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Alemanha
Saltar o muro num abraço
v
ANA PATRÍCIA SEVERINO
Angola
Ano Internacional da Saúde das
Plantas para nos sensibilizar para
a importância que estas têm para
acabar com a fome no mundo,
De tudo o coviDizer
reduzir a pobreza e proteger o
ambiente. O instagram tem mais
de um bilião de utilizadores sem
as possibilidades de fact-checking,
como hoje tem o facebook. E as
petúnias que semeei estão prontas
para ser transplantadas enquanto,
lá para novembro, teremos elei- ONDJAKI
ções nos EUA.
Somos seres vulneráveis mas Era impossível não pensar,
provámos, forçados pelas piores estupefacto, como é que ainda é
razões, que conseguimos mudar possível que a AvóAgnette esteja
radicalmente de vida, quase de um aqui connosco, numa batalha
dia para o outro, em todo o mundo, mais, ela que veio do início do sé-
num mundo que necessariamente culo vinte, durante uma primeira
também já mudou, podendo trans- guerra, atravessando a segunda
por o alheamento em relação ao mundial, todas as guerras ango-
Outro. O Outro num mundo global lanas, até à paz, enterrando tudo
somos nós. e todos durante todos os anos que
Num discurso endereça- podemos imaginar até à presente
do ao país durante a Páscoa, data; aqui estava ela connosco, em
o Presidente Frank-Walter casa, nesta casa, (e nós com ela),
Steinmeier pediu aos alemães que e tantas vezes, durante estes dias,
mostrassem o melhor de si pró- me sento portanto à beira dela a
prios e apelou a que o mostrassem tentar ler-lhe o olhar e as mãos, a
também à Europa. “A Alemanha ausência e a musicalidade, o que
não pode sair da crise forte e dizem os olhos e o pouco dos ges-
saudável se os nossos vizinhos tos que apresenta; era impossível
não se tornarem também fortes não ficar receoso, sobretudo pelos
e saudáveis. Esta bandeira azul pais e pelas crianças, por razões
(a bandeira europeia) está aqui diferentes, e era impossível não
por uma razão. Trinta anos após rir com os pais e com as crianças,
a unidade alemã, 75 anos após o reinventar (isso vem de todas as
fim da guerra, nós, alemães, não guerras, em todos os lados das
somos apenas chamados a mostrar famílias, em todos os séculos...) os
solidariedade na Europa - somos hábitos, as rotinas, as designações
obrigados a fazê-lo! Solidariedade das funções e dos tempos nossos Arte de rua na Nigéria A Covid cresce em África
- eu sei que é uma palavra pode- em cada um e nos outros; sorrir,
rosa. Mas não será que vivemos rir, desmanchar a rir, chorar tal-
hoje, de uma forma concreta mas vez, e guardar o espanto para olhar
também existencial o verdadei- todas as manhãs, todas as noites, reconhecer nisto tudo a ginástica quer pelos que perguntam, quer
ro significado de solidariedade? a AvóAgnette ainda aqui deitada de permitirmo-nos ginasticar para pelos que respondem; e quem nos
As minhas ações são vitais para perto dos nossos dias, das nossas não sucumbir; inventar, recriar, conhece, aos angolanos, sabe que
a sobrevivência dos outros. Por refeições, das nossas conversas e difamar, problematizar e até preo- nem sempre assim acontece; até o
favor, preservemos esta preciosa cuidados e carinhos e lembranças; cupar; é impossível não ficar sur- próprio presidente João Lourenço,
experiência. A solidariedade que o horário solto requer alguns ri- preendido (é o país que temos...) e a.k.a. JêiLô, não tem vindo a
todos os dias que se demonstra gores para fingir que os dias ainda digo positivamente surpreendido e público falar, e creio que isso foi
agora será ainda mais necessária são iguais aos que havia; as refei- logo depois satisfeito, e de seguida positivo para dar espaço (e res-
no futuro! Seremos uma socie- ções pautam os minutos, as fun- (por que não, confessar?) orgulho- ponsabilidade) às respetivas áreas
dade diferente depois desta crise. ções sobram, as direções do norte so, de ver a resposta da sociedade de intervenção; é impossível não
Não queremos tornar-nos numa e sul da casa tiveram que ser rea- e do governo; impossível não Ondjaki ter saudades de lugares de ver e de
sociedade ansiosa ou desconfiada. justadas; as crianças, uma de nove dizer, dentro ou fora do país, que viajar, e lugares de abraçar, e de
Mas podemos ser uma sociedade e outra de doze, terão de crescer, me surpreendeu, desde o início a gestos que já nos foram simples, é
com mais confiança, e com mais como todos nós; sempre foi assim, resposta possível, com as soluções impossível não ficar, por dentro,
consideração.” dir-se-ia (quem diria... a Avó? a possíveis, que este ‘executivo’ tem caladinho por, no fundo, ter a sor-
Estima-se que, em 2050, tia Rosa? a tia Tó? o tio Vistor?), procurado dar à questão covidiana, Sorrir, rir, espantar-me te (e o privilégio, e o lugar social,
seremos 10 biliões de pessoas no mesmo em outras guerras, curtas mau grado o ‘coviDizer’ na voz com exultação pela etc., etc.) de poder estar em qua-
mundo. Teremos, no caminho até ou mais extensas, mais ou menos (escrita) de um jornalista cretino rentena ao contrário de milhões
lá, a grande responsabilidade de visíveis; era impossível não deixar sobre a ‘militarização’ de Angola criatividade que vejo em Angola, Moçambique ou Brasil;
tornar o planeta sustentável e para que as internets e os instagrams durante esta crise; ótimo que esse brotar de amigos e é impossível não me lembrar,
o conseguir, dependemos muito e os ritmos todos se instalassem e jornal brasileiro se informasse ou não saber ou não ler o que se
da capacidade humana para usar o esses palcos se confundissem com melhor sobre a polícia e até o exér- desconhecidos (...); passa politicamente no Brasil; e
poder da solidariedade. a narrativa dos quotidianos, ao cito que, sim, estão nas ruas, tem inventar, recriar, mesmo assim, é impossível não
Por enquanto, espero que em ponto de todos (com a exceção da sido complicado, têm procurado ver o grande esforço dos artistas
breve possamos abraçar-nos, não AvóAgnette) refazerem os álbuns fazer o seu trabalho junto de uma difamar, problematizar (brasileiros) nos seus modos pecu-
só porque significará que acabou das suas piadas e memes, grava- sociedade que, aqui sabemos, sofre e até preocupar liares de resistir à bolsomía, digo,
a distância física que agora nos ções áudio ou vídeo, conversas e de altos níveis de desigualdade à pandemia; há dias uma criança
é imposta, mas também para reuniões familiares, até já tive- social, baixos de civismo, o que só (brasileira) escreveu a frase “oje é
que, mesmo que num abraço não mos um canta-parabéns desses implica, sim, que toda e qualquer terça” e, ao ser alertada, reescre-
voluntário, ninguém caia para de zoom que, no futuro, teremos força tem que ser gerida em função veu assim: “oje é sábado”; foi-me
aquele que é o seu lado errado do (terão, os dois miúdos...) de expli- da nossa realidade; mas é também jornalistas, isto quando não está na impossível não sorrir e pensar que
muro. J car a quem já frequentar ‘zooms’ verdade que há aqui (surgiu...) televisão o governador da provín- a Beatriz tem razão: “oje”, durante
holográficos; sorrir, rir, espantar- uma, digamos, ‘situação sociopo- cia ou outros elementos de uma algum tempo, é como cada um
* Ana Patrícia Severino é adida -me com exultação pela criativi- lítica’ inédita, com conferências comissão multissectorial; é quase quiser. J
cultural na Embaixada de Portugal na dade que vejo brotar de amigos e diárias, o mais das vezes com a impossível não ficar boquiaberto,
Alemanha, diretora do Instituto Camões desconhecidos, novos apresenta- presença da própria Ministra da com os números explicados ao *Ondjaki, escritor angolano, autor
em Berlim e coordenadora de Portugal dores de tv, uns a brincar e com Saúde, respondendo com muita pormenor, as estratégias apre- de romances, contos, poesia e
Pais Convidado da Feira do Livro de muita habilidade, outros a sério e paciência a todas questões (nem sentadas abertamente, e até as volumes infanto-juvenis. Recebeu,
Leipzig com pouca habilidade, mas há que sempre pertinentes) dos nossos dificuldades sendo abordadas em 2013, o Prémio José Saramago
6 TEMA
�
Bélgica
A nossa quarentena
PATRÍCIA PORTELA
Oikos significa lar em grego. É tam- como pertença e privilégio, ao invés
bém a origem da palavra Economia. de um direito ou de uma missão, é
Lar é o lugar aonde todos podemos imposta como uma máxima que se
regressar. Para muitos, a Terra deixou defende em discursos (com especial
de ser um lar, muito antes do início afinco em abril), e praticada com
desta epidemia global. timidez ou desapego, não raras vezes Nas ruas "Distribuem-se declarações oficiais pelos sem-abrigo que as devem
com falta de sentido de comunidade apresentar às autoridades sempre que necessário, ficando assim autorizados
A nossa relação com a geografia global. a sentarem-se e a dormirem na via pública"
entrou em crise permanente quando A nossa quarentena é diversa,
os primeiros passageiros entraram mesmo que de uma janela no estran-
num avião e atravessaram o planeta geiro, como é a minha, nos pareça Patrícia Portela Aqui, em Antuérpia, as pessoas não fotografamos, não falamos disso
para passarem umas férias num comum. Na minha rua todos os esta- continuam a sair às ruas sem más- quando falamos da nossa quaren-
resort que poderíamos replicar na belecimentos estão fechados, como caras e em grupos, distribuídos aos tena, nem consideramos, quando
Costa da Caparica, enquanto outros, em tantos países europeus, mas os pares pelo passeio, e reúnem-se em falamos em regresso à nossa econo-
emigrados, juntavam dinheiro o supermercados estão cheios, como movimento em espaços públicos, mia, ao nosso lar. Aquela economia
ano inteiro para poderem regressar se todos os produtos alimentares porque a lei permite o passeio hi- que, ao que parece, não sustenta o
a suas casas, e outros ainda pediam nascessem das prateleiras. Enquanto giénico. Enquanto isso, em Bruxelas mundo mas nos dá o sustento. A mi-
para entrar noutro país que não fosse isso, confirmo em conversa com fecha-se o centro de acolhimento nha quarentena tem-me feito pensar
o seu, fugindo de guerras, fome, e, uma amiga em São Paulo, que no Tem-me feito pensar de refugiados sem um plano de qual é o valor do trabalho, qual é o
pasmemo-nos, epidemias. Brasil nunca a exploração do traba- qual é o valor do reorientação daqueles que aguardam valor que de facto damos à saúde
A nossa relação com o tempo lho foi tão intensa como agora, num asilo, e distribuem-se declarações de cada cidadão, como é que ainda
também foi sempre complexa e pe- mundo que virou delivery. A maioria trabalho, o valor que oficiais pelos sem-abrigo que as há quem questione a necessidade
riclitante. Ora não damos conta dele, das favelas entrou em autogestão, damos à saúde de cada devem apresentar às autoridades e urgência da produção artística e
ora sentimo-lo a escapar-se-nos por sabendo que não haverá qualquer sempre que necessário, ficando cultural quando é tudo o que nos
entre os dedos. Ora é precioso, ora é condução política ou apoio social, e cidadão, como ainda assim autorizados a sentarem-se e a separa de sermos apenas um bicho
perdido, ora vale dinheiro. os cidadãos que ficam em casa con- há quem questione a dormirem na via pública. que não sabe procurar a sua comida
A nossa relação com uma ideia de tinuam a encomendar telemóveis, Calais é aqui ao lado, nem a duas ou defender o seu território sozinho.
liberdade é recente. E com frequên- roupas e acessórios para sobreviver à
necessidade da produção horas de caminho, mas como não A minha quarentena tem sido
cia folclórica. Entendida tantas vezes quarentena sem centros comerciais. artística e cultural podemos sair de casa não vemos, passada frente a uma secretária ›
Brasil
lido e ouvido, definiu-o como “um
formidável vazio de ideias habi-
tado por insultos e anacolutos”.
Também o chama de “o mito da
FUN
www.incm.pt
https://www.facebook.com/ImprensaNacional/
prelo.incm.pt
editorial.apoiocliente@incm.pt
DA
MEN
Livros de escritores fundamentais como
Camões, Camilo, Garrett, Eça, Bernardim
Ribeiro, Camilo Pessanha, Marquesa
de Alorna ou Cesário Verde, da coleção
Biblioteca Fundamental da Literatura
Portuguesa, estão agora disponíveis
no nosso site www.incm.pt e no blogue
editorial prelo.incm.pt, em cumprimento
TA L
da missão de serviço público digital,
universal e de acesso gratuito da
Imprensa Nacional.
›imperador
Cabo Verde
numa rua com o nome de um as bancárias para amigos em apuros
facínora, a pensar em e para contas solidárias, denunciar
Viseu, onde comecei a trabalhar, a 1 desigualdades nas redes sociais, ou
de março, no Teatro Viriato. A minha incluir aplicações que nos permitam
Fka na Kasa
quarentena oscila entre montar uma regular o aquecimento em casa, e
nova programação remota num tea- distribuir a energia renovável que
tro cujo edifício está fechado, travar captamos dos nossos telhados, como
conhecimento com uma equipa advoga há décadas Jeremy Rifkin,
pela primeira vez (que vive entre um economista, sociólogo e ativista
a Carregosa, Canas de Senhorim, norte-americano, que nem sequer é
Serra do Caramulo, Mangualde, muito radical.
Nelas ou Tábua) e fazer uma es- No momento em que foi decre- GERMANO ALMEIDA
treia internacional de um festival tado um estado de emergência nas
telefónico com artistas com quem condições em que hoje vivemos, Todos os dias, entre as onze e
regularmente trabalho e que vivem oferecemo-nos tudo o que precisa- o meio-dia, subo ao terraço da
em Macau, Melbourne, Fortaleza ou mos para uma derradeira mudança. minha casa com o propósito de
Funchal. A minha quarentena tem- Podemos tornar-nos num Estado obter a dose de vitamina D que
-me relembrado, com persistência, mais vigiado, mais autoritário, o sol proporciona e a quarente-
que vivemos numa era em que a menos livre, ou podemos relacio- na obriga. Vista dali a cidade do
geografia está ao alcance de poucos nar-nos de forma diferente com a Mindelo parece estar caminhando
dígitos num telefone para uns, e à geografia e com o tempo, pergun- lentamente, avançando devaga-
distância infinita de uma lei injusta tando-lhes o que se passa e como rinho para entrar no mar que lhe
para a maioria (e isto enquanto as podemos seguir juntos a partir fica aos pés, uma orografia que
bananas no meu supermercado de daqui. faz pensar numa imensa e suave
Antuérpia continuam a vir do Peru e Temo, no entanto, que nos ha- piscina de águas mansas com o
os corta-unhas da China). bituemos à peste, como sempre nos Monte Cara ao fundo vigiando
habituamos a tudo. Quando já não num majestático silêncio.
RECORDA-ME QUE TALVEZ NÃO nos parecer obsceno não falar só de Não sei de quantos minutos
SEJA PRECISO restabelecer a lou- saúde, voltaremos lentamente a falar preciso para acumular as unidades
cura das citytrips e das itinerâncias de economia, capitalizando a origem necessárias de vitamina, mas en-
desenfreadas de espetáculos para grega da sua palavra, oikos, que quer quanto o sol não incomoda vou ad-
continuarmos a ser um mundo dizer lar, e a pouco a pouco, de for- mirando a beleza estranha do ilhéu
global, mas também não temos ma sorrateira, iniciaremos a recruta dos Pássaros pontificando no meio
de nos fechar em comunidades de todos aqueles que manterão, da baía qual sentinela de pedra, e
isoladas sem contacto com os nossos não o mundo a comer e a funcionar um pouco mais longe vislumbro a Cabo Verde Hospital do Mindelo
vizinhos, os que vivem na mesma tecnicamente, mas o sistema que nos ilha de Santo Antão, em certos dias
rua, no país ao lado, ou no próximo levou precisamente até aqui. A esta distantemente enevoada, noutros
continente. Se podemos utilizar um quarentena. A este medo de respirar. tão luminosa que parece estar
telefone para vigiar os movimentos, Até tudo começar e acabar mais uma afastada apenas o tamanho de um circular sem causa bem justifi-
medir a temperatura ou encomendar vez. Se assim for, poderá ser esta a braço, porém de todo inalcançável cada. Este está a ser um mo-
uma pizza, o mesmo aparelho tam- oportunidade perdida que o nosso nestes dias de incógnita emergên- mento particularmente grato
bém nos permite fazer transferênci- planeta nos deu. J cia viral. aos polícias de simples giro, de
Da minha casa muito pouco repente investidos pelo estado
ouço dos ruídos da cidade. Apenas de emergência de quase ilimita-
os imagino vendo o constante ir e da autoridade sobre o geral dos
›temtrabalho, atendimento. O que se
revelado é um belo trabalho
junto conversando, dando apoio,
atendendo telefone, picando
vir das pessoas e dos automóveis.
Para chegar ao frenesim da rua de
ex-cidadãos, esse poder nunca
antes acontecido em 45 anos de
solidário, pessoas se ajudando e verduras, descascando batatas, ou Lisboa tenho que descer algumas independência de ordenar e for-
dando apoio a quem não tem nada. preparando uma caipirinha. ruelas e becos, chegar ao asfal- Germano Almeida çar o cumprimento de ordens,
Mas o dinheiro para a merenda Café da manhã é comigo, arru- to e finalmente entrar no centro não poucas de duvidosa legali-
escolar de 20 milhões de alunos mo mesa, corto frutas, faço suco. histórico onde a vida fervilha como dade ou eficácia.
(quantos Portugal cabem dentro Estou aprendendo a fazer tapioca. numa feira ao ar livre… Mas também não há muito
disto) não sai, a burocracia segura. Deixo a cafeteira pronta para quan- Fervilhava! Um passado não para onde ir. As padarias estão
E a fome ronda. do ela acordar. remoto mas que já se instalou num abertas, o mercado das verdu-
Para culminar, domingo passa- Busco os jornais lá em baixo presente melancólico. Por estes ras também, mas o mercado de
do, dia 12, o Presidente reuniu-se na portaria. Não tem como passar dias toda a cidade mais parece um Por estes dias toda a peixe está fechado a cadeado,
com grupos religiosos e declarou álcool gel no jornal. É o risco que longo e triste domingo que não um pesado e resistente cadeado,
que o vírus está indo embora. Mal corro. chegou a viver as folias do sábado.
cidade mais parece um rio-me desse preciosismo porque
começou. Dou comida ao gato, um pouco de A cidade-porto sempre viveu da longo e triste domingo também muitas dependências do
ração, um pouco de atum, lavo o rua porque vive do mar. A palavra hospital Baptista de Sousa estão
APRENDEMOS NOVA MANEIRA bebedouro dele, troco a água. “expediente” bem que podia ter
que não chegou a viver igualmente fechadas a cadea-
DE VIVER. Adiantará? Sabemos Há outro lado na vida que nascido aqui porque deve ser o as folias do sábado do, e até a entrada principal do
agora o que sentem os presos em desconhecíamos, e que é rotineiro, lugar onde atinge as significações emblemático hotel Porto Grande
uma solitária ou quem sabe as automático. O doméstico. Fazer, mais diversas, reais ou inventa- está entaipada. A cidade está,
freiras em uma clausura. Estas, ao refazer, desfazer, fazer, refazer, das. pois, muda, mais de espanto que
menos, têm Deus para ampará-las. fazer e desfazer e não sei como os Eu e o foguense rezingamos de terror diante desse invisível
Somos como os prisioneiros em neurónios não queimam. Ações MAS POR ESTES DIAS MINDELO sempre, ele sempre me engana inimigo de ficção científica que
domicilio da Lava Jato, apenas não que deixávamos para as emprega- ESTÁ FECHADO ao mundo dos ne- nos preços, todos os dias lhe digo ataca num silêncio de guerrilha,
usamos tornozeleiras eletrónicas. das, aquelas que, diz o ministro da gócios e até ao comércio das pala- que não quero mais negociar com e já não se ouve na rua o alegre
As ruas semi desertas são cor- Economia, lotam a Disneylandia, vras. As ruas estão desertas, limpas ele, mas agora sinto-lhe a falta a grito de “oli cavala freeesca!”,
tadas por motoqueiros que levam a Disneyworld ... talvez Las Vegas de gente e de carros, as vendedei- convencer-me da excelência dos “quem crê banana, papaia, ver-
refeições, medicamentos, peque- ou o Copacabana Palace, que aliás ras ambulantes que alegremente seus produtos, por isso mesmo dura?” Mas ficar em casa é uma
nas compras, grandes compras, fechou, primeira vez em 97 anos. atravancavam os passeios com mais caros, onde mais poderia ordem perversa, a maioria da
bebidas. Hoje mesmo compramos Famosos postam fotos mostran- os seus balaios de frutas e horta- encontrar verduras e frutas as- nossa gente vive na rua porque
um pequeno robô que tira o pó do do aeróbicas, drinques, cartazes. liças foram todas obrigadas a se sim fresquinhas, como se fabri- é da rua, é ali que diariamente
chão e dos tapetes, coisa da Guerra Fique em casa, leia este livro. Vão encerrarem em casa, até mesmo o cadas especialmente para si? busca como à tarde levar ao lume
nas Estrelas. se promovendo. J foguense, meu vendedor privado, As ruas vazias surgem de a panela que alimenta os filhos.
Minha vizinha procura um robô deixou de me bater à porta com as repente atafulhadas por magotes Por isso, entre a fome e o covid,
que passe álcool gel nas compras *Ignácio de Loyola Brandão é um dos mais suas papaias, banana, aboborinha, de tropas ou de polícias, grandes venha Deus e escolha. J
que chegam e entram em casa. destacados romancistas e cronistas do Olha aqui a favona da boa, diz e grossos matulões de aspeto se
Novos rituais. Brasil, Prémio Machado de Assis e Jabuti, convincente, vinda diretamente não aterrorizante, pelo menos *Germano Almeida, escritor cabo-verdiano,
Quem cozinha, dedica-se. entre muitos outros, colunista de O Estado das hortas de Santo Antão para a altamente desencorajante de autor de duas dezenas de romances, Prémio
Quem não cozinha, como eu, fica de S. Paulo panela da sua casa! toda e qualquer tentativa de Camões em 2018
6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT TEMA 9
VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS
�
Espanha
silêncio que traz o confinamento, só
interrompido pela natureza que está
a reviver nesta morna primavera.
Agora estamos a viver uma vida
Silêncio e esperança
nunca dantes experimentada, que
limita a mobilidade e incrementa
a solidão amistosa e familiar, que
transforma os modos de relação en-
tre as pessoas e que muda o sentido
básico da palavra, que não deve ser
dita mas escrita ou transmitida por
RAMÓN VILLARES vias telemáticas. O ecrã substitui
a realidade física, numa distopia
Como chegam os trovões, chegou prevista mas não disseminada de
o silêncio depois de ser anuncia- modo tão universal. A carnalidade
do por um relâmpago em forma das relações fora da morada fica em
de confinamento decretado por suspenso.
governos assustados para cidadãos Como encher o passo dos dias
desconcertados. Os efeitos de um neste confinamento silencioso? De
vírus descoberto na China chega- início, posso dizer que para mim
ram de repente às nossas terras, em foi uma feliz oportunidade, ao ter
forma de guerreiro de nome técnico tempo para ler, escrever algum
em nada semelhante à mal chamada texto muito tempo adiado, cuidar
“gripe espanhola” de cem anos Ramón Villares do jardim do condomínio, falar com
atrás. Esta nova gripe voltou a ser a família que mora longe. Não caí,
notícia dos media e das conversas por enquanto, no gosto mórbido
telemáticas que medraram como a de seguir diariamente “parte” da
má erva. A ordem foi clara: (quase) guerra com o número de infetados,
todos devem ficar em casa. E já lá mortos e salvos. Prefiro a leitura,
vão dois meses e não sabemos o que ver filmes já vistos, contemplar a
nos resta. Um tempo suficiente para natureza e aproveitar estarmos na
pensar no que está acontecer, como Páscoa com o seu luar permanente.
se adaptar a estas novas circuns- Mas também há tempo para pensar
tâncias e imaginar como será a luz De tempos em sobre o que está a acontecer e o que
depois de sair do túnel. Fotografia de família durante a 'Gripe Espanhola' tempos, a natureza nos espera quando tudo isto acabar.
Eu estou a viver, com a minha Além de silêncio, estamos na
esposa, perto da cidade de Santiago
mostra que não incerteza de saber o que pode mudar
de Compostela, nossa morada ha- res mas os necessários para saber uma auto-estrada a poente anunci- somos deuses... e aqui depois desta experiência. A pande-
bitual e não refúgio temporário. As quem está sair ou a chegar de carro, am a chegada das chuvas oceânicas. mia é para muita gente uma forma
filhas, em Barcelona e Berlim. É um quando os cães alertam do passo É um entorno tranquilo e mesmo
abre-se uma porta de guerra dos vírus contra as pes-
lugar tranquilo com poucos rumo- de pessoas ou como os rumores de silencioso. Mas nada semelhante ao para a esperança soas. Uma luta “viral”, de inimigo
França
Dias confinados no país de Descartes
MARIA GRACIETE BESSE
Pela primeira vez, grande sobretudo a pensar a vul- Diretamente relacionado com de um tratamento que associa a
parte do planeta conhece a nerabilidade e o sentido dos a situação atual, parece surgir hidroxicloroquina e a azitromi-
luta contra o mesmo inimigo valores. em França um novo género cina. Nas redes sociais, o micro-
invisível que nos fecha em casa Algumas publicações aju- literário, eminentemente femi- biologista insiste em elogiar os
a interrogar o futuro. Em Ensaio dam-nos nesse sentido, como nino, o diário do confinamento, benefícios das suas experiências
sobre a Cegueira, uma perso- a revista En attendant Nadeau levando escritoras como Leïla que não respeitam os protoco-
nagem de Saramago avisa- (https://www.en-attendant- Slimani e Marie Darrieussecq los habituais, sendo portanto
-nos: “Vocês que estiveram -nadeau.fr), que se apresenta (que deixaram Paris antes da contestadas pela maioria da
na quarentena têm muito que como um “jornal da literatura, reclusão obrigatória) a publicar comunidade científica.
aprender”. Que nos irá ensinar das ideias e das artes”, aven- na imprensa uma visão ideali-
esta pandemia? tura digital lançada em 2016 Maria Graciete Besse zada dos seus dias campestres. O DESEJO DE ENCONTRAR A
Longe da ficção, o tempo pela antiga equipa de Maurice A crítica não se fez esperar e há TODO O CUSTO uma solução
suspende-se e o sentimento Nadeau, o crítico literário que quem lhes chame as “Marias para a covid-19 tem levado
de perda parece dar razão dirigiu durante anos a Quinzaine Antonietas do coronavírus” a muitos franceses, vítimas de
à colapsologia que vê agora littéraire. No último número, fingir de camponesas, confir- uma lógica populista, a fazer
confirmada a ameaça de uma podemos ler as palavras de Carlo mando, em registo paródico, o impossível para obter as
desintegração sócio-económi- Ginzburg acerca da distância Transforma-se em guru, que o riso é afinal a melhor moléculas milagrosas. Todos
ca global. Vivemos no âmago crítica, a forma como a arte solução para vencer o medo. têm uma opinião e até alguns
da incerteza, em estado de conjurou epidemias, ou uma com o apoio de coletes A voz da autoridade é, neste políticos afetados, que nada
sideração, a descobrir todos análise do Journal de l’année de amarelos que o fazem momento, o médico e não o sabem de virologia, declaram
os dias aspetos inesperados de la peste, publicado por Daniel banqueiro, constata Erri de Luca ter escapado ao pior graças
um mal que nem sequer nos Defoe em 1722, bem como uma passar por marginal, no L’Obs. Mas em Marselha, ao prof. Raoult, sem observar
permite celebrar dignamente entrevista interessante de Mia quando se trata de um reconhecido especialista que mais de 80% dos doentes
os nossos mortos. O tempo de Couto que reuniu em francês a de doenças infeciosas, o prof. recuperam naturalmente. As
interrupção da quotidianidade sua trilogia épica (Les sables de
um antigo reitor da Didier Raoult, tem alimentado teorias conspirativas prolife-
exige reflexão, obrigando-nos l’empereur). universidade uma enorme polémica em torno ram e o auto-proclamado génio
6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT TEMA 11
VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS
�
Holanda
invisível, na qual é difícil distinguir
os combatentes. Uma metáfora das
guerras de hoje, nas quais toda a
gente está concentrada. Por essa
Inglaterra
também avisou, que “o comissário
de bordo é velhaco”.
Que é como quem diz, não se
sabe o que vai acontecer até ao fim
Saudades do Brexit
desta viagem para parte nenhuma.
Exceto, é claro, que a partir de certa
idade morre-se muito. E também
que são os mais pobres de qualquer
idade que tendem a morrer antes
dos mais ricos de qualquer idade.
Prevê-se, em todo caso, que para
HELDER MACEDO os sobreviventes vai haver uma re-
cessão económica tão severa quanto
Odeio cruzeiros marítimos. Essas foi a grande depressão de há quase
falsas viagens para parte nenhuma um século. Mas quem se vai lixar
que as agências turísticas (ia escre- não serão, por exemplo, os meus
ver funerárias) costumam anunciar simpáticos vizinhos em calafeta-
nesta altura do ano como quaren- da quarentena, mas os sacrificiais
tenas primaveris de fim de vida. trabalhadores que neste momento
E que consistem basicamente em sustentam a vida do resto da popu-
casais geriátricos em prenúncios lação. O chamado pessoal auxiliar,
de viuvez partirem de um porto como se o seu “auxílio” não fosse
para voltarem ao porto de partida. fundamental para a sobrevivência
Como se fosse possível regressar de Helder Macedo de todos.
outras vidas que houvesse de per-
meio, se outras pudesse ter havido. POR EXEMPLO, OS DESPROTEGI-
Mas agora muitos nem regressam, DOS ENFERMEIROS e enfermeiras
ficam de quarentena intransitiva. nos hospitais superlotados e mal
E portanto agora, nesta confinada equipados do Serviço Nacional
Londres primaveril – com sol, ca- de Saúde. Essas mesmas e esses
lor, céu azul, ruas sem carros e sem mesmos que, antes da crise, já eram
gente, árvores como mastros flori- Agora é de bom tão mal pagos que por vezes tinham
dos soprados por frescas brisas que Luís Pitarma O enfermeiro português a que Boris Johnson agradeceu de recorrer às sopas dos sem abrigo
parecem vindas do mar – tenho tom bater-lhes (aos para sobreviverem. A desigualdade
pensado muitas vezes no oportuno enfermeiros) distantes económica na Inglaterra é a maior
aviso do Álvaro de Campos, no da Europa. Sim, mas agora, todas as
Opiário: “Esta vida de bordo há-de palmas agradecidas. deita um vintém e sai um deles a a fazerem equânimes filas de quintas-feiras às 20 horas, é de bom
matar-me,/ são dias só de febre na Gente que inclui uma sorrir”. E de facto, quando vou quilómetros (bom, está bem, de tom ir à porta de casa para lhes bater
cabeça/ e por mais que procure até à rua para o meu passeio diário e centenas de metros com inter- distantes palmas agradecidas. Até
que adoeça/ já não encontro a mola percentagem considerável aproveito para gastar os possíveis valos de dois metros) em volta do o primeiro-ministro Boris Johnson
pra adaptar-me”. de imigrantes. Os que vinténs nas lojas que ainda haja quarteirão do supermercado local. foi à porta dele, antes de o levarem
Mas também é verdade, como abertas, lá os vejo, se não neces- Desisto e regresso ao meu con- para o hospital e ter sido salvo com
ele também diz, que “os ingle-
o Brexit tenciona mandar sariamente a sorrir por detrás das finamento. Porque também já se o auxílio dessa gente marginalizada
ses são feitos pra existir: a gente às urtigas máscaras protetoras, certamente sabe, porque o Álvaro de Campos por governos como o dele. Gente
Itália
clássicos da política moderna, não
basta: é necessário que o soberano
garanta também a possibilidade
da felicidade.
Japão
que, além do mais, inclui uma per- mentos. Escondido debaixo de dois
centagem considerável de imigran- garruços, uma máscara XL e luvas
tes entre os quais, talvez a maioria, descartáveis, caminho rápido com
cidadãos da União Europeia. Os que medo que a voz me descubra e me
A voz do céu
o Brexit tenciona mandar às urtigas, repreenda do alto da sua autorida-
mortos ou vivos. Ao sair do hospital, de. A noção de urgente ficou por
o primeiro-ministro assinalou espe- clarificar e se ela me perguntar lá
cialmente uma enfermeira neo-ze- de cima - olhe desculpe, o senhor
landesa e um enfermeiro português dos garruços, o que é que vai fazer
a quem deve a vida. Sim, ótimo, mas hoje que não poderia fazer ama-
que concluir disso? nhã? Não sei o que lhe responder
Boris Johnson é um homem com RICARDO ADOLFO de volta. Se calhar fugia, corria rua
sorte. Até teve sorte no enorme azar fora até encontrar 30 centímetros
de adoecer com o vírus, criando vazios entre dois prédios onde me
uma generalizada e totalmente jus- pudesse esconder até a voz decidir
tificável preocupação nacional pela ir aterrar outro. Ou então enchia-
sua sobrevivência. E não só porque -me de coragem e perguntava-lhe
os “timoneiros” alternativos com como é que tinha sido o seu dia.
quem prudentemente se rodeou no Agora que todos somos um pouco
governo são notoriamente incompe- hikikomori, a reclusão é sempre um
tentes, mas também, ou sobretudo, bom início de conversa. É provável
porque a sua doença demonstrou que a voz também precise de desa-
que a epidemia é para todos, é uma bafar. Apresentar as piores notícias
unificadora causa democrática. E Ricardo Adolfo do mundo ao planeta todos os dias
que portanto ter-se curado, como não é a melhor estratégia para ser
se numa reconfortante ressurreição popular.
pascal, deve ser um motivo de espe- Quando olho para o céu, calculo
rança para todos. que a voz saiba que a achamos
Bom, está bem, basta de mal- bizarra. Mas como o bizarro tomou
dades de mau gosto. A culpa é do conta dos nossos dias e em breve
vírus, da quarentena e do Álvaro será banal, de certo vamos encon-
de Campos. Mas entretanto, e o O bizarro tomou conta trar juntos outra forma de sermos
Brexit, de que agora já ninguém dos nossos dias e em todos felizes. J
fala? Com a União Europeia tam-
bém em colapso viral e sem melhor
breve será banal, de *Ricardo Adolfo, escritor (autor de três
futuro económico no horizonte, certo vamos encontrar romances, um livro de contos e outro
será que continuará a ser um pro-
blema relevante se o Reino Unido
juntos outra forma de de crónicas) e publicitário, radicado no
Japão, em Tóquio, há anos, depois de de
vai estar dentro ou fora? Vai haver Tóquio de máscara sermos todos felizes Macau e daHolanda
fora e dentro? Ou, como me dizia
uma boa amiga num devidamen-
te incontaminado telefonema há Tóquio. Dez horas da manhã e zero
poucos dias, “ah, que saudades do segundos. A voz da senhora vinda do
Brexit!”.J céu deixa cair as mesmas palavras
Prémio Literário
de ontem. O estado de emergência
foi declarado e não devemos ir à rua,
a não ser em casos urgentes. As pa-
As universidades, como a
minha, Bolonha, nunca investi-
ram grandes recursos na didática
lavras fazem eco por entre as torres
da cidade e caem nas ruas desertas,
cheias de lojas vazias. Entram-nos
Maria Rosa Colaço
à distância. Consideraram-na
sempre com desconfiança uma
pela janela devagar, uma de cada
vez, como quem pede licença por vir
de 1 de abril a 31 de maio 2020
espécie de subproduto. Agora a acordar a angústia. Não são palavras literatura juvenil
atitude mudou, as governâncias comuns. Foram escolhidas da caixa
abordam o novo cenário virtual mais solene coberta de pó. E a voz A Câmara Municipal de Almada promove a 15.ª edição do Prémio
como uma oportunidade. Não se repete tudo mais uma vez. Quem
apercebem de que o que agora quiser certificar-se pela terceira vez
Literário Maria Rosa Colaço, com o objetivo de incentivar a criativi-
estamos a fazer não é e-learning, pode ligar 03-5401-0742. É aten- dade literária premiando uma obra inédita de um autor português nos
mas um arremedo determinado dido por uma melodia de embalar e domínios da Literatura Infantil e Literatura Juvenil. Literatura juvenil
por circunstâncias e urgências. O pode ouvir as mesmas palavras vezes
e-learning efetivo requer tecno- sem conta. é o género literário a concurso em 2020.
logias e capacitações específicas, Não sei se a voz é humana. Não
como muito bem atestado pela sei se gosta do que faz ou sonha- VALOR DO PRÉMIO
tradição das Open Universities. va ser artista de circo quando era € 5.000,00 (Cinco Mil Euros)
A “claustrosofia” mostra, como adolescente. Não sei se gosta mais
Gramsci numa carta a Tânia ex- de ramen ou soba. Na sua biografia
O prazo decorre de 1 de abril a 31 de maio 2020
põe muito bem, a “corpulência do oficial diz apenas que nasceu para
OS ORIGINAIS DEVEM SER REMETIDOS, POR CORREIO, PARA:
tempo, quando o espaço não exis- nos avisar de cheias, terramotos,
te mais”. Um mundo de qualquer poluição atmosférica ou outros de- Secretariado dos Prémios Literários
modo outro está a abrir-se para sastres naturais iminentes. Nasceu Biblioteca Municipal de Almada
o futuro próximo. Cabe a nós, para dizer aquilo que ninguém quer Fórum Romeu Correia
que devemos imaginá-lo, fazer ouvir e muito menos dizer. Tem
com que possa ser um pouco mais uma missão ingrata e não deve ter Praça da Liberdade,
justo, solidário e aberto daquele muitos amigos. Para compensar, 2800-648 Almada
de que acabamos de sair. J todos os dias às cinco horas em Informações Tel. 212 724 920
ponto toca uma melodia infantil.
*Roberto Vecchi, presidente da Um aviso para os mais pequenos
Associação Internacional de Lusitanistas, deixarem de brincar nos baloiços do
é prof. catedrático de Literatura parque e fazerem-se a casa que são
Portuguesa e Brasileira da Universidade horas de ir lanchar e tomar banho. Regulamento disponível:
de Bolonha, titular da cátedra Eduardo Calculo que depois da sua boa www.m-almada.pt/bibliotecas
Lourenço e investigador do CES, da ação do dia se retire até à manhã
Universidade de Coimbra seguinte, e vou em busca de manti-
14 TEMA�
Moçambique
Em dois compassos
UNGULANI BA KA KHOSA
1) Quando o vírus começou a assemelham aos carnavais que
alastrar-se, afetando populações não temos mas que importamos,
de todos os quadrantes distanciam-se umas das
geográficos, a preocupação outras, por vezes abraçam-se e
de muitos cá no Índico, arrependem-se. Paira ainda, o
Moçambique, era e é sobre a que é bom, o sorriso, a conversa
nossa capacidade de resistência. jocosa, a pergunta de sempre: a
Como sustar a epidemia com quantas andamos. A Covid19 vai
tantas fragilidades no sistema chegando a passo de camaleão.
nacional de saúde? Questão As pessoas ficam atentas ao
central a requerer respostas pequeno ecrã, esperam pelos
audaciosas. números, e atualizam-se com o
Enquanto nos preparávamos mundo infetado. A Covid19 está
para os primeiros casos da aí. Não somos a exceção.
Covid19, recebi uma notícia que No meu reduto, meio urbano
me espantou e deprimiu: Luís meio rural, a Covid19 não é
Sepúlveda, escritor chileno a conversa de esquina. Com
residir em Gijon, nas Astúrias, máscaras caseiras, as pessoas
está infetado com o coronavírus. fazem-se ao pequeno comércio,
Ele esteve recentemente nas aos bazares e às bancas de
Correntes D´Escrita, encontro peixe. As vendedeiras, na
anual de escritores de expressão ausência das máscaras, vão
ibérica, que decorre na Póvoa de cobrindo o rosto com parte da
Varzim. capulana, vestimenta típica de
Também tu, meu velho?, Moçambique. Quando atendem
perguntei-me. Tu que em os telemóveis, escutando os
viagens e noites insones filhos na cidade grande a chamar
por estes trópicos me tens atenção aos cuidados a ter
acompanhado, trazendo o velho com a epidemia, elas sorriem
António José Bolívar, o homem 'Chapa', carrinha de transporte de passageiros em Moçambique e agradecem, continuando
que lia romances de amor nos a conversa com a vizinha,
confins dessa estonteante região enquanto enxotam as moscas que
amazónica, em convívio com a tendem a poisar nos peixes. Elas
tribo Shuar; ou, em a sombra do de saúde dos demais. Primeiro Descobri que ao querer ter as estão a outra velocidade. Querem
que fomos, as incríveis estórias os que se fazem à Póvoa todos os obras do guinense Abdulai a todo o custo sobreviver
dos sexagenários militantes de anos: o José Carlos Vasconcelos, Sila, eu procurava quebrar as Mais para o interior está a
esquerda, vencidos pelo golpe diretor do JL, o escritor e barreiras geográficas e ter a população camponesa, a mais
de Pinochet, o Cacho Salinas, editor Francisco José Viegas, o Guiné-Bissau como um espaço sofrida com a ausência dos
o Lolo Garmendia e o Lucho angolano Manuel Rui, o filósofo meu. Descobri que a simpatia cuidados básicos de saúde; com
Arenciba, que aguardavam, e escritor Onésimo Teotónio de do galego Carlos Quiroga a malária a ceifar vidas todos
inquietos, num velho armazém, Almeida, o linguista e escritor estende-se também à outras os anos, com a cólera a emergir
pela chegada de Pedro Nolasco, galego Carlos Quiroga, e outros latitudes. Descobri finalmente de tempos a tempos, com as
que os convocara, trinta e que não me vêm à memória; que a Covid19, ao nos remeter colheitas sofríveis, com a chuva
cinco anos depois do último depois, os convidados do ano: Ungulani Ba Ka Khosa ao exíguo espaço das nossas e a seca a intercalarem-se, com a
encontro. Nolasco não chegou ao a Hélia Correia, o João de Melo, casas, levava-nos ao mundo, à fome a grassar pelas palhotas, e
encontro porque fora atingido o Gonçalo M. Tavares, entre solidariedade. com a esperança reduzida a nada.
mortalmente por um gira-discos escritores portugueses; os cabo- É cerca de 70% da população
lançado de uma janela de um verdianos Germano de Almeida 2) Para quem vive a cerca de Moçambique. Falaram-lhes
casal com problemas conjugais; e Mário Lúcio; os guinenses, de 30 quilómetros da cidade do coronavírus, da letalidade
ou a memorável viagem à Abdulai Silá e Conduto Pina; de Maputo, apercebe-se de da doença, dos cuidados
Patagónia e Terra do Fogo, terras os angolanos Lopito Feijó e imediato que o cenário da a ter. E depois do falatório
tão distantes mas próximas deste David Capelenguela, e a poeta capital mudou. A cidade de ficaram sós, como sempre: sem
meu recanto do Índico, através moçambicana Hirondina Joshua. bancas de frutas espalhadas hospitais e assistência num
da Patagónia Express; ou ainda Todos encontravam-se de pelas artérias, de vendedores raio de 50 quilómetros. O que
o belíssimo livro de histórias quarentena e sem sobressaltos. Falaram-lhes do de tudo nas esquinas, do lhes faz suportar os séculos
que me fez ver e sonhar com as Apercebi-me, no meio desse aglomerado desordenado da sua solitária existência
rosas vermelhas do deserto de frenesim, que o incontrolável coronavírus, da de pessoas em paragens de é o curandeiro, a medicina
Atacama. impulso em saber do estado de letalidade da doença, autocarros e chapas, transportes tradicional.
Não acreditei que o mais saúde dos homens das letras privados de passageiros, das E como em outras epidemias,
velho Sepúlveda, homem de mil assentava numa palavra tão dos cuidados a ter. roupas usadas espalhadas nos os camponeses aguardam pelo
aventuras e desventuras pelos maltratada desde a revolução E depois do falatório passeios ou penduradas em coronavírus, nas manhãs e
quatro cantos do mundo fosse francesa: fraternidade. Descobri improvisados estendais, da tardes nas machambas sempre
atingido por esse inclemente que ao folhear o livro Século ficaram sós, como tumultuosa baixa histórica, improdutivas destes tempos
vírus. A poeta e esposa Carmen dos Prodígios, o último que me sempre: sem tende a esfumar-se sob o efeito modernos.J
Yanez, serenou-me, ao afirmar chegou às mãos do Onésimo T. do coronavírus. É temporário,
que o cidadão do mundo estava Almeida, eu tinha-o não só como
hospitais dizem uns, vai ser diferente, * Ungulani Ba Ka Khosa, escritor,
estável. Pus-me então a fazer um escritor de cabeceira, mas e assistência dizem outros. Mas a cidade vencedor dos Prémios José Craveirinha e
uma desordenada procura nos também como um companheiro, apresenta-se mais disciplinada;
jornais que me chegavam online, pesem as diferenças e a latitude,
num raio de 50 as pessoas escondem parte do
de Ficção Narrativa Moçambicana. Este
texto foi escritor antes da morte de Luis
e nos noticiários sobre o estado de uma confraria sem fronteiras. quilómetros rosto em máscaras que nada se Sepúlveda