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TEMA 6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS


O que pedimos a 13 personalidades, dez escritores e uma docente de língua portuguesa, e duas figuras a Portugal
profundamente ligadas, as 13 ‘espalhadas’ por outros tantos países, em várias partes do mundo? Uma crónica ou um
testemunho sobre o que está a acontecer, no sentido de ‘como está a ser vivida’, nesses países - em que residem ou é o seu
- a realidade/situação decorrente da Covid-19. E como está, pessoalmente, a vivê-la no seu dia-a-dia. Ou o que de mais
relevante se lhe oferecer a esse respeito. Todos (cor)responderam ao nosso apelo, com textos em vários aspetos, mormente
no ângulo de abordagem, muito diferentes - e que no seu conjunto formam um significativo “mosaico” de tal realidade/
situação para os autores, em sete países da Europa (Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Inglaterra, Itália),
três de África (Angola, Cabo Verde, Moçambique), dois das Américas (Brasil, Estados Unidos), um da Ásia (Japão)

Alemanha
Saltar o muro num abraço

v
ANA PATRÍCIA SEVERINO

Ana Patrícia Severino

Vivo naquela que era a outra


Alemanha, no lado da cidade onde
o mundo acabava. Lembro-me
de um livro de Peter Schneider O Somos seres
Saltador do Muro onde, a dada al- vulneráveis mas
tura, o autor imagina um encontro
entre saltadores que, vindos dos
provámos, forçados
dois lados do muro, se encontram pelas piores razões,
em cima deste e dois deles se abra-
çam involuntariamente para não
que conseguimos
caírem juntos num lado do muro mudar radicalmente
que seria o errado para o outro.
Três destes saltadores, vinham
de vida, quase de um
do leste para o ocidente para ir dia para o outro
ao cinema e o quarto do ocidente
para o leste. Este último, quando
foi preso pelos fiscais da fronteira
num dos seus saltos, não mostrou Muro de Berlim "O Outro num mundo global somos Nós"
quaisquer intenções políticas, nem
uma vontade séria de ali permane-
cer. Explicou que vivia exatamente
em frente ao muro e que o caminho te quatro anos. A Xana vive no te para casa, espaço individual onde procuramos dar continuidade as livrarias se mantêm abertas
por cima do mesmo era o único em Curdistão. Onde estamos quando tornado espaço de resistência a um ao coletivo no não lugar que é o no período de confinamento, os
linha reta. Levaram-no para uma nos encontramos neste não lugar microorganismo infecioso. espaço virtual. pardais continuam a vir à minha
clínica psiquiátrica, onde desco- naquele que é um tempo sentido Desprovidos da liberdade do es- A experimentação é parte inte- varanda alimentar-se e cantar,
briram que sofria apenas de uma como suspenso? Estamos juntas? paço da natureza e do espaço físico grante dos processos de adaptação, assinalam-se os 500 anos da morte
necessidade doentia de transpor o 2020 começou na rua, espaço de exercício do coletivo o nosso es- no entanto, para caminharmos de Rafael, completam-se 75 anos
muro. dos protestos coletivos em Hong- paço privado é hoje o lugar a partir juntos e viajarmos através da vida após o fim da II Guerra Mundial e
Estou em Berlim e início agora Kong, no Chile, na Argentina, do qual trabalhamos, reunimos, precisamos de espaços físicos e é criação das Nações Unidas.
uma aula de mandarim minis- Líbano, Barcelona, o mundo inteiro encontramos amigos e família para talvez nesta ausência que surge a
trada pelo Instituto Confúcio da envolvido em movimentos globais celebrações várias ou simples con- sensação de suspensão. Contudo AS NAÇÕES UNIDAS ESTIMAM
Universidade de Aveiro, a cidade como o Extinction Rebellion ou o versas, participamos em debates, a vida prossegue – comemoram- que uma em cada 45 pessoas no
onde nasci. Comigo, nesta aula, Fridays For Future, protestos em assistimos a aulas, proferimos con- -se os 250 anos do nascimento de planeta vai precisar de aju-
está a minha amiga Xana que foi países com regimes autoritários ferências, emitimos programas de Beethoven, a guerra na Síria entrou da humanitária em 2020, o
minha colega de turma na escola e em países democráticos. E de entretenimento, assistimos a peças no seu 10º ano, Berlim é um dos maior número desde a II Guerra
primária, naquela cidade, duran- súbito, transpôs-se globalmen- de teatro, a concertos, ou seja, dois de 16 estados-federados onde Mundial, e assinalam 2020 como
6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT TEMA 5
VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS

Angola
Ano Internacional da Saúde das
Plantas para nos sensibilizar para
a importância que estas têm para
acabar com a fome no mundo,

De tudo o coviDizer
reduzir a pobreza e proteger o
ambiente. O instagram tem mais
de um bilião de utilizadores sem
as possibilidades de fact-checking,
como hoje tem o facebook. E as
petúnias que semeei estão prontas
para ser transplantadas enquanto,
lá para novembro, teremos elei- ONDJAKI
ções nos EUA.
Somos seres vulneráveis mas Era impossível não pensar,
provámos, forçados pelas piores estupefacto, como é que ainda é
razões, que conseguimos mudar possível que a AvóAgnette esteja
radicalmente de vida, quase de um aqui connosco, numa batalha
dia para o outro, em todo o mundo, mais, ela que veio do início do sé-
num mundo que necessariamente culo vinte, durante uma primeira
também já mudou, podendo trans- guerra, atravessando a segunda
por o alheamento em relação ao mundial, todas as guerras ango-
Outro. O Outro num mundo global lanas, até à paz, enterrando tudo
somos nós. e todos durante todos os anos que
Num discurso endereça- podemos imaginar até à presente
do ao país durante a Páscoa, data; aqui estava ela connosco, em
o Presidente Frank-Walter casa, nesta casa, (e nós com ela),
Steinmeier pediu aos alemães que e tantas vezes, durante estes dias,
mostrassem o melhor de si pró- me sento portanto à beira dela a
prios e apelou a que o mostrassem tentar ler-lhe o olhar e as mãos, a
também à Europa. “A Alemanha ausência e a musicalidade, o que
não pode sair da crise forte e dizem os olhos e o pouco dos ges-
saudável se os nossos vizinhos tos que apresenta; era impossível
não se tornarem também fortes não ficar receoso, sobretudo pelos
e saudáveis. Esta bandeira azul pais e pelas crianças, por razões
(a bandeira europeia) está aqui diferentes, e era impossível não
por uma razão. Trinta anos após rir com os pais e com as crianças,
a unidade alemã, 75 anos após o reinventar (isso vem de todas as
fim da guerra, nós, alemães, não guerras, em todos os lados das
somos apenas chamados a mostrar famílias, em todos os séculos...) os
solidariedade na Europa - somos hábitos, as rotinas, as designações
obrigados a fazê-lo! Solidariedade das funções e dos tempos nossos Arte de rua na Nigéria A Covid cresce em África
- eu sei que é uma palavra pode- em cada um e nos outros; sorrir,
rosa. Mas não será que vivemos rir, desmanchar a rir, chorar tal-
hoje, de uma forma concreta mas vez, e guardar o espanto para olhar
também existencial o verdadei- todas as manhãs, todas as noites, reconhecer nisto tudo a ginástica quer pelos que perguntam, quer
ro significado de solidariedade? a AvóAgnette ainda aqui deitada de permitirmo-nos ginasticar para pelos que respondem; e quem nos
As minhas ações são vitais para perto dos nossos dias, das nossas não sucumbir; inventar, recriar, conhece, aos angolanos, sabe que
a sobrevivência dos outros. Por refeições, das nossas conversas e difamar, problematizar e até preo- nem sempre assim acontece; até o
favor, preservemos esta preciosa cuidados e carinhos e lembranças; cupar; é impossível não ficar sur- próprio presidente João Lourenço,
experiência. A solidariedade que o horário solto requer alguns ri- preendido (é o país que temos...) e a.k.a. JêiLô, não tem vindo a
todos os dias que se demonstra gores para fingir que os dias ainda digo positivamente surpreendido e público falar, e creio que isso foi
agora será ainda mais necessária são iguais aos que havia; as refei- logo depois satisfeito, e de seguida positivo para dar espaço (e res-
no futuro! Seremos uma socie- ções pautam os minutos, as fun- (por que não, confessar?) orgulho- ponsabilidade) às respetivas áreas
dade diferente depois desta crise. ções sobram, as direções do norte so, de ver a resposta da sociedade de intervenção; é impossível não
Não queremos tornar-nos numa e sul da casa tiveram que ser rea- e do governo; impossível não Ondjaki ter saudades de lugares de ver e de
sociedade ansiosa ou desconfiada. justadas; as crianças, uma de nove dizer, dentro ou fora do país, que viajar, e lugares de abraçar, e de
Mas podemos ser uma sociedade e outra de doze, terão de crescer, me surpreendeu, desde o início a gestos que já nos foram simples, é
com mais confiança, e com mais como todos nós; sempre foi assim, resposta possível, com as soluções impossível não ficar, por dentro,
consideração.” dir-se-ia (quem diria... a Avó? a possíveis, que este ‘executivo’ tem caladinho por, no fundo, ter a sor-
Estima-se que, em 2050, tia Rosa? a tia Tó? o tio Vistor?), procurado dar à questão covidiana, Sorrir, rir, espantar-me te (e o privilégio, e o lugar social,
seremos 10 biliões de pessoas no mesmo em outras guerras, curtas mau grado o ‘coviDizer’ na voz com exultação pela etc., etc.) de poder estar em qua-
mundo. Teremos, no caminho até ou mais extensas, mais ou menos (escrita) de um jornalista cretino rentena ao contrário de milhões
lá, a grande responsabilidade de visíveis; era impossível não deixar sobre a ‘militarização’ de Angola criatividade que vejo em Angola, Moçambique ou Brasil;
tornar o planeta sustentável e para que as internets e os instagrams durante esta crise; ótimo que esse brotar de amigos e é impossível não me lembrar,
o conseguir, dependemos muito e os ritmos todos se instalassem e jornal brasileiro se informasse ou não saber ou não ler o que se
da capacidade humana para usar o esses palcos se confundissem com melhor sobre a polícia e até o exér- desconhecidos (...); passa politicamente no Brasil; e
poder da solidariedade. a narrativa dos quotidianos, ao cito que, sim, estão nas ruas, tem inventar, recriar, mesmo assim, é impossível não
Por enquanto, espero que em ponto de todos (com a exceção da sido complicado, têm procurado ver o grande esforço dos artistas
breve possamos abraçar-nos, não AvóAgnette) refazerem os álbuns fazer o seu trabalho junto de uma difamar, problematizar (brasileiros) nos seus modos pecu-
só porque significará que acabou das suas piadas e memes, grava- sociedade que, aqui sabemos, sofre e até preocupar liares de resistir à bolsomía, digo,
a distância física que agora nos ções áudio ou vídeo, conversas e de altos níveis de desigualdade à pandemia; há dias uma criança
é imposta, mas também para reuniões familiares, até já tive- social, baixos de civismo, o que só (brasileira) escreveu a frase “oje é
que, mesmo que num abraço não mos um canta-parabéns desses implica, sim, que toda e qualquer terça” e, ao ser alertada, reescre-
voluntário, ninguém caia para de zoom que, no futuro, teremos força tem que ser gerida em função veu assim: “oje é sábado”; foi-me
aquele que é o seu lado errado do (terão, os dois miúdos...) de expli- da nossa realidade; mas é também jornalistas, isto quando não está na impossível não sorrir e pensar que
muro. J car a quem já frequentar ‘zooms’ verdade que há aqui (surgiu...) televisão o governador da provín- a Beatriz tem razão: “oje”, durante
holográficos; sorrir, rir, espantar- uma, digamos, ‘situação sociopo- cia ou outros elementos de uma algum tempo, é como cada um
* Ana Patrícia Severino é adida -me com exultação pela criativi- lítica’ inédita, com conferências comissão multissectorial; é quase quiser. J
cultural na Embaixada de Portugal na dade que vejo brotar de amigos e diárias, o mais das vezes com a impossível não ficar boquiaberto,
Alemanha, diretora do Instituto Camões desconhecidos, novos apresenta- presença da própria Ministra da com os números explicados ao *Ondjaki, escritor angolano, autor
em Berlim e coordenadora de Portugal dores de tv, uns a brincar e com Saúde, respondendo com muita pormenor, as estratégias apre- de romances, contos, poesia e
Pais Convidado da Feira do Livro de muita habilidade, outros a sério e paciência a todas questões (nem sentadas abertamente, e até as volumes infanto-juvenis. Recebeu,
Leipzig com pouca habilidade, mas há que sempre pertinentes) dos nossos dificuldades sendo abordadas em 2013, o Prémio José Saramago
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VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS


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Bélgica
A nossa quarentena
PATRÍCIA PORTELA
Oikos significa lar em grego. É tam- como pertença e privilégio, ao invés
bém a origem da palavra Economia. de um direito ou de uma missão, é
Lar é o lugar aonde todos podemos imposta como uma máxima que se
regressar. Para muitos, a Terra deixou defende em discursos (com especial
de ser um lar, muito antes do início afinco em abril), e praticada com
desta epidemia global. timidez ou desapego, não raras vezes Nas ruas "Distribuem-se declarações oficiais pelos sem-abrigo que as devem
com falta de sentido de comunidade apresentar às autoridades sempre que necessário, ficando assim autorizados
A nossa relação com a geografia global. a sentarem-se e a dormirem na via pública"
entrou em crise permanente quando A nossa quarentena é diversa,
os primeiros passageiros entraram mesmo que de uma janela no estran-
num avião e atravessaram o planeta geiro, como é a minha, nos pareça Patrícia Portela Aqui, em Antuérpia, as pessoas não fotografamos, não falamos disso
para passarem umas férias num comum. Na minha rua todos os esta- continuam a sair às ruas sem más- quando falamos da nossa quaren-
resort que poderíamos replicar na belecimentos estão fechados, como caras e em grupos, distribuídos aos tena, nem consideramos, quando
Costa da Caparica, enquanto outros, em tantos países europeus, mas os pares pelo passeio, e reúnem-se em falamos em regresso à nossa econo-
emigrados, juntavam dinheiro o supermercados estão cheios, como movimento em espaços públicos, mia, ao nosso lar. Aquela economia
ano inteiro para poderem regressar se todos os produtos alimentares porque a lei permite o passeio hi- que, ao que parece, não sustenta o
a suas casas, e outros ainda pediam nascessem das prateleiras. Enquanto giénico. Enquanto isso, em Bruxelas mundo mas nos dá o sustento. A mi-
para entrar noutro país que não fosse isso, confirmo em conversa com fecha-se o centro de acolhimento nha quarentena tem-me feito pensar
o seu, fugindo de guerras, fome, e, uma amiga em São Paulo, que no Tem-me feito pensar de refugiados sem um plano de qual é o valor do trabalho, qual é o
pasmemo-nos, epidemias. Brasil nunca a exploração do traba- qual é o valor do reorientação daqueles que aguardam valor que de facto damos à saúde
A nossa relação com o tempo lho foi tão intensa como agora, num asilo, e distribuem-se declarações de cada cidadão, como é que ainda
também foi sempre complexa e pe- mundo que virou delivery. A maioria trabalho, o valor que oficiais pelos sem-abrigo que as há quem questione a necessidade
riclitante. Ora não damos conta dele, das favelas entrou em autogestão, damos à saúde de cada devem apresentar às autoridades e urgência da produção artística e
ora sentimo-lo a escapar-se-nos por sabendo que não haverá qualquer sempre que necessário, ficando cultural quando é tudo o que nos
entre os dedos. Ora é precioso, ora é condução política ou apoio social, e cidadão, como ainda assim autorizados a sentarem-se e a separa de sermos apenas um bicho
perdido, ora vale dinheiro. os cidadãos que ficam em casa con- há quem questione a dormirem na via pública. que não sabe procurar a sua comida
A nossa relação com uma ideia de tinuam a encomendar telemóveis, Calais é aqui ao lado, nem a duas ou defender o seu território sozinho.
liberdade é recente. E com frequên- roupas e acessórios para sobreviver à
necessidade da produção horas de caminho, mas como não A minha quarentena tem sido
cia folclórica. Entendida tantas vezes quarentena sem centros comerciais. artística e cultural podemos sair de casa não vemos, passada frente a uma secretária ›

Brasil
lido e ouvido, definiu-o como “um
formidável vazio de ideias habi-
tado por insultos e anacolutos”.
Também o chama de “o mito da

Estamos bem confusos


caserna.”
Juristas procuram uma forma
legal de afastá-lo. Impeachment
é difícil, com a enorme banca-
da de evangélicos que o apoiam.
Tirá-lo de lá alegando ausência de
sanidade mental? Há no Palácio
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO do Planalto um “gabinete do
ódio”, comandado pelos filhos
Aqui no Brasil estamos, por do Presidente, Flávio e Carlos,
enquanto, no chamado iso- de onde saem todas as farpas.
lamento social. No entanto Farpas? Arpões de matar baleias,
estamos todos confusos, porque canhonaços, míssseis, todo tipo de
o Ministério de Saúde, seus mé- fake news, dirigidas contra tudo e
dicos e técnicos recomendam o todos, até contra a China, uma das
confinamento e o Presidente da maiores parceiras comerciais do
Republica insiste liberar tudo, Brasil. O agronegócio que ganha
em dizer que não é necessário, bilhões com exportações está com
afirma que o Covid 19 já está os cabelos em pé.
passando, quando na realidade Ignácio de Loyola Brandão Dois ministros medíocres, Onyx
acabou de chegar. Bolsonaro Lorenzoni e Osmar Terra, foram
vai para as ruas, abraça e beija, surpreendidos numa conspira-
tira selfies e tornou-se garoto ção para afastar o único homem
propaganda de um remédio, não trapalhão, avança e recua, sem do governo que está atuando, e
apoiado pelos técnicos. palavra, alucinado, maluco, desa- atuando para valer contra o Covid
Ou seja, não sabemos se vamos Jair Bolsonaro em conferência de imprensa "O presidente espalha confusão, desautoriza tinado, desequilibrado, pancada, 19, Mandetta, o ministro da Saúde.
morrer ou não. Em São Paulo o isolamento, quer impor um remédio que um médico amigo dele diz que tomou" furioso, desvairado, fanático, his- O presidente espalha confusão, de-
metade da população se recolheu. térico, raivoso, doido, tresloucado, sautoriza o isolamento, quer impor
Cada um de nós trabalha em casa, vesânico (ele nem imagina o que um remédio que um médico amigo
pede comidas e medicamentos bloqueada. Talvez seja um bom crónica era “Bolsonaro Burro”. A é), hidrófobo, licantropo (ele nem dele diz que tomou.
on line. Um novo modo de viver. hábito para o futuro. mídia esgotou todas as designa- tem ideia), irresponsável, apate- Guerra de vaidades e medos e
Silêncio das ruas desertas, ar Entretanto, Bolsonaro já foi ções para defini-lo. Abominável, tado. Eu o chamei de “louco da paranóias. Quem vão morrer são
mais puro. Coisa boa, o consumo chamado de tudo. Domingo, 12, na sacripanta (ele nem sabe o que é), caneta”. A todos ameaça demitir. os pobres, os favelados, os que
acabou. A febre de comprar foi Folha de S. Paulo, o titulo de uma analfabeto, paranóico, covarde, Reinaldo Azevedo, cronista muito vivem amontoados, sem comida, ›
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VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS


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›imperador
Cabo Verde
numa rua com o nome de um as bancárias para amigos em apuros
facínora, a pensar em e para contas solidárias, denunciar
Viseu, onde comecei a trabalhar, a 1 desigualdades nas redes sociais, ou
de março, no Teatro Viriato. A minha incluir aplicações que nos permitam

Fka na Kasa
quarentena oscila entre montar uma regular o aquecimento em casa, e
nova programação remota num tea- distribuir a energia renovável que
tro cujo edifício está fechado, travar captamos dos nossos telhados, como
conhecimento com uma equipa advoga há décadas Jeremy Rifkin,
pela primeira vez (que vive entre um economista, sociólogo e ativista
a Carregosa, Canas de Senhorim, norte-americano, que nem sequer é
Serra do Caramulo, Mangualde, muito radical.
Nelas ou Tábua) e fazer uma es- No momento em que foi decre- GERMANO ALMEIDA
treia internacional de um festival tado um estado de emergência nas
telefónico com artistas com quem condições em que hoje vivemos, Todos os dias, entre as onze e
regularmente trabalho e que vivem oferecemo-nos tudo o que precisa- o meio-dia, subo ao terraço da
em Macau, Melbourne, Fortaleza ou mos para uma derradeira mudança. minha casa com o propósito de
Funchal. A minha quarentena tem- Podemos tornar-nos num Estado obter a dose de vitamina D que
-me relembrado, com persistência, mais vigiado, mais autoritário, o sol proporciona e a quarente-
que vivemos numa era em que a menos livre, ou podemos relacio- na obriga. Vista dali a cidade do
geografia está ao alcance de poucos nar-nos de forma diferente com a Mindelo parece estar caminhando
dígitos num telefone para uns, e à geografia e com o tempo, pergun- lentamente, avançando devaga-
distância infinita de uma lei injusta tando-lhes o que se passa e como rinho para entrar no mar que lhe
para a maioria (e isto enquanto as podemos seguir juntos a partir fica aos pés, uma orografia que
bananas no meu supermercado de daqui. faz pensar numa imensa e suave
Antuérpia continuam a vir do Peru e Temo, no entanto, que nos ha- piscina de águas mansas com o
os corta-unhas da China). bituemos à peste, como sempre nos Monte Cara ao fundo vigiando
habituamos a tudo. Quando já não num majestático silêncio.
RECORDA-ME QUE TALVEZ NÃO nos parecer obsceno não falar só de Não sei de quantos minutos
SEJA PRECISO restabelecer a lou- saúde, voltaremos lentamente a falar preciso para acumular as unidades
cura das citytrips e das itinerâncias de economia, capitalizando a origem necessárias de vitamina, mas en-
desenfreadas de espetáculos para grega da sua palavra, oikos, que quer quanto o sol não incomoda vou ad-
continuarmos a ser um mundo dizer lar, e a pouco a pouco, de for- mirando a beleza estranha do ilhéu
global, mas também não temos ma sorrateira, iniciaremos a recruta dos Pássaros pontificando no meio
de nos fechar em comunidades de todos aqueles que manterão, da baía qual sentinela de pedra, e
isoladas sem contacto com os nossos não o mundo a comer e a funcionar um pouco mais longe vislumbro a Cabo Verde Hospital do Mindelo
vizinhos, os que vivem na mesma tecnicamente, mas o sistema que nos ilha de Santo Antão, em certos dias
rua, no país ao lado, ou no próximo levou precisamente até aqui. A esta distantemente enevoada, noutros
continente. Se podemos utilizar um quarentena. A este medo de respirar. tão luminosa que parece estar
telefone para vigiar os movimentos, Até tudo começar e acabar mais uma afastada apenas o tamanho de um circular sem causa bem justifi-
medir a temperatura ou encomendar vez. Se assim for, poderá ser esta a braço, porém de todo inalcançável cada. Este está a ser um mo-
uma pizza, o mesmo aparelho tam- oportunidade perdida que o nosso nestes dias de incógnita emergên- mento particularmente grato
bém nos permite fazer transferênci- planeta nos deu. J cia viral. aos polícias de simples giro, de
Da minha casa muito pouco repente investidos pelo estado
ouço dos ruídos da cidade. Apenas de emergência de quase ilimita-
os imagino vendo o constante ir e da autoridade sobre o geral dos
›temtrabalho, atendimento. O que se
revelado é um belo trabalho
junto conversando, dando apoio,
atendendo telefone, picando
vir das pessoas e dos automóveis.
Para chegar ao frenesim da rua de
ex-cidadãos, esse poder nunca
antes acontecido em 45 anos de
solidário, pessoas se ajudando e verduras, descascando batatas, ou Lisboa tenho que descer algumas independência de ordenar e for-
dando apoio a quem não tem nada. preparando uma caipirinha. ruelas e becos, chegar ao asfal- Germano Almeida çar o cumprimento de ordens,
Mas o dinheiro para a merenda Café da manhã é comigo, arru- to e finalmente entrar no centro não poucas de duvidosa legali-
escolar de 20 milhões de alunos mo mesa, corto frutas, faço suco. histórico onde a vida fervilha como dade ou eficácia.
(quantos Portugal cabem dentro Estou aprendendo a fazer tapioca. numa feira ao ar livre… Mas também não há muito
disto) não sai, a burocracia segura. Deixo a cafeteira pronta para quan- Fervilhava! Um passado não para onde ir. As padarias estão
E a fome ronda. do ela acordar. remoto mas que já se instalou num abertas, o mercado das verdu-
Para culminar, domingo passa- Busco os jornais lá em baixo presente melancólico. Por estes ras também, mas o mercado de
do, dia 12, o Presidente reuniu-se na portaria. Não tem como passar dias toda a cidade mais parece um Por estes dias toda a peixe está fechado a cadeado,
com grupos religiosos e declarou álcool gel no jornal. É o risco que longo e triste domingo que não um pesado e resistente cadeado,
que o vírus está indo embora. Mal corro. chegou a viver as folias do sábado.
cidade mais parece um rio-me desse preciosismo porque
começou. Dou comida ao gato, um pouco de A cidade-porto sempre viveu da longo e triste domingo também muitas dependências do
ração, um pouco de atum, lavo o rua porque vive do mar. A palavra hospital Baptista de Sousa estão
APRENDEMOS NOVA MANEIRA bebedouro dele, troco a água. “expediente” bem que podia ter
que não chegou a viver igualmente fechadas a cadea-
DE VIVER. Adiantará? Sabemos Há outro lado na vida que nascido aqui porque deve ser o as folias do sábado do, e até a entrada principal do
agora o que sentem os presos em desconhecíamos, e que é rotineiro, lugar onde atinge as significações emblemático hotel Porto Grande
uma solitária ou quem sabe as automático. O doméstico. Fazer, mais diversas, reais ou inventa- está entaipada. A cidade está,
freiras em uma clausura. Estas, ao refazer, desfazer, fazer, refazer, das. pois, muda, mais de espanto que
menos, têm Deus para ampará-las. fazer e desfazer e não sei como os Eu e o foguense rezingamos de terror diante desse invisível
Somos como os prisioneiros em neurónios não queimam. Ações MAS POR ESTES DIAS MINDELO sempre, ele sempre me engana inimigo de ficção científica que
domicilio da Lava Jato, apenas não que deixávamos para as emprega- ESTÁ FECHADO ao mundo dos ne- nos preços, todos os dias lhe digo ataca num silêncio de guerrilha,
usamos tornozeleiras eletrónicas. das, aquelas que, diz o ministro da gócios e até ao comércio das pala- que não quero mais negociar com e já não se ouve na rua o alegre
As ruas semi desertas são cor- Economia, lotam a Disneylandia, vras. As ruas estão desertas, limpas ele, mas agora sinto-lhe a falta a grito de “oli cavala freeesca!”,
tadas por motoqueiros que levam a Disneyworld ... talvez Las Vegas de gente e de carros, as vendedei- convencer-me da excelência dos “quem crê banana, papaia, ver-
refeições, medicamentos, peque- ou o Copacabana Palace, que aliás ras ambulantes que alegremente seus produtos, por isso mesmo dura?” Mas ficar em casa é uma
nas compras, grandes compras, fechou, primeira vez em 97 anos. atravancavam os passeios com mais caros, onde mais poderia ordem perversa, a maioria da
bebidas. Hoje mesmo compramos Famosos postam fotos mostran- os seus balaios de frutas e horta- encontrar verduras e frutas as- nossa gente vive na rua porque
um pequeno robô que tira o pó do do aeróbicas, drinques, cartazes. liças foram todas obrigadas a se sim fresquinhas, como se fabri- é da rua, é ali que diariamente
chão e dos tapetes, coisa da Guerra Fique em casa, leia este livro. Vão encerrarem em casa, até mesmo o cadas especialmente para si? busca como à tarde levar ao lume
nas Estrelas. se promovendo. J foguense, meu vendedor privado, As ruas vazias surgem de a panela que alimenta os filhos.
Minha vizinha procura um robô deixou de me bater à porta com as repente atafulhadas por magotes Por isso, entre a fome e o covid,
que passe álcool gel nas compras *Ignácio de Loyola Brandão é um dos mais suas papaias, banana, aboborinha, de tropas ou de polícias, grandes venha Deus e escolha. J
que chegam e entram em casa. destacados romancistas e cronistas do Olha aqui a favona da boa, diz e grossos matulões de aspeto se
Novos rituais. Brasil, Prémio Machado de Assis e Jabuti, convincente, vinda diretamente não aterrorizante, pelo menos *Germano Almeida, escritor cabo-verdiano,
Quem cozinha, dedica-se. entre muitos outros, colunista de O Estado das hortas de Santo Antão para a altamente desencorajante de autor de duas dezenas de romances, Prémio
Quem não cozinha, como eu, fica de S. Paulo panela da sua casa! toda e qualquer tentativa de Camões em 2018
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VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS

Estados Unidos da América


Sobre o Covid 2016
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA
Escrevo de Providence, Rhode Mais ainda, atreve-se a se a estrutura política continuar
Island, onde a situação nada tem gabar-se - “Posso fazer o nas mãos, pequenas mas aduncas,
a ver com as imagens patentes que quiser!” - com a mesma de Trump (na verdade, há grandes
diariamente aos portugueses desfaçatez com que na campanha possibilidades de isso acontecer),
via TV. Nas zonas populacionais eleitoral proclamou que poderia teremos mais quatro anos de
menos densas, a distância social matar alguém na 5ª Avenida tropelias anti-democráticas, de
é bastante manejável. Podemos e nada lhe aconteceria. Foi enfraquecimento dos poderes
fazer circuitos higiénicos precisamente o ocorrido durante do Congresso e até do Supremo
no exterior, mantendo-nos o processo de destituição. Tribunal.
relativamente distantes de Trump recusou-se a enviar ao
outros transeuntes. Quem pode Congresso a documentação SE TAL ACONTECER, VEREMOS
continuar a trabalhar online exigida (subpoened), além de transformar-se o tradicional
fá-lo a partir de casa. É assim ter aldrabado documentos, equilíbrio dos três poderes num
aqui com a Leonor e comigo: todo o processo acabando em regime presidencial populista,
aulas, reuniões, encontros com nada. Em comparação, por aplaudido por uma massa de
alunos, tudo via Zoom. Isto é, a uma diminuta percentagem de apoiantes, liderados por um
vida restringida ao nosso Recinto transgressões legais, Nixon viu- contingente destacado de
Zoomlógico. Até já estive há dias se forçado a resignar. Também interventores nas redes sociais
presente numa sala de aula da comparado, o comportamento de que triunfam espalhando
Emory University, Atlanta, a Clinton parece hoje um ridículo a confusão, determinados
substituir um agendado encontro pecadilho. a destruir, ou pelo menos
presencial. Trago tudo isto à baila numa desautorizar, a força cada vez
Como em toda a parte, crónica encomendada para mais vital do quarto poder, o da
ninguém faz ideia do amanhã comunicação social, hoje também
e na minha universidade, a imensamente diminuído. Com
Brown, faz-se já planos para a efeito, as redes sociais atuando
eventualidade de o semestre de anonimamente espalham
Outono continuar online. Se for todo o tipo de desinformação,
esse o caso, ao menos não seremos auto-apresentada com tanta
como agora surpreendidos por legitimidade quanto a dos grandes
acontecimentos inesperados. jornais e cadeias de televisão, sem
Se me perguntarem qual a seguirem minimamente as regras
minha maior preocupação face de rigor e responsabilidade ética
ao futuro, eu apontarei para a que norteiam os media, e que,
liderança em Washington, por ela aliás, a legislação vigente regula e
não ser inspiradora de confiança sanciona.
a não ser para a vasta falange que Onésimo Teotónio Almeida O coronavirus não é,
apoia o Presidente (sectores dela obviamente, o responsável por
têm foros de seita), um séquito Donald Trump na capa da New Yorker "Teremos mais quatro anos de tropelias anti- esta situação; ele veio tão-só
indefetível, arraigado ao seu guru democráticas, de enfraquecimento dos poderes do Congresso e até do Supremo Tribunal" tornar mais visível o alastrar
e mantendo-se impenetrável a desbragado de um outro vírus
qualquer facto ou argumento. que, de certeza, não proveio
Adianto que não me assiste nega no dia seguinte o papel do ocupante do Oval da China. Esse é, sem dúvida,
nenhum impulso partidário, perentoriamente afirmado na Office. Por isso, não é possível O coronavirus veio oriundo dos EUA e assolapou-
até porque o momento é crítico véspera. Arvora-se em médico, obter ad hoc regulamentação tornar mais visível se há três anos e vários meses
e transcende inteiramente esse prescrevendo medicamentos que que atempadamente o impeça em Washington. Já demonstrou
nível. Nos meus quase 50 anos os especialistas não recomendam de tomar atitudes cada vez
o alastrar desbragado à saciedade que a prometida
de vida nos Estados Unidos, (há dias a revista New Yorker no mais arbitrárias e despóticas. de um outro vírus, secagem do pântano o deixou
não tenho memória de a Casa seu suplemento humorístico, “The Daí o seu libertário eliminar incomparavelmente mais lodoso e
Branca ter alguma vez sido Borowitz Report”, sugeria que dos mecanismos de controlo
oriundo dos EUA infestado.
ocupada por uma figura tão Trump estava otimista quanto à tradicionalmente estabelecidos e que se assolapou I know how to fix it! - dizia
desinteressada pelos factos, tão possibilidade de receber o Nobel para que se mantenha o equilíbrio Trump na campanha eleitoral
grosseiramente desrespeitadora de Medicina). E a lista poderia de poderes.
em Washington quando confrontado com
das pessoas que se lhe opõem, tão continuar. Numa situação como a atual, há três anos qualquer problema do país que
narcisista e, acima de tudo, tão em que as pessoas aceitam lhe fosse referido. Ele sabia
despudoradamente preocupada TRUMP É UM AUTOCRATA tomadas de posição do Governo sempre como resolvê-lo (em
com as sondagens que lhe dizem SEM ESCRÚPULOS, que só não que de outro modo exigiriam inglês, consertá-lo). O país agora
exclusivamente respeito. foi ainda mais longe porque as um processo mais democrático, produzir um retrato do cenário é que não sabe como resolver -
O chefe do Executivo instituições americanas possuem Trump está a aproveitar-se para, norte-americano face ao Covid-19 ou consertar - este imbróglio.
arroga-se a, com displicente uma centenária solidez. Todavia, em todos os níveis das estruturas porque o futuro não parece nada Mesmo que os cientistas
desdém, alienar qualquer tem sido óbvio que nem tudo políticas, despedir pessoas róseo. Quando ele recomeçar (há encontrem em breve uma vacina
responsabilidade, culpando estava previsto na Constituição incómodas, subsequentemente dias, numa reunião, um colega para o Covid-19, não estou a ver
sistematicamente os outros por nem na práxis. Nunca se esperava desdenhando a sua substituição meu falava do next future), os cura próxima para esse outro, de
tudo o que corre mal; a não ter que um presidente pudesse agir ou colocando em seu lugar yes- Estados Unidos não serão os 2016, ainda mais fatídico. Quer
nenhum respeito pela verdade; com tão desmesurada ambição men incapazes de se atreverem mesmos. Pelo menos assim parece dizer, o tom prevalecente por
a acusar os media de fake news e tão ignorante desrespeito a opor-se-lhe. É agir rumo a visto de hoje. A necessidade aqui aponta para o receio sério de
quando só à sua conta já disse pela ciência, pela experiência um sistema de no accountability, de intervenções drásticas para uma mudança de registo no rumo
17 mil mentiras, uma média de acumulada, bem como pelas na mais anti-americana das ressuscitar a economia vai levar nacional: America, the beautiful
22 por dia, verificadas pelos regras protocolares não escritas, atitudes, desprovido de controlo a restringir-se ainda mais o em andante para The Beauty and
fack-checkers. Omnisciente, mas claramente implícitas no de responsabilização. processo democrático. Sobretudo the Beast. J
10 TEMA �

VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS


6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Espanha
silêncio que traz o confinamento, só
interrompido pela natureza que está
a reviver nesta morna primavera.
Agora estamos a viver uma vida

Silêncio e esperança
nunca dantes experimentada, que
limita a mobilidade e incrementa
a solidão amistosa e familiar, que
transforma os modos de relação en-
tre as pessoas e que muda o sentido
básico da palavra, que não deve ser
dita mas escrita ou transmitida por
RAMÓN VILLARES vias telemáticas. O ecrã substitui
a realidade física, numa distopia
Como chegam os trovões, chegou prevista mas não disseminada de
o silêncio depois de ser anuncia- modo tão universal. A carnalidade
do por um relâmpago em forma das relações fora da morada fica em
de confinamento decretado por suspenso.
governos assustados para cidadãos Como encher o passo dos dias
desconcertados. Os efeitos de um neste confinamento silencioso? De
vírus descoberto na China chega- início, posso dizer que para mim
ram de repente às nossas terras, em foi uma feliz oportunidade, ao ter
forma de guerreiro de nome técnico tempo para ler, escrever algum
em nada semelhante à mal chamada texto muito tempo adiado, cuidar
“gripe espanhola” de cem anos Ramón Villares do jardim do condomínio, falar com
atrás. Esta nova gripe voltou a ser a família que mora longe. Não caí,
notícia dos media e das conversas por enquanto, no gosto mórbido
telemáticas que medraram como a de seguir diariamente “parte” da
má erva. A ordem foi clara: (quase) guerra com o número de infetados,
todos devem ficar em casa. E já lá mortos e salvos. Prefiro a leitura,
vão dois meses e não sabemos o que ver filmes já vistos, contemplar a
nos resta. Um tempo suficiente para natureza e aproveitar estarmos na
pensar no que está acontecer, como Páscoa com o seu luar permanente.
se adaptar a estas novas circuns- Mas também há tempo para pensar
tâncias e imaginar como será a luz De tempos em sobre o que está a acontecer e o que
depois de sair do túnel. Fotografia de família durante a 'Gripe Espanhola' tempos, a natureza nos espera quando tudo isto acabar.
Eu estou a viver, com a minha Além de silêncio, estamos na
esposa, perto da cidade de Santiago
mostra que não incerteza de saber o que pode mudar
de Compostela, nossa morada ha- res mas os necessários para saber uma auto-estrada a poente anunci- somos deuses... e aqui depois desta experiência. A pande-
bitual e não refúgio temporário. As quem está sair ou a chegar de carro, am a chegada das chuvas oceânicas. mia é para muita gente uma forma
filhas, em Barcelona e Berlim. É um quando os cães alertam do passo É um entorno tranquilo e mesmo
abre-se uma porta de guerra dos vírus contra as pes-
lugar tranquilo com poucos rumo- de pessoas ou como os rumores de silencioso. Mas nada semelhante ao para a esperança soas. Uma luta “viral”, de inimigo

França
Dias confinados no país de Descartes
MARIA GRACIETE BESSE
Pela primeira vez, grande sobretudo a pensar a vul- Diretamente relacionado com de um tratamento que associa a
parte do planeta conhece a nerabilidade e o sentido dos a situação atual, parece surgir hidroxicloroquina e a azitromi-
luta contra o mesmo inimigo valores. em França um novo género cina. Nas redes sociais, o micro-
invisível que nos fecha em casa Algumas publicações aju- literário, eminentemente femi- biologista insiste em elogiar os
a interrogar o futuro. Em Ensaio dam-nos nesse sentido, como nino, o diário do confinamento, benefícios das suas experiências
sobre a Cegueira, uma perso- a revista En attendant Nadeau levando escritoras como Leïla que não respeitam os protoco-
nagem de Saramago avisa- (https://www.en-attendant- Slimani e Marie Darrieussecq los habituais, sendo portanto
-nos: “Vocês que estiveram -nadeau.fr), que se apresenta (que deixaram Paris antes da contestadas pela maioria da
na quarentena têm muito que como um “jornal da literatura, reclusão obrigatória) a publicar comunidade científica.
aprender”. Que nos irá ensinar das ideias e das artes”, aven- na imprensa uma visão ideali-
esta pandemia? tura digital lançada em 2016 Maria Graciete Besse zada dos seus dias campestres. O DESEJO DE ENCONTRAR A
Longe da ficção, o tempo pela antiga equipa de Maurice A crítica não se fez esperar e há TODO O CUSTO uma solução
suspende-se e o sentimento Nadeau, o crítico literário que quem lhes chame as “Marias para a covid-19 tem levado
de perda parece dar razão dirigiu durante anos a Quinzaine Antonietas do coronavírus” a muitos franceses, vítimas de
à colapsologia que vê agora littéraire. No último número, fingir de camponesas, confir- uma lógica populista, a fazer
confirmada a ameaça de uma podemos ler as palavras de Carlo mando, em registo paródico, o impossível para obter as
desintegração sócio-económi- Ginzburg acerca da distância Transforma-se em guru, que o riso é afinal a melhor moléculas milagrosas. Todos
ca global. Vivemos no âmago crítica, a forma como a arte solução para vencer o medo. têm uma opinião e até alguns
da incerteza, em estado de conjurou epidemias, ou uma com o apoio de coletes A voz da autoridade é, neste políticos afetados, que nada
sideração, a descobrir todos análise do Journal de l’année de amarelos que o fazem momento, o médico e não o sabem de virologia, declaram
os dias aspetos inesperados de la peste, publicado por Daniel banqueiro, constata Erri de Luca ter escapado ao pior graças
um mal que nem sequer nos Defoe em 1722, bem como uma passar por marginal, no L’Obs. Mas em Marselha, ao prof. Raoult, sem observar
permite celebrar dignamente entrevista interessante de Mia quando se trata de um reconhecido especialista que mais de 80% dos doentes
os nossos mortos. O tempo de Couto que reuniu em francês a de doenças infeciosas, o prof. recuperam naturalmente. As
interrupção da quotidianidade sua trilogia épica (Les sables de
um antigo reitor da Didier Raoult, tem alimentado teorias conspirativas prolife-
exige reflexão, obrigando-nos l’empereur). universidade uma enorme polémica em torno ram e o auto-proclamado génio
6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT TEMA 11
VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS

Holanda
invisível, na qual é difícil distinguir
os combatentes. Uma metáfora das
guerras de hoje, nas quais toda a
gente está concentrada. Por essa

Vazio, sem alarme


razão estamos confinados por trás de
muros que nos paralisam a vida diá-
ria, deixando que só uma minoria de
peritos sanitários e de fabricantes de
bens de primeira necessidade sejam
ativos. O resto da gente é espectado-
ra, sem mobilidade.
As consequências que traz esta J. RENTES DE CARVALHO
pandemia não podem ser elencadas
nesta altura. Vão afetar as relações Em ocasiões tão excepcionais o aqui e ali como de gente que corre a
entre as pessoas, os modos de go- choque apaga o calendário e se sei esconder-se.
verno e as inúmeras pautas da vida que foi em Março não me perguntem Quinta-feira fomos ao supermer-
diária: viagens, turismo, consumo. em que dia, o que continua grava- cado. Controle à entrada a limitar o
Mas quero ter esperança e pensar do na memória é o sentimento de número de clientes, o pessoal desin-
que o seus efeitos estão todos escri- descrença de ver parado um país fecta o carrinho antes de o entregar,
tos e que a humanidade vai poder inteiro, pouco adiantando que lhe as pessoas mantêm a distância, espe-
fazer escolhas: mais ou menos chamem intelligent lockdown. ram para se poderem aproximar do
fronteiras, mais ou menos sustenta- Claro que cidadãos democratas, que procuram, há sorrisos de descul-
bilidade e rigor ambientalista, mais confiantes no governo, nas institui- pa, pequenos gestos de cortesia, de
ou menos solidariedade. O esque- ções e na Justiça, os holandeses ou- J. Rentes de Carvalho solidariedade, atenções inesperadas.
cimento de que somos humanos e viram o primeiro-ministro, acharam Começa a doer a imobilidade
limitados, posto a descoberto pela que era justificada a severidade da forçada, o sentimento de inutilidade
pandemia mais do que pelo número medida, e desde o dia seguinte obe- e vazio, o futuro incerto, mas vale a
de mortes, deverá ser uma séria decem à medida, só saem de casa se pena notar uma coincidência: neste
alerta para uma sociedade soberba estritamente necessário, são poucos país de chuva, muito vento e céu
e confiada. De tempos em tempos, e mal vistos os que desobedecem, sombrio, há mais de um mês que o
a natureza mostra que não somos mas com mão mansa a autoridade sol brilha num céu constantemente
deuses...e aqui abre-se uma porta logo corrige o desvio. Outro aspeto da limpo e azul. J
para a esperança. J Em sector nenhum há alarme, tragédia que nos espera:
o país tem os meios, a organização *J. Rentes de Carvalho, romancista, cronista
*Ramón Villares, historiador, prof. catedráti- e a eficiência para fazer frente à
o da desigualdade e memorialista (Prémio de Literatura
co da Un. de Santiago de Compostela, de que epidemia, o número de mortos e in- no sofrimento e Autobiográfica da APE em 2012 e da Crónica
fectados começa a diminuir. Mesmo
foi reitor, como foi presidente do Conselho de
Cultura Galega (oito anos) e da Associação assim são mais as sombras do que os Mark Rutte O discurso ao país
a diferença nas em 2013), há muito radicado na Holanda, com
uma vasta obra que tem vindo a ser publicada
Espanhola de História Contemporânea. motivos de regozijo, sentimos que a do primeiro-ministro holandês consequências e reeditada pela Quetzal
Participa em, e colabora com, diversas insti- brutal paragem de uma tão grande
tuições portuguesas parte da actividade económica a
todos vai afectar, com consequên-
cias de empobrecimento e desespero
a que hoje ainda fechamos os olhos,
de Marselha transforma-se em mas a que não vamos escapar no A Câmara Municipal de Almada
guru, com o apoio de alguns trágico amanhã que nos espera.
coletes amarelos que o tentam País rico, bem organizado e promove a 32.ª EDIÇÃO DO PRÉMIO
fazer passar por marginal, administrado, com a maioria de LITERÁRIO CIDADE DE ALMADA
ignorando que se trata de um cidadãos conscientes dos seus
com o objetivo de incentivar a
mandarim, antigo reitor da deveres e direitos, a Holanda não
universidade. O pensamen- precisa de ajuda nem vai estender a criatividade literária premiando uma
to mágico destrona assim a mão a pedinchar, queixando-se que obra inédita de um autor português,
razão cartesiana e ninguém a esmola não chega. E esse é outro
se lembra de aplicar a epo- aspecto da tragédia que nos espera:
nas modalidades de Romance e Poesia.
ché, que Descartes defendia o da desigualdade no sofrimento e O Prémio será atribuído em ano par
ao recomendar a necessária a diferença nas consequências, uns a Romance e em ímpar a Poesia.
suspensão do juízo a favor da com esperança no futuro outros ten-
dúvida. Entretanto, há médi- do o abismo como perspectiva.
cos agredidos por contesta- VALOR DO PRÉMIO
rem a validade do tratamento FOMOS UM POUCO MAIS DE OITO € 5.000,00 (Cinco Mil Euros)
salvador e as rivalidades entre MILHÕES com a televisão ligada a
O prazo decorre de
especialistas de Paris e da pro- ouvir o primeiro-ministro Marc Rutte
víncia ganham contornos de anunciar que a partir do dia seguinte 1 de abril a 31 de maio de 2020
infantilismo nos media. o país ia entrar num intelligent lock-
À guisa de conclusão, o down para fazer frente à ameaça do Os originais devem ser
neuro-psiquiatra Boris Cyrulnik coronavírus. Ouvem-se as palavras,
pensa que a resiliência se im- tem-se noção do que vai acontecer, remetidos, por correio, para:
põe depois de cada catástrofe, mas o silêncio, a quietude e o vazio do SECRETARIADO DOS
acreditando que novas regras dia seguinte, pareceram-me tão ex- PRÉMIOS LITERÁRIOS
do viver em comum irão surgir traordinários que inconscientemente
Biblioteca Municipal de Almada
para delinear os contornos de olhava para a rua esperançado de ver
uma sociedade mais racional carros passar ou gente nos passeios. Fórum Municipal Romeu Correia
e sobretudo mais justa, o que Incrível o silêncio num país em Praça da Liberdade
implica uma capacidade coletiva que, segundo estudos, não existe 2800-648 Almada
de aprendizagem que talvez nos um único lugar isento de ruído
permita escapar enfim à pior industrial ou de tráfico. Incrível Informações
das cegueiras que, como dizia também o encerramento dos cafés, Tel. 21 272 49 20
Saramago, “é não querer ver o dos restaurantes e das lojas, o fim
que temos à frente”. J abrupto da presença maciça e
ruidosa dos turistas. A televisão Regulamento disponível:
*Maria Graciete Besse, ensaísta, mostra um vazio a que só faltam as www.m-almada.pt/bibliotecas
ficcionista e poetisa, profª catedrática ruínas para que pareça uma paisa-
da Université Paris IV -Sorbonne gem de guerra, com vultos fugidios
12 TEMA �

VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS


6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Inglaterra
também avisou, que “o comissário
de bordo é velhaco”.
Que é como quem diz, não se
sabe o que vai acontecer até ao fim

Saudades do Brexit
desta viagem para parte nenhuma.
Exceto, é claro, que a partir de certa
idade morre-se muito. E também
que são os mais pobres de qualquer
idade que tendem a morrer antes
dos mais ricos de qualquer idade.
Prevê-se, em todo caso, que para
HELDER MACEDO os sobreviventes vai haver uma re-
cessão económica tão severa quanto
Odeio cruzeiros marítimos. Essas foi a grande depressão de há quase
falsas viagens para parte nenhuma um século. Mas quem se vai lixar
que as agências turísticas (ia escre- não serão, por exemplo, os meus
ver funerárias) costumam anunciar simpáticos vizinhos em calafeta-
nesta altura do ano como quaren- da quarentena, mas os sacrificiais
tenas primaveris de fim de vida. trabalhadores que neste momento
E que consistem basicamente em sustentam a vida do resto da popu-
casais geriátricos em prenúncios lação. O chamado pessoal auxiliar,
de viuvez partirem de um porto como se o seu “auxílio” não fosse
para voltarem ao porto de partida. fundamental para a sobrevivência
Como se fosse possível regressar de Helder Macedo de todos.
outras vidas que houvesse de per-
meio, se outras pudesse ter havido. POR EXEMPLO, OS DESPROTEGI-
Mas agora muitos nem regressam, DOS ENFERMEIROS e enfermeiras
ficam de quarentena intransitiva. nos hospitais superlotados e mal
E portanto agora, nesta confinada equipados do Serviço Nacional
Londres primaveril – com sol, ca- de Saúde. Essas mesmas e esses
lor, céu azul, ruas sem carros e sem mesmos que, antes da crise, já eram
gente, árvores como mastros flori- Agora é de bom tão mal pagos que por vezes tinham
dos soprados por frescas brisas que Luís Pitarma O enfermeiro português a que Boris Johnson agradeceu de recorrer às sopas dos sem abrigo
parecem vindas do mar – tenho tom bater-lhes (aos para sobreviverem. A desigualdade
pensado muitas vezes no oportuno enfermeiros) distantes económica na Inglaterra é a maior
aviso do Álvaro de Campos, no da Europa. Sim, mas agora, todas as
Opiário: “Esta vida de bordo há-de palmas agradecidas. deita um vintém e sai um deles a a fazerem equânimes filas de quintas-feiras às 20 horas, é de bom
matar-me,/ são dias só de febre na Gente que inclui uma sorrir”. E de facto, quando vou quilómetros (bom, está bem, de tom ir à porta de casa para lhes bater
cabeça/ e por mais que procure até à rua para o meu passeio diário e centenas de metros com inter- distantes palmas agradecidas. Até
que adoeça/ já não encontro a mola percentagem considerável aproveito para gastar os possíveis valos de dois metros) em volta do o primeiro-ministro Boris Johnson
pra adaptar-me”. de imigrantes. Os que vinténs nas lojas que ainda haja quarteirão do supermercado local. foi à porta dele, antes de o levarem
Mas também é verdade, como abertas, lá os vejo, se não neces- Desisto e regresso ao meu con- para o hospital e ter sido salvo com
ele também diz, que “os ingle-
o Brexit tenciona mandar sariamente a sorrir por detrás das finamento. Porque também já se o auxílio dessa gente marginalizada
ses são feitos pra existir: a gente às urtigas máscaras protetoras, certamente sabe, porque o Álvaro de Campos por governos como o dele. Gente

Itália
clássicos da política moderna, não
basta: é necessário que o soberano
garanta também a possibilidade
da felicidade.

‘Claustrosofias’ A GRANDE DISCUSSÃO EM ITÁLIA


hoje é quando (e como) será reati-
vada uma reaproximação da nor-
malidade. Sem pensar que a ideia
do retorno poderá nunca concreti-
Roberto Vecchi zar-se. O que faz que todos mergu-
ROBERTO VECCHI lhemos num poço nostálgico. Qual
será o conhecimento resultante
Uns 12 anos atrás, num pro- êxito em teses defendidas em O termo recorrente, “distan- desta fragmentação que vivemos?
jeto de investigação dedicado à algumas universidades de língua ciamento social”, metaforiza uma Quem leciona diariamente de casa,
literatura do cárcere, usei um portuguesa. condição que altera as relações como eu, talvez possua antenas
neologismo “claustrosofia” que Como acontece com a crítica humanas em profundidade. É mais orientadas para enxergar o
tentava definir melhor a relação abstrata, nunca pensei que o ter- suficiente ir às ruas, nos serviços futuro próximo. O nosso trabalho
entre conhecimento e confina- mo pudesse encontrar um apego essenciais, para percebermos de professores está garantido sem
mento carcerário. Era na verdade tão autobiográfico, a reflexão que o distanciamento não é uma grandes diferenças pela migração
uma simples lexicalização de um sobre o saber no espaço fechado condição sofrida, mas procu- O vírus está a criar, que ocorreu do formato presen-
livro interessante e problemático (felizmente doméstico), em tem- rada. É a primavera dos medos cial àquele online. Percebe-se
de um pensador conservador, Carl pos como os atuais, de isolamento e dos silêncios das ruas, esta. O falo de um dos no entanto que a relação com os
Schmitt que, durante a detenção devido à Covid19. Que saber sur- que sobreviverá deste distan- contextos europeus alunos curiosamente mudou, mais
pelo seu envolvimento com o girá das longas semanas em casa ciamento inédito e normativo, próxima na maior distância. Há
nazismo, recolheu alguns escritos que, em Itália, a partir do começo sempre mais entranhado nas mais afetados uma expectativa forte de encontro
publicados no volume Ex capti- de março se tornaram prescritivas relações, é cedo para dizer. Mas pela contabilidade na sala virtual, há uma procura de
vitate salus. A ideia de um “saber para todos? O vírus está a criar, haverá muitas mais distâncias contacto, de eliminação de muros
da cela” surge com evidência nos falo de um dos contextos euro- no horizonte que nos aguarda. assustadora e distâncias. Parece paradoxal, mas
muitos escritos que foram pro- peus mais afetados pelo contágio, Alguns teimam em pensar num de doentes e a dependência total da técnica que
duzidos em regime de detenção, pela contabilidade assustadora de horizonte utópico, pelas fraturas nos torna mais vulneráveis funda
de Gramsci a Mandela. O termo, doentes e mortos, um sentimen- que favorecem as regenerações, mortos, outras possibilidades de estarmos
claustrosofia, tornou-se uma to de vulnerabilidade profunda. outros pelo contrário alimentam um sentimento juntos mesmo que separados.
ferramenta útil para pensarmos Reinscreveu todos no lugar de ideias distópicas e negativas que Online os alunos perdem timidez e
melhor nos Papéis da prisão, de vítima, mas de um perpetrador perpetuarão as distorções atuais.
de vulnerabilidade hesitações e tornam-se mais ágeis
Luandino Vieira, e teve um certo desconhecido, até pouco definível. Conservar a vida, como dizem os profunda e dialógicos.
6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT TEMA 13
VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS

Japão
que, além do mais, inclui uma per- mentos. Escondido debaixo de dois
centagem considerável de imigran- garruços, uma máscara XL e luvas
tes entre os quais, talvez a maioria, descartáveis, caminho rápido com
cidadãos da União Europeia. Os que medo que a voz me descubra e me

A voz do céu
o Brexit tenciona mandar às urtigas, repreenda do alto da sua autorida-
mortos ou vivos. Ao sair do hospital, de. A noção de urgente ficou por
o primeiro-ministro assinalou espe- clarificar e se ela me perguntar lá
cialmente uma enfermeira neo-ze- de cima - olhe desculpe, o senhor
landesa e um enfermeiro português dos garruços, o que é que vai fazer
a quem deve a vida. Sim, ótimo, mas hoje que não poderia fazer ama-
que concluir disso? nhã? Não sei o que lhe responder
Boris Johnson é um homem com RICARDO ADOLFO de volta. Se calhar fugia, corria rua
sorte. Até teve sorte no enorme azar fora até encontrar 30 centímetros
de adoecer com o vírus, criando vazios entre dois prédios onde me
uma generalizada e totalmente jus- pudesse esconder até a voz decidir
tificável preocupação nacional pela ir aterrar outro. Ou então enchia-
sua sobrevivência. E não só porque -me de coragem e perguntava-lhe
os “timoneiros” alternativos com como é que tinha sido o seu dia.
quem prudentemente se rodeou no Agora que todos somos um pouco
governo são notoriamente incompe- hikikomori, a reclusão é sempre um
tentes, mas também, ou sobretudo, bom início de conversa. É provável
porque a sua doença demonstrou que a voz também precise de desa-
que a epidemia é para todos, é uma bafar. Apresentar as piores notícias
unificadora causa democrática. E Ricardo Adolfo do mundo ao planeta todos os dias
que portanto ter-se curado, como não é a melhor estratégia para ser
se numa reconfortante ressurreição popular.
pascal, deve ser um motivo de espe- Quando olho para o céu, calculo
rança para todos. que a voz saiba que a achamos
Bom, está bem, basta de mal- bizarra. Mas como o bizarro tomou
dades de mau gosto. A culpa é do conta dos nossos dias e em breve
vírus, da quarentena e do Álvaro será banal, de certo vamos encon-
de Campos. Mas entretanto, e o O bizarro tomou conta trar juntos outra forma de sermos
Brexit, de que agora já ninguém dos nossos dias e em todos felizes. J
fala? Com a União Europeia tam-
bém em colapso viral e sem melhor
breve será banal, de *Ricardo Adolfo, escritor (autor de três
futuro económico no horizonte, certo vamos encontrar romances, um livro de contos e outro
será que continuará a ser um pro-
blema relevante se o Reino Unido
juntos outra forma de de crónicas) e publicitário, radicado no
Japão, em Tóquio, há anos, depois de de
vai estar dentro ou fora? Vai haver Tóquio de máscara sermos todos felizes Macau e daHolanda
fora e dentro? Ou, como me dizia
uma boa amiga num devidamen-
te incontaminado telefonema há Tóquio. Dez horas da manhã e zero
poucos dias, “ah, que saudades do segundos. A voz da senhora vinda do
Brexit!”.J céu deixa cair as mesmas palavras

Prémio Literário
de ontem. O estado de emergência
foi declarado e não devemos ir à rua,
a não ser em casos urgentes. As pa-
As universidades, como a
minha, Bolonha, nunca investi-
ram grandes recursos na didática
lavras fazem eco por entre as torres
da cidade e caem nas ruas desertas,
cheias de lojas vazias. Entram-nos
Maria Rosa Colaço
à distância. Consideraram-na
sempre com desconfiança uma
pela janela devagar, uma de cada
vez, como quem pede licença por vir
de 1 de abril a 31 de maio 2020
espécie de subproduto. Agora a acordar a angústia. Não são palavras literatura juvenil
atitude mudou, as governâncias comuns. Foram escolhidas da caixa
abordam o novo cenário virtual mais solene coberta de pó. E a voz A Câmara Municipal de Almada promove a 15.ª edição do Prémio
como uma oportunidade. Não se repete tudo mais uma vez. Quem
apercebem de que o que agora quiser certificar-se pela terceira vez
Literário Maria Rosa Colaço, com o objetivo de incentivar a criativi-
estamos a fazer não é e-learning, pode ligar 03-5401-0742. É aten- dade literária premiando uma obra inédita de um autor português nos
mas um arremedo determinado dido por uma melodia de embalar e domínios da Literatura Infantil e Literatura Juvenil. Literatura juvenil
por circunstâncias e urgências. O pode ouvir as mesmas palavras vezes
e-learning efetivo requer tecno- sem conta. é o género literário a concurso em 2020.
logias e capacitações específicas, Não sei se a voz é humana. Não
como muito bem atestado pela sei se gosta do que faz ou sonha- VALOR DO PRÉMIO
tradição das Open Universities. va ser artista de circo quando era € 5.000,00 (Cinco Mil Euros)
A “claustrosofia” mostra, como adolescente. Não sei se gosta mais
Gramsci numa carta a Tânia ex- de ramen ou soba. Na sua biografia
O prazo decorre de 1 de abril a 31 de maio 2020
põe muito bem, a “corpulência do oficial diz apenas que nasceu para
OS ORIGINAIS DEVEM SER REMETIDOS, POR CORREIO, PARA:
tempo, quando o espaço não exis- nos avisar de cheias, terramotos,
te mais”. Um mundo de qualquer poluição atmosférica ou outros de- Secretariado dos Prémios Literários
modo outro está a abrir-se para sastres naturais iminentes. Nasceu Biblioteca Municipal de Almada
o futuro próximo. Cabe a nós, para dizer aquilo que ninguém quer Fórum Romeu Correia
que devemos imaginá-lo, fazer ouvir e muito menos dizer. Tem
com que possa ser um pouco mais uma missão ingrata e não deve ter Praça da Liberdade,
justo, solidário e aberto daquele muitos amigos. Para compensar, 2800-648 Almada
de que acabamos de sair. J todos os dias às cinco horas em Informações Tel. 212 724 920
ponto toca uma melodia infantil.
*Roberto Vecchi, presidente da Um aviso para os mais pequenos
Associação Internacional de Lusitanistas, deixarem de brincar nos baloiços do
é prof. catedrático de Literatura parque e fazerem-se a casa que são
Portuguesa e Brasileira da Universidade horas de ir lanchar e tomar banho. Regulamento disponível:
de Bolonha, titular da cátedra Eduardo Calculo que depois da sua boa www.m-almada.pt/bibliotecas
Lourenço e investigador do CES, da ação do dia se retire até à manhã
Universidade de Coimbra seguinte, e vou em busca de manti-
14 TEMA�

VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS


6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Moçambique
Em dois compassos
UNGULANI BA KA KHOSA
1) Quando o vírus começou a assemelham aos carnavais que
alastrar-se, afetando populações não temos mas que importamos,
de todos os quadrantes distanciam-se umas das
geográficos, a preocupação outras, por vezes abraçam-se e
de muitos cá no Índico, arrependem-se. Paira ainda, o
Moçambique, era e é sobre a que é bom, o sorriso, a conversa
nossa capacidade de resistência. jocosa, a pergunta de sempre: a
Como sustar a epidemia com quantas andamos. A Covid19 vai
tantas fragilidades no sistema chegando a passo de camaleão.
nacional de saúde? Questão As pessoas ficam atentas ao
central a requerer respostas pequeno ecrã, esperam pelos
audaciosas. números, e atualizam-se com o
Enquanto nos preparávamos mundo infetado. A Covid19 está
para os primeiros casos da aí. Não somos a exceção.
Covid19, recebi uma notícia que No meu reduto, meio urbano
me espantou e deprimiu: Luís meio rural, a Covid19 não é
Sepúlveda, escritor chileno a conversa de esquina. Com
residir em Gijon, nas Astúrias, máscaras caseiras, as pessoas
está infetado com o coronavírus. fazem-se ao pequeno comércio,
Ele esteve recentemente nas aos bazares e às bancas de
Correntes D´Escrita, encontro peixe. As vendedeiras, na
anual de escritores de expressão ausência das máscaras, vão
ibérica, que decorre na Póvoa de cobrindo o rosto com parte da
Varzim. capulana, vestimenta típica de
Também tu, meu velho?, Moçambique. Quando atendem
perguntei-me. Tu que em os telemóveis, escutando os
viagens e noites insones filhos na cidade grande a chamar
por estes trópicos me tens atenção aos cuidados a ter
acompanhado, trazendo o velho com a epidemia, elas sorriem
António José Bolívar, o homem 'Chapa', carrinha de transporte de passageiros em Moçambique e agradecem, continuando
que lia romances de amor nos a conversa com a vizinha,
confins dessa estonteante região enquanto enxotam as moscas que
amazónica, em convívio com a tendem a poisar nos peixes. Elas
tribo Shuar; ou, em a sombra do de saúde dos demais. Primeiro Descobri que ao querer ter as estão a outra velocidade. Querem
que fomos, as incríveis estórias os que se fazem à Póvoa todos os obras do guinense Abdulai a todo o custo sobreviver
dos sexagenários militantes de anos: o José Carlos Vasconcelos, Sila, eu procurava quebrar as Mais para o interior está a
esquerda, vencidos pelo golpe diretor do JL, o escritor e barreiras geográficas e ter a população camponesa, a mais
de Pinochet, o Cacho Salinas, editor Francisco José Viegas, o Guiné-Bissau como um espaço sofrida com a ausência dos
o Lolo Garmendia e o Lucho angolano Manuel Rui, o filósofo meu. Descobri que a simpatia cuidados básicos de saúde; com
Arenciba, que aguardavam, e escritor Onésimo Teotónio de do galego Carlos Quiroga a malária a ceifar vidas todos
inquietos, num velho armazém, Almeida, o linguista e escritor estende-se também à outras os anos, com a cólera a emergir
pela chegada de Pedro Nolasco, galego Carlos Quiroga, e outros latitudes. Descobri finalmente de tempos a tempos, com as
que os convocara, trinta e que não me vêm à memória; que a Covid19, ao nos remeter colheitas sofríveis, com a chuva
cinco anos depois do último depois, os convidados do ano: Ungulani Ba Ka Khosa ao exíguo espaço das nossas e a seca a intercalarem-se, com a
encontro. Nolasco não chegou ao a Hélia Correia, o João de Melo, casas, levava-nos ao mundo, à fome a grassar pelas palhotas, e
encontro porque fora atingido o Gonçalo M. Tavares, entre solidariedade. com a esperança reduzida a nada.
mortalmente por um gira-discos escritores portugueses; os cabo- É cerca de 70% da população
lançado de uma janela de um verdianos Germano de Almeida 2) Para quem vive a cerca de Moçambique. Falaram-lhes
casal com problemas conjugais; e Mário Lúcio; os guinenses, de 30 quilómetros da cidade do coronavírus, da letalidade
ou a memorável viagem à Abdulai Silá e Conduto Pina; de Maputo, apercebe-se de da doença, dos cuidados
Patagónia e Terra do Fogo, terras os angolanos Lopito Feijó e imediato que o cenário da a ter. E depois do falatório
tão distantes mas próximas deste David Capelenguela, e a poeta capital mudou. A cidade de ficaram sós, como sempre: sem
meu recanto do Índico, através moçambicana Hirondina Joshua. bancas de frutas espalhadas hospitais e assistência num
da Patagónia Express; ou ainda Todos encontravam-se de pelas artérias, de vendedores raio de 50 quilómetros. O que
o belíssimo livro de histórias quarentena e sem sobressaltos. Falaram-lhes do de tudo nas esquinas, do lhes faz suportar os séculos
que me fez ver e sonhar com as Apercebi-me, no meio desse aglomerado desordenado da sua solitária existência
rosas vermelhas do deserto de frenesim, que o incontrolável coronavírus, da de pessoas em paragens de é o curandeiro, a medicina
Atacama. impulso em saber do estado de letalidade da doença, autocarros e chapas, transportes tradicional.
Não acreditei que o mais saúde dos homens das letras privados de passageiros, das E como em outras epidemias,
velho Sepúlveda, homem de mil assentava numa palavra tão dos cuidados a ter. roupas usadas espalhadas nos os camponeses aguardam pelo
aventuras e desventuras pelos maltratada desde a revolução E depois do falatório passeios ou penduradas em coronavírus, nas manhãs e
quatro cantos do mundo fosse francesa: fraternidade. Descobri improvisados estendais, da tardes nas machambas sempre
atingido por esse inclemente que ao folhear o livro Século ficaram sós, como tumultuosa baixa histórica, improdutivas destes tempos
vírus. A poeta e esposa Carmen dos Prodígios, o último que me sempre: sem tende a esfumar-se sob o efeito modernos.J
Yanez, serenou-me, ao afirmar chegou às mãos do Onésimo T. do coronavírus. É temporário,
que o cidadão do mundo estava Almeida, eu tinha-o não só como
hospitais dizem uns, vai ser diferente, * Ungulani Ba Ka Khosa, escritor,
estável. Pus-me então a fazer um escritor de cabeceira, mas e assistência dizem outros. Mas a cidade vencedor dos Prémios José Craveirinha e
uma desordenada procura nos também como um companheiro, apresenta-se mais disciplinada;
jornais que me chegavam online, pesem as diferenças e a latitude,
num raio de 50 as pessoas escondem parte do
de Ficção Narrativa Moçambicana. Este
texto foi escritor antes da morte de Luis
e nos noticiários sobre o estado de uma confraria sem fronteiras. quilómetros rosto em máscaras que nada se Sepúlveda

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