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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Bruno Rafael de Matos Pires

Juventude Imigrante: Estigma, conflito e circuito de lazer na cidade de


São Paulo

Guarulhos
2020
Pires, Bruno Rafael de Matos

Juventude imigrante: Estigma, conflito e circuito de lazer na cidade de São Paulo. 2020.
Dissertação.
Mestrado em Ciências Sociais – Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2020.
Orientação: Prof. Dr. José Lindomar Coelho Albuquerque.

1- Juventude; 2- Estigma; 3- Imigração; 4-Conflito; 5; Sociabilidade; 6; Circuito de


Lazer. I. Prof. Dr. Lindomar Albuquerque; II. Juventude imigrante: Estigma,
conflito e circuito de lazer na cidade de São Paulo.
Bruno Rafael de Matos Pires

Juventude Imigrante: Estigma, lazer e sociabilidade na cidade de São


Paulo

Dissertação apresentada à Universidade


Federal de São Paulo como requisito parcial
para obtenção de título de Mestre no Curso
de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

Aprovação: 25/09/2020.

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Lindomar Albuquerque (UNIFESP)

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Barbosa Pereira (UNIFESP)

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Geribola Moreno (UNILA)

Guarulhos
2020
Inmigrante Guerrero.
Damas y caballeros presten atención
el momento llegó de la Revolución
con palabras y musica vamos a demostrar y decir
basta a la discriminacion Racial
Mucho latino imigrante buscando un buen porvenir
al igual que mi gente de mi Pais BOLIVIA
raza de Bronce, de Plata, de Oro
que Brillamos por el Mundo todo
Real, fue nesesario Inmigrar
para nuestro sueños alcanzar
con esfuerzo y trabajo y con Fé
ya veremos un nuevo amanecer
sin desistir luchando hasta el Fin

Por que soy Inmigrante Guerrero Soy


Luchando por este mundo Voy
No me dejo de nadie No
Inmigrante Soy

Estilo Libre siente mi Calibre


esto para mi gente que no desiste
vamos para adelante Inmigrante
que la lucha es constante y nuestro sueño es gigante
aun recuerdo mi partida
Amigos y familia en la despedida
y llenó de esperanza en la mochila
en busca de mi travesia de conquista
ya en la frontera la realidad no es como parecia trafico de personas
Trabajo esclavo, mucho maltrato, poco pago
Apesar de eso seguimos luchando
Implantando Bandera en Tierra extranjera.
(Richards Tex Brown, 2020)
Agradecimentos

À minha mãe, grande lutadora que sempre acreditou que a educação e o ensino são
armas para transformação da realidade e do ser humano. Aos meus irmãos, Paula e Eduardo
pela paciência e companheirismo.
Ao meu orientador Lindomar pelas dicas, companheirismo e paciência ao lidar com
os momentos de ansiedade e pela confiança em meu trabalho. Aos meus amigos que não
são poucos, em especial a Rocio, Adriana, Jhanyra, Gabriela, Alía e o pequeno Alvarito,
Pamela del Carmen, Jeny de La Rosa, Bruno Aranha (as discussões sobre América latina
estão só no começo), Vinicius Mendes pelas discussões e trocas teóricas, ao pessoal de
Osasco (Coquinho, Alan, Eduardo), ao pessoal do grupo de estudo Liminar e todos e todas
do projeto Sy, yo puedo!
A toda comunidade imigrante radicada no Brasil e principalmente aos interlocutores
que aceitaram fazer parte deste estudo, sem vocês ele não aconteceria e não teria sentido.
A Pe. Achile, grande amigo de minha família que tão cedo nos deixou e a meu
falecido pai por ensinar a lutar pelos meus sonhos quando eles parecem distantes e a
valorizar cada conquista do dia a dia. Saudades eternas.
DEDICATÓRIA

Em memória do Padre Atta Amichia Achile (07/09/62 – 08/06/2018) e de Benedito Pires


(16/06/1955 – 20/06/2019).
RESUMO

Pires, Bruno Rafael de Matos. Juventude imigrante: Estigma, conflito e circuito de lazer na
cidade de São Paulo. São Paulo. s.n., 2020. 164p. Dissertação (Mestrado) - Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2020

Esta pesquisa aborda a inserção de jovens imigrantes e filhos de imigrantes bolivianos,


peruanos e paraguaios nos espaços de lazer da cidade de São Paulo. Conforme abordado ao
longo das análises, os imigrantes das respectivas nacionalidades convivem diariamente com
os estigmas criados pela sociedade local. Esses estigmas são passados de pais para filhos e
influenciam nos modos como estes últimos constroem sua identidade, ocupam os espaços
da cidade para atividades de lazer, relacionam-se com brasileiros e outros imigrantes e
ainda como reagem à caracterização negativa produzida pela sociedade de recepção. A
pesquisa se justifica pelo fato de evitar a tendência de visualizar os imigrantes unicamente
como força de trabalho (Sayad, 1998). As metodologias adotadas foram a observação de
campo nos lugares frequentados pelos jovens imigrantes bolivianos, peruanos, paraguaios e
outros sul-americanos, como a rua Coimbra e a praça Kantuta, a realização de entrevistas
semiestruturadas com os jovens imigrantes e seus familiares bem como conversas
informais, realizadas em diferentes momentos com interlocutores brasileiros e imigrantes.
Pode-se dizer que a rua Coimbra não é o único lugar frequentado pela juventude imigrante,
pois outros espaços vêm se consolidando na região metropolitana de São Paulo. Dentre
eles, se destacam as baladas localizadas na Vila Maria, Pari e Centro, como também a
batalha de rap batizada por seus organizadores como Batalla Callejera.

PALAVRAS CHAVE: ESTIGMA; JUVENTUDE; RELAÇÕES SUL-SUL;


IMIGRAÇÃO.
ABSTRACT

Pires, Bruno Rafael de Matos. Immigrant Youth: Stigma, leisure and sociability in the city
of São Paulo. São Paulo. s.n., 2020. 164 p. Thesis (Masters) – Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2020.

This research addresses the integration of young immigrants and children of Bolivian,
Peruvian, and Paraguayan immigrants in the leisure spaces of the city of São Paulo. As
discussed throughout the analysis, immigrants of these nationalities live daily with the
stigmas created by the local society. These stigmas are passed on from parents to children
and have been influencing how they build their identity, occupy city spaces for leisure
activities, relate to Brazilians and other immigrants, and also how they react to that negative
characterization produced by the receiving society. The research avoids the tendency to
view immigrants simply as a workforce (Sayad, 1998). The methodologies adopted were
field observation in places frequented by young Bolivian, Peruvian, Paraguayan, and other
South American immigrants, such as Coimbra street and Kantuta square, conducting semi-
structured interviews with young immigrants and their families as well as informal
conversations, held at different moments with Brazilian and immigrant interlocutors. As a
result, it was figured out that Coimbra street is not the only place frequented by immigrant
youth, while other spaces are increasing in the metropolitan region of São Paulo. Among
them, the night parties located in Vila Maria, Pari, and Centro are standing out, as well as
an MC battle which, is known by its organizers as Batalla Callejera.

KEYWORDS: STIGMA; YOUTH; SOUTH-SOUTH RELATIONSHIPS;


IMMIGRATION.
SUMÁRIO

1. Introdução 6
1.1 Das Pandillas à juventude imigrante: como cheguei até aqui 6
1.2 A pesquisa metodológica 14
1.3 O trabalho de campo 15
1.4 A relação do pesquisador com os sujeitos pesquisados: estar lá e
aprender com eles 17
1.5 Fazendo pesquisa em tempos difíceis 22
1.6 Organização e sistematização dos capítulos 23
2. As configurações de poder na imigração sul-sul no Brasil 25
2.1 As imigrações contemporâneas no mundo e no Brasil 25
2.2 Colonialidade de poder, eurocentrismo e Imigração sul global
para o norte global 30
2.3 A dicotomia imigração desejada e a imigração indesejada 33
2.4 Os casos de xenofobia, racismo e estigmatização de imigrantes
do sul global no Brasil 37
2.5 Corpos marcados 42
2.6 Considerações Preliminares 48
3. As distinções interétnicas e intraétnicas em São Paulo 52
3.1 As relações interétnicas entre os imigrantes bolivianos,
paraguaios e peruanos em São Paulo 52
3.2 As distinções intraétnicas 66
4. Juventude imigrante: identidades, estigmas e conflitos 76
4.1 Os jovens imigrantes e a juventude 76
4.2 As “gangues juvenis”: narrativas, estigmas e conflitos 87
5. Juventude imigrante, lazer e sociabilidade 111
5.1 Os jovens imigrantes e descendentes e o circuito de lazer em São
Paulo 111
5.2 A rua Coimbra 113
5.3 As baladas de imigrantes na Vila Maria e Pari 124
5.4 Os imigrantes e descendentes nas batalhas de rap em São Paulo 134
6. Considerações finais 152
7. Referências bibliográficas 155
6

1. INTRODUÇÃO

1.1 Das Pandillas à juventude imigrante: como cheguei até aqui

“Além do mito
Que limita o infinito
E da cegueira
Dos guardas da fronteira”
(Humberto Gessinger, 1987)

O tema da imigração tornou-se objeto de minhas reflexões a partir do ano de 2010,


quando fui funcionário de uma escola de educação infantil no Bairro do Bom Retiro, região
central do município de São Paulo. Nessa escola frequentavam alunos de zero a três anos de
idade, sendo sua maioria filhos de imigrantes de países vizinhos ao Brasil, mais
precisamente Bolívia, Peru e Paraguai. Nessa época, eu cursava o terceiro ano de Ciências
Sociais na Universidade Federal de São Paulo. Naquele momento, ao perceber a grande
presença de imigrantes na instituição escolar, pensei na possibilidade de desenvolver
projetos cujo tema envolveria a aceitação das diferenças e a multiculturalidade.
Minha perspectiva a respeito dessas possibilidades caiu por terra logo que iniciei
conversas com a Diretora dessa escola: Elaine1, migrante do interior de São Paulo para a
capital, com graduação e pós-graduação em Pedagogia por uma importante universidade
pública. Ela havia acabado de assumir esse cargo que exerceria temporariamente, visto que
a diretora titular havia entrado em licença por tempo indeterminado. Segundo suas palavras,
era adepta de Paulo Freire e militante de esquerda. Por essa razão, pensei que teria abertura
para a construção e idealização de um projeto como esse. Porém, em uma de nossas
conversas, foi claramente enfática ao dizer: “Não acho que a escola deveria dar vagas para
essas crianças. Os pais vêm ao Brasil de modo 'ilegal', não pagam impostos e tiram vagas
de alunos brasileiros”.
Depois dessa primeira experiência, procurei conhecer os colegas de trabalho e
compreender o que pensavam sobre essa realidade. Foi então que percebi, por parte dos
professores e funcionários, falas e atitudes similares e formas depreciativas e diferenciadas
com que tratavam as crianças imigrantes e filhos de imigrantes. Este foi um dos resultados

1
Devemos destacar que consultamos os interlocutores a respeito do uso de seu verdadeiro nome. Alguns
optaram por mantê-lo e outros pediram para mudá-lo. Em todos os casos, respeitamos esta decisão.
7

do meu trabalho de conclusão do curso de graduação, concluída no ano de 2016. Segue


abaixo um excerto:

A maioria dos funcionários e professores enxergavam seus pais com certa


desconfiança, chamando-os de folgados que não pagavam impostos e que, por
conta disso, não deveriam utilizar as escolas públicas porque tirariam vagas dos
brasileiros. Além disso, certos estigmas eram lançados sobre eles, como a visão
de que eram sujos, escravos e não sabiam obedecer às regras do bairro, do país e
da escola, motivos pelo qual não eram bem-vistos pelo corpo docente e pelo
quadro de funcionários da escola. Os brasileiros que mantinham contato com
esses imigrantes e frequentavam suas festas eram alvos de gozações e piadas.
(PIRES, 2016, p.27).

Ciente do tamanho do empreendimento que teria para demonstrar o equívoco de


minha diretora e dos demais colegas de trabalho, comecei a pensar em alternativas que, se
não possibilitassem a criação e efetivação desse projeto, ao menos tornariam a escola um
lugar mais tolerante e receptivo às crianças e adultos imigrantes que a procuravam.
A tentativa de abordar a questão me fez lembrar da obra Estabelecido e Outsiders de
Norbert Elias & John Scotson (2000) e me veio à mente elaborar um projeto de pesquisa
para a realização de minha monografia onde, a princípio, abordaria as relações que se
desenvolviam entre alunos imigrantes, seus pais, professores e funcionários das escolas
públicas de São Paulo. No entanto, a realização da revisão bibliográfica permitiu que eu
conhecesse trabalhos que já haviam sido realizados no que concerne a esse tema (Oliveira,
2013; Silva b, 2014). Portanto, conclui que o foco dos meus estudos deveria ser outro. Foi
então que me recordei de minha experiência nos meus primeiros contatos com os pais
imigrantes. Em uma de minhas conversas com um pai de origem boliviana, ele me disse
que os paraguaios não só tiram vagas de trabalho dos bolivianos, como também tiram vagas
nas escolas de seus filhos, concluindo que a escola não deveria atendê-los.
No primeiro momento, pensei que não se tratava de uma questão séria, mas da fala
isolada de um pai. Contudo, ao procurar relatos de notícias a respeito de imigrantes
paraguaios, bolivianos e peruanos, tive acesso a reportagens que retratavam brigas
envolvendo indivíduos dessas diferentes nacionalidades na região central de São Paulo2.
Além disso, no que diz respeito à revisão bibliográfica, percebi que muitos estudos sobre

2
Reportagens disponíveis nos seguintes links: http://g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/2011/08/promotoria-apura-rixa-entre-peruanos-bolivianos-e- paraguaios-em-
sp.html (Acesso: 04/03/2014)
http://noticias.r7.com/sao-paulo/bolivianos-e-paraguaios-vivem-em-guerra-no-centro-de-sp-
05082013 (Acesso: 04/03/2014)
http://noticias.band.uol.com.br/brasilurgente/videos/14694553/vitimas-de-gangues-bolivianas-
pedem- ajuda-a-policia.html (Acesso: 10/07/2016)
8

essas comunidades foram produzidos ao longo dos anos – pesquisas que abrangem desde a
área da saúde, alimentação, educação e direito, bem como a relação que desenvolvem com
a sociedade de acolhida (Silva, 1995, 2006, 2008a, 2008b; Azevedo 2005; Huayhua, 2007;
Lucena, 2008, 2013; Camillo da silva, 2009; Nóbrega, 2009; Xavier, 2010; Vidal, 2012;
Favaretto, 2012; Oliveira, 2012; Pucci, 2013; Battisti, 2014).
Por outro lado, estudos acadêmicos a respeito das relações e interações entre
imigrantes de diferentes nacionalidades no contexto atual da cidade de São Paulo, embora
anunciados (Silva 2008; Freitas, 2011; Souchaud, 2012; Santos b, 2014), são bastante raros.
Assim, realizei um trabalho de monografia, entre os anos de 2015 e 2016, que, além de
apontar para essa lacuna nos estudos migratórios locais, se deteve especialmente nas
relações e tensões entre imigrantes bolivianos, peruanos e paraguaios na região central do
citado município.
Durante a realização da pesquisa de campo, percebi que essas relações eram
marcadas por tensões e conflitos circunscritos particularmente a lugares de lazer e
sociabilidade, como aqueles da rua Coimbra. Nesse sentido, a dimensão conflituosa da vida
social e dos processos migratórios tornou-se o centro de minha problematização teórica.
Na ocasião, a abordagem das relações desenvolvidas entre imigrantes bolivianos,
peruanos e paraguaios remeteu-me a Simmel (1983), segundo o qual a existência de
sociedades sem a presença de forças antagônicas seria empiricamente irreal. Conforme o
autor, todo grupo social possui em seu interior elementos de harmonia e desarmonia,
atração e repulsão, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis.
Trata-se, portanto, da presença, em um mesmo grupo social, de elementos de divergência e
convergência que, associados a sentimentos de aversão e antipatia, possibilitam que
indivíduos de diferentes origens, com diferentes valores e pensamentos, possam conviver
na vida urbana moderna (Simmel, 1976) 3.
Os elementos divergentes como, por exemplo, disputa por trabalho, espaços de
interação e integração, diferenças de costumes, ressentimentos por conta de conflitos e
estigmas sobre o outro – criados e cristalizados no país de origem, mas mantidos e
reproduzidos no país para o qual imigraram – foram constatados no âmbito das relações
travadas entre os imigrantes dessas nacionalidades, gerando a divisão em grupos

3
Conforme o autor, esses elementos, por um lado, podem ser considerados positivos quando não implicam na
eliminação da alteridade, sendo também necessários, uma vez que é o próprio conflito que confere
dinamicidade a sociedade ou grupo social. Por outro lado, podem ser considerados negativos quando
implicam na eliminação de uma das partes por outra.
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interdependentes onde a nacionalidade é acionada e possibilita a diferenciação de um para


o outro. No entanto, observou-se também a presença de elementos convergentes, estes são
acionados nos momentos em que os atores sociais, ao suspenderem suas diferenças, se
aliam na luta pela conquista de direitos, como o de participação política.
Além disso, esses diferentes grupos contam em suas fileiras com indivíduos que
procuram, por meio de ações empreendidas em grupos de danças, artes e coletivos,
integrar os imigrantes na sociedade de acolhida e também construir relações positivas em
seu cotidiano, tanto com outros imigrantes com os quais se relacionam quanto com
brasileiros.
Conforme expus em minha monografia, ao empreenderem ações como essas, ou
seja, ao suspenderem em alguns contextos suas diferenças em prol da conquista de
direitos e melhor inserção na sociedade brasileira, esses imigrantes estariam fazendo
aquilo que Hall (2005) chamou de jogo das identidades. Assim, se as “identidades
nacionais não são substâncias dadas e consolidadas” (Albuquerque, 2010, p. 199), essas
são redefinidas de acordo com aquilo que está em disputa nos distintos jogos de
interesse. Conclui, naquela ocasião, que se, por um lado, as fronteiras grupais estão
presentes, por outro, elas estão em constante deslocamento. Há, portanto, momentos nos
quais a identidade nacional é acionada e assumida para gerar diferenciação e há outros
nos quais a identidade imigrante se manifesta.
Além disso, durante o tempo que realizei minha pesquisa, foi possível obter
relatos, tanto em entrevistas quanto em conversas informais, a respeito da existência de
gangues de jovens imigrantes, cuja pertença se dá pela nacionalidade. Conforme meus
interlocutores, esses grupos entram em conflitos em diversas localidades dos bairros
centrais de São Paulo, onde é comum a presença de estrangeiros. Esses relatos a respeito
da existência de gangues também estão presentes nas mesmas notícias que retratavam as
brigas entre bolivianos, peruanos e paraguaios.
No período em que realizei trabalhos de campo, não constatei nenhuma briga ou
conflito entre jovens. No entanto, após o término e entrega do TCC, compareci à festa de
independência da Bolívia realizada no memorial da América Latina nos dias 13 e 14 de
agosto de 2016. No primeiro dia do evento, quando o grupo de dança folclórica
denominado sikuris começava sua apresentação (por volta das 16h20min da tarde),
percebi uma crescente aglomeração de pessoas em uma das entradas do Memorial.
Minha curiosidade para o que acontecia se sobrepôs ao interesse em prestigiar o
10

grupo de dança que se apresentava no local. Foi então que me dirigi para a entrada para
averiguar o que acontecia. Ao chegar, percebi que o clima estava tenso, pois dois grupos
de jovens tinham acabado de brigar e estavam discutindo – ora em português, ora em
espanhol. Um deles, com a boca ensanguentada, dizia para o outro: “Você é um homem
morto, você vai morrer”.
Trocavam insultos até a briga recomeçar. Uma boliviana que estava no local me
pede ajuda: “Moço faz alguma coisa! Por favor”! Como não via alternativas, procurei a
segurança, que logo acionou a polícia militar. Afastei-me por uns instantes e, então, voltei
para avisar meus amigos do acontecido e tentar assistir novamente ao evento, que ocorria
normalmente. Mesmo de longe, observei quando a polícia chegou e, mesmo assim, não
houve a dispersão da multidão, cada vez maior, que se aglomerava na entrada do
memorial. Depois de cinco minutos, fui à entrada do evento e me deparei com a polícia
isolando o local onde ocorreu a briga. Ao centro, um garoto entre dezesseis ou dezessete
anos, rolava no chão ensanguentado, esperando socorro médico.
Na semana seguinte a festa que aconteceu no Memorial da América Latina, fui à
Feira da Praça Kantuta – importante centro comercial para a comunidade boliviana – lá
me encontrei com José, boliviano radicado no Brasil há pouco mais de vinte anos, e contei
sobre o evento da semana anterior. Perguntei a ele se sabia quem era o jovem que estava
ensanguentado e se seria possível conversar com ele. José respondeu: “Morreu. Foi
esfaqueado e não sobreviveu. É assim, os moleques bebem, se envolvem com gangues e
brigam com facas!”.
Passados três anos após esse acontecimento, em conversa informal no bairro do Pari
com Helena, uma boliviana de aproximadamente vinte e cinco anos, relatei essa mesma
história e o seu final trágico, que foi a morte do rapaz envolvido na briga. Porém, minha
interlocutora contraria o discurso de José, ao dizer que o rapaz não havia morrido, mas que
ficou internado por dez dias. Disse-me até o nome da pessoa e afirmou que ele tem uma
conta no Facebook, o qual me possibilitou confirmar que o jovem estava vivo4. No entanto,
a mesma interpretação do fato ocorrido estava em seu discurso. Helena ao ser questionada
sobre os motivos das brigas me respondeu: “ao que parece foi por causa das gangues”5.
De acordo com as entrevistas coletadas, o surgimento destas gangues está
vinculado às situações de perseguições que imigrantes bolivianos e peruanos sofrem na

4
Embora não tenha entrado em contato com o jovem, postagens mais recentes e fotos do mesmo em sua linha
do tempo permitiram corroborar a fala de minha interlocutora.
5
Anotações do caderno de campo 18/08/2019.
11

cidade de São Paulo, levadas a cabo tanto por paraguaios quanto por brasileiros.
Conforme uma de minhas interlocutoras, a origem dessas gangues remete às relações
tensas estabelecidas entre alunos de diversas origens em escolas da região central da
capital paulista. Nelas, bolivianos e peruanos – em razão de possuírem traços físicos
parecidos e uma cultura de origem em comum – se uniram para fazer oposição a grupos
de paraguaios e brasileiros que utilizaram os mesmos meios – identificação por meio de
fenótipos para criarem seus grupos. As tensões, demarcações de fronteiras e
territorialidade se estenderam para além dos muros das instituições escolares, sendo, pois,
efetuadas em diferentes bairros da região central do município de São Paulo.

Grande parte das gangues foi formada nas escolas, devido à discriminação, ah
eu sou “pretinha”, ele é “pretinho” ... os dois são “pretinhos”, vão ficar juntos.
Isto acontecia nas escolas, tem uma escola lá no Brás, que me fugiu o
nome... ...Escola Anchieta se não me engano, que teve muita, mas muita briga
entre bolivianos e paraguaios e os próprios paraguaios se uniram com os
brasileiros. Como eu te falei, os paraguaios têm um fenótipo, uma aparência,
mais do brasileiro, do Nordeste, ou às vezes pode ser um branco que é muito
parecido com um gaúcho. Então eles eram mais acolhidos. Já os bolivianos, por
serem diferentes, por terem essa questão andina, pele um pouco mais morena,
cabelo liso... Muitos brasileiros não gostavam ou, de alguma forma,
discriminavam. Aí os brasileiros se uniram com os paraguaios e os bolivianos
se uniram com os peruanos, se você entrava naquela escola só podia falar com
bolivianos. Eu ouvi relatos de pessoas que estudaram nessa escola, de que
acontecia isto. (brasileira filha de peruano e boliviana, entrevista realizada
03/06/2016 em São Paulo. In: Pires, 2016, p.52)

Nesse sentido, foi a partir de minha experiência vivida no campo e das diferentes
falas obtidas dos sujeitos de pesquisa que elaborei um projeto cujo objetivo era estudar
uma dimensão de conflito envolvendo, particularmente, jovens imigrantes que pertencem
e/ou se identificam com pandillas (gangues) na cidade de São Paulo. Conforme retratado
acima, este fenômeno específico foi somente anunciado e pouco desenvolvido na redação
do meu TCC.
Embora este seja um discurso muito presente na fala de meus interlocutores,
também foi possível encontrar, ao longo do meu convívio com imigrantes, pessoas que
discordam a respeito da existência das gangues juvenis. Se, por um lado, paraguaios e
peruanos dizem não saber a respeito da existência desses grupos de jovens. Por outro, os
bolivianos possuem uma visão que muitas vezes é contraditória, uma vez que é muito
comum a atribuição de brigas de gangue quando ocorrem conflitos entre indivíduos
dessas nacionalidades, mas também se ouve a ideia de que as gangues são coisas do
passado, de quinze a vinte anos atrás, que seus membros estão velhos, casados e com
12

filhos, não se envolvendo mais com gangues e com suas atividades.

As gangues, os Vatos locos e os Modis, acabei de me lembrar de mais um nome,


do que eu vi na época do orkut, muitos deles estão casados, têm filhos, só
deixaram o legado deles. Agora, se atualmente tem novos eu não posso dizer, só
posso dizer que há uns vinte anos atrás, vinte não, me desculpa, uns quinze anos
atrás, existia. Mas, hoje em dia eu não sei se prevalece os Vatos locos ou os
Modis. Há uns dez anos atrás tinha os Vida Loca, muitos deles se distanciam,
outros morrem nessas brigas que tem, né? (brasileira filha de peruano e boliviana,
entrevista realizada 03/06/2016 em São Paulo. In: Pires, 2016, p.52)

Este também é o caso de Robson, brasileiro de vinte e nove anos, filho de


bolivianos e estudante de Ciências Sociais. Sempre que indagado a esse respeito, ele fazia
questão de enfatizar que já não se tratava de uma questão atual, que as gangues até
existiram, mas não estão mais em atividade. No entanto, durante as conversas que
realizamos em diferentes momentos, percebi em meu interlocutor uma tentativa de não dar
ênfase a essa questão, procurando se distanciar dela sempre que possível, direcionando a
conversa para outros assuntos. Se as gangues de jovens existem e se as brigas que ocorrem
nos lugares de sociabilidade frequentados por imigrantes se devem ao conflito ocasionado
por elas, é algo que não foi possível averiguar. Porém, este fenômeno está presente no
universo discursivo de muito de meus interlocutores, sendo acionado para interpretar as
brigas e conflitos envolvendo indivíduos de diferentes origens ou, em uma postura mais
defensiva, atribuir sua existência e suas atividades a um passado distante.
A ambiguidade presente no discurso dos sujeitos pesquisados, a dificuldade de
encontrar com membros dessas supostas gangues e o local de suas atividades, atrelados à
minha percepção de que, embora este seja um fenômeno presente no universo discursivo de
meus interlocutores, não se trata do aspecto mais importante da relação entre jovens dessas
nacionalidades, levou-me à conclusão da necessidade de abrir a pesquisa para estudar a
juventude imigrante, sem, contudo, abandonar por completo a dimensão das gangues.
Esses jovens, assim como seus pais, são definidos como força de trabalho
provisória, cujo estatuto pode mudar de acordo com o interesse da sociedade para o qual
entram (Sayad, 1998). Além disso, convivem diariamente com diferentes estigmas que lhes
são atribuídos pelo país de acolhida. Esses estigmas, ao serem passados de pais para filhos,
geram uma espécie de marcação étnica, ou uma alterização6, que faz com que tais jovens
sejam percebidos como diferentes dos nativos da sociedade de recepção (Gavazzo, 2013) e
isso ocorre ainda que tenham nascido na imigração (Sayad, 1998).

6
Mais forte naqueles que possuem traços diacríticos que sejam perceptíveis.
13

Em um contexto como esse, é importante compreender o modo como esses


imigrantes são percebidos pela sociedade brasileira. Que estigma é esse? Por outro lado,
como os sujeitos de pesquisa se veem. Eles percebem ou não que são estigmatizados? Além
disso, uma vez que estes imigrantes não se vinculam somente com pessoas de suas
respectivas nacionalidades e com nativos da sociedade de recepção7 – justamente porque
acabam dividindo os mesmos espaços, tanto de trabalho quanto de lazer – é que
compreendemos ser importante analisar o modo como ocorrem as relações entre os
membros dessas distintas comunidades.
Tanto as relações estabelecidas entre imigrantes de diferentes nacionalidades quanto
entre estes e os brasileiros são fatores que influenciam o modo como se inserem e
enxergam o país de recepção, as diferentes formas que ocupam e circulam pelos espaços
públicos e privados – sobretudo aqueles destinados ao lazer – na cidade de São Paulo.
Assim, diante de um processo marcado pela estigmatização, conflitos e tensões interétnicas
e intraétnicas é que fomos levados a refletir sobre como se constituem os pedaços e
circuitos de lazer dos jovens imigrantes e os aspectos de sociabilidade que ocorrem em seu
interior.
Consequentemente, essa dissertação apresenta como objetivo geral a compreensão
do significado que os jovens imigrantes estudados neste trabalho atribuem a sua situação
social e as formas como se inserem e constroem suas identidades e sociabilidades na
sociedade brasileira. Como objetivo específico, essa pesquisa procurou compreender as
diferentes formas de sociabilidade que desenvolvem entre si e as formas que ocupam e
circulam pelos lugares de lazer na cidade de São Paulo. Quais são estes espaços e o que
diferencia cada um deles? Quais são as fronteiras atravessadas por esta juventude nestes
locais? São lugares somente destinados ao lazer ou possuem também a finalidade de
questionar o modo como estão inseridos nessa realidade e aproximar outros imigrantes e
brasileiros? Procuramos também observar as estratégias e recursos linguísticos, corporais e
simbólicos que são mobilizados no interior de cada espaço por eles frequentados, na
tentativa de compreender também como se manifesta a cultura juvenil imigrante nos

7
Assim, evitamos um erro que poderia ocorrer ao focalizar um grupo étnico, uma vez que uma análise como
essa implicaria em “um risco de viés que é a tendência de, identificar as características da organização social
de uma população específica [...] considerar que estas características são específicas” (Souchaud, 2012, p. 77)
e, portanto, dizem respeito a uma única comunidade imigrante. Além disso, poderíamos cair no erro de vê-los
como grupos isolados – como se os imigrantes só tivessem relações com pessoas de suas nacionalidades ou
com os nativos da sociedade de acolhida. Cabe ressaltar, que uma abordagem como esta poderia contribuir
para invisibilizar a outras nacionalidades de estrangeiros que vivem no Brasil, cujas características são
semelhantes.
14

pedaços, circuitos de lazer e trajetos que os atores sociais constituem.

1.2. A pesquisa metodológica

A metodologia utilizada envolveu, em um primeiro momento, a análise documental


de diferentes reportagens produzidas pelos meios de comunicação a respeito das formas de
violência a que estão sujeitos os imigrantes do sul global8. No entanto, o cientista social
deve ter em mente que a mídia é um dos meios que contribui para a formação de imagens a
respeito de determinados grupos ou nações (Hall, 2005). Em outras palavras, os meios de
comunicação, em sua ação cotidiana, focados na crise e no evento espetacular (Whyte,
2005) criam e cristalizam noções a respeito de determinadas comunidades e populações,
colaborando, em muitos casos, para a produção e generalizações de imagens que podem ou
não se tornarem estigmas.
Assim, por um lado, partimos da abordagem da mídia para demonstrar não só o
modo como os imigrantes aqui estudados são representados e estigmatizados, mas também
as diferentes formas de violência de que são vítimas em seu cotidiano. Por outro lado, uma
vez que o discurso da mídia se baseia, geralmente, em um olhar “de fora” (Magnani, 2002),
convém, para a compreensão do “evento espetacular”, que possamos observá-lo “em sua
relação com o padrão da vida cotidiana” (Whyte, 2005, p.20). Em outras palavras, é
necessário o desenvolvimento de um olhar de dentro e de perto (Magnani, 2002), cujos
objetivos seriam descrever, identificar e refletir a respeito dos detalhes excluídos do olhar
dos que estão de “fora e de longe”.
Logo, se o discurso midiático se insere no que Geertz denominou “descrição
superficial”, o que se propõe a partir do desenvolvimento da pesquisa é efetivar uma
“descrição densa”, no sentido de compreender os significados que os atores sociais
elaboram a respeito daquilo que lhes ocorre em seu cotidiano. Admite-se, no entanto, que
essa descrição não se trata da realidade propriamente dita, “ela é interpretativa; o que ela
interpreta é o fluxo do discurso social” (Geertz, 1989, p. 31), ou seja, o que se propõe é
uma interpretação da interpretação elaborada pelo nativo. No entanto, não se trata de
reproduzir de modo ingênuo e acrítico o discurso dos imigrantes, mas sim de construir uma
perspectiva sociológica que nos permita compreender os espaços sociais onde se elaboram
os pontos de vistas dos entrevistados. Assim, esse “perspectivismo nada tem de relativismo

8
A definição e caracterização do sul-global realizo no primeiro capítulo dessa dissertação.
15

subjetivista”, mas está “fundado na própria realidade do mundo social e contribui para
explicar parte do que acontece neste mundo” (Bourdieu, 2008, p. 12).
Portanto, para atingir os objetivos propostos foram utilizados fundamentalmente os
procedimentos metodológicos da pesquisa qualitativa. Desse modo, a pesquisa envolveu: 1)
análise de reportagens sobre as diferentes formas de violência sobre os imigrantes do sul
global; 2) a observação de campo nos lugares frequentados pelos jovens imigrantes
bolivianos, peruanos, paraguaios e outros sul-americanos, como a rua Coimbra e a praça
Kantuta; 3) a realização de entrevistas semiestruturadas com os jovens imigrantes e seus
familiares; 4) conversas informais, realizadas em diferentes momentos com interlocutores
brasileiros e imigrantes.

1.3. O trabalho de campo

A princípio, o “olhar de perto e de dentro” seria realizado na rua Coimbra, local


onde ocorre uma feira nos finais de semana e que tem uma importante atividade comercial
durante a semana9. Além disso, esse lugar se configura um autêntico pedaço (Magnani,
2003), onde seus frequentadores – bolivianos, peruanos, paraguaios, equatorianos,
colombianos e brasileiros – experimentam a possibilidade de acessar ou conectar-se a
territórios distintos – fenômeno que Haesbaert (2011) denominou de multiterritorialidade.
Some-se a isso a compreensão de que ali se trata de um lugar onde os atores sociais aqui
estudados exercem o seu direito à cidade10 e que, atrelado ao fato de as supostas pandillas
de imigrantes exercerem ali suas ações, se converteu, ao menos no início desta pesquisa,
em um lugar privilegiado para a observação.
No entanto, o trabalho de campo realizado no local me levou a constatar a existência
de um circuito de lazer frequentado por jovens bolivianos, peruanos, paraguaios e outros
sul-americanos que não se circunscreve somente à rua Coimbra, mas estende-se por outros
bairros do município de São Paulo11. Essa constatação, atrelada à mudança de meu foco de

9
Por conta do funcionamento de bares, restaurantes, baladas, cabeleireiros, centros comerciais, agências de
emprego e financeiras no qual é possível enviar dinheiro a outros países.
10
Esse interpretado não só como o direito de usufruir dos vários serviços localmente oferecidos, mas também
como o direito a produção de territorialidades urbanas moldadas a partir dos próprios referenciais étnicos,
culturais e axiológicos (Marinucci, 2018, p.7).
11
A esse respeito, um de meus interlocutores, em conversa informal, me disse que a cidade tem recebido, em
tais baladas, artistas da Costa Rica, Venezuela, Colômbia, Argentina e outros países da América Central –
trata-se de eventos que são realizados por imigrantes. Citou o caso de uma balada paraguaia no Bom Retiro
que já trouxe grupos argentinos e paraguaios para realização de shows e que, por conta disso, estão cada vez
16

pesquisa, levou-me à decisão de frequentar esse circuito criado por imigrantes.


Assim, assumi como procedimento metodológico a ideia de me locomover junto
com os atores sociais, pois percebi que, acompanhando o trajeto dos sujeitos de pesquisa no
interior dos circuitos de lazer por eles constituídos, seria possível entender as diferentes
formas em que estes se apropriam dos espaços da cidade – sejam eles públicos ou privados
– destinados ao lazer e, por outro lado, compreender como essas apropriações estão
atravessadas por relações de poder de diferentes âmbitos, sejam elas desenvolvidas entre os
próprios imigrantes ou entre esses e os brasileiros. Por consequência, a pesquisa de campo
se desenvolveu em diferentes locais12 do município de São Paulo nos quais se privilegiou a
rua Coimbra, as baladas latinas localizadas nos bairros da Vila Maria e do Pari e as Batallas
Callejeras de Hip Hop, realizadas quinzenalmente no Brás.
No que concerne à questão dos entrevistados, não poderia deixar de destacar a
desconfiança dos sujeitos de pesquisa diante do pesquisador. Assim muitos dos dados
coletados e utilizados nessa dissertação não foram registrados em áudio, porque resultam de
conversas informais. Uma vez que o “sociólogo vive na sociedade, tanto em seu trabalho
como fora dele” e que sua vida “inevitavelmente converte-se em parte de seu campo de
estudo” (Berger, 1986, p.31), cabe destacar que muitos desses bate-papos informais foram
realizadas em momentos13 em que, a princípio, não se tratavam de trabalhos de campo.
Esses diálogos realizados no momento em que não utilizava o gravador foram reveladores
de muitos aspectos da visão que os imigrantes possuem de si, da sociedade de acolhida e
seus nativos, como também revelaram dimensões do modo como os brasileiros os recebem
e percebem.
No que diz respeito às conversas realizadas com esses indivíduos, essas foram
facilitadas graças aos vínculos que estabeleci com esses sujeitos ao longo de minha jornada
estudando imigração. O modo como ocorreram e se estabeleceram essas relações abordo no
próximo tópico desse capítulo.

mais caras. Esse fato me lembrou de um panfleto que colhi na rua Coimbra sobre um show realizado na Vila
Maria de um grupo argentino e outro de Porto Rico, este foi organizado por uma produtora cujos membros
são bolivianos.
12
Com o objetivo de preservar a integridade dos estabelecimentos e de seus frequentadores, os endereços e o
nome das casas de show não serão revelados.
13
Tanto nas redes sociais como Facebook e WhatsApp quanto no dia a dia em que apenas saia com a intenção
de relaxar e não efetivar pesquisa de campo.
17

1.4. A relação do pesquisador com os sujeitos pesquisados: estar lá e


aprender com eles

Ser pesquisador da vida social é enfrentar a todo instante um campo de disputas


de interesses e visões de mundo (Albuquerque, 2010, p. 30).

Desde o princípio, quando comecei a realizar trabalho de campo, houve a


preocupação de como me aproximar dos sujeitos imigrantes da pesquisa. Diferentes
fronteiras existentes entre pesquisador e pesquisado poderiam se impor como barreiras que,
se não impedissem a realização do estudo, ao menos contribuiria para dificultá-lo,
tornando-se importantes desafios metodológicos que teriam que ser vencidos. Assim,
diferenças idiomáticas e linguísticas, de costumes, ou outras como a percepção de tempo
foram barreiras que, cotidianamente, marcaram minha relação com os imigrantes abordados
por essa dissertação.
Conforme Scavitti (2017), com a imigração experimentamos um “encontro de
fronteiras”, segundo palavras da autora, a fronteira, “além de definir territorialmente países
na nossa sociedade, se estende para além do humano: ela nos define”. (Scavitti, 2017, p.11).
Em outras palavras, cada ser humano é uma fronteira, carrega consigo a marca dessa
fronteira. Ela é também o lugar do desencontro (Martins, 2009), do estranhamento frente ao
contato com o “Outro”, que também é uma fronteira. Por diversos momentos, fui
atravessado por questionamentos e reflexões que o contato com a alteridade implica.
Em diferentes situações, compreendi que conhecê-los significa conhecer a si
mesmo, pois o sujeito de pesquisa possui também uma visão de mundo sobre nós que
estamos do outro lado da fronteira, uma visão de mundo que é, em muitos casos,
reveladora. A esse respeito, Marco – boliviano residente no Brasil há dez anos – afirmou
que não faço um estudo sobre os imigrantes, mas, na verdade, estudo e aprendo junto com
eles14. Assim, a construção de amizade e a confiança – que tal construção possibilitou – e
minha atuação em projetos e coletivos criados por imigrantes e brasileiros, foram fatores
que, gradativamente, possibilitaram que essas fronteiras fossem atravessadas.
O ato de “estar lá” (Geertz, 2009), desenvolver um olhar de dentro e de perto
(Magnani, 2002), aprender junto com meus interlocutores, ou simplesmente ir a campo, por
diversas vezes demonstrou o quão nítidas as fronteiras podem se apresentar. Visitar locais
em que se observam bandeiras do Peru e da Bolívia, jovens com camisetas da seleção

14
Nota do caderno de campo 14/06/2019.
18

argentina, colombiana, equatoriana e peruana, ouvir músicas de países hispânicos tocadas


nos estabelecimentos e nas ruas, produziam em mim uma verdadeira inversão de sentidos.
Conforme uma interlocutora equatoriana, ali eu me tornava o estrangeiro por não conhecer
os códigos culturais, as músicas e não dominar totalmente a língua.
O meu primeiro dia realizando trabalho de campo é um exemplo emblemático das
dificuldades iniciais presentes em qualquer pesquisa. Recordo-me que a primeira vez que
me dirigi a rua Coimbra, por conta do desconhecimento do local e de seus frequentadores,
não sabia escolher um lugar apropriado para poder observar e tentar efetivar um diálogo
com os imigrantes que a frequentavam. Andava de uma ponta da rua a outra – do trecho
compreendido pelas ruas Bresser e Costa Valente – sem saber muito que fazer. Depois de
quase vinte minutos andando, vejo um bar cheio de bolivianos e peruanos tomando cerveja
e, como o estabelecimento estava cheio, sento-me em uma das mesas que estavam sobre a
calçada, do mesmo modo que faziam outros clientes.
Observo que todos os frequentadores do bar passam a me olhar com curiosidade e,
ao mesmo tempo, desconfiança. Um grupo de bolivianos sentados em uma mesa próxima
da minha me observava com uma cara de “o que esse rapaz está fazendo aqui?”. Diante de
tal situação, passo a olhá-los também, até que um deles levanta o copo me cumprimentado,
gesto que retribuo reciprocamente. A partir desse momento, esses homens passam a
conversar comigo e perguntam minha nacionalidade – questão que sempre me acompanhou
ao longo do tempo em que realizei pesquisa de campo. Ao saberem que sou brasileiro o
olhar de desconfiança mudou, passaram a conversar comigo e elogiar o Brasil, dizendo que
amavam o país e os brasileiros.
Momentos depois, outro boliviano que acabara de chegar ao bar vem em minha
direção e começa a conversar comigo em espanhol, fazendo a corriqueira pergunta: “¿És
paraguayo?”. Respondo que não em espanhol e, a partir daí várias suposições são
realizadas pelo meu interlocutor sobre minha nacionalidade: argentino, colombiano,
uruguaio, porto-riquenho ou estadunidense. O rapaz fica surpreso em saber que sou
brasileiro e fala, então, em português: “é que você não parece brasileiro”. Depois de alguns
minutos de conversa, sou convidado pelo mesmo rapaz a ir beber cerveja com seus amigos
em uma balada localizada na rua Coimbra, ao qual aceitei prontamente. Dentro dessa
balada, sou apresentado a um elemento facilitador das relações, que desenvolveria com os
bolivianos, peruanos e paraguaios: o compartir la cerveza.
Compartilhar uma cerveja não é, porém, algo tão simples quanto poderíamos supor.
19

Pequenos detalhes não percebidos pelo pesquisador poderiam surgir como novas barreiras,
caso eu não lhes desse a devida atenção: os imigrantes (sobretudo bolivianos e peruanos)
costumam brindar antes de cada gole de cerveja, diferente dos brasileiros que só o fazem ao
abrir a cerveja e antes de levar o copo à boca pela primeira vez. Além disso, eles não põem
a mão no copo e não bebem a cerveja enquanto o convidado não o fizer – além do brinde
todos devem beber a cerveja juntos. Pelo que percebi, trata-se de um código cultural e de
etiqueta que possuem. A esse respeito, Robson me afirmou que o ¡salud! ocorre a todo
instante e, se eles te convidam para beber e você não aceita, isso é visto por eles como falta
de respeito.
Em outra ocasião, ao beber com Milena – boliviana estudante de pós-graduação,
residente no Brasil há sete anos – ela me afirmou, ao ver que eu havia esquecido de brindar
antes de tomar um gole de cerveja: “é visto que você ainda não aprendeu nada com os
bolivianos”. Some-se a isso, o fato de que, se você é convidado às festas bolivianas – como
as morenadas – a cerveja é oferecida gratuitamente e tal oferta é feita com fartura. No que
concerne a esse tema, uma de minhas interlocutoras, em conversa informal pelo WhatsApp,
afirmou: “quando o boliviano bebe, é até a morte”.
Assim, compartir la cerveza com os imigrantes, nos diferentes lugares de
sociabilidade por eles frequentados, foi um dos fatores que possibilitou vencer algumas das
barreiras que poderiam se levantar nos momentos em que se realizou pesquisa de campo.
Isto significou uma parte de meu esforço em tornar mais horizontal a relação com os
sujeitos de pesquisa, evitando o risco de objetivá-los. A esse respeito, Helena, imigrante
boliviana radicada no Brasil há três anos afirmou: “o grande problema dos jornalistas e
estudantes é que eles chegam à praça Kantuta ou à rua Coimbra e já vão tirando fotos, ou
fazendo perguntas sem nem nos conhecer ou pedir permissão, como se o imigrante fosse
objeto, nada mais do que isso”.
No entanto, a tentativa de aproximação dos imigrantes não se resumiu somente a
“compartir la cerveza”. Em diferentes momentos em que a pesquisa se realizou, fui
indagado por ativistas e líderes de movimentos sociais e coletivos de imigrantes a respeito
de minha pesquisa e sobre os resultados que poderiam ser trazidos para os atores sociais
aqui estudados. Uma delas, Rosa – imigrante equatoriana – ao referir-se ao trabalho
científico, disse que os coletivos estão orientando os imigrantes a não aceitarem mais
fazerem entrevistas, pois os pesquisadores aproximam-se deles, em uma espécie de turismo
sociológico, realizam os seus estudos, depois não aparecem mais e os imigrantes não têm
20

nenhum ganho imediato com a pesquisa. Nada para eles muda.


Deste modo, percebi que minha inserção no campo deveria ser, em certo sentido,
negociada15. Se o trabalho de campo é, por um lado, marcado pela contradição,
ambiguidade e o sentimento de não estar fazendo algo que pudesse, efetivamente, ajudar
aos imigrantes existe, por outro lado, a possibilidade de retribuir com algo (Scavitti, 2017).
Nesse sentido, aceitar o convite para realizar trabalho voluntário no coletivo Si, yo puedo!
foi também um dos fatores que possibilitaram a aproximação dos sujeitos de pesquisa.
Entretanto, não foi somente a participação nos coletivos formados pelos imigrantes
que facilitou o desenvolvimento do trabalho de campo. A todo instante em que realizei o
empreendimento, tive que negociar e explicar aos atores sociais os ganhos que eles teriam,
ou mesmo me comprometer com seus projetos pessoais. Um momento interessante foi
quando precisei obter de Richard16 a permissão para publicar a entrevista que realizei com
ele. Richard, atualmente com 30 anos, está investindo na carreira de cantor, produtor e
promotor de Rap e Reggaeton. Por esta razão, meu interlocutor preocupou-se em saber se a
entrevista seria utilizada para fins financeiros e de outras ordens. Respondi que não, que se
tratava apenas de um trabalho de faculdade, que ele não se preocupasse, pois não usaria sua
imagem para obter dinheiro ou algo parecido. Após uma conversa de negociação com o
sujeito de pesquisa, consegui convencê-lo a aceitar que a entrevista fosse utilizada, me
comprometendo que, no futuro, o ajudaria a realizar uma biografia de sua vida17.
Para ilustrar a questão de como a aproximação com meus interlocutores foi um
fator que possibilitou que a pesquisa fosse realizada, cito novamente uma experiência que
tive ao desenvolver o trabalho de campo. Em um domingo de novembro de 2019, encontro-
me com João18 na rua Coimbra e sou convidado por ele para ir ao estúdio de seu amigo,
conhecido pela alcunha de MC Tatto. Este é um rapaz de nacionalidade boliviana com
aproximadamente 30 anos de idade e que trabalha fazendo tatuagens em um estúdio
próprio, localizado na rua supracitada. Por diversas vezes, me encontrei com ele na batalha
de rap, pois além de tatuador, também é MC. No entanto, dado o fato de eu ser uma figura
15
A negociação entre sujeito de pesquisa e pesquisador não é algo raro nas Ciências Sociais. A este respeito o
trabalho de Turner pode servir para ilustrar a questão de como, a todo instante no desenvolvimento do
trabalho de campo os interesses de um e de outro estão em “jogo” e são negociados: “a liberdade de acessos
às execuções e à exegese foi, sem dúvida, ajudada pelo fato de que, tal como acontece com a maior parte dos
antropólogos em trabalho de campo, distribuíamos remédios, enfaixávamos ferimentos e [...] injetávamos
soros em pessoas mordidas por cobras. Uma vez que muito dos cultos rituais dos ndembos são realizados em
favor de doentes [...] os especialistas em curas começaram a olhar-nos como colegas e acolher com satisfação
nossa presença em suas atividades” (Turner, 1974, p. 21).
16
Um de meus interlocutores.
17
Nota do caderno de campo, 10/07/2020.
18
Brasileiro de 18 anos que conheci na batalha de rap realizada pelos imigrantes
21

nova no referido evento dos imigrantes, não conseguia, talvez por timidez ou
desconhecimento, me aproximar dos sujeitos que participavam da denominada Batalla
Callejera. Então, entendi que aquele convite feito por João era o momento propício para
conhecer mais pessoas e estabelecer contatos, uma vez que, como afirma Geertz (1989), o
trabalho etnográfico depende de conversas que estabelecemos com os atores sociais.
Chegamos ao estúdio e esperamos sair a MC Tatto, que acabara de encerrar suas
atividades naquele dia. Novamente surge um novo convite de João, desta vez para
tomarmos cerveja na esquina da Costa Valente19, em uma de suas calçadas. Ali
permanecemos por cerca de uma hora conversando sobre diversos assuntos como futebol,
bebidas e é claro o Hip Hop. Ao abrirmos a cerveja e fazermos o costumeiro “salud” MC
Tatto então se dirige a mim “já nos havíamos visto antes na batalha, pero ahora que estamos
nos conociendo y compartindo”. Respondi a ele que sim, mas por outro lado já fazia algum
tempo que o havia adicionado no Facebook e dito a ele em uma das batalhas que um dia iria
ao seu estúdio para fazer uma tatuagem.
Além de possuirmos o mesmo gosto, tanto musical quanto por tatuagens, outro fator
que possibilitou a aproximação de MC Tatto, foi nossas inclinações políticas em comum.
Durante o mês de novembro e dezembro de 2019 fiz parte de um comitê de brasileiros e
bolivianos que organizaram atos contra a deposição de Evo Morales que, até aquele
momento, era presidente da Bolívia. Minha atuação resultou em fotos compartilhadas pelas
redes sociais, as quais eram sempre curtidas por MC Tatto e outros imigrantes de
nacionalidade boliviana. Ao comentar sobre isto, meu interlocutor afirmou “he visto que
você comparte a luta de nós bolivianos e que esteve na Paulista”. Respondi-lhe que sim e, a
partir daquele momento começamos uma amizade, não mais era um desconhecido de meu
interlocutor, sempre que me comunicava com ele, seja pelas redes sociais ou nas batalhas
de Rap ele se dirigia a minha pessoa referindo-se a mim com as palavras “e ai irmão” 20.
Assim, a aproximação com os sujeitos de pesquisa, se não colocou um fim às
diferentes fronteiras que se ergueram no desenvolvimento do trabalho, possibilitou que
estas fossem atravessadas e que o pesquisador tivesse acesso a um “mundo de
informações”. Foi comum, durante toda a realização do estudo, ser convidado para festas
em suas casas, reuniões de coletivos e até baladas onde se realizou parte do trabalho de
campo. A relação com os “estrangeiros” chegou a ser tão próxima que eu não era referido
como pesquisador – embora a todo instante eles soubessem que estava realizando uma
19
Uma das adjacências da rua Coimbra.
20
Nota do caderno de campo, 03/11/2019.
22

pesquisa –, tal como faziam com outros colegas pesquisadores com o qual travavam
contato.

1.5. Fazendo pesquisa em tempos difíceis

Ora, se o “Estar lá” (Geertz, 2009) da atividade etnográfica foi marcada por estas
características, tampouco o “Estar aqui” caracterizou-se pela ausência de dificuldades.
Conforme Albuquerque, “o período da redação final é um momento de muitas escolhas,
incertezas e tentativa de pôr ‘ordem no caos’ de tantas informações e ideias fragmentadas”
(2010, p. 30). Neste sentido, me vi imerso em muitas dúvidas a respeito de qual caminho
escolher para desenvolver a escrita. Assim, se a “realização da pesquisa se fundamenta em
uma seleção contínua” (op. cit. p. 30), diante de um leque de caminhos possíveis, foi
necessário escolher. Sendo assim, muitos dados coletados em campo21 ficaram de fora da
redação final desta dissertação 22.
Assim, o ato de escrever “é um exercício de reflexão”, que “demanda de nós aquele
encontro mais íntimo com o que aprendemos, o que entendemos, o que levamos de
influência de outros autores e como contribuímos para caminhar”, sendo, portanto, um
“momento em que temos de escolher como podemos nos expressar melhor, dizer o que
concluímos de nossa pesquisa” (Scavitti, 2017, p. 11) para outros pesquisadores. Como
afirma a autora, este não é um empreendimento fácil, uma vez que é bastante solitário e
esgotante. Além desses aspectos, outros acontecimentos contribuíram para dificultar o
desenvolvimento da escrita como fatores de ordem pessoal23 e a crise sanitária mundial24.
Quanto a este último fenômeno, para reagir à iminência da ameaça colocada por esta
crise, o Governo de São Paulo decretou a partir de março de 2020 uma quarentena que
impossibilitou que os pesquisadores e sujeitos de pesquisa pudessem se encontrar
pessoalmente. Consequentemente, à medida que a dissertação era escrita, muitas lacunas
iam aparecendo no texto e sugeriam que estas deveriam ser preenchidas com a fala dos
sujeitos pesquisados. Assim, diante de uma nova barreira, era preciso encontrar uma
solução. O uso de redes sociais como ferramentas para a entrevista possibilitou que tal
dificuldade fosse enfrentada pelo pesquisador. Conforme Gibson:

21
Como entrevistas ou mesmo trechos do caderno de campo.
22
O que não significa que não possam ser utilizados em futuros estudos.
23
Falecimento de entes queridos no ano de 2018, 2019 e 2020.
24
Em muitos momentos a escrita ficou parada devido a estes acontecimentos que, como tal, afetaram ao
pesquisador.
23

Nos últimos anos ocorreu um enorme crescimento de tecnologias da informação e


comunicação e, especificamente das tecnologias da Internet [...] Esses
desenvolvimentos acarretaram novas oportunidades para os pesquisadores
analisarem como métodos de pesquisa tradicionais, como entrevistas, podem ser
remodelados em ambientes online, de maneira a permitir que o pesquisador
obtenha dados profundos e descritivos (2019, p. 251).

Em tal sentido, a Internet possibilitou:

Que os conteúdos sociais criassem um laboratório virtual onde os dados possam


ser coletados vinte e quatro horas por dia em todo o mundo... Assim como o
vídeo revolucionou os métodos de observação, a Internet está mudando
fundamentalmente as formas pelas quais podemos observar, manusear e descrever
a condição humana e as estruturas sociais. (Hine, 2005, p. 21, apud Gibson, 252).

Não pretendo abordar os prós e contras do uso de tais tecnologias móveis para o
desenvolvimento da pesquisa. Tal pretensão, embora importante, foge ao escopo do
presente estudo. No entanto, destaco que é justamente porque as entrevistas realizadas pelo
Facebook e WhatsApp “ofereceram a possibilidade de vencer a distância” (Lannutti, 2019,
p. 276) entre pesquisador e sujeito de pesquisa que a barreira colocada pelo contexto atual
foi atravessada e a dissertação finalizada. A seguir, abordo o modo como foram
sistematizados e organizados os capítulos do presente estudo.

1.6. A organização e sistematização dos capítulos

Conforme veremos, os jovens aqui estudados convivem e compartilham com seus


compatriotas adultos uma série de estigmas criados e elaborados tanto pela sociedade de
origem quanto pela de acolhida. Esses estigmas se articulam com a dimensão histórica de
uma forma de poder, que se origina no processo de colonização latino-americano –
utilizado posteriormente como modelo das relações desenvolvidas entre conquistador e
conquistado nas diferentes sociedades coloniais estabelecidas pelo moderno sistema mundo
(Wallerstein, 1974).
Quijano (2005) denominou essa forma de poder como colonialidade de poder,
caracterizada pela hierarquização e distribuição social a partir de critérios raciais, mantidos
nos imaginários desses povos, mesmo depois dos variados processos de independência. A
discussão a respeito de como essa colonialidade de poder surge a partir da conquista e
influência o pensamento de estado e as relações que os imigrantes traçam com os nativos da
sociedade de recepção, bem como o modo que são percebidos por esses está presente no
primeiro capítulo dessa dissertação.
24

No segundo capítulo, procuramos analisar como são as relações entre os membros


de cada comunidade imigrante como também no interior de cada uma delas. Conforme
veremos, diversos elementos são utilizados pelos atores sociais como fatores de distinção
Interétnica e Intraétnica, tais como as questões nacionais, de classe, raça, etnia, região,
entre outras. Tal análise é fundamental, pois além de oferecer um panorama mais completo
da imigração boliviana, peruana e paraguaia, possibilita aos pesquisadores e leitores não
visualizarem estas referidas comunidades como homogêneas.
É no contexto marcado por estigmas, conflitos e tensões de diferentes ordens que os
jovens constroem suas identidades e sociabilidades juvenis. No terceiro capítulo, analiso os
significados da juventude para estes sujeitos de pesquisa e reflito sobre as gangues, ou
pandillas juvenis formadas por imigrantes sul-americanos e brasileiros. Por fim, no quarto
capítulo, abordo os trajetos, circuitos de lazer e pedaços constituídos pelos jovens
imigrantes na cidade de São Paulo, analisando como constroem suas relações de
sociabilidade e de que modo o discurso sobre as gangues influencia a escolha e o modo de
inserção em cada um destes espaços.
25

2. As configurações de poder na imigração sul-sul no Brasil

2.1. As imigrações contemporâneas no mundo e no Brasil

As imigrações internacionais no século XXI têm se tornado fenômenos desafiadores


por conta de sua altíssima complexidade. Marcadas por sua extensão em escala global e por
sua enorme heterogeneidade, as mobilidades humanas nos últimos anos atingiram números
elevados: de aproximadamente 77 milhões de pessoas em 1975 para 244 milhões no ano de
2015. (Santos; Rossini, 2018; Scavitti, 2017; Weden, 2016; Bógus; Fabiano, 2015). As
razões que impulsionam esses movimentos populacionais por todo o globo são diversas,
envolvendo as desigualdades sociais e defasagens nos níveis de desenvolvimento humano,
crises políticas, mudanças climáticas, facilidade de acesso a passaportes, entre outros
problemas de ordem social, econômica e política (Weden, 2016).
É nesse cenário crítico que ocorre um aumento dos fluxos migratórios entre os
países do sul global (Baeninger, 2018). Entre as causas que contribuem para essa
configuração, podemos destacar o acirramento das restrições e o patrulhamento realizado
pelos Estados Unidos e Europa à entrada em seus territórios de pessoas oriundas de países
mais pobres. Assim, os países em desenvolvimento tornam-se uma alternativa para fluxos
imigratórios que outrora tinham como destino os países do norte global (Baeninger, 2018;
Lucena, 2013).
Além disso, como parte dessa dinâmica contemporânea, ocorre, de forma
concomitante, a regionalização dos fluxos migratórios. Em outras palavras, “há mais
imigrantes oriundos de uma mesma região do que de outras regiões do mundo” (Weden,
2016, p. 19), sendo esse fenômeno, uma das principais características da migração sul-sul
(Santos; Rossini, 2018). Trata-se de um fato constatado na Europa, Oceania e Estados
Unidos, mas que se observa também no interior dos continentes africano e asiático, bem
como na América Latina e Caribe. No concernente à América do sul, países como
Argentina, Brasil, Chile e Venezuela recebem tradicionalmente imigrantes de países
vizinhos como Bolívia, Colômbia, El Salvador, Equador, Honduras, Paraguai e Peru
(Weden, 2016).
No caso específico do Brasil, adentrou ao país nos últimos anos um expressivo
número de migrantes do sul global (Bógus; Fabiano, 2015). De acordo com Santos e
Rossini (2018), os dados do recenseamento de 2010 corroboram essa afirmação, uma vez
26

que demonstram que, dos 597.292 imigrantes internacionais em território brasileiro, 51%
são provenientes da região. Ao mesmo tempo, o IBGE observou uma diminuição dos fluxos
imigratórios provenientes da Europa e Japão (Scavitti, 2017). Assim, o país que outrora foi
símbolo de oportunidades para imigrantes alemães, italianos, espanhóis, portugueses e
japoneses, nos dias atuais continua sendo uma aposta de desenvolvimento de uma vida
melhor para bolivianos, paraguaios e peruanos (Silva, 2008), entre outros imigrantes dos
países vizinhos25.
Esses dados trazidos pelos autores estão em conformidade com o relatório da
Organização Internacional para Imigrações (OIM), publicado em janeiro de 2018, segundo
o qual, a maioria dos migrantes que chegam ao Brasil vem dos países andinos (Bolívia,
Peru, Chile e Equador) e do Paraguai. O que indica uma permanência na entrada desses
fluxos durante o período. Porém, ao contrário do que possa parecer, o fenômeno migratório
para o Brasil dos países vizinhos não é algo tão recente. Essas imigrações tiveram origem
na década de 50 e 60 do século XX (Silva, 2008), com a entrada em território brasileiro de
estudantes de graduação e pós-graduação e profissionais, para a realização de cursos de
especialização ou oportunidades de trabalho em suas áreas de formação. Esse processo é
resultado dos acordos bilaterais entre Bolívia, Peru, Paraguai e Brasil.
Posteriormente, na década de 70, haveria um incremento no perfil imigratório, o
período marcado pela ascensão de regimes autoritários e a eclosão de conflitos armados no
cone sul latino americano engendrou um aumento no fluxo de imigrantes para o Brasil.
Nessa conjuntura, não somente bolivianos, peruanos e paraguaios adentraram em solo
brasileiro, esse fluxo foi acompanhado pela entrada de argentinos, uruguaios, colombianos
e chilenos. Assim, se em um primeiro momento a imigração se realizou por estudantes e
profissionais de alta qualificação, em um segundo, somou-se a esse perfil, aqueles que
procuravam fugir de perseguições políticas e da violência que se acirrava em seus países
(Silva, 2008).
Durante a década de 80 e 90, há mais uma mudança no perfil dos imigrantes no que
concerne o grau de escolaridade e as motivações que impulsionaram a imigração (Sala,
2005; Silva, 1995). Por um lado, o período é marcado pelo fim das ditaduras civis-militares
nos países sul americanos, por outro, no que diz respeito à esfera econômica, trata-se de um
momento de reestruturação produtiva do capital (Harvey, 2009) implicando em abertura das
economias sul-americanas e flexibilização das relações de trabalho.

25
Como também de asiáticos, africanos, caribenhos e árabes.
27

Ambos os processos, em seu conjunto, contribuíram para essa mudança. Assim, ao


perfil de migrantes de alta qualificação e de refugiados de conflitos ainda permanentes no
Peru e Colômbia, somaram-se aqueles que saiam de seus países à procura de trabalho e
melhores condições de vida (Silva, 2008) e que, por conta de seu baixo grau de estudos
formais ou da não regularização de sua documentação, acabavam trabalhando em setores
que não exigiam qualificação, transformando-se na maioria dos imigrantes na região (Sala,
2005).
Durante o século XXI, o fluxo de migrantes sul-americanos ao Brasil permaneceu,
destacando-se a chegada de bolivianos, peruanos e paraguaios. Essas correntes migratórias
foram acompanhadas da recente entrada de venezuelanos e de novos contingentes
migratórios do sul global (Baeninger, Bógus e Magalhães, 2018). A maior parte dos
imigrantes que adentraram ao Brasil tem como preferência se instalar nas regiões sul e
sudeste do país, destacando-se São Paulo como o principal Estado de acolhida de
estrangeiros (Santos e Rossini, 2018) 26.
No que concerne aos imigrantes sul-americanos no Brasil, especificamente
bolivianos, paraguaios e peruanos, há alguns pontos de convergência e alguns
distanciamentos (Pires, 2016) que, embora não sejam o foco dessa pesquisa, convém
apresentar para melhor situar esses fluxos migratórios no estudo que se segue. Um desses
pontos em comum é, por um lado, o fato de que as origens dos indivíduos que realizam a
imigração para o Brasil serem marcadas pela diversidade de departamentos: La Paz,
Cochabamba, Oruro e Santa Cruz de La Sierra na Bolívia; Lima, Cusco, Arequipa e
Cajamarca no Peru; Assunción, Paraguari, Caagazú e Alto Paraná no Paraguai (Silva,
2008; Cortez, 2014). Por outro lado, Silva (2008) destaca que muitos dos que
experimentaram o processo imigratório não realizaram, em seus respectivos países, a
migração do campo para às cidades, saíram da área rural em direção à metrópole paulistana,
o que pode resultar em grande dificuldade de inserção no país de acolhida por conta de
enormes diferenças culturais.
Outro aspecto em comum é a constatação que esses grupos coabitam os mesmos
bairros da região metropolitana de São Paulo como Santa Ifigênia, Parque Dom Pedro,
Brás, Bom Retiro, Luz, Pari, Vila Maria (Silva, 2008; Cortez, 2014). No entanto, a
concentração desses imigrantes não permaneceu somente nos bairros centrais da cidade de

26
De acordo com as autoras as regiões sul e sudeste do Brasil somam 70% de imigrantes no total: São Paulo
com 44,68% seguido por Rio de Janeiro com 16,20 e Paraná com 8,43.
28

São Paulo. Outros da zona norte, leste, e sul, bem como municípios da grande São Paulo –
Diadema, Santo André, Ribeirão Pires, Osasco, Barueri São Roque e Guarulhos – e cidades
do interior, passaram a receber esses imigrantes como resultado da estratégia para fugir da
fiscalização efetuada pelo ministério do trabalho e da polícia federal ou como alternativa
aos altos preços dos aluguéis (Silva, 1995).
Quanto à ocupação laboral, grande parte está inserida em diferentes setores de
atividade econômica, distribuindo-se nos ramos de confecção, alimentício e serviços ou
trabalhando como ambulantes em diferentes locais da cidade, como a Feira da madrugada
no Brás ou em outros bairros e distritos de São Paulo (Cortez, 2014; Lucena; 2013; Silva,
2006). Além desses aspectos citados acima, uma característica muito comum, concernente
ao fenômeno migratório de sul-americanos para o Brasil nos últimos anos, diz respeito ao
aumento da imigração feminina. Conforme Scavitti (2017), diferentes estudos produzidos
apontam que, ainda que houvesse uma predominância masculina, houve um aumento
considerável no contingente de mulheres imigrantes, este fato, por sua vez, está atrelado ao
aumento de diferentes produções acadêmicas em torno das questões de gênero (Bumachar,
2016; Santos; Rossini, 2018; Pachioni, 2015; Villareal, 2015; Novaes, 2014; Lucena, 2013,
2008; Dutra, 2013; Weintraunb, 2012; Reis, 2012; Rezera, 2012).
Além disso, o fluxo imigratório de sul americanos que chegaram ao Brasil a partir
da década de 90 se caracterizou por ser composto majoritariamente por jovens, cuja faixa
etária está compreendida entre os 18 e 25 anos, perfil que permaneceu o mesmo (Scavitti,
2017). Some-se a isso, o fato de que os filhos desses imigrantes estarem com a idade que
vai da infância e adolescência aos primeiros anos da fase adulta. Desse modo, esses dados
apontam para uma juvenilização da imigração sul-americana no Brasil e vai de encontro ao
debate pretendido nessa pesquisa.
No entanto, antes de entrar na discussão a respeito da juventude imigrante, é
necessária a compreensão das diferenças que possuem os fluxos migratórios sul-sul de
outras correntes de imigração como a norte-sul e sul-norte. Conforme veremos adiante, a
diferença não está apenas no sentido em que ocorreram esses fenômenos, mas também no
modo como os indivíduos serão recebidos e caracterizados pelos países que os
recepcionaram, desenvolvendo, como resultado de tal caracterização, modos de inserção e
relação com a sociedade receptora e seus nativos, que diferem tanto quanto os sentidos
imigratórios. Compreendê-las é de grande importância, uma vez que elas influenciam o
modo como a juventude imigrante abordada por essa dissertação constrói seus modos de
29

inserção e identidade na sociedade brasileira.


30

2.2 Colonialidade de poder, eurocentrismo e imigração sul global para o


norte global

A terra do sonho é distante


e seu nome é Brasil
plantarei a minha vida
debaixo de céu anil.

(Milton Nascimento, 1991)

As noções sul e norte global não dizem respeito à localização geográfica, criadas a
partir do fim da Guerra Fria, estão atreladas as ideias de avanço econômico. Desse modo, a
noção norte está associada com a ideia de desenvolvimento e riqueza ao passo que sul com
a ideia de pobreza e atraso (Santos e Rossini, 2018). Conforme as autoras, trata-se de uma
classificação resultante da divisão Internacional do trabalho que, embora possua “algo de
arbitrário e convencional […] há também algum sentido literal com respaldo econômico,
político, social e simbólico (p. 279)”.
Assim, além das características associadas ao desenvolvimento econômico, há
outras que nos remetem à formação e desenvolvimento histórico do continente americano,
onde se desenvolveria uma forma de dominação que, posteriormente, serviria de modelo à
colonização em outros países. Um dos eixos desse poder foi a codificação das diferenças
entre conquistadores e conquistados na ideia de raça. Ou seja, “uma supostamente distinta
estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a
outros” (Quijano, 2005, p. 107). De acordo com o autor, essa ideia foi assumida como o
elemento fundamental das relações de dominação que se desenvolveram na América e, a
partir dela, no mundo. Essa classificação da população mundial, originada a partir do
critério racial, não só originou novas identidades sociais – negros, indígenas e mestiços –,
redefiniu outras – português, espanhol, e europeu –, como também fundou relações sociais
de dominação no seio das quais essas novas identidades, recém-constituídas, “foram
associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes” (Idem).
O outro eixo constituinte do continente americano foi o modelo de produção e
controle do trabalho, instaurado a partir da conquista, baseado na articulação de todas as
formas históricas de trabalho – escravidão, servidão, produção mercantil, reciprocidade e
salário – em torno da forma que se desenvolvia na Europa: o capital-salário. A combinação
da divisão do trabalho, que nesse momento emergia, com a classificação social da
31

população a partir de critérios raciais, engendrou em toda a América – depois dela todo o
mundo colonial – uma autêntica divisão racial do trabalho. Em outras palavras, tanto raça
quanto identidade racial foram utilizadas como instrumentos de classificação social básica
da população e indicavam, – ao menos em seu princípio –, os papéis sociais destinados ao
conquistador e ao conquistado no que concerne à estrutura política e de trabalho colonial.
Assim, nas colônias e mesmo nas antigas metrópoles, desenvolveu-se a ideia de que
trabalhos assalariados eram exclusividades de brancos, ao passo que as outras raças,
inferiorizadas e subalternizadas pelo processo de colonização, eram distribuídas em
diferentes modalidades de trabalho não pago, a saber: a escravidão e a servidão. Essas
relações de servidão e escravidão, atreladas à colonização das perspectivas cognitivas, da
produção do conhecimento e cultura das populações subjugadas, originaram o que o autor
conceituou como colonialidade de poder, que caracterizará as relações desenvolvidas na
América e nos demais continentes colonizados, mesmo após os movimentos de
independência, a libertação dos antigos escravos e até no desenvolvimento de trabalho
assalariado, sobretudo nos séculos XX e XXI.
Em outras palavras, a luta contra a colonização, seguidas dos processos de
Independência e formação dos Estados nações que compõem o sul global – tanto no século
XIX quanto no século XX –, não foram suficientes para pôr fim a essa colonialidade de
poder, uma vez que não foram processos obtidos por meio da descolonização das relações
sociais e políticas entre os diversos componentes da população (Quijano, 2005, p. 121),
diferentemente dos países do norte global, onde esses processos foram acompanhados da
democratização das relações sociais e políticas ou ao menos possibilitou que os grupos
dominados pudessem reclamar e lutar pelo acesso as fontes de poder (Elias & Scotson,
2000) como o caso dos negros nos Estados Unidos (Quijano, 2005).
Desse modo, os assim chamados países do sul global diferenciam-se dos países do
norte global, não só por conta de suas especificidades econômicas, para além dessas
peculiaridades concernentes ao desenvolvimento material, possuem como traço marcante
das relações sociais a colonialidade de poder. Essa, conforme se afirmou acima, foi
construída com base na classificação e distribuição social da população a partir de critérios
raciais e até os dias de hoje manifesta-se de diferentes modos.
No entanto, se por um lado os países do norte global não desenvolveram
internamente essa forma de dominação, por outro, como fruto da colonização, foram
levados a sentirem-se como superiores às demais populações do mundo e, como
32

consequência, elaboraram uma perspectiva eurocêntrica acerca da modernidade,


racionalidade e desenvolvimento Histórico (Quijano, 2005). É essa visão de mundo, esse
universalismo europeu (Wallerstein, 2007), que estará presente no discurso a respeito das
populações e dos países que compõem as ex-colônias e formará o pensamento do Estado e
o imaginário ou ilusões (Sayad, 1998) que as sociedades europeias possuem a respeito dos
imigrantes provenientes do sul global.
No concernente a este movimento migratório para os países europeus, o autor, ao
observar o caso de argelinos que imigraram para a França27 durante o século XX, apontou
que a sociedade de recepção, “depois de haver tirado da imigração o máximo de proveito
que dela poderia tirar” (Sayad, 1998, p. 60) pode ter outras gratificações e satisfações
através das concessões e condescendência que parece realizar.

Porque a relação de forças pende incontestavelmente a favor da sociedade de


imigração […] ela tem uma tendência em contabilizar como realização sua o que
é, contudo, obra dos próprios imigrantes […] como o resultado de um trabalho
difuso ou sistemático de inculcamento, de educação que é operado graças a
imigração e cujo mérito recai sobre a sociedade de recepção e somente sobre ela.
Auxiliado pelo etnocentrismo […] é este, em certa medida, o sentido objetivo do
discurso que é proferido sobre todas as formas multiformes de moralização as
quais os imigrantes estão submetidos, tanto os trabalhadores quanto seus filhos e
os membros de suas famílias […] Tudo isso são coisas que se gosta de confundir
e encarar apenas do ponto de vista daqueles que tomaram essa iniciativa […] a
ação educativa […] exercida sobre essa “classe perigosa” à moda nova, esses
“nativos” desnaturados, esses “selvagens” vindos de outro continente […] e de
outro tempo.
(Sayad, 1998, p. 61)

Assim, “a proclamação narcísica dos grandes princípios”, ao mesmo tempo em que


gera o enaltecimento da sociedade receptora, inferioriza aos imigrantes ao lembrá-los que
eles são “constantemente objeto de um trabalho de correção que consiste em reduzir os
erros, as falhas que eles demonstram com relação à sociedade de sua imigração” (Sayad,
1998, pp. 61-63). Percebe-se como a perspectiva eurocêntrica influi na visão que os estados
e sociedades europeias possuem a respeito dos diferentes fluxos migratórios provenientes
do sul global. Essa visão de mundo está presente nos diferentes discursos dos partidos de
extrema direita europeia e, em épocas de crise no capitalismo, no sistema de bem estar
social (Albuquerque Júnior, 2016) e nas noções de cidadania (Mezzadra, 2015), ao serem
propagadas, acabam por colaborar com o acirramento do sentimento de nacionalidade e dos
diferentes casos de xenofobia (Albuquerque Júnior, 2016). Além disso, dado que os grupos

27
A este respeito afirmou ser “a mais antiga de todas as imigrações que hoje chamamos de países do Terceiro
Mundo” (Sayad, 1998, p. 19), ou seja, das ex-colônias, para as antigas metrópoles.
33

inferiorizados na relação de poder acabam adotando e cristalizando as noções e estigmas as


quais os grupos dominantes criaram e lhes impuseram (Elias & Scotson, 2000; Bourdieu,
1998), essa perspectiva torna-se um empecilho para conquista de direitos e inserção social.
No que concerne a América Latina, uma vez que os grupos dominantes de cada país
adotaram como própria essa perspectiva eurocêntrica (Quijano, 2005), ela também estará
presente no imaginário a respeito dos diferentes fluxos migratórios de europeus para o
continente no decorrer do século XIX e do século XX. Será essa perspectiva que
estabelecerá uma diferença marcante a respeito da forma como as sociedades locais
receberam esses contingentes migratórios quando comparados à forma que os países do
norte global recebem os fluxos migratórios provenientes do sul global.

Os discursos classificatórios fazem parte da trajetória dos grupos de imigrantes


europeus que vieram para o continente americano na segunda metade do século
XIX e início do século XX. Eles vieram imbuídos da missão de desenvolver uma
ética de trabalho e civilizar as novas nações americanas – repletas de índios,
negros, mestiços e caboclos vistos como inferiores e preguiçosos pelos adeptos da
civilização ocidental. Nesta perspectiva, os europeus brancos são os portadores da
civilização e progresso, pois tem uma maior capacidade de trabalho, enquanto os
negros, índios e mestiços americanos simbolizam o atraso, a barbárie e a preguiça
(Albuquerque, 2010, p. 163 e 164).

No caso específico do Brasil, essa percepção dará origem a critérios de seleção e


classificação, ao qual o Estado submeterá os diferentes fluxos imigratórios. Tais critérios,
como veremos na próxima seção, têm variado conforme as necessidades da sociedade
brasileira ao longo dos anos.

2.3. A dicotomia imigração desejada e a imigração indesejada

A imigração europeia para o Brasil no século XIX foi estimulada e subsidiada pelo
governo brasileiro, objetivando, em um primeiro momento, o povoamento do território por
meio da agricultura familiar, a criação de núcleos coloniais, a valorização de terras
despovoadas, a defesa das fronteiras, a promoção da policultura e a constituição de uma
classe de camponeses estabelecida entre latifundiários e escravos. Em tal conjuntura,
privilegiou-se “os europeus apreciados como 'bons colonos' ou 'bons agricultores' que
poderiam ser associados à categoria normativa da imigração desejável” (Rodrigues; Lois,
2013 p. 4). Assim, no período anterior a 1880, o Brasil “absorveu uma imigração bastante
importante de colonos agrícolas oriundos da Alemanha e do norte da Itália” (Klein, 1993, p
34

23). No entanto, embora houvesse ações para a promoção desta imigração para fins de
colonização agrícola, o projeto não teve o êxito desejado (Sodré, 1990). Posteriormente,
com o avanço das plantações de café e o fim do trabalho escravo, a iniciativa de estimular a
imigração europeia é retomada pelo governo brasileiro visando à substituição da mão de
obra escrava e o embranquecimento da população brasileira (Rodrigues; Lois, 2013).
Portanto, em diferentes momentos, o Estado brasileiro procurou incentivar a entrada
de imigrantes por meio da promulgação de leis e políticas públicas instruídas “acerca do
tipo de imigrante considerado desejável” (Rodrigues; Lois, 2013, p.3). No período que vai
do XIX à década de 30 do século XX, esse conjunto de práticas encabeçadas pelo governo
brasileiro não se configurava como uma restrição à imigração espontânea28. Porém, não
estava isenta de valores no que concerne à origem dos imigrantes, “visto que estes
deveriam ser preferencialmente europeus” (Rodrigues; Lois, 2013, p. 3). Tal prática é
desdobramento de uma visão de mundo dominante na época:

Havia realmente a crença ingênua da superioridade inata do trabalhador branco,


particularmente daquele que além de branco era de raça diferente dos
colonizadores lusos, isto é, os nórdicos, os saxões, os louros. Todos os problemas
estariam resolvidos com a arianização da massa de trabalho. (Sodré, 1990 p. 250)

A dicotomia entre imigração indesejada e desejada seria mantida nos anos de 30 a


45 (Fioravanti, 2015). No entanto, houve uma alteração no conjunto de leis que regulavam
a imigração para o Brasil. No período citado, o Estado – sob a tutela de Getúlio Vargas –
criou novos parâmetros que regulamentaram a entrada de estrangeiros no país (Rodrigues;
Lois, 2013). Conforme as autoras, o governo brasileiro empreendeu inúmeros esforços com
o objetivo de vetar a entrada do imigrante compreendido como:

Concorrente do trabalhador nacional, formador de grupos étnicos que não se


assemelhavam aos nacionais, parasitário que se dedicava ao pequeno comércio e
a especulação imobiliária, explorador que não contribuía economicamente e,
sobretudo, que se tornou uma ameaça à formação da nacionalidade em termos
raciais ou culturais. As justificativas contrárias à imigração estavam relacionadas
à necessidade de salvaguarda do trabalhador nacional, a ameaça à segurança
nacional, a questão racial e a eugenia (Rodrigues; Lois, 2013, p.11).

Contudo, permaneceu o interesse de atrair os imigrantes desejáveis, desde que estes fossem

28
No entanto, deve ser levado em consideração que, ao mesmo tempo, que o governo brasileiro permitia a
livre entrada de estrangeiros europeus, os chamados indígenas asiáticos ou africanos só teriam sua entrada
admitida mediante autorização do congresso brasileiro. (Rodrigues; Lois, 2013).
35

escolhidos a partir de um rígido método de controle e seleção.

Assim, o Estado estabelecia diretrizes que definiam quem eram os imigrantes


desejados e os indesejados: os primeiros seriam brancos de origem europeia, católicos
(Fioravanti, 2015) e de origem latina – italianos, portugueses e espanhóis – uma vez que
não contrariavam a ideia de formação do Brasil e, por conseguinte, seriam mais propícios à
ideia vigente de assimilação (Rodrigues; Lois, 2013). Seriam considerados indesejáveis, os
alemães, em razão da dificuldade em assimilar os valores nacionais do país para o qual
imigraram e os japoneses que, além de serem considerados do mesmo modo, também
“eram vistos como uma raça inferior, tanto quanto negros e índios, que supostamente
prejudicavam o branqueamento da população desejado pelo governo brasileiro e promovida
por imigrantes europeus” (Fioravanti, 2015 p. 18).

Portanto, se a imigração no século XIX e XX – tanto do sul para o norte global,


quanto do norte para o sul global – podem ser compreendidas como impulsionadas por
fatores econômicos, tanto de expulsão quanto de atração (Klein, 1993) – o que contribui
para que a figura do imigrante seja reduzida à imagem do trabalhador (Sayad, 1998), – deve
ser ressaltado que, no caso específico do Brasil e dos demais países latino-americanos, o
estímulo para a entrada de imigrantes esteve associado a critérios raciais de seleção29,
variáveis de acordo com os custos e benefícios que produziam para o país30.

Assim, se por um lado os imigrantes europeus no Brasil, durante o século XIX e


XX, tenham sofrido toda a sorte de discriminação e repressão – como a direcionada às
colônias alemãs durante a ditadura de Vargas no período compreendido como Estado Novo
(1937-1945) – ainda eram vistos como trabalhadores e suas colônias como desenvolvidas
(Albuquerque, 2010), tal perspectiva os colocava em situação de superioridade com relação
à maioria da população brasileira. Além disso, este preconceito ao qual estavam sujeitos
“não era uma discriminação tão importante quanto o preconceito racial” (Klein, 1993, p.

29
Nos anos da Ditadura Militar (1964-1985) a figura do migrante indesejável e a do migrante desejável
adquirem novos contornos. Nesse período, marcado pela Guerra Fria e pela intensificação da bipolaridade
mundial, a política migratória brasileira não se orientou pelas diretrizes dos direitos humanos e sim pela
doutrina da segurança nacional, essa estabelecia como imigrantes indesejados os indivíduos de esquerda e os
advindos dos estados socialistas. Desse modo, no período retratado, o estrangeiro é visto não só como grupo,
estado e indivíduo contrário aos objetivos nacionais, mas tem sua imagem vinculada a orientação ideológica
(Fernandes, 2012). Em suma, neste momento a ação do governo voltou-se a aqueles que, por conta de sua
afiliação a determinadas correntes ideológicas poderiam ser nocivos a ordem nacional e não esteve atrelada a
critérios de seleção racial.
30
Esses seriam analisados por uma espécie de cálculo contábil que mediria as vantagens e desvantagens dos
fluxos migratórios, vantagens e desvantagens entendidas não só no sentido econômico, mas no cultural e
social (Sayad, 1998).
36

30).

Na atualidade as políticas públicas para estimular a entrada de migrantes desejáveis


no Brasil e impedir o acesso dos assim chamados indesejáveis não estão mais em vigor. No
entanto, o uso desses critérios de classificação pelo Estado brasileiro contribuiu para
cristalização de imagens positivas dos descendentes desses imigrantes que são mantidas até
os dias de hoje. Conforme Albuquerque, esses adotaram uma identidade étnica e nacional
simultaneamente e apresentam-se como brasileiros, mas sempre destacam que são
descendentes de alemães, italianos etc. e, por essa razão, seriam mais “trabalhadores e
modernos” (Albuquerque, 2010, p. 68).

Assim, agora que a imigração entre países que foram colonizados e que
desenvolveram como forma de dominação a colonialidade de poder (QUIJANO, 2005)
adquire visibilidade, em um momento em que cada vez mais os fluxos migratórios para o
Brasil divergem do antigo padrão branco e europeu e cujo cenário onde ocorre a entrada
desses imigrantes é marcado pela escassez – quando não é a completa ausência – de
políticas públicas, seja em âmbito estadual ou federal, associados ainda com o crescente
desemprego pelo qual o país recentemente tem passado (Fioravanti, 2015), urge para este
estudo refletir acerca da forma como são recebidos os diferentes fluxos de imigrantes
provenientes do sul global, dando ênfase à imigração de sul-americanos.

Cumpre, no entanto, ressaltar que, embora o presente estudo tenha como escopo de
análise os imigrantes sul-americanos e seus filhos, não é possível desvincular essa
imigração de outros fluxos migratórios provenientes do sul global – pelo menos no que diz
respeito ao quadro geral. Como veremos adiante, estes fluxos possuem características
similares no que concerne ao modo como são recebidos e percebidos pela sociedade
brasileira.

De que forma essa imigração é interpretada pelo Estado brasileiro e pelos meios de
comunicação? Serão interpretados de modo positivo tal como foram os imigrantes
europeus? A que sorte de discriminação e violência estão submetidos cotidianamente?
Como é a inserção desses imigrantes na sociedade brasileira? Que imagens possuem de si e
da sociedade para o qual migraram? Quais são as relações desenvolvidas no seio desses
fluxos migratórios? Como é a relação de brasileiros e esses imigrantes? Pensar essas
questões é de grande importância, pois não somente trazem a luz características desses
fluxos migratórios, como também revelam aspectos importantes da sociedade e da
37

população brasileira.

2.4. Os casos de xenofobia, racismo e estigmatização de imigrantes do sul


global no Brasil

A primeira reação, espontânea, em relação ao estrangeiro é imaginá-lo inferior,


porque diferente de nós: não chega nem a ser homem, e, se for homem, é um
bárbaro inferior; se não fala a nossa língua é porque não fala língua nenhuma,
não sabe falar, como pensava ainda Colombo.

(Todorov, T., 1991, p. 68).

Pensar comparativamente os diferentes fluxos migratórios no Brasil possibilita


problematizar muitas das questões de um país que outrora se entendeu portador da chamada
democracia racial, tanto no que concernem às relações internas quanto àquelas
desenvolvidas com pessoas de outras nacionalidades. Os diferentes casos de violência –
física, simbólica e gênero – e agressão ao qual os imigrantes do sul global – latino-
americanos, africanos, árabes e asiáticos – sofrem cotidianamente no Brasil, se não
contradizem de todo essa autoafirmação, ao menos demonstram que a realidade é muito
mais complexa.

Um indivíduo ou grupo de pessoas, ao empreender o movimento transnacional não


atravessa somente a fronteira entre um Estado e outro. Uma vez que o imigrante possui uma
memória, formas de ser, agir e pensar, práticas culturais, visões de mundo e percepções de
tempo, essas não são simplesmente abandonadas ao deixar o seu país de origem e entrar em
outro. No contexto migratório, algumas são abandonadas, outras adquirem formas novas,
como podem e são também reforçadas a partir do contato que se estabelece na sociedade de
recepção da imigração31. Em alguns casos, constituem ferramentas para a luta e conquistas
de direitos e, em outros, ao conflitarem com as práticas institucionais e culturais dos

31
Conforme observou Silva (1995) em estudo sobre a imigração boliviana para São Paulo, o estabelecimento
de novas relações sociais dos imigrantes entre si e com a sociedade de acolhida implica, por um lado, “na
adoção de novos valores e estratégias de ação” (Silva, p.10, 1995) com o qual se orientam em um novo
contexto sociocultural e, por outro, “tal processo implica também na recriação dos seus próprios valores
culturais, os quais passam a ser também o suporte para a reelaboração de sua própria identidade nacional,
étnica e cultural” (IDEM).
38

nativos, acabam por constituir novas fronteiras. Albuquerque (2010), ao analisar a migração
na fronteira entre Brasil e Paraguai, afirmou que a

imigração brasileira ultrapassa o limite internacional e constrói várias fronteiras


no território paraguaio: os limites entre cidadão e o estrangeiro, as diferenças das
línguas nacionais, confrontos entre uma mentalidade capitalista e culturas
camponesas e as fronteiras de um passado de conflitos entre os dois países
(Albuquerque, 2010, p.20).

Nesse sentido, estamos diante de um cenário de multiplicação de fronteiras que não


dizem respeito somente a uma linha cartográfica, tampouco ao estabelecimento de um muro
(Mezzadra; Neilson, 2013): a esses imigrantes são levantadas diferentes fronteiras, tanto
pela sociedade de recepção e seus nativos, quanto por imigrantes de outras nacionalidades
ao qual travam contato no seu dia a dia.
A delimitação de uma territorialidade – entendida aqui não como física, mas
simbólica (Elias & Scotson, 2000), étnica (Barth, 2000) entre outras – tem como resultado
o estabelecimento de um dentro e um fora (Albuquerque Júnior, 2016) ou, em outros
termos, um insider e um outsider (Elias & Scotson, 2000). Essas fronteiras, ao serem
estabelecidas, dão origem àqueles que, por algum motivo, serão estranhados, um
estranhamento que ocorre não necessariamente do ponto de vista da nacionalidade: os
indivíduos ao qual se estranham podem ser aqueles que, sendo membros de um dado grupo,
travam com ele relações de distanciamento e proximidade, confrontando-o e sendo por ele
confrontado por conta de suas diferenças (Simmel, 1983). Situação que difere daqueles que,
embora possuam a mesma origem étnica e de classe, são excluídos ou evitados por serem
considerados de menor valor e não possuírem um suposto carisma grupal (Elias & Scotson,
2000).

Assim, a delimitação de fronteiras resulta na exclusão e estigmatização do outro e,


por sua vez, implica no medo, antipatia e rejeição ao estrangeiro, ou seja, a figura do
indivíduo que, do ponto de vista grupal ou social (Elias & Scotson, 2000), é considerado
estranho, de fora32. Consequentemente, dá origem a um sentimento de xenofobia que possui
diferentes matizes e assume diferentes formas “dependendo do lugar de origem do

32
Nesse sentido, deve ser ressaltado que a problemática em torno daquilo que sociologicamente é considerado
estrangeiro diverge da visão sustentada pelo Estado, uma vez que, para este, o conceito refere-se ao indivíduo
que nasceu fora de seus limites nacionais. Em suma, “o estrangeiro não apenas se define como aquele que não
pertence à mesma nacionalidade – há outras formas de ser estrangeiro” (Albuquerque Júnior, p.170). Desse
modo estrangeiro pode ser o indivíduo que pertence a uma etnia ou grupo diferente, pode ser aquele que
possui outro estilo de vida, outra religião, ser de outra classe como também de outro país.
39

estrangeiro, da cor de sua pele, de sua condição social e da situação jurídica” (JR.
Albuquerque, 2016, p.106). Na maioria dos casos, esse sentimento tem como origem o não
reconhecimento da humanidade do outro.

Até mesmo do ponto de vista corporal da imagem dos corpos, não é uma
unanimidade o que seria um corpo humano […] Uma das mais básicas
manifestações de xenofobia nasce da rejeição do corpo estranho, estrangeiro, do
corpo exótico, bizarro, distinto que, em muitos casos extremados, sequer
enxergamos como pertencentes à mesma espécie (Albuquerque Júnior, 2016, p.
16).

Conforme o autor, tal desumanização do outro está na origem de um comportamento


33
que está muito associado à xenofobia: o racismo (Albuquerque Júnior 2016 p. 21) , que
nasce a partir da diferenciação dos corpos humanos, de suas cores e traços diacríticos,
originando, por sua vez, a noção de raça que, tal como foi argumentado, compõe um dos
eixos do padrão de poder mundial inaugurado na América (Quijano, 2005).

Assim, uma das fronteiras mais comuns que os imigrantes do sul global
cotidianamente se deparam é a que, a partir de critérios raciais, delimitam os que são
considerados humanos e os que não são (Albuquerque Júnior, 2016). Portanto, muitos casos
de manifestação de xenofobia aos quais os imigrantes são vítimas no Brasil não diferem em
nada da violência realizada contra negros e indígenas brasileiros. Esses, na maioria dos
casos foram e são “tratados como indesejáveis, como não devendo fazer parte da população
do país” (Albuquerque Júnior, 2016, p. 108).

No entanto, muitos dos imigrantes com o qual conversei ao longo de minha


pesquisa, afirmaram não terem se deparado com situações de racismo e preconceito. Ao
conversar com um boliviano que antes de vir para o Brasil viveu por dois anos na
Argentina, esse foi enfático ao comparar os dois países a partir de sua experiência: “os
brasileiros são mestiços, nos tratam bem, recebem bem a gente. Os argentinos são
desrespeitosos. Só que nós estávamos aqui antes deles, eles são os imigrantes não os
bolivianos”. Em outro momento, em conversa com outro boliviano, ouvi que “os brasileiros
são gente fina, se você perguntar onde fica qualquer lugar, eles te respondem bem, o
argentino responde, mas não olha na sua cara, vira para o outro lado”.

Essa percepção de dois imigrantes a respeito de sua trajetória de vida e da relação

33
No entanto, o autor também leva em consideração que nem sempre a xenofobia é motivada por racismo.
40

com nativos de países distintos, pode ser contrastada com a fala proferida por uma mulher
de origem nordestina em uma festa que contou com a participação de imigrantes bolivianos,
peruanos e paraguaios. Na ocasião, quando somente havia brasileiros próximos a ela ouvi:
“cambada de macacos feios, eu sou brasileira, estou em meu país”.

Esses relatos demonstram que a xenofobia com teor racial se manifesta e se


expressa de diferentes maneiras, no caso argentino, conforme o discurso de diferentes
imigrantes que tive contato na realização do trabalho de campo, ele é direto e se sente de
modo mais forte. Ao passo que no Brasil, a manifestação, em muitos casos, não ocorre de
forma explícita, mas implícita. No caso específico da fala da brasileira relatada acima, o
que ocorreu foi uma clara expressão de um sentimento de xenofobia, preconceito e
jocosidade com imigrantes ao qual ela travava contato.

O exemplo supracitado corrobora a afirmação de Albuquerque Júnior, a saber, de


que os nordestinos, embora sejam “objetos de preconceito em outros estados” (2016, p.105)
e “considerados inferiores racial e intelectualmente […] também são capazes de gestos e
práticas de xenofobia, se diante deles estiver outro que possa ser considerado inferior e
menos humanos do que eles” (IDEM). Além disso, o conteúdo presente neste discurso
reduz ao estrangeiro a condição de animal, o que, segundo o autor, ocorre em casos
extremos de aversão a alteridade.

Outros casos similares são encontrados no cotidiano de diferentes estados


brasileiros. Um caso exemplar da manifestação de xenofobia foi o episódio da vinda de
médicos cubanos ao Brasil pelo programa Mais Médicos, no ano de 2013. Na ocasião, eles
foram hostilizados e chamados de escravos por 50 médicos brasileiros na saída do local
onde realizavam cursos de integração para poderem exercer a profissão. Nesse caso, a
xenofobia estava atrelada a questões de trabalho e preconceito ideológico – outra das duas
formas que se manifestam a aversão ao estrangeiro (Albuquerque Júnior, 2016) – contra o
país caribenho.

No entanto, a manifestação não deixou de ser marcada por questões raciais:


conforme demonstra reportagem do site de notícias Pragmatismo Político34, uma jornalista
brasileira, ao manifestar sua indignação com a chegada desses profissionais, escreveu em
uma conta na rede social Facebook que “Médicas cubanas tem cara de empregada

34
Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/08/jornalista-medicas-cubanas-parecem-
empregadas-domesticas.html Acesso em: 23/05/2019.
41

doméstica; será que são médicas mesmo? Coitada de nossa população.” Tais palavras,
referiam-se ao fenótipo e a cor da pele de grande parte dos profissionais cubanos.

Outro acontecimento ocorreu no ano de 2016, quando três ônibus de viagens com
passageiros bolivianos foram parados pela Polícia no Estado de Goiânia. Ao retratar o
ocorrido, o site de notícias do Jornal Opção35 publicou uma reportagem afirmando que
essas pessoas estariam indo para Brasília protestar contra o impeachment da presidente
Dilma Rousseff. Essa e outras reportagens com o mesmo conteúdo repercutiram
negativamente e o teor de tal repercussão pode ser sentido ao ler os comentários que os
internautas fizeram a respeito da população boliviana: “guerrilheiros, traficantes,
defensores de bandido”. Alguns dias depois, o site de notícias Migra Mundo publica uma
matéria jornalística desmentindo o conteúdo propalado na internet36. De acordo com a
publicação, os bolivianos iam para a Goiânia para um evento do grupo imobiliário Sion,
essas informações foram confirmadas pelo próprio grupo e pela Polícia Rodoviária Federal.
Ao conversar sobre o ocorrido com uma dentista boliviana, ouvi

Para você ver, o boliviano pode ser tudo, escravo, qualquer coisa, menos
empresário. Isso já aconteceu comigo muitas vezes. Quando estou trabalhando
em meu consultório ou em um posto de saúde, os pacientes sempre entram em
minha sala e perguntam pela dentista. Ficam surpresos quando veem que sou eu.
(Conversa informal realizada, 19/07/2019).

Esses exemplos, aliados à fala de minha interlocutora, demonstram que o fim da


escravidão-servidão não foi suficiente para pôr fim à ideia, ainda vigente na mente de
brasileiros – assim como de outros latino-americanos –, de que determinados trabalhos
estão associados a fenótipo e cor.

As falas e atitudes preconceituosas e xenófobas não se restringem somente a


bolivianos, peruanos, paraguaios e cubanos: imigrantes de outras nacionalidades já foram
alvos de agressões verbais. É o que demonstra a reportagem no site de notícias Terra,
publicada no dia 13 de maio de 2016, que retrata a experiência de imigrantes haitianos.
Conforme a reportagem:

O preconceito, segundo eles, se manifesta de diversos modos – alguns brasileiros

35
Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/bastidores/policia-aborda-onibus-com-bolivianos-que-
vieram-para-o-brasil-protestar-contra-impeachment-de-dilma-63695/ Acesso em: 23/05/2019.
36
Disponível em: https://migramundo.com/o-estrago-que-faz-um-boato-o-caso-dos-bolivianos-em-goiania/
Acesso em: 23/05/2019.
42

tem o hábito de chamá-los de gays. Um deles conta que, em uma dessas


situações, um grupo de crianças, rindo muito, perguntou se ele não tinha
sabonete, referindo-se à cor escura de sua pele. O outro conta que muitos aqui o
chamam de “macaco” e de “outras coisas assim”.

Outro imigrante entrevistado para a mesma reportagem declarou: “Todos os


haitianos que chegam aqui dizem que sentem o preconceito […] é comum as pessoas
atravessarem a rua para não andarem ao seu lado. Isso é preconceito porque somos pretos,
porque somos haitianos”.37
Se são tratados como escória da humanidade, como seres de menor valor, que
diferença fará para a sociedade de recepção os casos de violência e agressão que se
cometem contra esses indivíduos? Serão visibilizadas e levadas em consideração as
diferentes formas de agressão xenófoba que se manifestam cotidianamente ou, ao contrário,
procurar-se-á escondê-las sobre a ideia de cordialidade e de democracia racial? No próximo
tópico, veremos a implicação que as visões depreciativas têm para o cotidiano desses
imigrantes e os modos como eles são atingidos.

2.5. Corpos marcados

Se assim ocorre, se esses imigrantes têm sua humanidade inferiorizada, como


desdobramento dessa inferiorização, está o não reconhecimento da contribuição econômica
e cultural que oferecem para o país para o qual imigraram. Isso é o que foi constatado em
uma conversa com uma funcionária pública da Prefeitura de São Paulo. Ao comparar os
feitos desses fluxos migratórios com o de outros imigrantes, ela afirmou: “os italianos
vieram para cá e ajudaram a construir o país, contribuíram para melhorar e crescemos. Os
bolivianos e esses outros vêm para cá, usam nossas escolas, hospitais e bens públicos e não
contribuem com nada”. Esse exemplo questiona a afirmação sustentada pelo senso comum
de que o Brasil, por ter recebido ao longo dos séculos XIX e XX diferentes contingentes de
imigrantes, seria um país aberto e receptivo à imigração. Ser descendente de pessoas que
fugiram da penúria, fome, perseguições políticas e religiosas não implica que se crie uma

37
Ambos os excertos estão disponíveis em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/imigrantes-haitianos-
sofrem-racismo-e-xenofobia-no-brasil,a55e260ac95f5410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html Acesso em:
23/05/2019.
43

identificação de brasileiros com outros imigrantes, que se encontram na mesma situação.

Além disso, o que é perceptível na fala dessa brasileira, quando compara a


imigração de seus antepassados com a atual de peruanos, paraguaios e bolivianos, é uma
construção de um passado que ocorre por meio da seleção de determinados elementos,
dando “ênfase no passado europeu de seus familiares, o fato de serem pretensamente de
raça branca e o fato de terem, através do trabalho, conseguido uma ascensão social que
muitos dos nacionais não teriam conquistado” (Albuquerque Júnior, 2016, p. 100). Ainda
conforme o autor, tais elementos reunidos resultam na composição “de uma identidade
pessoal e coletiva que atuam como caldo de cultivo para o preconceito, a intolerância e a
xenofobia” (IDEM). Assim, a constituição de uma memória seletiva dá origem “à
construção de si como melhores, como mais civilizados, com o outro sendo identificado
como pouco civilizado, de péssimos modos, inferior racialmente e preguiçoso” (IBIDEM).

O mesmo teor depreciativo esteve presente na fala de uma professora da Faculdade


de Direito da USP que, ao analisar a relação diplomática entre Brasil e Bolívia, não só
diminuiu a importância do país vizinho, como também a colaboração que os imigrantes de
origem boliviana podem efetivar para o desenvolvimento brasileiro. Conforme suas
palavras, “eles não contribuem para o desenvolvimento tecnológico, cultural, social e
desenvolvimentista do Brasil. Então, Bolívia é um assunto menor” 38.

Os relatos trazidos até o momento corroboram a construção teórica de Bourdieu


(2001) a respeito do que conceituou como poder simbólico. Ele se refere à capacidade que
os grupos dominantes, no interior de uma dada estrutura social, possuem de interpretar a
realidade e impor essa interpretação aos grupos dominados com o qual se relacionam.
Porém, não se trata de uma imposição efetivada por meio da coação física. Ao contrário,
essa imposição só é efetiva se conta com a cumplicidade e adesão dos que a ela estão
sujeitos.

Heranças de um passado colonial e produtos de inculcamento que, tanto os países de


origem desses imigrantes quanto os de recepção produziram ao longo dos anos, essas
formas de violência simbólica (Bourdieu, 1998) – que inferioriza a negros e indígenas
quando não lhes tira sua humanidade –, estão presentes não só no discurso da população
brasileira, mas também nas falas que parcela significativa desses próprios imigrantes

38
https://noticias.r7.com/internacional/bolivia-e-insignificante-diz-maristela-basso-comentarista-da-tv-
cultura-e-professora-da-usp-01092013 acessado 23/05/2019
44

produzem sobre si, não só quando comparam seus países de origem com o Brasil, mas
também sua população, seus traços diacríticos e até a sua cultura. A esse respeito, Silva
(1995) afirmou que esse processo de depreciação, além de afetar a autoestima do imigrante,
estimula seu isolamento e negação da própria identidade. De acordo com relatos registrados
pelo autor, os bolivianos, em muitos casos, demonstraram um comportamento de submissão
e subserviência ao se aproximarem dele e de seus colegas brasileiros.

Tal situação autodepreciativa não difere em nada da que observei em meu trabalho
de campo, uma vez que foi muito comum encontrar com imigrantes de diferentes origens
que comparavam ao Brasil com seus países, atribuindo ao primeiro o desenvolvimento e a
riqueza que os seus não possuem. Foi o que afirmou Beatriz, uma imigrante peruana, em
conversa informal no centro de São Paulo, quando questionada por um compatriota sobre
um possível retorno ao seu país, uma vez que a situação econômica estaria melhor “lá do
que aqui”. A resposta veio em tom duro e depreciativo: “meu país não tem
desenvolvimento, não tem as coisas que o Brasil tem”. Outro imigrante boliviano, com o
qual conversei, atribui aos brasileiros uma mentalidade que seus compatriotas não possuem:
“os bolivianos são mais fechados, egoístas e desconfiados. Não se unem para nada a não ser
39
as festas. Acho que por isso que o Brasil tem mais desenvolvimento que a Bolívia” .
Outra imigrante boliviana, quando teve seu namorado brasileiro confundido com boliviano,
afirmou “que boliviano nada, meu namorado é brasileiro, limpo e cheiroso” 40.
A comparação não se faz somente no que diz respeito ao nível do desenvolvimento
alcançado pelos países ou o comportamento diferenciado de seus habitantes, também se
compara os corpos e a beleza dos homens e mulheres brasileiros com os quais esses
imigrantes entram em contato. A esse respeito, Beatriz afirmou não gostar de bolivianos
“porque son feos e pequeños” e de peruanos “porque son feos” ao passo que Felipe prefere
as mulheres brasileiras ou paraguaias, porque são mais bonitas e brancas. A mesma fala
obtive de um boliviano em uma conversa informal na estação Barra Funda do metrô. Ele
afirmou não gostar de mulheres bolivianas ou peruanas e sim das brasileiras, porque são
mais simpáticas e bonitas41.
Vale destacar aqui a surpresa e felicidade que uma imigrante boliviana teve a me ver
comendo salteña – comida típica da Bolívia – na rua Coimbra, no momento em que

39
Nota do trabalho de campo, 05/09/2019.
40
Nota do trabalho de campo, 17/08/2019.
41
Nota do trabalho de campo, 18/08/2019.
45

realizava trabalho de campo: “un brasileño comendo comida boliviana, no creo”. Uma
reação típica de quem, em vários momentos de sua vivência na sociedade brasileira, teve
seus hábitos, sua cultura e seus corpos inferiorizados de diferentes maneiras42.
Mas não apenas a violência simbólica compõe as ações agressivas cometidas por
brasileiros contra os imigrantes. Se esses são inferiorizados de diferentes maneiras, tornam-
se, por essa razão, “mera carne nua que pode ser torturada, seviciada, desrespeitada,
humilhada, destruída sem maiores remorsos” (Albuquerque Júnior, 2016, p. 20). É em
virtude dessa redução, que o “corpo estranho torna-se não apenas matável, mas violável,
brutalizável, usável, coisa, objeto inclusive de desejo” (Albuquerque Júnior, 2016, p. 27).

É isso que demonstra o caso de um haitiano vítima de espancamento por dois


colegas de trabalho em Curitiba, após reagir a ofensas de cunho racista e xenófobas. Esse
acontecimento foi noticiado pelo jornal Gazeta do Povo, no dia 19 de outubro de 201443 e,
segundo a reportagem, outros casos como esse ocorreram na capital paranaense sendo que a
Casa Latino Americana (CASLA) – instituição que acolhe imigrantes no estado –, relatou
ter atendido treze imigrantes vítimas de espancamento por causa do preconceito.

Também no Rio Grande do Sul, um caso de xenofobia e racismo resultou na morte


de um estudante colombiano44. Na capital paulista, a situação não foi nada diferente, tendo
em vista que no ano de 2015 seis haitianos foram baleados no Bairro do Glicério, região
central do município de São Paulo45. Outro caso reportado pelo site de notícias El guia
latino traz a narrativa de uma mulher boliviana agredida dentro de uma escola por um pai
de aluno46. De acordo com a notícia, o brasileiro a insultou dizendo: “sua porca, vocês são
lixos, seus bolivianos nojentos, voltem todos pra sua terra”. Tais ofensas não se reduziram
às palavras ofensivas, dado que o brasileiro, não satisfeito com os xingamentos proferidos,
a agrediu fisicamente com tapas e socos, não se importando com o fato de a mulher estar

42
Nota do trabalho de campo, 10/08/2019.
43
Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/xenofobia-se-converte-em-agressoes-
contra-imigrantes-haitianos-ef4atki1925lz2d0e34rtiudq/?fbclid=IwAR0oFb-
x9PKlNlghTZ1gyUfPVX4QO8rp__8V2aTKXWYaZ9lsukX_DKNQFi0 Acesso em: 23/05/2019.
44
Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2017/10/vida-e-morte-de-eduardo-a-
historia-do-mestrando-colombiano-da-ufrgs-morto-a-tiros-pelo-vizinho-
cj8zu4nsh08ne01mqqc9ayu1z.html?fbclid=IwAR3-
i4aMjwdG95bCUAtFuCq8oxtUVUoKDzfK7dszivG2FOAn8hPShPZRbWo Acesso em: 23/05/2019.
45
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/seis-haitianos-sao-baleados-em-ataques-em-sao-paulo-
17125575?fbclid=IwAR2n5ftImsS-hgfp6PjBaBhbfxbwiKCHxPx-PlJ8n_cNpAi7dUc0SQvFQSI Acesso em:
23/05/2019.
46
Disponível em: http://www.elguialatino.com.br/site/2011/10/boliviana-e-agredida-dentro-de-escola-no-
bairro-vila-nova-cachoeirinha/?fbclid=IwAR2k5apnTazMstszEAZyi3swNT0_-
UEKBi1pDpETu_eXm34retiw3Ecbt8Q Acesso em: 23/05/2019.
46

com uma criança em seu colo.

Os exemplos trazidos até o momento demonstram que, cotidianamente, os


imigrantes sul americanos e outros como africanos, asiáticos, árabes e caribenhos, são
submetidos a variadas formas de agressão e violência. Como parte integrante da xenofobia
brasileira com imigrantes dessas origens, está o fato de não só serem corpos hostilizados no
trabalho, na escola, pelos meios de comunicação, por professores universitários, políticos e
jornalistas. O corpo desses imigrantes também é alvo vulnerável de assaltantes nos
diferentes locais que eles escolhem estabelecer moradia.

Para ilustrar essa afirmação, trago um exemplo de uma situação vivida em um


momento em que realizava trabalho de campo47. Essa ocorreu quando acompanhava uma
interlocutora de nacionalidade peruana até sua casa localizada no bairro do Brás, próxima à
rua Coimbra. Beatriz vivia em uma oficina de costura, em um quarto alugado e dividia a
casa com mais duas famílias: um casal formado pelo marido peruano, a mulher boliviana e
seus dois filhos brasileiros; e outro casal formado pela mulher boliviana, o marido e filha de
nacionalidade argentina.

Na ocasião, ao estarmos próximos da sua residência, uma das mulheres com a qual
dividia a casa se aproxima e diz “Beatriz eles invadiram a casa, levaram tudo... computador,
celular...”. Nesse momento, o desespero tomou conta de Beatriz, que entrou em sua casa
correndo. Pedi permissão aos moradores e a acompanhei. A porta de seu quarto, assim
como a de sua casa, foi arrombada, no chão uma bagunça: roupas reviradas, malas,
mochilas abertas, jogadas e espalhadas. O colchão havia sido rasgado com faca, muito
provavelmente para procurar dinheiro. Beatriz começa a procurar uma mochila que,
segundo ela, estava com mil e duzentos reais em dinheiro, procurou seus dois notebooks,
que também foram roubados. Beatriz começa, então, a chorar e a lamentar sua perda em
dinheiro e bens materiais que, de acordo com ela, era de oito mil reais, um dinheiro que
teria que batalhar muito para reaver. Nesse momento, um dos moradores da casa, de
nacionalidade peruana conversa comigo e diz: “mano eles llevaron todo. Computadores,
dinheiro e telefone. ¡Que prejuicio! Vai dar muito trabalho recuperar tudo”. Ao conversar
com o policial que atendeu a ocorrência se havia algum padrão para o crime que fora
cometido e se eram casos recorrentes no bairro, obtive como resposta:

47
Nota do trabalho de campo realizado em 13/07/2019
47

Com certeza, já aconteceram crimes como esse em outras residências aqui do


Brás e, infelizmente, outros vão acontecer. Esse tipo de ladrões estuda suas
vítimas, sabem suas rotinas, provavelmente estudaram durante meses a rotina da
casa. Mas o problema vou te dizer o que é... ...Esse povo, o povo boliviano,
peruano, paraguaio, eles são muito vulneráveis, não é o primeiro caso que
atendemos. O problema é que não há muita denuncia, eles são vítimas de roubo e
agressões e, na maioria das vezes, não fazem boletim de ocorrência. E por quê?
Muitas vezes os lugares que deveriam prestar atendimento a essa população lhes
recebem mal, tem maltrato. Então eles acabam não procurando esses lugares. Mas
não é só boliviano... …tem os senegaleses...

Ao conversar sobre esse ocorrido com outros interlocutores bolivianos, conto-lhes


que o que mais me deixou surpreso é que, no momento em que a casa foi arrombada e
roubada, havia muito movimento na rua, inclusive em um bar que fica em frente à
residência. Um deles, então, comenta “é assim, os brasileiros não se importam se os
bolivianos são roubados. Quando a casa de minha irmã foi assaltada, fizeram duas viagens
de caminhão durante o dia, todo mundo viu e ninguém fez nada”. Outro, complementando a
narrativa, afirmou “no Brás é assim, bairro boliviano, a gente é mais visado. Isso acontece
direto” 48.

Em outros momentos de minha convivência com migrantes que moram nos bairros
do Brás e do Pari, percebi o medo que muitos têm em andar pela região em horários
noturnos, quando as ruas do bairro ficam desertas. Foram diversas as vezes que as mulheres
bolivianas me pediram para acompanhá-las à sua casa ou ao ponto de ônibus. Em uma
dessas ocasiões, por conta da forte chuva na cidade de São Paulo, as luzes da Praça Kantuta
se apagaram, tornando-as alvo mais fácil da agressão de brasileiros49.
Finalizando esse tópico, é importante ressaltar que a maioria dos casos de xenofobia
que acometem aos imigrantes do sul global, embora estejam imbuídas de questões raciais
também estão atreladas a outro componente motivador do sentimento de aversão a
estrangeiros que é a disputa pelos bens materiais e mercado de trabalho. Trata-se de casos
em que o “estrangeiro é visto como um predador, alguém que vem se apossar
indevidamente de coisas ou de vagas de emprego que pertenciam exclusivamente a
nacionais” (Albuquerque Júnior, 2016, p. 90) e que se agudizam em épocas de crise e
aumento de desemprego, gerando acirramento nas disputas no mercado de trabalho.
Isso ocorre mesmo que os imigrantes venham trabalhar em mercados que, do ponto

48
Nota do trabalho de campo, 20/07/2019.
49
Nota do trabalho de campo 20/10/2019.
48

de vista da sociedade de recepção, são compreendidos como mercados de trabalhos para


imigrantes (Sayad, 1998), como o do ramo da costura que embora disponha da mão de obra
de bolivianos, paraguaios e peruanos, conta também com a presença de mulheres brasileiras
que são migrantes de origem nordestina. (Cortez; Freire, 2014) 50.

2.6. Considerações Preliminares

Conforme Goffman (2006), a sociedade é a responsável pelo estabelecimento de


meios pelos quais as pessoas são inseridas em determinadas categorias, como também pelos
atributos – considerados naturais e comuns – que devem possuir para serem categorizadas
de uma ou outra maneira, ou seja, distribuídas em alguma classificação. De acordo com o
registro teórico do autor, um ambiente estabelecido, ou seja, frequentado por pessoas de
uma mesma categoria – portanto previstas –, faz com que não ocorra entre seus
frequentadores nenhuma reflexão a respeito dos indivíduos com o qual se relacionam.
Há, portanto, um conjunto de preconcepções a respeito das pessoas desse grupo
social que, ao serem normatizadas, transformam-se em expectativas rigorosas imputadas
aos seus membros. Essas preconcepções formam aquilo que o autor denominou identidade
social virtual, ou seja, uma identidade que se baseia naquilo que a sociedade espera das
pessoas – que elas tenham determinados tipos de comportamento, fenótipos ou constituição
física que atenda a um dado padrão – e que pode ou não corresponder a aquilo que elas são
na prática, ou seja, com sua identidade social real.
Assim, sempre que um indivíduo apresenta evidências que demonstram ser ele
detentor de um atributo que o diferencie dos demais – e que, consequentemente, gera uma
discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real – ele deixa de ser
visto como uma pessoa normal e total e é reduzida a uma pessoa estragada e diminuída.
Esse atributo diferenciador é o que constitui o estigma. Trata-se, portanto, de uma marca
profundamente depreciativa que tem o efeito de estigmatizar a alguém e, por outro lado,
“confirmar a normalidade de outro” (Goffman, 2006, p.13. Tradução minha).
Não há, porém, uma única forma específica de estigma, o autor, ao caracterizar os
modos pelos quais as pessoas podem e são51 estigmatizadas, encontra três tipos de estigmas

50
Importante destacar a crescente diminuição da procura de trabalho no setor de confecção pelos brasileiros e
o aumento da inserção de imigrantes sul americanos no setor, sobretudo de bolivianos e paraguaios
(Souchaud, 2012).
51
Conforme o autor o termo possui uma dupla perspectiva: a condição do desacreditado que se refere quando
49

diferentes: há os que nos remetem as abominações do corpo, outros a culpa de caráter


individual e os que são estigmas tribais de raça, nação e religião. Ainda que todos
apresentem as mesmas características sociológicas52, é a este último, que diz respeito à
questão de nação e raça, que aludimos no tópico anterior ao demonstrar os diferentes
exemplos com os quais os imigrantes do sul global são cotidianamente marcados na
sociedade brasileira. Esses sujeitos, segundo os termos do autor, são “tribalmente
estigmatizados” (p. 69). Trata-se, de um estigma que não é atribuído a indivíduos por conta
de seus caracteres singulares e sim pelo fato de pertencerem a uma etnia, raça ou
nacionalidade estigmatizada.
A esse respeito, Elias & Scotson (2000) entenderam que a estigmatização se produz
no âmbito de relações de poder entre um grupo dominante e outro dominado, onde o
primeiro termina, muitas vezes, categorizando negativamente ao último. Trata-se, em
muitos casos, de um processo de violência simbólica (Bourdieu, 1998) que tem a
possibilidade de fazer com que o grupo inferiorizado acabe por aceitar a visão produzida
pelo outro dominante com o qual se relaciona. Como foram produzidas as relações de poder
marcadamente racializadas (em muitos casos) entre os imigrantes do sul global e muito dos
nativos da sociedade brasileira, foi a questão chave ao qual se procurou responder ao longo
deste capítulo.
Conforme Goffman (2006), ao tratar de grupos que são estigmatizados etnicamente
ou racialmente, a questão central para o qual deveríamos voltar à atenção é o lugar desses
grupos na estrutura social. Nesse sentido, a análise não poderia ser restringida “às
contingências que essas pessoas encontram na interação face a face” (Goffman, 2006,
p.148, tradução minha), ao contrário, devem ser levados em consideração a história, o
desenvolvimento político e as estratégias utilizadas por esses grupos. Elias & Scotson
(2000) defendem o uso de uma metodologia similar: para os autores, essas relações, com
conotações raciais, construídas entre um grupo e outro, não podem ser discutidas e
conduzidas em termos do aqui e agora, em outras palavras:

o indivíduo estigmatizado assume que sua característica distintiva é conhecida, ou, ao contrário, não é nem
conhecida e imediatamente perceptível, estando ele, portanto, na condição de desacreditável.
52
O fato de que “um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana”, mas que
“possui um traço que se pode impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de
atenção para outros atributos seus” (Goffman, 2006, p. 15. Tradução minha).
50

A exclusão dos processos grupais de longo prazo […] do estudo deste tipo de
relação estabelecido-outsider tende a distorcer o problema. Ao discutir os
problemas “raciais”, tende-se a pôr a carroça diante dos bois. Afirma-se, em
geral, que as pessoas percebem as outras como pertencentes a outro grupo porque
a cor de sua pele é diferente. Seria mais pertinente indagar como foi que surgiu
no mundo o hábito de perceber as pessoas com outra cor de pele como
pertencentes a outro grupo. Esse problema coloca prontamente em foco o longo
processo o qual grupos humanos se desenvolveram em diferentes partes da Terra,
adaptaram-se a condições físicas diferentes e, mais tarde, após longos períodos de
isolamento, entraram em contato, não raro como conquistadores e conquistados e,
portanto, dentro de uma mesma sociedade, como estabelecidos e outsiders. Foi
em decorrência desse longo processo de interpenetração, no qual grupos com
diferentes características físicas tornaram-se interdependentes como senhores e
escravos, ou ocupando outras posições com grandes diferenciais de poder, que as
diferenças na aparência física passaram a serem sinais de pertença das pessoas em
grupos com diferenças de poder, com pertenças diferentes e com normas
distintas.
(Elias & Scotson, 2000, p.46).

Conforme demonstrado nos exemplos precedentes, os imigrantes do sul global


sofrem cotidianamente com os estigmas que lhes são atribuídos pela sociedade brasileira e,
como decorrência dessas estigmatizações, com outras formas de violência, como as
agressões físicas e morais a que são submetidos53.
Situação similar ao fenômeno migratório sul-sul no Brasil documentou Gavazzo
(2012, 2013) em sua análise da imigração boliviana e paraguaia em Buenos Aires.
Conforme a autora:

Já foi suficientemente documentado que tanto bolivianos e paraguaios, como


outros imigrantes da região compartilham o estigma de “serem imigrantes não
desejados” e, em oposição aos europeus, são concebidos em ocasiões como um
todo, como um grupo único. Por meio dessa operação de unificação e
homogeneização, os imigrantes inter-regionais foram definidos como símbolo do
“atraso”, “primitivismo” e “subdesenvolvimento” do qual a Argentina emergiu
graças aos imigrantes transatlânticos que trouxeram a cota de “civilização”
“modernização” e “progresso” à nação desde os fins do século XIX (Gavazzo,
2013, p. 78. Tradução minha).

A autora constatou que essa forma de depreciação contribui para estigmatizar os


imigrantes bolivianos e paraguaios, como também os seus filhos nascidos na Argentina.
Essas formas de estigmatização, por um lado, repercutem no modo como os filhos de
imigrantes são identificados pela sociedade receptora e, por outro, na forma como

53
Cabe ressaltar, no entanto, que, no caso específico deste estudo, a percepção sociológica de que os
imigrantes são cotidianamente estigmatizados na e pela sociedade brasileira, não significa e não tem a
pretensão de vitimá-los, mas por em primeiro plano uma característica importante de relações estabelecidas
entre estes e a sociedade de recepção e seus nativos. Em outras palavras, o objetivo era demonstrar as formas
e condições em que esses imigrantes são categorizados de modo negativo pela sociedade brasileira.
51

constroem suas identidades e noções de pertença que podem ou não conflitar com a
identidade de seus pais, com a sociedade no qual nasceram ou podem originar um
sentimento de não ser nem de uma sociedade nem de outra como também de ambas. Além
disso, “em alguns casos se dá uma estratégia que integra as diversas identidades em conflito
dentro de uma só: a latino-americanicidade” 54. (Gavazzo, 2013, p.88. Tradução minha)
No estudo empreendido por essa dissertação, demonstrou-se que as populações
selecionadas para a análise – bolivianos, peruanos e paraguaios – compartilham a mesma
“imagem pública” (Gavazzo, 2013), ou seja, são populações que se encontram
estigmatizadas pelos nativos da sociedade de recepção. Ora, estar nestas condições não
implica que, entre as comunidades imigrantes relacionadas, as diferenças sociais
desaparecem ou são homogeneizadas. Ao contrário, na figuração (Elias, 2000) 55 entre cada
uma delas observamos distinções nacionais marcadas por narrativas sobre os conflitos
bélicos envolvendo os Estados Nações – no caso Bolívia e Paraguai – e estigmatizações
grupais que nos remetem ao país de origem destes imigrantes56. Além disso, no interior de
cada grupo percebemos que diferenciações, estigmas e preconceitos de cor, raça, classe e
gênero estão presentes e marcam as relações de poder entre seus respectivos membros.
Assim, não estamos diante de grupos harmônicos e que não desenvolveram em seu
interior tensões e conflitos como poderia supor uma análise sem profundidade. É neste
contexto que os jovens imigrantes e filhos de imigrantes bolivianos, peruanos e paraguaios
estão inseridos e constroem sua identidade juvenil e seus modos de inserção na sociedade
brasileira. Essas são questões que abordo no próximo capítulo.

54
Este um termo nativo que, segundo a autora, “questiona as ideias de nacionalismo que naturaliza e
territorializa as identificações” (Gavazzo, 2013, p. 89, tradução minha).
55
Elias utiliza o conceito de figuração para referir-se à relação dinâmica e de interdependência entre grupos
sociais e suas representações sociais construídas sobre si e os outros que podem marcar a diferença entre
“Nós” e “Eles”. Tais representações obedecem a lógica das disputas de poder de variadas ordens como a
econômica, política social e cultural.
56
Isto não significa que não existem momentos de liminaridade (Turner, 1974) onde momentaneamente as
fronteiras nacionais são desfeitas em prol de uma política de identidade (Hall, 2005).
52

3. As distinções interétnicas e Intraétnicas em São Paulo

3.1. As relações interétnicas entre imigrantes bolivianos, paraguaios e


peruanos em São Paulo

No capítulo anterior, destacamos que o modo como os imigrantes sul americanos


são percebidos e inseridos no Brasil é caracterizado pela inferiorização e estigmatização
desses em relação aos nativos da sociedade de acolhida. Esta situação a qual bolivianos,
peruanos e paraguaios encontram-se sujeitos, poderia levar-nos a pensar que existe, entre os
membros desses diferentes grupos, uma unidade em torno do reconhecimento de sua
condição social e a luta por conquista de direitos e melhoria de vida.
No entanto, ao observarmos as relações desenvolvidas entre os imigrantes das
referidas nacionalidades, percebemos que os mesmos fenômenos de distinção, atribuição de
estigmas e inferiorização se repetem – tanto no âmbito interno quanto nas relações externas
entre indivíduos desses diferentes agrupamentos. Nesse sentido, a análise empreendida por
essa dissertação, aproxima-se daquilo que Wendy Inarra observou em sua pesquisa com
estrangeiros de nacionalidade boliviana na Argentina, na qual identificou duas formas de
discriminação: a intercultural e a intracultural. Conforme palavras da autora:

Por discriminação intercultural me refiro à distinção de tratamento pejorativo


entre argentinos e bolivianos e discriminação intracultural se trata da
estigmatização ou tratamento pejorativo entre bolivianos: os que chegaram antes
sempre tem mais poder social, cultural, e educacional frente a aqueles que são
recém-chegados. (Wendy Inarra, jornalista e antropóloga boliviana, entrevista
realizada, 06/02/2020).

Em outras palavras, “na primeira se discrimina ao ‘outro’ externo do ‘nós’ do grupo


social de referência enquanto que a segunda se enfoca no ‘outro’ interno” (Gavazzo, p.69,
2012. Tradução minha).

No entanto, embora Inarra tenha sido feliz ao identificar duas formas simultâneas de
discriminação e diferenciação, acreditamos que o uso de termos como intercultural e
intracultural, para definir as relações internas e externas dos cidadãos de uma determinada
nacionalidade, não sejam os mais apropriados, por conta do risco de passar a ideia de
cultura simplesmente atrelada à nação. No contexto analisado pela autora, compreendemos
que o uso de ambos os termos poderia passar a impressão de que a dimensão intracultural
53

se refere às diferenças dentro de uma “cultura nacional” e o intercultural às relações


culturais entre países. É importante pensar de maneira mais dinâmica estes conceitos,
afastando das armadilhas do nacionalismo metodológico nos estudos migratórios (Schiller,
2002). Nesse sentido, poderíamos objetar se não pode ser mais intercultural as relações
entre indígenas e brancos na Bolívia que as relações entre bolivianos e argentinos brancos
de classe média que compartilham estilos de vida e significados culturais semelhantes.

Os limites da cultura não correspondem necessariamente com os limites da nação.


Em outro contexto, o fenômeno de identificação além das fronteiras nacionais, ou em
outros termos, da identidade transfronteiriça foi observado por Lopez Garcés entre os
Ticunas brasileiros, peruanos e colombianos na região da tríplice fronteira entre Brasil,
Colômbia e Peru. Nesse contexto, ainda que a nacionalidade fosse instrumentalizada para
conquista de direitos e utilizada para efetiva distinção entre os indivíduos dessa etnia,
alguns elementos culturais observados e mantidos pelos indígenas possibilitam sua unidade
cultural. Em outras palavras:

Independentemente dos contextos nacionais que hoje aderem, os Ticunas


reconhecem a existência de uma unidade sociocultural dada em termos dos
elementos mais relevantes de sua cultura [...] Estes elementos socioculturais
constituem a base de sua identidade como grupo étnico diferenciado. (Lopez
Garcés, 2002, p. 87. Tradução minha).

A preocupação em não atrelar a cultura à nação já esteve presente em outros


momentos de reflexão antropológica e sociológica. A este respeito, Hannerz (1997) em fins
do século XX, apontou para a dificuldade em estabelecer limites culturais entre grupos
sociais relacionados. Nesse sentido, elaborou uma reflexão a respeito de conceitos
importantes para as Ciências Sociais. Conforme o autor, o termo limite se caracteriza por
ser uma “linha clara de demarcação a qual uma coisa está dentro ou está fora” (Hannerz,
1997, p. 15), supõe, portanto, descontinuidades e obstáculos. A dificuldade surge no
momento de traçar um limite cultural entre um ou mais grupos em interação. Como
identificar o local e o momento exato em que surge esse limite? Quais seriam os elementos
culturais escolhidos por um ou outro grupo para demarcar suas fronteiras? Para o autor,
havia uma tendência em “focalizar a atenção na cultura unicamente como um marcador de
grupos” (Hannerz, 1997, p. 16). Porém, ele argumentou que o interesse nos fenômenos
culturais não precisa se restringir as distribuições de significados e formas significativas
que supostamente implicariam distinções grupais, justamente por conta de que, com o
54

fenômeno da globalização:

Muitas pessoas tem cada vez mais a experiência tanto nos fluxos de formas
culturais que costumam se localizar em outros lugares quanto daqueles que
acreditam pertencer a sua própria localidade. E, além disso, algumas correntes de
cultura são dificilmente identificáveis a qualquer lugar específico (Hannerz,
1997).

A mesma crítica desenvolveu Barth (2000) em outro momento, conforme o autor:

Dada a ênfase na dimensão desses grupos como portadores de cultura, a


classificação das pessoas e dos grupos locais como membros de um grupo étnico
deve necessariamente depender da presença de traços culturais particulares. [...]
Diferenças entre os grupos tornam-se diferenças entre inventários de traços; a
atenção concentra-se sobre a análise das culturas em detrimento da organização
étnica. Consequentemente a relação dinâmica entre os grupos será descrita
através de estudos de aculturação do tipo que atrai cada vez menos interesse na
antropologia, ainda que sua inadequação teórica nunca tenha sido discutida a
fundo (Barth, 2000, p. 29).

Além disso, os fatores culturais demonstrados objetivamente por cada grupo étnico
“exibem os efeitos de uma adaptação às circunstâncias externas às quais os atores sociais
tem que se acomodar”. Nesse sentido, o autor questiona se indivíduos com a mesma
identidade étnica e, logo, com “os mesmos valores e ideias não adotariam diferentes formas
de comportamento” caso estivessem diante de circunstâncias distintas. Esses
comportamentos diferenciados, Barth chamou de “formas culturais aparentes” cuja ênfase
nos levaria a compreender como grupos distintos o que é apenas um. Em seu registro
teórico isso seria um equívoco, visto que a “diversidade regional de comportamentos
institucionalizados [...] não refletem as diferenças de orientação cultural” (Barth, 2000,
p.30).
Portanto, o autor compreende que a perspectiva que parte da premissa de que são os
aspectos culturais que organizam e definem os grupos, nos leva a identificá-los e distingui-
los:

Pelas características morfológicas das culturas das quais eles são portadores. Esse
ponto de vista contém uma opinião preconcebida a respeito (i) da natureza da
continuidade dessas unidades no tempo; e (ii) do locus dos fatores que
determinam a forma dessas unidades (Barth, 2000, p. 29).

Assim, compreendida a problemática em torno do uso da palavra cultura para


analisar as relações entre os diferentes grupos de imigrantes, surgem novas questões: Qual
55

termo seria mais apropriado para defini-los e para definir a relação entre eles? Poderiam
essas relações ser compreendidas e engendradas a partir de supostas diferenças étnicas?
Quais seriam as características que permitem dizer que essas comunidades formam, no
contexto imigratório, grupos étnicos que se diferenciam? E se formam, quais são os fatores
que possibilitam a um indivíduo pertencer ou ser excluído de um ou outro grupo? Para o
autor, a fim de compreendermos essas questões, deveríamos, primeiramente, atentar-nos à
atribuição e auto-atribuição que os indivíduos efetivam. Essas formas de reconhecimento e
auto-reconhecimento tornam-se étnicas quando classificam

Uma pessoa em termos de sua identidade básica, mais geral, determinada


presumivelmente por sua origem e circunstâncias de conformação. Nesse sentido
organizacional, quando os atores, tendo como finalidade a interação, usam
identidades étnicas para se categorizar e categorizar os outros, passam a formar
grupos étnicos (Barth, 2000, p.32).

No entanto, essas formas de inscrição grupal podem dar conta da enorme


diversidade interna existente nas comunidades de imigrantes estudadas nessa pesquisa?
Conforme o registro teórico de Barth, os conceitos elaborados pela Ciência Social devem
ser adaptados à realidade estudada e não o contrário57. Ou seja, é a partir da realidade êmica
que poderíamos compreender o modo que ocorrem essas inscrições e auto inscrições e dela
retirar um conceito mais apropriado. A esse respeito, as falas coletadas no campo e a
pesquisa bibliográfica demonstram que, no que concerne o modo como os bolivianos se
percebem, ainda que exista no interior desse grupo uma enorme diversidade, o fato de
terem realizado o movimento migratório de um país a outro, repercutiu no modo como a
identidade grupal é construída.
Tal aspecto identitário foi evidenciado ao conversar com Sidney e sua esposa
Eleonor, ambos bolivianos de departamentos distintos – Pando e Sucre, respectivamente –,
em uma festa típica boliviana localizada no bairro do Pari58, região central do município de
São Paulo. Na ocasião, Sônia, boliviana de La Paz, convidou-nos para assistirmos,
próximos ao palco, a banda que animava ao evento. Eleonor e seu marido recusaram ao
convite para desapontamento de Sônia que se dirigiu só para frente do referido local
enquanto eu, Sidney e Eleonor permanecemos do lado de fora do salão onde ocorria a festa.

57
Nas palavras do autor: “É necessário um ataque simultaneamente teórico e empírico: precisamos investigar
detalhadamente os fatos empíricos em diversos casos e adequar nossos conceitos a esses fatos, de modo a
elucidá-los da maneira mais simples e pertinente possível e a permitir explorar suas implicações (p. 26,
2000)”.
58
Nota do trabalho de campo, 17/08/2019.
56

Questionada sobre o motivo pelo qual não aceitaram o convite, Eleonor disse não se
sentir segura nessas festas, porque grande parte dos organizadores são Aimarás e pessoas do
interior de La Paz. Elas, segundo suas palavras, são preconceituosas e não gostam de
brancos. Por essa razão, não veriam com bons olhos minha presença e a de seu marido.
Para justificar essa fala, minha interlocutora lembrou-se de quando ela e seu companheiro
foram a uma festa em EL Alto – município do departamento de La Paz – e tiveram que
fugir “porque os Aimarás depois de bêbados queriam brigar e agredir a Sidney” 59.
Ao conversar sobre essa questão com outra mulher boliviana nascida em Santa Cruz
de la Sierra – mas que, devido seus pais serem de La Paz se identifica como Camba-Colla
–, ouvi “Não tem nada ver, isso pode ser ainda muito forte na Bolívia, mas ao imigrarmos
muda, porque aqui no Brasil viramos todos imigrantes e passamos a nos ver como
bolivianos simplesmente”60. Essa mesma percepção está presente na fala de um boliviano
de origem Aimará que, ao ser questionado se após imigrar qual das identidades prevalece,
respondeu: “A boliviana, pela questão de pertença, necessidade de pertencer a um grupo
maior... boliviano... latino americano...” 61.
As falas desses imigrantes corroboram o que Grimson (2000) percebeu sobre a
imigração boliviana na Argentina, na qual cunhou o termo bolivianidad62 para referir-se ao
modo de construção de uma nova coletividade. Nesse contexto, os atores sociais analisados
pelo autor, ao selecionarem elementos culturais63 de seu país de origem e adaptá-los à nova
realidade ao qual estão inseridos, instituem um novo sentido étnico do ser boliviano,

59
Embora Eleonor não tenha me falado a respeito, existe uma relação marcada por ressentimentos e conflitos
entre Sucre e La paz, por conta de uma guerra civil ocorrida entre essas duas regiões em fins do século XIX e
início do XX. A este respeito, Milena, boliviana de Tupiza (cidade do departamento de Potosi na Bolívia), que
antes de migrar para o Brasil viveu no departamento paceño por muitos anos, afirmou “Sucre e La Paz tem
uma história de guerra civil, né?”. Conforme minha interlocutora trata-se de um conflito político envolvendo
os estudantes de Sucre e os indígenas de La Paz, ganho pelos últimos e que trouxe como desfecho a
transferência da capital para o departamento paceño. Esse conflito se reacendeu tanto no governo de Carlos
Mesa quanto no de Evo Morales – o documentário Humillados y ofendidos (disponível em:
https://youtu.be/my_dfXXaLTI) retrata o conflito que envolveram os indígenas do interior e a população de
Sucre, no período da Presidência de Evo. Talvez, é na raiz desse conflito que pode ser encontrada a causa da
tensão envolvendo Eleonor e seu marido em El Alto e a posterior desconfiança que o fenômeno imigratório
não foi capaz de apagar de suas memórias.
60
Nota do diário de campo, 24/08/2019.
61
Nota do diário de campo, 25/08/2019.
62
Segundo Santos(b) o termo bolivianidad ou nueva bolivianidad refere-se as “práticas de danças, vestuário,
significados, músicas, festas, alimentação originárias de diversas regiões bolivianas, mas que é reconstruída –
a partir desses referenciais – no contexto migratório assumindo inclusive novos significados, versões padrões
e materialidades” (2014, p.2). Pelas mesmas razões apontadas pelo autor, compreendemos que paraguaios e
peruanos, no contexto imigratório no Brasil, constroem respectivamente a paraguaianidad e peruanidad.
63
Conforme Barth (2000), afirmar que os grupos étnicos não se definem por suas culturas não quer dizer que
os mesmos não levam em consideração aspectos e diferenças culturais. No entanto, essas não correspondem
“ao somatório das diferenças objetivas” (p.32) expostas aos olhos do etnógrafo. Ao contrário, os atores sociais
em sua própria definição identitária arrolam características culturais que consideram significativas.
57

construindo propostas desde abaixo64 para a interação com a sociedade de recepção. Trata-
se de uma proposta identitária que, se não põe fim aos regionalismos, “os subordina a uma
referência comum mais abarcadora” (Grimson, 2000, p.24).
O mesmo fenômeno de construção grupal a partir de referências étnicas
selecionadas pelos atores sociais observou-se entre peruanos e paraguaios –, ainda que no
interior desses grupos permanecessem elementos de distinção regional, cultural e de classe.
No caso específico dos peruanos, a conversa informal com Beatriz, peruana de Lima
residente no Brasil há cinco anos, serve como exemplo para elucidar a questão65. Ao
questioná-la a respeito de qual identidade é acionada por seus compatriotas no contexto
brasileiro, visto que os peruanos residentes no Brasil advêm de uma diversidade de
departamentos, Beatriz respondeu: “Se veem como peruanos e ainda mais quando é a
66
Independência ou algum jogo de futebol” . Insisti no assunto com a pergunta: “Mas as
diferenças entre selva, montanha e litoral não são apagadas em prol da identidade peruana,
de se sentir peruano?”. E minha interlocutora teve a mesma fala que os bolivianos em sua
resposta: “Quando estão fora do país, parece que se apaga porque são todos imigrantes”.
Já Hernandes, paraguaio do departamento de Cordillera, residente no Brasil há vinte
anos, ao ser questionado sobre a permanência da diferenciação entre o paraguaio do interior
e o paraguaio da capital no contexto imigratório, afirmou “Sempre existe uma diferença
entre os do interior e da capital, mas no geral tem mais paraguaios que vem do interior,
então essa diferença quase não se vê”. Conforme meu interlocutor, os paraguaios que vêm
ao Brasil são de uma diversidade de departamentos – assim como bolivianos e peruanos –
sendo que a maioria deles é de Caaguazú. Se em suas palavras Hernandes não expressou a
ideia de que todos abandonam suas diferenças em prol de uma identidade étnica mais
abrangente, por outro lado afirmou que diversos elementos da cultura paraguaia acabam por

64
Conforme o autor, no momento em que seu artigo foi publicado, a maioria da população boliviana residente
na Argentina encontrava-se em uma situação de precariedade econômica sendo discriminada por setores
políticos e sociais e responsabilizada pelo aumento do desemprego e delinquência. Assim, nesse contexto, os
bolivianos estavam em uma situação de desvantagem frente aos nativos da sociedade de recepção. No entanto,
isso não foi impedimento para que, desde uma situação de subalternidade e inferiorização, os atores sociais se
auto organizassem e passassem, a partir de referenciais próprios, a se inserirem na sociedade Argentina.
65
Nota do diário de campo, 21/09/2019.
66
Importante ressaltar, que essa construção identitária peruana no contexto imigratório no Brasil está além das
celebrações das datas oficiais e jogos da seleção peruana. É o que analisou Carpio (2018) em sua dissertação,
no qual a autora demonstrou que eventos como a pollada e o fulbito contribuem para unir os imigrantes
peruanos de diversas regiões, criando entre eles sentimentos de pertença e solidariedade. Conforme o registro
da autora, polladas são “celebrações populares” que, no contexto peruano, foi utilizada “como uma estratégia
de sobrevivência em tempos de crise econômica e política” (p. 146). Nelas são servidos pratos típicos a base
de frango, batata e milho cozido. Já o fulbito é o nome dado a partidas amistosas de futebol realizadas entre
amigos e parentes.
58

unir seus compatriotas, sendo que “os mais ressaltantes seriam as atividades religiosas, a
67
dança e o nosso tradicional tererê” , dando a seus compatriotas um novo sentido de
pertença.

Ao considerar os elementos êmicos – auto-atribuição e atribuição – Barth (2000)


chama a atenção para o fato de que esses constituem fronteiras étnicas que organizam o
grupo social a partir da seleção dos indivíduos que estão dentro e estão fora e dos elementos
culturais relevantes compartilhados por seus membros. Cabe ressaltar, no entanto, que essas
fronteiras erigidas pelos atores sociais, não significa ausência de fluxos de pessoas – ao
contrário, há uma intensa mobilização de indivíduos que constantemente as atravessam – e,
muito menos, ausência de interações e aceitações sociais. Em outras palavras, existe
contato entre os diferentes agrupamentos étnicos marcados tanto pela aceitação quanto pela
diferenciação e conflito. Esse aspecto é considerado pelo autor uma importante
característica da manutenção das fronteiras étnicas, essa manutenção, por sua vez, “implica
situações de contato social entre pessoas de diferentes culturas” (Barth, 2000, p. 34).

Nesse sentido, uma vez analisadas as formas de inscrição grupal e construção


identitária elaborada por bolivianos, paraguaios e peruanos no contexto imigratório, cumpre
compreender os modos como os indivíduos desses diferentes grupos se relacionam, dado
que vivem praticamente nos mesmos bairros da capital paulista (Silva, 2008; Cortez, 2014),
ocupam, de modo geral, as mesmas atividades laborais (Freitas, 2012) e, conforme
observado em trabalho de campo, frequentam os mesmos lugares para lazer e atividades
culturais. Assim, se a identidade é um fenômeno que não pode ser pensado isoladamente
daquilo com o qual se relaciona e muitas vezes se contrasta (Cunha, 1986), é
imprescindível, para o estudo que se segue, trazer a luz aspectos importantes das relações
travadas entre esses diferentes agrupamentos de imigrantes. É importante, pois, refletir a
respeito de como ocorrem as relações entre os indivíduos das referidas nacionalidades no
contexto brasileiro.

O caso específico das características mais gerais das relações estabelecidas entre os
nativos da sociedade de recepção e os imigrantes sul-americanos foi elucidado e analisado
no primeiro capítulo desta dissertação e de outros estudos acadêmicos. Porém, a análise das
relações interétnicas entre os diferentes grupos de imigrantes é uma questão ainda ausente
nos estudos sociológicos e antropológicos locais. Consequentemente, ela assume grande

67
Nota do diário de campo 07/03/2020.
59

importância, devido à escassez de pesquisas voltadas para a análise das interações entre
imigrantes de diferentes nacionalidades.

Ora, quando as interações entre bolivianos e peruanos foi abordada no trabalho de


campo, foi muito comum ouvir, de interlocutores de ambas as nacionalidades, a ideia de
que Bolívia e Peru possuem uma maior aproximação, pelo fato de terem dividido na
formação de ambos os países um passado histórico comum. A este respeito, um de meus
interlocutores ao comentar a relação entre bolivianos e peruanos afirmou:

Os peruanos são mais aqui no centro de São Paulo, pela Aurora, Rio Branco e
tudo o mais. Eles criaram a comunidade deles, né? Que é formada de artesãos e
comerciantes. E com eles a gente tem amizade. Por que eu acho que, em nossa
memória coletiva, você vê que ele é um irmão seu, você vê um peruano você se
identifica com ele. Acho que é bem subjetivo isso aí, as questões históricas,
étnicas e tudo o mais. (Robson, filho de imigrantes bolivianos, entrevista
realizada 25/07/2019).

Por outro lado, ainda que essa proximidade seja reconhecida por indivíduos de
ambas as nacionalidades, ela não está isenta de estigmatização e preconceitos, uma vez que
foi muito comum ouvir a ideia do peruano ladrão e malandro, uma pessoa no qual não se
deve confiar68. Essa percepção está presente tanto no imaginário de bolivianos quanto no de
paraguaios e muitos deles afirmam que o peruano se esforça para manter essa imagem.
No entanto, se peruanos são vistos de forma negativa por bolivianos, podemos
afirmar que, do ponto de vista dos primeiros, a recíproca é verdadeira. Isso foi constatado
em conversa informal com Helena, imigrante peruana radicada no Brasil desde 2014,
segundo suas palavras: “os peruanos não gostam de serem confundidos com bolivianos,
69
odeiam isso” . Embora minha interlocutora não tenha me explicado o motivo, a revisão
bibliográfica permitiu que eu relacionasse essa fala com o estudo de Carpio (2018) sobre
peruanos na cidade de São Paulo. Segundo a autora, os peruanos veem aos bolivianos como
indivíduos submissos, que aceitam as humilhações impostas pelos brasileiros, ao passo que
se entendem como indivíduos que não aceitam as ofensas e costumam revidar. Há, por isso,
tanto de um lado quanto de outro, visões pejorativas e atribuições de estigmas ressaltadas a
partir do contato realizado na cidade de São Paulo.
Além disso, no que concerne a alguns elementos culturais como as danças e as

68
De acordo com os interlocutores bolivianos, essa visão depreciativa a respeito dos peruanos é construída na
Bolívia e acionada no Brasil quando ocorre o contato entre esses indivíduos tanto nos locais de trabalho
quanto nos locais de lazer e sociabilidade.
69
Nota do diário de campo, 21/08/2019.
60

músicas, existe uma competição e reinvindicação pela legitimidade de algumas delas como
a morenada e o caporal, uma vez que estão presentes tanto na Bolívia quanto no Peru.
Some-se a isso o fato de que essa identificação entre bolivianos e peruanos ocorre entre os
indivíduos oriundos de departamentos da região de fronteiras entre os dois países, tal como
demonstrou em sua fala uma interlocutora brasileira, filha de boliviana e peruano, para a
qual a aproximação é maior entre imigrantes andinos provenientes da Bolívia e Peru do que
entre os de Lima e os de Santa Cruz de la Sierra.

Devido à regionalidade tem um pouco esta rixa. Por exemplo, quando vem um
grupo de La Paz aí só vai o pessoal de La Paz e um ou outro peruano andino, não
vai muito de outras regiões. Quando vem um grupo peruano de Lima, só vai o
pessoal que gosta deste tipo de música. Se o pessoal de La Paz vai, eles vão beber
do jeito deles... O pessoal de La Paz assim são pessoas mais reservadas... Tem
temas específicos entre eles que eles falam... Já o peruano, tem lugares do Peru
que os peruanos também são reservados, mas têm outras pessoas, grande parte
vem de Lima, são pessoas assim que gostam mais de falar, são mais extrovertidos,
aí tem essa rixa né? Eles são mais brincalhões, e os bolivianos não levam na
esportiva, né? O pessoal de La Paz não leva na esportiva ou o pessoal do interior,
tem um pessoal do interior que é muito reservado e aí complica um pouco em
alguns tipos de festas. (Patrícia, filha de peruano e boliviana, entrevista realizada
03/06/2016, PIRES, 2016, p.51).

No entanto, embora os estigmas e disputas entre pessoas das referidas


nacionalidades estejam presentes, isto não se tornou um impedimento para que
frequentassem os mesmos lugares como a rua Coimbra e a Praça Kantuta, entre outros,
como as baladas latinas localizadas na Vila Maria, nos bairros do Brás e no Centro de São
Paulo.

Com os paraguaios sempre houve conflitos, não sei por que, mas acho que é pela
questão histórica, como a Guerra do Chaco, que fica no imaginário coletivo. Foi
uma guerra e a memória passa de geração para geração. Em relação com outros
imigrantes é de boa. Por exemplo, com os peruanos, eu nunca vi conflitos entre
bolivianos e peruanos porque você tem uma relação boa. Você se identifica com
ele então você não vai brigar com ele, nem por questão étnica nem por questão de
classe. Igual a festa que a gente foi, você não viu ali os paraguaios, mas boliviano
tinha um montão. Então tudo é identificação cultural, você é da mesma etnia entre
aspas, né? Porque existem diversas etnias, mas as festas são similares, até a
comida é similar. Então você tem uma relação próxima. (Robson, filho de
imigrantes bolivianos, entrevista realizada 25/07/2019).

As narrativas de meus interlocutores demonstram que as relações entre imigrantes


bolivianos e peruanos são marcadas por uma identificação entre os andinos que ultrapassam
as fronteiras nacionais entre Bolívia e Peru, ao passo que tal identificação não ocorre sem
61

problemas entre cruceños, limeños e habitantes dos altiplanos. O discurso de ambos se


aproxima do constatado no caso dos Ticunas analisados por Garcés (2002). Tanto Robson
quanto Patrícia afirmaram que dividir alguns aspectos culturais foram fatores que
possibilitaram essa identificação, ainda que a identidade nacional tenha relevância no que
concerne a diferenciação de bolivianos e peruanos nos diferentes jogos de poder que travam
cotidianamente na sociedade brasileira.
No que concerne às relações estabelecidas entre bolivianos e paraguaios, observei
que há entre eles restrições no tocante aos ressentimentos ocasionados pela memória da
guerra do Chaco70, tal como anunciou Robson, ao comparar as relações desenvolvidas entre
os imigrantes da Bolívia e os do Paraguai com imigrantes dos outros países. A esse respeito
a fala de Hernandes não é muito diferente. Quando questionado sobre a existência de
relações de amizade entre bolivianos e paraguaios, respondeu:

Em geral não existem muitas amizades entre imigrantes, principalmente com os


bolivianos. Paraguaios com bolivianos não se levam. Na verdade, não existe um
motivo. Simplesmente não se levam, isso falo pela maioria. Não sei explicar, mas
acredito que seria o motivo da guerra que teve entre os dois povos71.

Esses ressentimentos tornam-se uma barreira para que indivíduos dessas


nacionalidades frequentem as mesmas festas e lugares, além de ser uma justificativa para
que não desenvolvam relações de amizade.

Simbolicamente, há espaços que são nossos, nós bolivianos e filhos de


bolivianos, simbolicamente, né? E o outro grupo já sabe que não é o espaço deles,
entendeu? Eu nunca iria a uma festa de paraguaio, mesmo que minha entrada seja
liberada, mas eu não iria. Tem coisa que só sendo boliviano ou filho de boliviano
para saber. Por exemplo, meus vizinhos são paraguaios, beleza? Tem duas
famílias aqui, mas a gente não se fala, isso porque são vizinhos. É uma coisa
meio que subjetiva... Muitos atribuem isso a tal guerra do Chaco [...] é o negócio
é rancor histórico...
(Robson, filho de imigrantes bolivianos, entrevista realizada 25/07/2019).

Essa mesma percepção a respeito da Guerra do Chaco foi mencionada por um


imigrante paraguaio

70
Conforme Pachioni (2015) Bolívia e Paraguai entraram em guerra no ano de 1936 por conta da disputa pelo
Chaco Boreal região fronteiriça entre os dois países, delimitada pelo Rio Paraguai no Leste e pelo Rio
Parapeti, no sudeste boliviano. Esse conflito tem origem a partir da política de povoamento e exploração do
território levada a cabo pelo governo paraguaio, ocasionando tensões com a Bolívia após as descobertas de
petróleo na região.
71
Nota do trabalho de campo 26/02/2020.
62

O paraguaio é influenciado mais pela guerra do Chaco do que pela Tríplice


Aliança. Por que muitos dos paraguaios que tem agora acima dos 30 anos, pegou
o avô, o tataravô, o vizinho que quando era criança contava Histórias da Guerra
porque lutou na Guerra do Chaco. Ai, depois da guerra, nós tivemos só governos
militares, porque teve duas ditaduras seguidas e foram generais que lutaram na
guerra. Então toda essa visão, toda a dignidade paraguaia, não sei se a palavra
certa é dignidade, mas todo esse orgulho de ser paraguaio, de suas raízes, de sua
nacionalidade talvez, foi pisoteado na guerra da Tríplice Aliança. Então o
Paraguai tinha que recapitular isso. E isso acontece com a Bolívia na guerra
contra a Bolívia. Meu avô foi combatente na Guerra do Chaco, meu filho chama
Augusto em homenagem ao meu avô. Então no interior isto é muito forte e talvez
você encontre os motivos destas brigas, talvez tenha este enlace. Por causa disso,
no Paraguai quando eu era criança, principalmente no interior a gente dizia:
“vamos brincar de chegar em casa, o último é a mulher de um boliviano.”
(Ramon, imigrante paraguaio, entrevista realizada 29/02/2016, Pires, 2016)

Conforme Albuquerque:

As guerras marcam as histórias dos Estados Nacionais, pois constroem e


destroem nações, reforçam identidades nacionais e redefinem fronteiras. Elas são
lembradas, esquecidas e silenciadas. E mesmo quando são oficialmente
esquecidas, continuam sendo recordadas de alguma forma através dos
monumentos “aos heróis de guerra”, de datas comemorativas e nos relatos orais
das gerações que vivenciaram e narraram os horrores e as glórias das batalhas
(Albuquerque, 2010, p. 145).

De acordo com as palavras de meus interlocutores, essa memória, passada de


geração para geração, conformou um sentimento de pertença a comunidades imaginadas
(Anderson, 2008), manifesto no uso da expressão “nossos” e “memória coletiva nossa” no
caso de Robson ou na ideia de ‘orgulho de ser paraguaio, de suas raízes, de sua
nacionalidade”, expresso por Ramon72. Se a guerra, como afirmou Albuquerque (2010),
redefine fronteiras e reforça identidades nacionais, o fenômeno migratório não põe fim a
essas questões. Ao contrário, em um contexto, onde bolivianos e paraguaios, por conta de
sua interdependência, constituem nichos (Barth, 2000), ou seja, acabam morando nos
mesmos bairros (Silva, 2008; Cortez, 2014), disputam os mesmos postos de trabalho73
(Freitas, 2012) e dirigem-se aos mesmos lugares para atividades de lazer, assistimos a uma
atualização da memória do passado nos conflitos do presente (Albuquerque, 2010).
Trata-se de uma atualização que mobiliza pessoas e discursos que justificam as

72
Ambas denotam a ideia de uma suposta comunhão e fraternidade que possibilita compreender os grupos de
imigrantes oriundos da Bolívia e do Paraguai como extensão da comunidade imaginada no exterior por conta
da prática do nacionalismo de longa distância (Anderson, 2005) efetivada por muitos de seus membros.
73
Conforme Souchaud (2012), a atividade em oficinas de confecção não constitui um nicho exclusivamente
boliviano como retratam os estudos acadêmicos, a mídia e a opinião pública brasileira, mas se trata de “um
nicho para imigrantes de várias origens” (p. 77), como também para brasileiros (Souchaud, 2012; Cortez,
2014).
63

brigas, tensões e conflitos diários, além de engendrar barreiras simbólicas (Elias & Scotson,
2000), que culminam em impedimentos de contatos e de lugares frequentados por pessoas
dessas respectivas nacionalidades, bem como na demarcação de territórios, os quais são
vetados a frequência dos membros de um ou outro grupo.
Essa demarcação de territórios na capital paulista74 foi algo comprovado por minha
experiência ao efetivar trabalho de campo. Nesse sentido, a visita a um bar localizado
próximo à rua Coimbra, no cruzamento entre a rua Bresser e a Celso Garcia, serve para
termos um panorama a respeito desse fenômeno. Esse estabelecimento conforme Jorge, um
interlocutor de nacionalidade boliviana, é um ponto de encontro da população paraguaia no
qual os indivíduos de sua nacionalidade evitam entrar. Fui ao referido local em uma noite
de sábado. Após alguns minutos dentro do estabelecimento, começo a perceber alguns
sinais diacríticos: ao compararmos os fenótipos dos paraguaios com os da maioria dos
bolivianos em São Paulo, percebo que os paraguaios são brancos – embora alguns tenham
traços indígenas –, e que a língua utilizada por seus frequentadores não é nem o português e
nem o espanhol.
Sentei-me ao lado de um grupo de jovens que tomavam cerveja e conversavam em
uma língua parecida com alguma língua indígena - tenho razões para acreditar que era o
guarani. Peço ao balconista uma cerveja e pergunto se esse movimento era frequente, a
resposta foi positiva. O bar, segundo o meu informante é praticamente um ponto de
encontro dos paraguaios, "essa galera mais alta parecida com brasileiros é tudo paraguaio.
Os bolivianos são mais baixos e passam pela rua", disse-me.
Aproveito para tomar uma cerveja, assistir ao jogo de futebol que passava na
televisão e percebo, também, a presença de alguns brasileiros. Converso com o balconista
que logo me diz: "eles falam guarani, não dá para entender nada, quando eles falam em
espanhol até dá para entender um pouco". Pergunto se tem briga ele me responde que não,
que é mais com os bolivianos, "eles se estranham, não sei por que, mas aqui dentro não tem
briga não, é mais na rua. Antigamente, os bolivianos frequentavam aqui, mas os paraguaios

74
Cabe destacar que a literatura sociológica e antropológica produzida no Brasil até o presente momento, não
deu a devida atenção à questão da demarcação territorial cujos protagonistas são bolivianos e paraguaios. Já
em outro contexto imigratório Baeza (2008) em sua análise a respeito da chegada da segunda onda de
imigrantes bolivianos à cidade argentina Comodorio Rivadavia afirmou que a instalação desses indivíduos
nos bairros periféricos do referido município, fez com que eles entrassem em contato com chilenos e
descendentes de chilenos, povos originários e imigrantes internos do norte argentino. Na ocasião, a autora
apontou para a existência de conflitos e contatos violentos entre bolivianos e chilenos, fenômeno que resultou
em uma setorização do espaço público. Embora nossa intenção não seja esgotar esse assunto nessa
dissertação, acreditamos que deve ser um importante “ponto” de partida para futuras pesquisas a respeito da
população imigrante dessas nacionalidades.
64

botaram eles pra correr”. O problema, segundo esse balconista, é que os “bolivianos bebem
e não aguentam andar, aí ficam mais a mercê de serem roubados ou agredidos”.
Realmente, notei naquele momento que o bar estava repleto de paraguaios e nenhum
boliviano, esses passavam na calçada e pela rua, mas não entravam no bar. Em um dado
momento ouço um grito de fora do estabelecimento: um boliviano (pelo menos os traços
físicos remetiam a Bolívia ou ao Peru) reage a uma tentativa de assalto realizada por um
brasileiro, gritando “tá me tirando, tá me tirando”, o brasileiro para fugir entra por um dos
lados do bar passa pelos paraguaios que não fazem nada e sai pelo outro lado, o boliviano
permanece gritando e um dos paraguaios sai do bar e bate no boliviano que corre para o
outro lado da Celso Garcia, para e fica observando o paraguaio que o ameaça gesticulando
com a mão. O dono do bar, que nesse momento estava do lado de fora do balcão, conversa
comigo “se ele tivesse tentado assaltar algum paraguaio, os paraguaios já teriam pegado ele
aqui mesmo”, questionei se os bolivianos entram muito naquele bar e logo o dono
respondeu “os paraguaios sim, mas os bolivianos não entram aqui nem a pau”75.
No entanto, embora esse acontecimento tenha deixado a impressão de que realmente
as coisas acontecem dessa maneira, outras experiências no trabalho de campo
demonstraram o contrário. Foi muito comum enquanto se realizou a pesquisa, encontrar em
diversos momentos com paraguaios e seus filhos tomando tereré na praça Kantuta e assistir
a partidas de futebol entre equipes com indivíduos de nacionalidade boliviana e paraguaia
nos campeonatos que ocorrem na quadra do local. Um dos momentos interessantes, foi
quando, a convite de João, fui a um estúdio de tatuagem localizado na rua Coimbra, cujo
dono é um imigrante boliviano conhecido pela alcunha de MC Tattoo76.
Ao chegarmos, nos deparamos com o dono do estabelecimento terminando de
realizar uma tatuagem em um casal de paraguaios. Além de nossa presença e do
mencionado casal, estavam no local mais um paraguaio e, aproximadamente, cinco
bolivianos. As únicas mulheres presentes – uma boliviana e uma paraguaia – conversavam
entre si, enquanto eu e João e os demais bolivianos conversávamos com os paraguaios.
Esse fato, contrastado com a fala de meus interlocutores e com o acontecido no bar
que se tornou ponto de encontro dos paraguaios, corrobora o registro teórico de Barth
(2000) a respeito do qual a existência de fronteiras étnicas entre os grupos não implica,
necessariamente, a ausência de relações sociais estáveis entre seus membros e que não
exista movimentação dos indivíduos que, de modo constante, as atravessam. Além disso, as
75
Nota do diário de campo, 01/07/2019.
76
Nota do diário de campo, 03/11/2019.
65

identidades étnicas suscitadas por esses indivíduos não são imperativas, ou seja, não se
tratam de identidades que não podem ser desconsideradas e temporariamente deixadas de
lado “em função de outras definições de situação” (Barth, 2000, p.37). Tal como
argumentei em outro momento (Pires, 2016), uma vez que as identidades nacionais não se
tratam de substâncias dadas e consolidadas (Albuquerque, 2010), essas são redefinidas,
suscitadas ou abandonadas de acordo com aquilo que está em jogo nas disputas de poder.
Assim, os grupos de imigrantes aqui estudados estariam dentro da lógica dos jogos de
identidade a qual Hall (2005) nos chamou a atenção. Cabe, no entanto, ressaltar que, as
características interétnicas mais gerais conformam dois tipos ideais (Weber, 1999):

● Entre imigrantes e nativos da sociedade de recepção: nos quais os


primeiros são inferiorizados nas relações de poder desenvolvidas com
os últimos.

● Entre imigrantes de diferentes nacionalidades: onde a demarcação de


fronteiras étnicas é mais fluída no caso de bolivianos e peruanos e
mais rígida entre bolivianos e paraguaios77.

Porém, falar desses grupos como comunidades étnicas ou grupos étnicos não
pode nos levar a incorrer no erro de vê-los como algo consolidado e homogêneo.
Conforme Arteaga (2017), “a comunidade não é uma estrutura social que tem harmonia
entre as partes ou elementos que a compõem”, mas, ao contrário, trata-se de “uma
construção social heterogênea, complexa em que se superpõem diferentes dimensões
simbólicas, onde os regionalismos, status e papel social” (Arteaga, 2017, p. 67) são
elementos que devem ser levados em consideração em sua formação, uma vez que são
manejados de diferentes formas pelos atores sociais.

Assim, se por um lado as relações entre os diferentes grupos de imigrantes são


marcadas pela interdependência, aproximação e conflito, não é menos verdade que, no
âmbito interno – portanto intraétnico –, as coisas aconteçam de modo diferente. Assim,
tal como afirma Simmel (1983) a respeito da impossibilidade da existência de grupos ou
sociedades sem a presença de conflitos ou tensões, é desse modo que devemos perceber

77
Conforme demonstrado, isso não significa ausência de disputas entre bolivianos e peruanos pelos aspectos
culturais como músicas e danças e ausência de atribuições de estigmas criados pelos dois grupos para referir-
se um ao outro. No caso específico de bolivianos e paraguaios, essas fronteiras são marcadas pelo discurso a
respeito do conflito ocorrido no passado entre os dois países. Por outro lado, entre peruanos e paraguaios, a
observação não encontrou nenhum conflito estabelecido, somente a desconfiança dos primeiros com relação à
fama do peruano como ladrão e malandro, o qual acaba se tornando um fator de distanciamento entre os
indivíduos desses grupos.
66

os diferentes agrupamentos de imigrantes no contexto brasileiro e quiçá mundial. O


modo como ocorrem essas relações abordo no próximo tópico desse capítulo.

3.2. As distinções intraétnicas

Quando você conhece as pessoas, ouvindo suas histórias, fofocas e


comentários, começa a entender as tensões, as fissuras que, quando
verbalizadas na esfera privada, revelam precisamente a diversidade de uma
sociedade que, mesmo atravessando fronteiras, não quebra com as
hierarquias e regionalismos de um fundo social internalizado no ser.
(Arteaga, 2017, p.28. Tradução minha).

O relato acima descreve a experiência de um imigrante e pesquisador de


nacionalidade boliviana a respeito das relações que ocorrem no interior de sua
comunidade ou grupo étnico ao qual pertence. Se, como afirmado no tópico anterior, os
imigrantes bolivianos, peruanos e paraguaios tendem, em função de sua experiência
migratória, a construir um referencial identitário mais abrangente, ou seja, a verem a si
mesmos e a seus compatriotas como pertencentes a um grupo que contrasta com a
sociedade de recepção e com outros imigrantes com o qual travam contato, por outro
lado, isso não significa que, do ponto de vista interno78 as diferenças raciais, regionais,
de status econômico e outras não estejam presentes e não se manifestem cotidianamente.

Assim, no interior de cada grupo imigrante, observamos diversas formas de


distinções, tensões e jogos de poder. Algumas delas se originam no país de origem e se
transladam junto com eles, sendo adaptadas as questões locais, outras são desenvolvidas
no país de recepção. No caso específico boliviano, trata-se de tensões que:

78
Ou seja, no âmbito intraétnico.
67

São criadas pela ascensão social dos que chegaram depois [...] no processo
imigratório, certos grupos criam uma diferenciação a partir do tempo de chegada,
de outros grupos que migraram posteriormente, ainda que ambos provenham do
mesmo lugar de origem. Muitas vezes escutei a asseveração de que antes era
lindo ver a algum boliviano na rua, que era uma alegria, mas que a situação já não
é a mesma na atualidade. A justificativa é que os que chegaram depois, referindo-
se ao grosso da imigração das últimas décadas, haviam arruinado a imagem que
os brasileiros tinham dos bolivianos. Essa imagem arruinada seria explicada
principalmente pelo tema do trabalho no qual os bolivianos seriam os causadores
da pauperização do mercado. A outra justificativa da imagem negativa seria pelo
excesso de consumo de bebidas alcoólicas que se exibe nas imediações da rua
Coimbra ou a cada vez que se realizam eventos massivos. (Arteaga, 2017, p. 29.
Tradução minha).

Essa cisão no interior do grupo de imigrantes bolivianos remete-nos ao estudo de


Norbert Elias & John Scotson (2000), no qual os autores perceberam que em uma
comunidade79 os moradores não se diferenciavam nem por questões de classe, étnicas ou
raciais. No entanto, o grupo mais antigo elegeu como principal motivo diferenciador o
tempo de chegada. Assim, por terem passado juntos um processo de constituição grupal,
enxergavam os recém-chegados de forma negativa, ao ponto de impedirem o contato de
seus membros fora dos locais de trabalho.

Associadas a questão do tempo de chegada e não menos importante, está a


distinção e o preconceito de classe. Nesse sentido, ainda que os bolivianos em São Paulo
sejam vistos a partir de uma ótica homogeneizadora que reduz a todos como
trabalhadores no ramo de confecção, é importante ressaltar que existe no seio desse
grupo uma elite boliviana, cujo processo imigratório para o Brasil é anterior ao de
pessoas que vieram para trabalhar nesse setor. Essa elite não só se diferencia por seu
tempo de chegada, mas também pela profissão desses indivíduos como também a
profissão de seus filhos: muitos deles são médicos, advogados, engenheiros e
profissionais liberais.

Em suma, conformam uma classe média de imigrantes que não vem com bons
olhos os imigrantes provenientes do setor de costura. A forma pejorativa com que esses
imigrantes percebem seus compatriotas costureiros não permaneceu somente entre os
imigrantes da primeira geração, seus filhos – nascidos ou criados no Brasil e em grande
parte indivíduos que seguiram a carreira dos pais ou tornaram-se bem sucedidos na
profissão que escolheram – herdaram essa visão negativa e, em diferentes momentos da

79
Batizada ficticiamente de Winston Parva.
68

vida intraétnica, as manifestam.

Um desses casos de diferenciação foi observado nas relações desenvolvidas entre


duas fraternidades de danças folclóricas bolivianas, no qual parte de seus dançarinos é
formado por jovens. Uma delas, considerada pelos bolivianos a mais elitizada, procura
diferenciar-se da outra de diferentes maneiras. Ao conversar com uma dançarina de
nacionalidade brasileira e que dançou em ambos os grupos, essa afirmou que o grupo
“mais elitizado” procurava, para compor suas fileiras, sempre pessoas altas e brancas
para dançar. Ao passo que, se não cerravam a entrada de imigrantes de estatura baixa e
com traços indígenas, os lugares deles nas apresentações dos grupos é mais escondido:
“eles ficam mais no meio, para que ninguém perceba a presença deles”.

Ao questionar a respeito da rivalidade que ocorre entre as duas fraternidades,


minha interlocutora afirmou que, tanto as meninas quanto os meninos do grupo mais
seletivo, costumam referir-se aos membros do outro grupo como ralé e, se não evitam o
contato, não os veem com bons olhos. Ouvi também que a maioria dos indivíduos desse
grupo só frequenta a Praça Kantuta ou mesmo a rua Coimbra nos momentos em que
ocorrem apresentações, preferindo outras localidades da cidade para realizarem
atividades de lazer80.

Além desses fatores, encontramos também presentes questões de distinção racial


e regional. Tal como atestam as diferentes falas dos sujeitos de pesquisa a respeito da
questão. Ao comentar sobre as questões regionais presente em seu país, Milena imigrante
boliviana radicada no Brasil há sete anos para estudos de pós graduação, afirmou:

É assim, em minha opinião, sempre teve essa rixa, né? Camba com Colla81... É
quase a mesma rixa que tem o paulista com o carioca. Acho que todo lugar tem
essa questão, isso não passa de ser só uma brincadeira. A ideia é a seguinte, o
colla é trabalhador, ele é mais identificado com o indígena do Altiplano, ele é
trabalhador, muito competente. Os collas, o pessoal do ocidente eles também são
relacionados com a falta de higiene. Já o camba é preguiçoso, ele não é muito
inteligente, mas, por outro lado, tem a elite lá, tem mulheres muito lindas, tem
pessoas de muito dinheiro...
(Milena, imigrante boliviana, 21/04/2020).

Minha interlocutora, para falar sobre a divisão regional que ocorre na Bolívia e os

80
Nota do Diário de campo, 19/01/2020.
81
De acordo com Souchaud e Baeninger (2008), os termos collas e cambas referem-se à distribuição
geográfica da população boliviana entre as regiões montanhosas e as planícies das regiões baixas. Collas
corresponde à atual região andina boliviana e camba refere-se aos bolivianos das regiões baixas.
69

estereótipos construídos a respeito das populações de cada uma dessas regiões, lembrou o
caso de uma modelo boliviana que gerou muita polêmica em seu país.

Aí teve o caso da mis da Bolívia que ela falou no concurso de mis Universo, né?
Foi uma questão que foi muito falada, ela disse que a Bolívia tem outro tipo de
pessoa, não só as pessoas pobres do ocidente... Eu compreendo que ela queria
destacar a diversidade da Bolívia, mas o que ela falou foi muito depreciativo, que
nem todas as pessoas são pobres, indígenas, baixinhas, pardas. Que tem outros
tipos de pessoas que são altas, falam inglês, são loiras. Isso que ela falou... Ela é
de Santa Cruz, né? (Milena, imigrante boliviana, entrevista realizada,
21/04/2020).

Questionada a respeito de essas rixas ocorrerem no Brasil, Milena afirmou que não
percebeu nenhum tipo de intriga por conta dessas questões e que, no contexto da imigração,
elas tendem a se diluir. No entanto, Robson, ao falar sobre como essa questão de região e
raça se manifesta na imigração, demonstrou uma visão diferente de minha interlocutora:

Cambas só gostam de beber com cambas. Na rua Coimbra mesmo, tem certos
bares que só bebem cambas, entendeu? E como eu sei? Pelo sotaque, aí você
mata. E tem várias coisas também a respeito das eleições, têm as postagens no
Facebook, aí você percebe os caras que comentam, os comentários mais
xenofóbicos. Aí você percebe essa galera de Santa Cruz, mesmo os caras sendo
pobres, imigrantes e costureiros. Nos momentos de tensão esse preconceito
aflora. Por exemplo, no caso das eleições, ai você viu, você viu o pessoal
xingando o Evo, dizendo que é um cara ignorante, que não sei o que, que não
teve estudo, um ditador... É tudo uma coisa velada, se ele fosse um cara branco
estudado, ele não ia sofrer esse preconceito. E mais, eu digo mais, os caras não
tem raiva do partido do Evo, eles têm raiva dele, da figura dele.
(Robson, filho de imigrantes bolivianos, entrevista realizada, 25/07/2019).

Assim, ao observarmos a comunidade de imigrantes bolivianos no Brasil


percebemos que estão entrelaçados diferentes elementos utilizados como fatores de
distinção intraétnica, tal como as questões raciais, regionais, de classe e tempo de
chegada ao país de recepção. E isso, mesmo que, do ponto de vista da sociedade de
acolhida, esses imigrantes sejam percebidos e inferiorizados como indivíduos de menor
valor. A esse respeito, todos possuem perante os nativos da sociedade brasileira o mesmo
status social, ou seja, de um ponto de vista homogeneizador, são todos colocados “num
mesmo saco como pessoas de uma espécie inferior” (Elias & Scotson, 2000, p. 20).

No entanto, se no caso clássico de “Estabelecidos e outsiders” o grupo marcado


negativamente tendia a inferiorizar a imagem criada pelo grupo dominante com o qual se
relacionava, no caso específico dos bolivianos em São Paulo, observado por Simai e
Baeninger (2015), essa inferiorização resultou em uma visão depreciativa de si, mas
70

também na necessidade de diferenciação interna e a preferência por brasileiros pelos


indivíduos com maior poder grupal. Em outras palavras, os bolivianos com mais poder
intraétnico inferiorizavam os membros do seu próprio grupo, ao mesmo tempo em que
viam de modo positivo os brasileiros. Essa tendência assumia características distintas
tanto interna quanto externamente.

Na relação com os brasileiros desenvolveu-se o favoritismo82, ao passo que no


plano interior tomou uma forma de conflito intragrupal onde os membros com mais
poder procuravam diferenciar daqueles com menos poder, procurando ressaltar
características positivas suas frente aos nativos da sociedade de recepção. Os elementos
escolhidos para gerar essa distinção foram às questões socioeconômicas e, entrelaçadas
com elas, as questões étnicas, raciais e de tempo de chegada no Brasil.

Um exemplo da manifestação desse favoritismo fora do grupo étnico manifestou-


se nas palavras de Vera, uma mulher de nacionalidade brasileira que dançava em uma
fraternidade de dança típica da Bolívia e que havia namorado com um costureiro
boliviano83. Segundo minha interlocutora, na época em que ocorreu o relacionamento, o
rapaz havia acabado de chegar ao Brasil e estava inserido recentemente no ramo de
costura. Ele passou a ser visto de forma positiva e a ser valorizado por seus compatriotas
pelo fato de namorar uma brasileira. Ao mesmo tempo, suas companheiras do grupo de
dança – todas com elevado capital social, simbólico e econômico –, diziam a Vera que
ela não deveria se relacionar com “esse tipo de pessoa, porque são todos ignorantes,
sujos e indígenas” 84.

A mesma situação de diferenciação intraétnica ocorre no seio do grupo de


peruanos radicado no Brasil. Conforme Carpio (2018), os peruanos de classe média e
mais antigos no processo imigratório costumam menosprezar os recém-chegados
peruanos, caracterizando-os como pessoas pobres, cuja imagem está associada à
contravenção e ao roubo.

82
Conforme as autoras esse favoritismo se manifesta na preferência de relacionar-se com brasileiros do que
com membros com menos poder simbólico de seu próprio grupo, justamente porque são vistos, a partir da
ótica interna como inferiores ao passo que os brasileiros são compreendidos como melhores.
83
Nota do diário de campo, 17/08/2019.
84
Milena ao ouvir sobre esse assunto corroborou a veracidade dessa forma de pensamento e comportamento
entre os bolivianos. Disse-me que seus compatriotas veem os brasileiros como superiores, sendo que os que
moram aqui há mais tempo, por conta de sua familiaridade com a cultura e a língua portuguesa e por estarem
em melhores condições financeiras, possuem mais privilégios dentro da comunidade, ao passo que percebem
a si mesmos como melhores que os bolivianos de imigração mais recente, preferindo manter amizades com os
brasileiros e evitar seus compatriotas. Ramon, ao comentar sobre esse fato afirmou: “Você não sabia?
Namorar com brasileiro é status para bolivianos” (Nota do diário de campo, 18/08/2019).
71

E começou a aparecer uma nova imigração, o imigrante que é pobre e que vem
para trabalhar de qualquer coisa, o imigrante que já é choleado85, o imigrante que
parece com boliviano... ...Esse já é outro tipo de imigração [...] eu vim numa
época onde os peruanos que viviam aqui pertenciam a uma colônia privilegiada,
uma geração que veio para estudar, que pertenciam a família com classe e
dinheiro e conseguiam trabalhos maravilhosos. [...] Por isso os imigrantes novos
vão sofrer um pouco, porque não tem condições de ver o lindo que é o Brasil.
Porque não vivem essa experiência com brasileiros, a vivem com peruanos. Então
eles mudam só de lugar. Não conseguem conhecer a possibilidade que é o Brasil,
de estar com brasileiros.
(Imigrante peruano, entrevista realizada, apud Carpio, 2018, p. 3).

Além disso, assim como no caso dos bolivianos, os peruanos não só tendem a ver de
forma negativa os novos imigrantes de seu país que chegam ao Brasil, também
desenvolveram o favoritismo interétnico pelos brasileiros. Some-se a isso o fato de que o
indivíduo desacreditável – aquele cujas características que poderiam estigmatiza-lo não são
conhecidas por todos – tendem a ocultar sua identidade social real e assumir outra
identidade virtual86 aos olhos daqueles com o qual se relaciona. Trata-se de uma estratégia
desenvolvida pelos atores sociais para ocultar características que poderiam estigmatiza-los
em sua interação face a face desenvolvida com aqueles que por seus atributos são
considerados normais (Goffman, 2000), é o que demonstra trecho da entrevista abaixo:

O brasileiro é uma pessoa muito boa, não é mau, não é como a gente. Nós somos
maus, somos aproveitadores, somos sem vergonha, nós criamos confusão onde
não tem. Por muitos anos eu não tive contato com peruanos, meus contatos tem
sido basicamente brasileiros. Por isso que minha filha só fala português. Eu era
chamado de chileno porque falo espanhol e sou branco. No começo ficava
incomodado, mas depois eu calava porque a colônia de peruanos que começava a
aparecer era ruim, eram bandidos indecentes. Então assumi outra identidade para
que não me chamem de ladrão. Tínhamos vergonha de que nos reconheçam como
peruanos. Até agora, se você chama de peruana minha filha ela fica
envergonhada.
(Imigrante peruano, entrevista realizada, apud Carpio, 2018, p. 3).

A diferenciação entre peruanos foi algo que observei ao fazer trabalho de campo e
em minhas conversas com imigrantes dessa nacionalidade. Em uma conversa com Beatriz a
questionei a respeito de uma compatriota sua chamada Ana – cujos pais são professores da
faculdade de engenharia da USP – sobre os motivos pelo qual ela não frequenta a praça

85
Choleado é uma palavra que deriva do termo cholo, este é, conforme Carpio (2018), muito utilizado no
contexto peruano para referir-se de modo depreciativo aos indígenas do país.
86
Conforme Goffman a identidade social real tem como base a “categoria e os atributos que de fato” (2000,
p.12, tradução minha) pertence ao indivíduo. Por outro lado, a identidade virtual é uma imputação feita pela
sociedade ao indivíduo e que toma como base as características mais visíveis, portanto, perceptíveis, a “olho
nu”. Cabe destacar que o ator social ao apresentar um traço diacrítico dos demais do grupo ou sociedade a
qual está inserido gera um conflito entre a identidade social virtual e a identidade social real.
72

Kantuta e outros lugares frequentados por jovens de nacionalidade peruana. Minha


interlocutora respondeu: “Ela não gosta do público que frequenta esses lugares. Ela é de
classe média e nessas baladas as mulheres não tem dignidade. O jeito de curtir é diferente.
As mulheres ficam bêbadas e jogadas no chão. E os homens ficam sujos e fazem muitas
coisas ruins”.
Conforme retratado por Beatriz, sua amiga Ana prefere relacionar-se com brasileiros
e frequentar lugares de pessoas com o mesmo status social87. Essa narrativa corrobora o
registro teórico de Carpio a respeito do contato realizado por peruanos na cidade de São
Paulo. Segundo a autora:

As formas dos peruanos aproveitarem o seu tempo livre na cidade, os lugares que
frequentam e as atividades específicas que realizam, assim como as
sociabilizações, seguem as referências do lugar de origem e são resignificados no
novo país. Desse modo a comunidade estabelece categorias e hierarquias que tem
a ver com gêneros, idade, raça e condição socioeconômica, as quais condicionam
a maneira de construir vínculos entre os conterrâneos e os outros modos de
ocupar a cidade [...] Encontra-se assim grupos de peruanos que se juntam por ter
diversas condições em comum, como desenvolver o mesmo tipo de atividades
econômicas ou de estudos, proceder da mesma cidade ou região de origem
pertencer à mesma classe socioeconômica, fazer parte da mesma relação de
conterrâneos [...] os estudantes peruanos se agrupam e socializam entre eles em
regiões próximas da universidade, lugar em que eles moram e estudam, de igual
maneira os peruanos comerciantes se agrupam em regiões próximas a sua
moradia e trabalho (Carpio, 2018, p.136).

Assim, no caso peruano observamos que o fenômeno de distinção intraétnica se


repete, trata-se de um processo de diferenciação onde o tempo de chegada ao país de
recepção, o status social e as questões raciais e regionais estão entrelaçados e geram
atitudes de discriminação e distanciamento.
Vejamos como ocorrem as relações internas da comunidade paraguaia instalada no
Brasil. Nesse caso específico, Domingues (2019) apontou para a sua heterogeneidade.
Conforme a autora, durante a década de 1970 do século passado a imigração paraguaia
caracterizou-se “pela vinda de pessoas oriundas de áreas urbanas que chegavam para
trabalhar ou estudar e que encontraram boas oportunidades de desenvolvimento”.
Características que diferem do fenômeno imigratório atual cujos atores sociais são “jovens
provenientes, em sua maioria das zonas rurais, com baixa escolaridade e que se inserem
profissionalmente no setor de confecções” (Domingues, 2019, p. 42).
No que tange à inserção dos imigrantes dessa nacionalidade no país de recepção,

87
Nota do Diário de Campo, 11/01/2020.
73

Ramirez (2014) chama a atenção para a criação de associações no âmbito da chegada da


primeira onda migratória de paraguaios em São Paulo, nos anos 70. Conforme o autor,
essas associações eram necessárias, uma vez que atuavam mediando e procurando soluções
para diferentes problemas, tanto de ordem trabalhista quanto jurídica. De acordo com o seu
registro de pesquisa de campo, essa imigração se caracterizou pela formação de comitês
para a organização de comemorações de festas pátrias, religiosas ou outras datas
comemorativas. Além disso,

Também eram organizados torneios beneficentes para colaborar com algum


paraguaio de escasso recurso que tivesse chegado a São Paulo ou que tivesse
precisando de ajuda para solucionar algum problema familiar de emergência. Este
tipo de colaboração para ajudar o próximo, organizada através de torneios de
futebol ou de sorteio de prêmios doados é muito comum entre paraguaios.
(Ramirez, 2014, p. 97).

Por outro lado, Ramirez afirma que um dos fatores que “dificultavam o
associativismo” (Ramirez, 2014, p. 98) entre os imigrantes estava relacionado com a
qualificação profissional. Conforme o autor, os imigrantes paraguaios mais antigos eram
profissionais bem remunerados como “doutores de clínicas famosas, contadores e
banqueiros”, ao passo que os imigrantes mais novos “apresentavam outros tipos de
problemas para sua inserção na cidade; sofriam o peso da imigração não qualificada”.
Tratava-se de pessoas que “tinham outro perfil: eram de famílias mais humildes, chegaram
a São Paulo para procurar emprego em oficinas de costura” (Ramirez, 2014, p. 99). Isso
resultou que essas duas correntes de imigração tivessem interesses diferentes e, por conta
disso, a aproximação entre eles foi dificultada.
Assim, o grupo de paraguaios radicados em São Paulo exibe uma série de
características heterogêneas no que concerne a classe social, a região e a escolaridade dos
indivíduos que a compõem, trata-se, por conta disso, de uma comunidade cujas
experiências migratórias são múltiplas e estão relacionadas ao lugar que seus membros
ocupam no grupo social ao qual pertencem.
Nesse sentido, Maria, imigrante paraguaia nascida em Assunção e cujo pai imigrou
ao Brasil na década de 70, afirmou não ter percebido nenhuma forma de discriminação
entre seus compatriotas. Conforme suas palavras: “Nunca vi isso aqui, pois todos somos
migrantes e encontramos os mesmos desafios. Aqui, sendo paraguaio, a discriminação é a
mesma”. Questionada sobre as dificuldades encontradas pelos que chegaram mais
recentemente minha interlocutora respondeu: “Os mais recentes encontraram dificuldade
74

para ficar [...] Tanto que muitos retornaram” 88.


Já Ramon, imigrante paraguaio chegado ao Brasil na década de 2000 para trabalhar
no setor de costura, embora tenha uma percepção próxima de Maria quanto à
discriminação, corroborou em certa medida o registro de Ramirez (2014), que afirmou ter
entre os paraguaios que residem há mais tempo no Brasil e o grupo mais recente, iniciativas
de distanciamento:
Olha, discriminação, discriminação eu não vi. O que eu observei no tempo em
que vivi no Brasil é que alguns dos paraguaios que vieram na década de 70
tiveram bons empregos e bons salários e até hoje vivem no Brasil. Depois que
começou a vir na década de 90, os paraguaios para trabalhar no ramo da costura.
Os mais antigos esses que vieram antes, alguns se envolveram com a comunidade
quando começou as atividades na missão paz. Outros não quiseram, preferiram
não se envolver. De certo porque não se identificaram com a gente, com esses
novos paraguaios.
(Ramon, imigrante paraguaio, entrevista realizada, 13/06/2020).

Assim como no caso boliviano e peruano, a percepção de Ramon remete-nos a


“Estabelecidos e Outsiders” de Elias e Scotson (2000) no que diz respeito à elaboração,
realizada pelo grupo com mais poder, de mecanismos de controle de contato de seus
membros com os membros do outro grupo de recém-chegados os quais denominaram como
outros. No entanto, no caso específico dos paraguaios em São Paulo, alguns dos sujeitos em
melhor situação social aproximaram-se dos novos imigrantes para criarem associações e
grupos de dança e música, cuja finalidade era a valorização e divulgação da cultura
paraguaia no Brasil, ao passo que outros tiveram, para com os recém-chegados, uma
relação de distanciamento social total, uma vez que não se encontravam nos ambientes de
trabalho e nos locais de lazer, ainda que essa intenção não fosse declarada. No entanto, cabe
ressaltar que, esteja essa intenção manifesta de modo mais nítido ou não, compreendemos
que elas foram engendradas pelas disputas de poder, nas quais são utilizadas como formas
de diferenciação as questões econômicas, raciais, regionais, tempos de chegada e outras.
Finalizando esse tópico, vale destacar que não é objetivo desta dissertação exaurir
as questões aqui apresentadas. Ao contrário, o que pretendemos foi demonstrar um
panorama geral das relações que se têm se desenvolvido no interior de cada grupo
migratório em contextos paulistanos. Conforme demonstrado, todos os grupos de
imigrantes têm, internamente, mecanismos de diferenciação de classe social e, imbricados a
esses, outras formas de distinção nas quais se arrolam as características de raça, região e
tempo de chegada ao país de acolhida.

88
Nota do diário de campo, 08/02/2020.
75

Por essa razão, a abordagem desenvolvida baseou-se na interseccionalidade desses


fenômenos, uma vez que não devem ser compreendidos como fatores independentes uns
dos outros. Em outras palavras, entendemos que a posição do indivíduo no âmbito de uma
sociedade desigual depende de uma multiplicidade de fatores, como os de classe, raça,
região entre outros, não podendo, cada um desses temas, ser tomados isoladamente ou
compreendidos a partir de uma perspectiva reducionista (Brah, 2011). Assim, tais questões
não podem ser desconsideradas ao abordarmos os imigrantes bolivianos, peruanos e
paraguaios, sobretudo os jovens que são cotidianamente atravessados por elas.
Ora, no que diz respeito à juventude imigrante e filhos de imigrantes, é importante
frisar que a este cenário marcado pela estigmatização e diferenciação – tanto no âmbito
intraétnico quanto no interétnico –, soma-se o fato de a juventude ser percebida como uma
etapa vinculada à falta de moradia, rebeldia e transição para a vida adulta. Em outras
palavras, “a condição de imigrante ou filho de imigrante acrescenta-se a complexidade
inerente à condição de jovens (Padilla; Ortiz, 2014, p. 134)”. Assim, se juventude é
considerada como uma etapa conturbada e uma fase de passagem para a vida adulta, cabe
compreendermos como o ser jovem é acionado pelos imigrantes e seus descendentes em
contexto brasileiro. Existe apenas uma definição de juventude? Estas percepções estão
atreladas aos países de origens dos atores sociais? Existe conflito entre uma percepção e
outra? Como as questões de classe, região, raça, gênero e etnia repercutem na construção
do ser jovem dos sujeitos de pesquisa aqui abordados? Estas são questões que iremos
abordar no capítulo seguinte.
76

4. Juventude Imigrante: identidades, estigmas e conflitos

4.1. Os jovens imigrantes e os significados da juventude

Se o que pretendemos é efetuar uma análise dos jovens imigrantes, devemos


ressaltar que não partimos de uma definição a priori a respeito do significado do conceito
juventude. A preocupação com a definição do termo tem uma longa tradição nas diferentes
disciplinas que estudam o fenômeno, tradição que também está presente nas ciências
sociais, sobretudo na antropologia e na sociologia (Magnani, 2005).
Assim, o termo ou o conceito já foi alvo de estudo de diversas disciplinas e
abordagens científicas. Diferentes perspectivas, tanto do ponto de vista biológico quanto
psicológico, compreendem essa etapa da vida como uma fase de preparação a idade adulta
que envolve a maturação, formação e mudança corporal e psíquica, além de ser visto
também como um período no qual o indivíduo gradativamente adquire independência e
assume responsabilidades. Dos pontos de vista sociológico e antropológico, os autores que
se debruçaram sobre o tema procuraram entender as diferentes formas a respeito de como o
fenômeno surge e ganha significados que variam ao longo do tempo e das diferentes
sociedades no qual está presente.
Para Feixa (1998), essa é uma construção cultural relativa socialmente e
temporalmente. Além disso, nem todas as sociedades reconhecem um estágio diferenciado
entre a dependência infantil e a autonomia adulta, sendo necessário para que exista
juventude, toda uma série de condições sociais (normas, comportamentos e instituições) e
toda uma série de imagens culturais (valores, ritos e atributos associados ao jovem) 89.
Segundo o autor, o significado contemporâneo de juventude – etapa compreendida
entre a dependência infantil e autonomia adulta – surge no mundo ocidental, porém não é
possível precisar uma data a respeito. Essa definição começa a ser engendrada pelas
transformações ocasionadas em fins da Idade Média e com a Revolução Industrial. No
entanto, é somente em fins do século XIX que ela aparece no cenário público,
democratizando-se, ou seja, se estendendo a todas as classes sociais, na primeira metade do

89
O autor, com o objetivo de demonstrar a enorme diversidade de situações, agrupou cinco modelos de
juventude que, em sua visão, corresponderiam a outros tipos distintos de sociedade: “os púberes das
sociedades “primitivas” sem Estado; os efebos dos Estados antigos; os moços das sociedades campesinas pré-
industriais; os garotos da primeira industrialização; e os jovens das modernas sociedades pós-industriais”
(Feixa, 1998, p.18, tradução minha).
77

século XX. Desde então, os sujeitos que compõem esse novo grupo social vêm alternando
momentos em que são compreendidos como sujeitos passivos e outros em que se tornam
atores protagonistas na esfera pública.
Porém, a definição de juventude não varia somente histórica e socialmente.
Conforme Belmonte (2009), o termo remete tanto a um variado leque de construções
teóricas – situados pelo autor em dois campos distintos: o da perspectiva sociológica e o da
perspectiva cultural90, quanto a duas dimensões construtoras que, por sua vez, dependem
dos atores sociais que lhes dão conteúdo: os adultos e os jovens, cujas perspectivas são,
respectivamente, negativas e positivas. Esta classificação (negativo – positivo) realizada
pelo autor diz respeito ao modo como é construído o “ser jovem”.
A construção compreendida como negativa refere-se ao modo como os adultos
constroem a noção de juventude em função de suas expectativas reprodutoras nas estruturas
sociais que controlam. Assim, juventude se converte em coortes geracionais em processo de
formação para a vida adulta. Em outras palavras, essa definição apresenta o jovem em
potência do que ele será no futuro. Desse modo, nega-se o seu presente substituindo-o por
um ideal de adulto, por um futuro adulto. Aqui o jovem fica reduzido a aquilo que ele
poderá ser, não aquilo que ele já é. No sentido positivo, são os jovens que geram a sua
própria construção e definição do que é juventude.
Assim, os atores sociais compreendidos pelo conceito realizam uma transformação
radical a outra perspectiva que não os compreende como protagonistas do “ser jovem”, em
outras palavras, a partir de seus próprios valores e referências invertem a construção do
juvenil realizada pelos adultos. Nessa dimensão, o que importa não é a possibilidade do que
será o jovem no futuro, mas aquilo que ele já é. Portanto, o grupo social compreendido pela
categoria deixa de ser objeto a ser construído desde o mundo dos adultos e torna-se autor de
sua própria identidade juvenil.
Essa inversão repercute de modo notável na reprodução do social e sua integração
não sendo, portanto, estranho que tal dimensão conflite com as identidades institucionais
90
Ao mencionar as duas dimensões teóricas o autor refere-se a três períodos distintos sobre o estudo da
juventude: o primeiro concerne aos estudos desenvolvidos pela escola de Chicago, os estudos realizados pelo
Centro de Estudo da Cultura Contemporânea em Birminghan na Inglaterra e o trabalho realizado pelos
críticos culturais dos Estados Unidos como Henry Giroux, Douglas Kellner, e Deena Weinstein. Belmonte
entende que essas duas dimensões remetem a tipologias diferentes que podem ou não se complementarem. No
entanto, adverte que se trata sempre de uma construção parcial, o que não significa que sua resolução tenha
que ser dada a partir do relativismo. Ao contrário, o autor entende que o fato de o conceito não possibilitar
uma definição concreta e estável, não deve ser desculpa para que não se realize uma estruturação desde suas
dimensões complexas. Nesse sentido, defende que o conceito não será diluído com a análise e explicações
dessas dimensões, e sim “será enriquecido com as descobertas específicas que delas podem ser extraídas”
(Belmonte, 2009, p.161, tradução minha).
78

sociais manipuladas pelos adultos – aqueles que por terem um melhor acesso as fontes de
poder podem impor uma identidade ao conjunto dos jovens91. Tal confronto toma a forma
de batalha geracional92, no entanto, “trata-se de algo mais importante: a sobrevivência da
própria ordem social estabelecida” (Belmonte, 2009, p.162, tradução minha).
Para Belmonte as disputas geracionais e as inter-relações desenvolvidas entre jovens
e adultos originam dois tipos de juventude:

Uma diferenciada, unificada geracional e comunitariamente fechada, em luta


contra a cultura dominante, e, ainda que não libertadora, sim, transformadora da
realidade […] e outra imitativa, assimiladora da cultura dominante, não
transformadora, mas integrada normalmente com os processos sociais
reprodutivos (Belmonte, 2009, p.180. Tradução minha).

No entanto, se por um lado, a sociologia que pretende dar conta do fenômeno


juvenil deve levar em consideração a distinção entre jovens e adultos que, conforme se
demonstrou, não ocorre sem disputa pelos “polos” contrários da relação, por outro, temos
que ressaltar que os significados dos termos juventude e idade adulta também variam de
uma classe social a outra: de um lado o estudante burguês favorecido “por uma economia
de assistidos quase lúdica, fundada na subvenção com alimentação e moradia a preços
baixos, entradas para teatro e cinema a preços baixos” (Bourdieu, 1983, p. 113) e, de outro
lado, jovens que são trabalhadores que sofrem com as “coerções do universo econômico

91
Nesse sentido, a contraposição de atores sociais (adulto-jovem), aferidores de identidade juvenil, possibilita
demonstrar as dimensões construtivas possíveis: a primeira do adulto para reproduzi-la; a segunda do jovem
para afirmá-la. Ambas se tratam de dimensões destrutivas uma da outra, ou seja, não podem conviver em “pé”
de igualdade. Por essa razão, que o jovem construído desde o mundo adulto, ou seja, desde o institucional,
sempre foi compreendido como generalidade admitida, ao passo que a juventude construída a partir da
perspectiva dos jovens sempre obteve conotações estigmatizadas. Conforme Belmonte, é por isso que as
subculturas juvenis sempre foram rechaçadas ao passo que as práticas e condutas sociais impostas pelos
adultos sempre foram entendidas como generalidade admitida. É que “a racionalidade instrumental
institucionalizada constrói ao jovem como modelo de adulto em trânsito” (Belmonte, 2009, p.163. Tradução
minha).
92
Sobre essas batalhas geracionais, Bourdieu (1983) afirmou que as divisões estabelecidas entre as idades são
arbitrárias, em outras palavras a fronteira entre velhice e juventude é objeto de disputa em diferentes
sociedades. Assim, de acordo com os valores vigentes de determinada sociedade, são atribuídos diferentes
papéis e padrões de comportamento aos jovens e aos velhos. Esses últimos possuem, de modo geral, a
capacidade de impor aos jovens, características que os impediriam de ter acesso ao poder ou as fontes de
poder. Em outras palavras, “a representação ideológica da divisão entre jovens e velhos concede aos primeiros
coisas que fazem com que, em contrapartida, eles deixem muitas outras coisas aos mais velhos”. (Bourdieu,
1983, p.112). Assim, “juventude e a velhice não são dados, mas construídos socialmente na luta entre os
jovens e os velhos” (Idem, p.113). Além disso, há de se considerar que, para Bourdieu, cada “campo” – seja o
da moda, produção artística e literária dentre outros – possui suas próprias leis a respeito do que é juventude e
velhice. Para que conheçamos o significado que possuem é necessário conhecermos suas leis específicas de
funcionamento. Em outras palavras, para Bourdieu a juventude enquanto valor sociológico não existe, uma
vez que se trata de apenas uma palavra, uma ferramenta utilizada para demarcar territórios, negando o acesso
a privilégios e direitos a aqueles que são considerados jovens e possibilitando o usufruto dessas prerrogativas
sociais aos mais velhos. (Groppo, 2015).
79

real”.

Conforme a perspectiva do autor, os primeiros são mantidos em um universo de


“irresponsabilidade provisória” ao qual procuram prolongar, os segundos por se inserirem
mais cedo no mundo do trabalho, assumem responsabilidades chegando até mesmo a não
ter adolescência. Assim, as diferenças entre as classes sociais são fatores que possibilitam
ao indivíduo identificar-se ou ser identificado como jovem, visto que nem todos
compartilham dos benefícios necessários para que essa etapa da vida se constitua como
uma fase de proteção, aprendizado e passagem para a vida adulta.

Porém, outros estudos acadêmicos demonstram que o fenômeno juvenil não


coincide necessariamente com a separação em faixas etárias, uma vez que não existe um
consenso “universal” a respeito de qual idade compõem essa divisão. Além disso, o
fenômeno do desemprego que afetam aos jovens – sobretudo os mais pobres – contribui
para que ocorra um prolongamento da “juventude até passado os 30 anos”, devido ao fato
de que muitos “ficam a viver com os pais até o casamento ou atingir a independência
econômica” (Padilla; Ortiz, 2014 p. 137).

Assim, percebemos que não existe um consenso – tanto do ponto de vista


acadêmico quanto do ponto de vista social – a respeito daquilo que pode ser compreendido
como juventude, devido à complexidade do fenômeno. Portanto, não foi interesse dessa
dissertação assumir a priori uma definição do conceito. Ao contrário, assumimos a
perspectiva de Belmonte (2009) e priorizamos o modo como os sujeitos de pesquisa
engendram a noção sobre o que para eles significa essa etapa de suas vidas. A esse respeito,
a conversa informal que tive com João – brasileiro de dezoito anos – e Milenka na Praça
Kantuta demonstrou-se reveladora. Na ocasião, mostrava a meus interlocutores uma foto
minha de vinte anos atrás e Milenka perguntou “essa era de quando você era novo?”,
respondi que não sou velho, embora não tivesse mais dezoito ou dezenove anos. Milenka
então afirmou “você que fala que é velho, que acha que é velho”. Nesse momento, fazemos
um jogo de adivinhações das idades e João conclui: “ele não é velho não, ele cola com a
gente, troca uma ideia, bebe cerveja com a gente” 93.

Em outro momento, após um show de rap do grupo Santa Mala na Galeria Olido –
evento que teve como plateia, brasileiros, colombianos, bolivianos e peruanos – conversava
com Brian, imigrante boliviano de vinte e cinco anos residente no Brasil desde a infância –

93
Nota do trabalho de campo, 08/09/2019.
80

e este perguntou a respeito de minha idade, ficando surpreso ao saber que me aproximo dos
quarenta anos. Meu interlocutor, então afirma “Mano eu te dava no máximo vinte e oito...”.
Naquele momento, uma brasileira que estava com a gente interrompe a conversa e diz:
“Não parece mesmo, você é muito jovial”. Então Brian levanta o copo brindando e
saudando a todos e diz: “Pode crer a juventude é um espírito”.

Assim, a narrativa de meus interlocutores demonstra que, se realmente existe uma


fronteira, um abismo que separa os jovens dos adultos, o compartilhamento de questões
culturais importantes como os modos de se vestir, o uso de gírias, o gosto musical e outros
valores juvenis – portanto o mesmo espírito de juventude – possibilita ao indivíduo ser
reconhecido como jovem, independentemente de sua idade. Esse ser “jovem” suscitado
pelos atores sociais, não somente conflita com a definição de juventude a partir de faixas
etárias ou como uma fase em trânsito em direção à vida adulta, mas também contesta a
ideia presente no texto de Bourdieu (1983) a respeito de que a entrada mais cedo no
mercado de trabalho faz com que alguns indivíduos não experimentem o fenômeno juvenil.
Isso fica latente quando observamos a trajetória de vida João e Brian e outros imigrantes
com os quais me relacionei ao longo da pesquisa.

João é um rapaz de dezoito anos e de nacionalidade brasileira que, por ter crescido
entre os bolivianos do setor de costura, se vê como boliviano. Segundo suas palavras, desde
os treze anos começou a trabalhar em oficinas de costura para seus vizinhos. O convite para
trabalhar ocorreu porque estes viam que ele ficava após o horário da escola na rua
“bagunçando” e fazendo coisas “erradas” e seus pais não sabiam ou tinham como olhá-lo,
já que estavam trabalhando. Conforme palavras de meu interlocutor, essa experiência fez
com que ele assumisse mais responsabilidades. Porém não afetou sua percepção de
juventude, tal como narrado alguns parágrafos acima. Já Brian, boliviano de vinte e cinco
anos e residente no Brasil desde a infância, entende que o fato de trabalhar desde a
adolescência como costureiro, ser casado e pai de dois filhos, não foram fatores
determinantes para não se enxergar como jovem.

Tal como afirmou acima, ser jovem para ele é uma questão de espírito o que não
significa não trabalhar ou assumir responsabilidades. Esses exemplos corroboram a
perspectiva de Dayrell e Reis sobre o que é ser jovem no contexto brasileiro:
81

A juventude não pode ser caracterizada pela moratória em relação ao trabalho,


como é comum nos países europeus. Ao contrário, para grande parcela de jovens,
a condição juvenil só é vivenciada porque trabalham, garantindo o mínimo de
recursos para o lazer, o namoro ou o consumo. [...] Nesse sentido, o mundo do
trabalho aparece como uma mediação efetiva e simbólica na experimentação da
condição juvenil. (p. 4, 2007).

Se a percepção suscitada por meus interlocutores a respeito do que consideram


como juventude está de acordo com o contexto brasileiro no qual estão inseridos, não
significa que ela não tencione com a formulação feita por aqueles que fazem parte do
mundo dos adultos (Bourdieu, 1983; Belmonte, 2009), ou seja, com aqueles que não
compartilham o mesmo espírito de juventude. Essas tensões entre duas perspectivas
estiveram presente no discurso de Felipe, boliviano residente no Brasil há quinze anos.
Conforme suas palavras:

Na Bolívia a juventude é até os vinte e cinco anos, depois dessa idade a mulher
ou o homem tem que se casar e sair da casa de seus pais. Só que no Brasil isso
não acontece, aqui os filhos de bolivianos com mais de vinte e cinco anos não se
casam e não saem da casa dos pais. Querem viajar, estudar e curtir. Meio que a
coisa muda.
(Felipe, imigrante boliviano, entrevista realizada em 30/08/2019).

A fala de Felipe demonstra claramente que essas diferentes concepções a respeito da


moratória são marcadas pelo modo como duas sociedades distintas enxergam e constroem o
fenômeno juvenil. Assim, essas duas narrativas não tratam somente de um embate
geracional, mas de duas visões de mundo, dois tempos históricos distintos que o fenômeno
migratório colocou em contato (Martins, 1996). Além disso, essa perspectiva de Felipe a
respeito da moratória não está dissociada de interpretações advindas de classe social. Felipe
faz parte do contingente migratório de bolivianos que se radicaram no Brasil e se inseriram
no mercado de trabalho como costureiros em oficinas de confecções. Suas palavras a
respeito da entrada para o mundo adulto podem ser contrastadas com a de Milena cuja
vinda para o Brasil ocorreu para realização de estudos de pós-graduação.
82

Quando você fala Bolívia não tem uma questão homogênea, né? Depende muito
da questão de classe, de onde você mora e muitas coisas. Por exemplo, a ideia de
que na Bolívia é aos vinte e cinco anos. No campo isso é muito mais cedo, com
dezoito anos os jovens já começam a esquentar a cabeça para casar e ter filhos. E
no campo tem mais uma questão que é crucial para inaugurar a idade adulta, que
é a entrada no serviço militar obrigatório. Numa cultura de migrantes que vieram
do campo para as cidades é similar mesmo ao que Felipe falou, mas em uma
classe social acomodada não. Você pode casar, ter filhos e continuar morando
com seus pais até você envelhecer. No caso meu e dos meus irmãos, por exemplo,
nós poderíamos morar com nossos pais a vida toda, eles não diriam coisa alguma.
(Milena, imigrante boliviana, entrevista realizada, 21/04/2020).

Assim, para Milena que, segundo suas palavras, faz parte de uma classe privilegiada
de imigrantes, a questão da moratória é percebida de modo diferente tanto por seus pais
quanto por outros que se encontram na mesma situação social. De acordo com suas
palavras, atingir a maioridade em nenhum momento significa para os seus progenitores
perder a juventude ou ter que sair de casa e constituir família. No entanto, Milena também
difere de Felipe no que diz respeito à faixa etária, enquanto que o primeiro tem cinquenta
anos, minha interlocutora está com trinta e seis. Isso poderia levar-nos a supor que essa
diferença de idade é o que marca as distintas perspectivas que tanto um quanto o outro
possuem a respeito do ser jovem.
No entanto, o depoimento de Rose, boliviana de trinta e quatro anos, que “imigrou”
ao Brasil ainda criança para acompanhar a seus pais que vieram para trabalhar no ramo de
confecções, demonstra que não se trata somente de um embate geracional, mas atrelados a
esse, questões que envolvem distintas percepções de classe social sobre o tema da
juventude.
Eu sai da minha casa aos 18 anos, eu perdi toda minha juventude, o que todo
mundo aproveita de sair, fazer faculdade, viajar e estudar. Tudo isso eu passei em
uma casa com uma pessoa que só queria que eu trabalhasse [...] eu só falo que eu
perdi porque na verdade eu não perdi nada, eu não sabia o que estava perdendo.
Porque eu sempre fui controlada por minha mãe, controlada por ela, eu não sabia
que um dia eu iria trabalhar em um lugar legal. Eu não sabia nada disso. Então
quem não sabe disso, não sente falta disso. Você não sabe o que está perdendo
(Rose, imigrante boliviana, entrevista realizada, 08/03/2020).

Para Rose a suposta “perda de juventude” está relacionada ao casamento aos dezoito
anos e, posteriormente, ao nascimento de sua filha. Sua resposta, embora expresso de
maneira diferente da de Brian, demonstra que o ser jovem está relacionado ao sair, viajar e
fazer faculdade, ou seja, a prática de atividades consideradas adequadas para que um
indivíduo seja considerado jovem. Fenômeno que, segundo suas palavras, não chegou a
conhecer, portanto, não teve consciência que o perdeu. Além de atribuir ao fato de haver se
83

casado no fim de sua adolescência, minha interlocutora compreende que a juventude não
foi vivida por ela por conta de sua mãe que era muito conservadora. Conforme suas
palavras: “Para ela era algo normal, ela veio da Bolívia, naquela época os filhos saiam cedo
de casa, tinham sua independência rápido. Iam morar em outras cidades, saiam do interior e
iam morar sozinhos nas cidades” (Rose, imigrante boliviana, entrevista realizada,
08/03/2020).
O modo como Rose vivenciou a sua “perda de juventude” fez com que ela
enxergasse a outros imigrantes mais novos de modo diferente com o qual percebe os
imigrantes que vivenciaram as mesmas experiências que ela:

Além de terem acontecido essas coisas que aconteceram comigo, também


aconteceram com outras pessoas, eu não fui a única. E também teve outras
adolescentes que sofreram coisas, que aconteceu coisas aqui no Brasil, que não
deveria ter acontecido, mas aconteceu por ela ser boliviana. [...] Hoje eles têm
muito mais liberdade, eles têm muito mais coisas, muito acesso... Para a gente foi
terrível, a gente foi explorado, em várias situações, na escola mesmo, sofríamos
discriminação. Hoje é diferente, o machismo ainda está impregnado, mas é
diferente. Hoje em dia não tem quem pense que o relacionamento tem que durar a
vida toda, que você tem que se submeter... ...Para mim não tem mais isso, sabe?
Eu vejo pela minha sobrinha, ela é muito solta, ela tem um relacionamento com
um menino há algum tempo, mas não fica pensando “quando eu vou casar ou eu
tenho que fazer um negócio para ele agora”. E eu não vi isso da minha mãe.
Talvez se ela tivesse me preparado, talvez eu tivesse aguentado mais.
(Rose, imigrante boliviana, entrevista realizada, 08/03/2020)

Essa forma diferenciada de enxergar os imigrantes mais novos engendrou uma visão
negativa desses que, segundo Rose, não vivenciaram suas experiências:

Para mim, esses jovens são alienados. Eles não sabem o que é a cultura da
Bolívia, o que é política da Bolívia, eles não sabem nada. Tudo o que foi bom,
tudo o que a gente conquistou, eles vivem. Eles não sabem que tudo foi uma luta.
Para eles é só pedir dinheiro dos pais e tá ótimo.
(Rose, imigrante boliviana, entrevista realizada, 08/03/2020)

De acordo com Rose, os pais desses garotos são bolivianos que ascenderam
socialmente “a custo de muito trabalho”. São comerciantes que trabalham na feirinha da
madrugada e, por causa do cansaço, não conseguem dar atenção aos filhos e controlar o que
fazem em seu cotidiano.
84

Essas pessoas, a ascensão que tiveram, foi muito legal, só que por outro lado
também foi negativo. Porque como a feirinha é de madrugada, eles não têm
tempo pra sono, pra dormir. E eles ficam muito cansados. O que você faz quando
fica cansado? Dorme. Só que seus filhos não trabalham, só estudam. Então,
enquanto você está dormindo durante o dia, eles estão aproveitando o seu
dinheiro. Estão aproveitando a vida. Tudo o que você não aproveita eles estão
aproveitando, então eles têm dinheiro pras baladas, dinheiro pra passear, tem
dinheiro pra pagar roupa de grupos de dança. Quando é uma família
conservadora, às vezes as crianças roubam, o pai tá com sono, o pai não tem
controle nenhum. Então, por isso que eu falo que eles não têm noção nenhuma.
Os pais estão madrugando de noite.
(Rose, imigrante boliviana, entrevista realizada, 08/03/2020).

Já Beatriz, peruana de Lima residente no Brasil há cinco anos, tem uma visão
diferente a respeito do tema. Segundo ela, não existe a dicotomia entre a juventude e o
mundo adulto. Conforme suas palavras, um indivíduo em seu país é considerado adulto ao
atingir a maioridade aos dezoito anos. No entanto, permanece jovem, uma vez que essa
etapa da vida vai até os vinte e nove. Nesse sentido, mundo adulto e mundo juvenil não
dizem respeito a fenômenos justapostos e antagônicos uma vez que compreende a
adolescência e os anos iniciais da vida adulta, período que, para minha interlocutora, é
marcado pela experimentação, o curtir e viajar. Ela, ao ser questionada sobre as diferenças
entre ser jovem em seu país e no Brasil, respondeu:

Diferenças sempre vão ter, sabe? Porque são culturas e costumes diferentes, não
tem como comparar e afirmar que uma é melhor que a outra. Aqui a sexualidade e
a liberdade é mais rápido, porque os pais dos jovens têm a mente aberta. E isso se
deve ao conceito de valor. O valor para um brasileiro é diferente para um
peruano. Por exemplo, aqui no Brasil o corpo é meu, eu faço o que eu quero.
(Beatriz, imigrante boliviana, entrevista realizada, 04/05/2020).

Para Beatriz o Brasil é o país no qual os jovens peruanos podem experimentar e


vivenciar uma liberdade que não usufruem em seu país de origem. Essas diferenças marcam
a trajetória dos jovens tanto no Peru quanto no Brasil

Um jovem peruano pensa, termina a escola, vai à faculdade ou instituto, começa a


trabalhar para ter um poder econômico e logo casar e ter filhos. E continua
estudando para especializar-se e ganhar mais. Aqui os jovens do Brasil fazem
tudo ao contrário, terminam a escola, procuram emprego e logo começam a
estudar. No Peru é assim por necessidade. A pobreza lá é terrível. Não tem água
potável, não tem títulos de propriedades...
(Beatriz, imigrante boliviana, entrevista realizada, 04/05/2020).

Beatriz afirma que essa diferença de percepção a respeito do fenômeno juvenil não
implicou que houvesse diferenciação de comportamento entre os filhos de peruanos e seus
85

pais tampouco com outros imigrantes de primeira geração. Para ela, o que muda é só a
nacionalidade dos filhos e, quando aparecem casos de choque geracional, “tudo se resolve
com uma boa conversa” (Beatriz, imigrante boliviana, entrevista realizada, 04/05/2020).
A experiência de Ramon, imigrante paraguaio, é similar à de Rose e Beatriz no que
concerne à moratória. De acordo com suas palavras a entrada no mundo adulto ocorreu:

A partir de minha experiência de imigrar ao Brasil com dezoito anos. Eu tive que
assumir responsabilidades que antes eu não tinha, tive que me manter no trabalho.
Eu tive preocupações que antes eu não tinha. No meu país, até os dezoito anos a
gente é muito protegido, não trabalha. Só estuda. Tem essa coisa de violência,
então o pai não deixa sair e voltar muito tarde. Aos finais de semana todos tem
que estar em casa. [...] No Brasil, já começa entre os dezesseis e dezenove anos.
Os brasileiros nessa idade já saem mais e não são protegidos pelos pais. Então o
brasileiro entra mais cedo na vida adulta. No Paraguai é como eu disse os pais se
preocupam com a violência.
(Ramon, imigrante paraguaio entrevista realizada, 13/06/2020).

No entanto, para meu interlocutor, são os brasileiros que entram na vida adulta mais
cedo, porque experimentam uma liberdade que seus compatriotas não possuem no
Paraguai. Nesse sentido, sua narrativa diverge das de Beatriz e Rose, nas quais o fenômeno
juvenil está associado com a liberdade de sair, viajar e curtir. Se, por um lado, a experiência
migratória foi determinante para que Ramon entrasse na vida “adulta”, por outro, sua
vivência não foi fator para que ocorressem tensões com outros paraguaios, ou filhos de
paraguaios. No entanto, Ramon percebeu uma pequena diferença entre os que, como ele,
nasceram e foram criados no Paraguai e entre os que nasceram ou foram criados no Brasil.

No Brasil os pais não prendem tanto. O pessoal da minha época tinha a


preocupação por causa da documentação. Tinham o medo de sair e encontrar a
polícia. Fora que a gente não podia chegar tarde ou virar a noite na rua, porque se
passássemos das dez horas eles, os donos das oficinas não abriam a porta pra
gente. Depois da anistia essa preocupação acabou. Os paraguaios foram se
estruturando... Muitos nem vivem mais nas oficinas, ou trabalham nelas ou são
donos... Então os pais não prendem tanto os filhos. Eles saem mais, vão às
baladas.
(Ramon, imigrante paraguaio entrevista realizada, 13/06/2020).

Contudo, quando compara sua experiência com outros paraguaios que como ele
vieram para o Brasil depois de passar a infância e adolescência no país de origem, Ramon
percebeu uma diferença no que diz respeito aos motivos que impulsionaram a imigração:
86

Na época que eu migrei o Paraguai estava em uma crise terrível, não tinha
emprego. Ficamos nessa crise de 2000 a 2003. Essa nova geração não vivenciou
isso. Não tem essa memória. Muitos hoje saem do Paraguai com a ideia de viajar
e conhecer o mundo, desfrutar da liberdade, mais para aventurar-se. Chegam aqui
encontram tudo pronto, encontram parente – tios ou primos – que já deixaram
tudo estruturado. Tem trabalho fácil, lugar para morar fácil. Então, com certeza
pensam diferente.
(Ramon, imigrante paraguaio entrevista realizada, 13/06/2020).

Sintetizando, quando pensamos as diferentes narrativas dos imigrantes peruanos,


bolivianos e paraguaios a respeito do fim da juventude e entrada no mundo adulto, damos
conta de que existe um variado leque de interpretações e percepções dos atores sociais no
qual estão atrelados questões de classe, gênero e origem nacional. Para Beatriz, Ramon e
Rose, a proteção dos pais são fatores cruciais, que delimitam a liberdade dos filhos e, com
isso, demonstram ser determinantes no modo como cada um entende a diferença entre
juventude e vida adulta. A fruição de liberdade para Ramon é um fator influente para que
um indivíduo seja considerado adulto, ao passo que, para Rose, a ausência da mesma fez
com que ela não vivesse aquilo que supostamente perdeu.
Por sua vez, Beatriz entende que o ser jovem não se dissocia da entrada no mundo
do trabalho e mesmo na universidade, conforme suas palavras, não se tratam de mundos
antagônicos e justapostos. Embora ela entenda que os peruanos e brasileiros percorrem
caminhos distintos no que concerne a trajetória de vida, não percebeu diferenças marcantes
entre os brasileiros e peruanos no que diz respeito à compreensão do fenômeno juvenil. Sua
narrativa vai de encontro à de Brian e João que percebem do mesmo modo o mundo do
trabalho. Além disso, para ambos, juventude está mais relacionada com o compartilhamento
de questões culturais e modos de ser atribuídos ao jovem do que com uma suposta faixa
etária estabelecida desde o mundo dos adultos (Belmonte, 2009).
Ora, se na contemporaneidade juventude e velhice tem perdido, simultaneamente, o
seu vínculo com grupos etários específicos,94 isso não implicou que não encontrássemos
tensões geracionais presente nas narrativas dos imigrantes que vivenciaram outras
experiências de inserção no contexto paulistano. É o que demonstra as falas de Ramon e
Rose, imigrantes que, por serem de uma posição geracional (Mannheim, 1993) diferente de

94
De modo que a primeira seja compreendida como “um valor que deve ser conquistado e mantido em
qualquer idade através da adoção de formas de consumo de bens e serviços apropriados” e a segunda seja
compreendida como “um modo de expressar uma atitude de negligência com o corpo, de falta de motivação
para a vida” (Debert, 2010, p. 51).
87

Bryan e João95, não estabelecem com esses quaisquer espécie de vínculos ou conexão
96
geracional (idem) por conta de terem passados por experiências distintas de inserção na
sociedade paulistana.
Além disso, o discurso de Rose tem presente uma percepção negativa dos mais
novos no que concerne à maturidade, responsabilidade e conhecimento a respeito dos
problemas enfrentados por sua comunidade no passado. Essa mesma percepção está
presente no discurso dos mais velhos a respeito das brigas e tensões envolvendo os jovens
imigrantes – sobretudo bolivianos e paraguaios – na rua Coimbra e em outros lugares nos
quais os indivíduos dessas respectivas nacionalidades se encontram. Esse fenômeno é
interpretado pelos mais velhos como consequência da ação de supostas pandillas cujos
membros se diferenciam por sua nacionalidade. A análise dessa questão se realiza na
continuação.

4.2. As “gangues juvenis”: narrativas, estigmas e conflitos

As gangues formavam uma sociedade rudimentar de admiração mútua, destinada


a jovens excluídos da admiração e das garantias recíprocas dos grupos já
estabelecidos. Suas brigas vitoriosas e as agressões ou desafios bem-sucedidos
contra as autoridades estabelecidas, sob o comando de um bom líder de gangue,
pareciam proporcionar-lhes a elevação da autoestima que os demais
adolescentes encontravam, entre outras coisas, nas boas ligações amorosas
individuais. (Elias & Scotson, 2000, p. 144).

Se as gangues de jovens existem e, se as brigas que ocorrem nos lugares de


sociabilidade frequentados por imigrantes se devem ao conflito ocasionado por elas, é
algo que não foi possível averiguar. Porém, este fenômeno está presente no universo

95
Assim como de outros jovens que entrevistei ao longo de meu trabalho de campo
96
Conforme Weller (2010), posição geracional refere-se à “possibilidade de presenciar os mesmos
acontecimentos, de vivenciar experiências semelhantes, mas, sobretudo de processar esses acontecimentos ou
experiências de forma semelhante” (p. 212). Ao passo que conexão geracional diz respeito a um vínculo
“concreto, algo que vai além da simples presença circunscrita a uma determinada unidade temporal e histórico
social”, isso implica no estabelecimento de “um vínculo de participação em uma prática coletiva, seja ela
concreta ou virtual’ (p. 214). Assim, para que ocorra a conexão geracional é necessário que os indivíduos ao
menos ocupem a mesma posição geracional, ou seja, tenham nascidos, aproximadamente, dentro de um
mesmo período e de um mesmo âmbito histórico-social, ainda que possa “suceder que determinados impulsos
geracionais sejam capazes de captar membros individuais que nasceram em anos anteriores ou posteriores a
geração em questão” (Mannheim, 1993, p. 227. Tradução minha).
88

discursivo de muito de meus interlocutores, sendo acionado para interpretar as brigas e


conflitos envolvendo a juventude de diferentes origens ou, em uma postura mais
defensiva, atribuir sua existência e suas atividades a um passado distante. Assim, trata-se
de uma imagem cristalizada a respeito das tensões envolvendo jovens peruanos,
bolivianos e paraguaios cuja origem deve ser procurada na memória dessas respectivas
comunidades imigrantes.

No registro de Sayad, os estudos dos movimentos migratórios podem ser


divididos em ordens cronológicas: em primeiro lugar, “o estudo da emigração e das
condições sociais que a engendraram” (Sayad, 1998, p.14), assim como os estudos das
transformações que ocorrem nessas condições. Em seguida, desenvolvem-se os estudos
dos diferentes problemas sociais que constituem aquilo que comumente é chamado de
“problemas da imigração”.

Assim, emigração e imigração são fenômenos vinculados estruturalmente entre si,


ambos concernem ao mesmo objeto. Há, porém, uma cisão nos estudos desenvolvidos: a
sociedade de imigração cabe à reflexão interna a respeito da imigração, reclamando para
si o “direito de desconhecer o que antecede esse momento e esse nascimento” (Sayad,
1998, p. 16); à sociedade de emigração encarrega-se do trabalho intelectual sobre a
emigração. Essa separação constitui um problema, uma vez que não leva em
consideração que “o imigrante sempre se constituirá na ambiguidade de ser ao mesmo
tempo: o que emigra e o que imigra, o que sai e o que chega” (Oliveira, 2012, p. 9).
Desse modo,
(…) não pode ser pensado como o que está simplesmente aqui. Não é uma muda
ou semente que ao ser plantado em um lugar distante se desenvolverá e será
idêntica à sua matriz biológica. O imigrante tem um passado, têm memórias, uma
língua, tradições. Chega carregando uma história em sua bagagem (...) (Oliveira,
2012, p. 9).

Logo, se o discurso a respeito da existência de gangues juvenis de imigrantes é


reproduzido no Brasil, deve ser levado em consideração que essa narrativa já existia na
Bolívia, Peru e Paraguai, desenvolvendo características próprias do contexto migratório,
mas também com aspectos que aludem ao discurso dos países de onde emigraram. Isso é
verificado a partir da fala de muitos dos meus interlocutores, que afirmaram a existência
de gangues com os mesmos nomes em seus países de origem. Em conversa informal com
Karla – boliviana radicada no Brasil há dois anos e estudante de pós-graduação –, ela
afirmou que uma compatriota sua imigrou para o Brasil e aqui se encontrou com antigos
89

amigos, que pertenciam a essas gangues na Bolívia, fazendo sua recriação em um novo
contexto e com o mesmo nome.

Isabel – boliviana que permaneceu no Brasil durante dois anos para realizar
estudos de pós-graduação –, afirmou que, na Bolívia, o fenômeno de gangues de
adolescentes envolve grande parte da juventude de seu país e também possuem outro
significado para seus compatriotas. Isto, de acordo com minha interlocutora, ocorre
devido à influência do cinema estadunidense –, mais especificamente o filme “Sangre
por Sangre”, que retrata o surgimento de gangues de imigrantes latinos com o objetivo de
defenderem-se de agressões e ofensas xenófobas a que estavam submetidos, sendo que o
nome de uma das gangues formada no Brasil (Vatos Locos) foi extraído do filme.

Se a existência dessas gangues juvenis é um fenômeno muito forte na cultura dos


jovens que, ao imigrar, levam consigo tal bagagem cultural, convém sublinhar sua
manifestação nos países de origem dos imigrantes que se pretende estudar. Se no Brasil
estes grupos juvenis recebem o nome de gangues, na Bolívia o termo utilizado é
pandillas. Segundo Pajarito, no contexto boliviano:

As pandillas juvenis surgem da reunião ou vivência habitual de seus membros no


bairro ou no colégio. Grande parte destes grupos germina no que fazer cotidiano e
os espaços privilegiados são a esquina, a praça ou o campo de futebol do bairro.
A entrada à pandilla é, em grande medida, um ato de construção de identidade
para os jovens e adolescentes que a compõem. A grupalidade ou comunidade
dentro de uma pandilla contribui para que definam quem são ante eles mesmos e
ante os outros.
(Pajarito, 2015, p.21. Tradução minha)

De acordo com o autor, no ano de 2013, o Observatório Nacional de Seguridad


Ciudadana (ONSC) apresentou dados estatísticos a respeito do número de pandillas
juvenilles existentes na Bolívia: 762 distribuídas pelas principais cidades bolivianas, que
contariam com um total de 25.219 integrantes, sendo que 79% seriam homens e 21%
mulheres. O maior número dessas pandillas se concentra na cidade de La Paz (34%),
seguido de Santa Cruz, em torno de 22% e Cochabamba com aproximadamente 14%. O
restante das cidades (El Alto, Oruro, Tarija, Sucre, Potosí e Cobija) totalizaria 30%.

No entanto, é na cidade de La Paz e em seus macrodistritos que o fenômeno se


constituiu como um problema mais complexo e de difícil abordagem, pois, se por um
lado, nem todas as pandillas podem ser caracterizadas como delinquentes, por outro, a
ação e existência desses grupos juvenis nos bairros engendra no imaginário social da
90

população o vínculo desses jovens com o crime, resultando, consequentemente, em um


sentimento de insegurança, fazendo com que as pandillas sejam “percebidas pela
população como elementos negativos, grupos de inadaptados” (Pajarito, 2015, p.13,
tradução minha). Assim, as autoridades desenvolveram políticas de repressão de caráter
policial, com o estabelecimento de leis e programas cujo objetivo seria atenuar o
fenômeno juvenil, programas e leis que segundo o autor não atingiram seus objetivos.

Apesar de ser um fenômeno cuja origem data dos anos 90 e que permanece muito
forte até os dias atuais, Pajarito deixa claro que o Tema das Pandillas Juvenilles tem sido
pouco abordada pelas Ciências Sociais de seu país.

Muitas das investigações desenvolvidas neste âmbito explicam que estes tipos
de “associações juvenis” estão envolvidos em atos delinquenciais e que as
pessoas que pertencem a estes grupos alteram a ordem pública e/ou atentam
contra o decoro e os bons costumes da população. Destacam que a formação
de pandillas está relacionada com a transgressão as normas sociais. (Pajarito,
2015, p. 4. Tradução minha).

No caso específico do Peru, Barbalato (2015) descreve que no ano de 2011 o


periódico Perú 21 publicava a notícia a respeito da existência de 24 mil pandilleros. A
publicação supracitada afirmava que o fenômeno não deixaria de crescer e fazia referência
às informações geradas pela Policía Nacional del Perú, segundo a qual existia um total de
410 pandillas espalhadas pelas regiões mais empobrecidas das cidades peruanas. Essa
notícia visava gerar um alarme a respeito das ações de tais grupos juvenis que seriam
responsabilizados pela violência gerada no país. De acordo com o autor, a geração de
notícias a respeito da existência de pandillas no Peru remete aos anos 90, quando
anunciavam a emergência da violência juvenil.
Deste modo, “o conceito de ‘pandillaje’ se instalou como um fenômeno “a-
histórico” partindo da ideia preconcebida que os define como um problema social em si
mesmo...” (Barbalato, 2015, p. 61, tradução minha). Assim, as pandillas representam no
imaginário peruano uma rede de grupos, cujo objetivo é o conflito e a violência, são
intersticiais e gregários e estão vinculados a um território. Seus membros se descrevem
como hierarquizados com códigos e normas próprias, através dos quais é possível concluir
que se trata de uma cultura da violência.

No entanto, o autor afirma que o Peru, quando comparado com os países da


91

América Central – onde predomina a violência levada a cabo pelas Maras97 –, é


considerado um dos países com os mais baixos índices de violência. Ainda assim, tenta-
se instalar através dos meios de comunicação o imaginário do medo das Maras no país
sul-americano. Esse é um processo formulado por uma “criminologia midiática, que se
globaliza desde os Estados Unidos e que legitima as medidas repressivas adotadas pelo
Estado […], que consiste ainda em colocar a seguridade no centro do debate político e
incide na decisão eleitoral” (Zaffaroni, 2012, apud Barbalato, 2015, p. 61. Tradução
minha).

Trata-se de notícias veiculadas pelos meios de comunicação que não tem como
objetivo resolver o conflito, senão enviar a mesma mensagem de alarme “desde países
com graves índices de homicídio doloso como El Salvador, Honduras ou Guatemala, até
países como Uruguai, onde os homicídios dolosos são poucos” (Zaffaroni 2012 apud
Barbalato, 2015, p. 61. Tradução minha).
Assim, “é habitual no sentir da coletividade, nos meios de comunicação e até na
definição jurídica ver aos pandilleros e aos criminales como uma mesma coisa”. (Alarcón,
2005, p.76, tradução minha). Se o discurso dominante caracteriza as pandillas como um
dos fenômenos responsáveis pela violência no Peru, há uma discordância deste com a
situação dos jovens pandilleros, uma vez que o Estado, por meio de um relatório elaborado
pela Defensoría del Pueblo y la Adjuntía de Derechos Humanos de Peru, afirma que,
embora a pandillaje fosse um dos motivos de preocupação, os casos de conduta que são
efetivamente dignos de privação de liberdade não são de grande importância, “o que leva a
observar a imagem que tem se formado sobre as pandillas como um dos principais fatores
de criminalidade e insegurança dos cidadãos” (Defensoría del Pueblo, 2007: 48, apud
Barbalato, 2015, p. 61. Tradução minha).
Ainda segundo Barbalato (2015), a origem da pandillaje remonta aos primeiros
anos do Governo de Alberto Fujimori e a guerra que sua administração travou contra o
Sendero Luminoso e o Movimiento Revolucionario Tupac Amaru. A sensação de paz gerada
pela prisão do líder do Sendero Luminoso abriu espaços para o combate a supostos novos
inimigos e se fixou a ideia de “inseguridad ciudadana” na opinião pública, permitindo que

97
De acordos com dados produzidos pela Cepal (Comisión Económica para América Latina y Caribe) no ano
de 2004 e citados por Reguillo (2006), o termo Las Maras refere-se a “denominação que recebem os grupos
de pandillas juvenis (p.74, tradução minha) em El Salvador, esses são “constituídos originalmente por jovens
salvadoreños” deportados dos Estados Unidos e que são reconhecidos por sua agressividade, formas violentas
de coesão interna e defesa de seu território e atividade, entre as que se presume vinculação com redes
internacionais de narcotráfico. (idem, tradução minha).
92

o sistema autoritário implantado por Fujimori permanecesse sob a aparência de uma


democracia. Nas palavras do autor, “a guerra contra o terrorismo permitiu estender o
regime autoritário a outros âmbitos da política como a justiça ou a ‘seguridad ciudadana'”
(Barbalato, 2015, p. 62. Tradução minha). Em tal contexto, marcado por prisões
indiscriminadas, os jovens de bairros pobres passaram a ser identificados como pandilleros.

Portanto, pode-se dizer que há no Peru uma visão generalizadora e condenatória a


respeito dos jovens envolvidos com o fenômeno da pandillaje, tal visão os compreende
como delinquentes ou criminosos em potencial, mesmo que alguns desses agrupamentos
possam colaborar “en los organismos vicinales” (Alarcón, 2005, p. 77) e outros possam
estar envolvidos em “robos de menor cuantia” (Idem, p.77) e brigas de rua.

No caso específico do Paraguai, a realização da revisão bibliográfica não


possibilitou que encontrássemos estudos acadêmicos a respeito do tema. Porém, isto não
significa ausência de cobertura midiática. Assim, algumas chamadas jornalísticas
demonstram que o tema está presente na opinião pública. Uma delas, produzida pelo site de
notícias do jornal Última Hora trazia em seu título a seguinte pergunta: “Pandillas en
Paraguay?”. Esta reportagem começa retratando a realidade e as características destas
gangues em Los Angeles nos Estados Unidos e em seguida demonstra a preocupação sobre
a possibilidade de grupos similares virem a existir no Paraguai.

Há germes delas. E, se descuidar-nos haverá em abundância. [...] Hoje me


preocupa que no Paraguai, algum dia, suceda o mesmo que em Los Angeles,
Califórnia. E de fato temos visto cenas antes ou depois de partidas de futebol ou
simplesmente porque se encontram grupos de seguidores de dois clubes, alguns
deles em território dos outro [...] Neste natal em Chacarita ocorreram várias
brigas de grupos rivais com arma de fogo, com um morto e um ferido. É
necessário que o governo, com suas instituições, as Igrejas, os diversos grupos
organizados, estudem estas questões de gangues nascentes em Asunción. (Trecho
de matéria publicada pelo site de notícias Ultima Hora, tradução minha) 98.

Trata-se, portanto, de um medo sobre o surgimento destes grupos presentes no


imaginário paraguaio. Porém, a ideia de jovens associados à delinquência e ao crime
organizado não é algo que diz respeito somente à Bolívia, Peru e Paraguai. Segundo Di
Napolli (2016), a preocupação com a problemática da violência nos países do cone sul da
América Latina tem apresentado um gradativo crescimento, ao passo que ocorre a
construção simbólica da juventude como objeto de temor em relação à sensibilidade que se
tem sobre a violência e o delito.

98
https://www.ultimahora.com/pandilla-el-paraguay-n495061.html, visita realizada em 15/08/2020.
93

Ou seja, há de modo predominante nos países sul americanos, a visão da juventude


como objeto de temor e estigmatização. Esta imagem é, conforme o autor, condensada em
figuras estéticas como os “pibes choros” na Argentina, os favelados no Brasil e os
“planchas” em Montevidéu no Uruguai. É desse modo que, através dessas figuras “se
associa semanticamente pobreza, delito e violência” (Di Napolli, 2016, p. 135. Tradução
minha).

No entanto, essa caracterização não diz respeito a todos os jovens, mas


fundamentalmente aos que formam parte “dos setores subalternos, cujas condutas e
expressões entram em conflito com a ordem estabelecida, desbordando os modelos de
juventude legitimados por este (Di Napolli, 2016) e a partir da “figura do jovem violento se
condensa os atributos do perigoso, patológico e perverso dissolvendo em seus corpos a
conflitividade social” (Di Napolli, 2016, p.135, Tradução minha). É nesse contexto que,
determinados jovens – de modo geral os menos favorecidos economicamente – de
diferentes países latino americanos, aparecem como problema social. Essa visão dos jovens
não surge espontaneamente, mas é

…um trabalho político de construção e seleção de um âmbito da realidade—entre


os muitos possíveis— como problema social […]. Esta construção não realiza a
sociedade: sempre tem, como atores privilegiados, determinados grupos sociais
ou organizações que se esforçam por impor a percepção de uma determinada
situação como problema social. (Martin-Criado, 2005 apud Di Napolli, 2016,
p.87).

Assim, a preocupação com a violência e o delito tem sido uma constante nos países do cone
sul latino-americano e é predominante a visão dos jovens associada ao crime e a
delinquência.

Com base nessa literatura, poderíamos supor que o discurso suscitado pelos
imigrantes para interpretar as brigas que ocorrem nos lugares por eles frequentados fazem
parte de um processo maior de estigmatização da juventude latino-americana. No entanto,
não se trata somente da memória a respeito dos jovens que se transladou junto com aqueles
que apostaram suas vidas na imigração. Permanecermos nessa perspectiva seria basear-nos
no discurso formulado por aqueles que não compartilham o espirito juvenil, ou seja, seria
partir de uma visão elaborada desde o mundo dos adultos.

Nesse sentido, fez-se necessário compreender o motivo que justifica ou justificou a


existência dessas “gangues” em terras brasileiras. Assim, durante o tempo em que se
94

realizou a pesquisa de campo fui levado à reflexão a respeito de quais seriam os motivos e
objetivos que fizeram os jovens imigrantes se unirem em grupos que passaram a se
autodenominar como pandillas ou gangues.

Ora, se os imigrantes paraguaios e peruanos afirmam desconhecerem a formação e a


presença destes grupos em território brasileiro, no caso de imigrantes bolivianos a narrativa
é outra. A este respeito, ao conversar com Marco99 ouvi que a existência desses grupos
estava relacionada à necessidade que os imigrantes possuíam de se defenderem de
agressões, não só de peruanos e paraguaios, mas também de brasileiros que frequentam a
rua Coimbra e o Brás. Além disso, conforme meu interlocutor, formar gangues faz parte da
cultura juvenil boliviana. Milena estava presente nessa conversa e confirmou o fato dizendo
que os jovens de seu país copiam os filmes norte-americanos e se baseiam neles para
formar a esses grupos.

Em outro momento, Marco complementa essa fala dizendo que as gangues de


bolivianos nada têm a ver com o crime organizado, segundo o mesmo, PCC e outras
facções trabalham com o tráfico e, em sua compreensão, possuem uma estrutura e uma
visibilidade que as gangues não possuem. No caso das gangues de jovens, Marco me disse
que o principal motivo das brigas é a demarcação de território. Por exemplo, se um
boliviano apanha de membros de uma pandilla dominante em uma determinada localidade,
sua entrada no lugar é logo vetada.

Ao falar a ele sobre o nome que batiza uma das gangues de bolivianos que vivem no
Brasil, sendo igualmente utilizada em países como Equador e México, Marco confirmou
que não estão presentes só em terras brasileiras, como também em outros países. No caso
específico da Bolívia, me disse que, pelo menos em La Paz, o grupo é fraco, mas que em
Cochabamba o grupo é muito forte e violento. Em um determinado momento de nossa
conversa, Marco me falou de seu amigo membro do Vatos Loco que se encontrava
indocumentado por conta de ser procurado pela Polícia por causa de uma briga de gangues
ocorrida na rua Carlos de Campos100 há dez anos, briga essa que resultou na morte de um
boliviano. Segundo suas palavras, o irmão ficou algum tempo preso, mas está solto e
foragido até os dias de hoje. Disse-me também de um bar no Bom Retiro onde bolivianos
frequentam e de outro na Zona Norte de São Paulo, onde vão beber e confraternizar nos
finais de semana e depois de algumas bebidas ocorrem brigas entre eles.

99
Boliviano de 37 anos residente no Brasil há quinze anos.
100
Rua localizada no Bairro do Pari.
95

No entanto, Marco enfatizou que seus amigos pertencentes às gangues já estão


velhos e possuem outras preocupações nos dias atuais, como filhos e trabalhos, e por tais
razões, não se envolvem mais com esses assuntos. Ele, ao ser questionado sobre as brigas
que ocorrem nos lugares frequentados pelos jovens, respondeu que dois fatores devem ser
levados em consideração: o fato de os envolvidos com as brigas serem, em sua maioria,
menores de idade e o consumo de álcool, uma vez que na perspectiva de meu interlocutor
os lugares são frequentados por jovens adolescentes e a bebida é vendida livremente sem
nenhum tipo de prescrição. Fatores que, associados, resultariam nessas brigas e tensões que
marcam esses lugares. Além disso, para Marco as brigas que ocorrem entre bolivianos,
paraguaios e peruanos “não tem nada a ver com as gangues, é mais por causa da cachaça e
os paraguaios são muito parecidos com nordestinos na questão da “honra” e que quando
ofendidos vão para cima mesmo, utilizando facas, mas isso nada tem a ver com
gangsterismo” 101.

Cabe ainda ressaltar que Marco e Milena não fazem ou fizeram parte das pandillas
de jovens tanto em seu país quanto no Brasil. Portanto, possuem uma visão desses grupos
de quem está de fora. Ora, se as gangues de jovens, conforme demonstrou Whyte em
“Sociedade de esquina” (2005), seguem uma lógica própria de organização, diferenciação,
jogos de poder e hierarquização, compreendi que não poderia partir do quadro de referência
dos atores sociais pertencentes aos setores respeitáveis (Berger, 1986) da comunidade de
imigrantes, fez-se necessário, portanto, conversar com alguém que possuísse uma visão de
dentro, que fosse membro ou que tivesse feito parte de alguma pandilla. Foi então que
Marco se disponibilizou a me colocar em contato com um deles. Passados alguns dias dessa
conversa, sou avisado por meu interlocutor no Facebook de que um conhecido seu que
havia feito parte de uma das pandillas aceitou me conhecer e conversar comigo. Disse para
eu enviar o convite nas redes sociais que ele iria facilitar o contato.

Conversei com Richards, boliviano de 28 anos residente no Brasil há 13 anos, e


logo marcamos um encontro na Praça Kantuta. Encontramo-nos em um domingo
ensolarado e fomos a uma das barracas do local onde os imigrantes bolivianos e peruanos
se reúnem para tomar chicha102. Enquanto conversávamos e bebíamos um som alto com

101
Nota do diário de campo, 06/07/2019.
102
Bebida fermentada a base de milhos e outros cereais muito comum nos andes peruanos e bolivianos.
Conforme pesquisa no site Itaú Cultural (www.itaucltural.org.br/arqueologia/pt/serviços/novidades.htm
acessada dia 16/04/2020) essa bebida era produzida pelos povos indígenas das cordilheiras dos Andes desde
períodos anteriores a conquista e consolidação do continente americano.
96

muita cumbia e reggaeton animava os presentes. De início, não questionei a Richards sobre
o tema das pandillas, compreendi que se entrasse diretamente nesse assunto, poderia deixar
assustado ao meu interlocutor que poderia não se sentir à vontade para tratar do tema.
Assim, para “quebrar um pouco o gelo” conversamos sobre alguns aspectos culturais do
Brasil e da Bolívia e em seguida entramos no assunto da imigração. Questionei a respeito
de sua trajetória de vida e os motivos que o levaram a emigrar de seu país. Ele respondeu
que desde pequeno gostava de capoeira e veio para aprender esse esporte:

Eu conheci esse professor de capoeira e ele viu que eu era diferenciado dos outros
moleques, né? Que eu tinha muita habilidade na capoeira. A gente começou a
praticar, a gente ia às escolas se apresentar. Isso lá na Bolívia, eu era um menino
que não tinha dinheiro, mas desde muito pequeno, como se diz aqui, sempre fui
malandro, e eu buscava meu dinheiro, meu jeito de aparecer. Eu sempre gostei de
aparecer, eu sou do boliviano que gosta de aparecer. Ele viu isso e tipo ele me
adotou, ele não cobrava as aulas, ele me ajudava. Quando eu vim para cá eu
cheguei com muita ilusão, achando que a capoeira é o máximo, minha intenção
era se formar professor de capoeira... Sempre tive essa coisa de rap, reggaeton na
minha infância, porque eu cresci nisso. Lá no Bairro é normal isso aí, e eu cresci
com essa cultura também. [...] Quando eu vim aqui aprender capoeira e me
formar eu me decepcionei, sabe? Por que não era capoeira como eu esperava.
Aqui a capoeira não é valorizada. E de um tempo minha situação foi se
agravando, eu fui morar na favela de favor, morar na rua. Molecão, eu cheguei
aqui com 15 anos. Eu vim sozinho, não tinha nenhum familiar. Ai que eu fui
sentir na pele as coisas, né? O racismo, senti a discriminação e me vi obrigado a
trabalhar de costura e aprender isso pra me sustentar, tudo isso. E eu fui
trabalhando, trabalhando e quando apareceu à oportunidade de retirar o
documento eu não pensei duas vezes e fui pra Bolívia pra pegar meus
documentos pra tirar aqui e desde lá eu tô aqui.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Sua decepção esteve relacionada com o modo como a capoeira é percebida e


valorizada no Brasil103. Porém, isso não foi motivo para que Richards deseja-se retornar ao
seu país, preferindo permanecer em terras brasileiras ainda que sua situação não fosse das
melhores. Richards voltou para a Bolívia somente uma vez, para retirar seus documentos e
regularizar sua situação:

Eu só fui uma vez na Bolívia, fiquei uma semana lá. Eu voltei correndo aqui, fiz
meus documentos, eu já trabalhava aqui no Brás, eu já trabalhava pra coreano e
eu era ilegal. Eu não tinha meus documentos, mas eu sempre dava um jeito de
chegar. E foi assim cara que eu me radiquei aqui, fiquei aqui.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Ao ser questionado sobre a relação com os nativos da sociedade de recepção,


Richards destaca que, de início, não era muito boa. Trouxe, como exemplo, as relações que
desenvolveu com brasileiros no interior das escolas em que estudou:
103
Meu interlocutor em dado momento da conversa havia dito que todos na Bolívia pensam que a capoeira é
uma paixão nacional brasileira e é praticada por toda a população do Brasil.
97

Eles me xingavam muito, eles queriam me roubar. Só que, como eu te falei, eu fui
um boliviano que nunca se deixou levar. Por mais que tinha que apanhar eu
brigava, eu enfrentava sabe? E nas escolas, por exemplo, eu estudei aqui embaixo
e sempre tinha alguém me enchendo o saco, às vezes era porque a gente se
destacava nos estudos ou porque a gente não interagia com os brasileiros, eles
achavam que estávamos roubando o trabalho deles, mas não, eu falava pra eles
que não são assim as coisas. Tanto que hoje já tem muitos alunos bolivianos nas
escolas.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 2508/2019).

Ao ser questionado a respeito das relações entre bolivianos, peruanos e paraguaios,


Richards falou naturalmente a respeito do tema das gangues:

De modo geral a relação com peruanos é boa porque os peruanos é quase Bolívia,
a mesma coisa: o Alto Peru e o Baixo Peru, mas tem aqueles peruanos que se
acham a última bolacha do pacote, mas com a maioria sempre me dei bem,
sempre a gente comparte e ajuda bastante peruano. Quando eu morava lá no
centro, morava com vários peruanos, eu conheço todos os peruanos, eles também
me conhecem. Então, eu sempre me dou bem. Com os paraguaios também,
ultimamente a gente trabalha junto, eu tenho cunhados paraguaios. Para você ver
como é o negócio, né? Na época do Sensación104, antigamente tinha as gangues.
E eu venho dessas gangues. Tinha as gangues dos bolivianos, as gangues dos
paraguaios, as gangues dos peruanos. Os peruanos não havia muito na época, era
mais de boliviano e paraguaio. Isso aqui era uma guerra, a partir daqui. Aqui
embaixo tinha uma danceteria antigamente, a gente subia tudo isso aqui para ir ao
Sensación e sempre aparecia uns paraguaio querendo roubar aos bolivianos e a
gente se juntava com a favela aqui e ia em cima dos paraguaios para chegar na
nossa festa lá no Sensación. O Sensación era um ponto que a gente cuidava, era
nosso dos bolivianos, sabe? Não tinha mais lugar aonde ir, frequentávamos a
Kantuta e, depois de Kantuta, a Genius que era a antiga discoteca e da antiga
discoteca íamos para o Sensación. Fazíamos todo esse trajeto e sempre havia
treta. Mas a gente era um grupo unido sabe? Se juntava e a gente defendia os
bolivianos, para não ser roubados e a história era assim. Antigamente, havia
muita briga, muita treta entre as gangues, muita coisa, morreu muita gente. É uma
parte escura da minha vida que eu não gosto muito, mas dessa coisa eu aprendi
bastante.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 2508/2019).

Conforme Richards, as chamadas gangues de imigrantes não eram formadas


somente por bolivianos, peruanos e paraguaios também tinham seus grupos. Além disso, no
que concerne aos bolivianos, não se tratava apenas de uma pandilla, mas sim de duas ou
três cujas diferenças eram as idades de seus membros:

104
Os nomes dos estabelecimentos são fictícios para preservar a identidade dos atores sociais.
98

Meu grupo se chamava G-unit, ai tinha outro grupo dos bolivianos que chamava
os Bodis que foram os mais velhos, os que chegaram primeiro aqui, também tinha
os Vatos Locos do Bom Retiro e os grupos dos paraguaios que eu não sei dizer os
nomes, somente a gente conhecia que era paraguaio, entendeu? E a gente sempre
tinha briga. E as brigas eram muito feias, com facão. Ainda tenho lembrança de
todas essas tretas. Já quase morri várias vezes, é uma coisa muito séria na minha
vida, não gosto, mas essas coisas fizeram o meu caráter sabe? Vários bolivianos
sabem quem eu sou e sabem que eu era antigamente. Me respeitam por isso.
Porque a gente sobreviveu a essa guerra. Aos preconceitos, essas coisas que
antigamente havia.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

A guerra a qual Richards mencionou diz respeito às brigas e tensões com imigrantes
paraguaios. Esses conflitos, conforme demonstrado no capítulo anterior, tem como uma das
justificativas o conflito entre Bolívia e Paraguai no século XX, cuja memória é acionada a
partir do contato entre imigrantes dessas nacionalidades nos locais de trabalho, lazer e
sociabilidade. Ao referir-se às brigas entre bolivianos e paraguaios como guerra,
compreendi que a existência da mesma era significativa para seus compatriotas e outros
imigrantes. A esse respeito, ouvi de Robson: “Isso não é novidade, todos na comunidade
sabem” (Robson, filho de imigrantes bolivianos, entrevista realizada, 25/07/2019).
No entanto, as brigas que ocorriam não eram somente entre imigrantes da Bolívia e
imigrantes do Paraguai. Entre os próprios bolivianos, as coisas eram tensas.

As brigas eram por território. Eles não podiam pisar aqui. Porque eles eram um
grupo de quinze mais ou menos, só que a maioria era um pouquinho velho. Só
que quando eles chegavam, eles queriam mandar em nós. E a gente era novo. A
gente não deixava. E eles não gostavam que a gente não se deixasse mandar,
sabe? Eles vinham, queriam mandar na gente, queriam roubar. Essas coisas. Que
dentro de nós não permitíamos, mas eles não, eles se achavam donos, só que a
gente não queria isso. A gente convivia, G-unit, os Chicanos, tinha um grupo que
são os Chicanos que eram tudo molecão também, os Bodies. Sabe? E a gente
vivia em paz, a gente transitava sempre em paz. Os Vatos, eles seguiam uma
ideologia diferente. Eles achavam que a gente era rival, mas a questão não era
isso. Eles queriam ser os únicos no pedaço sabe? O Bom Retiro, a gente deixou
essa parte para eles. Eles não podiam vir aqui e nem a gente lá. Senão o couro
comia.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Assim, se a idade era algo que marcava a diferença entre as pandillas de bolivianos,
entende-se que a mesma era utilizada pelo grupo mais antigo – os Vatos Locos – como
fonte de poder para exercer o domínio sobre outros grupos mais novos – Gi-Unit, os
Chicanos e os Bodies – fator que não era aceito e resultava em brigas e demarcações de
territórios nos bairros centrais de São Paulo. Richards ao ser questionado sobre a
possibilidade de o membro de uma gangue estudar numa escola ou bairro de outra
99

respondeu:
Não, nunca chegou a isso, ainda bem. Porque ia dar pior. A gente saiu na
televisão, já fomos presos várias vezes. Passou na televisão falando que a gente
era facção internacional... Hoje em dia não existem essas coisas, mas na época...
Coisas de moleque. A gente não pensava direito. Hoje em dia eu me arrependo.
Sabe? Fiz muita merda.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Se os territórios eram demarcados pelas pandillas surgiu à questão a respeito de


como os membros de um ou outro grupo se identificavam. Como era possível saber quem
pertencia a uma ou outra gangue? Havia algum sinal diacrítico, alguma simbologia que
possibilitava diferenciar um grupo do outro? A esse respeito Richards comentou: “É pelo
convívio, né? Nosso grupo, na época tinha oitenta caras. Éramos um grupo grande, eles
eram pouquinho, sabe? A gente era enorme” (Richards, imigrante boliviano, entrevista
realizada, 25/08/2019).

Outra questão que surgiu em nossa conversa diz respeito sobre quais eram as
nacionalidades que permitiam um ou outro indivíduo pertencer a esses grupos de jovens?
No que concerne aos paraguaios, tanto Richards quanto outros imigrantes bolivianos que
tive contato no desenvolvimento da pesquisa foram unânimes em suas respostas: os
paraguaios eram os grupos nos quais eles faziam maior oposição e com os quais havia
muitas brigas e conflitos. As gangues de imigrantes procuravam defender-se também da
agressão e roubos cometidos por brasileiros. Porém, se no caso específico dos paraguaios a
nacionalidade era um fator de exclusão do grupo, ser brasileiro não era um impedimento
para que pudessem ou não participar. Questionado sobre isto, Richards deu um exemplo de
um amigo de nacionalidade brasileira que foi membro de sua pandilla.

Ele virou boliviano. Porque ele era um molecão. E ele dormia comigo, usava
minha roupa. E ele foi crescendo, crescendo e se acostumando a nossa cultura.
Eram dois brasileiros que andavam conosco. Quando a gente estava em guerra
com os paraguaios ele sofreu também um atentado. Ele mudou também a visão
dele.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Conforme as palavras de Richards, muitos brasileiros passam por problemas


similares aos que muitos imigrantes passam, tanto em seus países de origem quanto no país
de recepção. Esse foi um fator para que alguns brasileiros se aproximassem de seu grupo,
tornando-se membro efetivo dele. A convivência e as relações de socialização secundária
(Berger; Luckmann, 1976) fez com que seu amigo brasileiro passasse por um processo de
conversão (Berger, 1986), sendo reconhecido como boliviano a partir do conhecimento e
100

compartilhamento dos aspectos culturais. Sobre o fato de brasileiros passarem pela mesma
experiência que outros imigrantes meu interlocutor afirmou:

Onde eu estou morando, eu vejo as mesmas coisas que eu passei lá na minha


infância. Quando eu era menino, minha mãe não conseguia comprar às vezes nem
um pão. Ela tinha que lavar roupas para outras pessoas. Ela tinha que fazer os
bicos dela para ela me alimentar. Essas coisas, eu vejo muito na favela, mas tudo
que eu posso ajudar, eu ajudo.
Você sabe, quando você não tem estabilidade com a sua família, você cresce sem
controle, você entra muito fácil nessas coisas. E para um jovem latino americano
a droga é muito rápido cara. Aceita mais rápido. E eu passei por isso, eu venho
de uma família que não era boa, meu pai batia na minha mãe, eu cresci mal,
sempre na rua e minha mãe apanhava muito do meu pai. Éramos uma família
pobre. Sei que o brasileiro também tem essa coisa.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019)

Nesse sentido, Richards entende que existe uma identificação no que concerne aos
problemas que os indivíduos de ambas as nacionalidades passam. No entanto, isso não
implica na aproximação de todos os imigrantes com os nativos da sociedade de recepção.
Richards reconhecendo essa questão afirmou:

Mas uma coisa que eu falo, tem boliviano que é burro, não é falando mal, mas
tem boliviano que é burro, eles não abrem a cabeça e tenta se envolver com a
comunidade, participar com a comunidade porque a gente esquece que veio de
um país onde a situação é precária, sabe? Pobre, não tinha dinheiro. E às vezes na
favela, os da favela acham que a gente boliviano é rico, tem dinheiro, mas se a
gente tem dinheiro é porque a gente trabalha. Eu gostaria de passar essa cultura
para eles, os fazer trabalhar. Porque trabalhando você sabe que se conquista muita
coisa e na favela, seria bom, tem uns projetos sociais para você levar oficinas de
cultura e pode ser até um mercado de trabalho. Porque os brasileiros acham que
os bolivianos estão roubando o trabalho, mas é mentira. Tanto os bolivianos
quanto os brasileiros hoje estão passando pelas mesmas condições que o governo
está fazendo no país. Brasil é muito bom, Brasil é um país muito bom, é uma
terra de oportunidades. Eu falo assim, Brasil é o Estados Unidos de Latino
América e São Paulo é Nova York, é uma metrópole muito grande que te dá
muitas oportunidades, sabe? O dinheiro está aqui. É a merda dos políticos que
estão fodendo com esse país. Como na Bolívia também, como na Venezuela
também.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Assim, para meu interlocutor, as gangues desempenharam um papel de aproximar


indivíduos de nacionalidades diferentes, graças a outras atividades que desenvolviam, como
aquelas voltadas às práticas culturais.
101

A gente sempre tinha na cabeça fazer cultura. Mas sempre era essa questão de
dança, vamos dançar, vamos fazer coisa em prol, pra melhorar, mas alguns, né?
Eram os errados, os que não faziam nada. A gente fazia shows de rap... A gente
fez coisas boas também com meu grupo, ajudou bastante gente. A gente sempre
estava envolvido com a arte, a gente gostava de dançar. A gente tinha um grupo
de dança. E a gente mostrava que os bolivianos não tem que ser assim.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Como entramos no assunto relativo a questões das práticas culturais indaguei de


Richards a respeito das questões como as indumentárias utilizadas por muitos dos jovens
imigrantes referirem-se as roupas utilizadas pelos chicanos e sobre a influência do filme
Sangre por Sangre no tocante a formação da pandillas tanto nos países de origens quanto
no país de recepção.

Esse filme foi uma influência latino-americana, né? Eu achei que nunca ia viver
isso também, mas vivi aqui no Brasil, chegando, sendo imigrante, tendo que falar
duas línguas. Eu me acho chicano, porque eu falo português e falo espanhol. Isso
que é chicano, tem pessoas que acham que vestindo a roupa serão chicanos, mas
não é não. O chicano tem que imigrar, sentir o preconceito, sentir a
discriminação, o racismo...
Eu: Então chicano para vocês não é exclusivamente ser filho de mexicano nos
Estados Unidos?
É ser imigrante, a palavra chicano é de cholo. Bolívia é cholo, chola. O brasileiro
quando imigra para outro país ele se torna um chicano, porque tem que falar duas
línguas. Porque aí que está o problema, você querer se comunicar com a pessoa
para pedir um trabalho e a pessoa não te entende.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

A fala de Richards confirma a percepção de Marco e Milena a respeito da influência


do filme Sangre por Sangre para jovens hispânicos, principalmente no que diz respeito à
formação das chamadas pandillas. Além disso, outro fator cultural muito requerido pelos
jovens imigrantes – sobretudo os bolivianos –, diz respeito à cultura e identidade chicana
estabelecida em um mundo hostil e de inúmeras fronteiras – como as de raça, formas de
pensar, entre uma língua e outra e entre aspectos culturais (Anzaldúa, 1999) – nos Estados
Unidos, cuja imagem e estereótipo são alimentados, ao longo dos anos, por meio de uma
narrativa cinematográfica hollywoodiana.
O fato de eles se identificarem com a situação vivida pelos chicanos fez com que os
jovens imigrantes construíssem a noção de chicano como sinônimo de imigrante: alguém
que atravessou a fronteira entre um Estado Nação e outro e que é confrontado com dilemas
como preconceito, racismo e a necessidade de aprender uma segunda língua. A esse
respeito, Richards afirmou que não bastava vestir-se como se veste um chicano, era preciso
experimentar o fenômeno de imigrar e as lutas que constituem os diversos atravessamentos
102

de fronteiras realizados pelo movimento transnacional.


Ora, se a narrativa contida no filme retrata a vida de jovens latinos nos Estados
Unidos que, para se defenderem das agressões dos nativos da sociedade de recepção,
formaram gangues que disputavam espaços e territórios com grupos e pessoas de outras
nacionalidades. Convém destacar outro fator presente no filme e que também influenciou a
relação de jovens pertencentes a esses agrupamentos: que é a ideia da gangue como uma
família cujos laços que os mantem unidos recebe o nome de carnalidad. Esse termo
presenciei na fala de Robson a respeito da controvérsia se as gangues existiam nos dias
atuais ou não. Ele ao ser questionado sobre uma reunião de um desses grupos – evento
realizado no Brás, que contou com a presença de DJS e jovens vestindo a camisa da antiga
gangue em questão – respondeu: “Elas não estão mais em atividade. No entanto, o que
mantem os caras unidos é a carnalidad. Assiste ao filme Sangre por Sangre para você
entender” (Robson, filho de imigrantes bolivianos, entrevista realizada, 25/07/2019). A esse
respeito Richards comentou:

Carnalidad, quando a gente fala carnal é uma coisa tipo você e eu tamos juntos
numa função. É assim, quando você precisa de mim eu vou estar ai para você. É
tipo uma hermandad. Tipo na gangue a questão do carnal, se você falta com
respeito você paga, como em qualquer facção. Tem suas variantes, carnal é meu
amigo, mas é um tema muito amplo. Se você entra numa facção e é chamado de
carnal é porque você tem que ficar à disposição do grupo. E se você falta com a
facção você falta com respeito.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Essa fala de Richards remeteu-me ao estudo de caso realizado por Whyte (2005) –
em fins das décadas de 1930 e início de 1940 – em uma comunidade de imigrantes italianos
radicados nos Estados Unidos. Na ocasião, o autor ao analisar as gangues de jovens
formadas por imigrantes ou filhos de imigrantes em Cornesville percebeu que para um
indivíduo ser aceito pelos rapazes da esquina, ou seja, para fazer parte das gangues, deveria
assumir uma espécie de compromisso com o grupo105. Conforme o autor, a estrutura das
gangues resultava da alta taxa de interação social dentro do grupo106. Sendo que dessa
interação originava-se “um sistema de obrigações mútuas” (Whyte, 2005, p. 262)
considerada fundamental para a coesão grupal. Assim, para que as atividades das gangues

105
Conforme palavras do autor: “O rapaz de esquina liga-se ao seu grupo por uma rede de obrigações
recíprocas das quais não quer se afastar ou não consegue” (Whyte, 2005, p. 125).
106
De acordo com Whyte, essa taxa de interação social dentro do grupo derivava, por um lado, de sua
composição estável e, por outro lado, da falta de segurança social de seus membros. Quanto à segunda
característica, meu interlocutor considerou de suma importância para que as gangues de imigrantes viessem a
existir. Fenômeno que abordo no decorrer do texto.
103

fossem realizadas, seus membros deveriam seguir um determinado código de conduta que
lhes obrigava a ajudar seus amigos e evitar ações que os prejudicassem.
Se, no caso específico analisado por Whyte (2005), esse compromisso expressava-
se na ação de partilhar o dinheiro107, no caso das pandillas de imigrantes em contexto
brasileiro a reciprocidade se expressa no ato de ficar à disposição do grupo, cujo nome eles
deram de carnalidad. Ser carnal é assumir uma obrigação com o grupo, no qual o não
cumprimento é visto como falta de respeito e passível de punição ou expulsão. Trata-se,
portanto, de um laço que vincula a todos mesmo que as atividades das gangues sejam outras
nos dias atuais.
Além disso, Richards afirmou que as gangues tinham para com os imigrantes um
papel similar ao de uma família oferecendo-lhes companhia e proteção na ausência de pais
e outros familiares. Conforme meu interlocutor:

Não tem mais gangues como antigamente, mas meu grupo ainda existe, né?
Atualmente a gente se junta em casa ou pelo WhatsApp, em casa de família. Só
que toda a gente está velha, com filhos... Velhos eu falo na questão da
maturidade, né? E já não faz mais essas coisas porque não dá. A gente é pai de
família, não dá para fazer essas coisas. E hoje tem muito boliviano aqui,
antigamente não. Por isso que existiam as gangues, porque a parte que não tinha
família via nos amigos proteção. Essa era a minha família da época. Então por
isso que eu tive que me envolver, sabe? E foi assim que a gente desenvolveu um
caráter, aprendeu com os brasileiros a se defender para não ser roubado. A gente
cresceu com tudo isso. Hoje eu tenho muita coisa a ensinar, para falar para não
fazer assim.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

A esse respeito, Elias & Scotson (2000) perceberam situação similar entre os jovens
dos setores subalternos de Winston Parva. Conforme os autores, naquele contexto os
jovens:
Inseguros de si e acostumados a ser tratados com muito desprezo e desconfiança
pelos representantes das autoridades e do mundo ordeiro de que eram excluídos,
eles procuravam encontrar ajuda e apoio nos laços de amizade temporários que
estabeleciam entre si; era-lhes mais fácil enfrentar em grupos de pares um grupo
hostil e desconfiado de pessoas, em relação ao qual eles mesmos sentiam muita
hostilidade e desconfiança. Assim como suas famílias, os sucessores delas na vida
desses jovens — as gangues que eles formavam uns com os outros — não eram
particularmente estáveis. Mas, enquanto duravam, tornavam-lhes mais fácil
enfrentar o mundo de que eles eram excluídos; funcionavam como antídotos
contra a extrema vulnerabilidade de sua autoestima. Em grupos formados por
seus pares, eles podiam fazer de si uma ideia mais elevada do que sozinhos e
podiam satisfazer sua necessidade de provar a si mesmos o quanto eram fortes.
Podiam reassegurar-se de seu valor pessoal diante de suas próprias dúvidas,
constantemente reforçadas pela atitude da maioria ordeira (Elias & Scotson, p.
144, 2000).

107
“Se ele tem dinheiro e seu amigo não, espera-se que gaste por ambos (Whyte, 2005, p. 124)”.
104

No contexto analisado pelos autores, esses jovens costumavam se envolver em atos


considerados delitivos como uma forma de reagir ao modo como eram tratados pela
sociedade ao qual estavam inseridos. Porém, permanecer na visão que relaciona as ações
desses grupos de jovens com o crime, seria assumir a perspectiva da parte respeitável
(Berger, 1986) ou daqueles que pertencem ao auto declarado mundo dos adultos (Belmonte,
2009). Assim, ainda que as gangues estivessem envolvidas em brigas e tensões ou mesmo
em atividades que pudessem ser consideradas como criminosas a partir de uma perspectiva
de “cima”, elas também desempenhavam outros papéis, não só os de defesa de agressões ou
proteção, mas também como produtoras e criadoras de cultura, na qual Richards expressou
em termos “de vamos dançar, fazer as coisas em prol, pra melhorar” ou “a gente fazia
shows de rap... A gente fez coisas também com meu grupo, ajudou bastante gente”.
A este respeito, o registro de Palmas sobre as chamadas bandas latinas na Espanha
procurou enfatizar “a capacidade criadora e de agência dos jovens subalternos, suas
produções culturais e formas de sociabilidade como práticas de resistência” diante de um
contexto caracterizado “por um conjunto de processos de discriminação por cultura, raça e
classe” (Palmas, 2014, p. 266. Tradução minha) distanciando-se de estudos acadêmicos que
relacionavam a existência desses agrupamentos juvenis com o crime organizado, ou com
ações delinquentes.
A percepção das gangues como uma facção organizada e criminosa esteve presente
no discurso midiático a respeito das pandillas de jovens de nacionalidade boliviana,
peruana e paraguaia no contexto brasileiro e, até o momento em que esse estudo era
realizado, permanecia no imaginário das referidas comunidades imigrantes.

Se fosse uma facção eu não estava aqui cantando. Estaria de boa na minha piscina
ou na cadeia, não sei. É como tudo, você se envolve com uma gangue... A gangue
começa na escola ou no bairro, isso vai te levando por nível e você vai querer
chegar ao nível máximo de um criminoso só que para você crescer tem que ser
fazendo coisas erradas. Mas quando você percebe que isso não vai te levar a
nenhum lado e que dá tempo para mudar, porque tem um limite para mudar...
Porque se você se envolver com o mais pesado, o mais profundo aí não tem mais
volta. Ainda bem que eu mudei. Eu conheço gente que está nessas coisas, mas
eles não vivem aqui, não moram aqui. Agora as pessoas daquela época, que a
gente fazia gangue, todo mundo tem o negócio dele, tem sua família. A maioria
graças a Deus mudou. Eu não vejo mais ninguém envolvido nessas coisas
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Para Richard, o que diferencia uma pandilla de amigos de outros grupos envolvidos
com o crime organizado e o tráfico de drogas diz respeito ao nível de suas ações, visto que
105

para ele existe uma hierarquia que marca e determina a esfera de ação promovida tanto por
sua antiga gangue quanto pelas facções criminosas internacionais. Enquanto uma facção
ocupa o nível máximo nessa escala, sua pandilla tinha atividades circunscritas ao bairro em
que vivia e, cujas atividades, eram tanto a autodefesa como também a organização de festas
e outras atividades culturais. Além disso, meu interlocutor chamou a atenção para outra
característica que, a seu ver, é substancial para diferenciar uma pandilla de uma facção
criminosa, que é o fato de essa última mobilizar uma alta quantidade de dinheiro, ao
contrário do que as gangues formadas por imigrantes no Brasil realizavam.
Some-se a isso a ausência da palavra líder para determinar alguém que exerce o
poder sobre os demais membros de seu grupo, o que, em sua visão, não existia, pois todos
eram iguais e tinham poder de decisão. Ora, se no caso analisado por Whyte (2005) o líder
era “o ponto focal da organização de seu grupo”, cuja ausência fazia com que seus
membros ficassem “divididos em várias pequenas cliques” (Whyte, 2005, p. 264), esse
papel do líder como elemento fundamental de coesão não foi ressaltado por Richards em
sua fala, corroborando a perspectiva de Marco, para o qual a presença de uma liderança e
de uma organização hierárquica é o que distingue as chamadas facções criminosas das
pandillas de jovens, tanto nos países de origem desses imigrantes quanto no país de
recepção108.

Contudo, isso não significa que Richards e outros de seus pares não tenham sido
tentados a enveredar pelos caminhos que conduziriam ao alto escalão do crime. É o que
demonstra meu interlocutor ao analisar sua própria biografia:

108
Há de se destacar uma diferença entre facções e gangues realizadas por Freitas (2018). A perspectiva desse
autor a respeito do termo gangues baseia-se nas características arroladas por Nascimento (2011) para o qual
gangues são grupos que compartilham identidades em comum e se envolvem em práticas violentas
criminalizadas como o tráfico de drogas e disputas territoriais. Além disso, Freitas (2018) compreendeu que as
gangues na Região Metropolitana de Vitória careciam de líderes e de uma organização hierárquica. Já facções
seriam grupos maiores cuja função seria federalizar a atividade das gangues rivais colocando fim ou
diminuindo o conflito existente entre elas. Contudo, embora reconheçamos a existência dessas diferenças
terminológicas, procuramos, no desenvolvimento desse estudo, assumir a perspectiva nativa a respeito desses
termos que, como está demonstrado pela narrativa de Marco e Richard, variam: ora meus interlocutores
utilizam um ou outro termo para falar do grupo de jovens imigrantes radicados no Brasil ora os utilizam para
falar sobre grupos criminosos como o PCC e o Comando Vermelho no Brasil ou mesmo as Maras dos países
centro americanos.
106

É coisa de adolescente, por isso que eu te falo se a gente tivesse continuado nessa
vida errada, quem sabe a gente ia ser criminoso hoje? Pela questão de ser
imigrante, a gente conhece as drogas, as armas. Vou te falar, a gente ia à favela e
os caras nos falava, nos mostrava, nos oferecia. Os brasileiros daqui eles viam as
tretas que a gente tinha, os brasileiros vinham e nos davam ferro, ou eles saiam e
“bam bam bam” todo mundo corria. Então eram coisas que era muito fácil chegar
nesse nível de se envolver em facção. Se você quer saber, eu sou prova viva
disso, de que as pessoas podem mudar. Eu quero ser exemplo agora. Fiz coisas
erradas? Sim. Peço desculpas. Mas quero mostrar coisa boa agora. Quero
trabalhar na comunidade, quero trabalhar para comunidade em prol, né?
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Se meu interlocutor não descartou a possibilidade de, na época, ele e seus carnales
se envolverem com o crime organizado ou facção, por conta da facilidade que entenderam
possuir para adquirir armas e drogas, Richards afirma que as atividades de suas pandillas,
sobretudo as brigas com paraguaios e com outras gangues de imigrantes, pertencem ao
passado, à época em que todos eram adolescentes. Ainda segundo suas palavras, hoje todos
mudaram e assumiram outro estilo de vida. Questionado sobre qual foi o fator decisivo que
influenciou nessa mudança, Richards trouxe mais uma vez um exemplo de sua história de
vida:
Eu estava no meio, mas já passou da minha época. Por isso eu te falo, eu cai
fundo, cai muito em droga, eu estava fazendo muita coisa errada. Bebia demais,
eu fazia besteira, eu não trabalhava. Só ficava na rua fazendo coisas erradas,
roubando. Sabe? Roubei até meus próprios paisanos, roubei brasileiros, roubei
paraguaio, roubei peruano. Mas foi uma época muito ruim pra mim, pra minha
vida. Estava traficando... Foi um período muito louco da minha vida. Quando
fiquei sabendo que ia ser pai, minha mulher me pegou com uns negócios, fazendo
uns corre aí ela disse: “é isso ou sua família, você escolhe”. Aí eu pensei, né?
Minha família cara. Ai que minha cabeça deu um giro cem por cento...
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Conforme a narrativa de Richards foi quando as pandillas iam começar a crescer e


se envolver com algo que ele chamou ser mais pesado, como o crime e tráfico de drogas
que seus integrantes começaram a refletir. Segundo suas palavras, a maioria já havia se
tornado adultos, começaram a ter filhos e, como decorrência desse processo, começaram a
ter outras preocupações como, por exemplo, o trabalho. Foi, então, a constituição de
famílias que influiu na decisão das pandillas encerrarem suas atividades, ao menos
atividades como aquelas que envolvem brigas e outras ações que todos concluíram ser
perniciosas, como o envolvimento com drogas, por exemplo.
Nesse tempo que as atividades das gangues cessaram, Richards afirmou que até as
relações com os paraguaios mudaram e já não são mais tensas como antigamente, ainda que
persistissem preconceitos de bolivianos para com paraguaios. Foi isso que ouvi quando
107

meu interlocutor comentou sobre a frequência de paraguaios na Kantuta para jogar futebol
com seus compatriotas e para realizar outras atividades de lazer.

Agora sim, antigamente não era assim, não tinha uma boa relação não. Hoje em
dia ainda tem um pouco de preconceito, mas tem paraguaios aproveitadores, que
não trabalham direito. Tem muita história de paraguaios que pegam as bolivianas,
as engravida, só para ter a máquina de costura. Mas nem todos paraguaios são
assim, né? Eu mesmo tenho cunhados paraguaios e nos damos super bem.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

A mesma coisa ouvi em outro momento de um imigrante do Paraguai, ao comentar


sobre a participação de bolivianos nos chamados grupos de danças folclóricas paraguaias
em São Paulo:
Quando nós começamos o grupo, nós falamos que ia ser um grupo de todos, não
ia ter... Não iríamos pregar religião, nem raça porque nós vemos que mesmo no
Paraguai, mesmo os grupos de paraguaios que moram fora... Ainda é aquela
questão de querer mostrar a cultura como a mais bonita do mundo. É bonita para
todos, nós sempre falamos que é bonita, mas no contexto da imigração
tentávamos passar este discurso com o Aquarela Paraguaia. Então, para você ver,
no nosso grupo, no começo teve boliviana, aí quem era essa boliviana? Essa
boliviana era de Santa Cruz de La Sierra e se achava culturalmente mais próxima
a nós do que as morenadas, porque a dança deles é mais parecida com a nossa,
sabe? Então tinha uma peruana, nada a ver, mas ela gostava e por causa da amiga
ela veio. Amiga que estudava com ela no colegial. Aí já depois veio as bolivianas,
os filhos de bolivianos. O pai dessa menina me disse assim: “Eu não acredito que
estas meninas estão dançando músicas paraguaias, porque quando cheguei aqui
na década de 90, nós brigávamos muito com os paraguaios. Nós batíamos neles,
eles batiam em nós, sabe? No Bom Retiro a gente se batia lá, um odiava o outro.
Hoje em dia, eu vejo aqueles caras, eles são país de família, os nossos filhos
brincam juntos.” (Ramon, imigrante paraguaio, Pires, 2016)

Ora, se os imigrantes paraguaios e bolivianos na percepção de Richards e Ramon


convivem mais pacificamente nos dias atuais, procurei saber se o mesmo ocorria entre os
membros das pandillas bolivianas, outrora inimigas.

Não. Respeito tem. Mas cada um no seu canto, porque a ideologia deles é
diferente, sabe? Porque eu, por exemplo, com meus parceiros, a gente tem uma
ideologia diferente. A gente pensa mais em surgir, com essa questão da música
também, tem amigos do mesmo grupo envolvido. E a gente pensa em umas
coisas mais bacanas, faz eventos. Procura favorecer a comunidade inteira e não a
um grupo... Isso que eu acho ruim. Porque eles ainda continuam fechados.
Entrevistador: Mas eles não estão mais em atividade, estão?
Melhor. Porque se eles estão em atividade, a gente sabe como as coisas
funcionam e não daria uma coisa boa não. Tem a questão de família, essas coisas.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Conforme o exposto, é possível analisar a história, o desenvolvimento e a


importância que as pandillas tiveram para os imigrantes que foram seus membros, a partir
da narrativa de Richards. Sua história de vida é similar àquelas de outros jovens que, como
108

ele, apostaram suas esperanças na imigração para outro país, com o intuito de atingir seus
sonhos e objetivos de uma vida melhor109. Meu interlocutor, ao entrar no Brasil e ver seu
desejo de aperfeiçoamento na capoeira frustrado, optou por permanecer no país, mesmo
sem contar com o auxílio de adultos, pais ou familiares. Deparou-se, então, com a
desigualdade, a xenofobia e uma série de agressões por parte dos nativos da sociedade de
recepção bem como dos imigrantes de outras nacionalidades que, ao longo de sua vivência,
travava contato.
É nesse contexto conflituoso que as gangues são formadas, portanto não se trata
somente da memória do imigrante que transladou junto com ele, ainda que a lembrança da
existência desses grupos nos países de origem possa ter influenciado na formação das
pandillas em terras brasileiras. Como explicitou Richards, elas tiveram sua razão de ser e
existir no Brasil, graças ao papel que desempenharam para os imigrantes, suprindo a
necessidade de proteção – a qual deveria ser realizada pelo Estado – e ausência de pais e
outros familiares maiores de idade, que pudessem ser responsáveis por esses jovens. Seus
membros estavam unidos por laços de solidariedade, mantidos até os dias de hoje e, embora
estes interlocutores narrem que as pandillas não existem mais, seus antigos membros
conservam o nome de batismo da gangue e ainda se reúnem, marcam encontros e datas
festivas.
Ainda que esses grupos organizados por imigrantes não tivessem como objetivo o
crime e a contravenção, seus membros acabavam por se envolver em atos delitivos, fator
que Richards apontou como resultado da imaturidade de seus membros. Porém, à medida
que foram tornando-se adultos, formando famílias e deparando-se com responsabilidades os
integrantes tiveram que efetivar uma escolha: permanecer com as atividades das gangues,
tornarem-se membros de facções responsáveis pelo crime organizado, ou dar fim às
atividades das pandillas. Como resultado, todos os membros, não só de sua gangue, mas
das outras, acabaram por optar pela segunda escolha. É nesse sentido que, a todo instante
em suas respostas, Richards procurava enfatizar que todos mudaram, que as gangues eram
coisas do passado, que seus integrantes estavam velhos e com filhos, que se arrependeram
do que fizeram no passado e não se envolviam mais com brigas e confusões.
No entanto, a narrativa a respeito da existência das pandillas ainda está presente no

109
Conforme estudo de Duarte e Villamar (2018) há, nos dias atuais “a imigração de crianças e adolescentes
não acompanhados”, estes são indivíduos menores de 18 anos que atravessam fronteiras e se encontram
separados de ambos os pais e não estão sob o cuidado de nenhum representante legal. Este é um fenômeno
observado na Europa, Estados Unidos, África, Oceania, e nos países da América latina e Caribe.
109

discurso de imigrantes – sobretudo os que estão entre os trinta e quarenta anos de idade –,
principalmente para interpretar as brigas que ocorrem na rua Coimbra ou em outros lugares
escolhidos para atividades de lazer. Como exemplo, trago a narrativa de Felipe sobre as
baladas que ocorrem na rua Coimbra. De acordo com suas palavras, os eventos ocorrem
após as vinte e duas horas e, se eu me dirigisse ao local por volta das seis da manhã,
encontraria homens e mulheres bêbados dormindo pelas calçadas e, às três da madrugada,
ouviria pessoas gritando por socorro. Quando questionei o porquê, Felipe foi enfático:
“pequenas gangues de bolivianos, que começam a brigar” 110.
A mesma narrativa esteve presente na interpretação dos imigrantes sobre a briga que
ocorreu no Memorial da América Latina como resultado das disputas entre gangues rivais.
Richards não descartou a possibilidade de novos grupos terem surgido:

Os filhos de bolivianos estão fazendo isso também? Mas isso é uma coisa errada,
não? Essa coisa nunca vai ter fim eu acho e é uma pena, né? Sempre acontece,
não tem como fazer mudar. Sempre vai ter. Sempre vai ter os que crescem aqui,
crescem na favela, se aliam com brasileiro que também está envolvido com essas
coisas. Já conheci bastante, os bolivianos que estavam com os caras errados, são
pessoas que estão cegas, mas quando a ficha cai, você sabe que não é bem assim.
Isso para, volta e acontece. Como em todo lado. Boliviano não tem a coisa toda
certa. A cultura é da hora, mas tem a coisa ruim. Tem boliviano que eu conheço
que faz coca, que vende, mas não mora aqui. Tem brasileiro envolvido com isso
aí. A coisa é mais de questão pública, né? Saúde. Muita coisa cara. Eu acho essas
coisas erradas. Pra mim, agora eu não quero mais isso. Já tentei fazer essas
coisas, mas não me dei bem. Você faz coisa errada, toda a sua vida vai errada.
Você faz a certa, pouco a pouco sua vida vai melhorando. É simples.
(Richards, imigrante boliviano, entrevista realizada, 25/08/2019).

Assim, não existe um consenso sobre a existência das gangues nos dias atuais, a
narrativa sobre essa questão assume um caráter ambíguo, percebi isto conforme fui
estabelecendo conversas com outros imigrantes ao longo de minha pesquisa de campo. Ao
comentar com Milenka sobre a briga ocorrida no Memorial da América Latina, ouvi que o
que originou o conflito entre os jovens foi à disputa entre gangues. No entanto, Milenka
ironizou a questão ao referir-se a esses grupos como gangues entre aspas dizendo: “eles que
se apresentam assim, mas não são gangues de fato” Já João, seu namorado, ao comentar
sobre as antigas pandillas como os Vatos Locos, os Modis e os G-Unit, afirmou “hoje eles
devem ter entre quarenta ou cinquenta anos e as gangues nem existem mais, os caras estão
velhos, casados”.
Pode-se dizer que há duas narrativas diferentes: uma que afirma que as gangues
existem e as brigas ocorrem por conta das disputas entre elas e outra que atribui a existência

110
Nota do Diário de Campo, 20/11/2019.
110

desses grupos e suas atividades ao passado. Assim, mais do que identificar ou não a
existência de tais pandillas, é preciso compreender a natureza dessas duas narrativas a
respeito do mesmo tema. Acreditamos que o estudo sobre Winston Parva, realizado por
Elias & Scotson (2000) é o mais indicado como embasamento teórico.
Na análise levada a cabo pelos dois autores, eles perceberam que a imagem dos
outsiders – pertencentes à citada comunidade –, era marcada pela porção pior desse setor,
formadas por famílias cujos filhos se envolviam com atividades consideradas delitivas e,
por esta razão, faziam com que todos fossem mal vistos pelos setores estabelecidos de
Winston Parva. Tal imagem dos outsiders perante os estabelecidos se manteve, mesmo após
a mudança das famílias que serviram como base para essa construção, passados vinte anos.
De modo análogo, podemos afirmar que o mesmo fenômeno de cristalização de imagens
negativas ocorreu entre os imigrantes paraguaios, peruanos, e, principalmente, bolivianos
radicados na cidade de São Paulo.
Porém, não são todos os jovens que são marcados negativamente. Como exemplo
estão as palavras de José, boliviano de Oruro, cuja filha realiza graduação em medicina.
Segundo ele, “as gangues são coisas mais da molecada do Brás”. Por sua vez, os jovens
marcados por essa imagem negam a existência dessas gangues e afirmam que estas fazem
parte do passado.
Assim, os jovens de nacionalidade boliviana, paraguaia e peruana, sobretudo os que
vivem nos bairros centrais de São Paulo, são duplamente estigmatizados. Tanto do ponto de
vista interétnico, ao herdar o estigma com que seus pais são demarcados pela sociedade de
recepção, quanto do ponto de vista intraétnico, dado que os imigrantes mais velhos
costumam ver as atividades que esses jovens realizam nos lugares escolhidos para
atividades de lazer e sociabilidade de modo negativo, além de responsabilizá-los pelos
problemas que ocorrem e vê-los todos como membros de gangues. Os modos como esses
espaços são utilizados pela juventude imigrante são abordados no próximo capítulo desta
dissertação.
111

5. Juventude imigrante, lazer e sociabilidade

5.1. Os jovens imigrantes e descendentes e os circuitos de lazer em São


Paulo

No registro de Magnani (1994) o lazer surge no período da sociedade ocidental


chamado de Revolução Industrial, no qual a força dispendida para o trabalho conhecia
somente o limite do cansaço físico e psíquico. Conforme o autor, o tempo livre, em
oposição ao tempo de trabalho, foi associado à necessidade de lazer da classe trabalhadora,
uma vez que, para o movimento operário organizado, este era concebido como algo de
suma importância pois “representava não apenas a necessária reposição de energia gasta,
mas ocasião de desenvolvimento de uma cultura própria e independente de valores
burgueses” (Magnani, 1994, p.1). Se este era o papel do lazer em suas origens, o autor
aponta para importantes mudanças que ocorreram no modo como o mesmo recentemente
passou a ser encarado:

Se este é o quadro de referência que permite entender, em suas origens, o papel


do lazer, atualmente é possível verificar algumas mudanças na forma como é
encarado. Em primeiro lugar, o lazer já não é pensado apenas em sua referência
ao mundo do trabalho e, principalmente, não é visto como um apêndice a ele.
Uma rápida enumeração das instituições, equipamentos, produtos e atividades em
torno do lazer – academias, clubes, rede de hotéis, sistemas de excursões,
vestuário, os cadernos de turismo dos grandes jornais – mostra que as formas de
ocupar o tempo livre são consideradas per se, e constituem rentável
empreendimento.
(Magnani, 1994, p. 2).

Esta separação entre os ideais de lazer e trabalho diz respeito a mudanças ocorridas
em países desenvolvidos, nos quais a auto realização deixa de ser considerada somente
como uma questão de desenvolvimento material e passa a incluir o emocional como uma de
suas partes constituintes. Ora, se essa é uma característica de sociedades onde “os
problemas de base foram resolvidos em função da política do bem estar e onde a população
economicamente ativa entra cada vez mais tarde no mercado de trabalho e sai cada vez
mais cedo” o mesmo não ocorre na sociedade brasileira onde número expressivo de sua
população encontra-se “em estado de miséria absoluta” e “não tem acesso sequer ao
trabalho” (Magnani, 1994, p.2).
Porém, quando Magnani (1994) pensa a diferenciação entre a realidade brasileira e
a dos países desenvolvidos, não havia como referência em seu escopo de pesquisa a
112

situação da população imigrante sul-americana radicada em São Paulo. Conforme


demonstrado anteriormente, expressivo número desse contingente de imigrantes encontra-
se em situação similar à de brasileiros ou mesmo mais subalternizados em decorrência da
invisibilidade e o estigma no qual são marcados pela sociedade de recepção. Se essa é a
realidade ao qual estão inseridos, preocupamo-nos a partir desta premissa em analisar o
modo como os jovens destes grupos usufruem seu tempo livre e conformam, em contexto
urbano, circuito e redes de lazer e sociabilidade.
De que modo os jovens imigrantes e filhos de imigrantes se inserem para atividades
de lazer no munícipio paulistano? Essa forma de inserção conflita com o modo como os
adultos de suas comunidades se apropriam dos espaços públicos destinados para a
diversão? De que modo os estigmas repercutem na apropriação desses espaços? Tratam-se
somente de espaços de lazer ou, para além dessa função, possuem outros significados para
os jovens imigrantes?
Em pesquisa sobre a inserção de bolivianos na cidade de São Paulo, Cymbalista &
Xavier (2007) demonstram que o modo como os imigrantes ocupam e se apropriam dos
espaços públicos diverge das formas que outras minorias se apropriam em outros contextos.
Conforme os autores, os padrões de territorialização realizados pelos imigrantes sul
americanos radicados no Brasil não seguem o padrão identificado pela literatura
internacional – guetos, enclaves étnicos e banlieve – esses são quase sempre lugares
segregados e estigmatizados pelo restante da cidade e marcados pelo desemprego e
violência. Conforme os autores:

Em nenhum ponto da cidade os bolivianos concentram-se a ponto de constituir


um gueto, nem mesmo enclave étnico de menores proporções [...] sabe-se que os
bolivianos vivem em bairros centrais ou intermediários, e não em periferias, e
menos ainda em conjuntos habitacionais promovidos pelo poder público [...] a
desocupação e o desemprego entre os bolivianos é extremamente baixa,
contrastando com as descrições usuais referentes aos guetos ou banlieves.
Tampouco se trata de comunidades de refugiados ou desplazados políticos ou
religiosos...
(Cymbalista & Xavier, 2007, p. 122)

Essas mesmas características analisadas pelos autores foram encontradas nas


populações paraguaia e peruana, razão pela qual acreditamos que esses três grupos de
imigrantes obedecem ao mesmo padrão de ocupação no munícipio paulistano. Porém, no
tocante às atividades de lazer dos indivíduos dessas nacionalidades, percebemos que, de
modo geral, elas ocorrem em pontos específicos da cidade de São Paulo, as quais
113

destacamos os bares e baladas na rua Coimbra, as baladas latinas localizadas nos bairros
Centro, Vila Maria e Pari e a Batalla Callejera de hip hop, localizada no Brás, próximo à
rua Coimbra. Em outras palavras, existe um “circuito de jovens” (Magnani, 2010)
imigrantes na cidade de São Paulo, ao qual dirigimos nossa ótica nesse momento.

5.2 A rua Coimbra

Um importante ponto de encontro de jovens sul-americanos é a rua Coimbra, que se


tornou referência a peruanos, bolivianos, equatorianos, chilenos, colombianos e, mais
recentemente, venezuelanos111·. O referido logradouro está localizado a cerca de 10
minutos da Estação do Metrô Bresser Mooca. Trata-se de um cruzamento da rua Bresser, no
bairro Brás, região do centro expandido do munícipio de São Paulo112. No caminho que
leva ao local, conforme nos aproximamos, é possível observar a instalação de algumas
barracas provisórias de vendedores ambulantes oriundos de diferentes nacionalidades:
bolivianos, peruanos, equatorianos, pessoas de países africanos e brasileiros, que dividem a
calçada vendendo seus produtos, que variam desde eletrônicos, eletrodomésticos, roupas e
alimentos.
Esses ambulantes que não trabalham na Coimbra estão ao longo da calçada
esquerda da rua Bresser até a altura da avenida Celso Garcia. Nos finais de semana, se
estabelece uma barreira física entre a rua Coimbra e a atividade desses ambulantes:
cavaletes que impedem a entrada de automóveis na feira e dividem os vendedores que
trabalham na rua frequentada pelos imigrantes dos que trabalham em sua proximidade.
Estas barreiras que ali se estabelecem se justificam por conta do funcionamento de
uma feira cujo horário de funcionamento é compreendido entre as 10 e 22 horas no sábado
e das 12 às 17 horas, no domingo. Durante a semana, a feira deixa de ocorrer, mas é
possível encontrar estabelecimentos locais para atendimentos do público imigrante em
geral: bares, restaurantes, mercearias, lanchonetes, quadras de futebol, lan house, centros

111
Também é possível encontrar no local, pessoas oriundas do continente africano ou haitianos que se dirigem
a referida rua para vender seus produtos.
112
A importância de priorizar a rua Coimbra como lugar de observação de campo ocorreu pelo fato de essa ser
vista de modo negativo por meus interlocutores, ou seja, um lugar perigoso, associado com brigas e conflitos
de gangues (Pires, 2016), ao passo que a praça Kantuta é percebida de modo positivo pelas comunidades de
imigrantes que a frequenta. Além disso, enquanto a feira da praça Kantuta ocorre somente aos domingos, a
feira na rua Coimbra ocorre aos sábados e domingos e, durante a semana, o comércio local, cujos donos e
administradores são imigrantes, ocorre normalmente.
114

comerciais, agências financeiras e o centro do imigrante113. Assim, durante a semana o


número de pessoas que se dirigem ao local é pequeno, sendo que, nos finais de semana –
sobretudo aos sábados –, por conta do funcionamento da feira e da folga de trabalho que
usufrui grande parte dos imigrantes radicados em São Paulo, ocorre o aumento no número
de frequentadores, tornando-se difícil locomover-se pelas calçadas da rua.

Por um lado, a rua Coimbra pode ser compreendida como uma mancha, um local
que, é “resultado da relação que diversos estabelecimentos e equipamentos guardam entre
si e que é motivo da afluência do seu público” (Magnani, 2005, p.17), estando mais
vinculado à paisagem do que a seus eventuais frequentadores, tornando-se uma localização
que não se restringe somente aos “chegados”, mas que também possibilita “o imprevisto,
114
encontros inesperados” (Magnani, 2014, p. 5) . Por outro lado, quando observamos a
dinâmica do público que a ela se dirige, compreendemos que o modo deles se apropriarem
do local o transforma em um autêntico pedaço, um lugar de encontro e de lazer, mas que,
devido ao público que a ele se dirige nos finais de semana, faz com que seus frequentadores
não se conheçam “por intermédio de vínculos construídos no dia a dia do bairro”, mas se
reconheçam como “portadores dos mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações,
valores, hábitos de consumo e modos de vida semelhantes” (Magnani, 2014, p. 92).

No entanto, quando falamos a respeito da rua Coimbra como um pedaço, devemos


levar em consideração dois modos diferentes dos imigrantes se apropriarem do espaço por
eles constituídos: um feito pelas famílias o outro pelos jovens. Essa alternância115 entre
formas de apropriação está relacionada com a própria dinâmica da rua.

113
Estabelecimento que oferece atendimento na área da advocacia e serviços de saúde.
114
Trata-se, por sua vez, de uma “área contígua do espaço urbano dotada de equipamentos que marcam os
seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando – uma
atividade ou prática predominante” (Magnani, 2000, p. 10).
115
Neste sentido não abordamos a rua Coimbra nos remetendo a sua materialidade ou a partir de um eixo
classificatório unidimensional, ao contrário, priorizamos o modo como seus frequentadores a ocupam e dela
usufruem, em outras palavras, “falamos não da rua, mas da experiência de rua” (Magnani, 2000, p. 4). Assim,
nos remetemos a ela desde a “multiplicidade de seus usuários, suas tarefas, suas referências culturais seus
horários de uso e formas de ocupação” (op. Citada, p. 3).
115

Durante a semana, de dia, você vai encontrar bolivianos, pessoas cem por cento
bolivianas e bastante brasileiro por causa das fábricas que funcionam até as cinco
ou seis da tarde. Então durante a semana, durante o dia há bastante gente
circulando por aqui. Nos fins de semana... Aliás, aos sábados e domingos, a rua
está começando a fechar. Funciona uma feira até umas oito da noite e é uma coisa
mais familiar, vem jovem, vem gente de tudo quanto é idade, vem comprar pão,
vem comer. Agora de noite, a partir das 19 horas meio que muda, porque ali já
tem bares, então vem muita gente para beber, tem uma casa noturna então vem
gente para dançar. Então, o perfil muda, as famílias vão embora, já fica mais a
“molecada” [..] Então, tem essa diferença sim da noite para o dia. Alguns
comércios ficam abertos até as oito ou nove horas, no máximo dez, mas os bares
já ficam a noite inteira e aí você vai encontrar pessoas neste perfil: que querem
tomar uma cerveja, que vão ali para dançar. (Milena, filha de imigrantes
bolivianos, Pires, 2016).

Se o local tem essa dinâmica, convém destacar que ele é comumente associado ao
perigo e brigas que ocorrem e que muitas vezes culminam em mortes. Para os comerciantes
e pessoas que a frequentam no horário diurno – sobretudo os que a utilizam para se
alimentar ou comprar produtos típicos – isso se deve ao uso desenfreado de bebidas
alcoólicas por jovens – principalmente os menores de idade – nos estabelecimentos locais, a
ação de pessoas que se dirigem a Rua Coimbra para cometerem delitos e assaltar os
bolivianos e os conflitos e tensões ocasionadas pelas gangues de jovens imigrantes. A este
respeito à experiência de minha pesquisa campo serve-nos como exemplo para ilustrar o
tópico.
Em uma de minhas idas à rua Coimbra, aproveitei para conversar com um dos
vigilantes contratados pelos comerciantes da associação que administra o comércio no
local. Perguntei a respeito das brigas que aconteciam e ele, ao responder, afirmou que se
tratava de coisas do passado, de três anos atrás, mas que na atualidade, por conta da
presença de seguranças, isso não ocorria mais.
Eram por volta das 21 horas e, segundo meu interlocutor, se estivéssemos naquela
época, neste horário, eles, os seguranças, já teriam registrado ao menos umas seis brigas.
Aproveito e questiono se as baladas na rua Coimbra continuavam a acontecer. O segurança
responde que sim, mas as brigas praticamente acabaram, ao menos era o que os vendedores
da feirinha e os donos do estabelecimento afirmavam. Por fim, o questionei se as brigas que
ocorreram eram entre bolivianos e paraguaios. Ele respondeu que não, que ocorriam entre
os bolivianos e, geralmente, eram com facas, mas diminuíram gradativamente, depois que
os seguranças começaram a trabalhar na região.
Alguns dias depois dessa conversa, Milena me chama pelo Facebook e me mostra a
notícia do assassinato de um músico boliviano na saída de um estabelecimento localizado
116

na rua Costa Valente. Segundo a matéria, o músico foi assassinado com facadas durante a
madrugada e somente por volta das sete ou oito horas da manhã a polícia foi acionada. O
corpo permaneceu no local até a chegada da polícia, formando uma poça de sangue pela rua
e deixando todos os transeuntes aborrecidos e impactados. Nas fotos sobre o ocorrido,
postadas em um perfil público no Facebook, havia os dizeres: “Por favor amigos no anden
en la Rua Costa Valente após 12:00 a.m. (media noche) espere y salga en grupo. Pida Uber
dentro del estabelecimiento y aguarde un o dos minutos antes de salir y encontrar al
motorista. Vamos ayudarnos. Mira más una victima”116.

Essa postagem foi alvo de diversos comentários na referida rede social, cujo teor
reproduzo aqui:
¡Quien los manda ir a los antros de la rua Coimbra, en esa rua es sálvese quien
pueda! ¡Y los vendedores felices a esa costa, deben pensar dos veces antes de ir a
la rua de la muerte! Reflexionen, de tanta rabia eses bares y los prostíbulos de la
rua Coimbra y rua Costa Valente, son el peor perjuicio a la comunidad
boliviana. No solo es por las noches, igual te roban y flaquean en pleno luz del
día. No hay seguranza, ni en los fines de semana. Los comerciantes de la
Coimbra y de la Costa Valente solo piensan en llenarse el bolsillo, gracias a la
gente que asistimos a la feria de fin de semana a comprar diversos alimentos. Y
para lo peor ni nos garantizan con seguridad. ¿Dónde están eses que se llaman
dirigentes de la asociación? ¿Y la autoridad máxima el señor cónsul?
Por lo menos para prevenir que no pases esas cosas muy tristes. La verdad no es
una feria de bolivianos decentes. Es lleno de bares y prostíbulos, hasta da
vergüenza ver a la feria. Esos bares de Coimbra deberían cerrar, es una
cochinada los domingos de mañana. Señor Cónsul haga algo, hay más de 20
bares y prostíbulos en el centro de la calle Coimbra, una pena ver estas cosas. Es
hora que el consulado tome cartas en el asunto sobre estos bares y discotecas de
mala muerte para nuestra juventud.
(Josué, imigrante boliviano, comentário no Facebook, visualizado em
25/07/2019).

Outro usuário, contrariando a fala supracitada, afirmou:

Bueno que triste realmente... Pero quiero dejar aquí mi comentario, el problema
no está en los bares, ni comerciantes. La culpa esta em el que va a ese lugar, ¿y
para qué se va? Obviamente si es para ir a tomar bebidas alcohólicas, uno
mismo se está exponiendo a ese peligro de ser asaltado o hasta ser muerto. Mi
opinión es que cada uno debe cuidarse y, si va ir a ese lugar, recogerse temprano.
(Eduardo, imigrante boliviano, comentário no Facebook, visualizado
25/07/2019).

Os demais comentários na página do Facebook mantêm essa característica, sempre


culpando, ora os bares e estabelecimentos locais, ora os frequentadores dos horários
noturnos que são, em sua maioria, jovens entre 17 e 30 anos. A conversa segue este teor até
que uma imigrante de nacionalidade mexicana, discordando das demais narrativas, comenta

116
Nota do Diário de Campo, 25/07/2019.
117

em português: “Vamos fazer manifestação pedindo mais segurança. O problema é que as


autoridades não nos recebem. Na avenida Rio Branco onde vivem os peruanos é a mesma
coisa” (Nancy, imigrante mexicana, comentário no Facebook, visualizado em 25/07/2019).
Um boliviano, contrário a essa chamada, responde:

Nós juntos? Os imigrantes que você fala, nós que vamos melhorar a nossa
situação? Por acaso eu não me acho um coitado, acredito que ninguém é coitado.
Os caras são mortos pelos malandros porque são vacilões. Então mesmo que
tivesse policiamento como você está falando, para não acontecer morte tem que
ter um policial para cada bêbado.
(Ricardo. imigrante boliviano, comentário no Facebook, visualizado em
25/07/2019).

A mexicana então responde: “Eu não me sinto uma coitada, sou mexicana, mestiça
com indígena. Tenho orgulho de minha origem, mas já fui muito maltratada no Brasil.
Irmão para de julgar. Nós imigrantes estamos todos no mesmo barco. Já bastam os
brasileiros para nos julgar” (Nancy, imigrante mexicana, comentário no Facebook,
visualizado em 25/07/2019).
Ora, se os problemas que ocorrem na rua Coimbra são compreendidos pelos atores
sociais como resultados da venda indiscriminada de bebidas alcoólicas a menores de idade,
ausência de segurança e pela ação de grupos de jovens que se dirigem ao local para cometer
delitos, a questão a ser feita é: quem são as vítimas e quem são os supostos algozes? A
narrativa sobre essa questão nos leva de volta aos embates interétnicos entre as diferentes
nacionalidades de imigrantes e entre os imigrantes e os nativos da sociedade de recepção.
É o que demonstram as falas coletadas na postagem feita no Facebook sobre a morte
do músico de nacionalidade boliviana. Algumas atribuíam a culpa aos brasileiros, conforme
as palavras de um boliviano “Eran los brasileros de la 21 de abril, esa favela donde hay
muchos ladrones” (Vicente imigrante boliviano, comentário no Facebook, visualizado em
25/07/2019)
Outro usuário afirmou não serem os brasileiros, mas imigrantes de outras
nacionalidades: “Coimbra es peligroso hasta de dia porque vienen a robar peruanos y
paraguayos” (Rafael imigrante boliviano, comentário no Facebook, visualizado em
25/07/2019). Um paraguaio, que mora próximo ao local, responde dizendo não ser ele ou
seus compatriotas os culpados, uma vez que sempre frequentaram com respeito a rua
Coimbra e nunca fizeram nada de errado no local. Este é seguido por um peruano, que
afirma “soy peruano, y nunca he ido a la Coimbra robar, no generalices” (Emerson
imigrante peruano, comentário no Facebook, visualizado em 25/07/2019).
118

Estas narrativas demonstram que não há consenso entre os imigrantes a respeito dos
motivos que engendram as brigas e sobre quem são as vítimas e os algozes. Porém, as
tensões e confrontos envolvendo bolivianos, peruanos e paraguaios são percebidas pelos
mais novos do mesmo jeito que percebem a existência das pandillas juvenis: como algo do
passado. É o que demonstra a fala de um boliviano ao responder a um convite feito por
João para ir beber cerveja no “bar dos paraguaios”: “não vai ter problema, isso foi
117
antigamente, agora já está tudo resolvido” . No entanto, para os mais velhos trata-se de
algo recente, que ainda não teve solução. Segundo uma moradora da rua Coimbra, embora
não saiam mais notícias na mídia a respeito de brigas entre bolivianos e paraguaios e não
exista restrição para que estes frequentem o local, “as brigas estão voltando, os paraguaios
pegam os bolivianos com facas para roubar” 118.
Conforme abordado no capítulo anterior, diversos são os motivos e as justificativas
para as tensões envolvendo as relações entre bolivianos, peruanos e paraguaios. Não
pretendo nesse tópico retomar a questão, mas ressaltar que esta narrativa está presente no
discurso dos imigrantes sobre os problemas que ocorrem na rua Coimbra. Como reação a
estes conflitos, os atores sociais acabaram por criar uma petição online, exigindo das
autoridades locais mais segurança. Este documento119 contava com o seguinte conteúdo:

Os cidadãos do abaixo-assinados solicitam de Vossas Excelências uma solução


para o problema da falta de segurança pública da Rua Coimbra, Brás, São Paulo.
Embasados no Art. 5º [...] “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes”. Há muitos anos enfrentamos problemas com
a violência que ocorre na Rua Coimbra e ao seu redor, são assaltos, estupro,
furtos entre outras coisas. A Rua está um verdadeiro caos. [...] A rua é conhecida
pela feira de bolivianos que ocorre todo final de semana e é onde ocorrem mais
assaltos, pois é onde ocorre encontro dos imigrantes, com suas famílias, amigos,
entre outras coisas. Peço gentilmente que nos escute, precisamos de policiamento
urgente. Para evitar mortes e acidentes no local.

Ora, se os imigrantes percebem a rua Coimbra como um lugar perigoso, onde


ocorrem muitos assaltos, cabe ressaltar que nem o pesquisador está livre de sofrer
influência desta percepção. Conforme Albuquerque (2010), este “às vezes se sente inseguro
e presencia situações de perigo quando investiga determinados temas sociais”
(Albuquerque, 2010, p. 30), considerados perigosos. Assim, a sensação de insegurança

117
Nota do Diário de Campo 12/10/2019.
118
Nota do diário de campo, 02/11/2019.
119
https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR107813&fbclid=IwAR0-VPYpDDC9mxejD-
mYopHkkbwQ7cOdbl7lpL6uVsRTWge3LONmobkqsus, acessada em 02/07/2020.
119

esteve presente em diversos momentos em que efetivei trabalho de campo.


Dentre eles, merece destaque o momento quando, a convite de Marco, nos
encontramos em uma noite de domingo na estação Bresser-Mooca do metrô a fim de
jantarmos em um dos restaurantes localizados na rua Coimbra. Após a refeição, saímos de
um dos restaurantes do local e paramos em uma calçada para observarmos o movimento
que acontecia, conversávamos sobre o tema das gangues de jovens quando Marco apontou
na direção de três garotos brasileiros que estavam encostados em um carro, esses mexiam
com os bolivianos que andavam pela rua. Meu interlocutor acreditou que, provavelmente,
eram ladrões e que logo “iriam aprontar uma”. Vimos quando começaram a caminhar e
Marco, desconfiado, pensou que seguiam um boliviano, que passava pela rua de bicicleta
com a intenção de roubá-lo. Porém, isso não ocorreu e de longe observamos o momento em
que os três jovens seguiram por um caminho diferente do rapaz.
Após este ocorrido, permanecemos na rua até as 23 horas, quando resolvemos ir
embora pela Costa Valente. Naquele horário, a rua encontrava-se vazia, uma vez que a feira
já havia terminado. Senti que alguns bolivianos que ainda permaneciam no local nos
olhavam e nos encaravam. Tive até a impressão de sermos seguidos, mas não avisei Marco
para não o alarmar desnecessariamente. Dobramos a esquina e seguimos rumo a ao nosso
destino, quando olhei para trás e percebi que tinha sido apenas uma impressão120. Essa
preocupação também está presente entre os imigrantes com os quais conversei, pois
igualmente afirmaram sentirem-se inseguros na rua Coimbra em determinados horários,
motivo pela qual ela é evitada, sobretudo após as 21 horas, quando começam a ocorrer
brigas e roubos no local.
Porém, até aqui expus somente a visão dos que a frequentam durante o dia, nesse
sentido, tornou-se imprescindível observar o que de fato os jovens fazem e como ocorrem
suas relações nos estabelecimentos locais, sobretudo nos horários noturnos. Assim, em
diferentes ocasiões, permaneci na rua Coimbra até o início da madrugada, entre meia noite
e uma da manhã, momento em que os jovens começam a circular pelo local. Em uma
dessas oportunidades, fui com Marco a uma discoteca localizada próxima à esquina da rua
Bresser.
Ao entrarmos passamos por uma pequena porta e um estreito corredor. Logo antes
do salão onde os jovens dançam e bebem, encontra-se um caixa onde os frequentadores
pagam pelas bebidas que consomem. Em frente ao caixa, sentado em um banco, estava um

120
Nota do diário de campo, 02/06/2019.
120

senhor de aparentemente meia idade, vestido com um colete azul, escrito segurança. Já no
salão, observei algumas mesas dispersas pelo local e alguns bolivianos sentados com seus
amigos bebendo e conversando, enquanto outros dançavam ao som de cumbia, reggaeton e
funk. As mulheres estavam presentes, mas quando comparadas ao público masculino,
constituíam minoria no local. O chão estava grudento por conta das bebidas que, às vezes,
caiam do copo das pessoas que dançavam. Alguns homens e mulheres estavam sentados no
chão, de cabeça baixa, aparentando estar embriagados.
Sentamos em uma das mesas e ali permanecemos por alguns minutos, até que
Marco me chamou e me disse: “não está muito legal aqui, um clima meio pesado”. Por essa
razão decidimos ir embora, na saída um boliviano observava o movimento, passamos por
ele e Marco então comenta ironicamente: “Você viu a cara de bravo, quer fazer tipo de
mal”. Porém, embora o meu interlocutor não tenha se sentido à vontade, durante o tempo
em que permanecemos no salão não percebi nada de diferente do que ocorre em outros
salões e baladas frequentadas por brasileiros. Os jovens bebiam, dançavam, conversavam
paqueravam e, em suma, tinham o comportamento típico de quem está em uma balada121.
Essa experiência pode ser contrastada com outra que tive em um bar na rua
Coimbra, localizado próximo à rua Costa Valente. Na ocasião estava acompanhado de João,
sua namorada Milenka e uma boliviana de aproximadamente 25 anos chamada Mônica.
Esse dia era aniversário do departamento de Cochabamba, razão pela qual no telão dentro
do estabelecimento tocava salay, música típica da região. O bar estava cheio e, apesar de
pequeno, isso não foi empecilho para que seus frequentadores se colocassem a dançar,
animados pela música tocada no local. Como não encontramos nenhuma mesa para sentar,
tivemos que nos acomodar em algumas cadeiras do lado de fora.
Por volta de meia noite, dois homens trocam socos e são separados por um
colombiano que, naquele dia, trabalhava fazendo a segurança do bar. Essa foi a primeira
vez que percebi uma briga na rua Coimbra. Porém, tanto João quanto Mônica e Milenka
afirmaram que elas são recorrentes e acontecem sempre. Quando questionados sobre os
motivos que fazem com que os imigrantes briguem, todos foram enfáticos: bebidas,
disputas por mulheres e necessidade de autoafirmação enquanto homem122.
Essa mesma percepção a respeito das brigas esteve presente no discurso de outros
interlocutores que tive contato. Um deles, em certa ocasião, afirmou:

121
Nota do diário de campo, 29/06/2019.
122
Nota do diário de campo, 14/09/2019.
121

Eu acho que você já deve ter escutado a respeito de vários problemas de


paraguaios com bolivianos, de paraguaios com peruanos, eu falo deste problema
porque na época eu vi muito na TV falando que os paraguaios se acham
superiores aos bolivianos porque são brancos. Isto é mentira. Eu vejo mais como
na Vila Madalena, lá o pessoal bebe, enche a cara, um canta a mulher do outro,
sai fora, quebra a cara, mas não sai na TV. Por que é normal, isso aí acontece na
Augusta também, mas como esse é caso específico de imigrante. (Ramon.
Imigrante paraguaio, PIRES, 2016, p. 28).

Outro imigrante boliviano, ao falar das brigas que ocorrem na rua Coimbra,
destacou o modo diferente de brigar dos bolivianos quando comparados aos brasileiros:
“los brasileños son mariquitas, agitan nuestras mujeres y luego no pueden soportar la
lucha, desaparecen, pero vuelven armados. Nosotros, los bolivianos luchamos con nuestras
manos” (imigrante boliviano, Pires, 2016, p. 41).
Ambas as narrativas suscitadas remetem as questões interétnicas analisadas
anteriormente. Contudo, outro aspecto presente nesses discursos utilizados para justificar as
brigas que ocorrem na rua Coimbra – bem como outros lugares escolhidos pelos imigrantes
para atividades de lazer –, deve ser destacado: o “canta a mulher do outro, sai fora, quebra a
cara”, “agitan nuestras mujeres” e “son mariquitas”. Trata-se de elementos que, como
demonstrou Pimenta (2014) ao abordar os conflitos entre jovens e adolescentes em
diferentes regiões do Brasil, são resultados do desenvolvimento da cultura da violência,
“que é subjacente às culturas juvenis”. Conforme a autora, em tal perspectiva a violência é
compreendida como um princípio organizador das práticas ou um recurso que exclui
“outras formas de ajustes dos conflitos” (Pimenta, 2014, p. 711).
Se, conforme o registro de Pimenta (2014), a cultura da violência, por um lado,
resulta da exclusão em processos socializadores com fins ao desenvolvimento das artes da
negociação e da civilidade123, por outro, presentes nestes conflitos estão os sistemas de
valores baseados em representações do gênero masculino, nas quais se valorizam as noções
de bravura e ousadia.
A partir desta perspectiva, compreendemos que os enfrentamentos decorrem de uma
cultura da honra e do respeito que pautam as práticas sociais entre os jovens imigrantes,
sobretudo os homens. Podem, portanto, serem analisadas na chave da masculinidade
hegemônica (Connell; Messerschmidt, 2013) 124. Esta forma de relação não ocorre somente

123
Aspectos que, segundo a autora, são característicos do que Elias (1993) chamou de processo civilizador.
124
Não queremos com isto afirmar que existe uma única masculinidade entendida como hegemônica, uma vez
que, para os autores, o conceito remete a uma hierarquia entre múltiplos padrões de masculinidades no qual
algumas são estabelecidas como centrais e outras são subordinadas. Cabe ressaltar que este arranjo
hierárquico varia regionalmente e localmente e não se baseia na força, uma vez que depende do consenso
cultural, da centralidade discursiva e na marginalização de alternativas que possam substituir os modelos
122

entre indivíduos de nacionalidades diferentes. Mesmo entre pessoas da mesma


nacionalidade elas estão presentes. Consequentemente, embora o discurso nacionalista ou
que rememora a guerra entre países seja acionado quando ocorrem brigas entre bolivianos e
paraguaios, é no momento em que, questões envolvendo ofensas à masculinidade estão
presentes que as brigas ocorrem. Conforme observei em meu trabalho de campo, muitas das
provocações realizadas entre os indivíduos que frequentam a rua Coimbra remetem à
homossexualidade, ou ausência de virilidade como forma de xingamento125.
Assim, as brigas que ocorrem no local “tratam-se de confrontos em que a
masculinidade é colocada em questão e a afirmação da identidade é dada por meio da
violência” (Pimenta, 2014, p.714). Com isto, não queremos dizer que as mulheres não
participam das brigas que ocorrem, mas que, predominantemente, são os homens de
diferentes nacionalidades que se encontram envolvidos nos conflitos e tensões na rua
Coimbra, ou em outros lugares de lazer126.
Essa defesa da honra e da identidade masculina não diz respeito somente à defesa de
si próprio, mas também dos companheiros e amigos, quando é acionada a categoria nativa
de carnalidad, conforme atesta o testemunho de João acerca das brigas das quais participou
com seus amigos bolivianos. Em uma delas, um amigo seu, de nacionalidade boliviana,
chamado Josué se desentendeu com um compatriota e, após minutos discutindo a questão,
ouviu que ele era digno de respeito, mas os outros que o acompanhavam – entre eles João –
, não. Momento em que seu amigo retrucou “Si no respecta a mis carnales a mi también no
respecta” e, desse modo, recomeçou a briga que foi terminar em uma das adjacências da
rua Coimbra127.
Entretanto, essa briga, assim como outras que ocorreram na rua Coimbra, não foi
gerada por disputas entre gangues juvenis, tal como afirmou inúmeras vezes João e outros
imigrantes com os quais conversei. Segundo os meus interlocutores, tratava-se apenas de
desentendimentos momentâneos que, somados ao uso de bebidas, culminaram em casos de
violência e confrontos entre imigrantes.

dominantes de masculinidades. Além disso, estes padrões não se constroem isoladamente ou com base nas
relações que desenvolvem entre si, mas dependem também das relações construídas com o gênero feminino.
125
Nem mesmo o pesquisador esteve isento de provocações. Em uma ocasião, enquanto conversava com a
dona de um estabelecimento na rua Coimbra para obter informações, um boliviano altamente alcoolizado
aproximou-se e perguntou a respeito de minha nacionalidade. Este ao saber de minha procedência enunciou
“brasileño gay” (Nota do diário de Campo, 08/06/2019).
126
Não queremos com isso fazer uma análise de como a masculinidade dos jovens imigrantes é construída
tampouco tratar de relações de gênero no presente estudo. Tal análise, embora importante, foge do objetivo
desta pesquisa.
127
Nota do diário de campo, 31/08/2019.
123

De gangues eu não sei dizer, que eu saiba não são gangues. Antigamente era
aquela briga de bolivianos e paraguaios. Hoje em dia, tá tudo misturado,
boliviano já matou até o próprio boliviano, sabe? Tá tudo misturado, eu não posso
dizer que é gangue. São brigas assim de momento em que um tá bêbado, o álcool
sobe e já começam a brigar. Grupos também, por exemplo eu tenho um grupo de
amigos e antigamente eles se envolviam bastante em brigas na Coimbra.
Chegaram a matar amigos dos meus amigos também. Então são grupos de amigos
que são percebidos como gangues talvez e as pessoas veem e pensam que é
gangue.
(Patrícia, imigrante boliviana, entrevista realizada, 22/09/2019).

Assim, os discursos a respeito das gangues são acionados e reatualizados pelos


imigrantes mais velhos para interpretar o fenômeno das brigas entre jovens de diferentes
nacionalidades. Essa constatação corrobora a discussão realizada anteriormente a respeito
do modo negativo que, tanto interetnicamente quanto intraetnicamente, os jovens
imigrantes que frequentam a rua Coimbra no horário noturno são marcados128.
Portanto, o embate a respeito da rua Coimbra, para além das denúncias feitas pelos
imigrantes sobre a ausência de segurança no local, concerne a dois modos distintos de se
apropriar do espaço. Estes estão entrelaçados com a dinâmica da rua: durante o dia, ela é
frequentada por famílias para alimentação e consumo de produtos e, durante a noite, ela é o
horário dos jovens que curtem suas baladas e os bares que continuam funcionando após o
término da feira. Por sua vez, são os jovens que são responsabilizados pelos problemas que
ali ocorrem. Neste sentido, estamos diante de um conflito entre formas de apropriação do
espaço, um conflito entre pedaços e entre formas de sociabilidades diferentes: de um lado o
das famílias, com suas regras e formas específicas de conduta e, de outro, o dos jovens
imigrantes e filhos de imigrantes, também com as suas.
Contrastando com esta dinâmica própria da rua Coimbra, estão as baladas
localizadas nos Bairros do Pari, Mooca, Limão, Vila Maria e Centro de São Paulo, onde o
modo de os jovens socializarem é praticamente o mesmo. A este respeito, cabe destacar
que, embora se tratem de lugares percebidos de modo negativo pelos imigrantes mais
velhos, eles não são alvos de discussões acaloradas como as que ocorrem sobre os
estabelecimentos da rua Coimbra. A descrição das relações de sociabilidade e a forma como
ocorre a apropriação destes espaços serão discutidas a seguir.

128
Não foi possível identificar a classe social ao qual pertencem estes jovens. Contudo, constatamos que os
mesmos frequentam outras baladas localizadas no Bairro da Vila Maria e do Pari como as do Night Club e as
do Sensación.
124

5.3 As baladas de imigrantes na Vila Maria e no Pari

Durante o tempo em que realizei trabalho de campo na rua Coimbra, foi muito
comum a presença de barracas realizando divulgação de shows de grupos de cumbia,
reggaeton e outros estilos musicais latino-americanos, cujas apresentações ocorrem em
diversos locais da cidade de São Paulo. Em um desses dias, encontro com Richards, que
estava trabalhando como promotor. Ele, então, comenta sobre a apresentação de um grupo
argentino e da apresentação de um DJ porto-riquenho em um salão localizado na Vila
Maria, faz-me o convite e me entrega o panfleto dizendo “toma, pega um para você não
esquecer”. Ao me entregar o papel, Richards me conta sobre essa casa de shows que realiza
todos os finais de semana as festas latinas e que os imigrantes e filhos de imigrantes têm
comparecido em peso no local129.
A partir desse momento, passei a refletir sobre os locais de lazer frequentados por
imigrantes e filhos de imigrantes e que estes não se restringem à rua Coimbra, mas
estendem-se a outras localidades e bairros de São Paulo. Em conversa com Felipe, este me
conta que já trabalhou como DJ nas chamadas festas latinas na cidade e que este circuito de
baladas havia crescido muito. Conforme suas palavras, os filhos de imigrantes começaram a
fazer faculdades, tem um poder aquisitivo e passaram a frequentar outras casas noturnas e
organizar suas próprias baladas, competindo com antigas danceterias como o Sensación e
aquelas que se localizam na rua Coimbra.
De acordo com Felipe, as músicas tocadas nestes locais são funks, reggaetons,
cumbias e outros estilos de músicas latinas o que tem atraído não somente jovens
imigrantes de diferentes nacionalidades, como também os brasileiros. Portanto, existe na
atualidade um circuito de shows na cidade de São Paulo em que a comunidade imigrante
tem sido responsável. Decidido a conhecer este circuito de lazer e compreender o modo
como ocorre a sociabilidade dos jovens imigrantes nestes locais, passei a frequentar as
baladas na Vila Maria130 nos finais de semana, especificamente a do Night Club.
A primeira vez que compareci a esta casa de shows foi na apresentação do grupo
feminino da argentina chamado Las Cullisueltas e do DJ porto-riquenho Joan de La Voz.
Trata-se de artistas desconhecidos do público brasileiro, mas que possuem fama frente à

129
Nota do diário de campo, 15/06/2019.
130
Bairro localizado na zona Norte de São Paulo.
125

juventude hispano-americana radicada no Brasil, principalmente o grupo feminino131.


Conversei a respeito deste local com Beatriz e ela me afirmou já ter comparecido em outra
oportunidade com uma amiga de nacionalidade chilena. Então, combinamos de irmos
juntos no dia da apresentação do evento. Beatriz também convidou uma amiga de
nacionalidade panamenha e um amigo brasileiro, mas no dia do referido evento tiveram
problemas e não puderam ir.
No dia da apresentação, nos encontramos por volta das 22 horas na estação do
Metrô Belém e tomamos um ônibus rumo à Vila Maria, bairro em que está localizado o
salão. No caminho, perguntei a Beatriz sobre o espaço. Ela me respondeu que se trata de
um lugar imenso e que não é perigoso. Vinte minutos depois, chegamos ao nosso destino. O
referido salão encontra-se na avenida Guilherme Cotching, que se inicia logo após a Ponte
Presidente Jânio Quadros e é uma das principais avenidas da Vila Maria. Descemos no
primeiro ponto, pois segundo Beatriz, a balada é próxima à Marginal Tietê. A região é bem
movimentada, apesar de se tratar de uma área residencial com alguns comércios que,
naquele momento, encerravam suas atividades. A avenida é de mão dupla e, exceto o
movimento dos carros, as calçadas estavam desertas.
Quanto ao salão, realmente este é enorme, mas não conta com uma fachada atraente
se comparada a outras baladas da cidade de São Paulo. Em frente à casa de shows, uma
crescente fila de jovens imigrantes e seus descendentes se aglomeravam esperando o
momento em que a casa seria aberta para recebê-los. Antes de entrarmos na fila, Beatriz
quis comer alguma coisa. Foi então que fomos até uma vendedora ambulante de
nacionalidade peruana para comprar uma das refeições que vendia no local. Neste instante,
converso com um rapaz de nacionalidade boliviana e pergunto a ele sobre a balada, se era
movimentada e se no local ocorriam brigas. O jovem, então, me responde “Sim tem brigas,
mas em todos os lugares tem né? Mas não tem perigo não”.
Após a refeição de Beatriz, entramos na fila e aproveitei o momento para observar o
público que iria adentrar a casa. Percebi que não se trata de uma simples balada para
bolivianos, uma vez que o público aguardando ansiosamente para comprar as entradas do
salão era de diferentes nacionalidades de imigrantes132, contando também a presença de
brasileiros –, ainda que em menor número. Beatriz me chama a atenção para um carro que
acabara de estacionar em frente ao local: três homens e duas mulheres que descem do

131
Conforme Milena, este grupo foi muito conhecido na Bolívia, Peru e Paraguai há alguns anos.
132
Embora o público presente no local fosse, em sua maioria, de bolivianos e peruanos e filhos de bolivianos
e peruanos.
126

referido automóvel. Embora falantes de espanhol, não eram bolivianos, peruanos ou


paraguaios.
De acordo com Beatriz, pela variante dialetal do espanhol, afirmou que eram
colombianos e porto-riquenhos. Em um determinado momento, Beatriz começa a conversar
com uma moça que estava em sua frente na fila, esta fica feliz ao saber que minha
interlocutora é de nacionalidade peruana e lhe diz que seu pai é peruano e sua mãe
boliviana. Beatriz então comenta comigo que a maioria dos frequentadores no local é de
filhos de imigrantes bolivianos e peruanos, ou pessoas que nasceram na Bolívia e no Peru,
mas terminaram de crescer no Brasil.
As entradas custavam 70 reais para o camarote e 35 para a pista. Entramos no salão
por volta das 23 horas, quando o mesmo se encontrava vazio e alguns poucos adolescentes
e jovens já estavam no local naquele horário, dançando e tomando bebidas alcoólicas. O
lugar comporta em torno de 1250 pessoas, a maior parte na pista de dança, sendo que no
piso superior, acima da pista principal – local de onde é possível ver melhor o show –, são
suportadas em torno de 300 pessoas. Neste local privilegiado, ficam algumas poltronas e
mesas para que os jovens presentes possam sentar e assistir confortavelmente ao show.
Naquele horário o palco era ocupado por um DJ que, ao som de cumbia callejera,
salsa e reggaeton, colocou o ainda pequeno público para dançar. A pista contava ainda com
alguns palcos e poucas mesas espalhadas, além de alguns tambores de ferro utilizados pelos
jovens para colocar a cerveja e outras bebidas. Quanto à dinâmica da sociabilidade no local,
esta obedece à lógica do que ocorre em qualquer balada: com a alegria estampada no rosto,
os jovens dançavam, cantavam, paqueravam e namoravam. Exibiam uma felicidade
somente sentida quando as amarras do cotidiano e do trabalho estão suspensas, contrastante
com a imagem – autoalimentada pelos imigrantes e pelos nativos da sociedade de recepção
–, de pessoas tristes e submissas. Certamente, ali não era o local onde tais sentimentos se
manifestavam em sua superficialidade.
No que diz respeito à classe social dos frequentadores, não foi possível identificar, o
que impede o presente estudo de tecer alguns comentários dado que poderíamos incorrer no
risco da generalização. Porém, conversando com Milena ouvi que, por conta do preço da
entrada e das bebidas no local, provavelmente são jovens filhos de donos de oficinas de
costura, ou de imigrantes residentes no Brasil há muito tempo. Em suma, para minha
interlocutora se trata dos filhos da elite dos imigrantes que frequentam o referido local.
Uma coisa que me chamou minha atenção é que a casa, apesar de funcionar até a
127

madrugada, não realiza um controle rígido a respeito da idade daqueles que entram para
curtir a noite no local. O mesmo foi observado no que diz respeito ao consumo de bebidas
alcoólicas. Eram consumidas por jovens de diferentes idades, não somente cervejas, mas
whiskies, vodcas e outras bebidas do mesmo tipo, além das conhecidas batidas. Convém
ressaltar que este é um dos motivos de reclamações dos frequentadores da rua Coimbra,
uma vez que o consumo de bebidas é um dos fatores apontados para que ocorram briga no
referido logradouro.
Quanto aos conflitos entre os jovens frequentadores, assim como na Coimbra, eles
também estão presentes, ainda que com menor regularidade. Neste dia, ainda dentro do
salão, presenciei duas brigas que logo foram apartadas pelos seguranças e os jovens que a
iniciaram, colocados para fora. Outras duas, eu e minha interlocutora presenciamos na saída
da balada, quando já estávamos na rua. Neste momento, a avenida Guilherme Cotching
estava escura, mas os carros, ônibus e outros automóveis já circulavam pela via. Os jovens
saiam da balada aos poucos e iam se reunindo em frente à casa de shows, conversando
alegremente.
De repente, dois rapazes começam a discutir, trocam socos e se atracam, algumas
meninas gritam desesperadamente até que os jovens são separados pelos seus colegas. Em
seguida, cada um vai embora por seu caminho, seguido por seus amigos. Alguns minutos
depois, outros garotos dão início à outra briga. Desta vez em frente à balada, após alguns
insultos e troca de socos, foram separados pelos seguranças do local que exigiram que eles
fossem resolver seus problemas em outro lugar. Ao ouvir o que os jovens falavam uns aos
outros, notei que não se tratava de brigas ocasionadas por disputas envolvendo gangues e
sim de desentendimentos gerados por brincadeiras e provocações que os garotos faziam uns
aos outros culminando, por sua vez, em agressões físicas133.
Tempos depois, ao conversar com uma moça brasileira que, por conta de namorar a
um rapaz boliviano, frequenta as baladas da Vila Maria, ouvi que isso é muito comum
134
acontecer nestas baladas, segundo suas palavras “eles gostam de brigar” . Outro garoto
de 17 anos que costuma frequentar o Night Club afirmou que “Isto tem sempre, mas é
135
normal, né? A galera bebe, arruma briga, mas é normal” . Ambas as narrativas dizem
respeito a uma imagem reificada sobre jovens que frequentam as baladas na Vila Maria: o
fato de eles gostarem de brigar ou de beberem demais e arrumar confusão.

133
Nota do diário de campo, 22/06/2019.
134
Nota do diário de campo, 06/07/2019.
135
Nota do diário de campo, 07/07/2019.
128

Se assim é percebido e relatado pelos atores sociais, cabe ressaltar que durante o
tempo em que realizei pesquisa de campo no Night Club, a maioria dos jovens que se
envolvia com brigas eram homens que, por conta de disputas próprias envolvendo a defesa
da honra masculina, como a autoafirmação da identidade – por meio do consumo de
bebidas alcoólicas e disputas por mulheres – acabavam em confrontos físicos. Ao passo que
se as mulheres eram disputadas pelos rapazes, a estas competiam o papel de apaziguar os
ânimos sempre que estes estivessem acirrados. Assim, tanto a observação de campo, quanto
as narrativas dos jovens imigrantes remeteu-me ao mesmo fenômeno observado na rua
Coimbra a respeito dos conflitos ocasionados pelos jovens.
Tal como afirmado anteriormente, as tensões resultam de uma cultura da violência e
têm como base um sistema de valores e representações do gênero masculino que, por sua
vez, pautam as práticas sociais entre homens (Pimenta, 2014). Ora, se as brigas estão
presentes nestas baladas, não observei e nem obtive nenhum registro a respeito de morte ou
esfaqueamento de imigrantes nesta balada ou mesmo em frente dela, tanto nos horários de
entrada quanto de saída do local. Isto se deve a forte presença dos seguranças que, na
maioria das vezes, atuam de modo desproporcional.
Em duas oportunidades, fui testemunha de como os funcionários da casa atuam para
resolverem os conflitos e tensões que nela ocorrem por conta de seus frequentadores. Uma
delas, um dos seguranças acompanhou a um paraguaio ensanguentado por conta de um
corte na cabeça para fora do local e, na rua, deferiu-lhe um chute136. Em outra ocasião, dois
seguranças abordaram a um boliviano e tentaram conduzi-lo a saída, visto que este resistiu,
um dos seguranças golpeou-o com um mata-leão. O boliviano desmaiou e, mesmo
desacordado, foi colocado para fora da casa137. A respeito do modo como os jovens
imigrantes são tratados pelos seguranças, ouvi de um adolescente boliviano que os “caras
agem assim, porque são imigrantes. Aí tem abuso de autoridade”138.
Vale salientar que não é somente quando ocorrem brigas que o comportamento dos
seguranças é hostil. Enquanto o público dança e curte, estes transitam pela casa encarando a
todos. Este também é um comportamento que não só intimida aos imigrantes, como
também os deixam constrangidos. A este respeito uma das frequentadoras da casa afirmou:
139
“Não gosto de ser tratada desta maneira, ninguém aqui é animal” . Para Milenka a

136
Nota do diário de campo, 06/07/2019.
137
Nota do diário de campo, 27/07/2019.
138
Nota do diário de campo, 07/07/2019.
139
Nota do diário de campo, 27/07/2019.
129

violência não é só gerada por conta das brigas que ocorrem na balada, segundo sua visão, a
xenofobia e a misoginia estão relacionadas com a forma com que os seguranças se
comportam nesta balada, gerando agressões de diferentes maneiras, incluso a violência de
gênero.

Eu não gosto, eu já tive problemas. Comigo não fizeram nada. Mas com minha
amiga, com meus amigos, com minha irmã sim. Chegou a ter agressão física da
parte deles, chegou a ter abuso sexual dentro da balada. Os seguranças são
totalmente xenofóbicos. Eu já bati boca, já briguei, mas isto não vai mudar,
porque não muda. Pode mudar a parte da organização, mas com o público eles
não tão nem aí e os seguranças sabem que os donos não tão nem aí. Então eles
continuam fazendo, continuam alimentando isso e fica por aí mesmo.
(Milenka, imigrante boliviana, entrevista realizada, 15/09/2019).

Esta dinâmica do que ocorre neste salão localizado na Vila Maria, não é diferente
de outras baladas frequentadas pelos imigrantes. Uma delas, a mais antiga, denominada
Sensación, tomei conhecimento conversando com os imigrantes que moram no Brás e no
Pari. Ela iniciou seu funcionamento há pouco mais de 15 anos e marcou a história de vida
dos membros das comunidades bolivianas, peruanas e paraguaias, sobretudo por ela ter sido
palco de confrontos e brigas que envolveram as denominadas pandillas juvenis.
A referida balada encontra-se na rua Carlos de Campos, no bairro do Pari, próximo
à Marginal Tietê e distante cerca de 10 minutos da praça Kantuta. Em conversa com Felipe
a respeito do local, este me disse lembrar-se de 10 ou 11 anos atrás, quando os bolivianos e
outros imigrantes que frequentavam ao local eram assaltados por brasileiros e paraguaios
quando iam embora ao término da balada, “era uma correria de um lado para o outro de
imigrantes com medo de serem assaltados”. Meu interlocutor afirmou que o surgimento das
gangues, formadas por bolivianos e peruanos, contribuiu para a diminuição dos assaltos,
embora tenha aumentado a violência140.
Quanto ao público que atualmente o frequenta, Felipe afirmou que é formado
majoritariamente por bolivianos e peruanos, mas que os paraguaios também costumam ir ao
local, fator que ocasiona algumas brigas. A idade dos frequentadores, segundo o meu
interlocutor, está em torno dos 35 e 40 anos, porque os mais jovens preferem outras
baladas, uma vez que as mais antigas como as do Sensación e aquelas localizadas na rua
Coimbra não possuem nenhuma novidade, tornando-se repetitivas. Quanto a isto, Robson
afirmou:

140
Nota do diário de campo, 06/07/2019.
130

Tem as mais jovens que ficam na Vila Maria, que vai um pessoal mais jovem e
tem na rua Coimbra e no Sensación que vai o pessoal mais velho, numa faixa
etária de 25 anos aos 40 anos em diante. Nelas você ouve músicas que estão no
beat, né? Os caras que vão ali à Vila Maria são mais jovens, é tudo uma questão
de semiótica, de linguagem os caras usam um marketing fudido, você põe grupos
novos de funk, de cumbia, lança eles... A galera chega. É que nem aqui no Brasil,
o negócio arrasta. A Coimbra e o Sensación não têm tanto marketing, vai o
pessoal mais velho e tudo o mais que vão lá mais para beber e tudo o mais. Já na
Vila Maria não, o pessoal quer azarar.
(Robson, filho de imigrantes bolivianos, 25/07/2019).

Assim, de acordo com a narrativa de meus interlocutores, é possível separar as


baladas frequentadas pelos imigrantes na cidade de São Paulo a partir de um coorte
geracional. Esta diferença entre gerações vai estabelecer o modo como esta juventude se
comporta nos diferentes locais escolhidos para o lazer: enquanto a Vila Maria é o lugar de
“azarar” na Coimbra e Sensación se dirigem os mais velhos cujo intuito é beber. Porém em
ambos tocam as músicas que estão no “beat”, ou seja, na moda e que agrada as diferentes
gerações de jovens. Neste sentido, compreendi ser importante conhecer este espaço e
observar o modo como ocorrem as relações de sociabilidade e, se possível, encontrar os
pontos de diferenciação da dinâmica deste com relação ao Night Club. Assim, em um
domingo, logo após o encerramento das atividades na praça Kantuta, recebi ao convite de
Rose para irmos ao Sensación.
Encontramo-nos na entrada do local e logo de início algumas características me
chamaram a atenção. Assim como no Night Club, a entrada do Sensación não é a das mais
atrativas, tampouco parece ser a de uma balada. A fachada do estabelecimento é toda preta
e composta de uma enorme porta de aço também pintada com as mesmas cores, a entrada é
uma parte pequena localizada em um dos cantos, por onde as pessoas costumam entrar. Não
havia naquele horário um grande público se aglomerando para entrar no estabelecimento,
nem propagandas ou seguranças. A este respeito, Rose comentou: “Não parece ser uma
balada, né? Acho que os donos não estão com a situação regularizada e não querem chamar
atenção”.
Passamos pela pequena entrada e caminhamos por um estreito corredor que, no lado
esquerdo, conta com uma bilheteria sem funcionamento. Encontramos com algumas
mulheres bolivianas na entrada que separa o corredor da pista, estas nos informam que o
evento que iria ocorrer naquele dia é gratuito. Entramos sem sermos revistados. A casa,
naquele momento ainda estava vazia e uma das mulheres que trabalhavam no local me
informou: “é que acabamos de abrir”. O lugar é pequeno – cabem aproximadamente umas
131

500 pessoas – e é dividido em dois ambientes, uma pista pequena onde se acomodam a
maioria dos presentes e um mezanino, onde além de umas mesas encontra-se uma área
reservada ao DJ.
Ao conversar com Rose sobre a pista ainda estar vazia, ela me disse que isto ocorre
pelo fato de a Casa ser uma balada muito antiga e ter sido frequentada por pessoas de sua
geração (minha interlocutora está com 35 anos) e que, na atualidade, os mais jovens vão a
outros lugares como o Night Club e outras baladas latinas. O ambiente estava escuro e tem
um jogo de luzes muito comum em danceterias. Na parede, um quadro retratava uma das
montanhas que forma a cordilheira dos Andes: o Illmani.
Dentro do salão, dirijo-me ao bar e converso com uma das atendentes de
nacionalidade boliviana. Pergunto-lhe sobre a idade dos frequentadores, ela responde que o
público varia entre 18 e 40 anos. Conto esta informação a Rose que, ironicamente,
responde: “Ela deve ter achado que você é investigador da polícia. Como ela sabe a idade
dos que frequentam se não tem segurança pedindo a documentação?”.
O som que rolava na casa era composto por cumbia e reggaeton, mas também
canções populares bolivianas, peruanas eram tocadas e exibidas em um telão141. À medida
que o tempo passava o público ia aumentando. Rose me diz então que como as atividades
da Kantuta terminam às 18 horas, os imigrantes só iam para lá depois deste horário.
Observei que, gradativamente, chegavam jovens de 18 a 25 anos, contrastando com a visão
de Rose, Robson e Felipe a respeito do salão ser frequentado por indivíduos com a idade
acima dos 30 anos.
Conversava com Rose, quando um grupo de meninas pertencentes a uma das
fraternidades de danças folclóricas bolivianas chega ao local, algumas delas dirigem-se ao
bar, compram bebidas, levam para o salão e colocam as garrafas no chão fazendo um
círculo em torno delas. Todas compartilham a bebida e dançam alegremente enquanto são
observadas pelos homens que estavam sentados à mesa e que, segundo minha interlocutora,
também pertencem a mesma fraternidade que as meninas. Rose me informa que estes
jovens provavelmente estavam ensaiando na praça Kantuta e se dirigiram ao Sensación para
confraternizar e comemorar.

141
Assim, é por meio das músicas tocadas nestes estabelecimentos que os jovens imigrantes e os filhos de
imigrantes se conectam a cultura de seus países de origem ou de seus pais. Em tal sentido, as canções tocadas
nestas baladas possibilitam aos atores sociais acessarem ou se conectarem a “diferentes territorialidades
mesmo sem deslocamento físico” (Hasbaert, 2012, p. 344), fenômeno que o autor denominou de
multiterritorialidade. A este respeito, uma de minhas interlocutoras nascida no Brasil, mas descendente de
bolivianos e peruanos, afirmou que as canções tocadas nas baladas fazem com que os jovens tenham
conhecimento da cultura de origem dos seus pais e passam a sentir orgulho de suas raízes.
132

Em diferentes momentos o DJ parava de tocar as músicas em sua pick-up e soltava


no microfone a frase “soy soltero” e o público respondia “hago lo que quiero”. Os jovens
divertiam-se, curtindo animados, quando dois garotos da mesma fraternidade de dança
iniciam uma briga, trocam socos e se atracam, mas rapidamente são separados por seus
colegas. Os jovens discutiram alguns minutos e voltaram abraçados aos seus lugares, como
se nada tivesse acontecido.
A festa encerrou-se por volta das 23 horas da noite, momento em que a maioria do
público no local começa a deixar o estabelecimento. Conforme observado, não se trata de
uma balada muito procurada pelos jovens imigrantes, nos dias atuais. Rose afirma que em
sua época, ou seja, para os jovens de sua geração, o único lugar que tinham para frequentar
era o Sensación, os de hoje tem mais opções e por isso frequentam outras danceterias na
cidade de São Paulo142.
Embora na percepção de meus interlocutores, as baladas dos imigrantes estejam
separadas por gerações, a dinâmica nestes diferentes locais é a mesma. Trata-se de espaços
nos quais os jovens escolheram para atividades de lazer e onde se encontram com os seus
iguais. Neste sentido, o modo como os atores sociais se apropriam deles lhes transforma em
pedaços, ou seja, estes são espaços em que seus frequentadores ainda que não se
reconheçam pelos mesmos vínculos construídos pelas relações de vizinhança no bairro143,
se reconhecem como portadores “dos mesmos gostos, orientações, hábitos de consumo e
modos de vida semelhantes (Magnani, 2012, p. 96)”.
Além disso, estes pedaços dos jovens imigrantes não se tratam de espaços isolados,
ao contrário estão ligados pelos trajetos que os jovens imigrantes realizam entre um e outro,
em outras palavras, o uso que os imigrantes fazem dos “estabelecimentos, equipamentos e
pedaços que não mantem entre si uma relação de contiguidade espacial” conformam um
circuito de lazer na cidade de São Paulo. Este é “reconhecido em seu conjunto pelos
usuários habituais” como também é onde ocorre “o exercício da sociabilidade por meio de
encontros, comunicação e manejo de códigos” (Magnani, 2007, p. 30). Como parte
integrante desta sociabilidade, estão as relações conflituosas desenvolvidas entre os jovens,
muitas delas culminando em brigas. Tal como visto anteriormente, trata-se de conflitos que
nos remetem ao modo como os valores masculinos são construídos contemporaneamente,

142
Nota do diário de campo, 03/08/2019.
143
Ao observar a página de eventos criadas no Facebook por organizadores das baladas que ocorrem no
Sensación e no Night Club constatei que os frequentadores não são somente moradores do Brás e do Pari,
muitos moram na zona norte, zona sul e zona leste de São Paulo, como também em outros municípios como
Osasco, Carapicuíba, Itapevi e Guarulhos. (Nota do diário de campo, 03/08/2019).
133

nos quais a defesa da honra e da identidade masculina é feita por meio da violência.
Assim, se o clima nestas baladas é de festa e curtição, isto não significa que não
ocorram brigas entre os seus frequentadores, uma vez que, nas baladas, assistimos as
mesmas questões que ocorrem nos bares e discotecas da rua Coimbra. Porém, estes locais
não são alvos de discussão como ocorre com a rua Coimbra. Isto porque nas baladas da
Vila Maria e do Sensación não presenciamos a um conflito entre dois modos distintos de
ocupar ao espaço, um conflito ocasionado entre dois pedaços distintos e suas relações de
sociabilidade. Como demonstrei anteriormente, a rua Coimbra, durante o dia, é o pedaço
das famílias e dos que se dirigem a ela para comprar produtos típicos e se alimentar, ao
passo que, durante a noite é o espaço dos jovens que frequentam seus bares e baladas.
Para além dos problemas que ocorrem na rua Coimbra, estamos diante de um
conflito de formas de apropriação do espaço e de modos próprios de socialização. Os
jovens que frequentam a rua durante a noite são, na maioria das vezes, responsabilizados
pelos problemas que a afligem e, no momento em que os crimes, brigas e assaltos ocorrem,
é que a narrativa sobre as gangues é acionada pelos frequentadores e comerciantes do local
para interpretação do fenômeno. Assim, a rua Coimbra é estigmatizada por conta dos seus
problemas relacionados à ausência de segurança. Por sua vez, os jovens que a frequentam
no horário noturno tornam-se os bodes expiatórios e acabam estigmatizados pelas
narrativas interpretativas sobre as brigas e assaltos que ocorrem no local.
Pode-se compreender a controvérsia que ocorre na rua Coimbra a partir da análise
144
que Pereira (2014, 2016) realizou sobre o “rolezinho” em estabelecimentos comerciais
na cidade de São Paulo. No caso específico tratado pelo autor, o evento trouxe como
resultado um choque entre dois fluxos “o das vendas e compras de natal [...] com o fluxo da
diversão de jovens durante as férias escolares” (Pereira, 2016, p. 554). Este choque entre
duas formas de ocupação dos espaços na cidade resultou, em um primeiro momento, na
repressão dos jovens por meio do aparato de segurança pública – polícia militar e civil – e
privada – segurança dos estabelecimentos em que ocorreram os eventos –, como na
estigmatização dos jovens e seus modos de sociabilização, gostos musicais e estéticos145.
No caso específico da rua Coimbra como justificativa a este modo negativo de
enxergar aos jovens frequentadores do local está às narrativas de terror (Taussing, 1993)

144
Termo nativo utilizado por jovens da periferia urbana de São Paulo para designar encontros em Shopping
Centers para atividades de lazer.
145
Conforme o autor, não só gerou a estigmatização, como também se baseou em estigmas de classe/raça no
qual os participantes do referido evento estão implicados.
134

sobre a suposta existência de gangues juvenis de imigrantes e brasileiros, estas por sua vez
tem o poder de criar realidades incriminando a indivíduos que, nas relações de poder
próprias de uma sociedade desigual, estão em situação de subalternização social.
Como resultado destas dinâmicas que ocorrem na rua Coimbra é que um novo
pedaço se configurou no bairro do Brás, atraindo jovens engajados na cultura Hip Hop, cuja
abordagem realizo no próximo tópico.

5. 4 Os imigrantes e descendentes nas batalhas de Rap em São Paulo

Aqui cola brasileiro,


Também cola imigrante
O que vocês querem ver?
Sangre!”
“Se les gusta esta cultura
Como yo amo esta cultura
Dile Hip Hop.
Hip Hop.”
(Chamada da Batalla Callejera de 2019)

Esta chamada marca a abertura de um evento que, até dezembro de 2019, ocorria no
bairro do Brás e reunia imigrantes de diferentes nacionalidades – bolivianos, peruanos,
chilenos, paraguaios, argentinos, cubanos, colombianos – e brasileiros. Refiro-me à Batalla
Callejera de Hip Hop, uma das primeiras batalhas de rap em espanhol a acontecer na
cidade de São Paulo e no Brasil146. Realizada na rua ou em espaços públicos em que a
passagem do público é livre, o encontro se associa à história do Hip Hop, marcado desde
suas origens pelas manifestações de rua. Conforme Azevedo:

O hip hop surgiu em meados dos anos 1970, nos subúrbios de Nova York,
composto por quatro pilares: Grafitti (arte), DJ (disc jóquey), MC (poesia, rima) e
B-Boy (dança). Os sound system (dois toca-discos interligados a dois
amplificadores e um microfone) eram levados para as ruas no intuito de animar os
quarteirões no bairro do Bronx. O DJ rimava para chamar a atenção de quem
passava pelo local. Atraía mais público aquele que “mandava” melhor no
microfone e nos toca-discos. Popularizado no Brasil durante a década de 1980, o
movimento hip hop se expandiu a partir das batalhas de MC`s. (Azevedo, 2016)
147
.

Assim originada no seio do movimento Hip Hop, ela obedece a uma lógica própria
de organização.

146
Conforme narrativa de Bryan idealizador e organizador do evento.
147
https://casperlibero.edu.br/revista-arruaca/batalhas-de-rap-confronto-de-conhecimentos/ página visitada em
20/07/2020.
135

As batalhas de Mc’s são encontros tradicionais constituídos por pessoas que


gostam do movimento de Hip-Hop. Tais batalhas são compostas por dois mestres
de cerimônia (MC`s) que duelam entre si com rimas improvisadas, faladas “em
cima” de uma batida, tocada por um DJ ou então somente a capela. Um MC
enfrenta o outro de duas a três vezes, caso haja empate. As batalhas têm duração
de 30 segundos para cada participante, porém isso pode variar de acordo com a
quantidade de inscritos. As rimas trazem um conteúdo repleto de criticidade,
humor e sarcasmo, e instigam o público a torcer pelo melhor MC, que se
destacará por meio do seu flow (lado artístico) juntamente com sua experiência e
um rico vocabulário – itens essenciais. No final da batalha, o MC vencedor
poderá ganhar algum prêmio material dependendo da organização de cada
batalha. (Azevedo, 2016)

No que tange à Batalla dos Imigrantes, ela ocorria de quinzenalmente, reunindo


jovens de diferentes idades – a maioria na faixa dos 16 aos 30 anos – , vestidos com roupas
largas, bandanas, tatuagens, bonés e camisas de artistas de Hip Hop – , para realizar um
duelo com base na rima e improvisação, característica principal da “rinha” entre os MC’s.
Tomei conhecimento da Batalla Callejera através de Robson, que me enviou um convite
para o evento via Facebook para conhecer a este espaço. Assim comecei a frequentar este
pedaço dos imigrantes intercalando com os finais de semana que me dirigia às baladas na
Vila Maria.
O evento ocorria na rua Joli, uma travessa da Celso Garcia, localizada cerca de 5
minutos da rua Coimbra. O local é uma área residencial com algumas fábricas, lojas e bares
que funcionavam até os sábados. Durante a noite, a rua ficava deserta, poucas pessoas e
carros transitavam por ela, cenário que só mudava quando os jovens realizavam
periodicamente suas reuniões.
A Batalla Callejera começava as 19 ou 20 horas do sábado e terminava por volta
das 22 ou 23 horas, dependendo do número de pessoas que compareciam para batalhar148.
Antes de o evento começar era muito comum a presença de jovens no local – sobretudo os
organizadores – bebendo cerveja, improvisando rimas de rap em freestyle e também
compartilhando informações sobre artistas e músicos da cena Hip Hop mundial. Para
arrecadar fundos, os organizadores costumavam levar bebidas como cerveja e vinho para
vender, facilitando igualmente os frequentadores e os MC’s, uma vez que estes deixavam
de sair do local para comprar bebidas em bares e supermercados e consumiam ali mesmo.
Além da venda de bebidas, os organizadores se responsabilizavam pela estruturação
dos duelos que aconteciam. Assim, conforme os jovens MC’s chegavam ao local, um dos
organizadores, com um caderno e uma caneta nas mãos recolhia o nome daqueles que
estavam interessados em participar, sempre perguntando ao público “vai batalhar?”. Além

148
Termo nativo que se referia ao duelo entre MC’S.
136

dessas características próprias de qualquer batalha de MC’s, somam-se outras como as que
Souza destacou em matéria para a revista Arruaça149, da Faculdade de Jornalismo Cásper
Líbero.
Há dois tipos de batalha de rap: a do conhecimento e a de sangue. Na primeira, os
MC’s têm que desenvolver as rimas a partir de temas que podem ser pré-
estabelecidos pelos organizadores ou escolhidos pela plateia no momento do
evento. Já na segunda, os MC’s devem atacar verbalmente o seu adversário.
Ambas são duelos de improvisação.
(Souza, 2014)

A batalha organizada pelos imigrantes no Brás mesclava estas duas características


expostas pelo autor. Dividiam-se em três rondas, ou rodadas:
1. O público presente escolhe um tema e os dois participantes devem fazer a rima,
demonstrando conhecimento sobre o assunto.
2. O segundo, chamado réplica, é freestyle, ou seja, não há uma imposição do tema,
mas os participantes devem ofender a seu oponente.
3. O terceiro, chamado de tréplica, o tempo é maior, mas os oponentes devem
responder um ao outro intercalando de 15 a 30 segundos. As rimas também são
livres e seguem a lógica da segunda, no sentido de difamar o adversário

Os juízes marcam o tempo e avisam aos participantes o momento de deixar o


oponente responder. Após cada etapa, os juízes abrem para o público escolher quem foi o
vencedor, mas o peso é maior no voto dos jurados.
Quanto aos equipamentos, algumas vezes os MC’s cantavam acompanhados de uma
caixa de som instrumental, que serve de base para que pudessem entoar suas rimas e outras
cantavam sem nenhum instrumento, funcionando como auxílio apenas suas cordas vocais.
Quando isto ocorria, os organizadores chamavam a atenção do público presente para prestar
atenção, uma vez que o barulho poderia atrapalhar os MC’s.
A Batalla Callejera, enquanto forma de apropriação do espaço público, nem sempre
ocorreu na rua Joli, mas em outros espaços da cidade de São Paulo, sendo marcada por sua
circularidade e efemeridade. Conforme Bryan, um de seus organizadores:

149
https://casperlibero.edu.br/revista-arruaca/batalha-de-rap-intimidade-com-palavras-atraves-das-rimas/
pagina visitada em 20/07/2020.
137

Mano, a primeira Batalla Callejera... A primeira edição, foi no dia 14/06/2015 na


Praça Kantuta que foi dentro do projeto Kantupac, aprovado pelo Vai na época. E
a ideia era fazer uma batalha em espanhol e uma batalha em português também. E
foi o que a gente fez. O campeão em português foi o Conspira e o espanhol o
primeiro MC foi o Profeta 777. Então começou ali, porque eu já conhecia outros
MC’s, os caras sempre improvisavam, faziam batalha, mas era algo espontâneo,
não tinha nenhuma competição ou organização. Ai um chegou e falou “vamos
fazer esse bagulho, mano”. Fizemos, colou umas 300 pessoas ali na Kantuta.
Tava cheio mano, nós fazendo o bagulho muito louco. Essa aí foi uma edição
esporádica, tá ligado? Não foi um evento em si. Foi uma atração dentro do evento
Kantupac. Começou bem, assim sem muita compreensão foi mais para dar uma
atração para o evento que também tinha outros grupos e tudo o mais. Daí a gente
gostou, e eu na época eu batalhava bem pouco, mas não organizava batalha e foi
aí que eu comecei a me apresentar e daí que eu cresci como apresentador
também, porque eu era horrível. E depois nós tivemos uma outra edição em 2015
na Coimbra que foi também parte do evento Kantupac. Essa daí eu não lembro
quem ganhou, acho que foi o Polemic que ganhou. Aí foi foda que em dezembro
a gente organizou a Batalha Callejera valendo 200 reais e não teve em espanhol
mano. Não teve MC. Para você ver a diferença que a gente chegou a bater 25
MC’s na Batalha Callejera. Depois disso morreu o Kantupac e aí mano em 2016
brecou e em 2017 bateu um salve e eu falei “ai mano vamos organizar
semanalmente”. Em março de 2017 a gente começou a organizar. No começo
tinha seis MC’s, o público era cinco pessoas. E aí foi na Costa Valente e na rua
Coimbra.
(Bryan, imigrante boliviano, entrevista realizada, 14/01/2020).

Se o início foi marcado pela falta de experiência, pela pouca presença de MC’s e
público, à medida que os eventos ocorriam, atraiam mais pessoas, entre curiosos e jovens
que se dispunham a rimar.

Cresceu, cresceu um pouco, todos os sábados. Aí começou a dar problema mano.


Muita bebedeira, os cara loucão. Aí tinha segurança, os cara fumava um beck e
dava problema. Aí tinha uns caras que eram trombadinhas. Criava um bolinho na
rua Coimbra e aparecia gente de tudo quanto é lugar. Ficamos um ano lá e moiou.
Não virou por causa disso. Deu BO com os seguranças. Ai a gente migrou pra
quarenta, ficou na quarenta desde 2018 até 2019.
(Bryan, imigrante boliviano, entrevista realizada, 14/01/2020).

Conforme meu interlocutor, a presença da batalha na rua Coimbra, de início, era


bem vinda, mas passou a não ser mais quando o público que a frequentava começou a
crescer, aglomerando pessoas que bebiam e faziam uso de maconha, e também indivíduos
que Bryan chamou de trombadinhas. Estes fatores, associados com os problemas pelos
quais a rua é atravessada, gerou insatisfação nos comerciantes dos estabelecimentos locais e
da feirinha, acarretando na mudança da Batalla Callejera para a rua Joli. Porém, não foi
uma saída pacífica.
138

Mano a Coimbra eu não sei para te falar a verdade. Eu já tentei dar um grau lá, eu
conversei com o cabeça lá que representa o baguio. Ele me deixou fazer evento
lá, mas quando deu BO os policiais lá quiseram... Quiseram quebrar nós mesmo,
tio. Deram uns murrão, quebraram o braço de um mano lá, cobraram nós na
maldade mesmo. Os caras até tavam com a peça e tal. Aí eu fui cobrar os
dirigentes lá, os caras falaram que nós que estávamos errados. (Bryan, imigrante
boliviano, entrevista realizada, 14/01/2020).

Bryan, ao ser questionado se a batalha foi impedida de acontecer na rua Coimbra


por causa da associação do Hip Hop com a criminalidade, respondeu:

Acho que sim, tenho quase certeza que sim, porque eles viam a gente como
problema para eles. Porque causava uma aglomeração de pessoas, mas com
certeza. Teve essa visão de sermos uns caras louco aí querendo beber e chapar.
Coisa que primordialmente não era, mas a gente não controla o público. Então eu
estava apresentando, têm os MC’s, aí chega um cara que estava bebendo a umas
doze horas atrás ali do lado, vê uns caras ouvindo música e vai lá. Na rua você
não controla nada, não tem como você cobrar. É isso, eu fico de mãos atadas. Se
eu tiver em um evento e o cara começa a dar trabalho, a gente põe esse cara pra
fora, mano. Que ele tá atrapalhando nosso evento. Aí você fala isso lá na
Coimbra, o cara vai se alterar, vai causar mais problemas.
(Bryan, imigrante boliviano, entrevista realizada, 14/01/2020).

Em diferentes contextos, Pereira (2007; 2014; 2016) observou a ação da Polícia


Militar com o objetivo de reprimir o encontro de jovens em diferentes localidades da
metrópole paulistana. Um desses casos, o mais recente abordado pelo autor, é o rolezinho,
termo nativo utilizado pelos atores sociais para marcar um encontro nos Shoppings Centers
da cidade. Conforme o registro do autor, um dos motivos para a repressão foi a imagem
criada a respeito da aglomeração destes indivíduos, na qual a analogia com o arrastão gerou
o medo nos lojistas, comerciantes e outros frequentadores, despertando, por sua vez, a
atenção da mídia, que retratou o ocorrido de modo pejorativo, incriminando os adeptos
desta forma de ocupação nos referidos centros comerciais. Trata-se de ocasiões em que
afloraram as diferentes formas de preconceito que caracterizam a sociedade brasileira.
Conforme o autor:
139

Os rolezinhos escancararam três importantes tensões e preconceitos presentes na


sociedade brasileira: de classe, de raça/cor e de idade/geração. Eles foram
perseguidos e duramente reprimidos em primeiro lugar porque eram jovens
pobres, como pode ser visto nos vídeos que já estão circulando na internet,
mostrando jovens brancos de classe média a fazer algazarra em shoppings e sem
sofrer nenhum tipo de constrangimento da equipe de segurança. [...] É, portanto,
também uma questão de raça/cor, eleita como um dos critérios para se expulsar os
jovens de dentro desses espaços, como observei pessoalmente. Além disso, foram
estigmatizados pelo seu gosto de classe, por apreciarem um gênero musical,
criado, performatizado e ouvido, não só, mas principalmente, por jovens pobres.
E é, dessa forma, também um conflito de idade/geração, porque são adolescentes.
(Pereira, 2014, p. 12).

Por semelhantes razões, acreditamos que o que gerou o conflito entre os


organizadores da Batalla Callejera e os comerciantes da rua Coimbra, culminando na saída
deste evento do local, foram os mesmos preconceitos enraizados150 nas comunidades
imigrantes e que foram utilizados para justificar os problemas enfrentados pelos
comerciantes e frequentadores do local151.
Ora, se os motivos que justificaram foi o uso de álcool e maconha, bem como a
visão de serem os jovens que frequentavam a Batalla Callejera pessoas com potenciais
para iniciar brigas e confusões no local, entendi que seria importante observar como
ocorrem as relações de sociabilidade no novo lugar escolhido para a realização do evento.
No período em que as batalhas de MC’s ocorriam na rua Coimbra, essa pesquisa não estava
em desenvolvimento. Razão pela qual não foi possível observar as relações entre os jovens
e entre estes e os comerciantes, seguranças e outros frequentadores da rua.
Consequentemente, foi no novo local que a maior parte das observações de campo foram
realizadas. Algumas das quais destaco na continuação deste tópico.
Um dos momentos mais interessantes de minha ida à Batalla Callejera foi quando a
premiação para o ganhador do evento era um ingresso para o show do famoso grupo de Hip
Hop cubano chamado Orishas, que estava em turnê pela América Latina, com duas datas
marcadas para se apresentar no Brasil. Na semana que antecedia este show, a batalha dos
imigrantes encontrava-se totalmente lotada, nas calçadas e no meio da rua. Bolivianos,
peruanos, argentinos, brasileiros, colombianos e paraguaios, todos interessados em disputar
o ingresso ou assistir ao duelo pela premiação, pois, conforme os interlocutores com os

150
Conforme demonstrado no capítulo anterior, o fenômeno da imigração não põe fim a estas questões. Ao
contrário, elas se transladam juntamente com os indivíduos que investem na imigração e, no país de acolhida,
podem ou não assumir novas formas.
151
Tais acontecimentos estão relacionados, porque entendemos que fazem parte de um processo no qual a
juventude de diferentes países latino-americanos tem sua imagem construída como objeto de temor, conforme
observou Di Napolli (2016).
140

quais conversei, “a briga será boa”.


E a batalha começa com 18 inscritos na disputa pelo ingresso. As expressões e
gestos dos que batalham, bem como suas rimas parecem indicar que os oponentes são
inimigos de verdade e que logo sairão no soco. O evento segue disputado, até que um
brasileiro e um boliviano, ambos organizadores do evento, vão para o duelo. Pareciam ter
mais experiência, fato que fez com que ficassem empatados. Percebi que, enquanto
rimavam, os oponentes se aproximavam um do outro com gestos agressivos. Até empurrão
aconteceu, sempre com a interferência dos juízes, que impediam brigas. Um dos brasileiros
que pertencem ao grupo de rap do boliviano ficava incitando ao ouvido do adversário que
batalhava: "você perdeu cuzão, não sabe nada”.
No entanto, no fim do duelo, após o veredito dos juízes, os jovens se cumprimentam
e se abraçam como se nada tivesse acontecido. Comentei com Robson a esse respeito, que
me disse “é mano, o ideal da batalha é aproximar a galera, juntar todo mundo, não separar”.
Isto não significa ausência de regras para que a “agressão” ao oponente seja feita: “O
pessoal do hip hop entende que aquele lá é o momento, agora se você vai fazer rima com
xenofobia, machismo é diferente, aí é poucas ideia, né?”. Esta fala corrobora aquilo que
observei ao longo de seis meses realizando trabalho de campo no local. Em nenhum
momento observei rimas com teor machista, xenófobo e racista, embora o ideal da batalha
seja o de atacar, por meio de rimas, o oponente.
Quanto às letras entoadas nas Batallas Callejeras, a maior parte era cantada ora em
português, ora em espanhol, podendo se alternarem em uma mesma rima versos em uma
língua ou em outra. Retratam a dura vida nas ruas, as condições de ser imigrante no Brasil
e, em alguns casos, o orgulho de ser boliviano152. Chamou-me a atenção um dos versos dos
que batalhavam quando o tema era calle. Os organizadores, ao darem o tema, disseram “é
rua e não calle, e o boliviano assim cantou:

152
Isto visto que nem todos que participavam eram bolivianos embora fossem maioria.
141

Rua, Calle,
Português ou espanhol
Dale,
de lo que me vale
me habla de orgullo fulgaz
De ser de La paz
Dime tu...

Termina a canção na língua aymará e ofendendo e desmerecendo ao outro


boliviano, que disse ser um autêntico nativo de La Paz, orgulhoso de suas raízes andinas,
“tienes orgullo, pero es um pinche Cabrón, huevon”. Foi ovacionado pelo público presente
e ganhou a Batalla. Cabe ressaltar que o ganhador desta ronda além de ter cantado em
espanhol, português e aymará utilizou gírias chicanas e mexicanas para despreciar seu
oponente153.
Outro momento interessante foi na apresentação dos brasileiros junto com
bolivianos cujas rimas abordavam a irmandade Brasil-Bolívia, ressaltando que essa é a luta
do coletivo que organiza o evento, dizendo que as fronteiras quem cria “são os estados e lá
onde são colocadas nós devemos pular, pois são construções arbitrárias”. Se as fronteiras
dos estados nações são difíceis de chegarem ao fim, o mesmo não ocorre com as fronteiras
criadas entre os seres humanos em determinados contextos.
Assim, nas batalhas organizadas pelos jovens, elas eram constantemente temas de
críticas e os atores sociais envolvidos procuravam rompê-las nas relações que
desenvolviam entre si. Muitas das rimas abordavam estas questões em diferentes
momentos. Uma delas foi quando os jovens fizeram um círculo e começaram a cantar em
freestyle, passando a vez ao colega que tinha que concluir a rima, na ocasião um boliviano
expressou: “nosotros somos bolivianos estamos rompiendo las fronteras con la batalla
callejera", continuando a rima outro que participava cantou em português: "essa batalha
está como o Mercosul, temos aqui Bolívia, Brasil e Peru”154.
Mesmo entre bolivianos e paraguaios, os conflitos e diferenças eram
momentaneamente deixados de lado. Foi o que expressou Milenka, sobre o fato de seus
amigos de nacionalidade paraguaia frequentarem o local: “Não é por causa das tretas que os
153
Nota do diário de campo, 13/06/2020.
154
Nota do diário de campo, 08/08/2019.
142

paraguaios não podem colar, se eles forem com respeito, não mexerem com ninguém, não
155
tem briga e não vai acontecer nada” . Sobre o papel apaziguador da batalha, Robson em
outro momento, afirmou:

Então, o rap né mano, historicamente se a gente for pegar o contexto de São


Paulo, é que nem o Mano Brown fala “o rap uniu os bairros” quebrada, Osasco,
Jandira e tudo mais. Ele mesmo fala que antes tinha briga entre os bairros,
antigamente na década de 90, ele fala que ele já fez show e não tinha briga,
entendeu? Porque o rap uniu essas quebradas, ele mesmo falou isso. E eu vejo
que o rap é uma união, que você faz letra não é para ganhar uma grana, mas para
unir a cultura né mano? E o pessoal da batalha mano, eles têm esse objetivo que é
unir a cultura. Você viu que em muitas batalhas tinha brasileiros, bastante
brasileiros, que esse pessoal que vai, eles já são dessa cena Hip Hop. Não é um
pessoal que está começando agora. Pessoal de várias quebradas, mano. Tinha um
pessoal da zona sul, da zona norte. Sim mano, o hip hop rompe as fronteiras e
tudo o mais. Você chega lá e ninguém chega te intimando, é ou não é? Não é
igual outros ritmos que gera diferenciação, o pessoal tá lá, tá ligadão, bebem
vinho, o que tem eles bebem.
(Robson, filho de imigrantes bolivianos, entrevista realizada, 25/07/2019).

Deste modo, pode-se dizer que a Batalla Callejera proporcionou aos imigrantes a
possibilidade de experimentarem um processo de liminaridade (Turner, 1974), ou seja, um
fenômeno caracterizado pela interrupção ou redução momentânea de aspectos que indicam
distinção social entre os indivíduos. Conforme o autor, as pessoas sujeitas a este processo:
“podem ser representadas como se nada possuíssem [...] para indicar que, como seres
liminares, não possuem “status”, propriedade, insígnia, roupa mundana indicativa de classe
ou papel social [...] em suma nada que as possa distinguir de seus colegas” (Turner 1974, p.
118).
No caso específico dos imigrantes, o que observamos é a suspensão momentânea
das fronteiras Interétnicas, isto foi constatado na fala de Milenka e, como veremos adiante,
nas diferentes narrativas de Robson a respeito da presença de paraguaios nos shows de Hip
Hop e nas batalhas de rap organizados pelos imigrantes156. A mesma narrativa está presente
no discurso de Bryan:

155
Nota do diário de campo, 17/10/2019.
156
Conforme afirmado por meu interlocutor no capítulo anterior, ele, enquanto descendente de bolivianos,
evitava ter contato e frequentar os mesmos lugares que paraguaios e seus descendentes.
143

Essencial, porque a ideia era essa desde o começo. Porém como a gente está
falando do Brás, da Coimbra e como a gente tá ali no centro então tem mais
boliviano, tá ligado? Mas a ideia desde o começo era essa, mano. É uma batalha
em espanhol, mas é uma batalha da América latina e nunca foi brecado o
português, tanto que até hoje se não me engano foram quatro campeões cantando
em português, mas teve vários brasileiros também que batalharam e chegaram na
final, tá ligado? Para mim é essencial, é o resultado que eu vejo acontecendo
quando tem pessoas de outra nacionalidade, quando eu vejo batalhando então.
Essa é a maneira tiozão, na verdade não deveriam existir fronteiras, então o rap
faz o que a gente deveria fazer por si só, se expandir, tá ligado? Então mano, é um
idioma por si só. Quando eu entrei no esquema, eu comecei a ter mais amizade,
todos os meus amigos são do rap. Então através do rap eu cheguei a várias
pessoas, mano, de várias nacionalidades, de vários lugares.
(Bryan, imigrante boliviano, entrevista realizada, 14/01/2020).

Porém, se o rap, como afirmou Robson, rompe fronteiras entre os indivíduos, isto
não significa que outras não estejam presentes, ainda que de modo inconsciente. Durante o
tempo em que realizei a pesquisa de campo, observei que havia uma grande presença
feminina no local, tanto de mulheres bolivianas, quanto de brasileiras e de outras
nacionalidades. Algumas vezes, o número de pessoas do sexo feminino era maior. Porém,
no que concerne o objetivo do evento, observei a preponderância de homens batalhando, ao
passo que as mulheres ou faziam parte do público ou ajudavam na organização da batalha.
Situação que contrasta com alguns pocket shows que ocorriam onde se apresentaram o
grupo de mulheres bolivianas chamado Santa Mala e a apresentação da peruana Valeska M-
24157.
Esta situação não contrastou somente na rua Joli, mas também no festival Alma
Sudaka organizado pelo coletivo responsável pela Batalla Callejera, na qual o
protagonismo feminino foi maior. Sobre a baixa participação feminina fazendo rap nas
batalhas, Milenka comentou:

Eu acho que ainda faltam mulheres com relação ao rap, por isso que não
participam, mas a porta está aí. Pode participar, mas falta mesmo envolvimento
de mulheres, não só as que curtem, porque eu curto, mas eu não faço rap. Faltam
mulheres que tenham essa iniciativa, que gosta de rimar, que gosta de fazer isso.
Tipo a Abigail que faz parte da Santa Mala, ela rima, mas não participa. Eu acho
que, por parte dela, seja um pouco de medo talvez, mas ela sabe que pode. É
empoderamento de mulher porque o homem que vai contra a mulher nas batalhas,
sempre vai mexer nesta parte do sexo. Tanto que a Rude Pam é a brasileira que
participa sempre dessa batalha. Tem isso, né? Os homens com o machismo,
dizem palavras que não tem nada a ver. Eu acho que por isso que as mulheres
bolivianas não se interessaram muito, mas aqui no Brasil eu vejo muito esse
empoderamento das mulheres.
(Milenka, imigrante boliviana, entrevista realizada, 15/09/2019).

157
Esta não se trata de uma imigrante, mas de uma artista que estava fazendo shows pelo Brasil e que logo
retornou ao Peru.
144

A este respeito, Ferreira (2015) ao analisar a participação das mulheres no cenário


Hip Hop de Brasília, afirmou que este traz consigo representações predominantemente
masculinas, ao passo que o papel das mulheres enquanto produtoras é minoritário,
marginal, passivo e secundário. Isto se deve ao fato de que:

A figura da mulher, cujo corpo é objetificado e tratado como mercadoria, além de,
em geral, ser apresentada como frágil, emocionalmente instável e que deve ser
dedicada às tarefas da reprodução doméstica, como o cuidado da prole e do lar.
Com raízes profundas no imaginário social latino-americano, o patriarcado ainda
é bastante forte nestas sociedades. (Gomor, 2017, p.24).

Assim, se um dos elementos peculiares do Hip Hop diz respeito à sua natureza
contestatória, o estilo musical também pode ser compreendido:

Em parte, como uma tecnologia de gênero, produtora de representações do que


significa ser mulher e homem, frente às quais as jovens se situam construindo
representações de si mesmas (autorrepresentações) que em ocasiões se opõem a
representações dominantes, mas em outras podem reforça-las. (Osco, 2019, p. 67.
Tradução minha).

Porém, no interior da cena Hip Hop as mulheres têm procurado fortalecer-se cada
vez mais. Em outras palavras:

Existe uma participação cada vez mais fortalecida das mulheres, principalmente
como raperas, que buscam utilizar o palco e suas rimas para conscientizar a
sociedade sobre as desigualdades de gênero e de seus prejuízos não somente para
as mulheres, mas para toda a sociedade, que, para além das questões de justiça e
cidadania, acaba impedida de aproveitar todo o potencial das mulheres em todas
as esferas (Gomor, 2017, p. 280).

Neste sentido, embora Milenka entenda que na Batalla Callejera, as mulheres


imigrantes ainda não participam, para ela é uma questão de tempo até que isto comece a
acontecer, já que, em sua visão, é característica do hip hop abrir espaço para aqueles que se
encontram em situação de inferioridade social. Assim, a experiência que os imigrantes
obtiveram com os eventos no Brás foi um incentivo para que desenvolvessem uma forma
de reflexão e agregassem conhecimentos a partir de suas vivências no referido pedaço, pelo
fato de começarem a ter contatos com outros rappers, MC’s e fãs do estilo.
145

Eu gosto bastante, porque ali a visão é outra. Para tirar os jovens dessa violência,
porque a batalha começou na Coimbra, depois que foi lá para rua Joli. Então é
bom, eu gosto porque reúne vários jovens, eles pegam esse tempo que eles
podiam estar bebendo ou fazendo qualquer outra coisa. Porque boliviano ainda
tem esse negócio de trabalhar de segunda a sábado e só o fim de semana pode
curtir. Então, na necessidade de sair para se distrair era a Coimbra, não tinha outra
opção. Ai a batalha proporcionou isso, né? Por que, através da batalha, o Brian
tenta levar para outros lugares, fazem batalhas de batalhas, como aconteceu com
um evento lá na Vila Madalena, se eu não me engano. Então eles levam este
pessoal que frequenta a batalha para outros lugares também. Abre um pouco a
visão. Eu lembro no começo, quando eu fui, eram poucas pessoas que batalhavam
e não tinha muito conteúdo. Ai, conforme o tempo, os meninos começaram a se
preparar mais, para ganhar, porque também tinha um incentivo, né? Com os
prêmios e tudo mais aí eles mudaram bastante, já começaram a pegar mais
conhecimento em relação ao que é que eles vão falar. Foi melhorando. Lógico
que até na própria batalha tem esse negócio de bebida, droga e tudo, em qualquer
lugar tem, mas eu acho que ali faz um pouco de diferença pra eles, faz os jovens
refletir um pouco. Porque vai bastante brasileiro lá. Tipo nos pocket show, o
Bryan sempre gosta de misturar brasileiro, boliviano, peruano e assim, eu gosto
bastante, por isso que eu frequento também.
(Milenka, imigrante boliviana, entrevista realizada em 15/09/2019)

Assim a Batalla Callejera se destacou como uma alternativa aos jovens que a
frequentam pois, tal como a visão de Milenka, eles tiveram a oportunidade de abrir a mente
e também de se conectar a jovens que, apesar de não se encontrarem na condição de
imigrantes, trazem consigo experiências que agregam nas suas vivências. Minha
interlocutora, ao ser questionada se já frequentou outras batalhas de rap em São Paulo e
como foi o tratamento recebido, afirmou:

Eu já fui à batalha Dominação, que é uma batalha só de minas, vamos dizer


assim, de mulheres trans, lésbicas, sapatão, bi. A maioria é mulher, noventa por
cento é mulher. Tem os homens que vão, alguns participam outros não, mas é
uma batalha diferente. Não é uma batalha de sangue, mas uma batalha de
conhecimento. Ali é mais conhecimento, eles te dão uma temática, você tem que
desenvolver. É diferente. Quanto ao tratamento não vi nenhum preconceito,
porque a maior parte dos que estão ali são diferentes. Porque é uma mistura de
mulheres, não é só mulher hetero, eu acho que elas também sofrem este
preconceito, parecido com o racismo, xenofobia talvez. Então, elas tratam as
pessoas de um jeito normal, uma coisa igual, não vi uma diferença não. Eu sou
imigrante, tá na minha cara isso, né? Mas o tratamento é de boa. Sempre
tranquilo, por isso que eu gosto de ir lá.
(Milenka, imigrante boliviana, entrevista realizada em 15/09/2019)

Ora, a Batalla Callejera, enquanto lugar de sociabilidade dos imigrantes, não se


restringiu somente à rua Joli. Em diferentes oportunidades, ela saiu do referido local e
circulou pela cidade de São Paulo. Em determinados momentos em que circulava, ela
mantinha o seu formato original e em outros se transformava em apresentações de artistas
de Hip Hop, mas mesmo assim sua característica principal se mantinha: o de ser um pedaço
146

dos jovens imigrantes em São Paulo. Isto porque, conforme Magnani, “a relação deste com
o espaço é mais transitória, pois pode mudar de um ponto a outro sem se dissolver, já que
seu outro componente constitutivo é o simbólico, em razão da forte presença de um código
comum” (Magnani, 2012, p. 97).
Um destes momentos foi o Alma Sudaka Festival Hip Hop latino, ocorrido no
centro de São Paulo e que teve como protagonistas mulheres de diferentes países: Valeska
M24 (Peru), Imila (Bolívia), Pitoniza (Argentina) e Santa Mala (Bolívia). Como abertura
do evento houve a apresentação conjunta dos grupos Pawilla dos Sangres (Peru), Sheko
(Peru), Planeta 7 (Venezuela) e Drezz Xama Lami (Brasil). Este festival ocorreu no
Morpheus Clube, um salão localizado na rua Ana Cintra no Bairro de Santa Cecília, cinco
minutos da estação de mesmo nome. Começou às 22 horas e terminou por volta das 6 da
manhã. Fui acompanhado de Robson que, via Facebook, me disse que “não o perderia por
nada”.
Entramos no estabelecimento por volta das 23 horas e Robson me afirma “Você vai
ver, aqui tem de tudo: boliviano, peruano, brasileiro, paraguaio. O rap rompe fronteiras
parça”. As apresentações ocorreram no subsolo onde fica a pista de dança e foi para lá que
nos dirigimos. Em frente ao palco, aproximadamente duzentas pessoas dançavam,
cantavam e interagiam com os artistas. No palco, abrindo o festival, bandas e Mc’s como
Pawilla dos Sangres (Peru), Sheiko (Peru), Planeta 7 (Venezuela) e Drezz Xama Lami
(Brasil) exaltavam a cultura Hip Hop, cantando ora em português, ora em espanhol. As
letras retratavam os problemas enfrentados pela juventude da “América periférica e
Latina”. Um dos momentos que mais me chamou a atenção nessa apresentação foi uma
parte da letra, que diz “a fronteira te limita dentro de seu lugar”. Quanto ao público, este era
majoritariamente de brasileiros, bolivianos e peruanos, mas havia também a presença de
argentinos e venezuelanos no local.
No fim dessa apresentação, Bryan sobe ao palco e fala da importância do evento
“Alma Sudaka”, faz uma crítica às fronteiras que, segundo ele, não servem para nada. Diz
que é bom que os brasileiros estejam ali, pois o evento é para eles também. “Muitos se
esquecem de que são latino americanos como nós, mas isso está mudando”. Depois dessa
fala, ele grita “si tu toma essa cultura como yo tomo esta cultura dile Hip” o público
responde “Hop”, repete o grito, mas dessa vez em português “se você ama essa cultura,
como eu amo essa cultura grita Hip” e, novamente, o público responde “Hop”.
Em seguida, a primeira mulher a fazer sua apresentação sobe ao palco. A argentina
147

Pitoniza é anunciada “direto da zona sul de Buenos Aires e moradora do Grajaú” para
animar os presentes com letras que denunciam o racismo, a xenofobia e outros tipos de
problemas que sofrem os jovens periféricos “de nuestra Latino América”. Após fazer uma
crítica às fronteiras enquanto invenção humana que separam povos iguais e irmãos,
Pitoniza chama ao palco duas mulheres brasileiras de cor negra, essas usavam dread e
Black Power. Nesse momento, a artista denuncia o racismo que pessoas como ela, de cor
escura, sofrem por toda a América de norte a sul. Uma canção é novamente cantada em
português e espanhol.
Após essa apresentação, entra em cena o grupo feminino Santa Mala, cujas
integrantes são irmãs e imigrantes de La Paz, Bolívia. Esse é um grupo bastante conhecido
do público presente, principalmente dos bolivianos. Após sua apresentação, as garotas
agradecem ao público “principalmente as minas, pois sem elas a Santa Mala não existiria”.
Em seguida, a terceira apresentação da noite, a boliviana de La Paz Imilla, com seu
charango (instrumento típico da região andina), fez uma mistura de música folclórica e
popular boliviana com Hip Hop. O momento mais interessante de sua apresentação foi na
última canção, quando a cantora faz um alerta em tom de protesto contra a destruição da
natureza: “nosotros tenemos que cuidar de la Pachamama nuestra madre Tierra y de
Yemanjá la reina del mar”. Por fim, a última apresentação, Waleska M24, peruana de Lima,
coloca todos para dançar158.
Outro momento em que o evento dos imigrantes circulou pela cidade ocorreu em
um show realizado na noite de uma quinta feira, na Galeria Olido, situada na região central
de São Paulo159. Na ocasião, os artistas que protagonizaram a diversão do público, foi o
grupo Santa Mala. Nesta apresentação elas contaram com o apoio de Bryan – também
conhecido como MC La Paz. Este ficou responsável pela pick-up de onde sairia o som que
serviria como base para que as irmãs pudessem cantar suas rimas que, conforme
repercussão do grupo pelas redes sociais como o YouTube, já se tornaram hinos da cena
Hip Hop.
Em algumas músicas, Bryan dividia o vocal com suas compatriotas, agitando o
público que ali se fazia presente. Um dos momentos interessantes desta apresentação foi
quando um dos MC’s, conhecidos como Sheko, é anunciado “de las calles de Lima aos
palcos de SP” para dividir o microfone. A partir de então, os bolivianos e o peruano
começam a improvisar rimas em cima do palco no estilo freestyle. As letras versadas em
158
Nota do diário de campo, 14/09/2019.
159
Nota do diário de campo, 21/11/2019.
148

português e em espanhol abordavam a experiência imigrante de conhecer a uma nova


realidade, buscar um novo lugar para viver, os desafios que isso implica, além de retratar os
abusos cometidos pelo Estado e denunciar o racismo e a xenofobia.
Uma das rimas que se destacaram foi a entoada por Bryan, que ressaltava a
importância que as manifestações artísticas têm para os imigrantes, desvinculando-os das
imagens construídas sobre os estrangeiros, normalmente, como demonstrou Sayad (1998),
atreladas à ideia do imigrante como pura força de trabalho, nas palavras do MC: “boliviano
não é só costura, é também cultura”.
Antes de terminar a apresentação, os artistas ainda no palco convidaram aos MC’s
presentes no público para se juntarem a eles e realizarem um freestyle. Neste momento, o
palco se enche de pessoas de diferentes nacionalidades que cantavam, rimavam, dançavam
e se abraçavam. Tal fato demonstrou que a forma de interação dos MC’s como público
ocorre sem que esteja presente uma rígida hierarquia. Isto ficou comprovado quando todos
– públicos e artistas –, ao término da apresentação, dirigiram-se ao bar para beber,
confraternizar e dar continuidade a festa que havia começado na Galeria Olido160.
Acompanhar a trajetória dos atores sociais que frequentam a batalha dos imigrantes
foi de fundamental importância, uma vez que esta metodologia de pesquisa demonstrou que
a Batalla Callejera não só faz parte do circuito de lazer dos jovens imigrantes como
também se conecta com outro circuito: o do hip hop brasileiro, tornando-se, em
consequência, um ponto de intersecção entre dois circuitos. Esta conexão realizada por
jovens imigrantes quanto por jovens brasileiros, propiciou troca de conhecimento entre os
atores sociais em suas interações face a face (Goffman, 2006), como também colocou na
agenda do hip hop brasileiro temas que, até então, não haviam sido muito abordados pelos
artistas mais consagrados do estilo como o da imigração, fronteiras e temas correlatos.
Neste sentido, a inserção dos imigrantes na cena Hip Hop local acabou tornando-se, para
jovens deste circuito, também uma oportunidade de aprendizagem.
Esta era a dinâmica das relações de sociabilidade observada entre os jovens que
frequentavam a Batalla Callejera durante os seis meses em que realizei trabalho de campo
no local. Ora, à medida que me familiarizava com os imigrantes e com os locais de lazer
por eles frequentados surgiram novas questões que passaram a permear minhas reflexões:
Por que na rua Joli, local escolhido para ser ponto de encontro de MC’s e fãs de Hip Hop

160
Quanto ao público que compareceu ao show do Grupo Santa Mala, este, acompanhou a dinâmica das
Batallas Callejeras organizadas na rua Joli, era formado basicamente por brasileiros, bolivianos, peruanos e
colombianos.
149

não ocorriam brigas? Conforme observado, os jovens consumiam bebidas alcoólicas e


faziam uso de drogas, razões pelas quais os comerciantes da rua Coimbra criminalizavam
os frequentadores, principalmente os do horário noturno.
Além disso, quanto aos objetivos da batalha, ou seja, o duelo de MC’s, os
participantes se ofendiam mutuamente, procurando desabonar o oponente. Porém, em
nenhum momento da pesquisa registrei brigas originadas nos eventos que eram ali
organizados. Tendo isto em vista, o que é que marcava a diferença entre as Batallas
Callejeras e as baladas e bares da rua Coimbra e das baladas da Vila Maria e Pari?
Conforme Geertz “a cultura não é um poder, algo que podem ser atribuídos
casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos;
ela é um contexto” (Geertz, 1989, p. 24) no qual todos esses fenômenos podem ser
discutidos de modo inteligível. Neste sentido, uma vez que o contexto das práticas sociais
ou ações simbólicas são diversos, a análise do que ocorre em um não pode ser tomado
como paradigma do que ocorre em outro161. Por tais razões, afirmar que a ausência de
brigas na Batalla Callejera concerne a características peculiares do Hip Hop seria, de certo
modo, essencializá-lo ou reificá-lo.
Tal como argumentado anteriormente, os jovens que participam da batalha de rap
dos imigrantes experimentavam um momento de liminaridade (Turner, 1974) no qual as
fronteiras sociais e suas interdições eram suspensas momentaneamente em prol de relações
mais igualitárias. Isto não implica, contudo, na ausência de conflitos e presença de outras
formas de relações de poder, pois, conforme demonstramos, ainda estão presentes. A este
respeito, Amaral (1998) em estudos sobre a importância das festas demonstrou que estas
podem “significar a destruição das diferenças entre os indivíduos e, por esta razão mesma,
associam-se à violência e o conflito”. Isto ocorre, porque todos os envolvidos ao
“desejarem os mesmos objetos, tornam-se rivais e violentos” (Amaral, 1998, p. 31).
Segundo a autora é no momento em que as tensões irrompem que mecanismos de
compensação são acionados (op. cit. p. 32). Assim, no caso específico da batalha dos
imigrantes, quais seriam os mecanismos de compensação que acionados impediriam que as
tensões resultassem em brigas? Em nossa percepção, compreendemos que as batalhas de

161
Isso não significa que a análise não deva ser realizada uma vez que, para o autor, o trabalho etnográfico
consiste em salvar o acontecimento cultural “de sua possibilidade de extinguir-se e fixa-lo em formas
pesquisáveis (Geertz, 1989, p. 31)”. Por outro lado, o autor entende que a análise não deve “apenas se ajustar
a realidades passadas”. Se “frutíferas” deve “sobreviver a realidades que estão por vir [...] às vezes muito
tempo depois, o arcabouço teórico em termos dos quais é feita tal interpretação deve ser capaz de continuar a
render interpretações defensáveis à medida que surgem novos fenômenos sociais (op. cit. p. 37)”.
150

MC’s ocorridas na rua Joly propiciavam aos jovens que a ela frequentavam um mecanismo
de sublimação, ausente tanto no Night Club quanto no Sensación e nas baladas e bares
presentes na rua Coimbra.
Por sublimação entendemos um processo no qual os seres humanos, nas relações
travadas uns com os outros elaboram uma tentativa de apaziguar seus impulsos naturais
(Elias, 1995). Conforme o autor

Não há dúvidas de que estas características das artes humanas, particularmente da


música, encorajam tal atitude. [...] Há processos de sublimação pelos quais as
fantasias humanas convertidas em criações musicais, podem ser despojadas de
sua animalidade sem necessariamente abandonar sua dinâmica elementar, seu
ímpeto e força ou a antecipada doçura da satisfação (op. cit. p. 56).

Ora, no ato de batalhar, os jovens imigrantes, por meio de rimas cantadas com
intenção de agredir aos seus oponentes sublimavam seus sentimentos162 vendo realizadas –
ainda que não materializadas seus desejos e aspirações. Isto ficou claro, conforme
observava os gestos agressivos e as letras com os quais os oponentes se dirigiam uns aos
outros, era como estivessem brigando entre si. Situação que mudava quando, ao término do
duelo, os MC’S se cumprimentavam e se abraçavam. Porém, as batalhas não ocorriam em
um momento ausente de regras. Isto é corroborado pela fala de Robson segundo o qual os
organizadores “entendem que aquele lá é o momento, agora se você vai fazer rima com
xenofobia, machismo é diferente, aí é poucas ideias”.
Portanto, não estávamos diante de um contexto no qual a estrutura normativa ou
social é suspensa, ao contrário a sublimação é um ato no qual o “fluxo de fantasias e de
sonhos não é apenas despojado das tendências fortemente animais que estão em sua raiz e
que são inaceitáveis para o fluxo de consciência; ele efetivamente libera sua energia em
harmonia com o padrão social sem perder a espontaneidade” (op. cit. p. 137).
Assim, em conjunto com o processo de liminaridade, observamos uma forma de
sublimação acionada pelos MC’s ao duelar. Cabe destacar que ambos os mecanismos
expostos em regras do pedaço, ou da batalha – como não fazer rimas xenófobas e machistas
–, foram elaborados de modo horizontal pelos jovens, com base em seus referenciais e
valores. O contrário foi observado no Night Club e no Sensación nos quais, embora se
tratem de espaços de sociabilidade e lazer dos jovens imigrantes, não são estes os
protagonistas das regras que regem sua permanência no local. O mesmo ocorre com os

162
A qual Norbert Elias (1995) chamou de sonhos ou fantasias.
151

bares e baladas da rua Coimbra onde, além destas características, observamos um conflito
entre dois pedaços e suas formas respectivas de sociabilidade.
Finalizando este tópico, é importante ressaltar o motivo pelo qual a todo instante em
que abordamos a Batalla Callejera o fizemos nos referindo a ela como um evento que
ocorre no passado. Essa escrita se justifica pelo fato de que, após o último encontro entre os
jovens MC’S para duelar em dezembro de 2019, os organizadores optaram por encerrar as
atividades. Porém, isto não significa o fim do encontro entre estes jovens. Conforme relato
de Bryan, após tantos anos realizando eventos na rua Joli, é o momento de realizar uma
nova forma de organização e procurar outras localizações:

Agora vamos partir para um novo formato. Um formato profissional, tá ligado?


Que a próxima que vai sair é a LIF que é a Liga Internacional de Freestyle, que é
um baguio que a gente vai misturar, não vai ser só espanhol, vai ser português e
espanhol e mano, inglês, os caras que vier. Buscar trazer representantes de vários
países, sair desse núcleo só de bolivianos praticamente. [...] E é exatamente isso
que a gente pretende trazer para a LIF, eu já estou conversando com pessoas de
umas cinco nacionalidades diferentes para a gente organizar um evento de
venezuelano, boliviano, peruano, paraguaio, brasileiro, tô vendo se consigo um
colombiano e estou pensando em trazer até um africano para o bagulho. O
bagulho é esse mano: rap e mundo, rap sujo dos underground, dos loucos.
(Bryan, imigrante boliviano, entrevista realizada, 14/01/2020).

Portanto, se o trabalho destes jovens MC’s no sentido de procurar uma melhor


inserção na sociedade brasileira está apenas começando, urge, para um quadro mais
completo da análise das juventudes imigrantes, que novos estudos sejam realizados.
152

6. Considerações finais

Este trabalho procurou analisar o modo como os jovens imigrantes bolivianos,


peruanos, paraguaios – bem como os descendentes de imigrantes destas origens –
constroem seus espaços de lazer e, no interior de cada um deles, constitui suas relações de
sociabilidade. Para tanto, não poderíamos deixar de contextualizar o modo como são
percebidos na e pela sociedade brasileira. Conforme demonstramos, estes atores sociais se
encontram em uma situação de inferioridade no qual são estigmatizados pelos nativos do
país de recepção. Em nossa abordagem, o estigma pelo qual são marcados remete ao
processo histórico de formação do continente latino-americano, no qual, como fruto de sua
constituição, desenvolveu como traço característico a colonialidade de poder (Quijano,
2005), que vem a ser um conjunto de relações hierarquizadas com base na distinção racial
da população. Característica que, segundo o autor, mantém-se até os dias atuais.
No caso específico, deste estudo, procuramos demonstrar como que esta
colonialidade de poder estimulará durante o século XIX e posteriormente no início do XX a
vinda de imigrantes de diferentes países europeus. Estes serão inseridos na sociedade de
recepção como superiores aos nativos que eram, em sua maioria, constituídos por
indígenas, negros e mestiços. Tal ideologia orientará a classe dominante do período (Marx
& Engels, 2007) e dará origem a um pensamento de Estado (Sayad, 1998), como também
conformará nos descendentes destes imigrantes uma identidade ao mesmo tempo nacional e
étnica (Albuquerque, 2010), a partir da qual se exaltaram os feitos destes contingentes
migratórios como responsáveis pelo desenvolvimento do país.
Esta percepção de mundo esteve atrelada a outra que entendia os imigrantes não
europeus – asiáticos e africanos –, como indesejáveis, ainda que a entrada de indivíduos
destas origens não fosse proibida. Ainda que nos dias atuais esta ideologia não seja mais
declarada pelo Estado e não existam leis que restrinjam a entrada de imigrantes em terras
brasileiras por causa da nacionalidade, os resquícios desta visão de mundo ainda se mantêm
e influenciam o modo como os novos contingentes de imigrantes são percebidos pela
sociedade brasileira.
Se estes fatores devem ser levados em consideração para pensarmos o modo como
os imigrantes e descendentes de imigrantes se apropriam e criam espaços de lazer na
sociedade brasileira, outros como, por exemplo, as relações entre suas comunidades inter-
relacionadas e interdependentes, devem ser igualmente destacados. Conforme
153

demonstramos, estas têm peso igualmente decisivo nas relações que os jovens bolivianos,
peruanos e paraguaios desenvolvem entre si nos ambientes de lazer.
É das relações desenvolvidas entre imigrantes bolivianos, peruanos e paraguaios e
entre estes e brasileiros que as pandillas surgem. A ação destes grupos irá marcar a história
destas comunidades, especialmente a boliviana e paraguaia de tal modo que, embora exista
certa ambiguidade no que concerne à existência destes grupos juvenis, a narrativa sobre
eles ainda se faz presente, principalmente entre os imigrantes na faixa etária entre 30 e 40
anos, e justificam as brigas e crimes que ocorrem na rua Coimbra.
Na tentativa de interpretar o que ocorre no local, compreendemos que a querela vai
além dos problemas como ausência de segurança e de estrutura, em outras palavras, dizem
respeito a duas formas de apropriação do espaço que conflitam entre si: o das famílias
durante o dia e o dos jovens durante a noite. É esta relação tensa entre dois pedaços que
engendra as discussões sobre a presença de bares e baladas na rua Coimbra, onde os jovens
que a frequentam no horário noturno terminam por ser estigmatizados pelas narrativas
sobre a existência das gangues juvenis.
Por outro lado, a rua Coimbra não é o único lugar frequentado pela juventude
imigrante, pois outros espaços vêm se consolidando na região metropolitana de São Paulo.
Dentre eles, as baladas localizadas na Vila Maria, Pari e Centro, como também a batalha de
rap batizada por seus organizadores como Batalla Callejera. Ambos são frequentados por
imigrantes sul-americanos e por brasileiros e neles estão presentes as mesmas
características que estão nos bares e baladas da rua Coimbra como o consumo de álcool e
drogas e relações conflitivas entre seus frequentadores.
Se no caso das baladas, as brigas estão presentes e na Batalla Callejera ausentes,
preocupamo-nos em compreender quais seriam os motivos que impediam aos jovens MC’s
de entrar em conflito e terminarem brigando. Conforme argumentamos anteriormente, na
batalha de hip hop organizada pelos jovens imigrantes dois mecanismos estão presentes:
por um lado a liminaridade (Turner, 1974) que faz com que temporariamente as fronteiras
interétnicas sejam suspensas e, por outro lado, a sublimação (Elias, 1995) realizada pelo ato
de rimar nos duelos entre os MC’s onde a agressividade e o conflito social são encenados
através da arte.
Se isto marca a diferença entre as baladas e a Batalla Callejera, constatamos que,
no entanto, estes espaços não são alvos de discussão como ocorre com os bares e baladas da
rua Coimbra, ainda que conservem algumas características em comum. É que tanto as
154

baladas da Vila Maria e Pari quanto às batalhas de hip hop dos imigrantes são pedaços
unicamente constituídos pelos jovens e, por esta razão, não entram em conflitos com outros
pedaços formados pelas famílias dos imigrantes.
Finalizando, gostaríamos de justificar os motivos que nos levaram a pesquisar a
juventude imigrante e descendente de imigrantes em seus espaços e circuitos de lazer. É
que, se esta fase da vida constitui para os atores sociais aqui implicados um “espirito” que
demanda daqueles que são entendidos como jovens o compartilhamento de códigos e
valores compreendidos como juvenis, constatamos que deveríamos procurar a manifestação
de tal “espirito” nos lugares por eles constituídos, fora do ambiente do trabalho e da escola.
Assim, por um lado, evitamos a tendência de visualizar os imigrantes unicamente
como força de trabalho (Sayad, 1998) e, por outro, nos preocupamos em observar a
socialização juvenil imigrante nos espaços intersticiais dominados pela sociabilidade, ou
seja, aqueles de “natureza sociabilística, que enfatizam a aleatoriedade, os sentimentos, a
experimentação. Esses espaços são vivenciados preferencialmente à noite, quando
experimentam uma ilusão libertadora, longe do tempo rígido da escola ou do trabalho”
(Dayrell; Reis, 2007, pp. 6-7).
Ora, se aos jovens imigrantes e descendentes de imigrantes ainda são “mitigados
espaços importantes de sociabilidade, como a escola, os parques, os passeios ao shopping,
as conversas e amizades com diferentes descendências” (Oliveira, 2013, p. 45), isto não
implica que estes não conformem, a partir de seus valores e referências culturais, lugares
destinados ao lazer e contato com seus pares, onde também se destacam como produtores
de cultura e de sua inserção na sociedade brasileira. Pois conforme afirmou Bryan: “Os que
não se encaixavam em tais lugares se juntaram em lugares que todos se encaixam. Então
isso criou a Coimbra, a Kantuta, as baladinhas e os grupinhos” (Bryan, imigrante boliviano,
entrevista realizada, 14/01/2020). Portanto, é importante que novos estudos a respeito desta
juventude e de seus espaços de lazer por ela constituídos sejam realizados futuramente.
155

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