida do hospital Dona Raquel parecia ter enve- -— O que vieram fazer?
thecido cem anos. A pergunta foi direta e séca como uma bala.
—-. Agora o mundo nao mais interessa-me. Ha golpes — Eu nao os: convidei, prosseguiu, para presenciar
tdo profundos que nos atingem e nos rouba o prazer de €éste quadro que vocés criaram. Eu nao os quero aqui.
viver. Mandou transladar o corpo de Renato para a sua Suas presengas, mais que piedade, me causam asco. Nao
casa. pretendo sentir outra coisa por vocés... se vocés nao
Dona Maura foi correndo mostrar o jornal ao Paulo. fugissem como bichos éle nao saia de casa. Veio procurd-la
No retrato do jornal, Renato estava sorrindo. Ficaram ato- para levd-la ao cinema. Os Ultimos pensamentos déle fo-
nitos com a noticia. Maria Clara ficou pensativa. Sao as ram dirigidos a vocé: “Se ela voltar diga-lhe para ficar...
ciladas da vida. e para sempre”. Pobre filho! Querendo transformar a bur-
—~ Devemos ir vé-lo? Perguntou Maria Clara ao seu guesa em fidalga. Que papel ridiculo vocés fizeram...
espéso que estava lendo o jornal. sairam sem despidir-se. Sao bem dignos um do outro...
; As maos tremiam, nervoso e abalado, pensou um nado querem a minha casa... vocés que nunca residiram
pouco antes de responder-ihe. numa casa decente e honesia. Estas Ultimas palavras eram
— Na realidade ndo deviamos ir porque néo sei como encendiadas pelas labaredas de um ddio mortal e irre-
é que a titla iré nos receber. Talvez queira nos culpar conhecivel.
pela infausta ocorréncia. Dona Maura aconselhou Maria Clara a retirar-se. Ela
— Mas por formalidade devemos ir, porque éle é ebedeceu-lhe; saiu condoida e penalizada da desventura
nosso primo, insistiv Maria Clara. ‘de Dona Raquel. N&o lamentava tanto de si prdpria, de
—— Mas eu estou desanimado. Nao mais tenho siquer sua sorte de némade, da sua pobresa. Maria Clara mais
energia de outrora para dar um passo. Sinto que a vida que Paulo sentia profundamente o golpe.
esta fugindo-me. A tua tia jd inspirou-me pavor, lembro- Paulo amparou-a e foram andando unidos até ao
me, disse Maria Clara, quanto mais agora. Meu Deus! Que ponto do Snibus sem trocar palavras.
desastre! Ela curvou a cabeca para os passageiros no ver suas
Os inquilinos reuniram-se e foram visitar o extinto, l4grimas deslisar. Dona Raquel, Ihe atirando’ do résté” que
mais por curiosidade do que por outro sentimento. Paulo ela era a causadora da morie de seu fiiho, lhe deixava
e Maria, embora apreensivos, foram. Parecia que iam en- mal vista aos olhos dos vizinhos que comentavam tudo,
contrar-se com a morte, tal as preocupagdes que os tor- sempre aumentando um pouquinho. Ela ia ser o alvo do
‘meniavam. Cisse me disse, to comum nas habitagSes coletivas. Nao”
Quando Dona Raquel Ihes viu com
fulminou-os’ um ‘estava ressentida com Dona Raquel. Ela nao podia domi-
olhar onde demonstrava a extensao de seu ddio. Mesmo ‘nar a sua m&gua e° Maria Clara era o alvo. As maes

“180 “131
para os filhos, esquecendo-se diversdo. Obrigava-me a ingerir bebidas alcodlicas. E o
desejam a suprema ventura
que existe o destino. meu estado néo me permite. Dava-me nduseas.
e fecharam a porta. Dona Maura fitava o lindo rosto de Maria Clara que
Chegaram em casa, entraram
estava transfigurando-se igual a uma flér quando vae per-
Paulo estava impaciente.
dendo o vico.
-— Agora a titia nos enxota. E para onde havemos de
—— Vocé fez bem em recusar. Isto prova o valor de
ir? Peco-te nao mencionar o nome de titia aqui na vila, é
tua formagaéo moral. Ninguém tolera a Raquel com a sua
mais aconselhavel. Aquéle que ouvir ira contar-lhe, mas
mania de nova rica.
de outro modo. De outro jeito. E vocé percebeu que titia Mesmo assim por varios dias lamentava-se a morte de
exagera os fatos. E eu no quero rivalidades. Ela nao sabe Renato. Foi motivo de longos e intermindveis comentarios.
perdoar. Se ela exigir o quarto temos que sair. Aqui nado Maria Clara conservava a porta fechada para nao
é grande coisa, mas nao pagamos aluguel. Se ela vir aqui fomar parte nos comentarios que poderia ser fatal para ela,
@ nos atacar, vocé finge que nao esta ouvindo. Scmos
que ja estava comecando a compreender que a felicidade
pobres, nao temos direito de exaltar. Deu um suspiro e€
nado era a sua amiga.
jamentou: Este casamento prejudicou. a minha vida. Os credores de Renato apresentavam contas fabulosas.
-— Nao, Paulo. A prejudicada fui eu, retrucou Maria Dona Raquel ficava apreensiva mas pricisava pagar
Clara com energia. Eu é que sou a grande vitima. para reabilitar a memdéria de Renato. Vendendo o automé-
A noite Dona Maura chegou.e foi direta ao quarto de vel a baixo soldo, n&o cobriu as dividas. Foi obrigada a
Maria Clara perguntando: vender as suas jéias e os objetos artisticos que adquiriu
— Porque vocé n3o me disse que ia na casa de na Suiga.
Raquel? Eu aconselhava-te para nao ir. Eu a conheci desde — Fui pobre, enriqueci, parece que estou voltando
solteira. J& trabalhamos numa fabrica como teceld. Ela a pobreza novamente, Que sensagdo horrivel. Deus que
feve sorte, casou-se com um homem rico, ficou petulante . me perdoe!
Ela nado soube educar o filho. Vocé nada tem que ver com Dali ha uns tempos, o tio, foi visitar Maria Clara que
as ocorréncias. recebeu-Ihe amavelmente. .
Maria Clara ficou mais confortada com as palavras Disse-lhe de inicio:
amigas de Dona Maura. — Eu gostei de vocé. Nao sensurei-te quando vocé
— Obrigada, Dona Maura. Algum dia hei de retribuir fugiu l4 de casa. Eu ja estou habituado com estas fugas.
tudo que a senhora vem fazendo por mim. E adiantou As criadas fogem. E eu... de ha muito ja devia ter fugido,
mais segura de si mesma: Eu nao podia aceitar as propos- se n&o quizesse honrar as calgas que eu tenho. A Raquel
tas indecorosas de Renato: O Paulo é um homem sem agéo. pertence ao tipo das mulheres arrogantes e presumidas.
Nao defende-me. Eu é que tenho que futar sdzinha. Ele E comegou a falar do seu passado. Que a Dona Raquel
queria levar-me aos dancings e eu reprovo éste género de foi a culpada da derrota do seu filho. —- Tudo que nos

133
132
com muito vocé na minha casa para auxiliar-me a regenerar o meu
atinge & ela quem promove. Criou o Renato filho. Vocé nao avalia a extensdo da minha dér. Ainda
reali dade da
mimo. Ele tornou-se homem sem conhecer a nado é mae. Desconhece o sentimento materno que trans-
uma obser-
vida, Eu nao tinha permissdo para fazer-ihe
formada. forma a mulher em escrava e em heroina. Eu nao fazia
vagao que ela interferia; se eu insistisse era briga quest3o de ficar na miséria mas, queria o meu filho ao
tag&es:
E continuou a subir pelo muro das lamen meu lado; por éle eu enfrentaria qualquer espécie de
r o meu filho. Per-
-— Eu nio tive o direito de educa trabalho. E sem esperar por resposta concluiu: —- Eu estou
casa nesta familia.
cebi que nao faz bom negdcio quem esperando o dinheiro do aluguel.
era pobre . Ela
Eu era rico e casei-me com Raquel, que Maria Clara abriu a bdlsa e retirou quinhentos cruzeiros
— para evitar discérdia eu nao
passou a dominar-me. & disse-lhe:
reagia. Vi o meu filho cresc endo orientado por uma mae
—— Eu pago cinco meses, assim nao ihe verei por mais
“Ela esta line con-
clesorientada. Eu punha-me a pensar: tempo.
Deus queir a que me engane”.
duzindo ao precipicio. Dona Raquel fingindo nao ouvir replicou:
— A Raquel casando-se comig o modif icou por com-
com a ditosa — Eu nio admito atraso. Quando venho aqui, quero
pleto o curso da minha vida. $6 ela lucro u-se
quero recordar receber.
unido; ficou rica e com nome. Mas eu nao Paulo respirou mais aliviado dizendo:
os momentos amargos que fenho passado. -— Antes assim.
0S cabelos
Maria Clara fitava o seu tio.. As rugas € Dona Raquel saiu sem despedir-se.
a néle a perso-
brancos ja estavam manifestando-se. Notav ~~ Paulo! Paulo! vé se arranja um emprégo ao menos
nalidade de.um homem bom e pacifi co.
receber o aluguel. para pagar o aluguel...
Como de costume, Dona Raquel fot
que quando — Est4é bem. Eu vou dar um jeiio. A Unica coisa que
Usava um vestido preto. Estava sem jdias. Ela, peco-te é nao relatar a tua descendéncia.
e entre gou-lhe
sala na rua parecia um basar, procurou Paulo — Ora, Paulo. Eu n3o sou insensata assim. Se eu
a conta. dizer que sou rica, ninguém vae acreditar. E eu nao quero
l. E um
— Agora vocés precisam pagar 0 alugue cair no ridiculo.
vocés que sfo joven s e pode m
pecado ser filantrépica com E os dias foram passando. E Dona Maura sempre boa
irabalhar. A ociosidade é prejudicial.a.sadde. Nao quero
sarnos exercitar
‘ para Maria Clara ihe auxiliava nos Uitimos dias de gestagao.
ter parentes com cara de vagabuncos. Preci Dizia-ihe:
olhos semicer-
o organismo. — Fitou Maria Clara com os guardar segrédo,
— Eu gosto de vocé porque sabe
rados. -—- N3o tolero a tua presenga! Voc 6 uma urna.
por isso nado receio dizer-te o que penso.
As palavras brotavam-lhe com a furia..de..um..corisco.. Ela melhorou
As vézes penso que Deus castigou a Raquel.
Coniinuou com-o seu resmungo: suas condigdes de vida e nao mais olhou os que sofriam.
porque nao
~~ Voc8 nao quis ficar na minha casa Nés eramos amigas de passeio; depois que ela casou-se,
tode. :-Eu queria’
gosta de trabalhar. Prefere dormir o dia
135
184
— Anda Paulo, vae procurar a parieira e um médico.
desprezou-me, Nao convidou-me para visitar sua residén-
E lhe fez sofrer o
—E melhor tomar um taxi. E n&éo demora. Hoje vocé precisa
cia. Mas o melhor advogado é Deus. agir.
um justo motivo;
ddbro. Deus nao castiga ninguém sem
Paulo ia recebendo as palavras de Dona Maura, como
porque Deus e sdbio.
aguilhoada a perfurar-lhe o cérebro. E o seu pensamento
tores do parto:
Maria Clara comecou a sentir os exter retransmitia-lhe: parteira, médico, automdvel. Onde ia
era uma hora da manha. arranjar dinheiro? Saiu sem destino, passou o resio da
fle queria pro-
O Paulo foi despertar a Dona Maura. noite andando como sonaémbulo. Dona Maura ficou quase
curar a tia Raquel. Maria Clara recusou: iouca. Vendo que Paulo nao aparecia, ela mesmo pegou a
Nao. Eu prefiro a Dona Maura. E mais crianca e cuidou dos primeiros curativos. E cuidou de
_. N3o.
ela que tem nos auxi-
compreensivel. E até aqui é sempre Maria Clara como se fésse sua prdépria filha.
tia nao veio
liado. Ela nunca recusou-me um favor. A tua Era um lindo menino.
E se ela favorecer-me
ac mundo para favorecer ninguém. Qs vizinhos vieram visité-la. Uns dava-lhe talco, sa-
a. Ela ja tem a
hd de querer-me transformar em escrav bonete e roupinhas.
alma de escravocata. Carlos foi visité-la. Disse-lhe:
— que eu queria
Pavlo levantou-se de mau humor. -— Sei que vocé detesta-me, mas mesmo assim vim
para ela batisar e 0 afilhado de um certo
dar a crianca visitar-te e dar-te um pouco do dinheiro que consigo com
caso de Renato. E,
modo preenche a vaga de um filho, no o meu trabalho. Se eu pudesse, dava-te mais. Mas com
E ela nao nos
no futuro, poderd nomea-lo seu herdeiro. &ste dinheiro vocé pode restabelecer-se sem preocupacies.
que damos todos
cobrava o aluguel. stes cem cruzeiros As mulheres neste estado requer tranquilidade de espjirito.
que estamos aumen-
os meses faz falta em casa. Agora Dizendo isso entregou quinhentos cruzeiros.
estar sempre previnidos. Uma crianca
tando precisamos ~~ Agora eu quero ver o recém-nascido. Fitou a
adoecer de um momento para outro. crianga e clisse:
poderé
Maria Clara alterou a voz: : —- Vocé precisa crescer depressa para auxiliar a tua
chamar'a Dona Maura. Deixe os teus mae. Eu hei de conseguir um emprégo para vocé. Nés
— Vae, Paulo,
para depois. dois vamos ser amigos. Com um ano de vida éle ja estara
argumentos
gélido andando. E hd de acompanhar-me até o armazem para
Paulo abriu a porta, recebeu a rajada de vento
Quan do éle bateu na eu lhe comprar um doce. Ele é 0 inquilino mais novo aqui
que arrepiou-lhe a carne tépida.
Dona Maura reconheceu-lhe a voz da vila.
porta e chamou-lhe,
e abriu-lhe a janela. Maria Clara $6
fisico de Maria Clara. — Se precisar de auxilio, continuava, eu estou as
Paulo ciiou o estado
erdens. Eu gosto da senhora porque passa privagSes e nao
Dona Maura saiu as pressas, dizendo:
137
136
com leite artificial. Agora eu sei que nao posso contar com
r-te a tua tolerancia com
se transvia. Nao sei como classifica voc® para nada. Ja faz um ano que estou maniendo-te e
o Paulo. os g&neros esto acabando. Ja esiou exausta. Vocé é o
palavras amigas e olhar
Depois de dizer mais algumas chefe da casa. Deve agir, provar que esta vivo, Vocé
e saiv.
a pobreza do ambiente, despediu-se procedendo assim obriga-me a escrever a papai. Com
o filho nos brag os contemplando
Maria Clara estreitou vocé... & loucura ter cleméncia.
suas maozinhas minusculas e alvas. . Dona Maura entrou com uma bandeja de sopa, pao
nesta hora dificil. :
Todos procuravam servir o casa! é leite:
e deu-lhe ‘dinheiro.
© senhor Gabriel foi visité-la_ _-—~ Oh, senhor Paulo! Daqui para o futuro nao hei de
Pouca coisa é verdade. confiar nada mais; o senhor revela-se dia a dia.
a auséncia de Paulo.
Todos estavam horrorizados com Depositou a mamadeira no criado mudo, Disse .com
avoraveis. Cada mulher
E os comentarios eram-lhe dest voz carinhosa como se estivesse dirigindo a sua filha:
Gava uma opiniao: esta quentinho. Eu
ev nJo queria ver mais — Come, Maria Clara, enquanto
__. Se.eu fasse Maria Clara,
vou preparar a mamadeira para o Pedrinho.
&ste Paulo. Que homem!
prova se tem amizade a — Ahi! Vocé pés o nome de teu pai? perguntou Paulo
_. E nesta hora que o homem
n3o fez falta. Tudo correu meio cescontente.
mulher. Mas, gragas a Deus le
. / 7 Sim, porque foi ou &€ o Unico homem. bom para
bem. e ela
Maria Clara porqu neste mundo. Sé6 agora percebo o quanto papai ama-
— Da gosto auxiliar a Dona mim
va-me, pelo desvélo com que tratou-me merece seu nome
sabe agradecer.
a registrar o menino: ser sempre lembraco na familia. Se éle nos encontrar
Maria Clara mandou Dona Maur
— Quero o nome de meu pai, Pedro Fagundes Neto. algum dia had de ficar contente com o neto que fem o seu
eceu toclo amarrotado, Preciso reconquisté-lo. Quero amizade de papai:
Trés dias depois, o Paulo apar nome.
e deu-Ihe um beijo. é que compreendo que éle desejava o meu bem
sem escanhoar-se. Pegou o filho Nao lhe
Agora
por viver.
Maria Clara vivia ao lado de Paulo estar. E eu pensava que era implicancia. Eu era inocente.
tinha afeto. Mesmo assim observou: Ndo compreendia que éle desejava a minha felicidade,
ridiculo
— Bonito! Hem, senhor Paulo! Que papel pretendo ajoelhar-me aos seus pés e suplicar-ihe o seu
nascer uma Pes- Os conselhos pa-
o senhor féz. Nao sei como é que pode perdao por nao ouvir os seus conselhos.
140 inferior, igual a tua. Os teus afos sempre ternos-tem mais valor que um diamante. O meu gesto
soa com alma
s. Mesmo que eu queria
te diminue aos olhos dos outro impensado deturpou a minha vida.
Vocé mesmo se desclassi-
enaltecer-te vocé nao coopera. Os meses foram correndo e o Pedrinho ia desenvol-
litar-te. Vocé nao
fica. Nao ha possibilidades de reabi vendo-se. Com o dinheiro que ganhou Maria Clara com-
E vocé 6 o caus ador . Fiquei
contripue. Eu nao tenho leite. prou um bérgo e brinquedos para o filho entreter-se.
Tenho que criar.o meu filho
nervosa com a tua indiferenga.
139

138
los despenteava-se, caindo nos ombros. Descalca, com os
Quando viai dona Ma ura
Ele jd conhecia todos de casa. olhos fitos ao céu, dizia:
exclamava: ~~ Oh! Meu Deus, eu néo quero enloquecer. Eu tenho
co des
—— Olha a vovo! um filho para cuidar. Dai-me férgas para enfrentar essa
retirava o rosario Ca
Se o menino adoecia, ela nao grande luta... que é& a vida de miséria que eu vivo.
maos. Dizia: Ela foi preparar a mamadeira. O dia que n&o tinha
_. Onde a medicina falha, o coragao vence. dinheiro, ela dizia:
preocupada por nao
a ter rec o,
UrsOS — Hoje eu escrevo ao papai. E seja o que Deus
Maria Clara ficava
perambulando pe Oe quiser. E assim ela ficava mais calma. Suas idéias eram
para comprar remédios, ficava re
ava em casa ote oe confusas, esperava que um dia o Paulo decidia trabathar.
fais filantrépicos. Quando cheg inci e
lde quartinn o. soen Ajoelhava e suplicava:
Perpassava o olhar no seu humi dor .
roupas espalhacias. E o Paulo — Oh! Deus, vés que amparai os fracos, tendes com-
sordem! As
animal.
um paixdo de mim. Sao Judas Tadeu faga o Paulo trabalhar!
Dormindo como
ert®
Ter um espd so assim... mil vézes ficar solt Eu preciso, devo e quero ser “Feliz” ja€ que nao me foi
A Co en
ici€n cia de possivel ter um lar alegre e bem construido. E eu ponho
extii nguiindo.
livre, ppercebo que estou me ete nove velas queimar para o senhor. Esta cruz é pesada
E se eu deixar -
alimentos atrofia o organismo. se demais para mim.
Fica sozinho ne:
quem iré cuidar pelo meu filho? ;
nem sacrificar-se por alow E a esperanca que ela alimentava foi cedendo aos
O Paulo n3o sabe amar e q uer
no entregando-o= a qual
ualq poucos. Quando a casa estava em desordem, Paulo saia e
ha de desfazer-se do meni
i
vedo Ppassava o dia fora; se éle ficasse em casa ela lhe obrigava
pessoa que lhe p edir.
na que mere ce foce a fazer o servigo doméstico. As vizinhas achavam graca
Um filho 6 a semente huma riane
lar onde nasceu uma cran vendo-o de avental lavando as panelas e as criancas
afetoSe e cuidado paterno. No afluiam-se dizendo:
Filhos nao se dé sem $
& um &lo unindo os casais. — Paulo virou mulher! Paulo virou mulher!
culfos e genene rosos
uar s@€ as pessoas que vae crid-los : sao
escra vo. Oh!
neu As mulheres que residiam na vila deixavam suas
Se compreensii veis. Um orf3o n3o é um "
Porqu e ocupagces para apreciar as chacotas das criangas. Diziam:
ste éste filho?
Meu Deus! Porque me envia
o proporciona muitas alegris — E... n&o presta para uma coisa presta para ovtra.
Deus? Reconheco que um filh cue Paulo ficou preocupado quando viu o contentamento
car o meu see
aos pais. Mas éste veio multipli sav * a de Maria Clara. Ela esiava cantando.
sozinha. Que
Nao posso enfrentar 4 vida ! — A nossa indigéncia n&o nos permite ser alegres,
amente numa casa contor
eutenho--de residir nov | disse Paulo. A nossa preocupagda aumentou-se, sera inicio
Estou farta déste quartinho! de loucura? Maria Clara estava cortando papel de seda
para comprar leite ee
Quando nao tinha dinheiro para fazer flores e enfeitando os méveis.
os, cogava a cabecga e os cabe
chorava com o filho nos brag
141
140
ct REN

acomoda com qualquer coisa. E um homem assim nao


outro aspecto. . scl
© quarto tomou vence. EU pensava que os homens eram
are. todos iquais. Ela
vida vai modificar-se, dizia Maria
— A nossa ajeitou os cobertores para aquecer o filho que. dormia.
que ela estava alegre, Paulo resolveu falar-Ihe:
Vendo — O que 6 que pretendes dizer-me? perguntou Paulo
deve dizer nossas vidas porque ©U tambem
— Vocé preocupado. Paulo levantou-se da cadeira que estava sen-
pertengo 4 familia. Reconhego que nao rene neon tado e sentou-se na cama ao lado dela e acariciou os seus
crelo que tenho 8 nS
valor, mas sou teu espdso. Por isso cabelos grisalhos, como se jd advinhasse a resposta.
vocé. Paulo com essas palavras preten
direitos sObre Mas ela ja estava tao desiludida da vida que as caricias
preparar ambiente para observar: daquele homem ja n&o the fazia vibrar.
—— Posso saber do que se trata? — Olha, comegou Paulo calmamente, vocé que
o tempo quero fa- nao
__ Nao é um segredo e ao mesm sabe viver com pouco dinheiro pode sentar-se nos viadutos
- rpresa. € pedir esmolas. Agora Vocé tem a crianca e os ricos con-
dé muito traba-
“ e Que néo seja outro filho, criangas doem-se. Vocé deve ir téda esfarrapada. Leva a crianga;
Oo. quanto mais suja, melhor. Existe muitas mulheres que
ne eee ech, Paulo. As pessoas desditosas nado deve vivem assim e ganham muito dinheiro. E nés podemos
ter filhos em excesso. Ainda mais quando os pais Sao até comprar uma casinha ou um terreno. Parou de falar e
ficou aguardando a resposta. Vendo que a sua espdsa
as observagoes de Maria
oe sola id estava habituado com nao respondia perguntou-lhe em tom mais enérgico:
compreendé-la, prosse
Clara. Nao resentia. Finginclo nao ~~ Vocé n&o compreendeu-me?
star
guia sem demonstrar aborrecimentos. a Compreendi, sim, Dr. Paulo! O senhor quer trans-
para lhe person :
—— Paulo, ja faz tempo que estou formar-me em mendiga, mas se fér para eu me transformar
onde é que vocé se Nos-
Quando estiveste na minha terra, em mendiga e recorrer a caridade piblica creio que devo
tinha dinheiro. . _
pedouv? Vocé nao recorrer ao méu pai. Eu estou adornando o quarto porque
do cemitério. ,
—. Eu dormia dentro da igrejinha vou passar-lhe um telegrama. Ela comecou a chorar.
Que coragem! Vocé nao tinha médo?
— Mas Paulo! — Lagrimas nao solucionam. Devemos tomar uma
© oe
— Nao, foi o unico lugar que realmente gostei ‘resolugaéo, continuava Paulo. No inicio vocé pertuba-se,
mortos nao me censuram, Nao achar
tranquilidade. Os dépois vai habituando-se.
me fizeram observacdes.
os meus defeitos. Nao -— Sabe, Paulo, tem hora que voc& repugna-me. Oh!
em relatar estas
Paulo tinha um certo prazer diabdlico meu Deus! isto nao & vidal Voc quer transformar-me em
-escrava. Quer tirar proveito da minha ingenuidade. Oh
eu nao sou tua
ee Oh! Paulo, ento vocé acha que ‘papai. Papai!-vem socorrer-me porque estou num abismo!
homem come
amiga? Qual éa mulher que ia suportar um Que acgdes mediocres! Que tortura mental pungente que
nao posso enaltecer-te porque voce proc
voce? Eu proporciona o Dr. Paulo Lemes... -
viver. Vocé é um homem ‘que se
os meios féceis para
» 143
142

|
5 SS A MATS DRA a
; A noite éle ia ao cinema procurando a sua filha porque
ava-o de “Dr. Paulo”, éle
Quando Maria Clara trat éle sabia que ela adorava o cinema. Seis meses seguidos
© homem que nao diz a
sifenciava, reconhecendo que © coronel visitou todos os cinemas de Sado Paulo. Depois
A lingua é a tocha do corpo
verdade perde a férga moral. en- passou a ir aos featros. Pensava: — Se 6éle & rico, deve
fogueira para queimar-lhe
humano que prepara uma pouc o, frequentar a alta sociedade. Percorria as filas de énibus
fala va
quanto vive. Paulo era um homem que lia os jornais e comprou um bindculo.
esias palavras: “Eu sou
mesmo assim arruinou-se com Quando ia ao Municipal, sentava nas galerias e olhava
dentista”! todos os casais que chegavam. Nao prestava atengéo a
Pedro Fagundes Filho,
Retornemos a casa do coronel Opera, seu objetivo era a sua filha. Ja havia decorrido um
apés a fuga de sua filha. ano que @le andava de um lado para outro. Até os fun-
4 sud espdsa recebeu era
Vendo que o choque que cionarios do hotel Ihe alcunhavam: “o judeu errante”.
Hospital fizeram junta médica
fatal ficou agitadissimo. No Pensou &le: — Disse-me que é dentista, vou procura-lo
is porque ela nao era mais
para averiguar a causa mort em todos gabinetes dentdrios, quem sabe se encontro
desgosto profunde que alterou
déste mundo. Ela sofreu um -— Citava aos dentistas que estava procurando um senhor
cdo nao resistiv. Houve uma por nome Paulo Lemes que disse-lhe ser dentista. Pedia
© ritmo do organismo. O cora
hemorragia. Mesmo na pre-
agitagdo interna provocando nel coro
que se conhecessem algum dentista de nome Paulo Lemes
nada podiam fazer. © que lhe avisasse que ganhava 5 mil cruzeiros. Contratou
senca de um esculapio
numa cadeira meditando.
e ficou um motorista para conduzi-lo nos bairros de Sao Paulo.
sentou-se
mo adeus a Dona Virginia, O motorisia vagava o dia todo com o coronel. E a
Os colonos foram dar o Ulti
Maria Clara; mas nado comen- tarde recebia. O motorista foi conhecendo o drama do
estranhando a auséncia de
coronel. Um dia convidou-o para visitar a sua casa. O
taram.
© coronel foi na fazenda. Mandou coronel aceitou, esiava horrorizado com as desorganiza-
Trés dias depois,
o e disse-lhe: ¢des que ia observando na Capital.
chamar o seu colono mais velh
longa viagem. Vocé vem -— Ent&o & isto o Sdo Paulo!
_— Eu vou empreender uma
r conia dos meus perten- Apreciou a casinha modesta do motorista, seus quatro
residir aqui na fazenda para toma O
lavouras e o tev genro Nor- filhos. O mais velho estava estudando o curso superior.
ces. Quero que administre as
da cidade. Vou procurar © coronel disse-Ihe: ~~ om
berto vai tomar conta da casa 4
a minha filha. Temos contas — Vocés que sdo estudantes do mais valor a cader-
homem que casou-se com
\

morte de minha espésa. neta escolar para pagar meia entrada nos cinemas do que
ajustar. Ele foi o causador da Serd que vocé sabe resolver a
Norberto transferiu-se para acompanhar as notas.
Joel instalou-se na fazenda e matematica alta? —_—
ou as malas e partiu para
para a cidade. O coronel prepar Ao voliar ao Hotel ordenouv ao motorista:
Sao Paulo.
—- As olfo da manhaé quero que esteja na porta.
Instalou-se no “Cliris Hotel”.

144 PF-10 “"


minha espdsa é boa cosinheira, ela cuidaré do senhor.
que oO motorista nao
J& havia completado um ano Quem trabalha para o senhor n&o precisa fazer economia
num
comparecia ao ponto. As vazes o coronel entrava
do com porque é bem remunerado. Hoje eu fui a policia, a tua
expulsava-o revolian
gabinete dentdrio e 0 dentista filha n@o apareceu por 14. Eu vou-me embora e deixo o
a sua insisténcia: telefone na portaria. Se o senhor precisar de aiguma coisa
o mais o que fazer.
— O senhor jd estéve aqui; tenh avisa-me. No inicio eu servia o senhor por interésse, agora
o a ser tratado com
E o coronel que estava habituad é por amizace. Quero cooperar na descoberta de tua filha.
o cada vez mais. Quando
frases de gases, ia odiando o Paul O coronel andava t30 nervoso que preferia pensar do
lvia uma mulher branca,
aparecia algum crime em que envo que falar.
{4 ia o coronel examinar o cadaver. © motorista saiu, le ficou conversando com 4 sua
dias ia saber se
Pediu auxilio a policia. E todos os consciéncia. Examinando o seu passado porque éle estava
Lemes e Maria Clara.
haviam localizado o casal Paulo

SSIES
sofrendo. N&o recordava de haver prejudicado um seme-
a.
Retornava ao hotel as duas da manhé lhante. E dizia consigo mesmo:
O motorista dizia-the: — Seré que Paulo é um desocupado? Serd que éle
resist€ncia?
—- Onde.é que o senhor enconira tanta eliminou a minha filha para livrar-se dela? seré que

CEN
O coronel suspirava e respondia: varias espécies de homens

ree appt era eSieSAIME


cbrigou-a a prostituir-se? T&ém
velhice tao agitada.
— Nunca pensei que ia ter uma no mundo. O homem que espolia uma mulher nao é um
gica e sabe se por la
Hoje vamos visitar a escola odontolé homem, & um verme. Quando eu restabelecer, vou pro-
estudou algum Paulo Lemes. cura-la nestes antros.
niraram. Mas o
Depois de exaustivas buscas nZo enco Quando o coronel decidia percorrer um local ninguém
arquivista foi bem recompensado. retirava a sua resolug&o.
Rio? Vou comuni-
—- Quem sabe se éle estudou no — Para mim, continuava consigo, aquéle homem era
andar na chuva o
careme com a escola de 14. E de tanto um forasteiro. Suas agSes comprovaram minhas suspeitas.

an
que o deixou varios dias
coronel apanhou uma pneumonia Ele pertence aos tipos que aprendem ler e n&o se ilustram
de cama. e ficam jactanciosos pensarido que sao sdbios e sao verda-
era o motorista que ja
Quem ia visité-lo. no hospital deiros asnos.
espondéncias © jor-
gostava do coronel. Levava-lhe as corr Quando o motorista foi visité-lo ficou admirado vendo
ndo. ,
nais e passava horas e horas conversa © coronel vestido para sair.
o e o melhor fre-
— O senhor 6 o meu melhor amig — Vamos percorrer os lupanares. Quero saber se éle
:
gués que jd tive. até hoje. abandonou a minha filha e ela degenerou-se.
or, comprei uma
Com o dinheiro que recebi do senh O motorista mordeu os labios e disse-lhe:
Depois que conheci
casa. Agora estou livre do aluguel. _ oa Mas eu n&o conhego estas casas. Quem pode con-
um homem feliz. Reservei
o senhor posso dizer que sou A duzir o senhor é um investigacor.
o senhor se quizer residir comigo.
uma quarto para
147
146
: um bercgo para repousar, hordrio de refeigdes. O meu filho
O coronel foi ao gabinete requisitar um.
as beldades foi atrofiando-se e morreu,
o coronel entrava nestes antros,
Quando trabalho em vez de
ser a predileta. Ele repelia, —~ E vocé, porque n§o procurou
acariciava-o. Tddas queriam
. comercializar o teu corpo?
enojado. Dizia-lhes:
pagar bebid as para Eu ja estava
habituada a vadiar.
— Eu passei por aqui s6 para
até as criada s. -— Eu sou do interior. E vou aconselhar aos chefes de
vocés. Quero ver tédas mulheres beber,
familia que n3o deixe as suas filhas inexperientes vir para
Gosto de olhar as mulheres bonitas.
aparecia varias garrafas e copos. Sdo Paulo. E uma cidade que lhes arruina a vida para
Era uma agitagdo,
sempre. E o homem. que prevalece das infelizes do interior
Ele fitava uma a uma.
doenie? perguntava. Se tiver n3o 6 homem, é um animal. Ele nado vé na mulher que vai
— Nao fem nenhuma
infelicitar Uma compatriota. Uma mulher que nasceu no
eu mesmo vou levar-lhe bebida.
ou algumas seu préprio pais, que ndo tem experiéncia na vida e deve-
sio as Unicas que residem aqui
_— Vocés ser superiores, moralisando o nosso povo, nao infes-
mos
sairam para fazer compras?
tando o nosso pais de meretrizes. O coronel pagava as
Somos as Unicas.
— bebidas e retirava com os olhos fitos no solo.
—- E voc&s s30o de S30 Paulo?
O inspetor ja estava aborrecido com aquelas investi-

SEE REPRE EO PSM ATS


s para Sao Paulo
— Ndés somos do interior que viemo gacgdes, mas era bem remunerado; tolerava. Almogavam
local de nascimento.
para trabalhar. E elas jam citando o nos melhores restaurantes e éle foi compreende ndo que
traram em Sao
— E é ste o servico que vocés encon estava sendo beneficiado com o coronel que pagava as
Paulo? despesas didrias. Andava de carro. Fumava os cigarros
cidade “grande”:
Elas iam citando suas desaventuras na finissimos que o coronel comprava. O coronel ja estava
— Eu vim a Sio Paulo com os patrées. Nao concordei e
desanimando-se. Mas pensava:

oy
com a patroa e deixei o emprégo. — Se eu nao encontré-la, nao terei tranquilidade.
— Porque nao procurou o teu pai? Seré que a minha filha ainda conserva aquelas belas qua-
cidade fabulosa.
— Eu ja amava Sao Paulo, que é uma lidades que herdou de sua mae?
as espécies. Depois arranjei um
Tem diversdes de. tadas — Sera que corrompeu-se? Sera que suicidou-se?
e fui viver com éle. Quando fiquei gestante,
namorado A noite tinha sonhos horriveis, sonhava que havia en-
ey nado podia trabalhar. Nao tinha
&le me abandonovu, contrado a filha tada estracalhada. Tdda desfeita. As vézes
pernoitar no albergue. Quando a crianga
dormir, ia
onde
a nos bragos. . Ga- sonhava com Dona Virginia chorando suplicando-lhe para
nasceu, eu ia pedir esmola.com.a criang nao desistir de procurd-la até encontrd-la que ela. estava
depoi s a criang a morreu. Eu
nhava muito dinheiro, mas sofrendo muito, e chorando muito. Despertava banhado de
com a minha
nao tinha experiéncia da vida, se eu estivesse suor: Enviava uma prece a espésa e pensava:
a criar o meu filho, Crianga requer
mie ela auxiliava-me
149
148
Se enriqueci é@ por- luncas, condenando tudo aquilo porque esta préximo do
_— fstes sonhos s3o adverténcias. paldcio do govérno, local imprdéprio para as cenas porno-
de extin-
que a Virginia instigava-me a luta. E agora depois
graéficas. Dizia ao motorista:
ta encoraja-me para prosseguir na busca.
-— Se eu fdsse govérne haveria de moralizar esta
O homem necessita ter uma espdsa e filhos para nao
a cidade.
envelhecer sozinho. Como é horrivel a solidao! Ela gostav Resolveu descansar uns dias na sua fazenda. O inspetor
a
de cantar e tocar piano. Quem sabe se abragou a carreir
e€ Oo motorista acompanhou-lhe:
artistica?
—— Ja habituei com vocés. E vocés precisam de um
Comecou a percorrer os palcos, os Teatros, as estagoes
ano. descanso. O motorista deve estar exausto porque esta ao
de radios, circos e televisdo. E assim passou outro
incteis. meu dispor seis anos. Mas o inspetor j4 esté habituado a
© inspetor j4 estava farto daquelas buscas
investigar.
Pensava:
pela riqueza, —— Eu confesso, ja estou fatigado. Eu gosto de solu-
—- Este homem nunca foi pai. Obsecado
louco. cionar tudo com rapidez, realizar as coisas dentro de vinte
procura esta filha imagindria. E &ste homem deve ser e quatro horas. E os anos passam e nao consigo encontra-la,
E existem varias espéci es de loucura s. Mas 6le é inofen sivo.
o. Mas um lamentava o inspetor.
E... entdo nao é um louco. Deve ser manfac
um quebra cabe- — Quando ela saiu de casa era muito bonita, prosse-
manfaco n3o chega a coronel. Bem, isto é
quia o coronel, seré que ela jad 6 mae? Serd que os filhos
¢a sem solugdo.
vieram normais? Sera que ja sou avé? Sera que vou ter o
Admirava a prodigalidade do coronel que gasiava sem

SARITA
a horas prazer de abragar um neto? Meu Deus, a infelicidade
refletir. Quando iam na casa do motorista passav marcou encontro comigo na velhice.
crianga s que sorria m e diziam : -~ “chegou
brincando com_as Chegaram na fazenda. A primeira pergunta que o
u o vové rico”. Amarr otava m-lhe o
0 vové bonzinho, Chego
coronel fez foi:
vinculo da calga. Pensou:
Se eu fésse --- A minha filha escreveu?
— Quem sabe se ela procura criados?
ende- — Nao senhor.
nas agéncias de emprégo talvez descobrisse o seu
s6 Aquilé foi uma hecatorbe na sensibilidade do coronel
réco. E 14 se foi o coronel percorrer as agéncias: “Ndés
por que deixou-o desolado.
recebemos os ntimeros das casas e os nomes das ruas
”. Interr ogava as criadas se Passava os dias percorrendo os lugares prediletos de
isso é dificil indicar ao senhor
sua filha. Os arvoredos com seus galhos frondosos onde
n3o conheciam uma senhora por nome de Maria Clara que
ela sentava unida ao tronco para bordar seus vestidos. As
éle gratificava com cinco mil cruzeiros.
abelhas vinham acaricid-la, confundindo-a com as flores.
-—- Oh! meu Deus! S6 falta suplicar aos astros para
“O'Balanco onde ela gostava de balangar. O piano e seus
auxiliar-me.
retratos adornando os méveis, os guardas roupas com varios
© coronel percorria o bairro da Luz e os inferninhos
s espe- vestidos. Seus trages para andar a cavalo.
observando aquelas jovens que habitavam aquela

156
haviam dei- O motorista e o inspetor quando ficavam sé um per-
da cidade o quarto estava como
Na casa guntava ao outro:
aberfas e 0s jornais espalhados pelo
xado. As gavetas ~- O coronel n&o diz quando é que vamos partir?
de pé. Guardou as chaves no
assoalho. Tude coberto
— Nao.
bdlso.
hé de vir fechar estas gavetas ha de ser 4 7 J& faz um més que estamos aqui e a Unica distra-
“Quem
Maria Clara”. E o olhar do coronel
circulou; deu um longo i cdo que temos aqui é a sinfonia das aves quando vem
conheci Sao Paulo é que rompendo aurora. E a noite o coachar dos sapos.
suspiro @€ pensou: “Depois que
o é sacrificado para um 7 Mas em compensagado temos o bom vinho do coro-
adoro ste sil@ncio. Se Sao Paul
r um pobre! Os jovens nel. Ele deixa a adega ao nosso dispor.
homem rico, o que ndo ha de sofre Ha
eitam as mocinhas. O coronel resolveu partir dizendo:
que circulam pelas ruas ndo resp
ais atacando. as crian -
homens que se transformam em anim da :
— N&o gosto desta casa sem a Virginia e sem a Maria
is. Ja estou saturado Clara. Tudo aqui me entristece. Eu vim aqui para refazer-
cas para saciar SeUS desejos sexua i
desiludido com a huma-
:
cidade. Vi coisas que deixou-m e me e restaurar o meu espirito, reabastecer a confianga na
es”.
nidade. Eu desconhecia as corrupgé minha pessoa. Eu nao conhecia a tristeza. Creio nao mais
© investigador ouvia as crificas
do coronel descor- : conseguir tranquilidade de espirito; ja estou exausto de

dando, querendo vencé-lo com


argumentos e deu sua ‘ tudo nesta vida. Tenho a impressao que estou numa
opiniao: | batalha e pretendo n&o voltar sem a minha filha. Hei da
numa fazenda nao localizd-la!
—- Se um colono nasce e cresce
a cultivar o solo, nossas pro- -—— Vou levar uns retraios. Vou mandar amplid-los e
aprende ler, nao. aprende nem
E além do mais a maio- distribuir nas delegacias, nos escritérios dos advogados.
dugdes agricolas sSo fraquissimas.
rpam os homens que
ria softe de anemia, os centes detu
Vou contratar um fotégrafo sé para mim. Né&o tenho recelo
cupam com a edu-
trabalham nas fazendas. Poucos se preo
de ficar pobre. Mas... quero encontré-la. Sera que ela
preocupam-se apenas n&o sente saudades de mim? Ou eu n&o presto para nada?
cago do povo rural. Os fazendeiros
que cursam OS melhores Quem seré o homem que domina e predomina a minha
com a educacgdo de seus filhos
espoliados e se dirigem filha? Quem sabe se éle nao lhe permite sair de casa?
colégios. Os colonos cansam de ser
Sera que éle proibiu-a de falar-me? Eu hao era um pai
para as cidades grandes.
o, disse afoitamente severo, ndo hd motivos para ressentimentos. Seré que
-— Sinto nao poder dizer o mesm
aquele homem era meu inimigo e casou-se com a minha
o coronel.
da conversa: filha para vingar-se? Seré que éle espanca-a? Tem ho-
O investigador tenta mudar o curso mens canalhas que forturam uma mulher. Nenv :
habituado com
_— Este sil8ncio enerva-me. Ja estou lei toma conhecimento. Sera que éle & homem ou um
o assim sinto que aqui
© corre corre no gabinete, mesm paranoico?
estou reconstituindo-me.
153
152
sando, seus filhos ja esta completa suas felicidades na vida; chega
um lado para outro pen
Eo coronel andava de - com a concluséo que os ricos nao sabem criar seus filhos.
antes da partida: a case
Maria Clara compreendia que quem vivia de esmola
filha? Sei que
Com quem casei minha ’:.
ticicos sofria muito. Observava as mulheres pobres trabalhar,
o luga r dos homens enigmai
homem de Sao Paulo,
um ho! er
vere
av
lavar roupa para ganhar uma miséria.
em excesso e ha a os ws
H4 homens que trabalham “ e Poe er
Uma senhora foi procurar uma lavadeira na_ vila.
A que aquele homem
viver de oportunismo. Sera xa ce ter Maria Clara aceitou. Pois tédas roupas reunidas no tanque
mulher decepcionada dei
minha filha? Uma € as roupas ce céres mancharam as brancas. Quando a
desejos; era © ev
+ . °

Eu the satisfazia fodos os


+ .
:
nos homens. n ao Dona Maura viu, pds as m&os na cabega:
iingrata porave
escravo. Nao posso lhe chamar de r cheesta — Dona Maria, Dona Maria, o que foi que a senhora
que) lutar para ¢ scla3 rece
do , que se trata. Eu ten ho gost de er fez? N&o é assim que se lava roupas. A senhora estra-
ha vida. Nunca
confusdo que ha na min odia r pave
aq rs gou-as. E agora tem que pagd-las; qualquer servigo que
i s para
i guém,
nin S mas agora tenho mmotivo re executamos € uma responsabilidade que assumimos.
especie de genro ave ©
canalha. Preciso ver que % =. £ es er Maria Clara comegou a chorar:
éle nao € formate.sp vm
J& estou convencido que . . Se ~~ O que serd de mim, meu Deus!?
a sua int; egridade. ;
jem que comprovar os Inc * E as roupas ficaram no tanque varios dias. E as vizi-
que nés do interior som
grandes cidades pensam na de nhas comentavam:
velhici e agiti ada!l | Que dran
cientes ou imbecis. Que -— Ela nasceu predestinada a ser granfina. Ela é aris-
vida! tocratica. Pertence a classe de mulheres que sabem utilisar
as m&os s6 para pintar o rosto e tocar piano.
Paulo E as vizinhas apelidaram-na de “A pianista”.
estavam acabando-se e
Os géneros alimenticios Quando a dona das roupas foi procuré-la, as vizinhas
ivia despreocupado. mostrou-lhe o tanque.
passar fome. Ficeve ner
ee aria Clara tinha receio de lop Paulo vestiu o paleté e saiu, como se nada daquilo
mulheres pobres vegon
rorizada- quando via as lo: na de Ihe dissésse a respeito. ,
Revoltava-se pensan
rvas pedindo esmolas. A dona das roupas desesperada chorando dizendo:
ticos néo tem vergon a -
— Serd que os nossos poli — Eu n&o lavei por estar doente. Se ela sabe que
pelas ruas? Da a re
ver tantos pobres circulando munee nao é de nada porque se ofereceu? Mulher que nao souber
de desumanidade. Como é horrivel passar pelo lavar roupas nao é mulher, 6 um resto de gente. E que ela
pre ccu rev e mre
rica nado me
sofrendo. Quando eu era eo. se cs eos esté habituada a ganhar.dinheiro facilmente, nado sabe dar
estou nesse nucl
com os pobres, mas agora lev am rev iew valor a nada. Volta para o lupanar, vagabunda! Vocé nao
ada que os pobres
conhecessem a vida sacrific er uma pr ws o
teve mae para ensinar-te a trabalhar, agora sé pode servir
estudar ® aprend
de obrigar seus filhos a ric de repasto des homens.
Mas os ricos pensam que satisfeitos todos os Ccap

154
E assim Maria Clara ficou conhecida na policia com
pobres com pretengoes de
__ Existe muitas mulheres nm
aleunha de “a pianista” e pouco a pouco foi habituando-se
sas 6 nos palacios e nao
princesas. Lugar de prince ou
com o seu novo nome.
éste. E a dona das roupas furiosa espanc Dona Maura vendo-a chorar ficou zangada: —- Faz
cortigo como nam,
socorro, mas as vizinhas sorr
Maria Clara que pedia por seis anos que a senhora leva esta vida, ja deve estar habi-
instigando-as com insultos escarninhos. tuada. E ao mesmo tempo. exausta. Todos os anos um
Eder Jofre!
_— Vamos ver quem é o Patrulha e
filho. Ontem eu ganhei estas roupas usadas e trouxe-as
chama a Raédio para a senhora. Agora eu tenho prazer de dar roupas para
Alguém traigoeiramente
a senhora porque a senhora aprendeu a lava-las.
Maria Clara foi presa. Pela
disse chorando: —
Quando ela entra na priséo,
— A ligao me foi benéfica. Fui obrigada aprender
ia ser Madame. lavar, passar e encerar, disse Maria Clara mais resignada.
educacg’o que recebi eu pod Maria
e disse: — Vamos entrando — Hoje nada mais me é dificil. Era pungente ver os
O delegado sorriu
meus filhos pedir um pedago de pao e nado ter. Que tor-
Fumaga.
Ela pensa que por ter um tura hedionda para uma mae ouvir: “mamde eu estou com
E a dona da roupa dizia: -— no
te para uma mulher viver fome”! Eu nado sei como é que eu nao enlouquego. Eu
rosto bonito jé é o bastan prefiro trabalhar do que pedir esmolas. Eu idealizei a
de pagar as minha vida de um jeito e Deus destinou-me de outro. No
rene Maura assumiu © compromisso
o descaso de infcio eu chorava de desespero. Agora choro porque ja
Clara, criticando
roupas e libertou Maria habituei a chorar. Reconhego que devo muitos favores a
a sua esposa.
Paulo que n&o defendia e senhora, que encorajou-me a carregar a minha cruz. Depois
saiu da priséo saiu chorando,
Quando Maria Clara
os filhos foram surgindo, fui obrigada a resignar-me.
coberta de humilhagoes. - — Antes assim, fico contente vendo-te alegre, respon-
— a senhora aceitou a com
A dona das roupas dizia: a com o deu Dona Maura; vim convidar-te para irmos n’uma festa
porque nao ganhav a nad
panhia déste’ homem é amanha. Enquanto eu lavo as lougas a senhora serve as
meretriz. bebidas e dividimos o dinheiro. Eles sdo ricos e querem
olhar circulava pela
nao respondia, o seu
Maria Clara pessoas de confianga. E assim a senhora diverte-se um
presa mais tempo por ter
vila. Ela sabia que nao ficou - pouco. E ganha dinheiro.
varios filhos. — OH! Dona Maura! Como lhe fico grata! Nao mais
para
e. Preparou as refeigdes
eee Dona Maura reanimava-lh preciso de diversdes, o que estou precisando é de. um tra-
vové boazinha!
as criangas que diziam: —~ que os
balho fixo. Preciso comprar sapatos para os meninos. Seis
se emchacota--dos vizinh
Maria Clara transformou- zom bar
filhos para calgé-los vai muito dinheiro. O Pedrinho o ano
de a “pianista” e pare
que passaram 4 tratar-lhe que vem vai para a escola. Ele quer crescer depressa para
mundo?
diziam: — Qual é a melhor lavadeira do auxiliar-me. J& n3o sou t&o infeliz porque tenho um filho
— Ea pianisia! Ea pianista!
157
156
a
-se
. Quando os filhos tornam
que interessa-se por mim omp a.
ens
os as mies tem a sua rec
homens decentes e honest ancgar um
trabalhar, eu hei de desc
Quando éle comegar a deixar-me
velhice. Ele nao ha de
pouco. Ja nao receio a s ado
Os meus filhos sao os leg
faltar o pao de cada dia. €U tenho pa-
que Deus deu-me. Eles s3o travessos mas
sofrem tant o. Desejam
ciéncia. Tolero porque éles j4
da tive a
n3o posso dar-lhes. Ain
brinquedos caros € €U
s compadres. Quando chega o
sorte de encontrar bon
olvidam os afiliados.
Natal os padrinhos néo estava
mentou 4 espésa que
Paulo chegou e cumpri fito u o
de 13 para os filhos. Ela
remendando umas meias din hei ro nao dava
fazer. O
seu espdso com a barba para o, fazi a a bar ba
barbeiros. Paul
para éle escanhoar-se nos falta-
den tes estavam cariando e
com cacos de vidros. Os no colo
€ sentou-se
vam alguns. Pedrinho aproximou-se e
VOU trab
crescer alha
eU r
seu pai: — “quando eu
de Alisava a
bonita para 4 mamae”.
comprar uma casa bem viver-
continuava: — “E horrivel
barba negra de seu pai Eu quero
pessoas neste quartinho.
mos aqui. Somos olfo pa com espélho.
E um guarda rou
um quarto s6 para mim.
Eu quero estudar.
rarm-se.
Paulo e Maria Clara olha auxi-
que vai trabalhar para
__ A mamie disse-me
.
liar-me a estudar. «a estu-
__. Sim meu filho. Tudo farei para auxiliar-te
familia. Maria Clara sorriu alegre.
dar, para ser o arrimo da .
sar com ela.
J4 tinha um filho para conver anos
e disse: — Hoje faz sete
Paulo olhou a folhinha
:
que nos casamos.
iro lon go e€ triste: — Nao faz sete
Ela deu um susp que nao
a sete mil anos. Data
anos; para mim represent da.
Data hedion
. Data funesta.
tenho o prazer de comemorar

158
Pedrinho olhava a sua m&e sem compreender suas
palavras. Maria Clara e Paulo eram um casal sem ideal, nao
discutiam planos para o futuro. Como é horrivel um casal
onde nao ha carinhos!
Ele ouvia a voz de Dona Raque! que vinha cobrar o
aluguel. Ficou nervoso, desvencilhou-se dos bragos de
Pedrinho e saiu.
Maria Clara preferia passar necessidade, mas quando
Dona Raquel chegava encontrava o dinheiro do aluguel.
Dona Raquel recebia satisfeita e dizia-lhe: —- vocé é
pontual.
-- Eu sou uma Fagundes. Pertengo a uma familia de
fibra e tradicdo, respondia Maria Clara fitando Dona Raquel
com altivez.
— O que vocé quer dizer com isso? Vocé é descen-
dente de nobre?
~~ Algum dia a senhora ha de saber.
— N&o gosto de enigmas. Quando vocé pretende
dizer-me algo, esclarega-o.
Ah! Eu vim receber o aluguel e avisar-te que vendi a
vila. Devolvo-te o dinheiro. E o novo dono quer a vila
desocupada. Ele vai demolir para construir um edificio.
Vocés tém noventa dias de prazo.
Maria Clara pensou: — onde é que vou encontrar um
senhorio que aceite-me com as criangas. Seis filhos hoje
em dia é como se fésse mil quilos de chumbo. Aqui o
aluguel n&o sacrifica-me.
~—- Esté bem, observou Dona Raquel, eu vou ver se
encontro um quarto ou um pordéo para vocés. O novo
senhorio n3o quer mover ago de despejo. Eu conservava
esta vila para garantir o futuro de Renato. Agora nao tem
nem um sentido eu me misturar a pobreza dessa vila todo
més. Também j4 é tempo de vocés procurar residéncia

PF-11i 161
mais confortével. As criancas estéo crescendo e multipti- co que nds porque tem mais conférto. Mas eu nao sei
cando-se. Dona Raquel despediu-se. ficar longe déles.
Maria Clara ficou pensando onde ir arranjar dinheiro Foi a noite mais longa para Maria Clara, que ja estava
para pagar um aluguel mais elevado. convencida que viera ao mundo para sofrer. E ela que
Dona Maura foi procurar a espdsa de Paulo: — onde ambicionava ser uma “felizarda”... Os minutos pareciam
sera que a senhora vai encontrar um quarto? Os senhorios séculos. Paulo como sempre dormiu tranquilamente.
atuais exigem casais sem filhos. Maria Clara deixou o leito antes do astro rei surgir.
— Deus da um jeito, suspirou Maria Clara alisando os Suas idéias oscilavam bailando no cérebro. Preparou a
cabelos. primeira refeigaéo para os filhos. Despertou o Paulo e em
—. Eu vou residir com Carlos, meu filho. Nunca resi- seguida disse: —- hoje eu e dona Maura vamos trabalhar
diu com noras. Nao sei como vai ser a minha vida, o que numa festa. Vocé fica em casa para olhar as criangas.
eu sinto é separar-me da senhora. Maria Clara e Dona Maura sairam. E em pouco tempo
Assim que dona Raquel despediu-se, Paulo foi che- estavam diante de suntuosa residéncia.
gando. Entrou e sentou-se. Era lindo o palacete, espacosa, com lindes quadros nas
Dona Maura disse-the: — A dona Raquel vendeu a paredes. No centro da sala estava exposta a mesa de doces,
vila e quer que desocupamos os quartos. O novo senhorio enfeitadas com flores brancas. Na ovira sala um lindo
vai construir um edificio. Nos deu noventa dias de prazo. piano. Maria Clara recordou-se de seus dois pianos. Um
Estou pensando onde é que o senhor vai residir? na fazenda e outro na cidade. Pensou em sua mae. Sera
Maria Clara ficou nervosa e comegou a chorar. Dirigiu que ela ja estava resignada com a sua auséncia?
um olhar colérico ao seu espdso, Ordenou-lhe energica- Ouvindo a voz de Dona Maura pronunciando o seu
mente: —- vocé procura um quarto! Vé& se frabalha! nome assustou-se @ pensou: ~~ vim aqui para trabalhar.
Dona Maura sorriu e disse: — & mais facil um elefante Por uns instante pensei que era uma das convidadas. Esta
voar do que o compadre trabalhar. festa & para as pessoas de destaque. E eu... nao mais
~~ Ele precisa encarregar-se do aluguel, prosseguiu pertenco a &ste nucleo. Para mesclar-se neste ambiente é.
Maria Clara, e a manutengéo fica aos meus cuidado. necessdrio ter dinheiro. .
Na vila ninguém dormiu pensando onde conseguir Foi preparar as bandejas para servir os aperitivos.
casa. Na casa de Maria Clara a coisa ia ser mais dificil. Festejavam o aniversério de um menino. Pensou nos seus
Com seis filhos onde é que iriam morar? filhos que n&o conheciam aquéle género de distracdo:
Cada padrinho prontificou-se a levar um afitiado. ~— os meus filhos sao criacdos fora das normas sociais; se
Fica a senhora e o compadre Paulo, diziam, vocés algum dia eu voltar a ser rica, que luta para reajusta-los
arranjam um emprégo. Tém familias que empregam casais. na sociedade! Eles desconhecem os habitos civilizados.
— Oh! Meu Deus! Lamentou Maria Clara com pro- Recordou a sua infancia quando festejavam o seu
funda tristeza. Sei que vocés zelam os nossos filhos melhor aniversério. E o pai lhe acaricilava pegando-a nos bracos

163
162
vamos que o Unico doce que existia no mundo era o arroz
e dancava com ela. “Viva a rainha Soira” e o &co reper- doce.
cutia dentro da casa. A voz do coronel era estendida e a Dona Maura contou que Maria Clara havia tocado
casa tinha acUstica. E todos invejavam a filha do coronel. piano na festa. Ninguém acredifou. E relatou aos filhos
lam surgindo as ricas convidadas. Todos ostentavam
os comentarios elogiaveis:
toiletes de alto prégo e jéias de valor. suja, feia, vai saber tocar piano?
— Uma mulher
© aniversariante partiu o bélo e cantaram cangoes. Os dias foram se passando e os vizinhos iam. arran-
Ali estava um povo alegre e feliz, pessoas que sabiam jando casas e foram se mudando, E Maria Clara pensava:
sorrir com prazer. — E nds, para onde vamos?
Iniciou-se o baile ao som dos discos. E ela servindo Dona Maura e dona Martha foram para o terreno de
os doces e as bebidas. Assustou-se quando viu a sua
Carlos. Era um rebolico na vila. Faltavam duas familias
imagem no espéiho usando uniforme de criada. para mudar-se, Como n&o encontrasse casa para alugar
© piano estava aberto. Ela néo pode dominar os seus iam comprando terrenos.
desejos a muito tempo estacionado. Pds a bandeja no cimo Dona Maura veio visitar as criangas e foi logo dizendo:
co piano e sentou-se para tocar. Seus dedos rusticos des- — Eu nao sei ficar longe déles; tenho-lhes amizace porque
lizaram no teclado do piano. Todos olharam aténitos. as pessoas
auxiliei a crid-los. E a gente aprende a amar
Aquela senhora trajando uniforme de criada tocando valsas que convive conosco. Habituei-rne com vocés.
vienenses!... As criancas ficaram contentes bradando: “A vovd
Dona Maura foi ouvi-la e disse-lhe: —- avisaram-me voaltou!”
que a senhora estava focando piano. Vim ver para crer. Dona Maura era simples, mas tinha bons sentimentos.
Que coincidéncia! Na vila alcunharam-lhe de “a pianista”. Continuou na sua explicag%o: — Se o terreno fésse meu,
E a senhora sabe tocar mesmo. Serd que o povo tem
a senhora ia viver ao meu lado; o Carlos e muito bom. O
intuigao para perceber as qualidades de uma pessoa? depois que casa-se acata mais as palavras da
homem
Dona Maura continuou a servir as bebidas enquanto Maria espdsa. O Carlos modificou-se. E continuava: — E penoso
Clara tocava. Oh! que saudades das criangas... éles
esta separagdo.
Quando parou de tocar foi aplaudida e tornou-se fi- quando eram pequenos dormiam nos meus bragos; agora
‘gura principal da festa. Foi bem remunerada ¢ levou um é que sei quanto gosto de criangas. E eu tenho pena da
pacote de coces para os filhos. Com o dinheiro que recebeu senhora porque é infeliz. Nao tem pai, néo tem mae. E
comprou sapatos para os filhos porque o inverno estava foi infeliz no casamento. A senhora sempre confiou-me os
aproximando-se. Era a primeira vez que éles calgavam sa- teus filhos sem receio. E£ filho 6 uma coisa de valor para
patos novos. Que alegria! Eles sorriam e foram de._casa os que compreendem.
em casa mostrar o$ sapatos aos vizinhos. As botinas de — Dona Maura chorava comovida: — faz tempo que
Pedrinho rangiam; @!e achava graga; passaram 9 dia sabo- eu nao choro!
reando os doces. Ele dizia: — Sabe, maméae, nés pensd-
165
164
Vocé nao veio ao mundo para dizer a verdade. A primeira
Maria Clara deu um suspiro dizendo: “infelizmentie,
vez pensei que vocé ia dar-me uma casa e vocé deu-me
eu nado posso dizer o mesmo. Agradego-te a dedicagao
comigo nos duros aquele quartinho. E agora pensei que vocé ia dar-me um
com os meus filhos; compartilhastes
quartinho, vocé me pde na rua. Naquele tempo eu era
momentos de minha vida. E foi com ldgrimas nos olhos que
sozinha. Agora tenho as criangas. Nao compreende Paulo?
Maria Clara viu dona Maura partir, presentindo que jamais
Vocé nado tem dé dos teus filhos! Daqui a pouco as crian-
encontrasse essa tao bondosa criatura.
cas querem tomar banho. Querem jantar e querem dormir.
Teve a impressdo que ia ficar sem apoio fisico e Eu preciso preparar a mamadeira para o Carlinho. Eu te
moral, oscilando na vida sdbre um abismo de -amarguras. acompanhei porque pensei que vocé tinha deixado de
No outro dia, Paulo chegou com um caminhao dizen-
mentir. Se eu tivesse alguma coisa de valor eu vendia para
do: —vamos embora, desta vez consegui um caminhao,
pagar um hotel! ao menos por esta noite. E vocé ficaria
Maria Clara ficou nervosa porque ninguém avisou-lhe aqui para tomar conta dos mdveis, Voc& nado da valor a
se ia ou n&’o mudar-se naquele dia. €stes méveis porque nao foi vocé que os comprou. E se
Quando as criancas eniraram no caminh&o sorriram. vocé dormir e alguém roubar a maquina? Eu nao sei!
lam sentadas nos méveis. O caminhaéo percorreu varias Vocé nao trabalha e esta sempre com sono!
ruas, parou num terreno desocupado pertinho de uma Paulo colocou o estrado da cama no solo, pois o col-
casa. chao e preparou a cama das criangas. Pegou uns tijolos e
Maria Clara ficou confente pensando: — Serd que fez uma fornalha. Procurou lenha e fez lume. Pegou um
Paulo conseguiu, um quarto n’uma casa tSo chic assim? balde e foi procurar quem Ihe dava agua.
Com ruas asfaltadas. Oh! que bom residir n’uma casa sem —- Onde & que vou arranjar égua para acabar de
lama ao recor. lavar as roupas? perguntava Maria Clara. Paulo! Paulo!
Sera que voc& quer habituar-me a viver no relento? Eu
Paulo retirou os méveis do caminhdo e colocou-os na
calgadas e pagou o motorista que zarpou-se. Carregou os nado sou cigana.
méveis para o terreno vazio e encostou-os no muro. aparecer alguns curiosos olhando aquela

en
Comegou
— Onde €é que vamos morar? Perguniou-a espdsa cena. Queriam perguntar qualquer coisa, mas nado ousavam
. por causa da tristeza de Maria Clara. As criangas e os
de Paulo.
Vamos passar a noite aqui, respondeu, € amanhé adultos. paravam -e-contemplavam comentando: — Eles sao

um barracdo neste local. infelizes. Eles passam fome. E estas criangas que so filhos
construiremos
Deus! que de pobres atualmente por viver ao relento ndéo ieréo pos-
Maria Clara levou as maos & cabeca. “Meu
Oh! Paulo do céu! Que sibilidades para aprender ler e escrever. Serao desajusta-
hei de fazer de minha vida?
vamos passar a noite ao relenio? dos. Problemas sociais no-future...Héspedes dos presidios.
desastre! Como é que
Daqui a pouco comeca esfriar @ as Maria Clara levou as mos 4 cabecga gritando: — nao...
J& esté garoando!
nao... nado... vocés que sao ricos desejam o mal para
criangas sem agasalhos. Como fui tdia em confiar em vocé,
167
166
os pobres! Vocés sao egofstas! Sé vocés é que querem ser A minha vida s6 segue a linha curva. Se tivéssemos o
felizes no mundo. Oh! Deus! que fatalidade na minha dom de advinhar que iamos nascer eu teria implorado a
vida! Deus para nao enviar-me ao mundo.
As pessoas iam jogando dinheiro. Os filhos de Maria Até aqui sé tenho tido decepgSes. Quando eu enve-
Clara iam recolhendo e sorrindo. Paulo ganhou tanto di- Ihecer nada tenho para recordar. Tem dia que penso pro-
nheiro e pensou: — Se ficarmos aqui uns seis dias conse- curar Oo papai. Mas nés nao temos uma casa decenie para
guiremos para comprarmos um terreno e umas tabuas para recebé-lo. Fico com vergonha. Temo as repreensdes.
fazermos um barracdo. — As criangas precisam comer. Eu fiz o café e fervi
Maria Clara sentou-se no estrado da cama pensando. o leite; comprei pao, queijo e manteiga, disse Paulo com
a satisfagao de um grande heroi.
Paulo esquentou comida e deu para as criangas. Pedia
Maria Clara aceitou o café com profunda indiferenca.
a Deus para nao chover aié éle conseguir o dinheiro que
~— Vou comprar carne para fazer uma sopa ou sendo
visava arranjar da caridade pUblica. Embrulhou o radio e
vamos almogar no restaurante, continuava Paulo.
amarrou-o no estrado da cama. Amarrou a maquina no
— Est&é bem Paulo. Fitou seus filhos, que dormiam
estrado para nao molhar-se com o orvalho.
miseravelmente naquele estrado. — Oh! Paulo, eu nao me
Dormiam os ocifo no estrado. Maria Clara pés todos os
conformo com o que vocé fez!
cobertores e ndo aqueceram-se. Ela estava tao agitada que
— Vocé tem razdo, Dona Maria Clara Fagundes. To-
n&o pdde conciliar o sono.
dos procuravam casas e mudavam. £ nds iamos ficando.
De manha, Paulo levantou-se e recoilheu as cédulas Eu fiquei com vergonha vendo os outros homens deixando
que haviam sido atiradas durante a noite e foi comprar a vila e nés sem fer para onde ir. Eu sou o chefe da casa.
leite, Pao Ee manteiga e queijo. Resolvi tirar vocé de 14 de qualquer geito. Juro que sofro
Os raios de sol iam diretos ao estrado, Maria Clara mais do que vocé. Ja estou enfastidiado das criticas.
aquecida pelos raios solares adormeceu. — Criticas justas, Dr. Paulo!
Paulo sentou-se numa cadeira e ficou aguardando o — Oh! Maria. Aié vocé! Se eu pudesse nao deixava
despertar de sua familia. Os que passavam iam jogando sofrer, lamentou -Paulo, tristonho -e acrescentou:. — Eu
dinheiro. Ele ia recolhendo.. De vez em quando erguia os resolvi viver de qualquer geito.
olhos sob o céu observando e suplicando ao grande Deus — Vocé n&o procura um emprégo. Diz que nao tem
para nao enviar chuvas. Esta era a sua preocupagao. sorte e n&o age. Vdrias pessoas aconselhou-me para dei-
Maria Clara despertou-se, fitou o espacgo e disse-lhe: xar-te, mas eu n&o tenho coragem. Vocé é o meu legado
— N&o é nada agraddvel viver ao relento. Ja estou tao fatal. Eu vou sair daqui a pouco para ver se encontro um
desiludida da vida; parece que quando nasci a “felicidade” quartinho. Daqui para o futuro, nado mais hei de confiar
n&o quis reconhecer-me. Talvez seja por eu gostar imen- no senhor. Eu acho horroroso uma mulher predominando
samente destas palavras “feliz", “felicidade” e “felizarda". num lar.

168 169
Estava frio, ela vestiu-o casaco desbotado, penteou os terra nado preocupavam com a minha pessoa eu n3o devia
cabelos grisalhos, calcou uns chinelos velhos e reacendeu o ambicionar um espdso. Eu seria mais feliz se tivesse me
fogo e pois dgua aquecer para dar banho nas criangas. casado com um empregado de papai, aquéles homens reso-
~—. Vamos preparar uma sopa, lutos que enfrentava qualquer espécie de trabalho.
— Oh, Meu Deus! sempre a sopa! Sera castigo? Ajoelhou-se aos pés da cruz olhando Jesus crucificado
murmurou Maria Clara. e perguntou-lhe: — O senhor n&o gosta de mim? Recli-
Paulo fingiu nado ouvir, falando com petulancia: — é nou-se nas pedras do altar onde os aflitos vao procurar a
que a comida do restaurante & insuficiente. protegao de Deus para aminizar suas angustias. Comegou
— Vocé tem razao, vai comprar a carne. sentir frio exterior e interior. Estava cominada pelas atri-
Paulo obedeceu-lhe. Ela preparou o caldo quando bulacgdes. Sentiu sono. Adormeceu.
Paulo entregou-lhe a carne. Ela pegou a carne sem ter Paulo preparou sézinho a sopa para as criangas. Co-
coragem de fifar o rosio do marido. mecgou esfriar, Gle remecheu as trouxas procurando
Quando terminou a fraca refeigao, Maria Clara pediv agasalhos.
dinheiro para a condugdo. Ela que tinha horror de gastar As pessoas que passavam paravam para contemplar
dinheiro conseguido com a mendicancia, era obrigada a aquéle quadro doloroso, uns pedia as criangas. Paulo fin-
utiliza-lo porque nado havia outro recurso. Saiu indecisa e gia ndo ouvi-las. Eles n&o insistiam respeitando o seu
desorientada em diregdo de um suburbio qualquer. sil€ncio,
—- Quem sabe se Deus ajuda-me encontrar um quar- Chegou um caminhdo dizendo que iam levar os méveis
tinhio mais barato. N&o tenho posses para pagar um e as criangas para o depdsito Municipal até resolver aquela
quarto aqui na cidade. Estava indisposta por ter passacdo situagao.
a noite sem dormir. Entrou numa igreja. Ja fazia sete anos -~— N&o posso ir. A minha espdsa saiu. Foi ver se
que ela nao entrava nos templos sagrados. Recordou as consegue um quarto, preciso esperé-la.
promessas que fez quando era solteira, ir na missa para -—— Amanhéa os senhores voltam.
Deus ihe auxiliar a encontrar um namorado. Agora que — Nao podemos obececer-te.
estava senil @ que achava iéla a promessa que fez nz -— E ordem do prefeito. Estas criangas nao podem
mocidade. - ficar ao relento.
* _. Sé é6u soubesse que ia ter um casamento hediondo Comegaram a vascular os mdveis anotando tudo.
assim, teria suplicado a Deus para enviar-me a morte. Foi Outros carregavam os méveis para o caminh3o. Partiram
a Unica promessa que eu fiz na minha vida. F agora tenho levando as criangas. No depésito Municipal, Paulo viu seus
receio de suplicar um auxilio do céu. Fui tao infeliz na filhos jantar, depois irem para o leifo. Um feito alvo, como
minha primeira “sUipti¢as""Muitas promessas sé atrae des- neve.
venturas. Quem sabe se eu viera ao mundo para viver Comegou a chover. E a chuva foi aumentando. fle
solteira e Deus castigou-me, j4 que os jovens de minha agradeceu a intervengdo divina ao seu favor.

170 Wi

i
|
!
Fecharam a igreja e nao viram Maria Clara. Seré que auviram seus bracos? mas ela nao tinha
Quando ela acordou ficou apreensiva. Supunha estar férgas para gritar. Dirigiu-se até a sacristia, premeu a
sonhando, vendo os altares ifuminados a meia luz: — Meu campainha e nao teve resposta. “Se hd alguém na igreja
Deus! onde sera que eu estou? As pernas doiam-lhe de- esta dormindo, pensou. Quem tém iranquilidade de espi-
vido a posiggéo incémoda que dormiu varias horas: —- E rito dorme téda a noite. Sé6 eu... nao tenho ésie privi-
os meus filhos? Filhos séo hdéspedes eternos do pensa- légio. Ah! Seja o que Deus quiser, ja que estou nas maos
mento materno. Porque sera que n&o estao ao meu lado? déle, vou rezar até surgir a aurora; pelo menos esquecgo
Quem sera que teve a coragem de separar-me déles? que estou sofrendo”. Ajoelhou-se aos pés do altar, pediu
Mas onde estou, meu Deus? Seré que o prdéprio Deus ao criador para prolongar a sua exist€ncia até criar seus
desprezou-me? O que faco aqui? Sera que enloqueci? filhos. “Pego-te, 6 Deus! Melhor sorte para os meus filhos.
Deus, porque é que o senhor sé me reserva agruras? Eu Se Deus auxiliar-me, quero comprar um terreno e mandar
estou com fome. Nunca pensei que ia conhecer todos tre- consiruir uma casinha para éles. Se eu sucumbir, de um
chos fatais da exist@ncia. Serd que eu sofro para pagar os coldpso ou desastre, qual sera o destino de meus filhos?
pecados dos meus anfepassados? £ o Paulo sera que esta Hao de ir para um asilo de orfdos. Viver enclausurados sem
cuidando bem dos meus filhos e das minhas coisas? poder manifestar suas vocagées”. A vida nado Ihe interessa.
Comegou recordar que saiu para procurar um quarto. Nao thes atraia. N&o mais esperava a “Felicidade. “ dizer
“N&o nado temos quarto, estamos ao Iéu. “Ouvia o rimbom- que eu na mocidade gostaria de marcar um encontro com
bar dos trovGes. E a chuva nas viclragas deu dois relam- a felicidade. Esperei, esperei, ela nao apareceu. Eu nao
pagos seguidos iluminando o femplo. “Ah! Eu estou na sabia que a felicidade era orgulhosa. Todos os dias havia
uma surpresa para mim. Uma surpresa funesta”.
igreja. Ah! eu entrei para suplicar ao onipotente o seu
auxilio. E o sono dominou-me. Pela hora que estou no Quando o sacristéo foi abrir a porta ficou perplexo
vendo-a ajoelhada aos pés do altar, interrogando-a: — A
tempio compreendo que dormi o dia todo e uma parte da
senhora passou a noite aqui?
noite”.
—- Passei. Entrei para rezar e cai no sono. Quando
N&o estava revoltada. Apenas pensancdo nos filhos
Vi as portas estavam cerradas.
que deviam estar molhados.. “Paulo 6 um homem sem ex-
— Pois se a senhora nao tem onde dormir, saiba que
pediente. N&o soluciona nada. A minha maquina vai-mo-
Deus condoeu-se da senhora porque se estivesse la fora
lhar e o r&dio ficar inutilizado. E eu aqui prisioneira sem
ia passar uns maus bocados. Choveu iéda noite, varios
poder sair”.
prédios desabaram, ocorreram varios desastres.
O relégio badalou frés horas. Mas ela n&o podia sair, Maria Clara vendo a porta aberta saiu correndo.
estava desorientada. E nao podia orientar-se e nem domi- Queria ver os seus filhos. Quando ela chegou ao local nao
nar suas apreensdes. Queria gritar. Serd que havia alguém havia ninguém. Suas vistas escureceram e ela desfaleceu.
na igreja? Caiu no solo inconsciente.
172

PERSE
Paulo passou a noite no abrigo social. Anotaram a Paulo j4 estava se aborrecendo
sua identidade, o seu estado civil. Ficou nervoso quando com as Perguntas. la
respondendo agitado, pensando em Mari
perguntaram-ihe qual era a profissio que exercia. a Ciara “Sera
que suicidou-se? Ela tem sido uma heroina sUuportand
, : lo
Resolveu dizer que era doente. tantas atribulagdes. Sua alma e seu corpo deve estar
O escrivéo que the interrogava disse-lhe: —- Quando combalido”.
© senhor casou nao era doente. Devia trabalhar nalqum Pauio passou a noite meditando e Nao encontroy uma
lugar. E se adoeceu deve estar no seguro. solugéo para por um ponto final nas
suas desditas. E a
Paulo ficou vermelho pensando que atualmenie é difi- sua vida oscilante, agradecia a inter
fer€ncia Social recolhen-
cil um homem viver entre os homens. ce seus apetrechos e agasalhando
seus filhos, evitando de
--- Eu sou do interior, tentou desculpar-se Paulo. serem surpreendidos pela tempestade. Quando o dia des-
O escrivdo exaltou-se: —- Mas 0 senhor nos disse que pontou foi veloz procurar a sua espdsa.
nasceu em Sao Paulo! Quem nasce em Sao Paulo tem pos- Quando Paulo chegou no local
viu Maria Clara esten-
sibilidades de conseguir bons empregos. © senhor foi dida no solo. O seu coracgdo acelerou o ritmo,
“Serd que
menino vadio que nao estudou? ela morreu? Se ela morreu eu devo morrer também
porque
— Eu vivia perambulando porque era érfao. se eu ficar neste mundo um dia o
coronel me encontra e
-~ Se o senhor no era um homem arrojado porque se eu nao lhe apresentar a filha com vida, ai ce mim...
casou-se? E quem sofre so os teus filhos. Esta classe de a tortura seré duplicada. Uma calde
ira com agua fervente
homens apdaticos, morosos, indolentes por férca hé de e a minha oretha para a colegdo". Ergue
u-a nos bracgos 6
extinguir-se porque com o decorrer dos fempos o mundo comegou a friciond-la. Pensou: “Ninguém [he socorrey
vai evoluir-se. E todos teréo de trabalhar porque o homem porque ela est4é mal vestida. E nestes trajes Ihes confundem
vadio nado tem valor. com as indolentes que vagueiam por ai se€M Pparadeiro ea
touve um intervalo constrangedor antes da sequinte sem destino.
pergunta: Ela foi recuperando os sentidos. Abriu os olhos e fitoy
—— Onde residiam e porque sairam se nao tinham para © seu espéso. Perguntou-lhe: — E éles?
onde ir? Paulo univ seus labios nos dela ainda frios. Fazia tem-
— A casa vai ser demolida. po que éles nao beijavam-se.
— Ah! exclamou o escriv3o, anotando os dados de -— Paulo onde estdo os nossos filhos?
rotina com inciferenga. —-- O nome e a idace das criangas? Paulo ndo responceu-lhe. Adorava a sua esposa e
Paulo enumerou sem muita certeza de que estava estreitou-a mos bracgos. Ele tinha receio...de--beijé-[a, Mas
dizendo o certo. era a primeira noite que éles passavam ausentes.
Foi a
— Porque é que a sua espdsa est4 ausente? Se ela auséncia que provou o quanto éle amava a mie de seus
era doente mental ou se sofria de amnésia. filhos.
N

174
. — Fiquei preocupado com vocé, disse Paulo, pensei As criangas estéo numa creche, pode crer tranquila-
que vocé havia posto fim a existéncia. Mas vocé é sensata. mente.
E boa mae. Pensei que vocé havia viajado para a tua Ela fitou seu esp&so nos olhos: -—— Eu deixei de crer
fazenda. em vocé, Eu quero estar é ao lado déles. Preciso duplicar
minhas férgas para crid-los. Onde esto os meus utensilios?
— E os meninos? insistiu Maria Clara, cada vez mais
Vocé nado os vendeu?
apreensiva.
—~ Est@o no depdsito Municipal. Paulo relatou as
— Est&o numa creche do Estado. E vocé, onde passou
ocorréncias a sua espésa de modo claro e circunstancial.
a noite? Estou iniranquilo. Nao posso exigir que vocé
— Estou exausta. Faz dois dias que nao alimento.
honre o meu nome porque sou um relegadoe da sorte. Um
— Vamos, convidou Paulo oferecendo o brago.
infausto, Apenas quero que se algum dia vocé encontrar
Ela recusou. Deu um longo suspiro e seguiram silen-
seu pai que éle orgulhe-se de vocé.
ciosos. Paulo pensou: —— As contingéncias da vida faz ela
— Passei a noite na igreja. Entrei para rezar e ador-
distanciar-se de mim.
meci. Quando despertei a igreja estava fechada. Eu apenas
— Vocé nado quer entrar num restaurante para fazer
via os reflexos dos relampagos e os ribombar dos trovées.
uma refeigdo? convidou Paulo amavelmente.
Fiquei agitada pensando nas criangas. Tenho a impressdo
— N&o quero. O que anceio é& ver os meus filhos.
que faz um século que nao os vejo. Agora compreendo
Como sera que passaram a noite? Serd que sentiram frio?
que nao posso separar-me déles. Conta-me o que passou.
Seré que deram a mamadeira para a Virginia? A nica
Paulo fitava a sua espdésa e percebia que @le nado coisa que eu tenho ciume neste mundo é dos meus filhos.
ocupava lugar no seu pensamento. E éle que adorava-a Quando chegaram na creche Maria Clara pediu:
loucamente! Sofria. E o seu sofrimento ia multiplicando.
— Quero ver os meus filhos.
Ela ndo lhe procurava acaricid-lo. Dedicava sua vida tnica- ~~ A senhora ndo tem um lar para éles, disseram-lhe.
mente aos filhos. Pensava se ela beijasse-me pelo menos...
Nao podem ficar nas ruas, Se n&o recolhessemos éles on-
um beijo expontaneo, arrebatacor. Eu seria o homem mais
tem a noite iam molhar-se com aquela chuva, Podiam até
feliz déste mundo”.
apanhar pneumonia. .
— Paulo, eu quero ver. os meus filhos. Leva-me para — Paulo, porque. iludiu-me?
junto déles. Ontem 6les comeram? — Juro-ie. Eu disse a verdade. Daqui para o futuro
— Preparei sopa para Gles. jurei dizér-te sé a verdade. Pretendo fazer tudo que vacé
— Eu quero viver dentro de uma ampola, mas quero ordenar-me. Eles trouxeram as criangas apenas para per-
estar sempre com os meus filhos. Varias pessoas nos pediu noitar aqui. Prometeram devolvé-los hoje.
as criangas. Vocé nao as deu? ~—— Quando o senhor conseguir casa podera vir que
— Oh! Maria! Entéo eu ia dar os nossos filhos? -Eu lhe entregaremos as criangas. E sem isso néo adianta
nao tenho classe, mas nao desclassifico-me tanto assim. suplicar. N&o admitimos insisténcias.

176 iv7
PR-12
Paulo deu o braco a sua espédsa que acompanhou-lhe
—— Néo creio, disse-Ihe Maria Clara céticamente, nado ¢
como uma sonambula. Seus passos vacilavam. Sua boca © meu
a primeira vez que vocé me faz essa promessa.
ficou amarga, o seu coracgdo acelerado.
pai sim prometia hoje e realizava amanha. Estou fatigada,
— Paulo, para onde é que vamos? com sono e com fome. E sem um lar para repousar. Nao
— Nao sei. A minha vida por cima da terra é to pretendia ser andarilha na vida. E perguntou a Pavlo com
angustiosa que até ja estou farto de viver. certa dose de ironia: —- Vocé tem dinheiro para pagar um
— Onde é que vamos arranjar casa? Temos que rea- hotel?
ver os nossos filhos. E ndo adianta chorar porque a lei dos — N&o. O dinheiro que eu tenho apenas da para
homens n&o se comove com légrimas. condugdo e fazer uma pequena refeigdo. Quando eu esta-
va com as criangas eu ganhava esmolas. Um homem
—— Vamos ao depésito Municipal, recebi ordem de
estar |4 as trés horas. Oh vida desajustadal Até quando? deu-me mi! cruzeiros.
— Oh! Paulo! Vocé esté ensinando os nossos filhos
—- Lamentos nao resolve o nosso angustioso problema.
ser matandros! E o fim dos vadios é 0 carcere...
Mas 0 juiz esta certo. Até devemos lhe ser grato, disse
Maria Clara parou e reclinou-se num poste. Andei
Paulo. Ainda existe solidariedade de homem para homem.
demais, estou exausta. Nao ha organismo que suporta uma
Um homem que tem possibilidades poderd favorecer ind-
vida assim. Que existéncia atribulada! ia pensando Maria
meras pessoas. Clara. Est4 longe ainda o depésito?
-— Eu deixei de sonhar porque os meus sonhos no — JA estamos chegando.
se realizam. Nada mais me surpreende na vida.
Paulo esperou-a refazer-se e prosseguiram. Quando
— Até o coragio... habitua-se com as cutiladas do chegaram o guarda disse-Ihes que os méveis foram para
destino. Sei que os nossos filhos hao de ser bem tratados, a favela.
observou Paulo e continuou. Atualmente o povo é culto Maria Clara repetiu mentalmente: -—— “Favela”. E,
€ nao maltratam as criangas que séo semeihantes humanas perguntou-the: — Favela é um lugar decente?
desabrochando-se. Creic que sou um homem feliz. Tenho — Vamos ver Maria Clara. Vamos ver, respondeu
esposa e filhos. Nao sou rico. N&o tenho um lar. Mas nés Paulo nervoso com os escrdpulos de Maria Clara.
neste mundo n&o vivemos com tudo completo. Sempre — £— caro 0 aluguel? Quiz saber de inicio porque era
esta faltando algo. Amanha& vamos andar até arranjar um ela que pagava. a
quartinho, Um quarto é pouco, mas eu nao tenho recursos — No custa nada. Vocés vao residir no patrimonio
para pagar uma casa. Paulo ficou mais calmo vendo a-sua Municipal, disse-Ihes.o guarda. :
espésa resignada € ajuntou para consolé-la:
— Até eu ja Paulo sorriu satisfeito e acrescentou: — Oh! Gragas a
estou com saudades déles. BrévVé Vamos abragd-los e aca- Deus! Eu ja no acreditava na misericérdia dos homens
ricid-los. Reconhego que preciso lutar. Vou regenerar-me porque acho-os téo metalisados! E 6 o homem quem vai
Para evitar essas agruras. favorecer-me na minha hora pungente.

178 179
Maria Clara deu um suspiro longo: — Favela. O meu jatas velhas e outros de papeldes pintados com pixe para
coragdo nao aceita viver neste lugar. E atualmente eu creia nao absorver as d4guas pluviais. Para éle a favela era um
nos meus receios,
recanto paradisiaco. Um pedago do mundo como um novo
— Oh! Maria Clara, nés nao estamos em condicgdes de
exigir. Devemos dar até gragas a Deus.
J& temos onde see queceu a 4gua para tomar banho. Depois 'he deu
dormir.
dois sedativos para transpirar. Fez uma sopa de fuba. Era
Paulo ia saindo quando o porteiro disse-lhe:
— Espera o Unico alimento que éles conseguiram por ser Oo mais
que um carro do servigo social vai conduzi-los
até a favela. barato. Ela fomou sem protestar; ja estava compreendendo
Tem um guarda vigiando os méveis.
que os pobres néo podem ter preferéncias e nem ser exi-
Paulo e Maria sentaram-se num banco.
Ela reclinou a gentes no paladar.
cabecga no seu ombro e adormeceu. Passou
uma hora e meia. ~~ Agora voc& vai dormir. E amanha... ha de estar
Paulo estava impaciente mas nado reclam
ava. Chegou um recuperada. Vamos ver se Deus decidiu nos ajudar, disse
carro € 0 porteiro deu-lhe ordem para levd-los
até a favela. Paulo que continuou: — hoje éle condoeu-se da nossa
Maria Clara estava indisposta. “Eu vou adoece
r”, disse desventura. Ontem vocé foi a igreja para suplicar auxilio
Maria Clara. Quando chegaram na favela, Paulo
ficou ale- e como resultado conseguimos éste quartinho. Cheguei a
gre. Era o seu ambiente. Todos pobres, Todos Mil vzes
irrespon- conclusao que Deus atende sé as tuas suplicas.
sdveis. Todos marginais. Eram as pessoas
conformadas com aqui do que na rua. Tenho visto tantas pessoas dorms
a pobreza. Viviam resignados, sem lamentos. O
Criangas debaixo dos viadutos. S30 os que cansam de lutar.
brincavam na terra, descalcas e rotas, rodan
do pido. mem é fraco; qualquer desiluséo desmorona o seu ideal;
Maria Clara olhava os barracdes, Eo E, amanha vamos
Paulo olhava a éle transforma-se em farrapo humano.
sua espésa que estava hirta igual uma
estdétua. Apenas o reaver os nossos filhos. Amanha é um novo dia para nés;
seu olhar percorria aqueles antros de miséri Até aqui temos
a e de pobresa devemos agradecer unicamente a Deus.
humana. Parecia ndo acreditar no que via. os ditames da po-
sofrido com humildade sem transgredir
Desceram do auto e seguiram o motorista que
indi- bresa. No sei o que deduzir da tua tenacidade ao meu
cou-lhes um barrac3o feito de lascas de madeir
as velhas jada, Deve ser opiniao.
€ coberto por latas. No barraco de quatro
por quatro os — Por amor nao é.
méveis se espalhavam como trastes velthos. de ser amado
— Infelizmente, o homem faz questéo
-— Aqui € maior e tem espaco, dizia Paulo, podemos Paulo pesarosamente, e seas ee
por uma mulher, disse
fazer uma cosinha. E enquanto falava ja colocando os mé- consegue prender um afeto feminino, sente-se derro 209
veis no lugar. Armou a cama. A sua espdsa se deitou com- na vida. E o homem quer desfrutar tudo que existe
pletamente aterrada. Acendeu o fogo e foi procurar gua. ““Tnundo. Quer dinheiro, satide enfim a felicidade. Por isso
Quando voltava com o balde devo
cheio de gua, Paulo obser- devo admirar-te por viver ao meu lado, e creio que
vava os barracdes, uns construfdos com tabuas,
outros com agradecer-te. Obrigado dona Maria Clara Fagundes.
180 181
Paulo parou de falar quando percebeu
que ela estava vida tropegco numa dificuldade, que até j4 perdi o habito
dormindo. Comecou pregar umas ripas nas
frestas para de sorrir. Os pensamentos de Maria Clara iam se atrope-
diminuir a correnie de ar frio que
vinha de fora. Jando uns sébre os outros.
Maria Clara comegou a delirar,
chamando os filhos.
Debatia-se no extertor, implorando Quando chegaram Paulo disse ao Juiz que estava
socorro. “Nao enclau-
Sura os meus filhos”. “Quero-os alojado num barraco na favela, ao preencher varios formu-
ao meu lado”. “Ndo mal-
trate-os, les sdo bons...” larios para poder reaver os meninos. os
Quando as criangas viram os pais correram na diregéo
Paulo ouvia os seus lamentos com os bracgos cruzados, de Maria Clara abragando-na comovedoramente. N&o nota-
fitando-a. Sentou-se na cama para
impedir a sua queda. ram a presenga de Paulo, e se notaram nado deram importan-
Apalpou-lhe a testa para ver se
ela estava com febre. cia. Ele fitava sua espdsa que sorria beijando os filhos; sua
Alguém cantava. Paulo ouvia
e refletia — Aste povo fisionomia transformou-se. Aqueles gestos das criangas
vive nesfes barracées miseravelmen
te, sem confério, levan- valeram-lhe por uma acusag&o.
do vida primitiva, conhecendo
tédas agruras que as suas As criangas deram as maos formando roda. Maria
condigdes Ihe Proporcionam, ainda
cantam. Ciara estava no centro, o seu olhar circulava fixo no rosto
Ouvia as gargalhadas, pensou: -—
parece que na favela de cada filho que cantava:
ninguém preocupa-se com o futuro.
Se tem ambic&o au — A mamée voltou. Lé, 16, [4.
projetos n&o revela. Vamos ver como
vai ser a minha vida — A mame voltou.
‘neste nucleo.
— A mame voltou. Lé, 16, 16.
No outro dia quando os raios solar
es j4 haviam pene- — A mamae voliou.
trado pelas frestas clareando o barra
c&o no interior, Paulo Até Paulo sorriu, achando graga na cangao que seus
deixou 0 leito e foi buscar agua.
Ficou horrorizade com a filhos improvisaram.
fila de latas e compreendeu que
em qualquer direc&o que
© pobre inclina-se encontra dific -—~ A senhora nao vai nos deixar, nado é mamaée? Nés
uldades. Suplicou com precisamos da senhora. Nds somos pequenos.
infinita celicadesa um pouco de
agua para preparar o café
Para a sua espédsa. Maméae tem dé de nds. Nao 6?
— Tranquilizem-se meus filhos. A mamae nao os dei-
Terminacdo © pobre café foram
em busca dos filhos, xara jamais, porque longe de vocés eu -também-sofro.
Paulo no caminho jé pensava nas
perguntas que o Todos queriem beija4-la ao mesmo tempo. -
juiz ja fazer-lhe. Maria Clara estava impaciente,
andava Ninguém poderia sofrer maior humilhagdo do que
depressa. As .Preocupagses enchiam de inquietude e Paulo, recebendo.o desprézo dos prdéprios filhos, por causa
dizia: — Tenho a impressio que
separaram minha alma do da sua indoléncia.
corpo. Estou tao Preocupada que nao consi
go coordenar Maria Clara e Paulo agradeceram aos diretores e
os meus pensamentos. Cada passo que eu dou na minha partiram.
182
183
Ela ia de cabega erguida, igual um atleta vitorioso; o balava-os beijava-os com a ternura que sé as maes saudosas
seu olhar e o de Paulo encontraram-se. Ele sorriu com sabem fazer.
amargor dizendo: — Os nossos filhos Ihe receberam com — Gracgas a Deus estamos reunidos novamente, e le-
um grande amor filial. Nunca pensei que a auséncia dos vantava aS m&os ao céu.
pais deixasse os filhos intranquilos.
Paulo saiu. Queria conhecer a favela e observar os
Quando chegaram & favela as criangas ficaram espan- habitantes que iam ser seus vizinhos. Viu uns homens
tadas vendo tantos barracées agrupados, perguntande: — amontoados e pobremente vestidos. Aproximou-se e cum-
€& aqui que nos vamos morar mamade? primentou-os .Palestraram longamente e nem viu que as
— Que lugar esquisito, falou outra crian¢ga. horas iam passando. Era a primeira vez que éle falava e
—— Isto aqui é o inferno. Concluiu Maria Clara consigo era ouvido. Ficou emocionado quando um homem dis-
mesmo, se-lhe:
—Mamie; porque sdo de tdbuas estas casas? Sao —— Senhor Paulo.
casas de pombos? Alguém the reconheceu. Alguém sem importancia que
— Na&o sei meu filho. Nao sei. n&o sabia quem era. Ali n&o existia classe. Todos eram
— Eu tenho médo déste lugar. iguais. N&o havia preconceitos.
As criangas fitavam
aquéles barracSes mal construidos, sujos e exalando
Todos estavam conformados com a ironia do destino.
mau
cheiro. Nao viviam preocupados com o fantasma do aluguel. Cada
Maria Clara preparou a refeico com carinho e conten- um trajava como podia. Paulo infiltrando-se naquele nu-
famento interior. Enquanto comiam as criancas iam relatan- cleo, tinha a impresséo que estava andando no espaco,
do © que comeram no abrigo. tinha a impress&8o que estava habitando outro planeta.
Sentia-se bem plenamente ajustado aquela matitha de in-
— Que comida gostosa, disse um dos meninos.
felizes e desocupados. N&o havia espionagéo. Nao lhe
— Comemos aié nao mais querer. Todos falavam ao interrogavam para saber onde éle trabalhava. Bebia e
mesmo tempo.
cantava com os novos amigos. Ficou espantado quando
Ela ouvia-os com prazer.. Agora sim o barraco ficou
amanheceu e estava no seu leito. Mas, quem sera que
mais alegre. As criangas trouxeram uma nova vida a éle.
conduziu-ihe ao seu barracdo? Recordava apenas que ha-
— Eles adornam isto aqui, pensou Maria Clara. via saido a tarde e encontrou uns amigos. E que havia
Depois da refeigdo, passado alguns tempo, Maria Clara bebido um pouco. Deixou o leito e o astro rei ja estava no
banhou as criangas. Fitava Virginia como se estivesse centro do céu. Maria Clara n&o estava. Pedrinho disse-lhe
vendo-a pela primeira vez. Enfim seus filhos n3o eram gue ela estava lavando as roupas no rio; para o senhor nao
uma miragem diante de seus olhos; pegava os filhos em- sair que ela precisa falar-te.

184
© pequerrucho aproveitou a ocasiao para fazer as suas ne coragao feminino. O coragSo que talvez iria abrigar
costumeiras perguntas: — Papai, porque é que a mamée com carinho com deferéncia especial seria o coragao.ed
sempre chora? Eu n&o vejo a mamie sorrir. E nem cantar. minha mde. Mas a fatalidade interviu, e arrebatou-a;, Nao”
Sera que ela esté doenie? Ouvi dizer que os doentes é sei citar o sabor das caricias maternas; sempre fui olhado
que sao tristes. Ela parece tao infeliz! O que quer. dizer como se eu fésse uma sombra. Quando procure fazer
tudo isto?! amizade com alguém nos primeiros dias, trata-me de “se-
Paulo acendeu um cigarro e acompanhou com a vista nhor Paulo”. Quando percebem que néo tenho nada, que
a fumaga que evaporava-se no espacgo, sem dar muita im- entre os pobres eu sou o mais pobre, tratam-me “Paulo”.
portancia as perguntas de Pedrinho. Abluiu-se e procurou E quando vém que eu nao tenho ocupagao, dizem com
café enquanto Pedrinho insistia com as perguntas. O me- ironia — “aquilo“, e deixam de cumprimentar com receio
nino queria saber porque todos condoiam-se déles. que eu va pedir dinheiro emprestado. Realmente eu nao
Paulo pensou: —- Algum dia éle ha de querer saber o sei dizer qual foi o dia mais feliz da minha vida: se quando
eu nasci, ou se quando dei por mim sdézinho no mundo.
passado clos pais. Ha de interrogar a sua mae. Ela had de
citar a sua origem. E éle hé de querer procurar o coronel. Paulo interrompeu seus pensamentos quando dirigiu
Os jovens séo impulsivos. Tédas criangas aspiram um avd. o olhar para o lado do rio e viu Maria Clara que vinha
Ele ia mandar Pedrinho dizer a Maria Clara que éle estava com uma bacia na cabeca, molhadinha, quase da cabeca
ao seu dispor, mas conteve-se, recordou que éle nunca deu acs pés. Assustou-se. O seu coragao bateu acelerado, co-
uma ordem a sua espdsa. Ele & quem estava habituado a megou a transpirar. Tinha a impressdo que Maria Clara era
Obedecé-la. Resolveu esperd-la. As horas passavam téo um verdugo; um carrasco e éle a vitima inocente; pen-
lentas, um minuto era um século. Paulo saiu para o quintal.
sou: —- Pobre e rico sdo metais que nao se ligam. Sao
Dirigiu a vista para o rio até onde a sua vista alcangou e duas vozes que ndo podem formar dupla, porque sdo
perguntava a si préprio: — o que sera que ela ira dizer-me? desafinados. Como é€ horrivel a desigualdade num lar.
Estava inquieto temendo as repreenscoes.
Quando a muther é superior ao homem ent&o a coisa é de
E o pior é que ela chamava ateng&o na frente das amargar.
criangas.
Ele reconhecia que amava a sua espdésa, mas nao ou-
— Quando éies compreenderem n&o irao obedecer-me,
sava acaricid-la livremente; nao estavam unidos para uma
continuava dizendo consigo mesmo, nao terei férga moral
palestra amigdvel. A presenga de Maria Clara era-Ihe um
para fazer valer a minha autoridade de pai. Até !a... |
suplicio. Ele queria acaricid-la, dar-lhe um abrago e um
Deus, j4 lembrou-se de mim. Estarei gosando a paz celes- }
i ésculo mas, ela nao permitia. Quando seus olhares cruza-
tial, ouvindo o cantar dos anjos. As vozes dos” et i
ser harmoniosas e sem as malicias da terra. Creio que n&o vam ela desviava o olhar, como se éle fdsse o seu pior
levo saudades da vida terrena. Nao encontrei abrigo nem i inimigo.
:
187
186
Com &sses pensamentos Paulo foi ao encontro de um sensacionalismo para quem te conhece. Todos hao ce
Maria Clara para carregar a bacia. Ela recusou dizendo: — querer ver para crer. Voc& deve ser um exemplo diante
obrigado, eu me ajeito sdézinha. de teus filhos para formar-lhes a mentalidade dentro da
honestidade. J& que nao ha possibilidade de dar-lhes
— O Pedrinho disse-me que a senhora quer falar-me.
educagdo esmerada, temos que ser decentes no nosso lar,
O que deseja?
contribuir e cooperar para que éles arranjem bons empré-
Ela estava descalca e o vestido em desalinho, parecen-
gos e aprendam um oficio modesto que seja. Os nossos
do a mais pobre e desgragada das criaturas. Ergueu a vista filhos ndo hao de ser favelados profissionais. Estes tipos
para certificar-se das condigdes do tempo antes de estender que preferem viver numa favela do que se esforcar para
as roupas no varal para secaé-las. Entrou e sentou-se. Os progredir na vida. H& os que inculcam os govérnos de serem
filhos agruparam-se ao seu recor. Paulo seguia-a apreen- os causadores das multiplicagdes dos homens pobres que vi-
sivo. Ela fitou-Ihe o rosto. Ele correspondeu o seu olhar. vem desajustados nos cortigos e nas favelas. Eu penso que
Maria Clara parecia preparar o ambiente para dizer-lhe é o homem quem deve ter vontade de melhorar e nao ser.
algo de muito sério. impelido pelos ventos do comodismo ou da preguiga. O
— Agradego-ie a belissima cena que representaste combustivel do homem 6 a sua decisdo. O homem que nao
ontem. Eram duas horas quando vieram trazer-te em casa. trabalha é igual uma drvore que vai atrofiando-se afé extin-
© senhor estava inconsciente. Dominado pelo alcool. O guir-se, sem dar nem sombra e nem frutos.
senhor nunca apresentou-me uma qualidade aprecidvel.
Maria Clara continuava agora em tom ainda mais se-
Insultou-me e disse-me que eu sou rica e avarenta. Que
vera: — Chega a vida atribulada que vocé proporciona-me.
eu nao procuro o meu pai para impedir que vocé compar-
JA estou senil, combalida. Vocé diz que tem dé de mim.
tilhe de minha riqueza. Que jd esté farto de minha com-
N3o creio. Vocé ndo tem consciéncia. La na vila vocé era
panhia e que é o teu desejo partir para bem longe. Que
pacato porque temia a dona Maura. Aqui eu nao tenho
eu instigo os nossos filhos contra vocé. Apareceram varias
ninguém. N&o tenho defensor. La vocé me auxiliava nos
pessoas para ouvir-te. Vocé me descompés e pés a cantar
servicos domésticos. Aqui deixa tudo por minha conta.
em seguida. A tua voz € bonita, percebi que aqui neste
Tudo aos meus cuidados. Quando penetro dentro desse
nucleo &les apreciam estas cenas de individuos inuteis
barrac3o-ndo sei onde iniciar, a desordem é tamanha que
como vocé. Vocé depois de infligir-me tantos aborreci-
me sinto vencida. Vocé disse-me que é meu escravo...
mentos ainda vai aprender a beber, Paulo? Terei que
mas a escrava sou ev. Eu nao sabia andar calgada com
aprender a tolerar o espdso ébrio e indolente? Daqui uns
tamancos; aprendi. Eu nao comia pao amanhecido. Atual-
dias vocé hd de querer espancar-me, imitando a classe de
mente como pa Tenho estémago de avesiruz.
homens que sao valentes s6 com as mulheres. Envez de
adquirir vicios porque nao adquire hdbitos salutares. Se Paulo enchendo-se de coragem interrompeu o mond-
vecé aprender a trabalhar ha de ficar famoso. Ha de ser logo para perguntar: — Tudo que vocé disse-me é algo

188 189
que vocé pretendia dizer-me hd muito tempo, mas estava
aguardando uma oportunidade?

— Eu idealizei a vida matrimonial tao diferente. Um


lar com vérios filhos, mas com conférto. Quartos bem ador-
nados; um jardim perfumado, e frases de veludo para o
meu espdso.
Eu acho horrivel a incompatibilidade. Eu era inocente,
€ pensava que tudo que pensamos realiza-se. Quando al-
guém perguntava a minha mde: — “a senhora é que é a
espdésa do coronel Pedro Fagundes Filho?” minha mie
sorria e respondia satisfeita: — “sim, sou eu, e estou con-
tente com éle ao meu lado. Agradego a Deus por dar-me
um espéso téo sensato assim”. E a mim perguntam-me
com piedade: -~ “é a senhora, a espdsa do Senhor Paulo
Lemes”? E, todos comentam: — “coitada é uma infeliz; é
uma infortunada. Agora os nossos vizinhos j4 sabem que
sou filha de miliondrjo. Uns crem... outros nao. Os indis-
cretos ja vieram perguntar se &é verdade tudo o que vocé
disse. Este lugar é irresidivel. S6 dé gente curiosa, e abe-
ihucdos que gostam de saber de tudo que acontece com a
vida dos outros. Eu jé esperava a tua degradacdo, mas
nao a &sse ponto. Quando eu percorria as terras de papai
e via aquelas drvores fortes e frondosas onde os péssaros
pernoitavam e de manha chilreavam saudando o astro reié
via outras arvores desfolhadas atrofiando-se, extinguindo-
se; eu nao comprendia aquele quadro. Agora compreendo.
E o préprio quadro da vida, E a desigualdade. O papai é a
arvore frondosa. Vocé é a 4rvore raquitica.
Neste momento se fez um sil€ncio de catacumba entre
€les antes que Maria Clara dissesse: — hoje vocé fica em
casa. Devo sair. N&o temos nada para comer.

190
Paulo ia ajuntando as lougas que estavam espalhadias..
As criangas onde comiam deixavam os pratos.
~~ Peco-te desculpas se me embriaguei; foi incons-
cientemente. Sempre reprovei o alcool, Vocé perdoa-me.
Juro que hei de regenerar. Nao mais hei de beber. E
horrivel a companhia dos ébrios, dizem o que nao devem
dizer. N&o refletem no que dizem; ficam insensatos. Nao
prevéem as consequéncias que seus atos acarretam. Ja que
nao posso dar-te conférto, creio que devo dar-te tranqui-
lidade de espirito. Nao mais te direi palavras rudes. Vocé
tem razdo, 6 preciso pensar nos filhos. E, quero pedir-te
um favor: n3o me repreenda perto déles. Eles ja estao
crescendo e quando compreendem nao hao de querer obe-
decer-me. Espero que éles sejam melhor do que eu. Que
sejam arvores frondosas. Eu penso nos meus filhos diaria-
mente. Quando passo perto de. uma vitrine e contemplo
aquéles brinquedos que éles gostariam de possuir, fico
triste. Quando vejo as casas bem edificadas desejo-as
para vocé. Mas, tenho que conformar-me com o reverso
da exist€ncia. Os meus desejos neste mundo nao passam
de miniaturas. Esta vida de indigente que levamos deixa-
me combalido. Eu que nasci pobre, iem dia que me revolto.
Quanto mais vocé que nasceu rica. A tua revolta é justa.
Entre mim e vocé a vitima & vocé, que teve a infelicidade
de ser minha espdsa. Vocé que é 0 fruto de uma 4rvore
frondosa, passando o resto de tua vida ao lado de uma
arvore raguftica que nao pode abrigar-te.
Maria Clara foi estender o resto das roupas qué nao
eram alvas porque ela nao havia ainda apreendido a la-
va-las. Depois pegou uma sacola e saiv. Mas sair sem
dinheiro? Com seis filhos para manté-los precisava :com=

PF-13 L 193
aba mans
PORE
— Né&o sei Maria. Nao sei. Eu vou sair quando estou
prar tantas coisas. Mas como conseguir dinheiro? Pensava
em casa o meu espirito fica conturbado. Uma tristeza
constantemente em Dona Maura que the auxiliava olhando
profunda domina-me. Se existe um homem que nao gosia
as criangas para ela trabalhar. Estava indecisa porque ela
da vida, éste homem sou eu. Vaocé é rica e esta habituada
n3o conhecia o bairro. N&o sabia onde devia ir. Resolve
u
Procurar dona Maura e pedir-lhe dinheiro emprestado, a dominar-me. Ndo sou dono de minhas agGes. O homem
Mas desistiu quando recordou que néo tinha dinheiro pobre que casa-se com mulher rica perde a sua autonomia.
para
a viagem. Devia tomar duas conducées. Tem dia que penso “seré que ela vai me obrigar a lhe tomar
—~ Meu Deus! Que hei de fazer de minha vidal? Fico a béngdo”. Se eu deixasse de existir... nao ambiciono a
oscilando sem direcfo. Minha vida piora cada vez mais. vida porque tudo que almejei nao cansegul. Nao me re-
Que provagio hedionda. Oh! grande Deus corta o meu volto. Aprendi resignar-me.
sofrimento. Estou t&o atribulada. Vou voltar a favela e
seja Paulo pegou o paleté para sair. Maria Clara impe-
© que Deus quizer. Sete anos de luta. Sete anos de marit- diu-lhe dizendo: — quem vai sair sou eu. E vou levar as
rio. Sete séculos de extertor. criangas na feira. La hd qualquer coisa no solo, que éles
Quando chegou a favela p&s a sacola na mesa e foi podem catar e comer. Enquanto eu possuia algo de valor,
deitar-se. a vida n&o parecia tao negra. Agora que eu nado tenho
O fogao estava sem lume. Paulo estava sentado lendo nada para vender, fico sem agdo. Figo condoida vendo os
uma revista vagabunda. Alegrou a fisionomia quando viu meus filhos comende paes duros; restos que os vizinhos
Maria Clara; pensou — ela deve ter conseguido qualquer ganham por ai. Uma nao quer e da para a outra. Eo pao
coisa para as criancas. vai transferindo-se até chegar na nossa casa. Aprendi a
As criangas pegaram a sacola e foram mostrar ao pai nao ter escrdpulos, depois que conheci o jugo da fome.
dizendo: — Oh papai. A mamie nao comprou nada para Maria Clara reuniu os filhos pegou uma sacola e
nés comer... e eu estou com fome.
sairam.
As criangas choravam e Paulo ficou agitado, nervoso. Que alegria quando chegaram na feira. AS criangas
-— Até quando hei de resistir esta vida de atribulagdes iam catando frutas e comendo sem lavar, enquanto Maria
e misérias? Era a primeira vez que éle via os filhos cho- Clara pensava: — meu Deus. Os meus filhos vao crescen-
tando de fome. Nao tinha nada para vender, para resolver do sem conhecer os habitos higiénicos.
aquela negra situagdo. Que sinfonia horrivel; cinco filhos
Enquanto isso Paulo ficou meditando: — se eu aban-
pedindo po. ainda mais.
cond-la o coronel hé de odiar-me
Maria Clara’ levantou-se. Nao conseguia dormir sem Vestiu o paleté e saiu. Foi até a esquina e pensou na
tomar sedativos. deixe o barracao
recomendacaéo de sua espésa: — “nado
-— Paulo, Paulo o que havemos de fazer? Sei que os favelados nao respeitam as
sozinho porque na favela
ngo adianta implorat-te. Vocé nao é pai.
195
194
leis sociais. As amizades nao sao sdlidas. E um povo sem
Paulo comprou cinco cruzeiros de farinha de mandioca.
ideal. As mulheres falam.sé banalidades e palavras ce
baixo padr&o. Sé temiam a policia. Umas espancavam os — Aqui ha possibilidades de trabalhar para auxiliar-te.
filhos da outra. Se uma mulher adoece ndo aparece outra Maria Clara pensava: — a maturidade modifica um
Para socorré-la. Eram mulheres que nao serviam para ser homem.
amigas de ninguém”.
Paulo estava inquieto, mas por fim decidiu sair. Du-
rante o dia ninguém ia violar o seu barracdo, pensava 6le. O coronel pensava constantemente na sua filha depois
Pegou um saco e foi catar latas na rua, de conhecer S40 Paulo e observar todos os angulos. Quan-
Quando Maria Clara voliou, éle ja estava em casa e com do chegou a Sdo Paulo sua decisSo arquitetou-se de forma
9 dinheiro que ganhou na venda das latas comprou: pao que se nao encontrasse a filha nao voltaria.
— Fui a fazenda para descansar e vollei mais triste,
: z 4
leite, café, agicar, Estendeu a toalha na mesa e pois. oito ,
xicaras. dizia consigo o coronel. Se é que todos nés temos um
Maria Clara chegou com a sacola cheia de frutas e Deus que nos protege, tenho a impressao que o Deus que
legumes que catou na feira. Ganhou alguns ossos para se encarregou de mim olvidou-me. Eu sempre pensava "se
fazer uma sopa. Ficou emocionada. a Virginia faltar, a Maria Clara velara por mim; ela ja co-
—— Oh Paulo! Que espetdculo divino. O que foi isto? nhece os meus hdbitos. Mesmo se ela casar reservard um
— Eu catei latas e vendi. quartinho para mim. E eu hei de ter um fugar na sva
Com o dinheiro comprei
éstes alimentos para as criangas. mesa”. Como gostaria de ouvir meus netinhes pedindo-me
EU era um

ce pe terest
para que eu contasse historias. Meu Deus!
Ela sorriu dizendo: — é a primeira vez que vocé tra-
homem feliz. Que transtorno na minha vida.
balha e compra pao para os nossos filhos. Creio que devo
dizer “parabéns Dr. Paulo”. © Coronel assim que chegou foi hospedar-se no mesmo
N&o tinham cadeiras.
Comerarn de pé. hotel que havia se hospecdado na ovtra vez. E, os funcio-
—Faz tanto tempo cionarios assim que o viram comentaram logo: — 0 louco...
que n&o como queijo, clizia
Maria Clara com satisfag3o, cotno se estivesse comendo pela © louco.
primeira vez. Desta vez o cororet pretendia reproduzir os retrafos
Paulo lavou as lougas. Estava contente porque estava de Maria Clara e distribuir aos investigadores e€ aos guar-
ainda com Cr$ 10,00 no bélso. Tinha a impressdo que era das-civis, ficou horrorizado quando aproximando-se de um
um homem importante. quarda-civil observou suas roupas velhas e lustrosas de
Maria Clara tanto lavar. Pensou e comerfatcoris motorista: — éstes
catou umas cabecas de peixe na feira e
fez um pirdo. homens trabalham para o govérno, é necessario ter uma
bela apar&ncia porque éles é quem atende o publico.
196 197
Quem estava cesinteressado era o inspetor. Nao in- quadro pungente ver as mulheres sentadas na calgadas da
terferia nas crificas do coronel. O motorista pedia a Deus grande loja do Mappim. Contraste e confronto; luxe na-
para © coronel nao encontrar a sua filha porque pretendia babesco e miséria dantesca.A maioria sao pretos que an-
construir outra casa para alugd-la, dizia: —- éste caipira cam descalgos e as maes sdo analfabetas queixando-se que
veio do céu, e néo tem dé de gastar dinheiro. nao haviam jantado. O coronel pensou: -— seré que a
© coronel andava a pé observando nas filas. Ficava minha filha vive assim?
com dé dos operadrios que trabalhavam o dia todo e a tarde O corone! percorria t6das as pragas e ficou conhecendo
exaustos eram obrigados a permanecer horas e horas em todes os seus segredos. Na Praga da Republica éle ouvia
pé a espera da condugdo. Achava a vida em Sao Paulo dizer: “"&é um absurdo que os deputados queiram aban-
muito agitada, com a espoliacdo ilimitada e os precos nao donar Brasflia e transferir a capital federal para o Rio de
serem tabelados. Dizia ao motorista: — da impressao que Janeiro. Eles n3o querem ser missionarios do pals, porque
isto aqui é um covil de piratas. Todos querem ficar ricos ao em Brasilia ndo tem dez poderes”. Ouvindo o coronel gri-
mesmo tempo, -— Observava as lojas e seus pregos osci- tou: — nao so dez, sdo trés poderes. Sempre ouvi dizer
lantes, ficou furioso porque em geral os governos sé se que as organizagdes republicanas de feitio democraticos séo
Preocupam com as tabelas do arroz e do feijdo, enquanto constituidas de trés poderes: o executivo, o legislativo eo
Gs outros produtos também sao utilidaces. judicidrio. O b&ébacdo alterou a voz dizendo: — o senhor é
© coronel foi ver a propalada Praga da Sé que consti- um burro. O senhor nao conhece o poder do Maracana?
tui uma tribuna popular onde os idealistas pessimistas ¢ C carnaval carioca? A buaite? As lutas de boxes? A
derrotistas discutem os assuntos mais diversos das organi- Praia? O senhor n3o leu que no Rio de Janeiro ha trés
zagoes do pais. E todos politicos sdo mencionados, onde as mil jévens desajustadas. Os nossos politicos deviam saber
teses mais absurdas so discutidas. £ o local onde se mes- governar, mas éles sdo uns artistas da polftica camuflada.
cla o culto e o inculto; o verdadeiro e o especulador e os © coronel sorriu e seguiu comentando: — Estes pobres
que discutem puramente por exibicionismo. coitades, quando abordam os problemas degradantes do
E assim o coronel que.era um homem que se preo- pais sdo taxados de “comunistas”.
cupava Unicamente com a sua familia, ia observando e O coronel j4 estava cansado quando decidiu procurar
tomando conhecimento das desorganizacdes do pais pen- um jornal para anunciar que estava procurando uma senho-
sando: -— eu 6 que devia ser govérnador. O coronel olhava ra por nome Maria Clara. No jornal o jornalista pergun-
a quantidade fabulosa de homens que circulavam @ noite. tou-lhe: — coronel, o senhor que é um homem f&o inteli-
Qutra coisa que horrorizou o coronel foi ver as mulheres gente o que nofou na cidade de Sdo0 Paulo?
que tem filhos pequenos vendendo amendoins 4 noite. E © coronel! cogou a cabega e disse: — nesta cidade com
as criangas chorando, Deviam estar com sono. Era um © pouco que eu vi eu digo; que devia chover pdlvora num

198 199
Quando o carro parou, o coronel foi o primeiro a
dia e fogo no outro. Um incéndio para destruir os cor- descer. A moca entrou numa loja e o coronel e o inspetor
ruptos e os exploradores. & o motorisia lhe acompanharam. © corone! olhava a jovem
O corenel lembrava das mocinhas que circulavam a atentamente perguntando-lhe:
noite pelas ruas pobres e desajustadas. Trezentas mil mogas — a senhorita pode dar-me umas informagdes?
e mocos desajustados no Rio de Janeiro, foi a estatistica A jovem demonstrou aborrecimento. Mas quando éle
que o coronel leu. exibiu a sua carteira onde se tia — “coronel do exército”,

O drama da cidade; varias mulheres dormindo nas a jovem sorriu e ficou apreensiva dizencdo-lhe: — estou
as ordens.
calcadas agasalhadas com a desilusdo da vida e na Praga
Marechal Deodoro o coronel passava olhando aqueles ban- - Onde foi que adquiriste estas jdias, que esta
cos velhissimos e pensou: —- “Oh. Se eu fésse Prefeito usanda?
cde Sdo Paulo seria uma cidade bem ornamentada; com ~- Foi o papai que me deu cle presente no meu ani-
arvores frondosas. Na Praca Buenos Aires o coronel ficava versario.
observande os casais cle namorados aristocratices e ficou — E onde reside o teu pai?
criticando o calcamento velhusco do jardim pensando: — -— Aqui. fle 6 o dono da loja.
“Meu Deus! onde serd que vai a verba do estado?” —- Quero falar-lhe.
© coronel pretenclia encontrar a sua filha, para gosar -- Pois nao. Vou avisa-lo.
a tranquilidacde na fazencla. Jd estava saturaclo de Sao A jévem entrou para o interior da loja. Trés minutos
Paulo com suas greves que nao beneficiam um operdrio por- depois surgiu um senhor anoso cumprimentando-os.
que pedem o aumento de saldrio quando deviam pedir, © coronel estava impacienie e foi logo perguntan-
para diminuir os precos dos géneros alimenticios, diminuir do-the:
os precos das concdugSes e outras utilidades. Observava
— Como foi que o senhor
as jdias? adquiriu
que os senadores e deputados ndo promovem greve para
O dono da loja relatou tudo e foi procurar a recibo.
aumentar os seus subsicics. Criticava os deputados que Se ela
© coronel reconheceu a caligrafia de Maria Clara.
trabalham quatro cias num més ganhando Cr$ 200000,00.
vendeu foi por necessidade, e logo no més que casou-se.
~ "© cordne! queria escrever-um livro sSbre as suas ob- Isto dé o que pensar. Entéo ela comprou a maquina para
servacées, mas tinha médo de ser preso como comunista.
costurar.
© corone! ia sainclo do correio quando viu uma jévem O dono da loja n&do soube informar o enderégo de
que entrava no_ Deu ordem para o motorisia para de Maria Clara. © corone!l pagou as jéias para reavé-las.
sequi-la. O motorista obecdeceu-lhe.
Agora estava mais animado. Ele sabia que ela devia estar
— Nao perca o carro de vista, dizia o coronel emo- em Sado Paulo.
cionado. E a primeira pista.
201
,

i
200 i
i
MRO A ea
As criangas de Maria Clara comeram frutas deteriora-
dia temos dinheiro, no outro nao temos. Eu nao sei que
das e adoeceram. Ela deixou o leito as quatro horas para ir
mal fiz a Deus. Todos os dias @ um sofrimento que vem
ao Pronto Socorro. Conseguiu a receita, mas n3o conseguiu
visitar-me. Visita que me faz chorar.
dinheiro para comprar os remédios. Era um suplicio andar
com as criangas que andavam tao devagar. Quando alguém Maria Clara continuava lamentando-se: — se eu fésse
dava esmola ela ia comprar pao e dividia com os filhos. rica todos acreditariam em mim. O rico mesmo sendo men-
Estavam cansados por ter andado a pé. Ao chegar ao via- tiroso & acreditado, e tem valor. Os homens da lei sido

duto do Anhangabau ela sentou-se no terceiro degrau das impiedosos com os pobres.
escadas para descansar e trocar a Virginia que estava mo- © corone! olhava aquelas criangcas descalgas usando
Ihada e com febre. roupas de adultos, rotas e desbotadas que mals os protegia
Estava frio, as criangas agruparam-se unindo na sua co frio.
mée para aquecer-se iguais aos pintinhos quando estao — Eo teu espdso onde trabalha? Perguntou o coronel.
implumes. Estavam cansados e com fome. ~—- fle n3o tem emprégo. Nao tem oficio. Nao
O coronel, o inspetor, e o motorista iam atravessando trabalha.
a avenida, iam galgar as escadas quando o inspetor parou -—— Oh! Exclamou o coronel horrorizado. — Mas um
e esclamou: — oh! vagabunda! vocé na rua outra vez? homem que nasce e vive em S&o Paulo tem possibilidades
Pedindo esmola hem! Outro dia os teus filhos foram para para trabalhar. Os que nao tém cultura para conseguir
© juizado. Mas hoje vocé vai presa. E uma vergonha uma um trabalho intelectual, podem trabalhar na Prefeitura para
cidade civilizada como Sao Paulo infestada de mendigos. varrer ruas. Poder trabalhar nas repartigées publicas fu-
Vocés arranjam filhos para que éles sejam o meio de vida rando o solo para estender as redes de esgdios. Podem
de vocés. Hoje os teus filhos vao voltar ao juizado no- &
trabalhar num restaurante lavando pratos. Para mim o teu
i
vamente. i espéso é um vadio que nado obedecia aos pais e nao com-
— Ela & conhecida na policia de “a pianista’; os ma- parecia as aulas; tipo dos que desviam-se para a malandra-
landros n&é revelam o seu nome; continuava o inspetor. gem. £ ésies malandros transformam-se em pragas para a
— Eu vou chamar a rddio patrulha e volto ja. Com sociedade. Eles querem ter igualdade de condigdes com os
licenga. ricos mas n&o querem estudar e nem trabalhar. Ocupam
Maria Clara conservou a cabeca curvada indiferente as muitas vézes os lugares nas escolas de outros que poderiam
ameagas do inspetor dizendo: — eu n&o sou vagabunda. aproveitar as ligdes. Depois querem casar-se. © malandro
Este titulo néo orna para mim. E que a minha filha esté é um homem desajustado, sendo também um péssimo chefe
doente. de familia. Sdo homens atabalhoados.
Eu fui levé-la ao médico. Fui & pé porque nao
tenho dinheiro — Qual serd o destino destas criangas? continuava o
para pagar a condugao. E nés pobres um
corone! revoltado. Como é que um homem que nao tem
202
203
oficio tem coragem de por tantos filhos no mundo ‘para O coronel ficou emocionado com a cena que presen-
viver desnutrides? Mas um homem arrojado sustenta um ciava condoido daquela muiher que por ter muitos fines
lar mesmo que tenha que enfrentar os
rudes trabalhos da j4 mereceria a consideragéo publica. Uma mulher sence
lavoura.. Mas.o homem da atualidace quer
viver na cidade mae 'é digna da consagrag3o publica. E os homens da lei
atraido pelas invencSes da época.
Eu sou um homem que néo compreendem isso.
tem possibilidades para viver-na cidad
e, mas prefiro viver e © coronel deu um suspiro e pediu-ihe:
na minha fazenda. Né&o tolero &ste So Paulo com seus
conirastes -e -confrontos: Uns. ricos demais, outro ': —- a Unica coisa que pego-te é rezar para eu encon-
s pobres
demais. E esta desigualdade fermenta i trar a minha filha. Parece que Deus atende aos atribulados.
_uma revolta interior.
Estas criangas jd est3o crescendo revol é E os que vivem assim vao morrendo lentamente. ae
tadas porque vem os
Goces € os brinquedos que &les ndo a Deus porque éle também teve uma existéncia atribula ja.
podem jer. Eu sou
um homem humano e desejo o bem © coronel olhava para tédas direcdes e dizia: -— 0 ins-
para a humanidade.
Eu & que gostaria de governar ésie
pais. Queria reajustar
petor esté demorando. Com &ste dinheiro a senhora com-
tudo. As escolas tém que ser obrig pra carne e faz uma sopa.
atérias e gratuitas. Os
Pais que ndo mandassem os filhos as escolas deviam -— Eu n&o gosto de sopa.
ser
multades. — A minha filha também nao gostava. As vézes eu
" E.0 coronel Prosseguia: — estas crian e Virginia insistiamos para ela tomar sopa e ela recusava.
cas serdo infelizes
ne futuro. Mas os filhos estimulam Quando o corone! pronunciou o nome de Virginia, Ma-
um Pai. ao trabalho. O
filho.& uma seta indicando um home tia Clara ergueu a cabeca e pronunciou emocionada: —
m a lutar. E o teu
espdso nao trabalha? ‘papai!
—~ N&o senhor. — Minha filha!
O motorista estava ficando nervoso. © coronel sentou-se ao lado de Maria Clara e beijou-a
Queria ir-se em-
bora mas nado ousava dar ordem ao coron varias vézes. Fitava-lhe o rosto, como se estivesse ven-
el.
O coronel abriu a carteira e retirou do-a pela primeira vez. Como se estivesse vendo uma joia
uma cédula de mil
cruzeiros e deu-lhe dizendo: — com de valor. . a
&ste dinheiro a senhora
compra remédios para a tua filha. -- Minha filha. Meu amor!
Eu’ sej que um filho
quando adoece deixa
os pais desorientados. . As criangas aproximaram-se. Maria Clara apresentou
Quando ela pegou o dinhelro exclamou: — mil cru- todos os seus filhos: — &ste € o meu papai! E.o meu
zeiros! poderei comprar também um par 7 ,
de sapatos, porque papai! E o vové de vocés.
nao sei andar de. chinelos.. Muito obrig
ado ¢ que Deus te — Eo vové que d& doces?
ajude.”-:
- a -—.E sim meus filhos.
204
PF-14 205
>~ Eo vovd que carrega no colo? os outros foram ao banheiro se lavarem. Que confusdo no
7 E sim meus filhos, e é também o vavé que conta hotel. Todos queriam ver a filha do coronel.
historias.
—- Telefona para uma casa de modias vir aqui e pre-
— Que bom. Que bom.
Agora nés temos vové,. parar roupas descentes para os meus netos, ordenou o
E
as criangas armanhafaram as roupas do ‘coronel. coronel ao motorista. Depois que éles estiverem com seus
Quem nao ficou satisfeito foi o motorista que ja estava cabelos cortados e limpos vou querer almogar sézinho com
habituado com a companhia amavei do coronel. a minha familia.
A radio patrulha chegou com o inspetor que deu as
Trés horas depois dava gosto ver os netos do coronel.
ordens: — entra no carro vagabunda, nogenta, sugeira!
Eles ndo conheciam barbeiros porque Maria Clara era quem
Faz tempo que venho observando teus passos. Anda, anda,
cortava o cabelo déles por n&o poder pagar barbeiros.
que €U nao tenho tempo a perder com vac€ que é uma
Almogaram. As criangas queriam comer carne de frango.
desocupada.
E comiam dizendo: — que comida gostosa.
— Ela n&o vai presa. Interferiu o coronel.
— Obrigado vovd. © senhor é o vovd que desce do
oo Ora senhor Coronel, estas indolentes no merecem
consideragao.
céu? Porque € o vovd que vem do céu que compra coces,
brinquedos e comida.
O povo ia aglomerando-se.
O coronel dava rizadas enquanto o moiorista e 0 ins-
-— Ela 6... a minha filha senhor inspetor,
petor olhavam-se.
—- Oh! E isto que é a tua filha!
— £ a primeira vez que vejo o senhor sorrir; disse-lhe
— Esta é a minha filha. Afirmou o coronel demons-
trando contentamento.
o motorista.

O inspetor dispensou a Radio-patrulha e disse: —- Faz As criancas estavam contentes era a primeira vez que
rempo que eu conhego esta mulher. elas entravam dentro de uma casa chic. Olhavam tudo com
Nos retratos ela &
chic. - curiosidade. O motorista e 0 inspetor tomaram parte na
As criangas entraram.no refeigao. :
carro e foram para o hotel
O coronel entrou na frente Todos olhavam Maria Clara que estava tao chic. Tao
altivo igual um General na
frente do exército, bonita.
Os hdéspedes ficaram horrorisados vendo as criangas — £— uma plebéia transformada em rainha, disse o
descalgas, sujas e os cabelos longos como se féssem motorista.
des-
cendentes de Sansdo. © corénel ficou admirado vendo Maria Clara tomar
O coronel pediu um médico para examinar a menina. sopa. E que ela jurou a si propria nunca mais desobedecer
Era inicio de intoxicagdo. Levaram-na ao hospital, enquanto © seu pai.

206 207
Terminado o almégo o coronel disse a Maria Clara: —— séres humanos... nao ficar3o mais revoltades por nao
vamos na tua casa. $6 vocé pode nos indicar porque pro- ter o que as outras criangas tém.
curei-fe por téda parte. Vasculhei aié os nUcleos sdrdidos. As criancgas voltaram para © carro carregadas de brin-
Entraram num taxi e Maria Clara mandou tocar para a quedos.
favela. Quando o carro chegou na favela Maria Clara desceu.
—— Favela?! indagou o motorista horrorizado. Que As mulheres da favelas observavam admiradas Maria
lugar... que ambiente! .A senhora é favelada? Clara tao bem vestida. E os comentarios logo comegaram.
— Sou. A mé impressdo desapareceu quando ouviram as criangas
— Que desventura. Quanto tempo faz que puchando o coronel dizendo: --- vem vov6.
estd na
favela? O coronel perpassava o olhar pelos barracoes mail
~— Dois meses. construidos. Dizia: — se eu fdsse govérno isto nao existia.
O coronel nao interferiu porque nao conhecia a favela. Um govérno deve iniciar o seu trabalho reajustando éste
povo. Eles sio as enfermidaces crénicas do pais. Construi-
O transito estava impedicdo. Enquanto o carro perma-
necia parado os meninos viram uma loja com brinquedos e ria um colégio especial para educar os filhos dos pobres.
logo pediram: — vovd... compra um brinquedo? Eles crescem desnutridos e desumanos. E um homem desvu-
mano € um monstro que terd as suas taras insacidveis.
7 Pois néo meus filhos. O vové compra tudo o que Deve ser horrivel para uma pessoa culta viver neste nucleo.
vocés quiserem.
Um pais deve ser governado por um homem culto @ supe-
— Como é bom ter um vové. Um govérno deve
Exclamou Pedrinho e rior que reajusta e estimula os inferiores.
perguntou-lhe: construir escolas, casas, colégios e dar trabalho ao povo.
—~ Vové, nds temos vové? Destinar terras para a lavoura. A grandeza de um pais de-
— N&o meus filhos. A vové morreu. pence de homens bem nutridos e bem instruidos.
Maria Clara comecgou a chorar. voltar ao mundo, continuava o coronel,
Sentia-se culpada pela .. Se Jesus
morte da mae. hd de ficar horrorizado com estas desorganizagoes. Deve
O coronel desceu com-as criangas e entraram na loja. ser por isso que éle nao vem.
— O meu sonho sempre foi ter uma bicicleta, disse Os favelados deixavam seus barracdes e aproxima-
um. E, o meu foi ter um caminhdo... Eo coronel prestava vam-se do coronel para ouvir o que éle falava.
atengéo nas palavras das criancas Esperava — Nés do interior pensamos que os que vivem em
as criancas
falarem para dar-Ihes resposta. S30 Paulo sdo felizes, mas vejo que é preferivel viver no
bos Meus trabalhando como colono, do que viver como
filhos, esta época de privagSes para vocés interior
acabou... voces agora vdo levar uma vida prépria de favelado.

208 209
Quando o coronel chegou ao barrac3o de Maria Cfara, Quando chegaram ao hotel, Maria Clara pediu dois
ficou penalizado. Uma cama de casal, uma mésa, a maquina quartos para ela e as criangas. O motorista foi ao hospital
€ @ réclio sébre um velho guarda-roupa. Nao viu cadeiras. saber se a menina estava melhor, e o inspetor foi cuidar do
Ficou parado na porta enquanio as criangas invadiram o
funeral de Paulo.
quarto, Fizeram tanto barulho que Paulo acordou e sen-
Maria Clara telefonou a Dona Raquel participando o
tou-se,
falecimento de Paulo e disse-lhe que estava hospedada no
--- Como vocés esto bonitos! disse assim que perce- Cliris Hotel.
beu as criangas limpas e com roupas novas. E dirigindo-se
—- Cliris Hotel!... foi a resposta de admiragao de
para Maria Clara disse: — sempre desejei ver-te assim.
Dona Raquel. Onde esté o corpo de Paulo?
Eu sei que vocé conseguiu tudo isto com dignidade.
-— Papai, — Na igreja.
olha os nossos brinquedos. Olha a bola.
Quando Maria Clara entrou no quarto encontrou cami-
—- Olha papai, eu tenho um carrinho.
solas e pijamas para as criangas e, pegnoir e chinelos de
— — eu tenho uma bicicleta. O vovd foi quem
comprou. veludo para ela. Dois dias seguidos ela fez as refeigoes
no quarto. Estava readquirindo a tranquilidade anterior.
© coronel aproximou-se.
Mas o seu espirito era um espirito velho e exausto. Apesar
Quando Paulo viu © coronel exclamou:
de Paulo nao prestar, Maria Clara sentia saudades porque
— Maria! Maria!... nao deixa o teu pai me matar. a mulher aprende amar o homem que vive ao seu lado.
E caiu no travesseiro, quieto sem respiracao.
© coronel contratou um médico nutricionista para
-— Serd que &le desmaiou?
examinar a sua filha. O coronel andava de um lado para
— Néo papai, disse Maria Clara apds ter colocacio seu
0 outro dizendo “venci a batalha”. Contrafou amas para
ouvido no peito de Paulo, éle est4 morto. Ele sempre teve
culidar das criangas que choravam dizendo que queriam o
médo de que o senhor o encontrasse e the cortasse as
papai.
orelhas. Disseram-lhe que o senhor tem jagungos € que
coleciona orelhas humanas. As criangas iam ao cinema, aos parques infantis e em
outros locais préprios para a sua formagdao.
— A Gnica coisa que eu coleciono é dinheiro no barico.
Quando o coronel foi levar a certidéo de dbito de
—— E ent&o, continuou o coronel, aste 6 o homem que
casou-se com a minha filha. N&o. Ele néo era homem. Faulo a sua filha disse: — agora vocé é livre minha filha.
£
quantas fragGes de homens existem neste mundo, Vamos Quero saber quais sdo os teus projetos?
embora. Eu vou mandar as autoridades sepulté-lo. Quero apenas ter uma casa. £ bom ter uma casa
— Eu quero levar a mdquina e o rdédio. O motorista _onde podemos viver com tranquilidade.
€ 0 inspetor ajeitaram a maquina no porta mala do carro. — Porque vocé nao procurou-me?

210 211
— Vergonha. Porque eu residia em casebres. E 6 — A senhora é fazendeira? perguntou dona Maura
horrivel; nao dispunha de acomodagSes para hospedar um assombrada.
coronel. -— O papai tem fazenda.
— O &rro do teu espéso foi mentir. Eu sempre dis- — Hum. Hum. E dona Maura meneava a cabega.
se-lhe isso. poderé me acompanhar.
-— E a senhora se quizer
_ Papai. Eu quero que o senhor compre a vila onde Maura ficou radiante
— Claro que eu quero. Dona
moreij. Quero reunir os meus compadres novamente, Os com o convite.
meus melhores amigos. Estou com saudades déles. — Eu quero o descanco que s6 se pode encontrar na
7 Entéo vamos ja para Ig, disse o coronel ao moto- a
fazenda.
rista que andava de um lado-para o outro Maura,
— £ um descango justo, respondia dona
Quando Maria Clara chegou na vila viu uma placa senhora
quando eu vim procurar a senhora aqui na vila, a
onde estava escrito: “vende-se", pensou: —- a dona Raquel Para onde foi?
j4 tinha mudado.
disse-me que venceu a vila. A mentira é o mal da familia.
— Dois dias ficamos na rua e depois fomos para a
oO motorista levou as cartas aos compadres de Maria favela.
Clara convidando-os a reunirem-se na vila
-— Oh! exclamou horrorizada. Como a senhora deve
Que festa! 1 Todos queriam
.
abracar Maria Clara ao E o compadre Paulo onde esta?
ter sofrido.
mesmo tempo enquanto o coronel observava aquela re- ~- Morrev.
recpgao. ‘Dona Raquel e Maria Clara trocaram apenas uns
olhares frios e semi-serrados. -— fle jé era um morto em vida, interferiu Dona Raquel.
Dona Raquel pensava consigo: “se eu soubesse © coronel observava que Maria Clara dava mais aten-
que
ela & rica teria a tratado melhor”
¢30 a dona Maura. Todos olhavam as criangas bem vestidas
Quando Maria Clara apresentou o coronel como enquanto Maria Clara destribuia presentes aos compadres.
sendo
© seu pai houve um murmirio de admiracao. ipe Olhando dona Raquel disse-lhe: — a nossa amizade sempre
F foi fraca, e 0 que € fraco extingue-se. Falava em bom
Dona Maura olhava a tarda do coronel abismada. |
Nao que tinha cultura.
;
portugués para provar
acreditava no que presenciava. i
i Eu era fidalga quando casei-me com’o teu sobrinho.
~-
oo Agora a vila € minha! Vocés podem voltar para |i
cé; fica proximo ao local de trabalho de vocés. Como fo- — E como vocé deve ter sofrido. Lamento a tua odis-
ram bons para mim procuro retribuir, Quem favorece uma séia. O meu sobrinho era um irresponsavel.
~- N3o Dona Raquel, a senhora esté enganada. O
Fagundes recebe o bem em dobro. E nao é necessério
desajustado, um abandonado. A
vocés pagarem o aluguel. Usem o dinheiro para dar escola Paulo era um infeliz, um
a seus filhos. Eu agora vou voltar para a fazenda. senhora sendo sua tia tinha por dever ampard-lo porque

213
212
ninguém se orienta sozinho... a senhora é egoista. E os materna, Extranhou muito. Achou.tudo muito diferente e
egoistas sdo desumanos. c que a deixava mais triste era a auséncia da sua mae.
~~ EF vocé que é rica porque nao o protegeu, ja que Maria Clara comegou a receber varias visitas.
éle era o teu espédso. Dona Maura explicava que Maria Clara desposou um
-- Ele nao me permitia recorrer ao meu pai. £ a es- homem muito rico e rude, muito ciumento que nao permitia
pasa deve obedecer o espdso em consideragdo a sua férca comunicar-se com o seu pai. $6 depois de vitva 6 que
moral. pode rever o seu pai.
Maria Clara terminou por dizer que dos que the fizeram A amizade das duas assim consolidava-se cada vez
mal ela nao levava rancor e daqueles que lhe ajudaram ela mais.
levava uma eterna lembranga com eterna gratid&o. Dona Maura sorria quando dizia: — eu sempre notei
Ao entrar no carro Dona Maura acompanhou-lhe, Ao que a senhora era uma jd6ia fora do excrinio. Estou con-
auiomovel partir os compadres Ihe abanavam as maos. tente porque a senhora agora esté bem amparada.
Assim que Maria Clara chegou no Hotel, foi tocar Maria Clara queria rever o seu quarto. Foi pedir a
piano. As criangas vendo sua mae tocar ficaram olhando chave ao coronel. Estava do jeito que ela deixou. As ga-
curiosos e Pedrinho perguntou-lhe? vetas abertas e os jornais espalhados no assoalho, tudo
— Mamée, quem é a senhora? O papai vai voltar? coberto de pd. Comprendia naquele momento que a época
mais perigosa da vida 6 a mocidade em que os jovens séo
— Nao meu filho.
inocentes e ndo obedecem.
— Porque o vové nao quer?
O coronel que acompanhava a filha parecendo advi-
— Deus nao quer. Deus levou o teu pai para o céu.
nhar os seus pensamentos perguntou:
—. Sera que no céu &le vai ser feliz?
-— Entao minha filha, vocé foi uma felizarda?
— Vai.
—- N&o papai. Fui uma infeliz. Fiquei conhecendo o
— Porque éle dizia que era infeliz. O que quer dizer rigor da existéncia. Tenho a impressdo que reforno de
infeliz mamae?
uma viagem ao purgatério. Agora esfou contente porque
Maria Clara tocou pidno com mais energia para por © senhor protege-me, porque o senhor defende-me. O
um ponto final nas perguntas incémodas. senhor & uma sombra amiga.na minha vida. Enfim... o
O motorista nao retirava o olhar do rosto de Maria senhor é o meu pai!
Clara, e o seu olhar aborrecia-lhe. Ela estava anciosa para © corone!l entregou-ihe um embrulho.
..fever a sua casa e a fazenda.
Ela. desfez o embrulho e exclamou: — minhas jdias!
Finalmente resolveram ir de aviado sendo que em Obrigada papai! £ ao lado do senhor que devo dizer:
pouco tempo Maria Clara estava novamente em sua casa —~ sou uma felizarda.

214 215
© corone! sorriu dizendo-lhe: —- agradeco-te a con-
fianga que depositas em mim. Eo inspetor -— Estou contente com o meu gesfo. Quando inicio
que chegara a
tempo de ouvir as ultimas palavras disse: algo vou até o fim. Nao decepciono-me e nem decepciono
aos meus amigos.
-— A senhora 6 vidva e eu sou solteiro. A
senhora
quer casar-se comigo? --- Sendo assim devemos dar-lhe nossos parabéns,
dizendo isso o motorisfa e o inspetor abragaram o coronel.
Maria Clara disse-Ihe: — E que o senhor é homem
de
So Paulo. — Eo senhor vai descangar alguns tempos?
O coronel —- Sim. E mais tarde vou escrever uns livros. Pelo
notou que Maria Clara ja n&o demonsirava
entusiasmo pelos que vi e passei neste Ultimos anos tenho muito o que
homens de S30 Paulo e pensou: —
Sdo Paulo é um bélo que os paulistas preparam, contar.
mas nao
sabem comer. O bdlo sio as fabricas, as escolas, e a —- Ficaremos entéo aguardando o seu regresso como
possibilidade de evoluir-se. O homem deve aprend escritor.
er fer e
aprender um oficio para ser decente. E por — Adeus coronel.
falar em ler a
escrever, os teus filhos devem ir Para a escola. A crianca
necessita boas orientagdes para ser bom homem
no futuro.
Se os teus filhos f4ssem criados naquelas espelu
ncas, cres-
ceriam desajustados.
-— Por que nao abandonou o seu espdso, continuou
© coronel.
— Porque mulher depois que casa, se abanciona o far
ou desquita-se, fica mal vista.
— Voc&é & uma Fagundes. E os Fagundes nao re-
nunciam.
O motorista perguntou-lne:
— Esta histéria de
renuncia é indireta para alguém?
© coronel retirou
o cigarro da bdca e comentou:
— E que uma eleig&o fica muito cara Para um pais.
© coronel perpassava contente o olhar contemplan
da
os seus netos. Gratificou o motorista com Cr$"T00:000;00'e
© inspetor também com Cr$ 100.000,00, conforme havia
prometido e cumprimentou-os emocionado quando partiam.

216
217

Você também pode gostar