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Revista Critica de Cibncias Socinis n° 11 Maio de 1983 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS* OS CONFLITOS URBANOS NO RECIFE: 0 CASO DO SKYLAB INTRODUGAO: DA ANALISE ESTRUTURAL A ANALISE PENOMENOLOGICA Em trabalho anterior defini alguns dos parametros ted- ricos de uma andlise da questo urbana (Santos, 1982 a) (*) Nessa andlise privilegici a posigfio e a actuacao do Estado dada a crescente centralidade deste na gestio dos conflitos urbanos. No percurso tedrico entao feito, procurei combinar duas dimensoes analiticas: por um lado, a dimenséio morfo- logica, com vista a estabelecer, ao nivel maximo de indeter. minacio, a derivacéio da forma estatal e da forma juridica basicas a partir da légica do capital, tal como se encontra com que as clas- ses dominantes e o Estado procuram incorporar a Tereja do Recife no bloco de dominacao social ¢ politica, No caso do Skylab, a primeira tentacéo surgiu logo no inicio do conflito, quando os proprietarios se dispuseram a dar, em troca da retirada dos ocupantes, um pedaco da 4rea para a constru- cdo de uma Igreja. Ao mencionar esta oferta dos proprie- térios, um dos advogados da CJP comentou: «Agem paterna- listicamente e, 0 que é mais importante, sempre usando a igre ja como veizulo de dominacdor. Uma’ outra tentacao, desta vez. por parte do Estado, teve lugar quando os agentes poli- tico-administrativos procuraram empurrar a Tgreja para uma posicao de «medianeira isenta» entre os interesses dos pro- prietarios e os dos ocupantes, em nome da pretensa vocacio transclassista da mensagem crist, com o objectivo de, ao dei xarem-se substituir naquela posicéo, permitirem ao’ Estado um recuo tactico para dentro dos limites de compatibilidade funcional com os interesses da burguesia fundidria e imobilid- ria da cidade do Recife. Ao comentar 0 comportamento dos agentes estatais na primeira sessio de negociacdo, 0 mesmo advogado da CJP disse, na entrevista: dos outros tipos de resistencia (e de desisténcia) presentes no seu imaginario so- cial, Vencido o primeiro embate, era necessério dar consis- téncia institucional aos elos organizativos ja tecidos, transfor- mé-los numa cadeia de acgdes colectivas participantes, Foi isso 0 que se pretendeu com a comissio de moradores cuja formacao a Igreja ajudou a dinamizar. Obteve-se assim um nivel organizativo taivez incipiente e instével, mas que afinal se mediu (adequadamente?) com as tarefas que o desenvol- vimento do conflito Ihe foi impondo. A terceira condigio, a construgao de um facto politico, foi aquela em que os ocupantes mais dependeram da accao da Igreja. Nao podia ser doutro modo no contexto social ¢ politico ja referido. Os vastos recursos da Igreja do Recife neste dominio foram postos ao servico dos ocupantes na me- dida em que tal foi julgado necessario em funcao da reaceao dos proprietarios. A utilizacdo dos meios de comunicacao $0- cial foi decisiva para criar 0 acontecimento, sinalizar os seus contornos e inculcar no pablico a distribuigao da carga nor- mativa pelos varios intervenientes no sucedido. A publicidade inviabilizou qualquer eventual projecto de acgao expedita e «clandestina» por parte do Estado ou dos proprietérios (des- coberta pelos mass media sé depois de consumada). As no- ticias desgastaram a imagem publica da empresa imobilidria, © que nao pode deixar de ser contabilizado por esta como um investimento negativo. O Estado foi chamado as suas res- ponsabilidades sociais e politicas, o caso deixou de ser igual outros € as solugdes de rotina deixaram de ser possiveis. A publicizacao do conflito foi a condigao da sua politizacdo. A presenca de D. Helder Camara, uma figura carismatica en- tre as classes populares do Recife e, sem divida, uma figura politica nacional, para além de dramatizar a alianca da Igreja com os ocupantes do Skylab, redefiniu o conflito, transfor- mando-o, de caso isolado, em instancia exemplar de um con- flito global entre a miséria ¢ a opuléncia. Os partidos da opo- si¢do, a tactear 0 acesso ao reconhecimento piiblico depois de anos de «fechadura politica», aproveitaram o acontecimen- to para manifestar a solidariedade com as classes populares e para, através dela, introduzir um factor politico novo: a ne- 52 Boaventura de Sousa Santos cessidade de o governo estadual, sustentado por um partido, jogar na solucao do caso um perfil de exercicio do poder da vez mais vulneravel & confrontacao eleitoral. ‘Com a criacdo da pressao social e politica sobre os pro- prietarios e o Estado, a partir das trés condigoes acima ana- lisadas, estava realizado o componente politico principal da mobilizagao do direito pretendida pela CIP. Como dissemos, a estratégia juridico-politica manteve-se disponivel para as solugdes alternativas em presenca: a solucio juridico-adminis trativa e a solugao juridiconegocial. Quando os funciondrios superiores da Secretaria da Habitacdo visitaram o local, a so- lugdo juridico-administrativa pareceu ser a preferivel,’ tanto em termos politicos como em termos dos interesses especifi- cos dos moradores. O Estado expropriaria a area, julgada de baixo valor fundirio, e distribui-la-ia posteriormente aos mo- radores segundo um esquema jurfdico a fixar. Com o subse- quente recuo do Estado, esta solugao foi inviabilizada e a es- tratégia reorientouse para a outra alternativa. Foi tentada a solucao negocial directa com os proprietdrios. Mas os pro- prietdrios recusaram-se, nao sé porque se julgavam ainda nu ma posicdo de forca, como também porque, na situacdo, se- ria impossivel controlar quaisquer cedéncias que tivessem de fazer. Ao Estado no convinha a negociacdo directa porque, no caso de esta ter éxito, ficaria privado de retirar dela os res- pectivos dividendos politicos. Foi-se, pois, para a solucdo ne- gocial com a participagao do Estado. ‘A identificacao das linhas de orientagdo geral da pas- toral urbana da Tgreja do Recife, tal como so ilustradas pe lo Skylab, nao ficaria completa se ndo se referise que os di- ferentes conflitos ¢ lutas urbanas sio concebidos como mo- mentos, mais ou menos importantes, de um processo global de evangelizacio social. Assim, o caso do Skylab foi prolon- gado em dois sentidos diferentes: um prolongamento sobre si proprio ¢ um prolongamento sobre as restantes lutas urba- nas. Quanto ao primeiro, a preocupacao central foi como evi tar a perda do dinamismo organizativo, colectivista e reivin- dicativo depois da obtencao do acordo. E a preocupacéo era, neste caso, particularmente realista, uma vez que 0 acordo se pulverizou em algumas centenas de relagdes juridico-priva- das entre individuos. Ao assumir com tanta veeméncia esta preocupacao, a Igreja revelou ter do conflito uma concepcio antagénica da concepeio juridico-politica adoptada pelo Es- tado, Ao contrario desta ultima, a Igreja néo concebeu o Skylab como um caso que se resolven com a assinatura dos contratos de locacdo. Concebeu-o antes como um processo co- Conflitos Urbanos no Recife 53 munitario para ser ampliado ¢ aprofundado depois do salto qualitative dado com o acordo. Quanto ao segundo prolongamento (sobre as restantes lutas urbanas), a preocupagao central foi a de reflectir so- bre as consequéncias do desfecho do Skylab para outras lu- tas em curso e, em geral, sobre a articulacdo entre as dife- rentes lutas urbanas. Seria A luz dessas reflexes que o Skylab teria de ser, em ultima instancia, avaliado: (entrevista com o director de Programas Especiais da Secretaria da Habitacao).. Esta maior autonomia da accio do Estado é, no caso, a manifestacao superficial de um reajustamento parcial em curso nas relagbes politicas entre as classes em confronto. Por isso, a autonomia do Estado continua sujeita aos limites estruturais impostos pela defesa da propriedade privada, que no pode ser «desmoralizada» ¢ a quem «o governo ‘deve respeito», Os limites estruturais da acco do Estado impostos pe- Ja nao socializagao da propriedade fundiaria urbana no sio fixos e a sua variacao depende de uma série de factores, por vezes conjunturais, que a cada momento cristalizam as rela- ges de forca entre as classes socials (Santos, 1982a: 66). Assim, por exemplo, a expropriacdo da terra, ao contrario do confisco, ¢ funcionalmente compativel com o principio da propriedade privada, mas a sua utilizacdo em maior ou menor escala numa determinada conjuntura politica pode, em certas circunstancias, resultar no enfraquezimento relativo das po sigdes sociais da burguesia fundidria e'imobiliéria e, em tal caso, acabard por produzir um deslocamento também relati- vo nos limites estruturais da acco do Estado. No caso do Skylab, a possibilidade de um tal deslocamento deixou-se aflo: rar na proposta inicial de expropriacao, mas as fortes posicoes da burguesia fundidria ¢ imobilidria no_seio do bloco no po der inviabilizaram & partida tal possibilidade. Alias, o baixo valor fundiério actual do terreno faz crer que o que acima de tudo se temeu foi o deslocamento dos limites ideolégico-sim- bolicos da defesa da propriedade (a «desmoralizacao da pro- priedade»). E, alids, nesse sentido que convergem as inteli- aibilidades reciprocas subjacentes &s economias interaccio- nais dos diferentes intervenientes, como bem se retira das suas afirmages aqui registadas. No dominio da questio urbana, e como se assinalou em geral (Santos, 1982 a: 60), o funcionamento da renda fun- didria no interior das formas de propriedade dominantes (a Conflitos Urbanos no Recife 57 opriedade capitalista, industrial financeira, por si ou asso- cria obstdculos cada vez maiores (desde logo financei- ros) & resolugao por parte do Estado do problema da habi taco das classes populares. Este problema ¢ crescentemente a manifestacdo de uma contradicéo de classe entre a apro- priacdo privada da terra urbana € as necessidades colectivas das classes populares lancadas na cidade pela degradacao dos padrdes de subsisténcia nos campos ¢ entretanto inabsorviveis pelas estruturas industriais urbanas, Nestas condicdes, 0 Es- tado capitalista, indisponivel para a resolucdo desta contra- dicdo, limita-se a_gerir ¢ a controlar as tensdes sociais por que esta se manifesta na estrutura de superficie da socieda de. No caso do Skylab, «¢ importante lembrar que o governo foi desmascarado em sua tentativa populista. Quando as coi- sas exigiram uma actuacio ‘aqui ¢ agora’, evidenciouse que nao se pretende realmente resolver os problemas habitacio- nais das populacdes menos favorecidas. O grande gerador de tensdio em todo esse conflito foi a defesa da propriedade pri- vada» (entrevista com um membro da CJP). Por outras pa lavras, a actuagdo do Estado no Skylab pautou-se pelos ter mos da teoria da ‘dialéctica negativa do Estado (Santos, 1982 a: 24) A luz desta teoria, o Estado disporia, & partida, de di ferentes mecanismos de dispersio da contradicio verificada (Santos, 1982.a: 25). 0 mecanismo da repressio/exclusdo con- sistiria, ‘neste caso, na expulsio violenta dos invasores sem hes conceder qualquer aliernativa. Foi a este mecanismo que os proprietarios recorreram quando, logo apés a invasao, pro- curaram a intervencio da policia. Este mecanismo, recorren temente utilizado no passado pelo Estado, é. hoje, de aplica cdo mais selectiva, Mesmo assim, foi utilizado em alguns dos Conflitos incluidos nesta investigactio; no péde, contudo, ser accionado no Skylab nelas razdes conhecidas. 0 mecanismo de trivializacdo/neutralizacao consistiria, neste caso, na obten cio do acordo dos invasores para se retirarem da area me diante a promessa da concessio de terrenos ou de habitacdes tornadas disponiveis pelo Estado na periferia da cidade. Esta seria a «soluedo de rotina». $6 que, no contexto social ¢ po- litico do Recife, seria, em geral, uma solugio muito prec ria para os invasores, nao s6 porque os terrenos seriam muito provavelmente de baixa qualidade e de certeza muito distan tes (agravando ainda mais o nivel de subsisténcia pelos cus- tos _dos transportes) como também porgue, terminada a in- vasio, os exocupantes deixariam de ter peso politico ou so- cial para pressionar o Estado a cumprir as promessas feitas. cia 58 Boaventura de Sousa Santos No Skylab, os ocupantes, ajudados pela CIP, manobraram em seu favor a conjuntura social e politica do poder estatal, de modo a impedir o accionamento deste mecanismo de disper- so ou qualquer combinacdo dele com o mecanismo de re- pressio/exclusao. Restava, pois, 0 mecanismo da socializagao/integracao que, no caso, consistiria na consolidacao juridica da ocupa- Gao. Assim se daria estabilidade a satisfagao da necessidade de habitagao por parte dos ocupantes, ao mesmo tempo que estes seriam socializados no respeito pela propriedade priva- da, em que a partir de agora teriam um interesse directo. A esta luz,'a melhor solugio seria a expropriagao do terreno; nao tendo sido possivel, foise para o contrato de locacao. E. certo que neste caso a estabilidade ficou reduzida a’ cinco anos, mas, nas expectativas sociais das classes populares do Recife, cinco anos correspondem mais ou menos a eterni- dade. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Alves, Bléreio Moreira (1919), A lgreja ¢ a Politica no Brasil, Sio Pau- 0, Editora Braciliense, Andrad¢, Manoel Correia (1974), Cidade e Campo no Brasil, Si Paulo, Editora Brasiliense. Andrade, Manoel Correia (1979), Recife: Problemdtiea de uma Metré~ pole de Regido Subdesenvolvida, Recife, Editora Universitaria da Universidade Federal de Pernambuco. Bernstein, Richard J. 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