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Um Argumento Cosmológico A Partir Do Big Bang Para A Inexistência de

Deus

Parte 1 - Introdução

Autor: Quentin Smith


Fonte:
http://www.infidels.org/library/modern/quentin_smith/bigbang.html
[Publicado originalmente em FAITH AND PHILOSOPHY em abril de 1992
(Volume 9, No. 2, págs. 217-237)]
Tradução: Gilmar Pereira dos Santos (blog Rebeldia Metafísica)

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Resumo: A teoria cosmológica do Big Bang é relevante para o teísmo cristão
e para outras perspectivas teístas já que representa o universo começando
a existir há cerca de 15 bilhões de anos.

Esta série trata da questão da racionalidade de se acreditar que Deus criou


o Big Bang. Alguns teístas respondem afirmativamente, mas este artigo
argumenta que esta crença não é racional.

Ao longo da série discute-se a necessidade metafísica das leis naturais, se a


lei da causalidade é verdadeira a priori, além de outras questões
pertinentes.
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Introdução

O advento da cosmologia do Big Bang no século XX foi um divisor de águas


para os teístas. Desde os tempos de Copérnico e Darwin, vários teístas
consideraram a ciência hostil à sua visão de mundo, exigindo defesa e
retração contínuas da parte do teísmo.

Mas a cosmologia do Big Bang reverteu efetivamente esta situação. A ideia


central desta cosmologia, que o universo explodiu na existência num ‘big
bang’ há aproximadamente 15 bilhões de anos, pareceu feita sob
encomenda para uma perspectiva teísta.

A cosmologia do Big Bang aparentou oferecer evidências empíricas para a


doutrina religiosa da criação ‘ex nihilo’ (nada surge do nada). As implicações
teístas pareceram tão óbvias e excitantes que até mesmo o Papa Pio XII foi
levado a comentar que ‘A verdadeira ciência num grau cada vez maior
descobre Deus como se Deus estivesse à espera atrás de cada porta aberta
pela ciência.’ [1]

Mas a interpretação teísta do Big Bang recebeu não somente sanção oficial
e ampla divulgação na cultura popular como também uma sofisticada
articulação filosófica. Richard Swinburne, John Leslie e sobretudo William
Lane Craig [2] formularam poderosos argumentos para o teísmo baseados
num conhecimento bem embasado dos dados e das ideias cosmológicas.

A reação de ateus e agnósticos a esta formulação foi comparativamente


fraca, com efeito, quase imperceptível. Um desconfortável silêncio parece
ser a regra quando a questão é levantada entre descrentes ou então o
assunto é rápida e epigramaticamente descartado com um comentário no
sentido de que ‘a ciência é irrelevante para a religião’. Não é difícil descobrir
a razão do aparente constrangimento dos não-teístas. Anthony Kenny
sugere nesta declaração sumária:
“Segundo a Teoria do Big Bang, toda a matéria do universo começou a
existir num instante particular no passado remoto. Um proponente de uma
teoria assim, pelo menos se ele for um teísta, deve acreditar que a matéria
do universo veio do nada e por nada.” [3]

Esta ideia perturba a muitos pela mesma razão que perturba C. D. Broad:

“Devo confessar que tenho uma dificuldade muito grande em imaginar


que houve uma primeira fase na história do mundo, isto é, a fase
imediatamente anterior na qual não existiu nem matéria, nem mentes, nem
qualquer outra coisa…

Eu suspeito que minha dificuldade em relação ao primeiro evento ou fase


na história do mundo decorre do fato de que, não importa o que eu possa
dizer quando tento dificultar as coisas para Hume, não sou capaz de
realmente acreditar em qualquer coisa começando a existir sem ser causada
(no sentido obsoleto de produzido ou gerado) por alguma outra coisa que
existia antes e no momento em que a entidade em questão começou a
existir…

Eu… acho impossível abrir mão deste princípio; e, com esta confissão de
impotência intelectual decorrente de uma idade avançada, abandono este
tópico.” [4]

Motivados por preocupações como as de Broad, alguns dos poucos não-


teístas que se pronunciaram sobre esse tema chegaram ao ponto de negar,
sem uma justificação apropriada, pilares centrais da cosmologia do Big
Bang.

Entre os físicos, o exemplo mais célebre é Fred Hoyle, que rejeitou


veementemente a sugestão de um Big Bang que aparentasse implicar um
criador e tentou sem sucesso interpretar as evidências para um Big Bang
como evidências para uma ‘bolha’ em expansão dentro de um universo
imutável e infinitamente velho (refiro-me a sua teoria pós-estado-de-
equilíbrio da década de 1970) [5].

Um exemplo deste tratamento em sentido contrário entre filósofos é


patenteada por W. H. Newton-Smith. Newton-Smith sentiu-se compelido a
sustentar, em franca contradição com os teoremas da singularidade da
cosmologia do Big Bang (que implicam que não pode existir nenhum estado
mais antigo do universo do que a singularidade do Big Bang) que as
evidências de que eventos macroscópicos sem origens causais nos dão
‘motivos para pensar que algum estado anterior do universo levou à
produção desta singularidade específica‘. [6]

Parece-me, contudo, que a cosmologia do Big Bang não coloca os não-


teístas em tal beco sem saída. As alternativas dos não-teístas não se limitam
ao silêncio constrangedor, a confissões de impotência, recusas
epigramáticas ou a ‘negação’ pura e simples quando confrontados com as
implicações aparentemente radicais da cosmologia do Big Bang.

É meu objetivo nesta série mostrar isto estabelecendo uma interpretação


ateísta coerente e plausível do Big Bang, uma interpretação que não
somente é capaz de equiparar-se à interpretação teísta mas que na verdade
é melhor justificada do que a interpretação teísta.

Mas meu argumento pretende estabelecer ainda mais do que isso. Em


outra ocasião elaborei o caso de que a cosmologia do Big Bang não fornece
quaisquer subsídios ao teísmo, mas aqui eu desejo construir o caso mais
robusto de que a cosmologia do Big Bang é efetivamente inconsistente com
o teísmo. Defenderei que se a cosmologia do Big Bang é verdadeira, então
Deus não existe.

A teoria cosmológica que discutirei neste artigo é a assim chamada ‘teoria


padrão do Big Bang quente’, baseada nas soluções de Friedmann para as
equações da Teoria da Relatividade Geral de Einstein e nos teoremas da
singularidade de Hawking-Penrose.

Explicarei estas ideias de uma maneira introdutória e não-técnica no


próximo capítulo, de modo que os filósofos que não tenham familiaridade
com esta teoria possam acompanhar meu argumento.

Um ponto que desejo enfatizar logo de início refere-se ao estatuto


provisório da teoria do Big Bang. Os cosmólogos acreditam que esta teoria
um dia será substituída por uma cosmologia baseada numa teoria quântica
da gravidade e, consequentemente, às conclusões teístas ou ateístas
derivadas da ‘teoria padrão do Big Bang quente’ deve ser atribuído um
estatuto igualmente provisório.

Após minha explicação introdutória da cosmologia do Big Bang no capítulo


a seguir, delinearei meu ‘argumento cosmológico a partir do Big Bang para
a inexistência de Deus’ no capítulo subsequente. A maior parte da série,
compreendendo os 5 capítulos finais, é reservada para responder às
objeções contra o argumento delineado no segundo capítulo.

Notas.

1. Veja o ‘Bulletin of the Atomic Scientists 8’ (1952), 143-146.

2. Veja Richard Swinburne, The Existence of God (Oxford: Clarendon Press,


1979) e Space and Time, 2nd. ed. (New York: St. Martin’s Press, 1982).
Swinburne duvida que a previsão de um primeiro evento pela cosmologia
do Big Bang seja provavelmente verdadeira, mas não obstante mostra
como esta previsão pode ser teologicamente interpretada.
Veja também John Leslie, ‘Anthropic Principle, World Ensemble, Design’,
American Philosophical Quarterly 19 (1982), 141-151, ‘Modern Cosmology
and the Creation of Life,’ em E. McMullin (ed.), Evolution and Creation
(South Bend: University of Notre Dame Press, 1985), e vários outros artigos.
Leslie, é claro, trabalha com uma concepção neoplatônica de Deus, mas
seus argumentos são obviamente relevantes para o teísmo clássico.

A mais bem elaborada interpretação teísta da cosmologia do Big Bang é a


de William Lane Craig. Veja seu ‘The Kalam Cosmological Argument’ (New
York: Harper and Row, 1979), ‘God, Creation and Mr. Davies,’ British Journal
for the Philosophy of Science 37 (1986), 163-175, ‘Barrow and Tipler on the
Anthropic Principle vs. Divine Design,’ British Journal for the Philosophy of
Science 39 (1988): 389-95; ‘What Place, Then, for a Creator?,’ British Journal
for the Philosophy of Science, 41 (1990): 473-91; “The Caused Beginning of
the Universe: A Response to Quentin Smith,” (1989).

3. Anthony Kenny, The Five Ways (New York: Schocken Books, 1969), p. 66.

4. C. D. Broad, ‘Kant’s Mathematical Antinomies,’ Proceedings of the


Aristotelian Society 40 (1955), 1-22. Esta passagem e a passagem de Kenny
foram extraídas das páginas 142 e 141-142, respectivamente, de The Kalam
Cosmological Argument, de Craig.

5. Veja Fred Hoyle, Astrophysical Journal 196 (1975), 661.

6. W. H. Newton-Smith, The Structure of Time (London: Routledge and


Kegan Paul, 1980), p. 111.

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