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Quando nos propomos a analisar a obra de Antonio Vieira, não podemos nos isentar
da entrada em um círculo diferente daquele que nos circunda o século XXI. Sem nos
despirmos das concepções pós-iluministas, com toda sua carga de subjetividade e
independência, não conseguimos fazer uma leitura adequada da obra de uma época tão
remota. Sendo assim, se faz necessário que investiguemos o círculo produtor de tal
discurso, para que não incorramos em uma leitura anacrônica de um autor e de um
período tão fértil de nossa arte.
No século XVII, para os países e colônias ibéricas, a Igreja Católica ainda era a
maior instância de poder, ela mantinha um rígido controle sobre as pessoas e
instituições, sempre em nome de uma força maior: Deus.
Como formula Alcir Pécora (1994), conceituado analista da obra de Antonio Vieira,
estabelece-se uma permanente relação entre finito e infinito, em que o infinito (Deus)
manifesta-se através do finito (mundo), que, dessa forma, ganha caracteres do Eterno,
sendo, então, potencializado. Mas a face divina do mundo é encoberta, ela compõe um
mistério que os nebulosos olhos humanos não conseguem desvendar facilmente.
Destarte, entra em cena um outro discurso, o do homem, através da voz dos intérpretes
autorizados da Contra Reforma: os sermonistas.
Não esqueçamos, contudo, de que por trás de todos esses aparatos discursivos,
insidia um rígido controle da Igreja, pois a instituição ambicionava que os Sermões
angariassem maior número de fiéis. Oratórias empoladas, repletas de agudezas, mas
sem estabelecer a ligação com o Criador, eram seriamente combatidas. Os recursos
mundanos só adquiriam valor quando se manifestavam como sinais da Palavra Sagrada.
E nos sermões, que se pretendiam uma revelação de Deus aos olhos leigos, a
motivação dos signos tinha de ser aparente. Apesar da feição de mistério e
distanciamento não poderem ser apagadas – “Para ter valor, as coisas devem ser difíceis.
Sempre se deve parecer mais sábio e prudente do que o necessário para o interlocutor”
(GRACIÁN, 2003: 155) – a relação entre o signo verbal e o divino teria de ser
compreendida.
Em recente publicação das cartas do Padre Antonio Vieira, João Adolfo Hansen –
organizador da seleção – escreve uma ampla introdução em que descreve e analisa a
estrutura de composição das cartas. Apesar de estarmos voltados para o discurso dos
sermões, como já foi relatado, o controle do discurso era abrangente e respeitava um
mesmo norte. Sendo assim, também nos são válidas as considerações do teórico nesse
trabalho porque a semelhança de padrões é extremamente grande. Ouçamo-lo:
Está certo, Vieira cria, assim como a Igreja, que os fantasmas mentais eram uma
duplicação do real. Mas a própria terminologia utilizada, “fantasma” e “reflexo”, denuncia
o quão fluidas, distorcidas e incompletas eram essas impressões do real que
direcionavam as analogias alegorizantes do discurso. A própria difusão da imagem já é a
impressão do imaginário sobre o real. Sendo assim, se torna claro que, apesar de todo
um sistema retórico modulador do discurso, a criação imagética se realizava nos sermões
de Antonio Vieira, o que nos faz pensar que a obra do jesuíta deve ser lida como arte,
mas que, por outro lado, tem de ser analisada levando-se em conta a particularidade de
sua configuração.
Antonio Vieira inicia seu sermão invocando a figura do círculo: “A figura mais
perfeita e mais capaz de quantas inventou a natureza, e conhece a Geometria, é o
círculo” (VIEIRA: 2000, tomo I, 465). Instiga a atenção do espectador, que, diante da
aparente distância do tema e da analogia, fica curioso com os possíveis
encaminhamentos.
Continua justificando a imagem escolhida, revelando o eixo de similitude: o Globo,
as esferas celestes, o Universo, são circulares e alega: “O certo é que as obras sempre
parecem com seu Autor”, para fundamentar a relação de Deus com o círculo. A inventiva
alegoria criada por Vieira teria que chamar a atenção por sua raridade, mas teria de ser
desvendada logo em seguida.
Após desvendada a face infinita do círculo – a forma de que Deus se utiliza em sua
criação – os signos tomam uma forma também misteriosa, encobrindo significados
complexos, de difícil compreensão. Criando-se esse ambiente de aparente impotência do
homem diante das palavras do representante divino, espera-se alcançar a mais profunda
devoção do ouvinte, que diante de Deus ficaria ainda mais embaraçado. Leiamos a
passagem:
Estes são os dois maiores círculos que até o dia da Encarnação do Verbo se
conheceram; mas hoje nos descreve o Evangelho outro círculo em seu modo
maior. O primeiro círculo, que é o mundo, contém dentro de si todas as coisas
criadas: o segundo, incriado e infinito, que é Deus, contém dentro em si o
mundo, e este terceiro, que hoje nos revela a Fé, contém dentro de si ao
mesmo Deus: Ecce concipies in útero, et paries Filium: hic erit magnus, et Filius
Altissimi vocabitur[4] (ibidem, 465)
Sendo engenhoso, Vieira inicia a segunda parte do sermão: “Uma das maiores
excelências das Escrituras Divinas, é não haver nelas nem palavra, nem sílaba, nem
ainda uma só letra, que seja supérflua, ou careça de mistério” (ibidem, 466). Nesse
pequeno trecho insere dois conceitos fundamentais da doutrina cristã, o primeiro seria a
tripla Escritura de Deus, já que usa “Escrituras”, no plural, registrando que sua fala
também é uma realização divina; e o segundo seria a constante motivação dos signos do
mundo, indicando que o olhar humano sempre tem de buscar o mistério que está
encoberto nas aparências externas das coisas; além de se referir à motivação de seu
próprio discurso, alertando para a necessidade de reflexão acerca das palavras ali
declamadas.
Quando um imenso cerca outro imenso, ambos são imensos; mas o que cerca,
maior imenso que o cercado; e por isso, se Deus foi cercado, é imenso, o ventre
que o cercou, não só há de ser imenso, senão imensíssimo.
O Pai de tal maneira concebeu o Filho Deus, que encerrou nele toda a sua
Essência em uma palavra; e a Mãe Virgem de tal maneira concebeu o Filho
Homem que encerrou nele a mesma essência em uma letra: a palavra é o Verbo, a
letra é o O: Cui littera Verbum est. (ibidem, 471).
Após muitas voltas por caminhos algumas vezes labirínticos, outras floridos e,
ainda, metafísicos, não perdemos o destino. Seguimos um mapa que nos fazia querer ir
ainda mais longe e gozar da chegada a um terreno que confiamos ser fértil. É assim que
Vieira transfigura o ideal cristão num mapa que, sem deixar de indicar os pontos
referenciais do caminho, é colorido com tons agradáveis e admiráveis. E mesmo hoje, já
tendo perdido toda a concepção de um mundo inspirado, ler Vieira é um prazer porque,
como diz Deleuze “A arte conserva, e é a única coisa do mundo que se conserva.”
(DELEUZE, 1992: 144). Os sermões do jesuíta se conservaram e se conservarão com
certeza pela bela arte que os anima.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BÍBLIA Sagrada. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa
Bíblica Brasileira, 1981.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Lisboa: Presença, 1992.
GILSON, Etienne & BOEHNER, Philotheus. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes,
2003
GRACIÁN, Baltasar. Arte da Prudência. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
HANSEN, João Adolfo. “Autor”. In: JOBIM, J. L. (org). Palavras da crítica. Rio de Janeiro:
Imago, 1992, p. 11-43.
––––––. “Vieira, estilo do céu, xadrez de palavras”. In: Revista Discurso n 9.
Universidade de São Paulo, 1978.
LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,
1986.
––––––. “Lugar retórico do mistério em Vieira”. In: MENDES, M.V., PIRES, L.G &
MIRANDA, J.C. Vieira escritor. Lisboa: Cosmos, 1977.
VIEIRA, A. Sermões. Tomo I e II. org de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001.
––––––. Cartas do Brasil org. João Adolfo Hansen. São Paulo: Hedra, 2003.
[1] Jo 1: 14 (E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a
glória do Unigênito do Pai cheio de graça e verdade)
[2] Muitas vezes a leitura das obras seiscentistas são tomadas como enfadonhas, vazias,
repletas de adornos sem sentido, justamente porque, com o passar dos anos, se
perderam determinadas referências que eram convencionais na época em que esses
textos foram escritos, fato este que prejudica a compreensão de determinados
apontamentos.
[3] Não pretendemos questionar aqui a veracidade de tais fenômenos. A questão é: se
alguém encontra uma estátua escura com feições femininas em um rio (caso de Nossa
Senhora Aparecida), a Igreja interpreta como uma manifestação da Virgem e outros
como um triste incidente para quem perdeu sua estátua.
[4] Lc 1: 31 – 32 “E eis que em teu ventre conceberás, e darás à luz um filho, e por-lhe-
ás o nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; e o Senhor
Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai”