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4.

A dimensão religiosa –
análise e compreensão da
experiência religiosa
[Filosofia da Religião]
4.1. Religião, razão e fé

2. A Filosofia na cidade
4.1.1. O problema da existência de Deus
e o conceito teísta de Deus
Filosofia da religião

Procede ao exame crítico de:

crenças religiosas
fundamentais – por
conceitos religiosos exemplo, as crenças de que
fundamentais – por Deus existe, de que há vida
exemplo, os conceitos de após a morte, de que a
Deus, fé, milagre… existência do mal é
compatível com a existência
de Deus…

Ao examinar criticamente uma crença religiosa, a filosofia procura


explicar tal crença e averiguar as razões que têm sido apresentadas
a favor e contra essa crença, para determinar se há ou não uma
justificação racional para considerar essa crença verdadeira ou falsa.
Algumas doutrinas filosóficas
relativas à existência de Deus

Teísmo Ateísmo

Agnosticismo Panteísmo
Teísmo

Doutrina que afirma a existência de Deus, encarando-o como uma Pessoa


(a sua relação com o ser humano adquire também um carácter pessoal) e
como um Deus perfeito, infinito, omnipotente, omnisciente, omnipresente,
perfeitamente livre, eterno, sumamente bom, único, autoexistente (com
uma existência necessária), transcendente (é exterior e superior ao mundo,
do qual se diferencia), criador e conservador do Universo (mas distinto e
independente deste).

Aceitando a providência e a revelação, o teísta admite que Deus governa o


mundo e considera possível uma demonstração racional da sua existência.
Ateísmo

Posição filosófica que nega a existência de Deus e, de uma forma geral, de


qualquer realidade que se possa considerar de natureza divina.

O ateísmo teórico poderá servir de fundamento a atitudes e comportamentos


vividos à margem de qualquer referência à esfera religiosa ou à ideia de Deus
(ateísmo prático).
Agnosticismo

Posição filosófica segundo a qual não é possível ao ser humano saber se Deus
existe ou não, nem aceder ao conhecimento da sua essência. Limitada a
capacidade cognitiva humana ao mundo dos fenómenos (conhecimento
científico), a esfera metafísica (Deus, alma, imortalidade) é vista como
incognoscível.

O agnosticismo advoga a suspensão do juízo e da crença relativamente àquilo


a que a razão e os sentidos não têm acesso, negando o valor das
demonstrações racionais da existência de Deus.
Panteísmo

Posição filosófica segundo a qual Deus e o mundo são a mesma realidade. Deus
e o mundo identificam-se, são apenas um.

Esta perspetiva nega a existência de qualquer realidade transcendente,


afirmando a imanência: Deus é tudo e tudo é Deus.
Algumas notas

- No âmbito do teísmo, os conceitos de omnipotência e omnisciência referem-


se, para a maioria dos filósofos, apenas ao que é logicamente possível. Deus
tem o poder de fazer tudo e de saber tudo, mas isso tem de ser logicamente
possível.

- Os conceitos de agnosticismo e ateísmo são tomados, aqui, em sentido amplo.


Numa aceção mais restrita, o ateísmo refere-se à negação da existência do
Deus da conceção teísta e o agnosticismo equivale à posição de quem não
afirma nem nega a existência desse Deus em concreto.

- A conceção teísta de Deus encontra-se presente nas três principais religiões


monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e islamismo (ou islão).
4.1.2. Argumentos sobre a existência de Deus
Teologia natural 

Tentativa de provar e justificar racionalmente a existência


de Deus, concebido segundo a perspetiva teísta.

Ao procurarem justificar a crença de que Deus existe, os


filósofos desenvolveram dois tipos de argumentos:

Argumento a posteriori Argumento a priori

É um argumento que É um argumento que


depende de pelo menos depende de premissas que
uma premissa que só pode são, todas elas, conhecidas
ser conhecida através da independentemente da
experiência. experiência.
Argumentos que procuram demonstrar a
existência de Deus

Argumento
teleológico (por
Argumento vezes também Argumento
cosmológico chamado ontológico
argumento do
desígnio)

Argumento a
Argumentos a posteriori
priori
Argumento cosmológico ou argumento da
causa primeira,

Parte da constatação empírica da existência do Universo


e do facto de haver nele coisas que foram causadas por
outras, sendo que todos os efeitos têm as suas causas e
nada surgiu sem que uma causa o originasse.

Um dos defensores deste argumento foi São Tomás de Aquino


(1225-1274). Este filósofo procurou demonstrar a existência de
Deus através das cinco vias (cinco provas):

Prova pelo Prova pelos Prova pelo


Prova pelo Prova pela causa
possível e pelo graus de governo do
movimento eficiente
necessário perfeição mundo
Diferentes versões do argumento cosmológico argumento
teleológico
Segunda via: prova pela causa eficiente (São Tomás)

Verifica-se, no mundo sensível, uma ordem de causas


eficientes entre as coisas, sendo que nenhuma coisa é causa
eficiente de si mesma.

Se partirmos da série das causas eficientes no mundo, não


poderemos recuar até ao infinito, pois isso significaria a
inexistência de uma causa primeira, de um efeito último e de
causas intermédias.

Por isso, e visto não haver efeitos sem causas, deve existir
uma causa eficiente primeira, uma causa incausada ou sem
causa. Essa causa eficiente primeira é Deus.
Por outras palavras…

Ao constatarmos que o Universo existe, podemos seguir


retrospetivamente a série de causas e efeitos que estão na
base da sua existência atual.

Deparamo-nos assim com a necessidade da existência de


uma causa primeira, a causa que está na origem de todas as
causas e de todos os efeitos posteriores.

Essa causa primeira, que é uma causa necessária e incausada,


é Deus. Logo, Deus existe.
Objeções

1 Este argumento é autocontraditório.

Defende, ao mesmo tempo, que todas as coisas foram causadas por outra coisa,
não havendo causa que não tenha sido causada, e que existe uma causa que não
foi causada: Deus.

Podemos perguntar, então: qual a causa de Deus? Há filósofos que respondem


dizendo que Deus é causa de si mesmo (causa sui), mas será esta uma resposta
convincente?

Se se objetar que tudo, exceto Deus, tem uma causa, pode perguntar-se por que
razão a série de causas e efeitos tem de parar em Deus e não antes (quando
surgiu o Universo, por exemplo).
Este argumento pressupõe que não há uma regressão infinita na série de causas
2
e efeitos: esta não retrocede no tempo de modo infinito.

Ora, se aplicarmos idêntico raciocínio em relação ao futuro, teremos de supor a


existência de um efeito final que não seria causa de nada.

Mas o mais plausível é pensar que as causas e efeitos se prolongam


infinitamente no futuro.

Por isso, temos razão para pensar que, em relação ao passado, essa série
infinita da cadeia causal é igualmente possível.

Isto significa que o Universo pode existir desde sempre.


Ainda que nos possa convencer da existência de um deus, encarado como causa
3
primeira, este argumento não adianta muito no tocante à sua natureza.

Uma causa originária (e incausada) é certamente muito poderosa, mas não há


razões para pensar que ela se identifique com o Deus perfeito dos teístas,
dotado de atributos de omnisciência, omnipotência e suma bondade.

Essa causa originária pode, inclusive, consistir numa equipa de seres.


4 A existência do mal

Um defensor deste argumento teria ainda de responder ao problema de saber


como pode o Deus perfeito, omnisciente, omnipotente e sumamente bom
tolerar o mal que existe no mundo.
Argumento teleológico ou argumento do desígnio

Argumento a posteriori, que parte do facto de no mundo


existirem ordem e finalidade.

Um dos defensores deste argumento foi São Tomás de


Aquino. Outro defensor foi William Paley (1743-1805).
São
Quinta via: prova pelo governo do mundo ou das coisas
Tomás

As coisas naturais, privadas de conhecimento, inteligência e


consciência, encontram-se dirigidas para um fim ou objetivo,
comportando-se sempre, ou quase sempre, da mesma forma e
de modo a realizarem o melhor para elas.

Elas não fazem isso por acaso, mas em virtude de


determinada intenção.

Isso não se verificaria exceto sob o governo e a direção de


um Ser dotado de inteligência e conhecimento, tal como uma
flecha não pode dirigir-se ao alvo a não ser por iniciativa e
obra de um arqueiro.

Logo, existe um Ser inteligente pelo qual todas as coisas


naturais são ordenadas, dirigidas e orientadas para um fim.
Esse Ser é o que chamamos Deus.
William
Paley

O ponto de partida é a constatação de que tudo, na natureza,


se revela adequado à função que desempenha.

O olho humano, por exemplo, está de tal modo concebido


que todas as suas partes concorrem harmoniosamente para a
função deste órgão, que consiste em ver.

A complexidade, a ordem, a harmonia, o engenho e a


finalidade patentes em todos os seres e fenómenos naturais
provam que eles tiveram de ser concebidos por um criador
inteligente: Deus.
O argumento baseia-se numa analogia entre os objetos
criados pelo ser humano e as coisas da natureza.

À semelhança de um relógio, concebido e fabricado de forma


engenhosa por um relojoeiro humano, também os seres e as
coisas da natureza, engendrados de modo muito mais
complexo e engenhoso, tiveram de ter um criador inteligente,
neste caso um “relojoeiro divino”, ostentando a sua marca.

William Paley concluiu, então, que é necessário recorrer a


Deus para se compreender as manifestações do desígnio que
vemos na natureza. É necessário existir alguém que
projetasse esse desígnio. Esse ser é Deus.
Objeções

1 Este argumento, na versão de Paley, baseia-se numa fraca analogia

A semelhança entre os objetos naturais (como o olho humano) e os objetos


artificiais (como o relógio) não é uma semelhança entre aspetos
verdadeiramente importantes ou relevantes, havendo também entre eles
diferenças relevantes.

Trata-se de uma semelhança muito vaga, pelo que quaisquer conclusões


baseadas nessa analogia serão igualmente vagas.

Também São Tomás, ao comparar um artefacto humano (a flecha) com os


corpos naturais, acaba por se basear em semelhanças pouco relevantes,
esquecendo as diferenças relevantes entre essas realidades.
2 Este argumento, em qualquer das versões, perde, de certo modo, a sua
força quando é confrontado com as conclusões da teoria evolucionista.

Darwin, em A Origem das Espécies, mostrou que a variedade e a complexidade


dos seres vivos resultam da seleção natural e da sobrevivência dos mais aptos,
os quais, por sua vez, irão transmitir os seus genes às gerações seguintes

Sem negar a existência de Deus, a teoria da evolução acaba, no entanto, por


pôr em causa as explicações do argumento teleológico, apresentando uma
explicação alternativa.
• Este argumento, ainda que possa demonstrar a existência e a necessidade
3
de um criador, não prova:

que o criador seja


omnisciente e
que se trata de um infinitamente bom –
que ele seja único –
arquiteto omnipotente contraria essa ideia a
pode tratar-se de uma
– poderá argumentar- existência do mal no
equipa de deuses, tal
se que o Universo mundo (as catástrofes,
como só uma equipa de
apresenta “defeitos de o sofrimento, a doença,
seres humanos é capaz
fabrico”, visíveis por a morte, a crueldade),
de construir uma nave
exemplo em organismos sendo que,
espacial
imperfeitos ou doentes aparentemente, Deus
nada faz para o
impedir
Argumento ontológico

Tentativa de demonstrar a existência de Deus de um


modo inteiramente a priori, sem recurso aos dados da
experiência. Segundo este argumento, a existência de
Deus pode ser provada com base exclusivamente na
definição da essência divina.

Este argumento foi defendido, entre outros autores, por


Santo Anselmo (c. 1033-1109) e Descartes (1596-1650).
Santo De acordo com Santo Anselmo, Deus é «algo maior do que o
Anselmo qual nada pode ser pensado»

Ora, «aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado»


não pode existir apenas no intelecto. Se apenas existir no
intelecto, pode pensar-se que existe na realidade, e então já
seria maior.

Por isso, «aquilo maior do que o qual nada pode ser


pensado» existe não apenas no intelecto mas também na
realidade.

Assim, se Deus é «algo maior do que o qual nada pode ser


pensado», então existe necessariamente.
Ao dizer que Deus é «algo maior do que o qual nada pode ser
pensado», Santo Anselmo está a considerar que Deus possui
todas as qualidades num máximo grau de grandiosidade ou
perfeição.

Ora, é mais grandioso ou mais perfeito existir do que não


existir. Deste modo, a existência constitui um dos aspetos
dessa grandiosidade ou perfeição. Por conseguinte, Deus
existe necessariamente.
Objeções

1 Este argumento pode conduzir a consequências absurdas

Por exemplo, pode concluir-se que uma ilha perfeita existe só porque se pensou
nessa ilha, concebida como a mais excelente de todas as terras, maior do que a
qual nada pode ser concebido (objeção apresentada por Gaunilo de
Marmoutier, um monge contemporâneo de Santo Anselmo).

Pode, no entanto, responder-se a tal objeção considerando que Deus não é


comparável a ilhas ou objetos perfeitos, visto ser a mais perfeita das realidades,
ou a própria perfeição em si mesma.
Kant (1724-1804) criticou neste argumento o pressuposto de
2
que a existência é uma propriedade ou um predicado.

Se dissermos que Deus existe, não estamos a acrescentar qualquer predicado à


essência divina. Segundo Kant, a existência não é uma propriedade essencial,
como o poderão ser a omnipotência ou a suma bondade.

A existência é apenas a condição de possibilidade para que algo tenha,


realmente, esta ou aquela propriedade. O termo “é” não constitui um
predicado, antes o elemento que estabelece uma relação entre o predicado
(omnipotente) e o sujeito (Deus).
3 Neste argumento efetua-se uma comparação ilegítima

Neste argumento efetua-se uma comparação entre o que existe na realidade


e o que existe no pensamento, a respeito de propriedades como a grandeza
ou a perfeição.

Mas essa comparação é ilegítima, pois aquilo que é pensado não tem área,
volume ou peso no mesmo sentido em que o têm as coisas na realidade.
4 O problema do mal

Este argumento acusa uma fragilidade idêntica à dos anteriores, uma vez
que a existência do mal parece colidir com a possibilidade da existência de
um Deus bom e perfeito.
4.1.3. O fideísmo de Pascal
Harmonia entre a fé e a razão

Foi defendida por diversos autores, por exemplo São


Tomás. Embora a razão e a fé sejam distintas, elas são
compatíveis.

Segundo São Tomás, algumas verdades relativas ao


divino podem ser demonstradas pela razão, ao passo que
outras não o podem ser, ultrapassando a capacidade da
razão humana, sendo apenas objeto de fé e tendo por
base a revelação divina.
Fideísmo

Doutrina que põe em causa a ideia de uma harmonia entre a fé e a razão,

No seu sentido mais geral, o fideísmo é uma doutrina que sustenta a


incapacidade da razão humana para atingir determinadas verdades,
considerando que elas só são acessíveis através da fé. Deus é
infinitamente incompreensível para a razão humana.

Admitindo a existência de verdades de fé, os fideístas defendem que tais


verdades possuem um valor igual ou superior ao das verdades obtidas
pela ciência e pela razão.
Fideísmo

Radical Moderado
por exemplo de Søren por exemplo de Blaise
Kierkegaard (1813-1855) Pascal (1623-1662)

Há um conflito entre razão e fé.


Como tal, as verdades relativas, por Não considera haver um conflito
exemplo, à existência e à essência de entre a razão e a fé, embora
Deus só podem ser alcançadas pela também não haja total harmonia
fé, sendo a razão excluída deste entre elas.
domínio.

Procurar demonstrar
racionalmente a existência de Deus
equivaleria a eliminar o valor da fé
e da vida religiosa.
Argumento do apostador (aposta de Pascal)

Trata-se de um argumento que, diferentemente daqueles


que estudámos, procura não propriamente demonstrar a
existência de Deus, mas mostrar as vantagens de
«apostar» nessa existência.

Se admitirmos, como o faz um agnóstico, que não


existem dados suficientes para provar a existência ou a
não existência de Deus, estamos numa situação muito
idêntica à de um apostador antes da realização do evento
em que vai apostar, ou seja, teremos de calcular as nossas
hipóteses.
Contrariando a atitude de indecisão do agnóstico, o
argumento do apostador sublinha que a coisa mais
racional a fazer será procurar maximizar os ganhos
possíveis e minimizar as perdas possíveis.

A melhor forma de o conseguir é acreditar em Deus. Há


quatro resultados possíveis: dois se acreditarmos que
Deus existe e dois se acreditarmos que ele não existe.

Deus existe Deus não existe


Perda de tempo em atos religiosos
Acreditar que Deus Ganha-se a vida eterna: ganho
e de alguns prazeres mundanos:
existe infinito.
perda finita.
Perde-se a possibilidade da vida
Liberdade de gozar os prazeres da
Não acreditar que eterna e corre-se o risco da
vida sem temer o castigo divino:
Deus existe condenação eterna: perda
ganho finito.
infinita.

Colocados perante estas opções, e se queremos maximizar os ganhos possíveis e


minimizar as perdas possíveis, a atitude mais sensata será acreditar que Deus existe
Objeções

1 Não podemos decidir acreditar que Deus existe

Não podemos pura e simplesmente decidir acreditar que Deus existe, tal como
não podemos decidir acreditar que os peixes voam. Para acreditar em algo é
necessário estar convencido de que isso é verdade.

Ora o argumento do apostador não fornece quaisquer dados que levem a


pessoa a ficar convencida de que Deus existe, limitando-se a dizer que é boa
ideia acreditar que isso é verdade.

Neste sentido, e se a crença na existência de Deus fosse contra os nossos


sentimentos, Pascal sugeria que agíssemos como se já acreditássemos que Deus
existe, nomeadamente através da adoção de comportamentos religiosos. Seria
uma forma indireta de gerar deliberadamente a crença.
2 Este argumento parece pressupor algo que o fideísmo nega.

Se Deus, na sua infinitude, é incompreensível para a razão humana,


então não deveríamos ter condições para conhecer, de forma tão
pormenorizada, as suas atitudes em relação aos crentes (que irá
recompensar) e aos descrentes (que irá punir).
3 Este argumento é inapropriado.

Apostar na existência de Deus tendo como horizonte a hipótese da


obtenção da vida eterna, fingindo depois crer na sua existência,
justamente por causa desse prémio, parece constituir uma atitude
inapropriada relativamente à existência de Deus.

Trata-se de um processo que se afigura totalmente calculista,


insincero e interesseiro (e que Deus certamente não aprova).
4.1.4. O argumento do mal para a
discussão da existência de Deus
O problema do mal

Apresentados os principais argumentos relativos à


existência de Deus, podemos ser levados a perguntar se
haverá argumentos que provem a sua não existência. É
aqui que entra o problema do mal.

De um ponto de vista não religioso, torna-se mais fácil


explicar as ocorrências adversas da natureza, já que se
parte do princípio de que o mundo não foi propriamente
feito para nosso benefício nem é uma entidade justa.
O problema surge quando admitimos a existência de
Deus, sobretudo concebido à maneira teísta: um Deus
sumamente bom, omnisciente e omnipotente, com total
domínio sobre o mundo.

Como é que um Deus com esses atributos pode permitir


a existência do mal?

Se Deus é sumamente bom, não quer o mal; se é


omnisciente, sabe que o mal existe; se é omnipotente,
pode suprimir o mal. Assim, se Deus existe, não existe o
mal. Mas o mal existe. Logo, Deus não existe.

Parece, pois, haver uma incompatibilidade entre a


existência do mal no mundo e a existência de Deus. Isto
significa que a existência do mal pode servir de
argumento a favor do ateísmo.
Mal

mal moral mal natural

o mal causado pelos seres humanos,


o mal resultante de forças e causas
através de ações mais ou menos
naturais (como terramotos,
deliberadas (como assassínios,
cheias, fomes, doenças, incêndios),
guerras, roubos, torturas),
ainda que possa ser aumentado
traduzindo-se no sofrimento de
pela ação negligente ou
outros seres humanos e também de
incompetente do ser humano
animais
Naturalmente que a afirmação “Se Deus existe, o mal
não pode existir” é discutível. Um defensor da Divindade
poderá argumentar contra essa perspetiva dizendo que
Deus tem razões para permitir o mal, mas que nós não
estamos, por exemplo, em condições de as conhecer.

Mas, visto que este argumento é insuficiente, houve


filósofos que foram mais longe e elaboraram teodiceias.

Uma teodiceia – o termo foi criado por Leibniz (1646-


1716), no início do século XVIII – é uma justificação da
bondade de Deus, associada a uma explicação da
existência do mal.

Ao tentar explicar a existência do mal no mundo, a teodiceia indica os


objetivos e as razões que Deus tem para permitir que o mal exista. Assim, o
mal é integrado nos desígnios de Deus. Apesar das evidências de mal no
mundo, argumenta-se que é razoável acreditar na existência de Deus.
Argumento de Leibniz

Deus, sendo omnipotente e perfeito, escolheu e criou, de entre


infinitos mundos possíveis, o melhor de todos, ou seja, aquele
que tem a mínima parte de mal.

Assim, é impossível existir um mundo com menos mal do que


o mundo em que vivemos, ainda que o possamos imaginar.

Por outro lado, a ocorrência de certos males no mundo pode


ser logicamente necessária para se obterem bens maiores, que
superam esses males.

Leibniz rejeita a opinião daqueles que afirmam que Deus


podia ter feito melhor.
Mal
(segundo Leibniz)

Moral Natural Metafísico

Refere-se à
degeneração que é
inerente aos limites
Associado ao livre-
Está ligado ao das substâncias finitas
arbítrio, remete para
sofrimento. que compõem o
o pecado.
mundo, ou seja,
equivale à finitude e à
imperfeição.

Fazem parte da ordem do mundo

Esta ordem assenta sobre o princípio da razão suficiente, segundo o qual


tudo o que acontece tem uma razão suficiente para ser assim e não de outra
forma: quando há mais que uma alternativa, existe uma explicação
suficiente para se verificar uma e não a(s) outra(s).
Deus pode, às vezes, querer o mal natural, enquanto forma de
Mal natural
expiação da culpa ou como forma de aperfeiçoamento do indivíduo.

Deus não quer o mal moral. Permite-o, no entanto, a fim de não pôr
Mal moral
em causa o nosso livre-arbítrio.

O mal metafísico acaba por fazer parte do mundo enquanto este é


Mal metafísico
criado e imperfeito.

O mal encontra-se, pois, justificado, não sendo incompatível com a existência de Deus.

Mas a tese segundo a qual este é o melhor de entre todos os mundos possíveis parece
constituir uma hipótese pouco plausível, sobretudo por nos levar a pensar que o
próprio Deus (sendo omnipotente) poderia ter feito melhor.
Seguidamente, vamos ver alguns argumentos gerais (na
primeira coluna), apresentados por vários filósofos, que
procuram explicar por que motivo Deus permite o mal
(moral e natural). Os argumentos 3, 4 e 6 também se
encontram presentes, até certo ponto, na teoria de Leibniz,
permitindo-nos solidificar a análise crítica da perspetiva
deste filósofo. Na segunda coluna expõem-se objeções a esses
argumentos.
A existência do mal (moral e natural)
Argumentos que a
Objeções a esses argumentos
justificam

A dor não é um mecanismo perfeito para


1 A dor faz parte do sistema de
evitar o perigo, sendo que por vezes há
alerta do corpo.
perigo e não há dor. Outras vezes a dor é
intensa, provoca um sofrimento
desnecessário e não ajuda a proteger a
pessoa.

Apreciar o bem – o mal é


2 necessário para que possamos Este argumento pode justificar a existência
apreciar o bem. de algum mal, mas não de tanto mal. Há
mais mal no mundo do que o que seria
necessário para apreciar o bem.
Castigo – o mal (sobretudo o mal
3 natural) é um castigo da conduta Essa correlação é altamente discutível, uma
moral. vez que o mal atinge tanto as pessoas más
como as pessoas virtuosas e, muitas vezes,
mais estas que aquelas.

Santidade – o mal (sobretudo o


4 mal natural) conduz a uma maior O grau e a dimensão do sofrimento e do mal
virtude moral, permitindo a são muito maiores do que o necessário para
existência do bem e o permitir atos de bem moral.
aperfeiçoamento moral.

Dificilmente se pode compreender que um


mundo no qual exista muito mal seja
preferível a um mundo onde exista menos
mal, ainda que também menos heroicidade.
Analogia artística – tal como uma É difícil convencer alguém em sofrimento
5 obra de arte possui falhas que extremo de que está a contribuir para a
acabam por contribuir para a sua harmonia geral do mundo.
harmonia interna, também o mal
contribui para a beleza e
A harmonia só pode ser apreciada por Deus,
harmonia geral do mundo.
pelo que o mal cai fora da compreensão
humana.

Um deus que permite o sofrimento por


motivos estéticos parece mais um sádico do
que o Deus sumamente bom.
Livre-arbítrio – Deus deu ao ser Esse argumento é discutível se pensarmos em
6 humano a capacidade de escolher pessoas que passam por sofrimentos
o bem ou o mal (do ponto de vista extremos decorrentes do mal moral.
moral), sendo preferível um
mundo onde haja livre-arbítrio, Não explica o mal natural, exceto se se
apesar do mal que daí possa admitir uma espécie de pecado original que
resultar, do que um mundo onde a responsabiliza o ser humano por toda a
ação fosse predeterminada. cadeia de mal natural.
Pode colocar-se em causa a existência efetiva
do livre-arbítrio.
Diferentes abordagens ao problema do mal

A abordagem ao problema do mal que acabámos de


Teísmo
estudar desenvolve-se no âmbito do teísmo.

No âmbito do fideísmo, poderá argumentar-se que, sendo


Fideísmo
Deus infinitamente incompreensível, os seres humanos
(limitados e finitos) não estão em condições de
compreender totalmente a existência do mal. Esta terá
então uma justificação que nos ultrapassa.

Se adotarmos uma perspetiva panteísta, em que a conceção


Panteísmo
de Deus é bastante diferente, o problema do mal terá de ser
“solucionado” de outra forma. Neste caso, Deus é
caracterizado como uma espécie de jogador, um ator
cósmico que interpreta todo o tipo de papéis, sendo que o
mal faz parte da realidade una e universal.

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