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 DOAÇÃO CADASTRE-SE

ENSAIO

Sobre a prova
matemática mais
ousada da existência
de Deus
Walter Carnielli|01/12/2023

Walter Carnielli

Graduado e licenciado em Matemática,


especialização em Filosofia da Ciência, mestrado em
Matemática, e doutorado em Matemática pela
Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutorado
pela University of California, pela Universitat
Munster (Westfalische-Wilhelms) e pela Rheinische
Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, como bolsita
da Fundação Alexander von Humboldt. Atualmente
é Professor Titular do Departamento de Filosofia da
Universidade Estadual de Campinas, e editor e
membro do corpo editorial de diversas revistas
científicas.

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Como citar
Carnielli, Walter. Sobre a prova matemática mais ousada da
existência de Deus. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez,
2023.

Contra e a favor, sempre

A
existência, ou inexistência de Deus, e no caso
positivo sua unicidade, tem incendiado a
imaginação de muita gente há séculos. Há
inúmeros argumentos favoráveis e contrários à
existência de Deus no curso da história da filosofia e
da teologia. Uma tradição desde Aristóteles afirma
que o conhecimento de Deus pode ser obtido através
de processos naturais de raciocínio, sem envolver
experiências pessoais com o divino ou transcendente
caracterizadas por revelação, como a Bíblia, ou
epifanias de algum tipo, por exemplo.

Minha intenção aqui não é avaliar cada argumento a


favor ou contra, mas preparar o leitor para a prova
matemática que considero ser a mais sofisticada até
hoje: a prova teológica proposta pelo lógico e
matemático Kurt Gödel em 1940, que ajudará a
compreender limites da relação entre fé e razão.

Alguns dos principais argumentos que pretendem


provar a existência de Deus são os seguintes:

1. Argumento Cosmológico: este argumento


advoga que a existência do universo requer
uma causa ou explicação, frequentemente
referida como a “Causa Primeira” ou “Causa
Incausada”. Essa causa primeira é considerada
Deus. Duas versões famosas deste argumento
são o argumento cosmológico de Kalam e o
argumento da contingência.¹
2. Argumento Teleológico: uma das suas versões
recentes é conhecida como argumento do
“design”, ou projeto. Este argumento alega que a
complexidade e o propósito observados no
mundo natural implicam a existência de um
projetista (designer) inteligente, ou seja, Deus.
3. Argumento Moral: este argumento alega que
valores e deveres morais objetivos requerem
um legislador moral, frequentemente
identificado como Deus. Argumenta-se que a
existência de uma fonte transcendente para a
moral é mais bem explicada por um ser divino.
Este tipo de argumento é explorado, contra e a
favor, por Immanuel Kant.²
4. Argumentos Probabilísticos: a partir da
segunda metade do século 20, por influência
principalmente das propostas de Alvin
Plantinga e Richard Swinburne, a teologia
analítica se reorientou, desviando-se das provas
da existência (ou inexistência) de Deus para a
questão de como raciocinar com evidências a
favor e contra a existência de Deus.

Alvin Plantinga é um dos filósofos seminais da


religião da segunda metade do século 20. Uma de
suas contribuições mais distintivas e importantes
para a filosofia da religião é sua afirmação de que
argumentos não são necessários para a crença
racional em Deus, mas mesmo assim defende que
ainda existem muitos bons argumentos disponíveis.³

Richard Swinburne é conhecido por propor


argumentos probabilísticos em favor da existência de
Deus. Em seu The Existence of God, Swinburne tentou
mostrar, usando argumentos indutivos por meio da
aplicação do teorema de Bayes, que a existência de
Deus é mais plausível do que a não existência.⁴ É bom
deixar claro que não faltam críticas a tais propostas.

5. Argumento Ontológico: é aquele que conclui


que Deus existe a partir de premissas derivadas
apenas da razão, não consequentes à
observação do mundo. Este argumento, que é o
que nos interessa, é uma tentativa lógica de
provar a existência de Deus a partir de
definições refinadas do conceito de Deus,
alegando a existência de Deus como uma
verdade necessária. A referência mais antiga é o
argumento de Santo Anselmo.⁵

Argumentos contra a existência de Deus também


proliferam; os mais conhecidos são:⁶

1. Problema do Mal: este argumento afirma que a


existência do mal e do sofrimento no mundo é
incompatível com a ideia de um Deus
onipotente, onisciente e perfeitamente bom; já
que um Deus benevolente não permitiria tal
sofrimento, Ele não poderia existir.
2. Argumento da Incoerência: alguns críticos
argumentam que o conceito de um Deus
onipotente, onisciente e amoroso é
internamente inconsistente e logicamente
incoerente, levando a contradições dentro da
lógica tradicional.
3. Alguns críticos como Richard Dawkins, em Deus,
um Delírio, alegam que argumentos como os
cosmológicos e teleológicos funcionariam em
razão de lacunas no conhecimento científico, de
tal forma que avanços na ciência diminuíram a
necessidade e o interesse de uma explicação
divina para vários fenômenos (vale a pena ver
também).⁷

Um tipo de argumentação mais sociológica ou


antropológica, e menos lógica ou filosófica, seria que
a diversidade de crenças religiosas e a ausência de
uma experiência religiosa única e universal
enfraqueceriam qualquer argumento em favor da
existência de um Deus único e abrangente, que então
não teria sentido.

O teólogo e filósofo Anselmo de Cantuária (1033-


1109), no início do último milênio, já havia
imaginado um criativo argumento sobre a divina
existência, descrevendo Deus como um ser além do
qual nada maior pode ser pensado, ou seja, a maior
coisa que se pode imaginar. Desse modo, é possível
racionalmente considerar a existência de Deus por
contradição. Suponhamos que Deus não exista; então,
se poderia imaginar algo maior, a saber, um ser além
do qual nada maior pode ser contemplado. No
entanto, esse ser, se existe, exibe uma propriedade de
máxima grandeza. Isso é, então, um absurdo: nada
pode ser maior do que a maior coisa que se pode
imaginar. Portanto, a suposição de que Deus não
existe deve estar errada: uma prova por redução ao
absurdo. Apesar de criativo, esse argumento não é
plenamente aceitável – há uma grande gama de
críticas a Anselmo advindas das mais variadas
vertentes filosóficas.

As mais imediatas são do tipo da crítica levantada


por um contemporâneo de Anselmo, o monge
Gaunilo de Marmoutier, de que o argumento de
Anselmo poderia ser usado para mostrar a existência
de todos os tipos de objetos inexistentes. Outra crítica
famosa e bastante contundente é a de Immanuel
Kant (1724-1804): será que realmente a existência é
uma perfeição? Não seria melhor se o mal de
Alzheimer não existisse?

Nos mil anos decorridos entre Anselmo e Gödel,


muitos teólogos, filósofos, matemáticos e outros
estudiosos criticaram, analisaram, modificaram e
tentaram melhorar o argumento de Anselmo, desde
Blaise Pascal, René Descartes e Baruch Spinoza (no
século 17) até Gottfried Leibniz (no século 18).

René Descartes, em sua Quinta Meditação, defendeu


um argumento semelhante ao de Anselmo,⁸ tentando
derivar a existência de Deus a partir da ideia de um
ser supremamente perfeito. Descartes argumenta
que conceber um ser supremamente perfeito que
carece de existência é tão contraditório quanto
conceber um triângulo cujos ângulos internos não
somem 180 graus. Portanto, como podemos conceber
um ser supremamente perfeito, devemos concluir
(evitando uma contradição) que um ser
supremamente perfeito existe.

No início do século 18, Gottfried Leibniz levantou


uma crítica contra a visão de Descartes. De acordo
com Leibniz, os argumentos de Descartes falham a
menos que se mostre primeiro que a ideia de um ser
supremamente perfeito é coerente, ou que é possível
que exista um ser supremamente perfeito. Leibniz
argumentou que é impossível demonstrar que as
perfeições podem ser analisadas ou separadas, e
concluiu a partir disso que todas as perfeições podem
coexistir juntas em uma única entidade. O problema
seria então raciocinar com a ideia de perfeição, que
não é analisável, e isso destruiria a tentativa de
Descartes.

Por fim, Kurt Gödel, no século passado, cujos escritos


sobre o tema com base no trabalho de Leibniz só
vieram a público em 1987, teve a coragem, ou a
insensatez, de subir nessa arena de gigantes
filosóficos.

Leibniz argumentou que é impossível


demonstrar que as perfeições podem ser
analisadas ou separadas, e concluiu a partir
disso que todas as perfeições podem
coexistir juntas em uma única entidade.

Quem foi Kurt Gödel, e a revolução que ele


provocou no conhecimento humano
Kurt Gödel foi um matemático austríaco nascido em
1906 e falecido em 1978, amigo e colega de Albert
Einstein na Universidade de Princeton, amplamente
considerado um dos matemáticos mais influentes do
século 20, e mais conhecido por seus trabalhos em
lógica matemática. Gödel é o responsável pelos
celebérrimos Teoremas da Incompletude da
Aritmética, que têm tirado o sono dos matemáticos,
filósofos e todos os outros cientistas bem-informados
desde 1931.

Gödel causou uma revolução na matemática e no


conhecimento humano por meio de sua contribuição
mais fundamental, o chamado Teorema de
Incompletude, publicado em 1931. Esse teorema
estabelece limites intransponíveis para o que é
possível alcançar por meio de sistemas formais
(como os axiomas da aritmética) em matemática: o
resultado afirma que em qualquer sistema
axiomático suficientemente complexo e capaz de
expressar a aritmética, haverá proposições
matemáticas que não podem ser provadas nem
refutadas dentro desse sistema. Uma consequência
deste resultado é conhecida como o “segundo

qualquer teoria efetivamente gerada 𝑇 capaz de


teorema da incompletude de Gödel”, que afirma que

consistência se, e somente se, 𝑇 for inconsistente. Em


interpretar a aritmética de Peano prova a sua própria

outras palavras, uma tal teoria (incluindo a própria


aritmética usual) ou é inconsistente ou, se for
consistente, não consegue provar sua própria
consistência. Apelando a uma paródia: ninguém
consegue provar, de forma absoluta, sua própria
sanidade mental — ou se trata de uma pessoa insana,
se continuar tentando, ou racionalmente percebe que
isso é impossível.

Isso demonstrou que a matemática é intrinsecamente


incompleta, e abriu um novo campo de pesquisa em
lógica e filosofia.

Gödel fez outras contribuições importantes à lógica


matemática, incluindo o desenvolvimento da lógica
modal e a definição da noção de recursão na
computabilidade.⁹ Sua pesquisa teve um impacto
profundo na maneira como os matemáticos e
filósofos abordam a lógica e a fundamentação da
matemática. Seu trabalho é considerado uma das
realizações mais significativas na história da
matemática e da filosofia do século 20.

Em 1949, Kurt Gödel, certamente influenciado por


suas longas conversas com Einstein, encontrou uma
solução para as equações de campo da relatividade
geral que descreviam um espaço-tempo com algumas
propriedades incomuns. Esse “universo de Gödel”
permite curvas temporais fechadas, mostrando que a
viagem no tempo é matematicamente imaginável.
Ocupar-se de Deus, de uma barreira intransponível
para o conhecimento matemático, e de viagens no
tempo, é para poucos. Sua esposa Adele foi
hospitalizada no final de 1977 e, em sua ausência,
Gödel se recusou a comer. Mentalmente instável, ele
sofria de delírios persecutórios e de medo paranoico
de que alguém o envenenasse. Pesava 29 quilos
quando morreu de “desnutrição e inanição causada
por distúrbio de personalidade” no Hospital de
Princeton, em 14 de janeiro de 1978. Gödel foi
enterrado no Cemitério de Princeton.

Esse mesmo Gödel foi, então, quem produziu a mais


sofisticada versão da prova ontológica da existência
de Deus, em notas datadas de 1941. Contudo, só no
início dos anos 1970, quando temia que pudesse
morrer, foi que ele autorizou que sua prova se
tornasse pública pela primeira vez.

O argumento ontológico-matemático de Gödel


para a existência de Deus

Muita gente considera que sua contribuição é até


hoje a melhor versão do argumento ontológico para a
existência de Deus,¹⁰ melhorando profundamente a
tentativa de Anselmo de Cantuária. Sua versão,
conhecida como a “Prova Ontológica de Gödel”, foi
publicada em uma série de palestras na década de
1970, depois que ele deixou com seu aluno Dana
Scott, agora um eminente lógico, as duas páginas de
anotações nas quais esboçava sua nova versão da
prova ontológica da existência de Deus de Anselmo.

A prova de Gödel é um argumento complexo,


enraizado na lógica modal e numa visão sofisticada
da noção de demonstração, e pode ser desafiadora
para se compreender sem um roteiro intelectual. Mas
pretendo mostrar aqui que, se detalhado em passos
simples, a prova de Gödel pode ser perfeitamente
compreendida sem que se tenha uma formação
profunda em lógica formal.

O teorema é relativamente curto e busca, assim como


na proposta de Anselmo de Cantuária, provar a
existência de Deus baseado unicamente no conceito
de Deus como o ser mais perfeito imaginável. Mas o
cerne do argumento de Gödel envolve o uso da lógica
modal, que lida com conceitos formais de
necessidade e possibilidade que levam
inevitavelmente à existência de Deus como uma
verdade necessária. Em termos intuitivos, um esboço
simplificado do argumento ontológico de Gödel
envolve os seguintes passos:

1. A definição de Deus: Gödel começa definindo


Deus como um ser que possui todas as
propriedades positivas no mais alto grau de
perfeição. Essas propriedades incluem
qualidades como onipotência, onisciência e
perfeição moral.
2. Lógica Modal: Gödel introduz o aparato formal
da lógica modal no argumento. Ele usa
operadores modais como “Necessariamente”
(□) e “Possivelmente” (◇), de forma que □ P
significa “É necessário que P” e ◇ P significa “É
possível que P”. Para quem tem alguma
familiaridade com argumentos modais, é
interessante notar que a prova de Gödel pode
ser inteiramente formalizada na versão
quantificada do cálculo modal KT.¹¹
3. Existência de propriedades positivas: Gödel
argumenta que, se uma propriedade positiva for
consistente (não contraditória), então é possível
que essa propriedade exista para alguma coisa
ou objeto. Em outras palavras, se uma
propriedade positiva for logicamente coerente,
é possível que exista um ser com essa
propriedade.
4. O argumento ontológico modalizado: Gödel
formula um conjunto de axiomas e teoremas
dentro de um sistema lógico modal de primeira
ordem (quantificado) para representar o
conceito de Deus. Esses axiomas capturam a
ideia de que a existência é uma propriedade
positiva. Ele então deduz um teorema que
afirma essencialmente o seguinte: se a
existência de Deus é possível (ou seja, não há
contradição lógica no conceito de Deus), então a
existência de Deus é necessária.
5. Prova por contradição: Mas isso ainda não
conclui o argumento, porque parte da condição
da existência de Deus ser apenas possível. Gödel
usa, então, uma prova por contradição para
demonstrar que a inexistência de Deus leva a
uma contradição. Se a inexistência de Deus
fosse possível, significaria que a existência de
Deus não é necessária, o que contradiz o
teorema anterior.
6. Conclusão: Visto que a inexistência de Deus
leva a uma contradição, Gödel conclui que a
existência de Deus é necessária e, portanto, real.

A prova de Gödel tem sido objeto de extenso debate e


detalhada análise entre lógicos, matemáticos,
filósofos e teólogos. Alguns críticos alegam que o
argumento de Gödel se baseia em suposições
controversas sobre a natureza da existência. Outros
argumentam que, ainda que o argumento seja
logicamente válido, ele provaria a existência de um
ser que não é necessariamente o Deus teísta como
tradicionalmente compreendido.

Os detalhes da matemática envolvidos na prova


ontológica de Gödel podem parecer complicados, mas
em essência seus teoremas e axiomas — suposições
que não podem ser provadas, mas que são aceitas
como verdades básicas — podem ser expressos em
linguagem comum. Junto com os axiomas, os pontos
mais complicados são as definições, no que pode ser
considerado um dos maiores teoremas da
matemática, que pretende demonstrar a existência
de Deus, com um teorema ao final de uma cadeia de
raciocínios. A aventura intelectual de Gödel
pressupõe três definições sobre as propriedades de
Deus e cinco axiomas sobre quem é Deus, detalhados
a seguir, adaptando os esquemas de Koons e de
Benzmüller e Paleo.¹² A explanação dos símbolos
usados na prova virá em seguida.

Axioma 1.

Axioma 2.

Teorema 1.

Definição Dv.

Axioma 3.

Teorema 2.

Axioma 4.

Definição Ess.

Definição NE.

Teorema 3.

Axioma 5.

Teorema 4.

Teorema 5: Dado que esta conclusão é um


teorema da lógica modal, portanto universalmente
válido, Deus existe em todos os mundos possíveis
(isto é, em todas as situações imagináveis) e é único,
como será mostrado adiante.

Vou construir uma tradução direta em linguagem


natural de cada definição e axioma, esclarecendo que
letras gregas (como φ, “phi”, e ψ,“psi”) denotam
propriedades. P denota uma propriedade especial
que se aplica a outras propriedades e x denota
objetos. A argumentação se refere a “mundos
possíveis”, que seriam estados de coisas,
configurações de acontecimentos ou objetos. Por
exemplo, eu posso estar usando uma camisa amarela
ou vermelha. Cada escolha dá um mundo possível. A
loteria semanal, em outro exemplo, pode dar um
número par ou ímpar, e isso define mundos possíveis
distintos.

Axioma 1. “Se φ é uma propriedade positiva e for


necessário que, para todo x, se x tem a propriedade φ,
então x tem a propriedade ψ, então ψ é também uma
propriedade positiva.”

Em outras palavras, se ψ é consequência universal


(vale sempre) de uma propriedade positiva φ, então
ψ “herda” a positividade.

Axioma 2. “Não-φ é uma propriedade positiva se, e


somente se, φ não é uma propriedade positiva.”

Em outras palavras, φ e não-φ não podem ser ambas


propriedades positivas: ou uma é, ou a outra é, mas
não ambas.

Gödel já pode então provar seu Teorema 1 (teorema


intermediário, ou lema) com base no Axioma 1 e
Axioma 2, que mostra que cada propriedade positiva
é “possivelmente exemplificada”, ou seja, aplica-se
pelo menos a algum objeto em algum mundo. Em
outras palavras, não pode haver propriedade positiva
que não se aplica a nada — se P é positiva, deve
existir algum objeto a que P se aplica:

Teorema 1.

Neste ponto, Gödel introduz um conceito de Deus, por


meio da definição Dv, segundo a qual um objeto é
divino se, e somente se, tiver todas as propriedades
positivas. O Axioma 3 estabelece que a propriedade
de ser Divino é ela própria positiva.

Axioma 3. “A propriedade de ser Divino é uma


propriedade positiva.”

Este axioma é bem aceitável: ser Divino não poderia


deixar de ser uma propriedade positiva.

Gödel mostra então, no Teorema 2, a partir do


Teorema 1 e do Axioma 3, e usando a Definição Dv,
que é possível existir um objeto com a propriedade
divina, semelhante a Deus, mas ainda não é o próprio
Deus, porque só existiria em algum mundo possível,
mas não obrigatoriamente no nosso mundo, ou em
todos os mundos possíveis.

Teorema 2. , em palavras: é possível


existir um ser divino.

O Axioma 4 afirma: “Se a propriedade φ é uma


propriedade positiva, então é necessário que a φ seja
uma propriedade positiva.”

Em outras palavras, uma propriedade φ ser positiva


não acontece por acaso, não é contingente, mas,
quando acontece, não há outra maneira. Pense em
um número qualquer: se ele for par, ele não é às
vezes par e às vezes ímpar, mas sempre par (ou seja,
uma vez par, será sempre par, é necessariamente
par). A propriedade de “ser positiva” é análoga.

Daqui por diante é que emerge a genialidade de


Gödel, que ultrapassa o raciocínio de Anselmo de
Cantuária, o qual, embora santo, talvez não fosse um
gênio, nem estivesse preocupado com uma
demonstração absolutamente matemática: uma
plausível interpretação para a posição de Anselmo é
a de que seu argumento pressuporia a admissão da
existência de Deus pela fé, e que ele estaria
mostrando que a forma correta de pensar sobre Deus
é pensar n’Ele como existindo realmente, e não
apenas conceitualmente. Gödel prossegue para
provar que um objeto semelhante a Deus existe em
todos os mundos possíveis.

Para este fim, a Definição Ess estabelece a noção de


“essência”: se x é um objeto em algum mundo, então
uma propriedade φ é considerada uma essência de x
se φ(x) for verdadeira naquele mundo e se φ implica
necessariamente todas as outras propriedades que x
tem naquele mundo.

Em outras palavras, a propriedade φ é uma essência


de x se se tem a propriedade φ, e se φ acarreta de
forma necessária, não casual, todas as outras
propriedades que x tem naquele mundo.

A última definição, a Definição NE, ou “existência


necessária”. NE(x) expressa que x necessariamente
existe, se, e somente se, todas suas propriedades
essenciais são necessariamente exemplificadas, isto é,
se são necessariamente não vazias. Essa é uma noção
bastante forte de existência, mais forte que a
existência como usualmente entendida. Um objeto x
pode existir mesmo que alguma de suas propriedades
essenciais não tenha sido exemplificada.

Gödel consegue então mostrar o Teorema 3 a partir


do Axioma 1 e do Axioma 4 usando as definições Ess
e NE. O Teorema 3 afirma que a propriedade de ser
Divino, ou a Divindade, é uma essência de um objeto
semelhante a Deus (note que “ser Divino” é ser
semelhante a Deus). Em outras palavras, se um objeto
é Divino, a divindade é sua essência:

Teorema 3.

Nesse ponto, Gödel assume, no Axioma 5, que a


existência necessária, NE, é uma propriedade
positiva, da qual se segue que a semelhança com
Deus é necessariamente instanciada:

Teorema 4.

O Teorema 4 demonstra que necessariamente existe


um ser com a propriedade do Divino a partir do
Axioma 5, Teorema 2, Teorema 3 e Axioma 4, usando
as definições de Dv e NE

Por fim, se assumirmos o axioma T da lógica modal


(que afirma que, se algo é
necessário, então é o caso), conclui-se o Teorema 5:

Teorema 5: , que mostra que a semelhança


com Deus existe em um objeto real — existe alguma
coisa semelhante a Deus, isto é, Divina, e em todos os
mundos possíveis, a partir do Teorema 3 e do
Teorema 4.

Mas seria o mesmo Deus presente em cada mundo


possível? Se ser idêntico a Deus conta como uma
propriedade Divina, podemos provar que existe
exatamente algo semelhante a Deus. De fato, se um
ser ou objeto x é idêntico a Deus, isso deve ser uma
propriedade positiva (já que, caso contrário, sendo
diferente de Deus é que constituiria uma propriedade
positiva, pelo Axioma 2, e o objeto x, sendo idêntico a
Deus, teria que ser diferente, absurdo!). Mas isso
significa que todo objeto semelhante a Deus deve ser
idêntico ao objeto x, então, só pode existir um objeto
ou ser semelhante a Deus. Assim, concluímos o
Teorema 5, que estabelece que Deus (ou seja, o único
ser divino) existe e é único.

No entanto, havia mais de uma falha na prova de


Gödel, como explicado detalhadamente por Koons:¹³
não que a demonstração estivesse errada, mas Jordan
H. Sobel levantou uma objeção ao argumento de
Gödel, mostrando que ele engendra o “colapso de
modalidades”, levando a uma conclusão indesejada
de que toda verdade real é necessária — que não há
absolutamente nada que seja contingente, o que é
uma conclusão anti-intuitiva desastrosa. Sobel propôs
uma emenda com o fim de preservar o argumento:
restringir o domínio de propriedades que Gödel usa
de modo a salvaguardar o teorema e evitar o colapso
modal. A partir de 1990, vários autores, como C. A.
Anderson, P. Hájek e F. Bjørdal, propuseram emendas
aos axiomas e definições de Gödel.¹⁴ Discussões a
respeito continuam — ver, por exemplo, Frank
Thomas Sautter¹⁵ e Melvin Fitting,¹⁶ este último um

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