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Bíblia e Ciência – Um encontro que deve acontecer com mais frequência

Ao iniciarmos a leitura de “Discutindo a Criação” o próprio autor, Mark Harris, já nos


esclarece que procura analisar e discutir os textos bíblicos sobre a criação em um nível mais
profundo do que apenas “o tanto que eles concordam com a ciência moderna.” Se esta
concordância, por acaso, tiver sido a intenção do leitor ao começar a obra, como talvez a
palavra “Encontro” do subtítulo possa dar a entender a alguns, haverá certa decepção.
Contudo, para aqueles que gostam de um bom diálogo, com direito a réplicas e uma oportuna
troca de ideias, a experiência será bem diferente. A “discussão” a que Mark se refere não é um
debate político de alta tensão do tipo que vemos na televisão, e o “encontro” está mais para
aquele jantar que se estende por horas pois a conversa é dinâmica, o assunto não se esgota, e
não há a pretensão ou pressão de que os convidados cheguem a uma conclusão antes de ir
para casa, ou aqui no caso, antes de fechar o livro. Embora a autor não esconda sua opinião
pessoal sobre determinados assuntos e comunique seus argumentos com autoridade, em
nenhum momento o faz forma impositiva, comum de acontecer em obras do gênero.

Como em todo agradável jantar então, os tópicos de conversação variam e avançam de forma
fluída. Quanto a linguagem do texto, apesar de não ser coloquial ou informal de forma
alguma, para aqueles cujo interesse no tema em questão é novo e não possuem tanta bagagem
acadêmica, seja da teologia ou da ciência natural, o livro faz um ótimo trabalho em apresentar
e contextualizar os conceitos trabalhados, tornando o grande panorama da discussão mais
claro à medida que os capítulos avançam.

Começando pelo básico, o objeto de estudo da ciência, somos apresentadas as definições de


espaço e tempo. Para quem não lembra das leis de Newton que o professor explicou na escola,
não entendeu a questão da relatividade apesar dos esforços dos filmes de ficção científica em
expô-la em seus roteiros, ou para quem sabe menos ainda explicar a verdadeira mecânica
quântica além das histórias de super-heróis, saiba que está tudo bem, pois o ponto do autor
não é aprofundar as teorias em si, mas sim compreender as repercussões que causaram nas
visões de mundo.

A compreensão newtoniana, por exemplo, de um padrão físico estável e constante foi


entendida como o reflexo de um Deus confiável. Ou pelo menos era o que parecia até outro
famoso cientista, Einstein, apresentar uma perspectiva diferente, que relativiza o absoluto. A
ruptura só não foi maior que a da descoberta de entidades quânticas, como os elétrons, que
desafiaram todo o entendimento adquirido pela física clássica. Nesse cenário, há espaço para
Deus? O reino Dele está longe do quântico, e se algumas especulações estiverem corretas, na
verdade existem muitos reinos em muitos mundos por aí, multiverso afora. Embora esta
descoberta esteja bem longe de ser atingida por qualquer trabalho experimental, outras são
palpáveis. A astronomia observacional reconheceu que o universo parece estar se expandindo.
É a partir desse entendimento que surge o inovador modelo do Big Bang, refletindo sobre o
ponto de singularidade inicial dessa expansão e sua decorrente evolução física. Ainda mais
revolucionário, somos apresentados ao modelo de evolução biológica de Darwin (1809-1882),
cuja força motriz é a seleção natural. A ciência não para de avançar e mais uma vez surge a
pergunta sobre o espaço de Deus nesse cenário. Embora as duas teorias tenham a evolução em
comum, são usadas em direções teológicas opostas, sendo a primeira comparado com a
narrativa bíblica para afirmá-la e o segundo para desacreditá-la.

Diferente do que se poderia imaginar, Mark não defende um lado ou outro, mas afirma que
nenhum ponto de vista é cristão ou anticristão em si, mas pode ser interpretado a partir de
diferentes visões do relacionamento de Deus com o mundo. Neste ponto reside a verdadeira
questão, no final das contas: o relacionamento entre Criador e Criação.

O início da conversa rendeu bastante, e estabeleceu os princípios mais importantes para o


restante do assunto. Partimos então para a descrição bíblica da Criação em Gênesis, e o
primeiro passo promovido pelo autor é reconhecer a existência de dois relatos diferentes: O
relato sacerdotal (Gênesis 1:1 - 2:4a) e o relato javista (Gênesis 2:4b - 3:24). A nomenclatura
pode estranhar à primeira vista, mas sua explicação faz sentido.

No primeiro relato o foco está em Deus como agente ativo, construindo e organizando Sua
obra, sem se preocupar em descrever o “como”. Já no segundo relato o enfoque está no
homem, na sua relação com as outras criaturas, com o pecado e a preocupação de Deus para
com ele. Apesar da diferença, os dois demonstram complementaridade teológica, pois
estabelecem o papel de Deus e do homem. Na ciência, se busca formas engenhosas de ligar os
modelos científicos com os textos de Gênesis, como reclamar a relatividade do tempo para
explicar os seis da criação. Poe isso é importante identificar qual o relato mais escolhido para
cada tentativa e por quê. Mas mais importante que essas definições, no entanto, é identificar
qual a intenção do texto bíblico. Não podemos tirar o foco do lugar certo, a apresentação de
Deus como criador acima do que qualquer outra coisa, por isso o autor alerta sobre a
armadilha de tentar uma interpretação puramente científica da Bíblia.
É este, então, o próximo tópico de conversação. O que a Bíblia nos revela, afinal, sobre a
Criação além da descrição narrativa? Este é um ponto interessante e rico em reflexão, também
o mais propenso a instigar contemplação.

Somos apresentadas as perspectivas de creatio ex nihilo e creatio continua. Na creatio ex


nihilo temos a ideia de que Deus fez o mundo literalmente a partir do nada e continua a
sustentá-lo, no sentido mais amplo possível. Mais do que uma explicação sobre o princípio, é
uma afirmação sobre a relação continua entre criação e Criador. Complementar a ela, temos a
ideia de creatio continua, utilizada para a expressar o parecer de que a atividade criativa de
Deus não se restringe simplesmente ao início do mundo nem à sua sustentação, mas é, como o
nome diz, contínua. Muito do que é discutido no livro, embora significativo é sério, não será
capaz de gerar tanta admiração pela natureza quanto essas duas declarações.

Além disso, essas duas perspectivas se chocam diretamente com a alternativa de pensamento
deísta, que avançou na ciência e apesar de até afirmar o papel criativo de Deus, não acredita
que Ele desempenhe nenhum papel no mundo depois da criação. Pensamento esse que, ao
contrário dos anteriores, empobrece a fé.

Continuando, o livro nos apresenta as tentativas de identificar certos modelos científicos com
as categorias ex nihilo e continua, especialmente em vincular o modelo do Big Bang à
primeira e os modelos de evolução biológica à segunda. Mas, como Mark Harris bem coloca
“por serem fundamentalmente teológicas não podem ser facilmente reduzidas a explicações
científicas, embora possam ser análogas entre si.”.

Finalmente, ao avançar para o fim do livro o autor nos apresenta suas considerações mais
complexas: aquelas a respeito da queda, do sofrimento e do mal. Não é novidade que a
biologia evolutiva moderna não vê credibilidade no relato histórico de Adão e Eva, mas qual a
problemática disso para os cristãos? Em primeiro lugar a questão do pecado, pois a seleção
natural implica que competição e luta sempre foram parte integral do mundo. Como
consequência, põe em xeque a necessidade do sacrifício e ressurreição de Cristo. Por conta
disso, para muitos, o darwinismo é incompatível o cristianismo. A não ser, é claro, com a
condição de que se deixe de entender Adão e Eva da maneira histórica tradicional.

Uma das várias alternativas para a questão sugere que o primeiro homem da Bíblia não seria o
primeiros homo sapiens da terra, mas o primeiro homo divinus: um indivíduo diferente de
seus contemporâneos no período neolítico por ter sido o primeiro a receber o Espírito de
Deus, tornando-se a semelhança Dele. Esta teoria, adotada inclusive por teólogos famosos
fora do campo da ciência, apresenta uma grande dificuldade: admitir essa premissa reside em
admitir também que atos violentos e egoístas cometidos pelos vizinhos de Adão não seriam
pecados, pelo contrário, seriam características comuns impassíveis de julgamento moral.

Ademais, é necessário de considerar também o pecado original no jardim e sua consequência


em toda humanidade. E para esse ponto o autor traz uma crítica histórica sobre a influência de
Agostinho e sua particular interpretação de que o tal pecado original infectou toda boa criação
de Deus, interpretação essa que se tornou tradição. Mas é isso mesmo o que a Bíblia quis
dizer? Sigamos então a lógica do autor Mark Harris, que a partir do texto de Romanos, afirma
que quando Paulo identifica Adão como autor do pecado e da morte, não deixa de perceber
que cada nova geração compartilha do pecado mediante suas próprias ações. Para ele, o foco
de Paulo está em fazer uma comparação do primeiro Adão com Jesus em um nível simbólico,
e não histórico. Até porque toda a narrativa do jardim não é enfatizada ao longo do Antigo
Testamento, e só é no Novo Testamento para ressaltar a obra de Cristo. Sendo assim, a partir
dessa ideia, não é necessário interpretar o texto bíblico da Queda de maneira histórica, visto
que a teologia não seria afetada por uma interpretação apenas simbólica da mesma.

O fim dessa conversa, pontuada por argumentos de vários lados, passa a considerar, enfim, a
possibilidade de uma teologia evolutiva.

Baseado na teologia cristã de Irineu (130 d.c) temos uma visão antiga, mas inovadora, sobre o
tema, defendida pelo autor: “Deus, de início, criou os seres humanos deliberadamente sem
perfeição, porque, em sua imaturidade, eles não seriam incapazes de suportá-la.” Sendo assim
“O plano de Deus era que os seres humanos crescessem em maturidade e perfeição, do
mesmo modo que as crianças crescem e se tornam adultos.” Com base nessa perspectiva,
quando Deus diz que a criação é boa, fala no sentido em que ela é adequada ao seu propósito,
e não no sentido de perfeição. O desvio em direção ao pecado, então, não é tanto uma queda,
mas um “fracasso em ascender”. O símbolo do relato da queda permanece intacto, mesmo que
não seja uma descrição de fatos. E somos apresentados ao que seria o lado sombrio da boa
criação de Deus, o sofrimento evolutivo e, por sua consequência, a morte, como
características intrínsecas da criação. É só por intermédio de Cristo e do Espírito que os
humanos podem ser restaurados, e a esperança de uma perfeição reside no futuro escatológico
da nova criação, para qual é cunhado termo creatio ex vetere, ou seja, “criação a partir do
antigo”, onde a velha criação não será rejeitada, mas sim matéria prima do que está por vir. E
em seu cerne deve estar Jesus, que teve sua ressurreição como percursora dela.
Mas essa transformação está além do alcance que as ciências da natureza têm a dizer, portanto
faz sentido que seja onde o diálogo do livro se encerra.

Em conclusão, a discussão que o livro se propõe a fazer é longa, e de maneira nenhuma foi
esgotada. O diálogo entre ciência e Bíblia ainda tem longos encontros e jantares para
participar e florescer, e muito mais convidados a chamar. Nem todos irão concordar em tudo,
é verdade, mas é podemos argumentar que é isso que torna a conversa interessante. Acredito
que apenas ao sermos transformados na nova criação prometida é que teremos finalmente
plena compreensão da ciência e de como Deus a manejou, inspirou e emanou. Até lá, nossa fé
é edificada ao contemplar a grandiosidade do nosso Deus por suas lentes.
Referência bibliográfica:

Discutindo a criação: um encontro entre a Bíblia e a Ciência, Mark Harris. Editora Thomas
Nelson Brasil, 2023.

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