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Texto extraído de:

ZILLES, Urbano. A crítica da religião. Porto Alegre: EST Edições, 2009. P. 183-196.
O ATEÍSMO CIENTÍFICO DE DAWKINS
[...] (p. 183-186).
1 RICHARD DAWKINS E A BIOLOGIA
Richard Dawkins nasceu em Nairobi, em 1941, e cresceu na Inglaterra. Formou-se na
Universidade de Oxford e ministrou aulas de zoologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É
titular de cátedra especialmente criada de Divulgação da Ciência, na Universidade de Oxford. Grande
parte de suas obras foram traduzidas para o português e publicadas pela Companhia das Letras: O relo-
joeiro cego, A escalada do monte improvável, O capelão do diabo e Deus: um delírio. Outras saíram
por outras editoras, como O rio que saía do Éden, pela Ciência Atual (RJ); O gene egoísta, pela Itatiaia
(BH).
Dawkins foi um intelectual respeitado. Mas os textos citados não tratam de ciência, no sentido
estrito. São escritos sagazes e sarcásticos, atirando para todos os lados sem examinar se sua arma tem
munição para tanto e sem muita pontaria. Defende fanaticamente o darwinismo numa perspectiva
materialista, considerando qualquer questionamento como uma afronta pessoal. Ele considera a religião
o grande obstáculo para o desenvolvimento da ciência e o progresso da humanidade. Por isso trabalha
com a tese de que todos os cientistas devem ser ateus. Claro, a ciência trabalha sem a hipótese Deus,
mas disso não se pode concluir que os cientistas devam ser ateus. No século XX, não faltam cientistas
que defendem a teoria evolucionista e são religiosos, como é o caso de Teilhard de Chardin. Numa
análise mais sóbria, o historiador poderá concluir que, por causa da ciência, ninguém precisa deixar de
crer em Deus. Mas, se a conformidade da visão científica com a religião pode ser interessante, não se
deve esquecer que o tema de Deus só será abordado de maneira adequada pela filosofia em nível
estritamente metafísico.
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Na obra O rio que saía do Éden: uma visão darwiniana da vida (Rio de Janeiro: Ciência Atual,
1996), Dawkins define a vida através de uma origem comum, defendendo a ideia de que a evolução
apenas ocorre no nível do gene ou genoma. Essa origem comum provém de um rio de genes que são
replicados. Segundo Dawkins a metáfora dos genes e do rio, que desemboca em outros rios maiores,
serve para explicitar sua concepção darwiniana de vida: "Voltando para o passado, você descobrirá que,
um por um, eles (os rios) reúnem-se com outros rios. O rio dos genes humanos junta-se com o rio dos
genes do chimpanzé mais ou menos na mesma época em que o rio dos genes do gorila o faz, há cerca
de 7 milhões de anos" (O rio que saía do Éden, p. 20).
O autor recorre à metáfora do rio e dos nossos genes para expressar sua compreensão do caráter
dinâmico da vida e indicar o processo constante de seleção, reatualização e replicação a todo o
momento, em todos os níveis. Ele afirma que a visão neodarwinista pode causar a falsa sensação ou
sentido de perfeição na natureza ou de uma teleologia da vida. A única ideologia que admite é a de re-
plicar genes. De resto, diz ele, não existe sentido nem teleologia inerente à natureza. Sugere que
devemos pensar nos genes como pequenos bits de software que têm apenas um objetivo: criar cópias de
si mesmos. Dawkins trabalha com um conceito-chave discutível do meme que utiliza para estabelecer
uma analogia com os genes e mostrar que o processo de elaboração do pensamento, as ideias e as
abstrações também ocorrem por uma replicação de ideias em nossa consciência.
Dawkins abre seu livro Deus: um delírio, com o prefácio à edição de bolso, no qual responde a
perguntas, entre as quais está a seguinte: "Você persegue oportunistas grosseiros e incendiários como
Ted Haggard, Jerry Falwell e Pat Robertson, em vez de teólogos sofisticados como Tillich ou
Bonhoeffer, que ensinam o tipo de religião em que acredito". Dawkins responde: "Se o predomínio
fosse só dessa espécie sutil e amena de religião, o mundo sem dúvida seria um lugar melhor, e eu teria
escrito outro livro. A melancólica verdade é que este tipo de religião decente e contido é nu-
mericamente irrelevante" (p. 12). Mais adiante afirma: "Minha linguagem
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só soa destemperada por causa da estranha convenção, quase universalmente aceita, de que a fé
religiosa é dona de um privilégio único: estar além e acima de qualquer crítica". No prefácio afirma:
"Espíritos livres como esses devem precisar só de um pequeno incentivo para se liberar de vez do vício
da religião" (p.29). Ele radicaliza sua posição: "Não estou atacando nenhuma versão específica de Deus
ou deuses. Estou atacando Deus, todos os deuses, toda e qualquer coisa que seja sobrenatural, que já foi
e que ainda será inventada" (Deus: um delírio, p. 63).
No terceiro capítulo de Deus: um delírio, dentro de sua perspectiva de um fundamentalismo
científico, analisa superficialmente as chamadas "provas" da existência de Deus. Primeiro passa as
cinco "provas" de Tomás de Aquino, dizendo que são vazias. Quanto ao argumento teleológico ou o
argumento do design diz: "As coisas do mundo, especialmente as coisas vivas, parecem ter sido
projetadas. Nada do que conhecemos parece ter sido projetado, a menos que tenha sido projetado. Tem
de haver, portanto, um projetista, e a ele chamamos Deus" (p. 114). Explica que o jovem Darwin ficou
impressionado com esse argumento, ao ler a Teologia natural de William Paley. Entretanto, afirma que
realizou a destruição do argumento do design.
Depois de rejeitar os argumentos a posteriori, examina rapidamente o argumento ontológico ou a
priori, com sua formulação clássica em Anselmo de Cantuária, em 1078. E Dawkins refuta os
argumentos dos filósofos, o da "experiência" pessoal, o das Escrituras, o dos cientistas admirados e
religiosos e a aposta de Pascal. Enfim, Dawkins tem razão em dizer que a ciência não depende de
religião, nem de partido político, mas exige competência. Tudo indica que Dawkins já teve
competência na área do conhecimento. Entretanto, o mesmo não mostra ao extrapolar o campo da
ciência, avançando para o campo filosófico e teológico, argumentando com um fundamentalismo
científico, entendendo exclusivamente como ciência ou as puramente formais ou as empíricas. Seu
estilo é polêmico. Em sua polêmica, postula a ideia de um Deus mesquinho, na verdade, não de Deus,
mas de um empregadinho a serviço do homem. No sentido da ciência empírica, não se prova a
existência
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De Deus, igualmente não se prova a sua não-existência, coisa que qualquer teólogo também sabe. Ele
interpreta os argumentos fílosófico-teológicos da existência de Deus no sentido empírico de maneira
que se pudesse dispensar a fé. Ora, no dia-a-dia vivemos muito mais da crença e da confiança que da
certeza científica. O que se quer dizer com as tradicionais "provas" da existência de Deus é mostrar a
plausibilidade racional, isto é, que faz sentido admitir sua existência. Ele não se dá conta de que parte,
não da ciência como tal, mas de uma crença radical no conhecimento científico como ele o concebe.
Nesse sentido é, na verdade, fundamentalista.

2 O ATEÍSMO DE DAWKINS
Em Deus: um delírio, Dawkins intitula o quarto capítulo: "Por que quase com certeza Deus não
existe" (p. 154). Logo no início, afirma: "Em sua forma tradicional, o argumento do design é certa-
mente o mais popular da atualidade a favor da existência de Deus e é encarado, por um número
incrivelmente grande de teístas, como completa e absolutamente convincente. Ele é realmente um argu-
mento fortíssimo e desconfio irrespondível - mas exatamente na direção contrária da intenção dos
teístas" (p. 154).
Inicia contando que Hoyle disse que "a probabilidade de a vida ter surgido na Terra não é maior
que a chance de um furacão, ao passar por um ferro-velho, ter a sorte de construir um Boeing 747" (p.
155) e conclui: "Deus é o Boing 747 definitivo" (p. 156). Portanto, inverte a visão de Hoyle, rejeitando
o criacionismo e o acaso: "O design não é a única alternativa ao acaso. A seleção natural é uma
alternativa melhor. Na verdade, o design não é nem mesmo uma alternativa de verdade, porque suscita
um problema maior do que o que solucionou: quem projetou o projetista? Tanto o acaso como o design,
fracassam como soluções para o problema da improbabilidade estatística, porque um deles é o
problema, e o outro retorna a ele. A seleção natural é a solução verdadeira. E a única solução viável já
sugerida" (p. 165).
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Richard Dawkins quer evidenciar que as crenças religiosas são incompatíveis com a ciência,
irracionais e prejudiciais. Ao mesmo tempo, para negar a existência de Deus, extrapola o campo da ci-
ência, refugiando-se num fundamentalismo cientificista. Substitui dogmas religiosos por dogmas
científicos. Por isso reconhece: "Não estou defendendo uma espécie de pensamento estritamente
científico" (p. 209).
Sem entrar em detalhes da argumentação fílosófíco-teológica, resume o capítulo no qual abordou
o "argumento central do meu livro" e conclui: "Se o argumento deste capítulo for aceito, a premissa
factual da religião - a hipótese de que Deus existe - fica indefensável. Deus, quase com certeza, não
existe. Esta é a principal conclusão do livro até agora" (p. 214).
Dawkins aposta: "Espíritos livres como esses devem precisar só de um pequeno incentivo para se
libertar de vez do vício da religião. No mínimo, espero que ninguém que tenha lido este livro ainda
possa dizer: eu não sabia que podia" (p. 24-30). Afirma que "o comportamento religioso é uma
excrescência, que é o equivalente humano da fornicação ou da construção de caramanchões" (p. 217).
Diz que "a fé é um mal, exatamente porque não exige justificativa e não tolera nenhuma argumentação"
(p. 394). Confessa: "Como cientista, sou hostil à religião fundamentalista, porque ela debocha
ativamente do empreendimento científico. Ela nos ensina a não mudar de ideia, e a não querer saber de
coisas emocionantes que estão aí para ser aprendidas. Ela subverte a ciência e mina o intelecto" (p.
364).
Dawkins consegue apontar para algumas fraquezas da religião e da teologia católica. A teologia
perdeu, há muito, a capacidade de dialogar com a ciência. Durante quase um século, envolveu-se em
polêmica estéril contra a teoria evolucionista. Quando o jesuíta P. Teilhard de Chardin tentou tal
diálogo, foi censurado. A filosofia, por sua vez, limita-se quase exclusivamente à autorreprodução. A
ideia de Deus, que muitos cristãos herdaram do passado, em geral, é demasiado pequena para
incorporar a biologia e a cosmologia evolucionistas. Por isso muitos crentes ainda consideram
totalmente incompatíveis as descobertas de Darwin com uma percepção
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apropriada de Deus, vendo uma oposição entre fé religiosa e ciência. Quando, em nome da fé religiosa,
se rejeita a ciência, não se deve estranhar que esta rejeite a fé. Parece-me ser o caso de Dawkins,
opondo ao dogmatismo fundamentalista das religiões um dogmatismo cientista não menos
fundamentalista.
A religião, pelo menos a cristã, e a ciência não se opõem nem são completamente independentes
uma da outra. Influenciam-se mutuamente. A noção de Deus não é uma explicação científica. Nesse
ponto, os defensores do design inteligente merecem a crítica, pois introduzem o "projetista inteligente"
no nível próprio da explicação científica, não da fé religiosa ou da teologia. Em outras palavras, tratam
do design inteligente como se fosse uma ideia científica.
Por outro lado, o cientista Dawkins, com o objetivo de combater o fundamentalismo religioso,
apenas o substitui por outro. Seus argumentos estão no mesmo plano daqueles que combate. Quando lê
o texto da religião, não admite que haja algo debaixo desses textos, supondo que o mundo somente seja
acessível na linguagem impessoal da ciência, uma atitude semelhante ao religioso, o qual supõe que o
mundo se esgote nos textos sagrados. O cientificismo é o fundamentalismo da comunidade científica.
Pressupõe-se que a natureza é tudo que há, que a ciência empírica é o único caminho para chegar à
verdade. O assim chamado "novo ateísmo", que de novo tem muito pouco, rejeita o Deus dos
criacionistas, dos fundamentalistas, dos terroristas e defensores do "design inteligente", mas não debate
com teólogos ou filósofos de envergadura.
3 ANÁLISE CRÍTICA
A força da teoria da evolução está na sua evidência científica. Nesse sentido, resulta de pesquisas
que lhe dão suporte. Seria um erro negar a historicidade do fenômeno evolutivo em nome da filosofia
ou teologia, da mesma maneira como é erro elevar o darwinismo ao nível de dogma. É uma explicação
científica dos mecanismos da evolução. Outro erro é fazer da teoria da evolução um instrumento do
materialismo. Hoje os livros de Dawkins talvez
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contribuam mais para a difusão do que para o combate aos fundamentalismos religiosos, pois
afirmações como dizer que a natureza pode ser autossufíciente não passam de um ato de fé. Dizer que o
cosmos se autossustenta é fazer do fundamentalismo uma ciência ou fazer da ciência da evolução um
fundamentalismo "criacionista". Discutir a possibilidade de existir um Deus Criador, pouco ou nada
tem a ver com a discussão científica sobre se o universo e a vida são estáveis ou mudam no decurso do
tempo.
A ciência trabalha com o pressuposto de que a natureza seja racionalmente cognoscível. Portanto,
é uma elaboração reflexiva sobre a natureza. A teologia cristã, por sua vez, parte de uma reflexão
racional sobre Deus e sua revelação, pressupondo que a revelação seja racionalmente compreensível.
Comum a ambas, teologia e ciência, é a razão.
A religião cristã sempre olhou para a ciência como caminho para libertar o homem da superstição
e da magia. Por isso é dentro do cristianismo medieval, precisamente na Igreja católica, que nasceu a
Universidade. Desde o começo do cristianismo, muitos pensadores e cientistas aderiram a ele.
Cientistas contemporâneos de Dawkins, de não menos reconhecida competência, como o Diretor do
projeto Genoma, Francis S. Collins, fizeram o caminho inverso, deixando o ateísmo para aderirem ao
cristianismo. Abster McGrath, nascido na Irlanda do Norte, não só abandonou o ateísmo, mas tornou-se
professor de Teologia na Universidade de Oxford e pesquisador sênior do Harris Manchester College,
portanto, colega de Dawkins. Em parceria com sua esposa, McGrath escreveu, respondendo ao colega
de Universidade, O delírio de Dawkins (S. Paulo: Mundo Cristão, 2007).
Em A linguagem de Deus, Francis S. Collins conta brevemente seu caminho "do ateísmo à
crença" (p. 19-40). Escreve: "Meu momento mais embaraçoso surgiu, quando uma senhora idosa, so-
frendo todos os dias por causa de uma angina grave e incurável, perguntou-me em que eu acreditava"
(p. 28). Comenta: "Aquele instante me assombrou durante vários dias. Então eu não me considerava um
cientista? Um cientista tira suas conclusões sem levar em conta os dados? Em toda existência humana
não podia haver
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uma pergunta mais importante do que 'existe algum Deus?' E apesar disso, lá estava eu, munido de uma
combinação de cegueira voluntária e algo que talvez só pudesse ser descrito adequadamente como
arrogância: a fuga de qualquer reflexão séria sobre Deus ser uma possibilidade real. De repente, todos
os meus argumentos pareciam fracos demais, e eu tinha a sensação de que o chão sob meus pés estava
se abrindo" (p. 28).
Collins escreve: "Se os homens evoluíram rigorosamente, por meio de mutação e seleção natural,
quem precisa de Deus para nos explicar? A isso, retruco: eu preciso. A comparação entre sequências de
chimpanzé e de ser humano, embora interessante, não nos explica o que é preciso para ser humano" (A
linguagem de Deus, p. 146). Aceitando a hipótese de que o homem é resultado de uma longa evolução
biológica, não se poderia admitir que à sua natureza dinâmico-evolutiva inere uma propensão para o
transcendente?
Frequentemente Dawkins refere-se às religiões como a grande causa da violência no mundo,
sobretudo através do fundamentalismo e fanatismo religiosos. Entretanto, seu argumento é equivocado
do ponto de vista histórico, pois, no século XX, destaca-se a violência ateia, muitas vezes em nome da
pseudociência, como no caso da eugenética (nazismo), a supremacia da raça, ou sobre necessidades da
assim chamada luta de classes. Aliás, não foram as religiões que inventaram a bomba atômica. Com
isso não queremos ignorar que as religiões muitas vezes apoiaram governos e regimes no uso da
violência.
De modo errôneo, às vezes se apresenta a ideia de que os cientistas devem necessariamente ser
ateus. A ciência como tal prescinde de religião, de partido político ou de gênero. Exige competência.
Na verdade, contra Dawkins, poderíamos afirmar que poucos grandes cientistas professaram o ateísmo.
Considerando que a ciência não tem religião, pode favorecer a tendência a certo agnos-ticismo. Muitos
cientistas, talvez a maioria, foram crentes. Assim, a título de exemplo, Gregor Mendel, que deu base
genética ao evolucionismo de Darwin, era monge agostiniano; Lemaître, que calculou o modelo do
big-bang, era sacerdote belga; Pierre Teilhard
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de Chardin, que universalizou e ampliou a teoria da evolução, era padre jesuíta...
Nem sempre os cristãos foram suficientemente abertos ao diálogo com o mundo da ciência,
fechando-se ao seu progresso e refugiando-se num certo fídeísmo. Com isso fecham-se aos dons que
receberiam do diálogo com o mundo. Assim não é de estranhar que a sociedade contemporânea se
distancie cada vez mais da ideia tradicional de Deus. Vivemos numa época de fechamento recíproco.
Mas a verdade nasce do diálogo.
A fragilidade dos "novos" ateus, que rejeitam a ideia de Deus e da religião, em nome de uma
suposta ciência, é tratarem o problema de Deus como se fosse um problema de ciência empírica,
quando se trata de uma questão teológico-fílosófica. Trata-se de um grupo de pessoas que usam suas
credenciais de cientistas para uma cruzada extremamente militante e "religiosa" de sua visão ateísta do
mundo. Também nisso se assemelham aos fundamentalistas e fanáticos religiosos que criticam, pois
não se baseiam em rigorosa argumentação científica. Espalham uma doutrina sem fundamentos e sem
verdade, com as credenciais de cientistas. Isso certamente é menos prejudicial à religião que à própria
ciência.
O fundamentalismo, tanto o científico quanto o religioso, é problemático e prejudicial, porque
insustentável a longo prazo. Se Deus não existe, o que justificaria a luta? Não é uma incoerência lutar
contra algo que dizem não existir? Quando o homem nega a Deus, tende a usurpar seu lugar para
explorar e agredir seus semelhantes.
O recente ateísmo militante não provém da oposição entre fé e ciência, fé e razão. Acreditar em
Deus é um ato de estrutura idêntica ao de confiar em alguém, numa pessoa. Ora, crer ou confiar não é
um ato de suspensão da razão. Nesse sentido, o ateísmo militante decorre antes de um uso deficiente da
razão. O crente não precisa temer a razão e, por isso, deixa a ciência ser ciência. Sabe da importância
da razão e, ao mesmo tempo, sabe que a razão não é tudo. A religião erra, quando quer, simplesmente,
instrumentalizar a ciência, como a ciência erra, quando desrespeita a religião. Ciência e religião não se
confundem, e a tensão entre ambas pode ser salutar
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para todos. Nesse sentido, Deus não é nem pode ser uma fórmula científica. Deus é um mistério: o
mistério não se conhece, mas se reconhece, se aceita ou se rejeita, sem renunciar ao uso da razão.
A teoria da evolução, em suas diversas formulações, é uma hipótese explicativa das diversas
formas de vida em nosso planeta. Do ponto de vista científico, atualmente, é a mais plausível. Mas, a
teoria evolucionista pressupõe algo que possa evoluir. Nesse sentido, ela continua insuficiente para
explicar o começo absoluto de tudo. Este transcende as explicações científicas. Por isso a questão das
origens últimas é uma questão, não só científica, mas metafísica. A ciência aqui não tem competência
para desqualificar a religião, enquanto busca um sentido último para as coisas. A questão do sentido
afeta as ciências, mas não é respondida por elas.
Os representantes do recente ateísmo militante, liderado por Dawkins, não estão interessados em
compreender o complexo fenômeno religioso mas em destruí-lo. Para isso fabricam suas descrições, de
acordo com as conveniências do momento. Dessarte Dawkins afirma que os pais deveriam ser
proibidos de ensinar religião às crianças, para que as pessoas creiam que a religião é intrinsecamente
má, porque violenta. Na verdade, tenta reforçar seus argumentos intelectuais contra a crença em Deus,
pois realmente são infundados. Contornando a questão da verdade, quer convencer que a religião é má
e prejudicial à ciência.
McGrath afirma que "Dawkins oferece a seus leitores uma altamente seletiva manipulação dos
fatos para um pensamento cuidadoso e baseado em evidências. Curiosamente, há pouca análise
científica em Deus: um delírio. Há muita especulação pseudocien-tífica, muita da qual baseada em sua
própria ideia de 'meme', a qual não é levada a sério pela comunidade científica" (IHU, Revista do
Instituto Humanitas, v. 8, 26 nov. 2007, p. 38). McGrath é, também, doutor em biofísica molecular pela
Universidade de Oxford.
Em síntese, quem ponderar criticamente os argumentos de Dawkins somente poderá sair
fortalecido em sua fé religiosa. Certamente a religião pode produzir fanatismos. Mas, da possibilidade,
logicamente não se pode concluir a necessidade. No passado, também
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em nome da ciência, se cometeram muitos equívocos. Nem por isso cabe condenar a ciência e o
trabalho dos cientistas, pois também o conhecimento científico tem limites. Para defender a religião,
muitas vezes se atacou a ciência (o evolucionismo de Darwin). Mas tal erro não justifica o de atacar a
religião para defender a ciência. Nem a religião nem a ciência precisam disso, pois não leva a nada. A
religião, na prática concreta, pode e deve ser questionada pela razão crítica, quando exige o sacrificium
intellectus, pois a fé, do ponto de vista católico, busca a plausibilidade racional (l Pd 3,15). O católico
não renuncia à razão para crer e, por isso, deixa a ciência ser ciência. O novo gênero de literatura
militante apresenta o caráter de auto-ajuda para ateus inseguros.
No prefácio de Deus, um delírio, Dawkins afirma: "Se este livro funcionar do modo como
pretendo, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem" (p. 29). Sou religioso,
li o livro, mas não funcionou, pois continuo religioso ainda mais convicto, porque seus argumentos
parecem-me pouco consistentes e por demais tendenciosos para serem levados a sério. O autor sim-
plesmente subestima a inteligência crítica do leitor.
REFERÊNCIAS
COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus. 4. ed. São Paulo: Editora Gente, 2007.
DARWIN, Charles. A origem do homem. São Paulo: Hemus, 1974.
__. A origem das espécies. São Paulo: Hemus, 1975.
DAWKINS, Richard. Deus: um delírio. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
__. O rio que saía do Éden. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
__. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001.
DENNETT, D. La consciência explicada. Barcelona: Paidós Ibérica, 1991.
__. Darwin 's dangerous idea. New York: Simon and Schuster, 1995.
McGRATH, Alister. O delírio de Dawkins. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.
ONFRAY, Michel. Tratado de ateologia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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