Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Como em todo agradável jantar então, os tópicos de conversação variam e avançam de forma
fluída. Quanto a linguagem do texto, apesar de não ser coloquial ou informal de forma
alguma, para aqueles cujo interesse no tema em questão é novo e não possuem tanta bagagem
acadêmica, seja da teologia ou da ciência natural, o livro faz um ótimo trabalho em apresentar
e contextualizar os conceitos trabalhados, tornando o grande panorama da discussão mais
claro à medida que os capítulos avançam.
Diferente do que se poderia imaginar, Mark não defende um lado ou outro, mas afirma que
nenhum ponto de vista é cristão ou anticristão em si, mas pode ser interpretado a partir de
diferentes visões do relacionamento de Deus com o mundo. Neste ponto reside a verdadeira
questão, no final das contas: o relacionamento entre Criador e Criação.
No primeiro relato o foco está em Deus como agente ativo, construindo e organizando Sua
obra, sem se preocupar em descrever o “como”. Já no segundo relato o enfoque está no
homem, na sua relação com as outras criaturas, com o pecado e a preocupação de Deus para
com ele. Apesar da diferença, os dois demonstram complementaridade teológica, pois
estabelecem o papel de Deus e do homem. Na ciência, se busca formas engenhosas de ligar os
modelos científicos com os textos de Gênesis, como reclamar a relatividade do tempo para
explicar os seis da criação. Poe isso é importante identificar qual o relato mais escolhido para
cada tentativa e por quê. Mas mais importante que essas definições, no entanto, é identificar
qual a intenção do texto bíblico. Não podemos tirar o foco do lugar certo, a apresentação de
Deus como criador acima do que qualquer outra coisa, por isso o autor alerta sobre a
armadilha de tentar uma interpretação puramente científica da Bíblia.
É este, então, o próximo tópico de conversação. O que a Bíblia nos revela, afinal, sobre a
Criação além da descrição narrativa? Este é um ponto interessante e rico em reflexão, também
o mais propenso a instigar contemplação.
Além disso, essas duas perspectivas se chocam diretamente com a alternativa de pensamento
deísta, que avançou na ciência e apesar de até afirmar o papel criativo de Deus, não acredita
que Ele desempenhe nenhum papel no mundo depois da criação. Pensamento esse que, ao
contrário dos anteriores, empobrece a fé.
Continuando, o livro nos apresenta as tentativas de identificar certos modelos científicos com
as categorias ex nihilo e continua, especialmente em vincular o modelo do Big Bang à
primeira e os modelos de evolução biológica à segunda. Mas, como Mark Harris bem coloca
“por serem fundamentalmente teológicas não podem ser facilmente reduzidas a explicações
científicas, embora possam ser análogas entre si.”.
Finalmente, ao avançar para o fim do livro o autor nos apresenta suas considerações mais
complexas: aquelas a respeito da queda, do sofrimento e do mal. Não é novidade que a
biologia evolutiva moderna não vê credibilidade no relato histórico de Adão e Eva, mas qual a
problemática disso para os cristãos? Em primeiro lugar a questão do pecado, pois a seleção
natural implica que competição e luta sempre foram parte integral do mundo. Como
consequência, põe em xeque a necessidade do sacrifício e ressurreição de Cristo. Por conta
disso, para muitos, o darwinismo é incompatível o cristianismo. A não ser, é claro, com a
condição de que se deixe de entender Adão e Eva da maneira histórica tradicional.
Uma das várias alternativas para a questão sugere que o primeiro homem da Bíblia não seria o
primeiros homo sapiens da terra, mas o primeiro homo divinus: um indivíduo diferente de
seus contemporâneos no período neolítico por ter sido o primeiro a receber o Espírito de
Deus, tornando-se a semelhança Dele. Esta teoria, adotada inclusive por teólogos famosos
fora do campo da ciência, apresenta uma grande dificuldade: admitir essa premissa reside em
admitir também que atos violentos e egoístas cometidos pelos vizinhos de Adão não seriam
pecados, pelo contrário, seriam características comuns impassíveis de julgamento moral.
O fim dessa conversa, pontuada por argumentos de vários lados, passa a considerar, enfim, a
possibilidade de uma teologia evolutiva.
Baseado na teologia cristã de Irineu (130 d.c) temos uma visão antiga, mas inovadora, sobre o
tema, defendida pelo autor: “Deus, de início, criou os seres humanos deliberadamente sem
perfeição, porque, em sua imaturidade, eles não seriam incapazes de suportá-la.” Sendo assim
“O plano de Deus era que os seres humanos crescessem em maturidade e perfeição, do
mesmo modo que as crianças crescem e se tornam adultos.” Com base nessa perspectiva,
quando Deus diz que a criação é boa, fala no sentido em que ela é adequada ao seu propósito,
e não no sentido de perfeição. O desvio em direção ao pecado, então, não é tanto uma queda,
mas um “fracasso em ascender”. O símbolo do relato da queda permanece intacto, mesmo que
não seja uma descrição de fatos. E somos apresentados ao que seria o lado sombrio da boa
criação de Deus, o sofrimento evolutivo e, por sua consequência, a morte, como
características intrínsecas da criação. É só por intermédio de Cristo e do Espírito que os
humanos podem ser restaurados, e a esperança de uma perfeição reside no futuro escatológico
da nova criação, para qual é cunhado termo creatio ex vetere, ou seja, “criação a partir do
antigo”, onde a velha criação não será rejeitada, mas sim matéria prima do que está por vir. E
em seu cerne deve estar Jesus, que teve sua ressurreição como percursora dela.
Mas essa transformação está além do alcance que as ciências da natureza têm a dizer, portanto
faz sentido que seja onde o diálogo do livro se encerra.
Em conclusão, a discussão que o livro se propõe a fazer é longa, e de maneira nenhuma foi
esgotada. O diálogo entre ciência e Bíblia ainda tem longos encontros e jantares para
participar e florescer, e muito mais convidados a chamar. Nem todos irão concordar em tudo,
é verdade, mas é podemos argumentar que é isso que torna a conversa interessante. Acredito
que apenas ao sermos transformados na nova criação prometida é que teremos finalmente
plena compreensão da ciência e de como Deus a manejou, inspirou e emanou. Até lá, nossa fé
é edificada ao contemplar a grandiosidade do nosso Deus por suas lentes.
Referência bibliográfica:
Discutindo a criação: um encontro entre a Bíblia e a Ciência, Mark Harris. Editora Thomas
Nelson Brasil, 2023.