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BIBLIOTHECA DO EXERCITO

Casa do Barão de Loreto


- 1881 -

Fundada pelo Decreto no 8.336, de 17 de dezembro de 1881,


por FRANKLIN AMÉRICO DE MENEZES DÓRIA, Barão de Loreto,
Ministro da Guerra, e reorganizada pelo
General de divisão VALENTIM BENÍCIO DA SILVA,
pelo Decreto no 1.748, de 26 de junho de 1937.

Comandante do Exército
General de exército Enzo Martins Peri

Departamento de Educação e Cultura do Exército


General de exército Ueliton José Montezano Vaz

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Gentil Palhares

Frei Orlando
O capelão que não voltou

2ª edição

“Passei pela vida sempre rindo, embora


tivesse muitos motivos de chorar...”

BIBLIOTECA DO EXÉRCITO
Rio de Janeiro
2013
BIBLIOTECA DO EXÉRCITO Publicação 892
Coleção General Benício Volume 494

Copyright © by Biblioteca do Exército

Fotografias: Alberto Fadul, veterano da FEB


Arquivo dos franciscanos
Revisão: Hélia Neves e Ellis Pinheiro
Imagem da Capa: Leonardo Dessandes
Capa e Diagramação: Leonardo Dessandes

O71 Palhares, Gentil, 1909-.


Frei Orlando: o capelão que não voltou / Gentil
Palhares. - 2. ed. - Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
2013.
268 p.: il.; 23 cm. – (Biblioteca do Exército; 892.
Coleção General Benício; v. 494 )

“Passei pela vida sempre rindo, embora tivesse


muitos motivos de chorar...”

ISBN 978-85-7011-496-9

1. Orlando, frei, 1913-1945. I. Título. II. Série.

CDD 922

Impresso no Brasil Printed in Brazil


Apresentação

A Força Expedicionária Brasileira (FEB) atravessou o


Oceano Atlântico com a finalidade de combater o
nazifacismo, integrante do conjunto de forças aliadas que lutavam no
continente europeu.
Frei Orlando seguiu para a guerra com a Companhia de
Comando Regimental do II Batalhão, do 11º Regimento de Infantaria –
Regimento Tiradentes (11º RI).
O autor conviveu com o biografado por um período de sete
meses – de 20 de julho de 1944 a 20 de fevereiro de 1945 –, durante a
campanha da Itália.
Depois de longo trabalho, na década de 1960, lançou a obra
Frei Orlando: o capelão que não voltou, inicialmente pelas Editoras Associa-
das do Brasil e, em 1982, a primeira edição sob a chancela da Biblioteca do
Exército que o reedita, agora, no bojo dos eventos comemorativos do cen-
tenário de nascimento do Patrono do Serviço Religioso da Força Terrestre.
O campo de pesquisa do autor foi na localidade de Morada
Nova de Minas, com depoimentos dos familiares de Frei Orlando.
Os relatos sobre a infância, o despertar para a religiosidade, a
clausura nos seminários da cidade de Divinópolis e na Holanda, país onde
teve início a sua carreira na Ordem dos Franciscanos, o regresso ao Brasil,
o magistério no Colégio Santo Antônio, em São João Del Rei, e o voluntário
ingresso, como capelão militar, no 11º RI são o fio condutor da narração.
A edição foi enriquecida com a inclusão de cópias das inú-
meras cartas enviadas aos seus irmãos e irmãs, amigos e instituições,
6 Frei Orlando: o capelão que não voltou

desde o início da sua formação eclesiástica até o seu ingresso no Quadro


de Capelães Militares.
O trabalho apresenta, ainda, depoimentos de personalidades,
mestres e chefes militares que tiveram o privilégio de conviver e conhecer
a sua espiritualidade e constatar a alegria de bem servir ao próximo.
Frei Orlando granjeou o respeito, a admiração e o carinho
do sofrido povo italiano e de todos os integrantes da FEB que o conhece-
ram pelo seu destemor e abnegação, além da obstinação em levar o con-
forto espiritual aos “pracinhas” que estavam nas linhas de frente, sem se
importar com os perigos dos locais onde estivessem.
Venceu o frio e o medo.
Caminhou de trincheira em trincheira sempre exibindo o
largo sorriso, sua marca registrada.
Afinal, é de sua autoria a frase “passei pela vida sempre rin-
do, embora tivesse muitos motivos de chorar”.
Seu ânimo contagiante impulsionou os combatentes no
cumprimento do dever.
Os militares do Regimento jamais esqueceram o otimismo
transmitido, a determinação e o sorriso de bondade, compreensão, paz
e caridade.
A reedição dessa obra visa cultuar a memória do valoroso
religioso que, vítima de um disparo acidental, tombou durante o rigo-
roso inverno italiano quando se deslocava para a zona de reunião da
6ª Companhia, do II Batalhão, na véspera do que seria o bem-sucedido
ataque ao Monte Castelo.
Conta-se que, no dia seguinte, durante a cerimônia fúnebre
no Cemitério Militar Brasileiro Votivo de Pistoia, as nuvens carregadas
da região conflagrada abriram-se, depois de semanas de clima ruim, e
permitiram que os aviões do 1º Grupo de Caça, da Força Aérea Brasilei-
ra, despejassem suas bombas no topo das elevações de Monte Castelo,
Belvedere, La Torracia e Mazangana. Era o espírito de Frei Orlando a
impulsionar o seu Regimento para a vitória.
A inesperada e triste notícia do falecimento do Capelão
Frei Orlando golpeou duramente a tropa.
Partira o soldado de Deus e da Pátria.

Cláudio Skora Rosty


Apresentação da 1ª edição

A galeria dos Patronos do Exército estaria incomple-


ta se faltasse a figura do capelão modelar: Frei Or-
lando – Patrono do Serviço de Assistência Religiosa.
Para que a posteridade o conheça, tal como foi, de que ma-
neira viveu sua obra de amor e consagrou-se por inteiro à sua fé, a Bi-
blioteca do Exército vale-se do testemunho dos que o conheceram na
guerra e na paz.
Utiliza-se a Bibliex do admirável testemunho de Gentil Pa-
lhares, escritor militar fecundo, que com ele conviveu na mesma organi-
zação, na mesma Unidade, na mesma subunidade. Serve-se do livro Frei
Orlando, publicado em 1969, pelas Editoras Associadas.
Palhares fez trabalho paciente e honesto: foi surpreender,
em Morada Nova, Divinópolis e São João Del Rei, junto a familiares e
amigos, junto a lugares e coisas de sua vivência, os passos, os gestos e a
voz do grande capelão.
A vida e a obra de amor de Frei Orlando transparecem aqui,
mais por suas próprias palavras, mais pelas palavras que escreveu a
seus pais adotivos e a seus irmãos, de toda parte por onde andou, do
que pelos depoimentos daqueles que o conheceram. Palhares conseguiu
reunir cartas dos tempos de sua formação nos seminários, em Divinó-
polis e na Holanda, de seu apostolado em São João Del Rei e nas frentes
de combate da Itália. Traz-nos Frei Orlando vivo, em sua orfandade, seu
sofrimento, seu sorriso, seus sonhos, sua suavidade, sua intuição, sua fé,
sua renúncia, sua predestinação.
8 Frei Orlando: o capelão que não voltou

A Biblioteca do Exército sente-se orgulhosa por contar com


o prefácio de um dos mais lúcidos e dedicados historiadores militares
brasileiros de todos os tempos: coronel Francisco Ruas Santos. A seus
méritos de pesquisador e pensador junta-se, aqui, a condição raríssima
do testemunho, pois Deus o colocou ao lado de Frei Orlando, na tarde
de 20 de fevereiro de 1945, por Ele escolhida para levá-lo para sempre.
Também nos sentimos orgulhosos por contar com comen-
tários de personalidades, mestres e chefes militares que tiveram o privi-
légio de conhecer Frei Orlando e sentir-lhe a imensa dimensão humana.
Ver-se-á, no perpassar destas páginas, que a escolha de Frei
Orlando para Patrono do Serviço de Assistência Religiosa resultou me-
nos de sua morte que de sua vida, tantos e tão multiplicadores foram os
seus exemplos, porque seu breve caminho haverá de ser permanente
inspiração para todos os capelães que o Exército tiver.
Ver-se-á que foi simples e forte, alegre e transparente, fiel ao
seu Deus, à sua fé, ao seu amor ao próximo, fiel a si mesmo. Ver-se-á que,
nos cinco universos de sua vida – a família, a igreja, a escola, a caserna e
a nação –, soube ser irmão, pastor, mestre, soldado e cidadão.
Frei Orlando foi tocado pela verdadeira vocação sacerdotal,
praticada na paz – nos serviços paroquiais, na devoção à “sopa dos po-
bres” de São João Del Rei, assim como nas aulas e na direção espiritual
do Colégio Santo Antonio e da Ordem Terceira; e vivida na guerra – em
sua presença permanente junto aos postos de saúde avançados, levando
a esperança e o conforto espiritual aos moribundos e feridos da frente
de combate: “Não posso permanecer distante dos que caem varados pe-
las balas, gritando pelo nome de seus pais.”
A Biblioteca do Exército está convencida de que o livro de
Gentil Palhares é necessário e oportuno, em um mundo carente de renún-
cia e de verdadeira vocação sacerdotal, realmente dedicada à salvação das
almas: “Eu, por mim, estou no mundo das nuvens, pouco me importa ficar
aqui ou ali. Mas onde eu possa trabalhar para salvar almas, aí me é muito
bom. Também pouco me importa viver uns anos a mais ou a menos.”
No campo de combate, no vigor dos seus 32 anos, amparan-
do todos os necessitados de sua bênção e de sua palavra de esperança e
de fé – compatriotas, aliados, refugiados e até adversários –, Frei Orlan-
do pressentiu que Deus o chamaria mais cedo e que não voltaria à sua
Pátria, a Minas Gerais e ao convívio de seus paroquianos.
Apresentação da 1ª edição 9

Sentindo o chamado de Deus, Frei Orlando deixou escrito, en-


tre os papéis “para serem lidos depois de minha morte”, este maravilhoso
recado as suas irmãs – aquelas que na terra eram o seu maior amor:
“Um dia, em uma manhã cheia de sol, vocês colheram umas
flores, flores que plantaram e mas ofereceram.”
(...) “As flores, lembro-me bem, eram cinco margaridas, e
cada uma delas, na sua singeleza e brancura, deveria representar uma
de vocês. E elas ornaram, na vida, a minha cela de Frade. Nunca mais
as viram. Eu queria depositá-las, um dia, uma por uma, ao lado de cada
uma de minhas queridas irmãs que Jesus chamasse para a recompensa
eterna. Mas, parece-se que não é este o plano de Jesus. Eu fui primeiro.”
(...) “Quando chegar, também, a vez de cada uma de vocês se
despedirem, quem ficar ainda ao lado da irmã, coloque a margarida plan-
tada e colhida para que fosse oferecida ao Padre da família. E eu estarei
satisfeito porque estarei com Jesus. Nunca pensei em deixá-lo. Nunca.”
Ao publicar o livro de Gentil Palhares sobre Frei Orlando,
a Biblioteca do Exército tem a consciência de prestar grande serviço a
seus leitores, não apenas por completar a galeria dos Patronos do Exér-
cito, mas porque a vida de um homem simples e puro, como a de Antonio
Alvares da Silva, é fonte de permanente edificação. Poderá servir-nos, a
todos nós – e aos que virão depois de nós –, pois a vida consagrada a um
ideal, a uma causa, a uma fé, a amar e servir a Deus e ao próximo, é uma
vida que vale a pena ser vivida.
A existência contada neste livro é um caminho para os ver-
dadeiros capelães, para os sacerdotes de todos os credos, caminho de
bondade e compreensão, de renúncia e de alegria, para todos os que
o tiverem em suas mãos e possam interiorizar sua mensagem: “passei
pela vida rindo, embora tivesse muitos motivos de chorar”.
A Biblioteca do Exército sente-se feliz por entregar este li-
vro a seus leitores, certa de que é um desses que ajudam as pessoas a se
tornarem mais simples, mais prestantes, mais solidárias e, consequen-
temente, melhores.
Octavio Pereira da Costa¹
General de divisão

¹ Durante a Campanha da Itália, serviu como 1º Tenente, no 11º Regimento de In-


fantaria.
O capelão

P ara Dom José Newton2, o papel dos capelães, no de-


curso de nossa história, “bem pode ser traduzido
pelo gesto de um Frei Henrique de Coimbra, capelão da frota de Cabral,
a escrever a página indelével da primeira missa. Dos capelães durante a
Guerra do Paraguai. Daqueles da gloriosa Força Expedicionária Brasilei-
ra, representados pelo sacrifício de um Frei Orlando, na Itália”.
Diz ainda que a figura do capelão militar tem muito de meri-
tório: “É o padre a serviço espiritual e moral dos que seguem a carreira,
dignificante, mas rude, das armas. Ele também é soldado, mas, acima de
tudo, é padre”.

(Transcrito de O Globo – domingo, 31 de março de 1974)

2
Dom José Newton de Almeida Baptista, arcebispo de Brasília e vigário Castrense
do Brasil.
FREI ORLANDO*
(Acróstico)

Foi chamado para a luta ao som do clarim...


Resignado e alegre. Frei Orlando seguiu,
Envergando uma farda, em defesa da Pátria,
Indo as almas guiar, para a Guerra partiu.

Onde quer que estivesse a dor ou a morte,


Reanimando e consolando, aí estava também.
Largando sua vida à mercê da sorte
Achando seu sacrifício fazer grande bem
Na alma de um irmão, caro e amigo,
Deu ele para isso, seu sangue, sua vida,
Oferecendo-se ao Senhor, sem temer o perigo.

Até que um dia, em missão sacerdotal,


Levando aos moribundos o último conforto,
Varou-lhe o coração uma arma fatal!
Agonizante, cai com a mão sobre o peito,
Rezando... conhece seu estado mortal.
Expira, em seu posto, o bom franciscano.
Sua alma de escol passa à vida imortal.

Desaparece do front... os soldados choram


A perda daquele que encontrou seu ideal!

Seus amigos, tão longe da Pátria saudosa,


Inumaram seu corpo em plagas italianas.
Lá, junto de Deus, está sua alma venturosa,
Velando por nós e pela Ordem Franciscana,
Aponta-nos o Céu, nossa morada gloriosa...

(autor desconhecido)

*No acróstico, o autor usou Orlando, em lugar de Antonio, o nome verdadeiro.


À minha esposa, que chorou comigo na des-
pedida triste para a jornada incerta.
Aos caros companheiros de luta nos montes
nevados da Itália.
A Adauto Alves Palhares, Cláudia Valéria
........e
Nilton Vargas Brasil Júnior, com todo o meu
afeto e carinho.
Prefácio

N o jornalzinho de campanha do 11º Regimento de


Infantaria, Vem Rolando..., edição de 20 de março
de 1945, ainda sob a impressão do trágico desaparecimento do nosso
capelão, escrevemos:
“Frei Orlando. Duas palavras a significar um mundo de belas
ações, uma vida verdadeiramente vivida.
Frei Orlando, para o nosso Regimento, tinha de ser mais do
que o capelão dedicado, confortando e animando os soldados em todos
os seus momentos.
Frei Orlando tinha de ser mais do que o amigo de todos em
todas as horas. Frei Orlando tinha de ser mais ainda, pois era como um
pedaço de São João a seguir o Regimento de São João.”
...
“Frei Orlando era um bom.
No mundo atual em que é difícil achar-se um homem a quem
se possa, sem grave injustiça, atribuir o adjetivo dos eleitos de Deus, é
confortador dizer-se assim: – Frei Orlando era um bom. E porque era um
bom, nós todos do Regimento, vós todos, pobrezinhos de todos os cami-
nhos palmilhados pelas alpercatas do irmão e êmulo de Santo Antonio,
tu, São João Del Rei, havemos de sentir sua perda para sempre.”
...
“Viveu e morreu como um santo e um herói.”
Hoje, podemos acrescentar: Frei Orlando é um irmão e êmu-
lo, também, de São Francisco de Assis. Pois é assim que o descreve muito
bem nosso companheiro daqueles dias de campanha, no 11º Regimento
18 Frei Orlando: o capelão que não voltou

de Infantaria, o tenente Gentil Palhares, autor deste livro. E o faz muito


bem, porque se apoia em documentação fidedigna e renovada, base para
a justa interpretação da vida do biografado. E, acima de tudo, para poder
demonstrar a verdade do que afirmáramos, ainda sob a impressão senti-
mental, naquele dia já longínquo, da nossa luta em solo italiano.
Eis por que ainda muito bem andou a Biblioteca do Exército
em reeditar este livro, inicialmente aparecido há 15 anos em edição das
Editoras Associadas do Brasil.
Primeiramente, porque projeta em seu numeroso público
os valores espirituais e morais modelarmente exemplificados na pessoa
do “capelão que não voltou”.
Depois, porque atende a um dos objetivos atuais prioritá-
rios da nossa História Militar Pragmática, o de reconstituir novas vidas e
novos fatos que deem ao combatente de hoje uma explicação justa para
o extremo recurso à guerra.
Isto, para o soldado profissional e aqueles que, por dever
cívico, devem prestar serviço militar. E para os religiosos e os idealistas?
Frei Orlando nos dá a resposta:
“... se o mundo todo oferece vidas para melhorar a humani-
dade, por que não posso eu oferecer a minha?”
O sacrifício supremo de Frei Orlando vivificou e eternizou
este seu ideal, pois a História prova: “viveu e morreu como um santo e
um herói”, tal como bem se poderá sentir pela leitura desta biografia do
Patrono do Serviço de Assistência Religiosa do Exército.

Francisco Ruas Santos 3


Coronel

3
Durante a Campanha da Itália serviu, como capitão, no 11º RI.
À guisa de explicação
e esclarecimentos

A o escrever, mais uma vez, sobre a vida de Frei Or-


lando, impõe-se-nos o dever de, respeitosamente,
iniciando as nossas palavras, ajoelharmo-nos em espírito diante da sua
memória. Porque não se pode falar de uma vida tão exaltada, sublime e
santa, sem que o façamos genuflexos, debruçados, reverentes!
Durante os 24 anos que assinalaram o término do conflito
de 1939-45 , não foi ele esquecido, nunca, em nosso pensamento e em
4

nosso coração. Mas evocado sempre, já na imprensa, já em um livro de


crônicas que recebeu como título o seu nome.
Entendemos que as criaturas que passam pela terra e dei-
xam traços marcantes de virtudes espirituais, como no caso do capelão
da FEB5, não podem e não devem ser olvidadas. Para exemplo. Exemplo
e estímulo.
O capelão, tragicamente desaparecido nos campos da Itália,
está nesse rol, porque soube pautar sua vida nos mais rigorosos precei-
tos humanos e cristãos.
Seu postulado foi repleto de bênçãos e de benemerências,
prendas que recebeu dos Céus, para que as transformasse em flores e
em frutos. Remédio da alma e alimento do corpo para todos aqueles que
a ele recorriam em suas aflições.
Hosanas lhe sejam cantadas na Mansão em que hoje habi-
ta. Que os anjos, seus preceptores na terra, onde Frei Orlando viveu 32

4
Segunda Guerra Mundial.
5
Força Expedicionária Brasileira.
20 Frei Orlando: o capelão que não voltou

anos, somente praticando o bem, possam, no Céu, formar com ele a Cor-
te dos Eleitos de Deus.
E que possa ele, o amigo, soldado de Deus e dos homens,
interceder por nós, pobres pecadores, junto ao Pai Supremo.
A exemplo de Cristo e do humilde filho de Assis, Frei Orlan-
do passou pela existência terrena transformando queixumes em garga-
lhadas, rindo e a todos fazendo rir.
Mas, diz ele em uma de suas missivas que encontraremos
neste livro: “Passei pela vida sempre rindo, embora tivesse muitos moti-
vos de chorar.” E quem não chora nesta vida?
E foi assim, rindo e gargalhando, que enfrentou o mundo,
com seus erros, suas paixões e maldades, para tornar-se missionário do
Amor e da Fé.
Juntos, não nos dias festivos e alegres de paz, porém no fra-
gor das batalhas de uma guerra, passamos a nos entender e a nos esti-
mar. Lado a lado, várias vezes enfrentamos a morte no estouro da bom-
ba ou no avião que surgia com seu ronco macabro e triste.
Divergindo um do outro, no que tange ao sentimento filo-
sófico-religioso, tanta e tamanha, entretanto, foi a nossa boa compreen-
são, caIdeada nos princípios sadios da tolerância, que isso, mais e mais,
nos estreitava. Havia, em tudo, sinceridade de propósitos, consolidando
cada vez mais a nossa estima pelo Ministro da Igreja Católica. Daí afir-
marmos sempre a nossa admiração, a nossa perene reverência à sua me-
mória. Uniram-nos, pois, os sentimentos da Tolerância, hoje pregada e
recomendada por Paulo VI no Trono Papal, para que toda a humanidade
se entenda e se ame verdadeiramente. E para que o mundo possa conhe-
cer a paz. Muitos ignoram como foi a existência do inolvidável capelão
da FEB, como viveu e, sobretudo, como encontrou a morte.
Nesta obra, ora dada a lume, há risos e lágrimas, dor e neve,
sangue e gemidos. É um relato histórico todo paradoxal! A infância e
juventude de Frei Orlando, aureoladas de virtudes e de pureza, formam
o lado humano e belo da obra.
Este livro deve ser para os jovens, os quais, mais do que
nunca, necessitam de exemplos sadios e exaltados nesta hora grave da
nacionalidade. Se algum mérito possui o nosso trabalho, este se firma e
se consolida em um ângulo exclusivo: o da Virtude.
À guisa de explicação e esclarecimentos 21

Virtude que iremos encontrar em um coração incomensu-


ravelmente voltado para os pobres, os oprimidos, e, entranhadamente,
para Deus!
Ao darmos início à obra, recebemos o indispensável apoio
de amigos e parentes do nosso biografado, motivo por que consignamos
nestas páginas efusivos agradecimentos a todos. Aos Senhores Jacob Ziza
de Vargas e Antonio Borges, o primeiro na qualidade de prefeito de Mo-
rada Nova, terra natal de Frei Orlando, e o segundo, seu digno secretário,
os quais tudo fizeram para que tivéssemos êxito; a Álvaro Monteiro de
Azeredo Coutinho, amigo e jornalista de Barbacena; ao então prefeito de
São João Del Rei, Sr. Nelson José Lombardi, que não poupou esforços no
incentivo ao autor nas horas de desalento; ao major Waldemir Frância,
companheiro de lutas no Velho Mundo e sempre prestante nas infor-
mações que lhe eram solicitadas; ao particular amigo, jornalista, poeta
e escritor laureado – Lincoln de Souza, da Guanabara, o qual nos deu a
cooperação do seu talento, dirimindo dúvidas do vernáculo; aos senho-
res Álvaro de Castro Teixeira, irmão de D. Emirena (mãe adotiva de Frei
Orlando), bem como a seu ilustre filho, Dr. José Teixeira de Carvalho, os
quais tanto fizeram pelo bom êxito deste trabalho, deixamos, nestas pá-
ginas, os nossos imorredouros agradecimentos por tudo que de bem nos
fizeram, ajudando-nos a ressaltar a memória de um franciscano hoje al-
çado aos pés de Deus.
Muito de propósito consignamos, por último, o nome do ge-
neral Rafael Rodarte, nosso comandante de Companhia na Guerra6, à
qual pertencia, também, o inesquecível Frei Orlando. Sem a ajuda efi-
ciente do citado general, que foi um devotado amigo do biografado, não
teríamos conseguido o nosso intento. Foi inestimável o seu concurso em
documentos elucidativos de muita coisa interessante e inédita sobre a
vida do nosso capelão. Eis por que, nas páginas que se vão ler, encontra-
se o nome do general Rodarte em diversos pontos da narrativa histórica,
por isso que nos achávamos, o autor e Frei Orlando, a ele estreitamente
ligados. O referido general é, pois, testemunha ocular de tudo que se
narra nesta obra, no que tange à parte condizente com a guerra.
Tão cheia de virtudes foi a existência de Frei Orlando, desa-
brochada para o Bem e para o Amor, que nós, hoje, conquanto seguindo
6
Força Expedicionária Brasileira.
22 Frei Orlando: o capelão que não voltou

rumos diferentes nos Caminhos para a Eternidade, tributamos-lhe com


respeito e carinho a nossa incondicional veneração. Em assim proce-
dendo sentimo-nos perfeitamente bem com a nossa consciência, porque
Frei Orlando não deve e não pode desaparecer nos vendavais do Tempo,
mas deve ser lembrado sempre, perenemente, para exemplo e encoraja-
mento às gerações sucessivas.
Nós passaremos. Mas a obra de Frei Orlando ficará imorta-
lizada nos corações.
E para isso, somente para isso, escrevemos este livro.

Gentil Palhares
Sumário

Apresentação ......................................................................................................... 05

Apresentação 2ª edição ..................................................................................... 07

Prefácio ......................................................................................................... 17

À guisa de explicação e esclarecimentos ................................................... 19

Capítulo 1 – Infância e vocação .................................................................. 25

Capítulo 2 – O primeiro seminário


Embarque para a Holanda .................................................. 59

Capítulo 3 – Ordenação
Sua vida em São João Del Rei ............................................. 81

Capítulo 4 – Uma prática surpreendente no Templo de São Francisco


E a “Sopa dos Pobres” ganhou um saco de arroz....... 95

Capítulo 5 – A Segunda Guerra Mundial


Um pouco de história ............................................................ 101

Capítulo 6 – A guerra bate às portas da cidade histórica ................ 105

Capítulo 7 – No Rio de Janeiro


Um acantonamento de sacrifícios
Frei Orlando apresenta-se................................................... 111
24 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Capítulo 8 – Ainda o acantonamento do Capistrano


Frei Orlando abençoa o sábio............................................. 123

Capítulo 9 – Adeus, Brasil! ............................................................................ 133

Capítulo 10 – A missa na Catedral de Pisa


Uma escalada à Torre Inclinada
Sua Majestade, o Inverno..................................................... 141

Capítulo 11 – A marcha para o ‘front’.......................................................... 147

Capítulo 12 – Inimigo à vista!


Vou “orelhar” um tedesco! .................................................. 153

Capítulo 13 – Ainda sua Majestade, O Inverno!


Um batizado em pleno ‘front’............................................. 159

Capítulo 14 – Visita a Pio XII


Ataque infrutífero ................................................................... 167

Capítulo 15 – Ainda “Paz e Guerra”


Continua reinando Sua Majestade, o Inverno!
Frei Orlando é promovido a capitão
Convite para uma farra ......................................................... 175

Capítulo 16 – Nada de ataque!


Cai a neve...
Ligeiras considerações sobre a guerra .......................... 185

Capítulo 17 – A morte de Frei Orlando


Sobe aos Céus um santo!...................................................... 189

Capítulo 18 – ‘In Memoriam’ .......................................................................... 201

Anexos ......................................................................................................... 219


Capítulo 1

Infância e vocação

E ngastado nas montanhas das plagas mineiras, bem


na Bacia do São Francisco – Alto São Francisco – a
15 km do rio de mesmo nome, e à sua margem direita, surge o município
de Morada Nova de Minas.
É pequeno o seu casario, ora disperso, ora formando alas
pelos altiplanos, para confundir-se com a pequena praça, onde se ergue
o seu primitivo templo de fé católica e no qual os habitantes da região
congregam-se no seu entendimento com as coisas de Deus.
A história do surgimento desse burgo das Alterosas, como a
de tantos outros, é simples, singela e tocante.
D. Inácia Maria do Rosário, que habitou a Fazenda do Saco
Bom, por volta de 1800, mandara construir nas suas imediações uma
Capelinha dedicada a N. Srª do Loreto, para que os padres franciscanos,
vindos de Pernambuco, pudessem pregar suas Missões aos colonos e a
outras pessoas habitantes das redondezas.
Mais tarde, diz a história de Minas, ao lado dessa Capela,
construíra um sobrado de pedra, no qual passara a residir. E dizia a todos,
como se em um desabafo e em uma alegria da vida: “Minha Morada Nova!”
Daí surgira o burgo! Os descendentes de Inácia Maria do Ro-
sário afluíram ao local e vieram outros, mais outros, atraídos pela ferti-
lidade do terreno e por ser a região francamente propícia à criação de
gado. E a população foi aumentando, crescendo.
Pela Lei Provincial nº 503, de 1852, foi criada a Freguesia
de N. Srª do Loreto, pertencente ao Bispado de Pernambuco. Em 1861,
passou a integrar a Diocese de Mariana. Em 1º de janeiro de 1939,
26 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Morada Nova de Minas foi elevada à categoria de Vila, pela Lei nº 312.
No ano de 1943, quando o mundo se encontrava mergulhado no caos
da Segunda Guerra Mundial, ganhou foros de município, com o topôni-
mo de Morada, alterando-se para Moravânia e, posteriormente, Morada
Nova de Minas, seu atual nome.
Sua Comarca data do ano de 1955, pela Lei nº 1.039 de
12 de dezembro de 1953, sendo instalada, definitivamente, a 31 de
março de 1955.
Com a criação da Barragem de Três Marias, foi o município
fortemente atingido pelas águas, por isso que dista apenas 62km da gi-
gantesca obra nacional.
Pequena é a população da sede, não atingindo 15 mil habi-
tantes. Seus distritos são Biquinhas, Moravânia e Frei Orlando, ex-Junco.
A cidade de Morada Nova de Minas surgiu, pois, consoante
se vê do sentimento piedoso e cristão de D. Inácia Maria do Rosário, cujo
nome ficaria perenemente ligado àquele rincão das terras mineiras na
sua região oeste.
Decorridos 98 anos desse evento, vem ao mundo, sob os céus
daquelas paragens, no Distrito de Junco, o menino que se chamaria Antonio
Alvares da Silva. Nasceu, pois, aquele que seria mais tarde um servo fiel de
Deus e seguidor de Francisco de Assis, a 13 de fevereiro de 1913, filho le-
gítimo de Itagyba Alvares da Silva e Jovita Aurélia da Silva, família das mais
conceituadas e estimadas do lugar, pela sua dignidade e honradez.
Itagyba morreu assassinado, quando procurava defender os
seus direitos e o seu nome, na própria casa comercial de que era pro-
prietário. Ao ser atingido pela arma do pistoleiro e bandido José Palalá,
um amigo de nome Isac surge no momento, sacando de sua arma, e dá
duplicidade à tragédia, matando o agressor de Itagyba.
Morada Nova, naqueles tempos, era afamada pelos crimes
bárbaros e traiçoeiros que ali ocorriam. Era um lugar temido a terra que
nos deu o manso e sereno Antonio, o qual ficou, como se depreende, ór-
fão de pai aos três anos incompletos, por isso que a tragédia se verificou
no dia 29 de janeiro de 1916.
Sua mãe, D. Jovita, como veremos, já havia falecido em quatro
de junho de 1914, deixando o caçula Antonio com apenas pouco mais de um
ano de idade. Conclui-se que a existência do órfão de Morada Nova seria, daí
por diante, um rosário de sofrimentos e uma constante incerteza quanto
Infância e vocação 27

ao futuro. Órfãos, igualmente, haviam ficado seus irmãos mais velhos Jeo-
vá, Guaraciaba, Itagiba, José, Alice, Maria, Clara e Fausta, todos residentes
em Minas Gerais. Já existia uma combinação dos dois amigos, seu Ita e seu
compadre, o farmacêutico Sebastião de Almeida Pinho, segundo a qual, por
morte do primeiro, passaria este a criar o menino Antonio.
Eis como, pelas portas da morte e pela bondade dos compa-
dres Sebastião de Almeida Pinho e D. Emirena Teixeira Pinho, foi o me-
nino habitar a casa estranha, mas francamente acolhedora da estimada
família de Morada Nova.
O novo lar, onde imperava sistema rígido, austero, dos an-
cestrais lusitanos e onde a esposa se orientava na vida seguindo os pos-
tulados cristãos, seria, para o pequeno órfão, o ninho macio e cálido da
sua existência, que o conduziria ao altar como sacerdote e ao Trono de
Deus como verdadeiro cristão.
Não era Antonio um simples tutelado, senão um filho muito
estimado dos pais adotivos que a ele se ligaram pelos laços de um afeto
profundo e puro, confundindo-o no lar com os filhos legítimos, que bem,
muito bem, souberam acolher o inesperado irmãozinho.
Como todo menino de sua idade, era travesso, vivo o orfão-
zinho. O relógio do tempo ia rodando e ele crescendo em tamanho e em
idade. Seu brinquedo predileto, entre outros, era o bodoque de atirar
pedras, lançadas a esmo, atingindo as pessoas e, não raro, as casas dos
vizinhos mais próximos. Gostava também, como veremos, de colecionar
fotografias de artistas de cinema e de se tornar, ele mesmo, um artista
armado com seu revólver de madeira.
O pai, sempre bom e paciente, ia tolerando tudo aquilo, por-
que via naquela criança sentimentos nobres. Se às vezes se aborrecia,
não raro, entretanto, à noite levava o filho carinhosamente para o próprio
quarto do casal e, dormindo com ele, entoava antes as saudosas canções
do seu velho Portugal, a Pátria dos seus sonhos e das suas saudades.
Sebastião de Almeida Pinho já era pai meia dúzia de vezes.
Os filhos legítimos, todavia, sob o aconchego total do lar, já não neces-
sitavam tanto dos seus carinhos. Assim pensava, por certo, o estimado
farmacêutico de Morada Nova. E pensava bem, com a alma e o coração
de homem caridoso e voltado para as nobres e elevadas ações. Daí o não
haver relutado em amparar aquele pedacinho de gente, menino muito
vermelho, de olhinhos azuis e travessos.
28 Frei Orlando: o capelão que não voltou

“Como é triste a orfandade!” – gemia o grande Humberto de


Campos, o orfãozinho de Miritiba, no Maranhão!
Para o já olvidado escritor maranhense (inexplicavelmente
está esquecido Humberto de Campos), ainda lhe ficara a velha mãe, seu
sustentáculo e inspiradora, acompanhando-o de perto em sua formação,
que seria no futuro tão aureolada, para fazer do menino Humberto uma
das maiores glórias do gênio literário de seu tempo.
Mas, e Antonio? Não ficara só, desconhecendo, portanto, o
que fosse o amor de seus pais legítimos?
Valeu-lhe, entretanto, porque Jesus afirmara que o Pai não
deixaria órfão a nenhum de Seus filhos, o coração magnânimo dos Tei-
xeira Pinho. A Humberto de Campos, como se ainda fosse pouco o ca-
rinho de sua mãe, viúva e pobre, Deus lhe premiara, também, com um
amigo: o seu cajueiro.
“Meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera! Eu cresço,
mas ele cresce mais ainda do que eu. Passado um ano, estamos do mes-
mo tamanho. Perfilamo-nos, um junto do outro, para ver qual é o maior!
“Meu cajueiro é uma árvore adolescente, elegante, graciosa!” 7
Se não possuía, contudo, o menino Antonio o seu cajueiro e
se nada lhe faltava no lar amigo, mais e mais, todavia, passava a compre-
ender o seu drama familiar.
Era, entretanto, feliz, muito feliz para que, avançando os
anos, prosseguisse nas suas peraltices inocentes. Aprumando papagaios
de papel, armando arapucas nos fundos das hortas com os outros me-
ninos, Antonio fazia-se indiferente ao futuro. Sabia, entretanto, corres-
ponder perfeitamente à afeição que lhe devotavam: terno, submisso,
carinhoso, dedicado aos que o amparavam. Os amigos e vizinhos dos
pais adotivos do pequeno órfão condoíam-se dele e lamentavam a sua
situação. Sabiam, no entanto, que ele vivia rindo, brincando como qual-
quer criança, feliz em seu novo lar.
Os Teixeira Pinho não eram abastados, mas viviam indepen-
dentes, possuíam grande fortuna, bela formação cristã.
Não se achava o menino Antonio – bem é de ver-se – em
condições de analisar o que lhe ia em torno da vida. Só depois, decorri-
dos os anos, e não foram muitos, porque cedo deixaria este mundo, pôde
ele aferir a extensão de tudo.

7
CAMPOS, Humberto de. Memórias.
Infância e vocação 29

Muito criança ainda, já revelava espírito brincalhão, jocoso,


gostando de fazer graça para os outros rirem, sempre alegre e jovial,
dentro da proporção da idade. Aos sete anos, foi matriculado na escola
do professor Rafael Barroso.
Sobre ter sido dado às diabruras, possuía, contudo, bela
formação moral, respeito e obediência aos mais velhos, horror à menti-
ra, dedicação aos estudos, à medida que as exigências escolares iam se
acentuando. Sobejavam-lhe, pois, magníficos sentimentos de fé e pieda-
de, caldeados nos exemplos de seus novos pais.
Na primeira escola onde se matriculara, não se demorou
por muito tempo, seguindo depois para a Cidade de Abaeté, destino to-
mado pelos pais adotivos. A isso foram levados pelo imperioso dever de
cuidar da instrução dos filhos, o que se tornava impossível na pequena
Morada Nova.
Matriculou-se, então, no Grupo Escolar Frederico Zacarias,
do qual foram diretores, na época, Artur Mendonça de Alvarenga Mafra,
e Afonso Lamounier de Andrade.
Em 1920, fez sua primeira comunhão, fruto da sua vivência
em um meio dotado dos mais acrisolados sentimentos religiosos, apa-
nágio da família mineira.
Frequentava assiduamente o catecismo, ao qual – afirmam
seus irmãos – comparecia sob intenso fervor religioso, vocação que lhe
era latente. Às vezes, ao ser procurado pelo pai, era encontrado no alto
da torre da Igreja Matriz de Abaeté para, dizia ele, aprender a repicar e
dobrar os sinos. É que, à medida que ia tomando idade, notavam todos,
também ia-se-lhe desabrochando uma visível inclinação para as coisas
da Igreja, acentuado pendor para a vida clerical, lampejos para um des-
tino, mais tarde, concretizado.
E a vida de Antonio seguia seu curso, como se tangida pelas
mãos do Supremo Criador, que, tudo dizia, tinha o Seu olhar complacen-
te para ele, futuro servo dos Céus.
Tal como o lírio dos vales, que se engalana, enfeita-se ao
simples contato da brisa, o lírio de Morada Nova ia germinando lenta-
mente, ganhando forma e pureza, aformoseando-se cada vez mais para
a vida. E deixava de ser a tenra flor, para erguer-se sublime e belo, para
o alto, para Deus!
30 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Aos pais de Antonio não passava despercebida a sua singular


atitude, para tornar-se misto de anjo e de Malasartes, criando em todos uma
natural interrogação e sérias preocupações quanto ao destino do menino.
Nas procissões empunhava compenetradamente o turíbulo,
com o qual ia incensando a uns e outros, ávido de bem servir à Igreja, ao
Vigário, que o admirava e tinha por ele veneração.
Com a mesma avidez, entretanto, com o mesmo ímpeto, era
visto depois do ato religioso, correndo desenfreadamente rua abaixo,
rumo ao pasto, que ficava nas imediações de sua casa. Aí, então, trocan-
do o turíbulo pela armadilha de apanhar passarinhos, surpreendia-os
pelas árvores, encarcerando-os.

Senhor Itagyba e D. Jovita, pais do nosso biografado, logo


após terem núpcias
Infância e vocação 31

“Mas que coisa admirável!” – escrevem-nos seus familiares


e amigos de infância para a elaboração desta biografia. “Antonio não ju-
diava com os pobres pássaros e nem permitia que os companheiros as-
sim procedessem para com eles. O coração era bom demais para esses
extremos, naturais, aliás, nas crianças de sua idade.”
Infância travessa, de peraltices, característica acentuada
dos inteligentes, fora a infância do menino órfão.
O tempo, insigne alquimista, como bem afirmava Machado
de Assis, ia correndo.
As férias escolares passava-as Antonio na sua Morada Nova,
onde era estimado de todos e cujo pedaço de terra ele tanto extremava
e bem-queria.
Foi em uma dessas ocasiões – escreve mais tarde o futuro
frade – que tomou rumo definitivo a sua vocação sacerdotal, desabro-
chando-lhe na alma, o que de fato já se encontrava plantado no fundo do
seu coração, como uma semente do bem.
E, reportando-se aos seus nove anos incompletos, diz ainda:
“Eu nunca tinha visto um frade. Aliás, conhecia apenas o vi-
gário de minha vila natal, um bom sacerdote, embora um tanto enérgico,
principalmente com os meninos. Chegaram então, certa feita, em nossa
terra três franciscanos de hábito marrom, com um capuz que achei muito
engraçado, uma corda amarrada à cintura e de sandálias nos pés. Além
desta vestimenta que eu nunca vira, tinham eles uma particularidade ain-
da mais interessante, que, estando já de longo tempo em viagem através
do sertão, aliás pouco confortável, tinham os hábitos remendados com pa-
nos escuros e os cabelos muito compridos, exceto o Padre Mestre, que era
calvo. Recebidos solenemente por toda a população, eu fui indicado para
saudá-los em nome das crianças da minha escola. Li um pequeno discurso
feito pela professora, mas fiquei reparando todo o tempo em um enorme
remendo azul escuro, que enfeitava a batina do Padre Mestre, à altura do
estômago. Aqueles três homens grandes, vermelhos, pois eram holande-
ses, cativaram-me logo a simpatia. E convivendo com eles nos dias que se
seguiram, tornei-me amigo deles e profundo admirador. Embora pequeno
demais para compreender seus sermões, gostava de ouvi-los todas as noi-
tes. Fui para a cidade, tempos depois, onde havia um bom grupo escolar8.
8
Frei Orlando referia-se à Cidade de Abaeté.
32 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Era ainda pequena e bastante rústica a cidade. A civilização moderna co-


meçava, então, a surgir naqueles rincões longínquos e pouco recomendá-
veis. Menino do sertão, fiquei todo entusiasmado com os heróis daquela
época, cujas façanhas eu via no cinema e se integravam perfeitamente em
nosso ambiente. E então os heróis do faroeste americano tornaram-se-
me mais simpáticos do que os heróis vaqueiros do sertão brasileiro. E foi
justamente nessa época que me apareceram outros heróis, os missioná-
rios, cuja vida e obras de tal forma me impressionaram, que resolvi, com
incredulidade dos que me conheciam, fazer-me, um dia, um deles. Foi o
momento da graça de Deus.

D. Emirena e Sebastião de Almeida Pinho, pais adotivos


do menino Antonio
Infância e vocação 33

Irmãos de Antonio Alvares da Silva: da esquerda para a


direita – Itagiba, Maria, Guaraciaba, Jeová, Alice, José,
Clara e Fausta. Sentado, o caçula Antonio. No medalhão
Dona Jovita e o senhor Itagyba

E a Ele hei sempre de agradecer! Decorridos 18 anos, desde


que saí de minha terra, depois de visto e aprendido muita coisa até en-
tão ignorada, se ainda me fosse permitido voltar atrás, recomeçar a vida,
não trepidaria um só instante: com a mesma satisfação desejaria ser, de
qualquer jeito, um Frade, um Franciscano!”
Eis como, no ano de 1922, pela piedade e pelas mãos dos hu-
mildes franciscanos missionários, o órfão de Morada Nova ouve a primei-
ra clarinada, o primeiro grito de chamamento vindo dos Céus. Estava, por
assim dizer, selado o seu compromisso para com Deus. Abriram-se-lhe,
daí por diante, não apenas os olhos do corpo para a Luz que do Alto o
atraía e ofuscava, senão que também se lhe aclaravam as próprias Luzes
do espírito, no setor da Caridade. E fora da Caridade, ensinaram-nos os
Evangelistas, especialmente Paulo de Tarso, não pode haver salvação.
Maria, na pureza da rosa de Jericó, na castidade da esposa
do Lírio de David, na maternidade inigualada e inigualável em todos os
tempos, na humildade da viuvez sem mancha, na dor inenarrável do dra-
ma do Calvário, estaria acima da Piedade, na posição de dispensadora da
Consolação e, assim, personificada na virtude soberana e incomparável
de todos os tempos.
34 Frei Orlando: o capelão que não voltou

A Caridade

Daí a linguagem maravilhosa de Paulo, ao distinguir entre o


“Charisma Meliora”, a via mais perfeita.

“Se eu falar a língua dos santos, dos homens


e dos anjos e não tiver caridade, sou como um bronze que
soa ou como o sino que tine. E se eu tiver o dom da profecia
e conhecer todos os mistérios e quanto se pode saber; se eu
tiver toda a fé até o ponto de transportar montes e não tiver
caridade, não sou nada.
E se eu distribuir todos os meus bens no susten-
to dos pobres, e se entregar o meu corpo para ser queimado,
se, todavia, não tiver Caridade, nada disso me aproveita.
A Caridade é paciente, é benigna; a Caridade
não é invejosa, não obra temerária nem precipitadamente,
não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca seus pró-
prios interesses, não se irrita, não suspeita mal. Não folga
com a injustiça, mas com a verdade.
Tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.”

São expressivas e belas essas palavras do Apóstolo de Da-


masco (Tarso), daquele que seguiria o Cristo até a hora derradeira, de-
pois de persegui-lo.
E o menino Antonio ia recolhendo em seu coraçãozinho,
puro e inocente, não como Saulo, mas Paulo, os raios de Luz espargidos
do Alto. Parecia já despontar para a vida com um pensamento que seria
a sua divisa: fazer a Caridade! Ser caridoso!
Recebendo o nome de Antonio, na capela de sua cidade na-
tal, estava, também, assim, identificado com o Santo de Pádua, ilumina-
do franciscano, canonizado no ano de 1232. Também como Santo Anto-
nio, nascera em um dia 13, do ano de 1913.
Conforme veremos no desvendar destas páginas, uma série
de coincidências aproximava o filho de Morada Nova do manso e pie-
doso filho de Lisboa (ou de Pádua). Todavia, o temperamento, o gênio
alegre, a jovialidade, o riso sempre franco e aberto, em uma perene festa
do coração, lembrava o filho de Assis.
Era qual Francisco, o menestrel ambulante, amigo das can-
ções do seu tempo, das serenatas, devotado, todo ele, às alegrias do mun-
Infância e vocação 35

do, vendo em tudo e em todos um seu irmão, criatura sublime, porque


sem pecado. Francisco é um dos santos que abalaram o mundo. Sua for-
mação espiritual fora plasmada nos Céus, antes mesmo de habitar a Terra.
Mas, se havia entre esses dois irmãos de Ordem tanta simi-
litude ou atração dos espíritos, ambos como que caldeados na mesma
argila, formando o equilíbrio da perfeição, emulando-se, o mesmo, toda-
via, não se verificava com a origem de suas vidas.
Antonio, posto tivesse a felicidade de encontrar na terra co-
rações bem formados, que tudo fizeram por bem substituir seus pais le-
gítimos, não tinha, contudo, um Pedro Bernardone com sua rica loja e sua
bolsa, com as quais pudesse amenizar as agruras dos pobres. Porque viera
pobre ao mundo, à terra onde ele vivera semeando compreensão e amor.
Francisco assaltava a loja do pai e, como nos mostram estas
páginas, já sob o hábito franciscano, o futuro capelão do Exército “as-
saltaria”, na Itália distante e sofredora, diante da miséria e da fome dos
súditos de Mussolini, os ranchos da expedição brasileira. Era a personi-
ficação de Francisco de Assis!
Gizando a vida dessa criatura extraordinária, que se nota-
bilizou pelo desprendimento e pelo amor ao próximo, de par com o seu
acendrado sentimento cívico-patriótico, o autor às vezes se debruçou
sobre a sua máquina de escrever para chorar. Chorar as saudades. Cho-
rar ao palmilhar com o frade amigo a jornada de sua existência terrena,
neste livro.
Antonio Alvares da Silva veio ao mundo justamente 731
anos depois da passagem pela terra do filho da Cidade de Assis.
E aquele, como este, foi admirável em sua peregrinação no
seio dos homens. Porque possuía uma alma extraordinariamente volta-
da para os que choravam, os que sofriam.
Coroinha em seu berço natal, ajudando missa, repicando os
sinos, desfolhando a vocação de sua alma, seria mais tarde, tangido pela
fé, um perfeito sacerdote a serviço do ministério de Deus.
Cristalizava Antonio, desde menino, dentro do peito, onde
palpitavam seus anseios e esperanças, sonhos e ilusões, o ideal vivo de
um dia tornar-se ministro da Igreja de Roma.
Uma das irmãs legítimas de Frei Orlando, Fausta Alvares da
Silva, residente em Belo Horizonte, remeteu-nos, a nosso pedido, um re-
lato pormenorizado da infância do nosso biografado. Trata-se de uma
36 Frei Orlando: o capelão que não voltou

página valiosa, por isso que emanada de uma fonte credenciada para a
elucidação perfeita, autêntica.
Robustecendo e detalhando a nossa narrativa anterior,
transcrevemo-la como adendo ao que já foi dito, chamando a atenção
dos nossos leitores para o modo singelo e natural com que a referida se-
nhora nos conta o nascimento e grande parte da infância do seu irmão.
Seu Ita, mande chamar depressa siá Emília! Parece que já
está na hora...
Meu pai compreendeu e, por um de seus filhos, mandou
recado urgente para a velha parteira, que minutos após lá estava, pa-
cientemente, servindo minha mãe. Um tanto afobado, meu pai ia e vinha
da porta do quarto para a sala, e ora assobiava, ora cantava. Mas não
terminava nem uma coisa nem outra, porque nervoso, mas no íntimo
alegre, o coração palpitava pelo acontecimento. Querendo brincar com
uma nossa vizinha, que também se encontrava em nossa casa aguardan-
do o resultado, e como sabia muito bem imitar o choro de criança, fê-la
correr ao quarto, e, pressurosa, indagara logo: “homem ou mulher?” Ri-
ram-se todos do logro e tudo voltou a ser silêncio, uma vez que faltava
o bulício das demais crianças, que foram levadas para a residência de
D. Ninita, grande amiga de nossa mãe. Daí a pouco, entretanto, ouviu-
se, de fato, um choro de recém-nascido. Sim, agora era verdade, uma
criança, mais uma vez, vinha ao mundo em nossa casa. Meu pai, na porta
do quarto, com uma garrafa de vinho do Porto, aguardava as ordens da
parteira, para poder entrar. De mansinho, silenciosa, uma porta se abre
e um vulto esguio de mulher, pisando leve, passa pelos presentes e vai
dizendo em voz baixa, dedo indicador na ponta do nariz: “é um rapagão
bonito e forte!”
E meu pai, virando-se para siá Emília: “Volte aqui e venha
brindar comigo a chegada a esta casa de Antonio Alvares da Silva! Não
está bem esse nome, Jovita? É uma homenagem que presto a meu pai”.
Não houve objeção da parte de minha mãe. A folhinha na
parede marcava 13 de fevereiro de 1913. Foi servido o vinho, e, ao se er-
guerem os cálices, meu pai dissera: “Olhem como o garoto está a lamber
os lábios e como olha a garrafa! Esse caboclo vai sair beberrão ou vai ser
padre”. Minha mãe, é claro, protestou logo contra a primeira profecia.
Quanto à segunda, ser padre, mostrou-se alegre, jamais supondo tornar-
se um dia em realidade.
Infância e vocação 37

Padre João Bernardino Baroni, pelas águas do batismo,


tornou Antonio um cristão. E o mano crescia sempre forte, barulhen-
to, travesso, mas sadio, vigoroso. Bem cedo aprendera a comer de tudo,
abandonando muitas vezes o seio materno para saborear a comida con-
dimentada dos adultos. Mamãe achava graça e a todos mostrava como
ficavam vermelhos os lábios do menino.
– Coma pimenta mesmo, menino, para você ficar bem es-
perto! Quero-o muito ativo – dizia-lhe nossa mãe.
Como não havia pão no arraial, por esse motivo, duas vezes
por semana, nossa casa era sortida de biscoitos e roscas. E como traba-
lhava minha mãe nesses dias de forno! Ia de manhã à noite! Mas era uma
“farra” em volta do forno, à espera dos biscoitos quentinhos e gostosos.
Antonio, assim que começou a caminhar e falar, também passou a tomar
parte nessas gulodices, criando confusão, e, puxando a ponta da camiso-
la para frente, dizia na sua linguagem meio incompreensível:
“Oca, mamãe, oca!”
“Está quente, meu filho!” E, tirando da peneira algumas ros-
cas e biscoitos, punha na camisola os cobiçados quitutes, os quais Anto-
nio tentava comer, soprando-os.
Às vezes, para descansar um pouco, minha mãe sentava-se
nos degraus da escada que ia ter à área onde ficava o forno. Então eu,
que não me conformava em perder o colo,NA vinha recostar a cabeça so-
bre ela. Esse prazer, todavia, durava pouco, por isso que, conquanto fos-
se um prazer, para mim, sentir os seus dedos nos meus cabelos, Antonio
vinha logo reclamar os seus direitos de caçula. Parecia que estava adivi-
nhando que pouco desfrutaria ele dos carinhos maternos!
Quase todas as noites fechávamos a casa, indo todos para
a residência do Sr. Pinho, marido de D. Emirena, apelidada por Ninita.
Sebastião Teixeira Pinho e D. Ninita formavam o casal mais feliz de Mo-
rada, ao lado de seus sete filhos. Como as noites passavam depressa! Os
compadres punham-se a conversar na sala de jantar; os jovens, na sala
de visitas, iam brincar de prendas, anexim e outros divertimentos de sa-
lão. As crianças, na rua, brincavam de “roda”, pegador, em uma algazarra
sem-fim, ensurdecedora! Antonio corria todo o grupo. “Vá brincar com
as crianças” – diziam-lhe os mais velhos. “Vá ficar com sua irmã Lelé” –
NA
Fausta era mais velha.
38 Frei Orlando: o capelão que não voltou

diziam-lhe as outras crianças. “Mamãe está chamando você” – falava a


Lelé, que desejava ficar à vontade, brincando com as outras meninotas
de sua idade. Cansado das brincadeiras e do corre-corre, Antonio deita-
va-se na cama de D. Ninita e, lá, dormindo, passava muitas vezes a noite
com os nossos bons amigos, mais tarde seus pais adotivos.
Esperava minha mãe o 13º filho. Não se notava nela, contu-
do, aquela mesma disposição dos demais partos: muito pálida, desani-
mada, parecia pressentir o fim de sua missão de mãe aqui na Terra, até
que, no dia 29 de maio de 1914, teve um parto duplo, prematuro, do-
loroso. D. Ninita abandonou sua casa, filhos e afazeres, para dedicar-se
inteiramente aos cuidados de sua comadre. As crianças foram retiradas
para a casa do Sr. Pinho. Este, ótimo farmacêutico, esgotou todos os seus
conhecimentos relativos ao caso, mostrando grande zelo e dedicação
possíveis para salvar a vida de minha querida mãe. Ao ver, entretanto,
que mais e mais se agravava a situação, pois a parturiente esvaía-se em
sangue, chamou meu pai à parte e, com tristeza, expôs-lhe a gravidade
de tudo. E muito sério, receoso, fora franco:
– Chame o coronel Jacinto. Talvez tenha ele mais sorte do
que eu.
Coronel Jacinto era outro farmacêutico prático do arraial, e
papai, certa feita, cortara com ele suas relações de amizade, por motivos
que não me recordo. Papai, trêmulo, nervoso, não titubeou: “Chamem o
homem, peçam para que venha até cá. Por Jovita, tudo farei!” E pálido,
desorientado, as mãos segurando a cabeça, sentou-se em uma cadeira,
em um gesto de desespero e gritando: “Salvem Jovita! Salvem a minha
querida Jovita! Gastarei até o último vintém, mas não deixem minha es-
posa morrer, pelo amor de Deus!”
Coronel Jacinto foi humano e compreensivo. Minutos depois
do chamado, lá estava ele fazendo as vezes de médico, pois que não ha-
via facultativo no arraial, naqueles tempos. Foi chegando e mandando
que arranjassem imediatamente um banho quente para a enferma.
– Mas está tão fraca a comadre..., contesta D. Ninita, mulher
prática, a qual, acompanhando a marcha dos acontecimentos, sabia o
grau de fraqueza em que se encontrava nossa mãe.
– Vocês têm ou não confiança em mim? – dissera o coronel,
algo agastado com a dúvida apresentada. Suas ordens foram cumpridas.
Logo após o banho, porém, uma palidez de morte invade as faces da do-
Infância e vocação 39

ente. Seus olhos fecharam-se, os lábios cerraram-se. Todos os olhares


voltaram-se para o coronel Jacinto, que, de pé, mostrava-se apreensivo,
tristonho, semblante carregado, como que reconhecendo sua impotên-
cia diante da gravidade do caso, incapaz, portanto, de salvar uma vida
preciosa para todos nós. Em um esforço sobre-humano, mamãe descer-
rou os olhos, apertou a mão de D. Ninita, sua bondosa amiga e, com voz
fraca, imperceptível quase, conseguiu dizer: “Comadre, sei que vou mor-
rer. Olhe por meus filhos. O Antonio é seu.” Novamente seus olhos fecha-
ram-se, inclinou a cabeça e entregou sua alma a Deus, em um suspiro
não de dor, mas, sem dúvida, de tristeza e de saudade.
Nossa casa, em Morada, encheu-se de gente. Lembro-me,
conquanto fosse muito criança em tal situação, de que todos tinham es-
pecial cuidado e carinho com Antonio e comigo, distraindo-nos, para que
não víssemos nossa mãe no caixão. Mas, em certo momento, burlando a
vigilância dos presentes, eu e o mano, de mãos dadas, chegamos até a sala.
Alguém me ergueu e vi, então, minha querida mãe deitada com as mãos
sobre o peito. Achei-a linda! Nunca tínhamos visto uma pessoa morta e
Antonio pôs-se a perguntar-me por que motivo tanto choravam os nossos
irmãos. O enterro foi muito concorrido, porque nossa mãe era grande-
mente estimada em Morada, e todos lamentavam a sua morte tão pre-
matura, ou seja, aos 36 anos de idade, no dia 4 de junho de 1914. Deixara
nove filhos menores para ir encontrar-se, na outra vida, com seus três fi-
lhinhos: Lígia, Olga e Alfredo. Antonio continuou em casa de D. Ninita. Em
nossa casa todos os amigos e vizinhos mostravam-se diligentes na ajuda a
meu pai, nos preparativos de roupas de luto e providências outras decor-
rentes do acontecido. Antonio, em casa de D. Ninita, era um ídolo e seus
filhos não sabiam o que fazer mais para agradar ao menino. Mas, certo dia,
entretanto, D. Ninita arrumou, com esmero, o mano Antonio, para levá-lo
de volta a meu pai. Durante os preparativos, suas filhas preocupadas per-
guntaram: “A senhora vai mesmo levar o Tonho para o Sr. Ita?”
“Sim, se o compadre quiser, que havemos de fazer? Teremos
que entregá-lo, embora nos custe sacrifício.” E todos nós rezamos para
que seu Ita deixasse Tonho em nossa casa, o que de fato aconteceu. Meu
pai era um homem forte, sadio, enérgico e sempre desejou uma dúzia de
filhos. Deus fez-lhe a vontade, mas apenas nove sobreviveram, os quais
ele fazia questão de vê-los à mesa para as refeições, não consentindo
que nenhum deles deixasse de estar presente à “hora sagrada”, como
40 Frei Orlando: o capelão que não voltou

dizia. Depois da morte de minha mãe, não deixou que se retirassem duas
cadeiras vagas: a dela e a do nosso Tonho. Era um pai modelo, correto,
cumpridor dos seus deveres, exigente para consigo próprio. E íamos vi-
vendo, mas sempre sentindo a falta de nossa querida e saudosa mãe.
No dia 27 de janeiro de 1916, Tonho, como de costume, fora
passar umas horas durante o dia, em nossa casa. Meu pai estava de malas
prontas para seguir viagem, a fim de levar meu mano José para estudar
em Oliveira, aqui em Minas. Os cavalos, condução única que, naqueles
tempos, poderia levá-los à estação próxima – Barra do Paraopeba – já se
encontravam arreados. Porém, Marieta, a filha mais velha do Sr. Pinho,
havia piorado de um tumor no rosto. Em vista disso, meu pai resolveu
adiar a viagem, para fazer companhia aos bons amigos, que tanto fize-
ram por nós. Os cavalos foram desarreados e o Destino nos batia à porta!
Ninguém pode desviar o curso daquilo que está traçado, como veremos.
Antonio, Clara e eu, nesse dia, brincávamos no quarto que tinha acesso
à sala de visitas, vestindo roupas dos grandes. Quando acabamos de nos
“fantasiar”, ouvimos forte discussão na loja de papai. Curiosos, fomos
ver o que era. Oh, tristeza! Nosso pai estava ferido e todo ensanguen-
tado, mas de pé, pálido, trêmulo e com uma carabina na mão. Antonio
abraçou suas pernas e pôs-se a chorar e gritar. O homem que atirara em
nosso pai era um criminoso contumaz, com vários crimes nas costas,
mau, perverso mesmo, e vivia foragido das autoridades. Por infelicidade
nossa, naquele dia, fora cobrar de um senhor certa quantia que lhe era
devida, justamente quando o referido senhor encontrava-se em nossa
loja, fazendo compras. Discutiram e, quando iam às vias de fato, meu pai,
um Juiz de Paz, dera-lhe voz de prisão. O cobrador resistiu e desfechou
cinco tiros em meu pai, que usara sua arma como defesa, mas que não
detonara. Um terceiro, muito nosso amigo, diante da truculência do as-
sassino, sabendo-o perigoso, desfechou-lhe vários tiros, matando-o no
mesmo local. Meu pai fora medicado, mas pressentindo que morreria,
mandara chamar nosso irmão mais velho, que trabalhava em um hotel,
na Barra do Paraopeba. No dia seguinte, quando o mano chegava, meu
pai, ardendo em febre, fez-lhe as últimas recomendações, porque parti-
ria deste mundo aos 37 anos apenas, deixando, na orfandade total, nove
filhos menores, destes Jeová com, apenas, 16 anos de idade.
Papai nas vascas da agonia, mal podendo articular as pa-
lavras, ainda pôde dizer a Jeová: “Meu filho, sei que vou morrer. Tome
Infância e vocação 41

conta dos seus irmãozinhos como se fosse eu próprio. Desejo que todos
estudem e sejam unidos.”
O Vigário de Morada, padre Baroni, estava em sua fazenda,
quando fora chamado para ouvir em confissão a meu pai. Depois de so-
corrê-lo espiritualmente, não lhe fora dada a comunhão, porque não havia
hóstia na Igreja. Padre João Baroni permaneceu bondosamente ao lado
de nosso pai a noite toda, esperando o raiar do dia para celebrar a Missa
e dar-lhe a comunhão. Durante a vigília dolorosa, sofrendo torturas dos
ferimentos, procurando reagir, meu pai perguntava aflito: “E a hóstia, já
veio?” A noite toda ele perguntava por que ainda não havia chegado a hós-
tia, até que realizou o seu desejo e, em perfeita lucidez, acompanhando
as preces dos presentes, entregou sua alma a Deus. Unia-se, assim, à sua
companheira querida, deixando a casa e os seus negócios entregues aos
nove filhos, que mal surgiam para a vida. Daí por diante, o povo de Morada
passou a chamar a nossa casa de “a casa dos meninos”.
Antonio, em companhia de seus pais adotivos, ia crescendo
e, com eles, muito aprendia. Sr. Pinho, católico praticante, não perdia
missa e ofícios outros religiosos, levando pela mão, à Igrejinha, o peque-
no Tonho, quando, então, recomendava-lhe sempre: “Na Igreja não se
brinca, não se conversa. Vossemecê vai ficar muito quietinho lá, ouviu?”
Antonio obedecia e seus olhinhos a tudo observavam na Igreja.
Jeová, como acontecia com meu pai, ia todas as noites com
os irmãos à casa do Sr. Pinho. Certa noite, quando lá chegamos, o nosso
Tonho muito compenetrado chamou-nos todos:
– Venham cá. Já é hora da bênção. E, depois de exigir que nos
encaminhássemos para seu quarto e nos ajoelhássemos, aproximou-se
da cama, que servia de altar, empunhou uma tesoura e cobrindo-a com
uma toalha, que colocara sobre os ombros, virou-se muito compenetra-
do para os assistentes, dizendo imperiosamente:
– Todo mundo de joelhos e cabeça baixa!
Sr. Pinho, de pé, a tudo observava e, rindo, obedeceu às
ordens do improvisado sacerdotezinho. Depois o nosso Tonho fingiu
fechar o sacrário e, batendo com os dedos, que estalavam, ia imitan-
do a campainha: “belém... belém... belém...” E começou a cantar na sua
vozinha desentoada o “Bendito Louvado Seja”. Padre Baroni chegou
ainda a tempo de assistir à brincadeira. Ficara escondido e, ao ver
terminada a célebre “missa”, perguntou aos presentes: “Será que vai
42 Frei Orlando: o capelão que não voltou

ser padre? Eu duvido, porque não é de raça, isso não está muito no
sangue da família!”
Desde pequeno nosso irmão Antonio possuía sempre muita
coragem. Sebastião, filho de uma das principais famílias de Morada, fora
certa vez brincar com o mano. Formavam os dois visível contraste. Anto-
nio, meio gordinho, resoluto, vivo, descalço, camisa com uma ponta para
fora das calças, corria, pulava, falava alto, e, muito mandão, tudo decidia.
Sebastião, menino magro, muito limpo e bem trajado, manso, concorda-
va com tudo. Quando Sebastião percebeu que já se aproximava a noite,
quis voltar para casa, porém teve medo de ir só. Antonio prontificou-se a
levá-lo: “Você tem mesmo coragem, Antonio?” Perguntou-lhe o Sr. Pinho.
– Tenho aqui esse enorme porrete e com ele quebro a cabe-
ça do cachorro que nos atacar – bradou com ares de valentão.
– Então leve o seu amigo, mas não se demore, porque já vem
a noite. Chegando à casa de Sebastião, Tonho conversou um pouco com
o pai do amiguinho. Ao se despedir, ouvindo o invariável “é cedo ainda”,
que lhe dissera o bom senhor, respondeu estufando o peito: “Eu já vou
chegando. Só vim trazer o Sebastião”. Soubemos, depois, que Sebastião
levara do pai boas palmadas, para que fosse mais corajoso e não depen-
desse de um menino menor do que ele para levá-lo até a casa.
Apesar da constante e severa vigilância dos pais adotivos
de Antonio, este sempre fazia suas artes, suas traquinagens, pregava
sua mentirinha, apelidava seus companheiros de folguedos, tirava sal de
Glaubert e pastilhas na farmácia. Sr. Pinho e D. Ninita corrigiam-no nas
menores coisas, mesmo nas pequeninas faltas e, nas reincidências, cas-
tigavam-no. O pior castigo para ele era ficar no “toco”. Era o nome dado
a quem ficava sentado o dia todo em um banquinho, sem poder sair para
lado algum. Muitas vezes D. Ninita dizia-lhe, quando de suas travessuras:
“Vou deixá-lo duas horas de toco, para você aprender a andar direito!” Ele
se punha a chorar e pedia: “Mamãe, me dá uma surra, mas não me deixe
no toco!” Ela, entretanto, mostrava-se inabalável em suas decisões, e era
comum ver D. Ninita sentada, também, a seu lado, com uma tábua ao colo,
enrolando biscoitos e dando bons conselhos ao mano. Em um ambien-
te assim, de vigilância, de austeridade, de paz, de ensinamento humano
e cristão e, sobretudo, de caridade, Antonio viveu seus primeiros anos e
aprendera tão bem a seguir os bons conselhos, que as sementes não tar-
daram a germinar. Um dia, um pobre preto velho, apelidado João Tatu,
Infância e vocação 43

perdeu a esposa, D. Miquelina. João Tatu chorava amargamente! Antonio,


penalizado com o acontecido, correu a sua casa e foi pedir a D. Ninita um
prato de comida, a fim de agradar o pobre homem.
– O Sr. João não vai comer, Antonio. Ele está muito apaixo-
nado – dissera-lhe a mãe adotiva.
– Ora, mamãe, tatu não tem paixão...
– Pois, então, leve...
Muito apressado, correndo mesmo, Tonho saiu com o prato
de comida para o velho. Sr. João, passando a mão pálida e trêmula pela
garganta, tristemente apenas pôde dizer: “Não, menino, por aqui não
passa nada, não desce nada, meu bom menino!” E as lágrimas inunda-
ram-lhe a face. Antonio, com sua mãozinha muito gorda, muito branca,
ficou segurando a colher no ar, à espera de que João Tatu resolvesse co-
mer. Triste, emocionado, resolve voltar a casa, para relatar o acontecido
a sua mãe. E ela: “Eu não lhe disse? Leve um copo de leite. Talvez isso ele
tome.” Antonio obedeceu, ficara radiante mais ainda ao ver que o velho
preto tomara tudo com avidez, porque de fato estava com fome.
Residia na periferia de Morada um pobre morfético, que
causava medo à população, especialmente às crianças, em face da terrí-
vel deformação causada pela doença. Quando as filhas do Sr. Pinho não
podiam levar comida para ele, Antonio fazia questão de ir e, em lá che-
gando, despejava a comida no prato do doente, como lhe recomendavam
em casa. “Faça isso com jeito, para não humilhar o pobre homem, meu
filho” – dizia-lhe sua mãe adotiva. “Pergunte-lhe como está passando,
converse um pouco com ele, pois isso é mais caridade do que a própria
comida que lhe damos.” E Antonio, então, se punha a indagar: “É carida-
de a gente conversar com quem está doente, mamãe?” D. Ninita explica-
va: “Sim, meu filho, é grande caridade quando levamos alegria aos que
sofrem, especialmente àquele coitado tão só, isolado e doente!”
Certo dia, Morada pôs-se em preparativos para receber as
santas Missões. Não se falava em outra coisa. No dia marcado pelo Vigá-
rio, lá chegaram três padres redentoristas, os missionários esperados.
Conquanto muitas fossem as tarefas espirituais, sempre lhes sobrava, à
noite, um tempinho para o padre Guilherme ir à casa do Sr. Pinho, para
saborear o cigarrinho de palha de fumo de rolo. Antonio não perdia o pa-
dre de vista, com o qual se punha a brincar, causando admiração ao sa-
cerdote as respostas prontas, adequadas e certas que o menino lhe dava,
44 Frei Orlando: o capelão que não voltou

o que o induziu a prepará-lo para o ato da primeira comunhão. Achava,


entretanto, Sr. Pinho, que Antonio não se encontrava convenientemen-
te preparado, mesmo porque era muito pequeno. Todos os dias, padre
Guilherme ia à Igreja ministrar catecismo às crianças, contar histórias,
ensinar religião, o que constituía uma verdadeira festa para a gurizada.
– Quem já sabe tudo que eu ensinei esses dias? Perguntou
o padre, percorrendo o olhar pela meninada atenta. Silêncio. Ninguém
respondia, até que dois dedinhos se ergueram no ar: o de Antonio e o
de Agda, sua prima. Os dois foram arguidos e tão bem se saíram que o
padre ficou encantado e, à noite, na Igreja, lá estavam eles na fila para
se confessarem. De regresso a casa, fora Tonho contando à sua irmã Zul-
mira: “Confessei para o padre que eu aperto o rabo do gato na cancela, e
ele me falou a mesma coisa que o papai: os animais também sentem dor
e não se pode judiar com eles. Que é para eu não fazer mais isso, porque
é maldade e Deus não gosta de menino mau.”
No dia seguinte, os dois irmãos fizeram a sua primeira co-
munhão. Antonio, que depois tantas comunhões distribuiria, contava
apenas seis anos de idade.
Havia no quintal do Sr. Pinho muitas frutas e mangas, que a
família não dava conta de consumi-las. Antonio arvorou-se em vendedor
de mangas e lá se foi pelas ruas a oferecer as deliciosas frutas, de casa
em casa. Entregava o produto das vendas corretamente a sua mãe, mas
sempre sobravam mangas, com as quais presenteava sua mana Lelé.
Esta, temendo alguma peraltice do mano, perguntou a D. Ninita se era
com seu consentimento que Antonio tirava as mangas para obsequiá-la.
“Não sei como ele lhe arranja mangas; só sei que me traz direitinho o
dinheiro das vendas que ele faz pelas ruas.”
Antonio, como era natural, fora por isso interrogado em um
“Tribunal de Família”, mas respondera logo:
– A senhora sempre dá 40 mangas para eu vender cinco por
um tostão. As maiores eu vendo à razão de três por um tostão e, assim,
sempre me sobram algumas, que levo de presente para a Lelé.
– Não faça mais isso, aconselhou-lhe a mãe; quando você
quiser dar frutas à sua irmã, pode apanhar quantas quiser, mas seja
sempre honesto, correto nas vendas sob sua responsabilidade.
Antonio, cabisbaixo, muito sem graça, limitou-se a ouvir e
responder: “Sim, mamãe, prometo.”
Infância e vocação 45

As famílias de Morada encontravam-se preocupadas porque


o professor Coutinho, tão estimado, excelente educador, que tanto fa-
zia pelo ensino em nossa terra, a havia deixado sem que tivesse outro
para substituí-lo. Então, o que frequentemente se via era a criançada,
aos bandos, dirigir-se para o açude ou para o Água-Limpa, que banha
o arraial, a fim de lá ficarem o dia todo nadando e vagabundeando. An-
tonio, como não podia deixar de ser, incorporara-se à turma, mas não
tardou muito para que fossem contar a seus pais adotivos, Sr. Pinho e D.
Emirena. Um dia, ao regressar a casa, ainda tinha os olhos vermelhos e
os cabelos ensopados, quando sua mãe lhe perguntou: “Você continua
nadando?” Antonio sacudiu a cabeça que “sim”. D. Ninita, em sua missão
de mãe, posto que adotiva, explicou-lhe: “Nosso corpo, meu filho, é Tem-
plo do Espírito Santo. Como pode você ficar nu em presença de outros
meninos? Não se envergonha disso?” Depois de uma série de conselhos,
já estava ele amiudando o piscar de olhos, prestes a chorar. Era a sua
poderosa arma para vencer sua bondosa mãe. E daí a pouco estava ele
montado em um cabo de vassoura, correndo pelo quintal aos gritos, imi-
tando os foguetes, a banda de música, e tudo que era alegre no burgo
natal, enfeitando e maravilhando a sua alma infantil. O aparecimento de
um novo professor veio pôr termo à vadiagem e ao esporte de natação
da gurizada. No dia de instalação da nova sala de aulas, Tonho se achava
em forma com os demais alunos, ouvindo as explicações do professor
recém-chegado à Vila de Morada. Seu temperamento irrequieto logo
causou confusão no ambiente escolar. Um aluno alto, magro, preto, de
olhos esbugalhados fez algo de errado, e o mestre, para corrigi-lo, colo-
cou-o de joelhos no meio da sala, com as mãos postas, como se estivesse
em prece. Toda a classe se assustou com a providência do professor. O
silêncio era absoluto. Antonio, entretanto, não se sabe por que pôs-se a
rir e a dizer em altas vozes:
– Aproveita, frango d’água e reza aí para nós! Foi uma gar-
galhada geral! O professor, querendo cortar de início qualquer abuso,
ordenou a Antonio que fosse buscar uma vara, para lhe ser aplicado o
castigo. Todos tremeram! “Coitado do Antonio!” – cochichavam as crian-
ças. Minutos depois, ante a expectativa de todos, com absoluta calma,
Tonho fez a entrega da vara, dando início às pancadas. Acontece, entre-
tanto, que o professor achou estranho ver que toda vez, ao dar uma va-
rada, saltava longe um pedaço do instrumento corretivo. Antonio, expli-
46 Frei Orlando: o capelão que não voltou

cara depois, ardilosamente, trouxera a vara partida em alguns lugares,


tornando-a assim frágil. Mas não pararam aí as suas peraltices. Cansado,
nervoso, o professor fora queixar-se ao Sr. Pinho. O paciente e bom pai
adotivo tudo ouviu e, depois de agradecer ao mestre, prometeu solene-
mente castigar o menino.
“Está ouvindo, seu Tonho? Você será castigado e não fica com
vergonha de ser um aluno tão travesso?” Antonio, temendo não comer o
milho verde, que acabava de assar, nem ouviu direito o que sua mãe lhe
dizia. Debulhou às pressas parte da espiga ainda quente e já ia correndo,
quando surge Sr. Pinho com um castiçal na mão e bastante nervoso, o
que raramente acontecia. “Antonio, eu vou lhe dar uns bons bolos pelo
que você anda fazendo na escola!” Tonho guardou a espiga de milho no
bolso, ajoelhou-se com as mãos postas e, com ares de piedade, pedira
ao Sr. Pinho que, pelo amor de Deus, não lhe batesse, porque prometia,
daí por diante, ficar muito comportado e obediente. O barulho fora tão
grande que fizera correr todo o pessoal da casa, para ver o que havia.
Sr. Pinho, emocionado, resolveu não bater, condoído diante de tanta hu-
mildade, limitou-se a dar conselhos ao filho adotivo, ao nosso querido
irmão. Tonho usava apenas de astúcia e, quando o castiçal com sua luz
lhe fazia sombra pelo rosto, aproveitava-se desse momento, para jogar
na boca alguns punhados de milho assado, fazendo a cara mais brejeira
deste mundo! Das janelas e do portão, por onde se avistavam os dois,
nós nos divertíamos com a cena. Durante alguns dias, inegavelmente, o
nosso mano procedera corretamente, melhorara mesmo, ficando entre
os bons alunos na escola, mas não perdia o defeito de apelidar os meni-
nos, os colegas, provocando sempre nova briga. Certo dia um nosso pri-
mo, para se divertir, provocara uma questão de Tonho com um colega de
aula, justamente quando regressavam da escola. Acabou tudo em tapa,
pescoção e luta. Mas dessa feita quem levou desvantagem fora nosso
mano, que chegou em casa em um estado lastimável: todo arranhado,
olhos roxos, as roupas sujas e rasgadas. D. Ninita, ao vê-lo entrar em casa
desse jeito, assustou-se, mas procurou conter-se, ouvindo em seguida a
narrativa mentirosa do filho adotivo: que fora agredido por um cão, um
cachorro muito grande e bravo. “Pensei” – falou-lhe D. Ninita, “que esta-
va criando um filho para ser um bom cidadão!” E séria, fitando o menino
nos olhos: “Agora vejo que tenho em casa apenas um valentão a brigar
pelas ruas com os moleques!” Mostrando-se triste, acabrunhada: “Não
Infância e vocação 47

quero mais ser sua mãe!” Saindo de perto do mano, fingiu não mais dar
importância não só ao caso, como a ele próprio. Dessa vez Tonho chorou
de verdade! Foram lágrimas sentidas, que lhe desciam pelas faces, e ele
limpava com a manga do paletó. Se D. Ninita lhe desse o maior castigo fí-
sico, não teria surtido tanto efeito! O menino não esquecia o ar tristonho
de sua mãe adotiva, sua indiferença e de sua descrença nele. Como que
deslocado no ambiente do lar amigo, sentia-se, outrossim, desprezado e
chorava, lastimava-se diante de todos nós. Foi muito bom, porque nunca
mais se soube de outra briga dele na Vila de Morada. Foi nesse ambiente
de zelo, de firmeza e de energia, dosado com amor e carinho discretos,
que nosso pequenino irmão, nosso caçula, recebera os seus primeiros
passos para o aprimoramento do seu caráter e da sua rigorosa formação
moral e cristã. E muitas vezes devemos agradecer isso a Deus!
O professor já referido não continuou na escola, e não se
sabe por que abandonara a Vila. Sr. Pinho ficou preocupadíssimo. Inda-
gava: “O que hei de fazer com esse menino tão vivo e tão inteligente?”
Acidentalmente nosso mano Jeová, que residia havia dois anos em Aba-
eté, chegara à Vila de Morada para uma visita ao Sr. Pinho e ao Tonho.
Foi assim que, entrando em conversa, deliberaram que nosso caçula ter-
minaria os estudos na Cidade de Abaeté. Foi um delírio para o menino
ver caras novas, coisas diferentes... e punha-se a rir e a cantar de alegria.
Os preparativos para a viagem foram feitos com muito cuidado e cari-
nho e Tonho já achava que estava custando a realização dos seus sonhos
de menino. Como os bons sonhos têm na Terra duração fugaz, efêmera,
assim acontecera com Antonio. Em pouco tempo, já havia ele saciado
sua curiosidade, depois de fazer conhecimento com todos os amigos do
irmão e cunhada. Jeová fora muito enérgico com ele; não o compreen-
dera muito bem e, dentro em pouco, se contente se mostrara Tonho em
ir para Abaeté, agora estava radiante com a notícia de que passaria as
férias em Morada, onde pretendia matar as saudades de todos e, sobre-
tudo, de seus pais adotivos, dos quais, afirmava, muita falta sentiu. Sua
alma transbordara de felicidade quando lhe anunciaram que passaria o
fim do ano na terra natal! Um primo incumbiu-se de levá-lo e, em um dia,
fizeram as 12 léguas que separam Morada de Abaeté, mais galopando
nos cavalos do que mesmo andando em marcha moderada e normal. É
que Antonio, dissera o primo, chicoteava constantemente o animal, ale-
gando que estava aflito para chegar. Quando ele avistou a Vila, ninguém
48 Frei Orlando: o capelão que não voltou

pôde contê-lo, esporeava e chicoteava o animal.e foi assim, a galope, que


atravessou a Vila até chegar a casa, gritando, gesticulando, fazendo uma
algazarra infernal! Em Morada, passava os dias de férias junto dos ami-
guinhos de travessuras, fazendo tudo que o Sr. Pinho não queria que ele
fizesse e nada do que ele gostava. Mas os dias correram, veio o térmi-
no dos folguedos, os estudos o chamavam. Foi uma luta tremenda fazê-
lo novamente montar a cavalo, a fim de regressar a Abaeté. Dizia que
“preciso ainda ver isso, ver aquilo, procurar fulano ou sicrano”, e a cada
momento inventava algum pretexto com o intuito de retardar cada vez
mais a viagem. Por fim, despedira-se chorando, montara a cavalo e saíra
pelas ruas dando requebros com o animal, empinando-o, arriscando-se
ao perigo do boleio. Em dado momento montara ao contrário, a moda
dos antigos palhaços de circo, com as costas para a cabeça do animal.
D. Ninita, que estava com os olhos cheios de lágrimas, triste
e abatida, lastimando a partida do filho, acenava-lhe com as mãos, em
um gesto de despedida. Entretanto, vendo as artimanhas do filho, não
se contivera e se desmanchara em gargalhadas. Aquilo, em parte, mino-
rara-lhe o sofrimento da despedida. Voltando-se para os presentes, que
também se despediam do menino, falou-lhes sorrindo e chorando:
“Vejam, com esse ninguém pode!...”
Foi assim que Antonio novamente aportara a Abaeté, onde
frequentava o grupo escolar.
Certo dia a professora, não mais tolerando as peraltices de
Tonho – que se aliara a outro garoto terrível –, pô-los de joelhos, um de
cada lado, frente aos meninos e meninas, seus colegas. Notava a mestra,
entretanto, que os alunos estavam com a atenção voltada, não para o
que ela dizia, mas para o lado onde se achavam os dois travessos. É que
estes, arrastando-se de joelhos, já se encontravam em um canto da gran-
de sala, atrás de um armário. Daí a pouco percebera a professora que
os alunos riam, riam alto, não obstante procurassem abafar o riso com
as mãos. Em dado momento vem ao chão o armário, o próprio armário,
provocando um barulho enorme e dando susto em todos. Tonho já esta-
va atracado em briga com o seu companheiro de castigo, e quase mata-
ram a pobre mestra tanta raiva tivera ela. Pelo chão, eram só cadernos,
livros, tinta derramada, uma confusão enorme! O castigo, nesse dia, fora
severíssimo em aula. Chamaram o diretor que, enérgico, ao ver a gravi-
dade do caso, pedira a presença do mano Jeová. Em casa, o castigo fora
Infância e vocação 49

ainda muito maior do que o aplicado no grupo. Jeová fora intransigente


aos rogos e pedidos de todos. Antonio quase fora expulso do grupo! Não
ficaram aí as travessuras do querido caçula, que não se corrigia nem
se emendava, não obstante as promessas que sempre fazia. Certa feita,
encontravam-se na área interna do grupo todos os alunos, ensaiando
diversos cantos, entre eles, a Marselhesa.
“Oh, marchai cidadãos!”, cantavam todos.
“Relaxado, sem vergonha.” Assim cantava Antonio, no mes-
mo ritmo musical, no mesmo tom, muito sério, compenetrado, mãos para
trás, nas costas. O diretor, notando algo errado, que lhe incomodava o
ouvido, pensou logo em Antonio! Devia ser arte de Antonio, confessara
seu pensamento, depois, com os demais professores. E, pé ante pé, fora
postar-se atrás dele, pegando-o em flagrante. Conduzido ao gabinete do
grupo, Tonho levou séria reprimenda, e, mais uma vez, por pouco deixou
de ser expulso. O diretor dera-lhe um bilhete para levar ao mano Jeová e
este, severo em suas punições, tomando conhecimento do fato, fê-lo co-
piar 10 vezes cada hino escolar. E não eram poucos. Quando se via cansa-
do – porque não fizera outra coisa durante muitos dias, senão as cópias
– ia à janela, espreguiçava-se, bocejava, olhava para um lado e para outro
e nem assim perdia tempo: “Pão de lagartixa!”, gritava ele. Era o padei-
ro que passava e que, nervoso, furibundo, respondia-lhe com desaforos
e palavrões, ameaçando-o com pancadas, se repetisse. Conquanto fosse o
menino mais levado de Morada e, depois, de Abaeté, possuía, entretanto,
excelentes qualidades: muito prestativo, trabalhador, lavando ele mesmo,
às vezes, o seu uniforme; fazia qualquer serviço caseiro com desembaraço
e mostrava-se prestante. Para seus gastos com cinema e doces, tinha sem-
pre uns trocados que conseguia com sua caixinha de engraxate.
Frequentemente também lavava a louça e arrumava a cozi-
nha da casa de D. Zinha, mãe de um de seus maiores amigos em Abaeté,
o Antonio Lasmar de Andrade, vulgo Nonô. Com isso tinha garantida a
sua entrada no cinema, coisa que ele mais gostava em sua vida. Cole-
cionava figurinhas de artistas e conhecia todos os astros e estrelas de
Hollywood, imitando-os nos seus desempenhos com admirável perícia.
Uma tarde estava D. Zinha muito preocupada, porque não
sabia por onde andava o filho Nonô, o amigo inseparável do Tonho. Al-
guém lhe informara que o vira passar com o mano, em direção ao Rio
Marmelada, que circunda a Cidade de Abaeté.
50 Frei Orlando: o capelão que não voltou

“Santo Deus!”, bradava em altas vozes D. Zinha, pálida e afli-


ta. E nervosa: “O delegado de polícia proibiu terminantemente natação
naquele rio!”
Por esse motivo, daí a pouco, toda a família estava no en-
calço dos meninos. A aflição aumentava cada vez mais, à medida que
a noite vinha chegando. Quando se encontravam em verdadeiro deses-
pero, à boca da noite, apareceram os dois garotos enrolados em panos,
arranjados não se sabe como, porque o delegado, por maldade, mandara
esconder suas roupas encontradas na beira do rio.
Para Antonio, isso fora uma vergonha porque, a despei-
to de suas peraltices, era recatado em alguns pontos e possuía muito
amor-próprio.
Chegara ao fim do ano letivo. Antonio estava com péssimas
notas, fracas, fraquíssimas mesmo! A professora, então, avisou à classe:
“Faltam poucos dias para se encerrarem as aulas. Vou separar os alunos
mais adiantados, recordar com eles todas as matérias do programa, mas
quanto a vocês, seus malandros – e assim fitou bem Tonho e Nonô –, hão
de passar pela vergonha de serem reprovados no dia dos exames.” Anto-
nio, como era de se esperar, fora para a turma dos fracos. Chegou o dia
dos exames. A sala de aula, toda enfeitada, bonita, parecia outra: jarras
de flores, vistoso forro sobre a mesa, nova disposição de carteiras etc.
Foram designados examinadores os doutores Edgardo da Cunha Pereira
e José de Andrade Soares. Feitas as apresentações dos alunos, das duas
figuras, aliás, mais representativas de Abaeté, a professora pediu ao Dr.
Edgardo que iniciasse o exame.
– Como não conheço bem os alunos, chamá-los-ei pela or-
dem alfabética – dissera o examinador. A professora sorriu maldosa-
mente, como se fosse dar início a uma vingança e, passando os olhos
terríveis pela classe, como que antegozando o fracasso certo de Tonho.
– Antonio Alvares da Silva! – gritou, solene e forte, o Dr. Ed-
gardo. O mano, já contando com a “bomba”, saiu de corpo mole, com um
sorriso mordaz, zombeteiro que só ele. Na sala, tudo era silêncio, expec-
tativa! Sentou-se ao lado do examinador, que, carrancudo, muito sério,
ajeitando sempre os óculos, perfeito inquisidor, logo ordena em altas
vozes: “Sorteie o ponto!”
Antonio, olhinhos vivos, brejeiros, encarando firme o Dr.
Edgardo: “Não precisa não, senhor, pode perguntar o que o senhor qui-
Infância e vocação 51

ser.” O arguidor julgou estar em frente ao melhor aluno da classe, tanta


e tamanha a firmeza de atitude do menino. E o resultado do exame do
Tonho foi, de fato, brilhante! Passou, então, para o 3º ano. Sorte, pura
sorte, aliada à sua inteligência e vivacidade!
Abaeté estava em preparativos para receber os missioná-
rios. Famílias inteiras deixavam as fazendas rumo à cidade, enquanto os
carros de boi iam gemendo tristemente pelas estradas... Os moradores
citadinos, nas janelas, nas esquinas das ruas, no adro da Igreja Matriz,
não falavam em outra coisa, comentavam a chegada dos missionários,
procuravam adivinhar a quantidade de biscoitos, queijos, carnes e fru-
tas que os fazendeiros sempre traziam nessas ocasiões, quando a vida
não conhecia as aperturas de nossos dias, e tudo era fartura e abastança.
Os comerciantes punham-se alegres ante a expectativa de fazerem bons
negócios nos Dias das Missões, que constituíam, naqueles tempos, uma
verdadeira festa. Era geral a alegria, nos corações e nos lares dos ricos e
dos pobres. As casas eram cuidadosamente limpas e embandeiradas as
ruas por onde deveriam passar os esperados pregadores. Antonio an-
dava encantado com tanta coisa que via: fogos, banda de música, ban-
deirinhas e repiques de sinos. Com a chegada dos padres, passou Tonho
quase a residir na Igreja, ajudando em tudo que lhe era possível, sempre
prestante. Estava, dizia ele, aflito para ver um padre missionário, um pa-
dre que fosse diferente do vigário que ele conhecia. Ficou muito feliz
quando se viu diante dos frades, que ministravam catecismo às crianças,
promovendo passeatas com elas. As Missões alcançaram grande êxito.
Na antevéspera de regressarem, um dos frades convidou Antonio para ir
em sua companhia apanhar umas folhas de coqueiro, com que tenciona-
va enfeitar a Igreja. No caminho foram trocando conversa e o mano con-
tou-lhe toda a sua vida. E o frade: “Quer ir conosco para Divinópolis?”
“Se meu irmão deixar, eu vou mesmo”, respondeu Antonio.
À noite, o bom missionário foi entender-se com Jeová, quan-
to à possibilidade de levar o menino. Meu irmão respondeu-lhe ser a
ideia certa e feliz, mas garantiu-lhe que não suportaria as diabruras do
menino, pois lhe daria muito trabalho.
“Deixe isso por nossa conta”, objetou o frade. Nesse mesmo
dia, Antonio mostrou ao sacerdote amigo as suas figurinhas de cinema e
exibiu seus conhecimentos sobre os astros e estrelas da sua arte favori-
ta. Antonio – já afirmei – era louco por cinema!
52 Frei Orlando: o capelão que não voltou

No dia seguinte, antes de terminar a aula, dissera Tonho à


sua professora: “D. Maria (chamava-se Maria Mourão), eu preciso sair
mais cedo hoje, antes mesmo de acabar a aula.”
– Para quê? – interrompeu a mestra.
– Para pegar os cavalos, ser padre, continuar meus estudos
em Divinópolis.
– Bem, está certo. Poderá sair mais cedo para pegar os ani-
mais, mas para ser padre... E encarou o aluno travesso.
Decorridos 13 anos – fazendo aqui um parêntese – voltava
ele do Seminário e, procurando D. Maria, a antiga professora, pergun-
tou-lhe: “Peguei ou não os cavalos para ser padre?”
Antes de seguir viagem com os frades, Antonio deu verda-
deiro show pelas ruas de Abaeté. Diversas vezes, para insultar, passara
em frente ao grupo escolar provocando poeira e gritando ao passar pe-
las janelas: “Graças a Deus saí desse grupo danado de ruim. Aí não volta-
rei nunca mais... nunca mais... e adeus, D. Maria!”
Tonho foi para Divinópolis, aqui em Minas Gerais, contentís-
simo da vida. Mas a mudança fora muito brusca: cidade desconhecida,
meio todo diferente, assim como diferentes eram os costumes do colégio;
o menino sentiu bastante a transformação, a vida de interno, sujeito a um
regulamento a que ele, já estava previsto, infringira não poucas vezes.
No internato fora logo cercado de outros meninos, que se
puseram a perguntar-lhe uma série de coisas:
– Como se chama?
– Antonio Alvares da Silva!
– Tem pai?
– Não, morreu!
– Tem mãe?
– Não, morreu!
– Avó?
– Não, morreu!
Como respondia muito depressa, parecia dizer “merreu,
merreu”.
“Oh, então você se chama Antonio Merreu!”, disseram os ve-
teranos. E o coitado do mano teve de habituar-se ao terceiro apelido, por
isso que já o chamavam: Antonio Capela e Antonio Boboca. Mas Tonho
recebia tudo isso com espírito esportivo, rindo, gracejando.
Infância e vocação 53

Nos primeiros dias de internato em Divinópolis, achava-se


ele conversando com um colega de Seminário, quando, ao olhar para
o quintal do vizinho, divisou na sua horta umas belas e bem maduras
laranjas. Veio-lhe água à boca e Antonio, não se contendo, saltou o ter-
reno alheio e foi roubar o “fruto proibido”. Apanhou algumas laranjas,
repartiu-as com o colega e chuparam-nas com toda a calma. Um frade,
vendo aquilo, perguntou-lhes onde haviam conseguido aquelas laran-
jas. Antonio, fazendo cara de bobo, procurou justificar-se dizendo que
o vizinho os havia presenteado com as frutas. No dia seguinte, chegava
a queixa ao Seminário. Mas o frade foi amigo: nunca denunciou os dois
seminaristas ao Superior, porém os advertiu severamente. E nunca mais
foi repetida a falcatrua.
Já era hora de dormir. Acomodados os alunos no dormitó-
rio, o frade, que mantinha a vigilância noturna, deixou-os em silêncio.
Acontece que o dormitório ficava sobre o refeitório dos frades. Anto-
nio, malicioso como sempre, descobriu no assoalho um pequeno buraco
e, por ele, punha-se a apreciar os religiosos que, em meio à animada
conversa, saboreavam uma cervejinha. Cada vez que um frade levava o
copo à boca, Antonio estalava os lábios, como se se extasiasse com algo
saboroso, delicioso! Os meninos acharam muita graça naquilo, mas aos
colegas não cedera o seu lugar de espectador. A cena de espiar o que
os superiores faziam lá em baixo era constante. Certo dia, entretanto,
aconteceu que uma poeirinha foi bater nos cabelos ralos de um deles.
Desconfiado, subiu ao dormitório e, para azar do seminarista travesso,
pegou-o em flagrante, rindo e zombando dos frades, estalando a boca
repetidas vezes. Um sério castigo foi o resultado de tudo! Tonho já vinha
sendo observado. Não havia dúvida, o menino era mesmo peralta e tal-
vez não desse para padre, diziam os superiores já preocupados.
Ainda foi no dormitório que, certa noite, quando o frei es-
calado de ronda passava por entre as camas, notara que os meninos se
punham a rir, rir muito, o que mais aumentava quando virava as costas
para retirar-se. Não conseguiu, jamais, descobrir o que havia, o que se
passava. A solidariedade era um ponto alto dos seminaristas.
Os religiosos, todavia, reunidos certo dia para o estudo da
questão, chegaram a um acordo, porque era o pensamento de todos: isso
é arte do Antonio, deve ser aquele menino levado da breca que anda tra-
mando algo para fazer rir os colegas. E era mesmo. Tonho, astutamente,
54 Frei Orlando: o capelão que não voltou

havia pregado um macaquinho de papelão na parede, o qual, maneja-


do por um cordel, parecia estar comendo algo, abrindo e fechando uma
boca muito grande, preta e feia. Deitava-se na cama, virado para o canto,
a fim de despistar e, com os dedos dos pés, puxava o cordel, acionando o
macaquinho, que, começando a comer, fazia todos rirem.
Um dia, porém, deu azar o nosso mano, que, de cabeça co-
berta, não observava que o frei se aproximava e, agarrado pela orelha,
tivera que pedir perdão em altas vozes, para que todos o escutassem.
Era o pagamento imediato de sua falta cometida.
Por esse motivo, ficara, também, para castigo do corpo e
correção moral, uma hora de joelhos e com os braços estendidos, aber-
tos, em uma posição horrível. Por tudo isso, muito se admiraram os co-
legas de Tonho não ter sido expulso.
Tinha mesmo muita sorte o nosso caçulinha!
Os frades fizeram uma observação interessante e psicológi-
ca da formação de Antonio, julgando que, de fato, era um menino traves-
so, traquinas, brincalhão, mas não era malicioso nem mau.
Isso, aliás, posso afirmar que ele herdara de seu pai, que
com suas brincadeiras, sempre alegres, conseguira conquistar enorme
freguesia para sua casa comercial. Com perfeição, imitava toda espécie
de bichos, tais como macaco, galinha, porco, cabra etc.
As brincadeiras de nosso pai muito divertiam os roceiros,
que enchiam a loja e lá compareciam até os domingos.
Nosso pai fora o primeiro a possuir gramofone em Morada.
E como era interessante ver aquela gente simples, curiosa, rodear o apa-
relho, para admirá-lo de perto! Quanta graça havia em tudo aquilo e que
nos fazia rir tanto?! Meu pai, brincando com eles, dizia que a voz saía
pela boca de um anãozinho, que morava Iá dentro.
Em Divinópolis, Tonho passou uma fase muito feliz de sua
vida, com aqueles frades alegres, que organizavam festas, passeios cam-
pestres e animadas sessões esportivas de futebol. Foi assim que o mano
conseguiu terminar o Seminário Menor, de 1924 a 1931.
Parece que Deus, ao nos tirar nossos queridos pais, não o
fez apenas para nos deixar chorando na nossa orfandade, mas para, nos
seus altos desígnios, mostrar-nos que, na Terra, ainda há muita gente ca-
ridosa. Ao nos separarmos, indo cada um para uma cidade ou lugarejo,
Diamantina, Divinópolis e Granjas Reunidas, foi-nos permitido encon-
Infância e vocação 55

trar criaturas afetuosas e plenas de amor ao próximo. Os conselhos de


nosso pai ao morrer, entre os quais o de que fôssemos sempre unidos,
constituíram o elo forte e inquebrantável, que nos estreitara para sem-
pre na vida. Lembro-me de que, preocupados com a nossa situação, os
tios maternos propuseram ao mano Jeová auxiliá-lo, tomando a seu en-
cargo os demais órfãos. Nosso irmão mais velho, todavia, foi categórico:
“Não, todos ficaremos juntos! O que um comer, todos comerão, pois foi
essa a recomendação de nosso pai. Só nos separaremos por motivo de
estudo, trabalho, casamento ou morte!
Contava Tonho já 16 anos, quando certo dia recebera, no co-
légio em Divinópolis, uma carta de D. Ninita, avisando-lhe que seu pai
adotivo, o Sr. Sebastião Pinho, encontrava-se muito mal, vítima de um
derrame. O superior do colégio permitiu a ida do mano a Morada. Como
havia crescido muito e emagrecera em consequência dos estudos, Sr. Pi-
nho não o reconhecera. Por esse motivo e por verificar a gravidade do
estado de saúde do pai, Antonio chorou amargamente. Dois dias depois,
estava ele de regresso e, no dia 13 de julho de 1929, recebia outro aviso.
Este agora fatal: Sr. Pinho estava morto! E, nestas linhas, quero deixar
bem claro o meu conceito sobre tão venerado varão: se me perguntas-
sem o que se deveria colocar como epitáfio em seu túmulo, eu respon-
deria que se escrevesse: Aqui jaz um homem amante da paz, pai dos
pobres e exemplar chefe de família!
A ida de Antonio a Morada despertou-lhe a lembrança de
sua infância, vivida em nosso meio, e uma profunda saudade levou-o
a escrever, quatro meses depois, a seguinte carta à nossa irmã Maria,
por alcunha Titi:

“Querida irmã:

O fim desta é falar sobre um assunto muito im-


portante. Quando no mês de junho eu estive aí, você me disse
sobre um dinheiro que arranjaria para mim. Eu lhe respondi
que frade não pode ter dinheiro, mas agora venho fazer-lhe
esta proposta: Titi, tendo em vista a sua vontade em gastar
em meu favor este dinheiro, e se já puder adquiri-lo e usá-lo,
eu lhe pediria que me tirasse deste Colégio e me internasse em
um ginásio, pois o motivo deste meu pedido é bastante justo.
56 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Eu continuo com a resolução de ser frade e de entregar-me


todo ao serviço de Deus, mas também sinto muitas saudades
de vocês todos. Tenho apenas 16 anos e quantos anos vivi em
companhia de vocês? Se muito foram apenas quatro anos!
Por isso, tenho vontade de viver junto de meus irmãos e só
posso fazê-lo saindo daqui. Só voltarei aí apenas quando for
para o noviciado e, assim mesmo, por poucos dias. Todos
os frades daqui estudaram em ginásio e passaram as férias
em casa e mesmo assim são frades e muito bons. Por que
não posso fazer o mesmo? Deus me dará força para per-
manecer no caminho direito. Preciso de dinheiro, mas onde
arranjá-lo? Se nosso pai fosse vivo, por certo o teria, mas ó
infelicidade! Nem ao menos o conheci... Você, querida irmã,
torna-se a minha última esperança. Peço-lhe que me arranje
o dinheiro. Se for muito, eu entrarei em um ginásio e, depois
de terminar o curso, entrarei em um convento, para viver
só para Deus esperando no amor fraternal que me dedica, e
também esperando que me possa ainda dar alegria, passan-
do alguns meses com meus irmãos e com minha mãe adotiva.
Abraço-a com todo afeto do meu coração.

O irmão, Antonio.”

Pedia ele sete mil cruzeiros para fazer o curso ginasial. Era,
naquele tempo, quase impossível que seus irmãos pudessem arranjar
esta quantia. Bendita impossibilidade, porque, dois anos depois, estava
ele realizando seus sonhos de atravessar o Atlântico, conhecer a Holan-
da, onde devia continuar seus estudos. Jeová era, então, agente da Cia.
Sul América. Viajava por todo Estado de Minas e, como pretendia fixar
residência em Belo Horizonte, conseguiu minha transferência do grupo
escolar de Abaeté para o “Henrique Diniz”, daquela capital. Uma vez em
Belo Horizonte, passara a residir em casa de D. Margarida Vieira Macha-
do, vizinha e amiga de infância de nosso pai. Foi ela uma verdadeira mãe
para todos nós, a nossa mãe Guida, assim a chamávamos. Antonio tam-
bém a chamava “Mãe Guida”. Descrever a felicidade dos dias passados no
lar de mãe Guida é impossível! Tinha ela seis filhos em casa, três moças e
três rapazes, todos muito alegres e bons filhos. Naquela casa ninguém fi-
cava triste. Vendo o nosso Tonho que suas irmãs eram felizes, em tão boa
Infância e vocação 57

convivência, partiu satisfeito e confortado para a Holanda, prometendo


ao mano Júlio narrar em carta tudo que de maravilhoso visse.
Feitos os planos, subira ele a Rua Monte Carmelo, dando
quebras com o corpo e acenando com a mão, em uma despedida alegre
e ao mesmo tempo triste. Alto, naquela ocasião um tanto magro, vesti-
do modestamente foi o seu vulto desaparecendo, deixando-nos com os
corações apertados pela dor da separação e pela incerteza de tornar a
vê-lo um dia.
Entretanto, a alegria estudada de mãe Guida e dos filhos
queridos veio dissipar a nossa tristeza.
A primeira carta que o mano escreveu foi ainda do navio,
quando, neste, não mais avistava terras brasileiras.
Descreveu as belezas do mar, a emoção que sentira e tudo,
enfim, que presenciara na longa viagem. Fez, na referida carta, uma bo-
nita e sentida comparação do timoneiro do navio com a sua inesquecível
mãe adotiva, D. Ninita, que o guiara na vida, sempre para o bem.
Tão moço e já possuía Tonho um pensamento dos mais re-
tilíneos e amadurecidos.
Capítulo 2

O primeiro seminário

Embarque para a Holanda

D iz a história bíblica que Jesus, o Manso Raby da Ga-


lileia, o Menino filho de Maria e José (os escolhidos
pela pureza dos corações para o divino evento da história), crescia em
graça e sabedoria, atingindo os 12 anos de idade. Daí por diante iniciava
a sua pregação pelas terras áridas da Galileia.
Em graça e sabedoria – se nos for permitida a comparação,
parafraseando o ensino cristão – também ia Antonio crescendo e desen-
volvendo-se, coraçãozinho em flor, pleno de vida e de frescor.
Assim como ao Divino Mestre, a ele, outro tanto, fora traça-
do no céu o sacrossanto dever de pregar a palavra do Senhor, a promes-
sa de um Reino de Paz e de Amor aos homens de boa vontade na Terra.
Filho deste Brasil imenso, glorioso e abençoado, porque ins-
pirado no Cruzeiro, o menino Antonio como que sentia prematuramente
todas as belezas da nossa Pátria, da religião e da fé!
Conquanto tão criança ainda, dizia-lhe o coração que a arte
de amar, tão divina quanto celestial, a arte de bem-querer o próximo,
de sofrer e de perdoar só poderia adquiri-la, verdadeiramente, ao pé da
Cruz de Cristo, abandonando, pois, as coisas terrenas, o luxo, as pompas,
as honrarias e os títulos.
Na precariedade da inteligência infantil, mesmo assim,
algo incompreensível assaltava o pensamento de Antonio para a me-
ditação e roteiro da sua vida. “Na aula de catecismo perguntava coisas
60 Frei Orlando: o capelão que não voltou

extraordinárias, que deixavam todos em suspenso e com a resposta no


ar”, informa-nos um dos seus familiares.
Nessa agilidade do pensamento de um predestinado, medi-
tava sobre a Verdade, Verdade que o próprio Cristo, diante de Pilatos, va-
cilara em explicar, porque, ao afirmar que a Verdade era Deus, via o Mes-
tre quão incapazes eram os homens de compreender as suas palavras.
O futuro representante da Igreja como que sentia tudo isso
no âmago do coração, sacrário onímodo de excelentes virtudes.
E verdadeiramente lançaria Antonio pela Terra do Cruzeiro,
em seu desprendimento e bravura cristã, a semente do Bem.
As glórias do mundo não o atraíam. Não acalentava aspirações
de ordem material, como se vivesse na Terra com o pensamento no Céu.
Foi assim que, cumprindo o sublime desejo e, mais ainda, o de
seus pais adotivos, ingressou aos 12 anos, ou seja, a 6 de janeiro de 1925,
no Colégio Seráfico de Divinópolis. Nesse Colégio e nessa cidade mineira
faz-se estimado de todos, mercê do seu gênio assaz comunicativo.
Antonio ia tomando idade, galgando a adolescência e pro-
jetando-se no cenário da vida, para a estima e reverência de todos que
tiveram a felicidade de conviver a seu lado.
Após seis anos de uma vivência feliz naquela comunidade
apostólica, onde, indiscutivelmente, burilara as suas virtudes, dando
asas à sua vocação, alça voo mais alto, para maiores empreendimentos
na vida. É assim que, cheio de fé, segue para Holanda. O embarque deu-
se no dia 17 de fevereiro de 1931. Contava ele, então, 18 anos incomple-
tos. Uma vez na Holanda, ingressa na Ordem Franciscana, em Hoogkrutz,
onde fizera profissão de fé simples, em 8 de janeiro de 1932.
Em agosto de 1934, decorridos, portanto, dois anos de sua
estada nas plagas holandesas, onde estudava com afinco e zelo, foi trans-
ferido para o Convento de Alverne de Wyclen, no qual cursara Teologia
Fundamental e emitira votos solenes no dia 8 de setembro de 1935.
Estava o jovem brasileiro com apenas 22 anos de idade. Já car-
regava, todavia, pela força da sua inteligência, uma estupenda bagagem de
conhecimentos e de luzes. Avolumava-se a sua inteligência. Crescia o seu
saber. Preparava-se, com essas armas que Deus lhe dera, para enfrentar a
vida prática no seio dos homens. Antevia ele a realidade do mundo. Mas
um mundo diferente, realista, positivo, apontando-lhe os mais diferentes
ângulos para as alegrias e as tristezas. Porque a vida é mourejo constante.
O primeiro seminário 61

É paz e é guerra, sorrisos e lágrimas, nessa batalha em que todos nos em-
penhamos, porque não pode haver parada, estagnação.
Da Holanda, o jovem estudante escrevia sempre à excelente
D. Emirena, que vivia pensando no filho.
Dizia ele: “Encanto-me com as tulipas e tudo aqui é de uma
beleza incomparável, só mesmo encontrada em nosso Brasil.”
Os parentes, os amigos, os irmãos de Morada Nova também
não o esqueciam, o mesmo ocorria com os que se encontravam em ou-
tras plagas, ligados a ele pelos sentimentos afetivos.
Aos domingos em Morada Nova, à porta do pequeno templo,
no qual Antonio tantas vezes entrara para ajudar na missa, os conhecidos
de D. Emirena cercavam-na para indagações, aquela gente simples e boa!
Queriam saber tudo e de tudo se informar. Para cada um tinha a estima-
da senhora uma informação particular, um recado, uma notícia do filho,
abraços e lembranças... recados e saudades que vinham de tão longe!
E o futuro frade ia escrevendo, sempre que podia.
Suas cartas constituíam um hino admirável de fé, de cons-
tância, revelando um amadurecimento precoce do espírito, tendo em
vista que os pensamentos emitidos afloravam de um jovem.
Jovem, muito jovem para cintilações tão vivas da alma e do
coração, dando conselhos aos mais velhos, falando as suas irmãs com
indescritível zelo e sabedoria no que lhes tocava o futuro.
As cartas abaixo transcritas e remetidas da Holanda são pá-
ginas de estupenda beleza, porque revelam o que seria, mais tarde, o
seguidor de Francisco de Assis.

“Caras irmãs,
abraço-as.

Em primeiro lugar, dou os meus parabéns a


Titi, pelo seu aniversário, pedindo muito a Deus que a aben-
çoe. Fiz uma esplêndida viagem, caras irmãs; admirei mui-
tas coisas, embora os padres que viajaram conosco censu-
rassem a minha indiferença. No Golfo de Gasconha, ninguém
dormiu no navio, tal foi a agitação do mar; mas não sofri
nada, exceto duas quedas da cama. Antes de chegar a Ams-
terdã, passa-se por um canal, o maior do mundo: ali vi coi-
sas lindas! Admirei primeiro as casas holandesas. Parecem
62 Frei Orlando: o capelão que não voltou

tão delicadas, tão atraentes, que me dá vontade de morar em


cada uma delas. Vi os tão famosos diques. Não são em geral
como se pensa, muros de pedra, altos etc., mas simplesmen-
te areia com meio metro acima do nível da água, bastante
largos e em declínio, de modo que as casas do lado oposto
estão muito abaixo do nível. O Porto de Amsterdã é muito
mais movimentado do que o do Rio. O navio vai muito de-
vagar, para não abalroar. Chegando ao Porto, estavam lá os
Frades – não andam de hábito em Amsterdã – que gritaram
em francês: ‘Les deux brésiliens sont-ils là?’ e eu respon-
di: ‘Oui, monsieur du frac!’. Foi uma gargalhada geral dos
que ouviram (e compreenderam). Eu pensava que era um
pastor protestante. Depois, fiquei sabendo que é proibido
sair à rua de hábito. Chegamos às 4 horas da tarde, e às 5
da tarde tomamos o trem para Heerlen, ficando em casa do
rapaz que já me havia escrito muitas vezes. Os trens são
muito diferentes dos daí; os vagões são divididos em quar-
tinhos, com capacidade para seis a oito pessoas, e divididos
em três classes: primeira, segunda e terceira. As duas pri-
meiras classes não eram tão frequentadas como a terceira.
Depois de umas duas horas de viagem, entraram em nosso
carro dois rapazes do Colégio, que logo nos reconheceram.
Cumprimentaram-nos, muito afetuosamente, dando-nos as
boas-vindas. Em Heerlen, fomos recebidos como príncipes;
dormimos no melhor quarto da casa, fumamos Havana e
bebemos vinho de Samos e Bordéus; conversamos até quase
meia-noite. Tratam-nos como velhos amigos, mas – seja dito
só entre nós – parece que comigo têm mais intimidade, penso
que devido ao meu gênio alegre. Com o João, parece que têm
mais cerimônia. Cada dia fazem uma nova espécie de comida
e sempre com a mesma pergunta: ‘smaaht goet?’, a que res-
pondia: ‘ya.’ Por duas vezes tive de cantar o Hino Nacional,
que foi muito aplaudido; uma vez durante o serão que houve
lá e outra vez em casa do irmão da Dona. No dito serão,
cada pessoa deve recitar alguma coisa, e ri de tal modo que
fui deitar às 10h da noite em vez de 11h e 30min, que é o
costume. Em casa desta senhora, que se chama Bayens, são
quatro filhos; o maior de 18 anos é o mais camarada de to-
dos. O dia inteiro trabalha em uma mina de carvão (a maior
O primeiro seminário 63

da Europa) como mecânico e quando volta a casa é para fa-


zer palhaçadas o tempo todo. Ensinei-lhe algumas palavras
em português, que ele fala assim: ‘cat’chimbo’, ‘carrabina’,
‘beteca’ (peteca), ‘carramba’ e quando quer dar uma grande
exclamação: ‘santas carrabinas!’ e um trecho do hino nacio-
nal: ‘Ó pátria amada, Dona Clara, salve! salve!’; é uma
pândega naquela casa; bom é que passarei lá todas as férias
(se houver dinheiro poderei passear para onde quiser). Com-
preendo muita coisa em holandês, mas falar ainda não dá.
Sittard, onde está situado o Colégio, é bem grande, com 25
mil habitantes e com aspecto de uma grande cidade; Heer-
len, outra cidade onde estive, é maior, com 40 mil habitantes
e é mais bonita. Mastricht, porém, com 60.000 habitantes é
mais bonita do que Belo-Horizonte. Uma estação colossal, de
onde saem doze linhas com a quantidade média dos trens de
carga de 40 a 70 carros. Somos 125 alunos ao todo; Retórica
é a classe mais adiantada, é a que frequento, somando, co-
migo, um total de 11 meninos. Leva como prerrogativa um
boné vermelho com cordéis dourados. Os dormitórios, isto é,
dos médios e grandes, são dois grandes salões divididos em
quartinhos. Esta manhã, a água da minha bacia tinha uma
camada de gelo de uns 4cm; mas, meia hora depois, tinha o
rosto e as mãos em brasa. Mesmo assim ainda não caiu neve
depois que chegamos. Aqui todos os meninos fumam e até
muito, e como aí é sinal de educação oferecer o cafezinho às
visitas, aqui se oferecem charutos. Gosto muito daqui, mas
aí é... mais... bem, peço-lhes licença para terminar, pois te-
nho mais que escrever. Como vão indo vocês aí? Lembrei-me
muito de Júlia quando via uma coisa interessante e na ver-
dade uma viagem como a minha (isto é, sem adoecer!) vale
muito. Peço-lhes que escrevam e que sejam longas cartas. Se
me escreverem do dia 10 de março até 10 de abril, o endereço
é Stationstraat 50 – Heerlen – Holanda. Enviando muitos
navios de abraços e saudades, termina esta o irmão que mui-
to as estima,

Antonio.”
64 Frei Orlando: o capelão que não voltou

“Delft, 16 de julho de 1931.


Caríssima mana Titi.
Abraços.

Recebi há dias a sua carta de 17 de junho, que


respondo agora. Não pense que serei muito extenso hoje, pois,
para lhe dizer a verdade, não tenho tempo algum, apesar de es-
tar em férias. Veja o meu horário: levanto-me às 8h da manhã,
vou à missa e comungo; às 9h, café; às 9h e 30min, mais ou
menos, vou de bicicleta a diversas aldeias na redondeza, à 1h
da tarde, almoço; das 2h às 5h da tarde, novo passeio, ou de bi-
cicleta ou de trem; às 5h da tarde, café; depois do café, a família
inteira sempre se reúne na sala de visitas, onde ficamos conver-
sando e escutando o rádio até às 11h ou 11h e 30min da noite.
Depois toco para a cama. Veja que quase não me resta ocasião.
Sobretudo nesta semana estive ocupado, pois devia desenhar
uma escrita chinesa com diversos enfeites sobre seda, que deverá
servir na roupa de um mandarim, em uma festa que se reali-
zará hoje. O serviço andou devagar, mas todos acharam muito
bem feito. Portanto, peço-lhe que me perdoe o atraso. Já recebeu
a minha última carta em duas partes? Fiquei alegre vendo que
você não se acha mais furiosa contra mim. Naturalmente, você
já notou que há pouco escrevia que a família se reúne etc. Pois
o caso é o seguinte: estou passando um mês na casa de uma
família que se chama Van Rijn, onde sou tratado como em casa
da família Bayens. Talvez melhor ainda, devido às circunstân-
cias, pois a família eu conhecia pelo menos de nome e esta não;
depois de um dia aqui, tanto eu como os da família estávamos
completamente familiarizados. Aqui são seis filhos e os pais.
Três moças, a mais nova 22 dias mais jovem do que eu, um
rapaz que se vai casar daqui a um mês e dois garotos, de 9 e 11
anos. Só vendo a festa que aprontamos aqui. Os dois menores
então aproveitam da minha paciência: ora consertar uma bola,
ora fabricar moinhos etc. O grande quer sempre que eu o acom-
panhe nas viagens de bicicleta (pois em dois dias eu já podia
O primeiro seminário 65

percorrer toda a cidade sozinho) e as moças a pedir que eu ajude


a tocar ora a máquina de lavar roupa, ora a bomba-d’água, de
modo que todos chamam pelo Tonny! Aqui me chamam ‘onze
kleine broeder’, o que quer dizer: o nosso irmãozinho! Agora
posso conhecer bem os costumes de uma família holandesa, pois
em casa do Sr. Bayens, sendo todos homens, é mais, por assim
dizer, indiferente. Aqui não, à tarde, pelas 10h e 30min, vamos
todos juntos rezar a oração da noite e um terço; depois as duas
moças mais velhas vão lavar as xícaras do chocolate e a mais
nova vai anelar os cabelos; os dois pequenos imediatamente
vão para a cama, depois de terem dado um beijo no pai e na
mãe; depois as moças despedem-se dos pais com um beijo em
cada um e a mesma cerimônia faz o rapaz. Quanto ao que me
toca (não há beijos), recebo um aperto de mão! Tudo vai muito
familiarmente. Esta família tem um grande negócio de queijo
com alguns milheiros de queijos, que são mais ou menos umas
cinco vezes maiores dos que os daí.
O João encontra-se em casa de uma outra famí-
lia, mais rica e mais luxuosa do que esta; contudo, não troco
o meu lugar, pois aqui me dou muito bem, muito familiar-
mente, o que não ocorre com ele.
Estive um dia desses em Haia (já fui lá quatro
vezes). É uma bela cidade; contudo não tem o aspecto das ci-
dades milionárias como o Rio. Roterdã é mais movimentada.
Lá, sim, a gente percebe um aspecto de cidade industrial e
comercial. Delft, onde estive, é uma velha cidade, recorta-
da de canais cheios de barcos e navios pequenos, cruzada de
pontes, não retas, mas abauladas. Diz-se que esta é a cidade
mais bela da Holanda e cada estrangeiro que pisa aqui no
país vem a Delft para ver os canais. Na verdade, é uma vista
magnífica! Célebre aqui é uma Igreja, que está em poder dos
protestantes, onde se acham sepultados os reis da Holanda.
A torre é de 110m de altura; ainda é célebre uma outra Igreja
‘Oude Jan’ (velho João), cuja torre é oblíqua, com diferença
de 1,20m.Também é muito visitado um velho convento, onde
foi morto o primeiro rei da Holanda, um espanhol, durante a
Guerra entre Holanda e Espanha. Quanto ao mais, nada de
extraordinário.
66 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Frei Orlando, quando estudava na Holanda (1931)

Em Haia, estive na praia balneária Schevenin-


gen. Só vendo que multidão!... Todos apreciando o ar fresco
do mar. Lá só é permitido nadar às pessoas de 12 anos para
baixo. Você não faz ideia da quantidade de gente que se reúne
ali; cada um leva o seu almoço e jantar para a praia e fica
o dia inteiro brincando. Lá se encontra uma das maravi-
lhas da Europa: uma ilha construída sobre colunas de aço,
a 300m da praia, ligada a esta por uma ponte. Só mesmo
vendo para se poder calcular que obra colossal!
Certamente, tenho ainda muita coisa a escrever,
mas o tempo! Estão me chamando para sair de bicicleta.
Peço-lhe perdão por tanta pressa, mas certamente você ficará
satisfeita sabendo que passo bem e que arranjei bons amigos.
Agradeço-lhe de todo o coração a importância que você me
mandou pelo frei Paulo. Mas eu te imponho a obrigação de
que, quando Jeová tiver vendido a minha parte, você compre
alguma coisa no valor de 100 a 200 réis para você, ficando
como lembrança do seu irmão.
O primeiro seminário 67

Ouviste?

Como vão passando o Sr. Amador e os nossos?


Ontem escrevi uma carta ao Jeová. João não se acha muito
bem, não; um dia desses, depois de muito pelejar para apren-
der a andar de bicicleta, tomou uma queda formidável. Con-
tudo, tirando o susto, não sofreu mais nada, porém ele ficou
tonto e passou bastante mal! Estou aflito para saber por que
D. Clara quer me repreender! Lembranças e abraços a todos
e não se esqueçam das fotografias.

Aceite um abraço do irmão que muito a estima.

Antonio.”

“Venray, Março 1933.


Querida mana Clarinha,

Já tendo terminado uma carta para vocês, re-


cebi a sua de três de fevereiro, e, como pediu, apresso-me a
respondê-la, pois julgo que a mana tem necessidade de al-
gumas linhas do irmãozinho longínquo. Compreendo a sua
situação e suponho que talvez tenha um certo remorso ou
talvez escrúpulos; no entanto isto não deveria ser assim. Se
é assim como suponho, trate de deixar esses escrúpulos, pois
Nosso Senhor não gosta de gente escrupulosa. Quem sabe se
tem remorsos de ter abandonado seu antigo estado e a vida
aí no mundo lhe cause profundo tédio? Mas pensemos bem
no caso: e se talvez fosse obrigada a seguir a vida religiosa?
Não; Deus a chamou, mas deixou-lhe perfeita liberdade no
sim ou no não. EscoIheu o último, agora lhe resta o dever
de cumprir as obrigações que o mundo requer. Preferiu um
esposo humano ao divino, agora procure servir a este sendo
fiel àquele. O matrimônio é também um sacramento e nele
adquirirá forças para cumprir os seus deveres de casada.
68 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Quem sabe se Deus a destinou para no mundo dar um ver-


dadeiro exemplo de mãe cristã? Quão belo é o ideal daquelas
que se entregam ao serviço de Deus pelos laços do matrimô-
nio! Talvez sejam maiores os merecimentos de uma esposa
paciente e virtuosa do que os de uma freira longe do reboliço
da vida. De minha parte, se é isso que esperava, pode casar-
se quando quiser contanto que seja o mais depressa possível,
de modo que a sua preparação para o grande dia não seja um
tempo de sensualidade, mas, antes, um tempo de profunda
meditação e devoção. Diga a Nosso Senhor depois de suas
comunhões: iluminai, ó meu Jesus, a minha inteligência para
que eu saiba o que deva fazer, e, como Samuel, escutar a
voz de Deus! Além disso, obre com a maior precaução pos-
sível, antes de dar o sim definitivo. Que seu futuro esposo
tenha todas as qualidades requeridas pela Igreja para suas
filhas, isto é, e seja um católico praticante e fervoroso, além
de não se envergonhar de o ser. Que suas boas qualidades
não sejam um resumo dos qualificativos, os quais, para as
mundanas, formam o noivo ideal, mas antes seja o seu pro-
cedimento irrepreensível e virtuoso; são estas, como convém
a um católico, as únicas causas que decidem o seu consen-
timento. Sobretudo, cuide que o seu amor com ele não seja
uma paixão, mas sóbrio, fiel e casto. Se ele corresponder a
todos os desejos da Igreja, tem o meu perfeito apoio, pois pre-
feria vê-la morta a ser entregue aos ludíbrios de uma pessoa
sem caráter. Mais uma vez, advirto-a de que o casamento é
um ato santo e em certo ponto um dever. Quer ficar solteira
para melhor servir a Deus, tem incomparáveis merecimen-
tos; mas se fica solteira, para se livrar do peso que consigo
traz o casamento, e para gozar mais o mundo, é covarde e
comete um grande pecado.
Querida irmã, o que lhe desejo é a sua perfeita
felicidade. Que Deus a abençoe e faça de você uma esposa
exemplar. Da minha parte ficarei rogando a Deus até que
me seja dado saber que você e seu noivo cumpriram em tudo
a vontade da Igreja, a vontade de Deus mesmo.
Se tudo correr bem, escreva-me para que eu pos-
sa, mesmo de tão longe , participar da sua alegria. Não dei-
xe de pedir muito a Deus por mim, seu indigno servo, pois
O primeiro seminário 69

o meu ideal é sacrificar minha vida pelas almas, pelos meus


irmãos caríssimos, por amor de Deus que tudo pode e tudo
fez por nosso amor.

Mil abraços e saudades do seu irmãozinho.

Frei Orlando, Ofm.”

“Venray, 19 de maio de 1934.


Querida mana,

Já desde muito tempo que venho com vontade de


lhe escrever, mas uma vez me impede isto, outra vez, aquilo,
e o tempo vai passando despercebidamente. Mas hoje tenho
ocasião: temos só uma aula, pois é véspera de Pentecostes, de
sorte que a maior parte dos nossos professores têm que pres-
tar auxílio às Paróquias da vizinhança, e, além disso, temos
dois dias feriados! Por conseguinte, tempo em abundância.
Recebi a sua carta de fevereiro, obrigado. Fiquei contente
de ver que agora está feliz e amparada aqui neste mundo, e
peço a Deus que Ele conserve para sempre o fervor com que
aceitou o estado de vida que Ele lhe reservou.
Apesar do tempo esplêndido desta manhã de
primavera, apesar de ter dormido excepcionalmente bem, e
não obstante meu cachimbo fumegar que é uma delícia para
se ver e... cheirar, faltam-me ideias, e não sei totalmente
nada para escrever-lhe. Questões político-sociais (meu as-
sunto predileto nas cartas para Jeová) certamente não lhe
interessam. Um pouco de filosofia, talvez? Deus me livre de
tal. Filosofia é certamente útil, e, para alguns, muito inte-
ressante, mas prefiro vê-la longe das minhas vistas. Mas
espere, já sei uma coisa: Gonçalves Dias disse: minha terra
tem primores como tais não encontro eu aqui; mas eu inverto
as frases e digo ‘aqui tem um primor, como tal não encon-
tro em minha terra!’ Refiro-me então à primavera. Nós que
70 Frei Orlando: o capelão que não voltou

moramos no País da primavera eterna não podemos fazer


uma ideia adequada daquilo que os europeus entendem por
primavera. É verdadeiramente um encanto ver como a na-
tureza nestas regiões do norte da Europa morre e ressuscita
cada ano. Quando cheguei aqui, estávamos, então, no cora-
ção do inverno e tive a impressão de que chegava ao Saara:
árvores sem folhas, terra sem verdura alguma, pois tudo
fica seco pelo frio. Sobretudo nesta região, onde estou agora,
tem a natureza um aspecto triste durante o inverno: o terreno
aqui é coberto de areia, e há um século crescia nestas terras
só uma espécie de capim muito raquítico. Mas os holandeses,
práticos como são, mudaram tudo, de modo que só em pou-
cos lugares pode-se ver ainda o estado primitivo do solo; pelo
resto transformaram a terra em trigais enormes e bosques de
pinheiros. Pois bem: durante o inverno voltam esses trigais
ao aspecto antigo: deserto, areia! Mas depois se torna verde-
claro, o trigo começa a brotar, daí a pouco só se vê um mar
de verdura; da janela da minha cela estende-se um trigal de
mais ou menos 2km, tudo verdinho que é uma delícia ver!
As árvores estão de novo verdes, os pássaros já voltaram,
pois a maioria deles muda-se para o sul durante o inverno; o
sol anda agora mais esperto, de costume é ele tão preguiçoso.
Dos 365 dias do ano, o sol só aparece no céu umas 65 vezes!
O resto esconde-se atrás das nuvens ou neblina! Isto que é
insuportável. Mas a primavera recompensa tudo; ela é aqui
tão bonita! Aqui vemos a justiça de Deus: na verdade, a na-
tureza da Holanda é paupérrima, mas os homens, que Deus
fez morar aqui, fazem a primavera, durante alguns meses
do ano, das mais bonitas do mundo. Mas quando receber
esta, estarei no começo do verão, então quase se derrete de
calor; o meio-termo parece ser desconhecido. Mas, em todo
caso, prefiro o clima do Brasil, sobretudo o tempo de frio,
ah, aquele céu sempre azul, eterno e aquele friozinho tão
ameno! É mesmo um tempo ideal, pelo menos para mim.
Até me dá saudades! Paciência, ainda alguns meses talvez
e... ora, veja só, escrevi mais do que pretendia. Se a enjoei,
escreva-me. Talvez já soubesse de tudo que escrevi aqui, pois
normalistas sabem de tudo, se não me engano; mas é sem-
pre agradável admirar as belezas da natureza, e isso é justa-
O primeiro seminário 71

mente uma qualidade particular dos filhos de São Francis-


co, o louvador de Cristo. Eu, como bom filho dele, sigo o seu
exemplo e repito com o salmista: bendiga ao Senhor o fogo
e a água, o calor e o frio, as aves do céu e os habitantes do
mar... ‘omnia opera Domini, bendicite Domino’ – todas as
obras de Deus, bendizei ao Senhor.
Espero que todas aí passem bem de saúde. É
insuficiente acrescentar que eu também vou indo forte. Já
desde muito tempo, talvez três ou quatro meses, não recebi
mais carta de Belo Horizonte. Parece que a Titi anda muito
ocupada, ou talvez se prepare para seu casamento? Vejamos.
E o Quinha, como vai indo? Será que ele fez o propósito de
nunca mais me escrever? A ele, minhas lembranças e abra-
ços. Agora chega! A todos daí envio mil saudades, sobre-
tudo ao Abeilard, e aceite um saudoso abraço do irmão que
muito a estima.

Frei Orlando, Ofm.”

“Venray, 2 de agosto de 1934.


Queridos irmãos.
Abraços.

Finalmente posso escrever-lhes mais sossega-


damente; os exames já passaram e, graças a Deus, às mil
maravilhas. Estou satisfeito com os resultados obtidos em
cifras, mas se estou satisfeito com aquilo que aprendi nestes
dois anos de filosofia, é outro caso. Talvez seja justamente
o contrário. O resultado que tive posso dizer em poucas pa-
lavras: sei agora que a razão do homem varia como o ven-
to. Muitas questões, muitos problemas intrincados, mas as
soluções são tão variantes, tão secas que não me satisfazem
o espírito. Talvez sejam essas soluções tão simples como a
resposta de um enigma, ou daquela questão do bode, sabem
72 Frei Orlando: o capelão que não voltou

qual? É muito simples: um bode está justamente entre as


fronteiras do Brasil e da Argentina, com as patas da frente
em território brasileiro, onde ele pasta; e com as patas de
trás na Argentina; agora a questão que muitos julgam sim-
ples, outros, porém, indagam sem sucesso (não sei a que
categoria vocês pertencem, contudo pensem lá quanto quise-
rem, eu da minha parte julgo que um pode resolvê-la mais
depressa que o outro). A questão é esta: de quem é o leite,
da Argentina ou do Brasil? Ora, para mim, estou certo de
que um bode, nem no Brasil nem na Argentina, dá leite. É
claro! Mas muitos não o percebem logo. Precisam de esclare-
cimentos. Isso é, porém, difícil, pelo menos, muitas vezes.
Assim aconteceu uma vez que um filho de cinco anos pergun-
tou ao pai: Papai, hoje é amanhã? – ‘Não; naturalmente que
hoje é hoje e amanhã é amanhã.’ – ‘Mas o senhor me disse
isso.’ – ‘Quando então?’ –‘Ontem, papai, o senhor me dis-
se – amanhã te dou uma bola; o senhor me deu a bola, por
conseguinte, hoje é amanhã.’ – ‘Olha, menino, eu lhe expli-
carei tudo direitinho, hoje é amanhã ontem, mas hoje é hoje,
assim como ontem era hoje ontem. Ontem é hoje ontem, mas
amanhã é amanhã hoje, de modo que ontem foi hoje ontem,
e amanhã vai ser hoje amanhã. Por conseguinte, hoje não é
amanhã, mas amanhã é de novo hoje. É claro que chega!’
Assim é a vida filosófica – muita coisa clara
e evidente, outras menos claras, outras obscuríssimas; daí
provém a diversidade das respostas e soluções. Quais, po-
rém, são verdadeiras? É claro que a filosofia católica, nos
pontos essenciais; nos outros ela tem 90% das possibilida-
des. Mas não podemos deixar a filosofia sozinha, ela é cria-
da da teologia: assim como aquele viajante que tinha per-
corrido umas quatro léguas a cavalo, quando chega a uma
encruzilhada, não sabendo mais o caminho, pergunta a um
roceiro qual é a estrada para Catazaltas. ‘Olha, diz ele, toma
a direita, depois a esquerda depois novamente a direita, e,
quando topar com alguém, pergunte o caminho para frente.’
A mesma coisa é com a filosofia, esta fala como o jeca. A te-
ologia, porém, nos mostra o resto do caminho. Por isso estou
contente: daqui a pouco poderemos entregar-nos com afinco
ao estudo da ciência divina. Então estarei mais feliz ainda.
O primeiro seminário 73

Aqui, neste lado do Atlântico, as coisas vão de mal


a pior. Todo mundo espera uma catástrofe, mas, para quando?
As pessoas que presenciaram o começo da Grande Guerra dizem
que agora é tudo semelhante a 1914 e por isso todos esperavam
uma coisa descomunal, mas não sabiam quando; inesperada-
mente começou a Guerra! Atualmente, dizem que a situação é
idêntica, sobretudo nessas duas últimas semanas, isto é, depois
do assassinato de Dolfuss o Ditador da Áustria. A Alemanha
está implicada no atentado, e a Itália requer satisfações do go-
verno nazista. Qual será o fim? Não sei, esperemos! Aqui na
própria Holanda, onde há anos não havia distúrbio algum,
rebentou há pouco uma revoluçãozinha. Obra dos socialistas e
comunistas. Isso não é o caso de se admirar, pois que outra
coisa sabem esses partidários do povo, senão perturbar a ordem
pública? E sabem por que houve na Holanda esta greve que
trouxe muita perda de vida? Simplesmente porque, melhorando
um pouco a crise, e não podendo o Estado pagar mais o alto
sustento aos sem trabalho, resolveu o ministro do trabalho dimi-
nuir a quantia (de 1/4, se não me engano); o restante é mais que
suficiente para se viver bastante bem, pois o governo holandês
toma conta até das necessidades que o povo tem de ir de vez em
quando ao cinema etc. Pois bem, a diminuição do sustento des-
gostou diversos, que agora estão privados das superfluidades
que gozavam de um tempo para cá. Os comunistas e socialistas
começaram a agitar o povo, e o fim foi o que houve: tiroteios em
Amsterdã, Roterdã e outros lugares. Agora já está tudo termi-
nado, mas a diminuição do sustento ficou firme.
Eu vou indo bem. De hoje em diante o meu en-
dereço é: Frei Orlando –Minderbroedersklooster – Wychen
(by Nymegen). E vocês, como vão indo? Todos bons? O Qui-
nha está aí? A todos muitas saudades e abraços. Também à
mamãe e a todos os conhecidos e amigos.

O irmão

Frei Orlando, Ofm.”


74 Frei Orlando: o capelão que não voltou

“Alverna, 30/3/35

Caros irmãos.

Aqui vai minha carta deste mês. Recebi o regis-


trado contendo o retrato de Clarinha, inclusive carta da Titi e
promessa do Quinha.(!) A todos muito obrigado. À Clarinha
agradecerei particularmente, mas só daqui a duas semanas,
por falta de tempo, pois as segundas provas escritas já se
acham às portas, e o armazém está cheio demais, cheíssi-
mo, sobretudo porque um dos professores não deu, durante o
trimestre, as suas ‘scripta’; ‘scriptum’, (penae, scripta) = es-
crito(!) chamamos aqui aquilo que o professor ensina fora do
manual em uso, ou em vez de um manual, e hectografado;
neste caso, em vez do manual de apologética, de modo que
durante o trimestre não pudemos estudar, e agora estamos
no aperto! Mas tudo correrá bem, é claro!
Pelo resto, vai tudo aqui no modo do costume:
bem, forte e gordo. No entanto, parece que a Senhora Morte
– S. Francisco a chamava irmã morte, cada qual tem seu
gosto especial – quer fazer uma visita ao nosso Convento.
Segunda-feira, 24 deste, partiu um colega nosso para o hospi-
tal aqui perto, por fazer uso demasiado de uma ‘certa peça’,
indispensável ao mundo civilizado! Em outras palavras,
aquilo que ele come sai depressa demais pelo lugar oposto.
No dia seguinte, um dos professores foi levado para o mesmo
hospital, por causa de uma doença justamente oposta à do
primeiro; o primeiro paciente, parece-me, está fora de peri-
go, mas, quanto ao segundo, o caso está feio: foi operado e
constatou-se que tinha um câncer no fígado e que as outras
partes, internas do corpo, já estavam todas contaminadas.
Os médicos deram-lhe apenas dois meses de vida. Ontem,
porém, ouvi dizer que, devido à mudança de temperatura,
em tais casos, deve ser um mau sinal. Ele pode vir a falecer
a qualquer hora e só mesmo com um milagre o seu com-
pleto restabelecimento (ouço agora mesmo que recebeu a S.
Extrema Unção). É pena, pois se trata de um homem com
grande capacidade, doutor em Filosofia e ainda moço. Aqui,
ocorrem-me espontaneamente, à memória, aquelas palavras
O primeiro seminário 75

da Escritura Sagrada: a vida do homem é como a flor do


campo que desabrocha de manhã. Tiro então a conclusão com
outras palavras da mesma Escritura: aquele que considera
os novíssimos do homem – dos quais o primeiro é a morte –
não pecará em sua vida.
No dia 16 deste mês, recebemos a tonsura e sá-
bado que vem receberemos as quatro ordens menores. Fomos
para isto, a Hoertogenbosch (Bois-le-Due) que fica a uns 40
km daqui; saímos de manhã cedo às 7h, chegamos lá às 8h.
Às 8h e 15min começaram as cerimônias. Nós, 32 francisca-
nos, recebemos a tonsura juntos com uns 15 teólogos da Con-
gregação do Espírito Santo; 11 outros da mesma congregação
foram ordenados subdiáconos e 9 montfortamos, sacerdotes.
Às 11h e 15min, mais ou menos, estávamos prontos, e,
depois de termos agradecido ao Sr. Bispo, fomos matar a
fome no refeitório de um internato próximo. O Sr. Bispo,
já de idade, 78 anos, mas ainda forte e majestoso, depois
de responder aos nossos agradecimentos (sempre e em tudo
formalidades), disse que queria saber do Superior dos fran-
ciscanos qual era a nacionalidade dos frades com nomes tão
esquisitos. Entendia naturalmente Alvares da Silva e de Oli-
veira. São brasileiros, diz o nosso chefe e, ao mesmo tempo,
fez-nos entender que saíssemos ao ar livre. Nós marchamos
para frente e ganhamos uma bênção especial do Sr. Bispo.
Ele começou a falar conosco em francês, mas nessa hora a
gente não sabia onde se meter, de tal modo que respondemos
em holandês. Naturalmente, quando chegamos a casa, ou
já durante a viagem, não faltaram brincadeiras da parte de
nossos colegas holandeses. Vocês querem sempre alguma coi-
sa extraordinária, é claro, esses crioulos se sobressaem logo
no meio dos outros! Até hoje ainda falam na audiência do
Bispo, mesmo à holandesa.

Por hoje chega. Até outra vez. Lembranças a


todos.

Do mano,

Frei Orlando.”
76 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Os dias escoavam-se na ampulheta do tempo. Tempo que


não para, não se detém, para que mais e mais aumentassem as saudades
dos pais adotivos do clérigo, na Holanda.
Padre Vital, “um bom sacerdote, mas um tanto enérgico”, já
escrevia Antonio depois de ordenado, não se cansava de dizer aos seus
paroquianos: “Aí vem Antonio, vai ser padre e será um dia meu suces-
sor.” Enganava-se, todavia, o bom padre. O estudante de Morada Nova
alimentava outro ideal, pensamento que só ele entendia e a ninguém
ocultava: ser missionário, correr mundo, curar as feridas da alma nas
terras distantes da nossa Pátria.
Era um ideal acalentado – sonho que não se realizaria! So-
nho que fora uma constante em sua vida, da sua formação cristã: ser
missionário na longínqua China, onde tantos e tantos trabalhadores da
Seara de Jesus derramaram o seu sangue pela conversão dos pecadores.
O futuro franciscano sabia disso. Não ignorava, em absoluto,
o que lhe estava reservado caso se concretizasse o seu ideal.
Mas não desanimava.
Entendia que o sagrado ministério de Deus não se deve re-
sumir no simples pastoreio das almas, no conforto e na tranquilidade
das organizações religiosas, nem no comodismo das cidades, grandes
ou pequenas, mas tem a finalidade principal de requerer do sacerdote
a serviço de Deus – seja dessa ou daquela religião – maiores desprendi-
mentos e sacrifícios.
E como se perguntando: “não foram tantos e tão destacados
os exemplos de abnegados missionários, na santa missão da catequese?”
Estávamos a 28 de setembro de 1935 quando, certo dia, os
sinos de Morada Nova começaram a tanger aqueles mesmos bronzes tão
familiares para o filho adotivo dos Teixeira Pinho.
Repicavam festivamente, inusitadamente!
Ecoara, então, a notícia alvissareira: Antonio acabava de
chegar.
O povo saiu para as ruas alegre, colocando a vilazinha em
reboliço, invadindo a casa de D. Emirena, que se engalanara de flores
e de gente. Gente de todos os cantos, pobres e ricos. Foi uma festa nos
corações, daqueles que tanto queriam ao jovem clérigo e que, agora, re-
gressava cheio de vigor, cada vez mais eufórico e estuante de contenta-
mento por rever sua terra e seus queridos.
O primeiro seminário 77

Os velhos pais adotivos não cabiam em si, tão contentes se


encontravam vendo o filho ali junto deles, após aquela ausência de qua-
se cinco anos.
Com o regresso feliz de Antonio, viveu Morada Nova dias de
festas e de preces. Festas pela sua presença. Preces para que ele pros-
seguisse em sua missão e fosse sempre bom, fazendo de Morada Nova a
sua morada definitiva. Isso, entretanto, não se verificaria, porque novos
rumos lhe estavam destinados.
Coisas do “Senhor Destino”, desígnios do Alto!
Correria ele meio mundo, mas o seu berço natal ficaria, para
sempre, apenas em seu coração.
Já estava selado seu destino na vida!
Antonio mostrava-se imensamente feliz junto dos seus e a
todos ia correspondendo com demonstrações de carinho, pilheriando,
rindo, gargalhando, traços característicos de sua vida.
Vivendo apenas para as coisas belas da alma, com uma vi-
bração natural e incontida, não desprezava os potentados da terra, mas
aos pobres dispensava maiores atenções, tributando-lhes sobejas pro-
vas de amor e de carinho. Era o servo fiel de Francisco de Assis!
Essa atitude não passara despercebida de todos que o cer-
cavam. Dele receberam os deserdados, os oprimidos e os sofredores, as
maiores provas de dedicação, amparando-os, encorajando-os.
Assim passaria na Terra toda sua existência!
Vestindo o mesmo hábito da Ordem que nos deixara o santo
de Assis, dele possuindo as mesmas características do espírito em pere-
ne irradiação de bondade, Antonio Alvares da Silva, entretanto, formava,
no físico, um forte contraste com seu Mestre.
“Francisco era pequeno e muito magro. Seu rosto oval de
fronte baixa, olhos negros e lábios estreitos, não eram feios, mas bonitos
também não eram.” É como no-lo descreve René Miller.9
O próprio santo fez o seu autorretrato sem lisonja, tal como
o tinha visto no espelho de um sonho em que apareceu como um fran-
guinho preto. E dizia o efeito de Deus: “Olhem para mim”, falava fazendo
troça, “sou aquele frango, pequeno de estatura e preto!”10

9
René Fulep Miller (trad. de Oscar Mendes). Os Santos que abalaram o mundo.
10
Idem.
78 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Antonio, ao contrário, era esbelto, muito claro, os olhos um


tanto azulados, o queixo bem feito, arredondado, a boca nem grande nem
pequena, pondo à mostra duas fileiras de dentes muito alvos e bem alinha-
dos. Os cabelos, mais para claros do que para escuros, harmonizavam-se,
perfeitamente, com um par de sobrancelhas carregadas e bem feitas. O ros-
to cheio, aflorando vigor e energia, dava-lhe um corado de saúde e de vida.
Era mesmo bonito o órfão de Morada Nova!
Fosse ele livre, pudesse alçar os voos do travesso Cupido e,
na divinização do amor, como o filho de Vênus e de Marte, emulando
Eros, fosse-lhe dado abrir seu coração pleno de mocidade, teria junto do
seu coração, para as ilusões do amor, as mais lindas beldades.
Não seria ele, contudo, o cavaleiro andante para as aventu-
ras. Não o poderia ferir a flecha de Cupido. Não seria um Petrônio, de
que nos fala Tácito, nem Apolo com suas nove Musas. Sua vida, seu co-
ração, sua beleza física, destinara-os ele não às conquistas terrenas, ao
mundo com seus erros e maldades, mas à Corte Celestial, a Deus!
Cedo, muito cedo, aquela alma cristalina, aquele lírio desa-
brochado, volta-se todo, inteiro, completo, para um único amor, amor
que foi férvido, vivo, constante, sincero, leal, porque profundamente
puro: o amor que dedicou à Virgem!
A Ela, apenas a Ela, e depois a sua mãe adotiva, que lhe dera
um cantinho no berço de seus filhos, partilhando com ele o pedaço de
pão de todo dia, Antonio entregaria, arroubadamente, todo o seu cora-
ção. Porque ele sabia ser grato, retribuindo os desvelos que recebera
com idêntica unção e mesma doçura.
Concluindo estas considerações em torno da vida do futu-
ro frade – divagações que se nos apresentaram imprescindíveis, melhor
aquilatando nosso biografado – vamos, agora, à continuação da sua mar-
cha pela vida afora.
Poucos meses passara o futuro sacerdote com seu hábito,
sua sandália e seu cordão atravessado à cintura, pelas ruas de Morada
Nova. Os estudos acenavam-lhe. A conclusão do seu noviciado era um
imperativo. Não podia fugir a ele, nem adiá-lo.
Estava a meio caminho do seu almejado estado de vida. Seus
conhecimentos de Teologia Fundamental teriam novo prosseguimento,
para que, destarte, visse coroado de êxito o dia em que, à beira do altar,
receberia as ordens sacras.
O primeiro seminário 79

Assim, pouco desfrutaram os pais adotivos do convívio do


filho, que, desde os 12 anos, conforme foi dito, deixara a casa paterna e
ingressou no Colégio de Divinópolis.
Supõem muitos que o homem é livre. Que dispõe a vontade
do seu lar, da sua própria capacidade de agir, usando, para isso, o seu
livre-arbítrio. Enganam-se, porém. Não nos pertencemos, senão ao im-
pério incognoscível de uma Força que nos impele para este ou aquele
ângulo da vida. E tanto podemos caminhar para a felicidade quanto para
a derrocada. Na vida, sem querermos ferir a realidade do livre-arbítrio,
encontramos as mais variadas surpresas, capazes de modificar a nossa
inclinação ou pendor. É o desconhecido!
O menino de Morada Nova não escapou à nossa concepção
filosófica. Conquanto passasse a existência – oh! e como foi tão curta! –
trazendo sobre o corpo o hábito de um frade, não viveria à rígida moda
dos monges, nem mesmo da Ordem a que pertencia.
Não era seu ideal ser missionário na China? Não seria, por-
tanto, uma vida insegura, afoita, afastado das normas rigorosas da co-
munidade, enfrentando os riscos da sua missão?
Sua índole era mesclada de devoção e misticismo, mas sem
o sabor do que fosse puramente passivo, para ser, isto sim, um atuante,
impetuoso, ávido de aventuras. Não sabia esperar. Investia!
Ao fazer a caridade material, ao dar esmola, ia ao encontro
do necessitado. Não esperava que lhe batessem à porta. Como que tinha
ânsia de servir, de mitigar os sofrimentos, enxugar as lágrimas.
Desde menino, nos fora dado ver, se apanhava os pobres
pássaros para encerrá-los, não ia, contudo, aos ninhos frágeis das árvo-
res, para deixar ao desamparo os pobres filhotinhos.
Vida de pureza ilibada, irreprochável!
Capítulo 3

Ordenação
Sua vida em São João Del Rei

A Cidade de Divinópolis, situada nas montanhas mi-


neiras, tranquila e próspera comuna dos arredores
de Belo Horizonte, seria o templo destinado à comunhão definitiva de
Antonio com as coisas do Céu.
Aleluia! Aleluia!
Hosanas à Virgem! Os Céus se alegram porque, na terra,
mais uma alma pura entrega-se ao serviço da Vinha do Senhor!
A 24 de outubro de 1937, dois anos, portanto, após seu regres-
so da Holanda, aos 24 anos de idade, recebia ordens eclesiásticas o filho de
Morada Nova. Deu-lhas, em uma bela manhã de sol, em meio à alegria de
seus familiares e ao cântico dos anjos, as mãos ungidas de Dom Antônio dos
Santos Cabral, um dos mais destacados antístites da Igreja Romana.
O jovem Antonio, em sua nova indumentária clerical, rindo
e chorando, iniciava, daí por diante, uma nova vida.
Deixava de ser Antonio para receber, na ordem, o belo nome
de Frei Orlando!
Anos depois, em carta deixada as suas irmãs adotivas, es-
crevia ele:
“Como eu me lembro do momento feliz daquela manhã!” E
referindo-se a Jesus, no ardor da fé:
“Nunca pensei em deixá-lo! Nunca!”
Como era forte a sua convicção!
Humberto de Campos, na graça e beleza do seu estilo, é
quem nos conta esta passagem, tão expressiva quanto tocante, de um
moço que se torna frade:
82 Frei Orlando: o capelão que não voltou

“Os lenços das mulheres batiam ao vento ace-


nando-lhe como asas de pássaros tontos. Mãos miúdas e
claras agitavam-se ao sol, como borboletas doidas, que pro-
curassem subir ao Céu.
(...)
E Álvaro Ribeiro, sentado em seu barco, o busto
oscilante no ritmo da remada, passava rápido, fazendo res-
saltar, no manejo da molhada voga, a sua musculatura atlé-
tica, entre os esplendores solares desse maravilhoso cenário de
Corinto ou Atenas! Um dia, porém, o atleta desaparece. Nos
instantâneos e nas notícias do Tietê, não se vê mais sua figu-
ra nem seu nome. Eis que, após sete anos de silêncio, salta
à porta do Clube, metido em uma roupeta conventual, um jo-
vem Frade, discípulo de Loiola. É forte, mas pálido. É moço,
mas tem a fisionomia cansada. Nos lábios finos, há apenas a
tristeza doce, que deixam as rezas em sua passagem.
Nos olhos escuros, outrora inundados de sol,
brilham, agora, apenas dois círios velando o cadáver de um
homem. Esse Frade é o atleta Álvaro Ribeiro. Álvaro Ribei-
ro chama-se, agora, Frei Vicente!”

E Antonio Alvares da Silva, o filho adotivo de D. Emirena,


recebe, na Ordem de São Francisco, o nome de Frei Orlando!
Sobre a ordenação de Frei Orlando, fala ainda sua irmã
Fausta Alvares da Silva:
“A mana Titi e eu sempre moramos em companhia de Jeová.
Em 1937, porém, quando de regresso das férias passadas em Granjas,
ficamos surpresos ao saber que Jeová levara a família para Abaeté, dei-
xando nossa mobília na pensão da prima Adelina. Passamos, assim, a
morar com ela, até que pudéssemos ter a nossa casa. Por sorte nossa,
poucos meses depois vagou uma casa pequena de cinco cômodos, nos
fundos da pensão, com uma área para cultivo de flores, com frente para
a Rua Ceará. Dois moços, nossos amigos, ajudaram-nos a passar, por cima
do muro, todos os nossos pertences. Um deles chamado Sílvio resolveu
fazer um jardim e, traçando os canteiros, revolveu a terra e transplantou
para ele muitas mudas do jardim da pensão. Em um dos canteiros, só cui-
dou de plantar margaridas. Titi e eu estávamos contentíssimas com a nos-
Ordenação 83

sa casa. Os cuidados e trato com o jardim multiplicaram-se na esperança


de que fosse grande a safra de flores, por ocasião da ordenação do mano.
E, assim, toda a família movimentou-se para os preparativos do tão al-
mejado acontecimento. Ninitinha, irmã adotiva de Antonio, incumbiu-se
de angariar, entre os familiares e amigos de nossa casa, a quantia para
a compra de um grande tapete, destinado à Igreja de Divinópolis, onde
se deveria realizar a ordenação. No dia do embarque, quando saíamos
de casa para o ato solene, na cidade acima referida, levando carinhosa-
mente belos cravos, decidimos, Titi e eu, colher, do nosso jardim, todas
as flores para enfeitar a cela do mano. Já ostentava ele o nome de Frei
Orlando. Porém só encontramos cinco margaridas, que foram colhidas
e levadas por nós.
Uma vez em Divinópolis, entregamos as flores a Frei Osório,
recomendando-lhe que as margaridas, colhidas em nosso jardim, fos-
sem para a cela do Frade e irmão.
As cinco margaridas – expliquei-lhe – representam as suas
irmãs. Frei Osório, após ornamentar a cela, chamou o mano para ver.
Este, sempre brincalhão e trocista, foi logo dizendo:
– Logo estas flores tão feias que vocês acharam para colocar
aqui em minha cela?
Ao que lhe respondi:
– Estas margaridas têm um significado, caro Frei Orlando,
porque foram cultivadas com muito carinho por suas irmãs que, não po-
dendo entrar na clausura, desejam estar unidas a você todos os dias.
Os festejos ocorreram muito bem. Os Frades e o povo de
Divinópolis foram muito atenciosos com toda a nossa família, e o dia
24 de outubro de 1937 ficaria inesquecível para nós.
No dia 1º de novembro do referido ano, Frei Orlando cele-
brou sua primeira Missa na Igreja de São Francisco das Chagas, em Car-
los Prates. Quando regressou a Divinópolis, encontrou em sua cela as
cinco margaridas, já murchas. Escrevera-nos, então, belíssimas cartas
referindo-se a elas. Essas cartas arrancaram lágrimas, não só das irmãs,
mas também de todos os nossos conhecidos e amigos.”
As atividades sacerdotais de Frei Orlando foram mais in-
tensas e mais proficuamente cultivadas na Cidade de São João Del Rei,
aqui em Minas Gerais, para onde seria transferido, cumprindo ordens.
Nessa cidade mineira, dera seus primeiros passos na vida sacerdotal,
84 Frei Orlando: o capelão que não voltou

iniciando-se nas suas atividades práticas, revelando sua vocação defini-


tiva para as coisas da Igreja e dos misteres do Bem.
São João Del Rei, a cidade dos sinos e das lendas, Terra-Ma-
ter de Tiradentes, de Bárbara Heliodora e de vultos ligados à história do
Brasil, em suavidade mística dos seus templos centenários, celeiro de
mais de uma centena de ungidos da Igreja, entre padres, bispos e religio-
sas, seria a terra cultivada para acolher o novo frade.
Mas, e o acalentado ideal de ser missionário na China? E as
promessas feitas a Deus, nas horas de recolhimento e meditação!?
Foi gargalhando, passo estugado, na sua fala estridente que
Frei Orlando Ofm aportou à histórica cidade mineira, cumprindo ordens,
para viver sua vida, sentindo de perto seus anseios – chorando e rindo.
Bem à beira do sobradinho, onde residiu a heroína mineira
– Bárbara Heliodora – fica o Colégio de Santo Antônio, um dos maiores
estabelecimentos de ensino do País. Dirige-o, desde 1908, a Ordem dos
Franciscanos Menores.

Seminário dos Franciscanos e Santuário de Santo Antô-


nio, na Cidade de Divinópolis, Minas Gerais, onde se orde-
nou Frei Orlando
Ordenação 85

À sua porta foi bater o novo discípulo de Francisco de Assis.


Contava 24 anos. Trazia consigo, junto com as saudades de sua família ado-
tiva, um coração palpitante de idealismo e muita vontade de servir. E quem
não sabe servir, já afirmou um pensador, não serve para viver.
No referido Colégio, passou Frei Orlando a lecionar diversas
disciplinas com eficiência e zelo. A seu cargo ficara, também, a direção es-
piritual do estabelecimento, cumulativamente com a da Ordem Terceira.
Frei Orlando fez-se logo amigo de todos, tangido pelo seu
temperamento alegre, brincalhão, passando a desfrutar de uma sólida
confiança, não apenas dos alunos do Colégio, mas também do povo da
cidade, com o qual se identificara perfeitamente.
Sua vida era pautada dentro das normas rígidas do sacros-
santo dever religioso, de par, outrossim, com a estrita solidariedade
cristã. Amparava, socorria, assistia e recebia dos ricos para dar aos po-
bres. Era aquele mesmo Antonio dos tempos de criança, caridoso e bom,
repicando os sinos da sua vilazinha. Mas tudo isso, agora, ficara para
trás, no calendário do Tempo e na memória do piedoso franciscano.
Nova missão estava-lhe reservada em São João Del Rei, cida-
de que o extasiou pela cultura de sua gente, pelas tradições de sua fé e,
sobretudo, por ser uma comuna das mais católicas de Minas. Seus pri-
meiros dias na cidade, passou-os visitando os templos coloniais, mara-
vilhado, diante da beleza externa e interna das igrejas de São Francisco e
do Carmo. Nesta última, ele viu a Imagem do Cristo inacabada, a mobília
de jacarandá, a sala dos milagres.
E como se encantou!
De tudo queria inteirar-se, procurava conhecer os fatos da
nossa vida religiosa e profana, integrando-se em nosso passado opu-
lento, inegavelmente, de muita coisa consignada em nossa história. Ora
andava com um, ora com outro; era visto subindo as ladeiras íngremes,
as ruas mais esconsas, ávido de melhor observar, sempre arguto, auscul-
tando, indagando.
São João Del Rei tornara-se para Frei Orlando um livro aber-
to da arte e da história de Minas e do Brasil.
Nessas andanças pelas ruas, fazia amigos, cativava uns e ou-
tros, ria, satisfeito, mostrando já o seu bom humor.
Ao tomar conhecimento da situação angustiante dos pobres
da cidade, começou, daí por diante, a entremear os afazeres da cátedra
86 Frei Orlando: o capelão que não voltou

com a obra caritativa. Socorria aqui e ali. Mãos anônimas auxiliavam-


no nesse santo mister. Hoje, passados os anos, tendo a morte ceifado
muitos dos que o ajudavam nesse apostolado, justo se torna evocarmos
a humanitária família Nascimento Teixeira, protótipo do sentimento de
amor ao próximo. Outras e muitas outras famílias de São João Del Rei
também secundaram os Nascimento Teixeira, porque vislumbravam no
jovem franciscano um autêntico Missionário da Caridade.
E o frade prosseguia na sua faina de fazer o bem. Pedia, im-
plorava mesmo, não para si, nem mesmo para a Ordem, senão para os
párias das ruas. Não era um Dom Silvério, o Santo de Mariana, porque
não trazia o hábito roto. Nem um Francisco de Assis combatendo o luxo,
pregando a modéstia e a pobreza. Era Frei Orlando em pleno século XX,
que vivia uma época diferente, que não comportava, obviamente, a exi-
gência e a rudeza de oito séculos já decorridos.
Alma despida de futilidades, Frei Orlando, entretanto, apa-
rentava no seu garbo e na dignidade do seu hábito, impecavelmente bem
cuidado, as características de um frade vaidoso. Nada disso! Contrarian-
do o velho adágio, segundo o qual o hábito revela o monge, o de Frei
Orlando, vistoso e sempre bem tratado, ocultava, todavia, toda a simpli-
cidade da sua alma, verticalmente impelida para o desprendimento das
coisas materiais.
Ninguém, entretanto, o chamava de santo. Longe disso!
E ele mesmo afirmava: “santo, eternamente santo, só Deus
(sanctus, sanctus, Dominus Deus Omnipotens)!”
Mas, para a prática da caridade, Frei Orlando não media sa-
crifícios. A passagem abaixo, verificada tão logo aportara a São João Del
Rei e que reproduzimos, atesta o seu alto grau de compreensão das do-
res humanas.
Certo dia, batera o frade à porta dos Nascimento Teixeira, de
que já falamos.
Precisava falar com a filha, Afra, de coração angelical e imacula-
do que o Criador levaria para o seu reino, jovem ainda. Frei Orlando encon-
trou nessa moça uma valorosa colaboradora nas suas obras benemerentes.
O frade, nesse dia, mal lhe abriram a porta, gritou pela jo-
vem, que acudiu prestes, beijando-lhe respeitosamente as mãos.
E em uma pergunta como se fosse algo de rotina:
– Qual é o caso, Frei Orlando?
Ordenação 87

Ciente de que o amigo necessitava de sua colaboração, Afri-


nha – como era tratada na intimidade – mal tivera tempo de se aprontar
e seguir os passos aflitos do franciscano.
Momentos depois, quem passasse pelas imediações do lo-
gradouro denominado “Pau de Angá”, nos arredores da cidade, poderia
vê-los chegando a uma pobre casa ali existente. O frade não entrou. Ficou
recostado no umbral da porta, onde foi visto de braços cruzados, as mãos
metidas pelas mangas do hábito, gesto comum dos pertencentes à Ordem.
Parecia aguardar algo que se desenrolava no interior da hu-
milde casa, onde a companheira penetrara. Os que passavam pelo local
cumprimentavam-no e ele respondia na sua proverbial afabiIidade. Es-
tranha caridade aquela!
O autor destas notas, que, assim como toda a cidade, tomara
conhecimento do fato, exceto dos seus pormenores, perguntou a Frei
Orlando, em plena Itália, sobre a veracidade ou não do gesto da jovem
Afrinha. Ele, sorrindo, expressou um semblante de satisfação, quiçá pela
recordação de algo que lhe tocava de perto o coração, falou:
– Sabe o que fôramos fazer naquela casa?
E diante da nossa ignorância:
– Afrinha fora catar os piolhos, dar banho, pentear e trocar
os trapos de uma pobre mulher, que dias depois morreria tuberculosa.
E em um suspiro:
– À míngua de recursos!
Limpando os óculos com o lenço, quando na realidade enxu-
gava algumas lágrimas, concluiu com tristeza:
– Que moça extraordinária!
Afra do Nascimento Teixeira, que Deus a tenha em Sua glória
junto aos anjos, porque o seu coração soube compreender o sofrimento
dos seus semelhantes. Quinze anos depois desse fato, deixava este mundo
de lágrimas e de expiação. A sua obra, todavia, ficou para sempre, porque
edificada na rocha, cimentada com a pureza e elevação do seu espírito.
Os dias corriam. Com eles, os meses, nessa transmutação
infalível e constante, constante e perene da convenção dos ciclos que
formam o que chamamos Tempo.
Em São João Del Rei, o humilde franciscano não sabia o que
era descanso. Muitos eram os seus afazeres, tanto na Ordem Terceira
88 Frei Orlando: o capelão que não voltou

como no desempenho de seus misteres de professor do Colégio de Santo


Antônio, ou em outras obras, de cunho social, espalhadas peIa cidade.
Como se não bastasse, reuniu, todavia, diversos amigos e se-
nhoras de influência com quem ele sabia poder contar, fundando a obra
ciclópica, cristã e humana, que ainda existe, imortalizando o seu nome:
A “Sopa dos Pobres”.
Sua inauguração data de outubro de 1942 e vem prestando,
até hoje, os mais valiosos serviços à classe pobre de São João Del Rei,
com a ajuda de abnegados filhos da terra.
Estava a organização em pleno funcionamento, dispondo
mesmo de algum recurso levantado de porta em porta. Tudo ia bem e
não faltavam colaboradores para a obra. Mas não dispunham de uma
sala ampla, um barracão de maiores dimensões, onde pudessem repar-
tir os pratos de alimento com aqueles coitados, homens, mulheres e
crianças cujo número aumentava dia a dia.
E dizia-nos Frei Orlando, nas nossas tertúlias em terras
da Itália:
– Era uma luta! Quando encontrávamos alguma casa, o pro-
prietário queria muito dinheiro. Quando havia compreensão e nos faci-
litavam o preço do aluguel, o cômodo não servia, por isso ou por aquilo,
e voltávamos à estaca zero.
Frei Orlando e seus companheiros, entretanto, não esmore-
ceram. Lutaram bravamente.
Eis que, certo dia, em um de seus habituais passeios pelas
ruas da cidade, o frade depara-se, na Rua Santo Antônio, com uma casa
desalugada, dessas casas estilo colonial, que avultam na urbe mineira.
Depois de indagar e se informar, Frei Orlando foi bater à
porta do proprietário, no Largo do Rosário, o professor Pedro de Oli-
veira Raposo. Homem bom e temente a Deus, não relutaria em atender
à pretensão do Ministro da Igreja, mesmo porque, em seu lar, uma cria-
tura boníssima e piedosa, que era a esposa, também pertencia à Ordem
Terceira, e seria a defensora da causa a bem dos pobres.
Frei Orlando encontrou o velho professor à janela de sua
casa, onde costumeiramente punha-se, de manhã à noite, interpelando
os passantes e indagando-lhes as novas da cidade, ele que já não saía
à rua, por força da idade. E, em um largo cumprimento, o franciscano
entrou logo de chofre:
Ordenação 89

Ordenado Frade Franciscano Ofm, Frei Orlando segue


para São João Del Rei

– Professor, venho buscar a chave de sua casa.


– Que casa, Frei, se possuo várias?
O fundador da Sopa dos Pobres atacou logo, de cheio, reso-
luto, como que confiante:
– A que eu quero é aquela espelunca que fica atrás da Igreja
do Rosário, na Rua Santo Antônio.
O professor sorriu, convidou-o para entrar, mas Frei Orlan-
do tinha pressa, parecia que ia apagar algum incêndio. Agradeceu, a seu
modo, e ficou à espera do resultado. Atacara. Esperava, agora, a reação.
Tantas de ordem negativa haviam surgido, que já andava preocupado.
Pedro Raposo foi ao fundo da casa, naturalmente para tro-
car ideia com a esposa, e momentos após vinha todo sorridente, como
quem se desobriga de uma tarefa pesada.
Trazia, em uma das mãos, uma chave dessas antigas, pesa-
dona, muito grande, verdadeira “arma de guerra”, de que fez entrega ao
amigo religioso.
90 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Frei Orlando, daí a meia hora, estava de volta. E diante do


professor, que o aguardava à janela, não teve conversa, foi logo ao ponto
culminante:
– A casa serve, está ótima e o senhor já deve saber para que
fim, não é?
Pedro Raposo sorriu, como se compreendesse bem aquela ma-
nobra, adivinhando as intenções do franciscano, pedinchão como só ele.
Dias depois, instalava-se na Rua Santo Antônio a obra bene-
merente, criação pia e santa de Frei Orlando, mitigando a fome dos pá-
rias, dos que tinham fome. Ali esteve por algum tempo até que se trans-
feriu para outro local. Hoje, quem passa pelas imediações do Rio Acima,
depara-se, mesmo sem querer, com um prédio novo que ostenta em sua
fachada, em letras grandes, o indicativo que constitui uma evocação e
um chamamento para Deus:
“Sopa dos Pobres Frei Orlando”.
Os são-joanenses não esqueceram o seu amigo e benfeitor.
Seu nome lá está para a admiração dos hodiernos e a reve-
rência perene dos pósteros.
Praticar a caridade não é fácil. A obra social do frade amigo
cumpria sua missão, distribuindo seus pratos de alimentos aos velhos,
às crianças, aos pobres, em geral, tudo, porém, sob imensa dificuldade:
o dinheiro escasseava.
Ia mal de finanças a Sopa e Frei Orlando já andava apreensi-
vo, sem saber que rumo tomar. O pedido de apoio que fizera ao governo
estadual não chegava nunca, não obstante fossem constantes as reitera-
ções.
– Ora, afinal, não podemos deixar morrer a Sopa dos Pobres
– dizia pelas ruas, agastado, verberando as autoridades que não o ajuda-
vam e os governantes, com algumas exceções, que se mostravam indife-
rentes à obra social.
– Que fazer? Indagava sempre.
Nessas horas, não ria, não gargalhava como de costume.
Punha-se pensativo, tristonho. Transformava-se. Era outro
Frei Orlando, sisudo, circunspecto.
A cidade toda comentava a luta heroica do filho de São Fran-
cisco, e os que podiam ajudar iam dando a sua colaboração em dinheiro
Ordenação 91

e víveres, tudo fazendo para que sobrevivesse a organização que tantos


serviços prestava à sociedade.
O frade parecia desorientado, ele que sabia encarar tudo
com serenidade e euforismo. Agora, parecia um desses estudantes gaia-
tos, mas que, às vésperas dos exames, se compenetram e se transfor-
mam em algo sério da vida.
Tinha a Sopa dos Pobres mais de 300 pratos, mas o número
dos que lhe batiam à porta já ia para mais de 500 necessitados! E acon-
tecia que os 300 pratos eram servidos como que por milagre, tendo em
vista a falta de material: quando havia arroz, faltava banha e quando
conseguiam um e outro, o problema era a lenha!
Vem-nos à lembrança, quando narramos essa passagem,
aquele diálogo de São Francisco de Assis com Inocêncio III:
– Meu filho – dizia o papa fundador da Ordem – a forma de
vida pela qual vós e vossos irmãos estais levando é austera e pesada,
penso eu.
Ao que o Frade de Assis respondeu:
– Caro Papa Inocêncio, confio em meu Senhor Jesus Cristo.
Prometera-nos Ele vida eterna e felicidade celeste e, certamente, não
nos negará coisa tão mesquinha, como o de que necessitamos para sus-
tentar nossas vidas e a de nossos irmãos pobres.
Fortalecido, indiscutivelmente, na evocação destas palavras
do Santo da Úmbria, Frei Orlando, que tão bem lhe conhecia a vida, en-
corajava-se, entregando-se a novas investidas.
Lembrara-se de que, certa feita, já próspera a Ordem, em
número de seguidores, o filho de Assis reunira cinco mil frades na Por-
ciúncula, onde não se havia providenciado alojamento para eles, mas
apenas alguns colchões de palha, sob céu aberto.
Francisco não se perturbava, permanecia sempre o mesmo,
descansando, em descuidada confiança na bondade de Deus.
Os negócios da Ordem haviam sido discutidos e os irmãos
passaram horas e horas a rezar. Eis que chega o momento da refeição
deles e o filho de Pedro Bernardone11, o Santo de Assis, continua em
meditação e em preces.
São Domingos, o prático organizador da Ordem dos Domi-
nicanos, assistira a esse espetáculo; na qualidade de convidado, ficara
11
Pedro Morico, cognominado Bernadone.
92 Frei Orlando: o capelão que não voltou

grandemente surpreso e chocado diante da piedosa falta de responsabi-


lidade da parte do irmão de hábito, ao permitir que enorme multidão se
reunisse sem dar ele a menor atenção ao problema de como alimentar a
todos os presentes e convidados.
Foi quando, então, surgiu o inesperado, tanto para Fran-
cisco como para os demais, que deixou a todos sem uma explicação do
que acontecera: enorme multidão, pessoas vindas de vários lugares e
em atropelos, foram chegando a Porciúncula, cansadas, arquejantes,
e, sem que ninguém lhes houvesse pedido, traziam consigo alimento
suficiente para distribuir entre os cinco mil frades. Havia lavradores
com jumentos e carroças, pesadamente carregados de pão e vinho, de
carne e peixe, com potes e jarros, xícaras e pratos. E nobres chegavam
a cavalo, ávidos de prestar serviços de criados no acampamento dos
frades. O Apóstolo da Caridade havia ensinado que os nossos inimigos
são, também, nossos irmãos.
Frei Orlando tinha fé, acreditava em um Deus de Bondade,
que não desampara seus filhos e que, pela voz do Seu Amado Unigênito,
aconselhara-nos a não nos atormentarmos com o dia de amanhã.
E na suave expressão de Jesus:
– Olhai os lírios do campo, não fiam, não tecem, nem traba-
lham, contudo, vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória,
vestiu-se como um deles.
Acontece que o franciscano não tinha paciência de esperar e
punha-se em campo. Sua obra periclitava.
Certo dia, foi ao quartel do 11º Regimento de Infantaria,
sediado havia mais de 40 anos em São João Del Rei. Era a primeira
vez em sua vida que se aproximava dos homens de farda, na sua ofi-
cina de trabalho.
Quem o recepcionou, porque acidentalmente se encontrava
de serviço nesse dia, foi Gentil Palhares.
Frei Orlando queria falar com o coronel. “Necessito dele” –
disse em um tom de quem precisava resolver um problema urgente.
E dando-nos a entender os motivos de sua visita à praça de
guerra, arrematou:
– Venho aqui arranjar dinheiro com vocês. Enquanto o en-
caminhávamos ao Gabinete do Comando, concluía seu pensamento em
um belo urdido gracejo:
Ordenação 93

– Aqui é onde está o dinheiro! Vocês comem frango assado,


mas meus pobres nem sopa têm mais! Enquanto falava, perguntava pe-
los militares seus conhecidos.
Levado à presença do comandante, parecia conhecê-lo de
velho, tamanha sua espontaneidade. Explicou, então, o que ia com a
Sopa dos Pobres, a sua falta de recursos para se manter, a iminência em
que se via de ter que fechar as suas portas aos pobres da cidade.
O coronel gostou da franqueza, dos seus modos positivos,
sua atitude firme e, sobretudo, de sua confiança ao procurar a caserna
para fim reconhecidamente nobre.
No mesmo dia, o Boletim da Unidade publicava a relação
dos que desejavam contribuir com determinada mensalidade, socorren-
do, assim, a Sopa dos Pobres.

Colégio de Santo Antônio, onde Frei Orlando, depois de


ordenado, passou a lecionar
94 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Frei Orlando, nesse dia, deixou o quartel todo contente,


aquele mesmo quartel onde, um dia, frade, embora, seria incluído em
seu efetivo e por todos profundamente estimado. A vida possui surpre-
sas interessantes, alegres ou tristes, que nos fazem rir ou chorar.
Conquanto tivesse o nosso bom frade ensejado uma saída
para as suas aperturas, mesmo assim não cruzara os braços porque os
pobres aumentavam cada vez mais.
– Muita boca e pouco prato – dizia Frei Orlando pelas ruas,
pedindo, implorando, à moda de Francisco, o santo do Amor.
E ninguém, absolutamente, tinha coragem de negar. Não
havia quem resistisse à sua fala, às suas argumentações e ao seu olhar
penetrante quando se punha a advogar uma causa.
Figura insinuante, simpática, atraía e conquistava. Parecia
mesmo que Deus mais e mais o aquinhoava dessas prendas do coração,
da alma, quando no seu mourejo da caridade.
Era um iluminado para o bem; não conhecia tropeços; não
via obstáculos. São assim os missionários, os verdadeiros missionários
de Deus, porque vencem pelo trabalho, pela constância e pela fé.
Muitos, todavia, eram os espinhos e as pedras encontrados
pelo caminho, nas incompreensões de poucos, bem verdade, em contra-
posição à maioria que sofrera, que soubera perfeitamente compreender
a sua obra social e humana. Sabia contornar as situações e tinha pala-
vras de reconhecimento para cada um e todos como se fizesse proseli-
tismo da sua campanha.
Seu trabalho era estoico, dinâmico!
Mas não dizia ele que desejava tornar-se missionário na
China distante? E não seria uma luta pior, porque ínvios os caminhos a
palmilhar e escuros os dias que teria pela frente?
Ser missionário na China!
Belo ideal para um espírito irrequieto, um coração ardente!
Mas o destino dos homens está nas mãos de Deus.
Não estava confirmado no Reino do Pai que Seu Filho traça-
va os caminhos aqui na Terra, com arroubo e calor?
Frei Orlando jamais seria missionário na China!
Capítulo 4

Uma prática surpreendente


no Templo de São Francisco
E a Sopa dos Pobres ganhou um saco de arroz

N as imediações do Colégio de Santo Antônio, Frei


Orlando frequentava diversas casas amigas, mor-
mente as que ficam situadas na Rua Padre José Maria e na Rua da Prata,
nas quais se detinha, menos para o café que lhe era servido, do que para
os constantes pedidos.
Assim é que, certo dia, achava-se em casa de um médico
amigo, na referida rua, quando, acidentalmente, surgiu um desses via-
jantes comerciais, representante de uma drogaria. Fazia o moço acalora-
da propaganda dos comprimidos Melhoral, produto que começava a ter
entrada no mercado brasileiro. O viajante falava, gesticulava, mostrando
as vantagens do analgésico, todo hiperbólico, entusiasmado. Pelo que
dizia, o remédio, hoje tão conhecido, seria capaz de fazer milagres.
O médico, atento, ouvia o viajante, mas já demonstrava im-
paciência, aflito para que terminasse aquela conversa que parecia não
ter fim. Coisas comerciais.
O Ministro da Igreja, à sorrelfa, notava a habilidade do profis-
sional, que o emulava, sem dúvida, quando ele também argumentava algo.
Passou a olhá-lo, mirando-o sob as lentes grossas dos ócu-
los, admirado de tanto argumento e convicção ao explanar as vantagens
do produto.
Ora, inegavelmente, o que Frei Orlando queria, durante a vi-
sita ao médico, era angariar algum donativo para a sua instituição. Plan-
tava as rosas perfumadas que exornariam sua alma no Céu.
96 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Muito de indústria entrara na conversa, para desfazer da


eficácia da droga, que o moço apresentava ao médico.
E ria – e como zombava.
Mas eis que, inesperadamente, se lhe enseja uma ideia com
o pensamento nos pobres da Sopa.
Virando-se sério, compenetrado, o ar grave como Galileu
diante de sua luneta astronômica ou Spencer frente às suas teorias:
– Moço, e se eu fizer uma propagandazinha desse seu pro-
duto, desse seu veneno – motejou maliciosamente – na prática que terei
de fazer na missa de domingo, lá na Igreja de São Francisco? Indagou e
sorriu, para depois trovejar uma gargalhada – muito das suas. Não mais
zombando. Não era pilhéria, senão interesse, interesse puro e santo, dig-
nificando uma alma a serviço de Deus. Pois, justamente nesse dia, via-se
em apuros para conseguir mantimentos.
Sua visita ao médico, que ele sabia caridoso e bom colabora-
dor de sua obra, foi com intenção de pedir.
E o viajante, aquele jovem que tão eficientemente represen-
tava o seu papel, como que lhe caíra do Céu!
O trato foi firmado, testemunhado pelo facultativo que, meio
incrédulo, não sabia adivinhar de que forma sairia daquela proposta, da-
quela enrascada, o amigo sacerdote.
O fato é que, feita a propaganda, o moço seria obrigado a
efetuar o pagamento, fosse como fosse. Algo muito comercial, de rotina.
Ficou acertado: Frei Orlando, na tradicional missa das nove
horas do majestoso Templo de São Francisco de Assis, entraria com a
propaganda, apresentando, aos fiéis, os comprimidos Melhoral.
Mas de que forma? Pensavam, naturalmente, o médico e o
viajante. Os dois mostravam-se céticos, jamais acreditando naquela con-
versa do frade.
Veio o domingo, um dia alegre e cheio de sol. O céu muito
azul, franjado de nuvens alvas, como alvo é o interior do templo, dava
esta alegria mística das coisas de Deus.
Uma orquestra imponente encantava todos, principalmente
o moço de negócios que se encontrava presente à missa, curioso de ver
o que diria, ou no que daria aquela conversa com o frade mineiro.
Frei Orlando, o celebrante, ia esflorando o Evangelho, sere-
no, alvejando diretamente os fiéis com argumentos e sentenças fortes,
tocando-lhes os corações.
Uma prática surpreendente no Templo de São Francisco 97

Os preceitos evangélicos, notavam todos, nunca foram tão


rígidos, e nem tão severas as recomendações divinas calcadas no decá-
logo de Moisés.
Em dado momento, porém, os ouvintes notaram que hou-
ve uma transformação nas palavras do pregador, que, de austero, grave,
sentencioso e fulminante, conquanto paternal, esboçava agora um sorri-
so, meio travesso, discretamente aflorado nos lábios.
Sorriso malicioso... diferente...
E, para espanto de todos, saiu o pregador com uma conversa
algo ligada ao seu ministério, mas sem a devida profundidade do tema
até então explanado. Parecia fugir ao assunto... dissimular... como se ti-
vesse perdido o fio do enredo.
Misturando as palavras que todos sentiam, nitidamente, sem
razão de serem proferidas no momento, ia verberando e dizia que muitos
não compareciam à Igreja alegando coisas fúteis, mormente dor de cabeça.
E em uma saída de mestre:
– Ora, dor de cabeça, hoje, não mais impede nenhum católi-
co de comparecer às suas obrigações, pois basta tomar um desses com-
primidos que estão sendo vendidos ultimamente nas farmácias!
Depois, sério, dedo em riste, persuasivo:
– Os tais comprimidos Melhoral!
Foi por aí afora, em um arrazoado algo profano, mas salpica-
do de interesse, intenções ocultas, que a todos surpreendeu.
Os fiéis da missa das nove horas, que lotavam o majesto-
so t emplo franciscano, interrogaram-se... em cochichos... piscadelas de
olhos, sem uma explicação convincente.
Ora, afinal, por que aquela conversa toda, aquela lenga-len-
ga de remédios, de comprimidos? Por que Frei Orlando mostrava-se tão
diferente em sua pregação, tocando em um assunto que parecia nada
relacionado com os misteres da Igreja?
Estaria certo aquilo?
Os olhos que se cruzavam eram interrogadores e sentiam
todos que a pergunta muda era esta: que houve com Frei Orlando, tão
diferente?...
Foi o próprio frade que, terminando aquela conversa de dor
de cabeça, Melhoral e quejandas, arrematou a pregação do dia com estas
palavras, que diziam tudo:
98 Frei Orlando: o capelão que não voltou

– Com o Evangelho de hoje e as bênçãos de Deus, a Sopa dos


Pobres ganhou um saco de arroz.
Todos acharam graça – riram – compreenderam.
Apenas o moço dos comprimidos Melhoral não deve ter
achado muito interessante, porque perdeu a aposta.
O filho de Morada Nova passou pela vida assim: fazendo o
bem, amando todos aqui na terra, onde tudo são dores e gemidos, mas
com a esperança consoladora das promessas divinas de que o verdadei-
ro Reino de Deus está no Céu, ou em nossos próprios corações, desde
que, a exemplo do nosso franciscano, santificados no amor.
Amor que, bem compreendido, eleva a criatura humana,
purifica e salva, porque passa tudo na terra, mas as palavras de Jesus
não passarão:
“Amai-vos, uns aos outros!”
Nessa altura dos acontecimentos, quando procuramos aflo-
rar a vida exemplar do discípulo de Francisco de Assis, e por todos os
títulos dignificada, achava-se ele com todo o vigor de sua capacidade
realizadora, no ciclo do tempo, com a bela idade de 27 anos.
Atingíamos, pois, o ano de 1940.
São João Del Rei, cidade em desenvolvimento, vinha acom-
panhando, pari passu, as demais comunas de Minas Gerais, as que se
projetavam no cenário do País. Todavia, por ser um dos mais antigos rin-
cões do Estado montanhês, com um passado histórico que tanto a honra
e quanto enobrece, irmã gêmea de uma Ouro Preto, Sabará e Congonhas
do Campo, São João Del Rei modernizou-se, marchou para frente. É uma
“cidade que não olhou para trás”. Nas construções de prédios, estilo bem
século XX, nas obras de remodelação de uma cidade, tipicamente colo-
nial, procurava São João Del Rei desvencilhar-se das velharias. E trans-
formou-se em uma das mais belas e progressistas glebas das Alterosas.
Algo, todavia, lembra sempre – no tempo –.a era pretérita,
seu passado opulento na história: o arraigado sentimento religioso do
seu povo, as suas tradições cristãs, o misticismo de sua gente simples e
boa e a concepção profunda de cada um e de todos os seus habitantes,
no que tange à religião.
Frei Orlando participava de tudo isso, já havia mais de três
anos. Seu fervor religioso e seu espírito muito humano casavam-se per-
feitamente com a formação do povo são-joanense.
Uma prática surpreendente no Templo de São Francisco 99

As cartas enviadas a sua mãe, que nunca mais o teria junto


de si, pontilhavam-se de elogios à cidade que o acolhera de braços aber-
tos, fazendo dele seu próprio filho.
Para Morada Nova, entretanto, assim externava o que lhe
passava no coração:
– Meu ideal ainda não está cumprido. O que almejo é um dia
ser missionário. E não poderia ser na China?
E em uma certa missiva:
– Saiba, mãe querida, que vivo contente e feliz aqui nesta
cidade, onde todos me estimam, mas não terei sossego enquanto Dom
Cabral não resolver o que lhe tenho pedido e reiterado: seguir a carreira
de missionário, na qual já estão incluídos vários companheiros meus.
D. Emirena recebia essas cartas e punha-se a pensar no fi-
lho, no seu ardor pela causa das Missões. E pedia a Deus tal não viesse a
acontecer. Queria-o junto de si e antevia que, partindo ele para lugares
distantes, em misteres arriscados, exposto a toda série de perigos, po-
deria perdê-lo.
Frei Orlando, todavia, era irredutível no acalentado sonho,
que vivia dentro do seu coração de idealista.
Lembra-nos essa sua ânsia de realizar algo elevado, o que
nos conta Humberto de Campos, em uma tocante crônica O Sonho do
Monge, assim resumida:
“Em um mosteiro de Portugal, vivia, em séculos que dor-
mem no silêncio da idade, um piedoso e santo monge, cuja existência
se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro da alma e das
flores, passava ele as manhãs de joelhos na quietude da nave, aos pés de
um Cristo Crucificado e as tardes, no pequeno Jardim da Ordem, curva-
do ante as roseiras que ele próprio plantara. Sua paciência de floricultor
era consumida, entretanto, por mais uma ideia, que era um sonho pagão
dentro de uma vida cristã: encontrar a delicada rosa azul das lendas do
Oriente, de que tivera notícia, uma noite, ao ler os poetas latinos dos
soturnos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, juntava
os brotos, reunia os enxertos, colecionando as terras com que as cobria,
e as águas com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no
topo da haste, do ambicionado botão azul!”
As muralhas contemplativas da China pagã constituíam,
para Frei Orlando, a rosa azul do monge jardineiro. Sonhava, e nos seus
100 Frei Orlando: o capelão que não voltou

sonhos via-se contemplando as obras milenares, que o tempo não con-


some. Via a Torre de Porcelana, de Nankin e os Túmulos Imperiais, das
dinastias Ming e Manchu, próximos de Pequim.
Nos seus sonhos não admirava, apenas, as obras de arte, o
cenário multiforme daquele povo que edificara com o pensamento na
eternidade. Via-se, também, no seu ambicionado mister para encami-
nhar a Deus os nossos irmãos do país distante.
No dia seguinte, ao acordar, confidenciava com seu irmão de
cela, Frei Osmundo:
– Hoje estive na China, em sonhos. Um dia, entretanto, lá
estarei, verdadeiramente, para o cumprimento do meu apostolado.
Ó Destino implacável e traiçoeiro!
Por que não seguiu nosso amigo para o cumprimento
de seu acalentado desejo, e sim para o Velho Mundo, de onde nunca
mais regressaria?
Deus reservava-o para misteres outros, em uma guerra
cujos clarões já surgiam pouco a pouco!
Capítulo 5

A Segunda Guerra Mundial


Um pouco de história

J á decorrera um ano do início da Segunda Guer-


ra Mundial, desencadeada em 1º de setembro de
1939, com a invasão da Polônia pelos alemães. Os nazistas tentavam,
então, dominar o mundo e tinham como aliados ou admiradores a Itália,
Japão, Hungria, Romênia e outros.
Reagiam à investida nazista as liberais-democracias tendo à
frente França e Inglaterra.
A Segunda Guerra Mundial foi considerada como uma con-
tinuação da Primeira, provocada por motivos econômicos, nacionalismo
exacerbado, armamentismo etc. Além disso, apareceu a teoria da supe-
rioridade racial alemã e a implacável perseguição aos judeus.
As ações militares alemãs na Polônia foram rápidas e ajuda-
das pelo ataque rumo a Leste. Comprimida entre tenazes, após heroica
resistência, ela capitulou, vitimada, curiosamente, pelos nazistas e co-
munistas em sinistro conluio.
A invasão tinha, porém, acendido o estopim que incendiaria
o mundo, dando início à mais sangrenta guerra de todos os tempos. Por
meio da guerra relâmpago, os alemães esmagaram os exércitos polone-
ses que nem tiveram tempo de completar sua mobilização. Confiaram,
os nazistas, na inação dos franceses e na defesa oferecida pela Linha
Siegfried para se lançar, em massa, sobre sua infeliz rival.
O governo polonês buscou exílio, e o país foi dividido entre
os vencedores. Terminava o ano de 1939, quando a Rússia invadiu a
Finlândia.
102 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Em abril de 1940, os alemães dominaram a Dinamarca


e Noruega.
Em uma sequência perturbadora, no mês de maio, os ale-
mães invadiram Luxemburgo, Holanda, Bélgica e, em seguida, desbor-
dando a Linha Maginot, penetraram na França. O ímpeto foi paralisante,
e o marechal Pétain, herói da Primeira Grande Guerra, foi obrigado a
solicitar o armistício. Criou-se um governo francês em Vichy e outro em
Londres sob a direção de De Gaulle.
Sobreveio, então, o ataque aéreo e de submarinos à Ingla-
terra que, sozinha, via as investidas terrestres alemãs paradas pelo Ca-
nal da Mancha.
Londres sofreu impiedosos ataques da Lutfwaff, mas supor-
tou galhardamente o golpe.
Os EUA continuavam auxiliando a Inglaterra com apoio mo-
ral e material.
A partir de outubro de 1940, as atenções voltaram-se para
a área do Mediterrâneo com a invasão da Grécia pela Itália. Logo depois,
os ingleses desembarcaram em Creta.
Deu-se, então, o que era esperado: os gregos rechaçaram os
italianos. Não obstante, estes começaram a avançar no deserto africano,
a partir da Líbia, mas logo depois sustaram a ofensiva. Os ingleses con-
tra-atacaram, e os italianos cederam, obrigando Hitler a socorrê-los com
tropas alemãs sob o comando de Rommel.
Em meados de 1941, Hitler deu seu passo fatal: contrariou
o que jurara jamais fazer e atacou a Rússia, abrindo, portanto, uma se-
gunda frente.
Finalmente, para completar o quadro, em 7 de dezembro de
1941, não suportando mais o bloqueio econômico da Inglaterra e dos
EUA, o Japão atacou Pearl Harbor.
Esse ataque, de surpresa, uniu o povo americano em torno
de Roosevelt e permitiu que a maior indústria do mundo passasse a pro-
duzir em benefício dos países que lutavam contra a tirania nazista.
Governava nossa Pátria, nessa época, o ditador Vargas, no
poder desde 1930.
Não cabe, nesta biografia, de cunho essencialmente humano
e cristão, cujo objetivo é exaltar a vida de um modelar franciscano – Frei
Orlando –, enveredar pelos caminhos ásperos e tão controvertidos da
A Segunda Guerra Mundial 103

política e da obra de Getúlio Vargas. Cabe, apenas, o dever de ressaltar


o paradoxo: no exterior, o Brasil lutava pela liberdade, enquanto no in-
terior sofríamos uma ditadura. Os próprios americanos e italianos per-
guntavam-nos o porquê desse contraste. Vargas, entretanto, era bem-
intencionado e não tínhamos, indiscutivelmente, em nossa Pátria, os
mesmos grilhões dos demais países totalitários.
Não se lhe pode desculpar, todavia, da responsabilidade di-
reta de muitas arbitrariedades que foram praticadas, sem que os seus
mentores fossem punidos.
Éramos uma Nação, se não indiferente, pelo menos especta-
dora neutra do desenrolar dos acontecimentos mundiais.
A Alemanha não via, porém, com bons olhos a cessão das
bases do Nordeste aos americanos e o tráfego de nossos navios mercan-
tes, nos portos de nações inimigas dela. Resolveu Hitler enfrentar a situ-
ação de maneira imprevista, torpedeando navios indefesos e destinados
à navegação pacífica. Dezenas de barcos brasileiros foram afundados e
morreram velhos, mulheres e crianças.
Adveio o pânico e muitos acreditaram que os torpedeamen-
tos foram feitos pelos americanos e ingleses.
Em 1943, já tínhamos mais de 20 embarcações afundadas.
Não mais podia nosso Governo permanecer neutro. Por menos, o Brasil
entrara na Guerra de 1914-18.
Precisávamos desagravar os nossos brios. Não seria a pri-
meira vez que o Brasil se levantava para revidar uma afronta.
Ao tomar conhecimento do afundamento dos navios, que o
Governo custara a revelar, grande massa popular dirigiu-se ao Palácio,
para exigir uma imediata definição diante da agressão sofrida. Forçado
pelas circunstâncias, e achando a ocasião oportuna, o ditador reconhe-
ceu o Estado de Guerra.
A consequência desse Estado de Guerra foi a formação da
Força Expedicionária Brasileira.
O Brasil iria, pois, participar ativamente da contenda, mos-
trando, aos que se intitulavam super-homens e que ousadamente nos
agrediram, que somos um país que não se acovarda.
Para comandante da FEB foi designado o marechal João
Batista Mascarenhas de Moraes, uma grande figura de nosso Exército.
No comando da Infantaria Divisionária foi colocado o general Euclides
104 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Zenóbio da Costa. Para comandar a Artilharia foi escolhido o general


Oswaldo Cordeiro de Farias.
Três regimentos de infantaria foram indicados: o 1º RI do
Rio de Janeiro, o 6º RI de Caçapava (São Paulo) e o 11º RI de São João
Del Rei (Minas Gerais).
Coube ao coronel Delmiro Pereira de Andrade a nova orga-
nização do 11º RI, transformando-o de um efetivo de 1.200 homens para
4.000, inclusive oficiais.
Filho da Paraíba, o hoje general Delmiro contempla o passa-
do e, às vezes, quando de seus encontros com o autor deste livro, meneia
a cabeça, fecha os olhos e diz:
“Não sei onde fui encontrar tanta coragem e tanta força para
a missão que me coube!”
O subcomandante era o tenente-coronel Mário Tasso Sayão
Cardoso. O tenente-coronel Sayão sofria de úlcera gástrica que não raro
o levava ao leito, mas cumpriu sua missão. Ao término da guerra, faleceu
pouco tempo depois vitimado pela úlcera.
Seu exemplo ficou para sempre em nossos corações.
Paz à sua alma!
Capítulo 6

A guerra bate às portas


da cidade histórica

S ão João Del Rei mergulhara em dias trágicos e incer-


tos com o recrudescimento da guerra na Europa.
Jovens de todas as partes do estado aportavam à legendária
e pacífica cidade, atendendo ao chamamento da Pátria.
Mais uma vez, agora em pleno século XX, a terra natal de Jo-
aquim José da Silva Xavier entrava na História, ao participar ativamente
do desenrolar do conflito.
Transformava-se, destarte, em um dos berços da Força Ex-
pedicionária Brasileira, que lutaria no exterior. Posto que, configurando-
se com o mais alto sentido cívico, São João Del Rei, em que pese o seu
arraigado cunho religioso, daria o seu Regimento para a luta.
Vivendo para as artes, essencialmente pacata, comprazen-
do-se em ouvir os sons plangentes de seus sinos e de suas maravilhosas
orquestras, a Cidade dos Inconfidentes transformar-se-ia em verdadeira
praça de guerra.
Melhor seria, porém, diziam os seus habitantes, que, en-
quanto se aprestavam as providências de ordem bélica, fosse o mundo
felicitado com o toque de ensarilhar armas!
Era o desejo de todos. A ambição dos brasileiros que não
queriam guerra, mas viver em paz.
Hoje, passado o tufão, podemos afirmar, somente falam
em guerra e a desejam os que não a viram de perto e não sentiram
seus horrores.
Muitos não acreditavam no envio de nossa expedição de
encontro ao inimigo. Achavam que ficaria tudo em preparativos e que,
106 Frei Orlando: o capelão que não voltou

enquanto nos armávamos e nos adestrávamos, tomando conhecimento


da guerra moderna, o mundo voltaria à normalidade.
Aflitiva e angustiante mostrava-se, cada vez mais, a situação
dos lares brasileiros, notadamente onde existisse um jovem em idade de
ser convocado.
Enquanto isso, preces e rogativas subiam aos Céus, partidas
dos corações aflitos.
Deus, entretanto, nos dá risos e lágrimas. Alegrias e triste-
zas. Porque Ele sabe quando devemos sofrer. E não é pela dor que nos
aproximamos Dele?
Não é pela dor que salva, redime, purifica, que os homens
chafurdados nos interesses puramente materiais voltam-se para as coi-
sas do céu?
Frei Orlando Ofm, pleno de vida e de sonhos, o idealista, não
se mostrava indiferente ao movimento beligerante nacional.
Impulsos da mocidade?
Ímpetos de uma juventude ávida de surpresas?
Não cabe a nós respondermos, mas a Deus.
Só Ele estava em condições de esmerilhar a alma do seu ser-
vo, do trabalhador da Sua vinha.
Pelas ruas da cidade, o discípulo de Assis mostrava-se, ago-
ra, um desnorteado. Até mesmo à Sopa dos Pobres, já não se fazia assí-
duo, como em outros tempos. Seu pensamento era a guerra. Sua atenção
estava toda ela inclinada para os preparativos que se processavam em
todo o território nacional, para o embarque do nosso contingente.
De tudo ele procurava inteirar-se. Do comportamento do
Brasil em face da situação. Das batalhas travadas, das cidades conquis-
tadas. Dos avanços ou recuos dos países em franca refrega.
Com a criação definitiva da FEB, não ocultava a sua admira-
ção pelas providências do Governo.
Enquanto isso, São João Del Rei era uma cidade em polvoro-
sa. Relativamente pequena, sem grandes recursos para abrigar centenas
e centenas de convocados que a ela aportavam dos mais esconsos luga-
rejos de Minas. Apresentava uma vida diferente, cosmopolita, ela que,
até então, primava por manter as suas tradições de família, como se em
um atavismo pouco comum em outras cidades mineiras. Marchávamos
para o ano de 1944.
A guerra bate às portas da cidade histórica 107

A guerra, longe embora, chegava até nós, pelo rádio, pelos


jornais, que só cuidavam do conflito.
Dos nossos corações ficava afastada a consoladora e vã es-
perança de um armistício, tão almejado!
Com a visita do general Euclides Zenóbio da Costa ao 11º RI,
mais e mais se avolumaram os treinamentos físicos e táticos da Unidade
que se preparava.
Via-se, pois, que a Força Expedicionária Brasileira, conquanto
atingida pela 5ª coluna, no sentido de desmoralizá-la, constituía uma reali-
dade. Enquanto isso, nossos jovens incorporados ao Regimento de São João
Del Rei eram cada vez mais instruídos na arte de guerrear: marchavam,
acampavam, efetuavam exercícios simulados de ataque e defesa, apren-
diam a manejar o armamento da época, principalmente o americano.

Quartel do 11º Regimento de Infantaria, Unidade que li-


bertou Montese do nazifascismo e em cujas fileiras Frei
Orlando cumpriu o seu dever de soldado de Deus e da
Pátria

Quando os canhões e metralhadoras rugiam nas alturas dos


campos que circundavam o quartel, os corações das mães são-joanenses
punham-se em sobressalto. Como que anteviam as suas lágrimas. São
João Del Rei era uma verdadeira praça de guerra, formando um contraste
108 Frei Orlando: o capelão que não voltou

singular com a sua formação autenticamente cristã. Enquanto isso, a con-


vocação atingia as classes dos jovens brasileiros.
No Colégio de Santo Antônio, na sua cela de frade, um fran-
ciscano – Frei Orlando – não se conformava em permanecer impassível
diante do drama nacional
Eis que, certo dia, entre surpreso e alegre, recebe do então
coronel Delmiro Pereira de Andrade, comandante do 11º RI, um convite
para comparecer ao quartel. Mostrava-se alegre, porque já adivinhava
qual seria o assunto: o coronel convidava-o para integrar-se na expedi-
ção brasileira e esperava contar com a sua anuência. Jubiloso, Frei Or-
lando providenciou logo a autorização de seus superiores do Colégio.
Faltavam, entretanto, os pareceres de outras autoridades da Igreja. Ao
prefeito da cidade, com quem se dava, pediu também o seu interesse
para o caso. Como todos o estimavam, ficaram satisfeitos em vê-lo ao
lado da tropa e interessados em sua inclusão na FEB.
Mas a ordem dos seus superiores hierárquicos não chegava,
e Frei Orlando não pôde seguir com o Regimento para a antiga Capital
Federal. A decisão das autoridades militares, deferindo a solicitação do
Comando do Regimento, outrossim, tardava chegar.
Nos primeiros dias de março de 1944, o Regimento mineiro
começava o seu deslocamento para a então Guanabara.
Se por um lado havia tristeza da parte dos são-joanenses,
por outro lado, todavia, notava-se algo de orgulho, de satisfação entre os
militares, por isso que, de tantas e tantas unidades da Federação, foi o
11º RI escolhido para a missão assaz transcendente e relevante.
Mas São João Del Rei era uma cidade triste!
Os sinos não mais repicavam festivamente. Dobrariam eles
não fora o significado da missão: desagravar a Pátria ofendida e atacada
em suas águas marítimas.
Ao embarque da tropa compareceu toda a população.
Abandonava as suas atividades. Paralisava tudo, para vir
chorar pelas ruas. As despedidas eram tristes, profundamente tristes!
Ocorrências dolorosas verificaram-se nessas ocasiões.
E muitos desmaiaram tangidos pela dor da separação.
Nem todos, de fato, voltariam à terra querida. Muitos não
mais veriam seus pais, seus irmãos, suas irmãs e suas noivas!
A guerra bate às portas da cidade histórica 109

A banda de música do Regimento, composta em sua totali-


dade por elementos são-joanenses, ia à frente do desfile, rumo à estação
ferroviária. Entoava a canção da Unidade, tão conhecida pela população,
tão identificada no meio civil.
Em dado instante, avenida abaixo – já escrevemos essa cena
alhures – cessava o som da música.
Os músicos também choravam.
Frei Orlando ficou. Sua convocação ainda não havia chegado.
O destino dava-lhe uma oportunidade!
Capítulo 7

No Rio de Janeiro
Um acantonamento de sacrifícios
Frei Orlando apresenta-se

N o dia 15 de março de 1944, o 11º Regimento de In-


fantaria encontrava-se todo acantonado nos bar-
racões do Morro do Capistrano, na Vila Militar do Rio de Janeiro.
Descrever o que foi verdadeiramente a nossa luta, naquelas
paragens da antiga Capital do País, à espera do embarque que não vinha
nunca, é assunto específico para um livro. O acantonamento, de que abaixo
daremos notícia detalhada, foi considerado, mesmo, uma verdadeira guer-
ra, “guerra de nervos”. E esta é horrível!
Somente os que passaram por essa fase amarga podem contar,
com detalhes e sabor áspero, o que sofreram.
Durou, entretanto, a nossa permanência na Vila Militar, de
15 de março a 22 de setembro de 1944. Nesse dia, embarcamos no navio
que nos conduziria ao Velho Mundo, onde a guerra sacudia os povos de
todas as nações.
Em um de nossos livros sobre a FEB, já escrevíamos:
– A incerteza, a indecisão, a lufa-lufa dos preparativos, o segue
não segue, o entra em forma e sai de forma e os exercícios táticos, sob in-
tenso calor, constituíram para nós o que acertadamente se classificou de
“guerra de nervos”12.
O que matava e amofinava o nosso espírito era justamente a
expectativa, o vai-não-vai, os boatos desencontrados e mentirosos, os “pei-
xes”, como se dizia na gíria da caserna.
12
Tenente Gentil Palhares. De São João Del Rei ao Vale do Pó. Biblioteca do Exército
Editora, 1957, 2ª edição.
112 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Diziam absurdos, comentários os mais desencontrados, in-


fundados, aliás, como, por exemplo, o de que a tropa seguiria sem os
oficiais e que, em seu comando, ficariam os americanos, nossos aliados.
Era, pois, como se estivéssemos sendo vendidos a eles!
Afirmavam outros que o então general Mascarenhas de Mo-
raes, que comandaria, como comandou a expedição, dissera em sua re-
sidência, a um político influente, que teria ido solicitar-lhe a exclusão de
um protegido:
– Esteja tranquilo, o rapaz não embarcará, porque esse “ne-
gócio não sai mesmo”.
Tudo assim, mentiras, confusão, uma legítima “guerra de
nervos”, da qual somente sairíamos quando no interior do navio, o que,
aliás, já implorávamos a Deus, porque estávamos aflitos para nos livrar-
mos daquela agonia.
As instruções prosseguiam em ritmo acelerado, conjunta-
mente com as inúmeras e complexas providências do embarque.
O Morro do Capistrano era uma verdadeira arena de luta,
legítimo campo de batalha, onde havia armas, canhões, metralhadoras,
granadas e, sobretudo, tristeza, sofrimento, dor em nossos corações.
Naquele acantonamento, tudo era agitação, um mourejar
constante sob a canícula do Rio de Janeiro, em um contraste com a neve
que, dentro em pouco, mal adivinhávamos, teríamos pela frente nos
campos de luta do Velho Mundo.
De vez em quando, ouvia-se o toque de formatura; cessavam
as instruções, paralisavam-se os trabalhos, e o Regimento entrava em
forma. Nessa situação, permanecíamos horas e horas seguidas, para as
revistas de fardamento, de equipamento e outras providências.
Eram ordens e mais ordens, recomendações sobre reco-
mendações e, por fim, um exercício físico em torno dos barracões, esta-
fando a turma.
O tempo corria.
A “batalha” do Morro do Capistrano continuava invariavel-
mente a mesma.
A cobra vai fumar!13 A cobra vai fumar! Gritavam os soldados,
nos dias tristes daquelas paragens, onde tudo era trabalho e sacrifício.
13
“A cobra vai fumar!” “A cobra está fumando.” Há várias versões para essa curiosa
frase que ficou sendo o slogan da FEB. A primeira: um pracinha, ao avistar, ainda
do transporte de tropa que se aproximava de Nápoles, o vulcão Vesúvio soltando
fumaça, teria exclamado: “Eta, a cobra tá fumando!” Outra versão seria a de que no
Rio comentava-se: “É mais fácil a cobra fumar que a FEB embarcar”.
No Rio de Janeiro 113

Consoante nos foi dado ver, quando do deslocamento do 11º


RI de sua sede, Frei Orlando não seguira com ele, porque não recebera, em
tempo, a sua convocação já esperada. E calculávamos o grau de aflição
do jovem religioso, ele que tanto vibrou com a criação da Força Expedi-
cionária Brasileira e dela tornou-se um entusiasta.
Eis, porém, que, na manhã de 20 de julho de 1944, marchan-
do para mais de três meses do nosso deslocamento de São João Del Rei,
surge em nosso acantonamento, risonho e feliz, aquele que seria o bravo
incentivador dos nossos jovens. Com ele também se apresentaram os ca-
pelães Frei Alfredo (no século, Waldemar Setaro) e Padre Elói de Oliveira;
o primeiro, descendente das plagas sulinas – Santa Catarina – e o segundo,
de Minas Gerais – São Tiago – onde residia e era monsenhor.
Abandonando a vida pacífica do claustro, o ambiente tran-
quilo em que viviam, trocando a solidão de suas celas e a paz dos tem-
plos pela vida agitada e incerta das atividades militares, eles se agigan-
taram aos nossos olhos!
Estupenda renúncia!
Quanta vontade de bem servir à causa do Brasil e ao santo
Ministério de Deus!
Estava, pois, o filho de Morada Nova incluído no Estado Efe-
tivo do nosso regimento, no posto de primeiro-tenente, consoante De-
creto-lei nº 6.535, de 26 de maio de 1944.
Mais um companheiro para sofrer ao nosso lado, incluído na
Companhia de Comando Regimental, à qual pertencia, outrossim, o nar-
rador destas linhas. Comandava a referida Companhia o então capitão
Rafael Rodarte, amigo do capelão.
As praças que já conheciam Frei Orlando, desde São João
Del Rei, vibraram com a sua chegada.
No mesmo dia de sua apresentação – 20 de julho de 1944
– o comando do Regimento, à frente da tropa, fez a apresentação dos
capelães recém-incorporados.
Foi um dia de festa no Morro do Capistrano!
Dias depois Frei Orlando era visto pelo acantonamento em-
punhando duas armas pacíficas, que o acompanhariam na jornada ao
Velho Mundo: uma gaita e um cachimbo.
Dia 21 de julho celebrou missa pela primeira vez, na investi-
dura de suas funções junto à tropa. Após o ato, fez questão de percorrer
114 Frei Orlando: o capelão que não voltou

os barracões onde se encontravam alojados os componentes do Regi-


mento. Visitando uns e outros, mostrava-se sempre bem disposto, chas-
queando e, na sua alacridade, ia tocando sua gaita e dizendo:
– A cobra vai fumar! A cobra vai fumar!
Seu bom humor contaminava a tropa. Cativava os soldados,
católicos ou não, porque especial era o seu temperamento. Possuía a su-
blime arte de conquistar, atrair e estimular.
Sempre rodeado de soldados, o capelão passou seu primei-
ro dia em expansões do seu espírito, entre cantos de sambas e canções
patrióticas, acompanhados de sua inseparável gaita.
Dias depois, entretanto, confirmando-se o grau de discipli-
na da tropa, verificou-se algo curioso: as praças, agora, passavam por
Frei Orlando muito sérias, compenetradas e não mais lhe dirigiam a pa-
lavra. É que o frade já se encontrava fardado, ostentando, nos ombros, as
estrelas de primeiro-tenente.
Do aprendizado indispensável à rotina da caserna, tais
como contingências, toques de corneta etc., o capelão tornara-se, logo
de início, conhecedor emérito.
O coronel Delmiro, sabedor que havia fortes laços de amizade
entre o novo comandado e o capitão Rafael Rodarte, indicou o referido
oficial para preceptor dos capelães, a fim de orientá-los em sua nova vida.
Conta o ex-capitão, hoje general Rodarte:
“Frei Orlando apareceu com uma pequena mala de viagem
contendo roupas de uso. Depois do almoço fomos à alfaiataria Festas
para que ele tomasse medida dos uniformes. O frade foi à cidade em
minha companhia e, pelo caminho, parecia uma criança!
Uma criança perfeita!
Era muito brincalhão e fazia a gente rir, contando anedotas
e piadas.
Rigorosamente fardado, apresentava-se garboso, elegante
e, não fora a cruz que os capelães usavam na gola da túnica, julgá-lo-iam
um autêntico oficial combatente.”
E foi assim, metido em seu uniforme de gabardina, orgulho-
so de sua missão e, sobretudo, de pertencer à FEB, que Frei Orlando se-
guiu para São João Del Rei, a fim de despedir-se da cidade e dos inúme-
ros amigos. Deixara de cumprir este dever porque embarcou às pressas,
tão logo recebeu a carta de convocação.
No Rio de Janeiro 115

Fazia questão de que, na velha cidade mineira, todos o vis-


sem. Para ele, era um orgulho apresentar-se aos amigos com seu unifor-
me de expedicionário.
Visitaria os Nascimento Teixeira, as famílias Campos e Tira-
do Lopes e não deixaria de ir à Sopa dos Pobres rever os seus protegidos,
aos quais tanto queria.
E foi o que aconteceu. Cumprimentando uns e outros, saiu
pelas ruas da cidade e com que alegria saudava os conhecidos e os ami-
gos mais íntimos!
Parecia compreender que se despedia para sempre de tudo
e de todos.
Pela manhã foi celebrada missa em sua homenagem, no ma-
jestoso Templo de São Francisco de Assis. Acorreu gente de todos os
lados e muitos, por curiosidade, querendo ver o frade fardado.
Era domingo, Frei Orlando subiu ao púlpito e fez sua despe-
dida, quando ressaltou o panorama do mundo sob o flagelo da guerra.
Falou que era com satisfação que serviria a Deus e à Pátria
e que voltaria. Havia de voltar para matar as saudades e continuar a sua
obra social.
À saída dos templos, os fogos estrugiram pela praça que fi-
cava em frente, ouvindo-se alguns oradores. Entre palmas e vivas e ale-
grias e lágrimas, terminou o preito ao estimado franciscano, que seria,
daí por diante, soldado de Deus e soldado da Pátria.
São João Del Rei nunca mais deitaria os olhos naquele que,
durante quatro anos, passara por suas ruas, levando o pão do espírito e
o pão do corpo.
Seus pobres ficaram chorando, e sua vida, mais do que nun-
ca, estava, agora, nas mãos de Deus. Só Ele sabia o que estava reservado
para o Seu dileto filho!
A imprensa são-joanense, em uma nota bem pitoresca, noti-
ciou o seguinte, quanto à despedida do capelão da FEB:
– Frei Orlando veio fardado e em sua alacridade tão conhe-
cida de todos. Trouxe consigo duas novidades: um cachimbo e uma gai-
ta, que já toca regularmente.
E foi com esse cachimbo e essa gaita que o seresteiro de São
João Del Rei, se verdadeiramente não cantava à moda de Francisco de
Assis, ria, ria muito e fazia todo mundo rir!
116 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Quando regressou ao Rio de Janeiro levava a alma angustia-


da e o coração oprimido pelas saudades – confessou aos amigos.

O majestoso Templo de São Francisco de Assis, em São


João Del Rei, onde Frei Orlando celebrava

E à noite, mais uma vez, escutou o toque de silêncio, as no-


tas tristonhas daquela corneta, que seria, doravante, como algo de sua
própria vida. Trocava, assim, o sino do Convento de Santo Antônio, onde
tudo era meditação e paz, pelo instrumento arauto de guerra, naquele
Morro do Capistrano de dolorosas recordações.
Na primeira noite de sua volta ao acantonamento, não pôde
dormir. Seu pensamento era todo para a cidade dos sinos e das lendas,
onde passou dias felizes ao lado de bons amigos.
No Rio de Janeiro 117

Tudo parecia um sonho.


A seu lado estava a cruz do Cristo. Mas em torno as armas
brilhavam e rugiam nos treinamentos, para a missão macabra: matar e
destruir! Matar!
Havia paz em seu coração. Ele bem a sentia. Mas o inferno
não estava longe, formando algo paradoxal, inexplicável, profundamen-
te incompreensível!
No dia seguinte ao seu regresso, após o café da manhã, pela
primeira vez entrou em forma o capelão, para a formatura diária da Uni-
dade Militar.
Não ria, não falava. Tristonho, pensava, naturalmente, não
apenas nos amigos de São João Del Rei, mas também na sua querida mãe
adotiva, D. Emirena, que ficara chorando e rezando por ele. E que nunca
mais o veria!
Após o desfile matinal, entretanto, ei-lo ao lado das praças e,
pouco a pouco, retornava ao seu bom humor, à sua costumeira jovialidade.
Que fazer, se era um voluntário da guerra?
Foi na maior das alegrias que, sob o olhar apreensivo de to-
dos, escalou o barco simbólico com sua extensa rede de treinamento. Fa-
zia parte dos planos do nosso embarque o exercício para esse fim e que
constituía uma instrução toda especial. No caso de um possível abando-
no do navio, que nos conduziria a lugar até então incerto, teríamos que
efetuar o treinamento de como escalar uma segunda embarcação, que
nos viesse em auxílio, em alto-mar. Para tal fim, foi construído, no campo
de instrução, algo semelhante a um navio, o qual tinha por finalidade
permitir que as praças executassem um treinamento de abandono de
navio, se fosse o caso.
O referido “barco” – diga-se de passagem – constituía um
verdadeiro terror para a tropa. Apavoravam-se todos, quando se aproxi-
mava a hora dessa instrução.
O segundo soldado que perdemos, pois que o primeiro mor-
rera afogado nos fundos do quartel, ainda em São João Del Rei, foi naquela
rede fantasma. Todo equipado, fuzil na mão, pois assim seria a escalada
no caso real, o nosso companheiro, coitado, tonteara em meio à ascensão,
vindo abaixo, onde se estatelou no solo, falecendo horas depois.
Púnhamo-nos todos em sobressalto, quando chegava a hora
do cumprimento dessa parte da instrução.
118 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Coisa horrível, bárbara mesmo! Em nossa jornada maríti-


ma, que veio depois, Deus apiedou-se de nós, ficando tudo, certa feita,
em apenas ameaça dos alemães.
Bem que tentaram torpedear-nos!
Já foi escrito que só Frei Orlando, com seu gênio comunica-
tivo e galhofeiro, abrindo seu coração para tudo e para todos, poderia
agir psicologicamente sobre o ânimo da tropa e, assim, conduzi-la, como
conduzida foi, ao seu destino de glórias, conquanto cheio de sacrifícios.
É que, mal preparada por fatores vários e inevitáveis, sendo o principal a
nossa índole pacífica, antibelicosa, muitos mostraram-se recalcitrantes
em deixar o Brasil. Havia mesmo uma forte tendência reacionária, agra-
vada em grande dose pela pressão da corrente contrária ao envio da ex-
pedição militar, a 5a Coluna, tramando contra os nossos compromissos
para com os aliados.
As deserções, no seio dos corpos de tropa, eram diárias e
dessa circunstância não escapou, também, o nosso Regimento. Muitos
conseguiam licença, iam às suas casas e, findo o prazo, não mais regres-
savam. Outros deixavam o acantonamento, faziam as célebres “tochas”14
e nunca mais apareciam. Urgia, pois, em face disso, que o Regimento em-
barcasse logo, porque poderia resultar em desagradável surpresa para
os chefes militares.
A 5ª Coluna, ardilosamente, havia criado o slogan de que “a
guerra não é nossa, nada temos com isso, e os americanos que se arran-
jem por lá”. Achavam eles, os quinta-colunistas, que somente devería-
mos participar da guerra se ela tivesse por palco nosso território. Con-
ceito errôneo e absurdo esse de esperar que o inimigo nos bata à porta,
para depois nos defendermos. A prática mostrou-nos que jamais se deve
aguardar a ação do inimigo, mas ir ao seu encontro, isto sim!
No Morro do Capistrano, alojados naqueles barracões de
madeira, onde o sol batia em cheio, provocando calor insuportável, es-
tavam mais de quatro mil homens, armados e municiados, em grande
parte procedentes dos mais recuados rincões do País. Aguardávamos o
desfecho daquela situação de grande expectativa. Sairia a primeira Di-
visão Expedicionária? A FEB seria uma realidade em frente do inimigo?
Ou ficaria tudo no vai e não vai, no segue ou não segue?
Era a indagação que nos fazíamos, pergunta que também nos chegava
14
Tocha: ida dos pracinhas às suas casas, sem a devida permissão.
No Rio de Janeiro 119

de nossos lares. Que responder, se ninguém conhecia a realidade da


situação?
E continuava a “guerra de nervos” no Morro do Capistrano
dia a dia, ininterruptamente: nas instruções, nas marchas, nos exercí-
cios de tiros, na educação física rigorosa e estafante e, sobretudo, naque-
la instrução do “barco”! Que responder, se ninguém conhecia a realidade
da situação?
Muitas vezes Frei Orlando assistia às instruções ministra-
das e fazia questão de ficar ciente de tudo, também aprendendo algo que
lhe pudesse ser útil. Perscrutador, inteligente, tomava conhecimento do
manejo e funcionamento das armas, tais como metralhadoras .30, mos-
quetão, bazuca, morteiros e outras.
Tomara contato de perto com o morteiro 81 e colocava rin-
do – na boca do cano – a granada para o tiro que estourava ao longe. Aí,
então, se desmanchava em bazófias, como se aquilo fosse algo inusitado,
quando na realidade era para todos um ato de rotina.
Atirava bem o nosso capelão. Boa pontaria!
Após o tiro de bazuca, direto, fulminante, dizia logo: “Comi-
go é assim, não erro não!”
No Morro do Capistrano, durante o dia, atividade absoluta,
preparativos de toda espécie: inspeções do material, do estado físico da
tropa, do fardamento, do acantonamento.
À noite, entretanto, nas alturas daquele morro, no qual dei-
xáramos suor e lágrimas e onde tudo era escuridão e tristeza, Frei Orlan-
do dava o “toque de reunir”.
Sua gaita, sinal convencionado, anunciava a hora do terço
que era rezado sob o faiscar das estrelas, nossas amigas e confidentes
de sempre. Os soldados se aglomeravam em torno do capelão, a ele se
incorporavam e punham-se a rezar, cheios de fé.
Nossa presença a esse ato espiritual era infalível, mas na
verdade devemos confessar que o frade sempre nos dispensava da reza
coletiva. Sem dúvida, não queria ferir nosso sentimento, gesto louvável,
estribado na sua excepcional compreensão.
E gracejando, pilheriando, mandava-nos para debaixo de
uma árvore próxima e, em silêncio, rendíamos o nosso culto a Deus, ou-
vindo mais ao longe as vozes dos companheiros em suas preces alçadas
aos Céus.
120 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Genuflexo em espírito, agradecemos, hoje, ao saudoso frade


franciscano o conforto que nos deu, consubstanciado na pureza de sua
alma, para ser um perfeito cristão, porque foi verdadeiramente toleran-
te com os que dele divergiam na forma do culto ao Criador.
Já dizia um pensador que “qualquer que seja a atitude as-
sumida pelas igrejas, por mais estrita a sua federação, por mais sublime
que seja a sua profissão de fé, por mais elevado que pareça o seu propó-
sito de fomentar o bem comum, e em dirigir a política em nome do Cris-
to, desde que recorram, para este fim, à espada de César e se ponham a
oprimir as consciências, reduzindo-as ao silêncio, perseguindo, prejudi-
cando, essas igrejas terão deixado de pertencer a Cristo. E cremos que
amanhã, como hoje e como ontem, será sempre aos perseguidos e às ví-
timas da intolerância que o Crucificado outorgará a Sua bênção. A Igreja
que quer ter a verdade deve ensiná-la com paciência e amor.”
E queremos, aqui, fazer um adendo às palavras acima, para
afirmar que a religião é uma flor delicada, que dá frutos preciosos na
vida, mas somente poderá prosperar em um clima de liberdade.
Debaixo daquela árvore não pedíamos nada, porque Deus sa-
bia o que abundava em nossos corações: lágrimas, sofrimentos, saudades
da esposa, de nossa querida e velha mãe, dos filhos sempre lembrados, de
todos os nossos familiares, enfim, os que haviam ficado para trás.
Acabado o terço, dispersos os nossos companheiros pelos
barracões do acantonamento, nos reuníamos ao frade, que descia o
morro cachimbando, satisfeito de haver cumprido o seu dever para com
Deus. Depois ficávamos a sós em seu alojamento, sentados na mesma
cama de campanha, conversando tempos esquecidos noite adentro, já
muito após o toque de silêncio. Foi quando sorvemos todo o néctar da-
quela alma em flor. Quando procurávamos penetrar fundo os escrínios
daquele coração incomensuravelmente belo e estuante de idealismo.
Tudo isso, para que, agora, dois decênios já decorridos lhe tributásse-
mos a afirmativa incondicional e sincera do nosso reconhecimento e da
nossa imorredoura admiração, É que ele nos soube conquistar com as
armas estupendas da bondade e da paciência. Mais do que isso, com os
apetrechos todos da tolerância, jamais exigindo de nós o que ele sabia
contrariar um sentimento religioso.
Nessas vigílias do Capistrano se nos ensejava, não raro, o
tema filosófico-religioso, mesclando a conversa. Cada um expunha, fran-
No Rio de Janeiro 121

camente, seus modos de ver, suas convicções, sua interpretação desse


ou daquele assunto. Tudo, porém, sob o manto do respeito, do acata-
mento e da elevada compreensão.
Nosso capelão possuía a fé inabalável em sua concepção de
chegar até Deus, pelos caminhos do catolicismo.
Inarredável fé!
E nós, espiritualistas, seguindo estradas opostas, embora
visando ao mesmo alvo, mantínhamos, irredutível, o nosso pensamento
em torno das coisas celestiais.
Era recíproco o respeito. Terminava tudo em um abraço, se-
guindo cada um rumo à sua cama para, dormindo, sonhar com São João
Del Rei.
Capítulo 8

Ainda o acantonamento
do Capistrano
Frei Orlando abençoa o sábio

C ontinuava, ainda, a “Guerra do Capistrano”, o vai não


vai, o segue não segue... como se tudo aquilo nunca
mais tivesse um fim, aquela agonia de atacar e defender, à procura, sem-
pre, de um “inimigo” que não surgia nunca.
Os jornais não davam esperanças de uma possível cessação
das hostilidades, que marchavam já para cinco anos.
Frei Orlando, nesse interregno, assim relata sua vida para
a revista Santuário de Santo Antônio, em Divinópolis, onde se ordenou:

“(...) Neste novo ambiente onde, com a graça


de Deus, espero salvar muitas almas, guiando o espírito dos
soldados brasileiros dentro das normas cristãs, muitas re-
flexões me têm aflorado à mente. E uma vez que me fizeram
representante de Guerra, vou expor aos nossos leitores muitos
dos quais devem ter parentes – talvez filhos e irmãos diletos
no meio dos expedicionários – algumas impressões que tive
dos soldados, vivendo com eles.”

E continuando:

“Sem querer desfazer dos méritos dos outros


corpos, fiquei satisfeito quando recebi minha indicação para
capelão do 110 RI, antigamente aquartelado em São João Del
124 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Rei. É um corpo composto, em grande parte, de filhos de


Minas, muitos já meus conhecidos quando passaram por
São João Del Rei. Assim, em vista desse conhecimento, fui
muito bem recebido no seio deles, que, como já disse, mi-
neiros, sentiam eles a falta de assistência religiosa. Bons
rapazes, fortes, cheios de vida e, também, de entusiasmo
pela causa que devem defender. Só lhes faltava o Sacerdote
que estivesse sempre junto deles para lhes dar o santo sacri-
fício da Missa e o Pão dos Anjos, que conforta os fracos e
aumenta a fortaleza dos fortes. Não só de pão vive o homem
todo mundo o sabe, mas o homem precisa também de uma
palavra amiga, que lhe fortaleça o espírito, e que os nossos
soldados não tinham ainda, embora tivessem tudo quanto
deve ter o soldado, desde a boa alimentação até o bom ar-
mamento. Agora ele o terá, todas as manhãs, bem pertinho
dele, de sorte que, soada a alvorada, o infante do 110 RI
poderá procurar a Capela improvisada para assistir à Mis-
sa e receber a Comunhão! Que bela realidade! E os rapazes
mostram que tinham a necessidade desse conforto espiritual,
pois procuram o Padre e procuram a Missa. Naturalmente
que sinto ter deixado o meu cantinho de São João Del Rei,
de onde trago as mais gratas recordações e onde deixo as
melhores amizades. Sinto deixar minha velha mãe adotiva,
a quem devo favores, que nunca poderei pagar. Lamento
deixar meus irmãos e irmãs e aqueles lugares onde vivem
meus bons amigos, como a operária Divinópolis. Mas tudo
isso é sacrifício que devemos fazer pelo Brasil, pelo mundo
e, ainda, pelas almas daqueles que vão partir.”

No calor destas palavras simples, cheias de fé e de confian-


ça, podemos avaliar a elevação moral-espiritual de Frei Orlando. Saudo-
so, pois deixara lugares e pessoas queridas, contudo, ele trazia o desejo
inabalável de confortar e de servir.
Quando algumas vezes deixava o acantonamento, o que era
raro, demandava para a casa de dois amigos: Frei Solano, em Cascadura,
de quem fora inseparável em São João Del Rei, e o então o coronel José
Bina Machado, falecido no posto de marechal. Era ele, na época da guer-
ra chefe de Gabinete do ministro Eurico Gaspar Dutra.
Ainda o acantonamento do Capistrano 125

Coronel Bina não ocultava a sua sincera admiração por Frei


Orlando e o distinguira não apenas com a sua amizade pessoal, mas tam-
bém levara-o ao recesso de seu lar.
Certa noite, nervoso, o capelão chegou da residência do co-
ronel amigo e foi dizendo logo:
– Não vou mais à casa dele! Sou seu amigo, mas não voltarei
mais lá!
E à nossa natural indagação:
– As moças da casa e suas amigas ficam querendo me na-
morar, pensando que sou mesmo oficial.
Estupenda formação!
A despeito de tudo, muitas outras vezes visitou o chefe de
Gabinete do ministro da Guerra.
Uma visita, todavia, ficou gravada para sempre em nosso
pensamento e que agora nos foi lembrada, muito oportunamente, pelo
general Rodarte: a que fizera ao Padre João Gualberto, o sábio de Santa
Tereza. Nossos capelães não o conheciam pessoalmente, mas não des-
conheciam as suas virtudes, os seus dotes de pregador emérito, notável
orador sacro, homem de vasta cultura e inteligência de escol. Padre João
Gualberto tornara-se célebre pela sua conhecida refutação ao não me-
nos célebre Enrico Ferri, positivista italiano que sacudia o mundo com
as suas teorias e conceitos filosófico-religiosos.
Por volta de 1906 ou 1907, soprava em São Paulo um vento
intempestivo de incredulidade clerical. Os corifeus daquele sopro de in-
credulidade resolveram trazer das plagas europeias um nome de grande
projeção na ciência e na cultura do mundo, naquela época: Enrico Fer-
ri, que era uma das expressões pinaculares da mentalidade de então.
Politicamente era socialista avançado, no tempo em que o socialismo
italiano se exprimia pelas páginas de Asino e não com cores do comunis-
mo. Culturalmente falando, Enrico Ferri era um dos príncipes da ciência
jurídica moderna, na Itália.
Ferri era, outrossim, um dos pais da criminologia moderna,
em que procurava seguir a trilha de Lombroso.
Religiosamente, Enrico Ferri era materialista intransigente
e severo.
João Gualberto, o padre sábio, ensinava então no Seminário
Provincial de São Paulo, quando lá o foram buscar para as cátedras da
126 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Faculdade de Direito, onde proferiu três admiráveis conferências, clas-


sificadas de verdadeiro revide às acusações – a religião e a fé da nossa
gente – feitas pelo célebre positivista e outros.
Saíra, assim, João Gualberto da sua conhecida humildade,
do seu recolhimento a que sempre se impusera, para projetar-se no ce-
nário da imprensa do País, com louvores à sua pessoa.
Deu o bondoso e culto sacerdote uma verdadeira lição a Ferri,
que na época desfraldava a bandeira irreverente do mais rude e violento
anticlericalismo. Vingou, assim, o padre, os conceitos descabidos, pejora-
tivos e errôneos atirados à religião católica, bem como lançava um repto
certo e fulminante aos ataques desencadeados à nossa cultura por ele-
mentos estrangeiros. Foi, pois, o Padre João Gualberto um gigante em nos-
sa Pátria, no que tange não só à religião católica, como também à nossa
cultura em geral, pleno de convicção, de idealismo e de bravura espiritual.
Não tiveram argumentos para criticá-lo! Não o puderam
refutar!
Depois disso, conduzido em triunfo pelo saber e pela inteli-
gência ao pináculo da glória, da qual, entretanto, jamais se jactava, o Padre
João Gualberto do Amaral recolheu-se novamente à sua modesta cadeira
do Seminário Provincial de São Paulo, em que era largamente querido.
Mais tarde foi transferido para o Rio de Janeiro, onde, em um colégio de
freiras, o sábio sacerdote ensinava humildemente o catecismo. Era, toda-
via, convidado, não raro, para palestras e conferências, aqui e ali, a que
não se escusava, procurando sempre ensinar a doutrina pela lógica aos
pseudoentendedores das coisas de Deus. Foi por isso que Frei Orlando,
juntamente com os demais capelães militares do nosso Regimento, acom-
panhado do capitão Rafael Rodarte, primo do Padre João Gualberto, resol-
veram ver o afamado sacerdote, antes de seguirem para a guerra. Conhe-
ciam a sua história e o seu nome, a par da cultura de que era possuidor,
aliada a uma extraordinária simplicidade de vida; daí o desejo de se entre-
vistarem com ele. E escreve-nos o general Rodarte, lá de Icaraí:
“A visita dos capelães ao Padre João Gualberto do Amaral se
verificara de forma interessante: solicitada previamente por mim, tivera
essa visita lances pitorescos e outros tantos emocionantes, como passa-
rei a narrar.
Ao chegarmos ao Convento de Santa Tereza, foi Frei Orlando
quem batera à porta. Viera atender-nos uma das irmãs que, por sinal, só
Ainda o acantonamento do Capistrano 127

falava o francês. Frei Orlando saudou-a e, percebendo o idioma estran-


geiro na resposta, perguntara-lhe, também em francês, se o Padre João
Gualberto encontrava-se no Convento, pois ele e seus companheiros de-
sejavam visitá-lo. E, identificando-se, olhar firme na freira:
– Diga-lhe, por fineza, que é Frei Orlando, que ele conhece
de nome, por intermédio do capitão Rodarte.
E apontou para mim.
A irmã, coitada, dessas que passam a vida dentro do claus-
tro, alheia a tudo o que se desenrola na vida profana, arregalou os olhos
e disse:
– Mas não é possível! O senhor abandonou o hábito ou está
pilheriando comigo? E sempre admirada continuou:
– Mas não se trata dos frades que o padre está esperando?
Vendo a situação em que se encontrava Frei Orlando, com-
preendendo alguma coisa do que dissera a irmã, coquanto pouco ma-
nejador do seu vernáculo, arrastei o francês para ela, explicando-lhe
que se tratava, verdadeiramente, de dois frades e um padre, os quais se
achavam fardados, porque iam para a guerra como capelães militares, e
que, por fineza, dissesse ao Padre João Gualberto que era o primo que se
encontrava à sua procura.
A irmã saiu enrolando a língua hum... hum... hum... como se
tivesse compreendido a explicação; embarafustou-se por um corredor
adentro, para anunciar a nossa visita.
Momentos após, chegara à porta, na sua figura simpática e
bondosa, o Padre João Gualberto, que nos cumprimentou alegremente,
mandando-nos entrar.
Frei Orlando, o mais falante em qualquer lugar em que se
encontrasse, foi logo contando ao padre a cena da porta com a irmã e
caíra de início no agrado do sacerdote. Conversaram muito, discutiram
o panorama mundial da guerra e se mostraram identificados em tudo.
Padre João Gualberto convidara-nos, depois, a acompanhá-
lo até o pátio do Convento, onde ficava uma capela.
Eu e meus companheiros nos sentíamos satisfeitos diante
da presença majestosa daquele sacerdote, misto de um sábio e de uma
santa criatura.
Havíamos chegado ao Convento ao escurecer. Já era noite
fechada, e no céu brilhava uma lua muito bonita.
128 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Tudo era silêncio naquele local, onde a placidez era uma


constante.
Mas não deixava de ser triste, porque os conventos são sem-
pre assim: a sua alegria é íntima, está nos refolhos da alma.
Padre João Gualberto se lamentava considerando-se, dizia
ele, um indigno, incapaz, porque não seguiria com seus companheiros
naquela missão honrosa, permanecendo em seu Convento. Entendia que
o certo seria acompanhá-los.
Aí, então, é que se deu o imprevisto, o patético:
“Padre Gualberto, mais velho que nós, sobrepujando-nos
em tudo, no saber, na sua cultura geral, na sua simplicidade, ajoelha-se
inesperadamente no chão do pátio e, virando-se para os sacerdotes, em
um gesto de extraordinária humildade, pediu-lhes, submisso e fervoro-
so, que o abençoassem! E que, antes de partirem para a guerra, derra-
massem sobre ele as suas bênçãos!
Ninguém esperava aquilo! Os capelães tiveram os olhos ra-
sos de lágrimas em frente ao vulto insigne, à figura mansa e tranquila de
um sábio ministro de Deus a lhes pedir a bênção!
Frei Orlando foi a ele, fez uma prece e terminou abraçando-
o comovidamente.
– Jamais esquecerei essa cena.”
Interrompendo o fio da narrativa, acode-nos à lembrança o
gesto exaltado e significativo do manso Jesus, na última ceia.
Foi quando, querendo deixar patenteado o exemplo da humil-
dade entre os homens aqui na terra, querendo dizer que é mais nobre e
agradável servir do que ser servido, lavou os pés dos apóstolos, Ele, o Mes-
tre, para que constituísse uma doutrina, a doutrina do amor, da submissão.
O grande Pescador, ao Seu lado, ainda tenta um protesto
enérgico e respeitoso:
– Não, Mestre, não merecemos isso!
E prossegue o narrador, general Rodarte:
“Ao sair do Convento de Santa Tereza, Frei Orlando, com os
olhos úmidos de lágrimas, disse-nos:
– Padre João Gualberto projeta irradiações de luz! Vi nele,
translúcida, uma alma em prece e em adoração de fé! Foi uma noite feliz
para mim! Eu sabia que me defrontava com um sábio. Mas ignorava que me
achava diante de um santo!”
Ainda o acantonamento do Capistrano 129

Do Morro do Capistrano, Frei Orlando escrevia aos seus fa-


miliares, sempre que podia. Suas cartas, tanto do Rio como da Itália ou
da Holanda, quando lá esteve, são páginas magníficas, ricas de conceitos
filosóficos, de conselhos e de exemplos admiráveis. Eis por que são aqui
transcritas complementando sua biografia.
Eis uma delas:

“Rio, Vila Militar, sete de julho de 1944.


Caríssima irmã e caros sobrinhos:
Agora que o caminho de Bocaiuva está ficando
mais conhecido, vejo-me às vésperas de conhecer o caminho
da Itália!
Como é atrapalhado este mundo. A culpa é, po-
rém, dos próprios homens e nunca de Deus. Se há Guer-
ra é porque os graúdos da Terra a fizeram. E nós devemos
aguentar com os sacrifícios e as consequências da Guerra.
Como já lhe escrevi, fui convidado e chamado
para ir com os nossos soldados, É espinhosa a missão que
nos coube. Espinhosa e perigosa, tanto física como moral-
mente. E não menos importante, pois, da nossa atuação
junto às tropas, é que vai depender muita coisa séria para o
futuro. Por isso, querida mana, não deixe de pôr os seus me-
ninos para rezar por mim, sempre, todos os dias. A oração
das crianças é sempre agradável a Deus.
Talvez também você pense que eu tenha cometido
uma loucura, mas não cometi. Só uma coisa fiz: não sabia
que a nossa atuação fosse tão cheia de responsabilidade como
é. E realmente tremo de medo de fracassar. Meu fracasso se-
ria uma miséria. Confio em Deus, e Ele há de ajudar. Talvez
eu não tivesse aceitado com tanta facilidade a capelania, se
estivesse a par de tudo quanto agora conheço.
A vida aqui não é má. Há momentos aborreci-
dos e alegres, como em toda a parte. Os soldados são bons.
Também os oficiais tratam-nos bem. Um ou outro é meio car-
rancudo e parece ter medo de Padre; mas, pelo visto, são
camaradas. A comida também é boa; durmo no quartel, de
sorte que estou virando mesmo soldado.
Meu trabalho é múltiplo. Temos naturalmente de
cuidar de toda assistência religiosa dos soldados. Para isso é
130 Frei Orlando: o capelão que não voltou

preciso que se fundem associações religiosas, como reuniões


etc. Também fazem festas para comemorar os padroeiros dos
soldados, enfim, mais ou menos o que o Vigário faz na Pa-
róquia. Naturalmente, há Missa, confissões etc. Além disso,
devemos viver com os soldados, informando-os se eles cos-
tumam escrever regularmente para casa, ou mesmo escrever
para as famílias deles e responder as cartas das pessoas que
querem notícias dos soldados. Tudo isso, com o tempo, vai
arranjando muito o que fazer para a gente. Depois temos
de dar instruções morais aos soldados. E nas horas vagas
fazemos os exercícios com eles. Anteontem fizemos marcha
pesada, de 29km, acampamos em um lugar muito bonito, à
beira-mar, e estivemos em exercícios formidáveis.
A lembrança que eu trouxe dói um calo bem do-
lorido no calcanhar.
Como vai indo o nosso Padre Pedro? Diga-lhe
que logo que tiver oportunidade irei à Holanda, e se ele qui-
ser que dê notícias à família dele, é só mandar o endereço.
Naturalmente, não é certo que eu cumpra a promessa. Pri-
meiro porque ainda não embarquei, depois não sei se chego à
Europa e, finalmente, não sei se chego até a Holanda.
Bem, minha boa irmã, quando nos veremos, só
Deus o sabe. Ou aqui neste mundo ou lá no outro, espero
encontrar-me com todos. Só peço ao bom Deus que Ele nos
cubra de infinitas graças e bênçãos.
Pelo resto, seja tudo pelo bem das almas e glória
de Deus. Até voltar, vá dando balas às crianças! A todos o
abraço muito amigo e as saudades do
Frei Orlando.

P.S.: Enquanto eu estiver no Rio, é meu endereço:


110 RI-CCR
Vila Militar
Rio
Depois de terem notícia do nosso embarque.
(Isento de selo)
Revmo. Capelão Militar
Frei Orlando Alvares da Silva
315
Ainda o acantonamento do Capistrano 131

FEB
Só isso. Nas costas do envelope, o nome e ende-
reço do remetente.
Todas estas cartas serão enviadas pelo correio
local ao Rio, e daqui para onde a gente estiver.

O Mesmo.”

Ainda nos encontrávamos no Brasil aguardando as provi-


dências das autoridades superiores, quanto ao embarque do contingen-
te brasileiro. No calendário do tempo, nosso biografado ostentava a bela
idade de 31 anos. Moço, muito moço para tanta luta e para a qual não se
preparara, porque plasmado para a vida do claustro.
Enquanto ainda no Brasil, três etapas de sacrifícios físicos tive-
mos pela frente: os defiles de 21 de março, de 24 de maio e a célebre marcha
de treinamento ao Recreio dos Bandeirantes, na antiga capital do País.
Ambos os desfiles ficaram na história da FEB como verda-
deiras apoteoses! Milhares e milhares de brasileiros, sobretudo os céti-
cos acerca da expedição, queriam conhecer as nossas possibilidades, ver
de perto a potência em homens e material.
Sob palmas e vivas à FEB passávamos por entre a multidão
em frenesi, comprimida desde a Praça Mauá, Avenida Rio Branco e ao
longo da Avenida Beira-Mar.
Entusiasmado, delirante, o povo sentiu de perto que o Brasil
estava de pé, em uma vigília cívica transcendente, reagindo à agressão
sofrida, apto, portanto, para desagravar a sua honra.
Várias bandas de música tocavam marchas patrióticas, en-
quanto os alto-falantes de todas as emissoras de rádio transmitiam as
informações relativas ao desfile.
Dias após, encetávamos a marcha ao Recreio dos Bandei-
rantes. Em toda a nossa vida militar, e foram 26 anos de serviço, essa
marcha constituiu a jornada mais penosa que tivemos pela frente. Os
soldados mais fracos, em uma estafa tremenda, chegavam a cair na beira
da estrada. O calor, sufocante, agravava a situação, trazendo consequên-
cias dolorosas e ainda hoje, ao recordarmos, ficamos pensando como
pudemos suportar tamanho dispêndio de energia física!
Frei Orlando aguentou bem essa marcha e ainda ajudou al-
guns soldados a carregar seus fuzis.
132 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Foi durante esse acampamento, estrategicamente plane-


jado, que se deslocou o primeiro escalão da FEB, para rumo até então
completamente desconhecido. A jornada ao Recreio dos Bandeirantes
havia sido uma tática do alto-comando da expedição: retirar a tropa que
não ia embarcar para determinada zona, evitando-se uma possível rea-
ção levada pela surpresa.
Embora nesse embarque da primeira leva não se verificasse
nenhuma deserção e, sobre ter sido uma providência em parte acautela-
dora, para nós foi muito pior.
É que, ao vermos ao longe, em alto-mar, os nossos compa-
nheiros que nos acenavam do navio de guerra General Mann não pude-
mos conter as lágrimas. A estratégia, em parte, falhou, porque o navio,
ao contrário do que estava previsto, saíra pela manhã barra afora e não
à noite. E assim, de longe, a cena foi tristíssima. Jamais poderemos es-
quecer esse dia!
Para onde iriam? Difícil a resposta.
Ninguém sabia.
Era tudo segredo, sigilo absoluto!
Presenciando, todavia, aquela pungente despedida, confir-
mava-se, diante de nossos olhos, que nossa presença ativa no palco da
Segunda Guerra Mundial seria uma realidade inconteste.
Estava positivado, também, mais do que nunca, que seguirí-
amos a qualquer hora.
Capítulo 9

Adeus, Brasil!
Adeus, Capistrano!

Q uando nos dispusemos a fazer este balanço da Se-


gunda Guerra Mundial, ressaltando a vida de Frei
Orlando, encontrávamo-nos justamente no mês de setembro.
Setembro de 1965!
As folhas das árvores caem pelo chão, atapetando-o, en-
quanto as flores se metamorfoseiam, para as alegrias e tristezas que a
vida tem.
Lá se foi o frio, que enregelava e entristecia a cidade históri-
ca de São João Del Rei. Frio intenso e forte o desse ano!
Frio nas pedras das pontes centenárias, nos bronzes dos
campanários, nas lajes dessas ruas estreitas e tortuosas a nos lembrar o
Aleijadinho, Bárbara Heliodora ou Tiradentes.
Frio nas palmeiras do Templo de São Francisco de Assis.
Frio nos corações.
Frio dentro de nossas próprias almas.
Antes, ou seja, há 21 anos, tudo era agitação, calor, fogo em
forma de obus.
Tudo passou!
Agora, é a primavera em flores – uma paz abençoada e santa!
Faz, pois, dois decênios que deixávamos o acantonamento
do Capistrano para a grande jornada ao Velho Mundo; Deus dera fim à
“guerra de nervos”. Estivéramos acantonados do dia 3 de março a 21 de
setembro de 1944. Nem todos suportaram aquela agonia. Desertaram!
134 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Não podia, contudo, ser mais vil a porta encontrada por


muitos brasileiros. Degradaram-se. Chafurdaram-se na estrada da de-
sonra. E não sabemos como podem viver dentro de nossa Pátria; eles
que, chamados para defendê-la, recuaram!
Naquele 21 de setembro tudo era confusão e burburinho
quando levantamos acantonamento, deixando aqueles galpões de ma-
deira, testemunhas mudas do nosso sofrimento, daquela espera que
tanto exaustou a nossa gente.
Nem todos retornariam àquelas plagas da terra carioca!
Quais seriam eles, os que não mais voltariam ao solo do Bra-
sil? Ninguém lhes conhecia os nomes.
Em cada um e em todos estava gravada a tristeza. E as sau-
dades, nesse dia, como que apertaram ainda mais.
Muitos choravam.
Quem não chora ao partir para a guerra?
Uma criatura extraordinária que o Criador enviara ao nosso
meio procurava consolar, encorajar os soldados, na sua missão sublime:
Frei Orlando!
Deus no-lo destinara, certamente para amenizar tanto so-
frimento e enxugar, com suas palavras, seu bom humor, tantas lágrimas
derramadas.
Naquele ambiente de guerra, onde só se falava em um su-
posto inimigo, e onde tudo era diabólico, satânico, porque as guerras
não são outra coisa, encontrava-se um Anjo!
O trajeto até a Estação da Vila Militar, onde embarcaríamos
nas composições da Central rumo ao cais do porto, fora feito a pé. No
mesmo dia 21, à noite, já todos estavam alojados no General Meighs, que
zarparia no dia seguinte. Às 11 horas da manhã de 22 de setembro, o gi-
gantesco barco norte-americano começou a deslizar no mar em calmaria.
“A cobra vai fumar! A cobra vai fumar!”
Gritava Frei Orlando pelos compartimentos do navio, não
deixando ninguém ficar triste.
As praças com ele se reuniam e ao som de sua gaita tocavam
samba e outras canções de nossa Pátria, até que fossem compelidos pela
polícia do navio a se recolherem aos beliches.
O que muito nos amofinou no navio foi o calor, um calor in-
suportável! À noite, black-out total e ninguém podia permanecer no con-
vés, o que mais aumentava nossa agonia.
Adeus, Brasil! 135

É fácil pedir guerra. O difícil, depois, é aceitá-la. Viver a si-


tuação imposta, suportar todas as surpresas que ela tem. Muitos que a
desejaram e saíram pelas ruas gritando: “Guerra! Guerra!” não se en-
contravam ao nosso lado curtindo conosco a dor da separação! Encon-
travam-se nos seus lares acompanhando o desenrolar da situação pelo
rádio e pela imprensa escrita.
Havia no transporte de guerra as mais diferentes modalidades
de distrações: boxe, cinema, jogos de salão etc. Para os católicos não faltava
assistência dos três capelães: Frei Alfredo, Padre Elói e Frei Orlando.
O navio sulcava as águas, e aquela vida, que já levava dias,
transformava-se em uma rotina: calor, saudades, lamúrias, receio de mi-
nas, enjoos do mar, black-out, missas, terços.
No mais que pesasse o nosso viver incerto, íamos empur-
rando os dias e, com eles, a nossa vida.
Não sabíamos, até então, qual o nosso destino. Para onde
íamos, perguntávamos, mas ninguém sabia responder.
Eis que, certo dia, o alto-falante de bordo anuncia o nosso
destino: a Itália, a terra de Dante!
Frei Orlando delirou, porque, explicou, desejava conhecer
Pio XII.
No dia 5 de outubro de 1944, ano do nosso deslocamento
como ficara consignado, avistamos Nápoles com o seu Vesúvio. Era a Itália
gloriosa de tantos expoentes que se notabilizaram nas artes, nas ciências.
Chegávamos à Itália cristã, mas agora transformada em um inferno.
Ali estava, concretizando os fatos, mostrando-nos a realida-
de negra da guerra, para a qual caminhávamos passo a passo, a encanta-
dora cidade completamente atingida pelos bombardeios.
Ali estavam os navios afundados, cascos à mostra!
E, ainda no ar, como medida de precaução, os balões cativos
traduziam algo de aterrador, uma advertência às tropas que acabavam
de chegar.
O inimigo não se encontrava muito longe e sentíamos que o
trampolim da guerra estava, de fato, a nossos pés. Viver ou morrer! Mas
o pensamento era lutar, cumprir o dever e dar tudo para um possível
retorno ao Brasil.
Nosso fim de jornada, todavia, não era o Porto de Nápoles;
sabíamos dessa particularidade. Deveríamos continuar a viagem em
136 Frei Orlando: o capelão que não voltou

barcaças, as célebres embarcações próprias para os assaltos às praias


de que tínhamos notícias pelos jornais e pelo cinema, quando ainda em
nossa Pátria. A etapa empreendida nessas barcaças foi dolorosa. Embar-
cações balançando, como que sem estabilidade. Aquele fim de jornada
foi revestido dos maiores sacrifícios.
A meio caminho, forte tempestade surpreendeu-nos, e uma
tromba d’água surgiu à nossa frente. Espetáculo soberbo – e perigoso.
No dia 12 de outubro, já estávamos no Porto de Livorni, nos-
so destino para o desembarque definitivo. Nesse porto recebemos or-
dem para desembarcar, e, após algumas horas de preparativos, o nosso
Regimento encontrava-se pronto para prosseguir a viagem em viaturas
americanas, rumo às imediações de Pisa.
Quanta surpresa e quanta alegria!
Surpresa porque, inegavelmente, a Itália é um repositório
de tudo que encanta. Alegria por ficarmos livres de viagem marítima,
dos seus perigos e tormentos.
As tropas brasileiras pisavam agora a pátria de D’Annunzio,
de Garibaldi, de Galileu e de Mussolini.
– Arre! Até que enfim – suspiravam todos.
Nunca déramos tanto valor a terra! Como era gostoso pisar
o chão firme, conquanto estranho aos nossos olhos e nossos corações!
Nosso primeiro acampamento em solo italiano foi no Par-
que do Rei Vitor Emanuel, no lugar denominado San Rossori, onde os
nobres praticavam seus exercícios de caça. Extensa e bela planície, com
árvores em toda a sua área, dando-lhe um aspecto pitoresco e poético.
Quando nos desequipamos, para dar início à montagem de
nossas barracas, ouvimos fortes e seguidos estrondos para os lados da
estrada que deixáramos. Os alemães bombardeavam o Porto de Livorni.
Vinham com mais de uma hora de atraso! Julgavam por cer-
to que ainda estivéssemos lá.
Erraram o cálculo. Andou mal a espionagem!
Mas, à noite, quando já nos encontrávamos sob as barracas,
os tedescos voltaram ao ataque. Agora, os aviões tentavam sobrevoar
nosso acampamento, no que foram impedidos pelas baterias antiaéreas
dos ingleses.
Pela primeira vez víamos a “cobra fumar”!
Adeus, Brasil! 137

As balas traçantes, luminosas, apresentavam nos céus da


Itália um espetáculo nunca visto pelos nossos soldados.
E o perigo, graças a Deus, foi afastado!
No dia seguinte, pela manhã, os nossos capelães celebraram
missa, depois de instalada completamente a Capelania.
Após a missa, tivemos uma forte surpresa: moços e moças
de Pisa, que ficava próxima, rodeavam o nosso acampamento. Que dese-
javam eles? Alimento para matar a fome! Tinham fome!
E era de ver a fina flor daquela cidade vetusta que ali estava
implorando, mendigando. E coisa interessante: não queriam ajuda de
forma gratuita, mas ofereciam as moças para lavar a roupa, e os rapazes
para o serviço de faxina. Não queriam lira, mas alimento: café, chocolate,
açúcar, cigarros, pão.
Só então nos foi dado ver, pela primeira vez, a miséria de um
povo em guerra! Só então melhor pudemos analisar o errôneo conceito
de muitos brasileiros, quando diziam que só tomariam parte na guerra,
se ela fosse desencadeada em nosso território.
Vimos, então, mais do que nunca, que não se pode esperar o
inimigo bater à nossa porta, mas ir ao seu encontro, isso sim.
Que o palco seja o solo do agressor, jamais o nosso!
Daí em diante, em face daquela situação do povo pisano,
Frei Orlando se pôs em campo, e as criancinhas, quando descobriram o
coração do bom capelão, vinham logo:
– Datemi panne, cigareti, chocolatto, mio capelane!
Nosso amigo ia abrindo os bolsos, distribuindo o que ele pe-
dira aos soldados para oferecer aos pobrezinhos pedintes.
Agora era Francisco de Assis!
Mais do que nunca se transformara no seu verdadeiro dis-
cípulo. O cenário não era a Cidade de Assis, onde o santo saía de porta
em porta levando o produto do “roubo” aos velhos e às crianças. Mas era
Pisa, céus da Itália, país em que nascera o filho do rico comerciante. E
como a guerra apresentava tão desolador espetáculo naquela terra de
tantos mártires e santos da Igreja! Como estava tudo aquilo talado pelas
armas fumegantes!
Frei Orlando lamentava a situação e gostava de animar
aquela gente, dizendo-lhes em uma santa mentira!
– Presto finita la guerra.
138 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Breve findará a guerra!


Sabia ele, contudo, não ser verdadeiro o que afirmava.
Os alemães ainda se encontravam dando tudo para não se
renderem, tomando pé junto às fortificações, na Região Norte da Itália.
Voltemos, agora, à situação do povo de Pisa.
Tanta e tamanha era a quantidade de pedintes pelo acampa-
mento, que nosso capelão só encontrou uma saída: pedir também, sair de
barraca em barraca, como fazia em São João Del Rei, de porta em porta. Os
soldados davam tudo que podiam dar. O brasileiro, diga-se de passagem,
é extraordinariamente afetivo, sentimentalista como nenhum outro. Está
no sangue, é coisa dos nossos corações. Por quê? Porque isso aqui, já disse
Humberto de Campos, é a Pátria do Evangelho e coração do mundo. Nas-
cemos e vivemos sob a inspiração do Cruzeiro, tementes a Deus, sensíveis
à dor humana. É coisa nossa, muito nossa, muito dos brasileiros!
Para a coleta de comestíveis, feita por Frei Orlando, muito
lhe valera o cabo Jarbas, auxiliar da capelania religiosa e denodado ami-
go dos capelães. Bom soldado, valente, muito religioso, daí o desempe-
nhar as funções de um verdadeiro sacristão. Foi um servidor prestante e
leal esse filho da cidade de Divinópolis.
A situação, todavia, mais se agravava à medida que os dias
se iam escoando naquela Itália de dolorosas recordações. Nosso cape-
lão, entretanto, não desanimava. Cheio de coragem, consolava e confor-
tava com sua palavra.
Existia na cidade de Pisa um núcleo de americanos para o
serviço de controle de evacuados, gente boa, no seu “ok! ok!”, e já co-
nhecidos dos brasileiros. Frei Orlando foi a eles e conseguiu uma casa
pelos arredores da cidade, depois de os caça-minas terem feito a devida
limpeza. Com o auxílio de uma freira que encontrara pelas ruas, condu-
zindo um carrinho de mão, organizou um asilo. Outras abnegadas reli-
giosas, também sem recursos, juntaram-se à primeira e, amparando-se,
prestavam serviços de caridade aos velhos e velhas, às crianças e outras
pessoas desprotegidas em meio à situação da guerra.
O caso do asilo improvisado em Pisa teve o seu lado pitores-
co. Frei Orlando não dispunha de muito recurso para mantê-lo senão o
de se valer da generosidade das praças, como já vimos.
Ao capitão Rodarte já andava cansado de “explorar”, pe-
dindo ora uma coisa, ora outra. Mesmo assim, certo dia, pediu-lhe al-
Adeus, Brasil! 139

gumas obras de víveres. O capitão, todavia, mostrou-se nervoso e na


sua franqueza:
– Onde vou arranjar – disse-lhe o oficial – se o senhor já me
levou toda a reserva da companhia?
Foi aí, então, que Frei Orlando tramou o “roubo”, o “assalto”,
o mesmo “crime” de Francisco de Assis, ao assaltar a loja do velho pai,
incapaz de compreender a pureza de sentimentos do filho a quem ele
chamava ladrão!
Certa noite, acompanhado do cabo Jarbas, e quando já to-
dos se encontravam em profundo sono, o capelão, à socapa, penetrou na
barraca destinada ao armazenamento dos víveres. E já se fazia verdadei-
ra “limpeza”, quando o cabo Joãozinho, que ali dormia a sono solto, pôs
a boca no mundo:
“Ladrão! Ladrão! Pega! Pega!”
Julgava o ecônomo da Companhia fosse algum italiano dos
que viviam sempre no acampamento.
Ora, acontece que o plantão da hora estava bem acordado e
vira, perfeitamente, que não havia nenhum ladrão, que era o nosso ami-
go capelão e até achou graça quando ele passou com mais outro compa-
nheiro, sobraçando um gordo embrulho e, o outro, uma lata. Essa lata
é que provocara complicação, porque era banha e já havia poucas no
depósito, pois a Companhia já havia recebido sua quota.
No dia seguinte, o cabo Joãozinho, um colored15, filho de
Belo Horizonte, comunicava-nos a ocorrência e nós a transmitíamos ao
comandante da Companhia.
Investigando-se o caso, chegou-se a uma conclusão: tratava-
se de Frei Orlando! Era Frei Orlando o “assaltante”!
O capitão Rodarte, depois de toda aquela complicação para
se descobrir o “homem”, porque o plantão ocultava a verdade, receoso
de complicar o capelão, falou-nos meio tolerante, meio áspero:
– Eu bem que desconfiava.
Um tanto enérgico, mas também complacente, disse que pu-
niria o plantão da hora, o que, afinal, não se concretizou.
E Frei Orlando assim agia, porque era horrível a situação
da Itália!

15
Colored: para os americanos, a pessoa de pele bem morena, mulata ou preta.
140 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Tudo que se disser sobre o seu sofrimento é pouco, nem há


palavras para descrever o panorama negro daquela gente.
A lavoura estava completamente paralisada, havia anos já,
sem que pudessem os colonos reabilitá-la, para acudir às populações
famintas. Ninguém cuidava, pois, de plantar. Plantar como? Se tudo era
confusão, sem assistência dos poderes governamentais.
Tudo que aqui se escreveu, pois, nestas páginas, é pouco, é
nada, comparado com a realidade dos fatos.
Fome! Fome que assolava a Itália toda!
Fome que tornava venais as consciências, fazendo o pai ven-
der a filha donzela, no tráfico mais imundo da História.
Guerra! Guerra!
Máquina contra máquina, homem contra homem!
Capítulo 10

A missa na Catedral de Pisa


Uma escalada à Torre Inclinada
Sua Majestade, o Inverno

O acampamento do Parque do Rei Vítor Emanuel, em


Pisa, foi oportuno para quem, como nós, mal havia
aportado à Itália. Evidentemente urgia certo repouso após a longa via-
gem e um treinamento mais “nas barbas do tedesco”.
Imprescindível tornava-se, outrossim, um melhor conheci-
mento do terreno, que seria o palco da luta, um melhor aprendizado do
armamento americano colocado à nossa disposição, conquanto já em
parte nosso conhecido desde o Morro do Capistrano no Brasil.
Do front foi enviado um grupo de oficiais e sargentos ex-
perimentados em diversos ramos de combate, sobretudo no que dizia
respeito às minas. E como são apavorantes estes engenhos de guerra!
Quantas vidas preciosas perdemos, vítimas dessas máquinas verdadei-
ramente infernais! Surpreendentes, mutilam, ferem ou matam violen-
tamente! Algo horrível, aterrador, roubando-nos a tranquilidade, des-
de que aportamos ao solo italiano. A preocupação constante estava nas
minas dispostas pelo terreno. Admirávamos, todavia, quando víamos,
nessa angustiante situação, o bom humor dos americanos, quiçá porque
calejados pelos anos de luta; daí suportarem tudo aquilo como se não
estivessem em guerra.
Dias após a nossa chegada a Pisa, foi o nosso capelão de-
signado pelos seus chefes religiosos para celebrar imponente missa na
catedral, uma das maiores do mundo e que recua 10 séculos no tempo.
Quatro mil vozes entoaram o coro, e o celebrante foi acolitado por oito
sacerdotes pisanos.
142 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Maravilhosa a Catedral de Pisa! Descrevê-la é tarefa difícil,


sem que se profane tanta beleza e arte, maravilha e esplendor! O can-
delabro, que inspirara a Galileu uma de suas elucidações científicas, era
testemunho eloquente daquele empolgante ato cristão, entrelaçando os
nossos laços espirituais com os descendentes da grande nação italiana.
Ao fim da missa e pela primeira vez, ouviu-se o Hino Nacio-
nal executado pela Banda de Música Expedicionária, em solo estranho.
Enquanto isso, no acampamento de San Rossori, os solda-
dos do Brasil iam entremeando os dias, as instruções intensíssimas com
seu gênio alegre, com canções e sambas.
Dias depois, apareceu o primeiro “inimigo”. Em um espetá-
culo nunca visto por muitos de nós, surgiu a neve nas suas primeiras
investidas. Caía brandamente, rala, pelas margens do Arno, tornando as
elevações alvinitentes e, ousadamente, modificando a paisagem pano-
râmica. Em que pesassem as consequências que viriam depois, aquilo
tudo formava um cenário magnífico, de uma tela de Murilo!
Foi debaixo de neve e já sob o rigor do inverno que, após
quase dois meses de estada naquelas paragens itálicas, rodamos por
uma excelente estrada que nos conduziria à Torre Inclinada, uma das
maravilhas do mundo. Acompanhavam-nos Frei Alfredo, Padre Elói,
capitão Rodarte e Frei Orlando. O motorista do jipe que nos conduzia
– cabo Crowel, estudante futuroso, descendente de tradicional família
mineira – morreria alguns meses depois, em pleno front. Foi um aconte-
cimento lamentável. Sua morte contristou a todos nós.
Confirmando sua resistência física sempre posta à prova,
desde o Brasil, Frei Orlando foi o primeiro a galgar as culminâncias da
célebre Torre Inclinada. Lá de cima, espraiando a vista pela cidade, con-
templando o Batistério, a Catedral, fez-nos uma valiosa explanação his-
tórica dos fatos desenrolados nos fins da Idade Média. Narrava a tirania
sofrida por Ugolino, a prisão deste e dos seus dois filhos no interior da
Torre, onde pereceram de fome.
Rememorava o capelão as contendas italianas, quando Pisa
sofreu a invasão dos florentinos, nos primórdios do século XV.
Nossa vista divisava o Arno que banha a cidade proporcio-
nando-nos verificar a destruição, quase completa, de tudo que lhe ficava
em torno. Deixava sulcos profundos, em tudo, o tufão da guerra!
A missa na Catedral de Pisa 143

A Torre de Pisa, dizem os entendidos, está para cair! O tem-


po corre. Aqueles que a escalaram vão deixando este mundo! Ela, toda-
via, continua de pé, inclinada, desafiando os conhecimentos da engenha-
ria moderna, dos técnicos!
No acampamento de San Rossori, as instruções não tinham
trégua. Faziam lembrar o Morro do Capistrano, no Brasil, onde tanto ha-
víamos sofrido.

Capela de Santo Antônio, em Bombiana, onde Frei Orlan-


do foi velado até seguir para o cemitério de Pistoia

Os alemães, recuando cada vez mais para o Norte da Itália,


perseguidos de perto pelos aliados (já o primeiro Escalão encontrava-
se na linha de frente), procuravam estabilizar-se defensivamente, nas
elevações do Rio Pó.
Frei Orlando dividia seu tempo entre as atividades normais
de sua Capelania e entre os seus amiguinhos do asilo de Pisa.
Quando ele se demorava a aparecer na cidade, as irmãs pu-
nham-se aflitas e enviavam um emissário a San Rossori. Temiam elas
que já nos tivéssemos deslocado para a frente.
Inegavelmente, para os pisanos, a nossa retirada seria dolo-
rosa porque encontraram eles, nos brasileiros, verdadeiros amigos nos
seus dias incertos.
144 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Sobre a situação daquela gente, e do panorama que se lhe


descortinava no palco do conflito, assim descrevia Frei Orlando para Di-
vinópolis, em uma admirável missiva:

“Benditas são essas pequeninas cidades do nosso


País, onde se encontram ainda a fé em Deus e interesse para
com as exigências da alma. Fora do Brasil, rugem os canhões
como feras encolerizadas. Atiram-se os homens uns contra
os outros, em uma fúria jamais vista. Só pensam em duas
coisas: matar os semelhantes, destruir aquilo que foi feito com
dedicação e esforço. Enquanto perdura a luta, cobrem-se de
luto os lares de lado a lado e a multidão lava-se com lágrimas.
Lágrimas de fome, de dor, de humilhação e tam-
bém de ódio. A voz do Evangelho, que nos ensina a praticar
justiça e caridade, o perdão e o amor, é sufocada pela voz
enganadora dos prazeres fáceis: apenas o Sacerdote relembra
a todos quão estúpida é a vida moderna. A passagem dele é
um escândalo para a maioria. Na realidade, é um protesto
silencioso contra a licenciosidade dos costumes. A Freira que
passa é um raio de luz que brilha na impureza da vida...
Onde vamos parar com tudo isso?
Onde encontrar um dique forte, que possa resis-
tir ao ímpeto das águas bravias de uma sociedade corrom-
pida, podre!
Quando penso em todas essas coisas, aparece-me,
ainda mais claramente, o dedo de Deus, da Providência Divi-
na, quando quis que se unissem, aos nossos jovens do exército,
Sacerdotes que procurassem dar-lhes uma direção segura.
Sim, alimentamos essa esperança bem viva em
nossas mentes.
Convençamos aos nossos soldados que o Brasil
precisa ser saneado, não somente da malária, senão também
daquelas terríveis epidemias que são o abandono de Deus,
falta da boa moral e incompreensão dos deveres do homem.
E não será a primeira vez na história que um
exército salva uma nação!...”

O Santuário de Santo Antonio, revista católica de Divinópo-


lis, publicou a carta acima, provocando no âmbito de nosso estado os
A missa na Catedral de Pisa 145

mais encomiásticos elogios ao nosso capelão. E foi transcrita em diver-


sos jornais mineiros.
Nessa missiva, magnífica página de cunho espiritual, Frei Or-
lando exteriorizava o drama social das criaturas humanas. Sentia ânsias
de um Brasil sadio, de uma sociedade mais espiritualizada. Era o que mui-
tas vezes deixava transparecer já em suas palavras e nos seus escritos.
Continuávamos acampados em Pisa, onde nossos compa-
nheiros do Primeiro Escalão e que se achavam empenhados em luta,
mais à frente, vinham nos visitar, trazendo notícias horríveis de como
agia o inimigo, de sua maldade e inescrupulosidade, quanto ao respeito
devido às convenções de guerra.16
Não respeitavam as nossas ambulâncias, que ostentavam des-
tacada cruz vermelha em seu exterior. Os nossos soldados de cor, quando
aprisionados, eram tratados de forma desumana, porque corria, na linha
da frente alemã, a notícia de que prisioneiro tedesco nas mãos de um bra-
sileiro de cor era sempre degolado. Não sabemos como fora inventada essa
história sem fundamento, talvez que partida de algum italiano fascista.
Davam-nos os nossos companheiros, cheios de pavor, a in-
formação de um perigoso “inimigo” que iríamos encontrar quando em
combate: “o pé de trincheira”, a grangrena provocada pela neve dos fox
holes. 17 E narravam-nos casos pavorosos sucedidos com os nossos pa-
trícios, vítimas dessa circunstância.
E a neve continuava caindo...
Mansa, constante, embranquecendo as árvores, as barracas,
os morros em derredor do nosso acampamento!
Frio horrível, frio nunca visto e jamais sentido por todos
nós, filhos de um país tropical!
Evidentemente, pensávamos que não poderíamos levar
vantagem porque o “inimigo” comum, o inverno – frio e neve – encon-
trava-se em todo lugar.
E que saudades dos dias ensolarados, da canícula carioca,
das praias tentadoras e alegres do Rio de Janeiro!

16
Convenções de guerra: conjunto de normas aceitas pelas nações civilizadas, com
vista ao tratamento humano dos prisioneiros de guerra.
17
Fox hole: literalmente “buraco de raposa”; escavação retangular, feita pelo pró-
prio combatente e dentro da qual ele se protege do fogo inimigo. (Toca individual)
Capítulo 11

A marcha para o ‘front’

A guerra na frente italiana apresentava-se difícil. Os


alemães resistiam nos Apeninos. Roma, Florença,
Lucca, Pistoia, Livorni, Pisa e outras cidades já se encontravam livres,
cuidando de sua recuperação. O povo respirava satisfeito. Não era, to-
davia, uma alegria completa, porque ainda grande parte do solo italiano
encontrava-se sob o jugo dos soldados de Hitler.
Dias negros viveu a maravilhosa Itália. Maravilhosa, porque,
indiscutivelmente, é um país que encanta e deslumbra. Em tudo, por
tudo! No esbanjo da arte, na magnificência das suas planícies e vales, na
fé viva daquele povo que, mesmo sofrendo – já afirmamos –, cantava e
sorria pelas ruas!
Chegou o dia 19 de novembro. O ano era de 1944. E ain-
da nos estacionávamos nos campos de San Rossori. Dia da Bandeira em
nossa Pátria, data engalanada para os brasileiros, o 19 de novembro na-
quele ano teve para nós uma expressão diferente: cantávamos o Hino
Nacional sob o céu estranho, como estranho era o solo. O Regimento en-
trou em forma para as comemorações do dia. Em todos imperava mais
tristeza que alegria. Os semblantes não se mostravam festivos. Como é
triste ouvirmos o som do Hino Nacional quando distantes da Pátria!
No dia seguinte, 20 de novembro, tudo era agitação, era azáfama.
Íamos levantar acampamento. A ordem havia chegado e em
meio aos preparativos, feitos em silêncio, todos se mostravam apreen-
sivos. Que nos aguardava o futuro? Não se podia prever, senão que nos
estavam reservados lágrimas e sangue, gemidos e dores.
Só Deus sabia o que nos esperava naquela Itália também
já cansada de tanto sofrer. Só Ele conhecia os nossos destinos e o que
148 Frei Orlando: o capelão que não voltou

significaria, para as tropas do Brasil, aqueles campos minados, aquelas


elevações sinistras, onde o inimigo se estabilizara e nos espreitava.
“Levantar o acampamento!”
Era a ordem que chegava aos nossos ouvidos, como se em
um brado fatal e sinistro!
Do nosso Regimento, o III Batalhão foi o primeiro a deslo-
car-se. Seu comandante, major Cândido Alves da Silva, já não existe en-
tre os vivos. Morreu poucos anos após o nosso regresso. Era um valente
e com ele serviria Frei Orlando quando todo o efetivo do Regimento já se
encontrava em pleno fogo.
O restante da Unidade – I e II Batalhões –, deixando a região
de San Rossori, rumou para o lugar denominado Borgo Capagni, onde nos
acantonamos no castelo de um conde. Este, fascista, abandonara suas pro-
priedades, seu rico palácio, embarafustando-se no mato adentro para os
confins de suas terras, nas quais se homiziara com os caseiros.
A guerra faz tudo isso – nivela, abate o orgulho, as vaidades
tolas dos homens.
Que seria, agora, dos nossos pisanos, do asilo das pobres ir-
mãs de caridade? Como passariam a viver os velhinhos e as crianças de
Frei Orlando? A caridade está feita, mas o Francisco de Assis brasileiro
precisava tocar para a frente, cumprir sua missão no meio dos soldados.
Já não nos pertencíamos.
Aproximávamo-nos do inimigo, o temido inimigo!
Estava agora, bem perto, o palco da guerra. Já se ouvia, ao
longe, o estrondo dos canhões, primeiros ribombos que nos chegavam
aos ouvidos.
Tivemos, também, magoando os nossos corações, a primeira
notícia dolorosa: caíra morto, quando combatia tenazmente, entre outros,
o jovem sargento Wilson Ramos, destemido filho de São João Del Rei.
Foi o primeiro a tombar nas fileiras do nosso Regimento. E
era o mais jovem dos sargentos. Contava apenas 22 anos de idade. Uma
perda muito sentida, levando-se em conta o impacto, por ter sido ele
grandemente estimado de todos.
A guerra estava, pois, a poucos passos. O inimigo astuto, e
justiça se lhe faça, soldado perfeito, em todo sentido, tinha agora pela
frente o Segundo Escalão das tropas do Brasil. E os alemães aguarda-
vam-nos, bem o sabíamos, porque a espionagem havia funcionado. E
A marcha para o ‘front’ 149

bem. Somente falhara no bombardeio do Porto de Livorni, quanto à nos-


sa chegada.

Acima – Frei Orlando dando a comunhão em pleno


front: Ao seu lado o cabo Jarbas. Abaixo – Frei Orlando
pregando

Referindo-se à nossa entrada em fogo, frente aos soldados


de Hitler, assim escreve um oficial do 1º RI – Regimento Sampaio – em
bonita descrição:
“Recordemos o sibilar das primeiras balas, o silvo agudo das
primeiras granadas e a explosão surda das primeiras minas! Dentes que
se cerram, mãos que se apertam, sobre as armas, olhos que querem fu-
rar a escuridão. A escuridão da noite!
150 Frei Orlando: o capelão que não voltou

A inquietação das primeiras patrulhas, angústia das primei-


ras sentinelas... o orgulho dos homens que avançam!
Camaiore, Monte Prano Barga, Castelo, Montese!
Depois... Depois a mudança de setor. O inverno, a neve. O
soldado olhou em torno e não reconheceu a paisagem.
Tudo estava branco!
O céu azul tornara-se cinzento. E a brisa era um vento gelado,
que cortava a carne, gretava os lábios, queimava a pele e gelava os pés e
as mãos. Ele estava no vale e olhava para cima. Nos cumes gélidos, parecia
ver as bocas dos canos das armas inimigas a descobrir-lhe as feições. Por
duas vezes tentou subir os morros e por duas vezes a sorte lhe foi adversa.
Viu os companheiros, às centenas, caírem ao seu lado. Mas não desanimou.
Vestiu-se de branco, fez-se patrulhador e foi buscar prisioneiro lá em cima
dos morros, dentro das posições inimigas. Enterrou-se na neve e se fez sen-
tinela. Aprendeu a pressentir o inimigo e a lhe frustrar os golpes. Quando
lhe permitiram acender fogo, aquecera-se um pouco e lembrava-se, com
saudades, do sol de sua terra, onde não havia neve, e não havia Guerra...
Ali onde ele estava era o Inferno!
Inferno paradoxal!
Inferno gelado em que o aquecimento era dado pelo explo-
dir das granadas e pelos canos aquecidos das armas que disparavam.
Em cada posição, esse inferno tinha um nome: Gaggio, Montagno, Morro
Del Oro, Torre de Nerone, Fornacce, Riola. E, lá em cima, cada morro
parecia um demônio particular a desafiar a tudo e a todos. La Croce,
Soprassasso, e Castelo, o maior de todos!”
Eis o que seria a nossa vida dali por diante. Eis o que espe-
rava a tropa brasileira, menosprezada por alguns sacripantas e apro-
veitadores da situação, para dizerem que nós, os brasileiros, estávamos
passeando na Itália!
Belo passeio!
Dia 2 para 3 de dezembro. Noite alta, escura, agourenta,
naqueles dias sinistros e apavorantes! Marchávamos, em definitivo, ao
encalço dos alemães, que haviam fincado pé no Monte Castelo e suas ad-
jacências. O frio cortava! As viaturas rodavam pelas estradas silenciosas
e tristes da célebre Linha Gótica.18

18
Linha Gótica: uma extensa linha de fortificações construída pelos alemães,sobre
as montanhas, para conter o avanço das tropas aliadas no Teatro de Operações da
Itália.
A marcha para o ‘front’ 151

O boche já nos espreitava mais de perto, e o deslocamen-


to processava-se sob profundo silêncio, enquanto a coluna de viaturas
alongava-se pela estrada.
Total escuridão! Divisávamos algo, valendo-nos apenas da
luz tênue dos chamados “olhos de gato”, pequenos faróis, que discreta-
mente clareavam um carro do outro. Em volta, nas montanhas circun-
dantes, trevas, negrume!
E a marcha prosseguia sempre, cautelosa, lenta, como que se
arrastando, devorando as estradas, a bem da verdade, excelentes. O me-
nor descuido, todavia, seria fatal, no que dizia respeito aos alemães, os
quais, em situação dominante, a cavaleiro, ocultavam-se perigosamente.
Enquanto marchávamos, íamos conjecturando, como que
nos perguntando: para que as contendas dos homens? Qual a finalidade
daquela guerra? Por que deixávamos nossa Pátria, nossos queridos e ali
nos encontrávamos dando caça a um nosso semelhante a quem chamá-
vamos de inimigo?
Deus estaria aprovando aquilo? Seria possível? Não! Porque
os ensinamentos de Jesus são claros: “Amai-vos como eu vos amei!”
Para mostrar a nulidade do conflito e tanto sangue derra-
mado, nós presenciamos a recepção feita ao presidente da Alemanha em
nossa Pátria, aqui recebido sob as mais calorosas homenagens.
Tudo foi em vão. Passara. Mas, lamentavelmente, vidas pre-
ciosas ainda são hoje grandemente choradas.
Por cúmulo de coincidência, e como para se confirmar que
as guerras não compensam, porque são um crime aos olhos de Deus, a
máquina em que datilografei os originais deste livro tem a marca “Schrei-
bmmasvhinenwerk”!! É alemã pura, autêntica, importada pelo Brasil. Mi-
nha companheira de mais de 10 anos, minha amiga e confidente é alemã!
Hitler e Mussolini integram, hoje, a história dos homens sem
glória e sem outra lembrança, senão a de haverem sido dois ditadores,
violentando direitos e liberdade!
Que o Criador na Sua Infinita Misericórdia apiede-se deles!
Que a posteridade os absolva como nós já os absolvemos,
lavrando sobre sua memória o termo do ensino bíblico: “Perdão”!
Capítulo 12

Inimigo à vista!
Vou “orelhar” um tedesco!

À meia-noite, aproximadamente, do dia 2 para 3 de


dezembro de 1944, chegávamos às elevações da lo-
calidade denominada Sila.
O frio cortava. O vento zunia naquelas alturas. A neve, em
sua ânsia de cair, em chuvas e aos montes, dava àquela região alvinitente
a beleza de um cenário estupendo.
Pusemo-nos a contemplar aquela cena, e o nosso pensa-
mento deu um salto até o Brasil saudoso e distante, onde nossos filhos,
por certo, deviam dormir o sono tranquilo de uma Nação em paz.
Ia alta a noite quando, evitando todo e qualquer ruído, cau-
telosos, fizemos alto, detendo-se o comboio.
Em seguida, a pé, precavidos, iniciamos a escalada aos
montes escorregadios pela neve. Adiante, gigantesco, qual fantasma
assustador, ficava Monte Castelo. Lá estavam os alemães. Lá, naque-
las alturas, havia homens iguais a nós, que também deviam chorar
e sentir saudades. Somente falavam língua diferente, mas possuíam
como nós, na pátria distante, os seus entes queridos, suas esposas,
seus filhos, suas mães.
Coisa triste, uma guerra!
A nossa Companhia passou a ocupar uma velha casa ao pé
da colina. Seus habitantes continuaram ao nosso lado, passando a en-
frentar com as tropas brasileiras as mesmas vicissitudes e riscos que as
guerras provocam. Quanto sofrimento para aquela gente, que não pediu
guerra e só pensava em trabalhar.
154 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Os canhões urravam dentro da noite fria e sacudida pelo vento.


Ouvia-se distintamente quando o projétil era impelido da
boca das peças, que atiravam contra as nossas posições. Era o nosso pri-
meiro contato com os alemães e aos nossos ouvidos chegava, mais uma
vez, o eco surdo da artilharia pesada. Foi assim que todos nós, soldados,
cabos, sargentos e oficiais, sentimos, pela primeira vez, a potência de
fogo dos homens de Hitler.
Positivamente era amedrontadora a sua artilharia, mesmo
para os companheiros de sangue-frio!
E tudo calou muito fundo em nosso subconsciente, para que
hoje, vivendo a paz do presente, não olvidássemos a moldura do passa-
do, e para que, em nossos corações, perdurasse, sempre, a recordação
daquela madrugada fatídica.
Os tedescos como que atacavam furiosamente, dando tudo
de suas energias, da sua capacidade.
Tiros e mais tiros ecoavam pelas montanhas silenciosas e
tristes.
As granadas de morteiro e de outras peças de artilharia pas-
savam por sobre as nossas posições e iam estourar, ensurdecedoramen-
te, nas águas tranquilas de um afluente do Arno, que fica pelas baixadas
de Sila. Lugar triste esse! Mais triste ainda quando, no negrume da noite,
contemplávamos as fachadas do casario em abandono.
Na povoação de Sila, muita coisa triste havia-se desenrolado
e habitava ali um povo marcado duramente pelo ferrete da guerra. A sua
igreja semidestruída pelos bombardeios era uma lembrança macabra
de tudo. A torre viera abaixo, e o padre desaparecera. Com ele, inúmeros
dos que o seguiam em sua religião.
O ataque continuava. Em dado momento, as nossas linhas
clareavam! O inimigo empregava very-lights19 e as temidas “Lourdi-
nhas”20 não paravam de espocar, partindo tiros de todos os lados. Por
ser o nosso “batismo de fogo”, veio o pânico, o pavor do inimigo!

19
Very-light corresponde a um tipo de artefato pirotécnico, em geral pequeno para-
quedas do qual pende uma substância que, ao queimar, ilumina o terreno embaixo
da linha da queda, de modo a detectar possível aproximação de tropa inimiga à
noite.
20
“Lourdinha”: apelido dado pelos nossos pracinhas a uma eficiente metralhadora
alemã. Era muito respeitada pelos nossos combatentes.
Inimigo à vista! 155

O I Batalhão do nosso Regimento, sob o comando do valoro-


so major Jacy Guimarães, não resistiu à ação desencadeada. Debandou
a 1ª Companhia seguida da 2ª; o comandante do Batalhão tudo fez para
dominar o caos: como louco, gritava a todos que cumprissem o seu de-
ver, mantivessem serenidade!
Tudo debalde; percebeu que agia inutilmente. É ele, major
Jacy, voluntário para a guerra, quem narra o acontecido:
“O ataque caracterizou-se pelo emprego de grande número
de metralhadoras, quer na base de fogos inimigos em Castello, C. Vitellini
e Km-16, quer dos elementos móveis. Forte concentração de morteiros
e alguma artilharia. Dividiu-se nitidamente em quatro tempos ou ondas.
Nas duas últimas, quando o combate já era mais aproximado das nossas
posições, o inimigo fez uso abundante de granadas de mão e de bazucas...
Conduzi, pessoalmente, um pelotão da 3ª Companhia (reserva) no intuito
de estabelecer a soldadura entre as 1ª e 9ª Companhia, inspirando-lhes,
dessa forma, mais confiança, e ver de perto como a coisa se passava. Lá
chegando, chamei à responsabilidade o comandante da 1ª Companhia,
concitando-o a que mantivesse, com o seu exemplo, o bom ânimo da tro-
pa. Mais uma vez, o comandante do Batalhão apelou para que o capitão,
comandante da 1ª Companhia, soubesse honrar os seus compromissos
e procurasse dar aos soldados o exemplo da sua coragem e serenidade.”
É extensa esta parte do então major Jacy, com referência ao
acontecido com o seu Batalhão e por cujos fatos, tão desagradáveis, não
teve a mínima parcela de culpa, senão que, como qualquer comandante,
deveria ser responsabilizado.
Valente, ousado, já conhecido de todos pela sua bravura
pessoal em campanhas internas do País, viu-se, contudo, de um momen-
to para outro, envolvido em um inquérito, do qual foi, todavia, absolvido
por unanimidade.
O ataque só foi repelido com apoio do II Batalhão do 6º RI,
com a intervenção do III Batalhão do nosso próprio Regimento, com ele-
mentos esparsos do Batalhão em pânico, arrebanhados pelo major Jacy,
capitão Luiz de Faria e outros chefes, inclusive primeiro-tenente Danton
Pescadinha, do Pelotão de Reconhecimento.
Frei Orlando fazia questão absoluta de estar nas primeiras
linhas. Não se acomodava com as incertezas da retaguarda, em uma po-
sição meramente passiva quando, dizia ele, nossos companheiros tom-
bavam sem assistência espiritual.
156 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Todo encapotado, galochões contra a neve, capacete en-


terrado na cabeça, saía ele pelos campos, deitando-se aqui e ali, para
ocultar-se das vistas inimigas. Fazia questão de ver de perto as nossas
posições avançadas e o estado moral dos soldados, animando-os com o
seu idealismo, sempre posto à prova.
Nessas mudanças pelos campos nevados, ouvindo a distân-
cia o matraquear surdo das metralhadoras, guiava-se para setores peri-
gosos, porque constantemente batidos pela artilharia tedesca.
Resoluto, afoito mesmo, parecia ir de encontro à morte, ex-
pondo-se, arriscando a sua vida, como se invulnerável aos tiros dos ha-
bitantes do Castelo.
Certo dia, apreciou a chegada de um prisioneiro alemão,
que vinha conduzido pelo bravo sargento Max Wolf Filho, o qual morre-
ria dias após, em um serviço idêntico. Vibrou, entusiasmou-se e, à moda
dos valentões, disse aos presentes que desejava participar de um servi-
ço de patrulha. E, teimoso:
– Eu vou, quero orelhar um tedesco!
Um tenente amigo – Danton Pescadinha – procurava dissu-
adi-lo, mostrando-lhe os inconvenientes e o perigo a que se estaria ex-
pondo, se levasse avante o seu intento.
Mas o capelão era teimoso renitente: “Vou orelhar um ale-
mão! Irei com você na primeira patrulha!”
Tenente Pescadinha pintou para o frade teimoso toda a situ-
ação dos patrulhadores: que, durante o dia, o sol, embaçado pela cortina
de fumaça, dá o aspecto de que é noite, nem escura nem enluarada, algo
incompreensível; na frente e em torno, tudo que o patrulhador vê apre-
senta uma configuração fantástica, como se fossem abismos imensos e
basta um arbusto sacudido pelo vento ou uma ave que alça voo, para que
julguemos que seja o inimigo e, concluindo: “não queremos ver o nosso
capelão correr!”
Tudo foi narrado, em detalhes, procurando afastar o frade
daquela ideia. De nada valeu, porém. E o tenente ficou em apuros, por-
que Frei Orlando não lhe dava folga, querendo saber o dia em que, juntos,
sairiam na arriscada missão de campanha. Houve, enfim, a combinação.
Mas... “ó tenente embrulhão, mentiroso”, gritava ele, certo
dia, nervoso, gesticulando, é que levara “bolo”. O tenente saíra antecipa-
damente e, como não lhe fosse permitido deslocar-se antes da hora pre-
Inimigo à vista! 157

vista, ocultara-se no mato, prevenindo o sargento que o deveria acom-


panhar. Frei Orlando nunca mais perdoou esse oficial.
E dizia sempre aos que, zombeteiramente, o interrogavam
sobre o caso:
“Não quero mais conversa com ele!”
Era assim o valoroso franciscano. Não media o perigo. Não
acreditava que sua vida estivesse em jogo, porque na guerra não se sabe
quando chega nossa hora. Tudo é surpresa.
A prova do seu desprendimento está na seguinte missiva
que enviou as suas irmãs no Brasil:

“(...) Eu, por mim, estou no mundo das nuvens, pois pouco me
interessa ficar aqui ou ali. Mas onde eu possa trabalhar para salvar almas,
aí me é muito bom. Também pouco me importa viver uns anos mais, ou
menos. O que eu desejava para meus irmãos parece-me que, dificilmente,
poderei conseguir: que eles fossem católicos de verdade, pois que vejo no
mundo uma grande ilusão para quem vive só para ele, ao passo que consi-
dero ser o homem destinado a um fim superior, que se não alcança como
vivem os manos.
A amizade de vocês é um laço que deve durar sempre. O laço
da amizade sincera como a eternidade. Ademais, se o mundo todo oferece
vidas para melhorar a humanidade, por que não posso eu oferecer a mi-
nha? E, finalmente, posso ter vindo e voltar sem novidade, sendo isto o que
espero acontecer.”

E concluindo:

“Vocês podem achar-me um tipo doido, perfeitamente, eu o


sou. Mas deixem-me viver com as minhas doidices.”

Mal adivinhava o capelão da FEB que seus dias encontra-


vam-se contados nos dedos da Providência Divina!
Capítulo 13

Ainda Sua Majestade,


o Inverno!
Um batizado em pleno ‘front’

O inverno aumentava cada vez mais de intensidade. As


operações sofriam trégua. Impossível a realização de
qualquer ataque, já nosso, já do inimigo. Tremendo obstáculo, a neve
impedia os movimentos, fazendo recrudescer o “pé de trincheira” e pro-
vocando vítimas e mais vítimas, que eram recolhidas aos hospitais de
Livorno ou de Pistoia.
Verdadeira calamidade! Os galochões americanos já pouco
ou quase nada valiam e, sem eles, contudo, seria mil vezes pior. O melhor
processo, entretanto, para se aquecer os pés (o brasileiro, bem o sabe-
mos, tem a capacidade de inventar tudo), ainda era o capim retirado
das manjedouras italianas; seco, bem seco, superava todos os demais
recursos, quando os metíamos dentro dos galochões, indo das plantas
do pé ao joelho.
Daí a pouco os americanos punham-se a fazer o mesmo.
Os tedescos continuavam firmes em Monte Castelo, man-
tendo a todo custo as posições previamente conquistadas. Lá do alto
nos espreitavam, constantemente, com seus binóculos e outros instru-
mentos de longo alcance. Não raro nos atormentavam com os chamados
tiros de inquietação, mandando-nos suas granadas, seus tiros de mor-
teiros, os quais provocavam vítimas, aqui e ali, mesmo entre a sofredora
população da zona rural. Procuravam, outrossim, de toda forma, tolher
os nossos movimentos, limitados, aliás, às patrulhas de observação.
Ainda se mostrava uma potência a artilharia alemã, ao con-
trário da sua aviação já em declínio por falta de combustível, substituído
160 Frei Orlando: o capelão que não voltou

por gasolina sintética. Embora tenha resolvido, em parte, a situação, o


recurso adotado apresentava uma deficiência: ao se aproximar um avião
tedesco, este era logo identificado, mesmo ainda ao longe, porque apre-
sentava um ruído diferente, um rom... rom... de motor falhando. Aí, en-
tão, a artilharia inglesa não perdoava. Grande artilharia. Deu-nos valio-
so apoio moral, e, sem ela, muitos aqui não estariam para contar fatos
como esses.
As atividades no front, em face do rigoroso inverno, acha-
vam-se, pois, ainda limitadas aos serviços de patrulha, aos tiros de in-
quietação das artilharias amigas e inimigas, em um constante duelo, e
aos serviços de espionagem. De quando em quando, verificavam-se al-
gumas prisões, tanto de nossos homens quanto de súditos de Hitler.
Os alemães – afirmamos sem medo de errar – são excelen-
tes soldados, dotados de alto senso de disciplina. Quando aprisionados,
vinham com as mãos na nuca, submissos, passivos. Em nossas linhas,
porém, ao se defrontarem com os nossos chefes, rapidamente tomavam
posição de sentido e faziam continência regular, rigorosamente.
Muito “enquadrados” os soldados nazistas!
As tropas da famosa SS21 eram integradas de homens-má-
quinas, verdadeiros homens-máquinas é a expressão, porque não me-
diam consequências no cumprimento de uma ordem. E declaravam
mesmo, ao serem presos, que Hitler para eles representava tudo na vida.
Ao se verem presos, muitos se mostravam satisfeitos, por-
que sabiam que do nosso lado nada lhes faltava, a partir do cigarro que
já não possuíam. E era de ver a alegria com que abraçavam os compa-
nheiros que chegavam e os que já se encontravam em nossas linhas.
Alguns, por reflexo da disciplina rígida, ou por recearem
a divulgação de suas declarações, que poderiam chegar aos seus che-
fes, relutavam contar o que mais de perto interessava ao nosso Estado-
Maior. Para essas arguições dispunha o nosso Serviço Secreto de uma
arma também “secreta”, que, posta para funcionar, punha para fora tudo
o que precisava ficar esclarecido. Nessas ocasiões verificavam-se cenas
que descambavam para o pitoresco. E era assim:
O tedesco chegava, desconfiado, os olhos passeando pela
sala, pelos soldados brasileiros, todo medroso, mas sempre enquadrado,
21
“SS”: abreviatura da expressão alemã “SCHUTZSTAFFEL”. Correspondia a um tipo
de combatente alemão arrogante, nazista, fanatizado. Não era incomum haver ri-
xas, ou rivalidades, entre as tropas SS e outras do exército alemão convencional.
Ainda Sua Majestade, o Inverno! 161

sempre em rigorosa posição de sentido, só passando à posição de des-


cansar quando recebia ordens para isso. Acontece que, pelos motivos já
apresentados, nem sempre contava o que sabia. Ocultava, mistificava,
procurando confundir tudo.
Aí então é que passava a funcionar a “arma secreta”. Bastava
um pequeno gesto seguido de um “venha” e aparecia na sala aquele sol-
dado preto, horrivelmente preto, feio, cabelos raspados, olhos arregala-
dos, atitude agressiva, meio curvo, para frente e, para maior pavor, tra-
zendo na boca uma faca atravessada. Todos se punham sérios. Ninguém
ria, muito embora fosse essa a vontade de cada um.
Nessa altura dos acontecimentos, não tinha conversa! Adeus
disciplina nazista! Adeus Hitler, favas para heil Hitler! O tedesco contava
tudo que sabia e até mesmo o que não sabia!
Como temiam, os arianos de Hitler, os nossos pracinhas de
cor! Esse nosso caboclo, que se prestava para tal mister de investigação
de prisioneiros, reside em São João Del Rei, achando-se na situação de se-
gundo sargento reformado. Ostenta, entretanto, pomposamente o apelido
de “General”. Não se sabe como, nem por que lhe ficara esse apelido. Sa-
bemos apenas que, se o chamarmos pelo nome José Marcelino, não acode,
não se detém e vai andando. Porque é, para todo efeito, o “General”!
Com a estabilidade das operações, motivada pelo inverno
cada vez mais cruciante, possibilitava-se às nossas tropas, em posição
nas imeditações do Castelo, uma certa liberdade de movimentos e de
ação. A cortina de fumaça feita dia e noite pelos americanos, sem a qual
estaríamos liquidados, ajudava-nos a viver e a continuar vivos. Sem ela o
bombardeio era certo, porque constituíamos alvo e presa fáceis.
Assim, a nosso ver, em parte, era uma constante preocupa-
ção com o inimigo atocaiado; por outro lado apresentava-se com as co-
res serenas de uma inatividade às vezes enervante.
Lá na frente, cruzando a “terra de ninguém” e avançando
para o Castelo, os nazistas em suas casamatas22 deveriam estar em situ-
ação idêntica: inativos!
Sua Majestade, o Inverno, não permitia nenhuma ação ne-
nhuma investida, de lado a lado!
22
“Casamata: fortificação construída em concreto e aço, de modo a poder suportar
bombardeios, em geral dispondo de seteiras para o combatente, protegido, poder
atirar contra seu inimigo.
162 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Conforme foi descrito, ao chegarmos no dia 3 de dezembro,


alta madrugada, nas imediações da localidade denominada Sila, ocupa-
mos a casa de uns campônios. A família vivia ao nosso lado. Não pôde
retirar-se, padecendo os horrores daquele pandemônio em franca situ-
ação de vida ou de morte.
Pobre, mais pobre ainda encontrava-se aquela família nos
dias conturbados da guerra. Para sua alimentação, quando ali chegamos,
havia apenas uma reserva de batatas e uma criação de coelhos. Os ale-
mães, ao passarem pela região, levaram-lhes tudo que puderam, saque-
aram a família desumanamente!
A casa toda de pedra – comum nas construções na zona ru-
ral italiana – apresentava, entretanto, acentuados vestígios de bombar-
deio. Seus habitantes só conheciam uma coisa: medo!
Nesse lar, onde o sofrimento batera à porta, impiedoso e
rude, um quadro pungente e imprevisto se nos descortinara: uma mu-
lher em estado de gestação, duas velhas, dois homens e uma ninhada de
crianças ali se encontravam curtindo toda sorte de privações.
Havia fome, havia lágrimas. E luto também.
Por mais que tentemos uma descrição perfeita do conflito
de que fomos integrantes ativos, por mais que procuremos, no cofre da
memória, pintar em cores vivas e em pinceladas seguras o que presen-
ciamos no cenário da chamada Segunda Guerra Mundial, não o podemos
fazer, porque nos falecem, não os motivos, mas, a capacidade descritiva.
É que são os matizes de tudo que os nossos olhos contemplaram entre
arrebatados e perplexos! Traumatizados, ficamos à míngua de recursos
da capacidade criadora para a descrição exata, sem discrepância, do
vivo e do real.
Uma coisa, todavia, ficou para sempre em nossa imagina-
ção: a de que já é tempo de os homens resolverem, com a inteligência e
o coração, as suas contendas, os seus litígios.
Certo dia, o capitão Rodarte recebeu uma espinhosa missão
a ser cumprida: evacuar os moradores da casa, a fim de que melhor pu-
desse alojar a sua Companhia. Transmitiu a ordem recebida aos homens
da família. Seriam todos conduzidos a determinado lugar em caminhões,
onde ficariam em morada coletiva, o que era comum no front. O frio cor-
tava, e a neve caía sem cessar. A retirada seria à noite. Eram ordens do
comandante do Regimento.
Ainda Sua Majestade, o Inverno! 163

O capitão passou o dia apreensivo em face da missão que


teria de cumprir.
Veio a noite, sucedendo às horas de angústia do oficial. As
criancinhas acordadas ainda, tiritando de frio, punham-se rentes a uma
pequena lareira, junto das duas mulheres.
Como se adivinhando a sua odisseia, choravam aflitas, ner-
vosas, confrangendo os nossos corações.
Como deixar sair, porém, aquelas infelizes criaturas, expos-
tas à intempérie, à neve que caía, como se em uma demonstração da
própria presença de Deus, mas contra a qual a criatura humana torna-se
impotente? Como abandonar ao frio, ao desconforto de uma jornada in-
certa, aquelas velhas já exaustas de tanto sofrer? Como abandonar uma
desventurada mulher prestes a dar ao mundo mais um descendente?
Pensava o oficial. Trava-se, assim, no íntimo do capitão brasileiro, uma
luta de consciência, colocando-o entre o dever militar e o seu coração
bem formado. Enquanto isso, a família implorava, pedia, suplicava, ape-
lando para seu sentimento cristão, que não a deixasse sair – o frio era
demasiado e a noite, muito escura e incerta.
Fazia dó aquela cena! Imploravam. Rogavam.
Entre o imperativo das convenções dos homens, as ordens
severas dos campos de batalha e o sentimento humanitário, latente nas
criaturas de Deus, vencera o último.
Ficassem mais aquela noite. Sairiam, todavia, na manhã
seguinte.
Depois de uma noite agitada, mal dormida, escutando o ron-
co dos canhões, acordamos para as atividades do dia. Só então divisou o
oficial as personagens da cena que se lhe apresentara de véspera: can-
dura de cinco criancinhas lindas, de olhos muito azuis a enfeitar a misé-
ria de um lar em franco sofrimento.
Criancinhas que não sorriam – não podiam sorrir! A guerra
não deixava!
Passou o primeiro dia – veio o segundo – e o comandante
da Companhia Comando parecia alheio à determinação recebida. É que
lhe assaltou ao espírito, afirmou depois, uma série de ponderações em
benefício daquela gente. Lembrou de sua cidade natal, São João Del Rei,
onde as criancinhas como aquelas sorriam, cantavam, brincavam e eram
felizes. Conquanto ainda solteiro, possuía, no Brasil, três sobrinhas que
164 Frei Orlando: o capelão que não voltou

eram muito da sua vida. E elas, como aqueles cinco anjinhos, tinham
olhos azuis, cabelos louros, graça e encanto da meninice. Com uma di-
ferença: viviam felizes, alegres, em um país cheio de paz e de bonança e
sem conhecer as privações de uma guerra.
E os dias se sucediam, monótonos e tristes!
Em uma noite muito escura, negra como os corações dos
responsáveis pela hecatombe mundial, noite em que o urro das peças
de artilharia amiga e inimiga não nos dava sossego, o capitão e Frei Or-
lando, alojados no mesmo quarto, ouviram um choro de recém-nascido.
Aplicaram os ouvidos e perceberam que na mísera enxerga de um cômo-
do em ruínas, ao som macabro dos obuses, nascia um “bambino!” Vinha
ao mundo em pleno fragor da guerra em pleno front!
Quando todos que se encontravam alojados na casa toma-
ram conhecimento do acontecido, sentiram alegria com a vinda do “re-
cruta”. E diziam, como que vaticinando:
– Vai ser soldado, vai ser soldado!
E todos lhe previam um futuro de guerreiro, ele que nasceu
debaixo de balas. Frei Orlando era o que mais ria, ria muito, acariciando
o garoto chorão, enquanto o capitão, em um gesto muito seu, esfregava
as mãos, todo contente.
“Está aumentando o efetivo da Companhia”, diziam os sol-
dados, cabos e sargentos, que iam contemplar a carinha vermelha do
mais novo “bambino” da região.
Cuidou-se, certo dia, do batismo. Os nomes italianos foram
lembrados por Frei Orlando: Bruno, Miguel, Angelo, Virgílio – “Menos
Mussolini!”, gritavam todos a um só tempo!
Nenhum servia.
Os palpites surgiam aqui e ali na boca dos presentes, evo-
cando os vultos da história brasileira.
Nada.
“Hitler”, grita um cabo, blasonando, enquanto sentencia
outra coisa muito brasileira: “Leônidas! O nosso Leônidas! Bota nele o
nome de Leônidas! Vai ser jogador de futebol! Nada de briga com ele,
nada de guerra!”
Estava em jogo o nome do menino italiano.
“Eureca!”, brada Frei Orlando: “O menino vai chamar-se Or-
lando Rafael! Terá o meu nome e do nosso capitão aqui”, e bateu no om-
bro do comandante da Companhia.
Ainda Sua Majestade, o Inverno! 165

Ouviram-se aplausos, risos, o tropo-buono dos pais que –


coisa esquisita –, presentes à cena, eram os únicos que não se manifes-
tavam! Coisas de guerra!
O capelão, modos bruscos, como se tivesse pressa, porque
os alemães estivessem perto, foi logo gritando:
“Vamos ao batismo. Tragam sal e água!”
Todos corriam. Alegria, azáfama! O menino, enrolado em
paninhos, chorava. Cenas dessa natureza não são para nós brasileiros,
mas para os americanos, gente fria, impassível diante dos horrores da
guerra. Sem dúvida porque calejados naquele ambiente, eles que vi-
nham enfrentando a situação havia já quase cinco anos.
O autor destas reminiscências já possuía quatro filhos, que
ficaram na Pátria, e contemplar aquele quadro da vida de um lar italiano
foi-lhe confrangedor.
Choramos; nem podia ser para menos.
Os companheiros, todavia, em seu euforismo, em sua expan-
são diante do garoto, desanuviaram-nos o coração e também nos pusemos
a rir, a gracejar, como se tudo aquilo fosse normal na vida das criaturas.
Ministrou-se o sacramento da Igreja. Serviram de templo as
paredes da casa em ruínas.
Era no front da Itália, nos Apeninos, marchando para o Rio Pó.
O sacerdote e o padrinho, respectivamente, Frei Orlando e
capitão Rodarte. A madrinha foi Nossa Senhora.
Em Monte Castelo as bombas ainda estouravam!
Seria o último batizado de Frei Orlando!
Duas décadas já se passaram. Tudo passou, teve o seu fim
alegre e festivo para uns, sinistro e funesto para outros.
O balanço do pós-guerra é sempre amargo. Tem o sabor
apocalíptico das catástrofes.
Nos Apeninos, naquela situação sombria, despontava para a
vida mais uma criança para sofrer.
Que será feito de Orlando Rafael?
Viverá? Ele que recebera, de todos nós, os mais inspirados e
felizes augúrios?
Ao evocarmos esta cena do último batizado de Frei Orlando,
nos vem à mente um acontecimento da intimidade do nosso lar e que
se verificou pouco tempo antes de seguirmos para a guerra. Estávamos
166 Frei Orlando: o capelão que não voltou

em 1943. Nosso filho Humberto já ia para três anos de idade, sem que
estivesse batizado. Frei Orlando andava fazendo Missões para a região
da Capela do Bonfim, em São João Del Rei. Casava os que não estavam ca-
sados, batizava os que ainda se encontravam por batizar e ia proceden-
do a uma série de reabilitações dos católicos para com sua Igreja. Era
como se chamasse à ordem os displicentes, ou mesmo aqueles a ela não
filiados, nos quais nos incluíamos. Nosso menino não se achava, pois,
batizado e a esposa, católica praticante, nos vinha advertindo para que
apressássemos o sacramento!
“A guerra está à porta e tudo pode acontecer”, dizia ela como
antevendo o que viria depois.
Não por desdouro às coisas da Igreja, porque, mesmo diver-
gindo dos seus preceitos, sempre a respeitamos, mas por entender que
a força da prece é tudo, e esta já havíamos feito, rogando a Deus que
abençoasse o nosso filhinho; já o considerávamos cristão.
Daí o não se achar satisfeito o pedido da esposa, católica
fervorosa. Frei Orlando não ignorava essa particularidade, pois que já
lho haviam dito. Certa feita, quando das referidas Missões realizadas na
Capela do Bonfim, que ficava próxima à nossa casa, a esposa mandara o
garoto para que o batizasse. Com ele foi nossa irmã Luzia e o padrinho.
Seu Humberto já foi andando, chutando pedras pelo cami-
nho, falando muito e perguntando mais ainda as coisas que ele não en-
tendia.
Na capela, ao lhe ser jogada a água benta na cabeça, deu um
passo para trás, sapecou um tapa na mão do frade e, bem alto, fechando
a cara, irritado, soltou esta: “Tire a mão daí e não desmanche o meu ca-
belo que a mamãe penteou!” O frade quase estourou de rir! A cena ficou
para sempre na intimidade do nosso lar.
Na Itália, certo dia, Frei Orlando, em uma das nossas tertú-
lias e reminiscências da Pátria inesquecível, recordou o fato. E isso mais
e mais aumentava as nossas saudades.
Capítulo 14

Visita a Pio XII


Ataque infrutífero

C ontinuávamos ainda nas baixadas de Monte Castelo,


ora nos rotineiros serviços de patrulha, ora volta-
dos para o lado sentimental, escrevendo cartas para o Brasil, enquanto
aguardávamos, ansiosos, as que nos deveriam ser remetidas.
Enquanto isso, em nossas preces, rogávamos que Deus des-
se fim à guerra, para que pudéssemos retornar à Pátria.
Frei Orlando, em uma dessas tréguas, escreveu as suas ir-
mãs a seguinte missiva, conservada carinhosamente pela família:

“Aqui na Itália dão-se fatos engraçados. Outro


dia, 1º do ano23, os soldados de um Pelotão adquiriram um
carneiro por 700 cruzeiros (em lira, bem entendido) e um
galo muito magro por 100 cruzeiros. Isso não é nada, é só
para mostrar como a coisa aqui é feia!
Mas vejam bem como os nossos soldados respei-
tam a coisa alheia: compraram, quando, em se tratando de
guerra, podiam perfeitamente praticar ato de violência.
Aqui há umas coisas gozadas. Há dias, em
uma casa onde estivemos, havia uma panela de cobre, muito
grande. De manhã, enchiam a panela com água para fazer
a sopa. Depois, na mesma panela, preparavam a lavagem
para o porco, esquentando-a. Aliás, era o único suíno que
os alemães deixaram na casa. Nessa mesma panela, depois,
punham água e ainda davam banho em um garoto...
23
Referia-se Frei Orlando ao ano de 1945.
168 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Era, como se vê, uma panela mágica!


Vocês poderão dizer que é mentira minha...
mas paciência, eu vi tudo e confirmo: a panela era mesmo
mágica!”

Depois de vários dias de front e enquanto nos preparáva-


mos naquela situação estacionária, o comando do 5º Exército America-
no, ao qual pertencíamos, concedeu-nos parceladamente, e, por turmas,
quatro dias de repouso, que poderiam ser gozados em Roma ou Floren-
ça. Essas grandes cidades italianas já se encontravam completamente
libertadas do flagelo da guerra, sendo que a primeira – Roma – nada
sofrera, por ter sido considerada “Cidade Aberta”!
Florença, entretanto, foi parcialmente atingida e apresentava,
ainda, fortes vestígios de destruição; quadro horrível ver-se uma cidade
como aquela, onde imperava a arte em seu esplendor e em seus arroubos
arquitetônicos, em grande parte arrasada pelos engenhos de guerra.
Frei Orlando recebeu a devida permissão para ir a uma dessas
cidades e obviamente escolheu a Cidade Eterna, Roma, com sua história,
suas artes e tradições religiosas. Berço da civilização e sede do papado.
Em sua companhia seguiu, também, o seu comandante de
Companhia, ficando ambos no hotel dos americanos, o Excelsior, majes-
toso com sua escadaria de mármore, quadros raros de pintores célebres
pelas paredes. Havia, em tudo, o toque de conforto, de luxo. As refeições
eram servidas ao som de excelente música americana; não faltava, bem
assim, a colaboração de artistas de rádio do país aliado, contratados es-
pecialmente para distrair as tropas quando em repouso.
Os nossos amigos ianques possuem evidentemente a arte
de preparar, psicologicamente, os seus soldados.
É extraordinário o soldado americano! Nos momentos des-
tinados ao trabalho, não brincam, não esperam ordens, sabem o que têm
que fazer e agem logo. Quando, porém, encontram-se em folga, não exis-
te quem os supere em expansividade e, dentro das devidas proporções,
dos limites disciplinares, afrouxam a própria disciplina, confundindo-se
oficiais e praças, no mesmo terreno dos folguedos, tomando juntos a sua
cerveja, rindo e brincando, tudo, porém, sob o mais rigoroso respeito
hierárquico, sem excessos ou abusos. Não há, absolutamente, nenhuma
quebra de regulamentos, porque impera, entre superiores e subordina-
Visita a Pio XII 169

dos, o elevado grau de disciplina e formação militares, na base de uma


compreensão mútua de direitos e deveres, apanágio de uma democracia
perfeita e bem compreendida.
O nosso capelão achava-se, pois, em Roma, cumprindo as-
sim um de seus grandes sonhos: conhecer a quem dedicava filial obedi-
ência e extremado respeito, conforme exteriorizavam seus atos.
A carta remetida ao Brasil, dando conta dessa visita ao chefe
da Igreja Católica, contém o seguinte:

“(...) Pio XII falou-nos em português, em um


português perfeito, elegante. Eu pretendia fazer-lhe algumas
perguntas, mas senti-me tão diminuído e minúsculo perante
a grandeza e bondade do Santo Padre, que mal consegui ga-
guejar algumas palavras e foi só o que pude fazer.”

Em Roma, por concessão especial do Papa, Frei Orlando ce-


lebrou missa na Catedral de São Pedro. O capitão Rodarte acolitou-o.

Fotografia tirada pelo major Waldir Francia, em 15 de


fevereiro de 1945. Frei Orlando aparece, recebendo a re-
feição
170 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Em uma de suas cartas, que nos foi remetida pelo referido


capitão, expressa ele, claramente, ter sido nesse dia, junto à Basílica de
São Pedro, à porta do majestoso templo, que Frei Orlando revelou que ti-
nha certeza de que morreria na guerra. Que não mais voltaria ao Brasil!
Fatal pressentimento!
Escreve-nos o comandante da Companhia: “Frei Orlando
deixara a Basílica e me dissera:

‘Meu caro Rodarte, penso que não voltarei ao


Brasil, e se tal acontecer, quero pedir-lhe para que seja en-
terrado com o hábito franciscano e com o capuz na cabeça.
Desejo, ainda, que meu altar portátil, a coleção de vida dos
Papas, o meu cachimbo e a minha gaita sejam entregues aos
franciscanos de São João Del Rei.’”

Teria, evidentemente, o nosso capelão recebido ao pé do


maior templo católico do mundo o aviso fatal?
É possível que sim.
“Ao regressar do front – declara o general Rodarte – Frei Or-
lando achava-se tristonho e dissera que não valia a pena fazer aquele
passeio, porque a volta era penosa. Quando nos aproximávamos da linha
de frente, ouvindo os tiros de inquietação, ficara todo nervoso, dizendo
que estávamos no céu, mas que agora iríamos para o inferno.”
Prosseguia cada vez mais forte o inverno, inimigo potente e
perigoso, porque nos atormentava dia e noite, sempre nos perseguindo.
E com que sacrifício enfrentávamos aquela situação, nós que, egressos
de um clima tropical, jamais contempláramos cena idêntica.
Belo “passeio” estávamos fazendo na Itália. Passeio que, em
sã consciência, não desejávamos para os nossos detratores, a 5a Coluna
do Brasil.
Conforme foi dito, os alemães, a 29 de novembro de 1944,
já haviam recebido a nossa “visita”, o primeiro ataque desencadeado a
Monte Castelo. Inutilmente, porque o inverno frustrara-o.
O calendário do tempo assinalava meados de dezembro, um
dezembro melancólico, embora magnífico. O Natal daquele ano, sem fes-
tas para nós, mostrou-se, todavia, autêntico aos nossos olhares. É que a
neve já estava presente, viva, pura, real, adornando o cenário daquelas
montanhas a nos lembrar a cena da Manjedoura de Belém, quando Cris-
to viera ao mundo.
Visita a Pio XII 171

O comando da Divisão Expedicionária, cumprindo ordens


do 5º Exército, planejava, conquanto nos parecesse absurdo, conforme
de fato ficou comprovado, um novo ataque ao fatídico Monte Castelo.
Seria, pois, o segundo assalto à Fortaleza Nazista, a segunda
investida dos brasileiros, tendo à frente a galharda e brava mocidade ca-
rioca, porque cabia ao 1º RI, do Rio de Janeiro, a missão a desempenhar.
Ia alta a madrugada, e é justamente, aos primeiros albores da manhã,
que se tramam os ataques de grande envergadura. O frio, cada vez mais
forte, prenunciava que a neve aumentaria de intensidade. No céu, nem
um sinal, nem uma estrela! Apenas o farol das baterias antiaéreas, que
os ingleses mantinham à nossa retaguarda, clareava o manto negro da
noite. A artilharia Cordeiro de Farias, sempre decisiva e atuante, já havia
martelado horas e horas seguidas, em um preparativo intenso e forte.
Estava armado o ataque! Já a barragem estava feita e os re-
lógios rigorosamente acertados. Nada mais por fazer e nem um minuto
a mais ou a menos!
O avanço seria iminente, desencadear-se-ia a um só tempo
apoiado pelas peças de artilharia e pelos tanks guarnecidos pelos ame-
ricanos.
Ia lançar-se ao ataque o 1º Regimento. Coube a essa valoro-
sa Unidade a conquista do perigoso Castelo, chave para o nosso desloca-
mento mais para o Norte.
Tudo ajustado, preparado!
Nosso I Batalhão, comandado pelo destemido major Jacy
Guimarães, tinha por missão manter a base de partida. Cooperando na
investida, deveria cobrir o flanco direito do 1º Regimento, composto da
valente tropa carioca. Cabia, ainda, ao I Batalhão Jacy, além das missões
acima, atacar Abetaia e Vale, ninhos perigosos dos tedescos.
O II Batalhão – Batalhão Major Ramagem – tinha a missão
de manter a base de partida e, com a 5ª Companhia, comandada pelo ca-
pitão Henrique César Cardoso, ocupar Gagio Montagno e cobrir o flanco
esquerdo do 11º Regimento. O III Batalhão – Batalhão Major Cândido
Alves – ficaria na situação de reserva do ataque.
A nossa Companhia de Obuses do 11º RI, sob o comando do
capitão Leandro José de Figueiredo Júnior, daria apoio à artilharia.
O capitão Murilo Valporto de Sá transformaria a Companhia
de canhão anticarro, por ele comandada, em Companhia de fuzileiros.
Ficaria, assim, à disposição do II Batalhão.
172 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Esta, em linhas gerais, era a situação do 11º Regimento de


Infantaria, para o assalto do dia 12 de dezembro de 1944, a ser desfe-
chado sobre o Monte Castelo.
À hora predeterminada, os nossos soldados avançaram pelo
terreno, sob fogos cerrados e partidos de todas as direções.
O bombardeio fazia-se intenso. A fuzilaria era ensurdecedo-
ra! Nesse ínterim, foi designado para assumir o comando de setor, em
substituição ao Coronel Delmiro, comandante do 11º RI, o próprio co-
mandante da Infantaria Divisionária, general Euclides Zenóbio da Costa.
Sob o apoio de nossos morteiros, os valentes pracinhas bra-
sileiros avançam. Ressoam tiros de todas as armas pelas cercanias, indi-
cando a arrancada fulminante!

Nosso capelão era sempre assim: não tinha descanso e


percorria toda a linha de frente, querendo ver tudo de
perto

Ordens, gritos, comandos em ação... feridos, mortos, uma


tentativa desesperada de se conseguir o ambicionado objetivo!
Visita a Pio XII 173

A neve, enquanto isto, indiferente à loucura humana, cai


sem cessar, alva e bela, contrastando com o choque que se feria naquelas
paragens dos Apeninos itálicos, onde os brasileiros e alemães digladia-
vam-se, escrevendo uma das páginas rubras da história dos povos.
Muito sangue correu naquele ataque comandado de perto
pelo próprio comandante da Infantaria Brasileira – general Euclides Ze-
nóbio da Costa, inegavelmente um destemido cabo de guerra, que foi tão
mal compreendido no julgamento dos coevos em face de determinadas
decisões por ele tomadas.
A investida redundou, porém, em um lamentável fracasso,
porque o dia ainda não havia surgido.
Urgia uma pausa que nos resguardasse da sanha inimiga,
por isso os tedescos, bem alojados, camuflados em posição dominante,
só poderiam levar vantagem. E estavam vigilantes, prontos para revidar
qualquer tentativa do nosso lado. Viriam, contudo, novos assaltos. E os
alemães seriam desalojados de suas casamatas e do célebre Castelo, por
eles defendido com unhas e dentes.
Frei Orlando prestou, heroicamente, toda a assistência de
sua religião aos nossos companheiros, vítimas do cumprimento do de-
ver. Não se punha à retaguarda, nem se conformava em ser mero espec-
tador de um duelo.
“Não posso”, dizia ele completamente transtornado, “não
posso permanecer distante dos que caem varados pelas balas, gritando
pelo nome de seus pais queridos!”
Ia assim procedendo, cumprindo rigorosamente os seus de-
veres para com Deus e para com a Pátria, o que para nós não constituía
segredo nem surpresa, dando o nosso amigo exuberante demonstração
de seu profundo sentimento cristão e cívico.
E dava, outrossim, punge-nos dizer, os primeiros passos
para o encontro fatal com a morte!
Capítulo 15

Ainda “Paz e Guerra”


Continua reinando Sua Majestade, o Inverno!
Frei Orlando é promovido a capitão
Convite para uma farra

A pós o frustrado segundo assalto a Monte Castelo,


as tropas brasileiras, mais uma vez, aferraram-
se ao terreno. Ficávamos, assim, na situação de absoluta defensiva.
Tudo inalterável! Paralisação completa de nossas atividades, porque
imperava, em sua plenitude, o inverno! O inverno impiedoso e rude a
castigar nossa gente, os nossos soldados expostos à sua terrível ação
dentro dos fox-holes.
O inverno, que punha em sobressalto os próprios filhos da
Itália conflagrada, porque, diziam eles, nunca viram estação hibernosa
tão cruciante! E nós lá estávamos suportando tudo aquilo, de par, tam-
bém, com o sofrimento moral.
Estávamos a 25 graus abaixo de zero! Tudo era sangue e
neve, gemidos, dores e lágrimas, confusão.
Tinha-se a impressão de que fugia o nosso raciocínio, a nos-
sa capacidade de pensar e de agir, como se em um relaxamento ou em
um abandono da própria vontade, ali aniquilada, vencida!
E como tudo aquilo se nos afigurava desprezível! Em meio
a essa agonia, um monstro de quando em quando surgia, levando-nos
para fora do fox-hole: o pé de trincheira!
Não se podia imaginar quando surgiria a gangrena provoca-
da pela friagem, como também, na Guerra do Paraguai, não se previa a
aproximação da cólera, que vitimava nossos patrícios.
176 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Gemendo, contorcendo-se em dores, gritando, os nossos


companheiros eram transportados nos ombros para os hospitais da re-
taguarda. Nem todos voltavam. Seus nomes, hoje, acham-se imortaliza-
dos nas lajes frias e mudas do Panteão da Glória, naquele monumento de
pungentes recordações para os que sobreviveram.
E tudo inútil!
Tudo em vão.
Maldade dos corações empedernidos, esquecidos de Deus,
nos dias trágicos de uma loucura coletiva, sob a responsabilidade dos
ditadores da época.
O poeta, sentindo tudo isso, canta em versos, em um desa-
bafo do coração:

“Cala-se a furiosa humanidade


E todo o seu insano e mau clamor
E toda a sua insana e injusta dor.
Que isto lhe vem da rabina maldade!

E saiba a gente humana: Deus é Pai


Que para nós é só bondade e amor.
Que faz em alegria um amargor
Que abranda meigamente qualquer ai.

Confia no Deus Onipotente,


Que faz da via crucis paraíso,
Ó pobre homem sem fé, irreverente!

Ele é manancial do teu sorriso


Que te faz ser feliz e andar contente,
Que faz do teu caminho plano liso...”

Confirmando a prova da nulidade de tudo isso, da guerra que


ia talando tudo, sem sentido e sem fim, nós encontramos, certo dia, no
cemitério de Pistoia, onde o pálio da morte a todos nivela, mortos brasilei-
ros, companheiros nossos, disputando o mesmo pedaço de terra com os
soldados alemães. Lá se encontravam, também, sepultados entre as cru-
zes brancas dos pracinhas do Brasil, os pobres filhos da Alemanha, que,
feitos prisioneiros e feridos, morreram em nossos próprios hospitais.
Ainda “Paz e Guerra” 177

E nos púnhamos a pensar, a indagar por que o Criador per-


mitia aquela calamidade, Ele que, com um simples ato de Sua Vontade,
poderia aniquilar, de uma vez, a prepotência dos ditadores!
Por que outorgava o derramamento de sangue, ódio e mal-
dade? Por que aquele sofrimento todo no solo de um povo onde se plas-
maram, na sua exuberância, os liames da fé? A Moisés não lhe dera a
força e o poder de libertar do jugo egípcio o povo israelita? Não confun-
dira as línguas dos homens, porque, ambiciosos, queriam mostrar-se su-
periores a Ele? Não secara as águas dos mares para que, em um milagre,
pudessem as legiões palmilhar o chão firme?
Eis o pensamento que nos assaltava, considerando-nos no
cumprimento do dever para com os homens, mas chafurdados no loda-
çal do pecado e do crime contra a Divindade.
Deus, entretanto, sabe perfeitamente o que faz, quando nos
manda risos e lágrimas. Seus desígnios são insondáveis, imperscrutá-
veis e ninguém sofre sem motivo, porque não há efeito sem causa.
Voltemos, agora, à nossa situação. Os dias corriam lentos,
terrivelmente lentos. O inimigo continuava nas eminências do Castelo.
E tudo era rotina: artilharia, patrulhas, os aviões do tedesco
com seu “rom... rom.”
Frei Orlando continuava nas suas andanças pelos morros,
atingindo as posições, querendo ver o que se passava. E quantas vezes
arriscara a vida nessas imprudências? Com referência a esse viver, assim
escreveu a sua mãe, a seus familiares:

“Com muito custo consegui arranjar um caixote


para servir-me de escrivaninha, porque o médico-chefe que-
ria que eu escrevesse no caixote, que serve de mesa a outro
médico que, também, precisando escrever, pôs-se aqui (o
tempo fechou) e agora se discute de quem é a culpa! O médi-
co-chefe é um grande homem, embora um homem pequeno!
O médico-auxiliar um bom amigo, cuja família, pelo menos
de nome, vocês devem conhecer, pois é filho do chefe da
Empresa, que está construindo o Edifício da Sul América,
em Juiz de Fora.
Desde que vim para a linha de frente, estou sempre
no Posto de Saúde Avançado, a fim de atender aos feridos que
178 Frei Orlando: o capelão que não voltou

chegam do campo de luta. De fato vivo “zanzando” por toda


parte, hoje aqui, amanhã ali, dormindo ora neste, ora naque-
le lugar, sempre em primeira linha. Até hoje, graças a Deus,
nada sofri. Ao contrário, estou bem disposto, alegre e sempre
animando a turma. Vocês não podem imaginar que vida goza-
da é esta daqui: Missa a qualquer hora e em qualquer lugar,
desde que decente. Jejum não há, tudo tão diferente!
Após mais de quarenta dias de linha de fren-
te, meu Batalhão está de reserva. Um frio horroroso, neve
de mais de um metro de altura em determinados lugares.
As cascatas das serras todas geladas, cobertas de neve, de
forma que ficou uma beleza. Entretanto, temos bons aga-
salhos. Ainda ontem, recebemos as novas capas,24 um saco
acolchoado de penas de pato, com fecho ecler, de sorte que
a gente, com isso, fica parecendo uma múmia. Por dentro é
todo forrado de seda. Após a primeira noite de uso, o doutor
me perguntou: Como é Frei Orlando, gostou da cama? –
Como não? Esquenta tanto que molhei o dedo na boca, bati
no peito... chiou como ferro de engomar. Acabo de ler para
a turma esta última passagem, mas disse por brincadeira,
pois o exagero era do médico-chefe! Riram-se a valer... Só
vendo como temos passado uns dias alegres aqui. Agora,
com a minha promoção a capitão (com as estrelas nos om-
bros), sou eu a patente mais alta do Posto de Saúde. Mas não
se cansaram, ainda, de me chatear. Estamos, eu, Doutor
Bicudo, médico-chefe, Dr. Pantaleoni e o Dr. Americano
Francia (dentista), todos juntos, quase sempre.
É um barulho tremendo aqui dentro. Deita-se
rindo e levanta-se rindo. Eu não sei onde ficar, pois todo
mundo reclama a minha presença. Hoje, primeira sexta-fei-
ra do mês, farei uma adoração ao Santíssimo, na Igrejinha
do lugar, coitada, toda arrebentada pelos bombardeios. Há
quanto tempo já não há, ali, adoração.
Estive novamente em Roma, com permissão do
Comandante, por três dias. Visitei muita coisa admirável.
Tornei a visitar o Papa e, agora, tenho para todos um terço
23
Referia-se à cama de montanha.
Ainda “Paz e Guerra” 179

bento pelo Santo Padre! Também uma bênção papal. Vi a pri-


são de São Pedro e as cadeiras dele, as catacumbas de São
Sebastião, a Igreja de Santa Inês e fui de novo ao Vaticano.
Desta vez vi tudo, gastando para isso duas manhãs. É uma
verdadeira maravilha. Tenho agora muita coisa para contar,
quando voltarmos. Parece-me que, tendo em vista os acon-
tecimentos, está bem próximo o dia de paz. Assim, breve-
mente, estarei aí... e a senhora, mamãe, vá tratando de se
fortalecer porque, de volta, vamos fazer uns passeiozinhos!
Faça ideia o capitão, Frei Orlando, com a senhora na Boa
Viagem! Bem, para todos, o meu abraço.

Mando o meu retrato para verem que o físico


não mudou muito. Já disse. Isso parece um tanto filosófico,
porém é da Guerra.

Com o meu abraço, pedindo a bênção,

Frei Orlando.”

A carta acima achava-se datada de dois de fevereiro de 1945.


Por uma dessas inexplicáveis fatalidades, chegara ao Brasil,
às mãos de D. Emirena, no dia 21 do mesmo mês. Nesse dia, na Itália,
Frei Orlando estava sendo sepultado em Pistoia, acompanhado de nos-
sas lágrimas e preces.
Por essa missiva verifica-se que o capelão, em que pese o
pressentimento que vinha tendo de que não mais voltaria ao Brasil, pro-
curava, todavia, levantar o ânimo de sua velha mãe.
Consoante veremos mais adiante, em valioso documento
deixado pelo nosso amigo, passava-lhe pelo espírito a intuição de que
morreria na guerra. E disso não fazia segredo, revelando a uns e outros
o que lhe ia na alma.
Mas agora, todavia, era capitão, havia sido promovido, con-
forme cientificara em carta para o Brasil. E garboso, blasonando, com
uma ponta de vaidade, dizia aos oficiais amigos: “Vejam, reparem como
estou mesmo com um jeitão de oficial com estas três estrelas!” E estron-
dava uma gargalhada!
180 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Conquanto deixasse escrito que “passei pela vida rindo, em-


bora tivesse muitos motivos para chorar”, Frei Orlando, inegavelmente,
trazia consigo, por divisa, o bom humor.
Confirmando a sua existência de virtudes, a sua lealdade à
religião abraçada, queremos deixar consignada nestas páginas, para ad-
miração dos hodiernos e dos pósteros, uma passagem verificada com o
representante da Igreja Católica, que muito o recomenda e exalta.
Ainda nos encontrávamos nas imediações de Pisa, antes de
entrarmos em linha. Certo dia, uma turma de oficiais amigos, por brin-
cadeira ou mesmo para “valer”, entendera de convidar o capelão para
tomar parte em uma “brincadeira”, o que valia dizer, em uma “farra”.
O destino seria a cidade de Pisa. Frei Orlando, para surpresa
de todos, anuiu ao convite e, tirando baforadas do seu cachimbo, visivel-
mente satisfeito:
– Os senhores são dignos e muito me honram com o convite.
“Vamos, então, trocar os nossos uniformes”, disseram os ofi-
ciais a uma só voz, ávidos de verem o frade metido naquela aventura,
muito natural para eles e nada certo para o religioso.
E, ao se retirarem, iam comentando a passividade do frade,
a sua pronta anuência, antegozando com o que viria da planejada excur-
são a Pisa.
Momentos após, ostentando o vistoso uniforme de gabardi-
ne, os amigos passaram a aguardar a chegada do convidado.
Estavam regozijantes, satisfeitos.
Mas, ó decepção!
Altivo, cabeça erguida, surge à porta da barraca da Cape-
lania o convidado. Vinha, entretanto, de hábito, com o qual dizia que,
se morresse na linha de frente, queria que o sepultassem assim! Surgia
com o hábito austero dos franciscanos!
E todos, a um só tempo, como se em desapontamento e em
protesto:
– Ah! Assim não! Tem que ser de farda!
Foi quando o ministro da Igreja vergastou, severo e grave,
em meio a discreto sorriso:
– Saibam os senhores, meus patrícios, que onde não pode
entrar este hábito, também não pode e não deve entrar a farda do nos-
so Exército!
Ainda “Paz e Guerra” 181

E firme, na mesma altivez, deu as costas.


O franciscano, a serviço do Brasil, dera a prova inequívoca
de sua obediência e respeito às prescrições do seu sacerdócio, demons-
trações eloquentes de uma existência ilibada.
Mas não conhecia, não conhecera nunca, o misticismo exa-
gerado, a fé inoperante, sem obras ou apenas contemplativa. Disso vinha
dando provas soberbas e irrefutáveis junto às tropas brasileiras. Alegre,
sempre rindo, era, todavia, sóbrio, equilibrado!
Detentor de onímoda bravura, disciplinada e consciente,
contando apenas 32 anos de idade, constituía-se em valoroso exemplo
para os que o cercavam e dele privavam como amigos.
Conhecia perfeitamente o perigo. Não agia inconsciente-
mente. Reconhecia estar exposto a tudo, mas não recuava. Não se inti-
midava, procurando por todos os meios levantar o moral dos soldados,
verdadeiro Missionário de Deus.
Nos infrutíferos ataques a Monte Castelo, avançara ao máxi-
mo, procurando levar, como levou, a extrema-unção aos que tombavam
nas linhas de frente. E nem sempre esperava condução para essas inves-
tidas, mas seguia a pé, subindo e descendo os morros.
Irmanava, em seu dever para com os homens e Deus, a es-
pada e a Cruz, afirmando com a sua presença o quanto podem andar
unidos os deveres da religião e os compromissos para com a Pátria.
Convivendo com outros ministros, de religiões diversas, Frei
Orlando tratava todos com bondade e solicitude. Era, como já dissemos,
um espírito assaz tolerante.
Suas cartas aos amigos e familiares do Brasil identificavam a
consagração de sua humildade, patriotismo e fé. Sobretudo fé! Era ami-
go sincero, leal a toda prova, capaz dos maiores gestos de abnegação. Daí
a estima que tinham por ele. Daí a consideração excepcional que todos
lhe devotavam, do coronel ao último soldado.
A carta que abaixo se lê, enviada a D. Emirena por Frei Gil Ma-
ria, capelão adjunto da Capelania Militar, é um testemunho vivo do quanto
era querido o capelão. Todos verdadeiramente o estimavam. E muito!
Ai daquele que o ofendesse! Ai daquele que o não respeitas-
se convenientemente! Frei Orlando a todos conquistara pela magnitude
do coração, do gênio afável e bom.
182 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Eis o que escreve o seu superior na Ordem e no setor militar


– major Frei Gil Maria:

“Exma. Senhora D. Emirena Teixeira Pinho:

Passando-se hoje o aniversário natalício de seu filho e


companheiro nosso, o Revmo. Pe. Frei Orlando, aproveito a ocasião
para lhe enviar algumas linhas, embora não a conheça pessoalmente.
Imagino Vossa Exa. saudosa, alegre a esperar a vitória para receber o
seu querido filho. Agora, Frei Orlando está conosco, trabalhando pelo
bem dos soldados e pela segurança de nossa Pátria. Louvado seja Deus,
que a todos nós Capelães da FEB tem dispensado uma proteção que,
sem exagero, posso chamar de especialíssima. Todos vamos bem, tanto
de alma quanto de saúde.
Contamos com a amizade e a confiança de oficiais e pra-
ças. O trabalho desenvolvido pelos Capelães tem mais e mais animado
a tropa e atraído as bênçãos de Deus. E Frei Orlando está sempre na
vanguarda, com seu sorriso, que é uma amostra de sua grande alma,
com sua operosidade, que traduz um coração de verdadeiro Apóstolo do
bem. Tem sido um legítimo franciscano no cumprimento de suas excel-
sas e sagradas missões junto de nossos soldados, os soldados do Brasil
sempre evocados. E, para que não pareça elogio corriqueiro de amigo e
irmão, leia o que saiu no Boletim Interno do nosso Regimento, no dia 4
do corrente mês.25
‘Sendo o cumprimento do dever, para cada um no seu mis-
ter hierárquico, saber obedecer e esse dever é sempre imposto rigoro-
samente ao militar nos momentos de sacrifícios, como o que estamos
vivendo nestes campos de luta, aliados a uma vontade firme de vencer,
este Comando não pode deixar de fazer uma referência especial ao ca-
pelão Antonio Alvares da Silva (Frei Orlando) que, no cumprimento do
seu dever cristão, vem assistindo e preparando espiritualmente todos
os combatentes deste Batalhão. Durante o período em que este Batalhão
guarneceu e defendeu o subsetor W da Divisão, Frei Orlando, sempre
disposto com verdadeiro desprendimento, visitou várias vezes os ele-
mentos que se achavam em primeira linha, bem como os feridos nos
hospitais, transmitindo a todos sua palavra de fé cristã, dando uma ideia

25
Referia-se ao ano de 1945 – fevereiro.
Ainda “Paz e Guerra” 183

exata da grandeza da sua missão, pelo que louvo e recomendo-o como


merecedor da melhor consideração dos seus chefes e camaradas.
(a) Orlando Gomes Ramagem – major-comandante do Ba-
talhão.’
As preces que Vossa Exa. faz por seu filho, pedimos também
para nós que, sendo irmãos no sacrifício, merecemos um pouco do seu
maternal amor.
Aproxima-se a vitória de nossa Pátria. Tenha confiança em
Deus que, em breve, estaremos aí. E que festa será, quando receber vito-
rioso o filho que viu um dia partir para a Guerra, entre as saudades dos
que ficavam e as esperanças que ora, graças a Deus, se estão realizando!
Com as bênçãos de Deus e a gratidão do nosso Brasil, aceite
as felicitações do menor dos Capelães da FEB.

Frei Gil Maria, major capelão


adjunto da Chefia.”
Capítulo 16

Nada de ataque!
Cai a neve...
Ligeiras considerações sobre a guerra

O
estradas, as casas.
inverno intensificara-se assustadoramente! A neve
caía em flocos, embranquecendo tudo, as árvores, as

A guerra continuava. Não havia notícias de declínio: arrasava


cidades, aldeias, engolfando na escuridão da dor os lares atingidos. Inocen-
tes crianças são arrancadas do convívio dos pais e metidas nos refúgios in-
salubres, na ânsia de as defenderem das bombas e da fúria dos combates.
Navios e barcos desaparecem no fundo dos mares, ou se in-
cendeiam às vistas das populações.
No ar, travam-se rudes combates, e os aviões, como tochas
gigantescas, precipitam-se, em chamas, mar adentro, ou de encontro às
montanhas. Em tudo estava o caos, a destruição, o abismo!
De Roma chega-nos notícia de que o Papa Pio XII, que tanto
lutara para que não surgisse o conflito, prega a formação de uma orga-
nização internacional estável e fecunda, tão logo cesse a hecatombe que
infesta o mundo. E muitos escritores bem-intencionados falam da ne-
cessidade de trabalhar pela paz no tempo de guerra, como se preparava
a guerra em tempo de paz.
Do Brasil escreviam-nos cartas que eram verdadeiras pre-
ces aos Céus, para que surgisse a concórdia, reinasse a compreensão e,
assim, a paz no seio dos homens.
O mundo já andava saturado de guerra. Ninguém mais dese-
java vê-la prolongar-se no tempo.
186 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Paz! Paz!
Era o brado que se ouvia de todas as partes, ecoando pelas
terras do mundo inteiro!
Os responsáveis, entretanto, pela chacina mundial, ainda vi-
viam. Participavam do mecanismo da guerra – à retaguarda.
Stalin, em uma reabilitação fulminante, enfrenta os alemães
em Stalingrado e os rechaça, levando-os até as portas de Berlim em uma
estupenda arrancada.
Hitler, qual louco, desorientado, conclamava todos, nazistas
ou não, para se colocarem em decisiva defesa de Berlim, já ameaçada
pelos russos, que lhe martelavam as portas. Para Hitler, há muito ter-
minara a fase ofensiva. Agora se defendia a todo custo, lançando mão
da juventude hitlerista, sentindo em suas entranhas o que os outros já
haviam sofrido, quando do seu fastígio bélico.
Guerra! Terrível guerra, que caminhava já para um lustro e
não se sabia quando teria fim!
Voltaire, falando das razões das guerras em seu aspecto so-
ciológico e filosófico, afirma:
“Todos os animais estão em guerra perpétua. Cada espécie
nasceu para devorar a outra. Os cordeiros e até as pombas devoram uma
quantidade prodigiosa de animais imperceptíveis.
Os machos de uma mesma espécie entram em guerra pelas
fêmeas, tal qual Minelao e Páris. O ar, a terra e as águas são campos de
destruição.
Deus, dando a razão aos homens, esta deveria adverti-los de
não imitarem os animais, sobretudo sabendo-se que a natureza não lhes
proporcionou nenhuma arma para matar seus semelhantes.
Não obstante, a guerra mortífera é de tal modo patrimônio
dos homens que, salvo duas ou três nações, não existem outras que a
história não as absolva desse crime.”
Ah! Se a humanidade compreendesse que a missão de cada
um e de todos na face da Terra é comum! Que as guerras não resolvem os
problemas humanos e sociais, antes os agravam! Que falta aos homens
para essa compreensão? Por que, tendo a nos orientar um Código Divi-
no, Carta Magna de Deus, pisamos suas páginas em um repúdio às lições
e ensinamentos sagrados?
Nada de ataque! 187

Enquanto a neve caía, conjecturávamos...


E longe da Pátria, curtindo as saudades dos nossos queri-
dos, naquela defensiva que nos amofinava, dava-nos alento a figura va-
ronil e extraordinariamente apostólica de Frei Orlando.
Ah! Não fora ele, que seria de nós?
Aos nossos setores, conquanto discretamente, chegavam-
nos informes de outras frentes, nem sempre, porém, expressando a rea-
lidade dos acontecimentos, tais como o suicídio de Mussolini, o assassi-
nato de Hitler por uma alemã, a queda de Berlim. Nada disso, contudo,
apresentava o quadro real da situação. Tudo mentira! Os acontecimentos
culminantes, que nos levariam ao armistício, ainda não haviam surgido!
E o panorama em nossa frente era o mesmo de sempre: es-
pera, expectativa, vivendo todos sob a proteção da cortina de fumaça
feita pelos engenhos americanos. A artilharia dos tedescos não nos dava
folga. Dia e noite nos inquietavam com tiros constantes, inalteráveis,
enervantes, abalando-nos dos pés à cabeça. Se não tinham objetivo vi-
sível, nem por isso, de quando em quando, deixavam de atingir pontos
estratégicos em nossas posições e à nossa retaguarda, matando, ferindo,
destruindo. Adotavam, contra nós, algo psicológico e comum nas guer-
ras: a inquietação!
Todo mundo bombardeou a Itália. Coisa incrível! Os ale-
mães, ingleses, canadenses, americanos, brasileiros e, por mais absurdo
que pareça, os próprios italianos! É que havia fascistas na linha de frente
lutando ao lado dos alemães, em uma causa inglória, porque destruíam
o seu próprio patrimônio.
Pai lutando contra filho, e vice-versa, e irmão contra irmão.
Havia também, do lado inimigo, súditos de Mussolini combatendo con-
tra nós à força, porque, prisioneiros dos alemães, a isso eram obrigados.
Por isso é que, não raro, caía em nossas proximidades bomba que não
estourava. Examinada, encontrava-se em seu interior um bilhete assim
redigido, como que às pressas:
“Assim como esta, tem mais.”
Ajudavam-nos o quanto podiam, sem dúvida que sob tre-
mendo risco, porque, se descobertos, seriam fuzilados.
As populações pacíficas, e por onde a guerra já havia passa-
do como um tufão, ainda sofriam as consequências. Na lavoura, quando
188 Frei Orlando: o capelão que não voltou

tentavam, posto que de forma rudimentar, reorganizá-la, eis que, ao con-


tato da enxada ou do bico do arado, explodia a mina traiçoeira que não
havia sido retirada.
Nossos corações compungem-se diante de tanta angústia
daquela gente já cansada de sofrer, humilhada, espezinhada.
Oh! Brasil, “coração do mundo e Pátria do Evangelho”, que
ainda não conhece, mercê de Deus, no seu solo, os horrores de uma
guerra! O Brasil – louvado seja Deus – tem a sua expressão na vida do
espírito, representando a fonte de um pensamento novo, sem ideolo-
gias separativistas, preconceitos de casta e pensamento de conquistas. E
inunda, cheio de bênçãos, com a Luz do Cruzeiro, que do Alto nos inspira
e nos guia, todos os campos de atividades.
E quando concluímos este capítulo, na primavera de 1965,
as flores despontam nas árvores, em cujos ramos cantam os passarinhos.
E o sol banha a cidade dos templos, esta São João Del Rei inspiradora,
onde tudo é ridente, festivo! A natureza aqui, como em nenhum outro
lugar, se engalana de forma diferente, trazendo aos nossos corações a
beleza toda de sua maravilha!
E os sinos das torres centenárias continuam dobrando, em
uma confusão de ritmos cadenciados e dolentes.
Capítulo 17

A morte do Frei Orlando


Sobe aos Céus um santo

F evereiro é um mês assinalado nos anais da Força Ex-


pedicionária Brasileira, porque foi quando as nossas
tropas iniciaram o assalto definitivo a Monte Castelo.
Os alemães, entretanto, julgavam-no intransponível, tama-
nha a sua resistência e tão bem preparadas as suas fortificações. Mas
Deus não nos desamparava. A guerra teria seu epílogo.
Não se pode fugir dos episódios reais de um acontecimento,
quando, tentando descrevê-los para a posteridade, passamo-los para as
páginas dos livros.
E este livro não é assunto de ficção, mas o retrospecto vivo,
autêntico, dos fatos desenrolados na Segunda Guerra.
Daí a forma com que, muitas vezes, ressaltamos a bravura
de muitos companheiros, que, armas na mão, souberam honrar e enal-
tecer a FEB, mas, sobretudo, a nossa Pátria. Entre eles, pelas suas quali-
dades e suas virtudes da alma, está Frei Orlando!
Verdade é que a nossa luta já está esquecida, em parte, mas
ficará como exemplo às porvindouras gerações. Como nos ficaram os
heroicos acontecimentos da Guerra do Paraguai.
Wilson Ramos, o primeiro que se sacrificou nas fileiras do
nosso Regimento; Orlando Randi, que morreu empunhando uma ban-
deira nazista, arrebatada em pleno combate; Max Wolff Filho, o terror
dos tedescos; Arlindo Lúcio da Silva, Geraldo Rodrigues de Souza e Ge-
raldo Baeta da Cruz, os “três heróis brasileiros” – expressão dos alemães
que os enterraram após determinado combate; Ary Rauen, Ruy Lopes
190 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Ribeiro e outros bravos, entre os que mais o foram, são, hoje, apenas,
personagens de uma tragédia, que se perde na voragem dos anos.
Outras guerras, frutos da maldade e incompreensão dos ho-
mens, já se vão desaparecendo do nosso pensamento, embora consigna-
das nos livros.
Outras tragédias bélicas, todavia, hão de vir. Outros confli-
tos armados surgirão na face da Terra, deixando para trás os aconteci-
mentos de que fomos contemporâneos e copartícipes.
É lei natural e humana a sucessão dos homens e das coisas,
nesse giro constante, mutável, à semelhança da própria Terra, que, gi-
rando sempre, vai tecendo o fio do tempo e, com ele, a teia da História.
As guerras, inegavelmente, constituem uma constante preo-
cupação dos povos, desde a criação do mundo.
E tudo isso decorre da função do planeta em que habitamos
– Terra – inferiorizado, purgatório de pecados e de crimes contra Deus.
A bomba atômica aí está, não para fins científicos e huma-
nitários, senão para a destruição e constante ameaça, embora resulte,
também, em um paradoxo, em garantia da paz, porque as nações que a
possuem temem, elas próprias, serem as primeiras a usá-la.
Mas os povos se armam, não tenham dúvida e ainda agora, mal
concluíamos estas páginas, chega-nos a notícia de que a China comunista
lança sua primeira bomba como experiência. E declara ao mundo todo:
“Somos obrigados a realizar as provas nucleares e fazermos
nossas bombas atômicas, porque não podemos permanecer de braços
cruzados diante da ameaça nuclear, cada vez maior, dos Estados Unidos
que acabam de colocar seus submarinos atômicos em nossos mares, ame-
açando-nos.”
Impera, depreende-se, a corrida armamentista. País ne-
nhum deseja ficar para trás, mas acompanhar os demais que avançam
na diabólica arte de fabricar os engenhos de destruição.
Vê-se, pois, que a humanidade está verdadeiramente divor-
ciada do cristianismo, em uma franca violação dos preceitos evangélicos.
Devemos não olvidar que, matando na guerra ou fora dela, obviamente
estamos pisando a Carta Magna de Deus, o Evangelho!
A humanidade ainda não encontrou, eis a verdade, a figura
do manso Nazareno, porque falta encontrar-se a si própria; daí as con-
tendas, os choques armados, o ódio nos corações.
A morte do Frei Orlando 191

Sem cristianização, portanto sem perfeito conhecimento


das recomendações divinas, jamais teremos paz, aspiração máxima de
todos os povos.
Voltemos, agora, às nossas posições, nos Apeninos, onde o
inverno já declinava, mas onde também continuava sem trégua a luta.
Dezenove de fevereiro de 1945. Tanques, jipes, carros de as-
salto, canhões de todos os calibres cruzam as estradas, protegidos pela
cortina de fumaça. O movimento empreendido revelava, claramente, os
preparativos para o ataque a Monte Castelo, que os alemães julgavam
intransponível. Mas assim como a célebre Linha Maginot,26 de que tanto
se orgulhavam os franceses, Monte Castelo também ruiria com o térmi-
no do inverno.
Aos nossos inimigos a iminência do ataque não passava
despercebida, por isso que, ininterruptamente, martelavam nossas po-
sições, tentando desarticular os nossos movimentos.
Pelas imediações do “Gigante de Pedra”, defendido com unhas
e dentes, concentram-se todas as forças brasileiras em ação, cabendo ao
1º Regimento de Infantaria – Regimento Sampaio –, com apoio de algumas
subunidades do 11º e do 6º RI, assaltar o reduto duramente defendido.
Nosso I Batalhão reúne-se na região de Sila e o II lança-se
diretamente ao ataque, para apoio iminente.
Eis como nos descreve, de forma fiel, o desenrolar dos acon-
tecimentos, o coronel Rui Leal Campelo, um bravo do 1º RI:
“Corriam os primeiros dias do já distante mês de fevereiro
de 1945. A tropa da 1ª Divisão Expedicionária, incorporada ao IV Corpo
do V Exército Americano, aguardava, com estafantes e penosas vigílias, o
escoamento daqueles árduos e enregelados dias do inverno de 1944-45.
Cumpria-lhe, agora, passar à ofensiva, como parte do plano estabelecido
pelo Comando Aliado do Grupo de Exércitos que operava na Península
Itálica, destinado a romper a Linha Gótica, capturando os escarpados
maciços de Capel Buzzo – Monte Gorgolesco – Capela de Ronchidos –
Monte Castelo – Monte Dela Torraccia que, uma vez conseguido, abri-
ria o caminho da rota 64, colocando nas mãos dos aliados o importante
ponto-chave da Cidade de Bolonha.
26
Linha Maginot: linha defensiva construída pelos franceses desde a Primeira
Guerra Mundial. Provou-se ser ineficaz porquanto os alemães a desbordaram na
Segunda Guerra Mundial.
192 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Os exércitos alemães debatiam-se a essa época desespe-


radamente contra o crescente poderio aliado que, em todas as frentes,
buscava o assédio da chamada Fortaleza da Alemanha Continental. Con-
tornados os insucessos causados pela derradeira ofensiva que precedeu
o Natal de 1944, viram-se as forças da poderosa Wermacht 27 na contin-
gência de ceder terreno ante os contínuos golpes desferidos pelos exér-
citos libertadores.
Era como parte desse quadro geral das operações em curso
que o homem brasileiro mostraria, uma vez mais, suas qualidades com-
bativas, concorrendo com o seu esforço e seu generoso sangue para a
conquista da Vitória Aliada.
Assim, os preparativos para a operação eram facilmen-
te percebidos, mesmo pelos indiferentes, já que era patente a grande
disponibilidade de recurso de toda ordem em mãos do Comando do IV
Corpo, inclusive a anunciada entrada em ação de uma Divisão: a 10ª de
Montanha Americana, especialmente treinada para a luta naquelas al-
turas. Os movimentos realizados para a tomada do dispositivo, os re-
conhecimentos e demais entendimentos necessários decorriam dentro
de um clima de confiança e quase satisfação. Todos sentiam que soara
a hora derradeira da desforra aos rudes golpes sofridos ante aquelas
cruentas alturas, das quais Monte Castelo passara a constituir razão de
toda a atividade da FEB, naquele setor da Linha Gótica.
Em três outras oportunidades, as operações montadas, vi-
sando à sua captura, haviam resultado infrutíferas e a última delas,
realizada a 12 de dezembro de 1944, fizera com que os brasileiros ex-
perimentassem a mais dura provação do seu estoicismo naquela cam-
panha, fato facilmente constatável pelo elevado número de baixas so-
fridas em decorrência.
Desencadeada a ação ofensiva, cujo início marca a estreia
da 10ª Divisão de Montanha, que, quase de surpresa, atinge altitudes
inacessíveis, de Capel Buzzo e Pizzo de Campiano, cumpre à Força Expe-
dicionária Brasileira o papel que lhe fora reservado na manobra, lançan-
do o 1º Regimento de Infantaria – Regimento Sampaio – contra Monte
Castelo, cuja conquista e subsequente prosseguimento de ação ofensiva
sobre Bella Vista e La Serra permitiram aos americanos em segurança
anular, finalmente, o baluarte do Monte Della Torraccia.
27
Wermacht: forças armadas (palavra alemã).
A morte do Frei Orlando 193

A 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária Brasileira enfren-


ta, então , as árduas operações de 18, 19, 20, 21 de fevereiro, quando
os batalhões que constituíam o escalão de ataque conseguem, em fim
de jornada, jornada de 21, a posse definitiva das alturas 977 de Monte
Castelo. Os alemães, surpreendidos pelo ímpeto do ataque, não podem
manter as suas posições.
Era a derrota que se aproximava
.................................................................................................................

Após vigorosa arrancada, a 5ª Companhia do II Batalhão do


Regimento Sampaio alinha-se com as 1ª e 2ª Companhias do Batalhão
executando um amplo movimento, visando atingir o objetivo, abordan-
do-o pelas encostas N-NW. Incumbe, então, ao seu comandante coorde-
nar o lance final que as conduziria à crista.
Liga-se, em consequência, aos dois outros capitães e rapi-
damente é decidida a abordagem. Pressentia-se que o dia estava a fin-
dar e era necessário chegar ao objetivo, ainda com luz suficiente que
permitisse consolidá-lo e reajustar convenientemente o dispositivo das
Companhias de escalão de ataque.
A região em que se encontravam os atacantes entre Garge e
Fornace mostrava, à frente do compartimento de ataque, a extensa ravi-
na da região do C. Zolfo, ao fundo da qual sobressaía, com amplo domí-
nio sobre toda a região, Monte Castelo.
Repentinamente a citada ravina é batida por fogos ajusta-
dos dos sempre temíveis morteiros alemães. A tropa brasileira é colhida
em cheio por esse bombardeio, registrando-se muitas baixas. Ouvem-se
ordens rápidas e enérgicas dos comandantes imediatos O heroico ca-
pitão Ieddo Blauth incita seus comandados a se manterem coesos e a
‘seguirem o exemplo de seus chefes’.
Feridos, alguns, já em agonia, são prestimosamente atendi-
dos. Logo, porém, prossegue o movimento com decisão e rapidez, não
faltando verdadeira demonstração de sangue-frio de outros, que trocam
seu armamento de repetição pelas submetralhadoras daqueles que ha-
viam tombado, minutos antes. O escalão de apoio bate com rajadas de
Mot. 30 tiros de lança-rojão à região de C. Zolfo que constituía séria ame-
aça ao escalão de ataque.
194 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Há um momento de intensa expectativa, quando são divi-


sados, cruzando a frente do escalão de ataque, elementos desgarrados
de uma Companhia americana. O incidente constitui grave perigo e há
mesmo troca de tiros. O uniforme brasileiro assemelhava-se pela cor ao
alemão, apesar das providências tomadas, para que toda a tropa atacan-
te utilizasse o field-jacket americano, de cor cáqui, a fim de melhor iden-
tificá-la. Felizmente isso é contornado, sendo indicada aos americanos a
direção da estrada principal para onde conduzem eles, logo após, alguns
prisioneiros alemães, fazendo com que os últimos transportem, em uma
lona de barraca alemã, um infante americano ferido.
As ações e os movimentos sucedem-se, com grande rapidez
e mesmo perfeição. O comportamento da tropa atacante podia-se as-
semelhar, a essa altura, ao de uma infantaria executando manobra em
campo de instrução.
Monte Castelo começa a ser abordado e o escalão de ataque
toma pé, incontinente, nas alturas 977. Súbito, um foguete luminoso corta
os ares, sendo assinalado pelos postos de observação. E três estrelas ver-
des, que no código de sinais significavam objetivo conquistado, são vistas
por sobre o compartimento de ataque. Eram os primeiros elementos que
atingiam a crista e apontavam, pela utilização desse artifício, a direção aos
companheiros do escalão de apoio, por isso que, rapidamente, a escuridão
faria sentir seus efeitos tão temerosos nessas circunstâncias.
Os alemães, duramente batidos pelos fogos de artilharia de
apoio e pelo vigor da manobra executada pelos atacantes, ainda con-
seguem evacuar a região, apoiando-se na resistência de La Torraccia já
entestada pelos americanos.
Companhias de fuzileiros coroam, finalmente, o objetivo,
porém, mais um esforço ainda deveria ser despendido. Todos, do capi-
tão ao volteador, organizam um terreno e cavam seus fox-holes, pois só
assim estariam em condições de assegurar a posse das alturas conquis-
tadas e fazer face a um contra-ataque alemão, sempre esperado”.
Aqui, agora, pedimos vênia ao coronel Campelo (que tornou
ostesiva, alhures, esta perfeita descrição do ataque a Castelo, consti-
tuindo um valioso subsídio para os futuros historiadores) para que nos
permita “fazer alto” na sua magnífica página. É que vamos dizer o que
se passava nas linhas do 11º RI, antes da queda definitiva de Monte Cas-
telo. E vamos caminhar com Frei Orlando, rumo à lamentável tragédia.
A morte do Frei Orlando 195

Conforme nos foi dado ver, linhas acima, ia encarniçando o


ataque ao referido Monte. As notícias que nos chegavam diziam da im-
petuosidade dos nossos companheiros galgando resolutamente as posi-
ções a serem atingidas.
Mas, por outro lado, afirmavam, as perdas são sensíveis.
Muitos feridos, muito sangue, dores, gemidos.
Frei Orlando, vendo o que se passava, ficou preso de profun-
da emoção e a todos externava que iria mais para frente, onde nossos
soldados misturavam seu sangue com a neve em degelo.
Ao longe, na garupa do Castelo, divisava ele os aviões brasi-
leiros e americanos despejando toneladas e mais toneladas de bombas,
enquanto a fumaça subia em rolos densos. Crepitava a metralha, espoca-
vam os morteiros e rugiam armas de toda espécie.
O 1º RI apoiado, como vimos, pelo nosso Regimento (11o RI)
ataca furiosamente. Os alemães, que menosprezavam as nossas possibi-
lidades, agora estavam ali naquela agonia, sob o impacto tremendo de
nossos bombardeios e de nosso ataque, sentindo o peso de nossa força,
a pressão de nosso avanço e, sobretudo, de nossa coragem.
Deviam perceber que, tendo em vista o nosso ataque, sua
derrota seria iminente, incontrolável, dependendo apenas de tempo.
Nosso capelão ajustou seu equipamento, apanhou o esto-
jo de hóstias e saiu morro acima, galgando as estradas. Antes, porém,
houve quem tentasse demovê-lo do intento, mostrando-lhe o perigo
a que se expunha. Teimoso como sempre, saiu vingando as elevações
no sopé do Castelo. Subindo aqui, descendo ali, ocultando-se, ora às
vistas inimigas, ora dos tiros de artilharia, marchava resoluto, a fim
de levar consolo e conforto espirituais aos que morriam na operação
do ataque desfechado.
A meio caminho, tenta galgar as posições da 6ª Companhia
rumo a Docce, itinerário recomendado pelo seu comandante de Bata-
lhão, major Orlando Gomes Ramagem. Quando se encontrava a 300m,
aproximadamente, de Bombiana, passa por ele um jipe.
Inteirado da direção da viatura, nela tomou lugar, tendo por
companheiros o capitão Francisco Ruas Santos, o cabo Gilberto Torres,
motorista, uma praça do II Batalhão do nosso Regimento e um sargento
italiano, dos postos à disposição da tropa brasileira, para os serviços de
transporte em montanhas.
196 Frei Orlando: o capelão que não voltou

O coronel Ruas, escritor-militar, assim descreve, em docu-


mento valioso que nos enviou, a continuação da viagem, até o desfecho
trágico e imprevisto:
“(...) Frei Orlando, em caminho, depois de dizer o que fizera
pela manhã, e o que ainda pretendia fazer, falava de uma irradiação feita
pelos holandeses livres, para a parte ocupada do seu País. A uma obser-
vação qualquer, ainda soltou uma de suas costumeiras gargalhadas.
O jipe marchava lentamente, subindo e descendo as eleva-
ções, quando, de repente, estaca imobilizado por uma pedra. Prendia
esta o eixo dianteiro. Os passageiros conseguem retirar a viatura que é
posta a alguns metros além da pedra fatídica.”
E continua o coronel Francisco Ruas Santos:
“Tomo a manícula do jipe e me esforço para removê-la.
O sargento italiano, no intuito de ajudar-me, recurva-se
junto à pedra e também tenta retirá-la a violentas coronhadas de sua
carabina. Esta dispara, e Frei Orlando, que se achava parado a uns 3m,
é atingido pelo projétil. Solta um grito, leva a mão ao peito, dá alguns
passos à frente, tirando ao mesmo tempo do bolso do casaco o seu terço
e balbuciando, às pressas, uma Ave-Maria. Corro para ele e o faço deitar-
se à margem do caminho. A oração, apenas começada, é abafada pelo
ofegar da agonia. Tudo isso, desde o fatal disparo, dura dez segundos.
Retorno rapidamente à Docce, em busca de socorro médico e
trago o capitão João Batista Pereira Bicudo, facultativo do Batalhão. Este
pode apenas verificar achar-se morto o capelão, desde o momento, talvez,
que acabara de ser deitado à margem do caminho. O italiano, abraçado ao
corpo do capelão, chorava e lamentava-se. Um pastor das redondezas, na
sua natural indiferença, contemplava esta cena.
O médico descobre-se, persigna-se e reza pela alma de Frei
Orlando, no que é seguido por mim e pelo cabo.”
Maktub, tinha de ser, estava escrito.
Só Deus, em sua alta sabedoria, pode explicar o porquê da-
quela imensa tragédia, tão brutal quanto imprevista, tão chocante quan-
to dolorosamente lamentada.
Eram, aproximadamente, 14 horas do dia 20 de fevereiro
de 1945!
No Monte Castelo, as bombas estouravam, porque a cidade-
la nazista ainda não havia caído!
A morte do Frei Orlando 197

Uma alma pura, quiçá a mais pura que se encontrava em


nosso meio, subia ao Céu, para os braços da Virgem Mãe, a quem ele
tanto amou.
Estava escrito – tinha de ser.
A notícia ecoou, célere, pelas linhas de combate do nosso
Regimento, desde os escalões mais avançados aos mais recuados!
Os telefones de campanha não paravam de funcionar:
“Morreu Frei Orlando! Morreu Frei Orlando!”
“Um tiro matou Frei Orlando! Morreu na linha de frente!”
“Mataram Frei Orlando!”
“Morreu Frei Orlando!”
Apoderou-se de todos pânico – pânico e dor!
Nosso amigo, conquanto inacreditável, estava verdadeira-
mente morto, irremediavelmente morto se encontrava, para sempre,
nosso estremecido capelão!
“Fiat Voluntas Dei!”
Guerras! Para que guerras?!
Levou-nos aquela de que participávamos, o seresteiro da
nossa Expedição Militar, o amigo de todas as horas, alegres ou tristes,
mas sempre presente.
O corpo de Frei Orlando, já frio sobre a relva, velado pelos
amigos presentes à cena e pelo pastor, é transportado para uma capeli-
nha próxima e que tem o nome de Santo Antônio.
Havia em tudo, como afirmamos desde o início de nosso tra-
balho, uma extraordinária coincidência entre esses dois irmãos de Ordem.
Na referida capelinha reuniram-se oficiais, sargentos, cabos
e soldados do nosso Regimento, para último adeus. Não fora grande o
número, porque se achavam todos ainda empenhados na “limpeza” de
Monte Castelo.
Alguém já escreveu alhures, de forma terna e mística, estas
palavras sublimes:
“Desce a noite sobre a luz de seus olhos e apaga-se o lume
daquele cérebro que dissipou tantas trevas! Não descem, porém, as
sombras do crepúsculo sobre a luz do seu espírito, porque foi fulgir e
refulgir na Glória!”
No modesto templo dos Apeninos, em plena Itália, e quando
já o Castelo era qual tigre ferido, nós, soldados do Brasil, alçamos ao Céu
198 Frei Orlando: o capelão que não voltou

as nossas preces, derradeiras e sentidas, à alma de um homem bom e de


um justo.
Capitão Rodarte e Frei Alfredo vestiram-no consoante o seu
desejo: de hábito e com o capuz sobre a cabeça.
Às 19 horas do mesmo dia 20 de fevereiro, Frei Alfredo, aju-
dado pelo capitão Rodarte, celebrou a Missa de corpo presente.
Celebrante e ajudante choravam! Nosso capelão, estendido
em uma padiola, no chão, o chão frio da capelinha, parecia apenas dor-
mir! Não era possível que estivesse morto!
No dia 21 de fevereiro, quando os ocupantes do Castelo ren-
diam-se, definitiva e inexoravelmente, incapazes que foram de um pos-
sível contra-ataque, às 15 horas, o corpo do nosso capelão era transpor-
tado para o cemitério brasileiro de Pistoia, em uma viatura entre dois
soldados brasileiros, dos muitos que pereceram no combate.
Foi enterrado, como sempre viveu, desde que incluído na
FEB: ladeado por dois pracinhas. E, personificando a normativa da Or-
dem, humildemente, pobremente!
Como o Santo de Assis, não pôde Frei Orlando, filho de Mo-
rada Nova, contemplar a sua terra, o Brasil para o qual tinha a sua aten-
ção voltada e tantos planos concebidos!
Antes de ser o seu corpo colocado em um saco branco, os
presentes ajoelharam-se e oscularam-lhe as mãos, mãos que só pratica-
ram o bem.
Todos choravam!
Um pastor protestante, coronel Mandox, representando o
general Critemberg, comandante do IV Exército, fez belíssima e comove-
dora oração em nosso idioma.
A morte unia, na prece, dois ministros de Deus que, na Ter-
ra, seguiam caminhos diversos para um destino comum: Deus!”
Foi hasteado o Pavilhão Nacional no interior do cemitério,
enquanto os sinos das igrejas de Pistoia dobravam soturnamente, anun-
ciando a morte de um ministro de Deus.
Um quadro tocante emoldura a cena: dois alemães, feridos
e depois mortos em nossas linhas, onde se tornaram prisioneiros, bai-
xam à terra no mesmo instante e no mesmo local em que nosso morto
ali pranteado.
A morte do Frei Orlando 199

Ouvem-se os tiros da homenagem póstuma a que tem direi-


to como capelão militar e, logo após, silêncio completo!
Segue-se, então, profundamente triste, o toque de silêncio –
silêncio por quem passou a vida gargalhando!
Deixava-nos para sempre, naquela situação imprevista, o
jovem Antonio Alvares da Silva, na vida religiosa, Frei Orlando, Dominus
Dedit, Dominus Abstulit. Deus deu, Deus tomou!
Que o exemplo desse intrépido brasileiro seja um perene
estímulo e encorajamento vivo às gerações futuras, aos jovens de nossa
Pátria. Pátria grande e forte como ele sempre a desejou. Amando-a sem
medir sacrifícios, deu-lhe ele o que de mais caro possuía: a vida!
Contava 32 anos e 7 dias.
O comando do nosso regimento – 11º RI – ao desligar, por
falecimento, o nosso pranteado capelão, assim se expressou:

“BOLETIM Nº 52, DO 11º REGIMENTO DE INFANTARIA28


Em Docce, Itália, aos 22 de fevereiro de 1945.
Passamento de Capelão

Foi recebida, com dolorosa surpresa, a notícia do falecimen-


to do capelão-capitão Antonio Alvares da Silva (Frei Orlando), vítima de
um tiro, quando se dirigia de Docce para Bombiana, a fim de levar sua
assistência espiritual aos homens em posição, no dia 20, quando do ata-
que a Monte Castelo.
O sacerdote que desapareceu da face da Terra, após ter ser-
vido com a sua pureza de sentimento à religião e à Pátria, deixa imensas
saudades no seio da organização católica a que pertencia e onde soube se
impor pelo espírito elevado, pelas virtudes do coração, coração bom, extre-
mamente bom, e pelo cumprimento exato dos seus deveres de sacerdote.
28
O Boletim nº 52, publicou, ainda, em sua 3ª parte, o seguinte item: “XIII – FALE-
CIMENTO DE CAPELÃO – Exclusão
Faleceu no dia 20, atingido por um projétil, quando se dirigia de Docce para a região
de Bombiana, a fim de levar a sua assistência espiritual aos homens em posição, o
capelão Antonio Alvares da Silva (Frei Orlando). O referido capelão era investido
no posto de capitão.
Em consequência, seja excluído do Estado efetivo do R.I. e Estado-Maior o capitão
Antonio Alvares da Silva (Frei Orlando).”
200 Frei Orlando: o capelão que não voltou

No Exército, 11º Regimento de Infantaria, a que passara a


pertencer, como chefe da Capelania, onde prestou serviços religiosos,
conquistou todos pelas qualidades apostolares, traçando profundo vín-
culo com sua inteligência, sua palavra e sua bondade.
Convidado por este Comando para prestar serviços religio-
sos nessa Unidade, quando ainda em São João Del Rei, não demorou a
acompanhá-lo para a guerra e, uma vez no Teatro de Operações, nos dias
de maiores atividades bélicas, jamais deixou de levar seu conforto es-
piritual ou o santo sacrifício da Missa em qualquer circunstância, mos-
trando-se, além de religioso, um forte, um bravo, um verdadeiro soldado
da Cruz de Cristo!
Frei Orlando, que acaba de falecer em plena mocidade, ale-
gre e sempre satisfeito, soube granjear um lugar em todos os corações
daqueles que com ele conviveram e que ora sentem a separação eterna
do seu Pastor e do seu Amigo.
(a) Delmiro Pereira de Andrade – cel comandante.”
Capítulo 18

‘In Memoriam’

F rei Orlando, conforme seu diálogo com o capitão Ra-


fael Rodarte, teve intuição de que seus dias estavam
contados e de que morreria na guerra. Ao autor destas reminiscências
históricas dissera, certa feita, que morreria no dia do seu aniversário
natalício, ou seja, a 13 de fevereiro daquele ano de 1945. Morreu jus-
tamente a 20 do mesmo mês, falhando seu cálculo em apenas sete dias
para mais.
De como tivera ele esse pressentimento nos escapa ao ra-
ciocínio. Indiscutivelmente, porém, para nosso amigo capelão não ha-
via segredo. Algo superior dava-lhe a fatal intuição de que encontraria a
morte sob os céus da Itália. Sabia-o, tinha certeza disso, como que uma
intuição divina, a qual não ocultava, com exceção feita aos seus familia-
res, aos quais escrevia cartas animadoras para consolá-los.
A prova exuberante de nossa afirmativa encontramo-la na
carta, abaixo transcrita, documento que constitui, ao mesmo tempo, um
hino de fé. Deve ter sido escrita de joelhos, quando o homem, mais do
que nunca se aproxima de Deus, se eleva e se engrandece.
Deixou o nosso capelão a citada missiva dirigida as suas ir-
mãs, entre outros papéis importantes, e com a recomendação expressiva:

“Para ser aberto depois de minha morte.”

Lendo a referida carta, desanuvia-se qualquer dúvida.


Frei Orlando tinha certeza do que aconteceria! Sentia a pre-
sença da morte!
Eis a carta:
202 Frei Orlando: o capelão que não voltou

“MINHAS IRMÃS

A paz de Deus esteja com vocês.


Um dia, em uma manhã cheia de sol, vocês co-
lheram umas flores. Flores que vocês plantaram. E me ofe-
receram as flores, também numa brilhante manhã de sol.
Sol no firmamento belo de nossa Pátria! Sol nos corações
de vocês: sol da graça. Sol, sobretudo, no meu coração. O
Sol do Espírito Santo que então recebi pelo Sacramento da
Ordem, da minha Ordem Franciscana. As flores, lembro-
me bem, eram cinco margaridas e cada uma delas, na sua
singeleza e brancura, devia representar uma de vocês. E elas
ornaram, na vida, a minha cela de Frade. Nunca mais as
viram... Eu queria depositar uma por uma, ao lado de cada
uma de minhas queridas irmãs, que Jesus chamasse para a
recompensa eterna... Mas, parece-me que não é este o plano
de Jesus. Eu fui primeiro...
E as margaridas, agora, murchas, feias, pelo
tempo enegrecidas, lembram-nos da alegria que tivemos:
vocês plantando-as, colhendo-as e oferecendo-as ao irmão
caçula, que subia os degraus do altar do Senhor! Eu me lem-
bro do momento feliz daquela manhã... E, por isso, quero
dar-lhes de presente as margaridas.
Quando chegar, também, a vez de vocês se des-
pedirem, quem ficar ainda coloque ao lado da irmã a mar-
garida plantada e colhida ao Padre da família. E eu estarei
satisfeito, porque estarei com Jesus. Nunca pensei em deixá-
Lo! Nunca!
Quando o desânimo queria apoderar-se de mim,
pensava no sofrimento Dele, Jesus! Passei minha vida sem-
pre rindo, embora tivesse muitos motivos de chorar... Sejam
também assim, traduzam os sofrimentos pelo riso...
Adeus! Espero que Jesus me receba de braços
abertos para poder esperar por vocês!
Adeus Margaridas!

Vila Militar, RJ, 31 de agosto de 1944.


Frei Orlando.”
“In Memoriam” 203

São João Del Rei e o 11º RI reverenciam os heróis de Montese

O general de exército Adalberto Pereira dos Santos, vete-


rano da FEB que chegou a ocupar a Vice-Presidência da
República, dirige a palavra ao 11º RI (Cerimônia realiza-
da em 1967)

O coronel Iporam Nunes de Oliveira, o legendário tenente


Iporam, Herói de Montese, dirige a palavra ao 11º RI (Ce-
rimônia realizada em 1967).
204 Frei Orlando: o capelão que não voltou

O Exmo. senhor ministro da Guerra enviou ao senhor ar-


cebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, o seguinte
telegrama:
“Queira Vossa Exa. Revma. receber minhas condolências
por motivo do falecimento do nobre e virtuoso capelão militar, Frei
Orlando, sacrificado no cumprimento do dever junto às nossas tro-
pas expedicionárias na Itália. O exército, reconhecido no altruísmo
dos dignos Capelães Militares, saberá guardar com religioso senti-
mento de gratidão o nome e a memória de tão bravo e santo soldado
de Cristo e do Brasil.
(a) General Eurico Gaspar Dutra,
ministro da Guerra.”
O Ex.mo senhor general Cristóvão de Castro Barcelos, en-
tão chefe do Estado-Maior do Exército, visitou Sua Ex.a Dom Jaime de
Barros Câmara, expressando-lhe suas condolências pelo falecimento do
dedicado capelão Frei Orlando.
Dom Jaime de Barros Câmara, tão logo recebeu comunica-
ção oficial do Ministério da Guerra, celebrou, em capela privada, no Pa-
lácio São Joaquim, Missa de Réquiem por alma de Frei Orlando, que foi
assistida pelo seu grande amigo, então coronel José Bina Machado, chefe
de Gabinete do Sr. ministro da Guerra.
Frei Alfredo, da Itália, envia carta ao coronel Bina Machado
“Ilustre amigo Sr. Cel Bina Machado:
Pax et bonuml
É tão duro escrever assim neste momento em que o coração
sente-se oprimido e as lágrimas tentam borrifar o papel.
Nosso caro irmão Frei Orlando já não mais vive. Ontem le-
vamos seu corpo, vestido de hábito franciscano, para o cemitério militar
brasileiro de Pistoia. Seis Capelães estiveram presentes aos funerais, in-
clusive o capelão-chefe do 5o Exército, coronel Madox, que pronunciou
palavras comovedoras, respondidas, depois, por Frei Gil.
A consternação é geral em todo o Regimento, onde Frei Or-
lando era sobejamente conhecido e amado.
Aprouve a Deus tirá-lo do nosso convívio em uma hora que
ele era tão necessário!
Fiat!
“In Memoriam” 205

Monumento à FEB em São João Del Rei

Continuaremos com a proteção desse nosso colega no Céu, a


lutar até o fim, sem esmorecimento, sem temor.
Lux aeterna lucet ei!
(a) Frei Alfredo,
Primeiro-tenente capelão militar.”

Missa de sétimo dia

Ao completar sete dias do infausto acontecimento, foi cele-


brada a Missa Solene na cidade de Porretta Terme, achando-se a matriz
repleta de oficiais, praças e alguns fiéis italianos.
Padre Pheeney, capelão-chefe, que celebrou o ofício, deu a ab-
solvição final, diante de uma essa artisticamente elevada e sobre a qual se
viam a estola do sacerdote e o capacete do militar.
Frei Alfredo escrevia para São João Del Rei, em carta de 28 de
fevereiro de 1945, dirigida ao Superior do Colégio de Santo Antonio:
“Pelo telegrama que lhe enviei, faz uma semana, deverá estar
ciente do que ocorreu com nosso querido e inesquecível Frei Orlando. Não
pode Vossa Exa. Revma. avaliar a consternação que causou em nosso meio
206 Frei Orlando: o capelão que não voltou

o desaparecimento prematuro de tão caro amigo e irmão. Do pracinha


ao mais graduado, todos choravam junto do corpo inerte do desvelado
capelão. Para mim, então, franciscano e seu especial amigo, o golpe foi tão
violento que me paralisou as forças e me tolheu a vontade de trabalhar.
Fiat voluntas Dei!
Frei Orlando não morreu em uma batalha, mas quando ia
vencer uma batalha. Faltava-lhe uma Companhia do seu Batalhão, para
ir visitar e confortar, quando do ataque a Monte Castelo, onde nossos sol-
dados tombavam na investida final. Quiseram demovê-lo desse intento,
dado os graves riscos por que passaria. Assim mesmo ele foi. Na estrada,
uma pedra impedia a passagem do jipe. Frei Orlando salta e põe-se a ob-
servar um sargento ‘partisan’, que remove com sua carabina o obstáculo.
Ideia infeliz! Dispara a arma e uma bala atinge Frei Orlando na base do
coração. ‘Minha Nossa Senhora’ – foram suas últimas palavras. Com a mão
esquerda apertando o lado ferido e com a direita no bolso, retira o terço e
adianta-se uns 20m, para sentar-se à beira da estrada. Ali expira.
Nada pudemos fazer para salvar esta vida tão preciosa. Fui
informado, incontinenti, do ocorrido. Para lá segui. Encontrei o corpo
do querido colega depositado em uma Capelinha dedicada a Santo Anto-
nio. Vestimos nele o hábito franciscano, como nos recomendara, caso ele
morresse. Nessa Capela celebrei Missa de corpo presente. No dia seguin-
te, levamo-lo para o cemitério votivo militar brasileiro, em Pistoia. Esta-
vam presentes aos funerais vários Capelães, inclusive o capelão-chefe
do 5o Exército americano. Todos deixaram, à medida do possível, a linha
de frente para prestarem sua última homenagem ao bravo companhei-
ro. Anteontem realizaram-se solenes exéquias por sua bela alma.
Revmo. Padre Diretor:
Eis, em poucas linhas, a descrição deste drama, drama de
dor e de luto, do qual foi protagonista nosso Frei Orlando. Não nos com-
pete, agora, realçar-lhe as virtudes, coragem, desprendimento, espírito
apostólico, a bondade e, sobretudo, aquela sua alegria contagiosa. O se-
nhor o conheceu perfeitamente.
Sacerdote que sou e capelão, apenas quero obter do seu sa-
crifício, da sua imolação, para mim e todos que mourejamos na Guerra,
um estímulo e um conforto: que Frei Orlando interceda no Céu, por nós
Capelães do Brasil, pelos seus soldados, pelos seus confrades, pelo Colégio
de Santo Antônio, de que tanto falava e para o qual quisera voltar, pelos
inúmeros amigos de São João Del Rei, pelos seus pobres e pelas crianças.
“In Memoriam” 207

Aceite Vossa Exa. Revma. com todos os confrades do Comis-


sariado de Minas Gerais, as minhas sentidas condolências.
O amigo humilde confrade em São Francisco,
capitão-capelão Frei Alfredo.”
Recebida a carta pelo Superior do Colégio Santo Antônio,
escusado seria dizer a profunda mágoa e dor que de todos se apossaram
na velha São João Del Rei.
A referida carta, aliás, nada mais significava do que uma do-
lorosa confirmação do telegrama remetido, havia dias, pelo frade acima
citado.
Os sinos dobraram soturnamente do alto das torres, e São
João Del Rei cobriu-se de luto, cessando todas as suas atividades. O povo
saiu pelas ruas lamentando o ocorrido. E os pobres choravam e se lasti-
mavam, porque perderam seu grande benfeitor.
A Igreja tributou-lhe todas as homenagens a que teve direi-
to, celebrando as suas exéquias dentro da mais profunda reverência ao
morto inesquecível e que tão alto soube colocar o seu apostolado, hon-
rando-o, enobrecendo-o.

Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra


Mundial, no Rio de Janeiro, em cujo mausoléu, entre he-
róis, repousa Frei Orlando
208 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Lápide sobre o túmulo de Frei Orlando

A municipalidade deu à praça, que fica fronteira ao Templo


de São Francisco, o nome de Praça Frei Orlando.
A imprensa de Minas Gerais e do Brasil inteiro ressaltou a
figura do mártir do dever.
Os poetas são-joanenses, seus homens de letras, teceram-
lhe as mais calorosas e comovidas homenagens, artigos, crônicas e poe-
sias sensibilizantes.
A notícia pungente, que sacudiu a terra berço de Tiradentes,
chegou no dia 26 de fevereiro, cinco dias, portanto, após a tragédia. E até
hoje, decorridas mais de duas décadas, o nome e a obra do franciscano
capelão da FEB não foram olvidados, mas vivem nos corações de todos
que o amavam arroubadamente.

Fala a imprensa sobre a tragédia

“O povo brasileiro, através do noticiário vindo da linha de


frente, na Itália, onde combatem nossos soldados expedicionários, tem
sabido admirar e louvar o trabalho humanitário e infatigável dos Cape-
lães militares.
“In Memoriam” 209

Sob a segura direção do tenente-coronel. Padre João Phene-


ey de Camargo e Silva, figura ilustre do clero paulopolitano, desdobra-se
aquele grupo de valorosos Sacerdotes na altruística e espinhosa missão
de assistir, espiritualmente, nossos soldados.
Assim é que, no mais duro das refregas, em que se tem empe-
nhado e colhido tantos louros a nossa Força Expedicionária, a dedicação
dos Capelães tem escrito páginas repetidas de bravura e de dedicação.
Sem medir perigos e sem medir sacrifícios, eles todos já con-
quistaram o alto apreço dos oficiais e praças da FEB.
Dessa forma, aos brasileiros em combate não tem faltado
nem faltará a assistência solícita, oportuna, encorajadora do Serviço Re-
ligioso, que veio reintegrar o Exército de Caxias de uma de suas mais
caras tradições.
Agora, notícias do front anunciam ter tombado em seu pos-
to de honra o Primeiro Capelão Militar Brasileiro.
Trata-se de Frei Orlando Ofm, mineiro de nascimento e
pertencente à província holandesa dos franciscanos. A morte o colheu
quando, na linha de frente, desincumbia-se do mister de socorrer e as-
sistir os feridos.
É o seu sagrado dever de religioso, viva e límpida página de
dedicação e de heroísmo, que aos brasileiros é grato recolher dentre os
feitos que honram a grande Pátria.
Ao dar a sua vida no cumprimento da missão sacerdotal, o
heroico franciscano não somente cumpriu o seu sagrado dever religio-
so, mas ainda acrescentou a dádiva generosa do seu sangue ao tributo
comum dos nossos expedicionários, empenhados, infatigáveis, na con-
quista de um mundo melhor, defendendo, como defendeu, os valores
característicos da nacionalidade e da civilização.
Este é o sentido do significado amplo e confortador, para as
conquistas em que se empenha a Pátria Brasileira, da morte do primeiro
capelão da FEB. É, ademais, o concurso pronto e eficaz da fé religiosa
do Brasil, dessa nossa arraigada, fundamental e indestrutível crença ca-
tólica, a mais esta cruzada do País na defesa e no culto de seus valores
tradicionais, lidimamente cristãos.
Perda dolorosa, não há dúvida, mas, ao mesmo tempo, tes-
temunho valioso dessa mesma comunhão de princípios que irmana o
povo brasileiro em todas as suas conquistas.
210 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Um novo e solene testemunho da fraternidade espiritual, que é


o grande e sólido alicerce da comunhão nacional.
Na Guerra, como na paz, vemos, pois, irmanados e confundidos
os Sacerdotes da Igreja e os defensores do Brasil.
Que admirável lição não se depreende desse acontecimento, a
apontar superior desprendimento de nossos soldados e, com ele, dos nos-
sos Sacerdotes, pela causa maior da Pátria.
Frei Orlando, no altruísmo de seu sacrifício, assinalou um mar-
co de expressiva significação nesse congraçamento da fé religiosa com as
virtudes do soldado e do cidadão, que fixam, felizmente, as grandes etapas
da evolução brasileira.
O Exército, declarou textualmente o Senhor Ministro da
Guerra, reconhecido diante do altruísmo dos dignos Capelães Militares,
saberá guardar, com respeitoso sentimento de gratidão, o nome e a me-
mória de tão bravo e santo soldado de Cristo e do Brasil.
É assim continuada no presente, com o mesmo brilho, a va-
liosa cooperação dos Capelães Militares aos soldados do Brasil. A coo-
peração que levava o grande Caxias a afirmar preferir perder todo um
Regimento, a prescindir da colaboração de um capelão de suas armas, o
heroico Frei Fidelis D’avola.
Frei Orlando foi bem mais que tudo isso, um exemplo impe-
recível, edificante e sobremaneira glorioso!”
(“O Estado de São Paulo”, edição de 01/03/45)

A imprensa de São João Del Rei assim


se expressa:

“As mãos, que abençoavam os homens, indicavam a ver-


dadeira rota àqueles que os caminhos deste mundo palmilhavam,
cegos de ódio e de vinganças, disseminando a discórdia, refutando
a verdade, conspurcando o direito, rasgando os códigos da justiça,
periclitando a ordem, que é a paz. Mãos que curavam os enfermos do
corpo e da alma com o óbolo sacrossanto da caridade e que faziam
mitigar o sofrimento das viúvas, dos órfãos, dos velhos, das crianças
e dos desamparados; mãos que tocavam a Hóstia e o Cálice da Eu-
“In Memoriam” 211

caristia fazendo baixar Deus à Terra, nas montanhas esperançosas


deste Rincão, velho na crença dos nossos antepassados; mãos ungi-
das e que ungiam com óleo bento os moribundos... estas mãos já não
existem mais!
No solo da Itália, em que a neve petrifica a alma de sangue
jorrado das feridas dos homens que lutam pela restauração da paz e da
justiça, jazem hoje os restos mortais do soldado de Cristo, do herói, do
franciscano ilustre, nascido nesta Minas Gerais, cujos habitantes foram,
são e serão os baluartes intemeratos de nossa Pátria.
Morreu Frei Orlando!
A notícia logo chegada divulgou-se por todos os recantos da
cidade, em uma rapidez extraordinária na noite de 26 do corrente. De
boca em boca, ouviam-se os lamentos, o pranto e a saudade! Frei Or-
lando, o Sacerdote que peregrinava desde o romper da madrugada até
o apagar do dia pelas ruas, de casa em casa, de tugúrio em tugúrio, de
bairro em bairro, morreu!
Morreu no posto de combate cruento, pela causa da liberda-
de dos povos, pela defesa do nosso Pavilhão e pela causa de Deus.
Destemeroso e cônscio de sua sacrossanta missão, marchou
na linha de frente em meio à tempestade diabólica das balas, das rajadas
violentas da metralha, do estouro das granadas, e impávido aproxima-
se da região perigosa, quando, então, a morte veio pôr termo à sua alta
missão de apóstolo do bem, do patriotismo e do amor a Jesus Cristo.
Grande brasileiro, herói da hora horrenda que passa e des-
ta maldição que tisna as esperanças moças da defesa da civilização do
Século XX.
Frei Orlando não morreu!
A morte de um justo é gloriosa festa para os Céus.
É a ressurreição na eterna comunhão dos santos mártires
do ideal e da esperança. É a confirmação perene da vida e da doutrina
de um Deus que se imolou pela mesma humanidade, após o advento da
Redenção.
Frei Orlando não morreu!
Ele vive na memória de todos os são-joanenses!”
(O Correio, edição de 04/03/45)
212 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Frei Orlando volta à Pátria *

Tempos depois, após ficar preparada, em definitivo, a morada


eterna dos nossos companheiros que não regressaram, as autoridades e
Governo de nossa Pátria, em um gesto cívico e cristão, envidaram esforços
no sentido de trasladar seus restos para as entranhas do solo natal.
No dia 5 de outubro de 1960, na cidade de Pistoia, que se
transformara em terra adotiva dos nossos saudosos amigos, teve início
a exumação de todos eles.
Exumados, iam sendo colocados em pequenas urnas de ma-
deira. Ato piedoso a revestir-se de aspecto comovedor.
Eles partiram para a guerra cheios de saudades, mas can-
tando e felizes, esperançosos e alegres.
Agora era o nada. O nada em relação às coisas terrenas, por-
que passavam a habitar a verdadeira Pátria que é a Pátria dos espíritos,
onde ninguém morre.
Condecorações de Frei Orlando.

* Os restos mortais se encontram no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda


Guerra Mundial; o osso do braço foi doado à Capela do 11º BIMth, em São João Del Rei.
“In Memoriam” 213
214 Frei Orlando: o capelão que não voltou
“In Memoriam” 215

O 11º RI preserva em sua capela


a memória de Frei Orlando.

Capela do 11o RI

Interior da Capela

Órgão utilizado por Frei Orlando


216 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Dezesseis anos estiveram seus corpos mergulhados no


âmago de uma terra que, posto dadivosa e cristã, era distante do sol de
nossa Pátria.
Não mais contemplaram os nossos companheiros a figura
serena do Cristo, que, braços estendidos, assistira ao nosso embarque,
já distanciado nos anos.
Naquele dia 5 de outubro, no Campo Santo de Pistoia, em
rigorosa posição de sentido, a tropa italiana, formada para o ato cristão,
no seu uniforme de gala, apresenta armas!
Ouvem-se os hinos nacionais do Brasil e da Itália.
O povo em torno, homens, mulheres e crianças derramam
lágrimas. Pois foram eles, agora em cinzas, os seus defensores na cruen-
ta refrega. Porque eram guerreiros, mas, sobretudo, criaturas humanas.
E patrocinando tudo que de bom deram os brasileiros ao povo italiano,
destacava-se, todos bem o sabiam, a figura excelsa e impressionante de
Frei Orlando. Ele, agora, retirado das entranhas da terra, nada mais re-
presentava para aquele povo, senão a lembrança, ainda muito viva, da
magnitude do seu coração.
A Itália soube compreender a Força Expedicionária Brasi-
leira, não apenas no sentido frio e rude da expressão “força”, senão tam-
bém, e sobretudo, no seu alto sentimento de humanidade.
No dia 22 de dezembro de 1960, o Brasil inteiro curvava-
se diante daquelas cinzas trazidas da Itália e que vinham destinadas ao
nosso Panteão da Pátria.
Ao passar pelas ruas do Rio de Janeiro o cortejo das urnas,
o povo chorava.
Sobre cada urna via-se uma pequena bandeira, afirmando a
presença da Pátria e, na simbologia de suas cores, a gratidão eterna de
todos os brasileiros.
O marechal Mascarenhas de Moraes, sereno, mas pálido, vi-
nha à frente, cabisbaixo.
Na esquina da Rua São José com a Avenida Rio Branco, uma
banda de música militar tocou a Canção do Expedicionário:
“... Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu
morra, sem que volte para lá...”
No Panteão, o presidente da República, Juscelino Kubits-
chek de Oliveira, após colocar a urna do Soldado Desconhecido no seu
devido lugar, teve esta eloquente expressão:
“In Memoriam” 217

“As urnas dos soldados brasileiros não vieram de Pistoia


apenas pelo imperativo dos nobres sentimentos afetuosos do nosso
povo, mas porque a sua presença fazia-se necessária em solo Pátrio.”
A banda de clarins do Batalhão de Guardas executou os to-
ques de silêncio, quando do início da cerimônia e, após, “Vitória”, canção
que na beleza de seus versos mostra a própria alma da nossa gente.
Os restos mortais dos 451 soldados do Brasil foram encer-
rados, para sempre, nos subterrâneos do Panteão onde, à beira-mar, no
coração de nossa Pátria, repousam no silêncio e tranquilidade daquele
Templo. Com eles, seus companheiros de luta, também ficavam custo-
diados os restos mortais do franciscano e soldado, que se chamou Frei
Orlando. Lá está ele dormindo o sono eterno do corpo.
Altos desígnios de Deus!
Fosse-nos permitido e escreveríamos como epitáfio naque-
la pedra fria:
“Descansa, aqui, o menino Antonio, o orfãozinho de Morada
Nova!”
Anexo
Depoimentos

C onheci, pessoalmente, Frei Orlando. Aprendi a admi-


rar-lhe a sensibilidade. Permanece, em mim, ainda
hoje, a lembrança daquele sacerdote e educador, que se tornou herói do
civismo nacional com seu sublime exemplo de quem soube oferecer a sua
vida em holocausto pela paz.
Frei Orlando bem pode ser chamado o apóstolo da fé, da es-
perança e da caridade, posto que dedicado filho de Francisco de Assis.
Só homens com os seus excelsos dotes espirituais, com total
desprendimento do material, são capazes de marcar época em meio a
um tempo de tamanho desamor.

São João Del Rei, abril de 1982


Professor Antonio Elias Cecílio

***

“... Frei Orlando, franciscano extremamente ligado ao espí-


rito de São Francisco de Assis, seu pai espiritual pelo grande amor aos
pobres, aos necessitados, aos pequeninos.
Sacerdote profundamente piedoso, que sempre aliou o
amor ao belo, às grandezas divinas, ao gênio de comunicação, alegria,
transmitindo, por assim dizer, o quanto de profundo do amor de Deus
possuía em sua alma.
220 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Dotado de um sublime espírito de patriotismo, serviu volun-


tário, como capelão militar do 11o RI, nos campos da Itália acompanhando
a tropa, a fim de lhe proporcionar apoio espiritual nos momentos angus-
tiantes das batalhas.”

Celeste Maria da Fonseca Banho

***

Ninguém melhor do que o tenente Gentil Palhares para fixar


para a posteridade a biografia de Frei Orlando (Ofm), Patrono do Serviço
de Assistência Religiosa do Exército. Ambos integraram o 11o Regimento
de Infantaria, atual Regimento Tiradentes, sediado em São João Del Rei,
terra natal do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o imortal Tiradentes.
Frei Orlando, guerreiro de Cristo e herói do Regimento Tira-
dentes, merece ser cultuado com ardor patriótico, pois a vida do bravo
capelão militar da FEB oferece os mais belos ensinamentos, mercê de
seu acentuado civismo, zelo pastoral e amor ao próximo.
Parabenizamos ao festejado autor e à Biblioteca do Exérci-
to Editora pela oportuna edição de uma obra deveras importante para
melhor conhecimento da ativa participação brasileira na guerra contra
o nazifascismo.

Professor Sebastião de Oliveira Cintra

***

“... Frei Orlando passou pela vida fazendo o bem e procu-


rando enquadrar sua curta existência nos moldes do Santo Fundador
de sua Comunidade, o Taumaturgo São Francisco de Assis. Dedicou sua
preciosa vida aos que tombaram feridos na Segunda Guerra Mundial, na
Itália. Aqui em São João Del Rei, além de seu relevante trabalho religioso,
participou, também, na formação dos jovens, no antigo Ginásio Santo
Antonio, como brilhante Professor.”

Em 28 de abril de 1982
Professor José Pedro Leite de Carvalho
Anexos 221

***

Li certa vez, não me lembro onde, que “quando Deus quer


bem a um de seus servidores, abre para ele as portas da inspiração”.
Frei Orlando, a meu ver, enquadra-se perfeitamente, ao que os fatos in-
dicam, nesse bonito aforismo. Era, como religioso, como homem e como
criatura humana, uma pessoa extraordinariamente bem inspirado em
suas ações. Acertava sempre, por intuição, por bondade e por inteligên-
cia, principalmente nas suas obras de caridade, nas quais o seu amor ao
próximo era o ponto alto de sua personalidade de excepcional benfeitor
dos menos favorecidos da sorte, razão por que sua memória é hoje com
tanta justiça reverenciada.

Lauro Novaes

O Serviço de Assistência Religiosa


no Exército Ontem..

Para falarmos do Serviço de Assistência Religiosa, no Exér-


cito, teríamos que remontar aos meados do século passado quando pelo
Decreto nº 747, de 24 de dezembro de 1850, o Governo Imperial apro-
vou o Regulamento da Repartição Eclesiástica do Exército.
Seu Quadro de Efetivos era constituído de quatro classes de
Capelães: os da Ativa, os Agregados, os Avulsos e os Reformados, além dos
que ingressavam no Serviço como Contratados, somando, ao todo, 24 Ca-
pelães, entre capitães, primeiros-tenentes, e alferes (segundos-tenentes).
Criado o Quadro, os Capelães tiveram explicitados seus direi-
tos, deveres, bem como, sua fisionomia militar.
Classificados em suas Organizações Militares, os novos Ca-
pelães tiveram atuação destacada, sobretudo, na Guerra do Paraguai, as-
sim como onde se encontrasse o Exército, no cumprimento de sua mis-
são. Dentre eles, avultam as figuras de Frei Fidélis d’Avola, Frei Salvador
de Nápoles, o Cônego Serafim Gonçalves dos Passos Miranda e o Padre
Fortunato José de Sousa.
Em suas “Memórias”, o Visconde de Taunay alude à extraor-
dinária atuação dos Capelães Militares, durante toda a Guerra do Para-
guai, onde não faltou a assistência religiosa, em situações difíceis.
222 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Falando de Frei Fidélis D’Avola, assim se refere Taunay: “...


tinha grande coragem e sangue frio e ar eminentemente caridoso e ab-
negado. Digno de grande respeito, distinguia-se pelo espírito cristão e
sacerdotal, quer no campo de ação, quer na prática da dedicação hospi-
talar. E com ele, se apontavam diversos...”
No dia 14 de janeiro de 1869, ao deixar o Comando das Ar-
mas Brasileiras, em operações na Guerra do Paraguai, o Generalíssimo
Luís Alves de Lima e Silva, nosso inolvidável Caxias, na sua memorável
Ordem do Dia, nº 272, externou a sua gratidão e o seu reconhecimen-
to a todos que “religiosamente cumpriram o seu dever”. Referindo-se
ao Corpo Eclesiástico, Caxias exalta a ação dos Capelães e, entre estes,
“primando por suas virtudes evangélicas, os virtuosos capuchinhos Fr
Fidélis d’Avola, Fr Salvador de Nápoles, o Cônego Serafim Gonçalves dos
Passos Miranda e o Padre Fortunato José de Sousa”. Era a gratidão e o
reconhecimento do nosso Patrono, ao trabalho, ao desprendimento e à
abnegação dos sacerdotes que, nos hospitais fixos ou de sangue, ou ain-
da, nos campos de batalha, tão bem souberam cumprir a sua missão.
Terminada a guerra, o Serviço Religioso do Exército, até en-
tão denominado Repartição Eclesiástica do Exército, passou a denomi-
nar-se Corpo Eclesiástico do Exército, pelo Decreto nº 5.679, de 27 de
junho de 1874.
Este Corpo Eclesiástico era constituído de: um capelão-mor,
com a graduação de coronel, um capelão tenente-coronel, um capelão
major, 16 capelães capitães e 60 capelães tenentes. Este, o Efetivo do
novo Quadro.
Pelo novo Regulamento, os Capelães seriam “considerados pa-
rochos dos corpos e estabelecimentos em que servirem”. Além de suas com-
petências, cabia-lhes, ainda, “catechisar, quando empregados nas colônias,
presídios e fortalezas das fronteiras, os indígenas das tribus vizinhas” (§ 6º,
do Art 13, do regulamento para o Corpo Eclesiástico do Exército).
As promoções seguiam o seguinte critério: “metade por me-
recimento e metade por antiguidade, para o posto de capitão: por mere-
cimento, para o de major; e por antiguidade para os de tenente-coronel
e coronel” (Art 39, do Regulamento).
Através do artigo 20, do mesmo Regulamento, vemos o inte-
resse do Exército imperial pela formação religiosa dos seus Efetivos: “Os
capellães capitães e os capellães tenentes terão exercício nos hospitais,
Anexos 223

fortalezas, estabelecimentos de instrucção, fabricas e presidios milita-


res, corpos de qualquer das armas, esquadrões e companhias isoladas”.
Ao longo dos meus quase trinta e nove anos de serviço ao
Exército, e nove, à frente da Chefia do Serviço de Assistência Religiosa da
Nossa Força, posso afirmar, “in conscientia sacerdotis”, que o interesse
dos Chefes de ontem é o mesmo dos Chefes atuais. E que o Exército de
Caxias continua imutável nas suas tradições religiosas.
Mas... sempre o mas. Um ano e dois meses, após a proclama-
ção da República, os princípios liberais e positivistas, reinantes à época,
separaram a Igreja do Estado e, com esta separação, a extinção do Corpo
Eclesiástico do Exército.
Mas... ainda o mas. Só, que agora, esta adversativa nos traz
alvíssaras...
Na primeira década deste século, na saudosa e jamais esque-
cida Escola Militar do Realengo, um grupo de cadetes, autenticamente
católicos, entre eles, Juarez Távora, Francisco José Pinto e Barreto Lins,
fundava a Conferência Vicentina de São Maurício, sob a orientação e bên-
çãos do piedoso e bondoso pároco Padre Miguel de Santa Maria Mouchon.
Já oficiais, tornaram-se, aqueles bravos cadetes, fundado-
res da União Católica dos Militares, graças ao bom Deus, ainda hoje
existente.
Não seria demais dizer que o atual Serviço de Assistência
Religiosa nas Forças Armadas nasceu da fé intemerata daqueles abne-
gados e corajosos cadetes que, em meio ao espírito liberal da época,
souberam guardar, incólume, a formação religiosa que lhes fora plas-
mada n’alma.

... Hoje

Estamos, agora, no longínquo 1939... A guerra, com todo o


seu séquito de destruição e horrores, eclodira na Europa quando, ator-
doada, a humanidade assistiu, no dia 1o de setembro de 1939, a invasão
da Polônia pela Alemanha. Dois dias depois, era a vez da Rússia que, pal-
milhando os mesmos caminhos de Hitler, buscava, também, a sua parti-
lha, na divisão do território polonês. Às duas ditaduras, ajustava-se bem
o provérbio latino: “similia cum similibus, facile congregantur”...
224 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Deflagrada a guerra, as chamas do conflito alastraram-se, ra-


pidamente, na ânsia voraz de fazer rolarem vidas, esmagarem-se princí-
pios, destruírem-se tradições.
Por sua situação geográfica, face ao norte da África, viu-se o
Brasil seriamente ameaçado na integridade do seu território. Essa amea-
ça, infelizmente, viria concretizar-se, depois, com o torpedeamento de 31
navios da nossa Marinha Mercante, com a perda de 971 vidas brasileiras.
Em face da agressão nazista à nossa Pátria, o Governo brasi-
leiro, por meio de seu Ministro das Relações Exteriores, rompia relações
com a Alemanha, Itália e Japão. No Palácio Monroe, naquela tarde de 28
de janeiro de 1942, dávamos o primeiro passo para a guerra.
No dia 22 de agosto, do mesmo ano, “diante da comprova-
ção dos atos de guerra contra a nossa soberania, foi reconhecida a situ-
ação de beligerância entre o Brasil e as nações agressoras – Alemanha
e Itália...”
Finalmente, no dia 31 de agosto de 1942, por meio do De-
creto nº 10.358, foi declarado o estado de guerra em todo o território
nacional.
Tudo fizera o Brasil para se manter, estritamente, dentro
da esfera da neutralidade, malgrado as agruras sofridas com o bloqueio
marítimo, este, com profundos reflexos em sua economia. Como se não
bastasse, a ousadia e a felonia do inimigo atingiram seu vértice com um
milhão de toneladas de navios torpedeados e afundados, muitos deles,
singrando as águas brasileiras.
Estava, assim, aberto o caminho para a guerra, na qual se
cobririam de glórias as Forças Armadas Brasileiras.
Nove de agosto de 1943. Nesse dia, pode-se dizer, nasceu a
Força Expedicionária Brasileira – FEB, com a organização da 1ª Divisão
de Infantaria Expedicionária – 1ª DIE. Fixou-se-lhe o Efetivo, mas, sem-
pre o mas... faltavam, nele, os Capelães.
A Força Expedicionária Brasileira adestrava-se nos campos
de Gericinó, e nas lonjuras do Engenho Aldeia, em Pernambuco.
O Primeiro Escalão da FEB, adestrado no Rio, prepara-se
para desfilar. A Avenida Rio Branco, toda engalanada, regurgita de es-
pectadores, ansiosos por aplaudirem os “pracinhas”, que, nos longes da
velha Europa, lutariam pela sobrevivência das liberdades, agora amea-
çadas pelo nazi-fascismo.
Anexos 225

No palanque presidencial, o Chefe de Estado, doutor Getúlio


Dornelles Vargas. Ao seu lado, o Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jayme
de Barros Câmara.
Surge a tropa. As palmas estrugem vigorosas e prolongadas.
E a velha Avenida, fremindo, ecoa os bravos e os vivas dirigidos aos sol-
dados.
Tendo como “cerra-fila” as Enfermeiras, o desfile chega ao
seu término.
Voltando-se para Dom Jayme, perguntou-lhe o Presidente:
– Gostou, Senhor Arcebispo?
E o futuro Cardeal do Rio de Janeiro, respondeu-lhe:
– Gostei, Presidente, mas, faltou alguém junto aos nossos
pracinhas”...
– Quem? perguntou-lhe o Presidente.
– Os capelães, respondeu o Arcebispo.
– Amanhã, mesmo, criarei o Corpo de Capelães, retrucou o
Presidente.
No dia seguinte, era criado o Corpo de Capelães, para a For-
ça Expedicionária Brasileira.
Recuando no tempo, vemos que o Presidente Getúlio Vargas,
atendendo ao reparo do saudoso e santo Arcebispo, naquela memorável
tarde de 25 de maio de 1944, atentara para o que já dizia Rui Barbosa,
em um dos seus célebres discursos: “Não pode haver disciplina na terra
sem a do céu”. Era como se o genial brasileiro quisesse advertir que não
pode haver um Brasil, digno dos tesouros inapreciáveis e das reservas
humanas que possui um Brasil que não seja desfigurado por teorias de-
sagregadoras e materialistas, sem o concurso do Deus dos Exércitos, o
mesmo Deus de Caxias, Inhaúma e Eduardo Gomes.
Assim o Decreto-lei nº 5.573, de 26 de maio de 1944, criava
o Serviço de Assistência Religiosa, considerando, entre outras razões,
“que em operações de guerra as forças brasileiras sempre tiveram assis-
tência religiosa”.
Entre os Capelães que integraram a Força Expedicionária
Brasileira, destacou-se a figura extraordinária de Frei Orlando, o cape-
lão Antonio Alvares da Silva, morto às vésperas da tomada de Monte
Castelo, no dia 20 de fevereiro de 1945, quando fazia a sua última cami-
226 Frei Orlando: o capelão que não voltou

nhada para levar o alento da fé aos soldados do seu batalhão, em posição


para o ataque final àquele bastião inimigo.
No dia 28 de fevereiro de 1946, o Decreto nº 20.680 erigia
Frei Orlando em Patrono do Serviço de Assistência Religiosa do Exér-
cito. Era a gratidão, era o reconhecimento àquele que tão bem soubera
cumprir a missão que a Pátria e a Igreja lhe confiaram.
Terminada a guerra, o Decreto-lei nº 8.921, de 26 de janeiro
de 1946, estendia a Assistência Religiosa à Marinha e à Força Aérea.
O Corpo de Capelães das Forças Armadas, desde sua criação,
passou por várias modificações. Todas elas, contudo, não conseguiram
dotá-lo de uma estrutura organizacional coerente com sua importância
no contexto das Forças Armadas.
Apesar das mudanças sofridas em sua estrutura, o Serviço
de Assistência Religiosa carecia de segurança. Parte de seus integrantes
não tinha estabilidade funcional. A própria Lei 5.711, de oito de outubro
de 1971, conquanto houvesse ampliado o Efetivo do Corpo de Capelães,
para que ele pudesse fazer face às suas missões dentro das Forças Ar-
madas, em contínua expansão, silenciou no tocante à ascensão dos Ca-
pelães na escala hierárquica.
A conveniência de os Capelães ascenderem a níveis hierárqui-
cos mais elevados, não decorria, apenas, de uma legítima aspiração dos que
compunham os Quadros da Assistência Religiosa; ela se revelava indispen-
sável ao funcionamento do Serviço como um todo, pois, também, ele care-
cia de uma escala hierárquica, que lhe servisse de estrutura e de princípio,
única forma de dar fundamento legal e ético ao exercício dos vários níveis
de Chefia que deviam existir no Serviço.
Todas essas lacunas, existentes nos instrumentos legais que
objetivaram as várias modificações por que passou o Serviço de Assis-
tência Religiosa nas Forças Armadas, foram suprimidas com a promul-
gação da Lei nº 6.923, de 29 de junho de 1981.
A nova organização do Serviço prevê, em seu Efetivo, um
coronel capelão-chefe, 6 tenentes-coronéis Capelães para as Subchefias
dos Comandos de Exércitos e Militares de Área, 7 majores capelães, 16
capitães capelães e primeiro e segundo-tenentes capelães, 20.
Os candidatos à Capelania Militar serão submetidos a um
estágio de instrução e adaptação, com duração de até 10 meses. Esse
estágio constará de:
Anexos 227

a) Um período de instrução militar geral na Escola de For-


mação de Oficiais da Ativa da Força Singular respectiva
(AMAN);
b) Um período como observador em uma Escola de Forma-
ção de Sargentos da Ativa da Força Singular (EsSA);
c) Um período de adaptação em um Corpo de tropa, duran-
te o qual, o candidato será observado no desempenho de
suas atividades pastorais.
Durante o estágio, o candidato será equiparado a aspirante
a oficial, e fará jus, somente, à remuneração correspondente.
O estágio poderá ser interrompido nos seguintes casos:
I – a pedido, mediante requerimento do interessado;
II – no interesse do Serviço;
III – por incapacidade física, comprovada em inspeção de
saúde; e
IV – por privação do uso de Ordens, ou do exercício da ati-
vidade da religião a que pertencer o estagiário.
Pelo artigo 10, da nova Lei, parágrafo 1º, do artigo 1º, da
Portaria Ministerial nº 1.348, de 21 de dezembro de 1981, cada Ministé-
rio Militar atentará para que o exercício de religiões seja proporcional ao
número de praticantes na área a ser atendida pela assistência religiosa.
Decorrente desta última reestruturação do Serviço, está
previsto, no Quadro de Distribuição de Efetivos, um capelão para a Es-
cola Preparatória de Cadetes do Exército, tendo em vista a importância
daquela Organização Militar de Ensino, e seus reflexos na formação mo-
ral e intelectual de uma acentuada parcela da nossa juventude, em cujas
mãos estarão, amanhã, os destinos do Brasil.
Ao finalizarmos esta retrospectiva do SAREx, vale dizer que
o Serviço de Assistência Religiosa nasceu de uma confluência de interes-
ses espirituais e patrióticos – da Religião e das Forças Armadas.
Às Forças Armadas, a Assistência Religiosa veio oferecer uma
motivação nova, mais profunda, porque sagrada, para o cumprimento do
dever; não só, mas também veio lembrar que o amor ao Brasil implica
amor ao cristianismo e que, se pátria é a conjugação desses três fatores:
“terra, homem e tradições comuns”, a defesa da Pátria brasileira não pode-
rá prescindir da defesa mais antiga, mais forte, mais onipresente e inspi-
radora de todas as tradições familiares e sociais do Brasil: o cristianismo.
228 Frei Orlando: o capelão que não voltou

À Religião, o Serviço veio proporcionar a possibilidade de um


frutuoso contato com a juventude brasileira, que se renova “todos os anos
dentro dos quartéis, precisamente naquela idade em que mais se costuma
privar de orientação espiritual. A quebra da unidade do mundo cristão,
o surto de ideias e costumes, o materialismo, o paganismo, a indiferença
e o liberalismo religiosos privaram a Igreja daquela posição focal que ela
manteve por séculos na sociedade. De forma que, se o apostolado quiser
ser eficiente e proveitoso, já não poderá encerrar-se nos muros das igre-
jas, mas, sim, voltar às suas formas e inspirações primitivas, para atuar em
um mundo em tudo semelhante ao mundo dos tempos apostólicos.
É nesse sentido que o Serviço de Assistência Religiosa co-
loca-se na primeira linha do combate espiritual, nas trincheiras mais
avançadas do cristianismo, saindo de posições acaso mais garantidas,
porém insuficientes, e levantando suas tendas nas Organizações Milita-
res, por nós, capelães, assistidas.
Nesse combate espiritual, e nesse mourejar de todos os dias,
em prol da formação moral, religiosa e espiritual do nosso soldado, o Ser-
viço de Assistência Religiosa nas Forças Armadas, de modo particular, em
nosso Exército, tem tido de Deus a prodigalidade de Suas bênçãos, e de Ma-
ria Santíssima, nossa Mãe do Céu, sua contínua e maternal proteção.
Eis, meus caros capelães, meus caros irmãos do Exército, o
SAREx: ONTEM, e HOJE.
Mons Alberto da Costa Reis
Cel CpI Ch do SAREx
(Transcrito do Boletim Informativo do SAREx, nº 037, de ju-
nho de 1982.)

Como surgiram as Capelanias Militares



Talvez, nem todos saibam como surgiram as Capelanias Mili-
tares, entre nós. Aqui vai, por isso, um testemunho absolutamente exato.
Preparava-se o Exército para bater na Europa os Países do
Eixo: Alemanha, Itália e Japão.
Dois coronéis gaúchos, profundamente religiosos, sentiram
a responsabilidade de se perderem eternamente as almas dos que tom-
bassem nos campos de batalha e, eventualmente, não estivessem em es-
tado de graça, perante Deus.
Anexos 229

Procuram-me para estudarmos o assunto e levá-lo ao então


Ministro da Guerra, o Exmo. general Eurico Gaspar Dutra, que, aceitando
as razões alegadas, autorizou verbalmente o prosseguimento dos estudos.
Achamo-nos naquela fase de elaboração das normas e mo-
tivos a serem apresentados ao Sr. Ministro da Guerra, para que Sua Ex-
celência, quando tratasse do assunto com o Exmo Sr. Presidente Getúlio
Vargas, já o apresentasse bem planejado.
Nesse meio tempo, um zeloso eclesiástico, certamente bem
intencionado, conversa com o Sr. Presidente Getúlio Vargas sobre a ne-
cessidade da assistência religiosa aos combatentes da FEB e do anda-
mento em que se achavam as iniciativas.
Sua Excelência, ignorando aquela perspectiva, conversou
segundo consta com o seu fiel Ministro da Guerra que nada ocultou, em-
bora estivesse aguardando os últimos retoques do planejamento, para
então os apresentar.
Como o Sr. Presidente não mandasse prosseguir, houve uma
pausa, um silêncio sobre a assistência religiosa à FEB. Parecia que todo
o plano já traçado seria trabalho inútil.
Entretanto, vez por outra, a imprensa avisava: “A Cobra Fu-
mou” o que significava: está próxima a partida da Força Expedicionária
Brasileira.
Chegou o dia do último desfile, antes do embarque. No pa-
lanque oficial, achava-me na última fila, pois fora o derradeiro a chegar. A
gentileza das autoridades civis e militares colocaram-me entre o Sr. Pre-
sidente e o Almirante Aristides Guilhen, Ministro da Marinha. Ao passar
a tropa, voltei-me para o Exmo. Sr. Presidente e arrisquei-me a observar:
“Exª, está faltando uma força no desfile; vejo médicos, enfermeiras, mas
nenhum capelão. Sua Exª baixou os olhos. E eu, receando haver tocado
em ponto delicado, voltei-me para o Exmo. Sr. Ministro da Marinha, que
então me contou já haver marinheiros do Brasil em combate na Europa.
Com surpresa minha, dois minutos após, o Sr Presidente Ge-
túlio Vargas me fala: “Depois de amanhã, sairá o decreto” – admirado, olhei
Sua Exª que percebeu não haver eu atinado com o sentido de sua frase. E,
por isso, continuou: – “Sim, o decreto das Capelanias Militares.” Imagine-se
o meu agradecimento à imediata solução de tão importante caso.
Logo procurei os coronéis José Bina Machado e Raul Silveira
de Melo, os organizadores das Capelanias Militares do Brasil, cabendo
230 Frei Orlando: o capelão que não voltou

ao então Ministro da Guerra, Marechal Eurico Gaspar Dutra, torná-las


permanentes pelo Decreto nº 6.535, de 26 de maio de 1944.

Jaime de Barros Câmara29

O SAR30 NO REGIMENTO TIRADENTES


A atuação brilhante de Frei Orlando

Com a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e
a criação de uma Força Expedicionária Brasileira (FEB), a pedido de D.
Jaime de Barros Câmara, Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, ao então
Presidente da República, Dr. Getúlio Dorneles Vargas, após monumental
desfile de militares pela Avenida Presidente Vargas, foi criado o SAR, para
integrar-se à FEB. Isso se deu no dia 26-5-44 pelo Decreto-lei nº 6.535.
O referido Decreto-lei foi regulamentado pela Port, nº 6.573
de oito de junho daquele mesmo ano, quando era Ministro da Guerra
o general Eurico Gaspar Dutra. O Decreto estabelecia a prestação de
assistência moral, religiosa e cívica às Unidades Militares, dentro da
disciplina de estilo: para fortalecer os laços de cordialidade, confiança,
otimismo, serenidade e valor de todos, em qualquer situação; atender
aos doentes e feridos, nos hospitais e campos de batalha; e assistir os
prisioneiros, refugiados etc. Desse modo, a Presidência da República re-
conhecia, formalmente, o valor da fé e da formação religiosa cristã, para
o fortalecimento das energias morais, disciplina e bons costumes, em
todas as Unidades Militares do Brasil.
Entusiasmados o Episcopado Brasileiro e Igrejas Cristãs
com essa notável iniciativa governamental e do Cardeal-Arcebispo do
Rio de Janeiro, o Estado de Minas Gerais apressou-se a dar a maior co-
bertura possível à execução do Decreto: sob a inspiração e iniciativa do
Arcebispo de Belo Horizonte, D. Antonio dos Santos Cabral, um grupo de
Senhoras daquela cidade ofereceu, à Capelania Militar da FEB, 12 cai-
xas ou altares-portáteis, totalmente equipados, com todos os pertences
necessários ao fornecimento do culto católico; e ainda destaca de seu
clero dois sacerdotes, vigários de paróquias, para se integrarem à FEB,

29
Na época, Arcebispo do Rio de Janeiro e primeiro vigário Castrense do Brasil.
30
Serviço de Assistência Religiosa.
Anexos 231

no Serviço de Assistência Religiosa: o Rvmo. Pe. Olavo Ferreira de Araújo


e a nossa modesta pessoa.
Se uma Unidade da FEB é organizada em Minas Gerais, na
cidade histórica de São João Del Rei, será dali que sairá o primeiro ca-
pelão militar, o Rv.mo Antonio Alvares da Silva (Frei Orlando), exímio
professor no antigo e tradicional Colégio Santo Antônio e que já presta-
va assistência religiosa aos militares do Regimento de sua cidade, onde
era muito estimado. Atendendo ao apelo patriótico de nosso Arcebispo,
partimos para o Rio de Janeiro, em fins de junho daquele ano, e no dia
13-07-44 era publicada no Diário Oficial da União a nossa nomeação.
No Rio, já encontramos o Rv.mo Frei Orlando, franciscano,
e a nós, dentro de poucos dias, viera associar-se outro franciscano – o
Rv.m° Pe. Waldemar Settaro (Frei Alfredo).
Como Capelães de um Regimento constituído quase todo de
elementos inicialmente oriundos de Minas Gerais, de famílias tradicio-
nalmente cristãs, logo estabelecemos contato com o Comando do então
11º RI, hoje Regimento Tiradentes, para a construção de um modesto,
mas imponente Cruzeiro na Vila Militar, no morro do Capistrano onde
estava acantonada aquela Unidade; e, também, de um tablado elevado,
para ali celebrarem-se os atos do culto religioso, às tardinhas e primei-
ras horas da noite.
Ali anunciávamos a palavra de Deus; celebrávamos, distri-
buíamos a S. Eucaristia e se fortalecia, religiosa e patrioticamente, o âni-
mo dos soldados expedicionários que, dentro em breve, partiriam para
a Itália, em defesa da Pátria ultrajada e ofendida com o afundamento de
navios brasileiros nas costas do Oceano Atlântico.
Após os atos religiosos, sobretudo à recitação do terço de
N. Senhora, durante 20 a 30 minutos, eram ensinados, pelos Capelães,
cantos religiosos, patrióticos e populares diversos, com entusiasmo e
vibração de Frei Orlando, e de todos, despertando-se e alimentando-se
no ânimo dos militares um clima de fé, segurança, paz e otimismo, em
face das preocupações de quem vai para a guerra; sobretudo, amenizan-
do em seus corações as saudades de suas famílias, já distantes, mesmo
na Pátria. Frei Orlando, alma jovem, sacerdote alegre e modelar, não se
cabia de contente, diante da alegria, quase celeste naquelas plagas cario-
cas do Rio. Diante dele ninguém ficava triste.
Foi desses encontros que nasceram os Cantos tão conheci-
dos hoje, mas de origem militar e febiana: “Eu Confio em Nosso Senhor
232 Frei Orlando: o capelão que não voltou

com Fé, Esperança e Amor”; “Ao Fitar do Brasil a Bandeira”; “Ó Soldado


e Cristão Varonil”; “Que tu Sejas Fiel ao Brasil”. A música da Canção do
Soldado. E esse outro a N. S.: “Ó Virgem Imaculada, Salva na Guerra, a
Nossa Terra, a Nossa Pátria Muito Amada”.
Era naquele acantonamento, no Morro do Capistrano, que
se ministravam as instruções militares necessárias, atendia-se aos cui-
dados especiais de proteção à saúde e cuidava-se da formação moral,
cívica e religiosa de nossos homens convocados para a missão em de-
fesa da Pátria, além-mar; tirados eles que foram do “habitat” em que
estavam: de sua escola, de sua oficina de trabalho, do recesso de suas
famílias, do interior desse imenso Brasil; eram os reservistas, as forças
vivas da nação que os convocava. “À Pátria nós tudo devemos, nada se
deve pedir. O auriverde pendão nos ordena lutar, vencer.”
O ambiente era relativamente agradável e eufórico; ali per-
manecemos uns dois meses, até o tão esperado “Dia do Embarque” a 21
de setembro de 1944.
Prevendo e provendo-se o necessário às nossas funções, por
duas vezes, os Capelães Militares visitamos as Instituições Religiosas e
Colégios no Rio, em campanha para adquirirmos objetos religiosos di-
versos: terços, medalhas ou folhetos avulsos a serem distribuídos aos
soldados. Grande foi a generosidade e o sentimento religioso de Colé-
gios, Congregados Marianos e Filhas de Maria, da mais fina flor juvenil
do Rio de Janeiro, a quem constituímos, como recompensa, Padrinhos
ou Madrinhas de Honra dos soldados integrantes da FEB na guerra.
Por sua vez, o Ministério da Guerra mandou imprimir milha-
res de livrinhos de instrução e orações – o “Manual do Soldado Brasilei-
ro”; também fez cunhar igual número de medalhas com a efígie de Nossa
Senhora da Conceição, Padroeira do Exército Nacional, desde o tempo do
Império, de um lado e no verso, o Mapa do Brasil, com uma Cruz e o lema
“Pela Pátria e pelo Dever” da ordem de Santa Cruz dos Militares.
O apoio dos Chefes Militares à missão dos capelães era evi-
dente, em todas as Unidades onde serviam; e no Quartel-General, sobre-
tudo, nas pessoas do cel José Bina Machado e seu oficial-adjunto major
Regadas; o cel Bina era Chefe de Gabinete do então Ministro da Guerra,
gen Eurico Gaspar Dutra, mais tarde Presidente da República.
Era esse o clima de ação dos Capelães Militares, que empe-
nhavam o melhor de seu entusiasmo à função a que foram chamados na
guerra e na paz.
Anexos 233

Entre esses capelães sobressaíam, entre outros, um bene-


ditino, D. Francisco Leite, do Mosteiro da Bahia; e um franciscano, Frei
Orlando, que, com a santidade de sua vida e a alegria de seu coração,
contagiava os nossos pracinhas, orientando-os para que, no Brasil e no
solo europeu, fossem dignos de sua farda.
Impressionante era a atuação de Frei Orlando, como cape-
lão-chefe, no Regimento Tiradentes; conhecia pelo nome quase todos,
graduados ou não, acompanhando-os desde São João Del Rei, a cidade
de origem da Unidade.
Culto, piedoso e exemplar, gozava de incontestável estima e
confiança dos Chefes Militares, de quem era, por vezes, mentor e diretor
de consciências.
Sempre brincalhão e bem-humorado, de todos se fazia ami-
go, ganhando-os, como militar e como sacerdote, para Deus, o senhor
dos Exércitos.
Com o seu misterioso cachimbo, deixava nuvens de fuma-
ça, quando, entre a oficialidade da Companhia de Comando Regimental
(CCR), em marcha livre, destinávamo-nos ao Cais do Porto, para o espera-
do embarque ao front da Itália; com humorismo jocoso, assim se exprimia
com as suas agradáveis risadas: “Agora, gente, a cobra vai fumar mesmo.”
Na viagem a bordo, por entre os diversos compartimentos
do navio, pelos corredores, às vezes apertados, quentes e sem confor-
to, ainda encontrava lugar para rezar, cantar e contar piadas, brincando
com todos.
Nos camarotes, onde se abrigavam grupos de Capelães, len-
do ou rezando, fazia-se o mentor de todos; como bom conhecedor da
língua inglesa, era o confessor experimentado, e procurado pelo pessoal
da guarnição do navio.
Celebrou missas vespertinas, no convés do navio Gen Meygs
nº 114, a todos encantando com sua palavra simples, precisa e fluente, quer
expondo a palavra divina, persuadindo e convencendo, quer prevenindo to-
dos sobre possíveis marchas e contramarchas e de equilíbrio humano na
manutenção da virtude, da dignidade pessoal de cada um e no cumprimen-
to do dever, como brasileiros, longe de sua pátria e de suas famílias.
No front de Guerra. Chegados que fomos à Europa, em outu-
bro de 1944, os capelães do Regimento Tiradentes distribuíram-se pelas
diversas Unidades: o Pe. Francisco Eloi de Oliveira – o Pe. Eloi – assumiu
234 Frei Orlando: o capelão que não voltou

o 1º Batalhão; Frei Orlando, o 2º Batalhão e as Companhias Regimen-


tais; e o Frei Alfredo assistiria o 3º Batalhão.
Após o desembarque no Porto de Livorno, às proximidades
da histórica cidade de Pisa, todo o contingente do 2º Escalão da FEB
acantonou nos campos de San Rossore, onde entramos em contato dire-
to com a guerra e suas terríveis consequências: a destruição de cidades,
pontes, vias férreas e meios de comunicação; a fome e a miséria moral;
a orfandade e a viuvez; comércio, quase inexistente; carência de tudo e
de todos. Somente se ouvia: “Niente pane, tedesco portare via tutto”. E
outras exclamações a ferir o coração da gente!
Tínhamos diante de nós um povo sofrido e angustiado. Se,
a princípio, a população local permanecia tímida e receosa com esses
novos estrangeiros em sua Pátria, por causa das informações de outras
tropas desumanas, que por ali passaram e a oprimiram, mui depressa,
aquela gente compreendeu que os brasileiros eram de uma raça irmã e
amiga; um povo amante da paz e que jamais desejou ou promoveu guer-
ras de conquista; os novos dominadores da Itália ali foram para liber-
tá-la, totalmente, do jugo nazi-fascista opressor, e que constituía assim
uma ameaça para o mundo inteiro.
Assim compreendendo, o acantonamento de San Rossore
vai tornar-se, logo, em um centro de romaria para um povo pobre e fa-
minto, de velhos, pois grande parte de sua gente nova, ou já morrera
ou se encontrava presa, ou em outras frentes de guerra; e de senhoras,
moças e crianças, sobretudo, a buscar um pedaço de pão, um “cigarrete
per papa”, uma “escatoleta” e “chocolata per bambini”.
Nessa situação, o brasileiro alarga o seu coração e a todos
acolhe, humana e cristãmente; e àqueles que nada têm, porque, “tutto
destruto, robinato e canonato e bombardato”, diziam.
Últimos dias de Frei Orlando – Monte Castelo. Monte Cas-
telo constituía uma das maiores fortalezas inimigas para o 5º Exército
americano, ao qual estava integrada a Força Expedicionária Brasileira.
Era uma elevação de diversos montes ou colinas, quase uma pequena
cordilheira, bastante extensa. Por duas vezes o Regimento Tiradentes
teve que enfrentar aquela posição, onde se encontravam bem abriga-
dos os alemães, em “fox-hole”, casamatas e outras trincheiras. Em fins
de novembro e princípios de dezembro, ali o nosso 1º Batalhão fizera o
seu batismo de sangue; muitas vidas ficaram nas imediações de Abetaia
Anexos 235

e Belvedere. Houve substituições em diversos comandos de companhei-


ros de nosso Batalhão.
Foi celebrada uma missa solene, no dia seis de dezembro,
dia de S. Nicolau, por nós e pelo capelão-chefe, o então ten cel Pe. João
Pheney Camargo, em um altar, tendo como frontal a Bandeira Nacional;
com a palavra ardente, vibrante e patriótica do Pe. Pheney e os cantos
ensinados por Frei Orlando, os nossos militares recobraram ânimo. Vol-
tamos às posições anteriores de Abetaia, Bombiana, Gaggio Montano e
outros; guardamo-las com bravura e coragem indômitas, até os primei-
ros dias de fevereiro de 1945; e, na segunda quinzena do mês, fomos
substituídos por um dos Batalhões do bravo Regimento Sampaio, do
Rio. Nosso Batalhão, o Batalhão Lisboa, teria posteriormente nova mis-
são a cumprir, o que fez com garbo e bravura.
Morte de Frei Orlando. A 20 de fevereiro, estabelecidos
nas imediações de Sila e Porreta Terma, a uns 5 km de Monte Castelo,
quando apreciávamos o bombardeio do encantado monte, à frente do
Regimento Sampaio, aos flancos esquerdo e direito, pelos 3º e 2º Bata-
lhões de nosso Regimento, e ainda em ação, a artilharia e a Força Aérea
brasileiras, quando o inimigo é tenazmente batido por nossas forças,
eis que vem ao nosso encontro um primeiro tenente da 9ª Companhia
do 3º Batalhão, o tenente Seixas, que, com lágrimas nos olhos, dizia:
“Pe Eloi, uma triste notícia a lhe dar: acaba de morrer o nosso querido
Frei Orlando”. Como? Perguntei-lhe. E ele me narra o histórico e fatídi-
co acontecimento.
Resumo. “Frei Orlando, como bom soldado de Cristo e da
Pátria, que gostava de estar sempre onde o exigisse o dever a cumprir,
encaminhava-se, com um capitão de nosso Regimento, a levar o confor-
to da fé à 5a Companhia que entrava em ação; tinham que passar por
um terreno de muita lama, nesses últimos dias de neve; o jipe enguiça e
nada o faz andar; passa por ali um partisano com uma carabina, que se
oferece para fazer daquela arma, uma alavanca e suspender o carro. A
arma detona e o tiro atinge o peito do nosso Frei Orlando, que se encon-
trava um pouco atrás. Frei Orlando olha-o, com um olhar tão enérgico e
severo, pela sua imprudência, que o partisano desmaia pelo chão. Estou
ferido, diz Frei Orlando. O capitão e o motorista o acalmam, para, rapida-
mente, buscar recurso. Sai o jipe, a toda pressa; Frei Orlando assenta-se
na lama; tira do bolso o terço de N. Senhora, para rezar. Quando, após
236 Frei Orlando: o capelão que não voltou

5 a 8 minutos, chega o recurso. Frei Orlando já estava morto. Morreu o


nosso Frei Orlando.”
As alegrias da queda de Monte Castelo tornaram-se obscu-
recidas e empanadas, com a morte do grande Capelão Militar. Era uma
terça-feira, o dia da semana popularmente consagrado a Santo Antonio.
O capelão Antonio Alvares da Silva falecera em um dia de S. Antonio e o
seu velório fez-se na Capela de Santo Antonio, onde celebrara pela ma-
nhã. Grande coincidência.
Pude vê-lo exposto em uma maca, vestido no seu insepa-
rável hábito franciscano, que sempre trazia no Saco A, para com ele ser
sepultado, caso morresse na guerra, como o exigia.
Ali chegara antes de nós o Frei Alfredo, capelão do 3º Bata-
lhão e franciscano como ele. Celebramos, juntos, a missa de corpo presen-
te, pelo irmão no sacerdócio e de farda. No dia seguinte, foi sepultado no
Cemitério Brasileiro, em Pistoia, até o traslado de seus ossos para o Brasil,
posteriormente, com os demais soldados ali sepultados. Encontram-se,
atualmente, no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra MundiaI.
Novo Capelão Militar. Grande foi a consternação do Regi-
mento com a morte de seu bravo capelão. Com o seu desaparecimento,
Frei Alfredo e nós assumimos a assistência religiosa de seu campo de
ação; Frei Alfredo, à frente das Companhias Regimentais e nós, no 2º
Batalhão, até que fosse nomeado o seu sucessor, daí a 40 dias, na pessoa
do Rv.mo. Pe. Manoel Inocêncio Lacerda Santos.
Nas missas e encontros que pudemos fazer, nas diversas Subu-
nidades do 2º Batalhão, para consolar os que lamentavam a sua morte, fize-
mos-lhes esta predição, que, mercê de Deus, tornou-se realidade: “Creiam
vocês, meus soldados amigos, que Frei Orlando não morreu. Ele continua
moral e espiritualmente em nosso Regimento, que tanto amava e estimava.
No céu, onde realmente se encontra, vai fazer por nós mais do que fazia,
quando vivo. O nosso Regimento irá mais para a frente! Vamos obter gran-
des vitórias! Vamos vencer a guerra. Muito brevemente a guerra vai acabar”.
De fato, no dia de sua morte, dois batalhões do nosso Re-
gimento batiam-se, empenhados na vitória sobre a grande fortaleza de
Monte Castelo, que caiu. Daí a pouco, outras e mais outras vitórias: Cas-
telnuovo, ligação entre os 5º e 8º Exércitos, às proximidades de Bologna,
avanços e vitórias sobre Iola Vechia e Montese; marcha para o norte pelo
Vale do Rio do Pó até Solero, Alessandria, Parma, Vignola e Turim.
Anexos 237

Hitler desapareceu. Mussolini e seus Generais vencidos e mor-


tos. Acabou a guerra! Era o dia 8 de maio de 1945! Demos graças a Deus.
Conclusão. Dados os grandes benefícios que o Serviço de As-
sistência Religiosa trouxe às nossas Forças Armadas, na época da guer-
ra, os Chefes Militares do Brasil, em boa hora, já em 1946, resolveram
efetivá-lo, em tempo de paz, em caráter permanente, estendendo-se à
Marinha, Aeronáutica e às Polícias Militares dos Estados. Grande vitória
católica e de Cristo no Brasil! Parabenizemo-nos!
Frei Antonio Alvares da Silva (Frei Orlando) foi declarado,
oficialmente, o Patrono do Serviço de Assistência Religiosa de todas as
Forças Armadas do Brasil (SARFA).

Monsenhor Francisco Elói de Oliveira


Capelão Militar Ref.

DECRETOS
DECRETO-LEI Nº 8.921, DE 26 DE JANEIRO DE 1946

Institui, em caráter permanente, o Serviço de Assistência


Religiosa nas Forças Armadas.

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe


confere o artigo 180 da Constituição e considerando:

– que a instrução religiosa aprimora as energias morais e


os bons costumes, contribuindo, por via de consequên-
cia, para o fortalecimento da disciplina militar;

– que a educação religiosa tem inegável influência na for-


mação moral e cívica do soldado, com favoráveis refle-
xos sobre o seu caráter e virtudes militares, convindo
incentivá-la por todos os meios nas Forças Armadas; e

– que o Serviço de Assistência Religiosa junto à Força Ex-


pedicionária Brasileira cumpriu suas altas finalidades,
justificando plenamente sua manutenção e desenvolvi-
mento em tempo de paz; decreta:
238 Frei Orlando: o capelão que não voltou

Art. 1º Fica instituído, em caráter permanente, nas Forças


Armadas, o Serviço de Assistência Religiosa (S.A.R.), criado pelo Decre-
to-lei nº 6.535, de 26 de maio de 1944.

Art. 2º São atribuições do Serviço de Assistência Religiosa:


a) prestar assistência religiosa nas guarnições, unidades,
navios, bases, hospitais e outros estabelecimentos mi-
litares, dentro do espírito de liberdade religiosa e das
tradições nacionais;
b) cooperar na formação moral dos alunos dos institutos
militares de ensino, prestando assistência religiosa e
auxiliando a ministrar a instrução de Educação Moral
e Cívica;
c) desempenhar, em cooperação com todos os escalões de
Comando militar, os encargos relacionados com a assis-
tência espiritual, moral e social dos militares e de suas
famílias.

Art. 3º O Serviço de Assistência Religiosa constituir-se-á de


“Capelães Militares”, sacerdotes ou ministros religiosos, pertencentes a
qualquer religião ou culto que não atente contra a disciplina, a moral e
as leis, desde que sejam professados, no mínimo, por um terço dos efeti-
vos das unidades a serem contempladas.

Parágrafo único. Os Capelães Militares deverão ser brasilei-


ros natos, no gozo dos direitos políticos.

Art. 4º Os Capelães Militares serão nomeados e exonerados


por decreto e o seu número será fixado nos quadros de efetivos de cada
Ministério, levando-se em conta as peculiaridades de organização de
cada uma das Forças Armadas.

Art. 5º Os Capelães Militares perceberão, para sua manu-


tenção pessoal, uma côngrua correspondente aos vencimentos de pri-
meiro-tenente e farão jus às vantagens a estes conferidas nos diferentes
casos previstos em lei.
Anexos 239

Parágrafo único. Os Capelães, enquanto incorporados,


não poderão ser nomeados para qualquer cargo civil ou religioso, es-
tranho às suas atividades relacionadas com a assistência aos milita-
res e suas famílias.

Art. 6º Os Capelães Militares não terão postos ou gradua-


ções. Pertencerão ao círculo de oficiais, tendo assento imediatamente
após os oficiais superiores.

Art. 7º É extensivo aos Capelães, quando em campanha, em-


barcados ou no interior dos quartéis, estabelecimentos e repartições, o
uso dos fardamentos constantes do plano de uniforme dos oficiais, com
o distintivo de seu culto e sem insígnias indicativas de posto.

Art. 8º Os Ministros da Guerra, Marinha e Aeronáutica pro-


videnciarão, dentro de sessenta dias, a regulamentação do presente De-
creto-lei que entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário.

Rio de Janeiro, em 26 de janeiro de 1946; 125º da Indepen-


dência e 58º da República.
JOSÉ LINHARES
Canrobert Pereira da Costa
Jorge Dodsworth Martins
Armando F. Trompowsky

(“DO”, de 29 Jan 46)

DECRETO Nº 20.680 – DE 28 DE FEVEREIRO DE 1946

Institui patrono do Serviço de Assistência Religiosa do Exér-


cito o capelão militar capitão Antonio Alvares da Silva.

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe


confere o artigo 74, letra a, da Constituição e considerando que o ca-
pelão militar, capitão Antonio Alvares da Silva, Frei Orlando O.F.M.,
240 Frei Orlando: o capelão que não voltou

tombado na linha de frente, em Bombiana, Itália, a 20 de Fevereiro de


1945, prestou inestimáveis serviços à Força Expedicionária Brasileira,
nas fileiras do Regimento Tiradentes, onde a sua memória é justamente
venerada; considerando haver ele demonstrado possuir peregrinas vir-
tudes morais e cívicas, que o recomendam à posteridade, como modelo
do verdadeiro sacerdote capelão militar; resolve instituí-lo patrono do
Serviço de Assistência Religiosa do Exército brasileiro, criado, em cará-
ter permanente, por Decreto-lei nº 8.921, de 28 de Janeiro de 1946.

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1946; 125º da Indepen-


dência e 58º da República.
EURICO G. DUTRA
P. Góes Monteiro
(“DO”, de 2 Mar 46)

DECRETO NP 51.429– DE 13 DE MARÇO DE 1962

Institui e homologa a escolha de Patronos do Exército, das


Armas, dos Serviços e do Magistério Militar.

O Presidente da República, considerando:

– que a educação moral e cívica do soldado impõe a vene-


ração dos vultos militares do passado;
– que, atendendo a essa imposição, o Exército, suas Ar-
mas, Serviços e o Magistério Militar, já escolheram e
vêm cultuando seus respectivos Patronos, todos eles
figuras dignas de maior reverência;
– a necessidade de homologar a escolha de alguns destes
Patronos;
– a conveniência de que o Ato Oficial, que faça tal homolo-
gação, também consolide o disposto em legislação ante-
rior sobre o assunto, resolve:

a) instituir e homologar as escolhas já consagradas dos Pa-


tronos:
Anexos 241

– do Exército Brasileiro, o Marechal Luiz Alves de Lima


e Silva, Duque de Caxias;
– da Arma de Infantaria, o General Antonio de Sam-
paio;
– da Arma de Cavalaria, o Marechal Manoel Luiz Osó-
rio, Marquês de Herval;
– da Arma de Artilharia, o Marechal Emilio Luiz Mallet,
Barão de Itapevi;
– da Arma de Engenharia, o Coronel João Carlos de Vi-
lagran Cabrita;
– do Serviço de Saúde, o General João Severiano da
Fonseca;
– do Serviço de Veterinária, o Tenente-coronel João
Muniz Barreto de Aragão;
– do Serviço de Intendência, o Marechal Carlos Macha-
do Bitencourt;
– do Serviço de Assistência Religiosa, o Capitão-cape-
lão Padre Antonio Alvares da Silva (Frei Orlando);
– do Magistério Militar, o General Roberto Trompowsky
Leitão de Almeida.

b) para as comemorações respectivas ficam estabelecidas


as datas de nascimento de cada Patrono.

Brasília, 13 de março de 1962; 141º da Independência e 74º


da República.

JOÃO GOULART
Tancredo Neves
João de Segadas Vianna

(“DO”, de 14 Mar 62)

Nota: Nas cartas e documentos manteve-se fidelidade ao texto.


Quantidade de páginas 244 páginas
Formato 16 x 23cm
Mancha 29 x 45 paicas
Tipologia Cambria
Corpo/entrelinha 11,5/14,5
papel do miolo Pólem Sóft 80g
Papel de capa Cartão Supremo 240g (plastificada)
Impressão e acabamento Ediouro Gráfica

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