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LARIDADE INFINITA

A ARTE DO SERMÃO DA NOSSA SENHORA DO Ó

Kellen Dias de Barros Violento (UERJ)

Quando nos propomos a analisar a obra de Antonio Vieira, não podemos nos isentar
da entrada em um círculo diferente daquele que nos circunda o século XXI. Sem nos
despirmos das concepções pós-iluministas, com toda sua carga de subjetividade e
independência, não conseguimos fazer uma leitura adequada da obra de uma época tão
remota. Sendo assim, se faz necessário que investiguemos o círculo produtor de tal
discurso, para que não incorramos em uma leitura anacrônica de um autor e de um
período tão fértil de nossa arte.

No século XVII, para os países e colônias ibéricas, a Igreja Católica ainda era a
maior instância de poder, ela mantinha um rígido controle sobre as pessoas e
instituições, sempre em nome de uma força maior: Deus.

Sendo constantemente abalada pelas concepções protestantes que se multiplicavam


pelo mundo – e não só por outro segmento religioso, mas também pelo racionalismo
moderno de uma forma geral – a Igreja usou de uma série de artifícios para poder
manter-se erguida. Entre fogueiras e interdições, lançou mão de recursos artísticos a fim
de comover seus fiéis.

Enquanto Lutero defendia a interpretação individual da Bíblia; acreditando que os


homens, como filhos de Deus, poderiam se debruçar sobre os ensinamentos ali ditados e
interpretá-los para sua vida; implementando, com isso, um sistema monofônico, já que
entendia a Escritura Sagrada como o único meio de conversão e adequação aos desígnios
divinos. No mesmo período, a Igreja Católica, em contrapartida, apresentava a face
divina de variadas formas, usava um sistema polifônico que dava multicores aos meios
utilizados para alcançar a devoção. Complementa Schröder, tratando do racionalismo:

A Contra-Reforma se põe, perante o racionalismo moderno, em uma posição


defensiva. Se o racionalismo implica uma série de postulados que conflita com a
experiência estética, a astúcia dos contra-reformistas esteve em favorecer uma
arte propícia à sua posição (...). (SCHRÖDER apud LIMA, 1995: 117)

Desde a arquitetura das igrejas até os sermões – prática discursiva de disseminação


da fé, largamente empregada nesse período – operou-se um minucioso regime de
educação para os sentidos. Diante de uma população não letrada, a Igreja implementava
uma série de recursos para que a “casa de Deus”, por si, falasse aos fiéis. As paredes, os
tetos, o altar foram tomados por figurações da doutrina cristã e das passagens da Bíblia.
A comunhão entre a arquitetura e as artes plásticas possibilitou a construção de um
ambiente comovente, propício à adoração da beleza e da magnitude ali expressas.

A estrutura da igreja revelava, também, um conceito subjacente a toda doutrina


católica: a manifestação constante e absoluta de Deus na Terra. Em cada parede, árvore,
pessoa, a transfiguração dos desígnios d’Ele. Para compreendermos melhor essa
onipresença, não podemos nos esquecer da natureza amplamente discursiva desse
contexto. De acordo com os preceitos cristãos, o universo teria sido criado através
da Palavra de Deus: “E disse Deus: Haja luz. E houve luz.” (Gen. 1: 3). O mundo seria a
própria retórica divina que se faz carne: Verbum caro factum est[1].

Como formula Alcir Pécora (1994), conceituado analista da obra de Antonio Vieira,
estabelece-se uma permanente relação entre finito e infinito, em que o infinito (Deus)
manifesta-se através do finito (mundo), que, dessa forma, ganha caracteres do Eterno,
sendo, então, potencializado. Mas a face divina do mundo é encoberta, ela compõe um
mistério que os nebulosos olhos humanos não conseguem desvendar facilmente.
Destarte, entra em cena um outro discurso, o do homem, através da voz dos intérpretes
autorizados da Contra Reforma: os sermonistas.

Esse mistério se fundamenta na ambigüidade do mundo, nessa relação “em que o


Ser divino se apresenta em traço material, mas em que esse traço tão somente alude ou
indica sua essência de Ser, sem oferecê-la manifestadamente” (PÉCORA, 1977: 156).
Para que o homem comum possa enxergar esse Deus que desce ao mundo, tem de
elevar-se ao nível dos mediadores dessa revelação.

Essa mediação se opera através de uma relação tríplice: 1) os clérigos, que


representam o povo perante Deus; 2) a Igreja, que é organismo institucional de
mediação; 3) os sermões, que são o desvendamento das ambigüidades e, também do
futuro, uma vez que Deus é eterno e imutável, assim como Suas Leis, às quais todos os
seres estão submetidos; dessa forma “a sucessão dos dias realiza uma crônica da
Providência que se atualiza a cada momento” (PÉCORA, 2000: 11).

Essa concepção dupla, de um real metafísico, apresentando como mediadores


instâncias unicamente ligadas à Igreja, nos revela a amplitude do poder que alcançava
essa instituição religiosa no século XVII ibérico. Não podemos nos esquecer que, nesse
contexto, amar a Deus (que era o Dirigente Absoluto de todas as coisas) significava
obedecer à Igreja.

Somente tendo em mente essa formulação do mundo, podemos analisar o “modelo


sacramental” (PÉCORA, 2000: 11), que seria o conjunto dos rígidos padrões de
composição dos sermões. Inicialmente é válido pontuarmos a própria terminologia: por
que sacramental?

A noção de Sacramento nesse ideário cristão é de absoluta importância,


especialmente porque é um conceito bastante particular ao catolicismo. Os Sacramentos
não são rituais que figuram a apresentação ou a ação de Deus, eles são o próprio Deus
realizado na matéria. Sendo assim, a hóstia não é um símbolo do corpo e do sangue de
Cristo, ela É Jesus corporificado.

Os sermões seriam, portanto, a reduplicação do Verbo, seriam a manifestação


concreta da Palavra. Quanto ao termo “reduplicação”, cabe esclarecer que, sendo a ação
divina fundamentada no Verbo, Sua primeira Escritura teria sido o universo; a segunda,
a Bíblia, que Ele ditou para Moisés no Velho Testamento e figurou para os apóstolos
através de Jesus no Novo; e a terceira se operaria através da reunião de comentários e
glosas autorizados acerca desse conjunto de signos, são os sermões. A oratória sacra
visava a permanente atualização de Cristo no mundo.

Não se deve pressupor, no entanto, que essa duplicidade, que se expressa em


todos os elementos, seja apenas uma “teoria especulativa”, na verdade ela consiste em
uma forma eficaz de persuasão. Se o mundo é duplo e a felicidade depende da
compreensão dessa duplicidade, que apenas um grupo circunscrito de iniciados pode
decifrar, todos os outros estarão submetidos a ele. E, além dessa dualidade implementar
a conversão pelo medo da possível cegueira diante de Deus, também atribui aos signos
uma “alma”, que exerce um poder atrativo específico.

Apostando-se na ambigüidade dos signos, os sermões ganhavam uma forma bela e


instigante aos ouvidos do público. Eles reproduziam a motivação anfibológica do mundo
em sua estrutura, apresentando signos verbais concretos animados por significados
divinos. Além desse instigante recurso de “espiritualização” dos signos, a Igreja investiu
em amplos estudos sobre Retórica para elaborar um modelo para os sermões. João
Adolfo Hansen (1994: 28-55) destaca que, tomando como forma mentis a retórica
aristotélica, os oradores faziam largo uso da proporção decorosa, da emulação e do
engenho.

Associando esses e outros recursos retóricos à concepção de signos motivados,


chegamos a um discurso fundamentalmente alegórico, que, “não explica(ndo) as idéias
com demasiada clareza” (GRACIÁN, 2003: 155), tentavam levar os fiéis a momentos de
fé jubilosa. Acrescenta, ainda, Hansen:

(...) o ‘discurso engenhoso’ cifra-se em alegorias, estas consistem na


exposição de significações abstratas, conceituais, através de figurações
roubadas ao sensível, numa espécie de criptografia oferecida a um duplo
percurso do olho: interior e figural, a alegoria materializa visualmente, falada e
escrita, uma interioridade de autor; lida e ouvida, exige um esforço de tradução
para que se descubra seu sentido secreto, encoberto pela exterioridade sensível.
(HANSEN, 1978: 175)

Não esqueçamos, contudo, de que por trás de todos esses aparatos discursivos,
insidia um rígido controle da Igreja, pois a instituição ambicionava que os Sermões
angariassem maior número de fiéis. Oratórias empoladas, repletas de agudezas, mas
sem estabelecer a ligação com o Criador, eram seriamente combatidas. Os recursos
mundanos só adquiriam valor quando se manifestavam como sinais da Palavra Sagrada.

E nos sermões, que se pretendiam uma revelação de Deus aos olhos leigos, a
motivação dos signos tinha de ser aparente. Apesar da feição de mistério e
distanciamento não poderem ser apagadas – “Para ter valor, as coisas devem ser difíceis.
Sempre se deve parecer mais sábio e prudente do que o necessário para o interlocutor”
(GRACIÁN, 2003: 155) – a relação entre o signo verbal e o divino teria de ser
compreendida.

Sendo assim, a alegoria deveria ser construída a partir de convenções, a associação


estabelecida teria de soar como inusitada e familiar ao mesmo tempo[2]. Para que não
se incorresse no perigo de uma relação errônea de significados, era necessário dosar as
parcelas de inventividade, que tornariam atrativos os discursos, e as de clareza para
convencer os ouvintes a seguirem os desígnios da Igreja.

Esse excesso de regras, bem como a necessidade irremediável de alusão a um


significado distanciado do signo em si, foram, por vezes, interpretados como um recurso
estilístico pobre, de mau gosto. Considerando essa desvalorização do alegórico, entre
outras coisas, Walter Benjamin desenvolveu um interessante e polêmico estudo acerca
da alegoria barroca. Defende o teórico:

Mas ela (a força da intenção alegórica) foi encoberta pelo veredicto do


preconceito classicista. Este consiste, numa palavra, em denunciar a alegoria
vendo nela um modo de ilustração, e não uma forma de expressão. As páginas
seguintes tentarão demonstrar, pelo contrário, que a alegoria não é frívola
técnica de ilustração por imagens, mas expressão como a linguagem e como a
escrita. (BENJAMIN, 1984: 184)

Essa desvalorização da alegoria se deu, em parte, em nome do que Benjamin


chama de “preconceito antibarroco”, visto as práticas letradas desse período estarem sob
a égide um pensamento sócio-cultural profundamente codificado. Como vimos, a
concepção sacramental do mundo era extremamente abrangente, compreendendo uma
razão divina, que não só controlava, como animava todas as coisas. Os indivíduos eram
instrumentos da vontade de Deus, sendo a esta submetidos irremediavelmente. Era
inconcebível nesse contexto, portanto, a concepção de um sujeito dotado de uma razão e
criatividade particulares. Esse fato, no entanto, foi ignorado pelos românticos, que,
esperando encontrar no Barroco uma produção repleta de contribuições inovadoras e
criativas, acabaram execrando-o quando atestaram sua formulação sempre tão regrada.

Seguindo esse pensamento anacrônico, opuseram a alegoria ao símbolo; este


último, ao invés de remeter a uma idéia, encerra a totalidade do conceito nele mesmo.
De forma momentânea o espectador é tocado pelo símbolo, sua aparição é tão
impactante que move os sentidos. O símbolo é repleto de significado. Tal qual o sujeito
que se consolidava após o Iluminismo, era independente, falava por si só. Nesse universo
em que as coisas e pessoas se tornam mais interessantes justamente por apresentarem
uma determinada liberdade, era muito natural que se apresentasse uma certa aversão
àquilo que se baseava na relação que estabelecia com um conceito externo: a alegoria.
Complementa Benjamin: “Enquanto o símbolo atrai para si o homem, a alegoria irrompe
das profundidades do Ser, intercepta a intenção em seu caminho descendente, e a
abate” (ibidem, 205)

Após visualizarmos brevemente o contexto sócio-cultural ibérico do século XVII,


podemos atestar que se operava um controle extremamente rígido sobre o pensamento
e, conseqüentemente, sobre as práticas letradas da época também. Além da limitação a
um discurso que teria de fazer correspondência direta entre o profano e o sagrado, a
estrutura desse discurso também teria que respeitar meticulosas regras de composição.

Mas, percebemos também que a Contra-Reforma reservou um lugar para a arte e,


especialmente, para a comoção. Através de um ambiente figural e um discurso adornado,
ansiava a desestabilização direcionada dos sentidos. A Igreja queria provocar o olhar
diferenciado que a arte incita, para, a partir dessa suspensão, encaminhá-lo para os seus
moldes. Grosso modo, seria como a ação de chacoalhar uma caixa para que os objetos
guardados nela se alojem. Complementa, Luiz Costa Lima:

Em oposição à intencionada frieza do racionalismo moderno, a estética


da admiratio ressalta ‘a qualidade de intencionalidade da percepção’, porque essa
favorece a crença e não a razão. Em síntese, a busca de ganhar a adesão do
povo e de resistir à propagação de uma razão desmitologizante conduziria, por
um lado, ao realce dos recursos capazes de provocar assombro e estupefação e,
por outro, à legitimação potencial do fictício. (LIMA, 1995: 118)

Quando a modulação racional abre espaço para a sensação, trabalhada através de


recursos artísticos, a interferência do imaginário se torna inevitável. Quando o engenho,
a agudeza operam no discurso, não é apenas à lógica que eles recorrem, nem mesmo à
simples memória reprodutiva, sem a imaginação elas não passariam de uma mera
descrição. Com a palavra, um dos maiores oradores seiscentistas: “Não se contenta o
engenho com a verdade apenas, como o juízo, senão que aspira à formosura. Pouco fora
na arquitetura assegurar firmeza se não atendesse ao ornato” (GRACIÁN apud LIMA,
1995: 119).

Em recente publicação das cartas do Padre Antonio Vieira, João Adolfo Hansen –
organizador da seleção – escreve uma ampla introdução em que descreve e analisa a
estrutura de composição das cartas. Apesar de estarmos voltados para o discurso dos
sermões, como já foi relatado, o controle do discurso era abrangente e respeitava um
mesmo norte. Sendo assim, também nos são válidas as considerações do teórico nesse
trabalho porque a semelhança de padrões é extremamente grande. Ouçamo-lo:

(...) Vieira escreve pressupondo que o intelecto é como um espelho, sempre


idêntico e sempre vário, a refletir imagens das coisas, produzindo fantasmas ou
pensamentos. Seu pensamento se pensa como um contexto ordenado
de fantasmas interiores; logo, seu discurso exterior é uma ordem de signos
sensíveis que, na carta, substituem e copiam os fantasmas como tipos do
pensamento arquétipo.(HANSEN, 2003: 24)

Está certo, Vieira cria, assim como a Igreja, que os fantasmas mentais eram uma
duplicação do real. Mas a própria terminologia utilizada, “fantasma” e “reflexo”, denuncia
o quão fluidas, distorcidas e incompletas eram essas impressões do real que
direcionavam as analogias alegorizantes do discurso. A própria difusão da imagem já é a
impressão do imaginário sobre o real. Sendo assim, se torna claro que, apesar de todo
um sistema retórico modulador do discurso, a criação imagética se realizava nos sermões
de Antonio Vieira, o que nos faz pensar que a obra do jesuíta deve ser lida como arte,
mas que, por outro lado, tem de ser analisada levando-se em conta a particularidade de
sua configuração.

Para completarmos esse momento de análise do sistema sócio-cultural dos


dezessete vejamos a alegoria criada por Gracián, que demonstra toda a ambigüidade
característica aos mecanismos de controle do discurso, através da apresentação da
importância da Verdade, que para vir à luz pode até mesmo fazer uso da fantasia:

Era a verdade esposa legítima do entendimento mas a mentira, sua grande


êmula, resolveu desterrá-la de seu tálamo e derrubá-la de seu trono. Que
embustes para isso não intentou? Que fraudes não fez? Começou a desacreditá-
la de grosseira, desalinhada, desabrida e néscia; e a si mesma, ao invés, a
vender-se como cortesã, discreta, bizarra e aprazível. E, embora por natureza
feia, procurou desmentir suas faltas com adereços. (...) Vendo-se a verdade
desprezada e ainda perseguida, acolheu-se à agudeza, lhe comunicou o seu
trabalho e a consultou sobre seu remédio. Verdade amiga, disse a agudeza, não
há manjar mais insípido nestes estragados tempos que um desengano a secas
(...) não há bocado mais amargo que uma verdade despida. (...) Para isso
inventaram os audazes médicos do ânimo a arte de dourar as verdades, de
açucarar os desenganos. Quero dizer (...) que façais política; vesti-vos ao uso do
mesmo desengano, que vos disfarçais com seus mesmos adornos e, com isso,
vos asseguro o remédio (...). Abriu os olhos a verdade, deu então para andar
com artifício (...) e por engenhoso circunlóquio vem sempre a parar no ponto de
sua intenção. (GRACIÁN apud LIMA, 1995: 126)

Como a extensa citação dispensa comentários, passemos à análise específica do


“Sermão da Nossa Senhora do Ó”. Tomemos o título como nosso primeiro passo.

O “Sermão da Nossa Senhora do Ó” se refere a um tema duplamente múltiplo:


Maria, mãe de Jesus e o Ó. A multiplicidade de Nossa Senhora se manifesta nas variadas
“personificações” atribuídas a ela. Essa pluridimensão denuncia a relação finito/infinito
sempre almejada pelo ideal cristão. Os fenômenos concretos são tomados como alegorias
de intervenções divinas, no caso, através de Santa Maria, mãe de Deus[3].

O Ó alegoriza o louvor a Deus, pois, de acordo com a crença, Maria, na expectação


do parto, louvava a graça divina através de sentenças sempre iniciadas com Ó: Ó Divino
misericordioso! Ó infinita Providência! A Nossa Senhora do Ó representa, portanto, a
santidade prenhe louvando o Criador, figura altamente comovente e com índices
pedagógicos.

Antonio Vieira inicia seu sermão invocando a figura do círculo: “A figura mais
perfeita e mais capaz de quantas inventou a natureza, e conhece a Geometria, é o
círculo” (VIEIRA: 2000, tomo I, 465). Instiga a atenção do espectador, que, diante da
aparente distância do tema e da analogia, fica curioso com os possíveis
encaminhamentos.
Continua justificando a imagem escolhida, revelando o eixo de similitude: o Globo,
as esferas celestes, o Universo, são circulares e alega: “O certo é que as obras sempre
parecem com seu Autor”, para fundamentar a relação de Deus com o círculo. A inventiva
alegoria criada por Vieira teria que chamar a atenção por sua raridade, mas teria de ser
desvendada logo em seguida.

Após desvendada a face infinita do círculo – a forma de que Deus se utiliza em sua
criação – os signos tomam uma forma também misteriosa, encobrindo significados
complexos, de difícil compreensão. Criando-se esse ambiente de aparente impotência do
homem diante das palavras do representante divino, espera-se alcançar a mais profunda
devoção do ouvinte, que diante de Deus ficaria ainda mais embaraçado. Leiamos a
passagem:

Estes são os dois maiores círculos que até o dia da Encarnação do Verbo se
conheceram; mas hoje nos descreve o Evangelho outro círculo em seu modo
maior. O primeiro círculo, que é o mundo, contém dentro de si todas as coisas
criadas: o segundo, incriado e infinito, que é Deus, contém dentro em si o
mundo, e este terceiro, que hoje nos revela a Fé, contém dentro de si ao
mesmo Deus: Ecce concipies in útero, et paries Filium: hic erit magnus, et Filius
Altissimi vocabitur[4] (ibidem, 465)

A seqüenciação de circularidades encerrada com uma sentença em Latim revela a


magnificência do Criador e a necessidade imperiosa de o homem se doar em momentos
de reflexão para conseguir compreender a face divina. A alegoria é uma forma de
expressão que exige a ação do intelecto para ser decifrada.

Para coroar as relações maravilhosas, apresenta a principal alegoria o sermão: o


ventre, círculo finito, de Maria contendo o infinito Deus. Mais uma vez, é referida a
relação finito/infinito. A repetição de conceitos também era um modelo para a feitura dos
sermões, através da constante recorrência a um mesmo ponto pretendia-se educar,
domesticar as almas. Era um recurso pedagógico.

Como o sermão é duplamente múltiplo, como dissemos anteriormente, o infinito


não poderia se localizar apenas em Maria, teria que motivar o Ó também. Concebendo-o
como sinais dos desejos da Virgem na expectação do parto, o dotou da infinidade dos
desejos de mãe para um Filho que é Eterno e Magnífico.

Após tantas imagens dúbias, misteriosas, faz o recolho da inicial disseminação de


idéias, por dois motivos: para ser claro e realmente revelar a Deus e para impedir
possíveis interpretações em desacordo com seus objetivos.

O mistério do Evangelho é a Conceição do Verbo no ventre virginal de Maria


Santíssima: o título da Festa é a Expectação do parto, e os desejos da mesma
Senhora debaixo do nome do O. E porque o O é um círculo e o ventre virginal
outro círculo; o que pretendo mostrar em um e outro, é que assim como o
círculo do ventre virginal na Conceição do Verbo foi um O que compreendeu o
imenso, assim o O dos desejos da Senhora na Expectação do parto foi outro
círculo que compreendeu o Eterno. (ibidem, 466)

O sermão vai se desenvolvendo fazendo uma apresentação dos preceitos cristãos,


convencendo, mas também entretendo, pois não o faz através de uma exposição
matemática dos termos. O discurso alegórico faz com que a doutrina cristã seja aceita
pelo povo, não porque convence logicamente, mas porque comove. As missas em Latim
eram muito menos concorridas que o “espetáculo” de apresentação do sermonista
Antonio Vieira. Vale lembrar que quando se anunciava a data da oratória do jesuíta, as
pessoas chegavam mais cedo (ou mandavam seus escravos) para guardar os melhores
lugares na platéia.

Sendo engenhoso, Vieira inicia a segunda parte do sermão: “Uma das maiores
excelências das Escrituras Divinas, é não haver nelas nem palavra, nem sílaba, nem
ainda uma só letra, que seja supérflua, ou careça de mistério” (ibidem, 466). Nesse
pequeno trecho insere dois conceitos fundamentais da doutrina cristã, o primeiro seria a
tripla Escritura de Deus, já que usa “Escrituras”, no plural, registrando que sua fala
também é uma realização divina; e o segundo seria a constante motivação dos signos do
mundo, indicando que o olhar humano sempre tem de buscar o mistério que está
encoberto nas aparências externas das coisas; além de se referir à motivação de seu
próprio discurso, alertando para a necessidade de reflexão acerca das palavras ali
declamadas.

Nessa segunda parte desenvolve detalhadamente a infinitude de Maria; não


simplesmente dizendo que ela é infinita porque foi mãe do infinito, mas direcionando o
espectador a admirar a Nossa Senhora e a contemplar suas marcas do infindo.

Quando um imenso cerca outro imenso, ambos são imensos; mas o que cerca,
maior imenso que o cercado; e por isso, se Deus foi cercado, é imenso, o ventre
que o cercou, não só há de ser imenso, senão imensíssimo.

Essa passagem é de grande relevância. Mantendo seu objetivo de animar o finito


(Maria) com o infinito (Deus), Vieira utiliza a alegoria da infinitude do ventre que acolheu
o Cristo, usando o engenho, o ornato, mas ultrapassando o limite do decoro. Para fazer
convencer com as imagens por ele criadas, eleva Maria a uma posição superior a de
Deus. São os sinais do imaginário que, além de circular timidamente em estruturas
codificadas, as supera, por vezes, em nome da formosura.

Na quarta parte se volta para a fundamentação da infinitude do O, associando esse


objetivo ao que perpassa por todo sermão, a divulgação dos preceitos católicos:

O Pai de tal maneira concebeu o Filho Deus, que encerrou nele toda a sua
Essência em uma palavra; e a Mãe Virgem de tal maneira concebeu o Filho
Homem que encerrou nele a mesma essência em uma letra: a palavra é o Verbo, a
letra é o O: Cui littera Verbum est. (ibidem, 471).

Assim o discurso, que é a força criadora de Deus, se encarnou na letra repetida de


Maria. Inegavelmente essa é uma forma artística de se dizer que Deus criou o mundo
com sua Palavra e que nós, como carne, somos obra d’Ele.

Focalizando o O, vai cada vez mais o estendendo ao infinito. Associa-o ao símbolo


egípcio do eterno – que é um círculo, pois não tem princípio nem fim – ao som
pronunciado quando o homem é tocado pelo desejo, aos infinitos desejos maternos, à
roda do tempo. É uma multiplicação que remete também ao infinito.

Quando trata da roda do tempo, colore a humanidade com a dualidade


finito/infinito, alegando que a roda da vida de cada um está inserida na roda do tempo,
que é eterna, o que faria do homem um ser eterno também. Vieira atingiu, aí, a alegoria
mais recorrente nos sermões: morte/vida eterna. Fica registrado, então, que na quebra
da roda da vida, cai-se na roda do Eterno, onde há de se responder pelas voltas da vida.

Ampliando a infinitude, não se limita à plurissignificação do O, e multiplica o próprio


O. Os desejos de Maria seriam tão profundos que prolongariam os 9 meses de
expectação, tornados infindos no O do O, seria o desejo do próprio desejo, visto este ser
engendrado pela presença de Deus no ventre.
Na última parte Vieira faz o recolho definitivo do sermão, explica as imagens
utilizadas relacionando-as com o maior Sacramento: a Comunhão. Com uma linguagem
mais simples, discursa:

No primeiro discurso sobre as palavras: Ecce concipies in útero: não provei eu


que o ventre virginal da Senhora pela conceição do Verbo encarnado fora a
circunferência da imensidade, e um círculo que compreendeu o imenso? Por isso
mesmo é que a Onipotência Divina tornou a obrar por nosso amor no mistério
altíssimo do Sacramento, encerrando naquele círculo breve de pão toda a
imensidade de seu ser divino e humano. (ibidem, 482)

O Sacramento da Comunhão no discurso alegórico encerra vários aspectos, quando


se recorre a ele uma chuva de conceitos se percebe. A comunhão pode ser relacionada: à
Benevolência divina de descer à Terra para nos agraciar; ao Sacrifício de Deus na
crucificação para nossa salvação; à morte, pois se Deus Homem morreu nós também
morreremos; à Eternidade, porque Jesus ressuscitou e nos prometeu a vida eterna; à
Igreja que nos possibilita a comunhão com o Cristo corporificado; e, talvez, a muitos
outros significados.

Encerrando o sermão, Vieira aconselha os homens a direcionar seus desejos ao


Bem. Recorrendo, mais uma vez, ao conceito morte/vida eterna, anuncia que é
necessário se apartar “das coisas temporais e da terra” para que “consigamos com a sua
vista sem fim, o fim para que fomos criados”; donde conclui-se que a felicidade não é
deste mundo.

Após muitas voltas por caminhos algumas vezes labirínticos, outras floridos e,
ainda, metafísicos, não perdemos o destino. Seguimos um mapa que nos fazia querer ir
ainda mais longe e gozar da chegada a um terreno que confiamos ser fértil. É assim que
Vieira transfigura o ideal cristão num mapa que, sem deixar de indicar os pontos
referenciais do caminho, é colorido com tons agradáveis e admiráveis. E mesmo hoje, já
tendo perdido toda a concepção de um mundo inspirado, ler Vieira é um prazer porque,
como diz Deleuze “A arte conserva, e é a única coisa do mundo que se conserva.”
(DELEUZE, 1992: 144). Os sermões do jesuíta se conservaram e se conservarão com
certeza pela bela arte que os anima.

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MIRANDA, J.C. Vieira escritor. Lisboa: Cosmos, 1977.

VIEIRA, A. Sermões. Tomo I e II. org de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001.

––––––. Cartas do Brasil org. João Adolfo Hansen. São Paulo: Hedra, 2003.

[1] Jo 1: 14 (E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a
glória do Unigênito do Pai cheio de graça e verdade)

[2] Muitas vezes a leitura das obras seiscentistas são tomadas como enfadonhas, vazias,
repletas de adornos sem sentido, justamente porque, com o passar dos anos, se
perderam determinadas referências que eram convencionais na época em que esses
textos foram escritos, fato este que prejudica a compreensão de determinados
apontamentos.
[3] Não pretendemos questionar aqui a veracidade de tais fenômenos. A questão é: se
alguém encontra uma estátua escura com feições femininas em um rio (caso de Nossa
Senhora Aparecida), a Igreja interpreta como uma manifestação da Virgem e outros
como um triste incidente para quem perdeu sua estátua.

[4] Lc 1: 31 – 32 “E eis que em teu ventre conceberás, e darás à luz um filho, e por-lhe-
ás o nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; e o Senhor
Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai”

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