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Maria de Jesus
mil 85-7106-175-1
SOF ROMER TT roe Dey en eRe
Desde que os poetas foram convocados a
“dar um sentido mais puro as palavras da
tribo”, o abismo entre a linguagem do
poema ¢ a fala comum nao parou de
crescer. Alguns poetas urbanos e cultivados
tentaram vencer esse abismo recorrendo ao
coloquialismo e ao formato do cordel, sem
contudo obter significativo aumento de
audiéncia entre as camadas populares.
Por outro lado, as tentativas-da “ribo” de
se expressar liricamente s6 sao aceitas
quando envolvidas em musica popular. Antologia
Na pagina impressa do livro, como diz o
samba, “o morro nao tem vez”. Em uma
de suas “quadras” bem ao gosto popular,
Sessoal
ieee
EDITORA UFRJ
Diretora Heloisa Buarque de Hollanda
Editora-assistente Lucia Canedo
Coordenadora de Producao Ana Carre
iro
Consetho Editorial
Heloisa Buarque de Hollanda (Presidente),
Carlos Lessa,
Fernando Lobo Carneiro,
Flora Siissekind,
Gilberto Velho e
Margarida de Souza Neves.
Organizacéo
JOsE CarLos SEBE BOM MEIHY
EDITORA UFRJ.
Copyright © by José Carlos Sebe Bom Meihy
10 ll
drigues que ja decretava “a vida como ela €”, desmen- Excluidos os estalados momentos de glérias, sua obra
tindo na tragédia a ironia natural da realidade. Simul- nao se constituiu em excecao do tratamento racista que
..taneamente, em Sao Paulo como em outros grandes a sociedade delegava aos que habitavam as franjas do
centros, desenvolvia-se, junto com a crénica urbana, o progresso. Fora da moldura que segurava seu retrato,
jornalismo de investigagao ¢ 0 testemunhal que, por fim, palido para a efetiva sociedade dos brancos, ela ndo con-
atestavam paradoxos entre o progresso material de uns seguiu praticamente nada. Sequer exibiu-se poetisa.
eas diferencas de outros. A denincia celebrava-se como Carolina Maria de Jesus, a autora de didrios, foi ex-
ideal discursivo para o publico nascente da critica da _ pressao de uma situa¢ao tinica onde o sucesso de uma
classe média que lia jornais e comprava livros. negra poderia ter ocorrido além do destaque como
Mesmo sem nogio do rumo a ser dado ao destino que cantora ou esportista. Ela sé conseguiria, contudo, ter
se lhe mostrou risonho em certas oportunidades, Carolina existido enquanto excegdo cultural e alguém feito para
Maria de Jesus acatou o isolamento social decorrente que, aquele momento exato. Assim mesmo, precisou do
se desde antes cultivado, reafirmara-se-lhe como ninho prestigio de um homem, branco, j4 reputado jornalista,
natural depois de experimentado 0 outro lado. Isto prova Audélio Dantas, para apresenta-la 4 sociedade bra-
‘que em vez de se integrar em uma categoria social capaz sileira. Sozinha, possivelmente pouco teria feito além de
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de classificd-la além da negritude, ou vir a ser militante de
i
|
cuidar dos filhos e catar papel.
um tipo social que despontava, a alternativa escolhida, de
i Houve, na possivel passagem de Carolina do mundo
reclusio no sitio que logrou comprar — tinico bem con- dos marginalizados para o dos contrarios, um ritual de
seguido —, foi a negagao do mundo. Negacao esta mais selegao. Isto interessa pois explica raz6es nao. expressas
coerente com um passado do que com o presente viven- pela sociedade que cria, para consumo proprio, fendme-
ciado pela escritora mercadorizada‘. nos advindos das camadas populares. Criticos ferrenhos
Negra, favelada, sozinha, semi-analfabeta, cabecga de da escritora pobre — entre eles principalmente Wilson
familia ¢ pretensamente de oposicao 4 ordem estabele- Martins — insistem em considerar a produgao dela
cida, Carolina teria tudo para nao dar certo. Neste sen- como editada ou produzida, sugerindo, sem sutilezas,
tido, suas constantes contradigdes argumentativas ¢ que seria um produto oportunista de Audalio Dantas e
vivenciais, antes de diminuj-la, a engrandecem, pois a de empresdrios atentos ao crescimento do mercado de
tornam mais xermal em sua anormalidade contextual. consumo de livros’.
12 13
AARC Nera
MAS QUEM ERA MESMO ESSA TAL CAROLINA? bebidas em esquinas suspeitas; limpadora de longos
corredores de hospitais e hotéis.
2
Negra retinta, daquelas safdas das entranhas de Mina Como catadora de papel nas ruas de uma Sao Paulo
s
Gerais, do vilarejo de Sacramento, no Triangulo, sem entao desvairada pelo agito dos anos 50 — que abrigou a
ter experimentado em sua estirpe miscigenagao algum comemoraga0o do Quarto Centendrio da Cidade que
a,
Carolina foi favelada na metrdépole paulistana desde mais Cresce no Mundo ~, Carolina Maria de Jesus EXPO
1947. Antes, porém, perambulou pelo interior timentou nisso uma profissio compativel com seu pro-
do estado
de Sao Paulo em busca de um pano de fundo que a acei- jeto de sobrevivéncia. Tudo sem que deixasse de expe-
tasse como produto de alguma histéria mais integrada. rienciar 0 tormento constante da fome, os contornos
Carolina queria juntar sua vida A de algum segmen- da miséria que, mais que a cla prépria, perseguiu a
to nacional respeitavel que a incorporasse, minimame infancia de seus filhos e a fez sentir, depois do sucesso,
n-
te, como cidad§. Disto, alids, nunca abriu m4o, o ferro quente de uma imprensa que a marcou como
jamais
deixando de aspirar a ser, pelo menos, classe média. . objeto permanente da contradicao entre o desenvolvi-
Tal
propésito custou-lhe incémodos porque, sendo quem mento econémico nacional e os problemas da margi-
era, restava-lhe compor, no m4ximo, o contingente nalizagao, entre uma cultura aberta e outta elitista.
de
reserva dos meios de produgao de um capitalismo mais Contemplando 0 périplo conjuntural que a explicava
que selvagem. petgunta-se: de quantos contrastes se compés a vida de
Carolina Maria de Jesus foi mulher sé e sozinha por Carolina Maria de Jesus? Mais, pelo lado pessoal, com
opgoes intermitentes, compondo o perfil de pessoa quantas mdgoas foram conjugados os verbos auxiliares
que
nao aprendeu a se soldar em coletivos e que nao pode- do movimento progressista brasileiro que compreenderia
tia se igualar a pares que, alids, cram inexistentes. uma negra escritora? De que memoria nacional falamos
Ela
foi: mae solteira quatro vezes (ainda que apenas trés quando remetemo-nos a experiéncia do Jenémeno legado
fi-
lhos tenham sobrevivido), sendo que cada um dos pais ao. abandono ou A mera curiosidade, particularmente de
de seus filhos era declaradamente branco e estrangeiro; estrangeiros? Qual figura deslocada de alguma Africa,
empregada doméstica demitida de varias casas onde seria Carolina Maria de Jesus mais um exercfcio inte-
trabalhou conjugando etapas de emprego com papéis lectual de um pais que supde — e sé sabe pensar desta
enue octagon gee
gratuitos em circos baratos; vendedora ambulante forma — que todas variagées so idéias fora do lugar?
de
80
ANTOLOGIA PESSOAL
HOTS AE
REM ETE
sem porte de soberana, Carolina foi nossa estranha tonio Carlos Jobim. Ao lado do género dor de cotovelo
moura (des)encantada. Afinal, ela era um outro lado do das primeiras damas da mtisica que se esgotava em
que Caetano Veloso chamou, no cume da euforia da sambas-cangies pessimistas e das toadas classemedia-
época, em 1968, de Alegria, alegria. Sem documentos nas dos segundos, Carolina escrevia muito. Nao sé mu-
nem passado registrado — o que impossibilitava dizer sicas — sambinhas pobres também foram perpetrados por ....-... .
exatamente quantos anos tinha —, tudo o que possuia ela — mas, ao lado de multiplos géneros, principalmente,
até que comegasse a ser parte do mundo dos brancos era versos agarrados nas linhas do simplismo, da rima mais
uma fotografia com seu filho Joao. Uma foto colorida, que facil e da repetigao. Carolina foi ¢ era por auto-
dessas tiradas 4 moda das familias probas e como a dos definicao poeta. Sequer dizia-se poetisa. Sem entender o
que emprestam tintas de triunfos alheios para sobrevi- significado disto, tudo que for dito sobre ela soara pou-
ver. Nem local fixo existiria para constatar, como 0 con- co €, mais que incompleto, vazio.
terraneo Drummond, a reclamada dor de ter a cidade Os poemas bonitinhos de Carolina formularam cos-
natal como apenas um retrato na parede. turas de uma interiorizacdo épica suburbana que, mise-
Mas Carolina existiu. Mulher de temperamento for- ravelmente subdesenvolvida, realizava-se como tradu-
te, foi personificagao do modelo de brasileira suscetivel tora de repeti¢des cadenciadas pelo monétono da vida
as variagdes de uma época que viu a bossa-nova nascer que tem que lutar diuturnamente para sobreviver. Feia
no mesmo instante em que se criava o rock nacional; a na forma, suas poesias eram uma espécie de primos
construgao de Brasilia; a instalagao da indistria auto- pobres da beleza consagrada. Coetanea dos concretistas,
mobilistica que colocava o fusca ao alcance de. novos Carolina era a encarnacao da resisténcia, do tradicio-
consumidores; as filhas do também mineiro presidente nalismo e da meméria que fugia do novo.
JK debutarem em Versalhes e Juca Chaves ser chama- Os versos toscos de Carolina eram, contudo, rima rica da
do de menestrel maldito. _esséncia do que de mais miserdvel tinha 0 nosso pro-
Descoberta em 1958, dois anos depois Carolina foi gresso. Eram também a depravagao da beleza pura e a
apresentada por Auddlio Dantas ao ptiblico leitor pro- subversdo de uma ordem da qual constavam Vinicius
Houve, com o sucesso editorial de seu didrio, um A leitura do conjunto da obra de Carolina Maria de
desvio na orienta¢ao poética de Carolina. Embora pre- Jesus, considerando-se principalmente os textos no pu-
tendesse manter 0 que achava a principio ser seu destino, blicados, equivale a uma viagem surpreendente. Nao
acabou por ser conhecida como autora deste género. Isto tenho pudor em colocd-la como uma das mais profun-
faz com que seja revista a circunst4ncia do aparecimento das experiéncias que a vida académica tem me ofereci-
dos escritos do Quarto de despejo, pois foi através deles que do. Seria dificil sair indiferente da leitura destes textos,
a negra escritora surgiu no mundo dos que naqueles dias principalmente quando se tem uma formacio tradicio-
achavam que o Brasil poderia dar certo. nal. Impossivel, diga-se melhor.
Conta Auddlio Dantas, entao jovem repérter, que, indo A anilise desses escritos — distanciada no tempo de sua
para a antiga — e extinta — favela do Canindé, em Sao producao, amainadas as paixdes — munida de pressupos-
Paulo, exatamente onde hoje esta sediado o monumental tos de historiador social da cultura, desprezando-se co-
estadio de futebol da Associagao Portuguesa de Desportos, brangas estilisticas colocadas para crivar como intelectual
por acaso, 14 encontrou uma mulher bradando contra os aquela produc4o, permite rever as consideracdes estabe-
adultos bébados que estragavam um pequeno parque de lecidas sobre o papel daquela mulher negra — € 0 senti-
divers6es, instalado pela Prefeitura Municipal, para as do de sua produga0o — enquanto alguém que almejava a
criangas. A ameaga de colocd-los no /vro (que dizia escre- fatia possivel no mundo dos letrados. Decorrido 0 tem-
ver) atraiu a atengao do curioso repérter. po, énos permitido ir além do ataque/defesa de uma
Em sua casa na favela, Dantas tomava contato com os obra instigante que exige ser, mais que retomada, vista
escritos de Carolina guardados em cadernos catados na por inteiro, ou pelo menos em sua esséncia.
rua. Em particular, chamou-lhe atengao, entre os muitos O total de 37 cadernos revela, mesmo na pobreza esti-
listica, desigualdades quer nos géneros, quer na expres-
ANTOLOGIA PESSOAL
20 CAROLINA MARIA DE JESUS
21
sio dos contetidos. De semelhantes ficam os registros uma outra repuiblica. Eram duplas as jornadas de tragé-
feitos em letras claras, grandes, naturais e definidas que, dias que pretendia: seus poemas revelam uma perspec-
alids, exibem um outro lado da especial personagem que tiva amaldigoada das pessoas famosas e ao mesmo tempo
ela foi. Em conjunto, os escritos deixados somam-se em o desejo de integrar este grupo”.
cetca de quatro mil paginas manuscritas, cuidadosamen- Entre os poemas nao selecionados por ela em sua an-
te recolhidas por ela prépria e mantidas agora com zelo tologia, um chamou atengao por remeter A esséncia de
comovente. Antes, porém, devem tet passado por situa- sua proposta vivencial:
gOes precarias, visto que certas paginas foram molhadas
e encontram-se ilegiveis, VIDAS"
O volume, contudo, é muita coisa até para profissio-
nais da escrita. Se é verdade que isto interessa, sob mui- Nem sempre siio ditosas
tos pontos de vista, para pessoas preocupadas com a Vidas das pessoas famosas
histéria cultural brasileira, a producado de Carolina re- Edgar Allan morve na sarjeta
leva-se Como um monumento pelo menos intrigante. Na guilhotina Maria Antonieta
E conveniente esclarecer que n4o se destaca a genia- Luiz de Camées teve que mendigar
lidade criadora desta mulher. Ela foi original, ndo Goncalves Dias morre no mar
pelo que escreveu, mas sobretudo por como o fez ¢ Casimiro de Abreu morre tuberculoso
apresentou sua mensagem. Entre um extremo socia- Tomaz Gonzaga, louco furioso
lizante € um romantismo de viés pessoalissimo, ela Getilio para impedir outra revolugao
transitava pelas motivagées imediatas. Nao lhe falta- Suicida-se com um tiro no coragdo
va espaco a ocupar. Santos Dumont inventor do aviiio
A circunstancialidade na vida de Carolina Maria de Que foi utilizado na revolugio
Jesus parece ter atendido aos reclamos de sua luta pes- Para ver o Brasil independente
soal na direc&o do sucesso. “Ela queria aparecer”, repe- Morre na forca nosso Tiradentes
te sempre sua filha, em depoimentos varios. Aparecer Luis XVI, rei incidente
como personagem do mundo das letras, contudo, Morre tragicamente
implicaria para ela, e pata outros tantos, a invencao Sécrates foi condenado a morrer
de
|
i
Pe
lada no humor maroto que nao merece ser evocado
isto sim, uma mulher que refuta a bebedeira e deixa
ThE
como carnavalizagéo. A abusiva preocupacio com a
espago para critica ao casamento com alcodlatras"*:
rima facil forga o encaminhamento de versos que su-
g erem imediatismo e despreocupacao com qualquer
qualq
cuidado critico formal e até com 0 verndculo que po-
Néo compra nada e quer comé
deria ser retocado. Considerando exclusivamente estes
Bate na mulher poe os filhos pra corre.
versos, pode-se pensar que ha paralelismos diferentes
entre 0 poema anterior (Vida) e este ultimo. H4 um
Vocé chega de madrugada
fator que talvez explique as distancias: Carolina tram-
Fazendo arruaga e chaveco
bém compunha miisicas. Isto é muito importante e a
Além de comprar nada
partir de tal suposigao pode-se pensar que alguns de
Ainda quebra os meu cacareco.
seus versos seriam feitos para serem cantados. Isto
sugere ainda que as rimas insistentes obedeciam a
O pinguco chega em casa
uma tendéncia meldédica.
Nao compra nada e quer comé.
Entre os documentos guardados pela filha Vera Eu-
nice, ha um song book intitulado também Quarto de
Falando para um homem, como se homem fosse, em
despejo. As partituras nele contidas sdo das musicas de
Macumba ela escreve:
um long play que registrou com o mesmo nome do li-
vro, onde foram gravadas, pela voz da prépria Caro-
Ti mandaro uma macumba
lina, as seguintes muisicas: R4, ré, ri, r6, rua; Vedete da
Eu jd sei quem mandou
favela; Pingugo; Acende o fogo; O pobre e 0 rico";
Foi a Mariazinha
Simpli¢go; O malandro moamba; As granfinas; A Maria
Aquela mulher que vocé amou.
veio; Macumba; Quem assim me vé cantando”. No
song book, entre notas musicais igualmente singelas, na
Curiosamente coetaneo de Carolina, outro autor de
pagina central, fragmentos de Pingugo; Macumba e
¢aracteristicas estranhas ao gosto dos consumidores
Quem assim me vé cantando..
CAROLINA MARIA DE JESUS
ANTOLOGIA PEssOAL 29
28
ict talonbesians Sedeinccr esas
aT essa
publico com o seu produto mais evidente triplicado:
Quem assim me vé cantando
seus didrios.
Pensard que sou feliz
Segundo 0 interesse do consumidor, os livros de Ca-
Eu levo a vida pensando
rolina que formariam uma trilogia sao: Quarto de des-
No homem que nao me quis
peo (1960); Casa de alvenaria: didrio de uma ex-fave-
Ensinou-me a gostar déle
lada (1961) e Didrio de Bitita (publicado primeira-
E disse: Minh‘alma é sua
mente na Franga e, postumamente, em 1986). Afora
Quando viu que eu the amava
estes, os demais textos de Carolina foram pagos por ela
Mostrou-me a porta da rua
mesma e ressoaram fracassos, como Provérbios e Peda-
Vai, vai, vai-se embora me deixa em paz
gos da fome, de 1963. Mas, nesta constelacio, a poesia
Vai, vat e nao voltes nunca mais.
na obra de Carolina como ficaria?...
A memoria da Carolina poetisa ficou fora de qual-
Mais do que o esperado, 0 caminho do Quarto de
quer alcance ptiblico. Tudo indica que apenas ela revigo-
despejo dera outra ditecio ao “reconhecimento publi-
rava de quando em quando sua verdadeira vocacao.
ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MaRIA DE JESUS
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Outro lado do poema invisivel de suas intengdes é a E dificil afirmar o nivel de consciéncia do seu pré-
constante e insistente lembranga que, de maneira inter- prio papel enquanto escritora. Sendo privada do direi-
mitente, aflorava recobrando-a como escritora. Assim to de escrever poesia, restava a Carolina viver do suces-
fica mostrado, sem disfarces, em reportagens como na so passado e dele tentar sobreviver com ou sem ele.
Com certeza nao deram espago para sua poesia. Sobre
se
revista TV Contigo, ao noticiar que ela seria motivo pa-
TaN
ra um dos programas que a época tinham maior indice a condicao de escritora h4 uma declaragao dela que
S Ren
FRIES
de audiéncia: Caso verdade. surpreende quantos lhe cobrem qualidade. Ela decla-
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rou, j4 em 1961, que
O texto trazia uma aventura bem folhetinesca, a his-
téria de uma catadora de papel, seu livro nao foi escrito para homens
que se atrapalham com adjetivos,
fichada na policia como indigente e sintaxes, verbos e substantivos. Nao
O que a fazia famosa, contudo, nZo eram seus versos € Pobre e sem poesia Carolina morreu. A morte, con-
sim sua denuncia. Afinal nado poderia ser diferente pois, tudo, nao roubou sua figura e os poemas que seguem.
segundo o mesmo texto, Quarto de despejo “chegou a ven- A antologia que ela propria preparou é um beijo de um
der 90 mil exemplares, traduzido em 13 idiomas e lido em passado brasileiro que nunca passou. Gracas a Deus.
mais de 40 paises”. A reportagem arrola a producao de Ainda que nio fosse pensando na poesia de Carolina,
Carolina considerando que, depois do primeiro sucesso, Claudia Neiva de Matos parece ter sintetizado tudo
escreveu Casa de alvenaria que, contudo, teve “trés mil dos sobre nosso popular, que, segundo ela,
10 mil exemplares encalhados” e que depois os Provérbios
de Carolina Maria de Jesus venderam menos ainda. Isto ficaria melhor albergada no terreno da
era tudo e nao cabia sua poesia em lugar nenhum”. antropologia, da sociologia, quem sabe
32 33
no da histbria das mentalidades. Ha 6 Carolina Maria de Jesus, dentre seus cadernos, deixou um
que
quem ache, na melhor das intengées, merece ser destacado: 0 que seria seu primeiro livre. E uma colecdo
que ela deveria recolher-se ao seu lugar: de poemas que depois foram outra vez selecionados por ela para
e que seu lugar é ld fora, ao ar livre, ao uma antologia. Juntamente com a edigéo dos poemas escolhidos por
sol e ao sereno, na boca do povo'?, Carolina, decidiu-se pela publicacdo do Prélogo escrito por ela.
Considera-se este texto como um dos mais importantes da producdo
“da autora. Trata-se da versto original de sua histéria onde dados
‘Tomara.
da vida pessoal, nunca antes registrados, séo arrolados. Este, por
exemplo, 0 caso da morte de uma filha sua.
Notas;
7 O mesmo texto, no original, foi reproduzido no livro Cinderela
1 Sobre 0 assunto leia-se Meihy, José Sebe Bom e Levine, Rober
t
M. negra. Revisto pela filha da autora, por volta de 1975, para even-
Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio
de tual publicagao, 0 texto apresenta-se com poucas alteragées.
Janeiro: Editora UFRJ, 1994. Também publicado nos Estados
Uni- 8 O fato de Carolina escrever no masculine deve ser examinado
dos, com o nome de Life and death of Carolina Maria de Jesus,
© a luz de uma prdtica que ela assumia enquanto alguém que re-
pela New Mexico University Press: Albuquerque, 1995.
petia os canones transmitidos por formas tradicionais de visdo de
2 Imediatamente seu livro foi traduzido para vdrias linguas e até
mundo,
hoje é 0 mais vendido dos textos brasileiros em paises como Estados
9 No total sto 37 cadernos, quase todos de "capa dura" — fato que
Unidos, Alemanha e Franca.
revela cuidado na procura dos mesmos. Sabe-se com certeza que
3 Marisa Lajolo explora a insergdo de Carolina Maria de Jesus, na
eram cadernos achados, pois alguns deles, além de pdginas arran-
nascente dos anos sessenta, entre "mulheres com caneta na
mao e cadas, ainda guardam vestigios de usos anteriores.
iddias na cabeca", em A leitora no quarto dos fundos. In Leitura:
10 Santos, Andrea Paula dos. A Arte ea pobreza: a obra de Caro-
teoria & pratica, Ano 14, jun/1995, n° 25, p. 10.
lina Maria de Jesus. In Mephisto. Sdéo Paulo: n°1, marlabr/mail
4 Carolina, depois de ter passado por surtos de sucesso, com 0 pouco
que guardou do dinheiro que conseguiu acumular, comprou um
1994, p.18-19,
11 Este poema, possivelmente, deve ter sido escrito em 1966, posto
sitto em Parelheiros e ld, de certa forma, procurou recriar, até
a que na ultima pagina deste caderno hd o inicio de ima carta escri-
morte em 1976, sua vida de lavradora.
ta para o animador de televiséo Silvio Santos, datando de 26 de
5 Wilson Martins publicou um artigo pesado acusando Carolina
janeiro daquele ano.
de ser produto da mio de Auddlio Dantas. O texto denominado
12 As definigées assumidas aqui derivam de Bernd, Zild. Poesia
Mistificagao literdria foi publicado no Jornal do Brasil em
23 de negra brasileira. Porto Alegre: AGE Editora, 1992, p.13.
outubro de 1993, p.4
13 Manteve-se a gramdtica conforme foi registrada pela autora.
ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
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37
No caso deste livro que publica a poesia de Carolina nem de editores, nem de jornalistas. Desinteresse, alids,
Maria de Jesus, a dimensio polémica da expresso poe- em nada surpreendente. Até hoje, é muito dificil publi-
sia popular indica autoria e radicaliza vertiginosamente car poesia, sabidamente o menos rentdvel dos géneros
a discussao: trata-se de poemas escritos por alguém do liter4rios: versos vendem pouco, sobretudo quando se
povo. No caso, pela negra Carolina Maria de Jesus, mo- compara 0 retorno que patrocinam ao retorno espera-
radora ou ex-moradora da favela do Canindé, vende- do quando da publicacao de obras testemunhais, prin-
dora de papel usado e empurrada para a posicio de fe- cipalmente obras testemunhais que acenam com lucros
_.némeno das Letras a partir da publicacdo de seu best que podem engordar muito com o estardalhaco de
seller Quarto de despejo'. campanhas publicitarias bancadas pela midia.
Langado em 1960 com estrepitoso sucesso, o livro foi Assim, enquanto investimento, 0 Didrie de uma fe
imediatamente traduzido para diferentes linguas,? mas, velada (subtitulo do livro Quarto de despejo) era sob me-
nao obstante suas também intimeras reedig6es em por- dida: prometia e facultava 0 exercicio consentido do vo-
tugués, o sucesso da autora parece ter sido efémero: suas yeurismo impune por sobre cenas de pobreza explicita,
obras posteriores Casa de alvenaria (1961), Provérbios cenas estas sempre raras na literatura brasileira. Afinal,
(1963) e Pedagos da fome (1963), tiveram carreira bem _ favelas nao costumavam (e ainda nao costumam) prota-
menos expressiva e menos expressiva ainda é a acolhida, gonizar romances. Depois de O cortiga de Aluisio de
em 1986, da publicacio péstuma de Didrio de Bitita. Azevedo (1890), e de modo particular ao longo dos anos
Simultdnea ao silenciamento de sua obra, também a 50 e 60 deste nosso século, os sub-espagos urbanos pare-
figura esguia e desempenada de Carolina, melancolica- cem ter-se reservado para a miisica popular, na qual,
mente,-vai deixando as luzes da ribalta: volta esporadi- competentemente maquiados, recobriam sua degrada-
camente a catar papel pelas ruas de Sao Paulo e morre ¢40 com promessas de felicidade conquistada por con-
em 1977, esquecida por todos, num sitio em Parelhei- tigiiidade e vizinhanga: afinal, como aprendemos com
ros, tinica propriedade que lhe ficou de sua meteérica a Ave Maria de Herivelton Martins, favela do morro
escalada no mundo das letras. “tem alvorada e tem passarada” e, sobretudo, ja fica
Dizem os que conviveram com Carolina que um de “pertinho do céu’... .
seus grandes desejos era ver editados seus poemas, que, E, assim, esta favela de cartao postal que a favela paulista
no entanto, jamais atrafram a atengao de ninguém, de Carolina desmonta e, ao desmontar, promete vender
40 4}
Assim, ao lado de qualquer outro significado que este
estéticas, teorias e criticas literdrias, é vestir a carapuga
livro possa vir a ter, sua publicaczo representa um comego.
que a autora pode a disposi¢ao de seus leitores quando,
Poemas como os-de Carolina sao rarissimos na tradi-
irénica, registra a divisio de trabalho instaurada na
¢ao brasileira letrada e podein, por isso mesmo, aden-
republica das letras brancas e cultas. Reptiblica solidi-
sar e dar um notte a esforcos contempordneos da escri-
ficada com a argamassa fornecida pela critica, pela teo-
ta de uma outra histéria da cultura brasileira. Nao a
escrita ingénua de uma outra histéria que retifique ou
que substitua a Aistéria em circulagae. As histérias,_
Eu disse: 0 meu sonho é escrever!
como as estrelas do céu e os graos de areia, sao sempre
Responde 0 branco: ela é louca.
— € precisam ser cada vez mais — multidio.
O que as negras devem fazer...
O que se queré uma outa histéria que, convivendo
E ir pro tanque lavar roupa.
dialeticamente com muitas umas, particularmente com
a endossada pelas instituigées oficiais da cultura, the
Uma certa incapacidade pratica (porque técnica) de
ponha nuancas. Pois sé assim, talvez, o tecido resul-
Carolina vencer (n)este mundo que lhe reservava o
tante destas varias histérias evite a submersao, na bran-
papel de lavadeira ¢ inevitavel: afinal em poesia, como
quidade — e em todas suas aderéncias sécio-culturais =
de resto na literatura que se pensa com letra maitis-
do cardter mestico e heterogéneo de uma cultura como
cula, ao contrario do que se pode pensar, nZo se admite
a brasileira‘.
ignorancia das normas gramaticais. Melhor dizendo, sé
Precisamos de uma histéria cultural que se construa
se admite a infragao, e a infracdo precisa ser voluntaria.
a partir de categorias analiticas mais flexiveis. Catego-
Ou seja: nao se pode ignorar a gramatica, embora se
tias, por exemplo, que inscrevam a polifonia constituin-
possa infringi-la. Tolera-se a infragao, mas nao o desco-
te de nossa cultura na linguagem de que carecemos pa-
nhecimento do que se infringe.
ra um didlogo mais fecundo com as culturas irmas da
No entanto, os trope¢os gramaticais de Carolina nao
América eda Africa, como nds, as voltas com uma es-
embotam a agudeza com que ela intui a complexidade
quizofrenia de origem.
dos meandros do mundo no qual crases e contratos pa-
Negar estatuto de poesia a estes textos de Carolina,
recem integrar uma mesma esfera social. Tais tropegos
nao obstante as sobejas razdes que para isso fornegam
também nao obscurecem a intui¢gao correta de que é
ANTOLOGIA PEssoAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
42 43
Ela conta:
necessdrio arregimentar aliados para a travessia da fron-
teira € conquista da cidadania no mundo das con-
... tive um encontro com uns jovens
cordancias e das crases, onde fica — sorry, periferia — 0
que me visitavam quando eu residia
territério da poesia...
na favela. Eles eram estudantes e me
Em outra carta, anotagGes igualmente rapidas sao su-
davam livros, e cadernos. Agora éles
ficientes para marcar a consciéncia de Carolina de que
séo editores, vieram procurar uns
o mundo das letras nem paira nas nuvens, nem se mo-
contos-para publicar. Eles véo fazer
ve a inspiracao. E, em vez disso, um mundo histérico,
umas reportagens sé com os escritores
no qual a produgao é intermediada por diferentes ele-
negros eu dei uns contos para éles ler.
mentos. Neste mundo letrado, como sucede com a
mercadoria, os setores produtivos sao sensiveis a diferen-
Ao que tudo indica, Carolina nao se dé conta de que
tes demandas, expandem-se em busca de diferentes pro-
es
no se reside na favela: na favela, no maximo, mord-se.
dutos, a partir dos quais atingem diferentes mercados.
Mas, se ela nao tem luxos sem4nticos, ela sabe muito
Trata-se, em resumo, de um mundo plantado num
bem que precisa de outras semAanticas, eventualmente
construidas por outras vozes, que falem por ela. E assim
diferentes convengoes e¢ leis que regulam suas praticas:
que entra no horizonte de suas relagées com o capital
da métrica aos direitos autorais, dos requisitos da boa
liceratura as cldusulas contratuais que regulam a venda
cultural, a hoje corriqueira e profissionalizada figura
do agente, porta-voz do escriba:
de terras, tudo est4 menos ou mais previsto.
Dentre os personagens que marcam os compassos
... 6@ eu decidir escrever, quero que o
pelos quais gira a ciranda da producao neste mundo
senhor se interessa (2) por mim.
das letras, os mais emblematicos sao talvez os editores.
O senhor falard por mim. Eu quero ficar
Por forga de sua posig4o no circuito, estes represen-
semi-afonica, com éstes homens. E se
tantes do capital transformam a matéria prima, 0 ori-
arranjar dinheiro para pagd-lo.
ginal, em produto: o livre. E sio extremamente ageis,
e assim, poderei dizer: que eu tenho um,
versateis e atilados os editores. E Carolina sabe que
advogado.
interage com eles em situagao de inferioridade.
CAROLINA MakRIA DE JESUS
ANTOLOGIA PESSOAL
45
44
O intermedidrio, como bem compreende Carolina, é
‘Tragos que n4o tornam sua literatura menos literdria.
pega essencial, sobretudo no seu caso. O pedido de que
Nem menos conservadora e problemdtica...
o destinatario se interesse por ela é uma traducdo, para a
Numa primeira observagdo, vemos que seus versos se
esfera da produgao cultural, dos ambiguos pactos de tecem do cotidiano. Um cotidiano ora pungentemente
compadrio e protegdo que garantem, na imobilida- lirico, ora miudamente realista, certas vezes estereoti-
---de.social produzida pela politica brasileira, alguns be- pado, outras tantas descorocoado:
neficios de outra maneira inatingiveis. Como Carolina
declara, de forma imprépria, mas compreensivel, ela
Porque vive abandonada
exerce-seu direito de manter-se afénica nas negociacées E amargurada
de sua obra, ao delegar ao agente literdrio a intermedia- Sentindo no peito a dér
g40 para a qual se sente despreparada, tornando-se o Eu quero alguem que me embala
intermedidrio, com isso, mais do que mediador, uma E fala
espécie de tutor. Coisas bonitas do amor.
O ambiente sécio-cultural que contextualiza a obra
de Carolina, tal como a autora o delineia em sua cor- Brasil querido e amado
Por nossos antepassados
respondéncia, parece justificar as desconfiancas da poe-~
Gonzaga, Caixias, Herval
ta quanto 4 falta de transparéncia de suas regras, em
Vultos que honraram a nossa gente
nome das quais, inclusive, nao foram poucas as vozes
Combateram heroicamente
que se ergueram para duvidar que Carolina tivesse, efe- Pela gléria nacional.
tivamente, escrito o texto de Quarto de despejo, acusa- No céu nao hd preconceito
do de constituir uma fabificagao jornalistica. Ld néo pretere o pretos
Ledo engano. Nao ha orgulho nem vaidade
Se nao houvesse outros e itrefutdveis argumentos em Reino que para ld chegar
defesa de Carolina, estes poemas, personalissimos, amar- E necessdrio praticar:
rariam a autoria 4 pessoa de Carolina, que se identifica A caridade
mano sobre a terra, aventura esta muitas vezes transcrita A querida Maria Rita
48 49
€ teima e lima e sofre e sua. Carolina é artesa: diferentes
riorizados na aprendizagem empirica de poesia que
versdes de um mesmo texto apontam isso. Uma primei-
Carolina relata em diferentes passagens de Minha vida’.
fa verso, rasurada no original, é substicuida por uma
Ela conta:
segunda, redigida na margem da folha e que se supode
seja considerada pela autora poeticamente mais satisfa-
Procurei numa livraria um livro de
téria, uma vez que apaga uma repeticao desnecessaria e
poeta, porque o senhor que estava
hamoniza a musicalidade, como se pode conferir :
no dnibus disse que o poeta escreve
livros, pedi:
1) Vejam, tenho os cabelos grisalhos — Eu quero um livro de poeta.
Sé passei tantos trabalhos O livreiro deu-me, de Casimiro
Meu Deus, que fatalidade de Abreu.
Perdi a minha unica habitacéo E assim fiquei sabendo o que era ser
Perdi a minha tinica habitacao! poetisa. Cheguei em casa com o
Desliguei-me da sociedade espirito mais tranqiiilo. Fiquei
Vim residir neste porio sabendo que as palavras cadenciadas
eram as rimas. Pensei: Eu nao devo
2) Vejam, tenho os cabelos grisalhos dizer para as vizinhas que sou
Jé passei tantos trabatlhos. poetisa. Elas nao sabem o que é isto
Meu Deus que fatalidade e nao vao crer. E eu, nao quero ser
TP aEk.
que Carolina opera na sociedade em que vive e da qual Sua existéncia é abjeta
fala: Stiplica do encarcerado, O marginal, Stiplica do E 0 seu vicio lhe acarreta
mendigo, O prisioneiro e Rico e pobre sao titulos que, A cruz do seu caluario
na carga de esteredtipos que carregam, desistorizam a
questao social e empurram, para figuragGes secundarias
™ pouco convincentes, as personagens a que aludem, trans- O ébrio é péssimo vizinho
formando-se em meros figurantes os pobres e mis- Pois néo trata com carinho
erdveis que 0 texto menciona. Os que estiio a seu redor
Curiosamente, no entanto, o esgarcamento histdérico
mencionado contrasta, por outro lado, com as cores A poesia de Carolina é também marcante pela posicao
fortes de um espetaculo, ao qual nunca faltam tracos conservadora da visio de mundo que expressa. Conser-
da materialidade de um saber sé de experiéncias feito: vadorismo no qual também reside marca muito forte
de sua identidade textual: uma identidade textual selada
C2) pela infragZo involuntdria da lingua culta, e igualmente
resta-me apenas a saudade vincada por uma perspectiva ideoldgica ora inspirada
Da minha filha: minha boneca numa viva percepcio das diferengas sociais, ora filtrada
Morreu na maternidade pela expressao de tais diferengas através de palavras de
Na rua frei Caneca ordem da classe dominante.
E, se isso pode comprometer sua poesia, talvez, de
Ela morreu eu me lembro
novo, nao pudesse ser de outra maneira.
Dia 29 de setembro
‘Os poemas em que Carolina tematiza 0 papel da
A mae nunca esquece
mulher na sociedade s4o exemplares da ambigiiida-
O filbo que Jenece
de de seus pontos de vista que assumem, simultanea ou
O.ébrio é um inciente sucessivamente, posig6es conflitantes. Muitas vezes, seus
E aborrece diariamente versos superp6em, ao registro doloroso ¢ expressivo da
56 57
marginalidade social da mulher, a adesio a valores O resultado nao poderia ser outro.
machistas da ideologia familista. Da mesma forma co- E se a oscilag4o entre registros de linguagem e opcées
mo ja se viu relativamente ao processo pelo qual as politicas faz sua poesia e sua milit4ncia soarem em falso
relag6es sociais que a poeta encena em sua poesia sao — sorry, leitores! —, hdo que se criar os olhos de ler uma
imobilizadas em dicotomias e estereétipos — governan- poesia como esta, que da ortografia e sintaxe 4 mi-
tes-governados; homem-mulher; embriaguez; nogao litancia e ao feminismo aponta para uma cidadania
de familia; responsabilidade adulta; valor do estudo —, dilacerada em todos os territérios, em todos eles insu-
sucedem-se, assim, ‘crengas absolutas e sem fraturas nos ficiente para levar a cabo um projeto canénico de pro-
valores sociais dominantes, posto que deles Carolina dugio literdria.
seja despossuida. Outro pedagio alto do universo letrado, para quem,
Alias, o testemunho maior da autoria dos escritos de de novo, sé teve acesso as franjas dele.
Carolina consiste, exatamente, na fartura de clichés em Estes poemas de Carolina constituem, assim, uma
que seu texto € prédigo, bem como na incompatibi- poesia forte, cheia de sotaques e extremamente opor-
lidade muitua de alguns deles. Clichés de forma e de tuna por textualizarem uma cultura que quase nunca
contetido. De modos de pensar e de modos de poetar. chega ao livro impresso, mas que, quando chega, co-
Todos poética e politicamente incorretissimos... mo chegou esta de Carolina, assinala, em sua violén-
Mas, como a poética de Carolina poderia nao ser de cia infratora, a excluséo dos pactos e protocolos da
extra¢ao parnasiana e de feicio conservadora? Como cultura, dos cidadaos e cidadas também excluidos do
fugir a uma poética na qual as palavras raras e as inver- mundo econémico.
sOes para preservar a rima sao consideradas senha de Por isso quarto de despejo. Mais do que uma poesia do,
ingresso no universo letrado? Como poderia nio aderir quarto de despejo, trata-se agora de um quarto de despe-
aos valores dominantes, que, alids, sio chamados de Jo da poesia, que patrocina a seus leitores um percurso
dominantes exatamente porque invadem coragGes e doloroso pelo territério das letras. Doloroso, posto que
mentes? Como escapar da incorrecao poética e politica necess4rio. Na paisagem dos caminhos, as letras bra-
quem sé teve acesso — quando teve — 4s Jranjas desses sileiras representam-se tal como sao vistas do quarto
universos, que se mostram pelo que ndo sao, mas que dos fundos e¢ esta representacao delas — este seu modo
talvez acabem sendo 0 que apregoam nao ser? de ser — nos apresenta 0 desafio maior de desenvolver
Mas 0 equivoco se dava nao porque a literatura nao Bom Meihy e Levine registram uma traducdo italiana (Quarto.
Milano: Valentino Bompiani, 1962 {prefécio de Alberto Mord-
possa servit de pedestal para ascensio social, pois que
via]), uma cubana (La favela: casa de desahogo. Havana: Casa
ela jA serviu e continua servindo para isso, em muitos
de las Américas, 1965), uma francesa (Le dépotoir. Paris: Ed.
casos. Mas equivocado porque, enquanto alavanca AM. Meétaillié, 1982) e a bem vendidissima edigdéo norte-ameri-
social, a literatura cobra um prego alto dos aspirantes a cana Child of the dark: the diary of Carolina Maria de Jesus. Sr
sécios de seu clube exclusivo... Prego talvez alto demais Clair, David, trad. N. Y.: Mentor Books, 1962.
para uma mulher negra e pobre que recusava sempre os 3 of, Literatura e histéria da literatura: senhoras muito intrigantes
scripts que lhe reservava a sociedade branca culta. Nao de M Lajolo apud Leticia, Mallard [et al.}. Histéria da literatu-
compreendendo o cambio em que o pagamento do in- ra: ensaios Campinas. Séo Paulo: Editora da Unicamp, 1994,
gresso deveria ser feito, nao € de estranhar que Caroli- p.19-36.
4 of Trabatho, pobreza e trabalho intelectual — O Quarto de des-
na tenha acabado condenada 4 pobreza e 4 solidao.
pejo de Carolina Maria de Jesus, de Carlos Vogt, apud. Schwarz,
E foi exatamente na pobreza e solidao que Carolina
Roberto (org). Os pobres na literatura brasileira. Brasiliense, Sao
teceu a licdo que deixa.
Paulo: 1983, p. 204-213.
Tendo morrido pobre e sozinha, a gaveta que deixou 5 of Martins, Wilson. Mistificacao literdria. Jornal do Brasil. Rio
atulhada de escritos como estes poemas e crénicas de Janeiro: 23/out! 1993. Idéias e Livros.
pode ser um ajuste de contas. Péstumo, porém legiti- 6 cf Meihy, José Carlos Sebe Bom e Levine, Robert M.. op. cit.
mo, pois com certeza abre caminho para outras.contas p. 172-189.
e outros contos, de muitas e muitas outras Carolinas. 7 cf Meihy, José Carlos Sebe Bom e Levine, Robert M.. °P: cit.
p- 186.
_ 8 ef M. Lajolo. A leitora do quarto dos fundos. In Leivura: teoria
" e pratica. Ano 14. n° 25 Jun/1995, p. 10-18.
ORS Trea a
Afinal, o que ela desejava era escrever limpo e certo,
Si
dentro da tradigao da lingua, sem nenhuma marca ino-
vadora ou caracteristica.
Mais do que um documento, sua poesia é um
tocante testemunho de quem viveu entre o quarto de
despejo, a casa de alvenaria e a rua anénima. Mais
ainda: a poesia que se vai ler neste livro é a prova viva
de uma vida que nao se deixou apagar pela solidao ¢
venceu O esquecimento a que estava destinada.
Prey
Era imenso o seu estertor
Se fez bonito no quarto centendrio
O olhar que me dirigia
Wain
Foi com as obras que ele construiu
Revelava o seu amor.
A unica coisa que eu noto:
Ademar foi correto e gentil
Mas, um dia ela sucumbiu
E lhe acompanhei com o meu voto Quem morre n4o volta mais
Mas n4o pude vé-lo presidente Depois que ela partiu...
[do Brasil Notet: '
Que falta a mZe nos faz
ANTOLOGIA PESSOAL
68 CAROLINA MARIA DE JESUS
69
Soobinngs Ao vé-la sabe, pensei
Quero premi-la nos meus bracgos
Meu anjo venha ao meu lado Vamos residir num lindo paco
Contempla as flores no prado somente teu eu serei.
79
DE JESUS
Nao pediu para fazer a guerra
Saudades: de uae
Que dizima a humanidade
A vida humana tem imenso valor
Oh! meu Deus quantas saudades
Para o bom Deus Nosso Senhor.
Da minha infancia ridente
Nao conhecia a degringolada |
Que atinge a vida da gente
Era crianga nao pensava
Que existia o sofrimento
Os brinquedos me fascinavam
A todos os momentos.
Poeta!
aK - ee
Assim no original. Nao queixas suas aflicdes
Promete se regenerar
Mas n3o tem forca de vontade
E um escravo da bebida
E no prospera na vida.
O ébrio é um insciente
E aborrece diariamente.
96 97
O weliz Nao tenho alegria para viver.
Estou ciente que nao tenho sorte
Vejam, tenho os cabelos grisalhos Por isso, a Deus peco a morte
Ja passei tantos trabalhos Para findar o meu softer.
Que no posso enumeré-los
Vi o meu irm4o enlouquecer Vejam, tenho os cabelos grisalhos
Minha esposa falecer Ja passei tantos trabalhos
E os meus filhos para crid-los. Nada mais me prende ao mundo
Vivo ao relento sem abrigo
Vejam, tenho os cabelos gtisalhos Tenho que vagar sujo, imundo
Ja passei tantos trabalhos Sem filhos, sem esposa e sem amigo.
Agra é a minha provagao.
Vi um filho transviar-se, Vejam, tenho os cabelos grisalhos
E a turba imensa a gritar Ja passei tantos trabalhos
Mata! Lincha este ladrao. Estou exausto e vencido.
Quando jovem, eu vivia tio bem...
Vejam, tenho os cabelos grisalhos Sitios, prédios e armazém
Ja passei tantos trabalhos Hoje... sou um homem falido.
Que até perdi a ilusao.
Passo os dias a meditar Vejam, tenho os cabelos grisalhos
OH! se eu pudesse libertar Ja passei tantos trabalhos.
‘O meu filho da prisol... Meu Deus que fatalidade.
Perdi minha habitacgao
Vejam, tenho os cabelos grisalhos
Vim residir num porao.
Ja passei tantos trabalhos Longe da sociedade
ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
100 101
A cata Como poderei viver
Sem mais ver
O filho do meu coragio.
Ela estava assim sentada
A carta era de um filho,
Ereclinada
No exilio
Na sombra de um arvoredo
L4 mui distante morria
Uma carta ela relia
A pobre mie nao falava
E sorria:
Ocultava
Talvez, fosse um segredo.
A grande dor que sentia.
Quando por ela eu passava
Anda toda esfarrapada
Sempre estava
E amargurada.
Com uma carta nas mos.
Perdeu a ilusdo da vida
Um dia, tristonha chorava
Olha 0 espago indiferente
E lamentava:
-Esente.
Meu Deus! Que desilusiao. Que esta sd e deprimida
Vive tristonha a vagar Vive triste a meditar
E fitar E a chorar.
O espago, horas e horas. E 0 que faz, todos os dias
As vezes diz ela, assim: Porque se um filho morrer,
Deus! Tenha pena de mim, O viver
Socorrei-me, Nossa Senhora. Da mie é uma agonia.
Outro dia nao suportou
Vive tristonha a vagar, E bradou:
Sem parar Onde é que estais amor meu!
Com os olhos fixos no chio. Oh! Meu Deus! Por piedade.
ETE
Que triste melancolia. Tem os odores delirantes
Das flores.
Ee eee
E que minh’alma ignora
O esplendor da alegria. Quero-lhe muito querida
Este sorriso que em mim emana, Enche minh’alma de vida
A minha prépria alma engana. E amores.
As pessoas ambiciosas
Invejosas
Invejam os fracos e os fortes
Sao do tipo repugnantes
Semelhantes
Ao Judas Iscariotes.
De manhi eu despertava Eu
tapea
ANTOLOGIA PESSOAL
114 CAROLINA MARIA DE JESUS
115
Ee)
et Te
Sinado- Que surgem breve as penas.
Sry
Quer unir-se ao bando
A ave escolheu um galho Que voando
Num carvalho Rompe os ares tao serenos.
E construiu seu ninho.
Levava a vida a cantar
E para alegrar:
Seu inocente filhinho.
Ao romper da madrugada,
Em revoada,
Voeja e galga amplidao,
Retorna ao ninho salienre,
E, contente,
Executa uma cancio.
116 117
Washington Liz JSoltewonu
Meu Brasil proeminente
Em que pensa Dona Luiza?
Patria de Tiradentes
O que idealiza!
Bergo de Washington Luiz.
Nem tudo poderei dizer-lhe.
Foi um grande presidente
Desde quando eu a vi ,
Que honrou 0 nosso pais.
Nao lhe esqueci
Hei de ama-la até morrer.
Merece a consagracao
Do povo e da nacio,
Como teus compromissos
Porque soubeste governar,
Por isso:
Politico integro e pioneiro.
Oculto os meus sentimentos.
Nao deixou 0 nosso dinheiro
Tu estas dentro do meu cérebro
Desvalorizar-se...
Isto € pior que um érebo,
Nao suporto estes tormentos.
}
+
:
A vida sé tem valor
M passircada
' Com um amor
( Que saiba nos corresponder.
Quando surge alvorada,
PIETERS:
Ela ha de ser como cu E adorada.
Que compreendeu:
Que o macho nao sabe amar. A rainha predileta. -
Minhas pétalas aveludadas
Ela canta para expandir S40 perfumadas
E transmitir E acariciadas.
A sua magoa interior.
Ela ha de ser como eu: Que aroma rescendente:
Que compreendeu Para que me serve esta esséncia,
MENT,
Sngeruidiude
A minh’alma jé envelheceu
E ew?
Aos poucos fui entristecendo,
Tenho uma magoa interiormente
E atualmente...
Estou morrendo! estou morrendo!
Acheguei-me levemente;
“Boa-tarde — eu the disse ~
PROP ECAR
“Nao € nada, é a velhice.”
A juventude é fogueira,
E alegre a todo momento
Ela passa mui ligeira,
E veloz, igual ao vento.
Cantava na adolescéncia,
Nada aprendi a fazer.
E um dia me abandonou
Ao me ver na indigéncia
Fui pedir para comet. Oh! Que mulher mentirosa.
Saementcteatamrranannstemar
a ANTOLOGIA PESSOAL == tinea
cee moma
CAROLINA MARIA DE JESUS steaessmnmuan
146
147
a
Carne nao pode comprar Trabalha o ano inteiro
Pra nao dever ao patrao. E no natal nao tem abono
Percebi que o fazendeiro
Fazendeiro ao fim do més" Nao da valor ao colono.
Da um vale de cem mil-réis
Artigo que custa seis O colono quer estudar
Vende ao colono por dez. Admira a sapiéncia do patrao
Mas é escravo, tem que estacionar
Colono nao tem futuro Nao pode dar margem 4 vocagao.
E trabalha todo o dia
O pobre nao tem seguro A vida do colono brasileiro
E nem aposentadoria. E pungente e deploravel
Trabalha de janeiro a janeiro
Ele perde a mocidade E vive sempre miserdvel...........
A vida inteira no mato
E nao tem sociedade O fazendeiro é rude como patrao
Onde estd o seu sindicato? Conserva 0 colono preso no mato
E espoliado sem lei, sem protegao
Ele passa o ano inteiro— E ele visa o lucro imediato.
Trabalhando, que grandeza!
Enriquece o fazendeiro O colono é obrigado a produzir
E termina na pobreza. E trabalha diariamente
Quando o coitado sucumbir
Se 0 fazendeiro falar: E sepultado como indigente.
Nao fique na minha fazenda
Colono tem que mudar
Pois ha quem o defenda.
ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
150 151
Alea Rees
saga, iene
Tu cairds nos lagos
Que s4o os péssimo S vicios.
Venho de longe procurando o teu olhar
A mie perambulando Terna e meiga me fitaste um dia
Tudo isto lhe vem na mente O meu coragao por ti a palpitar
Contempla o filho e chorando Tu me inspiraste amor e poesia
Exclama — pobre inocente!
O teu olhar é puro como o lirio
Deixou minh’alma em louco devaneio.
Desde esse instante eu sofro e deliro
; .
Quero amd-lo e tenho receio
152 153
Segredo oculto- © turco- € 0 lampiio-
156 157
Festa dos bichos: Eu aqui sou delegado
Precisam me respeitar
Escuta e presta atengao
Na est6ria que eu vou contar E que o macaco implicante
A cobra € 0 rei ledo Comecou a criticar
Amavam-se e iam casar-se Dizendo que o elefante
Era feio para dangar
A cobra estava elegante
Seu vestido que beleza! O macaco nao obedeceu
O tigre e 0 elefante E continuou a insultar
Eram os serventes da mesa Ele é maior do que eu
Mas nao da pra comegar
_ Ourigo e D. Onga
Da noiva eram os padrinhos. O lobo chamou o veado!
Com ourico ninguem danca E melhor irmos embora
Pois tem medo dos espinhos O macaco esta embriagado
Vai ter briga, nado demora
ANTOLOGIA PESSOAL
rremnnrmanmmmninninerinirrneninnrnnaimrn CAROLINA MARIA DE JESUS
158
159
BeGerT re Pangan mre wre
O. extlado- Ew PME. PPLE AS?
eg
O seu coracao sensivel despedagava
TT
Por que nao cumpre o homem 0 que diz?
Por que Deus meu o fizeste infiel assim?
Nao brinca com a mulher!
SE
Reconhego que nao mais serei feliz
E a pior coisa que existe
SEES
Se aquele ingrato no voltar a mim
Sao poucas as que nos deixam alegres
E sao milhares que nos deixam tristes.
Aquele beijo, calido e sedutor
Aquele olhar puro, ingénuo e santo
Disse-me um dia sois meu grande amor
E com saudades prorrompeu-se em pranto
vermerncemetors A NTOLOGIA PESSOAL omtermenrenmmeme nmnenunrmuunestisaicienneoane’ rmommmmentoae CAROLINA MARIA DE JESUS eneeeermnmnmnnereenmrentennenonenin
162 163
AMtualidades Vivo falando sozinha
Extravasando a minha dor
Recordando a época que eu tinha
Encontrei-me com uma senhora
’ Trangitilidade interior.
De fisionomia abatida
Perguntei-lhe por que chora?
Nao mais posso trabalhar
Ja estou exausta e vencida.
E se eu for mendigar?
Nao mais dé gosto em viver
Ameacam-me com a pris4o.
Que luta! Que aflicdo
Oh! Deus que hei de fazer
Nao percebem as autoridades
Da-me tua protecao.
Que ja estou aprisionada
Trabalho o ano inteiro Com estas dificuldades
Nem um dia posso perder Que sou uma desgracgada?
Luto e nao tenho dinheiro
E nem pao para comer.
A velha rota e revoltada
Tudo o que sofreu narrou-se.
Tenho medo de enlouquecer Vivo ao léu sem ter morada
172 173
JSonhet @ SHTEMONEL O-
TRIAL Oa Tye aE
As vezes fitava 0 céu Minha patria era sombria
E de saudades morreu. Fui viver em outro pais
Sem amor sem alegria
A ave no seu passado
Longe talvez serei feliz.
Fazia uma revisao
Para ver se havia errado
Vaguei montes vales e serras
E se era justa a sua prisao
Nada era semelhante
Oh! quanta infelicidade
Nada iguala a minha terra
O meu destino é atroz
O meu sol é mais brilhante
Eu perdi a liberdade
Ao fitar a imensidao
Por causa da minha voz.
Notei, o céu nao era tao azul
E faltava a constelagao
O nosso Cruzeiro do Sul.
176 177
sage
As flores nao eram belas
Reico- e pobre
As nossas sao mais fagueiras
Faltavam as cores amarelas
Bateu na porta: era a pobreza
Que ornam a nossa bandeira
Recebi altiva: era a riqueza
As flores de outras terras
— O que vens aqui fazer?
Faltam vivacidades
A pobre solugando diz:
As belas flores séo as que encerram
— Riqueza eu sou infeliz!
Amores e tranqiiilidades.
Venho pedir-lhe para comer.
O idioma é diferente
Levanta altiva a riqueza
Aspiragoes € pugil *
Recolhe as migalhas da mesa
Nao posse viver contente
Da 4 pobre e vira-lhe as costas
Longe do meu Brasil
cone y . Que Deus the aumente senhora
" Que é'um pais proeminente
A rica nao deu resposta
Na sua grande extensio.
Ea pobre de alegria chora.
O Brasil é um continente
Pobre quando ganha esmola
Que estd no meu coracao
Com qualquer coisa se consola
Aqui na minha terra sou rei!
Reza para o seu bem-feitor
La eu era um estrangeiro
E nunca mais ele o esquece
Que alegria quando regressei
Recomenda-o na prece
Com orgulho de ser brasileiro.
Que envia ao Nosso Senhor.
ee A
ew nee serene ESR
ok . soe
Assim no original.
Encontrei um pequenino
Jesus!
Vagando ao léu sem destino Tenha de mim piedadé ’
Sem ter onde descansar Dai-me, eu vos peco a luz.
Talvez lhe falte um amigo Faga-me esta caridade
Tem 0 aspecto de um mendigo Oh! Se eu pudesse clisar © ~ ”
O infeliz nao tem lar. Estas estrelas a brilhar.
Do sol eu sinto o calor
Quando souber meditar Mas, n4o sei qual é a sua cor.
Entristece e vai chorar
Tudo é sombrio ao teu redor Dizem que o sol é amarelo
E uma haste abandonada E 4 noite, o céu é belo.
E por nao ser cultivada
Nao tem vico. Nao da flor. Eu vivo na escuridao
Guiado por outras m4os
O infeliz nZo vai A escola Ouco falar n’alvorada
Passa os dias pedindo esmola No romper da madrugada
E nao aprende uma profissao Nas lindas tardes de abril
Quando este infausto crescer E que é lindo o meu Brasil.
~ O que vai ser?
SOIC ICI OOK A AARC CK
Um héspede da prisao
“= ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
182
183
ii
:
:
i
Marta Rita Eu comecei a pensar:
Maria vai me deixar!
Na minha palhoga Nao enganei
Era eu e a cabrocha A tarde nao a encontrei
A querida Maria Rita A cabrocha foi-se embora
Do sertao a mais bonita.
Nossa casinha
Era ‘muito bonitinha Nao sei porque
Era um ninho de amor Tive vontade de morrer
Toda enfeitada de flor. Quando a noticia espalhou
Quando eu chegava Que a cabocla me deixou
A Maria Rita eu abracava.
Eu tocava o violao Mané Joao
Ela cantava uma cang¢ao. O ricaco 14 do sertao
De todos roubava o amor
Fui passear. E a ninguém dava valor
Se eu pudesse adivinhar
Que ia me encontrar com 0 Mané Joao Ela foi-se embora!
O ricago do sertao Ninguém sabe aonde mora
Que olhou a Rita Foi pra longe e me deixou
Minha cabrocha bonita Minha palhoga abandonou
Disse-lhe: meu doce amor
Minha querida minha flor. Triste, eu estou
Tudo pra mim acabou
Depois daquele dia Penso na ingratidao
A cabrocha n4o sorria Desta mulher sem coracio.
eae
A cidade € 0 teu prazer
Nada faltava
Na
E 14 que tu deves viver.
casinha que eu morava
Nao posso te amar.
Tudo la era alegria
Tudo entre nés morreu.
Com os encantos de Maria.
Vocé nunca ha de encontrar
Apareceu
Um amor sincero igual ao meu.
Um mogco la da cidade
A ingrata esqueceu
Roguei-lhe praga!
A nossa velha amizade.
Pela sua ingratidao.
Ela deixou uma chaga
Desde este dia
Dentro do meu coracio.
Nunca mais tive alegria
Tudo para mim se acabou
Ela voltou!
Porque a Maria me deixou
Disse que sentiu saudade
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Passei pelo mundo sofrendo A vida ensinou a suportar
Nao realizei as minhas vocagées Todas as conseqiiéncias
E pouco a pouco fui perdendo A nao reclamar
Ideal e todas ilusdes. A ter fé e paciéncia.
Aa
2
A tristeza veio visitar Agora que estou na maturidade
O meu misero coragao Arrependo-me do mal que te fiz
E disse que vai ficar Fui um esbulho na tua vida
Sem pedir-me permissio. No te deixando ser feliz.
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ANTOLOGIA PESSOAL —ereetnunnarannomenmnnumanmaied —rowemenmmene (CAROLINA MARIA DE JESUS
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Actua auséncia me escraviza Dizem que amor é€ pecado
Eu sofro constantemente Eu ao amar nao mé rendo
Tua presenga é que leniza Eu vejo que os que tém amores
Esta tortura pungente. Vivem brigaiid6 e sofrendo.
ANTOLOGIA PESSOAL
214 ummm (CAROLINA MARIA DE JESUS
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Como passa os teus dias? O VELL
Neste recanto solitdrio
...Lenho inimeras alegrias Em vida o homem € escritor
Com 0 meu esposo imagindrio. E doutor,
E senador,
Deus disse, paz na terra E majestade.
Ao homem de boa vontade. Assim ele se discrimina,
Nao mandou fazer a guerra Mas na campa predomina
Que dizima a humanidade. A igualdade.
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Mesmo perdendo a minha vida.
Mas enquanto eu respirar
Aquele que sabe governar,
cect Paz ao seu povo deve dar.
Ninguém ha de violar
Nao queremos o estertor!
Meu Brasil, patria querida.
Guerra nao é bravura, nem coragem!
Nas guerras os homens embrutecem
E um drama selvagern.
E quantas vidas fenecem!
Que atos negros e brutais!
Os que fazem as guerras nao sao os pobres
Sao os poderosos ¢ nobres
Sem culturas intelectuais.
As guerras atrofiam as nacdes
Prejudicam as populagées
Cenas hediondas e abjetas!
Quem faz guerras nao tem valor
ANTOLOGIA PESSOAL =~
Lntesrnumnemamenasianrinernranimermenm CAROLINA MARIA DE JESUS
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Dominou a pura donzela
Pristio- de amor
E habitou-se no seu coracao.
Ela deixou de cantar.
Era linda como alvorada
.Para.ndo 0 magoar
A alma despreocupada
Nao sorriu a mais ninguém.
Como as aves n’amplidao.
Ela diz diariamente
Levava a vida a cantar
Vivo feliz e.contente.
Nunca pensou em amar.
Ele é belo e me quer bem.
O amor é uma prisao.
Eis que chegou a vez.
Cantava ao romper do dia
A morte ingrata lhe fez
A todos meiga sorria,
Uma triste ingratidao.
Puro era o seu coracao.
Roubou-lhe o seu amor.
Levava a vida a cantar Ela vive a chorar de dor
Nunca pensou em amat. Com os olhos fixos no chao.
O amor é uma prisio.
O sorriso que langava
Era lindo, e cativava.
Era uma seducio.
Levava a vida a cantar
Nunca pensou em amar.
O amor é uma prisio.
Ela que a todos sorria
Eis que chegou um dia
Ouviu uma declaracio.
As frases puras e belas
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Foste 0 meu amor infinito Dona Leonor
A razado da minha vida.
Para o pobre que dorme na calgada
Arrebatou-lhe outros bracos Que conhece na vida sé 0 estertor
Dia a dia, este amor medra A sua alma era agasalhada
Fique imdvel, nao sei o que faco. - Com 0 carinho de D. Leonor
Qual uma estdtua de pedra. O pobre que nao conhece o lar
Que infesta a nossa cidade
Para ele D. Leonor e Ademar
Sao quase divindades
Obrigada D. Leonor
Nao deixava o pobre ao Iéu
Has de receber uma flor
De Deus! L4 no céu.
ai
lugar porque o “patriotismo ornamental”
aoa
de poemas como Meu Brasil, Getilio
Cea
Vargas e outros jd € corrigido pelo
contorno espiritual do livro, um amargo
catdélogo de dores e sofrimentos
experimeéntados pelos humiihados e
ofendidos do Pais, um denso relato que,
se nao contém andlises profundas, tem o
mérito de se expor em cores fortes €
linguagem direta:
Como é sacrificada
A vida do trabathador,
O salario sobe de escada,
Os precos de elevador.
Minion Tipografia
Editorial
CARLITO AZEVEDO