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GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO

Senador ABDIAS NASCIMENTO

1
1997 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
Gabinete do Senador Abdias Nascimento

Thoth

n. 1 janeiro/abril 1997

Secretaria Especial de Editoração e Publicações


Thoth, Brasília, n. 1, p. 1 - 285, jan./abr. 1997
Thoth

Informe de distribuição restrita do Senador Abdias Nascimento


1 / 1997
4 THOTH 1/ abril de 1997

Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nasci-
mento. Coerente com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações
e debates sobre temas de interesse à população afro-descendente, ressaltando-se que os temas emergentes
dessa população interessam ao país como um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância.
Thoth quer o debate, a convergência e a divergência de idéias, permitindo a expressão das diversas correntes
de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial da revista.

Responsável: Abdias Nascimento

Editores: Elisa Larkin Nascimento


Carlos Alberto Medeiros
Theresa Martha de Sá Teixeira

Redatores: Celso Luiz Ramos de Medeiros


Éle Semog
Paulo Roberto dos Santos
Oswaldo Barbosa Silva

Computação: Honorato da Silva Soares Neto


Denise Teresinha Resende

Impresso na Secretaria Especial de Editoração e Publicações


Diretor Executivo: Claudionor Moura Nunes
Capa: Theresa Martha de Sá Teixeira sobre desenho do deus Thoth do livro de Champollion - Le Panthéon
Égyptien Contracapa: deusa Ma’at do livro de E.A Wallis Budge - The Gods of the Egyptians.

Endereço para correspondência:


Revista Thoth Tels: (061) 311-4229 311-1021
Gabinete do Senador Abdias Nascimento 311-1121
Senado Federal - Anexo II - Gabinete 11 Telex: (061) 311-1357 311-3964
Brasília - DF - Brasil Fax: (061) 323-4340
CEP: 70168 - 970 E-mail: abdias@senador.senado.gov.br

Thoth/ informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento/Abdias Nascimento


n. 1 (1997) Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1997 -
Quadrimestral (janeiro - fevereiro - março - abril)
V.; 25 cm

ISSN xxxxx - xxxxxx

1. Negros, Brasil. I. Nascimento, Abdias.

CDD 301.45196081
Sumário Pág.

Apresentação 9
Thoth 11

DEBATES
Exu da Libertação 21

ATUAÇÃO PARLAMENTAR
Sessão Especial do Senado:
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial 35

Projetos de Lei
Crime do racismo 63
Sanções contra o racismo 67
Ação compensatória 73

Pronunciamentos
Dia Internacional da Mulher 85
Democracia racial 91
Homenagem a Castro Alves 97
Discriminação: casos recentes 103
Multiculturalismo no Brasil 109
Crianças e adolescentes 115
Governo de Reconciliação Nacional de Angola 119
Homenagem a Evaristo de Moraes Filho 123
Polícia e direitos humanos 127
Homenagem a Pixinguinha 133
Qualificação de empresas para a compra de estatais 139
Homenagem a Nelson Rodrigues 145
Pág.
DEPOIMENTOS
Somos Todos Iguais Perante a Lei 155
Violações dos Direitos Humanos no Mundo Africano 167
Iniciativas antidiscriminatórias 183
Capítulo Constitucional: Dos Negros 191

SANKOFA: MEMÓRIA E RESGATE


Sankofa: Resgatando a Cultura Afro-Brasileira 197
Teatro Experimental do Negro 227
Dramas para Negros e Prólogo para Brancos 249
Introdução à Literatura Afro-Brasileira 255

MUNDO AFRICANO
Reconciliação Nacional em Angola. 271

MOVIMENTO NEGRO HOJE


Geledés 275
Fundação Cultural Palmares 277
CEAP 279
GTI / População Negra 283
7

Abdias Nascimento em Otelo, de Shakespeare, Festival Shakespeare, Teatro Fênix, Rio de Janeiro, 1949.
APRESENTAÇÃO:
A HISTÓRIA CONTINUA

A história da imprensa negra – ou afro-brasileira – em nosso País


se resume a uma peripécia de acidentes e pobreza de recursos, resultante
inelutável do processo escravagista imperante até 1888. Os primeiros pe-
riódicos surgiram nas décadas de 1900/10, quando ainda ecoavam os sons
celebrativos da Abolição e da República. Vocalizando os clamores da po-
pulação de ascendência africana, atirada do peso da escravidão à agressão
da discriminação racial urbana e à situação de pária no campo, os supostos
novos cidadãos e cidadãs tinham nesses periódicos de vida curta e tiragens
minguadas os únicos meios para articular suas queixas, protestos e reivindica-
ções. Imprensa frágil e valente, que merece todo o nosso respeito e gratidão,
desempenhou um papel histórico fundamental em nossa luta coletiva por
liberdade, respeito e cidadania.
Em determinado momento dessa trajetória jornalística, também fui
responsável por duas dessas publicações carentes e esporádicas: entre 1949
e 1950, auxiliado pelo sociólogo Guerreiro Ramos, mantive circulando, no
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Apresentação

Rio de Janeiro, o periódico Quilombo, órgão do Teatro Experimental do Ne-


gro, centrado nos “problemas e aspirações do negro brasileiro”; mais tarde,
junto com a professora Elisa Larkin Nascimento, editamos Afrodiáspora,
uma revista dedicada ao “mundo negro-africano”. Tentativas absolutamen-
te temerárias, que sabíamos destinadas ao malogro, mas que atendiam ao
apelo - articulado ou implícito - de uma vanguarda militante disposta aos
riscos e até ao desafio de uma aventura.
Agora as condições são diferentes. Tendo o apoio de um mandato
de senador, lanço-me nas águas profundas da antigüidade de minha origem
humana. Quero não só para mim, mas para todos os meus irmãos e irmãs
descendentes da África, conhecer a herança que nos foi ocultada e rouba-
da: o saber africano incorporado nos deuses e nos mitos, as conquistas dos
cientistas, o pensamento dos filósofos, a criatividade dos artistas, enfim, a
experiência e sabedoria dos tempos inaugurais. Através dos milênios e no
decorrer dos séculos, elas vêm enriquecendo a humanidade e a civilização
ocidental.
Exagerada a ambição da revista Thoth? Talvez. Sem embargo, a
tarefa de compatibilizar essa espécie de retorno às fontes prístinas com as
necessidades da luta contemporânea dos afro-descendentes é a missão quase
impossível a que me lanço. Porém, aqui nestas páginas, Thoth continuará
inventando a escrita e a palavra pela inspiração e o poder de Ma’at.
Na longa e antiga luta libertária do povo negro, a projeção de Thoth
esteve sempre presente, corporificada em Exu, o orixá da contradição dia-
lética, senhor dos caminhos e das encruzilhadas do destino humano. A Exu,
portanto, entrego a sorte desta revista.
Laroiê!
Brasília, abril de 1997

ABDIAS NASCIMENTO
Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em
1995, marcado pela Marcha contra o Racismo, pela Cida-
dania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âmbito
nacional e internacional em todo o País, verificamos que a
questão racial no Brasil atinge um novo estágio. Setores da
Thoth sociedade convencional reconhecem o caráter discriminató-
rio desta sociedade, e o debate passa a focalizar as formas de
ação para combater o racismo, ultrapassando o patamar que
marcou a elaboração da Constituição de 1988: a declaração
de intenção do legislador dá lugar à discussão de medidas
concretas no sentido de fazer valer tal intenção.
Nesse contexto é que o senador Abdias Nasci-
mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Senado
Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy
Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve
solidário com a luta anti-racista. O mandato do senador
Abdias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla
de luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à
questão racial, com base numa verdade que o movimento
negro vem afirmando há anos: a questão racial constitui-
-se numa questão nacional de urgente prioridade para a
construção da justiça social no Brasil, portanto merece-
dora da atenção redobrada do Congresso Nacional.
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Além de representar o veículo de comunicação


do mandato do senador Abdias Nascimento com sua
comunidade e seu país, a revista Thoth surge como
fórum do pensamento afro-brasileiro, na sua íntima
e inexorável relação com aquele que se desenvolve
no restante do mundo. Seu conteúdo pretende refletir
as novas dimensões que a discussão e elaboração da
questão racial vêm ganhando nesta nova etapa, inclu-
sive o aprofundamento da reflexão sobre as dimensões
históricas e epistemológicas da nossa herança africana,
para além dos tradicionais parâmetros de samba, fute-
bol e culinária que caracterizam a fórmula simplista
e preconceituosa elaborada pelos arautos da chamada
democracia racial.
Nesse sentido, cabe um esclarecimento do sig-
nificado do título da revista, que remete às origens dessa
herança civilizatória no antigo Egito, matriz primordial
da própria civilização ocidental da qual o Brasil sempre
se declara filho e herdeiro. Os avanços egípcios e as
conquistas africanas no campo do conhecimento humano
formam as bases da cultura greco-romana. Entretanto as
suas origens no Egito ficaram escamoteadas em função
da própria distorção racista que nega aos povos africanos
a capacidade de realização humana no campo do conhe-
cimento.
Nada mais apropriado para expressar a meta de
contribuir para a recuperação dessa herança africana
que a referência, no nome da revista, ao deus Thoth. Na
tradição africana, o nome constitui mais que a simples
denominação: carrega dentro dele o poder de implemen-
tar as idéias que simboliza. Thoth está entre os primeiros
deuses a surgir no contexto do desenvolvimento da filoso-
fia religiosa egípcia: autoprocriado e autoproduzido, ele
é Uno. Autor dos cálculos que regem as relações entre o
céu, as estrelas e a terra, Thoth incorpora o conhecimento
que faz mover o universo. O inventor e deus de todas as
artes e ciências, Senhor dos Livros e escriba dos deuses,
Thoth registra o conhecimento divino para benefício do
ser humano. Sobretudo, é poderoso na sua fala; tem o
T hoth
13

conhecimento da linguagem divina. As palavras de Thoth


têm o dom da vida eterna; foi ele que ensinou a Ísis as
palavras divinas capazes de fazer reviver Osíris, após
sua morte. Assim, esperamos que a revista Thoth ajude
a fazer reviver para os afro-descendentes a grandeza da
herança civilizatória de seus antepassados, vilipendiada,
distorcida e reduzida ao ridículo ao longo de dois mil
anos de esmagamento discriminatório.
Tendo uma cabeça do íbis, pássaro que represen-
ta na grafia egípcia a figura do coração, Thoth era cantado
como coração de Rá, deus do sol (vida, força, e saúde).
Na mitologia egípcia, o coração era o peso a ser medido
na contrabalança da vida do homem, no momento de
sua morte, medindo sua correspondência em vida aos
princípios morais e éticos de Ma’at, filosofia prática de
vida da civilização egípcia. Thoth assim constitui-se
no mestre da lei, tanto nos seus aspectos físicos como
morais.
A deusa Ma’at encarna essa filosofia de vida
moral e ética, o caminho do direito e da verdade. Cons-
tituindo uma espécie de contraparte feminina de Thoth,
ela representa uma característica relevante da civilização
egípcia: a partilha do poder, tanto no plano espiritual
como material, entre a autoridade masculina e a femini-
na. Os faraós tinham o seu poder temporal complemen-
tado por um poder feminino exercido por soberanas e
sacerdotisas, assim seguindo o primordial e simbólico
exemplo de Osíris e Ísis. Sem ser compartilhado entre
feminino e masculino, entre homem e mulher, o poder
careceria de fecundidade, seria estéril.
Ma’at e Thoth acompanhavam o deus-sol Rá,
na sua embarcação, quando ele surgiu pela primeira vez
sobre as águas do abismo primordial de Nu. Era Ma’at
quem regulava o ritmo do movimento da embarcação
de Rá, ou seja, o seu ciclo de nascer e se pôr sobre o
horizonte, bem como sua trajetória diária do leste ao
ocidente. Ela corporificava a justiça, premiando cada
homem com sua justa recompensa, e encarnava o mais
alto conceito da lei e da verdade dos egípcios.
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Como deus da sabedoria e inventor dos ritmos


cósmicos, Thoth dominava também a magia. Patrono
do aprendizado e das artes, a ele se creditavam muitas
invenções, inclusive a própria escrita, a geometria e a
astronomia, áreas do conhecimento que fundamentaram
o florescimento da milenar civilização egípcia. Entre-
tanto, sem ser socializado, o conhecimento não produz
resultados concretos, pois ninguém sozinho consegue
colocá-lo em prática. Faz-se necessário um agente
de comunicação, e Thoth se responsabiliza também
por exercer esse papel. Passando sua sabedoria para
os seres humanos, como o passou para outros seres
divinos, a exemplo de Ísis, Thoth amplia seu papel no
mundo espiritual e material, tornando-se ainda o elo de
transmissão do conhecimento e do segredo divino entre
um domínio e o outro. A invenção da escrita se revela,
então, como decorrência do papel de Thoth, originador
do conhecimento em si: formular uma nova forma de
transmissão desse conhecimento.
Os gregos denominavam Thoth de Hermes
Trismegistus (Thoth, Três Vezes Grande), nome também
dado aos livros que registravam a sabedoria metafísica
herdada do antigo Egito, centrada na idéia da comuni-
dade entre todos os seres e objetos, e cuja autoria era
atribuída a Thoth1 . Assim, Thoth se identificava com
Hermes, mensageiro dos deuses gregos e aquele que
conduzia as almas a Hades. Hermes, para os gregos, era
o deus das estradas e dos viajantes, da sorte, do comércio,
da música e dos ladrões e trapaceiros. Os romanos o
chamaram de Mercúrio.
Tais atributos de Thoth e de Hermes nos reme-
tem nitidamente à figura de Exu na cosmologia africano-
-brasileira. Conhecido popularmente como mensageiro
dos deuses, Exu constitui o princípio dinâmico que pos-
sibilita o fluxo e intercâmbio de energia cósmica entre os

1
Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme influência
sobre os neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII.
T hoth
15

domínios do mundo espiritual (orum) e o mundo material


(aiyê). Conhecedor das línguas humanas e divinas, Exu é
a comunicação em si, além de se apresentar como o deus
das estradas, da sorte, da brincadeira e da malandragem.
Os paralelos e as semelhanças entre Thoth, Her-
mes e Exu não se reduzem a identidades absolutas, mas
as linhas gerais de suas características apontam para uma
unidade básica de significação simbólica. Por isso, nada
mais adequado, tratando-se de uma revista Thoth lançada
no Brasil, que uma primeira invocação a Exu, de acordo
com a tradição religiosa afro-brasileira, que abre todos
os trabalhos espirituais com o padê, a oferenda a Exu de
uma prece digna de todo o peso milenar da arte africana
da oratória. Assim, este primeiro número traz, no seu
início, o texto do babalorixá Falagbe Esutunmibi, José
Tadeu de Paula Ribas, representando simbolicamente o
padê que abre os trabalhos e os caminhos a trilhar.
Thoth representa, junto com Ma’at, o conhe-
cimento, a ciência e filosofia, a religiosidade e a ética
na mais antiga civilização africana. Assim, constituem
referência básica para o resgate de uma tradição africana
escamoteada à população brasileira enquanto verdadeira
matriz de nossa civilização, e também para o resgate da
ética na política, questão emergente no Brasil de hoje.
Assumindo o nome Thoth, dentro da postura africana
em que o nome ultrapassa a denominação, esta revista
tem o objetivo de contribuir, de alguma forma, para os
dois resgates, afirmando ainda que o primeiro faz parte
imprescindível do segundo.
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Cena das “Filhas de Yemanjá” na peça Sortilégio (Mistério negro), de Abdias Nascimento. Teatro Municipal. Rio de Janeiro. 1957.
Conferência realizada em 5 de abril
de 1997, no Conselho de Participação
e Desenvolvimento da Comunidade
Negra do Estado de São Paulo.

Exu Bom dia! Agradeço a oportunidade


da Libertação de estar aqui no Conselho para falar
sobre a religião dos orixás, para falar
sobre Exu.
Quem está aqui hoje para falar com
vocês?
Não é o babalorixá do Ilê Axé Marabô,
nem o presidente do Instituto Orunmila de
Cultura.
Quem está aqui é Falagbe Esutun-
mibi, um homem disposto a pagar uma
pequena parte da enorme dívida cármica
que suas raízes brancas, européias e cristãs
têm para com o seu Pai Exu, para com as
Falagbe Esutunmibi religiões de matriz africana ou religiões
(José Tadeu de Paula Ribas) *
afro-descendentes e para com a raça negra.
22 THOTH 1/ abril de 1997
Debates

Não acredito que seja possível falar citado por Bastide, pode ser dividido em
de Exu, seja na sua forma arquetípica quatro grupos:
popularmente conhecida, seja nos seus
fundamentos e desenho originais, sem que • Sudaneses – correspondem aos negros
se faça, pelo menos, uma rápida incursão trazidos da Nigéria, do Daomé e da Costa
por dois temas: o primeiro diz respeito à do Ouro. São os iorubás, os ewe, os fon
vinda dos africanos e das religiões afri- e os fanti-ashantis (chamados minas),
canas que deram origem ao candomblé krumanos, agni, zema e timini.
atual para o Brasil, por meio da diáspora
forçada que o processo de escravização • Civilizações islamizadas – especial-
negra representou, e diz respeito tam- mente representadas pelos peuls, man-
bém ao que ocorre durante a história da dingas, haussá, tapa, bornu e gurunsi.
colonização européia sobre a África e a
• Civilizações bantas do grupo angola-
correspondente cristianização da cultura
-congolês – representadas pelos ambun-
africana. O segundo, e é natural que de
das (cassangues, bangalas, dembos) de
tudo isso ele decorra, refere-se à questão
do sincretismo e suas conseqüências. Angola, congos ou cambindas do Zaire
e os benguela.
Nos fins do século XV inicia-se o que
pode ser considerado como tráfico negrei- • Civilizações bantas da Contra-Costa
ro. As primeiras experiências se fazem na – representadas pelos moçambiques
Ilha da Madeira e Porto Santo. Posterior- (macuas e angicos).
mente os africanos são levados também Pelo tráfico negreiro chegaram ao
para Açores e Cabo Verde. Por meados do
Brasil milhares de africanos na condição
século XVI, são trazidos para o Brasil.
de escravos que se espalharam de norte
Com o apoio de quase todos os a sul da colônia. Provenientes de vários
governos da Europa, dá-se início a uma pontos da África, muitas vezes não fala-
forma de mercado que faculta grande vam a mesma língua. Haviam guerreado
margem de lucro – a compra de escravos entre si, pertencendo a diferentes nações,
nas costas da África, o seu transporte e
e cultuavam as divindades de suas tra-
a sua venda como mercadoria. Vários
dições, diferentes, também, umas das
países se empenham, então, nessa ati-
outras. Em comum, tinham apenas a con-
vidade e muitas rivalidades surgem da
dição social de escravos, o aviltamento
competição entre a França, a Inglaterra,
a Holanda e Portugal. Na América, decorrente dessa situação e cosmovisões
recentemente descoberta, os grandes la- de matriz comum que definiam suas
tifúndios exigem a cada dia mais braços relações sociais e os contextualizavam
vigorosos para o trabalho na lavoura. dentro da Criação. Assim, os africanos
trouxeram consigo sua religiosidade.
Os negros trazidos da África para
o Brasil pertenciam a diversas culturas. Quando os primeiros africanos chega-
Esse contingente, segundo Artur Ramos, ram ao Brasil, a Coroa de Portugal criou
Exu da Libertação
Falagbe Esutunmibi
(José Tadeu de Paula Ribas)
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uma lei que determinava, no seu primeiro Antônio, 1981). Em outro sermão ainda,
artigo, que todos deveriam ser batizados Vieira diz que, para ele, o cativeiro do
na religião católica. Caso o batismo não africano na América não é senão um meio
fosse realizado em um prazo de pelo cativeiro, pois atinge só o corpo. “A alma
menos cinco anos, as peças deveriam não está mais cativa, ela se libertou do
ser vendidas e a importância relativa a poder do diabo que governa a África e o
essa transação comercial reverteria para escravo no Brasil deve tentar preservar
a Coroa. Outros artigos importantes des- essa liberdade da alma, para não cair de
sa lei, tais como o prazo de escravidão novo sob o domínio dos poderes que
por um período não superior a 10 anos, reinam na África” (idem).
foram sendo, pouco a pouco, alterados, Em 1873, uma oração pela conversão
de modo que, na verdade, a lei jamais foi dos povos da África Central para a Igreja
cumprida, salvo no que diz respeito ao Católica, escrita pela Secretaria da Sagra-
batismo cristão. Essa legislação atendia, da Congregação das Indulgências, dizia
mais do que nada, às relações entre o assim: “Rezemos pelos povos muito
governo português e a Igreja Católica, e à miseráveis da África Central que consti-
teologização da Igreja Católica a respeito tuem a décima parte do gênero humano,
da África, dos africanos e da escravidão. para que Deus onipotente finalmente tire
A tese de que a África era a terra da de seus corações a maldição de Cam e
maldição é defendida, então, por vários lhes dê a bênção que só podem conseguir
teólogos cristãos. O padre Antônio em Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor:
Vieira, em seus Sermões (XI e XXVII), Senhor Jesus Cristo, único Salvador de
afirma que “a África é o inferno donde todo o gênero humano, que já reinas de
Deus se digna retirar os condenados mar a mar e do rio até os confins da Terra,
para, pelo purgatório da escravidão nas abre com benevolência o teu sacratíssimo
Américas, finalmente alcançarem o pa- coração mesmo às almas mui miseráveis
raíso”. O mesmo padre Antônio Vieira, da África que até agora encontram-se nas
no Sermão XIV do Rosário à irmandade trevas e nas sombras da morte, para que
dos pretos de um engenho, elaborado em pela intercessão da puríssima Virgem
1633, ao comentar o texto de São Paulo Maria, tua Mãe imaculada, e de São José,
I Cor 12,13, o entende no sentido de que tendo abandonado os ídolos, se prostrem
os africanos, sendo batizados antes do diante de Ti e sejam agregados à tua
embarque da África à América, deviam Santa Igreja”.
agradecer a Deus por terem escapado da Todas essas questões de teologização
terra natal, onde viviam como pagãos en- católica se encontram muito bem levan-
tregues ao poder do diabo. E diz: “Todos tadas por Julvan Moreira de Oliveira
os de lá, como vós credes e confessais, em seu projeto de pesquisa apresentado
vão para o inferno onde queimam e quei- como parte dos exames de seleção ao
marão durante toda a eternidade” (Vieira, Programa de Mestrado em Educação na
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Debates

Faculdade de Educação da USP, em ou- res e da essência da cosmovisão africana.


tubro de 1995. Ora, estão aí, como pode- Representou redução da capacidade dos
mos ver, as raízes da ideologia escravista africanos de resistir à dominação e não
e racista que legitimou a escravidão e a lhes garantiu valia e identidade durante
transformou no maior acontecimento, em o processo de escravidão. Na medida
extensão e tamanho, da história de toda em que a Abolição não trouxe aos afro-
a humanidade. -descendentes possibilidades efetivas
de exercício da cidadania, podemos
Vejam que, a partir da visão teológi-
dizer que os resultados negativos do
ca que aqui colocamos, se estabelece a
sincretismo religioso persistem até os
relação entre religiões africanas, religi-
dias de hoje, trazendo para a maioria da
ões dos dominados, e a religião branca,
população brasileira, constituída de afro-
européia e cristã dos dominadores, seja
-descendentes, auto-estima rebaixada,
na América e, particularmente, no Bra-
auto-imagem negativa e dificuldade de
sil, seja na África durante os processos
definir e assumir sua identidade. Pode-
colonizadores. Do encontro, mais do que
mos enumerar como conseqüências mais
do embate, dessas duas culturas, dessas
significativas do sincretismo:
duas cosmovisões, desses dois troncos
religiosos, surge o sincretismo. Na ver-
Perda do caráter monoteísta das reli-
dade, seja aqui, seja na África, o branco
giões de matriz africana
é aquele que primeiro quis aproximar as
divindades africanas, para ajustá-las e
Durante a formação do processo
adaptá-las ao catolicismo, em particular,
sincrético ocorreu, nas religiões afro-
e ao cristianismo, em geral. Era preciso,
-descendentes, quase que de forma geral,
sem dúvida, que, junto com a introdução
uma perda da sua base monoteísta. Isso
do africano na religião católica, por meio
aconteceu e se estende no tempo de tal
do batismo obrigatório, se processasse
maneira que, ainda hoje, muitos sacerdo-
o esvaziamento de sua identidade e a
tes da religião dos orixás consideram sua
fragilização de suas possibilidades de
religião como politeísta e os orixás como
resistência cultural.
deuses, trazendo, por conseqüência, uma
Penso que o sincretismo, diferente- visão interna da religião que a reduz à
mente do que propõem muitos estudiosos dimensão de seita e uma visão externa
e líderes religiosos, constituiu-se mais que a define como panteísta, primitiva,
no desenvolvimento de uma estratégia bárbara e fetichista. Perde-se, assim, sem
branca de dominação do que em um dúvida, a dimensão do sagrado, o status
movimento de salvaguarda de valores e de universalidade e de revelação que
de resistência à dominação cultural e re- lhe são próprios e a respeitabilidade que
ligiosa por parte dos negros. Assim, não ela merece ao lado das grandes religiões
posso deixar de pensar que o sincretismo da humanidade. Retirar da religião seu
resulta em perdas significativas dos valo- caráter monoteísta significa, antes de
Exu da Libertação
Falagbe Esutunmibi
(José Tadeu de Paula Ribas)
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mais nada, retirar das diversas nações representação distorcida e, reduzindo a


africanas sua identidade, sua força de dimensão das divindades, endossa mais
unidade e coesão. uma vez o estereótipo dos africanos
como inferiores, contribuindo assim para
Perda das respostas sociais de inser- afetar a auto-estima e a auto-imagem dos
ção do indivíduo no sagrado afro-descendentes. Associe-se a isso que
seus valores, sua ancestralidade e suas
Com o sincretismo, obrigaram-se os raízes religiosas são reduzidos e subordi-
africanos escravizados, para que pudes- nados aos valores e formas do branco, e
sem gozar de algum, ainda que mínimo, sua cosmogonia é absorvida e dominada
reconhecimento social, a lançar mão dos pela cultura do senhor de escravos.
sacramentos da Igreja Católica para sua
inserção no sagrado. Assim, até hoje as Reprodução de alguns modelos da
comunidades-terreiros não atendem seus escravidão nas relações de poder
adeptos e filhos com liturgias próprias e autoridade nas comunidades-
para essas questões, como o “batizado” -terreiros
e o casamento. Rituais como o ikomojade
(batizado), o isomoloruko (cerimônia Até hoje, em algumas comunidades-
de dar o nome à criança), o igbeiyawo -terreiros, as relações de autoridade
(casamento), do âmbito da prática reli- reproduzem modelos da relação senhor-
giosa iorubá, por exemplo, perderam-se -escravo, em uma condição que ultrapas-
no tempo e hoje poucas são as casas que sa em muito as dimensões do princípio
ainda os praticam. E mesmo os rituais da senioridade, do awo (segredo) e do
de passagem vida-morte terminam por sagrado. Estabelece-se a sacerdotes e
serem complementados ou, muitas vezes, iniciados, ou postulantes à iniciação,
substituídos pela liturgia católica. todo um desenho de relações que muitas
vezes avilta o homem, desrespeitando-o
Redução da valia e grandeza dos e sujeitando-o a mecanismos impróprios
orixás para a plenitude da vida religiosa.

Os orixás são espíritos puros cria- Degradação dos arquétipos


dos por Olodumaré como princípios
universais no processo da Criação. Sua Nesse encontro de divindades africa-
comparação com os santos católicos, nas e santos católicos, encontro em que
pessoas que viveram vidas segundo os os primeiros são colocados sob a tutela ou
valores da Igreja Católica e que, por isso a dimensão dos segundos, os arquétipos
mesmo, após sua morte foram santifica- relacionados a cada orixá terminam por se
das, reduz o tamanho, reduz a dimensão degradar e até, muitas vezes, prostituir-se,
dos orixás. Isso, sem dúvida, termina num processo pleno de foco permeado pe-
por contribuir para a construção de uma los referenciais da moral católica. Assim,
26 THOTH 1/ abril de 1997
Debates

quando possível, despojam-se os orixás Oiá? Iansã? E todos os outros? Yemanjá,


de suas características de vitalidade e Abaluaê, Oxumaré, Xangô e assim por
sensualidade; quando não se coloca sua diante...
dimensão num quadro preconceituoso e E Exu?
moralista que altera profundamente o es-
paço que ocupam e o papel que desempe- Quem é esse homem das encruzi-
nham no âmbito de uma cosmovisão rica lhadas, muitas vezes bêbado, sempre
e completa. Nesse processo, sem dúvida malandro e disposto a desviar os homens
deliberado, de retirar dos escravos o su- dos perfeitos caminhos? Quem é essa
porte religioso e cultural capaz de lhes as- figura diabólica, instrumento do mal, tão
segurar a resistência efetiva à dominação próxima dos homens pecadores? Quem é
essa imagem de Satã, inimigo de Deus e
do espírito, os orixás foram deformados
terror dos homens de bem? O andarilho,
e tornados pequenos. Exemplos? Ora,
o avesso à ordem e às estruturas? Aquele
Ogun, o grande princípio civilizador na
ser perigoso, sempre disposto a colocar o
cosmogonia iorubá, chamado, na ordem
mundo em perigo e virá-lo de cabeça para
da criação, o primogênito da humanidade,
baixo? É esse mesmo Exu que é o sênior
princípio responsável pelo desenvolvimen- entre os orixás? É esse mesmo Exu que
to dos homens e por sua caminhada, tam- é o líder dos orixás? O primogênito do
bém espiritual, em direção ao seu Criador, Universo, a primeira estrela a ser criada?
assume, quase que exclusivamente, o papel A criança querida de Olodumaré? Porque
de guerreiro, de violento, e a configuração é exatamente assim que Exu é chamado
de desequilíbrio e luta. Oxóssi, chamado em muitos Itan do corpo literário de Ifá,
nos Itan Ifa de o chefe da congregação estrutura do conhecimento oral deposi-
de Ogun, princípio de associação que tária da revelação da religião, conjunto
leva os homens à formação das primeiras riquíssimo de conhecimentos esotéricos
sociedades e à formação dos primeiros e registros históricos da milenar tradi-
agrupamentos humanos com objetivos co- ção de alguns povos africanos. Inspetor
muns – princípio extraordinariamente rico, de Olodumaré, desde o princípio dos
tão presente inclusive na dimensão dos tempos; O Porteiro de Deus. Esses são
rituais de passagem vida-morte –, perde mais alguns de seus títulos na essência
seu tamanho, sua configuração, e recebe a da nossa religião. É esse Exu que eu
dimensão menor, ainda que romântica ou conheço. Aquele de quem dizemos: Esu
suave, do índio brasileiro. Odara, aquele que abre os caminhos e
que atrai a prosperidade. Ou mais, é Exu
E Oxum, genitora por excelência,
que apóia incansavelmente seu filho.
grande arquétipo da maternidade em
todas as suas formas, patrona da gravi- Quando entramos em contato mais
dez e, portanto, responsável direta pela profundo com as rezas, as louvações e
descendência humana no mundo? Mãe saudações feitas a Exu, somos remetidos,
ancestral suprema, Ila Mi Akoko? E necessariamente, a uma análise mais
Exu da Libertação
Falagbe Esutunmibi
(José Tadeu de Paula Ribas)
27

profunda do orixá Exu do que aquela que se passando na terra, lá encontrou Exu
costumamos encontrar nas oportunidades Odara que, aos pés de Olodumaré, fazia
em que assistimos a pessoas falando seu relatório. Dessa forma, quando Olo-
sobre ele. Somos remetidos a uma visão dumaré recebeu Orumilá, Ele já conhecia
de Exu enquanto guardião e fiscalizador os problemas que se passavam na terra
de tudo e de todas as coisas dentro da com os orixás. Para cumprir efetivamente
Criação. Sua íntima associação com o seu papel, Exu está presente em todos
Criador, como aquele que trabalha ao Seu os espaços, está junto a cada ser vivo,
lado, é transparente nos títulos com que é em forma “um” com cada divindade ou
nomeado. Podemos inferir, por eles, que orixá. Assim também está presente nas
Exu garante o andamento ou o desenvol- cidades, nas vilas, em cada rua e em cada
vimento do projeto de Olodumaré para casa, exercendo seu papel como princípio
a Criação, assegurando a continuidade dinâmico, de comunicação e individuali-
e a dinâmica de todos os processos com zação de todo o sistema. Mais que isso,
vistas à primazia da ordem em todas as Exu são os olhos, os ouvidos e a presença
realidades. de Olodumaré em todo o Universo.
Confirmando esse enfoque, podemos Dois Itan, em especial, nos contam
nos remeter a que: a caminhada de cada sobre Exu. O primeiro narra que, no
homem, o trabalho e os deveres de cada princípio dos tempos, nada existia além
divindade estão sob regular controle de do ar. Olorum era uma massa infinita de
Oludumaré e “relatórios” lhe são feitos ar que, quando começou a se movimen-
periodicamente. Nessa função aparece tar, lentamente, a respirar, levou uma
Exu, Seu Inspetor Geral... Olodumaré parte do ar a se transformar em massa de
executa Seu projeto por meio de Seus água, originando Orisanla, o grande orixá
Ministros, assiste e acompanha Sua obra, funfun. O ar e a água moveram-se conjun-
objetivamente define seus princípios e tamente e uma parte transformou-se em
seu movimento. E mais: por intermédio lama. Dessa lama originou-se uma bolha,
de Seus Ministros, faz acontecer, regula, a primeira matéria dotada de forma, um
acompanha, corrige e mantém Seu pro- rochedo avermelhado e lamacento. Olo-
jeto. Seus Ministros, especialmente Ela rum admirou essa forma e soprou sobre
Omo Osin, Orumilá e Exu, os demais ori- ela, insuflando-lhe Seu hálito e dando-
xás, são Sua extensão e a maneira como -lhe vida. Essa forma, a primeira dotada
exerce Sua Onisciência, Sua Onipresença
de existência individual, um rochedo de
e Sua Onividência na Sua Obra.
lacterita, era Exu – Exu Yangi. Por esse
Em um Itan do Odu Ose-Otura encon- Itan depreende-se que Exu é o primeiro
tramos essa questão claramente colocada nascido, o primogênito do Universo. É
quando vemos que Orumilá, quando também assim o terceiro elemento, aquele
chegou ao orun (mundo invisível) para nascido da interação entre ar e água e, assim,
descrever a Olodumaré o que estava Orumilá, em um Itan do Odu Otura Meji
28 THOTH 1/ abril de 1997
Debates

que fala da vinda de Ori para a terra, Odu Otura Meji que diz: “Exu disse que
chama Exu de a terceira pessoa. quem tiver prosperidade na terra tem que
separar a parte de Exu; que quem quiser
O segundo Itan, este do Odu Ogbe
procriar na terra não pode deixar Exu
Owonrin, relata a multiplicação do infinito
para trás; que quem quiser prosperidade
de Exu Yangi por ação de Orumilá, em um
na terra não pode deixar Exu para trás.
processo que permitiu que Exu povoasse
Exu pergunta a Ori se ele não sabe que
todo o Universo e definiu-lhe condições
Exu é o mensageiro de Deus”.
para exercer o papel de Inspetor-Geral. Ao
mesmo tempo, conforme o Itan também Se falamos que Exu é o “controlador
relata, esse processo gerou o contrato dos destinos”, imediatamente somos
entre Orumilá e Exu que define para este remetidos ao fato de que Exu é, assim, o
o papel de “executor” dos projetos e “con- “controlador dos caminhos” e lembramos
trolador” dos destinos, aquele que garante a associação que se faz de Exu e as encru-
o cumprimento das prescrições de Ifa/ zilhadas, representação por excelência da
Orumilá. Yangi é chamado pelos iorubás multiplicidade de caminhos e da geração
Exu Yangi – Oba Baba Esu, ou seja, Exu e da imposição de alternativas e possibili-
Yangi, Rei e Pai de todos os Exu. dades. Destino e encruzilhadas estão, sem
dúvida, intimamente ligados. Como Inspe-
Essa saudação e esse Itan nos reme-
tor- Geral de Olodumaré, ao mesmo tempo
tem à questão de que existem muitos
que está em todos os lugares e em todas as
Exu, todos mantendo a mesma natureza,
formas criadas, Exu está simbolicamente
multiplicação que se fez necessária para
representado na encruzilhada, onde assiste
que houvesse a devida especialização
e acompanha todas as escolhas feitas pelos
no processo de povoação do Universo e
homens na sua caminhada pela vida.
para que Exu se constituísse efetivamente
na “menor unidade de informação” do A propósito, um Itan do Odu Ejiogbe
sistema. Em particular à terra, um Itan, Meji diz em certo trecho: “Exu foi e
do Odu Ogbe Irete, mostra Agba Exu sentou-se na encruzilhada. Todos os que
liderando-os na chegada ao aye (mun- estavam vindo até Olodumaré teriam
do concreto) e designando-os para os que dar algo para Exu. E todos os que
diferentes propósitos. O Itan relata que estavam voltando deviam dar algo para
Olodumaré criou Exu como um ebora ele”. E ainda: “Os babalaôs jogaram
(divindade criada) muito especial, que para as três mil e duzentas divindades,
Exu tem que existir com tudo e fazer quando eles foram para a casa de Olo-
frente a cada pessoa e a cada orixá. dumaré para receber seus poderes. Isso
é porque Exu é mais grandioso do que
Esse Itan, além de nos trazer a idéia
todos os seniores”.
da individualização e conseqüente espe-
cialização de Exu junto à terra, em parti- Esse último trecho nos remete à
cular, e à Criação, no sentido mais geral, relação entre Exu e os orixás. É preciso
nos remete a um trecho de um Itan do reforçar a idéia de que Exu cumpre para
Exu da Libertação
Falagbe Esutunmibi
(José Tadeu de Paula Ribas)
29

com os orixás e divindades a mesma na- se fazia necessária frente à dominação,


tureza de papel que cumpre em relação seja física, seja cultural e religiosa, que
aos seres humanos. Assim, ele os assiste, a escravidão impunha, do branco sobre
acompanha, regula e corrige, fazendo o negro?
sobre eles e seu trabalho “relatórios”
• Que orixá, mais que Exu, podia garantir
periódicos a Olodumaré. Muitos são os
a sobrevivência da identidade e da cos-
Itan Odu que narram a respeito desse es-
movisão negras na América europeizada
pecial papel e a conseqüente senioridade
e cristianizada?
de Exu sobre os demais orixás. Deixando
de lado o Itan do Odu Ose-Otura que • Quem, senão Exu, para lembrar ao
relata como Exu assumiu a senioridade dominado o pacto estabelecido por Deus,
sobre os demais orixás, podemos nos Olodumaré, com a Sua Criação, aí incluí-
referir, em participar, a um Itan do Odu do o grupo humano, do qual, naquele mo-
Ogunda Meji que diz, referindo-se a uma mento, os africanos se achavam aviltados
conversa dos babalaôs com Ossaim, após pela escravidão e pela barbárie branca?
a briga deste com Exu: “Você foi brigar • Quem, senão Exu, para lembrar ao
com Exu Odara, que é mais forte do que branco dominador, teólogo do racismo, do
você. Você não sabia que Exu é o líder preconceito e da discriminação, sua culpa
dos orixás? Não há nenhuma divindade perante o seu próprio Deus e a sua alma?
que desafie Exu. Em razão desse desa-
fio feito a Exu, nada podemos fazer por Era preciso aviltar, prostituir, degra-
você”. dar completamente Exu. Era preciso re-
duzi-lo em suas dimensões no Universo.
Outro relato interessante, relacionado Era preciso colocá-lo em confronto com
ao papel e porte de Exu, encontramos Deus e com os homens. Era necessário
em um Itan do Odu Owonrin Mej, que inseri-lo em uma visão maniqueísta, de
diz: “Orishala Osheregbo estava indo contrários, de oposição entre bem e mal.
ter Juoriwa como sua criança. Quando Era importante destituí-lo da capacidade
Ele teve Juoriwa, Juoriwa, cortando os de zelo e guarda sobre os dominados,
cajados, usou os cajados para superar instrumento possível de resistência e luta.
todos na terra. Tudo o que o Pai fazia, Era fundamental obscurecer seu papel
Juoriwa fazia. Juoriwa é aquele a que dialético, seu princípio dinâmico e vita-
nós chamamos de Exu”. lizador da Criação, negar-lhe propósito e
Eu pergunto a vocês: fundamento na ação divina. Ora, sabe-se
que Olodumaré derrama continuamente
• Que orixá, por sua dimensão cosmo- sobre a Sua Obra o axé que garante perma-
gônica, pelas suas características de nência e realização e que Exu é o guardião
princípio dinâmico associado à Criação, e transportador desse elemento essencial
a Olodumaré e a todas as coisas, poderia aos processos de individuação no sistema
servir de base à grande resistência que e para a personalização do homem na
30 THOTH 1/ abril de 1997
Debates

relação de filiação com Olodumaré. Sem estratégias de liberação da raça negra e de


dúvida, a teologia católica sobre a África sua descendência, só ele permitindo a sua
e os africanos sustentaria essa questão. caminhada em direção à sociedade pla-
Tenho dito, em todas as oportunidades netária do terceiro milênio. Assim como
possíveis, que não acredito ser possível acredito que a degradação da imagem de
que os afro-descendentes construam sua Exu foi a grande estratégia de dominação
identidade e, conseqüentemente, desen- branca no encontro promovido pelo fenô-
volvam sua auto-estima sem que isso meno da escravidão africana.
esteja intimamente associado ao resgate Por último, é preciso entender também
de seus valores religiosos, ao resgate da que a construção da identidade brasileira
cosmovisão negra, essa cosmovisão que passa obrigatoriamente pelo encontro de
se constitui na maior contribuição da raça identidade dos afro-descendentes e pela
negra à humanidade. Essa cosmovisão que construção da cidadania negra neste País.
tem dimensão e riqueza que a colocam
ao lado, pelo menos, de todas as grandes
correntes de pensamento da história do * O autor é psicólogo, babalorixá e mestrando em
homem. Psicologia do Desenvolvimento na USP. É fundador e
atual presidente do IOC – Instituto Orunmila de Cultura.
Acredito que esse resgate compõe, É também presidente da FITACO – Federação Internacional
ocupando lugar de destaque, o quadro de da Tradição Africana e dos Cultos Orixás.
31

O então embaixador da Nigéria no Brasil, Patrick Cole; o Prêmio Nobel de Literatura, o nigeriano Wole Soyinka; o então governador
do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira; e Abdias Nascimento, em Brasília, por ocasião da visita do escritor nigeriano ao
Brasil em 1988.
Sessão do Senado em Comemoração
do Dia Internacional pela Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação
Racial, a 20 de março de 1997.

Dia Internacional A SRª PRESIDENTE (Júnia Ma-


rise) – O tempo destinado aos oradores
Contra a Discrimi- da Hora do Expediente da presente
sessão será dedicado à comemoração
nação Racial do Dia Internacional pela Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação
Racial, de acordo com o Requerimento
nº 183, de 1997, de autoria do nobre
Senadores Senador Abdias Nascimento e outros
Srs. Senadores.
Abdias Nascimento
Benedita da Silva Concedo, portanto, a palavra ao
primeiro orador inscrito e autor do reque-
Eduardo Suplicy
rimento, Senador Abdias Nascimento.
Ademir Andrade
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Blo-
Emilia Fernandes
co/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.)
36 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

– Excelentíssima senhora presidente, de forma cruel e inquestionável pelo


senhoras e senhores senadores, sob a pro- racismo, fonte maior das desigualdades
teção de Olorum, inicio o meu pronun- neste País. Solto esta minha voz rouca
ciamento. para manter vivo e em estado de alerta o
espírito de justiça desta Casa diante de
Numa bela tarde de sol, ao pisar na um dos problemas mais graves a amea-
praça onde meninas e meninos negros çar hoje a construção de uma verdadeira
de Soweto haviam sido assassinados em democracia em nosso País: a exclusão,
1976 por terem organizado pacificamente do rol da cidadania, de uma maioria da
uma manifestação contra o sistema de nossa população.
ensino racista do apartheid, a emoção
O que nos traz aqui neste dia é o
que me acometeu foi a mesma que sinto
aniversário do massacre de Sharpeville,
a cada dia 21 de março, Dia Internacio-
ocorrido há 27 anos na África do Sul:
nal pela Eliminação da Discriminação
tragédia tão hedionda que se transformou
Racial. Acompanhado do ilustre jorna-
em símbolo da luta contra a opressão
lista e hoje deputado Neiva Moreira, da
racial. Naquele dia, foram mortas 69
jornalista Beatriz Bissio e da escritora
pessoas e feridas centenas de outras que
Elisa Larkin Nascimento, visitamos, protestavam pacificamente contra a infa-
em 1994, o monumento erguido a essas me Lei do Passe, pela qual os africanos
vítimas, por ocasião da nossa estada eram impedidos de circular livremente
em Johannesburg, representando nosso em sua própria terra.
Partido, o PDT, na primeira reunião da
Internacional Socialista em terras africa- Se hoje a África do Sul é um Estado
democrático dirigido por um homem ex-
nas. Pudemos testemunhar a mobilização
traordinário, o grande presidente Nelson
febril e entusiasta de uma sociedade
Mandela, encarcerado durante 27 longos
ao se livrar dos grilhões seculares do
e angustiantes anos por se manter sem-
racismo e organizar-se para o exercício
pre fiel aos ideais de liberdade, justiça
da democracia. Entretanto para mim foi
e igualdade, muito tempo ainda há de
aquele o momento mais significativo,
passar para que aquele país se recupere
pois a homenagem ao martírio daqueles
plenamente dos traumas causados por
meninos, no próprio instante da ascensão séculos de opressão racial e por décadas
de Nelson Mandela ao poder, simbolizou de apartheid. Esse foi o sistema de se-
o protagonismo e a esperança dos negros, gregação racial mais hediondo de que se
em todo o mundo, na sua justa resistência tem notícia, responsável pela produção
à opressão racista. Resistência a que, no de um Estado étnico comparável apenas à
Brasil e no exterior, dediquei a minha Alemanha hitlerista e definido pela ONU
vida e as minhas energias. como crime contra a humanidade.
Hoje, subo a esta tribuna para dar Entretanto, muito mais terrível que
continuidade a esta luta em defesa dos o holocausto do povo judeu, perpetrado
direitos dos afro-brasileiros, vitimizados pelos nazistas alemães durante a Segunda
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
37
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

Guerra Mundial, e de proporções muito referência à sua vida soberana na terra


maiores, foi aquele que os europeus de origem; reduzir sua identidade à cor
protagonizaram, desde o século XVI, na da pele, feita sinônimo de condenação à
África e nas Américas. Nesse episódio, inferioridade e à condição de escravo.
aniquilaram povos inteiros e subme-
Até hoje as comunidades de origem
teram os remanescentes à condição de
africana nas Américas sofrem a falta de
objetos ou mercadorias destituídos de
uma referência histórica que lhes per-
sua condição humana. Estimativas falam
mita construir uma auto-imagem digna
em 200 milhões de homens, mulheres e
de respeito e auto-estima. A identidade
crianças capturados e transformados em
“negra” fica confinada às surradas cate-
escravos. Sob grilhões, foram obrigados
gorias do ritmo, do esporte, do vestuário
a atravessar o Atlântico, na maior migra-
e da culinária, e parece que a atividade
ção forçada de que se tem notícia. Para
intelectual, política, econômica, técnica
cada dez africanos aprisionados, apenas
e tecnológica não está a seu alcance.
um chegava ao porto de destino. Alguns
Assim, a criança de origem africana
morriam ainda nas longas caminhadas no
tende a não identificá-las como áreas
território africano. Outros, nos postos de
de profissionalização ou de aspiração,
embarque. Um número considerável era
reproduzindo ela própria a imagem ex-
atirado ao mar devido a enfermidades,
cludente implícita na versão da história
mortos de sede. Por fim, nos mercados
que lhe é passada.
de escravos, já no Brasil, outros não
resistiam aos sofrimentos da travessia A crônica da construção dessa ima-
atlântica e descansavam nos braços da gem, da falsificação da história africana,
morte. Somem-se a isso milhões de é a história do eurocentrismo, que conse-
habitantes das Américas exterminados guiu erguê-la à condição de verdade dita
pelos conquistadores europeus, ibéricos científica.
sobretudo, configurando um quadro ater- Tempos atrás, ninguém duvidava
rador, freqüentemente mascarado sob o que os africanos construíram as bases da
idílico título de colonização humanitária própria civilização ocidental. Heródoto, o
ou benevolente. Pai da História, descreveu os egípcios como
O racismo não é um problema ape- “negros de cabelos lanudos”. Eram eles os
nas de cor da pele. Sua natureza mais responsáveis por grande parte do legado
profunda reside na tentativa de desar- creditado à cultura grega: das artes e da
ticular um grupo humano pela negação literatura à filosofia, medicina e matemáti-
de sua identidade coletiva. Assim, ao ca, sem esquecer a invenção da escrita, por
rotular de “negros”, “kaffirs”, “ladinos”, eles atribuída ao deus Thoth. A influência
“pretos” ou “crioulos” os africanos e egípcia é assinalada pelos próprios gregos,
seus descendentes, o dominador preten- seja com seu reconhecimento explícito, seja
dia arrancar-lhes a referência básica à pelo interesse que sempre manifestaram em
sua condição humana, simbolizada na atravessar o Mediterrâneo para estudar no
38 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

Egito. Pitágoras e Euclides, por exemplo, sua influência aos quatro cantos do
passaram décadas aprendendo Matemá- Continente. Todas as regiões da África
tica no Egito, enquanto a famosa Repú- foram bafejadas, em algum momento da
blica de Platão – que odiava a democracia sua história, pelos ventos autóctones da
ateniense – nada mais é que uma idealização civilização, produzindo uma variedade
da hierarquizada sociedade egípcia. imensa de culturas dotadas de variados
Como divorciar a identidade africana graus de conhecimento e sofisticação
da tecnologia, se há 4.600 anos médicos tecnológica. Historiadores e antropólogos
egípcios faziam cirurgias para a remoção honestos foram obrigados a admitir o de-
de cataratas oculares e a extração de tu- senvolvimento intelectual dos africanos
mores cerebrais? A se fazer justiça, aliás, em diversas áreas.
o título de Pai da Medicina não deveria Os Dogon de Mali conheciam,
caber a Hipócrates, mas ao cientista e muito antes que o Ocidente conseguisse
clínico egípcio Imhotep, que quase 3 mil observá-lo com a ajuda de aparelhos so-
anos antes de Cristo praticava virtualmen- fisticados, o pequenino satélite que orbita
te todas as técnicas básicas da medicina, a estrela Sírius, o Sírius B, invisível a olho
com profundo conhecimento de assepsia, nu, e com precisão descreviam sua órbita,
anestesia, hemostasia e cauterização, além antes mesmo que isso fosse confirmado no
de vacinação e farmacologia. Junte-se o Ocidente.
domínio egípcio da arquitetura, da meta-
lurgia, da astronomia, à engenhosidade dos Os fornos de fundição de aço dos
sistemas de irrigação, e se terá a razão do Haya da Tanzânia superavam em 200
interesse dos gregos por esse povo africa- a 400 graus aqueles de que se valeram
no: aprender. os europeus até o século passado. Os
Banyoro, de Uganda, faziam cirurgias
Os ideólogos arianistas do século complexas como o parto cesariano, do-
passado foram obrigados a se lançar a uma cumentado, em 1874, pelo médico inglês
árdua e infame tarefa “intelectual”: reduzir Dr. Belkin.
a importância das matrizes egípcias na for-
mação da cultura grega e descaracterizar a As ruínas de Monomotapa, em
africanidade dos egípcios, valendo-se de in- Zimbábue, testemunham uma verdadeira
terpretações que beiram o grotesco em seu façanha de engenharia, atribuída até mes-
afã de desmentir o óbvio. Criou-se, desse mo a extraterrestres, no inútil esforço de
modo, a raça vermelho-amarronzada, ou provar que aquela obra magnífica não fora
marrom-avermelhada, como se cons- construída por negro-africanos.
truções terminológicas fossem capazes No Sudão Ocidental, desenvolveram-
de mascarar para sempre a natureza das se Estados poderosos, como o reino de
verdades históricas. Gana e os impérios de Mali e Songhai,
A civilização egípcia teve suas com milhões de habitantes e territórios
origens na África Central e estendeu comparáveis ou maiores que o do Império
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
39
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

Romano. Na cidade de Tombuctu, atual o suicídio até a luta organizada nos


República do Mali, funcionava já no quilombos ou em insurreições como as
século XII a Universidade de Sankore, Revoltas dos Malês.
freqüentada por intelectuais que ali O Aurélio nos dá quilombo como
estudavam Filosofia, Matemática, História “valhacouto de negros fugidos”. Mais que
e Direito Islâmico. Nessa época, o negócio equívoco, é uma agressão à verdade, pois
mais lucrativo naquela cidade era o o quilombo foi uma singular experiência
comércio de livros. societária e humana, reconstruindo
Palco de uma movimentação no Novo Mundo a vida soberana dos
constante em busca de novos espaços, africanos em sua terra de origem. O
de rotas comerciais, de intercâmbio e maior quilombo do Brasil, a República
comunicação internacional, a África de Palmares, foi o primeiro Estado livre
jamais se reduziu ao viveiro de povos nas Américas após a invasão colonial.
isolados, perdidos na selva e ocupados Início do verdadeiro movimento
somente com a caça e a pesca, retratados abolicionista neste País, Palmares durou
pelo eurocentrismo. No século XII, por mais de um século, resistindo à repressão
exemplo, Estados da África Oriental das forças militares e praticando uma
exportavam ouro e elefantes para a agricultura mais sofisticada que as
China, utilizando embarcações bem mais fazendas da região, cujos proprietários
sofisticadas do que as caravelas que, mais desafiavam as leis da Colônia para trocar
tarde, transportariam os portugueses em armas por seus produtos agrícolas.
suas jornadas de “descobrimento”.
Destruído em 1694 pelo maior
Quando as nossas escolas ensinam exército reunido no Brasil antes da
apenas que o negro veio da África como Independência, Palmares legou-nos
escravo, cometem e perpetuam o crime aquele que não é apenas o maior herói
de roubar de nossas crianças a sua própria negro, mas o maior herói brasileiro:
história, pois a história da África é o Zumbi, o general e líder político que
retrato do povo que durante quatro quintos soube conduzir seu povo na mais bela e
de existência do Brasil constituiu mais de inspiradora jornada pela liberdade jamais
dois terços de sua população, e que ainda empreendida neste País.
hoje compõe uma maioria minorizada.
Tão inspirador foi o exemplo de
Até hoje, nossos livros didáticos Palmares que ele se espalhou por todos
contam balelas como aquela de que o os cantos desta terra que um dia seria o
africano aceitava a condição escrava. Brasil. Quilombos surgiram em toda parte,
Ora, a história da escravidão no Brasil assustando os escravocratas, alimentando o
é a crônica da constante e multifacetada sonho libertário dos africanos escravizados
resistência dos africanos. Individual ou e seus descendentes, e contribuindo de
coletiva, essa recusa incluía tudo, desde forma decisiva para a derrocada final
40 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação
AtuaçãoParlamentar
Parlamentar

da instituição escravista. A força da agrária para garantir aos recém-libertos


mulher negra sintetiza-se na figura de condições de sobrevivência. O espectro
heroínas como Dandara ou Luísa Mahin, da cidadania afro-brasileira assustou
lideranças femininas que demonstram a tanto as elites que essas aboliram também
determinação da mulher africana em sua o voto do analfabeto, até então exercido
luta pela liberdade. por iletrados donos de posses coloniais.
Ainda hoje Palmares serve de Após a imensa ressaca do 14 de
paradigma aos afro-brasileiros maio, os afro-brasileiros acordaram para
identificados na luta contra a discriminação uma realidade de discriminação, injustiça,
racial. Desde 1980, a serra da Barriga, humilhação e opressão que se tem mantido,
onde Palmares existiu, tem sido local sem muita alteração, nos quase 110 anos
de repetidas peregrinações, para render que nos separam da Abolição. Longe de
homenagens a Zumbi e a seus comandados. encontrar uma sociedade receptiva à sua
Graças ao esforço e à persistência dos mão-de-obra, agora livre, os descendentes
irmãos e irmãs afro-brasileiros, Palmares de africanos tiveram de enfrentar barreiras
começa a emergir como fonte inspiradora de toda ordem às suas perspectivas de
de todos os brasileiros envolvidos com uma vida digna no país de que foram seus
a causa da justiça, da igualdade e da antepassados os principais construtores.
liberdade. Esperamos agora que o O linchamento físico de que eram
Estado brasileiro, representado pela vítimas os afro-americanos no sul dos
Fundação Cultural Palmares, assuma Estados Unidos foi substituído no Brasil
sua devida responsabilidade no projeto por um linchamento cívico, muito mais
de desapropriação e reflorestamento da sutil e eficaz como instrumento de
serra da Barriga, e na concretização do dominação. Mas o espírito de resistência
Pólo de Libertação e Monumento a Zumbi dos afro-brasileiros continuava vivo.
naquele local, projetado no convênio já Organizavam-se em torno das tradicionais
firmado com o Memorial Zumbi. irmandades religiosas e de associações e
Ao assinar, a 13 de maio de 1888, clubes voltados para a diversão e o lazer.
a chamada Lei Áurea, a princesa Nasce, em 1915, a imprensa negra de
Isabel cumpria um cronograma que São Paulo e, no início da década de 30,
visava colocar o Brasil em condições a Frente Negra Brasileira, organização
de participar do sistema econômico em que praticamente iniciei minha
mundial transformado pela Revolução militância. A Frente Negra transformou-
Industrial. O principal objetivo não foi se em partido político e foi extinta pelo
absolutamente beneficiar os negros, o golpe do Estado Novo, em 1937.
que explica ter sido rejeitado o projeto A Frente Negra não retornaria à
do eminente engenheiro negro André cena política com a redemocratização de
Rebouças, que previa realizar-se, 1945, que propiciou a volta dos antigos
junto com a Abolição, uma reforma partidos políticos, porque a década de 30
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
41
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

assistira à elaboração do mais sofisticado específicos dos afro-brasileiros. O TEN


mecanismo de dominação racial que reuniu os dois elencos de objetivos,
o mundo já conheceu, mais terrível propondo, já em 1946, que a Assembléia
que a segregação oficial do apartheid Nacional Constituinte aprovasse um
na África do Sul, ou do Jim Crow no dispositivo constitucional definindo o
sul dos Estados Unidos. Refiro-me ao racismo como crime de lesa-humanidade.
mito da “democracia racial”, segundo Ao lado do protagonismo artístico teatral,
o qual as relações raciais no Brasil a atuação do Teatro Experimental, nesse
teriam uma dinâmica diferente daquela campo sociopolítico, continuou ao longo
vigente em outros países. Aqui, negros de toda a sua trajetória.
e brancos conviveriam em quase total
Os anos 50 e 60 foram sacudidos
harmonia, havendo pouco espaço para o
por lutas travadas na África, pela
racismo e a discriminação, que, por sinal,
independência dos regimes coloniais, e,
desapareceriam de morte natural, com o
nos Estados Unidos, pela garantia dos
tempo, em decorrência da miscigenação.
direitos civis. Lutas sangrentas revelaram
Essa teoria fazia parte de uma a face altiva de um povo que não aceita
vertente ideológica que compreende a condição de inferioridade. Geradora
José Vasconcellos e sua raza cósmica, de uma profusão de heróis militares e
no México, a teoria do café con leche, na intelectuais engajados, e de gente que
Venezuela, e as idéias do herói cubano unia as duas qualidades, como Agostinho
José Martí. Em todas elas, a ênfase está, Neto, Samora Machel ou Amilcar Cabral,
declaradamente ou não, na assimilação a luta de libertação africana revitalizava
dos negros e índios à cultura branca no Brasil as tradições de resistência que
européia e no seu desaparecimento físico aqui se implantaram desde a chegada
por meio da miscigenação, aqui encarada dos primeiros africanos escravizados.
sob fortes tinturas eugênicas. Assim, assistimos, no início dos anos
70, à reorganização dessa resistência,
Finda a Segunda Guerra, em 1945,
com o surgimento do Movimento Negro
surgem com a abertura política no
contemporâneo, que hoje se faz presente
Brasil novas organizações e iniciativas
em todas as regiões e cidades importantes
com vistas a combater a discriminação
do País, constituindo-se numa verdadeira
racial. Em 1944, fundei, no Rio de
malha nacional de combate ao racismo e
Janeiro, o Teatro Experimental do Negro,
à discriminação racial.
cujo marco histórico foi o casamento
da militância no campo artístico com Numa nação que só agora começa
o compromisso na luta política. Até a reconhecer a existência do racismo
aquele momento, as organizações negras e da discriminação, o Movimento tem
propunham um combate à discriminação desempenhado um papel fundamental:
racial sem vinculá-lo ao resgate da pressionar o Estado e a sociedade civil
identidade e dos valores culturais a responderem ao clamor da população
42 THOTH 1/ abril de 1997
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afro-brasileira. Ao mesmo tempo, discute da pirâmide social, é chefe de família em


e propõe medidas e políticas públicas para muito maior número, configurando um
as relações raciais em plano nacional e quadro de absoluta destituição.
internacional. Nesse último campo, propõe, Em todos os níveis do ensino,
cobra e monitora as ações do Governo o acesso dos afro-brasileiros é muito
brasileiro em suas relações com os países inferior ao dos brancos. Da população
africanos, denunciando as tentativas de brasileira, 18% são analfabetos, mas entre
nossos colonialistas de segunda mão. os afro-brasileiros essa porcentagem sobe
No mercado de trabalho nacional, a 30. No outro extremo, 4,2% dos brancos
a discriminação impera nos setores da alcançam o ensino superior, contra apenas
produção e de serviços. Começa no 1,4% dos afro-brasileiros.
processo de seleção, quando, nos anúncios Nossa Constituição estabelece que
de jornais e nas exigências de emprego, a saúde é direito de todos e dever do
as empresas se ocultam na famigerada Estado. Para a comunidade afro-brasileira,
exigência da “boa aparência”, senha ou sobretudo suas mulheres, essa é uma
código da política racista de rejeição. questão de vida ou morte. Sua expectativa
Quando um afro-brasileiro consegue de vida é inferior em 7,5 anos à do
furar essa muralha, entra em jogo outro branco, e sua taxa de mortalidade infantil
processo discriminatório: desempenhando é de 105 em cada mil crianças nascidas,
as mesmas funções que um trabalhador contra 77 em cada mil crianças brancas
branco, receberá quase sempre remuneração nascidas. Até o útero das mulheres negras
bastante inferior. Se, ainda assim, esse é considerado descartável: a elevada taxa
negro permanecer no mercado de trabalho, de histerectomias e esterilizações entre
terá de conviver com mecanismos de elas retrata uma verdadeira mutilação
avaliação de desempenho e critérios de em massa. A anemia falciforme, doença
promoção utilizados freqüentemente para geneticamente específica à população de
barrar-lhe a ascensão funcional e salarial. origem africana, clama por uma efetiva
Após um século de vigência desse quadro atenção das autoridades da saúde.
no país da “democracia racial”, com toda a
sua legislação dita anti-racista, só agora nos A violência, um dos grandes
surpreende a inédita decisão do Tribunal problemas do Brasil, incide em dobro
Superior do Trabalho, concedendo ganho sobre a população de origem africana.
de causa a um funcionário negro da Nossos meninos e meninas de rua,
Eletrosul que havia sido demitido por covardemente assassinados, são na
racismo. grande maioria negros. Ainda vale ao
pé da letra o ditado: “Negro parado é
Os homens brancos ganham o dobro suspeito, negro correndo é ladrão.” Em
da renda dos negros e quase quatro vezes 1988, quase 11% dos afro-brasileiros
o que ganha a mulher negra. Essa mesma sofreram agressão policial, contra 3,9%
mulher negra, que ocupa o último escalão da população branca. Nas prisões,
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
43
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

o número de negros encarcerados é parte deste meu discurso. Nela, afirmam:


sempre maior que o dos brancos, não por “A terra que temos hoje foi conquistada
praticarem crimes em maior proporção, por nossos antepassados com muito
mas por serem vitimados por uma justiça sacrifício e luta. E, passados 107 anos
racista e pela falta de meios para uma do fim oficial da escravidão, essas terras
defesa jurídica capaz de encurtar ou continuam sem o reconhecimento legal
encerrar suas penas. do Estado. Estamos, assim, expostos à
sanha criminosa da grilagem dos brancos,
Há poucos anos, a mulata era
que são, na atualidade, os novos senhores
o “melhor produto de exportação”
de tão triste memória. No papel somos
brasileiro; hoje, as meninas afro-brasileiras cidadãos. De fato, a escravidão para nós
estão sendo objeto de uma espécie de não terminou. E nenhum governante
“marketing da cor” que as considera da Colônia, do Império e da República
“meninas de sangue quente”, preferidas reconheceu nossos direitos”.
pelo nefasto negócio da prostituição
infantil e do turismo sexual. A organização desses autênticos
quilombolas contemporâneos representa
Na Constituição de 1988, o art. 68 das um fato histórico de grande significação,
Disposições Transitórias estabelece como comparável ao Movimento dos Sem-
dever do Estado a demarcação das terras Terra, porém destituído de semelhante
remanescentes de quilombos. Em fase de repercussão nacional e internacional
implementação e enfrentando os obstáculos junto aos setores que defendem os
interpostos pelos inúmeros interesses em direitos humanos. Por que esse silêncio?
jogo, o art. 68 é objeto de especial atenção A situação dessas comunidades clama
do Movimento Negro. Envolvidos nesse por uma atenção imediata, respaldada em
processo de demarcação se alinham dispositivo constitucional, mas cai nos
o Ministério da Justiça, o Ministério ouvidos ensurdecidos de uma opinião
da Reforma Agrária e, sobretudo, o pública insensível às demandas coletivas
Ministério da Cultura, por intermédio do povo afro-descendente.
da Fundação Cultural Palmares. Tais
A evasão escolar entre crianças
ministérios têm a responsabilidade, por
negras, a agressão às religiões afro-
mandado constitucional, de implementar
brasileiras por grupos autodenominados
a demarcação dessas terras.
cristãos, a criminalização da cor
As comunidades remanescentes de negra pela polícia e pelos tribunais, a
quilombos estão organizadas e, no seu perseguição social e policial à juventude
primeiro Encontro Nacional, realizado negra em seus espaços de lazer, a
em Brasília, em 20 de novembro de constante depreciação pela mídia de
1995, dirigiram ao presidente Fernando nossa identidade, de nossas tradições e
Henrique Cardoso uma carta com suas de nossa imagem, o veto tácito aos afro-
reivindicações, a qual solicito, senhor brasileiros em certas posições de prestígio,
presidente, seja transcrita na íntegra como poder e visibilidade: eis alguns dos
44 THOTH 1/ abril de 1997
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problemas enfrentados cotidianamente Trata-se da única agência de


pela população afro-brasileira e que primeiro escalão até hoje criada no
compõem a extensa agenda de luta do Brasil objetivando a formulação de
Movimento Negro, cuja capacidade de políticas públicas capazes de atender às
mobilização foi testada e aprovada na necessidades específicas dos descendentes
Marcha Zumbi dos Palmares contra de africanos neste País. Vêm surgindo
o Racismo, pela Cidadania e a Vida, também, em vários Estados e municípios,
realizada em Brasília, no dia 20 de assessorias e órgãos de caráter consultivo,
novembro de 1995, com a participação a começar pelo Conselho de Participação
de 30 mil militantes e simpatizantes. e Desenvolvimento da Comunidade
Diversos são os indícios de mudança Negra de São Paulo, criado em 1984 pelo
na sociedade brasileira, decorrentes da então governador Franco Montoro.
intervenção das centenas de organizações Vem ganhando força, nos últimos
e personalidades que compõem a rede anos, a reivindicação de medidas
democrática nacional contra o racismo em destinadas a reduzir a enorme distância que
nosso País. Relevante e exemplar nesse separa negros e brancos nesta sociedade,
contexto é o inédito reconhecimento matéria sobre a qual pretendo apresentar
oficial do racismo por um presidente da projeto específico. Tais medidas têm sido
República, e a instalação de um Grupo adotadas em países tão diversos como
de Trabalho Interministerial destinado a Índia, China, Canadá, Nigéria, Indonésia,
propor políticas públicas de combate ao Israel e as antigas Iugoslávia e União
racismo e de valorização da população Soviética. No caso norte-americano,
afro-brasileira. A criação, em 1988, vêm sendo consideradas um dos fatores
da Fundação Cultural Palmares, órgão que mais contribuíram para a sensível
do Ministério da Cultura, e a inscrição melhoria das condições de vida da
amanhã, no próprio dia 21 de março, população afro-americana, observada
de Zumbi dos Palmares no Panteão dos nas três últimas décadas, sem falar nos
Heróis Nacionais são também frutos benefícios proporcionados às mulheres de
dessa mesma intervenção esclarecida. maneira geral. As medidas adotadas não
Esses três fatos somam-se ao processo se restringem a cotas, embora, em alguns
cumulativo de conquista de órgãos casos, essas sejam necessárias. Abrangem
específicos de gestão administrativa e desde ações legislativas em âmbito federal,
de assessoria em diferentes contextos estadual e municipal até a política de
governamentais. Em nível estadual, pessoal das empresas privadas, que as vêm
destaca-se a iniciativa pioneira do então adotando por terem descoberto que fazê-lo
governador Leonel Brizola, criando, é lucrativo, pois aumenta a sua flexibilidade
em 1991, a Secretaria Extraordinária diante de um mercado globalizado.
de Defesa e Promoção das Populações
Afro-Brasileiras (Seafro), da qual tive a No Brasil, algumas organizações do
honra de ser titular. Movimento Negro já vêm implementando
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
45
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

ações dessa natureza na área da educação, Ao terminar, quero agradecer a


com a criação de cursos pré-vestibulares presença do representante da Embaixada
para alunos negros e carentes, como tem de Angola, conselheiro Quintino Faria;
acontecido na Baixada Fluminense, em São da representante da Fundação Cultural
Paulo e na Bahia. Ao mesmo tempo, alguns Palmares, Ângela da Silva; do professor
setores do aparelho de Estado e do mundo Eduardo de Oliveira, presidente do
empresarial têm-se mostrado mais abertos Congresso Nacional Afro-Brasileiro; e
a uma discussão séria a respeito desse tema, da nossa querida amiga e dirigente do
o que nos leva a crer que novos projetos a Movimento Negro do Rio Grande do Sul,
esse respeito venham a ter melhor destino Vera Triumpho, que sempre triunfa nas
do que aquele que apresentei à Câmara causas que esposa em favor dos negros
Federal em 1983 e que jamais chegou a no Rio Grande do Sul.
ser apreciado pelo plenário. Muito obrigado, Sr. Presidente.
Em âmbito internacional, o Projeto
Rota dos Escravos, da UNESCO, DOCUMENTO A QUE SE REFERE O
promete constituir mais uma instância SR. ABDIAS NASCIMENTO EM SEU
de afirmação da magnitude do crime DISCURSO:
perpetrado contra a África e seus filhos
na forma do tráfico mercantil escravista, ANEXO I
bem como da contribuição africana à
civilização universal. I ENCONTRO NACIONAL DE
COMUNIDADES NEGRAS RURAIS
Todos esses fatos novos têm rea-
limentado de esperança meu coração
Brasília, 20 de novembro de 1995.
calejado pelos rigores de uma longa
luta sem quartel. Conclamo todos os Exmo. Sr.
verdadeiros democratas a assumir, neste Fernando Henrique Cardoso
21 de março, o desafio de fazer valer
os princípios constitucionais de justiça MD Presidente da República
e cidadania, indispensáveis para que o
Brasil, maior país negro fora da África Exmo. Sr. Presidente,
e maior beneficiário da riqueza humana Com este documento, ora enca-
da diáspora forçada do povo desse minhado a V. Exª, queremos ser ouvidos.
continente, rompa o terceiro milênio Nunca fomos em toda a história do
tendo ao menos encaminhado a solução Brasil. Somos negros e vivemos em
de sua questão racial. A resolução dessa comunidades rurais. Descendemos de
questão é o nó górdio a ser cortado, isto africanos que escravizados lutaram,
é, o fator indispensável para que este País fugiram das fazendas, buscaram todas as
venha a ocupar o lugar que de direito lhe formas de viver em liberdade e em plena
cabe no concerto das nações civilizadas. harmonia com a terra e a natureza. Nunca
46 THOTH 1/ abril de 1997
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aceitamos que o escravismo retirasse República nossas dificuldades para existir


nossa dignidade de ser humano. enquanto povo e as soluções que compete
ao atual governo dar como resposta.
A terra que temos hoje foi conquistada
por nossos antepassados com muito Senhor presidente, o que
sacrifício e luta. E passados 107 anos reivindicamos é muito pouco diante
do fim oficial da escravidão, estas terras da contribuição que temos dado para a
continuam sem o reconhecimento legal construção do Brasil.
do Estado. Estamos, assim, expostos à
A seguir, apresentamos nossas
sanha criminosa da grilagem dos brancos, principais reivindicações:
que são, na atualidade, os novos senhores
de tão triste memória. No papel somos 1. Terra para os quilombolas
cidadãos. De fato, a escravidão para nós
Desde o começo da história do Brasil,
não terminou. E nenhum governante
negros e índios estão sendo injustiçados.
da Colônia, do Império e da República
Até hoje, muitas comunidades
reconheceu nossos direitos.
remanescentes de quilombos e povos
O direito à terra legalizada é o indígenas não têm suas terras garantidas.
primeiro passo. Queremos mais. Somos
A Comunidade Kalunga reivindica
cidadãos e cidadãs e como tais temos
que o governo cancele a instalação das
direito a tudo que os demais grupos já
Hidroelétricas de Foz de Bezerra e Boa
usufruem na sociedade. Sabemos que a
Vista, que, se construídas, inundarão suas
cidadania só será um fato quando nós,
terras.
nossos filhos e netos tivermos terra
legalizada e paz para trabalhar, condições 2. Saúde
para produzir na terra; um sistema de
educação que acabe com o analfabetismo Reivindicamos que:
e respeite nossa cultura negra; assistência – a Fundação Nacional de Saúde
à saúde e prevenção às doenças e um implemente um programa junto às
meio ambiente preservado da ganância comunidades visando a erradicação de
dos fazendeiros e grileiros que destroem doenças como sarampo, tétano, febre
nossas florestas e rios. Não temos esses amarela e outras mais.
direitos assegurados, portanto não somos
reconhecidos como cidadãos! – o Governo Federal fiscalize o
repasse das verbas de saúde/SUS que se
O I Encontro Nacional de Comu- tem mostrado falho, com o sistemático
nidades Negras Rurais, o único acon- atraso no repasse do pagamento dos
tecimento do gênero realizado na história agentes de saúde.
do Brasil, não poderia, neste momento 3. Educação
em que celebramos os 300 anos da
imortalidade de Zumbi de Palmares, Reivindicamos que o Governo
deixar de apresentar ao presidente da Federal implemente um programa de
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Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
Ademir Andrade, Emilia Fernandes
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educação de 1º e 2º graus especialmente Comunidade Lajes dos Negros (BA)


adaptado à realidade das comunidades
Comunidade Campinho da Indepen-
negras rurais, com elaboração de material dência (RJ)
didático e a formação e aperfeiçoamento
de professores. Comunidade Barra do Brumado
(BA)
Extensão do programa que garante
o salário base nacional de educação para Comunidade Fazenda Pilar (BA)
os professores leigos das comunidades Comunidade Parateca (BA)
negras.
Comunidade Pau D’Arco (BA)
Implementação de cursos
de alfabetização para adultos nas Comunidade Bananal (BA)
comunidades negras. Comunidade Entre Rios (MA)
4. Mulher Negra Comunidade Sóassim (MA)
Devido às denúncias de que as Comunidade Santo Antônio (MA)
mulheres negras que trabalham como
Comunidade Pitoró dos Pretos
diaristas nas fazendas recebem salários
(MA)
inferiores aos dos homens, solicita-se que
o Ministério do Trabalho apure a situação Comunidade Tingidor (MA)
e tome as devidas providências. Comunidade Guaraciaba (MA)
Na certeza de que as reivindicações Comunidade Saco das Almas (MA)
acima colocadas serão devidamente
apreciadas e consideradas por V. Exª, Comunidade Santa Cruz (MA)
subscrevemo-nos, Comunidade Santa Joana (MA)
Respeitosamente, Comunidade São Benedito (MS)
Comunidade Rio das Rãs (BA) Movimento Negro Unificado
Comunidade Frechal (MA) Centro de Cultura Negra do
Comunidade Jamary (MA) Maranhão

Comunidade Kalunga (GO) Grupo de Trabalho e Estudos Zumbi


(MS)
Comunidade Conceição das
Comunidade Santa Maria dos
Crioulas (PE)
Pinheiros (MA)
Comunidade Furnas da Boa Morte
Grupo Cultural Níger Okám/BA
(MS)
Comissão Pastoral da Terra
Comunidade Furnas dos Dionísios
(MS) Comissão Pró-Índio de São Paulo.
48 THOTH 1/ abril de 1997
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O SR. PRESIDENTE (Geraldo Organização das Nações Unidas (ONU)


Melo) – Concedo a palavra à nobre em sinal de protesto e como marco do
senadora Benedita da Silva. assassinato de 69 pessoas negras em 1960
pela polícia da África do Sul, quando se
A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ)
manifestavam pacificamente contra a
– Senhor presidente; senhoras e senhores
obrigatoriedade do passaporte interno,
senadores; senhores convidados citados
exigido, àquela época, à população negra
pelo senador Abdias Nascimento: neste
para locomoção dentro de seus próprios
primeiro momento, quero agradecer
a presença de todos e saudar o nosso territórios, no que ficou conhecido como
senador, defensor, professor, conhecedor o Massacre de Sharpeville, município
profundo das relações raciais no mundo, ao sul da cidade sul-africana de Joanes-
senador Abdias Nascimento. burgo.

Esta saudação é muito especial, Pois bem. Passadas várias décadas


porque entendo que o seu pronunciamento dessa iniciativa da ONU, constatamos,
não só mostrou todo o conhecimento e constrangidos, que o racismo, que
compromisso de S. Exª, mas também a discriminação racial está longe de
tirou-me todas as chances de dizer algo a transformar-se em página virada da
mais além do que S. Exª disse em relação história mundial.
à política racial brasileira. Durante os três mandatos a mim
Para que eu possa ter um mínimo conferidos pela população do Rio de
de condição de abordar este assunto Janeiro – dois como deputada federal e
neste dia, não falarei da política racial um como senadora – tenho lutado para
brasileira. Conhecedor profundo dessa diminuir as desigualdades sociais e o
causa, o senador Abdias Nascimento, que preconceito racial. No entanto, ano após
é o nosso Zumbi vivo, faz desta sessão ano, nos revezamos nas tribunas das
de hoje um momento histórico para todos duas Casas do Congresso Nacional para
nós. refletir sobre a situação da discriminação
Até agora, com a minha humilde racial no Brasil e no mundo.
contribuição, tenho promovido aqui O racismo é um termo que tem
esta luta, e a chegada do senador Abdias sido muito usado para descrever os
Nascimento nos coloca a todos em mais variados conflitos humanos: seja o
condições de um aprendizado renovado apartheid que existiu na África do Sul até
pelos seus conhecimentos. Por isso, ao 1994, a situação dos judeus, dos negros,
senador Abdias Nascimento, a nossa as relações entre palestinos e judeus,
homenagem. o genocídio dos povos indígenas nas
O Dia Internacional pela Eliminação Américas, as atitudes hostis em relação
da Discriminação Racial, comemorado aos trabalhadores imigrantes, as relações
na data de hoje, foi instituído pela entre colonizadores e colonizados.
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
49
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

Apesar de comprovada a falácia das afirmam respeitar a Declaração de


teorias racistas, é grande a sua influência Direitos Humanos da ONU, que condena
na história do pensamento humano. a discriminação por motivo de raça.
Elas têm a sua expressão mais cruel no Mas está aí a contradição das chamadas
genocídio de povos inteiros, genocídio “democracias atuais”, pois se afirmam
justificado pela suposta periculosidade humanistas e igualitárias, mas colocam
do povo exterminado. Os judeus foram em prática políticas que vão contra esses
exterminados pelos nazistas porque, princípios, discriminando grupos sociais
segundo estes, eram “raça indesejável”. tradicionalmente pobres.
Os negros e índios foram perseguidos
Na Europa, o racismo e a xenofobia
e exterminados (quando não aceitaram
estão em alta. Em nome do nacionalismo,
submeter-se ao colonizador) porque
criou-se um poderoso inimigo na figura
eram bárbaros, pagãos, desprovidos de
de africanos, latino-americanos, turcos,
humanidade, um perigo para o Estado
palestinos, transformando o imigrante,
colonial.
principalmente de países pobres, em
As alegações para o genocídio de intruso indesejado para o qual se deseja
negros, índios e judeus foram semelhantes: a deportação, a prisão e até a morte.
raças inferiores, perniciosas, um perigo A Comunidade Européia corre o sério
para a civilização cristã; eram pagãos que risco de conviver com duas classes
realizavam ritos bárbaros, que atentam de cidadãos: os que têm direitos e os
contra a humanidade. marginalizados. Isso nos leva à triste
O racismo, mais que uma atitude constatação de que caiu o mito da
de rechaçar qualquer ser humano, é Europa como terra de asilo, como terra
um fato que tem raízes econômicas e, de liberdades.
portanto, converte-se em fato político. A França, aliás, protagonizou
Não é por acaso que a população negra recen temente a maior polêmica
está entre os grupos sociais mais pobres mundial. Apesar dos protestos de rua,
do planeta. No Brasil, 400 anos de que chegaram a mobilizar cerca de
escravidão deixaram as suas marcas. A cem mil pessoas, e de um manifesto
liberdade jurídica não assegurou ao negro assinado por milhares de pessoas, entre
a liberdade de fato, liberdade real. Não as quais artistas e intelectuais famosos, o
libertou o povo negro dos preconceitos parlamento francês aprovou, com o apoio
que o estigmatizam como ser inferior. do governo, projeto de conteúdo racista,
Não lhe deu oportunidades e participação que restringe a imigração, especialmente
de forma igualitária na sociedade. de africanos, já que estes representam
Infelizmente, o racismo o maior contingente de imigrantes na
institucionalizado, como existiu na França (46% do total).
África do Sul, volta a ameaçar os povos. Com essa atitude, a França não
Os governantes de todos os países honra a sua tradição humanitária e
50 THOTH 1/ abril de 1997
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libertária de nação-berço de importantes direita e grupos neonazistas, que têm


transformações sociais. Coloca-se expressão na França e Alemanha.
na contramão da História. Enquanto A África do Sul, cuja luta pela
símbolos do racismo - como o apartheid - libertação motivou a criação desse dia pela
são definitivamente sepultados, ergue-se ONU, realizou uma verdadeira revolução
nova onda racista no mundo, que, aliás, em sua história, livrando-se do apartheid
encontra respaldo na Alemanha, que já após mais de 40 anos de sua instituição e
possui legislação similar a essa recém- após séculos de dominação pela minoria
aprovada pela França. Na Alemanha, branca. O caráter plural e multicultural
Inglaterra e França, o racismo ganha da Constituição sul-africana é exemplo
importância e mostra-se de forma cada do que falamos. Em outros tempos,
vez mais violenta. A França, hoje, é um no dia 21 de março, as manifestações
país dividido entre os que aprovam a contra o apartheid representavam o
nova lei (59% da população) e os que a norte da luta no Dia Internacional contra
condenam. a Discriminação Racial. Hoje, apesar de
Registramos, nesta oportunidade, o os tempos serem outros e de esse país ter
nosso protesto junto ao Governo francês eleito o primeiro presidente negro de sua
pelo explícito apoio à aprovação da tal história, mesmo com toda essa mudança,
lei, lamentando profundamente que o racismo permanece violento. Mas há
poucas vozes se tenham levantado em esperanças de que existirá um tempo em
sinal de protesto, pelo menos durante que a cor de pele não vai mais definir o
a visita ao Brasil do presidente daquele destino das pessoas.
país. Por outro lado, a “onda democrática”
Estudos revelam que o fato de que atingiu países da América Latina
os imigrantes pertencerem a uma e Europa na última década também
etnia condiciona-os a pertencerem às chegou ao Continente Africano. A grande
categorias mais desfavorecidas do país maioria de seus países vive momentos
de acolhida. Os imigrantes foram bem de transição (Angola, Moçambique,
recebidos como mão-de-obra barata e África do Sul), engajados em profundos
necessária até 1973. Depois, os países processos de modernização. Apesar
da Comunidade Européia fecharam disso, a África, como um todo, é vítima
definitivamente suas fronteiras, mantendo de enorme preconceito. A imagem
leis discriminatórias. Conceitos como que se tem, oferecida pela mídia, é
“orgulho nacional” e slogans como a pior possível. Não há registros de
“menos estrangeiros e menos impostos”, fatos positivos, apenas fome e guerras,
“se os estrangeiros fossem expulsos do contribuindo para difundir uma visão
país, a taxa de desemprego cairia” ou estereotipada de todo um continente.
“prioridade para os nascidos no país” Acabo de retornar de viagem
fazem sucesso entre extremistas de à África do Sul e Moçambique,
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
51
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

onde participei de debates com os O Acordo de Paz, celebrado em


parlamentares moçambicanos 1990 entre o Governo e a Renamo (antiga
(Assembléia da República), com o força guerrilheira e, hoje, um dos maiores
objetivo de estreitar as relações entre os partidos políticos do país), caracterizou-
dois parlamentos. Testemunhei o esforço se pela “vontade política para pôr fim à
de todo um povo, toda uma nação no guerra (...) criar as condições políticas,
processo de reconstrução de seu país, econômicas e sociais que permitam
no caminho da democracia, apesar das trazer uma paz duradoura e normalizar a
dificuldades. Devemos reconhecer que vida de todos os cidadãos”. Esse acordo
Moçambique é, hoje, um país que anseia concretizou-se nas eleições gerais de
pela consolidação democrática, pela 1994, permitindo a Moçambique pôr fim
paz e justiça social e pela estabilidade ao violento conflito armado de 16 anos.
econômica. “A democracia é como uma Aliás, a recente história democrática
árvore; quanto mais cuidamos dela, mais daquele país assemelha-se, em muitos
se enraíza e mais sombra dá” (Brazão aspectos, à democratização em nosso
Mazula, historiador moçambicano). país. Assim é que, lá, como aqui, debate-
Alguns dados importantes que se a revisão constitucional, o combate à
caracterizam a situação socioeconômica criminalidade, a regulamentação sobre o
de Moçambique, às vésperas das uso e aproveitamento das terras. Sobre
negociações do Acordo Geral de Paz entre a criminalidade, ouvimos o seguinte
o Governo e guerrilheiros, em fevereiro testemunho do deputado Eduardo
de 1990: a capacidade produtiva estava Mulémbwè: “No combate à criminalidade,
praticamente paralisada, com a destruição não basta o agravamento das penas ou a
das infra-estruturas econômicas e sociais, produção de novos comandos legais mais
deixando o país totalmente dependente que o agravamento das penas, também
da ajuda externa (por exemplo, 90% necessário, o momento exige de cada
das necessidades de cereais); a taxa de um de nós, servidores do Estado, uma
mortalidade infantil é uma das mais atitude firme, conseqüente e responsável,
altas do mundo - uma entre três crianças uma nova mentalidade e um desempenho
morre antes dos cinco anos de idade diferente do atual. Uma postura diferente
; a seca que, por mais de dois anos desta comprometerá, irremediavelmente,
provocou o deslocamento das populações os esforços no concernente à implantação
para dentro e para fora do país, teve da democracia e do Estado de direito no
como conseqüência a fome, que causou país”.
inúmeras vítimas, afetando mais de 3 Em resumo, reproduzo aqui as
milhões de pessoas. Nessas condições, palavras do bispo sul-africano Desmond
nem o Governo, nem a Renamo tinham Tutu sobre a situação do país hoje:
capacidade para suportar e legitimar, por “Moçambique é um grande milagre, com
mais tempo, uma guerra fratricida. a paz e a democracia instaladas”.
52 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação
AtuaçãoParlamentar
Parlamentar

E no Brasil? Como estão as nossas extermínio de sua raça – na época do


relações raciais? O senador Abdias descobrimento do Brasil, contavam cerca
Nascimento abordou com relevância o de 5 milhões de pessoas e, hoje, somam
assunto. Os temas abordados pelo Dia cerca de 200 mil –, o índio brasileiro
Internacional de Luta pela Eliminação continua lutando, como também o negro,
da Discriminação Racial têm profunda por reivindicações básicas, como o
ligação com a história do povo brasileiro. direito à terra.
No Brasil – como já disse também o
Trata-se, portanto, de negar o
senador Abdias –, a segunda nação
senso comum de que somos um país
negra do mundo, cuja população de
racialmente integrado e justo e concluir
origem africana, apresenta cerca de
que o tratamento da questão social não é
44% do total, segundo dados oficiais,
suficiente para resolver as desigualdades
a situação deveria ser mais positiva.
raciais. É este o estágio que necessita ser
Costumamos dizer que em nosso País
alcançado no Brasil: a transformação da
não existe preconceito, que vivemos na
questão racial em um tema fundamental
maior “democracia racial” do mundo.
a ser enfrentado e equacionado pelo
Mas a realidade cotidiana nos mostra
conjunto da sociedade brasileira.
exatamente o contrário.
O Brasil é um país de componente Lembramos que a coisa mais
racial variado, que deveria ser motivo profunda, para além do clamor da
de orgulho nacional. Queremos aqui igualdade, está na convivência das
ressaltar outra raça igualmente vítima diferenças. A igualdade é importante,
do preconceito racial: os índios. Os está no barco da modernidade – e é
negros e índios são raças consideradas importante assimilar esse barco para não
destruídas pelo poder que se instalou perdê-lo, como dizem ter ocorrido com o
neste país. Lembremos que os vários “bonde da história”. Mas ele navega por
povos indígenas, sobreviventes das histórias e valores insuspeitos. Embarcar
expedições escravistas e das guerras, significa a possibilidade de admitir que
foram aldeados sem nenhum critério, o diferente não nos exclui, mas nos
senão o de criar espaços vazios para a completa.
penetração colonial. A cultura indígena Penso que o momento destas
foi esquecida e ridicularizada, forçando comemorações nos traz compromissos
os primeiros habitantes desta terra a enormes – alguns colocados pelo senador
perder sua identidade cultural. O índio Abdias do Nascimento –, mas que
tornou-se, então, sinônimo de selvagem, entendemos ser também compromissos
antropófago, preguiçoso. Diante de das nossas relações com as pessoas. A
um passado histórico, em que sofreu relação humana brasileira é contraditória.
aproximadamente cinco séculos de Às vezes sentimos ódio, às vezes sentimos
dominação, o que contribuiu para o quase amor. É preciso implantar em nós e em
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
53
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

nossos corações o ideário da liberdade, de Estado da Cultura e da Justiça,


da convivência e da independência. do governador do Distrito Federal,
da presidente da Fundação Cultural
Quero ainda, a propósito do Dia
Palmares. Esses são aqueles que estão
Internacional para a Eliminação da
convidando todos nós para participarmos
Discriminação Racial, fazer uma
amanhã dessa grande solenidade, quando
consideração particular – o senador
será inscrito o nome de Zumbi dos
Abdias Nascimento também já o fez:
Palmares no Livro dos Heróis da Pátria.
seria a possibilidade de haver iniciativas
no campo de políticas públicas para Quero, deixar aqui também a minha
que pudéssemos diminuir essas gratidão. Gratidão, sim, porque esta
desigualdades. não é uma tarefa que podemos realizar
Eu não poderia deixar de registrar sozinhos. Somos apenas porta-vozes que
que amanhã será realizada a solenidade encontram eco neste espaço político.
de inscrição do nome de Zumbi dos Para que se realizem nossos sonhos,
Palmares no livro dos Heróis da Pátria, é preciso que haja vontade política; é
marco histórico do resgate da cidadania preciso que encontremos nesta Casa
brasileira, para o qual todos nós, vontade política.
parlamentares, contribuímos. O senador Abdias Nascimento, na
Parabenizo o Congresso Nacional tribuna, falou sobre as ações afirmativas
brasileiro por ter auxiliado no processo necessárias para um resgate da cultura
de concretização dessa aspiração popular do povo afro-brasileiro e um ajuste
e, em especial, o Senado Federal por ter em relação a esse povo que tanto tem
dado o passo inicial para essa importante contribuído para este país. S. Exª disse
decisão histórica, que foi a aprovação que é preciso ter ações afirmativas e que
do projeto de lei de minha autoria que estará iniciando uma série delas.
transforma Zumbi dos Palmares em Apelo desta tribuna aos nobres
herói nacional. Essa iniciativa mereceu senhoras e senhores senadores: há
o apoio do presidente Fernando Henrique projetos de ações afirmativas que
Cardoso, que tem tomado algumas tramitam nas Comissões desta Casa.
medidas no sentido de fortalecer junto
Quero crer que eles não foram ainda
ao Ministério da Justiça o GTI – Grupo
suficientemente discutidos, pois a
Interministerial que está tratando da
maioria está com parecer contrário.
situação do povo negro brasileiro
Convido esta Casa para tomarmos
Registro que, em comemoração a atitudes que impeçam que as ações
este Dia Internacional para Eliminação afirmativas, de iniciativa de qualquer
da Discriminação Racial, será realizada parlamentar, de qualquer partido, possam
solenidade no Panteão da Pátria, amanhã, deixar de ser implementadas por não se
às 17h, com a presença dos ministros ter conhecimento, primeiro, de que o
54 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação
AtuaçãoParlamentar
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Governo Federal tem interesse nessas há democracia total se tivermos os


iniciativas – vale ressaltar que o Governo excluídos, os invisíveis, tais como os
criou um grupo exatamente para isso, e afro-brasileiros e os indígenas.
que tem respaldo na Fundação Palmares
Era o que tinha a dizer.
– e, segundo, por não se ter conhecimento
profundo das injustiças que existem em Muito obrigada.
relação à comunidade afro-brasileira.
Assim, o apelo que faço é para que se O SR. PRESIDENTE (Geraldo
olhe com muito carinho e respeito para Melo) – Concedo a palavra ao senador
esse povo, e principalmente com muita Eduardo Suplicy.
consciência em relação ao fato de que as O SR. EDUARDO SUPLICY (PT-
desigualdades existem. SP) – Senhor presidente, senhoras e
Esses projetos não foram elaborados senhores senadores, “o racismo é a ferida
com o objetivo de promoção pessoal; da consciência humana”, assim Nelson
fazem parte de uma estratégia para se dar Mandela, em 11 de junho de 1996,
visibilidade ao povo afro-brasileiro, para definiu esse procedimento de alguns da
contribuir no sentido de que a pluralidade raça humana.
étnica da sociedade brasileira possa
A idéia de que uma pessoa é inferior
existir sem desigualdades. Não temos tido
a outra a ponto de alguns, aqueles que
coragem de enfrentar essa discriminação,
se consideram superiores, definirem e
esse racismo que existe projetado em nós,
tratarem o resto como subumanos nega
consciente ou inconscientemente.
a humanidade mesmo daqueles que
Ta l v e z n ã o s a i b a m o s querem elevar-se ao status de deuses.
verdadeiramente o que somos. Às vezes,
Felizmente a África do Sul tem
temos justificativas que levam a pensar
dado exemplos notáveis com o fim
que não temos compromisso com essa
do apartheid. Tem mostrado, com
causa. Chamo a atenção para o problema,
o fortalecimento aprofundado de
em homenagem à comunidade afro-
procedimentos democráticos, como as
brasileira.
eleições de 1994, exemplos que acabam
Apelo, assim, para que assumamos repercutindo pelos demais países da
compromisso em relação a essa matéria; África e também pelo resto do mundo.
apelo para que não deixemos que haja
Tive oportunidade de visitar a
pareceres contrários a esses projetos.
África do Sul, em dezembro e janeiro
Que eles possam receber o apoio de
deste ano, e ali observar semelhanças
todos nós, pois são iniciativas que
entre aquele país e o Brasil.
resgatam a cidadania. Elas não mexem
com os cofres públicos, mas haverão Nelson Mandela tem um desafio tão
de mexer com a cidadania do povo grande quanto o de todos nós, brasileiros,
brasileiro. Não há cidadania total, não com respeito a extinguir desigualdades
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
55
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

tão extremas. A África do Sul e o de Porto Alegre e do Distrito Federal,


Brasil estão entre os países com maior instituindo crédito popular ou a
desigualdade socioeconômica, mas tenho possibilidade de pessoas que trabalham
a nítida impressão de que a determinação autonomamente adquirirem máquinas
e a vontade política do Governo Nelson de costura, carroças, cavalos, enfim,
Mandela, no que diz respeito às reformas instrumentos que possam trazer ganhos
sobre a estrutura fundiária, às reformas ou melhorar os rendimentos dessas
sobre como garantir direitos à cidadania populações mais humildes, têm-se
para aqueles que, por tanto tempo, constituído em grata surpresa, a exemplo
estiveram marginalizados, têm sido daquilo que se desenvolveu nos últimos
maiores do que as do Governo Fernando 15 ou 20 anos em Bangladesh, com o
Henrique Cardoso. Banco Gramen, o banco da vila ou do
vilarejo.
O senador Abdias Nascimento e a
senadora Benedita da Silva aqui fizeram Cooperativas de organização
o diagnóstico, inclusive estatístico, de socioeconômica, principalmente no
como os afro-brasileiros, neste país, têm âmbito da organização da produção na
uma situação socioeconômica muito pior agricultura, nos serviços e também na
do que a média dos brasileiros, em especial produção industrial, constituem outro
daqueles que são brancos. Precisamos dar mecanismo extremamente importante.
prioridade aos instrumentos de política
A própria tradição daqueles que,
econômica capazes de transformar esse
hoje, continuam a se organizar em
estado de desigualdade, e a reforma
quilombos, a exemplo do Quilombo
agrária constitui um desses mecanismos.
dos Palmares e das lições de Zumbi; a
Dentre os 44% de brasileiros pobres, exemplo, também, daquilo que o próprio
estão em maior proporção os negros senador Darcy Ribeiro colocou no seu
ou afro-brasileiros. Se pudéssemos Projeto Caboclo para instituir formas
acelerar a reforma agrária, estaríamos cooperativas de produção no âmbito da
caminhando na direção da correção desse Amazônia, é outro exemplo que deve ser
quadro. seguido e estimulado.
A criação de instrumentos de uma O Programa de Garantia de Renda
política econômica que possa dar maior Mínima, que pode assegurar a todos
oportunidade à população mais carente, os brasileiros formas de partilhar
como, por exemplo, o crédito popular minimamente a riqueza desta nação,
para a faixa da população que ganha até constitui um outro passo importante e
dois salários mínimos, seria também um que poderia já estar estendido a todos os
passo muito significativo. brasileiros.
As experiências de governos do A senadora Benedita da Silva
Partido dos Trabalhadores, como os salientou aqui um outro fenômeno de
56 THOTH 1/ abril de 1997
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grande repercussão para o mundo, qual Faz-se necessário caminharmos


seja aquele da legislação francesa recente, na direção da quebra de barreiras, para
que atribuía às pessoas que porventura que os seres humanos possam ir àqueles
tivessem na sua casa migrantes não lugares onde acreditam esteja a sua
legalizados a necessidade de denunciá-los. melhor oportunidade de emprego, de
remuneração e de crescimento de sua
Houve manifestações extraordinárias
potencialidade.
na França, com a participação de
intelectuais e artistas, que conseguiram Sem dúvida, faz-se necessário que
pelo menos derrubar um item da lei em cada país, e sobretudo no Brasil, os
mencionada pela senadora Benedita governos procurem assegurar o direito
da Silva: o da denúncia. Mas, ainda à cidadania, o direito à vida, que inclui
assim, trata-se de uma legislação que, o direito à educação, o direito à saúde,
sobretudo, afeta a população africana que o direito ao emprego, o direito a um
por vezes gostaria, já que nem sempre rendimento condigno com a condição de
as condições socioeconômicas em seus ser humano.
países de origem são as melhores, de
Mas, de um lado, abrirem-se todas
poder também ter a liberdade de ir para
as fronteiras para o movimento do
a França, para países da Europa, quando
capital, ou das mercadorias, e, de outro,
não para os Estados Unidos da América;
fecharem-se cada vez mais as fronteiras
enfim, para os países desenvolvidos.
para o movimento daqueles que
Na medida em que países como desejam procurar melhor oportunidade
a França, a Inglaterra, a Alemanha, os de educação ou de emprego é algo
Estados Unidos da América e outros contraditório.
desenvolvidos procuram colocar para
Ainda nesta semana, chegou ao
os países em desenvolvimento, como
Brasil o corpo do jovem que queria tanto
o Brasil, para os países africanos, para
ter uma oportunidade de melhor educação
os países da Ásia ou os da América
nos Estados Unidos da América. Já na
Latina, que seria importante abrirmos
semana passada, eu havia mencionado
nossas fronteiras para os movimentos
esse jovem, de 26 anos, radialista, locutor
do capital, a fim de que este pudesse ser
de uma rádio FM em São José dos
investido e procurasse, em qualquer lugar
Campos, que desejava ajudar sua mãe,
do mundo, a melhor oportunidade de
progredir e comprar um apartamento.
sua própria acumulação e rentabilidade,
Para isso, avaliou que precisava ir para
com o propósito de se acumular mais
os Estados Unidos trabalhar e estudar.
riqueza, dada a livre circulação de
mercadorias, seria importante que esses Foi, então, para Campinas, uma vez
países desenvolvidos passassem também que soube que ali havia um concurso
a aceitar a livre movimentação do ser para se trabalhar em reflorestamento na
humano. Flórida. Já havia procurado o Consulado
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
57
Ademir Andrade, Emilia Fernandes

dos Estados Unidos, que por duas vezes O SR. ADEMIR ANDRADE (PSB-
lhe havia negado o visto, mas conseguiu BA) – Senhora presidente, senhoras e
sua inscrição e a firma o contratou pelo senhores senadores, o dia 21 de março é
modesto salário de US$ 400. No entanto, data a ser celebrada por todo os homens
no momento do embarque, foi-lhe e mulheres que, em qualquer parte do
comunicado que o visto não lhe estava planeta, estejam comprometidos com a
assegurado. Então, foi até a fronteira do causa da liberdade, da democracia e da
rio Grande e, de lá, telefonou para a sua defesa da dignidade humana.
mãe, dizendo-lhe que no dia seguinte o O dia 21 de março é um convite
faria da outra margem. Embora sendo um à reflexão em torno da construção de
bom nadador, não conseguiu atravessar uma sociedade que, respeitando as
os 60 metros que separam o México dos diferenças, seja capaz de fazer prevalecer
Estados Unidos. E faleceu. os mais elevados princípios e valores que
Trata-se de um símbolo daqueles referenciam, de forma positiva e criativa,
que lutam por liberdade, um símbolo a nossa existência.
tal como o foram Zumbi dos Palmares Instituído pela Organização
e todos aqueles que procuraram se das Nações Unidas em 1966, o Dia
organizar para a conquista de um mundo Internacional para a Eliminação
mais solidário e justo; um símbolo como da Discriminação Racial, que hoje
o de Antônio Conselheiro, que também, comemoramos, é também ele fruto de
há 100 anos, teve a cidade de Canudos um processo histórico, longo e difícil,
dizimada porque muitos não queriam em que o sofrimento de milhões de
compreender os ideais daqueles que pessoas somente não foi maior do que
gostariam que não houvesse qualquer a consciência – que gradativamente
tipo de discriminação, fosse racial ou se universalizou – de que o quadro
qualquer outra, para a humanidade. discriminatório teria que ser superado.
Daí que, tanto quanto as celebrações
Portanto, a nossa solidariedade festivas, a data nos impele ao exame
àqueles que hoje estão lutando, como crítico do que foi feito e do muito
Abdias do Nascimento e Benedita da que ainda resta a fazer, no sentido da
Silva, para que, no Brasil, tenhamos uma total eliminação de toda e qualquer
nação exemplo de não discriminação manifestação de discriminação racial.
racial ou de qualquer outra forma de
preconceito. Felizmente, a sociedade
contemporânea já conseguiu avanços
Muito obrigado. extraordinários nesse campo. Em
primeiro lugar, não existe mais espaço
A SRª PRESIDENTE (Emilia para que se repitam atos e atitudes
Fernandes) – Concedo a palavra ao como as que acompanharam o processo
senador Ademir Andrade. de expansão européia desde o início
58 THOTH 1/ abril de 1997
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AtuaçãoParlamentar
Parlamentar

da chamada Idade Moderna. Naquele Faço um parêntese para prestar uma


momento, a submissão das áreas homenagem à Rede Globo, que ontem
conquistadas ao domínio europeu se levou ao ar um filme, após a sua novela,
fez com a brutal tentativa de completa que retratou esses fatos. Quem assiste a
substituição das culturas autóctones, um filme como esse percebe a realidade
massacradas pela força dos dominadores. do que aconteceu, durante anos, naquele
A experiência vivida, nesse momento, país sul-africano.
pelos povos americanos e africanos, por Creio que aquele filme foi colocado
exemplo, não deixa dúvida a respeito. propositadamente, num momento tão
De igual modo, não se admite mais, importante como este, para esclarecer
nos dias de hoje, algo como o ocorrido por a opinião pública brasileira, de maneira
ocasião da grande expansão imperialista geral, quanto ao sofrimento por que
a que o século XIX assistiu. Não me passaram os negros na África do Sul.
refiro à exploração material propriamente Não me deterei aqui na análise
dita – pois esta subsiste sob o manto minudente do que ocorreu, ao longo do
charmoso da chamada globalização século XX, em relação à luta contra as
–, mas, sim, às incríveis justificativas mais variadas práticas racistas. Registro,
ideológicas então utilizadas. Expressões no entanto, seu fortalecimento nos últimos
como “o fardo do homem branco”, 50 anos, sobretudo a partir do surgimento
para simbolizar a “missão civilizadora” da Organização das Nações Unidas, no
da Europa por sobre áreas por eles final da Segunda Guerra Mundial.
denominadas “incultas”, “atrasadas” e Em verdade, o mundo que surge
“selvagens”, não mais se sustentam e após 1945 é por demais distinto daquele
agridem o senso comum. que o precedeu: o flagelo de duas
Transformar esse quadro não foi conflagrações mundiais no espaço de
tarefa fácil, nem se fez sem o martírio uma geração; a falência do domínio de
de muitos. A própria data escolhida tantos séculos da Europa, a bipolaridade
para simbolizar a luta mundial para a do poder mundial, conduzida pelos
eliminação da discriminação racial - o Estados Unidos e pela União Soviética;
21 de março - é uma referência direta a emersão afro-asiática, configurando um
a um episódio que, por sua intrínseca novo cenário mundial, em que jovens
dramaticidade, calou fundo na consciência nações buscam conquistar os espaços
universal: em 1960, manifestantes sul- que lhes são devidos, caracterizam, em
africanos que, desarmados, protestavam linhas gerais, a nova realidade histórica.
pacificamente contra a discriminação e Embora sem poder decisório ou
a segregação raciais em seu país foram coercitivo, a ONU procurou cumprir seu
impiedosamente massacrados; ao final, papel, sobretudo em função das pressões
69 pessoas haviam sido assassinadas e produzidas pelos países do emergente
outras 150, feridas. bloco do Terceiro Mundo. Assim é que,
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo
59
Suplicy, Ademir Andrade, Emilia Fernandes

já em 1946, ocupava-se da explosiva negros aquilombados” e a identificação


questão do apartheid, inicialmente de seu líder maior, Zumbi, nos dias de
atendendo a uma solicitação da Índia, a hoje, como “a continuidade do processo
qual se queixava de leis sancionadas pelo de libertação e de visibilidade positiva da
Governo da África do Sul que atingiam comunidade afro-brasileira”.
sul-africanos de origem indiana. Daí
A criação de um Grupo de
em diante, até o momento em que
Trabalho Interministerial, contando
o regime racista de Pretória deixou
com representantes do Governo e da
de existir, a ONU insistentemente se
sociedade civil e voltado para a elaboração
manifestou, inclusive determinando o
de políticas públicas de valorização da
boicote comercial à África do Sul. população negra, é outra decisão do
Em nosso país, este 21 de março Estado brasileiro que merece aprovação
apresenta um significado todo especial: de todos nós. De igual modo, o trabalho da
Zumbi dos Palmares, o gigante da luta Fundação Palmares, especialmente no que
quilombola contra a abjeta escravidão, se refere ao mapeamento das comunidades
vai deixando de ser apenas um herói remanescentes de quilombos, visando
da comunidade negra. Rendendo-se à a efetiva materialização do disposto
História, o Estado brasileiro inscreve no art. 68 do Ato das Disposições
o nome de Zumbi no Livro dos Heróis Constitucionais Transitórias, que tivemos
da Pátria. A decisão, eticamente justa e a honra de colocar na Constituição de 88
historicamente correta, resulta de projeto – “Aos remanescentes das comunidades
de lei apresentado pela senadora Benedita dos quilombos que estejam ocupando
da Silva, aprovado pelo Congresso suas terras é reconhecida a propriedade
Nacional e sancionado pelo presidente da definitiva, devendo o Estado emitir-lhes
República no último dia 20 de novembro, os títulos respectivos” –, é também digno
Dia Nacional da Consciência Negra e de aplauso e apoio.
data do aniversário da morte de Zumbi. Ao encerrar, lembro que, apesar dos
A presença de Zumbi no Livro avanços e das conquistas, há que se ficar
dos Heróis da Pátria é, antes de tudo, atento. Para quem, como nós, acredita
o reconhecimento da participação das que o respeito às diferenças – sejam
etnias negras no processo de constituição quais forem – é condição necessária e
da sociedade brasileira. Como tão bem insubstituível para a construção de uma
assinalou a Drª Dulce Maria Pereira, sociedade democrática, justa e fraterna, é
presidente da Fundação Cultural Palmares, preocupante o ressurgimento, neste final
atos como o tombamento, em 1988, do de século, de idéias e práticas esdrúxulas
Quilombo dos Palmares, na serra da que pensávamos enterradas para
Barriga, como monumento nacional, e a sempre. Reporto-me aos movimentos
inclusão de Zumbi no Panteão dos Heróis neofascistas europeus, com toda a carga
Nacionais representam o reconhecimento totalitária e racista que os caracteriza,
do “ideal libertário e socializador dos e que, por isso mesmo, não podem e
60 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação
AtuaçãoParlamentar
Parlamentar

não devem prosperar. Afinal, episódios forma significativa que negros e índios,
como o genocídio dos judeus, armênios em especial, deram, com a sua luta, com
e ciganos, por ocasião da Segunda Guerra a sua garra, com a sua determinação e,
Mundial, foram lições pesadas demais acima de tudo, com a sua resistência
para serem esquecidas. para a construção da sociedade brasileira.
Da mesma forma, massacres como Os índios estão aí, sendo massacrados
os ocorridos com povos indígenas em e sacrificados, dia a dia, na sua cultura,
nosso país, a exemplo do que foi feito no seu espaço, na sua convivência
com tribos localizadas na Amazônia, com os seus conhecimentos e, acima
merecem nosso inteiro repúdio e nosso de tudo, com a natureza que eles tanto
compromisso de impedir sua reprodução. preservam e amam. Os negros também
estão buscando o seu direito, o seu espaço
É assim que se constrói um mundo e leis que realmente saiam do discurso
melhor. e entrem na prática, para chegarmos à
É assim que se faz História. igualdade. Igualdade hoje é parâmetro de
democracia. Igualdade hoje é parâmetro
Este é o nosso trabalho, enquanto
para se verificar se um Estado ou nação é
representantes do povo brasileiro.
realmente desenvolvido ou não.
Muito obrigado.
Portanto, o grande desafio está
lançado: ou todos nós assumimos a
A SRª PRESIDENTE (Emilia questão da igualdade, seja de cor, de
Fernandes) – Encerrada a lista de oradores sexo ou de raça, como um desafio a
para este primeiro momento da nossa ser vencido e compartilhado por todos
sessão, que foi dedicado à comemoração nós, ou ficaremos apenas nos discursos.
do Dia Internacional pela Eliminação de
Queremos que o Congresso Nacional
Todas as Formas de Discriminação Racial,
faça ação e ação efetiva.
a Mesa gostaria, também, de associar-se
às denúncias, à conclamação que foi feita Ao cumprimentarmos a todos,
aqui, através dos senadores que usaram conclamamos a que possamos sair do
da palavra, em especial, destacando o discurso e colocar na prática a ação que
trabalho e o comprometimento cada todos os brasileiros desejam: respeito e
vez maior no combate à eliminação da igualdade a homens, mulheres, negros,
discriminação racial aqui e fora deste crianças, idosos e índios.
plenário, empenhados e realizados pela Agradecemos a todos que estiveram
senadora Benedita da Silva e hoje também, conosco nesta Sessão Especial e desejo
sem dúvida, enriquecido pela participação destacar a presença do conselheiro
do senador Abdias Nascimento. Quintino Faria, representante da
Queremos dizer que, sem dúvida, o Embaixada de Angola, e da Srª Ângela da
Brasil tem uma dívida a ser resgatada com Silva, representante da Fundação Cultural
as suas origens, pela participação, pela Palmares, que estiveram aqui conosco.
61

Duas mulheres negras que ajudaram a fundar o Teatro Experimental do Negro: Arinda Serafim e Marina Gonçalves, ensaiando o
papel da “velha nativa” em O imperador Jones, de Eugene O’Neill. Arinda interpretou o papel na estréia do TEN no Teatro Munici-
pal, Rio de Janeiro, 8 de maio de 1945.
Projeto de Lei do Senado nº 52, de 1997

Define os crimes de prática de


racismo e discriminação.

Projetos de Lei
. O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Considera-se crime de prática
de racismo, para efeito desta Lei, praticar
tratamento distinto, em razão de etnia, a
pessoas ou grupos de pessoas.
Pena – reclusão, de dois a cinco anos,
e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem
fabricar, comercializar, distribuir ou
veicular símbolos, emblemas, orna-
mentos, distintivos ou propaganda que
utilizem a cruz suástica ou gamada,
para fins de disseminação da prática do
nazismo.
64 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

§ 2º Também incorre na mesma uma ação compensatória em função de


pena quem induzir ou estimular, por situações discriminatórias históricas ou
intermédio da mídia, de aulas escolares, passadas, ou quando existe uma relação
de livros e de outros meios, idéias, lógica necessária entre a característica na
conceitos ou imagens pejorativas em qual se baseia a distinção e o propósito des-
razão de etnia ou cor da pele. sa distinção, ou ainda por previsão legal.
Art. 2º Considera-se discriminação, Art. 5º Esta Lei entra em vigor na
para efeito desta Lei, o estabelecimento data de sua publicação.
de tratamento prejudicial a pessoas ou
Art. 6º Revogam-se as disposições
grupo de pessoas em razão de sexo,
em contrário, especialmente as Leis nºs
orientação sexual, religião, idade,
7.716, de 1989, 8.081, de 1990, e 8.882,
deficiência, procedência nacional ou
de 1994.
outra característica similar.
Pena – reclusão, de dois a oito anos, JUSTIFICAÇÃO
e multa.
§ 1º As penas aumentam-se da Embora goste de se autoproclamar
metade: uma “democracia racial”, o Brasil está
longe de ser o paraíso das relações ra-
I – se o crime pretende dificultar ciais que o discurso oficial ainda teima
ou impedir o exercício de um direito ou em apresentar. Com efeito, pesquisas
garantia fundamental; quantitativas realizadas nas últimas
II – se o crime é praticado por fun- décadas têm revelado uma realidade de
cionário público no desempenho de sua desigualdade e discriminação pelo menos
função; tão grave quanto – e freqüentemente pior
que – a de países como os Estados Uni-
III – se o crime é praticado contra dos e a África do Sul, reconhecidos por
menor de dezoito anos. todos como exemplos negativos nesse
Art. 3º O art. 141, parágrafo único, campo das relações humanas
do Código Penal, passa a vigorar com a Dados estatísticos do IBGE – ofi-
seguinte redação: ciais, portanto – apontam uma enorme
“Art.141.................................. distância entre os descendentes de afri-
................................................ canos (chamados “pretos” e “pardos”)
e aqueles considerados “brancos” em
Parágrafo único. Se o crime é
nosso País. A análise dos indicadores
cometido mediante paga ou promessa de
sociais pertinentes, como expectativa de
recompensa ou em razão de preconceito
vida, mortalidade infantil, salários e es-
de raça, cor, sexo, religião ou outro si-
colaridade, não apenas comprova a exis-
milar, aplica-se a pena em dobro.”
tência desse fosso em nossa sociedade,
Art. 4º Não é crime a distinção rea- mas também aponta o racismo como o
lizada com o propósito de implementar principal responsável por sua existência.
Projetos de Lei
Crime do racismo 65

No campo jurídico, por exemplo, re- Desse modo, a legislação brasileira


centes pesquisas desnudam o tratamento ainda não dispõe de uma definição geral
diferenciado que policiais, delegados, para os crimes de racismo e discrimina-
juízes e promotores dispensam a brancos ção, dependendo de uma enumeração ca-
e negros, pelo que estes últimos costumam suística de circunstâncias, em desacordo
ser presos em maior proporção, condena- com a boa técnica do Direito Penal; daí a
dos mais vezes e a penas mais longas, o que ineficácia da atual legislação nessa área.
explica ser desproporcionalmente maior Este projeto pretende criar essa definição
sua presença nas estatísticas penitenciárias. legal, tipificando tais crimes. As orien-
tações básicas são, necessariamente, as
As primeiras tentativas de criar uma constitucionais: primeiramente porque
legislação para coibir a prática da discrimi- esses crimes constituem a forma mais
nação racial datam da década de 40. O prin- insidiosa de violação do princípio da
cipal resultado da I Convenção Nacional do liberdade (art. 5º, caput) e, depois, pelo
Negro, realizada em São Paulo, em 1945, fato de ser específica a condenação do ra-
sob o patrocínio do Teatro Experimental cismo (art. 5º, XLII). Além de estabelecer
do Negro, foi a aprovação de uma proposta os tipos genéricos para racismo e discri-
dessa natureza, a qual acabaria sendo trans- minação, este projeto ainda determina
formada, no ano seguinte, pelo senador circunstâncias agravantes – por exemplo,
Hamilton Nogueira, da UDN, em proposta se o agente é funcionário público.
à Assembléia Nacional Constituinte. Essa
Convenções internacionais de que
proposta definia o racismo e a discrimina-
o Brasil é signatário – como a Con-
ção como crime de lesa-humanidade, e foi
venção Internacional pela Eliminação
rejeitada sob a alegação da inexistência de
da Discriminação Racial, das Nações
um fato concreto que demonstrasse a sua Unidas, e a Convenção 111 da Orga-
necessidade. Este acabou vindo com um nização Internacional do Trabalho (OIT),
incidente de grande repercussão: a discri- também vinculada à ONU, que trata da
minação sofrida em um hotel de São Paulo discriminação de raça e gênero no mer-
pela famosa coreógrafa afro-americana cado de trabalho – prevêem a adoção
Katherine Dunham. O deputado Afonso de medidas destinadas a compensar a
Arinos aproveitou a oportunidade para discriminação historicamente sofrida por
propor a Lei nº 1.390, de 1951, que ganhou determinados grupos de pessoas, como
o seu nome, distorcendo a natureza da pro- mulheres, negros e índios. Conhecidas
posta de 1945 ao definir o racismo como pelo nome genérico de “ação afirmati-
contravenção penal, e não como crime, e va”, tais medidas têm sido adotadas por
ao estabelecer penalidades irrisórias para os países tão diversos do ponto de vista
infratores. Em que pese às boas intenções político, social, econômico e cultural
de seus autores, a chamada Lei Caó (Lei como Estados Unidos, Índia, Canadá,
nº 7.716/89) também não avançou nesse Alemanha, Nigéria, Israel e Malásia,
sentido. além das antigas Iugoslávia e União So-
66 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

viética. Este projeto abre a possibilidade prática da discriminação, abre grandes


de adotá-las no Brasil, colocando o país espaços pelos quais escapam os agentes
em dia com as obrigações assumidas na do crime.
arena internacional.
Finalmente, o projeto amplia o elen- Sala das Sessões, em 3 de abril de
co de circunstâncias agravantes genéricas 1997.
do Código Penal para nele incluir os
preconceitos de raça, sexo e outros. Com Senador ABDIAS NASCIMENTO
essa sistemática, afasta-se a necessidade
de uma previsão casuística que, enume-
rando em detalhes as circunstâncias de Publicado no Diário do Senado Federal, de 9-4-97
Projetos de Lei
Sanções contra o racismo 67

Projeto de Lei do Senado nº 73, O Congresso Nacional decreta:


de 1997

Art. 1º Fica proibida a contratação,


sob qualquer modalidade, pela União,
Proíbe a contratação, pela União, suas autarquias, fundações, empresas
suas autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista,
públicas e sociedades de economia de pessoa física ou jurídica que, dire-
mista, de pessoas físicas ou jurídicas tamente ou por associado, controlador,
que tenham cometido atos ou omissões acionista majoritário ou empresa coligada,
favoráveis a regime ou ações de discri- notoriamente, tenha contribuído, incenti-
minação racial, crimes contra a ordem vado, participado por ação ou omissão ou,
econômica ou tributária, atos que de qualquer forma, apoiado ou estimulado
visem ou possam levar à formação de regime ou ações de discriminação racial, no
monopólio ou à eliminação da concor- Brasil ou no exterior.
rência e dano ambiental não reparado, § 1º A comprovação dos atos de
e dá outras providências. que trata este artigo será feita, perante o
responsável pelo contratante, por docu-
mentação, fornecida por organismos na-
cionais ou internacionais de reconhecida
reputação e idoneidade, e encaminhada
por:
I – cidadão brasileiro;
68 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

II – associação ou entidade legal- outra situação jurídica, razão social ou


mente constituída e em funcionamento atividade, somente sendo vencível pela
regular há pelo menos um ano; demonstração da adoção, no caso de ato
III – partido político com represen- ou omissão que não tenha sido de sua
tação no Congresso Nacional; responsabilidade direta, de medida efe-
tiva de superação ou reparação dos seus
IV – Ministério Público da União; efeitos e de punição dos responsáveis.
V – Mesas do Congresso Nacional, Art. 2º Fica proibida a contratação,
do Senado Federal, da Câmara dos De- pela União e demais entidades definidas
putados, de suas Comissões ou deputado no artigo anterior, de pessoas físicas ou
federal ou senador em exercício de man- jurídicas que tenham, diretamente ou
dato eletivo. por preposto, associados, controladores,
§ 2º A entrega de documento que se acionistas majoritários ou empresas co-
presuma comprobatório dos atos definidos ligadas, cometido atos que configurem
no caput deste artigo suspende, a partir crime contra a ordem econômica ou
da identificação e confirmação da sua tributária ou que visem ou possam levar
origem e da reputação e idoneidade do à criação de monopólio ou limitação da
órgão emissor, todos os procedimentos livre concorrência, nos termos da legis-
administrativos de contratação a partir da lação brasileira.
data de recebimento, devendo ser instau- Parágrafo único. Aplica-se, no caso
rado procedimento administrativo para deste artigo, no que couber, o procedi-
processamento e julgamento da tipicidade mento previsto no artigo anterior, sub-
da conduta, em face desta lei, assegurados sistindo esta proibição pelo período de
o contraditório e a ampla defesa. vinte anos a contar da data do fato.
§ 3º Das decisões que suspendam os Art. 3º Fica também proibida a con-
procedimentos administrativos de con- tratação, pela União e demais entidades
tratação e que julguem a pessoa física ou definidas no art. 1º, das pessoas físicas
jurídica incursa nos atos definidos nesta ou jurídicas e demais entidades previstas
lei cabe recurso à instância administra- nesta Lei que tenham cometido ato ou
tiva superior, sem efeito suspensivo. omissão de que tenha resultado dano
§ 4º O descumprimento do pro- ambiental grave, no Brasil ou no exterior,
cedimento previsto neste artigo leva à não completamente reparado.
nulidade do ato e à responsabilização § 1º Aplica-se, para os fins deste
administrativa, civil e criminal da auto- artigo, o procedimento previsto no art.
ridade responsável. 1º desta Lei, subsistindo a proibição pelo
§ 5º A proibição de que trata este tempo necessário à completa reparação
artigo é definitiva, e persiste, contra ambiental ou, no caso da impossibilidade
os diretamente envolvidos, mesmo sob de fazê-lo, de forma definitiva.
Projetos de Lei
Sanções contra o racismo 69

§ 2º A determinação da extensão e qualquer natureza” são proibidas, pelo


reparabilidade do dano ambiental ocorri- princípio da isonomia (art. 5º, caput); a
do no Brasil será feita pelo órgão federal prática do racismo foi firmada como cri-
competente para assuntos documentação me inafiançável e imprescritível, sujeito
de organismo de reconhecida reputação e à pena de reclusão (art. 5º, XLII), além
idoneidade, sujeita, neste caso, à homo- de permear outros tantos dispositivos
logação pelo órgão federal competente. constitucionais.
Art. 4º As proibições previstas nesta As práticas desleais, predatórias ou
Lei são extensíveis a todas as modali- ultrapassadas de gestão empresarial co-
dades operacionais de desestatização, nhecem condenação expressa no capítulo
se não concluídas, previstas pela Lei nº referente aos princípios gerais da ativida-
8.031, de 12 de abril de 1990, e alterações de econômica, onde, como fundamentais
posteriores, inclusive as veiculadas por do País, despontam a livre iniciativa,
medida provisória. a justiça social, a livre concorrência,
a defesa do consumidor e a defesa do
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na
meio ambiente (art. 170). Também são
data de sua publicação.
condenados o abuso do poder econômico
Art. 6º Revogam-se as disposições (art. 173, § 4º) que vise à dominação dos
em contrário. mercados, à eliminação da concorrência
e ao aumento arbitrário dos lucros, além
JUSTIFICAÇÃO
de sujeitar a pessoa jurídica, sem prejuízo
A Constituição Federal em vigor da responsabilidade individual dos seus
trouxe, no caudal de suas expressivas dirigentes, à responsabilização por atos
conquistas, vigorosas disposições sobre praticados contra a ordem econômica e
o racismo, sobre o exercício pernicioso financeira e contra a economia popular
da atividade empresarial e sobre o meio (art. 173, § 5º). O art. 174 dá ao Estado
ambiente. o poder de agente normativo e regulador
O racismo encontrou, na nossa Carta da atividade econômica, fiscalizando e
Política, a necessária resposta à repulsa incentivando para todo o setor e plane-
e condenações mundiais que vinha e jando para o setor público.
vem sofrendo. A dignidade da pessoa Ao meio ambiente foi dedicado ca-
humana, de que a discriminação racial é pítulo especial – o Capítulo VI do Título
algoz, é preliminarmente erigida como VIII. Além de a atividade empresarial
fundamento da República Federativa estar sujeita ao princípio da defesa do
do Brasil (art. 1º, III); o combate ao meio ambiente, conforme já demonstra-
preconceito de origem, raça e cor é dado mos, é assegurado a “todos” o direito ao
como objetivo fundamental (art. 3º, IV); meio ambiente ecologicamente equili-
o racismo é repudiado na ordem interna- brado, sendo imposto ao poder público
cional (art. 4º, VIII); as distinções “de e à coletividade o dever de defendê-lo e
70 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

preservá-lo para as presentes e futuras de vista social. Afinal, se a justificativa


gerações. para a sua alienação se faz sob a égide
Nesse universo, a função estatal é da modernização de nossas estruturas
relevante e indispensável. produtivas, não faz sentido que ela favo-
reça empresas ou grupos internacionais
Como o aparelho estatal, que tem com notória ficha corrida de desrespeito
no topo a estrutura federal, é de certa aos princípios fundamentais que regem
forma balizador das condutas das demais as relações comerciais e, sobretudo, as
entidades políticas, como Estados, Dis- relações entre os homens. Infelizmente,
trito Federal e Municípios, incumbem à porém, são concretas as ameaças de que
União as ações mais contundentes e mais isso possa ocorrer no caso da CVRD.
significativas da decisão governamental
de cumprir e fazer cumprir tais princípios Uma das empresas concorrentes
constitucionais. na licitação da Companhia Vale do Rio
Doce, e com grandes possibilidades de
Nessa linha é que estamos propondo o vencê-la, dado o seu poderio, é a multi-
presente projeto de lei. Com ele, visamos nacional Anglo American, com sede em
a impedir a contratação, pela União, suas Londres. Ocorre que essa empresa tem
autarquias, fundações, empresas públi- se tornado nos últimos anos, em razão de
cas e sociedades de economia mista, de sua atuação no campo político e econô-
pessoas físicas ou jurídicas, ou ligadas a mico, uma espécie de pária internacional.
elas, que tenham, em sua atuação nacional
O principal motivo disso foi seu apoio
ou internacional, ferido esses relevantes
inconteste ao regime do apartheid na
valores de nossa Constituição, por ação
África do Sul, desrespeitando o boicote
ou por omissão.
internacional decretado pelas Nações
Essa proibição é extensível, di-lo o Unidas e violando não somente resolu-
art. 4º da proposição, a todos os modelos ções da ONU, mas também convenções
operacionais do programa de desestatiza- internacionais de que o Brasil é signatá-
ção. E aqui pretendemos atingir, direta- rio – e que por isso têm força de lei –, em
mente, determinada situação que poderá especial a Convenção Internacional pela
ocorrer no processo de privatização da Eliminação da Discriminação Racial, das
Companhia Vale do Rio Doce. Nações Unidas, e a Convenção 111 da
Organização Internacional do Trabalho,
A importância estratégica e o enorme
que trata da discriminação no mercado de
patrimônio dessa empresa fazem com
trabalho. Além disso, tal atuação também
que, no momento em que o Governo se
está em desacordo com diversas cláusu-
prepara para implementar a sua privati-
las de nossa Constituição Federal, quais
zação, olhares mais atentos se detenham sejam os artigos que citamos acima.
nesse processo, tendo em vista suas con-
seqüências não apenas no plano político Longe de ser um ato meramente
e econômico, mas também do ponto simbólico, o apoio da poderosa Anglo
Projetos de Lei
Sanções contra o racismo 71

American e de outras empresas de mes- crescente de seus problemas sociais e


mo porte foi o que permitiu ao governo raciais, inclusive discutindo a refor-
racista sul-africano uma sobrevida que, mulação de sua legislação visando a
de outro modo, não seria possível. Pode- tornar mais eficientes os mecanismos de
-se medir a conseqüência pelo número de enfrentamento do racismo e do precon-
casos de assassinatos, torturas e outras ceito racial, bem como a possibilidade de
atrocidades sofridas pelos negros e opo- estabelecer compensações para os grupos
sitores políticos naquele país durante os historicamente discriminados, é no míni-
últimos anos de um regime que poderia mo um contra-senso permitirmos que se
ter acabado muito antes, não fosse a aposse de nossa estatal mais lucrativa um
criminosa cumplicidade de grupos que, grupo internacional que se comprometeu
como a Anglo American, sempre se po- ativamente com o mais execrado regime
sicionaram em favor da manutenção da do mundo contemporâneo. Ao mesmo
supremacia branca. tempo, a condenação de que tal grupo
Mas não se resumem a isso as restri- foi objeto no mais alto foro do comércio
ções a essa empresa. Além de apoiar o internacional é motivo suficiente para
apartheid, a Anglo American é suspeita tornar indesejável a sua presença em
de ter colaborado com o governo sul- nosso País.
-africano na desestabilização política
dos países da chamada “linha de frente” Por tudo isso, permitimo-nos confiar
– dentre eles, Angola e Moçambique na aprovação do presente projeto de lei
–, dando apoio financeiro à guerrilha neste Parlamento, uma forma direta de
contra-revolucionária para a aquisição assegurarmos respeito a fundamentais
de armamentos e infra-estrutura bélica. princípios constitucionais e humanos e
Como não bastasse, a Anglo American indireta de expurgarmos da atuação no
foi considerada culpada, em diversos pa- Brasil uma empresa poderosa que carrega
íses, por infringir a legislação antitruste, a mancha indelével da atuação racista e
praticando o monopólio da produção e contrária aos direitos humanos.
comércio de ouro e diamantes. Por esse Sala das Sessões, em 24 de abril de
motivo, seu principal dirigente, Nicholas 1997.
Oppenheimer, há muitos anos não pode
pisar em território norte-americano, sob
Senador ABDIAS NASCIMENTO
pena de ser imediatamente preso.
Num momento em que a sociedade Publicado no Diário do Senado Federal, de
brasileira começa a tomar consciência 24-4-97
Projetos de Lei
Ação compensatória 73

Projeto de Lei do Senado nº 75, O Congresso Nacional decreta:


de 1997

Art. 1º Todos os órgãos da ad-


ministração pública direta e indireta,
as empresas públicas e as sociedades
de economia mista são obrigados a
Dispõe sobre medidas de ação manter, nos seus respectivos quadros de
compensatória para a implementação servidores, 20% (vinte por cento) de
do princípio da isonomia social do homens negros e 20% (vinte por cento)
negro.
de mulheres negras, em todos os postos
de trabalho e de direção.
§ 1º As entidades mencionadas es-
tão obrigadas a comprovar anualmente,
perante o órgão que responde pela ad-
ministração pública, as determinações
constantes do caput.
§ 2º A cada cinco anos, o órgão cita-
do no parágrafo anterior ou o Ministério
do Trabalho desenvolverão pesquisa
estatística, com vistas a comprovar os
resultados das medidas de ação compen-
satória preconizadas.
74 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

§ 3º As entidades citadas no caput negros qualificados em escalões superio-


estão obrigadas a executar programas de res profissionais.
aprendizagem, treinamento e aperfeiço-
Parágrafo único. O órgão do Poder
amento técnico, com vistas a qualificar
Público encarregado de supervisionar
empregados negros para a promoção
ou desenvolver os programas, divulgará
funcional.
as atividades a serem executadas e o
Art. 2º Toda empresa privada ou es- material técnico produzido, bem como
tabelecimento de serviços são obrigados oferecerá vagas nos cursos por ele mi-
a executar medidas de ação compensa- nistrados às entidades citadas no art. 1º
tória com vistas a atingir, no prazo de desta Lei e às empresas privadas.
cinco anos, a participação de ao menos
Art. 5º O Poder Executivo inclui-
20% (vinte por cento) de homens negros
rá na lei orçamentária anual recursos
e 20% (vinte por cento) de mulheres
necessários para o desenvolvimento de
negras em todos os níveis de seu quadro
estudos a respeito do ensino e do aper-
de empregos e remunerações.
feiçoamento técnico das medidas de ação
§ 1º As empresas e estabelecimentos compensatória.
mencionados comprovarão, anualmente, Art. 6º Serão destinadas a estudantes
junto ao Ministério do Trabalho, as me- negros 40% (quarenta por cento) das
didas preconizdas no caput. bolsas de estudo concedidas em todos
§ 2º As empresas e estabelecimentos os níveis de ensino.
que não cumprirem as medidas referidas § 1º O Ministério das Relações
no caput estão sujeitas a multa no valor Exteriores reservará, no Instituto Rio
de 20% da folha bruta mensal de salário. Branco, 20% (vinte por cento) das vagas
§ 3º A cada cinco anos, o Ministério para candidatos negros e 20% (vinte por
do Trabalho fará pesquisa estatística para cento) para candidatas negras.
avaliar a aplicação das medidas compen- § 2º Os cursos de formação da Ma-
satórias de que trata o caput. rinha, Exército e Aeronáutica reservarão
Art. 3º Assegura-se a preferência 20% (vinte por cento) de suas vagas
na admissão do candidato negro, sempre para candidatos negros e 20% (vinte por
que ele demonstrar idênticas qualificações cento) para candidatas negras.
profissionais às de candidato branco. Art. 7º O Ministério da Educação
Art. 4º O Ministério do Trabalho e implementará medidas propostas por
os organismos de treinamento de mão- grupo de trabalho constituído para estudar
-de-obra estão obrigados à execução de modificações nos currículos escolares de
programas de aprendizagem, treinamento todos os níveis de ensino, com vistas a:
e aperfeiçoamento técnico para negros, a I – incorporar ao conteúdo dos cursos
fim de aumentar o número de candidatos de história brasileira o ensino das con-
Projetos de Lei
Ação compensatória 75

tribuições positivas dos africanos e seus partir do ano letivo correspondente ao


descendentes à civilização brasileira, segundo ano civil após a publicação desta
sua resistência contra a escravidão, sua Lei.
organização e ação nos quilombos e sua § 3º O Ministério da Educação e as
luta contra o racismo no período pós- secretarias estaduais e municipais de edu-
-abolição; cação farão relatórios anuais públicos,
II – incorporar ao conteúdo dos dando conta dos resultados da fiscali-
cursos sobre história geral o ensino das zação efetuada com o fim de verificar o
contribuições positivas das civilizações cumprimento do disposto neste artigo.
africanas, particularmente seus avanços § 4º O Ministério da Educação e
tecnológicos e culturais antes da invasão as reitorias das universidades públicas
européia do continente africano; incentivarão a criação e apoiarão o
III – incorporar ao conteúdo dos funcionamento de centros de estudos ou
cursos optativos de estudos religiosos o pesquisas africanos e afro-brasileiros,
ensino dos conceitos espirituais, filosó- como parte integrante da estrutura uni-
ficos e epistemológicos das religiões de versitária.
origem africana; Art. 8º As forças policiais estão
IV – eliminar dos currículos e livros obrigadas a incluir nos currículos de
escolares qualquer referência preconcei- seus cursos e em seus programas de
tuosa ou estereotipada ao negro; treinamento conteúdos de orientação que
visem a impedir qualquer comportamen-
V – incorporar ao material de ensino to de discriminação étnica.
primário e secundário a apresentação
gráfica da família negra, de maneira que Art. 9º A Fundação Instituto Brasi-
a criança veja o negro e sua família re- leiro de Geografia e Estatística está obri-
tratados de maneira tão positiva quanto gada a incluir o quesito “cor” em todas
a forma como são retratadas a criança as suas pesquisas, estatísticas e censos.
branca e sua família; Art. 10. Esta Lei entra em vigor na
VI – incluir no ensino dos idiomas data de sua publicação.
estrangeiros, em regime opcional, as Art. 11. Revogam-se as disposições
língua iorubá e kiswahili. em contrário.
§ 1º O grupo de trabalho incluirá
entre seus membros representantes das JUSTIFICAÇÃO
organizações negras e intelectuais negros
dedicados ao estudo da matéria.
Os africanos não vieram para o Brasil
§ 2º As modificações curriculares livremente, como resultado de sua pró-
aprovadas aplicar-se-ão obrigatoriamen- pria decisão. Vieram acorrentados, sob
te às escolas públicas e particulares, a toda sorte de violências físicas e morais.
76 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

Eles e seus descendentes trabalharam A Constituição brasileira garante a


por mais de quatro séculos construindo inviolabilidade dos direitos enumerados
este País. Não tiveram, no entanto, a mí- no seu artigo 5°, cujo caput assegura:
nima compensação por esse gigantesco “Art. 5° Todos são iguais perante a
trabalho. lei, sem distinção de qualquer natureza,
O escravo, no Brasil como em toda garantindo-se aos brasileiros e aos es-
a América onde a escravidão existiu, foi trangeiros residentes no país a inviola-
vítima de toda espécie de atrocidades, bilidade do direito (...) à igualdade (...).
torturas e degradações, justificadas pela .............................................................”
ideologia da supremacia do branco-euro-
peu como uma necessidade. Necessidade Esse princípio, no entanto, ainda
de quem, perguntamos. Obviamente, não não se constituiu num verdadeiro direito
dos africanos e seus descendentes escra- para o negro brasileiro, o qual continua
discriminado em todos os aspectos de
vizados, que nunca foram indenizados
sua vida em nossa sociedade. Fazem-se
pela espoliação do sangue e suor que
necessárias, portanto, medidas concretas
verteram, cimentando a edificação do
para implementar o direito constitucional
Brasil. Sem o esforço do seu trabalho,
da igualdade, garantida aos brasileiros
este País não existiria.
negros pela Constituição.
É tempo de a Nação brasileira saldar
O presente Projeto de Lei atinge
essa dívida fundamental para com os
apenas três dimensões da discriminação
edificadores deste País. O princípio da
racial contra o negro no Brasil: as oportu-
isonomia na compensação do trabalho
nidades e a remuneração do trabalho, a
torna moral e juridicamente imperativa educação e o tratamento policial.
uma ação compensatória, da sociedade e
do Estado, destinada a indenizar, embora Inúmeras pesquisas científicas,
tardiamente, o trabalho não-remunerado algumas patrocinadas e realizadas por
do negro escravizado e o trabalho sub- órgãos internacionais como a Organiza-
-remunerado do negro supostamente ção das Nações Unidas para a Educação,
libertado a 13 de maio de 1888. a Ciência e a Cultura – UNESCO, com-
provam a discriminação contra o negro
Rui Barbosa, que na qualidade de no mercado de trabalho. Em 1959, após
Ministro da Fazenda da República orde- pesquisa feita no mercado de trabalho no
nara a incineração dos documentos rela- Rio de Janeiro, a chefe de Colocação do
tivos ao tráfico escravo e à escravidão, Ministério do Trabalho, Srª Vera Neves,
certa vez mencionou, romanticamente, afirmou que “é o preconceito de cor que
que os escravos deviam ser indenizados. se encontra em primeiro lugar como
Entretanto nada fez para concretizar essa fator de desemprego”. O mesmo foi
exigência da justiça e da consciência constatado em relação a Porto Alegre, em
cívica. pesquisa realizada pelo Sistema Nacional
Projetos de Lei
Ação compensatória 77

de Emprego – SINE, do Ministério do 44,3% percebem até um salário mínimo,


Trabalho (O Jornal, 14-6-59). enquanto os brancos situados nessa faixa
As estatísticas existentes confirmam de rendimento somam 27,0%.
o quadro inegável de desigualdades ra- Os dados da Pesquisa Nacional por
ciais no mercado de trabalho, resultantes Amostra de Domicílios – PNAD, rea-
da discriminação. lizada em 1976 pela Fundação Instituto
Segundo a Pesquisa Nacional por Brasileiro de Geografia e Estatística –
Amostra de Domicílios - PNAD de 1987, IBGE, mostram que:
que pesquisou a cor da população, o 1) as desigualdades de rendimento
negro (soma das categorias “pretos’’ e entre brancos e negros aumentam à
“pardos”) representa 42,8% da popula- proporção que o trabalho exige mais
ção brasileira. Sabemos que tal estatística qualificação;
representa uma porcentagem muito mais
baixa do que a verdadeira participação 2) mesmo com maior nível de ins-
do negro na nossa população, pois os trução, a força de trabalho negra recebe
entrevistados, conforme denunciam os menor remuneração;
próprios técnicos em demografia, ten- 3) mesmo dispondo de escolarida-
dem a negar sua condição de negros, de igual à do branco, o negro tende a
classificando-se em outras categorias, preencher posições ocupacionais com
exatamente como resultado da interna- rendimentos inferiores;
lização do preconceito de cor. Todavia,
mesmo com esses números subestima- 4) os brancos detêm propor cio-
dos, é gritante a discriminação de que é nalmente maior parcela de rendimento,
objeto o negro. independentemente das categorias ocu-
pacionais em que estejam;
Em contraste com a sua participação
acentuada na população como um todo, 5) mesmo nas categorias ocupa-
vejamos a participação do negro na força cionais em que os brancos representam
de trabalho: entre aqueles que ganham parcela menor da força de trabalho, a
mais de 10 salários mínimos, encontram- proporção do rendimento alocada aos
-se apenas 12,4% de homens negros e, o brancos, como grupo, é superior à dos
que constitui um verdadeiro escândalo, negros;
somente 2,4% de mulheres negras. Isso 6) mesmo os 10% dos negros que
significa que o negro, representando mais ganham não chegam a perceber
42,8% da população brasileira e 41,9%
39% do que auferem os 10% mais bem
das pessoas economicamente ativas,
pagos entre os brancos; o rendimento
recebe 5,6 vezes menos que os brancos
médio destes é seis vezes maior do que
nos empregos melhor remunerados.
o rendimento médio dos negros que
Por outro lado, dos negros incluídos ganham mais. Ou seja, só como retórica
entre as pessoas economicamente ativas, vazia pode-se falar em “classe média
78 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

negra” ou numa mitológica “burguesia percebemos a necessidade de especificar


negra”. as metas relacionadas à força de trabalho
negra feminina. Daí a especificidade de
Sem dúvida, nada indica que a
20% para os homens negros e 20% para
situação se tenha modificado desde a
as mulheres negras.
publicação dos resultados da pesquisa
mencionada. Cremos que as medidas de ação com-
Na realidade, fica nítida a caracteri- pensatória e as formas de seu incentivo e
zação da desigualdade de oportunidade e obrigatoriedade estão definidas no texto
de remuneração do trabalho entre negros do Projeto de forma auto-explicativa.
e brancos no Brasil. Esse quadro de desi- Quadro semelhante ao constatado
gualdade não poderia existir se se tivesse no mercado de trabalho encontramos
efetivado a implementação do direito à no que diz respeito ao acesso do negro
isonomia garantida pela Constituição. O à educação. De acordo com a PNAD
presente Projeto de Lei, por intermédio de 1987, 13,1% dos brancos carecem
de seus artigos 1º a 6º, visa à aplicação de instrução ou possuem menos de um
desse princípio constitucional nas esfe- ano de escolaridade; entre os negros, a
ras da oportunidade e remuneração do proporção é de 29,0%, ou seja, mais que
trabalho em relação ao negro. o dobro. De outra parte, o número de
Seria absurdo, após quase um século negros com 12 anos ou mais de instrução
durante o qual o negro permaneceu dis- (1,5%) constitui 5,1 vezes menos o valor
criminado no mercado de trabalho, espe- relativo de brancos (7,7%).
rar que tal discriminação desaparecesse Outra vez podemos constatar que tais
espontaneamente. Faz-se imperativo, diferenças não seriam sustentáveis caso
então, o estabelecimento de metas legais vigorasse a igualdade racial assegurada
e a obrigatoriedade de medidas para pela Constituição. A concessão de bol-
implementá-las. sas compensatórias a estudantes negros
Baseado na porcentagem oficial (em- visa à correção de tais distorções, pela
bora inferior à que refletiria a realidade implementação do princípio do direito à
demográfica) da proporção de negros isonomia relativa ao acesso à educação.
na população global brasileira (42,8%, Tal medida contribuirá, igualmente,
segundo a PNAD de 1987), o projeto para conferir melhores oportunidades
define como meta uma participação de de trabalho ao negro, em decorrência da
40% de negros em todos os níveis e importância da educação para a qualifi-
escalões ocupacionais. Constatando a cação do trabalhador.
elevada intensidade da discriminação O conteúdo da educação recebida
contra a mulher negra no mercado de pelas crianças negras que têm opor-
trabalho, comprovada nas estatísticas -tunidade de estudar representa outro
e também em outros tipos de pesquisa, aspecto da desigualdade racial anti-
Projetos de Lei
Ação compensatória 79

-constitucional na esfera da educação. A polícia. O negro é sempre o primeiro


criança branca estuda tendo por base um suspeito. Muitas vezes, vai preso apenas
currículo em que a história e a civilização por não ter documento em seu poder, o
européias, criadas por seus antepassados, que não ocorre, com a mesma freqüên-
são rigorosamente abordadas. Entretanto cia, relativamente aos brancos. Enfim,
a civilização e história dos povos afri- a mentalidade policial ainda é marcada
canos, dos quais descendem as crianças pela seguinte atitude: “Branco correndo
negras, estão ausentes do currículo esco- é atleta; preto correndo é ladrão.” Os
lar. A criança negra aprende apenas que programas de orientação anti-racista
seus avós foram escravos; as realizações para policiais visam à eliminação dessa
tecnológicas e culturais africanas, sobre- desigualdade anticonstitucional.
tudo nos períodos anteriores à invasão
e colonização européias da África, são Em resumo, as medidas de ação
omitidas. compensatória da escravidão e discrimi-
nação estabelecidas pelo Projeto de Lei
Omite-se, igualmente, qualquer proposto instituem maiores oportunida-
referência à história da heróica luta dos des para o negro integrar, em proporção
afro-brasileiros contra a escravidão e o relativamente análoga à da participação
racismo, tanto nos quilombos como por branca, as esferas da vida nacional das
intermédio de outros meios de resistência. quais ele tem sido excluído por tempo
Comumente o negro é retratado de forma demasiadamente longo. Dessa forma, o
pejorativa nos textos escolares, o que presente Projeto visa a contribuir para
ocasiona efeitos psicológicos negativos estabelecer, embora com bastante atraso,
na criança negra, amplamente documen- a justiça racial em nosso País, de acordo
tados. O mesmo quadro tende a encora- com o espírito do artigo 5º da Constitui-
jar, na criança branca, um sentimento de ção.
superioridade em relação ao negro.
Fazem-se necessárias tais medidas
O artigo 7º deste Projeto de Lei compensatórias em função da própria
objetiva a correção dessa anomalia e a história e características específicas da
implementação do direito à isonomia sociedade brasileira, não sendo necessá-
assegurado pela Constituição. Da mes- ria a referência a experiências exógenas.
ma forma, tornando opcional, entre as Desde o período imediatamente pós-
matérias de estudos religiosos, o ensino -abolição da escravatura, o negro livre
dos conceitos espirituais da religião de reclama medidas antidiscriminatórias no
origem africana, evita-se que a religião Brasil. Por intermédio da imprensa negra
da comunidade negra seja retratada como (existente desde 1915, em São Paulo),
“animismo” ou conforme outras denomi- da Frente Negra Brasileira (1929-1937,
nações pejorativas inferiorizantes. de âmbito nacional), da Convenção
É notória a desigualdade de tra- Nacional do Negro (São Paulo, 1946),
tamento entre negros e brancos pela do I Congresso do Negro Brasileiro
80 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

(Rio, 1950), do Teatro Experimental Verifica-se, entretanto, a necessidade


do Negro (Rio e São Paulo, 1944-68), de se estabelecer a obrigatoriedade legal
do Movimento Negro Unificado (desde dessa prática, de forma sistemática,
1978), do Ilê-Aiyê, Badauê, Malê Debalê pois nos censos de 1960 e 1970 e em
e Olodum da Bahia contemporânea, algumas edições da PNAD o quesito cor
do Instituto de Pesquisas das Culturas não constou dos dados publicados pelo
Negras (IPCN) do Rio de Janeiro, do IBGE. Esse fato traduz arbitrariedade no
Ipeafro de São Paulo e do Rio de Janeiro, critério utilizado para se decidir se o item
e de muitos outros movimentos, o negro cor deve constar ou não, deixando-nos
vem exigindo, constantemente, que seja sem qualquer certeza da disponibilidade
efetivado o compromisso constitucional de dados para a análise da existência ou
que lhe assegura direitos iguais. não da discriminação racial.
Em 1946, a Declaração Final da No plano da ação das autoridades
Convenção Nacional do Negro enfatizou públicas, a recente criação, pelo Governo
a necessidade de medidas complemen- Federal, do Programa Nacional de Di-
tares nas áreas da educação e economia, reitos Humanos, do Grupo de Trabalho
para que o negro pudesse realmente des- para a Eliminação da Discriminação no
frutar de oportunidades iguais no campo Emprego e na Ocupação – GTEDEO e
do trabalho e da sociedade em geral. do Grupo de Trabalho Interministerial
Sem essas medidas complementares, para Valorização da População Negra
uma legislação tratando meramente de traz a inovação de levar a discussão de
emprego não teria condições de efetivar, assuntos tão caros aos negros brasileiros
de fato, uma modificação significativa para o interior do Estado. O primeiro
no existente quadro de desigualdades no possui entre suas metas a formulação de
mercado de trabalho. políticas para a redução das desigualda-
Para que se possa avaliar a imple- des no Brasil. O GTEDEO e o grupo de
mentação ou não-implementação do valorização da população negra tratariam
princípio do direito constitucional à de propor medidas compensatórias, des-
isonomia racial, impõe-se a necessidade tinadas aos negros brasileiros, nas áreas
de dados estatísticos diferenciados por de saúde, educação, mercado de trabalho
categoria racial, o que se tem convencio- e meios de comunicação.
nalmente chamado de “quesito cor”. Nos Outro acontecimento de grande
censos demográficos brasileiros de 1872, relevância para a população negra foi
1890, 1940, 1950, 1980, no suplemento o seminário Multiculturalismo e Racis-
da PNAD de 1976 e na PNAD-Cor da mo: O Papel da Ação Afirmativa nos
População de 1987 o quesito cor foi Estados Democráticos Contemporâneos,
consignado. Trata-se, portanto, de uma promovido pelo Ministério da Justiça.
prática bem enraizada nas nossas tradi- No discurso de abertura desse evento, o
ções censitárias e de pesquisa. presidente Fernando Henrique Cardoso
Projetos de Lei
Ação compensatória 81

concitou seus participantes a usar a tos, declarações de princípios, cartas de


criatividade para buscar soluções contra reivindicações, em que se consigna a
o preconceito e a discriminação raciais impaciência que aguilhoa o povo negro
e afirmou expressamente ser necessário deste País, sequioso de justiça racial.
“desmascarar” a forma como se pratica
Esperamos que o Congresso Na-
a discriminação racial no Brasil.
cional seja sensível a essa aspiração do
Como se vê, as autoridades pú- negro por uma verdadeira democracia
blicas deste País estão conscientes do racial no seio da Nação que ele, como
preconceito e da discriminação prati- nenhum outro, tem o direito de afirmar
cados contra os negros brasileiros e da que ajudou a construir.
necessidade de medidas concretas para
superá-los. Sala das Sessões, em 24 de abril de
1997.
O presente Projeto de Lei traduz
os anseios de justiça e igualdade, numa Senador ABDIAS NASCIMENTO
sociedade efetivamente democrática,
de milhões e milhões de brasileiros de
origem africana, que se têm manifestado
por intermédio das várias organizações
negras e afro-brasileiras. Há um farto
arquivo de pronunciamentos, manifes- Publicado no Diário do Senado Federal, de 25-4-97
83

Escritores do Quilombhoje encontram-se com o senador Abdias Nascimento.

Após o lançamento dos Cadernos Negros no. 19 – Poemas (edição do grupo Quilombhoje Literatura,
de São Paulo, e da Editora Anita Garibaldi) no Instituto Palmares de Direitos Humanos, Rio de Janeiro,
em 19 de abril de 1997, escritores afro-brasileiros visitaram o senador Abdias Nascimento, ocasião em
que conversaram sobre literatura, cultura e problemas da comunidade afro-brasileira. Na foto, a partir
da esquerda: Selma Maria, Mirian Alves, Marisa do Nascimento, Jamu Minka, Abdias Nascimento, Dr.
Osvaldo Barbosa, Éle Semog e Paulo Roberto dos Santos. Para o segundo número da revista Thoth, está
programado um artigo sobre os 20 anos do Grupo Quilombhoje Literatura.
Discurso proferido no Senado Federal
em 11 de março de 1997

Pronunciamentos Em comemoração ao Dia Internacio-


nal da Mulher, homenagem às mu-
lheres africanas e afro-brasileiras, às
senadoras Benedita da Silva, Marina
Silva e Júnia Marise, e também à sua
mãe, Georgina Ferreira Nascimento.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,

Sob a proteção de Oxum, inicio este


meu pronunciamento, ainda que tardio.
A recente comemoração do Dia In-
ternacional da Mulher trouxe mais uma
vez à discussão e reflexão os diversos
86 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

temas e questões referentes à condição certo modo o trabalho das empregadas


feminina, desde as lutas e reivindicações domésticas, negras na sua maioria, que
dos grupos de mulheres organizados até permitiu a intelectuais e militantes bran-
as conquistas que a mulher vem obten- cas ganharem mais espaço social para as
do nas últimas décadas, passando pelo mulheres de classe média e alta, sem que
exame mais aprofundado de assuntos aquelas obtivessem uma contrapartida
como a própria feminilidade ou o lugar justa para a sua colaboração essencial,
da biologia e da cultura na construção embora quase sempre compulsória.
dos papéis sociais desempenhados, ao
Seria no mínimo interessante, no
longo do tempo, por homens e mulheres
entanto, observarmos o papel reservado
nas diferentes sociedades.
às mulheres nas tradições africanas e
No caso específico do Brasil, embora afro-brasileiras, desde os tempos mais
muito ainda reste a ser feito, é visível o remotos até a contemporaneidade. A co-
crescimento – não apenas quantitativo, meçar do antigo Egito, onde uma visão
mas também qualitativo - da partici- bastante igualitária era expressa a partir
pação feminina em todos os setores da da própria mitologia. Osíris, o primeiro
sociedade. Em especial, naqueles em que, e mítico soberano e deus, exercia o poder
até pouco tempo atrás, essa participação político e espiritual em conjunto com
era explícita ou implicitamente vedada. Ísis, sua irmã e esposa. Foi Ísis quem
Motoristas, garis, gerentes, empresárias, transmitiu a Osíris o conhecimento da
prefeitas, senadoras, mulheres de toda agricultura, que esse repassou posterior-
origem e qualificação ingressam e triun- mente à humanidade como um todo. As-
fam cada vez mais em áreas antes vistas sassinado por Set, Osíris teve seu corpo
como verdadeiras “reservas de mercado” despedaçado, e os pedaços espalhados
masculinas, demonstrando sua capacidade pelos quatro cantos do mundo. Mas Ísis
e derrubando estereótipos seculares. reconstituiu o seu corpo e o ressuscitou.
Ela também ensinou ao filho Hórus os
Duramente conquistadas, essas
segredos e a filosofia do pai, de forma a
novas oportunidades não se distribuem,
assegurar a continuidade da mensagem
contudo, de maneira igualitária do pon-
do Ma’at, a filosofia da justiça, da ver-
to de vista racial. Dados estatísticos do
dade e do direito que fundamentava a
IBGE – oficiais, portanto – apontam a
matriz ética da civilização egípcia.
existência de um fosso a separar mulhe-
res brancas e negras (ou “pretas” e “par- Assim, não é de estranhar a abundân-
das”, como prefere o IBGE), situação que cia de exemplos de mulheres soberanas
se repete para todos os chamados indi- no Egito antigo, tanto na esfera da con-
cadores sociais: salários, escolaridade, dução e administração do Estado como
mortalidade infantil, expectativa de vida no âmbito religioso-espiritual. Rainhas
etc. Pode-se na verdade afirmar, como o como Nefertiti, Tiye, Nefertari e outras
fazem alguns pesquisadores, que foi de gravaram seu nome na história como es-
Pronunciamentos
Dia Internacional da Mulher 87

tadistas, em colaboração com seus maridos bia, atacou os invasores romanos em


faraós. Houve também sacerdotisas nos 29 a.C., liderando uma guerra de defesa
centros primordiais do culto religioso, assim nacional que durou cinco anos. Com
como uma faraó feminina, Hapashetsut, que um aparato bélico superior, os romanos
reinou sozinha durante a 18ª dinastia. Mas a conseguiram destruir várias cidades, até
mulher egípcia mais conhecida foi também chegar a Napata, a capital. Mas a rainha
uma estadista. Defensora da soberania de não capitulou: atacou mais uma vez as
seu país contra o maior poder imperialista legiões romanas, já cansadas da longa
que o mundo até então conhecera, Cleópatra campanha, e conseguiu estabelecer uma
– cuja aparência física nada tinha a ver com negociação direta com César Augusto. Os
a Elizabeth Taylor do filme de Hollywood – romanos acabaram desistindo do tributo
foi muito mais que a amante de um general que queriam cobrar de Cush.
romano. Se conseguiu manter durante tanto
A história da África registra muitas rai-
tempo a independência do Egito, foi devido
nhas guerreiras, várias das quais enfrentaram
a sua competência política e a sua habilidade
os escravagistas e colonizadores europeus.
de barganha e negociação.
De Angola temos o exemplo da rainha
A tradição das rainhas-mães africa- N’Zinga, contemporânea de Zumbi dos
nas é estabelecida na antiga Núbia, ou Palmares e soberana competente o bastante
Cush, com a linhagem das Kentakes, para enfrentar, militar e politicamente, portu-
que reinaram durante cerca de 600 anos, gueses e holandeses. Gana oferece a figura da
a partir de 300 a.C., por direito próprio rainha Yaa Asantewaa, que liderou a guerra
e não na qualidade de esposas, com to- dos Ashanti contra o domínio inglês. Esses
dos os poderes de administração civil e exemplos não configuram casos isolados,
militar. Na própria Bíblia encontramos mas confirmam uma tradição que nasce de
o exemplo de Makeda, rainha de Sabá, profundas raízes histórico-culturais: o sistema
reino que se estendia de partes do Egito à social e político matrilinear que caracteriza,
Etiópia, Sudão, Arábia, Síria e até regiões desde seus primórdios, a civilização africana.
da Índia. Em vez de desprezar e reprimir a mulher, esse
Além de controlar um riquíssimo modelo estimula seu desenvolvimento como
comércio de ouro, marfim, ébano, pedras ser humano e, portanto, sua contribuição
preciosas, óleos e especiarias, as rainhas produtiva à sociedade como um todo.
africanas dessa época caracterizavam-se A tradição africana das mulheres
como grandes construtoras, responsáveis guerreiras foi transplantada ao Novo
pela ereção de palácios, estátuas, monu- Mundo pelos navios negreiros. Mulheres
mentos, complexos urbanos, represas e como Dandara, companheira de Zumbi
sistemas hidráulicos sofisticadíssimos. dos Palmares, ou Luísa Mahin, liderança
Cleópatra não foi a única guerreira da Revolta dos Malês e mãe do poeta
africana a enfrentar as legiões romanas. Luís Gama, são exemplos da dignidade
Amanirenas, uma das Kentakes da Nú- e do espírito de luta dessas mulheres, que
88 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

não se deixaram abater pela crueldade de todos e até mesmo o reconhecimento


do sistema escravista. Foram mulheres das autoridades constituídas. É o caso de
como essas, anônimas em sua imensa Mãe Menininha do Gantois, a sacerdotisa
maioria, as responsáveis pela própria so- negra internacionalmente conhecida e
brevivência dos descendentes de africa- respeitada, ou de Mãe Hilda, dotada de
nos, não apenas por motivos biológicos, uma lúcida consciência racial e de inve-
mas pela coragem e determinação diante jável responsabilidade política e que, ao
de todas as adversidades. subir a serra da Barriga, ao lado de outras
Mas o exemplo mais consistente lideranças negras, para oficiar o culto aos
da permanência de uma visão africana heróis de Palmares nas peregrinações
sobre o papel da mulher encontra-se do 20 de novembro, assinalou com isso
exatamente nas religiões afro-brasileiras, o respeito aos que ali tombaram na luta
fonte principal de todas as manifestações pela libertação dos africanos escraviza-
culturais e artísticas do negro brasileiro, dos no Brasil.
e responsáveis pela manutenção de uma Assim, é com certeza um sinal de
identidade positiva africana em meio às novos tempos a presença nesta Casa de
agruras da escravidão e do racismo. duas representantes dessa longa tradição
As iyaba, ou orixás femininas, de participação e luta das mulheres afri-
desempenham um papel central na cos- canas e afro-brasileiras. Refiro-me, evi-
mogonia afro-brasileira. Iemanjá, mãe de dentemente, às senadoras Marina Silva e
todas as águas, é o princípio gerador dos Benedita da Silva, que aqui representam,
seres da natureza, do reino humano e do e tão bem, milhões e milhões de mulhe-
reino espiritual. Oxum, deusa do amor e res que lutam a cada dia para vencer as
da água doce, simboliza a fertilidade, a barreiras impostas ao mesmo tempo pelo
procriação e o princípio da criatividade. racismo e pelo machismo. À Benedita da
Iansã, deusa do raio e dos ventos, senhora Silva, companheira de tantas jornadas,
dos mortos e símbolo da personalidade li- quero manifestar meu agradecimento
vre da mulher, significa o poder feminino pela emocionante saudação com que
na luta pela vida, pela justiça, enquanto me recebeu nesta Casa, garantia maior
Nanã representa a fecundidade, Obá, a da disposição de estabelecer metas e
pureza das cascatas no interior das matas estratégias comuns para o enfrentamen-
e Ewa, a essência pura da água cristalina. to do preconceito e da discriminação, e
também para a valorização da cultura e
É natural, portanto, que essas tra-
do povo afro-brasileiros.
dições, associadas à matrilinearidade,
tenham produzido um elenco de lideran- Gostaria também de saudar a sena-
ças religiosas femininas. Mulheres cuja dora Marina Silva pelo prêmio que lhe
sabedoria, determinação, dignidade e concedeu o Programa das Nações Uni-
altivez acabaram dobrando estereótipos e das para o Meio Ambiente, com justiça
preconceitos, garantindo-lhes o respeito atribuído a uma parlamentar e militante
Pronunciamentos
Dia Internacional da Mulher 89

dos movimentos sociais que, embora Marise, digna representante do PDT e


ainda jovem, tem a própria vida a ofe- sincera aliada da causa dos oprimidos
recer como exemplo do poder de um ser de qualquer origem. Esta homenagem é
humano imbuído da vontade de vencer extensiva às três outras nobres senadoras,
barreiras e superar obstáculos. Embora só Emilia Fernandes, Regina Assumpção e
tenha vindo a conhecê-la pessoalmente Marluce Pinto.
nesta Casa, nela reconheço uma aliada Seja-me também permitido evocar,
de peso na árdua tarefa de construção de nobres colegas senadores, as mulheres
uma sociedade capaz de perceber nas di- africanas martirizadas neste País, na
ferenças étnicas e de gênero uma riqueza figura da minha mãe, Georgina Ferreira
que não deve ser desprezada, sob pena Nascimento, a doceira e ama-de-leite
de empobrecermos significativamente que me pariu e me amamentou, a mim,
o patrimônio cultural e o potencial de a meus irmãos e aos filhos dos senhores
adaptação e resposta da espécie humana do café das terras de Franca, assim como
às novas condições e desafios que sem também foi ela quem me deu as primeiras
dúvida a esperam no próximo milênio. lições de liberdade, auto-estima e solida-
Finalizando, gostaria de homena- riedade racial.
gear também a ilustre senadora Júnia Axé!
Pronunciamentos
Denúncia da democracia racial 91

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 12 de março de 1997
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
esta minha fala.
Uma das características dos grupos
humanos é o processo de construção da
Denúncia do mito da sua identidade, a partir de necessidades
“democracia racial” como específicas determinadas por motivos geo-
instrumento de manutenção da gráficos, climáticos e históricos, evoluindo
supremacia branca, pela negação para os valores culturais e éticos, para se
da identidade dos afro-brasileiros, e chegar, a partir daí, por variados meios
explicação do pedido feito ao interativos, a um estágio em que esses
Presidente do Senado para usar elementos se incorporam ao senso comum.
trajes africanos nas sessões da A forma mais cruel de se eliminar
Casa. um povo é privá-lo de sua identidade.
Conscientes desse fato, os formuladores
da ideologia oficial brasileira de há muito
perceberam que, ante a impossibilidade
de eliminar fisicamente os descenden-
tes de africanos, a melhor maneira de
manter a hegemonia branca era intervir
no processo etnocultural desse grupo hu-
92 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

mano, seja proibindo claramente certas dessa ideologia, tão mais perigosa quanto
manifestações – como ocorreu por muito sedutora, pois que construída sobre fun-
tempo com o candomblé e a capoeira –, damentos supostamente universalistas.
seja neutralizando-as pela cooptação e O mito da democracia racial, baseado
esvaziando-lhes o conteúdo étnico, como em meias verdades e falácias comple-
no caso das escolas de samba. tas, e transformado em dogma de nosso
Embora costume apresentar-se como pensamento oficial, tem como propósito
país que se orgulha de ser plurirracial e lubrificar as relações raciais em nosso
multiétnico, o Brasil possui uma face in- País, tornando confortável a posição do
tolerante que sempre vem à tona quando dominador e impedindo o dominado de
os segmentos sociais objetos do precon- perceber a origem da opressão de que é
ceito e da discriminação – dentre eles, vítima.
em especial, os afro-brasileiros – ousam E essa visão conservadora, racista
reivindicar o direito à diferença. Marcado e intolerante, embora travestida do seu
essencialmente pelo assimilacionismo, exato oposto, desvela-se toda vez que
o discurso racial brasileiro – mesmo os afro-brasileiros pretendem criar me-
quando se pretende anti-racista – vê o canismos específicos de enfrentamento
negro tão-somente como ingrediente do racismo e de suas conseqüências em
numa mistura que, ao fim e ao cabo, nossa sociedade. Não faltam aqueles que,
deverá gerar uma “raça brasileira” – de por exemplo, ao verem nas bancas uma
pele morena, talvez, mas estética e cul- revista dedicada ao público negro, acu-
turalmente branca, filiada às vertentes da sam seus responsáveis de serem racistas,
cultura ocidental e calcada em modelos esquecidos de que a imensa maioria da
europeus e norte-americanos. mídia costuma veicular uma imagem do
Ao vislumbrar a solução da questão Brasil obtida, possivelmente, em algum
racial apenas num futuro em que todos ponto da Escandinávia, tal o número de
seriam fisicamente semelhantes, a ide- pessoas de tipo nórdico que nela apare-
ologia racial predominante em nosso ce. Só isso pode explicar certas reações
país aceita – de fato, pressupõe – a total de que foi objeto a solicitação que fiz
impossibilidade de respeitarmos quem ao excelentíssimo senhor presidente do
não se pareça conosco. Por essa visão, só Senado, de que desejava freqüentar esta
poderíamos conviver em pé de igualdade Casa vestindo roupas africanas.
com quem fosse igual a nós – não ape-
Para nós, africanos e descendentes, o
nas cultural, mas também fisicamente.
modo de nos vestirmos representa muito
Assim, no limite, só poderíamos aceitar
mais que uma forma social de estar. Cada
como iguais os nosso próprios clones.
cor, cada detalhe do estilo de nossos
Não é de estranhar, portanto, que trajes guarda uma relação direta com o
grande parte do esforço do Movimento nosso ontológico. Entenda-se: com a nos-
Negro se tenha concentrado na denúncia sa identidade, com a nossa ancestralidade
Pronunciamentos
Denúncia da democracia racial 93

e, fundamentalmente, com a forma como respeito de minha intenção de usar no


lidamos com o mundo. Senado roupas africanas em vez de trajes
europeus. Essa demonstração de insensi-
A fábula em que o rei é levado a
bilidade e alienação decerto traduz muito
caminhar nu pelo seu reino é um bom
bem a mentalidade das elites brasileiras,
exemplo para se entender o significado
aparentemente vivendo o ilusório sonho
da roupa nos tempos atuais. O Brasil
de ainda sobreviverem agregadas a uma
ainda padece de uma subserviência aos
corte imperial...
modelos ocidentais que remonta aos
tempos da Colônia e do Império, quando Têm causado forte impacto, nesta
nobres e cortesãos ostentavam com todo Casa em particular e na sociedade em
garbo roupas feitas de tecidos grossos e geral, as medidas que vêm sendo adota-
pesados, obedecendo à moda européia da das pelo ilustre senador Antônio Carlos
época, alheios ao fato de ser este um país Magalhães no sentido de atualizar as nor-
tropical. Tal fato, ainda no século pas- mas de funcionamento do Senado, dentre
sado, inspirou talvez o melhor exemplo elas a permissão – impensável há algum
da nossa poesia satírica, “A Bodorrada”, tempo – a nossas colegas senadoras e
escrita pelo grande negro, ex-escravo e funcionárias de usarem calça comprida.
herói abolicionista Luís Gama. Isso revela, sem dúvida, uma mentalida-
de aberta à mudança e sintonizada com
Ao mesmo tempo, os negros, prisio- a dinâmica do mundo atual.
neiros e escravizados, em seu trabalho
Tive, numa visita ao nosso excelen-
na lavoura, na mineração e nos serviços
tíssimo presidente Antônio Carlos Maga-
domésticos, eram obrigados a usar so-
lhães, a oportunidade de manifestar meu
mente panos mínimos sobre a respectiva
desconforto com o terno e gravata dos
genitália, forma não apenas de iden- ocidentais. Evidentemente, não estava
tificar o escravo, mas sobretudo de lhe buscando paridade com minhas ilustres
desnudar a alma. A essa perversidade se colegas, que receberam de sua exce-
acrescentaria a proibição de os negros, lência o passaporte para o uso da calça
mesmo livres, usarem sapatos, com o comprida. No entanto, compreendendo o
que se reforçava o estigma de um grupo meu desconforto, nosso excelentíssimo
étnico acostumado, em sua terra de ori- presidente mais uma vez estaria exer-
gem, a fazer da roupa a expressão de um cendo sua sensibilidade baiana, de há
modo de estar no mundo marcado pelo muito familizarizada com as exuberantes
espírito lúdico, refletido na exuberância manifestações culturais afro-brasileiras
das formas e das cores. do Pelourinho.
Creio ter sido essa visão etnocêntrica Ao reconhecer meu direito legítimo
o que levou certo colunista de frivoli- de freqüentar esta Casa usando roupas
dades a emitir sua opinião intolerante, identificadas com a estética e a história
disfarçada sob a capa do sarcasmo, a de nossos antepassados africanos, os
94 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

verdadeiros construtores deste País, o se projeta nas vestimentas tradicionais


senador Antônio Carlos Magalhães es- dos povos africanos e afro-brasileiro e,
taria dando um exemplo de democracia tenho certeza, imprimirá um toque de
e respeito à cidadania afro-brasileira, beleza e alegria ao decoro e dignidade
num momento em que a questão racial que se espera e exige do vestuário dos
é finalmente celebrada na agenda das senhores senadores e senhoras senadoras
grandes questões nacionais. Pois inclusi- membros desta Casa.
ve a Constituição de 1988, em seu artigo
215, parágrafo 1º, reconhece e protege a
existência e as manifestações de nossa
cultura afro-brasileira. Cultura esta que Axé!
95

Léa Garcia declama “ O navio negreiro” no Festival Castro Alves, espetáculo dedicado exclusiva-
mente ao poeta abolicionista, produzido pelo TEN. Teatro Fênix, Rio de Janeiro, 1947.
Pronunciamentos
Homenagem a Castro Alves 97

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 13 de março de 1997
Senhoras e Senhores Senadores,

Sob a proteção de Olorum, faço uso


da palavra.

Em celebração aos 150 anos de nasci- Amanhã, 14 de março de 1997. Ontem,


mento do poeta e abolicionista Antônio 14 de março de 1847. São passados 150
de Castro Alves anos. Mas não poderia deixar de comparti-
lhar, neste plenário, a lembrança da data de
nascimento daquele que foi uma das mais
poderosas vozes de denúncia e de alerta sobre
a infâmia da escravidão, instituição que por
quase quatro séculos subjugou e humilhou
os africanos e seus descendentes no Brasil.
Refiro-me a Antônio de Castro Alves,
também chamado, pela força e lucidez
da sua poesia revolucionária naqueles
“Por menos que conte a história tempos tão adversos – que se prolongam
não te esqueço meu povo até os nossos dias, com outros aspectos –,
se Palmares não vive mais o “Poeta dos Escravos”.
faremos Palmares de novo.”
José Carlos Limeira Castro Alves é seu nome registrado
pela História. Poeta, condoreiro e um
98 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

ativo personagem da campanha abolicio- Aliás, esse poema, “Navio negreiro”,


nista. Mais que isso: forjou em versos a evoca o fato histórico de todos conhecido
fala oculta e revoltada do africano escra- no início deste século, ocorrido no Rio
vizado e, por que não dizer, do próprio de Janeiro, quando o marujo negro João
povo brasileiro. Povo, aqui, no sentido Cândido comandou a chamada Revolta
mais pleno, puro e sublime, ou seja, livre da Chibata. Tinha como objetivo pôr fim
das elites e expurgado dos exploradores. à imolação, ao zunir dos chicotes nas
Castro Alves não se deixou iludir pela costas dos marinheiros negros, castigo
extinção do tráfico de escravos, estabele- comum aplicado pelos oficiais brancos
cida pela lei de 1850. Sabia que a ambição mesmo depois da Abolição, tornando
escravocrata não seria contida por um ato mais impressionante ainda a desgraça
legal. Foi de fato um bardo sensível ao negra condenada por Castro Alves du-
seu tempo e aos tempos vindouros. Numa rante a escravidão.
conjuntura em que o capital era forçado A pena de Castro Alves escreveu
a se desviar do tráfico para a indústria; contra a humilhação; aquela pena deu
em que as forças liberais, monitoradas voz e alma a um povo escravizado e
pela Inglaterra, produziram uma guerra considerado, na contabilidade social dos
contra o Paraguai, em parte motivadas dominadores, como semovente; aquela
pela necessidade de conquistar mercados pena, no auge do romantismo, conseguiu
e formar consumidores, retardando o salto o que os escritores da elite brasileira,
para o progresso e para a democracia, engessados nos critérios do movimento
Castro Alves continuou pregando suas europeu, não conseguiram captar, por-
idéias libertárias e ajudando o Brasil que só construíam personagens negros
a encontrar seu verdadeiro futuro de idiotizados e desprovidos de humanidade.
liberdade e igualdade. O “Poeta dos Es- Esses escritores foram também escravo-
cravos” não foi poeta de versos prosaicos cratas, mesmo que não tivessem escravos.
carregados de eloqüência floreada, muito Não possuíam o gênio de Castro Alves, o
menos representou um devoto da pieda- vôo de condor da sua poesia. Mas ele não
de, como alguns dos nossos eminentes se deixou perverter nem influenciar. Fixou
críticos literários tentaram qualificá-lo. de maneira definitiva e inexorável a saga
Pelo contrário, no célebre e consagrado e o passado de um povo que, na lágrima,
poema “Navio negreiro”, em que narra no suor e no sangue, ergueu as estruturas
os horrores vividos pelos africanos nos deste País.
tumbeiros durante a travessia do Atlânti-
co, ele nos impõe uma dramática reflexão Quando hoje campeia a indiferença
sobre a condição humana e nos força a do Estado e de setores da nossa sociedade
tocar a carne viva da barbárie do homem em relação às nossas crianças, podemos
contra o homem. Não havia em Castro Alves afirmar, sem nenhum radicalismo ou
a indiferença ou o oportunismo na sua luta força de expressão, que um crime de lesa-
desassombrada em favor dos africanos. -humanidade está acontecendo às vistas
Pronunciamentos
Homenagem a castro Alves 99

de uma nação insensibilizada pelo con- Para em teus lábios ver


sumismo. Não posso deixar de lembrar O riso – a estrela no horizonte
esta poesia de Castro Alves, intitulada “A da alma.
criança”, tão bem retratando a ausência
de perspectivas para a criança brasileira, Não. Perdeste tua mãe ao fero
notadamente em seu verso final: açoite
Dos seus algozes vis,
Que tens, criança? O areal da
E vagas tanto a tatear a noite.
estrada
Choras antes de rir... pobre crian-
Luzente a cintilar
ça!...
Parece a folha ardente de uma
Que queres, infeliz?...
espada
– Amigo, quero o ferro da vin-
Tine o sol nas savanas. Morno é
gança.
o vento.
À sombra do palmar Mas há outros motivos para a extra-
ordinária permanência da obra de Castro
O lavrador se inclina sonolento. Alves. Ele se une a uma legião de escri-
tores negros, comprometidos com a causa
É triste ver uma alvorada em da liberdade nas Américas e na África.
sombras São poetas, mas sobretudo guerreiros que
Uma ave sem cantar, usam a palavra como arma para questionar
consciências, mudar atitudes, mexer nos
O veado estendido nas alfambras. corações e na essência de seres humanos,
Mocidade, és a aurora da exis- tendo como paradigma a origem de um
tência, povo, na sua expressão mais profunda – a
sua africanidade.
Quero ver-te brilhar.
Avultam no continente africano
Canta, criança, és a ave da ino-
vozes altamente celebradas como Lé-
cência.
opold Senghor, do Senegal, Agostinho
Neto, de Angola, Noêmia de Sousa, de
Tu choras porque um ramo de Moçambique, Wole Soyinka, da Nigéria,
baunilha Prêmio Nobel de Literatura, e muitos
Não pudeste colher, outros dignos de serem mencionados. Na
diáspora africana o mesmo acontece, tanto
Ou pela flor gentil da granadi-
em número como em qualidade. Poetas do
lha?
porte de um Aimé Cesaire, da Martinica,
Dou-te um ninho, uma flor, dou- que é patrimônio da humanidade; Nicolas
-te uma palma, Guillén, de Cuba, Langston Hughes e
100 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

Imamu Baraka, dos Estados Unidos. O tempo, como instrumento de luta, como
Brasil está presente nessa breve citação meio de expansão do combate ao racismo
com um número invejável de poetas e da transformação da sociedade. É a
afro-brasileiros, contemporâneos e do fala de um povo com a sua própria voz.
passado: Gonçalves Dias, Cruz e Sou- São autores e autoras que se apropriam
za, Carlos Assunção, Solano Trindade, da norma culta e a submetem às razões
Eduardo de Oliveira e tantos outros. da afetividade, da solidariedade, da
emoção, da dignidade e da esperança da
Poderia, para cada período da nossa
comunidade afro-brasileira, construindo
História, citar escritores negros compro-
uma sintaxe que nenhum autor branco
metidos com a mesma luta de Antônio de
poderia criar ou expressar.
Castro Alves. Entretanto, em função da
pertinência do tema, não posso deixar de Eu dou meus parabéns a esses meus
destacar, para a informação dos ilustres irmãos de raça e de literatura. Estamos
colegas, que até a década de 1970, por juntos nesta luta, pois sei da importância
conta do racismo e do preconceito, este de nos expressarmos com independência
País ainda não havia produzido uma ge- nesta arte, deitando por terra as barreiras,
ração de escritores negros. Até então, o as muralhas do mercado editorial brasi-
que tínhamos eram exceções, escritores leiro, assim como as restrições da mídia
negros isolados, solitários, perdidos num para com os escritores negros que não se
mar de branquidão, como se fossem, em curvam às tácitas exigências que lhes são
cada época, mosca no leite das palavras. impostas. Continuem escrevendo sobre e
para o nosso povo, sobre e para o povo
Mas, para meu orgulho, para minha
afro-brasileiro, sem utilizar a metáfora
alegria e, o que é mais importante, para
que engana, deforma e anestesia a rea-
a tonificação da cultura brasileira, vi
lidade cruel, que é o pão de cada dia do
surgir, a partir dos anos 70, a primeira
povo de origem africana neste País.
geração de escritores afro-brasileiros.
São mais de 120 jovens afro-brasileiros, Ao celebrarmos os 150 anos de nas-
na maioria organizados em grupos como cimento do poeta e abolicionista Antônio
o Quilombhoje Literatura, de São Paulo; de Castro Alves, celebramos também
o Grupo Negrícia, do Rio de Janeiro; o a continuidade de uma luta que espero
GENS – Escritores Negros de Salvador, seja compromisso de todos nós, a fim de
e outros mais do Rio Grande do Sul, de erradicarmos o preconceito, as injustiças
Minas Gerais, de Pernambuco, de Mato e o racismo no Brasil.
Grosso, do Maranhão... O SR. SEBASTIÃO ROCHA – Se-
Mulheres negras e negros brasileiros nador Abdias do Nascimento, permite V.
Exª um aparte?
escritores, corajosamente rompendo o
círculo da marginalização e de forma O SR. ABDIAS DO NASCIMENTO
contundente exercendo a palavra, a um só – Com muito prazer.
Pronunciamentos
Homenagem a Castro Alves 101

O SR. SEBASTIÃO ROCHA – Em V. Exª tocou num ponto muito sen-


primeiro lugar, manifestamos a imensa sível: a nossa educação racista. A nossa
satisfação de estar aqui no Parlamento educação, todo o sistema educativo do
Brasileiro e, sobretudo nós, do PDT, Brasil é racista. Por essa razão, eu nunca
de ter V. Exª como companheiro nesta poderia ser um professor universitário
Casa. Congratulo-me com V. Exª sobre- neste País. Este é um fato que quero
tudo pelo tema que aborda com tanta assinalar: foi o exílio que me permitiu
profundidade e com tanto conhecimen- assumir – cheguei exilado aos Estados
to. Temos conversado várias vezes, nes- Unidos – como professor-titular a cadeira
te curto período de sua presença aqui no das Culturas Africanas do Novo Mundo.
Parlamento, e V. Exª tem colocado, não Pretendo debater muito esse assunto
com mágoa, mas como reconhecimen- na Comissão de Educação, presidida pelo
to, que o nosso País não lhe ofereceu nosso ilustre colega, senador Artur da
oportunidade de ser professor de Cultura Távola, do Rio de Janeiro. Precisamos
Negra. E os Estados Unidos o fizeram. escoimar esse ranço escravocrata que
Senador Abdias do Nascimento, como ainda permeia os nossos currículos, que
parlamentar, como cidadão, manifesto ainda permeia a contratação de profes-
que comungo dos ideais que V. Exª tem sores, que ainda permeia a entrada de
defendido e que soube expor de forma alunos afro-brasileiros.
muito presente e muito destacada me- Lutarei aqui, sem descanso e sem
diante o discurso da tarde de hoje. Conte pausa, por isso. O Brasil, repito, foi
com o nosso apoio integral na sua luta construído exclusivamente com o braço,
pelo combate à discriminação racial, à com o suor e o sangue dos nossos ante-
discriminação que sofrem as minorias, passados escravizados, razão pela qual
e pela busca de melhores condições de não pode continuar sendo monopólio das
vida. Saiba V. Exª que sou seu aliado elites deste País.
em todas essas lutas. Acredito, como V. Exª tocou num ponto muito im-
afirmou V. Exª, que o Brasil tem um portante, porque realmente é um assunto
rescaldo de racismo, que deve ser eli- da maior gravidade. Nunca poderemos
minado completamente. A presença de erradicar o racismo enquanto não o fizer-
V. Exª neste Parlamento certamente fará mos no nosso sistema de ensino. É por
com que conquistas cada vez maiores aí que começa o verdadeiro combate ao
sejam obtidas nesse sentido. Era isso racismo.
que tinha a dizer. Muito obrigado.
O SR. ABDIAS NASCIMENTO –
Agradeço a V. Exª pelo aparte e peço ao
senhor presidente que seja incorporado Axé
ao meu discurso.
Pronunciamentos
Discriminação: casos recentes 103

Discurso proferido no Senado Federal Senhor Presidente,


em 3 de abril de 1997
Senhoras e Senhores Senadores,

Sob a proteção de Olorum, dou início


ao meu pronunciamento.
Denúncia de casos recentes de dis- A cada dia temos recebido, com alarmante
criminação contra afro-brasileiros. regularidade, por meio da imprensa, do rádio e
da televisão, informações sobre o acirramento
de conflitos sociopolíticos e econômicos, que
freqüentemente expõem de forma objetiva
diversos fatos de intolerância racial.
Os rearranjos geopolíticos no Leste
Europeu, o avanço do modelo para uma
nova ordem econômico-financeira na
Comunidade Européia e os termos que
regem as propostas do GATT e do Mer-
cosul traduzem, de imediato, um processo
de coisificação do homem, regido agora
pelas engrenagens massacrantes do sistema
excludente de globalização.
Essa nova ordem neoliberal desmonta
os Estados em benefício do capital finan-
104 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

ceiro e da garantia de lucro absoluto e A Abolição da Escravatura foi, na


integral, produzindo uma crise mundial verdade, uma condenação perversa
no mercado de trabalho que vem abalando dos africanos e seus descendentes bra-
sociedades estáveis. Modificando, ainda, sileiros, pois implicou num futuro de
para pior, a atuação de indivíduos que humilhações, falsa cidadania e exclusão.
não compreendem como, na condição de O centenário da Abolição em 1988 foi
cidadãos de Estados democráticos, podem também o ano da consagração da nossa
ser afastados tão abruptamente da estabili- Carta Magna. Naquela ocasião, as forças
dade e dos benefícios sociais conquistados populares e parlamentares progressistas
no decorrer de lutas longas e aguerridas. intervieram e, juntas, deram contribui-
ções que elevaram a nossa Constituição
Configura-se um paradoxo socio-
à condição de um contrato social quase
político, em que o capital financeiro
justo, moderno e abrangente.
imobiliza e conduz Estados, que por sua
vez, embora regidos por modelos de re- Entretanto, de 1988 até hoje, temos
presentação democrática, não conseguem vivido uma seqüência de fatos contun-
garantir, de forma soberana, a seguridade dentes da prática do racismo e da dis-
social do seu povo. criminação contra os afro-brasileiros, o
que torna profundamente questionável
Essa é, dentre as principais, uma das a competência e a eficácia de algumas
circunstâncias que implicam no agrava- instituições do Estado, no exercício de
mento da intolerância, da xenofobia e do suas atribuições mais elementares. Mais
racismo. do que isso, tais fatos ajudam a demolir
Nos Estados Unidos, onde já se definitivamente o combalido mito da
alcançou outro estágio na luta pelos democracia racial.
direitos civis, recentemente a empresa Esse mito tem operado nas relações
Texaco propôs um acordo pelo qual vai sociais do Brasil qual um factóide ardi-
pagar 176 milhões de dólares aos seus loso e lesivo, concebido e disseminado
funcionários negros e latinos, para que a pelas elites brasileiras, tanto internamen-
Justiça daquele país não a condene pela te quanto para a opinião pública interna-
prática de racismo. cional. Pois, na lógica desse mito, os
Lamentavelmente, esse exemplo de negros seriam os únicos culpados pelas
justiça social não tem paralelo com a dificuldades que enfrentam. A eles falta-
nossa realidade. As contradições do ra- riam o talento e a determinação, únicos
cismo se agravam ainda mais nos países requisitos para o sucesso numa terra de
periféricos e subdesenvolvidos, como é o oportunidades iguais para todos.
caso do Brasil. Aqui, existe uma prática Nos últimos anos, essa construção
constante e explícita de violação dos di- ideológica mentirosa está desmoronando
reitos humanos, fundada no etnocentrismo como se fosse um monumento de gelo
branco contra a população afro-brasileira. exposto ao sol. E revelando a verdadei-
Pronunciamentos
Discriminação: casos recentes 105

ra face do racismo e da discriminação e as feridas causadas pelas injustiças e


racial, numericamente expressa em in- as humilhações de que foram vítimas.
dicadores sociais que retratam com toda Somem-se a isso as cinco crianças negras
a clareza a perversidade do jugo imposto assassinadas friamente no bairro carioca
aos afro-brasileiros. de Belford Roxo, com tiros na cabeça,
por seguranças de uma empresa de ôni-
Homem que, na luta contra as in-
bus, e os 11 rapazes e moças, também
justiças raciais, sempre busca soluções
negros, da favela de Acari, mais uma
e alternativas pacíficas, é com incontida
indignação que venho ao plenário desta vez no Rio, exterminados sem que as
Casa para mais uma vez denunciar agres- autoridades tenham dado uma resposta
sões praticadas contra os afro-brasileiros efetiva à sociedade, e se perceberá por
por instituições do Estado, por grupos de que estamos falando de extermínio em
extermínio, por seguranças particulares. cadeia.
Tudo de acordo com uma estranha lógi- Nesta trilha de dor e sofrimento, é
ca, visando manter os negros brasileiros com grande preocupação que temo pela
aterrorizados, inseguros, constantemente reação de autodefesa que o meu povo
sob uma alça de mira. possa assumir, pois a resposta mais ime-
Registremos alguns fatos recentes. diata ao racismo pelo mundo afora é o
Todos nos lembramos do massacre das enfrentamento, a destruição e o caos, em
oito crianças e jovens negros na Igreja nome da legítima autoproteção da vida.
da Candelária, no Rio de Janeiro; por Esses massacres contínuos são a
acaso já estaria esquecido o assassinato realidade de um cotidiano que não se
de 21 pessoas negras e pobres, perpetra- exaure, perpetuados pela indiferença de
do pelo maior grupo de extermínio de uns poucos poderosos neo-escravistas,
que se tem notícia, na favela de Vigário que se impõem a milhões de indefesos.
Geral, também no Rio de Janeiro? Da
Na sua arrogância cruel e avassala-
mesma forma, o povo brasileiro assistiu,
dora, o extermínio dos descendentes de
pela TV, à execução brutal de um jovem
africanos deixa as suas marcas na esteri-
empresário negro no ABC paulista pela
lização de mulheres negras e pobres, na
Polícia Militar de São Paulo. Ainda em
exploração sexual das nossas crianças,
São Paulo, sabemos do que aconteceu
no envolvimento de crianças e jovens
no Bar Bodega, quando dois jovens
negros com o tráfico de drogas, na forma
brancos foram assassinados e a Polícia
como as famílias negras se desagregam,
Civil, no afã irresponsável de responder
pressionadas pela pobreza, pela miséria
à fúria justiceira da opinião pública, da
e pela falta de horizontes.
imprensa e da classe média, não titubeou
em prender, torturar e massacrar cinco Não estou falando dos constran-
jovens negros, trabalhadores, que carre- gimentos pelos quais passam as empre-
garão para sempre, em suas vidas, o fardo gadas domésticas e os cidadãos negros,
106 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

constantemente impedidos de entrar assim os embates nas tribunas jurídicas


pelos elevadores sociais dos edifícios. e, é óbvio, a consolidação de uma juris-
Esse tipo de discriminação, por sinal, prudência de condenação pela prática
torna a arquitetura de habitação praticada daquele delito.
no Brasil extremamente exótica e perdu-
No entanto os dados quantitativos
lária. Em nenhum outro país do mundo
comprovam que não tem consistência
se constroem prédios com cubículos,
a idéia de que o racismo praticado no
como se fossem celas presidiárias, deno-
Brasil decorre dos desníveis econômicos
minados “quartos de empregadas”, nem
e financeiros. Só para dar mais um exem-
tampouco elevadores ditos “de serviço”,
plo, em fevereiro de 1994, aqui mesmo
potencialmente destinados aos negros. É
em Brasília, um juiz de Tribunal de Jus-
o devaneio de uma suposta superioridade
tiça foi agredido verbalmente, junto com
racial influenciando a arquitetura e a
a sua família, chamado de preto bêbado
indústria da construção civil brasileiras.
e ameaçado de prisão por uma mulher
Mas ela testemunha, inequivocamente,
branca, funcionária do Poder Judiciário.
uma segregação aparteísta.
Não vamos nos alongar relatando
Não é à toa, portanto, que temos de-
casos evidentes de discriminação e pre-
parado diuturnamente, desde a promul-
conceito racial, pois teríamos que citar
gação da Constituição de 1988, quando o
o ocorrido com a filha do ex-governador
racismo passou a ser crime imprescritível
do Espírito Santo Albuíno Azeredo, que
e inafiançável, com duas circunstâncias
foi agredida verbal e fisicamente por ser
excepcionais: por um lado, os racistas se
negra e estar utilizando um elevador su-
expõem com toda a ousadia; por outro
postamente reservado aos brancos, além
lado, a polícia e o Ministério Público
de uma infinidade de outros.
evitam, quase como um boicote branco,
caracterizar, na forma legal, as queixas Mas o racismo e a violência contra
contra a prática de racismo. os afro-brasileiros já não são fatos invi-
síveis neste momento da vida nacional. A
Não posso afirmar, de maneira
comunidade negra, o Movimento Negro
categórica, que haja uma indiferença
estão alertas, elaborando a maior ação
sistêmica do Poder Público para com
de insurgência contra o racismo de que
esses reclamos, mas com certeza a
jamais se teve notícia neste País.
maioria dos delegados de polícia e
promotores públicos prefere enquadrar No breve rol de fatos, é conhecido
as denúncias e queixas contra o racismo também o escandaloso caso de um can-
e a discriminação como inquéritos de tor de futilidades infantis que gravou,
injúria, difamação ou calúnia. Esse divulgou e comercializou uma música
procedimento, mesmo que involuntá- acintosamente racista, ofensiva às mu-
rio, não tipifica e não quantifica o ato lheres afro-brasileiras e à comunidade
criminoso do racismo, impossibilitando negra como um todo.
Pronunciamentos
Discriminação: casos recentes 107

Gerentes de restaurantes da orla ma- fosse. Nas mãos de delegados, promo-


rítima do Rio de Janeiro, em reportagem tores e juízes imbuídos da síndrome do
divulgada pelo jornal O Dia, afirmaram avestruz, que preferem antes ser injustos
que não empregavam negros porque do que afrontar o mito da democracia
esses, em geral malpreparados, não são racial, a atual legislação acaba sendo
bem vistos pelos clientes e não suportam mais um obstáculo na luta pela igualda-
a carga horária que os garçons cearenses de do que um instrumento em favor dos
aceitam. secularmente explorados e oprimidos.
Esses são apenas alguns exemplos Dessa forma, e no sentido de con-
do que vem ocorrendo em nosso País. tribuir para que a sociedade brasileira
Mas todos esses casos e muitos outros disponha de meios jurídicos precisos e
já foram devidamente encaminhados à eficazes para penalizar aqueles que in-
Justiça brasileira, que, espero, não ne- sistem na prática de crimes de natureza
gligenciará no rigor das punições, pois discriminatória ou racista, encaminharei
tão necessário quanto punir os racistas é dentro em breve à Mesa desta Casa um
manter e garantir a paz social. projeto de lei que define e penaliza os
Nesse sentido, porém, somos obri- crimes de discriminação e de racismo.
gados a constatar que a legislação anti- Desde já solicito o apoio dos ilustres
discriminatória de que dispomos não se colegas.
tem mostrado o instrumento moderno e
eficiente que todos nós gostaríamos que Axé!
Pronunciamentos
Multiculturalismo no Brasil 109

Discurso proferido no Senado Federal Senhor Presidente,


em 7 de abril de 1997 Senhoras e Senhores Senadores.

Sob a proteção de Olorum, inicio


minha fala.
Um dos traços distintivos da socie-
Defesa do multiculturalismo e da dade brasileira é o seu caráter multicul-
plurietnicidade como essenciais à
tural, plurirracial e pluriétnico. Formado
construção de um Brasil justo e
por contingentes humanos das mais
democrático. Reconhecimento da
diversas origens, que para cá trouxeram
atuação do presidente Fernando Hen-
diferentes hábitos e costumes, diferentes
rique Cardoso em face da
formas de ver o mundo, diferentes contri-
questão racial brasileira.
buições nas áreas do saber e tecnologia,
o Brasil goza, por isso, de uma imensa
riqueza de possibilidades culturais que
lhe proporcionam uma extraordinária
flexibilidade do ponto de vista de sua
inserção num mundo em que as fronteiras
se tornam cada vez mais difusas em razão
das novas tecnologias de comunicação e
do papel exercido pelas empresas mul-
tinacionais, responsáveis maiores pela
chamada globalização.
110 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

A Constituição de 1988 registra, no O destaque dado na Constituição à


capítulo VIII da Ordem Social, o plura- diversidade étnica e ao pluralismo cultu-
lismo étnico, consagrando esse capítulo ral não é, com certeza, aleatório. Resulta
à questão indígena, enquanto os parágra- da luta dos povos indígenas, bem como
fos 1º e 2º do artigo 215 reconhecem a das reivindicações do Movimento Negro
realidade de uma sociedade pluricultural de que seja reconhecida a igual dignidade
cujas diversas manifestações culturais dos grupos afro-brasileiros e garantido o
indígenas e afro-brasileiras devem ser respeito às culturas de origem africana.
reconhecidas e protegidas. O mesmo Corresponde também a uma nova vi-
artigo 215 dá destaque, no parágrafo 2º, são das relações étnicas e culturais em
à etnia, usando a expressão “segmentos sociedades multirraciais, radicalmente
étnicos nacionais”. diferente do projeto assimilacionista que
se expressa em teorias como a da “demo-
Com essas diversas cláusulas, a
cracia racial”, visão essa que vem sendo
Constituição de 1988 reconhece o País
formulada nas últimas décadas por soció-
como uma nação formada por diferen-
logos, antropólogos e cientistas políticos,
tes etnias, confirmando um pluralismo
e que tem o apoio explícito, no Brasil,
que o Estado tem o dever de proteger.
Isso demonstra que não existe oposição de intelectuais comprometidos com a
formal entre os conceitos de etnia e de transformação das relações sociais, entre
nação, havendo mesmo uma coexistência eles o atual presidente da República, o
entre ambos. Extremamente longo, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
texto constitucional não entra, porém, no O reconhecimento da existência de
detalhe de conceituar o que seja etnia ou um pluralismo étnico, imbuído do reco-
pluralismo cultural. No entanto a análise nhecimento adequado da imagem dos
mostra-nos que o espírito da Constituição grupos étnicos pelo Estado, representa
remete a três concepções. A primeira, ao um golpe profundo no discurso “uni-
se referir à pessoa humana, remete a um versalista” dominante, baseado na idéia
universalismo fundamental que define o da fusão das raças e na assimilação por
cidadão enquanto tal, sem distinções de todos da cultura européia, supostamente
raça, religião, sexo e cultura. A segunda, superior. Tal reconhecimento adequado
usando nominalmente as expressões da imagem dos grupos negros e indígenas
“populações indígenas” e “segmentos contraria, sem dúvida, o desejo daqueles
étnicos nacionais”, reconhece implici-
que cultivam o ideal de homogeneização
tamente a diversidade étnica da nação,
racial e que acreditam nas virtudes da
admitindo particularmente a especifi-
assimilação cultural como solução para
cidade dos índios, aos quais consagra
diluir as diferenças étnicas e as desigual-
todo um capítulo. A terceira concepção,
dades socioeconômicas.
por fim, confirma o pluralismo cultural,
visto como patrimônio comum da nação Mas, para os que defendem o res-
e como tal devendo ser protegido. peito às diferenças étnicas, o reconhe-
Pronunciamentos
Multiculturalismo no Brasil 111

cimento explícito e adequado da etnia idéia sobre a influência africana. Essa


representa o resultado de uma exigência percepção inadequada da presença negra
existencial fundamental, na medida em na História do Brasil é compartilhada
que consideram a necessidade desse re- por brancos e negros, que absorveram e
conhecimento tanto em nível individual reproduzem a história da etnia dominante
quanto coletivo. Para esses, é insuficien- e de seus heróis brancos, e tem como re-
te o simples reconhecimento da igual- sultado mais grave a interiorização, pelo
dade individual sem o reconhecimento negro, de uma imagem menosprezada, o
simultâneo e adequado do valor das que o torna complexado e alienado. Para
particularidades étnicas, pois o Estado reverter tal situação, faz-se necessário
brasileiro, ao representar os interesses reescrever a história e promover um
da etnia dominante, reconhece de fato o amplo debate sobre a verdadeira censura
valor e a primazia desta última sobre as exercida pela história oficial durante mais
demais. de 450 anos.
Não custa reafirmar, portanto, que a Ao mesmo tempo em que estabelece
principal motivação dos que procuram a ligação entre nossas raízes e nossa luta
libertar-se dos efeitos do racismo é o de libertação, essa história reescrita – po-
desejo do reconhecimento recíproco deroso agente libertador – vai ajudar-nos
entre iguais – de ser reconhecido como a entender e amadurecer a consciência de
ser humano dotado de mérito e dignidade nossa pobreza e miséria como resultado
inerentes. Essa aspiração corresponde da opressão de que temos sido vítimas
ao valor que chamamos de auto-estima. nestes quatro séculos, ao mesmo tempo
Ela leva os negros a desejarem libertar- em que permitirá preencher as lacunas
-se do estado de inferioridade a que da história oficial, dotando os afro-
foram relegados e a desembaraçar-se -brasileiros de referências históricas e de
das imagens depreciativas de si mesmos. meios para interpretá-las. Mas, para que a
Particularmente, leva-nos a lutar contra o História reescrita possa alcançar o públi-
racismo, que representa, acima de tudo, co, aumentar o grau de consciência étnica
a negação radical do valor da herança e pavimentar a coesão comunitária, é
histórica e cultural dos afro-brasileiros, ainda necessário que ela seja ensinada
de onde advém a discriminação. nas escolas, introduzida nos manuais e
livros escolares e, também, difundida
Os resultados de uma pesquisa reali-
pela mídia.
zada em 1996 pelo Instituto Vox Populi,
publicados na revista Veja, confirmam As diferentes formas nas quais e
a péssima impressão da sociedade bra- pelas quais os negros materializam sua
sileira quanto à participação dos negros humanidade, exercem sua criatividade
na formação do Brasil. Enquanto 36% e exprimem sua personalidade não se
consideravam ser positiva a influência limitam à arte, à religião ou à História.
européia, apenas 9% tinham a mesma Priorizar tal enfoque – o que é comum
112 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

para os adeptos de uma certa visão ana- mento de políticas compensatórias que
crônica da questão racial – seria reduzir ampliem o acesso de negros aos cursos
a ação do Movimento Negro a uma di- profissionalizantes, à universidade e às
mensão meramente simbólica e cultural. áreas de tecnologia de ponta. Reivindica
A total reversão da imagem negativa do também a concessão imediata de títulos
negro passa também por sua ascensão de propriedade definitiva das terras às
econômica e seu acesso ao poder polí- chamadas comunidades remanescentes
tico. Mas não é tudo. É preciso também de quilombos, bem como a revisão dos
que o negro tenha acesso paritário aos textos escolares para eliminar as ima-
meios de comunicação de massa. Sem gens negativas dos negros e também
isso, a percepção social do negro con- as referências pejorativas e racistas. As
tinuará submetida ao poder decisório reivindicações alcançam também a ne-
dos responsáveis pela mídia, os quais cessidade do estabelecimento de medidas
tendem a excluir a imagem dos afro- que assegurem um melhor acesso dos
-brasileiros, bem como a dos indígenas, afro-brasileiros ao mercado de trabalho,
por considerar que, de um lado, esses tanto quanto a representação propor-
dois segmentos étnicos não dispõem de cional dos grupos étnicos e raciais nas
poder aquisitivo suficiente e, de outro, campanhas de comunicação do Governo
não correspondem aos cânones estéticos e de entidades que com ele mantenham
greco-romanos que dominam a sociedade relações econômicas e políticas.
e, conseqüentemente, a própria mídia. Cabe aqui ressaltar a forma como o
O documento Por uma política documento foi recebido pelo presidente
nacional de combate ao racismo e à Fernando Henrique Cardoso, numa
desigualdade racial, apresentado ofi- audiência especialmente concedida às
cialmente pelo Movimento Negro ao lideranças do Movimento Negro res-
presidente Fernando Henrique Cardoso ponsáveis pela Marcha. Integrante, com
em 20 de novembro de 1995, por ocasião Florestan Fernandes e Octavio Ianni,
da Marcha Zumbi dos Palmares contra da chamada Escola Sociológica de São
o Racismo, pela Cidadania e a Vida, Paulo – responsável, entre outras coisas,
mostra que a valorização da imagem do por uma profunda reformulação no estu-
negro está no centro dos objetivos polí- do das relações raciais em nosso País –,
ticos e culturais das organizações afro- cuja tese de mestrado teve como tema
-brasileiras. Pode-se ler no documento a mobilidade social dos negros em Flo-
que o programa de combate ao racismo rianópolis, o presidente instituiu nesse
e à desigualdade racial implica o fomento mesmo dia o Grupo de Trabalho Intermi-
à cultura, a preservação da memória do nisterial para a Valorização da População
povo negro brasileiro e a valorização das Negra. Composto de militantes negros e
religiões de origem africana. Mas tam- representantes de 10 ministérios, o Grupo
bém inclui objetivos como a ampliação tem por missão apresentar propostas de
da legislação anti-racista e o desenvolvi- políticas públicas na área das relações
Pronunciamentos
Multiculturalismo no Brasil 113

raciais, em especial as chamadas medidas uma afirmação contra o Brasil. “De lá


compensatórias, ou de “ação afirmativa”, para cá, muita coisa mudou, no sentido
adotadas em muitos países para remediar de que o Brasil passou a descobrir que
a situação de grupos historicamente dis- nós não tínhamos assim tanta propen-
criminados, como negros e mulheres, são à tolerância como gostaríamos de
mas ainda encaradas com muita má von- ter. Pelo contrário, existem aqui alguns
tade em nossa sociedade, até mesmo por aspectos de intolerância, quase sempre
setores que se pretendem “esclarecidos” disfarçados pela tradição paternalista do
e “progressistas”. nosso velho patriarcalismo. E sempre um
pouco edulcorados, adocicados, porque
É curioso – mais que isso, alenta-
nós não manifestamos nossas distâncias
dor – perceber o quanto a visão do atual
e as nossas reservas, geralmente, em
presidente da República se distancia,
termos ásperos.”
nesse aspecto, daquela da maioria de
seus correligionários e aliados políticos. Uma das dificuldades apontadas
Essa visão, que, no que tem sido exposto, pelo presidente na elaboração e, princi-
coincide com a do Movimento Negro e palmente, na implementação de medidas
de seus parceiros no mundo acadêmico, concretas para acabar com o racismo e a
vem sendo explicitada reiteradas vezes. discriminação, e ao mesmo tempo para
Ao abrir, por exemplo, o seminário promover a população afro-brasileira - o
internacional Multiculturalismo e Ra- presidente confessa-se um adepto das
cismo: o Papel da Ação Afirmativa nos medidas compensatórias, embora enfa-
Estados Democráticos Contemporâneos, tize a necessidade de serem planejadas
o presidente reafirmou ser fundamental, com criatividade, evitando-se a cópia
no mundo contemporâneo, nossa diver- pura e simples de experiências estrangei-
sidade cultural e étnica, que ele – tal ras –, consiste exatamente na hipocrisia
como nós – considera um privilégio, que reveste as relações raciais em nosso
cujos imensos benefícios, contudo, só país, hipocrisia essa que oculta valores
advirão “se nos organizarmos demo- muito profundos, e também profundos
craticamente, ou seja, se aumentarmos interesses. Essa hipocrisia está por trás,
as oportunidades de acesso à cultura, à por exemplo, de manifestações como
participação na economia, aos poderes aquela que tive de enfrentar, faz poucos
decisórios aos diversos segmentos da dias, nesta mesma Casa, quando artifí-
população brasileira”. cios maliciosos foram empregados para
me impedir de expressar a indignação
Para o presidente, já passou “a época
e as reivindicações de minha sofrida
em que o Brasil se contentava em dizer
comunidade.
que, havendo essa diversidade, ele não
abrigava preconceitos”. Dizer o con- Sei muito bem que meu discurso
trário, como ele mesmo teve ocasião de costuma ser desagradável num país que
provar na própria pele, equivalia a fazer se acostumou a achar que negros bons
114 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

são aqueles que conhecem o “seu” lugar, tando inimigos quase sempre ocultos sob
que é o da submissão e o da inferiorida- os véus da hipocrisia e do paternalismo,
de. Mas eu estou aqui justamente para é com alento que vemos manifestações
subverter essa visão. Para mostrar que como a do atual presidente da República,
a construção de um Brasil moderno, infelizmente desconhecidas ou desvalori-
justo, democrático, que não tenha de se zadas pela maioria daqueles que dizem ser
envergonhar todos os dias perante o mundo seus seguidores. O que mostra que ainda é
com as imagens de violência, miséria e muito árdua a luta que temos pela frente.
discriminação divulgadas pelos veículos Mas também que, felizmente, já dispomos
de comunicação, passa necessariamente de aliados nos mais altos escalões do País.
pelo fim do racismo e do preconceito que
se abatem sobre seus filhos de ascendência
africana. Nesta luta sem tréguas enfren- Axé!
Pronunciamentos
Crianças e adolescentes 115

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 9 de abril de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,

Sob as bênçãos de Olorum, inicio


este pronunciamento.
No início desta década, precisa-
Denúncia da omissão do Estado mente em setembro de 1990, o Brasil
em face dos problemas enfrentados por participou, na sede das Nações Unidas
crianças e adolescentes, em particular em Nova York, do Encontro Mundial
os afro-brasileiros. de Cúpula pela Criança. Como sempre
ocorre nessas ocasiões, que exigem do
País um posicionamento ético sobre
questões de cunho humanístico, o Brasil
assumiu o compromisso de elaborar um
programa nacional, com metas relativas
ao bem-estar da criança durante a década
de 90.
Não obstante a intenção do Poder
Executivo, por meio dos seus Ministé-
rios e Secretarias, de formular políticas
e programas voltados para a população
infanto-juvenil nas áreas da saúde, nutri-
ção, educação, etc., os resultados obtidos
116 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

nos parecem muito aquém das metas as crianças e os adolescentes afro-brasi-


mínimas estabelecidas, não podendo ser leiros, no enredo das tragédias nacionais,
considerados nem mesmo razoáveis. são os que mais têm sofrido, os que pri-
meiro são atingidos pelas adversidades
Segundo indicadores do IBGE para
causadas pelas políticas sociais que vêm
1990, 58,2% da população infanto-ju-
sendo implementadas.
venil brasileira era pobre, e 54,5% dela
vivia em famílias cuja renda per capita O Brasil passa por esta década de
não ultrapassava meio salário mínimo. 1990 vivendo a conturbação do que
se convencionou chamar de abandono
Esses dados, não podemos negar,
de crianças. Esse fenômeno, de difícil
refletem, dentre outros fatores, a falta
paridade com outros países, indepen-
histórica de uma justa distribuição de
dentemente de refletir a ineficácia das
renda, resultado de um modelo econômi-
políticas sociais brasileiras dos anos
co avalizado e sustentado pelo Governo,
80, nos remete ao século XIX, com a
que se mostra absolutamente alheio às
conhecida Lei do Ventre Livre, a qual
conseqüências da expansão da miséria
estabelecia que as crianças nascidas de
sobre a população infanto-juvenil brasi-
mãe escrava não seriam mais cativas -
leira, hoje em torno de 11,5 milhões de
mas não libertava as mães. Criava-se
crianças e adolescentes.
assim o paradoxo da servidão voluntária,
Dissemina-se por meio de propa- já que as crianças permaneciam sob a
gandas governamentais que o controle guarda das mães até a maioridade. Isso
da inflação, com as medidas do Plano teve como conseqüência prática o Estado
Real, seria um bom indicador socioe- iniciando o abandono dos menores afro-
conômico para comprovar um provável -brasileiros. É importante apontar que
recuo da pobreza e da miséria nesta não faz parte da tradição e da cultura
segunda metade da década. Entretanto africanas o abandono de crianças, e só
o que percebemos em vários pontos um processo histórico tão adverso e
deste País é o agravamento de uma crise excludente nos submeteria a tal conflito
social, de natureza estrutural e de fundo e a comportamento tão estranho à nossa
econômico, cujas conseqüências podem natureza.
ser avaliadas observando-se os dramas
Não se trata aqui de promover uma
vividos recentemente pela Argentina e
exaltação à miséria das crianças e ado-
pelo México.
lescentes afro-brasileiros, como se fos-
Mas o que nos chama a atenção e o sem diferentes o sofrimento e a dor das
que nos preocupa é o papel do Estado crianças e adolescentes não-negros. Das
brasileiro frente à tragédia a que estão causas e implicações que ferem o povo
submetidos milhões de crianças e ado- brasileiro, conheço quase todos os mean-
lescentes do nosso país; e não posso dros e sei bem o quanto as injustiças são
deixar de ser enfático ao manifestar que avassaladoras, visto que as mazelas da
Pronunciamentos
Crianças e adolescentes 117

pobreza se sobrepõem às especificidades mas destaco alguns que podem dar a di-
de etnia e de gênero, levando a condição mensão da perversidade praticada contra
e a dignidade humanas ao rés do chão. a população infanto-juvenil de norte a sul
do País.
Mas é fato que por longos anos, para
atender as mais diversas conveniências Em 1990, mais de 7,5 milhões
dos mandatários do País – dentre as quais de crianças e adolescentes entre 10 e
asmalfadada segurança nacional da épo- 14 anos vinham sendo explorados no
ca da ditadura militar –, sempre houve campo e na cidade, trabalhando em
uma postura deliberada em omitir o item muitos casos - como no corte de cana,
cor, ou raça, salvo raras exceções, do uni- na produção de carvão e nas fábricas
verso das estatísticas sociais brasileiras. de calçados - em condições insalubres
Mas ainda assim, com os poucos dados e em jornadas de até 15 horas. Em fins
disponíveis, diversos pesquisadores das de 1995, os Estados Unidos anunciavam
mais diferentes áreas têm-nos apresenta- que iriam boicotar os produtos brasileiros
do análises que demonstram as precárias que utilizavam mão-de-obra infantil. Na
condições socioeconômicas da maioria Alemanha, no ano de 1992, pelo mesmo
dos afro-brasileiros. motivo, iniciou-se boicote aos produtos
da indústria cítrica brasileira.
Portanto, se as estatísticas sobre a
população infanto-juvenil apontam que De acordo com pesquisa do UNI-
o Estado brasileiro é lesivo e negligente CEF, em outubro de 1995 havia 2 mi-
no amparo dessa população, tal situação lhões de crianças vivendo da prostituição
se agrava sobremaneira quando se trata no Brasil. A pobreza e a ignorância são
de crianças e jovens negros. as principais causas que levam esses
jovens a se prostituírem; mas o que de
O quadro é crítico e vergonhoso, e
fato agrava essa situação vergonhosa é a
esta Casa tem o dever de se posicionar
incapacidade do Estado de agir com ri-
politicamente, sob pena de ser questiona-
gor, tanto no sentido de oferecer políticas
da quanto aos seus princípios éticos, em
sociais quanto nos procedimentos coerci-
relação ao futuro do capital humano do
tivos da polícia e da Justiça. Foi preciso
nosso país. Refiro-me também à distância
que organizações não-governamentais
e à indiferença de importantes setores do
que trabalham com questões relativas à
Estado, que relegam a infância brasileira
proteção da infância iniciassem campa-
ao plano das insignificâncias, impedindo
nhas de denúncia do turismo sexual e da
dessa forma que o Brasil cumpra a sua
exploração sexual de crianças e adoles-
trajetória e ocupe um lugar digno no
centes para que o Governo, timidamente,
cenário das nações.
desse o ar da sua graça na forma de uma
A violência contra crianças e adoles- campanha publicitária e de algumas
centes tem várias faces e graus diversos e iniciativas demasiado modestas para a
específicos. Não posso abordá-los todos, gravidade do problema.
118 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

Outro fato estarrecedor que corrói a recentes episódios envolvendo a Polícia


moral brasileira é o extermínio de crianças Militar de São Paulo e do Rio de Janeiro,
e adolescentes, que, tal como a exploração ratifica a nossa preocupação com a prática
do trabalho, a prostituição e o turismo se- do racismo em todos os espaços da vida
xual, atinge majoritariamente as crianças e nacional. Análise de uma amostra dos
adolescentes afro-brasileiros. Uma nação principais jornais do País efetuada no ano
que incorpora o assassinato de crianças de 1994, com aproximadamente 25%
e adolescentes ao seu modo de vida e à dessa amostra trazendo especificado o
sua cultura é uma nação que caminha a item cor, constatou que 59% dos homi-
passos largos para o obscurantismo. Esse cídios dolosos de crianças e adolescen-
tipo de crime, que por diversas vezes colo- tes corrrespondiam à categoria negro e
cou sobre o Brasil os olhos incrédulos do 41%, à categoria branco. Já no Estado
mundo, pela sua freqüência nos noticiários do Rio de Janeiro, observou-se que os
e em nossas vidas, de há muito perdeu a
homicídios contra crianças e adolescen-
excepcionalidade de fenômeno para se
tes afro-brasileiros subiam para 75%,
fixar, como rotineira pústula, nas relações
enquanto 25% correspondiam às crianças
e na dinâmica social brasileiras, em que a
e adolescentes brancos.
banalização da morte de crianças e ado-
lescentes dá bem o grau da insensibilidade Esses são os fatos tristes e alarmantes
imperante. em que estão mergulhadas a infância e a
De acordo com dados da Segunda adolescência do nosso País. Sabemos que
Vara da Infância e da Juventude do Rio de uma nação não pode ter dois futuros. Se
Janeiro, trabalhados pelo Centro de Arti- não ousarmos estabelecer alternativas
culação de Populações Marginalizadas, radicais, de curto prazo, para mudarmos
das 1.226 mortes violentas de crianças e de vez essa situação da juventude brasilei-
adolescentes registradas em 1994, 734 ra, o futuro que se avizinha será marcado
vítimas eram adolescentes com idade pela desesperança e pelo fracasso social.
entre 15 e 17 anos; 574 foram causadas Viveremos, então, num campo fértil para
por projétil de arma de fogo, ou seja, que todos os enfrentamentos se justifiquem
46,82% do total. em nome da luta contra as injustiças.
A cor como critério para o extermí-
nio, mais uma vez comprovado pelos Axé!
Pronunciamentos
Governo de Reconciliação Nacional de Angola 119

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 10 de abril de 1997
Senhoras e Senhores Senadores,

Sob as bênçãos de Olorum, inicio


meu pronunciamento.

Saudação ao Governo da Unidade Acostumado, nos últimos tempos,


e Reconciliação Nacional de Angola, a esperar más notícias sempre que o as-
lembrando o glorioso passado africano sunto é África, foi com muita satisfação
e incitando o Brasil a assumir um pa- e esperança que recebi a boa nova de
pel mais responsável em suas relações que amanhã, 11 de abril, terá lugar, em
com a África. Angola, a posse do Governo de Unidade
e Reconciliação Nacional, nos termos do
protocolo de Lusaka, assinado em 1995
entre o MPLA – Movimento Nacional
pela Libertação de Angola e a UNITA
– União Nacional pela Libertação Total
de Angola. Acontecimento há muito es-
perado pela comunidade internacional,
a posse do novo Governo pode sinalizar
uma efetiva era de paz naquele país da
África Austral, envolvido há décadas
numa luta sangrenta, primeiro para se
libertar do jugo português, depois em
120 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação parlamentar

função da disputa pela hegemonia entre No caso particular de Angola, releva lem-
as duas maiores facções envolvidas na brar a luta da rainha N’Zinga, no século
luta de libertação. XVII, contra os invasores portugueses,
num processo que demonstra a capacidade
Para nós brasileiros, de modo geral,
de organização e o espírito de luta do povo
e afro-brasileiros em particular, a solu-
africano. Um povo que – diferentemente
ção da guerra civil angolana é motivo
do que ensinavam, até pouco tempo
de regozijo, pois os laços que nos unem
atrás, nossos livros escolares – jamais se
àquele país vão muito além da solida-
submeteu passivamente ao domínio de
riedade genérica entre povos distantes.
quem quer que fosse. Exemplo disso, no
Somos na verdade, brasileiros e ango-
Brasil, foi a epopéia de Palmares, escrita
lanos, muito próximos, seja do ponto de
vista geográfico – apenas seis horas de a ferro e fogo por homens e mulheres, em
vôo nos separam de Luanda –, seja do sua maioria, da etnia banta, originários
ponto de vista cultural, humano e até exatamente da África Austral.
mesmo sangüíneo. Afinal, os africanos É a história, com efeito, que nos
escravizados que construíram este país mostra também a forma como a chamada
eram oriundos, predominantemente, da colonização européia, aliada à terrível
região do Sul da África que um dia seria drenagem de cérebros e músculos pro-
Angola, o que por si só revela o imenso movida com a escravização, acabou pro-
débito que temos para com aquela nação. duzindo a maioria dos males de que hoje
Embora estejamos acostumados a padece a África. Afinal, nenhum povo,
uma imagem negativa do Continente e do cultura ou grande civilização poderia dar
povo africanos, tão difundida e reiterada continuidade ao seu processo histórico
que assume ares de verdade, o fato é que sofrendo uma guerra constante, além da
a África não foi, historicamente, o conti- perda de dezenas de milhões de seus ha-
nente sombrio que a história etnocêntrica bitantes, levados numa viagem sem volta
escrita por europeus nestes dois últimos através do Atlântico. Mas os europeus
séculos praticamente nos impôs. Ao con- não se contentaram em promover o con-
trário dessa visão não apenas preconcei- tinuado massacre de africanos, explorar
tuosa, mas, pior ainda, intencionalmente suas riquezas materiais e expropriar sua
distorcida com o objetivo de negar aos cultura – hoje “preservada” em museus
africanos a própria humanidade, e assim de Paris e de Londres. Como se tudo
justificar a escravidão e o colonialismo, isso não bastasse, as nações européias,
a história da África é pelo menos tão rica ao fazerem, no início do século passado,
quanto a de qualquer outro continente. Lá a partilha da África, sem levar em conta
floresceram o Egito dos faraós, a Núbia, os as fronteiras historicamente traçadas
reinos de Axum e de Cush, os impérios de pelos próprios africanos, plantaram as
Mali e de Songhai. Estados cuja riqueza sementes dos conflitos étnicos que até
material e cultural não deixa de assombrar hoje continuam assolando o Continente.
os estudiosos que sobre eles se debruçam. Conflitos como os de Biafra, nos anos
Pronunciamentos
Governo de Reconciliação Nacional de Angola 121

70, de Ruanda ou do Zaire, nos dias Mais, talvez, do que qualquer outro
de hoje, resultado direto das fronteiras fato, esse voto de 1974, bem como a ra-
artificiais impostas pelos europeus, que pidez em reconhecer a independência de
fragmentaram nações velhas de séculos Angola e Moçambique, no ano seguinte,
ou juntaram, numa mesma divisão terri- revela-nos a verdadeira natureza da
torial, grupos étnicos tradicionalmente ri- posição das elites governantes brasilei-
vais. Não foi diferente o caso de Angola, ras em relação não somente a Angola,
onde a solução dos problemas deixados mas à África como um todo. Enquanto
pelos europeus demandou uma guerra o colonialismo salazarista mostrava
civil cujos prejuízos deverão se fazer sinais de vigor, o Brasil o apoiou ver-
sentir ainda por muito tempo, embora gonhosamente, sustentado na teoria do
encerrado o conflito. “lusotropicalismo”, versão internacional
do mito da “democracia racial”, não por
Apesar dos laços humanos e culturais e
acaso também formulado pelo mesmo
da irresgatável dívida que tem com Angola,
ideólogo Gilberto Freyre. Ao percebe-
o Brasil desempenhou um papel no mínimo
rem a iminente vitória das forças nacio-
ambíguo, e freqüentemente reacionário,
nalistas, os policy makers do Itamaraty
durante a longa luta de libertação travada
não tiveram o menor pudor em inverter
na então chamada “África Portuguesa”,
seu curso de ação, passando a adotar o
que também compreendia Moçambique,
que chamaram “pragmatismo respon-
Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e
sável”. Tratava-se, agora, de assegurar
Príncipe. Transcrevo aqui as palavras do
eminente historiador José Honório Rodri- para o Brasil uma fatia significativa
gues, descrevendo esse período sombrio de desses mercados potenciais, bem como
nossa diplomacia: “Votamos sempre com um papel proeminente na geopolítica do
as potências coloniais nas Nações Unidas, Hemisfério Sul, fator importante para
cedíamos a todas as pressões portuguesas, um país que almeja o status de potência
a do governo oligárquico de Salazar ou regional. Curiosamente, os diplomatas
da Colônia, e vez por outra disfarçáva- – brancos, é claro – encarregados dessa
mos nosso alinhamento colonial com as tarefa empregaram como justificativa
abstenções. Não tínhamos uma palavra exatamente os laços históricos que unem
de simpatia pela liberdade africana”. As- os dois países, laços esses anteriormente
sim, de 11 resoluções das Nações Unidas ignorados em nome de nossas então pri-
apoiando a independência dos territórios vilegiadas relações com Portugal. Tão
africanos sob domínio português, o Brasil privilegiadas que chegaram a gerar um
votou três vezes contra, absteve-se (o que certo tratado “de amizade e de consulta”,
equivalia a votar contra) seis vezes e apenas cujo resultado prático foi o atrelamento
duas vezes votou a favor. A primeira em da política externa do Brasil - um gigan-
1967, aprovando um relatório da ONU, a te com pretensões a grande potência –
outra em 1974 – às vésperas, portanto, da aos interesses daquela minúscula nação
independência. européia.
122 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

O fato é que Angola, diferentemente Capanda. Tive a oportunidade de visitar essa


de outros países africanos, cujas rique- importante obra, antes que os guerrilheiros
zas quase se exauriram no processo de da UNITA paralisassem os trabalhos. É
rapinagem chamado “colonização”, é nossa expectativa que essa barragem seja
uma nação potencialmente muito rica, concluída rapidamente por esse governo
talvez a mais rica de toda a África. Ouro, que amanhã se inicia, sob os auspícios da
diamantes, petróleo – os minerais mais reconciliação, e resolva as necessidades de
preciosos e cobiçados são abundantes energia para a reconstrução do país.
na região, o que explica o interesse das Quero, assim, desta tribuna, saudar
potências neocoloniais por esse país afri- o Governo de Unidade e Reconciliação
cano, fonte maior do sofrimento que tem Nacional de Angola e manifestar ao povo
sido imposto ao seu povo nas três últimas irmão angolano o nosso regozijo e os me-
décadas. Um interesse que nós, por sinal, lhores votos àquela sofrida nação. Manifesto
conhecemos muito bem, porque é o mes- ainda minha esperança e dos afro-brasileiros
mo que se manifesta pela privatização, a de que o Brasil possa, finalmente, à luz de
preço vil, da lucrativa Companhia Vale uma diplomacia mais comprometida com as
do Rio Doce. Pois foram potências e nobres causas da liberdade e do desenvol-
grupos empresariais estrangeiros - em vimento solidário, retribuir ao menos uma
especial, dos Estados Unidos e da África parcela da enorme contribuição que Angola
do Sul pré-Mandela - os responsáveis prestou à construção do nosso País.
pelo financiamento da guerrilha e da
contra-revolução, cujas feridas, na for- Hoje, pela manhã, a Comissão de
ma de milhares de mutilados, de uma Relações Exteriores aprovou o voto de
infra-estrutura arruinada, sem falar das congratulações ao Governo de Unidade e
minas que impedem a agricultura em Reconciliação Nacional de Angola, a ser
suas melhores terras, ainda vão levar instalado amanhã. Estará representando
muito tempo para cicatrizar. o presidente Fernando Henriqe Cardoso,
naquele ato, o embaixador Paulo Cana-
E é nisso que o Brasil pode contri- brava Filho, uma feliz escolha, já que
buir, emprestando o seu know-how e a esse diplomata, além da competência
sua tecnologia, sobretudo a chamada
profissional, possui um relacionamento de
“tecnologia intermediária”, mais adap-
amizade com o povo africano, em geral,
tada às condições daquele país africano,
e com o povo angolano, em particular.
para que o processo de recuperação de
Angola se faça de modo menos doloroso Estou muito feliz com essa indi-
e mais acelerado. Já temos empresas em cação, pois a sua experiência e a sua
ação por lá, e não necessariamente com sensibilidade muito o recomendam para
a visão predatória que, por motivos his- tal missão.
tóricos, poderíamos esperar. É o caso da Muito obrigado, senhor presidente.
empresa brasileira que co-participa, com
financiamento, técnicos e tecnologia, da
construção da barragem hidroelétrica de Axé!
Pronunciamentos
Homenagem a Evaristo de Moraes Filho 123

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 16 de abril de 1997
Senhoras , Senhores Senadores,

Sob a proteção de Olorum, inicio esta


minha fala.

Homenagem a Evaristo de O tema dos direitos humanos, ele-


Moraes Filho. mento fundamental na construção de
nossa incipiente democracia, voltou à
baila nestes últimos dias em razão de
eventos tão terríveis a ponto de chocar
a opinião pública não apenas no Brasil,
mas em todo o mundo, provocando rea-
ções que vão do desespero e da indignação
à repulsa e ao nojo. O primeiro deles foi
a chacina de Diadema, em que policiais
militares paulistas mais uma vez demons-
traram seu despreparo, sua covardia e,
sobretudo, a certeza de uma impunidade
garantida pelo corporativismo e por uma
legislação nascida na ditadura militar e
curiosamente mantida por aqueles que o
povo elege como seus representantes.
Como que para desmentir a esfarrapada
124 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

desculpa de algumas autoridades de que Filho de um jurista igualmente


se tratava de um “caso isolado”, ainda importante e renomado, além de aboli-
ontem o Jornal Nacional, da TV Globo, cionista, de quem herdou não somente
voltou a focalizar a violência da Polícia o nome, mas também o talento e o
Militar, dessa vez no Rio de Janeiro, no compromisso com a luta dos oprimidos
bairro ironicamente chamado “Cidade e injustiçados, assim como a coragem
de Deus”. A truculência e a crueldade moral e o sentimento de humanidade,
foram as mesmas exibidas pela PM de que lhe sustentavam a voz tonitruante
São Paulo. Com essas duas ocorrên- e a gesticulação enfática – tudo isso
cias espetacularmente difundidas pela que seu amigo e professor, o também
TV, a questão dos direitos humanos insigne advogado Evandro Lins e Silva,
emergiu com mais força nas atenções definiu como “uma vocação transmitida
da sociedade e do poder público. Só pelo sangue e pelo espírito”. Evaristo de
resta esperar que o clima sombrio deste Moraes Filho foi e continuará sendo um
momento possa favorecer a adoção de referencial para a sua profissão. Símbolo
medidas concretas para coibir esse tipo da correção e da competência, sobeja-
de violência institucional, que – não mente demonstradas tanto na tribuna
nos iludamos – infelizmente é muito quanto na cátedra, passou à história
mais freqüente do que querem fazer sobretudo como defensor de presos
crer as autoridades constituídas e cujas políticos durante o período de governo
raízes se fincam no tratamento secular- militar – dentre os quais ex-presidentes
mente dispensado aos africanos e seus da República. Não se furtava, porém,
descendentes neste País. Ou terá sido a defender causas polêmicas, pois acre-
mero acaso o fato de ser negro o jovem ditava que mesmo os piores criminosos
a cuja cruel execução o mundo inteiro deviam ter um advogado de defesa.
pôde assistir estarrecido?
Perde o Brasil, assim, um de seus
Mas não vim aqui para repisar esse filhos mais valorosos e competentes,
doloroso assunto, embora não o queira cuja trajetória profissional, perfil huma-
ver esquecido. O que me traz hoje a esta no e ético devem ser divulgados como
tribuna é a homenagem póstuma a um exemplo para as novas gerações. Mas
homem que sempre nos evocou os mais perde também a causa democrática, que
nobres sentimentos, dentre eles uma pro- sempre o teve nas fileiras da sua van-
funda e sincera admiração. Refiro-me ao guarda. Só resta esperar que seu rastro
eminente jurista e defensor dos direitos não se dilua na poeira do esquecimento
humanos Evaristo de Moraes Filho, cujo e que sua semente frutifique entre as no-
recente falecimento significa uma perda vas gerações de juristas brasileiros para
irreparável para todos os homens e mu- que, num futuro que espero não muito
lheres comprometidos, neste País, com distante, este País possa consolidar-se
as causas da justiça e da liberdade. no respeito aos direitos e à liberdade de
Pronunciamentos
Homenagem a Evaristo de Moraes Filho 125

seus cidadãos, sonho maior de Evaristo na a experiência hitlerista, lembro, de


de Moraes Filho. imediato, a definição de Hannah Arendt
Sobre as violências que se abatem de que o genocídio nazista foi um crime
hoje sobre os afro-brasileiros, o pesqui- contra a humanidade perpetrado no
sador Marcos Chor Maio publica nesta corpo e na alma do povo judeu. Nesse
data, no Jornal do Brasil, o artigo inti- sentido, os horripilantes cenários nacio-
tulado “O pelourinho moderno”. nais (Carandiru, Corumbiara, Eldorado,
Vigário Geral, Candelária e outros )
Solicito, senhor presidente, que o ou internacionais, como a Bósnia e a
mesmo seja transcrito como complemen- África, nos remetem, de forma banal ou
to a este meu pronunciamento. não, ao exemplo histórico vivido pelos
Muito obrigado. judeus que, conforme a experiência dos
campos de concentração, representou a
DOCUMENTO A QUE SE REFERE quase ilimitada capacidade de destruição
O SR. ABDIAS NASCIMENTO EM dos homens quando o âmbito público se
SEU PRONUNCIAMENTO: obscurece.
Por coincidência, na mesma semana
em que foram reveladas as imagens dos
descalabros em Diadema, a Federação
O PELOURINHO MODERNO Israelita do Estado do Rio de Janeiro
(FIERJ) e o Centro de Articulação de Po-
Marcos Chor Maio pulações Marginalizadas (CEAP) patro-
cinaram um seminário reunindo líderes
Há mais de duas semanas estamos políticos e intelectuais judeus e negros
sendo bombardeados por imagens, notí- para debater formas de ação conjunta
cias e análises suscitadas pelas terríveis nos campos da educação, da cultura, da
cenas televisivas do crime de Diadema programação social e, especialmente, da
e mais recentemente do moderno pe- luta contra o racismo. Não é a primeira
lourinho instalado na Cidade de Deus. vez que esses dois grupos se aliam na luta
Parece que a violência policial tornou-se contra a discriminação racial. Em 1992
definitivamente questão de política. e 1993, quando dos violentos ataques
Em termos sombrios, algumas contra negros, judeus, homossexuais e
reflexões sobre a barbárie procuram nordestinos, provocados por grupos de
ilustrar ou mesmo estabelecer analogias jovens urbanos do Rio de janeiro e São
entre os massacres humanos realizados Paulo, sensibilizados pelos símbolos e
pela polícia em várias ocasiões e o palavras de ordem dos skinheads euro-
Holocausto. Não cabe aqui analisar a peus e americanos, surgiram alianças
complexidade dessas comparações, mas políticas compostas por negros e judeus
apenas registrar que, quando se mencio- nas duas principais cidades do país tendo
126 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

em vista o combate a qualquer tipo de lência policial é dirigida não apenas aos
discriminação. Nessa ocasião foi criada pobres, mas aos pobres e negros. Estamos
a primeira delegacia contra crimes raciais diante de mais um exemplo que confirma
na cidade de São Paulo. No ano passado, as palavras escritas quarenta anos atrás por
o Movimento Popular contra o Racismo, um dos mais brilhantes sociólogos brasi-
que uniu associações pelos direitos hu- leiros, o mulato Alberto Guerreiro Ramos:
manos, a Federação Israelita do Estado “O negro no Brasil não é uma anedota, é
do Rio Grande do Sul e o movimento um parâmetro da realidade nacional ”.
negro gaúcho, conseguiu cancelar as
atividades da Editora Revisão, do Sr. E. Judeus e negros têm um passado
S. Castan, especializada em publicações cheio de exemplos que maculam a histó-
anti-semitas. ria da humanidade. O Holocausto parece
ser um imperativo moral que emerge
O desafio emerge novamente. As como uma forte lembrança dos perigosos
disparidades demográficas, econômicas e frágeis limites da ação humana. Mas,
e sociais não facilitam um diálogo entre como bem lembrou o elucidativo artigo
negros e judeus. Os diversos preconcei- de Moacir Werneck de Castro (JB, 8-4-
tos contra os judeus no País são difusos 1997), a história do Brasil é permeada
e estão longe de dificultar a mobilidade de violência. É interessante observar
social vertical e a ampla e livre circulação que os 350 anos de escravidão no Brasil
dos mesmos pela sociedade brasileira. No não parecem ter sido suficientes para se
caso dos negros, o quadro é totalmente constituir em referência obrigatória nas
inverso. Há uma série de atributos nega- análises sobre a violência em nosso País.
tivos imputados à cor negra que fazem
da discriminação racial algo extrema- De qualquer modo, a indignação da
mente perverso e que, finalmente, vem sociedade civil, o intenso debate acerca
adquirindo a visibilidade necessária para da reestruturação da Polícia Militar, as
que ocorram mudanças substantivas em ações tardias do Congresso Nacional e
nossa realidade social. Nunca a imprensa do Estado, os ensaios de aliança pelos
enfatizou com tanta freqüência, como no direitos civis entre negros e judeus su-
caso do auxiliar de almoxarifado Mário gerem um quadro mais auspicioso para
Josino, morto em Diadema, que a vio- o nosso futuro enquanto nação.
Pronunciamentos
Polícia e direitos humanos 127

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 17 de abril de 1997
Senhoras e Senhores Senadores,

Sob as bênçãos de Olorum, inicio


este pronunciamento.

Condenação aos atos de Um dos tristes recordes que o Bra-


selvageria protagonizados pela sil detém é o de ter sido o último país
Polícia Militar no Rio de Janeiro e do Ocidente a abolir a escravatura. A
em São Paulo, vistos como assinatura da chamada Lei Áurea, a
continuidade de um processo 13 de maio de 1888, pôs fim a mais de
iniciado durante a escravidão, e 350 anos de exploração da mão-de-obra
saudação do Governo Federal pela africana, processo iniciado, segundo
criação da Secretaria Nacional de alguns historiadores, em 1530, quando
Direitos Humanos. o tráfico já estaria organizado e forne-
cendo mão-de-obra para a lavoura de
cana-de-açúcar. A crônica da escravidão
no Brasil, diferentemente da história
edulcorada que por muito tempo se en-
sinou em nossas escolas, é uma crônica
de crueldade e sofrimento, mas também
de resistência e redenção. Episódios
como o dos quilombos, símbolo maior
da resistência negra nas Américas,
128 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

atestam o quanto o espírito de liberdade os instrumentos pelos quais se mantinha


animava aqueles homens e mulheres a dominação de um povo que constituiu,
transformados em objetos do mais cruel desde o século XVII até a Abolição, a
sistema de dominação já imposto a um maioria esmagadora da população bra-
povo. A cruel repressão que sobre eles sileira. Essa crônica de horrores não se
se abateu também é emblemática da esgota nos freqüentes castigos impostos
mentalidade dos senhores de escravos, pelo total arbítrio de fazendeiros, feito-
explícita nos instrumentos de tortura res e capitães-do-mato, mas vai além,
utilizados para garantir a ferro e fogo abrangendo a exploração da mendicância
uma dominação que, não obstante, seria de escravos leprosos ou da prostituição
mais tarde descrita como “benevolente”. de meninas escravas, fontes de renda de
Tendo convivido por mais tempo respeitáveis famílias burguesas que estão
do que qualquer outro povo com aquela na raiz de problemas bastante atuais,
que é descrita como a “abominável insti- como é o caso da prostituição infantil.
tuição”, seria impossível que os brasi- Se pôs fim a séculos de escravidão
leiros não tivessem sofrido uma forte oficial, a lei de 13 de maio de 1888, da
influência da escravidão, presente até forma como foi feita, encerra também
hoje na sua mentalidade e em muitos de os fundamentos de uma ordem racista e
seus hábitos e costumes. A maneira, por autoritária, imposta aos descendentes dos
exemplo, como os brasileiros geralmente africanos escravizados em nosso País.
encaram o trabalho, em especial o traba- Feita para resolver antes os problemas
lho dito braçal, remete a uma época em dos brancos, preocupados em inserir o
que trabalho era coisa de escravo, pelo Brasil na nova ordem mundial imposta
que brancos pobres – e até negros libertos pela Revolução Industrial, a chamada
– muitas vezes preferiam pedir esmolas Lei Áurea não se preocupou em dotar
do que trabalhar. Mas o principal reflexo
os recém-libertos de instrumentos que
da escravidão em nossos dias encontra-
lhes permitissem ingressar num mercado
-se na forma como encaramos e, mais do
de trabalho que se tornava mais compe-
que isso, exercemos a violência em nosso
tittivo com a imigração subsidiada de
quotidiano.
europeus acostumados ao trabalho nas
Evidentemente, a violência era o fábricas. Ao mesmo tempo, era ignorado
próprio alicerce do regime escravista. o projeto do engenheiro afro-brasileiro
Afinal, o elemento que mantinha o sis- André Rebouças, pelo qual a abolição
tema era exatamente a violência, con- se faria acompanhar de uma reforma
creta ou simbólica, posta em prática no agrária que permitiria aos descendentes
dia-a-dia dessa imensa senzala em que de africanos permanecer no campo, em
consistia este País. O chicote, o pelou- condições de subsistir e de se incorporar
rinho, as máscaras de ferro, ao lado da com mais harmonia à nova situação de
espada, do mosquete e da garrucha, eram homens e mulheres livres. Some-se a isso
Pronunciamentos
Polícia e direitos humanos 129

a cláusula da legislação eleitoral adotada no Pará e em outros Estados. Primeiro


pela República, um ano depois, restrin- por não se tratar de “fatos isolados”,
gindo o direito de voto aos alfabetizados, como pretendeu uma primeira explicação
e se terá em resultado a ampla margina- oficial, mas de peças de um processo
lização social, econômica, política e cul- sistemático com profundas raízes fin-
tural a que foram submetidos os negros cadas na nossa história, como tentamos
neste país. É quando nascem os cortiços rapidamente expor. A única diferença,
e favelas, e surgem as crianças abando- agora, foi a utilização da câmara de
nadas, que mais tarde se incorporariam videoteipe como instrumento de defesa
definitivamente à paisagem de nossas da cidadania, o que é mais surpreendente
grandes cidades. Para manter tal situa- dada a característica de brinquedo de rico
ção, dispunha-se da mesma ferramenta, com que esse aparelho costumava ser vis-
fartamente empregada, com comprovada to. Também não podemos esquecer que
eficácia, durante a escravidão: a violência muitas das pessoas que hoje se declaram
quotidiana e sistemática. “estarrecidas” com as chacinas de Diade-
A polícia substitui, assim, os ca- ma e da Cidade de Deus são as mesmas
pitães-do-mato, enquanto o chicote e que se opõem às políticas de direitos
o pelourinho dão vez ao pau-de-arara humanos, supostamente formuladas para
e à cadeira-do-dragão. Mas o espírito beneficiar malfeitores, e que costumam
que preside esse processo é exatamente cobrar da polícia um tratamento violento
o mesmo: manter os negros – e, por àqueles que, aos olhos desta, infringem
extensão, os pobres em geral – no seu a lei, ou são suspeitos disso. Não é à toa
lugar, ou seja, na periferia, à margem do que, flagrados pelas câmaras de vídeo e
processo de desenvolvimento do país, expostos à fúria popular, alguns policiais
sem condições de reivindicar um quinhão têm-se mostrado surpresos com a reação
mais justo do bolo nacional. Mantém-se, do público, que sempre os estimulou a
dessa forma, um grau de desigualdade “baixar o pau” nos “suspeitos” – palavra
sócio-racial sem paralelo entre as nações que quase sempre equivale a “pretos e
que se pretendem democráticas, para o pobres”.
que concorreu também a elaboração de
Como, no entanto, há males que
uma ideologia de dominação extraordi-
vêm para o bem, o clima de verdadeira
nariamente eficaz: o mito da “democracia
comoção que se apossou do País após a
racial”.
exibição dessas fitas pelas grandes redes
Desse modo, não deixa de ser curiosa de TV acabou gerando um ambiente
a “indignação” manifestada por diversos propício à adoção de medidas não só
setores da sociedade brasileira diante dos para coibir a violência policial como,
escabrosos acontecimentos protagoni- de maneira mais ampla, para promover
zados, nos últimos tempos, pela Polícia os direitos humanos em nossa socie-
Militar em São Paulo, no Rio de Janeiro, dade. Entre elas se encontra o projeto
130 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

do deputado federal Hélio Bicudo, que mas em amplos setores da sociedade


transfere para a justiça comum, desde a como um todo, será útil aos responsáveis
fase do inquérito, os crimes cometidos pela nova Secretaria considerar experi-
por policiais militares contra civis. Não ências que vêm sendo implementadas
há dúvida de que, sem a impunidade em alguns Estados nos últimos anos.
garantida por foros privilegiados, com- Destacam-se dentre elas o trabalho de
postos quase totalmente por colegas de ressocialização de presidiários que está
corporação, os policiais militares pensa- sendo realizado na Universidade Federal
rão duas vezes antes de descarregar suas do Espírito Santo pelo esclarecido reitor
frustrações sobre pessoas indefesas. daquela instituição, o competente pro-
fessor José Weber Freire Macedo. Bem
Outra ação importante, que merece
como o trabalho com a Polícia Militar do
nossos elogios, é a criação, pelo Gover-
Rio de Janeiro desenvolvido, sob minha
no Federal, da Secretaria Nacional de
direção, pela Secretaria Extraordinária de
Direitos Humanos, órgão que tem entre Defesa e Promoção das Populações Afro-
suas prioridades rever a organização, -Brasileiras, órgão criado no segundo
formação e ação da polícia, seja ela civil Governo Leonel Brizola. Trata-se de es-
ou militar. Trata-se, sem dúvida alguma, tabelecer, entre os policiais, uma cultura
de uma louvável iniciativa do Executivo, favorável aos direitos humanos, capaz de
pois é urgentemente necessário repensar orientar suas ações no duro quotidiano de
o modelo de polícia vigente em nossa suas vidas profissionais.
sociedade, fruto das milícias estaduais da
República Velha, reformulado à luz da fa- Nossa experiência nos apontou, con-
migerada doutrina da segurança nacional tudo, que não basta atuar apenas sobre
no período da ditadura militar. Formados a polícia. Como diz um experimentado
na visão do combate ao “inimigo inter- oficial da PM do Rio, não é a polícia que
no”, que tanto podem ser os adversários ensina o policial a ser racista ou a desres-
do regime quanto os negros em geral, e os peitar os direitos humanos. Quem lhe in-
pobres em particular, soldados e oficiais cute tais sentimentos e atitudes é a própria
da Polícia Militar carregam consigo uma sociedade, que desde pequeno ensina ao
percepção freqüentemente distorcida da brasileiro quem é “suspeito” e quem não
sociedade em que vivem. Uma percepção é, bem como o tratamento correspondente
muitas vezes estimulada em cursos que, que lhes deve ser dispensado. Assim,
supostamente, deveriam prepará-los para faz-se necessário introduzir programas de
defender os cidadãos, que a Constituição direitos humanos e de combate ao racismo
considera inocentes – e não suspeitos – desde a escola primária, com o que se vai
até prova em contrário. criar uma nova mentalidade, contrária
às práticas de humilhação e de tortura,
Na realização dessa tarefa difícil, infelizmente tão comuns nas relações da
pois que se contrapõe à visão predomi- polícia com os cidadãos que ela vê como
nante não somente no seio da polícia, de segunda classe.
Pronunciamentos
Policia e direitos humanos 131

A escola elementar deve constituir, “demagógica”. É nossa esperança que


por sinal, um dos pontos focais de qual- essa visão distorcida possa ser revista
quer programa de direitos humanos. neste momento em que a Nação procura
Também nesse caso, é inevitável a novas armas para combater a violência.
referência ao Governo Leonel Brizola,
Assim, ao mesmo tempo em que
responsável pela revolucionária – e por
louvamos a iniciativa do Governo de
isso mesmo tão combatida – experiências
criar a Secretaria Nacional de Direitos
dos Centros Integrados de Educação
Humanos, queremos afirmar aqui nossa
Pública, conhecidos pela sigla CIEPs. intenção de acompanhar atentamente
Conscientes da infinidade de carências o trabalho que ela se propõe realizar,
de que são portadoras as crianças das e conclamamos a fazerem o mesmo
classes menos favorecidas, os formula- todas as pessoas e organizações com-
dores desse programa, dentre os quais se prometidas com a defesa da justiça e
destacava o inesquecível senador Darcy da liberdade. Colaborando, sempre que
Ribeiro, planejaram uma escola que não possível, cobrando, sempre que neces-
se limitava a fornecer uma educação sário, para que a nova Secretaria não se
de qualidade. Nela a criança também transforme em letra morta nem venha a
recebia alimentação, assistência à saúde servir tão-somente para tapar a boca dos
e noções de higiene, além de praticar que defendem a liberdade, a justiça e a
esportes e atividades de lazer. E, o que democracia neste País.
é muito importante nesse contexto: per-
manecendo quase o dia inteiro na escola, Termino, enviando, desde aqui, a mi-
esses meninos e meninas ficavam menos nha saudação a todas essas pessoas que
expostos à cultura da violência, responsá- estão em Brasília, realizando a Marcha
vel pela produção e reprodução da crimi- dos Sem-Terra. Trata-se realmente de
nalidade urbana característica de nossos uma revolução social de grande impor-
dias. Infelizmente, porém, as forças do tância e devemos depositar nela muitas
atraso e do privilégio, interessadas em esperanças, não só no que se refere à
perpetuar o estado de alienação e margi- reforma agrária, mas também à necessi-
nalização das grandes massas populares dade de uma modificação das estruturas
neste País, orquestraram uma campanha, ainda coloniais deste País.
amplamente difundida por certos veícu-
los de comunicação, visando desqualifi-
car essa experiência como “utópica” ou Axé!
Pronunciamentos
Homenagem a Pixinguinha 133

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 23 de abril de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,

Sob a proteção de Olorum, inicio


meu pronunciamento.
Venho a esta tribuna para celebrar a
Comemoração do centenário de
passagem do centenário de um homem
nascimento do compositor
que, sem dúvida, não só na visão dos
Pixinguinha.
especialistas, mas também pelo reconhe-
cimento popular, foi um dos maiores
músicos brasileiros e, principalmente, o
que mais influenciou gerações.
Menino precoce e de talento pecu-
liar, aos nove anos de idade, com toda
a inocência da infância, mas já com a
sabedoria de um artista magistral, tocava
o cavaquinho, seu primeiro instrumento.
Com a mesma competência e sensibili-
dade que ele viria a demonstrar ao longo
da vida, dominando instrumentos como
o bombardino, a flauta e o sax tenor, que
o consagraram definitivamente no nível
de nossos maiores artistas.
134 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

Refiro-me ao negro Alfredo da Ro- Aos 13 anos, já considerado pelos


cha Viana Filho, o magnífico e universal veteranos uma grande promessa para
Pixinguinha. Nascido no Rio de Janeiro o mundo musical, Pixinguinha fez sua
a 23 de abril de 1897, filho de Maria primeira composição, um choro insinu-
da Conceição e de Alfredo da Rocha ante intitulado “Lata de leite”. O senador
Viana, músico e operário que trabalhava Artur da Távola pode me corrigir se as
na Usina de Eletricidade da Repartição minhas colocações não estiverem fide-
Geral dos Telégrafos, muito cedo, ainda dignas. É um verdadeiro infortúnio para
menino, Pixinguinha despontava para a mim ter que falar antes de V. Exª e da
música anunciando sua genialidade. senadora Benedita da Silva.
Quando nasceu, nove anos apenas No ano seguinte, tendo agora a
se haviam passado desde a Abolição da flauta como principal instrumento,
Escravatura. Africanos e descendentes nosso homenageado, que mal chegara
ainda viviam, portanto, sob o impacto à adolescência, foi convidado a integrar
daquela resolução tardia, conscientes de o conjunto Choro Carioca, com o qual
um futuro de incertezas. Pizinguim foi gravou seu primeiro disco.
o controvertido apelido que recebeu da Esse acontecimento nos dá bem a
avó africana, de nome Edwirges, que, dimensão do virtuosismo de Pixinguinha,
segundo ele, falava “meio atrapalhado”. já que naquela época as gravações eram
Mas Pixinguinha, o apelido consagrado, feitas praticamente de uma única vez,
parece ter origem na fatalidade de haver pois o material empregado não permitia
contraído bexiga, resultado da epidemia reutilização. Assim, qualquer deslize de
de varíola que assolou o Rio de Janeiro execução no momento da gravação era
na virada do século. visto pelas gravadoras como desperdício
de recursos financeiros, o que fazia do
Filho de músico e vivendo com mú- ato de gravar um privilégio concedido
sicos, cantores e outros artistas, o menino apenas aos melhores músicos.
negro de calças curtas participava atento,
Em 1929, quando as fábricas de
em sua própria casa, das reuniões de um
discos começavam a consolidar a grava-
grupo de chorões, dentre os quais se des- ção elétrica, Pixinguinha, já homem de
tacavam Irineu de Almeida, Candinho do destaque no meio musical, revelou-se de
Trombone e Quincas Laranjeira. Quando forma excepcional no campo da orques-
a noite avançava, o pai o mandava ir tração. Contratado por uma gravadora,
dormir. Mas no quarto, em deleite, ele cabia-lhe a responsabilidade de elaborar
apurava os ouvidos e se deixava levar harmonias para os diversos gêneros mu-
pela harmonia das canções, num aprendi- sicais então em voga. Com isso, Pixin-
zado auditivo que mais tarde se refletiria guinha tornou-se também um pioneiro
no artista ímpar que se tornou. do arranjo na música brasileira. Sem o
Pronunciamentos
Homenagem a Pixinguinha 135

seu trabalho, afirmam os estudiosos, a já era respeitado como um dos melhores


evolução nessa área seria mais lenta, tais instrumentistas do Rio de Janeiro.
as dificuldades e o pouco conhecimento,
Naquela época, morava no bairro do
na época, dos novos recursos de que as
Catumbi, parte de uma extensa área de
gravadoras dispunham.
população predominantemente negra,
A passagem desse talentoso afro- mais tarde batizada de “Pequena Áfri-
-brasileiro pela vida nacional, por inter- ca”. Expressão que alimenta o corpo e
médio da música, serviu para consolidar a alma dos africanos desde os tempos
nosso perfil de país pluricultural com a imemoriais, a música era ali praticamente
marca indelével da presença africana. onipresente. Quando perdeu o pai, em
Compositor, arranjador, instrumentista 1917, Pixinguinha já assumira de vez
e regente, a singularidade artística de sua condição de músico profissional.
Pixinguinha, reconhecida por todos os Gravava discos, tocava em teatros e, num
estudiosos da música popular brasileira, período em que o cinema ainda era mudo,
está exatamente na sua capacidade de in- integrava orquestras que se apresentavam
fluenciar e, mesmo, possibilitar a criação nas salas de projeção acompanhando as
de outros artistas. películas.
O escritor e crítico Sérgio Cabral, em Apesar de tudo o que significou para
seu livro Pixinguinha, vida e obra, define a música brasileira, Pixinguinha não po-
com estas palavras, de forma objetiva e deria passar ileso pela vilania do racismo,
inquestionável, o papel desempenhado muito mais explícito antes de o Brasil
por esse grande artista: “A sua obra não
adotar a fachada hipócrita da “democra-
se esgota nela mesma. Ao mesmo tempo
cia racial”. No dia 7 de abril de 1919, o
que criou para as suas necessidades de
histórico conjunto Os Oito Batutas, do
artista genial, inventou também uma
qual era fundador e componente, ao lado
linguagem para os outros. Fez as suas
de outros músicos afro-brasileiros, se
obras e alicerçou uma cultura. É, sem
apresentou pela primeira vez no Rio de
dúvida, um dos pais da música popular
Janeiro. O local escolhido, o Cine Palais,
brasileira. Assim, é também um dos pais
era uma das casas de espetáculos prefe-
da nossa nacionalidade.”
ridas pela elite, o que deixou enfurecido
Embora bastante sofisticado em o maestro e compositor Júlio Reis, cuja
muitas de suas composições, Pixingui- insatisfação racista foi expressa em artigo
nha não perdeu em momento algum, em publicado no jornal A Rua.
seus choros e peças musicais de outros
gêneros, a habilidade e a competência de Isso, porém, não ficou sem resposta.
transitar pela sensibilidade humana, mo- Dentre as muitas manifestações de desa-
bilizando e comovendo tanto o público gravo a Pixinguinha e seus companheiros
voltado para a música erudita quanto as de conjunto, não posso deixar de destacar
pessoas simples do povo. Aos 16 anos, as palavras do jornalista Xavier Pinhei-
136 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

ro na Revista da Semana: “As canções estão fazendo os encantos dos habitués


que o público ouve, interpretadas pelo do Cine Palais, deveria bater-lhes palmas
simpático Donga, Ernesto dos Santos; e com a sua autorizada palavra mostrar
pelo inimitável flautista Alfredo Viana, que eles são dignos do apreço do público.
o Pixinguinha; o José Alves e o Otávio (...) Eles são da nossa terra, maestro!”
Viana, que o povo conhece por Zezé Vivia-se naquela ocasião o fervor do
e China; Nelson Alves, Raul Palmieri, movimento nacionalista, em que se des-
Luiz Silva e Jacob Palmieri, são sempre tacava a valorização das manifestações
ouvidas com atenção e muita gente vai ao culturais emanadas do povo, e que mais
cine propositadamente para ouvir esses tarde culminaria com a realização da
corretíssimos intérpretes da música e Semana de Arte Moderna, em São Paulo.
da canção nacionais. (...) Deixemos de
Com os Oito Batutas, Pixinguinha
pedantismo, de exageros, caríssimo ma-
deu continuidade ao seu processo cria-
estro – o povo, o Exército, a Armada, o
tivo e à sua atuação musical, não só no
clero, a aristocracia e a nobreza gostam
Brasil como no exterior. Fato marcante,
de um samba, de um sambinha, de uma
contudo, foi a quantidade de mani-
canção sertaneja, de um tango reque-
festações racistas - inclusive originárias
brado. (...) Hoje a aristocracia cochila
de intelectuais à época considerados “li-
quando ouve um artista cantar um trecho
berais” – quando da viagem do conjunto
de qualquer ópera, ou a sua interpretação
a Paris. São, no entanto, agressões de um
ao piano, ao violino, ao violoncelo.”
pensar demasiado medíocre, revelando
Irônico, mas pertinente, Xavier uma pobreza de espírito tão grande que
Pinheiro se revela, ao longo do artigo, sequer merecem um comentário neste
um homem atento às mudanças do seu momento. Apenas frutos do complexo
tempo, e continua: “Nos principais salões de inferioridade da elite brasileira, que se
da nossa sociedade, as moças solteiras, as autopercebia como branco-européia. Mas
pudicas donzelas que gostam de dançar, o que buscamos aqui é celebrar o cente-
preferem à valsa, à polca, ao one-step, o nário de nascimento desse inigualável
tango, o samba, o sambinha, que é mais artista, “a flauta mágica [que] encantou
irrequieto, que satisfaz mais aos seus Paris”, no dizer de Prudente de Morais
nervos (...).” Neto.
E Xavier Pinheiro encerra o artigo Antes, porém, em 1926, outro fato
de forma categórica, expressando sua importante marcara a vida e a carreira de
posição: “Se a aristocracia não gosta Pixinguinha. Depois de uma temporada
disso que vá aos salões do Jornal do de sucesso em São Paulo, de volta ao
Comércio (...). A injustiça de Júlio Reis Rio de Janeiro, era criada a Companhia
foi clamorosa. O maestro perdeu uma Negra de Revista. Compunham-na 32
bela ocasião de ganhar popularidade. Em atores negros, dentre eles a atriz e can-
vez de amesquinhar os Oito Batutas, que tora Jandyra Aymoré, nome artístico de
Pronunciamentos
Homenagem a Pixinguinha 137

Albertina Pereira Nunes, futura esposa solicitou que escrevesse a letra para uma
de Pixinguinha. A Companhia estreou canção de Pixinguinha, gravada já havia
em junho daquele ano com o espetáculo algum tempo, mas pouco conhecida pelo
Tudo preto, tendo Pixinguinha como público.
diretor musical e, no elenco, além de Assim, “Carinhoso” recebeu letra de
Jandyra Aymoré, De Chocolat, Djanira João de Barro e foi cantada pela primeira
Flora, Benedito de Jesus, Rosa Negra e vez, em 1937, no Teatro Municipal do
Soledade Moreira. A paixão pela esposa, Rio de Janeiro. Recusada por vários
ao que tudo indica, fez com que Pixin- intérpretes, teria sua primeira gravação
guinha optasse por trabalhar ao lado dela, na voz do cantor Orlando Silva, transfor-
em detrimento das atividades dos Oito mando-se num imenso sucesso que dura
Batutas. até os dias de hoje.
“Urubatã”, “Página de dor”, “Sofres Mas o tempo faz seus aprontos com
porque queres” são alguns exemplos da a vida. E foi assim que, em 25 de junho
boa música desse extraordinário compo- de 1964, o professor Alfredo da Rocha
sitor que trazemos na memória e, vez por Viana Filho, o nosso Pixinguinha, foi
outra, cantarolamos distraidamente. Mas surpreendido por um edema pulmonar
como falar de Pixinguinha sem fazer re- que o obrigou a se submeter, por mais
ferência à sua obra mais conhecida, uma de 50 dias, a um rigoroso tratamento.
das mais gravadas e tocadas na história Quando recebeu alta, não sabia se pode-
da música popular brasileira? Estamos ria voltar a tocar o saxofone, instrumento
necessariamente falando do choro inti- que adotara depois de abandonar a flauta.
tulado “Carinhoso”, composto e gravado Afortunadamente, Pixinguinha ainda
muitos anos antes de receber a letra. Ele pôde compor e tocar sax por mais alguns
constitui o ponto mais alto e mais belo anos.
da musicalidade afro-brasileira.
No dia 17 de fevereiro de 1972,
No início de 1937, foi planejado quando a Banda de Ipanema desfilava
um espetáculo beneficente a se realizar os ritmos carnavalescos pelas ruas do
no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. bairro, ritmos que tanto marcaram sua
Convidada a participar, a jovem atriz juventude e trajetória, Pixinguinha, que
Heloísa Helena manifestou a intenção fora batizar o filho de um amigo na Igreja
de interpretar um número inédito. Em Nossa Senhora da Paz, não teve tempo
ocasião como aquela, diante da alta de perceber outras razões para a vida.
sociedade local, não lhe parecia bem Uma vida que se resumira ao amor e à
apresentar-se com um número já divul- doação pela música. O povo, incrédulo
gado por cantores profissionais. Com e ansioso, aglomerou-se em frente à
essa preocupação, talvez somada a um igreja. Mas, rápido e sem retorno, tudo
pouco de vaidade, Heloísa Helena pro- caiu num irremediável e triste silêncio:
curou o compositor João de Barro e lhe Pixinguinha morreu.... em paz.
138 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

Assim, ao comemorarmos o cen- é Pixinguinha, vai se descobrir um


tenário de nascimento do inesquecível país muito melhor, mais justo e mais
mestre Pixinguinha, estamos celebrando generoso do que este Brasil que tenta
também a excelência e universalidade escondê-lo.
da nossa cultura. Nesse afro-brasileiro Isso no passado, porque hoje sua
se incorpora o que de melhor este País
grandeza humana e artística é unanimida-
pôde oferecer às gerações passadas e,
de nacional, segundo o senador Artur da
com certeza, pode oferecer às gerações
Távola, com quem concordo plenamente.
presentes e futuras. Seu companheiro
do grupo O Trio, o bandolinista Pedro Pixinguinha, fundador da nossa
Amorim, resume de forma magistral a cultura, Pixinguinha, fundador da nacio-
personalidade desse músico de gênio: nalidade brasileira.

E o Brasil, quando descobrir que


sua língua é Pixinguinha, seu valor Axé, Pixinguinha!
Pronunciamentos
Qualificação de empresas para a
compra de estatais
139

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 24 de abril de 1997
Senhoras e Senhores Senadores,

Sob a proteção de Olorum, inicio este


pronunciamento.
Apresentação de projeto de lei que Elaborada e promulgada sob a égide
proíbe a contratação, pela União, suas da redemocratização, após mais de duas
autarquias, fundações, empresas públicas décadas de autoritarismo e de arbítrio, a
e sociedades de economia mista, de Constituição de 1988 trouxe expressivas
pessoas físicas ou jurídicas que tenham
conquistas na área social, atendendo
cometido atos ou omissões favoráveis a
regime ou ações de discriminação racial, a novas preocupações e dando novas
crimes contra a ordem econômica ou respostas a velhos anseios de nossa so-
tributária, atos que visem ou possam levar ciedade. Entre estas, quero destacar as
à formação de monopólio ou à eliminação vigorosas disposições constitucionais
da concorrência e dano ambiental não referentes ao racismo, ao exercício per-
reparado, e dá outras providências. nicioso da atividade empresarial e aos
cuidados com o meio ambiente.
No que se refere ao racismo, a nova
Carta representa uma resposta à repulsa
e às condenações mundiais de que seus
praticantes têm sido objeto desde o fim da
Segunda Guerra Mundial, com a derrota
140 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

do nazi-fascismo e das pretensões de no qual despontam como fundamentais


superioridade de uma suposta “raça aria- do país a livre iniciativa, a justiça social,
na”. No caso específico do Brasil, o Mo- a livre concorrência, a defesa do consu-
vimento Negro e seus aliados no mundo midor e a defesa do meio ambiente (art.
acadêmico demonstraram sobejamente a 170). Também é condenado o abuso do
falência do mito da “democracia racial”, poder econômico (art. 173, parágrafo 4º)
apresentando dados objetivos, baseados com o propósito da dominação de merca-
em estatísticas oficiais, que mostram o dos, da eliminação da concorrência e do
racismo como fator fundamental para ex- aumento arbitrário dos lucros. Além de
plicar a perversa distância entre negros e se sujeitar a pessoa jurídica, sem prejuízo
brancos apontada por todos os indicado- da responsabilidade individual de seus
res sociais pertinentes. Assim, atendendo dirigentes, à responsabilização por atos
aos clamores da sociedade organizada, praticados contra a ordem econômica e
os constituintes de 88 incluíram na nova financeira e contra a economia popular
Carta uma série de dispositivos destina- (art. 173, parágrafo 5º). Paralelamente,
dos a coibir o racismo e a discriminação o art. 174 dá ao Estado o poder de agen-
racial. te normativo e regulador da atividade
econômica, fiscalizando e incentivando
Desse modo, a dignidade da pes-
para todo o setor e planejando para a área
soa humana, de que a discriminação é
pública.
algoz, é preliminarmente erigida como
fundamento da República Federativa A crescente consciência ecológica,
do Brasil (art. 1º, inciso III); o combate promovida em todo o mundo por orga-
ao preconceito de origem, raça e cor é nizações da sociedade civil, resultou na
dado como objetivo fundamental (art. elaboração de todo um capítulo da Cons-
3º, inciso IV); o racismo é repudiado na tituição de 1988 – o Capítulo VI do Título
ordem internacional (art. 4º, inciso VIII); VIII. Além de sujeitar a atividade em-
as distinções “de qualquer natureza” são presarial ao princípio da defesa do meio
proibidas, pelo princípio de isonomia ambiente, conforme já demonstramos, a
(art. 5º, caput); por fim, mas não menos nova Carta assegura a “todos” o direito
importante, a prática do racismo foi fir- a um meio ambiente ecologicamente
mada como crime inafiançável e impres- equilibrado, impondo ao poder público
critível, sujeito à pena de reclusão (art. o dever de defendê-lo e preservá-lo para
5º, inciso XLII), além de permear outros as presentes e futuras gerações.
tantos dispositivos constitucionais.
Nesse universo, a função do Estado é
Ao mesmo tempo, as práticas des- não apenas relevante, mas de fato indis-
leais, predatórias ou ultrapassadas de pensável. Como o aparelho estatal, que
gestão empresarial conhecem condena- tem no topo a estrutura federal, exerce
ção expressa no capítulo referente aos de certa forma o papel de balizador das
princípios gerais da atividade econômica, condutas adotadas pelas demais entida-
Pronunciamentos
Qualificação de empresas para a
compra de estatais
141

des políticas, como Estados, Municípios de desrespeito aos princípios fundamen-


e Distrito Federal, incumbem à União tais que regem as relações comerciais e,
as ações mais contundentes e mais sig- sobretudo, as relações entre os homens.
nificativas da decisão governamental de Infelizmente, porém, são concretos os
cumprir e fazer cumprir tais princípios indícios de que isso possa vir a ocorrer
constitucionais. no caso da Vale.
É nessa linha que estamos propon- Uma das empresas concorrentes
do o Projeto de Lei do Senado nº 73, na licitação da Companhia Vale do Rio
de 1997, apresentado ontem à Mesa do Doce – e com grandes possibilidades de
Senado. Com ele, visamos impedir a vencê-la, dado o seu poderio – é a multi-
contratação, pela União, suas autarquias, nacional Anglo American, com sede em
fundações, empresas públicas e socie- Londres e/ou África do Sul, integrando
dades de economia mista, de pessoas um consórcio liderado, no Brasil, pela
físicas ou jurídicas, ou ligadas a elas, que Votorantim. Ocorre que essa empresa
tenham ferido, em sua atuação nacional tem se tornado, nos últimos anos, em
ou internacional, por ação ou omissão, razão de sua atuação nas arenas política
esses relevantes valores de nossa Carta e econômica, uma espécie de pária inter-
Magna. Tal proibição se estende, pelo art. nacional. O principal motivo disso foi seu
4º desta proposição, a todos os modelos apoio inconteste ao regime do apartheid
operacionais do programa de desestatiza- na África do Sul, em desrespeito não so-
ção. E aqui pretendemos atingir, direta- mente ao boicote internacional e a outras
mente, determinada situação que poderá resoluções das Nações Unidas, mas tam-
ocorrer no processo de privatização da bém a convenções internacionais de que
Companhia Vale do Rio Doce. o Brasil é signatário – e que por isso têm
força de lei. Em especial, a Convenção
A importância estratégica e o enorme
Internacional pela Eliminação da Discri-
patrimônio dessa empresa fazem com
minação Racial, da ONU, e a Convenção
que, no momento em que o Governo se
111 da OIT (Organização Internacional
prepara para implementar a sua privati-
do Trabalho), que trata da discriminação
zação, olhares mais atentos se detenham
de raça e gênero no mercado de trabalho.
nesse processo, tendo em vista suas
Além disso, tal atuação também está em
conseqüências não apenas nos planos
desacordo com diversos artigos de nossa
político e econômico, mas também do
Carta Magna, que citamos acima.
ponto de vista social. Afinal, se a justifi-
cativa para a alienação dessa gigantesca Longe de ser um ato meramente
e lucrativa estatal se dá sob a égide da simbólico, o apoio da poderosa Anglo
eficiência e modernização de nossas American e de outras empresas do mes-
estruturas produtivas, não faz sentido mo porte foi o que permitiu ao Governo
que ela favoreça empresas ou grupos racista sul-africano uma sobrevida que,
internacionais com notória ficha corrida de outro modo, não teria sido possível.
142 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

Pode-se medir a conseqüência disso pelo legislação para tornar mais eficientes os
número de casos de assassinato, tortura e mecanismos de enfrentamento do racismo
outras atrocidades sofridas pelos negros e do preconceito racial; num momento em
e opositores políticos naquele país du- que se considera seriamente a possibilidade
rante os últimos anos de um regime que de estabelecer compensações para os grupos
certamente teria acabado muito antes, historicamente discriminados, conforme
não fosse a criminosa cumplicidade de discurso do presidente Fernando Henri-
grupos que, como a Anglo American, que Cardoso no seminário internacional
sempre se posicionaram em favor da Multiculturalismo e Racismo: O Papel
manutenção da supremacia branca. da Ação Afirmativa nos Estados De-
mocráticos Contemporâneos, realizado
Relevantes como sejam, não se resu-
em junho último nesta capital; num mo-
mem a isso, contudo, as restrições a essa
mento como este, seria no mínimo um
empresa. Além de apoiar o apartheid, a
contra-senso permitirmos que se aposse
Anglo American é suspeita de ter cola-
de nossa estatal mais lucrativa um gru-
borado com o Governo sul-africano na
po internacional que se comprometeu
desestabilização dos países da chamada
ativamente com o mais execrado regime
“linha de frente” – dentre eles, Angola e
do mundo contemporâneo. Ao mesmo
Moçambique –, fornecendo apoio finan-
tempo, as condenações de que tal grupo
ceiro à guerrilha contra-revolucionária
tem sido objeto nos mais altos foros do
para a aquisição de armamentos e infra-
comércio internacional constituem moti-
-estrutura bélica. Como não bastasse,
vo suficiente para tornar indesejável sua
a Anglo American foi considerada cul-
presença em nosso País.
pada, em diversos países, por infringir
a legislação antitruste, praticando o Por tudo isso, permitimo-nos confiar
monopólio da produção e comércio de na aprovação do citado projeto de lei nes-
ouro e diamantes. Por esse motivo, seu te Senado, e posteriormente na Câmara
principal dirigente, Nicholas Oppenhei- dos Deputados, uma forma direta de
mer, está impedido há muitos anos de assegurarmos o respeito a fundamentais
pisar em solo americano, sob pena de ser princípios constitucionais e humanos
imediatamente preso. e, indireta, de impedirmos de atuar no
Brasil uma empresa poderosa que carrega
Num momento em que a sociedade consigo a mancha indelével de uma práti-
brasileira começa a tomar consciência cres- ca racista contrária aos direitos humanos.
cente de seus problemas sociais e raciais,
inclusive discutindo a reformulação de sua Axé!
143

Abdias Nascimento como o “deputado Dr. Jubileu de Almeida” na peça de Nelson Rodrigues
Perdoa-me por me traíres. Teatro Municipal, Rio de Janeiro, 1957.
Pronunciamentos
Homenagem a Nelson Rodrigues 145

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal, em 29 de abril de 1997
Senhoras e Senhores Senadores,

Sob a proteção de Olorum, ocupo


esta tribuna.

Homenagem ao teatrólogo Formada pelas contribuições de


Nelson Rodrigues pelo lançamento, diferentes grupos humanos, que para cá
nos Estados Unidos, da peça trouxeram suas tecnologias, seus hábi-
“Vestido de noiva”. tos, suas religiões, suas maneiras de ser
e de estar no mundo, a cultura brasileira
é, por isso mesmo, uma das mais ricas
do planeta, dotada de uma versatilidade
e de uma flexibilidade absolutamente
invejáveis num mundo em processo de
rápida e ininterrupta transformação. As-
sim, além de extraordinariamente fértil,
a cultura brasileira tem produzido uma
infinidade de artistas de excepcional
qualidade. Não apenas na música e na
dança, que o mundo inteiro já aprendeu
a respeitar, mas igualmente na literatura,
no cinema e no teatro. No caso destas
formas de expressão, contudo, um dos
146 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

grandes obstáculos ao reconhecimento Para nós, que há muito tempo apren-


de nossos valores tem sido exatamente demos a respeitar e admirar esse grande
a língua portuguesa, pouco conhecida autor e sua obra, nada disso provoca
além das fronteiras dos países em que surpresa. Pelo contrário. Dadas suas
constitui o idioma oficial. qualidades intrínsecas, aliadas à carga de
inovações que trazia à época em que foi
Nos últimos anos, porém, temos
lançada, Vestido de noiva, que estreou
assistido com satisfação à quebra parcial
em dezembro de 1943, é considerada
dessas barreiras, com a consagração
uma espécie de divisor de águas do tea-
no exterior dos trabalhos de alguns de
tro brasileiro. Sobre ela já se afirmou ter
nossos artistas e intelectuais mais talen-
feito com que o nosso teatro superasse o
tosos. É o caso do grande sucesso que
complexo de inferioridade perante seus
vem obtendo a montagem, num teatro de
correlativos europeu e norte-americano.
Los Angeles, da peça Vestido de noiva, Em função dela e do restante de sua
obra-prima daquele que é, a nosso ver, o obra, Nelson Rodrigues é visto como
maior dramaturgo brasileiro de todos os aquele que representou para o palco o que
tempos: o genial Nelson Rodrigues, de trouxeram Villa-Lobos para a música,
quem tive a honra de ser amigo e com- Portinari para a pintura, Niemeyer para
panheiro de lides teatrais. a arquitetura e Drummond para a poesia.
Com diretor e elenco norte-ameri- Como todas as peças de Nelson Ro-
canos e tradução para o inglês de Joffre drigues, cujo itinerário nunca foi pacífico,
Rodrigues, um dos filhos de Nelson, a Vestido de noiva causou, apesar do suces-
nova montagem de Vestido de noiva tem so, muita polêmica à época de sua estréia.
lotado o Teatro Forty, de Beverly Hills, Sobre ela escreveria mais tarde o autor,
cuja reputação foi construída a partir sempre irônico e iconoclasta: “Com Ves-
de clássicos do repertório americano. tido de noiva, conheci o sucesso; com as
Além do sucesso de público – não há peças seguintes, perdi-o, e para sempre.
lugares disponíveis para as próximas (...) Pois a partir de Álbum de família
apresentações –, a peça vem recebendo [sua peça seguinte] enveredei por um
verdadeira aclamação da crítica especia- caminho que pode me levar a qualquer
lizada, expressa em artigos publicados destino, menos ao êxito. Que caminho
em prestigiosos órgãos de imprensa, será este? Respondo: de um teatro que
como o Los Angeles Times e a revista se poderia dizer assim – ‘desagradável’.
Variety. A ponto de um crítico de renome Numa palavra, estou fazendo um ‘teatro
ter manifestado a sua incredulidade com desagradável’, ‘peças desagradáveis’. E
o fato de ter sido obrigado a “esperar 54 por que ‘peças desagradáveis’? Segundo
anos desde que a peça foi escrita (...) para já se disse, porque são obras pestilentas,
que essa obra-prima fosse exibida pela fétidas, capazes, por si sós, de produzir o
primeira vez na América do Norte”. tifo e a malária na platéia. (...) A partir de
Pronunciamentos
Homenagem a Nelson Rodrigues 147

Álbum de família, tornei-me um abomi- obsessão”. Com efeito, alguns motivos


nável autor. Por toda parte, só encontrava aparecem espalhados por toda a sua
ex-admiradores. Para o crítico, autor e obra: a oposição pai-filho, a inclinação
obra estavam justapostos e eram ambos mãe-filho, o incesto, a solidão, a desagre-
‘caso de polícia’.” gação dos valores convencionais, a força
corruptora do dinheiro e – acima de tudo
A razão das ferozes reações à obra de
– a crença numa ética última e irredutí-
Nelson Rodrigues residem no arraigado
vel da criatura humana, marcando-lhe a
conservadorismo, na entrincheirada
hipocrisia que caracterizavam as elites transcendência. Sim, porque, a despeito
brasileiras, atingidas em cheio pela de toda a sua irreverência, Nelson Ro-
temática de sua obra, sempre pronta a drigues era essencialmente um moralista
desnudar preconceitos e fazer aflorar os radical, para quem o corpo humano era o
sentimentos mais íntimos e inconfes- exato oposto da santidade. Daí, em todo
sáveis de uma sociedade que se queria o teatro rodrigueano, que não vê salvação
ilibada e puritana. Sua ousadia artística, fora da graça, a explosão de taras, inces-
interpretada como gosto à provocação e tos e mortes violentas – nociva para o
busca de publicidade, e sua integridade público dopado pelo teatro digestivo que
criativa, que soava como um desafio à antes dele predominava, segundo a ótica
crítica, foram características constantes tacanha da Censura. Longe de diminuir
de todas as suas peças. Sempre questio- o alcance de seu teatro, o radicalismo
nando o establishment teatral e os dúbios ético de Nelson Rodrigues exacerbou-
padrões morais reinantes – o que fez -lhe o processo criativo e aguçou-lhe
dele um autor em luta constante contra as intuições e sondagens nas criaturas
as tesouras da Censura. Isso, por sinal, retratadas, ao mesmo tempo em que sua
jamais o intimidou. Além do sarcasmo recusa à hipocrisia lhe permitia penetrar
que pela imprensa destilava contra os profundamente na miséria humana.
opositores, Nelson Rodrigues tinha no Na lógica interna de sua criação,
próprio palco as melhores armas para Nelson Rodrigues rasgou, como alguém
desmoralizar os críticos especializados já disse, o subconsciente e sondou as
que não o poupavam. Seu temperamento raízes do inconsciente, deixando a nu a
apaixonado não o predispunha ao debate psicologia de uma sociedade autoritária,
domesticado pela racionalidade. Daí,
repressiva, cruel e, sobretudo, hipócrita.
restava-lhe, em frases contundentes e
Como dramaturgo, percorreu uma ampla
mordazes, ridicularizar os desafetos, o
gama de inspirações, com o que conse-
que fazia com extraordinária – e temida
guiu satisfazer gostos não apenas diver-
– competência.
gentes, mas até mesmo contraditórios. E
Um dos epítetos com que o cha- sempre com sua personalidade imedia-
mavam os amigos – e que ele próprio tamente reconhecível - um estilo e um
admitia com prazer – era o de “flor de diálogo que não se confundem com os
148 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar

de nenhum outro autor. O compromisso Anti-Nelson Rodrigues, Álbum de famí-


com o quotidiano, a existência próxima lia, Anjo negro, Senhora dos afogados,
e palpável, foi reforçado no exercício Dorotéia, A falecida, Perdoa-me por
de sua faina diária como jornalista, pu- me traíres, Os sete gatinhos, Boca de
blicando desde 1951 na Última Hora do Ouro, Beijo no asfalto, Bonitinha, mas
Rio, entre outras séries, “A vida como ela ordinária, Toda nudez será castigada e A
é”. Nessa quase inacreditável coletânea serpente. Em todas elas, a marca indelé-
de histórias, os personagens eram prefe- vel de um dramaturgo de primeira linha,
rencialmente extraídos do quotidiano do comparável aos melhores que o mundo
subúrbio carioca. A par da extraordinária já produziu. E que o mundo todo poderá
popularidade, que aumentou imensamen- agora conhecer, quando se abrem para
te as vendagens do jornal, “A vida como Nelson Rodrigues, embora tardiamente,
ela é” foi a fonte maior de um subgênero as portas do reconhecimento e do sucesso
criado por Nelson Rodrigues: a tragédia internacionais.
carioca.
E por mencionar a grandeza teatral
Ambientadas na Zona Norte do e humana desse imortal dramaturgo, não
Rio de Janeiro, as obras dessa vertente posso deixar de lembrar particularmente
trazem agora uma dimensão concreta sua peça Anjo negro, escrita para ser
do real, mas sem abdicar da intensa apresentada pelo meu Teatro Experimen-
carga subjetiva que caracteriza suas tal do Negro. Nelson Rodrigues era um
peças anteriores. É que o psicológico e aliado na luta que travávamos contra a
o mítico se haviam impregnado de uma discriminação racial em nossos palcos e
forte seiva social. Embora evitasse o essa tragédia espelha seu compromisso
panfleto político, pois tinha consciência com essa causa. Combati a seu lado o
dos duvidosos resultados literários do veto da Censura até conseguir a liberação
proselitismo, Nelson Rodrigues acabou do texto, enfim encenado, não pelo TEN,
fornecendo um testemunho doloroso das mas pela companhia da atriz Maria Della
precárias condições em que sobreviviam Costa.
as classes desprivilegiadas. Desse modo,
Termino este registro com um
sem desejar produzir uma análise social
sentimento nostálgico ao evocar neste
ou de fundo sociológico, Nelson revelou
instante a ocasião em que representamos
no próprio substrato da ordem capitalista
juntos, Nelson Rodrigues e eu, no Teatro
o principal condicionante da miséria que
Municipal do Rio de Janeiro, um texto
afligia as famílias suburbanas. Não ape-
desse grande teatrólogo: Perdoa-me
nas a miséria financeira, mas sobretudo
por me traíres. Coube-me interpretar o
a miséria ética.
Deputado Dr. Jubileu de Almeida, um
São 17 as peças de Nelson Rodri- tarado que se autoproclamava “uma
gues: A mulher sem pecado, Vestido de reserva moral da pátria”, enquanto o
noiva, Valsa nº 6, Viúva porém honesta, autor-ator desempenhava o personagem
Pronunciamentos
Homenagem a Nelson Rodrigues 149

Tio Raul. Ao descer o pano após a cena na verdade revela muito bem a capaci-
final, a platéia do teatro se transformou dade do teatro de Nelson Rodrigues em
num imenso caos. Distintas senhoras mobilizar os mais profundos sentimentos
urravam impropérios ofensivos ao autor, das platéias, tocando nas feridas da alma
cavalheiros circunspectos o vaiavam, brasileira como nenhum outro, antes ou
enquanto outro segmento o aplaudia. depois dele.
A gritaria cresceu e Nelson Rodrigues,
extremamente tenso, surgiu na boca da Assim como o teatro norte-america-
cena para enfrentar a confusão. Revólver no possui um Eugene O’Neill, o gênio
em punho, um vereador tentou matar, modernizador da dramaturgia daquele
não o autor, mas a própria peça, para país, e a Inglaterra se orgulha do seu
ele talvez patológica ou imoral. Nelson Shakespeare, nós celebramos o Dante
avançou no proscênio e gritou, chamando da nossa literatura dramática: Nelson
seus ofensores de “animais”, “cavalgadu- Rodrigues elevou o teatro brasileiro até
ras”. O elenco então correu a protegê-lo, o ponto mais alto que a dramaturgia de
cercando-o. Diante de uma barreira de
qualquer nação tenha atingido em qual-
atrizes e atores, a fúria do público arrefe-
quer tempo.
ceu e o espetáculo, enfim, terminou. Esse
episódio, tragicômico na sua aparência, Axé, Nelson Rodrigues!
151

Cacilda Becker e Abdias Nascimento numa cena de Otelo, de Shakespeare, no Festival do II Aniversário do TEN. Teatro Regina, Rio de Janeiro, 1946.
A essência deste trabalho é tornar claro
que a alegação jurídica de que “Somos
todos iguais perante a Lei”, longe de ser
a consumação da luta dos negros pela
liberdade e afirmação racial, é muitas
vezes uma forma de escamotear suas
Somos todos iguais reivindicações. O trabalho foi apresen-
perante a lei tado ao 1º Congresso de Cultura Negra
das Américas no ano de 1977 em Cáli,
Colômbia, e publicado na revista Afro-
diáspora, ano 3, nº 5.

As Constituições se sucedem no
meu país e todas elas põem ênfase,
quando se trata dos direitos e garan-
tias individuais, na igualdade de todos
os brasileiros, sem distinções de raça.
Estabelece-se assim anulação legal das
diferenças raciais, para apagar a brutal
tradição escravagista que ainda habita
o subconsciente histórico de nosso País.
Durante mais de quatro séculos o negro
Sebastião Rodrigues Alves *
foi instrumento de trabalho, objeto de
156 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

troca e dominação por uma sociedade história dramática da escravidão. Mais


que lhe negava, explicitamente, direito ainda, a igualdade racial declarada na
à condição humana. Esse subconsciente Constituição vigente e em algumas leis
culposo se reflete em toda a legislação complementares significaria que nós ne-
pertinente, a partir da Lei Áurea (1888), gros temos as mesmas oportunidades, os
que aboliu a escravatura, para demonstrar mesmos instrumentos de luta e iguais ca-
que não há brancos nem negros e sim, so- minhos que o resto da sociedade para nela,
mente, brasileiros não classificados pela a sociedade, afirmar nossa personalidade
origem racial. A Constituição vigente, humana. Em resumo, se por uma tragédia
outorgada pela Junta Militar a 17 de ou- histórica milhões de negros tirados de seus
tubro de 1969, não se furta em assinalar lares nativos, dos deuses de sua fé, de
esta preocupação permanente de uma seus hábitos e costumes, para servirem na
sociedade ainda maculada pela odiosa degradação escravagista, estariam agora,
tradição recente. No seu capítulo IV, que por meio de duas ou três linhas da lei,
trata dos direitos e garantias individuais restituindo a sua liberdade da nossa terra,
(art. 153 diz textualmente), no parágrafo chame-se ela Brasil, ou Colômbia, Porto
1º: “Todos os (brasileiros e estrangeiros) Rico ou Venezuela, Peru ou Guatemala.
são iguais perante a lei, sem distinção de
A essência de nosso trabalho é tor-
sexo, raça, trabalho, credo religioso e
nar claro que a alegação jurídica de que
convicções políticas. Será punido pela lei
“Somos todos iguais perante a lei”, longe
o preconceito de raça”. Por força desse
de ser a consumação da luta dos negros
artigo, reforçado no seu parágrafo 8º, que
pela liberdade e afirmação racial, é mui-
diz: “Não serão toleradas a propaganda
tas vezes uma forma de escamotear suas
de preconceitos de raça”, pareceria que
reivindicações. Apresento o exemplo de
no Brasil, por arte jurídica, não há mais
meu país, país que tardiamente determi-
diferença entre os homens originada pela
nou a abolição da escravatura. Temos
raiz racial e que, eliminada a diferença
uma lembrança pessoal; negro de origem,
pela arte da lei, todos, negros e brancos,
desde muito moço tivemos que enfrentar
temos as mesmas oportunidades cultu-
a luta pela sobrevivência. Em 1935, data
rais, políticas e econômicas.
que historicamente não está muito longe,
Pareceria, sempre no amparo da Lei com dinheiro recolhido por nossos irmãos
Magna, que aquele subconsciente culpo- de cor, viemos de São Paulo ao Rio de
so da sociedade brasileira em relação ao Janeiro, sede do Governo da República,
negro foi sublimado e apresenta-se hoje para pedir ao presidente que permitisse
limpo de qualquer vestígio de domínio aos negros transitarem livremente pela
escravagista. Dir-se-ia também que essa Rua Direita, então principal da cidade de
igualdade jurídica outorgada por leis São Paulo. Poucos anos depois, em 1944,
permite ao negro o reencontro com o junto com Abdias Nascimento, fundamos
seu passado cultural e religioso, do qual no Rio de Janeiro o Teatro Experimental
foi violentamente arrancado no curso da do Negro com dois objetivos principais:
Somos todos iguais perante a lei
Sebastião Rodrigues Alves 157

propiciar o aparecimento de dramaturgia pelo que significa demograficamente.


com temática negra, de autores brancos Somos um País que, atualmente, conta
e negros; e dar oportunidade a atores com 120 milhões de habitantes. Desse
negros de atuarem no palco, posto que, número, ainda que as estatísticas já não
quando Otelo ou qualquer personagem sejam diferenciadas, pode-se dizer que
negro aparecia em cena, era interpretado 75 por cento pertencem à raça negra ou
por artista branco vestido a caráter. Junto à mestiçagem. A maior concentração de
com Abdias Nascimento e outros muitos negros e mulatos se encontra na Bahia,
irmãos de cor, organizamos nesses anos Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo
confusos dos 40 e dos 50, congressos e e Minas Gerais. Como resultado direto
seminários com o interesse, sobretudo, das condições em que foi feita a aboli-
de desenvolver a autoconsciência sobre ção, essa população negra e mulata, em
o que era ser negro numa sociedade que, sua grande maioria, pertence às clas-
legalmente, nos outorgava a igualdade, ses pobres, sem acesso à educação e
mas que, em realidade, queria o esqueci- aos escalões de promoção social. Em
mento de nossa convicção racial para a nosso livro A ecologia do grupo afro-
sublimação de seu subconsciente culposo. -brasileiro, tivemos oportunidade de
Contemporaneamente a nós, nesses analisar, mediante pesquisa de campo, a
anos confusos e maravilhosos dos 40 e 50, falsidade da chamada democracia racial
nascia a teoria e prática da negritude, uma ou multirracial proveniente daquela dis-
forma de reavaliar o espírito negro e a sua criminação que sofre o negro brasileiro.
sobrevivência. Iniciavam-se os valorosos Mencionamos já a predominância de-
movimentos negro-africanos pela indepen- mográfica desse negro brasileiro, porém
dência política, e nossos irmãos da América ele não está representado no alto mundo
do Norte consumavam suas lutas pelos empresarial. A imigração japonesa, que
direitos civis. Na mesma época, nós negros tem pouco mais de 50 anos no País, deu
da América-Latina estávamos como anes- já dois ministros, vários deputados, e
tesiados porque, legalmente, éramos todos tem uma extraordinária participação
iguais perante a lei. Essa igualdade suposta no mundo empresarial, desde os postos
não levava em conta outras discriminações executivos até as posições tecnocráticas.
sofridas pelos negros remanescentes da Não há negros nem na diplomacia nem
abolição: a discriminação educacional, a nos altos postos das Forças Armadas.
discriminação econômica, a discriminação Não se fala, porém, de inferioridade
social e a discriminação cultural. cultural do negro brasileiro. Em tudo
o que há de importante no País está a
participação do negro, ainda que nos
O caso brasileiro momentos mais cruéis da discriminação.
Por exemplo, a Academia Brasileira de
O que poderíamos chamar de caso Letras foi fundada por um negro, que é o
brasileiro adquire especial relevância maior romancista do Brasil, Machado de
158 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

Assis. Na pintura, na música, na escultura daqueles seráficos frades companheiros


e nas letras, a presença em grau eminente nossos de claustro.
do negro sempre está registrada. Não há,
Novamente no mundo, crescendo em
portanto, inferioridade cultural, e sim
nossa consciência a necessidade de estudo
um silencioso, sutil sentimento que dá
e valorização do negro, fomos pedreiro
força àquele substrato de consciência que
e mestre-de-obras, vendedor de doces,
conserva, ainda, a rejeição dos valores
sorveteiro e comprador de cristal de rocha.
negros.
Exercendo tão diversas atividades, tive-
mos necessidade de múltiplas moradias
Os fundamentos da nossa comunicação
e as mais demoradas convivências com
todos os tipos sociais, sentindo sempre
A nossa comunicação tem seu fun- que o negro, além de sofrer as agruras da
damento numa longa experiência vivida pobreza, levava a maldição da tradição es-
em todos os campos onde o negro está cravagista. Não havia para ele as mesmas
presente no Brasil. Nascido no interior oportunidades que para o branco, não se
de um Estado de nosso País, lutamos davam para ele as condições de promoção
desde criança no meio hostil provocado social que qualquer cidadão igual perante
pela pobreza e a cor. Fomos lavrador,
a lei possuía. O negro poderia, por sorte
candieiro de bois, trabalhando na enxada
própria ou proteção alheia, chegar até
de sol a sol. Sem condições, na infância,
certo ponto e nada mais. O resto, a plena
para o estudo sistemático, realizamos
igualdade jurídica para atingir os altos
grandes esforços para adquirir conhe-
postos da administração das Forças Ar-
cimentos até, adulto, chegar ao grau
madas, do Itamarati, do empresariado,
superior. Como negro pobre, ainda que
da medicina, da engenharia, do direito,
igual perante a lei, entramos no Exército
da economia, do teatro, lhe estava miste-
sendo soldado raso, cabo, sargento e 2º
riosamente vedada.
tenente na Revolução de 1930. Em 1936
deixamos o Exército e embarcamos numa Como já dissemos, muitos foram os
nova experiência humana: entramos lugares em que convivemos com gente
como postulante num convento de frades de nossa raça e muitas as oportunidades
franciscanos, onde recebemos o burel para investigar na sua pura realidade a si-
franciscano e o nome de frei Miguel. tuação do negro, cultural, social e econo-
Aqui, num convento, onde haveria a micamente, perante a sociedade que lhe
altura espiritual suficiente para superar dava guarida em troca de sua menos-va-
todo o preconceito de raça, conhecemos lia cultural, social e econômica. Desses
que nós, os negros, não éramos tão iguais lugares, o mais amplo, o mais profundo e
como apregoavam o Evangelho e a lei. Aí o mais dramático foi nosso convívio nos
também o preconceito, o subconsciente morros cariocas, nas famosas favelas do
culposo, alimentado pela tradição escra- Rio de Janeiro. Durante anos subimos
vagista, mostrava-se palpável na conduta e descemos o morro, compartilhando a
Somos todos iguais perante a lei
Sebastião Rodrigues Alves 159

vida cotidiana de seus habitantes. Sem miséria atinge a todos – negros, brancos e
dúvida, há um componente econômico amarelos. Contudo, no caso concreto de
determinante da situação de miséria ma- meu País, a condição de negro ou mulato
terial e moral registrada nas favelas. Mas é quase sempre um fator agravante dessa
quando se sabe que a maioria é de negros miséria. Nas inúmeras tarefas a que nos
e mulatos, os que mais se encontram levou o Serviço Social, encontramos
sem registro civil, sem assistência, sem muitas vezes o negro degradado porque
escola, o investigador social deve estudar estava desamparado pela lei, porque
por que essa condição racial multiplica sobre ele se impunha o subconsciente
os dissabores e a tragédia do habitante culposo coletivo que o considerava in-
dos morros. Diga-se simplesmente que ferior, social ou legalmente.
um negro, quando desce do morro para
o trabalho, não sabe se volta porque sua O protesto negro
condição escura, essa primária discri-
minação ornamental que sofremos, nos As dimensões desta comunicação
torna suspeitos policialmente. não permitem avaliar em toda a sua
O desenvolvimento de nossa tese se extensão o grau do chamado “protesto
reduz ao estudo e interpretação da situ- negro”. As virtudes de nossa raça, a força
ação do negro perante a lei. Entretanto de nossos ancestrais nunca se apagaram
caberia aqui uma indagação mais profun- do espírito negro nestes quatro séculos
da da situação da mulher negra, especifi- de odiosa escravidão. No seu culto, no
camente, em face daquele subconsciente seu trabalho de arte, no mesmo tipo de
culposo ainda vivo na sociedade branca. convivência, nos seus jogos, a força sutil
Ou é empregada ou é prostituta. Quando e poderosa das virtudes raciais manteve-
mais, sua missão é procurar seus filhos -se intacta, de forma que hoje podemos
na delegacia, detidos para averiguação de revivê-la, analisá-la, avaliá-la e tornar a
supostos delitos simplesmente porque, a cultuá-la como o fazemos neste Congres-
priori, podem ser delinqüentes. Foi nesse so de Cultura Negra das Américas.
convívio com favelados, assistindo a sua Todos sabemos que o estupro foi
vida cotidiana, observando o esforço para brutal e implacável. A primeira medida
reviver os valores humanos do negro na do escravagista direto ou indireto era pro-
religião e na cultura ancestral, que nos duzir o esquecimento do negro, esqueci-
conscientizamos da necessidade de lutar mento de seus lares, de sua terra, de seus
por valorização em todos os campos. deuses, de sua cultura, para transformá-lo
Tivemos, posteriormente, o grau superior em vil objeto de exploração. Esse estupro
em Serviço Social, sendo-nos possível cultural teve transformação para sempre
conhecer os graus da miséria. Há, repe- apresentar-se mascarado. O negro, es-
timos, determinantes econômicos nos quecido na sua condição propriamente
diversos aspectos da miséria social e essa humana, era objeto de estudo da Antro-
160 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

pologia no sentido de medir as dimensões experiência indo a restaurantes onde se


de sua cabeça, de sua condição fálica, de demorava o atendimento até provocar o
seus instintos, de seu comportamento cansaço ou a irritação do negro. Nos era
reflexo. Ao estupro do esquecimento, indicada a porta de serviço na entrada dos
dirigido às origens, sucedeu a chamada edifícios, mesmo se especialmente convi-
aculturação, outra forma sinistra de cor- dados pelos donos da casa. Nos hotéis a
tar os laços religiosos e culturais com as mesma coisa: nunca havia acomodações
mesmas origens. Tudo isso é uma história disponíveis para o negro.
bem conhecida e resulta ocioso destacá-
-la. Mas interessa mencioná-la para a Não é necessário relatar aqui casos
fisionomia do chamado “protesto negro”. concretos, casos inúmeros para todos
os negros que desafiamos a odiosa dis-
Com todos os nossos companheiros criminação. Está claro que o chamado
conscientizados, tomamos parte em lon- “protesto negro” tinha que se adaptar
gos anos de luta desse “protesto negro”. conjunturalmente às circunstâncias. O
Claro que esse protesto se desenvolve no negro em rebeldia nem podia nem devia
tempo. Em nossa juventude, sua forma aprofundar-se nas causas estruturais da
era conduzida pela necessidade de sermos discriminação. Por isso a forma de nosso
apenas aceitos na sociedade. A reação do protesto se dirigia a conscientizar o negro
negro frente à discriminação visível e de seus direitos, e atualizar esses direitos
invisível contra sua humanidade devia- mediante o protesto veemente quando a
-se, naqueles anos de luta e de afirmação, circunstância se apresentava. Realizamos
manifestar-se de acordo com a forma em congressos e seminários, fundamos o
que a discriminação o agredia. Primeiro Teatro Experimental do Negro, procu-
era a agressão econômica. A igualdade ramos de todas as maneiras os meios de
frente à lei era insuficiente para proteger comunicação para tornar patente nosso
o negro no mercado de trabalho. Havia, protesto. O nosso companheiro Abdias
e há, áreas desse mercado de trabalho a Nascimento esteve sempre no centro
que o negro não tinha e não tem acesso, dessas atividades. Ele foi que desafiou
salvo os lugares inferiores. Consumava-se o hotel que tinha negado hospedagem a
o efeito do subconsciente culposo; o negro uma cientista negra americana visitante:
era para servir. Havia, e há, o que podería- ele escreveu uma carta famosa ao chefe
mos chamar a discriminação ornamental, de polícia do Rio de Janeiro, carta repro-
bastando uma pele escura para não se duzida mundialmente, em especial na
poder entrar em certos lugares. Em clubes imprensa negra americana, em que fazia
de classe média e alta, em restaurantes violento protesto por ser expulso de uma
de luxo ou semiluxo, em lojas de luxo, o festa de artistas, acompanhado de uma
negro era discriminado silenciosamente. atriz negra, simplesmente pela sua cor.
A forma era sutil, mas discriminatória. Os
empregados simplesmente não atendiam Qual foi a reação? Com a lei. Não
ao negro e nós mesmos passamos por essa bastava o artigo explícito da Constitui-
Somos todos iguais perante a lei
Sebastião Rodrigues Alves 161

ção que nega as desigualdades raciais. O negro trânsfuga levaram ao malogro esse
poder público achou necessário explicitar protesto, e por outro o negro brasileiro
esses direitos e a 3 de julho de 1951 foi carecia de condições políticas autôno-
promulgada a Lei 1.390, que inclui entre mas para consumar seus propósitos de
as contravenções penais a prática de atos valorização racial no sentido pleno do
resultantes de preconceitos de raça ou conceito. Transfere-se nossa luta a uma
de cor. Faz pouco mais de 20 anos da simbiose entre classe e raça, de forma a
existência de tal lei, o que mostra como é tornar solidárias ambas as lutas reivindi-
violentamente atual o caso da discrimina- catórias. Uma revalorização histórica se
ção. O mesmo texto da lei é vergonhoso impõe para delimitar exatamente qual é
do ponto de vista da democracia racial. o bom combate do negro nestas últimas
Pois ainda é necessário, num país que décadas, prodigiosamente intensas, para
tem 75 por cento de negros e mulatos, a reconquista dos seus direitos humanos.
mais de dois terços de sua população, Partimos de um fato objetivo e inques-
dois terços que vivem e trabalham neste tionável: tivemos esses direitos, os tive-
país, que são agentes de sua construção e ram nossos ascendentes negro-africanos,
desenvolvimento, escrever um texto legal antes do estupro escravagista.
punindo contravenções como impedir em
Nossos ancestrais viviam em sua
estabelecimento comercial ou de ensino
terra, com seus deuses e seus costumes,
ou de qualquer natureza hospedar, servir,
com seus hábitos e seus ritos, dentro
atender ou receber cliente, comprador ou
de um pacto social, subjetivamente
aluno por preconceito de raça ou de cor.
aceito, correspondente a seu tempo e
Resta dizer que essa lei de texto eufemis-
espaço históricos. As formas culturais
ticamente generoso é inócua, nunca foi
desenvolveram-se extraordinariamente,
aplicada no seu aspecto punitivo, pois se
tal como o prova a arte negra milenária
faz impossível caracterizar o momento
e centenária salva do roubo e da des-
delitivo. Novamente o negro foi atendido
truição. Aqueles ancestrais, violenta e
em seus direitos com a letra escrita da lei,
odiosamente, foram arrancados e tra-
e negado na realidade dos fatos.
zidos a terra estranha para o trabalho
O chamado “protesto negro” tra- escravo. Vieram as diferentes abolições
duzia um conflito e uma tensão. Sua em cada país. No nosso, nossa abolição
manifestação nos era negada por aquele teve como determinantes específicos os
subconsciente culposo, herdado da tra- efeitos estruturais da crise lavrada no
dição escravagista, que se sublimava sistema econômico dominante: em um
mediante de artigos constitucionais e novo tipo de sociedade econômica, a
textos de leis insuficientes para construir mão escrava não se mostrava eficaz para
uma presumível democracia racial. Diz- as nascentes formas de produção. E co-
-se que nosso protesto foi fracassado; meça, para o negro brasileiro, o estupro
por outro lado, o negro conformista e o sentimentalista procurando abolir sua
162 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

memória. Mais adiante teremos ocasião litúrgico-sobrenatural. Foi mais ampla


de dar as linhas dessa violenta abolição ainda a busca da abolição da memória do
da memória a que foi submetido o negro negro: os cientistas sociais e os antropólo-
brasileiro. A abolição legal da escravidão gos, como dissemos anteriomente, tenta-
foi uma doação, uma outorga segundo ram desenhar a imagem do negro como a
a mitologia dominante. Mas o negro, do homem primitivo, tomando as medidas
manumitido graciosamente, de escravo angulares de seu crânio, sua longitude
passou a pária social, ocupando as mais fálica e levando a fita métrica para contar
baixas categorias de assalariado, quando as polegadas a mais dos quadris de nossas
não na miséria completa. Essa menos- mulheres.
-valia econômica até agora nos persegue A ofensiva contra a memória do ne-
evangelicamente: quanto menos temos, gro não é somente brasileira e tem suas
mais se nos tira. Nesse sentido, classe raízes na política colonizadora iniciada
e raça pareceriam unificados enquanto sistematicamente no século XVIII, ainda
reivindicação social. que com precedentes portugueses e espa-
nhóis. O colonizador e o escravagista têm
A abolição da memória má consciência, e precisam sublimá-la.
Uma palavra, somente uma palavra, foi
Mas o negro foi submetido a outra ex- a chave da devastação colonizadora. Nos
ploração mais terrível, fundada na abolição referimos ao substantivo civilização e ao
de sua memória. A primeira providência verbo derivado civilizar. Esta palavra
da oligarquia republicana que sucedeu à civilização, aparentemente inofensiva,
recente abolição foi ordenar a queima e aparece somente em meados do século
destruição de todos os documentos, de XVIII; inventou-a um francês e imedia-
todas as cartas de compra e venda de es- tamente um inglês a incorporou a seu vo-
cravos, de todos os instrumentos de tortura cabulário. A terminação ativa da palavra
a que foi submetido o escravo. No corpo e civilização lhe dava uma significação di-
no espírito, foi exercida implacavelmente nâmica: levar a cultura, os usos e hábitos
essa abolição da memória. Nossa religião, das cidades, as normas civilizadas para
delicadamente guardada nas fibras íntimas os bárbaros, para aqueles que careciam
da alma do negro que vinha dos porões dos desses hábitos, usos e costumes e normas
navios negreiros, foi proibida em sua ver- cidadãs. O sucesso político da palavra
dadeira manifestação cultural. Tentou-se foi extraordinário. Todos os cientistas
desnaturalizá-la por meio do sincretismo, políticos a usavam, todos os estadistas
e assim mesmo foram perseguidos os dos países colonizadores – Inglaterra
que a ela faziam menção de se entregar. e França, Holanda e Bélgica, além de
Não sendo suficiente a censura material, Espanha e Portugal – enchiam seus dis-
criou-se outra censura invisível: a redução cursos com civilização e civilizar quando
teológica e ritual à simples manifestação se tratava de justificar as expedições
folclórica para tirar aos cultos de umbanda predatórias contra os povos africanos e
e candomblé todo o seu intenso conteúdo asiáticos vivendo no primitivismo. Quem
Somos todos iguais perante a lei
Sebastião Rodrigues Alves 163

poderia se opor aos generosos soldados de classe e raça, não praticaremos outra
ingleses e franceses tratando de vestir forma de abolição da memória, passan-
os nus, pondo véus ou sutiãs nos seios do o centro de gravidade da luta para as
das jovens e ignorantes africanas, ou conquistas socioeconômicas e esquecen-
obrigando a esconder o membro viril aos do que se nos está roubando o espírito
guerreiros iorubás? Claro que o elemento negro, nossos valores negros, nossas
civilizador era o fuzil contra a flecha e a raízes negras? É bom lembrar que, até
pedra, era o suborno para a escravidão. muito pouco tempo atrás, a palavra negro
É por tudo isso que chamamos a atenção era quase proibida entre nossos irmãos:
energicamente para todas as formas de era sinônimo de escravo, de servil, de
agressão à memória do negro. marginal. Os que trabalhamos pela cons-
Outra palavra que merece nossa cientização do negro fizemos grandes es-
desconfiança é a aculturação, o ter- forços para resgatar o profundo conteúdo
mo cunhado pelos cientistas sociais a histórico e espiritual da palavra negro e
serviço, consciente ou inconsciente, devolver a sua plena significação. Essa
da dominação, para ferir na sua raiz a palavra negro nos une neste Congresso
memória do povo ou da raça oprimida. em que estudamos a imensa contribuição
Confessando que, quando se nos fala de nossos irmãos para a construção cultu-
de boca cheia de civilizar ou aculturar, ral deste Continente. E essa palavra negro
sentimos repugnância porque volta nosso é o fundamento existencial de nossa luta
pensamento às formas tremendas que na busca da afirmação de nossos direitos
o estupro civilizatório ou aculturador e de nossos valores.
tomou contra a conservação da memória
de nossos irmãos. Conclusões
A abolição da memória teve mui-
tas formas no Brasil. Após a abolição Neste nosso trabalho, procuramos
propriamente dita começou a surgir na evitar a citação das fontes. Não é um
literatura, nos discursos políticos e no trabalho de pesquisa, de investigação
subconsciente coletivo a idéia do bom histórica ou sociológica. Está claro que
senhor. Sim, tivemos escravatura, mas se encontra implícita a citação de todos
no Brasil o patrão era bom, era um bom os que estudaram a dramática presença
senhor, a sinhazinha era boa, amiga de do negro nas Américas. Nossa primeira
suas escravas. Há outra forma mais sutil intenção era desmistificar o chamado
de castração da memória que essa de combate à discriminação por meio de
apagar a memória contra o estupro sofri- textos legais que nos outorgam direitos,
do? Ao bom senhor patriarcal sucedeu a negando-nos ao mesmo tempo instrumen-
sabedoria da lei que nos declarava iguais tos também legais para defender esses
ante a mesma lei e, em conseqüência, direitos. Nossos inalienáveis direitos hu-
estava abolida a discriminação. manos virão na medida em que sejamos
Nos perguntamos se, unidos na luta conscientes deles. Muito tem mudado
reivindicatória do negro os conceitos na observação desses direitos nestas três
164 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

últimas décadas. A nossa luta pedindo a rem reduzir essas manifestações à pura
igualdade real estava acompanhada pela artesania, ao folclore, às artes culinárias,
comovedora ação dos povos negro-afri- ao carnaval. Não que deixemos de achar
canos lutando contra os restos de colo- nessas manifestações campo propício e
nialismo e reivindicando a independência idôneo para que o indivíduo tenha sua
política. As lutas dos negros americanos realização, mas a raça tem uma men-
pela afirmação dos direitos civis foram sagem profunda, mensagem que hoje,
também a força eficaz que nos acompa- felizmente, está sendo explicitada.
nhava em nossa caminhada, e a presente Em terceira conseqüência de nossa
situação do negro, que, por exemplo, pode tese, devemos dizer que o negro não está
reunir-se num congresso livre, sem perigo fora do tempo histórico global. Nós, ne-
da medição de seu crânio, constitui já uma gros brasileiros, ou negros colombianos,
prova de que trilhamos a boa estrada da ou negros costarriquenhos, ou negros
valorização do negro. venezuelanos, ou negros habitantes de
Nossa segunda intenção neste tra- qualquer lugar desta América imensa,
balho é assinalar os inimigos que pro- temos um parentesco de sangue que
curam a abolição da memória do negro. não pode ser olvidado. O orgulho desse
Um dos inimigos é a miscigenação pela sangue negro o exibimos em todos os
miscigenação mesma. Um dos grandes momentos em que lutamos por nossos
sociólogos de meu país assinala, com direitos. O negro está hoje poderosa-
lucidez, que a miscigenação não signifi- mente inserido no tempo histórico e é
cava a ausência de preconceitos porque um de seus principais protagonistas. O
se desenrolava “num plano meramente grande sociólogo brasileiro Florestan
material e sexual e só excepcionalmente Fernandes disse alguma vez que “a partir
se associava a efeitos que implicavam do negro deverá se tentar descobrir como
na aceitação de alguns mestiços de o povo emerge na história”. Certamente,
brancos e negros como brancos”. Não o reconhecimento dos valores negros,
somos contra as interrelações, mas não do espírito negro, do sangue de nossa
num plano em que uns são mais iguais raça, da participação negra na construção
do que outros e em que a miscigenação social é o maior acontecimento desta
surge pela imposição subjetiva do mais metade do século XX. É válida como
igual. nunca, porque há milhões de negros neste
O resgate da memória do negro sig- ou noutro Continente, raiz da raça, que
nifica a valorização de sua contribuição se tornam conscientes de seu sangue, de
positiva no desenvolvimento da cultura seu espírito e de seus direitos.
e da arte. Na alma do negro correm
poderosas linhas de força criadora que * Sebastião Rodrigues Alves (1913-1985) foi assistente
social, militante da causa afro-brasileira, co-fundador
precisam da liberdade física e espiritual da Secretaria do Movimento Negro do PDT e sacerdote
para sua manifestação. Os inimigos dessa de Xangô. Seus livros incluem A ecologia social do
forma de memória são aqueles que que- afro-brasileiro (1957) e Sincretismo religioso (1982).
165

Abdias Nascimento e Ilena Teixeira em Todos os filhos de Deus têm asas, de Eugene O’Neill,
tradução de Ricardo Werneck de Aguiar. Teatro Fênix, Rio de Janeiro, 1946.
Comunicação apresentada na conferência
internacional Rompendo o Silêncio:
Violações dos Direitos Humanos no
Mundo Africano, organizada pelo African
Relief Committee in Canada, Afric, que se
realizou em Toronto, Canadá, entre 4 e 6
de outubro de 1991.
Violações dos
Direitos Humanos
É uma honra participar deste oportuno
no Mundo evento organizado pelo African Relief
Africano Committee in Canada. Antes de mais
nada, quero congratular os organizadores
da Conferência por seu conhecimento da
região que se refere a si mesma como
América “Latina”. Em grande parte por
causa dessa implícita rejeição de suas
populações africanas, o Brasil e as ou-
tras nações que constituem as Américas
Central e do Sul têm sido geralmente
excluídos da idéia popular sobre o que
constitui o mundo africano. Com efeito,
Abdias Nascimento nos Estados Unidos tenho sido freqüente-
Elisa Larkin Nascimento mente convidado a falar sobre “A Cultura
168 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

Africana no Caribe”, como se o Brasil se somos uma população majoritária. Mas


localizasse naquela região e o continente essa realidade tem sido sistematicamente
sul-americano não existisse. escondida, não apenas do mundo, mas
dos próprios afro-brasileiros, que ignoram
Recentemente, porém, a despeito dos amplamente suas conexões com a África.
esforços diplomáticos da elite dirigente no Essa é uma das expressões cruciais da
sentido de pintar o país de branco, parece natureza peculiar da supremacia branca no
ter-se espalhado a notícia de que o Brasil Brasil, que ele compartilha com a região
abriga a segunda maior população de ori- como um todo.
gem africana no mundo, menor apenas que Por outro lado, não hesito em falar
a da Nigéria. Na Colômbia, Peru, Equador, da escravidão e do genocídio perpetra-
Venezuela, Panamá, Nicarágua, Costa dos contra o meu povo. Um dos meus
Rica, Honduras e Uruguai, há substanciais trabalhos tem o título O genocídio dos
populações africanas. Em nações como negros brasileiros (1978). Em inglês,
Bolívia, Chile, Paraguai e Argentina, o meu livro Brazil: mixture or massacre?
processo de genocídio cobrou o seu tri- (1989) focaliza o mesmo tema.
buto histórico e os africanos foram ampla
mas não inteiramente varridos do mapa. Nesta comunicação, tentarei resumir
Ainda em agosto último, por exemplo, para os senhores alguns fatores históricos
um instituto de pesquisa e grupo religioso que caracterizam o genocídio dos africa-
chamado Ile Ase Osun Doyo patrocinou nos na região das Américas Central e do
um encontro internacional sobre cultura Sul e, no caso do Brasil, seus contornos
afro-americana, com participantes oriun- contemporâneos. Vamos fazer um breve
dos de todos os cantos do continente exame do chamado “descobrimento” que
convergindo para Buenos Aires. será celebrado em 1992; a imposição da
identidade “latina”; a articulação histórica
Tenho tido ocasião de lembrar das estratégias voltadas à eliminação das
nossos irmãos e irmãs dos Estados populações africanas; e várias formas con-
Unidos de que eles não são os únicos temporâneas de genocídio dos africanos
afro-americanos. Quaisquer que tenham no Brasil. Finalmente, vamos conside-
sido as pretensões de Teddy (Theodore) rar algumas questões políticas atuais e
Roosevelt, a América ainda inclui dois examinar a importância da solidariedade
hemisférios e 22 diferentes nações. Os no mundo africano em resposta a essa
afro-americanos podem ser encontrados situação.
em qualquer lugar, do Canadá à Argen-
tina. Quinhentos anos de genocídio
Como afro-brasileiro, encontro-me
deslocado num workshop que trata de Em grande estilo, o mundo europeu
Grupos Minoritários. A primeira realida- está se preparando para celebrar o quinto
de sobre os africanos no Brasil é que nós centenário da chamada “descoberta” da
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 169

América por Cristóvão Colombo e seus milhões de africanos escravizados, sendo


colegas de bandidagem. Para os africanos 3,5 milhões para o Brasil, enquanto apenas
e os nativos das Américas, esse é um mar- 596 mil foram levados para os Estados Uni-
co trágico. A “descoberta”, em primeiro dos. No entanto em 1890 havia 9 milhões de
lugar, é uma auto-elogiosa ficção euro- africanos nos Estados Unidos1 e somente 2
péia com respeito a uma terra há milênios milhões no Brasil (Chiavenato, 1980).
habitada pelos criadores das sofisticadas A proximidade do Brasil em relação
e avançadas civilizações americanas. A à África significava preços tão baixos
mentira torna-se mais irônica quando que era mais lucrativo comprar um novo
se considera a mera soma de evidências africano do que investir na saúde dos que
a indicar que os europeus, incluindo estavam aqui. Os africanos escravizados
Colombo, tiveram conhecimento da geralmente duravam cerca de sete anos,
América do Sul a partir dos africanos, após o que eram substituídos e abandona-
que de há muito vinham se engajando dos para morrer2. Nos Estados Unidos,
no intercâmbio comercial e cultural com não sendo esse procedimento o economica-
povos nativos americanos do México e mente correto, os africanos multiplicavam
Hispaniola (Van Sertima, 1976). sua população.
Mas a tragédia para africanos e A drástica redução das populações afri-
nativos americanos jaz não apenas na in- canas não se limitou ao Brasil. No Chile, os
justiça dessa falsidade. Eles estão sendo africanos superaram os europeus em número
conclamados a comemorar o estupro, o de 1540 até 1620. Durante o século XIX,
assassinato e a aniquilação sistemáticos Buenos Aires era mais de um terço africana.
de suas terras, povos e civilizações: 500 Bolívia, Paraguai e México coloniais possuí-
anos de genocídio. Tal foi o empreendi- am enormes contingentes de africanos. Essas
mento de construção da hegemonia euro- populações foram praticamente eliminadas.
péia nas Américas. Em todo o restante das Américas Espanhola e
Esta não é a ocasião de nos aprofun- Portuguesa, populações africanas majoritárias
darmos nos detalhes quanto à natureza foram reduzidas em grau variável, mas sempre
do colonialismo espanhol e português, drástico. O mundo mal sabe que elas existem.
dos sistemas escravistas e dos processos de Uma causa de seu relativo desaparecimento
abolição. Basta dizer que, de 1502 a 1870, as é a matança de centenas de milhares de afri-
Américas Central e do Sul importaram 5,3 canos (maroons) em palenques, cumbes,
1
Este número parece exagerado em comparação com os dados censitários citados por Asante e
Mattson em seu Historical and cultural atlas of African Americans (1991), que dá a população
afro-americana nos Estados Unidos em 1850 como sendo de 3,9 milhões. A uma taxa de cresci-
mento anual de 2%, isso resultaria em 7 milhões em 1980. Entretanto a notória subestimação dos
africanos em dados censitários faz-nos pensar duas vezes antes de rejeitar totalmente esses dados.
2
Para mais detalhes sobre a escravidão de africanos no Brasil, ver Nascimento, 1989.
170 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

cimarrones e quilombos por toda a expressão ideológica do genocídio.


América Central e do Sul (Price, 1983; Assim, podem-se encontrar brasileiros,
E. Nascimento, 1981). Outra é a natureza colombianos, costarriquenhos, domini-
violenta do colonialismo espanhol e por- canos ou peruanos de óbvia ascendência
tuguês, que não pretendia criar um lar em africana que nos dizem: “Não, eu não sou
novas terras, mas saquear sua riqueza e negro, sou brasileiro (ou peruano)!” Se su-
levá-la para a Europa. A causa principal, gerirmos que eles são africanos, poderemos
porém, é, indubitavelmente, a hegemonia estar arriscando nossa integridade física.
da forma latina de supremacismo branco:
o ideal de branqueamento.
A articulação do genocídio na História
do Brasil
O nome do genocídio é “Latina”

O termo “América Latina” nada mais Em 1888, a minoria européia domi-


é que uma expressão direta do genocídio. nante no Brasil entrou em pânico: deparou-
Os latinos, significando europeus, sempre -se com uma nação de “cidadãos” africanos
foram e continuam sendo uma reduzida depois da abolição da escravatura. Privou,
minoria nas populações sul e centro- então, os afro-brasileiros dos direitos
-americanas e em sua matriz cultural. Eles civis, instituindo a alfabetização como
impuseram à força a suas nações e popula- exigência para se poder votar. Depois
ções uma identidade falsamente “latina”. subsidiou a vinda de levas maciças de
Onde sua eliminação física não teve europeus, mantendo os africanos sem
sucesso, infindáveis estratégias políticas terra, sem instrução e fora do mercado
e ginásticas intelectuais são planejadas de trabalho urbano. Ao mesmo tempo,
para negar ou eliminar as maiorias a mistura de raças foi transformada em
africanas e americanas nativas. Onde os política nacional. A idéia era branquear
números em si tornam impossível negar progressivamente a população, melhorar
tais maiorias, as minorias dominantes a raça, limpar o sangue do país, até que
tentam invalidá-las com a explicação não houvesse mais negros. O delegado
da identidade “latina”. brasileiro ao Congresso Universal das
Raças (Londres, 1911) previu que, no final
A internalização do ideal de bran- deste século, os métis (mestiços) teriam
queamento pelos não-europeus é uma sido eliminados3.

3
No Brasil e na América Espanhola, o ideal de branqueamento ganhou terreno como solução para
a mancha negra muito antes da abolição. Foi defendido já em 1627 por frei Alonso de Saldoval
e outros famosos opositores católicos da escravidão. José Antonio Saco, eminente historiador e
especialista em escravidão cubano do século XIX, exclamou: “ Não temos outro remédio senão
branquear, branquear, branquear!” Ver E. Nascimento, 1981, e A. Nascimento, 1980 e 1989, para
maiores detalhes.
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 171

A ideologia da miscigenação: instru- do atraso econômico da região. Numa


mento do genocídio perspectiva mais profunda, o objetivo
é fazer com que essas populações se
A principal característica do suprema- identifiquem com as elites minoritárias
cismo branco nas Américas Central e do dominantes nesses países.
Sul é essa mesma manipulação da mistura
O mito da democracia racial diz aos
de raças e o uso da pigmentocracia, ou
africanos que nas Américas Espanhola
hierarquia de cor, para dividir as comunida-
des africanas, aliená-las de sua identidade e Portuguesa não há racismo, apenas
africana e abafar-lhes a consciência de discriminação de classe (Nascimento,
exploração racial. 1989). Diz-se que a Igreja Católica e a
mistura de raças são forças benevolentes
A pigmentocracia notoriamente dis- que evitam o conflito racial. Todo branco
torce e manipula as estatísticas sobre raça, tem um amigo negro ou mamou no seio
num processo de genocídio estatístico. de uma negra. Essa ideologia é tão forte-
Múltiplas categorias são introduzidas mente entrincheirada que se transformou
nos dados censitários a fim de reduzir as
em verdadeiro tabu.
populações negras4. Os dados baseados
em respostas espontâneas são distorcidos A peculiar forma latina de supremacis-
pelo desejo e a compulsão do branquea- mo branco é pior que o apartheid por uma
mento. Pessoas de óbvia origem africana razão muito simples: ela rouba ao nosso
classificam-se como brancas ou mulatas5. povo sua identidade como comunidade,
sua consciência da opressão racial e sua
Assim, as populações afro-america-
nas ao sul do rio Grande são consisten- determinação de reagir.
temente subavaliadas em termos numé-
ricos. De vez que os dados censitários O genocídio no Brasil de hoje
determinam as políticas públicas, a idéia
é reduzir ou eliminar tais populações, ao O genocídio dos africanos no Brasil
menos no papel, justificando a falta de de hoje assume várias formas específi-
ações públicas onde elas são mais neces- cas. Examinaremos quatro delas: a) as
sárias: as taxas de mortalidade infantil, a políticas de empobrecimento progressi-
fome e o analfabetismo são mais graves vo da população brasileira; b) situações
nas comunidades afro-americanas. A específicas das populações rurais; c) o
ausência de políticas públicas faz com assassinato de crianças e adolescentes; d)
que elas arquem com as conseqüências a esterilização em massa de mulheres.
4
A Colômbia fornece excelentes exemplos de manipulação estatística desde os tempos coloniais
(E. Nascimento, 1980:22-6).
5
Segundo um estudo, a transferência de indivíduos da categoria preto para pardo no Brasil, entre
1970 e 1980, foi da ordem de 38% (Woods,1991).
172 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

Empobrecimento progressivo da popu- Neste momento o salário mínimo


lação mensal no Brasil é equivalente a 82 dó-
lares. Se considerarmos a chamada linha
Enquanto “desenvolvia” uma mo- de pobreza nos Estados Unidos, que é
derna economia industrial com base nas de 12 mil dólares anuais, isso significa
exportações, atualmente a oitava eco- que um cidadão americano vivendo em
nomia industrial do mundo ocidental, o situação de pobreza ganha 15 vezes o
Estado brasileiro tem adotado políticas valor do salário mínimo brasileiro. Em
que deixaram a ampla maioria de seus 1983, quase 90% da população ganhava
150 milhões de habitantes numa situação salários iguais ou menores que a linha de
de pobreza absoluta comparável à de pobreza, e mais de 15 milhões de brasi-
Biafra ou da Etiópia. Segundo o Banco leiros economicamente ativos ganhavam
menos que o salário mínimo nacional,
Mundial e as Nações Unidas, o Brasil
ou menos que um nível salarial 15 vezes
apresenta a terceira pior distribuição de
menor que a linha de pobreza americana8.
renda no mundo, depois do Haiti e de
Serra Leoa6. Sua renda per capita anual Quando foi instituído o salário míni-
de 2.120 dólares deixa de revelar, por mo, na década de 40, metade de seu valor
exemplo, que mais de 40% da população era suficiente para prover uma família
ganha entre 150 e 350 dólares por ano7. de cinco pessoas com uma generosa
lista de necessidades mensais, incluindo
Em 1961, os 20% mais ricos da carne, leite, arroz e feijão, transporte,
população detinham 54,8% da renda aluguel e assim por diante. Hoje em dia,
nacional, enquanto a metade mais pobre o salário mínimo não basta para comprar
ganhava 17,4%. Em 1985, os 20% mais um pãozinho e uma xícara de café para
ricos haviam engordado o seu quinhão o desjejum dessa mesma família. No
para 64,9%, enquanto a metade mais entanto este mês os governadores de dois
pobre se viu reduzida a 12,2%. Naquele Estados do Nordeste, Piauí e Paraíba,
ano os 5% mais ricos da população bra- anunciaram oficialmente que limitariam
sileira ganharam mais de um terço da o pagamento de seus funcionários a meio
renda nacional, enquanto os 80% mais salário mínimo. Com o Governo dando
pobres ganharam quase exatamente a esse exemplo, não é difícil imaginar as
mesma porção: 35,4%. políticas do setor privado.

6
Banco Mundial, Report on World Development, 1981. Documento das Nações Unidas sobre
distribuição de renda citado no Jornal do Brasil, agosto de 1991.
7
Seminário da Organização Mundial da Saúde, São Paulo, outubro de 1991.
8
Ibid. As diferenças de custo de vida nem chegam perto de compensar essas disparidades de níveis
de renda, de vez que os preços dos produtos básicos, como alimentos e transportes públicos, são
determinados pelo dólar. Por exemplo, tomando-se a média de seis diferentes cortes, o preço da
carne bovina no Rio de Janeiro é atualmente de 5,32 dólares por quilo.
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 173

Desnecessário dizer que o ônus de negros e um terço da de mulheres negras.


tais políticas recai sobre os afro-brasi- Entre as mulheres brancas, a proporção
leiros, cuja renda mensal média é cerca era metade da de mulheres negras e sig-
de 35% da dos brancos9 .Na cidade de nificativamente menor que a de homens
São Paulo, a mais desenvolvida do país, negros13.
o salário médio por hora para os brancos
Para descrever a situação de outro
era de US$ 0,48, e para os negros10, US$
ponto de vista, os africanos no Brasil
0,25 11.
são as primeiras e maiores vítimas de
A hierarquia de renda no Brasil é políticas econômicas que resultaram
determinada, em primeiro lugar, pela raça em taxas de subnutrição, mortalidade
e, em segundo, pelo gênero: os homens infantil e analfabetismo comparáveis
brancos estão no topo da escala e as mu- às de Bangladesh ou da Guatemala. A
lheres brancas em segundo lugar, seguidas taxa de mortalidade infantil no Brasil
dos homens negros, enquanto as mulheres está estacionada em 85 mortes por mil
negras vêm no final. Vinte e três por cen- crianças com menos de cinco anos de
to das afro-brasileiras chefes de família idade. Comparemos essa taxa com a de
ganham menos da metade do valor do 18,0 entre os afro-americanos nos Es-
salário mínimo, ou menos de 41 dólares por tados Unidos (Asante e Mattson, 1991:
mês12. Em 1983, a proporção de homens 166). Sri Lanka, cuja renda per capita
brancos ganhando cinco vezes ou mais o equivale a um quinto da brasileira, apre-
valor do salário mínimo era cinco vezes senta uma soma anual de 13 mil morte
maior que a de homens negros. No outro infantis, enquanto o Brasil registra 351
lado da escala de renda, a proporção de mil. Diferentemente de México, Egito e
homens brancos ganhando menos que o Etiópia, o Brasil não tem melhorado essa
salário mínimo era metade da de homens taxa nos últimos anos.

9
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
lios (PNDA), 1985. In Comissão de Religiosos, Seminaristas e Padres Negros do Rio de Janeiro,
Ouvi o clamor deste povo: negro! (Petrópolis: Editora Vozes, 1988), p.28.
10
Usamos a definição padrão da categoria “negro” como a soma das categorias oficiais do censo,
preto e pardo.
11
Censo do IBGE. In Cone/SP, O futuro também precisa ser negro (São Paulo: Coordenadoria
Especial do Negro, Governo Municipal, 1991), p.3. Dezesseis por cento dos brancos, em compa-
ração com 26% dos negros, ganhavam menos que o salário mínimo, enquanto 4% dos brancos ,
em oposição a 1% dos negros, ganhavam mais de 10 vezes o mínimo.
12
Censo do IBGE, 1980. Mary Garcia Castro, “ Mulheres chefes de família, racismo, códigos de
idade e pobreza no Brasil (Bahia e São Paulo)”, Desigualdade racial no Brasil contemporâneo
(Rio de Janeiro: Cedeplar, 1991).
13
Trinta e cinco por cento das mulheres brancas, contra 40% dos homens negros, ganhavam
menos que o salário mínimo. IBGE, PNDA, 1983. Ibid, p.148.
174 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

As principais causas de morte são Noventa e quatro por cento dos 3


subnutrição e diarréia causadas por con- milhões de habitantes dos distritos da
dições de vida insalubres (mais de metade Baixada ganham salários de miséria:
das residências brasileiras não possui água mais de metade da população percebe
corrente). Trinta e um por cento das crianças menos de um salário mínimo. No en-
brasileiras com menos de cinco anos de ida- tanto os preços dos produtos básicos,
de sofrem de nanismo moderado e agudo, como alimentos e transporte público,
e 54% vivem em famílias com renda per são consideravelmente mais altos que no
capita inferior a metade do salário míni- Rio de Janeiro propriamente dito. Para
mo14. Noventa por cento ou mais dessas se deslocar ao trabalho diariamente, os
famílias e crianças são afro-brasileiras. habitantes da Baixada gastam mais de
metade de seus salários e várias horas nos
No Rio de Janeiro, a área metropo- sistemas de ônibus e trens escandalosa-
litana chamada Baixada Fluminense é mente insuficientes e de baixa qualidade.
considerada pela Organização Mundial da
Saúde o segundo bolsão de pobreza mais A lepra é um problema sério nos dis-
miserável do mundo, depois de Bombaim. tritos. Segundo a Organização Mundial da
Ela supera os distritos sul-africanos sob o Saúde, 70% das crianças são gravemente
regime de apartheid não apenas em po- subnutridas. A resultante deficiência de
breza, mas também em violência: a Bai- neurônios e células vermelhas do sangue,
assim como a degeneração do sistema
xada é o lugar mais violento do mundo.
nervoso (cérebro), está criando um tipo de
Mais pessoas morrem lá por homicídios
subespécie humana afro-brasileira.
do que por acidentes de automóvel.
Noventa por cento africanos, os Populações rurais
distritos de São João de Meriti, Caxias
e Nova Iguaçu, na Baixada, são também Se a Baixada Fluminense pode ser
90% destituídos de esgotos, e nossas comparada aos distritos do apartheid, as
crianças brincam no fedor de valas regiões Norte e Nordeste, assim como o
abertas, que correm imundas por ruas interior do País, podem ser chamadas os
enlameadas, infestadas de mosquitos. bantustões do Brasil. Carlos Hasenbalg
Elas são chamadas de “valas negras”, (1976)15 e outros têm mostrado que as
numa expressão característica do racismo disparidades regionais no Brasil seguem
brasileiro, identificando o povo de origem padrões raciais, reforçando a desigualdade
africana com o esgoto in natura. de raça: os afro-brasileiros estão concentrados

14
Os dados citados nesse parágrafo foram extraídos do relatório anual do UNICEF, The World
Situation of Children, 1991
15
Esses dados de pesquisa foram confirmados pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas (IBASE).
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 175

nas regiões mais pobres do País. A fome e falsificam os fatos e geralmente levam
a diarréia são violentos assassinos de vantagem com a falta de acesso dessas
crianças em ambas as regiões, bem como comunidades ao apoio jurídico. Quando
nas áreas rurais do Brasil em geral. as comunidades resistem à ocupação de
suas terras, enviam-se jagunços. Um caso
O assassinato de líderes sindicais e
clássico desse processo é o de Cafundó,
trabalhadores rurais é de tal modo um
em São Paulo (Lavergne, 1980).
lugar-comum no Brasil que o clamor in-
ternacional sobre o caso de Chico Mendes Os trabalhadores rurais migrantes,
se torna um tanto irônico. Entre 1964 e no Brasil, são chamados de bóias-frias,
1986, registraram-se quase mil desses cri- nome remanescente de uma época em
mes16. Pode-se apenas especular sobre que a maioria podia levar consigo suas
o número de não-registrados, pois estes marmitas com o almoço. Esse tempo há
provavelmente constituem a maioria dos muito se foi, devido ao seu progressivo
homicídios no interior do País. empobrecimento.
A posse da terra, tal como a renda, No Brasil rural, não é incomum a es-
está escandalosamente concentrada nas cravidão. Pessoas famintas, afro-brasileiras
mãos de uma reduzida minoria. Uma das em sua quase totalidade, são induzidas a
principais causas de mortes violentas no trabalhar por comida. Elas abandonam
interior é a repressão aos camponeses sem seus lares e logo se vêem aprisionadas em
terras, que ocupam terras improdutivas, campos de trabalho forçado, com condições
ou até mesmo abandonadas, e depois são de vida comparáveis aos campos de con-
forçados a abandoná-las, às vezes por or- centração nazistas. Esses escândalos saem
dem judicial, mas em geral não. Jagunços nos jornais e são prontamente esquecidos.
(assassinos contratados por latifundiários) Quando se identificam os responsáveis,
são comumente empregados no assassi- a impunidade é efetivamente garantida
nato de trabalhadores rurais, sindicalistas por sua estreita identidade com os politi-
e ocupantes de terras, com quase absoluta camente poderosos, a polícia e o sistema
certeza de impunidade, pois os sistemas de judiciário.
polícia e de justiça estão nas mãos de seus
Quando os trabalhadores rurais chegam
chefes.
a ganhar salários, estes são insignificantes.
Existem terras legalmente garantidas a Esses trabalhadores são praticamente alija-
comunidades afro-brasileiras após a abolição, dos do sistema da previdência social. Me-
a fim de manter os ex-escravos nas proprie- eiros, trabalhadores migrantes, trabalha-
dades. Estas têm sido progressivamente dores rurais fixos e camponeses sem terra
tomadas por proprietários vizinhos, que constituem 74% da população rural17, e a

16
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ciência Hoje (suplemento), vol. 5,
nº 28 (janeiro-fevereiro de 1987), p.7.
176 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

ampla maioria é de afro-brasileiros. Sua falta de condições dessas famílias para


vil exploração em condições de semi- sustentarem seus filhos.
-escravidão assume diversas formas, e
As crianças de rua são as vítimas
limitações de espaço não nos permitem
naturais de criminosos, quadrilhas, tra-
desenvolver uma exposição sobre elas.
ficantes e policiais, todos os quais coer-
Basta dizer que escravidão, inanição,
citivamente exploram menores em suas
subnutrição, analfabetismo e violência
atividades ilícitas. As crianças são usadas
constituem as normas do genocídio rural
como “aviões” no transporte de drogas,
no Brasil.
forçadas a cometer pequenos, e não tão
pequenos, furtos. O encarceramento nas
Assassinato de crianças e adolescentes instituições do Estado é tão violento
A cada dia, mil crianças com menos quanto a rua. O estupro e o abuso sexual
de um ano de idade morrem de fome são desenfreados. Quinhentas mil garotas
no Brasil. A cada dia, pelo menos duas, vivem da prostituição no Brasil, nação
e geralmente mais, crianças e adoles- que ostenta 1 milhão de mães adoles-
centes são assassinados pelos famosos centes e 400 mil mortes prematuras por
esquadrões da morte. As vítimas são pre- abortos ilegais.
dominantemente afro-brasileiras: 82%, Entre 1988 e 1991, mais crianças fo-
segundo a Anistia Internacional18. Nossa ram mortas por dia na Baixada Fluminen-
estimativa é mais próxima dos 90%. se do que no Líbano no auge da guerra.
Segundo o UNICEF, 30 milhões De 400 pessoas assassinadas no Estado
de crianças no Brasil vivem em estado do Rio de Janeiro nos seis primeiros
de pobreza absoluta: 8 milhões são meses do ano, 271 foram crianças19. Nos
“abandonadas” e vivem nas ruas. Essas mesmos seis meses, mais de 400 crianças
estatísticas são enganadoras, pois aos 8 foram mortas no Brasil. Entre março a
milhões nas ruas se somam aquelas que dezembro de 1990, registraram-se 457
são maltratadas, famintas e de muitas assassinatos de crianças; ninguém sabe
maneiras abandonadas em seus pró- quantos ocorreram sem registro. Dessas
prios lares. Essencialmente, a diferença crianças, 66 tinham entre 11 e 14 anos de
entre essas categorias é insignificante. idade e 32, entre um e 1020. Na cidade de
O “abandono” corresponde à absoluta São Paulo, o homicídio é causa de morte

17
Dados do Censo Agrícola/Agropecuário de 1970 e 1975 e Registro das Propriedades Graziano
da Silva, O que é a questão agrária (São Paulo: Editora Brasiliense, 1984). A progressiva con-
centração de renda e as desigualdades de posse da terra têm agravado significativamente esses
números desde 1976.
18
Brasil: Anistia Internacional. Documento. Londres: Anistia Internacional, 1991.
19
Estatísticas da Polícia Civil citadas na Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 1991.
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 177

mais comum entre adultos21. Oitenta que, no ano 2000, superará o contingente
por cento de todos os homicídios são do Exército. O texto conclui que “(...)
cometidos contra adolescentes e jovens os poderes constituídos, Executivo, Le-
africanos de sexo masculino entre 15 e gislativo ou Judiciário, podem solicitar
18 anos de idade22. a colaboração das Forças Armadas no
Os assassinatos são cometidos por sentido de assumir a onerosa tarefa de
esquadrões da morte formados por poli- neutralizar e, com efeito, destruir [essas
ciais aposentados ou de folga, e também crianças], a fim de manter a lei e ordem”24
por seguranças privados. Ligados de per- .
to ao sistema judicial, que praticamente
lhes garante a impunidade, esses grupos Esterilização em massa de mulheres
são financiados, contratados ou pelo O Brasil é líder mundial em opera-
menos tolerados por comerciantes locais, ções cesarianas e na esterilização cirúr-
temerosos da ameaça que as crianças gica de mulheres 25. Os dois fenômenos
pobres representam à sua propriedade. guardam uma relação estreita: durante
Recentemente, quando o Ministro da a cesariana, a mulher tem as trompas
Saúde denunciou essa cumplicidade, o ligadas. O ramo brasileiro da Planned
presidente do Clube dos Diretores Lo- Parenthood, a Bemfam, e outras agências
jistas do Rio de Janeiro, Sílvio Cunha, financiadas pelos Estados Unidos foram
declarou literalmente: “Quando alguém denunciados por vítimas e por organi-
mata um pivetinho, está fazendo um zações de direitos humanos por realizar
favor à sociedade” 23. esterilizações e implantar DIUs sem o
Em 1989, a Escola Superior de Guer- consentimento esclarecido das mulhe-
ra publicou um documento que expressa- res26. Agências como a Associação para
va o mesmo sentimento: as crianças de a Esterilização Voluntária dão às clínicas
rua não são vistas como crianças, mas incentivos monetários, em dólares, para
como uma futura “horda de criminosos” cada esterilização realizada. Programas

20
IBASE, Universidade de São Paulo e Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua,
Relatório de 1991.
21
Anistia Internacional, op.cit.
22
IBASE, op.cit.
23
Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 1991.
24
1990-2000, a década vital por um Brasil moderno e democrático (Brasília: Escola Superior de
Guerra. 1989). Cit. in Jornal do Brasil, 19 de junho de 1991.
25
IBGE, PNDA 1986. Quarenta e nove por cento das mulheres brasileiras que usam consciente
ou inconscientemente a contracepção escolhem a esterilização, e 16% de todas as brasileiras em
idade fértil estão esterilizadas.
26
“ Esterilização: uma arma política”, Cadernos do Terceiro Mundo, nº 141 (julho de 1991). Os
dados seguintes foram extraídos desse artigo e são corroborados por diversas fontes.
178 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

de esterilização são também financia- sas campanhas são coordenadas pelo


dos pelo Banco Mundial e pelo Banco consultor da Organização Mundial da
Interamericano. Os números crescem Saúde Elsimar Coutinho, presidente da
significativamente durante as campanhas Associação Brasileira de Planejamento
políticas, quando a esterilização é ofere- Familiar, que recebe dos Estados Unidos
cida gratuitamente por poderosos locais 70 por cento de seu financiamento. A
na qualidade de candidatos. Bemfam (Planned Parenthood) também
concentra suas campanhas de controle de
As mulheres são coagidas a se natalidade no Nordeste.
esterilizar a fim de sobreviver. O Con-
selho Estadual de Defesa dos Direitos Recentemente, veio a público um
da Mulher (Cedim) do Rio de Janeiro Memorando de Segurança Nacional dos
documentou a existência de pelo menos Estados Unidos, NSSM-200, intitulado
50 firmas, só nesse Estado, que exigem Implicações do Crescimento Populacio-
uma prova documentada de esterilização nal Mundial para a Segurança dos Esta-
para contratar mulheres. dos Unidos e seus Interesses Externos,
revelando a verdadeira história por trás
É desnecessário dizer que a esterili- das campanhas de esterilização e controle
zação em massa é feita entre as mulheres da natalidade semicoercitivos. Quando
pobres, e as afro-brasileiras são seu pri- Henry Kissinger chefiava o Conselho de
meiro e mais importante alvo. O Estado Segurança Nacional e George Bush era
nordestino do Maranhão, predominante- diretor da CIA, esse documento formulou
mente afro-brasileiro, é o líder, com uma uma estratégia de segurança nacional
taxa de esterilização de 75,9%, enquanto envolvendo o controle da população
o Rio Grande do Sul, cuja população é no Terceiro Mundo, citando 13 países
majoritariamente européia, aparece em como alvos prioritários27. O Brasil era
último lugar, com uma taxa de 18,2%. uma prioridade principal devido a seu
Na Bahia, o teor racista das campanhas enorme potencial como potência líder
publicitárias encorajando a esterilização no continente. A idéia era conter o pro-
tem sido bastante explícito. Em 1984 e gressivo desenvolvimento de potências
1986, apareceram cartazes mostrando competitivas no Terceiro Mundo, evitar
crianças afro-brasileiras com navalhas a rivalidade comercial pelo acesso a re-
e correntes, com os dizeres “Defeito cursos naturais considerados estratégicos
de fábrica”, e afro-brasileiras grávidas para os interesses americanos e subverter
de turbante com os dizeres “Algumas a soberania nacional do Terceiro Mundo
pessoas choram de barriga cheia”. Es- sobre tais recursos.

27
As outras nações relacionadas são Índia, Bangladesh, Paquistão, Nigéria, México, Indonésia,
Filipinas, Tailândia, Egito, Turquia, Etiópia e Colômbia. Executive Intelligence Review, Special
Memorandum, Rio de Janeiro, 1991.
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento
179

Citando Shockley e Jenssen, o docu- pelo Fundo Monetário Internacional para


mento afirma explicitamente suas inten- o acesso a empréstimos (Ávila, 1991).
ções genocidas antiafricanas, ressaltando
O teor racista antiafricano dessas po-
os “aspectos hereditários das capacidades
líticas não pode ser creditado apenas aos
humanas” e a degeneração da “quali-
seus patrocinadores norte-americanos.
dade” da população norte-americana
Em 1983, o III Congresso de Cultura
em função de “programas de bem-estar
Negra das Américas, realizado em São
social bem-intencionados”. A idéia era
Paulo, denunciou a circulação de outro
manter, digamos assim, a pureza racial
documento secreto, este inteiramente
das elites dominantes brancas.
brasileiro, produzido pelo Grupo de
O regime militar brasileiro, por outro Assessoramento e Participação (GAP),
lado, estava àquela época ansioso por agência de consultoria ao Governo do
fazer crescer a população do País, citando Estado de São Paulo, que declarava:
amplas extensões de terra “desocupadas”
(que geralmente representam territórios De 1970 a 1980, a população
de caça, pesca e vida dos indígenas) e branca diminuiu de 61 para 55%
a política de “expandir suas fronteiras e a população parda cresceu de
vivas”, significando avançar sobre as 29 para 38%. Enquanto a popu-
terras de nações vizinhas28. Não obs- lação branca se tornou ampla-
tante, em 1971 o presidente Garrastazu mente consciente da necessidade
Médici havia reconhecido oficialmente de controlar as taxas de natalida-
a Planned Parenthood (cujos fundadores de – especialmente nas classes
incluíram o pai de Bush, Prescott), sob o média e alta, as populações
nome Bemfam, como uma organização preta e parda aumentaram de
humanitária no País. maneira significativa suas taxas
No início da década de 80, essa polí- de natalidade. Assim, temos 65
tica de segurança nacional americana es- milhões de brancos, 45 milhões
tava bem implantada no Brasil, a despeito de pardos e 1 milhão de pretos.
de ser considerada um crime (exceto em Mantendo-se essa tendência, no
casos específicos) pelos Códigos Penal ano 2000 as populações parda
e de Ética Médica do país. Enquanto e preta serão da ordem de 60%,
apenas 5,3% de esterilizações haviam portanto muito maiores que a
sido realizadas antes de 1970, a taxa au- branca. E, em termos eleitorais,
mentou 21% entre 1975 e 1979, e 28,5% elas serão capazes de controlar a
no período 1980-1985. Essas campanhas política brasileira e de dominar
foram uma condição imposta ao Brasil os postos-chave.

28
Para maiores detalhes sobre as políticas expansionistas brasileiras, ver E. Nascimento, 1980.
180 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

O Grupo de Assessoramento aponta Cáli, é maciça a presença africana. Há


campanhas de controle da natalidade um estado no litoral do Pacífico em que
voltadas para a população africana como os africanos constituem ampla maioria,
a solução alternativa a um golpe militar acima de 90 por cento: o Departamento
a fim de confrontar essa grande ameaça de Chocó. Semelhante a Chocó é o Esta-
à hegemonia dos euro-brasileiros. do de Esmeralda, no Equador. Tal como
o Nordeste brasileiro, com Estados como
Genocídio em outras partes da região Maranhão e Bahia, que são predominan-
temente africanos, Chocó e Esmeralda
Embora não tenhamos dados específi- estão entre os mais miseráveis bolsões
cos para passar aos senhores sobre as ou- de pobreza de seus respectivos países.
tras nações da América Central e do Sul, Em Cartagena, Barranquilla, Salinas,
podemos afirmar com absoluta certeza Caracas e outras incontáveis cidades, o
que as populações afro-americanas estão povo e a cultura africanos sobrevivem
em toda parte sujeitas ao tipo de políticas nas piores condições que a região tem a
genocidas aqui descrito com respeito ao oferecer.
Brasil. Ao observador astuto, basta apenas
visitar países como Venezuela, Equador, Perspectivas políticas no Brasil
Peru, Uruguai, Costa Rica, Belize e Pana-
má, onde imediatamente verificará a se- Em outubro de 1989, entrou em vi-
gregação das populações africanas locais gor a nova Constituição Brasileira, redi-
nas áreas mais pobres e sua vitimização gida por um Congresso eleito. Em 1990,
pelas condições de vida mais subumanas. o Brasil realizou suas primeiras eleições
Esses países têm variadas proporções de presidenciais diretas em 30 anos. Entre-
populações africanas, mas todas elas são tanto a democracia pouco tem feito para
significativas. No México, Argentina, resolver os enormes problemas sociais
Bolívia, Paraguai e Chile é mais difícil do povo afro-brasileiro. A nova Consti-
localizar as populações afro-americanas. tuição define a discriminação racial como
Na costa atlântica da Nicarágua está crime inafiançável e imprescritível, e
a cidade chamada Bluefields, onde os protege as terras remanescentes de qui-
descendentes de trabalhadores jamai- lombos. Mas essas medidas não podem
canos trazidos para o país mantêm suas ser implementadas sem a aprovação de
tradições lingüísticas e culturais caribe- leis regulamentando sua aplicação. Essa
nhas. Comunidades similares existem na nova Constituição também apresenta
Costa Rica e em Honduras. No Panamá, grandes avanços nas cláusulas relativas
é enorme a população caribenha. aos direitos humanos.
A população africana é particularmente Embora esses novos direitos consti-
importante na Colômbia. No litoral e no tucionais representem uma vitória polí-
interior desse país, em cidades como tica, a experiência nos ensina que a lei
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 181

no Brasil não é normalmente cumprida. Brizola de todos os outros líderes políti-


O Programa de Assistência Integral à cos nacionais, sem exceção.
Saúde da Mulher (PAISM), que deveria
Mais expressiva da prioridade do go-
controlar os abusos na área de controle
vernador Brizola, contudo, foi a criação, em
da natalidade, está no papel desde 1985
abril de 1991, da Secretaria Extraordinária de
e ainda não foi implementado. As princi-
Defesa e Promoção das Populações Afro-Bra-
pais prioridades do governo neoliberal de
sileiras (Seafro), uma agência administrativa
Fernando Collor de Mello são a privati-
estadual do mais alto nível dedicada aos
zação das empresas estatais e as políticas
antiinflacionárias, que reduzem ainda problemas específicos dos afro-brasilei-
mais os salários enquanto enriquecem a ros. Como resultado do crescimento e
classe alta e o setor empresarial. Como da militância do movimento político
é óbvio, os objetivos dessas políticas são afro-brasileiro, outros Estados têm insti-
inequivocamente antiafricanos. tuído conselhos e coordenadorias para as
comunidades afro-brasileiras, mas essa é
Existem, porém, bolsões de ação a primeira agência estadual de primeiro
política positiva. Um deles é o Governo escalão na história do Brasil.
Leonel Brizola, no Estado do Rio de
Janeiro, que tem enfatizado medidas Dois governadores afro-brasileiros,
anti-racistas desde sua primeira admi- Alceu Collares do Rio Grande do Sul e
nistração (1983-1987). Seu principal Albuíno Azeredo do Espírito Santo, foram
programa são os Centros Integrados de eleitos em 1991 pelo Partido Democrático
Educação Pública (CIEPs), que fornecem Trabalhista (PDT), que também enviou ao
assistência médica, educacional e nutricio- Congresso Nacional o primeiro senador
nal às crianças. afro-brasileiro dedicado a defender os direi-
tos humanos e civis de seu povo. Em 1983 o
O governador Brizola tem atuado mesmo homem, que hoje lhes fala, assumiu
corajosamente na área da discrimina- seu cargo como o primeiro deputado federal
ção racial contra os africanos. Três de afro-brasileiro a dedicar seu mandato a essa
seus secretários de Estado são afro- mesma luta. Hoje em dia, talvez haja 10
-brasileiros, assim como ocorreu no seu afro-brasileiros na Câmara dos Deputados
primeiro governo. Ao ser empossado em que reconhecem suas origens africanas e,
1983, uma de suas primeiras medidas foi
em graus variados, se identificam com as
instituir o 21 de março como data come-
aspirações de sua comunidade.
morativa oficial do Estado; em 1991, foi
promulgar a lei estabelecendo sanções Essas vitórias foram resultado da orga-
contra a discriminação racial no âmbito nização política dos afro-brasileiros, quer
da administração estadual. Essas foram nas estruturas partidárias ou em organiza-
expressões simbólicas da prioridade que ções não-governamentais. Ainda há muito
ele atribui aos assuntos afro-brasileiros. trabalho a ser feito pelos movimentos
Essa prioridade distingue o governador afro-brasileiros.
182 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

Solidariedade no mundo africano Nós do Ipeafro temos trabalhado para


modificar os currículos escolares que
Organizações não-governamentais reforçam os estereótipos antiafricanos e
como a Afric podem desempenhar um solapam a auto-estima de nossos filhos.
papel importante no desenvolvimento da Organizações africanas de outras partes
consciência afro-brasileira sobre a natureza do mundo têm muito a contribuir a esse
específica do genocídio antiafricano no respeito. Até que os africanos no Brasil
Brasil denunciando ativamente as reali-
compreendam que são parte de uma comu-
dades apresentadas nesta comunicação e
nidade africana mais ampla que comparti-
relacionando-as às práticas genocidas no
restante do mundo africano. lha muitas das mesmas preocupações, não
seremos capazes de construir a projeção
Talvez a questão fundamental para os política de que precisa nosso povo para
africanos no Brasil seja a da identidade. superar o genocídio e a escravidão.

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dade racial no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Cedeplar, 1991.
Iniciativas Em ofício da Secretaria Extraordinária
de Defesa e Promoção das Populações
Antidiscriminação Negrassolicita-se ao então governador do
Rio de Janeiro, Leonel Brizola, que se crie
Racial uma Delegacia Especializada em Crimes
Raciais.

Ofício GAB nº 201/93


Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1993.

Excelentíssimo Senhor Governador,

Servimo-nos do presente para solici-


tar a Vossa Excelência, pela exposição de
motivos abaixo, a criação, no âmbito da
Polícia Civil, de uma Delegacia Especiali-
zada em Crimes Raciais.
Nos últimos anos, um número signi-
ficativo de pesquisas, sobretudo na área
Abdias Nascimento da sociologia, tem revelado a situação de
Leonel Brizola
profunda desigualdade que se oculta sob
184 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

o manto ideológico, mesmo que puído e mente utilizados por empresas de todos os
esburacado, proporcionado pelo mito da níveis com o objetivo de impedir o acesso
“democracia racial”. Salário, instrução, de afro-brasileiros a determinadas posi-
mortalidade infantil, expectativa de vida – ções no mercado de trabalho, o que levou
todos os indicadores pertinentes mostram a Organização Internacional do Trabalho a
os negros (“pretos e “pardos”, segundo o denunciar o Brasil, no ano passado, como
IBGE) em situação de marcante inferio- violador da sua Convenção 111, que trata
ridade em relação aos brancos. Para não justamente da discriminação no mercado
falar dos aspectos ditos “subjetivos”, como de trabalho.
o sentimento de exclusão que uma criança
Em 1988, com a Lei Caó, a prática
vivencia ao freqüentar uma escola onde
do racismo passa de contravenção penal
não encontra espelhos positivos para ver
a crime inafiançável e imprescritível, sem
refletida sua imagem ou ao ligar um apare-
reflexo, porém, na forma de se lidar com
lho de TV e descobrir que a Escandinávia
esse delito nas delegacias e tribunais.
fica aqui mesmo.
Neste momento, esta Secretaria está
É possível facilmente constatar o
organizando um Fórum sobre Cidadania
crescimento assustador dos fatos racistas
e Racismo, em conjunto com o Instituto
e discriminatórios registrados pela mídia
dos Advogados Brasileiros, cujo alvo é
nos últimos meses, a ponto de se poder
o de elaborar sugestões ao Congresso
afirmar que toda a estrutura dominante
Nacional no sentido de aperfeiçoar os
atua sincronizada no rumo de derrogar
instrumentos jurídicos de combate ao
os direitos civis e humanos da população
racismo e à discriminação racial.
de origem africana. Do ponto de vista ju-
rídico, até muito recentemente os únicos Recente tese de mestrado mostra a
dispositivos “raciais” de nossa legislação diferença de tratamento entre negros e
eram de caráter antinegro – aqueles de brancos na situação de réus. Além de ser
não-brancos, posteriormente relaxadas agravante para quem comete um delito,
para permitir a entrada de asiáticos. A a cor negra da pele é atenuante para o
aprovação, em 1951, da chamada Lei agressor quando a vítima a ostenta. Isso
Afonso Arinos, longe de significar uma explica a dificuldade de encontrarmos
ruptura com a prática racista até então alguém que tenha sido condenado por
vigente, apenas estruturou novas formas esse crime, ainda que ele ultimamente
de justificativa para os seus perpetradores. freqüente todos os dias as páginas dos
Critérios subjetivos, como a famigerada jornais. São delegados, escrivães e outros
exigência de “boa aparência” até mesmo agentes da polícia que, por desconheci-
para ocupações sem contato com o públi- mento da legislação, aliado à deformação
co, ou supostamente “objetivos”, como profissional, tratam de descaracterizar a subs-
a realização de entrevistas e testes ditos tância racial desses delitos, quando não,
“psicológicos”, passaram a ser ampla- simplesmente, desestimulam as vítimas
Iniciativas antidiscriminatórias
Abdias Nascimento, Leonel Brizola 185

a dar seqüência aos processos, por vezes até de insensibilizada por um racismo que a im-
maneira coercitiva. pede de perceber, e ainda mais de traduzir,
Tal como ocorre com a mulher, a realidade que se apresenta diante de seus
submetida a constrangimentos e coações olhos. Com pessoal especializado, isento
ao apresentar queixa de estupro, o afro- dos vícios originados de uma prática distor-
-brasileiro também se vê obrigado a enfren- cida sistemática, a Delegacia Especializada
tar obstáculos adicionais, nas delegacias, em Crimes Raciais, que informalmente
quando ousa desafiar as normas da tradição já conta com aprovação do Secretário de
e denuncia as agressões raciais de que é Polícia Civil, Dr. Nilo Batista, constituiria
vítima. No Estado do Rio de Janeiro, além um marco histórico na luta pela efetiva
da Lei nº 1814, de 24-4-91, que pune a emancipação dos descendentes de africanos
discriminação nas empresas e no servi- no país mais africano fora da África.
ço públicos, foi criada no mesmo ano a Certos de contar com a compreensão
Secretaria Extraordinária de Defesa e de Vossa Excelência para este pleito da
Promoção das Populações Negras, que, mais alta significação para a Comunidade
no que se refere à discriminação racial,
Afro-Brasileira, subscrevo-me.
recebe, encaminha e acompanha denún-
cias, a par de um trabalho educativo com
Atenciosamente,
as Polícias Militar e Civil, voltado espe-
cialmente para os centros de formação
e aperfeiçoamento de policiais. Mesmo
dotada de um corpo jurídico treinado na ABDIAS DO NASCIMENTO
árdua batalha de dar conseqüência aos Secretário Extraordinário de Defesa e
casos que lhe chegam às mãos, a Sede- Promoção das Populações Negras
pron tem esbarrado nos mesmos obstá-
culos encontrados pelo cidadão comum
No Decreto do Poder Executivo transcrito a
afro-brasileiro em seu confronto com a
seguir, o governador do Rio de Janeiro Leonel
discriminação e a humilhação raciais,
Brizola cria a Delegacia Especializada para
dentre os quais sobressai a atuação dos Discriminação Racial.
responsáveis pelo registro das queixas
nas delegacias.
Decreto nº 19.585 de 26 de janeiro de 1994.
Dessa forma, como medida de
caráter compensatório, corretivo e para- Cria, na estrutura do Departamento Geral
digmático, a criação de uma Delegacia de Polícia Especializada, da Secretaria de
Especializada em Crimes Raciais é ins- Estado da Polícia Civil, a Delegacia Espe-
trumento de valor inestimável na busca cializada para Discriminação Racial – DDR.
de meios concretos para se transformar a
legislação, de letra morta, em mecanismo O Governador do Estado do Rio de
eficiente de reeducação de uma sociedade Janeiro, no uso de suas atribuições legais,
186 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

CONSIDERANDO a necessidade de cada sido nitidamente motivada por igual


vez mais se especializarem de forma preconceito.
técnica os trabalhos policiais na apuração
Art. 3º A Delegacia Especializada
de fatos penalmente puníveis;
para Discriminação Racial – DDR pos-
sui a seguinte estrutura operacional: 1.
CONSIDERANDO que entidades, tanto Direção; 2. Seção de Investigações; 2.1.
nacionais como internacionais, vêm ma- Setor de Coleta e Análise de Dados; 3.
nifestando preocupação com o crescente Setor de Expediente Cartorário.
preconceito de raça ou de cor;
Art. 4º À Seção de Investigações
compete a realização das atividades
CONSIDERANDO que as Leis federais
repressivo-investigatórias das infrações
nºs 7.716, de 5-1-89, e 8.081, de 21-9-90,
penais elencadas no artigo 2º deste de-
tutelam direitos fundamentais, prima- creto.
riamente assegurados pela Constituição
da República, que declara a prática de Art. 5º Ao Setor de Coleta e Análise
racismo crime inafiançável e imprescri- de Dados compete o controle, acompa-
tível sujeito à pena de reclusão, e tendo nhamento e análise de dados relativos às
em vista o que consta do Processo nº infrações penais no âmbito de atuação do
E-09/05027/203/93, órgão, elaborando, outrossim, estatística
a respeito.
D E C R E T A: Art. 6º Ao Setor de Expediente Car-
torário competem as atividades adminis-
Art. 1º Fica criada, na Secretaria de trativas, de expediente e zeladoria, além
Estado da Polícia Civil, a Delegacia Es- das de polícia judiciária.
pecializada para Discriminação Racial
Art. 7º A Delegacia Especializada
– DDR, subordinada ao Departamento para Discriminação Racial – DDR deverá
Geral de Polícia Especializada. atuar em permanente entrosamento com
Art. 2º À Delegacia Especializada a Secretaria Extraordinária de Defesa e
para Discriminação Racial – DDR com- Promoção das Populações Afro-Brasilei-
pete, concorrentemente com as demais ras, e demais entidades afins, para melhor
atingir os seus objetivos específicos.
unidades policiais, a apuração dos delitos
definidos pela Lei nº 7.716/89, observado Art. 8º O Departamento Geral de Po-
o acréscimo contido na Lei nº 8.081/90, lícia Especializada e o Departamento Ge-
bem como a dos crimes contra a honra, ral de Administração proverão os meios
quando seu cometimento evidenciar pre- e recursos necessários ao funcionamento
conceito de raça ou de cor, e de qualquer do órgão ora criado, todos oriundos de
outra infração penal, cuja prática tenha remanejamento interno.
Iniciativas antidiscriminatórias
Abdias Nascimento, Leonel Brizola 187

Art. 9º A Delegacia Especializada


para Discriminação Racial – DDR,
considerar-se-á implantada com a desig-
nação de seu Titular.
Art. 10. Este decreto entrará em vi-
gor na data de sua publicação, revogadas
as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 26 de janeiro de
1994.

LEONEL BRIZOLA
Governador do Estado do Rio de Janeiro
189

Ruth de Souza e Abdias Nascimento em ensaio da peça Calígula, de Albert Camuns, tradução de Gerardo Mello Mourão. Teatro Ginástico, Rio de Janeiro, 1949.
Proposta Revisional nº 8583-6 à Constitui-
ção Federal, de 1988, apresentada pelo
deputado Florestan Fernandes sob o título
VIII – Da Ordem Social – Capítulo IX.
Capítulo Art...

Constitucional:
São compreendidos como negros os
dos Negros indivíduos e cidadãos que se consideram
como tal e os que, por estigmatização,
são tratados como “negros” e “pessoas
de cor”.
§ 1º Portadores de uma herança cul-
tural rica e variável, vêem-se privados
de seus padrões, instituições e valores
sociais por pressão fragmentadora do
ambiente. É direito dos negros e dever do
Estado proteger essa vasta herança cul-
tural, em seu sentido histórico e em sua
função diferenciadora das comunidades
negras.

Florestan Fernandes *
§ 2º Eles são proprietários de faixas
descontínuas de terra, com freqüência
192 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

incorporadas às “fronteiras em expan- justificar a sua existência e “necessida-


são”, expropriadas por vizinhos ricos de” em um país católico. A exclusão do
e poderosos. Os governos da União, trabalho livre, variável conforme as re-
dos Estados, do Distrito Federal e dos giões do país; o aproveitamento da força
Municípios procederão a um esforço de trabalho negra como mão-de-obra
convergente planificado para garantir barata ou a sua exclusão predominante
suas posses territoriais e a exploração de do mercado de trabalho reforçaram as
suas riquezas. manifestações do “preconceito de cor”, e
§ 3º Como os mais desiguais em perpetua-se de modo complexo. O negro
convívio direto com os brancos e popula- é excluído porque não estaria preparado
ções ricas, são lançados à marginalidade, como “trabalhador livre”, porque lhe são
excluídos do mercado de trabalho sem negadas as condições de aprendizagem e
condições competitivas e bloqueados de socialização. O Poder Público inter-
em suas tentativas de ascensão social e virá crescentemente nessa esfera, para
conquista da cidadania. Os governos da acabar com o paradoxo.
União, dos Estados, do Distrito Federal § 6º A oferta de ensino público gra-
e dos Municípios desenvolverão planos tuito não é suficiente para integrar e reter
ostensivos para conferir às populações estratos da população negra nas escolas.
negras meios para corrigir essa situação O Poder Público corrigirá essa contra-
intolerável e, especialmente, para difun- dição oferecendo às crianças, jovens e
dir entre si a cidadania ativa. adultos negros oportunidades escolares
§ 4º As famílias negras e seus mem- persistentes e em constante aumento
bros enfrentam dificuldades econômicas, através de bolsas escolares, destinadas
culturais e políticas arraigadas para à manutenção pessoal dos estudantes
organizar-se em bases institucionais enquanto durar sua escolarização (Cf.
estáveis de modo a proteger os homens, Art. 213).
as mulheres e os menores da privação § 7º O Poder Público procurou, pri-
econômica, do desemprego, da pobreza, meiro através da Lei Afonso Arinos e,
do alcoolismo, do crime, da mendicân- depois, através do art. 5º, XLII e da Lei
cia e de outros efeitos desintegradores nº 7.716, resolver os problemas do negro
determinados pelo racismo. Serão fei- como uma forma de racismo. É impor-
tos esforços especiais para sanar esses tante caracterizar as manifestações de
problemas e dilemas sociais, através de “preconceito de cor”, de estigmatização
instituições dotadas de recursos humanos e discriminação raciais nesses termos e
e de meios financeiros que sanem tais puni-las como “crime inafiançável”. No
entraves à humanização da pessoa. entanto, a realidade transcende esses
§ 5º A escravidão e a subalternização limites. O branco precisa tomar consci-
extrema do “liberto” encontraram no ência de seu comportamento preconcei-
preconceito racial a racionalização para tuoso e o negro necessita aprender que
Capítulo constitucional dos negros
Florestan Fernandes 193

não pode eximir-se individualmente dos da República Federativa do Brasil. Não


efeitos nocivos do tipo de racismo exis- só por sua contribuição ao nosso desen-
tente. O mais importante, porém, é que volvimento humano, cultural e histórico,
devem partir da verdade para coexistir mas especificamente pelo que simboliza
fraternalmente como cidadãos de uma a Lei do Ventre Livre como uma espolia-
sociedade multirracial. A contribuição da ção final.
escola e das instituições-chave será ma-
Se quisermos possuir uma Repú-
nejada pelo Poder Público nessa direção.
blica democrática temos de atribuir ao
O negro não é somente “igual perante a
negro, como indivíduo e coletividade,
lei”. Ele ocupa uma situação desfavora-
um estatuto democrático. O negro tor-
bilíssima que precisa ser corrigida pela
nou-se o teste número um da existência
educação democrática, pelo convívio,
da universalidade e da consistência da
como cidadãos da mesma sociedade civil
democracia no Brasil.
e do mesmo Estado.
Ele é um experimento crucis (um
§ 8º O negro destaca-se por sua
experimento crucial). A liberdade, a eqüi-
herança cultural (folclore, religião,
dade e a fraternidade do negro nas suas
canto, música, danças, língua etc.) e
relações com indivíduos pertencentes a
por acontecimentos históricos nos quais
nacionalidades transplantadas por imi-
teve participação notável. Esses aspec-
grações e a outras raças e etnias redimem
tos devem ser salientados pelo Poder
o nosso ser histórico do peso da negação
Público, principalmente nas cerimônias
e da destruição de raças negras porta-
públicas, nos livros didáticos especiais e
doras de civilizações que enriqueceram
na evocação das grandes personalidades
para sempre o nosso patrimônio cultural.
negras, de Zumbi a Machado de Assis ou
Além disso, graças a essas civilizações
Cruz e Souza. O mesmo ocorre no êxito
o negro não se envolveu na formação do
ímpar do negro em diversas atividades,
Brasil somente como “escravo” e “ingê-
altamente valorizadas pela comunica-
nuo”. Rasgou um painel que colocou a
ção em massa e pelos padrões de gosto
liberdade em primeiro plano, graças a
predominantes. Assim, o Poder Público
heróis como Zumbi ou Henrique Dias.
enaltecerá as personalidades negras que
colheram êxitos especiais nos campos Cumpre assinalar, sobre toda e qual-
das artes e das atividades cívicas para quer outra reflexão: os que foram lança-
alcançar um efeito de educação multi- dos nos patamares mais inferiorizados da
plicativo: a consciência da igualdade dos sociedade democrática são os que preci-
cidadãos e do êxito do negro quando con- sam e merecem um suporte ativo à sua
ta com a liberdade de usar o seu talento. formação humana – psicossocial, cultural
e política. Não se trata de um “protecio-
JUSTIFICAÇÃO
nismo especioso”. Mas de corrigir uma
Há tempo o negro deveria constar injustiça que desgraça as pessoas e as
como capítulo especial da Constituição comunidades negras. Para nivelá-las aos
194 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos

brancos, é imperativo conceder-lhes uma passado nefando que encurrala o presente


espécie de suplementação da condição hu- e o futuro numa abjeção singular.
mana e da posição social. Só assim as elites
das classes dominantes se desobrigarão
de um crime histórico que sobrecarrega e * Florestan Fernandes, eminente sociólogo, político e
degrada a consciência crítica dos cidadãos escritor, foi professor de sociologia da Faculdade de
bem formados e emanciparão o Estado de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo. Entre suas
sua intervenção nas páginas mais negativas obras principais estão Organização social dos tupinam-
bás (1949), O preconceito racial em São Paulo (1951),
de nossa perspectiva de Nação emergente. Cor e estrutura social em mudança (1955) e Relações
Ou liberamos o negro por todos os meios raciais entre negros e brancos em São Paulo (1955),
possíveis ou persistiremos escravos de um juntamente com Roger Bastide.
Este primeiro número da revista Thoth
marca um novo momento na evolução da
consciência coletiva afro-brasileira, em
que o conceito de cultura afro-brasileira
ganha novas dimensões, inserindo-se no
seu contexto mundial. Até muito recente-
Sankofa: resga- mente, quase inexistia no Brasil a idéia de
tando uma matriz africana de civilização como
a cultura afro- base fundamental do desenvolvimento
da civilização e da tecnologia humanas.
brasileira Ainda hoje, trata-se de um conceito pouco
divulgado. Assim, resulta muito oportuna a
perspectiva editorial da revista de priorizar
a abordagem de questões do mundo afri-
cano, desde suas civilizações antigas e seu
papel na formação da civilização humana
até a experiência da diáspora compulsória
da escravidão e a resistência dos africanos
escravizados em todas as Américas. Espe-
ramos poder contribuir, nesta seção, para o
desenvolvimento dessas questões.
O título da seção, cuja origem está
explicada mais detalhadamente adian-
Elisa Larkin Nascimento *
te, foi emprestado do curso Sankofa:
198 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Conscientização da Cultura Afro-Bra- dos estereótipos definidores daquela


sileira, realizado pelo IPEAFRO na “cidadania lúdica”1 a que a sociedade
PUC-SP e na UERJ entre 1984 e 1995. O restringe a comunidade afro-brasileira.
objetivo do curso é o de contribuir para a Reduzida sua identidade específica aos
integração dos assuntos afro-brasileiros campos do esporte, do ritmo, do carna-
no currículo escolar e para a preparação val e da culinária, fica o afro-brasileiro,
de quadros no magistério aptos ao ensino enquanto coletividade, subliminarmente
dessas matérias. Procuramos atender à excluído das esferas política, econô-
necessidade de corrigir os estereótipos e mica, tecnológica, científica, enfim: da
distorções existentes no currículo escolar cidadania produtiva e do protagonismo
brasileiro em relação à história, cultura, e social. O resgate da riquíssima história
experiência dos africanos no nosso País, dos povos africanos, repleta de inovações
nas Américas e no mundo. Entendemos científico-tecnológicas, sociais, políticas
que não apenas a criança negra sofre os e intelectuais, ajuda a reconstruir a ima-
prejuízos da imagem negativa dos povos gem de sua participação digna e ativa
africanos veiculada pelo ensino. Todas as em todas as dimensões da experiência
crianças saem prejudicadas, na medida humana, esboçando a possibilidade de
em que essas distorções afetam a visão uma cidadania plena para seus descen-
que a escola constrói de sua gente e de dentes nas Américas.
seu país, cuja origem africana sobressai
em quase todos os sentidos: demográfi- Sankofa: significado e intenções
co, cultural, histórico, lingüístico, e na
própria personalidade, o ethos nacional. A palavra sankofa, da língua dos po-
A inferiorização do grupo étnico que vos akan da África Ocidental (sobretudo
durante três quartos da existência do Gana), tem uma conotação simbólica
Brasil formou a grande maioria de sua muito forte no sentido da recuperação
população, e que ainda hoje continua e valorização das referências culturais
majoritário, gera um complexo de infe- africanas autóctones. Por isso, vem ao
rioridade arcaico e anti-brasileiro. encontro do principal objetivo do curso:
o de aprofundar o conhecimento e a
A experiência desses dez anos de
reflexão sobre a cultura afro-brasileira e
realização do Sankofa demonstra, tanto
suas matrizes africanas.
na comunidade afro-brasileira como de
maneira geral, uma enorme demanda de A referência à África não se entende
subsídios sobre a experiência africana como volta ao passado, mas como neces-
no Brasil e no mundo. Ao longo dessa sidade fundamental para a construção
década, verificamos o anseio da popu- de uma identidade própria, viva tanto
lação negra em busca de informações no presente como na perspectiva de um
capazes de fundamentar sua libertação futuro melhor, para os filhos desse conti-
1
Expressão da vereadora do Rio de janeiro Jurema Batista.
Sankofa: resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 199

nente tão sofrido. A África foi vítima do As comunidades de origem africana


maior holocausto que o mundo já conhe- nas Américas, e sobretudo na América
ceu, o tráfico escravista do mercantilismo Latina, sofrem até hoje a falta da referên-
europeu. Objetivo e conseqüência desse cia histórica que lhes permita construir
holocausto, não inteiramente logrados de- uma auto-imagem digna de respeito e
vido à resistência da vítima, foram a ani- auto-estima. Tentando fundamentar essa
quilação da identidade dos descendentes imagem própria na identidade “negra”,
de africanos e sua integração ao modelo definida de modo geral pelas desgastadas
ocidental, supostamente universal. categorias do ritmo, esporte, vestuário
e culinária, verificam que o papel da
A noção vulgar do racismo anti- “cultura negra” limita-se à esfera do lú-
-africano o identifica como um fenômeno dico, afastando-se a atividade intelectual,
apenas de cor da pele. Esse conceito científica, política, econômica, erudita,
escamoteia sua natureza mais profunda, técnica e tecnológica como atributos
que reside na tentativa de desarticula- próprios à sua personalidade. A criança
ção de um grupo humano por meio da negra tende a não identificar nessas áre-
negação de sua personalidade coletiva. as possibilidades de profissionalização
Reduzir o africano e seus descendentes ou aspiração para ela, reproduzindo a
à condição de “negros” retira-lhes o re- imagem excludente implícita na versão
ferencial histórico-cultural e sua identifi- da história que lhe é passada.
cação com a coletividade a que pertence. Sem dúvida, a distorção da história
Em certo momento, o colonialismo fez africana está entre os maiores respon-
questão de identificar os africanos como sáveis pela perpetuação da imagem
“negros”, “kaffirs”, e assim por diante, dos “negros” como tribais, primitivos e
no intuito de desvinculá-los simbolica- atrasados. Para Georg Hegel (1956: 91
mente da própria terra. Europeus bran- e 96), por exemplo, a África seria “uma
cos intitularam-se afrikaaners, assim terra da criancice, que jaz além do dia da
estabelecendo-se como donos da terra história consciente, envolvida na manta
no lugar dos nativos. No contexto afro- escura da noite”. Hegel conclui que, “en-
-americano, o mesmo processo anulava a tre os negros, os sentimentos morais são
referência dos grupos escravizados à sua extremamente fracos, ou melhor dizendo,
auto-imagem de gente livre, incorpora- inexistentes”. Esse é apenas um exemplo
da e mantida viva na lembrança de sua do discurso eurocentrista que condena
existência na terra natal. Rotulando-os os africanos e seus filhos à condição de
apenas de “negros”, “niggers”, “coons” objetos, e não sujeitos, de sua história.
ou crioulos, o dominador lhes arrancava a Recuperando-se o referencial do pro-
referência básica à sua condição humana, tagonismo dos povos africanos, faz-se
possível a contestação desse quadro.
reduzindo sua identidade à cor da pele,
sinônimo de condenação à inferioridade O ideograma sankofa simboliza esse
e à condição escrava. resgate, trazendo várias dimensões de
200 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

seu conteúdo. Neste texto, vamos abor- mais importante, incorporam, preservam
dar algumas dessas dimensões, tecendo e transmitem aspectos da história, filoso-
considerações a respeito de distorções fia, e valores e normas socioculturais do
históricas que perpetuam os estereótipos povo de Gana”.
anti-africanos.
De acordo com a história oral, o
Filosofia e história no simbolismo do sistema dos adinkra tem origem numa
Sankofa guerra que o Asantehene Osei Bonsu,
rei dos asante, fez contra o rei Kofi
O ideograma sankofa pertence a um Adinkra de Gyaaman, região da Costa do
conjunto de símbolos gráficos de origem Marfim. Este teve a audácia de copiar o
akan chamado adinkra. Cada ideograma, banco real do Asantehene, o gwa, e assim
ou adinkra, tem um significado comple- provocou a ira do poderoso soberano.
xo, representado por meio de ditames ou Vencida a guerra, a arte dos adinkra
fábulas que expressam conceitos filosó- foi dominada pelos asante, passando a
ficos. Segundo um texto gentilmente ampliar ainda mais o espaço geográfico
fornecido pela Embaixada da República em que impunha sua presença. Desde
de Gana no Brasil e publicado pelo antes, havia sido patrimônio dos mallam
Centro Nacional de Cultura, localizado e dos denkyira, outros povos da África
em Kumasi, capital do povo asante, o Ocidental que desenvolveram a técnica
ideograma sankofa significa “voltar e no passado remoto.
apanhar de novo. Aprender do passado,
construir sobre as fundações do passado. O sankofa pertence, então, a um
Em outras palavras, volte às suas raízes antigo sistema de escrita africano. A
e construa sobre elas para o desenvolvi- importância desse fato é imensurável
mento, o progresso e a prosperidade de quando consideramos que o academi-
sua comunidade em todos os aspectos da cismo convencional nega à África a
realização humana”. sua historicidade, classificando-a como
pré-histórica, com base na alegação do
Tradicionalmente, os adinkra são es- que seus povos nunca desenvolveram
tampados com tinta vegetal em tecido de sistemas de escrita. Entretanto os afri-
algodão. Adinkra significa adeus, e esse canos estão entre os primeiros povos a
tecido é usado em ocasiões fúnebres ou desenvolver a escrita. Além dos hieró-
festivais de homenagem, para despedir- glifos egípcios, existem inúmeros siste-
-se do falecido. O adinkra já se tornou mas de escrita desenvolvidos por povos
uma arte nacional ganense, somando africanos antes da invasão muçulmana,
mais de 60 símbolos, destacados pelo que introduziria a escrita árabe.
conteúdo que trazem seus ideogramas.
Conforme o mesmo texto do Centro Há várias tipos de sistema de escrita:
Nacional de Cultura de Kumasi: “Não pictográficos, ideográficos, fonológicos
só os desenhos do adinkra são estética (alfabético ou silábico), e também a es-
e idiomaticamente tradicionais, como, crita por meio de objetos. Na África,
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 201

O SIMBOLISMO DO ADINKRA

O sistema de símbolos e conceitos transmitidos pela tradição akan se expressa tanto


nos ideogramas como também em objetos como o gwa (banco do rei), o bastão do lingüista e os
djayobwe (pesos de ouro). (Os desenhos dos adinkra, gwa e bastões apresentados a seguir, e a
explicação de seus significados, são reproduzidos dos quadros organizados pelo Dr. E. Ablade
Glover da Universidade Ganense de Ciência e Tecnologia, Kumasi, publicados pela Glo Art
Gallery e distribuídos pelo Centro Nacional de Cultura em Kumasi, Gana.)

ADINKRA

Gye e Nyame – Talvez o mais Nkonsonkonso – Símbolo


conhecido entre os ideogramas das relações humanas em so-
do adinkra, este significa “aceite ciedade. “Somos ligados na
Deus” ou “Deus é onipotente e vida e na morte”, ou “aqueles
imortal”. que têm laços de sangue nunca
se apartam”.

Sankofa – Significa “nunca


é tarde para voltar e apanhar
aquilo que ficou atrás”. Sem-
pre podemos retificar os nossos
erros. O ideograma parece
originar-se numa estilização do
pássaro que vira a cabeça para
trás, representação do mesmo
conceito no banco do rei e no
bastão do lingüista.
202 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

ADINKRA

Owo foro adobe. A cobra sobe


a palmeira. tentando fazer algo
inusitado ou impossível. Ver
respectivo gwa no quadro à
pág. 206.

Obi nka obi (Não mordam um Akoko nan tiaba na enkin ba.
ou outro). Evite os conflitos. A galinha que pisa no seu pinto
Símbolo de unidade. não o mata. Ver o emblema no
bastão do lingüista no respec-
tivo quadro.

Owuo atwedie baako nfo Kontire ne Akwam (Anci-


(obiara bewu). Todos nós ãos do Estado). Tikoro nnko
subiremos a escada da morte. agyina. Uma cabeça só não
Ver o respectivo gwa no quadro constitui um conselho. Duas
à pag. 206. cabeças pensam melhor que
Nsoroma (Filha do Céu, Estre- uma sozinha.
la). “Obu Nyankon soroma te Ver o emblema no bastão do
Nyame na onte neho so.” Filha linguista, no respectivo quadro.
do Ser Supremo, não dependo
de mim. Minha iluminação é
apenas um reflexo da d’Ele.
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 203

DJAYOBWE

bronze utilizados para pesar mercadorias, sal e ouro. Trazem mensagens paralelas àquelas do
adinkra, dos gwa e dos bastões de lingüistas. Muitas vezes, a simbologia é relacionada a provérbios
representados pelos animais que envolvem. No exemplo abaixo, os dois crocodilos dividem um
estômago e logo aprendem que, ao brigar entre si, ficam os dois com fome. É o símbolo, também
representado no adinkra, da necessidade de unidade, sobretudo quando os destinos se confundem.
(Foto do djayobwe reproduzido do catálogo Coleção arte africana do Museu Nacional de Belas-
-Artes (1983: 28).

O duplo crocodilo em djayobwe.

O duplo crocodilo em adinkra.


204 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

tências. O simbolismo religioso bwiti do fonética, das palavras. O mekutu alèlè


Gabão, as paredes de casas pintadas na re- dos Camarões e o ngombo de Angola são
gião ocidental dos Camarões e as seqüên- outros exemplos de escrita por objetos.
cias de desenhos utilizados pelos sin’anga
A história dos adinkra nos remete
(médicos) de Malawi são alguns exemplos
a outra forma de comunicação visual,
dessa forma de escrita que se encontra em
a significação simbólica de objetos do
toda a África (Asante, 1990:73).
mundo asante como o gwa (o banco real),
O ideograma, já uma representação e o bastão do lingüista, uma espécie de
simbólica, é utilizado na escrita chinesa porta-voz e embaixador do rei. O gwa,
e em várias regiões da África. O nsibidi, de madeira esculpida, além de investido
por exemplo, é um sistema gráfico muito simbolicamente do poder político sa-
antigo, usado por diversos povos das cralizado, traz na sua forma conteúdos
regiões oriental e central da Nigéria para filosóficos, consituindo ideogramas em
transmitir os ensinamentos da filosofia. três dimensões. Existe, por exemplo, o
Além dos adinkra, os povos akan têm sankofa gwa, com o mesmo significado
a tradição dos djayobwe, figuras escul- do respectivo adinkra. Da mesma forma,
pidas em bronze utilizadas na pesagem o bastão do lingüista transmite mensa-
do ouro, e que transmitem mensagens gens por meio de imagens esculpidas em
grafadas em forma de pictogramas ou madeira no seu extremo superior. Sendo
ideogramas. Existe também o sistema o lingüista o principal articulador e in-
de escrita ideográfica sona ou tusona termediário entre o povo e o poder real,
entre os povos cokwe, lucazi, mbwela e o significado do elemento simbólico de
mbanda de Angola e Zâmbia. seu bastão adquire uma dimensão social
A escrita fonológica representa os e política profunda.
sons da linguagem (fonemas ou sílabas)
Mais importante, o banco real e o
e não depende da memorização para
bastão do lingüista representam a com-
ser compreendida, como é o caso da
plexidade e sofisticação do Estado político
ideográfica. Entre os sistemas antigos
africano, entidade quase preterida pela
de escrita fonológica na África estão o
vai (Libéria), o toma (Guiné), o mende visão acadêmica convencional da histó-
(Serra Leoa) e o bamun (Camarões). ria. Os Estados políticos africanos, em
pleno desenvolvimento durante séculos
A escrita por meio de objetos en- antes da invasão européia, chegaram a
contra expressões bastante sofisticadas, se constituir em impérios com extensão
como é o caso dos djayobwe acima territorial maior que o romano – era o
mencionados. Outro exemplo está no caso, por exemplo, do Império Mali
aroko dos yorubá, um sistema comple- nos séculos XIII e XIV. Entretanto, não
xo utilizado por líderes militares, reis e convém aplicar a esses fenômenos os
príncipes, e consistindo em arranjos de conceitos extraídos da exsperiência do im-
búzios e penas que constroem, às vezes, pério europeu. A descentralização como
uma representação silábica, e portanto característica e prática política contratasta
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 205

GWA
(o banco do rei)

O banco do rei simboliza a autoridade do Estado, representando o poder político. Existem tantos
bancos quanto chefes tradicionais, muitos deles proverbiais, conforme as ilustrações exemplificam.
O mais famoso dos bancos reais é o Sika Gwa Kofi, o banco dourado, que teria sido invocado do
céu por Okomfo Anokye, sacerdote principal de Osei Tutu, então Asantehene, rei dos Asante. Seu
furto pelos ingleses foi o motivo das Guerras de Asante, que perduraram por quase um século.

Sankofa Gwa – Tem o mesmo significado Adinkra Gwa – Banco do rei Adinkra,
que o respectivo ideograma: nunca é tarde soberano de Gyaman, que transmitiu o sis-
para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás. O tema simbólico dos ideogramas aos Asante.
pássaro com a cabeça voltada para trás consiste
no símbolo desse provérbio. Provavelmente,
o desenho do ideograma seja uma estilização
desse pássaro, representado também no bastão
do lingüista (ver quadro a seguir).
206 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Owo Foforo Adobe Gwa – A cobra sobe a Banco de Estado Ga – O símbolo do


palmeira. Tentando o inusitado ou o impos- antílope em cima do elefante, símbolo do
sível. Ver o respectivo ideograma no quadro Estado dos Ga, significa que se chega ao topo
dos adinkra. através da sabedoria e do bom senso, nunca
através do peso da força ou do tamanho
grande. O emblema representa a sabedoria
da nação.
Ver o bastão do linguista, no quadro a seguir.

Ede Nka Anum Gwa – A doçura não fica


permanentemente na boca. Há tempos bons
e tempos ruins.
Owuo atwedie baako nfo (obiara bewu)
– Todos nós subiremos a escada da morte.
Ver o respectivo ideograma no quadro dos
adinkra.

Ahema Gwa – O banco da rainha-mãe dos


Asante. A semelhança de seu desenho com
o banco do Estado (ao lado) simboliza o Kotoko Gwa – (Banco do porco-espinho).
alto posto da rainha-mãe na hierarquia do Emblema do Estado Asante, o porco-espi-
poder político. nho simboliza o poder da nação de atacar
de qualquer lado, a qualquer hora. O banco
é usado exclusivamente pelo Asantehene.
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 207

BASTÃO DO LINGÜISTA

Na tradição akan, cada soberano tem o seu lingüista, uma


espécie de embaixador, relações públicas, ouvidor-geral e
porta-voz. A fama e o sucesso de um rei dependem, em gran-
de parte, da eloqüencia e do desempenho do lingüista. Este
constitui o elo entre o rei e seu povo; o bastão é o símbolo
de sua autoridade e do poder político. O bastão, geralmente
com conteúdo simbólico proverbial, simboliza o Estado que
o lingüista representa.

Gye Nyame – Aceite Deus. Deus é onipotente e


imortal. O adinkra correspondente a esse conceito
pode ser uma estilização dessa mão com o polegar
na posição vertical (ver no respectivo quadro acima).

Sankofa – Sempre podemos retornar a


apanhar aquilo que ficou atrás. Sempre po-
demos retificar nossos erros. Aqui, o pássaro
com a cabeça voltada para trás lembra o gwa
(ver quadro acima).
208 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Wuo nane egbee ebi – (Ga). A galinha não


machuca o pinto ao pisá-lo, mas, ao contrário,
o protege do perigo. Ver o respectivo ideo-
grama no quadro dos adinkra.

A mão segura o ovo – O poder é como um


ovo: quando seguramos com muita força,
pode quebrar, mas, quando não seguramos
bem, pode cair e quebrar. O soberano precisa
ser firme e compreensivo ao mesmo tempo.
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 209

nitidamente com o centralismo do Im- até hoje pela convenção do chamado


pério Romano.Categorias supostamente juramento de Hipócrates enquanto de-
universais, como “feudal”, também não claração do compromisso profissional
satisfazem: como falar de um sistema do médico. O verdadeiro pai da me-
feudal sem feudo? O princípio da pro- dicina foi o cientista e clínico egípcio
priedade individual da terra não existia Imhotep, que quase 3 mil anos antes de
na África, onde ela consistia num bem Cristo praticava grande parte das técnicas
coletivo. básicas da medicina, conhecendo pro-
fundamente, além dos conceitos acima
O desenvolvimento tecnológico mencionados em relação aos banyoro, a
africano vacinação e a farmacologia. A respeito
de um dos documentos comprovantes
O desenvolvimento político africano desse saber, Ghalioungui observou em
acompanhava-se por um processo de de- 1973 (apud Newsome, 1983: 132):
senvolvimento tecnológico, menos reco-
nhecido ainda pela história convencional. De fato, o papiro Edwin Smith com-
As tecnologias de mineração e metalurgia, prova a existência de uma medicina
a agricultura e a criação de gado, as ciên- objetiva e científica, destituída de
cias, a medicina, a matemática, a engenha- teorias e magia, com uma só ex-
ria, a astronomia, enfim, todo um cabedal ceção, e fundamentada na atenta e
de conhecimento tecnológico e reflexão repetida observação do paciente,
filosófica caracterizava tanto esses Esta- na observação clínica e num conhe-
dos africanos como outras coletividades cimento de anatomia de que, até o
menores. O Dr. R. W. Felkin, um cirur- momento, ninguém suspeitava.
gião inglês que visitou em 1879 a região
africana que hoje compreende Uganda,
Além da medicina, outra área de
testemunhou e registrou uma cesariana
destaque no elenco do antigo saber
feita por médicos do povo banyoro, de-
africano é a astronomia. No Quênia, em
monstrando profundo conhecimento dos
1978, a equipe de Lynch e Robbins, da
conceitos e técnicas de assepsia, anes-
Michigan State University, encontrou,
tesia, hemostasia, cauterização e outros.
ao lado do lago Turkana, os restos de um
Médicos africanos do antigo Egito e de
observatório astronômico semelhante a
Mali praticavam a remoção de cataratas
Stonehenge, na Inglaterra. Sua conclusão
oculares por meio de cirurgias, e tumores
foi de que a evidência “atesta a comple-
cerebrais eram operados no Egito 4.600
xidade do desenvolvimento cultural pré-
anos atrás (Van Sertima 1985: 140-156;
-histórico na África subsaariana. Sugere
Jornal do Brasil, 27.12.91).
fortemente que um sistema de calendário
Historicamente, verifica-se como complexo e preciso, baseado no cálculos
falsa a idéia que situa o grego Hipócrates astronômicos, foi desenvolvido até o pri-
como “Pai da Medicina”, responsável meiro milênio a.C. na África Oriental”.
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Sankofa: Memória e Resgate

CÉSARIA FEITA PELOS BANYORO EM 1879

Ilustração da cirurgia descrita pelo Dr. Felkin no Edinburgh Medical Journal de 1884.
Desenho de Sylvia Bakos, publicado em Van Sertima, Blacks in science (1985: 152-153.)

Fechamento de ferida pós-cesariana feita pelos africanos banyoro em 1879, e a faca utilizada na
cesária descrita por Felkin em 1879. Desenho de Sylvia Bakos, publicado em Van Sertima, Blacks
in science (1985: 152-153.)
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 211

Mais impressionante ainda é o conheci- período de um ano, evento celebrado com


mento astronômico dos africanos da nação o festival chamado bado. Até a década
dogon, na região do antigo Mali, perto da de 1970, essa rotação não fora observa-
antiga capital universitária de Timbuktu. da pelos astrônomos modernos, que no
Os dogon têm uma concepção moderna do entanto já haviam confirmado a órbita de
universo e um saber extremamente complexo 50 anos que os dogon constataram para
da astronomia. Os sacerdotes-astrônomos sua órbita em volta de Sírio. Enfim, nas
dogon conheciam, desde há cinco a sete palavras de um cientista ocidental, os
séculos atrás, o sistema solar, a Via Láctea dogon conhecem, aparentemente sem o
com sua estrutura espiral, as luas de Júpiter e apoio de qualquer instrumento da ciência
os anéis de Saturno. Sabiam que “um bilhão moderna, coisas que “não têm o menor
de mundos espiralavam no espaço como a direito de saber” (Brecher, 1977). Am-
circulação do sangue no corpo de Deus”. plamente documentado, porém, pelos
Sabiam da natureza deserta, infecunda da lua, antropólogos franceses Marcel Griaule,
que diziam ser “seca e morta, como sangue Germaine Dieterlen e outros (Adams,
seco” (Sertima, 1983: 11-13). 1983), o conhecimento dos dogon efeti-
vamente ultrapassa em muito aquilo que
Muito antes que o Ocidente conseguis-
o mundo ocidental seria capaz de creditar
se observá-lo com a ajuda de sofisticados
a uma “tribo primitiva”.
aparelhos, os dogon desenvolveram um
conhecimento extremamente complexo No campo da metalurgia, há vários
do pequenino satélite da estrela Sírio, o exemplos do domínio que os africanos
Sírio B, invisível a olho nu. Denominavam- desenvolviam e exerciam, como no exem-
-no PoTolo, e desenhavam, com exata plo dos haya, povo de fala banta habitante
precisão, a sua órbita elíptica em torno de uma região de Tanzânia perto do lago
de Sírio. Projetaram corretamente a sua Vitória. Há mais de 2 mil anos, os haya
trajetória até o ano de 1990, em desenhos produziam aço em fornos que atingiam
que conferem precisamente com o curso temperaturas que superavam em 200 a
projetado pela astronomia moderna. Conhece- 400 graus centígrados a capacidade dos
dores de 86 elementos fundamentais, os dogon fornos europeus até o século XIX. O
sabiam identificar as propriedades do metal que antropólogo histórico Peter Schmidt, da
compõe o satélite, que chamavam de sagala: Brown University, estudou durante nove
uma densidade tão grande que sua massa anos o fenômeno. Junto com os haya,
é muitas vezes maior do que seu tama- chegou a reproduzir fisicamente a antiga
nho indica. Para os dogon, esse satélite tecnologia de fundição, a partir da tradi-
é o ovo do universo, a mais importante ção oral guardada pelos anciãos, capaz
estrela do céu. de resgatar e reconstituir as técnicas de
Além de todo esse conhecimento, engenharia dos antigos (Shore 1983).
os dogon revelam saber que Sírio B gira
uma vez em torno de seu próprio eixo no
212
Sankofa: Memória e Resgate
THOTH 1/ abril de 1997

À esquerda, um desenho feito pelos dogon, na areia, da órbita de Sírio B (PoTolo) em torno de Sírio: à direita, um desenho astronômico
moderno.
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 213

Outro exemplo da tecnologia apli- eurocentrista, contribuem para esse fato.


cada na África antiga encontra-se nas O primeiro está no próprio holocausto:
ruínas de Monomatapa, cidade-Estado prosseguiu durante séculos a devasta-
e fortaleza, localizada no antigo reino e ção dos centros civilizatórios africanos
hoje país Zimbábue. Capital de um im- onde esse desenvolvimento acontecia,
pério que durou 300 anos, a construção e o seqüestro para o cativeiro de enor-
de Monomatapa significou uma verda- mes contingentes de sua juventude
deira façanha de engenharia, encerrando criadora, elemento responsável pela sua
uma cidade murada de 10 mil habitantes. continuidade. Destruídos os centros de
O muro, de 250 metros de extensão e 15 desenvolvimento, pouco restou para ser
mil toneladas de granito, tem dois metros observado. O roubo puro e simples dos
de espessura, sendo que um metro de bens culturais e intelectuais da África
sua extensão contém 4.500 blocos de aconteceu durante mais séculos ainda.
granito. Coerentes com a atitude clás- Os sucessivos saques e incêndios da
sica do eurocentrismo, “historiadores” e bilbioteca de Alexandria por gregos e
estudiosos atribuiram sua construção a macedônios, para não falar dos romanos,
povos exógenos à África, e até a extra- abrangem séculos de devastação. Não
terrestres, no vão esforço de negar que o ficam atrás os constantes seqüestros de
Grande Zimbábue tivesse sido construído bens artísticos, símbolos do poder polí-
por africanos negros (Asante e Asante, tico, da ciência e da religião na África,
1983). levados para museus europeus.
Na matemática, há um volume Um agravante desse fator se encontra
enorme de conhecimento africano. Sem no material de que eram feitos esses bens,
mencionar as pirâmides egípcias, cuja quase sempre perecível. Os hieróglifos,
construção exigiu o desenvolvimento por exemplo, eram grafados em papiro,
de um conhecimento avançadíssimo em nítido contraste com a escrita cunei-
de matemática, geometria e engenharia forme da antiga Suméria ou Babilônia,
(capaz de projetar, 2.700 anos antes registrada em pedra ou barro, materiais
Cristo, ângulos com 0,07o de precisão), duráveis.
podemos citar o sistema iorubá de mate-
Outro fator na perpetuação dessa
mática, baseado, como outros na África,
imagem é a fascinação dos estudiosos
em múltiplos de 20. Uma visão geral do
europeus, sobretudo dos antropólogos,
desenvolvimento da ciência matemática
pelo exótico. O enfoque antropológico,
na África está no trabalho de Claudia
embora em suas mais nobres expressões
Zaslavsky (1973).
tente respeitar o meio cultural estudado,
Por que tantas conquistas ficaram detém-se em geral numa visão estática,
sem registro, prevalecendo a imagem do localizando um grupo numa conjuntura
africano selvagem, atrasado e ignorante? e fixando-o como se estivesse preso para
Vários fatores, além da pura falsificação sempre à condição em que foi estudado.
214 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

O GRANDE ZIMBÁBUE

Parte do muro do complexo urbano do Grande Zimbábue. Na arquitetura desse complexo monu-
mental, da mesma forma que naquela dos sítios históricos do Peru, como Macchu Picchu e Cuzco,
as pedras são colocadas uma em cima da outra, sem cimento. Foto: Diop, 1974: 173.
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 215

Esse enfoque, além de realçar o primi- distorções tão constantemente reprodu-


tivo, obscurece os processos dinâmicos zidas que acumulam a força de verdades
de fluxo e mudança que sempre carac- absolutas. Os registros de Ibn Khaldun
terizaram a história africana. Palco de e seus colegas islâmicos ignoram, por
uma movimentação constante em busca exemplo, a resistência heróica protago-
de novos espaços, rotas comerciais, nizada por povos africanos como berbe-
intercâmbio e comunicação internacio- res, tuaregues, shilluks, azande e nuer,
nal, a África nunca se reduziu ao viveiro que defenderam com unhas e dentes
de povos isolados, perdidos na selva e seus territórios e suas culturas contra
ocupados com a pesca e a caça, que o en- a dominação muçulmana. Da mesma
foque antropológico acabou retratando. forma, a história da África do século XV
No século XII, por exemplo, Estados da até o presente tem sido escrita a partir
África Oriental mandavam ouro e elefan- dos documentos deixados por invasores
tes à China em embarcações muito mais e colonizadores europeus. Apenas re-
sofisticadas que a caravela utilizada pelos centemente, com o trabalho de Cheikh
portugueses três séculos mais tarde na Anta Diop, Théophile Obenga, Ivan
sua acidental chegada às Américas (Van van Sertima, Basil Davidson e outros,
Sertima, 1976; Lopes, 1988). inicia-se um processo de revisão dessa
história convencional distorcida e ainda
O terceiro fator é que a história dominante no imaginário e na concepção
africana convencional foi escrita com populares sobre a África.
base em documentos exógenos. Desde
o tempo de Ibn Khaldun, quando se Sankofa e a questão da civilização
inicia essa história segundo o critério do
registro escrito, o documento estudado Segundo a noção convencional
pelo historiador tem sido o documento da matéria, a civilização se divide em
do invasor ou colonizador. A tradição duas categorias: a ocidental e a oriental.
oral africana foi excluída até muito re- Considerada um continente sem civili-
centemente como fonte histórica, com zação, a terra dos negros não faz parte
base em afirmações como esta carac- desse panorama. Entretanto várias das
terização feita por Hegel (1982:3) dos primeiras civilizações do mundo, como
mitos e tradições orais africanos, que a egípcia e a núbia, pertencem à África.
seriam “modos obscuros peculiares aos Como, então, eliminá-la do quadro das
povos obscuros”. As próprias línguas civilizações humanas? A solução foi
africanas são reduzidas até hoje, e muito simples: retirar essas civilizações clássi-
comumente no Brasil, à condição de cas africanas do continente, situando-as
“dialetos”. como civilizações orientais. Assim, o
Egito antigo pertenceria, não à África,
Esses fatores resultam, naquilo que mas ao “Oriente Médio”. Já que tal
se aceita como história da África, em façanha se demonstra geograficamente
216 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

impossível, introduziu-se a seguinte químico e arqueólogo senegalês Cheikh


idéia: étnica e culturalmente, o Norte Anta Diop (1974) ilustra os extremos a
da África seria distinto do restante do que chegaram antropólogos e historia-
continente. A região do norte africano dores na tentativa de pintar de branco
se identificaria como oriental ou asiáti- os africanos do Norte. Povos como os
ca, enquanto a região subsaariana seria berberes e os tebu, africanos negros do
reconhecida como a verdadeira África, Norte cujo retrato não deixa sombra
negra e destituída de civilização. He- de dúvida quanto à identidade étnica,
gel, em sua obra A filosofia da história eram classificados como mediterrâneos
(l956:96), secciona o continente em três brancos. Um exemplo clássico dessa
partes, que ele chama de “África própria” tendência está na seguinte declaração
(ao sul do Saara) “África européia” (ao do estudioso inglês John Crow (apud.
norte do Saara) e “África asiática” (re- Chandler, 1985: 169):
gião egípcia-etíope). Que diria Hegel se
É preciso ter cuidado aqui no sen-
erguêssemos uma “Europa africana” na
tido de ressaltar que a África a que
região dominada durante séculos pelos
nos referimos não é a parte inferior
mouros, africanos islamizados que tanto
do Continente Escuro, povoada
contribuíram para o desenvolvimento da
por negros. Trata-se do Norte da
civilização européia?
África, antiga terra dos iberos,
Os estudos convencionais fazem tudo dos cartagos, uma raça semítica,
para retalhar o continente, quando não em dos próprios judeus e dos mouros,
duas, em muitas Áfricas distintas e descone- grupo composto de várias etnias
xas. A invocação do etnocentrismo tornou- de fala arábica.
-se uma constante nesse empreendimento.
O retrato do africano do Norte branco,
A distinção entre bantos e sudaneses, que
com traços físicos do tipo semítico, foi
contribuiu para a inferiorização da maioria
pintado séculos após o domínio mouro
dos africanos chegados ao Brasil (Lopes,
da península Ibérica, quando os europeus
l988), insere-se no mesmo contexto.
viveram um contato íntimo com africanos
Esse seccionamento da África serve do Norte. Naquela época, documentaram
como fundamento para negar à “África com fartura o rosto verdadeiro do mouro,
própria” de Hegel aquilo que seria pa- africano negro por excelência. Os exem-
tentemente impossível negar à África do plos são múltiplos, a começar por aquele
Norte, “asiática”: a civilização e a cultura esboçado na pena de Shakespeare, o
erudita. A imagem difundida pelo euro- inesquecível personagem Otelo, o Mouro
centrismo dá a idéia de uma África branca de Veneza. Ícones, estátuas e desenhos
e civilizada ao norte do continente, e uma confirmam graficamente a mesma identi-
outra África, negra e selvagem, ao sul do dade africana dos mouros, portadores da
Saara. Entretanto a realidade do continen- civilização avançada e do conhecimento
te desmente tal hipótese. O historiador, técnico-científico responsáveis por
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 217

MULHERES TEBU DA ÁFRICA DO NORTE

As mulheres retratadas são do oásis Bordai, região do Tebesti, Chade. Exemplificando o discurso
dos estudiosos europeus sobre a África do Norte, Emil Schulthess (1958: 22-23) as descreve as-
sim: “Embora não sejam negras, muitas têm a pele escura e traços negróides”. Fonte: Chandler,
in Van Sertima, 1985: 169-170.
218 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

OS MOUROS RETRATADOS PELOS EUROPEUS CONTEMPORÂNEOS

À esquerda, retrato de um mouro em Marrocos, datado de 1841. À direita, um exemplo da imagem


do santo Johannes Morus, símbolo sagrado da figura do mouro na Europa. Esse ícone, do século
XIX, encontra-se hoje num museu alemão. Fotos reproduzidas do ensaio de Wayne B. Chandler
(in Van Sertima, 1985: 146 e 162).
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 219

uma renascença intelectual de grandes o ser humano dos outros animais. Dessa
proporções na Europa (ver ilustrações forma, o seccionamento da África e a
apresentadas por Chandler, 1985; Van escamoteação da história das civilizações
Sertima, 1985). subsaaranas impõem-se como dois eixos
fundamentais à formulação das teorias
Complementando a imagem do
racistas antiafricanas.
africano do Norte como branco semítico,
formulou-se ainda a teoria da raça “ha- A história da região saariana nos ofe-
mítica” ou “vermelho-escura”, distinta rece uma imagem bem distinta daquela
dos africanos negros, que teria criado as que a separa do restante do continente.
civilizações clássicas núbia e egípcia. Durante milênios, o Saara era verde e
Alternativamente, postulam-se grupos habitado por gente africana negra que iria
dominantes não-negros, invasores do encontrar-se, no decorrer de migrações
Nordeste africano, como responsáveis rumo ao vale do rio Nilo, com popula-
pela construção das civilizações antigas ções originárias da África Central. Jun-
daquela região e do Sudeste Asiático. tos, esses povos africanos iriam formar a
Cheikh Anta Diop (1974) comprova base demográfica da civilização clássica
cientificamente a inexistência dessa núbio-egípcia. Mesmo depois do período
“raça páleo-mediterrânea branca a quem verde, o Saara sempre foi habitado por
devemos todas as civilizações humanas, gente “subsaariana”, ou seja, africanos
inclusive a egípcia”, oferecendo farta negros.
documentação gráfica da verdadeira A divisão da África pelo Saara trans-
feição, negra, dos autores africanos da mite a noção errônea do deserto como
civilização egípcia. uma barreira intransponível, capaz de
Atribuindo a um povo supostamente isolar os povos subsaarianos do rumo
branco, não africano, o progresso civi- da história vivida no norte do continen-
lizatório da África do Norte, nega-se à te. Entretanto o fluxo de comerciantes,
África subsaariana o seu protagonismo viajantes e migrantes através do Saara,
na construção de civilizações e avanços nos dois sentidos, caracterizou um inter-
científico-tecnológicos. Apaga-se das câmbio ativo, constante, entre os povos
páginas da história humana a memória ao norte e ao sul do deserto.
de grandes centros urbanos caracteri- O ideograma sankofa também sim-
zados pela erudição e pela sofisticada boliza essa verdade, na medida em que os
organização política de Estados e im- povos akan, seus criadores, são originá-
périos soberanos como Mali, Songai, rios exatamente da região saariana, e há
Gana, Quíloa, Zimbábue e tantos outros. evidências extensas de que eles constitu-
Estabelecida a imagem da África negra am uma espécie de elo etno-histórico en-
“selvagem”, nega-se aos seus povos a tre o Egito clássico e a África Ocidental.
própria condição humana, uma vez que De acordo com Molefi Asante (1990),
o desenvolvimento da cultura diferencia os adinkra e os djayobwe, bem como o
220 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

sistema gráfico de representação de prin- comumente confundidos, de etnocen-


cípios filosóficos chamado nsibidi, apre- trismo e eurocentrismo. Impõe-se como
sentam fortes indícios de ligação com o igualmente relevante uma discussão do
Egito. Há evidências de que sacerdotes termo afrocentrismo, há pouco cunhado
expulsos do Egito pelos jihads (guerras pelo teórico afro-norte-americano Molefi
santas) muçulmanos teriam migrado Kete Asante (1987, 1989, 1990), com o
rumo ao ocidente, lá fixando residência intuito de esclarecer seu significado.
e estabelecendo-se com suas tradições Consideremos, de início, a noção
eruditas. Essas tradições, então, teriam de centro que fundamenta o centrismo.
sido traduzidas para novos idiomas e O centro refere-se ao nosso ponto de
inseridas em contextos culturais da re- vista ou localização: a posição a par-
gião, expressando uma continuidade com tir da qual observamos, analisamos e
a origem egípcia. As obras de Cheikh compreendemos o mundo. No caso do
Anta Diop (1974, 1978) e de Théophile etnocentrismo, trata-se de um conceito
Obenga (1980) estabelecem essa origem que, constatando a tendência de cada
como a referência da unidade básica grupo étnico a elaborar seu centro e
entre as culturas africanas em geral: os valorizar sua própria cultura, generaliza
elos lingüísticos e culturais apontam para esse fenômeno. O conceito de etnocen-
sua fonte comum nas civilizações clás- trismo originou-se na antropologia que,
sicas africanas, da mesma forma que as estudando grupos humanos pequenos e
diferentes culturas européias fincam suas “primitivos”, aplicou-lhes o termo.
raízes na antigüidade greco-romana.
Há uma tendência, alimentada por
A afirmação dessa unidade cultural
essa etimologia, de se fazer equivaler
africana não implica uma alegação de
o eurocentrismo a um etnocentrismo
ausência de diferenças entre suas cultu-
específico. Implícita nessa postura está a
ras. Apenas estabelece um paralelo: se
idéia de que, denunciando o eurocentris-
as diferenças entre as culturas da Bósnia,
mo como forma de dominação, os povos
Alemanha, França, Itália, Inglaterra,
não-europeus estariam reagindo de forma
Rússia, Portugal, Dinamarca e Polônia
exagerada. Afinal, o etnocentrismo seria
não desmentem a existência de uma
um fenômeno universal, aplicando-se
civilização européia ocidental, tampou-
tanto aos povos nativos do Terceiro
co as distinções entre diversas culturas
Mundo como aos europeus.
africanas hão de desmentir uma unidade
básica entre elas, fundada numa matriz Tal raciocínio demonstra-se equi-
civilizatória comum. vocado porque o eurocentrismo não
corresponde a uma etnia, pois existem
Eurocentrismo, Etnocentrismo e Afro-
inúmeros grupos étnicos europeus. En-
centrismo
quanto ideologia, o eurocentrismo abstrai
Cabe neste primeiro ensaio do os elementos comuns a muitos grupos e
Sankofa uma reflexão sobre os conceitos, articula uma visão generalizada a partir
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 221

de suas referências clássicas: as civili- pluralista que valoriza a visão de mun-


zações grega e romana. Trata-se ainda, do própria a cada povo. Questionando
porém, de um centrismo específico, um a universalização forçada de modelos
modelo europeu. específicos como o europeu, propõe
a valorização dos modelos próprios
Entretanto o mais grave equívoco do
aos povos dominados pelo colonialis-
citado raciocínio está na minimização do
mo. Reconhecendo a validade para os
eurocentrismo como sistema de domina-
europeus de um modelo específico, o
ção. Sua identificação como “mais um
afrocentrismo denuncia as distorções
etnocentrismo” isenta o eurocentrismo de
que caracterizam o eurocentrismo na sua
suas características mais destacadas: os
articulação vigente.
processos violentos e a falsificação his-
tórica utilizados para impor esse “etno- A tarefa acadêmica afrocentrada
centrismo” específico como universal a consiste em estudar, articular e afirmar
todos os povos. O aparato bélico repres- aquilo que diferencia o ponto de vista
sivo do sistema colonialista, mobilizado africano, ao mesmo tempo identificando
contra os povos dominados, constituiu os postulados supostamente universais
exemplo extremo dessa violência, perpe- do eurocentrismo e desmascarando sua
trada durante séculos. A universalização natureza específica. Assim, por exemplo,
do modelo europeu, por meios violentos Asante (1987) assinala a definição do
e não-violentos de dominação, diferencia discurso que encontrou nos livros quan-
fundamentalmente o eurocentismo do do foi estudar a teoria da comunicação.
etnocentrismo em geral. Definia-se o discurso como uma fala não
interrompida. Tal conceito contradizia a
O afrocentrismo (Asante, 1987;
experiência de Asante como afro-norte-
1989; 1990) consiste na construção de
-americano criado no contexto da igreja
uma perspectiva teórica radicada na
cristã da comunidade negra, cuja orató-
experiência africana, síntese dos siste-
ria consiste numa tradição que formou
mas ontológicos e epistemológicos de
grandes líderes como Martin Luther
diversos povos e culturas, fundamentada
King e Malcolm X. Nessa tradição, a
nas civilizações clássicas africanas: a
assembléia interrompe constantemente
egípcia, a núbia e cuxita.
a fala do orador, intercalando-lhe res-
Essa teoria difere do eurocentrismo postas, comentários e exclamações. Se
num aspecto fundamental: propondo o a definição do discurso como uma fala
resgate e a reconstrução de um centris- não interrompida não se aplicava ao caso
mo africano, não assume uma postura da comunidade negra, como aceitá-la
universalista; isto é, o afrocentrismo não na condição de conceito científico uni-
propõe os seus elementos como univer- versalmente aplicável? Trata-se de um
sais e aplicáveis a outras experiências exemplo entre muitos em que Asante iria
humanas. Trata-se de uma concepção identificar a universalização de um con-
222 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

ceito originário da experiência específica identidade: os índices de repetência e eva-


de origem européia. são são muito maiores entre as crianças
negras. As conseqüências psicológicas
Conclusão da falta desse referencial são abordadas
pela psicanalista Neusa Santos Souza no
A proposta do Sankofa é ajudar a seu livro Tornar-se negro (1983).
articular uma perspectiva afro-brasileira, A construção de uma identidade pró-
tendo como ponto de partida as civili- pria de forma alguma implica uma postura
zações africanas e como referência os excludente ou discriminatória. Trata-se
elementos africanos desenvolvidos no do fortalecimento da personalidade, fator
Brasil. Esse empreendimento não se necessário e anterior à capacidade de se
desvincula das experiências de todos oferecer colaboração e solidariedade. Se
os povos africanos, em qualquer parte eu estou enfraquecido, pouco posso fazer
do mundo. A identidade afro-brasileira para ajudar o outro; à medida que me
se fortalece quando percebida como defino e me reconheço, posso colaborar
pertencente a uma identidade maior, in- com o outro em condições de igualdade.
ternacional, da experiência generalizada A necessidade de um mundo democrático
dos povos de origem africana em todo o não é de eliminar as diferenças, mas com
mundo. Assim, amplia-se o referencial elas conviver pacífica e harmoniosamente.
de nossas crianças, oferecendo-lhes uma Da mesma forma, as diferenças não de-
identidade coletiva que lhes possibilita a vem ser transformadas em desigualdades,
sua localização no mundo: o seu centro. mas valorizadas dentro de um contexto
A necessidade da elaboracão de uma de respeito mútuo e bom convívio. Essas
perspectiva própria para a comunidade diferenças enriquecem e enaltecem o meio
afro-brasileira já foi abordada na década cultural e a identidade nacional. Por isso,
dos 50 pelo sociólogo Guerreiro Ramos o Sankofa se propõe contribuir para a
(1957: 193-200). No Brasil, é comum construção de uma abordagem pluri-
argumentar que tal procedimento seria cultural e multiétnica dentro da escola
uma postura excludente, racista e não brasileira.
aplicável à realidade do país. Entretan-
to há pesquisas (in Larkin Nascimento, * Elisa Larkin Nascimento é co-fundadora do Ipeafro, e
1991) que comprovam as conseqüências pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade
da falta de referencial próprio da criança de São Paulo. O Ipeafro, Istituto de Pesquisa e Estudos
Afro-Brasileiro, foi fundado na PUC–SP em 1981, sob
afro-brasileira numa escola que não com- a direção do prof. Abdias Nascimento, e transferido ao
porta nem leva em consideração a sua Rio de janeiro em janeiro de 1985.
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 223

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Elenco da peça O filho pródigo, de Lúcio Cardoso. Da esquerda para a direita: Roney da Silva
(Moab), Ruth de Souza (Aila), Abdias Nascimento (Pai), José Maria Monteiro (Assur), Aguinaldo
Camargo (Manassés) e Marina Gonçalves (Selene). Teatro Ginástico, Rio de Janeiro, 1947.
Várias interrogações suscitaram ao
meu espírito a tragédia daquele negro
infeliz que o gênio de Eugene O’Neill
transformou em O imperador Jones.
Isso acontecia no Teatro Municipal de
Lima, capital do Peru, onde me encon-
trava com os poetas Efraín Tomás Bó,
Teatro Godofredo Tito Iommi e Raul Young,
argentinos, e o brasileiro Napoleão
Experimental Lopes Filho. Ao próprio impacto da
peça juntava-se outro fato chocante: o
do Negro: papel do herói representado por um ator
branco tingido de preto.
Trajetória
Àquela época, 1941, eu nada sabia de
e Reflexões * teatro, economista que era, e não possuía
qualificação técnica para julgar a qualida-
de interpretativa de Hugo D’Evieri. Po-
rém algo denunciava a carência daquela
força passional específica requerida pelo
texto, e que unicamente o artista negro
poderia infundir à vivência cênica desse
protagonista, pois o drama de Brutus
Abdias Nascimento
Jones é o dilema, a dor, as chagas exis-
228 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

tenciais da pessoa de origem africana na cor local ao cenário, em papéis ridículos,


sociedade racista das Américas. brejeiros e de conotações pejorativas.

Por que um branco brochado de ne- Devemos ter em mente que até o
gro? Pela inexistência de um intérprete aparecimento de Os Comediantes e de
dessa raça? Entretanto lembrava que, Nélson Rodrigues, que procederam à
em meu País, onde mais de 20 milhões nacionalização do teatro brasileiro em
de negros somavam a quase metade de termos de texto, dicção, encenação e
sua população de cerca de 60 milhões impostação do espetáculo, nossa cena
de habitantes, na época, jamais assistira vivia da reprodução de um teatro de
a um espetáculo cujo papel principal marca portuguesa que em nada refletia
tivesse sido representado por um artista uma estética emergente de nosso povo e
da minha cor. Não seria, então, o Brasil de nossos valores de representação. Essa
uma verdadeira democracia racial? Mi- verificação reforçava a rejeição do negro
nhas indagações avançavam mais longe: como personagem e intérprete, e de sua
na minha Pátria, tão orgulhosa de haver vida própria, com peripécias específicas
resolvido exemplarmente a convivência no campo sociocultural e religioso, como
entre pretos e brancos, deveria ser normal temática da nossa literatura dramática.
a presença do negro em cena, não só em Naquela noite em Lima, essa cons-
papéis secundários e grotescos, confor- tatação melancólica exigiu de mim uma
me acontecia, mas encarnando qualquer resolução no sentido de fazer alguma
personagem – Hamlet ou Antígona –, coisa para ajudar a erradicar o absurdo
desde que possuísse o talento requerido. que significava para o negro e os prejuízos
Ocorria de fato o inverso: até mesmo um de ordem cultural para o meu País. Ao
Imperador Jones, se levado aos palcos fim do espetáculo, tinha chegado a uma
brasileiros, teria necessariamente o de- determinação: no meu regresso ao Brasil,
sempenho de um ator branco caiado de criaria um organismo teatral aberto ao pro-
preto, a exemplo do que sucedia desde tagonismo do negro, onde ele ascendesse
sempre com as encenações de Otelo. da condição adjetiva e folclórica para a
Mesmo em peças nativas, tipo Demônio de sujeito e herói das histórias que repre-
familiar (1857), de José de Alencar, ou sentasse. Antes que uma reivindicação
Iaiá Boneca (1939), de Ernani Fornari, ou um protesto, compreendi a mudança
em papéis destinados especificamente pretendida na minha ação futura como
a atores negros se teve como norma a a defesa da verdade cultural do Brasil
exclusão do negro autêntico em favor do e uma contribuição ao Humanismo que
negro caricatural. Brochava-se de negro respeita todos os homens e as diversas
um ator ou atriz branca quando o papel culturas com suas respectivas essenciali-
contivesse certo destaque cênico ou al- dades. Não seria outro o sentido de tentar
guma qualificação dramática. Intérprete desafiar, desmascarar e transformar os
negro só se utilizava para imprimir certa fundamentos daquela anormalidade ob-
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 229

jetiva dos idos de 1944, pois dizer Teatro de São Paulo, em 1922, sempre evitaram
genuíno – fruto da imaginação e do poder até mesmo mencionar o tabu das nossas
criador do homem - é dizer mergulho nas relações raciais entre negros e brancos,
raízes da vida. E vida brasileira excluindo bem como o fenômeno de uma cultura
o negro de seu centro vital, só por cegueira afro-brasileira à margem da cultura con-
ou deformação da realidade. vencional do País.
Polidamente rechaçada pelo então
Fundação e estréia do TEN festejado intelectual mulato Mário de
Andrade, de São Paulo, minha idéia
Engajado a esses propósitos, surgiu de um Teatro Experimental do Negro
em 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro recebeu as primeiras adesões: o advo-
Experimental do Negro, ou TEN, que gado Aguinaldo de Oliveira Camargo,
se propunha resgatar, no Brasil, os companheiro e amigo desde o Congresso
valores da pessoa humana e da cultura Afro-Campineiro que realizamos juntos
negro-africanas, degradados e negados em 1938; o pintor Wilson Tibério, há
por uma sociedade dominante que, desde tempos radicado na Europa; Teodorico
os tempos da colônia, portava a bagagem dos Santos e José Herbel. A esses cinco,
mental de sua formação metropolitana se juntaram logo depois Sebastião Ro-
européia, imbuída de conceitos pseudo- drigues Alves, militante negro; Arinda
-científicos sobre a inferioridade da raça Serafim, Ruth de Souza, Marina Gonçal-
negra. Propunha-se o TEN trabalhar pela ves, empregadas domésticas; o jovem e
valorização social do negro no Brasil por valoroso Claudiano Filho; Oscar Araújo,
meio da educação, da cultura e da arte. José da Silva, Antonieta, Antonio Barbo-
Pela resposta da imprensa e de sa, Natalino Dionísio e tantos outros.
outros setores da sociedade, constatei,
Teríamos que agir urgentemente em
aos primeiros anúncios da criação desse
duas frentes: promover, de um lado, a
movimento, que sua própria denomi-
denúncia dos equívocos e da alienação
nação surgia em nosso meio como um
dos chamados estudos afro-brasileiros,
fermento revolucionário. A menção
e fazer com que o próprio negro tomas-
pública do vocábulo “negro” provocava
se consciência da situação objetiva em
sussurros de indignação. Era previsível,
que se achava inserido. Tarefa difícil,
aliás, esse destino polêmico do TEN,
quase sobre-humana, se não esquecer-
numa sociedade que há séculos tentava
mos a escravidão espiritual, cultural,
esconder o sol da verdadeira prática do
socio-econômica e política em que foi
racismo e da discriminação racial com a
mantido antes e depois de 1888, quando
peneira furada do mito da “democracia
teoricamente se libertara da servidão.
racial”. Mesmo os movimentos culturais
aparentemente mais abertos e progres- A um só tempo o TEN alfabetizava
sistas, como a Semana de Arte Moderna seus primeiros participantes, recrutados
230 THOTH 1/ abril de 1997

entre operários, empregados domésti- noções de teatro e interpretação ficavam


cos, favelados sem profissão definida, a meu cargo, o TEN abriu o debate dos
modestos funcionários públicos e lhes temas que interessavam ao grupo, con-
oferecia-lhes uma nova atitude, um cri- vidando vários palestrantes, entre os
tério próprio que os habilitava também quais a professora Maria Yedda Leite, o
a ver, enxergar o espaço que ocupava o professor Rex Crawford, adido cultural
grupo afro-brasileiro no contexto nacio- da Embaixada dos Estados Unidos, o
nal. Inauguramos a fase prática, oposta poeta José Francisco Coelho, o escritor
ao sentido acadêmico e descritivo dos Raimundo Souza Dantas, o professor
referidos e equivocados estudos. Não José Carlos Lisboa.
interessava ao TEN aumentar o número Após seis meses de debates, aulas e
das monografias e outros escritos, nem exercícios práticos de atuação em cena,
deduzir teorias, mas a transformação preparados estavam os primeiros artistas
qualitativa da interação social entre do TEN. Estávamos em condições de
brancos e negros. Verificamos que ne- apresentar publicamente o nosso elenco.
nhuma outra situação jamais precisara Revelou-se então a necessidade de uma
tanto quanto a nossa do distanciamento peça no nível das ambições artísticas
de Bertolt Brecht. Uma teia de impos- e sociais do movimento: em primeiro
turas, sedimentada pela tradição, se im- lugar, o resgate do legado cultural e hu-
punha entre o observador e a realidade, mano do africano no Brasil. O que então
deformando-a. Urgia destruí-la. Do se valorizava e divulgava em termos de
contrário, não conseguiríamos descom- cultura afro-brasileira, batizado de “re-
prometer a abordagem da questão, livrá- miniscências”, eram o mero folclore e
-la dos despistamentos, do paternalismo, os rituais do candomblé, servidos como
alimento exótico pela indústria turística.
dos interesses criados, do dogmatismo,
(No mesmo sentido podemos inscrever
da pieguice, da má-fé, da obtusidade, da
hoje a exploração do samba, criação afro-
boa-fé, dos estereótipos vários. Tocar
-brasileira, pela classe dominante branca,
tudo como se fosse pela primeira vez,
levada nos últimos anos ao exagero do
eis uma imposição irredutível. espetáculo carnavalesco luxuoso e, pela
Cerca de 600 pessoas, entre homens carestia, cada vez mais longe do alcance
e mulheres, se inscreveram no curso de do povo que o criou.)
alfabetização do TEN, a cargo do escritor O TEN não se contentaria com a
Ironides Rodrigues, estudante de Direito reprodução de tais lugares-comuns, pois
dotado de um conhecimento cultural procurava dimensionar a verdade dramá-
extraordinário. Outro curso básico, de tica, profunda e complexa da vida e da
iniciação à cultura geral, era lecionado personalidade do grupo afro-brasileiro.
por Aguinaldo Camargo, personalidade Qual o repertório nacional existente?
e intelecto ímpar no meio cultural da co- Escassíssimo. Uns poucos dramas su-
munidade negra. Enquanto as primeiras perados, em que o negro fazia o cômi-
231

Claudiano Filho e Ruth de Souza em Aruanda, de Joaquim Ribeiro. Teatro Ginástico, Rio de
Janeiro, 1948.
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 233

co, o pitoresco ou a figuração decorativa: peça trazia a oportunidade de reflexão e


Demônio familiar (1857) e Mãe (1859), debate em torno de temas fundamentais
ambas de José de Alencar; Os cancros so- aos propósitos do TEN.
ciais (1865), de Maria Ribeiro; O escravo
fiel (1858), de Carlos Antonio Cordeiro; Escrevemos a Eugene O’Neill uma
O escravocrata (1884) e O dote (1907), carta aflita de socorro. Nenhuma respos-
de Arthur Azevedo, a primeira com a ta jamais foi tão ansiosamente esperada.
colaboração de Urbano Duarte; Cala- Quem já não sentiu a atmosfera de so-
bar (1858), de Agrário de Menezes; as lidão e pessimismo que rodeia o gesto
comédias de Martins Penna (1815-1848). inaugural, quando se tem a sustentá-lo
E nada mais. Nem ao menos um único unicamente o poder de um sonho? De
texto que refletisse nossa dramática situ- seu leito de enfermo, em São Francisco,
ação existencial. a 6 de dezembro de 1944, O’Neill nos
respondeu:
Sem possibilidade de opção, O
imperador Jones se impôs como solu-
ção natural. Não cumprira a obra de You have my permission to produce
O’Neill idêntico papel nos destinos do The emperor Jones without any
negro norte-americano? Tratava-se de payment to me, and I want to wish
uma peça significativa: transpondo as you all the success you hope for with
fronteiras do real, da logicidade raciona- your Teatro Experimental do Negro.
lista da cultura branca, não condensava I know very well the conditions you
a tragédia daquele burlesco imperador describe in the Brazilian theatre.
We had exactly the same conditions
um alto instante da concepção mágica
in our theatre before The emperor
do mundo, da visão transcendente e do
Jones was produced in New York
mistério cósmico, das núpcias perenes
in 1920 - parts of any consequence
do africano com as forças pristinas da
were always played by blacked-up
natureza? O comportamento mítico do
white actors. (This, of course, did not
Homem nela se achava presente. No apply to musical comedy or vaude-
nível do cotidiano, porém, Jones resumia ville, where a few negroes managed
a experiência do negro no mundo branco, to achieve great success.) After The
onde, depois de ter sido escravizado, emperor Jones, played originally by
libertam-no e o atiram nos mais baixos Charles Gilpin and later by Paul
desvãos da sociedade. Transviado num Robeson, made a great success, the
mundo que não é o seu, Brutus Jones way was open for the negro to play
aprende os maliciosos valores do di- serious drama in our theatre. What
nheiro, deixa-se seduzir pela miragem hampers most now is the lack of
do poder. Além do impacto dramático, a plays, but I think before long there
234 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

will be negro dramatists of real merit entre eles o fotógrafo José Medeiros, o
to overcome this lack.* diretor teatral Willy Keller, o cenógrafo
Santa Rosa, o diretor Léo Jusi, assim
como o ator Sady Cabral, que encarnou
Essa generosa adesão e lúcido con-
o Smithers de O imperador Jones.
selho tiveram importância decisiva em
nosso projeto. Transformaram o total de-
Sob intensa expectativa, a 8 de maio
samparo das primeiras horas em confiança
de 1945, uma noite histórica para o teatro
e euforia. Ajudaram que nos tornássemos
brasileiro, o TEN apresentou seu espetá-
capazes de suprir com intuição e audácia
culo fundador. O estreante ator Aguinal-
o que nos faltava em conhecimento de
do Camargo entrou no palco do Teatro
técnica teatral e em recurso financeiro Municipal do Rio de Janeiro, onde antes
para enfrentar as inevitáveis despesas nunca pisara um negro como intérprete
com cenários, figurinos, maquinistas, ou como público, e numa interpretação
eletricistas, contra-regra. Encontramos inesquecível viveu o trágico Brutus Jones
em Aguinaldo de Oliveira Camargo a de O’Neill. Na sua unanimidade, a crítica
força dramática capaz de dimensionar saudou entusiasticamente o aparecimento
a complexidade psicológica de Brutus do Teatro Experimental do Negro e do
Jones. Ricardo Werneck de Aguiar nos grande ator negro Aguinaldo Camargo,
ofereceu uma excelente tradução. Os comparando-o em estatura dramática a
mais belos e menos onerosos cenários Paul Robeson, que também desempenhou
que poderíamos pretender foram criados o mesmo personagem nos Estados Unidos.
pelo pintor Enrico Bianco, os quais se Henrique Pongetti, cronista de O Globo,
tornaram clássicos no teatro brasileiro. A registrou: “Os negros do Brasil – e os
colaboração desses dois amigos brancos brancos também – possuem agora um
do teatro negro iniciou uma tradição que grande ator dramático: Aguinaldo de Oli-
depois se consolidaria com a ação soli- veira Camargo. Um antiescolar, rústico,
dária de muitos outros amigos do TEN, instintivo grande ator.”

* “O senhor tem a minha permissão para encenar O imperador Jones isento de qualquer direito
autoral, e quero desejar ao senhor todo o sucesso que espera com o seu Teatro Experimental do
Negro. Conheço perfeitamente as condições que descreve sobre o teatro brasileiro. Nós tínhamos
exatamente as mesmas condições em nosso teatro antes de O imperador Jones ser encenado em
Nova York em 1920 – papéis de qualquer destaque eram sempre representados por atores brancos
pintados de preto. (Isso, naturalmente, não se aplica às comédias musicadas ou ao vaudeville, onde
uns poucos negros conseguiram grande sucesso.) Depois que O imperador Jones, representado
primeiramente por Charles Gilpin e mais tarde por Paul Robeson, fez um grande sucesso, o caminho
estava aberto para o negro representar dramas sérios em nosso teatro. O principal impedimento
agora é a falta de peças, mas creio que logo aparecerão dramaturgos negros de real mérito para
suprir essa lacuna.”
235

Fernando Araújo (Jeff) e Aguinaldo Camargo (Brutus Jones) em O imperador Jones, peça de Eugene
O’Neill. Produção de estréia do TEN no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 8 de maio de 1945.
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 237

Um clima de pessimismo e descren- Infelizmente, as circunstâncias não


ça dos meios culturais convencionais permitiriam a repetição daquele espetá-
havia cercado a estréia do TEN, expresso culo, pois o palco do Teatro Municipal
nessas palavras do escritor Ascendino havia sido concedido ao TEN por uma
Leite: única noite, e assim mesmo por interven-
ção direta do presidente Getúlio Vargas,
num gesto no mínimo insólito para os
Nossa surpresa foi tanto maior quan- meios culturais da sociedade carioca.
to as dúvidas que alimentávamos
Conquistara o TEN sua primeira
relativamente à escolha do repertório
vitória. Encerrada estava a fase do negro
que começava, precisamente, por
sinônimo de palhaçada na cena brasileira.
incluir um autor da força e da expres-
Um ator fabuloso como Grande Otelo
são de um O’Neill. Augurávamos
poderia de agora em diante continuar
para o Teatro Experimental do Negro
extravasando sua comicidade. Mas já
um fracasso redondo. E, no mínimo,
se sabia que outros caminhos estavam
formulávamos censuras à audácia
abertos e que só a cegueira ou a má
com que esse grupo de intérpretes,
vontade dos empresários continuaria
quase todos desconhecidos, ousava
não permitindo que as platéias conhe-
enfrentar um público que já come-
cessem do que, muito acima da graça
çava a ver no teatro mais do que um
repetida, seria capaz o talento de atores
divertimento, uma forma mais direta
negros como Grande Otelo e Aguinaldo
de penetração no centro da vida e
Camargo. Como diria mais tarde Roger
da natureza humana. Aguinaldo
Bastide, o TEN não era a catarse que
Camargo em O imperador Jones foi,
se exprime e se realiza no riso, já que o
no entanto, uma revelação.
problema é infinitamente mais trágico:
o do esmagamento da cultura negra pela
R. Magalhães Júnior traduziu o de- cultura dominante.
sejo dos que não assistiram:
A primeira vitória abriu passagem
à responsabilidade do segundo lance: a
O espetáculo de estréia do Teatro criação de peças dramáticas brasileiras
do Negro merecia, na verdade, ser para o artista negro, ultrapassando o pri-
repetido, porque foi um espetáculo marismo repetitivo do folclore, dos autos
notável. E notável por vários títulos. e folguedos remanescentes do período
Pela direção firme e segura com que escravocrata. Almejávamos uma litera-
foi conduzido. Pelos esplêndidos tura dramática focalizando as questões
e artísticos cenários sintéticos de mais profundas da vida afro-brasileira.
Enrico Bianco. E pela magistral in- Toda razão tinha o conselho de O’Neill.
terpretação de Aguinaldo de Oliveira Uma coisa é aquilo que o branco exprime
Camargo no papel do negro Jones. como sentimentos e dramas do negro;
238 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

outra coisa é o seu até então oculto co- da Silva, O filho pródigo foi considerada
ração, isto é, o negro desde dentro. A por alguns críticos como a maior peça do
experiência de ser negro num mundo ano teatral. Em seguida, o TEN montou
branco é algo intransferível. Aruanda, outro texto especialmente
Enquanto não dispunha dessa li- criado para ele, escrito por Joaquim
teratura dramática específica, o TEN Ribeiro. Trabalhando elementos folcló-
continuou trabalhando. Ao Imperador ricos da Bahia, o autor expõe de forma
Jones seguiram-se outros textos de tosca a ambivalência psicológica de uma
O’Neill, a começar por Todos os filhos mestiça e a convivência dos deuses afro-
de Deus têm asas, encenado em 1946 -brasileiros com os mortais.
no Teatro Fênix, com cenários de Mário Nossa encenação compôs um es-
de Murtas. Trocando de lugar comigo, petáculo integrado organicamente, com
Aguinaldo Camargo assumiu, dessa vez, dança, canto, gesto, poesia dramática,
a direção dos intérpretes Ruth de Souza, fundidos e coesos harmonicamente.
Abdias do Nascimento, Ilena Teixeira e Usamos música de Gentil Puget e pon-
José Medeiros. Cristiano Machado, do tos autênticos recolhidos dos terreiros
Vanguarda, comentou na sua crítica que de candomblé. O resultado mereceu do
“Não basta apenas representar O’Neill; poeta Tasso da Silveira este julgamento:
o autor de Todos os filhos de Deus têm “É um misto curioso de tragédia, opereta
asas exige que o saibam representar. e ballet. O texto propriamente dito cons-
Foi o que aconteceu no espetáculo a que titui, por assim dizer, simples esboço:
assistimos no Fênix”. Mais tarde, o TEN umas poucas situações esquemáticas,
ainda produziu, de Eugene O’Neill, O uns poucos diálogos cortados, e o resto é
moleque sonhador e Onde está marcada música, dança e canto. Acontece, porém,
a cruz. que com tudo isso, Aruanda resulta numa
realização magnífica de poesia bárbara”.
Literatura dramática negro-brasileira
Quando terminou a temporada de
Aruanda, as dezenas de tamboristas,
No seguinte ano de 1947, houve,
cantores e dançarinos organizaram outro
afinal, o encontro com o primeiro texto
grupo para atuar especificamente nesse
brasileiro escrito especialmente para o
campo. Depois de usar vários nomes,
TEN: O filho pródigo, um drama poético
esse conjunto se tornaria famoso e co-
de Lúcio Cardoso, inspirado na parábola
nhecido como a Brasiliana, havendo
bíblica. Com cenário de Santa Rosa, o
percorrido quase toda a Europa durante
artista que renovou a arte cenográfica
cerca de 10 anos consecutivos.
do teatro brasileiro, e interpretação
principal de Aguinaldo Camargo, Ruth Há um autor que divide o Teatro
de Souza, José Maria Monteiro, Abdias Brasileiro em duas fases: a antiga e a
do Nascimento, Haroldo Costa e Roney moderna. É Nelson Rodrigues. Dele é
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 239

Anjo negro, peça que focaliza sua trama que depois do espetáculo o Ismael, fora
no enlace matrimonial de um preto com do palco e na companhia de outros ne-
uma branca. Ismael e Virgínia se erguem gros, saísse pelas ruas caçando brancas
como duas ilhas, cada qual fechada e para violar...
implacável no seu ódio. A cor produz a Dir-se-á uma anedota. Entretanto
anafilaxia que deflagra a violenta ação não existe nem ironia nem humorismo.
dramática e reduz os esposos à condi- É fato que, aliás, se repetiu por ocasião
ção de inimigos irremediáveis. Virgínia da montagem de Pedro Mico, de Antonio
assassina os filhinhos pretos; Ismael Callado. A imprensa refletiu a apreensão
cega a filha branca. É a lei de talião co- de certas classes, achando possível a
brando vida por vida, crime por crime. população do morro entender a repre-
São montros gerados pelo racismo que sentação em termos de conselho à ação
tem nessa obra sua mais bela e terrível direta. Os favelados, a imensa maioria
condenação. Ismael responde: “ Sempre de negros, desceriam dos morros para
tive ódio de ser negro”, quando a Tia o agressões à moda Pedro Mico que, por
adverte sobre a mulher: “ Traiu você para seu turno, deseja reeditar os feitos de
ter um filho branco”. Prisioneira das Zumbi dos Palmares. Antonio Callado
muralhas construídas pelo marido para realizou obra da maior importância,
afastá-la do desejo de outros homens, sacrificada na montagem do Teatro Na-
Virgínia ameaça: “ Compreendi que o cional de Comédia (órgão do Ministério
filho branco viria para me vingar. De ti, da Educação e Cultura) pela caricatu-
me vingar de ti e de todos os negros”. ral figura betuminosa do Pedro Mico,
Infelizmente, a encenação de Anjo ressalvando-se a excelente categoria do
negro (1946) não correspondeu à auten- ator Milton Morais.
ticidade criadora de Nelson Rodrigues. Recentemente, em 1994, houve
O diretor Ziembinski adotou o critério de uma encenação de Anjo negro livre dos
supervalorizar esteticamente o espetácu- ditames da censura institucionalizada e
lo, em prejuízo do conteúdo racial. Foi dotada com a feliz participação de atores
usada a condenável solução de brochar e atrizes negros como Léa Garcia, Jacyra
um branco de preto para viver no palco Silva, Ruth de Souza, Antonio Pompeo.
o Ismael. Tal fato estava intimamente Entretanto mais uma vez o conteúdo da
ligado a outro: Anjo negro teve muita peça foi preterido, agora em favor da
complicação com a censura. Escolhida dimensão erótico-sensual. Houve até
a peça para figurar no repertório de tem- cortes de texto na tentativa de esvaziar
porada oficial do Teatro Municipal do a questão racial, verdadeiro âmago da
Rio de Janeiro, impuseram as autoridades obra, abordada pelo gênio de Nelson de
uma condição: que o papel principal de forma tão contundente que dificilmente
Anjo negro fosse desempenhado por um a sociedade brasileira, até hoje, consegue
branco pintado. Temiam, naturalmente, compreendê-la.
240 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Em 1948, José de Morais Pinho es- de espetáculo dramático que o TEN se


creveu para o TEN Filhos de santo, peça propunha apresentar ao Primeiro Festival
ambientada na sua cidade do Recife. O Mundial das Artes Negras, realizado em
texto entrelaça questões de misticismo e Dacar no ano de 1966. Com a conquista
exploradores de Xangô (o candomblé da da independência do Senegal, Dacar
região) com a história de trabalhadores havia se tornado a capital da Négritude,
grevistas perseguidos pela polícia. Pai- movimento político-estético protago-
xão mórbida de um branco pela negra nizado pelos poetas antilhanos Aimée
Lindalva, que se torna tuberculosa pelo Césaire e Léon Damas e pelo presidente
trabalho na fábrica. Sério, bem cons- do Senegal, poeta Léopold Senghor.
truído, Filhos de santo subiu à cena no
A Négritude proporcionara ao movi-
Teatro Regina (Rio de Janeiro, 1949).
mento de libertação dos países africanos
Medéia sugeriu a Agostinho Olavo grande impulso histórico e fonte de ins-
sua obra Além do rio (1957). O autor ape- piração. Ao mesmo tempo, influenciou
nas se apóia na espinha dorsal da fábula profundamente a busca de caminhos de
grega e produz peça original. Conta a libertação dos povos de origem africana
história de uma rainha africana escraviza- em todas as Américas, prisioneiros de um
da e trazida para o Brasil do século XVII. racismo cruel de múltiplas dimensões.
Feita amante do senhor branco, ela trai No Brasil, enfrentando o tabu da “de-
sua gente, é desprezada pelos ex-súditos mocracia racial”, o Teatro Experimental
escravizados. Chega o dia de o amante do Negro era a única voz a encampar
querer um lar, um casamento normal com consistentemente a linguagem e a pos-
uma esposa branca, de posição social. tura política da Négritude, no sentido de
Rompe sua ligação com Medéia, mas priorizar a valorização da personalidade
quer levar os filhos. A rainha mata seus e cultura específicas ao negro como ca-
próprios filhos, no rio, e retorna a seu minho de combate ao racismo. Por isso,
povo, convocando: - “Vozes, ó vozes da o TEN ganhou dos porta-vozes da cultura
raça, ó minhas vozes, onde estão? Por convencional brasileira o rótulo de pro-
que se calam agora? A negra largou o motor de um suposto racismo às avessas,
branco. Medéia cospe este nome e Jinga fenômeno que invariavel e erroneamente
volta à sua raça, para de novo reinar!” A associavam ao discurso da Négritude.
dinâmica visual do espetáculo baseava-se
Nessas circunstâncias, era compre-
nos cantos e danças folclóricas – maraca-
ensível e legítima a nossa ânsia em par-
tu, candomblé – complementadas pelos
ticipar do Festival, conhecer de perto o
pregões dos vendedores de flores, frutos
Senegal e os protagonistas da Négritude,
e pássaros.
e trocar experiências com os colegas no
A fusão dos elementos trágicos, exterior, engajados que estávamos na
plásticos e poéticos resultaria numa mesma luta. Nada mais natural, aliás,
experiência de Négritude em termos do que nossa presença num Festival cujo
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 241

primordial sentido era o de marcar o mo- das letras brasileiras e diretor da revista
mento da conquista da independência dos literária Verde de Cataguazes, escreveu
países africanos com uma homenagem para o Teatro Experimental do Negro, em
ao papel de sua cultura, mundialmente 1946, o seu Auto da noiva, Farsa em um
difundida, como catalisadora do processo ato (prólogo e quatro quadros). Delicio-
libertário – pois era exatamente nesse sa paródia crítica da perversa ideologia
sentido que o TEN trabalhava a cultura da “democracia racial” brasileira, o Auto
negra no Brasil. da noiva não chegou a ser encenado no
Entretanto o Festival era um acon- Brasil, embora o TEN tenha trabalhado
tecimento patrocinado pela UNESCO, o texto em várias leituras e ensaios. Foi
organismo intergovernamental, e as ges- apenas em 1974, na distante cidade norte-
tões para a participação das delegações -americana de Bloomington, Indiana, que
eram feitas por meio de canais oficiais. a universidade daquele Estado produziu
O Governo brasileiro desmereceu o a peça em português. Tive a alegria de
trabalho do TEN enquanto manifesta- assistir à encenação, levada com muita
ção de arte negra digna de patrocínio competência pelos alunos do Departa-
para participar do evento. Historiando o mento de Línguas e Letras Românicas.
episódio da intolerância racial do nosso Ironides Rodrigues, literato auto-
Ministério do Exterior, omitindo o TEN didata e homem culto da comunidade
da delegação brasileira, escrevemos uma afro-brasileira, escreveu uma Sinfonia da
“Carta Aberta” dirigida aos participantes favela, encenada por um grupo amador
do Festival, à UNESCO, e ao Governo carioca na década de 1950. Também nos
da República do Senegal, publicada em deu sua versão de Orfeu negro.
1966 nas revistas Présence Africaine
De minha autoria, surge em 1952
(Paris/Dacar, Vol. 30, no. 58) e Tempo
a Rapsódia negra, espetáculo que lan-
Brasileiro (Rio de Janeiro, Ano IV, nos.
çou duas artistas de grande destaque:
9/10) . Sob as mais falsas alegações, o
a primeira dançarina do espetáculo foi
TEN foi excluído e Além do rio ficou
a coreógrafa Mercedes Batista, recém-
aguardando a oportunidade de sua reve-
chegada de seus estudos em Nova York
lação no palco.
com Katherine Dunham, e a atriz Léa
Outra peça inspirada na atuação Garcia, cuja arte de interpretação conti-
do TEN foi O castigo de Oxalá, escrita nua a enriquecer a vida cultural do País.
em 1961 por um dos poucos autores
Em 1951, já havia escrito o mistério
dramáticos afro-brasileiros da época,
negro Sortilégio, cuja encenação fora
Romeu Crusoé, e encenada pelo grupo
proibida pela censura. Durante vários
amadorista Os Peregrinos no Teatro da
anos, tentamos a liberação da obra,
Escola Martins Pena.
incriminada, entre outras coisas, de
O escritor afro-brasileiro Rosário imoralidade. Finalmente, em 1957, o
Fusco, conhecido como o enfant terrible TEN apresentou Sortilégio nos Teatros
242 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Municipais do Rio de Janeiro e de São Uma segunda versão do Sortilégio


Paulo, com direção de Léo Jusi, cenário resultou de minha estada de um ano na
de Enrico Bianco e música de Abigail Nigéria, na cidade sagrada de Ile-Ife
Moura, regente da Orquestra Afro- (1976-77). Introduzindo à peça novos
-Brasileira. O mistério tem seu nervo personagens e cenários, aprofundamos a
vital nas relações raciais brasileiras e no dimensão da cultura africana fundamen-
choque entre a cultura e a identidade de tal a seu desenvolvimento. A dimensão
origem africana e aquelas da sociedade histórica também mereceu maior desta-
dominante eurocentrista. A peça propõe que na segunda versão, com referência
uma estética afrocentrada como parte específica à saga de Zumbi dos Palmares.
essencial na composição de um espetá- Em inglês, estão publicadas as duas
culo genuinamente brasileiro. A respeito versões de Sortilégio, em traduções de
de Sortilégio, após falar no Bailado dos Peter Lowndes (primeira versão, editada
Orixás e dos Mortos, nas cantigas das pela Third World Press, de Chicago, em
filhas-de-santo, no realismo da questão 1976) e de Elisa Larkin Nascimento (na
racial misturado à poesia da macumba antologia Crosswinds, organizado por
carioca, o professor Roger Bastide co- William Branch e editada pela Indiana
menta: University Press, 1993).
Do ponto de vista das idéias, é o Quase todas as peças mencionadas
drama do negro, marginal entre duas estão incluídas em minha antologia de
culturas, a latina e a africana (como teatro negro-brasileiro, intitulada Dra-
entre as duas mulheres, infelizmente mas para negros e prólogo para brancos,
igualmente prostitutas); pode-se edição do Teatro Experimental do Negro
discutir a solução, a volta à África. (1961); e uma seleção de críticas e textos
A salvação é na mecânica ligada a sobre o TEN está reunida no volume
uma mística africana, e o Brasil pode Teatro Experimental do Negro – Teste-
trazer esta mensagem de fraternidade munhos, editado em 1966 pela GRD.
cultural ao mundo. Mas, do ponto
de vista teatral, esta volta à África é O Teatro Negro como agente de ação
muito patética; através da bebida de social
Exu e da loucura, todo um mundo
volta das sombras da alma. O TEN visava a estabelecer o teatro,
espelho e resumo da peripécia existencial
Acrescenta Nelson Rodrigues a res- humana, como um fórum de idéias, de-
peito de Sortilégio: “Na sua firme e har- bates, propostas e ação visando à trans-
moniosa estrutura dramática, na sua poesia formação das estruturas de dominação,
violenta, na sua dramaticidade ininterrup- opressão e exploração raciais implícitas
ta, ela constitui uma grande experiência na sociedade brasileira dominante, nos
estética e vital para o espectador”. campos de sua cultura, economia, edu-
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 243

cação, política, meios de comunicação, entre lideranças e responsáveis pela for-


justiça, administração pública, empresas mação de consciências e opinião pública.
particulares, vida social e assim por dian- Sobretudo, necessitava-se da articulação
te. Um teatro que ajudasse a construir um de ações em favor da coletividade afro-
Brasil melhor, efetivamente justo e de- -brasileira discriminada no mercado de
mocrático, onde todas as raças e culturas trabalho, habitação, acesso à educação e
fossem respeitadas em suas diferenças, saúde, remuneração, enfim, em todos os
mas iguais em direitos e oportunidades. aspectos da vida na sociedade.
Dentro desse objetivo, o TEN pro- Nesse sentido, o TEN organizou o
punha-se combater o racismo, que em Comitê Democrático Afro-Brasileiro,
nenhum outro aspecto da vida brasileira para atuar em nível político, reivindican-
revela tão ostensivamente sua impostura do medidas específicas para melhorar a
como no teatro, na televisão e no sistema qualidade de vida de nossa gente. O ob-
educativo, verdadeiros bastiões da dis- jetivo imediato do Comitê era o de inserir
criminação racial à moda brasileira. No as aspirações específicas da coletividade
exterior, a elite brasileira propagandeia afro-brasileira no processo de construção
uma imagem tão distorcida da nossa re- da nova democracia que se articulava
alidade étnica que podemos classificá-la após a queda do Estado Novo. O Comitê
como uma radical deformação. Essa elite era composto de um núcleo de negros
se auto-identifica exclusivamente como ativistas a que se agregaram líderes es-
branco-européia. Em contrapartida, tudantis, e seu local de reunião era uma
escamoteia o trabalho e a contribuição sala na sede da UNE. O Comitê passou
intelectual e cultural do negro ou invoca um tempo inicial lutando pela anistia aos
nossas “origens africanas” apenas na me- presos políticos (na sua maioria brancos).
dida de interesses imediatos, sem entre- Entretanto, quando chegou a hora de
tanto modificar sua face primeiramente tratar das preocupações específicas à co-
européia na representação do país no munidade negra, o projeto foi vítima da
mundo todo. Da mesma forma, a cultura patrulha ideológica de supostos aliados
“brasileira” articulada pela mesma elite que acabou desarticulando o Comitê. In-
eurocentrista invoca da boca para fora a vocaram o velho chavão de que o negro,
“contribuição cultural africana”, enquan- lutando contra o racismo, viria a dividir
to mantém inabalável a premência de sua a classe operária...
identificação e aspiração aos valores cul-
O Teatro Experimental do Negro
turais europeus e/ou norte-americanos.
não desanimou. Para concretizar seu
Por tudo isso, era urgente uma ação projeto de interferir, em prol da comu-
simultânea, dentro e fora do teatro, com nidade de origem africana, no processo
vistas à mudança da mentalidade e do de elaboração da nova Constituição do
comportamento dos artistas, autores, País, organizou a Convenção Nacional
diretores e empresários, mas também do Negro (São Paulo, 1945, e Rio, 1946).
244 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Resumindo na sua Declaração Final o O jornal Quilombo: Vida, Proble-


anseio e as aspirações coletivas do grupo mas e Aspirações do Negro divulgou
negro, a Convenção encaminhou à Cons- os trabalhos do TEN, em todos os seus
tituinte de 1946 (por intermédio do sena- campos de ação, entre 1948 e 1951. O
dor Hamilton Nogueira) sua proposta de jornal trazia reportagens, entrevistas, e
inserir a discriminação racial como crime matérias sobre assuntos de interesse da
de lesa-pátria, com uma série de medi- comunidade. A precariedade dos recursos
das práticas em prol de sua eliminação. financeiros do TEN, e do poder aquisitivo
Pouco conhecidos são esses anteceden- de seu público, não lhe permitiu uma
tes da lei antidiscriminatória que ficou permanência maior.
conhecida, posteriormente, como Lei
Em 1968, o TEN abriu outra frente
Afonso Arinos, e cujos termos ficaram
de ação, quando lançou em exposição no
muito aquém do previsto no projeto de
Museu da Imagem e do Som a primeira
emenda constitucional patrocinado pela
coleção de seu Museu de Arte Negra.
Convenção.
Interrompido o projeto em razão da
Realizou ainda o TEN o histórico I perseguição política do regime militar,
Congresso do Negro Brasileiro, no Rio o Teatro continuou em cena, já em nível
de Janeiro em 1950, cujo documentário internacional, mediante a atuação de seu
está publicado no livro O negro revolta- fundador, exilado, denunciando o racis-
do (segunda edição da Nova Fronteira, mo brasileiro em vários fóruns do mundo
1982). A fim de atingir a alienação africano, da Europa, das Américas e dos
estética da sociedade convencional, um Estados Unidos. Mas isso é outra histó-
Concurso do Cristo Negro foi realizado ria.
sob a responsabilidade do sociólogo
Guerreiro Ramos, no Rio de Janeiro, em Conclusão
1955. Os concursos de beleza Rainha das
Mulatas e Boneca de Pixe foram conce- Fiel à sua orientação pragmática e
bidos como instrumentos pedagógicos dinâmica, o TEN evitou sempre adquirir
buscando realçar o tipo de beleza da a forma anquilosada e imobilista de uma
mulher afro-brasileira e educar o gosto instituição acadêmica. A estabilidade bu-
estético popular, pervertido pela pressão rocrática não constituía o seu alvo. O TEN
e consagração exclusiva de padrões bran- atuou sem descanso como um fermento
cos de beleza. O Instituto Nacional do provocativo, uma aventura da experimen-
Negro, a cargo do sociólogo Guerreiro tação criativa, propondo caminhos inéditos
Ramos, realizava nos seus Seminários ao futuro do negro, ao desenvolvimento
de Grupoterapia um trabalho pioneiro de da cultura brasileira. Para atingir esses
psicodrama, visando a desenvolver uma objetivos, o TEN se desdobrava em várias
terapia para a consciência dilacerada do frentes: tanto denunciava as formas de
negro vitimado pelo racismo. racismo sutis e ostensivas como resistia à
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 245

opressão cultural da brancura; procurou e social da comunidade afro-brasileira.


instalar mecanismos de apoio psicológico Processo que está na sua etapa inicial,
para que o negro pudesse dar um salto convocando a conjugação do esforço co-
qualitativo para além do complexo de letivo da presente e das futuras gerações
inferioridade a que o submetia o complexo afro-brasileiras.
de superioridade da sociedade que o con-
dicionava. Foi assim que o TEN instaurou
o processo dessa revisão de conceitos e * Este texto foi escrito com a colaboração de Elisa
atitudes visando à libertação espiritual Larkin Nascimento, a partir de outros artigos do autor.
247

Orlando Macedo, Abdias do Nascimento e Léa Garcia em Onde está marcada a cruz, de Eugene
O’Neill. Teatro Dulcina, Rio de Janeiro, 1954.
Esta introdução foi feita para a versão em
inglês da antologia Dramas para negros e
prólogo para brancos (Rio de Janeiro: Teatro
Experimental do Negro, 1961), organizada por
Abdias Nascimento.

Dramas para É especialmente importante que o


negros público do mundo de fala inglesa venha
a conhecer, por meio da tradução, sete
e prólogo para peças que foram reunidadas pelo Teatro
Experimental do Negro (TEN) no Rio
brancos: de Janeiro. E que ele, o público, venha
a comparar a mensagem desse teatro
uma introdução brasileiro com aquela que conhecemos
do livro, recentemente publicado pela
Columbia University Press, Negro
Playwrights in the American Theatre
(Autores negros no teatro americano).
As peças aqui reunidas não são
recentes. Elas transmitem uma situação
social – e certa situação artística – que re-
flete o fim da guerra e o imediato período
pós-guerra. E o começo de certa situação
Roger Bastide*
social. O negro brasileiro acorda do lon-
250 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

go sono em que estava submergido desde Entretanto aqui precisamos ser atentos:
a Abolição, se conscientiza enfim de si não é exatamente como arma de combate
mesmo, como autocriador de cultura, que devemos falar corretamente dessa
mas não chega a se libertar da ideologia negritude, mas como uma reivindicação
dominante que lhe impõe o branco para construtiva – o negro quer ser totalmente
melhor assegurar seu domínio: aquela do brasileiro e continuar sendo negro, sem
progressivo embranquecimento ou aria- ser obrigado a “mulatizar-se”.
nização da população. O negro certamen- Sem embargo, aqui devemos exami-
te pode subir na sociedade, mas somente nar outro aspecto, desta vez não negativo,
destruindo-se como negro, dissolvendo a mas positivo, da sociedade brasileira, que
“mancha” de sua cor por meio da lei pela denominamos sua “democracia racial” e
qual ele se metamorfoseará num mulato que torna possível ao branco engajar-se
cada vez mais claro até que finalmente na mesma luta com os negros. Entre as
seja aborvido pela massa dos brancos ou sete peças aqui reunidas, somente duas
quase-brancos. Esse processo se torna são escritas por autores negros. Os cinco
outra forma de autodestruição por via da autores brancos dessa antologia se jun-
assimilação dos valores europeus, que tam a Abdias Nascimento e Guerreiro
podem abrir-lhe a porta social, em vez da Ramos, teórico e terapeuta do TEN, na
porta da cozinha; fazendo dele um “negro mesma tarefa de celebração do negro
de alma branca”, isto é, cortando-lhe as que continua negro. Uma colaboração
raízes, convertendo-o num ser artificial fraterna de que só podemos nos orgulhar.
ou numa mera convenção. Entretanto o leitor será levado, mesmo
Esmagado por essa ideologia que o assim, a observar certas coisas. As pe-
obriga a se suicidar como negro para vir ças dos autores brancos não se colocam
a ser brasileiro, o negro não tem outra no mesmo plano daquelas dos autores
saída que se entregar ao complexo de negros. É como se os brancos, apesar de
inferioridade que lhe possibilita evitar sua inegável benevolência, não conse-
qualquer choque com o branco, social- guissem unir-se totalmente com o negro
mente, isolando-se; esteticamente, confi- na sua obra criativa – como se o humanis-
nando-se ao único papel que o branco lhe mo, que é o fundamento da democracia
destinou, o de artista de diversão pública. racial, criasse uma última barreira a ser
O Teatro Experimental do Negro (TEN) ultrapassada entre as raças.
atuava como uma importante catarse O que realmente caracteriza as peças
contra esse complexo de inferioridade, dos brancos – O filho pródigo (Lúcio
tanto no domínio da vida social como Cardoso) e Além do rio (Agostinho Ola-
no da arte, conforme Guerreiro Ramos vo) –, como também a peça de Vinicius
tão bem demonstrava. O negro surge de Moraes que inspirou o célebre filme
no palco, como autor e como ator, com Orfeu negro, e que devemos incluir
seus próprios valores. Sua negritude. nesta lista, é sem dúvida a valorização
Dramas para negros e prólogo para brancos
Roger Bastide 251

do negro, mas por intermédio daquilo que tempo a privá-lo do essencial, isto é,
poderíamos chamar de uma mitologia jun- do drama de seu cotidiano, fazendo-o
guiana. Certamente, o negro é valorizado; retornar ao seu exotismo, enfim, vendo
ele é Orfeu, Medéia, o Filho Pródigo, ele na sua negritude apenas o seu aspecto
reencontra na profundeza de seu incons- espetacular e não a sua autenticidade?
ciente coletivo os heróis gregos e bíblicos; Parece-me que Anjo negro, de Nelson
mas os arquétipos que ele expressa são os Rodrigues, é, entre todas as peças escritas
da humanidade em comum. Ele está aqui por brancos, a que mais profundamente
como homem e apenas na medida em que penetra na denúncia dessa ideologia que
seu inconsciente se integra na mitologia criticamos por ser nada menos que uma
universal. Podemos então perguntar se, forma hipócrita de genocídio.
nessa ideologia estética, ainda não persiste As duas peças de autores negros
algo daquela ideologia de arianização encontradas nesta coletânea produzem
da qual não podemos nos livrar – se não outros efeitos. E mesmo quando, como
conseguimos alcançar o heroísmo a não acontece em Sortilégio (Abdias Nasci-
ser colocando entre parênteses a cor da mento), os deuses africanos descem para
pele? o palco, não o fazem para representar
É verdade que as outras peças de suas vidas míticas por meio do rito; eles
autores brancos representam um passo convertem-se na expressão de tendências
adiante, procurando uma mitologia negra profundas do povo afro-brasileiro, situado
que escape à universalidade do arquétipo num contexto social bem determinado. A
para especificar uma raça ou uma cultura. liturgia exótica dá lugar, então, à proble-
A história de Oxalá (Zora Seljan) é um mática do negro na sociedade de brancos.
mito nagô que se preservou no Brasil, no O primeiro desses autores é Rosário Fus-
interior dos candomblés. Aruanda (Joa- co. Seu Auto da noiva retoma a ideologia
quim Ribeiro) é um mito banto-caboclo do embranquecimento, devolvendo-a
que cria homens de hoje dominados pelos contra o branco, que a criou no seu próprio
deuses africanos, os senhores de seus interesse depois da supressão do negro
destinos. ao trabalho servil, por meio de uma sábia
estratégia humorística.
Evidentemente, o caminho mais fácil
para a valorização do negro brasileiro é Seu coro de mulheres, de uma cena
por meio da transformação dos ritos e para a outra, canta:
cerimônias afro-brasileiros em teatro, Alveja, negra, limpa, negro,
assim como o teatro grego nasceu do en-
contro entre o culto de Dionísio e o culto Lava, negra:
dos heróis eponímicos. Mas será o cami- – seu destino é clarear.
nho mais fácil inevitavelmente o melhor?
Seu destino é fazer branco
Valorizando o negro como negro dessa
forma, não nos arriscaremos ao mesmo Aquilo que o branco sujar.
252 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Essa é a mais bela inversão do em- herói de Abdias – o elogio do negro mau,
branquecimento que conheço. Porque que mata e violenta as brancas, contrastado
é o branco que fica negro, que não faz com o negro Pai João, castrado pela bon-
outra coisa senão sujar, que torna preto dade pragmática do branco – e a descoberta
tudo que toca; e o negro, incansavel- da liberdade e da autenticidade por meio
mente, devolve tudo aquilo que o branco da recusa. Mas Sortilégio agrega àquela
sujou à sua pureza primitiva, sua bran- do Filho nativo outra dimensão: o enrai-
cura alvacenta, sua beleza autêntica, zamento na herança africana por via da
aquela beleza que o branco vem sempre macumba carioca, que livra essa revolta
manchando. do absurdo de ser nada mais que uma
resposta ao desafio do branco – e que lhe
Com seu grito, sem levantar a voz, permite concluir com uma mensagem,
sem se esconder atrás de uma filosofia num discurso dos deuses à assembléia
revolucionária qualquer como o marxismo dos homens reunidos.
– Auto da noiva é uma farsa –, Rosário
Fusco cria, a partir da política sistemática A crítica literária considera O filho
do branco, um bumerangue que se vira nativo uma etapa na evolução do pen-
contra seu criador para abençoar sua samento norte-afro-americano. Porém,
morte. apenas uma etapa, pois o romance propõe
uma pergunta que os negros nos Estados
Em relação à peça de Abdias Nasci- Unidos, privados de sua própria cultura,
mento, Sortilégio, na minha opinião ela não poderiam ainda responder; antes do
ocupa na literatura brasileira exatamente poder negro, eles precisavam criar uma
o mesmo lugar que ocupa O filho nativo cultura. Entretanto essa cultura negra
na literatura afro-norte-americana. Certas que os negros nos Estados Unidos irão
frases ecoam de um hemisfério para o parir nos Harlems ou nos guetos existe
outro, de Richard Wright para Abdias no Brasil, até mais autenticamente, des-
Nascimento, demonstrando a unidade de há muito tempo, o fruto americano
fundamental das Américas negras além da diáspora dos deuseus africanos na
da diversificação das ideologias, de situ- América do Sul. Qual será, então, o le-
açães políticas e das estratégias variáveis gado de Sortilégio? Não poderia, no fim
do branco: desta Introdução, deixar de colocar essa
questão. O que importa, enfim, não é
Agora me libertei. Para sempre. colocá-la. Importa a resposta. A resposta
Sou um negro liberto da bondade. que os autores negros do Brasil trarão ao
Liberto do medo. povo de que são os arautos.
Liberdade do medo, desse medo que Sortilégio não é uma conclusão. É
visita o filho nativo assim como visita o uma lâmina rotativa nascida do medo,
Dramas para negros e prólogo para brancos
Roger Bastide 253

que estabelece o crime como expressão


da revolta, da libertação, que é o caminho
da nova cultura afro-americana.

Paris, 1972

* Roger Bastide, sociólogo e crítico literário francês,


foi professor da USP entre 1937-1954, dedicando-se
ao estudo do folclore, da poesia afro-brasileira e das
relações raciais no Brasil. Entre suas obras publicadas
em língua portuguesa estão A poesia afro-brasileira
(1943) e Estudos afro-brasileiros, 3 vols. (1946, 1951,
1953). Este artigo foi traduzido do original francês para
o inglês por Erica Fritz e Elisa Larkin Nascimento; do
inglês para o português por Elisa Larkin Nascimento.
Este texto foi elaborado como contribuição
do autor ao curso Sankofa: Conscientiza-

Introdução à ção da Cultura Afro-Brasileira (Ipeafro/


UERJ, 1985-1987), no contexto do qual
literatura proferiu palestras sob o mesmo título.

afro-brasileira

Um pequeno histórico

O legado que o negro nos trouxe da


África está difundido em vários setores
de nossa cultura, como nos contos po-
pulares, semelhantes aos casos relatados
pelos griôs africanos, nos moldes dos
relatos de Didi, na Bahia, ou por meio do
cerimonial dos candomblés baianos ou
Ironides Rodrigues *
em lendas do nosso mais autêntico folclo-
256 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

re. Mas só no século XVII é que aparece e Sousa, natural de Cabo Frio. Com o
o escritor negro, expressando toda a sua Filho do pescador, em 1843, fundou o
angústia e reivindicando tudo aquilo a romance entre nós. Embora a preferência
que tinha direito. Um exemplo frisante da época fosse a do folhetim novelesco,
é a arquitetura revolucionária, plasmada foi com um romance de Teixeira, Maria
em pedra-sabão, em Vila Rica, Minas ou a menina roubada, que na nossa
Gerais, por um João Francisco Lisboa, o ficção apareceu pela primeira vez um
Aleijadinho, de obras artísticas em várias personagem negro atuando de forma
igrejas e dos 12 profetas de Congonhas. humana e dentro do contexto do livro.
Outro é a música sacra e até a modinha Enquanto Maria é heroína branca, Pedro
sestrosa do padre José Maurício: dois Mandigueiro é o vilão, que rouba a preta
gênios de nossa raça se realizando iso- Laura, e Pedro Pascoal é o preto simpá-
ladamente. O negro só deu o seu brado tico que protege Maria. Teixeira e Sousa
liberatório e de contestação com o baiano publicou seus livros num livreiro amigo,
Gregório de Matos Guerra, o Boca do que o protegeu enormemente: Paula
Inferno, criticando os lusos gatunos, sa- Brito, diretor da revista A Marmota, de
fados e plenos de luxúria de sua época. influência cultural no Rio de Janeiro im-
Embora voltasse sua poesia satírica para perial. Paula Brito era livreiro avançado,
atacar o crioléu e os mestiços do tempo: mulato que se preocupou com sua raça,
“Ser mulato / Ter sangue de carrapato / fundando o primeiro jornal que pugnava
Cheirar-lhe a roupa a mandongo / É cifra pelos problemas do negro: O Homem de
da perfeição / Milagres do Brasil são”. Cor, data auspiciosa de nossa negritude,
O negro pouco aparece na poesia pois que apareceu em 14 de setembro de
da Escola Arcádica mineira, do século 1833.
XVIII. A não ser episodicamente, como A negritude brasileira tem coisas
por exemplo em Manuel da Rosa Alva- curiosas: um Antônio Gonçalves Dias,
renga, que era mulato, mas não sentia a maranhense, apesar de sofrer na carne
sua raça em Glaura. Só em Domingos o preconceito de cor, só sentiu o drama
Caldas Barbosa o negro reponta, em seus do nosso índio em Marabá, canto do
versos fesceninos, lúbricos, de ampla Piaga ou I. Juca Pirama, escritos em
sexualidade de nossa raça em Viola de vernáculo castiço e clássico. Daí os fic-
Lereno, em que há lundus, modinhas, cionistas brancos deturparem à vontade a
feitas em tom popularesco e lascivo. Já é realidade trágica do negro brasileiro: José
o negro levando a nossa melodia popular de Alencar (O tronco do ipê e Demônio
até os paços reais de Portugal. familiar), Joaquim Manuel de Macedo
Antes, não tínhamos o romance. Esse (Vítimas algozes e A moreninha). Mas
gênero só nos foi trazido ao Brasil por sempre houve um gênio com sangue ne-
um mulato de muito talento e engenho gro nas veias para defender a raça contra
inventivo: Antônio Gonçalves Teixeira a interminável maldição de Cam: Antô-
Introdução à Literatura afro-brasileira
Ironides Rodrigues 257

nio de Castro Alves, baiano condoreiro, a sociogenia e Questões e problemas,


vate iluminado de “O navio negreiro” esta última prefaciada por Sílvio Rome-
e “Vozes d’África” (“Negras mulheres, ro. Tobias Barreto de Menezes, grande
suspendendo as tetas / Magras crianças, cultor da filosofia e do direito, renovando
cujas bocas pretas / Rega o sangue das esses estudos entre nós, não se preocupou
mães”). com o negro de que proviera, mas fazia
ensaios sobre o direito e a filosofia ger-
O poeta Léon G. Damas, da Guiana
mânicas de Von Hering, Kant, Spinoza,
Francesa, que junto de Aimé Cesaire
nos Estudos alemães. Ou quando nos deu
e Léopold Sédar Senghor constitui o
obras de valor social como Menores e
triunvirato da expansão da Negritude,
loucos e Ensaios e estudos de filosofia e
afirmou de uma feita que “o Brasil já
crítica. Grande amigo de Sílvio Rome-
tinha a sua Negritude antes mesmo que ro, polemista temível e mestre de várias
nós a estruturássemos”. Isso lá de 1935 a gerações, escrevia num estilo correto e
1949. Comprova essa afirmação de Léon cristalino.
Damas o fato de as lutas libertárias de
Zumbi dos Palmares remontarem ao pe- São quatro nomes respeitáveis de
ríodo instável do século XVII. Fato único nossa literatura negra: D. Silvério Gomes
entre os negros de todas as Américas, do Pimenta, negro de cultura enciclopédica,
século XVIII ao XIX, é onde a florescên- nome que era respeitado internacional-
cia de escritores negros é mais positiva. mente. Suas sobras refletem o negro, de
José do Patrocínio, orador gigantesco de que ele foi a maior figura em nosso clero.
toda a Abolição da Escravatura, jornalista Obras: Vida de D. Viçoso, O papa e a
de fôlego e que escrevia primorosamente, revolução, Pastorais e Peregrinação a
é autor de um romance contra a pena de Jerusalém. Foi abolicionista num jornal
morte em que o negro aparece com fundo de Mariana, O Bom Ladrão. Clássico no
escrever e profundo nas idéias expostas.
realismo: Mota Coqueiro, personagem
real do Segundo Reinado. Antônio An- Antônio Cândido Gonçalves Cres-
dré Rebouças, grande engenheiro de seu po, poeta afro-brasileiro que foi morar
tempo, pensador baiano que se exprimiu em Portugal, faz poesia de requintada
maravilhosamente em sua Autobiogra- beleza, em que descreve os folguedos
fia, descrição perfeita de todo o reinado e danças negras com muita veracidade
de D. Pedro II. Escrevia bem, sem o ran- e arte, como nos poemas “Na roça” ou
ço clássico de Antônio Gonçalves Dias “As velhas negras” (“As velhas negras,
e Machado de Assis. Figura de elevada coitadas, / Ao longe estão assentadas / No
moral, saber prodigioso e seleto, Tito batuque folgazão”). Poesias publicadas
Lívio de Castro, médico de muita cultura nos volumes Miniaturas e Noturnos. Um
e escritor primoroso, no tocante aos as- grande poeta da raça.
suntos de antropologia, com duas obras O caso de João da Cruz e Sousa é de
científicas de grande valor: A mulher e pura genialidade. Embora da escola dos
258 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

símbolos e das sugestões poéticas do Borba, Dom Casmurro ou Iaiá Garcia,


Simbolismo, nele vibra a rebeldia negra sendo que Memorial de Ayres olha os
contra todos os preconceitos dos racistas negros de uma fazenda com ternura e
brancos. Ânsias e musicalidade negra propondo até divisão de terras, para
em “Vilões que choram”, “Litania dos quando os escravos fossem libertados.
pobres”, “Pandemonium” (“Eis que te Romancista psicológico, de estilo ameno,
reconheço escravizada, / divina Mãe, na suave e clássico no escrever. Exprimia-se
dor / Acorrentada”), “Crianças negras”, como um escritor branco que não sentisse
sem falar de um conto seu contra a es- o mínimo de sangue negro correndo em
cravidão: “Consciência tranqüila”, que seu coração. É o patrono da Academia
o crítico Andrade Muricy acha o maior Brasileira de Letras, numa prova de sua
libelo escrito por um poeta brasileiro branquitude de inspiração, ficando à
contra o regime escravocrata. Obras margem e pouco se preocupando com
do ponto culminante de nossa poética: movimentos sociais do seu tempo, como
Faróis, Broquéis e Últimos sonetos. a Abolição e a República. Memórias
Bernardino da Costa Lopes, ou póstumas de Brás Cubas é romance seu
melhor, B. Lopes: poeta fluminense de muito citado. O conto “O caso da vara”
delicada imaginação, faz uma sensível reflete seu reacionarismo contra sua
reconstituição do meio rural onde viveu. própria raça.
Poeta lírico de grande expressão, em seus Diferente desse mulato discutido é
Cromos o negro camponês aparece com
Lima Barreto, carioca também, mas o
muito realismo e tocante poesia; Sinhá
maior e mais revolucionário de nossos
Flor, Dona Carmen e Pizicatos são belos
romancistas. Seu universo urbano são
livros simbolistas. Poesia representativa
os bêbados, os operários, os funcionários
de muito valor.
públicos decadentes, a mulher negra em
Neste panorama da literatura afro- face da discriminação social do tempo.
-brasileira, um grande poeta satírico, Queria com o negrismo fazer a história
que vem do Romantismo, impõe seu da raça negra em nossa literatura, desde
nome como gigantesco abolicionista e que fora arrancada e espoliada da África
poeta excelente, defensor dos cativos: pelos exploradores europeus. E ele cum-
Luís Gama, o Orfeu de Carapinha, com priu à risca esse propósito, com romances
suas Trovas burlescas, sem rivais no admiráveis, verdadeiras obras-primas,
gênero em nosso idioma (“E com jeito em que o negro aparece sem nenhuma
e proteções / Galgam altas posições! / deformação: Recordações do escrivão
Mas eu sempre vigiando / Nessa súcia Isaías Caminha, Clara dos Anjos, O
vou malhando”), vergastada tremenda triste fim de Policarpo Quaresma e o
contra os racistas da Paulicéia. impressionante A vida e morte de J. M.
O negro só aparece de forma ridícula Gonzaga de Sá. O negro aí reage à sua
em Machado de Assis, quer em Quincas condição humilhante e não é subalterno e
Introdução à Literatura afro-brasileira
Ironides Rodrigues 259

apático, como O mulato, de Aloísio Aze- orixás e candomblés em As religiões no


vedo, ou a serva branca, mas funcional Rio. Enquanto Nina Rodrigues estudava
ao abolicionismo branco de Bernardo o negro com as vistas negativas de La-
Guimarães, na Escrava Isaura. Ou a pouge, Novicowi ou Gumplowicz em O
humanidade compadecida de Adolfo Ca- animismo fetichista dos negros baianos
minha, quando olha a sublevação contra ou Os africanos no Brasil, Manuel
os maus-tratos da Marinha do marinheiro Querino, baiano de gênio, com mais
João Cândido, no Governo do marechal visão, nos estudava com fontes certas e
Hermes, em Bom crioulo, de 1910. É o de real penetração científica: A Bahia de
escritor branco, de modo paternalista, outrora, Costumes africanos no Brasil,
falando dos problemas de minha raça, Os homens de cor preta na história, O
como Coelho Neto evocando José do colono preto como fator da civilização
Patrocínio no belo romance A conquista. brasileira, etc. É um revolucionário
nestes estudos afro-brasileiros.
Por que considerar um Nilo Peça-
nha de nossa raça se ele, como político Teodoro Sampaio, cientista baiano,
influente, não pensava nela? Se escre- respeitado por seu saber e probidade in-
veu como um ariano as Impressões da telectual, foi deputado e, embora negro,
Europa? E se ele só foi presidente da escreveu mais sobre os índios, como
República após a morte de Afonso Pena? atesta O tupi na geografia nacional. Mas
Juliano Moreira, apesar de notável mé- nunca perdeu, com visão, o negro de seus
dico e até cientista negro, reconhecido estudos excelentes: O rio São Francisco
mundialmente nos estudos de neurologia, e a chapada Diamantina e História da
psiquiatria e medicina legal, algumas fundação da cidade do Salvador.
vezes escreveu sobre sua raça, embora,
Antes da Revolução Modernista, em
como Tobias Barreto, fosse devotado à
1922, alguns negros de talento apare-
cultura germânica. Admirando autores
ceram. Castro Lopes só descobrindo
racistas, como Afrânio Peixoto e Nina
neologismos ou termos gregos e latinos
Rodrigues, felizmente foi sensível para
para o idioma, como “rodopédio”, em
estudar o palhaço negro Benjamin de
vez de “futebol”, ou “cinesíforo”, em
Oliveira e o ator Brandão, o Popularís-
lugar de “chofer”, “motorista”. Vieira
simo. Escrevia corretamente, como bom
Fazenda foi um historiador e honesto
escritor.
pesquisador das lendas ou estórias popu-
Paulo Barreto, ou melhor, João do lares do Rio de Janeiro, com Antigulhas.
Rio, estudou o negro brasileiro em suas O professor Hemetério dos Santos tinha
reportagens maravilhosas e revolucioná- consciência racial para se insurgir contra
rias, como jornalista e escritor brilhante a indiferença de Machado de Assis nesse
de A alma encantadora das ruas. Ou setor, chegando a escrever contra aquele
no depoimento impressionante sobre escritor embranquiçado. Três notórios
as crendices e os mistérios de nossos valores do seu tempo. Os escritores
260 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

modernistas viram mais o índio, em sua batente e representativo de nosso tempo.


estética irreverente. Mário de Andrade, Seus estudos sobre nossa desagregação
mulato pernóstico, mas culto e escritor racial são modelares e traduzidos para
respeitável, colocou o negro num seu outros idiomas cultos: O negro revoltado,
romance, Macunaíma, para desenhá-lo Quilombismo, Sitiado em Lagos, O geno-
bem preguiçoso, de mau caráter. Sua cídio do negro brasileiro, Drama para ne-
descrição debochada sobre um ritual de gros e prólogo para brancos, Sortilégio,
candomblé da Tia Ciata beira o patético teatro, e Combate ao racismo, volumes
e o ridículo. Os poemas de Manuel Ban- de discursos parlamentares. Apesar da má
deira sobre a preta Irene; de Jorge Lima vontade ou burrice dos zoilos de nossa
sobre a “Nega Fulô”; Murilo Araújo, com crítica, Abdias é um notável e inspirado
“Banzo” e “Funeral do rei nagô”, como o poeta. Seus poemas têm mensagem e
“Urucungo”, de Raul Bopp, são versões elevação emocional de um verdadeiro
estereotipadas do negro exótico e irreal, bardo ou griô genial de sua raça: Axés
apesar de poemas significativos. do sangue e da esperança. Com versos
negros dos mais emocionantes de toda a
Com o advento do Teatro Experimen-
negritude, eis sua oferenda a Zumbi dos
tal do Negro, no Rio, com Abdias do Nas-
Palmares na serra da Barriga: “Eis aqui o
cimento à frente, uma forte floração de
chão ancestral / debaixo dos meus pés seu
escritores negros foi surgindo. Aguinaldo
coração pulsa / o vibrante tan-taneo sub-
Camargo, ator genial e também escritor
terrâneo / trepida a matriz da terra negra.”
de pensamento original e positivo, em
Sebastião Rodrigues Alves é outro poeta
Êxodo da senzala e A fábrica, romance.
de significativo valor, embora a nossa
Sebastião Rodrigues Alves deu valiosos
crítica leviana finja ignorar a alta essên-
e originais estudos sobre o negro brasi-
cia poética do seu livro Canto à amada.
leiro, dignificando a nossa negritude: A
No poema oferecido a Solano Trindade,
ecologia do grupo afro-brasileiro, Todos
vêm estes versos belíssimos: “Quem está
somos iguais perante a lei e Sincretismo
gemendo? / É o poeta na sua dor! Não é
religioso. Guerreiro Ramos foi quem
negro, nem carro de boi / Mas daqui, poeta
levou esses estudos étnicos para o campo
amigo / Ouço teu gemido.”
polêmico, atacando rijamente o nosso ra-
Depois de 1940, veio do Recife um
cismo, numa obra que sacudiu os setores
livro denunciando as deformações sofri-
reacionários da discriminação: Cartilha
das pelos candomblés no Brasil: Xangô,
de um aprendiz de sociólogo. Um dos
de Vicente Lima, livro polêmico e re-
sociólogos de maior visão deste País,
novador, que tem apreciação de Solano
escrevendo com maestria sobre vários
Trindade. Nossa negritude é muito rica
temas de nossa cultura.
de valores expressionais no romance, en-
Sobre as inúmeras facetas intelectuais saio e poesia. Carolina Maria de Jesus, a
de Abdias do Nascimento, seria preciso favelada divina do Canindé de São Paulo,
espaço maior. É o líder negro mais com- e seu impressionante relato de misérias
Introdução à Literatura afro-brasileira
Ironides Rodrigues 261

e poesia, no Quarto de despejo e Casa dade / Não quero ser marginal / Quero
de alvenaria. Uma escritora de respeito, entrar em toda parte”). Seus poemas já
traduzida em muitos idiomas. Raimundo são divulgados em outros países. Belsiva
Sousa Dantas, sergipano, expõe sua expe- e seus poemas negros, bem populares e
riência negra em livros interessantes como até emocionantes, em Lamentos, só la-
África difícil, Agonia e o comovente Um mentos, que ele declamava com ênfase
começo de vida. Romeu Crusoé tem um e muita euforia. Poeta representativo de
romance pungente e de grande significado nossa raça: “A África está se libertando
social e literário: A maldição de Canaã, / A África está se libertando”.
sobre o preconceito racial sofrido por J. B. Romão da Silva, estudioso da
um negro angustiado. Romance sério e língua tupi, é o evocador seguro e atraen-
pioneiro no gênero. Do mesmo estofo te de Luís Gama e suas poesias satíricas
do romance acima é Água Funda, relato e o biógrafo sensível e capaz de Teodoro
sobre gente humilde de uma cidade entre Sampaio. Um memorialista evocando
Minas e São Paulo, escrito por uma grande suas lutas de líder negro, José Correia
romancista negra: Ruth Guimarães, com Leite em Lumiar de uma ideologia.
estilo original e atraente, assim como é
notável Romeu Crusoé. Ruth é também Mestre Didi, da Bahia, escreve seus
folclorista respeitada. contos de origem africana à maneira dos
griôs, narrando suas façanhas através de
No Teatro Experimental do Negro épocas diferentes do Continente Negro.
havia um jornal doutrinário bem atu- Noronha Santos, historiador mulato de
ante: Quilombo. Em São Paulo, são os respeito, era amado por Lima Barreto,
Cadernos Negros, com poemas e contos que o consultava nas evocações cariocas
bem de vanguarda literária. Daí também de seus romances. O crítico Agripino
surgiram poetas do mais inspirado estro, Grieco o reverenciou em muitas páginas
fazendo poesias de combate anti-racista de crítica saborosa.
e de impressionante expressão poética.
Lino Guedes e os seus poemas de as- Enfoque: o transcendentalismo po-
suntos ingênuos, mas belos e de espírito ético e simbólico na poesia negra de
combativo: Sunscristo, Vigília do pai Eduardo de Oliveira
João e Canto do cisne preto. Grande
poeta, humano e sensível, abridor de ca- Quando o analista se detém com pro-
minhos na poesia de assunto negro. A po- fundidade exegética em face de “Além
esia negra de Carlos de Assumpção tem do pó”, “Ancoradouro”, “Banzo”, ou
ressonância universal em seus poemas, mesmo em outros cantos de sublime
dos mais emocionantes de toda a negritu- ressonância musical, como “Restingas”,
de, publicados no livro Protesto. Poucos “Cancioneiro das horas” ou “Gestas líri-
poetas no mundo igualam sua criação cas da negritude”, se depara com a am-
bela e comovente: (“No porão da socie- plitude poética de Eduardo de Oliveira. É
262 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

uma poesia que vem lá do fundo da alma limitou sua poética genial só em exaltar o
negra, no que tem de mais dilacerante, alvinitente e lirial alvor da cútis branca,
dorida e, antes de tudo, humana e emo- que lhe parecia ter uma atração singular.
tiva. Existem nesses cantos que parecem Cruz e Sousa como simbolista, conforme
compostos para serem declamados pelos declaração de Roger Bastide, foi o único
troveiros e rapsodos populares da minha negro do Simbolismo universal, e por
África, os griôs, que os recitavam ao som isso só podia extravasar a sua revolta
do balafon, para que a memória coletiva racial em versos de sentido matafórico,
os fosse perpetuando pelos séculos afora. com os símbolos se superpondo à clareza
Embora esse poeta sendo um simbolista, meridiana própria dos poetas parnasia-
na mais pura expressão semântica, na nos ou românticos. É só ler atentamente
musicalidade léxica ou vocabular, na os poemas de Cruz e Sousa para sentir
significação alegórica e no sentido sim- neles toda uma efervescência negra,
bólico que toma vários de seus poemas, em ebulição criadora. Joaquim Ribeiro,
nunca deixa de ser um poeta social do seu emérito folclorista e historiador, via na
século, olhando com peculiar interesse musicalidade impressionante de Cruz e
poético e ternura sentimental todos os Sousa vagas reminiscências evocativas
problemas éticos, políticos e religiosos da estranha melodia que ressoa do idio-
que atormentam as consciências de nossa ma quimbundo. E isso nos “Violões que
raça. Quando mestre Tristão de Athayde, choram”, “Dor obscura”, “Réquiem do
num depoimento de grande e cristalina sol” ou qualquer poema de dilacerante
essência analítica, chamou Eduardo de dor emotiva daquele que, com Castro
Oliveira de um novo Cruz e Sousa, ele Alves, no dizer de Agripino Grieco, foi
enxergava nesse poeta aquele sopro de um dos dois maiores espantos da poesia
excelsa espiritualidade do Dante Negro; brasileira. Eduardo de Oliveira já podia
aquela universidade de temas em que se expressar com maior liberdade poética
se debatem os anseios e sofrimentos da que Cruz e Sousa, pois teve o privilégio
gente negra, que o genial Cruz e Sousa de ser contemporâneo de um movimento
já descerrava o velório, desta angústia de de admiráveis idéias políticas e literárias
sua raça, no “Emparedado”. como a Negritude, cujo manifesto inicial
é de 1950, apregoada em seus cânones
Eduardo de Oliveira não é um revolucionários por Léopold Sédar Sen-
epígono do vate vibrante dos Faróis e ghor, Aimé Césaire e Léon Damas, em
Broquéis, mas um poeta que já tem seu Paris. Não foi de propósito, com esse
próprio estilo, que na sua temática de evento circunstancial, que um dos livros
profunda beleza estilística e musical mais expressivos de sua poética simbo-
decanta a nostalgia, os anseios, o sofri- lista e de combate cerrado ao racismo
mento e toda a magnitude do desespero de todas as latitudes se chama Gestas
da progênie de Cam. É engano de Tristão líricas da negritude, comprovando que
de Athayde pensar que o vate catarinense sua voz já era a mensageira livre, solta e
Introdução à Literatura afro-brasileira
Ironides Rodrigues 263

desimpedida, como bem afirmou Jean- Todo o livro é feito de sonetos de im-
-Paul Sartre, no seu rumoroso manifesto pecáveis tessituras formais, não naquela
em prol dos movimentos sociais de nossa rigidez marmórea e impassibilidade
raça, no Orphé noir. Afirmava, categóri- olímpica dos versos como burilados
co, o filósofo francês do existencialismo pelo cinzel hierático de um Heredia, de
que, o dia em que fossem retiradas as “Les trophés”, ou com aquela vaga mu-
mordaças que silenciavam as vozes sicalidade dos poemas de Verlaine, Be-
angustiadas dos negros, eles gritariam audelaire, Albert Samain ou a estâncias
tão alto contra o segregacionismo da sua de uma tonalidade musical de sonata de
raça e ameaçando os grilhões das potên- um Régnier e Moreas. Aí o poema é um
cias imperialistas que os brancos seriam mistério, do qual o leitor deve penetrar
obrigados a ouvir as reivindicações justas
o imo ou o sentido profundo e filosófico.
e as acusações ferozes dos ex-escravos
Eduardo de Oliveira é sonetista perfeito,
de ontem, agora mais conscientes de sua
mas que dá um alcance imaterial e de
luta e da dignidade de sua causa sagrada.
inefável encanto poético à temática negra
Teriam a apoiá-los as consciências dos
de seu marcante livro de versos Túnica
povos livres e os orixás de Aruanda,
que por trás do firmamento infinito estão de ébano.
atentos aos nossos protestos milenares.
Túnica de ébano é outra gritante mani- Vozes afro-brasileiras
festação poética de Eduardo de Oliveira,
com seu lastro mais livre e desenvolto, É chegado o momento em que de-
a inspiração de requintada beleza, as verá o exegeta negro reunir os aedos ou
palavras em forte consonância musical, menestréis afro-brasileiros e analisá-los,
sempre o poeta com seu brado de alerta, num livro de ensaio de aguda interpreta-
denunciando a eterna servidão do negro, ção de suas criações poéticas diferentes,
enganado pelos engodos de uma fictícia mas tão valiosas para a nossa negritude
“Lei Áurea”, nos fins do século passado. literária. Assim estaria aí, no seu relevo
Em “Negra é a minha pele” há todo um mais criador, em seu tempo, em sua
protesto severo contra uma escravidão mensagem eterna de vate de sua gente, a
tardia de nossa raça: poesia bem popular, que respira o hálito
mais puro da massa eufórica, o poeta
Nada fui! Nada sou! Nada serei, Belsiva Lino Guedes veria, com o canto
Só porque negra é a cor de minha magoado do Pai João banzando a sua
pele! tristeza, ao som do lendário urucungo.
Mesmo que tudo eu dê, pouco Solano Trindade e o cortejo fantástico
terei, do bumba-meu-boi, dos folguedos po-
Nesta Sodoma em que a ambição a pulares pernambucanos ou dos negros
impele! em genuflexão aos orixás da Aruanda
264 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

e os operários suando, chorando, se criadora, que os Cadernos Negros, de


lastimando, no trem musicalíssimo da São Paulo, estão divulgando ao país
Leopoldina, que tem gente com fome ou todo, uma demonstração positiva de que
do “quem tá gemendo, negro ou carro de a inspiração da negritude patrícia não tem
boi?”. E que dizer desta florada de poetas limite em sua mensagem de revolucioná-
negros, de que São Paulo é um recanto ria cordialidade. Assim como Henrique
de pródigas e magnas aspirações: Cúti e Cunha Jr., falando com melancolia da
a sua expressiva, desabusada e informal opressão branca, em poemas de tocante
maneira de fazer grandes poemas de poesia. Éle Semog e sua maneira original
protesto, que a Negritude guardará com e inconfundível de criação poética, numa
amor e carinho. Madalena de Sousa e o obra que merece ser lida com respeito,
canto do negro espoliado, a rebelião ora assim como esta figura de inquietante
lírica, de protesto solene ou de incontida poesia e prosa de atualíssimo vigor de
revolta, nessa voz feminina de grande Jamu Minka, lançando, como bofetada
expressão na defesa dos direitos do uni- na cara de uma sociedade capitalista e
verso negro. Oswaldo de Camargo, ora anticristã, todas as revoltas de uma sen-
com delicadeza de expressão ou quando sibilidade ofendida.
veemente se impreca contra a dor negra
De outras partes, poetas negros de
sem consolo, está sempre renovando,
muito talento e fibra, para fazerem poe-
formalmente, mas nunca deixando de
mas de grande elevação social e humana:
lado a eterna temática de sua raça, nunca
abandonando os motivos de maior e mais Oliveira Silveira, retratando o negro
perfeita inspiração de seu estro respeitá- gaúcho, Edu Omô Oguiam, da Bahia
vel. Além de poeta de que a Negritude lendária, citando os capoeiristas num
se orgulha, é prosador original e de um poema: Índio, Pastinha, Cacá, Bimba,
estilo diferente, popular, mas sempre um etc. Poeta popular, mas revolucionário
escritor primoroso, na forma impecável. na forma. José Carlos Limeira é poeta
Cúti também tem uma desconcertante combativo, de expressão vigorosa e
maneira de exprimir seus poemas líricos sensível, em Atabaques, volume que
ou aqueles em que sua poesia se alteia assina junto com outro poeta de valor
com as imagens belíssimas em que evo- da negritude atual, Éle Semog. Ambos
ca o passado sombrio de nossa raça, em os poetas, de muita inspiração, assinam
poemas cuja inspiração é de fundo revo- também outro belo livro de poemas: O
lucionário e cuja forma tem algo de muito arco-íris negro. Isabel Hirata, poetisa
pessoal e uma originalidade elogiável. de altos vôos poéticos, é mais que uma
Eduardo de Oliveira é contemporâneo revelação no desconcertante e afirmativo
de poetas negros que se vêm externando livro Cicatrizes, revelando-se uma voca-
em poemas da mais fina sensibilidade ção autêntica.
Introdução à Literatura afro-brasileira
Ironides Rodrigues 265

Ensaístas e historiadores de garra lite- esperança negra, que parece a expressão


rária no gênero: Clóvis Moura, Rebeliões mais pura dos orixás de Aruanda, orien-
da senzala; Joel Rufino dos Santos, O tando os líderes e paladinos da causa
que é racismo e Zumbi; Lélia Gonzalez, negra. Refiro-me ao real negro Abdias
Lugar de negro; Nei Lopes, Islamismo do Nascimento, lutador de mais de seis
e negritude, parceria com J. M. Vargens; décadas, em holocausto à libertação
Jota Efegê, Maxixe – dança excomunga- total de nossa raça num livro de poemas
da e Ameno Resedá. em que a Negritude, como no caso de
Sebastião Rodrigues Alves, resplandece
Um nome que resplandeceu de em seus dias de triunfo louváveis. O livro
glória a negritude brasileira foi Solano em questão de Abdias é Axés do sangue
Trindade, poeta imenso, de inspiração e da esperança.
bem popular e de estética combativa e
revolucionária, em Cantares ao meu Outras vozes, vindas de vários pontos
povo e Poemas de uma vida simples. do Brasil, como o notável poeta negro
Sua poesia já transpôs as nossas frontei- das Alterosas Adão Ventura, bem mi-
ras. O negro está todo redivivo em seus neiro e de forte e inquietante inspiração.
poemas imortais: “Quem tá gemendo?”, Não poderia esquecer vultos que tanto
“Tem gente com fome”, “Sou negro” (“ primaram, com seu estro de elevada
Eu sou o poeta negro / De muitas lutas combatividade ideológica e muita espi-
/ As minhas batalhas têm a duração de ritualidade nos versos belos e tocantes:
séculos”). Oubi Inaê Kibuko, Márcio Barbosa, a
poesia de Estêvão Maya-Maya, com
Quase no início de 1984, duas vozes o acento folclórico se mesclando com
de poderosa persuasão poética apare- a mais subjetiva e simbólica criação
ceram, para o maior embevecimento poética. Nesta galeria também incluo
daqueles que amam os verdadeiros e um Aladir Custódio, com seus versos
autênticos poetas. Um, Sebastião Rodri- tocantes aos favelados cariocas, e Carlos
gues Alves, que no “Canto à amada” nos de Assumpção, que no “Protesto” deixa
dá cânticos de amor, poemas dedicados patente que é uma das vozes mais inspi-
à solidão, sem esquecer os que evocam radas e de maior potência doutrinária de
os seres solitários e deserdados, como toda a negritude universal.
num poema universal dedicado à poesia
de Solano Trindade e um outro em que Aqui chega ao seu singelo epílogo
rememora sua vida pelas madrugadas esta resenha evocativa e sentimental de
tristes e desesperadas. uma personalidade intelectual, do que o
negro tem de maior relevância. Em seu
O outro poeta já nos traz em sua poe- espírito multiforme, professor, militante
sia de subversivos ritmos a mensagem de ardoroso de nossos prélios, autor de hi-
266 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

nos de vibrante marcialidade melódica,


magno incentivador do civismo negro,
sempre empunhando o estandarte de
nossos combates mais aguerridos; assim
se delineia esta efígie de um grande e
influente poeta, com estatura, em sua
poesia de justa ressonância poética, com
os maiores vates negros da África e das
Américas.

* Ironides Rodrigues, falecido em 1987, bacharel em


direito e militante da cultura afro-brasileira, foi professor
de alfabetização e cultura geral nos cursos de formação
de atores e atrizes do Teatro Experimental do Negro
(1944-68). Escritor prolixo, ao falecer deixou uma obra
extensa documentando a vida cultural de seu povo nos
seus autobiográficos Serões de Bento Ribeiro.
267

Cena de Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, com Deise Paiva (Eurídice) e Abdias Nas-
cimento (Aristeu). Teatro Municipal, Rio de Janeiro, 1956.
A República Popular de Angola
tem um papel no cenário africano que
pode ser considerado imprescindível
para o equilíbrio e o desenvolvimento
do continente. Depois da vitória contra
o colonialismo, não se podia esperar que
Reconciliação tantas forças retrógadas inerviessem nas
Nacional, questões internas do povo angolano, que
buscava se reestruturar enquanto Estado
a outra luta e Nação, segundo os ideais revolucioná-
rios de Agostinho Neto e de seus com-
de Angola panheiros. A interferência em Angola
implicou uma guerra civil, um verdadeiro
fratricídio patrocinado, ao longo de mais
de 20 anos, por países que, no campo
das relações internacionais, posam de
guardiães da democracia, da autogestão
e dos direitos humanos
O rastro de destruição deixado
pela guerra arruinou vidas e famílias,
além de desestruturar a economia, levan-
do o Estado à beira do caos e da inviabi-
lidade. Entretanto há de se reconhecer o
272 THOTH 1/ abril de 1997
Mundo Africano

esforço do Governo angolano, liderado Santos afirmou o seguinte: “Se desde o


com habilidade, firmeza e competência início houver coesão no seio do Governo,
pelo presidente José Eduardo dos Santos, se for observada uma rigorosa disciplina
na busca de alternativas e soluções para o e praticada a solidariedade e entre-ajuda,
fim do conflito. Num processo de com- estou certo que tudo isto permitirá criar
plicadas e delicadas negociações com as energias necessárias para a resolução
o Sr. Jonas Savimbi, líder da UNITA, dos problemas mais complexos que
chegou-se ao acordo para a instalação do precisam ser atacados em simultâneo em
Governo de Unidade e Reconciliação Na- várias frentes.” Mais adiante o presidente
cional, atitude que sem dúvida representa foi enfático: “(...) num Governo de com-
um largo passo em direção à paz tão an- posição heterogênea como este, é impor-
siosamente esperada pelo povo angolano.
tante que cada um dos seus membros
Existem ainda problemas sérios observe escrupulosamente, no exercício
a serem resolvidos e áreas de tensão das suas funções, as normas que regem
que precisam ser tratadas com cuidado. a ação governativa, por forma a evitar-se
Dentre elas se destacam a extensão da a dispersão de esforços e a acentuar-se a
administração do Estado a todo o terri- sua eficiência.”
tório nacional; a desmobilização de 100
mil efetivos excedentes (militares); a O povo angolano é um povo
questão das zonas diamantíferas contro- forte e solidário. Há de construir a paz
ladas ilegalmente pela UNITA, as quais com brevidade, para que mais depressa
geram uma receita em torno de US$ 400 as marcas espalhadas pela dor da guerra
milhões que não chegam aos cofres do se dissipem e o local em que explodiu
Governo. uma mina “importada” possa ser trans-
Em discurso na primeira sessão formado em campo fértil em que se po-
extraordinária do Conselho de Ministros derá plantar, colher, dividir e exportar os
do Governo de Unidade e Reconciliação frutos da conquista coletiva de um povo
Nacional, o presidente José Eduardo dos unido por um só ideal.
273
Inspirado na tradição de orga-
nização político-religiosa das mulheres
iorubás, o Geledés Instituto da Mulher Ne-
gra é criado em 1988 como uma proposta
de atualização e adequação de matrizes
culturais negro-africanas às necessidades
Geledés contemporâneas da luta negra, em espe-
cial das mulheres negras.Tal como sua
expressão original, o Geledés Instituto da
Mulher Negra tem como foco fundamental
o fortalecimento da expressão política e
liderança das mulheres negras, integrando
em seu interior homens solidários com sua
proposta.
A consciência dos limites da
concepção feminista tradicional para
contemplar a temática específica das
mulheres negras conduziu-nos a cons-
truir uma plataforma de luta que nos
habilitasse a tratar simultaneamente das
dimensões particulares de gênero e das
Sueli Carneiro* questões gerais colocadas pelo problema
racial em nossa sociedade. A condição de
276 THOTH 1/ abril de 1997
Movimento Negro Hoje

mulher e negra, o papel histórico que as O Programa de Saúde tem por


mulheres negras desempenham nas suas objetivos conscientizar a população ne-
comunidades, a comunidade de destino gra, em especial as mulheres, sobre as
colocada para homens e mulheres negros doenças étnicas ou doenças prevalentes
pelo racismo e a discriminação impedem na população afro-brasileira; imple-
que os esforços organizativos das mulheres mentar estudos históricos/socioculturais
negras possam se realizar dissociados da sobre a saúde da população negra, de
luta geral de emancipação do povo negro. modo a subsidiar propostas de políticas
Portanto, o ser mulher negra na sociedade
públicas voltadas para o negro; capacitar
brasileira se traduz na tríplice militância
mulheres, jovens e adolescentes afro-bra-
contra os processos de exclusão decor-
sileiras como agentes de conscientização
rentes da condição de raça, sexo e classe,
isto é, por força das contradições que o ser e prevenção de doenças sexualmente
mulher negra encerra, recai sobre elas a transmissíveis (DSTs), em especial sobre
responsabilidade de carregar politicamente a AIDS. Oferece ainda oficinas sobre
bandeiras históricas e consensuais do mo- saúde e sexualidade e sobre o uso de
vimento negro, do movimento de mulheres drogas.
e somar-se aos demais movimentos sociais O Programa de Comunicação
voltados para a construção de outro tipo de tem por propósito dar visibilidade às
sociedade, baseado nos valores da igualda-
ações desenvolvidas pelo Geledés
de, solidariedade, respeito à diversidade
mediante folhetos, cadernos, cartilhas
e justiça social. Com essa perspectiva,
e eventos. Assegura a intervenção da
estruturou-se o Geledés em três programas
básicos que abrigam diversos projetos por organização na mídia e a sua articulação
meio dos quais se busca atuar politicamente e troca de informações com os demais
sobre as questões de gênero e raça. movimentos sociais e as diversas redes
de comunicação em âmbito nacional e
O Programa de Direitos Hu- internacional.
manos/SOS Racismo tem por eixo
fundamental a defesa e expansão dos Com esse conjunto de ações,
direitos de cidadania da população ne- vimos buscando realizar a missão insti-
gra, oferecendo assistência legal para tucional do Geledés Instituto da Mulher
homens e mulheres vítimas da violên- Negra, que é a promoção e valorização
cia racial. Desenvolve ainda pesquisas política da temática da mulher negra em
sobre desigualdades enfrentadas pelos especial e o combate às diversas mani-
negros no acesso à Justiça e propostas festação de racismo, sexismo e exclusão
de aperfeiçoamento e ampliação da le- social presentes em nossa sociedade.
gislação anti-racista. Com o Projeto Ra-
pper desenvolvem-se também ações de
conscientização, formação política nas
questões de gênero e raça e capacitação *Sueli Carneiro é coordenadora executiva e coordena-
profissional para jovens e adolescentes dora do Programa de Direitos Humanos/SOS Racismo
negros (homens e mulheres). do Geledés Instituto da Mulher Negra.
Em 22 de agosto de 1988, o
presidente José Sarney sancionou a Lei
nº 7.668, criando a Fundação Cultural
Palmares, vinculada ao Ministério da
Cultura, com a missão institucional de
Fundação “promover a preservação dos valores
culturais, sociais e econômicos, decor-
Cultural rentes da influência negra na formação da
sociedade brasileira”, como resultado de
Palmares esforços e de atuação política de militan-
tes dos movimentos sociais negros, que
entendiam a importância de um órgão do
Estado com tal missão.
A Fundação Cultural Palmares
tem como objetivos a promoção, o pa-
trocínio e o apoio a todas as iniciativas
que tenham por objetivo a integração
econômica, política e cultural do povo
negro no contexto social do País. Promo-
ve ainda pesquisas e estudos permanentes
dos aspectos de interação da cultura
Dulce Pereira* africana, com pertinência à sua própria
278 THOTH 1/ abril de 1997
Movimento Negro Hoje

atuação no desenvolvimento nacional, e A interferência da Fundação no co-


os reflexos do seu relacionamento com tidiano do Governo tem motivado novas
outras etnias. posturas do Estado e a elaboração de po-
A revisão da História oficial do país líticas públicas de combate ao racismo e
e a inclusão de personalidades negras de reconhecimento da parcela de respon-
que contribuíram de forma incisiva para sabilidade histórica do próprio Estado
a formação de nossa sociedade é um dos pelas desigualdades. A serra da Barriga
projetos executados pela FCP, em parceira integra o patrimônio da instituição. No
com o MEC e com instituições da área de segundo semestre deste ano, em parceria
educação. Ainda, todas as atividades des- com o Memorial Zumbi, será trabalhado
tinadas à desmistificação de preconceitos o projeto que deverá transformar esse
de origem, sexo, idade, raça, cor e quais- sítio histórico em importante pólo turís-
quer outras formas de discriminação são tico, artístico e de resgate da história dos
estimuladas e apoiadas pela instituição. afro-descendentes.
A Fundação desenvolve também
O projeto A Rota do Escravo, da
estudos, projetos e pesquisas sobre os
Unesco, é coordenado no Brasil pela
cultos afro-brasileiros e trabalha na sua
FCP. Trata-se do estudo e da avaliação do
divulgação, além de apoiar as irman-
dades religiosas vinculadas à Igreja impacto e das conseqüências cotidianas,
Católica nas suas manifestações. Outro nas várias nações do mundo, do maior
trabalho de pesquisa desenvolvido é o movimento de transferência continental
levantamento, mapeamento e reconhe- de seres humanos – a escravidão.
cimento formal das comunidades rema- A Fundação Cultural Palmares pro-
nescentes de quilombos. duz, desde dezembro de 1996, Palmares
A Fundação Cultural Palmares de- em Revista, publicação que traz o pen-
senvolve vários projetos, nacionais e samento de intelectuais sobre temas de
internacionais, em diversas áreas, com relevância sobre os afro-brasileiros e as
o objetivo de propiciar a inserção dos relações sociais. Trata-se de uma contri-
afro-brasileiros no processo de cidada- buição para a valorização da pluralidade
nia. Esses projetos buscam criar uma em nosso País.
visibilidade positiva da comunidade
negra, o desenvolvimento de sua auto-
-estima e sua inclusão no cenário social
da nação, como protagonista da História * Dulce Pereira é Presidenta da Fundação Cultural
e produtora de riqueza. Palmares.
CEAP na luta contra o racismo,
ajudando a construir uma
democracia

O combate sem tréguas a toda ma-


nifestação racista, independente de sua
CEAP: contra o origem, é o principal compromisso do
racismo, CEAP - Centro de Articulação de Po-
pulações Marginalizadas, fundado no
pela democracia Estado do Rio de Janeiro em fevereiro
de 1989. A idéia de criar um organismo
forte, com poder de fogo para articular
ações organizadas contra a discriminação
racial, surgiu pela reflexão de um grupo
de militantes do movimento negro cario-
ca, com larga experiência em diversas
áreas de atuação.
Na verdade, o CEAP surge com a
retomada de uma luta secular, com raízes
nos primeiro quilombos, passando pelas
insurreições negras, pela Frente Negra,
pelo Teatro Experimental do Negro e por
José Reinaldo Belisário Marques
uma militância contínua de importantes
280 THOTH 1/ abril de 1997
Movimento Negro Hoje

expoentes afro-brasileiros na luta contra – Combater, articulado com ou-


o racismo neste País. Com esse saber tras organizações e movimentos,
acumulado, as ações dessas entidades, e propor políticas e ações contra
a partir da década de 1970, têm incen- a discriminação e a violência
tivado, em larga escala, transformações contra crianças e adolescentes,
na base social, provocando a tomada de mulheres, negros e minorias;
consciência racial e fazendo com que – Monitorar a evolução da
grande parte dessa massa discriminada políticas públicas, interferindo e
se rebele e saia em busca dos seus di- propondo alternativas que pos-
reitos. sibilitem a participação popular
sob a perspectiva de autogestão;
Diretrizes básicas
– Combater sistematicamente
Desde a sua fundação, o CEAP tem toda e qualquer forma de racismo.
buscado contribuir de forma relevante A proposta do CEAP é ampliar o seu
para a construção da democracia brasilei- poder de articulação, conquistar aliados e
ra, pela defesa dos direitos humanos e a formar agentes multiplicadores do nosso
adoção, por parte do Estado, de políticas conceito de democracia, com atenção aos
públicas de respeito aos direitos civis de direitos humanos e à cidadania da co-
forma a aumentar a participação popular munidade afro-brasileira. Para alcançar
no processo decisório nacional. esses objetivos, o CEAP estruturou os
Programas de Articulação Racial de Mu-
Nesse sentido, o CEAP estabeleceu lheres Negras e de Classes Populares, de
os seguintes objetivos: Crianças e Adolescentes e de Orientação
Jurídica. Conta ainda com um Centro de
– Contribuir para a formação Documentação e Pesquisa e um Núcleo
de consciência crítica para o de Comunicação Social.
exercício da cidadania, para a
expansão da democracia e para a Uma das principais marcas das ações
emancipação humana dos grupos do CEAP no combate ao racismo e à vio-
sociais afins com a entidade, lência contra a população afro-brasileira
respeitando as especificidades foram as campanhas desenvolvidas em
culturais desses grupos; âmbito nacional e internacional, com
grande repercussão política, que provo-
– Promover, estimular e contri- caram a instalação de CPIs no Congresso
buir com a organização e o de- Nacional, nos Estados e municípios,
senvolvimento de novos grupos e também a manifestação de apoio de
de ação social voltados para o organismos internacionais voltadas para
exercício da cidadania e para a a questão dos direitos humanos. Dentro
expansão da democracia; desse contexto, foram organizadas as se-
CEAP: contra o racismo, pela democracia
José Reinaldo Belisário Marques 281

guintes campanhas: contra o extermínio Brasil está mudando e essas transforma-


de crianças e adolescentes e a esterili- ções estão brotando nas base, da mesma
zação em massa de mulheres negras e forma como acontece em todas as nações
pobres; pela abolição do trabalho infantil; do planeta onde existam desigualdades
denúncias da violência praticada contra raciais e injustiça social. É uma espécie
meninas de até 18 anos; programas so- de revolução que já não pode ser enca-
ciais para inibir a prostituição infantil e rada como silenciosa.
pelo fim do tráfico de mulheres.
O que o CEAP mais deseja com suas Atividades de destaque
articulações é formar cada vez mais ci-
dadãos capazes de disseminar, em todos De acordo com o Plano Estratégico
os segmentos da sociedade, a necessi- do CEAP (1996/2001), podemos destacar
dade de um engajamento contínuo na as ações no campo jurídico, por meio
luta contra a discriminação e o racismo. Projeto Ajir (Ação Jurídica Insurgente
Nesse sentido, o CEAP realiza regular- de Combate ao Racismo), cujos prin-
mente seminários que abordam vários cipais objetivos são: desenvolver uma
aspectos relacionados com a população estratégia jurídica de combate ao racismo
afro-brasileira em ambientes popula- visando fortalecer a democracia; prestar
res, associações de classe e religiosas atendimento e orientação à população
e meios acadêmicos. Existem também negra vítima de práticas racistas; pro-
as ações diretas desenvolvidas junto ao mover o diálogo com os operadores do
público jovem, formado por crianças e Poder Judiciário; desenvolver propostas
adolescentes, como oficinas de dança, de políticas jurídicas específicas dire-
teatro , capoeira, formação profissional, cionadas à comunidade afro-brasileira e
e também um trabalho específico com também divulgar a legislação brasileira
“galeras funk” de bairros populares e e internacional de combate ao racismo.
favelas. Como resultado do trabalho Em nosso Relatório de Atividades,
desenvolvido com as galeras funk, já se que se encontra disponível em nosso
inicia um projeto de organização política Centro de Documentação e Pesquisa,
desse público jovem por meio do movi- podem ser encontradas de forma detalha-
mento denominado Força Funk, que tem da as ações políticas desenvolvidas pelo
o compromisso de defesa da vida dos CEAP, como a campanha contra a música
jovens negros e favelados. do palhaço Tiririca “ Veja o cabelo dela”
Aos que ainda insistem na doutri- , cuja letra é uma das mais hediondas
na da diferenciação étnica para poder mensagens racistas já divulgadas em
continuar cometendo crimes raciais e nosso País. A campanha, que também
quaisquer tipos de violência contra a atinge a gravadora multinacional Sony,
população negra, o CEAP dá um grito responsável pela produção e distribuição
de alerta: “Pare com o racismo!” Pois o do disco, alcançou repercussão nacional,
282 THOTH 1/ abril de 1997
Movimento Negro Hoje

abrindo nova frente de luta contra o outros públicos que também são vítimas
racismo e pela identidade cultural das do preconceito. Por meio do CEAP, a
comunidades negras. comunidade judaica quer estreitar rela-
ções com a população afro-brasileira e
As articulações do CEAP com im-
promover ações conjuntas de combate
portantes personalidades e organizações
ao racismo e de provocação do progresso
do Movimento Negro internacional estão
social.
se tornando cada vez mais consistentes.
Recentemente tivemos importantes reu- No início de 1997, o CEAP rea-
niões com o pastor afro-americano Jesse lizou o Seminário Interétnico de Direitos
Jackson e entidades de países africanos, Humanos e Cidadania, em conjunto com
como a visita ao Brasil de membros de a Federação Israelita do Estado do Rio de
ONGs da Guiné-Bissau. Temos conse- Janeiro. Todas as ações aqui apresenta-
guido interferir positivamente nas deci- das reafirmam o compromisso do CEAP
sões do Consulado Norte-Americano da em combater o racismo, com o firme
cidade do Rio de Janeiro nos casos de propósito de construir uma sociedade
negativa de vistos de entrada nos Estados democrática onde a população afro-
Unidos para cidadãos negros. -brasileira esteja incluída nos beneficios
Vale ressaltar as iniciativas do CEAP e direitos que o Estado deve garantir aos
no sentido de ampliar seu diálogo com seus cidadãos.
Instituído em 20 de novembro
de 1995, o Grupo de Trabalho Intermi-
nisterial para a Valorização da População
Negra é formado por representantes de
oito ministérios e duas secretarias da
GTI Presidência da República, além de oito
componentes da sociedade civil, estes
População Negra militantes do Movimento Negro.
Trata-se de mecanismo criado
pelo Governo a partir das reivindicações
e propostas do Movimento Negro, sendo
assim mais uma conquista e não algo que
tenha sido simplesmente implantado a
partir de mero paternalismo do Estado.
O GTI/População Negra é um
espaço aberto ao afro-brasileiro e a seus
aliados para a elaboração de propostas
com o objetivo da democracia, entendi-
da como a participação efetiva do povo
negro em todos os escalões da sociedade
e a eliminação do racismo.
Vale lembrar a Fundação Cul-
Carlos Moura*
tural Palmares, o Memorial Zumbi, o
284 THOTH 1/ abril de 1997
Movimento Negro Hoje

Instituto Palmares de Direitos Humanos, as atitudes a serem tomadas, por exemplo,


o IPCN, o IPEAFRO, o MNU e demais nos campos do trabalho, da saúde, da
entidades afins que tiveram a participa- educação, da cultura, da comunicação,
ção efetiva do senador Abdias Nascimen- além de outros.
to e contam até hoje com o seu apoio e A caminhada dos afro-brasileiros
estímulo. no rumo da sua real libertação pressu-
O GTI/População Negra, após põe um trabalho de parceria em que o
Governo e sociedade possam construir
um ano de trabalho, elaborou o documen-
a verdade democrática.
to “Realizações e Perspectivas”, entregue
ao presidente da República em maio
último, onde são encaminhadas questões
fundamentais à concretização dos seus
fundamentos.
No referido documento, trata-se * Carlos Moura é Secretário Executivo do
das medidas compensatórias, especificando GTI/População Negra.
SENADO FEDERAL
SECRETARIA ESPECIAL DE EDITORAÇÃO E PUBLICAÇÕES
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RITUAL DE EXU
Acrílico s/ tela - 100 x 80 cm, de Abdias Nascimento, Rio de Janeiro,1987

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