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A Minha Alma Partiu-se

A minha alma partiu-se como um vaso vazio. 


Caiu pela escada excessivamente abaixo. 
Caiu das mãos da criada descuidada. 
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. 

Asneira? Impossível? Sei lá! 


Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. 
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. 

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. 


Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. 
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. 

Não se zanguem com ela. 


São tolerantes com ela. 
O que era eu um vaso vazio? 

Olham os cacos absurdamente conscientes, 


Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. 

Olham e sorriem. 
Sorriem tolerantes à criada involuntária. 

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. 


Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. 
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? 
Um caco. 
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 


1. Delimita, no poema, as seguintes partes lógicas:
 a alma partiu-se em cacos;
 os deuses assistem complacentes;
 o fragmento cintilante.

2. “A minha alma partiu-se como um vaso vazio.” (v. 1).


Explica como, a partir desta inesperada comparação, se constrói o tema da
fragmentação do eu.

3. “Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu” (v. 6)


“O que era eu um vaso vazio?” (v. 13)
Interpreta estes versos, à luz daquilo que já sabes da poesia pessoana.

4. Interpreta a última estrofe.

5. Mostra a dimensão modernista da linguagem do poema, patente nas ruturas ao nível


da coesão e da coerência textual.

correção

C
1. Partes do poema:
Estrofes 1 e 2
Estrofes 3 a 6
Estrofes 7 e 8
2. “A minha alma partiu-se como um vaso vazio” é a imagem que serve de ponto de
partida para a temática que Álvaro de Campos partilha com Pessoa- a fragmentação do
eu. A comparação com o vaso sugere a múltipla fragmentação, porque um vaso que
cai, ainda mais por uma escada, parte-se em inúmeros cacos. O poeta é então um vaso
que uma criada descuidada, a mando dos deuses (O destino? O poeta?) deixa cair
pelas escadas. Os deuses assistem complacentes, sem nada fazer.

3. O poeta não passava de “um vaso vazio”, porque ainda não se tinha confrontado com
a busca de si mesmo, não se conhecia. Para se conhecer, ou pelo menos para se
procurar, foi preciso fragmentar-se, partir-se em muitos pedaços, tantos quantos os
seus eus. Agora, fragmentado, pode sentir mais, porque é mais completo, ainda que
tenha perdido a unidade, ainda que a fragmentação tenha sido uma guerra interior
(“Fiz barulho na queda como um vaso que se partiu”). É interessante atentar na
dimensão simbólica de escada, metáfora muitas vezes utilizada para sugerir a
caminhada da vida que é, naturalmente, progressiva, ascendente. Mas em Campos,
como em Pessoa, essa caminhada, que se quer também ascendente, pois corresponde
à procura de si mesmo e ao desejo do impossível, acaba, no entanto, por ser
descendente pelo custo de perda de unidade que comporta – uma perda desejada,
mas ainda assim perda. No entanto, paradoxalmente, conduz ao infinito sugerido pelas
estrelas que a atapetam e pelos astros entre os quais o fragmento brilha.

4. O poeta sugere, interrogando-se, que o seu mais brilhante fragmento é a sua obra,
equivalente ao seu eu mais profundo, à sua vida verdadeira.

5. O poema, como a maioria dos poemas de Campos, apresenta uma utilização


modernista da linguagem patente sobretudo nas ruturas ao nível da coesão e da
coerência, com efeitos estilísticos muito expressivos.
Coesão:
No interior das estrofes, é nítida a intencional falta de coesão no discurso, pela não
utilização de conectores interfrásicos. A mesma falta de coesão verifica-se entre as
estrofes. Além disso, é transgredida a coesão temporal, na medida em que são usados
tempos diferentes para narrar o mesmo acontecimento: o pretérito perfeito (“Caiu”) e
o presente do indicativo (“Não se zangam”; “olham e sorriem”). É claro que esta rutura
da coesão tem uma finalidade semântica, pois há um tempo passado em que o sujeito
se partiu em pedaços e há o presente em que o sujeito permanece fragmentado,
dando-se em espetáculo aos deuses.

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