Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
a
lada-e-
m
de
e
maria
fave
carolina
e
©
dantas
TG
nero
5
‘©
oO
@
_
del
de
e
audalio
©
a
oO:
cyro
capa
len
a
%
oY" "VOLT OGSARZV 30 O1nNWd vyollg3
SP SBOUPIE) SEU Seu '1OG] ep CuqWeAON Wa os
“SJ 9 OJSOdWUOD Icy «SOPUOIUOD 8 SOJSBIJUOD,,
O858}09 BP py ownjoa .."WVIMWNAATY 3G vSsvo.,
Copyright by
Um dia — era uma tarde de abril de 1958 — fui & favela do Ca-
nindé e quando cheguei lé encontrei uma revolugdo deniro de um
barraca; eram as narrativas de uma negra chamada Carolina Maria
de Jesus, A revoligéo tomou forma de tivro e foi chamada “Quarto
de Despejo” .
Agora, tenho de falar de novas histérias daquela mesma negra
ent cujo barraco encontrei a subversdo manuscrita. Ela saiu do
quarto de despejo ¢ instalou-se num sonho — wma casa de alvenaria.
# nossa vizinha, aqui na sala de visitas, onde continuou a olhar em
térno com o mesmo olhar acostumado. a ver favela, a abservar e a
anotar tude — as grandezas e as misérias de lado de cd.
Casa de Alvenaria é, na forma, o mesmo que o diario eserita na
favela do Canindé; na esséncia, é
coisa bem diferente; &€ um depoi-
mento, também, mas~sdbre outro
mundo — o mundo de alvenaria
que foi sonho e conguista de Carolina, Casa de Alvenaria é depoi-
mento téo importante quanto “Quarto de Despejo”, mesmo sem o
tem dramdtico da miséria favelada. Em certos aspectos, € um livro
mais fascinante, porgue néle hd um pouco de alegria, had o deslum-
bramento da descoberta, hd a felicidade do estémago satisfelto, ha
a perplexidade. diante de pessoas e coisas diferentes e wna amarga.
constatacdo: « miséria ewiste também na alvenaria, em formas as
miais diversas.
A -partir de un acontecimento que talvez tenha sido 6 mais im-
portantée de sua vide — a assinatura do centrato pare publitdgdo de
Um caminhdo partiu da favela, cheio de velhos trastes, Ne primeira
“Quarto de Despejo” — Carolina narra o dia-a-dia de sua nova vida,
rua de alvenaria alguém perguntou:
mas nessa nerrativa og dias assumem uma nova dimensdo; deiwam de
ser sempre iguais, precedidos pela fome. As surprésas, os choques, — Isto é despejo? >
as grandes alegrias ¢ os desencantos, se sucedem neste registro de — Ndo. Ndo é despejo, ew estou saindo do quarto de despsjo —
grande valor humano e de grande valor como contribuicio para es- foi a resposta feliz e risonha da negra Carolina.
tudo socioldgico.
Foi para um quartinho de Osasco, a sua primeira alwenaria, pre-
Os personagens que desfilam nestas pdginas sdo, quase todos, de sente de um senhor muito condoido com a pobre favelada que, entdo,
eonticdo diferente daqueles angustiados que se agitam no mundo j& tinha ganho 240 mil cruzeiros de direitos autorais. No mesmo dia
de tdbua e zinco da favela. Aqui éles sdo vistos, muitas vézes com em que ingressou no mundo de alvenaria, Carolina juntou 4d felicidade
deformacées, por uma criatura que viveu sempre ad margem, uma uma divida:
desintegrada social que Ilutou desesperadamente para entrar na
Agora eu estou na sala de visita. Q lugar que eu ambiclonava
sociedade mais ampla e¢ menos infelig da sala de visitas.
viver. Vamos ver como 6 que vai ser a minha vida aqui na sala de
Como no quarto de despejo, ela continuow a@ escrever 0 seu visita.
diarlo, a fazer retrato. Sé que o retrato da gente de alvenaria tem
Como é a sua vida aqui na sala de visitas ¢ o que ela nos conta
algumas distorgées, € assim como wm painel com pontos de perfeita
agora, neste livro. O deslumbramento diante de coisas novas, a vai-
nitidez e dreas esfumadas, nedulosas, Mas Casa de Alvenaria é€ um
dade.muito natural despertada pelas iniimeras solicitagées — as legi-
retrato, Feito com as contradigées da retratista e, sobratudo, com as
timas, witeis, e as destituidas de qualquer significado, feitas por debi-
contradigées dos retratados. Nem sempre @ revelacdo que Carolina
Idides e safados que viam em Carolina qualquer colsa assim como um
nos faz de certas criaturas é perfeita, mas, no caso, @ response bili-
dicho estranho., Preciso dizer que tudo fiz para evitar €sse envolvl-
dade ndo the cabe. Ela procurou enfocar, com aquéle seu notdvel
mento, mas ndéo consegui. A prépria Carolina, algo inebriada com o
senso de observacgdo, necesséria
mas nitidez, sim~
ndo conseguiu @
sucesso, constituiu obstdculo, Diziam-lhe que eu estava querendo ser
plesmente porque na favela, ponto bem nitido e definido da miséria,
seu “dono”, Bia deixa claro, em muitos registros de seu diario, que
um Orlando Lopes explorador da luz e da dgua ndo passa de Orlando
ecreditou nos conselhos désses amigos de ultima hora. Por exempio,
Lopes explorador da le e da dgua, enquanto aqui fora os homens
quando se queixa por eu ser contrdrio d sua iddia de cantar no rddio:
costuman usar muitas faces...
Eu queria ir para o radio, pra cantar. Fiquei furiosa com a auto~
Mas, entremos na Casa de Aivenaria de Carolina, que é bem
do Canindé, ridade do Audalio, reprovando tudo, anulando os meus progetos. Da
diferente daquele barraco nimero 9 da Rua A, favela impressio de que sou sua escrava.
cémodo. A casa
que tinha sala-quarto-cozinha, nwm sé cdmodo nada
de Carolina, agora, é casa-sobrado, com sala, sdlinha, quarto, quarto,
Contraditéria, essa referéncia a anulag&o de projetos, justamente
cozinha, quintal, jardim. E uma escada que, se ndo me engano, tem aquéles projetos que seriam prejudiciais. Jdé imaginaram o pessoal
dezenove degraust No jardim de Carolina tem wma roseira que bota do rddio usando a figura de Carolina para extbicdes ridiculas nos
muitas rosas, vém as oriancas, cothem as roaas, ela ndo se incomoda, auditérios? Oarolina estava, evidentemente, sendo aconselhada. Mas
porque — pensa — Deus faz nascer mais. A roseira é& flor-felicidade logo vinha o bom-senso, na paiavra de alguém que ndo era um inte-
na casa de alvenaria, assim como o menino nu chorando de berriga resseiro:
vazia era tristeza na barraco da Canindé. Agradeci e despedi e fui tomar o onibus, pensando nas palavras
De alegrias e tristezas é a vida, na favela ou na alvenaria. 4 do senhor Fernando Soares. Ele disse para eu n&o ir cantar no
fome se fol do barraco de Carolina e ela registrou ¢ cheyada da ale» radio...
gria, que também pode habliter em barraco: A gente de aivenaria contribuia, assim, pera as centradicées de
A trleteza estava residindo comigo ha multo tempo. Veio sem retrato que Carolina fazia, com olhos de favelada, da sala de visitas.
convite. Agora a tristeza partiu, porque 2 alegria chegou. Para onde A sua capacidade de observagdo, aliada &@ sua capacidade de conctuir,
da favela.
sera que fol a tristeza? Peve estar alojada num barraco gerviu, porém, para que apanhasse no meio desta nossa feira de vat-
da Rua A, niimero 9. Néo havia ‘dades aspectos bastante significativos, nem sempre observades por.
Era wm barraco especial, cquélé
fowie Ié dentro! / nés, Por exemplo, os compromissos dos que escrevem, quase sempre
tothidos em aua liberdade pelo jégo infernal dos interésses, Aaiut,
assim; com a partida da fome, a nove vida de Carolina
Comeccou em nossa meio, ela comecow a temer, tambén: :
Maria @é Jesus; qué agora é nossa vidinka wqui we sala do visitas.
—— Sabe, Carolina, pege-te para inclulr no teu diario que ha
de escrever o-meu diarto da
N4o estou tranquila com a fdéia preconceito aqui no Sul.
Eles so poderoses © podem
vida atual. Escrever contra os ricos. A resposta fot esta:
destruir-me.
do ponto de vista ada —- Esta bem. tInciuirei tua queixa no mew diario.
Os ricos, ai, ndo séo os prépriamente ditos;
mora em casa de
autora, egressa da favela, rico é todo aquéle que E um apélo significativo, éste do pretinho de Pelotas. Demons-
tiran-
alwenaria. Mas, sem saber, ela terminou dizendo uma verdade, tra, sem necessidade de novos argumentos, o que essa negra vinda
do que acertada. O dinheiro ganho por Caro- representa no inconsciente coletivo: vor de protesto.
do uma conclusdo mais do monturo
alegria de comida fumegando
lina foi garantia de wma vida decente,
nas panelas, mas foi, também, motivo de grandes aborrecimentos.
o inventaram e por éle bri-
Como sempre foi, desde que os homens
Acho que estas consideragées de reporter podem dar apenas uma
matam. Foi o José Carlos, numa alegria de fome base cientifica
gam e por éle se pdlida idéia do sentido déste livro. Um estudo com
sgaciada, quem féz a pergunta: poderd revelar aspectos de grande interésse da revolucde que come-
é preciso ter dinheiro para gou no quarto de despejo e tem prosseguimento na casa de alvenaria.
— WA tantas coisas para comer, mas
o dinheira? . enorme de ensinamentos desde o
comprar. Quem inventou Particularmente, recothi uma soma
dia em que encontrei a revolucdo ld no barraco nimero 9 da Rua A,
Carolina respondeu:
favela do Canindé. Conheci bem conhecido o que é ambicéo, inveja,
— Foi um pove chamado fenicios.
safadeza, vaidade, dio. E conhect também amor, honestidade, des-~
—- Invengdo Idiota, nao, mame? mds qualidades sé reveladas integral-
prendimento, As boas ¢ as
Uma roma-
A tal invencdo deu muita dor de cabeca a Carolina. mente diante das coisas importantes. Aprendi, por exemplo, que
dinheiro. Tudo
rie intermindvel & sua alvenaria, de gente querendo ganhar dinheiro é a coisa mais importante para a maioria dos inte~
por causa de um povo chamado fenicios! grados sociais. H, por isso, apenas wma minoria acredita que se pos-
estranhar as queixas constantes que Caro- sa fazer alguma coisa sem se ganhar dinheiro.
Por isso ndo se deve
contra a sala de visitas. Deve-se considerar a sud condigado
lina faz Carolina jd esté na sua casa de alvenaria, a maioria dos favela-
quando ela, logo depois de bendizer o mo-
de “peize fora Wdgua” dos do Canindé, também. Quanto a mim, continuo rendrter. Apareco
mento em que deixou a favela, diz que preferia voltar para ld. Con- com muita freqiiéncia neste livro, como personagem. Isto néo podia
tradigéo humana, espanta diante de wma realidade que afugenta o
ser evitado, porque de mistura comigo havia personagens importantes.
sonho. Mas o sonhko — e ai sempre
de nés se nado fésse o sonho! —
Apareco como anjfo num pardgrafo, noutroa aparego como deménio,
depois, em outro
volta, com colorido de felicidade. Como acontece logo de acérdo com as mutacgdes espirituais de Carolina. Hd erros de apre-
trecho déste livro em que Carolina descreve a alegria de haver falado ciagdo da autora em ambos os casos. Eu podia ser deménio a certa
as causas da favela no Congresso de Vereadores do Rio Grande
sébre altura, sé porque a aconselhei a néo emprestar dinheiro a determi-
do Sul: nada pessoa ou por manifestar a minha opinido sébre um rapaz que
vivia dizendo: a felicidade virou-me as costas. Agora pegou- vendeu o nome de Carolina para a propaganda de uma marca de
Eu
me nos bracos. sabéo. Quase sempre, ao conhecer a realidade, Carolina voltava a
ela reencontra a realidade. A meia luz de um res: ver-me com outros olhos e eu virava anjo. Estd tudo at, contado
Novamente
-taurante-grdfine de Copacabana, por exremplo: no seu jeito originalissimo de dizer as coisas.
mesa. As mulheres que estavam na minha O tratamento dado a Casa de Alvenaria foi o mesmo que dei «
Alguns iam a minha
falavam em reforma social. ...@u pensava: elas sao ftilantropi- “Quarto de Despejo”. Conservei a linguegem e a ortografia da au-
mesa
Quando avis-
cas nas patavras. Sao falastronas. Papagaios noturnos. tora, sem alterar nada. No trabalho de compilagée houve cortes de
tam-me 6 que recordam que ha favelas no Brasil. grandes trechos, todos sem maior significagdeo. Ficou o essencial, o
o walor déste livro importante, funcionande como wma pelicula cinematogrdfica, O que
Tudo isto 6-de-grande.importancia, demonstra
uma retratista que veio fiz foi algo semelhante a uma montagem de filme. Os originais estdo
que é wm retrato da sala de visitas feite por
gritando em nome dos que ficaram la ¢ dos quardados para possivel confronto.
de quarto de despejo,
li ¢ viven as injusticas aqut de fora, como aquéle
qete ndo estdo Finalmente, wna palavrinha a Carolina, revolucionarla que sain
que circulava meio ressabiade pela praga onde
pretinko de Pelotas doe monturo e veio para o meio da gente de alvenaria: vocé contri-
«a Feira do Livro. Carolina autografave e ouvin a
se realigava butu poderosamente para a gente ver melhor @ desarrumacda do
SU LOe? , °
quarto de. despejo. Agora vocé estd na sala de visitas e€ continua a
contribuir com éste nédvo livro, com o qual vocé pode dar por encer-
reda a sua missdo. Conserve aquela humildade, ow melhor, recupere
aquela humildade que vocé perdeu um pouco — nado por sua culpa
-~ RO deslumbramento das luzes da cidade. Guarde aquelas “poesias”,
aquéles “contos” ¢ aquéles “romances” que vocé escrevet. A vere
dade que vocé gritou é muito forte, mais forte do que vocé imagina,
Carolina, ex-favelada do Canindé, minha irmé lé e minha irmd. aqui. 5 de maio de 1960 Levantei as 5 horas para pre-
parar as roupas dos filhos para irmos na Livraria.
AUDALIO DANTAS Nao vou fazer café porque ndio tenho acucar nem
dinheiro para o pio.. Eu peguei um saco e catei latas,
Sdo Paulo, setembro de 1961.
ferros e vidros e uns metais e fui vendé-los. Nao tenho
tido tempo de ir vender no Senhor Manoel. Ganhei
22 eruzeiros. Comprei 12 de pao. O Senhor Luiz Bar-
bosa, que reside aqui perto da favela, deu-me lenhas.
Eu disse-lhe que hoje eu vou assinar contrato com a
Livraria Francisco Alves para editar o meu livro. Ele
disse-me que jA me viu nos jornais e nag revistas e
deu-me mais lenhas. Quando voltei peguei as lenhas
e pus dentro do saco e voltei as pressas para a favela.
... O José Carlos entrou dizendo que estava. com
fome. Vamos prepararmos para irmos para a cidade.
Vamos ver se o pai da Vera levou-lhe o dinheiro no
Juiz. O Joo voltou da escola alegre por eu ter man-
dado pio para éle. Nés saimos. Passei no empério do
Senhor Eduardo e pedi se éle me vendia uns sandui-
ches para os filhos. Nfo tinha pao. S6 eu notei os
olhares tristes dos meus filhos, porque sou mae. Nés
fomos para a cidade. Passamos pelo Mercado. A Vera
olhava no solo para ver se encontrava algo para co-
mer. Ndo encontrou nada. Comecou a chorar e nao
queria andar. Eu disse-lhe:
——_ Vamos no Juiz ver o dinheiro e eu compro
algo para vocé.
Ela empacou-se. Dei-lhe uns tapas. Eu criticava as
minhas acdes, pensando: coitados! Além de estar com
fome ainda apanham. Hu andei, ela ficou atras. Os
filhos estavam perto da banca de jornais olhando o
Chessman. Quando olbei para tras nado avistei a Vera.
11.
CASA DE ALVENARIA
GAROLINA Maria bE Jescs
Voltei procurando-a e entrei dentre do Mercado gri- — Eu quero ver o nome de minha loja nos
tando: — Vera! Vera! Vera! jornais.
Perguntei a um guarda se nao tinha visto uma _. O senhor ha de ver, se Deus quiser.
Agradeci as pessoas presentes dizendo que estava
menina.
— Nao!
com pressa e saf correndo. Na Praca da Sé estavam
desfilando carros com crian¢as defeituosas angarian-
Mais de cem mil pensamento afluiam-me a mente.
do auxilios..Os meus filhos olhavam as criancas de-
O coracao acelerou-se. Percorri o Mercado por den-
feituosas. Eu disse a um casal que segurava um
tro e ao redor. Encontrei uma mulher da favela e
menino: :
perguntei-lhe se ela havia visto a minha filha.
— O senhor vé'essas criangas? Os pais delas de-
— Nao vi.
vem ser tristes. Ainda tem pais que bate nos seus
—— E. que eu vou na Livraria assinar um contrato
filhos porque quebrou a vidraea do vizinho ou’ sujou-
para éles publicar os meus livros.
se na lama, ou. fala palavroées. E se éles nao falam?
As pessoas que ouvin-me dizer que eu ia assinar
Curvei-me até-o ouvido do menino. e disse-lhe:
contrato na Livraria Francisco Alves pararam para
— Pois é,:meu filho! Vocé vai quebrar vidragas,
olhar-me. Sai as pressas do Mercado, gritando: —
jogar bola, correr e viver a sua vida de crianga
Vera! Vera! Vera!
perfeita.
Os meninos procurava-a. Surgin uma senhora e
Ble sorriu.
perguntou-me se eu estava procurando uma menina. Despedi-me e fui no Juizade. Fui receber o di-
— Estou! A senhora viu-a? nheiro da Vera. O dinheiro estava, reanimei. Recebi,
— Ela estava na minha loja. assinei e disse ao tesoureiro que eu ia assinar con-
Perguteni-lhe o seu nome. trato para editar o meu livro e que amanha eu estou
—~ Antonieta. em todos os jornais. EK que eu sou obrigada a escre-
—— Oh, D. Antonieta, muito obrigada e Deus te ver porque o pai da Vera nao auxilia-me.
dé um noivo bom e bonito! En despedi do tesoureiro.e fui comprar quibes e
Ela sorriu. E respondeu com prazer na voz e no empadinhas ‘para os filhos.. Quando os meninos viu-
olhar: me com o embrulho sorriam.. Dei um quibe e uma
—— Eu j4 tenho o meu noivo, 34 estou casada e empadinha para cada um. Eles comiam e sorriam.
quero muito bem ao meu espéso. Othei o relégio. Hra 16 horas.
Vi um aglomerado de gente e a Vera.no centro. Chegamos a Livraria Francisco Alves. Per-
Ela estava chorando. Quando me viu reanimou a fi- guntei pelo escritor Paulo Dantas™. A senhora que
sionomia. Eu agradeci as senhoras que estavam na estava na caixa telefonou-the. Ele viu-me 14 do alto e
loja e pedi-lhe os nomes. Disse-lhes que era para deu ordem para.eu ir de elevador. A livraria é alegre
incluir no meu didrio, que eu ia na Livraria assi- no aspecto. Ao entrar no elevador percebi que éle é
nar um contrato para publicar os meus livros. Vlas antigo. Ja deve ter uns 60 anos de_us a a impres-
disseram: : séo que a livraria é uma reliquia de: Paulo. Eu
— Nao precisa. aprecio o que é antigo.
Othei o titulo da loja: Tecidos Cantareira. Ouvi
(1) Diretor de edicdes da Livraria Francisco Alves... (Neta de Au-
uma voz masculina : dalio Dantas).
13
12
CASA DE ALVENARIA
Carotina Maria pE Jesus
Surgio o Senhor Del Nero e cumprimentou-me. As 6 horas me despedi. O Senhor Lelio deu-
urgio o Senhor Lelio de Castro Andrade ® e o Se- me’o seu cartéo para eu procura-lo. Citei os livros
nhor Paulo Dantas apresentou-me. Conversamos e eu que tenho em preparo. Hoje eu ganhei:
fui perdendo o acanhamento e tinha a impressao de
estar no céu. A minha cdr preta néo foi .obstaculo 22,00 de ferro velho
para mim. E nem os meus trajes humildes. Foram 10,00 de um fregués da livraria
chegando reporteres, entrevistaram-me e fotografa- 20,00 do reporter da “Ultima Hora”
ram-me e ficaram lendo trechos do diario. Havia 500,00 do pai da Vera
arlos reporteres e fotografos. Eu perguntava: 2.000,00 do Senhor Lelio
— De que jornal é o senhor?
— “Ultima Hora’. 2..552,00
Eu li um trecho do didrio, que eu estava enfra-
quecendo porque passava fome. O reporter da “Ultima Despedi de todos na livraria e fui fotografada na
vitrine. Quando chegamos no ponto do bonde, levei os
mora” deu-me 20 cruzeiros. Quando eu entrava na jantar no restaurante. les gostaram.
filhos para
ivraria e@e estava conversando com a caixa um senhor
(...) Era 8 horas quando entrei no emporio do Se-
deu-me 10 cruzeiros —- tomeu-me por mendiga. A
Caixa disse-me: nhor Eduardo. Paguei-lhe 260 cruzeiros que estava
—— Pega! devendo ha muito tempo, e comprei um queijo de 180
cruzeiros, 1 quilo de acucar e café. Mostrei o contrato
As pessoas que estava na livraria perguntava: :
— Quem
para o Senhor Eduardo ler e disse-lhe:
é ela? : todos os jornais.
__. Amanha eu estou em
— escritora e mora na favela.
Despedi do Senhor Eduardo, que estava com 0s
— Oh! — exclamavam.
: Chegou outros reporteres. Entrevistava-me e fa- olhos fitos no meu rosto como se estivesse vendo-me
ava com o eseritor Paulo Dantas. Hi liam alguns tre- pela primeira vez. O Jodo disse-me:
—.. A senhora estAé gastando muito.
caes do meu diario. As 5 e meia o Audalio chegou
__ A vida de miséria vai acabar — falei sorrindo.
m os da televisio. Apresentou-me e eu assinei o
contrato e filmaram-me. Quando eu cheguei na favela estava.com sono e
cruneie O senhor Lelio de Castro Andrade deu 2 mil alegre. Ergui os olhos e contemplei uma cruz. Pensei:
; elros ao reporter para dar-me. Os filhos ficaram devo rezar. O Joao disse-me:
— Sabe, mamde, eu vou dizer uma coisa para a
acetes. Eu disse ao Joao que amanha vou comprar ‘
ne para fazer bife para éle, porque ja faz tempo
senhora.
— Que é? — perguntei apreensiva, pensando —
que éle esté suplicando-me para fazer. Ele ficou ale- sera uma coisa grave?
8re sorrindo. Percebi que Ge estava pensando num
— Como é bom a gente comer até encher!
prato de arroz com bife acebolado. A ida foi triste, porque estavamos com fome. Mas
As criancas antigas pensavam em Ciranda-Ciran- a volta foi sublime.
dinha. Elas eram alegres. As atuais pensam na - A Vera disse:
comida.
— Viva o Audalio!
(2)
— Viva!
Diretor-Gerente da Editéra. (A. D.)
14
15
Caro~Ina Marra pe JESUS CASA DE ALVENARIA
— Vamos dar um piguwe-pique para o Audalio? Conelui as roupas rapidamente e voltei e comececi
Deram o pique-pique e ficaram gritando. Prepa- a preparar os filhos para irmos. Coloquei os cader-
ramos e deitamos. nos na pasta. Fui avisando as pessoas que tem televi-
s4o para ver-me, que eu ia no programa das 8 horas.
6 de maio Levantei as 4 horas. Fui ler as noti- (...) Iniciaram o programa. Os meus filhos estavam
cias do Chessman. (...) Com a execussio do Chess-
alegres porque estavam no palco. A Vera sorria. Fui
man os Estados Unidos é criticado pelo Universo. entrevistada pelo reporter Heitor Augusto. Falamos
O sol estava oculto pelas nuvens e eu estava com
Peas
da favela. FE. porque a favela 6 0 quarto de despejo de
frio. (...) Fui no emporio do. japonés fazer compras, Sao Paulo. E que em 1948, quando comecaram a de-
comprei 3 quilos de arroz, 1 de feijao, 3 sabdes, fari- molir as casas terreas para construir os edificios, nés
nha, alho e anil. Quando eu cheguei na favela fui os pobres que residiamos nas habitacdes coletivas fo-.
preparar o almdéco para os filhos. As criangas vem mos despejados e ficamos debaixo das pontes. B por
dizer-me que me viu nos jornais. Hoje eu sou a sen-
isso que eu denomino que a favela 6 0 quarto de des-
sacao do bairro. Preparei o alméco: arroz, feijao, bife pejo de uma cidade. Nés os pobres somos os trastes
milanés e salada. O Joao gostou da comida-e gritou: velhos.
—— Viva a Dona Carolina!
Sorri. Ele olhou-me por longo tempo e disse-me: Hra 22 horas quando eu fui deitar. Estava ‘alegre.
— Por estes dias temos comida e a senhora nao
precisa chorar. 8 de maio ... Fui no acougue. Escolhi um pe-
Biles estfo alegres porque comeram. dacgo de carne. Tinha muito nervo. Gracas a Deus
hoje eu estou em condicdes de escother a carne que
7 de maio N&o fui comprar pac. Os filhos co- eu quero. Olhei os ossos que estava no baledo e disse:
meram queijo. O Joao modificou-se. Hsté mais calmo — 0 senhor dizia que eu eserevo e nao ganho
e sempre sorrindo. Quantas vezes en disse-lhe: nem para comer. Gracas a Deus eu vou receber 150
— Joao, vocé é muito bruto! mil eruzeiros por um livro e hei de ter o que comer.
Mas agora que temos o que comer em casa, éle
transformou-se: deixou de ser Joao Bruto para ser Kiscolhi outro pedaco de carne. Paguei 70 eruzei-
Joao Gentil. IE que a fome deixa as pessoas neuroti- ros. Pensei no reporter, o homem que emparelhou-se
eas. (...) Dei alméco aos filhos e fui lavar as rou-
comigo na hora mais critica da minha vida. Agora
pas. (...) Estava lavando quando ouvi a voz da Vera eu falo e sou ouvida. Nao sou mais a negra suja da
dizendo : .. Loe favela. Cheguei no emporio e comprei os tomates, o
— O14 minha mae! querosene ¢ oves e pao. (...) Fui preparar o alméco.
Ela vinha acompanhada de dois senhores. Quan- Fiz molho de tomate para o ravioli e pus muito
do éles aproximaram-se perguntei: queijo. Os meninos comeram e gostaram. E gritaram
— De que jornal sao os senhores? — Viva!
—- Nés somos da televisée-e-eu-vim convidar a
senhora para ir num programa. Tem que esta 14 as 9 de maio ... Chegou dois reporteres. Disse-
8 horas. ‘ram-me ser do “Globo”, mandei éles entrar. Pergun-
— Esta bem. Eu vou. taram se en encontrei dificuldades para encontrar
— lLeve as crian¢as. editor. Ku disse-lhes que cansci de suplicar as editoras
16 17
CAROLINA Manta pE Jesus Casa DE ALVENARIA
do pais e pedi a Editora da Selegdo® nos Estados — Fa senhora que é a Dona Carolina Maria de
Unidos se queria publicar os meus livros em troca de Jesus? ,
casa e comida e enviei uns manuscritos para éles ler. —— Sou. O senhor entra.
Devolveram-me. Ele entrou,
...O Adalberto entregou-me carne e toucinho que tirou o chapéu e cumprimentou-me e
disse-me que leu a reportagem em alem&o. E veio co-
o Ramiro deu-me. O Adalberto pediu-me para fazer
nhecer-me. Deu-me um livro novinho. O Grande Evan-
um bife para éle. Que bom saber que temos o que
gelho de Joéo. Pediu-me para nfo relaxar, para nio
comer. Parece até que a minha vida transformou-se.
envaidecer, para nao ficar orgulhosa e se enriquecer,
Da fome para a fartura. (...) Hu estava ageitando
o barraco quando o Ramiro chegou na janela. Disse-
para nao ser vingativa. E agradar os pobres. Que no
me que me viu nos jornais e deu-me os parabens. Eu mundo sé tem valor as pessoas de espirito humilde.
Para eu agradecer a Deus éste dom que éle deu-me.
‘ agradeci porque éle deu-me toucinho e carne. Fle dis-
(...) QO nome do senhor que deu-me o livro é José
se-me que est& muito triste com a morte do Chessman.
social, am-
Galler. .
Que o Chessman nao conhecen o nucleo
biente sadio. Os intelectuais fizeram de tudo para im-
13 de maio ... Hoje é 0 dia que comemoramos
pedir a sua execussio. Se os Estados Unidos tivesse
a extingao da escravidio. Se a eseravidio nado fésse
perdoado o Chessman, éles angariavam a simpatia do
Globo. Porque o mundo estava voltado para os Esta- extinta, eu era escrava, porque sou preta. (...) Fui
telefonar para o reporter. Hle disse-me para eu en-
dos Unidos.
contra-lo as 11 e meia. Ei convidou-me para ir com ele
10 de maio Em estava carregando agua quando no Teatro da Escola de Medicina, que hoje comemo-
ouvi a voz do visinho, senhor Alexandre:
ra-se a data da abolicdo. Que o espetdculo é represen-
tado pelo Teatro Popular Brasileiro, dirigido pelo
— Dona Carolina, tem. visita!
poeta Solano Trindade. (...). Preparei-me e sai para
Era o Professor Walter José Faé, com seu alu- encontrar-me com o reporter na porta do “Diario da
nos. O Professor Faé disse-me que ha muitas pessoas
que vai ganhar dinheiro por meu intermedio. Fiquei
Noite”. Eu nao sabia que a Escola de Medicina tinha
alegre. Que bom! Poder fazer o bem a milhares de teatro. Quando chegamos, o teatro estava superlota-
pessoas. O sol é unico e distribui o seu calor para do. Um espiquer veio fazer a descrigéo das cenas. O
titulo de peca é “Rapsodia Afro-Brasileira”. O espe-
todos.
taculo é uma confraternizacio do Centro Academico
12 de maio En fui lavar as roupas. A Dona Ade- da Escola de Sociologia e Politica e Centro Academico
laide quer que eu arranje servigo para a sua filha Osvaldo Cruz, pelo 10° aniversério do Teatro Popular
Brasileiro. O poeta Solano Trindade, aparecen no
cantar na televisio. ok
... Eu estava passando roupas quando vi o filho palco para falar sobre o preconceito racial na Africa
da Dona Adelaide surgir com um senhor e dizer-lhe: do Sul, e da condig&o dos pretos nos Estados Unidos.
~~“Hi-disse que tinha uma visita para ser apresentada.
— B aqui.
E bradou:
O senhor perguntou-me:
— Carolina!
(3) <A autora refere-se a “SelegSes do Reader Digest". (A. D.) Galguei o palco e fui aplandida.
18 19
€asa- DE ALVENARIA
> jesus
Caronrxa Mania PF
«. do es etaculo fui apresentada para al- posso infiltrar-me nessas brigas, porque preciso pen-
. Depos - estavam na plateia e pediram au- sar nos livros que pretendo escrever. Os meus filhos
nao
gumas pessoas qria voltar de bonde, o reporter do
mesclou-se entre o povo. A D. Isaltina chorava. Eu
aaa nme. Na rua Aragu aia eu desci fiquei com dé do Alfredo. Ele é inofensivo. Eu
tografos. Eu
bradava:
permitin e cone® ra a favela. Era uma e meia da
carro e voltei Pa pensando na festa comemorativa Joao! José Carlos, Vera! Nés vamos para a
manha. Eu estava avatura. Mas temeos outra pior — televisio!
da Abolieao da on com um preto que é artista e éle ... Quando saimos da Televisio Tupi estava cho-
a fome. Convene a de ser preto. B eu tambem. Fi- vendo. O reporter tomou um carro. Fomos levar um
digse-me que 8° om o preto Jodo Batista Ferreira.
jornalista em sua casa. O carro nao queria andar. Na
quei encantada vtisfeito com o que somos. A favela
Avenida Sao Jofio o motorista pediu colaboracio de
os bar- outro carro para empurra-lo. O reporter pagou o
E bonito estat © encontrel ninguem. A noite
estava calma. N#0 egros. Hi negra é a existe ncia dos earro. Deu 200 cruzeiros aco motorista e disse-lhe que
racdes sio todos * sorta, despertei os filhos. Eles ¢o- podia ficar com o troco. Ele conduzin-me até a favela
favelados. Abt 2 a deitar porque estava com frio. e vinha contando vantagem. Que é rico, que tem mais
meram pastor uel pensando no reporter. de 2 milhées. Que tem casas de aluguel. Quando che-
Nao durm!. gou eu olhei a conta: 140 ernzetros. Disse-lhe:
: Preciso lavar as roupas, porque — O senhor vai devolver-me o troco dos 200 eru-
14 de maio ‘a ‘selevisio. Hoje eu estou alegre. zeiros. :
amanha et von m me “nas Tuas. JA estou habituando —— Ah! Eu nao posso, porque o jornalista deu-me
Todo mundo ol o Dassei no bar do José, na rua Deo- o que ia sobrar dos 200 cruzeiros.
com a nova vida. oe; com éle. Disse-Ihe que nao mais — O senhor deve dar-me.
tenho tempo. Eu fui vista em to- Quando chegamos na favela o motorista ficou
cleciano € ae
apareco porque ( ~) Bu fui deitar um pouco porque horrorizado. O seu olhar percorria de um local ao
dos os jornais. Mas, quem é que dorme em favela! outro. Execlamou:
estava com 8° Tho. Nao sei como 6 que os favelados — Credo, que lugar! Entfo é isso que é favela?
es com tanta miséria ao redor. Vendo oa primeira vez que vejo favela. Eu pensava que
podem ser ace nmi, jJevantei. Abri a janela e fitei favela era um lugar bonito, por causa daquele samba:
que nao pode , esta cér de chumbo, o sol encoberto
oO espace. 0 on avolumou-Sse a0 seu redor. oO pedago Favela, oi, favela
pelas nuvens qu ja a favela estava triste e sombrio. Favela que trago no meu coragad...
de céu que cobri ¢ eu sai com os filhos. Quando eu
(...) As 10 hore ereadinho vi a afluencia do povo. Mas haverd alguem que traz um lugar désse no
estava perto ee certa. Vio Alfredo correndo e um coracao? Enquanto o motorista fitava a favela eu pen-
brig® oF atris déle com uma faca na mao. O sava: com certeza o compositor.do samba tinha..um,
tinct teen xn te =
Pensei:
Errou_o golpe. mulher boa na favela. O motorista disse-me:
baiano corrend® paiano foi esfaqued-lo. casa. O baiano
Alfredo calu © wtow-8C e entrou numa — Olha, eu vou dar o troco para a senhora, por-
O Alfredo leva® a faca na mao. Eu podia tirara que quem reside num lugar désse precisa muito mais
ficou na Tua de baiano com uma pedrada, mas eu nao do que eu.
faca da mae “
esis: etnies
21
20
Garonina Maria DE Jesus CASA DE ALVENARIA
He tirou 120 cruzeiros da carteira. Ao entregar- Poder comprar roupas para mim. Tudo em
me eu disse-lhe: mim est& despertando. Eu estou pensando nuns_brin-
a carteira cos, colares e vestides bonitos e vou visitar um den-
_—_ O senhor errou no tréco. Wle abriu
tista. (...) Nas ruas o povo dava-me os parabens.
novamente e deu-me 60 cruzeiros.
Quando passo perto de um onibus, oucgo:
sete e meia-o jipe da Televisao —~ Olba a mulher que escreve!
16 de maio As
Record chegou. O motorista é preto, senhor Elpidio 18 de maio ... Eu percorria a rua Sio Caetano
Ferreira. Quando cheguei na Record Canal 7 estava olhando as lojas. A dona da loja mostrou-me varias
tranquila. O motorista foi procurar o reporter Souza blusas. Eu n4o queria comprar porque o dinheiro nao
Francisco para dizer-lhe que eu j4 estava presente. dava. Ela insistin tanto e eu resolvi comprar dois
Ble apresentou-me ao ilustre senhor J. Silvestre. palité6s para as criancas. Ela pediu 1.700 cruzeiros.
Explicou-me como era o programa. (...) O senhor J. Eu estava com 1.500 cruzeiros. Ela disse-me que. eu
Silvestre leu uns trechos do didrio. Eu estou anciosa podia trazer os palités e levar os 200 eruzeiros restan-
para ver este livro, porque.eu escrevi no auge do de- tes amanha. O Jo&io e o José Carlos vestiram os pa-
sespero. Tem pessoas que quando estao nervosas xin- lit6s e ficaram alegres. Era a primeira vez que éles
gam ou pensam na morte como solugdo. Hu escrevia vestia palité6. O Jo&o disse:
o meu diario. — Como é bom ser filho de poetisa!
17 de maio Troquei a Vera e o José Carlos e 19 de maio ... Abri.a janela para olhar o espaco.
fomos para a cidade. Passei no emporio do senhor Ja estou habituada a fitar o espaco para ver se vai
Eduardo para pagar-lhe o que devo. Eu disse ao chover. O espéso da Esmeralda passava agitado. Nés
senhor Eduardo que eu ia na cidade. Que ia ganhar as mulheres j4 conhecemos estas agitacdes. Perguntei-
uns livros. Tomamos o onibus. (...) Fiquei alegre
lhe se sua espésa j4 estava com as dores do parto.
quando vi o reporter José Hamilton. Depois chegou — Desde ontem a noite.
o.senhor Gil Passarelli. Voltamos para a Rua Car- —— Chamou a parteira?
neiro Ledo, 267. O gerente da Edigées O Livreiro —~ Ja, mas ela nfo veio.
Lida. estava na porta. Ele disse-me que eu podia es- Percebi que éle mentia e fui ver o que havia. A
colher os livros que agradasse-me. Orientada pelo Esmeralda estava de pé e chorando. O meu olhar cir-
reporter José Hamilton escolhi og livros. (...) Hoje eulou pelo barraco pobremente mobilhado. A unica
é 0 meu grande dia. A tristeza estava residindo co- coisa que eu vi em abundancia eram as criancas des-
migo hé muito tempo. Veio sem convite. Agora a calgas e magricelas. Olhei o fogao, estava apagado. E
tristeza partiu, porque a alegria chegou. Para onde eu pensei: numa casa que tem muitas criancas, a esta
sera que foi a tristeza? Deve estar alojada num bar- hora o feijao j& deve estar cozinhando.. As criangas
fee taco da favela. estavam tristes. Onde n&o ha o que comer nao pode
tga
... Despedi e segui olhando os moveis e as lojas ter alegria. E os pobres s&o os alunos da professora
com seus estoques variados. O sol estava quente. Hoje —— fome. Olhei a Esmeralda que estava de costas para
éle apareceu as 8 horas. Agradego o sol por ter des- mim. Ela orava: a oracio mais esquisita que eu ja
pontado mais cedo para aquecer os operalios. ouvi até hoje. Era assim:
22 - 23
CaRoLina Maria DE JESUS Casa bE ALVENARIA
“Meu Senhor Jesus: eu sou tao pobre, estou sem — Que casa bonita, mamfe. Como é bom morar
recurso. Eu estou com dor de parto e dor no mew co- numa casa grande! Esta casa aqui é palacio?
racao porque nao.tenho nada em casa para os meus Ti quase um palacio — respondi.
filhos comer. Eu nio chamei a parteira porque nao —- A senhora viu, mamade?
tenho dinheiro para pagar. & o Senhor que tem que — Viu o que?
ajudar-me, Senhor Jesus!” —— Este povo aqui nado cheira a pinga. Hles n&o
._ Eu sai do quarto e perguntei ao Chico se éle tinha bebem pinga?
dinheiro. —— Nao.
—~ Nao tenho. O pagamento é dia 24. -— Fles nao fedem, nao é, mamae?
— Quanto o senhor precisa? — les tomam banho todos os dias.
— 200 eruzeiros dé. Quando iniciou o programa eu fui para o palco.
Entrei no barrac&éo e peguei uma cedula de 1.000 (...) Quando o senhor Durval de Souza anunciou-me
cruzeiros e fui trocd-la. Voltei
eo senhor Leporace enalteceu-me, eu entrei no palco.
as pressas e entreguei
500 cruzeiros ao Chico. Zle disse que eu sou a maior revelacao literéria. Ble
entregou-me uma caneta de ouro.
— Vocé paga-me quando puder. Nas ruas o povo dizia:
Fle sorriu. E a Esmeralda, mesmo com a dor do —— Olha a escritora que estava na televisio.
Darto, sorrin. — Ela ganhou uma caneta de ouro.
a fare espéso Chico pedin a@ uma senhora paxa ir — De ouro! — exclamavam os que ouvia — que
eu fal ane comprar uma ingegao. Ela saiu correndo e sorte!
vela olhar se a parteira ja estava chegando na fa- — Por que é que ela ganhou a caneta?
» porque o seu espdso disse que havia telefonado. . Ella é a eseritora da favela:
sands Eu estava preocupada com a Esmeralda, pen- Ouvi uma gargalhada ironica:
ering e@ se ela morrer, quem é que vai olhar aquelas _— Favela nao dé escritor. Da ladrao, tarado e
ancas? Ouvi as criancas falando: vadio. Homem que mora na favela é porque nao
— oO bebé ja chegou! O bebé jé chegou! presta. :
Ouvi o chéro e pensei neste velho proverbio: Eu queria ouvir os restinhos das consideragdes aos
favelados, mas a Vera disse-me:
O homem entra no mundo chorando e sai ge- —. Vamos pra casa que eu estou com frio.
“ie .
bank” de malo a ‘Tenho de ir na televisio . Tomei 3 de junho ... Estou escrevendo e pretendo con-
erian » troquei-me e fechei 0 barracao e sai com as tinuar escrever. Agora que eu estou encaixada dentro
val de 8 * Quando chegamos perguntei pelo senhor Dur- do meu ideal que é escrever. Tenho impressao que
lomen usa na portaria. 0 porteiro indicou-me...Que estou regressando ao passado, que estou voltando aos
progr onito! Ele disse-me que ia tomar parte no 20 anos, aos 18. Eu fui amante das quadras da vida.
Cringe pare eu escrever uma mensagem para as Fui amante da primavera, do outono, do inverno e do
ot conkg serevi. (...) O senhor Vicente Leporace verio. Agora eu estou de-mal com.o verao. Fiz as
nhecer-me. A Vera estava alegre e disse: pazes com a primavera e ela adornou meu coracéo com
24 25
CAROLINA MARIA DE JESUS’ CASA DE ALVENARIA
fléres perfumadas e construiu um castelo de ouro para O reporter disse que fez o prefacio do livro.
eu residir..Q castelo é 0 coragéo do reporter, este ho- — Deixe eu ler. , _.
mem generoso que esta tirando-me do lédo. Eu era Ble den-me. Li. Esta de acordo com narracées do
revoltada, nfo acreditava em ninguem. Odiava os po-
livro. O prefacio agrada. Mostrei-lhe o drama con-
liticos e os patrées, porque o meu sonho era escrever eluido —- “A Senhora Perdeu o Direito”. O reporter
e o pobre néo pode ter ideal nobre. Depois que co- sain, chegou o reporter Ronaldo. Ficamos conversan-
nheci o reporter tudo transformou-se. Ei eu enalteco o do. En disse-lhe que ia pedir emprego na radio para
reporter por gratidao.
ser dramaturga. O Ronaldo acha que nio. Que eu
17 de junho ... Na rua Sfo Bento parei para devo escrever. Eu queria ir para o radio, pra cantar.
Fiquei furiosa com a autoridade do Audalio, repro-
conversar com um jornaleiro. Mle disse-me que eu es-
vando tudo, anulando os meus progetos. Da impres-
tava na “Ultima Hora” e mostrou-me o jornal. Com-
prei dois jornais e li na primeira pagina: sao de que sou sua escrava. Tem dia que eu adoro o
Audalio, tem dia que eu xingo-o de tudo. Carrasco,
“Carolina vai deixar a favela. Publicara mais ete. (...) Xingava o Audalio. fle nfo me
dominador,
trés livros. Humilde mulher de cér da favela do Ca- da liberdade para nada. Eu posso cantar! Posso in-
nindé, vivendo na miseria com seus trés filhos pe-
cluir-me no radio como dramaturga e éle nao deixa.
quenos, semi-analfabeta, comecou a garatujar em (...) Passei a tarde me preparando para ir na Radio ©
papeis recolhidos no lixo a histéria de seus anos de Gazeta. As cinco e quinze entrei na Gazeta, olhando
sofrimento. Um jornalista descobriu-a e ainda este
aos lados para ver se via o professor Faé. Uns jovens *
ano saira o didrio de Maria de Jesus. Depois virao
conversavam com o porteiro e perguntou-me o que eu
outros livros e diz ela que o seu sonho 6 uma vida ©
desejava. Chegou o diretor do programa, senhor Fer-
decente longe da favela.” nando Soares e nos convidou:
O reporter José Roberto Penna disse que eu sou — Vamos subir.
semi-analfabeta. Quer dizer que tenho a metade da
cultura. (...) No elevador a Vera entrou empurran- ... O locutor disse que eu sou de Sacramento, es-
do os passageiros. Eu disse-lhe: tudei no Colégio Allan Kardee dois anos. Falou a D.
—=+ Pede licenca. Aqui néo é favela! Lilia e recitou poesias. (...) Agradeci e despedi e fui
tomar 0 onibus, pensando nas palavras do senhor Fer-
28 de junho ... Estou pensando. Como seré que nando Soares. Ele disse para eu néo ir cantar no ra-
vai ser o meu livro “Quarto de Despejo”? dio. Para obedecer o Audalic. Comprei pasteis para
os-filhos ¢ tomei 6 bonde.
O reporter surgiu e disse:
— Oh, Carolina Maria de Jesus! Quais sdo as no- 2dejulho ... Fui a Redac&io do “Cruzeiro”. O
vidades? reporter nio estava, sentei para esperalo. Vitava
. — Nao respondi. aquela sala amiga, porque eu jé prendi a gostar do
Ele perguntou se eu nio tenho medo dos favela-_ edificio dos “Didrios”: Fiquei conhecendo o poeta For-
dos, porque escrevi sobre éles. miga e o diretor das revistas. As 11 horas o reporter
—— Nao tenho. E. preciso escrever e dizer 86 a ver- éhegou, cumprimentou-me. e disse-me que amanhi o
dade. - : seuhor Cyro Del Nets vai firar fotografiws para por
26 57
CAROLINA MARIA DE JESUS Casa DE ALVENARIA
no livro. Disse que a segunda edicao do livro vai ser Sai achando graca. Conversei com os empregados
de 10.000 livros e a terceira de 30.000 exemplares. porque devo-lhes obrigagées. Eles favoreceu-me com
Que eu vou ganhar mais de 500 mil cruzeiros. Para eu dinheiro para comprar comida para os meus filhos.
nao ficar orgulhosa. Eu nao estou na idade de ter or-
gulho. Ja conheco todas as reviravoltas da vida. 5 de julho ... Levantei as 2 horas, fiquei lendo.
Ele ouviu-me sem novos comentarios. (...) O Dr. Pensando na minha vida que esta transformando-se.
Elias Raide entrou para fazer o texto. da reportagem — Enfim vou ter uma casinha e um terreno para fin-
do “Mundo Ilustrado”. Os funcionarios sairam. Hoje dar os meus dias. Vou plantar fléres, criar galinhas,
é sabado. Despedi-mne e sai com o reporter Elias Raide e assim vou ter um musico para cantar de madrugada:
para ser entrevistada. o seu ¢6-c6-ro-cé!
Conversei com o senhor Otavio. Disse-Ihe que
vou mudar da favela neste més e que nfo gosto do Tde julho . Vou na Livraria receber o dinheiro
diario. Ku nao sei o que é que éles acham no meu did- do livre. Fiquei “pensando nos pobres, porque eu ja
rio. Escrevo a miseria e a vida infausta dos favelados. estou deslingando dos pobres. Mas no estou alegre,
porque sei que 6 duro passar fome. (...}) Quando che.
4dejulho ... Fomos na cidade. Chegnuei na Li- guei na Livraria fiquei na porta esperando o reporter.
vraria, pedi 1.000 cruzeiros ao senhor Lelio. Ele dis- As pessoas que passava parava para falar-me e per-
se-me que vai dar-me 50.000 cruzeiros no dia 7 deste guntar quando é que vai sair o meu livro.
més. Insisti com élc. O senhor Lelio estava lendo os .Entrei cumprimentando todos, que me olhavam
originais do nosso livro sorrindo. LA no alto estavam o reporter, o senhor Le-
O reporter disse-me para eu nao dizer aos fa- lie e outro reporter. Cumprimentei-os.
velados que vou receber 50.000 eruzeiros. (...) Com- — Onde esto os filhos -— perguntou o reporter.
binamos que eu deve ir na Livraria quinta-feira as 2 — Foram no bar tomar café com do os mogos
horas. (...) Fui ver o senbor Rodolfo. Entrei na ofi- baleao.
cina para conversar com os operarios, que estavam to- O senhor Lelio olhava-me com o seu olhar atraen-
dos alegres. te. Disse para eu chamar os filhos. Obedeci. Encon-
-— Ja recebeu alguma coisa? trei-os galgando a escada. Andamos depressa, voltei
— Vou receber quinta- feira. Vou dar entrada rapidamente e fiquei perto do reporter.
num terreno, se Deus quiser. . O senhor Lelio deu-me o contrato para eu ler.
Eu nao conkeco os empregados pelo nome. Um de- Li que ia receber 40.000 ecruzeiros concernente-.aos-
les disse: meus direitos autorais pelo meu livro “Quarto de Des-,
— Ja esta assinando cheques? pejo”. Fico pensando o que sera “Quarto de Despejo”,
Ainda nao. Breve hei de assinar, se Deus umas coisas que eu escr evia ha tanto tempo para desa-
quiser. fogar as miserias que enlagava-me igual:o cip6 quando
— Quantos anos tem a senhora? enlaca nas Arvores, unindo todas.
— 46. ’ :.. O senhor Lelio indicou-me uma eadeira. Sen-
— Chi... j4 é muito velha! Sendo eu me casava . Os filhos, o reporter eo senhor Lelio fiearam ao
eom. a senhora. meu redor. O fotografo bateu a-chapa quando eu assi-
28 29
EE a
Casa DE ALVENARIA
CaROLINA MARIA DE Jesus
catava papel, moro na favela. Vocé n&o vai querer — Como vai de vida, Dona Carolina?
mais humildade do que isso. | ~— Vou indo bem.
do que vocé faz. .
— Vocé deve orgulhar-se O reporter desembruthou os livros e deu-me um.
Percebi que éle queria agradar-me — que eu es- Fiquei alegre olhando o livro e disse:
crevo muito bem. No Banco um homem conversou — O que eu sempre invejei nos livros foi o
comigo e perguntou-me quando é que sai 0 meu livro. nome
do autor.
O livro vai sair dia 19,. sexta-feira. ; ; Ei o meu nome na capa do livro.
O reporter convidou-me para irmos na Livraria Carolina Maria de Jesus.
Francisco Alves para eu ver as ilustragdes do livro. Diario de uma favelada.
(...) O senhor Lelio estava sentado na sua escriva- QUARTO DE DESPEJO
ninha. Sorriu quando nos viu. O reporter mostrou-
Fiquei emocionada. O reporter sorria:
me as ilustracdes. O que gostei foi da nota de 1 cru-
— Tudo bem, nao 6, Carolina?
zeiro, eu e os trés filhos. E o pacote de ratos, quando
a mulher foi pedir esmolas. —— Oh! sim. Tudo bem.
E preciso gostar de livros para sentir o que
eu
18 de agosto ... Comecei a preparar o almégo, senti. O professor Faé disse:
arroz, feijio e carne. Eu estava eserevendo enquanto ' — Hoje é dia 13, dia de sorte.
as panelas ferviam, quando chegou um senhor da Li- ... Eu fui na lagéa buscar as roupas, porque que-
vraria e disse-me que o reporter vinha trazer 0 meu ria ler o meu livro. Os filhos abluiu-se e deitaram-s
e.
livro. Fiquei alegre. Fiquei lendo o meu livro “Quarto de Despejo” até
as
— Ja esta pronto? 3 da manhé. Quando terminei a leitura eu disse:
— Ja. — Deus ajude o reporter!
Figquei tio emocionada que n&o dormi.
Fiquei anciosa para vé-lo e pedindo a Deus para
que o reporter chegasse. Queria ver 0 aspecto do 14 de agosto ... Fui lavar roupa, conversei
livro. Mandei o Joao ageitar o quintal. Nao tinha com
D. Nené. Disse-lhe que j4 saiu o meu livro. (...)
cadeira para o homem sentar-se. O caixote que eu Se-
lecionei umas roupas e fui passa-las na D. Nené.
estava reservando para as visitas sentar-se, os filhos O
ferro estava queimado. Mostrei o livro pra ela.
deixaram no quintal e roubaram. Fiquei envergonhada Ela
ficou alegre quando viu o seu nome no meu livro e que
e pedi ao senhor que sentasse na cama. Barraco le
ela me dava comida. Fui passar as roupas no barra-
pobre esté sempre faltando algo. (G..) Eu sal-pro cao da Dora. Ela emprestou-me o ferro eletrico. Mos-
quintal e fui conversar com a visinha . Citei-Ihe que trei-Ihe 9 meu livro. Ela no gosta de ler. Olhou
o meu livro jA estava pronto. Fiquei alegre quando a o
livro sem interesse.
Vera bradou: -.. Fui de bonde para a cidade. Levava o meu
— Olha o Audalio! . livro. Entrava nos bares e mostrava o livro.
Eu ja estava dentro do barracao. Entraram o pro- —— Ja estd a venda?
fessor Valter José Faé e o ilustre escritor Paulo Dan- — Ja, na Livraria Francisco Alves.
tas. Depois dos cumprimentos o reporter perguntou- Cheguei na redacio circnlei pelo saguaio dos “Did-
me se o livro vai sair ou nao. Sorri. . Trios”. Hstava frio, sai para rua e sentei na calgad
a.
32
33
Casa de Alvenaria
2
sneha
SNE OCR
CAROLINA Maria DE JESUS Casa DE ALVENARIA
34 35
Mania be Jesus CASA DE ALVENARIA
Canotina
36
CASA DE ALVENARIA
livro.
.
. .
i
isc ane O senhor Paulo Dantas deu-lhe um livro e nés
ro we
Freire. Entreguei-tlheo meu liv . tr ou saimos para almocar. O reporter disse-me para eu ir
p ara : o meu
haviai dado uma nota pense ae de carro. Obedeci. Tomei um carro e pedi ao moto-
nal . Des pedi, porque estava
e deu-me o jor oe rista que avoasse. Fomos conversando.
de Oliveira acomp
BARRE
nos filhos. O Eduardo livros que sta aes ... Chegamos na favela. O motorista ficou horro-
a favela Mostrei-lbe os meus os xO oe rizado olhando a favela.
cesar annette
e. Agrada. Ele
tos. Li as poesias dél — O que é isso aqui, D. Carolina?
sua vida. O poeta
trechos amargos de oo. sles @ fui — Eo quarto de despejo de Sao Paulo.
. Oliveira. despediu-se. e! 0 jantar par a éles — Credo! Como é que vocés vivem aqui?
° Ablui os filhos, prepar — Nés os favelados somos os objetos fora de uso.
:
escrever - Vivemos com dificuldades para comer. Temos que
Lan
19 de agosto Era 4 horas e eu J8 estava oyaorto lutar como se estivessemos numa guerra.
o agua, Pore — E vocés aqui sentem frio?
rando 0 almogo-e-carregand to
ografar o meu lV ah — Sentimos todas agruras da vida.
ir na Livraria para aut 1110 08 a °
ho e recomendei os Despedi do motorista, paguei 130 cruzeiros, saf
a Despejo”. Tomei ban e vol tar par
cortar 0 cabelo correndo e entrei no barraco. Ouvi as vozes dos filhos:
nao prigasse, para ir Livr
ivra:aria Fy na /
ia Vv voltar para le va4-los - — Oltha a mamie!
Vv la, ?
fave que eu
Fui de onibus. Na Bua Libe-
tarde. ‘Tomei café e sai.
39
38
DE Jesus
ce 3s CASA DE ALVENARIA
CareLina MARIA
40 al
CASA DE ALVENARIA
da favela, o ambiente que arruina Ficaram alegres. Hu disse a D. Alice que vou deixar
YEstava livrando-os
das criangas. ; a favela.. Percebi que ela ficou triste. Eu vou dar-lhe
a moral
os socios que pagam o meu barracio. Fui encaixotar os livros. Estou con-
_.. Iniciaram o sorteio para
constraiy as casi- tente. Até que enfim deixo este recanto maldito. Nao
quinhentos cruzeiros por més para r rane eco vou incluir a saudade na minha bagagem.
nhas. O primeiro cont empl ado foi o senho
o seno r Mae Eu contratei um caminh&o para conduzir os meus
da Silva. (...) A ultima casa foi para uziu -me cacarecos para Osasco.
ista que cond
noel Freire dos Santos. O motor
arranjar uma
disse ao padre Comaru se era possivel 30 de agosto Levantei as 6 horas, preparando as
O padre Coma ru disse que a viajar
casinha para mim. a ome roupas e fazendo trouxas para zarpar da favela. Fiz
era possivel no momento. O senhor
e que nao
um quarto. is: café e fui comprar pio. Pedi ao Chico para atender-
Soeiro Cabral ouviu e disse que tinha me logo, porque eu ia mudar.
Que eu podia ficar uns oes “ é
ponivel na sua casa. sen or
ver.
arranjar coisa melhor. E se eu queria ir auto ©
— Para onde?
levou no seu
Mauricio Ferraz de Camargo nos e para
— Von residir em Osasco.
Antonio mostrou-me o quarto, 0 tanqu
o senhor Estava preparando os trastes quando chegou o
lavar roupa e a luz eletrica. senhor Paulino de Moura, dono da Livraria Boulevard.
— Serve, Carolina? : . Veio convidar-me para eu ir na sua livraria autografar
_— Se serve! Amanha eu mudo para ca. os meus livros. (...) Ble trouxe uns livros para eu
para nao
Figquei alegre. Recomendei aos filhos autografa-los. Hu estava autografando quando chegou
e a sue espo-
yeinar. O senhor Antonio apresentou-m he que
o reporter Gil Passarelli, das “Folhas”, para fotogra-
o alm6¢o. Ble disse. far-me porque eu vou mudar. O senhor Paulino auxi-
sa, que estava preparando
jar co coawee .
eu ia ficar uns dias na sua casa até arran a. Ate
liou-me, retirando as gavetas pela janela, para ser
Enfim eu vou deixar a favel filmada e fotografada. O Gil despediu-se porque a
Fiquei reanimada.
que enfim chegou o meu dia. reportagem ia sair a tarde. Continuei autografando
os livros, quando chegou o senhor Pompilio Tostes que
er
29 de agosto ... Fui na cidade avisar 0 report veio filmar-me. Ble filmou o barracéo por fora. De-
e fui na
que eu ia deixar a favela. Desei do onibus pois foi filmar o interior, mas nao tinha claridade.
olhar as noticias. Assim que o jor- OQ Joo subiu no telhado para tetirar umas telhas,
banca de jornais
naleiro viu-me disse-me: para penetrar claridade.
__ Otha o seu retrato no “Mundo Ilustrado”. .-. Os jornais j4 havia noticiado que eu ia mudar
ia
Comprei uma revista ¢ avisel 0 jornaleiro que para Osasco as 14 horas. Na favela os curiosos ja
feira. Quand o
sair na revista “O Cruzeiro” na terga- estavam presentes @ as criancas rondando o barracdo.
el ¢
cheguei na redagdo o reporter niio estava. Esper N&o vieram auxiliar-me. A D. Alice disse-me que os
eu disse- lhe que éle devia ir comig o meninos haviam mechido nos meus livros. Xinguei-os.
quando éle chegou
que arran-
no Banco descontar um cheque. Avisei-Ihe Respirei aliviada quando o motorista chegou. O senhor
; Milton Bitencourt. Ele ficou receioso quando viu os
jei um quarto em Osasco.
dormi r na favelados aglomerados ao redor do barracio. Pedi
...Hoje é a ultima noite que eu vou
vamos mudar amanh a. que fosse.carregando os cacareces para o caminhdo.
favela. Avisei os filhos que
44 45
CASA DE ALVENARIA
CAROLINA Maria DE JESUS
|{
Ela dava co-
36 da D. Isaltina. Que purtuguesa Oboa!caminhao Pensei: sera que éle nao queria que eu mudasse da
|f mida e roupas para 0s meus
parou
filhos. favela?...
|
|
i 47
\| 46
TERS
CAROLINA MARIA DE JESUS Casa -DE ALVENARIA
Varias pessoas havia dito que o Audalio trans- Vou preparar as roupas, porqne amanh& eu vou
formou-me em rato para os gatos. Mas o rato corre a Santos autografar livros na Livraria Recanto do
mais do que o gato. E eu corri para Osasco. Os visi- Livro. O senhor Antonio Soeiro Cabral comprou os
nhos do senhor Cabral afluiu-se perguntando: jornais que citava que eu havia mudado da favela com
—— O que aconteceu? pedradas. Gesto que eu jA esperava: confeti de fave-
Espantados com o povareu da imprensa. lado é pedra.
— Ea Carolina que esté mudando para Osasco. Fiquei admirada do Andalio nao aparecer em
—. Aquela que escreve? Ah, j4 sel. . Osasco. Sera que éle queria que eu ficasse na favela?
Chegou o reporter José Hamilton e o senhor Gil
Passarelli. Perguntei pelo Audalio. 1 de setembro Levantei as 5 horas, preparando
—~ Ele nao pode vir. os filhos para irmos a Santos. Estava chovendo. Fo-
Fle nao quiz vir. Pensei: éle é enigmatico e gosta
mos de trem, porque os filhos diziam que queriam an-
de ser bajulado. Mas eu 6 que n&o vou bajula-lo. Os dar de trem.
fotografos fotografou-me ao lado do senhor Antonio — Que tal é andar de trem?
Soeiro Cabral entregando-me a chave. File empres- Naéo responderam.
tou-me uma cama. Cada gesto do senhor Antonio
— Eu nao disse que um dia vocés iam andar de
Soeiro Cabral ia revelando o seu grau cultural, soli- trem?
dariedade de gestos que eu desconhecia no nucleo que :
eu acabava de deixar. Fui recolhendo os cacarecos. Quando chegamos na estacio tomamos um taxi até
Os reporteres partiram. En estava cansada. Ageitei a Livraria Franciseo Alves. O senhor Thomaz Parri-
as camas e dei banho nos filhos, que ficaram admira- lho & que vai levar-me em Santos. Fomos até o ponto
dos da agua sair quente do chuveiro. Sorriam debaixo do onibus. O povo esté perguntando porque é que os
do ehuveiro. Comeram mortadela com p4o e deitaram. favelados atirou-me pedras.
Estavam exaustos. ... Todos os olhares estavam fixos no meu rosto.
Deitamos e dormimos. Que sono gostoso. A luz O senhor Thomaz Parrilho comprou as passagens ec.
eletrica iluminando o quarto. O Joao sorria porque partimos. O onibus ia superlotado. Os filhos ia admi.
agora vai poder ler a vontade. Despertei a noite e rando as ruas de Sao Paulo e alvenarias de luxo. Cada
fiquei pensando na minha vida, que parece uma tra- qual mais bonita que a outra. No Ipiranga @les viram
gedia. A gente nasce e no decorrer da existencia a o Museu e o Monumento e a casa de D. Pedro I. Acha-
vida vai ficando atribulada. ram a casa simples e feia. Fomos cantando no onibus.
Agora eu estou na sala de visita. O lugar que eu Quando chegamos em Santos estava chovendo.
ambicionava viver. Vamos ver como é que vai ser a Tomamos um carro e dirigimos para o Recanto do
minha vida aqui na sala de visita. Livro. O senhor Osvaldo de Oliveira nos recebeu com
ialidades e dirigimos para a Camara Municipal.
31 de agosto Passei o dia em Osasco. Lavei as a pelos vereadores. Fiquei encantada com
roupas que estavam sujas. O senhor Antonio Soeiro o luxo da Camara de Santos. Fui apresentada ao vice-
Cabral pediu comida no restaurante para mim. Quan- prefeito, que recebeu-me com cordialidade. Tomamos
ta amabilidade! Quanta comida! eate,
,
ate 49
CanoLina Marta DE JESUS Casa DE ALVENARIA
50 51
CASA DE ALVENARIA
somas
medo de andar com nos acompa- Saimo ‘ ie banco até é a redacdo
ami go vir até a livraria para 0 Anite fomos dos Diarios
tado o di-
m
or
o
54
H
Casa DE ALVENANLA
“60
CASA DE ALVENARIA
CAROLINA Maria bE Jesus
| 62
t 63
|
|
CASA DE ALVENARIA
Canouina Mania pr Jesus
... Propuz ao David St. Clair para irmos na
Sera que preconceito existe até na literatura? O negro Livraria. Hu ia escrever um artigo. Despedi do re-
nio tem direito de pronunciar o classico? porter e sai com o David St. Clair. As pessoas que
abordava-me eu parava e apresentava o David St.
21 de outubro Levantei de manha e escrevi até Clair e dizia:
o astro-rei despontar. Fiz café e comprei leite para — Ele é 0 reporter do “Time”.
os filhos. Bles abluiram-se. (...) Estava ageitando a
Ele sorria. Apresentei-o na livraria da Praca Ra-
casa quando chegou o preto Roberto. Ele esté desem-
mos. Paramos para comprar a “Tribuna da Impren-
pregado. Dei 1.000 cruzeiros para o preto Roberto,
sa”, mas ji estava esgotada. Chegamos na livraria eu
porque éle queria snicidar-se. Que baixeza! Um ho-
apresentei-o:
mem forte no fisico e fraco nas resolucdes.
—— Este é o reporter do “Time”.
24de outubro ... As 11 horas chegou o Rubens. ... Saimos da livraria. Despedimos e éle dis-
Disse-me que conseguiu 170.000 cruzeiros emprestado se-me:
com o seu tio e quer que eu lhe empreste 180.000 — No Rio vocé vai jantar comigo.
‘crnzeiros, que éle quer comprar um caminhao. O ea-
minhao eusta 350.000 cruzeiros. Eu nunca pedi di- 27 de outubro ... Fomos na Televisio Canal 2
nheiro emprestado para ninguem. Pedia pio para os ver a Dona Suzana Rodrigues que convidou-me para
meus filhos e sobra de comida. tomar parte no seu programa. Sentamos na sala de
.-- En disse que eston juntando dinheiro para espera. Conversei com as ilustres senhoras que esta-
comprar uma casa ou um sitio, porque as coisas val vam presentes. Falamos da transformacio da minha
piorar e eu quero ter terras para plantar. Ele disse- vida. As mulheres dizia:
me que arranjou um emprego num escritorio e precisa -—— Vocé deve adorar o reporter. Que homem
de 3.500 cruzeiros para. dar de fianca. O Joiio disse- bom!
me para eu nao dar-lhe dinheiro. —- Ble faz tude de graca para a senhora?
26 de outubro — Faz. O que ganho num més éle ganha em 6
... O reporter convidou-me para
méses. Tem dia que o reporter diz que o seu orde-
irmos no Banco. O numero do meu deposito em conta
nado € pouco e eu digo: sinto ndo poder dizer-te o
corrente é 36.427. Depositei 150.000 eruzeiros. Con- mesmo. .
versamos com os bancarios. Eles congratularam-se
As mulheres sorriam. A Dona Suzana Rodrigues
comigo. Despedimos dos bancarios e fomos para a re-
dagao. Eu estava conversando com o reporter. Fala- disse-lhes que eu tenho mais dinheiro do que ela. Mos-
mos do pai da Vera. Ele vai dar-me uma caneta. trei-lhe os recibos dos bancos. Ela disse-me para eu
Quero duas. Uma para o reporter. ter cuidado.
—- Agora éle quer dar caneta? — Nao tem perigo.
... Disse-lhe que quando recebo 100.000 cruzeiros,
A porta abriu e o David St. Clair e outro senhor recebo 200 mil de aborrecimentos. Estou angariando
entraram-se. amigos e inimigos, porque no posso satisfazer certos
— Oh! — exclamei contente. FE dei um abraco pedidos impossiveis — Ha os que querem casas, ha
no David St. Clair.
65
64 Casa de Alvenaria 3
Carnouina Maria DE JESUS
i
66
CasA DE ALVENARIA
CAROLINA Maria pe Jesus
69
68
CASA DE ALVENARIA
70
Maria DE Jesus
CaroLina
CASA DE ALVENARIA
: i da pobreza, o distin-
© eros estava rn levantando-se ruas..A Dona Luiza surgin perguntando-me se eu
mo ae representa ha no de-
ns. Minha mala vin queria tomar café.
tivo de otter aS bagage ros 20 car reg ador em
ia dado 20 eru zei Ela pediu café. Os filhos ficaram admirados
ais eee h gando en ia olhan-
ae be saando o onibus foi che vi reanimel quando viu as frutas, manteiga. A Vera sorria quan-
jornalistas. Qua ndo
Sao Panlo. Qe via os ram-me.
Eles reconhece
do os nossos olhares cruzavam. Nés agora somos
nce ando-Thes a mao. ricos. :
1 nL
a. Cumprimentei as pessoas presentes. Os
Pai fil A Vera queria Desci no elevador para encher as canetas. Os em-
filma’ ran fotografando-me. pregados do hotel olhavam as canetas e sorriam, co-
ee ois dos cumprimentos
Joma hotel depressa. Dep magnifico! mentando que as canetas eram velhas. Pedi o jornal
Que pre dio
fomos
gar a0
para o Hooe I tel Serrador. para ler. Ku estava em todos. Conversei com os fun-
che
apartamento no a andar. wen
Fomos para 0 108s ta cionarios e subi no elevador para ler. Estava cansada,
A cama nivia e
tamento maravilhoso. belo . A gov ern ant s mas estava contente porque a vida no Rio transforma.
ae will Tudo que é do Rio é H um recanto de fadas. O carioca é agradavel.
za Fiori. Auxi-
ale arent! me bem. & Dona Lui
e dizia que estava con-
Q rdar as roua pas
O hotel parece um palacio encantado. Tem tudo
iejou-mae a gua sa culo, diene. que desejamos. O radio, telefone e as vistas agrada-
de criancas-
tente porque gosta
um poe a cu 0, disse-
veis. A D. Luiza Fiori 6 culta e laboriosa. Troquei
O senhor Homero Homem,grama as televis Oa os filhos e fui girar pela cidade. Os cariocas estavam
me que nés iamos a wn pro comentando o meu programa da televisio. Fui a Ci-
¢ saimos para a ; elevis.
tamos, trocamos a , nelandia olhar os locais onde ia realizar os autogra-
perguntou pelo
chegamos 4 reporter fos. E li os nomes das editoras. Sentamos para ler
respondeu o senhor Homer
__ Ble nado veic — ; a “Ultima Hora”. Achei graca quando li: — “Relogio
Homem. de ponto para os deputados”. As pessoas nos reco-
0 senhor Homero Ho nhecia. Circulamos pelas ruas procurando tinta. As
A reporter combinou com n
ormar o programa, aprese coisas que me faz falta: livros, tinta e papeis. Eneon-
mem e resolveram transf sen A
tando-me barracao com os filhos, o
num trei uma loja de canetas e perguntei se tinha tinta.
amos dos
e o senhor Barbosa Mello. Fal Responderam-me que sim. Perguntei o preco: 12 eru-
atua l livr o.
do eserever € do zeiros. Contei o dinheiro, faltava 5. O jovem disse-me
meus oeane eu preten o. ; somos
que eu podia levar o vidro de tinta e pagd-lo depois.
m trec hos do livr
les citara s
amos por al An ome Fiquei surpresa, porque aquele jovem me via pela pri-
Saimos da Televisao, and A Dona pal za Wiori meira vez. Eu disse-lhe que estava hospedada no
Gaucha.
jantar na Churrascana um car ro ¢ 0 p a Hotel Serrador.
anhava-me. Alugaram tamos. dei
alegria quando —~ Eu confio na senhora. Pode levar a tinta.
8 Hotel Serrador. Que
a! ... O que fascinou-me foi as manciras cultas dos
cama nivia é maci
funcionarios do hotel. Quando olhava-me sorriam. Da
i ate a
8 de novembro Levantei as 4 horas. Fu a impressao que estamos no céu. A D. Lmiza disse-
r nte s do Rio
j mplar as paii sagens des Jumbra pelas
me que eu devia tomar banho. Obedeci. O ilustre es-
pio circul ava m
sa otro. Os carrinbos de critor Homero Homem chegou e telefonou. Pedi para
éle subir.
72,
73
,
CASA DE ALVENARIA
CAROLINA MARIA DE JESUS Nao estou trabalhando. Recordei aquela epoca em que
catava papel até as 11 horas para conseguir dinheiro
Quando o senhor Homero Homem chegou sorriu para comprar 0 que comer.
antes de nos cumprimentar. Disse-me que eu devia
trocar-me para ir autografar na “Revista Leitura”. 9 de novermbro Despertei as 4 horas porque ja
A D. Elza Heloisa estava presente. Ea D. Jurema estou habituada. (...) O telefone tocou. Fui atender,
Finamour. Comecaram os: telefonemas dos cariocas era a D. Elza Heloisa. Disse-me que vinha retirar
saudando-me. O senhor Homero Homem despedin-se. os meus filhos para passear. O meu quarto estava
Os meus filhos estavam abismados. A Vera olhava superlotado de visitas. A D. Eva Vastari, da revista
tudo ao seu redor com assombro. O que impressio- finlandesa, uma loura muito educada, estava presente.
nou-a foi a banheira. Ela dizia: ; G telefone tocou. Fui atender. Era o senhor Ferrio.
— Como é que a agua pode sair quente de dene Eu disse-Ihe para subir.
tro da parede? Mamie, esta casa @ a casa das fadas -., A noite estava tepida, o céu adornado de es-
falam os livros? . trelas. EK as ruas do Rio superlotadas de transeuntes.
a __. Nao 6 a casa das fadas, nfo é casa dos livros. © senhor Ferréo acompanhou-me até a Cinelandia,
# o hotel. ; que estava com as arvores iluminadas. Quando che-
AD. Elza Heloisa saiu com os meus filhos e eu guei na Feira do Livro a multidéo aplandiu-me. Ace-
fui autografar livros na redac&o da “Revista Leitura . nei a mao e dirigi para o palanqne. Iniciei os auto-
Quem acompanhava-me era 0 senhor Barboza ello, grafos com dedicatorias. A praca estava superlotada.
que ofereceu-me um refresco de caju. Gostei, porqne Nao me foi possivel ser mais atenciosa com o povo, por
foi a primeira vez que bebi. Galgamos os degraus. i causa do horario. Hu devia ir na televisio. Que su-
senhor Homero Homem estava sem palito, sentado plicio para deixar a Cinelandia. O povo segurando-
Circulei o olhar pela redagao. Piguei con- me, pedindo para eu autografar livros. Conseguimos
escrevendo.
tente. Vi varios livros nas prateleiras. Sentei para au- tomar um taxi. Eu estava cansada de ficar de pé.
os meus livros. Chegou um mulato. Cumpri- Fomos jantar. No restaurante nés escolhemos o que
tografar
mentou-me sem dizer o seu nome. Perguntou ao se- comer. Eu fiquei horrorizada porque as madames jo-
gavam
nhor Homero Homem se eu estava comprovando ser a metade das comidas fora. E no preco que
a autora do livro. A sua voz era sutil. Mas eu percebi. est& os generos alimenticios!
E que eu estava habituada a aproveitar tudo e por
— Esté — confirmou o senhor Homero Homem
com sua voz calma. . isso nao sei dissipar.
Que luxo no restaurante! Os garcons atenciosos,
Chegou o escritor-Walmir Ayala. Cumprimentou- fitando-me com curiosidade quando ouvia alguem pro-
me e olhou-me minuciosamente. Tinha a impressac
de um juiz. O senhor Homero Ho- nunciar o meu nome.
que estava diante
mem apresentou-me, dizendo: 10 de novembro ... O senhor Homero Homem
— Este éo Walmir Ayala... .
telefonou-me que ia buscar-me para ir autografar Ii-
Agradeci o artigo que éle escreveu para mim no vros. A D. Elza Heloisa prontificou-se a levar-me.
“Jornal do Brasil” no dia 1 de setembro de 1960. Con- Nas ruas do Rio eu notava as mesmas confuses de
tinuei autografando os livros. O senhor Barboza Mello Sao Paulo. O corre-corre. Eu e D. Elza Heloisa an-
perguntava-me todos os instantes se eu estava can-
sada. Respondi que nio porque agora eu nao caso. 15
74
Casa DE ALVENARIA
CAROLINA Maria DE JESUS
|
| il
78
79
Casa DE ALVENARIA
Carouins MARIA DE JESUS
Darwin Brandao. Ele guia o carro escritores foram na minha barraca. Dona Adalgisa
eultos do senhor
bem o sinal do trafego. Nery, Dona Maria Dezone Pacheco Fernandes, Mat-
observando
tos Pacheco, senhor José ‘Tavares de Miranda.
Depois do jantar éle nos conduziu. Seguimos para tee Fiquei horrorizada ouvindo uma senhora da
.
a residencia do Dr. Oscar. Era 2 horas da manha alta sociedade dizer. que ficou contente quando o seu
esposo faleceu. Tenho impressio que estou vivendo
14 de novembro ... Depois do café o Dr. Oscar num mundo de joias falsas.
Quando
nos conduziu de automovel até o Aeroporto.
no avido o report er viu a Dona Sarita
embarcamos 18 de novembro ... Vou a Sao José do Rio
Campos e cumprimentou-a. Pardo. A Vera estava animada. Fomos de onibus. Eu
— Quem é essa senhora? ja contemplando as exuberancias do nosso Pais e a
_- fi a Sarita Campos. imensidade de terras sem cultivar. Nao culpo o ho-
Ela
Fui sentar ao lado da Dona Sarita Campos. mem do campo por abandonar as terras, porque éles
(...) Quand o che- trabalham e nunca tem nada. Eu ja fui do campo.
estava com um rosario rezando. Des-
gamos a Sao Paulo a Dona Sarita reanimou-se. {...) Eu ia revendo as paisagens agrestes, contem-
pedimos. plando a revoada das aves na amplidio. Quando che-
iamos gamos em Sao José do Rio Pardo, o senhor Thercio
_.. Fui ver os filhos e trocé-los, porque
Adhem ar de Barros . (...) Na sala Gongalves nos esperava. Um homem eculto e agrada-
visitar o Prefeito A
audien cia. vel. Presidente do Gremio Estnudantil Euclides da
de espera varias pessoas aguardavam ar
Quand o o Dr. Adhem Cunha. O que notei na cidade: todos admiram e ve-
Televisio estava aguardando. neram o saudoso Euclides da Cunha.
e cum-
sain para receber-me ecaminhei na sua diregao
uns versos . Ble disse- me que ia ots A cidade estava tepida. Os habitantes serenos.
primentei-o e recitei
uma comiss fo para constr uir casas propri as Tao diferentes do paulistano agitado e grosseiro para
organizar
para os favelados. andar nas ruas. O paulistano empurra quem esté na
frente, piza no pé dos que est4o ao seu lado. Fomos
17 de novembro ... Eu ia numa noite de au- hospedar num predio antigo, mas gostoso. (...) As
tografos organi zada pela colunisia Alik Kostakis. recepedes foram agradaveis.
En estava com o casaco vermelho. (...) Tomamoss 0 que impressionou-me foi o jantar no hotel. Que
comida gostosa! En estava alegre, calma e feliz. Sor-
um taxi e fomos para a Avenida Paulista no Conjunto
Nacional. Og livros eram em beneficio do Lar Escola ria a todo instante. Para mim en estava noutro mun-
do. Um mundo sublime e sem confusdes. (...) Pas-
Sso Francisco. As barraquinhas ornadas com fléres
samos o domingo em Séo José do Rio Pardo. O Dr
de diversas tonalidades. A minha barraca estava no
Osvaldo Gallotti nos conduzin de automovel para co-
fim do saldo. As madames chiques de Sao Paulo com-
_.pareceram. A minha madrinha foi a Dona Bia Cou- nhecermos os recantos da cidade. Fui ver o barra-
cio onde o nosso Euclides da Cunha esereveu “Os
tinho. Primeira vez que a vejo. Tratou-me admira-
Serties.”
velmente bem. N&o deu-me o seu enderego e nao convi-
... O Dr. Osvaldo Gallotti e o senhor Thercio
dou-me para ir a sua residencia.
Gongalves levou-nos a usina eletrica de Sio José do
_.. O mais alegre era o Conde Ermelindo Mata-
Rio Pardo, que fornece energia para as cidades visi-
razzo. Estavam presentes escritores e artistas. Os
81
80
CaSA DE ALVENARIA.
MariA DE JESUS
CAROLINA 23 de novembro Na4o estou tranquila com a ideia
de escrever o meu diario da vida atual. Escrever
até Mococa. (...) Admirei as quantidades de
nhas contra os ricos. Eles sfo poderosos e podem destruir-
pés de mangueiras espalhadas pelos prados. Que dia me. Ha os que pedem dinheiro e suplicam para nio
magnifico! As aves perpassavam em revoada. HEspe- menciond-los. Tem uma senhora que quer dinheiro.
taculo que as pessoas residentes em SHo Paulo nao para comprar uma casa. Hu nao tenho. Ela ficou de
aprecia. Parece que as aves tem pavor do céu de SAo mal comigo. Ela quer 500.000 cruzeiros.
Paulo por causa das fumacas das fabricas. Estes dias eu néo estou escrevendo. Estou pen-
Fomos ver o subterraneo onde esta localizado sando, pensando, pensando. Quando escrevi contra os
os geradores de energia. O tunel tem aspecto de favelados fui apedrejada...
caverna. . .. Todos os dias chega cartas de editor interna
Fomos visitar a mie do Dr. Gallotti. A casa é eional que quer traduzir o livro. Até eu estou abis-
ampla. & casa-matriz apropriada para receber os ne- mada com a repercusséo do livro.
tos nas ferias. Fui ver a casa. Que casarfo! com seus
moveis antigos. Quando eu era jovem sonhava ser 24 de novembro Os filhos andam alegres porque
dona de uma mansio com varias dependencias. podem comprar frutas para comer. Ples que catavam
Fomos ao Orfanato ver as criancas que estao no lixo. O José Carlos diz:
aos cuidados das Irmis. Olhando aquelas criangas -—— Parece que estamos sonhando. Ha tantas coi-
elas sio tristes. Devem sonhar com a liberdade, mas sas para comer, mas é preciso ter dinheiro para com-.
elas sfo mais felizes que as que perambulam por aqui, prar. Quem inventou o dinheiro?
sem teto para abrigd-las. Hlas cantaram a cancio — Foi um povo chamado fenicios.
“Crianca Feliz”. A Vera disse-me: -— Invengi&o idiota, nao, mamae?
__ Eu sou mais feliz do que elas porque tenho Eu estou pensando onde deixar a Vera quando
mie. for viajar. Eu nao contava com essas viagens. Fui a
E olhou-me com ternura. cidade. O Dr. Lelio disse-me que ja enviou livros
... Passamos o domingo sem notar. O dia foi para Porto Alegre. Encontrei a Dona Elza Heloisa.
minusculo. Dias longos eram os da favela: fome, Disse-me que acompanha-me na viagem a Porto Ale-.
gre. Comprei meias e vestidos. Quando cheguei a
briga e Radio-Patrulha. Fiquei contente com o pre-
que o senhor Thercio Goncalves deu-me —- um Osasco encontrei o José Carlos queixando que o se-
sente
livro. O livro é'“Os Sertées.” nhor Antonio Soeiro Cabral havia expancado-o. O José
Os meus agradecimentés ao pove de Sao José do Carlos é inteligente no falar, mas reina muito.
Rio Pardo. Fui recebida com deferencia especial. Essa
26 de novembro Os meus filhos estio confusos
aeolhida amavel que o povo dispensa-me estimula-me
a escrever outros livros e estudar. com a mudangé: brusea de nossa vida. Eles compram
Viajamos a noite. Eu vinha cantandona.viagem. maea, ficam sorrindo e comentando:-
Oh vida boa! Minha vida esté aveludada. Agora eu — Que bom poder comprar o que desejamos.
tenho comida, tenho casa, tenho o que vestir. Compro A Vera pergunta:
roupas novas para mim. Quando eu catava roupas no — N6és vamos viver sempre assim?
lixo para usd-las pensava: algum dia hei de comprar
roupas para mim. EH Deus ajudou-me. Estou contente. 83
82
hs eect
CarROLIna MagiA DE JESUS Casa DE ALVENARIA
—— Agora eu estou na casa de alvenaria. Fiquei circulando e olhando o relégio a todo ins- i
¢
— A senhora recorda das enchentes da favela? tante pensando na Dona Elza Heloisa. EK se ela nao be
A agua entrava dentro de casa. Coitada da Nené e a aparecer? Nao sei viajar sozinha. As pessoas que iam
Ivanice. Como 6 horrivel ser menina de favela. echegando reconhecia-me. As 8 horas a Dona Elza
O livreiro Paulo Rolim de Moura veio queixar-me chegou e foi preparar as passagens. Uma senhora
que a Prefeitura quer fechar a sua livraria na Penha. perguntou-me:
i
Pediu-me para eu ir falar com um politico para dei- — Essa senhora é a tua dama de companhia?
xa-lo em paz. (...) Citei-lhe que nao tenho prestigio —— E uma jornalista que vai acompanhar-me até
com os politicos porque nfo os bajulo. Porto Alegre. Nao tenho pratica de viajar sozinha.
— Vai, Dona Carolina. A senhora consegue tudo, Eu era da favela. Eo roteiro que favelado conhece
até o sol te atende. é Santa Casa, Central de Policia e Gabinete de Inves-
Sorri achando graga. Quem sou eu, um colibri tigacoes.
falar com uma aguia. En cansei de explicar-lhe a ..- Quando o aviaéo partiu eu estava tranquila ao
nulidade de minha interferencia. Ble despediu-se tris- lado de Dona Elza Heloisa, que ia dizendo que ja
tonho. residiu em Porto Alegre. (...) Eu ia contemplando
as paisagens magestosas e a quantidade. de tcrras in-
30 de novembro Levantei as 4 horas, preparan- cultivadas. Ficava pensando: com tantas terras aban-
do-nos para ir a Porte Alegre. Pedi para a Dona donadas e o povo passando fome! Essas terras per-
Maria cuidar da casa, lavar as roupas e olhar os me- tencem aos capitalistas. Ninguem pode chegar e plan-
ninos. Dies reinam muito e os visinhos reclamam, tar algo sem o seu consentimento. Bles tem dinheiro
aconselhando-me para internd-los. Quando estavamos para pagar a Dona Lei e suas confusées. O mundo
na favela passando fome eu nao os internei. Agora para ser bom é preciso que as terras sejam livres. O
que posso dar-lhes o que comer é que vou internd-los? homem podera desfrutar a terra, porque ela é inesgota-
Seria injustica da minha parte. vel. As terras sendo livres todos plantam e a miseria
extingue-se. Um povo bem alimentado 6 um povo
... Vesti o meu casaco vermelho e tomei um taxi. feliz. (...) Porque é que o governo nao distribui as
iu parava nas filas de onibus e convidava alguem
terras para 0 povo?
para ir até a cidade. Uns recusavam, pensando que
Eu penso isto, mas nao digo porque se eu disser
teriam de pagar a viagem. Dou-lhes razio, porque o
isto os capitalistas vio dizer:
dinheiro do operario é conta-gétas. Uma purtuguesi-
— A Carolina é vermelha. & ignorante e semi-
nha que trabalha no Jardim America aceitou o con-
vite. Eu ia conversando com o motorista. Estava ale- analfabeta.
gre. Estou conhecendo o Brasil. Com o percurso que o avido fazia o aspecto do
espaco ia modificando-se. Metamorfoseando-se. Uns
Quando cheguei no Aeroporto os carregadores recantos inesqueciveis. HA pessoas que tem dinheiro e
vieram ao meu encontro dizendo-me: dizem que vo conhecer a Huropa, deixando de conhe-
—- Olha a minha namorada! cer os nossos-recantos~ridentes.
Hira 7 horas, o céu estava cinzento e frio. Em Porto Alegre o senhor Assis Marques, distri-
—— Para onde vai? buidor da Livraria Francisco Alves, estava aguardan-
—-. Para Porto Alegre. do-me com fotografos e jornalistas.
84 85
CaroLttna Magia DE JESUS
CASA DE ALVENARIA
Fomos almocar. Que comida gostosa. Que
carne deliciosa. Sentada no restaurante chique, en agora ao lado do Prefeito. A Dona Heloisa espésa
pensava nos infelizes que catam os restos de feira do Prefeito dizia: ,
para comer. Tenho impressao que os infelizes que — O que admiro é que a Carolina foi de favela
passam fome sio meus filhos. Eu sai da favela. Tenho e sabe comer de faca ec garfo.
impresséio que sai do mar e deixei meus irméos afo- Eu dava risada. Olhando as mesas nivias e guar-
gando-se. necidas com jarros de flor, pensava: estou vivendo
Findo o alméco fomos a estacao de radio: Os um trecho historico. Isto aqui é um palacio. Isto é
gauchos olhavam-me com euriosidade. O senhor Assis um paraiso.
disse que iamos em Pelotas. Fomos de auto. A espésa Eu fui autografar livros na praca onde esta-
do senhor Assis nos acompanhou. Saimos as 5 da va a Feira do Livro. Varias pessoas aguardava-me.
manha. Quantas terras! Eu ia contemplando os tri- Ouvi um jovem dizer:
gais com sua cor de ouro. Tem mais lavouras no Rio — Que negra feia!
Grande do Sul. Olhando os lavradores trabalhando na Ku sorri e disse-lhe:
enxada lembrei a minha infancia. Como é belo 0 mun- — Eu acho feio os indolentes e os ebrios.
do nesta epoca! fu ia autografando os livros com todo o carinho.
Quando chegamos em Pelotas circulei o ollar ao Eu ‘queria olhar a praca para descrevé-la, mas nao
redor como se estivesse despertando de um sonho. era possivel devido a quantidade de livros para auto-
Revendo as cidades que lia na Geografia e a minha grafar. Vi apenas uns arvoredos verde-garrafa e al-
saudosa professora explicando-me: gumas barraquinhas de livros espalhadas. Para mim a
-— Pelotas é a cidade doce. Tem fabrica de doces. praca estava adornada. Tinha livros. Um pretinho
circulava e dizia em voz alta:
E eu ficava pensando: o que sera a palavra fa-
— Sabe, Carolina, peco-te para incluir no teu
brica? O meu sonho era conseguir um dicionario, por-
' diario que ha preconceito aqui no Sul.
que a Dona Lanita“® disse-me que eu podia aprender
Os brancos que estavam presentes entreolharam-
muitas coisas lendo o dicionario.
se, achando incdmodo as queixas do pretinho. Parei
A minha vida esta girando. Varias pessoas aguar- para ouvi-lo. Creio que devo considerar os meus ir-
dava-me. Entre as pessoas estava o Dr. Joao Carlos maos na cér.
Gastal, o Prefeito. Fomos para o hotel. Que cidade — Esta bem. Incluirei tua queixa no meu diario.
tranquila. O povo andando calmo. As duas horas Quer dizer que ha preconceito no Sul do Brasil?
fomos almocar. A minha pressfo havia normalizado. Sera que os sulistas brasileiros estaéo imitando -os
Eu estava alegre. norte-americanos? O pretinho despediu-se e saiu con-
A Radio transmitia a minha entrevista. O senhor tente como se tivesse realizado uma proeza. Pensei:
Prefeito ouvia no radio portatil. Eramos 25 4 mesa. éle confia em mim e sabe que vou inclui-lo no meu
Eu estava sentada ao lado Prefeito. Pensava: que di- diario. Vou registrar a sua queixa.
ferenca! Outro dia sentava nas Radio-Patrulhas e ... Comprei um livro: “Doces de Pelotas”. A
autora autografou para mim. Paguei 150 eruzeiros
(10) Dena Lanita Salvina, professéra que ensinou as primeiras le- pelo livro. A dedicatoria é nestes termos:
tras & autora, em Sacramento, Minas Gerais. (A. D.)
“Para Carolina Maria de Jesus, o fenomeno do
século. Com grande admiracio de uma modesta do-
86
87
Casa DE ALVENARIA
92 93
SEAT USERRA
Casa DE ALVENARIA
94
CAROLINA MARIA DE JESUS Casa DE ALVENARIA
Eu apresentel °s fatos .
mana dos favelados do Pais. ais . i esse problema. Temos que amparar os infaustos. Vocé
s que pre dominam "3
Compete aos burguese repo r ter demonstrou coragem lutando para sair daquele antro.
cardapio s.
Jncionar... Eu néo conhecia os Hu pensava: elas sao filantropicas nas palavras.
ia explicando-me. Pedi uma sopa de aspargos e cre
. Sao falastronas. Papagaios noturnos. Quando avis-
suzette. vo tam-me 6 que recordam que ha favelas no Brasil.
Comi aquela confusdo e fiquei com fome 4 . Tomamos um taxi e fomos para o Hotel Co-
enviar um dona i
Um senhor disse-me que ja pacabana Palace. Quando chegamos no hotel os filhos
bi q que éles quer iam
erem rafo e es-
impr que
para os favelados. Percebi estavam dormindo. E a governanta que estava com
2 Otaha es feigdo ma
sionar 0s jornalistas, amorieanos a em flores
éles despediu-se dizendo:
nos fotografavam. Preparar a — Credo! Esses meninos vieram do inferno.
esta va ador na 1 oon te de
mesa. SO a minha mesa Deitei. Nao adormeci com o calor. Dei gragas a
gosto de rosas. ° uque
— vermelhas. Hu Deus quando o dia despontou-se e os filhos desperta-
“Life”. Ao nosso lado
vosas ‘potava um cartio escrito: ram. O José Carlos queria saltar da janela, dizendo:
obse rvan do. Ku es ava tae
estava um jornalista nos ~~ Eu salto e caio dentro da picina.
° meu & rare
quila por estar ao lado do Audalio, ar com —— N&o faca isso, José Carlos — adverti-o quan-
exalt
amigo. (...} Quando eu queria do éle se inclinava na janela.
rnas que abor reci a-me , @le dizia:
posas notu no
exalte. Escreve. Dé a sua resposta
__. Nio 4 de dezembro ... Os filhos ndo tinham o que
didrio. vestir. As roupas sujas. As 8 horas chegou a gover-
as ouvia. oO
O David St. Clair nada dizia. Apen nanta, olhando o quarto e dizendo:
. (..) Hu estava
seu olhar estava fixo no meu rosto impressao
—- N&o deixe os teus filhos tocar no espelho.
le rest aura nte. Da
ansiosa para deixar aque tol ‘ es,
Devido a sua aparencia estrangeira, pergun-
madames vao exibir seus ricos tei-lhe:
que aquelas
ser mais chique do que a outra.
cada qual querendo — Qual é o teu pais?
alto e fino parecendo peixe espada cir-
Vi um preto —~ Sou vienense.
Comentavam :
ewlando com imponencia no recinto. ~— Ah, a capital das valsas!
— FE o cantor. Comecei a cantarolar o velho Danubio Azul. Ela
amos no
_.. Tomamos um carro. Quando cheg reco-
sorriu e convidou-me para danear. Ela olhou o quarto
esta vam lota das. Pai
“Nigth and Day” as mesas &
e a desordem das minhas roupas e perguntou-me:
Sent ei numa mes a com
nhecida quando entrei. . e ol
— A senhora tem dama de companhia?
St. Clair
guardiées: o Audalio e o David e no palco . — Dama?.... Eu sou ex-favelada e os habitan-
sent ar-m
avisar ao Grande Othelo para apre a Gark o- tes da favela nao tem nada.
rime ntou -me
Depois que o Grande Othelo cump Alguns — O que é que a senhora faz?
duplicou-se.
sidade em torno da minha pessoa esta vam.. — Vou estudar mais um pouco e quero ser es-
mesa . (...) As mulh eres que-
jam a minha critora.
}
socia l. 3
na minha mesa falavam em reforma s — A senhora nao pode estudar e eserever com
fave lado s rele gado
—_.. No é justo deizarmos 0s ar para estes meninos. Cuidado com os espelhos! Nao deixe
fez bem em nos alert
no quarto de despejo. Vocé a torneira aberta!
96 97
Casa de Alvenaria 4
CASA DE ALVENARIA
dia o banho de ouro esmaece e eu volto a origem na- Tem dois dormitorios com varias camas. Uma senho
tural — o ferro. ra de pele encardida nos acompanhava dizendo “que a
O reporter disse-me que esta procurando uma casa esta a venda. (. ..) O reporter gostou da sala.
casa para eu comprar para mim. Fiquei alegre inte- 4 ampla e a diviséo deverd ser feita com cortina
riormente e¢ exteriormente. Ei sorri. O meu sonho con- Quando saimos da casa fomos de auto até a Imobilia-
cretizando. Hu vou ter uma casa de alvenaria com ria que esta encarregada de vender. Quem nos aten-
salas e outras dependencias. Um quarto para tomar deu foi o senhor Jo&o, um dos socios da firma. O re
banho. Imagina sé. Eu tomando banho num banheiro. porter disse que eu posso comprar a casa e pagé-la.
Fu que levava a vida primitivamente, tomando banho O prego é um milhao quinhentos e cinquenta mil orn
na tina. En ganhei uns retratos do langamento do meu zeiros. Fiquei preocupada com a soma elevada. Fé em
livro e vou mandar pér no quadro para ornamientar Deus, pensei. Parece que os bons ventos estio prote
a minha casa de alvenaria. (...) Combinamos que gendo-me, ii que eu tenho medo de fazer contas Quan-
amanhda eu devo ir a cidade para procurarmos wma do sai da Imobiliaria sai contente. O corretor disse-
casa para mim. Vou correndo. Parece que estou so- me “ane a casa esti vazia. Que as pessoas que estdo
nhando. Vou comprar a minha casa de alvenaria. A resid indo 2 so uns protegidos do senhor Carivaldo,
casa para um favelado é tao importante que casa, para
nds deve ser escrito com letra maiuscula — CASA DI Passamos na Livraria. Disse ao Dr. Lelio que ia
ALVENARIA. comprar uma casa de alvenaria.
7 de dezembro ... Deixei.os filhos e fui até a 8 de dezembro Hoje é feriado. NAo vou sair de
cidade. O povo olha-me com curiosidade. Uns felici- casa. Nao estou escrevendo o didrio com receio de
tam-me, outros atacam-me, aludinde que o meu livre citar as confusdes do povo da sala de visitas. les sfo
é agitador. Explico citando que a favela existe e 0s ambiciosos e conientam com uma dose de despeito:
favelados estado duplicando-se com o custo de vida. — A Carolina esta rica.
Fui a redacdo. (...) Vi umas casas na Linha Canta-
yeira. Era velha e grande demais. Tinha uns quartos 9de dezembro Levantei as 6 horas. Hoje eu vou
que podiam ser alugados, mas eu nio quero morar fazer almégo e deixar para os filhos. Sai e fui a cida-
com inquilinos. de. (...) Eu nao quero dissipar o que estou ganhan-
O reporter conduziu-me até a Rua Benta Pereira, do. Quero gastar com limites. Quando recebo dinhei-
562. Custamos a localizar a rua. Nao gostei do so- ro da Livraria vou depositar no Banco. Dinheiro que
bradinho porque a casa 6 geminada. Eu gosto de casa depositei no Banco e a quantia:
com duas entradas. O reporter gostou da casa, eu
devo gostar tambem. Para uma favelada qualquer 248 .500,00
coisa serve. Embora eu seja uma favelada com os 280 ..000,00
gostos do rei Salomao. A casa é no topo, tem um jar- 255 . 000,00
dim e uma janela com uma grade de ferro. A. janela 150.000,00
6 do tamanho da sala. Com uma cortina de matéria 458 .000,00
plastica estampadas com umas rosas coloridas. O José
Carlos desceu do carro e foi ver a casa no interior. 1.391. 500,00
100 101
MarIA DE JESUS CASA DE ALVENARIA
CAROLINA
silios de casa.
Comprei moveis e roupas ¢ uten O costureiro disse-me que ja encontrou quem au-
Carne, pelxe, aya,
Comi tudo que desejava comer. ma
xilia a montar a fabrica e os Incros seréo divididos.
bacalhau e queijo. Quando eu ostava Disse que nao. Quer arranjar dinheiro, montar a fa-
azeitona, baca. !
comer
vela eu pensava: oh se eu pudesse a sao com
brica e os lucros ha de ser exelusivamente dele, que é
e agor
Estas coisas para mim era abstrata o inventor.
banh o todo s os dias no chuveiro eletrico
cretas. Tomo Egoista. O egoista pensa que éle deveria morar
e deito no meu colchdo de mola s. no mundo sozinho. Se o seu invento dé dinheiro éle
podia organizar uma sociedade. Se a Natureza é cole-
11 de dezembro Os dias que passaram eu nao es- tiva, porque é que o homem ha de ser egoista? Querer
o de magoar
crevi. Eu estava preocupada com recel tudo sé para si. Uma laranjeira dé laranjas para mi-
professor
alguem no meu diario. Recebi a visita de um lhares de pessoas. O Sol 6 um astro unico e aquece
de corte e cos-
de Campinas. Disse-me que e professor o mundo.
corte e eostu ra e dis
tura. Inventou um metodo para 5 Tem hora que fico pensando: na favela ha
abeto apren de 0 corte. Quer
se-me que até o analf Ci- brutalidade. Hram ineultos. Aqui haé rivalidades, am-
empr esta do para abrir uma fabri ca.
mil cruzeiros bigdo. N&o ha sinceridade. O homem de Campinas
tei-lhe que nio posso emprestar. levou-me num tabelido para preparar uma letra pro-
_—_ iu assino umas promissorias. missoria de 50 mil cruzeiros. Mas o Dr. Lelio nao
que convidei-o
Aguecrinou tanto os meus ouvides emprestou.
0 Dr. Lelio. Xinguet
‘para irmos na cidade falar com Eu nunea ouvi falar em letra promissoria. Quem
dinheiro nao tinha
a minha vida. Quando eu nao tinha comprou os selos para a letra fui eu, porque o costu-
no seu manto ne-
sossego com a fome a envolver-me com
reiro de Campinas nao tinha dinheiro. Despedi do ho-
tenho dinheiro e nao tenho sossego mem e voltei para Osasco. (...) Tem pessoas que
gro. Agora
0s piratas que querem aprover ar-S odeia-me, dizendo:
os oportunistas,
da minha situagio. Bles vé vender muitos livros, pen- —— Aquela desgracada esta rica.
meu. Eu ganho comissao nas
sam que o luero é todo
vendas. 12dedezembro ... A Divina, filha da D. Maria
inas que
O Dr. Lelio disse ao costureiro de Camp minha empregada pediu-me 100 cruzeiros emprestado.
Ble most rou seus
nio ha possibilidade de favorecé-lo. do o Dr.
(...) A D. Maria trabalha para mim. Quando chega
a Deus quan
‘modelos‘ao Dr. Lelio. Dei gragas inuo u imsis-
visitas ela fica descontente e triste, murmurando:
rua o home m cont
Lelio nos despedinu. Na vem sur- ~— Meu Deus do céu, isto é o fim do mundo! Deus
dos abor reci ment os que
tindo. Ja estou farta dinhe iro, esté me castigando. O mundo esta virando. Eu, bran-
(...} Comecei a ganh ar
gindo para mim. ca, ter uma patroa preta...
surg iram os polv os com seus tentaculos. Por que mae
Francisco ata- Eu dava risada e pensava: nés os pretos nfo re-
vao pedir dinheiro a Ligth, ao Conde
oas que nao prec isam e vem pe i voltamos de ter patrées brancos. (...) N&o sou exi-
razzo? Tem pess
do pedia, pedia gente com as minhas empregadas. Nao faco questéo
me. Eu nunea pedi por ambigao. Quan filhos, sa-
os meus de cér. Gosto de D. Maria porque ela lava roupa mui-
o essencial. Sobra de comida para
patos para a Vera. to bem.
“102 1038
CASA DE ALVENARIA
MariA DE JESUS
CaroLIna
Disseram que sou comunista porque tenho dé dos
de ¢ chapéus
de dezembro ... Comprelrel doisis pobres e dos operarios que ganhbam o insuficiente para
Qua ndo che-
ias do Recife. viver. E nao tem um defensor sincero a nao ser as
pale para andar nas pra
rto os carregadores saudaram-me greves, meios que recorrem para melhorar suas con-
vamos no Aeropo
o
, diecées de vida. Mas sfc t&o infelizes que acabam sen-
izendo: conhecer 0 mundo? do presos e dispensados do trabalho. Conclusdo: o
e A senhora nao para. Quer “eco operadrio nao tem o direito de dizer que passa fome.
ade s do Brasil.
_ Quero conhecer as cid Os Passag e rec e. Quando os homens fér super-cultos éles hao de
Ag 11 horas embarcamos. ) As le liberar as terras e quem quiser plantar, planta. E nao
tando-me . (...
nheceram-me cumprimen _, havera fome no mundo. As terras tem que ser livres
» Rio. 1a
ao
porque o avi igual o Sol.
oe no rapidamente
cae Pare Se o Sol fosse terrestre seria sonegado pelo ho.
as chegamos na Bahia.
yarpar- (...) As 18 hor a Pri me mem.
ria ver a Bahia,
mos para jantar. Eu que a8 eae: é distante
Mas o Aeroporto
capital do pais. 14dedezembro ... O quarto que alojei dava vis-
aviao disse paraag
Um jovem que estava n0 de J esus. ' ta para uma praca com arvoredos. (...) Sai, fui ver
“_ Esta 6 a Carolina Maria a Par a fe as igrejas e comprar jornais. As ruas sio bem calea-
um jornalist
Em trés minutos apareceu das. Fiquei com d6 dos nordestinos. Uns andam mal
m. (... ) Ent ramos no aviao @ Zar
- uma reportage Recife. Os jorna- vestidos, comprovando que sao pobres. Eu olhava os
ar os As 21 horas chegamos ao va rostos tristes dos nordestinos. (...) Voltci para o
trajes loves
. Bstavam com
patas nos aguardava fo ogra om hotel. O Zornalista Alexandrino Rocha foi nos avisar
autografos. Bu
yias pessoas pediam ° neon ML que iamos almocar com o Prefeito Miguel Arraes, no
americana 4 ary
a lourissima milionaria ilustre e nobre rr - Buraco da Otilia.“»
con vit e do
itei o Recife a ava su
dos Guararapes est ... Reeebi a visita do senhor Hernani Bezerra,
wn 4 Avracs. O Aeroporto
do. Perguntaram- me 9 que achei da viagem. que me disse que estudou com sacrificio. Achei graga
oor Estou co- contente de quando éle disse:
bom.
pews 0 yoo foi muito -— Quando fui menino o meu sonho era comer pao
: nordestinos.
no carro do senhor com manteiga e nio podia. E eu jurei: se algum dia
nhreces on eo reporter entramos
e fomos a um programa de Be ove eu puder eu hei de comer pao com manteiga todos os
Fernando Navarro ° a O. Fomos
o senhor Helio dias.
sao. Fui entrevistada pel a eavel, Olhou-me e disse:
apresentados aos recifenses pelo video
e agradect a aco " 1a ane — Carolina, eu jé passei fome. Por isso compre-
tei os pernambucanos Gran . ote « cnfeca endi o teu livro.
gra ma fom os para o
Apés o pro con
Eu estava a eS © ... Enguanto aguardavamos a hora de irmos al-
portagem 208 aguardava. Wu
dos nordestinos. mocar com o Prefeito, fiquei circulando nas imedia-
com as amabilidades
cées. Ouvindo os comentarios dos habitantes. (...)
educados!
0 que acho do comunismo:
eaues _. Perguntaram-me
N&o posso
__ Nao He nao vi paises comunistas. nais.
(13)
(A.
Restaurante
D.)
tfpico de Recife, famoso pelos seus prates regio-
104
CASA DE ALVENARIA
de Sao Paulo, o filho le- reconfortante. Que existencia hedionda desse povo cas-
Todos queixam da opulencia a. Sado Paulo e Rio tigado pela Natureza. (...) Fiquei pensando: até na
blic
gitimo do presidente da Repu Nordeste sao filhos Natureza ha selecdes. No Sul chove. No Norte nao.
e e o
sio os prediletos. O Nort _.. Quando chegamos em Caruaru fomos recebi-
(...) O Nordeste € 0
adotivos. Filhos subnutridos. . dos com alegria. Nao notei uma indelicadeza nos nor-
il.
quarto de .despejo do Bras da Otilia. tistas. Sao t&o delicados que nfo se nota o eulto e o
os slm ogar no Buraco
ineulto. Fomos anunciados pela estagéo de radio. S6é
_.. A lL hora fom
Esta localizada nas mar-
A casa 6 terrea e de madeira. que nao tinha livros para ser autografados. Fiquei
Atr avé s da janela vé-se o rio
gens do rio Capibaribe. . com dé daquele povo. E pensei: éles gostam de livros
va gostosa
que corre. (.. .) A comida esta e og livros chegam aqui com atraso. Gostam de lavou-
éco fom os pereorrer as margens
¥Findo o alm ras, mas as chuvas so escassas.
eralda. O que eu achel
do mar. O mar é verde-esm Um zabumba tocava na praca. Fui introduzida
ale acha bonito tudo que
interessante no nordestino: Achei num patio, onde serviram bebidas e bélos. Uma bebi-
simbolo da vida.
é verde. O verde para éles é 0 com da gostosa, mas eu fiquei com medo de embriagar-me
as bar raq uinhas cobertas
bonito os coqueiros e ; e desviar-me dos meus deveres. O poeta Lycio Neves
folhas de coqueiros.
os na Livraria gue usava um terno branco igual flocos de algodao, nos:
_., A tarde fomos autografar livr recebeu amavelmente. Os componentes do zabumba
foi int errompido com
e Editora Nacional. O transito eu dirigi o meu eram pretos, mal vestidos e mal nutridos. Tive a im-
rost o que habitantes da favela. Sor-
a minha presenca. Em cada do: se eu pu- pressio de estar vendo os
Fiqu ei pen san
olhar recebi um sorr iso.
poet as Carlos yiram para mim, olhando-me com veneracao. Olhares
entes 08
desse viver aqui... Estavam pres lcan ti, Aud alio ternos. Pessoas que eu via pela primeira vez e tinha
o Cava
Moreira, Josué de Castro, Paul impressio de conhecé-los ha tempos. O reporter dis-
Alves e Ascenco Ferreira . se-me:
_— Carolina, aqui é a porta do sertao. As maiores
15 dedezembro Levantamos as 6 horas e ficamos miserias estdo para a frente.
que ja nos levar a
aguardando a chegada da perua _—. Miseria — fiquei repetindo mentalmente. Eu
Joacir Fonseca Soares
Caruaru. As 9 horas o senhor rter O repo dei 1.000 eruzeiros para os acompanhantes do zabum-
Embarcamos.
e o motorista chegaram. ba. © reporter deu 1.000. O diretor do zabumba
ir Fonseca ia con-
estava alegre. (...) O jovem Joac dizia:
humo r. Que homens inteli-
.versando, revelando pom __. Nés jA fomos ao-Rio. O José Condé 6 de Ca-
gentes tem 0 Norte! ruaru. Ble veio nos visitar.
asfaltada. Eles
_., A estrada de rodagem é toda _.. Jantamos com o Prefeito de Caruara, o senhor
inse nsiv eis a epoca
construiram jardins com plantas 0 flan boian, com Anténio Lyra.
flor ida é
causticante. A unica arvore olha m as fléres Ble estava sentado ao meu_lado_ com os cotovelos
Os nord esti nos
suas fléres vermelhas.
: na mesa e o rosto apoiado nas maos. Nao falava. Ape-
Comentam
com ternura no olhar. nas ouvia os comentarios. Criticas aos politicos. Hra-
__. Elas néo temem a seca. mos 35 na mesa. (...) Quando despedimos é que f-
bres pela estrada¢
_.. Encontram-se muitos case quei sabendo que aquele senhor que estava ao meu
do uma alimentagao
os habitantes raquiticos, reclaman
. 107
106
Casa DE ALVENARIA
Garowna Mania DE JEBUS
109
CASA DE ALVENARIA
Foi Ge quem levou-me para Osasco. Tratou-me ... Quando cheguei encontrei um nortista confa-
muito bem em sua casa. Foi o tmico lugar em que eu bulando com o senhor Monteiro.¢? Quando eutrei o
vivi bem. Mas os nossos espiritos nao ligaram. Tem homem que estava confabulando com o senhor Monteiro
certos atos que desligam uma amisade... Quando eu olhou-me com ironia. Enfrentei o seu olhar. fle
dou algo para uma pessoa, esta dado. _. gueria impedir-me de entrar na casa.
-.. Quando entramos no caminhao os visinhos —- Eu comprei esta casa! O senhor Carivaldo
nos olhavam. (...) Agora que estou ficando rica pego disse-me que a casa estava vazia. Era para eu mudar
a Deus para nao fiear ambiciosa. Entrei no caminhao no dia 20.
que estava com os moveis pesados. A D. Rosa foi no O homem mudou de altitude. Mudou por completo.
outre caminhio com os moveis leves. O caminhao que Ei foi almogar. Eu estava com sono, queria desoenpar
conduzia os moveis leves 6 mais novo. Ia na frente um quarto para mim. O homem nao permitiu. Para
com velocidade. O outro mais velho ia atrés como se evitar encrenca resolvi ficar na sala.
estivesse com reumatismo. (...) Encontramos difi-
A tarde os filhos do senhor Monteiro foram
culdades para chegar. Eu errei a rua quando cheguei.
chegando ec perguntavam:
O motorista do primeiro caminhao ja havia chegado.
AD. Rosa disse que a Baiana“” havia xingado. — Que diabo @ isto?
... Paguei 4.000 cruzeiros para os motoristas. —~ Ba mulher que comprou a casa.
A D. Rosa volton no caminhio. Os visinhos comega- Chegou uma pretinha furiosa olhando-me com
ram a falar que eu néio devia ter mudado sem avisar. rancor, como se en estivesse invadindo um templo sa-
Fiquei nervosa, porque niio gosto de palpiteiros. (..-) grado. Os visinhos comentavam, confabulando. Um
Resolvi ir na cidade. Tomei um taxi. Estava nervosa. jovem visinho veio visitar-me e ageitou o tambor de
Eu estava suja e o povo cumprimentava-me nas ruas. gaz do fogao. (...) Jantamos, tomei banho ec deitei.
A “Folha de SAo Paulo” havia publicado que estava Mas as pulgas pareciam formigas na minha cama.
rica. O jornal perguntou o que ia fazer esta noite. N&o consegui adormecer, porque os mocos que resi-
Hin disse que ia mudar para a minha casa e enviar dem na casa comecaram a beber e danear. Eu tinha
25.000 eruzeiros a Campanha de Combate ao Cancer. impressao que estava numa buate. Eles reclamavam
Saf da Livraria e fui na Imobiliaria avisar 0 gue os meus moveis estavam impedindo-os de danear.
senhor Jo&io que eu ja havia mudado. Ble sorriu. Adormeci com as gargalhadas e os ritmos musicais.
(...) Fui almocar no restaurante perto da livraria. Despertei com as vozes dos filhos desejando Feliz Na-
Pedi feijoada. Quando eu estava almogando uns Jo- tal aos pais.
vens pediu-me para autografar cedulas para éles. Eu
comprei dois livros — “O Pequeno Principe” e 0 “Ho- 25 de dezembro Levantei as 5 horas. Hoje eu es-
mem ao Quadrado”, de Leon Eliachar. Mostrei o livro tou triste. Acho a minha vida sem graca. Fiz café, sai
para os jovens. Kles examinaram e devolveram-me. olhar o céu, ver se vai chover, porque eu estou
Findo o alméco paguei 240 cruzeiros. KE voltei para
dé dos favelados. Porque a favela estA alagada.
casa. (...) Ag pessoas paravam para cumprimentar-
me e desejar Feliz Natal.
(i7) Uma das 15 pessoas residentes na casa aque, de acdérdo com e@
contrato, deveria ser entregue no dia 20 de dezembro. (A. D.)
(16) Inquilina da casa adquirida pela autora. (A. DD)
113
112
CaroLtina Mania DE Jesus
CASA DE ALVENARIA
nio sei tomar o onibus. Desci fora do ponto e fomos Jonnalistas- Os visinhos olhavam-me com curiosidade.
andando. Os filhos reclamando porque nio gostam de -) Segui no jipe da “Ultima Hora” olhando os re-
andar a pé. As pessoas que reconheciam-me paravam santos que percorri quando catava papel. Os visinhos
para conversar. Quando cheguei em casa recebi um da favela reconhecia-me no carro. Quando cheguei na
reeado do senhor Silva Netto que ia visitar-me as 9 favela fui falar com a espésa do gari da Prefeitura
horas da manha. (...) Passei a tarde lendo e esere- que ganhou um premio na Loteria Federal. Os fave-
vendo. lados agrupavam-se para olhar-me. Olharam-me com
admiracaéo.
28 de dezembro Nao vou sair, porque tenho com-
promisso com os jornalistas. Fiquei surpreendida 29 de dezembro_ ... Fui na residencia do repor-
vendo a feira na minha porta. Os feirantes reconhece- ter (...) Para mim o problema da comida foi solu-
ram-me porque j4 viram-me na televisio. Olhavam- cionado, gracas a Deus! E ao reporter. Mas existe os
me com curiosidade. (...) Comprei biscoitos para os outros que nao tiveram a sorte de nascer com o pen-
filhos. Entrei, preparci café e fui escrever. As 9 ho- samento igual ao meu.
ras o jornalista Silva Netto chegou com o fotografo. Despedi do reporter, dizendo-lhe:
Ble fotografou-me em casa e na feira. Citei ao Silva — Eu gosto muito de vocé.
Netto as condicdes que comprei a casa. (...) Os fei- Tomei o onibus mais reanimada. Quando desci do
rantes estavam contentes porque vao sair na Revista onibus fui a pé para casa. Passei numa loja para ver
“Manchete”. os tecidos. Sao belos.
Recebi a visita de uma senhora por nome —— A senhora 6 a Dona Carolina?
Guiomar. Queixou-se que seu espéso esté desempre- — Sou.
gado e se eu podia comprar-lhe ferramentas de marce-
neiro. Para éle trabalhar, porque as oficinas aceitam
~~ Muito obrigado da senhora escolher o meu
marceneiros mas nao da ferramentas. bairro para residir.
—. Quanto custa as ferramentas? Despedi e segui pensativa. Descontente com a
minha popularidade.
_. 40.000 eruzeiros.
— Olha a Carolina Maria de Jesus!
Continuou dizendo que seu espdso é pintor. Se eu
— Oh, aquela! Esta mulher vale uma-fortuna.
vou pintar a casa, éle pode pintar a minha casa. Que
Um pretinho chamou-me:
ela é costureira, se eu preciso de costureira. Ela é
costureira formada e que nado sabe como é que a sua — D. Carolina!
vida mudou deste geito. (...}) Convidou-me para ser Entrei na barbearia para atendélo. Ele olhava-
madrinha de seu filho que est& no ventre. me com admiracéo. (...) Despedi desejando-lhe Fe-
Os jornalistas da “Ultima Hora” vieram con- liz 1961.
vidar-me para ir a favela. Eu estava dando banho na Galgava a Rua Alfredo Pujol. Desviei para outra
Vera. O eletricista estava ageitando o chuveiro, por- rua, porque eu vl umas arvores frondosas. Onde tem
que quando éle esta ligade dé choque. Ble cobrou 100 arvores tem passaros. Eu gosto das aves, porque sio
ernzeiros. Dei-lhe 500 cruzeiros, ale nfo tinha tréco. inofensivas. Nao tem a inteligencia diabolica do ho-
Pedi ao jornalista Magalhées para pagar. Saf com os mem, que constroi a tal de bomba atomica e outras
116 117
weTEy STE Sa
CASA DE ALVENARIA
ao nosso redor. ~
recer aquela curiosidade
119
118
Casa DE ALVENARIA
120 121
CASA DE ALVENARIA
GaROLINA MARIA DE JESUS
hora que tenho vontade de dar um grito para ser ou-
_. Nao sou janista. Conservo o retrato do senhor vido no Universo:
man-
Janio Quadros para ver se éle sorri até o fim do Viva o meu livro!
dato. Viva os meus dois anos de grupo escolar!
O senhor Murilo Antunes Alves elogiou o meu FE viva os livros, porque é a coisa que eu mais
Quan- gosto, depois de Deus.
livro e citou que éle aborda um problema social.
eu fui conver sar com 0 se-
do a televisio despediu-se 5 de _janeire A casa é um sobradinho. Os
nhor Rogeri o. (...) Deitei as 2 horas da manha.
quartos sao amplos: dois dormitorios. A vista 6 mag-
nifica. Avisto a serra da Cantareira.
4.de janeiro ... Depois que eu comprei a casa é ; Tomei o onibus e ia pensando no senhor J.
a conclusdo que sou importante. Estou
que eu cheguei F. Bueno, que reside na Rua Guaporé. Ble esté de-
visi-
contente. Agora eu sou alguem e posso receber sempregado, devendo dois meses de aluguel e devendo
tas..-Passei o dia deitada . As 6 horas record ei do con-
0 emporio. Quem veio procurar-me a primeira vez
de D. Suzana Rodrig ues para compar ecer no seu
vite fou a sua espésa . Veio pedir dinheiro, que esta gra-
e sai 4s pressas .
programa da televisao. Preparei vida. Queixou-se que o seu espéso é marceneiro e nao
o progr ama ja estava no
Quando cheguei no estudio tem ferramentas para trabalhar. Se eu podia pagar
ar. Consegui entrar. © emporio para ela. Envieit um bilhete que eu ia pa-
Quando saimos da televisao a D. Suzana Ro-
... gar o emporio para ela sexta-feira. Mas n&o me foi
drigues convidou-nos para irmos ao Clube dos Artis- possivel. Ela apareceu com o espdso e fez uma. lista
tas. Vi varias mesas com homens sem mulher. Senta- das ferramentas que eu devia comprar-lhe para éle
:
mos na mesa maior. A D. Suzana pediu o jantar trabalhar:
ovos, arroz e€ farofa. (...) Va-
picadinho. Serviram
rias pessoas olhava-me e comentavam: 1 plaina
: serrote medio
— Aquela é a Carolina. serrote de costa
Led ed ek
A D. Suzana Rodrigues, atenciosissima, apresen- esquadro pequeno
tava-me para as pessoas de sua amisade. O seu filho e martelo medio
filha nos acompanhava. A D. Suzana convidou um groza
senhor para ir a nossa mesa. Apresentou-me: formées
_—. Este 6 o escritor Mario Donato.
Bp
compasso
... Ble disse-me: arco de pua
Hb
_— Carolina, emprega bem o teu dinheiro, porque ferros de furar
a literatura nao 6 meio de vida. 1 lima triangulo.
Eu consegui enriquecer com o meu livro. 0
#
gui. O que emociona-me é introduzir a chave na fecha- Uniao Crista de Amparo a Infancia... fles-tem um
dura:e abrir a porta’e saber que a casa é minha. Tem
«123
122
CASA DE ALVENARIA
CaRCLINA Maria DE Jesus
ir as aulas. A
Comprei uma blusa para 0 Joao . Despedi e segui olhando as latas de lixo nas ruas.
reti rar os movels. Quando en, com o meu saco de 40 quilos, curvava de
Dazuita veio com uma senhora para o seus movels.
egan do
(...) O senhor Monteiro ia carr caus a da Feng
lata em lata recolhendo os papeis e as latas e os me-
na port a por tais na sacola, a Vera reclamava que o seu sonho era
O caminh’o nfo parou Ku
ao meu dispor. vestir igual as meninas da vitrine, tenho a impresséo
Respirei aliviada quando vi a casa ndo a am-
com pra
nao sabia que ia ter aborrecimento que estou vivendo um sonho. Onde hi momentos ma-
onad a casa de alve nari a. (..- ) Eu pensava assim: ravilhosos e momentos tragicos.
bici
hei de fala r das flores
quando eu comprar uma casa ... Hoje é sabado. Se eu estivesse catando papel
que adornara o meu jardim . estava correndo de um lado para o outro para conse-
Preparava para deitar guir mais dinheiro. Se eu estivesse na favela a esta
Eu estava exausta.
tintitilou-se. O Joao abriu a hora o meu filho Joao estaria preso. Pensando bem
quando a campainha
porta: devo agradecer a Deus e ao reporter que auxiliou-me
muito. Estou livre das brigas e da Radio Patrulha.
— Eo Andalio.
va lutan-
Cumprimentou-me. Eu disse-lhe que esta me 15 de janeiro ... Recebi visita de uns pretos do
dois dorm itor ios.
do com as pulgas. Ja encerei a interior e outros de S&0 Paulo. Umas pretinhas vie-
ho do assoalho.
‘ galgou as escadas. Elogiou 0 bril Dis- ram visitar-me. Uma é pintora ec aconselhou-me a
ées. Cant ei para éle ouvi-las.
compus umas canc alisar os cabelos.
se-me que so boas.
— Os jornalistas nao deixam.
14de janeiro ... Fui rever os velhos conhecidos. —- Credo! A senhora obedece-os?
catava papel éle
Conversei com o alfaiate. Quando eu papel —
—- Quem naoobedece n&o triunfa.
(...) No bairro que eu catava
‘auxiliava-me. O senhor Rubens, o cantor, veio visitar-me. Quei-
livro. O conheci-
a Ponte Pequena, éles nao leram o xou-se que sua espésa é indelicada para éle.
pessoas acercavam
mento que tem é dos jornais. As — Vivo ao seu lado por amor aos meus filhos.
para olhar-me com admiracao.
__. Eu vi vocé na televisao. Disse que éle é quem prega os botées quando
caem. Ele ergueu a cabeca fitando o teto com a voz
__ Eu vi vocé nos jornais. amargurada:
—— Tua vida melhorou? — Se eu pudesse sumir... Mil vezes morrer do
_ N&o melhorou. Nao tenho sossego” para es-
que viver assim.
erever.
Mas Ele despediu-se. Ja saindo quando a cama que-
A D. Anita convidou-me para ir falar-lhe.
catav a papel ela fugia brou-se, porque trés senhores estavam.sentados.
eu nao fui. Porque quando eu
he. ow.
e se estava na janela retirava. Um dia eu disse-T
ausen tar-s e da janel a quan do avis- 16 de janeiro ... Dirigi-me a Livraria para ver
que n&o precisava
que nio mais olbava-a.. Hla feriu-me muito. o senhor Paulo Dantas. (...) Desciamos a Rua Li-
tasse-me,
a minha vez de feri-la. Pés a jJuro, bero Badaré. Vi varias pessoas conduzindo cartazes.
Agora chegou
: Os cartazes iam com -inscrigdes pedindo aumento.
recebe.
2,126
127
CAROLINA MARIA DE JESUS Casa pe ALVENARIA
Bles vieram
(...) Parei para ver. Fui reconhecida. tos que eu passava. As ruas que transitava catand
falar-me: papel. Quando cheguei na favela as criancas inicia.
_— Nés queremos aumento! ram uma vaia. Em 5 minutos a noticia circulou que
As- eu estava na favela. O povo afluiram-se para ver-me
Figuei condoida, porque eu ja passei fome.
quando ouvi vozes e a multidio com carta- Conversei com a D. Esmeralda. Disse-me que seu
sustei-me
© Um se- esp6so
zes. Era os bombeiros e a Forga Publica.
nao mais apareceu. Ele finginu que estava louco
i ao lado da deputada e abandonou a familia. (...) Eu e o Torok cireula-
nhor pegou o meu brago. Fique
mos sobre a confu sio em Sao vamos pela favela. Que lugar imundo. & uma desu-
Ivete Vargas. Conversa
brada va: manidade deixar os pobres viver assim. Fui visitar o
Paulo. O povo
CY meu barracao. O Seu Chico modificou. Apenas con-
“Q Plano de Ac&io acabou com o nosso pao 17
entra r na passe ata. (...) servou a tabua que o Jo&o escreveu — “O Andalio é
_... Bu nao pretendia
Passamos perto da Livraria. O povo olhava o meu nosso”. O reporter fotografou-me com o meu povo, os
quadro expos to na frente da Livra ria. (...) Fomos favelados. Wui conversar com o senhor Luiz el
dos es- pediu-me:
no Largo Sado Francisco. As espésas dos solda , °
mais do que —— A senhora preeisa ser a porta-voz da favela
tavam com os filhos. Bles devem sofrer
sei como é que os homen s hao de Falar por nés.
os favelados. Nao
explora, se
fazer. Se vai para a lavoura 0 fazendeiro _Percebi que os favelados olhava-me com admi-
Forea Publica o governo quer pagar salario racao.
entra na
de fome.
... Uma senhora veio procurar-me. 26 de janeiro Levantei as 4 horas e fui escrever.
18 de janeiro Comec¢o a gostar da casa. As pulgas est&o desapare-
a hipo-
Veio pedir-me 400.000 cruzeiros para pagar cendo. Que bom escrever atualmente com
dois meses para vencer . a luz eletri-
teca de sua casa. Falta ca. A minha casa tem 14 Jampadas.
empre sta-m e 400.0 00 eruzei ros que
__. A senhora Fui a Livraria. O Dr. Lelio disse-me que vai
eu pago 8.000 por més.
pagar-me duas edigdes amanha. Ble ia pagar-me hoje
__ A senhora volta amanha. Vamos falar com o mas0 reporter viajou. Nao quero receber na sua au-
Dr. Lelio ou o reporter. sencia. (...) Vou jantar na residencia da deputada
2ide janeiro ...Com a transformagao da favela Ivete Vargas. Que sacrificio para. tomar um taxi. Es-
para a casa de alvena ria 0s filhos estranham-se. O tava chovendo. Conseguimos um. Dei o enderego para
longam ente. Para éle eu sou uma oO motorista. Ele disse-me que ji votou na Dona Ivete
José Carlos fita-me
comprei uma casa de alvenaria. Vargas treis vezes. KE nao esté arrependido, porque
heroina porque
ela néo decepciona. E uma grande mulher.
25 de janeiro ...O reporter chegou acompanha- —— Grande mulher é a que cuida dos fithos n¢
do com o fotografo Jorge Torok. Biles entraram. epoca atual. Tem que enfrentar..o custo de vida as-
(...) Fomos na favela. Eu ia mostrando-lhe os recan- tronomico. :
Ele n&o apreciou as minhas palavras.
Passeata dos soldados da Fércga Piblica, que faziam greve por ‘é
— Grande mulher 6 a Dona Ivet e. EKo porque a
(20)
aumento de vencimentos. (A. D.
Carvatho Pinto. (A. D.) senhora nao lhe conhece. Ela tem favorecido o povo,
(21) Plano Quadrienal do Govérno
128 “429
Casa de Alvenaria 5.
CASA DE ALVENARIA
file prometeu vir quarta-feira. (.--)) Os filhos 4 de fevereiro :.. Bateram na porta. Era uma
surra porq ue eles pu an preta. Mandei entrar. Ela disse-me que 1é todas as
reinam muito. Dei-tlhes uma es que- reportagens que falam de minha pessoa.
do meu quarto para sair na rua.. Chama-se
a janela Isolina. A mulher fala por trinta. Disse-me que ficou
braram um adérno do banheiro.
doente vinte e dois anos. Ela disse:
31 de janeiro Levantei as 9 horas, com a vos do ~~ O terreno que comprei paguci sé dois anos.
trouxe um co
Lelé que veio cuidar do jardim. Ele Hstou atrasada h4 8 anos. A companhia quer o ter-
no centr o do: jardi m. (...) reno. Deixaram eu ficar porque eu estava doente.
queiro. Val planté-lo-
Lelé disse: , Eles exige 44 mil crnzeiros de uma vez. Venho pedir
nao quiz. Hoje
__ Bu quiz casar com voe &. Vocé a senhora para pagar o terreno para mim. Depois eu
. vou pagando-te aos poucos.
eu estaria bem. Se eu nio puder pagar-te
casasse eu nao cons eguia nada o terreno é da senhora ou dos teus filhos. A agua la
__. Mas se eu me
na vida. € boa. O péco deu agua com dois metros. Todas casas
Lelé, que 0 lhando-me com admiracao, sao alvenaria. O meu é6 um barracao. Ninguem que-
Paguei o
dizia: ria dar-me agua. Os ontros pécos tem 16 metros e o
saiu do in-
—— Que salto v océ deu na vida! Vocé meu tem 2 metros. Tem um visinho que fez um pégo
a. .
fer
ferno e estaa no céu. na diregao do meu e nao encontrou agua. Deus esta
_—_ Engana-te. Ku estou no Purgatorio. pe- é ao lado dos pobres. O advogado disse-me para eu
se as fléres
fle prometeu voltar para ver levar o dinheiro até o fim do més.
garam. Dei um prato de canja para ela. E uma laranja.
He A D. Maria José estava assando biscoutos e deu-lhe
1 de fevereiro Hoje éo aniversario do J odo. uns. Hu disse-ihe que vou ver se pago o terreno para
e des env olv ido . a
completa 12 anos. Esta alto ela. Ela vai voltar dia 15.
ver se o reporter -~— Assim que ela sain comecou a chover. Dei 50
fe ane A Dona A. chegou. Vou
te. (.. ) Emeon tres cruzeiros para ela pagar a condugdo. (...) Era 19
consegue auxiliéla. Ela esta tris rao
os contra os ane horas quando um carro parou na porta. Desceram os
o reporter na redagao. Assinei e se na Pe fundadores do Orfanato Unido Crista de Amparo a
Per gun tei -lh
para os Estados Unidos.
paws reatacdo ag Infancia. Duas senhoras, dois senhores e duas meni-
sibilidade de arranjar © dinheiro nas. A Vera abriu-lhes a porta.. Vieram convidar-me
i : a orque eu
Preciso comprar 0s para ir a televisio pedir auxilio para construir um
disse me a Jou receber nao di. ; abrigo em Itapecirica da Serra. Mostraram-me repor-
moveis e internar os filhos. tagens que fizeram em varios jornais da capital e do
_.. A Dona A. estava triste. Comegou a quel-
. _ interior. ({...) Vao fundar um orfanato e vao abrir
xar-se. Hla disse: um livro de ouro. Um senhor disse no jornal que Ca-
__ Se en nao conseguir este dinbeiro eu vou sul
rolina Maria de Jesus abre o livro. de ouro com 100:
eidar. pior mil cruzeiros. Fiquei horrorizada, porque eu nao dei
auxiliar-te. A
_. Mas o teu espdso tem que essa autorizagio. Eu n&éo mencionei isto. (...) Sao.
tolic é hipotecar uma casa.
e
132 133
pe Jesus CASA DE ALVENARIA
Caronina Mania
Mas eu deixo
de malandros. 6 de fevereiro Abri a janela. O astro-rei ja es-
Paulo abriga uma leva até cansar.
ro tava visivel. (...) Preparei a Vera e saimos. Fui na
éles vir pedir-me dinhei
Livraria. O advogado da Livraria estava presente.
s mo-
5 de fevereiro ... Tomamos um taxi. Dua Somaram quanto eu recebi até a setima edicao do
até a Rad io Nac ion al. Ce ) meu livro. O reporter disse-me gue eu gasto muito.
cinhas acompanharam-me por
quando perguntei ao Eu nado tinha nada. Tive que comprar tudo. Se
O que eu achei graca foi . estou gastando gasto o que é meu. (...) As observa-
radio:
Bra sin i esta ? cdes injustas magoa-me. Recebi dois cheques. O Au-
“ _— O senhor Mario me: , dalio disse-me para eu por no Banco. Fui ao Banco,
men te e dis se-
Olhou-me minuciosa senhora va depositei o dinheiro e retirei 10.000 cruzeiros para
Mario Brasini esté. A
_.. QO Doutor . , comprar botinas para a Vera. O Audalio disse~me
utra rua. que eu compro sapatos todos os dias... Se éle conti-
que 0 senhor Mario Brasint
™ “B assim fiquei sabendo nuar aborrecendo-me eu volto a ecatar papeis.
A jovem porteira dis-
é doutor. Dirigi a outra rua. i estava no terceiro Entrei na loja e comprei umas botinas para
sin
se-me que o doutor Mario Bra escrevendo, lista ma- a Vera. 780 eruzeiros. FE muito dinheiro nos pés de
andar. Entramos. Encontrei-o
uma crian¢a.
gro. Ble disse-me: ... Ew estava procurando um carro quando ouvi
— Oh, Carolina! ;
devo vir para autografar 08s a voz do senhor Fabio Paulino, o meu visinho. Os
— Quando 6 que carros que passavam estavam ocupados. Por fim en-
livros? u contramos um taxi. O motorista era preto. Eu disse-
—— Depois do Carnaval. par. ™ lhe que estou contente com as agdes do presidente dos
ramos num
_.. Despedi déle. (.- .) Ent con hec e-m e des e . Estados Unidos, senhor Kenedy, porque éle esta abo-
se-me que
jovem reconheceu-me ¢ dis ort age m na — ha lindo o preconceito. O senhor Fabio Paulino nao apre-
uma rep
1952, quando o Pacheco fez sobre a minha cia os norte-americanos. Acha-os desumanos com a
a _conversar
fima Hora”. Comecamos raca negra.
Chegou um Jovem dizendo que eravou
popularidade. 0 sco. — A senhora é a Carolina? — perguntou o mo-
o samba “Favela do Canindé” e se eu ja ouvl
ndo cheguei na minha torista, olhando-me através do espelho.
_., Tomamos um taxi. Qua
procurar os filhos. a ver — Sou, sim senhor.
casa paguel 0 carro € fui eis.
do senhor Rogerio Deu-me os parabens.
se a Vera estava na casa os sem or-
os meus filh Quando chegamos a D. Rosa estava esperando-
Ble 6 muito educado. Recebe ia J osé e 0 seu
A D. Mar me. (...) Queixei para a D. Rosa que estou desgos-
gulho. Tenho bons visinhos. 0
hor José Sim oes Paulino residem no tosa com a vida. Na favela era melhor para escrever.
espdso sen nte no num ero cos Nao recebia visitas todos os instantes. Era ignorada.
, res ide
mero 566. D. Ivette Oddone 7
residente no numero
ea D. Jaci Villar Miranda, no num ero oe
residente 7 de fevereirc ...Ontem a noite veio um jovem
E o senhor Aniz Kassabian, :
a Ber tol ini Lop es, residente no numero do Orfanato Uniaio Cristé de Amparo a Infancia.
ED. Elz 1a
de uns pretos bons, Queria que eu saisse com éle para ir nos “Diarios”
Os filhos estavam na casa
file s tem televisao. falar com o senhor Mauricio Loureiro Gama, fazer
Bua Francisca Biriba.
135
134
CASA DE ALVENARIA
CAROLINA Maria DE JESUS
Contou-me os horrores que os funcionarios da.
angariar fund os. Mas
um apelo pela televi sio para Eston Por contaa
Forga Publica sofrem com o governo. Que vergonha.
exau st
eu nao aceitei porque estou ene ee.§
os funciondrios do governo pedindo esmolas!
com éles,
é que andam anunciand do que q me 80
A mulher deu-me o seu enderego pedindo-me
i s. Sera& p possivel que euv tenha para eu ir visité-la e ver a sua casa. Ela 34 tem uma
100.000 cruzeiro ge o. po ° ae
que afli
jucionar todos os problemas os que sotr em,
casa. Hi n&o esté contente. E os pobres favelados
Brasil? O meu prazer 6 auxi liar ficam alegres com um barracio de tabua. N&o pen-
eu sou impotente. sam em construir para ter rendimentos. N&o azucri-
nam os ouvidos de ninguem pedindo dinheiro. Nin-
2
8 de.fevereire Despertei as 2 horas © comecr guem fala em Banco. Nao sabe o que quer dizer
i
eer atl o Aeue sel
gel ane -
escrever. As horas que apr -
cheque.
-me ¢¢ .
m vem aborrecer-me nd® neur o” Sera que esta senbora n&o pode contentar-se com
erestado Com esses pedides eu estou Fica - jane ae o que tem? (...) A mulher despediu-se dizendo que
res e vores
fica. Sobressaltei ouvindo rumo se for preciso ela vai falar com o reporter para eu
as tem feir a na minh a rua.
quartas-feir emprestar-lhe o dinheiro.
s. <9
© eumprimentei os feirante
__. A senhora j4 esté de pe? y yArT
livro 9 de fevereiro Hoje ninguem veio pedir dinhei-
Preciso
2,
prep ararea o
FEstou eserevendo. .
ro. Gracas a Deus!
.
‘para setembro.
do astro-rel.
° O dia despontou-se com 08 clardes sirar na
10 de fevereiro Levantei disposta. Lavei as rou-
sacola e om
Ablui-me e fiz café. Peguei a o José ar os 2
pas, limpei a casa, abri as janelas. O ar penetrava
feira. Comprei umas canetas para tu
invadindo a casa. Olhei os t6pos ao redor: o pico do
cruzeiros.
Vera. O José Carlos achou 210 Jaragua, a serra da Cantareira.
vi, wm. visinho: _
A D. Zezé quiz dar-me alméco. Recusei porque
‘Quando eu morava na favela néo achavamos
ao te tenho comida que sobrou de ontem. Preparei os filhos
tostao. (...) Fomos na redacio. Ku ia olhando as bancas de
pratos, uns copos e dus eae
m Comprei uns jornais. As noticias sensacionais: Fiquei horrorizada
Cs 20 om ,
Os precos estiio subindo e 08 govermos com as perseguicédes na Africa. A Africa é terra dos
.. A visinha disse-me que tinha uma mu er n pretos, mas os brancos foram para lA assambarcar o
convidando-a outrar
minha porta. Fui atendé-la, territorio dos coitados.-Eu acho-que a interferencia
que tem uma casa imacabada. Ben do branco na vida do negro é sé para atrapalhar. Deixa
Ela disse-me ola '¢ a
posso emprestar-lhe 300.000 cruzeiros para os coitados arrazados. Fiquei com dé do Patrice Lu-
as le
eluir. Disse que depois aluga e paga-me mumba, que podia viver mais uns dias. Quando sera
Banco. O seu espdso é tenente. Bu disse-Ihe que nao que a civilizagéo vai predominar?. _ oo
. ; ; ;
osso auxiliaé-la. ' ... Quando cheguei na redaedo éencontrel todos
os filhos e preciso de dinheiro
® Vou internar os jornalistas reunidos. Cumprimentei todos e fui fa-
para pagar 0 colegio. :
lar com o Andalio. ,
ulher dizia: — En vim aqui para pagar a prestacdo da casa.
Tem dé de mim.
Te ‘ajuda, D: Carolina.
137
136
CAROLINA MARIA DE JESUS Casa DE ALVENARIA
u os meus
Dei-o livro de cheque para éle, que somo Eu
de deitar. (...) E horrivel néo ter paz de espirito.
eend endo -me porq ue _gast o muito . Tem hora que eu tenho vontade de espancar as pes-
gastos, repr tra-
disse-lhe que quero internar os filhos e quero soas que vem aborrecer-me.
balhar. : .
—— Que especie de traba lho vocé quer? 12 de fevereirc Hoje é domingo. Carnaval. O
— Radio. dia esté triste. Eu estou alegre. Fui fazer compras,
— Oh, nao! lavei as roupas, fiz café. Nao vou sair.
.
fle foi preencher o cheque. Comprei leite para os filhos. Noto-lhes trans-
Esperamos o onibus. Quando cheguei fui de- formacgées. Estio civilizando-se. Vendo-os compor-
de ouro que comprei de Dona Hiza, tados a minha esperanca vai resurgindo. Espero que
volver o relogio
iros. Hu
porque nao posso dar-The os 25.000 cruze éles sejam bons no futuro.
por causa das criticas
jurei ndo comprar mais nada,
um detit ive na minh a vida . Mas
do reporter. Ele é 14 de fevereirc ... A Dona Ivete foi queixar-
sé a “Cas a de Alven aria” . Depoi s
eu vou publicar se de que os meus filhos escreveram palavroées no seu
desisto . ; muro. Se nao existisse palavrées ninguem tomava
eu vejo alguem pen-
na minha porta,
_.. Quando conhecimento. O essencial 6 a pessoa saber ler. (...)
visita dos
so: ja veio pedir dinheiro. Nao recebo 2 Estou -descontente porque tudo que é mal feito nesta
rgue Notur no, da sdpa da Sina-
meus colegas do Albe rua éles acusam os meus filhos.
Rua Case miro de Abreu , do pao da Igreja
goga da
Conceicio. Wes devem estar invejando-
Imaculada 15 de fevereiro ... Tomei banho e fui a cidade
me. E eu, invejando-os. ver se encontro o reporter. (...) Segui para a reda-
e voltei para casa. Quando
_.. Comprei linguiga cio. Parava nas bancas de jornais para ler o assas-
vi o Lelé na porta falando_ do jardim, sinato de Patrice Lumumba. Fico pensando: Deus deu
eu ia chegando
que a terra nio tem férca e as plantas nao crescem. aos homens o seu torréo natal. A Africa para os pre-
;
Ble disse: tos, mas errou numa coisa, dando ambic&éo aos ho-
com vocé em particular. Vocé mens. Que perversidade matar o preto no seu pais!
__ Preciso falar
com este lenco na cabeca. Ha 8 anos eu Mas os naturais acabam predominando. Uns vao con-
esté bonita
quiz casar com vocé e vocé nao quiz. vencendo os outros. . :
En disse-lhe: Os jornaleiros perguntaram porque desapareci
__ Para eu me casar teria que ser com um ho- das ruas. :
mem culto e bom. .
—~ Estive limpando o meu barraco.
__. Mas eu sou inteligente, 0 que pensa océ? —— A senhora ainda esté no barraco?
FE pediu-me. para emprestar-lhe 1.000 cruzeiros, -— Oh, é 0 habito! Vivi 12 anos num barraco.
hora
que a sua mae esta doente e pode piorar de uma
para outra.. . 17 de fevereirc Levantei as 5 horas da manha.
;
—— Eu te pago com servigo. Os filhos vai a escola. Preparei a refeicdo matinal e
que ia janta r na casa da Mari a fui fazer as compras. O Jofio e o José Carlos vaio de
Eu disse ao Lelé
com vontade
do Carmo. Fechei a porta e sai. cansada, manha. A Vera, a tarde. A casa est& horrorosa. Os
138 139
Casa DE ALVENARIA
CAROLINA MARIA DE JESUS
o papel que relata o seu invento. Parece que éle quer oficial do Exercito. Que homem detestavel, antipati-
ser importante. E estas pessoas sio cacetes. (...) co. Prevalecia-se e alisava-me as costas. Que suplicio.
Despedi dos jornalistas. “O transite congestionado. Ao nosso lado um casal bei-
... Tentei pegar um taxi, ndo consegui. Fui pe-
gar o onibus, nao consegui. O povo era demais. Os
taxis nfo paravam e os motoristas iam importantes
(24) Candidato a Prefeite de S&o Paulo. (A. D.)
(25) Outro candidato a Prefeito. (A. D.
143
142
Casa DE ALVENARIA.
CsanoLina Mania DE JESUS
|
|
DE JESUS
CAROLINA Maria
|| CasSA DE ALVENARIA
ciano Vasconcelos de Carvalho. Disse-nos que quer | —— Carolina, vocé pode pagar empregada. Ar-
eriar um outro tipo de ginasio. E um homem mara- ranja uma empregada branea, faz ela andar de tou-
vilhoso. Nao tem orgulho. Ble nos deu café. quinha, avental e esfregar o chao. Obriga ela a passar
palha de ago com as miéos, levar o café na cama e te
29 de fevereiro Levantei as 6 horas da manha. chamar de Dona Carolina. Faz com ela o que elas
ndo. Hla
Quando abri a porta vi a Dona Olga dormi fazem conosco. ‘
tarde da noite.
esté trabalhando para mim. Chegou e ela
ficar com ela, porqu
fiu disse-Ihe que néo posso olhe
27 de fevereirc As 4 horas comecei a ler e depois
Fu precis o de uma pesso a que fui escrever.
sai todos os dias.
os meus filhos quando eu viajar. ... Quando vou tomar café penso quando eu era
Os fithos foram a escola. Eu fui circular pela da favela. De manha eu ia pedir acucar as visinhas
os precos astronomicos. Comprei umas
feira, olhando e elas dizia: “Nao tem”. Os meus filhos ia na escola
Hserevi um
fronhas, fléres, peixes e legumes. (...) sem tomar café. Quando chove eu recordo a cena da
Dei-lhe di-
bilhete para o Joao levar ao reporter. des-
favela: as eriancas descaleas transitando nas pocas
. A chuva
nheiro para mandar fazer duas chaves dagua.
na cidade .
prendeu-se quando o Joao estava Quando o dia surgiu despertei os filhos para ir a
. ;
O Joao retornou-se. escola. Comprei pio e queijo. Os filhos ficaram con-
em Campi nas. Foi entre vista r
—. O reporter esté tentes, dizendo:
Henri que Galva o. ;
o Capitaéo — ¥F bom ter o que comer.
-
O Capitéo Henrique Galvao é o portugués super . Recebi a visita de um jornalista acompanha-
enfrenta e divulga as arbitrariedades de
homem que do pelo senhor Waldemar Rocha, do Canal 9: O jor-
Oliveira Salazar —— o Nero de Portugal. nalista que veio entrevistar-me é do Parand. E o se-
-me
Veio uma senhora pedir-me um auxilio. Disse nhor Jorge Barbosa Elias. Fez-me perguntas para o
Estav a chora ndo. Perce bi
que foi no Servico Social. So- jornal “O Dia” do Parana.
a, porqu e eu conhe go o Servi co
aue ela n&o menti Fui preparar-me para sair. (...) Tomei o
engordar,
cial. O medico deu-lhe uma receita para onibus, fui na Televisio Record. Cheguei as 21 horas.
a comer carne, arroz € feijao.
aconselhando-a Quando entrei na radio vi o ilustre senhor Durval de
Sousa na portaria. Encontrei o senhor Souza Fran-
96 de fevereirc ... Passei o dia limpando a casa. cisco. Elle disse-me que eu fui a mais votada no pro-
A Maria do Carmo veio convidar a Vera para ir no grama “Telefone para o melhor”. Eu ia receber o
cinema. A tarde recebi visitas. Uma jovem por .nome trofeu. O primeiro entrevistado foi o pai do Eder
Aracy pediu-me para autografar um livro. Queria ver Jofre. Disse que o seu filho nao péde comparecer
achando bonito ela nao gostar de andar des-
a Vera, porque foi receber um trofeu na Academia de box.
livro. (...) Che-
setosteeseeseeeses galca. Citou varios trechos do meu Quando fui entrevistada citei ao locutor Jota Silves-
gou uns pretos para convi dar-m e para tomar parte na tre que pretendo estudar. Hle entregou-me uma esta-
festa dos negros , em maio e setemb ro. tueta com a inscricao honra ao merito.
... O que eu achei interessante foi ouvir uma pre- ... Findo 0 programa, sai e fui procurar condu-
tinha. Fila dizia: cio. Desci até o ponto. Entrei num bar a convite de
146 147
Casa DE ALVYENARIA
‘CAROLINA Maraa DE JESUS
149
148
CAsA DE ALVENARIA
para o terceiro ano. O José Carlos nao faz confusdo. Troquei-me e fui para a cidade. O reporter
Nao quer perder a aula. Diz que quer ser medico. nao estava. Fui ao Banco retirar 20.000 cruzeiros.
Passei o dia cuidando da casa. Convidei a Hilda (...) Cansei de esperar o reporter. Quando eu ia
se quer acompanhar-me até a Televisio. Preparei as saindo éle entrou. Ele acompanhou-me até a Rua Ba-
roupas que.a artista Ruth de Souza vai usar na peca réo de Itapetininga. Emcontramos um pretinho por
“Quarto de Despejo”. Saimos de casa as 19 horas. nome Osvaldo. Disse ser o redator do jornal “O Eba-
Quando chegamos na Televisio Cultura as mulbe- no”. Pediu ao reporter se deixava eu ir até o jornal.
res que iam participar do programa ja estava senta- O reporter disse-Ihe que sou livre.
das. °*) Perguniei pelas espésas dos candidatos. Quem Acompanhei o Osvaldo até o edificio onde esta
estava presente era sé a espdsa do Dr. Farabulini localizado o jornal. O Osvaldo estava nervoso. Um
Junior. (...) A Dona Suzana Rodrigues criticou as senhor telefonou cobrando uma divida de 1.500 eru-
espésas dos candidatos que nao compareceram. zeiros. Bles n&éo tinham o dinheiro e o credor ia en-
... Findo o programa, ganhei uma corbelle de viar a letra ao protesto. Eu dei 2.000 cruzeiros.
flores. A sogra do senhor Farabulini convidou-me .. Fomos tomar café. Eu comprei sanduiches
para ir a sua casa. Convidei o reporter. Ble recusou, para nés. 6 sandniches a 50 ecruzeiros. Pensei: ja
dizendo que ia fazer uma reportagem. Eu e a Hilda gastei 2.300 eruzeiros. Em todo nucleo que mesclo
fomos. Chegamos rapidamente. Que casa! E um ver- tenho que gastar. E eu n&o tenho ninguem para au-
dadeiro palacio. A Hilda disse: Xiliar-me a ganhar. Tenho o reporter. Ble é meto-
— Carolina, quando vocé morava na favela vocé dico. Nao aceita o meu dinheiro. Eu quis dar-lhe os
nao entrava aqui. Era da porta pra fora. meus livros para éle edité-los a meia, éle nao quis.
Eu estava exausta. Ja estou saturada desses con- Agora que tenho dinheiro sou procurada igual um
vites faustosos. personagem em destaque. Transformei-me em abelha
rainha de uma colmeia que nado quer mel, quer di-
10 de margo ... Pensei nas reviravoltas da mi- nheiro.
nha vida depois do lancamento do livro. A fama es- ... Quando cheguei em casa, que confusio. Lou-
palhou-se que estou rica. E adeus, tranquilidade. €as sujas, o assoalho imundo, as camas desfeitas, os
Todos desejam ser ricos. filhos sujos. Deitei, pensando: nao foi assim que idea-
Eneontrei o Dr. Lélio e o Paulo Dantas na Livra- lizei a minha vida na casa de alvenaria.
ria e queixei-lhe que nao suporto a cidade. Que o povo
quer dinheiro e eu nao tenho. Uns quer 1 milh&o, 12 de margo ... Ergui os olhos para o céu. Se
oitocentos mil cruzeiros, quatrocentos mil ecruzeiros. eu tivesse asas eu levaria os meus filhos um de cada
Ja cansei de ouvir a palavra dinheiro. vez para l4 e nao mais voltaria a terra.
13 de margo Levantei as 5 horas, preparei o café
11 de margo Levantei triste. O Jofo esta rei-
para os filhos. Bles trocaram-se e foram a escola. Eu
nando na escola. N&o quer ir para o terceiro ano.
estou triste.
Contratei a Dona Thelma para ensind-lo matematica.
Resolvi limpar a casa. Ensaboei as roupas, lavei
o jardim. Ia preparar o alméco quando o Osvaldo do
(29)
candidatos
Programa
a Prefeito
de
de
debates
Sao
de
Paulo.
donas
(A.
de
D.)
casa cam as espésas dos jornal “O Ebano” chegou convidando-me para sair.
152 153
CASA DE ALVENARIA
CAROLINA MarIA DE JESUS
nho uma historia interessante. O titulo 6 “Onde estas
Fiquei alucinada. Meu Deus! eu tenho filhos, preciso Felicidade?” (...) O Osvaldo disse-Ihe que vai levar-
fazer comida para éles. O meu contrato 6 com a Li- me em Santos para fotografar-me com o Pelé. Pediu
vraria Francisco Alves e o Dr. Lelio nao aborre- ao senhor Iram se podia nos conduzir no seu carro.
ce-me. le concordou. Respirei aliviada quando despedimos.
Ele dizia que a raca precisa se unir. Quem esta
bem deve auxiliar os outros. Disse-me que ia levar- 16 de marco ... O Osvaldo veio procurar-me
me na Radio Record, no Clube dos Artistas. Que ha- para eu ir assinar o contrato com o sabio A.. (...)
via prometido. Troquei-me e fui. Saf contra a von- Seguimos para a cidade. O Osvaldo ia queixando-se
tade. DA impressfio que sou uma fdlha ao sabor das das dificuldades que vem encontrando para divulgar
ondas. : o jornal, aludindo o prego do papel. O senhor Tram
... Quando chegamos na Record fomos para o prometeu auxilidé-lo. Ble estA superlotado de ilusdes.
restaurante. Senteil na mesa que estavam os artistas. Ha certos empreendimentos que sAo necessario dinhe-
Citei-lhes que estou com médo de escrever o didrio da ro, capital.
vida atual. O reporter diz que nao devo temer.
— Por que 6 que o reporter nao escreve? — su- Fomos ao escritorio do sabao A.. O dono nos
geriu um jovem que nao conheco. recebeu. Depois de uma lenga-lenga desnecessaria
entraram num acordo. Achei graca quando o purtu-
... Anunciaram o nosso programa. Eu fui para
gués que discutia o negocio com o Osvaldo, disse-lhe:
o paleo. Sentamos nas mesinhas. O Osvaldo disse que
ia lancar-me como cantora. Fez uma apresentacio do — Se estas com pressa, a porta é aquela.
jornal “O Ebano”. Cantei. Pensando na confus&io de O Osvaldo exaltou-se. Percebi que éle nao esta
minha vida. Hoje estou cantando. EH amanha? pratico nos negocios. (...) O Osvaldo alterou-se com
o purtugués e por fim chegaram a um acordo. Deixa-
15 de marco ... Todos os dias os aborrecimen- ram a assinatura para o outro dia. Saimos do escri-
tos vem visitar-me. O Osvaldo veio procurar-me, di- torio e fomos para o jornal “O Ebano”. O predio es-
zendo-me que eu devo vender 0 meu nome para o tava fechado. Fomos para a Casa da Imprensa. Tem
sabio A. para propaganda e com o lucro da venda que pagar 60 mil cruzeiros para o jornal rodar.
éle manda imprimir o jornal. Disse-me que o Pelé
vai ceder o seu nome para qualquer produto que 17 de marco ... O Osvaldo chegou de carro. Dis-
queira usd-lo comd propaganda. Que a raca precisa se-me que veio buscar-me para ir a Santos, que vai
unir-se. fotografar-me com o Pelé. Eu estava com sono. (...)
Ele convenceu-me a colaborar no jornal. Fo- Passamos na cidade, no escritorio do jornal “O Eba-
mos procurar o dono do sabaéo A.. Nao encontramos. no”. O Osvaldo disse-me que nés tinhamos que estar-
le havia saido. O escritorio é na cidade, a fabrica mos em Sfo Paulo as 5 horas da tarde para assinar
é em Guarulhos...Combinamos voltar amanha. Fomos o contrato com o sabao A.. (...) Seguimos até a Ave-
na agencia do senhor Iram. Conversamos sobre o nida Brigadeiro Luiz Antonio, ver se o senhor Iram
jornal “O Ebano”. Ele pretende divulgar historias ia a Santos. Nao estava. Seguimos. O tempo estava
em quadrinbos. O Osvaldo disse-lhe que eu posso es- ameacando chuva.
crever-lhe historias pata o jornal. Disse-Ihe que te-
155
154
CaRoLina Maria DE JESUS CASA DE ALVENARIA
... Respirei aliviada quando chegamos em San- que (...) O reporter sorriu e aproximou-se. Baixer
tos. Dirilgimos a casa do Pelé. Ble nao estava. (..-) o olhar. Hoje eu estou de mal com éle. Sem motivo.
Fomos no campo de foot-bol procurar o Pelé. Encon- Ble continua auxiliando-me em tudo. Interessando-se
tramos o Coutinbo. Conduziu-nos até a residencia do pelos meus negocios. Gracas a Deus a minha vida
Pelé, para ver se éle estava dormindo. N&o estava. melhorou por intermedio deste homem notavel. Ele
Nao podiamos esperar o Pelé. O Osvaldo mandou-nos tolera os meus caprichos com paciencia de J6. Tem
fotografar entregando o “Quarto de Despejo” ao Cou- dia que sou insolente com éle. Nao é minha culpa.
tinho. Autografei outro para o Pelé. (...) Despedi- .. Mas voltemos a festa do governador. Fista-
mos dos jogadores e voltamos para Sao Paulo. Quando vam presentes varios politicos. Circulei pelo parque,.
chegamos fomos para a redacéo do jornal “O Ebano”. olhando as pessoas com trages tipicos que foram ho-
Dei dinheiro ao Osvaldo para comprar gasolina. menagear o governador. Os decendentes de russos
Esperamos o dono da agencia para fazer 0 con- estavam com trages tipicos. E os purtugueses e japo-
trato com o sabao A.. Ficamos esperando. O Osvaldo neses. Estava uma festa semi-carnavalesca. O povo
estava nervoso. Eu disse-lhe para acalmar-se. (...) acompanhava-me pedindo autografos.
Fomos até a Avenida SAo Joao proeurar um taxi. Nao Achei interessante um grupo fantasiado de indios.
encontramos. Resolvemos irmos a pé até a Rua Fre- Tinha purtugués, pretos e mulatos. Sorri achando gra-
derico Abranches. Eu assinei o contrato em treis vias. ca nas fusdes das racas com trages de indios.
Uma para a firma, outra para a agencia e outra para Saimos do Horto Florestal.
mim. O contrato diz que eu devo ceder o meu nome 18 de marco Domingo. Passei o dia limpando a
para o sabao A. por um ano, para propaganda nos easa. Nao recebi visitas. Estou reanimando-me. Os
jornais e televisdo. O preco de 94.000 ecruzeiros. 60.000 filhos foram ao cinema.
cruzeiros para o Osvaldo, para o jornal “O Ebano” e
34.000 cruzeiros para o dono da agencia. 21 de marco Recebi a visita do Osvaldo do jor-
O Osvaldo disse-me que vai vender-me para ou- nal “OQ Ebano”. Disse-me que o dono do sabao A.
tros produtos. anulou o contrato. Ble vai processaé-lo. Quer que eu
Com aquela confusio de vender a Carolina, eu fi- assine procuragao para o processo. Eu disse-lhe que
quei pensando: quando eu estava na favela nao valia o reporter niio permite que eu faca propaganda de
zero. Agora tenho valor... produtos.
Ele insiste que eu devo auxiliar a raca.
Estou confusa. Nao tenho ideias para escrever.
18 de margo ... O Osvaldo disse-me que o jor-
nal vai circular segunda-feira e convidou-me para ir © 24 de marco A Dona Didi esta trabalhando para.
ao Horto Florestal comprimentar o senhor Carvalho mim. Quer ganhar 7.000 cruzeiros por més.
Pinto, o atual governador de Sao Paulo. (...) Tro- Mandei confecionar um vestido para eu ir a
quei-me e dirigimos para o Horto Florestal. Na festa Curitiba.
do senhor Carvalho Pinto havia fartura. Sanduiches
e refrigerantes para o povo. (...) Pedi permissao 25 de marco Levantei as 6 horas. Hoje nao tem
para subir no palanque. O Osvaldo n&o quis subir por aulas. Hstéo preparando os grupos escolares para as
estar sem palité. Vio reporter e o Torok no palan- eleigdes amanha. Fui conversar com a Dona Elza
156 157
CAROLINA MARIA DE JESUS CasA DE ALVENARIA
Reis. Ela disse-me que a Vera disse-lhe que o José Os favelados iam saindo dos barracos, descalgos
Carlos esta tirando brinquedos na feira. Fiquei ner- e sujos. A Ruth foi fotografada perto da torneira com -
vosa. Caleei os sapatos e fui a cidade falar com o uma lata dagua na cabeca. Ela nao sentiu emogao. Eu
reporter, para arranjar um colegio para o José Car- senti. Olhando aquele fio dagua e a quantidade de
los. O reporter disse que vai interndé-lo em junho. habitantes. Que luta para encher uma lata!
Disse-me que havia depositado o dinheiro que veio da Fui rever o meu barracdo. Encontrei a Dona Alice
Holanda @®. Entregou-me o recibo do Banco. triste. Ela é costureira. Nao costura por nao ter ma-
.. Hoje ninguem aborreceu-me pedindo-me di- quina. O Seu Chico estava deitado. A cama estava
nheiro emprestado. Vou dormir. Preciso dormir suja. Ndo por desleixo, mas por falta de sabao.
muito. Seguimos contemplando a favela. A chaga de Sao
Paulo.
26 de marco Levanteime de manha. A Dona
Didi nio vem trabalhar. Vai votar. Lavei as roupas, 39 de marco ... No meu jardim tem uma rosei-
limpei a casa e preparei a refeigéo para os filhos. ra. As crianeas colhem as rosas para brincar. Nao
EBles foram ao cinema. Estou cansada, mas vou votar.
revolto porque nascem outras fléres.
Saf com a Vera. Comecou a chover. As ruas estavam
alagadas. Andavamos na agua. Encontrei pessoas da Hoje é sexta-feira Sania. Nao com-
favela, criangas maltrapilhas. O Clovis e o Onofre, 81 de marco
prei peixe. Esti carissimo.
olhando-me com curiosidade perguntava-me:
-— Dona Carolina, cadé o Joao? E o José Carlos? Os filhos estao pereorrendo as ruas
1 de abril
com os moleques que vio queimar o Judas. Eles di-
27 de marco [ui a cidade. Vou sair com o re-
porter e a Ruth de Souza. Vamos na favela. A Ruth zem que o Judas é o Janio Quadros. Estou horrori-
quer identificar os tipos para representar no palco. zada ouvindo as criancas gritando pelas ruas:
Fomos na residencia da Ruth. Ela foi preparar-se —— Vamos queimar o Janio!
para sairmos. Achei interessante quando a Ruth pe- —— O pao j4 subiu. Vamos queimar o Janio!
gou o saco de catar papel e entrou no automovel. Eu Fico pensando: faz treis méses que elegeram 0
disse-lhe: senhor Quadros.
— Se catar papel fosse assim, dentro do auto-
movel ouvindo radio, a vida seria um paraiso. 5 de abril ... A Dona A. pediu-me 20.000 eru-
Eu ia revendo os recantos que percorria. Quando yeiros emprestado. -Ku- disse-lhe para ir falar com o
chegamos na favela fiquei com dé dos infaustos que reporter. (...) Fui ua cidade. Encontrei uma senho-
habitam aquele antro degradante. Descemos do auto- ra que reconheceu-me. Disse-me que me viu na tele-
movel e percorremos a favela. As criangas reconhe- visio do Rio e queria um livro autografado. Convi-
ceu-me de longe: dei-a para irmos até a redagéio. O reporter estava na
— Olha a Carolina! redagio. Apresentei-lhe a senhora’é disse-Ihe que de-
via dar-lhe um livro. O reporter reclamou, dizendo
que gasto muito dinheiro. Comecei a xinga-lo mental-
de
“Quarto
(30)
de
Pagamento
Despejo”,
dos _
langada
direitos
pela
autorais
Editéra Van
da
Loghum
edigio holandesa
Slaterus. (A. D.) mente — cachorro! pao-duro!
158 159
‘CAROLINA MARIA DE JESUS Casa DE ALVENARIA
... Sai com a senhora. Fui levé-la na Rua Bardo os pinheirais. Estava nos aguardando o reporter Jor-
de Itapetininga. Ela ia encontrar-se com o seu es- ge Barbosa Elias. Ei decendente de sirios, mas o. seu
poso. Eu ia reclamando, porque jé estou cansada das afeto 6 para os problemas do Brasil. Fizemos uma
observagées do reporter. A mulher dizia: saudacgdo pela Radio Guayracdé. (...) Dirigimos para
—- Vocé esta ganhando rios de dinheiro, tem que
o Lord Hotel. Troquei-me e fui percorrer as estacdes
gastar porque a vida esti cara. de radio. O povo olhava o reporter com admiracio,
OQ seu espéso chegou. Ela mostrou-lhe o livro com achando que éle é muito jovem. ©
a dedicatoria. Contou as repreensées do reporter: Almogamos no Restaurante do Galeto. Eu, 0
reporter, o Jorge e-seu pai, senhor Chafic Elias. Que
— Deus me livre de ser espésa de um homem
igual a éle. homem agradavel. O radio estava anunciando a nossa
visita:
O seu espdso comentou:
—— Coitada. 1 uma favelada inciente, sem pra- — Acaba de chegar a Curitiba Carolina Maria-de
tica. Nao tem quem a oriente.. Jesus e o seu descobridor.
Fiquei ouvindo sem comentar, porque ela nio co- As 5 da tarde fui autografar na Livraria do Povo.
nhece a atuacgéo do reporter na minha vida. Ele é um (...) Na livraria estava presente o reporter da re-
para-choque contra os espertalhées. Despedi do casal vista “O Cruzeiro” Ivar Feij6. (...) Na Radio Cul-
e fut ao Banco retirar dinheiro. tura formamos uma mésa redonda. As perguntas. va-
riavam de favelados a politicos. QO senhor Vitor de
6 de abril Levantei as 5 horas. Preparei as rou- Lara perguntou:
pas dos filhos, porque eu vou viajar para Curitiba. ~— Por que a senhora n&o casou-se? |
Deixei as eamisas passadas para éles nfo perder au- Prometi responder-lhe no meu proximo livro, que
Quando a Dona Didi chegou eu havia lavado as é “Casa de Alvenaria”. Senhor Vitor de Lara, de
roupas e o jardim. Fui na redac&o ver que horas va- Curitiba, Estado do Parana, ai vai a minha resposta :
‘mos sair de S40 Paulo. Quando fui jovem tive os sonhos dos jovens. Mas
os homens que pediram-me em casamento deixaram-
7 de abril Levantei as 6 horas. Preparei os fi- me decepcionada. Uns queriam que eu ‘roubasse, ou-
lhos para ir a aula. Troquei-me e fui ao visinho que tros queria que eu comercializasse o meu corpo. Os
é motorista para levar-me..(...) Quando chegamos que pediu-me em casamento nfo serviam. (...} Eu
no aeroporto os carregadores abracaram-me, dizendo: ficava horrorizada com as propostas e fui ficando ‘so-
— Chegou a nossa namorada. sinha. Mas a mulher, com o decorrer do tempo acaba
Carregaram a minha mala. Eu e o reporter en- Hudindo-se com os.homens.
tramos no saguaéo do aeroporto.. Encontramos o se- O senhor Vitor de Lara referiu-se acs meus ‘fi.
nhor Murilo Antunes Alves e sua espésa. Jam para Thos dizendo que éles. sio:bastardos. £
Brasilia. Ble vai ser o chefe do cerimonial do. senhor Mas sao felizés. Luto-por éles, nao déixando: os
Janio Quadros. - abandonados. -Tem crianeas legalizadas que invejam
.- Quando entramos no aviao pensei nos meus os meus filhos, porque tem pais: ebrios que transfor-
filhos: Sera que a Dona Didi vai olh4-los como se mam a casa nim inferno. Tém-mulher -que intérnam
deve? Chegamos em Curitiba as 11 horas. Que béleza os filhos nas instituigdes filatitropieas “porque - nao
160 61
Casa de Alvenaria 6
CaROLINA Mania DE JESUS CASA DE ALVENARIA
quer lutar por éles. Os meus filhos nao sentem a_ Os passageiros estavam inquietos, reclamando:
falta de um pai. Eu luto por éles. , —~ Se eu soubesse viajava de onibus.
oO reporter percorria o aeroporto,
_.. Jantamos na residencia do jornalista Ivar conversando
com oO Helio José. Sentei, pensando nos filhos e nas
Feijé. A espdsa do senhor Ivar Feijé é caprichosa.
Fomos na Televisaéo horas que iam passando. Mas agradecia a interferen-
Ela deu-me mudas de fléres.
telespecta dores faziam perguntas pelo cia de Dens impedindo a ascensfio do avido, ja que
Canal 12. Os
telefone. estava defeituoso. Deus devia estar protegendo o re-
porter, porque éle é o melhor de todos que iam em-
Despertei as 5 horas. Levantei, abri barcar.
8 de abril
Achei graca quando um casal em Iua de mel re-
a janela. Fitei o céu do Parandé e o meu olhar girou
nunciou a viagem. Pensei: éles estaéo progetando tan-
pela cidade cér de cinza. Tomei banho. Troquei rou- tas coisas. Sao jovens.
pas e desci para tomar café. (. ..) Pedi ao gerente Respirei alegre quando ouvi a ordem de embar-
para retirar a minha mala do quarto. Eu estava dis- que. _Varios passageiros transferiram a viagem para
posta. Fomos na Televisio Paranaense. Fiquel co- o ultimo voo da tarde. Estava presente um radialista
nhecendo o diretor, senhor Nagib Chedi. Estava pre- quarentao, agradavel. Quando dirigimos para o aviéo
sente o radialista Helcio José. (...) Despedimos dos
convidei-o: ,
funcionarios e dirigimos para o aeroporto. Eu e o
— Vamos...
Jorge iamos sentados atras. O Helcio José ia guiando
— En vou a tarde.
o carro. E um reporter poliglota. Conhece os conti- — Medroso!
nentes. Ele sorriu. Seguimos. A metade dos passageiros.
Quando chegamos no aeroporto fiquei preocupada oO meu coragao parecia o sol quando esta no eclipse.
quando vi o avido com seu bojo tipo pato. Pensei nos Oscilava dentro do peito. Circulei o olhar enviando
filhos e pedi a Deus para auxiliar-me na viagem. o meu adeus aos pinheiros do Parana. O céu estava
Despedimos do Jorge e do Helcio José e dirigimos nublado. Deve ser belo o Parand quando o sol esta
para o avido. Antes de penetrar cireulei o olhar ao descoberto.
redor contemplando as paisagens magestosas do Pa- . Entramos no aviéo. Fiquei gelada, olhando o re-
rand. & lindo o verde do Parana. O pinheiro sobres- logio do reporter. Pensava: meus Deus do cén. Antes
saindo entre as outras arvores, garboso igual um ator eu estivesse na favela.
principal. Vinte minutos dentro de um aviio, para mim, pa-
Sentamos e apertamos o cinto. A aero-méca nos rece vinte seculos (...) Pousava o olhar no relogio
saudou desejando boa viagem. Eu estava sentada ao do reporter. Comecei a pensar: meu Deus, se 0 avido
cair o reporter morre. Depois pensei: meu Deus, se
lado do reporter. O avido partiu na pista, mas o mo-
o reporter morrer, hei de morrer tambem, porque estou
tor falhava. Fiqueiassustada quando o comandante
pediu-nos que desembarcasse e aguardasse nova cha- ao seu lado. ,
mada. Vi passageiros saindo as pressas do avido. Estava apavorada e dizia ao reporter:
Quando sai contemplei o espago e respirei aliviada. — Eu vim neste avido para provar aos outros
Fomos para o hangar. passageiros que sou corajosa.
162 163
eae?
CASA DE ALVENARIA
CaroLtina Maria DE Jesus
mil cruzeiros. O reporter disse-me para ter cuidado mento bancario. (A. D.)
167
166
CAROLINA Maria DE JESUS Casa DE ALVENARIA
23 de abril Woje é domingo. A Dona A. veio tei para casa. O reporter esté viajando para a Ar-
trabalhar. Fez o alméco e foi-se embora preparar 0 gentina.
alméco para o espéso e os filhos. Ela é triste. Tem 27 de abril ... A Dona A. chegou. Entreguei-
uma grande magoa. O seu sonho era ser rica, mas n&o lhe a direc&o da casa. Fui a redacéo pedir um cheque
enriqueceu.'’ Por isso é amargurada. de 40.000 cruzeiros para concluir o servico da casa.:
Jaro, eu nunca compreendo o ente humano. FE o Eu estava nervosa, pensando: o reporter vai dizer que
pior enigma para mim. Se uma pessoa é pobre, quer
|
eu estou imitando Maria Antonieta. Mas eu quero a
ser rico. Se esté doente quer ter saude, se é gordo casa bem bonita. Comeco a gostar da minha casa de
quer emagrecer. Se é magro quer engordar, se é sol- alvenaria. 1 a concretizacio de um longo sonho. Eo
teiro quer casar-se. Ha os que depois que casam... sonho dos favelados é uma casa de alvenaria.
arrepende-se. Os que so altos demais ou baixo de- Olhei os jornais. Jé estado anunciando a estreia
mais, tem complexos. Eu conheci uma preta. A Nair. da peca “Quarto de Despejo”. Voltei a redacio. En-
Tinha desgosto de ser preta. Nao ia aos bailes de econtrei o senhor Mario Camarinha, diretor do Bureau
pretos. do “O Cruzeiro” em SAo Paulo. Ble abracou-me sor-
Que confusao! Ah, eu estava falando da Dona A.. rindo. Pedi para levar o livro de cheques e guardar
Ela casou-se, tem quatro filhos. O espéso fala que na gaveta do reporter.
nao gosta de viver ao seu lado. Af vai a minha fra- Cheguei em casa dei 15.000 cruzeiros aos pedrei-
quissima opiniao na vida conjugal: ros para comprar o material. Fui falar com o senhor
Sou suspeita para falar. no matrimonio, porque Abel para consertar os armarios. Passei o resto do
eu néo me casei com ninguem. Tem mulher que luta dia escrevendo. Pedi a Dona A. para vir dormir com
para casar. Agrada o homem com frases aveludadas. os meus filhos.
Se o noivo n4o quer vestido curto, ela usa vestido com- Vou sair a noite. Vou ver a estreia da peca
prido. Se n&o quer pintura ela deixa de usar pintura. “Quarto de Despejo”
‘Enfim, a vontade do homem prevalece. Depois de O ‘Teatro Bela Vista estava superlotado. Pes-
easados 6 a outra face do disco. Ela passa a usar soas de destaque, porque o espetaculo é beneficente.
pintnra e encurta o vestido porque esté na moda ves- Os paulistanos bem vestidos circulavam pelo teatro.
tido curto. Sai de casa sem avisar o espéso. N&o quer (...} Quando inicion o espetacule eu subi no palco
filhos porque da trabalho. O que sei dizer é que as para. sortear uns premios. Fui aplaudida. O espeta-
confusées de um lar as vezes comeca com as mulheres. eulo agradou. A cena mais comovente foi a briga
Acho lindo um casal que festeja as bodas de prata. com o cigano e o porco que saiu do chiqueiro e ficou
circulando pelo paleo. Ouvi uma voz humoristica:
25 de abril Passei o dia em casa. Os pintores — Este porco é ator.
estAio trabalhando. Lavei roupa e passei. O dia que Findo o espetaculo fui agradecer os artistas. Para
fico em casa fico contente. mim o espétaculo: estava triste com a ausencia do
reporter.
26 de abril Fui contratar os carpinteiros para
consertar os armarios. A tarde fui a cidade para ver 28 de abril A Dona A. preparou os fithos para
se retirava dinheito do Banco. Estava fechado. Vol- ir a aula. Os pintores chegaram e foram comprar
168 169
DE JESUS Cass DE ALVENARIA
CaroLina Marta
tinta para concluir a pintura. Vou reformar o quin- . Saimos. Confabulando onde iamos jantar.
tal. Vou comprar calhas para a casa. Decidiram ir numa cantina na Rua Santo Antonio.
Quando chegarnos na cantina eu era alvo dos olhares.
929 de abril Levantei de manh&. Os pedreiros fo- Estava hem vestida e acompanhada com o senhor
Jorge Amado. Pedimos lazanha ao forno. O senhor
ram chegando, um a um. Fui a feira, comprei frutas Lebret > u senhor Jorge Amado pediram frango gre-
para os filhos e verduras. (...) Chegou visitas. Desei lhado. Dividiram o frango comigo. Pensei: se todos
para ver quem havia chegado. Era a Dona Jurema pudessem comer assim? Hstamos na época que alguns
Finamour e a espdsa do escritor Jorge Amado. Fie comem e outros nfio. (...) A epoca do sofrimento
quei alegre quando vi a Dona Jurema Finamour. deixa cicatriz na mente. Tem hora que relembro a voz
Recordei os bons dias que passei ao seu lado 14 no angustiosa da Dona Maria Preta, 14 da favela:
Rio, no Festival do Livro. Mostrei-lhe a casa. Apre- — Estou com vontade de comer um pedacinho
sentei a Dona A.: de carne.
_— Esta senhora trabalha para mim. Jamais hei de olvidar que existe fome.
Mostrei os meus vestidos. A esposa do senhor
fotografou-me. (...) Cantei minhas .-. Quando saimos da cantina tomamos dois ta-
Jorge Amado
gostaram . Combina mos um encon- xis: Fomos ao Teatro Bela Vista. Fui sentar ao lado
composicées. Elas
tro no Claridge Hotel, na Avenida 9 de Julho. do Jorge Amado. Pensei: meus Deus, parece um so-
chegamos no Claridge Hotel telefonei nho. Outro dia eu era uma favelada. Atualmente sou
... Quando
ex-favelada. A minha historia pode ser resumida
para o apartamento 47. Atendeu-me o espéso de Dona
assim:
Jurema Finamour. Pediu-me para espera-lo. Fiquei
girando pela sala. J& estou aprendendo a andar de — Era uma vez uma preta que morava no in-
sapatos de salto. O senhor Lebret surgiu. Sentamos. ferno. Sain do inferno e foi para o céu.
Disse-me que a Dona Jurema estava ausente e 0 Jorge . No intervalo o povo pedia autografos. O Jorge
Amado estava preparando-se para vir ver-me. Fiquei ea Dona Jurema Finamour foram ao paleo cumpri-
nervosa. Ia falar com Jorge Amado! Pensei: seja 0 mentar a Ruth de Souza. O senhor Jorge Amado pro-
que Deus quiser. meteu visitar-me. A minha casa esté as ordens.
O Jorge Amado surgiu. Levantei-me e fui cum- ... Um jornalista felicitou-me pelo exito da pega.
primenté-lo. Abracei-lhe. (...) Ble é agradavel no (...) Eu voltei para casa pensando no Jorge Amado.
falar. Deu-me um livro de sua autoria — “Os Velbos Que homem maravilhoso! Em vez de chamar Jorge
Marinheiros”. Amado devia chamar Jorge Amor. (...) Ele deixou
—— Que bom! — exclamei alegre. de ser Doutor Jorge Amado. E simplesmente Jorge
Amado. O que pertence ao Universo nao tem protoco- -
Acariciel o livro com earinho. Eirgui o olhar e vi
lo. N&o podemos dizer Senhor Sol, Dona Lua, Senhor
os olhos do Jorge Amado observando minhas expres-
Vento. .
sdes. (...) A espdsa do senhor Jorge Amado chegou.
Cumprimentei-a. Ficou olhando o meu vestido. A
1demaio Que primeiro de maio sem graca. Nao
Dona Jurema Finamour entrou. Olhou-me e serriu.
houve festejos comemorativos, os desfiles dos traba-
Olhando o meu vestido, disse:
lhadores. Quem gostava do primeiro de maio era o
— Que chique!
171
170
CASA DE ALVENARIA
CAROLINA MARIA DE JESUS
... Vi as reportagens da Dona Ea Vastari, na 9 de maio Passei o dia em casa. O Joao nao foi i
revista finlandeza. Despedi do reporter. Sai pensan- a escola. Foi na Livraria levar um bilhete para o :
do que devia comprar dois cobertores, porque a Dona Dr. Lelio, pedir dinheiro para comprar materiais.
Luiza Fiori vai dormir na minha casa. Passei numa Ele deu dez mil cruzeiros.
loja amiga. Comprei dois cobertores. Um palité para Dei treis mil cruzeiros para os pintores, para
mim e um sapato para o José Carlos. Gastei sete mil comprar os materiais. O caminhéo veio trazer os ma-
eruzeiros. Este dinheiro era para concluir a pintura teriais. Hoje eu estou calma. Alegre.
da casa, porque eu nao gosto de falar em dinheiro
com o reporter. Ele fica azucrinando que eu gasto 10 de maio ... Os pedreiros vieram trabalhar.
muito. (...) Ja estou cansada das advertencias do Pretendo pagar-lhes bem. Devemos ser corretos nos
reporter. negocios. Ouvi um xingatorio. Fui ver. As criancas
Quando cheguei em casa encontrei a Vera bem haviam soltado um balao e o balao entrou no quarto
vestida e bem penteada. Ia ao lado de Dona Luiza a de uma senhora. Contei 11 meninos, mas ela xingava
escola. EXstava perfumosa. A Dona Luiza tem gosto s6 os meus filhos:
para adornar uma crianga. —~ Favelados desgracados, ordinarios. A tua mae
nao te da educacdo.
8 de maio Passei o dia em casa. A Dona A. veio Ela nfo compreende que a favela é obra de rico.
trabalhar. O Jo&o foi na Livraria levar um bilhete Os pobres nio podem pagar os pregos exorbitantes
para o Dr. Lelio. Eu pedia 10.000 cruzeiros para com- que os ricos exigem pelo aluguel de um quartinho. E
prar material para concluir a reforma da casa. Quei- nio podem ficar ao relento.
xei-me no bilhete que o reporter reclama que gasto ... A Dona Maria José veio avisar-me que devo
muito. E eu néo gosto de ser observada injustamente. comparecer na festa do dia 14. Deu-me um convite:
& horrivel ter sixhéd. Mas o dia 13 de maio esta che- “Nao percam dia 14 de maio proximo um grande
gando... espetaculo beneficente em prol das obras da igreja
O Joao voltou dizendo que o Dr. Lelio nao estava N.S. de Fatima do Imirim. Serio tevados um show
na Livraria. Fiquei nervosa. Os pedreiros foram fa- e uma pega teatral em dois atos. Contamos com a cola-
zer outro servico. A Dona A. fez o alméco e zar- boracGo de nossa escritora Carolina Maria de Jesus.
pou-se. '. Nao percam! Aguardem.
... A tarde a Dona Maria José veio buscar-me Elenco da peca teatral “Escravo Engeitado”:
para ir a igreja. FE uma missa mandada celebrar
pelos pretos do bairro. (...) Quando cheguei a igreja Sinhé Mauricio ......- Benedito - tose
fui saudada pelo Padre Constancio. Que homem cal- Sighé Jurema ...... Maria José
moe que olhar sereno. Esperaram a minha chegada Capataz ...--.--++-- Juliéo
para iniciar a missa. Eissas manifestacdes confortam- Escrava Engeitada .. Leontina
me o espirito combalido e descrente de tude. Princesa Isabel ...... Irene Batista
A igreja estava inacabada. Gostei do sermiao, Sinhazinha ..-++.++- Sumoya Fuma
agradecendo a Deus por ser brasileira. Viver néste Mucama .....---+--- Ruth Rocha
pais sem temor. Devemos amar éste pais onde nao ha — Preto Mathias ....-. Clodoaldo
Pai Inacio ......... . Evaristo Gomes
preconceito de cér.
174 175
CaROLINA MARIA DE Jesus
Casa DE ALVENARIA
Parte cantada a cargo de Saba
ré — Animacio —
José Garcia.” . ... Ble preenchen o cheque. Assinei. Despedi e
fomos ao Banco. Voltamos de onibus. Com as repre-
Veio um pretinho pedir-me ensdes do reporter, fiquei triste. Ble prevalece por-
um auxilio. Sofreu
um acidente na mao direita e nao que foi éle quem auxiliou-me.
pode trabalhar. Cor-
tou os nervos do braco e a mao
ficou sem acéo. Eu
perg
untei-lhe: ,
— Ke ie de protegaéo ao operario , 13 de maio ... Passei o dia com os pintores e
? carpinteiros. Fui na Loja N. 8. de Fatima comprar
—
—. Hles fazem tanta confusdo, que a gente
desiludi a tabuas para fazer prateleiras para os armarios embu-
ndo. tidos. Um preto por nome Gazoza veio colocar a calha
4 ~ neaba
— O que-vocé sabe fazer? no telhado. O pedreiro disse que eu devia aumentar
— Eu era operario, qualquer um quarto na parte superior e um terraco. Seria um
mos € preciso ter mfos. FE eu servico que executa-
n&o tenho quarto para Vera. Quero organizar a casa.
a oT Hse vocé montasse uma A noite recebi a visita dos diretores do Orfanato
banca de jornais po-
era ganhar algo para viver. Unido Crista de Amparo a Infancia. (...) Pedi li-
Escolha um local e eu
auxilio-te a montar a banca. cenca aos diretores. Ia trocar-me para ir ao baile do
. ---: Quema pode
) normnalizar. r a situmaca Clube 220, o clube dos pretos. Bles despediram-se,
déste Jjovem € a let trabalhista. aca o crit:iti fui trocar-me. A Hilda veio auxiliar-me a vestir o
Fo patrao inconciente
que 86 da valor ao homem quan vestido que comprei da Carmem por 10.000 eruzeiros.
do o homem pode pro-
guar ql desumanidade deixar A Hilda emprestou-me as luvas e uma bolsa. (...)
oo 0 aban
um operario acidenta.
aban donado.
d. Ofereci almé
ulméeo
¢ ao Jove Fui procurar a Ivete na sua casa. Quando eu descia
} m. Dei-i lhe 90 0
a Rua Imirim com meu vestido amplo, notava os olha-
res fitando-me como se eu fosse de outro planeta. A
11 de maio Passei o dia em casa. mae da Ivete ficon alegre. As primas da Ivete esta-
reforma. (..) Lavei roupas e pass cuidando da vam presentes. Perguntaram-me:
ei. Nao tenho tempo — Porque nao alisa os cabelos?
para escrever, com os.afazeres
da casa. A Dona ‘A
tem vergonha de ser minha — Eu nao gosto de cabelos lisos. Acho belo o
empregada porque ela é
branca. Chega as 9 horas e sai que é natural. .
as 13. ° Ei a primeira vez que penetro na casa da Ivete.
12 de malo Sai com o pint E casa propria, bem mobiliada. Quando vejo uma
or, senhor Ulisses
Costa. Fomos na redag&o ped easa de pretos bem ornamentada fico contente.
ir: dinheiro ao reporter
para pagar a pintura. 34.500 ... Hoje é 13 de maio, dia consagrado aos pre-
cruzeiros. Encontrei o
Ramiro. Convidei-o para ir tos, que vivem tranquilos mesclados com os brancos.
ver o reporter, Apresen
tei o Ramiro como personage Hoje é um dia que nés os pretos do Brasil podemos
m do livro. - :
seseeeteeceseeee ed Quando ‘citei ao reporter bradar:
a quantia que devia pa-
gar aos pintores éle repreende — Viva os.brancos!
u-me que gasto muito
4 inguei, 0 reporter mentalmente:
cachorro} desgraca- Tomamos um carro e fomos até.o Teatro Bela
0+ vocé nao: manda no dinheiro que recebo.- Vista. O reporter estava na porta. Pelo olhar que
dirigiu-me percebi que éle nao ficou contente com o
176
177
Cam. de Alvenaria
‘
CASA DE ALVENARIA
GAROLINA MARIA DE JESUS
15 demaio ... Trabalbei o dia todo. A noite fui
meu foilete. le nao sabe o que significa o 13 de maio a redacio encontrar com o reporter. Fomos ao Ca-
para o preto. Dia de gala para a raga negra. nal 9. (...) Fui entrevistada pela vereadora Dulce
Tomamos um taxi e zarpamos. (...) Quando Salles Cunha. Que mulher bonita! (...) Eu ia res-
chegamos ao saléo do Esporte Clube Pinheiros vi pondendo as perguntas com calma. Declamei a poesia
varios earros estacionados. Que clube maravilhoso! “Q Colono e o Fazendeiro”.
Entramos. O irm&o da Ivete nos acompanhava.
16 de maio ... O pretinho Luiz Carlos Rocha
O salfo estava iluminado como um palco. La no veio visitar-me. Est& sem iniciativa depois que feriu
fundo, os musicos uniformizados. Pretos e brancos
aE
a mao. Tem medo de vidro. Sofreu quatro acidentes
mesclados numa festa fraternal. com vidro. Quando olha um vidro assusta-se. Ele é
organizadorac do
: O
senhor
:
Frederico : do,
Pentea
“Ano
educado. Eu agrado-o muito para éle nao criar com-
baile, veio nos receber . Eu fui homen agead a — plexo que 6 um homem inutil. Convido-o para passear.
Carolina Maria de Jesus”.
19 de maio ... Levantei as 5 horas. Preparei os
14 demaio ... Trabalhei o dia inteiro. A Ivete filhos para ir a escola. Preparei o alméco. Quando
veio convidar-me para ir ao teatro da igreja. Prometi inicio o alméeo penso nas mulheres da favela. A hora
Fui
ir. A noite a Maria do Carmo veio busear-me. da dor. Do ranger de dentes. (...} Os pobres lutam
Encont rei uns jovens fazend o batuca -
com os filhos. com dificuldades.
da. Quando me viram gritaram: Fui na Livraria. Pedi 15.000 cruzeiros ao
—— Ojha a Carolina! Dr. Lelio. Espero que o reporter néo va repreen-
der-me.
Comecaram a cantar: Queixei-me ao irm&ao do Thomaz Parrilho que o
reporter reclama que gasto muito. Vou concluir éste
Saudosa maloca, maloca querida
didrio que sera a “Casa de Alvenaria” e depois vou
Dim Dim Donde nos passemos ingressar no radio. Quero gastar o que ganho sem
Dias feliz da nossa vida. ser observada.
Achei graca. Dei uma risada extentoria. Quando
(...) As 20 de maio Fui fazer compras. Wncontrei um
chegamos na igreja entramos pelos fundos.
na peca
€
circulavam, colegial mal vestido. Eu estava na padaria e pedi-lhe
personagens que iam tomar parte
pre- que me esperasse que eu ia ensinar-lhe a minha casa.
trocando os seus vestidos por trages exoticos. Os —- Quando vocé voltar da aula passe na minha
o tronco ni. Trage que simbol iza
tos usavam ecaleas e casa que eu compro um par de sapatos para vocé.
Eu iniciei o espeta culo decla mando a poe-
o passado. Quando o colegial saiu da aula veio pro-
ar-....
sia “Noivas de Maio”. Agradeci o convite para-p curar-me. Fomos comprar os sapatos. Ble olhava-me
ticipar da festa. e sorria. Paguei 530 cruzeiros. (...) Ble beijou-me,
Estavam presentes algumas pessoas de minha dizendo:
terra, que ficava olhando-me como se eu fosse o Ga- —— Obrigado.
garin sovietico.
178
CAROLINA MARIA DE JESUS CASA DE ALVENARIA
gt
21 de maio Preciso ir ao Teatro (...) Saf usw.0 que as pessoas indolentes nao escolhem luga-
atrasada, tomei um carro. Quando cheguei no Teatro res para habitar. Vivem nas. cloacas.
era 6 horas da tarde. (...) Circulei o meu olhar pela — Cloaca é mitorio —— pensei.
platéia, contemplando aquela gente bem nutrida, bem Se os pobres reside nas margens dos rios é por-
vestida. Ouvindo a palavra fome, abstrata para éles.
Sentei ao lado do jovem Eduardo Suplicy Matarazzo. ‘ que nao
O professor
recebeu
Angelo
instrucéo,
Simdes
nao aprendeu
Arruda
oficio.
n4do mencionou
(...)
a
Que jovem amavel! Olhava as cenas no paleo e per- necessidade de abolir as favelas, que duplicam por &ste
guntava: Brasil afora.
— Mas... éles vivem assim nas favelas? A terceira oradora fui eu. Citei: fui residir na
favela por necessidade. Com o decorrer dos tempos
— Pior do que isto. Isto é apenas uma minia-
pereebi que podia sair daquele meio. Era horroroso
tura das cenas reais de favela.
para mim presenciar as cenas rudes que desenrola-
Um fotografo pediu-me para sentar-me ao lado va-se na favela como se fésse natural. (...) Os fave-
da Deputada Conceigéo Santamaria para nos foto- lados sAo os colonos. Por ser expoliados pelos patrées
grafar. abandonaram o campo. Encontram dificuldades na
Quando findou o espetaculo a atriz Celia Biar saiu cidade, que s6 oferece conforte e decencia aos que tem
no paleo anunciando o debate. Convidou o Deputado bons empregos. Eles néo podem acompanhar a vida
Rogé Ferreira para presidir o debate. E nos convi- atualmente. Devido ao custo de vida s&o obrigados a
dou a subir no paleo. Subimos. Eu, Solano Trindade, recorrer ao lixo ou os restos de feira.
Conceicéo Santamaria, professor Angelo Simées Ar- — Nao adianta falar de fome com quem ndo
ruda, Deputado Cid Franco, Dona Wdy Lima. passa fome.
Quem presidia o debate era o senhor Rogé Fer- Quando escrevi o meu didrio n&o foi visando pu-
reira. Citou que o meu livro “Quarto de Despejo” é blicidade. E que eu chegava em casa, nio tinha o que
um retrato real das agruras que o pobre encontra comer. Ficava revoltada interiormente e escrevia.
atualmente. . Tinha impresséo que estava contando as minhas ma-
Eu estava confusa naquéle nucleo. Percebi que a goas a alguem. KE assim surgin o “Quarto de Des-
Dona Elite encara o problema da favela com vergo- pejo”’. . Lane
nha. EB uma mancha para um pais. (...) O segundo Classifiquei a favela de quarto de despejo porque
orador foi o senhor Angelo Simées Arruda. Estava em 1948, quando o Dr. Prestes Maia comecou a ur-
lendo o “Quarto de Despejo” e anotando o que lia. banizar a cidade de Sio Paulo, os pobres que habi-
Disse que em Sao Paulo o povo trabalha nas fabricas, tavam.os pordes for tirados ao relento.
nas oficinas e nio saem pelas ruas catando papel. O quarto orado: poeta negro Solano Trin-
Saem para um servico digno que lhe proporciona uma dade. Criticou a teatralizacio de Dona Edy Lima.
condicao de vida decente. Disse que ela nfo citou as agruras que o livro relata
Pensei: como depoimento do gravissimo problema que sao as
180 181
= SS SADDENS BASTREGGE
CAROLINA MARIA DE JESUS Casa DE ALVENARIA
favelas espalhadas pelo Brasil afora. (...) O- publico —- Nao renego a peca. Renego o regime social
interferiu-se, ora aplaudindo, ora vaiando. O senhor que favorece um terco da populacio. Sei que o capi-
Cavalheiro Lima, espéso de Dona Edy Lima, interfe- talismo renega a reforma social.
riu aludindo que a Dona Edy nfo alterou o texto do — Apoiado!
livro. Conservou a linguagem simples na pega, rela- — Nao apoiado!
tando o meu desvelo pelos filhos, lutando para retira- ... Com aquela confusdo eu tinha impress&o que
los daquele pardieiro. estava na favela. Todos falando ao mesmo tempo.
O Solano Trindade prosseguio, repetinde o que a ... A ultima a falar foi a Deputada Conceicao.
Ruth de Souza disse na pega: Tniciou dizendo que auxiliou os leprosos. Por seu in-
—- Quando uma ecrianca passa fome é problema termedio os leprosos sdo curados.
de todo o mundo. Uma voz na plateia:
Fico horrorizada vendo a fome debatida em as- — Nao estamos falando de politica. Estamos fa-
sembleia. O Deputado Cid Franco disse que passou lando da favela.
fome e conhece as agruras que o meu livro relata. Que — A Carolina disse que na favela existe muitas
o regime capitalista 6 a causa das desigualdades de indolencias —- argumentou Dona Conceigao.
classe. A Dona Conceicéo Santamaria dizia: — E na Assembleia — uma voz no paleo.
— Em 1944, quando eu percorria as favelas...
—~ Ele pertence ao regime capitalista. Ble esta Naquela epoca era ditadura que predominava.
metamorfoseando-se na frente do publico. Ele esta de Uma voz na plateia:
maos dadas com o regime capitalista. — A senhora 6 bem madura, em?
Que confusfio para mim. Queria ouvir o Deputado Risos.
Cid Franco por causa da sua cultura. Ble nao é ba- A Dona Conceicéo responden sem perturbar-se:
nal. N&o 6 politico de negociatas. Citou: — Naquéle tempo n4o existia jovens mal educa-
— Se existe favelas sAio criadas e alimentadas dos igual a vocé. Eu represento uma maioria, os que
pelo regime capitalista, que suga a seiva da classe sa- votaram em mim. E vocé 6 uma unidade apagada.
larial para duplicar seus haveres. Um japonés falava. Uma voz lenta que ficava
— N&o apoiado — respondeu o Dr. Paulo Su- indistinta entre as outras. Os demais estavam nervo-
plicy. sos. Dava impressAo que ia haver um conflito no
Um jovem na plateia disse que o Deputado Cid teatro. Os estudantes apupavam a Dona Conceicao.
Franco errava aludindo ao regime capitalista o desa- ... Quando sai do teatro encontrei o jovem Edu-
juste social. O Deputado Cid Franco disse: ardo Matarazzo e disse-lhe:
— Vocé viu que confusio?
— Tenho um filho de 18 anos que nao teme a
Dona Filomena Matarazzo convidou-me para al-
extincado do regime ecapitalista. .
mogar na sua residencia.
Foi aplaudido. Os estudantes interferiram. Eu ‘Tomei um taxi e fui para a minha casa.
pedia ao Deputado Rogé Ferreira que desse as pala-
vras, porque os estudantes séo os homens de amanha.
Os estudantes apuparam o deputado. Ele sentou-se, — FIM DO DIARIO —
dizendo que nunca foi a favela pedir voto. Cementou:
182 183
NOSSAS EDIGOES:
“Colegio Terra Forte*
(romance)
Colegio Alvorada”’
(contos)
Vol. i — “Kanan” de Carlos La--~-
cerda.
(ensaios e depoimentos)