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AS MARGENS

A propósito de Derrida
PUC

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AS MARGENS
A propósito de Derrida

Organização
Paulo César Duque-Estrada

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Eneida do Rego Monteiro Bomfim, Fernando Sá, Gisele Cittadino,
José Alberto Reis Parise, Miguel Pereira.

Capa e Projeto Gráfico


Flavia da Matta Design

Revisão de Originais
Felipe Gomberg

Tradução (inglês/português) do texto


Por amor às coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida
Prof. Paulo César Duque-Estrada

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ISBN: 851502477-2

© Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2002.

Às margens: a propósito de Derrida /


organização: Paulo César Duque-Estrada. -
Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo : Loyola, 2002.
132 p.; 21 cm. (Coleção Teologia c ciências humanas; 4)
I. Derrida, Jacques, 1930-Críticae interpretação.
I. Duquc-Escrada, Paulo César. II,Série.
III.Título: A propósito de Derrida.
CDD: 194.9
SUMARIO

Prefácio 7
Paulo César Duque-Estrada

Derrida e a escritura 9
Paulo César Duque-Estrada

Por amor às coisas mesmas: 29


o hiper-realismo de Derrida
John Caputo

Niilismo, metafísica, desconstrução 49


Rosário Rossano Pecoraro

Derrida e a diferença sexual para além 73


de) masculino e feminino
Ana Maria Amado Continentino

A "resposta" que Derrida não concedeu a Sokal: 88


a desconstrução do conceito de contexto
Leandro Chevitarese

Desçonstruções do humanismo: 103


Foucault e Derrida
Fabiane Marques de Carvalho Souza

O Adeus da Desconstrução: 117


Alteridade, Rastro e Acolhimento
Rafael Haddock Lobo
Coleção Teologia e Ciências Humanas:

1. Pecados
Org. Eliana Yunes e Maria Clara Lucchetti Bingemer

2. Virtudes
Org. Eliana Yunes e Maria Clara Lucchetti Bingemer

3- Violência e Religião - Cristianismo, Islamismo, Judaísmo


Três religiões em confronto e diálogo
Org. Maria Clara Lucchetti Bingemer

4. Às margens: a propósito de Derrida


Org. Paulo César Duque-Estrada
Por amor às coisas mesmas:
o hiper-realismo de Derrida

John Caputo

Uma obra de amor. Se o real significa o que se encontra presente, o que


está realmente aí, plenamente desvelado, então a desconstrução, como
desconstrução da metafísica da presença, é a desconstrução do realismo, de
qualquer presença plena ou real que, como tal, pode sempre ser mostrada
enquanto um efeito constituído. Exatamente do mesmo modo que a
representação e a não-presença precedem e tornam possível o "efeito" da
"presença" (VP, 58/ VF, 61),' a desconstrução terá um prazer diabólico em
mostrar de que modo a não-realidade e a irrealidade precedem e tornam a
"realidade" possível, tornando ao mesmo tempo possível e impossível o
que quer que ouse se passar por realidade. A desconstrução jamais se cansaria
de contar aos realistas aquela história contada por Nietzsche, de como o
mundo real tornou-se fábula.
Novamente, se, por realismo, entende-se que o alcance do conhecimento
se estende até à "coisa mesma", a desconstrução replicará que a coisa mesma,
Ia chose même, sempre escapa {dérobe), sempre se furta ao jogo de significantes
pelo qual a assim chamada coisa real é significada em primeiro lugar. No
final de uma famosa leitura de Husserl, após afirmar que a trajetória em
direção à presença sempre toma o caminho de ícaro, o que significa dizer
que as asas de cera de nossos significantes encontram-se destinadas a se
derreterem no sol da presença, Derrida acrescenta: "E, ao contrário do que
a fenomenologia - que é sempre fenomenologia da percepção - tentou nos
fazer acreditar, ao contrário do que o nosso desejo não pode deixar de ser
tentado a crer, a coisa mesma sempre escapa {Ia chose même se dérobe
toujours)." (VP, 117/VF.117)

1
VP: La voix et lephénomine. Paris: PUF, 1967. VF: A Voz e o Fenômeno. Trad. Lucy Magalhães. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

29
A coisa mesma é o que amamos e desejamos. E quem desejaria menos
do que isto? De fato, tanto a amamos e desejamos que não podemos admitir
que nosso desejo seja negado. No entanto, de acordo com o argumento da
desconstruçáo, a coisa mesma sempre se furta à nossa apreensão, sempre
escapa à rede de significantes com a qual desejávamos agarrá-la.
Tudo isso é verdadeiro, porém, não é toda a verdade. É verdadeiro, mas
não verdadeiro o suficiente, não a coisa mais verdadeira que se pode dizer e
nem o melhor que se pode fazer ou dizer a respeito da desconstrução. Pois
o que se deixa de lado é o ponto da história sobre como o mundo verdadeiro
tornou-se uma fábula, pelo menos do modo como Derrida a está contando,
já que para ele o conto de Nietzsche se transforma em uma love story. De
uma forma ou de outra, a desconstrução é sempre um escrever love stories.
Desta forma, contar somente uma parte da história, dizer apenas que a
coisa mesma nos escapa e nada mais, é deixar a todos a impressão errônea
de que a desconstrução nos deixa à deriva em uma região irreal e estéril
(uma Derri-dada land, como já se disse) de ficções e caprichos. Cria-se a
falsa impressão de que a desconstrução nos corta o contato com o mundo,
que o lugar onde as coisas realmente acontecem, onde os "eventos"
transpiram, sempre nos escapa. Mas isto é uma idéia distorcida da
desconstrução, já que nela tudo tem lugar como uma preparação para o
evento, para algo que realmente acontece, brota e irrompe sobre nós, algo
que realmente nos move e acende nossa paixão.
Ao se contar apenas metade da história, dá-se crédito à crítica segundo
a qual a desconstrução é uma forma de niilismo, relativismo ou subjetivismo,
que ela nega a referência e nos tranca em uma prisão de jogos de diferenças.
No entanto, como irei sustentar, a desconstrução da realidade e da presença,
da presença real, não é algo ruim, mas sim uma obra de amor e sacrifício.2 A
desconstrução não é um meio de transformar o nosso conhecimento em ilusão,
nossa fé em desespero, ou nossa linguagem em um local de confinamento. A
desconstrução não é uma forma de desfazer a verdade, mas de fazê-la, defocere
veritatem, para citar uma expressão de Santo Agostinho que Derrida tanto
gosta de citar e recitar. Longe de nos confinar em alguma coisa, a desconstrução
da presença pretende nos liberar, abrir as coisas, abrir a presença para além

2
Para a fundamentação desta presente leitura da desconstrução como uma filosofia do amor, ver o
meu livro The Prayers and Tears ofjacques Derrida: Religion without Rcligion. Indiana Series in the
Philosophy of Religion. Bloomington: Indiana University Press, 1997; e Deconstruction in a Nutshell:
A Conversation withJacques Derrida. Editado e comentado por John D. Caputo. New York: Fordham
University Press, 1997.

30
de si mesma e oferecer a possibilidade de alguma outra coisa, de algo mais,
alguma coisa outra e além da presença, algo que ansiámos e desejamos,
algo indesconstrutível em relação ao qual o mundo meramente real e
desconstrutível simplesmente não poderá oferecer. Pois o real é sempre
desconstrutível, mas o que a desconstrução ama não é desconstrutível.
Vamos falar, então, do amor. E o que mais há que vale o nosso tempo
e esforço? O que amamos mais, o que mais instiga o amor em nós, senão
algo elusivo e além do nosso alcance, algo impossível que simplesmente não
podemos possuir? Que outra maneira melhor de se elevar o amor até um
estado febril do que se dar conta de que aquilo que amamos é impossível e
sempre nos escapa? Amar o que é meramente possível, moderar o amor à
marca mediana do provável, investir com critério e prudência nossas energias
amorosas de modo a esperar um justo retorno sobre o esforço despendido,
não se encontram aí todos os predicados de um amante sem paixão, aquele
a quem Johannes Climacus chama de um "camarada medíocre"?3 E não é
o realista exatamente um tal camarada medíocre, que, apesar de toda a
audácia de sua fala e do ar pomposo de sua bravata sobre a realidade, não
ama ou não tem paixão por um amante que se furta tal como as coisas
mesmas? O desejo da desconstrução não se satisfaz com o que quer que se
nos apresente como real. O seu amor se dirige para além do que se mostra
como real, em direção a um ultra-real pelo qual rogamos e vertemos nossas
lágrimas, em direção a um hiper-real, algo que não é menos mas sim mais
do que real, não abaixo mas sim além do real.
Defenderei, portanto, o "hiper-realismo" de Derrida, o seu realismo
além do realismo ou sem realismo, segundo a famosa lógica do sans que,
como sustentarei, consiste em uma obra de amor, um amor do qual delimi-
tarei uma série de traços que marcam o retrait do hiper-real. Tomando
como ponto de partida o que Derrida diz a respeito da singularidade, do
tout autre, do impossível, e das outras características que descreverei mais
abaixo, defenderei o argumento de que quando ele diz que a coisa mesma
sempre escapa, esta sua afirmação é feita em nome de um amor pela
indesconstrutividade do inteiramente outro. Conforme irei argumentar, a
desconstrução enquanto tal nada tem a ver com o relativismo que os realistas
e outros críticos da desconstrução gostam de denunciar, já que o relativismo
é sempre algo a menos, e não a mais, do que o realismo. Quando Derrida

3
Soren Kierkegaard. Kierkegaard's Works, v. 7, PhilosophicalFragments. Ed. and trans. H. Hongand
E. Hong. Princeton: Princeton University Press, 1985, p. 37.

31
diz que a coisa mesma sempre escapa, ele o faz em nome de um inteiramente
outro {wholly other) que ele ama e quer preservar. A coisa mesma é mantida
a salvo (saufi se e somente se ela for ocultada em segurança, se o que quer
que se apresente como sendo da ordem do real for qualquer coisa, salvo
(saufi a coisa mesma, que escapa em segurança. A afirmação de Derrida de
que a coisa mesma nos escapa é feita numa perspectiva muito semelhante a
de Lévinas, quando este observa que o amor "é uma relação com aquilo
que sempre escapa" (une relation avec ce qui dérobe àjamais) .4 É neste sentido
que Derrida vai dizer que amar significa "entregar-se ao impossível", se
rend, render-se a, voltar-se para o impossível: "Render-se ao outro, e é impos-
sível, daria no mesmo que se entregar indo em direção ao outro, vir a ele,
mas sem transpor o limiar, e a respeitar, a amar mesmo a invisibilidade que
mantém o outro inacessível."5 (Sauf, 911 Salvo, 61,62)
Pois o "outro (amado)", 1'autre (aimé), deve permanecer outro, mantido
em segurança como outro, enquanto que, de nossa parte, temos que nos
desarmar (rendre les armes) e nos entregar, sacrificando ou desistindo do
ataque realista sobre o mundo e, com isto, permitindo à coisa mesma evadir-
se justamente para mantê-la a salvo e mostrar o amor que temos por ela.

Singularidade. A desconstrução surge de um amor pela singularidade,


de um respeito infinito pela singularidade, que é a primeira marca ou traço
do que estou aqui chamando de hiper-real. A desconstrução é um trabalho
de diferimento com relação às demandas da singularidade. A Différance (se
tal coisa existe) é infinitamente reverente à idiomaticidade do singular, à
sua constituição irrepetível e idiossincrática diante da qual Derrida não
encontra palavras.
Consideremos o nome próprio, que Derrida tanto gosta.6 A idéia do
nome próprio, a sua "condição de possibilidade" mesma, é a de expor um
significante que diga respeito a uma pessoa particular, que seja, justamente,
o sinal daquela pessoa singular e de mais ninguém, o sinal singular daquela

4
Emmanuel Lévinas. Étbique et infini. Paris: Fayard, 1982, p. 59; Trad. Ethics and Infinity. Trans.
Richard Cohen. Pittsburgh: Duquesne University Press, 1985. p. 67.
5
Saufi Saufle nem. Paris: Galilée, 1993. Salvo: Salvo o Nome. Trad. Nícia Alan Bonaici. Campinas:
Papirus Editora, 1995.
6
Ver a análise que ele desenvolve em "Signature Event Contexf. In: Margins ofiPhihsophy. Trans. Alan
Bass. Chicago: University of Chicago Press, 1982, pp. 309-330. "Assinatura Evento Contexto". In:
Margens ela Filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa e Antônio M. Magalhães. Campinas: Papirus Editora,
1991.

32
mesma pessoa. Num dado nome próprio, somente uma pessoa singular
responde a tal nome, como um sinal que seleciona somente aquela pessoa.
Isto é o que desejamos e amamos, de modo que o nome próprio constitui
uma obra de amor. Mas tal é impossível (e esta é a razão pela qual o amamos
e desejamos ainda mais), e é deste modo que a condição mesma pela qual o
nome próprio torna-se possível atua, ao mesmo tempo, no sentido de torná-
lo impossível. Pois se, em última instância, o signo fosse inteiramente
próprio, absolutamento único e idiomático, ninguém iria compreendê-lo,
e nem mesmo saberíamos se se trata de um signo e não de um mero som ou
arranhão numa superfície. Para que algo seja um nome, é preciso que ele
seja um significante, e para que ele seja um significante é preciso que seja
significativo, e para que seja significativo é preciso que ele seja repetível. E
preciso que sejamos capazes de assinar este nome repetidas vezes, chamá-lo
e ser chamado por ele, usá-lo com freqüência, mesmo na ausência de seu
referente. Um significante precisa ser tecido por uma matéria repetível,
caso contrário ele será consignado à ininteligibilidade. Mas se um significante
é repetível, então, ele é atribuível a outros que podem ter o mesmo nome,
de modo que a sua propriedade torna-se assim comprometida. Caso ele
queira ser um nome próprio, ele não pode ser um nome próprio em um
modo absoluto. Um nome próprio é uma tentativa de pronunciar algo
repetível sobre o irrepetível.
Mas o fato decisivo nesta aporia não está em nos paralisar diante do
singular e nos mandar de volta para casa com desânimo e sem esperança,
mas sim em inspirar em nós um respeito infinito. A análise aqui considerada
se oferece, toda ela, num esforço em se fazer justiça à singularidade, num
curvar-se diante desta, como um monge budista se curva face à natureza do
Buda existente na pessoa desconhecida que se encontra à sua frente. A
finalidade desta aporia é elevar o nosso amor e apreciação pela singularidade
do singular, pela impossibilidade estrututral de se nomear o outro com um
nome que seja, unicamente, o nome daquele outro (como o terceiro e mais
secreto nome do gato); é dar-nos um sentido da situação impossível em
que nos encontramos sempre que usamos um nome próprio. Mas o
impossível não é uma simples contradição lógica, não é, de modo algum,
uma questão de lógica, mas uma forma de ética ou de eticidade da ética,
uma hiper-ética ou o aspecto mais sutil da alma ética (P, 53-54n3), 7 que

P: Paixões. Trad. Lóris Z. Machado. Campinas: Papirus Editora, 1995.

33
tem a ver com as coisas que mais nos surpreendem e que mais comandam
o nosso respeito. Quando nos encontramos totalmente convencidos de que
enfrentamos uma situação impossível ou o impossível, de que não há para
onde ir, que não podemos avançar para nenhum lugar, então, e somente
então, somos levados a proceder com cautela, com o devido respeito e a
devida atenção às demandas que a situação nos impõe. Quando estamos
convencidos de que não há para onde ir, então, e somente então, podemos
"nos por em movimento".
Esta aporia não é solucionada, resolvida ou desemaranhada por uma
análise sagaz ou por um hábil exercício semântico. Ela se encontra envolvida
e partida por uma falha pragmática, ou seja, pelo uso do nome em um
contexto suficientemente determinado, assim esperamos, para permitir que
tal uso "funcione" ou "tenha sucesso" em atingir o seu alvo. Cruzamos os
dedos para que o nome não se perca em confusão, como às vezes ocorre, o
que, aliás, é sempre possível do ponto de vista de sua estrutura. De fato, a
possibilidade de confusão no uso do nome, que é a condição de sua
repetibilidade, é também condição de possibilidade de sucesso do seu uso.
O contexto fixa a referência durante um tempo suficiente, mantendo-a
estável o necessário para fazer com que o nome funcione ao menos por um
certo momento, que é, afinal, tudo o que precisamos. O que se tem em
vista não é possuir uma idéia correta da verdade, mas sim. fazer a verdade,
facere veritatem, pôr a verdade do nome próprio para funcionar, introduzir
a sua verdade na fábrica da vida lingüística. A desconstrução afastou-se da
idéia representativa da verdade, não pela via de um pôr-se de joelhos em
aterrorizante admiração diante das profundezas da aletheia grega, no ressoar
da qual todo joelho germânico deve se dobrar, mas sim substituindo-a com
amor, deslocando-se para a terra Latino-Agostiniana da regio dissimilitudinis
e para o modo do facere - em cujo áspero ressoar todos os greco-
heideggerianos levam as mãos aos ouvidos (capazes de ouvir ali a marcha
das tropas do Gestell sobre Freiburg) -, do tornar a verdade em algo a ser
feito e realizado, numa espécie de agostinianismo judaico.
Assim, longe de se constituir como uma sofistica irresponsável que nos
leva à simples confusão, ou como uma tentativa de brincar com o uso sério
que se faz da linguagem ordinária, a aporia jocosa de Derrida sobre o nome
próprio é um gesto de amor, de justiça, de dar ao singular o que lhe é
devido, de entrega e rendição a ele. Longe de negar ou de minar a
singularidade, o que a desconstrução faz é uma afirmação ética ou hiper-
ética da singularidade do outro. Derrida tenta mostrar como os nomes
34
próprios funcionam, como eles realizam o seu trabalho, ao mesmo tempo
em que nos adverte, de forma salutar e admoestatória, para não exagerarmos
os sucessos ou inflacionarmos os resultados que obtemos. Pois o singular é
a margem em direção à qual partimos, mas na qual jamais chegaremos, o
portal que não ousamos transpor. Fazer uso de um nome próprio é dar o
passo/não além, le pas au-delà, o passo que estamos sempre dando mas
nunca realizando. Um nome próprio é como o dedo budista apontado
para a Lua. Precisamos manter o nosso olhar voltado para a Lua, não o
dedo, enquanto concedemos ou, mais ainda, afirmamos, oui, oui, que o
dedo não alcança a Lua, que a flecha intencional deste nome não atinge o
seu alvo ou, se o atinge, fere-o. O insucesso da flecha em atingir o alvo é a
condição de seu sucesso. A impropriedade que se infiltra no nome próprio
mantém o singular safe-saufle nom, protegendo o singular ao abrigo da luz
de um nome que exporia o seu segredo, que o sujeitaria a uma luz áspera e
mortal, como se o singular fosse uma flor delicada, só podendo florescer na
luz indireta de um abrigo sombrio.

Inacessibilidãde. A desconstrução, diz Derrida, é um ato de "respeitar,


[de] amar mesmo a invisibilidade que mantém o outro inacessível." (Sauf,
91/ Salvo, 62-63). O limiar do outro deve ser respeitado. Pois o outro
pereceria sob o olhar direto da intuição, e aqui Derrida deve muito à Quinta
Meditação Cartesiana de Husserl. De fato, diria Husserl, se eu pudesse intuir
o outro precisamente em sua alteridade, entrar no fluxo da corrente de
uma vida que não é a minha, a sua alteridade dissolver-se-ia, então, e se
transformaria em mim mesmo e seria minha, a minha dor, por exemplo, e
não a dor do outro. Como Derrida disse em uma mesa redonda em Dublin,
em 1977, ele aprendeu com Husserl uma profunda lição:

Husserl insiste que não há intuição pura do outro enquanto tal; isto é, eu não
tenho um acesso originário ao alter-ego enquanto tal ... Esta é a razão pela
qual ele é o outro. Esta separação, esta dissociação não é apenas um limite,
mas também a condição da relação com o outro, uma náo-relação como relação
... uma relação não-intuitiva. Eu não sei quem o outro é, eu não posso estar
do outro lado. (QE, 71).

8
QE: Jacques Derrida. "Hospitality, Justice and Resfonsibility'. In: Questioning Ethicr. Contemporary
Debates in Pbilosophy. Ed. Richard Kearney and Mark Dooley. New York: Routledge, 1999.

35
O outro é constituído, como diria Husserl, pela sua inacessibilidade
intuitiva ou seu caráter não-intuicional, por um limiar que não se pode cruzar.
Isto quer dizer que há, no ponto mais extremo da fenomenologia - o momento
de estabelecimento da intersubjetividade, que é a chave para o sentido mais
forte da objetividade fenomenológica-, o que Derrida chama de interrupção
da intuição fenomenológica. Mas esta interrupção, esta "quebra no interior
da fenomenologia, com o princípio da fenomenologia", acontece,
precisamente, em nome de uma tarefa infinita da própria fenomenologia.
De fato, a fenomenologia pode ser fiel à sua infinita vocação se e somente se
ela se auto-interromper, ou seja, apenas se a percepção do alter-ego for
delimitada como a percepção. Esta auto-interrupção, este obscurecimento
estrutural do olhar da intuição, não significa um enclausuramento do ego
nos confins do solus ipse, mas justamente o contrário; o ego se encontra arran-
cado de si e posto em relação com o não familiar (Jremd), com o "estranho".
Esta quebra na intuição é a condição de possibilidade (e de impossibilidade)
da relação com o outro, de se resguardar o outro em sua alteridade. Esta
quebra é a condição de possibilidade da relação com o outro como uma
espécie de não-relação ou de relação não-intuitiva, de relação sem relação.
Mas para além da fenomenologia de Husserl, Derrida afirma que "é no
interior desta quebra que Lévinas encontra o seu caminho" (QE, 71). A ética
levinasiana da alteridade também representa para Derrida uma profunda lição.
Toda a idéia do inteiramente outro (toutautré), do "infinitamente outro", é a
de que, em seu cerne, o outro é por princípio inacessível a mim. Deste modo,
nem mesmo uma infinita quantidade de tempo gasto no convívio com um
outro ego seria capaz de construir uma ponte sobre a lacuna que me separa
dele. Esta lacuna, para Lévinas, não é uma lacuna epistêmica que se deve, de
algum modo, atravessar. Ela é um abismo ético que se deve afirmar e honrar.
Como vimos, ela constitui, na verdade, a condição mesma do amor. Mas
todas as coisas sagradas que Lévinas diz sobre o inteiramente outro por meio
do qual ele se refere à outra pessoa tomada sob o modelo da transcendência
divina que, para ele, é o que realmente constitui o inteiramente outro, são
estendidas por Derrida para todo e qualquer outro. No pensamento de Derrida,
que tem algo de um levinasianismo generalizado, cada outro é inteiramente
outro, tout autre est tout autre, da alteridade de uma outra pessoa à alteridade
do gato de Derrida9 e de todos os outros gatos do mundo, e da alteridade de

9
Cf. Jacqucs Derrida. The GiftofDeath.Tná. de David Wills. Chicago: University of Chicago Press,
1995, pp 70-81.

36
todos os gatos até (ali the way "dotvn") as coisas materiais inorgânicas, pela
simples razão de sua existência concreta, de sua insistência na e sobre a sua
singularidade, o que Scotus teria chamado sua haecceitas: "O outro é Deus
ou qualquer um, precisamente, uma singularidade qualquer, a partir do
momento em que qualquer outro é completamente outro." (Sauf, 92/ Salvo,
62; ligeiramente modificado)
Derrida está, com tudo isto, obedecendo a um axioma medieval, sola
angularia existunt. Há, ily a, somente singularidades que são irrepetíveis e
que, conseqüentemente, oscilam livres de nossos nomes próprios, que são
universais e repetíveis, mesmo quando elas são nomes próprios. Assim que
abrimos a boca, já nos encontramos em um médium de universalidade e
repetibilidade. A primeira palavra que uma criança pronuncia, se é que tal
palavra existe, representa o momento de sua entrada na esfera da idealidade.
Mas, por mais que este evento lingüístico seja cercado por uma comoção
mais do que justificável, não devemos esquecer do perigo que, a partir daí,
toma corpo; o perigo de esquecermos ou deixarmos para trás aquilo que
Johannes Climacus chamou de "pobre existência individual", que, afinal, é
tudo o que existe. O perigo repousa no fato de a linguagem ser idealizante
e abstrata, ao passo que a pobre existência individual é concreta. Quando
Husserl escreve que "o fato particular é irracional", e que ele deve ser erguido
a partir do que Derrida, comentando esta passagem, denomina sua
"singularidade selvagem", e quando Husserl diz que, abandonado à sua
singularidade irracional, o fato particular é o "apeiron", a menos que ou até
o momento em que passe a ser uniformizado pelas linhas maleáveis da
"abstração eidética", ele, Husserl, afirma de uma forma mais apropriada o
que a filosofia sempre pensou mas hesitou em afirmar tão diretamente,
"reunindo toda a significância de seu empreendimento", como comenta
Derrida.10 Face à densidade do singular, o primeiro instinto da filosofia é
bater rapidamente em retirada, deixando-nos diante do pior. Esta é a razão
pela qual Johannes Climacus nos adverte:''

Na linguagem da abstração, a dificuldade a respeito da existência bem como

10
Edmund Husserl. Cartesian Meditations. Trad. de Dorian Cairns. The Hague: M. NijhofT, 1960,
p. 81 (!39). Meditações Cartesianas. Trad. Frank de Oliveira. São Paulo: Madras Editora, 2001. Derrida.
Edmund HusserPs "OriginofGeometry". Trad. John Leavey. Boulder: John Hays Co., 1978, pp. 151-
52, n. 184.
'' Kierkegaards VCritings, XII. 1, Concluding Unscientific Postscript to"Phibsophical Fragments". Trad.
Howard and Edna Hong. Princeton: Princeton Universiry Press, 1992, p. 301.

37
da pessoa existente nunca aparece realmente; muito menos é explicada ... Se o
pensamento abstrato é considerado o mais elevado, resulta disto que cientistas
e pensadores abandonam orgulhosamente a existência, deixando para nós
outros o ter que se haver com o pior.

Na melhor das tradições dos realistas da Idade Média católica, de


protestantes como Johannes Climacus, e judeus como Lévinas, Derrida
nos adverte sobre a desconstrutividade dos nomes próprios em vista,
precisamente do caráter indesconstrutível da singularidade. Mas, pelo fato
do singular ser a única coisa que existe, e as coisas que existem encontrarem-
se em situações singulares, o que Derrida está dizendo - tomando-se todas
as devidas precauções — consiste numa afirmação da natureza indescons-
trutível da hiper-realidade do singular. Ao responder, em Dublin, a uma
questão sobre a différance, se esta não nos arremessaria em um abismo de
alucinações, Derrida assegura, primeiramente, que o pensamento descons-
trutivista é algo "muito distante de um pensamento alucinatório, embora
eu me interesse muito por alucinações", e que uma certa qualidade alucinante
e espectral em nosso pensamento seja talvez irredutível. E, então, ele acrescenta:

Mas existe forma melhor de se ultrapassar a alucinação do que prestar atenção


ao outro? Para mim o outro é 'a coisa real', e a referência ao outro é o que rompe
com a alucinação, se é que tal ruptura é possível. Para respeitar a transcendência
ou a heterogeneidade do outro, temos que prestar atenção. (QE, 77)

A "coisa real" é uma expressão que não desempenha nenhuma função


afirmativa na dinâmica da desconstrução, já que este termo quase sempre
significa a presença real, e a desconstrução é desconstrução do que quer
que pretenda se passat por presença real. Neste contexto da objeção feita à
desconstrução - segundo a qual a desconstrução nos confinaria em
alucinações, ilusões ou na prisão da subjetividade -, o que a filosofia clássica
chama de "realidade" ou "coisa real" (como oposta à alucinação) corres-
ponderia ao tout autre, o amor e respeito por ele é o que se trata na descons-
trução. Amar o tout autre, que a fenomenologia chama de "transcendência",
é amar e respeitar a sua inacessibilidade. Mas voltemos, por um instante, a
este tema fenomenológico. O acesso ao que é transcendente é sempre
limitado, não porque nossas faculdades sejam limitadas, mas sim devido à
transcendência do outro, à recessividade ou a um recolhimento estrutural
do que nos é transcendente. A transcendência do tout autre não é uma
38
função de nossas limitações; ao contrário, o acesso que temos ao tout autre
é limitado porque ele nos transcende. É a ausência ou a náo-doaçáo (non-
givenness) no que se encontra dado que testemunha a transcendência deste
último. Esta é a razão pela qual a coisa mesma sempre escapa.

Realismo sem Realismo. Se, em Derrida, o discurso sobre a alteridade,


sobre o "outro", atua como se tratasse da "coisa real" ou da "realidade",
então, uma vez que tudo na desconstrução se organiza em função do amor
e do respeito ao tout autre, a desconstrução tem claramente algo a ver com
um certo realismo, um realismo além ou sem realismo, o que aqui estou
chamando de hiper-realismo.
Ao falar do "hiper-real", penso no ultrapassar da presença ou da presença
real que a desconstrução desconstrói, a coisa reificada, seja um fragmento
de uma matéria qualquer ou mesmo uma coisa como a alma (res extensa, res
cogitam). Me refiro a algo que causa uma impressão sobre mim vindo de
fora, algo que surpreende e ultrapassa os meus horizontes, ou mesmo que
me choca ou traumatiza, e que me põe diante do que não sou eu, do que é
diferente de mim, ou mesmo diferente do ser no sentido de Lévinas,
permanecendo o tempo todo fora da esfera intuitiva. Um tal hiper-realismo
vai além de um realismo ousiológico e reificador da ontologia clássica em
que ens et res convertuntur, em que o ser é reificado e o real é ontológico.
Existe forma melhor de superar a alucinação, por um lado, e de superar o
realismo reificante, por outro lado, do que prestar atenção ao outro que
vem bater na minha porta? A qualidade "hiper" deste hiper-realismo repousa
na transcendência do outro, pois o outro se encontra au-delà, do outro
lado, lá, me confrontando com a sua exigência sobre mim, uma exigência
da qual eu não sou a origem, que nem sequer depende de mim ratificar ou
assumir, mas uma exigência que se dirige a mim, vindo do que Lévinas
chama o kathauto, secundum se, o por si mesmo.
É neste sentido que Lévinas afirma que se relacionar com o kath'auto é
entrar numa relação em que o correlato da relação tende a evadir-se da
própria relação.12 A relação com o outro é uma relação com o inteiramente
outro - ou o infinitamente outro, ou o absolutamente outro -, não no
sentido de se estar absolutamente não relacionado a ele, o que significaria o

12
Emmanuel Lévinas. Totality andInfinity: Essay on Exteriority. Trad. de Alphonso Lingis. Pittsburgh:
Duquesne University Press, 1969, pp. 64, 102, 180, 195, 208, 220.

39
rompimento da relação, mas no sentido de que se está relacionado a algo
que resiste em ser absolutamente absorvido por esta relação sem deixar
nenhum resíduo. Nesta relação, o outro se encontra dado de um modo tal
que ele se recusa a entregar-se por completo à relação, recusa-se a deixar-se
consumir por ela, justamente porque ele é katbauto. É isto que dá força e
tensão à relação, pois, deste modo, encontro-me continuamente alcançando
alguma coisa ou alguém que, não obstante, retira-se da esfera do meu alcance,
resistindo a ser subsumido pelo horizonte de minhas antecipações.
O realismo clássico ou suas variações mais comuns opera em um
horizonte de adequado ou correspondência, pressupondo um certo tipo de
conformidade congênita entre intellectus e res, em que a res é em princípio
conhecível pelo intelecto, conhecível tal com ela já era em si mesma, sem
escapar. Mas, no híper-realismo, a alteridade é constituída por um excesso,
OU seja, por um ir além da esfera do absolutamente e irredutivelmente si
mesmo, o que permite que o outro seja afastado, em segurança, das flechas
da intencionalidade. O padrão de referência, afinal, com que Lévinas e,
depois dele, Derrida, concebe o outro, que é inconcebivelmente outro, é
Deus, o inteiramente outro, o ens realissimum da ontologia clássica. Deus é
o mais real porque o mais elevado, o mais elevado porque o mais irredutível
ao meu horizonte, o mais irredutível ao meu horizonte porque o mais outro,
infinitamente outro. O tout autre opera como um tipo de ontos on ou
hyperousios, não no sentido de um ser absoluto e intemporal além do ser
mundano e temporal, tal como Derrida percebe na teologia negativa,
mas no sentido do que eu não vi se aproximando, do que eu não posso
imaginar ou conceber, do que quebra, perturba e desorganiza o meu
horizonte de expectativas.
O hiper-real operante em Derrida não é nem real e nem irreal no sentido
clássico, nem alucinação e nem a res domesticada do realismo ontológico.
Mas ele também não é hiper-real no sentido baudrillardiano de uma exibição
estonteante e sedutora de simulacros que substituem e deslocam a realidade
ordinária, e da qual a worldtuide web não é meramente o exemplo, mas sim
a encarnação, a apoteose. A hiper-realidade de Baudriilard corresponderia
a algo que Derrida tem um profundo interesse, a saber, os efeitos produzidos
pelas tecnologias avançadas de informação, que ele analisa enquanto
fenômeno de "espectralidade". Mas isto não é o que eu quero dizer com o
"hiper-real" que estou aqui atribuindo a Derrida, e que tem a ver
precisamente com o que se furta ao olhar e escapa, com o que não se exibe,
abrigado e afastado para a outra margem, furtando-se à fenomenalidade de
40
ambos; o conhecido dado fenomenológico e o hiper-dado espectral da
"realidade virtual".13
O hiper-realismo de Derrida deve ser pensado como um realismo além
do realismo, um "realismo sem realismo", de acordo com a lógica do sans,
tal como a encontramos na sua "religião sem religião". De fato, este hiper-
realismo tem algo a ver com uma religião sem religião, na medida em que
ele mantém uma fidelidade ético-religiosa à singularidade, à alteridade. O
sans nunca é uma simples negação mas um certo marcar sob rasura algo
que permanece como que riscado, que retorna como um fantasma {revenani),
e, neste sentido - que não é o mesmo do de Baudrillard - , seria um pouco
como um realismo fantasmático ou espectral. O seu hiper-realismo, se tal
coisa existe, deve disciplinar rigorosamente a si mesmo para se impedir de
recorrer ao que até agora tem sido chamado de "real", ao que até agora tem
reivindicado o direito de falar em nome da realidade.
Se realismo significa a tentativa epistemológica de provar a existência
do mundo real, então, como Heidegger diz em Ser e Tempo (?43 a), tal
projeto, por ser levado a cabo por um ente cujo modo de ser é ser-no-
mundo, não tem sentido. No momento em que o Dasein passa a existir, o
mundo já se encontra lá. No momento em que abrimos a boca, já estamos
respondendo ao apelo do outro. Segundo Derrida, as nossas palavras são
responsáveis, antes mesmo de assumirmos responsabilidade por elas, e isto
na medida em que elas surgem em resposta à solicitação que habita todo
ser falante, e que faz de todo falar uma resposta ao outro. Para Derrida, nós
começamos onde estamos, no texto, o que quer dizer no contexto, em
meio a múltiplos contextos dos quais nós não somos os autores e, neste
sentido, não podemos ter a esperança de poder saturá-los ou torná-los
transparentes.
Se realismo significa essencialismo - a reivindicação de que os nossos
universais e tipos eidéticos correspondam a ordens ontológicas reais - então
o hiper-realismo de Derrida cumpre o seu caminho sem este realismo, já
que, para Derrida, cada eidos ou idealidade universal é uma construção,
uma formação forjada pela repetição e a différance, e, justamente por ter
sido construída, é desconstrutível. Tudo na desconstrução se organiza em

13
Baudrillard Live: Selected Interviews. Ed. M. Kane. London: Routledge, 1993, p. 75; para o trata-
mento de Derrida sobre o efeito espectral das tele-tecnologias avançadas, ver Jacques Derrida. Spectres
ofMarx: The State ofthe Debt, the Work ofMourning, and the New International. Trad. Peggy Kamuf.
New York: Routledge, 1994.

41
torno da idéia de que não temos acesso à natureza essencial das coisas, de
que o trabalho de interpretação nunca poderá cessar, pois jamais teremos
um contato definitivo com a natureza essencial das coisas.
Se realismo significa afirmação do significado transcendental,
afirmação de uma Dingan sich que se encontra em repouso sobre si mesma
após o colapso do jogo de significantes, se realismo significa que nós nos
encontramos silenciosamente unidos a "entes reais", sem o menor traço
de um signo à vista, então, o realismo não tem sentido. Pois a coisa mesma
sempre escapa, justamente por ela ser a coisa mesma. O silêncio sem
signos de um tal realismo é algo que cabe aos quadrúpedes, que, libertos
dos obstáculos que a linguagem coloca entre eles e o seu mundo,
encontram-se livres para se deslocarem das árvores da realidade e das tocas
abaixo do solo da realidade à procura de abrigo. A tão mal compreendida
observação de Derrida, il riy apas de hors-texte não significa que não haja
referência, mas sim que não há referência sem diferença, sem différance,
sem as operações da textualidade, espaçamento diferencial e
contextualidade. "Quando digo que não há nada fora do texto", diz
Derrida na sua conferência em Dublin, "quero dizer que não há nada
fora do contexto" (QE, 79). Isto não significa que não haja referência,
mas sim que ela não é aquilo que, costumeiramente, quer se passar por
ela, ou seja, a operação serena de um sujeito que, como um arqueiro,
discerne os objetos com uma precisão infalível por meio de signos
inteiramente submissos à sua mirada intencional. A referência é algo muito
mais dúbio, presa no contínuo resvalar entre si dos significantes,
produzindo efeitos no interior de cadeias pré-constituídas de espaçamentos
diferenciais que tornam a referência possível. Como um arqueiro, tentando
lidar com as dificuldades impostas pela força dos ventos que não apenas
ameaça arrastá-lo para longe mas, acima de tudo, desviam suas flechas
para cima, temos que aprender a lidar com a inevitabilidade dessas
correntes diferenciais que nos domina, muito mais do que nós a
dominamos. Temos que aprender a respeitar a inacessibilidade do referente
que, em virtude da sua própria transcendência, sempre nos escapa.
O hiper-realismo de Derrida é um realismo sem esta forma standardào
realismo, sem nada, eu diria, do que até agora tem sido chamado de realismo.
Digo sem nada, não por se encontrar em uma situação de falta com relação
às formas do realismo, mas sim em uma situação de excesso, para além
deles. Toda a idéia envolvida na desconstrução não é a de nos trancafiar na
prisão da linguagem - e quantas vezes teremos que dizer isto? - ou de nos
42
encerrar no jogo de significantes, com o nosso nariz comprimido contra a
parede de vidro de nossa célula lingüística, tentando ver, para além dela, o
mundo lá fora. A idéia é, antes, a de se curvar, como um budista pós-
estruturalista, com respeito infinito à alteridade do que é toutautre, do que
é outro do que o eu e o meu, pois o tout autre sempre "escapa" {dérober),
furtando-se às nossas tentativas de torná-lo disponível. O arqueiro descons-
trucionista não é, portanto, o arqueiro da intencionalidade, inteiramente
dependente do cuidado em assumir uma visada intencional. Ele é mais
parecido com um arqueiro Zen, dependente das operações de um " lançar"
anônimo ("anonymous itshoots"). Melhor ainda, ele simplesmente se rende
ao que se oculta.
O que, finalmente, faz do hiper-realismo de Derrida um realismo sem
realismo é o fato de que o que quer que se possa chamar e o que quer que
se chame de realismo derridiano náo diz respeito às questões relativas ao
conhecimento e à prova, à epistemologia e legitimação. O realismo de
Derrida não transpira no meio do conhecimento e da intuição, mas sim do
amor, do fazer e realizar o verdadeiro, facere veritatem. O realismo sem
realismo de Derrida corresponderia à sua ética sem ética, à sua ética além
da ética, à eticidade mesma da ética (P, 53-54), que tem a ver não com
prova mas com testemunho e hospitalidade, não com demonstração da
realidade do outro, mas com amor e respeito pelo outro, não com um
provar de que a realidade corresponde às minhas representações, mas com
um dar as boas vindas ao outro e dar testemunho do outro que exige algo
de mim e interrompe a minha complacência. Eu me encontro sempre e já
sob a exigência do outro que vem bater na minha porta, cujas demandas
posso aceitar ou rejeitar, ironizar ou ignorar, mas cuja aproximação não
posso nulificar. Mesmo a rejeição, o desdém, o ignorar o outro já é um
responder ao outro, reconhecer a sua chegada. No momento em que abro
a boca, já reconheci e já respondi ao outro.
O que torna o hiper-realismo de Derrida tão diferente é o fato de ele
ser um realismo contra o realismo, contra o que o realismo sustenta,
contra o que o realismo "tentou nos fazer acreditar", o que ele "deseja"
(VP, 117/ VF, 117). De fato, ao invés de confessar a inacessibilidade, o
realismo procura um "acesso privilegiado", e afirma que estamos
conectados (hard-wired) à Realidade, de modo que, ao falarmos, não
fazemos mais do que refletir, como num espelho limpo, as categorias e
estruturas da realidade. Mas toda a idéia da desconstrução é a de proceder
sem esta ilusão que é a alucinação/wr excellence, a alucinação que, penso,

43
contribuiu mais ou menos para definir as formas standardào realismo.14
A pretensão de falar em nome do que é Realmente Real, de ser o espelho
no qual a Realidade Mesma se reflete, é positivamente perigosa - em religião,
política, ou ontologia - já que ela se mostra, sistematicamente, como um
perigo para a integridade de todos aqueles que pedem licença para serem
diferentes {to dijferfrom) dos auto-proclamados defensores da Realidade.

Segredo. Quando se trata da idéia de Realidade, Derrida assume o


papel de advogado do segredo, defendendo a idéia de que tal Realidade,
com letra maiúscula, se é que existe uma (Uma), é afastada em segurança
para além de nosso alcance.15 O segredo é que não há Segredo, nenhum
Segredo com maiúscula (nenhum que saibamos). Isto, para Derrida, é o
que mantém as coisas e todos nós a salvo. O segredo se constitui pela sua
recessividade. Não temos acesso a este recesso que é estrutural, e que, assim,
nos entrega aos signos, nos compele a interpretar, nos impõe a interpretar
sempre e novamente (mesmo quando apenas iniciamos algo), em um processo
que sofreria um curto-circuito caso fossemos atingidos pelo raio da Realidade
Realmente Real. Mas a idéia derridiana do segredo não é afirmada para que
se ponha em marcha um jogo livre e leviano de significantes em que, vendo-
nos libertos das demandas que nos são feitas, pudéssemos livremente realizar
travessuras através de nossas próprias ficções. Ao contrário, a idéia derridiana
do segredo surge do amor e infinito respeito à alteridade que Derrida
(seguindo Husserl e Lévinas) caracteriza, precisamente, nos termos do seu
retraimento e da sua recessividade, do seu encontrar-se na outra margem.
Existe um modo melhor de superar as ficções do que afirmando que o
inteiramente outro se retira em segurança? A real alucinação, se assim posso
dizer, não estaria em pensar que conhecemos o Segredo?
Isto não quer dizer que o segredo se refira a algum fato bruto não-
interpretado, como o noumenon kantiano, uma Dingan sich desconhecida,
enquanto o conhecimento teria a ver com as aparências. A inacessibilidade

Esta idéia é particularmente perigosa em se tratando de religião, quando permitimos que a nossa fé
e esperança que Deus tenha nos falado através da Escritura se transmute em conhecimento que,
então, passa a ser absolutizado, recebendo permissão para aterrorizar todos os outros que não
comparcilham de nossa fé. Não é acidente que a doutrina da infalibilidade do papa foi declarada pela
primeira vez no século dezenove, na mesma época em que emergiam as defesas "neo-escolásticas"
rigorosas do realismo; ambas revelam a mesma angústia (anxiety) de o Mundo Real não estar mais aí
quando acordarmos de manhã.
15
Ver o excelente trabalho sobre o segredo em Jacques Derrida. "Passions: 'An Obliaue Offering".
Tradução de David Wood. In: ON, pp. 3-34. Paixões, op cit.

44
do segredo, para Derrida, refere-se, antes, ao caráter inevitável e inextinguível
da interpretação, à incessante necessidade de sempre se interpretar
novamente. Não há um "fim" da interpretação, nem um telos ou terminus
no qual adormeceríamos rapidamente, nos braços da Ding an sich, tendo
todas as nossas limitadas perspectivas dissolvidas pela presença da coisa
mesma. Pelo contrário, o efeito do segredo é a multiplicação das
interpretações, o interpretar sem um fim, de tal modo que o fim é sem final
{the end is without end), e isto por amor às coisas mesmas, que sempre nos
escapam. N o lugar da idéia de algum estado de coisas não interpretado, a
necessidade inevitável da interpretação - o que também chamei de
hermenêutica radical16 - afirma um pensamento em termos do somatório
de todas as interpretações possíveis, aquilo que a tradição clássica chamou
de infinitude potencial, o que significa que ela nunca termina e que não
se pode, por princípio, chegar lá a partir de onde se está. Tudo o que
podemos fazer é tentar ir onde não se pode ir, prosseguir num multiplicar
de interpretações que devem mudar com as areias movediças da situação,
e enfrentar as correntes repentinas e inconstantes das mutáveis
circunstâncias históricas.
Toda interpretação sempre ocorre em uma condição de indecidibilidade.
Isto quer dizer que não podemos apaziguar o jogo, as tensões e a
multiplicidade que assedia textos e situações, crenças e práticas. Mas
indecidibilidade não significa indeterminaçlo; não quer dizer que estejamos
perdidos numa névoa de confusão, na sub-determinação e no "vale tudo"
do relativismo. Derrida retornou a este ponto no encontro de Dublin:

Indecidibilidade não é indeterminaçlo. Indecidibilidade é a competição entre


duas possibilidades ou opções determinadas, dois deveres determinados ...
Agora, porque há sempre contextos e singularidades, há movimentos, processos
e transformações, e para que uma transformação ocorra, algo tem que estar
determinado, algo é determinável... Há, no entanto, o futuro, o que está por
vir, e eu diria que há a indeterminação do por vir do futuro. Mas isto não é
um relativismo do sentido. (QE, 79)

Indecidibilidade quer dizer que nos encontramos presos em uma série

,s
Ver os meus livros Radical Hermeneutics: Repetition, Deconstruction and the Hermeneutic Project.
Bloomington: Indiana University Press, 1987; e More Radical Hermeneutics: On Not Knowing Who
WcAre. Bloomington: Indiana University Press, 2000.

45
de possibilidades bem determinadas, que temos que resolver o conflito mas
que não dispomos de nenhum algoritmo para fazê-lo. Ela significa que,
para consegui-lo, temos que proceder por meio de uma combinação de fé,
insight, instinto, sorte, experiência passada e antecipação do futuro. Pois
não podemos administrar as possibilidades por meio de um programa, não
dispomos de um procedimento para tomadas de decisão que pudesse pinçar
o justo resultado. Ao invés disto, temos que assumir responsabilidades,
deliberar e escolher, e, então, esperar pelo melhor. E isto não porque nos
encontramos irremediavelmente apartados da realidade e abandonados às
nossas ficções, mas sim porque a coisa real, para Derrida, é sempre
contextualizada e idiomática, porque nos encontramos sempre face a face
com uma singularidade, com uma pessoa ou situação que comporta uma
idiosincrática irrepetibilidade e cuja vinda não estava prevista em nossos
textos. Portanto, temos que julgar sobre o que fazer concretamente na
situação singular que nos encontramos e cujas demandas pesam sobre nós.

Messianismo. Se a desconstrução, tal como a venho descrevendo, é


uma obra de amor, então, o famoso "a" da différance é uma letra amorosa {a
love letter), não um alfa-privativo mas um alfa-amoroso. Sabemos que este
"a" tem por objetivo significar uma dupla operação de diferimento espacial
e adiamento temporal. Até agora, me ative principalmente à dinâmica mais
espacial do tout autre, o modo pelo qual ele se recolhe na inacessibilidade,
retirado em segurança para a outra margem, fora do alcance da intuição e
do nome próprio. Mas no contar desta famosa soletração errônea, différance
deve ser entendida não apenas em termos de um amor respeitoso pelo furtar-
se (espacial) do inteiramente outro, mas também em termos de um
diferimento temporal ao qual Derrida, atualmente, não mais hesita em se
referir como um porvir "messiânico". Tal como é verdadeiro que aquilo
que a desconstrução ama não se encontra aqui mas lá, na outra margem, é
também verdadeiro que ele não está agora mas sempre por vir, à venir. O
que quer que se encontre aqui e agora é desconstrutível, mas a desconstrução
é perdidamente apaixonada pelo o que não é desconstrutível. Como seria
um erro omitir a sua dimensão temporal, concluirei essas notas apontando,
pelo menos, para o diferimento estrutural do porvir do tout autre, a estrutura
"messiânica" deste hiper-realismo.17

17
Sobre o messiânico, ver Derrida. Spectres ofMarx, pp. 167-69, et. passim. Espectros de Marx. Trad.
Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Editora Relume Durnará, 1994; e comparar "The Force of Law:

46
Derrida faz uma distinção entre "a invenção do mesmo e do possível"
{l'invention du même et du possible), ou seja, a experiência de algo cuja
vinda pode ser planejada, imaginada e prevista, e 1'invention de 1'autre, o
porvir ou o encontro com o que não planejávamos e cuja vinda, de fato,
não podíamos imaginar ou prever, a vinda da "surpresa absoluta", o
improgramável tout autre. Afinal, a invenção do mesmo que confirma ou
preenche um horizonte dado torna-se algo cansativo (nous sommesfatigués)
- mais trabalho daquele camarada medíocre de Climacus que requer uma
soneca diária. Isto quer dizer que precisamos reinventar a invenção e permitir
o aparecimento de algo inteiramente outro, algo surpreendente que vem
quebrar o nosso horizonte. Desta preparação para a vinda do inteiramente
outro, Derrida diz: "isto é o que chamamos desconstrução".18
No final, o que os realistas desejam quando falam da coisa real que, em
Derrida, desaparece no nome tout autre, estará sempre por vir (à venir),
sempre além de nosso alcance, pertencendo a um futuro estrutural que
mantém em aberto o presente. De fato, eu diria que o hiper-real para
Derrida, o tout autre, assume o seu sentido mais forte e mais decisivo na
estrutura do à venir, que é o sentido mais importante do impossível. Pois o
impossível não quer dizer uma simples contradição lógica, mas sim aquilo
cuja vinda quebra os horizontes presentes de inteligibilidade e possibilidade,
aquilo cuja vinda nos pega de surpresa e nos deixa atônitos, perguntando-
nos como tal foi possível, como o impossível tornou-se também possível,
como foi possível ir onde não podemos ir.
O hiper-real, o real para além do real, o que se encontra mais fora de
nosso alcance, o mais além de tudo, é o que está por vir, o que esperamos,
oramos e vertemos lágrimas para que venha, com o coração inquieto de
um Agostinho judeu. O que está por vir é sempre estruturalmente porvir,
de modo que não se deve confundir a vinda do outro (venue) com a sua
presença futura (présence). No hiper-real, a realidade é sempre abundante
em expectativas. O mundo é o objeto não tanto de nossa percepção, mas
de nossas orações e lágrimas. É isto que não deixa o mundo que se apresenta

'The Mystical Foundation of Authority'". Trad. Mary Quaintance. In: Deconstruction and thePossibility
of Justice. Eds. Drucilla Cornell, et ai. New York: Routledge, 1992, p. 25, com Derrida. Force de loi.
Paris: Galilée, 1994, p, 56. Analisei a questão do messiânico em Derrida no meu Prayers and Tears,
ch. III, pp. 117 ess.
18
Jacques Derrida. Psyché: Vinventions de 1'autre. Paris: Galilée, 1987; "Psyche: Invenríons ofthe Other.
Trad. Catherine Porter. In: Reading De Man Reading. Eds. Lindsay Waters and Wlad Godzich.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989, pp. 53, 59-60.

47
se enrijecer, mantendo-o sempre aberto e passível de revisão, com suas
quebras e fendas propiciando aberturas para novos crescimentos. Isto não
arruina e nem destrói o mundo, mas o expõe ao risco do futuro, permitindo
que o mundo instigue e seja perturbado pelas expectativas do porvir - a
justiça e a hospitalidade, a paz messiânica e o dom, a democracia por vir. O
que é ontos on e epekeina tes ousias para Derrida não é presente, mas vindouro,
pois o presente é muito decepcionante. De fato, se o Messias alguma vez se
mostrasse em carne e osso no presente, a primeira coisa que perguntaríamos
a ele (ou a ela, já que o Messias será sempre uma "surpresa") seria "Quando
virás?"19 A idéia contida neste hiper-real messiânico não é a de nos deixar
entregues ao desespero e à aflição, na possibilidade de jamais chegarmos
onde queremos chegar, mas precisamente o oposto, ou seja, a de nos certificar
que não estamos sendo complacentes com a situação em que nos
encontramos, que estamos sempre em movimento, impulsionados pelo
desejo de ir onde não podemos ir, que não confundimos o presente estado
de coisas com o que está por vir, o que quer dizer, por exemplo, que nunca
confundimos a democracia presente com a democracia por vir.
O hiper-real nunca é dado, já que o que está dado não é jamais suficiente,
nunca real o suficiente. O que se mostra no presente, in re, não encontra as
nossas expectativas, não satura o horizonte de possibilidades que inclui,
antes de mais nada, a possibilidade do impossível. Pois aquilo pelo qual
ansiámos e desejamos é a vinda do que não podemos prever, e que, uma vez
que o tenhamos previsto, comprometemos a sua alteridade. Amamos lepas
au-delà, o passo além que não podemos dar. A futuridade estrutural, o
messianismo do tout autre não o despoja de realidade, despoja apenas da
pretensão de finalidade tudo aquilo que, no presente, tem pretensões à
realidade. O tout autre é uma certa ultra-realidade além do presente, um
hiper-real que se furta ao nosso alcance e nos mantém a caminho.
A coisa mesma sempre nos escapa, abandonando-nos em orações e
lágrimas, na esperança e no desejo de que ela venha. Isto é o impossível, e nos
colocamos a caminho, começamos,/»^ impossível. Pois isto é o que amamos.
"Inquietum est cor nostrum" é o lema deste hiper-realismo judeu-
agostiniano, cuja "Circumfession" abre com uma prece: viens, oui, oui.20

" Derrida. Politics ofFriendship. Trad. George Collins. London & New York: Verso, 1997, pp. 7,46,
n. 14, 173-74.
20
Agostinho. Confissões, 1,1. Ver, Derrida. Circumfession: Fifiy-nine Pcriods andPtriphrases. In: Geoffrey
Bennington andJacques Derrida. Chicago: University ofChicago Press, 1993. Viens, oui, oui: Derrida,
Parages. Paris: Galilée, 1986, p. 116.

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