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Maria de Jesus

mil 85-7106-175-1
SOF ROMER TT roe Dey en eRe
Desde que os poetas foram convocados a
“dar um sentido mais puro as palavras da
tribo”, o abismo entre a linguagem do
poema ¢ a fala comum nao parou de
crescer. Alguns poetas urbanos e cultivados
tentaram vencer esse abismo recorrendo ao
coloquialismo e ao formato do cordel, sem
contudo obter significativo aumento de
audiéncia entre as camadas populares.
Por outro lado, as tentativas-da “ribo” de
se expressar liricamente s6 sao aceitas
quando envolvidas em musica popular. Antologia
Na pagina impressa do livro, como diz o
samba, “o morro nao tem vez”. Em uma
de suas “quadras” bem ao gosto popular,
Sessoal
ieee

Carolina Maria de Jesus sintetiza a


situagao:

Ex disse: 0 meu sonho é escrever!


Responde o branco: ela é louca.
O que as negras devem fazer...
E ir pro tanque lavar roupa.

Note-se que o “branco” antagonista aqui


no é o da pagina vazia, mas também
“proscreve o sonho”, além de diagnosticar
o desequilibrio e receitar a terapia...
Esta Antologia Pessoal, que reine boa
parte da produgao poética da autora de
Quarto de despejo, possui, além de evidente
valor testemunhal, um valor liter4rio nada
desprezivel. Por isso é preciso nao ceder a
tentagio de “corrigi-la”, seja querendo
trazé-la para o “bom caminho” do verso
livre modernista ou para a “linha correta”
nee ators cen Hanae ree,
UFRJ
Reitor Paulo Alcantara Gomes
Vice-reitor José Henrique Vilbena de Paiva
Coordenadora do Forum
de Ciéncia e Cultura Myrian Dauelsberg

EDITORA UFRJ
Diretora Heloisa Buarque de Hollanda
Editora-assistente Lucia Canedo
Coordenadora de Producao Ana Carre
iro
Consetho Editorial
Heloisa Buarque de Hollanda (Presidente),
Carlos Lessa,
Fernando Lobo Carneiro,
Flora Siissekind,
Gilberto Velho e
Margarida de Souza Neves.

Organizacéo
JOsE CarLos SEBE BOM MEIHY

Revistio de ARMANDO FREITAS FILHO

EDITORA UFRJ.
Copyright © by José Carlos Sebe Bom Meihy

Ficha Catalografica elaborada pela Divisio de Processamento O inventdrio de uma ~ O ébrio 93


Técnico — SIB/UFRJ
‘certa poetisa José Carlos Prece de mae 96
Sebe Bom Meihy 7 Q-infeliz
98
j58a .
Sou feliz 101.
Antologia pessoal / Carolina Maria de Jesus. Organizagao de
José Carlos Sebe Bom Meihy; [revisao de] Armando Freitas Poesia no quarto de Acarta 102
Filho. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
236 p. 12 X 18 cm. despejo, ou um ramo de Porque 105 -~-
1. Jesus, Carolina Maria de. 2. Literatura brasileira. rosas para Carolina Riso de poeta 108
1. Titulo.
Marisa Lajolo 37 Uns beijos 109
CDD: 869 Asaves 111
ISBN 85-7108-175-1 A vida por escrito _ Pensamento de poeta 113
Armando Freitas Filho 63 Mamie 114
Trinado 116

Projeto Grdfico e Capa Dr. Ademar de Barros 65 Washington Luiz 118


Adriana Moreno e Ana Carla Cozendey ‘Mie é sempre mae 67 Solteirona 119
Revisao Meu Brasil 68 O lirio 122
Cecilia Moreira
Inspiragaoe 70 A passarada’ 125
Cristiane de Almeida
Lua-de-mel 73 Arosa 127
Universidade Federal Do Rio de Janeiro Ingenuidade 128
Forum de Ciéncia e Cultura
Stiplica de mae V7
Editora UFRJ Deus! 79 Mistério 129 —
Ay. Pasteur, 250 / sala 106 — Rio de Janeiro — RJ
Saudades de mae 81 - Desilusio 130
CEP 22295-900
Tel.: (021) 295 1595 r. 124.127 / Stiplica do encarcerado 83 Noivas de maio 132
Telefax: (021) 542 3899 — Fax: (021) 295 1397
Vai vai 85 Gettilio Vargas 135
Minha filha 86 Suplica do mendigo 136
Apoio:
O marginal 87 Mentira 139
Poeta 91 Remorso 142
Y Fundagdo Universitaria José Bonifacio
Presente 144 Suplica de um cego 183
Devaneio 145 Maria Rita 184 ® Inrventirio-
de umw
Ocolono eo fazendeito 147 Maria Rosa 186 Certa Poetisa
Pobre inocente 150 Evocagao 189
José CarLos SEBE BOM MEIHY
Suplica de amor 153 Avelhice e a mocidade 190
Segredo oculto 154 O filho 192
O turco eo lampido 155 Meus filhos 196 Tardio e lento foi 0 processo de admisséo da poesia popular na Republica das
Quero-lhe 156 Letras. Ainda hoje, os circulos literdrios reservam-lhe lugar periférico e restrito.
Quadros 197 Lancgam-the de passagem olhares polidamente desconfiados, tratando de
Meu av6 157 Um caipira 2/4 manter as devidas distancias, E mesmo assim, hd quem ache sem cabimento
Festa dos bichos essa presenca descredenciada nos sal6es ilustrados.
158 Ohomem 2/7 |
O exilado 160 Anseio 218 Claudia Neiva de Matos

Em que pensas? 161 Por que chora? 219


Carta de luto 162 . Hino ao amor 220
A vesso de uma versao da Histéria brasileira que
Atualidades 164 Kennedy 222
sempre se exibiu racialmente democrata, cordial-
Avida 166 O expediciondrio 224 mente tecida em incruentas tramas, Carolina Maria de
Noite de Si0 Joz0 167 Prisio dé ainor 226°
_Jesus foi voz desafinada na ladainha de nossas trajeté-
Reminiscéncias 168 Primeiro amor 228
rias oficializadas. Seu enredo de vida pessoal e puiblica
Da-me as rosas 169 Visita 230
foi, até certo. ponto, testemunha surda, suja e sem nexo
Ao meu amor 170 Estdtua de pedra 23]
na Iégica de uma cultura que diz buscar justiga social,
‘Tristeza 171 Dona Leonor 233 direitos humanos e igualdade feminina.' Explicada nos
Hipocrisia 172 Vidas 234
quadros de um pais que se construiu. moderno nas pis-
O juiz 173
' tas do progresso acelerado, imposto pelo programa de
Sonhei 174
uma industrializagao centrada no sul brasileiro, Caro-
O prisioneiro 175
lina viveu cendrios que no 4mago dos anos dourados a
Minha patria 177
contextualizavam como um fenémeno. Estranho fend-
Rico e pobre 179
meno, € verdade, costurado nas malhas da especifici-
O devoto 180
dade de uma época tinica em nossa cultura. Balizada
O pequenino 182
CAROLINA MARIA DE JESUS
7
phe 4 1 Pet
entre duas ditaduras — na do Estado Novo, que finda- Estes outros politicos também sabiam disto. Sua histé-
va no febrao libertdrio do pés-guerra, em 1945, e na ria, contada e cantada em prosa e versos, era chaga aber-
nascente de outra, frutificada depois de 1964, sobo ta das condicées impostas aos miseraveis, filhos exclus-
regime militar —, a maturidade de Carolina Maria de dos do desenvolvimentismo jucelinista do fim dos anos
Jesus empatou: desgraga, fama, esquecimento com eu- 50. Sua experiéncia pessoal, como faca de dois gumes
foria e ilusao de um pais emergente. fatais, atingia pela dircita e pela esquerda. Dependia do
Para além de sua saga pessoal, a do pais mostrava a uso. Uso de seus escritos e de sua imagem.
passagem do eixo da produgao econémica rural para a O alcance de seu livro mais importante, Quarto de
urbana e, conseqiientemente, o desmerecimento de po- despejo, colocado a puiblico em 1960, projetou-a como
liticas agricolas em favor de outras mais aptas ao desen- sucesso inquestionavel, ainda que fatuo, marcante’. A
volvimento capitalista moderno. E claro que este pro- gloria de Carolina era perturbadora, mas, dadas as se-
cesso de transformacées afetava a vida do conjunto da giientes ondas de apagamento de sua produg3o publi-
populagcio, principalmente de setores que viram inver- cada, 0 sucesso funcionou-lhe como contraponto inter-
tidas as alternativas de vivéncia.no campo. mitente. no céu nacional prenhe de literatura de mu-
Na cidade grande, depois de muito penar, tornou-se lheres bem nascidas’. Neste sentido, o aparecimento de
escritora famosa, quase que do dia para a noite, gracas Carolina no mundo reconhecido e puiblico dos brancos
aos rascunhos acumulados ao longo dos anos e cur- era uma licenca democrdtica. O discreto charme da bur-
tidos em amargas frustracdes. Carolina Maria de Jesus, guesia nascente, contudo, nao continha o mau cheiro
conhecida como a escritora que saiu das favelas de Sao de lixos alimentadores de misérias escondidas em fave-
Paulo, emblemava um tipo util aos ecos de qualquer las que inchavam as promessas de megalépoles. Expli-
dos projetos politicos existentes entao. Vinda de baixo, citagao disto é dada pelo tratamento critico-literdrio e
servia como metdfora da mobilidade social positiva e historiografico legado 4 obra da escritora que, depois
até progressista e, neste sentido, era a prova tangivel de de figurar como “estrela de um novo tempo”, foi apa-
uma vers4o tropical do mito da self made woman. Os gada, sendo esquecida porque sua histéria se desbastou
politicos sabiam disto. Valia também sua imagem, para entre nés arredondando diferengas. Enfim, a légica do
os opositores do modelo industrializante que se plan- tempo mostrou-se senhora da raz4o: o siléncio colocou
tava, como testemunha viva da dentincia_necessdria. todas as coisas (e pessoas) no /ugar devido.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


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Hoje, passados quase quarenta anos do fulgor provo- Lispectors, Meirelles, Carraros e outras —, tinham ain-
cado pelo Quarto de despejo, pode-se permitir reflexdes da que vencer dificuldades para parecerem capazes de
mais amplas sobre o impacto da vida da escritora, que figurat no cendrio nacional. Seria pouco considerd-la
deixou inédita grande fragao de seus escritos, mantidos mais uma mulher no contexto da onda de escritoras
pela filha Vera Eunice de Jesus Lima. Isto exibe, mais que se levantava. Era também negra, pobre, de poucas
que a face pragmatica do uso da pobreza, o sentido letras e nenhum recurso econémico.
oportunista de uma cultura elitista que poderia ter-se Nao é 0 volume dilatado de paginas que impressiona
aberto como fator de mobilidade social. Caso ocor- e clama atencao para esse conjunto unico na culeura
resse, poder-se-ia acreditar na efetivagao pratica do dis- eufemisticamente apelidada de popular brasileira. Nem
curso da contracultura que despontava. o €a coeréncia de péneros, posto tratar-se de quatro ro-
Composig6es variadas — variadissimas — constituem mances, didrios, contos desiguais e poemas de arreme-
© inventario da escritora favelada. Mesmo antes de dos épicos, tragicos e simplisticamente liricos.
-abordar sua produgdo pottica, até & guisa de aviso aos Independentemente da cobicgada qualidade textual, a ex-
navegantes de mares surpreendentes e acidentados, de- plicagao que justifica zelo face a estes textos remete ao qui-
ve-se garantir que, em face dos c4nones sagradores da Lite- late social da mensagem e A expressao da vontade comu-
ratura (com “L” maitisculo), a qualidade de seus escri- nicativa de uma mulher que, sabendo-se segregada, jamais
tos € de uma pobreza estilistica que faria arrepiar até aceitou a condicgao de submissa, favelada, mie solteira,
mesmo os mais tolerantes criticos. Sem levar em con- inferior. Seu registro, constantemente biografico, funcio-
sideraga4o o contexto da produgao da obra, a poesia de nava como documentagio de experiéncias até entéo ja-
Carolina padecer4 de lastiméveis comparacées com os mais autenticadas por autorias dé quem padecia vida
escritos dos autores consagrados nao como uma pro- miseravel. Entre seus escritos e o resto do mundo haviam
dugo que precisa ser vista com os olhos de sua estru- que se constituir vasos comunicantes capazes de correr
tura circunstancial e de seu cédigo expressivo prdprio. realidades pouco percebidas por uma cultura domesticada
Carolina foi autora relevante, considerando o grau de para perceber o belo aristotélico (bom porque bonito,
esforgo pessoal — este sim, inédito e original —, por ter bonito porque prazeroso, prazeroso porque certo).
produzido uma obra de destaque num momento em Vale assinalar que 4 época grassava um tealismo jor-
que as mulheres, até mesmo as brancas — apesar das naljstico que promovia, por exemplo, um Nelson Ro-

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS

10 ll
drigues que ja decretava “a vida como ela €”, desmen- Excluidos os estalados momentos de glérias, sua obra
tindo na tragédia a ironia natural da realidade. Simul- nao se constituiu em excecao do tratamento racista que
..taneamente, em Sao Paulo como em outros grandes a sociedade delegava aos que habitavam as franjas do
centros, desenvolvia-se, junto com a crénica urbana, o progresso. Fora da moldura que segurava seu retrato,
jornalismo de investigagao ¢ 0 testemunhal que, por fim, palido para a efetiva sociedade dos brancos, ela ndo con-
atestavam paradoxos entre o progresso material de uns seguiu praticamente nada. Sequer exibiu-se poetisa.
eas diferencas de outros. A denincia celebrava-se como Carolina Maria de Jesus, a autora de didrios, foi ex-
ideal discursivo para o publico nascente da critica da _ pressao de uma situa¢ao tinica onde o sucesso de uma

classe média que lia jornais e comprava livros. negra poderia ter ocorrido além do destaque como
Mesmo sem nogio do rumo a ser dado ao destino que cantora ou esportista. Ela sé conseguiria, contudo, ter
se lhe mostrou risonho em certas oportunidades, Carolina existido enquanto excegdo cultural e alguém feito para
Maria de Jesus acatou o isolamento social decorrente que, aquele momento exato. Assim mesmo, precisou do
se desde antes cultivado, reafirmara-se-lhe como ninho prestigio de um homem, branco, j4 reputado jornalista,
natural depois de experimentado 0 outro lado. Isto prova Audélio Dantas, para apresenta-la 4 sociedade bra-
‘que em vez de se integrar em uma categoria social capaz sileira. Sozinha, possivelmente pouco teria feito além de
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de classificd-la além da negritude, ou vir a ser militante de
i
|
cuidar dos filhos e catar papel.
um tipo social que despontava, a alternativa escolhida, de
i Houve, na possivel passagem de Carolina do mundo
reclusio no sitio que logrou comprar — tinico bem con- dos marginalizados para o dos contrarios, um ritual de
seguido —, foi a negagao do mundo. Negacao esta mais selegao. Isto interessa pois explica raz6es nao. expressas
coerente com um passado do que com o presente viven- pela sociedade que cria, para consumo proprio, fendme-
ciado pela escritora mercadorizada‘. nos advindos das camadas populares. Criticos ferrenhos
Negra, favelada, sozinha, semi-analfabeta, cabecga de da escritora pobre — entre eles principalmente Wilson
familia ¢ pretensamente de oposicao 4 ordem estabele- Martins — insistem em considerar a produgao dela
cida, Carolina teria tudo para nao dar certo. Neste sen- como editada ou produzida, sugerindo, sem sutilezas,
tido, suas constantes contradigdes argumentativas ¢ que seria um produto oportunista de Audalio Dantas e
vivenciais, antes de diminuj-la, a engrandecem, pois a de empresdrios atentos ao crescimento do mercado de
tornam mais xermal em sua anormalidade contextual. consumo de livros’.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS sermreerne


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AARC Nera
MAS QUEM ERA MESMO ESSA TAL CAROLINA? bebidas em esquinas suspeitas; limpadora de longos
corredores de hospitais e hotéis.
2
Negra retinta, daquelas safdas das entranhas de Mina Como catadora de papel nas ruas de uma Sao Paulo
s
Gerais, do vilarejo de Sacramento, no Triangulo, sem entao desvairada pelo agito dos anos 50 — que abrigou a
ter experimentado em sua estirpe miscigenagao algum comemoraga0o do Quarto Centendrio da Cidade que
a,
Carolina foi favelada na metrdépole paulistana desde mais Cresce no Mundo ~, Carolina Maria de Jesus EXPO
1947. Antes, porém, perambulou pelo interior timentou nisso uma profissio compativel com seu pro-
do estado
de Sao Paulo em busca de um pano de fundo que a acei- jeto de sobrevivéncia. Tudo sem que deixasse de expe-
tasse como produto de alguma histéria mais integrada. rienciar 0 tormento constante da fome, os contornos
Carolina queria juntar sua vida A de algum segmen- da miséria que, mais que a cla prépria, perseguiu a
to nacional respeitavel que a incorporasse, minimame infancia de seus filhos e a fez sentir, depois do sucesso,
n-
te, como cidad§. Disto, alids, nunca abriu m4o, o ferro quente de uma imprensa que a marcou como
jamais
deixando de aspirar a ser, pelo menos, classe média. . objeto permanente da contradicao entre o desenvolvi-
Tal
propésito custou-lhe incémodos porque, sendo quem mento econémico nacional e os problemas da margi-
era, restava-lhe compor, no m4ximo, o contingente nalizagao, entre uma cultura aberta e outta elitista.
de
reserva dos meios de produgao de um capitalismo mais Contemplando 0 périplo conjuntural que a explicava
que selvagem. petgunta-se: de quantos contrastes se compés a vida de
Carolina Maria de Jesus foi mulher sé e sozinha por Carolina Maria de Jesus? Mais, pelo lado pessoal, com
opgoes intermitentes, compondo o perfil de pessoa quantas mdgoas foram conjugados os verbos auxiliares
que
nao aprendeu a se soldar em coletivos e que nao pode- do movimento progressista brasileiro que compreenderia
tia se igualar a pares que, alids, cram inexistentes. uma negra escritora? De que memoria nacional falamos
Ela
foi: mae solteira quatro vezes (ainda que apenas trés quando remetemo-nos a experiéncia do Jenémeno legado
fi-
lhos tenham sobrevivido), sendo que cada um dos pais ao. abandono ou A mera curiosidade, particularmente de
de seus filhos era declaradamente branco e estrangeiro; estrangeiros? Qual figura deslocada de alguma Africa,
empregada doméstica demitida de varias casas onde seria Carolina Maria de Jesus mais um exercfcio inte-
trabalhou conjugando etapas de emprego com papéis lectual de um pais que supde — e sé sabe pensar desta
enue octagon gee

gratuitos em circos baratos; vendedora ambulante forma — que todas variagées so idéias fora do lugar?
de
80

ANTOLOGIA PESSOAL
HOTS AE

CAROLINA MARIA DE Jesus


14 15
Constantemente com lengo na cabeca, com o né estra- gressista, naqueles dias em que Dolores Duran com-
tegicamente colocado para a frente, 0 que permitia que punha e Maysa Matarazzo e Elizeth Cardoso cantavam
as pontas lhe enfeitassem os ombros largos e garantis- conjuntamente com os emergentes Joao Gilberto e An-

REM ETE
sem porte de soberana, Carolina foi nossa estranha tonio Carlos Jobim. Ao lado do género dor de cotovelo
moura (des)encantada. Afinal, ela era um outro lado do das primeiras damas da mtisica que se esgotava em
que Caetano Veloso chamou, no cume da euforia da sambas-cangies pessimistas e das toadas classemedia-
época, em 1968, de Alegria, alegria. Sem documentos nas dos segundos, Carolina escrevia muito. Nao sé mu-
nem passado registrado — o que impossibilitava dizer sicas — sambinhas pobres também foram perpetrados por ....-... .
exatamente quantos anos tinha —, tudo o que possuia ela — mas, ao lado de multiplos géneros, principalmente,
até que comegasse a ser parte do mundo dos brancos era versos agarrados nas linhas do simplismo, da rima mais
uma fotografia com seu filho Joao. Uma foto colorida, que facil e da repetigao. Carolina foi ¢ era por auto-
dessas tiradas 4 moda das familias probas e como a dos definicao poeta. Sequer dizia-se poetisa. Sem entender o
que emprestam tintas de triunfos alheios para sobrevi- significado disto, tudo que for dito sobre ela soara pou-
ver. Nem local fixo existiria para constatar, como 0 con- co €, mais que incompleto, vazio.
terraneo Drummond, a reclamada dor de ter a cidade Os poemas bonitinhos de Carolina formularam cos-
natal como apenas um retrato na parede. turas de uma interiorizacdo épica suburbana que, mise-
Mas Carolina existiu. Mulher de temperamento for- ravelmente subdesenvolvida, realizava-se como tradu-
te, foi personificagao do modelo de brasileira suscetivel tora de repeti¢des cadenciadas pelo monétono da vida
as variagdes de uma época que viu a bossa-nova nascer que tem que lutar diuturnamente para sobreviver. Feia
no mesmo instante em que se criava o rock nacional; a na forma, suas poesias eram uma espécie de primos
construgao de Brasilia; a instalagao da indistria auto- pobres da beleza consagrada. Coetanea dos concretistas,
mobilistica que colocava o fusca ao alcance de. novos Carolina era a encarnacao da resisténcia, do tradicio-
consumidores; as filhas do também mineiro presidente nalismo e da meméria que fugia do novo.
JK debutarem em Versalhes e Juca Chaves ser chama- Os versos toscos de Carolina eram, contudo, rima rica da
do de menestrel maldito. _esséncia do que de mais miserdvel tinha 0 nosso pro-
Descoberta em 1958, dois anos depois Carolina foi gresso. Eram também a depravagao da beleza pura e a
apresentada por Auddlio Dantas ao ptiblico leitor pro- subversdo de uma ordem da qual constavam Vinicius

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


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de Morais, Lygia Fagundes Telles, Joao Cabral de Mello distinguir do grupo de outros negros analfabetos e de
Netto, Carlos Drummond de Andrade et alli... pobres esquecidos no mundo rural. Esta mesma Caro-
Homero acaipirada, de saias de estampas vivas, Caro- lina que aspirava a modos finos de vida apaga de sua
lina era navegante de um mar de transformacées. Ela é temdtica rememoragées da terra natal. Apenas recom-
quem ia ser conquistadora do mundo. Assumindo o pe figuras idiflicas através da reconstrucgio do avé, o
papel de Penélope masculina, invertida Ulissés--": Sdcrates africano, e da mie sofrida. A genealogia ideali-
Sua €pica pessoal ficava na lembranga de um passado zada lhe serve como recurso imaginado para explicar a
que sé ela poderia recriar, como nas histérias recontadas infelicidade constante. E como softer era-lhe vital. Ser
depois em prosa, mas especialmente em versos. Estranho’ ” vitima seria, por fim, sina de versejador como ela mes-
como insistia em manter temas em variagGes genéricas, mo afirmava no seu Riso de poeta*:
mas sempre repetia que era poeta. Em um de seus mais
bonitos e singelos textos, no Prdélogo escrito para o que Poeta, por que chora?
seria o seu primeiro livro de poesias,° afirmava que os poe- Que triste melancolia.
mas eram, a seu ver, o que de melhor possufa. Ou, pelo E que minhalma ignora
menos, €ra 0 que mais gostava. Por isto, preocupou-se em o esplendor da alegria.
escrever: “Nesta primeira obra poética que apresento, dese- Este sorriso que em mim-imana,
jo relatar aos ilustres leitores como foi que percebi minha A minha prépria alma engana.
aptidao poética”. E continuava a narrativa evocando a
infancia, trazendo na ponta da agulha a explicacdo dos ver- Passei a vida a idealizar
sos feitos desde a alfabetizacdo promovida por uma senho- sem concretizar
ta espirita: “Quando completei sete anos, minha saudosa um sonho sequer.
me enviou-me a escola, 0 “Colégio Allan Kardec’, na mi- Pretendia me casar
nha terra Natal, Sacramento Estado de Minas Gerais”. E ter um lar
Pena que até o presente os ilustres leitores conclamados com filhos e a mulher.
no tenham tido acesso a poética carolinana.
E certo que ser poeta lhe evocava nobilidade e nobre- Mas nem sempre se realiza
za € isto era tudo o que se lhe fazia necessdrio para se o que a mente idealiza.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MaRIA DE JESUS


18 19
Vim ao mundo predestinado
a viver sé e abandonado volumes, passagens de um didrio que revelava, de forma
como coisas abjetas. candente e sincera, o teor da vida cotidiana da escritora’.
Hoje sou desiludido:
Amei e nito fui correspondido. MUSA REPARTIDA ENTRE A INSPIRACAO
Deus ndo protege o poeta. cree UNIVERSAL E O AMOR ROMANTICO

Houve, com o sucesso editorial de seu didrio, um A leitura do conjunto da obra de Carolina Maria de
desvio na orienta¢ao poética de Carolina. Embora pre- Jesus, considerando-se principalmente os textos no pu-
tendesse manter 0 que achava a principio ser seu destino, blicados, equivale a uma viagem surpreendente. Nao
acabou por ser conhecida como autora deste género. Isto tenho pudor em colocd-la como uma das mais profun-
faz com que seja revista a circunst4ncia do aparecimento das experiéncias que a vida académica tem me ofereci-
dos escritos do Quarto de despejo, pois foi através deles que do. Seria dificil sair indiferente da leitura destes textos,
a negra escritora surgiu no mundo dos que naqueles dias principalmente quando se tem uma formacio tradicio-
achavam que o Brasil poderia dar certo. nal. Impossivel, diga-se melhor.
Conta Auddlio Dantas, entao jovem repérter, que, indo A anilise desses escritos — distanciada no tempo de sua
para a antiga — e extinta — favela do Canindé, em Sao producao, amainadas as paixdes — munida de pressupos-
Paulo, exatamente onde hoje esta sediado o monumental tos de historiador social da cultura, desprezando-se co-
estadio de futebol da Associagao Portuguesa de Desportos, brangas estilisticas colocadas para crivar como intelectual
por acaso, 14 encontrou uma mulher bradando contra os aquela produc4o, permite rever as consideracdes estabe-
adultos bébados que estragavam um pequeno parque de lecidas sobre o papel daquela mulher negra — € 0 senti-
divers6es, instalado pela Prefeitura Municipal, para as do de sua produga0o — enquanto alguém que almejava a
criangas. A ameaga de colocd-los no /vro (que dizia escre- fatia possivel no mundo dos letrados. Decorrido 0 tem-
ver) atraiu a atengao do curioso repérter. po, énos permitido ir além do ataque/defesa de uma
Em sua casa na favela, Dantas tomava contato com os obra instigante que exige ser, mais que retomada, vista

escritos de Carolina guardados em cadernos catados na por inteiro, ou pelo menos em sua esséncia.
rua. Em particular, chamou-lhe atengao, entre os muitos O total de 37 cadernos revela, mesmo na pobreza esti-
listica, desigualdades quer nos géneros, quer na expres-
ANTOLOGIA PESSOAL
20 CAROLINA MARIA DE JESUS
21
sio dos contetidos. De semelhantes ficam os registros uma outra repuiblica. Eram duplas as jornadas de tragé-
feitos em letras claras, grandes, naturais e definidas que, dias que pretendia: seus poemas revelam uma perspec-
alids, exibem um outro lado da especial personagem que tiva amaldigoada das pessoas famosas e ao mesmo tempo
ela foi. Em conjunto, os escritos deixados somam-se em o desejo de integrar este grupo”.
cetca de quatro mil paginas manuscritas, cuidadosamen- Entre os poemas nao selecionados por ela em sua an-
te recolhidas por ela prépria e mantidas agora com zelo tologia, um chamou atengao por remeter A esséncia de
comovente. Antes, porém, devem tet passado por situa- sua proposta vivencial:
gOes precarias, visto que certas paginas foram molhadas
e encontram-se ilegiveis, VIDAS"
O volume, contudo, é muita coisa até para profissio-
nais da escrita. Se é verdade que isto interessa, sob mui- Nem sempre siio ditosas
tos pontos de vista, para pessoas preocupadas com a Vidas das pessoas famosas
histéria cultural brasileira, a producado de Carolina re- Edgar Allan morve na sarjeta
leva-se Como um monumento pelo menos intrigante. Na guilhotina Maria Antonieta
E conveniente esclarecer que n4o se destaca a genia- Luiz de Camées teve que mendigar
lidade criadora desta mulher. Ela foi original, ndo Goncalves Dias morre no mar
pelo que escreveu, mas sobretudo por como o fez ¢ Casimiro de Abreu morre tuberculoso
apresentou sua mensagem. Entre um extremo socia- Tomaz Gonzaga, louco furioso
lizante € um romantismo de viés pessoalissimo, ela Getilio para impedir outra revolugao
transitava pelas motivagées imediatas. Nao lhe falta- Suicida-se com um tiro no coragdo
va espaco a ocupar. Santos Dumont inventor do aviiio
A circunstancialidade na vida de Carolina Maria de Que foi utilizado na revolugio
Jesus parece ter atendido aos reclamos de sua luta pes- Para ver o Brasil independente
soal na direc&o do sucesso. “Ela queria aparecer”, repe- Morre na forca nosso Tiradentes
te sempre sua filha, em depoimentos varios. Aparecer Luis XVI, rei incidente
como personagem do mundo das letras, contudo, Morre tragicamente
implicaria para ela, e pata outros tantos, a invencao Sécrates foi condenado a morrer
de

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


22 23
Ciente the obrigaram a beber um polo de identificagao com os nao-compreendidos.
Jodo Batista repreendia os transviados O nio-reconhecimento em vida e a exclusdo fechavam
Foi preso e decapitado a circunferéncia que cercava os refutados que seriam
Abraéo Lincoln abolindo a escravidio aceitos depois. Escrito na ultima década de sua trajeté-
Foi morto a traigéo ria, este poema revela um certo dominio do tema’ mar-
Euclides da Cunha escritor proeminente ginal/maldito ainda que o instrumental de gramatica
Sua morte foi cruelmente se mantivesse comprometido. Na mesma linha, a visao
_ Joana D'Arc vendo a Franca oprimida universalista de Carolina é interessante. No caso do
Defendendo-a pagou com a vida presente poema, a tematica da justiga supera fronteiras
Camilo Castelo Branco foi escritor € propde aproximacées varias.
Ficou cego, suicidou-se Considerando a obra dos chamados poetas negros, e
Kennedy desejava a integracéo as definigdes correntes sobre poesia negra, dificilmente
Reprovaria a Segregacdo poder-se-ia classificar Carolina como tal. Como nao é€
Foi morto @ bala a utilizacdo de uma tematica anti-racista nem 0 fato de
Na cidade de Dallas ser negro, epidermicamente falando, que caracteriza a
Jesus Cristo néio foi julgado poesia negra, tem-se que no caso de Carolina inexiste a
Foi chacinado e crucificado emergéncia de um eu enunciador negro. O que resta é
Com requinte de perversidade um eu titubeante entre si mesmo e 0 universalismo.” E
O pior crime da humanidade. evidente que os textos poéticos de Carolina refletem
aspectos dessa cultura, mas sua vivéncia ultrapassa a ex-
Importante notar que este poema revela, na parte clusividade de qualquer compromisso com uma causa
inicial, uma série de referéncias a escritores para depois negra. Neste ponto, sua experiéncia poética foi paralela
fazer meng¢ao aos politicos e, finalmente, uma critica 4 posicio de Augusto dos Anjos e contraste perfeito de
significativa ao golpe militar e aos excluidos do proces- Solano Trindade, ambos negros.
so politico ditatorial. A universalidade da poética carolinana nao remetia ape-
A identificagao de Carolina com os perseguidos era nas ao ser humano. Nao. Ha, entre seus cadernos, um
uma espécie de conclusao de sua histéria. Era também em especial, que também guarda “outros” poemas. Sao

pasaceeneretrareemememrnmssncrccmermsccinenen ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


24 25
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|
i

poemetos (ainda menores) que nao mereceram ser sele-


O sapo fez o refrito
cionados na antologia que fez. De quatro poesias (Vocé
Diz que a terra estremeceu
me namora, Quem foi que disse, Festa dos bichos e
Maria Rita), parece que Festa dos bichos revela o mes-
O macaco implicante
mo espirito universal — e até comportaria dizer “anar-
Comecou a criticar
quista” ~ que a autora assume quando deixa o lado exa-
Dizendo que o elefante
geradamente romantico e pensa o social. ‘Vejamos um
Era feio pra dancar
exemplo:

FESTA DOS BICHOS® Elefante ficou zangado


Nervoso néo quiz dancar
Escuta e presta atengéio
Eu aqui séu delegado
Na historia que vou contar
precisam me respeitar
A cobra eo rei ledo
Amavam ia se casar
O macaco nito obedeceu
Continuou a insultar
A cobra estava elegante
Ele é maior do que eu
Seu vestido que beleza
Mas ndo dé pra comecar
O tigre ¢ o elefante
Eram serventes da mésa
O lébo chamou o veado
E-melhor ir-mos embora
Ourigo e dona onca
O macaco estéd embriagado
Da noiva eram os padrinhos
Vai ter briga e nito demora.
Com ourigo ninguem danca
pots tem medo dos espinhos
A discusio deu em nada
E a festa continuou
Urse cantou uma cangio
Mas véio uma chuvarada
O macaco respondeu
_ por isso, o baile acabéu.

ANTOLOGIA PESSOALa ecncereeneunceNnaimeene

26 CARGLINA MarIA DE JESUS


27
A pee
Pingugo nao foge, de jeito nenhum, da ideologia tra-
A singeleza nao escondida mostra a igualdade reve-
balhista proposta desde a chamada Era Vargas. Revela,

Pe
lada no humor maroto que nao merece ser evocado
isto sim, uma mulher que refuta a bebedeira e deixa

ThE
como carnavalizagéo. A abusiva preocupacio com a
espago para critica ao casamento com alcodlatras"*:
rima facil forga o encaminhamento de versos que su-
g erem imediatismo e despreocupacao com qualquer
qualq
cuidado critico formal e até com 0 verndculo que po-
Néo compra nada e quer comé
deria ser retocado. Considerando exclusivamente estes
Bate na mulher poe os filhos pra corre.
versos, pode-se pensar que ha paralelismos diferentes
entre 0 poema anterior (Vida) e este ultimo. H4 um
Vocé chega de madrugada
fator que talvez explique as distancias: Carolina tram-
Fazendo arruaga e chaveco
bém compunha miisicas. Isto é muito importante e a
Além de comprar nada
partir de tal suposigao pode-se pensar que alguns de
Ainda quebra os meu cacareco.
seus versos seriam feitos para serem cantados. Isto
sugere ainda que as rimas insistentes obedeciam a
O pinguco chega em casa
uma tendéncia meldédica.
Nao compra nada e quer comé.
Entre os documentos guardados pela filha Vera Eu-
nice, ha um song book intitulado também Quarto de
Falando para um homem, como se homem fosse, em
despejo. As partituras nele contidas sdo das musicas de
Macumba ela escreve:
um long play que registrou com o mesmo nome do li-
vro, onde foram gravadas, pela voz da prépria Caro-
Ti mandaro uma macumba
lina, as seguintes muisicas: R4, ré, ri, r6, rua; Vedete da
Eu jd sei quem mandou
favela; Pingugo; Acende o fogo; O pobre e 0 rico";
Foi a Mariazinha
Simpli¢go; O malandro moamba; As granfinas; A Maria
Aquela mulher que vocé amou.
veio; Macumba; Quem assim me vé cantando”. No
song book, entre notas musicais igualmente singelas, na
Curiosamente coetaneo de Carolina, outro autor de
pagina central, fragmentos de Pingugo; Macumba e
¢aracteristicas estranhas ao gosto dos consumidores
Quem assim me vé cantando..
CAROLINA MARIA DE JESUS
ANTOLOGIA PEssOAL 29
28
ict talonbesians Sedeinccr esas

brasileiros, Adoniran Barbosa foi mais aceito. Homem,


co” de Carolina. A poesia ficara como algo pessoal. No
branco e legitimado paulistano, Adoniran diferiu de
final da vida, depois de passadas as ondas de sucesso, a
Carolina pelo humor. Humor que, logicamente, reve- ela retornou com insisténcia recortada. A primeira vez,
_ lava interpretagées diversas da poética. Adoniran, con-
em 1975, quando passou a limpo os poemas; a segun-
tudo, apesar de também ter sido legitimado por um
da em 1976, pouco antes de sua morte, quando fez ela
intelectual de carreira, Anténio Candido, e celebrado
prépria uma antologia.
em grava¢oes por intérpretes da estatura de Elis Regi-
na, foi incorporado pelos versos. Carolina pelos didrios
A POESIA SEM PUBLICO
foi momentaneamente aceita. Nao pelos poemas que
afogavam nostalgias em melancélicas rimas e desan-
Os escritos de Carolina repontaram como mercado-
davam a graca em piada. : ria. O consumo de livros passava, desde os anos ses-
A insisténcia romantica de Carolina a fez declinar
senta, a ser cultivado como sinénimo de status. Resta-
outro verso amoroso de implicacao interessante:
va a Carolina, para nao continuar desconhecida, vir a

aT essa
publico com o seu produto mais evidente triplicado:
Quem assim me vé cantando
seus didrios.
Pensard que sou feliz
Segundo 0 interesse do consumidor, os livros de Ca-
Eu levo a vida pensando
rolina que formariam uma trilogia sao: Quarto de des-
No homem que nao me quis
peo (1960); Casa de alvenaria: didrio de uma ex-fave-
Ensinou-me a gostar déle
lada (1961) e Didrio de Bitita (publicado primeira-
E disse: Minh‘alma é sua
mente na Franga e, postumamente, em 1986). Afora
Quando viu que eu the amava
estes, os demais textos de Carolina foram pagos por ela
Mostrou-me a porta da rua
mesma e ressoaram fracassos, como Provérbios e Peda-
Vai, vai, vai-se embora me deixa em paz
gos da fome, de 1963. Mas, nesta constelacio, a poesia
Vai, vat e nao voltes nunca mais.
na obra de Carolina como ficaria?...
A memoria da Carolina poetisa ficou fora de qual-
Mais do que o esperado, 0 caminho do Quarto de
quer alcance ptiblico. Tudo indica que apenas ela revigo-
despejo dera outra ditecio ao “reconhecimento publi-
rava de quando em quando sua verdadeira vocacao.
ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MaRIA DE JESUS
30
31
Outro lado do poema invisivel de suas intengdes é a E dificil afirmar o nivel de consciéncia do seu pré-
constante e insistente lembranga que, de maneira inter- prio papel enquanto escritora. Sendo privada do direi-
mitente, aflorava recobrando-a como escritora. Assim to de escrever poesia, restava a Carolina viver do suces-
fica mostrado, sem disfarces, em reportagens como na so passado e dele tentar sobreviver com ou sem ele.
Com certeza nao deram espago para sua poesia. Sobre

se
revista TV Contigo, ao noticiar que ela seria motivo pa-

TaN
ra um dos programas que a época tinham maior indice a condicao de escritora h4 uma declaragao dela que

S Ren
FRIES
de audiéncia: Caso verdade. surpreende quantos lhe cobrem qualidade. Ela decla-

EVR PEI
rou, j4 em 1961, que
O texto trazia uma aventura bem folhetinesca, a his-
téria de uma catadora de papel, seu livro nao foi escrito para homens
que se atrapalham com adjetivos,
fichada na policia como indigente e sintaxes, verbos e substantivos. Nao

autora de um livro que arrebatava as escreveu para concorrer a prémios na


vendagens até mesmo de Jorge Amado. Academia Brasileira de Letras. Escreveu
Logo em seguida, ela estava nas seu livro com a finalidade de retratar a

colunas sociais, em festas e badalagées. miséria imperante na favela."*

O que a fazia famosa, contudo, nZo eram seus versos € Pobre e sem poesia Carolina morreu. A morte, con-
sim sua denuncia. Afinal nado poderia ser diferente pois, tudo, nao roubou sua figura e os poemas que seguem.
segundo o mesmo texto, Quarto de despejo “chegou a ven- A antologia que ela propria preparou é um beijo de um
der 90 mil exemplares, traduzido em 13 idiomas e lido em passado brasileiro que nunca passou. Gracas a Deus.
mais de 40 paises”. A reportagem arrola a producao de Ainda que nio fosse pensando na poesia de Carolina,
Carolina considerando que, depois do primeiro sucesso, Claudia Neiva de Matos parece ter sintetizado tudo
escreveu Casa de alvenaria que, contudo, teve “trés mil dos sobre nosso popular, que, segundo ela,
10 mil exemplares encalhados” e que depois os Provérbios
de Carolina Maria de Jesus venderam menos ainda. Isto ficaria melhor albergada no terreno da
era tudo e nao cabia sua poesia em lugar nenhum”. antropologia, da sociologia, quem sabe

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MarIA DE JESUS

32 33
no da histbria das mentalidades. Ha 6 Carolina Maria de Jesus, dentre seus cadernos, deixou um
que
quem ache, na melhor das intengées, merece ser destacado: 0 que seria seu primeiro livre. E uma colecdo
que ela deveria recolher-se ao seu lugar: de poemas que depois foram outra vez selecionados por ela para
e que seu lugar é ld fora, ao ar livre, ao uma antologia. Juntamente com a edigéo dos poemas escolhidos por
sol e ao sereno, na boca do povo'?, Carolina, decidiu-se pela publicacdo do Prélogo escrito por ela.
Considera-se este texto como um dos mais importantes da producdo
“da autora. Trata-se da versto original de sua histéria onde dados
‘Tomara.
da vida pessoal, nunca antes registrados, séo arrolados. Este, por
exemplo, 0 caso da morte de uma filha sua.
Notas;
7 O mesmo texto, no original, foi reproduzido no livro Cinderela
1 Sobre 0 assunto leia-se Meihy, José Sebe Bom e Levine, Rober
t
M. negra. Revisto pela filha da autora, por volta de 1975, para even-
Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio
de tual publicagao, 0 texto apresenta-se com poucas alteragées.
Janeiro: Editora UFRJ, 1994. Também publicado nos Estados
Uni- 8 O fato de Carolina escrever no masculine deve ser examinado
dos, com o nome de Life and death of Carolina Maria de Jesus,
© a luz de uma prdtica que ela assumia enquanto alguém que re-
pela New Mexico University Press: Albuquerque, 1995.
petia os canones transmitidos por formas tradicionais de visdo de
2 Imediatamente seu livro foi traduzido para vdrias linguas e até
mundo,
hoje é 0 mais vendido dos textos brasileiros em paises como Estados
9 No total sto 37 cadernos, quase todos de "capa dura" — fato que
Unidos, Alemanha e Franca.
revela cuidado na procura dos mesmos. Sabe-se com certeza que
3 Marisa Lajolo explora a insergdo de Carolina Maria de Jesus, na
eram cadernos achados, pois alguns deles, além de pdginas arran-
nascente dos anos sessenta, entre "mulheres com caneta na
mao e cadas, ainda guardam vestigios de usos anteriores.
iddias na cabeca", em A leitora no quarto dos fundos. In Leitura:
10 Santos, Andrea Paula dos. A Arte ea pobreza: a obra de Caro-
teoria & pratica, Ano 14, jun/1995, n° 25, p. 10.
lina Maria de Jesus. In Mephisto. Sdéo Paulo: n°1, marlabr/mail
4 Carolina, depois de ter passado por surtos de sucesso, com 0 pouco
que guardou do dinheiro que conseguiu acumular, comprou um
1994, p.18-19,
11 Este poema, possivelmente, deve ter sido escrito em 1966, posto
sitto em Parelheiros e ld, de certa forma, procurou recriar, até
a que na ultima pagina deste caderno hd o inicio de ima carta escri-
morte em 1976, sua vida de lavradora.
ta para o animador de televiséo Silvio Santos, datando de 26 de
5 Wilson Martins publicou um artigo pesado acusando Carolina
janeiro daquele ano.
de ser produto da mio de Auddlio Dantas. O texto denominado
12 As definigées assumidas aqui derivam de Bernd, Zild. Poesia
Mistificagao literdria foi publicado no Jornal do Brasil em
23 de negra brasileira. Porto Alegre: AGE Editora, 1992, p.13.
outubro de 1993, p.4
13 Manteve-se a gramdtica conforme foi registrada pela autora.

eeme—erenccemonieecmerccene ANTOLOGIA PESSOAL ~rree—eeneemeeuinimeenenrecceremnna


CAROLINA Maria DE JESUS
34
35
14 Esta musica se aproxima em termos de tema do poema Rico e
pobre, mas nito se confundem.
15 Na capa do song book, Auddlio Dantas registrou que "Antes deseo, Ott tie raano- LE FOSS
da publicagéiio do livro — lembro-me bem — Carolina me falou de
uns sambas’ que escrevera em seus cadernos, mas confesso que nao
dei importancia. Um dia, li no barraco niimero 9 da Rua A, ouvi MARISA LAfOLO--+--+----+---
o José Carlos, a Vera Eunice e 0 Jodo José cantarolando ‘as misicas
que a mite inventou. Gostei, mas nada disse, de médo que Caroli- Se afeigoares aos versos inocentes
na ameacava (ela sempre desejou muita coisa) cantar no rddio". O Que deixo escritos aqui
E quiseres ofertar-me um presente ~~" ~
copyright das partituras é da Fermata do Brasil, Sao Paulo: 1961. Dd-me as rosas que pedi
Dela, igualmente, os direitos para Argentina, Chile, Uruguai e
Paraguai.
A s melhores questées sobre cultura popular sao as
16 Além desta muisica, os versos de Carolina guardam outra com-
que se debrucam sobre a ambigiiidade do adjeti-
posicdo sobre o tema, intitulada O ébrio.
17 TV Contigo, Ano XXIf, n° 389, 25/fev!83, p. 26.
vo popular. Quem é que ¢ ou precisa ser popular? O su-
18 Correio do Parand, Curitiba, 8/abr/1961, p. 5. jeito ou o objeto da cultura? Ou seja: é popular a cultu-
19 Matos, Cliudia Neiva. A poesia popular na Republica das ra feita para o povo? Ou a cultura feita pelo povo?
Letras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994, p. 15. O risco das duas formulagées é que via de regra o di-
to povo (quem? onde?) nio participa nem dos prolegé-
menos nem dos finalmente de tal definicado. Ao lado dis-
so, na tradicao brasileira dos estudos culturais, a qualifi-
cacao de popular atribuida a um artefato cultural acaba,
por diferentes raz6es, rebaixando o (pré)conceito do
que é cultura.
* Um tal rebaixamento torna-se ainda mais inevitavel,
quando a discussao se debruga sobre questdes de arte
popular.
Ai é que o ser ou ndo ser, tupy or not tupy torna-se,
realmente, a questao. Melhor dizendo, a questio.

ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
36
37
No caso deste livro que publica a poesia de Carolina nem de editores, nem de jornalistas. Desinteresse, alids,
Maria de Jesus, a dimensio polémica da expresso poe- em nada surpreendente. Até hoje, é muito dificil publi-
sia popular indica autoria e radicaliza vertiginosamente car poesia, sabidamente o menos rentdvel dos géneros
a discussao: trata-se de poemas escritos por alguém do liter4rios: versos vendem pouco, sobretudo quando se
povo. No caso, pela negra Carolina Maria de Jesus, mo- compara 0 retorno que patrocinam ao retorno espera-
radora ou ex-moradora da favela do Canindé, vende- do quando da publicacao de obras testemunhais, prin-
dora de papel usado e empurrada para a posicio de fe- cipalmente obras testemunhais que acenam com lucros
_.némeno das Letras a partir da publicacdo de seu best que podem engordar muito com o estardalhaco de
seller Quarto de despejo'. campanhas publicitarias bancadas pela midia.
Langado em 1960 com estrepitoso sucesso, o livro foi Assim, enquanto investimento, 0 Didrie de uma fe
imediatamente traduzido para diferentes linguas,? mas, velada (subtitulo do livro Quarto de despejo) era sob me-
nao obstante suas também intimeras reedig6es em por- dida: prometia e facultava 0 exercicio consentido do vo-
tugués, o sucesso da autora parece ter sido efémero: suas yeurismo impune por sobre cenas de pobreza explicita,
obras posteriores Casa de alvenaria (1961), Provérbios cenas estas sempre raras na literatura brasileira. Afinal,
(1963) e Pedagos da fome (1963), tiveram carreira bem _ favelas nao costumavam (e ainda nao costumam) prota-
menos expressiva e menos expressiva ainda é a acolhida, gonizar romances. Depois de O cortiga de Aluisio de
em 1986, da publicacio péstuma de Didrio de Bitita. Azevedo (1890), e de modo particular ao longo dos anos
Simultdnea ao silenciamento de sua obra, também a 50 e 60 deste nosso século, os sub-espagos urbanos pare-
figura esguia e desempenada de Carolina, melancolica- cem ter-se reservado para a miisica popular, na qual,
mente,-vai deixando as luzes da ribalta: volta esporadi- competentemente maquiados, recobriam sua degrada-
camente a catar papel pelas ruas de Sao Paulo e morre ¢40 com promessas de felicidade conquistada por con-
em 1977, esquecida por todos, num sitio em Parelhei- tigiiidade e vizinhanga: afinal, como aprendemos com
ros, tinica propriedade que lhe ficou de sua meteérica a Ave Maria de Herivelton Martins, favela do morro
escalada no mundo das letras. “tem alvorada e tem passarada” e, sobretudo, ja fica
Dizem os que conviveram com Carolina que um de “pertinho do céu’... .
seus grandes desejos era ver editados seus poemas, que, E, assim, esta favela de cartao postal que a favela paulista
no entanto, jamais atrafram a atengao de ninguém, de Carolina desmonta e, ao desmontar, promete vender

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


38 39
bem, o que efetivamente acontece. Mas as tiragens de suas pleto despreparo de Carolina para mover-se por entre
obras, mesmo sendo espetaculares para os anos sessenta, as astticias de um sistema cultural complexo, semi-ca-
em nada contribuem. para mudar significativamente a pitalista ¢ semi-profissionalizado. Indefesa face As con-
qualidade de vida da escritora. Carta inédita de Carolina tradicdes de um tal sistema, Carolina morreu pobre,
parece sinalizar o que.deve-tersido seu despreparo na uma vez que, como se viu, seus livros sequer represen-
necessdria e até hoje assimétrica discuss4o entre o produtor taram o capital cultural necessdrio para a tao sonhada pu-
do texto (o autor) e 0 produtor do livro (0 editor). blicagao de seus versos. O que dizer, entao, de sua obra
encarada como investimento capaz de promover a tao
Ela escreve a um editor: _sonhada ascensio social...
Assim, esta edicao de seus poemas pela Editora UFRJ
Ha tempos que venho the escrevendo
é uma espécie de reparacio. Se reparagdo nao refaz
para o senhor fazer outra tiragem do
histéria, nem desfaz malfeitos, a chancela universitaria
Quarto de despejo. E 0 senbor nunca
que avaliza a publicacdo redime um pouco a velha
respondeu-me, sé ia fazer ou desistir.
tendéncia de nossa academia ao descuido, geralimente
Varias pessoas me pediam para lhe
desatenta quando o assunto ultrapassa o espelho ¢ vai
escrever: Eu dizia: ]é escrevi, mas, éles
além do préprio umbigo.
nao me atende. Quando completa 10
Por isso, a publicacdo pdéstuma desta Carolina poeta
anos termina o contrato. Quando
precisa também construir um sentido mais politico
completou os 10 anos, eu esperava que
para o mal-estar que nos acomete a todos, quando per-
a livraria me devolvia os direitos. Mas
cebemos que, no circulo oficial de nossa literatura, ca-_
voces ficaram omissos: pensei: quem
bem sé uns poucos, geralmente brancos, muito freqiien-
sabe éles vito fazer outra tiragem. E os
temente homens e necessariamente navegantes caleja-
tempos foram passando. Agéra que a
dos das érbitas scriptocéntricas da literatura... O senti-
Edibolso, quer editar o livro eu cedi os
do politico que precisa ser construido, ent&o, consiste
direitos para éles.”
em desentranhar os mecanismos, tanto de produgio
Tao grande quanto sua inabilidade para lidar com quanto de denegagéio de sentidos a esta obta tao gauche
certas cedilhas e outras tantas concordancias é o com- em nossas letras.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS meme ee

40 4}
Assim, ao lado de qualquer outro significado que este
estéticas, teorias e criticas literdrias, é vestir a carapuga
livro possa vir a ter, sua publicaczo representa um comego.
que a autora pode a disposi¢ao de seus leitores quando,
Poemas como os-de Carolina sao rarissimos na tradi-
irénica, registra a divisio de trabalho instaurada na
¢ao brasileira letrada e podein, por isso mesmo, aden-
republica das letras brancas e cultas. Reptiblica solidi-
sar e dar um notte a esforcos contempordneos da escri-
ficada com a argamassa fornecida pela critica, pela teo-
ta de uma outra histéria da cultura brasileira. Nao a
escrita ingénua de uma outra histéria que retifique ou
que substitua a Aistéria em circulagae. As histérias,_
Eu disse: 0 meu sonho é escrever!
como as estrelas do céu e os graos de areia, sao sempre
Responde 0 branco: ela é louca.
— € precisam ser cada vez mais — multidio.
O que as negras devem fazer...
O que se queré uma outa histéria que, convivendo
E ir pro tanque lavar roupa.
dialeticamente com muitas umas, particularmente com
a endossada pelas instituigées oficiais da cultura, the
Uma certa incapacidade pratica (porque técnica) de
ponha nuancas. Pois sé assim, talvez, o tecido resul-
Carolina vencer (n)este mundo que lhe reservava o
tante destas varias histérias evite a submersao, na bran-
papel de lavadeira ¢ inevitavel: afinal em poesia, como
quidade — e em todas suas aderéncias sécio-culturais =
de resto na literatura que se pensa com letra maitis-
do cardter mestico e heterogéneo de uma cultura como
cula, ao contrario do que se pode pensar, nZo se admite
a brasileira‘.
ignorancia das normas gramaticais. Melhor dizendo, sé
Precisamos de uma histéria cultural que se construa
se admite a infragao, e a infracdo precisa ser voluntaria.
a partir de categorias analiticas mais flexiveis. Catego-
Ou seja: nao se pode ignorar a gramatica, embora se
tias, por exemplo, que inscrevam a polifonia constituin-
possa infringi-la. Tolera-se a infragao, mas nao o desco-
te de nossa cultura na linguagem de que carecemos pa-
nhecimento do que se infringe.
ra um didlogo mais fecundo com as culturas irmas da
No entanto, os trope¢os gramaticais de Carolina nao
América eda Africa, como nds, as voltas com uma es-
embotam a agudeza com que ela intui a complexidade
quizofrenia de origem.
dos meandros do mundo no qual crases e contratos pa-
Negar estatuto de poesia a estes textos de Carolina,
recem integrar uma mesma esfera social. Tais tropegos
nao obstante as sobejas razdes que para isso fornegam
também nao obscurecem a intui¢gao correta de que é

ANTOLOGIA PEssoAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
42 43
Ela conta:
necessdrio arregimentar aliados para a travessia da fron-
teira € conquista da cidadania no mundo das con-
... tive um encontro com uns jovens
cordancias e das crases, onde fica — sorry, periferia — 0
que me visitavam quando eu residia
territério da poesia...
na favela. Eles eram estudantes e me
Em outra carta, anotagGes igualmente rapidas sao su-
davam livros, e cadernos. Agora éles
ficientes para marcar a consciéncia de Carolina de que
séo editores, vieram procurar uns
o mundo das letras nem paira nas nuvens, nem se mo-
contos-para publicar. Eles véo fazer
ve a inspiracao. E, em vez disso, um mundo histérico,
umas reportagens sé com os escritores
no qual a produgao é intermediada por diferentes ele-
negros eu dei uns contos para éles ler.
mentos. Neste mundo letrado, como sucede com a
mercadoria, os setores produtivos sao sensiveis a diferen-
Ao que tudo indica, Carolina nao se dé conta de que
tes demandas, expandem-se em busca de diferentes pro-

es
no se reside na favela: na favela, no maximo, mord-se.
dutos, a partir dos quais atingem diferentes mercados.
Mas, se ela nao tem luxos sem4nticos, ela sabe muito
Trata-se, em resumo, de um mundo plantado num
bem que precisa de outras semAanticas, eventualmente
construidas por outras vozes, que falem por ela. E assim
diferentes convengoes e¢ leis que regulam suas praticas:
que entra no horizonte de suas relagées com o capital
da métrica aos direitos autorais, dos requisitos da boa
liceratura as cldusulas contratuais que regulam a venda
cultural, a hoje corriqueira e profissionalizada figura
do agente, porta-voz do escriba:
de terras, tudo est4 menos ou mais previsto.
Dentre os personagens que marcam os compassos
... 6@ eu decidir escrever, quero que o
pelos quais gira a ciranda da producao neste mundo
senhor se interessa (2) por mim.
das letras, os mais emblematicos sao talvez os editores.
O senhor falard por mim. Eu quero ficar
Por forga de sua posig4o no circuito, estes represen-
semi-afonica, com éstes homens. E se
tantes do capital transformam a matéria prima, 0 ori-
arranjar dinheiro para pagd-lo.
ginal, em produto: o livre. E sio extremamente ageis,
e assim, poderei dizer: que eu tenho um,
versateis e atilados os editores. E Carolina sabe que
advogado.
interage com eles em situagao de inferioridade.
CAROLINA MakRIA DE JESUS
ANTOLOGIA PESSOAL
45
44
O intermedidrio, como bem compreende Carolina, é
‘Tragos que n4o tornam sua literatura menos literdria.
pega essencial, sobretudo no seu caso. O pedido de que
Nem menos conservadora e problemdtica...
o destinatario se interesse por ela é uma traducdo, para a
Numa primeira observagdo, vemos que seus versos se
esfera da produgao cultural, dos ambiguos pactos de tecem do cotidiano. Um cotidiano ora pungentemente
compadrio e protegdo que garantem, na imobilida- lirico, ora miudamente realista, certas vezes estereoti-
---de.social produzida pela politica brasileira, alguns be- pado, outras tantas descorocoado:
neficios de outra maneira inatingiveis. Como Carolina
declara, de forma imprépria, mas compreensivel, ela
Porque vive abandonada
exerce-seu direito de manter-se afénica nas negociacées E amargurada
de sua obra, ao delegar ao agente literdrio a intermedia- Sentindo no peito a dér
g40 para a qual se sente despreparada, tornando-se o Eu quero alguem que me embala
intermedidrio, com isso, mais do que mediador, uma E fala
espécie de tutor. Coisas bonitas do amor.
O ambiente sécio-cultural que contextualiza a obra
de Carolina, tal como a autora o delineia em sua cor- Brasil querido e amado
Por nossos antepassados
respondéncia, parece justificar as desconfiancas da poe-~
Gonzaga, Caixias, Herval
ta quanto 4 falta de transparéncia de suas regras, em
Vultos que honraram a nossa gente
nome das quais, inclusive, nao foram poucas as vozes
Combateram heroicamente
que se ergueram para duvidar que Carolina tivesse, efe- Pela gléria nacional.
tivamente, escrito o texto de Quarto de despejo, acusa- No céu nao hd preconceito
do de constituir uma fabificagao jornalistica. Ld néo pretere o pretos
Ledo engano. Nao ha orgulho nem vaidade
Se nao houvesse outros e itrefutdveis argumentos em Reino que para ld chegar
defesa de Carolina, estes poemas, personalissimos, amar- E necessdrio praticar:
rariam a autoria 4 pessoa de Carolina, que se identifica A caridade

sem sombra de diivida pela feminilidade, pela negri-


Como é sacrificada
tude, pela pobreza e pelo desatavio intelectual’.
A vida do trabalhador:

ANTOLOGIA PESSOAL —eeeeeereneeencomteintomeeeeentanen


CAROLINA MarIA DE JESUS
46
47
O saldrio sobe de escada Metdforas como “inquilina do meu coragao”, “beijos
Os precos de elevador por sinal”, cartografam uma transferéncia de registros que
tornam estranhos os sentidos corriqueiros de inguilinae
Choro: néio sei 0.que fago
de sinal. O procedimento prossegue no emprego siste-
Que luta! Que afligéo!
matico do jargao econdmico que, invadindo 0 poema,
Tenho um homem nas.hragos.........
o contagia de linguagem jornalistica, como a referéncia
E outro no meu coracgiio
metrificada, porém prosaica, a0 governante que “nao dei-
O mundo inteiro xou o dinheiro desvalorizar-se” (p.30).
Pensa em algo qualquer Em outros momentos, os poemas de Carolina se for-
Ha quem pensa no dinheiro matam como histérias. Narracdes linearmente simples
Hé quem pensa na mulher de encontros e desencontros que ancoram a aventura
humana ou a metafisica do encontro e do desencontro
Como se vé, comparecem a seus versos nao apenas o no lastro concreto do que aconteceu em tal espago, em tal
lirismo dos amores nao correspondidos, a queixa do ho- tempo a tal ou qual pessoa:
mem e da mulher desamados e o lamento dos bracos de-
sencontrados do coragao... Neles ha também espaco para
a decifracgio do sentido da vida, da aventura do ser hu- Era ewe a cabrocha

mano sobre a terra, aventura esta muitas vezes transcrita A querida Maria Rita

em esteredtipos e clichés e cifrada no cotidiano amargo Do sertéo a mais bonita.

dos pobres, onde, contra a plenitude fisica e metafisica, Nossa casinha


Eva muito bonitinha '
conspiram a falta de dinheiro, a priséo, a embriaguez, a
violéncia, as relagdes sociais degradadas ¢ a morte.
Tudo, como deveria mesmo ser, em metros menores, —
Nesta poesia, a transferéncia de imagens de um uni-
verso para outro ganha inesperados efeitos de sentido. rimas pobres, estrofacao irregular e um senso de musi-
No campo das metdforas amorosas, por exemplo, é mui- calidade que obriga, as vezes, a poeta a re-escrever-se.
to forte a presenga da vida cotidiana, no que esta ma- Carolina re-escreve-se porque, como qualquer poeta,
nifesta dos acertos e desacertos da ordem econémica. penetra surdamente no reino das palavras, ¢ 14 trabalha

CAROLINA MARIA DE JESUS


ANTOLOGIA PESSOAL

48 49
€ teima e lima e sofre e sua. Carolina é artesa: diferentes
riorizados na aprendizagem empirica de poesia que
versdes de um mesmo texto apontam isso. Uma primei-
Carolina relata em diferentes passagens de Minha vida’.
fa verso, rasurada no original, é substicuida por uma
Ela conta:
segunda, redigida na margem da folha e que se supode
seja considerada pela autora poeticamente mais satisfa-
Procurei numa livraria um livro de
téria, uma vez que apaga uma repeticao desnecessaria e
poeta, porque o senhor que estava
hamoniza a musicalidade, como se pode conferir :
no dnibus disse que o poeta escreve
livros, pedi:
1) Vejam, tenho os cabelos grisalhos — Eu quero um livro de poeta.
Sé passei tantos trabalhos O livreiro deu-me, de Casimiro
Meu Deus, que fatalidade de Abreu.
Perdi a minha unica habitacéo E assim fiquei sabendo o que era ser
Perdi a minha tinica habitacao! poetisa. Cheguei em casa com o
Desliguei-me da sociedade espirito mais tranqiiilo. Fiquei
Vim residir neste porio sabendo que as palavras cadenciadas
eram as rimas. Pensei: Eu nao devo
2) Vejam, tenho os cabelos grisalhos dizer para as vizinhas que sou
Jé passei tantos trabatlhos. poetisa. Elas nao sabem o que é isto
Meu Deus que fatalidade e nao vao crer. E eu, nao quero ser

Perdi minha habitagao ridicularizada. No fundo do meu


Vim residir num pordo coragado eu agradecgo ao saudoso e
Longe da sociedade ilustre Sr. Vili Aureli, por dizer-me
que sou poetisa, porque, com dois
anos de grupo escolar eu nao ia perceber.
Mas, nao obstante o artesanato, com muita freqiién-
cia, a intui¢ao ritmica de Carolina naufraga em pressu-
Mesmo que se leia o depoimento com um leve sen-
postos poéticos rigidos e académicos, com certeza inte-
tido de desconfianga — nao seria blague de Carolina? —,

ANTOLOGIA PESSOAL -eeeenenenererneceennninnenrene


CAROLINA MARIA DE JESUS
50
51
o caso é que este Casimiro de Abreu parece té-la mar- dos anos vinte estava farta do lirismo que ia averiguar
cado com a forca das primeiras leituras. Como acon- no diciondrio o cunho verndculo de um vocdbulo. E, co-
tece com todos os poetas, o poeta de formagio ressurge mo nio tinha sido informada, Carolina ia ao diciona-
re-escrito na escrita de Carolina:
rio apesar dos tropecos e do peso do cartapacio. E o
resultado s40 os poemas salpicados de lantejoulas do
Oh! Meu Deus quantas saudades quilate de abscondado, desidias, estentédreo, recluida,
Da minha infancia ridente
cafua, infausto, cilicios, ésculos, agro, olvida-me, érebo, €
similares ourivesarias falsas, que dao a seu livro um in-
Quando a aurora despontava desejado tom de pastiche involuntario.
Eu rodava o meu piéio ... E que, por:ser involuntdrio, nao conta ponto.
Aos meus colegas eu contava Mas também — e isto é mais grave — ninguém contou
Estérias de assombracdo. a Carolina que a poesia que se queria Poesia tinha
rompido com o Lirismo-bem-comportado-com-livro-de-
Ressurgem também memérias de romances, histérias ponto-expediente-protocolo-e-manifestagoes-de-apreco-ao-
de cordel, como o poema que narra que senbor-diretor. E, porque ninguém lhe tinha contado,.
Carolina nao podia saber. E, porque nao sabia, perpe-
Ela pousou o olhar no chiio trou borbotées de tais raquiticos espécimens Ifricos.
Nao sei se foi emogao Alids, segundo seu depoimento, ela inaugurou-se em
E comegou a chorar: poesia versificando manifestagdes de aprego, conforme
Meu pai aprecia um nobre ela mesma narra:
E disse-me que tu & pobre
E néo nos deixa casar O primeiro verso que eu fiz foi
dedicado a uma freira. ‘Quando eu
Os modelos sao equivocados? O caso é que ninguém trabalhava na Santa Casa de Franca.
teve a fineza de informar a Carolina que a poesia bra- Eram seis irmds que tratavam os
sileira (maiusculizar a expressdo e falar da Poesia Brasi- doentes admiravelmente. Elas faziam o
leira talvez seja mais adequado...) desde os arredores retiro de duas a duas. Quando viajou

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


52- 53
para Sao Paulo, freira por quem eu que ja freqiientava 4lbuns de poesia de sinhazinhas do ©
tinha profunda admiragao, eu nito século passado.
podia deixar meus afazeres para i Em outro diapaséo, mas aparentemente com seme-
despedir-me dela, peguei um lapis e lhante expectativa de retorno do investimento, alguns
um papel para lhe escrever qualquer poemas deste livro como Dr. Ademar de Barros,
coisinha amdvel: Washington Luiz, Gerilio Vargas e Kennedy represen-
“Nas minhas ovagoes peco a Jesus com tam outra vertente da tradicdo poética ocidental: a verten-
muita fé para ter breve regresso: a irma te dulica. Esta hoje tao condenada poesia-manifestacao-
Maria José de-apreco-ao-senhor-diretor remonta — para dar genea-
Escrevi apressadamente, porque estava logia classica a Carolina — talvez 4 corte de Augusto
fritando uns bifes para os doentes do onde, 4 volta de Mecenas, os poetas encontravam, na
pavilhao. A mensageira voltou poesia que fazia o elogio do projeto politico em curso,
sorrindo: o prego da sobrevivéncia, e de onde nos veio a hoje me-
“Bonito verso Carolina.” tafora mecenato.
A irmd gostou e agradece a sua Garantindo a sobrevivéncia — e se possivel sobrevivén-
amabilidade cia digna — do poeta, o mecenato nao podia estar longe
Verso: repeti mentalmente dos horizontes de Carolina, sempre as voltas com um
Verso: 0 que serd isto? orgamento minguado, cujas pontas nao emendavam.
Sorri; 0 meu objetivo era agradar Se a Carolina autora de Quarto de despejo brandia seu
airma.’ didtio como forma de intimidar seus desafetos,® seus |
versos correspondiam a uma outra estratégia: empu-
Assim, ao lado de ser a poesia de Carolina com fre- nhada no ritual da lisonja, a poesia era forma de inve-
qiiéncia entretecida a clichés advindos de diferentes stir na sobrevivéncia, ganhando esta ultima palavra o
formagées discursivas ¢ j4 presentes desde os titulos de sentido literal que, na vida de pobres como Carolina e
algumas poesias (Noivas de maio, Prece de mae, Remi- seus filhos, comporta a expressa0 sobrevivéncia.
nicéncias, Inspiragao, Remorso, A vida), seus Versos Da retérica agenciada para tornar sua poesia moeda
também exemplificam uma tradi¢ao lirica requentada de negociacao, fazem parte clichés e esteredtipos que

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


54 55
rotulam diferencas sociais. O elenco dos titulos de al- Nao tem valor o seu depoimento

guns poemas ja indicam o recorte sécio-econdmico No poder judicidrio

TP aEk.
que Carolina opera na sociedade em que vive e da qual Sua existéncia é abjeta
fala: Stiplica do encarcerado, O marginal, Stiplica do E 0 seu vicio lhe acarreta
mendigo, O prisioneiro e Rico e pobre sao titulos que, A cruz do seu caluario
na carga de esteredtipos que carregam, desistorizam a
questao social e empurram, para figuragGes secundarias
™ pouco convincentes, as personagens a que aludem, trans- O ébrio é péssimo vizinho
formando-se em meros figurantes os pobres e mis- Pois néo trata com carinho
erdveis que 0 texto menciona. Os que estiio a seu redor
Curiosamente, no entanto, o esgarcamento histdérico
mencionado contrasta, por outro lado, com as cores A poesia de Carolina é também marcante pela posicao
fortes de um espetaculo, ao qual nunca faltam tracos conservadora da visio de mundo que expressa. Conser-
da materialidade de um saber sé de experiéncias feito: vadorismo no qual também reside marca muito forte
de sua identidade textual: uma identidade textual selada
C2) pela infragZo involuntdria da lingua culta, e igualmente
resta-me apenas a saudade vincada por uma perspectiva ideoldgica ora inspirada
Da minha filha: minha boneca numa viva percepcio das diferengas sociais, ora filtrada
Morreu na maternidade pela expressao de tais diferengas através de palavras de
Na rua frei Caneca ordem da classe dominante.
E, se isso pode comprometer sua poesia, talvez, de
Ela morreu eu me lembro
novo, nao pudesse ser de outra maneira.
Dia 29 de setembro
‘Os poemas em que Carolina tematiza 0 papel da
A mae nunca esquece
mulher na sociedade s4o exemplares da ambigiiida-
O filbo que Jenece
de de seus pontos de vista que assumem, simultanea ou
O.ébrio é um inciente sucessivamente, posig6es conflitantes. Muitas vezes, seus
E aborrece diariamente versos superp6em, ao registro doloroso ¢ expressivo da

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS

56 57
marginalidade social da mulher, a adesio a valores O resultado nao poderia ser outro.
machistas da ideologia familista. Da mesma forma co- E se a oscilag4o entre registros de linguagem e opcées
mo ja se viu relativamente ao processo pelo qual as politicas faz sua poesia e sua milit4ncia soarem em falso
relag6es sociais que a poeta encena em sua poesia sao — sorry, leitores! —, hdo que se criar os olhos de ler uma
imobilizadas em dicotomias e estereétipos — governan- poesia como esta, que da ortografia e sintaxe 4 mi-
tes-governados; homem-mulher; embriaguez; nogao litancia e ao feminismo aponta para uma cidadania
de familia; responsabilidade adulta; valor do estudo —, dilacerada em todos os territérios, em todos eles insu-
sucedem-se, assim, ‘crengas absolutas e sem fraturas nos ficiente para levar a cabo um projeto canénico de pro-
valores sociais dominantes, posto que deles Carolina dugio literdria.
seja despossuida. Outro pedagio alto do universo letrado, para quem,
Alias, o testemunho maior da autoria dos escritos de de novo, sé teve acesso as franjas dele.
Carolina consiste, exatamente, na fartura de clichés em Estes poemas de Carolina constituem, assim, uma
que seu texto € prédigo, bem como na incompatibi- poesia forte, cheia de sotaques e extremamente opor-
lidade muitua de alguns deles. Clichés de forma e de tuna por textualizarem uma cultura que quase nunca
contetido. De modos de pensar e de modos de poetar. chega ao livro impresso, mas que, quando chega, co-
Todos poética e politicamente incorretissimos... mo chegou esta de Carolina, assinala, em sua violén-
Mas, como a poética de Carolina poderia nao ser de cia infratora, a excluséo dos pactos e protocolos da
extra¢ao parnasiana e de feicio conservadora? Como cultura, dos cidadaos e cidadas também excluidos do
fugir a uma poética na qual as palavras raras e as inver- mundo econémico.
sOes para preservar a rima sao consideradas senha de Por isso quarto de despejo. Mais do que uma poesia do,
ingresso no universo letrado? Como poderia nio aderir quarto de despejo, trata-se agora de um quarto de despe-
aos valores dominantes, que, alids, sio chamados de Jo da poesia, que patrocina a seus leitores um percurso
dominantes exatamente porque invadem coragGes e doloroso pelo territério das letras. Doloroso, posto que
mentes? Como escapar da incorrecao poética e politica necess4rio. Na paisagem dos caminhos, as letras bra-
quem sé teve acesso — quando teve — 4s Jranjas desses sileiras representam-se tal como sao vistas do quarto
universos, que se mostram pelo que ndo sao, mas que dos fundos e¢ esta representacao delas — este seu modo
talvez acabem sendo 0 que apregoam nao ser? de ser — nos apresenta 0 desafio maior de desenvolver

ANTOLOGIA PEssoaL CAROLINA MaRIA DE JESUS


58 59
NOTAS:
os olhos e ouvidos necessdrios para aprender com esta 1 Conferir um instigante e complexo estudo de diferentes aspectos
mulher negra e pobre que nos idos dos anos sessenta do caso Carolina Maria de Jesus em Meihy, José Carlos Sebe Bom
queria arrombar a literatura e, arrombando-a, transfor- e Levine, Robert M. Cinderela Negra: a saga ‘de Carolina Maria
mé-la em degrau de acesso a niveis sociais superiores. de Jesus. Rio de Janeiro: Editova UFRJ, 1994.
O projeto de ascensao era claramente equivocado, jd se vé. 2 Além de.mencionarem uma tradugdo japonesa e outra russa,

Mas 0 equivoco se dava nao porque a literatura nao Bom Meihy e Levine registram uma traducdo italiana (Quarto.
Milano: Valentino Bompiani, 1962 {prefécio de Alberto Mord-
possa servit de pedestal para ascensio social, pois que
via]), uma cubana (La favela: casa de desahogo. Havana: Casa
ela jA serviu e continua servindo para isso, em muitos
de las Américas, 1965), uma francesa (Le dépotoir. Paris: Ed.
casos. Mas equivocado porque, enquanto alavanca AM. Meétaillié, 1982) e a bem vendidissima edigdéo norte-ameri-
social, a literatura cobra um prego alto dos aspirantes a cana Child of the dark: the diary of Carolina Maria de Jesus. Sr
sécios de seu clube exclusivo... Prego talvez alto demais Clair, David, trad. N. Y.: Mentor Books, 1962.
para uma mulher negra e pobre que recusava sempre os 3 of, Literatura e histéria da literatura: senhoras muito intrigantes
scripts que lhe reservava a sociedade branca culta. Nao de M Lajolo apud Leticia, Mallard [et al.}. Histéria da literatu-
compreendendo o cambio em que o pagamento do in- ra: ensaios Campinas. Séo Paulo: Editora da Unicamp, 1994,
gresso deveria ser feito, nao € de estranhar que Caroli- p.19-36.
4 of Trabatho, pobreza e trabalho intelectual — O Quarto de des-
na tenha acabado condenada 4 pobreza e 4 solidao.
pejo de Carolina Maria de Jesus, de Carlos Vogt, apud. Schwarz,
E foi exatamente na pobreza e solidao que Carolina
Roberto (org). Os pobres na literatura brasileira. Brasiliense, Sao
teceu a licdo que deixa.
Paulo: 1983, p. 204-213.
Tendo morrido pobre e sozinha, a gaveta que deixou 5 of Martins, Wilson. Mistificacao literdria. Jornal do Brasil. Rio
atulhada de escritos como estes poemas e crénicas de Janeiro: 23/out! 1993. Idéias e Livros.
pode ser um ajuste de contas. Péstumo, porém legiti- 6 cf Meihy, José Carlos Sebe Bom e Levine, Robert M.. op. cit.
mo, pois com certeza abre caminho para outras.contas p. 172-189.
e outros contos, de muitas e muitas outras Carolinas. 7 cf Meihy, José Carlos Sebe Bom e Levine, Robert M.. °P: cit.
p- 186.
_ 8 ef M. Lajolo. A leitora do quarto dos fundos. In Leivura: teoria
" e pratica. Ano 14. n° 25 Jun/1995, p. 10-18.

CAROLINA MARIA DE JESUS


erence ANTOLOGIA PESSOAL
61
60
ARMANDO FREITAS FILHO

A cho que Carolina Maria de Jesus teria apreciado


que um colega de oficio se debrugasse sobre sua
obra poética — como revisor improvisado — a fim de, na
maioria das vezes, por em ordem a acentuacio e corri-
git, aqui ¢ ali, a ortografia e algumas impropriedades
grtamaticais, salvo aquelas que demandariam interferén-
cia demasiada no texto.

ORS Trea a
Afinal, o que ela desejava era escrever limpo e certo,

Si
dentro da tradigao da lingua, sem nenhuma marca ino-
vadora ou caracteristica.
Mais do que um documento, sua poesia é um
tocante testemunho de quem viveu entre o quarto de
despejo, a casa de alvenaria e a rua anénima. Mais
ainda: a poesia que se vai ler neste livro é a prova viva
de uma vida que nao se deixou apagar pela solidao ¢
venceu O esquecimento a que estava destinada.

CAROLINA MARIA DE JESUS


63
Dy Ademar de Warros:

Teve valor imenso


O ilustre Dr. Ademar
Foi um politico de senso
E soube governar.
Ademar e D.Leonor
Duas almas santas
Tém imenso valor.
E ninguém lhes suplanta
Ademar foi politico potente
Gostava de realizacgao
Deveria ser o presidente
Desta grande nagio.
Ja foi nosso interventor
Deputado e bom prefeito
Foi também nosso governador
Pelo povo foi eleito
Teve muita tenacidade
Nas polémicas, que sao um lodo.
Deu provas de capacidade
Vencendo as lutas, com denodo
Ademar soube conduzir
Nasceu para governar.

CAROLINA MARIA DE JESUS


65
Os que procuravam lhe regredir
Foi visando lhe ofuscar.
Miéie é SCYE INE
Ademar politico ilibado
Se eu tivesse a minha mae
Nao foi indolente nio foi pueril
Oh que grande felicidade
Nao foi ele quem foi derrotado
Foi a unica mulher
Foi o povo. Foi o Brasil.
Que me amou com sinceridade
Ademar politico habilidoso
Nas suas oragdes.
Fez o bem, sem opgio.
Incluia~-me no pensamento
Deveria ser.o vitorioso
Para Deus cortar-me as afligdes
Para dar impulso 4 nacdo
E livrar-me dos sofrimentos.
Ademar, politico visiondrio
Quando eu adoecia
Com ele Sao Paulo progrediu.

Prey
Era imenso o seu estertor
Se fez bonito no quarto centendrio
O olhar que me dirigia

Wain
Foi com as obras que ele construiu
Revelava o seu amor.
A unica coisa que eu noto:
Ademar foi correto e gentil
Mas, um dia ela sucumbiu
E lhe acompanhei com o meu voto Quem morre n4o volta mais
Mas n4o pude vé-lo presidente Depois que ela partiu...
[do Brasil Notet: '
Que falta a mZe nos faz

Mamie foi o meu relicdrio


O que me ensinou ainda lembro
O dia do seu aniversdrio
Vinte e cinco de dezembro.

ANTOLOGIA PESSOAL ommmenemeeeeneeeeenrrcn| CAROLINA MARIA DE JESUS


66 67
Mew brasil Que fulgor maravilhoso
— Bela a nossa terra
Meu Brasil proeminente
Que imensa grandeza encerra
Idolo da nossa gente
O brasileiro é venturoso.
Pais belo e altaneiro
Tudo em ti pode clisar
Esta ¢ a patria de civismo
Tenho orgulho em declarar
Tolhemos o cataclismo
— Sou brasileiro.
Trabalho € o nosso roteiro
Devemos enaltecer
Esta é a patria do amor
Amar e defender
Desconhecemos a dor,
O pavilhido brasileiro.
A truculéncia, ambigao.
Os teus filhos te veneram
E nobremente cooperam
Na grandeza da nacio.

Brasil querido e amado


Por nossos antepassados
Gonzaga, Caxias e Herval
Vultos que honraram a nossa gente
Combateram heroicamente
Pela gléria nacional.

Estas estrelas brilhantes


Que habitam o céu 14 distante

ANTOLOGIA PESSOAL
68 CAROLINA MARIA DE JESUS
69
Soobinngs Ao vé-la sabe, pensei
Quero premi-la nos meus bracgos
Meu anjo venha ao meu lado Vamos residir num lindo paco
Contempla as flores no prado somente teu eu serei.

Como € lindo o arrebol


Ouve-se a ave cantar Beijo quase tao doce ¢ puro
Tao fagueira pelo ares E 0 que os meus l4bios murmuram
Aquecendo-se ao sol. Quando estou perto de ti.
Es como a flor que vegeta
Se eu fosse um passarinho Que é a musa de um poeta
Arquitetava 0 nosso ninho Sou feliz, desde que a vi.
No topo de um carvalho.
Adornava-o com brilhantes Contemplo-a, és bela e fagueira
Estas jéias cintilantes Tens um qué de brasileira
As puras gotas d’orvalho. Genuina do meu sertio,
Ao vé-la nem mesmo eu sei
Se nos meus bracos eu a embalasse Porque foi que te amei
E depois eu cantasse E The dei o meu coragao.
A tua cangao preferida
Percorreriamos as florestas Amar, eu sei nao é crime.
Dizia-lhe frases como estas E um sentimento sublime
Amo-a, és minha querida. E vocé é tao bonita!
Ao seu lado, vivo contente
Améa-la sempre foi o meu desejo Pretendo dar-lhe um presente
De acaricid-la e dar-lhe um beijo_ Um lindo lago de fita.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


- 70 71
O meu receio € perdé-la
Porque eu gosto de té-la
Liua-we-mel
Unida ao meu coracio.
: Reclinado na janela
Eu nasci para amé-la,
Tristonho pensando nela
Nao temas se eu beija-la
Olhos verdes. Linda cor.
Vocé é minha inspiracao.
| Dentro do peito eu sentia
. E o meu coracao que batia
O meu amor é ardente i -
Era o desejo do amor
Penso em vocé,5 constantemente
Vocé proporciona minha alegria
i. Eu sempre fui apressado
Vocé é musa. Vocé é lira
Pus-me a caminho a seu lado
Ea deusa que inspi .
que me inspira De vez em quando, um suspiro
A compor esta i
P poesia. Ela fitou-me sorriden
i te:
Se sou inconveniente
Com licenga me retiro

Ela fitou-me sorrindo


E disse-me: como és lindo!
Qual é 0 seu nome senhor
Sou uma pessoa sincera
Que.a ama ¢ a venera
Que por vocé morre de amor

Es linda como a primavera


Eu anseio e vivo a espera

ANTOLOGIA PESSOAL —cmewreeneunenneereenrersucennumnene Lanertnntinintininnn CAROLINA MARIA DE JESUS


72 2 73
Ao seu meigo e doce amor. Cada frase que eu dizia
O meu nome é Ismael Ele ao meu lado sorria
Vamos passat.a lua-de-mel E beijava a minha boca.
La em S40 Salvador. Na&o mais diz que sou bonita
Quando falo ele se irrita
Ha muito tempo que a vejo Ficaste feia... e louca.
E o meu tnico desejo
E beijar seus labios de mel. Agora no sei porqué
Mas eu hei de insistir Ele finge que nao me vé
Juro que hei de conseguir E esqueceu o juramentol...
O teu amor, Isabel. Tudo isto é obscuro
Ele dizia: juro!
E com toda a reveréncia Amo-a em todos os momentos.
A jovem sem experiéncia
Entregou-lhe 0 coragao Vivo em casa recluida
Um romance assim comega Sem alegria na vida
Amor, beijos e promessas Como haste que nao dé flor.
E depois a uniao. Outrora ele a mim dizia
Que sé a mim pertencia
H4 um més que estou casada E arrefeceu-se oO scu amor...

Vivo em casa desprezada


Serd... que 0 nosso amor morreu? E eu lhe tenho amizade
Quem sabe por onde andou, Com toda a sinceridade
Outra mulher encontrou Com profunda dedicagao
Mais bonita do que eu... Se este afeto arrefecer

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


74 75
; .
Que sera de meu viver?
Fenece o meu coracio.
Nesta campa jaz inerte
Amo-o com imenso ardor Querido filho, desperte
Com carinho e devogao Sois o meu amor infiniro
No mundo és meu unico amor -Para adornar esta lousa

E héspede do meu coracio. Do jazigo em que repousas


Estas flores deposito.

Sonhei que estavas ao meu lado


No meu peito reclinado
Contemplava o teu sorriso
Dizias-me meigamente
Mamiaezinha estou contente
E tao belo o paraiso...

Nao lamentes minha auséncia


Findou-se a minha existéncia
Sou tao feliz aqui no espaco
Deus sendo o meu bom amigo
Talvez foi justo comigo
Colhendo nos teus bragos.

Constrange-me a tua aflicao


Deixei-a na solidao

CAROLINA MarIA DE JESUS


L—nnnennnmnmenacimeentmmeremeereniem ANTOLOGIA PESSOAL cenemenmmmnttintientniemnncniel 77
76
Venho lenir a tua dor.
Deus!
Nao lamentes a minha partida
Porque espero-a querida
Deus nao seleciona
Ne seio do criador. |
O que Ihe emociona
E a virtude e a bondade.
A mie tristonha fitava
Se no céu queres entrar...
-E dos seus olhos jorravam
Deves ser bom, e amar
Lagrimas ao vé-lo defunto. A humanidade
Enviava a Deus uma prece
Dai-lhe o céu. Ele merece.
Deus nao aprecia o mal
Com o meu filho quero ir junto.
Da um prémio colossal
Aos que sabem lhe honrar
A mie desperta a bramir
Nao seja mau e arrogante
Com o filho quer seguir re ven Auxiliai o teu semelhante
Prendé-lo nos bracos teus.
Porque é pecado matar
Nesta aflig¢ao sucumbiu
E com o filho partiu
No céu nao ha preconceito
Para o reino de Deus.
L4 nao pretere o preto
Nao ha orgulho nem vaidade
Reino que para 14 chegar
E necessdrio praticar:
A caridade

Deus disse: paz na terra


Ao homem de boa vontade

omemenrreeinerescrntirecsenrmnemrrms ANTOLOGIA PESSOAL _eeeenmcenmnentnnmnatreennnnenmnmered


78 |
CaROLINA MARIA

79
DE JESUS
Nao pediu para fazer a guerra
Saudades: de uae
Que dizima a humanidade
A vida humana tem imenso valor
Oh! meu Deus quantas saudades
Para o bom Deus Nosso Senhor.
Da minha infancia ridente
Nao conhecia a degringolada |
Que atinge a vida da gente
Era crianga nao pensava
Que existia o sofrimento
Os brinquedos me fascinavam
A todos os momentos.

Quando a aurora despontava


Eu rodava o meu pio...
Aos meus colegas eu contava
Estérias de assombragao.

Hoje, é bem triste a minha vida


Porque nado vivo contente
Estou distante esquecida
Longe dos meus parentes.
Um dia deixei minha terra
Minha mie e 0 meu irmio.
Mas, nao sabia que era
Eterna separagao.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MaRiA DE JESUS


80 81
A desventura me perseguia
Ou o meu destino era fatal
Eu deixei ela um dia
Ea minha terra natal Nesta cela solit4rio
Todos nés temos saudades O'préso téim um rosdrio
De um lindo trecho de vida Vive em constante oracio.
Ou de uma velha amizade V6s, oh! Rei do Paraiso!
Ou de uma aventura perdida. Do vosso auxifio’ preciso
Tirai-me desta prisio.
Tenho saudades de alguém
Partiu, e nao mais voltou. Reconhego que pequei
Eu the queria tanto bem. V6s proibistes, eu sei.
Mamie! A morte levou. Mas, traiu-me a tentagio:
:
Chorei copiosamente Iniploro-te de maos postas ::
Quando a minha mie morreu Tirai-me o jugo das costas
Mamie: foi o melhor presente Dai-me a tua absolvigao.
Que Jesus Cristo me deu.
Disse outro dia o vigdrio
Temos todos um calv4rio
Quem sofre tem uma cruz.
Esta cela é tenebrosa
A liberdade é ditosa
Herdico, sé foi Jesus!

A vés levo o meu olhar


De miaos postas, a implorar
ANTOLOGIA PESSOAL ——ewnm
nereeee
82 CAROLINA MARIA DE JESUS -ommeenmmniineneneneecnmnnne
83
Sois a infinira bondade. Cert vat
Eu nesta cela sem lume
Sou tal qual uma ave implume Amor! Por am4-la vivo a sofrer
Em busca de liberdade. O meu amor é infindo como
[a eternidade
Cometemos os pecados Quando.amo_-nio sei esquecer:
Quando somos castigados E porque amo-a, de verdade.
Imploramos: remissao... O meu amor sempre diz:
Eu vos peco, oh! meu Jesus: Olvida-me, deixe-me em paz.
A liberdade é a luz Creio que assim serei feliz.
Tirai-me desta prisio. Confesso-lhe, nao a amo mais.

Vai, vai para sempre ele diz:


Deixe-me viver sozinho.
Eu com vocé nao posso ser feliz
Tu nao sabes me fazer carinho.
Estas frases deixam-me doente
Eu fico triste. Comeco a chorar.
Faco tudo para vé-lo contente
Ele diz vai, vai, para nao mais voltar.

Os que ouvem comegam a zombar..


Fazem criticas, nao compreendem.
Talvez porque nao sabem amar
Qu porque nada do-amor entendem.

CAROLINA MaRIA DE JESUS


| eeeniennenneimmamcnmems ANTOLOGIA PESSOAL
85
84
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4
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A minha filha morreu!
Vou citar-lhe o meu passado
~"Deixou-me s6, ¢ aflita,
Quando jovem fui notado
Peco, diga-me se és feliz Era alegre, de janeiro a janeiro
Ai no céu, onde habita. Eu cantava uma cang4o
Eu vi minha filha expirar E tocava violao
Quase morri de paixio Com os meus companheiros.
Este golpe veio abalar
Para sempre o meu coracao. Nés faziamos serenata
E a lua cor de prata
Minha filha era tao bela! Brilhava no firmamento
Quantas saudades deixou. Para a minha amada, eu cantava
Eu gostava tanto dela. A cangao que ela adorava
A morte intrusa a levou Nao me sai do pensamento.
Resta-me apenas a saudade
Da minha filha: minha boneca Uma luz 14 dentro acendia
Morreu na maternidade Era ela que me ouvia
Na rua Frei Caneca. Minha -voz lhe despertava.
Era profunda a emogio
Ela morreu eu me lembro Parece que o meu cora¢ao
Dentro do peito oscilava.
Dia 29 de setembro
A mie nunca esquece
Meu Deus! Que ansiedade
O filho que fenece.
Vé-la era a minha vontade

ANTOLOGIA PESSOAL ‘Srmteemittnn ecnientacnacrscmmseamend


CAROLINA MarIA DE JESUS
86
87
Para dizer-lhe, querida! Outro dia nos encontramos
Quero levd-la ao altar Por uns minutos nos fitamos
E se Deus nos auxiliar Com ardor e emogao.
Vai ser bela a nossa vida. No sorriso que ela deu,
Percebi que ainda é meu
Nos versos que eu cantava O seu terno coragio.
Meu afeto eu revelava.
E ela compreendia E um pecado desligar
Haveremos de nos unit. Dois entes que se amam
Se o seu pai consentir : Por mera futilidade.
Para mim, que alegria! E egoismo, é um crime
: Pois, nao h4 nada mais sublime
Ela pousou o olhar no chao Do que o amor e amizade.
Nao sei se foi emocao
E comecou a chorar: Se eu estivesse ao seu lado
Meu pai aprecia um nobre Nao viveria assim, magoado
E disse-me que tu és pobre E nao estaria sozinho.
E nao nos deixa casar. Envelheciamos contente
E quem sabe se atualmente
Suas palavras me feriu * ne
tpn eerie JA tinhamos um netinho.
E o meu coragio dividiu
E eu perdi todo o ideal Ela, vive no meu pensamento
Sen

Ela vive ao lado de um nobre Nao lhe olvido um s6 momento


Nao revolto por eu ser pobre Esteja eu onde estiver.
E nao lhe desejo mal. Enquanto o mundo existir
eee

a ANTOLOGIA PESSOAL =eemevenenmenneencenrenenacimemimmninl CAROLINA MARIA DE JESUS


88 : 89
O homem hd de amar e sentir
Afeto por uma mulher.
Soveta

Eu ando andrajoso assim Poeta, em que medita?


Por que vives tiisté assim?
Por nao té-la perto de mim.
E que eu a acho bonita
E ela o meu ideal!
Vivo, ao relento, sem abrigo E vocé nao gosta de mim.
*
Sem afeto e sem amigo
Sou um marginal. Poeta, tua alma é nobre
Es triste, 0 que o desgosta?
Amo-a. Mas sou tao pobre
E dos pobres ninguém gosta.

Poeta, fita o espaco


E deixa de meditar.
E que... eu quero um abraco
E vocé persiste em negar.

Poeta, estd triste eu vejo


Por que cisma tanto assim?
Queria apenas um beijo
Nao deu, nao gosta de mim.

Poeta!
aK - ee
Assim no original. Nao queixas suas aflicdes

ANTOLOGIA PESSOAL wemnneeenmneninnmnminnenenenmnnna


CAROLINA Marta DE JESUS
90
91
Aos que vivem em ricas vivendas
O cbhrio-
Nao lhe darao atencées
Softimentos, para eles, sao lendas.
O homem que bebe:
Nao tem valor na sociedade
Nao tem nenhuma utilidade
Amar um homem assim

- E ir nos bracos da infelicidade.

O homem que bebe:


N&o pensa na prosperidade
Nao tem nogao de responsabilidade
Amar um homem assim
S6 nos proporciona contrariedade.

O homem que bebe


Diz apenas futilidades
Nunca diz a verdade
Nao tem dignidade
E-digno de piedade.

Promete se regenerar
Mas n3o tem forca de vontade
E um escravo da bebida
E no prospera na vida.

Lennceenencrnsrecmrameeccmenniemmmam ANTOLOGIA PESSOAL ~smnmenenmmnmnncummattamett


eee CAROLINA MARIA DE JESUS s-eee--mrmmmnnenmemmaminnnenneinamind,
92 93
O homem que bebe: Nao tem valor o seu depoimento.
Quando esta bébedo, prevalece No poder judicidrio . .
Porque o dlcool embrutece Sua existéncia é abjeta
E transforma-o-em animal. E o seu vicio lhe acarreta
O ébrio nao tem valor A cruz do seu calvario.
No nticleo social.
Ele nao tem forga mental
Homem que bebe: Para afastar-se deste mal
Seus filhos nao vivem em paz E apenas forma de homem,
E vocé nao sabe o que faz Que enfraquece lentamente.
E pratica mds aces. Fica tuberculoso ou demente
Quantos crimes tem cometido Apenas bebe. E nao come.
Homem que por ter bebido
Finda a vida nas prisées. © €brio é péssimo vizinho
Pois nao trata com carinho
O homem que bebe: Os que estZo ao seu redor
Pela esposa é reprovado O ébrio é irracional
E o seu lar desmoronado E degrada. E um animal
Fica jogado na rua. E um homem inferior.
Se queres ser ditoso no viver,
O homem nio deve beber
Se és infeliz,a culpa é sua.

O ébrio é um insciente
E aborrece diariamente.

ANTOLOGIA PESSOAL mee


ere r CAROLINA
et MARIA DE JESUS wees
94 95
Deus ha de lhe proteger,
Prece
de mise
E os seus passos guid-los.
Do filho a mae é um escudo
O meu filho tem muito valor
Por ele, ela enfrenta tudo.
Diz a mie, cheia de vaidade!
Oh! Deus grande Senhor!
FE imenso o seu amor
Dai-lhe sempre protecio
E sincera sua amizade.
Que ele seja superior
Quando o filho esta doente A seducio. .
A mie nao dorme um segundo O meu filho ha de crescer
Sempre terna ¢ impaciente Herdico, bom, e inteligente.
E 0 seu receio é profundo. Deus ajude, que ha de ser
O seu afeto nao arrefece Uma boa semente.
Pensa no filho demasiadamente Que nio viole a retidao
E se algo lhe acontece Que faca o préximo feliz.
A mie est4 sempre presente. Que tenha um bom coragaio
O meu filho ha de ser um homem! E que ame o seu pais.
Ele havera de saber lutar Que faca o bem sem opgées
Quando alguém citar seu nome Os fracos, os humildes, ele proteja
Sera para o elogiar. Que pratique as boas agées:
O meu filho nao havera de esmorecer E assim seja.
Vai ser honesto e trabalhador.
Os empecilhos ha de vencer
Vai ser umi homem de valor.
A luta na vida nao vai the estarrecer
Hei de vé-lo prosperar-se

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS

96 97
O weliz Nao tenho alegria para viver.
Estou ciente que nao tenho sorte
Vejam, tenho os cabelos grisalhos Por isso, a Deus peco a morte
Ja passei tantos trabalhos Para findar o meu softer.
Que no posso enumeré-los
Vi o meu irm4o enlouquecer Vejam, tenho os cabelos grisalhos
Minha esposa falecer Ja passei tantos trabalhos
E os meus filhos para crid-los. Nada mais me prende ao mundo
Vivo ao relento sem abrigo
Vejam, tenho os cabelos gtisalhos Tenho que vagar sujo, imundo
Ja passei tantos trabalhos Sem filhos, sem esposa e sem amigo.
Agra é a minha provagao.
Vi um filho transviar-se, Vejam, tenho os cabelos grisalhos
E a turba imensa a gritar Ja passei tantos trabalhos
Mata! Lincha este ladrao. Estou exausto e vencido.
Quando jovem, eu vivia tio bem...
Vejam, tenho os cabelos grisalhos Sitios, prédios e armazém
Ja passei tantos trabalhos Hoje... sou um homem falido.
Que até perdi a ilusao.
Passo os dias a meditar Vejam, tenho os cabelos grisalhos
OH! se eu pudesse libertar Ja passei tantos trabalhos.
‘O meu filho da prisol... Meu Deus que fatalidade.
Perdi minha habitacgao
Vejam, tenho os cabelos grisalhos
Vim residir num porao.
Ja passei tantos trabalhos Longe da sociedade

ANTOLOGIA PESSOAL ecommerce


CAROLINA MARIA DE Jesus
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Vejam, tenho os cabelos grisalhos
Ja passei tantos trabalhos
Sou feliz
Meu Deus! Fico alucinado
No topo de uma colina
Por isso eu vivo a vagar.
Construf uma cabana
Nao gosto de recordar
De manha surge a neblina
O meu pungente passado.
Que a natureza promana.
Quem reside nesta casinha
Vejam, tenho os cabelos grisalhos
Que é um verdadeiro primor
Ja passei tantos trabalhos
Eu e a minha maezinha
O que me conhece diz
A quem dedico o meu amor.
Aquele é um homem honrado
Mas sofreu tanto, o coitado
Quando o sol deixa o poente
E um verdadeiro infeliz. Tudo encanta na colina
Surge a noite lentamente
Tudo é belo, e¢ me fascina.
Minha mae sempre cantando
E amavel e carinhosa
Passa os dias cuidando
Dos seus canteiros de rosas.

Como é lindo o meu viver!


Nesta cabana que eu fiz
Creio que... eu posso dizer:
Gragas a Deus, sou feliz!

ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
100 101
A cata Como poderei viver
Sem mais ver
O filho do meu coragio.
Ela estava assim sentada
A carta era de um filho,
Ereclinada
No exilio
Na sombra de um arvoredo
L4 mui distante morria
Uma carta ela relia
A pobre mie nao falava
E sorria:
Ocultava
Talvez, fosse um segredo.
A grande dor que sentia.
Quando por ela eu passava
Anda toda esfarrapada
Sempre estava
E amargurada.
Com uma carta nas mos.
Perdeu a ilusdo da vida
Um dia, tristonha chorava
Olha 0 espago indiferente
E lamentava:
-Esente.
Meu Deus! Que desilusiao. Que esta sd e deprimida
Vive tristonha a vagar Vive triste a meditar
E fitar E a chorar.
O espago, horas e horas. E 0 que faz, todos os dias
As vezes diz ela, assim: Porque se um filho morrer,
Deus! Tenha pena de mim, O viver
Socorrei-me, Nossa Senhora. Da mie é uma agonia.
Outro dia nao suportou
Vive tristonha a vagar, E bradou:
Sem parar Onde é que estais amor meu!
Com os olhos fixos no chio. Oh! Meu Deus! Por piedade.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


102 103
Permita nao ser verdade,
O meu filho no morreu.
Ele era ta0 educado .
:
: E resi Porque vivo abandonada
resignado E 4
Com a sua vida na pobreza . amargura a,
Gostava de traball Sentindo no peito a dor
| Para nao faltar - Eu quero alguém que me embala
O po na nossa mesa. E fala: -
Coisas bonitas.do amor
“Sonho”
Eu gosto de uma pessoa
Muito boa.
Tenho por ela simpatia.
Se eu lhe dissesse 20 ouvido:
Meu querido
Sera que me corresponderia?

Canto-o nos meus versos


E pego:
Oh! nao me facas sofrer
Longe do teu olhar vou penar
Tu nao me queres, por qué?
Uma noite eu sonhei
E delirei.
Estavamos nés dois sozinhos

ANTOLOGIA PESSOAL eeeeetn


meee ee erenrd CAROLINA MARIA DE JESUS
104 =. : 105
Minha boca ele beijava
N&o amo, visando nada.
E me falava:
Quero um cantinho no teu coracdo
Com meiguices e carinhos.
Em troca desta afeicio
E ja me sinto realizada!
Juro, nio 0 esquego
E padego:
Nos meus sonhos eu te vejo
Tu me cinges no teu peito
Deste jeito:
Depois, d4a-me um beijo.
Que tristeza ao despertar
E nao encontrar
Este teu rosto risonho
Satisfez o meu desejo
Dei-lhe um beijo
E pena ter sido um sonho.

Amo-te, muito, querido


No mundo, és o meu preferido
Uma jéia de muito valor.
Tenho para ti, no meu coragio,
Uma provisao:
De carinho, e muito amor.
Sei amar com sinceridade
E amizade...

ANTOLOGIA PESSOAL wormeccnennncemmeminionnnncnnennenmsand


CAROLINA MARIA DE JESUS ———-——amemenennnnmnennnnnnnl
106
107
Rtiso-
de poeta
Poeta, por que chora? Es mui bela e cativante

ETE
Que triste melancolia. Tem os odores delirantes
Das flores.

Ee eee
E que minh’alma ignora
O esplendor da alegria. Quero-lhe muito querida
Este sorriso que em mim emana, Enche minh’alma de vida
A minha prépria alma engana. E amores.

Passei a vida a idealizar Quando por mim vocé passa


Sem concretizar Olho-a e acho graca
Um sonho sequer. Nos teus gestos simples e belos
Pretendia me casar O meu sonho é construir
E ter um lar Para nés dois residirmos
Com os meus filhos e a mulher! num castelo.

Mas nem sempre se realiza O teu olhar me embala


O que a mente idealiza. Es meiga quando me fala.
Es pura como o jasmim.
Vim ao mundo predestinado Cismo que estou 14 no espaco
A viver sé e abandonado Reclinado nos teus bracos
Como coisas abjetas. sempre assim!

Hoje sou desiludido:


Amei e n3o fui correspondido. O teu olhar brilha e seduz
Deus n4o protege o poeta. Tem um reflexo de luz

CAROLINA MARIA DE JESUS


ANTOLOGIA PESSOAL
108 109
Eu receio perdé-la.
Nao mais olho para océu... As aves.
Porque na terra ja existe
Uma estrela. Quando aurora vem surgindo
E refletindo
O teu porte donairoso Nitido o sol no horizonte.
O teu sorriso formoso Em bando os passarinhos
Deusa da seducio. Deixam os ninhos:
Es pura como a bonina E voejam sobre os montes.
Venha ser a inquilina
Do meu coragao. As aves querem-se mutuamente
E sentem
Umas as outras afeicées.
Venha gozar o meu amor Nao tém inveja daninha
Teus olhos so uns primores. Que definha
Venha saciar os meus desejos E deturpa os corac6es.
Es na vida o meu ideal
Dar-me-ds como sinal Entre elas reinam amizades
Uns beijos E as igualdades
Nao ha classes e nem nacées ©
Elas deferem na terra
Nao fazem guerras
Nas disputas de torrées
Se asas pudesse eu ter
E percorrer

ANTOLOGIA PESSOAL wren eed Sommeuaentmremrennnneenernnmmnmmneernunin {AROLINA MARIA DE JESUS meecteemrnrintenennmitinnnamenmd


110
111
' O espaco de norte a sul ~ Kensamento he(PPOLMA
Como € belo voar 7
: E contemplar os Estava eu a vagar
Este lindo céu azul. Ba pensar:
Por que é que existe ambigao?
ves E uma coisa que domina
E elimina
A pureza do coragio.

As pessoas ambiciosas
Invejosas
Invejam os fracos e os fortes
Sao do tipo repugnantes
Semelhantes
Ao Judas Iscariotes.

CAROLINA MARIA DE JESUS


| neennmenenncmeresinnninmmenennens ANTOLOGIA PESSOAL
143
112
SERGE FHS AUIS RRP EIEN RONEN Doacch HECK VRS"
E quando vocé crescer
Ha de ter
Grande mdgoa me atormentava Muito prestigio e valor.
E eu chorava
Lembrando a infancia ditosa. Mas um dia a fatalidade
A grande dor que me invade: Com impiedade
E a saudade Arrebatou-a e eu senti.
Da minha mie tao bondosa. Compreendi tarde demais
A falta que a mie nos faz:
No colo, ela me embalava E sofri.
E contava:
Estérias, eu adormecia. Lembro-me quando ela morreu
oi: jor:

De manhi eu despertava Eu
tapea

Ela me dava: Estava no inicio da vida


arapindets Bo aetna

Café com leite eu bebia. Com sete anos incompletos


Tudo era tao diferente Era 0 afeto
E eu contente Da minha mie t4o querida.
Sai

Brincava no meu jardim.


Minha vida era uma beleza
Tenho certeza
Mamie gostava de mim.
Com meiguices ela dizia:
E eu ouvia:
Filha estuda por favor:

ANTOLOGIA PESSOAL
114 CAROLINA MARIA DE JESUS
115
Ee)
et Te
Sinado- Que surgem breve as penas.

Sry
Quer unir-se ao bando
A ave escolheu um galho Que voando
Num carvalho Rompe os ares tao serenos.
E construiu seu ninho.
Levava a vida a cantar
E para alegrar:
Seu inocente filhinho.

Ao romper da madrugada,
Em revoada,
Voeja e galga amplidao,
Retorna ao ninho salienre,
E, contente,
Executa uma cancio.

A sua voz maviosa


E sonorosa
O filho ouve e extasiado
Ele vai ensaiando
E executando
Inocentes trinados.
3
3

Contempla a mie que voeja


E deseja
neat fancatin

ANTOLOGIA PESSOAL see


nenenemnemneineerecinennncenenremanel CAROLINA MarIA DE JESUS
acaerranamweVectenaame

116 117
Washington Liz JSoltewonu
Meu Brasil proeminente
Em que pensa Dona Luiza?
Patria de Tiradentes
O que idealiza!
Bergo de Washington Luiz.
Nem tudo poderei dizer-lhe.
Foi um grande presidente
Desde quando eu a vi ,
Que honrou 0 nosso pais.
Nao lhe esqueci
Hei de ama-la até morrer.
Merece a consagracao
Do povo e da nacio,
Como teus compromissos
Porque soubeste governar,
Por isso:
Politico integro e pioneiro.
Oculto os meus sentimentos.
Nao deixou 0 nosso dinheiro
Tu estas dentro do meu cérebro
Desvalorizar-se...
Isto € pior que um érebo,
Nao suporto estes tormentos.

Se o teu coracdo estiver


E tu quiser:
Daé-me um lugar, eu aceito...
Ja nao durmo, perco o sono,
Ambiciono
Viver oculta no teu peito.

Levo a vida a meditar


E por te amar.
omenemertenrenencaemenicemansinimmemennomen ANTOLOGIA PESSOAL ‘ermine nem ncmeatomeecn eh
vow (CAROLINA MARIA DE JESUS
118
119
Com ninguém mais simpatizo. A mulher que nao é casada
Para eu viver contente E revoltada,
Somente:
Do teu amor eu preciso. A mulher nao quer morrer
Sem conhecer
Se as minhas faces tu as beijasse O carinho masculino..
E acariciasse...
Vocé é tudo para mim.
Minh’alma de ti precisa
Luiza!
O nosso amor... nao tem fim.

Quantas cartas tenho te escrito


E cito:
Es o dono do meu coragio.
No sonho tenho nés dois.
Mas depois...
Desperto na solidao.

Este meu sonho é¢ tao lindo


E sorrindo
Desperto e penso... tolice.
Triste vida de solteirona
Que ambiciona
Frases que um homem nfo disse!

| rverensimenninensininenirnarnenennennen ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


120 121
E amar! E ser correspondida
O. tirto-
Quando o homem é competente
A mulher sente
O lirio branco é pureza
Que ja estd realizada na sua vida.
Que beleza!
E 0 adorno da campina,
Mas este litio nasceu
Sua ramagem estendida
E faleceu
E refletida
Sobre a 4gua cristalina.- Resta a haste ressequida.
Lamenta a desventura
E murmura!
De manha as mariposas
No lirio pousam Que rajada... na minha vida.
Aspirando o seu olhar,
A haste que feneceu
Amam com muitas ternuras
Trocam juras Sou eu!
De fidelidades ¢ amores. Ja nao vivo para o mundo:
Um grande amor que passou,
A minha vida era vazia: Deixou:
E um dia Em mim desgostos profundos.
Um lirio desabrochou:
Que saudade daquele instante, Quando se ama nao se esquece
Delirante, E padece:
Quando no meu peito penetrou. Se vem a separac¢do.
O homem pode estar ausente
O lirio foi o amor Mas estard sempre presente
Que esplendor... No fundo do coracio.
Sa MRARR SesOe

ANTOLOGIA PESSOAL seenemmreneneecneneennneenemrmenntenmnad mm CAROLINA MARIA DE JESUS nemernmnnnennmnnnmcmmimamarted


122 123
4 é

}
+

:
A vida sé tem valor
M passircada
' Com um amor
( Que saiba nos corresponder.
Quando surge alvorada,

Quantas felicidades A passarada


Percorre a imensidao:
Com ele é tao sublime viver!
Que gorgeio harmonioso
E sonoroso:
Sem o homem a vida ¢€ tristonha, : . r - 4, -
E alegria la do sertao.
Enfadonha. :
Como a campa silente e¢ fria. : :
Ouvindo o trinar suave
Sou como a haste pendida
Da ave:
E ressequida...
4 Comecei : a meditar.
:
Sem amor... sem alegria. . . .
& A minh’alma entristecia
E ew sentia:
Desejos de chorar.

Por que é que as aves cantam


E encantam:
Nao tém nada a lhes preocupar?
Entre nés ha uma diferenga
Imensa:
Porque eu sé sei chorar.

Quando o cantar dolente,


. ; Cadente

ANTOLOGIA PESSOAL -- CAROLINA MARIA DE JESUS


124 125
Da ave ld do sert3o
Ela ha de ser como eu A rosa
Que ja sofreu
Amarga decepcio. Eu sou a flor mais famosa
Disse a rosa
Vaidosa!
Na sua vida existird alguém
Sou a musa de um poeta.
Que ela quis bem!
Partiu para nao mais voltar.
Por todos sou contemplada

PIETERS:
Ela ha de ser como cu E adorada.
Que compreendeu:
Que o macho nao sabe amar. A rainha predileta. -
Minhas pétalas aveludadas
Ela canta para expandir S40 perfumadas
E transmitir E acariciadas.
A sua magoa interior.
Ela ha de ser como eu: Que aroma rescendente:
Que compreendeu Para que me serve esta esséncia,

Que 0 macho nao tem amor. Se a existéncia


Nao me é concernente...

Quando surgem as rajadas


Sou desfolhada
Espalhada
Minha vida é um segundo.
Transitivo é o meu viver
De ser...
A flor rainha do mundo.
mmraneenrencarnnneanincmerennenmmmmrancin ANTOLOGIA PESSOAL “srr smectite
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126 CAROLINA MARIA DE JESUS «
127
i
i
ai
i:

MENT,
Sngeruidiude

De uma coisa eu tenho saudade, Quantas vezes dedica-se.amizade


E da minha ingenuidade A um tipo reles sem qualidades
Nao conhecia a maldade, Destituido de valor,
Nem o édio, nem a ambicio Que nos faz chorar e softer.
Que penetra na nossa mente Mas quem pode compreender
Da raiz e da semente O mistério do amor!
E deturpa o coragao. As vezes um homem € correto,
Nao é 0 nosso predileto...
No meu “ego” fiz assepsia Nao lhe temos simpatia.
Para receber sé alegria E amamos um cafajeste
Pois desejo me modificar. Que nio honra a calca que veste
Quero ser semelhante ao Cristo Uma porcaria.
Que aos homens ensinou isto:
Perdoar! As vezes um homem é decente
Tem nobreza e tem valor,
O homem deve ser fraternal. Mas a mulher é insciente.
Os que praticam o mal Ama quem € inferior.
Nem a si mesmos favorecem. As vezes um homem € gentil
Os que adotam a maldade Tem qualidades ilibadas
Nao auxiliam a sociedade Mas a mulher é imbecil
S6 o desprezo merecem. Ama quem no vale nada.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA Maria DE JESUS


128 129
Destlusto- Nao fui correspondida.
Por isso eu vivo isolada
Tive um desgosto profundo E amargurada.
Neste mundo. Eis o drama de minha vida.
E levo a vida a meditar.
O que me vé sorrindo diz S6 quem ja foi preterida
Que sou feliz Na vida
Porque eu sei dissimular. E quem conhece esta extensio,
E quem pode analisar
Vivo tristonha sem ilusado E citar:
Que provacio. O que é uma desilusado.
Passo os dias sempre sofrendo.
Que existéncia sacrificada
E atribulada!
Nem sei porque estou vivendo.

A minh’alma jé envelheceu
E ew?
Aos poucos fui entristecendo,
Tenho uma magoa interiormente
E atualmente...
Estou morrendo! estou morrendo!

A causa da minha dor


Foi 0 amor:

eommeenmemenenrernimnernresiractemmranemnennns AN TOLOGIA PESSOAL ‘wre


mtcernearetnsmacimenainrienionarasemnmnenead
CAROLINA MARIA DE JESUS
130 131
J

Porque, depois de crescer,


Notoas de 1ato-
Ninguém sabe seus destinos.

O. minha filha .querida


Conforma-te e nao protesta
Parabéns pois vais casar:
As contingéncias da pobreza
Queres ser feliz na vida,
Ser pobre e honesta
Ouga-me o que vou citar. -
E uma grande riqueza.

Dizem que é a mulher


Seja muito carinhosa
Que faz feliz o seu lar,
E agradavel no falar,
E feliz se ela souber
Uma mulher nervosa
Viver e pensar.
Nao prende o esposo no lar.

Trate bem o teu marido Seja uma mulher decente


Com toda dedicagio.
Quando o teu esposo ausentar-se
No o deixes aborrecido Ele ha de ficar contente
Nao lhe facas ingratidao. Encontrando-lhe no lar.

Se o teu marido falar Como é bonito um lar


Nao the custa: obedecer. Onde reina paz e amor.
O que se passa no lar O casal que divorciar
Ninguém precisa saber. Perde todo o valor.

Se tens filhos da4-lhes prazer A mulher que quer predominar


Enquanto sao meninos, Como se fosse uma imperatriz,

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MaRiA DE JESUS


132 133
|
enuresis
4
i
ee

Estas desfazem o seu lar:


Nao deixam o homem ser feliz.

A mulher que é prepotente Foi o orgulho da nossa gente.


E quer ver o seu desejo realizado: “E opiniao brasileira
O amor que o homem sente oy : Que tivemos um presidente
r

Vai esfriando, vai esfriando. Que honrou a nossa bandeira.

Gettlio, herdico e potente,


Grande alma nacional,
Deveria ser o presidente
Desde o tempo de Cabral.

Eramos um povo inibido,


Apatico e sem ac3o
Mas Gettilio, o destemido...
Nos deu um empurrio.

Retirou do operdrio a tibieza


Deu-lhe apoio e protecao
Convidou-lhe com delicadeza
A colaborar no progresso da nagcio.

ANTOLOGIA PESSOAL “somes eimnepntemersisernertneemaned


~~ CAROLINA MARIA DE JESUS
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135
Ouga este indigente!
Socorrei-me, Senhor.

Um misero seguia Nao sao jéias nem riquezas


Levando uma trouxa nas costas; Eu nao tenho ambicio.
Uma prece a Deus envia E um fardo agro a pobreza,
Espera inquieto a resposta. E viver num barracao.

Jesus, por que sofro assim? Tenha dé de quem padece,


Que grande mal cometi Jesus, venha-me socorrer.
Porque olvidou-se de mim, Quem me dera se eu pudesse
Espero o auxilio que pedi. Deixar de comer.

Como € triste o meu penar, Sofro tanto. Oh! Que tristeza!


A indigéncia € atroz Necessito o auxilio vosso
Nao vés? Eu vivo a implorar Os que vivem na pobreza
Por que nao ouves minha voz? Lutam em prol do pao nosso.

Jesus suplico-te, sou eu, Nao me preocupo com a grandeza,


Necessito 0 auxilio vosso, Pobre nao tem ilusdo.
Porque vés nao me atendeu. Que nao falte na minha mesa
Viver sem ti, n4o mais posso. Um pedacinho de pio.

Vés onipotente, Trabalho com assiduidade,

Nosso redentor, Olham os calos nas minhas m4os.

- CAROLINA MARIA DE JESUS


ANTOLOGIA PESSOAL
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136
7
|

Tenho filho em tenra idade


MNentira
Que implora: “queto pao”.

Pobre anciao vagava


Como € sacrificada
A vida do trabalhador: A esmo sem direcio.
O salatio sobe de escada, Notando que ele chorava,
Os pregos de elevador. Quis saber qual a razio.

Acheguei-me levemente;
“Boa-tarde — eu the disse ~

NNO ter rene oe rae


Estais tao triste o que sente?”

PROP ECAR
“Nao € nada, é a velhice.”

A juventude é fogueira,
E alegre a todo momento
Ela passa mui ligeira,
E veloz, igual ao vento.

Vou citar-lhe o meu viver


Os bons tempos joviais.
Tive alegrias ¢ prazeres
Descuidei dos essenciais.

Cantava na adolescéncia,
Nada aprendi a fazer.

ANTOLOGIA PESSOAL -enenemnereerencnimmancoainmnnd racine CAROLINA MARIA DE JESUS -mnmnincaneenenmoncrmmmauinmmncn


138 139
aes nun sameninanertertsnirnnttntnen
es

E um dia me abandonou
Ao me ver na indigéncia
Fui pedir para comet. Oh! Que mulher mentirosa.

Outrora lépido, airoso, Os que tém maus coragG6es


Tratavam-me “Vossa Exceléncia” E que esquecem num segundo.
Hoje acham-me indecoroso Tudo é interesse, ambigoes
Sou vaga reminiscéncia.
Tudo mentira neste mundo...

Quando rico, nao pensel:


Hoje sei que me olvidou.
Hoje sou um indigente. O seu afeto foi passageiro.

Aquela que eu muito amei E assim ela comprovou

Olvidou-me inteiramente. Que amava sé o meu dinheiro.

Ao ver-me nesta indigéncia, Tarde demais comprendi:

Todo roto, ao léu ¢ falido, Nao mais confio em alguém

Acabou a “Vossa Exceléncia”: Que nado ama o homem em si


seus bens.
Eu sou um trapo esquecido. Mas apenas Os

A mulher que amei loucamente


Escarneceu a minha dor,
E assim fiquei ciente
Que era falso o seu amor.

“constréi um lar... — suplicou —


hei de ser boa e carinhosa!”

CAROLINA MARIA DE JESUS seeteneesscnmentoemmrnrencenmnment


ANTOLOGIA PESSOAL
141
140
Por eu negar-lhe a caridade,
Deus me castigou.
Na minha porta veio um dia
Uma senhora a implorar. Via mulher entristecer
Unida ao peito trazia E aos poucos perder a cor,
Uma crianca a chorar Seu unico filho fenecer;
Debatendo-se no estertar,
Ajoelhou-se, as vestes desfeitas,
Tenha dé desta infeliz, compadece Na minha mente gravou
Manda aviar esta receita Aquele ingénuo sorriso.
Que Deus no céu lhe agradece Quando a crianga falou:
Somente de Deus eu preciso.
Senhor! salve esta inocente.
Veja, é grave o seu estado De tanto pensar chore
Se o teu filho est4 doente... E nada mais me consola
Creio nao ser 0 culpado. Desgosto porque neguei
Uma esmola!

A crianga os olhos ergueu.


Fitou-me e deu-me um sorriso
Depois para mim respondeu:
Somente de Deus eu preciso!

A crianga nao tinha idade


Para falar! E falou!

eemmewtnormenneemtnmeamravinmmcnenmaniminnn: ANTOLOGIA PESSOAL mT ane oN ate meenermmam


CAROLINA MARIA DE JESUS
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143
DNevaneto-

Meu Deus! Estou tao contente Imploras-me t4o triste


Que alegria interior... Que eu seja o teu amigo.
E que eu recebi um presente Penetres, encontraras
De Jesus Nosso Senhor. Dentro do meu peito abrigo.
Ontem eu estava doente
E hoje... ndo mais sinto dor.
Que nio discordes nunca
é Em tudo que eu vou dizer
Residira no meu peito
O tempo que quiseres.

Nao mo disseste nada


Sorri, em que medito
Deixai-me contemplar-lhe
Es jovem e tao bonito!

Ah! Velhos tempos idos!


Saudosos que passaram
No meu rosto uma ruga
Os anos me deixaram.

| Os poucos dias que me restam


Ao teu lado viverei:

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS swcmenemmmnnnicimentmmmmimmnnns


144 145
Agora que sou anoso
A primeira vez amei. ©. colono-e: Q- Sirzenadetro-

Querida! Veja; eu choro Diz o brasileiro


Sou velho e vou partir Que acabou a escravidao
A morte breve vir4 Mas 0 colono sua o ano inteiro
E eu nao quero if. * E nunca tem um tostao.

Estou na decrepitude Se o colono esta doente


Tenho os meus dias contados E preciso trabalhar
Vocé em plena juventude Luta o pobre no sol quente
Ha de enfadar-se ao meu lado. E nada tem para guardar.

Confesso que 0 teu carinho Cinco da madrugada


Remogou-me, deu-me prazer Toca o fiscal a corneta
Se me deixares sozinho Despertando o camarada
Nao sei que hei de fazer. Para ir A colheita.

Nao devemos ser maus Chega a roca. O sol nascer.


A maldade nao tem valor ‘Cada um na sua linha
Vamos praticar 0 bem Suando e para comer
Que agrada o Nosso Senhor. S6 feijao e farinha.

Nunca pode melhorar


Esta negra situagio

Saementcteatamrranannstemar
a ANTOLOGIA PESSOAL == tinea
cee moma
CAROLINA MARIA DE JESUS steaessmnmuan
146
147
a
Carne nao pode comprar Trabalha o ano inteiro
Pra nao dever ao patrao. E no natal nao tem abono
Percebi que o fazendeiro
Fazendeiro ao fim do més" Nao da valor ao colono.
Da um vale de cem mil-réis
Artigo que custa seis O colono quer estudar
Vende ao colono por dez. Admira a sapiéncia do patrao
Mas é escravo, tem que estacionar
Colono nao tem futuro Nao pode dar margem 4 vocagao.
E trabalha todo o dia
O pobre nao tem seguro A vida do colono brasileiro
E nem aposentadoria. E pungente e deploravel
Trabalha de janeiro a janeiro
Ele perde a mocidade E vive sempre miserdvel...........
A vida inteira no mato
E nao tem sociedade O fazendeiro é rude como patrao
Onde estd o seu sindicato? Conserva 0 colono preso no mato
E espoliado sem lei, sem protegao
Ele passa o ano inteiro— E ele visa o lucro imediato.
Trabalhando, que grandeza!
Enriquece o fazendeiro O colono é obrigado a produzir
E termina na pobreza. E trabalha diariamente
Quando o coitado sucumbir
Se 0 fazendeiro falar: E sepultado como indigente.
Nao fique na minha fazenda
Colono tem que mudar
Pois ha quem o defenda.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


148 149
Eu imploro ao Deus clemente
S6 ele é bom e me escuta:
Pobre mae perambulava
Com os olhos fixos no chao Quem ouve os nossos clamores*-~ -
Como poderei viver Nossas lutas e aflicdes
Nesta negra condigio... _E Jesus Cristo Nosso Senhor
Porque nao faz selecdes.
Percorria com o olhar o espaco
E volvia-o novamente ao solo Para onde vamos, filho meu!
Nao temos teto, e nem pao
Com meiguice acaticiava
Vosso pai desapareceu
O filho que tinha ao colo.
Deixou-lhe na solidao.

Pobre mulher, onde vai?


Vamos, vamos filho meu
Que triste destino é 0 teu
No campa do teu nobre avé
Estou procurando o papai
Aquele foi 0 nosso amigo
O bom amiguinho meu.
E a morte ingrata o levou.

Como é triste o meu destino


Meu filho! Porque sofre assim
Oh! Existéncia lacrimosa
Se ainda nao tens pecado
Sou semelhante ao peregrino
Se a morte lembrar-se de mim
S56 no mundo e tio inditosa.
Ficards desamparado.

Vivo errante e descontente


Sem ter quem vele os teus passos
Minha existencia é uma luta Com carinhos e sacrificios

ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
150 151
Alea Rees
saga, iene
Tu cairds nos lagos
Que s4o os péssimo S vicios.
Venho de longe procurando o teu olhar
A mie perambulando Terna e meiga me fitaste um dia
Tudo isto lhe vem na mente O meu coragao por ti a palpitar
Contempla o filho e chorando Tu me inspiraste amor e poesia
Exclama — pobre inocente!
O teu olhar é puro como o lirio
Deixou minh’alma em louco devaneio.
Desde esse instante eu sofro e deliro
; .
Quero amd-lo e tenho receio

Té-la ao meu lado por uns momentos


Ouvir dizer: como eu adoro.
Amenizar estes meus sofrimentos
E ajoelhado que eu vos imploro.

CAROLINA MARIA DE JESUS


| ermesnamsarammnmamnmimnancen ANTOLOGIA PESS OAL, onncsmonaneat
mnansmenenemanqrmimeimsrernaratiratad
ince

152 153
Segredo oculto- © turco- € 0 lampiio-

Tenho abscondado bem no fundo Um turco ia contente


A mais sublime aspiracao _ Levando um cesto na mado
Era dizer-te que vieste ao mundo Quando surgiu na sua frente
E habitaste no meu coracao. O famoso Lampiao.

Es na minha vida estrela a luzir O.turco logo parou!


Es 0 orvalho que umedece a flor
E comegou a gaguejar
Eu desejo-the, deves ouvir-me
Lampiao lhe perguntou:
Nao seja ingrata. Quero o teu amor.
Tu tens fumo para me dar?

‘Teus olhos sao fardis a iluminar


O turco mudou de cor
A minha vida de peregrinago
Estou exausto, eu. quero repousar E comegou a chorar.
Eternamente no teu coragao. Eu nao fumo njo senhor.
Mas querendo eu posso fumar.
Aos teus bragos entrego-me
Guia-me. Quero-lhe, me conduz
Por amar-lhe, juro, estou cego
No mundo és a minha luz.

Es mais bela do que a rosa!


Tenho por ti grande adoracado
Quero-lhe, és meiga e carinhosa
Vem morar no meu coragao.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS msenmmemrnanerenrennmmnennenel


154 155
utero pe Mew ave-

Querida! Venha, imploro-lhe Quando estava contente, cantava:


Quero-lhe junto de mim
Sabes o quanto adoro-lhe Cuidado com esta negra!
Nao me faz sofrer assim: Que esta negra vai conta.
Cuidado que esta negra
Eu direi ao teu ouvido: E puxa-saco da sinha.
Sem ti, nao sei o que faco:
Tu dirds, venha querido: Cuidado com esta negra
Dd-me um beijo e um abrago.
Que esta negra j4 conté
Cuidado que esta negra
Nao me amas? perguntei-lhe
E puxa-saco do sinhé.
O teu siléncio mo diz, naol!...
Talvez nem mesmo ocupeéi...
Esta negra é cagcambeira.
Um lugar no teu coragao.
Gosta sé de espiona.
Onde foi que tu andastes Esta negra é faladeira
Deixando-me aborrecida E conta tudo pra sinha.
Um inconstante como tu...
Acabar4s com minha vida. Esta negra € perigosa!
Tudo que vé ela fala,
Se vocé n4o pretendia E a sinha fica nervosa
Viver sempre ao meu lado E nos prendem na senzala.
Foste ingrato e nao deverias
Fingir-se apaixonado.

ANTOLOGIA PESSOAL ewes


errcnermmnne rneneommnel CAROLINA MARIA DE JESUS

156 157
Festa dos bichos: Eu aqui sou delegado
Precisam me respeitar
Escuta e presta atengao
Na est6ria que eu vou contar E que o macaco implicante
A cobra € 0 rei ledo Comecou a criticar
Amavam-se e iam casar-se Dizendo que o elefante
Era feio para dangar
A cobra estava elegante
Seu vestido que beleza! O macaco nao obedeceu
O tigre e 0 elefante E continuou a insultar
Eram os serventes da mesa Ele é maior do que eu
Mas nao da pra comegar
_ Ourigo e D. Onga
Da noiva eram os padrinhos. O lobo chamou o veado!
Com ourico ninguem danca E melhor irmos embora
Pois tem medo dos espinhos O macaco esta embriagado
Vai ter briga, nado demora

Urso cantou uma cancao


O macaco respondeu A discussao deu em nada
E a festa continuou.
O sapo fez o refrao
Mas veio uma chuvarada
Diz que a terra estremeceu.
Por isso o baile acabou

O elefante ficou zangado


Nervoso, nao quis dancar

ANTOLOGIA PESSOAL
rremnnrmanmmmninninerinirrneninnrnnaimrn CAROLINA MARIA DE JESUS
158
159
BeGerT re Pangan mre wre
O. extlado- Ew PME. PPLE AS?

Eu nado esqueco aquele dia: Em que pensas querida?


A vez primeira que li — Na vida
Era uma linda poesia Tu pensares na vida...
E a emog4o que senti Por qué?
Reclina aqui no meu peito
O meu autor predileto Eu tenho o direito
O imortal Gongalves Dias De pensar por vocé.
Eu lia com muito afeto
Os seus livros de poesias
Longe querida eu sofri,
E senti ,
Pobre poeta exilado
Profunda saudade!
Na terra que njo é sua
Sente saudades dos prados
Procurei-lhe para revelar-lhe
Das nossas noites de lua. Que hei de amar-lhe
Com toda sinceridade.
Minha terra tem brilhante
Nosso céu é cor de anil Amo-lhe com amor profundo
O poeta la mui distante Neste mundo:
Tem saudades do Brasil. Senti, a minha vida fenece
Vocé € tao carinhosa
O que fez o Goncalves Dias E formosa
Para ser um exilado? E o meu afeto nao arrefece.
Serd que escrever poesias
E pecado?

ANTOLOGIA PESSOAL =~ Lasenmusanninsmmerramnscnmnmearsamne CAROLINA MARIA DE JESUS senemnnmensnmnmnimmnanrerananes


160 161
Carta ae: Lilo A noticia que a carta lhe transmitia
Nao penses em mim foste substituida

Ela usava um azul*


Ai vem gente. Um ruido escuto.
E contemplava o céu da mesma cor.
E ilusao. Ninguém recorda quem sou eu
Olhava triste a direcao do sul
Era o carteiro com uma carta de luto
La onde estava o seu grande amor.
Ela chorava o grande amor que morreu

Dizia triste, o que sera meu Deus!


Quando lhe disse hei de amar-lhe
Qual é 0 motivo que ele nao regressa
feternamente
Disse-me um dia: 0 meu coracio é teu
Era ingénua por isso acreditava
Era mentira e falsa esta promessa...
Mas agora ele estava ausente

eg
O seu coracao sensivel despedagava

TT
Por que nao cumpre o homem 0 que diz?
Por que Deus meu o fizeste infiel assim?
Nao brinca com a mulher!

SE
Reconhego que nao mais serei feliz
E a pior coisa que existe

SEES
Se aquele ingrato no voltar a mim
Sao poucas as que nos deixam alegres
E sao milhares que nos deixam tristes.
Aquele beijo, calido e sedutor
Aquele olhar puro, ingénuo e santo
Disse-me um dia sois meu grande amor
E com saudades prorrompeu-se em pranto

Por que é que o destino nos reserva ironias


Que nos deixam tristes e desiludidos? * .
Assim no original.
- 6

vermerncemetors A NTOLOGIA PESSOAL omtermenrenmmeme nmnenunrmuunestisaicienneoane’ rmommmmentoae CAROLINA MARIA DE JESUS eneeeermnmnmnnereenmrentennenonenin
162 163
AMtualidades Vivo falando sozinha
Extravasando a minha dor
Recordando a época que eu tinha
Encontrei-me com uma senhora
’ Trangitilidade interior.
De fisionomia abatida
Perguntei-lhe por que chora?
Nao mais posso trabalhar
Ja estou exausta e vencida.

E se eu for mendigar?
Nao mais dé gosto em viver
Ameacam-me com a pris4o.
Que luta! Que aflicdo
Oh! Deus que hei de fazer
Nao percebem as autoridades
Da-me tua protecao.
Que ja estou aprisionada
Trabalho o ano inteiro Com estas dificuldades
Nem um dia posso perder Que sou uma desgracgada?
Luto e nao tenho dinheiro
E nem pao para comer.
A velha rota e revoltada
Tudo o que sofreu narrou-se.
Tenho medo de enlouquecer Vivo ao léu sem ter morada

Oh! existéncia oprimida O mundo do pobre acabou-se.


Nao sei quem é que vai deter
O alto custo da vida. Deus! é a tinica esperancga
Desta classe sem apoio certo
Nao sei porque estou vivendo Luta e sofre por fim se cansa
Se me falta até a ilusao Igual ao viajante no deserto.
E uma forma de ir morrendo
Lentamente, 4 prestagao.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


164 165
eeattcir
Se tancareroman
rautesomt es
tonacaoiee

A otda Notte de Stio- Jotio-

A vida é concernente Por que é que estais tao triste?


: Aos que dela tiram proveito. E alguma desilusio?
Eu sofro horrivelmente E uma saudade que existe
Ao ver o meu sonho desfeito Dentro do meu coragiao.
Seré banalidade... a
| Sonhar com a felicidade? Eu percebi que a saudade
i Traz imensas recordacGes.
No auge dos sofrimentos Meus tempos de mocidade
Quem n4o maldiz a sua sorte E nés soltavamos os bales.
Todos nés temos momentos Rezavamos para S4o Joao!
Que desejamos a morte Pedindo-lhe protegio.
Breve: quem sabe farei Ao redor de uma fogueira
A viagem da eternidade | Eu, minha mae e meus tios
Recordagées levarei | Cantavamos a noite inteira
Nao sei se deixo saudades. Catiras e desafios.
|
}
Nao tenho mie para chorar I Agora estou na cidade
‘ A perda do filho amado i Bem longe do meu sert4o
: Sou uma ave sem lar As vezes tenho saudades
Um infausto exilado. Das noites de S40 Jodo.
dl Vivo ao céu sem ter abrigo
Somente Deus é 0 meu amigo

Heewmerncmonsitenernnracennnnanrnnemrnenanmemmneen: ANTOLOGIA PESSQAL ~eneremnatminanentimnamisenniemeel : herscrmemntmnterarnmernaaiconomansnemn CAROLINA MARIA DE JESUS


166 167
St
NT
TE SR ea
RE eR
DE-Me AS 1OSAS:

Quando crianga contemplava o céu No campo em que eu repousar


Quantas belezas 14 devem existir Solitaria e tenebrosa
Se eu pudesse deixar a terra Eu vos peco para adornar
_ Com as estrelas quero residir. O meu jazigo com as rosas

Com as desidias que via


As flores sa0 formosas
Ia distanciando do mundo
Aos olhos de um poeta
Onde uns cantavam outros sofriam
Dentre todas sao as rosas
Desgostos profundos.
A minha flor predileta

Quando crianga, tudo é diferente


A gente brinca eo tempo passa Se a afeicoares aos versos inocentes

O mundo é belo para o inocente Que deixo escritos aqui


Que desconhece amarga taga. E quiseres ofertar-me um presente
Da-me as rosas que pedi.
Hoje vivo a chorar saudosa
A minha infancia tao bela Agradego-lhe com fervor
Que quadra pundonorosa _ Desde j4 0 meu obrigado
Nao mais esqueco-me dela. Se me levares esta flor
No dia dos finados.
De manha pegava a enxada
la pra roga trabalhar
A tarde estava cansada
Jantava, ia-me deitar.

rence ANTOLOGIA PESSOAL -nm-wosenmammnnicnmnmmenemnmannantnend CAROLINA MARIA DE JESUS


168 169°
iste“

Hei de amar-lhe até morrer Eu tive um grande desgosto


De alma e de coracdo Que ando com os olhos fixos no chao
Nao mais hei de esquecer Trago estampado no meu rosto
Esta tua ingratidao. O que sofre o meu coragao
Foi vocé na minha vida Eu vivo no mundo a esmo
Que o meu coragéo amou Nada mais me reconforta
Hoje por ti sou esquecida: As vezes pergunto a mim mesmo
Tudo para mim... acabou! Se estou viva ou se estou morta

O meu coragdo nao resiste A vida n3o tem beleza


A dor que no meu peito mora Com agruras no coragao
No mundo eu vivo tao triste Quem inventou a tristeza?
Porque ninguém me adora Nao merece congratulagao.
Nos beijos encontrei espinhos Eu nao gosto de chorar
No abrago a traigao Pudesse eu viver cantando
Eu procuro é 0 carinho Mas quem nasce para penar
Para alegrar o meu coracao. O fim é morrer penando.

Nao sabes tu como eu fico: Nao sei que tristeza é esta


Tristonha.e desiludida Que em mim criou raiz
Este amor que eu te dedico: E uma coisa funesta
E nfo ser correspondida Que nao me deixa ser feliz.

vem ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MaRIA DE JESUS


170 171
C fue
Ha os que nos tratam com ingratidao Voc abe que eu tenho pena
Nos causando imensas dores De ver-lhe por detras das grades
Mas quando estamos mortos no caixdo Mas 0 juiz julga e condena
vém adornar o nosso corpo com flores. Sem imparcialidade __
HA os que ferem a nossa sensibilidade Peco-lhe que nao transvie
Nos desprezando sem cleméncia Da valor a liberdade
Quando partimos para a eternidade Ser livre... que alegria
E que nos tratam com decéncia Quanta felicidade.

Em vida sé sabem nos martirizar Quem inicia a vida errando


Palavras rudes nao nos confortam Quem nio sabe obedecer
Peco-lhe: para nao chorar E infeliz, esta armazenando
Quando me vires morta. Agruras no seu viver.
Quando o esquife baixa na sepultura Existem os baixos na estatura
O espirito sorri de contentamento E que sao altos na dignidade
Porque vai findar o meu sofrimento Os tipos que acatam a lisura
Extinguir a minha agrura. E vivem na probidade.
Quando eu morrer
Nao levarei recordacZo Estes nao temem o juiz!
Pois foi duro o meu viver Porque vivem na retidao
Com as atribulagées. Candidato a ser sempre feliz
Sem o receio da prisao.

ANTOLOGIA PESSOAL o CAROLINA MARIA DE JESUS -~

172 173
JSonhet @ SHTEMONEL O-

Sonhei que estava morta Numa gaiola habitava


Vi um corpo no caixao Um pobre canarinho
Em vez de flores eram livros Para nao chorar cantava
Que estavam nas minhas maos Ao recordar o seu ninho
Sonhei que estava estendida Viver no carcere insonte
No cimo de uma mesa Como é bela a liberdade
Vi o meu corpo sem vida Eu quero rever os montes
Entre quatro velas acesas
Libertai-me destas grades.

Ao lado o padre rezava Saudades dos dias quentes


Quando o sol descortinava
Ao bom Deus ele implorava Em bando alegremente
Para dar-me a salvagao Nos prados voejava.
Suplicava ao Pai Eterno Vivo nesta prisao...
Para amenizar o meu sofrimento Triste tenebridade
N&o me enviar para o inferno Nao violei a retidao
Que deve ser um tormento Eu merecgo a liberdade.

Ele deu-me a extrema-unc¢io E na imensa ansiedade


Quanta ternura notei Levava o tempo a esforgar
Quando foi fechar o caixdo Conseguiu romper as grades
Eu sorri... e despertei. Rever o querido lar.

ANTOLOGIA PESSOAL —~=»neumnnanarnnnmeemmiintitenematamend bernennremanmetansnmevranenncwnenmnn CAROLINA MARIA DE JESUS


174 175
Nao encontrou o lar saudoso
Nem os amigos de outrora
_E num pranto copioso A solidao me torturava
Volveu-se para a gaiola Era um indépio no amor *
O seu gorjeio estentéreo Alguma coisa faltava
Pouco a pouco emudeceu Para acalmar a minha dor

TRIAL Oa Tye aE
As vezes fitava 0 céu Minha patria era sombria
E de saudades morreu. Fui viver em outro pais
Sem amor sem alegria
A ave no seu passado
Longe talvez serei feliz.
Fazia uma revisao
Para ver se havia errado
Vaguei montes vales e serras
E se era justa a sua prisao
Nada era semelhante
Oh! quanta infelicidade
Nada iguala a minha terra
O meu destino é atroz
O meu sol é mais brilhante
Eu perdi a liberdade
Ao fitar a imensidao
Por causa da minha voz.
Notei, o céu nao era tao azul
E faltava a constelagao
O nosso Cruzeiro do Sul.

O airoso cair da tarde


Contemplei o sol no horizonte
E senti imensa saudade
O meu Brasil tao distante.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS

176 177
sage
As flores nao eram belas
Reico- e pobre
As nossas sao mais fagueiras
Faltavam as cores amarelas
Bateu na porta: era a pobreza
Que ornam a nossa bandeira
Recebi altiva: era a riqueza
As flores de outras terras
— O que vens aqui fazer?
Faltam vivacidades
A pobre solugando diz:
As belas flores séo as que encerram
— Riqueza eu sou infeliz!
Amores e tranqiiilidades.
Venho pedir-lhe para comer.

O idioma é diferente
Levanta altiva a riqueza
Aspiragoes € pugil *
Recolhe as migalhas da mesa
Nao posse viver contente
Da 4 pobre e vira-lhe as costas
Longe do meu Brasil
cone y . Que Deus the aumente senhora
" Que é'um pais proeminente
A rica nao deu resposta
Na sua grande extensio.
Ea pobre de alegria chora.

O Brasil é um continente
Pobre quando ganha esmola
Que estd no meu coracao
Com qualquer coisa se consola
Aqui na minha terra sou rei!
Reza para o seu bem-feitor
La eu era um estrangeiro
E nunca mais ele o esquece
Que alegria quando regressei
Recomenda-o na prece
Com orgulho de ser brasileiro.
Que envia ao Nosso Senhor.
ee A
ew nee serene ESR

ok . soe
Assim no original.

bentimnemmemnacenanemmientennnnrsimcmnimnmr ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS seeerncernnn


en eeererencenenrevemnl
178 179
aya de
E acabou os seus dias
devoto-
Nas grades de uma prisao.
Todos nés devemos orar
Quando tange o campanario........ . i
|i Ir na missa e confessar
O velho pega o rosdrio i
Seguir a santa religiao.
Ajoelha aos pés do oratério,
Devemos honrar os padres
Ha uma vela sempre acesa
Ouvir os conselhos das madres
Para que Deus lhe proteja
Para a nossa salvacao.
Do fogo do purgatério
A sua mie lhe dizia
Que o purgatério é onde expia
Ensinou-lhe a ser cristao.
Quando tangia o campandrio
Ela pegava o seu rosario
E rezava uma oracio.
Quando crianga rezava
Porque a mae lhe obrigava
Ir na missa todos os dias.
Quando o sol declinava
A familia ajoelhava
E orava Ave-Maria.
Um dia a mie expirou
Nunca mais ele rezou
E desprezou a religiao.
~ Andava com as mds companhias

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


180 181
CO. PCYUULO- JSijplica Le tle CLO

Encontrei um pequenino
Jesus!
Vagando ao léu sem destino Tenha de mim piedadé ’
Sem ter onde descansar Dai-me, eu vos peco a luz.
Talvez lhe falte um amigo Faga-me esta caridade
Tem 0 aspecto de um mendigo Oh! Se eu pudesse clisar © ~ ”
O infeliz nao tem lar. Estas estrelas a brilhar.
Do sol eu sinto o calor
Quando souber meditar Mas, n4o sei qual é a sua cor.
Entristece e vai chorar
Tudo é sombrio ao teu redor Dizem que o sol é amarelo
E uma haste abandonada E 4 noite, o céu é belo.
E por nao ser cultivada
Nao tem vico. Nao da flor. Eu vivo na escuridao
Guiado por outras m4os
O infeliz nZo vai A escola Ouco falar n’alvorada
Passa os dias pedindo esmola No romper da madrugada
E nao aprende uma profissao Nas lindas tardes de abril
Quando este infausto crescer E que é lindo o meu Brasil.
~ O que vai ser?
SOIC ICI OOK A AARC CK

Um héspede da prisao

“= ANTOLOGIA PESSOAL
CAROLINA MARIA DE JESUS
182
183
ii
:
:
i
Marta Rita Eu comecei a pensar:
Maria vai me deixar!
Na minha palhoga Nao enganei
Era eu e a cabrocha A tarde nao a encontrei
A querida Maria Rita A cabrocha foi-se embora
Do sertao a mais bonita.
Nossa casinha
Era ‘muito bonitinha Nao sei porque
Era um ninho de amor Tive vontade de morrer
Toda enfeitada de flor. Quando a noticia espalhou
Quando eu chegava Que a cabocla me deixou
A Maria Rita eu abracava.
Eu tocava o violao Mané Joao
Ela cantava uma cang¢ao. O ricaco 14 do sertao
De todos roubava o amor
Fui passear. E a ninguém dava valor
Se eu pudesse adivinhar
Que ia me encontrar com 0 Mané Joao Ela foi-se embora!
O ricago do sertao Ninguém sabe aonde mora
Que olhou a Rita Foi pra longe e me deixou
Minha cabrocha bonita Minha palhoga abandonou
Disse-lhe: meu doce amor
Minha querida minha flor. Triste, eu estou
Tudo pra mim acabou
Depois daquele dia Penso na ingratidao
A cabrocha n4o sorria Desta mulher sem coracio.

ANTOLOGIA PESSOAL remnormnmenenmns (LAROLINA MARIA DE JESUS


184 185
Eu cantava
Um samba-cancaio
Maria Rosa Da cabocla eu recordava,
Uma cabrocha formosa Sem ela é triste o meu sertio
Era alegria do sertao Ela voltou.
Nas noites de Sao Joao O meu perdao implorou
Olbei praela, O caboclo sabe amar
Nunca vi coisa mais bela Mas ¢ dificil perdoar.
Era faceira e dengosa
Casei com a Maria Rosa. Me deixa em paz,
Porque eu nao te quero mais

eae
A cidade € 0 teu prazer
Nada faltava
Na
E 14 que tu deves viver.
casinha que eu morava
Nao posso te amar.
Tudo la era alegria
Tudo entre nés morreu.
Com os encantos de Maria.
Vocé nunca ha de encontrar
Apareceu
Um amor sincero igual ao meu.
Um mogco la da cidade
A ingrata esqueceu
Roguei-lhe praga!
A nossa velha amizade.
Pela sua ingratidao.
Ela deixou uma chaga
Desde este dia
Dentro do meu coracio.
Nunca mais tive alegria
Tudo para mim se acabou
Ela voltou!
Porque a Maria me deixou
Disse que sentiu saudade

ANTOLOGIA PESSOAL nenerintanrate


CAROLINA Maria DE Jesus
186
187
E que nao se habituou Svocactéo
Com os rumores da cidade.
Pediu perdao, Quando eu era menina
Pelo mal que cometeu Foi tao agra a minha sina
Destruiu aquela afeiga4o Porque eu nao fui feliz
E o nosso.amor morreu. A minha mie internou-me
Num colegio de juiz.
Ela disse: tenho fome.
Quero viver sé contigo. Passei anos recluida
A mulher que engana um homem Nada posso contar da vida
Merece este castigo! Pois nado tinha liberdade.
Deu-me um beijo. E me abragou As vezes me ponho a pensar
Querendo me convencer. Como € triste recordar _
Mas 0 mal que praticou Nao tive nem amizade.
Eu nfo consigo esquecer.
As vezes tinha vontade
Dizem que ela esté magoada. De correr e brincar na rua
Chora. E nada mais lhe consola. S6 conheci a severidade
Esta sempre embriagada. A disciplina e a cafua.
Nao trabalha. Pede esmola. Que infancia atribulada
Deixou-me amargurada
Meus pais me preteriram...
E me destruiram.
E se a morte chegar na porta-
Pode entrar: que j4 estou morta

ANTOLOGIA PESSOAL Levcnnareninonsinannnssumennnmene CAROLINA MARIA DE JESUS


188 189
A vdlbice ea Oocdale A mocidade disse:
Comove-me o teu-sofrer
Apoiada a um bordao
Mas quando surge a velhice
Olhar triste e cansado
Em nada achamos PIAZEL. ene
Ela faz a revisio
Veja o prado que floresce
Do seu infausto passado.
E a primavera querida!
E uma velha a meditar
Contempla este quadro, esquece
Que grande magoa the invade As decadéncias da vida.
Na expressao do olhar
Revela dor e saudade. Nao conheces a saudade.
De nada tens experiéncia
Eis que por perto passava Ela nos procura a tarde
Uma jovem de alma pura Quase ao findar da existéncia.
Vendo que a velha chorava
Quis saber suas desventuras Aos teus olhos 0 mundo aparece
A jovem fagueira e bela Cheio de encanto e grandeza
Como o despontar d’aurora Aqueles que j4 0 conhecem...
Aproximou-se dela Em nada encontram beleza.
E perguntou: por que chora? Desconheces os desenganos
De alguém que nos faz sofrer
Ela citava suas amarguras Mas com o decorrer dos anos
E a jovem atenta ouvia Tu has de compreender
Eram frases obscuras E a velhice triste seguiu
Que ela desconhecia. E a mocidade alegre sorriu.

ANTOLOGIA PESSOAL ‘wrt conttterenotnnt temo


190 CAROLINA MARIA DE JESUS meena
191
Ofilho Quando a sua mie falar
© filho deve concordar
O desejo de mae é que o filho seja correto
Os pais devem saber que é pecado Porque o filho é sua jéia, e seu afeto
Deixar o filho abandonado Nao anda com a mad companhia
Ele cresce desleixado Porque vocé transvia-se.
Nao sera um homem honrado
Por nao ser orientado. Se uma boa agao vocé praticar
Se nos estudos for reprovado A tua mae vai rejubilar-se
Cria complexos, é revoltado O filho deve ser sempre decente
Ha de ser um transviado Para a mae viver contente.
E sera péssimo empregado Se praticares um ato prejudicial
Fica rustico, indelicado Para a tua mae é um golpe mortal
E no exército é desclassificado _ O filho que acatar a honestidade
Sera imaturo para 0 casamento A mie vive com trangitilidade
E a esposa sé ter4 o sofrimento. Se o teu carater ¢ integro e puro.

A mie tem a responsabilidade A mie nao teme o teu futuro


De incutir-lhe belas qualidades Sendo um homem sério na vida
Bom exeimplo o pai deve dar-lhe A mie fica alegre e convencida
Para o filho imitar-lhe. Ela pensa em ti todos os momentos
Um homem molecote incidente Es hdéspede do seu pensamento
Na4o tem classe para ser um pai decente Se o filho leva a vida errada
Para o filho nao ser infeliz tem que ser A mie € triste e amargurada

[itil aos pais Se o filho aprende uma profissa4o

mame CAROLINA MARIA DE JESUS


ANTOLOGIA PESSOAL +amermnamonen
193
192
Para a mae, Oh! Que satisfacao. Quando o filho est4 embriagado
O teu nome deves saber honrar
Nao da gosto ficar ao seu lado
Para a tua me nao chorar
O que cumpre o seu dever
Tua mae é uma joia.sagrada..... Para a mae é um prazer
Que deve ser considerada O que nao viola a lei
Se vocé é um homem direito
Para a mae é um semi-rei
Deve trata-la com respeito Porque a mie lhe tem amizade.

Quando vé o filho sofrer Quer vé-lo viver uma vida eternidade *


Acha insipido o seu viver E a m&e quer a paz na terra
Mie suplanta o advogado Para o filho nao ir na guerra
Quando vé o seu filho caluniado A mie a Deus pede auxilio
Quando o filho esta doente Para proteger o seu filho
Ela reza diariamente Com devocao-e fé
Transforma-se em enfermeira
E seja o que Deus quiser!
Velando-o a noite inteira
Para crid-lo, quantos sacrificios
Nao lhe recompenses com os cilfcios
Porque a luta ¢ exaustiva
Tua mie ¢ a tua cativa
A mie gosta de fazer
Tudo que lhe da prazer
O que gosta de trabalhar
A mie gosta de elogia-lo.
aK . oe
Assim no original.

vmanne ANTOLOGIA PESSOAL -seeeesscmnetromenmemnrnninenantiamd


srvemnmsanmnamsens CAROLINA MARIA DE JESUS semswennwnmmmnmnmamnenanrcoanroant
194
195
Vou internar os meus filhos Meu Sao Paulo enigmatico
Meus tesouros prediletos Ora é frio, ora é calor
Ficam 14 sem os meus carinhos Mesmo assim te quero bem
Sem ésculos e sem afetos......... . Mesmo assim tenho-lhe amor.

Sera que eu vou resistir Sao Paulo é 0 coragao


A dor da separacao? Deste grande nobre pais
Despertar e nao ouvir O que deixa o seu torrao
Mamie eu quero pio Em Sao Paulo ha de ser feliz.
Como é agro o meu viver
S6 Deus sabe 0 meu estado Choro: nio sei o que faco
Nao sei como hei de fazer Que luta! que afligao!
Sem os meus filhos ao meu lado Tenho um homem nos bragos
E outro no meu coragao.
Meu Deus vou sucumbir
Quando os meus filhos zarparem-se E a verdade 0 que vos digo:
A saudade vai interferir-me E que sirva de ligao,
Mas hei de resignar-me Nao confia no teu amigo
Sou uma misera poetisa Guarda a tua provisao.
As vezes falta-me 0 pao
Por isso fico indecisa Gosto de olhar a cruz
Sem saber se os interno ou nio. Ela é 0 simbolo da fé
Onde morreu Jesus
O filho de Sao José.

ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS

196 197
Passei pelo mundo sofrendo A vida ensinou a suportar
Nao realizei as minhas vocagées Todas as conseqiiéncias
E pouco a pouco fui perdendo A nao reclamar
Ideal e todas ilusdes. A ter fé e paciéncia.

Aos teus pés chorando venho Querido! Amo-te tanto


Implorar o teu perdao Sempre hei de te venerar
Sem ti querido nao tenho Imploro-lhe que nao deixes
Nem prazer nem ilusao. Outra mulher te acariciar.

Sois belo igual aurora Ninguém gosta de perder


Que espalha o seu esplendor As pessoas que adora
Desde quando foste embora O meu amor me faz softer
Quando diz: vou-me embora.

Querido! Vocé é um santo Dormi uma noite na areia


Quero ver-te em um altar Na linda praia de Guaruja
Peco-te que nao deixes Despertei as scis e meia
Outra mulher te beijar. Com 0 gorjeio de um sabia.

Reconhego que te amo Meu Deus! Quem é€ que n4o sente?


E 0 meu amor é profundo Jesus quem é que nao chora?
E por isso que eu penso Ao ver sofrer neste mundo
Que sou feliz neste mundo. Pessoas que a gente adora?

ANTOLOGIA PESSOAL roweee CAROLINA MARIA DE JESUS


198 199
Es tudo para mim no mundo!
‘Todos a mim tratam bem
Amo-te com imenso ardor
Mesmo assim nio sou feliz
Os teus beijos sao tao doces
Tenho saudades de alguém
Deixou-me louca de amor.
Que eu amei. E n4o quis.

O nosso viver coincide


Ha quem pensa que eu te amo,
Pobre canarinho amigo
Mas eu afirmo que nao.
Tu vives numa gaiola : Sabe, eu sou feita de pedra:
Eu na prisao por castigo.
Pedra nao tem coragAo.

Ha uma diferenga entre nds


Regressaste desiludida,
Eu sou mau, tu és carinhoso.
Dizendo-me: ndo sou feliz!
Vocé estd preso por causa da tua voz
Deturpaste a minha vida
E eu... porque sou um criminoso.
Como eu ninguém lhe quis.

Jesus tem dé de mim


Quero-lhe propor um negécio
Creio que sou vossa filha
De sociedade contigo,
Nao me deixes viver assim
Eu soube que tu tens dinheiro
Faminta e maltrapilha.
Por que no te casas comigo?

Quando eu morrer, meu Deus!


Eu disse: o meu sonho é escrever!
Aos teus bracos me conduz
Responde o branco: ela é louca.
Porque a gléria da terra
O que as negras devem fazer...
E falsa e nao me seduz.
E ir pro tanque lavar roupa.

ome ANTOLOGIA PESSGAL


wvrerommmnormnonwms (CAROLINA MARIA DE JESUS
200
201
Que vontade de chorar!
Sou no mundo um peregrino.
Que tristeza interior!
Nao sei 0 que seja prazer,
Nao posso me conformar
Pra que lutar contra o destino
Com a auséncia do meu amor, pe Se eu nasci para sofrer?

Todos a mim tratam bem


Saio de casa nao deixo nada
Mesmo assim ndo estou contente
Nem um pedacinho de pio,
Eu queria que alguém
Deixo minhas roupas molhadas
Voltasse a mim novamente. Nao as lavo por ndo ter sabio.

Tenho muita consciéncia,


Que luta para viver
Tenho senso e tenho nogao,
Quantas dificuldades
Tenho dentro do meu Ppeito
Um pobre quando morter
Nobre e bom coragao.
Nao pode levar saudades.

O sol ama a lua


A solidZo me entristece
E deu-lhe uma flor.
Vivo ocultando uma dor
Eu quero dar um beijo
Como € triste viver sé
No homem, que lhe tenho amor.
Sem carinho e sem amor.

O meu amor brigou comigo


Eu disse que te amava
Veja sé que ingratidago
Mas tudo foi brincadeira
Devolveu o meu retrato
Nos negécios eu sou sincera
Magoeu o meu corac4o.
No amor sou trapaceira.

ANTOLOGIA PESSOAL “Stenemmemerttainiene


tr amcaconctmemenm CAROLINA MARIA DE JESUS -memmunonnnnannanmnnmneenntad
202
203
Em que vives a meditar? Os poetas que passaram
Es triste e desiludida Construiram castelos no ar
Se eu pudesse modificar E quase todos idealizaram
O curso de minha vida! Somente os sonhos para sonhar.

Ha pessoas que no auge do sofrer A morte quando vem


Dizem: sou bom, sempre pratiquei o bem. Nao passa telegrama
Somente Cristo é que pode dizer: Morre quem esta de pé
Eu nunca fiz mal a ninguém. Morre quem esta na cama.

Vivo aqui abandonada Quem assim me vir cantando


Como 6 triste a solidao, Creio que nao vai me invejar
O teu desprezo é como espada S6 por dentro estou chorando
A perfurar-me 0 coracio. Mas nao compensa lamentar.

Quem revela ser amigo de verdade Quem assim me vir sorrindo


E aquele que nos procura na aflicdo Transbordando tanta alegria
Quando atingidos pela enfermidade Nao sabe o que estou sentindo
Quando estamos sozinhos na prisao. Desconhecem a minha agonia.

Quem assim me ver cantando O pobre nao deve revoltar-se


Transbordando tanta alegria Por ser pobre deve até dizer:
E que eu vivo pensando Com orgulho: foi entre os pobres
No meu amor noite e dia. Que Jesus preferiu nascer.

ANTOLOGIA PESSOAL wevams (AROLINA MARIA DE JESUS


204 205
As vezes tenho saudades Num pais subdesenvolvido
Da minha quadra inocente Onde 0 povo nfo vai A escola
Desconhecia adversidade Por nado ser bem esclarecido
Que atinge a vida da gente. O que aprende é pedir esmola.

Ha lagrima para surgir O mundo inteiro


Deriva de uma emocio Pensa em algo qualquét
Das agruras que vém ferir Ha quem pensa no dinheiro
A alma e 0 coracio. Ha quem pensa na mulher.

Aa
2
A tristeza veio visitar Agora que estou na maturidade
O meu misero coragao Arrependo-me do mal que te fiz
E disse que vai ficar Fui um esbulho na tua vida
Sem pedir-me permissio. No te deixando ser feliz.

O enquanto viver Eu era triste, queria morrer!


Nao deve errar na vida Mas restituiste-me o sorriso
Quem erra nao pode ter E que Deus vendo-me sofrer
A cabega erguida. Enviou-te 14 do paraiso.

Eu sempre fui vaidosa Jesus Cristo ficou famoso


Mas o destino comigo foi cruel Porque as suas ac6es eram nobres
Obrigando-me a andar andrajoso Angariou muitos amigos
Pelas ruas catando papel. Porque € 0 lider dos pobres.

ANTOLOGIA PESSOAL Sennen =m CAROLINA MARIA DE JESUS


206 207
O sofrimento de Cristo foi demais Nunca desprezem as pessoas
Tudo ele suportou e venceu Por estarem esfarrapadas
Horrorizado disse-lhe o satanas Ha os que vestem roupas boas
Tu... és maior do que eu. E praticam as coisas erradas.

Estou exausta. Esmorego Velhice é coisa maldita


Deus! Tenha de mim piedade Quando no se tem satide
Pego-te dé-me 0 endereco Quando o velho necessita
Da felicidade. Do auxilio da juventude.

Seguia um pobre indigente Quando a fatalidade nos atinge


Sua vida infausta era uma cruz Temos que enfrenta-la com tenacidade
E pedia diariamente Tem certos tipos que por ter dinheiro
A protegio de Jesus. Querem viver como se fossem majestade.

O empregado tem o dever Pego-te para nao chorar


De bem servir 0 patrao Quando me vires morta na mesa
Porque o servico bem feito Pois nao soubeste me tratar
E uma recomendacio. Com carinho e delicadeza.

Gosto de conversar com os pobres O homem tem que lutar


Que no cursaram universidade E feio ser vagabundo
Eles sao simples e sinceros O que nao gosta de trabalhar
E nao dizem banalidades. E péssimo héspede no mundo.

~ ANTOLOGIA PESSOAL m-mtenemncnmnenntinnamnmintmnimnsinmd


CAROLINA MARIA DE JESUS ~-memammmmunnmuinnanmeumamenennns
208
209
‘Tu nao deves ser um homem pueril Abraao Lincoln nao deveria morrer
Sem nenhuma utilidade De um modo tragico e brutal
Tipos que causam ao Brasil Vieste ao mundo para fazer
Vergonha e infelicidade. O bem e njo o mal.

Nido devemos negociar Quando eu era menina


Com o medfocre e trapaceiro Tinha pensar esquisito
Devemos nos separar Via doces na vitrina
Cada porco no seu chiqueiro. Desejava ser mosquito.
i
Foi tao triste a minha vida Ninguém amou a poesia
Sofri, chorei, que desventura Certamente mais do que eu
O meu sofrimento njo vai caber Nem mesmo Goncalves Dias
Dentro da minha sepultura. Nem Casimiro de Abreu.

O homem deve ter elegancia De mim nio sentes saudades?


Nao praticar ato pueril Nao. E porque ndo tens amor
Os atos com ignorancia Percebi que a nossa amizade
Empobrecem 0 nosso Brasil. E haste que nao dé flor.

Deus nao faz omissao Nao mais tenho alegria


No seu justo pedido O que devo fazer agora
Peca-lhe com devocao Aquele que eu mais queria
E has de ser atendido. Sem motivos foi-se embora.

i
i
ANTOLOGIA PESSOAL —ereetnunnarannomenmnnumanmaied —rowemenmmene (CAROLINA MARIA DE JESUS
210 211
Actua auséncia me escraviza Dizem que amor é€ pecado
Eu sofro constantemente Eu ao amar nao mé rendo
Tua presenga é que leniza Eu vejo que os que tém amores
Esta tortura pungente. Vivem brigaiid6 e sofrendo.

Descobri a minha enfermidade Desejo ter uma casa com jardim


E tao grave esta doenca Feita sé para nds dois
Ela chama-se saudade Se vocé nao gostar de mim
E surgiu com a tua auséncia. O amor vird depois.

Minha existéncia é sombria Eu te amo. Eu te venero


Vivo tao sé neste mundo O meu afeto é profundo
Minha amiga é a poesia Vocé é uma das coisas que quero
Que nao me deixa um segundo. Neste mundo.

Coisa que eu nao tenho inveja Minha renda é tao precaria


E da mulher que é casada Que as vezes passo privacao
Quando ela pede comida. Com a fama de miliondria
O marido quer dar pancada. E sem tostao.

Como sofreram os favelados Quem me dera enlouquecer!


Da favela do Vergueiro Era um ponto final na tribulacdo
Vivem todos misturados Como € agro o meu viver
Como os porcos no chiqueiro. Ganho unidade, e gasto um milhao.

wont ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS


212 213
Para nao ser atropelado.
Ao sair da favela, cantei
Que visitando a cidade de Sentindo um prazer interno,
S40 Paulo, nao podendo andar Mas foi depois que eu notei
Livremente pelas ruas, disse: Nao era o céu, era o inferno.

Eu nao gosto de S40 Paulo! Nao quero que ninguém passe


Eu vou dizer qual é a razao Neste nticleo o que eu passei
E que o raio destes chauffers Que nfo entre neste falso
Nao sao firmes na direcio. Paraiso onde eu entrei.
Outro dia quase que fiquei
Por debaixo de um caminhio. Eu andava toda trapuda
Eles andam pelas vias... Como um Judas
Parecendo um furacio. Pelas ruas da cidade
Eu nao posso levar susto
Que eu sofro do coracio. Eu estava vasculhando
Tem carro que anda no ar Procurando

Nao pousa a roda no chio. A dona felicidade.

Os chauffers querem apostar


Ela é muito poderosa
Corrida com o aviao.
E orgulhosa
Eu aqui nesta cidade
Tem fobia dos homens pobres
Nao tenho tranqiiilidade
Gosta de bajular
Corro mais do que um veado
E auxiliar...
Tenho que tomar cuidado
Os nobres.

ANTOLOGIA PESSOAL
214 ummm (CAROLINA MARIA DE JESUS
215
Como passa os teus dias? O VELL
Neste recanto solitdrio
...Lenho inimeras alegrias Em vida o homem € escritor
Com 0 meu esposo imagindrio. E doutor,
E senador,
Deus disse, paz na terra E majestade.
Ao homem de boa vontade. Assim ele se discrimina,
Nao mandou fazer a guerra Mas na campa predomina
Que dizima a humanidade. A igualdade.

Que luta! Que estertor! E o orgulho entdo finaliza.


Que em vida o homem sente O homem n4o mais precisa
Quem mais softe € 0 escritor, De brasao.
Quando morre interiormente. Vai para o campo silencioso
E tenebroso
Entrei no meio deste povo. Dentro de um caixdo
E fiquei tao desiludida E na campa ele estara sé.
A tinica coisa que eles fizeram Na campa ele é apenas po.
Foi: complicar a minha vida.

CAROLINA MARIA DE JESUS


ANTOLOGIA PESSOAL
216 217
Ansetio- Por GUE Rora?

FE rao triste a minha vida... Poeta por que chora?


Nido conheci mae nem pai, E uma dor ¢ uma saudade
Sou como a folha despreendida Meus tempos de outrora
Que ao sopro do vento vai... A minha felicidade.
Nunca amei. Nao tenho amante
Nao sei 0 que seja afeicao E uma saudade que mata
Sou uma andorinha errante Saudade do meu amor
Que anda vagando em vao. Saudade de uma ingrata
Que nao soube dar-me valor.
Por que me desprezas assim?
Saudade de uma mulher
Eu nunca fui preferida
A quem dei o meu coracao.
Quando alguém gostar de mim
Foi-se embora, nem sequer
Terei entao prazer na vida.
Disse-me qual a razao.
O meu corac&o estd ansioso
Vivo tristonho vagando
Para abrigar a alguém
Nao tenho destino a seguir
Amiéavel, belo e carinhoso,
Sabe o que estou esperando?
E que me queira muito bem.
A minha amada surgir.

Nao ha de magoar-me em nada Os que amam com sinceridade


E que nao canse a minha paciéncia. Choram, se 0 amor esta ausente
Entio serei uma felizarda Para haver a felicidade
Hei de gostar da minha existéncia. O amor deve estar presente.

ome ANTOLOGIA PESSOAL - CAROLINA MARIA DE JESUS


218 219
Tem a fragrancia da flor,
Kino- LO- M7t0F*
Produz alegria e ilusao.

Todas vidas tém um drama, Vendo-te fiquei extasiado,


S6 a infancia tem comédia, Pensei que eras uma santa.
Quando a gente cresce e ama Depois de haver-lhe contemplado
“FE que conhece a tragédia. Para mim ninguém te suplanta. _
Contigo quero construir um lar
Quando no amor é correspondida, Com 0 alicerce da felicidade.
Duplica-se a nossa ilusao. Com os meus deveres nao hei de faltar.
Quando se é preterida, Exijo sé a fidelidade.
Que mdgoa no coragao!

Quando 0 homem nos tem amor,


A mulher acha lindo o seu viver.
Se lhe pretere: que estertor!
Blasfema chora e quer morrer.

Quando o homem nos acaricia,


Como é sublime o mundo.
Quando fere com ironia,
Oh! Que desgosto profundo!

O néctar que se chama amor


Estd no centro do coragao,

CAROLINA MARIA DE JESUS omrsetereeesnnmmnmnncmmannmmnmnnad


ANTOLOGIA PESSOAL
221
220
Que falta imensa nos faz!
Kennedy Dos negros, era o protetor.
Kennedy grande estadista
Quando penso no Kennedy, coitado! Nasceu para governar.
Choro e sinto saudade. Era bom... nao foi egoista
Era um homem super-ajustado Distribufa sé o bem-estar.
- Era o orgulho da humanidade. Quem mata o seu semelhante
Kennedy foi 0 orgulho do mundo Revela a sua indole de maldade
Nao derramou o sangue do seu semelhante Atos ferozes que sio o comprovante
Foi um homem de saber reto e profundo Da ignorancia e da perversidade.
Nao mais ter4 outro que the suplante. Kennedy era imparcial,
Kennedy no mais tera sucessor Sem motivo foi assassinado
Que lhe suplante nas qualidades Era bom, justo e leal
Revelou-se homem de valor. ....... Ha de ser sempre venerado.
Nos proporcionou tranqiiilidades. Kennedy nao foi genocida
Kennedy dedicou-se ao mundo Nao ceifou vida.
Reprovava 0 preconceito Aqui deixo meu dédio eterno...
Com o seu conhecimento profundo Quem matou o Kennedy que va...
Deveria ser reeleito Para o inferno.
Os povos incultos 0 ceifaram
Do seio da humanidade
Sao os mediocres que nao notaram suas
[belas qualidades
Que no céu esteja em paz
Porque na terra foste um senhor.

Lecomenenmanneniananienmnninrennmmenaen CAROLINA MARIA DE JESUS


ANTOLOGIA PESSOAL
223
222
Tipos néscios, destruidores.
Quantos males nos acarretam!
Esta patria me pertence...._. Se brigam reis e governadores
E a mim ninguém convence Para provarem os seus valores
Por ela hei de morrer. Decretam guerras mutuamente.
Nao sou revoluciondrio Mas sao os filhos dos operdrios
Apenas um expedicionario Que marcham para o calvdrio
Que o Brasil foi defender. E morrem tragicamente.
Esta patria tem valor Quem faz guerra? é o imbecil
Hei de ser 0 seu defensor Seja na China ou no Brasil
Nao merece o nosso louvor

7088
Mesmo perdendo a minha vida.
Mas enquanto eu respirar
Aquele que sabe governar,
cect Paz ao seu povo deve dar.
Ninguém ha de violar
Nao queremos o estertor!
Meu Brasil, patria querida.
Guerra nao é bravura, nem coragem!
Nas guerras os homens embrutecem
E um drama selvagern.
E quantas vidas fenecem!
Que atos negros e brutais!
Os que fazem as guerras nao sao os pobres
Sao os poderosos ¢ nobres
Sem culturas intelectuais.
As guerras atrofiam as nacdes
Prejudicam as populagées
Cenas hediondas e abjetas!
Quem faz guerras nao tem valor

ANTOLOGIA PESSOAL =~
Lntesrnumnemamenasianrinernranimermenm CAROLINA MARIA DE JESUS
224
225
Dominou a pura donzela
Pristio- de amor
E habitou-se no seu coracao.
Ela deixou de cantar.
Era linda como alvorada
.Para.ndo 0 magoar
A alma despreocupada
Nao sorriu a mais ninguém.
Como as aves n’amplidao.
Ela diz diariamente
Levava a vida a cantar
Vivo feliz e.contente.
Nunca pensou em amar.
Ele é belo e me quer bem.
O amor é uma prisao.
Eis que chegou a vez.
Cantava ao romper do dia
A morte ingrata lhe fez
A todos meiga sorria,
Uma triste ingratidao.
Puro era o seu coracao.
Roubou-lhe o seu amor.
Levava a vida a cantar Ela vive a chorar de dor
Nunca pensou em amat. Com os olhos fixos no chao.
O amor é uma prisio.
O sorriso que langava
Era lindo, e cativava.
Era uma seducio.
Levava a vida a cantar
Nunca pensou em amar.
O amor é uma prisio.
Ela que a todos sorria
Eis que chegou um dia
Ouviu uma declaracio.
As frases puras e belas

Aeremamceriniecomnniiminen:snintaunmmomermin ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS w-enmsmnmmnannminsnanarsmmmamnmnt


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Primetro- anor Olvidou o juramento.
Por que a mulher ¢ assim?
Eu era triste e desolado. Sinto no meu cora¢ao
O meu coragao desabitado A dor da recordacao.
Eu no tinha alegria. Oh! Existéncia oprimida!
Os meus longos sonhos de outrora Se algum dia ela voltar
Realizaram-se numa hora.’ E o meu perdao implorar
Tudo em mim rejuvenescia. Ja esta absolvida.
Encontrei na minha estrada Na solidao do meu quarto
Uma mulher, uma fada. Eu contemplo o seu retrato
Tinha aspecto de inocéncia. E bela. Igual uma flor.
E desde aquele momento E ele esté autografado.
Ela dominou o meu pensamento Dedico ao meu bem-amado,
E faz parte da minha existéncia. Ao meu primeiro amor.

Esta mulher querida


A quem dei a minha vida
Dissipou a minha ilusdo.
Eu supunha ser bem feliz
E os sacrificios que eu fiz
Pagou-me com ingratidao.
Era fagueira e bela
Ensinou-me a gostar dela
Jurou viver sé para mim.
Para ver.o meu sofrimento

ANTOLOGIA PESSOAL wenssenncitmmenemeoen CAROLINA MARIA DE JESUS


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Visita | Estitua de peara
ceeeetenaeetaeteeet . Visitando uma prisao Amas a agua que corre
Comoveu-me o coragao O cantar de juruti
Vi tristezas e ansiedades Nao pensas em alguém que morre
- ©. preso é triste e descrente Louco de amores por ti.
E pensa constantemente:
Na liberdade! . Ama 0 espago deserto
Ali através das grades As estrelas e 0 seu fulgor
Ele chora. E sente saudades. De ti estou sempre perto
Nao me dedicas amor.
Da sua infancia querida!
Do inicio de suavida en Oprimir a dor pungente
Quadros de felicidades. Sem ter quem de mim compadece :
Na insciéncia errou um dia E ainda sofrer ocultamente
E assim ele destruia Por alguém que nao se esquece
Suas possibilidades.
Os meus sonhos, que primores...
Eram amar-lhe com ternura
Finou-se 0 meu amor

i Dei-lhe ha pouco a sepultura.

No epitafio esta escrito:


Descanse em paz, querida

ANTOLOGIA PESSOAL sencenceminnnennmmnnnrmntnensccmmnmennan ~ CAROLINA MARIA DE JESUS sevsornaasinnnirnecimemanisincnsannnmns

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Foste 0 meu amor infinito Dona Leonor
A razado da minha vida.
Para o pobre que dorme na calgada
Arrebatou-lhe outros bracos Que conhece na vida sé 0 estertor
Dia a dia, este amor medra A sua alma era agasalhada
Fique imdvel, nao sei o que faco. - Com 0 carinho de D. Leonor
Qual uma estdtua de pedra. O pobre que nao conhece o lar
Que infesta a nossa cidade
Para ele D. Leonor e Ademar
Sao quase divindades

O pobre que sé conhece o dissabor


Que é obrigado.a.estender a mo
Conserva o Ademar e D. Leonor
No fundo do coragio.
D. Leonor e Dr. Ademar
Merecem a nossa consagragao
Porque o pobre ndo sabe pagar
O favor com ingratidao

Obrigada D. Leonor
Nao deixava o pobre ao Iéu
Has de receber uma flor
De Deus! L4 no céu.

CAROLINA Maria DE JESUS


ANTOLOGIA PESSOAL <-emmninnennsinaenensiniuneumanunnsnmavenane
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Euclides da Cunha escritor proeminente
Sua morte foi cruelmente
Nem sempre s4o ditosas Joana D’Arc vendo a Franca oprimida
Vidas das pessoas famosas Defendendo-a pagou com a vida

Edgar Allan morre na sarjeta Camilo Castelo Branco foi escritor

Na guilhotina Maria Antonieta


Ficou cego, suicidou-se
Kennedy desejava a integragao
Luiz de Cames teve que mendigar
Reprovaria a segregacaio
Gongalves Dias morre no mar
Foi morto 4 bala
Casimiro de Abreu morre tuberculoso
Na cidade de Dallas
Tomaz Gonzaga, louco furioso
Jesus Cristo nao foi julgado
Gettilio para impedir outra revolucdo
Foi chacinado e crucificado
Suicida-se com um tiro no coracao
Com requinte de perversidade
Santos Dumont inventor do avido
O pior crime da humanidade.
Que foi utilizado na revolugao
Para ver o Brasil independente
Morre na forca nosso Tiradentes
Luis XVI, rei incidente
Morre tragicamente
Sécrates foi condenado a morrer
Ciente lhe obrigaram a beber
Joao Batista repreendia os transviados
Foi preso e decapitado
Abraao Lincoln abolindo a escravidao
Foi morto A traigdo
le
etveaanancss separating. sre cas

we ANTOLOGIA PESSOAL CAROLINA MARIA DE JESUS wsmommmummnnnrerniimmmcmanrieaaet


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da denuncia social. Primeiro porque a
métrica € a rima que se impuseram
parecem mais ordenar suas idéias do que
aprisionar seu sentimento, em segundo

ai
lugar porque o “patriotismo ornamental”

aoa
de poemas como Meu Brasil, Getilio

Cea
Vargas e outros jd € corrigido pelo
contorno espiritual do livro, um amargo
catdélogo de dores e sofrimentos
experimeéntados pelos humiihados e
ofendidos do Pais, um denso relato que,
se nao contém andlises profundas, tem o
mérito de se expor em cores fortes €
linguagem direta:

Como é sacrificada
A vida do trabathador,
O salario sobe de escada,
Os precos de elevador.

Mas além desse aspecto, 0 livro também


PAPEL CAPA impressiona pela tematica amorosa, presente
Cartao 2 50g/m? em boa parte dos textos. Um pedir amor e
um dar amor que esbatram sempre na
Papet MIoLo impossibilidade do encontro sao mostrados
Polén Rustic Arei aqui em dimensao demasiado humana.
a 85g/m?
Essa utopia da integragao no outro justifica
o aparente lapso do poema A rosa, onde
IMPRESSAO
Carolina escreve que seu viver é “transitivo”,
Rebougas Reproduc
ées Grdficas quando parece que queria dizer “transitério”.
‘Transitéria ¢ transitiva é a vida que se da a
FOTOLITO DE MioL
o ver nessa Antologia pessoal.

Minion Tipografia
Editorial
CARLITO AZEVEDO

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