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PAULO FORSTER, C.SS.R.

DIÁRIO DE GUERRA
MINHA PARTICIPACÃO
NA GUERRA MUNDIAL

MEMÓRIAS
DE ARRAS, 1914
DE SOMNE, 1915
DE VERDUN, 1916

Versão do Pe. Geraldo Pires de Souza


São Paulo, 9 de março de 1965.

Edição PDF de Fl. Castro


Aparecida, 2005
Título do original alemão:

MEIN ANTEIL AM WELTKRIEG

ERINNERUNGEN
AN ARRAS, 1914
AN SOMME, 1915
AN VERDUN, 1916

As fotografias incluídas são postais en-


viados pelo autor. Servem com ilustração,
mas não como documentação, uma vez que
não me foi possível decifrar as mensagens
escritas a lápis.

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INTRODUÇÃO EXPLICATIVA
DO TRADUTOR

Nosso falecido Pe.Paulo Forster deixou


uma espécie de Diário de seus dias de sol-
dado na Primeira Grande Guerra Mundial de
1914 a 1917.

Fui testemunha ocular dos dias daquela


Guerra, até outubro de 1917. Ao estourar a
guerra achava-me eu no fim do primeiro ano
de teologia e frater Forster, e seu compa-
nheiro de curso frater Guilherme Linsmaier,
no fim do segundo ano de filosofia. O outro
confrade, frater José Sepp terminava o pri-
meiro ano.
Estes três foram logo convocados para
as armas. Partiram no dia 19 de outubro de
1914, indo para o Luisenschule, em Munique.
Lembro-me de toda a agitação daqueles
dias tempestuosos.
Frater Linsmaier, num triste pressenti-
mento me disse uma tarde: "De certo a bala
que vai me matar já está sendo fundida".
Não foi bala, foi granada como conta o diário.
Nossos três mosqueteiros vieram uma
vez visitar-nos em Gars, então nosso estu-
dantado, perto de Munique. Daí haviam saí-

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do em outubro.

Durante os meses de treino frater Fors-


ter escrevia muitas cartas interessantes,
Contando da vida de quartel, dos exercícios
campos, das marchas pela cidade ao com-
passo dos tambores e bandas militares.
Visitavam muitas vezes as velhas irmãs
Levy, benfeitoras dos nossos padres. Eram
chamadas de "Fräuelein", porque eram sol-
teironas.
Almas boas, tratavam muito bem os nos-
sos, dos quais eram generosas benfeitoras
sempre.
Naturalmente os três mosqueteiros re-
cebiam uns marcos para gastos pessoais,
agasalhos de campanha etc..
Nessa época achava-se em tratamento
no hospital de Passing nosso P. Provincial
João Batista Schmidt. Iam visitá-lo e pedir-
lhe a bênção. Essa bênção era espiritual e
material. P. Schmidt sabia que todo soldado
tem sempre muita sede e muita fome. Pu-
nha-lhes nas mãos uns marcos e endereça-
va-os ao "Loewenbrauhaus", afamada cerve-
jaria de Munique.
Com freqüência nosso diarista escrevia
cartas aos confrades em geral e a vários em
particular. Eu mesmo recebi muitas cartas e

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todas eram lidas à mesa.
Em belo estilo e muito descritivas, trazi-
am toda a comunidade presa à sua leitura.
Nós clérigos ouvíamos também a leitura
de jornais e dos comunicados do Quartel
General que emolduravam as cartas do nos-
so confrade.

Na sua modéstia nosso diarista não


menciona as condecorações que recebeu
pela sua bravura. Trouxe-as para o Brasil e
depositou uma na sala dos milagres em Apa-
recida, com enternecida dedicatória à Virgem
Maria. 1
As memórias do Diário são cópias ou
resumos de muitas cartas que escreveu, co-
mo se lê na introdução. Daí algumas repeti-
ções que aparecem.
O Diário que não segue dia por dia a
semana e os meses, está escrito em bela ca-
ligrafia, mas em letra gótica. Nem sempre foi
fácil decifrar uma letra, mesmo a confrades
alemães, que por mim foram consultados.
A tradução procurou ser fiel e respeita-
dora do estilo do diarista. Duas cartas foram
traduzidas também.
Dos três convocados só voltou nosso di-
1
Eram essas condecorações: Cruz de ferro (a que ficou em Apareci-
da), Ordem do Mérito Militar com duas espadas, terceira classe. Fo-
ram conferidas em 1915.

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arista. Frater Sepp e frater Linsmaier ficaram
no campo de batalha.
No estudantado eu fazia parte da turma
que arrumava e despachava pacotinhos com
doces, frutas etc. para os nossos combaten-
tes no fronte, até setembro de 1917.

São Paulo, 9 de março de 1965.


Pe. Geraldo Pires de Souza, C.SS.R.

Expressões militares no manuscrito:

Trommelfeuer: denota tiros de artilharia


que imitam um rufar de tambores, onde nem
se distinguem as pancadas.
Leiber: soldado da guarda pessoal do
rei, do imperador, que formavam um Regi-
mento especial.

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MINHA PARTICIPAÇÃO
NA GUERRA MUNDIAL

MEMORIAS
DE ARRAS, 1914
DE SOMME, 1915
DE VERDUN, 1916

Sempre que leres este livro, exclama


cheio de gratidão: Confitemini Domino quoni-
am bonus, quoniam in aeternum misericordia
eius.

Sirva-te este livro de consolo para o fu-


turo, para os dias maus, para as horas som-
brias. Jamais chegarão com amarguras co-
mo nos dias da guerra!
Seja este livrinho despertador de alegria.
Dificilmente encontrarás na vida a genuína
alegria que trazem árduos deveres bem exe-
cutados.
Quase tudo foi escrito na forma de car-
tas do front. Mas do lugar e da posição o-
casionais. E muitas vezes sob furioso e cer-
rado bombardeio. Ou imediatamente depois,
quando tinha a alma agitada e agitando-se
pelas impressões recebidas. Essas anota-

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ções não foram escritas nos dias de selva-
gens avanços da guerra em movimento. Com
sucessivos acontecimentos inauditos a cada
hora. Com a seqüência de ataques e assal-
tos. Com o desfile de cenários de lutas, como
num filme rodado.
Cenários de cidades e aldeias, em cha-
mas; de inimigo batendo em retirada; com a
população desalojada e errante.
Não. Trata-se principalmente da maldita
guerra de toupeiras entrincheiradas. Isso du-
rante semanas nas quais não se via um ini-
migo, que aparecia quando gases de enxofre
o expulsava das tocas. Ou então o lança-
chamas convertia-os em tochas vivas. Ou
minas explodidas mandava-o para o alto, em
busca de ares mais frescos.
Tais meios de combate abrasa-
vam a recíproca fúria. Mas fúrias que iam se
acumulando e explodiam por ocasião dos
assaltos, de modo jamais visto. Havia dias
calmos que ajudavam a gente tecer sua filo-
sofia. Vinham horas de saudades de casa.
Então só o corpo estava na guerra. Alma e
coração voltavam para casa.
Apesar de ter sido infeliz para a Alema-
nha o desfecho da guerra, terei sempre uma
alegre recordação de haver servido no exér-

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cito alemão. E isto quando ele estava no seu
esplendor. Justamente quando nenhum ju-
deu apátrida e chantagista, sugador de san-
gue, manchava a honra, a consciência do
dever do povo alemão. (Nota: Referência a
certa figura que dominou a Alemanha, logo
depois da guerra)
Considerava-se então como honra ser
um soldado batendo-se por ideais. A maré do
comunismo na pátria não havia atingido e
corrompido ainda o exército.Não. Nosso e-
xército não foi vencido. A derrota sofreu-a a
gente de casa, da retaguarda. Os seus muti-
lados morais são a vergonha da Alemanha.
Não o são os mutilados de mãos, de pés no
front.

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1. Rumo ao front

Munique - Luisenschule
IIº Regimento de Infantaria 11ª. Compa-
nhia.

Aconteceu no dia 30 de dezembro de


1914: "Terceira Companhia de prontidão pa-
ra marchar para o front".
Uma pedra atirada a um formigueiro não
provocaria mais agitação do que foi a nossa
na Luisenschule, então nosso quartel.
Há tempo esperávamos por essa ordem,
redentora da cruel tensão que durante se-
manas nos oprimia. Tivemos saída livre para
girar pela cidade. Cada um podia andar em
busca do necessário e também de coisas
desnecessárias, fazer suas despedidas e
gastar o dinheiro. Pela manhã partiremos pa-
ra a guerra.
Naquela data eu tinha duas irmãs em
Munique. Não iria passar mal. Mas não me
sentia à vontade junto delas. Causava-me
pena ver-lhes a dedicação carinhosa e solíci-
ta. Iriam sentir só a dor da despedida. Para
tanto não me sobrava tempo. Minha alma já
está cheia do que "há de vir" nos próximos
dias. E hoje não é afinal a despedida definiti-
va. Amanhã, à hora da partida, ainda pode-
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remos ver-nos.
Bem cedo retornei ao quartel onde havia
zumbidos de enxames de abelhas. Casa
cheia de gente de fora. Famílias inteiras ao
redor de um homem. Mulheres e filhos, ir-
mãos e irmãzinhas não se cansam de mos-
trar amor, interesse em ajudar o "seu solda-
do" no empacotar as coisas.

Empacotar é a coisa mais acertada que


podem fazer. Pois a tarefa não é fácil. Traba-
lhei até meia noite com os apetrechos e utili-
dades na mochila e na sacola de mão. Natu-
ralmente bem de acordo com as normas do
regulamento. Era preciso dobrar e enrolar
perfeitamente o capacete sobre a mochila, já
estufada com tanta coisa: Dava trabalho
prendê-lo com as correias. Incrível o zelo
com que a turma procurava acertar cada cor-
reia, cada fivela na posição prescrita. Ou en-
tão dar brilho a todas as peças de metal do
equipamento. Tudo tinha que estar reluzindo.
E na carabina, "pau furado", nem se fale:
Era a peça indispensável rara o combate.
Nada de manchas no cano ou no gatilho. A
francesada devia constatar que somos gente
educada, ordeira e não somos uns bárbaros.

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1.1. - Soou a hora dá despedida.

Passa vagarosa a última noite na terra


natal. Não se pode descansar. Há uma ca-
valgada de pensamentos rumo ao fronte -
para o oeste, onde estão os canhões - como
diz a canção.

Finalmente amanhece. Um ordenança


berra porta adentro. "Às 7 horas todos em
formatura para a chamada": E já se ouve al-
gum gemer: "puxa! que peso!”, enquanto le-
vantava sua mochila e o resto do equipamen-
to.
Bem carregados, cambaleando saímos
para o pátio. Ninguém quer dar mostras de
estar oprimido por qualquer coisa. Todos nós
nos esforçamos lealmente, mas ninguém es-
tá contente metido na farda. Surgem então
os "reparos". A tal "mãe da companhia" -
nem sei por que se inventou tal nome para
um bigodudo Feldwebel, que arrasta a espa-
da - tem mil coisas para criticar. Por fim cala-
se essa voz rouquenha.
Meio dia. Soou a hora da despedida. O
sino da torre de são Bonifácio toca o “Anjo do
Senhor”. A companhia está formada Nas bo-
tas, nas casas dos botões, nos capacetes há
flores frescas, que tudo enfeitam.
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Todos envergam o uniforme de cor par-
da de modo impecável. Bem armados. No
cano da bota está espetada a terrível arma
bávara, para combates corpo a corpo: a fa-
ca,com ares ameaçadores.

Caixotes de munição passam pelas filei-


ras. Os soldados enchem suas cartucheiras
com balas. Esquisitos pensamentos cruzam
pela cabeça. Quem será o primeiro a ser a-
tingido por elas? Até agora tinham por alvo
bonecos de madeira na cancha de tiro. A
sangrenta seriedade do campo de batalha já
antecipa suas sombras macabras.

Duras como aço são as palavras de des-


pedida do capitão Klostermann. Confirmam
nossa impressão. Notava ao mesmo tempo
como era custoso para o velho oficial da re-
serva ocultar a própria emoção.
Mas o homem se dominou e com a fir-
meza e brevidade costumeiras deu seus co-
mandos que correram pelas fileiras dos jo-
vens guerreiros.

Atenção: Rezar!
Imediatamente a mão direita pega capa-
cete, esquerda segura a carabina e entoa-se
um coral solene, acompanhado pela banda

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do Regimento: "Pai, eu chamo por ti..."
- Vi vários olhos umedece-
rem-se sob a pressão do momento. Cenas
de um futuro desfilaram pela alma que can-
tava e rezava.

1.2. - ... Nos braços o filhinho.

Destacados comandos varam o pátio do


quartel. Grupos viram à esquerda e mar-
cham. E já vamos para a rua, reboando as
batidas de nossas botas pela Luisenstrasse.
De lado a lado estão milhares de paren-
tes e curiosos. Querem dar as últimas provas
de carinho. Entopem nossos bolsos com ci-
garros, bombons, charutos e chocolates. A
multidão é como onda que vai e vem. Com
dificuldade a gente segue marchando.
Mulheres acompanham seus maridos,
irmãos penetram nas fileiras para ver mais
uma vez outros irmãos, dizer-lhes o último
adeus.
Garotinhos infiltram-se pelas fileiras em
marcha para falar com o papai e beijá-lo
mais uma vez.
Ali um pai passa a carabina para o filho
que a carrega com orgulho e convencimento
ao lado do pai.

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Um homem carrega nos braços o filhi-
nho que crava seus olhos bem abertos.no
rosto paterno. Com santo respeito examina
aquela figura, até então nunca vista. Despe-
dida.
Despedida de Heitor: Muitas lágrimas:
Não, porém, nos olhos dos soldados. Notei
que ela era mais pesada para os que ficavam
do que para os soldados em partida.
O soldado em marcha para o front está
muito preocupado em acompanhar os outros,
numa certa excitação e tensão. Também in-
flui um compreensível sentimento e convic-
ção de representar o herói perante o público.
Por fim o cenário arrasta. Homens ar-
mados, os sons marciais da banda, as pan-
cadas dos tambores impedem maior emo-
ção.
Outro é o caso dos que ficam.
Muitas vezes ouvi exclamações por en-
tre as fileiras: "Pobres soldados: Tanta rapa-
ziada nova". Os que ficam perguntam-se
quais os sentimentos dos homens que mar-
cham para um matadouro. Entretanto a coisa
é diferente. Os que partem estão firmes e fi-
cam sofrendo os espectadores.
Foi o que me aconteceu; outros cama-

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radas confessaram-me a mesma coisa.

1.3. - Ramalhete de flores frescas.

Não tive lágrimas nos olhos. Senti até


certa revolta vendo minha irmã mais velha
em pranto. A mais, nova procedeu de outro
modo. Corajosa como sempre, atirou-me um
ramalhete de flores frescas. Eram campânu-
las. Recebia-as quando invadíamos a esta-
ção, em marcha impressionante.
. Sente-se compaixão vendo
que os outros sofrem à vista dos nossos so-
frimentos. A compaixão alheia anima a gente
e acorda nossa atenção sobre a incerteza da
sorte.
0uase perdi o aprumo quando um garoto
de apenas cinco anos estendeu sua mão-
zinha para mim, ilustre desconhecido, fitan-
do-me com o impressionante olhar da gran-
deza de sua infância. Ignorava a impressão
que me causava.
Igualmente me impressionou o ar pensa-
tivo de gente velha a contemplar nossa mar-
cha. Essa despedida calou mais na alma do
que a despedida oficial. Essa nada me alte-
rou.
Enorme trem de transporte irrompe bu-

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fando pela espaçosa plataforma.
- Em perfeita ordem embarca a
tropa, grupo por grupo. Nada mais natural
depois do muito ensaio. Mochilas, carabinas
e outros apetrechos foram colocados nas re-
des da "prateleira" porta-malas.
Ainda um aperto de mão para o capitão
e ao amável tenente Br., que carinhosamente
se encarregou de nossas cartas e cartões de
despedida dos nossos familiares.
Sob os compassos da banda militar, aos
acenos de mãos e adeuses começa rolar o
comboio.

Treze horas e cinqüenta e dois minutos


do dia de são Silvestre.

2. - Ao Reno, ao Reno Alemão.

A viagem seque por Augsburgo-Ulm,


onde atravessamos a fronteira da Baviera.
Em toda a parte somos generosamente pre-
senteados com café quente e pão. Aos pou-
cos cada qual procura ajeitar seu ninho para
dormir.
Nos bancos, pelo chão e até no porta-

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malas, encostados às paredes vão se defen-
dendo os camaradas. Tudo serve para um
bom sono.

Gente inventiva acha mais um recurso.


Estende a lona das barracas, prendendo-a
de lado a lado nas pontas do porta-malas.
Pronto. Estava improvisada uma rede bem
acolhedora e cômoda.
Os roncos aumentam de volume e de
número ao longo do vagão, enquanto o com-
boio envereda pela noite adentro.

Noite de Ano Bom! Exatamente à meia


noite passamos por Stutgarde.
Não consegui dormir bem. Sempre e
sempre pensando no Ano Novo e nas incer-
tezas que comigo trazia. Corríamos ao en-
contro delas.

Que irá me trazer o Ano Novo? Estarei


vivo até o seu fim?
Pelas oito horas do dia 1º de janeiro re-
torna a vida no vagão. Um longo e soturno
ruído desperta a todos. O enorme comboio
roda sobre a ponte do Reno em Mogúncia.
Velhos e barbudos soldados do Landsturm
(última reserva) montam guarda à ponte. To-
dos em uniforme azul.

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Não vimos muita coisa da "dourada "
Mogúncia. E já começa a triunfal descida do
Reno. Em toda a parte nossos carros foram
enfeitados com flores e bandeirolas. A cada
passo o bom povo da Renânia gritava-nos
"hurrahs". Exclama: "Estão aqui os bávaros!"
Sempre que o trem parava recebíamos
cerveja, vinho, chá, cacau, pão etc.
Em Wuertter era sempre café.
Nas barracas, armadas na estação, pa-
ra assistência dos soldados viam-se grandes
árvores de Natal, carregadas até em cima,
com pequenas lâmpadas elétricas.

2.1 - Canções da Loreley

Em Bingen o comboio parou e tivemos


urna refeição regular. Depois a Viagem foi
continuando Reno abaixo. Viagem sem fim.
Cruzam navios seguindo suas rotas. Os
passageiros abanam-nos suas mãos e cha-
péus, sinetas soam, bandeiras e bandeirolas
sobem aos mastros. Gaivotas atiram-se so-
bre o espelho das águas.
Nas margens não há casas, não há ja-
nelas que deixem de acenar-nos amavel-
mente.
Desfilam maravilhosas cidades e aldei-
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as, ora de um lado, ora de outro. Castelos e
velhos burgos, cobertos de hera, saúdam-
nos orgulhosos, lá de suas alturas. Vão se
retratando como velhos contos de fadas nas
águas do velho Reno.
A pequena cidade de Caub, que nos sa-
úda do lado-direito, viu outrora o velho gene-
ral Bluecher atravessar o Reno. Justamente
na mesma data, cem anos atrás: 19 de janei-
ro de 1814.

Surge o pintoresto rochedo da Loreley


no céu da manhã. Acorda na alma velhas
canções da Loreley, do Stolzenfels no Reno.
Voltam à memória velhas lendas. Nos-
sos rudes soldados sentem a mesma coisa.
Pois já estão cantando, estão berrando: "A
sentinela no Reno". Ficam roucos de tanto
berrar, nem conseguem por fim pronunciar
uma só palavra.
Quem nos recebe mais carinhosamente
é a pequena cidade de Boppard. Deram-nos
tudo: chá, barras de chocolate em baldes e
tinas.

Mais para frente o comboio mostra-nos


a pintoresca Rhens, que guarda a cadeira do
imperados.
Um vapor holandês sobe bufando pelo

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Reno. Com seus pesados sapatões de ma-
deira os marinheiros olham-nos curiosos. Na
boca fumegam seus pequenos cachimbos.
As mãos estão enterradas nos bolsos das
calcas.
Já está anoitecendo ao entrarmos em
Colônia. É pena. Os luminosos raios de um
holofote cruzam sobre a cidade e por mo-
mentos fazem aparecer as torres da catedral
como assombrações à noite.

Pouca parada em Colônia.


Rodamos para frente ao encontro da ve-
lha cidade de Aachen (Aix-la-Chapelle) e de-
pois rumamos para Herbesthal, estação fron-
teiriça com a Bélgica.

3. - Em terra inimiga.

De repente cessaram os presentes e as


aclamações entusiásticas. Depressa apare-
ceram os tristes sinais da guerra. Primeira-
mente foi um trem-hospital. Enorme e vaga-
roso no seu desfile. Estava entupido com fe-
ridos. Causou uma esquisita e séria impres-
são em nossos alegres companheiros. Aque-
las cruzes vermelhas pintadas no teto e nos

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lados. Forte cheiro de ácido fênico veio ao
nosso encontro.
Depois um gigantesco trem de carga,
onde estavam amontoados caminhões des-
truídos e canhões que demandavam à pátria
para reparos e consertos.

Ao longo da estrada, ruínas de casas e


aldeias bombardeadas com suas vigas de-
penduradas, calcinadas. E ainda mais as tris-
tes fisionomias de seus infelizes moradores
que, com desconfiada reserva, olhavam para
nós detestáveis "feldgrauen" (soldados com
uniformes pardos).
Fiquei com dó dessa pobre gente que
havia perdido todos os seus haveres. No
mesmo dia pelas 12 horas, cruzamos a fron-
teira francesa em Jesumont. Não tardou e
seguimos por uma zona onde se viam arre-
bentados blocos de cimento, trilhos escondi-
dos e retorcidos, carbonizados.
Logo em seguida o trem parou. Tínha-
mos alcançado a fortaleza de Mauberge, que
fica na fronteira e estava completamente
destruída.
Pela redondeza jaziam blocos de ferro e
cimento pesando toneladas. Tudo em desor-
dem.
Pedaços de trilhos cortados como se

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fossem barbantes. Ao redor um quadro de
destruição que ninguém poderia imaginar-se.
Um curto bombardeio com canhões de 42
centímetros fizera um serviço rápido e com-
pleto.

Canhão austríaco de grosso calibre

Sábado. O trem leva-nos, passando por


Chaleroi à meia noite, à velha cidade de Sa-
int-Quentin. Fiquei meio aborrecido porque
justamente à noite eram atingidas cidades
históricas. A neblina escondia tudo. Depois
nos contaram o motivo: coincidência proposi-
tal. Queriam ocultar o mais possível aos o-
lhos da população os grandes movimentos
de tropas.
Na mesma noite atingimos o nosso des-
tino. Era a velha cidadezinha de Péronne, no
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Somme, a leste de Amiens, elegantemente
situada na bacia de um vale. Antigamente
figurava como muito fortificada.

4. - Ao encontro do inimigo.

3 de janeiro de 19l5. Domingo.


Um dia de chuva, feio, detestável, nevo-
ento. Nem nos deixam reclamar contra o
tempo.

Desembarcamos depressa, lavando as


mãos e rosto na fonte da estação. Facilmen-
te se compreendia que todo o mundo esti-
vesse em suspense. Já começa a marcha
para a linha de frente. Que iria acontecer?
Dizem-nos que a linha de combate é logo ali
e ainda hoje mesmo vamos cheirar pólvora.
Ora... os bávaros não atiram tão de
pressa! Com passos retumbantes marcha-
mos nela cidade que ainda estava meio a-
dormecida.
Depois morro acima, Mont Saint-
Quentin. Não era animadora a vista dos rom-
bos de tiro, abertos pelos franceses nos mu-
ros de seus jardins e pátios.

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Fora da cidade soa o comando: “Com-
panhia inteira, dobrar à direita: Marchar!"
Acampamento à beira da estrada, em
terreno meio congelado. Mas... que há? As-
sim pensa cada um de nós. Isto aqui já é di-
ferente do que fazíamos no pátio de mano-
bras e de tiro em Neufreimann.
Lá cada um recebia 3 a 5 balas de ver-
dade.Tinham de atravessar uma miserável
tábua que servia de alvo. Agora se trata de
alvos humanos. Vamos ver. Agora a ordem é
carregar outra vez com balas reais. Carregar
e travar.

4.1. - O surdo troar dos canhões.

Continua a marcha pela estrada empe-


drada de Pérronne a Apaume. Marcha em
linha reta. Alguns começam a gemer, entala-
dos em suas botas novinhas.
Não demorou e vários "azuis" já não po-
diam andar. Um breve descanso resolve o
caso. De repente uma virada para a esquer-
da nos põe em frente a Combles, metida
num vale bem oculto. Aí houve distribuição
de ração e descanso até às cinco da tarde.
Já não era sem tempo esse repouso. A mo-
chila quase sempre pesava mais de cinqüen-
ta quilos.
27
Foi em Combles onde ouvimos, pela pri-
meira vez, o surdo troar dos canhões. Nin-
guém tinha dúvidas sobre a guerra. Estava
ali perto.

Um sentimento inédito, inaudito sacudia


a alma. O inimigo estava bem mais perto do
que pensávamos.

Combles distava apenas 4 quilômetros


da primeira linha de trincheiras. Assim mes-
mo urgia marchar muito tempo. E isto parale-
lamente à linha de combate para alcançar-
mos a posição ocupada pelo nosso II Regi-
mento.
Mais uma hora e eis-nos em Givenchy,
aldeia completamente arrasada. Casa algu-
ma resistira aos cinco assaltos sofridos. Não
passava de um montão de ruínas. Tijolos es-
parramados, cumieiras viradas para o céu,
igreja com vitrais estraçalhados e com sua
torre sobrando - eis a destruição impressio-
nante.
O lugar fora há muito tempo abando na-
do pelos seus moradores.
Na saída, ao sul da aldeia, via-se um sí-
tio (ferme) mais ou menos conservado. Inva-
dimos o pátio e tratamos de arranjar pouso -
no paiol, sobre o feno úmido.

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Horrendamente troavam os canhões, ali
na linha de fogo. Eram ouvidos os secos -
disparos das carabinas.
Fomos avisados que somente à noite i-
ríamos ocupar nossas trincheiras. É difícil
dizer o que então cruzou pela nossa cabeça
ao pensarmos: Hoje atirado na fogueira da
guerra mundial! Talvez ainda hoje rumo à
eternidade!

4.2. Confrades se separam.

Mas também desta vez não houve pres-


sa. Envolvidos pela noite, rumamos para a
aldeia vizinha, Guillemont. Sinistramente o-
lhavam-nos as casas com rombos de balas,
quando lambidas pelos clarões.
Uma parada. Foram formados pequenos
grupos, que iam sendo incorporados ao nos-
so regimento na linha de combate. E assim
fiquei separado de meus camaradas e de
meus confrades em plena escuridão. (Nota:
confrades eram os fratres Guilherme Lins-
maier e José Sepp) Não pude vê-Ios mais
uma vez. Durante semanas não tive, notícias
deles.

Destinados os grupos às suas respecti-


vas companhias - tudo no maior silêncio pos-
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sível, por causa da vizinhança do inimigo –
os guias iam tomando conta de seu pessoal.
Íamos marchando em pelotões pela estrada
muito exposta ao bombardeio inimigo. Essa
estrada ia de Guillemont a Montauban, des-
truída e distante cinco quilômetros.
Sempre o mesmo aviso "psiu"! silêncio!
Ou então vá para os quintos com qualquer
luz!

Isso tudo desperta aos poucos a rapazi-


ada leviana para a seriedade da situação.
Qualquer descuido pode atrair rajadas de
metralhadoras contra nós.
Em alguns pontos as linhas inimigas mal
distavam dois quilômetros da estrada. Dava
arrepios a gente saber que uns cem ou mi-
lhares de fuzis apontavam para nossa estra-
da, que não oferecia cobertura alguma.
Bastava a faixa de luz de algum holofote
varrer nossa linha, e já uma saraivada de ba-
las e de ferro irromperia no mesmo instante.
Mais tarde, quando tinha de mudar de
posição, a respiração só me voltava depois
de ter vencido essa estrada perigosíssima.
Eis que já aparecem os álamos bombar-
deados, indicando a entrada para a aldeia
dos mortos, digo Montauban.
Forte e repugnante cheiro de coisas

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queimadas fere nossas narinas. Mal passava
um dia sem que os franceses bombardeas-
sem as fúnebres ruínas da aldeia, incendian-
do-as. Quase nos faziam atolar as muitas
poças de água e lamaçal sem fim.
As ordens abafadas, as pragas dos o-
ficiais e sargentos ao lado dos estalos dos fu-
zis franceses e impactos das granadas nas
paredes, somado tudo à escuridão da noite
de inverno, pesava como um balastro sobre
a alma. Repetiam sempre a mesma coisa: o
inimigo está ai perto.

4.3. - Na adega cheia de mofo.

Enfiaram-nos a nós - 16 homens desti-


nados à undécima Companhia - numa adega
cheia de mofo. De sua abóbada pinga água,
sem parar, caindo sobre a palha estendida
no chão.
Era completa a escuridão, estando proi-
bido o uso de faroletes. E assim cada solda-
do foi procurando um lugarzinho para repou-
sar.
O corpo já estava bem moído. A mim me
pareceu ser um condenado à véspera de sua
execução.
Com minha lona procurei proteção con-
tra a água que continuava pingando. Não
31
tardei a notar que ela varava, molhando mi-
nha roupa e atingindo minha pele.
Fui trepando pela lisa escada de pedra,
arrastando-me com alguns companheiros.
Fomos em busca de alguma palha mais se-
ca. Em algum lugar teríamos de encontrá-Ia,
certamente.
Aos tropeços atravessamos um pátio,
indo dar com uma velha e arruinada porta de
curral. Abri-a, mas recuei imediatamente, tal
o mau cheiro de podridão que percebi. Ao
clarão de meu farolete dei com o cadáver de
um cavalo, meio queimado e ruído pelos ra-
tos. Ao seu lado jaziam carneiros e cabras
mortos.
Desiludidos, fomos procurar essa palha
enxuta em outro canto. Muito pouca coisa foi
encontrada. Com ela voltamos â nossa ade-
ga, molhados, tremendo de frio na espera do
amanhecer.
Não se podia pensar em dormir. De
tempo em tempo lá vinha uivando uma gra-
nada, endereçada à aldeia. Explodia fazendo
um ruído dos infernos por entre as ruínas da
infeliz aldeia que nos servia de quartel.

32
4.4. - Meu fuzil, novinho em folha.

Finalmente amanheceu.
Um ordenança encarregou-se da inútil
tarefa de acordar-nos. Um copo de alumínio,
bem cheio de café quente, reanimou nossos
membros enregelados pelo frio e umidade.
Logo em seguida restava-nos vencer o
último trecho de caminho que nos separava
da linha de fogo. Vencê-lo pelo corredor de
ligação com a trincheira.
Mas enorme desilusão estava à minha
espera. Quando me levantei de meu escuro
esconderijo e tomei minha mochila, quis pe-
gar minha carabina. Foi então que notei o
roubo feito por um "bom camarada". Carre-
gara meu fuzil, novinho em folha. Em seu lu-
gar deixou outro, velho, enferrujado. Que rai-
va senti na hora. Lá se foi toda a alegria com
a guerra.
Só me restou agarrar essa medonha ca-
rabina contra a qual tudo dentro de mim es-
bravejava. Não poderia enfrentar o inimigo
sem arma nas mãos. Coloquei-a no ombro,
firmemente resolvido a "desapertar" um fuzil
novo na primeira oportunidade que me apa-
recesse.
Estava ainda meio escuro quando, um
após outro, chegamos ao corredor de ligação

33
com a trincheira. Segurando os fuzis fomos
enfiando os pés nas poças de água e de la-
ma.
Continuamente assobiavam as balas por
sobre nossas cabeças. Instintivamente abai-
xavam-se alguns soldados ao ouvirem essa
saudação dos franceses, apesar de ser fun-
do o corredor. Protegia suficientemente con-
tra os tiros da infantaria.
Foi longa a viagem através dos labirintos
dos corredores para as várias entradas.
De repente estávamos na primeira linha
de fogo na trincheira.

4.5. - Como cova de índios.

Idílicas, com ares de covas de índios,


eram as celas cavadas nas paredes.
Prometiam uma existência tranqüila.
Os ocupantes tinham olhares como de
cães metidos nas suas covas.
Alguns moravam em velhos caixotes,
estreitos e pequenos, onde não se podia ficar
de pé. Qualquer estopa servia de cortina.
O telhado era protegido por alguns sa-
cos de terra ou por leve camada de terra. De-
viam tornar o assim chamado "abrigo" irreco-
nhecível ao inimigo. É claro não ofereciam

34
defesa alguma contra bombardeios de arti-
lharia.
Em todo o caso cada qual se sentia pro-
tegido por ter um teto sobre sua cabeça.
Ninguém sentia o menor aborrecimento ape-
sar do aperto de sardinhas enlatadas. Ou en-
tão do sono tirado sobre palha meio úmida.
O bom humor aparecia nas inscrições das
entradas cara os abrigos.
Sempre a gosto! Vagões dormitórios!
Clube tal e tal! - eram os letreiros. Outros
queriam contar a real calma dos bávaros e
escreviam: "É perigoso acordar o leão".
"Deus te salve; entre, mas não traga traba-
lho".
O guia da companhia, tenente Haushal-
ter, mocinho ainda, saudou-nos amavelmen-
te e guiou-nos para nosso grupo. Meu guia,
cujo gorro lhe dava ares cativantes de confi-
ança, puxou um trapo molhado que servia de
cortina e porta para sua gaiola de madeira e
comandou: “Vamos, dêem lugar para mais
um, ou para eu não lhes pisar nos pés”.
Cumprimentei-os como fazem cristãos
decentes. Responderam-me apenas: “Ser-
vus". Viram-se de lado dizendo-me que já
havia lugar.
Tirei a mochila e apertei-me contra a pa-
rede. A água gotejava. Pensei comigo: esse

35
negócio começa bem, puxa! Não tive cora-
gem de mexer-me para não atrapalhar os
"ginasianos". Eram tais. Tinham de dormir
suas horas. Ou roncar suas horas, como eles
diziam.

4.6. - Água, barro e lama.

Imitei-os até à hora de uma barulhada


de panelas e caldeirões. Os dois companhei-
ros saltaram para fora como se vespas os
houvessem picado. Já armados de marmitas
nas mãos.

Bóia... bóia! Gritaram eles. Ótimo des-


pertador tudo isso.
Bóia é uma das coisas mais importantes
nas trincheiras. Só então pude ver de perto
meus companheiros.
Eram maços de 17 a 18 anos, ambos de
Munique e voluntários de guerra. Já haviam
perdido muito do fogoso entusiasmo da par-
tida. Estava bem na cara esta perda. Eram,
entretanto, bons rapazes, embora mal do-
mesticados.
Nosso guia é um homem quieto e de-
cente, cabo Loeferer. Sempre me tratou com
certa respeitosa reserva. Na medida do pos-
sível livrava-me de lidar com barro e lama.
36
A garoa e a chuva impunham esse tra-
balho. As paredes desmoronavam e iam for-
mar poças de lama com vários centímetros
de fundura.
O incessante caminhar dos soldados,
acabava formando um tijuco pegajoso e du-
ro. A cada passo ouvia-se o comando: Va-
mos tirar a água! Vamos jogar para fora o
barro! Começa o lado prosaico da vida en-
trincheirada.
Para mim tudo era novo, desacostuma-
do e interessante. Alegremente meti mãos à
obra, ganhando com isso imediatamente a
simpatia de meus novos camaradas.Tinham
sempre suspeitas contra gente "estudada",
que lhes parecia avessa ao trabalho.

4.7. - Seis horas no fogo, pela primei-


ra vez.

Mas enfim eu não viera para tirar com a


pá essa lama francesa. Viera para coisas
mais serias que não demoraram a vir.
Excitadíssimo esperava por elas.
Continuamente havia assobios de balas
sobre a trincheira. Não me interessavam di-
retamente. Com curiosidade desejava ver
minha atitude nas vizinhanças da morte.
37
Vários sentimentos apresentaram-se
quando fui destacado para sentinela na trin-
cheira.
Os velhos contemplavam curiosa ou
maldosamente os "maços". Queriam consta-
tar-lhes o comportamento perante os assobi-
os das balas francesas, ou do barro que lhes
jogasse na cara a explosão de alguma gra-
nada vizinha.
Na noite de 3 para 4 de janeiro passei
seis horas no fogo, pela primeira vez. Deva-
gar ergui a cabeça para fora do anteparo pro-
tetor. Empurrei o fuzil para fora e tornei posi-
ção de combate.
Ainda não disparara tiro algum e já balas
atingiam à direita e à esquerda os sacos de
areia. Um estranho sentimento invadiu-me.
Não sei se era amor à vida. Medo não era.
Guardarei para o resto da vida a lembrança
desse momento.

4.8. - Pobre mãe, pensei comigo.

Ao clarão de inúmeros foguetes lumino-


sos, que subiam ora aqui ora ali, iluminando
as posições com viva luz, reconheci as trin-
cheiras inimigas que disparavam contra nós.

Numa distância de 100 a 120 metros vi-


38
am-se os clarões dos fuzis inimigos, ora aqui
ora ali.
Sendo tão pequena a distância, esses
disparos mexiam com os nervos da gente.
Diante da trincheira jazem quarenta mor-
tos franceses, em parte tombados no outono
de 1914.
Rentes aos meus ouvidos sibilam as ba-
las inimigas. Graças a Deus que conservam
a distância: Em tal situação é difícil a gente
permanecer calma para fazer alguma oração,
embora sabendo que só um traço separa a
vida da morte.
Outro dia uma granada cortou os dois
pés de um companheiro. Suas últimas pala-
vras não foram uma oração. Perguntou so-
mente: “Camarada, ainda poderei ficar bom”?
Meus companheiros são bons rapazes.
Coitado de qualquer um que morrer! Em ge-
ral "os calcas vermelhas" (Nota: alusão ao
fardamento francês) atiram alto demais, mas
assim mesmo diariamente há mortos com tiro
na cabeça.
Hoje, perto de mim, quando fui rendido,
dei com uma lona cobrindo um cadáver
do qual corria sangue espesso. Levantei a
lona e vi o jovem rosto de um voluntário de
guerra coberto de sangue... pobre mãe, pen-
sei comigo!

39
5. - 15 de janeiro - Senti saudades de
casa.

Quando ultimamente fomos rendidos pe-


lo regimento de Guarda de Munique, e pela
primeira vez marchávamos para nosso a-
quartelamento em Péronne, vimos - agora
em janeiro: - medas de trigo largadas no
campo.
Nas hortas estão verduras do último ou-
tono. Nossa trincheira e a do inimigo estão
separadas por uma plantação de beterraba
doce. As beterrabas continuam em seus can-
teiros. Quem irá arrancá-las?
Domingo passado quase senti saudades
de casa ao nascer do sol. Ouvi um melro
cantar tão melancolicamente!
Mas o surdo troar dos canhões continua
avisando que não é tempo de a gente andar
traçando devaneios. Hoje não querem calar
suas bocarras de bronze.
Estamos ouvindo um duelo entre a arti-
lharia. Quadro horrivelmente belo!
Nossos canhões e os dos franceses, a-
trás de Maricourt e Carnoy trocam suas gra-
nadas. Fiquei observando o canhoneio den-
tro de minha guarita, enquanto voavam sobre
minha cabeça as granadas grandes e pe-
quenas.
40
5.1. - Primeiras vítimas.

Via granadas alemãs explodindo bem


nas posições francesas. Explosão terrível,
abalando o chão. É bonito ver tudo isso,
quando a gente está em lugar seguro. Mas
hoje às 11 horas os franceses tiveram a idéia
de bombardear-nos. Uma, duas, três grana-
das ultrapassaram a nossa trincheira. Se-
gundos angustiosos quando algumas atingi-
ram a trincheira.
Todo mundo, com exceção da sentinela,
correu para os abrigos, à espera da granada
certeira. Angústia entre o ouvir o disparo do
canhão e o crescente assobio da granada,
rumo a seu alvo onde explodia.
Recolhidos na sua "cela" os soldados fi-
cavam quietinhos e rezavam. Esta é para
mim, é para você? - perguntavam-se interi-
ormente.
Nessa hora vi muitos companheiros com
terço ou uma cruzinha nas mãos, rezando
sentados ou agachados. É aflição sem igual
permanecer a infantaria sem defesa, sob um
bombardeio de canhões distantes.
Os abrigos tais como são cedem ao im-
pacto das granadas. E coitado de quem esti-
ver dentro deles! Protegem, contudo, contra
pequenas granadas ou estilhaços de pedra.

41
Na Xª Companhia, nossa vizinha, houve
bom número de vitimas. O capitão teve uma
perna arrebentada. Coisa horrível esse fogo
das granadas!
Meus camaradas recordavam sempre o
dia 5 de novembro do ano passado, quando
nosso batalhão sofreu tremendas baixas (III
batalhão).
Com exceção da IX Companhia, a tropa
inteira estava reunida num pomar, atrás de
urna escola em Guillmont. Ouvia instruções
de um médico do Estado Maior. De repente
surge um avião francês que, como ave de
rapina, fez seus círculos sobre a tropa em
formatura de quadrado.
Evoluiu e desapareceu... Logo as con-
seqüências. Não tardou e estouraram dois
srhapenéis. Um muito longe, outro muito cur-
to. A tropa inquietou-se e queria dispersar-
se.
Disse o médico: "Onde se viu isso? Por-
que incomodar-se com essas porqueiras de
srhapenéis?” Vem já assobiando uma grana-
da por sobre o galpão fronteiriço, arrancan-
do-lhe as folhas e explode bem no meio do
quadrado dos soldados.
Horríveis foram as conseqüências de tal
explosão. Quem estava mais perto da explo-
são ficou estraçalhado. Os sargentos conta-

42
ram que braços e pernas ficaram dependu-
rados nos galhos das árvores e alguns foram
cortados pelo meio.
Na hora morreram 22 homens e entre
eles o guia do nosso grupo e todos os guias
do III grupo. Outros 13 morreram logo de-
pois. Ao todo 63 homens, entre mortos e fe-
ridos. Felizmente o médico do Estado Maior
escapou.

5.2. - Todo mundo reza o terço.

É coisa rara uma granada tão certeira.


Mas fogo de granada é mal afamado. Diga-
se, porém, que tais situações mostram a ati-
tude cristã de nossos soldados.
No meu abrigo todo mundo reza. Todos
os dias a gente vê o pessoal, sentado ou dei-
tado na cama de palha, com o terço ou livro
de reza nas mãos, à hora do fogo. Mas re-
zando com seriedade. Nada de respeito hu-
mano.
Sei com certeza que alguns dos meus
camaradas rezam 3 a 4 terços por dia. Isso
consola a gente para enfrentar com eles do-
res e alegrias. Com heróica paciência supor-
tam fadigas e privações, que realmente não
são brincadeiras.
43
Muito sensível é, sobretudo na posição
avançada, a falta de uma regular alimenta-
ção. De manhã um copo de café preto. Ao
meio dia nada, acompanhado com pão de
caserna. À tarde uma sopa requentada, com
uns fiapos de carne às vezes. Tudo frio até
chegar às trincheiras.
Eis o nosso cardápio quando tudo corria
bem. De vez em quando falta o café da ma-
nhã. Até ele! Então o coração, ou melhor, o
estômago mais em baixo, já cedinho suspira
pela tarde.

Ontem o comandante da I Divisão vi-


sitou nossas posições. Era o general-major
von Schoch. Ouviu as mesmas queixas so-
bre a falta no trato. Impõe-se imperiosamente
uma melhoria na assistência à tropa.
Nossos vizinhos da outra banda têm
procurado surpreender-nos no lusco-fusco da
manhã. Sem sorte, porém. Sempre foram
descobertos em tempo e ceifados pelos fuzis
e metralhadoras até retornarem às suas po-
sições.
Agora parece que estão compreendendo
a inutilidade de um ataque a descoberto con-
tra as nossas posições. Também não se sen-
tem à vontade quando têm de saltar por cima
dos cadáveres de seus camaradas que ja-

44
zem entre as duas trincheiras.
Estão tentando outro jeito de pene-
tração. Ontem à noite nosso posto de escuta
acusou escavação subterrânea a 50 metros
de nossas trincheiras.
Imediatamente descobrimos o plano. Is-
so acontecia pela primeira vez. Dia e noite
trabalham agora os nossos sapadores para
se anteciparem ao trabalho de toupeiras do
inimigo.
Há suspense geral, para saber quem se-
rá o primeiro a voar pelos ares. O perigo não
é tão grande e só uma parte da trincheira se-
rá destruída, na pior das hipóteses. De resto,
fomos rendidos pela "Lieber" (Regimento da
Guarda) e marchamos para Sainte Rade-
gonde, pequeno subúrbio de Péronne.

6. - 27 de janeiro - Sainte Rade-


gonde - Aniversário do Imperador.

Hoje é aniversário natalício do im-


perador. Dia livre para nós no quartel. Antes
do meio dia missa na pobre e bem desleixa-
da igreja de Sainte Radegonde.
Os paramentos existentes estavam ras-
gados. A cor das toalhas do altar tinha sido
45
branca outrora. Nas galhetas a água era a-
marela e o vinho amarelara também. Campa-
inhas sem badalo. Dou os sinais com a baio-
neta. P. Aloísio Mayer, C.SS.R., apresenta-
se para as confissões. Muitos aproveitaram-
se fartamente da boa ocasião.
Às 11 horas, desfile sob o comando do
general de brigada, Hylader (vulgo Cilinder =
cartola), na grande praça, lá em Péronne.
P. Mayer olha para nós da janela de seu
alojamento e ri-se de nós, pobres diabos.
Não é brincadeira uma marcha até as
duas da madrugada e mais a trabalheira para
lavar às pressas o barro preso ao uniforme.
Tudo para a gente fazer figura no desfile.
Além disso, é amarga ironia militar tal
exibição no meio de uma cidade, presente-
mente um montão de ruínas. Contudo para
todos os alemães é uma alegria contemplar
seus irmãos em combate, quando desfilam
em colunas intérminas, atrás das fanfarras,
banda militar e panejar das bandeiras vitorio-
sas.
Notava-se vivo interesse na população
francesa pelo esplêndido desfile das tropas o-
cupantes. Tais desfiles são acontecimentos sem
mais importância. Nas trincheiras, porém, a vida
anda cada vez mais cheia de novidades.

46
6.1 - Seu último pratinho de sopa.

Na última semana esteve em nossa trin-


cheira o major Buchner e ordenou abrir fogo
cerrado contra os franceses, com todas as
carabinas. Era no dia 22 de janeiro. Mas para
que tanto desperdício de munição? A razão
apareceu depois.
Queria o dito major descobrir a posição
da artilharia francesa, caso nos bombardeas-
se. Portanto não passávamos de isca... Ain-
da bem que só depois o ficamos sabendo.
Do contrário não nos teríamos atormentado
com tal tiroteio atropelado.
Às 5 horas da tarde há um comando:
"Pegar os fuzis". Todos pegam suas cartu-
cheiras e seus fuzis e tomam posição no pa-
rapeito da trincheira. Do outro lado estavam
os franceses e também os belgas.
Calmamente subia aos ares a fumaça
de suas pequenas chaminés. Estariam,
quem sabe?, cozinhando seu último pratinho
de sopa. Suas sentinelas eram poucas.

6.2. - Canhões e granadas.

De entrada estalam dois, três tiros da


ala direita e depois irrompe a fuzilaria, ao

47
longo da extensa linha de combate. Fuzilaria
infernal, ensurdecedora. Atirávamos a valer.
Uns cinco minutos demoraram os franceses
com a resposta, saídos do primeiro susto que
levaram.
Suas salvas eram esparsas, mas depois
cerradas. Uma especialidade deles é atira-
rem granadas pesadas contra um homem
sozinho. Zunidos e assobios de bala eram do
programa.
Tinha-se a impressão de uma chuva de
pedra. Os gritos e apelos dos feridos eram
abafados pela fuzilaria selvagem.
Vários soldados levaram tiros na cabe-
ça. Uma bala, que ricocheteou, moeu a testa
de um soldado. Caiu para dentro da trinchei-
ra sem dizer palavra, como passarinho que
levou chumbo.
Não demorou muito e vimos um clarão
ali perto, na pequena floresta perto de Mari-
court. Era a "querida" artilharia. Nossa trin-
cheira foi pouco atingida.
Os franceses tiveram um trabalhão com
a nossa artilharia. Vão caindo as granadas e
srhapenéis bem rentes às nossas cabeças,
fazendo o clássico ruído: zunido e explosão.
A posição inimiga é visada por alguns
dos nossos canhões. Eis que explode uma
granada dentro do abrigo francês. Voam pe-

48
los ares as inocentes chaminés que fumega-
vam tão tranquilamente.
Eram bem visíveis o impacto, a explo-
são e as labaredas que apareciam no meio
da negra fumaça.
Um dos nossos, porém, foi atingido por
uma granada que lhe cortou a parte superior
do corpo. Tudo em pedaços, sobrando ape-
nas um braço e uma coxa. Quase ninguém
ligou para o fato.
Continua o matracar dos fuzis e das me-
tralhadoras, mais o soturno explodir das gra-
nadas. É coisa que sacode todos os nervos
da gente. Pobre vida, como perdeste teu va-
lor!

6.3. - Quem será o primeiro?

Com o cair da noite cessou a fuzilaria.


Com que alegria espichei-me na minha cama
de palha! Infelizmente o sono está muito re-
duzido. É pouco, como a bóia à noite.
Temos de ajudar os sapadores que co-
locam os estopins para as minas subterrâ-
neas. Uma está quase pronta e bem carre-
gada com dinamite.
À hora que os franceses resolverem a-
tacar-nos, ajudá-los-emos a sair mais de-
pressa das trincheiras. Já estamos sob os
49
seus pés. Basta apertar o botão e lá irão eles
refrescar-se nas alturas.
É lamentável, mas há sinais de que eles
estão bem próximos de nós com suas esca-
vações. Quem será o primeiro a ir para os
ares?
Agora não é agradável fazer escava-
ções, porque a lama entra pelas botas que,
às vezes, ficam presas no tremendo barro.

Outro dia tivemos que safar do barro um


companheiro atolado. Mas a poder de cava-
deira e pá.
A pândega é grande. Nosso uniforme
mudou de cor. Não é mais pardo. Tem cor da
terra. É claro, ninguém troca os sapatos
quando entra no abrigo. A palha da cama es-
tá molhada e viscosa. Contudo ninguém está
desanimado. Todos nós temos aparências de
selvagens.

6.4. - Gota alguma de cerveja.

Nosso cabelo virou melena... Nem sa-


bemos o que é sabão... Não escovamos den-
tes, nem lavamos as mãos... A roupa do cor-
po toda molhada Sem nada também o estô-
mago... Gota alguma de cerveja ou de vi-
nho... Os pés chapinham na lama... O barro
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salta-nos na cara... Só a garganta e o humor
estão enxutos. (Nota: Tudo em poesia militar)
Nossa maior alegria era, cada quinze di-
as, um banho em Péronne. A vida no quartel
é mais cordial, mais à vontade.
Ficamos sentados alegremente, sem li-
gar para os resmungos e pragas que vomi-
tam os canhões, sempre em diálogo na linha
de combate.
Uns dias passados nesse ambiente a-
calmam, revigoram e remoçam sempre os
soldados. A gente volta com outra vida para
as "celas de barro" das trincheiras.

7. - 16 de fevereiro de 1915 - Pé-


ronne. Todos os santos franceses.

Nesta guerra, uma das mais horríveis,


começam os franceses a lembrar-se do "ve-
lho Deus". Diariamente há reza solene na
velha e bela catedral. A ladainha não acaba
mais. É para "todos os santos da França”.
Uma estranha comoção invade a gente
à vista de tantos franceses, de resto pouco
freqüentadores da igreja, comparecendo à
catedral.
Gente grande, gente miúda, crianças de

51
mãos postas, respondendo sem cessar: priez
pour nous, rogai por nós.
Mais ainda. Na França reuniram-se mi-
lhares numa romaria a Lurdes. Eu mesmo,
longe de ser amigo dos franceses, senti pro-
funda compaixão com esse povo infeliz.
Crianças, de gorro na mão, encontram-
se comigo muitas vezes, e ficam me olhando
com rosto triste, como se quisessem acusar-
me: "você levou meu pai, levou meu irmão":
Ás vezes vejo lágrimas em seus olhos. Acu-
do então com uma barra de chocolate. Sal-
tam de alegria e brilham seus olhos negros.
Pobres crianças! Ah! se a gente lhes
pudesse ensinar grande devoção a Nossa
Senhora, consoladora dos aflitos! Já experi-
mentei algumas vezes e parece-me que elas
são acessíveis ao conselho.

7.1. - A preço de sangue.

Última vez os "Leiber" de pernas com-


pridas nos deixaram 15 dias metidos na trin-
cheira. Quando vieram para render-nos tive-
ram que ouvir muitas "amabilidades" da nos-
sa parte. Agora estão gozando do nosso a-
quartelamento em Sainte Radegonde. É cla-
ro, com algum desfalque de pessoal.
Tivemos que abrir novas sepulturas.
52
Houve um avanço de 50 a 70 metros de trin-
cheira. Mas, como sempre, a preço de san-
gue. É assim.
Á noite a gente sai da trincheira, enxa-
meando e sem cobertura em campo aberto.
Trata logo de cavar uma cova para esconder-
se. Nunca na minha vida fizera trabalho tão
rápido.
Cada qual trata de sumir quanto antes
para dentro de um buraco escavado. Quando
as salvas de fuzis começam a assobiar por
sobre nossas cabeças, a gente dá graças a
Deus por já estar enterrado.
Quanta praga ouvia-se nessa noite con-
tra os holofotes e balas luminosas! Meu vizi-
nho foi baleado no peito, tendo a bala atingi-
do também um braço. O "mau inimigo" não
gostou da buracada. Pois estão agora atiran-
do mais vezes nos dias, bombardeando-nos.
Ao que parece com uma bateria recém che-
gada.

7.2. - É simplesmente horrível

Estamos chegando das escavações. Ho-


je o dia foi mau para nós. Discutíamos justa-
mente sobre o maior efeito da munição ame-
ricana quando sobre nós evoluiu um avião.
Observava-nos quando abríamos nos-
53
sas trincheiras. Instintivamente a gente pen-
sa num gavião que rodeia sua presa.
Alguns discutiam sobre a nacionalidade
da ave de rapina. De repente "buuuuuuum" e
já vem chegando a primeira granada. Depois
dela alguns srhapenéis cada vez mais perto.
Por fim granada de calibre pesado, uma
atrás da outra. Nenhuma atingia o corredor
de ligação onde trabalhávamos.
Veio a ordem de abandonar o trabalho e
buscar cobertura. Agachados, fomos corren-
do ao longo do corredor, que por sinal não
era fundo.
Sobre nós voavam torrões de barro, pe-
dras, estilhaços de granadas. Eram presen-
tes amáveis, tiro por tiro, atrás de nós. Que
disparada.
Só quem passou por semelhantes tran-
ses, sabe o que é esperar, desarmado, pela
granada que irá estraçalhar a gente.
Quando a gente pode reagir disparando
a carabina, o caso já é diferente. Não sente a
penosa situação. Mas ver inerme o fogo das
granadas, que estouram reduzindo tudo a pó
e ruína, dilaceram homens e ratos com seus
estilhaços, é simplesmente horrível.

54
7.3. - Repórteres que mentem

As notícias e descrições dadas pelos re-


pórteres para gozo de seus leitores em casa,
falseiam os sofrimentos físicos e morais dos
combatentes. Ficam esses senhores bons
quilômetros atrás das linhas de fogo. Rodam
dentro de elegantes automóveis.
Compram das tropas aquarteladas na
retaguarda alguns estilhaços de granadas.
Mas dobram depressa os joelhos quando por
acaso a nossa própria artilharia dispara seus
canhões, diante ou atrás deles.
Assim mesmo escrevem em suas crôni-
cas: "que estão sumamente encantados com
o moral elevado de nossos heróis".
O pobre soldado, que é objeto de tais
louvores, não se sente encantado no caso.
Pobres leitores que engolem esses artigos!
Sem dúvida, é belo passatempo percorrer a
frente de combate, metido num automóvel.
Sempre se vê alguma coisa, informa-se so-
bre mais outras coisas, tendo sempre a faci-
lidade de fugir na hora do perigo.
Péronne, em nossa retaguarda, está
cheia desses "vagabundos de batalhas". Ca-
çam sensações e escrevem fundados artigos
sobre o "conforto" nas trincheiras, ou sobre as
cercas de arame farpado que nunca viram.

55
7.4. - Danças e sapateados

Vagabundeamos alguns dias em Péron-


ne, desnecessariamente. No quartel a gente
se refaz melhor e recomeça com nova cora-
gem. A vida então é de aconchego e calma.
Nossa aldeia, subúrbio de Péronne, foi quase
totalmente abandonada pelos seus morado-
res.
E assim temos em Sainte Radegonde
alojamentos decentes, em casas boas. Nos-
so hospedeiro, o único da família que ficou, é
um velho francês de 84 anos. Lamenta a mi-
séria da guerra, mas trata de boa vontade
com o inimigo.
O quarto que ocupamos, oito pessoas, é
bem montado e suas paredes forradas de
papel, ao menos em três lados. O quarto la-
do foi arrancado pelos nossos antecessores,
os "Leiber", para ferver um café.
A lareira ocupa lugar de honra na pare-
de da frente. É coisa que não falta por aqui,
em casa alguma.
A gente tem a impressão de se achar
em casa, quando fervem 3 ou 4 caldeirões
dependurados sobre a lenha ardendo.
Enquanto isso o pessoal canta e con-
versa, de barriga no chão. Assunto? A pátria,
a terra natal. Ou então sobre novas experi-

56
ências adquiridas na linha de fogo.
Gaitas de boca e danças típicas (sapa-
teados) alegram os olhos e os ouvidos. Até
oficiais aparecem em nosso "rancho", to-
mando parte na distração de seus comanda-
dos. Ou então convocam para seus quartéis
um desses gaiteiros.

7.5. - Cozinhe ou passe fome

Ao meio dia cada um cozinha e frita se-


gundo suas receitas ou conforme copiou de
sua mãe, lá em casa. São engraçadas as ca-
ras, quando ao provarem a bóia, dão os "co-
zinheiros" com o fracasso de seus esforços.
Tanto trabalho sem resultado!
Nessa hora, nosso cozinheiro Quiliano,
seria desejadíssimo hóspede. (Nota: Esse
frater era de fato famoso cozinheiro. Era ir-
mão do nosso falecido Irmão Joaquim. Pelo
fim da guerra foi convocado, apesar de sua
idade. Os oficiais seguraram-no para sua co-
zinha).
Quando estamos nas trincheiras, a cozi-
nha-ambulante cuida da bóia. Aqui no quartel
é diferente. Cada um recebe seu naco de
carne, seu toucinho e mais pertences, com a
ordem: “Cozinhe ou passe fome"!

57
Cozinha improvisada.

7.6. - Amizade com os franceses.

Os franceses não nos ajudam a cozi-


nhar. Quando muito dão risadas da nossa
comida de "bárbaros". Leite, moinho para
moer o café a gente arruma com eles. Cos-
tumam ser amáveis e bons para conosco.
Soube que comentavam: "Deus nos livre
de aquartelar nossas tropas francesas: Re-
quisitam tudo"!
Agora a administração militar alemã dis-
tribui, diariamente, por meio da Prefeitura,
pão, carne, sal, carvão etc. à população fran-
cesa.

58
Hoje nossos oficiais procuraram conso-
lar a senhora do Prefeito, cujo filho tombou
no campo de batalha.
Nos últimos dias em Guillemont uma
granada francesa matou um homem e uma
velha. Vários dos nossos oficiais acompa-
nharam o enterro, circunstância que causou
boa impressão. Em geral há muita conside-
ração com a população civil.
Outro dia disse uma hospedeira: "Jornal
conta que os alemães liquidaram com os
franceses. Mas soldado alemão diz "pardon"
(desculpe) quando esbarra na gente". Solda-
do alemão "bom camarada".
Não era essa a idéia que no começo os
peronenses faziam de nós.
Outro dia, quando de sentinela do mata-
douro de Péronne, dei com um jornal de 2 de
agosto de 1914, dia da primeira mobilização.
O artigo tinha o título "Apoio dos ingleses".
Contava que "Francis Bertic", embai-
xador inglês em Paris, visitara o Sr. Viviani.
Tem-se a impressão que o governo britânico
virá em auxílio da Franca, atacada pela Ale-
manha.
Naquela ocasião já negociava a In-
glaterra com a França uma intervenção na
guerra. Antes, portanto, da repizada "viola-
ção da neutralidade" da Bélgica, que a falsa

59
Albion alegou como motivo da sua participa-
ção na guerra.

7.7. - Imprensa engana o povo.

Outros artigos mostravam como a im-


prensa enganava o povo. Unicamente a A-
lemanha era a culpada da agressão. Dela
dependia a paz ou a guerra.
Mas todo mundo estava sabendo da
consulta que a Alemanha fizera à França de
sua eventual neutralidade, no caso de um
conflito russo-alemão. E isso quando era ine-
vitável um choque com a Rússia, que já ha-
via posto em marcha suas tropas. Logo a
França tinha liberdade de escolher a paz ou
a guerra.
Em lugar disso o "Echo de Péronne "
pergunta se a Alemanha quer a guerra. Dela
depende a luta. O "Rapport" então é nojento.
Hipocritamente escreve: "Todo mundo
queria a paz. Mas tudo está pronto para a
guerra com risonha coragem, como é um dos
traços da nossa raça imortal".
Outra vez o "Echo de Péronne" concita
em fogoso fraseado o povo peronense: "A
conduta do povo dessa cidade, com seu pas-
sado de glória, não pode ser outra: consagrar
o passado amanhã (3 de agosto); sendo pre-
60
ciso todos os peronenses achar-se-ão às
portas dos quartéis e com todos da Picardia,
todos os franceses vindos de toda parte, par-
tirão para defender o solo sagrado da pátria,
banhado pelo sangue de seus antepassados
e ilustrado pelos seus brasões.
Unidos num só sentimento patriótico,
soldados de hoje e de amanhã, servidores
fiéis do governo da República, repetiremos
numa só exclamação, com todas as forças
de nossos pulmões: Viva a França!”

8. - 18 de março de 1915 - Quartel


Guillemont. Precisei de seu amparo!

Eu sabia que a querida Mãe de Apareci-


da não me abandonaria. De fato, precisei de
seu amparo no horrível assalto que ontem à
noite (16 para 17) tive de fazer.
Fazia tempo que reclamava uma solu-
ção nossa situação nas alturas entre Mon-
tauban e Carnoy.
Todas as elevações estão rasgadas por
trincheiras francesas e alemãs, corredores
de ligação e galerias, estopins para minas
subterrâneas. Estas últimas obrigam-nos por
fim a atacar.

61
Desde as últimas semanas (depois do
último avanço) distamos apenas 80 metros
do inimigo. Dai o começo de uma verdadeira
aposta em escavar minas. Mutuamente que-
remos mandar aos ares um ocupante de po-
sições.
Na semana cassada os aparelhos de
escuta de nossos sapadores acusavam uma
vizinhança inquietante dos sapadores fran-
ceses. Não havia remédio: tínhamos que ga-
nhar a corrida, a qualquer preço. Era o do-
mingo Laetare.
Depois do meio dia começou a correr o
boato da explosão de nossa mina. Á tarde
veio a ordem: "Antes das 21 horas todo
mundo nos abrigos! Ás 21 horas em ponto
explodirá a mina na ala direita da linha fran-
cesa". E assim sucedeu. Com nervosia está-
vamos abrigados, conferindo os relógios.
Ás 21 horas o tenente dos sapadores
estava a postos. Apertou um botão e já um
surdo trovão-explosão se fez ouvir. Ofuscan-
te clarão de fogo relampejou pelas brechas
dos abrigos que tremiam.
Lá se foram aos ares os franceses. Por
toda região era aquela chuva de pedra e bar-
ro. Imediatamente saímos de nossos abrigos,
observando a linha inimiga. Duas enormes
crateras marcavam os lugares da explosão.

62
Silêncio de morte, pesado, claro, vapor de
pólvora cobriam a posição.

8.1. - Ele insistiu na confissão.

Agora era nossa vez de agir. Era preciso


ocupar os panelões abertos. Patrulhas envi-
adas informaram que o inimigo já se prepa-
rava ocupá-los.
Perdeu-se muito tempo em vez de ata-
car rapidamente, quando o inimigo ainda não
tomara pé, abatido moralmente pelo tremen-
do acontecimento.
Passou o dia seguinte sem ataque. O i-
nimigo disso se serviu para pôr em estado de
defesa suas posições.
Sob a proteção da artilharia, nossos sa-
padores cavaram um corredor de ligação, só
de meio metro de profundidade. Fizeram-no
à tarde, rumo aos panelões. Mas os france-
ses não dormiram nesse ínterim. Furiosa-
mente bombardeiam nossos sapadores e
nossas posições.

Durante a noite morreram 45 sapadores.


Nosso estimado guia foi a primeira vítima
dessa noite. Apesar de ser protestante, foi
ele quem muito insistiu pelo aproveitamento
63
da ocasião para as confissões, ultimamente
em Péronne.
Estava controlando o trabalho dos sapa-
dores, em pé no corredor. Um estilhaço de
granada partiu-lhe a cabeça. Eu gostava
desse oficial, moço e valente.
Chegou a terça-feira. Nossa Companhia
devia atacar às 21 horas. Apareceram coura-
ças de aço, machadinhos, tesouras para cor-
tar arame, munições refeitas etc. Sinistra
preparação!
As horas de espera esticaram os nervos,
sobremodo. A gente estava sentada e espe-
rava. Uns iam para cá, outros para lá. Ali
num canto um soldado rezava sentado. Ou-
tro estava imaginando, macambúzio. Foram
trocados endereços para as famílias, na hi-
pótese de tudo. Prosa pouca, mas muita
concentração, muito sentimento.

8.2. - De baionetas caladas

Enfim, veio a ordem "calar baioneta", e


então nós "morituri" saímos quietos, mas re-
solvidos, deixando as trincheiras. Comanda-
va o tenente Deisenhofer. Chegamos até 50
metros, em linha estirada de combate, sob a
proteção da noite. O inimigo não nos pressentia.

64
De repente assobia um foguete luminoso e
o francês viu horrorizado uma cintilante linha de
baionetas diante de suas linhas. Cedo demais
haviam descoberto o ataque. Não tinha impor-
tância o caso. Assim teria de acontecer, mais
cedo ou mais tarde.
Companhia inteira! Avançar!
E já começou a luta. Irrompe furioso tirotei-
o. Por toda parte só se vê o relâmpago dos fuzis
disparando, de um e outro lado. Não tarda e a
artilharia mete-se na luta. No começo apenas
algumas granadas. Depois muitas em bombar-
deio cerrado. Também nossos canhões dispa-
ram.

Canhões de 32 centímetros bombardeam Reims, set. de 1914.

Parece que o céu vem abaixo com estron-


65
do infernal. Nossa artilharia, postada em Cléry,
mira os panelões com canhões de 21 centíme-
tros.
Nesses panelões os franceses entrin-
cheiravam-se em massa. Apesar da distân-
cia, os tiros acertavam no alvo com muita
precisão. A escuridão da noite não impedia o
cálculo.
Sem cessar cala uma chuva de estilha-
ços e fogo sobre as linhas de retaguarda pa-
ra lhes impedir o avanço.
Todo o campo de batalha está envolvido
em denso e irrespirável vapor de pólvora.
Vapor denso, espesso. Ribombo infernal e
enquanto ele durava, alcançamos vagarosa-
mente o primeiro panelão.
Um recado telefônico avisa nossa arti-
lharia para mudar o alvo mais para frente.
Uma visão indescritível nos esperava, à che-
gada da primeira cratera. Uma agitação co-
mo num formigueiro remexido.
A guarnição inimiga que ocupava as bor-
das da cratera foi atirada para dentro, a gol-
pes de baionetas. Coisa cruel esse trabalho
com arma branca!
Aos montões rolavam para o fundo, um
soldado arrastando o outro. A explosão das
granadas e dos shrapenéis ilumina sinistra-
mente as caras dos zuavos e dos negros do

66
Senegal, que haviam sido jogados contra
nós.
Vinham gatinhando ao nosso encontro,
panelão acima, com uma fúria diabólica. Ati-
ravam doidamente. Várias vezes minha situ-
ação tornou-se perigosa, desesperadora.
Tão perto caíam as balas, a ponto de atira-
rem contra minhas mãos e minha carabina
terra e barro.

8.3. - Nos ares, massa de corpos hu-


manos.

O cano da carabina queimava de quen-


te. A terra amontoada impedia a manobra do
ferrolho. Não era mais possível usar o fuzil.
Atirei-o fora e peguei o primeiro encontradi-
ço, que servia a um camarada tombado ao
meu lado.
Nossas balas assobiam para dentro do
panelão. Não há granadas de mão que che-
guem, arremessadas contra a negrada. Ex-
plodem tremendamente, atirando para os a-
res massa de corpos humanos. Coisa horrí-
vel!
Tivemos que dar duro para manter o i-
nimigo lá em baixo. Por desgraça iam-se a-
cabando as granadas, que foram usadas por
nós pela primeira vez.
67
O tenente Neuburg, filósofo recém -
formado de Neugurg (no Danúbio) que co-
mandava em lugar do tenente Deisenhofer
gravemente ferido, despachou-me para ir
buscar mais granadas. Estavam amontoadas
em nossas trincheiras. Voltei depressa para
o lugar de combate.
Dos braços pendem granadas. Não me
era possível usar o corredor de ligação, cheio
de soldados vivos e mortos. Saltei para fora
e corri entre as duas linhas de combate, sem
o perceber, por causa da escuridão.
Alcancei nossa posição, mas sem contar
as balas que andavam zunindo aos meus
ouvidos nesse tiroteio. Só depois é que fiquei
sabendo que levei tiros, tanto dos compa-
nheiros como dos amáveis "amigos" france-
ses. Nunca em minha vida havia corrido tan-
to!

8.4. - A luta torna-se mais furiosa.

Pouco depois de chegar à nossa ala es-


querda, conseguimos limpar a primeira crate-
ra. Já não havia gente viva dentro dela. Al-
guém deve ter comunicado isso, pois fomos
tremendamente bombardeados. Tive a im-
pressão de que era o fim do mundo. Carabi-
nas, metralhadoras, canhões revólveres já
nem mereciam nossa atenção, diante do in-
68
fernal espetáculo causado pelas granadas
que estouravam ao redor de nós.
Que orquestra dos infernos: A terra tre-
mia com os petardos de 21 centímetros dos
morteiros.
Os disparos estridentes dos canhões da
marinha inglesa, com seus canos compridos,
o trovejar dos haubitzen, o uivo das granadas
e srhapenéis dos mais pesados calibres, era
coisa indescritível.
Selvagem fúria de combate apoderava-
se de nós diante dos tiros certeiros da nossa
artilharia.
Assobiando caiam as mais pesadas
granadas, colossos de ferro, bem no meio
dos franceses e atiravam para longe enxa-
mes humanos.
Tiros certeiros: Estava esquecido de
que eu não era um Siegfrid chifrudo e tinha,
desde o começo, uma sensação de seguran-
ça. Julgava até impossível esbarrar numa
bala inimiga, enquanto ao meu lado jaziam
os mortos. Um sub-oficial tentava arrastar
seus comandados a um ataque de baioneta.
Pula para frente, gritando: "hurra". Mas, dera
apenas uns passos e já atira os braços para
o ar e tomba para trás.
Tais cenas bem podiam amedrontar por
um momento, a nós todos. Mas imediata-

69
mente sobe-nos a gana de vingar e a luta
torna-se mais furiosa.
Senti demais o ferimento mortal de um
camarada. Era um dos mais queridos. De
profissão era técnico em máquinas e homem
quieto, amável. Combatia ao meu lado, ati-
rando sem parar, enquanto a terra jogada
pelas granadas quase nos estava cobrindo.
De repente um grito, e a carabina lhe
caía das mãos, seu sangue quente borrifava-
me o rosto e as mãos. Tombou exclamando:
"Companheiro, levei um tiro. Amarre-me de-
pressa, do contrário eu vou me esvair em
sangue". Depressa arranquei minha banda-
gem e enrolei-a no antebraço direito do feri-
do. Mas que adiantava tudo isso? A mão es-
tava quase separada do braço, e pendia co-
mo uma boneca arrebentada.
Imediatamente retirei a bandagem colo-
cada, toda ensangüentada, torci-a fortemen-
te. Ficou convertida num laço com que prendi
fortemente a artéria seccionada, da qual jor-
rava sangue como de um chafariz.
Escapou com a vida. Atirei-o sobre o
ombro, pois já estava desmaiado e carre-
guei-o o mais depressa possível para dentro
da trincheira.

70
8.5. - Sobre escombros e cadáveres.

Retorno à luta. Gritos ora à direita ora à


esquerda. Eram os atingidos por tiros e esti-
lhaços. Ou então tombava um ou outro, dan-
do um leve gemido.
Tem razão o cântico militar que diz:
"Um bronze assassino e traiçoeiro atravessa
um coração esperançoso".
Eram 6 horas da manhã quando acabou
nosso trabalho. A ala esquerda, na qual me
achava, foi alvo de nutrido fogo de canhões-
revólveres, logo ao clarear o dia. Ao meu la-
do eram muitos os atingidos na cabeça e no
peito. Quase sempre mortalmente.
Muitos rolavam para dentro da cratera,
em cujos bordos estavam. Iam ajuntar-se aos
negros mortos, lá embaixo.
Nunca me esquecerei do ruído perfu-
rante com que uma bala atravessou a fonte
de meu vizinho. Eu ocupava a mesma posi-
ção elevada com meus companheiros. Não
sei como escapei ileso.
A ocupação da cratera, ao longo do dia,
custaria um preço muito elevado. Por isso
nos retiramos para nossas trincheiras, en-
quanto nossa artilharia barrava o avanço do
inimigo para ocupar a posição abandonada.
Pela tarde,nosso II Batalhão avançou e forti-

71
ficou a cratera conquistada. Mas nossa velha
posição, à qual retornamos, oferecia uma vi-
são macabra. O bombardeio inimigo havia
esculhambado com tudo.
A cada momento pulava-se sobre es-
combros e cadáveres. Era preciso ter cuida-
do com os escorregões nas poças de sangue
que deformavam a trincheira. Eram poças
grandes.
Enfim, o ataque custara muito sangue,
muito mesmo. Em todo o caso, o perigo das
minas sob nossos pés, estava, por hora, a-
fastado.

8.6. - Muita gente não respondeu à


chamada.

À noite nossa Companhia foi rendida, o


que não representava favor algum. Os sol-
dados, girando tontos pelo quartel, com uni-
formes sujos com nodoas de sangue. Há
pouco eu tentava tirá-las de meu uniforme.
Trabalho duplamente triste por se tratar do
sangue de um querido camarada de armas.
Todo mundo anda atordoado, com zumbidos
nos ouvidos e ardores na cabeça. Soldados
pálidos e moídos. Só agora a gente dá com a
sobrecarga dos nervos, causada pela luta
noturna.
72
Pela manhã houve chamada dentro de
um pomar. Muita gente conhecida faltou, não
respondeu. Quantos haviam cantado distrai-
damente: "À chamada haverá gente calada.
Para mostrar à doida cambada que também
o inimigo sabe atirar".
Agora o cântico tinha sentido. O major
Buchner, enorme sujeito que eu vira de pé, à
borda da cratera, pela madrugada, disse: "O
pessoal da ala esquerda pode falar de sorte,
porque conseguiu salvar uns soldadinhos".
Nós bem o sabíamos. A tremenda exci-
tação nervosa dos últimos dias acabara tor-
nando todo mundo indiferente, completamen-
te apático.
Cada soldado atira-se onde se acha em
pé. Ninguém pensa nada. Todo mundo quer
dormir e ninguém consegue dormir. A cabeça
parece arrebentada.
O terrível estado de semi-sono, o contí-
nuo perigo e pressentimento dos últimos dias
e noites, não queriam abandonar o corpo
cansado.
Apenas um abençoado sentimento to-
mou conta de todos: a convicção de haver-
mos escapado de tremendo risco. Sobretudo
eu, tinha motivo especial para ser grato a
Deus e sua Mãe Santíssima.

73
8.7. - Lembrei-me do terço.

Durante o bombardeio inimigo fui desta-


cado como sentinela de observação. Traba-
lho de seis horas a fio. Horrorosamente zuni-
am sobre minha cabeça as granadas e seus
estilhaços. Chegavam a atirar-me areia e
barro no rosto.
Incessante era o estouro, contínua a
explosão ao redor de mim. Que noite tre-
menda: Pareciam assombrações as grana-
das uivando sobre mim e disparadas de
Cléry pela nossa artilharia. Granadas de 21
centímetros, horas a fio, endereçadas aos
franceses. Por fim comecei a rezar meu ter-
ço, recomendando-me com insistência à pro-
teção da Mãe de Deus.
Explosões na minha vizinhança inter-
rompiam-me com freqüência. De repente tive
a idéia de mudar de lugar, que não me esta-
va marcado. Toquei-me vinte cinco metros
para frente, numa ponta da galeria. Da nova
posição podia constatar melhor o alvo atingi-
do por nossas granadas contra o inimigo.
Não tardou muito e uma "salva" de nos-
sos canhões trovejou no ar. Mas que aconte-
ceu? Erraram a pontaria e três pesadas gra-
nadas (21 centímetros) explodiram dentro de
nossas trincheiras. Uma bem rente ao lugar

74
que eu havia abandonado, minutos antes.
A trincheira inteirinha estava soterrada
quando voltei. Eu teria sido despedaçado pe-
los estilhaços, se tivesse ficado na posição
anterior. Estavam ali esparramados, bem vi-
síveis. Camaradas que me ouviram contar o
sucedido, comentaram logo: "Mas que sorte
de porco tem você, companheiro"! Lembrei-
me de meu terço.

8.8. - Bonitos pomares e bonita igreja.

Só agora (20 de fevereiro) suprimiram a


longa marcha para Péronne. Que marcha
cansativa aquela! Três horas batidas ao lon-
go de estrada calçada e reta, por morros e
vales: Montauban, Guiilemont, Combles,
Mont-Saint-Quentin e... Péronne! Até chegar
à velha cidade de Somme, todo mundo já
estava murcho e mal arrastava as pernas.
Agora era diferente.
Os encarregados dos alojamentos fo-
ram enviados a Guillemont que mal distava 3
quilômetros atrás da linha de fogo. Outrora a
aldeiazinha bem podia ter sido bonita, com
seus pomares ao redor e sua bela igrejinha
no vale.
Fui sem sorte quando repartiram os alo-
jamentos. Cai num ordinaríssimo curral de
75
cabras, sem porta ainda para remate. Arran-
camos a primeira porta encontradiça numa
casa e encostâmo-Ia, amparada por dentro.
Até aqui a coisa funcionava. Mas eu fiquei
bem defronte da porta, deitado em minhas
palhas, o que representava um problema.
Cada hora saía um companheiro para
render a patrulha na aldeia. Nessa ocasião
pisava-me as pernas. Sou paciente, mas a
paciência não deu para o gasto. Pois me a-
conteceu coisa pior. Eis que entra uma patru-
lha que fora substituída e, na escuridão, cai
com a porta em cima de mim. O coitado gri-
tou de susto e eu de dor, porque o brutamon-
tes quase me reduziu a um mingau.
Como fiquei contente, quando no dia
seguinte deram-me outro alojamento na saí-
da da aldeia! A gente tinha de dormir no
chão, mas o quarto era bom, com lareira a-
berta e macia turfa para cama improvisada.

8.9. - Um garotinho francês.

Certo dia chega ao nosso alojamento


um garotinho francês. Pede fumo para o pai
e manteiga para mamãe. Perguntei-lhe pelo
nome. - Fernand Peuillot, foi a resposta. - E a
idade? – 7 anos. Recebeu fumo e manteiga.
Ainda indaguei se o pai estava na guerra.
76
Não, não, nada de "Krieg"; mas cinco irmãos
estão lá combatendo.
Perguntei se os cinco estavam vivos. O
coitadinho deixou cair a cabeça e disse com
tristeza: - Nous n'avons pas nix Post. (Não
temos notícias). O correio não transpunha as
linhas de combate. Meus companheiros que
nada entendiam da nossa conversa foram
marotos. Mostraram ao garoto uma bala de
fuzil, perguntando-lhe se sabia o que era. -
São cigarros para os ingleses, respondeu
prontamente o moleque. Resposta que dava
a entender muita coisa sobre a tal amizade
entre os dois povos.
Coisa semelhante disse-me outro dia
uma senhora em Pérrone: - "Nós não querí-
amos a guerra; foram os ingleses que a qui-
seram e a fazem".

8.10. - Algum descanso.

Deram-nos licença para uns dias de


descanso em Guillemont. Nossos nervos já
estavam bem curtidos com o fogo infernal
dos últimos dias. Não mais ligávamos para
um ou outro tiro que durante a noite visava a
pequena aldeia.
Uma granada zuniu por cima da escola
e pela porta aberta entrou para o corredor da
77
loja, mas sem explodir.
Notamos que o inimigo orientava-se pe-
la ponta da torre. Pois, escondida dentro de
uma baixada, a aldeia inteira era invisível pa-
ra o inimigo.
Resolução: deitar abaixo a torre! Sapa-
dores cavaram pequenas covas nas paredes
que emergiam do telhado. Colocaram dina-
mite e fizeram voar para os ares a torre góti-
ca. Caiu para um lado, dentro de um pomar
sem em nada prejudicar a igreja.
Dai em diante Guillemont teve sossego,
ao menos até a batalha de Somme. Nessa
ocasião foi completamente arrasada junta-
mente com as vizinhas Ginchy, Morval e
CombIes.
Apenas uma elevação ao sul da aldeia
era bombardeada. Ali havíamos construído
uma bateria falsa, improvisada com quatro
carroções franceses, de rodas altas. Uma
grossa tora de árvore atravessada sobre eles
fingia ser o cano. Tudo coberto com galharia
contra a inspeção aérea, mas só tanto quan-
to necessário para alarmar os heróis do ar
contra o perigo daquela bateria.
De fato, não passava um dia sem que
esses bestas de carroções não recebessem
algumas dúzias de granadas francesas. Oh!
santa simplicidade! Enquanto isso, a uns 120

78
metros, escondidos na floresta ao lado, dis-
paravam nossos pesados haubitzen.

9. - 2 de abril de 1915 – Lougue-


val − Páscoa nas trincheiras.

Sexta-feira santa! Passamos só cinco


dias nas trincheiras e dentro delas é que es-
perávamos pela Páscoa. De repente veio
comando para render o III Batalhão. Partimos
só à noite, pois nosso aquartelamento estava
muito perto.

Ao abrigo da floresta.

Longueval fica 20 minutos distante de


Guillemont. Dai em diante, até à partida para

79
Arras, ficou sendo quartel de repouso. Desta
vez a nossa nova residência é bem bonita.
Quase nada para se fazer. De vez em quan-
do marchávamos até à próxima floresta (Bois
de Delville) e amarrávamos feixes para forrar
as paredes das trincheiras.
A artilharia francesa ou a aviação tra-
zem alguma variação no monótono trabalho
de rachar lenha. Se um dos nossos aviões
surge no horizonte, os franceses procuram
de todo jeito atingi-lo por shrapenéis.
Em geral o tiro fica muito abaixo do avi-
ão. Nós é que temos de agüentar essa sala-
da assobiando em nossos ouvidos.
Quando um avião inimigo ronca sobre
nós, amoitamos quietinhos como rato acos-
sado. Pois as florestas francesas são muito
ralas, transparentes. A ave da rapina tem di-
ficuldade para distinguir nosso uniforme que
é da cor da terra. Ás vezes, contudo, conse-
gue localizar-nos no chão. E então põe seus
ovos ou nos assinala para a artilharia. É inte-
ressante a gente observar como começa o
canhoneio, imediatamente. Mais interessante
constatar como as granadas explodem longe
do alvo, a um quilômetro além da floresta.
Nossa turma grita um "bravo" para cada tiro.
No dia 24 de marco tínhamos recebido
um outro "papai da Companhia", o capitão

80
Deschauer, que assim se dirigiu a seus co-
mandados: "Considero honrosa tarefa co-
mandar uma Companhia tão valente. Que
nesta campanha não haja mais dias tão du-
ros, como no passado 17 de março. Mas se
isso tiver que acontecer, posso com toda se-
gurança contar com vossa bravura, já com-
provada, para investir valentemente contra o
inimigo".

9.1. - Rompe a aurora da Páscoa.

No dia 25 de março - Anunciação de


Nossa Senhora - encontrei uns soldados pa-
rados na rua da matriz. Eram antigos com-
panheiros da caserna em Munique. Dirigi-me
a eles. Mas que ouço? Um contou-me como
novidade a notícia de minha morte no último
assalto. Disse-lhe um "muito obrigado", mas
reafirmei que estava vivinho. Todos se admi-
raram do desmentido do morto.
Espero não hajam ainda comunicado
aos meus minha morte, ou inscrito na lista
dos que tombaram no "campo da honra". Da-
ria uma bela atrapalhada em casa. Por en-
quanto não tombei morto e espero que no
futuro tal notícia nunca seja verdadeira.
Que vontade eu sinto de passar a Pás-
coa em casa, no meio dos caros confrades!
81
Mas justamente sexta-feira santa, pela ma-
nhã, o inimigo tentou romper nossas linhas.
Horas a fio ouvíamos uma matraca de sexta-
feira santa: disparo dos fuzis e das me-
tralhadoras.
Sábado santo. Lá no convento, às 3 ho-
ras da tarde, tocam os sinos da matriz anun-
ciando a grande festa pascal. E nós? Rece-
bemos ordem de varrer as ruas. (Nota: Refe-
rência à cerimônia, usada na Baviera: sába-
do às 3 horas da tarde o povo reunido na
matriz cantava o "Cristo ressuscitou" e, no
fim o Grosser Gott, com todo o volume do
belo órgão). E eu caminhava com o carrinho,
de monte para monte, ajuntando o lixo duran-
te a tarde inteirinha.
Os franceses tinham de admirar o amor
à limpeza e ordem dos alemães. Quando es-
távamos reunidos em casa, planejando nos-
sa festa, veio a ordem de dormir. Pois ama-
nhã voltaremos para as trincheiras. Rompe a
aurora do domingo de Páscoa.
Dia cinzento e feio, com chuva. Pela
manhã, às 11 horas, houve missa para os
soldados na bem enfeitada igreja da aldeia.
Tocou a banda do nosso batalhão. Predomi-
nava, porém, um desumano fortíssimo. A
gente tinha medo de um desabamento do
teto. E as crianças gritavam nos bancos por

82
causa da tremenda pancadaria.
Foi um escândalo o procedimento do
capelão da Divisão, um tal Dr. H. Saía da sa-
cristia com enormes botas de verniz amarelo,
alba curta. Fazia suas mesuras para todos os
lados, saudando os oficiais antes de dobrar
os joelhos diante do sacrário.
Tive uma grande consolação nos dias
que passei em Longueval. Pois fiquei conhe-
cendo um clérigo de Santa Odília, frater
Gangolf, O.S. B (José Hermes). Pertencia ao
I Batalhão e era uma alma de ouro, como
bem depressa pude constatar. Quando mais
tarde uma bala na cabeça lhe ceifou a vida
em flor, continuei lembrando- me dele com
lágrimas nos olhos. Era um amigo e um ver-
dadeiro companheiro. Comigo e por mim en-
frentava literalmente o fogo. "Eu tinha um
camarada - Não acharás igual; A luta nos
chamava - Ao lado meu marchava. Funesta
bala vinha - Virá a mim? a ti? Mas ai; balea-
do... foi aos meus pés prostrado.”

9.2. - Chuva que molha alemães e


franceses.

Domingo de Páscoa, pela tarde regres-


so às trincheiras, sob chuva torrencial. Em
todo caso chuva preferível a outra de petar-
83
dos.
Desta vez tivemos que agüentar 12 dias
nas posições.
Segunda feira de Páscoa eu estava de
sentinela avançada com um velho "Lands-
turm". Chovia a cântaros. Um velho guarda-
chuva protegia-nos da água e não das balas.
Aliás, os franceses acharam que a chuva os
molhava também. Lá uma ou outra bala zu-
nia por perto. Quando luminosa, mostrava-
lhes o idílico posto avançado alemão.
Quando um de nós queria atirar, preci-
sava o outro protegê-lo com o guarda-chuva.
Preferíamos, porém, uma prozinha em voz
baixa. Pois falar alto e ainda em alemão irri-
tava os franceses.
Ficávamos contando os furos das balas
em nosso guarda-chuva, ou lembrávamos a
festa da Páscoa em outros anos mais pacífi-
cos. Ate falávamos de uma paz que já anda-
va por perto. De repente alguém pôs-se a rir
atrás de nós: - E essa hein? Onde acharam
vocês dois tão famoso guarda-chuva? Era a
voz do nosso bom tenente Eder.
- Foi no aquartelamento, senhor te-
nente, respondeu o meu companheiro em
bom dialeto bávaro. Retiramo-lo de um mon-
tão de escombros de uma casa bombardea-
da. Foram as palavras de Kastl, landsturm de

84
Ergolding.
Isso mesmo, respondeu o amável te-
nente. Na guerra cada um se defende como
pode.

9.3. - Lá se ia o inimigo aos ares!

Mas os 12 dias transcorreram calmos e


tranqüilos. Quatro vezes mandamos france-
ses aos ares.
Andavam "minando" com brocas, noite
e dia, a fim de chegarem primeiro sob nossos
pés. Porém, nossos destemidos sapadores
conseguiram alcançar as posições inimigas
mais depressa.
Os espertos e ladinos franceses nem
suspeitavam que nós tínhamos aparelhos de
escuta, que acusavam com exatidão a dis-
tância e a profundidade de suas escavações.
E muitas vezes nossos sapadores ca-
varam por baixo das galerias francesas e lá
se ia o inimigo aos ares.
Por exemplo: na última escavação i-
nimiga a profundidade era de cinco metros
abaixo de nós. Já andava quase nos alcan-
çando. Os sapadores inimigos estavam ainda
em plena atividade, quando os nossos carre-
garam suas minas bem debaixo deles.
Uma tarde foi detonada nossa mina, fi-
85
cando tudo destruído do lado francês: trin-
cheira, galerias e soldados. A gente alegra-
se quando uma explosão é bem sucedida,
arruinando as trincheiras inimigas. Pois o
mesmo destino tinham suas escavações de-
baixo de nossas linhas. Dá, porém, uma afli-
ção na gente, saber da hora da explosão e
ficar marcando-a no relógio: "é agora, está
na hora". Com um golpe irão para a eterni-
dade homens desprevenidos.
É, de fato, como se o inferno se abrisse.
Tal é a cena de repuxo de labaredas o-
fuscantes e fogo que saltam para o céu no-
turno. Quem sabe tal "ascensão ao céu" não
será para mais um soldado uma "descida
aos infernos"! O cálculo é feito procurando
destruir o maior número possível de inimigos.

9.4. - Que crueldade. C'est Ia guerre!

Outro dia nossa artilharia bombardeou


as posições inimigas antes da explosão pla-
nejada. O francês desceu para seus abrigos,
cinco a sete metros para baixo. Justamente
nessa hora fizemos explodir nossa mina, a-
companhando os canhões.
Os franceses ficaram estraçalhados e
soterrados em seus abrigos. Que crueldade:
C'est Ia guerre! Quatro vezes vimos ultima-
86
mente esse cruel espetáculo diante de nos-
sas trincheiras. Que não nos aconteça o
mesmo!
Dia e noite berravam os mutilados e fe-
ridos. Pediam, bradavam por socorro. Nós
não podíamos acudi-los porque os franceses
várias vezes haviam atirado na bandeira da
cruz vermelha.
No último assalto não nos permitiram
enterrar os sete mortos. Por fim alguém re-
solveu ir acudir os feridos.
O dia inteiro não disparamos um tiro e
nossa artilharia recebeu ordem de não bom-
bardear a posição inimiga, durante esse dia.
Então o francês, lá do outro lado, compreen-
deu que não queríamos pagar-lhes na mes-
ma moeda e que não éramos bárbaros sem
coração.
Devagar no começo, um depois mais
outro, três grupos inteiros iam saindo de suas
linhas com pás e cavadeiras e sepultaram
seus mortos, digo, pedaços de gente morta.
Ou então desenterravam feridos soterrados,
levando-os para suas trincheiras.
Eis aí a guerra das minas terrestres que
paralisa a infantaria e ao mesmo tempo a
apaixona. Como se repete a alegria, sempre
quando a gente recebe uma rendição! Parte
sabendo que está escapando de um perigo

87
sob seus pés.
Lá muito seguros não estamos em nos-
so aquartelamento, também. Pois o lugar es-
tá ao alcance dos canhões. Além disso, os
aviões inimigos voltam frequentemente com
suas bombas. São visitantes sempre mal vis-
tos.
Há poucos dias fizeram voar aos ares
um trem de munições na estação de Saint-
Quentin.
Anteontem à noite o Zeppelin sobrevoou
nossa posição, rumo a Paris. Os franceses,
de cabeças voltadas para o céu e ouvidos
atentos, nem se lembraram de atirar. Isso
apesar de saberem que não se trata de com-
petição esportiva no vôo à capital. Naquela
noite clara eu via muito bem a rapidez do vô-
o, de estrela para estrela.
Pobres soldados! Em parte alguma es-
tão seguros. Na trincheira, chumbo e aço são
mortais. Sob seus pés as minas são uma
ameaça contínua. A qualquer momento abre-
se a terra e engole-os. Sobre suas cabeças
não são melhores as promessas. Aviões e
balões cruzam sempre pelos ares, carrega-
dos de bombas.
Uma espada de Dámocles! E no mar?
Aí, quando a coisa estoura, não se pode nem
correr. Perigo no ar, perigo na água, perigo

88
A insegurança das trincheiras.

na terra. Em toda parte o pobre soldado é


visado. Para nada presta, nem em terra nem
na água. Deve desaparecer da terra! É o ini-
migo! Que miserável sorte!

9.5. - Mãe e guia para a Pátria.

Ainda bem que em todo soldado há um


tanto de leviandade, e em cada mocho um
clima de aventura. Do contrário, isto aqui se-
ria insuportável. Penso que há nisso uma
permissão de Deus.
Em todo o caso, a gente vai rumando
para a pátria, ou para a terrestre ou para o
céu. Como até hoje, a Virgem Maria será mi-

89
nha Mãe e Guia para a pátria, no próximo
mês de maio. Seja para a terrestre ou para a
celeste. Para mim qualquer uma serve.

Se tenho que dar minha vida,


pela pátria no mês de maio,
ao clarão de um crepúsculo;
a ti já pertenço, morrendo,
Ó Maria, minha Mãe!
Exclamarei já ferido mortalmente.
Banhado em rubro sangue,
lá se foi um coração de filho teu!
Então me levarás contigo,
Pois a ti pertenço, como nenhum outro.

Mesmo longe de teu quadro,


tu estarás sempre perto de teu guerreiro.
(Nota: Verso livremente traduzido).

10. - 10 de abril de 1915 - Sepul-


tando os mortos.

Faz pouco tempo confiaram-nos uma


posição, à direita da atual uns 200 metros.
Até então fora ocupada por tropa badense.
Está bem conservada. Mas tem um inconve-
niente. Entre nós e o inimigo jazem muitos

90
cadáveres de franceses mortos em dezem-
bro passado. Não era possível deixa-los ali,
insepultos, durante o verão.
Veio ordem para sepultá-los, à noite e
com neblina. Que trabalhão! Além do fogo
inimigo, o sepultamente apresentava dificul-
dades imprevistas.
Primeiro, era preciso trazer os cadáve-
res para mais perto da trincheira. Do contrá-
rio o ruído das cavadeiras e pás alertaria o
inimigo. Mãos à obra! Mas, ai! -Que horror:
Os cadáveres apodrecidos largavam seus
pés e suas mãos, quando puxados. Não era
possível retira-los.
Foi preciso ir cavando covas bem rentes
a eles. Depois os arrastávamos para dentro
delas, puxando-os pelas fardas. As calças
vermelhas estavam em bom estado e nem
ficaram desbotadas, apesar do longo inverno
ao ar livre.
As covas foram logo cobertas com terra.
Na manhã seguinte os franceses viram que
seus camaradas mortos haviam desapareci-
do.

10.1. - A "lectio mortis" de hoje.

Uma vantagem dessa cota 110 é a gran-


diosa supervisão da região. Quilômetros ao
91
longe a gente vê as linhas das trincheiras e
além delas uma longa distância ainda. Des-
vantagem impressionante, boa para impres-
sionar um ou outro soldado, é a pequena dis-
tância entre as trincheiras.
Na planície, lá embaixo, ela regulará en-
tre 100 a 200 metros. Mas aqui estamos a-
penas a 30 ou 50 metros, uns dos outros.
No ponto mais avançado, somente 10 a
12 metros. Não está excluído um assalto re-
pentino. Também o trabalho das "toupeiras"
(minas) é muito fácil. As duas linhas estão
reviradas pelas continuas dinamitações. Nu-
ma noite calma, lá está a gente falando com
um companheiro, no posto de sentinela. De
repente um terremoto; um ofuscante clarão
ergue-se para os ares.
Barrotes feitos tições, sacos de areia,
fios de arame farpado, pedras e “estranhos
corpos", cujas lembranças estarrecem a gen-
te saltam para o ar, sob os clarões das cha-
mas.
No dia seguinte a gente lê nos jornais:
"Em M. explodiu uma mina. Êxito relativa-
mente reduzido"! Mas quem viu o que acon-
teceu, treme ao lembrá-lo.
Por causa de uma ninharia, tinha ido
acender meu cachimbo, retirei-me de meu
posto livre. E eis que ainda estou vivo, en-

92
quanto os outros 17 estão horrivelmente
queimados, estraçalhados, soterrados! Foi
esta a "lectio mortis" hoje.

11. - 11 de abril de 1915 - Domini-


ca in Albis.

Dei hoje umas voltas para melhor co-


nhecimento da nova posição, que encosta na
XII Companhia. Do topo, ao longo do qual
correm as trincheiras, enxergam-se bem os
muros e as torres de Albert.
Quando o vento ajuda, ouvem-se os si-
nos. Houve trabalho e muito, mas agora nos-
sa posição em frente de Carnoy está mode-
larmente construída. As trincheiras estão en-
xutas, forradas com maravalhas e as pare-
des protegidas com ramos. As seteiras de
tiro estão garantidas com couraças.
Os corredores de ligação e os pontos
de escuta podem ser isolados por biombos, a
qualquer momento.
De seu abrigo pode o guia da Compa-
nhia falar por telefone com a retaguarda. Um
dispositivo elétrico de alarme comunica-o
com todas as galerias e pontos de escuta.
Auxiliado pelo novo "periscópio" lhe é

93
possível observar toda a linha inimiga. Basta
fazer um pequeno movimento com as mãos.
Essa linha desfila diante dele como um filme.

11.1. - Alma Ma ter da trincheira.

Não faltam jornais nos abrigos. O mais


procurado é a edição "para os pardos", da
Koelnische Volkszeitung. A edição do dia al-
cança as linhas mais avançadas, na mesma
tarde.
Há na trincheira um grande quadro no
qual se expõem os últimos telegramas, figu-
ras e postais. Todo mundo fica a par dos a-
contecimentos bélicos.
As notícias chegam ao front, à noite,
enviadas pelo telefone e telégrafo sem fio.
Cedinho a gente pode ler as novidades de-
pendura das no quadro.
Abaixo do comunicado oficial aparecem
os anúncios, as propagandas. Por exemplo:
U 9 - (abrigo 9) cerveja fresca marca "Leão".
U 12 - sarau à noite; gaiteiros de boca e
sapateadores gentilmente convidados. De
permeio surgem "salsichas de Viena", "aren-
ques Bismark", "cortes de barba e cabelos".
Tal a gente encontra nos grandes centros.
Alegre sossego espalha-se pela trinchei-
ra, quando do abrigo sobe o estalo da lenha
94
que está queimando e soam as alegres me-
lodias das gaitas, guitarras, tocadas por gen-
te bem treinada. A gente começa a sonhar
com os de casa, com a pátria e o céu, com a
paz que parece andar por perto.

12. - 13 de abril de 1915.

Há tempo andam os franceses nos irri-


tando. Atiram da estação de Fricourt contra
nossa pequena floresta de Mametz. Mas hoje
espantamos a macacada. Nossa artilharia
tomou-os de empreitada e pela tarde arra-
samos a estação já convertida em fortaleza.
Foi tudo pelos ares, ratos e gatos. Desse la-
do não há mais perigo.

13. - 5 de maio de 1915 - Mãe, até


à vista, vosso João.

Lá fora sibilam as granadas. Explodem


ruidosamente. Enquanto isso, escrevo aqui
dentro do meu abrigo, uns metros debaixo da
terra.
Estava de folga e fui sentar-me em cima,

95
sobre uma tábua, e escrevia algumas cartas
para casa. Mal eu acabava de escrever a
frase: "a gente pode chorar à vista de tantos
mortos insepultos aqui diante das trincheiras,
no meio da relva novinha, sob flores da pri-
mavera" e buum infernal. Lama e barro co-
brem-me o rosto e minha carta.
Era uma granada francesa. Dei um sal-
to e já outro estouro de outro petardo. Ouço
um grito partido de um rolo de fumaça, bem
ao meu lado. Pulo para dentro e dou com um
camarada, de 17 anos apenas, retorcendo-se
no seu sangue.
Estava de plantão perto de mim, sobre
a mesma tábua que eu escolhera para me
assentar. Nessa hora veio a malfadada gra-
nada com sua explosão e seus estilhaços.
Desses, vários lhe haviam cortado am-
bas as coxas deixando-o em mísero estado.
O pobre João Rennecker, de Munique-
Passing, me deu profundo pesar. Fora um
dos mais assíduos às rezas de maio, até ul-
timamente. E mais uma circunstância agra-
vante. Durante uma ligeira pausa do bom-
bardeio havia escrito um cartão para os seus,
momentos antes do desastre.
Assim escrevera: "Até agora vou pas-
sando muito bem. Estou com saúde e boa
disposição. Até à vista. Vosso João".

96
O cartão estava ao lado dele no chão.
O lápis ficou nos dedos retorcidos, quando o
encontrei.
Imediatamente morreu ao ser transpor-
tado para o hospital. A boa Mãe de Deus,
estendera sobre mim seu manto protetor.
Num pequeno espaço da parede, na
trincheira por mim ocupada, cravaram-se
pouco menos de 13 estilhaços de granadas.
E a tábua fora atravessada em 3 lugares. E
eu sem ser a tingido por estilhaço algum! En-
tretanto nas paredes, à esquerda e à direita,
estavam dependurados pedaços ensangüen-
tados de carne de meu companheiro.

13.1. - Dia orquestrado pelas balas.

Mais um dia pela frente.


Hoje estive de sentinela quase no mes-
mo lugar de ontem. Sibila uma granada e ex-
plode, na distância de dois metros de mim.
Tremendo estouro; quente pressão do ar do
petardo explodido, atirou-me como um raio
para dentro da trincheira. Pior não teria sido
a queda de são Paulo, às portas de Damas-
co.
Levantei-me, mas voltei para o mesmo
lugar, embora com zoadas na cabeça e nos
ouvidos.
97
Sobre minha cabeça uma chuva de fer-
ro e aço.
No campo corre - A vida humana
Como sombra de nuvem.
Tremei! - No meio da vida –
A nós todos - A morte ronda.
Fomos caiporas em nossa posição. Dia-
riamente era pesado o bombardeio. O dia
inteiro andava orquestrado pelas granadas
que uivavam como lobos famintos. Eram dis-
paradas de Carnoy.

13.2. - A prece de maio.

Nosso maior consolo são as rezas des-


te mês de maio. No dia 6 de maio retorna-
mos ao nosso alojamento em Longueval. À
tarde o frater Gangolf, beneditino, insistiu
comigo para puxar a reza para os soldados.
Fiquei admirado ao ver repleta a igreja,
ocupadas suas 3 naves. Soldados e sempre
soldados. Infantes, artilheiros, sapadores,
todos cantavam em honra de Nossa Senho-
ra, rainha do céu, rainha da paz.
O mês inteiro sempre a mesma assis-
tência. As 50 velas que ardiam no altar foram
doadas pelos soldados.
A gente alegra-se vivamente, vendo os
soldados saindo em chusmas, de todos os
98
lados, rumo à igreja.
Assim fazemos no front, pois tudo de-
pende da proteção divina. Há no povo um
resoluto patriotismo, bem acima do que se
podia esperar de simples soldados.
Interessante nesse sentido é a carta
que certo estudante enviou a seus pais. Ela
chegou junto com a notícia de sua morte, faz
15 dias. Dizia o seguinte: "Se nossas armas
forem vitoriosas, que proveito irão trazer to-
das as boas energias que este tempo des-
pertou em nós? Esta é a pergunta vital de
toda esta guerra. Esta pergunta me oprime.
Será tudo em vão? O tremendo esforço de
vontade, tão reclamado continuamente pela
sujeira e barro e percevejos e umidade, pelo
frio e calor, sob fogo mortífero, para a gente
não sucumbir e cair num negro pessimismo,
será tudo em vão? Será coisa perdida ficar a
gente esvaindo-se em sangue, morrendo
moço num campo de beterrabas? E tudo isso
para o pessoal da Alemanha ganhar mais
dinheiro? E depois da guerra não reviverão
os velhos ódios? E isso como numa aula os
alunos desandam numa algazarra, mal o pro-
fessor deixa a sala?"
Já está terminando o mês de maio. Eis
que "os amáveis" prussianos nos pregam
uma boa. Alguns minutos além de Longueval, na

99
estrada para Bazentin, está enterrada uma bate-
ria antiaérea, prussiana.
Hoje à tarde, durante a reza, escutamos o
roncar de um avião inimigo. Devia estar voando
muito por perto, porque as vidraças tremiam em
seus caixilhos, na igreja.
De repente um estrondo fortíssimo. Contu-
do, ninguém deixou a igreja, embora todos sou-
bessem do estrago que faria uma bomba que
estourasse lá dentro. E esta veio.
Uma granada penetrando pelo telhado da
igreja, rompeu o forro e caiu no ladrilho ao lado
dos soldados amontoados. O petardo batendo
no piso ali ficou sem explodir, sem ferir ninguém.
Que desgraça acarretaria se explodisse! Era um
presente dos prussianos, postados nos arredo-
res da aldeia.
Estavam certíssimos que atingiriam o inimi-
go com o primeiro tiro, e por isso atiraram com
espoleta de percussão. Verdadeira loucura! E
ainda por cima com um exemplar de bomba que
nem batendo na pedra explodiu! Todo mundo
ficou convencido da visível proteção de N. Se-
nhora.
Quantas vezes, minha boa Mãe, já me ten-
des valido! No meio do fogo voltam a confiança e
a coragem, ao pensar em vós. Que seria de mim
sem vós? Estou certo: ireis me reconduzir pátria
são e salvo.

100
14. - Junho - Na fazenda Water-
lôo.

Tocaram-nos para fora do nosso agra-


dável alojamento em Longueval. Em nosso
lugar aninharam-se os cabeçudos prussia-
nos. Com nossas próprias mãos tivemos que
ajeitar o nosso novo alojamento.
Uns dez minutos da aldeia, entre o mal
afamado bosque de Trone e a estrada para
Guillemont, está situada a fazenda Waterlôo,
com uma grande fábrica de açúcar. Sua
chaminé é enorme.
Nesse prédio nos alojamos, o mais co-
modamente possível. Chegamos ao luxo de
ter luz elétrica.
Mas uma coisa foi nossa infelicidade: a
enorme chaminé, com seu artilheiro obser-
vador, encarapitado lá em cima. Feixes de
fios telefônicos desciam por dentro da cha-
miné, ligando-a com vários postos de artilha-
ria nas vizinhanças, sobretudo com o bosque
de Trone. Não tardou e tivemos que arcar
com as conseqüências.
Num domingo de manhã depois da mis-
sa, fui visitar meu companheiro beneditino.
Conversamos animadamente sobre nosso
novo comandante local, tenente Holz, que
não queria saber da "Madonna francesa" so-
101
bre o altar (Nossa Senhora de Lurdes) na
igreja.
Nisso o prédio inteiro estremeceu com
medonha explosão! A garotinha Emma cor-
reu para dentro, chorando e gritando: "Ma-
mãe, os obuses!" Uma pesada granada atin-
gira o pomar. Nossa calma e amável Lon-
gueval estava sob o bombardeio.
Corri para minha companhia e com ela
marchei para a fábrica de açúcar, nosso alo-
jamento. Mal saímos da aldeia e já ouvíamos
o tal ronco no ar, muito nosso velho conheci-
do. Estouros e explosões em seguida.
A uns 60 metros, dentro do campo, bate
e estoura uma granada, jogando para o ar
uma coluna de terra e pedra.
Veio a segunda ordem e logo depois a
terceira. A passos acelerados procuramos
chegar ao nosso alojamento.
A situação piorou. Sempre mais perto
vinham zunindo as granadas. Certamente
eram endereçadas ao observador lá em ci-
ma.
Mas o cabra estava calmamente assen-
tado e com seu binóculo de artilheiro não li-
gava para o barulho. Nele é que não acerta-
vam mesmo. Pois uma alta chaminé, na dis-
tância de alguns quilômetros, vira ponta de
agulha. Alvo difícil!

102
Mas assim mesmo lá se foi nosso sos-
sego. A enorme caixa d'água que abastecia
Longueval levou vários furos. Os mil metros
cúbicos de água resultaram numa inundação.
As telhas vinham para dentro do pátio, joga-
das pela pressão do ar nas explosões das
granadas. A coisa virou mesmo perigosa.
Em tal situação eu preferia ficar na cota
110, em Mametz. Lá nós tínhamos abrigos
de 5 a 7 metros de profundidade "garantidos
contra a morte".
Os velhos caixotes haviam sido aposen-
tados. Os de madeira ainda estavam em uso
no Somme. A reforma trouxe-nos uma razo-
ável proteção contra tudo que viesse de ci-
ma. Quando acontecia de um tiro certeiro ta-
par a entrada, havia uma segunda que esta-
va livre.
Em Mametz era contudo inquietante a
vizinhança da trincheira inimiga. Apenas 60
metros e às vezes só 10 metros.
Sempre com perfurações e explosões
de minas. Não havia semana sem explosões,
ora do nosso ora do outro lado. Quase não
havia pedaço de terra que não tivesse sido
revirado por elas.
Tal o caso daquela cota que nosso pes-
soal chamava de "retiro alpino". É realmente
verdade, a gente se acostuma aos perigos e

103
até com a própria morte, quando se trata de
outros.
Quando tomba um camarada, sente-se
um horror passageiro, para logo depois achar
que tudo está em ordem. Mas, com o tempo,
essa macabra dança da morte mexe com os
nervos da gente.

15. - 22 de maio a 21 de julho -


1915 - Sepultando um homem pesa-
do.

Hoje aconteceu uma coisa que me pôs


fora de combate por dois meses. Um estilha-
ço de granada matou hoje um companheiro
(José Langenberger) justamente quando
chegou ao seu posto. Arrancou-lhe a tampa
do cérebro, esguichando a massa encefálica
pela trincheira.
Recebi a ordem de, com mais outros
companheiros, removê-lo para Montauban e
lá sepultá-lo. Trabalho para gigantes!
O homem era muito pesado e muito es-
treita a trincheira e cheia de curvas. A cada
passo era preciso erguer o cadáver, metido
numa lona, levantando-o para fora da trin-
cheira. Só assim podíamos vencer as curvas

104
fechadas.
De repente fiquei rendido com dores in-
suportáveis. À tarde a ambulância do Corpo
de Saúde levou-me para o hospital de cam-
panha, em Combles. No dia 25 de maio fui
operado com feliz êxito.
Depois de um mês de convalescença,
vim para Pérone-Norte, no dia de S. João.
De lá, no dia 26, transportaram-me para o
lazareto de guerra, em Saint-Quentin, na Rua
Alfred Clin.

16. - 28 de junho de 1915 - Fanta-


siando tremendos combates.

Aniversário do assassinato do herdeiro


do trono austríaco. Num grande hospital é
imensa a soma de dores e sofrimentos. Em
longas filas estão deitados os pobres rapa-
zes, gemendo, suspirando, fantasiando tre-
mendos combates.
E muito bonito a gente ver nos jornais
vitórias gloriosas.
De repente a guerra muda de feição, à
vista das suas pobres vitimas estraçalhadas.

105
17. - 2 de julho de 1915 - Sema-
nas felizes em Ronvroy.

Com o corte cicatrizado fui levado para


o posto de convalescença em Ronvroy. Pas-
sei umas semanas felizes neste lugar. Um
grandioso parque, verdadeiro paraíso, e uma
amável companhia na pessoa do frater João
Stueber, O.S.B., um irmão leigo de Santa
Odília. Que alma boa, sempre alegre, ho-
mem risonho e entusiasmado pela vocação
de irmão beneditino.

18. - 18 de julho de 1915 - A cate-


dral de Saint-Quentin.

Hoje pela primeira vez visitei a cidade


de Saint-Quentin. Sua catedral é uma verda-
deira jóia gótica. Nunca em minha vida vira
tão belos vitrais. Tem 60 metros de altura e
seus vitrais estão em proporção à altura. As
janelas foram salvas, mais tarde, enquanto a
cidade toda, com sua catedral, ficou reduzida
a escombros pelos ingleses por ocasião da
batalha do Somme. Na destruição atuaram
também os franceses.
Na nave direita está um novo e majes-
106
toso altar, todo de mármore branco ofuscante
em honra de Nossa Senhora de Lurdes.
Ao seu lado está ajoelhado um garoti-
nho vestido de branco. De mãos erguidas,
reza com uma insistência e devoção estra-
nhas numa criança.
Interessante é a câmara Municipal, em
estilo gótico. Nela está instalado o comando
alemão. Vale o mesmo do Palácio de Justiça,
onde funciona um hospital militar.
De resto, é sombria a impressão da ve-
lha cidade. Motivam-na as fachadas das ca-
sas quase todas vermelhas sem reboque.
Reina vida mundana na praça da cida-
de com seus novos "hotéis" alemães. Hotel
Hamburgo, Hotel da Pátria, Hotel Frankfurt.
Pobre é a impressão causada pela popula-
ção francesa.
Caras apáticas, presumidas, gente de
cigarro na boca e bonecas meio nuas, con-
forme o figurino de Pais. Uma brisa pode jo-
gá-las no chão.
Muito agradáveis são as caras dos sol-
dados deitados sobre montões de feno, rindo
a bandeiras despregadas, do alto dos carro-
ções, que são puxados por roliços cavalos.
Assim desfilam ao longo da praça.
Restaurantes e livrarias alemãs fazem
rendoso negócio. A gente mal encontra um

107
lugar para assentar-se.

19. - 19 de julho de 1915 - De vol-


ta à tropa.

Passei ainda uma noite na suja caserna


francesa e viajei depois para Péronne. Mas o
pessoal de Saint-Quentin parece ignorar que
nossa frente não passa por Péronne, mas
sim uns 20 quilômetros ao sul.
Quis me poupar essa caminhada, por-
que já eram 6 horas da tarde quando cheguei
a Péronne com alguns companheiros.
Descobri que às 8 horas partia um trem
com material e munição para a frente. Aju-
dou-nos a sorte fazendo o trem parar um
bom pedaço fora da cidade, num campo a-
berto.
De certo era precaução por causa da
sua carga perigosa.
A ocasião era favorável. Combinamos
valer-nos da escuridão e trepar um por um
no ultimo carro. E tudo com ótimo resultado.
Não era convidativa a carga debaixo de
nós. Continha vários caixotes com dinamite,
minas, munição para morteiros e mais outras
belezinhas semelhantes.
Por enquanto jaziam umas ao lado das

108
outras, em paz e harmonia. Sentamo-nos
sobre os caixotes e o trem foi subindo e des-
cendo, noite adentro.
Algumas vezes o trenzinho chegava
muito perto da linha inimiga. Então era aque-
la batedeira mais apressada do coração, em
cada um de nós. Pois sabíamos que os fran-
ceses já por várias vezes haviam atirado
num trem ou lhe cortado a tiros os trilhos.
Sinistramente ribombavam os canhões
inimigos, mas não era conosco a prosa. O
trem chegou sem mais novidades à baixada
entre Guillemont e Longueval. O relógio mar-
cava 11 h. da noite. Que fazer agora?

19.1. - "Como um deus na Franca".

Nossa Companhia estava na trincheira e


fiquei indeciso descendo a ladeira da aldeia.
De repente vejo a luz na janela do aloja-
mento habitado pelo frater Gangolf, benediti-
no. Entrei e de fato meu companheiro ainda
estava em pé. Alegrou-se imensamente por
poder hospedar-me.
Como legitimo suábio, estava bem pro-
vido de café. E também de marmelada de
ameixas que apareceu à mesa. Vivi então
"como um Deus na França" (Nota: expressão
vulgar alemã que designa "passar muito
109
bem").
Depois o beneditino hospedeiro cedeu-
me sua cama e sumiu, não sei para onde. No
dia seguinte, tive ocasião para me confessar
e comungar. Em seguida dirigi-me bem dis-
posto para as trincheiras.
Não encontrei novidades para mim. Era
desagradável a gente saber que estava sob
um terreno completamente minado. A qual-
quer momento era possível uma viagem para
outros ares.
Três vezes fizemos explodir nossas mi-
nas. Nossos adversários ainda são os mes-
mos. Desta vez vimos alguns maços novi-
nhos, entre eles. Na ala direita a distância
entre nós era apenas de 30 metros.
Depois de 5 dias fomos rendidos. Ao II
Batalhão caberá o duvidoso prazer de apreci-
ar a bela paisagem, aqui da cota. Desta vez
tive sorte, chegando de dia ao alojamento,
embora cansadíssimo.
Durante os 6 dias o guia da Companhia
(então de nome Hauer) dispensou-me dos
trabalhos uma atenção perante minha saúde
com balida.
Vencidos esses dias, o mesmo superior
deu-me mais 12 dias de folga no alojamento.
Durante esse tempo meus companhei-
ros, para cá enviados como operários, confi-

110
aram-me a cozinha. Cozinhava-lhes o café, a
sopa, a carne, e muitas vezes aprontava-lhes
uma legitima fritada de batatas à moda báva-
ra.
Como devoravam a bóia! Diziam em dia-
leto: "Esse doutoreco sabe mesmo cozinhar"!
Isso não lhes entrava tão bem na cabeça
como as batatas no estômago.
Na guerra, a gente aprende muita coisa,
que nunca passara antes pela cabeça. Meu
fogão foi improvisado sobre uns tijolos, à
sombra de uma ameixeira.
Ás vezes a lenha ia rareando. Mas os
outros roubavam o suficiente para nunca fal-
tar o necessário para cozinhar.
Não se acha mais lenha? Desmonta-se
uma casa e sobra lenha para mais algum
tempo.

19.2. - Quando ninguém queria se ar-


riscar.

Ultimamente tive uma grande surpresa.


Fui intimado a comparecer diante do coman-
do do Batalhão. Não me foi possível atinar
com o motivo. Eis que lá encontro reunidos
soldados de todo o III Batalhão, sempre dois
ou três de cada Companhia.
O major dirigiu-nos de entrada palavras
111
de reconhecimento por feitos destacados e
extraordinária valentia que havíamos de-
monstrado.
A maioria recebeu de presente uma cai-
xa com charutos e cigarros. Quatro homens
ganharam relógio de bolso. Foi este o premio
que me coube. Nunca consegui saber quem
me havia indicado para ele.
Recebi um belo relógio militar num esto-
jo preto de aço, com monograma do nosso
Regimento no dorso.
Levei tempo examinando, porque eu,
entre tantos camaradas, recebera semelhan-
te distinção. Só mais tarde fiquei sabendo do
motivo. É que eu salvara a vida do nosso
guia, gravemente ferido num combate.
Carreguei-o sob o fogo das metralhado-
ras inimigas para um lugar seguro, quando
ninguém o queria arriscar. Coisa simples! Pa-
ra mim era evidente que não podia deixar o
pobre rapaz esvair-se em sangue lá fora.

19.3. - Logo quatro teólogos...

Sábado passado foi grande minha ale-


gria. Havia missa para o Batalhão. Frater
Linsmaier fora chamado da trincheira pelo
comandante local. Frater Sepp já estava no
quartel por pertencer ao mesmo Batalhão.
112
(Nota: Esses eram os dois clérigos que
foram convocados com nosso diarista, logo
no 19 de outubro de 1914; os dois morreram
na guerra). Assim mais uma vez encontram-
se os 3 "teólogos" de Gars.
Era a primeira vez desde nossa partida
para o front. Frater Gangolf, beneditino, esta-
va presente também.
Logo quatro teólogos, 3 redentoristas e
um beneditino. Não nos encontramos mais
na vida. Fr.Linsmaier tombou no dia 26 de
maio de 1916 em Verdum; Fr. Sepp morreu
na ofensiva de Arras, 1917; Frater Gangolf
pereceu na última batalha do Somme.
Cantamos uma missa a duas vozes (No-
ta: Era Linsmaier um ótimo cantor, um baixo
maravilhoso e tencionava vir para o Brasil).
De tarde nós o acompanhamos na mar-
cha para a trincheira. Depois eu e Gangolf
fizemos uma ligeira visita à nossa bateria de
morteiros, numa pequena floresta de Baren-
tin, onde nasceu Lamarck. Os morteiros es-
tavam enterrados numa rampa. São terríveis,
são colossais. Seus canos olham quase ver-
ticalmente para o céu.
Um artilheiro puxa uma correia e num in-
fernal estrondo a granada, que pesa arrobas,
sobe furiosa e cai assobiando com seu peso
tremendo sobre o inimigo. Espalha a morte,

113
perto e longe. O pesado cano da peça volta
para trás, sob o coice do petardo. Logo em
seguida, vira-se para o céu e já outro artilhei-
ro abre-lhe a entrada e dois outros carregam
outra granada, renovando o jogo cruel.
Sem querer, a gente se assusta, à sim-
ples vista de peça tão assassina, ao pensar
que está disparando contra seres humanos.
Quando acabará esse matadouro homi-
cida? Aqui no oeste estamos prontos para
esforço que acabe com esta vida miserável
de toupeiras. Só esperamos que nos seja
dada ordem, que ressoe nas trincheiras a
cometa seu sinal de ataque.

20. - Senti a morte do compa-


nheiro.

Muito me penalizou ontem a morte de


um camarada bem estimado. Era nosso por-
ta-bandeira, Geraldo Hanshalter, de 17 anos
e meio. Estávamos conversando, rindo e
brincando atrás da larga cerca viva, que pro-
tegia toda nossa trincheira contra os ingle-
ses.
Uma salva de carabinas, um fraco gemi-
do e eis nosso Geraldo, a criança da Com-

114
panhia, tombado morto. A bala lhe atravessa-
ra a testa. Sangue espesso corria sobre a
relva.
"Na campina deita sombra uma nuvem,
assim se vai a vida de um homem..."
Que sou eu na guerra? Uma gota d'água
num balde. Na guerra, quem morre desapa-
rece.
Cai numa trincheira e por cima dele pas-
sa o exército que ataca. Ou então sepultam-
no numa vala comum, morto junto com mor-
tos.
Que falta faço eu? Sepultamos o jovem
porta-bandeira ao lado de seu irmão, tenente
Hanshalter, nosso antigo guia. Foi no cemité-
rio de Guillemont. Os dois irmãos descansam
em paz, em casa.
O comandante do Regimento fez uma
pequena alocução. Parou ou perdeu o fio,
não sei. Chorou e com ele o médico do Esta-
do Maior.

21. - 20 de setembro de 1915 -


Bávaros substituem prussianos.

Hoje ocupamos novamente nossa sau-


dosa cota 110, diante de Mametz. Devería-

115
mos ficar 20 dias por aqui. Mas aos 3 de ou-
tubro veio a inesperada ordem: "O I Exército
bávaro em peso irá substituir o VI Exército
prussiano".
Começou então uma atividade febril pa-
ra pôr em movimento milhares de homens,
canhões, aviões etc. Tudo em perfeita or-
dem. Dentro de poucas horas estavam todos
marchando. Naturalmente à noite, por causa
das tais "mutucas" que lá do alto procuram
suas vítimas.
A marcha durou das 8 da noite até às
4,30 h. da manhã de 4 de outubro. Aquarte-
lamo-nos provisoriamente em Aizecourt-le
Bas, perto de Péronne.
Fiquei acomodado numa asseada casa
de certa vovozinha. Sempre me recordava de
Filemon e Baucis de Ovídio. (Contava nosso
padre que certo dia uma velhinha lhe pregou
um beijo, quando foi pedir-lhe uma vassoura.
Confusão dos termos: Besen, vassoura em
alemão: baisér, beijar em francês. A velhinha
entendeu mal. De certo foi nessa ocasião -
Nota do tradutor).

Dois dias de descanso necessários para


completar o remuniciamento da tropa e já no
dia 6 de outubro estávamos marchando por
Péronne em demanda de Pont-les Brie.

116
A disposição da tropa era ótima. Resso-
avam fortemente, noite adentro, as notas da
Torgauer-marsch: "Com ufania marchamos
para a batalha...”
A banda militar ficou tocando, até partir
o trem que nos levava para outros campos
de luta. Mas... para onde? Ninguém o sabia.
O guia encarregou-me de olhar pelas muni-
ções. Tive com isso ensejo de viajar sentan-
do sobre um caixote de balas, colocado num
vagão aberto.
Pude observar que o comboio rumava
para o norte: Péronne, Roisel, Cambray,
Douai até Roncroy, onde descemos.
Daí marcha até Méricourt, onde se a-
quartelaram o I e o III Batalhão.

21.1. - Altar do Perpétuo Socorro.

Em Méricourt a igreja é bonita e tem um


altar com Nossa Senhora do Perpétuo So-
corro. Continuamente a gente podia ver nos-
so pessoal rezando diante desse altar.
Encontrei na igreja, como também em
muitas casas particulares, o quadro de são
Geraldo.
Contínuo tiroteio e soturno ribombo dos
canhões estavam noticiando a vizinhança do
front. Nosso novo setor de combate era o en-
117
tão muito disputado Arras - cota de Loreto,
Souches, Neuville, Vimy.

22. - 9 de outubro de 1915 - Sim-


ples dilema: você ou eu.

Ocupamos uma posição de reserva, em


frente a Neuville, sobre as encostas de Vimy.
Numa baixada do vale de com Frater Lins-
maier, metido num buraco. Junto com ele es-
tava o suboficial Stehle, irmão coadjutor de
Steil.
Demos uma ligeira volta pela aldeia de
Vimy, completamente destruída. Na margem
da aldeia estava atirando um dos nossos o-
buses, de 25 centímetros de calibre.
A formidável detonação em imediata vi-
zinhança quase me arrebenta o tímpano. Gi-
rando mais para frente encontramos mais
objetos aproveitáveis nas trincheiras: um ca-
no de fogão, um balde de folha, um crucifixo
e as Odes de Horácio.
Mas, enquanto esperava pelos valentes
companheiros, começou o bombardeio fran-
cês. Que gente impertinente!
De repente uma ordem: "Avante! O i-
nimigo ataca". Isto agora já era outro "car-

118
men". Assim é a vida. Da poesia a gente pula
para a mais horrível prosa.
Enfim, ninguém por aqui pode planejar o
futuro. Todos os dias o inimigo experimenta,
ao menos uma vez, romper as nossas linhas.
Então é simples a tarefa: cumprir o de-
ver e derrubar a tiros quem se mete na frente
do fuzil. O dilema é simples: ou você, ou eu.
Até agora os franceses tem levado na
cabeça. Não conseguiram avançar. É claro,
nossas baixas foram bem sensíveis. Sobre-
tudo, na grande tentativa de rompimento no
dia.

23. - Sob chuva de ferro e aço.

Com maior ou menor intensidade a bata-


lha durou até 16 de outubro. Entre Arras e
Lens, centro da rica zona industrial e carbo-
nífera, a guerra tomou ares de furiosa e tei-
mosa.
Neste setor atingiu seu clímax de furor,
crueldade e hediondez a planejada tentativa
francesa para romper nossas linhas.
Já havia passado o primeiro assalto do
dia 25 de setembro. Trouxera vantagens
momentâneas aos atacantes.

119
Era tal a fúria no assalto, que o coman-
do achou indicado substituir por bávaros as
cansadas tropas prussianas. Chegávamos
bem em tempo.

Reinava na linha Arras-Lens uma calma-


ria que possibilitou mover a tropa sem gran-
de atrapalhação.
Os otimistas já estavam acreditando na
desistência da ofensiva inimiga. Mas o nosso
coronel dizia que o inimigo estava apenas
respirando para recomeçar. Estava com a
razão.
No dia 10 de outubro recrudesce o bom-
bardeio. Horas intermináveis e angustiosas
aquelas! Os segundos tinham ares de eterni-
dades! O crepúsculo vai caindo devagar so-
bre a elevação de Vimy. Seis horas. Todo
mundo esperava pelo ataque francês. Não
veio. Veio a noite com sua bênção. O fogo
cessou. O que o dia destruíra, a noite re-
construía.
No dia 11 de outubro, logo ás 7 horas da
manhã, entra o fogo com toda sua violência.
Subiu para "Trommelfeuer", termo que diz
mais do que a gente pode imaginar. É pala-
vra bem inventada. Pois é impossível des-
crever o ribombo, a detonação, o matracar, a
doida fúria dos canhões, fuzis e metralhado-

120
ras, tremendo o chão sob os impactos que
jogam aos ares repuxos de terra e pedra.
Cena dantesca, diabólica. Fumaça, nu-
vens de pó parecem nos sufocar. Nossa arti-
lharia responde enfurecida. Queimando de
quentes, os canhões das peças só podem
ser manobrados com luvas apropriadas.

Durante dez horas estamos sob essa


chuva de ferro e aço. E, o pior de tudo, sem
defesa, sem atividade, vendo diante dos o-
lhos morte, que com sua mão de ferro, agar-
ra um aqui outro ali.
Os gritos estridentes das vítimas estra-
çalhadas, pedindo socorro, entram pelos
miolos dos ossos. A floresta é um incêndio.
Alguns soldados ali estão por detrás de
uma barricada de sacos de areia. Outros a-
gacham-se protegidos por uma árvore abati-
da, toda cravada de estilhaços.
Abandonei o meu, aliás, bom abrigo e
sentei-me no primeiro degrau da entrada.
Pois muitos abrigos hoje acabaram sendo
sepulturas. Via-se pouca gente e tinha-se a
impressão de estar o batalhão bem desfalca-
do.
Não se ouvem ordens, não se vê oficiaI
algum. Desde as 4 horas da madrugada es-
tava cortada a linha do telefone. Nada de no-

121
tícias a respeito da companhia vizinha. Mas
todo mundo estava sabendo o que significa-
va o bombardeio inimigo. Era a preparação
para o ataque.
Ah! Se estivéssemos com o II Batalhão
na primeira linha! O fogo da artilharia não
podia ser muito forte, dada a pequena dis-
tância entre as duas trincheiras.
Correm de repente ordenanças com a
ordem: "Terceiro grupo com tenente Kus-
term, para frente, na primeira linha de fogo!
Infantaria inimiga ataca". Começa o negócio.
Finalmente a gente sai dessa inatividade que
mata.

24. - Tropeçando sobre árvores e


cadáveres.

Através de fumaça sufocante, tropeçan-


do sobre árvores e cadáveres, alcançamos
primeiramente, as ruínas do pequeno castelo
La Foile, que dá nome à elevação do terreno.
Fomos recebidos por uma formidável
chuva de projéteis. Era impossível que nos ti-
vessem visto. Vários camaradas tombam fe-
ridos.
Para não se perder mais pessoal, antes

122
do tempo, o guia mandou-nos procurar refú-
gio sob uma abobada do castelo. Não demo-
rou e tivemos que dar o fora de lá.
Sinistramente estouravam as granadas
na parte superior do castelo. E se uma das
granadas de 28 centímetros, que ao redor de
nós improvisavam repuxos de terra, varasse
a abobada, estaríamos liquidado infalivel-
mente. Poderíamos catar nossos ossos. Para
fora, portanto!
As salvas do fuzis e metralhadoras, já
estavam nos avisando sobre a presença do
inimigo em campo aberto.
A fumaça das explosões dos petardos
impedia-nos a visão. Depressa para frente,
para os corredores de ligação ainda visíveis.
Em poucos minutos encontrávamos nossos
companheiros, (Frater Sepp lá estava) na
trincheira avançada.
Mal tivemos tempo de entrar na posição
cavada pelo bombardeio e já ouvíamos o co-
nhecido comando "allons! allons!", entrecor-
tando os estouros.
Os franceses atacavam, certos de que o
bombardeio de 20 horas liquidara com tudo.
Mas que tremendo engano!
No que as colunas deixavam as trin-
cheiras e avançavam, eram recebidas pelas
salvas de nossos fuzis. Tremenda confusão

123
para eles.
A maioria queria voltar para as trinchei-
ras, recebendo, porém, os tiros, que lhes ati-
ravam os próprios franceses, escondidos nos
flancos. Pobres rapazes fugitivos! Eram tro-
pas coloniais, pretas. Tombavam aos mon-
tões, aos disparos do nosso tiro rápido.

A cada passo as trincheiras despejavam


outras colunas. Nada adiantava. Nosso pes-
soaI, enfurecido pelo demorado bombardeio,
disparava os fuzis até ficarem incandescen-
tes.
Um foguete disparado pelo nosso guia
deu sinal para nossos canhões. Atiravam
certeiros contra a primeira e segunda trin-
cheira do inimigo.
Num terrível enovelamento mandavam
para os ares ondas de negros assaltantes.
Colunas subseqüentes tinham de pular sobre
montões de cadáveres dos companheiros e
acabavam com a mesma sorte: eram ceifa-
das.
Em vários lugares onde o bombardeio
havia soterrado as carabinas, houve pene-
tração do inimigo em grupos isolados.
Mal os percebíamos e lá estouravam
granadas de mão arremessadas contra eles
e jogávamos para fora os que ainda estavam

124
vivos.
Em certo ponto um negro viu um dos
nossos puxar a comprida faca escondida na
bota, porque as granadas de mão estavam
soterradas. O ameaçado gritou logo: "Par-
don, camerade. AIlemand bon camerade!".
Que bom camarada nada, seu cabeça
de porco, responde o bávaro. Com sua pata
pesada agarra-o pelo pescoço. Outros ce-
dem.

25. - Um mar de chamas e fuma-


ça.

Horrível foi a tensão quando veio a or-


dem de não atirar. Ninguém deu um tiro! Es-
perar que cheguem perto! "Agachamo-nos
em nossas trincheiras, nervosos e tremendo.
De repente, quando a onda de negros estava
a 40 metros, cometa avisou: fogo!
Os atacantes pensavam já estar em
nossas posições, quando deram com fogo
cerrado. Pobres coitados! Perderam a cabe-
ça e foram abatidos. Cena horrível de se ver.
Mortos, agonizantes, gemidos de cortar o co-
ração enchiam o ar! Mas não parava o ata-
que.

125
Apareciam novas vítimas. Começamos a
sentir-nos mal, pois poderia acabar a muni-
ção.
Alguns companheiros pulam para frente
e arrancam as cartucheiras dos franceses
tombados. Os oficiais percebem o perigo que
provinha da saraivada da nossa própria arti-
lharia.
Com foguetes vermelhos pediram um
"Trommelfeuer" contra a linha francesa. Em
menos de um minuto os monstros zuniam
sobre nossas cabeças.
Não se distingue tiro por tiro. É um zuni-
do, uma explosão, um pipocar sem fim. De-
pressa surgiu diante de nós um mar de cha-
mas e fumaça. Valeu a pena.
Os franceses compreenderam que era
absurdo ficar nesse inferno e retiraram-se em
direção a Thelus e Neuville. Não perdemos
sequer um palmo de terreno. Mas também
estávamos esgotados. Renderam-nos por
alguns dias e aquartelamo-nos em Douai.
De começo uma marcha de 2 horas até
Ronvroy, por um terreno que mais parecia
ser uma paisagem da lua, por causa dos tan-
tos buracos e crateras.
Buracos e mais buracos de granadas e
em parte cheios d'água. Que cansaço era o
nosso, ao embarcarmos finalmente numa

126
gaiola de gado! Nada de se procurar o me-
lhor lugar. Todo mundo foi se atirando sobre
o feno e dormindo ate o corneteiro nos de-
sembarcar em Douai.
Com tais dias de excitação ficam os ner-
vos em pandarecos. O municiamento de bo-
ca era irregular e às vezes ate impossível.
Às 4 horas da manhã chegava a cozinha
de campanha, trazendo café ou chá, em ge-
ral tudo frio até à chegada.
O dia inteiro nada até às 10 horas da
noite. Então outra vez aparecia o "canhão da
bóia", trazendo o almoço. Os aviões voam
constantemente e os balões fixos impossibili-
tavam a munição para as bocas e para os
fuzis durante o dia. O descanso no quartel
tinha de reparar essa calamidade.
Realmente, os dias em Douai trouxe-
ram-nos repouso. Morávamos na caserna de
artilharia (Conroux). Com exceção de uma
parada cansativa e supérflua na Place Car-
not, tínhamos tempo para dispor.
Todas as tardes eu ia rezar o terço na
igreja de Nossa Senhora. A igreja estava to-
dinha coberta de hera. É bem escura porque
os vitrais góticos com suas cores escuras
não deixam passar a luz.

127
26. - Na igreja, paz; no castelo,
destruição - 19 de outubro de 1915.

Nesse dia houve comunhão geral na


matriz Saint Pierre. Para muita gente era a
recepção dos últimos sacramentos antes da
morte.
Os soldados estavam fortemente aba-
lados pelos acontecimentos dos últimos dias.
Vinham aos magotes para a recitação do ter-
ço na velha igreja de Notre Dame. O templo
é venerável. Do chão à torre cobre-o uma
hera trepadeira.
Comovente é a devoção das crianças
que com suas vozes argentinas cantam e
oferecem flores: "Avé, Avé Maria!".

Nosso descanso não foi muito longo.


Não demorou vir a ordem de se pegar a mo-
chila e marchar.
Outra vez em nossa posição na eleva-
ção de Vimy, diante de La Folie. Meu Deus,
que reviravolta se nos deparou! Que dirão os
donos do castelo La Folie, quando a ele re-
tornarem? No mês de maio era a residência
de veraneio de uns parisienses gozadores da
vida. O castelo tinha móveis no estilo rococó,
vitrinas cheias de porcelanas.
A fazenda tinha maravilhosa plantação
128
de fruteiras enxertadas (ameixas). Havia uma
criação de faisões e árvores com passari-
nhos muito bonitos.
Ora os franceses diariamente bombar-
deavam o pequeno castelo. Por fim só no
porão havia certa segurança.
Nos últimos combates pesadas grana-
das atravessaram a abóbada. Agora não há
pedra que não tenha sido arrebentada.
Do antigo e grandioso parque, ao redor
da propriedade, só restam troncos mutilados
pela artilharia. Nossa gente lhe deu o nome
de "bosque dos palitos".
Na descida desse bosque, de costas pa-
ra o inimigo estavam nossos abrigos, já qua-
se todos destruídos agora.
E aos nossos pés a infeliz aldeia de
Vimy. À noite, ao passarmos por suas ruínas,
havia muito para se ver e para cheirar.
O vivo cheiro dos incêndios e dos cadá-
veres parecia nos sufocar. Tudo isso era a-
inda pouco para os franceses.
Cismaram que nossos abrigos se acha-
vam no montão de ruínas da aldeia. Daí o
bombardeio noturno que oferecia um espetá-
culo macabramente bonito.
Podíamos observá-lo da cota de Vimy.
Granadas sobre granadas explodem entre as
ruínas. A cada impacto ergue-se logo um vi-

129
vo clarão, sobe e no alto abre-se como um
véu de chamas, que são escuras e passam
para cores de púrpura e de sangue. De seu
bojo salta uma labareda amarela como enxo-
fre, a qual absorve o clarão vermelho.
Por sua vez é logo engolida pelo feixe
de labaredas que se desprendem das cimei-
ras de casas incendiadas.
Uma bateria acorda a outra, lá do outro
lado. Os franceses formam seu fogo de bar-
ragem, atrás de nós. E isso com uma agili-
dade até ornamental.
Um verdadeiro rosário com suas contas.
Fazem-no para cortar a chegada de alguma
reserva.
Lá em cima no céu, há riscos de estrelas
cadentes, nas noites frescas de outubro. Pa-
rece que elas ficaram bambas por causa do
te remoto, provocado pelo bombardeio da
batalha.

27. - Camaradagem entre inimi-


gos. - 1 de novembro de 1915.

Mas que tempo! É para a gente deses-


perar nas trincheiras. Em alguns lugares ti-
vemos que sair e andar em campo aberto
porque dentro delas havia o risco de se mor-

130
rer atolado.
Dois homens afogaram-se na lama. La-
ma, barro até aos joelhos, pegajoso, segu-
rando arrancando as botas. Que sofrimento!
Os pés estão feridos e sangram dentro das
botas. E ainda por cima, chuva dia e noite.
Não há abrigos que prestem. Algumas
covas que sobraram estão cobertas com á-
gua. Só os degraus oferecem um jeito para a
gente assentar-se. Não se pode pensar em
dormir.
Os franceses do outro lado deviam estar
na mesma situação. Reina uma tácita combi-
nação para ninguém atirar nos soldados que
vão buscar a comida, caminhando por campo
aberto.
O inverno é assim na Franca. Chuvas
sem fim convertem o chão num lamaçal tei-
moso. As trincheiras podem afogar a gente.
Quem cair dentro delas à noite, está perdido
se não for acudido depressa.
Em certos lugares nem dão passagem.
Que fazer? A gente pula para fora e o inimigo
faz a mesma coisa. Ninguém cuida da cober-
tura.
A troca de sentinelas é feita em pleno
dia, sem disparo de tiro algum. Com freqüên-
cia os franceses chegam até nós e oferecem
ou pedem tabaco, conservas etc. Essa per-

131
muta de relações toma os ares de uma paz
em separado.
Tendo em vista a situação de mútuo a-
perto é dada a ordem para ninguém atirar.
Ordem bem aproveitada.
Por fim o comando põe uma tranca na
porta. Mas pouco valem proibições, quando a
gente teria de morrer afogado na lama, caso
não quisesse andar lá fora da trincheira.
Um feldwebel contou-me que seu pes-
soal (I Regimento de Infantaria) andou es-
tendendo seu arame farpado em plena luz do
dia.
Os franceses imitaram o exemplo. Bati-
am suas estacas e esticavam seus fios, nu-
ma distância de 10 metros de nossas trin-
cheiras.
Um dos nossos guias de Companhia ti-
rou um retrato dos franceses que calmamen-
te trabalhavam diante de nós.
Dias depois um francês gritou do outro
lado: "Hei..., vocês já revelaram as fotografi-
as? Vocês aí! Hoje é segunda-feira. De certo
estão com dor de cabeça!".
Um terceiro soldado berra para todo
mundo ouvir: "Para mim é a mesma coisa
quem ganha a Guerra, vocês ou nós. Depois
da guerra eu volto para Munique".
A camaradagem chegou a confidências

132
militares. Por exemplo, avisos sobre a imi-
nência de bombardeio ou de explosão de mi-
nas.
Em nosso setor um pedaço de pape vi-
sava a hora de uma explosão iminente: "A-
tention, camarades" e de fato, à hora marca-
da, explodia a bicha sem ninguém ser atingi-
do. Depois repartíamos fraternalmente os lu-
gares na cratera aberta.
Essa quase total paralisação dos com-
bates em nosso setor, até às alturas de Lore-
to, teve seu lado bom. Livrou-nos de um total
desespero. Um assalto em terreno inundado
deixar-nos-ia atolados na lama.

28. - Os teólogos são menospre-


zados - 21 de novembro de 1915

Hoje publicaram uma ordem do Regi-


mento. Todos os soldados, já com "um ano"
de serviço, portanto os estudantes, deviam
ser enviados para um curso de aspirantes a
oficiais. Eu constava na lista (Frater Linsmai-
er foi para Grafenwoehr).
Quando saiu a decisão meu nome não
figurava entre os eleitos. Perguntei então ao

133
oficial, amigo pessoal (tenente Kustermann),
qual teria sido o motivo de minha exclusão.
Haveria qualquer queixa?
Nada disso meu caro, respondeu-me o
perguntado. Da nossa parte nada havia em
desabono. E também nada por parte de seu
comportamento pessoal. Culpa somente de
sua profissão particular.
Agora estava explicada a razão: Hic ni-
ger est... Hunc tu Romane caveto... Essa ati-
tude anticlerical, essa conduta hostil com re-
lação aos teólogos variava muito, conforme
as secções das tropas. Nada tinha que se
esperar do nosso III Batalhão. Frater Sepp foi
até maltratado.
Eu, na undécima Companhia, vivia nas
melhores relações com todos os oficiais. Par-
ticularmente com nosso ocasional guia, te-
nente Eder. Cedia-me um lugar no seu abri-
go e à sua mesa.
No estado civil era professor e filólogo
de línguas antigas. Infelizmente era apenas
substituto do chefe e brevemente devia ceder
seu lugar a outro.

134
29. - Natal: Stille Nacht, heilege
Nacht!

Entretanto chegou o Natal. Passei belos


dias no quartel de Douai. Mas nosso pessoal
é da Baviera. Facilmente converte as festas
"numa bem-aventurança de cerveja". Aqui
não foi Diferente. Pouco me interessava a
cervejada. Passei quase todo o tempo com
meu confrade Fr. Sepp e nos arranjamos
confortavelmente e com boa ocupação.
O presente de Natal foi muito oficial para
a tropa da undécima Companhia. Não me
entra na cabeça esse excesso de disciplina
militar. Mas alegrei-me de verdade quando
veio a ordem: "11,30 todos para a igreja"!
É verdade, não bimbalhavam sinos de
Natal. Mas encontramos nossa terra na ma-
triz de Saint-Pierre.
Centenas de luzes clareavam o vasto
espaço. De cada lado do altar-mor erguiam-
se, bem enfeitados, enormes pinheiros.
Que alegria, que festa, quando os cele-
brantes chegaram ao altar e irrompeu a me-
lodia “Stille Nacht, heilige Nacht”! Muita gente
tinha lágrimas nos olhos. O confessionário do
P. Júlio, capuchinho, esteve ocupado a noite
inteira. Uma alegria intensa e calma.
No mundo inteiro nossa fé, nossa Igreja
135
fazem os homens felizes. Até longe, em terra
inimiga, sabe substituir a pátria. Ninguém o
sente como nós o sentimos.
Os dias de Natal foram bem calmos. Ti-
vemos tempo livre e nos alegramos com os
presentes que o Menino Deus nos trouxe.
Presente original foi o do nosso supremo
Comandante, Ruprecht, príncipe herdeiro da
Baviera. Mandou um cachimbo para cada
soldado do I Exército. Que idéia singular!
Mas enfim o fumo já foi muito louvado
em prosa e verso, sobretudo quando estava
a serviço do soldado. Pois em parte alguma
seus efeitos normais são tão expressivos
como em tempo de guerra.
O fumo melhora a disposição e anima o
fumante para maior atividade mental e maior
resistência perante as fadigas. Nem se lhe
diminua a influência em disfarçar, por algum
tempo a fome e a sede.
Torna-se uma premente necessidade no
campo de batalha tão envenenado e pestea-
do pelos cadáveres que apodrecem. Espanta
as moscas que, deixando os cadáveres, in-
vestem contra o soldado.
Sem fumar não se agüenta uma tão pes-
teada atmosfera. Por isso se fumava muito,
se fumava sempre. Fumava todo mundo. Vi o
bagageiro de um oficial fumar pó de café.

136
Muitos se serviam até das folhas secas da
batata ou das nogueiras.
O fumo é histórico também. Quase to-
dos os famosos generais puxavam seus ca-
chimbos: Frederico o Grande, Gneisenau,
Bluecher, Moltke.

30. - 1 de janeiro de 1916 - Mão


invisível desvia de mim as balas.

Terminou um ano de guerra e começa


outro. Que irá trazer-nos? Sem dúvida, a
vontade de Deus. Preparo-me para tudo. Mi-
lhares de balas e granadas zumbiram perto
de mim, ano passado. A morte andou amea-
çando-me de todos os modos. De cima, por
baixo da terra, por balas e minas e bombas e
gases venenosos. Mas, "erva ruim" não mor-
re, como dizem por toda parte nas trin-
cheiras.
Confesso que por várias vezes não con-
tava mais com a vida. Sempre, porém, à úl-
tima hora achava uma porta aberta. Sempre
a bala que me visava, errava seu alvo.
Muitos camaradas acreditavam ter eu
corpo fechado e por isso nada me acontecia.
Essa idéia era tão generalizada que, várias
vezes antes dos assaltos, me entregavam

137
cartas para serem remetidas aos pais e pa-
rentes. De fato, é impressionante andar uma
mão invisível desviando de mim as balas.
Não faz tempo assaltamos uma trin-
cheira inimiga. O bombardeio preparatório fa-
lhou, deixando só com poucas falhas a cerca
de arame farpado. Eu assaltei pela direita.
Imediatamente à minha esquerda o tenente
Dickmann empurrou sua metralhadora e co-
meçou a matracar.
Mas o fogo na saída do cano despertou
a atenção do inimigo que respondeu com dis-
paros cerrados de suas metralhadoras.
As balas batiam furiosas no anteparo de
aço. Uma bala, contudo, achou a abertura do
escudo, ponto de mira, e matou instantane-
amente o valente oficial.
A metralhadora calou-se. Então os fuzis
inimigos me alvejaram. As salvas eram para
mim e para meu companheiro, João Teufe-
lhart, um jovem voluntário de guerra. Num
instante o coitado jazia no chão com 24 balas
no corpo. Nenhuma era mortal. (Depois fui
visitá-lo no hospital). Nada me aconteceu.
Por muito tempo o fato foi comentado no Re-
gimento. Apenas um exemplo.

138
31. - 7 de fevereiro de 1916 - Nas
minas de carvão.

Rendição. Para fora da linha de fogo e


do pantanal assassino das trincheiras. Corre-
se, tropeça-se e a gente vai aos encontrões
pela noite escura como breu.
Finalmente saímos da trincheira trans-
porte e da elevação de Vimy. Cerrar fileiras,
é a ordem e depois... marchar.
Macabramente surgiam à beira dominho
as ruínas das paredes de várias casas.
Não era possível uma marcha regular.
Nada de se acender alguma luz. Colunas de
munição bloqueavam quase todos os cami-
nhos.
Passamos por Acherville, Drocour, Billy-
Montigny. É fraca a iluminação de Henin-
Letard. Nela aninha-se o II Batalhão. E nós?
Dobrar à esquerda e marchar! Para frente,
varando a noite escura.
Finalmente aparecem os elevadores de
uma pequena cidade mineira: Montigny-
Courriéres.
Alguns anos atrás o mundo foi abalado
pelas horríveis notícias do desastre ocorrido
em suas minas de carvão. Mil homens fica-
ram soterrados dentro de umas galerias.
De cidadezinha até então desconhecida,
139
ficou tristemente célebre com o sinistro. As
autoridades francesas não sabiam o que fa-
zer ante de tamanha catástrofe.
Quem enviar às galerias destruídas?
Como socorrer os pobres mineiros? Ninguém
sabia o que aconselhar. Faltavam os apare-
lhos de salvamento. Foi então que uma soci-
edade mineira alemã se ofereceu em tempo.
Era da Renânia, de Gelsenkirchen.
Acudiu de fato em tempo recorde. Con-
seguiu salvar várias centenas de mineiros
bloqueados. Mas hoje tudo está esquecido.
A pequena cidade tornou-se alemã pela
ocupação. As restantes minas de carvão es-
tão sob administração alemã. Coisa dolorosa
para o inimigo.
Dia e noite, lá das elevações de Vimy e
Loreto estão vendo fumegar as chaminés de
suas minas e com incansável esforço procu-
ram recuperar o terreno que perderam.
A vida por aqui não é agradável. É o
mundo dos tipos mineiros de Zola. França
em carne e osso. Nós alemães estamos a-
costumados à ordem, aos ares acolhedores
das casas de mineiros, cercadas com flores
amigas e amáveis num jardim ornamental,
embora pequeno.
Nesta cidade mineira, outrora tão falada,
pensamentos lúgubres invadem a gente. Ru-

140
as esburacadas, cheias de poças d'água. O
calçamento é irregular. A calcada não passa
de terra batida, lamacenta, esburacada e es-
treita. As casas sem reboque, cobertas com
monótonas ardósias. Uma como a outra.
Como viver por aqui? Vê-se que a indús-
tria joga com muito dinheiro aqui. Mas o ho-
mem desta terra é um desajustado com o
ambiente.
Trabalho, moradia, prazeres! eis os slo-
gans que dominam. A língua francesa des-
conhece a palavra "à vontade, como em ca-
sa". Dei voItas, observando tudo, apesar de
meu desmedido cansaço.
Tipos de Zola: Germinal, Lemonier, co-
mo mineiros. Crianças pálidas, sem cores sa-
dias, “sem o fresco rubor das faces". Faltam-
lhes os ares de brincalhonas descuidadas da
nossa mocidade alemã. Temporãs, sem ex-
pressão infantil. Muitas escrofulosas, seres
linfáticos.
Por toda parte tuberculose e miséria.
Moças com olhares atrevidos, piscando com
os olhos. Mulheres gordas enfiadas em ves-
tes desalinhadas, com características do ál-
cool.
Havia também umas bonecas enfeita-
das, penteadas, elegantes, metidas em sapa-
tos de altos coturnos. Vestidos berrantes.

141
Com os olhares andam à procura de alguém.
são "camaradas" dos jovens mineiros, com-
panheiras de farras aos domingos.
Mas onde estão os rapazes? Os tais
com voz provocante, cabelos besuntados,
penteados até à altura dos olhos? Onde es-
tão os "menores" cobertos com o pó do car-
vão, com echarpe de cor ao pescoço, mar-
cando encontro com suas amantes, que u-
sam perfumes baratos? Zola, Lemonier. En-
contramos alguns de seus tipos por aqui

32. - As altas chaminés não fu-


megam.

Os rapazes estão quase todos fora. Ou


metidos no exército francês ou fugidos. Fica-
ram poucos. Já não trabalham nas galerias.
Os homens continuam os mesmos. Metidos
em seus tamancos, gordos e esparramados
em suas roupas, enfrentam a lama e as po-
ças d'água das ruas. Andam com borrachas,
gorros e echarpes berrantes, vermelhas, ao
redor dos colarinhos emporcalhados.
Revelam um misto de prepotência e
submissão na feição suspeita. São tiranos
em casa? Beberrões? Na rua são pacatos.
Como tipos originais, de casca grosseira, Zo-

142
la descobriu-se em cada canto.
Em todo caso são homens nada convi-
dativos. Por toda parte soldados alemães,
milhares, muitos milhares. Com horror os
moradores constataram essa maré.
Soldados que riem, rapazes bem humo-
rados, de todas as armas. Sobravam canti-
nas por toda parte. Anúncios assim: "Hoje
chouriços com Sauerkraut - Cerveja - Hoje
salsichas quentes". Isso desperta o bom hu-
mor.
As altas chaminés das fábricas não fu-
megam. Muita coisa está parada. As torres
dos elevadores de carvão não tremem e
seus ferros suspiram por um trabalho.
Os cabos aéreos para o transporte de-
saparecem ocultos pela neblina pardacenta.
Como triste sobra do passado jaz um carro
na sujeira do pátio, surpreendido pela guerra
no seu trabalho.
Tons alegres de música espalham-se
pelo ar. É uma banda que está tocando dian-
te do quartel do comandante geral do Regi-
mento.
Era como se vivêssemos na mais pro-
funda paz. A gente ficava escutando, sor-
vendo aquelas melodias tão conhecidas na
pátria, como se estivesse num parque da
nossa terra.

143
Casa alguma tem ares convidativos por
aqui. Os restaurantes de Estaminets, peque-
na cidade, estão fechados.
Certo dia. entramos num local que trazia
o anúncio "Café". Mas uma moça suspeita e
amável, com penteado maravilhosamente
alto, avisa-nos que o "café" estava fechado e
proibida a entrada.
Entendemos logo o assunto. Esses pe-
quenos cafés eram os ninhos do vicio. As
autoridades militares alemãs foram enérgi-
cas, arrancando o mal pela raiz.

33. - A cidade mineira vai dormir.

A tarde cai lentamente sobre as constru-


ções de tijolo bruto e sobre as chaminés, so-
bre o barro e a lama, sobre as árvores sem
folhas. A cidade mineira vai dormir. Luzes se
acendem, as ruas ficam vazias.
Cada um procura um lugarzinho quieto e
cômodo no quartel, mesmo que seja apenas
uma palha arrumada para cama num canti-
nho do quarto. A lareira acesa, a água fer-
vendo, uma sanfona cantando despertam o
bom humor e satisfação na turma alegre. Ao
menos por alguma horas a gente tem sosse-
go.

144
Sim, apenas por algumas horas. Pois
logo temos de ir para o caldeirão em ebuli-
ção, digo, Arras-Neuville. Diz-se que os sol-
dados quando licenciados para visitas a seus
lares falam pouco e a contragosto sobre os
combates no front. É o que acontece comigo.
Custa-me recordar as horríveis e horripi-
lantes cenas por mim presenciadas nos dias
e noites que se seguiram.
(8 a 16 de fevereiro) Em Courrières fi-
camos só um dia e uma noite. De repente,
alarme. Veio a ordem: "A undécima Compa-
nhia com missão especial deve marchar i-
mediatamente para a linha avançada".
Éramos, pois, os eleitos. Mas para que?
Ninguém o sabia, nem sequer o guia. Só nas
trincheiras é que nos inteiraram de tudo.
Nossa Companhia tinha de assaltar o setor
da trincheira inimiga.
Rasgaram-se corredores de ligação, foi
amontoada a munição. As baterias calcula-
ram suas distâncias e minas explosivas fo-
ram carregadas. Enfim, providenciados os
preparativos costumeiros.

34. - Esquentando o seu almoço.

Chegou o dia 8 de fevereiro. Pairava so-

145
bre a posição a calma de costume ao meio
dia. Aqui e ali sobe a fumaça de uma chami-
né. Os franceses estavam esquentando seu
almoço, tal como nós também. Mas de re-
pente tiraram-lhes calma.
À 1 hora da tarde nossas baterias dispa-
ram seu bombardeio preparatório. Uma co-
meça e outra secunda o fogo.
Baterias se enfileiram no canhoneio de
todos os lados. Dentro de 10 minutos cente-
nas de canhões vomitam suas granadas.
O francês sabe de que se trata e res-
ponde. Um ribombo e já caem as primeiras
granadas em nossa posição.
Devagar formou-se um "Trommelfeuer"
que não se pode descrever. Uma louca sara-
banda de canhões com disparos e impactos,
elevada à máxima celeridade.
Ao longe trovões demorados. De perto
explosões ensurdecedoras. Quando a gente
está numa posição garantida. há certo inte-
resse no acompanhar o bombardeio, durante
uma meia hora. Mas depois ele se torna uma
tortura.
Doem os ouvidos e a cabeça parece
moída, porque não é uma bigorna de ferro.
Com o tempo a gente enlouquece.
A cada passo apaga-se a luz no abrigo
que está mais fundo. A pressão do ar das

146
explosões se encarrega disso. Todas as ba-
terias disponíveis disparam quanto podem.
Uma saraivada de ferro destrói, arrasa
nossa posição construída com tanto trabalho.
Nada perdoa o inimigo.

35. - Soterram abrigos com ho-


mens e ratos.

As granadas reviram a terra, nivelam os


corredores de ligação, soterram os abrigos
com homens e ratos. E que dizer dos efeitos
“auditivos" no momento?
É simplesmente impossível dar colorido
ao tremendo, bárbaro e frenético furor dos
canhões. A terra estremece. Zunem e estou-
ram sinistramente os petardos, numa confu-
são indescritível. A gente chega a crer que
um pedaço da terra enlouqueceu.
Por toda parte a vista só enxerga relâm-
pagos fuzilando, no meio de nuvens de va-
por, repuxos de terra elevando-se às alturas.
Traves, pedras, torrões voam juntos.
As baterias endoideceram. Os canos
das peças já estão rubros de calor e só com
pesadas luvas os artilheiros podem manejá-
los.
Ora daqui, ora dali avisam que tal ou tal

147
bateria faz pausa, motivada nela incandes-
cência de seus canhões. Então outras en-
tram com seu fogo e a infernal orquestra con-
tinua.
Faz tempo que toda região está envolta
num nojento e abafado vapor de pólvora.
Três horas, quatro horas de fogo. E o bom-
bardeio vai aumentando. Também o inimigo
reúne mais baterias.
Das encostas de Saint-Eloy reIampejam
canhões, mas em série. Cumprimentam-nos
a seu modo. Da cota de Loreto, à direita, nos
endereçam pesadíssimas granadas.
Parece ter chegado o fim do mundo. Es-
tridentes e decididas assobiam as granadas
leves. Bem mais longe ronca a artilharia pe-
sada, mandando seus colossos de ferro para
perto, para dentro das trincheiras. Chegam
para matar.
Mandam aos ares volumes de terra e
pedra ao explodirem. Ferro e aço estão can-
tando no ar. Aqui e acolá a gente vê compa-
nheiros tombados, cobertos de lama e san-
gue. As paredes estão salpicadas de sangue.
Visão que arrepia a espinha.
Mas ainda estamos apenas no começo.
É preciso quebrantar o ânimo do inimigo,
despedaçar os obstáculos de arame. Exige-
se um esforço sobre-humano de todas as

148
energias para se continuar firme, mas des-
protegido, no posto sob tão infernal bombar-
deio, observando o inimigo, esperando a
morte a cada momento. Ela já levou tantos
dos meus camaradas!
Todo soldado sabe: o próximo momento
pode ser o ultimo para mim. Assim mesmo é
preciso agüentar firme e inabalável, enquan-
to a mão puder segurar a carabina. É então
que a gente pode medir a força da consciên-
cia do dever.
Ao redor a morte está assobiando, ex-
plodindo e rondando. Entretanto os homens
não arredam o pé, como se fossem de ferro
fundido. Sabem que se trata da vida ou da
morte.

36. - Segue-se um horrível corpo


a corpo.

Uma metralhadora inimiga começa ma-


tracar. É a morte que está batendo! Mais um
momento e eis a verdade.
Cada soldado dá o que pode na pronti-
dão perante a morte. "Eu sei, só um passo
há entre mim e a morte" (Reis 20,3).
São 4,30 h. da tarde. O telégrafo sem fio
avisa bateria por bateria: visar a segunda li-

149
nha inimiga. Pronto. Cessa o bombardeio da
primeira linha. No mesmo instante a terra es-
tremece. Três minas subterrâneas explodem
e abrem enormes brechas nas trincheiras
francesas. Só esperávamos por elas.

As baionetas são cravadas nas carabi-


nas. Cinco granadas de mão estão dependu-
radas nos cinturões. Mal o volume de terra,
arrojada pela explosão, retorna ao chão, so-
bem os foguetes vermelhos e os clarins co-
mandam o assalto.
No mesmo instante saltam todos fora
das trincheiras arrasadas. Apenas cinco me-
tros nos separam do inimigo. Mas que corri-
da coxia! Mal saltamos para fora e eis o fogo
infantaria francesa a nos receber.
Em geral o tiro passa por cima nossas
cabeças. Três metralhadoras pipocam contra
nós. Como coelhos numa caçada pulam os
atingidos. Que cena horrível! Mas o avanço
progride sempre para frente, sobre sangue e
cadáveres.
Com "hurras" avançamos para ocupar a
linha inimiga. Centenas de granadas de mão
são lançadas contra os atacantes. Depressa
para dentro da trincheira inimiga, em busca
de proteção contra a saraivada de estilhaços.

150
Logo em seguida as baionetas atraves-
sam as costelas dos atiradores. Segue-se
horrível corpo a corpo. Estalam pancadas
com as coronhas das carabinas. Partem-se
crânios, estouram granadas de mão com ruí-
do dos infernos. Baionetas ensangüentadas
são retiradas de um ferido e espetadas em
outra vítima.
E a gritaria, o berreiro em alemão e fran-
cês! Pardon, camarade! Cessez le feu! Ale-
mand bon camarade... Tudo em vão. E a res-
posta de um dos nossos é esta: "Nada de
bom camarada, seus cabeças de porcos".
Responde, agarra o inimigo mais próximo
sacudindo-o aos safanões, a ponto de lhe
cair da cabeça o capacete de aço.
Oficiais comandam seus avante, para
frente. Perdem o tempo. Perto, atrás de um
saco de areia, um francês dispara uma me-
tralhadora. Um dos nossos suboficiais agar-
ra-a por um dos pés. O cano está averme-
lhado. Assim mesmo o atirador maneja-a vi-
sando o atacante. Perde seu tempo, porque
as balas enterram-se na lama. Imediata-
mente o suboficial joga suas granadas de
mão, ferindo a cabeça e as mãos do inimigo
que, por fim, larga sua arma e foge.
Aos poucos notamos que ia diminuindo
o número dos inimigos. Aos magotes os fran-

151
ceses saiam das trincheiras ou desapareci-
am pelos corredores de ligação, rumo à se-
gunda linha, de onde atiravam como ener-
gúmenos. Acertavam mal e não lhes demos
muita importância.
Estava atingido nosso alvo, que era a
posse da primeira linha inimiga, bem constru-
ída. Mas o que sobrava de tudo?
Trincheira entupida de mortos e feridos,
franceses e alemães misturados por entre
traves e sacos de areia.
Gritavam e gemiam os feridos e ago-
nizantes. Por toda parte viam-se membros
estraçalhados, carabinas quebradas, arre-
bentadas, cinturões com cartucheiras, gor-
ros, capacetes azuis franceses, com as letras
R. F. (República Francesa). Tudo que era
imaginável como equipamento de soldado
(alemão e francês) ali estava baralhado nu-
ma tremenda desordem.

37. - A colheita da morte foi farta,


rica.

Eis a trincheira conquistada! Logo à noi-


te cavamos o corredor de ligação com a nos-
sa trincheira, preparamos anteparos com fo

152
Numa trincheira alemã.

lhas de aço junto às metralhadoras. Holofo-


tes e balas luminosas varavam a escuridão.
Como cauda de um cometa o clarão de
um holofote inimigo anda assombrando a
noite, tateando o campo de batalha e de mor-
te, saindo de Neuville até La Folie e Given-
chy. Regimentos inteiros já pereceram aqui
num furacão de fogo e aço.
Ainda hoje a colheita da morte foi farta,
rica. Seria interessante a gente seguir esse
facho luminoso, não fosse a certeza estarem
centenas de binóculos inimigos procurando
seres vivos na sua esteira iluminada.
Procurando como alvos de granada. Até
parecia que os franceses, com olhos acesos,
estavam conferindo o que o "Miguel, alemão”

153
lhes havia tomado. (Nota: alusão ao nome
popular que o alemão dá a si mesmo).
Finalmente chega a tão esperada e re-
dentora notícia de que íamos ser rendidos.
Que belo hoje! Já tínhamos feito nossa obri-
gação. Pálidos de comoção pelas tremendas
horas de horrores e sustos; cansados e es-
gotados por causa dos esforços sobre-
humanos; cobertos de lama e sangue, cami-
nhamos ainda durante quatro horas para
nosso alojamento em Drocourt.
Sono pesado, profundo. Não sei dizer o
que me aconteceu ao despertar. Tinha a im-
pressão de tudo não passar de um pesadelo.
Entretanto era pura, cruel realidade.
À hora marcada no dia seguinte viu-se
que o inimigo sabia atirar. Quantos nomes
chamados, mas sem resposta! Morto, ferido,
desaparecido, eram as incessantes anota-
ções. Quando gritei o meu "presente", várias
cabeças viraram-se para mim, como se seus
donos estivessem a me dizer: "É claro, a vo-
cê nada acontece".

38. - Na escola de aspirantes.

A coisa ia melhorar. Conforme ordem do


Regimento os voluntários e os de um ano de

154
serviço tinham de formar grupos para aspi-
rantes a oficiais.
Aos poucos deviam ser preenchidas as
grandes lacunas na classe. O lugar do curso
seria em Lewarde, perto de Douai, sete qui-
lômetros ao oeste da cidade.
Um bonde elétrico levava-nos a Douai.
O curso compunha-se de 59 aspirantes da
primeira Divisão de Infantaria bávara. Per-
tenciam ao I, II e XXIV Regimentos.
Nosso Regimento "Maximiliano Emanu-
el" destacava-se muito com seus nove aspi-
rantes. Mas os nove representavam de fato
gente de valor: 3 professores, 2 teólogos, 3
funcionários de bancos e um químico.
Os outros Regimentos contam com teó-
logos (2 franciscanos), escrivães, negocian-
tes, professores etc. Uma companhia de
pessoal de óculos.
Um capitão dirige o curso. É ajudado por
um tenente (Lutz). Dão principalmente a te-
oria. O treino está a cargo de dois sargentos,
tipos originais, feitos mesmo para histórias
de humorismo militar.
O treino não é monótono.
Exercícios, ginástica, tiros com festins.
Nada significavam essas pipocas para quem
durante 14 meses andou atirando com balas
de verdade, em alvos humanos.

155
Divertido era o treino para salto de obs-
táculos. No começo não entendi o sentido
dessa ginástica. Mas depressa o entendi.
O pessoal reunia-se depressa numa bai-
xada. O companheiro de ponta levantava o
braço avisando. Pronto! comandava um ofi-
cial. E a gente tinha galgar a rampa do valo e
depois atravessá-lo de um salto. Media 2 me-
tros de largura e estava cheio de água, verde
de lodo.
Todo mundo vencia os 2 metros, porque
ninguém queria travar conhecimento com o
lodo, os cacos de vidro e latas e sujeiras do
rego. A turma saltava como saltam os grilos
num monte de feno armazenado.
Vieram depois os outros obstáculos: cer-
cas, valas, estacas e arame farpado. Por fim
uma desalentadora parede de tábuas, de
quatro a.
cinco metros de altura. Nessa altura fa-
lhava toda diplomacia até então vitoriosa. Tí-
nhamos que transpô-la.
No começo parei estarrecido diante de-
la. Veio-me a vontade de ser um passarinho.
Mas urgia a ordem de galgá-Ia.
O camarada, que era mais ágil e mais
forte de todos, plantava-se no chão. O se-
guinte trepava-lhe pelas mãos e pelos om-
bros com suas botas imundas. Chegou mi-

156
nha vez e eu imitei o antecessor.
O esteio lá em baixo vacilava seriamen-
te, sobretudo com a chegada de quatro sol-
dados que começaram a subir pela escada
viva de Jacó. Esse saltou para um canto de
parede e tentadoramente estendeu-me suas
mãos e suas botas.
Eu não tinha confiança nas botas. Em
outra ocasião elas abandonaram os pés do
dono e ficaram nas minhas mãos. Trancei os
dedos com meu companheiro que me puxou
com todas as forças. Foi puxando, foi bufan-
do e eu cheguei em cima, onde não podia
ficar toda vida.
Estudei um pouco a situação, enquanto
os lá debaixo me olhavam curiosos. Por fim
um deles puxou-me pelas pernas, apressan-
do minha descida.
Fechei um pouco os olhos e saltei para
o chão, onde eu gostaria de ficar estirado
uma meia hora. Mais uma cambalhota. E as-
sim a gente se alegra quando chega a tarde
e chega a "bóia".

A parte mais interessante do curso são


as iniciações nos vários segredos da tática e
estratégia.
História, arte, aritmética, matemática a-
plicada, velhas conhecidas reaparecem. Para

157
Napoleão todo soldado leva seu bastão de
marechal na mochila. Embora eu não preci-
se, ser-me-ão úteis esses conhecimentos tá-
ticos, durante a vida. Pois permitem um bri-
lhante paralelismo para a tática no combate
espiritual.
Sem dúvida a vida militar, sobretudo na
guerra, traz consigo coisas desagradáveis e
rudes. Em geral, contudo é um tempo do
qual a gente gosta de recordar-se.

39. - Mas onde andará nosso Re-


gimento?

Fim de março. Impressionantemente ri-


bombam os canhões no front. Falta pouco
para recomeçar a seriedade da vida de sol-
dado guerreiro. Já começa o treino para tro-
pa de choque, colunas de assalto. Há exérci-
tos com lança-chamas. São mais prolonga-
dos os exércitos noturnos.
Pela manhã voltamos para casa alque-
brados. Mas para que tanto treino com lan-
çamento de granadas de mão, com lança-
chamas? Não os tínhamos em nosso setor. E
também pouco adiantavam em posições bem
construídas, com inúmeros abrigos subterrâ-

158
neos. A explicação não tardaria a vir.
Um belo dia foi anunciado o encerra
mento do curso. Os aspirantes retornam a
seus Regimentos. Muito bem. Mas onde an-
dará nosso Regimento?
Fomos embarcados em Douai, passan-
do à noite por Péronne, Valanciennes e
Charleroi. De repente uma guinada para o
leste, rumo a Luxemburgo. Parada em Arlon
e depois de breve demora, rumamos para
Longwy.
Essa cidadezinha, bem como a aldeia
de Noërs, colocadas numa elevação, ofere-
cia um cenário desolador de destruição. A-
penas uns restos de paredes perfuradas.
Alojaram-nos em barracas. O chão nu
supriu a falta de camas. Dia e noite era inten-
siva a movimentação. Hoje passou por
Longwy o qüinquagésimo trem-hospital. Já
sabíamos onde estávamos: no maior mata-
douro do ocidente, Verdum.

40. - V E R D U N - Fim de março


até 7 de junho de 1916.

No dia 21 de fevereiro, às 5 h. da ma-


nhã, o canhão de longo alcance, calibre 31
159
centímetros dispara uma granada contra a
cidadela de Verdun. Era o sinal do ataque no
front alemão, perto de Billy. E assim começa
a batalha de Verdun.

O que então se seguiu está escrito na


mais ensangüentada página da história uni-
versal. Tudo que alguém possa descrever
com dantesca fantasia de inferno, nas mais
berrantes cores, fica aquém da cruel realida-
de.
Tudo que os historiadores escreveram
sobre batalhas de nações em terras empa-
padas de sangue em tempos idos, fica longe
da tremenda tragédia, cujo pano de boca a-
cabava de abrir-se.

Uma circunstância exacerbou tremen-


damente essa batalha. Primeiramente a fúria
do dois combatentes, que sabiam ser decisi-
va a luta. Depois sua inaudita duração. Fi-
nalmente os acidentes do terreno, incrivel-
mente difícil.
O francês bateu-se com muita valentia,
pois "lutava de costas para seus altares do-
mésticos". Para eles Verdun era uma outra
Termópilas e como tal defendida.
O heroísmo alemão nada lhes ficou de-
vendo, apesar da sonegação da vitória. Até

160
parece maior porque foi animado por ardente
amor à pátria, numa luta fracassada e de-
sesperadora.
Sem queixas, murmurações a tropa en-
frentou a morte heroicamente.

40.1. - Em covas, como grilos.

Estávamos em suspense nos primeiros


dias. Já bastava a marcha que era uma a-
ventura de arrebentar os nervos.
Passando por Herbeboi, Ornes a gente
se tocava para a matinha, metida numa vala.
Era a matinha das cozinhas.
Lá se achavam elas e os postos de a-
bastecimento do nosso setor de luta. Tudo
bem construído. Blockhauses revezavam-se
com covas escavadas na rampa, onde morá-
vamos como grilos.
Trato sem igual. Ceia de carrasco para
milhares, muitos milhares.
Aproveitei-me dos três dias livres para
reconhecer a região. O terreno de ninguém,
subindo até Douaumont, fora convertido nu-
ma só fortaleza que parecia zombar de qual-
quer assalto.
Contudo, posições aparentemente in-
conquistáveis, tinham sido tomadas desde o
fim de fevereiro em sangrentos combates.
161
Quando chegou nossa vez de combater,
a linha interrompida em parte por lacunas,
passava sobre Semogneux à encosta de Al-
bain, bem rente a Douaumont, conquistado
no dia 26. Seguia rumo ao forte blindado de
Vaux.
Na altura de Thiamont-férme nossa linha
atravessava uma zona eriçada de canhões.
Linha essa muito irregular, tendo a de acesso
de ficar muito escondida. Pois quase o terre-
no todo, a não ser o coberto por florestas,
estava à vista dos elevados fortes de Vaux,
Souville, Douaumont.

40.2. - Região assassina.

Verdun ficava apenas a oito quilômetros


das nossas linhas de fogo, que eram bem
fortificadas. Dava-se isso em vários pontos,
ao menos.
O panorama era fechado pelo resto da
floresta de Caillete. A esquerda surgiam, ve-
zes, as sinistras cúpulas blindadas de Vau
sempre cercadas de fumaça.
Ao sul do forte Douaumont espiavam-
nos as casamatas de Souville. Não tardaria
mo a conhecer de perto essa região assassi-
na.

162
O que os meses de maio e junho nos iri-
am trazer ultrapassava, em macabras expe-
riências, tudo o que até então a guerra nos
havia oferecido. Combates sem conta dentro
das trincheiras. E por cima com rancor e fúria
jamais vistos. Passo a passo sempre sob a
saraivada de ferro, avançamos para mais
perto dos anteparos de Vaux.
As vezes a marcha para as posições
nos custava mais baixas do que o próprio
assalto. Sempre marchas noturnas, mas com
que sacrifícios.
Nosso primeiro avanço realizou-se pela
tardezinha, sob a proteção de uma floresta
desfalcada.
Procurávamos atingir o grande lugar das
bandagens, na baixada do Minze. De lá, por
péssimo caminho, subimos para a elevação
que fica atrás de Douaumont.
Para não sermos vistos, ficamos na orla
da floresta, de onde dominávamos toda a
encosta do morro.
Trezentos metros à esquerda, disparava
por campo aberto uma nossa carreta de arti-
lharia pesada.
Cientes do grande risco, os cavaleiros
tocavam seus cavalos à toda pressa. Assim
mesmo foram percebidos.
Uma, duas granadas vieram zunindo. Os

163
cavalos da frente empinaram. Mais uma gra-
nada apressada, seguida de tremenda ex-
plosão com relâmpagos, fogo, fumaça.
Quando esta desapareceu, já não se vi-
am nem cavalos, nem carreta. A explosão do
carro de munição reduzira tudo a pó.
Passamos por muitas baterias de artilha-
ria. Cansadíssimos, atingimos uma baixada
da floresta, um quilômetro atrás do forte blin-
dado de Douaumont, lá no alto.
Muitas galerias subterrâneas iam dar no
lugar dos curativos, dentro do morro. Sentia-
se, ao entrar, penetrante cheiro de éter e á-
cido fênico. Lampiões a carbureto ilumina-
vam o lugar. Aqui recebemos então comida e
assistência. Era a última antes da nossa en-
trada no fogo.

40.3. - Na linha de combate.

Apenas uma elevação restava para a


gente chegar à linha de combate. Ao deixar-
mos as encostas de Douaumont, para a tra-
vessia atalhada da baixada de Albain, o fran-
cês percebeu alguma coisa. Lá da encosta
de Albain disparou alguns foguetes lumino-
sos e záz... eis-nos todos estirados no chão
e bem quietos. Mas o inimigo já estava des-
164
confiado.
Metralhadoras matracam e logo sobem
ao ar umas granadas luminosas. (Nota: Es-
tas soltavam no ar pequenos pára-quedas
que seguravam luzes fosforescentes).
Que azar! Era o que faltava! São sinais
pedindo fogo de barragem, que começou i-
mediatamente. De entrada parecia-se com o
estrondo de uma enorme comporta rompen-
do os diques. Impactos batendo bem em
nossa frente. Ruído infernal deixou-nos com-
pletamente tontos. Pesado vapor desceu pa-
ra dentro das crateras de granadas quase
tirando-nos a respiração.
Os estilhaços voavam por todos os la-
dos. A terra converteu-se em estirados repu-
xos. Dez minutos de barragem sobre nossa
tropa. Mas parou tão de repente como havia
começado.

41. - No "Vale dos Mortos".

Entretanto a escuridão era completa. A


gente nem enxergava a própria mão diante
dos olhos. Dobramos para um corredor mal
conservado, passando por pedras e buracos
sem conta.

165
Raios ofuscantes riscavam a noite, mos-
trando-nos as costas do companheiro dian-
teiro ou, ao lado, a silhueta de uma árvore
desfolhada que morria; ou então o canto do
corredor, e algo cinzento sobre ele. Bem po-
dia ser um pedaço do céu.
Alto! gritou de repente uma voz; vamos
passar pelo "vale dos mortos"! Corram o
mais que puderem! Insuportável cheiro de
cadáveres enchia o ar. Era para a gente en-
louquecer!
Só mais tarde, ao passar pelo mesmo
lugar, vi milhares de soldados mortos, que
cobriam o chão totalmente arado pelas gra-
nadas. Estavam em vários estádios de putre-
fação.
Corremos o quanto permitiam o chão ir-
regular, a escuridão e as nossas forças. As-
sim alcançamos depressa um declive invisí-
vel ao inimigo e fora de um bombardeio dire-
to. Ficava na garganta de Albain.
Logo no primeiro dia, 30 camaradas fo-
ram estraçalhados pelas granadas. Estáva-
mos em covas molhadas, protegidos pela lo-
na de bivaque. Ao redor é o reino da destrui-
ção.
Corre o mês de maio e nenhuma folhi-
nha brota no chão. Tudo arado, revirado pela
artilharia. Canhões despedaçados, peças de

166
equipamento de toda qualidade cobrem o
vale das desgraças.
A comida só pode aparecer à noite. Pois
todos os caminhos de acesso são bombar-
deados durante o dia. E ainda por cima este
repugnante e adocicado cheiro de tantos ca-
dáveres.
É impossível sepultá-los e nem adi-
antaria fazê-lo. E isso porque as granadas
aram continuamente o campo e jogariam pa-
ra fora os enterrados.
A noite inteira temos de abrir trincheiras.
Mais esta! Trabalho de Sísifo. Pois o primeiro
bombardeio arrasa tudo de novo. Mas ordem
é ordem.
Não se descrevem os sofrimentos dos
soldados: sujeira, desconforto, fedor dos ca-
dáveres, fome, sede sem conta. O Pátria! Se
soubesse o que estamos sofrendo! Por favor,
um pedacinho de pão, um gole de água!
Que sou eu na guerra? Uma gota num
balde d'água (Is 40,15). Na guerra mundial
desaparece o indivíduo que morre. Tomba no
corredor de ligação e por cima dele dispara o
exército atacante. Ou então o sepultam numa
vala comum. Um morto junto a outros mor-
tos!

167
42. - Promovido a suboficial.

Renderam-nos à noite. Pela sete da


manhã alcançamos nosso alojamento na flo-
resta "Bois de fermes", onde começou a fes-
ta no mato.
Cerveja, carne, manteiga, marmelada
em abundante distribuição. Chegou mesmo
em cima da hora. O pessoal esta sentado ou
vagueia como cadáveres ambulantes.
No dia seguinte fiquei sabendo da minha
promoção para suboficial. A tarde visitei a
bateria de morteiros de 42 cm. Quase levei
um sustão ao ver os dois colossos de ferro.
Ao lado jaziam algumas granadas. Do depó-
sito aberto no morro eram roladas para perto
da peça. Um guindaste colocava-as dentro
do cano.
O petardo pesa mil quilos. A cápsula
com a pólvora pesa 95 quilos. A detonação
no disparo é tão forte que atira ao solo a
pessoa que, estando perto, não se afastar
em tempo.
Os artilheiros preveniam para ninguém
ver de perto o disparo. Observei o tiro do alto
de uma lombada atrás de nós. Sempre que a
granada zunia por sobre a floresta, as árvo-
res curvavam-se como numa forte tempesta-
de.

168
Missa à beira da floresta.

43. - Uma bela manhã na floresta.


- 1 de junho de 1916

Acepção do Senhor! Uma bela manhã


na floresta. Às 10 horas missa campal. Ao
longe os canhões ribombam num "Trommel-
feuer".
Uma mesa miserável e bamba apóia-se
no tronco de enorme carvalho, com toalhas e
pertences necessários para o Santo Sacrifí-
cio.
A sagrada cerimônia realiza-se à som-
bra da floresta, enquanto os canhões estão
disparando sem cessar.
169
De repente uiva sobre nossas cabeças
uma granada, que explode mais adiante na
encosta do morro.
O celebrante (P. Plersch, O.S.B.) inter-
roga com o olhar ao comandante do Bata-
lhão Continuar? O oficial acena afirmativa-
mente.
No fim da santa missa o capelão dirigiu-
nos umas animadoras palavras. Em seguida
exortou-nos ao arrependimento e deu-nos a
absolvição geral. No mesmo instante uma
granada assobiou e explodiu tremendamen-
te, ferindo gravemente um soldado. Retira-
mo-nos para trás e recebemos a santa co-
munhão.

44. - Linsmaier, soldado de corpo


e alma. - 2 de junho de 1916

Hoje o XII Regimento foi substituído. Ne-


le estava engajado o Frater Hoegerle a quem
logo procurei. Coberto de pó e sujeira, devi-
dos à longa marcha, quase não o reconheci.
Durou pouco a alegria do encontro. Pois dele
ouvi a noticia da morte do nosso Fr. Linsmai-
er.
Conforme testemunhas oculares conta-

170
ram, fora ele socorrer um temente ferido di-
ante da posição. Uma granada acertou em
cheio e despedaçou os dois.
Como sombra de uma nuvem
Sobre ameno campo
Desliza nossa pobre vida.
Tremei! Cerca-nos a morte
Enquanto vivemos.
Frater Linsmaier tombou no dia 26 de
maio, entre Douaumont e Vaux, onde a VI
Cia. do II Batalhão tomara posição, à nossa
direita. Defendia um setor da trincheira. Des-
de Douai eu não o vira mais. Era estimado
pelos superiores e subalternos. Sempre de
bom humor e soldado de corpo e alma.

45. - Douaumont, "penteada"


com pente de fogo. - 5 de junho de
1916

Hoje houve repentino alarme no acam-


pamento da floresta, perto de Ville. Cada sol-
dado recebeu 10 granadas de mão. Leváva-
mos além disso apenas carabina, máscara
de gás, cavadeira e "conserva de ferro". (No-
ta: Assim se chamava certo alimento enlata-
do, que só era aberto a comando especial).

171
Pela primeira vez usávamos capacetes
de aço, novinhos em folha. O guia do nosso
grupo estava doente. Assumi então comando
do III grupo. Todo mundo sabia de que se
tratava: assalto geral ao forte de Vaux.
A marcha começou às 8 horas da noite.
Marcha vagarosa. Na garganta de Chaufour
tivemos que suportar vários canhoneios.
O moral da tropa estava reduzido ao mí-
nimo. Zunidos, estouros de granadas, gemi-
dos e gritos de feridos, ao lado da própria
insuficiência e inércia, deprimiam os nervos e
energias assustadoramente. Aos poucos a
gente fica embotada perante tanta miséria.
Finalmente pela meia noite o fogo dimi-
nuiu. Avante! Tínhamos de galgar a lombada
de Douaumont. Nada de vegetação e terreno
rasgado, revirado, rearado pelas granadas.
Pior ainda: terreno à vista do inimigo.
À noite o perigo não era tão grande. Mas
o furioso bombardeio de ontem estava con-
tando da desconfiança do francês. A todo
custo queria cortar a chegada de reforços.
Pobre II Regimento! Mal começamos a
subida e entrou o baile. Fogo de barragem
jamais visto, coisa mais horrível que a técni-
ca de guerra já inventou.
Ao relâmpago das explosões vimos ou-
tra vez, apavorados, a longa baixada dos

172
mortos que estão esparramados diante de
nós. Baixada envolvida em negro vapor.
Agora estamos no ponto culminante.
Com tremenda exatidão, baseada num longo
cálculo, os franceses haviam colocado sua
enorme quantidade de canhões visando esta
cota. Pois era ela que dava cobertura à rota
de abastecimento ao norte.
Tão bem treinada estava a artilharia,
que uma granada caía ao lado da outra, tra-
çando uma única linha.
A elevação de Douaumont estava sendo
"penteada" com pente de fogo. E nós no
meio, sem abrigo, sem proteção.
Os estrondos, o inferno desabando so-
bre nós são inegavelmente a maior prova
que os nervos humanos podem suportar.
Jamais a história humana exigiu coisa seme-
lhante de outras gerações. Agüentar tudo is-
so sem enlouquecer, sem ficar petrificado de
susto, é muito mais do que qualquer heroís-
mo de tempos idos.

46. - Canto mais quente de Ver-


dun.

Estamos todos quietos. Aos poucos o i-

173
nimigo mandou seu fogo mais para a reta-
guarda. Aproveitamos o momento para, em
passo acelerado, atravessar o "vale dos mor-
tos". Coisa completamente impossível, po-
rém.
O corredor de ligação, ou rebaixamento
protetor estava cheio de soldados. À luz de
foguetes luminosos foi-nos possível reconhe-
cê-los. Eram granadeiros prussianos, surpre-
endidos aqui pelo bombardeio.
No começo não sabíamos se tratávamos
com vivos ou com mortos. Mas eles exclama-
ram: "Olá irmãos. Tratem de escapar daqui!
É o canto mais quente de Verdun!"
A resposta foi um "pouco importa". Con-
tinuou a fuzilaria. Eram pencas de balas de
metralhadoras que passavam sibilando sobre
nossas cabeças. Os prussianos não se mo-
viam.
Reunimo-nos na encosta de Albain, a-
vançando aos poucos, ao longo de um cor-
redor que mal tinha um metro de fundura.

A linha de Thiaumont, ligada à arrasada


Douaumont, foi atravessada e passamos pe-
la ex-floresta de Caillette. No alto houve pau-
sa.
Era preciso andar com cautela, porque a
posição tinha lacunas. Aqui e ali vozes fala-

174
vam no escuro. Eram de algumas sentinelas
dos "Leiber", aos quais iríamos render.
Mas onde está a trincheira? Simples-
mente não existia. Cada qual se esconde na
mais próxima cratera de uma granada, eis a
ordem do comando.
Belo futuro! Os "Leiber" retiraram-se,
nem sei por onde. Pensei comigo qual seria
visão que o dia iria oferecer. Onde estamos
realmente? Vai ser uma beleza esse fogo
pela esquerda, pela direita, pela frente.
Devagar o dia veio chegando. Á nossa
esquerda erguiam-se os poderosos antepa-
ros de Vaux, por entre fumaça e neblina.
Rente diante de nós, uma ribanceira com
centenas de covas “de favos" dos franceses,
de nós separados só pela estreita garganta
de Vaux.
Á direita, a linha curvava-se para trás, tal
como a trincheira inimiga. Daí vinham os dis-
paros da direita.
Nossa posição era muito critica e o ini-
migo estava muito irritado. Apesar da inces-
sante fuzilaria avançamos devagar contra a
posição no morro.
Íamos aos saltos, de um para outro pa-
nelão de granada, mas sempre sob o com-
passo das metralhadoras.
Cinqüenta metros à nossa direita estava

175
a VI Cia., metida também dentro de panelões
que a tropa havia unido provisoriamente.
Minha posição com meu pessoal ficava
na extrema do flanco direito. Portanto perto
da VI Cia.
Veio ordem para a escavação de um
corredor, avançando como ligação. Foi fei-
to.Mas como era furiosa a fuzilaria dos fran-
ceses, quando perceberam nossa intenção!
No começo só consegui trabalhar deita-
do. O chão era duro e pedregoso. Da es-
querda veio o fogo de uma metralhadora
que, por sorte, visava alto demais. Entretanto
suas balas sibilavam ameaçadoramente so-
bre a gente.
De certo vão trocar o pente, pensei com
meus botões, quando se deu uma pequena
pausa. Saltei e encolhi-me uns dez metros
para frente. Mal comecei a cavar, recomeçou
a matraca dos tiros, agora auxiliada por uma
outra metralhadora. Erravam por dois a três
metros. Não mais me viram por causa da
tanta terra e poeira que levantavam.
Nesse ínterim fui enterrando-me no
chão, frustrando os planos assassinos do
francês. Pena pela pólvora que estão gas-
tando, pensei comigo! Era preciso avançar
lentamente contra a posição inimiga.

176
47. - Último assalto ao forte de
Vaux.

De ambos os lados não se podia em-


pregar a artilharia. Era pequeno demais o
espaço entre os combatentes.
Doidamente disparavam os franceses
suas metralhadoras sem deixar suas trinchei-
ras, que subiam como degraus de uma es-
cada pelo empinado declive da floresta de
Vaux.
Claramente se via a entrada da galeria
do morro, onde guardavam a munição. Viam-
se portas e anteparos de madeira à moda de
abrigos feitos dos troncos deslavrados.
Havia pois um meio para se espantar o
inimigo e obrigá-lo à retirada para o forte: fo-
go. Mas fogo de infantaria ou de metralhado-
ras seria desperdício, por causa das bem
firmes construções. Fogo, sim, de lança-
chamas, pequenos e grandes, a postos para
amparar a infantaria.
Avançamos em linhas de atiradores, re-
cebidos furiosamente à bala, que prostraram
muitos dos nossos com tiros na cabeça.
Chegados a 30 metros da trincheira ini-
miga, o espetáculo foi de arrepiar a gente.
Os lança-chamas atacaram, regando a linha
inimiga com um líquido incendiário.
177
Poderosas chamas invadiram depósitos
e trincheiras do inimigo. Explodiam caixotes
de munição e de granadas de mão. Até a ter-
ra e troncos verdes incendiaram-se. Coisa
nunca vista! Quem não fugia depressa, vira-
va tocha fumegante. Gritos, provocando cala-
frios na espinha, chegavam aos nossos ouvi-
dos.
Em poucos minutos as covas "imitando
do favos" estavam vazias. Formavam a trin-
cheira.
Por fim chega a hora de varar em luta
sangrenta pela floresta Firmim, que nos se-
parava do forte Vaux. Era o último arranco.
Houve contudo um retardamento, ao qual
devo minha vida.
As trincheiras "favos", abandonadas pelo
inimigo, não permitiam ocupação imediata.
Sucediam-se nelas, a cada passo, explosões
menores e maiores nos depósitos de muni-
ções.
Estávamos também exaustos de cansa-
ço. Dois dias sem alimentação alguma, por-
que o incessante fogo de barragem nada
deixava passar.
Vivíamos roendo o pão preto de reserva.
Tudo frio e insosso. O maior tormento era a
sede. A situação não era mais tolerável.
Foi enviado um ordenança à retaguarda

178
com o dilema: ou bóia ou substituição. Veio a
última, vieram os "Leiber". Sabíamos dos a-
puros que teriam aqueles homenzarrões para
se encolherem dentro da linha rasa. E ainda
se tratava do último assalto ao forte Vaux.
Todo mundo estava certo de que nosso
descanso duraria pouco tempo. De fato, não
passamos da garganta de Chaufour, rece-
bendo trato.

48. - Senti um rude golpe na mão


direita. - 6 de junho de 1916.

A noite trouxe um pouco de sossego. A


floresta inteira cheirava a gás. Pela meia noi-
te houve alarme e severa prontidão. Cada
um ajuntou seus pertences e avante, sob o
ribombo teimoso dos canhões.
Pelas três da manhã atravessamos "o
vale dos mortos". Confiaram-me o III grupo e
naturalmente eu dirigiria minha "bandeirinha"
com o entusiasmo de estilo.
Começou a música tão conhecida: zu-
nido, impacto, explosão. Tosse geral dos ca-
nhões. Estilhaços assobiando em todas as
direções, rentes aos nossos ouvidos.
Éramos uns coitados, sem proteção. A-

179
lém das 10 granadas de mão, levava comigo
todas as espoletas do III grupo.
Devagar vencemos a encosta de Albain,
enquanto a terra tremia sob os tremendos
impactos da artilharia da fortaleza.
Ainda não havíamos alcançado o alto e
por isso não nos podiam atingir os disparos
da infantaria, embora cruzassem aos milha-
res pelo ar.
Nisso uiva uma granada, cai 20 metros à
esquerda e explode. Terrível clarão ilumina
momentaneamente nossa linha. No mesmo
instante senti um rude golpe na mão direita.
Pensei primeiro que se tratasse de uma mera
pancada de algum torrão de terra ou pedra
arremessados pela granada. Depressa notei
que o sangue me descia pelo braço. Ao cla-
rão de um farolete constatei o presente rece-
bido: um estilhaço de granada, enterrado na
polpa da mão direita. Os dedos ficaram logo
duros e a mão inchou fortemente.
Apresentei-me ao guia da Cia., que me
aconselhou procurar imediatamente o posto
de assistência.
Ajudado por um camarada, passei uma
bandagem na mão, do melhor modo possí-
vel.Distribuí minha "reserva de ferro", que se
compunha de conservas e carnes, e tratei de
retirar-me.

180
Atravessei a galope o "vale dos mortos",
sempre sob furioso bombardeio. Subi a en-
costa de Douaumont. Já começava o lusco-
fusco do dia. Vi então uma luva no chão.
Calculei que enfiada em minha mão certa-
mente a protegeria mais. Abaixei-me portan-
to e ia levantá-la. De súbito joguei-a para
longe. Pois estava ocupada por outra mão, e
cheia de sangue.

49. - Alguém me agarra e puxa-


me para dentro.

Estouram outra vez as granadas nesta


altura, impedindo a passagem de reforços. A-
gachei-me quanto pude por entre as ruínas.
Uma lona vermelho-escuro tapava uma
cova onde pensava esconder-me. Alguém
agarrou-me pela perna e puxou-me para
dentro. Era um granadeiro de Hannover. Fra-
ca luz de vela clareava aquela toca.
O granadeiro foi muito amável comigo,
fez-me outra bandagem e deu-me um bom
pedaço de pão, bem besuntado com touci-
nho.
Fique conosco, disse ele; espere passar
essa bagunça!

181
A cada passo rebentavam as granadas
ali por perto e apagavam a luz. De coração
agradeci ao amável companheiro e continuei
meu caminho, quando me senti mais seguro.
Da proximidade do posto de socorro, de pé
sobre uma elevação, olhei mais uma vez pa-
ra trás. Visão indescritível!
Sobre todos os altos dos morros fuma-
ça, chamas. Era a batalha em sua marcha.
Caldeirão em ebulição. O mar de fogo da ar-
tilharia ia jogando suas ondas contra as en-
costas empinadas da morraria. Ia subindo
sempre mais e atirava-se estrondosamente
por sob o chão nu da fortaleza.
Parecia uma maré terrível a lamber os
pés da sombria fortaleza. A terra saltava para
os ares, em forma de altíssimos repuxos. Co-
lunas de fumaça e poeira atiravam-se para o
céu. Eram como árvores gigantescas, som-
brias, surgidas numa rapidez de raio e su-
mindo lentamente.
Horas de cemitério, que em suas som-
bras sepultavam regimentos inteiros. Nesse
inferno batia-se agora o nosso II Regimento.
E eu aqui, protegido e seguro!
Inenarrável sentimento de liberdade, de
redenção invadiu minha alma, agradecidís-
simo a Deus por assim ter disposto as coi-
sas. Só um terço do nosso Regimento voltou

182
para casa.Os outros foram engolidos pelo
redemoinho de fogo e ferro.

50.- Para casa - Para a Alemanha.

6 de junho foi o dia do desastre. Contu-


do eu estava contente, apesar das agudas
dores na mão arrebentada. Pois ao chegar
ao posto de curativo disse o médico chefe,
Dr. Eisenlohn, de Wasserburg (Nota: cidade
vizinha de Gars): "O senhor volta para a ca-
sa"! Para casa! Para Alemanha! Como essas
palavras sacudiram minha alma.
O trem com a cruz vermelha sobre um
fundo branco roda devagar através dos cam-
pos de batalha, ao norte da França, em dire-
ção ao leste.
Vai deslizando para Metz, Diedenhofen.
Meus pensamentos voam contudo para fren-
te.
Eis agora a fronteira alemã. Dou com
uma coisa nova, há muito tempo esquecida.
Passamos por uma cidadezinha alemã do
Palatinado, justamente quando a escola des-
pedia a criançada.
Os alunos estão saindo apressados. Um
"hurra" de cem gargantas de meninos. Boi-

183
nas são agitadas, olhos brilhantes e curiosos
de uma alegre mocidade, eis a primeira sau-
dação em solo alemão.
Mocidade alemã, rapaziada alemã! Não
são assim as crianças na Franca. Vestidas
come bonecas, enfeitadas, pálidas, acanha-
das. E isso não só por causa da miséria e
das tribulações da guerra.
Que diferença! Aqui uma rosa que de-
sabrocha e lá uma geração que está mur-
chando. Aqui rostos infantis, com os grandes
olhos de uma inocência de aveludado hálito.
Lá frutos prematuros que já trazem por den-
tro o gérmen da podridão.
Pelas 5 horas da tarde o trem entrava
em Landau, no Palatinado. Grande multidão
estava presente na estação, que em silen-
ciosa compaixão contemplava os soldados
gravemente feridos, as vítimas estraçalhadas
de Verdun.
Com lágrimas nos olhos via aquela boa
gente desembarcar alguns mortos, pobres
guerreiros que haviam dado o último suspiro
na viagem para a pátria.
Na grande sala de espera houve vivo
reboliço quando um soldado, que parecia
gravemente ferido, levantou-se de repente
avançando contra o povo, com olhos desvai-
rados. Caro custou dominá-lo. O coitado en-

184
louquecera.
Na mesma tarde os feridos foram distri-
buídos pelos vários hospitais.
Eu com 10 companheiros de sofrimentos
fomos parar em Bergzabern. Passei uns be-
los dias na casa de saúde Behret. Notei, po-
rém, que o médico local em função, um velho
médico civil, não sabia como resolver meu
caso. De modo algum queria acreditar no es-
tilhaço enterrado na minha mão.
Por meio do P. Provincial Prechtl, con-
segui minha transferência para Cham,onde
funcionava um hospital de associação em
nossa casa de retiro.
Uma hora após minha chegada, um apa-
relho de Raios-X descobria o mistério. Com
cinco centímetros de cumprimento lá estava
cravado na mão o aço criminoso.
Sem perda de tempo o médico pôs-se a
retirar o intruso, o que não conseguiu após
uma hora de trabalho.
De tarde levou-me para Hamburg, onde
o Dr. Doerfler em menos de 10 minutos li-
vrou-me do estilhaço. Andei mais de três
semanas com ele que era cheio de recortes.
Além das cruciantes dores, essa cir-
cunstância teve uma conseqüência a mais.
Os músculos decepados do dedo polegar,
indicador e médio encolheram-se demais,

185
impossibilitando costurá-los. Desde então
eles ficaram inutilizados.
(Nota: Nosso diarista, terminada a guer-
ra, apresentou-se ao Núncio Eugênio Pacelli
- mais tarde Pio XII - que então residia em
Munique. Já em busca de uma dispensa para
ser ordenado.
No começo o Núncio não lhe fez espe-
ranças, mas depois Roma cedeu. Eram mui-
tos os casos semelhantes, ou piores que es-
te, ocorridos com teólogos).

51. - Pensamentos finais - Lições


da guerra.

Foi assim que escapei do "inferno" de


Verdun. Mas o que é um homem na guerra?
Que sou eu na roda da mais horrível de to-
das as guerras? Uma gota d'água perdida
num oceano agitado de fúrias e forças. Uma
bala, pequena, invisível e já estou fora do
burburinho das massas que se combatem.
Tudo continua na sua marcha,como se
nada houvesse acontecido. Como deve o in-
divíduo sentir-se pobre e coitado!
Ninguém faz falta ou é insubstituível. È a
lição diária da guerra. Entretanto como as

186
nações se julgam fortes!
Rússia, França, Itália! Na realidade não
passam de joguetes usados pelo in-
glês,soberbo e egoísta.
Usa delas para ficarem usadas. Quando
enxergarão isso?
"Gente forte que se tem por impulsora
Não passa de manejada.
Instrumentos bélicos de um que é mais
forte.
É usada, é gastada e dispersada.
O que é mais forte arreda o pé do forte.
Os fortíssimos são peças
de Um que governando tudo,
controla a agitação do mundo.” (Treze
Tílias)

51.1. - A guerra é uma grande revela-


dora.

Revira o turvo pantanal dos povos. Cada


povo mostra seu verdadeiro caráter: assim
são eles, assim são os indivíduos. Sempre
aduladores como políticos, sempre liberais
nos cumprimentos. Mas no horror da guerra
aparece a verdade. Ainda tem valor a afirma-
ção:
"Só o bem é imperecível
E a vitória fica com Deus"
187
51.2.- A guerra é um pregador.

"Gozar agora e sofrer depois"! Pensava-


se assim, mas a declaração de guerra cortou
o "depois" para muita gente. Clara e inexo-
rável a morte apresentou-se a milhares.
Deus Nosso Senhor pregou uma missão pa-
ra os homens.
Os que não quiseram ouvir sermões, ti-
veram que ouvir o impressionante sermão da
morte.
Há quase dois anos o troar dos gigan-
tescos canhões está tocando os sinos da pe-
nitência. Para milhares dobra a finados. Re-
gimentos inteiros sumiram no tufão de aço e
fogo.
E ninguém ainda pode saber quando
chegará seu fim.
"Duro inverno, triste inverno, noite sem
fim! Quando irá amanhecer"? É tremenda a
impressão moral, deixada por um campo de
batalha coberto de cadáveres. Impressionan-
te.
Como é ridícula a prosa fiada dos espíri-
tos liberais que estufam o peito e dizem:
"Nós temos fé nos homens".
Ainda outro dia li: "Se há uma fé capaz
de remover montanhas, é a fé que eu tenho
188
na minha própria força". Eu creio em mim
mesmo e na minha força: dizem eles.
Pobre Alemanha! Depois de 2 anos de
vitórias, se confiares em tua própria forca,
com exclusão da fé em Deus como máxima
potência, não merecerás continuar vencen-
do... Cave Germania Promethei sortem!
A História Universal é o julgamento do
mundo, é o julgamento de Deus. Não esque-
cer: Um exército ímpio não vencerá, não po-
derá vencer.
Sempre constatei que os homens religi-
osos são os melhores soldados. Não são o
“pátria-amadas".
A gente poderá estranhar ver um ho-
mem maduro e forte se recomendar a seu
Anjo da Guarda com uma oração dos tempos
de criança quando é comandado um assalto.
Ou então de terço punho chamar por Nossa
Senhora: "Maria, ajudai-me"!
Contudo essas almas singelas mostra-
ram-se como os soldados mais destemidos e
resistentes nos assaltos.
Falham os agitadores que se gabam
com o poderio da nossa técnica de guerra,
com o brilho do nosso espírito descobridor,
com a grandeza do nosso exército de mi-
lhões de soldados ou com nossos navios,
que voam (alusão Zeppelin) no ar ou desli-

189
zam sobre a água.
Era de coração que os soldados crentes
diziam o que um capelão militar falou na igre-
ja de Santa Radegundis: "Temei aquele que
pode perder o corpo e a alma no inferno. Não
temais aqueles que podem matar o corpo e
nada podem contra a alma".
Dessa convicção nasciam aquele verda-
deiros heróis, sem temor da morte e do dia-
bo. Mas tinham um coração compassivo e
eram respeitosos para com a população civil.
Sabiam ver no inimigo um cristão, que se ati-
rava no fogo por seus companheiros.
Pois não é um heroísmo cristão, o que
não era raro acontecer, quando soldados
moços se ofereciam como voluntários para
patrulhamentos perigosos, a fim de poupar
companheiros mais velhos que em casa ti-
nham de olhar para mulher e filhos.

51.3. - "Não fora o ódio dos homens,


como seria bonito na terra".

É inegável que a guerra torna a gente


selvagem. Mas quando desaparece o cristão,
dando lugar à fera (como lê no livro de Re-
marque "Nada de novo no oeste", ou em
"Assombrações no Homem morto"), então
não passa de uma paródia a frase "Deus co-
190
nosco", que o soldado traz no fecho do cintu-
rão.
Tal paródia chamará a vingança de
Deus sobre a tropa, convertendo-a num sinal
de Caim assassino de seu irmão. E o muito
sangue derramado pedirá ao céu vingança.
Parece que mais tarde a guerra tomou
esse caráter de impiedade e as gigantescas
batalhas, principalmente no oeste, degenera-
ram em legitima selvageria.
Não deixarão de aparecer os frutos a-
margos. Duvido que desse modo possa sur-
gir uma verdadeira paz, uma verdadeira re-
conciliação dos povos.
É muito profundo o ódio entre os comba-
tentes. É alimentado artificialmente na popu-
lação civil, ordinariamente pacífica.
A paz imposta sob a força de circuns-
tâncias não poderá durar muito. Não irá além
de mero armistício.
Descristianização do povo e do exército
só aumentará o mal, tornando-o duradouro.
Sim, não fora o ódio dos homens, seria
bonito na terra. Todos os gigantes não pas-
sam de anões.
Todos os senhores não passam de es-
cravos. Embora procurem o crime terão de
favorecer o direito... Terão de servir à ordem,
mesmo favorecendo a desordem. Pois o bem

191
é eterno, e a Deus pertence a vitória".
(Nota: O diarista termina com versos das
Treze Tílias, que apresento em prosa)

192
APÊNDICE:

Duas cartas do diarista

1) No front, 30-V-19l6

Caros confrades,
Agora adivinhamos: estamos infelizmen-
te no maior matadouro do oeste. É maio,
mas por aqui não se vê nenhum capinzinho
verde. Pois dia e noite as granadas reviram o
terreno.
É incrível quanta munição se gasta. Te-
mos todos os calibres, desde os pequenos
aos maiores.
Nunca vi na guerra quadro tão horrendo.
Por entre ruínas em desordem jazem mortos
aos montões, por toda parte. São jogados
para cá e para lá pelas granadas e oferecem
uma visão horrenda.
O mau cheiro dos cadáveres é para en-
louquecer a gente nos três dias de luta, en-
quanto se espera a rendição.
A incessante explosão das granadas,
somada aos gemidos e gritos dos feridos e
193
moribundos, abala tremendamente os ner-
vos, as energias e a satisfação.
É claro, nos três dias de luta gente só se
alimenta de conservas ou passa sem elas.
Numa palavra: fome e sede atormentam o
pessoal que se parece com cadáveres ambu-
lantes.
Isso não pode continuar por muito tem-
po. Nossas baixas são grandes; mais nume-
rosas do que se sabe em casa. Mesmo es-
capando com saúde, a gente fica abobalha-
da.
Mas vamos mudar de assunto. Tenho
coisa mais agradável para comunicar-lhes.
Provavelmente terei licença nos primeiros
dias de junho. Ó que alegria! A gente vai se
rever na pátria!
Talvez venha também o Fr.Linsmaier e
celebraremos Pentecostes com vocês aí! Por
enquanto é preciso agüentar firme no fogo.
Até a vista, vista cordial.

Servo e confrade de todos Fr. Forster,


C.SS.R.

PS.: O caixotinho com laranjas e três ou


quatro pacotinhos com doces e ovos chega-
ram certinhos. Infelizmente os ovos estavam
estragados. Fr. Forster, C.SS.R.

194
(Nota do tradutor: Quando nosso diarista
escreveu esta carta, já tinha tombado morto
o nosso Fr. Linsmaier (+ 26 de maio de
1916). A licença não foi dada, a não ser pelo
ferimento na batalha no dia 6 de junho).

2) Bergzabern, 17 de junho de
1916

Muito querido Hoegerle,


Olhe, preste atenção! Pois vai uma. Mi-
nha patinha direita está emperrada com um
bode e toda estraçalhada pelo estilhaço da
granada que nela penetrou.
Foi no dia 6 de junho de madrugada, às
3 horas, quando passávamos o afamado "va-
le dos mortos", rumo às nossas posições.
Pois no dia 7 tínhamos que assaltar.
Nomearam-me guia de meio grupo do III
grupo, porque o guia efetivo, sr. tenente N. à
tarde, na véspera, adoecera "de repente ".
Queda para tuberculose pulmonar. Voltara
para a retaguarda.
Eu estava ufano de meu grupinho e na-
turalmente levei meus "homens" com entusi-
asmo para o matadouro.
Não foram muitos os que sobraram. E já
195
começa: bum, bum, tchim, cratsch. Você já
conhece essa "encantadora" melodia, que
também é tremenda.
Deu tosse braba em todos os canhões.
E nós, pobres diabos! Não havia guarda-
chuva contra essa chuva de ferro... A des-
graça tem pressa.
Não tardou e o ferro traiçoeiro me atin-
giu. Um estilhaço de 6 centímetros de tama-
nho entrou-me na polpa da mão direita, cor-
tou os tendões e nervos dos três primeiros
dedos. Penetrou e aí ficou encravado.
A mão inchou totalmente, tal como uma
broa a vapor da Baixa Baviera. Os dedos fi-
caram mortos. Não sei em que vai dar isso.
Espero que não acabe "numa capacidade
para retornar ao front".
O velho médico daqui levanta os om-
bros, quer poupar-me dores ao que parece.
Não sabe como resolver o meu caso. Eu
precisava de um aparelho de Raios-X, disse-
me outro dia.
Espero que nosso P. Provincial Prechtl
consiga minha remoção para Cham. Que a-
legria então a minha!
Nosso estudantado agora está fora de
combate na frente de Verdun. Que perda ir-
reparável foi a morte do nosso Fr. Linsmaier!
Nós três estamos contentes por ter fica-

196
do só nisso. Por hoje saudações cordiais e
lentas melhoras.
Teu camarada e companheiro de sofri-
mentos.

Fr. Forster, C.SS.R.

(Nota do tradutor: Nosso diarista refere-


se a "três”, incluindo o Fr. Sepp e o en-
dereçado Fr. Hoegerle, que estava em trata-
mento num hospital. Fr. Hoegerle voltou são
e salvo e agora que escrevo, março de 1965,
vive na Baviera, embora muito adoentado.
Foi um grande missionário, muito es-
timado pelo povo. Era do curso do Fr. Forster
e pelejou também na Servia, onde certa oca-
sião serviu de intérprete para um pope. Em
grego, esse Pope reclamava, perante um ca-
pitão alemão, contra soldados que lhe havi-
am roubado um galo.)

Fim

197

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