Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
4
1998 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Gabinete do Senador Abdias Nascimento
Thoth
nº 4 janeiro/abril 1998
Em visitia à sede das Nações Unidas, em Nova York, como membro de uma delegaçao do
Congresso Nacional, o Senador Abdias Nascimento, acompanhado por sua esposa, Elisa Larkin
Nascimento, foi recebido pelo secretário-geral daquela organização, o ganês Kofi Annan. No
encontro, o Secretário-Geral revelou ao senador sua intenção de visitar o Brasil ainda este ano.
Funcionário de carreira da ONU há mais de três décadas, Annan, herdeiro da rica e mile-
nar cultura fanti, tem ganho o respeito e a admiração do mundo por sua inteligência e habilidade
em conduzir o jogo de xadrez da política internacional. Essas qualidades ficaram plenamente
comprovadas pelo êxito que obteve nas delicadas negociações da última crise iraquiana, em que
mostrou seus reais talentos de negociador e deu nova relevância às Nações Unidas como instru-
mento de preservação da paz.
Além de lhe garantir a projeção no plano pessoal, “a perspicácia, o entendimento dos inte-
resses e das situações de que o secretário-geral tem dado prova”, afirma um comentarista, “apa-
recem aos observadores como qualidades intrínsecas de seu povo, de sua cultura negra, dos afri-
canos. (...) No fim do milênio, Kofi Annan e Nelson Mandela dão a conhecer ao mundo inteiro o
perfil eminente dos africanos que contrasta com a visão de violência, sofrimento e pobreza traidi-
cionalmente atribuída ao Continente Negro. Algo que não deixará de ter impacto no Brasil, pátria
da maior população negra existente fora do Continente Africano.”
APRESENTAÇÃO
projeto de lei que amplia a possibilidade de se recorrer à chamada ação civil pública para
a defesa da honra e dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos. Uma das principais
inovações desse meu projeto – com algumas emendas do Senador Josaphat Marinho que o
aperfeiçoaram do ponto de vista jurídico – é facilitar, quando transformado em lei, a atua-
ção das entidades afro-brasileiras em casos dessa natureza, facultando-lhes o direito de se
habilitarem, como autoras ou litisconsortes, em defesa dos interesses coletivos de nossa
comunidade. Com isso, ficará mais simples a atuação do movimento negro em casos
como o do palhaço-cantor que ofendeu a todos nós, e a todos os democratas e libertários
genuínos, ao gravar uma canção em que “homenageava” sua companheira negra utili-
zando “carinhosos” epítetos extraídos do arsenal de ofensas com que o racismo branco
costuma contemplar a mulher negra. Espero que o Movimento Negro se utilize dessa nova
e importante ferramenta à sua disposição para enfrentar o racismo no plano simbólico.
Outra pequena, mas significativa vitória foi o sucesso do Prêmio Cruz e Sousa,
iniciativa minha em parceria com o Senador catarinense Espiridião Amin. Confesso que
os 65 trabalhos enviados para apreciação superaram em muito, dado o prazo exíguo de
que dispunham os candidatos, nossas melhores expectativas. Coroaram-se, desse modo,
os esforços no rumo de homenagear e divulgar a figura ímpar de um afro-brasileiro nas-
cido na escravidão que atingiu – infelizmente, apenas depois de morto – as culminâncias
do reconhecimento, em âmbito nacional e internacional, como um dos maiores poetas de
todos os tempos, de todos os lugares e de todas as raças. A cerimônia de premiação, que
ocorrerá em Sessão Especial do Congresso Nacional, servirá como um desagravo, tendo
emblematicamente como palco o espaço que congrega a elite política do País.
Além de tudo isso, na próxima semana estará sendo inaugurada, no Salão Negro
do Senado, uma exposição de 53 pinturas de minha autoria, nas quais emprego elementos
pictóricos e filosóficos da rica cosmogonia africana e afro-brasileira para reafirmar os va-
lores milenares de nossa tradição cultural. Muito mais que a realização individual de um
artista negro conduzido pelo destino para o terreno da política, encaro essa mostra como
mais um signo das conquistas que os afro-brasileiros tem obtido, nos últimos anos, em
função de nossa luta coletiva. Que ela possa ajudar a cimentar esse caminho de sucesso,
sensibilizando meus colegas parlamentares a receberem com mais simpatia e compreen-
são as propostas do movimento negro organizado, das quais tenho procurado ser, com a
colaboração de minha equipe, um veículo eficiente e dedicado.
Abdias Nascimento
Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em
1995, marcado pela Marcha Contra o Racismo, pela Ci-
dadania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âm-
bito nacional e internacional em todo o País, verificamos
que a questão racial no Brasil atinge um novo estágio.
Setores da sociedade convencional reconhecem o caráter
discriminatório desta sociedade, e o debate passa a foca-
Thoth lizar as formas de ação para combater o racismo, ultra-
passando o patamar que marcou a elaboração da Cons-
tituição de 1988: a declaração de intenção do legislador
dá lugar à discussão de medidas concretas no sentido de
fazer valer tal intenção.
1 Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme influência
sobre os neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII
Thoth
17
a cara do homem: tive a certeza que não aglomerava à porta do cinema aplaudiu
era um débil mental. Noutras ocasiões e gritou o seu nome.
ouvi a mesma afirmativa de gente sim- Abandonei o Ministério do Ex-
ples, porém sensata). terior meditando. “Então é mesmo pos-
No Ministério do Exterior pedi à sível que pretos e brancos se integrem,
secretária que me anunciasse ao diretor sem que essa integração signifique o
do Departamento Cultural. Não conhe- desaparecimento do negro ou a sua per-
cia o Sr. Vigoa. Enquanto esperava, ob- manência somente nas posições inferio-
servei a vivacidade e a informalidade de res da sociedade?” Vi mulheres negras
funcionários e diplomatas. Que diferen- comandando pelotões e dirigindo ser-
ça dos nossos emproados e equívocos viços; os trabalhadores da indústria do
itamaratianos! açúcar têm um mártir: o negro Jesús
– Quer falar comigo? Menéndez, assassinado pelos antigos
monopolistas do produto; outro negro,
Surgiu à porta um negro alto e inteligente, sensível e culto, Odilio
sorridente. Eu estava distraído, me as- Urfé, ocupa a direção do Instituto Na-
sustei, pensei que estava dando um pas- cional de Investigaciones Folklóricas. O
so em falso: mulato Juan de Almeyda ocupa o mais
– Desejo falar ao diretor, o Sr. alto posto no Exército Rebelde. Antonio
Vigoa. Maceo, general negro, e o branco José
– Tenha a bondade de passar ao Martí são as figuras máximas da Histó-
meu gabinete. (Fez um gesto de extrema ria de Cuba. O povo lhes dedica profun-
gentileza e compreensão. Eu tinha cer- da veneração. A mãe dos Maceo (outro
teza de que ele sabia a razão da minha irmão de Antonio, também general), ne-
surpresa, mas nada dissemos sobre o gra, é a patronesse da Milícía Feminina
assunto). Revolucionária.
O Sr. Vigoa desculpou-se por Quem conhece minha vida públi-
me haver feito esperar. Não me levara ca compreenderá por que esse aspecto
ali nenhum assunto específico. Queria da Revolução Cubana foi para mim a
apenas conversar, me informar a res- experiência mais forte e importante.
peito de coisas e assuntos de arte. Em
certo instante o diretor pega o telefone,
O segundo aniversário da Revolução
disca e me põe em contato com Nicolás
Guillén, velho e querido amigo. Guillén
é o poeta nacional de Cuba. Andei com Para mim, as festas de aniversário
ele pelas ruas e em qualquer lugar ele é foram as três solenidades a que compa-
abraçado, é festejado, por gente humil- reci: 1 – início do Año de la Educación,
de e estudantes, políticos, escritores e em Ciudad Libertad, a 31 de dezembro;
milicianos. À saída da estreia do filme 2 – desfile militar, na Praça Cívica, a 2
Histórias da Revolução, o povo que se de janeiro; 3 – recepção do Presidente
Crônica da Cuba vermelha
Abdias Nascimento 31
várias salas de espetáculos são Tchecov flauta, contrabaixo, guitarra, cuíca, ele
e Bertold Brecht. Assisti a Medea en el ao piano. Uma gostosura aquela músi-
espejo, autoria de um jovem, e tanto tex- ca que tem a um tempo o rendilhado, a
to como direção (Morín) e interpretação delicadeza da contradança francesa, da
(papel-título: Asseneh Rodriguez) me qual é filha legítima, e o ritmo criollo –
agradaram. intenso, cálido, maravilhoso.
Vi dois ótimos espetáculos de Não encontrei nas livrarias de
folclore na Sala Covarrubias do Teatro Havana obras brasileiras. Somente al-
Nacional. Tais espetáculos foram orga- gumas traduções de romances de Jorge
nizados por Argeliers Léon, diretor do Amado. Nem livros, nem discos. Reen-
Departamento de Folclore do Teatro contrei o nosso Caymmi, a nossa Araci
Nacional, que tem ainda os seguintes de Almeida, o ritmo de nossas escolas
departamentos: de Música, de Arte Dra- de samba na residência do casal Hélio
mática (dirigido por Mirta Aguirre) e de Dutra – Gina Cabrera. Ele brasileiro, di-
Danças Modernas. Este último departa- rigente de um laboratório farmacêutico;
mento, sob a responsabilidade de Rami- ela cubana, atriz consagrada do teatro
ro Guerra, produz um trabalho do mais e da televisão. Gina já esteve de férias
alto valor para a criação de uma dança em nosso País. Viu nossos espetáculos
cubana. de teatro e boate. De volta a Havana,
Há, em Havana, enorme interesse fez uma documentada conferência sobre
pelo nosso teatro. Fiz uma exposição de teatro brasileiro e alimenta um desejo:
fotografias do Teatro Experimental do representar uma peça brasileira (Vestido
Negro na Biblioteca da Casa de las Amé- de noiva, de Nelson Rodrigues, talvez).
ricas, e na inauguração pronunciei uma Num espetáculo do Tropicana, vi
conferência. No Departamento de Arte um quadro bem realizado com a música
Dramática, também falei sobre o nosso de Tom e Vinícius de Morais “Manhã
teatro, e finda a palestra, com os alunos de carnaval”, do filme Orfeu, que lá ob-
do seminário, realizou-se um debate. teve grande êxito. Com a interpretação
Instituição da mais alta impor- da “Serafina” desse filme, Léa Garcia
tância cultural é o Instituto Nacional de ganhou cartaz em Cuba. A vida noturna
Investigaciones Folklóricas, que fun- de Havana é intensa. Visitei, em com-
ciona numa velha igreja reconstruída panhia do arquiteto Robaina, subdiretor
(lglesia de Paula). Seu diretor é Odilio da Casa de las Américas, restaurantes tí-
Urfé, um apaixonado da matéria. Man- picos, como La Carreta, um bar-restau-
tém um museu folclórico precioso, e rante superesnobe chamado significati-
foi nesse ambiente, tresandando às for- vamente Monsenhor, o pontão de Regla
tes tradições cubanas, que ouvi o mais (pequena cidade a que se vai de barco,
belo gênero da música popular do país: assim como Niterói). Em Regia, vi
o danzón. Na véspera do meu regresso, como se dança verdadeiramente um bo-
Urfé reuniu alguns “cobras”: violino, lero, uma rumba-colúmbia ou um chá-
Crônica da Cuba vermelha
Abdias Nascimento 35
Projeto de Ação
O SR. PRESIDENTE (Bernardo
Compensatória Cabral) – Concedo a palavra ao Senador
Roberto Requião para relatar o projeto. A
na Comissão de preferência foi votada em homenagem ao
Constituição nosso colega Senador Abdias Nascimento.
O SR. ROBERTO REQUIÃO – Sr.
e Justiça do Presidente, o projeto do Senador Abdias
Senado Federal Nascimento dispõe sobre medidas de ação
compensatória para a implementação do
princípio da isonomia social do negro.
O SR. PRESIDENTE (Bernardo
Cabral) – Qual é o item da pauta, Senador?
O SR. ROBERTO REQUIÃO – É o
item nº 36, à pág. 429 do anexo.
O presente projeto de lei, de autoria
do Senador Abdias Nascimento, tem por es-
copo exigir que todos os órgãos da Adminis-
tração Pública direta e indireta, as empresas
40 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar
tempo em que ela se verificou, necessá- acesso à escola entre negro e branco, tão
rio se faz o estabelecimento das metas bem expostas pelo autor na justificação
legais aqui visadas. O projeto enfatiza, do projeto em exame. A esta altura, já
também, a desigualdade no tratamento não há como aceitar a tese de que essas
entre negros e brancos pela polícia. desproporções se devem às extremas
Em resumo, as medidas de ação desigualdades socioeconômicas exis-
compensatória da escravidão e discrimi- tentes no País.
nação estabelecidas pelo projeto de lei Os estudos disponíveis sobre a
proposto instituem maiores oportunida- matéria demonstram, já, as formas esca-
des para o negro integrar, em proporção moteadas das práticas discriminatórias
relativamente análoga à da participação da sociedade brasileira, as quais, toda-
branca, as esferas da vida nacional, das via, não resistem à crueza das estatísti-
quais ele tem sido excluído por tempo cas oficiais. Por isso não causa surpresa
demasiadamente longo. o perfil do presidiário brasileiro, resul-
O projeto não encontra óbices de tante do censo realizado em 1993, pelo
natureza constitucional e jurídica. Ao Conselho Nacional da Política Criminal
contrário, encontra amparo no verdadei- e Penitenciária, órgão do Ministério da
ro sentido da isonomia, consagrado no Justiça. De acordo com tal pesquisa, a
art. 5o da Lei Maior, que se traduz em quase totalidade dos presos é absoluta-
tratar desigualmente os desiguais. Para mente pobre: 68% têm menos de 25 anos,
tanto, é necessário que o Estado seja do- 76% são analfabetos ou semialfabetiza-
tado de normas, a fim de que, na prática, dos e dois terços são mulatos e negros.
a igualdade perante a lei seja verificada. Os negros e mulatos, que repre-
Transformada em lei, a presente sentam em torno de 45% da população
proposição será um instrumento básico brasileira, estão sempre sobrerepresen-
para se superar de fato a discriminação tados nos números relativos às piores si-
racial contra a população negra, até o tuações socioeconômicas, e infimamen-
presente impermeável às normas proi- te representados nas melhores posições
bitivas. O fato de, no Brasil, diferente- dos indicadores sociais. Naturalmente,
mente de outros países, a discriminação a discriminação contra os negros não é
racial não ser sancionada em lei desde algo patenteado apenas pelos números
a abolição do regime escravocrata tem das estatísticas, como atestam as mais
contribuído sensivelmente para a clássi- diversas formas do preconceito cotidia-
ca visão da “democracia racial”. Toda- no de que eles são vítimas. À maneira
via esse mito não resiste ao exame das de algo que já se tornou habitual com
estatísticas relativas à posição do negro o homem comum, a imprensa pratica-
no sistema de ocupações da economia mente se refere apenas às manifestações
brasileira – a diferenciação salarial com- que envolvem pessoas famosas, sempre
parativamente ao trabalhador branco, as negadas por seus autores quando o fato
diferenças de níveis educacionais e de adquire repercussão.
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 43
minado num país onde não há duas po- Senadores, o presente projeto de lei tem
pulações definidas, como, por exemplo, por escopo determinar, segundo o seu
nos Estados Unidos, onde se é negro ou art. 1º, que “todos os órgãos da Admi-
branco, onde a mestiçagem é muito pe- nistração Pública direta e indireta, as
quena? Haverá uma dificuldade enorme empresas públicas e as sociedades de
e, talvez, incontornável, Sr. Presidente. economia mista são obrigadas a manter,
Quanto à cota racial de 20% de nos seus respectivos quadros de servi-
mulheres e de homens negros para ad- dores, 20% de homens negros e 20% de
missão na Administração Pública dire- mulheres negras, em todos os postos de
ta e indireta, só se admite ingresso no trabalho e de direção”. Esse é o disposi-
serviço público, nas autarquias e na ad- tivo principal que norteia o objetivo da
ministração direta, mediante concurso iniciativa.
público. Como isso será colocado em Destacamos também o seu art. 3º,
prática? Será realizado um concurso segundo o qual “assegura-se a preferência
para brancos e outro para preencher a na admissão do candidato negro sem-
cota exclusiva de negros? Ou será fei- pre que ele demonstrar idênticas quali-
to um concurso exclusivamente para ficações profissionais às do candidato
negros, mas permitindo que os negros branco”. Embora digno de encômios, ao
também concorram com os brancos? revelar uma justa preocupação com re-
Sr. Presidente, compreendo que lação à melhoria das condições da raça
esse projeto de lei do Senador Abdias negra no Brasil, o projeto, a meu ver,
Nascimento é novo, mas penso que, tal- fere o art. 5º da Constituição Federal, no
vez, ele possa vir a motivar a ocorrência seu caput, que assim reza:
de conflitos raciais e de grandes e sérias “Art. 5º Todos são iguais perante
incompreensões entre negros e brancos. a lei, sem distinção de qualquer nature-
Quero examinar esse assunto com cui- za, garantindo-se aos brasileiros e aos
dado e, portanto, peço vista da matéria. estrangeiros residentes no País a invio-
O SR. PRESIDENTE (Bernardo labilidade do direito à vida, à liberdade,
Cabral) – A Presidência defere a vista e à igualdade, à segurança e à proprieda-
pede que os Srs. Senadores fiquem aten- de, nos termos seguintes (...).”
tos, porque, na próxima reunião, a matéria Dessa forma, é impossível deixar
será colocada em discussão e em votação. de reconhecer o vício de inconstitucio-
nalidade de que está eivada a propo-
sição, dada a clareza do mandamento
Sessão de 18 de março de 1998 maior. Não se pode, sob o argumento
de alavancar a condição de uma mino-
Concedo a palavra ao Senador Je- ria secularmente desassistida, fato que
fferson Péres. ninguém desconhece, praticar uma ver-
O SR. JEFFERSON PÉRES dadeira discriminação às avessas, equí-
– Sr. Presidente, Senhoras e Senhores voco no qual muitos incorrem ao inter-
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 45
“Se o critério é discriminar qual- bisneto de negro, que apresenta mais ca-
quer pessoa em razão da cor, comete-se, racterísticas da raça branca do que da
além do ilícito civil ou patrimonial, cri- negra, por exemplo, como poderia ser
me inafiançável e imprescritível, sujeito definido? Ele estaria incluso na cota
à pena de reclusão nos termos da lei. Se do projeto? E não é só. Como ficaria
houver admissão ou seleção para o em- a situação dos índios, que não são nem
prego, deverá prevalecer como critério, o brancos nem negros, mas são também
princípio de igualdade, segundo o qual to- secularmente discriminados? Mesmo
dos são selecionados sob os mesmos pa- entre os índios, há miscigenação.
drões e avaliados sob o mesmo critério.” Assim, ainda que a emenda fos-
Do comentário exposto, podemos se aprovada para incluir determinada
até mesmo concluir que o projeto pade- cota para sua raça, haveria dificuldade
ce também de vício de injuridicidade, de aplicabilidade, pelas mesmas razões
porque, caso seja aprovado, gerará ver- expostas, com relação à definição exata
dadeira incongruência no nosso ordena- do elemento negro.
mento jurídico como um todo e no trato Senador Bernardo Cabral, e se
da questão. se quisesse contemplar os índios, que
Existe outra razão que nos leva a também são discriminados, que também
concluir pela inconstitucionalidade da são minoria racial, num Estado como o
iniciativa, ou seja, aquela que diz respei- Amazonas? Como V. Exª sabe, no in-
to à sua eficácia. A eficácia vem a ser um terior do Amazonas, quem é índio, ca-
dos elementos que respaldam a norma boclo e branco no beiradão dos nossos
jurídica, sem a qual esta não pode sobre- municípios? Seria muito difícil aplicar
viver, por não produzir efeitos jurídicos a lei ou, então, não se aplicaria aos ín-
concretos, não gerar condições de aplica- dios e estaríamos sendo profundamente
bilidade e não encontrar eco no mundo injustos com eles.
do direito. Ora, lei sem eficácia não é lei, A eficácia seria bastante dificul-
por não ser dotada de um dos elementos tada também em alguns estados brasi-
primaciais: a força de coerção. leiros, notadamente no sul do País, em
O projeto analisado acarretaria, que a percentagem de negros é mínima
caso aprovado, dificuldade de eficácia em relação aos brancos, ou em estados
pelas razões que passamos a expor. No do Norte, em que o elemento indígena
Brasil, país que se destaca por inten- é o predominante. Não haveria, nesses
sa miscigenação, é quase impossível estados, condições de tornar diploma
separar as diversas raças. Quem seria legal com esse teor eficaz por absoluta
considerado negro e quem não o seria? falta de elemento humano, no sentido
Poder-se-ia afirmar que os mulatos o quantitativo, para preencher a quota de-
sejam, pois a comunidade negra assim terminada.
os considera. Porém, mesmo entre eles, Repetimos, dada a sua importân-
há diversidade grande de cor. O mulato cia, que a eficácia é característica indis-
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 47
Sr. Presidente, farei um comentá- ser breve, porque terá oportunidade para
rio à parte. Existe, bem ou mal, embora discutir o assunto?
com muito atraso, uma ascensão social O Sr. Pedro Simon – Somente
dos negros. Já encontramos, hoje, mui- meio segundo. Juridicamente tenho que
tas famílias de classe média. O exemplo votar com V. Exª. E V. Exª haverá de di-
que estou citando não é de 1%. Pode zer que esta é a Comissão de Constitui-
acontecer de um estudante branco da ção e Justiça. O parecer de V. Exª é nota
periferia ser aprovado com nota sete ou dez, não há o que mudar, mas, olhando
oito em um concurso e um candidato o Brasil afora, com toda a sinceridade,
negro, de classe média, que obteve nota creio ser ele um pouco diferente do que
inferior, seis ou sete, ser aproveitado em possamos imaginar.
detrimento desse candidato que mostrou Receba, com respeito e carinho, o
um desempenho melhor, punido pelo meu aparte.
fato de ser branco. Seria uma discrimi-
Meus cumprimentos ao parecer
nação às avessas e injusta não apenas
de V. Exª.
por desconhecer o sistema de mérito,
como socialmente também, porque o O SR. PRESIDENTE (Bernardo
branco, neste caso, era mais pobre do Cabral) – Senador Jefferson Péres, tem
que o negro. a palavra V. Exª.
O Sr. Pedro Simon – Permite-me O SR. JEFFERSON PÉRES –
V. Exª um aparte? Levando-se em conta que uma das fi-
nalidades da norma jurídica é realizar
O SR. JEFFERSON PÉRES –
a justiça e o bem comum, a indagação
Permito.
neste caso seria óbvia, no sentido de se
O Sr. Pedro Simon – V. Exª sabe saber se a lei, no caso, estaria a cumprir
do carinho, do respeito e da admiração satisfatoriamente essa finalidade.
que tenho por V. Exª.
Considerando-se, assim, os ar-
O SR. JEFFERSON PÉRES – gumentos expostos neste parecer com
É recíproco. relação à inconstitucionalidade e inju-
O Sr. Pedro Simon – Digo que, ridicidade da iniciativa, resolvemos ela-
sob o ponto de vista jurídico, o parecer borar o presente voto, em separado, pela
de V. Exª é irretocável. Tenho o maior rejeição, divergindo, portanto, do pare-
respeito por ele, mas, na realidade em cer apresentado pelo ilustre relator da
que estamos vivendo hoje no Brasil, ele matéria, Senador Roberto Requião, em
pode até ser irretocável juridicamente, que pese aos bons propósitos do autor
mas, na verdade, o que sentimos no do projeto, o não menos ilustre Senador
Brasil é totalmente contrário àquilo Abdias Nascimento.
que V. Exª está afirmando. Para concluir, Sr. Presidente,
O SR. JEFFERSON PÉRES – extraparecer, como sou absolutamen-
Senador Pedro Simon, V. Exª poderia te insuspeito para opinar, não tenho de
50 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar
omissão – com a minha, do Pedro Si- conta deste Congresso, não teremos que
mon, omissão. apresentar uma proposta solicitando que
Como é que um negro pode ser 25% das vagas sejam para homens. Elas
da classe média, entrar na faculdade, e já estarão garantidas.
um branco, que é pobre, não entrar? Não Lá, a proposta era uma saída jurí-
pode! A imensa maioria é negra na clas- dica; aqui, pode-se encontrar uma saída.
se pobre, uma minoria é branca. Vamos debater, vamos analisar. É a pro-
Portanto, creio que essa proposta, posta que faço, em vez de resumirmos
no sentido de concordarmos em sustar em “sim” ou “não”.
o processo e debatermos inclusive uma Enquanto V. Exª votar “não”,
fórmula para solucionarmos o proble-
porque é um grande jurista, e o Senador
ma, seria a grande saída.
Josaphat Marinho votar “não”, porque é
Lembro a V. Exª, Sr. Presidente, um grande jurista, eu me considero um
que, quando as mulheres pediram para advogado sério, responsável, mas vota-
votarmos o texto da lei, no sentido de rei “sim”. Estou vendo a Constituição
que 25% seriam vagas garantidas às
ser rasgada todos os dias no que tange
mulheres, nos diretórios e nas candida-
à fome, à miséria, às injustiças sociais.
turas inclusive a ilustre Deputada Marta
Não creio que seja este o momento de se
Suplicy –, dissemos que estávamos de
dizer “cumpra-se a Constituição aqui”,
acordo. Foram falar com V. Exª e se sur-
preenderam, porque V. Exª foi contra. quando ninguém se preocupa com isso,
“Mas V. Exª, Senador Bernardo Cabral, pois milhões de brasileiros vivem com
que tem uma admiração tão grande pelo fome e na miséria.
sexo feminino, ser contra”? V. Exª disse: O SR. PRESIDENTE (Bernar-
“Admiração tenho, mas a lei tenho de do Cabral) – Senador Pedro Simon, a
cumprir. A Constituição diz que todos Presidência acolhe a proposta de V. Exª,
são iguais perante a lei”. no sentido de se desenvolver um estudo
Lembra-se V. Exª que apresentei maior sobre a matéria, mas a coloca em
uma proposta como solução. Eu disse: discussão.
“Tem razão!” E até a Deputada Marta Concedo a palavra ao nobre Se-
Suplicy disse: “O Senador Cabral tem nador José Eduardo Dutra, devidamente
razão”. Mas podemos resolver essa inscrito; depois, ao Senador Bello Parga.
questão. Como? Votando que cada sexo
O SR. JOSÉ EDUARDO DU-
terá 25%. Em vez de determinar que as
TRA – Sr. Presidente, Srs. Senadores,
mulheres tenham direito a 25%, cada
sexo terá direito a 25% das vagas. E acompanho mais ou menos a linha da
ainda acrescentei: não só a proposta que proposta do Senador Pedro Simon.
estou fazendo é jurídica, mas já estamos O problema é que estamos diante
votando em causa própria, porque, daqui de um parecer que aprova o projeto na
a 30 anos, quando as mulheres tomarem sua totalidade e de um voto, em sepa-
54 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar
rado, que rejeita o projeto na sua tota- momento em que houvesse um maior
lidade. número de negros formados pelas uni-
Concordo plenamente com o ar- versidades, isso iria contribuir para au-
gumento levantado pelo Senador Je- mentar a renda do negro, para diminuir
fferson Péres, da própria dificuldade da a discriminação, para possibilitar maior
aplicação de quotas em relação à raça no aprovação de negros nos concursos.
Brasil, em função da miscigenação. Mas O Sr. Ramez Tebet – Permite-me
entendo que algum tipo de ação com- V. Exª um aparte?
pensatória seja possível fazer no Brasil. O SR. JOSÉ EDUARDO DU-
Creio que o projeto, da forma TRA – Pois não.
como está, coloca as quotas numa série O Sr. Ramez Tebet – Creio que
de pontos que, concretamente, não se tem V. Exª aborda muito bem a questão. Tal-
instrumentos de cultura e prática para fa- vez pudéssemos iniciar mesmo pelas
zer com que venham a ter eficácia, como universidades públicas.
disse o Senador Jefferson Péres.
Falou-se agora mesmo sobre a
Tendo a ser simpático a algum tipo
cota reservada às mulheres para a dis-
de ação compensatória do ponto de vista
puta dos cargos eletivos. Lembrei-me
social. No Brasil, a questão social está
de um artigo que li recentemente, de-
muito ligada à questão racial. Se se fizer
monstrando o avanço social das mulhe-
uma pesquisa sobre os menores salários,
res na sociedade mundial e na socieda-
sobre o número de presos nas cadeias,
de brasileira.
vai-se constatar que são de pessoas po-
bres e que a grande maioria é negra. Com relação às universidades, Se-
nador José Eduardo Dutra, não é preci-
Vejo muita dificuldade em alguns
so reservar nada às mulheres, porque os
casos, como, por exemplo, no art. 2°, a
exames vestibulares estão demonstrando
obrigatoriedade de as empresas privadas
estabelecerem quotas para a população que o número de mulheres aprovadas é
negra. Na prática, vão-se estabelecer muito maior do que o de homens.
regras trabalhistas diferenciadas. Obri- Nas universidades públicas, há
gatoriamente, a empresa deverá ter um uma grande contradição: o rico, em vir-
grau de estabilidade para poder manter tude das suas condições sociais, tem mais
essa quota, até porque a substituição não acesso às universidades públicas de que
é tão simples. Assim, vamos ter regras o pobre, que é desprotegido, desnutrido.
de estabilidade diferenciadas para ne- Talvez V. Exª tenha razão, no que
gros e brancos. diz respeito a esse argumento, que é
Eu veria com muita simpatia, por muito forte, Sr. Presidente, no meu en-
exemplo, um projeto que estabelecesse tender. Não votaríamos a matéria hoje,
algum tipo de cota nas universidades a fim de que pudéssemos encontrar uma
públicas. Creio que estaríamos dando solução ideal, do ponto de vista consti-
um passo no sentido de que, a partir do tucional, político e social.
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 55
de haver, nas últimas eleições munici- fosse como o projeto da participação das
pais, mais do que dobrado o número de mulheres nos partidos; um projeto para
vereadoras e de mulheres na chefia de dar um start no aumento da participação
prefeituras municipais. dos negros na vida política e econômica
Inconstitucional, absolutamente in- brasileira. Que atingisse a universida-
constitucional, é a reeleição, ainda mais de, que abrangesse a questão de outras
quando o presidente se candidata a ela minorias, como os índios, e que fosse
no exercício do cargo, mas uma servente melhor estudado por uma comissão de
de escola que pretender candidatar-se ao senadores, encabeçada pelo Senador
cargo de vereadora tem que se desincom- Abdias Nascimento, para não corrermos
patibilizar. o risco de soterrarmos, numa rápida vo-
Absolutamente inconstitucional, do tação numa manhã de quarta-feira, na
ponto de vista da igualdade de direitos, Comissão de Constituição, Justiça e Ci-
é a possibilidade de os parlamentares se dadania, uma ação afirmativa que cul-
candidatarem a cargos executivos sem mina a carreira de um militante de dé-
se licenciarem ou se desincompatibili- cadas em favor do fim da discriminação
zarem do mandato que estão exercendo, racial no País.
utilizando as facilidades do gabinete,
Não é uma homenagem que que-
de locomoção e as próprias imunida-
ro prestar ao Senador Abdias Nascimen-
des parlamentares. Então, essa questão
to, mas é uma visão pragmática e que,
da inconstitucionalidade do projeto é
na verdade, traduz-se concretamente
semelhante à de tantos outros projetos
como uma ação afirmativa. Não vamos
que foram aprovados pelo Congresso
Nacional. enterrar esse projeto. Vamos procurar
um consenso e dar o passo que for pos-
Estudei o projeto do Senador Ab-
sível no sentido de reprimir e evitar a
dias com carinho. Concluí que deveria
discriminação racial. Toda caminhada
manifestar-me a favor das suas razões.
começa com o primeiro passo, e o pri-
Continuo com a mesma posição, mas
não precisamos afirmar uma posição ou meiro passo será sempre o possível, via-
fazer uma declaração pública de horror bilizado pelo consenso na Comissão e
ao racismo. Essa declaração é de todos no plenário do Senado.
nós; é dos senadores, inclusive, que se Gostaria que o Senador Abdias
opuseram à aprovação do projeto. se manifestasse a respeito dessa tese le-
O que nos interessa é a ação afir- vantada pelo Senador Simon e comple-
mativa, positiva. É dar um passo a mais. mentada por mim, no sentido de criar-
Penso que, talvez, se atenuássemos o mos uma subcomissão que encarasse o
rigor lógico do tratamento dado pelo problema do racismo, da discriminação
Senador Abdias, pudéssemos chegar das minorias e tentasse viabilizar o pro-
a um consenso. Por exemplo, que esse jeto possível neste momento político, no
projeto não fosse permanente, mas que Congresso Nacional.
58 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar
preenchidas todas as vagas com can- do brasileiro a igualdade”, mas aqui não
didatos negros – seria uma solução –, há igualdade. Os negros, os afrodescen-
mas se for realizado um único concur- dentes, não exercem a cidadania plena
so – veja bem, se V. Exª me contestar, neste País. Só quem não quer não per-
ficarei muito satisfeito se conseguir me cebe isso. O projeto tem o propósito de
convencer –, e evidente que, para serem efetivar o princípio da isonomia social,
preenchidas obrigatoriamente 40% das inscrita no art. 5º da Constituição. O
vagas com candidatos negros, poderá projeto é constitucional.
acontecer que muitos candidatos bran- Só espero que os enredos jurí-
cos com notas inferiores às do negro não dicos não continuem enredando a vida
sejam aproveitados. Ou não acontecerá de milhões de brasileiros de ascendên-
isso? Parece-me que sim. cia africana, como tem acontecido até
O SR. ABDIAS NASCIMEN- hoje. Durante todo o Império, houve
TO – Alguns brancos com notas infe- uma série de rabugices, de leguleios,
riores às do negro? de aspectos jurídicos, e o negro ficou
O Sr. Jefferson Péres – Sim, se sempre escravizado. Foram elaboradas
for um único concurso, devido à cota. a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Se-
Veja bem, Senador Abdias Nascimento, xagenários, mas tudo isso serviu para
eu não disse que V. Exª está preconizan- manter a dominação escravagista sobre
do isso; estou dizendo que pode vir a a raça negra.
acontecer. Depois da Abolição da Escrava-
O SR. PRESIDENTE (Bernardo tura, foi feito o mesmo. Primeiramente,
Cabral) – Senador Abdias Nascimento, foi dito que, antigamente, o analfabeto
V. Exª continua com a palavra. votava e que, a partir dali, este não vo-
O SR. ABDIAS NASCIMEN- taria mais. É claro que os afrodescen-
TO – Para concluir, Sr. Presidente, o que dentes tiveram de aprender a falar uma
eu gostaria de dizer é que me apoio nas língua estrangeira; eles tinham suas lín-
palavras do Senador Roberto Requião guas, mas estas foram esmagadas, o que
e do Senador Pedro Simon para dizer o representou outro crime cometido neste
seguinte: está-se aqui raciocinando em País. Assim, eles continuaram prisionei-
termos de uma justiça formal. Aí, nesse ros desse tipo de legislação.
ponto, estou de acordo com os Senado- Até mesmo o Código Penal insti-
res Josaphat Marinho e Jefferson Pé- tuía a lei da vadiagem para aqueles que
res. Mas, aqui, está-se procurando uma não tinham emprego e não tinham onde
igualdade substancial, uma igualdade morar e como alimentar a sua família,
buscando o futuro, o vir a ser deste País, que eram exatamente os escravos re-
que não pode alimentar esta desigualda- cém-libertos, já que estes não encontra-
de cruel, gritante e anticonstitucional; vam emprego no tal mercado livre. As-
esta, sim, é anticonstitucional, porque sim, por meio dessas chicanas da nossa
o art. 5º diz: “É um direito inalienável juridicidade, o negro, cada vez mais,
Projeto de Ação Compensatória
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 61
assim como ao pleno gozo dos valores de uma longa luta dos afro-brasileiros, e
democráticos. A sociedade brasileira não a dádiva benevolente de uma classe
está fundamentada em uma genuína di- governante democrática”.
versidade de raças e origens étnicas que O indignado Senador – que é tam-
contribui para o seu enriquecimento.” bém notável escritor, teatrólogo e artista
Ouvindo essa declaração, bem plástico – ressaltou que, se o Brasil fos-
como as dos representantes de 16 ou- se verdadeiramente democrático, como
tras nações, Nascimento mostrou-se se estava postulando perante aquele foro
consternado. “Minha reação foi de justa internacional, “em vez de ser composta
indignação”, disse ele, “ao testemunhar totalmente por descendentes dos fazen-
mais um show de hipocrisia e ambigui- deiros e dos proprietários de escravos do
dade da elite governante brasileira, pois Brasil, a delegação brasileira incluiria
eles disseram que o Brasil é uma socie- descendentes de africanos escravizados
dade multirracial onde diferentes raças e que poderiam falar de suas próprias ex-
identidades étnicas coexistem [em harmo- periências como negros em nossa socie-
nia], mas não disseram que os afro-brasi- dade racista”.
leiros têm sido historicamente relegados “Essa democracia e essa harmo-
à base de nossa pirâmide social. O que nia racial de que falam no Brasil”, pros-
[a delegação] não disse é que o Brasil seguiu o político negro, “é somente a
tem mantido os afrobrasileiros no fundo versão distorcida veiculada pelos mes-
do poço desde a escravidão!” mos setores da classe governante que
O Senador Nascimento observou têm explorado os africanos no Brasil
que, tal como a delegação norte-ameri- desde que existe este País”.
cana, que discorreu entusiasticamente Nascimento esteve em Nova York
sobre a pretensa igualdade de direitos por duas semanas, como observador do
para os negros e outros cidadãos nos Congresso brasileiro, a fim de estu-
Estados Unidos, a delegação brasileira dar procedimentos internacionais nas
repetiu as mesmas falsidades. Está nessa Nações Unidas. Durante a reunião da
linha a declaração de que a “discrimina- Assembleia Geral, ele se recusou a se
ção racial é considerada um crime pela sentar com a delegação brasileira e, em
Constituição Brasileira”. vez disso, optou por observar os proce-
Em uma entrevista, o Senador dimentos de outro local na grande sala
desmentiu essa afirmativa: “Eles men- de reuniões. Enquanto isso, a conferên-
cionaram a lei e o artigo da Constitui- cia continuava.
ção Brasileira contra a discriminação “Os desafios e problemas que
racial, mas não mencionaram que essa ainda afetam nossa sociedade estão sen-
lei foi promulgada em 1988, portanto do administrados por um grupo intermi-
recentemente, enquanto a comunidade nisterial que tem definido e implemen-
afro-brasileira continua lutando para tado políticas públicas em muitas áreas,
que ela seja implementada. A lei é fruto tais como emprego, educação, saúde,
Denúncia à posição brasileira nas Nações Unidas
Abdias Nascimento 65
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio este
pronunciamento.
Uma das principais manchetes dos
grandes jornais brasileiros nas últimas se-
manas do ano passado foi aquela referente
ao relatório da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, vinculada à Organização
dos Estados Americanos (OEA), a respeito
da situação dos direitos humanos no Bra-
sil. Publicado no dia 9 de dezembro último,
em Washington, sede da Organização, o in-
forme, de 170 páginas, preparado por uma
comissão que percorreu o País com autori-
70 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar
País cuja opinião se habituara a solicitar ra de uma pensão simbólica dada a al-
e respeitar. guns combatentes da heróica Revolução
Do pintor quase centenário que Constitucionalista. Creio significativo
seus amigos e admiradores acabam de informar aqui que era ele o último so-
sepultar no cemitério de São Paulo, brevivente entre os pensionistas da in-
pode-se repetir o que dele disseram, por surreição de 32.
ocasião de seus funerais, o poeta Gerar- Pelo simbolismo da homenagem
do Mello Mourão e o poeta Paulo Bon- prestada aos combatentes de São Paulo,
fim, na Academia Paulista de Letras: sugiro ao Governador daquele Estado
“Passou a vida inteira com seus pincéis que a mantenha, em favor da viúva de
na mão. Deles só se desembaraçou uma Nelson Nóbrega, como um testemunho
vez, ao longo de seus 99 anos, para da fidelidade aos que souberam honrar
empunhar um fuzil em defesa de São o espírito cívico da gente de Piratininga.
Paulo, no exército da Revolução Cons- Poucos eleitos, na história das
titucionalista, que levou às trincheiras a artes neste País, mantiveram vida tão
juventude paulista, na luta gloriosa de exemplar no culto de sua vocação pri-
1932, a qual assegurou ao País a restau- vilegiada. Cercado do prestígio que
ração do Estado de Direito”. lhe ofereciam os nomes mais ilustres
Seu colega na devoção às artes da pintura brasileira, recusou-se, siste-
plásticas, fui também seu companheiro maticamente, a toldar a pureza de seu
de armas na Revolução Constituciona- trabalho com o exercício do imediatis-
lista e nas batalhas a que a voz inflama- mo comercial. Viveu e morreu modes-
da do tribuno Ibrahim Nobre arrastou os tamente, fora das luzes da grande pu-
jovens de nossa geração para a defesa blicidade, devotado apenas à perfeição
da liberdade. e à beleza de sua obra plástica. Como
Tivemos a felicidade de sobre- sua admirável mulher, também pintora,
viver aos sangrentos entreveros da luta extraordinária Lúcia Gouveia de Barros
armada a que nos lançamos, mas nun- Carvalho – Suané no meio artístico –,
ca esquecemos os jovens heróis que irmã do saudoso Senador Barros Car-
vimos morrer ao nosso lado, um deles valho, de passagem tão marcante por
em meus próprios braços, o jovem te- esta Casa, transformou sua residência,
nente do Exército Sílvio Fleming, cujo no centro de São Paulo, num verdadeiro
corpo ensanguentado e agonizante pude ateliê renascentista, que fazia lembrar as
reconduzir a nosso campo, para ali re- oficinas de pintura de Michelangelo, de
ceber a honra dos clarins fúnebres de Leonardo ou de Cimabue.
nossa tropa. Sabia tudo de pintura, como o
A bravura daquele pequeno rapaz artista-artesão do grande século floren-
que era, então, o pintor Nelson Nóbrega tino: sabia fabricar as tintas, aparelhar
foi distinguida pelo Estado de São Pau- as telas, armar as esquadrias e, sobretu-
lo, até o dia de sua morte, com a hon- do, pintar. Centenas, talvez milhares de
Pronunciamentos
Homenagem ao pintor Nelson Nóbrega 77
que, fascinado por um de seus quadros, povo, modesto e pobre, embora viesse
adquiriu uma peça da série de Banhistas de velhos troncos quatrocentões de São
que o artista apresentara. Temeroso, de- Paulo. Pois, nascido em Piracicaba, em
pois, de não poder entrar com a imagem 1889, no ano da Proclamação da Repú-
da mulher nua na alfândega de seu país blica, era neto de um dos mais poderosos
fundamentalista do Islã, o xeque pediu chefes políticos da cidade, o famoso co-
ao pintor que cobrisse o quadro com ronel José Ferraz de Camargo, chamado
uma placa de tela ou de madeira e pin- no século passado o Adão Paulista, por-
tasse no verso outra figuração qualquer que se casara quatro vezes e deixara 47
para ser exibida à fiscalização das leis filhos. Em sua casa hospedou-se o Im-
religiosas de seu país. Nelson Nóbrega perador Pedro II, recebido em célebre
aplicou, então, ao verso do original, a banquete, que os cronistas registram, ao
preciosa aguada de uma paisagem pau- qual compareceu toda a sociedade pau-
lista. No recinto de sua casa, o xeque lista, em torno das baixelas de prata e
vira o quadro na parede, de acordo com das porcelanas egrégias do coronel. O
as visitas que recebe. tempo derreteu as baixelas de prata e
Esse é apenas um breve registro quebrou as porcelanas. Mas os quadros,
com que desejo fique depositado nos as tintas, as imagens, as expressões de
anais desta Casa a homenagem devi- beleza do artista, hão de viver para sem-
da a um dos maiores artistas plásticos pre e são patrimônio maior da cultura de
do País. Fora da grandeza de sua arte, São Paulo e do Brasil.
era um homem comum, um homem do Axé!
Pronunciamentos
Homenagem a Darcy Ribeiro 79
das Relações Exteriores, onde o atento nos é sugerido por essa obra ímpar da
e competente ministro que o dirige pa- poesia brasileira. Vale a pena lembrar
rece empenhado em incorporar projetos que o poeta passou também pelas ban-
expressivos para celebrar esse marco de cadas do Congresso, como deputado fe-
nossa história, para que o poema de Ge- deral por Alagoas, e que prestou ainda
rardo Mello Mourão seja uma referência relevantes serviços a este Senado, cuja
maior de nossa presença em Lisboa. O história, mandada editar pelo Presidente
Departamento Cultural está no dever de José Sarney, na última legislatura, com
dar relevo a um projeto para que esse texto do professor Vamireh Chacon e
poema secular – secular no sentido em sua equipe de estudantes, foi elaborada
que assim se chamou o camem romano rigorosamente dentro do projeto de tra-
do poeta Horácio – seja divulgado, cele- balho organizado pelo ex-Parlamentar,
brado e consagrado, em edições come- o poeta Gerardo Mello Mourão.
morativas, seja na imediata montagem Espero, Senhor Presidente, que
de um CD ou de um CD-ROM que leve minhas palavras cheguem aos minis-
aos centros culturais do mundo o texto tros acima referidos e ao Departamen-
inigualável de Invenção do mar. to Cultural do Itamaraty, enquanto me
Apelo semelhante faço aos se- preparo para oferecer à Casa proje-
nhores Ministros da Educação e da Cul- to de lei que inclui versões escritas e
tura, e ao próprio o Presidente da Re- audiovisuais de Invenção do mar nos
pública, por meio de sua Secretaria de programas culturais e no currículo das
Comunicação, que deve funcionar mais escolas de segundo e terceiro grau do
para assuntos como este do que para a País, como referência obrigatória nos
propaganda do Governo. exames vestibulares.
O Congresso Nacional não pode Axé!
omitir-se também do dever cultural que
Pronunciamentos
Homenagem ao centenário de falecimento do poeta Cruz e Sousa 97
lherme Xavier de Sousa, partiu para a ao mesmo tempo o respeito de uma mi-
Guerra do Paraguai. Mas a sorte, que noria esclarecida e progressista, mas o
mais tarde se revelaria tão mesquinha, ódio mortal das elites conservadoras,
sorriu na infância daquele menino. Tal- que consideravam a escravidão indis-
vez por um humanitarismo inato, quem pensável à manutenção de um modo de
sabe alimentado numa guerra em que vida parasitário, cuja galopante obsoles-
os descendentes de africanos lutaram, cência não conseguiam – ou não que-
sobretudo, para mostrar seu valor como riam – perceber.
homens, contribuindo para que os mi- Com efeito, a classe dominante
litares viessem a rejeitar a escravidão, ignorou, o quanto pôde, o problema do
o marechal e sua família tomaram-se chamado “elemento servil”. Nem mes-
de afeição pelo menino negro. João da
mo a proibição do tráfico, expressa em
Cruz e Sousa ganhou deles não apenas
1850, por pressão britânica, na chama-
o sobrenome, mas uma educação esme-
da Lei Eusébio de Queiroz, conseguira
rada, quase aristocrática. Pôde, assim,
conscientizá-la da inevitabilidade de
estudar os clássicos, aprender línguas
se pôr um fim à instituição escravista.
estrangeiras, ter até mesmo como pro-
Não só por ser esta imensamente cruel
fessor um naturalista alemão, de nome
e desumana, mas por se constituir num
Fritz Muller, que se correspondia com
elemento chave a atravancar o progres-
Darwin. Essa formação permitiu que se
expressassem seus extraordinários dotes so de uma sociedade que se aproxima-
de inteligência e sua irresistível vocação va do século XX com os pés fincados
para as letras. numa instituição retrógrada, ineficaz e
antieconômica. O melhor retrato desse
Com todo esse preparo, o jovem
reacionarismo espelha-se na abordagem
Cruz e Sousa abraçou de início, o ma-
gradualista com que se deu a Abolição
gistério, lecionando na capital e interior
no Brasil, incluindo uma Lei dos Se-
da Província. A marca de sua origem,
xagenários cujo verdadeiro resultado
no entanto, não o deixará seguir uma
foi libertar os senhores da obrigação de
pacata carreira de mestre escola. A iden-
sustentar escravos anciãos.
tificação com a sorte de seus irmãos de
raça, submetidos a urna escravidão que Não pode surpreender, contra
já fora extinta em quase todo o mundo esse pano de fundo, a irada reação das
ocidental, por pressão da resistência ne- elites do Desterro à ousadia daquele ne-
gra, dos nascentes movimentos sociais e gro que, definitivamente, não conhecia
de urna triunfante Revolução Industrial, o seu lugar. A hostilidade branca impele
transformaria Cruz e Sousa num pala- Cruz e Sousa a deixar a terra natal, o que
dino da Abolição. Já em 1882 – aos 21 faz na qualidade de secretário e ponto
anos, portanto –, funda, numa primeira de uma companhia teatral em tournée de
colaboração pública com seu colega e Norte a Sul do País. No Rio de Janeiro,
amigo Virgílio Várzea, o jornal aboli- trava contato com a jovem intelectuali-
cionista Tribuna Popular. Ganha, assim, dade de então, cuja vanguarda buscava
100 THOTH 4/ abril de 1998
Atuação Parlamentar
livrar-se dos cânones asfixiantes que a manifestam uma vez mais quando, indi-
prendiam ao passado. De volta ao Des- cado para o cargo de promotor público
terro, integra-se ao movimento aboli- na cidade de Laguna, no litoral catari-
cionista, pela imprensa e pela tribuna. nense, tem sua nomeação barrada por
Publica em 1885, em coautoria com o pura e simples discriminação racial. Vai
amigo Virgílio Várzea, seu primeiro então para o Rio de Janeiro, onde vive-
livro, Tropas e fantasia. Numa combi- rá a fase mais profícua de sua carreira
nação estilística de veia parnasiana e literária.
condoreira, Cruz e Sousa compôs, nessa Em matéria de poesia, a década
fase inicial, notáveis poemas abolicio- de 1880 fora dominada pelo Parnasia-
nistas, como este belo e enérgico Escra- nismo, estilo caracterizado pelo culto à
vocratas, possivelmente escrito poucos
forma perfeita, ao helenismo, à impassi-
anos antes da Abolição:
bilidade diante do mundo e da vida. Por
volta de 1890, contudo, novos ventos
Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio chegam ao Brasil, soprados da Euro-
manhosos, agachados – bem como um crocodilo pa, tendo em Medeiros e Albuquerque
Viveis sensualmente à luz dum privilégio na pose o seu principal divulgador. Sob o nome
bestial dum cágado tranquilo. de “decadentismo”, trazem a mensa-
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas gem de Baudelaire, Mallarmé, Nerval,
ardentes do olhar – formando uma vergasta
Huysmans e outros poetas europeus.
dos mil raios do sol, das iras dos poetas
A nova tendência logo se constitui em
e vibro-vos a espinha – enquanto o grande basta
polo aglutinador de jovens escritores,
que em 1891 publicam no jornal carioca
O basta gigantesco, imenso, extraordinário Folha Popular, seu primeiro manifesto.
da branca consciência – o rútilo sacrário Eram signatários B. Lopes, Oscar Rosa,
no tímpano do ouvido – audaz me não soar. Emiliano Perneta e Cruz e Sousa. Nas-
cia o Simbolismo no Brasil. Dois anos
Eu quero em rude verso altivo adamastórico, depois, em 1893, dois livros de Cruz e
vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico, Sousa marcariam pela primeira vez a
castrar-vos como um louro – ouvindo-vos urrar! concretização dessas ideias neste País:
Missal (prosa poemática) e Broquéis
Se causavam ódio entre a elite (poesia). Embora ambas as publicações
reacionária, as posições de Cruz e Sou- passassem praticamente despercebidas
sa, e sobretudo seu talento e ousadia em aos contemporâneos, Cruz e Sousa tra-
defendê-las, também lhe conquistavam zia algo de novo, tanto em prosa quanto
aliados. Em 1886, é surpreendido por em poesia, à literatura brasileira – uma
uma triunfal recepção em sua chegada alta e luminosa novidade, hoje univer-
ao Rio Grande do Sul, momento de rara salmente reconhecida.
euforia numa vida marcada muito mais O poeta tinha agora 32 anos, e o
pela frustração e pela revolta. Estas se mundo à sua volta passava por impor-
Cruz e Sousa, na visão de Myrian T.M. Moreira. Inspirada pela notícia do prêmio insti-
tuído pelo Congresso Nacional em homenagem ao Poeta Negro, a autora – que tem 65
anos de idade e mora em Sorocaba, SP – pintou o quadro reproduzido acima e o enviou,
num gesto de espontânea beleza, ao Senador Abdias Nascimento (maio de 1988).
Pronunciamentos
Homenagem ao centenário de morte de João da Cruz e Sousa 103
EM
100
CONCURSO DE MONOGRAFIA
INFORMAÇÕES: TEL.: (61) 311-4229 FAX.: (61) 323-4340
PROMOVIDO PELO
CONGRESSO NACIONAL
Os 100 anos da morte de João da Cruz e Sousa
Oswaldo de Camargo 113
faz pelo amor físico e pela utilização de mos e fé em si mesmo, no território es-
sua beleza exótica, a do homem ocorre, tético cujo dono era o escritor branco,
antes de tudo, em virtude de seus dons no geral filiado ao Parnasianismo, ou o
artísticos. É pela música, a escultura ou a afro-descendente embranquecido, como
poesia que ele se eleva na escala social.” Machado de Assis, Olavo Bilac, Alberto
A seguir, Roger Bastide tenta ex- de Oliveira ...
plicar qual seria o motivo de o maior Por muitos anos após a morte de
representante da escola simbolista no Cruz e Sousa, sobretudo saída da boca
Brasil ser um descendente de africanos, e da pena de escritores negros e mula-
“um filho de escravos, um negro que en- tos, vigia a expressão “torre de marfim”,
controu sempre pelo seu caminho, para dentro da qual se teria refugiado o gran-
detê-lo, o preconceito de cor”. Ora, se- de Poeta Negro.
gundo Bastide, “se há uma poesia essen- Fernando Goes, estudioso cruze-
cialmente nórdica, essa será exatamente sousiano atilado, foi um dos que mais
a poesia simbolista”; daí o paradoxo, fizeram percutir essa critica, sobretudo
que só se pode explicar pelo caráter com a divulgação de seu texto Cruz e
“classificador” do Simbolismo. Sousa ou o carrasco de si mesmo, intro-
Esse estudo e os seguintes, com dução à edição da poesia completa por
os títulos A poesia noturna de Cruz e ele organizada.
Sousa; Cruz e Sousa e Baudelaire (estu- Diz ele neste fragmento: “Bem
dos de literatura comparada) e O lugar sei que a poesia verdadeira, a poesia que
de Cruz e Sousa no movimento simbo- se preza, não tem momentos, nem hora.
lista, são, talvez até hoje, as análises É de todos os instantes, de sempre. Mas
cruzesousianas que mais repercutiram o que eu quero dizer é que Cruz e Sou-
sobre a visão já um tanto estereotipada sa não cantou em seus poemas, nenhum
focando o poeta de Broquéis. Merecem daqueles temas que fizeram de Castro
leitura e meditação atentas. Alves um poeta tão amado, o nosso po-
A vida de Cruz e Sousa, é sabido, eta social. Não cantou e, antes, conser-
foi miserável, pontilhada de humilha- vou-se sempre com um desprezo, um ar
ções extremas. Morrendo dez anos após distante nada simpático, longe daquilo
a Abolição, carregou a miserabilidade que de há muito tem feito não só a gló-
de escravo que, aliás, prosseguiu sendo ria dos conquistadores, mas a dos poetas
a condição da maioria dos “libertados” também – a luta.
em 13 de maio de 1888. A cor negra, Nesse sentido, vendo em Cruz e
após 1888, continuou sendo, no corpo, o Sousa um abstencionista, um legítimo
sinal que indicava, com rigor, o territó- habitante da torre de marfim, que punha
rio em que devia permanecer o homem a arte acima da humanidade, nesse sen-
escuro: o mesmo de antes da Abolição. tido é que o reaparecimento dele, nestes
Leve-se em conta que Cruz e Sousa de dias de tão trágicos sacrifícios [Nota:
fato se intrometeu, picado por entusias- Fernando Goes se refere aos dias tor-
114 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
Eu quero em rude verso altivo adamastórico, Para cantar a angústia das crianças!
vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico, não das crianças de cor de oiro e rosa,
castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar! mas dessas que o vergel das esperanças
viram secar, na idade luminosa.
CRIANÇAS NEGRAS
Das crianças que vêm da negra noite,
Em cada verso um coração pulsando, dum leite de venenos e de treva,
sóis flamejando em cada verso, e a rima dentre os dantescos círculos do açoite,
cheia de pássaros azuis cantando, filhas malditas da desgraça de Eva.
desenrolada como um céu por cima,
E que ouvem pelos séculos afora
Trompas sonoras de tritões marinhos o carrilhão da morte que regela,
das ondas glaucas na amplidão sopradas
a ironia das aves rindo à aurora
e a rumorosa música dos ninhos
e a boca aberta em uivos da procela.
nos damascos reais das alvoradas.
WeekEnd de Noel Coward ou, quando ca, ornamentando suas ruas e avenidas
no Teatro Municipal, participava, com pelos carnavais.
sua garra de artista nata, em Gonzaga ou Pamplona, magro e de olhar des-
a Revolução de Minas, de Castro Alves, confiado, se move no salão nobre da
ou fazendo a ama simpática no Romeu e UNE com a desenvoltura de um en-
Julieta, de William Shakespeare. Como diabrado saci cosmopolita. Junto dele,
me esquecer da Jerusa que patrocinava Hugo Leite, tipo popular saído da Pra-
as Festas da Juventude, que, no Munici- ça Onze, traçando rumos maravilhosos
pal, nos fez ver uma deliciosa comédia para os seus irmãos estudantes. A UNE,
romântica de Coelho Neto, Quebranto, nessa época, era uma efervescência cul-
ou quando se iniciou a sua carreira de tural muito grande, com as direções exí-
artista e líder estudantil, com a peça, mias de Ernesto Bagdócimo, Genival
montada no Teatro Ginástico, O Mano Rebelo e Hélio de Almeida, que ali es-
de Minas, em que apareceu pela primei- tava todos os dias, ainda não esperando
ra vez em cena teatral essa imensa atriz ser o grande engenheiro dos nossos dias.
Wanda Lacerda? Lembro-me da noite, miraculosa
Havia uma casa de fachada aus- para mim, em que Bagdócimo recebeu
tera em que a pintura envelhecida esta- no salão nobre um velho já estropiado,
va descansando. Ficava na esquina da de muletas, a mancar como um rema-
Rua Buarque de Macedo com a Praia do nescente aleijado de guerra. Tratava-se
de George Bernanos, grande escritor
Flamengo. Ali, todos os dias eu ia dar
católico de minha paixão, que escreve-
minhas aulas de ginásio ou vestibular
ra dois livros de meu perpétuo encan-
de Direito para Walter, mineiro uberlan-
tamento: Sob o sol de Satã e Diário de
dense de olhar penetrante de índio, de
um pároco de aldeia. Para receber tão
tribo extinta do interior goiano. Quando
ilustre visitante, estava outro escritor de
alguém abria a porta para mim, já uma
minha paixão e de quem fui amigo mui-
jovem bonita dava aulas particulares de tos anos, Jorge de Lima.
piano para uma garota loura e de laço de
Não tive coragem de visitar meu
fita na cabeça. Em outra sala, uma jo-
amigo na Casa de Saúde São Sebastião,
vem de sapatilha dançava balé clássico,
na Rua Bento Lisboa. Sabia que aquela
ao som de uma romanza de Schwnan ou
moléstia que o prostrou ali, por tantos
Weber.
meses, não poupava ninguém. Já havia
Foi depois que vim a saber que dizimado um Afrânio Peixoto, uma Ce-
a moça do piano era Wanda Lacerda. A cília Meirelles, um Villa Lobos, e agora
esvaecente mocinha que lançava suas espreitava a hora oportuna para carregar
pirouettes desfouetés em passos mági- meu amigo para as regiões dos que vão
cos de dança é a atual esposa de Fer- e não voltam. Soube que ele estava uma
nando Pamplona, hoje um cenógrafo de sombra do que fora. Pouco falando, a
mão cheia que embeleza a cidade cario- sua voz parecia vir de longe, distante
124 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
da Rua São José; Adelino Magalhães, É que o tráfego das ruas não está fácil.”
com seu chapéu-coco, o terno impecá- Adelino, com o rosto severo e contraria-
vel de cor cinza e vistoso colete, sempre do: “Demorasse mais e nós começaría-
a olhar o antigo relógio que ele tirava mos a cerimônia sem você”.
de um bolso da calça de quina, feita im- Não sei por que a incompreen-
pecavelmente. O olhar mortiço e parado são da crítica em face de Adelino Ma-
contrastava com a sua conversa alegre e galhães. Até um luminar lúcido da aná-
vivaz, pondo a gente à vontade a contar lise literária como Tristão de Athayde
casos pitorescos e engraçados. Assen- mostrou-se obtuso a uma obra de tanta
tado, assumia o ar circunspecto de ho- sutileza psicológica como a de Adeli-
mem à antiga, tomando a postura digna no. Como ficar indiferente às modula-
de um barão do Império. Era a mesma
ções rítmicas dos “Violões”, “Um prego
coisa em seu casarão de Santa Teresa,
mais outro prego” e “Íris”, com aqueles
rodeado pelas lombadas encadernadas
monólogos dilacerantes dos persona-
de livros familiares e pelo silêncio inde-
gens que intercalam ou interrompem os
vassável que vinha dos belos aposentos
longos devaneios desse intimista mara-
de sua casa tão bonita. Quando eu orga-
vilhoso. Que emoções sutis perpassam
nizei uma festa em homenagem a Muri-
por essas sonoridades diferentes, de
lo Araújo, o poeta de “Banzo”, chegou
diálogos musicais e requintados. É ver-
atrasado à recepção que estava mArcada
para a antiga sede do Serviço Nacional dade que Adelino, por vezes, toma para
de Teatro, na Avenida Getúlio Vargas. modelo de sua obra-prima O suicídio
da engole homem, a Lapa turbilhante
Adelino Magalhães, sempre de
de uns 40 anos passados, com seus gi-
relógio em punho, com o rosto contra-
golôs ostensivos, suas hetaíras negras
ído pelo mal-estar, contava as horas e
e mulatas, desfilando pelas adjacências
os minutos do atraso de Murilo Araújo.
da Joaquim Silva, da Rua Taylor e Beco
A assistência que lotava o auditório já
das Carmelitas, numa mistura de obsce-
estava impaciente. Adelino, aborrecido,
nidade e pecado, poluindo de luxúria o
falou categórico como o homem correto
ar poético da noite pojada de mistérios
que presidia a sessão: “O Murilo mais
e lendas.
uma vez não chega na hora. Sempre
atrasado, como das outras vezes. O jei- Adelino emprega o linguajar ma-
to é começar a sessão sem ele”. Fiquei landro da Lapa, fiel à literatura popular
um tanto apreensivo de iniciar as sole- que Tristão e outros críticos desconhe-
nidades sem a figura do homenageado. cem. Só o que vive no meio do povo,
Quando ia demover o Adelino desse in- sentindo o pulsar do seu coração sofri-
tento insensato, eis que chega o Murilo do, é que pode imaginar a emoção do ar-
Araújo, todo apressado, com terno pre- tista retratando os tipos que viu e amou,
to muito vistoso, de chapéu cinza e um na turba, com a ressonância e beleza que
cravo escandalosamente escarlate na la- o poviléu toma ao penetrar, intempesti-
pela do paletó. “Desculpe o meu atraso. vamente, nos escritores do povo.
126 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
dados sob uma espécie de marquises do até que ano você estudou?” “Fiz todo o
Pavilhão Mourisco. Eram locais inde- curso ginasial em Uberlândia. Vim ao
vassados da polícia que os malandros ou Rio fazer o meu vestibular para ingres-
gatunos de Botafogo procuravam para sar na Faculdade Nacional de Direito.”
descansar de suas peripécias diurnas. “Onde vai você fazer esses prepara-
Quando a chuva caía inclemente sobre tórios?” Respondi-lhe que no Colégio
a cidade indiferente, o jeito era dormir Universitário, estabelecimento renoma-
no bonde até o ponto final, quando não do que ficava na Praia Vermelha e que
tinha que disputar a minha canoa-leito competia com o Colégio Pedro II no ga-
com algum marginal mal-encarado. barito dos professores, no ensino esme-
O sobrado amarelo de Dona rado e na afluência dos alunos das me-
Guiomar, uma senhora de Minas, da ci- lhores famílias da cidade. “Já que você é
dade de Oliveira, com seu piano desafi- um rapaz tão competente, não vai fazer
nado, tocando Sonata ao luar de Bee- mais esses serviços de gente inculta. Vai
thoven. Era aí uma pensão de estudantes dar aulas pra Teresinha. Vou ver se lhe
onde eu limpava, além dos quartos, uma arranjo outros alunos com gente de mi-
enorme escada em caracol que ia da sala nha convivência.” Assim, pude ter lugar
de visita até o andar de cima. Os rapazes para comer e dormir e levar uma vida
me olhavam com indiferença, talvez por menos agitada do que na época em que
causa de meu olhar humilde e do servi- meu dinheiro acabou e meu dileto cole-
ço um tanto humilhante que fazia. Um ga de infância, Dr. Oswaldo Godoy, me
dia a Teresinha, filha de Dona Guiomar, socorreu, dando-me o dinheiro necessá-
preparava uma tradução de francês e, a rio para me hospedar no Hotel Avenida,
certa hora, perguntou à mãe quais as tra- que ficava ali onde se ergue hoje o im-
duções dos vocábulos bossu e lointain. ponente edifício da Sears.
Dona Guiomar, que tocava um prelúdio Enquanto os meus colegas de for-
qualquer ao piano, respondeu que não matura vão e vêm pelo palco imenso da
sabia. Depois disse, em tom humorado: formatura com suas becas negras, vou
“Creio que não é preciso perguntar ao olhando professores e alunos que se cru-
Ironides, que ele não deve saber tam- zam, junto à mesa do centro. Depois é o
bém”. “Claro que sei!”, respondi a ti- discurso do orador, cheio de redundân-
rar a poeira da mesa, dos quadros e das cias e de um lirismo de garoto sonhador,
portas. Bossu se traduz por corcunda e contrastando com a oração do paraninfo,
lointain é distante, longe, longínquo.” que atacou os regimes fortes que tiram
Teresinha olhou pra mim admirada: “É a liberdade de ação e a iniciativa cultu-
isso mesmo. Há uma gravura de um cor- ral de todos os artistas livres e altivos.
cunda na página”. Dona Guiomar, com Nós que fizemos o juramento, ainda há
o ar benevolente daquelas matronas an- pouco, de sermos fiéis à liberdade e de
tigas, perguntou-me: “Você, Ironides, não abraçarmos nunca as causas de con-
deve ser um homem inteligente que está teúdo suspeito e antinacionalistas, ouví-
escondendo seu jogo para mim. Afinal, amos o ímpeto rebelde dessas palavras
128 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
ardentes que nos chamavam a atenção Garbo aparecerá, então, na sua verda-
para as próprias pugnas da democracia deira feição de mito e lenda, de mulher
a que tanto aspiramos e que sumiu, tra- sem igual e incomparável, de fulgura-
gada num regime de tantos atos incons- ção, de arte rutilante e sem par”.
titucionais. Folheava o álbum alheada, com o
Não ouvi sua voz, Celene, me rosto compenetrado de angústia e apre-
chamando, talvez das altas profundezas ensão: “Quantas vezes cruzei com ela
estelares. Falou-me num tom tão baixo por Florença, lá no Fiezole e pela Via
e magoado que pensei de algum anjo del Vechio. Ela a de sempre, de olhos
perdido que, ao cochilar, caiu distraído, negros, com o rosto sempre coberto
a dormir, de alguma estrela bem lumi- para não ser reconhecida pelo mundo
nosa e longínqua. É verdade que curti a que tanto a venera. Como não conhecer
sua ausência em Florença por uns bons sua efígie de feições do grego clássico
quatro anos. Agora avalio como pude que tanto nos deslumbrou em A dama
suportar a falta de sua figura diáfana e das camélias, Rainha Cristina, Roman-
esvanescente, tocando-me, ao piano de ce, O beijo, A carne e o diabo, Grande
sua sala antiga, Plus que lente, Le Jardin Hotel, Matta Hari, Ninotchka ou Como
sur la pluie, L’apres midi d’un faune, do me queres, Ana Christie e Inspiração?
meu amado Debussy, em que você dava Ela passou hierática e indiferente dentro
toda a sua alma de artista jovem e ator- daquele mistério que lhe aureola a fama
mentada. Depois ficávamos olhando o de mulher bizarra e indiferente às adula-
álbum de uma artista estranha de olhos ções e aplausos do mundo.
magnéticos, boca de ar sensual e, por
vezes, pura, a longa cabeleira no ombro Carrega, em suas viagens e cru-
e o rosto transmitindo angústia, medo, zeiros internacionais a sua insegurança
ternura e mistério que você contempla- emocional pela perda de seu mecenas,
va a dizer: “E pensar que toda essa bele- Maurice Stiller. Talvez oculte uma dor
za um dia vai perecer. Essa voz de tanto tão grande que quer que a mesma seja
dulçor cristalino vai emudecer, comida desconhecida pelo resto dos mortais,
pela terra. Esses braços, que se move- numa altivez e desdém próprios das
ram qual Duse e Sarah Bernhardt, serão deusas Juno e Minerva. Em Paris foi o
destruídos implacavelmente pelo tempo mesmo enigma dela fugindo dos jorna-
voraz. Um dia (que tristeza haverá pelo listas e se ocultando sob umas roupas
universo inteiro) toda essa enciclopédia masculinas estranhas e colocando seus
de arte e beleza, de fascínio e mistério, olhos de cílios incomparáveis sob a obs-
será um eco longínquo e passado. Mas curidade gritante de uns longos óculos
tenho certeza de que esse nome, esse gê- escuros. Naquele café do subúrbio pa-
nio da arte de representar, esse rosto de risiense onde penetrei um dia, vi aquela
múltiplas aparições e de clássica beleza mulher que entrou com longo vestido
aparecerão, com os contornos definidos de seda branco, cinto prateado e luzidio
de maior artista do seu século. Greta e assentou-se naquela mesa do centro,
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 129
ção que a mulher de um pescador fazia ticipou, com êxito, de muitas peças do
ao marido. Benjamin era insuperável Circo Spinelli.
nessas interpretações de padre velho e Olhando-se a trajetória de Ben-
guloso em Diabo no convento, do ho- jamin, por mais de 60 anos de triunfos,
mem atormentado em Remorso vivo ou sem conhecer decadência, vê-se a sua
quando dançava a chula de modo ir- superioridade sobre outros clowns de la-
repreensível, nos seus 70 anos e ainda titudes diferentes, como os irmãos Fra-
carregando Cacilda Gonçalves, fazendo telini ou o consagrado Grock, o palhaço
o público delirar com a força física do do Porto, de Portugal. Havia um outro
grande palhaço e imenso ator negro. Um palhaço, Polidoro, que gozou de crédi-
na plateia gritou depois do lance: to imenso na época de Benjamin e que
– Você não é mais homem para pegou a evolução do circo brasileiro de
estas proezas, Benjamin! 1890 e tanto até perto de 1950, quando
Ao que ele retrucou de pronto a re- morreu. O circo da Belle Époque era
quebrar-se, numa chula de letra maliciosa: povoado de cançonetas francesas, das
– Bananeira velha também dá canções brejeiras de Ernesto Nazareth e
bom cacho. daquelas melodias de Catulo que o Baia-
no, com seu vozeirão seresteiro, cantava
Em seu camarim, pintando as
no teatrinho ao ar livre do Passeio Pú-
pálpebras de tinta branca, carregando
blico. Lá por 1940 e tanto, Benjamin vi-
mais o alvaiade do rosto para melhor
via com Rosalina, moçoila mulata bem
enfrentar as luzes dos refletores, Benja-
bonita com quem morava numa casinha
min vai ouvindo um moço preto a ler-
-lhe as piadas e graçolas escritas num simples e ensolarada de Vigário Geral.
caderno, que Benjamin depois repetia, A ela Benjamin ensinava as modinhas
recriando-as, no imenso picadeiro da mais sentidas de Catulo da Paixão Ce-
vida. O interessante é que esse homem arense e Anac1eto de Medeiros. Contra
que não sabia ler ditava peças de alto a vontade dos filhos, Benjamin uniu-se
conteúdo dramático, era respeitado por a essa mulata sedutora que cantava com
grandes literatos da cidade, como Catu- voz belíssima, contagiando até mesmo
lo da Paixão Cearense e Artur Azevedo, um homem exigente como Catulo. Este
levando ao Circo Spinelli, do Boulevard disse a Benjamin, certa vez: “Arranjaste
de São Cristóvão, o que havia de mais um canário, meu nobre palhaço, um ver-
requintado para se aplaudir: O chofer dadeiro canário”.
e a viscondessa, com a aplaudida atriz A vida de Benjamin transmudou-
Lili Cardona, que eu conheci já enve- -se num verdadeiro paraíso, com Rosa-
lhecida e que, quando jovem, era artista lina incentivando-lhe a carreira, sempre
de mérito, com uma voz inconfundível, a acompanhá-lo no Circo Dudu, dando-
a gorjear as mais belas árias da opereta -lhe um certo apoio moral com sua bele-
Viúva alegre, de Franz Lehar. A própria za e juventude irrequieta. Um dia, Rosa-
esposa de Benjamin, Dona Vitória, par- lina desaparece, sem explicação, da vida
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 131
chapéu, luvas, colar de pérola, dava as vatura. Joaquim Nabuco encarou essa
suas aulas de modo solene. Por vezes parte do problema com muita acuidade
vinha o professor Delaura, de polainas, e visão sociológica em O abolicionis-
nos sapatos impecáveis, o fraque que ta. Nina, pelo reacionarismo da ciência
lhe dava um ar majestosamente profes- do seu tempo, foi obtuso em perceber
soral. Lecionava Literatura Geral, sen- a verdade, além de produzir conclu-
do até o catedrático da matéria. O pro- sões reacionárias tão semelhantes às do
fessor de Psicologia, Dr. Lins e Silva, douto Sílvio Romero. Guerreiro Ramos
falava baixinho, de modo imperceptí- assim viu, num lance de grande destre-
vel, mas que grande sabedoria em suas za mental, em Cartilha de um apren-
palavras! Ao fazer uma conferência diz de sociologia, quando se insurgiu
sobre Joaquim Nabuco, levou, para as- contra as asseverações racistas de Síl-
sistir a ela, a filha do abolicionista per- vio Romero e Nina Rodrigues, taxando
nambucano, Dona Carolina Nabuco. O o negro de raça inferior, não vendo aí
professor Lins e Silva era um escritor uma falta de oportunidade de ultrapas-
correto e modelar, como se pode ver sar o seu status social, porque o branco
num livro quase definitivo que deixou fez a sua abolição, mas não lhe deu os
publicado na Edição Leitura, Atualida- meios de educar e evoluir. Na Améri-
de de Nina Rodrigues, em que olha o ca do Norte ainda houve um Booker T.
africanista maranhense sob o ângulo de Washington que, fundando colégios em
iniciador dos nossos estudos afro-bra- Tuskegee, atraiu a gente negra para os
sileiros e do estudioso preconceituoso estudos culturais e para aprender um
do negro no Brasil, vendo tudo com a ofício, por mais humilde que fosse. De-
falsa ciência de um Charcot e da pior pois foi a vez do cientista Carver, que
escola de antropologia do tempo, per- também pensou em elevar a sua gente
cebendo inferioridade racial onde ha- pelo ensino, pelo trabalho, a fim de que
via falta de oportunidade de ascensão o branco americano a respeitasse mais.
social para o negro. Foi por essa falsa
visão de Nina Rodrigues que seus dis- Após um ano no Colégio Uni-
cípulos, como Afrânio Peixoto e Edson versitário – não sei que inveja ou es-
Carneiro, desvirtuaram toda uma aná- tranha politicagem conseguiu fechar
lise lúcida que deveriam ter os estudos esse grande estabelecimento, o melhor
afro-brasileiros. Só um Artur Ramos, do Rio em seu gênero –, passamos para
um Roger Bastide, um Florestan Fer- o Colégio Pedro lI, que era também
nandes e, mais que eles, um Guerreiro um padrão do ensino geral. As aulas
Ramos puderam colocar em seu devido de História da Filosofia do Professor
lugar o conceito justo de que não se deu Nelson Romero, filho do grande críti-
a devida importância do nosso racismo co de nossa literatura, Sílvio Romero...
disfarçado, que tolheu os movimentos Álvaro Lins, apesar de iconoclasta em
da gente negra, não lhe dando a educa- suas opiniões facciosas sobre Coelho
ção adequada após a abolição da escra- Neto, Tasso da Silveira, Afrânio Pei-
134 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
xoto ou Ribeiro Couto, foi consumado prova tirando todo o assunto das pró-
mestre de Literatura nas aulas da tarde. prias ideias. Daí o alarmante número de
Pela manhã, as aulas eram ministradas notas ruins, aliado ao fato de que Alci-
por Manuel Bandeira. Os volumes do des Gentil não dava aula que atraísse os
nosso mestre, como Jornal de crítica ou alunos... O próprio Delgado de Carva-
a História literária de Eça de Queiroz, lho, de renome brasileiro e internacio-
andavam de mão em mão. Lembro-me nal, depois nos deu aulas de Sociologia,
da celeuma que se levantou em torno da desajudado por pronúncia defeituosa.
conferência de Álvaro Lins sobre um As aulas de Geografia eram dadas pelo
crítico frio e rígido como José Veríssi- Dr. Mário Porto, que na minha terra,
mo. Álvaro tentava supervalorizá-lo, Uberlândia, deixou um nome respeitá-
em excesso, acima de Sílvio Romero, vel pela efervescência cultural no seu
quando é o contrário. Sílvio tinha uma Ginásio Mineiro, nos idos de 1928 a
excelente bagagem cultural e científica 1933, contendo um professorado que
que faltava a José Veríssimo. Este olha- faria o orgulho de qualquer estabele-
va o fato literário pela própria criação cimento de ensino do Brasil: Dr. Luís
em si, sem notar o meio e a formação Rocha, Domingos Pimentel de Ulhoa,
psicológica do autor. Todos os escritores José Aparecido Teixeira, Eurico Silva,
que Sílvio Romero elogiou ou de que Nelson Cupertino, Alfredo de Frei-
traçou o perfil estão mais vivos do que tas Macedo, João Gonzaga, Cônego
nunca. Ao traçar a análise sobre Cruz e Eduardo, Pedro Bernardo Guimarães
Sousa, Luís Delfino, Bernardo Guima- e Elisa Marquês. O Professor Milton
rães, Tobias Barreto, Nestor Vitor ou o Porto, irmão do Dr. Mário, ali fundou o
novel sociólogo negro, precocemente Liceu Osvaldo Cruz, que muito contri-
desaparecido, Tito Lívio de Castro, Síl- buiu para o engrandecimento cultural
vio crispava-se de fagulhas divinas, es- de minha Uberlândia, aceitando, além
bravejava de entusiasmo e beleza, como dos alunos que moravam no centro da
um possesso, arrebatado pela mágoa do cidade, os que vinham das vilas mais
analisado. longínquas.
O seu discurso de recepção na Essas as reminiscências que vou
Academia a Euclides da Cunha honra o relatando, enquanto se passam os fes-
pensamento brasileiro. Ninguém mais tejos de minha formatura. Ainda não
pode dizer que conhece Martins Pena se iniciou a entrega simbólica dos di-
sem ler o ensaio penetrante e exato de plomas e nem um colega leu o jura-
Sílvio sobre o fundador do teatro popu- mento que todo advogado de vergonha
lar no Brasil. Alcides Gentil, ensinan- deve cumprir. Nos balcões, galerias e
do sociologia, estava muito aquém do poltronas, as mães de alguns colegas,
homem que escreveu um livro sobre o companheiros, amigos gritam por seus
ideário político e sociológico de Alberto nomes, lá do alto do teatro: Teresinha!
Torres. Não gostava que os alunos con- Paulo! Lia! Expedito! Dacle! Mafran!
sultassem compêndios: que fizessem a Regina!, numa euforia que dá bem
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 135
ideia do que foi aquela efeméride de 9 nas falar com tanta segurança sobre o
de novembro de 1974, que caiu numa imperativo categórico da moral kan-
segunda-feira ensolarada e com uma tiana e sobre a crítica da razão prática
noite de estrelas de fazer inveja à cin- do mesmo Kant, tudo isso de permeio à
zenta Albion. intuição bergsoniana, que se contrapõe
Os exames na Nacional de Di- ao conhecimento por estudos e altas es-
reito não foram fáceis em 1943. Mas, peculações filosóficas. A intuição faz a
para quem cursou o vestibular no Colé- pessoa aprender tudo por si mesma, pela
gio Pedro II e no Colégio Universitário, própria inteligência, sem que tenha cur-
nada havia a temer. Fiz as provas com sado altos estudos para isso. Depois foi
a cara e a coragem, depois de estudar a vez do divino Platão, quando falei da
pelas madrugadas afora, com os olhos República, de O banquete e da Apologia
vermelhos de insônia e cansaço. de Sócrates.
Um pequeno incidente com o exa- O exame de latim, que é uma de
minador de português, Clóvis Monteiro, minhas matérias preferidas, foi o melhor
quando lhe expus meu ponto de vista so- possível. Um trecho das Catilinárias, de
bre o padre Antonio Vieira, ao chamá-lo Cícero, um da Eneida, de Virgílio, outro
de gongórico. O mestre ficou uma onça: da História, de Tito Lívio, sem contar o
“Que é isto, filho? O padre Vieira gon- fragmento de Horácio em que ele pede
górico? Não há escritor mais puro e cris- ao mar Jônio que leve, incólume e sem
talino em todo o nosso idioma”. Depois, perigo, o seu Virgílio pelo oceano afora
simpatizando comigo, tentou arranjar- em busca de paz e reconhecimento, apa-
-me algum emprego no Externato Pedro rentemente numa jornada sem retorno.
II, de São Cristóvão. Ia lá todos os dias à O examinador pegou a frase demidium
procura de mestre Clóvis, embalado por meae animae e, com ela, pediu-me a
suas promessas, mas depois vi que ele análise e a interpretação de “Metade de
nada conseguiria. Minha fome e o di- minh’alma”.
nheiro do aluguel do quarto não podiam
esperar... Raja Gabaglia, com seu vozei- Quem foi que disse que há, na
rão meio enrouquecido, me arguiu, jun- poesia de Horácio, uma imensa vulga-
to de Nelson Romero, sobre História da ridade? Que nos assuntos de suas odes
Filosofia. O ponto que caiu não era de se ou poemas satíricos a futilidade domi-
deslindar imediatamente, mas acontece na como os vagalumes cintilantes pelos
que eu gostava demais da matéria, pois prados mineiros ao entardecer?
só tirava 100 com Nelson Romero. Dis- Eu, por mim, tenho uma predi-
sertei como pude sobre Kant, Bergson leção toda especial ao sentido canto do
e Platão. eterno Horácio: “Ad navem qua veheba-
Tenho a impressão de que mestre tur Virgilius Athenas proficiscens” (Ao
Raja deve ter ficado um tanto surpreso navio que levava Virgílio para Atenas).
ao ver um preto lá dos rincões de Mi- O tom do poema é sentido e lírico, pare-
136 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
nos linquimus fines patriae et arva dul- não poderia fazer um curso regular. Foi
cia (nós deixamos os territórios da pá- o que aconteceu comigo. Mesmo com
tria e os (seus) campos amenos)”. esses contratempos, ainda tirei notas
Esse diálogo de dois pastores, distintas em Teoria do Estado, Introdu-
um, Melibeu, expulso de suas terras, ção à Ciência do Direito e Economia
que se encontra com outro pastor, Títi- Política.
ro, tranquilo e calmo, deitado a sonhar, Na segunda série, lembro-me que
à sombra de opulenta faia. Em face da tive uma forte turra com o professor
adversidade de Melibeu, Títiro convi- Amoldo Medeiros, que, numa prova de
da-o para repousar em sua casa. Títiro Direito Civil, tentou amesquinhar-me
é mais feliz, pois não foi banido dos ao me comparar com o Dr. Jacarandá,
pátrios lares e por isso tem tempo de, um famoso rábula negro que, na época,
“tranquilo à sombra da faia (lentus in soltava muitos réus presos incorrigíveis.
umbra fagi), ensinar as florestas a repe- Respondi-lhe, ríspido, que era muita
tir (o nome da) bela Amarilis” (lentus honra parecer-me com o Dr. Jacarandá,
in umbra, doces silvas resonare formo- pois esse preto velho e rábula do fórum
sam Amaryllida). Amaryllida aí, como carioca pelo menos era um benemérito
em toda poesia bucólica que se preza, libertando tantos presos que, por outro
é um acusativo. Vê-se nesse diálogo de modo, mofariam nos distritos e nos pre-
pastoral onde nosso Cláudio Manuel sídios. Muitos anos depois descobri que
da Costa foi buscar inspiração para sua esse mestre de Direito Civil não supor-
Nize e também onde Tomás Antônio tava pessoa de cor, a tal ponto que fez o
Gonzaga, em sua Arcádia de efeito en- possível para prejudicar certo professor
cantador, foi buscar motivo para Marí- formado em Direito na Itália e que teve
lia de Dirceu. de revalidar o seu diploma no Brasil. Ao
Fazemos tantos planos para de- prestar outro curso, na Nacional de Di-
pois tudo terminar em nada, tal qual a reito, teve notas de bom a ótimo, mas,
folha inconsciente que o vento leva, ao quando chegava à vez daquele mestre,
léu do mistério indecifrável do destino. encontrava uma barreira intransponível.
Tanta luta e sacrifícios anônimos para Mas este acabou dando a nota que o tal
um fim mesquinho e inglório, deitado professor negro merecia...
num caixão de ínfima classe, os braços Abandonei a Nacional por mui-
cruzados ao peito, os olhos arregalados tos anos. O interessante é que por esse
de espanto ante o último fracasso de um tempo eu preparava legiões de alunos
drama, em seu epílogo inesperado e hu- para ingressar na minha Faculdade ou
milhante. na Faculdade de Direito do Rio de Ja-
Em 1941, a Faculdade Nacional neiro, situada no Catete. Todos foram
de Direito tinha apenas aulas de manhã aprovados nas matérias que lhes minis-
e à tarde, e o aluno pobre que porventu- trava: Francês, Latim, Literatura Uni-
ra ali ingressasse e tivesse que trabalhar versal, História da Filosofia ou História
138 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
os talentos mais capazes, aquelas pes- da gente anônima que afronta a condu-
soas de fibra que deram o melhor de si ção das seis horas da tarde, na Central
mesmas para o maior aperfeiçoamento e na Leopoldina. À hora do rush, numa
ético dos homens. O professor sempre aglomeração de amedrontar um Hércu-
morre pobre e esquecido, enriquecendo les, vê-se gente correndo, empurrando
a mente de tantos discípulos que não e lançando-se em fúria por portas e ja-
dão o valor devido ao impulsionador de nelas, numa ânsia incontida de animais
suas inteligências. furiosos, que se investem, aloucados, na
Dona Maria de Lourdes Noguei- primeira pessoa em frente, quando es-
ra, tão esforçada e dedicada ao ensino, pavoridas ante o ribombar de um trovão
orientadora segura de todos os alunos, ensurdecedor. E a calma e paciência da
descansa num túmulo branco do Cemi- velhinha que está de pé, do velho que se-
tério São João Batista, assim como o gura a pasta e da mocinha que empunha
mestre Dr. Mário Porto, que foi advo- os cadernos de aula. Quando vou para
Bento Ribeiro é quando o trem se en-
gado, jornalista e poeta, sendo, acima de
che de estudantes do Piedade e da Gama
tudo, mestre devotado de tantos rapazes
Filho, trocando ideias sobre seus pontos
e moças do Brasil. Descansam das lides
de Direito e Medicina, ou quando é um
inglórias que travaram, mas que os anos
humilde rapaz do Senac, com seu maca-
mostraram serem obras de grandes idea-
cão azulado, que lança um olhar triste
listas, cujos feitos as gerações vindouras
à paisagem suburbana que passa ante o
reconhecerão, agradecidas.
andar veloz do trem.
Subir, pelos trens suburbanos,
Um velho que lê O Dia, para a
todos os dias, até meu Bento Ribeiro,
leitura e olha desalentado para Quinti-
olhar essa gente pobre que enfrenta uma
no: “Isto não vai pra frente. São só casas
condução penosa e fatigante. Lavadei-
baixas, aquele coreto velho na praça e
ras com trouxas de roupa à cabeça, es- uma ou outra casa comercial para o con-
tudantes, velhos, moços, mães carrega- sumo da pequena população de traba-
das de filhos, baleiros, vendedores de lhadores anônimos”. Um outro senhor,
amendoins, o homem que oferece livro de olhar humilde como de cão espanca-
de modinhas e que canta melodias de do, retruca: “O subúrbio também conhe-
Roberto Carlos e Waldick Soriano, e ce o progresso. Veja o conjunto residen-
até os pingentes que enfrentam a morte cial que construíram em Osvaldo Cruz.
oscilando pelas portas escancaradas, no Quanta gente sem recursos foi morar ali,
abismo oscilante, enquanto a voz rou- pagando uma mensalidade irrisória?”
fenha de um cego, guiado por menino Aparentemente, Sampaio, Riachuelo e
de pé no chão, vem cantando em sua São Francisco Xavier pararam no tempo
viola de corda “Se você jurar”, de Is- e no espaço, mas olhando-se bem se vê
mael Silva. um certo pulsar de desenvolvimento em
Se os nossos ministros viajassem suas casas de pequena altura. Graças a
de trem e conhecessem o sofrimento Deus os edifícios lá do centro não nos
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 141
vieram tapar o sol do dia. A poluição darem uma boa sombra acolhedora nos
dos numerosos carros, só no Méier ou dias de estios insuportáveis. Na grama
na portentosa Madureira. Fiquei espan- verde que cobre uma parte da rua, um
tado, ante a quietude quase bucólica de cavalo branco saído da pintura bizarra
Bento Ribeiro, em saber que houve um de Gauguin pasta tranquilamente, con-
assalto na padaria da Rua Picuí e outro, vidando algum bêbado ou mulher mais
em pleno dia, no Banco Boa Vista. Isso alegre para uma viagem quimérica à Ci-
é acontecimento esdrúxulo, sabendo-se térea de Wateau e Beaudelaire.
que em Copacabana, Tijuca ou Ipanema De um lado a outro do rio, ma-
o número de roubos, assaltos e morte à monas, hortas e mangueiras. Urubus
mão armada escapa à vigília de uma es- voejam em bando, em busca de carniça
tatística severa e atenta. próxima. Por falta de educação popular,
Esta rua que vai dar na estação já ainda não convenceram os moradores
foi esburacada e poeirenta. Hoje, nela se adjuntos, de que eles devem manter o rio
levanta o conjunto residencial em que sempre limpo, sem jogarem colchões,
moro, com suas linhas nobres de gran- lixo e outros apetrechos em suas águas,
de beleza. A Rua Picuí sai do Largo do entupindo a corrente que corria livre-
Sapê, nas confluências da Estrada do mente e ocasionando no rio, por vezes,
Portela, Madureira, e vai terminar perto inundações danosas às casas limítrofes,
da linha férrea. O povo, em seu parci- que causam certo pânico aos humildes
monioso meio aquisitivo, derrubou uma moradores. Limitando-se com Bento
parte do muro das estações de Bento Ri- Ribeiro está outro subúrbio promissor:
beiro e Osvaldo Cruz e por ele atraves- Rocha Miranda. Um lindo curso de tri-
sa a gare, pulando por cima de trilhos e lhos perigosíssimos separa o meu bairro
mata-burros, para viajar nos trens subur- de Rocha Miranda, que é bem populoso
banos, de graça, não sem enfrentarem e progressista e cujas ruas têm nomes de
uma morte imprevista e repentina. pedras preciosas e pássaros. Uma artéria
Só com a inauguração do conjun- larga e curiosa se vê na viagem que se
to residencial é que se inauguraram as faz de ônibus até a cidade: Avenida dos
padarias e os armazéns, já que a Rua Pi- Italianos.
cuí é habitada por gente da camada mais Nessas casinhas de quintais, com
pobre e trabalhadora, encontrando-se portões semiabertos, mocinhas român-
também nela estudantes, militares, mo- ticas conversam com rapazes sonhado-
toristas de táxi, domésticas, lavadeiras, res, acácias amareladas caem em frente
etc. Um riacho de águas turvas corre no a saletas antigas, onde se veem quadros
meio da Picuí, sendo que, em épocas de à parede, mobília simples e nova, en-
chuvas torrenciais, ele transborda pelas quanto James Brown berra a todos os
casas circunvizinhas, como rio de boa pulmões, numa vitrola portátil. Nos
estirpe que é. Estão plantando amen- passeios, jovens cabeludos e de black-
doeiras no trajeto da via a fim de nos -power estão assentados, enquanto na
142 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
próximo reinado que não chegou a reali- carnavalescos com Diná, a eterna porta-
zar-se, ela ficou do lado dos negros opri- -estandarte da cidade; Bené organizan-
midos, não ouvindo nem os conselhos do seções culturais, em sua entidade an-
sensatos, mas reacionários, de Cotegipe. tirracista, quando não homenageava as
Tenho o preconceito racial na car- pessoas gradas que aportavam à minha
ne. Lembro-me de que certa vez soube, terra; Alceu Marcelino, operário humil-
já no fim de meu curso ginasial, que de que junto de Doca, sua mulher, ofe-
certo professor teve que imiscuir-se na recia a casa simples e hospitaleira para
eleição para orador da turma, impedin- esses fins; Anísio; até Chico Pinto, na-
do-me que fosse eleito, para que a cida- quele longínquo 1933, já pensava num
de, “com a minha eleição, não pensasse teatro só de negros, numa época em que
que só um negro tinha competência para era difícil fazer até o teatro usual.
falar em nome de seus colegas de tur- Chico Pinto, lutando contra to-
ma”. Isso me entristeceu a tal ponto que das as reações inimagináveis, conse-
me recusei a participar das festividades
guiu montar “Kalu – o príncipe de alma
“bacharelícias”, em 1942. É verdade
branca”, com artistas negros e brancos.
que muitos professores que honram a
Levada no Cine Teatro Avenida, Chico
sua formação liberal aconselharam-me a
mostrou, com essa peça musical e bela-
não dar importância ao episódio racista,
mente plástica, até onde se podia contar
mas aquele episódio me ficou gravado
com o poder de interpretação espontâ-
n’alma. Esta minha índole combativa
a todos os preconceitos do mundo me nea do artista negro. Mais de trinta artis-
vem de muitos anos atrás. tas passando e representando pelo palco
a história de um príncipe negro que os
Em Uberlândia, eu e o Chico Pin-
brancos, com engodo e evasivas, retiram
to, irmão de Grande Otelo, tínhamos um
de sua ilha e levam para a escravidão da
jornalzinho, A Raça, em que debatíamos
cidade tentacular. O efeito do espetácu-
que a única esperança para tirar o negro
da miséria econômica e cultural em que lo foi de espanto. Uberlândia não estava
ele está mergulhado é a educação. Um ainda preparada para tão tremendo im-
pugilo de homens de cor, com decisão e pacto. Chico já havia trabalhado em to-
denodo, se reunia para traçar programas das as representações teatrais da cidade,
depois que saía cansado da longa ativi- desde os tempos de D. Alice Pais, dire-
dade diurna. Esses negros admiráveis tora do Grupo Escolar Bueno Brandão,
esqueciam seus problemas domésticos até a fase áurea desse grande estabele-
para pensarem na desgraça nacional de cimento, com a inolvidável mestra D.
seus irmãos de raça. Relembro todos Judite Moreira, que dirigiu bonitos es-
eles com carinho e amor, embora qua- petáculos no Cine Teatro Avenida, todos
se todos estejam dormindo profunda- com Chico Pinto cantando, dançando e
mente. João Benedito Brasil (o Bené), dizendo textos, com a classe de um ver-
organizando seus famosos préstitos dadeiro show-man.
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 145
Grande Otelo saía sempre acom- povo religioso no templo para depois
panhado da Tia Silvana, negra forte e animar, com compras e vivas festivas, os
sacudida, que gostava de uma “birita”, concorridos leilões ou ficarem admiran-
sempre trazendo um galho de arruda atrás do os rojões subindo coloridos no céu.
da orelha. Era cozinheira de mão cheia, Que zoada é esta, que vem lá do
sempre chamada às casas grã-finas para Fundinho, com ressonâncias de instru-
comandar os grandes banquetes. O Ote- mentos rítmicos e de sons estranhos? É a
lo, eu o via sempre cantando e dançando, congada ou moçambique que vem lá da
revirando os olhos de um modo cômico casa da preta Doca ou da casa da Sim-
e irresistível. Lá na Pensão da Cobra, plícia. Sempre esses pretos com indu-
bordel movimentado da Rua Cesário Al- mentária de seda cor de rosa ou esverde-
vim, as raparigas mandavam o engraçado ada, com chapéus de arminho e espelhos
crioulo dançar o Shimmy ou o charleston, pequenos no centro, vêm cantando pelas
o que ele fazia com propriedade e gestos ruas afora, com instrumentos típicos que
engraçadíssimos. vão do pandeiro, viola, atabaque e até os
Com tão elevada veia artística, ressonantes bombos. Trazem um longo
Otelo às vezes trabalhava nos circos mastro com a imagem de Nossa Senho-
improvisados lá no Hotel do Comércio, ra do Rosário na ponta, de onde descem
de Dona Sinhá de Abreu, minha mãe de fitas longas e multicores que os moçam-
criação, onde ele fazia os papéis mais biques vão desenrolando e traçando, ao
cômicos no picadeiro de farelo, junto da som de músicas nostálgicas e tristonhas,
pequena Zulmira e do seresteiro Babá, sempre seguidas de um refrão intermi-
que cantava nesses espetáculos com seu nável: “ó Senhora do Rosário”. Dançam
vozeirão espantoso. A cidade era ainda em volta do mastro, mexendo nas fitas
São Pedro de Uberabinha. que se traçam, multicores, enquanto re-
A cidade vivia mais para os lados quebram e gesticulam ao som dos bár-
do Patrimônio. A diversão era o Cinema baros instrumentos que acompanham a
São Pedro, do Custódio Pereira, onde música lenta e sincopada.
meu tio Evaristo assistia a todos os fil- A Congada agora sai na festa de
mes da Vitagrapho. No Largo da Matriz, Nossa Senhora do Rosário, que foi mAr-
estava a Igreja de Nossa Senhora do Car- cada para o mês de outubro, em que os
mo, padroeira da cidade. Nas novenas negros locais também festejam o outro
rezadas pelo padre Albino, reunia-se o padroeiro da negritude: São Benedito.
Como parte das celebrações do
As exclusões da Dia Nacional da Consciência Negra e
da imortalidade de Zumbi dos Palma-
globalização: res, o Centro Cultural José Bonifácio,
pobres e negros situado na cidade do Rio de Janeiro,
promoveu nos dias 17 e 18 de novem-
bro passado a Kilunge – Primeira
Feira do Livro Afro-Brasileiro. Além
do lançamento de vários títulos de
autores afrodescendentes, ou sobre a
questão negra, o evento teve ainda a
participação da poetisa Elisa Lucin-
da, que apresentou seu espetáculo “O
semelhante”.
A outra atividade do evento foi
uma conferência proferida pelo pro-
fessor Milton Santos, ocasião em que
este abordou temas contemporâneos
de fundamental importância no pro-
cesso de organização e avanço da
Milton Santos comunidade afro-brasileira. A revista
Thoth esteve presente ao aconteci-
148 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
As séries são muito frequentes nas te- “socialidade”, que também é demArca-
ses de mestrado e doutorado. Não va- da pelo território, pelo espaço.
lem para nada, se eu não for capaz de Quando chegamos nessa área,
dar valor histórico a cada coluna, e cada não apenas nos defrontamos com casas
coluna se insere uma realidade históri- que têm uma cara parecida, mas nos
ca diferente. Mas eu uso tranquilamente indagamos sobre que sociabilidade e
a série nos meus trabalhos – todos nós que “socialidade” existem nessas casas
usamos. É assim que nos promovemos, junto com os homens. Então, eu pro-
é assim que conseguimos empregos nas poria três dados de base para estudar
universidades, é assim que nos tomamos a nossa questão. Eu disse que não sou
conhecidos e, às vezes, famosos. Mas especialista, não sou antropólogo, não
que é que eu posso fazer com uma série tenho formação adequada para propor.
de estatísticas, inclusive sobre a questão E o que estou trazendo é fruto da mi-
negra no Brasil, se eu não for capaz de nha experiência, que é também a ex-
interferir na história concreta, não dos periência dos outros, porque ninguém
negros separadamente, mas da socieda- vive isoladamente. Haveria três dados
de brasileira? Não é hora de nos gastar- de base que permitem trabalhar a nossa
mos extenuadamente no conhecimento questão. Um dado de base é o que estou
exclusivo da condição do negro. A hora chamando de “corporidade”, outro é o
é de levar em conta a sua presença fren- que estou chamando de individualida-
te às outras presenças dentro de um País de e o terceiro é o que chamamos de
que se chama Brasil. cidadania. O que exatamente buscamos
Racismo, preconceito, discrimi- definir na introdução dessas palavras?
nação. Objeto de 40 mil colóquios. Ora, A “corporidade” é feita de dados obje-
se vou me preocupar com essa discus- tivos, a individualidade, de dados sub-
são gramatical entre o que é precon- jetivos, a cidadania, de dados políticos.
ceito, discriminação ou racismo, e as Desculpem evocar o meu caso
suas diferenças. Rios de tinta correram pessoal. Tenho instrução superior e pos-
e a universidade sorriu contente ao ler so apresentar um documento, imagino
essa literatura. O que posso fazer com que sou uma individualidade forte, mas
isso? O que estou querendo é que a gen- tenho certeza de que neste País não sou
te mude, a começar pela minha casa, um cidadão completo. Eu não posso ser
que é a universidade, de atitude dian- cidadão se não sou tratado como cida-
te desse problema central do Brasil. O dão, e não sendo tratado como cidadão
que eu vou propor agora, e que vai ser raramente serei tratado como uma indi-
o centro do que vou dizer depois, é que vidualidade forte.
o que está em questão é a “socialidade”. Essa categoria de formação so-
Isto é: como as pessoas vivem juntas em cial foi proposta de forma incomple-
sociedade, as formas de viverem juntas, ta por Marx, aperfeiçoada por Lenin,
a sociabilidade para correr junto dessa adormecida pelo Partido Comunista da
As exclusões da globalização
Milton Santos 155
União Soviética e renascida a partir dos A herança nos traz, num País
estudos de marxistas italianos e fran- como o Brasil, um modelo cívico su-
ceses e de alguns latino-americanos, balterno ao modelo econômico. Sem-
notadamente do norte da América do pre foi assim. Em todos os tempos, o
Sul. Porque naquele tempo, quando o modelo econômico subordina O mo-
marxismo era uma doutrina em voga, delo cívico, basta ver agora as crises
o México não estava tão potente – e da economia brasileira e a palavra de
o México fica na América do Norte. ordem, dita de cima, segundo a qual
E era no México e na Venezuela que quem não está de acordo está contra
havia esses estudiosos. A formação o Brasil, e a frase, dita até nas oposi-
econômico-social é uma categoria que ções, segundo a qual temos que ajudar
estuda a maneira como cada país se o modelo. Isso está ligado a esse peso
forma a partir do seu território, da sua do modelo econômico em oposição ao
histórica econômica, social, cultural – modelo cívico. Creio que a história dos
mas sem esquecer as relações interna- negros teria muito a lucrar se fosse re-
cionais, estudadas em conjunto e tendo escrita a partir de uma visão que pro-
a referência do tempo, isto é, o mundo. pusesse uma nova escrita com base na
O mundo datado, não o mundo tomado questão do modelo cívico.
cegamente. Um mundo datado porque A subalternidade do modelo cí-
o mundo é que é a razão do que se faz vico atrofiou, por exemplo, o debate
em cada lugar e em cada época. da previdência no Brasil, assim como
Ainda assim, fomos prejudicados atrofia o debate da questão da função
na análise da realidade brasileira, por- pública. Esse debate se empobreceu no
que o marxismo brasileiro é um mar- Brasil porque se pede aos velhos que
xismo do modo de produção e não da cuidem de si próprios, e a sociedade
formação social. O modo de produção aceita essa demanda hedionda, facili-
é uma realidade histórica, mas não é tando a instalação entre nós do projeto
uma realidade geográfica. A realidade segundo o qual os brasileiros assistirão
geográfica é a formação econômica e tranquilamente ao genocídio da popu-
social. As teorias que na América Latina lação – porque é isso que se está pre-
e no Brasil tentaram explicar a realida- parando. O abandono programado dos
de latino-americana e brasileira, como a velhos, o abandono programado dos
famosa teoria da dependência, para ci- pobres, o abandono programado dos
tar apenas esta, são teorias do modo de negros são três genocídios que estão
produção e não da formação social. De inscritos no processo político atual e
modo que a análise deveria ser feita em para o qual as vozes dos partidos de
três tempos: o passado, como herança; oposição são praticamente nulas, por-
o presente, como a situação e o futuro, que aceitam o debate nos termos em
como perspectiva. que está colocado.
156 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
É por isso que se torna pobre a que mencionei, adquire enorme impor-
discussão, a respeito dos pobres, das tância. Falo da morte da política. Hoje
minoridades, dos negros. Eu já não falo em dia, não são os governos que fazem
das mulheres, porque as mulheres fazem política, ela é feita pelas grandes empre-
a sua luta de dentro da classe social do- sas. Estas decidem sobre os orçamentos
minante. Não é o caso dos negros. Não públicos, como são escritos e como são
aceito essa comparação entre as duas utilizados. Em todos os níveis: no nível
coisas. As mulheres tiveram enormes da federação, no nível dos estados e no
progressos, todos merecidos. Mas a luta nível dos municípios. Basta ver essa
que fazem é de dentro da classe domi- batalha entre os municípios para atrair
nante. Os negros sequer têm os meios empresas de grande porte e que vem
de fazer a sua luta, e a fazem fora da desorganizar a vida em cada um deles.
classe dominante. Depois a imprensa e Desorganizar em todos os sentidos. Pri-
certo tipo de intelectual vêm nos falar de meiro, porque elas chegam exigindo
minorias. Não existe isso. Há diferentes concessões para se instalar e, quando
minorias que devem ser estudadas à da se instalam, mudam a natureza da “so-
luz da história. cialidade”, a partir de uma equação de
emprego que lhes é peculiar, mas que
Tudo isso se agrava hoje com a
esmaga as outras equações de emprego
democracia de mercado. Esta traz a que têm base na cultura local, no territó-
ameaça de que todas essas diferenças rio local, na história local. Buscam uma
se ampliem. Por conseguinte, os negros ordem indispensável à sua prosperidade
não têm de esperar uma possível volta ao e introduzem um fermento de desordem
crescimento no Brasil. Se o Brasil voltar em tudo mais. É por isso que o Brasil se
a crescer, os negros estarão numa posi- tornou um país ingovernável. É por isso
ção ainda pior: de um lado, porque não que as nossas cidades não são mais go-
têm o famoso telefone, e esse é um dado vernadas. Essa ingovernabilidade veio
central na sociedade brasileira; pior ain- exatamente do fato de a política não ser
da, porque não têm acesso às fontes de mais um dado dos políticos, nem do Es-
educação que preparam para o mundo tado, mas é um dado das grandes em-
que se está instalando; e pior, sobretudo, presas.
porque o mundo que se está instalando Felizmente, há outro lugar onde
não se preocupa com a difusão do bem- também se faz política no Brasil. Não é
-estar da sociedade como um todo, mas em nosso lugar da classe média que se
prefere concentrá-lo em certas partes da faz política, pois estamos buscando to-
sociedade e convidar as demais a aceitar dos os dias um pouco mais para o nosso
o peso da propaganda. conforto, esquecidos ainda que retorica-
Falarei agora de outro elemento mente digamos o contrário – de preocu-
que é central na sociedade brasileira, pações coletivas. A política é feita pelos
que, aliás, é um fato comum no mundo pobres. Os pobres fazem política todos
inteiro, mas que no Brasil, pelas razões os dias, e essa é a grande sorte do Brasil,
As exclusões da globalização
Milton Santos 157
que será ampliada quando os intelectu- negros do Brasil – se não haveria ra-
ais descobrirem que devem preocupar- zão para, ao mesmo tempo, estimular as
-se com os pobres deste País. organizações, pois é indispensável fazer
Essa morte da política se mostra isso, mas também classificá-las, porque
claramente pelo fato de as eleições não o comportamento das organizações está
serem um exercício democrático, mas muito ligado à maneira como elas são.
um lugar do consumo eleitoral. De tal E por outro lado ver como os negros,
maneira que os candidatos que têm di- ademais dos movimentos negros, que
nheiro para fazer o fazem. É o marke- não são a mesma coisa, se movem, ou
ting, mas não projeto. De modo que a gostariam de mover-se. Evidente que
pólis aparece como mercado e a ágora é as respostas serão diferentes em cida-
desprovida de projeto. Isso é um fenô- des como Salvador, Rio de Janeiro, São
meno geral no mundo inteiro, mas agu- Paulo, Belo Horizonte, mas creio que
dizado em países como o Brasil. Isso é isso é importante.
agravado pelo fato de a geopolítica ter Quero lembrar também que uma
deixado de ser um dado dos generais e boa parcela das organizações negras
de diplomatas, passando a ser confiada no Brasil é atrelada ao aparelho de Es-
a economistas e publicitários. É dessa tado, o que é uma dificuldade no seu
maneira que se fragiliza o indivíduo manejo, enquanto outras são atreladas
nessa atmosfera mercantil. E a reces- a instituições que têm uma visão glo-
são, que aparece como um remédio bal do mundo. Eu me refiro de forma
indicado para a solução das crises, é clara, não vou esconder, a todas as or-
por natureza um lugar de gravação das ganizações que são subsidiadas pela
desigualdades, em que os mais fracos Fundação Ford e que têm unidade de
são colocados em posição ainda mais movimento. Estou fazendo uma análise
frágil. e não vou me referir particularmente a
Eu ando pensando que, no mundo nenhuma delas, sobretudo porque não
atual, o progresso na produção da cons- as conheço bem.
ciência vai se dar mediante a ampliação Quero referir-me também a um
das organizações, mas também a partir certo pendor de uma certa liderança a
das manifestações desorganizadas. Es- buscar as formas de sua inclusão como
sas organizações, de uma forma ou de indivíduo nas classes médias, isto é,
outra, são limitantes de qualquer movi- sua inclusão numa parcela da sociedade
mento. As organizações são, por defini- que, por definição, não está preocupada
ção, um freio às inovações, pois a orga- com a produção da sua própria consci-
nização começa por eleger seus líderes, ência e que, por conseguinte, manifesta
cujo comportamento um dia ou outro se uma diversão em relação aos objetivos
distingue do comportamento dos lidera- centrais. Estou dizendo isso para insis-
dos. De tal maneira que eu imagino – e tir sobre a necessidade de incorporar ao
esta é uma proposta de conversa com os nosso trabalho intelectual, que é o úni-
158 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
co que eu posso fazer – e gostaria que dos no Século XXI, realizado no Rio de
esse trabalho fosse feito por mais gen- Janeiro de 2 a 4 de setembro de 1997.
te ainda –, o entendimento do que é o (N.E.)]
Brasil e do que é o negro no Brasil. Não Trata-se de um processo de água
acredito que as comparações, agora tão de flor que conhecemos dentro do País
fortemente estimuladas, em relação a e que agora se completa fora dele. Eu
outros países antinegros, tenham o va- entendo que as pessoas aceitem parti-
lor que lhes é atribuído. Que lição tenho cipar dessas coisas, porque lhes apare-
eu da África do Sul? Que lição tenho eu ce uma oportunidade de contribuir, de
dos Estados Unidos? Sem dúvida me conhecer melhor a problemática global,
inquieto do ponto de vista histórico, e mas não se deve ter nenhuma ilusão.
me enriqueceria se o resultado dessa Quando me convidaram para fazer parte
análise pudesse ser orientado na condu- disso, eu lhes disse: “Ora, eu conheço
ção da política. Mas a política só pode como funcionam hoje e as relações in-
ser feita a partir da realidade brasileira, ternacionais. Eu sei perfeitamente como
porque somos, antes de tudo, brasilei- é que se organizam coisas no nível in-
ros. A África é uma referência, mas não ternacional, sobretudo no período pós-
somos africanos. A América do Norte é -moderno, em que convidam para falar
uma referência, mas não vamos repetir o sujeito que pensa diferente. Ele vem e
a sua história. A história na qual nos in- fala. Mas os que estão ali são a grande
cluímos e que vamos refazer, é a história maioria que quer outra coisa, mas que
do Brasil. assim mesmo bate palmas, porque faz
Creio que o convite a fazermos parte da pós-modernidade, enquanto os
de maneira diferente é um convite di- recursos vão para as organizações que
versionista, isto é, reduz os itens do reproduzem o que a inteligência central
conhecimento da problemática e pro- decide”. Então eu lhes disse: “Vocês me
duz mais alguns autores, aos quais são dariam meios para eu poder conversar
pagas viagens para comparecer a esses com os movimentos negros? Teria eu
famosos congressos internacionais tão alguma participação na organização da
caros, quanto inúteis. É a razão pela reunião que vai se fazer no Brasil em se-
qual não aceitei estar aqui nesse en- tembro?” “Isso não! Queremos você ca-
contro que reuniu tantos dos nossos lado. No máximo, publicamos um artigo
camaradas, e antes havia me recusado seu...” Não preciso mais disso. Mas esse
a participar como membro importante é um problema dessa chamada globali-
do comitê dessa organização que há zação da luta negra brasileira. Há uma
um ano se criou nos Estados Unidos, globalização da luta negra, sim, mas a
reunindo figuras eminentes do Brasil, nossa questão central é a questão políti-
da África do Sul, dos Estados Unidos, ca, e tudo que fizermos tem que ser feito
para produzir mais um livro. [Referên- na direção da política, porque aí estão as
cia ao Seminário Superando o Racismo soluções. O indivíduo forte, dotado de
– Brasil, África do Sul e Estados Uni- consciência para ser cidadão, necessita
As exclusões da globalização
Milton Santos 159
da política. Ele é forte dentro de si, mas ritária. Eu creio que a classe média tem
ser forte em face da sociedade se faz por tido um papel negativo, por enquanto,
meio da política, da produção de leis na construção da democracia, mas não
que garantem a sua força. na construção da democracia de mer-
Pois bem, eu vou parar aqui. cado, nessa ela teve um papel central.
Agradeço a Milton Cobra ter me convi- Refiro-me à democracia vista de outra
dado, faz muito tempo que eu queria ter forma.
essa conversa. Sei que ela desagradou
a todo mundo, numa coisa ou em ou-
tra, mas não tem a menor importância, Sobre os negros aceitarem a cristaliza-
esse é o meu papel. O intelectual não é ção da condição de inferior:
um artista de vaudeville, não vim aqui
para mostrar as minhas pernas, mas para
mostrar as minhas ideias e defendê-las. Eu não estou certo de que os ne-
Mas tampouco quero estar certo. Não gros aceitam essa condição. É um equí-
estou certo de estar certo, mas tenho o voco! Não aceitam! Eles sabem das
dever de exprimir aquilo em que acre- dificuldades de exprimir a sua incon-
dito, custe o que custar. Esta é uma formidade. Acho que é preciso mudar
oportunidade que eu desejava há muito o discurso. O discurso da lamúria eu
tempo, essa é a minha forma de engaja- não aguento mais, é insuportável. Outra
mento. Estou aqui hoje, e estarei outras coisa: o papel do discurso na produção
vezes para discutir questões como esta. da história é extraordinário. A história
Muito obrigado. nos últimos seis séculos se fez em torno
do discurso, e agora ela se faz em tor-
no desse discurso único, o discurso do
OPINIÕES DO PROFESSOR mercado. Então, eu jamais vou dizer
MILTON SANTOS que os negros aceitam... É aquela velha
história, os outros trabalham e o negro é
preguiçoso, indolente.
Sobre a contribuição da classe média
para a democracia:
1 A Aids nos aparece como exemplo contundente, bem como a evolução de mutações de microorganismos, possibilitando
sua resistência aos medicamentos e antibióticos.
2 Ziegler (1977) aponta, com exemplos contundentes, uma “tanatocracia” presidida pelos médicos, que exercem um poder
quase absoluto sobre o processo da morte, o moribundo e sua família.
3 Ver os ensaios reunidos por Maria Kovács (1992,1996).
4 Chamado Livro Egípcio dos Mortos merece menção esporádica, e Ziegler (1977) dedica urna parte de seu livro à entu-
siasmada exposição de suas impressões sobre o culto aos eguns e o axexé no Brasil.
5 Centenas de milhões de almas assassinadas e torturadas, em condições das mais hediondas conhecidas pela história
humana.
6 Além das obras de Diop, ver as de Chancellor Williams, Martm Bernal e Molefi Asante.
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 163
-imagem digna de respeito e auto-esti- que ela, a distorção, afeta a visão que
ma7. Tentando fundamentar tal imagem uma nação constrói de si mesma, de sua
na chama “identidade negra”, definida gente e de sua cultura. Na formação do
de modo geral pelas desgastadas ca- Brasil, por exemplo, a origem africana
tegorias do ritmo, esporte, vestuário e sobressai em quase todos os sentidos:
culinária, verificam que o papel des- demográfico, histórico, econômico,
sa “cultura negra” limita-se à esfera cultural, linguistico, e na própria perso-
do lúdico. Não figura como atributo nalidade, o ethos nacional. A inferiori-
próprio a essa identidade o protago- zação do grupo étnico que durante três
nismo na área intelectual, científica, quartos de sua existência constituiu a
política, econômica, técnica e tecno- grande maioria de sua população, e ain-
lógica, ou a cultura chamada erudita.
da hoje continua majoritário não apenas
Veicula-se constantemente, por meio
no sentido demográfico8, mas como di-
do sistema de ensino, da mídia e das
mensão específica da cultura brasileira9,
noções popularmente difundidas, a
gera um complexo de inferioridade que
imagem do africano selvagem inca-
contribui para a persistência de um certo
paz de engendrar uma civilização hu-
mana: o eterno escravo construído à sentimento de frustração com o perene
base da distorção do registro histórico. debate, sempre problemático, à procura
de uma identidade nacional.
Poderíamos dizer que esse pro-
cesso de inferiorizarão constitui, na O resgate das tradições intelec-
acepção coletiva, uma forma de morte tuais dos povos africanos em contextos
em vida imposta, que traz consequên- como a discussão atual sobre o tema da
cias bastante sérias para o desenvolvi- morte ajuda a reconstruir a história de
mento humano de indivíduos e comuni- sua participação digna e ativa em todas
dades. Não apenas os afro-descendentes as dimensões da experiência humana,
sofrem os prejuízos dessa distorção. To- algo fundamental para a compreensão
dos saem prejudicados, na medida em equilibrada das heranças civilizatórias
7 O mesmo vale para os povos indígenas e ex-colonizados em todo o mundo. Julgamos, entretanto, entre as mais nocivas
formas de discriminação eurocentrista a tendência a tratar todos juntos, sem distinção, agregando-os numa categoria só, sem
rosto e sem identidade, como a de “não-brancos”.
8 Embora as estatísticas oficiais falam em 45% de afro-descendentes no Brasil (“pretos” e “pardos”, segundo as classifi-
cações desse Instituto), é notória a distorção desses dados, dada a tendência à sua minimização resultante da preferência
das pessoas pardas em se identificarem como brancas. Esse fato resulta da ideologia de embranquecimento, que valoriza
os grupos étnicos de acordo com as gradações de sua cor, com preferência para a mais clara. (Mortara, 1970: Nascimento,
1978, 1980).
9 A observação atenta daquilo que compõe a cultura brasileira, na sua especificidade, revelará a imensa amplidão de seus
aspectos que têm matrizes nas religiões e tradições seculares de origem africana; a ampla e profunda presença africana
na formação da língua brasileira passeia por seu vocabulário, sintaxe e expressão verbal (Sodré, 1988, 1988a; Luz, 1995;
Lopes, 1988, 1992, 1996.
164 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
10 Utilizamos, na ortografia brasileira, os termos derivadas do iorubá, linguagem litúrgica das religiões afro-brasileiras,
para designar fenômenos comuns a muitas tradições africanas. Não os italicizamos por entender que fazem parte, como
tantos outros vocábulos africanos, da língua brasileira.
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 165
1. Osíris e o Livro Egípcio dos Mortos Uma vez ressuscitado, Osíris pas-
sou a presidir os caminhos da passagem
dos mortos para o mundo do além. O
Uma das divindades mais antigas Livro dos Mortos reúne hinos, preces
da África, Osíris tem sua origem perdi- e procedimentos acumulados ao longo
da nas culturas pré-dinásticas de tempos de milênios, no esforço dos egípcios de
remotos. Sua história é o mito fundador cumprir corretamente essa passagem
da morte, ressurreição e vida eterna não e alcançar a vida eterna. Em parte, as
só das tradições africanas, mas de várias ações indicadas visam reconstruir o cor-
religiões ocidentais e orientais; o cristia- po do falecido, como fez Ísis com o de
nismo e o budismo indiano têm raízes Osíris.
nos ecos de sua influência no mundo an- Osíris preside o julgamento do
tigo11. Em Kemet, Osíris era a divindade falecido, verificando se viveu de acordo
mais destacada durante milênios, e o Li- com os princípios de Ma’at, a filosofia
vro dos Mortos comprova que sua figura de justiça, verdade e direito da qual Osí-
presidia atos rituais e liturgias comuns a ris era guardião e que fundamentava a
faraós e plebeus, rainhas e servas. Mais matriz ética da nação. Posto o coração
que o rei do submundo ou dos mortos, na balança divina com a pena de Ma’at,
Osíris era também um deus solar, asse- e verificado o peso igual, o dono ganha-
melhando-se a Rá chegando, entre a VI va vida eterna na terra dos deuses e se-
e a XVIII dinastias, a se fundir com esse guia viagem no barco divino; caso con-
deus do sol (Budge, 1969: 148). trário, sua morte seria definitiva nos dois
mundos. O Livro dos Mortos traz invo-
Assassinado por Set, seu irmão, cações e hinos em que os vivos podem
Osíris teve corpo retalhado em inúme- suplicar a Osíris, pedindo o julgamento
ros pedaços, e estes espalhados quatro favorável. Não havia a figura do casti-
cantos do mundo12. Sua irmã e esposa go eterno, nem do inferno; apenas era
Ísis recolheu os pedaços, reconstruiu o vedado o acesso do falecido à vida no
corpo de Osíris e, instruída pelo deus além. Esse além não se localizava abai-
Thoth (dono do sopro divino e do dom xo nem acima da terra13. Parece mais
da palavra e do intelecto), insuflou-lhe urna espécie de extensão dela, e (...) a
de novo a vida, ressuscitando-o por vida aqui levada pelo falecido sugere
meio de preces e cantos. que a concepção de todo o local partiu
11 O conjunto de estudos que estabelecem esse fato reúne todo um elenco de classicistas europeus do século passado
com pesquisadores mais recentes (Van Sertima, 1985; Van Sertima e Rashidi, 1985), estabelecendo inúmeros paralelos,
Por demais detalhados para serem atribuídos à mera coincidência. Para uma breve referência em português, ver Larkm
Nascimento, 1994.
12 Como todos os mitos, há diversas versões em que os detalhes diferem.
13 Parece que era localizado ao norte do país, talvez em Busíris, onde se processou a reconstituição do corpo desmembrado
de Osíris, e onde era executada todos os anos a cerimônia solene da montagem da coluna vertebral desse deus. Budge,
1993: 38.
166 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
14 “Os mortos se levantam para ver-te, respiram o ar e olham para o teu rosto quando o Disco se ergue no horizonte; seus
corações estão em paz, visto que te contemplam, ó tu, que és Eternidade e Perpetuidade.” In Budge, 1993: 32.
15 Da mesma forma que Krishna, Buda e Cristo milênios depois. Ver acima, no 14.
O NASCER DO SOL. O Tet, ou tronco de árvo-
re, que encerrava o corpo de Osíris, postado entre
Ísis e Néftis, ajoelhadas em postura de adoração,
uma de cada lado. Do Tet procede o emblema da
vida, cujos braços sustentam o Disco do Sol. Os
seis macacos representam os espíritos da aurora.
(Esta ceba é di Papiro de Ani, estampa 2) (Budge,
1993: 166).
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 169
16 No Brasil é preciso, ainda, chamar atenção para o fato de que na África se falam línguas, pois é impressionante a ubiqui-
dade do hábito de se referir aos “dialetos” africanos.
17 O que aqui tratamos como conceito do axé envolve, para Santos (1976), três aspectos: iwà (principio da existência), axé
(princípio da realização) e àbà (“princípio que induz, que permite às coisas terem orientação, terem direção ou terem obje-
tivo num sentido preciso). Jahn (1975) aponta, no contexto banto, para o buzima (princípio da vida biológica) e o magara
(princípio da vida espiritual), dentro de um sistema de quatro conceitos básicos de classificação linguística: muntu, kintu,
hantu e kuntu.
18 No Brasil, o culto aos egungun é presidido pelo Alaapini Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi.
19 O orun “é o doble abstrato de todo o aiyê” (Santos, 1977: 56). Nele habitam os orixás, divindades ligadas às forças da
natureza, e os ancestrais.
170 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
20 Localizadas na Nigéria e em Gana, mas não identificadas no texto. Ribeiro (1996: 122) menciona os conceitos de orun
rere e orun apaadi no contexto iorubá, que deve constituir uma dessas exceções.
21 Todas as religiões africanas contêm a figura do Deus criador, uno e imortal. As divindades e os ancestrais são interme-
diários entre Deus e o ser humano.
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 171
22 Assim, diz o sábio Ogotommêli: “A palavra é para todos neste mundo; ela deve ser intercambiada, para que vá e volte,
pois é bom dar e receber as forças da vida” (apud Jahn, 1961: 124).
23 Na tradição dos dogon, em que a morte de um dos primeiros ancestrais (o sétimo) possibilita o domínio da tecnologia do
ferro, esse ancestral, ressuscitado, é obrigado a sacrificar outro, Lébé, para que este, imbuído do axé do outro mundo, possa
ensinar aos homens o conhecimento da Terceira Palavra legada por Deus. Griaule, 1965.
24 Orixás genitores associados à terra e às suas águas (lama, rios, fontes e lagos).
172 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
mas ela chorou e derramou lágri- -os disponíveis para a confecção de ma-
mas. Nenhum ebora quis tomar téria e energia nova). Na vida terrestre,
de menor parcela, mas Iku apare- a evolução das espécies por meio das
ceu, apanhou um pouco de lama mutações genéticas depende da morte,
e não teve misericórdia de seu que propicia a sucessão de gerações25.
pranto. Levou-o a Olodumaré, Bowker (1991: 229) comenta o que a
que pediu a Orisalá e a Olugama ciência nos revela: “(...) não podemos
que o modelassem, e foi Ele mes- ter vida sem morte; mas onde temos a
mo quem lhe insuflou seu hálito. morte, aí podemos ter vida”.
Mas Olodumaré determinou a
Iku que, por ter sido ele a apa-
nhar a porção de lama, deveria Conclusão
recolocá-la em seu lugar a qual-
quer momento, e é por isso que
No Brasil, a prática atual do ebó
Iku sempre nos leva de volta para
incomoda a alguns, e as religiões afro-
a lama.
-brasileiras sofrem por sua causa, acusa-
Esse relato nos mostra como os ções e agressões diversas. Mesmo aque-
africanos, mesmo entendendo a morte les que reconhecem o valor simbólico
na sua dimensão cósmica, não deixam de do sacrifício condenam o derramamento
senti-la como um implacável pesar. Iku de sangue26 no ebó. Tal atitude deriva da
não tem misericórdia, e a vida chora, der- distância entre a sociedade moderna, ar-
rama lágrimas. Não precisamos esconder tificial e urbana, e o mundo da natureza,
a tristeza diante da perda, primordial e onde a morte está presente a cada pas-
cósmica, provocada pela morte. so, alimentando a vida. Se observamos
A visão simbólica iorubá e a ima- que na sociedade ocidental moderna a
gem kemética do nascer do sol com o morte humana foi afastada, escondida
ankh – a vida – fincada no ataúde exi- e relegada a um plano de não existên-
bem uma coincidência incontestável cia, o mesmo podemos dizer da morte
com a realidade concreta comprovada dos animais. Quando levamos à mesa
cientificamente. O nascimento do uni- um frango ou um filé mignon, não fo-
verso, e a formação de toda a matéria mos nós que assassinamos o animal cuja
cósmica, se funda na morte das estrelas carne consumimos; nem vimos esse ani-
(sua compressão para formar os elemen- mal vivo. O que compramos no super-
tos de metais pesados e sua explosão, mercado não parece um ser que antes
que espalha esses elementos, tornando- viveu, mas um objeto inânime qualquer.
25 Parece que a condição final da lei da entropia descreve a massa genérica de força vital: “A entropia é a medida da de-
sordem crescente num sistema isolado, apontando para uma condição final de equilíbrio termodinâmico, em que partículas
ainda têm energia, mas não podem interagir”. A massa genérica é o princípio de força vital sem interação entre os compo-
nentes de seu sistema, que não têm individuação.
26 Para uma belíssima análise da função e do significado simbólicos do sangue, ver Santos, 1977.
O legado de Osíris
Elisa Larkin Nascimento 173
car no assunto, enquanto outros não pro- Aids é vivenciada pelo povo de santo.
nunciavam o nome da doença, fazendo a Sendo a Aids uma doença que ainda não
substituição pelo termo dofona. tem cura, podendo deixar sequelas em
Em função do que foi exposto sua evolução ou mesmo determinar a
anteriormente, pensamos na hipótese de morte de alguns indivíduos, criaram nas
que, em resposta ao medo de infecção comunidades de terreiro algumas expec-
pelo vírus HIV/Aids, utilizava-se uma tativas e medos que originaram várias
estratégia que pudesse expressar a mes- discussões norteadas pela visão negro-
ma situação sem correr riscos, mediante -brasileira, contribuindo de maneira
a substituição de palavras, suavizando qualitativa no que diz respeito à epide-
dessa forma a carga negativa que o ter- mia de Aids em nosso País, até então in-
mo Aids trazia consigo. Esse fato é im- fluenciada por um discurso biomédico,
portante se levarmos em conta que no acadêmico e judaico-cristão.
candomblé a palavra é sagrada, contém A maneira pela qual é encarada
magia, pelo que devemos tomar cuida- a sexualidade nas comunidades de ter-
dos ao pronunciá-la. A palavra possui reiro, o papel do corpo nessa tradição
encantamento, sendo capaz de ativar o religiosa, assim como as relações entre
poder de realização. axé, saúde e medicina tradicional, foram
Os adeptos do candomblé apren- pouco a pouco servindo de base para
dem a utilizar a palavra, assim como nossas futuras intervenções nesse mun-
também aprendem a se calar em deter- do em que as doenças muitas vezes são
minados momentos em sinal de respei- um legado ou manifestação do orixá.
to. Um bom exemplo do que estamos Um exemplo do que estamos falando
falando pode ser vivenciado por meio pode ser observado pelo grande número
do orixá Baba Ibonã, cujo nome, por ser de pessoas que, após a iniciação no can-
ele o dono da doença, das pestes e das domblé ou na umbanda, recuperam seu
epidemias, deve-se evitar pronunciar. equilíbrio orgânico, não apresentando
Um outro exemplo é o relacionado às mais sinais ou sintomas de determina-
Iyá-mi, grandes mães feiticeiras, terrí- das doenças; segundo os iniciados, esses
veis e ameaçadoras, capazes de trazer o sinais e sintomas caracterizam umas das
infortúnio aos homens, podendo mesmo formas pelas quais o orixá se comunica
causar-lhes a morte; nesse sentido, é re- com a pessoa, possibilitando sua feitura,
comendado não pronunciar o seu nome ou seja, sua iniciação.
e somente invocá-las para lhes apazi- A Aids trouxe mudanças e espe-
guar a fúria. culações em torno das comunidades de
Ao longo do percurso da epide- terreiro, principalmente no início da epi-
mia de Aids, aconteceram fatos de ex- demia, na década de 80, em que foram
trema importância para se entender o detectados casos de infecção pelo vírus
impacto dessa doença na tradição reli- HIV entre homossexuais masculinos e a
giosa afro-brasileira e perceber como a doença chegou mesmo a ser denomina-
Projeto Odô-Yá
José Marmo 181
para tais sacerdotes, que muitas vezes, família de santo, é terem passado pelas
sabendo que não poderiam curar essas mãos do mesmo pai ou mãe de santo,
pessoas, preferiam não lidar com a do- ou, como dizem os mais antigos, terem
ença, com o medo da perda de credibi- “passados pela mesma navalha”.
lidade, o que acarretaria também perda O uso da mesma navalha levanta
de poder. Outros sacerdotes propunham uma polêmica em tempos de Aids, pois
a cura por meio da magia, mas até os todos nós sabemos que uma das formas
dias de hoje não se comprovou a eficá- de transmissão do vírus HIV é por meio
cia desses tratamentos. do sangue de uma pessoa infectada para
O fato de muitos pais de santo outra. Em nossa pesquisa com sacerdo-
terem morrido em função de doenças tes da tradição religiosa afro-brasileira,
oportunistas causadas pela Aids trouxe observamos uma variação em relação
uma série de situações de descontenta- ao tema e dividimos as opiniões em três
mento para os participantes dessa tra- grupos, facilitando dessa forma nosso
dição religiosa, pois, em função dessas trabalho.
experiências, foram obrigados a ver Grupo I – zeladores que utilizam
a doença de perto e a conviver lado a a mesma navalha, mas não fazem a este-
lado com uma epidemia que levava seus rilização desta. A navalha é mergulhada
entes queridos. A proximidade da epi- apenas em uma solução de abô (mistura
demia de Aids fez com que o povo de de vários elementos portadores de axé).
santo não mais negasse a sua presença, O abô é considerado por eles um ele-
o que vinha acontecendo anteriormente, mento mágico capaz de remover qual-
como na época em que iniciamos nos- quer mal ou doença que por acaso tenha
so trabalho, em 1991. É nessa fase do passado para a navalha.
processo que vão ocorrer mudanças que
Grupo II – zeladores que utilizam
determinam cuidados especiais em rela-
a mesma navalha, mas fazem a esterili-
ção a determinadas práticas rituais, prin-
zação, pois não acreditam que o abô seja
cipalmente no que diz respeito ao uso da
capaz de deter o vírus HIV.
navalha.
Grupo III – zeladores que utili-
O candomblé utiliza a navalha
zam várias navalhas, ou seja, cada filho
em seus rituais de iniciação e de cura,
de santo tem a sua própria navalha.
ou seja, de fechamento do corpo. As in-
cisões são feitas em determinadas partes A partir desses grupos, podemos
do corpo do iniciado, por ocasião da fei- observar, mediante encontros realizados
tura do iaô. Muitas vezes são recolhidas no ISER (Instituto de Estudos da Reli-
várias pessoas que serão consideradas gião) e em alguns terreiros, elos que nos
irmãs de barco e que passam juntas o permitiram aprofundar reflexões sobre a
momento de iniciação; uma das carac- epidemia nas casas de santo.
terísticas que lhes conferem a categoria O grupo I, que utilizava o abô na
de irmãos, de participarem da mesma navalha, acreditava que o orixá era ca-
Projeto Odô-Yá
José Marmo 183
paz de impedir que uma pessoa pegasse ocorridas dentro da tradição religiosa
vírus, enquanto os grupos II e III têm afro-brasileira foi ter-se deixado de ne-
opiniões diversas, preferindo esterilizar gar a doença, o que facilitou bastante
a navalha ou utilizar navalhas diferentes. os trabalhos de educação e prevenção
O grupo I nega a existência da Aids e ge- desenvolvidos até o presente momento.
ralmente procura não tocar no assunto, Outro aspecto importante é a sensibili-
enquanto os grupos II e III participam zação dos pais e mães de santo verifi-
de atividades específicas de educação e cado pela busca de informações sobre o
prevenção da doença, ou pelo menos es- funcionamento da doença e sobre como
tão sensibilizados para tocar no assunto. tratá-la, possibilitando esclarecimentos
O grupo I apresenta dificuldades para para toda a comunidade de terreiro e in-
mudanças frente à epidemia, enquanto crementando maneiras ou procedimen-
os grupos II e III aceitam as possíveis tos frente aos portadores de HIV.
mudanças, desde que sejam importantes A utilização da medicina tradi-
para a resolução de seus problemas. cional no combate às infecções oportu-
Para finalizar, os últimos anos nistas foi resgatada nas comunidades de
têm sido mArcados por uma tomada de terreiro e o uso de folhas, ervas, raízes,
posição em relação à epidemia de Aids, ebós e garrafadas passou novamente a
e o candomblé a acompanhou de forma fazer parte do cotidiano dessas comuni-
significativa. Uma das transformações dades.
Yara*, uma arte
Quando conheci Yara (ela prefere
fora da com “I”), tive a sensação animadora de
embala o dia a dia nesse tempo de es- de negros e pobres, garantiu que ela e
cassez. Ficamos ali cúmplices e felizes os irmãos se formassem e estimulou a
com toda aquela cultura negra em evi- que outros parentes seguissem o mesmo
dência, com a qual Yara fazia planos dar caminho.
continuidade à derrubada da xenofobia Como professora, Yara lecionou
das elites. durante muitos anos em municípios
Yara de Oliveira Rosa nasceu em próximos a Niterói. Foi no exercício
Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, do magistério que ficou amiga do en-
em 15 de abril de 1933. O avô paterno tão prefeito do Município de Rio Bo-
(Benedito de Oliveira Rosa, morto aos nito, Wilson Abreu, e passou a lecio-
114 anos) veio de Angola, chegando nar arte para crianças portadoras de
ao Rio de Janeiro como escravo, num deficiência mental. Essa experiência
navio negreiro que fazia a rota entre o resultou num intercâmbio com artistas
Estado do Maranbão e um ponto clan- do Rio de Janeiro que foram explicar
destino na praia da Raza, na cidade de “arte moderna para aquela gente do in-
Búzios. Embora o tráfico de escravos terior” por meio de uma série de pales-
estivesse proibido e as lutas pela aboli- tras e aulas práticas. Emocionada, Yara
ção da escravatura se espalhassem por diz ter sido essa uma coisa extraordi-
todo o País, o destino daqueles negros nária, pois hoje em dia, quando encon-
transplantados da África e desembArca- tra gente daquela época, fica sabendo
dos em Búzios naquele período era o de que muitos têm quadros em casa, que
servir como mão de obra na rica região alguns continuam pintando, inclusive
canavieira de Campos dos Goitacazes. alunos que hoje já estão casados: “A
Com o fim da escravidão, a família con- semente foi muito boa”.
seguiu comprar um pequeno sítio num Além da formação no magis-
lugarejo chamado Pendotiba, próximo tério, Yara estudou piano durante
de Niterói. 15 anos, o que explica o requinte da
A cultura e a identidade africanas sua discoteca, onde convivem, numa
sempre estiveram presentes na vida de harmonia nada ortodoxa, alguns dos
Yara. Os casos contados sobre o período principais autores clássicos europeus,
da escravidão, as cantigas, as conver- muito de música popular brasileira e
sas nas rodas de família permearam-lhe uma coleção, rara por estas bandas,
toda a infância e adolescência, o que da História da música jamaicana. Os
mais tarde viria a se refletir no mosai- primeiros traços surgiram, e depois se
co colorido da sua obra por meio de firmaram como estilo, a partir do con-
uma africanidade singela e mArcante. tato com um amigo pintor chamado
A presença do pai, traduzida pela fir- Romani. “Você é naif, primitiva, mas
meza e pela certeza, que por momentos eu não vou mudar o seu estilo, só vou
pareciam obsessivas, de que a educação orientá-la sobre algumas técnicas e o
era o único caminho para uma família manejo das cores”. Yara lembra que
Yara, Via Crucis, detalhe, entalhe sobre madeira e tinta a óleo, 1990
Yara, uma arte fora da baixa cultura
Éle Semog 189
Romani tinha uma tristeza interior que anos um sentido lúdico-pejorativo. Mas
passava para a tela de forma angustiada as mulheres afrodescendentes não têm
e dolorida, em tonalidades que brota- nada de balzaquianas; pelo contrário, é
vam lembranças dos tempos da Segunda exatamente nesse período que a mulher
Guerra, quando ele recolhia cadáveres negra consolida a sua maturidade e se
nos campos de batalha na Itália. “Ele se dispõe à vida com uma capacidade cons-
empolgava e apreciava o jogo de co- trutiva muito distante do idílio roma-
res das minhas pinturas. Foi o primeiro nesco, e, sem deixar de ser romântica,
amigo com um conhecimento mais apri- potencializa em realizações toda a sua
morado a me dar uma força”. capacidade de criar, de educar, de amar,
A oportunidade para a primeira de se ver e de traduzir os seus sentimen-
exposição individual, em 1964, surgiu tos, a sua energia e a sua percepção nas
depois de alguns contatos e foi concre- diversas formas de arte que a cultura
tizada na Galeria do Teatro Santa Rosa, africana permite. Foi assim, com muitos
que pertencia a Gláucio Gil, Hélio Blo- e tão poucos 30 anos de vida, que Yara,
ch e Léo Juzzi. Todos os quadros foram só por curiosidade, começou a trabalhar
vendidos num curto espaço de tempo, com entalhes em madeira.
o que foi ótimo para uma estreante, e
As obras em madeira entalhada
ela ainda destaca o fato de seu primeiro
foram definidas por um cliente francês,
comprador ter sido o diplomata Guilher-
me de Figueiredo, então adido cultural que comprou tudo que Yara produziu
em Paris. Hélio Bloch percebeu no de- durante dez anos seguidos, como sen-
senho, na pintura e no manejo de cores do “pintura sobre madeira trabalhada”.
de Yara um enorme potencial para o de- Durante um largo período de tempo, ela
senvolvimento da tapeçaria, arte que ela produziu painéis, portas e balcões que
abraçou de imediato (foi uma coisa que se espalharam pelo mundo, em coleções
eu fiz para experimentar – diz), passan- particulares e na decoração de lojas e
do a construir com linhas e agulhas um hotéis. Numa segunda etapa do trabalho,
discurso de cores, cenários e arranjos ela decidiu trabalhar a técnica de entalhe
tão amplos quanto o que a pintura lhe somente com colunas de madeira de até
permitia. E foi com a terapia que ela ga- um metro e meio de altura, retratando
nhou seu primeiro prêmio no Salão Flu- cenas do cotidiano do povo, das festas
minense de Artes Plásticas. folclóricas e da história do Brasil, como
Para os ocidentais, uma mulher é o caso da peça sobre a Guerra dos Ca-
com mais de 30 e menos de 40 anos é, nudos, em que ela descreve nas quatro
culturalmente, classificada como bal- faces da coluna com uma incrível rique-
zaquiana. Vai nessa classificação com za de detalhes, a pregação de Antônio
certeza, à revelia de Honoré de Balzac Conselheiro, as rezas e promessas, a luta
– boa dose de ignorância de alguns que contra o Exército Brasileiro e a destrui-
dão seu romance A mulher de trinta ção de Canudos.
190 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
Numa ocasião, apareceu na casa tura, ao que ela respondeu que já sabia
de Yara um sujeito de São Paulo, com pintar. Por fim, o homem disse que tinha
um carrão daqueles pomposos, com mu- um livro em que estavam os nomes de
lher, cachorro, criança e babá vestida de todos os artistas brasileiros importantes.
uniforme e toquinha na cabeça, dizen- O final dessa história está no romance
do que soubera que ela era artista, e que que Yara deve concluir até fins de março
ele estava viajando pelas praias e com- de 1998.
prando obras de todos os artistas que en- A pintura é uma atividade contí-
contrava, e que estava ali para comprar nua na vida de Yara, embora por alguns
um quadro dela. Deixou um endereço períodos ela seja menos intensa, em fun-
de Cabo Frio e ordenou que, assim que ção de sua dedicação ao trabalho com
ela acabasse de concluir o quadro que
madeira e à tapeçaria. Sobre a tapeçaria,
estava no cavalete, fosse entregá-lo na
ela nos diz: “É um trabalho que envol-
casa dele, pois ele estava prestes a via-
ve uma equipe, eu defino os elementos
jar. Como ela não levou, o comprador
e a equipe vai fazendo os vãos. Tenho
voltou ao seu estúdio dizendo que vie-
que fazer os elementos por causa dos
ra buscar o quadro. Deu-se então um
meus figurativos, principalmente esses
diálogo estranho, pois Yara respondeu
que têm olhos, nariz, essa gente com o
que vendera o quadro para outro clien-
movimento que eu quero dar... ninguém
te. “Mas como a senhora vendeu o meu
quadro?”, indagou o homem. “Como o pode fazer isso, só eu posso dar o meu
seu quadro? O senhor não pagou”, res- toque, é o meu estilo”.
pondeu Yara. O toque e o estilo na tapeçaria de
Yara já estava trabalhando em Yara retratam um universo negro com
outro quadro e o homem decidiu ficar figuras de uma vivacidade e delicadeza
esperando que ela o concluísse, pois não que parecem ter vida própria sobre o te-
sairia dali sem levar um trabalho dela. E cido, causando a impressão de que estão
o homem não desistiu; mandou a esposa em movimento, embora sejam persona-
e as outras pessoas para a praia, e ficou gens de um plano unidimensional, como
conversando a tarde inteira. A certa al- é o caso dos casacos Os puteiros de Sal-
tura, ele comentou por uma analfabeta, vador e As favelas do Rio de Janeiro.
ela falava muito bem e conhecia muito Ela afirma que a presença permanente
pintores. Yara quem a conhece sabe que e contínua de personagens negras em
ela não perde uma dessas – respondeu sua tapeçaria é um aspecto puramente
que ela e os pais eram analfabetos e que artístico, porque a cor dessas pessoas na
todos em sua família só nasciam de par- tapeçaria é linda. Pessoas de outras co-
teiras. Por fim, disse que era muito es- res não causariam o efeito pictórico de-
perta, pois seu marido tinha 2.500 livros sejado de fazer a obra crescer e evoluir
e lhe contava alguma coisa. A essa altu- com energia própria. Certa vez, em São
ra, o comprador perguntou se ela não se Paulo, Yara foi chamada de racista por
interessava em aprender a escrita e a lei- só usar figuras negras em seu trabalho,
Yara e o casaco Os puteiros de Salvador, 1996
Yara, uma arte fora da baixa cultura
Éle Semog 193
mas ela afirma que não existe esse ne- deixá-la morrer, porque iriam para a ca-
gócio de racismo contra branco, contra deia e têm a obrigação de protegê-la.
ninguém, e que até gosta das pessoas Depois de algum tempo Yara en-
azuis, só não pode é colocar uma mu- controu-se com uma pessoa que alugou
lher branca na sua tapeçaria porque ela um terreno, onde existem três palmeiras
se perderia, não teria sentido. imperiais, para a construção de um de-
Morando em Búzios há mais pósito de bebidas. O depósito foi cons-
de 20 anos, Yara participa ativamente truído e o proprietário teve a preocupa-
da vida cívica da cidade por meio da ção de fazer os telhados com um buraco
associação de moradores e de outros em torno dos caules das palmeiras. A
movimentos. Em 1990, junto a outras justificativa que ele deu, quando Yara
pessoas, organizou e participou da pri- elogiou a sua preocupação em proteger
meira grande ação ecológica da cidade, as plantas, foi à seguinte: “Deus me li-
salvando do corte uma árvore, um pau- vre, eu soube que tem uma dona aqui
-d’arco com mais de 390 anos que um que é terrível com esse negócio de cor-
engenheiro austríaco queria derrubar. tar árvores, eu quero é distância dela”.
Ele chegou a chamar os bombeiros du- Não sabia que a tal dona era Yara...
rante uma madrugada para derrubar a Por algum tempo depois do in-
árvore, alegando que esta poderia cair cidente da árvore, ao andar pelas ruas
sobre umas casas próximas. A questão é da cidade em certas ocasiões, um carro
que á arvore estava firme e não existiam passava e alguém gritava alguma coisa
casas por perto. “O engenheiro austríaco que ela nunca entendia, mas sentia ter
disse que ia cortar aquela merda de ár- um tom cheio de agressividade. Até que
vore de qualquer jeito, eu disse uns bons certo dia o tal sujeito gritou “Macaca!”,
desaforos para ele e escrevi um artigo mas teve de reduzir a velocidade por
num jornal local, que naquele momento causa de um quebra-molas. Yara reco-
tinha interesse em estar do nosso lado nheceu o tal sujeito, que era o dono do
naquela briga”. A pressão da comunida- terreno onde está a árvore que queriam
de foi tão grande que chegou a envolver cortar. Não teve dúvidas: foi até sua
as autoridades locais num jogo de força casa, redigiu um termo de acusação e
entre os interesses comerciais e os inte- o entregou na delegacia. Uma mulher
resses ecológicos. Até que um dia um negra que presenciou o fato ficou, a
dos interessados em cortar a árvore pas- princípio indignada e se comprometeu a
sou montado numa moto pelo meu ma- testemunhar, mas na hora de compare-
rido e gritou: “Filho da puta!” Isso foi cer à delegacia o marido a aconselhou
o suficiente para o Alex chegar em casa a não se meter com os ricos. Sem teste-
sabendo que não iriam cortar a árvore. munha, não foi possível levar o caso à
O melhor dessa história é que todos na frente, mas de qualquer forma o racista
cidade sabem que os responsáveis pelo foi chamado à delegacia e recebeu uma
local onde a árvore está não podem nem boa repreensão por desrespeitar uma
194 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
“pobre senhora com mais de 60 anos, tou a escrever contos e peças de teatro.
mas o mais importante foi que ele saiu Uma dessas peças, um drama sobre a
de lá educado e hoje evita até olhar para escravidão, escrita em 1988, não lhe
a minha cara”. fez bem, deixou-a incomodada, cansa-
Casada há 28 anos com Alex, ar- da e triste, com uma sensação que ela
quiteto e também pintor, especializado não gosta de lembrar.
em projetos de jardins, Yara vive numa Atualmente, Yara está concluin-
casa bucólica e singela, cujo terreno é do um romance intitulado Santana da
completamente tomado por plantas e Armação, que se passa em qualquer lu-
árvores as mais diversas, inclusive al- gar que tenha praia, que tenha sido um
gumas espécies que praticamente de- lugarejo pacato e de repente se veja às
sapareceram da mata Atlântica. São voltas com a invasão de uma gente rica
bromélias, girassóis, ipês-verdes, ipês- e predatória. São histórias de amantes
-brancos, ipês-amarelos, ipês-roxos, alucinados, de negros com mais de 100
pauferro, jacarés, flamboyants, espi- anos que viriam tudo acontecer e de
nheiros de Maricá. Cada árvore tem o suas famílias, que vão perdendo a terra
nome de um amigo, de um parente, de de forma inocente diante da voracidade
alguém querido. Mãe de cinco filhos, e da usura do turismo e da especulação
dois dos quais com Alex, Yara viveu imobiliária. A partir da euforia do ve-
uma situação inusitada quando nasceu rão e da beleza das águas, são relatados
a primeira filha do casal. Nessa época, crimes jamais resolvidos, de viúvas que
eles moravam no bairro de Laranjeiras enterram caixões vazios, de maridos que
e um vizinho veio lhe dar os parabéns mandam cartas do além controlando os
porque ela tivera uma filha branca, ao lucros dos negócios, de milionários que
que Alex, entre irritado e espirituoso, aparecem fazendo a cidade cair em le-
disse que a criança era um xadrezinho, targia por mais de um ano e, quando re-
com uns pedacinhos brancos e outros tornam, tudo volta ao normal.
pretos. Parece um pouco o que acontece
Como não podia deixar de ser, em Búzios, mas Yara jura que não tem
Yara também faz suas incursões pela nada a ver. O lento desaparecimento das
literatura. Primeiro, uns escritos de comunidades de pescadores, a entrada
adolescente, poesias de amor, de soli- dessas pessoas no mercado de serviços
dão, coisas mais intimistas, como ela como caseiros e faxineiros, a perda pro-
mesma define. Foi por essa época que gressiva do espaço de moradia em troca
ela participou de um concurso na Rá- de uns míseros trocados que se diluem
dio Ministério da Educação, e como num fluxo para a miséria, a presença
prêmio pelo primeiro lugar teve o con- dos hippies, ou a turma do pão-com-ma-
to radiofonizado e deveria receber três riola, depois os iates, em breve os carros
livros de autores famosos, que nunca e a turma que se dava bem nas bolsas
foram entregues. Dez anos atrás, vol- de valores, e finalmente a pobreza de
Yara, uma arte fora da baixa cultura
Éle Semog 195
* Yara de Oliveira Rosa (Iara) – Pintura, tapeçaria e pintura sobre madeira trabalhada. Nascida em Niterói – RJ, realizou
várias exposições individuais e coletivas no Rio de Janeiro, São Paulo, Campo Grande, Curitiba, Santos e Búzios, tendo
participado do XIV e XV Salões Nacionais de Arte Moderna, da I Bienal Nacional da Bahia e do XXI Salão Fluminense de
Belas-Artes, em que obteve medalha de Prata. Professora, organizou várias turmas de pintura com crianças excepcionais, e
também, com o Grupo Diálogo, a I Semana de Arte no Interior do Estado (Rio Bonito – RJ). Dedicou-se à proteção ecoló-
gica em Búzios, fundando a Sociedade Ecológica, em defesa das árvores centenárias locais. Organizou, com as crianças de
Búzios, a Sociedade Mirim de Ecologia, onde as ensinava a proteger a natureza.
Em 1996, publicou pela Litteris Editora seus primeiros trabalhos literários, participando com outros autores dos best-
-sellers: O melhor da literatura, Anuário de escritores e Contos de verão, tendo recebido o Prêmio de Edição. Prepara
atualmente um romance que deverá ser publicado ainda este ano. É verbete do Dicionário das artes plásticas no Brasil, de
Roberto Pontual, e tem obras com colecionadores na Europa, Estados Unidos e vários países da América Latina.
Pan-africanismo e No semestre da primavera do ano
pedagogia* acadêmico de 1994-5, eu acrescentei o
livro Orfeu negro, de Jean-Paul Sartre, à
lista de leituras de meu curso Introdução
ao Pan-Africanismo. Como eu pretendes-
se enfatizar os movimentos da Negritude
e da Renascença do Harlem como compo-
nentes culturais e políticos do pan-africa-
nismo, parecia-me que a longa introdução
de Sartre à arte e filosofia do Movimento
da Negritude, tal como o manifesto de
Alain Locke no início de seu livro The
new negro (O novo negro), ajudaria a
estabelecer o terreno para futuras discus-
sões sobre a problemática de raça e sua
relação com a cultura e o universalismo.
O curso começou com The world
and Africa (O mundo e a África), de W.
Manthia Diawaramo E. B. Du Bois, que refuta a tese racista,
basicamente associada a historiadores
eurocêntricos, de que, entre todos os con-
198 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
1 Jean-Paul Sartre, “Black Orpheus”, trad. de John MacCombie, in “What is literature” and other essays (Cambridge, MA:
Harvard University Press), 306; todas as referências subseqeentes estão incorporadas no texto.
200 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
tuindo o futuro do mundo. A Negritude com o movimento dos direitos civis nos
e outros movimentos de descolonização, Estados Unidos. O papel do poeta ne-
antes de serem cooptados pela Guerra gro, tal como o de um demiurgo, é o de
Fria e forçados a se alinhar com a Otan criar um novo homem e uma nova mu-
ou com o bloco soviético, continham a lher num mundo novo, e não o de apri-
promessa de uma renovação mundial: sionar a musa num gueto. Fanon, um
os povos negros e morenos teriam o di- jovem escritor oriundo do movimento
reito de moldar seus próprios destinos; e da Negritude, foi o primeiro a concordar
os povos brancos se livrariam da culpa com Sartre e a denunciar, em seu pio-
acumulada durante séculos de racismo e neiro livro Os condenados da terra, as
de paternalismo. A modernidade estaria armadilhas da identificação racial: “A
finalmente cumprindo sua verdadeira afirmação incondicional da cultura afri-
missão no sentido que Habermas atri- cana sucedeu a afirmação condicional
buiu a esse termo: ir além da diferença da cultura europeia”2.
visível de cor da pele e salvar a huma- Eu queria que meus alunos sou-
nidade do obscurantismo e da opressão. bessem o que isso significou para al-
De repente, essa visão transforma guns de nós que cresceram na África
o objetivo da Negritude em algo mais dos anos cinquenta e sessenta. A ideia
amplo do que os poetas negros que a ha- de que a Negritude era maior que a pró-
viam inventado. A Negritude não seria pria África, de que fazíamos parte de um
limitada à África nem voltada para den- movimento internacional que continha a
tro numa contemplação narcisista de si promessa de emancipação universal e
mesma, tampouco se firmaria como um de que nosso destino coincidia com a
ofuscante determinismo da cor da pele. liberdade universal dos trabalhadores e
Seus poetas confiscariam o fermento da dos povos colonizados de todo o mun-
vida daqueles que odeiam e exploram, a do nos dava uma identidade maior e
fim de fornecer energia aos necessitados mais importante do que aquelas que nos
de liberdade e emancipação. A missão eram até então disponíveis por meio do
da Negritude é agora a liberdade uni- parentesco, da etnicidade e da raça. Era
versal, que compreende não apenas os bom estar em sintonia não apenas com
súditos coloniais da África e do Caribe, o próprio Sartre, mas com revolucioná-
mas também as exploradas classes tra- rios de renome internacional como Karl
balhadoras da Europa, América e Ásia. Marx, Leon Trotsky, Albert Camus,
Evidentemente, a luta pelos direitos André Malraux, Fidel Castro, Angela
dos negros na Negritude coincide com Davis, Mao Tse-tung, Martin Luther
a análise marxista, por Sartre, da condi- King, Nelson Mandela e Frantz Fanon.
ção da classe trabalhadora na França e A consciência de nossa nova missão his-
2 Frantz Fanoo, The wretched of earth. trad. de Constance Fanington (Nova York: Grove, 1968),212-3.
Pan-africanismo e pedagogia
Manthia Diawara 203
tórica libertava-nos do que então pensá- fazer, e portanto diluindo as ideias radi-
vamos serem as identidades arcaicas de cais do movimento.
nossos pais e suas armadilhas religiosas, Nesse sentido, é verdade que a
libertava-nos também da raça e nos li- Negritude é basicamente uma poesia de
vrava do temor à brancura da identidade negros sobre negros. Também é verda-
francesa. Sermos agora rotulados de sal- de que todo movimento tem sua própria
vadores da humanidade, quando ainda coerência interna que permanece viva
ontem éramos colonizados e despreza- pelo modo específico como ela coloca
dos pelo mundo, dava-nos um novo sen- seus elementos em ação e mantém entre
timento de integridade que alimentava eles uma relação específica. Essa auto-
o desdém pelo capitalismo, pelo triba- nomia consigna a um movimento como
lismo e pelo racialismo de qualquer ori-
a Negritude a sua singularidade, que lhe
gem. Com efeito, o universalismo pro-
permite brilhar entre outros movimen-
posto por Sartre tornou-se para alguns
tos e até ser admirada e imitada por eles.
de nós uma nova maneira de ser radi-
Enfatizar com demasiada rapidez as si-
calmente chique e de assumir uma nova
milaridades entre a Negritude e os mo-
identidade para não ter de lidar com a
vimentos proletários que têm lugar pelo
raça, que não era mencionada senão em
mundo encerra o risco de tornar invisí-
discussões sobre racismo. Somente em
veis essas partes constitutivas.
meados dos anos sessenta, quando nos
tornamos suficientemente imersos na No entanto, perguntei à turma,
cultura popular negra americana, é que será que o movimento em direção ao
a raça reapareceu como elemento im- particular é necessariamente um mo-
portante da cultura. vimento para longe do universal? Ou,
Ironicamente, essa consciência colocando de outra maneira, será que
de uma luta comum, de uma demanda o movimento em direção ao universal
de âmbito mundial aos supremacistas e constitui uma traição à cultura negra?
capitalistas brancos por direitos huma- Minha própria resposta, em ambos os
nos, parece afastar a pretensão inicial de casos, é “não”. Quando o particular é
autenticidade e singularidade da Negri- bem-sucedido, seus temas centrais co-
tude. Como apontaram alguns alunos da meçam a iluminar nossas lutas e pro-
turma, pode não ser possível conduzir jetos criativos. Inversamente, quando o
todo o mundo na direção em que Sartre universal é verdadeiramente universal,
leva a Negritude. O desejo de parecer ele retira do particular a necessidade de
universal pode fazer a Negritude esque- resistência e guetização e libera os ele-
cer ou ignorar alguns de seus elementos mentos que constituíam esse particular.
constituintes, e desse modo desintegrar- Isso é o que Sartre vê na Negritude, um
-se. Os alunos pareceram preocupados movimento que ele pensa ser capaz de
pelo fato de Sartre, um homem bran- lançar uma nova luz sobre os significa-
co, estabelecer a agenda dos poetas da dos de liberdade, amor e beleza univer-
Negritude, dizendo-lhes o que e como sal. A luz proveniente da África e dos
204 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
faz o separatista sentir ansiedade por ter ções tinge hoje nossa visão dos próprios
sido posto de lado e negligenciado. Estados Unidos, cuja civilização é dita
É importante lembrar uma vez “ocidental”. Mas, não obstante a presen-
mais que o universal é sempre um pre- ça de norte-americanos de ascendência
sente ou uma revelação que se dá ao europeia e o desenvolvimento de certas
mundo. Os modos de concretização des- ideias e práticas originadas na Europa,
se presente conduzem, sob certas con- permanece o fato de que as identidades
dições sociais, ao controle, à resistência dos norte-americanos derivam tanto da
ou à desautorização. Em primeiro lugar, fuga da Europa e de suas culturas mo-
o universal pode assumir traços parti- narquistas, vitorianas e religiosas quan-
cularistas ou racistas quando quer que to da África e da Ásia; a América não
pessoas, a fim de controlá-lo, escolham culturalmente intercambiável com a Eu-
uma forma seletiva de disseminação. ropa, do mesmo modo como não o pode
Aimé Césaire estava certo ao chamar a ser com a África e a Ásia.
experiência colonial na África de siste- Curiosamente, a referência à
ma de dádivas controlado, porque ob- identidade ocidental dos Estados Uni-
jetivava apenas educar seletivamente e dos nada mais é que o desejo dos
cristianizar parcialmente os africanos euro-americanos de se inserirem per-
nativos, jamais se interessando em dei- manentemente na própria imagem da
xar as pessoas obterem plena vantagem norte-americanidade e de manterem o
do potencial universal da educação e do poder de se reproduzirem a si mesmos
cristianismo. Mas uma dádiva deve ser como os norte-americanos ideais e uni-
total para que possa ter uma significação versais. Esse tipo de essencialismo per-
cultural positiva. manece sendo um problema na medida
Hoje em dia, as pessoas ainda em que as pessoas continuam a reivin-
doam seletivamente, e permanece uma dicar certos elementos universais desco-
tendência essencialista que liga a bran- bertos por seus ancestrais num período
cura a práticas universais como a pes- particular da história; obviamente, estou
quisa científica ou a música clássica. sofrendo uma ansiedade de separação.
Por exemplo, a relutância em aceitar O tratamento equivocado da perda de
as coisas tal como elas são leva alguns um país de origem e a cisão psicológica
intelectuais a continuarem se referin- provocada pela fuga da Europa para a
do ao romance como apenas uma for- América conduzem à negação das novas
ma de narrativa ocidental, e não como identidades americanas, à permanente
uma forma inventada na Europa num percepção errônea dessas identidades
momento particular da história. Eviden- como puramente ocidentais e, conse-
temente, para se escrever um romance quentemente, ao racismo e à xenofobia.
hoje em dia não se precisa ser europeu O desejo de controlar o elemento
nem concordar com um modo de vida universal da Negritude, ou de doar se-
europeu. Um avarento sistema de doa- letivamente, também assombra alguns
206 THOTH 4/ abril de 1998
Depoimentos
às condições sociais e econômicas que fessou que escolhera o curso por causa
produzem o gosto pela arte. do som autêntico de meu nome africano.
No último dia de aula, apresen- Todos os cursos sobre negros e África
tei novamente o Orfeu negro de Sartre eram dados por professores brancos. Ela
e perguntei aos alunos se acreditavam não confiava neles. Queria estudar com
que essa obra teria lugar numa aula so- um verdadeiro africano e ver como era
bre pan-africanismo. O debate foi tão isso. “E daí?”, perguntei com impaciên-
aceso quanto no primeiro dia de aula. A cia. “Ah! Agora eu sei que nem todos os
maioria dos alunos não se havia afasta- brancos são iguais, da mesma forma que
do de suas posições originais. Mas desta nem todos os negros são iguais. Com
vez se mostravam mais amigáveis. Não mais professores negros como o senhor,
me surpreendi. Como professor, vejo não me sinto mais desconfiada dos pro-
meu papel como o de um facilitador; em fessores brancos e do conhecimento de-
outras palavras, desejava fornecer-lhes les sobre a África. E estou satisfeita de o
argumentos suficientes para defende- senhor nos ter feito ler Sartre.”
rem qualquer posição que desejassem
Publicado originalmente na revista Renaissance
assumir. Houve para mim um momento Noire (Nova York), Vol. I nº 1, 1996. Tradução de
luminoso em tudo isso. Uma aluna con- Carlos Alberto Medeiros.
Teatro Negro
Parece que os textos do teatro afro-
Brasileiro no -brasileiro, assim como sua interpretação
por atores e atrizes negros do Brasil, es-
Festac 77: uma tão destinados a nunca serem vistos pelo
notável ausência* público nos Festivais de Arte Negra. No
primeiro festival, realizado em Dacar,
em 1966, esse importante ramo artístico
da cultura negra do Brasil estava ausen-
te; tanto quanto posso saber enquanto es-
crevo estas linhas, o mesmo ocorrerá este
ano no segundo festival. Essa ausência é
realmente lamentável por várias razões.
Inicialmente, devo dizer que não
me refiro à apresentação de danças exó-
ticas ou folclóricas. Estou falando do
teatro dramático em seu verdadeiro sen-
tido artístico: usar os recursos verbais e
visuais do teatro para articular proble-
mas, ideias, crenças, experiências; pro-
por alternativas de mudança, iluminando
Abdias Nascimento os mais profundos aspectos do ser huma-
no e revelando-o nas regiões mais pro-
fundas de sua história.
212 THOTH 4/ abril de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
É nesse campo de criação que os negro consistia em algo mais do que fa-
negros brasileiros têm mantido uma luta zer palhaçada ou dar cor local – a “nor-
árdua e tenaz. Qualquer um que tenha ma artística” era pintar de preto o rosto
familiaridade com o teatro brasileiro ou de um ator branco. Uma caricatura dos
que tenha acompanhado sua evolução negros como crioulos – este era o tea-
recordará o papel de divisor de águas de- tro brasileiro antes do TEN. A literatu-
sempenhado pelo Teatro Experimental ra dramática ignorava a tremenda força
do Negro – TEN, fundado por este autor lírica dos africanos do Brasil, ignorava
no Rio de Janeiro em 1944, com o fale- o potencial dramático cultivado em sé-
cido Aguinaldo Camargo, o melhor ator culos de sofrimento e de trabalho cria-
– branco ou negro – que o Brasil já co- tivo. Séculos também de insurreição e
nheceu, e muitas outras pessoas de igual revolta em busca da liberdade, que ins-
coragem, vitalidade e excelência. Nós creveram na vastidão territorial do país
não éramos um grupo que simplesmen- uma indelével cartografia de heroísmo
te desejasse apresentar algumas peças e lenda; com os seus líderes da esta-
nos palcos dos teatros brasileiros, então tura de um rei Zumbi, cuja República
reservados exclusivamente aos artistas Africana dos Palmares (Alagoas-Per-
brancos. As peças apresentadas naque- nambuco, 1630-94) resistiu às forças
les palcos refletiam exclusivamente a militares de Portugal como também às
vida, os costumes, a estética, as ideias, da Holanda durante 64 anos; ou Chi-
em suma, todo o meio social e cultural co Rei, o soberano africano que, sob
de uma sociedade dominante que era as dores do cativeiro, comprou a liber-
branca; como se metade da população dade de sua tribo escravizada, que en-
do País, que é de origem africana, não tão fundou uma próspera comunidade
existisse. Quando um ator ou atriz de cooperativa de mineração (Minas Ge-
origem africana tinha a oportunidade rais, século XVIII); ou a baiana Luísa
de subir ao palco, era invariavelmente Mahin e seu filho Luís Gama, em São
para desempenhar um papel exótico, Paulo; Karocango, no Estado do Rio de
grotesco ou subalterno – um dos muitos Janeiro; e muitos outros corajosos he-
estereótipos dos negros, destituídos de róis afro-brasileiros e seus feitos, todos
humanidade, tal como o das sorridentes eles esperando, em seus nichos históri-
e belas empregadas domésticas facil- cos, pelos dramaturgos e escritores que
mente acessíveis em termos sexuais; o levarão suas lendas para o palco, assim
dos moleques mostrando os dentes, com elevando qualitativamente a consciên-
um limitado e previsível repertório de cia dos africanos e dos povos negros do
momices e palhaçadas; a Preta Velha em mundo...
seus lamentos ou gargalhadas, ou então Mas esse tratamento dos des-
o domesticado Pai Tomás. cendentes de africanos no teatro – es-
Quando o papel de um persona- tereótipos e caras pretas – não era um
gem negro exigia qualidade dramática fenômeno isolado restrito aos palcos.
do ator – quer dizer, quando o papel do Muito pelo contrário, era somente uma
Desenho de Lívio Abramo para o TEN
Teatro negro brasileiro
Abdias Nascimento 215
das muitas facetas do contexto mais Mas a mais insidiosa forma de tal
amplo da sociedade brasileira, da qual agressão é a política de embranquecer
os afro-brasileiros não participavam – e o País física e culturalmente, mediante
não participam – com igualdade de opor- o encorajamento da maciça imigração
tunidades ou de condições, juntamente branca e da miscigenação, para citar
com outros grupos de diferentes origens apenas duas dentre as várias políticas
étnicas ou raciais. Se o mundo do teatro que constituem para os afro-brasileiros
reflete o mundo como um todo, o mo- (nas palavras de Roger Bastide) uma
nopólio branco dos palcos brasileiros “ideologia que os força a cometer sui-
não é exceção; reflete o monopólio – da cídio como negros, a fim de existirem
terra do Brasil; de seus meios de produ- como brasileiros”.
ção; de sua direção política e econômica
(doméstica e externa); de sua formação Omissões notáveis
cultural (educação, imprensa, mass me-
dia, etc.) – tão seguramente mantido
nos punhos apertados da classe domi- Tentando contrapor-se a essas
nante branca europeia. Todos os órgãos forças por meio da ação e reflexão, o
e instrumentos de decisão permanecem Teatro Experimental do Negro – TEN
zelosamente guardados naquelas mãos, formou um corpo de atores e atrizes
enquanto o descendente do escravo dramáticos negros, o primeiro a exis-
africano, o trabalhador solitário que tir fora dos estereótipos anteriormente
arduamente se exauriu para construir mencionados. Ao mesmo tempo, esti-
o País, só tem lugar nos mais baixos mulou a criação de textos dramáticos
níveis de emprego e subemprego, de nos quais a experiência negra era re-
subeducação e de deploráveis condi- fletida, em que o artista negro podia
ções de vida; em resumo, os mais bai- pesquisar e explorar, com respeito e
xos níveis de existência. Sua cultura e dignidade, sua personalidade humana e
religião de origem africana sofreram e humanística. Um teatro que reconhece-
sofrem todas as agressões que se pos- ria sua dignidade como ser humano e
como negro – e não aquele que Bastide
sa imaginar; desde as agressões sutis,
descreveu como:
como as técnicas de aculturação, de
assimilação, de folclorização, de ob- (...) confinando-o esteticamen-
jetificação sexual, até a proibição e a te ao único papel que o homem
tentativa de extermínio das religiões branco lhe havia destinado: o de
africanas, que resultou em uma força- entreter o público.
da “sincretização”, descrita por Roger
Bastide como “uma máscara cobrindo O TEN, em suma, foi um protes-
os deuses negros em beneficio do ho- to ativo contra uma sociedade que aspi-
mem branco”, chegando à agressão ar- ra a ser latina, branca, europeia, e que
mada da polícia e suas prisões. pretende apagar o verdadeiro caráter
216 THOTH 4/ abril de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
cultural e étnico de metade de sua popu- turgos não-negros que tratam de aspec-
lação: os descendentes da África. O so- tos da vida dos negros: Antônio Calla-
ciólogo Guerreiro Ramos escreveu com do: Pedro Mico; Nelson Rodrigues: O
rigor científico um ensaio ironicamente anjo negro; Augusto Boal: Arena conta
intitulado A palologia social dos bran- Zumbi; Zora Seljan: História de Oxalá;
cos brasileiros, denunciando o mórbido Agostinho Olavo: Além do Rio: (Me-
anseio de se tornar branco instilado na deia); Fernando C. Campos: Um caso
população pelas elites do País. O contra- de Kelé; Joaquim Ribeiro: Aruanda;
-ataque de Guerreiro Ramos e do TEN: Tasso da Silveira: O emparedado; Lúcio
Revelar a negritude em seu valor Cardoso: O filho pródigo; José de Mo-
intrínseco, dissipar com o seu foco de raes Pinho: Filhos de santo.
luz a escuridão de que resultou nossa Escrevendo uma introdução à
posse total pela brancura – eis uma das edição em inglês de minha antologia do
tarefas históricas de nossa época. teatro afro-brasileiro intitulada Dramas
É com o TEN que, nas palavras para negros e prólogo para brancos,
de Roger Bastide, “o homem negro sobe Roger Bastide, em um estudo das peças
ao palco, como um ator, com os seus que aparecem naquele volume, diz que
próprios valores”. elas “fogem do arquétipo universal para
É, por conseguinte, muito triste especificar uma raça ou cultura”, ofe-
que este segundo festival não tenha a recendo-nos depois rápidas impressões
oportunidade de vir a conhecer a força e dessas obras, tais como:
a pureza de uma atriz como Léa Garcia, (...) O anjo negro, de Nelson Ro-
internacionalmente conhecida por sua drigues, é, entre todas as obras
atuação como uma das protagonistas do escritas por brancos, a única que
filme Orfeu negro; ou de travar contato penetra profundamente na denún-
com Ruth de Souza, famosa nos palcos, cia dessa ideologia [de branque-
no cinema e na televisão; ou de ver em amento], que criticamos, por ser
ação o reconhecido e premiado Milton nada menos que uma forma hipó-
Gonçalves, ou Zeni Pereira, Clementino crita de genocídio.(...)
Kelé, Cléa Simões e tantos outros artis- (...) Auto da noiva, [de Rosário
tas valorosos que poderiam ter enrique- Fusco] retoma a ideologia do
cido as atividades desse festival com sua branqueamento, mas, por inter-
presença e/ou com seu trabalho. médio de uma sábia estratégia
Outra notável ausência da delega- humorística, ele a coloca contra o
ção brasileira é a falta de textos signifi- branco, que a criou no seu próprio
cativos do teatro brasileiro, como Auto interesse, depois da supressão do
da noiva, de Rosário Fusco, Castigo de trabalho servil (...). É a mais bela
Oxalá, de Romeu Crusoé, ou alguma inversão do branqueamento que
peça de Ironides Rodrigues ou Milton conheço. (...) Rosário Fusco cria,
Gonçalves. Há também textos de drama- a partir da política sistemática do
Desenho de Enrico Bianco para a capa do programa da peça Sortilégio: mistério negro, de Abdias Nascimento. Rio
de Janeiro, 1957
Teatro negro brasileiro
Abdias Nascimento 219
sua verdadeira terra natal, produzida por cia e sabedoria de outros teatros negros
meu irmão e colega Wole Soyinka. e africanos.
Meu interesse na participação Gostaria apenas que meus cole-
do Teatro Negro Brasileiro não é, por gas afro-brasileiros que vivem no Brasil
conseguinte, pessoal: é um interesse na pudessem ter oportunidade semelhante
participação dos muitos artistas e auto- à minha: retornar à terra e ao ambiente
res negros de teatro que hoje atuam no tradicional dos quais quase todos nós,
Brasil, os quais merecem, por sua histó- afro-brasileiros, somos descendentes.
ria de luta e afirmação da cultura negra,
enriquecer o Festac com seu talento e • Publicado originariamente em inglês na
competência, e compartilhar a experiên- revista Afriscope v. 7: nº 1 (1977). Tradu-
ção de Carlos Alberto Medeiros.
Lélia González, Abdias Nascimento, Eduardo de Oliveira e Antonio Leite, no ato público de fundação do MNU. São Paulo, 1978
Padre Glyn Jemott: O padre Glyn Jemott, 51 anos, pa-
lutando pelos rece muito surpreso com a atenção que
seu trabalho com populações negras e
direitos dos indígenas do México lhe tem atraído.
Afinal, ele é o sacerdote dessas pessoas.
afro-mexicanos* E, tendo vivido e trabalhado com elas na
costa mexicana do Pacífico (Costa Chica)
por 13 anos, ele vê o seu papel de coor-
denador da primeira conferência negra ali
organizada como apenas uma parte de seu
compromisso.
Nascido em Trinidad, padre Glyn
teve um rude despertar para esse proble-
ma anos atrás, quando chegou à aldeia
afro-mexicana de El Ciruelo.
– Vim para rezar uma missa nessa
aldeia em 1984 – recorda ele com descon-
forto – e fui convidado para jantar na casa
de uma jovem que estava comemorando
seu aniversário. – Logo se aproximou
dele um convidado bêbado que desejava
saber quem ele era. Ante a resposta de
que se tratava do novo pároco, o homem
tocou-lhe o cabelo lanudo e disse que isso
era impossível, pois os negros não eram
Lula Stricikland suficientemente bons para assumir uma
posição dessas. – Ele continuou por vinte
230 THOTH 4/ abril de 1998
Movimento Negro Hoje
minutos me contando que eles nunca ti- padre, descobrir um ao outro e encontrar
nham visto antes um padre negro, e de- sua identidade cultural.
pois disse uma coisa muito importante – Essa percepção foi crescendo,
que, espero, nunca vou esquecer. Disse crescendo, até que, uns cinco anos atrás,
que nós negros somos gente comum, resolvemos convocar um encontro dos
medíocre, que não pode ter altas preten- povoados para avaliar a situação. Umas
sões, e não penso que ele percebesse o cinquenta e tantas pessoas apareceram!
que estava dizendo – relembrou o padre. – O padre ri com a lembrança. – Fica-
Em sua maioria, os moradores mos agradavelmente surpresos com essa
de El Ciruelo e dos 24 povoados vizi- resposta.
nhos sentiam a mesma coisa sobre si A busca da autoidentidade con-
mesmos, descobriu ele, e foi então que tinuou e em 1996 o padre Glyn, jun-
resolveu ajudar os negros e indígenas a tamente com líderes apontados pelos
se livrarem dessa deplorável disposição moradores dos povoados, reiniciou as
mental. conversas. A partir desses encontros
e do crescente contato com pessoas
– Essa atitude negativa ficou na
como antropólogos que iam estudar na
minha cabeça por muitos anos – diz o região, e com a guerra sendo desenca-
padre Glyn. – Na verdade, ela me deu deada pelos indígenas em Chiapas, per-
um sentido de missão. Não me conside- cebeu-se uma urgência em se promover
ro a pessoa destinada a fazer mudanças, a unidade.
mas estava feliz em sentir que minha
presença aqui poderia, de alguma forma, Assim, depois de muito planeja-
mento estratégico, foi realizada em El
ajudar outras pessoas a mudarem de sin-
Ciruelo, na primavera de 1997, a pri-
taxe para “nós somos capazes”. Com os
meira Convenção dos Povoados Ne-
anos, tenho visto muita gente se sentir
gros. “Mais de 300 pessoas”, represen-
dessa maneira, como jovens, crianças e
tando 24 comunidades, compareceram
adultos mais velhos. Quando me tornei
ao histórico evento, que durou três dias.
próximo delas, elas me contaram que O povo de El Ciruelo e de outros povo-
este povoado e outros ao redor sempre ados reuniu-se e ergueu, expressamen-
estiveram sob os pés de uns poucos me- te para a ocasião, um amplo barracão
xicanos mais claros e bem-sucedidos, e coberto com palhas de coqueiro – uma
você percebe que isso é o México. honraria geralmente reservada a casa-
Mas em 1991 uma nova autoima- mentos e outras reuniões sociais.
gem começou a emergir. Afro-mexica- – Houve uma sessão preparató-
nos progressistas ligados à Igreja, gru- ria para ajudar a preparar o encontro e
pos de jovens e outros decidiram que era envolver as pessoas – explica o padre.
hora de mudar. Era preciso que os povo- Elaboramos um questionário com qua-
ados negros se unissem para, segundo o tro perguntas. A primeira era: qual é a
Padre Glyn Jemott, El Ciruelo, México
Pelos direitos dos afro-mexicanos
Lula Strickland 233
origem, qual é a história do seu povoa- zes africanas. Ele informou-lhes que,
do? A segunda: quais são as principais embora seus ancestrais tivessem che-
comemorações em seu povoado? Como gado ao México escravizados, outros
se preparam essas comemorações e africanos também haviam visitado a
como se participa delas? A terceira: região, nos tempos antigos, na qualida-
como o seu povoado, e você mesmo em de de exploradores. Os negros da costa
particular, sente e comemora a identi- de Oaxaca, no Pacífico, em que reside
dade negra? E a quarta pergunta: como a maioria dos afro-mexicanos, foram
é que os negros tratam a si mesmos e levados para lá no século XVI pelos
a outros grupos raciais, como índios colonizadores/escravagistas espanhóis
e caboclos? Nem todos os povoados para trabalhar nas minas e nas fazendas
puderam apresentar respostas claras – de cana-de-açúcar.
relembra Glyn–, mas acho que as per- Para avançar na explicação de
guntas atingiram seu objetivo porque suas origens, o padre Glyn diz que car-
ajudaram a condicionar as pessoas, a tões postais com réplicas de navios ne-
lhes dar a oportunidade de se questio- greiros, doados pelo Centro Cultural de
narem sobre algo que provavelmente Watts, de Los Angeles, Califórnia, fo-
não estavam acostumadas a considerar, ram postos nas mãos das pessoas.
e também lhes deram algo para com-
partilhar. Tínhamos uma semente co- – Pedimos que elas olhassem os
mum – avalia ele. cartões e refletissem sobre eles – diz o
padre. – O que ele parece e o que ele
Na primeira parte do encontro, os lhe diz? Depois dissemos: foi assim que
participantes discutiram o questionário, trouxeram você para cá.
que, ao que foi dito, conduzia a uma
“clareza de propósitos”. Nessa fase, as Houve um silêncio, as pessoas
pessoas expuseram suas opiniões so- ficaram olhando umas para outras em-
bre problemas comunitários e puderam basbacadas. “Foi assim mesmo que nós
aprender mais sobre as outras. A partir viemos?”, queriam saber.
dessa conversa, os líderes pegaram di- Depois dessa extraordinária ses-
ferentes áreas e trabalharam para “am- são, as pessoas se abriram e começaram
pliar” esses temas, desenvolver o que a falar.
fora discutido.
– Um papo muito franco teve
Especialmente profunda foi a início – diz o padre, com entusiasmo.
parte da conferência voltada ao escla- – Houve uma discussão aberta. Foi
recimento das pessoas a respeito de sua um momento muito interessante do
herança negra e sobre como seus ances- encontro. As pessoas começaram a se
trais foram parar no México. Historia- questionar, a questionar as outras e a
dor e conferencista, o professor Kande, criticar. – Chegaram até a tirar conclu-
originário do Congo, foi convidado a sões sobre as percepções negativas de
falar aos participantes sobre suas raí- algumas delas contra sua própria raça,
234 THOTH 4/ abril de 1998
Movimento Negro Hoje
e a dizer coisa como: “Isso aconteceu sério? – perguntou Glyn aos cabeças da
porque eles (os opressores) nos trata- convenção. – As pessoas disseram que
ram dessa forma!” sim, mas é fácil dizer sim.
Apesar da presença de milita- A estratégia para o futuro inclui
res e de agentes do Serviço Secreto, a convocação de um encontro de todos
as pessoas falaram livremente sobre os representantes, alguns sociólogos,
soluções para os seus problemas so- antropólogos e historiadores a fim de
ciais. A necessidade de educação foi se elaborar uma “agenda forte” para a
um tópico fortemente debatido, tanto próxima convenção. O padre admite que
quanto o modo de usá-la para ajudar a primeira careceu de uma estrutura fir-
as pessoas a entender melhor a eco- me, embora houvesse grande satisfação
nomia. Discutiu-se quais eram os mais nas pessoas por se reunirem pela primei-
qualificados para agir como líderes co- ra vez para expressar seus sentimentos e
munitários, assim como a forma de al- esperanças.
guém se tornar mais consciente de sua
Mas o evento planejado para 1998
herança negra. E também maneiras de
será, espera-se, “um aprofundamento
unificar os vários povoados.
e uma expansão”, com o fortalecimen-
– As pessoas realmente demons- to da unidade dos povoados como alta
traram serem sérias e maduras relembra prioridade, ao lado do estabelecimento
o pároco. de um órgão poderoso para a comunica-
ção entre eles.
Desde a convenção, represen-
tantes dos povoados, ao lado de Glyn – Esperamos que a próxima con-
e de outros membros da Igreja, orga- venção nos encontre mais organizados,
nizaram quatro encontros para avaliar mais unidos e com alguns projetos já
seu progresso. Um outro foi planeja- em andamento. Por exemplo, um jornal
do para abril de 1997, mas, devido às dirigido e um fundo de bolsas de estudo
tempestades provocadas pelo furacão para enviarmos mais crianças à escola –
Paulina, acabou sendo adiado sine die. diz o padre.
A segunda Convenção dos Povoados
São muitas as necessidades em
Negros está sendo marcada para março
sua lista:
de 1998.
– Há dois tipos de estatística no
Quais foram os efeitos desse pri-
México sobre a população negra – con-
meiro e histórico encontro? O padre
clui ele. – Uma avaliação por alto e
compara a experiência a um provérbio
uma avaliação por baixo. A avaliação
africano: depois da festa, os músicos
por baixo é de que os negros são 1% da
têm de carregar seus instrumentos.
população, a avaliação por alto diz que
– Nós nos reunimos e passamos somos 9%. Mas mesmo dentro do 1%
bons momentos. Mas a questão é: vocês somos apenas uma gota no oceano, de
estão preparados para fazer um trabalho modo que, a partir disso, podemos con-
Jovem afro-mexicano do Estado de Oaxaca, México, 1977
OXUM EM ÊXTASE
Óleo e acrílico s/ tela - 153 x 102 cm, de Abdias Nascimento, Buffalo, USA, 1975