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GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO

Senador ABDIAS NASCIMENTO

4
1998 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Gabinete do Senador Abdias Nascimento

Thoth

nº 4 janeiro/abril 1998

Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Thoth, Brasília, nº 4, p. 1 - 239, jan/abr 1998


Thoth

Informe de distribuição restrita do Senador Abdias Nascimento


4/1998
8 THOTH 4/ abril de 1998
Abdias Nascimento visita o arquiteto da paz mundial
Foto: UN/DPI Photo by Evan Scheider

Em visitia à sede das Nações Unidas, em Nova York, como membro de uma delegaçao do
Congresso Nacional, o Senador Abdias Nascimento, acompanhado por sua esposa, Elisa Larkin
Nascimento, foi recebido pelo secretário-geral daquela organização, o ganês Kofi Annan. No
encontro, o Secretário-Geral revelou ao senador sua intenção de visitar o Brasil ainda este ano.
Funcionário de carreira da ONU há mais de três décadas, Annan, herdeiro da rica e mile-
nar cultura fanti, tem ganho o respeito e a admiração do mundo por sua inteligência e habilidade
em conduzir o jogo de xadrez da política internacional. Essas qualidades ficaram plenamente
comprovadas pelo êxito que obteve nas delicadas negociações da última crise iraquiana, em que
mostrou seus reais talentos de negociador e deu nova relevância às Nações Unidas como instru-
mento de preservação da paz.
Além de lhe garantir a projeção no plano pessoal, “a perspicácia, o entendimento dos inte-
resses e das situações de que o secretário-geral tem dado prova”, afirma um comentarista, “apa-
recem aos observadores como qualidades intrínsecas de seu povo, de sua cultura negra, dos afri-
canos. (...) No fim do milênio, Kofi Annan e Nelson Mandela dão a conhecer ao mundo inteiro o
perfil eminente dos africanos que contrasta com a visão de violência, sofrimento e pobreza traidi-
cionalmente atribuída ao Continente Negro. Algo que não deixará de ter impacto no Brasil, pátria
da maior população negra existente fora do Continente Africano.”
APRESENTAÇÃO

A rotina de trabalho parlamentar é um desgastante exercício de paciência, deter-


minação e perseverança, qualidades exigidas na elaboração, apresentação e acompanha-
mento de iniciativas e projetos, num processo em que não poucas vezes se esbarra na
incompreensão ou na malícia. Para um militante de longa data, que traz em si a indigna-
ção secularmente acumulada dos filhos da África sequestrados para construir o Brasil,
esse processo é ainda por cima demasiado lento, sinuoso, um rio espreguiçando-se pela
planície para descansar no mar, a tal ponto que nos faz questionar a validade da nossa
presença num Parlamento cuja grande maioria dos membros representa – até quando não
se dá conta disso – os interesses, explícitos ou mascarados, dos grupos beneficiários do
racismo e da discriminação contra os afro-brasileiros. Pois minha experiência na Câmara
e no Senado é mais um testemunho da eficácia da “democracia racial” como estratégia
de dominação, o que se revela especialmente quando vemos serem utilizados contra nós
até mesmo princípios constitucionais, como o da igualdade, aqui invertido para abortar
qualquer perspectiva de lhe dar concretude. É o primado da retórica imobilizadora, da
verborragia como substituta da ação, da visão da lei como freio à mudança social. Tudo
isso às vezes desanima o velho militante.
É um alívio, portanto, e uma injeção de otimismo, quando se consegue furar essa
rígida retranca montada pelo conservadorismo e concretizar mesmo que um pequeno item
de nossa imensa agenda de reivindicações, inflada de tantas e tantas necessidades premen-
tes. Na última semana, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado,
em caráter terminativo – o que significa não ser necessário levá-lo ao plenário –, meu
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Apresentação

projeto de lei que amplia a possibilidade de se recorrer à chamada ação civil pública para
a defesa da honra e dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos. Uma das principais
inovações desse meu projeto – com algumas emendas do Senador Josaphat Marinho que o
aperfeiçoaram do ponto de vista jurídico – é facilitar, quando transformado em lei, a atua-
ção das entidades afro-brasileiras em casos dessa natureza, facultando-lhes o direito de se
habilitarem, como autoras ou litisconsortes, em defesa dos interesses coletivos de nossa
comunidade. Com isso, ficará mais simples a atuação do movimento negro em casos
como o do palhaço-cantor que ofendeu a todos nós, e a todos os democratas e libertários
genuínos, ao gravar uma canção em que “homenageava” sua companheira negra utili-
zando “carinhosos” epítetos extraídos do arsenal de ofensas com que o racismo branco
costuma contemplar a mulher negra. Espero que o Movimento Negro se utilize dessa nova
e importante ferramenta à sua disposição para enfrentar o racismo no plano simbólico.
Outra pequena, mas significativa vitória foi o sucesso do Prêmio Cruz e Sousa,
iniciativa minha em parceria com o Senador catarinense Espiridião Amin. Confesso que
os 65 trabalhos enviados para apreciação superaram em muito, dado o prazo exíguo de
que dispunham os candidatos, nossas melhores expectativas. Coroaram-se, desse modo,
os esforços no rumo de homenagear e divulgar a figura ímpar de um afro-brasileiro nas-
cido na escravidão que atingiu – infelizmente, apenas depois de morto – as culminâncias
do reconhecimento, em âmbito nacional e internacional, como um dos maiores poetas de
todos os tempos, de todos os lugares e de todas as raças. A cerimônia de premiação, que
ocorrerá em Sessão Especial do Congresso Nacional, servirá como um desagravo, tendo
emblematicamente como palco o espaço que congrega a elite política do País.
Além de tudo isso, na próxima semana estará sendo inaugurada, no Salão Negro
do Senado, uma exposição de 53 pinturas de minha autoria, nas quais emprego elementos
pictóricos e filosóficos da rica cosmogonia africana e afro-brasileira para reafirmar os va-
lores milenares de nossa tradição cultural. Muito mais que a realização individual de um
artista negro conduzido pelo destino para o terreno da política, encaro essa mostra como
mais um signo das conquistas que os afro-brasileiros tem obtido, nos últimos anos, em
função de nossa luta coletiva. Que ela possa ajudar a cimentar esse caminho de sucesso,
sensibilizando meus colegas parlamentares a receberem com mais simpatia e compreen-
são as propostas do movimento negro organizado, das quais tenho procurado ser, com a
colaboração de minha equipe, um veículo eficiente e dedicado.

Brasília, maio de 1998

Abdias Nascimento
Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em
1995, marcado pela Marcha Contra o Racismo, pela Ci-
dadania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âm-
bito nacional e internacional em todo o País, verificamos
que a questão racial no Brasil atinge um novo estágio.
Setores da sociedade convencional reconhecem o caráter
discriminatório desta sociedade, e o debate passa a foca-
Thoth lizar as formas de ação para combater o racismo, ultra-
passando o patamar que marcou a elaboração da Cons-
tituição de 1988: a declaração de intenção do legislador
dá lugar à discussão de medidas concretas no sentido de
fazer valer tal intenção.

Nesse contexto é que o Senador Abdias Nascimen-


to assume, em março de 1997, sua cadeira no Senado Fe-
deral, na qualidade de suplente do saudoso Darcy Ribeiro,
intelectual sem par que sempre se manteve solidário com
a luta antirracista. O mandato do Senador Abdias, como
sua vida ao longo de uma trajetória ampla de luta e de
realizações, dedica-se prioritariamente à questão racial,
com base numa verdade que o movimento negro vem afir-
mando há anos: a questão racial constitui-se numa ques-
tão nacional de urgente prioridade para a construção da
justiça social no Brasil, portanto merecedora da atenção
redobrada do Congresso Nacional.
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Apresentação

Além de representar o veículo de comunicação do


mandato do Senador Abdias Nascimento com sua comu-
nidade e seu País, a revista Thoth surge como fórum do
pensamento afro-brasileiro, na sua íntima e inexorável
relação com aquele que se desenvolve no restante do
mundo. Seu conteúdo pretende refletir as novas dimen-
sões que a discussão e elaboração da questão racial vêm
ganhando nesta nova etapa, inclusive o aprofundamento
da reflexão sobre as dimensões históricas e epistemoló-
gicas da nossa herança africana, para além dos tradicio-
nais parâmetros de samba, futebol e culinária que carac-
terizam a fórmula simplista e preconceituosa elaborada
pelos arautos da chamada democracia racial.
Nesse sentido, cabe um esclarecimento do signi-
ficado do título da revista, que remete às origens dessa
herança civilizatória no antigo Egito, matriz primordial
da própria civilização ocidental da qual o Brasil sem-
pre se declara filho e herdeiro. Os avanços egípcios e as
conquistas africanas no campo do conhecimento huma-
no formam as bases da cultura greco-romana. Entretan-
to, as suas origens no Egito ficaram escamoteadas em
função da própria distorção racista que nega aos povos
africanos a capacidade de realização humana no campo
do conhecimento.
Nada mais apropriado para expressar a meta de
contribuir para a recuperação dessa herança africana que
a referência, no nome da revista, ao deus Thoth. Na tra-
dição africana, o nome constitui mais que a simples de-
nominação: carrega dentro dele o poder de implementar
as ideias que simboliza. Thoth está entre os primeiros
deuses a surgir no contexto do desenvolvimento da filo-
sofia religiosa egípcia: autoprocriado e autoproduzido,
ele é uno. Autor dos cálculos que regem as relações entre
o céu, as estrelas e a Terra, Thoth incorpora o conheci-
mento que faz mover o universo. O inventor e deus de
todas as artes e ciências, senhor dos livros e escriba dos
deuses, Thoth registra o conhecimento divino para bene-
fício do ser humano. Sobretudo, é poderoso na sua fala;
tem o conhecimento da linguagem divina. As palavras
de Thoth têm o dom da vida eterna; foi ele que ensi-
Thoth
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nou a Ísis as palavras divinas capazes de fazer reviver


Osíris, após sua morte. Assim, esperamos que a revista
Thoth ajude a fazer reviver para os afro-descendentes a
grandeza da herança civilizatória de seus antepassados,
vilipendiada, distorcida e reduzida ao ridículo ao longo
de dois mil anos de esmagamento discriminatório.
Tendo uma cabeça do íbis, pássaro que representa
na grafia egípcia a figura do coração, Thoth era cantado
como coração de Rá, deus do Sol (vida, força, e saúde).
Na mitologia egípcia, o coração era o peso a ser medido
na contrabalança da vida do homem, no momento de sua
morte, medindo sua correspondência em vida aos princí-
pios morais e éticos de Ma’at, filosofia prática de vida da
civilização egípcia. Thoth assim constitui-se no mestre
da lei, tanto nos seus aspectos físicos como morais.
A deusa Ma’at encarna essa filosofia de vida mo-
ral e ética, o caminho do direito e da verdade. Consti-
tuindo uma espécie de contraparte feminina de Thoth,
ela representa uma característica relevante da civiliza-
ção egípcia: a partilha do poder, tanto no plano espiritual
como material, entre a autoridade masculina e a femini-
na. Os faraós tinham o seu poder temporal complemen-
tado por um poder feminino exercido por soberanas e
sacerdotisas, assim seguindo o primordial e simbólico
exemplo de Osíris e Ísis. Sem ser compartilhado entre
feminino e masculino, entre homem e mulher o poder
careceria de fecundidade, seria estéril.
Ma’at e Thoth acompanhavam o deus-sol Rá, na
sua embarcação, quando ele surgiu pela primeira vez
sobre as águas do abismo primordial de Nu. Era Ma’at
quem regulava o ritmo do movimento da embarcação de
Rá, ou seja, o seu ciclo de nascer e se pôr sobre o hori-
zonte, bem como sua trajetória diária do leste ao ociden-
te. Ela corporificava a justiça, premiando cada homem
com sua justa recompensa, e encarnava o mais alto con-
ceito da lei e da verdade dos egípcios.
Como deus da sabedoria e inventor dos ritmos
cósmicos, Thoth dominava também a magia. Patrono
do aprendizado e das artes, a ele se creditavam muitas
invenções, inclusive a própria escrita, a geometria e a as-
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Apresentação

tronomia, áreas do conhecimento que fundamentaram o


florescimento da milenar civilização egípcia. Entretanto,
sem ser socializado, o conhecimento não produz resulta-
dos concretos, pois ninguém sozinho consegue colocá-lo
em prática. Faz-se necessário um agente de comunicação,
e Thoth se responsabiliza também por exercer esse papel.
Passando sua sabedoria para os seres humanos, como
o passou para outros seres divinos, a exemplo de Ísis,
Thoth amplia seu papel no mundo espiritual e material,
tomando-se ainda o elo de transmissão do conhecimento e
do segredo divino entre um domínio e o outro. A invenção
da escrita se revela, então, como decorrência do papel de
Thoth, originador do conhecimento em si: formular uma
nova forma de transmissão desse conhecimento.
Os gregos denominavam Thoth de Hermes Tris-
megistus (Thoth, Três Vezes Grande), nome também
dado aos livros que registravam a sabedoria metafísica
herdada do antigo Egito, centrada na ideia da comuni-
dade entre todos os seres e objetos, e cuja autoria era
atribuída a Thoth1. Assim, Thoth se identificava com
Hermes, mensageiro dos deuses gregos e aquele que
conduzia as almas a Hades. Hermes, para os gregos, era
o deus das estradas e dos viajantes, da sorte, do comér-
cio, da música e dos ladrões e trapaceiros. Os romanos o
chamaram de Mercúrio.
Tais atributos de Thoth e de Hermes nos remetem
nitidamente à figura de Exu na cosmologia africano-
-brasileira. Conhecido popularmente como mensageiro
dos deuses, Exu constitui o princípio dinâmico que pos-
sibilita o fluxo e intercâmbio de energia cósmica entre os
domínios do mundo espiritual (Orum) e o mundo material
(Aiyê). Conhecedor das línguas humanas e divinas, Exu é
a comunicação em si, além de se apresentar como o deus
das estradas, da sorte, da brincadeira e da malandragem.
Os paralelos e as semelhanças entre Thoth, Her-
mes e Exu não se reduzem a identidades absolutas, mas
as linhas gerais de suas características apontam para

1 Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme influência
sobre os neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII
Thoth
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uma unidade básica de significação simbólica. Por isso, nada


mais adequado, tratando-se de uma revista Thoth lançada no Bra-
sil, que uma primeira invocação a Exu, de acordo com a tradição
religiosa afro-brasileira, que abre todos os trabalhos espirituais
com o padê, a oferenda a Exu de uma prece digna de todo o peso
milenar da arte africana da oratória.
Thoth representa, junto com Ma’at, o conhecimento, a ciên-
cia e filosofia, a religiosidade e a ética na mais antiga civilização
africana. Assim, constituem referência básica para o resgate de
uma tradição africana escamoteada à população brasileira en-
quanto verdadeira matriz de nossa civilização, e também para o
resgate da ética na política, questão emergente no Brasil de hoje.
Assumindo o nome Thoth, dentro da postura africana em que o
nome ultrapassa a denominação, esta revista tem o objetivo de
contribuir, de alguma forma, para os dois resgates, afirmando ain-
da que o primeiro faz parte imprescindível do segundo.
Crônica da Cuba Abdias Nascimento, homem de
vermelha teatro brasileiro, visitou Cuba e teve a
gentileza de escrever para T.I. as impres-
sões que publicamos adiante. Escrever
para T.I. quer dizer: para os seus cole-
gas de profissão e, de passagem, para os
homens de cor. Abdias do Nascimento é
um apaixonado pela sua raça negra. Não
luta Abdias pela assimilação do negro
pelos brancos, forma adotada como de
“justiça social”. Não quer ele que a raça
negra “se dilua na branca como um pou-
co de café no pote do leite”. Isso, sim,
seria o genocídio indolor da raça negra.
E é o que os “evoluídos”, de um e outro
lado, vêm pedindo, incoerentemente. Em
Cuba os olhos do articulista voltaram-se
para a situação do negro nessa nova so-
ciedade. As ilustrações e as legendas são
também de Abdias. Mas vamos ao que
Abdias Nascimento ele nos conta:
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Debates

Embarquei no Galeão com um Desembarco no Hotel Haba-


propósito: apagar da memória as ideias na Libre. Alojam-me no apartamento
que tinha sobre a Revolução Cubana. 1305 no internacionalmente conhecido
Desejava partir intocado como um anjo. ex-hotel Hilton onde, antes da Revolu-
Livre da influência do noticiário da im- ção, sabia que negro jamais entrara se-
prensa e das imagens pré-fabricadas. quer como faxineiro. Observo as tabelas
Uma Cuba nua e pura – eis o que meus de preço (as antigas ainda permanecem
olhos ambicionavam surpreender. Os fixadas nos aposentos): diária de uma
julgamentos apriorísticos – sempre in- pessoa, sem refeições: 40 dólares (cerca
teressados – pesam, incomodam, per- de oito mil cruzeiros no câmbio de 200
turbam a nossa isenção. Nesse estado cruzeiros por dólar); diária atual (pós-
de ânimo – um teólogo chamaria de -revolução): seis pesos uma pessoa, ca-
inocência angélica – subi aos céus num sal oito pesos (1.200 e 1.600 cruzeiros,
aparelho da Braniff. aproximadamente).
O avião sobrevoou a ilha em certa Sabemos que uma revolução não
manhã de inverno. Olho pela janelinha: dorme, seu preço exige vigília e tensão
lá embaixo o “crocodilo verde” emergia permanentes. A Revolução Cubana ti-
lento da neblina. Moitas de palmeiras – nha, para agravar sua tensão, uma sobre-
ou coqueiros? – se destacam, aumentam carga dramática: a ameaça de iminente
rapidamente de tamanho à medida que o invasão do País por forças norte-ame-
aparelho desce. Observo agora a esplên- ricanas. Enquanto tomava banho, me
dida tonalidade verde que se revela em perguntava se por isso a vida da cidade,
crescente nitidez. Prenúncio do que em a vida da Nação não estaria paralisada.
1492 Colombo definira como “a mais Estava ansioso por verificar essas coi-
bela terra que os olhos humanos con- sas, por isso não quis descansar.
templaram”? Veremos. Visitantes do mundo inteiro acor-
Em terra, da parede do edificio reram à ilha a fim de participar dos fes-
do aeroporto avançou, em alto relevo, tejos do segundo aniversário da vitória
um letreiro: “Cuba – Territorio Libre de da Revolução. O hall do hotel regurgi-
América”. À pacatez, em termos bra- tava como um formigueiro, colorido e
sileiros, essa primeira manifestação do trepidante como uma feira. Africanos,
clima revolucionário produz um impac- asiáticos, latino-americanos, hindus e
to. Dentro em pouco, instalado em lu- até norte-americanos, brancos e negros,
xuosa limusine do Instituto Cubano de irmanados numa delegação única. Cum-
Amistad con los Pueblos, atravesso ruas prindo os planos que fiz de ver por mim
da cidade: amplas, arborizadas, limpas. mesmo, diretamente e sem intermediá-
Espio o asfalto, não vejo buracos. Ha- rios, abdiquei das prerrogativas de con-
vana amanhece formosa e perfumada. vidado oficial do Governo Revolucioná-
Evoco nossa “Cidade Maravilhosa” e rio. Evitei os roteiros oficiais, as visitas
sinto a primeira inveja dos cubanos. coletivas. Provavelmente terei sido um
Aqui Guatemala, xilogravura de Carmelo Gonçalves, representa a
solidariedade da Revolução Cubana a todos os povos oprimidos
Crônica da Cuba vermelha
Abdias Nascimento 25

convidado imperfeito: estive ausente de Exército Rebelde, a Milícia Nacional


quase todos os atos programados por Revolucionária, os Jovens Rebeldes.
entidades ou autoridades. Queria me Não se alarme o tímido verde-amarelo:
aventurar sozinho, caminhar, ver, sentir, vi garotas delicadas e formosas – aqui
viver. Não conhecia ninguém, não sa- estariam no Sion ou no Sach’s – de pá
bia nada de nada. Haveria algum perigo e picareta na mão abrindo trincheiras ao
com a situação excepcional que o país redor do Capitólio. As mulheres cuba-
atravessava? Melhor que houvesse: eu nas comandam tropas, são camponesas
me perderia ou me encontraria nos ca- e operárias da indústria, são líderes polí-
minhos da Revolução... ticos e altos dirigentes governamentais.
Por exemplo: uma mulher ocupa a pasta
de Ministra do Bem-Estar Social; outra
Impressões da mulher cubana é o diretora do Departamento Nacional
de Cultura; Haydée Santamaria, heroína
de Sierra Maestra, é a diretora da Casa
Sem direção definida, meio per- de las Américas, órgão cultural do Mi-
dido, caminhei devagar pelas calles nistério de Relações Exteriores; Mirta
próximas ao hotel. Primeira verificação: Aguirre dirige o Departamento de Arte
o povo cubano é muito espontâneo e Dramática do Teatro Nacional, e assim
cordial. À moda carioca, ele possui um por diante.
jeito simpático, informal, de puxar con-
Quando eu visitava certa tarde os
versa e fazer amizade. Povo mesclado:
jardins do Hotel Nacional, deparei com
brancos, pretos e mulatos se confundem
uma jovem miliciana de sentinela. Fita-
nas calçadas, nas casas de comércio, nos
va avidamente o mar que se perdia no
ônibus, nas forças armadas. Soldados da infinito pré-crepuscular. Estaria sonhan-
Milícia Nacional Revolucionária, arma- do? No regaço da moça a metralhadora
dos de metralhadoras portáteis (fabri- parecia um objeto estranho e inútil. In-
cação tchecoslovaca), montam guarda terroguei:
em edifícios públicos, hotéis, bancos,
– Triste ou cansada?
estações de rádio e televisão etc. Há
pelotões femininos cruzando as ruas. – Nem uma coisa, nem outra: es-
Metralhadora sob o braço, passo mili- tou na expectativa – falou sorrindo para
tar e muita feminilidade. Uma ginga de mim e reforçando as palavras com en-
quadris, a coqueteria no uso do gorro, cantandor movimento de cabeça.
cabelos despenteados de Brigite Bardot,
são evidentes sinais de coqueteria que a Jânio, Prestes e “paredón”
farda não consegue reprimir. Entretanto,
moças e senhoras – constatei mais tarde
– não se exibem apenas. A tarefa da Milí- Aquele estado de alarma, de ex-
cia Feminina é tão pesada e responsável pectativa, segundo definiu a miliciana,
quanto a dos demais corpos armados: o não paralisou a vida da cidade. Procu-
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Debates

rei mesmo com insistência surpreender às festas da independência do Senegal e


um justificado temor a qualquer receio convidou o cardeal africano de Tangani-
pelo que pudesse acontecer. Não encon- ka para oficiar a missa do próximo dia 7
trei nada disso. Vi uma população alegre de setembro. São eloquentes manifesta-
e confiante. Muito mais feliz do que a ções de apreço aos povos africanos, com
nossa, ou do que a população triste da os quais promete iniciar imediatas rela-
Cidade do México que eu visitei depois. ções diplomáticas e culturais. Firmou
No meio da população civil, o o Presidente Jânio uma nítida posição
verde-oliva empresta toques marciais anticolonialista, fez declarações favorá-
à cidade. Uma senhora, à qual pedi in- veis à autodeterminação de Cuba.
formações, ao saber minha nacionalida- Tomo um ônibus e o regresso me
de, me bombardeia de perguntas. Quer aproxima a um mulato escuro, de cabeça
saber como se vive no Brasil, o que as grisalha, demonstrando mais de sessen-
mulheres vestem, preço de alimento, ta anos de idade. Sabia de memória uma
o que penso de Jânio Quadros. Não se porção de coisas a respeito do Brasil.
tratava de bisbilhotice, mas de honesta Mencionou o nome de todos os estados
curiosidade por tudo o que se refere ao
e de suas capitais; mencionou as prin-
nosso País. Além de afeto, de amizade,
cipais cidades, estradas de ferro, pro-
esperança e confiança nos brasileiros.
dução agrícola, indústrias... Teria êxito
Em momentos como os que pas- seguro no programa: O céu é o limite.
sei, a gente verifica que não tarda a hora Atingimos o centro comercial da cidade,
do nosso País se tomar realmente uma eu ia saltar. Ele então me pediu noticias
potência de primeira grandeza. Basta de Luís Carlos Prestes: “Acompanho a
que o Brasil não continue se omitindo vida desse homem desde 1924”. Da cal-
nos grandes problemas internacionais
çada fiquei observando aquele comunis-
que agitam o mundo, que não dê as cos-
ta que sabia a respeito do Brasil mais do
tas aos povos que nele esperam encon-
que muitos brasileiros pretensiosos. O
trar um aliado de fato: os povos asiáti-
ônibus seguiu caminho.
cos, os africanos, os latino-americanos,
enfim, os povos colonizados ou semi- Em determinado trecho a calçada
colonizados como nós. No momento se achava bloqueada por uma multidão.
em que redijo estas maltraçadas linhas, Policiais e bombeiros enchiam o meio
parece que o Presidente Jânio Quadros da rua. Fui informado que terroristas
vai acabar com a subserviência brasilei- haviam incendiado o grande Magazine
ra em matéria de política exterior. Para La Época, de cujas janelas, no alto do
início de conversa, prometeu acabar edifício, vi saírem chamas e fumaça. Sú-
com essa história do Itamarati barrar o bito, um grito se ouviu: “paredón!” Me
ingresso do negro, como se fosse uma afastei para ver melhor, outras vozes se
África do Sul ou uma Alemanha racista. uniram à primeira: “paredón”, o vozeiro
Até já enviou o Ministro Afonso Arinos cresceu rápido: “paredón!” ...
O Senador Abdias Nascimento e seu filho Osiris, em visita a Havana (Cuba) no período de 6 a 13 de abril último, caminham pela colorida praça histórica onde
se encontra a bela matriz católica dos tempos coloniais. Toda a praça é modelo exemplar de arquitetura barroca das igrejas dos séculos passados
Crônica da Cuba vermelha
Abdias Nascimento 29

Mudei de itinerário e continuei Depois de comer, saí novamente.


minha ronda. Vitrinas bem arrumadas Tomei um táxi e pedi: Ministério das
exibem roupas femininas e masculinas. Relações Exteriores. Puxo conversa
Tecidos variados em gênero e qualida- com o motorista: se melhorou ou piorou
de. Não havia muita diferença dos mos- seu salário, se está satisfeito com a Re-
truários de Gonçalves Dias-Ouvidor ou volução. O homem me responde como
do comércio de Copacabana. E como o quem se sentisse injuriado:
“charme” das cubanas é bem cultivado! – Claro que estou satisfeito. Se
Em relação a sapatos, por exemplo, a pertenço até à milícia. Deixo o táxi às
coisa impressiona. Muita fantasia nas 6 da tarde, vou em casa jantar e ver a
formas audaciosas, elegantes. Os pre- família, e às 9 pego o plantão.
ços se equiparam aos daqui. Apenas os Mas eu estava, como se diz, a fim
artigos de procedência norte-americana de provocar o cidadão:
são escassos e mais caros. Tive a expe- – Quer dizer que Fidel tem tudo e
riência quando necessitei adquirir uma vocês não têm o direito nem ao descan-
caneta Parker. Brinquedos chineses e so depois do trabalho?
japoneses, bonecas cubanas se derra- – Fidel tinha tudo. (O motorista
mavam de longas mesas instaladas nas me olhou condescendente: estrangeiro
calçadas. Um comércio improvisado, de não sabe mesmo de nada. Em seguida,
emergência. despejou um verdadeiro discurso) Fidel
tinha terras, tinha fazendas, e dividiu
tudo com os camponeses. (Palavras de
Os pretos no mundo que a Monsenhor Evelio Díaz, bispo católico:
Revolução criou “Acreditamos que nossa atual reforma
agrária, em seu nobre propósito, entre
de cheio dentro do espírito e do sentido
Almocei na cafeteria do hotel:
da justiça social cristã, tão claramen-
coquetel de fruta (nossa salada de frutas
te proposta e definida pelo pontificado
figura correntemente como o prato ini-
romano, sobretudo desde Leão XIII em
cial do cardápio cubano), arroz, batatas sua encíclica Rerum Novarum). Mira –
coradas e uma espécie de carne em con- prossegue o chofer – antes da Revolu-
serva lembrando come-bife. Em Havana ção eu pagava de aluguel 70 pesos por
não comi carne verde. Há grande consu- mês (cerca de 14 mil cruzeiros) e ga-
mo de carne de porco, aves – como pre- nhava 100 pesos. Hoje pago 15 pesos de
param bem o frango assado! – cereais, mensalidade, com uma diferença: o alu-
legumes. Tive ocasião de visitar o mer- guel, com a reforma urbana, se tornou
cado e vi berinjelas enormes, do tama- a prestação da minha casa própria. Meu
nho de abóboras. Grande variedade de salário é o mesmo, mas agora dá para a
frutos regionais, legumes viçosos, peixe gente viver. Quer saber? Para mim, Fi-
em quantidade. Um mercado farto. del é um Jesus Cristo. (Olhei bem para
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Debates

a cara do homem: tive a certeza que não aglomerava à porta do cinema aplaudiu
era um débil mental. Noutras ocasiões e gritou o seu nome.
ouvi a mesma afirmativa de gente sim- Abandonei o Ministério do Ex-
ples, porém sensata). terior meditando. “Então é mesmo pos-
No Ministério do Exterior pedi à sível que pretos e brancos se integrem,
secretária que me anunciasse ao diretor sem que essa integração signifique o
do Departamento Cultural. Não conhe- desaparecimento do negro ou a sua per-
cia o Sr. Vigoa. Enquanto esperava, ob- manência somente nas posições inferio-
servei a vivacidade e a informalidade de res da sociedade?” Vi mulheres negras
funcionários e diplomatas. Que diferen- comandando pelotões e dirigindo ser-
ça dos nossos emproados e equívocos viços; os trabalhadores da indústria do
itamaratianos! açúcar têm um mártir: o negro Jesús
– Quer falar comigo? Menéndez, assassinado pelos antigos
monopolistas do produto; outro negro,
Surgiu à porta um negro alto e inteligente, sensível e culto, Odilio
sorridente. Eu estava distraído, me as- Urfé, ocupa a direção do Instituto Na-
sustei, pensei que estava dando um pas- cional de Investigaciones Folklóricas. O
so em falso: mulato Juan de Almeyda ocupa o mais
– Desejo falar ao diretor, o Sr. alto posto no Exército Rebelde. Antonio
Vigoa. Maceo, general negro, e o branco José
– Tenha a bondade de passar ao Martí são as figuras máximas da Histó-
meu gabinete. (Fez um gesto de extrema ria de Cuba. O povo lhes dedica profun-
gentileza e compreensão. Eu tinha cer- da veneração. A mãe dos Maceo (outro
teza de que ele sabia a razão da minha irmão de Antonio, também general), ne-
surpresa, mas nada dissemos sobre o gra, é a patronesse da Milícía Feminina
assunto). Revolucionária.
O Sr. Vigoa desculpou-se por Quem conhece minha vida públi-
me haver feito esperar. Não me levara ca compreenderá por que esse aspecto
ali nenhum assunto específico. Queria da Revolução Cubana foi para mim a
apenas conversar, me informar a res- experiência mais forte e importante.
peito de coisas e assuntos de arte. Em
certo instante o diretor pega o telefone,
O segundo aniversário da Revolução
disca e me põe em contato com Nicolás
Guillén, velho e querido amigo. Guillén
é o poeta nacional de Cuba. Andei com Para mim, as festas de aniversário
ele pelas ruas e em qualquer lugar ele é foram as três solenidades a que compa-
abraçado, é festejado, por gente humil- reci: 1 – início do Año de la Educación,
de e estudantes, políticos, escritores e em Ciudad Libertad, a 31 de dezembro;
milicianos. À saída da estreia do filme 2 – desfile militar, na Praça Cívica, a 2
Histórias da Revolução, o povo que se de janeiro; 3 – recepção do Presidente
Crônica da Cuba vermelha
Abdias Nascimento 31

da República, Dr. Osvaldo Dorticós Tor- Hiroshima. Uma bomba atômica – ou de


rado, no Palácio do Governo. hidrogênio é melhor, senhores imperia-
Lá pelas 22 horas, cheguei á Ci- listas? – matando seis milhões de uma
dade Liberdade, ex-Campo de Colúm- vez, arrasando o território da ilha, aí,
bia e principal centro bélico do tirano sim, seria possível liquidar aquela Re-
Fulgencio Batista. Transformada em volução que cada pessoa defendia como
escola, a fortaleza tomou o nome su- coisa sua, pessoal e intransferível. Para
gestivo de Cidade Liberdade. No mo- nós, brasileiros, cuja evolução históri-
mento em que Fidel Castro entregava ca foi relativamente calma, na base de
o Campo de Colúmbia ao Ministro da flores, é difícil compreender que aquele
Educação (1959), em discurso-diálogo povo não está apenas fazendo bravatas.
com os escolares, perguntou: “Para que Mas é só consultar os fatos históricos da-
queremos uma fortaleza aqui rodeando quele país para verificar que o sangue é
a cidade? Para que queremos quartéis, uma constante. As lutas, as batalhas pela
se o que faz falta são escolas, se o que independência de Cuba são pelejas de fe-
faz falta são campos desportivos, se o rocidade, de morte, de sangue. Cuba ver-
que faz falta é que todo o mundo viva melha, banhada em sangue – eis a ima-
sem medo, para que todo o mundo viva gem que a história nos transmite.
em paz?” Caracterizando ainda mais o Nos imensos campos da Cida-
sentido civil e popular do seu governo, de Liberdade a multidão – 20 mil, 50
acrescentou: “Agora há mais soldados mil, 100 mil pessoas? – entusiasmada
que antes, porque todos são soldados e ordeira se instalara ao longo de com-
da Revolução. Agora em vez de dez pridas mesas. Foi servida uma ceia con-
mil, vinte mil ou trinta mil, temos seis dicionada higienicamente em caixas de
milhões de soldados para a Revolução, papelão: galinha frita, carne de porco
porque a defendem as crianças, os ve- assada, biscoitos, uvas e meio litro de
lhos, os camponeses, os operários, os vinho espanhol. Vaguei pelos quatro
estudantes, os professores, todos; todo cantos. Senhoras envergavam toaletes
o povo é soldado da Revolução.” Cada caras, soirés roçavam a grama. Tudo em
casa, cada lar cubano – confirmei mais homenagem ao Año de la Educación,
tarde – se transformou num quartel, em como aquele que findava fora o Año de
arsenal particular da família. la Reforma Agraria.
Esse fato propõe uma meditação. Fidel Castro assomou numa pla-
Como é que alguém pode incriminar Fi- taforma, aproximou-se dos microfones.
del Castro de ser um ditador se ele, em Começou a falar, os alto-falantes am-
vez de uma tropa que o defenda, arma pliaram sua voz que era ouvida desde
o povo, entrega ao povo armado a se- longe. Sombras interferiam no jato de
gurança e a defesa da sua “ditadura”? luz do projetor que o iluminava. O lí-
Bem, aquele “ditador” só poderia ser der máximo da Revolução me deu uma
derrotado com a repetição da tragédia de impressão curiosa de irrealidade. A mul-
32 THOTH 4/ abril de 1998
Debates

tidão, o tablado, a imagem de Fidel dis- menor cerimônia, qualquer um chama-


cursando formavam para mim um todo va o primeiro-ministro simplesmente de
incrível, fantástico. Ou seria exaltação Fidel; ele respondia com naturalidade.
dos meus sentidos, da minha imagina- Uma forma de tratamento íntima e ca-
ção? Entretanto, Fidel, apesar da barba rinhosa, o que, obviamente, não exclui
de nazareno, nada tinha do Jesus Cristo o respeito. Fidel é sempre o camarada,
do motorista. Me ocorreu outra defi- o amigo. Guia pessoalmente seu carro
nição dos cubanos a respeito de Fidel: e, quando menos se espera, o primeiro-
EI Caballo. Possivelmente a origem do -ministro salta numa rua, numa praça,
epíteto não estava apenas no seu vo- conversa com o povo, toma notas. Em
lume atlético de dois metros de altura. seguida decide, na base do conhecimen-
Haveria algo mais. Com atenção e pre- to direto das necessidades e dos interes-
tensão, julgo ter decifrado a significação ses coletivos. Fidel e seus companheiros
do Caballo: me pareceu um ser bipolar, de liderança fazem uma revolução de
a um tempo homem e cavalo. Um ser ação, ágil, de uma vivacidade de cau-
estranho, formidável e invencível, herói sar espanto. Eles não se preocupam em
mitológico que milagrosamente ressur- produzir uma teoria da sua revolução,
ge de uma epopeia grega. muito menos com a teoria da revolução
produzida por outros povos. A identifi-
Ao primeiro minuto de 1961, Fi- cação da Revolução Cubana, por exem-
del anuncia o início do Año de la Edu- plo, com o comunismo é algo que corre
cación. Mobilização total de todos os ci- por conta de quem a faz.
dadãos para acabar, em 12 meses, com o
Desfilou o Exército Rebelde
analfabetismo no território nacional. O
tendo à frente o comandante-em-chefe
povo assumiu com ele o compromisso
Juan de Almeyda. Não tinha aspecto
solene. Mais de mil professores voluntá-
brilhante, nem nos uniformes nem no
rios, procedentes do interior, ali se acha-
garbo. Mas se adivinhava a luta e o he-
vam presentes. A comemoração atingira
roísmo daqueles soldados – no passo
seu ponto culminante. Todo o mundo
trôpego, na farda desigual e por vezes
cantou e dançou, as pessoas, mesmo
amarfanhada. Um desfile tocante, mui-
desconhecidas entre si, se abraçavam e to diferente das paradas dos exércitos
se beijavam. Pensei nos 50 milhões de profissionalizados. A Milícia Feminina,
brasileiros que não sabem ler e escrever. passo altivo, garboso, em formação im-
Invejei novamente. pecável, precedeu o discurso de Fidel, os
Durante a parada militar do dia poemas declamados por Pablo Neruda e
2, na Praça Cívica, pude observar Fidel Nicolás Guillén. Encerrando a solenida-
mais de perto. Ele estava situado sob a de, foi exibido um foguete, reconstruído
enorme e bela escultura representando por técnicos locais, lançado pelos Esta-
José Martí. O sol caía em cheio sobre dos Unidos. O teleguiado caiu em terri-
o palanque oficial. Fidel se agitava, ria, tório cubano e matou algumas galinhas.
feliz como um garoto brincalhão. Sem a Foi recebido por uma gargalhada geral.
Crônica da Cuba vermelha
Abdias Nascimento 33

A música é um dos produtos mais significativos da cultura cubana. De autoria de


Carmelo Ganzález, esta xilogravura se intitula Concierto Nocturno

Nada de especial na recepção do del Castro, o primeiro-ministro recebeu


Presidente Dorticós. Sociedade cubana, uma notícia e se retirou incontinente da
convidados estrangeiros e, naturalmen- recepção: os Estados Unidos acabavam
te, os “barbudos”. Felicitei o Presidente de romper as relações com Cuba.
Dorticós pelo exemplo de democracia
racial que seu governo estava dando ao
Teatro, artistas e vida noturna
mundo. Um exemplo principalmente
para o Brasil, onde os brancos negam
a existência do preconceito, mas ne- Pretendo, em nota posterior, falar
gro não consegue ser nada. Antes que do teatro em Cuba. Assim, rapidamente,
me tocasse a vez de cumprimentar Fi- direi que os autores mais anunciados nas
34 THOTH 4/ abril de 1998
Debates

várias salas de espetáculos são Tchecov flauta, contrabaixo, guitarra, cuíca, ele
e Bertold Brecht. Assisti a Medea en el ao piano. Uma gostosura aquela músi-
espejo, autoria de um jovem, e tanto tex- ca que tem a um tempo o rendilhado, a
to como direção (Morín) e interpretação delicadeza da contradança francesa, da
(papel-título: Asseneh Rodriguez) me qual é filha legítima, e o ritmo criollo –
agradaram. intenso, cálido, maravilhoso.
Vi dois ótimos espetáculos de Não encontrei nas livrarias de
folclore na Sala Covarrubias do Teatro Havana obras brasileiras. Somente al-
Nacional. Tais espetáculos foram orga- gumas traduções de romances de Jorge
nizados por Argeliers Léon, diretor do Amado. Nem livros, nem discos. Reen-
Departamento de Folclore do Teatro contrei o nosso Caymmi, a nossa Araci
Nacional, que tem ainda os seguintes de Almeida, o ritmo de nossas escolas
departamentos: de Música, de Arte Dra- de samba na residência do casal Hélio
mática (dirigido por Mirta Aguirre) e de Dutra – Gina Cabrera. Ele brasileiro, di-
Danças Modernas. Este último departa- rigente de um laboratório farmacêutico;
mento, sob a responsabilidade de Rami- ela cubana, atriz consagrada do teatro
ro Guerra, produz um trabalho do mais e da televisão. Gina já esteve de férias
alto valor para a criação de uma dança em nosso País. Viu nossos espetáculos
cubana. de teatro e boate. De volta a Havana,
Há, em Havana, enorme interesse fez uma documentada conferência sobre
pelo nosso teatro. Fiz uma exposição de teatro brasileiro e alimenta um desejo:
fotografias do Teatro Experimental do representar uma peça brasileira (Vestido
Negro na Biblioteca da Casa de las Amé- de noiva, de Nelson Rodrigues, talvez).
ricas, e na inauguração pronunciei uma Num espetáculo do Tropicana, vi
conferência. No Departamento de Arte um quadro bem realizado com a música
Dramática, também falei sobre o nosso de Tom e Vinícius de Morais “Manhã
teatro, e finda a palestra, com os alunos de carnaval”, do filme Orfeu, que lá ob-
do seminário, realizou-se um debate. teve grande êxito. Com a interpretação
Instituição da mais alta impor- da “Serafina” desse filme, Léa Garcia
tância cultural é o Instituto Nacional de ganhou cartaz em Cuba. A vida noturna
Investigaciones Folklóricas, que fun- de Havana é intensa. Visitei, em com-
ciona numa velha igreja reconstruída panhia do arquiteto Robaina, subdiretor
(lglesia de Paula). Seu diretor é Odilio da Casa de las Américas, restaurantes tí-
Urfé, um apaixonado da matéria. Man- picos, como La Carreta, um bar-restau-
tém um museu folclórico precioso, e rante superesnobe chamado significati-
foi nesse ambiente, tresandando às for- vamente Monsenhor, o pontão de Regla
tes tradições cubanas, que ouvi o mais (pequena cidade a que se vai de barco,
belo gênero da música popular do país: assim como Niterói). Em Regia, vi
o danzón. Na véspera do meu regresso, como se dança verdadeiramente um bo-
Urfé reuniu alguns “cobras”: violino, lero, uma rumba-colúmbia ou um chá-
Crônica da Cuba vermelha
Abdias Nascimento 35

-chá-chá. Uma riqueza de movimentos, Mil veces se ha repetido


passos complicados, plena invenção. O que aquí los que vengan quedan
ambiente, mais pobre, lembra nossas
que lo piensen mientras puedan
gafieiras, tanto no fervor coreográfico
dos dançarinos como na “bossa” e no no después de haber venido.
gosto por mulher. De novo a bordo de um avião,
Nicolás Guillén me levou à Bo- agora rumo ao México. Hélio Dutra me
deguita del Medio para conhecer as be- acompanhou ao aeroporto. Meus ami-
bidas da terra: daiquiri e mojito. Provar gos, meus irmãos cubanos ficaram. Co-
as comidas típicas (inclusive plátanos a migo trouxe a Revolução.
punetazos). A freguesia é recebida por
Carlos Puebla, compositor popular, que (Artigo publicado na revista
de guitarra em punho saudou num som: Teatro Ilustrado, outubro, 1961)
Discussão do Sessão de 11 de março de 1998

Projeto de Ação
O SR. PRESIDENTE (Bernardo
Compensatória Cabral) – Concedo a palavra ao Senador
Roberto Requião para relatar o projeto. A
na Comissão de preferência foi votada em homenagem ao
Constituição nosso colega Senador Abdias Nascimento.
O SR. ROBERTO REQUIÃO – Sr.
e Justiça do Presidente, o projeto do Senador Abdias
Senado Federal Nascimento dispõe sobre medidas de ação
compensatória para a implementação do
princípio da isonomia social do negro.
O SR. PRESIDENTE (Bernardo
Cabral) – Qual é o item da pauta, Senador?
O SR. ROBERTO REQUIÃO – É o
item nº 36, à pág. 429 do anexo.
O presente projeto de lei, de autoria
do Senador Abdias Nascimento, tem por es-
copo exigir que todos os órgãos da Adminis-
tração Pública direta e indireta, as empresas
40 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

públicas e as sociedades de economia quais incorporar ao conteúdo dos cursos


mista sejam obrigados a manter, nos de História Geral o ensino das contribui-
seus respectivos quadros de servidores, ções positivas das civilizações africanas
20% de homens negros e 20% de mu- e eliminar dos currículos e livros esco-
lheres negras em todos os postos de tra- lares qualquer referência preconceituosa
balho e de direção – art. 1º. ou estereotipada ao negro.
As empresas privadas passariam O art. 8º obriga as forças policiais
a ser obrigadas, de acordo com o art. 2º a incluírem nos currículos de seus cursos
do projeto, a executar medidas de ação orientação que vise a impedir qualquer
compensatória, com vistas a atingir, no comportamento de discriminação étnica.
prazo de cinco anos, a participação da Finalmente, o art. 9º estabelece
referida percentagem de homens e mu- que a Fundação Instituto Brasileiro de
lheres negros em todos os níveis de seu Geografia e Estatística está obrigada a
quadro, empregos e remunerações. incluir o quesito cor em todas as pesqui-
Pelo art. 3º, o candidato negro sas, estatísticas e censos.
teria preferência sobre o branco na ad- Na sua justificação, o nobre au-
missão a emprego, caso demonstradas tor da proposta enfatiza o árduo traba-
entre os dois idênticas qualificações lho dos negros na construção do Brasil,
profissionais. sem que fossem por ele minimamente
Com a finalidade de aumentar o compensados. Sofreram toda espécie de
número de candidatos negros qualifica- atrocidades e, por todas essas razões, é
dos em escalões superiores profissio- preciso que a Nação salde essa grande
nais, o art. 4º da iniciativa determina dívida que tem para com eles, justifican-
que o Ministério do Trabalho e os orga- do-se, assim, a ideia da isonomia pela
nismos de treinamento de mão de obra compensação, no sentido de indenizar
executem programas de aprendizagem. o trabalho não remunerado do negro es-
cravizado.
O seu art. 5º prevê a inclusão na
Lei Orçamentária Anual dos recursos O princípio do art. 5º da Cons-
tituição, segundo a justificação, ainda
necessários para o desenvolvimento de
não se constituiu num verdadeiro direito
estudos a respeito do ensino e do aper-
para o negro brasileiro, fazendo-se ne-
feiçoamento técnico das medidas de
cessária, assim, uma atitude concreta
ação compensatória.
para implementar o direito constitucio-
No art. 6º, destinam-se a estudan- nal de igualdade. Dessa forma, o pro-
tes negros 40% das bolsas de estudo con- jeto visa a aumentar as oportunidades
cedidas em todos os níveis de ensino. de trabalho, aperfeiçoar a educação dos
O art. 7º incumbe ao Ministério da negros e também o tratamento policial
Educação a implementação de medidas para com estes. Como não se pode es-
propostas por grupos de trabalho, com perar o espontâneo desaparecimento
vistas a uma série de objetivos, dentre os da discriminação nação depois de tanto
Senador Roberto Requião, relator do Projeto de Ação Compensatória
42 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

tempo em que ela se verificou, necessá- acesso à escola entre negro e branco, tão
rio se faz o estabelecimento das metas bem expostas pelo autor na justificação
legais aqui visadas. O projeto enfatiza, do projeto em exame. A esta altura, já
também, a desigualdade no tratamento não há como aceitar a tese de que essas
entre negros e brancos pela polícia. desproporções se devem às extremas
Em resumo, as medidas de ação desigualdades socioeconômicas exis-
compensatória da escravidão e discrimi- tentes no País.
nação estabelecidas pelo projeto de lei Os estudos disponíveis sobre a
proposto instituem maiores oportunida- matéria demonstram, já, as formas esca-
des para o negro integrar, em proporção moteadas das práticas discriminatórias
relativamente análoga à da participação da sociedade brasileira, as quais, toda-
branca, as esferas da vida nacional, das via, não resistem à crueza das estatísti-
quais ele tem sido excluído por tempo cas oficiais. Por isso não causa surpresa
demasiadamente longo. o perfil do presidiário brasileiro, resul-
O projeto não encontra óbices de tante do censo realizado em 1993, pelo
natureza constitucional e jurídica. Ao Conselho Nacional da Política Criminal
contrário, encontra amparo no verdadei- e Penitenciária, órgão do Ministério da
ro sentido da isonomia, consagrado no Justiça. De acordo com tal pesquisa, a
art. 5o da Lei Maior, que se traduz em quase totalidade dos presos é absoluta-
tratar desigualmente os desiguais. Para mente pobre: 68% têm menos de 25 anos,
tanto, é necessário que o Estado seja do- 76% são analfabetos ou semialfabetiza-
tado de normas, a fim de que, na prática, dos e dois terços são mulatos e negros.
a igualdade perante a lei seja verificada. Os negros e mulatos, que repre-
Transformada em lei, a presente sentam em torno de 45% da população
proposição será um instrumento básico brasileira, estão sempre sobrerepresen-
para se superar de fato a discriminação tados nos números relativos às piores si-
racial contra a população negra, até o tuações socioeconômicas, e infimamen-
presente impermeável às normas proi- te representados nas melhores posições
bitivas. O fato de, no Brasil, diferente- dos indicadores sociais. Naturalmente,
mente de outros países, a discriminação a discriminação contra os negros não é
racial não ser sancionada em lei desde algo patenteado apenas pelos números
a abolição do regime escravocrata tem das estatísticas, como atestam as mais
contribuído sensivelmente para a clássi- diversas formas do preconceito cotidia-
ca visão da “democracia racial”. Toda- no de que eles são vítimas. À maneira
via esse mito não resiste ao exame das de algo que já se tornou habitual com
estatísticas relativas à posição do negro o homem comum, a imprensa pratica-
no sistema de ocupações da economia mente se refere apenas às manifestações
brasileira – a diferenciação salarial com- que envolvem pessoas famosas, sempre
parativamente ao trabalhador branco, as negadas por seus autores quando o fato
diferenças de níveis educacionais e de adquire repercussão.
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 43

A discriminação racial está en- Opinamos, Sr. Presidente, pois,


tronizada na cultura brasileira de uma pela aprovação da iniciativa, que, se
forma bastante peculiar, pois, corren- transformada em lei, representará uma
temente, discrimina-se, escamoteia-se, alavanca para a ascensão econômica e
nega-se e ignora-se a discriminação social da população negra e sua com-
como se tais práticas não fizessem parte pensação tão merecida e necessária pelas
das relações sociais que conformam a injustiças sofridas ao longo da história.
Nação. Esse padrão de relacionamento É o Relatório.
entre brancos e negros tem-se mostrado
O SR. PRESIDENTE (Bernardo
impermeável às mudanças propostas pe-
Cabral) – A matéria está em discussão.
las normas legais proibitivas. É chegada
a hora de iniciativas que definam ações O SR. JEFFERSON PÉRES – Sr.
a serem impositivamente praticadas Presidente, peço a palavra para discutir.
pela sociedade, com o fim de cristalizar O SR. PRESIDENTE (Bernardo
novas formas de convivência social e Cabral) – Com a palavra o Senador Je-
superar a discriminação que condena os fferson Péres para discutir a matéria.
negros às posições socialmente menos O SR. JEFFERSON PÉRES
valorizadas. – Sr. Presidente, peço vista do projeto,
A chamada ação afirmativa sur- pois tenho dúvidas sobre a sua consti-
ge no nosso tempo justamente para que tucionalidade. Sr. Presidente, digo isso
possa ser construído um novo sentido com a tranquilidade de quem nunca foi,
da igualdade jurídica, reparando grave não é e nunca será racista. Nunca discri-
injustiça, sedimentada no passado, e minei as pessoas pela cor. Tenho amigos
que ainda se verifica no mundo atual. entre negros e outras raças.
Daí sua perfeita consonância com o ci- Sr. Presidente, tenho dúvidas so-
tado princípio magno e que representa bre a constitucionalidade. Não sei em
a necessidade de se pensar a igualdade que medida, entre pessoas com o mesmo
jurídica como igualação jurídica, que nível de qualificação, se possa dar prefe-
se faz constitucionalmente no compas- rência a umas ou outras em razão da cor,
so da história, no instante presente e de não sei se isso não fere a Constituição.
perspectiva vislumbrada em dada socie- Há um problema de ordem prática num
dade. A igualdade posta em movimento, país de mestiços como o Brasil. Quem
em processo de realização permanente, é negro e quem não o é? Como pesso-
a igualdade provocada pelo direito, se- as mestiças podem ser qualificadas?
gundo o sentido próprio a ela atribuído São brancas? São negras? Qual o grau
pela sociedade. (Carmem Lúcia Antunes de mestiçagem existente? Isso se dará
Rocha, “Ação afirmativa. O conteúdo quando houver predominância de carac-
democrático do princípio da igualdade terísticas africanas em relação às carac-
jurídica” Revista de Informação Legis- terísticas européias? Na prática, isso será
lativa nº 131, p. 287). impossível. Como isso poderá ser deter-
44 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

minado num país onde não há duas po- Senadores, o presente projeto de lei tem
pulações definidas, como, por exemplo, por escopo determinar, segundo o seu
nos Estados Unidos, onde se é negro ou art. 1º, que “todos os órgãos da Admi-
branco, onde a mestiçagem é muito pe- nistração Pública direta e indireta, as
quena? Haverá uma dificuldade enorme empresas públicas e as sociedades de
e, talvez, incontornável, Sr. Presidente. economia mista são obrigadas a manter,
Quanto à cota racial de 20% de nos seus respectivos quadros de servi-
mulheres e de homens negros para ad- dores, 20% de homens negros e 20% de
missão na Administração Pública dire- mulheres negras, em todos os postos de
ta e indireta, só se admite ingresso no trabalho e de direção”. Esse é o disposi-
serviço público, nas autarquias e na ad- tivo principal que norteia o objetivo da
ministração direta, mediante concurso iniciativa.
público. Como isso será colocado em Destacamos também o seu art. 3º,
prática? Será realizado um concurso segundo o qual “assegura-se a preferência
para brancos e outro para preencher a na admissão do candidato negro sem-
cota exclusiva de negros? Ou será fei- pre que ele demonstrar idênticas quali-
to um concurso exclusivamente para ficações profissionais às do candidato
negros, mas permitindo que os negros branco”. Embora digno de encômios, ao
também concorram com os brancos? revelar uma justa preocupação com re-
Sr. Presidente, compreendo que lação à melhoria das condições da raça
esse projeto de lei do Senador Abdias negra no Brasil, o projeto, a meu ver,
Nascimento é novo, mas penso que, tal- fere o art. 5º da Constituição Federal, no
vez, ele possa vir a motivar a ocorrência seu caput, que assim reza:
de conflitos raciais e de grandes e sérias “Art. 5º Todos são iguais perante
incompreensões entre negros e brancos. a lei, sem distinção de qualquer nature-
Quero examinar esse assunto com cui- za, garantindo-se aos brasileiros e aos
dado e, portanto, peço vista da matéria. estrangeiros residentes no País a invio-
O SR. PRESIDENTE (Bernardo labilidade do direito à vida, à liberdade,
Cabral) – A Presidência defere a vista e à igualdade, à segurança e à proprieda-
pede que os Srs. Senadores fiquem aten- de, nos termos seguintes (...).”
tos, porque, na próxima reunião, a matéria Dessa forma, é impossível deixar
será colocada em discussão e em votação. de reconhecer o vício de inconstitucio-
nalidade de que está eivada a propo-
sição, dada a clareza do mandamento
Sessão de 18 de março de 1998 maior. Não se pode, sob o argumento
de alavancar a condição de uma mino-
Concedo a palavra ao Senador Je- ria secularmente desassistida, fato que
fferson Péres. ninguém desconhece, praticar uma ver-
O SR. JEFFERSON PÉRES dadeira discriminação às avessas, equí-
– Sr. Presidente, Senhoras e Senhores voco no qual muitos incorrem ao inter-
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 45

pretar o citado Preceito Magno, na sua Trata-se de processo no qual dois


concepção clássica de tratar desigual- professores com a mesma qualificação
mente os desiguais, na medida em que apresentaram-se para um único cargo,
se desigualam. e o Conselho Escolar, em Nova Jersey,
“O projeto, tal como está redi- decidiu ficar com um instrutor e demi-
gido, constitui distorção do princípio tir o seu colega branco, apenas para au-
de igualdade, sediado na Constituição mentar o mixing racial no corpo docente
Federal. Há outros caminhos que po- do secundário.
dem levar à busca da isonomia social A Corte Suprema pediu ao Go-
do negro, sem ferir a Lei Maior. E aqui, verno Clinton que descreva, em linhas
oportuno é citar que, nos Estados Uni- gerais, qual a sua opinião quanto à pos-
dos, país que primeiro cuidou da ação sibilidade de empregadores poderem,
compensatória, as políticas de ação afir- em certas circunstâncias, favorecer
mativa não podem, nem como artifício candidatos a empregos pertencentes a
de simplificação, ser definidas como minorias sociais, para promover a diver-
políticas de cotas.” Cito Rosana Herin- sidade no trabalho. A professora Sha-
ron Taxman entrou com um processo,
ger, pesquisadora da Universidade de
dizendo que foi demitida injustamente
Maryland.
porque é branca. Ela venceu, e o Tribu-
Portanto, é importante salientar nal de Recursos da Filadélfia manteve
que, diferentemente do que se possa pen- essa vitória.
sar, na nação norte-americana, a medida
O caso também ameaça a capa-
de favorecimento das minorias raciais é
cidade de uma escola ou faculdade ci-
temporária, destinada a reverter situação
tar o valor educacional da diversidade
de desigualdade firmada ao longo do quando projeta programas de admissão
tempo, e não se assemelha à forma que o destinados a aumentar as matrículas das
presente projeto pretende adotar. minorias.
A propósito, citamos caso concre- “Argumentos a respeito dos be-
to editado na Gazela Mercantil, de 23 nefícios gerais da diversidade ou do im-
de janeiro de 1997, analisado por Bob pacto retardado de preconceitos sociais
Drumond, que corrobora os argumentos mais amplos não são suficientes para
aqui contidos: sobrepujar as leis federais, que tornaram
A Suprema Corte dos Estados ilegal a discriminação contra negros e
Unidos pediu à administração federal brancos, e, da mesma forma determi-
que apresente uma súmula, resumindo nou, o Tribunal Federal de Recursos.”
seus principais pontos de argumentação No Brasil, a melhor doutrina in-
em recurso pendente sobre uma poten- terpreta o art. 5º da Constituição nos
cial disputa, que será um marco divisor mesmos moldes dos comentários do
no controvertido debate nacional a res- renomado jurista José Cretella Júnior,
peito da política de preferências raciais. abaixo reproduzido:
46 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

“Se o critério é discriminar qual- bisneto de negro, que apresenta mais ca-
quer pessoa em razão da cor, comete-se, racterísticas da raça branca do que da
além do ilícito civil ou patrimonial, cri- negra, por exemplo, como poderia ser
me inafiançável e imprescritível, sujeito definido? Ele estaria incluso na cota
à pena de reclusão nos termos da lei. Se do projeto? E não é só. Como ficaria
houver admissão ou seleção para o em- a situação dos índios, que não são nem
prego, deverá prevalecer como critério, o brancos nem negros, mas são também
princípio de igualdade, segundo o qual to- secularmente discriminados? Mesmo
dos são selecionados sob os mesmos pa- entre os índios, há miscigenação.
drões e avaliados sob o mesmo critério.” Assim, ainda que a emenda fos-
Do comentário exposto, podemos se aprovada para incluir determinada
até mesmo concluir que o projeto pade- cota para sua raça, haveria dificuldade
ce também de vício de injuridicidade, de aplicabilidade, pelas mesmas razões
porque, caso seja aprovado, gerará ver- expostas, com relação à definição exata
dadeira incongruência no nosso ordena- do elemento negro.
mento jurídico como um todo e no trato Senador Bernardo Cabral, e se
da questão. se quisesse contemplar os índios, que
Existe outra razão que nos leva a também são discriminados, que também
concluir pela inconstitucionalidade da são minoria racial, num Estado como o
iniciativa, ou seja, aquela que diz respei- Amazonas? Como V. Exª sabe, no in-
to à sua eficácia. A eficácia vem a ser um terior do Amazonas, quem é índio, ca-
dos elementos que respaldam a norma boclo e branco no beiradão dos nossos
jurídica, sem a qual esta não pode sobre- municípios? Seria muito difícil aplicar
viver, por não produzir efeitos jurídicos a lei ou, então, não se aplicaria aos ín-
concretos, não gerar condições de aplica- dios e estaríamos sendo profundamente
bilidade e não encontrar eco no mundo injustos com eles.
do direito. Ora, lei sem eficácia não é lei, A eficácia seria bastante dificul-
por não ser dotada de um dos elementos tada também em alguns estados brasi-
primaciais: a força de coerção. leiros, notadamente no sul do País, em
O projeto analisado acarretaria, que a percentagem de negros é mínima
caso aprovado, dificuldade de eficácia em relação aos brancos, ou em estados
pelas razões que passamos a expor. No do Norte, em que o elemento indígena
Brasil, país que se destaca por inten- é o predominante. Não haveria, nesses
sa miscigenação, é quase impossível estados, condições de tornar diploma
separar as diversas raças. Quem seria legal com esse teor eficaz por absoluta
considerado negro e quem não o seria? falta de elemento humano, no sentido
Poder-se-ia afirmar que os mulatos o quantitativo, para preencher a quota de-
sejam, pois a comunidade negra assim terminada.
os considera. Porém, mesmo entre eles, Repetimos, dada a sua importân-
há diversidade grande de cor. O mulato cia, que a eficácia é característica indis-
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 47

pensável para a validade da lei, carac- riamente, a liberdade e as garantias de


terística que “diz respeito às condições propriedade”.
fáticas, axiológicas e técnicas da atua- Além das razões já expostas
ção da norma jurídica. A eficácia vem quanto à ineficácia do projeto, no que
a ser a qualidade do preceito normativo se refere à difícil definição das raças
vigente de produzir os efeitos jurídicos e à sua aplicabilidade nos estados em
concretos, supondo não só a questão da que o elemento negro é escasso, vis-
sua condição técnica de aplicação, ob- lumbramos também embaraços no que
servância ou não pelas pessoas a quem diz respeito à realização de concursos
se dirige, mas também de sua adequa- públicos. Reservar 40% das vagas para
ção, em face da realidade social por ele o negro, tão-só em virtude da cor, seria
disciplinada e aos valores vigentes nessa desprezar a avaliação da capacidade, tão
sociedade. A análise eficacial importará relevante para o funcionamento da má-
em se saber se os destinatários da norma quina estatal.
ajustam, ou não, seu comportamento às A verdadeira isonomia no con-
prescrições normativas, aplicando-as, curso consiste em selecionar os mais ca-
ou não”. (Tércio Sampaio Ferraz Júnior, pazes independentemente de raça, sexo,
Maria Helena Diniz e Rita Stevenson Ge- etc. Esse foi o espírito norteador do le-
orgakilas, em Constituição 1989 – legiti- gislador constituinte ao inserir no corpo
midade, vigência, eficácia e supremacia. da Carta Magna o preceito contido no
inciso II do art. 37, segundo o qual “a
Portanto, um dos pilares sobre os
investidura em cargo ou emprego pú-
quais deve firmar-se a norma legal é a
blico depende de aprovação prévia em
sua eficácia, que lhe garante aplicabili- concurso público de provas ou de pro-
dade no mundo jurídico. vas e títulos, ressalvadas as nomeações
Interpretar de outra, forma o art. 5º para cargos de comissão”.
da Constituição, sem considerar a sua A Carta atual, no tocante à essa
substância, seria vulnerar a ordem po- questão, é mais rigorosa do que a ante-
lítica estabelecida no Texto Maior, por rior, pois esta falava em obrigatoriedade
desconsiderar a finalidade contida na do concurso para a primeira investidura
referida norma. Pertinente aqui ao ensi- no serviço público, dando ensejo, então,
namento de Carlos Maximiliano sobre para a ascensão funcional, critério duvi-
hermenêutica constitucional interpre- doso de seleção tão em voga na época.
tam-se restritivamente os dispositivos Agora, não só a primeira investidura
que instituem regras gerais firmadas na quanto todo e qualquer ingresso no ser-
Constituição. “Assim, entenda-se os que viço público dar-se-á somente mediante
favorecem algumas profissões, classes concurso público.
ou indivíduos, excluem outros, estabe- Assim, tanto seria inteiramente
lecem compatibilidade, asseguram prer- inconstitucional a reserva de 40% das
rogativas ou cerceiam, embora tempora- vagas para candidatos negros aprovados
48 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

em concurso público, independentemen- mente fortes se avantajam, criando-se,


te de sua classificação, como também o em seu benefício, não apenas regras que
seria se essas vagas, para se aplicar o ponham termo a uma desigualdade, mas
projeto, tivessem que ser preenchidas que, muitas vezes, passam a beneficiá-
independentemente de concurso pú- -las de modo a torná-las verdadeiramen-
blico. É diferente o caso do percentual te privilegiadas. Está nisso, sem dúvida,
constitucionalmente estabelecido no um desvio. O legislador há de estabele-
serviço público para os deficientes físi- cer tratamento desigual para situações
cos. Além de constituir exceção à regra desiguais, mas, se tratar desigualmente
geral, firmada no próprio corpo da Lei situações que não são desiguais, o que
Maior, tal percentual encontra amparo sucede é que beneficia desarrazoada-
no princípio de tratar desigualmente os mente determinadas categorias e incide
desiguais, na medida em que se desigua- em inconstitucionalidade.
lam, já que a condição de deficientes por “Por outro lado, o princípio da
si só dificulta o ingresso no mercado de igualdade que, como se viu, se impõe
trabalho, dada a sua inferioridade física. ao próprio legislador a fortiori obriga o
Manoel Gonçalves Ferreira Filho Judiciário e a administração na aplica-
tece brilhante comentário ao princípio ção que dão à lei. Da consagração cons-
constitucional da isonomia, que repro- titucional e de isonomia, resulta a regra
duzimos aqui por oportuno e pertinente hermenêutica de que sempre se deverá
ao assunto sob comenta: preferir interpretação que iguale não a
que discrimine.”
“A necessidade de desigualar os
homens em certos momentos para es- Finalmente, temos a observar,
tabelecer, no plano fundamental, a sua também, que o projeto, se transformado
igualdade cria problemas delicados, que em lei, pode vir a gerar injustiça. Imagi-
nem sempre a razão humana resolve nemos a situação em que um candidato
adequadamente. O imperativo do tra- branco muito pobre e, portanto, neces-
tamento desigual dos que estão em si- sitado daquele emprego para o qual se
tuação desigual, na medida em que se habilitou por meio de concurso público,
desigualam, impõe, por exemplo, ao le- classificando-se nos primeiros lugares,
gislador o estabelecimento de leis espe- perdesse sua vaga para um candidato ne-
ciais que protejam determinadas catego- gro, de boas condições financeiras, que,
rias. Para isso, editam-se leis destinadas embora aprovado no mesmo concurso,
a amparar os economicamente fracos, houvesse obtido classificação inferior.
os trabalhadores, os mal-alojados, os in- O Sr. Pedro Simon – O que seria
quilinos e assim por diante. Ocorre, po- 1% dos casos.
rém, que a apreciação dessas desigual- O SR. JEFFERSON PÉRES –
dades que devem ser comparadas ou Sim, mas não gosto de injustiça, mesmo
reparadas é sujeita a critérios políticos. que em mil se atinja um. Se pudesse evi-
Desse modo, certas minorias politica- tar injustiça, evitaria.
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 49

Sr. Presidente, farei um comentá- ser breve, porque terá oportunidade para
rio à parte. Existe, bem ou mal, embora discutir o assunto?
com muito atraso, uma ascensão social O Sr. Pedro Simon – Somente
dos negros. Já encontramos, hoje, mui- meio segundo. Juridicamente tenho que
tas famílias de classe média. O exemplo votar com V. Exª. E V. Exª haverá de di-
que estou citando não é de 1%. Pode zer que esta é a Comissão de Constitui-
acontecer de um estudante branco da ção e Justiça. O parecer de V. Exª é nota
periferia ser aprovado com nota sete ou dez, não há o que mudar, mas, olhando
oito em um concurso e um candidato o Brasil afora, com toda a sinceridade,
negro, de classe média, que obteve nota creio ser ele um pouco diferente do que
inferior, seis ou sete, ser aproveitado em possamos imaginar.
detrimento desse candidato que mostrou Receba, com respeito e carinho, o
um desempenho melhor, punido pelo meu aparte.
fato de ser branco. Seria uma discrimi-
Meus cumprimentos ao parecer
nação às avessas e injusta não apenas
de V. Exª.
por desconhecer o sistema de mérito,
como socialmente também, porque o O SR. PRESIDENTE (Bernardo
branco, neste caso, era mais pobre do Cabral) – Senador Jefferson Péres, tem
que o negro. a palavra V. Exª.
O Sr. Pedro Simon – Permite-me O SR. JEFFERSON PÉRES –
V. Exª um aparte? Levando-se em conta que uma das fi-
nalidades da norma jurídica é realizar
O SR. JEFFERSON PÉRES –
a justiça e o bem comum, a indagação
Permito.
neste caso seria óbvia, no sentido de se
O Sr. Pedro Simon – V. Exª sabe saber se a lei, no caso, estaria a cumprir
do carinho, do respeito e da admiração satisfatoriamente essa finalidade.
que tenho por V. Exª.
Considerando-se, assim, os ar-
O SR. JEFFERSON PÉRES – gumentos expostos neste parecer com
É recíproco. relação à inconstitucionalidade e inju-
O Sr. Pedro Simon – Digo que, ridicidade da iniciativa, resolvemos ela-
sob o ponto de vista jurídico, o parecer borar o presente voto, em separado, pela
de V. Exª é irretocável. Tenho o maior rejeição, divergindo, portanto, do pare-
respeito por ele, mas, na realidade em cer apresentado pelo ilustre relator da
que estamos vivendo hoje no Brasil, ele matéria, Senador Roberto Requião, em
pode até ser irretocável juridicamente, que pese aos bons propósitos do autor
mas, na verdade, o que sentimos no do projeto, o não menos ilustre Senador
Brasil é totalmente contrário àquilo Abdias Nascimento.
que V. Exª está afirmando. Para concluir, Sr. Presidente,
O SR. JEFFERSON PÉRES – extraparecer, como sou absolutamen-
Senador Pedro Simon, V. Exª poderia te insuspeito para opinar, não tenho de
50 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

longe nem remotamente resquícios de ção. É que devo respeito à Constituição.


racismo, porque sempre tive entre meus Estabelecer a obrigatoriedade do apro-
companheiros de infância e de juventu- veitamento de determinado número de
de e colegas de trabalho na universidade pessoas por serem negras em reparti-
negros, aliás, pessoas da melhor catego- ções ou empresas é fazer discriminação.
ria. Quando conheci o Senador Abdias A Constituição, expressamente, declara
Nascimento, embora S. Exª talvez não que “todos são iguais perante a lei, sem
se lembre de mim, naquela época era distinção de qualquer natureza”. E não
estudante no ISEB*, no Rio de Janeiro, fica aí a exigência constitucional. No
onde S. Exª aparecia frequentemente, já mesmo art. 5º, inciso XLI, ela estabele-
desde então cuidando do Teatro Expe- ce: “XLI – A lei punirá qualquer discri-
rimental do Negro. Sempre tive admi- minação atentatória dos direitos e liber-
ração pela luta do Senador Abdias Nas- dades fundamentais”.
cimento. Mas não poderia deixar, em
E, para não permitir o uso de artifí-
hipótese alguma, nem mesmo em home-
cios ou de outras medidas que possam de
nagem ao Senador Abdias Nascimento e
qualquer modo conduzir à diferenciação
aos meus amigos negros, de dizer o que
entre as pessoas por efeito de raça ou cor,
a consciência me está recomendando.
a Constituição ainda declara: “XLII – a
O SR. PRESIDENTE (Bernar- prática do racismo constitui crime ina-
do Cabral) – Em discussão a matéria. fiançável e imprescritível sujeito à pena
(Pausa.) de reclusão, nos termos da lei”.
Não havendo quem peça a pala- Vale dizer que a Constituição pro-
vra, encerro a discussão. íbe que se possam adotar medidas como
A Presidência assegurará a palavra as previstas no projeto de lei.
ao Senador Abdias Nascimento ao final. Por outro lado, para evitar que,
Chamo a atenção dos eminentes apesar da proibição constitucional, haja
colegas que o processo é terminativo, desrespeito a essas normas, já há pelo
com votação nominal. menos duas leis destinadas a coibir tais
Concedo a palavra ao nobre Se- abusos. Há a Lei Afonso Arinos, nº 1.390,
nador Josaphat Marinho. de julho de 1951. Como essa lei tem um
O SR. JOSAPHAT MARINHO alcance relativamente limitado, porque
– Sr. Presidente, sou contra todo o pre- se refere mais à recusa por parte de esta-
conceito de raça e de cor. De maneira belecimento comercial ou de ensino de
que sou favorável às providências que qualquer natureza de hospedar, servir,
visem a garantir a exata igualdade entre atender ou receber clientes, comprador
os seres humanos, independentemente ou aluno, por preconceito de raça ou de
dessas condições. Não posso, porém, cor, sobreveio a Lei nº 7.716, de janeiro
votar o projeto nos termos em que está de 1989, que define os crimes resultan-
elaborado, em que pese à sua alta inten- tes de preconceitos de raça ou de cor.
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 51

O SR. PRESIDENTE (Bernardo Por essas razões, aprovo o voto


Cabral) – A chamada Lei Caó. dissidente do nobre Senador Jefferson
O SR. JOSAPHAT MARINHO Péres para reconhecer a inconstitucio-
– Essa lei declara, em seu art. 1º: “Serão nalidade do projeto.
punidos, na forma desta lei, os crimes O Sr. Lúcio Alcântara – Permite
resultantes de preconceito de raça ou V. Exª um aparte?
de cor”. No art. 3º: “impedir ou obstar O SR. JOSAPHAT MARINHO
o acesso de alguém devidamente habili- – Com prazer, ouço V. Exª.
tado a qualquer cargo da Administração O Sr. Lúcio Alcântara – Qual é
direta ou indireta, bem como das conces- a opinião de V. Exª sobre a lei eleitoral
sionárias de serviços públicos, implica no que diz respeito à cota reservada às
pena de reclusão de dois a cinco anos”. mulheres?
Mas o legislador foi adiante, para O SR. JOSAPHAT MARINHO
alcançar as empresas privadas. Art. 4º: – Eu votei contra, exatamente por achar
“Negar ou obstar emprego em empresa inconstitucional que se desse privilégio
privada. Pena de reclusão de dois a cin- a determinado número de mulheres na
co anos”. formação de chapa eleitoral.
Assim, para dar exata segurança O SR. PRESIDENTE (Bernardo
à proibição constitucional de se fazer Cabral) – Votamos contra. V. Exª já ter-
discriminação, a legislação já estabe- minou Senador Josaphat Marinho?
lece as medidas adequadas. Aqui, sim, O Sr. Josaphat Marinho – Sim.
aplicando-se pena a quem fizer a discri- O SR. PRESIDENTE (Bernardo
minação, a legislação está assegurando Cabral) – Concedo a palavra ao Senador
a igualdade de tratamento das pessoas, Pedro Simon.
independentemente de raça ou de cor. O SR. PEDRO SIMON – Sr.
Essas são as normas capazes de Presidente, já havia concordado com o
garantir a regra da igualdade de trata- voto do ilustre Senador Jefferson Péres.
mento para impedir qualquer discrimi- Portanto, também não vou deixar de
nação por efeito de raça ou de cor. Se concordar com a brilhante, completa e
o nobre autor do projeto tiver forma perfeita exposição do nosso mestre, Se-
de ampliar essa legislação que proí- nador Josaphat Marinho.
be a discriminação, terá o meu apoio. Sr. Presidente, temos que consta-
Estabelecer, porém, a obrigatoriedade tar um fato: “todos são iguais perante a
de número, de aproveitamento de de- lei”. Há um outro artigo na Constituição
terminado número de pessoas negras que diz que todo cidadão tem direito à
na repartição ou em estabelecimentos saúde, que é uma obrigação do Estado.
comerciais parece-me uma violação do Há outro artigo na Constituição que diz
princípio da igualdade estabelecido na que todo cidadão tem direito ao trabalho
Constituição. e deve receber uma remuneração que
52 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

dê condições mínimas de alimentação, são de Constituição, Justiça e Cidadania


saúde etc. para a sua sobrevivência, a de rejeitou projeto de um senador que dava
sua mulher e a de seus filhos. Tudo isso direitos e preferências a negros na facul-
está na Constituição, mas não está sen- dade porque é inconstitucional.
do cumprido. Aqui não vejo ninguém O Sr. Josaphat Marinho – V. Exª
cobrar o cumprimento da Constituição. me permite um aparte?
Há pessoas que trabalham e não ganham
o salário que deveriam ganhar; outras O SR. PEDRO SIMON – Como
estão necessitando do sistema de saú- não poderia permitir? Claro que sim.
de, garantido pela Constituição, e não o O Sr. Josaphat Marinho – Que-
tem. Porém todos são iguais perante a ro apenas acentuar a V. Exª que muitos
lei. Mas há uma realidade da qual não de nós, inclusive V. Exª, temos votado,
podemos fugir: ao compararmos os ín- em diferentes momentos, contra proje-
dices de injustiças sociais, num presídio, tos que violam a Constituição. Eu o te-
numa favela, os negros estão em primei- nho feito repetidamente, inclusive com
ro lugar. Os percentuais nas universida- relação às mensagens presidenciais. Por
des demonstram que os negros estão em outro lado, relembro a V. Exª que, no cur-
último lugar. Penso que, em vez de fi- so do meu modesto voto, acentuei que,
carmos nesta tese de que o artigo, como se o nobre autor do projeto encontrar
está, é inconstitucional – reconheço que forma de ampliar a legislação já existen-
é –, pediria que se suspendesse a vo- te, compatibilizando sua proposta com a
tação dessa matéria, porque vou fazer Constituição, tem o meu apoio.
um requerimento perguntando a V. Exª
O SR. PEDRO SIMON – Sr.
Senador Bernardo Cabral, que é o pre-
Presidente, o Senador Josaphat Marinho
sidente desta Comissão, o que temos
propõe o mesmo que eu: em vez de de-
feito no sentido de impedir as violações
cidirmos aqui, sim ou não – como não
à Constituição, que são praticadas dia-
riamente, no que tange a artigos impor- sou jurista, sou um simples advogado;
tantes e de grande significado que não os Senadores Josaphat Marinho, Jeffer-
são cumpridos, inclusive com a nossa son Péres e também V. Exª, Sr. Presiden-
omissão e com o nosso consentimento te, o são – e vejo esta Constituição ser
silencioso. rasgada todos os dias, vejo o Supremo
Tribunal Federal dizer que medida pro-
Concordo com este projeto. Mas
visória pode ser repetida quantas vezes
penso que o seu autor, o seu Relator, o
ilustre Senador Jefferson Péres, autor quiser, embora a Constituição diga que
de voto em separado, e o Senador Josa- é uma vez só.
phat Marinho poderiam pedir a suspen- É muito difícil votar esse projeto,
são dessa votação a fim de debatermos, é muito difícil! É inconstitucional, quer
discutirmos e analisarmos essa matéria. dizer, as coisas que estou vendo, as vio-
Agora, o que não pode é amanhã sair lências brutais que estão acontecendo
nas manchetes dos jornais que a Comis- no campo social ocorrem com a minha
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 53

omissão – com a minha, do Pedro Si- conta deste Congresso, não teremos que
mon, omissão. apresentar uma proposta solicitando que
Como é que um negro pode ser 25% das vagas sejam para homens. Elas
da classe média, entrar na faculdade, e já estarão garantidas.
um branco, que é pobre, não entrar? Não Lá, a proposta era uma saída jurí-
pode! A imensa maioria é negra na clas- dica; aqui, pode-se encontrar uma saída.
se pobre, uma minoria é branca. Vamos debater, vamos analisar. É a pro-
Portanto, creio que essa proposta, posta que faço, em vez de resumirmos
no sentido de concordarmos em sustar em “sim” ou “não”.
o processo e debatermos inclusive uma Enquanto V. Exª votar “não”,
fórmula para solucionarmos o proble-
porque é um grande jurista, e o Senador
ma, seria a grande saída.
Josaphat Marinho votar “não”, porque é
Lembro a V. Exª, Sr. Presidente, um grande jurista, eu me considero um
que, quando as mulheres pediram para advogado sério, responsável, mas vota-
votarmos o texto da lei, no sentido de rei “sim”. Estou vendo a Constituição
que 25% seriam vagas garantidas às
ser rasgada todos os dias no que tange
mulheres, nos diretórios e nas candida-
à fome, à miséria, às injustiças sociais.
turas inclusive a ilustre Deputada Marta
Não creio que seja este o momento de se
Suplicy –, dissemos que estávamos de
dizer “cumpra-se a Constituição aqui”,
acordo. Foram falar com V. Exª e se sur-
preenderam, porque V. Exª foi contra. quando ninguém se preocupa com isso,
“Mas V. Exª, Senador Bernardo Cabral, pois milhões de brasileiros vivem com
que tem uma admiração tão grande pelo fome e na miséria.
sexo feminino, ser contra”? V. Exª disse: O SR. PRESIDENTE (Bernar-
“Admiração tenho, mas a lei tenho de do Cabral) – Senador Pedro Simon, a
cumprir. A Constituição diz que todos Presidência acolhe a proposta de V. Exª,
são iguais perante a lei”. no sentido de se desenvolver um estudo
Lembra-se V. Exª que apresentei maior sobre a matéria, mas a coloca em
uma proposta como solução. Eu disse: discussão.
“Tem razão!” E até a Deputada Marta Concedo a palavra ao nobre Se-
Suplicy disse: “O Senador Cabral tem nador José Eduardo Dutra, devidamente
razão”. Mas podemos resolver essa inscrito; depois, ao Senador Bello Parga.
questão. Como? Votando que cada sexo
O SR. JOSÉ EDUARDO DU-
terá 25%. Em vez de determinar que as
TRA – Sr. Presidente, Srs. Senadores,
mulheres tenham direito a 25%, cada
sexo terá direito a 25% das vagas. E acompanho mais ou menos a linha da
ainda acrescentei: não só a proposta que proposta do Senador Pedro Simon.
estou fazendo é jurídica, mas já estamos O problema é que estamos diante
votando em causa própria, porque, daqui de um parecer que aprova o projeto na
a 30 anos, quando as mulheres tomarem sua totalidade e de um voto, em sepa-
54 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

rado, que rejeita o projeto na sua tota- momento em que houvesse um maior
lidade. número de negros formados pelas uni-
Concordo plenamente com o ar- versidades, isso iria contribuir para au-
gumento levantado pelo Senador Je- mentar a renda do negro, para diminuir
fferson Péres, da própria dificuldade da a discriminação, para possibilitar maior
aplicação de quotas em relação à raça no aprovação de negros nos concursos.
Brasil, em função da miscigenação. Mas O Sr. Ramez Tebet – Permite-me
entendo que algum tipo de ação com- V. Exª um aparte?
pensatória seja possível fazer no Brasil. O SR. JOSÉ EDUARDO DU-
Creio que o projeto, da forma TRA – Pois não.
como está, coloca as quotas numa série O Sr. Ramez Tebet – Creio que
de pontos que, concretamente, não se tem V. Exª aborda muito bem a questão. Tal-
instrumentos de cultura e prática para fa- vez pudéssemos iniciar mesmo pelas
zer com que venham a ter eficácia, como universidades públicas.
disse o Senador Jefferson Péres.
Falou-se agora mesmo sobre a
Tendo a ser simpático a algum tipo
cota reservada às mulheres para a dis-
de ação compensatória do ponto de vista
puta dos cargos eletivos. Lembrei-me
social. No Brasil, a questão social está
de um artigo que li recentemente, de-
muito ligada à questão racial. Se se fizer
monstrando o avanço social das mulhe-
uma pesquisa sobre os menores salários,
res na sociedade mundial e na socieda-
sobre o número de presos nas cadeias,
de brasileira.
vai-se constatar que são de pessoas po-
bres e que a grande maioria é negra. Com relação às universidades, Se-
nador José Eduardo Dutra, não é preci-
Vejo muita dificuldade em alguns
so reservar nada às mulheres, porque os
casos, como, por exemplo, no art. 2°, a
exames vestibulares estão demonstrando
obrigatoriedade de as empresas privadas
estabelecerem quotas para a população que o número de mulheres aprovadas é
negra. Na prática, vão-se estabelecer muito maior do que o de homens.
regras trabalhistas diferenciadas. Obri- Nas universidades públicas, há
gatoriamente, a empresa deverá ter um uma grande contradição: o rico, em vir-
grau de estabilidade para poder manter tude das suas condições sociais, tem mais
essa quota, até porque a substituição não acesso às universidades públicas de que
é tão simples. Assim, vamos ter regras o pobre, que é desprotegido, desnutrido.
de estabilidade diferenciadas para ne- Talvez V. Exª tenha razão, no que
gros e brancos. diz respeito a esse argumento, que é
Eu veria com muita simpatia, por muito forte, Sr. Presidente, no meu en-
exemplo, um projeto que estabelecesse tender. Não votaríamos a matéria hoje,
algum tipo de cota nas universidades a fim de que pudéssemos encontrar uma
públicas. Creio que estaríamos dando solução ideal, do ponto de vista consti-
um passo no sentido de que, a partir do tucional, político e social.
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 55

V. Exª me tirou a dúvida, porque O Sr. Lúcio Alcântara – Se for


eu estava disposto a julgar a matéria po- aceita a sugestão, um caminho para
liticamente, nos precisos termos daquilo trabalhar, por exemplo, é dar uma cota
que falou o Senador Pedro Simon – e nas universidades públicas para a esco-
acredito que assim foi também o parecer la pública. Porque as estatísticas estão
do Senador Roberto Requião. Todavia, mostrando. Recentemente, a Folha de
juridicamente, não há dúvida nenhuma S.Paulo fez um amplo levantamento,
de que o Senador Josaphat Marinho e o mostrando que, em São Paulo, o gros-
Senador Jefferson Péres têm inteira ra- so dos alunos que ingressam na univer-
zão. Se suspendêssemos por hoje, con- sidade pública veio da escola primária
ciliaríamos a parte jurídica com a parte particular. Então, se fosse dada uma cota
política e social. para alunos egressos da escola pública,
O SR. JOSÉ EDUARDO DU- aí, talvez, essa discriminação de alguma
TRA – Muito obrigado, Senador Ra- maneira seria amenizada. É uma ideia.
mez Tebet. Não estou dizendo que...
Para concluir, no sentido de re- O SR. RAMEZ TEBET – Se-
forçar minha sugestão: é lógico que isso nador Lúcio Alcântara, o debate é tão
dependeria de uma concordância entre salutar que, nesse sentido, já estou pen-
o relator, o autor do projeto e o autor do sando em encomendar e apresentar um
voto em separado. A sugestão que dou é projeto de lei.
no sentido de que se tente encontrar al- O SR. PRESIDENTE (Bernardo
guma ação compensatória, que combine Cabral) – Com a palavra o Senador José
inclusive o caráter social com o caráter Eduardo Dutra.
racial. Isso poderá ser tratado junto com O SR. JOSÉ EDUARDO DU-
a questão das universidades públicas. TRA – Bom, concluindo agora, em
Como não sou jurista, nem advogado, função dessas sugestões: não quero me
eu não teria nenhuma obrigação de votar abster em um projeto como este, mas
teoricamente do ponto de vista jurídico. não quero votar do ponto de vista estri-
Do ponto de vista político, eu não vota- tamente jurídico, embora concorde com
ria no projeto como está em função des- os argumentos do Senador Jefferson Pé-
se aspecto que levantei da questão das res. E não tendo a votar da forma como
cotas para trabalhadores da iniciativa está, meramente do ponto de vista po-
privada, que gera um problema concre- lítico, como levantou o Senador Pedro
to, em minha opinião. Simon, em função desses pontos. Então,
O Sr. Lúcio Alcântara – Permite volto a dizer, se houver concordância do
V. Exª um aparte? autor, do relator, no sentido de algum
O SR. JOSÉ EDUARDO DU- tipo de ação afirmativa que comece aos
TRA – Eu já vou concluir. Concedo o poucos, acho que se poderia contornar
aparte a V. Exª. esse problema.
56 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

O SR. PRESIDENTE (Bernardo O SR. BELLO PARGA – Con-


Cabral) – Continua em discussão a pro- cordo.
posta do eminente Senador Pedro Simon. O SR. PRESIDENTE (Bernar-
O SR. JOSAPHAT MARI- do Cabral) – V. Exª concorda com o
NHO – Sr. Presidente, peço a palavra adiamento.
pela ordem. Senador Roberto Requião, na qua-
O SR. PRESIDENTE (Bernardo lidade de Relator, tem a palavra.
Cabral) – Concedo a palavra, pela or- O SR. ROBERTO REQUIÃO
dem, ao Senador Josaphat Marinho. – Sr. Presidente, recebi de V. Exª esse
O SR. JOSAPHAT MARINHO projeto para relatar. Esse projeto ficou
– Para um esclarecimento. Quando dei o nas minhas mãos por alguns meses. Um
meu voto, assinalei que não poderia dei- projeto polêmico, há a considerar in-
xar de reconhecer a inconstitucionalida- constitucionalidades. Mas procedi mui-
de do projeto. Mas reconhecia que há to menos como jurista, uma vez que a
preconceitos de raça e de cor no Brasil e minha formação é de advogado; procedi
sugeri que o próprio autor da proposição como jurado, tentando interpretar o sen-
poderia, retirando ou não... timento do povo nesse processo.
O SR. PRESIDENTE (Bernardo O Senador Abdias Nascimento,
Cabral) – Ampliar, ampliar a lei. líder e militante do Movimento Negro
O SR. JOSAPHAT MARINHO há décadas, tomou uma iniciativa que
– ... ter a iniciativa de modificar o con- se caracteriza como ação positiva, ação
teúdo de sua ideia, talvez até modifican- afirmativa contra as discriminações ra-
do a Lei nº 7.716, que é a que define os ciais. O projeto é bom. É discutível sob
crimes resultantes de preconceitos de o ponto de vista das filigranas e da cons-
raça e de cor. Assim, a sua ideia seria titucionalidade, mas é um projeto bom.
aproveitada sem que se lhe retirasse a E o Senado tem passado por cima
iniciativa da medida. de inconstitucionalidades com enorme
O SR. PRESIDENTE (Bernardo frequência. Inconstitucional é o projeto
Cabral) – Senador Bello Parga, V. Exª que privilegia os deficientes físicos. Do
quer discutir a proposta Pedro Simon? ponto de vista ético e moral, no entanto,
Está V. Exª inscrito. é um projeto absolutamente defensável,
O SR. BELLO PARGA (Inaudí- tanto que foi aprovado e a cota dos defi-
vel. Fora do microfone.) cientes faz parte da legislação brasileira.
O SR. PRESIDENTE (Bernardo Inconstitucional – absolutamente
Cabral) – Não é a matéria. É a proposta inconstitucional – é o projeto que deu
no sentido de que possa ser adiada, para 25% de vagas para as mulheres nas cha-
melhor estudo, dentro das sugestões pas dos partidos políticos. No entanto
apresentadas pelos Senadores Josaphat constituiu-se numa ação afirmativa e
Marinho... positiva da melhor qualidade, a ponto
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 57

de haver, nas últimas eleições munici- fosse como o projeto da participação das
pais, mais do que dobrado o número de mulheres nos partidos; um projeto para
vereadoras e de mulheres na chefia de dar um start no aumento da participação
prefeituras municipais. dos negros na vida política e econômica
Inconstitucional, absolutamente in- brasileira. Que atingisse a universida-
constitucional, é a reeleição, ainda mais de, que abrangesse a questão de outras
quando o presidente se candidata a ela minorias, como os índios, e que fosse
no exercício do cargo, mas uma servente melhor estudado por uma comissão de
de escola que pretender candidatar-se ao senadores, encabeçada pelo Senador
cargo de vereadora tem que se desincom- Abdias Nascimento, para não corrermos
patibilizar. o risco de soterrarmos, numa rápida vo-
Absolutamente inconstitucional, do tação numa manhã de quarta-feira, na
ponto de vista da igualdade de direitos, Comissão de Constituição, Justiça e Ci-
é a possibilidade de os parlamentares se dadania, uma ação afirmativa que cul-
candidatarem a cargos executivos sem mina a carreira de um militante de dé-
se licenciarem ou se desincompatibili- cadas em favor do fim da discriminação
zarem do mandato que estão exercendo, racial no País.
utilizando as facilidades do gabinete,
Não é uma homenagem que que-
de locomoção e as próprias imunida-
ro prestar ao Senador Abdias Nascimen-
des parlamentares. Então, essa questão
to, mas é uma visão pragmática e que,
da inconstitucionalidade do projeto é
na verdade, traduz-se concretamente
semelhante à de tantos outros projetos
como uma ação afirmativa. Não vamos
que foram aprovados pelo Congresso
Nacional. enterrar esse projeto. Vamos procurar
um consenso e dar o passo que for pos-
Estudei o projeto do Senador Ab-
sível no sentido de reprimir e evitar a
dias com carinho. Concluí que deveria
discriminação racial. Toda caminhada
manifestar-me a favor das suas razões.
começa com o primeiro passo, e o pri-
Continuo com a mesma posição, mas
não precisamos afirmar uma posição ou meiro passo será sempre o possível, via-
fazer uma declaração pública de horror bilizado pelo consenso na Comissão e
ao racismo. Essa declaração é de todos no plenário do Senado.
nós; é dos senadores, inclusive, que se Gostaria que o Senador Abdias
opuseram à aprovação do projeto. se manifestasse a respeito dessa tese le-
O que nos interessa é a ação afir- vantada pelo Senador Simon e comple-
mativa, positiva. É dar um passo a mais. mentada por mim, no sentido de criar-
Penso que, talvez, se atenuássemos o mos uma subcomissão que encarasse o
rigor lógico do tratamento dado pelo problema do racismo, da discriminação
Senador Abdias, pudéssemos chegar das minorias e tentasse viabilizar o pro-
a um consenso. Por exemplo, que esse jeto possível neste momento político, no
projeto não fosse permanente, mas que Congresso Nacional.
58 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

O SR. PRESIDENTE (Bernardo Constituída a Comissão, concedo


Cabral) – Senador Jefferson Péres. a palavra ao eminente Senador...
O SR. JEFFERSON PÉRES – O Sr. (Não Identificado) (Inaudí-
Sr. Presidente, concordo inteiramente vel. Fora do microfone.)
com a proposta que acaba de ser feita O SR. PRESIDENTE (Bernardo
pelo Senador Roberto Requião, porque Cabral) – Prazo de três reuniões, que são
tenho consciência do problema da po- 21 dias, na semana seguinte a um mês.
pulação negra no Brasil. Sei também, Senador Abdias Nascimento, por
perfeitamente, que não bastam as ações gentileza, já por delegação também des-
negativas, as leis que punem discrimina- ta Presidência, cobre do Senador Pedro
ção ou preconceito racial. Há necessida- Simon a reunião sob a coordenação de
de também de ações afirmativas, ações V. Exª. Porque o Senador Abdias Nas-
positivas, desde que, evidentemente, cimento não é membro da Comissão; se
não firam a Constituição Federal. fosse membro, já a integraria.
O SR. PRESIDENTE (Bernardo Senador Pedro Simon, V. Exª pe-
Cabral) – A Presidência, antes de conce- diu preferência para os itens 23 e 28,
der a palavra ao Senador Abdias, acha mas acontece que o Senador Lúcio Al-
que interpreta o pensamento do plená- cântara já havia pedido antes. Peço a
rio. O plenário acolhe a sugestão do Se- V. Exª, já que não temos número, que
nador Pedro Simon, com as achegas já aguardemos um pouco mais.
manifestadas pelos Senadores Jefferson Senador Lúcio Alcântara, tem
Péres, Josaphat Marinho e Roberto Re- V. Exª a palavra.
quião, e designa uma subcomissão, su-
O SR. LÚCIO ALCÂNTARA
gerida pelo eminente Senador Roberto
– Sr. Presidente, antes de relatar e serei
Requião, composta pelos Senadores Ab-
breve, Senador Pedro Simon,...
dias Nascimento, autor da proposta; Se-
nador Jefferson Péres, voto discordante; O SR. ROBERTO REQUIÃO –
Senadores Pedro Simon, coordenador e Sr. Presidente, pela ordem.
autor da proposta, e Roberto Requião O Senador Abdias Nascimento
para coordenar o projeto. De logo, devo estava inscrito para se manifestar sobre
esclarecer que o eminente Senador Ro- seu próprio projeto. Acho que seria uma
berto Requião, que me havia antecipado deselegância negar a palavra a ele.
seu voto antes de trazê-lo, falou-me da O SR. PRESIDENTE (Bernar-
sua inquietação porque queria fazer sua do Cabral) – V. Exª quer ainda usar da
manifestação política e a fez, mostrando palavra? A Presidência garante a V. Exª
que não podemos desperdiçar a ideia do sem dúvida nenhuma. Em seguida terá a
Senador Abdias Nascimento, de resto, palavra o Senador Lúcio Alcântara.
seguida por todos, inclusive pelos emi- O SR. ABDIAS NASCIMEN-
nentes Senadores Jefferson Péres e Josa- TO – Sr. Presidente, Srs. Senadores, eu
phat Marinho. tenho que confessar...
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 59

O SR. PRESIDENTE (Bernardo a distorção ou a colocação equivocada


Cabral) – Peço atenção para o Senador do assunto sob um prisma racial. Ora,
Abdias Nascimento e som para o seu no Brasil ou no mundo, quando se fala
microfone. em negro ou em raça, está-se falando
O SR. ABDIAS NASCIMEN- sempre num conceito histórico cultural,
TO – Eu desejo manifestar, não a minha e nunca biológico, como S. Exª fez crer
surpresa, mas o meu contentamento de durante a sua exposição. Assim, essa
ver aberta aqui no Senado uma discus- conotação biológica, quando se fala
são sobre problema tão fundamental em negro, não está, absolutamente, de
para o futuro deste País. acordo com a expressão do meu proje-
Na verdade, a questão racial é de- to de lei. Na palavra negro, já se sabe,
cisiva para a nossa própria identidade, há uma conotação histórica, socioló-
porque até hoje este País se tem recusa- gica e cultural, e nunca biológica, que
do a assumir essa identidade por meio está morta e enterrada há muito tempo.
de muitos subterfúgios, de uma porção Também me causou estranheza, dada
de máscaras, inclusive a chamada “de- exatamente essa conduta sempre mui-
mocracia racial”. Assim, este alto órgão to correta e honesta de V. Exª, quando
da vida pública brasileira assumir a dis- V. Exª citou o art. 3º do meu projeto,
cussão desse tema é um avanço, porque dizendo que o negro, colocado em se-
jamais se quis discutir esse assunto. É gundo lugar, tomaria o lugar do branco,
um tabu no Brasil a discussão do pro- que foi classificado em primeiro lugar
blema racial. no concurso. Ora, é exatamente o con-
trário do que está no meu projeto. As-
Queria, nesta oportunidade que
sim como V. Exª colocou, transmite uma
o Presidente desta Comissão me con-
ideia falsa do meu projeto. Isso, realmen-
cedeu, dizer que a proposta do Senador
te, causou-me estranheza. Não esperava
Pedro Simon vem ao encontro de um
isso de V. Exª.
desejo, ou seja, o de que este assunto
não morra nesta única reunião do Sena- O Sr. Jefferson Péres – V. Exª
do. Queria dizer também que as avalia- me permite um aparte?
ções do Senador Josaphat Marinho me- O SR. ABDIAS NASCIMEN-
recem todo o acato e respeito, e, nesta TO – Ouço V. Exª com muito prazer.
Comissão que V. Exª acaba de anunciar, O Sr. Jefferson Péres – Senador
naturalmente elas serão estudadas e Abdias Nascimento, alguém está equi-
aproveitadas. vocado: eu ou V. Exª. O que eu disse é
Gostaria de dizer ao Senador Je- que num concurso público, para se pre-
fferson Péres que não me recordava de encherem obrigatoriamente 40% das
V. Exª no ISEB, mas nesta Casa aprendi vagas com candidatos da raça negra, ob-
a admirá-lo pela sua competência e in- viamente vai ocorrer das duas, uma: ou
tegridade. Daí, uma surpresa colheu-me se realizam dois concursos; um concur-
durante a exposição de V. Exª. Primeiro, so apenas para negros, a fim de serem
60 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

preenchidas todas as vagas com can- do brasileiro a igualdade”, mas aqui não
didatos negros – seria uma solução –, há igualdade. Os negros, os afrodescen-
mas se for realizado um único concur- dentes, não exercem a cidadania plena
so – veja bem, se V. Exª me contestar, neste País. Só quem não quer não per-
ficarei muito satisfeito se conseguir me cebe isso. O projeto tem o propósito de
convencer –, e evidente que, para serem efetivar o princípio da isonomia social,
preenchidas obrigatoriamente 40% das inscrita no art. 5º da Constituição. O
vagas com candidatos negros, poderá projeto é constitucional.
acontecer que muitos candidatos bran- Só espero que os enredos jurí-
cos com notas inferiores às do negro não dicos não continuem enredando a vida
sejam aproveitados. Ou não acontecerá de milhões de brasileiros de ascendên-
isso? Parece-me que sim. cia africana, como tem acontecido até
O SR. ABDIAS NASCIMEN- hoje. Durante todo o Império, houve
TO – Alguns brancos com notas infe- uma série de rabugices, de leguleios,
riores às do negro? de aspectos jurídicos, e o negro ficou
O Sr. Jefferson Péres – Sim, se sempre escravizado. Foram elaboradas
for um único concurso, devido à cota. a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Se-
Veja bem, Senador Abdias Nascimento, xagenários, mas tudo isso serviu para
eu não disse que V. Exª está preconizan- manter a dominação escravagista sobre
do isso; estou dizendo que pode vir a a raça negra.
acontecer. Depois da Abolição da Escrava-
O SR. PRESIDENTE (Bernardo tura, foi feito o mesmo. Primeiramente,
Cabral) – Senador Abdias Nascimento, foi dito que, antigamente, o analfabeto
V. Exª continua com a palavra. votava e que, a partir dali, este não vo-
O SR. ABDIAS NASCIMEN- taria mais. É claro que os afrodescen-
TO – Para concluir, Sr. Presidente, o que dentes tiveram de aprender a falar uma
eu gostaria de dizer é que me apoio nas língua estrangeira; eles tinham suas lín-
palavras do Senador Roberto Requião guas, mas estas foram esmagadas, o que
e do Senador Pedro Simon para dizer o representou outro crime cometido neste
seguinte: está-se aqui raciocinando em País. Assim, eles continuaram prisionei-
termos de uma justiça formal. Aí, nesse ros desse tipo de legislação.
ponto, estou de acordo com os Senado- Até mesmo o Código Penal insti-
res Josaphat Marinho e Jefferson Pé- tuía a lei da vadiagem para aqueles que
res. Mas, aqui, está-se procurando uma não tinham emprego e não tinham onde
igualdade substancial, uma igualdade morar e como alimentar a sua família,
buscando o futuro, o vir a ser deste País, que eram exatamente os escravos re-
que não pode alimentar esta desigualda- cém-libertos, já que estes não encontra-
de cruel, gritante e anticonstitucional; vam emprego no tal mercado livre. As-
esta, sim, é anticonstitucional, porque sim, por meio dessas chicanas da nossa
o art. 5º diz: “É um direito inalienável juridicidade, o negro, cada vez mais,
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 61

tornou-se marginal, favelado, criminoso Muito obrigado, Sr. Presidente.


e pária da sociedade. Agradeço a todos que contribuíram para
Sr. Presidente, este é um apelo esta discussão.
que faço ao Senado para ajudar a dar- O SR. PRESIDENTE (Bernardo
mos um passo à frente. Estou aberto a Cabral) – O pronunciamento de V. Exª
todas as modificações e discussões, para será registrado em Ata, para que conste
fazermos o projeto de acordo com o pa- dos Anais da Casa.
ladar do Senado. Não tenho nada contra
isso, absolutamente. Não sou uma pes- Reunião da Comissão de Constituição
soa impermeável à discussão e ao avan- e Justiça do Senado Federal, sessão
ço. Espero que esta Comissão faça um de 18 de março de 1998.
projeto que atenda a essas exigências
dos Srs. Senadores.
Nascimento Em recente visita a Nova York, como
observador parlamentar junto às Nações
denuncia posição Unidas, o Senador afro-brasileiro Abdias
Nascimento criticou, durante a 52ª Assem-
brasileira nas bleia Geral das Nações Unidas, a delegação
brasileira, totalmente composta por brancos,
Nações Unidas e suas declarações “hipócritas” sobre a eli-
minação do racismo e da discriminação ra-
cial no Brasil.
Nascimento, 83 anos de idade, líder
dos direitos civis no Brasil há mais de ses-
senta anos, e sua esposa Elisa protestaram
perante sessão do Conselho Econômico e
Social, abordando assuntos relacionados
aos itens 110 e 111: “Eliminação do Racis-
mo e da Discriminação Racial” e “Direitos
dos Povos à Autodeterminação”.
Na abertura dos trabalhos, um repre-
sentante brasileiro declarou: “De sua parte,
o Brasil está inequivocamente comprometi-
do a contribuir com a luta [pela erradicação
do racismo] como condição prévia de igual
Lula Strickland acesso a todos os benefícios da cidadania,
64 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

assim como ao pleno gozo dos valores de uma longa luta dos afro-brasileiros, e
democráticos. A sociedade brasileira não a dádiva benevolente de uma classe
está fundamentada em uma genuína di- governante democrática”.
versidade de raças e origens étnicas que O indignado Senador – que é tam-
contribui para o seu enriquecimento.” bém notável escritor, teatrólogo e artista
Ouvindo essa declaração, bem plástico – ressaltou que, se o Brasil fos-
como as dos representantes de 16 ou- se verdadeiramente democrático, como
tras nações, Nascimento mostrou-se se estava postulando perante aquele foro
consternado. “Minha reação foi de justa internacional, “em vez de ser composta
indignação”, disse ele, “ao testemunhar totalmente por descendentes dos fazen-
mais um show de hipocrisia e ambigui- deiros e dos proprietários de escravos do
dade da elite governante brasileira, pois Brasil, a delegação brasileira incluiria
eles disseram que o Brasil é uma socie- descendentes de africanos escravizados
dade multirracial onde diferentes raças e que poderiam falar de suas próprias ex-
identidades étnicas coexistem [em harmo- periências como negros em nossa socie-
nia], mas não disseram que os afro-brasi- dade racista”.
leiros têm sido historicamente relegados “Essa democracia e essa harmo-
à base de nossa pirâmide social. O que nia racial de que falam no Brasil”, pros-
[a delegação] não disse é que o Brasil seguiu o político negro, “é somente a
tem mantido os afrobrasileiros no fundo versão distorcida veiculada pelos mes-
do poço desde a escravidão!” mos setores da classe governante que
O Senador Nascimento observou têm explorado os africanos no Brasil
que, tal como a delegação norte-ameri- desde que existe este País”.
cana, que discorreu entusiasticamente Nascimento esteve em Nova York
sobre a pretensa igualdade de direitos por duas semanas, como observador do
para os negros e outros cidadãos nos Congresso brasileiro, a fim de estu-
Estados Unidos, a delegação brasileira dar procedimentos internacionais nas
repetiu as mesmas falsidades. Está nessa Nações Unidas. Durante a reunião da
linha a declaração de que a “discrimina- Assembleia Geral, ele se recusou a se
ção racial é considerada um crime pela sentar com a delegação brasileira e, em
Constituição Brasileira”. vez disso, optou por observar os proce-
Em uma entrevista, o Senador dimentos de outro local na grande sala
desmentiu essa afirmativa: “Eles men- de reuniões. Enquanto isso, a conferên-
cionaram a lei e o artigo da Constitui- cia continuava.
ção Brasileira contra a discriminação “Os desafios e problemas que
racial, mas não mencionaram que essa ainda afetam nossa sociedade estão sen-
lei foi promulgada em 1988, portanto do administrados por um grupo intermi-
recentemente, enquanto a comunidade nisterial que tem definido e implemen-
afro-brasileira continua lutando para tado políticas públicas em muitas áreas,
que ela seja implementada. A lei é fruto tais como emprego, educação, saúde,
Denúncia à posição brasileira nas Nações Unidas
Abdias Nascimento 65

informação e comunicações”, disse o re- O Senador Abdias Nascimento


presentante brasileiro. afirmou que, embora o Brasil seja um
Mas a Srª Elisa Larkin Nascimen- país predominantemente negro, a pre-
to, ela própria uma ativista, rebateu mais sença negra é desproporcionalmente pe-
tarde essa declaração, opinando: “Esse quena na arena política brasileira, fato
grupo de trabalho foi constituído em re- que ele atribui ao racismo. Ao final da
sultado da luta do povo afro-brasileiro entrevista, Abdias, sem papas na lín-
contra o racismo e, embora tenha feito gua, tornou a enfatizar seus sentimentos
algumas sugestões, ele não tem meios quanto ao relatório da delegação brasi-
de executar nenhuma política e, de um leira: “Fiquei extremamente indigna-
modo geral, tem sido usado para apre- do”, reafirmou ele, “por ver a represen-
sentar uma falsa imagem de combate ao tação totalmente branca de um País de
racismo, quando, na realidade, se trata maioria africana dando sua costumeira
de um órgão impotente, pois não tem in- demonstração de desprezo e desrespeito
fraestrutura”. pelos africanos no Brasil”.
A impetuosa Srª Nascimento é
conhecida por seu trabalho na área da Publicado originalmente no jornal
História Africana e da Diáspora, bem Daily Challenge, de Nova York,
como por seu papel na luta pelos direi- edição de 10 de dezembro de 1997.
tos da população afro-brasileira. Tradução de Gilson Cintra e
Carlos Alberto Medeiros.
O Senador Abdias Nascimento, ao lado da senadora Emília Fernandes, ouve atentamente o discurso do ex-Governador Leonel Brizola na cerimônia de filiação
da aguerrida Parlamentar gaúcha ao Partido Democrático Trabalhista (22-9-97), em Porto Alegre, RS
Pronunciamentos Discurso proferido no Senado Federal em
6 de fevereiro de 1991

Relatório Especial da ONU sobre Direitos


Humanos no Brasil.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio este
pronunciamento.
Uma das principais manchetes dos
grandes jornais brasileiros nas últimas se-
manas do ano passado foi aquela referente
ao relatório da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, vinculada à Organização
dos Estados Americanos (OEA), a respeito
da situação dos direitos humanos no Bra-
sil. Publicado no dia 9 de dezembro último,
em Washington, sede da Organização, o in-
forme, de 170 páginas, preparado por uma
comissão que percorreu o País com autori-
70 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

zação do Governo, apresenta um Brasil co em que se desenvolveram as relações


muito diferente da imagem edulcorada raciais no Brasil, o Relator apresenta a
tradicionalmente apresentada por nossa versão oficial, que lhe foi repassada por
diplomacia: um país desigual, violento diversos funcionários de agências do
e racista, onde a discriminação racial Governo, assim como por parlamentares
é responsável, entre outras coisas, por brancos, de que a discriminação racial
uma significativa diferença de salários inexiste neste País, devendo-se atribuir
médios entre pessoas de origem africana as desigualdades existentes unicamente
e europeia. a problemas de classe. Para nós, que vi-
Na verdade, esse relatório da vemos essa questão no dia a dia, chega
OEA é apenas mais um documento pre- a ser patética a afirmação de um fun-
parado por organismos internacionais a cionário do Ministério da Educação de
denunciar a realidade do racismo e da que a expressão “negro” não tem cono-
discriminação prevalecentes em nossa tações negativas, e de que as crianças
sociedade. Soma-se, assim, à denúncia são ensinadas a reconhecer e respeitar
feita cinco anos atrás pela Organização a população afro-brasileira – que nem
Internacional do Trabalho (OIT), que se sequer aparece nas ilustrações dos livros
referia ao descumprimento, pelo Brasil, didáticos ...
da Convenção 111, referente à discrimi- Mas o Relator Especial da ONU
nação de raça e de gênero no mercado não se deixou iludir pelas declarações
de trabalho. Também se acresce a outro oficiais. Ao contrário, pode perceber
relatório, que nos foi apresentado em claramente que, embora se faça questão
nossa recente passagem pelas Nações de mantê-los “invisíveis” no Brasil, ra-
Unidas, como membro da delegação do cismo e discriminação racial são fenô-
Congresso brasileiro em visita àquela menos “presentes nos campos político,
Organização. Esse documento foi redi- econômico, acadêmico e científico”,
gido por um relator especial da ONU, cuja manifestação se dá na vida diária,
Maurice Glèlè-Ahanhanzo, que visitou na educação, no emprego, na moradia
o Brasil em 1995, quando teve a oportu- e na administração da justiça. Em espe-
nidade de travar contato com uma série cial, chamaram-lhe a atenção a violência
de organizações e personalidades – ne- policial, a situação das mulheres negras,
gras e brancas – dos mundos político, a violência contra crianças e adolescen-
intelectual e artístico, bem como de ve- tes e o problema do acesso à terra para
rificar as condições de vida da popula- as populações indígenas e para as comu-
ção de origem africana, em comparação nidades descendentes de quilombos.
com a população branca, no que se refe- “Os brasileiros” – diz o relatório
re principalmente a educação, emprego, – “são considerados livres de preconcei-
moradia e meios de comunicação. to racial, embora aparentemente tenham
Após uma introdução que fornece uma aguda consciência de cor, o que se
o contexto histórico, político e econômi- reflete numa atitude ambivalente em re-
Pronunciamentos
Relatório Especial da ONU sobre Direitos Humanos no Brasil 71

lação à miscigenação e apenas esconde minação racial do dia a dia assumem


uma certa preferência ideológica pela a forma de atos de molestamento que
brancura. A miscigenação, que contém acentuam a inferioridade dos negros.
uma mensagem integracionista (...) e Por exemplo, em prédios e condomí-
constitui ao mesmo tempo uma base nios de luxo, exige-se dos negros que
para a exclusão, aparece como uma ex- usem as entradas e saídas de serviço.
tensão da negação da presença negra. As Uma revista em quadrinhos produzida
palavras ‘negro’ ou ‘preto’ são ofensivas pelo Conselho de Desenvolvimento da
e é cortês tratar as pessoas como se fos- Comunidade Negra do Estado da Bahia
sem mais brancas do que realmente são. mostra como os negros podem ter seu
(...) Negros e mulatos são virtualmente acesso negado a lugares públicos como
ausentes da iconografia e da mídia bra- boates ‘de alta classe’; em supermerca-
sileiras (...)”. dos, são frequentemente suspeitos de
“Além disso” – prossegue o do- roubo; podem ser barrados em hotéis de
luxo. Se uma patrulha da polícia surpre-
cumento –, “a correlação entre estratifi-
ende um negro numa área residencial,
cação social e diferentes tonalidades de
imediatamente lhe pede para apresentar
pele é tão estreita que não pode deixar de
seus documentos de identidade e para
ser significativa. De outro modo, como
justificar sua presença no local, pois se
se poderia avaliar o fato de, num país
supõe que os negros vivam apenas nas
cujas autoridades afirmam ser ‘o segun-
favelas e áreas periféricas das cidades.
do país negro do mundo, depois da Ni-
(...) Negros são frequentemente moles-
géria’, e no qual as pessoas de origem
tados por policiais militares e civis ou
mista constituem a maioria, o relator es-
por outros agentes da lei. (...) Tais prá-
pecial não haver encontrado negros ou
ticas podem ser explicadas pela imagem
mestiços em posições de responsabili-
geralmente negativa dos negros na so-
dade, exceto no Parlamento (há um total
ciedade brasileira. Ser negro é sinônimo
de 11 deputados afro-brasileiros entre de ser pobre ou criminoso, o que é em
513) e na Fundação Cultural Palmares, si mesmo discriminatório. A disparidade
cujo propósito é exatamente restaurar a entre os centros das cidades, onde vivem
imagem dos negros e combater a discri- os brancos, e as periferias (...) e favelas
minação por estes sofrida?” onde a maioria dos habitantes é negra,
“Há no Brasil” – continua o do- atesta um certo tipo de segregação es-
cumento – “uma hierarquia de cor, e pacial. A sutil natureza dos métodos de
parece não haver dúvida de que uma subordinação e controle social também
cor muito escura constitui um obstácu- permite a preservação de relações so-
lo à mobilidade social. É difícil para um ciais desiguais que as populações margi-
negro tornar-se um servidor público de nalizadas aparentemente interiorizaram
nível superior; ser-lhe-ão exigidos mais e aceitaram como contendo uma espécie
talento e esforço do que se sua pele fos- de inevitabilidade fatal. O fato de não
se mais clara. (...) O racismo e a discri- terem acesso à moderna educação os
72 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

tem privado de instrumentos intelectu- ta ou jogador de futebol. Em resultado,


ais com os quais poderiam afirmar-se”. as posições superiores e intermediárias
As desigualdades raciais no se- (tanto na administração pública quanto
tor educacional foram adequadamen- nas empresas privadas) são ocupadas
te percebidas pelo Relator Especial da por brancos, seguidos de pessoas de ori-
ONU: “A discriminação vivenciada pe- gem mista e de negros, os quais, depen-
los afro-brasileiros na educação é parte dendo do grau de clareza de sua pele,
do círculo vicioso de pobreza em que a são gerentes, recepcionistas, caixas,
maioria deles está envolvida e que assu- garçons, zeladores, empregados domés-
me a seguinte forma: pobreza material ticos, motoristas de ônibus ou taxistas.
(...) Ainda que tenha a mesma qualifi-
– baixo nível educacional, fracasso es-
cação de um branco, um afro-brasileiro
colar, falta de treinamento, desemprego
será discriminado; expressões como a
ou trabalho não especializado, baixos
exigência de ‘boa aparência’ em anún-
salários (...); o sistema brasileiro de edu-
cios de emprego também constituem
cação não leva em conta a presença, a
formas indiretas de excluir afro-brasi-
história e a cultura dos afro-brasileiros
leiros de certas funções. Além disso, em
e tende a lhes passar um sentido de in-
termos de salários, o trabalhador branco
ferioridade. Atribui-se isso, em parte, ao
ganha 2,5 vezes mais que um trabalhador
fato de os materiais didáticos não retra- negro [de sexo masculino] e quatro vezes
tarem os afro-brasileiros de maneira fa- mais que uma trabalhadora negra”.
vorável: estes são apenas mencionados
A condição das mulheres afro-
como escravos, serviçais ou trabalha-
-brasileiras mereceu destaque no do-
dores braçais. Em resultado, as crianças
cumento do Relator Especial: além de
negras não conseguem identificar-se
receberem salários médios equivalentes
com a educação que recebem e não têm
a um quarto daqueles que são pagos aos
satisfação em frequentar a escola. Há
homens brancos, “são empregadas nos
uma tendência a prepará-las para o fu-
locais mais insalubres, enfrentam uma
tebol, a música e as artes, áreas em que,
tripla jornada de trabalho e são três ve-
somos prontamente informados, elas se
zes mais discriminadas. Por essas ra-
distinguem. Sendo assim, por que tentar zões, as mulheres negras são um barô-
prepará-las para qualquer outra coisa?” metro da sociedade brasileira: o grau de
Não escapou ao Relator Especial evolução política [dessa sociedade] está
a grave situação dos afro-brasileiros no diretamente relacionado às conquistas
mercado de trabalho: “O emprego é uma políticas das mulheres negras. (...) [Sua
área em que a discriminação racial é os- ampla maioria] é de empregadas do-
tensiva. Há virtualmente uma divisão mésticas (...), enfermeiras e dançarinas
racial do trabalho que afasta os negros de samba empregadas em boates. Elas
(...) da prática de certas profissões. A sa- constituem a maioria no setor informal
bedoria popular sustenta que um negro (...). Muitas empregadas domésticas são
só pode ser bem-sucedido como sambis- maltratadas por seus patrões e sofrem
Pronunciamentos
Relatório Especial da ONU sobre Direitos Humanos no Brasil 73

violência física e moral. As mulheres -racial, tanto quanto a preocupação das


negras têm o mais baixo nível de instru- autoridades brasileiras, expressa na
ção. Em resultado de sua falta de quali- Constituição de 1988, em “promover
ficação, mas também da discriminação o bem-estar de todos, sem preconceito
racial no mercado de trabalho, (...) mui- com base na origem, raça, sexo, cor,
tas delas se tomam prostitutas. Também idade ou qualquer outra forma de discri-
se descobriu que as mulheres negras são minação”. Que é longo o caminho a ser
esterilizadas em número maior que as percorrido nesse sentido, atesta-o outro
brancas. Alguns acreditam que esse mé- documento, apresentado às Nações Uni-
todo de contracepção ou planejamento das por ocasião de sua última Assem-
familiar contribui para o gradual embran- bleia Geral: a declaração da delegação
quecimento da população brasileira”. brasileira sobre a “Eliminação do Racis-
O relatório menciona a desigual- mo e da Discriminação Racial”. Nesta
dade racial na questão da moradia – “a se percebe nitidamente que os propósi-
tos declarados do atual Governo – indis-
maioria dos afro-brasileiros vive em
cutivelmente o primeiro a reconhecer a
áreas e distritos insalubres, sem esgoto,
existência de racismo neste País –, que
água corrente ou eletricidade” – e na mí-
chegou a criar grupos de trabalho, no
dia: “Em regra, a publicidade e a mídia
âmbito dos Ministérios da Justiça e do
apresentam e mostram apenas pessoas
Trabalho, para a promoção da popula-
brancas. Nos canais de televisão, a am-
ção negra e a eliminação da discrimina-
pla maioria dos jornalistas é branca, em
ção no mercado de trabalho, estão longe
contraste com a Grã-Bretanha e os Esta-
de se concretizar, quer no plano prático,
dos Unidos, onde os canais de TV têm
quer no simbólico. Pois ali se encon-
a prática da participação multiétnica e
tram, disfarçados sob novas plumagens,
multicultural”.
os mesmos argumentos em favor de
O documento dedica uma ênfa- uma suposta singularidade brasileira em
se especial à questão da violência con- matéria de relações raciais, com o País
tra crianças e adolescentes, bem como sendo apresentado como uma nação que
à exploração do trabalho infantil e ao reconhece e valoriza sua diversidade ét-
problema das crianças de rua, apontan- nica – o que constitui o exato oposto de
do que as vítimas desses males sociais nossa realidade.
pertencem desproporcionalmente ao Sr. Presidente, em face de toda
segmento afro-brasileiro. essa situação real exposta por esses in-
Em sua conclusão, o Relator Es- vestigadores da Organização dos Esta-
pecial das Nações Unidas menciona dos Americanos e das Nações Unidas
como promissoras as mudanças que é que apresentei vários projetos a esta
têm sido observadas na área de relações Casa. Faço um apelo aos Srs. Senado-
raciais no Brasil desde os anos oitenta. res para que os examinem com muita
Dentre elas, o reconhecimento da im- atenção, porque é uma forma de colabo-
portância de nossa diversidade étnico- rarmos para a extirpação, para a derro-
74 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

gação total dessa grande injustiça social


e desse fato muito desabonador à ima-
gem do Brasil no estrangeiro e à grande
maioria da população brasileira, que é
constituída de descendentes africanos.
Axé!
Pronunciamentos
Homenagem ao pintor Nelson Nóbrega 75

Discurso proferido no Senado Federal Senhor Presidente,


em 11 de fevereiro de 1998 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

Desejo trazer a esta Casa, para


Homenagens do mundo artístico e que conste dos Anais, o pesar e as ho-
cultural de São Paulo ao pintor
menagens do mundo artístico e cultural
Nelson Nóbrega
de São Paulo ao grande pintor Nelson
Nóbrega, desaparecido na última sema-
na. Morreu no ano em que alcançaria
seu centenário de vida. Os que frequen-
tam o mundo das artes neste País sabem
que com ele perderam não apenas um
dos maiores pintores brasileiros, mas
também o mestre consumado das artes
plásticas, venerado, conhecido e consa-
grado pelos nomes mais altos da pintura
brasileira. Dele dizia Portinari, seu com-
panheiro de estudos e de aventuras plás-
ticas, que era o único mestre-pintor do
76 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

País cuja opinião se habituara a solicitar ra de uma pensão simbólica dada a al-
e respeitar. guns combatentes da heróica Revolução
Do pintor quase centenário que Constitucionalista. Creio significativo
seus amigos e admiradores acabam de informar aqui que era ele o último so-
sepultar no cemitério de São Paulo, brevivente entre os pensionistas da in-
pode-se repetir o que dele disseram, por surreição de 32.
ocasião de seus funerais, o poeta Gerar- Pelo simbolismo da homenagem
do Mello Mourão e o poeta Paulo Bon- prestada aos combatentes de São Paulo,
fim, na Academia Paulista de Letras: sugiro ao Governador daquele Estado
“Passou a vida inteira com seus pincéis que a mantenha, em favor da viúva de
na mão. Deles só se desembaraçou uma Nelson Nóbrega, como um testemunho
vez, ao longo de seus 99 anos, para da fidelidade aos que souberam honrar
empunhar um fuzil em defesa de São o espírito cívico da gente de Piratininga.
Paulo, no exército da Revolução Cons- Poucos eleitos, na história das
titucionalista, que levou às trincheiras a artes neste País, mantiveram vida tão
juventude paulista, na luta gloriosa de exemplar no culto de sua vocação pri-
1932, a qual assegurou ao País a restau- vilegiada. Cercado do prestígio que
ração do Estado de Direito”. lhe ofereciam os nomes mais ilustres
Seu colega na devoção às artes da pintura brasileira, recusou-se, siste-
plásticas, fui também seu companheiro maticamente, a toldar a pureza de seu
de armas na Revolução Constituciona- trabalho com o exercício do imediatis-
lista e nas batalhas a que a voz inflama- mo comercial. Viveu e morreu modes-
da do tribuno Ibrahim Nobre arrastou os tamente, fora das luzes da grande pu-
jovens de nossa geração para a defesa blicidade, devotado apenas à perfeição
da liberdade. e à beleza de sua obra plástica. Como
Tivemos a felicidade de sobre- sua admirável mulher, também pintora,
viver aos sangrentos entreveros da luta extraordinária Lúcia Gouveia de Barros
armada a que nos lançamos, mas nun- Carvalho – Suané no meio artístico –,
ca esquecemos os jovens heróis que irmã do saudoso Senador Barros Car-
vimos morrer ao nosso lado, um deles valho, de passagem tão marcante por
em meus próprios braços, o jovem te- esta Casa, transformou sua residência,
nente do Exército Sílvio Fleming, cujo no centro de São Paulo, num verdadeiro
corpo ensanguentado e agonizante pude ateliê renascentista, que fazia lembrar as
reconduzir a nosso campo, para ali re- oficinas de pintura de Michelangelo, de
ceber a honra dos clarins fúnebres de Leonardo ou de Cimabue.
nossa tropa. Sabia tudo de pintura, como o
A bravura daquele pequeno rapaz artista-artesão do grande século floren-
que era, então, o pintor Nelson Nóbrega tino: sabia fabricar as tintas, aparelhar
foi distinguida pelo Estado de São Pau- as telas, armar as esquadrias e, sobretu-
lo, até o dia de sua morte, com a hon- do, pintar. Centenas, talvez milhares de
Pronunciamentos
Homenagem ao pintor Nelson Nóbrega 77

vezes, pintava um quadro estupendo e, Zani, Volpi, Mário de Andrade, Tarsila


depois de contemplá-lo por dois ou três do Amaral e Noêmia Mourão. Sua ami-
dias, cobria de branco a superfície, para zade íntima com Di Cavalcanti traduzia
fazer de novo, até chegar aos últimos li- uma intensa e rara admiração recíproca.
mites da perfeição. Guignard, que pintaria seu maior e mais
Foi aluno e amigo de Visconti, famoso afresco na mansão do cunhado
tendo estudado na Escola de Belas-Ar- de Nelson, o Senador Barros Carvalho,
tes do Rio de Janeiro, único período em foi particularmente atendo às escrituras
que viveu fora de São Paulo. Contem- pictóricas que aprendera com Nelson
porâneo e companheiro dos irmãos Ber- Nóbrega. Mário de Andrade, pinta-
nardelli, foi colega de turma de Manuel do pelos maiores pincéis do País, teve
Santiago e Cândido Portinari. Conta-se também um famoso retrato pintado por
dele uma história pitoresca e significati- Nelson Nóbrega. Depois de apreciá-los
va sobre a grandeza de Portinari. Reuni- todos, o grande Pedro Nava concluiu: “o
dos os dois em Brodowski, com um gru- melhor retrato de Mário é o que foi pin-
po de pintores, surgiu a proposta de que tado pela sabedoria e o lirismo do pincel
os dois, Nóbrega e Portinari, pintassem de Nelson”.
um mural na cidade e depois se fizesse Foi Diretor da Escola de Arte e
uma votação entre os mestres presentes Artesanato do Museu de Arte Moderna
para a escolha do melhor trabalho. Com de São Paulo. Criou e foi Diretor dos
os aplausos de Portinari, numa cena dig- Cursos Livres de Arte da Fundação Ál-
na de Vasari sobre a disputa de Miche- vares Penteado. Foi membro do Conse-
langelo e Leonardo, foi consagrado em lho Curador do Patrimônio Artístico e
primeiro lugar o mural de Nelson Nó- Histórico de São Paulo. Sua última ex-
brega. Mas ele próprio, tempos depois, posição foi no Ciclo Bienal da Dan Ga-
para desgosto de todos, sobretudo de leria, em São Paulo, com surpreenden-
Portinari, promoveu a destruição de seu tes aberturas de sua perene renovação e
mural. Não teria alcançado aquela per- com grande êxito de crítica e demanda
feição suprema que desejava. de quadros. Demanda tanto maior quan-
A primeira exposição de Nelson to mais reduzidas se faziam as ofertas de
Nóbrega, logo ao terminar a Escola de vendas das obras do pintor.
Belas-Artes, em 1925, foi na Galeria Antes, expusera no Museu de
Casa e Jardim, em São Paulo. Desde en- Arte Contemporânea de Londres, em
tão, dedicou-se para sempre à pintura e 1985, onde foram disputados e vendidos
à formação de pintores. Nos últimos 70 todos os quadros a uma das mais exi-
anos, passaram por suas mãos gerações gentes clientelas do mundo. Tem qua-
de discípulos que figuram entre os me- dros em prestigiosas coleções de Nova
lhores artistas plásticos de São Paulo e York e de Londres. De sua clientela es-
Brasil. Frequentou o grupo de Rebolo trangeira, conta-se mesmo a história pi-
Gonçalves e pertencia à roda de Mário toresca de um xeque da Arábia Saudita
78 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

que, fascinado por um de seus quadros, povo, modesto e pobre, embora viesse
adquiriu uma peça da série de Banhistas de velhos troncos quatrocentões de São
que o artista apresentara. Temeroso, de- Paulo. Pois, nascido em Piracicaba, em
pois, de não poder entrar com a imagem 1889, no ano da Proclamação da Repú-
da mulher nua na alfândega de seu país blica, era neto de um dos mais poderosos
fundamentalista do Islã, o xeque pediu chefes políticos da cidade, o famoso co-
ao pintor que cobrisse o quadro com ronel José Ferraz de Camargo, chamado
uma placa de tela ou de madeira e pin- no século passado o Adão Paulista, por-
tasse no verso outra figuração qualquer que se casara quatro vezes e deixara 47
para ser exibida à fiscalização das leis filhos. Em sua casa hospedou-se o Im-
religiosas de seu país. Nelson Nóbrega perador Pedro II, recebido em célebre
aplicou, então, ao verso do original, a banquete, que os cronistas registram, ao
preciosa aguada de uma paisagem pau- qual compareceu toda a sociedade pau-
lista. No recinto de sua casa, o xeque lista, em torno das baixelas de prata e
vira o quadro na parede, de acordo com das porcelanas egrégias do coronel. O
as visitas que recebe. tempo derreteu as baixelas de prata e
Esse é apenas um breve registro quebrou as porcelanas. Mas os quadros,
com que desejo fique depositado nos as tintas, as imagens, as expressões de
anais desta Casa a homenagem devi- beleza do artista, hão de viver para sem-
da a um dos maiores artistas plásticos pre e são patrimônio maior da cultura de
do País. Fora da grandeza de sua arte, São Paulo e do Brasil.
era um homem comum, um homem do Axé!
Pronunciamentos
Homenagem a Darcy Ribeiro 79

Discurso proferido no Senado Federal Senhor Presidente,


em 4 de março de 1998 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

É com orgulho e emoção que as-


Homenagem póstuma a sumo hoje esta tribuna para reverenciar
Darcy Ribeiro por ocasião do uma das figuras mais ilustres e brilhan-
primeiro aniversário de seu tes de nossa história política e cultural
falecimento. contemporânea. Orgulho por ser seu
sucessor nesta cadeira do Senado, de
onde me esforço para honrar seu espí-
rito luminoso e combativo. Emoção por
estar aqui relembrando, não uma figura
que conheci pelos registros da histó-
ria, mas uma pessoa com a qual tive a
oportunidade de compartilhar alegrias,
sofrimentos, esperanças, no caminho
de construirmos, ao lado de tantos ou-
tros companheiros, uma alternativa,
uma possibilidade de futuro para o povo
deste País. Refiro-me ao intelectual, ao
80 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

político, ao educador, ao humanista, ao edificava o conjunto urbano da Pampu-


Senador Darcy Ribeiro, cujo primeiro lha, a cargo de Oscar Niemeyer, cujas
aniversário de falecimento transcorreu obras nascentes encheram os olhos do
aos 17 dias de fevereiro último, com jovem estudante. Nesse ambiente efer-
quem mantive uma relação amiga e de vescia também uma cultura que iria pro-
cooperação intelectual desde a década duzir toda uma geração de escritores,
de 1950 até a sua morte. intelectuais e políticos de enorme proe-
Nascido na então bucólica Mon- minência na vida brasileira. Não surpre-
tes Claros, em 26 de outubro de 1922, ende, assim, que, pouco atento às aulas
Darcy Ribeiro absorveu em sua infância de Medicina, ministradas durante o dia,
Darcy passasse as noites em discussões,
a rica cultura do interior mineiro, im-
nos bares, com colegas que lhe mostra-
pregnada das influências matriciais eu-
vam a crueldade da ditadura do primeiro
ropeias, africanas e indígenas, que mais
Getúlio, as lutas da democracia contra o
tarde, reelaboradas pelo seu gênio de
Eixo, o reacionarismo do Estado Novo,
poeta-cientista, o transformariam num
a demagogia dos corais de Vila-Lobos,
dos cofundadores da verdadeira identi-
a nova literatura nacional de Jorge Ama-
dade nacional. Aos três anos de idade,
do, José Lins do Rego e Graciliano Ra-
ficou órfão de pai – o que mais tarde,
mos, que o encantou. Como o encantou
em suas saborosas Confissões, viria a também o primeiro contato com o ideá-
considerar “muito confortável, já que rio socialista, vilipendiado e cruelmente
não houve quem me domesticasse”. perseguido nestas terras, mas vitorioso
Criado pela mãe, Dona Fininha, mes- no Velho Mundo, onde, após a batalha
tra querida e mãe dedicada, viveu, em de Stalingrado, a União Soviética se
seus primeiros anos, uma vida de po- consagrava na luta contra o nazi-fascis-
breza digna, que o aproximaria defini- mo. As marcas desse contato não se es-
tivamente dos segmentos excluídos de vaneceriam. Mais tarde, diria ele: “Não
nossa população. sou comunista, nem marxista sou, mas
Em 1939, Darcy deixou para trás sou discípulo, herdeiro de Marx, que
a cidade natal, rumo a Belo Horizonte – vejo espantado como denominador co-
“um meninão boboca de pequena cidade mum de todas as ciências do homem”.
do interior, precisando ser desfeito para A atividade político-estudantil
ser refeito”, nas suas próprias palavras. colocou o jovem Darcy em contato
Ia estudar Medicina, desejo de há mui- com o sociólogo norte-americano Do-
to acalentado por ele mesmo e por sua nald Pierson, que com ele visitou as
mãe, seguindo o exemplo do tio Plínio, cidades históricas do interior mineiro,
“o homem mais culto da cidade”. A Belô assombrando-se com a riqueza da cul-
de então era, a seus olhos, “enormíssima tura barroca. Surgiu daí a oferta de uma
e belíssima”, “aberta em avenidas e ruas bolsa de estudos para a Escola de Socio-
de larguras imensas”. Eram os tempos logia e Política de São Paulo, oferta que
em que o prefeito Juscelino Kubitschek Darcy, após ser dispensado do serviço
Darcy Ribeiro
Pronunciamentos
Homenagem a Darcy Ribeiro 83

militar, acabou aceitando. Foram, então, lá. Curiosidade intelectual, me incen-


anos de agitação estudantil – Darcy era tivando uma carreira de pesquisador
militante de carteirinha da UNE –, mas profissional? Essa bem podia ser mi-
também de profícuos estudos e contatos nha motivação principal. Insatisfação
no ambiente muito especial criado na que se oferecia a mim, em São Paulo,
cidade e universidade por sábios france- ganhando dinheiro, ou na boa vida do
ses, ingleses, alemães, italianos e norte- Rio? Também podia ser. Creio que to-
-americanos. Luminares como o próprio das essas coisas funcionaram, mas o que
sociólogo Pierson, o alemão Emille Wil- me reteve lá anos e anos foi, acho agora,
lems, antropólogo, e Herbert Baldus, o encantamento pelo Pantanal e depois
etnólogo e poeta, os sábios franceses pela Amazônia, um deslumbramento
Levi-Strauss e Roger Bastide, o inglês com a humanidade índia, tão ínvia e tão
Radcliffe Brown ... Uma plêiade em que essencial.”
também brilhavam nomes de brasileiros Dois anos depois, em 1952,
como o historiador Sérgio Buarque de Darcy Ribeiro assume a direção do Se-
Holanda. tor de Estudos do Serviço de Proteção
Em 1946, após obter o diploma ao Índio, com o apoio do Marechal Cân-
em antropologia, Darcy faz uma opção dido Rondon, então Presidente do Con-
de carreira que causa estranheza aos selho Nacional de Proteção aos Índios.
seus amigos e familiares: vai ocupar o Nessa qualidade, foi responsável pela
cargo de etnólogo no então Conselho fundação, em 1953, do Museu do Índio,
Nacional de Proteção aos Índios. Vai que a Unesco destacou como o primeiro
passar também, segundo ele, os melho- do mundo a ser criado com o propósito
res anos de sua vida, quando, dedican- de quebrar o preconceito contra os in-
do-se ao estudo dos indígenas do inte- dígenas. Era preocupação de Darcy que
rior da Amazônia, ganha prestígio como a antropologia brasileira deixasse de ser
intelectual brasileiro de pensamento uma “primatologia” ou ‘’barbarologia’’,
absolutamente original. Sua família, que só olha os índios como fósseis vi-
e sobretudo sua mãe, só percebeu que vos do gênero humano, como se esses
o filho não fracassara quando este, em só importassem como objeto de estudo.
1950, ganha o Prêmio Fábio Prado de O acúmulo de experiências e vivên-
ensaios pelo livro Religião e mitologia cias de Darcy mostrou-lhe os indígenas
kadiwéu. “Foram os jornais, chegando a como gente, capaz de dor, de tristeza, de
Montes Claros com o meu retrato, que amor, de gozo, de desengano, de vergo-
convenceram minha gente de que eu não nha. “Gente que sofria a dor suprema de
era um caso totalmente perdido.” ser índio num mundo hostil, mas ainda
Anos depois, Darcy se indagava: assim guardava no peito um louco orgu-
“(...) por que me meti no mato com os lho de si como índios. Gente muito mais
índios? Por que lá permaneci, atrelado capaz que nós de compor existências
à natureza e a eles por tanto tempo? Sei livres e solidárias. (...) Assim foi que
84 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

aprendi a olhar os índios com os olhos “O que se debatia, em essência”


deles mesmos.” Assim disse Darcy. – diria Darcy mais tarde –, “era, por
Conduzido pela mão amiga de um lado, o caráter da educação popu-
Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro passa a lar que se devia dar e, por outro lado,
se dedicar à educação, tanto primária como destinar ao ensino popular os es-
quanto superior. A partir de uma cen- cassos recursos públicos disponíveis
tral no Rio de Janeiro, que era o Centro para a educação. Não nos opusemos
Brasileiro de Pesquisas Educacionais, jamais à liberdade de ensino no senti-
monta-se uma rede desses centros jun- do do direito, de quem quer que seja,
to a universidades e grupos intelectuais a criar qualquer tipo de escola às suas
em São Paulo, Belo Horizonte, Salva- expensas, para dar educação do colorido
dor, Recife, Curitiba e Porto Alegre. A ideológico que deseja. Nos opúnhamos,
empreitada reunia gente como Thales isso sim, em nome dessa liberdade, a
de Azevedo, Gilberto Freyre, Abgar Re- que o privatismo se apropriasse, como
nault e Fernando Azevedo. A ideia bási- se apropriou, dos recursos públicos para
ca era interessar a universidade brasilei- subsidiar escolas confessionais ou me-
ra e a intelectualidade, de maneira geral, ramente lucrativas.” O ideal de Anísio
em integrar a educação no seu campo de Teixeira, abraçado por Darcy, era o de
estudos, como se fazia em medicina e uma escola pública democrática, tal
engenharia. Em 1955, com a eleição de como aquela pensada por Dewey, desti-
Juscelino Kubitschek à Presidência da nada a abrir uma porta para que o povo
República, é convidado a auxiliar Aní- brasileiro ingressasse na civilização
sio Teixeira, agora presidente do Inep, moderna, fundada numa cultura letrada.
na elaboração das primeiras diretrizes e Uma escola capaz de interromper o per-
bases da educação nacional, a qual aper- verso processo de multiplicação que tem
feiçoamento continuaria se dedican- renovado, desde sempre, a população
do décadas mais tarde. Um dos pontos brasileira, mantendo-a igual a si mesma,
fulcrais do debate da proposta no Con- ou seja, ignorante e faminta. Mas devo-
gresso foi a questão da formação do ma- tada ao trabalho, servil ou livre, sempre
gistério primário. Seus opositores, a di- temente a Deus, conformada com seu
reita, queriam, em nome da liberdade de triste destino sobre a Terra.
ensino, transferir o concurso de ingresso Em 1959, Darcy Ribeiro recebe
no curso normal do princípio dele para um de seus mais importantes encargos:
o fim. Com isso pretendiam deixar livre criar a Universidade de Brasília. Ampla-
quem quisesse criar escolas normais. mente discutido com a cúpula da SBPC
Com a aprovação da lei, isso acabou se e com os principais intelectuais brasilei-
convertendo num negócio que multipli- ros, o projeto de Darcy pretendia criar
cou geometricamente o número de cur- uma universidade que não repetisse o
sos normais, na mesma medida em que modelo existente, mas que, ao contrário,
degradou a formação do professorado inovasse o ensino superior brasileiro.
de maneira irreparável. Nas palavras de Darcy, em vez de uma
Pronunciamentos
Homenagem a Darcy Ribeiro 85

universidade-fruto, inspirada nos velhos tão, a uma paixão antiga, promovendo


modelos, uma universidade-semente. inúmeras campanhas em defesa dos po-
A implantação da UnB foi ca- vos indígenas. No ano seguinte, ao lado
racterizada, como não poderia deixar de inúmeros outros brasileiros, é benefi-
de ser, pelo conflito entre as forças re- ciado com a assinatura da lei de anistia
acionárias, que nela enxergavam, e com a todos os punidos pelo movimento de
razão, mais uma ameaça à posição de 1964.
que desfrutavam, e aqueles que viam Fortalecida durante os anos de
na universidade democrática uma porta exílio, a amizade com outro retorna-
para o futuro. Com a renúncia de Jânio do, Leonel Brizola, marcaria a volta de
Quadros e a posse de João Goulart, em Darcy ao Brasil:
1961, Darcy Ribeiro é nomeado, em Reintegrados no quadro político
agosto de 1962, para um de seus mais graças à anistia, nosso primeiro
altos cargos na vida pública, o de Minis- objetivo foi reconquistar a velha
tro da Educação. Vivia-se um dos perío- legenda do Partido Trabalhista
dos mais conturbados de nossa história
Brasileiro, legenda historicamen-
recente, encerrado pelo golpe militar de
te nossa, e que só nós podíamos
1964, que obrigou Darcy a buscar o exí-
conduzir com dignidade. Ainda
lio no Uruguai. Mal chegado a Montevi-
no exílio, Brizola promoveu duas
déu, foi imediatamente contratado como
reuniões em Lisboa, com o ob-
professor de Antropologia da Universi-
jetivo de definir o programa do
dad de la República, posteriormente
futuro PTB. Escrevi os estatutos
encarregado de presidir o seminário de
do novo PTB e entramos em luta
reformas da universidade – segundo ele,
judicial em Brasília contra uma
a tarefa mais gratificante de sua vida.
aventureira, Ivete Vargas, que,
Foi, de fato, um período fecundo, em
associada ao General Golbery,
convivência com intelectuais uruguaios,
com os quais Darcy produziu uma bela disputava a mesma legenda. Ela
e lúcida Enciclopédia da cultura uru- ganhou. (...) Pouco depois, Dou-
guaia. Foi também nesse período que tel de Andrade me procurava para
ele começou a escrever seus Estudos de escrever um novo estatuto. Agora
antropologia da civilização, série com- para o Partido Democrático Tra-
posta por seis livros fundamentais para balhista, que seria a nossa trin-
a antropologia brasileira, em que tenta cheira. Com essa legenda, volta-
interpretar globalmente o processo de mos à vida política.
formação dos povos americanos. Entre Eleito, com Brizola, vice-go-
1968 e 1977, passa pela Venezuela, o vernador do Rio de Janeiro, em 1982,
Chile e o Peru. Visita o Brasil algumas Darcy Ribeiro lançou o mais amplo e
vezes, mas seu retorno definitivo seria ambicioso projeto educacional que o
em 1978, em plena “distensão” coman- Brasil já conheceu: o Programa Especial
dada por Ernesto Geisel. Dedica-se, en- de Educação, responsável pelos tão fa-
86 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

mosos quanto injustiçados CIEPs. Com Embora problemas políticos persistam


eles, cristalizava-se, pela primeira vez atravancando sua efetiva implantação,
no Brasil, aquilo que é comum ao ensi- Darcy morreu acreditando que os males
no público de todo o mundo civilizado: que a afligem são apenas passageiros,
escolas de tempo integral para alunos e pois “uma universidade feita para viver
professores, dotadas das condições in- nas décadas e nos séculos deles se lava-
dispensáveis para que as crianças oriun- rá com um banho de lixívia”.
das de famílias pobres, que não tiveram Eleito para o Senado, Darcy Ri-
escolaridade prévia, possam progredir beiro não permitiu que a doença, que
nos estudos e completar o curso funda- com ele travava uma luta de morte, o
mental. Para Darcy e seus colaborado- impedisse de lutar pelos valores em que
res, assegurar isso a todas as crianças é sempre acreditou. Sua maior satisfação
o único modo de integrar o Brasil à civi- nesta Casa foi ver aprovada a sua nova
lização letrada, dissolvendo as imensas Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
massas marginalizadas de brasileiros fruto de mais de dois anos de trabalho
analfabetos. árduo e contínuo. Igualmente emocio-
Por acreditar nesses ideais, foi nante foi ver aprovada a lei sobre do-
para Darcy o maior golpe de sua vida ação de órgãos, da qual foi coautor e
ver esse programa ser abandonado, em responsável pela principal inovação – a
plena realização, por puro sectarismo chamada doação presumida.
político, pelo governo seguinte. As- Mesma sorte não tiveram outros
sim, 360 mil crianças, quase todas de projetos de mesma relevância, como o
áreas pobres, foram tiradas do regime que prevê a introdução de repelentes na
integral e devolvidas à rua, ao lixo, à cola de sapateiro, para evitar que crian-
delinquência. Sem equipamentos, sem ças a cheirem, ou seu projeto de reforma
professores, sem manutenção, os 500 agrária, tema de magna relevância que
CIEPs construídos no programa de ele sequer pôde ver discutido em nos-
Darcy Ribeiro constituem tristes monu- sa Comissão de Constituição, Justiça e
mentos à miopia política e cultural, bem Cidadania.
como ao reacionarismo de nossas elites, Foram essas, contudo, apenas
interessadas em manter o povo ignoran- derrotas circunstanciais na trajetória
te para dominá-lo com maior facilidade. de um homem vitorioso, autor de uma
Outra realização educacional prosa caudalosa como um rio amazô-
de Darcy Ribeiro em associação com nico, com livros traduzidos em uma
Leonel Brizola é a Universidade Esta- variedade de idiomas e publicados em
dual do Norte Fluminense. Edificada e mais de 20 países. Entre eles, O proces-
implantada na cidade de Campos, num so civilizatório, Os índios e a civiliza-
conjunto universitário projetado por ção, Suma etnológica brasileira, Maí-
Oscar Niemeyer, Darcy a via como a ra e Utopia selvagem. Um homem que
“Universidade do Terceiro Milênio”. viveu, na plena acepção desse verbo.
Pronunciamentos
Homenagem a Darcy Ribeiro 87

Que amou profundamente, que lutou DOCUMENTO A QUE SE REFERE


em defesa de seus ideais, que propôs O SR. ABDIAS NASCIMENTO EM
novos caminhos para a solução de an- SEU PRONUNCIAMENTO:
tigos problemas. Um brasileiro impres-
cindível, que dedicou sua vida à causa BARRALERTA
dos menos afortunados. Mas que soube
fazê-lo com alegria e bom humor, fru- Rio de Janeiro, 3 de março de 1998
tos de uma imensa generosidade e de
uma infinita compaixão pela sorte de
seus semelhantes! Exmo Sr.
Sr. Presidente, Sras e Srs. Sena- Senador Abdias Nascimento
dores, ainda como uma homenagem a Congresso Nacional
Darcy Ribeiro, que certamente estaria Brasília-DF
solidário se estivesse vivo, solicito a CEP: 70.160-900
transcrição de um documento daque-
Fax: (061) 323.4340
les infelizes que foram vítimas de um
desabamento na cidade do Rio de Ja-
A Sociedade Civil Comunitária
neiro.
Barralerta por seus Conselhos Diretor e
Ainda chocada com a tragédia da de Planejamento vem à presença de V. Exª
Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em para expor e afinal requerer quanto segue:
que oito pessoas faleceram, vítimas, so-
1 – Barralerta tem em seus qua-
bretudo da certeza da impunidade com
dros representantes de todos os segmen-
que agem alguns setores de nossa classe tos da sociedade civil da Barra, inclu-
dominante, a sociedade brasileira cobra sive empresários e autoridades da 24ª
das autoridades uma ação incisiva. So- Região Administrativa da Prefeitura;
bretudo de nós, membros do Congresso,
2 – não pode, portanto silenciar
para que um estatuto democrático em
diante da tragédia que se abateu sobre
sua essência, como a imunidade parla-
os moradores do prédio construído pela
mentar, não se transforme em abrigo de
Construtora Sersan de propriedade do
criminosos travestidos em representan-
Deputado Sérgio Naya, e que, por ab-
tes do povo.
soluta incompetência, negligência ou
Com esse objetivo, peço que seja imperícia dos seus engenheiros respon-
transcrito nos Anais desta Casa o texto sáveis, foi implodido por falta de segu-
abaixo, que me foi enviado pela Socie- rança para seus moradores;
dade Civil Comunitária Barralerta.
3 – outros prédios construídos na
Sr. Presidente, eram estas as mi- mesma área – Rua Jornalista Henrique
nhas homenagens ao querido compa- Cordeiro – encontram-se sob suspeita,
nheiro de PDT Senador Darcy Ribeiro. sendo periciados por técnicos da Prefei-
Axé, Darcy Ribeiro! tura e da Defesa Civil;
88 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

4 – desnecessário dizer do enor- sados e condenados, enquanto ele pre-


me prejuízo causado pela Construtora tende ficar escondido e impune pela sua
Sersan aos adquirentes das unidades, al- alegada imunidade parlamentar;
guns dos quais perderam entes queridos
no desabamento parcial do prédio, ocor- Sr. Parlamentar,
rido em 22 de fevereiro passado;
5 – os laudos técnicos estão dire- Estamos nos dirigindo a V. Exª por
cionando para a má qualidade dos ma- ter sido eleito e representar a população
teriais usados na construção do edifício do Rio de Janeiro nessa ilustre Casa, cujo
implodido, além de falhas na estrutura e prestígio deve ser resguardado.
fundações do Palace II;
O cidadão Sérgio Naya conspurcou
6 – 176 famílias ficaram, pelos
a classe dos engenheiros, desacreditou as
atos criminosos do Sr. Sérgio Naya, pri-
empresas construtoras honestas e pretende
vadas da totalidade de seus bens e sete
que a Câmara dos Deputados se torne va-
pessoas morreram na catástrofe;
lhacouto de um criminoso comum.
7 – o Ministério Público do Estado
Alardeia, o referido cidadão, que
do Rio de Janeiro aventa até a hipótese
possui bens para cobrir o prejuízo das
de enquadramento dos engenheiros res-
vítimas, mas não toma nenhuma pro-
ponsáveis no art. 121 do Código Penal
vidência nesse sentido. Esconde-se no
parágrafo 2º (Homicídio qualificado);
Parlamento e declara desejar viver em
8 – ocorre que o Sr. Sérgio Naya,
Miami, onde a mão da Justiça terá mais
signatário das plantas da construção do
dificuldade em alcançá-lo;
edifício Palace lI, covardemente, já de-
clarou que “não abrirá mão de sua imu- A sociedade brasileira espera dos
nidade, uma vez que ela pertence à Câ- Srs. Parlamentares uma postura altanei-
mara dos Deputados”; ra e digna cassando este deputado ou,
pelo menos, autorizado seja o mesmo
9 – esquece ou finge esquecer o
processado com seus comparsas pelo
Sr. Sérgio Naya que o instituto da imu-
crime de morte de sete brasileiros, além
nidade foi criado para dar proteção aos
de outros delitos que estão sendo denun-
parlamentares por seus atos e ações pra-
ciados pela imprensa.
ticados no legítimo exercício do man-
dato popular, e não para dar guarida a Subscrevemos-nos: Ney Tino-
criminosos comuns; co, Diretor Administrativo, Presidente
10 – o cidadão em causa vai per- do Conselho de Planejamento – Kleber
mitir que seus prepostos sejam proces- Machado, Presidente do Conselho Dire-
tor – Orlando Raso, Diretor Financeiro.
Pronunciamentos
Lançamento da última obra do poeta Gerardo Mello Mourão 89

Discurso proferido no Senado Federal Senhor Presidente,


em 6 de março de 1998 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

Esta semana está marcada por um


Lançamento da última obra dos maiores acontecimentos da vida cul-
do poeta Gerardo Mello Mourão, tural e da história da literatura brasileira:
intitulada Invenção do mar. a Editora Record e a Livraria Argumen-
to, do Rio de Janeiro, promoveram, no
dia 3 deste mês, o lançamento da última
obra do poeta Gerardo Mello Mourão,
que tem o título de Invenção do mar.
Não estranhe o Senado que se
traga à tribuna desta Casa a celebração
de um acontecimento poético. Já ensi-
naram os mestres da história que tudo
o que permanece e resiste à destruição
do tempo é aquilo que foi fundado pe-
los poetas. A própria glória do poder
político é efêmera e duvidosa. As gera-
ções guardam os nomes do Dante e do
90 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

Shakespeare, de Virgílio e de Camões, O saudoso poeta Augusto Frede-


e assim por diante, mas ignoram sole- rico Schmidt escrevia: “Estamos diante
nemente os nomes dos que presidiram de um poeta cuja obra é tão rara, tão au-
senados e gabinetes ministeriais à época têntica e tão marcada como suas ásperas
em que aqueles poetas fundavam a ver- raízes no país dos Mourões e como a
dadeira história de seus povos. E quan- espantosa trajetória de sua residência na
do cito o nome desses poetas ao tratar de terra, uma existência pungida de rica e
Gerardo Mello Mourão, não faço mais patética aventura e de enfurecida beleza
do que repetir o juízo de alguns dos mais humana.”
altos críticos do País e da Europa, para Meu saudoso amigo Guerreiro
os quais é a essa linhagem dos criadores Ramos, a quem seus discípulos no Bra-
do espírito, neste milênio, que pertence sil e nos Estados Unidos se habituaram
o poeta brasileiro. a chamar “O Divino Mestre”, o príncipe
Já quando do aparecimento da maior dos sociólogos deste País, dizia,
trilogia poética de Gerardo Mello Mou- em artigo famoso, que os estudos bra-
rão, Os Peãs, que reúne três livros fun- sileiros deviam criar uma nova cadeira
damentais de nossa literatura, a crítica e uma nova disciplina na Universida-
nacional e internacional o saudou como de: a gerardologia. E é ainda o mestre
um acontecimento memorável. O escri- Guerreiro, em artigo no velho Diário de
tor Antônio Olinto, que então pontifi- Notícias, do Rio de Janeiro, que escre-
cava na crítica do jornal O Globo, que via, depois da publicação dos primeiros
exerceu por cerca de vinte anos e da grandes poemas do autor de Os Peãs:
qual ainda tem saudades os que se ocu- “Agora podemos morrer. Nossa geração
pam com as coisas das letras, diria: “no e nosso País estão justificados, com a
meio de muitas correntes da poesia bra- poesia de Gerardo Mello Mourão.”
sileira de hoje, é Gerardo Mello Mourão O poeta Carlos Drummond de
um estranho e um solitário. Nada há que Andrade escreveu: “O país dos Mou-
se lhe assemelhe. Nenhum fazedor de rões merecia edições contínuas, em
versos desta parte do mundo tem com escala nacional, para que nele o Brasil
ele parentesco.” se apreendesse a ferro e fogo e palavra
O mestre Tristão de Athayde es- indestrutível (...). Peripécia de Gerardo
creveu a propósito do épico de O país é outro épico esmagador. Leio, releio,
dos Mourões: “Jamais, em nossa histó- me entusiasmo a cada momento. É um
ria literária, se colocou a poesia em tão poeta que não se pode medir a palmo, e
alto pódio.” E concluía seu ensaio so- conseguiu o máximo de expressão usan-
bre a poesia gerardiana: “Gerardo Mello do recursos que nenhum outro empre-
Mourão é um poeta planetário. O único gou ainda em nossa língua. Declaro-me
poeta planetário na história da literatura possuído de violenta admiração por esse
brasileira.” imenso, dramático e vigoroso painel,
Poeta Gerardo Mello Mourão
Pronunciamentos
Lançamento da última obra do poeta Gerardo Mello Mourão 93

que atestará sempre a grandeza singular Pois é essa genealogia, de certo


e a intensidade universal de sua poesia.” modo a genealogia de toda a América,
Na França, na Inglaterra, na Ale- mas especialmente a genealogia deste
manha e assim por diante, a poesia de País chamado Brasil, que compõe o pai-
Gerardo Mello Mourão é considerada nel espantoso de Invenção do mar.
um monumento de nosso tempo, assim Metáfora da aventura dos nave-
como seu famoso romance O valete de gadores, dos colonizadores, dos bandei-
espadas, com várias edições no Brasil e rantes, dos padres jesuítas, dos índios
no exterior, e que críticos franceses, ale- que habitavam a terra em suas tribos
mães e eslavos situam ao lado da obra inumeráveis, dos milhões de africanos
de Jorge Luis Borges ou de Franz Kafka. escravizados que pagaram com sua li-
berdade, seu sangue e seu suor a cons-
O poeta Robert Graves, titular en- trução da riqueza nacional, a epopeia
tão, da cátedra de Poesia da Universida- não é um livro de história. Mas a pala-
de de Oxford, diz: “com Gerardo Mello vra “invenção” deve estar aí em seu pri-
Mourão, esse poeta brasileiro, seu País e meiro sentido: inventar significa achar.
seu continente alcançam, pela primeira Os navegantes acharam o mar. O poeta
vez, a voz da grande poesia e da grande acompanha todos os momentos dessa
poética universal. “ invenção. Começa com a memória de
Seria necessário um volume in- outro poeta, o rei D. Dinis, a quem cha-
teiro para consignar as referências im- ma de Dionísos, poeta e rei, o Dionísios
portantes da obra de Gerardo Mello dos gregos, o Osíris do Egito africano
Mourão, como a consagração de Ezra que plantou os pinhais, para inventar as
Pound, considerado geralmente o pai tábuas, com que se inventaram as cara-
da poesia contemporânea. Diz ele: “Em velas. O infante inventou os sabedores
toda a minha obra, o que tentei foi escre- do mar alto. E o mar inventou o Brasil.
ver a epopeia da América. Creio que não Já se disse que a ficção de Tolstói no ro-
consegui. Quem conseguiu foi o poeta mance Guerra e paz expressa a história
de O país dos Mourões.” da Rússia e das guerras napoleônicas
melhor que qualquer compêndio de his-
O poeta que agora oferece Inven- tória. Esse poema é, assim, um marco,
ção do mar vem confirmar aquilo que talvez o marco maior, da posse e do co-
nele já identificara o grande Octavio nhecimento da história do Brasil, con-
Paz, ao dizer: “os dois primeiros livros tada, cantada e iluminada pela metáfora
de sua trilogia, O país dos Mourões e de seu achamento, de sua colonização,
Peripécia de Gerardo, me levaram a de seu desbravamento, das guerras em
descobrir um mundo – que me prometo que morreram centenas de milhares de
mais e mais – que não é tanto uma geo- fundadores da terra, índios e brancos,
grafia e uma história, mas, no verdadei- portugueses, franceses, holandeses, in-
ro sentido da palavra, uma genealogia gleses, padres e principalmente negros
americana”. da África, protagonistas todos da cria-
94 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

ção de uma geografia, de uma genealo- devorados pela crueldade implacável


gia e de uma história, que se tornaram dos genocídios da história.
possíveis a partir da expulsão dos holan- Mas protagonistas foram, sobre-
deses do Nordeste – episódio culminan- tudo, os negros, arrancados violenta-
te da crônica dessa empresa de fundação mente de seus reinos na costa da África,
deste país até também de brancos, mas e que aqui construíram com o próprio
sobretudo de negros e mestiços. sangue o país que não haviam escolhido.
No século XVI, no século XVII, Criaram os alicerces da riqueza nacional
transfigurando em versos a nota dos e criaram a raça a que pertence realmen-
cronistas, diz o poeta que o Brasil era te o povo brasileiro. Fala-se muito dos
Pernambuco, e Pernambuco era o açú- heróis fazedores de pátria. Mas, como
car, e o açúcar era o negro. Depois, o lembra o poeta, o primeiro documen-
Brasil seria Minas Gerais, e Minas seria to da história deste País em que apa-
o ouro, e o ouro era o negro. Mais tarde, rece a palavra pátria, em que o Brasil
o Brasil era São Paulo, e São Paulo era é chamado de pátria, foi escrito e assi-
o café, e o café era o negro. nado por um negro: o capitão Henrique
Não cabem nesta epopeia limpa Dias, na carta soberba em que repele as
as imposturas históricas que nos im- tentativas de suborno do governo ho-
pingiram ao longo dos séculos. Nesse landês, dizendo: “meus soldados têm
poema fundador, são cantados todos os pouca letra e muita espada. Com ela
protagonistas da invenção do mar, que expulsaremos os invasores, porque esta
inventou o Brasil. Os que mataram e os é a minha pátria. E respondo igualmen-
que morreram para fazer o País. Prota- te pelo capitão Felipe Camarão, porque
gonistas foram os padres missionários, esta é a pátria dele também.”
que guardaram a língua dos índios, e
Foi, assim, embora com seus ir-
que às vezes morreram de fome, como
mãos de origem acorrentados no eito ou
o padre Manuel da Nóbrega, ou assa-
empunhando armas nos quilombos, foi
dos e comidos com farinha de pau pe-
graças à bravura do governador geral dos
los índios antropófagos. Protagonistas
negros e mulatos, como se assinava o
da fundação foram os guerreiros que
prearam índios e expulsaram invasores capitão Henrique, que o País se transfor-
flamengos. Protagonistas foram os ca- mou em Pátria, criou a segurança do lito-
pitães das capitanias hereditárias, que ral e deu condições aos exploradores para
quase todos saíram do governo mais a aventura das bandeiras, da conquista do
pobres do que entraram, e alguns mor- Centro, do Oeste e do extremo Sul.
reram na indigência, passando penúria O que esse poema ilumina é a
e fome, e se finaram sem ter um lençol expressão da beleza inaugural da histó-
para envolver o corpo na sepultura em ria, da geografia e da genealogia de que
que foram enterrados. Protagonistas foram capazes negros, índios e brancos.
foram os índios devoradores de gente, Com amor, com furor, com crueldade.
Pronunciamentos
Lançamento da última obra do poeta Gerardo Mello Mourão 95

Dessa nutrição antropofágica fo- Tordesilhas (1494). É nesse amplo con-


ram feitos os ossos e as veias do Brasil. E texto que se situa o descobrimento do
também os ossos e as veias desse poema. Brasil em 22 de abril de 1500 ou, como
Ao ler o livro de Gerardo Mello já se prefere dizer, apenas ‘descoberta
Mourão ainda no original, o grande fi- formal’ , por se tratar de terras sobre as
lósofo e escritor português Afonso Bo- quais Portugal já possuía informações
telho diria que “com ele, a poesia de seguras, o que desfaz a tola versão de
língua portuguesa passou a sustentar-se um encontro por acaso. Não obstante
sobre quatro pilares: Camões, Pessoa, a estarmos a apenas dois anos da chegada
Carta de Caminha e Gerardo.” de Pedro Álvares Cabral a Porto Segu-
ro, não me consta” – continua Miguel
Entre as matérias de jornal já pu-
Reale – “que o Governo brasileiro ou
blicadas sobre Invenção do mar, vale a
nossas instituições públicas e privadas
pena destacar longo artigo, verdadeiro
já estejam dedicando a devida atenção
ensaio, ocupando mais de meia página
à comemoração de tão relevante evento,
do jornal O Estado de São Paulo, do
a não ser que haja historiadores e cos-
escritor e filósofo Miguel Reale. Nele
mógrafos pátrios empenhados silencio-
diz o antigo reitor da USP: “Portugal
samente em tais estudos, e nos venham
prepara-se fervorosamente para abrir a
surpreender com eles.
Expo98 – Os Oceanos, um patrimônio
para o futuro – com magnífico acervo Foi por esses motivos que recebi
de edificações e de pesquisas históricas, com surpresa e imensa alegria o belo
ao mesmo tempo em que a Unesco de- poema que Gerardo Mello Mourão aca-
clara 1998 o ano internacional dos oce- ba de publicar sob o título Invenção do
anos. Os portugueses têm razão de fes- mar – Carmem Saeculare, em sete den-
tejar com tanto entusiasmo a época das sos cantos, um volume de 367 páginas.
grandes descobertas marítimas, porque, Trata-se de uma obra que nos redime
assim como se fala em ‘milagre grego’, do descaso reinante, nos habilitando a
no plano do pensamento, das artes e da comparecer a Lisboa com algo de va-
investigação científica, não haveria exa- lioso nas mãos. Não é de estranhar que
gero em falar em ‘milagre português’ no um poeta se tenha antecipado nessa me-
campo das experiências e expedições ritória e necessária participação, pois a
marítimas como de Bartolomeu Dias e poesia é sempre uma invenção primeira,
Vasco da Gama, tendo seus navegado- uma intuição primordial.”
res, conforme se lê em estudos históri- Não preciso repetir a brilhante e
cos recentes, antecipado o conhecimen- entusiástica apreciação de Miguel Rea-
to de novas terras a oeste, o que levou le sobre o poema. Mas quero marcar a
a Coroa lusa a apressar a fixação, com grandeza única da contribuição do poeta
a da Espanha, das novas fronteiras do brasileiro às comemorações do Quinto
mundo, antes com o Tratado de Alcáço- Centenário. E faço daqui um apelo ao
vas (1479) e, depois, com o Tratado de Departamento Cultural do Ministério
96 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

das Relações Exteriores, onde o atento nos é sugerido por essa obra ímpar da
e competente ministro que o dirige pa- poesia brasileira. Vale a pena lembrar
rece empenhado em incorporar projetos que o poeta passou também pelas ban-
expressivos para celebrar esse marco de cadas do Congresso, como deputado fe-
nossa história, para que o poema de Ge- deral por Alagoas, e que prestou ainda
rardo Mello Mourão seja uma referência relevantes serviços a este Senado, cuja
maior de nossa presença em Lisboa. O história, mandada editar pelo Presidente
Departamento Cultural está no dever de José Sarney, na última legislatura, com
dar relevo a um projeto para que esse texto do professor Vamireh Chacon e
poema secular – secular no sentido em sua equipe de estudantes, foi elaborada
que assim se chamou o camem romano rigorosamente dentro do projeto de tra-
do poeta Horácio – seja divulgado, cele- balho organizado pelo ex-Parlamentar,
brado e consagrado, em edições come- o poeta Gerardo Mello Mourão.
morativas, seja na imediata montagem Espero, Senhor Presidente, que
de um CD ou de um CD-ROM que leve minhas palavras cheguem aos minis-
aos centros culturais do mundo o texto tros acima referidos e ao Departamen-
inigualável de Invenção do mar. to Cultural do Itamaraty, enquanto me
Apelo semelhante faço aos se- preparo para oferecer à Casa proje-
nhores Ministros da Educação e da Cul- to de lei que inclui versões escritas e
tura, e ao próprio o Presidente da Re- audiovisuais de Invenção do mar nos
pública, por meio de sua Secretaria de programas culturais e no currículo das
Comunicação, que deve funcionar mais escolas de segundo e terceiro grau do
para assuntos como este do que para a País, como referência obrigatória nos
propaganda do Governo. exames vestibulares.
O Congresso Nacional não pode Axé!
omitir-se também do dever cultural que
Pronunciamentos
Homenagem ao centenário de falecimento do poeta Cruz e Sousa 97

Discurso proferido no Senado Federal Senhor Presidente,


em 19 de março de 1998 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

Talvez eu jamais tenha ocupado


Homenagem ao centenário de esta tribuna, trêmulo de tanta emoção,
falecimento do poeta Cruz e Sousa pungido pela tristeza mais dilacerante.
Mas também nunca antes e nem depois
deste momento um sentimento de orgu-
lho e de dignidade humana teve ou terá
o poder de elevar tão alto minha autoes-
tima, sintonizada com o orgulho e a au-
toestima do povo afrodescendente a que
pertenço. Pois não é algo que aconteça
frequentemente na história de um povo
o surgimento de um gênio do porte desta
figura gigantesca que estamos reveren-
ciando no centenário de sua morte: João
da Cruz e Sousa.
Corria o ano de 1861. Vivia então
o Brasil um raro período de paz interna
98 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

e relativa liberdade – sem banimentos quentemente obrigada a se ocultar sob


nem prisões por motivos políticos, sem o manto da hipocrisia. Era um impasse
censura à imprensa –, período esse que que a sociedade imperial jamais conse-
se estenderia por cerca de quatro déca- guiria resolver.
das. O País constitucionaliza-se, ensaia Mas a principal contradição da
um regime representativo, participa do sociedade brasileira naquele início da
mercado internacional, adota o navio a década de 1860 era a de uma sociedade
vapor, o trem de ferro, o consumo do que se pretendia liberal, mas abrigava,
ferro e do carvão, o romance e o drama ao mesmo tempo, a instituição da escra-
romântico e, depois, naturalistas. Todo vidão. Mais do que isso, o sustentáculo,
esse surto de progresso tecnológico e o pilar de sua economia, então funda-
cultural não conseguia ocultar, porém, mentalmente agrária e extrativista, era
as divisões profundas que cindiam a Na- o trabalho forçado dos africanos e seus
ção de alto a baixo. Fermentadas duran- descendentes, que constituíam a quase
te décadas pelos adversários do regime, totalidade da mão de obra na lavoura e
em sua variada coloração política, essas na mineração. Constituíam também a
clivagens acabariam provocando im- maioria absoluta de uma população ain-
portantes transformações em nossa so- da concentrada no campo, numa faixa
ciedade, afetando profundamente, pelo de terra que acompanhava os contornos
modo como ocorreram a vida de todos de nosso litoral. Sua presença, assim –
os brasileiros, vivos e por nascer. como não poderia deixar de ser –, era
Uma delas era o problema eleito- um traço marcante da vida brasileira,
ral. O controle da máquina pelo ministro caracterizando esta sociedade aos olhos
da Justiça, num sistema em que o voto do mundo, o que então significava aos
não era secreto, propiciava toda sorte olhos europeus. Aos do conde Gobíneau,
de pressões e manipulações, fazendo diplomata francês, teórico do racismo
da fraude a regra, e não a exceção. Esse e amigo íntimo do Imperador Pedro II,
fato alimentava uma corrente que come- parecia o Brasil um conjunto de “flores-
çara diminuta, por vezes se expressando tas virgens habitadas por mestiços de-
em frustradas insurreições, mas que aca- generados”, com uma “população toda
baria por se tomar um interlocutor im- mulata, com sangue viciado e feia de
portante e respeitado na arena política: meter medo”.
os republicanos. Nesse contexto, não podia pare-
A outra contradição fundamental cer muito promissor o destino de um
da época dizia respeito às relações entre menino nascido escravo, naquele ano
o Estado e a Igreja. Com o catolicismo de 1861, na vila de Nossa Senhora do
como religião oficial, os não católicos Desterro, atual Florianópolis, filho de
constituíam uma cidadania de segunda um casal de negros que ganharia a al-
classe, impedida de professar livremen- forria alguns anos depois, quando seu
te as suas crenças divergentes e fre- senhor, o marechal de campo Gui-
Pronunciamentos
Homenagem ao centenário de falecimento do poeta Cruz e Sousa 99

lherme Xavier de Sousa, partiu para a ao mesmo tempo o respeito de uma mi-
Guerra do Paraguai. Mas a sorte, que noria esclarecida e progressista, mas o
mais tarde se revelaria tão mesquinha, ódio mortal das elites conservadoras,
sorriu na infância daquele menino. Tal- que consideravam a escravidão indis-
vez por um humanitarismo inato, quem pensável à manutenção de um modo de
sabe alimentado numa guerra em que vida parasitário, cuja galopante obsoles-
os descendentes de africanos lutaram, cência não conseguiam – ou não que-
sobretudo, para mostrar seu valor como riam – perceber.
homens, contribuindo para que os mi- Com efeito, a classe dominante
litares viessem a rejeitar a escravidão, ignorou, o quanto pôde, o problema do
o marechal e sua família tomaram-se chamado “elemento servil”. Nem mes-
de afeição pelo menino negro. João da
mo a proibição do tráfico, expressa em
Cruz e Sousa ganhou deles não apenas
1850, por pressão britânica, na chama-
o sobrenome, mas uma educação esme-
da Lei Eusébio de Queiroz, conseguira
rada, quase aristocrática. Pôde, assim,
conscientizá-la da inevitabilidade de
estudar os clássicos, aprender línguas
se pôr um fim à instituição escravista.
estrangeiras, ter até mesmo como pro-
Não só por ser esta imensamente cruel
fessor um naturalista alemão, de nome
e desumana, mas por se constituir num
Fritz Muller, que se correspondia com
elemento chave a atravancar o progres-
Darwin. Essa formação permitiu que se
expressassem seus extraordinários dotes so de uma sociedade que se aproxima-
de inteligência e sua irresistível vocação va do século XX com os pés fincados
para as letras. numa instituição retrógrada, ineficaz e
antieconômica. O melhor retrato desse
Com todo esse preparo, o jovem
reacionarismo espelha-se na abordagem
Cruz e Sousa abraçou de início, o ma-
gradualista com que se deu a Abolição
gistério, lecionando na capital e interior
no Brasil, incluindo uma Lei dos Se-
da Província. A marca de sua origem,
xagenários cujo verdadeiro resultado
no entanto, não o deixará seguir uma
foi libertar os senhores da obrigação de
pacata carreira de mestre escola. A iden-
sustentar escravos anciãos.
tificação com a sorte de seus irmãos de
raça, submetidos a urna escravidão que Não pode surpreender, contra
já fora extinta em quase todo o mundo esse pano de fundo, a irada reação das
ocidental, por pressão da resistência ne- elites do Desterro à ousadia daquele ne-
gra, dos nascentes movimentos sociais e gro que, definitivamente, não conhecia
de urna triunfante Revolução Industrial, o seu lugar. A hostilidade branca impele
transformaria Cruz e Sousa num pala- Cruz e Sousa a deixar a terra natal, o que
dino da Abolição. Já em 1882 – aos 21 faz na qualidade de secretário e ponto
anos, portanto –, funda, numa primeira de uma companhia teatral em tournée de
colaboração pública com seu colega e Norte a Sul do País. No Rio de Janeiro,
amigo Virgílio Várzea, o jornal aboli- trava contato com a jovem intelectuali-
cionista Tribuna Popular. Ganha, assim, dade de então, cuja vanguarda buscava
100 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

livrar-se dos cânones asfixiantes que a manifestam uma vez mais quando, indi-
prendiam ao passado. De volta ao Des- cado para o cargo de promotor público
terro, integra-se ao movimento aboli- na cidade de Laguna, no litoral catari-
cionista, pela imprensa e pela tribuna. nense, tem sua nomeação barrada por
Publica em 1885, em coautoria com o pura e simples discriminação racial. Vai
amigo Virgílio Várzea, seu primeiro então para o Rio de Janeiro, onde vive-
livro, Tropas e fantasia. Numa combi- rá a fase mais profícua de sua carreira
nação estilística de veia parnasiana e literária.
condoreira, Cruz e Sousa compôs, nessa Em matéria de poesia, a década
fase inicial, notáveis poemas abolicio- de 1880 fora dominada pelo Parnasia-
nistas, como este belo e enérgico Escra- nismo, estilo caracterizado pelo culto à
vocratas, possivelmente escrito poucos
forma perfeita, ao helenismo, à impassi-
anos antes da Abolição:
bilidade diante do mundo e da vida. Por
volta de 1890, contudo, novos ventos
Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio chegam ao Brasil, soprados da Euro-
manhosos, agachados – bem como um crocodilo pa, tendo em Medeiros e Albuquerque
Viveis sensualmente à luz dum privilégio na pose o seu principal divulgador. Sob o nome
bestial dum cágado tranquilo. de “decadentismo”, trazem a mensa-
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas gem de Baudelaire, Mallarmé, Nerval,
ardentes do olhar – formando uma vergasta
Huysmans e outros poetas europeus.
dos mil raios do sol, das iras dos poetas
A nova tendência logo se constitui em
e vibro-vos a espinha – enquanto o grande basta
polo aglutinador de jovens escritores,
que em 1891 publicam no jornal carioca
O basta gigantesco, imenso, extraordinário Folha Popular, seu primeiro manifesto.
da branca consciência – o rútilo sacrário Eram signatários B. Lopes, Oscar Rosa,
no tímpano do ouvido – audaz me não soar. Emiliano Perneta e Cruz e Sousa. Nas-
cia o Simbolismo no Brasil. Dois anos
Eu quero em rude verso altivo adamastórico, depois, em 1893, dois livros de Cruz e
vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico, Sousa marcariam pela primeira vez a
castrar-vos como um louro – ouvindo-vos urrar! concretização dessas ideias neste País:
Missal (prosa poemática) e Broquéis
Se causavam ódio entre a elite (poesia). Embora ambas as publicações
reacionária, as posições de Cruz e Sou- passassem praticamente despercebidas
sa, e sobretudo seu talento e ousadia em aos contemporâneos, Cruz e Sousa tra-
defendê-las, também lhe conquistavam zia algo de novo, tanto em prosa quanto
aliados. Em 1886, é surpreendido por em poesia, à literatura brasileira – uma
uma triunfal recepção em sua chegada alta e luminosa novidade, hoje univer-
ao Rio Grande do Sul, momento de rara salmente reconhecida.
euforia numa vida marcada muito mais O poeta tinha agora 32 anos, e o
pela frustração e pela revolta. Estas se mundo à sua volta passava por impor-
Cruz e Sousa, na visão de Myrian T.M. Moreira. Inspirada pela notícia do prêmio insti-
tuído pelo Congresso Nacional em homenagem ao Poeta Negro, a autora – que tem 65
anos de idade e mora em Sorocaba, SP – pintou o quadro reproduzido acima e o enviou,
num gesto de espontânea beleza, ao Senador Abdias Nascimento (maio de 1988).
Pronunciamentos
Homenagem ao centenário de morte de João da Cruz e Sousa 103

tantes transformações. Cinco anos an- vam a transformação da rés pública em


tes, o Governo Imperial, rendendo-se coisa privada. Estava aberto o caminho
às evidências da política e da economia, para a consolidação do coronelismo, o
extinguira a escravatura, pondo fim a aprofundamento das desigualdades re-
quase quatro séculos de brutal explora- gionais e a hegemonia política dos esta-
ção da mão de obra negra. Isso, porém, dos do Sudeste, amplamente favorecida
não significara a redenção da população pelo Governo central.
de origem africana, como sugere o cog- Apesar de seu imenso talento de
nome historicamente fixado à princesa escritor, Cruz e Sousa só encontrou má
que assinou a lei. Muito pelo contrário. vontade nos órgãos de imprensa em que
Sem terras nem outros meios de enfren- trabalhou –os periódicos Folha Popular,
tar com êxito um mercado de trabalho em Novidades e Cidade do Rio. Não con-
que seu único dote – a força de seus bra- seguindo firmar-se num emprego mais
ços – estava longe de ser escasso, os afro- à altura de sua formação, é obrigado a
-brasileiros, agora “trabalhadores livres”, aceitar a humilde e mal remunerada fun-
ingressavam em mais uma etapa sombria ção de amanuense na Central do Brasil.
de sua história sofrida. Em que pese à sua Não por acaso, a mesma sorte que teria,
reconhecida inteligência e ao seu requin- poucas décadas mais tarde, um outro gê-
tado preparo, Cruz e Sousa compartilha- nio negro de nossa literatura, um outro
ria plenamente esse terrível destino. amanuense que o talento tomaria imor-
Outro evento significativo ocor- tal: Afonso Henriques de Lima Barreto.
rido pouco tempo antes – e em estreita Casado com a bela negra Gavita, Cruz
correlação com o primeiro – fora a Pro- e Sousa imerge num terrível calvário,
clamação da República. A queda da Mo- obrigado ao convívio com a miséria e a
narquia, depois de 50 anos de reinado de doença. Não para, contudo, de produzir.
Pedro II, sem que esta opusesse resis- Pelo contrário, extrai de sua dolorosa
tência alguma, pode na verdade ser en- experiência de vida a motivação e os te-
tendida como um momento da história mas de uma poesia que consegue casar,
brasileira em que as elites alcançavam com infinita beleza, a expressão simbo-
um acordo que, fundamentalmente, pre- lista com as vivências ancestrais, como
servava seus privilégios – econômicos, exemplifica esta comovida e profética
sociais e políticos. Os acontecimentos “Litania dos pobres”’:
de 15 de novembro de 1889, a ausência
de participação popular e a formação do
Os miseráveis, os rotos
Governo Provisório demonstram o ver-
São as flores dos esgotos.
dadeiro caráter da transformação repu-
blicana. Com a República e o Federalis- São espectros implacáveis
mo, consolidavam-se os privilégios do Os rotos, os miseráveis.
latifúndio, livre agora de dom Pedro II
e dos mecanismos do Estado Imperial São prantos negros de furnas
que, segundo um historiador, dificulta- Caladas, mudas, soturnas.
104 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar

(...) forte interiorização do mundo exterior


Ó pobres! o vosso bando traduz-se na tendência plástica de ex-
É tremendo, é formidando! primir a natureza por meio de símbolos
dominantes, como o branco, o cristal,
Ele já marcha crescendo,
a caveira. Em vez de “extroversão do
O vosso bando tremendo ...
complexo de ‘poeta negro”’, como pre-
Ele marcha por colinas tendem alguns críticos, trata-se antes de
Por montes e por campinas formas de exprimir realidades exterio-
res, deformadas pelo poeta. É uma po-
Nos areais e nas serras esia de intensa emoção, singularmente
Em hastes como as de guerras. expressa no metaforismo, no jogo voca-
(..) bular, na música das palavras, na mati-
zação de cores e na força encantatória,
tudo isso que o alçaria aos píncaros do
O simbolismo de Cruz e Sousa é,
lirismo. Uma poesia também presente
além de atitude estética, uma necessida-
em sua prosa:
de superior de atingir, por meio da sínte-
se do mundo, as verdades essenciais – o Esse luto, essa noite, essa treva é
que não só lhe confere autenticidade no o que eu desejo. Treva deliciosa
movimento, mas também o projeta, no que me anule entre a degeneres-
tempo e no espaço, como um dos maio- cência dos sentimentos humanos.
res poetas da literatura brasileira. Partin- Treva que me disperse no caos,
do de um estado de aguda tensão inte- que me eletrifique, que me dis-
rior, do seu drama íntimo, gerado pelo solva no vácuo, como um som
desajuste com uma sociedade racista noturno e místico de floresta,
e até recentemente escravocrata, com como um voo de pássaro errante.
a incompreensão e a inveja dos meios Treva, sem fim, que seja o meu
literários dominantes, Cruz e Sousa é manto sem estrelas, que eu ar-
levado a uma poesia de tendência espi- raste indiferente e obscuro pelo
ritualizante e transcendentalista. mundo afora, arredado dos ho-
mens e das coisas, confundido no
supremo movimento da natureza,
Este caminho é cor de rosa, é de ouro
como um ignorado braço de rio,
Estranhos roseirais nele florescem
que através de profundas selvas
Folhas augustas, nobres reverdescem
escuras vai sombria e misteriosa-
De acanto, mirto e sempiterno louro.
mente morrer no mar.
Mortos o pai, a mãe e dois de seus
Sai em busca de um mundo de quatro filhos, e depois de ver a esposa
ideias puras, de formas aladas, verdadei- enlouquecida pela miséria, Cruz e Sousa
ra válvula de escape de suas angústias e sucumbe, ele próprio, a uma tuberculo-
compensação para suas insatisfações. A se violenta. Vai tratar-se na cidade mi-
Pronunciamentos
Homenagem ao centenário de morte de João da Cruz e Sousa 105

neira de Sítio, onde os parcos recursos maiores poetas do mundo, em qualquer


da medicina da época não conseguem tempo e lugar. Dele diria a inspirada
evitar-lhe o falecimento, aos 37 anos, a poetisa Cecília Meirelles: “Que outros
19 de março de 1898. Não sem antes ter poetas viessem sofrendo, desde os tem-
lançado, naquele mesmo ano, seu últi- pos clássicos, nada mais evidente dada
mo livro publicado em vida: Evocações. a continuidade do sofrimento humano.
Dois outros ainda sairiam, em edições Mas nenhum tivera esta linguagem des-
post mortem: Faróis (1900) e Últimos lumbrada diante da dor, acolhendo-a
sonetos (1905). como a um dom de fecundas promessas:
A primeira repercussão da obra ‘Vê como a dor te transcendentaliza.”
de Cruz e Sousa no estrangeiro ficou O centenário de falecimento de
demarcada pela conferência do poeta Cruz e Sousa ensejou minha parce-
simbolista boliviano, naturalizado ar- ria como o ilustre Senador Esperidião
gentino, Ricardo Jaimes Freyre, realiza- Amin, conterrâneo do grande poeta,
da no Ateneo de Buenos Aires ainda em na elaboração de projeto de resolução,
1889. Seu impacto nos meios literários aprovado por esta Casa e pela Câmara
portenhos foi tão grande a ponto de os dos Deputados, criando o Prêmio Cruz
influentes Juan Más y Pi e Julio Noé e Sousa de Monografia, cuja premiação
verem em Cruz e Sousa a fonte inspira- está prevista para o próximo mês de ju-
dora de Leopoldo Lugones, considerado nho. Espera-se com isso reverenciar a
o maior poeta argentino. Já Roger Basti- memória desse grande escritor, desse
de o situa ao lado de Mallarmé e Stefan grande negro, desse grande brasileiro,
George, vendo neles a tríade suprema do desse grande homem, para que sirva
movimento simbolista universal – mas de exemplo da capacidade humana de
dando visível preeminência a esse gê- triunfar na adversidade e de transformar
nio afro-brasileiro. Para outros críticos o sofrimento em matéria-prima das mais
ainda, como é o caso de Ventura Garcia sublimes realizações.
Calderón, além dos citados Pi e Noé, Axé, João da Cruz e Sousa!
Cruz e Sousa é simplesmente um dos
Os 100 anos da Os miseráveis, os rotos são as flores
dos esgotos. São espectros implacáveis os
morte de João da rotos, os miseráveis. São prantos negros
de furnas caladas, mudas, soturnas.
Cruz e Sousa São os grandes visionários dos abismos
tumultuários.
(Fragmentos de Litania dos pobres)

É preciso falar de João da Cruz e Sou-


sa, poeta negro simbolista, porque é o cen-
tenário de sua morte. Mas, por mais que se
propale seu nome, neste ano de 1998, muito
do que se fizer soará oco se não se realizar
concomitantemente a leitura ou a releitura
de seus livros. Tentar descobrir por que Bro-
quéis só poderia ser escrito por um negro
sem mescla. Porque o livro dele Faróis, fla-
meja tanto, de tão belo. Por que Litania dos
pobres é um dos seus mais perfeitos poemas.
Belíssimo, opina Zahidé L. Muzart no estu-
do Defesa e luta: a poesia de Cruz e Sousa,
Oswaldo de Camargo* acrescentando ser um poema que é preciso
110 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

ler e reler. Um longo e estranho poema. “todo texto é absorção e transformação


E que há interpretações que o ligam à de uma multiplicidade de outros textos,
revolta, à preferência pelos miseráveis, a intertextualidade desmitificando a vir-
a um certo engajamento no social. gindade original de qualquer obra” (J.
Tentar descobrir também como Kristeva, cit. por Zahidé L. Muzart).
foi que, na sua miserabilidade e fitan- Mas que peso teve, desde o início,
do a espessura da noite e da agonia que a obra de Cruz e Sousa? De Araripe Jr.,
sitiavam sua vida, ele escreveu, abrindo crítico contemporâneo do poeta, a Pau-
um clarão: “Vê como a dor te transcen- lo Lemínski, que editou em 1983 o seu
dentaliza!” Vale dizer: “Vê como a dor Cruz e Sousa, a obra do vate de Faróis
me transcendentaliza! “ ganha variegada face. A crítica de Arari-
É bom observarmos que Cruz e pe Jr. “é presa ainda a teorias de caráter
Sousa, nascido na cidade de Nossa Se- racial e individual, salientando ser Cruz
nhora do Desterro, hoje Florianópolis, e Sousa o primeiro negro sem mescla
capital da província, hoje Estado de que se torna notório pelo talento (...). A
Santa Catarina, no dia 24 de novembro partir de Araripe cristaliza-se o tema do
de 1861, e morto a 19 de março, em Sí- poeta negro ‘puro’ talentoso” (Zahidé
tio, Estado de Minas Gerais, para onde L. Muzart, in Defesa e luta: a poesia de
partira três dias antes, é o primeiro e for- Cruz e Sousa). Necessário citar também
midável “absurdo” negro na literatura o crítico e amigo Nestor Vítor, a quem
brasileira. Um transbordamento negro, se deve a conversão de Sílvio Romero
sobretudo no Rio de Janeiro do último em admirador do Poeta Negro.
decênio do século XIX. Fundamentais, no entanto, para
Não existem prenúncios de Cruz a mudança da direção da crítica, prati-
e Sousa na obra de afro-descendentes camente cristalizada nos conceitos de
nos séculos anteriores. Nem em Manuel Araripe Jr., serão os Quatro estudos so-
da Silva Alvarenga, nem em Domingos bre Cruz e Souza, do professor francês
Caldas Barbosa, nem em Teixeira e Sou- Roger Bastide, editados em São Paulo
sa, nem em Luis Gama... Explicamos: em 1943.
um traço estético que Cruz e Sousa pu- No primeiro deles, A nostalgia do
desse retornar no seu tempo, como vá- branco, Roger Bastide escreve: “A arte,
rios autores negros retomam hoje acer- em todos os lugares e em todos os tem-
cando-se da obra de Solano Trindade, pos, tem sido sempre um meio de clas-
por exemplo. sificação social. Isso seria demonstrável
O poeta deve sim, e muito, às lei- para a Europa, estudando-se a origem
turas que fez de Shakespeare, Baudelai- dos artistas, com a ajuda do método de
re, Edgar Allan Poc, Villiers, Verlaine, Sorokin. Porém, não é esse o objeto do
do português Guerra Junqueiro, poeta presente estudo. O que nos interessa é
de Os simples, mas o que importa é o o Brasil e a ascensão do homem de cor.
que ele engendrou com tais leituras, pois Ora, se a ascensão da mulher de cor se
N OS S
A

EM
100

PRÊMIO CRUZ E SOUSA


HOMENAGEM NO CENTENÁRIO DA SUA MORTE
1898 - 1998

CONCURSO DE MONOGRAFIA
INFORMAÇÕES: TEL.: (61) 311-4229 FAX.: (61) 323-4340

PROMOVIDO PELO
CONGRESSO NACIONAL
Os 100 anos da morte de João da Cruz e Sousa
Oswaldo de Camargo 113

faz pelo amor físico e pela utilização de mos e fé em si mesmo, no território es-
sua beleza exótica, a do homem ocorre, tético cujo dono era o escritor branco,
antes de tudo, em virtude de seus dons no geral filiado ao Parnasianismo, ou o
artísticos. É pela música, a escultura ou a afro-descendente embranquecido, como
poesia que ele se eleva na escala social.” Machado de Assis, Olavo Bilac, Alberto
A seguir, Roger Bastide tenta ex- de Oliveira ...
plicar qual seria o motivo de o maior Por muitos anos após a morte de
representante da escola simbolista no Cruz e Sousa, sobretudo saída da boca
Brasil ser um descendente de africanos, e da pena de escritores negros e mula-
“um filho de escravos, um negro que en- tos, vigia a expressão “torre de marfim”,
controu sempre pelo seu caminho, para dentro da qual se teria refugiado o gran-
detê-lo, o preconceito de cor”. Ora, se- de Poeta Negro.
gundo Bastide, “se há uma poesia essen- Fernando Goes, estudioso cruze-
cialmente nórdica, essa será exatamente sousiano atilado, foi um dos que mais
a poesia simbolista”; daí o paradoxo, fizeram percutir essa critica, sobretudo
que só se pode explicar pelo caráter com a divulgação de seu texto Cruz e
“classificador” do Simbolismo. Sousa ou o carrasco de si mesmo, intro-
Esse estudo e os seguintes, com dução à edição da poesia completa por
os títulos A poesia noturna de Cruz e ele organizada.
Sousa; Cruz e Sousa e Baudelaire (estu- Diz ele neste fragmento: “Bem
dos de literatura comparada) e O lugar sei que a poesia verdadeira, a poesia que
de Cruz e Sousa no movimento simbo- se preza, não tem momentos, nem hora.
lista, são, talvez até hoje, as análises É de todos os instantes, de sempre. Mas
cruzesousianas que mais repercutiram o que eu quero dizer é que Cruz e Sou-
sobre a visão já um tanto estereotipada sa não cantou em seus poemas, nenhum
focando o poeta de Broquéis. Merecem daqueles temas que fizeram de Castro
leitura e meditação atentas. Alves um poeta tão amado, o nosso po-
A vida de Cruz e Sousa, é sabido, eta social. Não cantou e, antes, conser-
foi miserável, pontilhada de humilha- vou-se sempre com um desprezo, um ar
ções extremas. Morrendo dez anos após distante nada simpático, longe daquilo
a Abolição, carregou a miserabilidade que de há muito tem feito não só a gló-
de escravo que, aliás, prosseguiu sendo ria dos conquistadores, mas a dos poetas
a condição da maioria dos “libertados” também – a luta.
em 13 de maio de 1888. A cor negra, Nesse sentido, vendo em Cruz e
após 1888, continuou sendo, no corpo, o Sousa um abstencionista, um legítimo
sinal que indicava, com rigor, o territó- habitante da torre de marfim, que punha
rio em que devia permanecer o homem a arte acima da humanidade, nesse sen-
escuro: o mesmo de antes da Abolição. tido é que o reaparecimento dele, nestes
Leve-se em conta que Cruz e Sousa de dias de tão trágicos sacrifícios [Nota:
fato se intrometeu, picado por entusias- Fernando Goes se refere aos dias tor-
114 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

mentosos da Segunda Guerra Mundial], Por outra face, se dessa “torre de


me inquieta por demais.” marfim” se pode ver a vida ou cingí-Ia
Correto? com muitos poemas de Broquéis, Faróis
ou Últimos sonetos, saiu transfigurada a
Afirmação difícil de ser rebatida
vida... Missão, também, e autêntica de
até a edição de Cruz e Sousa – obra com-
um verdadeiro poeta simbolista.
pleta, organizado em 1961 por Andrade
Muricy, aliás edição do centenário de O centenário da morte de Cruz e
nascimento do poeta. “Mas” – citamos Sousa é oportuna ocasião para se reava-
Benedito Antunes, no livro de nossa au- liar, hoje, com novos olhos e novo enfo-
toria O negro escrito – “nem Fernando que, a esplêndida obra do Poeta Negro,
Goes é tão culpado desse transvio, pois que morreu a 19 de março de 1898.
que sua opinião foi lançada antes da A coletânea de textos que a seguir
edição das poesias completas (Livraria publicamos pretende apenas levantar o
Aguilar), em 1961. E é lá que se encon- véu sobre a poesia de ação ou de obser-
tram, pela primeira vez, produções es- vação social de Cruz e Sousa. Quere-
senciais para a reinterpretação social de mos, com eles, apontar, de preferência,
Cruz e Sousa. Contrapondo-se a Empa- parte do ângulo racial e social do poeta
redado – um negro clamando entre mu- de Emparedado.
ros –, poemas como Escravocratas, Na
senzala, Grito de guerra, ou, em prosa,
Dor negra e Consciência tranquila,
cumes aceitos hoje na obra de Cruz e
Sousa e que desmentem, por serem an- * Oswaldo de Camargo é jornalista e escri-
tiescravidão, por sua participação no tor. Publicou entre outros livros, O negro
escrito – apontamentos sobre a presença do
processo social do seu tempo, a torre de
negro na literatura brasileira.
marfim atribuída a Cruz e Sousa.”
Os 100 anos da morte de João da Cruz e Sousa
Oswaldo de Camargo 115

Quatro Textos Engajados A canção de cristal dos grandes rios


de Cruz e Sousa sonorizando os florestais profundos,
a terra com seus cânticos sombrios,
o firmamento gerador de mundos.
ESCRAVOCRATAS
Tudo, como panóplia sempre cheia
(De Poesias completas) das espadas dos aços rutilantes,
eu quisera trazer preso à cadeia
Oh! trânsfugas do hem que sob o manto régio
manhosos, agachados – bem como um crocodilo, de serenas estrofes triunfantes.
viveis sensualmente à luz dum privilégio na pose
bestial dum cágado tranquilo. Preso à cadeia das estrofes que amam,
que choram lágrimas de amor por tudo,
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas que, como estrelas, vagas se derramam
ardentes do olhar – formando uma vergasta
num sentimento doloroso e mudo.
dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
e vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta Preso à cadeia das estrofes quentes

O basta gigantesco, imenso, extraordinário – como uma forja em labareda acesa,


da branca consciência – rútilo sacrário para cantar as épicas, frementes
no tímpano do ouvido – audaz me não soar. tragédias colossais da Natureza.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico, Para cantar a angústia das crianças!
vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico, não das crianças de cor de oiro e rosa,
castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar! mas dessas que o vergel das esperanças
viram secar, na idade luminosa.

CRIANÇAS NEGRAS
Das crianças que vêm da negra noite,
Em cada verso um coração pulsando, dum leite de venenos e de treva,
sóis flamejando em cada verso, e a rima dentre os dantescos círculos do açoite,
cheia de pássaros azuis cantando, filhas malditas da desgraça de Eva.
desenrolada como um céu por cima,
E que ouvem pelos séculos afora
Trompas sonoras de tritões marinhos o carrilhão da morte que regela,
das ondas glaucas na amplidão sopradas
a ironia das aves rindo à aurora
e a rumorosa música dos ninhos
e a boca aberta em uivos da procela.
nos damascos reais das alvoradas.

Fulvos leões do altivo pensamento Das crianças vergônteas dos escravos


galgando da hera a soberana rocha, desamparados, sobre o caos, à toa
no espaço o outro leão do sol sangrento e a cujo pranto de mil peitos bravos,
que como um cardo em fogo desabrocha. a harpa das emoções palpita e soa.
116 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

Ó bronze feito carne e nervos, dentro São espectros implacáveis


do peito, como em jaulas soberanas, os rotos, os miseráveis.
ó coração! és o supremo centro
das avalanches das paixões humanas. São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.
Como um clarim a gargalhadas vibras,
vibras também eternamente o pranto São os grandes visionários
e dentre o riso e o pranto te equilibras dos abismos tumultuários.
de forma tal, que a tudo dás encanto.
Às sombras das sombras mortas,
És tu que à piedade vens descendo.
cegos, a tatear nas portas.
Como quem desce do alto das estrelas
e a púrpura do amor vais estendendo Procurando o céu, aflitos
sobre as crianças para protegê-las. e varando o céu de gritos.

És tu que cresces como o oceano, e cresces Faróis à noite apagados


até encher a curva dos espaços
por ventos desesperados.
e que lá, coração, lá resplandeces
e todo te abres em maternos braços. Inúteis, cansados braços
pedindo amor aos espaços.
Te abres em largos braços protetores,
em braços de carinho que as amparam, Mãos inquietas, estendidas
a elas, crianças, tenebrosas flores, ao vão deserto das vidas.
tórridas urzes que petrificaram.
Figuras que o Santo Ofício
As pequeninas, tristes criaturas
condena a feroz suplício.
ei-las, caminham por desertos vagos,
sob o aguilhão de todas as torturas Arcas soltas ao nevoento
na sede atroz de todos os afagos. dilúvio do esquecimento.
Vai, coração! na imensa cordilheira
Perdidas na correnteza
da dor, florindo como um loiro fruto,
das culpas da natureza.
partindo toda a horrível gargalheira
da chorosa falange cor do luto. Ó pobres! Soluços feitos
As crianças negras, vermes da matéria, dos pecados imperfeitos!
colhidas no suplício à estranha rede,
Arrancadas amarguras
arranca-as do presídio da miséria
do fundo das sepulturas.
e com teu sangue mata-lhes a sede!
Imagens dos deletérios,
LITANIA DOS POBRES imponderáveis mistérios.

Os miseráveis, os rotos Bandeiras rotas,


são as flores dos esgotos. sem nome das barricadas da fome.
Os 100 anos da morte de João da Cruz e Sousa
Oswaldo de Camargo 117

Bandeiras estraçalhadas E de tal forma se arrasta


das sangrentas barricadas. por toda a região mais vasta.

Fantasmas vãos, sibilinos E de tal forma um encanto


da caverna dos Destinos! secreto vos veste tanto.

Ó pobres! o vosso bando E de tal forma já cresce


é tremendo, é formidando! o bando, que em vós parece.

Ele já marcha crescendo, Ó Pobres de ocultas chagas


o vosso bando tremendo ... lá das mais longínquas pragas!

Ele marcha por colinas, Parece que em vós há sonho


por montes e por campinas. e o vosso bando é risonho.

Nos areais e nas serras Que através das rotas vestes


em hostes como as de guerras. trazeis delícias celestes.

Cerradas legiões estranhas Que as vossas bocas,


a subir, descer montanhas. de um vinho prelibam todo o carinho ...

Como avalanches terríveis Que os vossos olhos sombrios


enchendo plagas incríveis. trazem raros amavios.

Atravessa já os mares, Que as vossas almas trevosas


com aspectos singulares. vêm cheias de odor das rosas.

Perde-se além nas distâncias De torpores, d’indolências


a caravana das ânsias. e graças e quintessências.

Perde-se além na poeira, Que já livres de martírios


das Esferas na cegueira. vêm festonadas de lírios.

Vai enchendo o estranho mundo Vêm nimbadas de magia,


com o seu soluçar profundo. de morna melancolia!

Como torres formidandas Que essas flageladas almas


de torturas miserandas. reverdecem como palmas.

E de tal forma no imenso Balanceadas no letargo


mundo ele se torna denso. dos sopros que vêm do largo ...
118 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

Radiantes d‘ilusionismos, de certos poentes agonizantes, uma voz


segredos, orientalismos. ignota, que parece vir do fundo da ima-
Que como em águas de lagos ginação ou do fundo mucilaginoso do
bóiam nelas cisnes vagos ... mar ou dos mistérios da noite – talvez
Que essas cabeças errantes acordes da grande lira noturna do infer-
trazem louros verdejantes. no e das harpas remotas de velhos céus
E a languidez fugitiva esquecidos, murmurar-me:
de alguma esperança viva.
–Tu és de Cam, maldito,
Que trazeis magos aspeitos
réprobo, anatemizado! Falas em
e o vosso bando é de eleitos.
abstrações, em formas, em espi-
Que vestes a pompa ardente
ritualidades, em requintes, em so-
do velho Sonho dolente.
nhos! Como se tu fosses das raças
Que por entre os estertores
de ouro e da aurora, se viesses dos
sois uns belos sonhadores.
arianos, depurado por todas as ci-
vilizações, célula por célula, teci-
do por tecido, cristalizado o teu
EMPAREDADO ser num verdadeiro cadinho de
ideias, de sentimentos – direito,
perfeito, das perfeições oficiais
(fragmento de Evocações) dos meios convencionalmen-
te ilustres! Como se viesses do
Eu não pertenço à velha árvore Oriente, rei!, em galeras, dentre
genealógica das intelectualidades medi- opulências, ou tivesses a aventura
das, dos produtos anêmicos dos meios magna de ficar perdido em Tebas,
lutulentos, espécies exóticas de altas e desoladamente cismando através
curiosas girafas verdes e spleenéticas de de ruínas; ou a iriada, peregrina e
algum maravilhoso e babilônico jardim fidalga fantasia dos medievos, ou
de lendas... a lenda colorida e bizarra por ha-
veres adormecido e sonhado, sob
Num impulso sonâmbulo para
o ritmo claro dos Astros, junto às
fora do círculo sistemático das fórmulas
priscas margens venerandas do
preestabelecidas, deixei-me pairar, em
Mar Vermelho!
espiritual essência, em brilhos intangí-
veis, através dos nevados, gelados e pe- Artista! Pode lá isso ser se tu és
regrinos caminhos da Via Láctea... d’África, tórrida e bárbara, devorada
E é por isso que eu ouço, no ador- insaciavelmente pelo deserto, tumultu-
mecimento de certas horas, nas moles ando de matas bravias, arrastada san-
quebreiras de vagos torpores enervan- grando no lodo das civilizações despó-
tes, na bruma crepuscular de certas me- ticas, torvamente amamentada com o
lancolias, na contemplatividade mental leite amargo e venenoso da angústia! A
Os 100 anos da morte de João da Cruz e Sousa
Oswaldo de Camargo 119

África arrebatada nos ciclones torveli- Dessa África cheia de solidões


nhantes das impiedades supremas, das maravilhosas, de virgindades animais
blasfêmias absolutas, gemendo, rugin- instintivas, de curiosos fenômenos de
do, bramando no caos feroz, hórrido, esquisita originalidade, de espasmos de
das profundas selvas brutas, a sua for- desespero, gigantescamente medonha,
midável dilaceração humana! A África absurdamente ululante – pesadelo de
laocoôntica, alma de trevas e de chamas, sombras mArcadas – visão valpurgia-
fecundada no sol e na noite errantemen- na de terríveis e convulsos soluços no-
te tempestuosa como a alma espiritua- turnos circulando na Terra e formando,
lizada e tantálica da Rússia, gerada no com as seculares, despedaçadas agonias
degredo e na neve – polo branco e polo da sua alma renegada, uma auréola si-
negro da dor! nistra, de lágrima e sangue, toda em tor-
Artista?! Loucura! Loucura! Pode no da Terra ...
lá isso ser se tu vens dessa longínqua re- Não! Não! Não! Não transporás
gião desolada, lá do fundo exótico dessa os pórticos milenários da vasta edifi-
África sugestiva, gemente, criação dolo- cação do Mundo, porque atrás de ti e
rosa e sanguinolenta de satãs rebelados, adiante de ti não sei quantas gerações
dessa flagelada África grotesca e tris- foram acumulando, acumulando pedra
te, melancólica, gênese assombrosa de sobre pedra, pedra sobre pedra, que para
gemidos, tetricamente fulminada pelo aí estás agora o verdadeiro emparedado
banzo mortal; dessa África dos suplí- de uma raça.
cios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo Se caminhares para a direita bate-
desprezo do mundo Deus arrojou toda rás e esbarrarás ansioso, aflito, muna pa-
a peste letal e tenebrosa das maldições rede horrendamente incomensurável de
eternas. egoísmos e preconceitos! Se caminhares
A África virgem, inviolada no para a esquerda, outra parede de ciências
sentimento, avalanche humana amassa- e críticas, mais alta do que a primeira, te
da com argilas funestas e secretas para mergulhará profundamente no espanto!
fundir a epopeia suprema da dor do fu- Se caminhares para a frente, ainda nova
turo, para fecundar talvez os grandes parede, feita de despeitos e impotências,
tercetos tremendos de algum novo e tremenda, de granito broncamente se
majestoso Dante negro! elevará ao alto! Se caminhares, enfim,
Dessa África que parece gerada para trás, ah! Ainda, uma derradeira
para os divinos cinzéis das colossais e parede, fechando tudo, fechando tudo
prodigiosas esculturas, para as largas – horrível! – parede de imbecilidade e
e fantásticas inspirações convulsas de ignorância, te deixará num frio espasmo
Doré – inspirações inflamadas, sober- de terror absoluto...
bas, choradas, soluçadas, bebidas nos E, mais pedras, mais pedras se so-
infernos e nos céus profundos do senti- breporão ás pedras já acumuladas, mais
mento humano. pedras, mais pedras ... pedras destas
120 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

odiosas, caricatas e fatigantes civiliza- até às estrelas, deixando-te para sempre


ções e sociedades ... Mais pedras, mais perdidamente alucinado e emparedado
pedras! E as estranhas paredes hão de dentro do teu sonho ...
subir, subir, subir, mudas, silenciosas,
Guardo uma recordação não tanto
Diário de um negro amarga do ano de 1974.
Foi um momento de grandes espe-
atuante 1974 – 5 ranças para mim, pois foi nesse instante
de imensa agitação emocional e de tan-
tos trabalhos no Ministério que consegui
completar o meu curso jurídico, a 9 de de-
zembro de 1974.
A formatura caiu numa segunda-
-feira e até sexta-feira nenhum aluno ti-
nha as notas completas da prova; desse
modo, ninguém sabia se estava promovi-
do em todas as disciplinas. A angústia era
imensa pelos corredores da veneranda Fa-
culdade Nacional de Direito da Rua Mon-
corvo Filho, onde outrora funcionou o
Senado Federal, local de fortes agitações
populares, da Rua do Areal, na época em
que, no Governo de Wenceslau Brás, se
pretendia a intervenção federal no Estado
do Rio, quando Nilo Peçanha sucedeu, no
Ironides Rodrigues Estado fluminense, os Governos de Al-
berto Torres e Quintino Bocaiúva.
122 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

O clima era de expectativa no to de inefável expectativa quando olhá-


Teatro Municipal naquela noite, com os vamos o nosso destino com apreensão,
formandos todos de beca, circulando por medo ou certo otimismo juvenil.
entre cortinas e cenários no mais belo te- Lembrava-me daqueles que tanto
atro brasileiro. Enquanto se aguardava o me incentivaram a terminar meu curso
culto ecumênico, com o coral já entoan- de Direito, que estão debaixo da terra
do melodias na boca de cena do majes- apodrecendo, para darem maior esplen-
toso teatro, procurava com os olhos, pe- dor às floradas dos cemitérios desconhe-
las galerias, balcões e camarotes, onde cidos. Aqui no meu subúrbio distante
se assentara o meu estremecido bororó, de Bento Ribeiro, olhando os trens que
e não conseguia divisá-lo naquela mole correm e passam pelas estações que cul-
compacta de gente gesticulando, a falar, minam nos confins do universo, passo a
num burburinho ensurdecedor de vespas evocar um por um naquele espanto que
assustadas num bosque longínquo. as sombras dos mortos proporcionam
De vez em quando uma voz dis- aos olhos abertos dos vivos apavorados.
tante de fotógrafo vinha nos tirar de nos- Solano Trindade, poeta do trem da
so enlevo de moços deslumbrados ante a Leopoldina, que tem gente com fome, é
enunciação dos nomes dos bacharelan- o primeiro a me aparecer neste aparta-
dos, na voz eloquente e musical do Dr. mento silencioso da Rua Picuí, povoado
Barroso, um professor bacana de Direito de cinco mil volumes, quadros e discos
Comercial, bom e benevolente para com de música antiga. Solano, magro, ban-
os seus alunos, principalmente numa guela e de sorriso irônico e escarninho,
matéria árdua como essa, da qual, nos é o primeiro a aparecer, a zombar dos
velhos tempos da Nacional, o Dr. Cas- dez anos que passei longe da vetusta
tro Rebelo foi um mestre carrancudo e faculdade: “Quando é que você termi-
temido. O Dr. Barroso, com sua face de na este curso, hein, maroto? Quer pas-
galã do cinema mexicano, alegre, es- sar por estudante crônico, como o Hugo
portivo e com tanta ternura na alma, até Leite?”.
estava a citar, um por um, os nomes de Hugo Leite foi um estudante da
colegas meus que jamais ouvi pronun- Escola de Belas-Artes, talentoso e que
ciá-los, a não ser de uns 15, no máximo, escrevia peças de teatro do gênero que
que eu conhecia e que, daqui por diante, imortalizou Bernard Shaw. Não se sabia
iria repeti-los com aquela emoção que do tempo em que Hugo Leite estudara.
nos fica após citarmos as pessoas que Ele e Jerusa Camões já perdiam o tempo
foram tudo em nossas vidas. em que militavam na política estudantil
Numa ária de Bach, um canto da UNE. Jerusa era da Escola Nacional
mais lírico e sentido de Villa Lobos ou de Música, quando não participava ati-
uma “Aleluia” ressecante de ritmo ono- vamente do Teatro Universitário, repre-
matopéico de Hãndel, havia em todo o sentando, no antigo Teatro Fênix, peças
ambiente festivo do Municipal um háli- de teor humorístico e popular como
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 123

WeekEnd de Noel Coward ou, quando ca, ornamentando suas ruas e avenidas
no Teatro Municipal, participava, com pelos carnavais.
sua garra de artista nata, em Gonzaga ou Pamplona, magro e de olhar des-
a Revolução de Minas, de Castro Alves, confiado, se move no salão nobre da
ou fazendo a ama simpática no Romeu e UNE com a desenvoltura de um en-
Julieta, de William Shakespeare. Como diabrado saci cosmopolita. Junto dele,
me esquecer da Jerusa que patrocinava Hugo Leite, tipo popular saído da Pra-
as Festas da Juventude, que, no Munici- ça Onze, traçando rumos maravilhosos
pal, nos fez ver uma deliciosa comédia para os seus irmãos estudantes. A UNE,
romântica de Coelho Neto, Quebranto, nessa época, era uma efervescência cul-
ou quando se iniciou a sua carreira de tural muito grande, com as direções exí-
artista e líder estudantil, com a peça, mias de Ernesto Bagdócimo, Genival
montada no Teatro Ginástico, O Mano Rebelo e Hélio de Almeida, que ali es-
de Minas, em que apareceu pela primei- tava todos os dias, ainda não esperando
ra vez em cena teatral essa imensa atriz ser o grande engenheiro dos nossos dias.
Wanda Lacerda? Lembro-me da noite, miraculosa
Havia uma casa de fachada aus- para mim, em que Bagdócimo recebeu
tera em que a pintura envelhecida esta- no salão nobre um velho já estropiado,
va descansando. Ficava na esquina da de muletas, a mancar como um rema-
Rua Buarque de Macedo com a Praia do nescente aleijado de guerra. Tratava-se
de George Bernanos, grande escritor
Flamengo. Ali, todos os dias eu ia dar
católico de minha paixão, que escreve-
minhas aulas de ginásio ou vestibular
ra dois livros de meu perpétuo encan-
de Direito para Walter, mineiro uberlan-
tamento: Sob o sol de Satã e Diário de
dense de olhar penetrante de índio, de
um pároco de aldeia. Para receber tão
tribo extinta do interior goiano. Quando
ilustre visitante, estava outro escritor de
alguém abria a porta para mim, já uma
minha paixão e de quem fui amigo mui-
jovem bonita dava aulas particulares de tos anos, Jorge de Lima.
piano para uma garota loura e de laço de
Não tive coragem de visitar meu
fita na cabeça. Em outra sala, uma jo-
amigo na Casa de Saúde São Sebastião,
vem de sapatilha dançava balé clássico,
na Rua Bento Lisboa. Sabia que aquela
ao som de uma romanza de Schwnan ou
moléstia que o prostrou ali, por tantos
Weber.
meses, não poupava ninguém. Já havia
Foi depois que vim a saber que dizimado um Afrânio Peixoto, uma Ce-
a moça do piano era Wanda Lacerda. A cília Meirelles, um Villa Lobos, e agora
esvaecente mocinha que lançava suas espreitava a hora oportuna para carregar
pirouettes desfouetés em passos mági- meu amigo para as regiões dos que vão
cos de dança é a atual esposa de Fer- e não voltam. Soube que ele estava uma
nando Pamplona, hoje um cenógrafo de sombra do que fora. Pouco falando, a
mão cheia que embeleza a cidade cario- sua voz parecia vir de longe, distante
124 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

como um eco inconcebível ou voz des- Lembro-me de quando eu e o Van


figurada. Quantos anos eu lhe segui a Jafa trocávamos ideias sobre A inven-
trajetória de médico bondoso, atenden- ção de Orfeu, seus aspectos sibilinos e
do, solícito, a gente pobre em seu con- a beleza de muitos trechos desse poema
sultório da Cinelândia carioca. Ali me ciclópico, em que, em alguns versos, os
recebera com seu avental branco, seu vocábulos mal lhe exprimem o tom bár-
indefectível sorriso pleno de humani- baro e um tanto barroco.
dade e ternura. Nas paredes do consul- Perto de Van Jafa, o poeta Tasso
tório, quadros em que anjos esvoaçam da Silveira já havia falado sobre o estilo
no espaço, tocando rabecas e violinos. gongórico de Jorge de Lima nesse poe-
Mulheres níveas, com vestes brancas e ma que, de algum modo, abriu caminhos
imaculadas, alavam pelo espaço infini- à poesia brasileira. Van Jafa retrucou o
to, mal roçando as nuvens que se desfa- aedo de Regresso à origem, dizendo
zem, embranquecidas, no céu. Ali, esse achar muitos claros a mensagem e o
grande poeta e romancista alagoano espírito poético de A invenção de Or-
ofertou-me os grandes livros de sua la- feu. Tasso, ainda muito forte e disposto,
vra: Calunga, O anjo, Guerra dentro do embora a cabeleira branca que lhe dava
beco, Mulher obscura, assim como seus um ar de Rafundranath Tagore indígena,
livros de poemas como Miracelli ou A era chefe de um escritório comercial da
invenção de Orfeu. Parece que foi on- Cruzeiro do Sul. Foi ali que eu, um dia,
tem que pela primeira vez fui apresen- fui buscar uma foto sua para ilustrar um
tado a Jorge de Lima por Anísio Rocha, artigo meu sobre um grande romance
deputado goiano. Com aquela bondade tassiano, Silêncio.
que lhe despontava em todos os gestos, A morte, com sua sem-cerimônia
recebeu-me com alegria, pondo à von- em levar meus melhores amigos pela
tade o rapaz acanhado e triste que eu calada das sombras imprecisas, sem me
era. Havia rabiscado umas tantas frases deixar ao menos um vestígio ou cami-
em O combate, de Anísio Rocha, sobre nho de onde eu possa encontrá-los, foi
a personalidade do poeta de “Essa nega carregando, sem me consultar, aqueles
Fulô” e lhe levara, com aquele medo de que ainda podiam dar muito de si, pelos
submeter os nossos mais íntimos refo- gênios criadores de que foram dotados:
lhos d’alma à apreciação de um escritor Santa Rosa, o pintor dos banguês, dos
experimentado e já consagrado. Para negros líricos do Nordeste e de todo o
minha surpresa, ele gostou do artigo e poviléu anônimo das ruas ignoradas;
me incentivou com palavras calorosas e Jorge de Lima, com seu aspecto de que-
simpáticas. Se não me engano, ele pre- rubim seráfico, mais ser celeste que ha-
sidia a Câmara de Vereadores da cidade bitante desta terra de tantos crimes e pe-
e andava sempre atarefado, na pressa cados; Tasso da Silveira, alma puríssima
inconcebível de um homem que tinha o sem pecado, a discutir comigo sobre
tempo e as horas mArcados. Farias de Brito num restaurante popular
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 125

da Rua São José; Adelino Magalhães, É que o tráfego das ruas não está fácil.”
com seu chapéu-coco, o terno impecá- Adelino, com o rosto severo e contraria-
vel de cor cinza e vistoso colete, sempre do: “Demorasse mais e nós começaría-
a olhar o antigo relógio que ele tirava mos a cerimônia sem você”.
de um bolso da calça de quina, feita im- Não sei por que a incompreen-
pecavelmente. O olhar mortiço e parado são da crítica em face de Adelino Ma-
contrastava com a sua conversa alegre e galhães. Até um luminar lúcido da aná-
vivaz, pondo a gente à vontade a contar lise literária como Tristão de Athayde
casos pitorescos e engraçados. Assen- mostrou-se obtuso a uma obra de tanta
tado, assumia o ar circunspecto de ho- sutileza psicológica como a de Adeli-
mem à antiga, tomando a postura digna no. Como ficar indiferente às modula-
de um barão do Império. Era a mesma
ções rítmicas dos “Violões”, “Um prego
coisa em seu casarão de Santa Teresa,
mais outro prego” e “Íris”, com aqueles
rodeado pelas lombadas encadernadas
monólogos dilacerantes dos persona-
de livros familiares e pelo silêncio inde-
gens que intercalam ou interrompem os
vassável que vinha dos belos aposentos
longos devaneios desse intimista mara-
de sua casa tão bonita. Quando eu orga-
vilhoso. Que emoções sutis perpassam
nizei uma festa em homenagem a Muri-
por essas sonoridades diferentes, de
lo Araújo, o poeta de “Banzo”, chegou
diálogos musicais e requintados. É ver-
atrasado à recepção que estava mArcada
para a antiga sede do Serviço Nacional dade que Adelino, por vezes, toma para
de Teatro, na Avenida Getúlio Vargas. modelo de sua obra-prima O suicídio
da engole homem, a Lapa turbilhante
Adelino Magalhães, sempre de
de uns 40 anos passados, com seus gi-
relógio em punho, com o rosto contra-
golôs ostensivos, suas hetaíras negras
ído pelo mal-estar, contava as horas e
e mulatas, desfilando pelas adjacências
os minutos do atraso de Murilo Araújo.
da Joaquim Silva, da Rua Taylor e Beco
A assistência que lotava o auditório já
das Carmelitas, numa mistura de obsce-
estava impaciente. Adelino, aborrecido,
nidade e pecado, poluindo de luxúria o
falou categórico como o homem correto
ar poético da noite pojada de mistérios
que presidia a sessão: “O Murilo mais
e lendas.
uma vez não chega na hora. Sempre
atrasado, como das outras vezes. O jei- Adelino emprega o linguajar ma-
to é começar a sessão sem ele”. Fiquei landro da Lapa, fiel à literatura popular
um tanto apreensivo de iniciar as sole- que Tristão e outros críticos desconhe-
nidades sem a figura do homenageado. cem. Só o que vive no meio do povo,
Quando ia demover o Adelino desse in- sentindo o pulsar do seu coração sofri-
tento insensato, eis que chega o Murilo do, é que pode imaginar a emoção do ar-
Araújo, todo apressado, com terno pre- tista retratando os tipos que viu e amou,
to muito vistoso, de chapéu cinza e um na turba, com a ressonância e beleza que
cravo escandalosamente escarlate na la- o poviléu toma ao penetrar, intempesti-
pela do paletó. “Desculpe o meu atraso. vamente, nos escritores do povo.
126 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

Veja-se a delicadeza e poesia Todo o casario envelhecido dos lados da


com que MacOrlan fala dos pintores Central do Brasil foi derrubado para dar
de Montmartre, naquela fauna noturna mais espaço para futuras construções
de apaches e grisettes que dominam as modernas. Foi quando o Trio de Ouro,
madrugadas cinzentas da Cidade Luz. pela voz de ouro de Dalva de Oliveira,
O ladrão, a prostituta, o gigolô, o leão cantou para o universo atento o “Bom-
de chácara, o gari, o motorista de táxi, -dia, Avenida Central”, lembrando um
o estudante, o coronel que sustenta as diálogo inexistente entre a grande ar-
hetaíras caras, todos têm o seu lingua- téria que se construía e a Avenida Rio
jar característico de cujos neologismos Branco, que, majestosa, corre de um
bizarros só vamos nos dar conta per- ponto a outro do mar.
lustrando as obras de forte conteúdo de Derrubam casas velhas e seus es-
plebe de um Marques Rebelo (Marafa), combros levantam uma nuvem de poei-
Benjamin Constallat (Gurya, Mistérios ra nos transeuntes. Do casario vetusto só
do Rio, A virgem da macumba e Made- restam ruínas e montes de pedra e cal. A
moiselle Cinema), Antônio Fraga (De- tudo a picareta do tempo dissolve em sua
sabrigo) etc. João do Rio imortalizou os iconoclástica indiferença. De todo esse
vultos dos bulevares numa linguagem terremoto inconsequente de destruição
artística, retratando os cafés, centros re- e inconcebível modernismo, salvou-se a
ligiosos e a vida dos boêmios noturnos Praça Onze dos sambas-canções arden-
do Rio antigo em A alma encantadora tes de malícia e encantamento.
das ruas e religiões do Rio, numa pro- Uma voz de preto lustroso, com
va de amor fiel aos tipos populares que o apito na boca, grita para o universo
deambulavam pela cidade no início do umedecido: “Não acabaram com a Pra-
século. ça Onze, não!” Na voz desse Laurindo
O Rio dos anos 40, que eu peguei, que desceu do morro até este recanto da
ainda continha o casario antigo que veio cidade, onde os seus irmãos negros vão
abaixo para abrir a Avenida Presidente disputar a beleza do ritmo e coreografia
Vargas. Ainda havia o corso na avenida, de suas escolas, no protesto do irmão
os confetes, as serpentinas, o Dr. Jaca- Laurindo reponta todo o lamento de
randá com sua indefectível casaca negra uma raça espoliada, que perdeu tudo o
e lustrosa, a negra Perua açulada pelos que era seu: liberdade, oportunidade de
moleques de rua com vaias e assuadas, vencer, iniciativa e até o amor de viver.
os bondes tardos e lerdos percorrendo O negro, em sua apatia secular, espera
trilhos encravados no asfalto das ruas um líder para sacudir-lhe o jugo incô-
silenciosas do centro e do subúrbio. modo de uma escravidão velada, de uma
Havia mais humanidade nesse aparente democracia.
Rio que começava a se tornar grande Quando o dinheiro acabava e eu
metrópole com a construção desorde- não podia pagar a pensão e a hospedaria,
nada de tantos edifícios e arranha-céus. ia dormir nos barcos que ficavam guar-
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 127

dados sob uma espécie de marquises do até que ano você estudou?” “Fiz todo o
Pavilhão Mourisco. Eram locais inde- curso ginasial em Uberlândia. Vim ao
vassados da polícia que os malandros ou Rio fazer o meu vestibular para ingres-
gatunos de Botafogo procuravam para sar na Faculdade Nacional de Direito.”
descansar de suas peripécias diurnas. “Onde vai você fazer esses prepara-
Quando a chuva caía inclemente sobre tórios?” Respondi-lhe que no Colégio
a cidade indiferente, o jeito era dormir Universitário, estabelecimento renoma-
no bonde até o ponto final, quando não do que ficava na Praia Vermelha e que
tinha que disputar a minha canoa-leito competia com o Colégio Pedro II no ga-
com algum marginal mal-encarado. barito dos professores, no ensino esme-
O sobrado amarelo de Dona rado e na afluência dos alunos das me-
Guiomar, uma senhora de Minas, da ci- lhores famílias da cidade. “Já que você é
dade de Oliveira, com seu piano desafi- um rapaz tão competente, não vai fazer
nado, tocando Sonata ao luar de Bee- mais esses serviços de gente inculta. Vai
thoven. Era aí uma pensão de estudantes dar aulas pra Teresinha. Vou ver se lhe
onde eu limpava, além dos quartos, uma arranjo outros alunos com gente de mi-
enorme escada em caracol que ia da sala nha convivência.” Assim, pude ter lugar
de visita até o andar de cima. Os rapazes para comer e dormir e levar uma vida
me olhavam com indiferença, talvez por menos agitada do que na época em que
causa de meu olhar humilde e do servi- meu dinheiro acabou e meu dileto cole-
ço um tanto humilhante que fazia. Um ga de infância, Dr. Oswaldo Godoy, me
dia a Teresinha, filha de Dona Guiomar, socorreu, dando-me o dinheiro necessá-
preparava uma tradução de francês e, a rio para me hospedar no Hotel Avenida,
certa hora, perguntou à mãe quais as tra- que ficava ali onde se ergue hoje o im-
duções dos vocábulos bossu e lointain. ponente edifício da Sears.
Dona Guiomar, que tocava um prelúdio Enquanto os meus colegas de for-
qualquer ao piano, respondeu que não matura vão e vêm pelo palco imenso da
sabia. Depois disse, em tom humorado: formatura com suas becas negras, vou
“Creio que não é preciso perguntar ao olhando professores e alunos que se cru-
Ironides, que ele não deve saber tam- zam, junto à mesa do centro. Depois é o
bém”. “Claro que sei!”, respondi a ti- discurso do orador, cheio de redundân-
rar a poeira da mesa, dos quadros e das cias e de um lirismo de garoto sonhador,
portas. Bossu se traduz por corcunda e contrastando com a oração do paraninfo,
lointain é distante, longe, longínquo.” que atacou os regimes fortes que tiram
Teresinha olhou pra mim admirada: “É a liberdade de ação e a iniciativa cultu-
isso mesmo. Há uma gravura de um cor- ral de todos os artistas livres e altivos.
cunda na página”. Dona Guiomar, com Nós que fizemos o juramento, ainda há
o ar benevolente daquelas matronas an- pouco, de sermos fiéis à liberdade e de
tigas, perguntou-me: “Você, Ironides, não abraçarmos nunca as causas de con-
deve ser um homem inteligente que está teúdo suspeito e antinacionalistas, ouví-
escondendo seu jogo para mim. Afinal, amos o ímpeto rebelde dessas palavras
128 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

ardentes que nos chamavam a atenção Garbo aparecerá, então, na sua verda-
para as próprias pugnas da democracia deira feição de mito e lenda, de mulher
a que tanto aspiramos e que sumiu, tra- sem igual e incomparável, de fulgura-
gada num regime de tantos atos incons- ção, de arte rutilante e sem par”.
titucionais. Folheava o álbum alheada, com o
Não ouvi sua voz, Celene, me rosto compenetrado de angústia e apre-
chamando, talvez das altas profundezas ensão: “Quantas vezes cruzei com ela
estelares. Falou-me num tom tão baixo por Florença, lá no Fiezole e pela Via
e magoado que pensei de algum anjo del Vechio. Ela a de sempre, de olhos
perdido que, ao cochilar, caiu distraído, negros, com o rosto sempre coberto
a dormir, de alguma estrela bem lumi- para não ser reconhecida pelo mundo
nosa e longínqua. É verdade que curti a que tanto a venera. Como não conhecer
sua ausência em Florença por uns bons sua efígie de feições do grego clássico
quatro anos. Agora avalio como pude que tanto nos deslumbrou em A dama
suportar a falta de sua figura diáfana e das camélias, Rainha Cristina, Roman-
esvanescente, tocando-me, ao piano de ce, O beijo, A carne e o diabo, Grande
sua sala antiga, Plus que lente, Le Jardin Hotel, Matta Hari, Ninotchka ou Como
sur la pluie, L’apres midi d’un faune, do me queres, Ana Christie e Inspiração?
meu amado Debussy, em que você dava Ela passou hierática e indiferente dentro
toda a sua alma de artista jovem e ator- daquele mistério que lhe aureola a fama
mentada. Depois ficávamos olhando o de mulher bizarra e indiferente às adula-
álbum de uma artista estranha de olhos ções e aplausos do mundo.
magnéticos, boca de ar sensual e, por
vezes, pura, a longa cabeleira no ombro Carrega, em suas viagens e cru-
e o rosto transmitindo angústia, medo, zeiros internacionais a sua insegurança
ternura e mistério que você contempla- emocional pela perda de seu mecenas,
va a dizer: “E pensar que toda essa bele- Maurice Stiller. Talvez oculte uma dor
za um dia vai perecer. Essa voz de tanto tão grande que quer que a mesma seja
dulçor cristalino vai emudecer, comida desconhecida pelo resto dos mortais,
pela terra. Esses braços, que se move- numa altivez e desdém próprios das
ram qual Duse e Sarah Bernhardt, serão deusas Juno e Minerva. Em Paris foi o
destruídos implacavelmente pelo tempo mesmo enigma dela fugindo dos jorna-
voraz. Um dia (que tristeza haverá pelo listas e se ocultando sob umas roupas
universo inteiro) toda essa enciclopédia masculinas estranhas e colocando seus
de arte e beleza, de fascínio e mistério, olhos de cílios incomparáveis sob a obs-
será um eco longínquo e passado. Mas curidade gritante de uns longos óculos
tenho certeza de que esse nome, esse gê- escuros. Naquele café do subúrbio pa-
nio da arte de representar, esse rosto de risiense onde penetrei um dia, vi aquela
múltiplas aparições e de clássica beleza mulher que entrou com longo vestido
aparecerão, com os contornos definidos de seda branco, cinto prateado e luzidio
de maior artista do seu século. Greta e assentou-se naquela mesa do centro,
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 129

junto de dois rapazes circunspectos. Seu cia irreparável, a desconhecer a eterna e


olhar passou pelos frequentadores, pare- insuperável Greta Garbo?”
cendo não ver ninguém. Foi quando a Minha antiga paixão pelos cir-
orquestra, parecendo esperar pela entra- cos que percorriam a cidade com seus
da dessa estranha mulher, tocou o Ape- sorti1égios de ecuyères, palhaços, do-
nas um coração solitário, de Tchaiko- madores, trapezistas e engole-fogo, o
wsky. Ela ficou uns instantes ouvindo a toldo de lona esburacado cobrindo o
música e, em seguida, tomou a vodca de longo mastro. De fora se viam as arqui-
um cálice que estava sobre a mesa. Cha- bancadas cheias de crianças, seguidas
mou, disfarçadamente, os garçons e lhes de suas famílias, olhando o espetáculo
deu polpudas gorjetas. Fiquei embas- curioso de que só tínhamos notícia pelo
bacada, sem me mover. Não descobrira clangor humorista da charanga tocando
quem era aquela mulher, cuja efígie me um dobrado. Um ou outro garoto mais
era familiar, mas cujas feições agora não afoito passava “por debaixo do pano” e
me era possível identificar. Ela chegou penetrava no palácio mágico das ilusões
perto da florista que trazia um ceguinho da amazona cavalgando, de pé, o cavalo
e lhe comprou todas as violetas, distri- branco que corria pelo picadeiro.
buindo-as aos circunstantes. A florista O Circo Dudu ficava ali pela Fi-
murmurou, como numa prece religiosa: gueira de Melo, na região bem pobre da
“O que tem de boa tem também de be- Leopoldina. Todos os dias ali afluíam
leza. É a mulher mais bela do mundo”. multidões de seres em busca de sonho,
O ceguinho murmurou, para dentro de procurando, sôfregas de emoções e en-
si mesmo: “Que pena, mãe, que meus cantamento, a graça eterna, as panto-
olhos não possam enxergá-la!” O que mimas e a arte inexcedível do riso do
não daria para apreciar tão decantada palhaço Benjamin de Oliveira. Com seu
beleza. rosto negro alvaiadado de branco, seu
E eu, mais intrigada ainda, quan- indefectível pinho, sua riquíssima indu-
do vi a estranha mulher e seus compa- mentária de clown original, Benjamin
nheiros apanharem o fiacre próximo, cantava os seus interessantes lundus,
perguntei à florista que olhava o fiacre maxixes e chulas, e dava muita alegria
se dirigir para a rua dos álamos ama- a seu público proletário que o idolatrou
relentos, caindo no outono: “Quem é em mais de 60 anos de picadeiro. Intro-
essa mulher de branco que saiu daqui duziu o palco no circo, nos chamados
há pouco e que tenho certeza de haver circos-pavilhões, e levou muitas revis-
conhecido em algum lugar, mas cujo tas, comédias e burletas pelo picadeiro,
nome minha memória falha me escon- como Viúva alegre, opereta de Franz
de de quem seja?” “Que é isto, garota Lehar, em que fazia o endiabrado Ne-
néscia e infeliz? Como ousa ignorar o gus; fez Os pescadores, bela peça de
nome da maior e mais bela atriz do seu sua autoria, em que interpretava o velho
século? Como se atreve, numa ignorân- pescador que assistia, silencioso, à trai-
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Depoimentos

ção que a mulher de um pescador fazia ticipou, com êxito, de muitas peças do
ao marido. Benjamin era insuperável Circo Spinelli.
nessas interpretações de padre velho e Olhando-se a trajetória de Ben-
guloso em Diabo no convento, do ho- jamin, por mais de 60 anos de triunfos,
mem atormentado em Remorso vivo ou sem conhecer decadência, vê-se a sua
quando dançava a chula de modo ir- superioridade sobre outros clowns de la-
repreensível, nos seus 70 anos e ainda titudes diferentes, como os irmãos Fra-
carregando Cacilda Gonçalves, fazendo telini ou o consagrado Grock, o palhaço
o público delirar com a força física do do Porto, de Portugal. Havia um outro
grande palhaço e imenso ator negro. Um palhaço, Polidoro, que gozou de crédi-
na plateia gritou depois do lance: to imenso na época de Benjamin e que
– Você não é mais homem para pegou a evolução do circo brasileiro de
estas proezas, Benjamin! 1890 e tanto até perto de 1950, quando
Ao que ele retrucou de pronto a re- morreu. O circo da Belle Époque era
quebrar-se, numa chula de letra maliciosa: povoado de cançonetas francesas, das
– Bananeira velha também dá canções brejeiras de Ernesto Nazareth e
bom cacho. daquelas melodias de Catulo que o Baia-
no, com seu vozeirão seresteiro, cantava
Em seu camarim, pintando as
no teatrinho ao ar livre do Passeio Pú-
pálpebras de tinta branca, carregando
blico. Lá por 1940 e tanto, Benjamin vi-
mais o alvaiade do rosto para melhor
via com Rosalina, moçoila mulata bem
enfrentar as luzes dos refletores, Benja-
bonita com quem morava numa casinha
min vai ouvindo um moço preto a ler-
-lhe as piadas e graçolas escritas num simples e ensolarada de Vigário Geral.
caderno, que Benjamin depois repetia, A ela Benjamin ensinava as modinhas
recriando-as, no imenso picadeiro da mais sentidas de Catulo da Paixão Ce-
vida. O interessante é que esse homem arense e Anac1eto de Medeiros. Contra
que não sabia ler ditava peças de alto a vontade dos filhos, Benjamin uniu-se
conteúdo dramático, era respeitado por a essa mulata sedutora que cantava com
grandes literatos da cidade, como Catu- voz belíssima, contagiando até mesmo
lo da Paixão Cearense e Artur Azevedo, um homem exigente como Catulo. Este
levando ao Circo Spinelli, do Boulevard disse a Benjamin, certa vez: “Arranjaste
de São Cristóvão, o que havia de mais um canário, meu nobre palhaço, um ver-
requintado para se aplaudir: O chofer dadeiro canário”.
e a viscondessa, com a aplaudida atriz A vida de Benjamin transmudou-
Lili Cardona, que eu conheci já enve- -se num verdadeiro paraíso, com Rosa-
lhecida e que, quando jovem, era artista lina incentivando-lhe a carreira, sempre
de mérito, com uma voz inconfundível, a acompanhá-lo no Circo Dudu, dando-
a gorjear as mais belas árias da opereta -lhe um certo apoio moral com sua bele-
Viúva alegre, de Franz Lehar. A própria za e juventude irrequieta. Um dia, Rosa-
esposa de Benjamin, Dona Vitória, par- lina desaparece, sem explicação, da vida
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 131

do palhaço, deixando-lhe mágoa imensa teau, Max Jacob e de um escritor de es-


no coração sofrido. Nunca mais Benja- pírito aberto como Ramón Gomes de La
min foi o que era antes. Participava, com Sema, que, em seu picadeiro, em cima de
sucesso, de vários circos com a mesma um elefante, fez uma preleção de grande
consagração dos outros tempos, pois, se beleza plástica e musical que vem publi-
o sentimento do homem mudara com cada num livro ilustrado do mestre espa-
recente caso passional, a sensibilida- nhol, O circo, obra que retrata os circos
de artística não se alterou. Palhaços do ou pavilhões de lona através dos tempos,
porte de Chicharrão e Piolim, grandes glorificando tudo que os Grocks, os Gu-
clowns que alegraram toda a criançada gusses e os irmãos Fratelini fizeram pela
de São Paulo, ou esta cornucópia de ale- alegria da humanidade, cansada de tantas
gria geral que é Carequinha, deram ao guerras e misérias.
circo dimensões novas, mas nenhum de- Fui fazendo meu vestibular de Di-
les, nem mesmo o interessante palhaço reito como podia. No Colégio Universitá-
Dudu, teve aquele gênio da inventiva e rio, no primeiro ano, as aulas de latim de
da interpretação de Benjamin, quando, Marcos Leite eram apreciadas por todos
pela arte imensa, ultrapassava o âm- os alunos, pois o mestre tinha um méto-
bito do circo para atingir os limites da do de ensino que penetrava na cabeça do
grande interpretação dramática do teatro mais renitente discípulo. Mas preferia o
universal. Daí, um marechal Hermes ou Guilherme de Azevedo dar essas aulas,
um Floriano Peixoto sempre ter um tem- com aquele seu entusiasmo tão conheci-
po para aplaudir o inspirado ator negro, do, inflamando-se ante os trechos mais
indo sempre abraçá-lo no camarim com sugestivos da Eneida de Virgílio, em que
palavras do mais lisonjeiro respeito. sempre repetia um verso que tanto en-
Discutiu-se na Câmara se se de- cantava sua seleta sensibilidade: “Tubes,
veria dar ou não uma pensão vitalícia a regina, renovare do larem infandum?”.
Benjamin de Oliveira, com o que, assim, O pio Enéias, combalido de tantos so-
o Brasil saldaria uma dívida de honra a frimentos na peregrinação dos mares,
esse clown excepcional, pelo muito que relata à rainha Dido, atenta e amorosa,
alegrou a criançada deste País, em mais toda a sua odisseia marítima, sacudido na
de 60 anos. frágil nau pelo vento encapelado e pelo
José Américo, o estilista de A ba- mar enfurecido, agitado por Netuno, ins-
gaceira, deu o seu parecer lapidar: “Ele tigado pela irada Juno, que não gostava
merece esta pensão porque fez rir a todo de Enéias, o qual, em compensação, era
o povo triste”. apoiado por Vênus, que certa feita lhe
Em Paris, o circo é encarado com apareceu lirialmente branca e de nudez
o respeito que o povo mais culto do mun- casta e indevassável...
do tributa às grandes criações do espírito Aos sábados, tanto nas aulas da
humano. Lá o Cirque d’Hiver é vitalício, manhã como nas da tarde, havia sessões
recebendo até homenagens de Jean Coc- literárias. Pela manhã, Dona Maria de
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Depoimentos

Lourdes Nogueira, que era também poe- Na literatura francesa, arrebata-


tisa, convidava os alunos para declama- va-se ao falar da genial George Sand,
rem seus poemas ou lerem seus contos e de Victor Hugo. Pela Renée Chateau-
ensaios. Leônidas Porto Sobrinho aí bri- briand tinha uma certa predileção, sem-
lhava, com seus escritos de penetrante in- pre relatando o enredo de Atala e Renée.
teligência. Leônidas e Vicente Porto, seu Declamávamos nossos poemas nessas
irmão, além de escreverem depois uma tertúlias que, muitas vezes, eram pre-
bem didática gramática do castelhano, senciadas por um jornalista ou escritor
também fizeram uma elogiável gramática de renome. Eu sempre era o pão de ló da
latina, com trechos selecionados de Eutró- festa, com meu indefectível O estudan-
pio e de Júlio César, numa explanação es- te alsaciano, a bater sempre no peito o
correita dos grandes mestres que são. eterno refrão do francês insultado pelo
Leônidas, após longa vida de alemão arrogante: “É aqui dentro, é aqui
magistério, morreu, deixando um nome que está a França”. Um poema de Dona
respeitado e a saudade de quantos con- Maria de Lourdes, reproduzido no Cor-
viveram com sua fúlgida inteligência. O reio da Manhã, correu mundo, declama-
sobradinho em que morava na Rua Ben- do em todas as tertúlias da cidade:
to Lisboa, 131, era uma verdadeira meca
“Minh’alma inquieta anseia
de mestres e alunos que ali iam buscar,
Quisera novos ares, novo ambiente,
além das preleções eruditas dos irmãos
Ser como a águia, quando o vôo alteia
Porto, a bela acolhida da mãe e avó dos
Livre, sem leis, sem nada que a atornente.
dois professores, que sempre recebiam
os visitantes com um delicioso vinho es- Quisera ser apenas um grão de areia
panhol. Vicente depois dirigiu A Época, A rolar, a rolar na água corrente,
revista da Faculdade Nacional de Direito, Ser neblina que fulge e se engazeia,
que gozou de intensa influência cultural Subindo enorme e fluídica serpente.
no mundo universitário brasileiro e que,
depois, o obscurantismo político fechou. No mar, no ar, na serra
Dona Maria de Lourdes, ilustre Uma tristeza imensa dimana:
progenitora do crítico musical Eurico Viver a gente assim, apegada à terra,
Nogueira França, dava aula de Literatu- No prosaísmo da existência humana.
ra Geral, com sua voz mansa e de ter-
na musicalidade. Quando argumentava Pela manhã era a sessão literária
sobre literatura grega, demorava-se em da Drª Maria Rita, hoje uma juíza cir-
Safo e em Alceu, repetindo os versos da cunspecta, mas de nobre e bondoso co-
maior poetisa da Hélade, que falavam ração. Sua tese de professoranda foi so-
em “Filha de Jove, que tem altares! Em bre a mulher na literatura universal. Drª
cem lugares, diva falaz! Ah! Poupa má- Maria Rita se impunha como uma mes-
goa a quem te adora! A quem te implora tra exigente e de muito amor a seus alu-
favor e paz!” nos. Dona Maria de Lourdes, com seu
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 133

chapéu, luvas, colar de pérola, dava as vatura. Joaquim Nabuco encarou essa
suas aulas de modo solene. Por vezes parte do problema com muita acuidade
vinha o professor Delaura, de polainas, e visão sociológica em O abolicionis-
nos sapatos impecáveis, o fraque que ta. Nina, pelo reacionarismo da ciência
lhe dava um ar majestosamente profes- do seu tempo, foi obtuso em perceber
soral. Lecionava Literatura Geral, sen- a verdade, além de produzir conclu-
do até o catedrático da matéria. O pro- sões reacionárias tão semelhantes às do
fessor de Psicologia, Dr. Lins e Silva, douto Sílvio Romero. Guerreiro Ramos
falava baixinho, de modo imperceptí- assim viu, num lance de grande destre-
vel, mas que grande sabedoria em suas za mental, em Cartilha de um apren-
palavras! Ao fazer uma conferência diz de sociologia, quando se insurgiu
sobre Joaquim Nabuco, levou, para as- contra as asseverações racistas de Síl-
sistir a ela, a filha do abolicionista per- vio Romero e Nina Rodrigues, taxando
nambucano, Dona Carolina Nabuco. O o negro de raça inferior, não vendo aí
professor Lins e Silva era um escritor uma falta de oportunidade de ultrapas-
correto e modelar, como se pode ver sar o seu status social, porque o branco
num livro quase definitivo que deixou fez a sua abolição, mas não lhe deu os
publicado na Edição Leitura, Atualida- meios de educar e evoluir. Na Améri-
de de Nina Rodrigues, em que olha o ca do Norte ainda houve um Booker T.
africanista maranhense sob o ângulo de Washington que, fundando colégios em
iniciador dos nossos estudos afro-bra- Tuskegee, atraiu a gente negra para os
sileiros e do estudioso preconceituoso estudos culturais e para aprender um
do negro no Brasil, vendo tudo com a ofício, por mais humilde que fosse. De-
falsa ciência de um Charcot e da pior pois foi a vez do cientista Carver, que
escola de antropologia do tempo, per- também pensou em elevar a sua gente
cebendo inferioridade racial onde ha- pelo ensino, pelo trabalho, a fim de que
via falta de oportunidade de ascensão o branco americano a respeitasse mais.
social para o negro. Foi por essa falsa
visão de Nina Rodrigues que seus dis- Após um ano no Colégio Uni-
cípulos, como Afrânio Peixoto e Edson versitário – não sei que inveja ou es-
Carneiro, desvirtuaram toda uma aná- tranha politicagem conseguiu fechar
lise lúcida que deveriam ter os estudos esse grande estabelecimento, o melhor
afro-brasileiros. Só um Artur Ramos, do Rio em seu gênero –, passamos para
um Roger Bastide, um Florestan Fer- o Colégio Pedro lI, que era também
nandes e, mais que eles, um Guerreiro um padrão do ensino geral. As aulas
Ramos puderam colocar em seu devido de História da Filosofia do Professor
lugar o conceito justo de que não se deu Nelson Romero, filho do grande críti-
a devida importância do nosso racismo co de nossa literatura, Sílvio Romero...
disfarçado, que tolheu os movimentos Álvaro Lins, apesar de iconoclasta em
da gente negra, não lhe dando a educa- suas opiniões facciosas sobre Coelho
ção adequada após a abolição da escra- Neto, Tasso da Silveira, Afrânio Pei-
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Depoimentos

xoto ou Ribeiro Couto, foi consumado prova tirando todo o assunto das pró-
mestre de Literatura nas aulas da tarde. prias ideias. Daí o alarmante número de
Pela manhã, as aulas eram ministradas notas ruins, aliado ao fato de que Alci-
por Manuel Bandeira. Os volumes do des Gentil não dava aula que atraísse os
nosso mestre, como Jornal de crítica ou alunos... O próprio Delgado de Carva-
a História literária de Eça de Queiroz, lho, de renome brasileiro e internacio-
andavam de mão em mão. Lembro-me nal, depois nos deu aulas de Sociologia,
da celeuma que se levantou em torno da desajudado por pronúncia defeituosa.
conferência de Álvaro Lins sobre um As aulas de Geografia eram dadas pelo
crítico frio e rígido como José Veríssi- Dr. Mário Porto, que na minha terra,
mo. Álvaro tentava supervalorizá-lo, Uberlândia, deixou um nome respeitá-
em excesso, acima de Sílvio Romero, vel pela efervescência cultural no seu
quando é o contrário. Sílvio tinha uma Ginásio Mineiro, nos idos de 1928 a
excelente bagagem cultural e científica 1933, contendo um professorado que
que faltava a José Veríssimo. Este olha- faria o orgulho de qualquer estabele-
va o fato literário pela própria criação cimento de ensino do Brasil: Dr. Luís
em si, sem notar o meio e a formação Rocha, Domingos Pimentel de Ulhoa,
psicológica do autor. Todos os escritores José Aparecido Teixeira, Eurico Silva,
que Sílvio Romero elogiou ou de que Nelson Cupertino, Alfredo de Frei-
traçou o perfil estão mais vivos do que tas Macedo, João Gonzaga, Cônego
nunca. Ao traçar a análise sobre Cruz e Eduardo, Pedro Bernardo Guimarães
Sousa, Luís Delfino, Bernardo Guima- e Elisa Marquês. O Professor Milton
rães, Tobias Barreto, Nestor Vitor ou o Porto, irmão do Dr. Mário, ali fundou o
novel sociólogo negro, precocemente Liceu Osvaldo Cruz, que muito contri-
desaparecido, Tito Lívio de Castro, Síl- buiu para o engrandecimento cultural
vio crispava-se de fagulhas divinas, es- de minha Uberlândia, aceitando, além
bravejava de entusiasmo e beleza, como dos alunos que moravam no centro da
um possesso, arrebatado pela mágoa do cidade, os que vinham das vilas mais
analisado. longínquas.
O seu discurso de recepção na Essas as reminiscências que vou
Academia a Euclides da Cunha honra o relatando, enquanto se passam os fes-
pensamento brasileiro. Ninguém mais tejos de minha formatura. Ainda não
pode dizer que conhece Martins Pena se iniciou a entrega simbólica dos di-
sem ler o ensaio penetrante e exato de plomas e nem um colega leu o jura-
Sílvio sobre o fundador do teatro popu- mento que todo advogado de vergonha
lar no Brasil. Alcides Gentil, ensinan- deve cumprir. Nos balcões, galerias e
do sociologia, estava muito aquém do poltronas, as mães de alguns colegas,
homem que escreveu um livro sobre o companheiros, amigos gritam por seus
ideário político e sociológico de Alberto nomes, lá do alto do teatro: Teresinha!
Torres. Não gostava que os alunos con- Paulo! Lia! Expedito! Dacle! Mafran!
sultassem compêndios: que fizessem a Regina!, numa euforia que dá bem
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 135

ideia do que foi aquela efeméride de 9 nas falar com tanta segurança sobre o
de novembro de 1974, que caiu numa imperativo categórico da moral kan-
segunda-feira ensolarada e com uma tiana e sobre a crítica da razão prática
noite de estrelas de fazer inveja à cin- do mesmo Kant, tudo isso de permeio à
zenta Albion. intuição bergsoniana, que se contrapõe
Os exames na Nacional de Di- ao conhecimento por estudos e altas es-
reito não foram fáceis em 1943. Mas, peculações filosóficas. A intuição faz a
para quem cursou o vestibular no Colé- pessoa aprender tudo por si mesma, pela
gio Pedro II e no Colégio Universitário, própria inteligência, sem que tenha cur-
nada havia a temer. Fiz as provas com sado altos estudos para isso. Depois foi
a cara e a coragem, depois de estudar a vez do divino Platão, quando falei da
pelas madrugadas afora, com os olhos República, de O banquete e da Apologia
vermelhos de insônia e cansaço. de Sócrates.
Um pequeno incidente com o exa- O exame de latim, que é uma de
minador de português, Clóvis Monteiro, minhas matérias preferidas, foi o melhor
quando lhe expus meu ponto de vista so- possível. Um trecho das Catilinárias, de
bre o padre Antonio Vieira, ao chamá-lo Cícero, um da Eneida, de Virgílio, outro
de gongórico. O mestre ficou uma onça: da História, de Tito Lívio, sem contar o
“Que é isto, filho? O padre Vieira gon- fragmento de Horácio em que ele pede
górico? Não há escritor mais puro e cris- ao mar Jônio que leve, incólume e sem
talino em todo o nosso idioma”. Depois, perigo, o seu Virgílio pelo oceano afora
simpatizando comigo, tentou arranjar- em busca de paz e reconhecimento, apa-
-me algum emprego no Externato Pedro rentemente numa jornada sem retorno.
II, de São Cristóvão. Ia lá todos os dias à O examinador pegou a frase demidium
procura de mestre Clóvis, embalado por meae animae e, com ela, pediu-me a
suas promessas, mas depois vi que ele análise e a interpretação de “Metade de
nada conseguiria. Minha fome e o di- minh’alma”.
nheiro do aluguel do quarto não podiam
esperar... Raja Gabaglia, com seu vozei- Quem foi que disse que há, na
rão meio enrouquecido, me arguiu, jun- poesia de Horácio, uma imensa vulga-
to de Nelson Romero, sobre História da ridade? Que nos assuntos de suas odes
Filosofia. O ponto que caiu não era de se ou poemas satíricos a futilidade domi-
deslindar imediatamente, mas acontece na como os vagalumes cintilantes pelos
que eu gostava demais da matéria, pois prados mineiros ao entardecer?
só tirava 100 com Nelson Romero. Dis- Eu, por mim, tenho uma predi-
sertei como pude sobre Kant, Bergson leção toda especial ao sentido canto do
e Platão. eterno Horácio: “Ad navem qua veheba-
Tenho a impressão de que mestre tur Virgilius Athenas proficiscens” (Ao
Raja deve ter ficado um tanto surpreso navio que levava Virgílio para Atenas).
ao ver um preto lá dos rincões de Mi- O tom do poema é sentido e lírico, pare-
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Depoimentos

cendo uma elegia tristonha. Nele Horá- do algo de indecoroso e impublicável


cio extravasa seu medo de que Virgílio acontecido com Augusto, a ponto de
não regressasse da longa viagem que esse mecenas das letras ter de bani-lo do
encetara. Invoca a Vênus, tão venerada, país. Daí, um lamento de elegia chorosa
em Chipre para cuidar do feliz itinerário que vem dos versos sublimes de Oví-
do poeta: “Sic diva potens Cypri (Oxalá dio, lamentando, num recanto ignorado,
a deusa poderosa de Chipre), sic fratres além do Danúbio, o desterro inconce-
Helenae (oxalá os irmãos de Helena), si- bível que recebeu por parte do amado
dera lucida (astros brilhantes) que pater Augusto: “Cum subit tristissima imago
ventorum (e pai dos ventos), obstrictis (Quando me vem à mente a tristíssima
a liis (encarcerados os outros), proeter imagem) illius noctis (daquela noite),
Yapyga (exceto o Iapige), regat te, na- quae fuit mihi supremum tempus (que
vis (te dirija ó nau), quae (nobis) debes foi para mim o último instante) in urbe
Virgilius (que (nos) deves Virgílio), cre- (na cidade – em Roma), cum repeto noc-
ditum tibi (confiado a ti), red das inco- tem qua reliqui (quando recordo a noite
lumen, precor (devolva incólume, peço) em que deixei) tot cara mihi (tantas coi-
et serves demidium meae animae (e con- sas caras a mim), labitur quoque nunc
serva a metade de minh’alma), finibus (corre ainda agora), gutta ex meis oculis
at ticis (até os confins da Ática)”. (uma lágrima dos meus olhos)”. É uma
elegia bem diferente das de Propércio
A mitologia está presente aí na ou Anacreonte, porque vem de dentro
invocação de Vênus como a deusa ou d’alma de Ovídio, provocando-lhe uma
diva poderosa de Chipre. O pai dos ven- comoção dolorosa, um soluço dorido
tos (pater ventarum) aí é Éolio que, na que a sensibilidade genial do poeta não
Eneida de Virgílio, dá o ar de sua graça pôde sublimar.
alvoroçada e temível. Para chamar um
Os críticos e filólogos da latinida-
vento favorável à viagem virgiliana,
de estudaram tanto a parte épica de Vir-
Horácio apela para o Iapyge, o vento
gílio que até esqueceram o belo poeta
brando que nem aura bonançosa. Ao fa-
bucólico que tantas poesias belas inspi-
lar nos irmãos de Helena, que são Cástor
rou. Como um mimo de pulcritude cam-
e Pólux, que foram amigos inseparáveis pestre, “Melibeu e Títiro” é dos poemas
até a morte, Horácio quis significar, nes- ou églogas mais sugestivos das Bucóli-
sa alegoria fraterna, a sua louca amizade cas e lê-lo é como tomar água fresca que
por Virgílio. cai da fonte, nas mãos fechadas em con-
Pareço até um homem fora do cha, num vale perdido, em meio a canto
mundo, falando assim de Ovídio como de pastores, sonorizado por soluçante
um contemporâneo meu, comentando avena: “Tityre, tu recubans sub tegmine
um poema dos Tristia como algo sensí- patulae fagi (Títiro, tu deitado à som-
vel tirado de mim e exposto aos olha- bra de frondosa faia) meditaris musam
res indiferentes do universo. O exílio silves trem te nui avena (modulas uma
de Ovídio, que talvez tenha presencia- cantiga rústica com a pequena flauta),
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 137

nos linquimus fines patriae et arva dul- não poderia fazer um curso regular. Foi
cia (nós deixamos os territórios da pá- o que aconteceu comigo. Mesmo com
tria e os (seus) campos amenos)”. esses contratempos, ainda tirei notas
Esse diálogo de dois pastores, distintas em Teoria do Estado, Introdu-
um, Melibeu, expulso de suas terras, ção à Ciência do Direito e Economia
que se encontra com outro pastor, Títi- Política.
ro, tranquilo e calmo, deitado a sonhar, Na segunda série, lembro-me que
à sombra de opulenta faia. Em face da tive uma forte turra com o professor
adversidade de Melibeu, Títiro convi- Amoldo Medeiros, que, numa prova de
da-o para repousar em sua casa. Títiro Direito Civil, tentou amesquinhar-me
é mais feliz, pois não foi banido dos ao me comparar com o Dr. Jacarandá,
pátrios lares e por isso tem tempo de, um famoso rábula negro que, na época,
“tranquilo à sombra da faia (lentus in soltava muitos réus presos incorrigíveis.
umbra fagi), ensinar as florestas a repe- Respondi-lhe, ríspido, que era muita
tir (o nome da) bela Amarilis” (lentus honra parecer-me com o Dr. Jacarandá,
in umbra, doces silvas resonare formo- pois esse preto velho e rábula do fórum
sam Amaryllida). Amaryllida aí, como carioca pelo menos era um benemérito
em toda poesia bucólica que se preza, libertando tantos presos que, por outro
é um acusativo. Vê-se nesse diálogo de modo, mofariam nos distritos e nos pre-
pastoral onde nosso Cláudio Manuel sídios. Muitos anos depois descobri que
da Costa foi buscar inspiração para sua esse mestre de Direito Civil não supor-
Nize e também onde Tomás Antônio tava pessoa de cor, a tal ponto que fez o
Gonzaga, em sua Arcádia de efeito en- possível para prejudicar certo professor
cantador, foi buscar motivo para Marí- formado em Direito na Itália e que teve
lia de Dirceu. de revalidar o seu diploma no Brasil. Ao
Fazemos tantos planos para de- prestar outro curso, na Nacional de Di-
pois tudo terminar em nada, tal qual a reito, teve notas de bom a ótimo, mas,
folha inconsciente que o vento leva, ao quando chegava à vez daquele mestre,
léu do mistério indecifrável do destino. encontrava uma barreira intransponível.
Tanta luta e sacrifícios anônimos para Mas este acabou dando a nota que o tal
um fim mesquinho e inglório, deitado professor negro merecia...
num caixão de ínfima classe, os braços Abandonei a Nacional por mui-
cruzados ao peito, os olhos arregalados tos anos. O interessante é que por esse
de espanto ante o último fracasso de um tempo eu preparava legiões de alunos
drama, em seu epílogo inesperado e hu- para ingressar na minha Faculdade ou
milhante. na Faculdade de Direito do Rio de Ja-
Em 1941, a Faculdade Nacional neiro, situada no Catete. Todos foram
de Direito tinha apenas aulas de manhã aprovados nas matérias que lhes minis-
e à tarde, e o aluno pobre que porventu- trava: Francês, Latim, Literatura Uni-
ra ali ingressasse e tivesse que trabalhar versal, História da Filosofia ou História
138 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

Geral e Sociologia. Estudei tanto essas caminhar (perípare) por Aristóteles e


disciplinas que acabei por lhes conhe- que tanto modificaram o pensamento
cer o mais íntimo conteúdo, pois os universal.
cursos que consegui fazer deram-me Em Críton, A República, Apolo-
uma ampla visão de cultura geral que gia de Sócrates ou As leis de Platão, o
muito me ajudou no meu ganha-pão que vemos é o espírito luminoso da Hé-
cotidiano. lade, conceitos de uma vida harmonio-
Aqueles professores irascíveis sa e sadia que dava aos gregos uma ine-
e iconoclastas em suas atitudes dúbias fável e deliciosa postura humana diante
e deselegantes privaram-me um pouco dos fatos e de todos os contratempos da
do meu entusiasmo costumeiro. Fiquei existência. Pegando Tales e sua filoso-
anos com minha matrícula trancada, fia eivada de orientalismo, Empédocles
com uma forte dor na alma, desiludido e mesmo os eleatas, o que vemos é um
ante tantas incompreensões humanas. forte conteúdo moral, mArcando o ver-
Os professores irreverentes não sabem dadeiro homem dentro de uma ética de
o mal que podem causar a uma voca- que ele não podia fugir, sob pena de
ção definida, agindo de modo a con- mergulhar no mais profundo atro de
trariarem essas inclinações poderosas. decepções. A concepção nietzschezia-
Muitos alunos deixaram os estudos, na da atitude dos seres, a moral kan-
desiludidos, ante a férula de professo- tiana tão bem expressa em sua Crítica
ras primárias de gestos tão histéricos da razão pura, o misticismo poético
como desumanos. Na escola superior é e ingênuo do positivismo de Augus-
a mesma incongruência pedagógica que
to Comte, tudo é forte coerção moral
nada tem dos ensinamentos divinos dos
sobre os habitantes da Terra, a fim de
Sarmientos, Pestalozis ou Dons Boscos.
que os nossos sonhos e pensamentos
A História da Educação está eivada des-
não caiam no mais nefando báratro do
ses professores que erraram a vocação,
niilismo vital.
que nasceram para domar potros e éguas
bravias e não para lidar com alunos de Em toda a minha vida humilde,
carne e osso. Como estamos longe do nada mais fui que um professor. Em
ensino da natureza do Emílio, de Jean conferências, escritos, aulas e conversas
Jacques Rousseau, ou das aulas amenas particulares, fui apenas um mestre que
que Sócrates dava, conversando ama- orientou tantas gerações jovens. Uma
velmente com os alunos, discutindo com vida banal que passei, por mais de 50
eles os problemas mais transcendentes, anos a fio, junto de meus livros inse-
fazendo-os ver os erros dos sofistas, ora paráveis. Só os livros me deram aque-
conseguindo que pensassem por si mes- la “fetícia” inefável que o contato dos
mos, ora fazendo-os cair em contradição humanos não pode dar. Só junto deles
para melhor esclarecer a verdade. Os sá- encontro aquela segurança e o esplêndi-
bios ensinamentos de Rodó à juventude do encantamento de quem me dá tudo
americana no Ariel ou as aulas dadas a de venturoso e não me decepciona com
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 139

promessas falazes. São mais de quatro Em André Gide, quer na Escola


mil volumes, distribuídos, desordenada- de mulheres, Moedeiros falsos, Subter-
mente na biblioteca improvisada. Alta râneos do Vaticano e O imoralista, en-
noite de insônia, gosto de apalpá-los, contramos uma clareza que pode enga-
amorosamente, como se faz à pessoa nar o leitor menos atento às sutilezas e
de nossos anelos, ou devorá-los pela diabolismos da iconoclastia gideana. Aí
madrugada adentro, num convívio mais a vacilação da fé em Deus, o pessimis-
puro e ardente que o amor corporal, mo em face da queda do homem pelo
pecado original ou até sua descrença em
mais exclusivista que todos os amores
relação ao amor, tudo borbulha num tu-
ardentes do mundo.
multo de ideias pagãs que culminariam
Ler Montaigne, nos Essais, é numa profissão de fé à beleza masculina
mergulhar no mais límpido passado he- de Apolo, no breviário de estética clás-
leno, no que a Hélade tinha de mais puro sica Corydon. Objetarão, como o con-
e cristalino. A própria negatividade ou selheiro Acácio, que isso é um atenta-
pessimismo de muitas páginas é um epi- do à natureza, o que responderei como
curismo que vai modelar as páginas sa- Ronald de Carvalho em O espelho de
tíricas do Voltaire de O ingênuo, o Ana- Ariel: “O mundo existe porque é belo.
tole France do Jardim de Epicuro, da Somente a Beleza, que é uma invenção
Rotisserie de la reine pédauque e do Sr. generosa de Ariel, justifica o minuto de
Bergeret em Paris e mesmo do Eça de sofrimento que vivemos sobre a Terra. A
Queirós mais diabólico e negador de Os moralidade das coisas é uma resultante
Maias e Correspondência de Fradique da sua formosura. Só a fealdade é imo-
Mendes, assim como o diabolismo bem ral”.
brasileiro do nosso Machado de Assis Siá Perciliana, que deu os primei-
em Memórias Póstumas de Brás Cubas. ros rudimentos de cultura popular à mi-
São escritores de aparência serena e de nha Uberlândia, onde descansará agora,
estilo ameno e melodioso, mas que por após lecionar durante toda a vida a tan-
tas gerações de crianças da antiga São
trás apresentam tanta facilidade esti-
Pedro de Uberabinha? E Honório Gui-
lística quanto profundidade de ideias e
marães, sisudo, sábio e generoso, parti-
intenções. Pega-se um Tristão da Cunha
cipante do movimento inicial de cultura
em A beira do Stix, Mário de Alencar de minha terra, por que vale de estrelas
em Contos e impressões, um Álvaro luminosas andará agora? Ele que foi o
Moreira em As amargas não, quantas primeiro mestre de meu pai, Augusto,
verdades vêm à tona na limpidez diáfa- será que se encontraram, lá no mundo
na de um estilo fluente. O idioma é ai do silêncio eterno, ou entabularão o diá-
manejado de forma escorreita e pura, logo sem fim que iniciaram quando suas
com o pensamento do autor fluindo su- frágeis vidas deambularam num recanto
avemente, como um córrego cristalino humilde do Universo? Sempre a deusa
correndo por entre os cerrados mineiros. dos olhos velados, levando, indiferente,
140 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

os talentos mais capazes, aquelas pes- da gente anônima que afronta a condu-
soas de fibra que deram o melhor de si ção das seis horas da tarde, na Central
mesmas para o maior aperfeiçoamento e na Leopoldina. À hora do rush, numa
ético dos homens. O professor sempre aglomeração de amedrontar um Hércu-
morre pobre e esquecido, enriquecendo les, vê-se gente correndo, empurrando
a mente de tantos discípulos que não e lançando-se em fúria por portas e ja-
dão o valor devido ao impulsionador de nelas, numa ânsia incontida de animais
suas inteligências. furiosos, que se investem, aloucados, na
Dona Maria de Lourdes Noguei- primeira pessoa em frente, quando es-
ra, tão esforçada e dedicada ao ensino, pavoridas ante o ribombar de um trovão
orientadora segura de todos os alunos, ensurdecedor. E a calma e paciência da
descansa num túmulo branco do Cemi- velhinha que está de pé, do velho que se-
tério São João Batista, assim como o gura a pasta e da mocinha que empunha
mestre Dr. Mário Porto, que foi advo- os cadernos de aula. Quando vou para
Bento Ribeiro é quando o trem se en-
gado, jornalista e poeta, sendo, acima de
che de estudantes do Piedade e da Gama
tudo, mestre devotado de tantos rapazes
Filho, trocando ideias sobre seus pontos
e moças do Brasil. Descansam das lides
de Direito e Medicina, ou quando é um
inglórias que travaram, mas que os anos
humilde rapaz do Senac, com seu maca-
mostraram serem obras de grandes idea-
cão azulado, que lança um olhar triste
listas, cujos feitos as gerações vindouras
à paisagem suburbana que passa ante o
reconhecerão, agradecidas.
andar veloz do trem.
Subir, pelos trens suburbanos,
Um velho que lê O Dia, para a
todos os dias, até meu Bento Ribeiro,
leitura e olha desalentado para Quinti-
olhar essa gente pobre que enfrenta uma
no: “Isto não vai pra frente. São só casas
condução penosa e fatigante. Lavadei-
baixas, aquele coreto velho na praça e
ras com trouxas de roupa à cabeça, es- uma ou outra casa comercial para o con-
tudantes, velhos, moços, mães carrega- sumo da pequena população de traba-
das de filhos, baleiros, vendedores de lhadores anônimos”. Um outro senhor,
amendoins, o homem que oferece livro de olhar humilde como de cão espanca-
de modinhas e que canta melodias de do, retruca: “O subúrbio também conhe-
Roberto Carlos e Waldick Soriano, e ce o progresso. Veja o conjunto residen-
até os pingentes que enfrentam a morte cial que construíram em Osvaldo Cruz.
oscilando pelas portas escancaradas, no Quanta gente sem recursos foi morar ali,
abismo oscilante, enquanto a voz rou- pagando uma mensalidade irrisória?”
fenha de um cego, guiado por menino Aparentemente, Sampaio, Riachuelo e
de pé no chão, vem cantando em sua São Francisco Xavier pararam no tempo
viola de corda “Se você jurar”, de Is- e no espaço, mas olhando-se bem se vê
mael Silva. um certo pulsar de desenvolvimento em
Se os nossos ministros viajassem suas casas de pequena altura. Graças a
de trem e conhecessem o sofrimento Deus os edifícios lá do centro não nos
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 141

vieram tapar o sol do dia. A poluição darem uma boa sombra acolhedora nos
dos numerosos carros, só no Méier ou dias de estios insuportáveis. Na grama
na portentosa Madureira. Fiquei espan- verde que cobre uma parte da rua, um
tado, ante a quietude quase bucólica de cavalo branco saído da pintura bizarra
Bento Ribeiro, em saber que houve um de Gauguin pasta tranquilamente, con-
assalto na padaria da Rua Picuí e outro, vidando algum bêbado ou mulher mais
em pleno dia, no Banco Boa Vista. Isso alegre para uma viagem quimérica à Ci-
é acontecimento esdrúxulo, sabendo-se térea de Wateau e Beaudelaire.
que em Copacabana, Tijuca ou Ipanema De um lado a outro do rio, ma-
o número de roubos, assaltos e morte à monas, hortas e mangueiras. Urubus
mão armada escapa à vigília de uma es- voejam em bando, em busca de carniça
tatística severa e atenta. próxima. Por falta de educação popular,
Esta rua que vai dar na estação já ainda não convenceram os moradores
foi esburacada e poeirenta. Hoje, nela se adjuntos, de que eles devem manter o rio
levanta o conjunto residencial em que sempre limpo, sem jogarem colchões,
moro, com suas linhas nobres de gran- lixo e outros apetrechos em suas águas,
de beleza. A Rua Picuí sai do Largo do entupindo a corrente que corria livre-
Sapê, nas confluências da Estrada do mente e ocasionando no rio, por vezes,
Portela, Madureira, e vai terminar perto inundações danosas às casas limítrofes,
da linha férrea. O povo, em seu parci- que causam certo pânico aos humildes
monioso meio aquisitivo, derrubou uma moradores. Limitando-se com Bento
parte do muro das estações de Bento Ri- Ribeiro está outro subúrbio promissor:
beiro e Osvaldo Cruz e por ele atraves- Rocha Miranda. Um lindo curso de tri-
sa a gare, pulando por cima de trilhos e lhos perigosíssimos separa o meu bairro
mata-burros, para viajar nos trens subur- de Rocha Miranda, que é bem populoso
banos, de graça, não sem enfrentarem e progressista e cujas ruas têm nomes de
uma morte imprevista e repentina. pedras preciosas e pássaros. Uma artéria
Só com a inauguração do conjun- larga e curiosa se vê na viagem que se
to residencial é que se inauguraram as faz de ônibus até a cidade: Avenida dos
padarias e os armazéns, já que a Rua Pi- Italianos.
cuí é habitada por gente da camada mais Nessas casinhas de quintais, com
pobre e trabalhadora, encontrando-se portões semiabertos, mocinhas român-
também nela estudantes, militares, mo- ticas conversam com rapazes sonhado-
toristas de táxi, domésticas, lavadeiras, res, acácias amareladas caem em frente
etc. Um riacho de águas turvas corre no a saletas antigas, onde se veem quadros
meio da Picuí, sendo que, em épocas de à parede, mobília simples e nova, en-
chuvas torrenciais, ele transborda pelas quanto James Brown berra a todos os
casas circunvizinhas, como rio de boa pulmões, numa vitrola portátil. Nos
estirpe que é. Estão plantando amen- passeios, jovens cabeludos e de black-
doeiras no trajeto da via a fim de nos -power estão assentados, enquanto na
142 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

vitrola a voz de Roberto Carlos é um do pintor e poeta suburbano Iolandino


convite ao amor e poesia. D. Neném, Maia, que também é outro encantado da
a mãe do jornaleiro da esquina, já está pureza poética de Bento Ribeiro.
bem cedo no seu lugar de honra, na ban- Aquelas imagens ainda me fica-
ca de jornal, oferecendo aos fregueses ram na memória, através destes anos
os matutinos mais em voga no bairro. todos, após 1943. Nessas três décadas
Como floresceu o flamboyant que fica muitos fatos se passaram. Saímos de
em frente ao botequim do Toninho. uma guerra mundial tremenda. O Brasil
Suas flores escandalosamente escarlates lutou contra a aliança suicida dos países
lançam no espaço um vivo protesto de totalitários, com as nações aliadas ven-
perfume olorante e de viva policromia cemos os países do Eixo. De lá até aqui
rubra em suas pétalas de um vermelho houve notável evolução em nossos pen-
vivo, quase humano. samentos políticos e na vida e econômi-
O meu universo, de agora em ca e ética da pátria brasileira.
diante, até que me veja prostrado num Dando um balanço nas lembran-
caixão incolor e triste, descansado de
ças mais destacadas de minha vida, re-
tantas mágoas e dissabores, é esta pai-
vejo o povo, em massa, olhando o corpo
sagem calma e compensadora da Rua
de Carmen Miranda, pela última vez, no
Picuí, olhando esses trens que passam
saguão principal da Câmara dos Verea-
correndo, correndo para o sem fim, com
dores. O público ia contemplar, pela úl-
esses passageiros que espreitam das ja-
tima vez, a face bela e emotiva daquela
nelas a paisagem efêmera e rápida das
que levou, com sucesso, os ritmos bra-
estações suburbanas. Meus olhos, que
sileiros mais excitantes. Vejo Carmen
aguardam a próxima jornada do misté-
cheia de pedrarias pelo cabelo, num
rio inefável, perscrutam essas pessoas
sorriso triste, na ABI, sendo entrevista-
simples e boas que sobem e descem ao
da por Eneida, Aurora Miranda e outros
longo da rua cheia de sol, e fico a me-
ditar: até quando terei uma convivência jornalistas. Ela tremia, meio apavorada,
demorada com elas? Daqui a muitos como se tivesse medo de algo impre-
anos não estarei aqui para contemplar visível. Depois a vi sair, triunfante, do
este flamboyant de vermelho crispante Teatro Dulcina, junto de Marlene e Luís
ao sol, não ouvirei o zinir lírico destas Delfino. No Teatro Serrador, recebe a
cigarras gritando de melancolia nas acá- homenagem sincera de Renata Fronzi.
cias amarelas, em flor, num chilrar me- No Teatro Carlos Gomes, na revista mu-
lancólico e magoado, a fazerem inveja sical, com Salomé, o povo ovacionou-a,
às cigarras cantadeiras de Anacreonte. com delírio, quando ela no palco fazia
Meu Bento Ribeiro acorda sempre cheio aqueles gestos espalhafatosos, mas tão
da mais plena alegria, com crianças bem ritmados e brasileiros, ao som de
soltas pelas relvas, empinando as mais “O que é que a baiana tem?”.
vistosas e multicores pipas, a ponto de O Rio estava chuvoso para rece-
inspirarem quadros de funda beleza ber os despojos da Princesa Isabel que
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 143

vinham da Europa para descansarem ingratidão que o tribuno negro fez a D.


para sempre em terras brasileiras. As Pedro II, debandando para o lado dos re-
irmandades negras, o povo todo se aglo- publicanos...
merando na Avenida Rio Branco, à espe- Resta o gesto discutível de Pa-
ra da urna funerária que trazia as cinzas trocínio, beijando os pés da Redentora,
da minha princesa. Até os escravos com na tarde luminosa e profética em que a
mais de cem anos, com pretas velhas em princesa Isabel assinou a lei que redimiu
seus trajes típicos africano, desfilaram, toda uma raça oprimida. A frase de Pa-
em longa procissão, acompanhando, em trocínio reboou por toda a vastidão do
passos lentos, o grande itinerário do fé- grande Império: “Meu Deus, já não há
retro da princesa. mais escravo no Brasil”.
O seu espírito ficaria sorrindo ao
Quer Dinah Silveira de Queiroz
ver a semente suprema que seu gesto su-
ou Hermes Vieira, em suas biografias
blime, na Lei Áurea, semeou em todos
da minha princesa, eles mal dão uma
os corações da negritude. Enquanto a
ideia precisa e sincera daquela grande
banda toca a “Marcha fúnebre” de Cho-
mulher, a quem minha raça venera e res-
pin e se lê, em todos os semblantes, uma
peita. Conta-se que Assis Chateaubriand
tristeza profunda e indisfarçável, penso
um dia, ao visitar o castelo em que foi
nessa boa filha dos Braganças, regente
morar em Paris a família imperial, lá
mais de uma vez de um grande Império,
sua ternura comovida para com o con- encontrou vários bilhetes da princesa
de D’Eu, a quem chamava de Gaston, e do conde D’ Eu, dando ordens para
seu cuidado para com Santos Dumont, ofertar certas quantias a todos os pobres
em Paris, quando mandou chamar o Pai que lhes dirigissem pedidos de esmolas.
da Aviação em seu castelo e lhe deu um Não recusavam nenhum auxílio à gente
São Benedito para protegê-lo lá nos ares, sem recursos. Por essas provas de cari-
quando fazia suas experiências no espa- dade nos recusamos a acreditar no que
ço com seus balões lendários. Sua frase propalavam sobre o esposo de Isabel,
para o visconde de Ouro Preto, ao saber de que era um refinado pão-duro e que,
que ele vinha recentemente de viagem nas casas que alugavam para os lados
de sua pátria até a França: “Visconde, de São Cristóvão, dava duro nos que
como está o nosso Brasil?”, com a voz atrasavam o pagamento da moradia, não
embargada pelos soluços, chorando com perdoando um vintém sequer que faltas-
saudade da sua terra que a exilou. Nesse se no contrato. A lei emancipadora de
caleidoscópio de múltiplas sensações, uma raça, ela o fez levada pelo seu ex-
vejo-a dançando com André Rebouças, celente coração. Ninguém a obrigou ou
quando as moças racistas do Cassino coagiu a reforçar uma lei que lhe tirou o
Fluminense recusaram-se a dançar com trono, que por direito era seu, sucessora
o negro genial. O carinho que a família de D. Pedro II. Embora sabendo que se-
imperial tinha a Patrocínio, recebendo- ria banida da pátria, que os fazendeiros
-o de braços abertos no palácio, e a feia da Monarquia lhe retirariam o apoio no
144 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

próximo reinado que não chegou a reali- carnavalescos com Diná, a eterna porta-
zar-se, ela ficou do lado dos negros opri- -estandarte da cidade; Bené organizan-
midos, não ouvindo nem os conselhos do seções culturais, em sua entidade an-
sensatos, mas reacionários, de Cotegipe. tirracista, quando não homenageava as
Tenho o preconceito racial na car- pessoas gradas que aportavam à minha
ne. Lembro-me de que certa vez soube, terra; Alceu Marcelino, operário humil-
já no fim de meu curso ginasial, que de que junto de Doca, sua mulher, ofe-
certo professor teve que imiscuir-se na recia a casa simples e hospitaleira para
eleição para orador da turma, impedin- esses fins; Anísio; até Chico Pinto, na-
do-me que fosse eleito, para que a cida- quele longínquo 1933, já pensava num
de, “com a minha eleição, não pensasse teatro só de negros, numa época em que
que só um negro tinha competência para era difícil fazer até o teatro usual.
falar em nome de seus colegas de tur- Chico Pinto, lutando contra to-
ma”. Isso me entristeceu a tal ponto que das as reações inimagináveis, conse-
me recusei a participar das festividades
guiu montar “Kalu – o príncipe de alma
“bacharelícias”, em 1942. É verdade
branca”, com artistas negros e brancos.
que muitos professores que honram a
Levada no Cine Teatro Avenida, Chico
sua formação liberal aconselharam-me a
mostrou, com essa peça musical e bela-
não dar importância ao episódio racista,
mente plástica, até onde se podia contar
mas aquele episódio me ficou gravado
com o poder de interpretação espontâ-
n’alma. Esta minha índole combativa
a todos os preconceitos do mundo me nea do artista negro. Mais de trinta artis-
vem de muitos anos atrás. tas passando e representando pelo palco
a história de um príncipe negro que os
Em Uberlândia, eu e o Chico Pin-
brancos, com engodo e evasivas, retiram
to, irmão de Grande Otelo, tínhamos um
de sua ilha e levam para a escravidão da
jornalzinho, A Raça, em que debatíamos
cidade tentacular. O efeito do espetácu-
que a única esperança para tirar o negro
da miséria econômica e cultural em que lo foi de espanto. Uberlândia não estava
ele está mergulhado é a educação. Um ainda preparada para tão tremendo im-
pugilo de homens de cor, com decisão e pacto. Chico já havia trabalhado em to-
denodo, se reunia para traçar programas das as representações teatrais da cidade,
depois que saía cansado da longa ativi- desde os tempos de D. Alice Pais, dire-
dade diurna. Esses negros admiráveis tora do Grupo Escolar Bueno Brandão,
esqueciam seus problemas domésticos até a fase áurea desse grande estabele-
para pensarem na desgraça nacional de cimento, com a inolvidável mestra D.
seus irmãos de raça. Relembro todos Judite Moreira, que dirigiu bonitos es-
eles com carinho e amor, embora qua- petáculos no Cine Teatro Avenida, todos
se todos estejam dormindo profunda- com Chico Pinto cantando, dançando e
mente. João Benedito Brasil (o Bené), dizendo textos, com a classe de um ver-
organizando seus famosos préstitos dadeiro show-man.
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 145

Grande Otelo saía sempre acom- povo religioso no templo para depois
panhado da Tia Silvana, negra forte e animar, com compras e vivas festivas, os
sacudida, que gostava de uma “birita”, concorridos leilões ou ficarem admiran-
sempre trazendo um galho de arruda atrás do os rojões subindo coloridos no céu.
da orelha. Era cozinheira de mão cheia, Que zoada é esta, que vem lá do
sempre chamada às casas grã-finas para Fundinho, com ressonâncias de instru-
comandar os grandes banquetes. O Ote- mentos rítmicos e de sons estranhos? É a
lo, eu o via sempre cantando e dançando, congada ou moçambique que vem lá da
revirando os olhos de um modo cômico casa da preta Doca ou da casa da Sim-
e irresistível. Lá na Pensão da Cobra, plícia. Sempre esses pretos com indu-
bordel movimentado da Rua Cesário Al- mentária de seda cor de rosa ou esverde-
vim, as raparigas mandavam o engraçado ada, com chapéus de arminho e espelhos
crioulo dançar o Shimmy ou o charleston, pequenos no centro, vêm cantando pelas
o que ele fazia com propriedade e gestos ruas afora, com instrumentos típicos que
engraçadíssimos. vão do pandeiro, viola, atabaque e até os
Com tão elevada veia artística, ressonantes bombos. Trazem um longo
Otelo às vezes trabalhava nos circos mastro com a imagem de Nossa Senho-
improvisados lá no Hotel do Comércio, ra do Rosário na ponta, de onde descem
de Dona Sinhá de Abreu, minha mãe de fitas longas e multicores que os moçam-
criação, onde ele fazia os papéis mais biques vão desenrolando e traçando, ao
cômicos no picadeiro de farelo, junto da som de músicas nostálgicas e tristonhas,
pequena Zulmira e do seresteiro Babá, sempre seguidas de um refrão intermi-
que cantava nesses espetáculos com seu nável: “ó Senhora do Rosário”. Dançam
vozeirão espantoso. A cidade era ainda em volta do mastro, mexendo nas fitas
São Pedro de Uberabinha. que se traçam, multicores, enquanto re-
A cidade vivia mais para os lados quebram e gesticulam ao som dos bár-
do Patrimônio. A diversão era o Cinema baros instrumentos que acompanham a
São Pedro, do Custódio Pereira, onde música lenta e sincopada.
meu tio Evaristo assistia a todos os fil- A Congada agora sai na festa de
mes da Vitagrapho. No Largo da Matriz, Nossa Senhora do Rosário, que foi mAr-
estava a Igreja de Nossa Senhora do Car- cada para o mês de outubro, em que os
mo, padroeira da cidade. Nas novenas negros locais também festejam o outro
rezadas pelo padre Albino, reunia-se o padroeiro da negritude: São Benedito.
Como parte das celebrações do
As exclusões da Dia Nacional da Consciência Negra e
da imortalidade de Zumbi dos Palma-
globalização: res, o Centro Cultural José Bonifácio,
pobres e negros situado na cidade do Rio de Janeiro,
promoveu nos dias 17 e 18 de novem-
bro passado a Kilunge – Primeira
Feira do Livro Afro-Brasileiro. Além
do lançamento de vários títulos de
autores afrodescendentes, ou sobre a
questão negra, o evento teve ainda a
participação da poetisa Elisa Lucin-
da, que apresentou seu espetáculo “O
semelhante”.
A outra atividade do evento foi
uma conferência proferida pelo pro-
fessor Milton Santos, ocasião em que
este abordou temas contemporâneos
de fundamental importância no pro-
cesso de organização e avanço da
Milton Santos comunidade afro-brasileira. A revista
Thoth esteve presente ao aconteci-
148 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

mento e reproduz na íntegra a con- nia é esse conceito produzido na Euro-


ferência do professor Milton Santos. pa, aperfeiçoado durante séculos e que
Eu estou muito envaidecido por redundou na produção da democracia e
este convite e pela gentileza do dire- no estabelecimento de cada indivíduo
tor do Centro Cultural José Bonifácio. como uma espécie de opositor natural
Primeiro pelo prazer de poder conhecer e eficaz do Estado – o cidadão –, dota-
esta casa, que é um exemplo de algo que do pelas leis de um conjunto de direitos
nós temos que preservar, e depois pelo inalienáveis. Perdão: a democracia nun-
prazer de falar aqui. Quando o Hilton ca se realizou completamente. O que ti-
Cobra me chamou, eu perguntei: “Mas vemos até o fim da guerra até 30 anos
o que é que eu posso dizer?” Porque eu atrás, foi uma quase democracia, dentro
não sou propriamente um especialista da qual viviam quase cidadãos.
na questão negra, não tenho estudos sis- Essa ideia de cidadania surge,
temáticos sobre o problema da negritu- curiosamente, ao mesmo tempo em que
de no Brasil ou em qualquer outro lugar. se gesta na Europa o progresso técnico,
Então, eu lhe disse: “Não estará sendo facilitando a expansão do capitalismo.
um equívoco seu convidar-me a vir fa- Assim, o progresso técnico aparece
lar no seu Centro?” E ele, com a genti- como uma possibilidade de ameaça à
leza que lhe é conhecida, insistiu e me realização completa do indivíduo, ame-
convenceu. Então, o que eu vou trazer é aça essa que não se cumpre porque, ao
mais um depoimento de um negro, que mesmo tempo, surgem ideias filosóficas
viveu sempre cada vez mais sabendo o que as transformaram depois em ideias
que é ser um negro e com uma propos- e ações políticas, de um lado e do outro
ta dissimulada, tímida, de enxergar essa do Atlântico: é a revolução nos Estados
problemática. Unidos, na Inglaterra e na França.
Queria dizer, em primeiro lugar, Países como o nosso, o Brasil,
que me considero um intelectual outsi- jamais conheceram a figura do cidadão.
der, coisa que é rara no Brasil. Não per- O que aqui se chama por esse nome é
tenço a nenhum partido, não pertenço a um arremedo de cidadão. Eu gosto de
nenhum grupo, inclusive grupo de inte- insistir no fato de que no Brasil as clas-
lectuais, não respondo a nenhum credo, ses médias recentemente expandidas
não participo de nenhuma militância. jamais fizeram cidadãos. As classes
Queria começar com algumas pergun- médias sempre desejaram reter privilé-
tas: “O que é ser cidadão? O que é ser gios – e o privilégio é inimigo da cida-
um indivíduo completo? Ser classe mé- dania –, enquanto os pobres e todas as
dia é ser cidadão? O que é ser cidadão minorias jamais tiveram direitos. De tal
no Brasil?” E finalmente: “Negros são forma que a expansão da classe média
cidadãos?”. no Brasil acabou por ser uma condição
O que é ser cidadão? A cidadania para que a cidadania não se estabeleces-
é uma conquista lenta, dura. A cidada- se. Sobretudo porque essa expansão da
Professor Milton Santos proferindo palestra no Centro Cultural José Bonifácio sobre As Exclusões da Globalização:
Pobres e Negros, em 18 de novembro de 1997
As exclusões da globalização
Milton Santos 151

classe média vem paralela à explosão em relação à libertação do espírito e à


do consumo e à substituição da ideia de ampliação da consciência.
cidadão pela ideia de consumidor. Nós É dessa maneira que dificilmen-
podemos ver hoje a alegria, o conten- te se criam, em países assim, indivídu-
tamento com que até pessoas aparente- os completos, indivíduos fortes. O que
mente esclarecidas, louvam o Código do é o indivíduo forte? Indivíduo forte é
Consumidor. O Código do Consumidor aquele fortalecido dentro de si mesmo,
é uma conquista, mas é uma conquista a partir da compreensão do que é o todo
que substitui a noção de cidadania. Ora, e do que é cada um diante do mundo,
o consumo é um emoliente, é algo que da ciência de que o mundo é movimen-
amolece as pessoas, que as aprisiona na
to, é devir, é futuro. O indivíduo dentro
era antiga das coisas, que as convoca
do mundo deve participar ativamente da
para o gosto pelos objetos, e que glorifi-
produção desse futuro, apontando o des-
ca, não propriamente os princípios, mas
tino. Ora, esse indivíduo forte é contra-
os resultados.
riado na sua produção, pelo fato de mais
O que eu quero dizer com isso é forte ser a produção do consumidor.
que uma história como a brasileira se
A ausência dessa multiplicação
desenvolve a partir da não existência da
de indivíduos fortes oficialmente seria
cidadania. Quando era possível que essa
um dado do trabalho intelectual, pois
ideia de cidadania se afirmasse, o que
houve foi o contrário, ou seja, a afirma- o indivíduo forte é obrigatoriamente
ção da ideia de consumo e da vontade de crítico – crítico dele mesmo, crítico
ser consumidor, que é excepcionalmen- do entorno, crítico da história que se
te grande no Brasil. Nos países desen- está fazendo. Esse indivíduo completo,
volvidos as pessoas consomem, a partir, esse indivíduo forte, tem a condição de
sobretudo, dos anos cinquenta, nos Es- produzir a democracia, pois a demo-
tados Unidos um pouco antes, mas de- cracia é a crítica permanente. Mas há
fendem a posição do cidadão, ao mesmo uma diferença entre um indivíduo forte
tempo em que se defendem contra essa e um cidadão. É que eu posso ser um
invasão do consumo. Eles seriam con- indivíduo forte, como muitos que estão
sumidores menos que perfeitos, porque aqui, certamente o foram durante o re-
na busca da defesa contra o consumo, gime autoritário indivíduos fortes, mas
enquanto nós somos consumidores mais não cidadãos, pois a cidadania necessi-
que perfeitos, porque não nos defende- ta de formas jurídicas de leis, de uma
mos do consumo. E o consumo é, no constituição que assegure ao indivíduo
mundo de hoje, o grande fundamenta- forte a expansão da sua fortaleza, da
lismo, certamente o maior deles, pois sua completude, e que assegure que a
todos somos reverentes e obedientes ao sociedade seja feita de indivíduos do-
consumo, muito mais que às religiões. tados de direitos que lhes permitam ser
Ele também traz consigo a dificuldade ainda mais fortes.
152 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

Há uma diferença, pois, entre ser Porque ser intelectual é, em primeiro


um indivíduo forte e ser um cidadão. lugar, preocupar-se com os que estão
Ser um indivíduo forte é uma produção embaixo. É evidente que ser intelec-
cotidianamente repetida, mas também tual significa também uma vontade
modificada, pois a história e a vida de de ver as coisas como uma totalidade,
cada um de nós se processam num mun- um conjunto, de tal maneira que tan-
do em mudança. Por conseguinte, em to o “Bagdá” dos poderosos como o
seu exercício crítico, esse indivíduo tem “Bagdá” dos pobres não era da época
de estar cotidianamente atento ao que o do intelectual. O intelectual vem da
mundo é, para poder localizar a frente época de se entender a sociedade como
desse mundo tal como ele é. Eu também um todo, e a partir daí ele toma partido
tenho de mudar como indivíduo com- pelos pobres. Mas a defesa dos pobres
pleto, indivíduo forte. E é dessa maneira não pode antecipar o entendimento da
que as sociedades evoluem e melhoram. sociedade como um todo, porque de
Ora, dentro dessas condições, ser outra maneira esse pensamento não
classe média não significa ser cidadão – seria eficaz. Do ponto de vista políti-
no caso brasileiro, menos ainda. Creio co, demArcaria o rompimento geral da
que uma das razões do atraso político sociedade. Minha crítica é baseada no
brasileiro, das dificuldades em matéria conhecimento do movimento da socie-
de partidos políticos e de termos progra- dade como um todo.
mas políticos coerentes, de produzirmos
um projeto nacional, vem também da Para o Brasil, repito, não há ci-
história do Brasil. Da história do Brasil dadãos, já que aqueles que o poderiam
do consumidor e seu triunfo – enquan- ser, pela sua instrução, não o querem
to a cidadania era derrotada, o consumo ser. Deve haver na sala algumas pesso-
tornava-se vitorioso –, e do fato de que as da classe média que certamente não
os regimes políticos brasileiros, depois se comportam assim, mas que viram o
que se quis instalar a democracia, foram comportamento dos parentes, e tam-
regimes comandados pelas classes mé- bém da classe média como um todo,
dias. A tal ponto que a discussão sobre que aceitam a ideia de se apresentar
a pobreza no Brasil é uma discussão re- a uma repartição pública, ou qualquer
sidual. Os pobres aparecem, inclusive, que seja o lugar da postulação, com
numa enorme parcela do discurso da uma carta ou um telefonema de apre-
esquerda, como um enfeite, como um sentação. Quem vai a um hospital, a um
adereço, como algo decorativo. Não há posto de saúde, sem antes dizer ao di-
uma autêntica preocupação central com retor, ao médico, ao funcionário: “Olha
os pobres, com os oprimidos, com as o carimbo aí, fulano é meu primo”. Um
minorias. dos maiores problemas dos negros no
E quem sabe isso tem a ver com Brasil é que os primos dos negros não
o nível da intelectualidade brasileira. têm um telefonema útil.
As exclusões da globalização
Milton Santos 153

De maneira que os negros ficam tem desprezo pelos homens e que, no


lá embaixo, não apenas nesta sociedade caso dos negros, os trata como coisas.
como ela se constitui, mas na socieda- Mas isso já está dito e redito,
de como ela pode constituir-se. A par- não sei por que continua sendo um ele-
tir dessa ideia central, eu quero fazer mento do discurso dos negros. O que
algumas considerações. Poderia co- eu quero dizer é que esse discurso já
meçar com uma listagem de situações não é eficaz. Há que se inventar outros
da cidadania mutilada dos negros: das discursos mais imaginativos, mais pró-
oportunidades de emprego, da menor ximos da história contemporânea, com
remuneração, do próprio desemprego, maior eficácia, com mais força, porque
das mesmas oportunidades de promo- pedir a uma sociedade insensibilizada
ção social, econômica, profissional. Os há séculos – e que se toma cada vez
negros também deslocalizados, colo- mais insensível com a expansão da
cados em posição inferior na tipologia ideia de consumo – que seja sensível a
dos lugares, os negros também diferen- uma camada da população considerada
ciados para baixo na circulação dentro naturalmente inferior. Creio que isso é
do País e dentro da cidade, não só em uma perda de tempo, um caminho polí-
função do preço da circulação, mas tico equivocado.
nas oportunidades de cada localização. Haveria que lembrar, talvez, ou-
Porque a minha localização no País ou tras coisas do mundo de hoje, como es-
na cidade tem a ver com o preço do ses novos direitos que se criam a partir
deslocamento, e os negros, vivendo em da era da informação, como o direito da
lugares criminalizados, têm dificulda- imagem e o direito do livre exercício
des em ascender a lugares que para eles da individualidade. Creio que esse tam-
se tornam proibidos. bém é um problema, naquilo que muitos
É curioso ouvir ainda hoje que a veem falta de estima, o que há realmente
educação é uma saída para os negros e é a inexistência do direito ao livre exer-
para os pobres, quando sabemos que a cício da individualidade. Os artistas des-
educação, em sua base mesma, é ini- cobriram isso antes dos formuladores
gualitária, o sistema educacional é ini- das universidades. Aliás, a universidade
gualitário. Então, eles nos dizem assim: é cada vez menos capaz de produzir um
“Vamos estudar, vamos melhorar”, e pensamento, incompetente para cuidar,
apontam: “Olha o Dr. Fulano, ele es- seja das minoridades, seja dos pobres.
tudou e melhorou”. Nada disso! Se o A universidade é cada vez mais repeti-
Dr. Fulano estudou, ou melhorou, será tiva e pobre. Ela teria de buscar na mo-
produto do acaso, ou de uma condição vimentação espontânea dos de baixo a
social que lhe permitiu fazê-lo, mas não inspiração para renovar o seu trabalho.
pelo processo educacional. A questão Também não vou dar números,
não está aí. E a saúde? É uma vergonha pois estou convencido de que isso vale
no Brasil. Uma medicina elitizada, que muito pouco. Assim, eu trouxe séries.
154 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

As séries são muito frequentes nas te- “socialidade”, que também é demArca-
ses de mestrado e doutorado. Não va- da pelo território, pelo espaço.
lem para nada, se eu não for capaz de Quando chegamos nessa área,
dar valor histórico a cada coluna, e cada não apenas nos defrontamos com casas
coluna se insere uma realidade históri- que têm uma cara parecida, mas nos
ca diferente. Mas eu uso tranquilamente indagamos sobre que sociabilidade e
a série nos meus trabalhos – todos nós que “socialidade” existem nessas casas
usamos. É assim que nos promovemos, junto com os homens. Então, eu pro-
é assim que conseguimos empregos nas poria três dados de base para estudar
universidades, é assim que nos tomamos a nossa questão. Eu disse que não sou
conhecidos e, às vezes, famosos. Mas especialista, não sou antropólogo, não
que é que eu posso fazer com uma série tenho formação adequada para propor.
de estatísticas, inclusive sobre a questão E o que estou trazendo é fruto da mi-
negra no Brasil, se eu não for capaz de nha experiência, que é também a ex-
interferir na história concreta, não dos periência dos outros, porque ninguém
negros separadamente, mas da socieda- vive isoladamente. Haveria três dados
de brasileira? Não é hora de nos gastar- de base que permitem trabalhar a nossa
mos extenuadamente no conhecimento questão. Um dado de base é o que estou
exclusivo da condição do negro. A hora chamando de “corporidade”, outro é o
é de levar em conta a sua presença fren- que estou chamando de individualida-
te às outras presenças dentro de um País de e o terceiro é o que chamamos de
que se chama Brasil. cidadania. O que exatamente buscamos
Racismo, preconceito, discrimi- definir na introdução dessas palavras?
nação. Objeto de 40 mil colóquios. Ora, A “corporidade” é feita de dados obje-
se vou me preocupar com essa discus- tivos, a individualidade, de dados sub-
são gramatical entre o que é precon- jetivos, a cidadania, de dados políticos.
ceito, discriminação ou racismo, e as Desculpem evocar o meu caso
suas diferenças. Rios de tinta correram pessoal. Tenho instrução superior e pos-
e a universidade sorriu contente ao ler so apresentar um documento, imagino
essa literatura. O que posso fazer com que sou uma individualidade forte, mas
isso? O que estou querendo é que a gen- tenho certeza de que neste País não sou
te mude, a começar pela minha casa, um cidadão completo. Eu não posso ser
que é a universidade, de atitude dian- cidadão se não sou tratado como cida-
te desse problema central do Brasil. O dão, e não sendo tratado como cidadão
que eu vou propor agora, e que vai ser raramente serei tratado como uma indi-
o centro do que vou dizer depois, é que vidualidade forte.
o que está em questão é a “socialidade”. Essa categoria de formação so-
Isto é: como as pessoas vivem juntas em cial foi proposta de forma incomple-
sociedade, as formas de viverem juntas, ta por Marx, aperfeiçoada por Lenin,
a sociabilidade para correr junto dessa adormecida pelo Partido Comunista da
As exclusões da globalização
Milton Santos 155

União Soviética e renascida a partir dos A herança nos traz, num País
estudos de marxistas italianos e fran- como o Brasil, um modelo cívico su-
ceses e de alguns latino-americanos, balterno ao modelo econômico. Sem-
notadamente do norte da América do pre foi assim. Em todos os tempos, o
Sul. Porque naquele tempo, quando o modelo econômico subordina O mo-
marxismo era uma doutrina em voga, delo cívico, basta ver agora as crises
o México não estava tão potente – e da economia brasileira e a palavra de
o México fica na América do Norte. ordem, dita de cima, segundo a qual
E era no México e na Venezuela que quem não está de acordo está contra
havia esses estudiosos. A formação o Brasil, e a frase, dita até nas oposi-
econômico-social é uma categoria que ções, segundo a qual temos que ajudar
estuda a maneira como cada país se o modelo. Isso está ligado a esse peso
forma a partir do seu território, da sua do modelo econômico em oposição ao
histórica econômica, social, cultural – modelo cívico. Creio que a história dos
mas sem esquecer as relações interna- negros teria muito a lucrar se fosse re-
cionais, estudadas em conjunto e tendo escrita a partir de uma visão que pro-
a referência do tempo, isto é, o mundo. pusesse uma nova escrita com base na
O mundo datado, não o mundo tomado questão do modelo cívico.
cegamente. Um mundo datado porque A subalternidade do modelo cí-
o mundo é que é a razão do que se faz vico atrofiou, por exemplo, o debate
em cada lugar e em cada época. da previdência no Brasil, assim como
Ainda assim, fomos prejudicados atrofia o debate da questão da função
na análise da realidade brasileira, por- pública. Esse debate se empobreceu no
que o marxismo brasileiro é um mar- Brasil porque se pede aos velhos que
xismo do modo de produção e não da cuidem de si próprios, e a sociedade
formação social. O modo de produção aceita essa demanda hedionda, facili-
é uma realidade histórica, mas não é tando a instalação entre nós do projeto
uma realidade geográfica. A realidade segundo o qual os brasileiros assistirão
geográfica é a formação econômica e tranquilamente ao genocídio da popu-
social. As teorias que na América Latina lação – porque é isso que se está pre-
e no Brasil tentaram explicar a realida- parando. O abandono programado dos
de latino-americana e brasileira, como a velhos, o abandono programado dos
famosa teoria da dependência, para ci- pobres, o abandono programado dos
tar apenas esta, são teorias do modo de negros são três genocídios que estão
produção e não da formação social. De inscritos no processo político atual e
modo que a análise deveria ser feita em para o qual as vozes dos partidos de
três tempos: o passado, como herança; oposição são praticamente nulas, por-
o presente, como a situação e o futuro, que aceitam o debate nos termos em
como perspectiva. que está colocado.
156 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

É por isso que se torna pobre a que mencionei, adquire enorme impor-
discussão, a respeito dos pobres, das tância. Falo da morte da política. Hoje
minoridades, dos negros. Eu já não falo em dia, não são os governos que fazem
das mulheres, porque as mulheres fazem política, ela é feita pelas grandes empre-
a sua luta de dentro da classe social do- sas. Estas decidem sobre os orçamentos
minante. Não é o caso dos negros. Não públicos, como são escritos e como são
aceito essa comparação entre as duas utilizados. Em todos os níveis: no nível
coisas. As mulheres tiveram enormes da federação, no nível dos estados e no
progressos, todos merecidos. Mas a luta nível dos municípios. Basta ver essa
que fazem é de dentro da classe domi- batalha entre os municípios para atrair
nante. Os negros sequer têm os meios empresas de grande porte e que vem
de fazer a sua luta, e a fazem fora da desorganizar a vida em cada um deles.
classe dominante. Depois a imprensa e Desorganizar em todos os sentidos. Pri-
certo tipo de intelectual vêm nos falar de meiro, porque elas chegam exigindo
minorias. Não existe isso. Há diferentes concessões para se instalar e, quando
minorias que devem ser estudadas à da se instalam, mudam a natureza da “so-
luz da história. cialidade”, a partir de uma equação de
emprego que lhes é peculiar, mas que
Tudo isso se agrava hoje com a
esmaga as outras equações de emprego
democracia de mercado. Esta traz a que têm base na cultura local, no territó-
ameaça de que todas essas diferenças rio local, na história local. Buscam uma
se ampliem. Por conseguinte, os negros ordem indispensável à sua prosperidade
não têm de esperar uma possível volta ao e introduzem um fermento de desordem
crescimento no Brasil. Se o Brasil voltar em tudo mais. É por isso que o Brasil se
a crescer, os negros estarão numa posi- tornou um país ingovernável. É por isso
ção ainda pior: de um lado, porque não que as nossas cidades não são mais go-
têm o famoso telefone, e esse é um dado vernadas. Essa ingovernabilidade veio
central na sociedade brasileira; pior ain- exatamente do fato de a política não ser
da, porque não têm acesso às fontes de mais um dado dos políticos, nem do Es-
educação que preparam para o mundo tado, mas é um dado das grandes em-
que se está instalando; e pior, sobretudo, presas.
porque o mundo que se está instalando Felizmente, há outro lugar onde
não se preocupa com a difusão do bem- também se faz política no Brasil. Não é
-estar da sociedade como um todo, mas em nosso lugar da classe média que se
prefere concentrá-lo em certas partes da faz política, pois estamos buscando to-
sociedade e convidar as demais a aceitar dos os dias um pouco mais para o nosso
o peso da propaganda. conforto, esquecidos ainda que retorica-
Falarei agora de outro elemento mente digamos o contrário – de preocu-
que é central na sociedade brasileira, pações coletivas. A política é feita pelos
que, aliás, é um fato comum no mundo pobres. Os pobres fazem política todos
inteiro, mas que no Brasil, pelas razões os dias, e essa é a grande sorte do Brasil,
As exclusões da globalização
Milton Santos 157

que será ampliada quando os intelectu- negros do Brasil – se não haveria ra-
ais descobrirem que devem preocupar- zão para, ao mesmo tempo, estimular as
-se com os pobres deste País. organizações, pois é indispensável fazer
Essa morte da política se mostra isso, mas também classificá-las, porque
claramente pelo fato de as eleições não o comportamento das organizações está
serem um exercício democrático, mas muito ligado à maneira como elas são.
um lugar do consumo eleitoral. De tal E por outro lado ver como os negros,
maneira que os candidatos que têm di- ademais dos movimentos negros, que
nheiro para fazer o fazem. É o marke- não são a mesma coisa, se movem, ou
ting, mas não projeto. De modo que a gostariam de mover-se. Evidente que
pólis aparece como mercado e a ágora é as respostas serão diferentes em cida-
desprovida de projeto. Isso é um fenô- des como Salvador, Rio de Janeiro, São
meno geral no mundo inteiro, mas agu- Paulo, Belo Horizonte, mas creio que
dizado em países como o Brasil. Isso é isso é importante.
agravado pelo fato de a geopolítica ter Quero lembrar também que uma
deixado de ser um dado dos generais e boa parcela das organizações negras
de diplomatas, passando a ser confiada no Brasil é atrelada ao aparelho de Es-
a economistas e publicitários. É dessa tado, o que é uma dificuldade no seu
maneira que se fragiliza o indivíduo manejo, enquanto outras são atreladas
nessa atmosfera mercantil. E a reces- a instituições que têm uma visão glo-
são, que aparece como um remédio bal do mundo. Eu me refiro de forma
indicado para a solução das crises, é clara, não vou esconder, a todas as or-
por natureza um lugar de gravação das ganizações que são subsidiadas pela
desigualdades, em que os mais fracos Fundação Ford e que têm unidade de
são colocados em posição ainda mais movimento. Estou fazendo uma análise
frágil. e não vou me referir particularmente a
Eu ando pensando que, no mundo nenhuma delas, sobretudo porque não
atual, o progresso na produção da cons- as conheço bem.
ciência vai se dar mediante a ampliação Quero referir-me também a um
das organizações, mas também a partir certo pendor de uma certa liderança a
das manifestações desorganizadas. Es- buscar as formas de sua inclusão como
sas organizações, de uma forma ou de indivíduo nas classes médias, isto é,
outra, são limitantes de qualquer movi- sua inclusão numa parcela da sociedade
mento. As organizações são, por defini- que, por definição, não está preocupada
ção, um freio às inovações, pois a orga- com a produção da sua própria consci-
nização começa por eleger seus líderes, ência e que, por conseguinte, manifesta
cujo comportamento um dia ou outro se uma diversão em relação aos objetivos
distingue do comportamento dos lidera- centrais. Estou dizendo isso para insis-
dos. De tal maneira que eu imagino – e tir sobre a necessidade de incorporar ao
esta é uma proposta de conversa com os nosso trabalho intelectual, que é o úni-
158 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

co que eu posso fazer – e gostaria que dos no Século XXI, realizado no Rio de
esse trabalho fosse feito por mais gen- Janeiro de 2 a 4 de setembro de 1997.
te ainda –, o entendimento do que é o (N.E.)]
Brasil e do que é o negro no Brasil. Não Trata-se de um processo de água
acredito que as comparações, agora tão de flor que conhecemos dentro do País
fortemente estimuladas, em relação a e que agora se completa fora dele. Eu
outros países antinegros, tenham o va- entendo que as pessoas aceitem parti-
lor que lhes é atribuído. Que lição tenho cipar dessas coisas, porque lhes apare-
eu da África do Sul? Que lição tenho eu ce uma oportunidade de contribuir, de
dos Estados Unidos? Sem dúvida me conhecer melhor a problemática global,
inquieto do ponto de vista histórico, e mas não se deve ter nenhuma ilusão.
me enriqueceria se o resultado dessa Quando me convidaram para fazer parte
análise pudesse ser orientado na condu- disso, eu lhes disse: “Ora, eu conheço
ção da política. Mas a política só pode como funcionam hoje e as relações in-
ser feita a partir da realidade brasileira, ternacionais. Eu sei perfeitamente como
porque somos, antes de tudo, brasilei- é que se organizam coisas no nível in-
ros. A África é uma referência, mas não ternacional, sobretudo no período pós-
somos africanos. A América do Norte é -moderno, em que convidam para falar
uma referência, mas não vamos repetir o sujeito que pensa diferente. Ele vem e
a sua história. A história na qual nos in- fala. Mas os que estão ali são a grande
cluímos e que vamos refazer, é a história maioria que quer outra coisa, mas que
do Brasil. assim mesmo bate palmas, porque faz
Creio que o convite a fazermos parte da pós-modernidade, enquanto os
de maneira diferente é um convite di- recursos vão para as organizações que
versionista, isto é, reduz os itens do reproduzem o que a inteligência central
conhecimento da problemática e pro- decide”. Então eu lhes disse: “Vocês me
duz mais alguns autores, aos quais são dariam meios para eu poder conversar
pagas viagens para comparecer a esses com os movimentos negros? Teria eu
famosos congressos internacionais tão alguma participação na organização da
caros, quanto inúteis. É a razão pela reunião que vai se fazer no Brasil em se-
qual não aceitei estar aqui nesse en- tembro?” “Isso não! Queremos você ca-
contro que reuniu tantos dos nossos lado. No máximo, publicamos um artigo
camaradas, e antes havia me recusado seu...” Não preciso mais disso. Mas esse
a participar como membro importante é um problema dessa chamada globali-
do comitê dessa organização que há zação da luta negra brasileira. Há uma
um ano se criou nos Estados Unidos, globalização da luta negra, sim, mas a
reunindo figuras eminentes do Brasil, nossa questão central é a questão políti-
da África do Sul, dos Estados Unidos, ca, e tudo que fizermos tem que ser feito
para produzir mais um livro. [Referên- na direção da política, porque aí estão as
cia ao Seminário Superando o Racismo soluções. O indivíduo forte, dotado de
– Brasil, África do Sul e Estados Uni- consciência para ser cidadão, necessita
As exclusões da globalização
Milton Santos 159

da política. Ele é forte dentro de si, mas ritária. Eu creio que a classe média tem
ser forte em face da sociedade se faz por tido um papel negativo, por enquanto,
meio da política, da produção de leis na construção da democracia, mas não
que garantem a sua força. na construção da democracia de mer-
Pois bem, eu vou parar aqui. cado, nessa ela teve um papel central.
Agradeço a Milton Cobra ter me convi- Refiro-me à democracia vista de outra
dado, faz muito tempo que eu queria ter forma.
essa conversa. Sei que ela desagradou
a todo mundo, numa coisa ou em ou-
tra, mas não tem a menor importância, Sobre os negros aceitarem a cristaliza-
esse é o meu papel. O intelectual não é ção da condição de inferior:
um artista de vaudeville, não vim aqui
para mostrar as minhas pernas, mas para
mostrar as minhas ideias e defendê-las. Eu não estou certo de que os ne-
Mas tampouco quero estar certo. Não gros aceitam essa condição. É um equí-
estou certo de estar certo, mas tenho o voco! Não aceitam! Eles sabem das
dever de exprimir aquilo em que acre- dificuldades de exprimir a sua incon-
dito, custe o que custar. Esta é uma formidade. Acho que é preciso mudar
oportunidade que eu desejava há muito o discurso. O discurso da lamúria eu
tempo, essa é a minha forma de engaja- não aguento mais, é insuportável. Outra
mento. Estou aqui hoje, e estarei outras coisa: o papel do discurso na produção
vezes para discutir questões como esta. da história é extraordinário. A história
Muito obrigado. nos últimos seis séculos se fez em torno
do discurso, e agora ela se faz em tor-
no desse discurso único, o discurso do
OPINIÕES DO PROFESSOR mercado. Então, eu jamais vou dizer
MILTON SANTOS que os negros aceitam... É aquela velha
história, os outros trabalham e o negro é
preguiçoso, indolente.
Sobre a contribuição da classe média
para a democracia:

Sobre o Grupo de Trabalho Interminis-


Nas condições atuais, creio que o terial para a Valorização da População
atraso na construção da democracia se Negra:
deve ao fato da construção dessa clas-
se média urbana. Ao mesmo tempo em
que tínhamos á expansão do consumo, a Não sei por que vocês tiveram
expansão do crédito, tínhamos o regime tanta esperança nesse GTI. O que eu
autoritário que não acabou, pois esta- vou dizer não tem nada de pessoal, por
mos vivendo ainda numa situação auto- favor.
160 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

Na primeira grande manifesta- vocês mesmos”. E a prova está aí, faz


ção pública desse grupo – formado por dois anos. (...) Então, creio que falta
pessoas agradáveis, que a gente gosta seriedade, falta respeito à comunidade
de tomar café com elas –, o Presidente negra. Agora, eu não entendo por que
da República vem tranquilamente e diz, vocês vão a essa reunião. Francamente,
num discurso que não preparou (e um não entendo! Estou seguro de que os lí-
homem de Estado que vem falar de uma deres e intelectuais dos Estados Unidos
coletividade sem preparar o discurso não iriam.
não tem respeito por essa coletividade):
“Virem-se. Espero que vocês tenham •  Palestra do professor Milton Santos
imaginação”. Ora, o presidente foi lá proferida no Centro Cultural José
dizer “não contem comigo, contem com Bonifácio, em novembro de 1997.
O legado de
Osíris* O processo de ocultamento e dis-
tanciamento da morte na modernidade
ocidental, como assinala Aries (1977),
mArca sua evolução desde a época me-
dieval, em que a morte fazia parte da vida
familiar e comunal, e as pessoas, enquan-
to membros de famílias e comunidades,
tinham oportunidade de viver e expressar
seus processos de luto. A imagem é de
uma “morte domada”, figura que realça
a possibilidade, não de dominar, mas de
elaborar formas de convivência com essa
realidade inerente à vida humana que é a
morte.
Para a ciência moderna, com seu
objetivo de dominar o universo por meio
de métodos precisos de cálculo e controle,
a morte se ergueu como marco da falta de
onipotência dessa mesma ciência, pois a
Elisa Larkin Nascimento cada descoberta de novas técnicas e tec-
nologias ela verifica que sobre a morte
162 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

não consegue vitória1. Significando fra- da morte no contexto da matriz civiliza-


casso e vergonha, a morte foi de forma tória africana. De início, vale observar
progressiva expulsa da realidade vivida que, no contexto das discussões e leitu-
socialmente2. Deixando-a escondida ras sobre o tema, pouco se refere a essa
nos recantos das instituições, passamos matriz4, as referências sendo geralmente
a tentar ignorá-la e a reprimir a elabora- às mitologias “primitivas” como catego-
ção do luto e da dor. ria mais ou menos genérica.
Esse fato nos lembra o processo Nesse como em outros contex-
identificado pela fenomenologia em que tos, os autores tendem a não se dar
tudo aquilo a que não se atribui a gran- conta da existência de uma matriz
deza e dignidade da relevância pública africana (fala-se apenas em civiliza-
está sujeito a ser posto à margem da vida ção ocidental ou oriental), pois se trata
coletiva cotidiana e, por esta, desreali- de mais um fenômeno relegado à mar-
zado: “criar-se uma verdade para essas gem da realidade, banido para fora da
situações (...) que permite a todos, sem esfera pública por meio de processos
culpa, banir tais acontecimentos ou fe- há séculos deflagrados e ainda em mo-
nômenos para fora da esfera da vida pú- vimento. A escravatura mercantilista
blica” (Critelli, 1996: 85). europeia realizada na África trouxe
Implica um dilema sério tal mo- consequências trágicas imediatas e de
vimento em relação à morte, pois, ba- longa duração5. Nestas, estampava-se
nida ou não, com ela convivemos ine- a tentativa, magistralmente demons-
xoravelmente3. Essa situação nos leva a trada por Cheikh Anta Diop, de apagar
uma série de reflexões sobre o signifi- do mapa da humanidade a herança ci-
cado da morte e nos remete, no esforço vilizatória milenar de todo um conti-
de identificar possíveis alternativas para nente6.
a construção de novas formas de lidar Prole de tal processo, as comu-
com a morte, ao estudo daquelas elabo- nidades de origem africana nas Amé-
radas em outras sociedades. ricas, e, sobretudo na América Latina,
Nesse sentido, nos propomos in- sofrem até hoje a falta da referência
dagar a utilidade de considerar a figura que lhes permita construir uma auto-

1 A Aids nos aparece como exemplo contundente, bem como a evolução de mutações de microorganismos, possibilitando
sua resistência aos medicamentos e antibióticos.
2 Ziegler (1977) aponta, com exemplos contundentes, uma “tanatocracia” presidida pelos médicos, que exercem um poder
quase absoluto sobre o processo da morte, o moribundo e sua família.
3 Ver os ensaios reunidos por Maria Kovács (1992,1996).
4 Chamado Livro Egípcio dos Mortos merece menção esporádica, e Ziegler (1977) dedica urna parte de seu livro à entu-
siasmada exposição de suas impressões sobre o culto aos eguns e o axexé no Brasil.
5 Centenas de milhões de almas assassinadas e torturadas, em condições das mais hediondas conhecidas pela história
humana.
6 Além das obras de Diop, ver as de Chancellor Williams, Martm Bernal e Molefi Asante.
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 163

-imagem digna de respeito e auto-esti- que ela, a distorção, afeta a visão que
ma7. Tentando fundamentar tal imagem uma nação constrói de si mesma, de sua
na chama “identidade negra”, definida gente e de sua cultura. Na formação do
de modo geral pelas desgastadas ca- Brasil, por exemplo, a origem africana
tegorias do ritmo, esporte, vestuário e sobressai em quase todos os sentidos:
culinária, verificam que o papel des- demográfico, histórico, econômico,
sa “cultura negra” limita-se à esfera cultural, linguistico, e na própria perso-
do lúdico. Não figura como atributo nalidade, o ethos nacional. A inferiori-
próprio a essa identidade o protago- zação do grupo étnico que durante três
nismo na área intelectual, científica, quartos de sua existência constituiu a
política, econômica, técnica e tecno- grande maioria de sua população, e ain-
lógica, ou a cultura chamada erudita.
da hoje continua majoritário não apenas
Veicula-se constantemente, por meio
no sentido demográfico8, mas como di-
do sistema de ensino, da mídia e das
mensão específica da cultura brasileira9,
noções popularmente difundidas, a
gera um complexo de inferioridade que
imagem do africano selvagem inca-
contribui para a persistência de um certo
paz de engendrar uma civilização hu-
mana: o eterno escravo construído à sentimento de frustração com o perene
base da distorção do registro histórico. debate, sempre problemático, à procura
de uma identidade nacional.
Poderíamos dizer que esse pro-
cesso de inferiorizarão constitui, na O resgate das tradições intelec-
acepção coletiva, uma forma de morte tuais dos povos africanos em contextos
em vida imposta, que traz consequên- como a discussão atual sobre o tema da
cias bastante sérias para o desenvolvi- morte ajuda a reconstruir a história de
mento humano de indivíduos e comuni- sua participação digna e ativa em todas
dades. Não apenas os afro-descendentes as dimensões da experiência humana,
sofrem os prejuízos dessa distorção. To- algo fundamental para a compreensão
dos saem prejudicados, na medida em equilibrada das heranças civilizatórias

7 O mesmo vale para os povos indígenas e ex-colonizados em todo o mundo. Julgamos, entretanto, entre as mais nocivas
formas de discriminação eurocentrista a tendência a tratar todos juntos, sem distinção, agregando-os numa categoria só, sem
rosto e sem identidade, como a de “não-brancos”.
8 Embora as estatísticas oficiais falam em 45% de afro-descendentes no Brasil (“pretos” e “pardos”, segundo as classifi-
cações desse Instituto), é notória a distorção desses dados, dada a tendência à sua minimização resultante da preferência
das pessoas pardas em se identificarem como brancas. Esse fato resulta da ideologia de embranquecimento, que valoriza
os grupos étnicos de acordo com as gradações de sua cor, com preferência para a mais clara. (Mortara, 1970: Nascimento,
1978, 1980).
9 A observação atenta daquilo que compõe a cultura brasileira, na sua especificidade, revelará a imensa amplidão de seus
aspectos que têm matrizes nas religiões e tradições seculares de origem africana; a ampla e profunda presença africana
na formação da língua brasileira passeia por seu vocabulário, sintaxe e expressão verbal (Sodré, 1988, 1988a; Luz, 1995;
Lopes, 1988, 1992, 1996.
164 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

que compõem as sociedades e culturas semitas ou asiáticos, e não africanos.


das Américas, em particular do Brasil. Diante da persistência desse tipo de
Neste pequeno ensaio, preten- noção, cumpre observar que o trabalho
demos apenas contribuir para um iní- de Cheikh Anta Diop, Théophile Oben-
cio de reflexão nesse sentido, pois as ga, Molefi K. Asante e Ivan van Ser-
limitações de espaço não permitem a tima, entre outros, estabelece alguns
elaboração do vasto tema da morte nas pontos, historicamente comprovados,
filosofias e culturas africanas. Partin- que norteiam o presente trabalho. Pri-
do, então, da referência à civilização meiro: a civilização antiga do Egito
africana clássica do Egito (Kemet), e (Kemet) foi construída por africanos
de algumas práticas relativas à morte e seus antecedentes encontram-se na
identificadas em diferentes tradições África Central. Segundo: a identidade
da África, pretendemos realçar três negro-africana dos construtores des-
temas relevantes: a força vital (axé), sa civilização, além de comprovada
o princípio fundador edinamizador da
cientificamente, está registrada no seu
linguagem (Exu) e o sacrifício como
nome Kemet, que significa “terra dos
elo entre as diferentes ordens do cosmo
(ebó)10. negros”. Terceiro: as posteriores civi-
lizações africanas, donas de tradições
O grande número e variedade tecnológicas e intelectuais altamente
dos povos e culturas encontrados no avançadas, tinham seu esteio original
continente africano induzem frequente-
em Kemet, da mesma forma que a ci-
mente à noção de que não existem ma-
vilização ocidental tem suas raízes nas
trizes culturais em comum compondo
antigas Grécia e Roma. Aliás, este úl-
um ethos cultural especificamente afri-
cano, mas apenas tribos isoladas com timo exemplo ilustra que a pluralidade
suas culturas específicas. Ademais, foi de culturas não impede a existência de
construído todo um elenco de teorias uma matriz africana, pois a diversidade
separando o Egito (Kemet) do restan- de etnias e nações entre Sérvia e Sué-
te da África, localizando-o no Oriente cia, Grécia e Grã-Bretanha, Alemanha
Médio e creditando sua avançada ci- e França nunca desmentiu a existência
vilização à obra de povos imigrantes, de uma civilização ocidental europeia.

10 Utilizamos, na ortografia brasileira, os termos derivadas do iorubá, linguagem litúrgica das religiões afro-brasileiras,
para designar fenômenos comuns a muitas tradições africanas. Não os italicizamos por entender que fazem parte, como
tantos outros vocábulos africanos, da língua brasileira.
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 165

1. Osíris e o Livro Egípcio dos Mortos Uma vez ressuscitado, Osíris pas-
sou a presidir os caminhos da passagem
dos mortos para o mundo do além. O
Uma das divindades mais antigas Livro dos Mortos reúne hinos, preces
da África, Osíris tem sua origem perdi- e procedimentos acumulados ao longo
da nas culturas pré-dinásticas de tempos de milênios, no esforço dos egípcios de
remotos. Sua história é o mito fundador cumprir corretamente essa passagem
da morte, ressurreição e vida eterna não e alcançar a vida eterna. Em parte, as
só das tradições africanas, mas de várias ações indicadas visam reconstruir o cor-
religiões ocidentais e orientais; o cristia- po do falecido, como fez Ísis com o de
nismo e o budismo indiano têm raízes Osíris.
nos ecos de sua influência no mundo an- Osíris preside o julgamento do
tigo11. Em Kemet, Osíris era a divindade falecido, verificando se viveu de acordo
mais destacada durante milênios, e o Li- com os princípios de Ma’at, a filosofia
vro dos Mortos comprova que sua figura de justiça, verdade e direito da qual Osí-
presidia atos rituais e liturgias comuns a ris era guardião e que fundamentava a
faraós e plebeus, rainhas e servas. Mais matriz ética da nação. Posto o coração
que o rei do submundo ou dos mortos, na balança divina com a pena de Ma’at,
Osíris era também um deus solar, asse- e verificado o peso igual, o dono ganha-
melhando-se a Rá chegando, entre a VI va vida eterna na terra dos deuses e se-
e a XVIII dinastias, a se fundir com esse guia viagem no barco divino; caso con-
deus do sol (Budge, 1969: 148). trário, sua morte seria definitiva nos dois
mundos. O Livro dos Mortos traz invo-
Assassinado por Set, seu irmão, cações e hinos em que os vivos podem
Osíris teve corpo retalhado em inúme- suplicar a Osíris, pedindo o julgamento
ros pedaços, e estes espalhados quatro favorável. Não havia a figura do casti-
cantos do mundo12. Sua irmã e esposa go eterno, nem do inferno; apenas era
Ísis recolheu os pedaços, reconstruiu o vedado o acesso do falecido à vida no
corpo de Osíris e, instruída pelo deus além. Esse além não se localizava abai-
Thoth (dono do sopro divino e do dom xo nem acima da terra13. Parece mais
da palavra e do intelecto), insuflou-lhe urna espécie de extensão dela, e (...) a
de novo a vida, ressuscitando-o por vida aqui levada pelo falecido sugere
meio de preces e cantos. que a concepção de todo o local partiu

11 O conjunto de estudos que estabelecem esse fato reúne todo um elenco de classicistas europeus do século passado
com pesquisadores mais recentes (Van Sertima, 1985; Van Sertima e Rashidi, 1985), estabelecendo inúmeros paralelos,
Por demais detalhados para serem atribuídos à mera coincidência. Para uma breve referência em português, ver Larkm
Nascimento, 1994.
12 Como todos os mitos, há diversas versões em que os detalhes diferem.
13 Parece que era localizado ao norte do país, talvez em Busíris, onde se processou a reconstituição do corpo desmembrado
de Osíris, e onde era executada todos os anos a cerimônia solene da montagem da coluna vertebral desse deus. Budge,
1993: 38.
166 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

de uma nação de agricultores; ele cei- vidas, assim garantindo a continuidade


fa o trigo, tange os bois, colhe cereais, da espécie.
ara a terra. Ou seja, o além reproduzia Entretanto, se a espécie humana
exatamente a vida terrestre. O morto lá atinge essa imortalidade na sua conti-
vivia como os deuses: “comia a mesma nuidade biológica, atravessando as ge-
comida, bebia a mesma bebida, vestia rações, o indivíduo humano tem uma
as mesmas roupas e vivia como eles”; história de vida confinada à progressão
não havia hierarquia entre seres eternos do espaço do tempo entre seu nascimen-
(Budge, 1993: 39,40). to e sua morte, o que gera um movimen-
to linear, recortando o movimento cir-
A viagem do morto reproduz, de
cular da vida da espécie. “A mortalidade
forma alegórica e metafórica, o ciclo
é isto: deslocar-se numa linha retilínea
do sol no seu morrer e nascer. O morto,
num universo em que tudo, se é que se
identificado ao deus Osíris, embArca e move de alguma forma, se move numa
viaja na noite de sua morte, e é louva- ordem cíclica”
do14 no momento em que surge no ho-
(Arendt, 1958: 19).
rizonte oriental, saudando a luz do dia e
sua chegada ao reino eterno. Por isso, o O sacrifício, a morte e a ressur-
título correto do conjunto dos principais reição de Osíris15 vieram garantir ao ser
humano a possibilidade de superar essa
textos é “Capítulos do sair à luz do dia”.
mortalidade, assim como a morte bioló-
O ciclo da morte e vida eterna re- gica dos indivíduos garante a imortali-
produzia, então, o ciclo do dia terrestre: dade da espécie no movimento cíclico
o morto se punha com o sol, viajava na da natureza.
noite e se levantava no outro horizon- A imagem do nascer do sol nas
te, ao nascer do dia, junto aos deuses. vinhetas dos papiros constitui uma elo-
Incorporando o ciclo agrícola, em que quente expressão desse fato de se erguer
a morte alicerça e alimenta a vida nova a imortalidade – a luz do dia – sobre a
que surge e, por sua vez, alimenta, a vida base da morte. Do Tet, tronco de árvore
eterna dos egípcios espelhava a imorta- que encerra o corpo do defunto Osíris,
lidade inerente à natureza. As gerações procede o ankh, símbolo da vida, cujos
cedem lugar, por meio da morte, a novas braços sustentam o Disco do Sol.

14 “Os mortos se levantam para ver-te, respiram o ar e olham para o teu rosto quando o Disco se ergue no horizonte; seus
corações estão em paz, visto que te contemplam, ó tu, que és Eternidade e Perpetuidade.” In Budge, 1993: 32.
15 Da mesma forma que Krishna, Buda e Cristo milênios depois. Ver acima, no 14.
O NASCER DO SOL. O Tet, ou tronco de árvo-
re, que encerrava o corpo de Osíris, postado entre
Ísis e Néftis, ajoelhadas em postura de adoração,
uma de cada lado. Do Tet procede o emblema da
vida, cujos braços sustentam o Disco do Sol. Os
seis macacos representam os espíritos da aurora.
(Esta ceba é di Papiro de Ani, estampa 2) (Budge,
1993: 166).
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 169

2. Ideias e práticas relativas à morte deixaram atrás, fortalecendo-os. O an-


na África cestral preocupa-se com seus familia-
res vivos, é consultado em momentos
difíceis e é sempre lembrado, sua pre-
Nas tradições africanas, existem
sença mantida próxima durante três ou
muitos aspectos que lembram o mito de
quatro gerações, inclusive na forma de
Osíris, a começar pela universalidade da
convivência direta em visitas realizadas
ideia da vida após a morte. Para expres-
mediante cerimônias e festivais como o
sar o morrer, as línguas16 africanas usam
dos egungun iorubá18. A oratura da liba-
palavras ou frases que conotam uma ação
ção, cerimônia de homenagem em que
ou um evento, não uma destruição total
(partir, atender ao chamado, desaparecer, se derrama um pouco de bebida, ou se
afundar, perder a batalha, juntar-se aos reserva um pouco de comida para os
ancestrais) (Mbiti, 1975: 113); trata-se de ancestrais, constitui uma das mais ricas
uma mudança de plano de existência, e fontes da tradição intelectual africana
nunca da extinção ou aniquilamento da (Asante e Abany, 1996).
pessoa (Santos, 1977: 221). Mbiti observa que a terra do
Longe de se reduzir essa ideia a além, para onde vão os ancestrais, re-
uma crença primitiva, ela expressa um produz o mundo dos vivos, como no
princípio fundador da filosofia africana: modelo kemético acima mencionado.
axé, a força vital que potencializa toda a Esse fato corresponde ao conceito de
dinâmica do cosmo. Tal força, concebida dois mundos, o visível e o invisível, que
de forma extremamente complexa17, está se complementam e interagem entre si,
em todos os aspectos da vida cósmica, juntos compondo um cosmo povoado de
compondo-se esta de seus fluxos e inter- seres portadores de axé: no mundo ter-
câmbios a manter o equilíbrio essencial restre, as criaturas vivas e, no invisível,
que permite o balanço eterno do universo. as divindades e os ancestrais. Expres-
Quando morre uma pessoa, seu são nítida disso está no universo iorubá,
axé de pessoa física termina, mas sua onde o orun (mundo invisível) espelha,
força vital continua no além, onde o no plano espiritual, a existência físi-
falecido mantém o seu axé, já trans- ca no aiyê (universo físico concreto)19.
mutado, podendo dividi-lo com os que Não nos cabe enveredar pelos detalhes

16 No Brasil é preciso, ainda, chamar atenção para o fato de que na África se falam línguas, pois é impressionante a ubiqui-
dade do hábito de se referir aos “dialetos” africanos.
17 O que aqui tratamos como conceito do axé envolve, para Santos (1976), três aspectos: iwà (principio da existência), axé
(princípio da realização) e àbà (“princípio que induz, que permite às coisas terem orientação, terem direção ou terem obje-
tivo num sentido preciso). Jahn (1975) aponta, no contexto banto, para o buzima (princípio da vida biológica) e o magara
(princípio da vida espiritual), dentro de um sistema de quatro conceitos básicos de classificação linguística: muntu, kintu,
hantu e kuntu.
18 No Brasil, o culto aos egungun é presidido pelo Alaapini Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi.
19 O orun “é o doble abstrato de todo o aiyê” (Santos, 1977: 56). Nele habitam os orixás, divindades ligadas às forças da
natureza, e os ancestrais.
170 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

desse processo dinâmico de duplicida- há uma causa externa, uma interven-


de da existência física e espiritual, com ção divina ou humana, provocada por
suas diversas categorias de ser (emi, ese, alguma transgressão do falecido ou por
ori, oriinu, ipori, oke-ipori, egun-ipori, agressão contra ele (Mbiti, 1975: 111-
bara, bara-orun, exu-bara); mas cumpre 12). Grande parte dos rituais africanos
assinalar a semelhança, no espelhamen- tem como objetivo evitar essa morte
to dos dois mundos e na complexidade prematura, garantindo o pleno cumpri-
de sua interação, entre a visão iorubá e mento do destino do indivíduo (Santos,
a kemética, que também possui diversas 1977: 221-2).
categorias de duplicidade do ser (Khat, Existem em todas as culturas afri-
Ka, ba ab, Khaibit, khu, sekhem, ren, canas exigências rituais em relação ao
sahu) (Budge, 1993: 34-16). morto, no sentido de garantir sua defini-
Ainda de acordo com Mbiti, em tiva separação do mundo terrestre, pois
apenas duas culturas africanas20 existe não há nenhuma confusão entre os dois
o julgamento do falecido, não se en- mundos, e nenhum vestígio deve ficar
contrando na religião africana, em geral daquele que partiu. Uma vez cumpridos
nem o castigo eterno nem a figura do in- esses ritos, o falecido se toma ancestral
ferno. Isso não significa, entretanto, que e pertence ao mundo invisível. A partir
a morte seja encarada como algo normal desse momento, ao interagir com os vi-
ou natural. Em quase todos os mitos de vos por meio de libações, preces e ofe-
fundação africanos, o ser humano foi rendas, ele passa a encarnar um segundo
criado imortal, ou capaz de eterna res- princípio fundamental da cosmovisão
surreição, e só foi conhecer a morte após africana, o da interação e intermediação
algumas gerações, em consequência de entre os dois mundos. A esse princípio
um evento envolvendo um desentendi- denominamos Exu, pois no cosmo ioru-
mento ou ofensa a Deus21 (Mbiti, 1975: bá ele é o portador do axé, o princípio
110; Griaule, 1965). O festejo após os dinâmico da individuação e o dono do
ritos fúnebres, comumente associada à poder da comunicação (Santos, 1977:
ideia de que os africanos aceitam a mor- capo VII).
te como algo natural, é reservado para No princípio de Exu está implíci-
aqueles que viveram plenamente suas to o poder da linguagem e o papel fun-
vidas terrestres, cumprindo seu destino dador da palavra, agente da própria cria-
e chegando a uma idade avançada. No ção. Thoth, o deus de Kemet que sopra
caso de morte prematura, supõe-se que o hálito da vida, é também o senhor da

20 Localizadas na Nigéria e em Gana, mas não identificadas no texto. Ribeiro (1996: 122) menciona os conceitos de orun
rere e orun apaadi no contexto iorubá, que deve constituir uma dessas exceções.
21 Todas as religiões africanas contêm a figura do Deus criador, uno e imortal. As divindades e os ancestrais são interme-
diários entre Deus e o ser humano.
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 171

palavra, da comunicação e da inteligên- Mas não era simplesmente um problema


cia. O Nommo dos dogon, força vital de pegar a força vital da vítima e colocá-
e agente da criação, é ao mesmo tem- -la em outro lugar, nem de aumentar a
po água, hálito, palavra e inteligência. força vital de algum outro ser, visível ou
A fala não só potencializa as ações do invisível”.
homem, dos orixás e dos ancestrais na Juana Elbein dos Santos (1977)
interação entre os dois mundos, como avança na exposição desse movimento,
comunaliza a realização e o sentido da recorrendo à história da criação: a lama
vida22. da qual foram moldadas as criaturas vi-
vas constitui no orun uma massa gené-
rica de força vital. A criação de um ser
3. A dinâmica de ebó no princípio de
vivo no mundo terrestre implica a utili-
vida
zação de uma porção dessa massa, que
se concretiza no aiyê, adquirindo uma
O terceiro princípio, ebó, nos forma individualizada. Deixa-se, assim,
remete ao início de nossas reflexões: o um vazio na massa genérica, impondo-
sacrifício de Osíris indicando a morte -se a necessidade de sua reposição. Re-
como base e sustento da própria vida. toma, então, um ser vivo à primordial
Ebó é o princípio do sacrifício ritual, condição de partícipe daquela lama,
que assegura a harmonia cósmica e o princípio genérico de vida.
equilíbrio de axé entre os domínios e Iku, a morte, personagem mascu-
elementos do cosmo. Universal às tradi- lina na cosmogonia iorubá, aparece inti-
ções africanas, o sacrifício faz parte de mamente associado à gênese da vida no
muitos mitos de fundação23 e constitui seguinte relato (Santos, 1977: 107, apud
o mecanismo de interação entre o plano Ribeiro, 1996: 158), fragmento de uma
visível e o universo invisível, potencia- das versões do mito iorubá da criação:
lizado pelo princípio de Exu.
Griaule (1965: 131) observa que, Quando Olorum procurava ma-
“em todas as suas diversas formas, seja téria apropriada para criar o
de consagração, expiação, adivinhação, ser humano [o homem], todos os
purificação, sustentação do invisível ou ebora24 partiram em busca da tal
de assegurar a própria salvação, o sa- matéria. Trouxeram diferentes
crifício para os dogon tinha um efeito coisas: mas nenhuma era ade-
imutável: a redistribuição da força vital. quada. Eles foram buscar lama,

22 Assim, diz o sábio Ogotommêli: “A palavra é para todos neste mundo; ela deve ser intercambiada, para que vá e volte,
pois é bom dar e receber as forças da vida” (apud Jahn, 1961: 124).
23 Na tradição dos dogon, em que a morte de um dos primeiros ancestrais (o sétimo) possibilita o domínio da tecnologia do
ferro, esse ancestral, ressuscitado, é obrigado a sacrificar outro, Lébé, para que este, imbuído do axé do outro mundo, possa
ensinar aos homens o conhecimento da Terceira Palavra legada por Deus. Griaule, 1965.
24 Orixás genitores associados à terra e às suas águas (lama, rios, fontes e lagos).
172 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

mas ela chorou e derramou lágri- -os disponíveis para a confecção de ma-
mas. Nenhum ebora quis tomar téria e energia nova). Na vida terrestre,
de menor parcela, mas Iku apare- a evolução das espécies por meio das
ceu, apanhou um pouco de lama mutações genéticas depende da morte,
e não teve misericórdia de seu que propicia a sucessão de gerações25.
pranto. Levou-o a Olodumaré, Bowker (1991: 229) comenta o que a
que pediu a Orisalá e a Olugama ciência nos revela: “(...) não podemos
que o modelassem, e foi Ele mes- ter vida sem morte; mas onde temos a
mo quem lhe insuflou seu hálito. morte, aí podemos ter vida”.
Mas Olodumaré determinou a
Iku que, por ter sido ele a apa-
nhar a porção de lama, deveria Conclusão
recolocá-la em seu lugar a qual-
quer momento, e é por isso que
No Brasil, a prática atual do ebó
Iku sempre nos leva de volta para
incomoda a alguns, e as religiões afro-
a lama.
-brasileiras sofrem por sua causa, acusa-
Esse relato nos mostra como os ções e agressões diversas. Mesmo aque-
africanos, mesmo entendendo a morte les que reconhecem o valor simbólico
na sua dimensão cósmica, não deixam de do sacrifício condenam o derramamento
senti-la como um implacável pesar. Iku de sangue26 no ebó. Tal atitude deriva da
não tem misericórdia, e a vida chora, der- distância entre a sociedade moderna, ar-
rama lágrimas. Não precisamos esconder tificial e urbana, e o mundo da natureza,
a tristeza diante da perda, primordial e onde a morte está presente a cada pas-
cósmica, provocada pela morte. so, alimentando a vida. Se observamos
A visão simbólica iorubá e a ima- que na sociedade ocidental moderna a
gem kemética do nascer do sol com o morte humana foi afastada, escondida
ankh – a vida – fincada no ataúde exi- e relegada a um plano de não existên-
bem uma coincidência incontestável cia, o mesmo podemos dizer da morte
com a realidade concreta comprovada dos animais. Quando levamos à mesa
cientificamente. O nascimento do uni- um frango ou um filé mignon, não fo-
verso, e a formação de toda a matéria mos nós que assassinamos o animal cuja
cósmica, se funda na morte das estrelas carne consumimos; nem vimos esse ani-
(sua compressão para formar os elemen- mal vivo. O que compramos no super-
tos de metais pesados e sua explosão, mercado não parece um ser que antes
que espalha esses elementos, tornando- viveu, mas um objeto inânime qualquer.

25 Parece que a condição final da lei da entropia descreve a massa genérica de força vital: “A entropia é a medida da de-
sordem crescente num sistema isolado, apontando para uma condição final de equilíbrio termodinâmico, em que partículas
ainda têm energia, mas não podem interagir”. A massa genérica é o princípio de força vital sem interação entre os compo-
nentes de seu sistema, que não têm individuação.
26 Para uma belíssima análise da função e do significado simbólicos do sangue, ver Santos, 1977.
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 173

O abate de animais para consumo está reconhecimento se contrapõe à imagem


escondido nos matadouros, instituições negativa e desvalorizada da morte como
obscuras e desconhecidas. Não só mata- fracasso e como aniquilamento final do
mos diariamente animais, como criamos ser, realçando não só seu valor simbóli-
populações artificialmente infladas, sus- co como possibilidade de regeneração,
tentadas à base de hormônios artificiais mas, sobretudo seu papel de propiciar
e rações químicas, com o objetivo único essa regeneração na vida real. A cosmo-
de assassiná-las friamente, em condições visão africana se destaca pela concre-
de absoluta covardia. O imenso volume tude de suas imagens: a vida no além
desses massacres não tem comparação como espelho do nosso mundo, o pro-
com o número de animais sacrificados cesso de reconstrução do corpo, a vida
em comunidades-terreiro. Em ambos os sustentada pela morte, a interação entre
casos, o destino do animal é o consumo os dois mundos por meio dos ancestrais,
humano, seja na mesa doméstica ou na a reposição de energia vital para a lama
mesa do terreiro, onde depois do ritual genérica primordial, o pranto da lama ao
se faz uma refeição coletiva com a carne ceder à exigência da criação: são cenas
do animal sacrificado. que nos transmitem nitidamente a fun-
Vista desse ângulo, a polêmica ção da morte como parteira no renasci-
sobre o ebó ganha novos contornos. A mento físico da vida.
oposição ao sacrifício integra o movi- Nesse sentido, o princípio de ebó
mento geral de nosso distanciamento pode contribuir para o esforço de dar
dos fluxos naturais e do ciclo da vida, ou uma resposta aos dilemas postos pela
seja, o mesmo movimento que afastou visão da morte no contexto ocidental
a morte, confinando-a em instituições contemporâneo. Assim, a matriz africa-
distantes e criam sérios dilemas para o na, tão viva no Brasil, porém tão desco-
ser humano. nhecida de uma sociedade convencional
O sacrifício torna sagrada a mor- que se quer branca e ocidental, oferece
te, na sua invitabilidade, fazendo reco- uma perspectiva de esperança e uma luz
nhecer nela o seu valor inerente. Esse no contexto dessa discussão de grande
relevância atual.
174 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

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mento Humano, PSA 5790, Departamento de
Sodré, Muniz. A verdade seduzida, 2ª Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvi-
ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, mento Humano, Instituto de Psicologia, Univer-
1988. sidade de São Paulo, 2o Semestre de 1996.
Projeto Odô-Yá: Este texto é dedicado a Mar-
co Antônio Guimarães, Jane Gal-
vão, Mílton Quintino, Robson Rogé-
rio Cruz e Mariza Carvalho Soares,
companheiros e amigos que deram
respaldo teórico e prático para que
a campanha Aids e Religiões Afro-
-Brasileiras se tornasse realidade.
Gostaria também de agradecer as ia-
lorixás Beata de Iemanjá, Meninazi-
nha da Oxum, Bida de Iemanjá, Stella
de Oxóssi e aos babalorixás Nílson
Uma experiência de ducação e de Ossãe (in memoriam), Joaquim de
prevenção da epidemia de HIV/Aids Omulu e Laércio do Terreiro de Jauá
nas comunidades de terreiro
pelas intervenções, discussões e ques-
tionamentos que nos propiciaram es-
crever este artigo.
Seria injusto de minha parte
não mencionar o nome de Laércio
Zaniqueli, babalorixá e dirigente do
Centro de Convivência Infantil Filhos
de Oxum, na cidade de São Paulo,
com quem tive a oportunidade de ex-
José Marmo perimentar e vivenciar o carinho no
tratamento de crianças soropositivas.
178 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

Dofona é a primeira pessoa de um em seu poder o saber da tradição, capaz


barco de iaô, mas é também o nome pela de viabilizar o trabalho a ser feito nas co-
qual a Síndrome da Imunodeficiência munidades em relação à doença.
Adquirida (SIDA/AIDS) ficou conhe- Odô-Yá é uma saudação ao ori-
cida entre os adeptos do candomblé. A xá Iemanjá que significa “salve a mãe
partir do termo dofona, tentaremos ini- do rio”, e a sua escolha para dar nome
ciar uma discussão em função das expe- ao projeto deveu-se a aspectos relacio-
riências e desafios de uma campanha de nados à maternagem e à solidariedade,
educação/prevenção da Aids, específica características dessa deusa da mitologia
para a tradição religiosa afro-brasileira, iorubana cultuada em vários terreiros
iniciada, em 1991, pelo Apoio Religioso por todo o país.
e Cultural Aids (ARCA) do Instituto de Conta-nos a lenda que
Estudos das Religiões (ISER) e que foi Nanã, orixá relacionada aos pri-
lançada publicamente com o nome de mórdios da criação, grande mãe
Projeto Odô-Yá. ancestral, teve três filhos: Obalu-
O projeto Odô-Yá surgiu com a aiê, Oxumarê e Ossãe. Obaluaiê,
proposta de sensibilizar o povo de santo o mais velho, nasceu todo defor-
no combate à epidemia de HIV/Aids, por mado, com o corpo coberto de
meio da elaboração de um material atra- chagas purulentas e de aspecto
ente que levasse em consideração a “li- medonho.
nuagem do terreiro”, com os símbolos e Ao ver aquela criança,
códigos dessa tradição religiosa. Elaborar Nanã tomou pavor de seu pró-
um material de tal especificidade, dando prio filho e abandonou-o à sua
conta das reais necessidades das comuni- própria sorte. Iemanjá, a mãe do
dades-terreiro no que diz respeito à manu- mundo, vendo aquilo, se apiedou
tenção da saúde e preservação de valores da pobre criança, resolveu criá-
tradicionais, foi um dos grandes desafios -la e assim o fez. Cuidou dela,
do Arca, principalmente porque abordarí- tratou de suas feridas e Obalu-
amos práticas ligadas ao ritual. aiê cresceu sob os cuidados de
O Arca contou com o apoio de ia- Iemanjá, tornando-se um grande
lorixás e babalorixás do Rio de Janeiro, orixá. Por ter passado por essa
mediante encontros e consultorias em experiência, Obaluaiê é o dono
que sacerdotes, profissionais de saúde e das doenças, especialmente das
a equipe do programa Arca trocaram en- febre, moléstias de pele, da lepra
sinamentos, resultando dessa interação e de todas as grandes pestes.
o nascimento do referido projeto. Se de Obaluaiê, por ter vencido
um lado a equipe do Arca tinha o conhe- todas as doenças, se tornou tam-
cimento técnico-científico para ser utili- bém o dono da vida e da morte.
zado frente à epidemia de HIV/Aids, por As lendas da tradição re-
outro lado os zeladores de orixá tinham ligiosa afro-brasileira encerram
Projeto Odô-Yá
José Marmo 179

importantes ensinamentos que são A substituição da palavra Aids


repassados para todos os integran- pela palavra dofona, pelos iniciados do
tes das comunidades de terreiro. candomblé, não deve ser vista apenas
No caso dessa lenda específica, po- como mera substituição de palavras,
demos verificar alguns elementos mas sim como um acordo simbólico
que permitem uma reflexão sobre a em que culturas diferentes se interpe-
epidemia de Aids junto ao povo de netram, criando uma trama de relações,
santo, termo pelo qual são conhe- em que uma não anula a outra. Que a
cidos os praticantes e adeptos do Aids existe é uma verdade para o povo
candomblé e da umbanda: de santo, mas, como ela veio de uma ou-
A vida de Obaluaiê não foi tra cultura, criou-se um termo adequado
muito diferente da vida de muitas para designá-la, uma expressão dentro
pessoas que, por motivo de do- desse novo contexto cultural ao qual ela
enças, foram abandonadas pela agora passa também a pertencer, na me-
família e pelos amigos, ficando dida em que se tornam visíveis casos da
entregues à própria sorte. doença entre os adeptos.
Melhor que qualquer outro Em nossos primeiros contatos
orixá, Obaluaiê pode entender o com o povo de santo na tentativa de
sofrimento dos doentes porque abordagem da epidemia, ficamos im-
viveu também a experiência da pressionados com o respeito demons-
trado pela maioria dos praticantes do
morte próxima.
candomblé ao pronunciar a palavra
Obaluaiê não se curou so- Aids. Naquela época, todos achavam
zinho, precisou da ajuda de Ie- que a doença era contagiosa, podendo
manjá. ser transmitida por um simples contato,
Com sua atitude, Iemanjá e as pessoas se referiam a uma bactéria,
nos dá um exemplo de dedica- a um vírus ou a uma situação específica
ção, mostrando que não devemos que causava a morte.
abandonar as pessoas doentes. Histórias como: “Eu sei que na
No início da campanha Aids e re- casa do pai de santo fulano de tal existe
ligiões Afro-Brasileiras, a relação entre o uma pessoa com a maldita, mas na mi-
termo dofona e a epidemia não era niti- nha casa, graças a Deus, não.” “Eu cuidei
damente percebida pela equipe do proje- de uma pessoa que tinha a doença, mas
to Odo-Yá, mas o trabalho de campo, de não era meu filho de santo. Ajudei no que
observação e posterior avaliação junto às pude, mas a pessoa morreu.” “No meu
roças sobre as possibilidades de desdobra- terreiro, isso nunca aconteceu.” Foram
mentos do projeto fez com que ficássemos alguns dos depoimentos de pais e mães
atentos à utilização da palavra dofona e a de santo registrados pela equipe do Arca
seu significado simbólico para os partici- em suas visitas aos terreiros. Nas comu-
pantes da tradição dos orixás. nidades, os filhos de santo rejeitavam to-
180 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

car no assunto, enquanto outros não pro- Aids é vivenciada pelo povo de santo.
nunciavam o nome da doença, fazendo a Sendo a Aids uma doença que ainda não
substituição pelo termo dofona. tem cura, podendo deixar sequelas em
Em função do que foi exposto sua evolução ou mesmo determinar a
anteriormente, pensamos na hipótese de morte de alguns indivíduos, criaram nas
que, em resposta ao medo de infecção comunidades de terreiro algumas expec-
pelo vírus HIV/Aids, utilizava-se uma tativas e medos que originaram várias
estratégia que pudesse expressar a mes- discussões norteadas pela visão negro-
ma situação sem correr riscos, mediante -brasileira, contribuindo de maneira
a substituição de palavras, suavizando qualitativa no que diz respeito à epide-
dessa forma a carga negativa que o ter- mia de Aids em nosso País, até então in-
mo Aids trazia consigo. Esse fato é im- fluenciada por um discurso biomédico,
portante se levarmos em conta que no acadêmico e judaico-cristão.
candomblé a palavra é sagrada, contém A maneira pela qual é encarada
magia, pelo que devemos tomar cuida- a sexualidade nas comunidades de ter-
dos ao pronunciá-la. A palavra possui reiro, o papel do corpo nessa tradição
encantamento, sendo capaz de ativar o religiosa, assim como as relações entre
poder de realização. axé, saúde e medicina tradicional, foram
Os adeptos do candomblé apren- pouco a pouco servindo de base para
dem a utilizar a palavra, assim como nossas futuras intervenções nesse mun-
também aprendem a se calar em deter- do em que as doenças muitas vezes são
minados momentos em sinal de respei- um legado ou manifestação do orixá.
to. Um bom exemplo do que estamos Um exemplo do que estamos falando
falando pode ser vivenciado por meio pode ser observado pelo grande número
do orixá Baba Ibonã, cujo nome, por ser de pessoas que, após a iniciação no can-
ele o dono da doença, das pestes e das domblé ou na umbanda, recuperam seu
epidemias, deve-se evitar pronunciar. equilíbrio orgânico, não apresentando
Um outro exemplo é o relacionado às mais sinais ou sintomas de determina-
Iyá-mi, grandes mães feiticeiras, terrí- das doenças; segundo os iniciados, esses
veis e ameaçadoras, capazes de trazer o sinais e sintomas caracterizam umas das
infortúnio aos homens, podendo mesmo formas pelas quais o orixá se comunica
causar-lhes a morte; nesse sentido, é re- com a pessoa, possibilitando sua feitura,
comendado não pronunciar o seu nome ou seja, sua iniciação.
e somente invocá-las para lhes apazi- A Aids trouxe mudanças e espe-
guar a fúria. culações em torno das comunidades de
Ao longo do percurso da epide- terreiro, principalmente no início da epi-
mia de Aids, aconteceram fatos de ex- demia, na década de 80, em que foram
trema importância para se entender o detectados casos de infecção pelo vírus
impacto dessa doença na tradição reli- HIV entre homossexuais masculinos e a
giosa afro-brasileira e perceber como a doença chegou mesmo a ser denomina-
Projeto Odô-Yá
José Marmo 181

da de Peste Gay ou Câncer Gay pelos A epidemia de Aids trouxe alte-


jornais da época. rações à vida do povo de santo que, an-
Os jornais também traziam no- teriormente discriminado por sua con-
tícias sobre um grande número de ho- dição de afro-brasileiros, herdeiros de
mossexuais no candomblé, estabelecen- uma religião trazida por negros escra-
do relação direta da epidemia com essa vizados, agora sofria nova discrimina-
tradição religiosa, o que provocou certo ção por ter em seu meio homossexuais,
desconforto em algumas casas de santo os quais, além de serem considerados
marginais em nossa sociedade, eram
que tinham um grande contingente de
também quem trazia consigo o risco de
homens iniciados. Se isso por um lado
contaminar as pessoas com o vírus HIV.
foi desconcertante, por outro fez com
que vários pais e mães de santo saíssem A Aids ainda não tem cura e se
em defesa de suas comunidades, alegan- apresenta como um enigma a ser deci-
do que o candomblé, em sua forma de frado por todos nós. Qual a melhor for-
ser, aceita todos os tipos de práticas se- ma de tratá-la? Que fazer diante dessa
xuais; com isso queriam dizer que a ho- epidemia? Quando será descoberta a
cura? É difícil entender que, apesar do
mossexualidade e a bissexualidade são
avanço científico e tecnológico, não se
encaradas normalmente, não são consi-
conseguiu até o presente momento des-
deradas pecado e nem denotam formas
cobrir um remédio para a cura da Aids,
desviantes – o mais importante é o orixá
e que isso talvez ainda demore algum
que a pessoa carrega em sua cabeça.
tempo. Essa mesma situação é vivencia-
O sexo para a tradição religiosa da nas comunidades de terreiro, mobi-
afro-brasileira é considerado fonte de li1izando todos os seus adeptos ou sim-
vida, de prazer, e não apenas algo que patizantes que, não obtendo respostas
serve para a reprodução e perpetuação a seus questionamentos, procuram na
da espécie. O sexo é tão importante religião e na prática da fé um meio pelo
nessa tradição religiosa que existe um qual se possam sentir seguros e aptos a
itan (lenda) contando sobre o local mais enfrentar essa nova etapa que estamos
apropriado para se colocar, no ser huma- passando frente a uma epidemia que
no, o órgão genital feminino (iamapô) e ganha espaço a cada dia que passa, não
o masculino (okani). Outra informação poupando pessoas, independentemente
importante para evidenciar a questão da de cor, religião ou sexo.
sexualidade nessa religião é que o sê- A falta de cuidados da família
men e a secreção vaginal, assim como e de acesso a tratamentos médico por
todos os líquidos do corpo, são portado- pessoas soropositivas de baixa renda
res de axé, ou seja, da energia vital. Isso fez com que várias delas partissem em
sem falar em Exu, que simbolicamente busca do auxílio de pais e mães de san-
está relacionado à sexualidade e é repre- to na perspectiva de se verem livres da
sentado por um falo. doença, trazendo algumas implicações
182 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

para tais sacerdotes, que muitas vezes, família de santo, é terem passado pelas
sabendo que não poderiam curar essas mãos do mesmo pai ou mãe de santo,
pessoas, preferiam não lidar com a do- ou, como dizem os mais antigos, terem
ença, com o medo da perda de credibi- “passados pela mesma navalha”.
lidade, o que acarretaria também perda O uso da mesma navalha levanta
de poder. Outros sacerdotes propunham uma polêmica em tempos de Aids, pois
a cura por meio da magia, mas até os todos nós sabemos que uma das formas
dias de hoje não se comprovou a eficá- de transmissão do vírus HIV é por meio
cia desses tratamentos. do sangue de uma pessoa infectada para
O fato de muitos pais de santo outra. Em nossa pesquisa com sacerdo-
terem morrido em função de doenças tes da tradição religiosa afro-brasileira,
oportunistas causadas pela Aids trouxe observamos uma variação em relação
uma série de situações de descontenta- ao tema e dividimos as opiniões em três
mento para os participantes dessa tra- grupos, facilitando dessa forma nosso
dição religiosa, pois, em função dessas trabalho.
experiências, foram obrigados a ver Grupo I – zeladores que utilizam
a doença de perto e a conviver lado a a mesma navalha, mas não fazem a este-
lado com uma epidemia que levava seus rilização desta. A navalha é mergulhada
entes queridos. A proximidade da epi- apenas em uma solução de abô (mistura
demia de Aids fez com que o povo de de vários elementos portadores de axé).
santo não mais negasse a sua presença, O abô é considerado por eles um ele-
o que vinha acontecendo anteriormente, mento mágico capaz de remover qual-
como na época em que iniciamos nos- quer mal ou doença que por acaso tenha
so trabalho, em 1991. É nessa fase do passado para a navalha.
processo que vão ocorrer mudanças que
Grupo II – zeladores que utilizam
determinam cuidados especiais em rela-
a mesma navalha, mas fazem a esterili-
ção a determinadas práticas rituais, prin-
zação, pois não acreditam que o abô seja
cipalmente no que diz respeito ao uso da
capaz de deter o vírus HIV.
navalha.
Grupo III – zeladores que utili-
O candomblé utiliza a navalha
zam várias navalhas, ou seja, cada filho
em seus rituais de iniciação e de cura,
de santo tem a sua própria navalha.
ou seja, de fechamento do corpo. As in-
cisões são feitas em determinadas partes A partir desses grupos, podemos
do corpo do iniciado, por ocasião da fei- observar, mediante encontros realizados
tura do iaô. Muitas vezes são recolhidas no ISER (Instituto de Estudos da Reli-
várias pessoas que serão consideradas gião) e em alguns terreiros, elos que nos
irmãs de barco e que passam juntas o permitiram aprofundar reflexões sobre a
momento de iniciação; uma das carac- epidemia nas casas de santo.
terísticas que lhes conferem a categoria O grupo I, que utilizava o abô na
de irmãos, de participarem da mesma navalha, acreditava que o orixá era ca-
Projeto Odô-Yá
José Marmo 183

paz de impedir que uma pessoa pegasse ocorridas dentro da tradição religiosa
vírus, enquanto os grupos II e III têm afro-brasileira foi ter-se deixado de ne-
opiniões diversas, preferindo esterilizar gar a doença, o que facilitou bastante
a navalha ou utilizar navalhas diferentes. os trabalhos de educação e prevenção
O grupo I nega a existência da Aids e ge- desenvolvidos até o presente momento.
ralmente procura não tocar no assunto, Outro aspecto importante é a sensibili-
enquanto os grupos II e III participam zação dos pais e mães de santo verifi-
de atividades específicas de educação e cado pela busca de informações sobre o
prevenção da doença, ou pelo menos es- funcionamento da doença e sobre como
tão sensibilizados para tocar no assunto. tratá-la, possibilitando esclarecimentos
O grupo I apresenta dificuldades para para toda a comunidade de terreiro e in-
mudanças frente à epidemia, enquanto crementando maneiras ou procedimen-
os grupos II e III aceitam as possíveis tos frente aos portadores de HIV.
mudanças, desde que sejam importantes A utilização da medicina tradi-
para a resolução de seus problemas. cional no combate às infecções oportu-
Para finalizar, os últimos anos nistas foi resgatada nas comunidades de
têm sido mArcados por uma tomada de terreiro e o uso de folhas, ervas, raízes,
posição em relação à epidemia de Aids, ebós e garrafadas passou novamente a
e o candomblé a acompanhou de forma fazer parte do cotidiano dessas comuni-
significativa. Uma das transformações dades.
Yara*, uma arte
Quando conheci Yara (ela prefere
fora da com “I”), tive a sensação animadora de

baixa cultura estar lidando com uma pessoa singular,


dessas com gente dentro, que contêm pul-
são de vida e estão a serviço da existência.
Nesse mesmo dia em que nos conhece-
mos, soube também que foi ela que teceu,
às pressas, o famoso casaco do Senador
Abdias, quando ele teve de embArcar,
exilado, para o frio terrível dos Estados
Unidos. Eles eram amigos de consciên-
cia racial, de fraternidade e, fundamen-
talmente, de identidade na construção e
expansão da arte e da cultura negra. Nisto
vão quase 30 anos, ou mais, no sorriso de
Yara, que se nega a dizer a que século ou
a que milênio pertence.
Enquanto o povo estava preso na
euforia salutar do lançamento do primei-
ro número do Sankofa e da revista Thoth,
na livraria da UFF em Niterói, namora-
Éle Semog mos letras, conceitos e ironias em torno
da modernidade, do racismo, da arte que
186 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

embala o dia a dia nesse tempo de es- de negros e pobres, garantiu que ela e
cassez. Ficamos ali cúmplices e felizes os irmãos se formassem e estimulou a
com toda aquela cultura negra em evi- que outros parentes seguissem o mesmo
dência, com a qual Yara fazia planos dar caminho.
continuidade à derrubada da xenofobia Como professora, Yara lecionou
das elites. durante muitos anos em municípios
Yara de Oliveira Rosa nasceu em próximos a Niterói. Foi no exercício
Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, do magistério que ficou amiga do en-
em 15 de abril de 1933. O avô paterno tão prefeito do Município de Rio Bo-
(Benedito de Oliveira Rosa, morto aos nito, Wilson Abreu, e passou a lecio-
114 anos) veio de Angola, chegando nar arte para crianças portadoras de
ao Rio de Janeiro como escravo, num deficiência mental. Essa experiência
navio negreiro que fazia a rota entre o resultou num intercâmbio com artistas
Estado do Maranbão e um ponto clan- do Rio de Janeiro que foram explicar
destino na praia da Raza, na cidade de “arte moderna para aquela gente do in-
Búzios. Embora o tráfico de escravos terior” por meio de uma série de pales-
estivesse proibido e as lutas pela aboli- tras e aulas práticas. Emocionada, Yara
ção da escravatura se espalhassem por diz ter sido essa uma coisa extraordi-
todo o País, o destino daqueles negros nária, pois hoje em dia, quando encon-
transplantados da África e desembArca- tra gente daquela época, fica sabendo
dos em Búzios naquele período era o de que muitos têm quadros em casa, que
servir como mão de obra na rica região alguns continuam pintando, inclusive
canavieira de Campos dos Goitacazes. alunos que hoje já estão casados: “A
Com o fim da escravidão, a família con- semente foi muito boa”.
seguiu comprar um pequeno sítio num Além da formação no magis-
lugarejo chamado Pendotiba, próximo tério, Yara estudou piano durante
de Niterói. 15 anos, o que explica o requinte da
A cultura e a identidade africanas sua discoteca, onde convivem, numa
sempre estiveram presentes na vida de harmonia nada ortodoxa, alguns dos
Yara. Os casos contados sobre o período principais autores clássicos europeus,
da escravidão, as cantigas, as conver- muito de música popular brasileira e
sas nas rodas de família permearam-lhe uma coleção, rara por estas bandas,
toda a infância e adolescência, o que da História da música jamaicana. Os
mais tarde viria a se refletir no mosai- primeiros traços surgiram, e depois se
co colorido da sua obra por meio de firmaram como estilo, a partir do con-
uma africanidade singela e mArcante. tato com um amigo pintor chamado
A presença do pai, traduzida pela fir- Romani. “Você é naif, primitiva, mas
meza e pela certeza, que por momentos eu não vou mudar o seu estilo, só vou
pareciam obsessivas, de que a educação orientá-la sobre algumas técnicas e o
era o único caminho para uma família manejo das cores”. Yara lembra que
Yara, Via Crucis, detalhe, entalhe sobre madeira e tinta a óleo, 1990
Yara, uma arte fora da baixa cultura
Éle Semog 189

Romani tinha uma tristeza interior que anos um sentido lúdico-pejorativo. Mas
passava para a tela de forma angustiada as mulheres afrodescendentes não têm
e dolorida, em tonalidades que brota- nada de balzaquianas; pelo contrário, é
vam lembranças dos tempos da Segunda exatamente nesse período que a mulher
Guerra, quando ele recolhia cadáveres negra consolida a sua maturidade e se
nos campos de batalha na Itália. “Ele se dispõe à vida com uma capacidade cons-
empolgava e apreciava o jogo de co- trutiva muito distante do idílio roma-
res das minhas pinturas. Foi o primeiro nesco, e, sem deixar de ser romântica,
amigo com um conhecimento mais apri- potencializa em realizações toda a sua
morado a me dar uma força”. capacidade de criar, de educar, de amar,
A oportunidade para a primeira de se ver e de traduzir os seus sentimen-
exposição individual, em 1964, surgiu tos, a sua energia e a sua percepção nas
depois de alguns contatos e foi concre- diversas formas de arte que a cultura
tizada na Galeria do Teatro Santa Rosa, africana permite. Foi assim, com muitos
que pertencia a Gláucio Gil, Hélio Blo- e tão poucos 30 anos de vida, que Yara,
ch e Léo Juzzi. Todos os quadros foram só por curiosidade, começou a trabalhar
vendidos num curto espaço de tempo, com entalhes em madeira.
o que foi ótimo para uma estreante, e
As obras em madeira entalhada
ela ainda destaca o fato de seu primeiro
foram definidas por um cliente francês,
comprador ter sido o diplomata Guilher-
me de Figueiredo, então adido cultural que comprou tudo que Yara produziu
em Paris. Hélio Bloch percebeu no de- durante dez anos seguidos, como sen-
senho, na pintura e no manejo de cores do “pintura sobre madeira trabalhada”.
de Yara um enorme potencial para o de- Durante um largo período de tempo, ela
senvolvimento da tapeçaria, arte que ela produziu painéis, portas e balcões que
abraçou de imediato (foi uma coisa que se espalharam pelo mundo, em coleções
eu fiz para experimentar – diz), passan- particulares e na decoração de lojas e
do a construir com linhas e agulhas um hotéis. Numa segunda etapa do trabalho,
discurso de cores, cenários e arranjos ela decidiu trabalhar a técnica de entalhe
tão amplos quanto o que a pintura lhe somente com colunas de madeira de até
permitia. E foi com a terapia que ela ga- um metro e meio de altura, retratando
nhou seu primeiro prêmio no Salão Flu- cenas do cotidiano do povo, das festas
minense de Artes Plásticas. folclóricas e da história do Brasil, como
Para os ocidentais, uma mulher é o caso da peça sobre a Guerra dos Ca-
com mais de 30 e menos de 40 anos é, nudos, em que ela descreve nas quatro
culturalmente, classificada como bal- faces da coluna com uma incrível rique-
zaquiana. Vai nessa classificação com za de detalhes, a pregação de Antônio
certeza, à revelia de Honoré de Balzac Conselheiro, as rezas e promessas, a luta
– boa dose de ignorância de alguns que contra o Exército Brasileiro e a destrui-
dão seu romance A mulher de trinta ção de Canudos.
190 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

Numa ocasião, apareceu na casa tura, ao que ela respondeu que já sabia
de Yara um sujeito de São Paulo, com pintar. Por fim, o homem disse que tinha
um carrão daqueles pomposos, com mu- um livro em que estavam os nomes de
lher, cachorro, criança e babá vestida de todos os artistas brasileiros importantes.
uniforme e toquinha na cabeça, dizen- O final dessa história está no romance
do que soubera que ela era artista, e que que Yara deve concluir até fins de março
ele estava viajando pelas praias e com- de 1998.
prando obras de todos os artistas que en- A pintura é uma atividade contí-
contrava, e que estava ali para comprar nua na vida de Yara, embora por alguns
um quadro dela. Deixou um endereço períodos ela seja menos intensa, em fun-
de Cabo Frio e ordenou que, assim que ção de sua dedicação ao trabalho com
ela acabasse de concluir o quadro que
madeira e à tapeçaria. Sobre a tapeçaria,
estava no cavalete, fosse entregá-lo na
ela nos diz: “É um trabalho que envol-
casa dele, pois ele estava prestes a via-
ve uma equipe, eu defino os elementos
jar. Como ela não levou, o comprador
e a equipe vai fazendo os vãos. Tenho
voltou ao seu estúdio dizendo que vie-
que fazer os elementos por causa dos
ra buscar o quadro. Deu-se então um
meus figurativos, principalmente esses
diálogo estranho, pois Yara respondeu
que têm olhos, nariz, essa gente com o
que vendera o quadro para outro clien-
movimento que eu quero dar... ninguém
te. “Mas como a senhora vendeu o meu
quadro?”, indagou o homem. “Como o pode fazer isso, só eu posso dar o meu
seu quadro? O senhor não pagou”, res- toque, é o meu estilo”.
pondeu Yara. O toque e o estilo na tapeçaria de
Yara já estava trabalhando em Yara retratam um universo negro com
outro quadro e o homem decidiu ficar figuras de uma vivacidade e delicadeza
esperando que ela o concluísse, pois não que parecem ter vida própria sobre o te-
sairia dali sem levar um trabalho dela. E cido, causando a impressão de que estão
o homem não desistiu; mandou a esposa em movimento, embora sejam persona-
e as outras pessoas para a praia, e ficou gens de um plano unidimensional, como
conversando a tarde inteira. A certa al- é o caso dos casacos Os puteiros de Sal-
tura, ele comentou por uma analfabeta, vador e As favelas do Rio de Janeiro.
ela falava muito bem e conhecia muito Ela afirma que a presença permanente
pintores. Yara quem a conhece sabe que e contínua de personagens negras em
ela não perde uma dessas – respondeu sua tapeçaria é um aspecto puramente
que ela e os pais eram analfabetos e que artístico, porque a cor dessas pessoas na
todos em sua família só nasciam de par- tapeçaria é linda. Pessoas de outras co-
teiras. Por fim, disse que era muito es- res não causariam o efeito pictórico de-
perta, pois seu marido tinha 2.500 livros sejado de fazer a obra crescer e evoluir
e lhe contava alguma coisa. A essa altu- com energia própria. Certa vez, em São
ra, o comprador perguntou se ela não se Paulo, Yara foi chamada de racista por
interessava em aprender a escrita e a lei- só usar figuras negras em seu trabalho,
Yara e o casaco Os puteiros de Salvador, 1996
Yara, uma arte fora da baixa cultura
Éle Semog 193

mas ela afirma que não existe esse ne- deixá-la morrer, porque iriam para a ca-
gócio de racismo contra branco, contra deia e têm a obrigação de protegê-la.
ninguém, e que até gosta das pessoas Depois de algum tempo Yara en-
azuis, só não pode é colocar uma mu- controu-se com uma pessoa que alugou
lher branca na sua tapeçaria porque ela um terreno, onde existem três palmeiras
se perderia, não teria sentido. imperiais, para a construção de um de-
Morando em Búzios há mais pósito de bebidas. O depósito foi cons-
de 20 anos, Yara participa ativamente truído e o proprietário teve a preocupa-
da vida cívica da cidade por meio da ção de fazer os telhados com um buraco
associação de moradores e de outros em torno dos caules das palmeiras. A
movimentos. Em 1990, junto a outras justificativa que ele deu, quando Yara
pessoas, organizou e participou da pri- elogiou a sua preocupação em proteger
meira grande ação ecológica da cidade, as plantas, foi à seguinte: “Deus me li-
salvando do corte uma árvore, um pau- vre, eu soube que tem uma dona aqui
-d’arco com mais de 390 anos que um que é terrível com esse negócio de cor-
engenheiro austríaco queria derrubar. tar árvores, eu quero é distância dela”.
Ele chegou a chamar os bombeiros du- Não sabia que a tal dona era Yara...
rante uma madrugada para derrubar a Por algum tempo depois do in-
árvore, alegando que esta poderia cair cidente da árvore, ao andar pelas ruas
sobre umas casas próximas. A questão é da cidade em certas ocasiões, um carro
que á arvore estava firme e não existiam passava e alguém gritava alguma coisa
casas por perto. “O engenheiro austríaco que ela nunca entendia, mas sentia ter
disse que ia cortar aquela merda de ár- um tom cheio de agressividade. Até que
vore de qualquer jeito, eu disse uns bons certo dia o tal sujeito gritou “Macaca!”,
desaforos para ele e escrevi um artigo mas teve de reduzir a velocidade por
num jornal local, que naquele momento causa de um quebra-molas. Yara reco-
tinha interesse em estar do nosso lado nheceu o tal sujeito, que era o dono do
naquela briga”. A pressão da comunida- terreno onde está a árvore que queriam
de foi tão grande que chegou a envolver cortar. Não teve dúvidas: foi até sua
as autoridades locais num jogo de força casa, redigiu um termo de acusação e
entre os interesses comerciais e os inte- o entregou na delegacia. Uma mulher
resses ecológicos. Até que um dia um negra que presenciou o fato ficou, a
dos interessados em cortar a árvore pas- princípio indignada e se comprometeu a
sou montado numa moto pelo meu ma- testemunhar, mas na hora de compare-
rido e gritou: “Filho da puta!” Isso foi cer à delegacia o marido a aconselhou
o suficiente para o Alex chegar em casa a não se meter com os ricos. Sem teste-
sabendo que não iriam cortar a árvore. munha, não foi possível levar o caso à
O melhor dessa história é que todos na frente, mas de qualquer forma o racista
cidade sabem que os responsáveis pelo foi chamado à delegacia e recebeu uma
local onde a árvore está não podem nem boa repreensão por desrespeitar uma
194 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

“pobre senhora com mais de 60 anos, tou a escrever contos e peças de teatro.
mas o mais importante foi que ele saiu Uma dessas peças, um drama sobre a
de lá educado e hoje evita até olhar para escravidão, escrita em 1988, não lhe
a minha cara”. fez bem, deixou-a incomodada, cansa-
Casada há 28 anos com Alex, ar- da e triste, com uma sensação que ela
quiteto e também pintor, especializado não gosta de lembrar.
em projetos de jardins, Yara vive numa Atualmente, Yara está concluin-
casa bucólica e singela, cujo terreno é do um romance intitulado Santana da
completamente tomado por plantas e Armação, que se passa em qualquer lu-
árvores as mais diversas, inclusive al- gar que tenha praia, que tenha sido um
gumas espécies que praticamente de- lugarejo pacato e de repente se veja às
sapareceram da mata Atlântica. São voltas com a invasão de uma gente rica
bromélias, girassóis, ipês-verdes, ipês- e predatória. São histórias de amantes
-brancos, ipês-amarelos, ipês-roxos, alucinados, de negros com mais de 100
pauferro, jacarés, flamboyants, espi- anos que viriam tudo acontecer e de
nheiros de Maricá. Cada árvore tem o suas famílias, que vão perdendo a terra
nome de um amigo, de um parente, de de forma inocente diante da voracidade
alguém querido. Mãe de cinco filhos, e da usura do turismo e da especulação
dois dos quais com Alex, Yara viveu imobiliária. A partir da euforia do ve-
uma situação inusitada quando nasceu rão e da beleza das águas, são relatados
a primeira filha do casal. Nessa época, crimes jamais resolvidos, de viúvas que
eles moravam no bairro de Laranjeiras enterram caixões vazios, de maridos que
e um vizinho veio lhe dar os parabéns mandam cartas do além controlando os
porque ela tivera uma filha branca, ao lucros dos negócios, de milionários que
que Alex, entre irritado e espirituoso, aparecem fazendo a cidade cair em le-
disse que a criança era um xadrezinho, targia por mais de um ano e, quando re-
com uns pedacinhos brancos e outros tornam, tudo volta ao normal.
pretos. Parece um pouco o que acontece
Como não podia deixar de ser, em Búzios, mas Yara jura que não tem
Yara também faz suas incursões pela nada a ver. O lento desaparecimento das
literatura. Primeiro, uns escritos de comunidades de pescadores, a entrada
adolescente, poesias de amor, de soli- dessas pessoas no mercado de serviços
dão, coisas mais intimistas, como ela como caseiros e faxineiros, a perda pro-
mesma define. Foi por essa época que gressiva do espaço de moradia em troca
ela participou de um concurso na Rá- de uns míseros trocados que se diluem
dio Ministério da Educação, e como num fluxo para a miséria, a presença
prêmio pelo primeiro lugar teve o con- dos hippies, ou a turma do pão-com-ma-
to radiofonizado e deveria receber três riola, depois os iates, em breve os carros
livros de autores famosos, que nunca e a turma que se dava bem nas bolsas
foram entregues. Dez anos atrás, vol- de valores, e finalmente a pobreza de
Yara, uma arte fora da baixa cultura
Éle Semog 195

espírito humana. Só parece, mas, como o filho. Leva na bagagem a vontade de


poderemos constatar em breve, não há conhecer aquele povo, um cavaquinho
endereço, nome ou telefone para iden- para dar um tom brasileiro àquela mú-
tificar as personagens como moradores sica maravilhosa e muitas ideias que se
ou visitantes de Búzios. soltaram em cores e movimentos dos
A próxima parada de Yara será seus formões, das suas espátulas e pin-
na Jamaica, no segundo semestre, aon- céis, das suas agulhas e linhas e da sua
de ela pretende ir para se encontrar com máquina de escrever.

* Yara de Oliveira Rosa (Iara) – Pintura, tapeçaria e pintura sobre madeira trabalhada. Nascida em Niterói – RJ, realizou
várias exposições individuais e coletivas no Rio de Janeiro, São Paulo, Campo Grande, Curitiba, Santos e Búzios, tendo
participado do XIV e XV Salões Nacionais de Arte Moderna, da I Bienal Nacional da Bahia e do XXI Salão Fluminense de
Belas-Artes, em que obteve medalha de Prata. Professora, organizou várias turmas de pintura com crianças excepcionais, e
também, com o Grupo Diálogo, a I Semana de Arte no Interior do Estado (Rio Bonito – RJ). Dedicou-se à proteção ecoló-
gica em Búzios, fundando a Sociedade Ecológica, em defesa das árvores centenárias locais. Organizou, com as crianças de
Búzios, a Sociedade Mirim de Ecologia, onde as ensinava a proteger a natureza.
Em 1996, publicou pela Litteris Editora seus primeiros trabalhos literários, participando com outros autores dos best-
-sellers: O melhor da literatura, Anuário de escritores e Contos de verão, tendo recebido o Prêmio de Edição. Prepara
atualmente um romance que deverá ser publicado ainda este ano. É verbete do Dicionário das artes plásticas no Brasil, de
Roberto Pontual, e tem obras com colecionadores na Europa, Estados Unidos e vários países da América Latina.
Pan-africanismo e No semestre da primavera do ano
pedagogia* acadêmico de 1994-5, eu acrescentei o
livro Orfeu negro, de Jean-Paul Sartre, à
lista de leituras de meu curso Introdução
ao Pan-Africanismo. Como eu pretendes-
se enfatizar os movimentos da Negritude
e da Renascença do Harlem como compo-
nentes culturais e políticos do pan-africa-
nismo, parecia-me que a longa introdução
de Sartre à arte e filosofia do Movimento
da Negritude, tal como o manifesto de
Alain Locke no início de seu livro The
new negro (O novo negro), ajudaria a
estabelecer o terreno para futuras discus-
sões sobre a problemática de raça e sua
relação com a cultura e o universalismo.
O curso começou com The world
and Africa (O mundo e a África), de W.
Manthia Diawaramo E. B. Du Bois, que refuta a tese racista,
basicamente associada a historiadores
eurocêntricos, de que, entre todos os con-
198 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

tinentes, a África não deu contribuição tre o pan-africanismo e o sexismo. Mas


alguma à história e à civilização mun- a maioria tendeu a se concentrar sobre
diais. Os principais objetivos de Du a tentativa de Du Bois de elevar o nível
Bois nesse livro, tal como em seu clás- de consciência quanto à exploração dos
sico Souls of black folk (Almas do povo povos negros e morenos pelos povos de
negro), eram três: escrever sobre a his- ascendência européia, e sobre sua busca
tória e a cultura do povo da África e de da liberdade.
ascendência africana; possibilitar que os Eu sabia que o curso não seria
afro-americanos se identificassem com fácil. Precisava encontrar alguns tex-
a África como fonte de uma identida- tos escritos por mulheres e por autores
de dignificada e orgulhosa que pudesse afrocêntricos para acrescentar à lista de
colocar-se em pé de igualdade com a leituras. Mas, alguém pode indagar, por
Europa, a Ásia e a América do Norte; e que Orfeu negro, um texto de um fale-
postular o humanismo africano e a rica cido escritor branco francês? Porque as
herança daquele continente como argu- ideias de Du Bois sobre unidade racial
mentos irrefutáveis contra o racismo e o se tornam mais interessantes quando es-
colonialismo. Du Bois acreditava que a tudadas simultaneamente com outras te-
liberdade era uma totalidade indivisível orias raciais no tempo e no espaço – tais
e que os negros da América não estariam como o nacionalismo do movimento da
plenamente livres até que a África esti- Negritude, o movimento afrocêntrico e
vesse libertada e emancipada na moder- as teses de Sartre a respeito do racismo
nidade. Seu pan-africanismo provinha antirracista como base para se comba-
da consciência da liberdade como meta ter o colonialismo e o paternalismo – e
comum aos povos negros e morenos. com elas confrontadas. Eu queria saber
Naquela primeira semana, a rea- o que aconteceria ao cerne da ideia do
ção da turma a The world and Africa foi pan-africanismo se este fosse estudado
agressiva. Um estudante africano obje- como uma história de ideias frequente-
tou à própria ideia de pan-africanismo, mente contraditórias, e não como uma
advertindo-nos que, da Nigéria à Etió- cronologia de eventos e figuras históri-
pia, os africanos eram muito diferentes, cas. Quais eram, por exemplo, os laços
e que os afro-americanos, tal como os comuns entre a afirmação de Du Bois
brancos americanos, eram ignorantes de que o problema do século XX era
quanto à complexidade da África. Outro problema da linha da cor e a teoria de
acusou Du Bois e outros pan-africanistas Diop, ou afrocêntrica, da unidade cultu-
de terem as mesmas intenções coloniais ral dos povos de ascendência africana;
dos brancos, e acrescentou que a raça e, por extensão, quais eram as relações
não deveria ser usada para justificar o intertextuais entre o pan-africanismo de
paternalismo e o elitismo dos afro-ame- Du Bois e a apropriação, por C. L. R.
ricanos e dos caribenhos em relação à James, dos temas centrais da Revolução
África. Uma mulher também levantou Francesa para os movimentos negros de
uma questão com respeito à ligação en- libertação e sua reavaliação da revolta
Pan-africanismo e pedagogia
Manthia Diawara 199

haitiana como o primeiro paradigma da Le nouveau petit Robert, atribui à pala-


unidade racial entre negros e morenos vra nègre, da qual deriva negritude, os
no mundo moderno; ou entre o pan- seguintes significados: um nègre é uma
-africanismo de Du Bois e o apelo de pessoa da raça negra, um escravo; tra-
Sartre, no Orfeu negro, a um racismo balhar como um nègre é trabalhar duro
antirracista como razão de unidade en- sem direito a descanso; ser um nègre no
tre os povos negros contra o racismo e o mundo literário é servir de ghost-writer
colonialismo? Sartre é importante para para autores famosos; falar petit nègre
mim nesse debate não apenas em fun- é expressar-se num francês pobre e li-
ção de seu papel como líder intelectual mitado. Em outras palavras, um nègre é
envolvido em diversos movimentos re- uma pessoa sem mente nem alma; uma
volucionários na França das décadas de pessoa suja; o oposto de uma pessoa
quarenta e cinquenta, inclusive o da ne- branca, de um ser humano. Para Sartre,
gritude – adiante falarei mais a respeito a Negritude deriva sua autenticidade do
disso –, mas também pelas similarida- fato de remover da palavra nègre essas
des entre sua posição quanto ao racismo conotações tradicionais na língua fran-
antirracista e a essencialização da raça cesa; da desestabilização dos significa-
por Diop. dos embebidos nas raízes do conceito; e
Orfeu negro foi escrito como de sua revelação de que “(...) há uma ne-
introdução à Anthologie de la nouvel- gritude secreta no branco, uma brancura
le poésie negre et malgache de langue secreta no negro, um vívido bruxulear
française (1948), organizada por Léo- de “ser” e “não ser” (...)”1.
pold Sédar Senghor. É o mais famoso Sartre define a negritude como
ensaio sobre o Movimento da Negritu- um operativo poder de negação, um ra-
de, servindo, por um lado, para definir cismo antirracista, que une os negros na
esse conceito para o público ocidental e, luta para reivindicar sua humanidade.
por outro, para encorajar alguns de seus Na poesia de Aimé Césaire, Senghor,
poetas e escritores a abraçar o marxismo Léon Gontran Dumas e tantos outros
em suas busca de um caminho universal autores do Caribe francês e da África
para além da cor da pele. Para Sartre, a francófona, ele encontra um autêntico
Negritude é uma separação e uma nega- élan orientado por um novo significado
ção no sentido existencial; ela valoriza de negritude; uma afirmação existen-
um termo até então feio e sujo na lingua- cialista libertada de conotações fixas e
gem francesa. Um dicionário francês, atávicas do imaginário francês; e uma

1 Jean-Paul Sartre, “Black Orpheus”, trad. de John MacCombie, in “What is literature” and other essays (Cambridge, MA:
Harvard University Press), 306; todas as referências subseqeentes estão incorporadas no texto.
200 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

energia obsessiva impulsionando os po- relação simbiótica com a natureza, dife-


etas negros na busca de sua negritude. rentemente dos brancos, que dominam e
Sartre lembra-se de Orfeu descendo ao destroem seu meio ambiente.
inferno para resgatar Euridice. O po- Mas Sartre não se contenta em
eta negro, também, não deixará pedra definir a Negritude apenas como um
sobre pedra, reverterá o significado de racismo antirracista unindo pessoas em
cada palavra francesa que tenha contri- torno da consciência de raça para com-
buído para sua subjugação e resgatará a bater o colonialismo, o paternalismo e o
negritude com valores positivos. Sartre imperialismo franceses. Ele também vê
vê outra analogia na maneira como os a Negritude como um “vir-a-ser”, uma
poetas da negritude desfamiliarizam a transcendência de si mesma num futuro
língua francesa: a de Prometeu rouban-
universalismo. Para Sartre, há duas for-
do o fogo, símbolo do conhecimento, de
mas de construir conceitos raciais, uma
Zeus. Isso leva o mestre francês a decla-
interna e outra externa. Os que internali-
rar a negritude uma poésie engagée, “a
zam sua negritude e dela fazem uma di-
única grande poesia revolucionária” em
ferença irredutível são mobilizados pelo
francês naquela época.
desejo de constituir uma história singu-
A princípio, a celebração por Sar- lar e escudar-se da contaminação exter-
tre do essencialismo racial da negritude na. São os tradicionalistas. Ao mesmo
não parece deixar espaço para críticas. tempo, há uma vanguarda que deplora a
Tal como os poetas, ele canta a proxi- negritude como racismo antirracis ta, ou
midade dos africanos com a natureza. usa a conscientização racial como mo-
Fala do africano sintético em oposição
vimento social, pois “deseja a abolição
ao europeu analítico, da capacidade dos
de todos os tipos de privilégios étnicos;
negros de demonstrar emoção em opo-
a solidariedade com os oprimidos de to-
sição à fria racionalidade dos brancos, e
das as cores (326). Aqui, Sartre antecipa
do imaculado papel dos africanos no mo-
a negritude de C. L. R. James, o qual
derno catálogo histórico do genocídio,
descobriu que a unidade negra coincidia
do fascismo e do racismo. Para Sartre, o
com a busca de liberdade, fraternidade
trabalhador branco é incapaz de produ-
e igualdade, temas centrais da Revolu-
zir boa poesia por ter sido contaminado
pelo seu ambiente objetivo e técnico. O ção Francesa que Toussaint L’Ouverture
homem negro, por outro lado, é subje- apropriou para o Haiti; de Aimé Césaire,
tivo e, portanto, autêntico. Sua poesia é que escreveu o Discurso Sobre o colo-
evangélica. O homem negro, como Sar- nialismo; e de Frantz Fanon, para quem
tre o coloca, “continua sendo o grande “uma nação que assume a luta de liber-
macho da terra, o esperma do mundo” tação raramente perdoa o racismo”.
(316). A Negritude que Sartre aqui des- Sartre também vê na Negritude
creve parece-se com a de Cheikh Anta os ideais da Revolução Francesa. A con-
Diop e Léopold Sédar Senghor, os quais tribuição negra à evolução da Humani-
acreditavam que os negros vivem numa dade não é mais aroma, gosto, ritmo,
Pan-africanismo e pedagogia
Manthia Diawara 201

autenticidade, um buquê de instintos tude numa narrativa grandiosa e lhe atri-


primitivos; é um empreendimento data- buído a mesma missão do marxismo ou
do, uma construção longamente sofrida do cristianismo, dois dos mais impor-
e também um futuro. Anteriormente, o tantes movimentos sociais teleológicos
homem negro reclamava seu lugar ao da história moderna.
sol em nome de qualidades étnicas; ago- A utopia da Negritude clama por
ra, ele estabelece seu direito à vida em uma sociedade sem racismo nem divi-
sua missão; e essa missão, como a do sões de classe. Sartre colocou essa espe-
proletariado, vem a ele ã partir de sua rança na Negritude, que ele acreditava
posição histórica: como sofreu pela ex- poder criar a sociedade que a Europa
ploração capitalista mais do que quais- fracassara em concretizar ao fim da Se-
quer outros, ele adquiriu, mais que os gunda Guerra Mundial. Richard Wright
outros, um sentido de revolta e um amor também acreditava que os europeus ha-
à liberdade. E, como é o mais oprimido, viam abandonado o espírito da moder-
ao trabalhar por sua própria redenção nidade ao se recusarem a deixar de lado
está necessariamente buscando a liber- o racismo e a xenofobia. Que povo me-
tação de todos (325). lhor que os negros, portanto, que conhe-
Orfeu negro fez com que afloras- ceram o racismo e o sofrimento, para re-
sem as divisões ideológicas em minha ceber como encargo a missão de pôr um
turma. Houve os que se sentiram revi- fim aos males da humanidade e encer-
gorados com o apelo de Sartre a uma rar a narrativa grandiosa? A Negritude
luta comum em prol de um humanismo contém as ideias românticas de que os
universal. Eles concordavam com Sartre oprimidos não perseguiriam seus irmãos
em que a Negritude dizia respeito à luta e irmãs, pois conheciam o gosto de ser
de classes, em que o racismo e o colo- oprimido; de que os excluídos conhece-
nialismo eram eles próprios condições riam o significado do ostracismo; e de
do antagonismo de classes. Outros acre- que os que haviam sofrido os pogroms
ditavam que esse movimento em dire- ensinariam o mundo a amar. Confiantes
ção ao universal impedia a luta negra de em que a descolonização era a mais im-
definir sua própria agenda para a liber- portante revolução da segunda metade
dade e o reconhecimento; acreditavam do século XX, os poetas da Negritude se
que Sartre estava diluindo o significado identificariam com o sofrimento, como
da Negritude. Cristo o fizera, de modo a pôr fim a todo
Pedi à turma para pensar seria- sofrimento.
mente sobre a passagem supracitada, e Creio valer a pena seguir essa vi-
para colocar entre aspas, no sentido hus- são sartreana a fim de entender o pan-
serliano, as palavras “é um empreendi- -africanismo. Ela universaliza a luta
mento datado, uma construção paciente, negra ao afirmar a África e outros con-
um futuro”. Com essas palavras, percebi tinentes envolvidos no embate contra
que Sartre havia historicizado a Negri- racismo e o colonialismo como consti-
202 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

tuindo o futuro do mundo. A Negritude com o movimento dos direitos civis nos
e outros movimentos de descolonização, Estados Unidos. O papel do poeta ne-
antes de serem cooptados pela Guerra gro, tal como o de um demiurgo, é o de
Fria e forçados a se alinhar com a Otan criar um novo homem e uma nova mu-
ou com o bloco soviético, continham a lher num mundo novo, e não o de apri-
promessa de uma renovação mundial: sionar a musa num gueto. Fanon, um
os povos negros e morenos teriam o di- jovem escritor oriundo do movimento
reito de moldar seus próprios destinos; e da Negritude, foi o primeiro a concordar
os povos brancos se livrariam da culpa com Sartre e a denunciar, em seu pio-
acumulada durante séculos de racismo e neiro livro Os condenados da terra, as
de paternalismo. A modernidade estaria armadilhas da identificação racial: “A
finalmente cumprindo sua verdadeira afirmação incondicional da cultura afri-
missão no sentido que Habermas atri- cana sucedeu a afirmação condicional
buiu a esse termo: ir além da diferença da cultura europeia”2.
visível de cor da pele e salvar a huma- Eu queria que meus alunos sou-
nidade do obscurantismo e da opressão. bessem o que isso significou para al-
De repente, essa visão transforma guns de nós que cresceram na África
o objetivo da Negritude em algo mais dos anos cinquenta e sessenta. A ideia
amplo do que os poetas negros que a ha- de que a Negritude era maior que a pró-
viam inventado. A Negritude não seria pria África, de que fazíamos parte de um
limitada à África nem voltada para den- movimento internacional que continha a
tro numa contemplação narcisista de si promessa de emancipação universal e
mesma, tampouco se firmaria como um de que nosso destino coincidia com a
ofuscante determinismo da cor da pele. liberdade universal dos trabalhadores e
Seus poetas confiscariam o fermento da dos povos colonizados de todo o mun-
vida daqueles que odeiam e exploram, a do nos dava uma identidade maior e
fim de fornecer energia aos necessitados mais importante do que aquelas que nos
de liberdade e emancipação. A missão eram até então disponíveis por meio do
da Negritude é agora a liberdade uni- parentesco, da etnicidade e da raça. Era
versal, que compreende não apenas os bom estar em sintonia não apenas com
súditos coloniais da África e do Caribe, o próprio Sartre, mas com revolucioná-
mas também as exploradas classes tra- rios de renome internacional como Karl
balhadoras da Europa, América e Ásia. Marx, Leon Trotsky, Albert Camus,
Evidentemente, a luta pelos direitos André Malraux, Fidel Castro, Angela
dos negros na Negritude coincide com Davis, Mao Tse-tung, Martin Luther
a análise marxista, por Sartre, da condi- King, Nelson Mandela e Frantz Fanon.
ção da classe trabalhadora na França e A consciência de nossa nova missão his-

2 Frantz Fanoo, The wretched of earth. trad. de Constance Fanington (Nova York: Grove, 1968),212-3.
Pan-africanismo e pedagogia
Manthia Diawara 203

tórica libertava-nos do que então pensá- fazer, e portanto diluindo as ideias radi-
vamos serem as identidades arcaicas de cais do movimento.
nossos pais e suas armadilhas religiosas, Nesse sentido, é verdade que a
libertava-nos também da raça e nos li- Negritude é basicamente uma poesia de
vrava do temor à brancura da identidade negros sobre negros. Também é verda-
francesa. Sermos agora rotulados de sal- de que todo movimento tem sua própria
vadores da humanidade, quando ainda coerência interna que permanece viva
ontem éramos colonizados e despreza- pelo modo específico como ela coloca
dos pelo mundo, dava-nos um novo sen- seus elementos em ação e mantém entre
timento de integridade que alimentava eles uma relação específica. Essa auto-
o desdém pelo capitalismo, pelo triba- nomia consigna a um movimento como
lismo e pelo racialismo de qualquer ori-
a Negritude a sua singularidade, que lhe
gem. Com efeito, o universalismo pro-
permite brilhar entre outros movimen-
posto por Sartre tornou-se para alguns
tos e até ser admirada e imitada por eles.
de nós uma nova maneira de ser radi-
Enfatizar com demasiada rapidez as si-
calmente chique e de assumir uma nova
milaridades entre a Negritude e os mo-
identidade para não ter de lidar com a
vimentos proletários que têm lugar pelo
raça, que não era mencionada senão em
mundo encerra o risco de tornar invisí-
discussões sobre racismo. Somente em
veis essas partes constitutivas.
meados dos anos sessenta, quando nos
tornamos suficientemente imersos na No entanto, perguntei à turma,
cultura popular negra americana, é que será que o movimento em direção ao
a raça reapareceu como elemento im- particular é necessariamente um mo-
portante da cultura. vimento para longe do universal? Ou,
Ironicamente, essa consciência colocando de outra maneira, será que
de uma luta comum, de uma demanda o movimento em direção ao universal
de âmbito mundial aos supremacistas e constitui uma traição à cultura negra?
capitalistas brancos por direitos huma- Minha própria resposta, em ambos os
nos, parece afastar a pretensão inicial de casos, é “não”. Quando o particular é
autenticidade e singularidade da Negri- bem-sucedido, seus temas centrais co-
tude. Como apontaram alguns alunos da meçam a iluminar nossas lutas e pro-
turma, pode não ser possível conduzir jetos criativos. Inversamente, quando o
todo o mundo na direção em que Sartre universal é verdadeiramente universal,
leva a Negritude. O desejo de parecer ele retira do particular a necessidade de
universal pode fazer a Negritude esque- resistência e guetização e libera os ele-
cer ou ignorar alguns de seus elementos mentos que constituíam esse particular.
constituintes, e desse modo desintegrar- Isso é o que Sartre vê na Negritude, um
-se. Os alunos pareceram preocupados movimento que ele pensa ser capaz de
pelo fato de Sartre, um homem bran- lançar uma nova luz sobre os significa-
co, estabelecer a agenda dos poetas da dos de liberdade, amor e beleza univer-
Negritude, dizendo-lhes o que e como sal. A luz proveniente da África e dos
204 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

poetas negros, suficientemente visível situação histórica que os poetas da Ne-


para influenciar as lutas de libertação gritude descobriram uma verdade maior
travadas alhures e liberar energias em que eles mesmos; foi por terem cantado
outras partes do mundo contra o racis- sua canção de amor a partir do interior
mo e a exploração, é o que constitui a de sua especificidade que ela iluminou
universalidade da Negritude. Assim, e inspirou outras canções de libertação.
é importante distinguir a Negritude de Era então o momento de eu expor
suas emanações. A universalidade de meu argumento por meio de algumas
uma coisa não é a coisa em si; é o que definições etnocêntricas de universa-
a coisa revela ou ensina a outros; é ex-
lismo. Expliquei à turma que eu com-
terna à coisa em si. Sartre enfatiza o que
preendia a necessidade de celebrar a
é externo à Negritude: o presente que o
Negritude com base no particularismo.
poeta negro dá ao mundo; em outras pa-
Eu próprio talvez não estivesse ali como
lavras, a lição da liberdade.
o professor deles não fosse o naciona-
Alguns de meus alunos disseram lismo dos poetas da Negritude. Minha
que o universalismo de Sartre era euro- geração fora atraída para a Negritude
cêntrico; suas fontes – Orfeu, Prometeu, pela promessa desta de nos tornar iguais
a Bíblia, o proletariado – eram todas de
aos brancos, de nos erguer acima da
uma tradição escolástica europeia, não
tribo e do clã, e de nos fornecer nossas
fontes egípcias ou da África Subsaaria-
próprias nações. Muitos dos filhos de
na. Tal universalismo não proporcionava
minha geração, desprezados pelo siste-
tempo suficiente aos poetas da Negritu-
ma colonial, só foram para a escola e
de para digerirem o que esta significava
aprenderam a ler e escrever por causa da
para eles e o que eles pretendiam fazer
com ela. E no entanto a Negritude, como Negritude e da independência. É nesse
parte da descolonização, era importante sentido que nós dizemos que a Negritu-
porque, pela primeira vez, permitia aos de nos inventou, nos ensinou a pensar
negros da França afirmar-se nas esfe- de maneira particularmente moderna e
ras política, psicológica e artística. Isso nos colocou dentro da história. É mais
mais tarde levaria à independência de fácil pedir aos que teriam conhecido
vários países africanos com escritores a modernidade sem a Negritude que a
da Negritude entre os chefes de Estado. esqueçam do que exigir de nós que lhe
A Negritude permitiu que, pela primeira devemos a modernidade que a aban-
vez, africanos e caribenhos colocassem donemos pelo universal. Como disse o
sua negrura como um conceito positivo próprio Sartre, “ao homem de cor – e
de modernização: tenham orgulho de só a ele – se pode pedir que renuncie ao
sua ancestralidade, descubram a beleza orgulho de sua cor” (329). A tendência
da Negritude e deixem que esta os uni- universalista traz consigo – e contra a
fique contra o colonialismo. Foi por se tendência separatista – uma ameaça de
voltarem para dentro de si mesmos a fim destruição da identidade, uma mudança
se tornarem conscientes de sua própria de prioridade, uma atitude agressiva que
Pan-africanismo e pedagogia
Manthia Diawara 205

faz o separatista sentir ansiedade por ter ções tinge hoje nossa visão dos próprios
sido posto de lado e negligenciado. Estados Unidos, cuja civilização é dita
É importante lembrar uma vez “ocidental”. Mas, não obstante a presen-
mais que o universal é sempre um pre- ça de norte-americanos de ascendência
sente ou uma revelação que se dá ao europeia e o desenvolvimento de certas
mundo. Os modos de concretização des- ideias e práticas originadas na Europa,
se presente conduzem, sob certas con- permanece o fato de que as identidades
dições sociais, ao controle, à resistência dos norte-americanos derivam tanto da
ou à desautorização. Em primeiro lugar, fuga da Europa e de suas culturas mo-
o universal pode assumir traços parti- narquistas, vitorianas e religiosas quan-
cularistas ou racistas quando quer que to da África e da Ásia; a América não
pessoas, a fim de controlá-lo, escolham culturalmente intercambiável com a Eu-
uma forma seletiva de disseminação. ropa, do mesmo modo como não o pode
Aimé Césaire estava certo ao chamar a ser com a África e a Ásia.
experiência colonial na África de siste- Curiosamente, a referência à
ma de dádivas controlado, porque ob- identidade ocidental dos Estados Uni-
jetivava apenas educar seletivamente e dos nada mais é que o desejo dos
cristianizar parcialmente os africanos euro-americanos de se inserirem per-
nativos, jamais se interessando em dei- manentemente na própria imagem da
xar as pessoas obterem plena vantagem norte-americanidade e de manterem o
do potencial universal da educação e do poder de se reproduzirem a si mesmos
cristianismo. Mas uma dádiva deve ser como os norte-americanos ideais e uni-
total para que possa ter uma significação versais. Esse tipo de essencialismo per-
cultural positiva. manece sendo um problema na medida
Hoje em dia, as pessoas ainda em que as pessoas continuam a reivin-
doam seletivamente, e permanece uma dicar certos elementos universais desco-
tendência essencialista que liga a bran- bertos por seus ancestrais num período
cura a práticas universais como a pes- particular da história; obviamente, estou
quisa científica ou a música clássica. sofrendo uma ansiedade de separação.
Por exemplo, a relutância em aceitar O tratamento equivocado da perda de
as coisas tal como elas são leva alguns um país de origem e a cisão psicológica
intelectuais a continuarem se referin- provocada pela fuga da Europa para a
do ao romance como apenas uma for- América conduzem à negação das novas
ma de narrativa ocidental, e não como identidades americanas, à permanente
uma forma inventada na Europa num percepção errônea dessas identidades
momento particular da história. Eviden- como puramente ocidentais e, conse-
temente, para se escrever um romance quentemente, ao racismo e à xenofobia.
hoje em dia não se precisa ser europeu O desejo de controlar o elemento
nem concordar com um modo de vida universal da Negritude, ou de doar se-
europeu. Um avarento sistema de doa- letivamente, também assombra alguns
206 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos

negros da África e da Diáspora. Nesse ausência de suas imagens naquilo que


caso, porém, os agentes sociais enfren- se percebe como universal. Mas tal mo-
tam um problema diferente, pois, di- vimento de resistência corre o risco de
versamente dos euro-americanos, que se desviar da própria modernidade que
possuem os meios de disseminar o que se revelou a eles na luta dos poetas da
é universal e de exercer o controle sobre Negritude por libertação.
seu desenvolvimento, eles não possuem Nos debates contemporãneos so-
um mecanismo para distribuir sua Ne- bre universalismo, é fácil perceber que
gritude na esfera pública e, portanto, são as pessoas que recusam a existência
incapazes de controlar sua definição de de raças do ponto de vista biológico e
maneira universal. Confrontados com
cultural estão entre os mesmos grupos
a carência de recursos políticos, cul-
que negam à ampla maioria dos negros
turais e científicos com os quais pode-
o acesso a meios políticos, econômi-
riam obter plateias para a sua categoria
cos e culturais que lhes possibilitariam
de universal, os negros, que não podem
movimentar-se para além do simples
estimular nem impor uma realidade por
determinismo da cor. É cada vez mais
meio de suas representações, recorrem a
fácil apontar a homofobia, o sexismo
euromodernismos como o marxismo ou
e a xenofobia em grupos que esposam
o cristianismo para definir sua Negritu-
o particularismo, e mais difícil para os
de ou então se refugiam na resistência
e no particularismo estreitos. Por exem- intelectuais públicos tentar fornecer a
plo, os afrocentristas recorrem a uma esses grupos o acesso a meios políticos
oposição binária e esquemática ao euro- que façam os homens brancos tornarem-
modernismo, que se congela num eter- -se menos xenofóbicos, homofóbicos e
no antagonismo negro e branco, bom e sexistas. Atualmente, o controle pelos
mal, sedentário e nômade, povo do sol e homens brancos da definição do que é
povo do gelo, como forma de definir sua universal, belo e racional também exclui
Negritude. Os defensores da etnofiloso- os particularistas dos espaços discursi-
fia na África, por outro lado, postulam vos. O escritor e crítico Ishmael Reed
as religiões tribais, as tradições orais e está correto quando se refere aos depar-
a tamborologia como a base para a for- tamentos de língua inglesa como sendo
mação da identidade e para a racionali- de estudos étnicos brancos porque, tal
zação de sua Negritude. Evidentemente, como os departamentos de estudos ne-
os agentes sociais podem ser forçados gros e chicanos, os departamentos de
a se refugiar na zona confortável da língua inglesa se recusam a democrati-
identidade política em razão: da falta zar os critérios estéticos que dão a ou-
de acesso aos instrumentos necessários tras literaturas o acesso a suas listas de
para a disseminação de ideias e objetos grandes livros. Não se pode continuar
universais; da ampla disseminação co- defendendo a reivindicação à universa-
mercial daquilo que outros percebem lidade da arte enquanto ao mesmo tem-
como sua cultura; ou da permanente po se resiste à universalização do acesso
Pan-africanismo e pedagogia
Manthia Diawara 207

às condições sociais e econômicas que fessou que escolhera o curso por causa
produzem o gosto pela arte. do som autêntico de meu nome africano.
No último dia de aula, apresen- Todos os cursos sobre negros e África
tei novamente o Orfeu negro de Sartre eram dados por professores brancos. Ela
e perguntei aos alunos se acreditavam não confiava neles. Queria estudar com
que essa obra teria lugar numa aula so- um verdadeiro africano e ver como era
bre pan-africanismo. O debate foi tão isso. “E daí?”, perguntei com impaciên-
aceso quanto no primeiro dia de aula. A cia. “Ah! Agora eu sei que nem todos os
maioria dos alunos não se havia afasta- brancos são iguais, da mesma forma que
do de suas posições originais. Mas desta nem todos os negros são iguais. Com
vez se mostravam mais amigáveis. Não mais professores negros como o senhor,
me surpreendi. Como professor, vejo não me sinto mais desconfiada dos pro-
meu papel como o de um facilitador; em fessores brancos e do conhecimento de-
outras palavras, desejava fornecer-lhes les sobre a África. E estou satisfeita de o
argumentos suficientes para defende- senhor nos ter feito ler Sartre.”
rem qualquer posição que desejassem
Publicado originalmente na revista Renaissance
assumir. Houve para mim um momento Noire (Nova York), Vol. I nº 1, 1996. Tradução de
luminoso em tudo isso. Uma aluna con- Carlos Alberto Medeiros.
Teatro Negro
Parece que os textos do teatro afro-
Brasileiro no -brasileiro, assim como sua interpretação
por atores e atrizes negros do Brasil, es-
Festac 77: uma tão destinados a nunca serem vistos pelo
notável ausência* público nos Festivais de Arte Negra. No
primeiro festival, realizado em Dacar,
em 1966, esse importante ramo artístico
da cultura negra do Brasil estava ausen-
te; tanto quanto posso saber enquanto es-
crevo estas linhas, o mesmo ocorrerá este
ano no segundo festival. Essa ausência é
realmente lamentável por várias razões.
Inicialmente, devo dizer que não
me refiro à apresentação de danças exó-
ticas ou folclóricas. Estou falando do
teatro dramático em seu verdadeiro sen-
tido artístico: usar os recursos verbais e
visuais do teatro para articular proble-
mas, ideias, crenças, experiências; pro-
por alternativas de mudança, iluminando
Abdias Nascimento os mais profundos aspectos do ser huma-
no e revelando-o nas regiões mais pro-
fundas de sua história.
212 THOTH 4/ abril de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

É nesse campo de criação que os negro consistia em algo mais do que fa-
negros brasileiros têm mantido uma luta zer palhaçada ou dar cor local – a “nor-
árdua e tenaz. Qualquer um que tenha ma artística” era pintar de preto o rosto
familiaridade com o teatro brasileiro ou de um ator branco. Uma caricatura dos
que tenha acompanhado sua evolução negros como crioulos – este era o tea-
recordará o papel de divisor de águas de- tro brasileiro antes do TEN. A literatu-
sempenhado pelo Teatro Experimental ra dramática ignorava a tremenda força
do Negro – TEN, fundado por este autor lírica dos africanos do Brasil, ignorava
no Rio de Janeiro em 1944, com o fale- o potencial dramático cultivado em sé-
cido Aguinaldo Camargo, o melhor ator culos de sofrimento e de trabalho cria-
– branco ou negro – que o Brasil já co- tivo. Séculos também de insurreição e
nheceu, e muitas outras pessoas de igual revolta em busca da liberdade, que ins-
coragem, vitalidade e excelência. Nós creveram na vastidão territorial do país
não éramos um grupo que simplesmen- uma indelével cartografia de heroísmo
te desejasse apresentar algumas peças e lenda; com os seus líderes da esta-
nos palcos dos teatros brasileiros, então tura de um rei Zumbi, cuja República
reservados exclusivamente aos artistas Africana dos Palmares (Alagoas-Per-
brancos. As peças apresentadas naque- nambuco, 1630-94) resistiu às forças
les palcos refletiam exclusivamente a militares de Portugal como também às
vida, os costumes, a estética, as ideias, da Holanda durante 64 anos; ou Chi-
em suma, todo o meio social e cultural co Rei, o soberano africano que, sob
de uma sociedade dominante que era as dores do cativeiro, comprou a liber-
branca; como se metade da população dade de sua tribo escravizada, que en-
do País, que é de origem africana, não tão fundou uma próspera comunidade
existisse. Quando um ator ou atriz de cooperativa de mineração (Minas Ge-
origem africana tinha a oportunidade rais, século XVIII); ou a baiana Luísa
de subir ao palco, era invariavelmente Mahin e seu filho Luís Gama, em São
para desempenhar um papel exótico, Paulo; Karocango, no Estado do Rio de
grotesco ou subalterno – um dos muitos Janeiro; e muitos outros corajosos he-
estereótipos dos negros, destituídos de róis afro-brasileiros e seus feitos, todos
humanidade, tal como o das sorridentes eles esperando, em seus nichos históri-
e belas empregadas domésticas facil- cos, pelos dramaturgos e escritores que
mente acessíveis em termos sexuais; o levarão suas lendas para o palco, assim
dos moleques mostrando os dentes, com elevando qualitativamente a consciên-
um limitado e previsível repertório de cia dos africanos e dos povos negros do
momices e palhaçadas; a Preta Velha em mundo...
seus lamentos ou gargalhadas, ou então Mas esse tratamento dos des-
o domesticado Pai Tomás. cendentes de africanos no teatro – es-
Quando o papel de um persona- tereótipos e caras pretas – não era um
gem negro exigia qualidade dramática fenômeno isolado restrito aos palcos.
do ator – quer dizer, quando o papel do Muito pelo contrário, era somente uma
Desenho de Lívio Abramo para o TEN
Teatro negro brasileiro
Abdias Nascimento 215

das muitas facetas do contexto mais Mas a mais insidiosa forma de tal
amplo da sociedade brasileira, da qual agressão é a política de embranquecer
os afro-brasileiros não participavam – e o País física e culturalmente, mediante
não participam – com igualdade de opor- o encorajamento da maciça imigração
tunidades ou de condições, juntamente branca e da miscigenação, para citar
com outros grupos de diferentes origens apenas duas dentre as várias políticas
étnicas ou raciais. Se o mundo do teatro que constituem para os afro-brasileiros
reflete o mundo como um todo, o mo- (nas palavras de Roger Bastide) uma
nopólio branco dos palcos brasileiros “ideologia que os força a cometer sui-
não é exceção; reflete o monopólio – da cídio como negros, a fim de existirem
terra do Brasil; de seus meios de produ- como brasileiros”.
ção; de sua direção política e econômica
(doméstica e externa); de sua formação Omissões notáveis
cultural (educação, imprensa, mass me-
dia, etc.) – tão seguramente mantido
nos punhos apertados da classe domi- Tentando contrapor-se a essas
nante branca europeia. Todos os órgãos forças por meio da ação e reflexão, o
e instrumentos de decisão permanecem Teatro Experimental do Negro – TEN
zelosamente guardados naquelas mãos, formou um corpo de atores e atrizes
enquanto o descendente do escravo dramáticos negros, o primeiro a exis-
africano, o trabalhador solitário que tir fora dos estereótipos anteriormente
arduamente se exauriu para construir mencionados. Ao mesmo tempo, esti-
o País, só tem lugar nos mais baixos mulou a criação de textos dramáticos
níveis de emprego e subemprego, de nos quais a experiência negra era re-
subeducação e de deploráveis condi- fletida, em que o artista negro podia
ções de vida; em resumo, os mais bai- pesquisar e explorar, com respeito e
xos níveis de existência. Sua cultura e dignidade, sua personalidade humana e
religião de origem africana sofreram e humanística. Um teatro que reconhece-
sofrem todas as agressões que se pos- ria sua dignidade como ser humano e
como negro – e não aquele que Bastide
sa imaginar; desde as agressões sutis,
descreveu como:
como as técnicas de aculturação, de
assimilação, de folclorização, de ob- (...) confinando-o esteticamen-
jetificação sexual, até a proibição e a te ao único papel que o homem
tentativa de extermínio das religiões branco lhe havia destinado: o de
africanas, que resultou em uma força- entreter o público.
da “sincretização”, descrita por Roger
Bastide como “uma máscara cobrindo O TEN, em suma, foi um protes-
os deuses negros em beneficio do ho- to ativo contra uma sociedade que aspi-
mem branco”, chegando à agressão ar- ra a ser latina, branca, europeia, e que
mada da polícia e suas prisões. pretende apagar o verdadeiro caráter
216 THOTH 4/ abril de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

cultural e étnico de metade de sua popu- turgos não-negros que tratam de aspec-
lação: os descendentes da África. O so- tos da vida dos negros: Antônio Calla-
ciólogo Guerreiro Ramos escreveu com do: Pedro Mico; Nelson Rodrigues: O
rigor científico um ensaio ironicamente anjo negro; Augusto Boal: Arena conta
intitulado A palologia social dos bran- Zumbi; Zora Seljan: História de Oxalá;
cos brasileiros, denunciando o mórbido Agostinho Olavo: Além do Rio: (Me-
anseio de se tornar branco instilado na deia); Fernando C. Campos: Um caso
população pelas elites do País. O contra- de Kelé; Joaquim Ribeiro: Aruanda;
-ataque de Guerreiro Ramos e do TEN: Tasso da Silveira: O emparedado; Lúcio
Revelar a negritude em seu valor Cardoso: O filho pródigo; José de Mo-
intrínseco, dissipar com o seu foco de raes Pinho: Filhos de santo.
luz a escuridão de que resultou nossa Escrevendo uma introdução à
posse total pela brancura – eis uma das edição em inglês de minha antologia do
tarefas históricas de nossa época. teatro afro-brasileiro intitulada Dramas
É com o TEN que, nas palavras para negros e prólogo para brancos,
de Roger Bastide, “o homem negro sobe Roger Bastide, em um estudo das peças
ao palco, como um ator, com os seus que aparecem naquele volume, diz que
próprios valores”. elas “fogem do arquétipo universal para
É, por conseguinte, muito triste especificar uma raça ou cultura”, ofe-
que este segundo festival não tenha a recendo-nos depois rápidas impressões
oportunidade de vir a conhecer a força e dessas obras, tais como:
a pureza de uma atriz como Léa Garcia, (...) O anjo negro, de Nelson Ro-
internacionalmente conhecida por sua drigues, é, entre todas as obras
atuação como uma das protagonistas do escritas por brancos, a única que
filme Orfeu negro; ou de travar contato penetra profundamente na denún-
com Ruth de Souza, famosa nos palcos, cia dessa ideologia [de branque-
no cinema e na televisão; ou de ver em amento], que criticamos, por ser
ação o reconhecido e premiado Milton nada menos que uma forma hipó-
Gonçalves, ou Zeni Pereira, Clementino crita de genocídio.(...)
Kelé, Cléa Simões e tantos outros artis- (...) Auto da noiva, [de Rosário
tas valorosos que poderiam ter enrique- Fusco] retoma a ideologia do
cido as atividades desse festival com sua branqueamento, mas, por inter-
presença e/ou com seu trabalho. médio de uma sábia estratégia
Outra notável ausência da delega- humorística, ele a coloca contra o
ção brasileira é a falta de textos signifi- branco, que a criou no seu próprio
cativos do teatro brasileiro, como Auto interesse, depois da supressão do
da noiva, de Rosário Fusco, Castigo de trabalho servil (...). É a mais bela
Oxalá, de Romeu Crusoé, ou alguma inversão do branqueamento que
peça de Ironides Rodrigues ou Milton conheço. (...) Rosário Fusco cria,
Gonçalves. Há também textos de drama- a partir da política sistemática do
Desenho de Enrico Bianco para a capa do programa da peça Sortilégio: mistério negro, de Abdias Nascimento. Rio
de Janeiro, 1957
Teatro negro brasileiro
Abdias Nascimento 219

branco, um bumerangue que se a essas duas línguas seria, com efeito,


põe contra seu criador para aben- excluir da participação muitos milhões
çoar sua morte. de africanos e negros que falam portu-
(...) Aruanda (Joaquim Ribeiro) é guês, como é o caso do Brasil (50 a 60
um mito banto-caboclo que apre- milhões de afro-brasileiros), Angola,
senta homens de hoje, dominados Moçambique e Guiné-Bissau. Isso sem
pelos deuses africanos, os senho- mencionar os afro-americanos do Ca-
res de seus destinos. ribe e da América do Sul (Porto Rico,
A história de Oxalá (Zora Seljan) Cuba, Colômbia, Venezuela, etc.), que
é um mito nagô que se preservou falam espanhol. Mesmo que se concre-
no Brasil, no interior dos can- tizasse a ideia proposta pela União dos
domblés. Escritores Africanos, em sua reunião
(...) Sortilégio, de Abdias Nas- de junho de 1975, realizada em Accra,
cimento, (...) ocupa na literatura estabelecendo uma língua única em co-
brasileira exatamente o mesmo mum para toda a África, as línguas dos
lugar que ocupa O filho nativo na descendentes de africanos na Diáspora
literatura afro-norte-americana. não deveriam ser de modo algum exclu-
Certas frases ecoam, de um he- ídas dos eventos culturais: tal situação
misfério para o outro, de Richard se tornaria verdadeiramente trágica para
Wright para Abdias Nascimento, os africanos e seus descendentes em
demonstrando a unidade fun- todo o mundo. As línguas dos coloni-
damental das Américas negras zadores nos separaram no passado. Não
além da diversificação de ideo- vamos permitir que continuem fazendo
logias, situações políticas e das o mesmo no presente.
estratégias variáveis do branco Em 1970, para ilustrar o meu pon-
(...) uma lâmina rotativa nascida to de vista, a peça afro-brasileira Auto da
do medo, que estabelece o crime noiva foi apresentada em português por
como expressão da revolta, da li- estudantes da Universidade de Indiana
bertação (...). (Bloomington), nos Estados Unidos,
para uma plateia exclusivamente de lín-
gua inglesa. Com uma sinopse do texto
A desculpa do idioma
em inglês distribuída antes de começar o
espetáculo, o público foi perfeitamente
Estou ciente de certas dificulda- capaz de seguir o desenvolvimento do
des, mas não da absoluta impossibili- enredo, apreciando criticamente tudo o
dade de uma peça ser apresentada em que acontecia no palco. Companhias de
português para uma audiência composta teatro inglesas, francesas, gregas viajam
principalmente de pessoas de fala ingle- por todo o mundo apresentando seus
sa ou francesa. Não deveríamos esque- trabalhos em diferentes idiomas e con-
cer, contudo, que restringir os eventos seguem lotar teatros em todos os países.
220 THOTH 4/ abril de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

Entrementes, estou convencido Com a finalidade de mascarar a


de que seria impossível para a represen- verdadeira fonte e foco de controle so-
tação brasileira, por motivos completa- bre a participação brasileira no Festac,
mente diferentes, a presença dos textos esses grupos poderosos incluíram outras
e dos artistas do Teatro Negro atual- pessoas, ajustadas a esse tipo de com-
mente em atividade. As decisões sobre portamento que o eufemismo brasilei-
quem vem e quem não vem ao Festival ro denomina “democracia racial”. Eles
são tomadas por brancos politicamente chegam ao ponto de selecionar como
poderosos, e não por artistas negros. A representante permanente junto ao Se-
maioria dos responsáveis pela seleção gundo Festival Mundial de Artes e Cul-
é de funcionários do Ministério das Re- tura Negras e Africanas um psiquiatra
lações Exteriores, órgão notoriamente que admite abertamente desconhecer
racista, que, por exemplo, não tem ne- o desenvolvimento da arte e da cultura
nhum diplomata negro em seus quadros. afro-brasileiras; um homem que afirma
Por que o processo e o poder de de si mesmo e de sua escolha para essa
tomada de decisão sobre essa matéria posição:
não estão nas mãos capazes dos negros Não sou crítico, nem poe-
ativamente envolvidos na afirmação da ta, nem artista. Sou simplesmente
cultura afro-brasileira e na criação de um psiquiatra perdido num imen-
obras artísticas afro-brasileiras? Onde so mar de experiências clínicas
está, por exemplo, nesse processo de (...). É verdade que sou o repre-
tomada de decisão, o baiano Guerrei- sentante permanente do Governo
ro Ramos, sociólogo e pensador negro brasileiro junto ao Segundo Festi-
internacionalmente renomado que tem val Mundial de Arte e Cultura Ne-
focalizado e iluminado com lucidez e gras, que se realizará na Nigéria.
audácia os problemas da estética afro- Minha escolha, contudo, se deve
-brasileira? Onde está um Dr. Milton mais ao fato de eu descender dire-
Santos, ilustre professor negro que a tamente de uma tradicional famí-
Bahia deu ao mundo? Ou o poeta negro lia nigeriana, com a qual sempre
Osvaldo Camargo, de São Paulo? Ou mantive contato (...).
Eduardo de Oliveira, autor de Gestas lí- Tais pessoas podem ser total-
ricas da negritude? Onde, nas posições mente sinceras em seus motivos, assim
de poder, está um homem como o ro- como figuras ilustres em seus campos
mancista e dramaturgo carioca Romeu de especialização. Isso não altera, en-
Crusoé, autor de A maldição de Canaã tretanto, os critérios adotados para sua
e Castigo de Oxalá? Ou Fernando Goes, seleção, que claramente têm pouco ou
crítico e escritor paulista? Ou Eduardo nada a ver com sua participação, conhe-
Oliveira e Oliveira, sociólogo paulista? cimento ou criação em matéria de cultu-
Ou Ruth Guimarães, romancista e inte- ra afro-brasileira. Na verdade, se esses
lectual negra? ... são os critérios adotados para selecionar
Abdias e Lea Garcia na peça Sortilégio: mistério negro (Teatro Municipal, Rio de Janeiro, 1957)
Teatro negro brasileiro
Abdias Nascimento 223

a representação brasileira a um Festival trabalho incansável; José Correia Leite,


de Arte e Cultura Negra, então que nos símbolo histórico da luta pela afirmação
permitam também lançar mão de artis- da existência social e cultural dos afro-
tas para nos representarem em congres- -brasileiros; Sebastião Rodrigues Alves,
sos de Medicina e Psiquiatria... autor de A ecologia do grupo afro-bra-
sileiro, há muito tempo um líder dos ne-
gros brasileiros. Barros, o Mulato, pin-
Frustração minha? tor, escritor, crítico e pensador gaúcho;
Celestino, do Rio de Janeiro, pintor, jor-
Sei muito bem que serei malicio- nalista e crítico de arte.
samente acusado, em várias frentes, de Meu propósito não é apontar
duas coisas: primeiro, de vingança pes- nenhum indivíduo pessoalmente, ape-
soal contra determinados representantes nas ilustrar esse critério, esse processo
escolhidos; segundo, de fazer essas afir- e esse poder. Estou ciente de que há
mações em consequência de frustração muitos artistas brasileiros de qualida-
por não estar participando pessoalmente de participando do Festac. Estou ciente
dos eventos do Festac. Essas foram, de também da antiga estratégia de domi-
fato, as acusações que apareceram em nação, usada desde o início dos tempos
resposta à minha Carta Aberta ao Pri- coloniais, de dividir os conquistados e
meiro Festival, realizado em Dacar, em colocá-los uns contra os outros. Embora
1966. Por conseguinte, devo declarar, de seja o último a defender ou participar de
forma clara e decisiva, que meu propó- tal divisionismo, não posso, ao mesmo
sito aqui é expor e denunciar um crité- tempo, deixar de caracterizar outras es-
rio, um processo e um poder na seleção tratégias de dominação utilizadas pelo
de artistas de todos os campos de cria- colonizador.
ção. O critério deveria ser a promoção Ademais, não tenho a menor ne-
dos artistas e criadores negros de acordo cessidade ou intenção de reivindicar
com suas vinculações e contribuições minha participação pessoal nos eventos
à cultura afro-brasileira. O processo e do Festac – como pintor, ator ou drama-
o poder de decisão deveriam estar ex- turgo. Ao contrário, estou pessoalmente
clusivamente nas mãos dos próprios muitíssimo honrado e mais do que sa-
artistas e criadores negros da cultura tisfeito por estar pintando, escrevendo
afro-brasileira. Em caso de permanecer e produzindo como professor aqui em
alguma dúvida sobre a disponibilidade Ile-Ifé, o berço e o lar da civilização
de artistas e criadores negros capazes de meus ancestrais. Na verdade, o pró-
de tal trabalho, posso citar: Mercedes prio lugar em que Oxalá desceu, em seu
Batista, coreógrafa negra que conhece cordão dourado, para criar o mundo e a
de dentro o processo, o desenvolvimen- raça humana. Para mim, é mais do que
to e as formas da dança afro-brasileira suficiente saber que minha peça Sortilé-
em função de sua dedicação e de seu gio será apresentada em inglês aqui, em
224 THOTH 4/ abril de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

sua verdadeira terra natal, produzida por cia e sabedoria de outros teatros negros
meu irmão e colega Wole Soyinka. e africanos.
Meu interesse na participação Gostaria apenas que meus cole-
do Teatro Negro Brasileiro não é, por gas afro-brasileiros que vivem no Brasil
conseguinte, pessoal: é um interesse na pudessem ter oportunidade semelhante
participação dos muitos artistas e auto- à minha: retornar à terra e ao ambiente
res negros de teatro que hoje atuam no tradicional dos quais quase todos nós,
Brasil, os quais merecem, por sua histó- afro-brasileiros, somos descendentes.
ria de luta e afirmação da cultura negra,
enriquecer o Festac com seu talento e •  Publicado  originariamente  em  inglês  na 
competência, e compartilhar a experiên- revista Afriscope v. 7: nº 1 (1977). Tradu-
ção de Carlos Alberto Medeiros.
Lélia González, Abdias Nascimento, Eduardo de Oliveira e Antonio Leite, no ato público de fundação do MNU. São Paulo, 1978
Padre Glyn Jemott: O padre Glyn Jemott, 51 anos, pa-
lutando pelos rece muito surpreso com a atenção que
seu trabalho com populações negras e
direitos dos indígenas do México lhe tem atraído.
Afinal, ele é o sacerdote dessas pessoas.
afro-mexicanos* E, tendo vivido e trabalhado com elas na
costa mexicana do Pacífico (Costa Chica)
por 13 anos, ele vê o seu papel de coor-
denador da primeira conferência negra ali
organizada como apenas uma parte de seu
compromisso.
Nascido em Trinidad, padre Glyn
teve um rude despertar para esse proble-
ma anos atrás, quando chegou à aldeia
afro-mexicana de El Ciruelo.
– Vim para rezar uma missa nessa
aldeia em 1984 – recorda ele com descon-
forto – e fui convidado para jantar na casa
de uma jovem que estava comemorando
seu aniversário. – Logo se aproximou
dele um convidado bêbado que desejava
saber quem ele era. Ante a resposta de
que se tratava do novo pároco, o homem
tocou-lhe o cabelo lanudo e disse que isso
era impossível, pois os negros não eram
Lula Stricikland suficientemente bons para assumir uma
posição dessas. – Ele continuou por vinte
230 THOTH 4/ abril de 1998
Movimento Negro Hoje

minutos me contando que eles nunca ti- padre, descobrir um ao outro e encontrar
nham visto antes um padre negro, e de- sua identidade cultural.
pois disse uma coisa muito importante – Essa percepção foi crescendo,
que, espero, nunca vou esquecer. Disse crescendo, até que, uns cinco anos atrás,
que nós negros somos gente comum, resolvemos convocar um encontro dos
medíocre, que não pode ter altas preten- povoados para avaliar a situação. Umas
sões, e não penso que ele percebesse o cinquenta e tantas pessoas apareceram!
que estava dizendo – relembrou o padre. – O padre ri com a lembrança. – Fica-
Em sua maioria, os moradores mos agradavelmente surpresos com essa
de El Ciruelo e dos 24 povoados vizi- resposta.
nhos sentiam a mesma coisa sobre si A busca da autoidentidade con-
mesmos, descobriu ele, e foi então que tinuou e em 1996 o padre Glyn, jun-
resolveu ajudar os negros e indígenas a tamente com líderes apontados pelos
se livrarem dessa deplorável disposição moradores dos povoados, reiniciou as
mental. conversas. A partir desses encontros
e do crescente contato com pessoas
– Essa atitude negativa ficou na
como antropólogos que iam estudar na
minha cabeça por muitos anos – diz o região, e com a guerra sendo desenca-
padre Glyn. – Na verdade, ela me deu deada pelos indígenas em Chiapas, per-
um sentido de missão. Não me conside- cebeu-se uma urgência em se promover
ro a pessoa destinada a fazer mudanças, a unidade.
mas estava feliz em sentir que minha
presença aqui poderia, de alguma forma, Assim, depois de muito planeja-
mento estratégico, foi realizada em El
ajudar outras pessoas a mudarem de sin-
Ciruelo, na primavera de 1997, a pri-
taxe para “nós somos capazes”. Com os
meira Convenção dos Povoados Ne-
anos, tenho visto muita gente se sentir
gros. “Mais de 300 pessoas”, represen-
dessa maneira, como jovens, crianças e
tando 24 comunidades, compareceram
adultos mais velhos. Quando me tornei
ao histórico evento, que durou três dias.
próximo delas, elas me contaram que O povo de El Ciruelo e de outros povo-
este povoado e outros ao redor sempre ados reuniu-se e ergueu, expressamen-
estiveram sob os pés de uns poucos me- te para a ocasião, um amplo barracão
xicanos mais claros e bem-sucedidos, e coberto com palhas de coqueiro – uma
você percebe que isso é o México. honraria geralmente reservada a casa-
Mas em 1991 uma nova autoima- mentos e outras reuniões sociais.
gem começou a emergir. Afro-mexica- – Houve uma sessão preparató-
nos progressistas ligados à Igreja, gru- ria para ajudar a preparar o encontro e
pos de jovens e outros decidiram que era envolver as pessoas – explica o padre.
hora de mudar. Era preciso que os povo- Elaboramos um questionário com qua-
ados negros se unissem para, segundo o tro perguntas. A primeira era: qual é a
Padre Glyn Jemott, El Ciruelo, México
Pelos direitos dos afro-mexicanos
Lula Strickland 233

origem, qual é a história do seu povoa- zes africanas. Ele informou-lhes que,
do? A segunda: quais são as principais embora seus ancestrais tivessem che-
comemorações em seu povoado? Como gado ao México escravizados, outros
se preparam essas comemorações e africanos também haviam visitado a
como se participa delas? A terceira: região, nos tempos antigos, na qualida-
como o seu povoado, e você mesmo em de de exploradores. Os negros da costa
particular, sente e comemora a identi- de Oaxaca, no Pacífico, em que reside
dade negra? E a quarta pergunta: como a maioria dos afro-mexicanos, foram
é que os negros tratam a si mesmos e levados para lá no século XVI pelos
a outros grupos raciais, como índios colonizadores/escravagistas espanhóis
e caboclos? Nem todos os povoados para trabalhar nas minas e nas fazendas
puderam apresentar respostas claras – de cana-de-açúcar.
relembra Glyn–, mas acho que as per- Para avançar na explicação de
guntas atingiram seu objetivo porque suas origens, o padre Glyn diz que car-
ajudaram a condicionar as pessoas, a tões postais com réplicas de navios ne-
lhes dar a oportunidade de se questio- greiros, doados pelo Centro Cultural de
narem sobre algo que provavelmente Watts, de Los Angeles, Califórnia, fo-
não estavam acostumadas a considerar, ram postos nas mãos das pessoas.
e também lhes deram algo para com-
partilhar. Tínhamos uma semente co- – Pedimos que elas olhassem os
mum – avalia ele. cartões e refletissem sobre eles – diz o
padre. – O que ele parece e o que ele
Na primeira parte do encontro, os lhe diz? Depois dissemos: foi assim que
participantes discutiram o questionário, trouxeram você para cá.
que, ao que foi dito, conduzia a uma
“clareza de propósitos”. Nessa fase, as Houve um silêncio, as pessoas
pessoas expuseram suas opiniões so- ficaram olhando umas para outras em-
bre problemas comunitários e puderam basbacadas. “Foi assim mesmo que nós
aprender mais sobre as outras. A partir viemos?”, queriam saber.
dessa conversa, os líderes pegaram di- Depois dessa extraordinária ses-
ferentes áreas e trabalharam para “am- são, as pessoas se abriram e começaram
pliar” esses temas, desenvolver o que a falar.
fora discutido.
– Um papo muito franco teve
Especialmente profunda foi a início – diz o padre, com entusiasmo.
parte da conferência voltada ao escla- – Houve uma discussão aberta. Foi
recimento das pessoas a respeito de sua um momento muito interessante do
herança negra e sobre como seus ances- encontro. As pessoas começaram a se
trais foram parar no México. Historia- questionar, a questionar as outras e a
dor e conferencista, o professor Kande, criticar. – Chegaram até a tirar conclu-
originário do Congo, foi convidado a sões sobre as percepções negativas de
falar aos participantes sobre suas raí- algumas delas contra sua própria raça,
234 THOTH 4/ abril de 1998
Movimento Negro Hoje

e a dizer coisa como: “Isso aconteceu sério? – perguntou Glyn aos cabeças da
porque eles (os opressores) nos trata- convenção. – As pessoas disseram que
ram dessa forma!” sim, mas é fácil dizer sim.
Apesar da presença de milita- A estratégia para o futuro inclui
res e de agentes do Serviço Secreto, a convocação de um encontro de todos
as pessoas falaram livremente sobre os representantes, alguns sociólogos,
soluções para os seus problemas so- antropólogos e historiadores a fim de
ciais. A necessidade de educação foi se elaborar uma “agenda forte” para a
um tópico fortemente debatido, tanto próxima convenção. O padre admite que
quanto o modo de usá-la para ajudar a primeira careceu de uma estrutura fir-
as pessoas a entender melhor a eco- me, embora houvesse grande satisfação
nomia. Discutiu-se quais eram os mais nas pessoas por se reunirem pela primei-
qualificados para agir como líderes co- ra vez para expressar seus sentimentos e
munitários, assim como a forma de al- esperanças.
guém se tornar mais consciente de sua
Mas o evento planejado para 1998
herança negra. E também maneiras de
será, espera-se, “um aprofundamento
unificar os vários povoados.
e uma expansão”, com o fortalecimen-
– As pessoas realmente demons- to da unidade dos povoados como alta
traram serem sérias e maduras relembra prioridade, ao lado do estabelecimento
o pároco. de um órgão poderoso para a comunica-
ção entre eles.
Desde a convenção, represen-
tantes dos povoados, ao lado de Glyn – Esperamos que a próxima con-
e de outros membros da Igreja, orga- venção nos encontre mais organizados,
nizaram quatro encontros para avaliar mais unidos e com alguns projetos já
seu progresso. Um outro foi planeja- em andamento. Por exemplo, um jornal
do para abril de 1997, mas, devido às dirigido e um fundo de bolsas de estudo
tempestades provocadas pelo furacão para enviarmos mais crianças à escola –
Paulina, acabou sendo adiado sine die. diz o padre.
A segunda Convenção dos Povoados
São muitas as necessidades em
Negros está sendo marcada para março
sua lista:
de 1998.
– Há dois tipos de estatística no
Quais foram os efeitos desse pri-
México sobre a população negra – con-
meiro e histórico encontro? O padre
clui ele. – Uma avaliação por alto e
compara a experiência a um provérbio
uma avaliação por baixo. A avaliação
africano: depois da festa, os músicos
por baixo é de que os negros são 1% da
têm de carregar seus instrumentos.
população, a avaliação por alto diz que
– Nós nos reunimos e passamos somos 9%. Mas mesmo dentro do 1%
bons momentos. Mas a questão é: vocês somos apenas uma gota no oceano, de
estão preparados para fazer um trabalho modo que, a partir disso, podemos con-
Jovem afro-mexicano do Estado de Oaxaca, México, 1977
OXUM EM ÊXTASE
Óleo e acrílico s/ tela - 153 x 102 cm, de Abdias Nascimento, Buffalo, USA, 1975

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