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Ela tem o poder de transformar a história numa deliciosa narrativa literária.

Aclamada pela
crítica do mundo inteiro, e festejada por leitores sempre ávidos de calor e emoção, a
americana Barbara Tuchman (1912-1989) preferiu ignorar o arquétipo do ’scholar’
superando a armadilha das teses pretensiosas para escrever corn o coração na frente do
cérebro. Em ”Canhões de Agosto”, seu único livro inédito no Brasil sobre os primeiros dias
da Guerra Mundial iniciada em 1914, ela consagra o princípio que sempre defendeu como
historiadora só é possível escrever bem sobre qualquer assunto se você estiver
absolutamente apaixonado por ele.

Na verdade, foi mesmo por paixão que Barbara Tuchman, formada como pesquisadora e
corn uma experiência notável no jornalismo, se tornou uma historiadora. Amante dos
detalhes e fascinada pelos bastidores dos grandes acontecimentos políticos, ela mergulhou
em centenas de entrevistas e em arquivos empoeirados para deles extrair análises originais
e sempre intrigantes. corn profundidade e inteligência, Barbara Tuchman traçou um painel
formidável dos momentos que marcaram o nosso tempo.

Vencedora de dois Prêmios Pullitzer - um deles em


1963, por ”Canhões de Agosto”
-, Barbara nunca esqueceu de que, por trás dos soldados, dos generais e dos estadistas,
estavam homens - os homens e suas idiossincrasias, seus egoísmos e sua generosidade.
Jamais a historiadora pretendeu interpretar seus principais personagens à luz da
psicanáliseou estaria, como disse certa vez, escrevendo má ficção. Ela buscou, sim, como
padrão de pesquisa e conduta, as fontes vitais dos acontecimentos, os fatos.

Em ”Canhões de Agosto”, Tuchman alterna anedotas impagáveis sobre figuras históricas ao


diagnóstico preciso de estratégias políticas, transformando o conflito num genial
quebra-cabeças sobre os primeiros trinta dias de guerra.

Cenas de batalha, problemas estratégicos, ascensão e queda de personalidades poderosas.


Este é o cenário de ”Canhões de Agosto”, que envolve o leitor desde a descoberta dos
planos políticos e militares das potências européias, até a invasão da Bélgica pelos alemães.
A partir daí, Tuchman mergulha v na memória das batalhas do primeiro mês do conflito - o
período que decidiu os rumos da guerra e os termos da paz.

Ao construir um retrato brilhante de um dos momentos mais cruciais deste século,


”Canhões de Agosto” se transforma num dos clássicos da história de nosso tempo.

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Barbara W. Tuchman

CANHÕES

DE AGOSTO
Prêmio Pulitzer, 1963

&
Barbara W. Tuchman

CANHÕES

DE AGOSTO
Prêmio Pulitzer, 1963

Tradução de Eliana Sabino

D I T O R A f/dT OBJ

ETIVA
© 1962 by Barbara Tuchman

Título Original: The Guns of August

Direitos em língua portuguesa adquiridos à Russel and Volkening Inc. por EDITORA OBJETIVA LTDA.,
Rua Cosme Velho, 103 - Rio de Janeiro RJ - 22241-090 - Tel.: (021) 205-7824 - Fax.: (021) 225-8150

Capa:

Luciana Mello

Revisão:

Sônia Maria de Oliveira Lima

Henrique Tarnapolsky

1994

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”O coração humano é o início e o fim de todas as questões relativas à guerra.”

MARECHAL DE SAXE, Reveries on the Arí of War

(Devaneios sobre a arte da guerra), 1732

”Os terríveis Sés se multiplicam.”

WINSTON CHURCHILL, The World Crisis

(A crise mundial), Voili, Cap. XI


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Sumário
! Nota da Autora IX

Nota da Tradutora XI

1 - Um Funeral l

OS PLANOS

2 - ”Que o Ultimo Homem à Direita

Esbarre no Canal corn sua Manga” 21

3 - A Sombra de Sedan 33

4 - ”Um Único Soldado Inglês...” 51

5 - O Rolo Compressor Russo 66

A DEFLAGRAÇÃO

6 - l^deAgosto: Berlim 83

7 - 12de Agosto: Paris e Londres 98

8 - Ultimato em Bruxelas 114

9 - ”Em Casa Antes que as Folhas Caiam” 129

A BATALHA \^j

j|0 - ”Goeben... Um Inimigo então Fugindo” 157

jfl - Liège e Alsácia ’.’. 185

ff 2 - A FEB no Continente 224

||3 - ”Os Cossacos Estão Chegando!” 238

||4- SambreetMeuse 270

15 - A Derrocada: a Lorena, os Ardennes, Charleroi, Mons 300

16 - Tannenberg 336

17 - As Chamas de Louvain 359

18 - Água Azul, o Bloqueio e o Grande Neutro 376

19 - A Retirada 395

20 - A Frente é Paris 431


21 - A Manobra de VonKluck 456

22 - ”Cavalheiros, Lutaremos no Marne” 480

Depois 505

MAPAS

OMediterrâneo 166

O Ataque a Liège 188

A Batalha de Gumbinnen e a Transferência

do Oitavo Exército 254

A Batalha das Fronteiras, 20-23 de Agosto 304

A Batalha deTannenberg 346

A Retirada, 25 de Agosto a 1^ de Setembro 422

Manobra de VonKluck 476

A Véspera do Marne, 5 de Setembro , 496

FOTOS

O General Joffre corn o General

de Castelnau e o General Pau 61

Sir Henry Wilson Conversando corn

Foch e o Coronel Huguet 62

O General Sukhomlinov corn Oficiais

do Estado-Maior 85

O Czar e o Grão-Duque Nicholas 86

O Kaiser e VonMoltke 191

O Goeben 192

Almirante Souchon 192

Almirante Sir Berkeley Mime 193

Rei Albert 194


Marechal-de-Campo Sir John French 263

O Príncipe Ruppercht e o Kaiser 264

General Von François ..... i 285

Coronel Hoffmann 286

Oficiais da Cavalaria Alemã em Bruxelas 467

General Lanrezac 468

General Galliene 468

Joffre, Poincaré, o Rei George V, Foch e Haig 469

General Von Kluck -. 470


Nota da Autora

Este livro tem uma dívida fundamental para corn o Sr. Cecil Scott, da The Macmillan Company
(Nova York); seus conselhos, estímulo e conhecimento do assunto foram essenciais e constituíram
um apoio inabalável do início ao fim. Tive também a sorte de contar corn a colaboração crítica do
Sr. Denning Miller, que esclareceu vários problemas de texto e interpretação, tornando este livro
melhor. Sua ajuda merece a minha perene gratidão.

Gostaria também de exprimir minha admiração pelo acervo inigualável da New York Public
Library, juntamente corn a minha esperança de que algum dia, de alguma maneira, se encontre, na
cidade onde nasci1, uma forma de oferecer aos pesquisadores recursos que se equiparem à
excelência do acervo disponível. Agradeço também à New York Society Library pela constante
hospitalidade de suas estantes e pelo refugio de um lugar onde escrever; a Sra. Agnes F. Peterson,
da Hoover Library de Sanford, pelo empréstimo do ProcesVerbaux de Briey e por descobrir as
respostas a muitas perguntas; a Srta. R. E. B. Goombe, do Imperial War Museum, em Londres, por
muitas das ilustrações; à equipe da Bibliothèque de Documentation Internationale Contemporaine,
em Paris, pelo material de pesquisa, e ao Sr. Henry Sachs, da American Ordnance
Association,r>$\a assessoria técnica e por suplementar meus parcos conhecin(entos da língua
alemã.

Ao leitor, devo explicar que a omissão da Austria-Hungria e da Sérvia, assim como das frentes
russo-austríaca e servo-austríaca, não foi inteiramente arbitrária. O interminável problema dos
Bálcãs destaca-se naturalmente do resto da guerra; além disso, as operações na frente austríaca
durante os primeiros trinta e um dias foram puramente preliminares e não chegaram a um clímax
que afetasse a guerra como um todo, até a Batalha de Lemberg contra os russos e a Batalha de Drina
contra os sérvios; essas batalhas tiveram lugar em 8 e 17 de setembro, fora do meu limite
cronológico.

l A autora é natural da cidade de Nova York, onde nasceu em 30 de janeiro de 1912 e veio a falecer em 6 de fevereiro de 1989. (N. da T.)
Depois de um período de imersão total em memórias militares, eu tinha esperanças de poder
dispensar a numeração das unidades militares em algarismos romanos, que fazem um texto parecer
tão pesado; mas a convenção mostrou-se mais forte do que minhas boas intenções. Nada posso fazer
quanto aos algarismos romanos, que parecem estar inseparavelmente ligados às unidades militares,
mas posso oferecer ao leitor uma REGRA SOBRE ESQUERDA E DIREITA que ser-lhe-á muito
útil: mesmo quando um exército está batendo em retirada na direção oposta à que tinha ao avançar,
considera-se que ele mantém a mesma posição de antes, isto é, sua esquerda e sua direita continuam
as mesmas de quando ele avançava. Além disso, considera-se que um rio está de costas para a
nascente e de frente para a sua foz.

Nas citações, tentei evitar atribuições espontâneas ou aquele estilo ”ele deve ter...” dos escritos
históricos: ”Contemplando o litoral da França desaparecer sob o sol poente, Napoleão deve ter
pensado no distante...”. Todos os pensamentos, sentimentos e estados de espírito - públicos ou
particulares - que se encontram nas páginas seguintes, assim como as condições meteorológicas,
têm uma base documental.

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Nota da Tradutora

Na hierarquia - tanto civil quanto militar - inglesa, muitos cargos não têm correspondência em
nosso país, não havendo, portanto, uma tradução consagrada em português. Nesses casos, achei por
bem adotar, sempre que possível, a tradução literal. É o caso, por exemplo, de War Office, que
traduzi para ”Departamento de Guerra”, e de First Lord of the Admiralty, que seria o equivalente ao
nosso Ministro da Marinha, e que traduzi literalmente por ”Chefe do Almirantado”. Traduzi,
outrossim, por ”Secretário” o posto que no Brasil corresponde a Ministro de Estado, assim como
por ”Gabinete” a palavra Cabinet, que se refere ao Conselho de Ministros. Existe ainda, na
Inglaterra, o cargo de First Sea Lord, que esta obra menciona de passagem e não oferece dados
suficientes para uma tradução explicativa, sabendo-se apenas que os Sea Lords são os pares do
Almirantado; para evitar confusão corn o cargo de Chefe do Almirantado - First Lord ofthe
Admiralty -, preferi deixar no original. Deixei no original também os nomes de alguns regimentos
cuja tradução, necessariamente literal, não faria sentido em português. ;,
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Um Funeral

Tao deslumbrante era o espetáculo dos nove reis seguindo o féretro de Edward VII da Inglaterra, na
manhã de maio de 1910, que a multidão enlutada e silenciosa não conseguia conter exclamações de
admiração. Vestindo escarlate, azul, verde e roxo, os soberanos atravessaram os portões do palácio
em filas de três, corn seus capacetes emplumados, os galões dourados, as faixas carmesins e as
condecorações preciosas reluzindo ao sol. Atrás deles vinham cinco herdeiros secundários, mais 40
altezas imperiais ou reais, sete rainhas
- quatro rainhas-mães e três reinantes -• e um punhado de enviados especiais de países
não-coroados. Juntos, representavam 70 nações, no maior conjunto de realeza e hierarquia jamais
reunido num único lugar e, dessa espécie, o último. A voz abafada do Big Ben anunciava as nove
horas quando o cortejo deixava o palácio, mas no relógio da História o dia terminava e o sol do
Velho Mundo morria corn um último clarão de esplendor, para nunca mais nascer.

No centro da primeira fila cavalgava o novo rei, George V, ladeado à esquerda pelo Duque de
Connaught, único irmão sobrevivente do falecido rei, e à direita por um personagem a quem,
segundo The Times, ”cabe o primeiro lugar entre todos os estrangeiros presentes”, e que ”mesmo
corn as relações bastante estremecidas, nunca perdeu sua popularidade entre nós”: William H,
Imperador da Alemanha. Montando um cavalo cinzento, usando o uniforme
escarlatédeumMarechalde-Campo inglês e empunhando o bastão desse posto, o Kaiser mostrava,
por trás do famoso bigode voltado para cima, uma expressão ”grave, quase ao ponto da severidade”.
Suas cartas nos dão alguns indícios das várias emoções que fervilhavam em seu peito sensível:
”Tenho orgulho em chamar de lar este lugar e de ser um membro desta í|amília real”, ele escreveu
para casa, depois de passar a noite nos antigos Aposentos de sua mãe no Castelo de Windsor.

Os sentimentos e a nostalgia despertados por essas ocasiões melancólicas junto a seus parentes
ingleses lutavam dentro dele contra o orgulho da sua supremacia entre os potentados ali reunidos e
contra o feroz alívio por seu tio ter desaparecido do cenário europeu. Ele viera enterrar Edward, o
homem que lhe trouxera infortúnio;
Edward, que ele considerava o arquiconspirador do isolamento da Alemanha; Edward, irmão de sua
mãe, a quem ele não conseguia amedrontar ou impressionar, e cuja figura obesa lançava uma
sombra entre a Alemanha e o sol.

- Ele é Satã. Vocês não podem imaginar que demônio ele é! Esse veredito, lançado pelo Kaiser num
jantar em Berlim em

1907 diante de 300 comensais, foi provocado por uma das viagens de Edward pelo continente
europeu corn a óbvia intenção de prejudicar a Alemanha. Por pura provocação ele passara uma
semana em Paris, visitara sem o menor motivo o Rei da Espanha (que acabara de se casar corn a
sobrinha) e finalmente procurara o Rei da Itália corn a clara intenção de convencê-lo a retirar-se da
Tríplice Aliança corn a Alemanha e a Áustria. O Kaiser, possuidor da língua menos inibida da
Europa, deixara-se tomar por um frenesi que terminara em outro daqueles comentários que nos
últimos 20 anos de seu reinado castigavam periodicamente os nervos dos diplomatas.

Felizmente o Conspirador agora estava morto, substituído por George, que, como o Kaiser dissera a
Theodore Roosevelt alguns dias antes do funeral, era ”um ótimo garoto” (de 45 anos, seis menos
que o Kaiser).

- Ele é um inglês perfeito e odeia todos os estrangeiros, mas não me importo, contanto que não
odeie os alemães mais do que odeia os outros.

Ao lado de George, William agora cavalgava cheio de confiança, fazendo continência ao passar
pela bandeira do l- Regimento dos Dragões Reais, do qual era coronel honorário. Certa vez ele
distribuíra fotos suas usando o uniforme dos Dragões, corn a profética inscrição acima da sua
assinatura: ”Espero o meu momento.” Hoje seu momento chegara: ele era o maior da Europa.

Atrás dele vinham os dois irmãos da viúva Rainha Alexandra


- o Rei Frederick da Dinamarca e o Rei George das Hellenes; o sobrinho dela, o Rei Haakon da
Noruega; e três reis que perderiam seus tronos: Alfonso da Espanha, Manuel de Portugal e, usando
um turbante de seda, o Rei Ferdinand da Bulgária, que irritava os outros soberanos denominando-se
”Czar” e guardava num baú os paramentos de gala de um Imperador bizantino, adquiridos numa
loja de artigos teatrais, para o dia em que ele reunisse os domínios bizantinos sob seu cetro.

Embevecidos por aqueles ”príncipes esplendidamente montados”, como o The Times os qualificou,
poucos observadores tiveram
olhos para o nono rei, o único entre eles que viria a alcançar a grandeza. Apesar de sua grande
estatura e sua destreza em cavalgar, Albert, Rei dos belgas, que não apreciava a pompa do
cerimonial real, conseguia parecer ao mesmo tempo embaraçado e distraído em meio aos outros.
Tjinha então 35 anos, e mal completara um ano no trono. Anos depois’, quando seu rosto se tornou
conhecido mundialmente como símbolo de heroísmo e tragédia, ele ainda mantinha aquele ar
distraído, como se estivesse pensando em outra coisa.

Alto, corpulento e espartilhado, corn plumas verdes ondulando no capacete, o Arquiduque Franz
Ferdinand da Áustria, herdeiro do velho Imperador Franz Josef e futuro agente da tragédia,
cavalgava à direita de Albert, e à sua esquerda ia outro príncipe-herdeiro que nunca alcançaria o
trono: o Príncipe Yussuf, herdeiro do Sultão da Turquia. Atrás dos reis vinham as altezas reais: o
Príncipe Fushimi, irmão do Imperador do Japão; o Grão-Duque Michael, irmão do Czar da Rússia;
trajado de azul brilhante corn plumas verdes, o Duque de Aosta, irmão do Rei da Itália; o Príncipe
Carl, irmão do Rei da Suécia; o Príncipe Henry, consorte da Rainha da Holanda, e os
Príncipes-Herdeiros da Sérvia, da Rumânia e de Montenegro. O último, Príncipe Danilo, ”um rapaz
amável e extremamente bonito, de modos impecáveis”, parecia-se corn o amante da Viúva Alegre
em algo mais que o nome, pois, para consternação dos encarregados do cerimonial, chegara na
véspera acompanhado por uma ”encantadora jovem de grandes atrativos pessoais”, apresentada por
ele como uma dama-dehonra de sua esposa que vinha fazer compras em Londres.

Seguia-se um regimento da realeza menos graduada: os grãoduques de Mecklenburg-Schwerin,


Mecklenburg-Strelizts, Schleswig-Holstein, Waldeck-Pyrmont; de Coburg, Saxe-Coburg e
Saxe-Coburg Gotha; da Saxônia, Hesse, Württemberg, Baden; e da Bavária, cujo governante, o
Príncipe-Herdeiro-Rupprecht, em breve chefiaria um batalhão alemão na guerra. Havia um Príncipe
do Sião, um Príncipe da Pérsia, cinco príncipes da antiga casa real de Orleans, um irmão do
Quediva2 do Egito usando um fez corn borla dourada, o Príncipe Tsia-tao da China, que usava uma
túnica azul-clara bordada e cuja dinastia secular duraria mais dois anos, e o irmão do Kaiser, o
Príncipe Henry da Prússia, representando a Marinha alemã, da qual era Comandante-em-Chefe.

2 Quediva: título do antigo vice-rei do Egito, quando esse país era tributário da Turquia. (N. da T.)
Em meio a toda essa magnificência, havia três cavalheiros em trajes civis: Monsieur Caston-Carlin
da Suíça, Monsieur Pichon, Ministro das Relações Exteriores da França, e o ex-Presidente Theodore
Roosevelt, enviado especial dos Estados Unidos.

Edward, objeto dessa reunião sem precedentes, costumava ser chamado ”o tio da Europa”, um título
que, no tocante às casas reinantes da Europa, poderia ser tomado literalmente: ele era tio não apenas
do Kaiser Wilhelm mas também do Czar Nicholas II, através da irmã de sua esposa, a
Imperatriz-Mãe Marie da Rússia. Sua sobrinha Alix era a Czarina, sua filha Maud era Rainha da
Noruega; outra sobrinha, Ena, era Rainha da Espanha e uma terceira sobrinha, Marie, logo seria
Rainha da Rumânia. A família dinamarquesa de sua esposa, além de ocupar o trono da Dinamarca,
produzira o Czar da Rússia e os reis da Grécia e da Noruega. Outros parentes, descendentes em
vários graus dos nove filhos e filhas da Rainha Victoria, estavam espalhados em abundância pelas
cortes da Europa.

No entanto, nem o sentimento de família, nem o choque da morte súbita de Edward - pois para a
população ele um dia estava doente, no outro dia estava morto - explicavam o número inesperado
de condolências por ocasião do seu falecimento. Era, na verdade, um tributo às qualidades de
Edward como um rei sociável, qualidades essas que tinham se mostrado preciosas para o país. Nos’
nove curtos anos de seu reinado, o orgulhoso isolamento da Inglaterra dera lugar, sob pressão, a
uma série de ”entendimentos” ou ligações
- não exatamente alianças, pois a Inglaterra não apreciava o definitivo - corn dois antigos inimigos,
a França e a Rússia, e corn um novo poder em emergência, o Japão. A conseqüente alteração de
equilíbrio se fez sentir em todo o mundo e afetou as relações entre todos os países. Embora Edward
não tivesse decidido ou influenciado as diretrizes políticas do seu país, sua diplomacia pessoal
ajudou a possibilitar essa mudança.

Quando, ainda criança, ele foi visitar a França, declarou a Napoleão: ’j

- O senhor tem um belo país. Eu gostaria de ser seu filho.

Essa preferência pelas coisas francesas, em contraste-ou talvez em protesto - à predileção de sua
mãe pelas coisas alemãs, subsistiu e foi colocada em prática depois da morte dela; quando a
Inglaterra, cada vez mais preocupada corn o desafio implícito no Programa Naval de 1900 da
Alemanha, decidiu encerrar as velhas rixas corn a França, os talentos de Edward como Rói
Charmeur aplainaram o
caminho. Em 1903 ele foi a Paris, surdo às opiniões de que uma visita oficial encontraria uma
acolhida fria. À sua chegada, a multidão mostrou-se distante e silenciosa, a não ser por alguns gritos
de provocação: ”Vivent lês Boers!” e ”Vive Fashoda!”, que o Rei ignorou. Um assessbr
murrriurou, preocupado:

-©s4ránceses não gostam de nós.

Ele respondeu: . -Por que haveriam de gostar?

E continuou a sorrir e fazer mesuras em sua carruagem. ••*-• Durante quatro dias ele compareceu a
cerimônias, passou em revista as tropas em Vincennes, foi às corridas em Longchamps, a uma noite
de gala no Opera, um banquete oficial no Elysée, um almoço no Quai d’Orsay; no teatro,
transformou a frieza do público em sorrisos ao misturar-se à platéia no saguão durante o intervalo e
dirigir galantes elogios em francês a uma atriz famosa. Em toda parte fez discursos simpáticos e
elogiosos, falando de sua amizade e admiração pelos franceses, suas ”gloriosas tradições” e sua
”linda cidade”, corn a qual ele confessou ter uma ligação ”fortalecida por muitas lembranças
felizes”; falou do seu ”prazer sincero” na visita e da certeza de que os desentendimentos antigos
estivessem ”encerrados e esquecidos”; estava convencido de que, para a sua prosperidade mútua, a
França e a Inglaterra eram interdependentes; a amizade entre as duas nações constituía a sua
”constante preocupação”. Quando partiu, a multidão passara a gritar ”Vive notre rói!”. Um
diplomata belga relatou: ”Raramente se viu uma mudança de atitude tão cornpleta quanto a que
ocorreu neste país. Ele conquistou o coração de todos os franceses”.

Já o embaixador alemão considerou a visita doTlei ”uma coisa muito estranha” e insinuou que a
aproximação anglo-francesa seria o resultado de ”uma aversão generalizada à Alemanha”. Em
menos de um ano, depois de muito trabalho por parte dos ministros para resolverem as disputas
pendentes, a aproximação transformou-se na Entente anglo-francesa, assinada em abril de 1904.

A Alemanha também poderia ter tido sua entente inglesa, se seus líderes, suspeitando dos motivos
ingleses, não tivessem rechaçado as propostas do Secretário Colonial, Joseph Chamberlain, em
1899 e novamente em 1901. Nem mesmo o misterioso Holstein, que dirigia por baixo do pano as
relações exteriores alemãs, nem o elegante e erudito Chanceler, Príncipe Bülow, nem o próprio
Kaiser, sabiam exatamente do que suspeitavam em relação à Inglaterra, mas tinham
a convicção de que se tratava de alguma coisa pérfida. O Kaiser sempre desejara um entendimento
corn a Inglaterra, se pudesse obtêlo sem parecer desejá-lo. Uma única vez, afetado pelo ambiente
inglês e pelo sentimento de família no funeral da Rainha Victoria, ele se permitira confessar esse
desejo a Edward. ”Nem mesmo um rato poderia mover-se na Europa sem a nossa permissão” -
assim ele visualizava uma aliança anglo-alemã. Mas no instante em que os ingleses mostravam
indícios de desejar a mesma coisa, ele e seus ministros desconversavam, suspeitando de algum
truque. Temendo serem enganados à mesa de conferências, eles preferiam manter-se distantes e
depender de sua Marinha cada vez mais forte para intimidar os ingleses e obrigá-los a um acordo.

Bismarck aconselhara a Alemanha a contentar-se corn o poderio em terra, mas seus sucessores não
eram, separada ou coletivamente, Bismarcks. Ele perseguira corn persistência objetivos bem
nítidos; os outros tateavam por horizontes mais amplos, sem uma idéia clara do que desejavam.
Holstein era um Maquiavel sem teorias, que agia baseado num único princípio: suspeitar de todos.
Von Bülow não tinha princípios e era escorregadio - seu colega, o Almirante Tirpitz, lamentando
esse fato, dizia que, comparada a ele, uma enguia era uma sanguessuga. O Kaiser, inconstante e
mutável, movido sempre por novas inspirações, tinha a cada hora um objetivo diferente, e praticava
a diplomacia como um exercício de movimento perpétuo.

Nenhum deles acreditava que a Inglaterra chegaria a um acordo corn a França, e Holstein
descartava todos os avisos dessa possibilidade como ”ingênuos” - até mesmo uma advertência
muito explícita por parte do Barão Eckhardstein, conselheiro da Embaixada alemã em Londres.
Durante um jantar na Marlborough House em
1902, Eckhardstein observara Cambon, o embaixador francês, desaparecer no salão de bilhar corn
Chamberlain, onde passaram 28 minutos em ”animada conversa”, da qual as únicas palavras que ele
conseguiu escutar (as memórias do barão não esclarecem se a porta estava aberta ou se ele escutou
pela fechadura) foram ”Egito” e ”Marrocos”. Mais tarde ele foi convocado ao escritório do Rei,
onde Edward ofereceu-lhe um charuto Uppmann 1888 e disse-lhe que a Inglaterra ia conseguir um
acordo corn a França a respeito de todas as disputas.

Quando a Entente tornou-se um fato, a raiva de William foi enorme. Por trás daquela aliança, e
ainda mais exasperante para ele, estava o triunfo de Edward em Paris. O reise-Kaiser, como ele era
conhecido por causa de suas viagens freqüentes, encontrava certo consolo nas cerimônias de entrada
nas capitais estrangeiras, e aquela que ele desejava visitar mais que todas era Paris, a inatingível.
Ele estivera em toda parte, até mesmo em Jerusalém, onde a Porta de Jaffa tivera que ser) cortada
para permitir sua entrada a cavalo; mas Paris, o centro^derado que era belo, tudo que era desejável,
tudo que Berlim não era, permanecia fechada para ele. Queria a aclamação dos parisienses e ganhar
o Grand Cordon da Legião de Honra, e por duas vezes fez corn que os franceses soubessem desse
desejo imperial; jamais recebeu um convite. Ele podia entrar na Alsácia e fazer discursos
glorificando a vitória de 1870, podia liderar desfiles através do Metz na Lorena, mas talvez seja a
mais triste história do destino dos reis o fato de que o Kaiser tenha vivido 82 anos e morrido sem ter
visto Paris.

A inveja das nações mais antigas o torturava; sentia-se desprestigiado. Reclamou comTheodore
Rooseveltque a nobreza inglesa, em suas viagens pelo continente europeu, nunca visitava Berlim
mas sempre ia a Paris. Ao Rei da Itália ele declarou:

- Durante todos os longos anos do meu reinado, os meus colegas, monarcas da Europa, não
prestaram atenção ao que eu tenho a dizer. Breve, corn meu grande poder naval para endossar
minhas palavras, eles terão mais respeito.

Os mesmos sentimentos dominavam todo o seu país; como o seu imperador, a Alemanha sofria de
uma terrível necessidade de reconhecimento. Cheios de energia e ambição, desejosos de poder,
nutridos por Nietzsche e Treitschke, os alemães viam-se corn o direito de reinar, e se sentiam
prejudicados pelo mundo que não lhes reconhecia esse direito. Bernhardi, o porta-voz do
militarismo, escreveu: ”Precisamos assegurar à nacionalidade alemã e ao es|*írrto alemão em todo o
globo o alto prestígio que lhes é devido... e até agora lhes foi negado.” Ele advogava um único
método para chegarem a esse objetivo; porém alguns Bernhardis menos importantes, do Kaiser para
baixo, procuravam obter esse ansiado prestígio por meio de ameaças e demonstrações de poder.
Sacudiam o ”punho armado”, exigiam seu ”lugar ao sol” e proclamavam as virtudes da espada em
hinos de louvor a coisas conto ”sangue e ferro” e ”a reluzente armadura”.

Na prática alemã, o preceito corrente do Sr. Roosevelt para a convivência corn os vizinhos foi
teutonizado para: ”Falar alto e brandir uma arma das grandes”3. Quando eles a brandiram, quando o

3 O preceito de Roosevelt era ”Fale baixinho e carregue um porrete grande”. (N. da T.)
Kaiser exortou as suas tropas de partida para a Revolta dos Boxers4 que se comportassem como os
hunos de Átila (a escolha dos hunos como exemplo foi dele próprio), quando as Sociedades
Pan-Germânicas e as Ligas Navais multiplicaram-se e passaram a reunir-se em congressos para
exigir que as outras nações reconhecessem seus ”objetivos lícitos” de expansão, as outras nações
responderam corn alianças, e quando elas assim fizeram a Alemanha gritou Einkreisung!
- Cerco! O refrão Deutschland ganzlich einzukreisen se fez ouvir durante toda a década.

As visitas de Edward ao estrangeiro continuavam - Roma, Viena, Lisboa, Madri - e não apenas às
casas reais. Todos os anos ele fazia uma estação de águas em Marienbad, onde trocava opiniões
corn o Tigre da França, nascido no mesmo ano que ele, e que fora Primeiro-Ministro em quatro dos
anos em que Edward fora rei. Monsieur Clemenceau compartilhava da opinião de Napoleão de que
a Prússia ”nascera de uma bala de canhão”, e via essa bala vindo em sua direção. Ele agia,
planejava e conspirava à sombra de uma idéia dominante: ”a ânsia da Alemanha pelo poder (...)
fixou como sua diretriz o extermínio da França”. Declarou a Edward que quando chegasse o
momento em que a França precisasse de ajuda, o poder marítimo da Inglaterra não seria suficiente,
e lembrou-lhe que Napoleão foi derrotado em Waterloo, não em Trafalgar. O Rei, cujas duas
paixões na vida eram os trajes corretos e as companhias excêntricas, esquecia a primeira e admirava
Monsieur Clemenceau.

Em 1908, para desagrado de seus súditos, Edward fez uma visita oficial ao Czar em Reval, a bordo
do iate imperial. Os imperíalistas ingleses consideravam a Rússia o antigo inimigo da Criméia, e
mais recentemente uma ameaça pairando sobre a índia, ao passo que para os Liberais e os
Trabalhistas a Rússia era a terra do cnute5, do pogrom6 e dos revolucionários massacrados em
1905, e o Czar, segundo o Sr. Ramsay Macdonald, era ”um assassino comum”. A aversão era
recíproca: a Rússia odiava a Inglaterra por sua aliança corn o Japão e pelo papel que ela
desempenhara ao frustrar a ambição histórica da Rússia pela posse de Constantínopla e dos
Estreitos. Nicholas II certa vez

4 Revolta dos Boxers: a fracassada rebelião, em 1900, dos membros de uma sociedade secreta chinesa contra as
potências estrangeiras na China. (N. da T.)

5 Cnute: espécie de chicote usado na Rússia e a punição por meio desse instrumento. (N. da T.)

6 Pogrom (do russo ”devastação”): movimento de violência contra os judeus na Rússia czarísta. (N. da T.)
3t§

mesclou dois preconceitos favoritos numa declaração simples: ”O inglês é um zhid (judeu)”.

Mas os antigos antagonismos não tinham a força das novas pressões e, por insistência dos franceses,
ansiosos para que seus dois aliado^ chegassem a um acordo, em 1907 foi assinada uma Convenção
Anglo-Russa. Para dissipar qualquer desconfiança que ainda perdurasse, sentia-se ser necessário um
toque pessoal de amizade por parte do Rei, de modo que Edward embarcou para Reval. Lá, ele
conversou longamente corn o Ministro das Relações Exteriores russo, Isvolsky, e dançou a valsa
”Viúva Alegre” corn a Czarina, corn o objetivo de fazer corn que ela risse - o primeiro homem a
conseguir tal façanha desde que a pobre mulher colocara a coroa dos Romanovs. Esse não era um
feito tão frívolo quanto se poderia pensar, pois, embora não se pudesse dizer que o Czar governava
a Rússia num sentido ativo, ele governava como um autocrata e era por sua vez governado pela
esposa, dotada de vontade forte e inteligência fraca. Linda, histérica e dominada por suspeitas
mórbidas, ela detestava todo mundo exceto sua família mais próxima e uma série de charlatães
fanáticos ou lunáticos que traziam consolo à sua alma desesperada. O Czar, que nem era
bem-dotado mentalmente, nem muito bem-educado, tinha, na opinião do Kaiser, capacidade apenas
para viver na roça e plantar nabos.

O Kaiser considerava o Czar sujeito à sua esfera de influência, e tentou, através de esquemas
complicados, convencê-lo a abandonar a aliança corn a França, aliança essa que era conseqüência
da tolice do próprio William. Ele descartara a máxima ”Mantenha amizade corn a Rússia” e o
Tratado de Resseguro corn aquele país, ambos de Bismarck, ao afastar o próprio Bismarck, na
primeira^e maior tolice de seu reinado. O Czar naquela época, Alexander in, de estatura elevada e
temperamento sério, prontamente fez meia-volta e em 1892 entrou em acordo corn a França
republicana, mesmo ao custo de ter que ficar em posição de sentido ao ouvir a Marselhesa. Além
disso, esnobava William, a quem considerava ”un garçon mal eleve”, e só falava corn ele
olhando-o por cima do ombro. William tentava consertar seu erro desde que Nicholas subira ao
trono, escrevendo ao jovem Czar longas cartas (em inglês) de conselhos, mexericos e discursos
políticos, dirigidas ao ”Queridíssimo Nicky” e assinadas ”Seu amigo afeiçoado, Willy”. Ele
declarou ao Czar que uma república sem religião, manchada pelo sangue de monarcas, não era
companhia adequada: ”Nicky, acredite em mim, a maldição de Deus golpeou aquele povo para
sempre.”
O verdadeiro interesse de Nicky, segundo Willy, deveria ser uma Drei-Kaiser Bund, uma liga dos
três imperadores: da Rússia, da Áustria e da Alemanha. Nó entanto, lembrando-se das descortesias
sofridas, ele não resistia ao desejo de paternalizar o filho do Czar que as inflingira. Dava tapinhas
no ombro de Nicholas e dizia: ”Meu conselho para você é: mais discursos e mais desfiles, mais
discursos, mais desfiles” e ofereceu tropas alemãs para proteger Nicholas de seus súditos rebeldes,
enfurecendo a Czarina, que a cada troca de visitas odiava William mais e mais.

Ao ver que naquelas circunstâncias não conseguiria afastar a Rússia da França, o Kaiser redigiu um
tratado engenhoso, cornprometendo a Rússia e a Alemanha a se ajudarem mutuamente em caso de
ataque; depois de assiná-lo, o Czar deveria comunicá-lo aos franceses e convidá-los a assinar
também. Depois dos desastres da Rússia em sua guerra corn o Japão (guerra essa que o Kaiser
aconselhara corn veemência) e os levantes revolucionários que se seguiram, quando o regime estava
em seu período mais periclitante, ele convidou o Czar para um encontro secreto, sem a presença de
ministros, em Bjorko, no Golfo da Finlândia. William sabia muito bem que a Rússia não poderia
concordar corn aquele tratado sem romper seus compromissos corn os franceses, mas pensou que as
assinaturas dos soberanos bastariam para anular a dificuldade.

Nicholas assinou e William ficou exultante: tinha conseguido consertar o lapso fatal, assegurando a
porta dos fundos para a Alemanha e rompendo o cerco! ”Lágrimas brilhantes vieram-me aos olhos”,
escreveu para Bülow, acrescentando que tinha certeza de que o avô (William I, que morrera
balbuciando frases sobre uma guerra em duas frentes) estava olhando por ele. Sentia que seu tratado
era o golpe de mestre da diplomacia alemã - o que realmente era, ou teria sido, se não fosse por uma
falha no título. Quando o Czar levou o tratado para casa, seus ministros deram uma olhada nele e
concluíram, horrorizados, que, ao se comprometer a juntar-se à Alemanha numa possível guerra, ele
repudiara sua aliança corn a França, um detalhe que ”sem dúvida escapou a Sua Majestade na
torrente da eloqüência do Imperador William”. O Tratado de Bjorko teve uma vida curta e
brilhante, antes de expirar.

Agora vinha Edward bancar o amiguinho do Czar em Reval! Ao

ler o relatório feito pelo embaixador alemão sobre aquele encontro,

10 que sugeria que Edward realmente desejava a paz, o Kaiser, furioso,


rabiscou na margem: ”Mentiras. Ele quer guerra. Mas quer que eu a inicie, para que ele não sofra o
repúdio geral”.

O anà«ncerrou-se corn o mais explosivo faux pás da carreira do Kaiser: uma entrevista ao Daily
Telegraph expressando suas idéias do dia sobre quem devia combater quem, o que dessa vez não
irritou apenas seus vizinhos, mas também seus compatriotas. A reprovação pública foi tão flagrante
que o Kaiser adoeceu durante três semanas e ficou relativamente reticente por algum tempo depois
disso.

Desde então não houvera qualquer novidade. Os dois últimos anos da década foram os mais calmos,
enquanto a Europa desfrutava um entardecer rico e nutrido. O ano de 1910 foi pacífico e próspero,
corn a segunda rodada das crises de Marrocos e das guerras dos Bálcãs ainda por vir. Um livro
recém-publicado - The Great lllusion (A Grande Ilusão), de Norman Angell - provava que a guerra
era impossível. Por meio de exemplos impressionantes e argumentos irretorquíveis, Angell
mostrava que, na presente interdependência financeira e econômica das nações, a guerra tornara-se
não-lucratíva; o vencedor sofreria tanto quanto o vencido, de modo que nenhuma nação cometeria a
tolice de iniciar uma guerra.

Traduzido para onze línguas, The Great lllusion tornou-se objeto de culto. Nas universidades de
Manchester, Glasgow e outras cidades industriais, seus seguidores formaram mais de 49 grupos de
estudos dedicados a propagar seu dogma. O discípulo mais devotado de Angell era um homem de
grande influência na política militar: o Visconde Esher, amigo e conselheiro do Rei, presidente do
Comitê de Guerra criado para refazer o Exército inglês depois do choque do seu desempenho na
Guerra dos Bôeres7. Lord Esher fez conferências sobre a lição de The Great lllusion em Cambridge
e na Soíbonne, demonstrando que ”os novos fatores econômicos provam Claramente a insanidade
de uma guerra de agressão.” He afirmava que uma guerra no século XX seria de tal escala que suas
conseqüências inevitáveis - o desastre comercial, a ruína financeira e o sofrimento individual seriam
”tão prenhes de influências restritivas” que a guerra se tornaria impensável. Numa reunião de
oficiais no United Service Club, sob a presidência do Chefe do Estado-Maior, Sir John French, ele
declarou à platéia que, por causa do entrelaçamento das nações, a guerra ”se torna cada dia mais
difícil e improvável”.

7 Guerra dos Bôeres: guerra de 1899 a 1902 na qual a Grã-Bretanha derrotou os Bôeres da África do Sul. (N. da T.).

11
Lord Esher tinha certeza de que a Alemanha ”é tão receptiva quanto a Grã-Bretanha à doutrina de
Norman Angell”. Nada foi comentado a respeito da receptividade do Kaiser e do Príncipe-Herdeiro,
a quem ele presenteou, ou fez corn que presenteassem, exemplares de The Great Illusion. Não há
evidências de que ele tenha dado um exemplar ao General Von Bernhardi, que em 1910 ocupava-se
em escrever um livro chamado Germany and the Next War (A Alemanha e a Próxima Guerra),
publicado no ano seguinte e que seria tão influente quanto o de Angell, defendendo o ponto de vista
oposto. Três títulos de capítulos - ”O direito de fazer a guerra”, ”O dever de fazer a guerra” e ”A
supremacia mundial ou a derrocada” - resumem a sua tese.

Em 1870, Bernhardi, um oficial de cavalaria de 21 anos, fora o primeiro alemão a atravessar o Arco
do Triunfo quando os alemães entraram em Paris. Desde então, os estandartes e a glória passaram a
interessar-lhe menos do que a teoria, a filosofia e a ciência da guerra aplicadas à ”Missão histórica
da Alemanha”, título de outro de seus capítulos. Ele servira como chefe da seção de História Militar
do Estado-Maior, fazia parte da elite intelectual naquele organismo que estudava e trabalhava
muito, e era autor de um clássico a respeito da cavalaria, antes de reunir tudo o que durante a vida
inteira estudara sobre Clausewitz, Treitschke e Darwin num livro que iria fazer de seu nome um
sinônimo para Marte.8

A guerra, declarava ele, ”é uma necessidade biológica”, o cumprimento ”da lei natural que sustenta
todas as leis da natureza: a luta pela sobrevivência”. As nações têm que progredir ou decair, ”não é
possível estacionar”, e a Alemanha teria que escolher ”a supremacia mundial ou a derrocada”. Entre
as nações, a Alemanha ”está, no que se refere aos aspectos sociopolíticos, à frente de todo o
progresso cultural”, mas ”comprimida dentro de limites estreitos e artificiais”. Ela não pode
alcançar seus ”grandes objetivos morais” sem o crescimento de seu poder político, a ampliação de
sua esfera de influência e a conquista de novos territórios. Esse aumento de poder, ”con: dizente
corn a nossa importância” e que ”temos o direito de exigir” é uma ”necessidade política” e ”o
primeiro e mais importante dever do Estado”. corn seus próprios grifos Bernhardi anunciava: ”O
que agora desejamos obter deve ser conquistado pela luta”. Dali ele

8 Marte: o deus da guerra na mitologia romana, podendo também significar ”um guerreiro” ^ (N. da T.)
l
partia a galopçpara a linha de chegada: ”A conquista toma-se, assim, uma lei da necessidade”.

Tendcxprpvado a ”necessidade” (a palavra favorita dos pensadores militares alemães), Bernhardi


passou a discutir o método. Uma vez reconhecido o dever de fazer a guerra, segue-se o dever
secundário: fazê-la corn sucesso. Para ter sucesso, um país deve iniciar a guerra ”no momento mais
favorável” segundo sua própria escolha; ele tem ”o direito reconhecido (...) de assegurar para si o
glorioso privilégio de tal iniciativa”. A guerra ofensiva torna-se assim outra ”necessidade”, e uma
segunda conclusão é inevitável: ”Cabe a nós (...) agir na ofensiva e desfechar o primeiro golpe.”
Bernhardi não cornpartilhava da preocupação do Kaiser a respeito da ”reprovação geral” que
recairia sobre o agressor. Tampouco relutava em dizer onde o golpe cairia. Era ”impensável”, ele
escreveu, que a Alemanha e a França pudessem chegar a negociar seus problemas. ”A França deve
ser tão completamente esmagada que jamais poderá cruzar nosso caminho novamente”; ela ”precisa
ser aniquilada de uma vez por todas como grande potência”.

O Rei Edward não viveu o suficiente para ler Bernhardi. Em janeiro de 1910 ele enviou ao Kaiser
seus tradicionais cumprimentos de aniversário e uma bengala de presente, antes de partir para
Marienbad e Biarritz. Poucos meses depois, estava morto.

- Perdemos o alicerce da nossa política externa - comentou Isvolsky ao ler a notícia.

Tratava-se de um exagero, pois Edward era apenas o instrumento, e não o arquiteto, do novo
alinhamento. Na França, a morte do rei causou ”profunda emoção” e ”verdadeira consternação”,
segundo Lê Figuro. Paris - dizia o jornal - sentia a (perda de seu ”grande amigo” tanto quanto
Londres. Os postes e as vitrines da Rue de Ia Paix usavam o mesmo luto de Piçcadilly; os
motoristas de táxi amarraram laços de crepe negro em seus chicotes; até nas cidades pequenas
apareceram retratos do falecido rei envoltos em panos negros, como se o morto fosse um grande
cidadão francês. Como tributo à aliança anglo-japonesa, as casas em Tóquio exibiam bandeiras da
Inglaterra’e do Japão corn os mastros forrados de preto.

Na Alemanha, fossem quais fossem os sentimentos, o procedimento correto foi observado. Todos os
oficiais do Exército e da Marinha receberam ordens de usar luto durante oito dias, e os navios em
águas domésticas fizeram uma salva de tiros e hastearam suas bandeiras a meio mastro. O Reichstag
pôs-se de pé para ouvir uma

Jl:
mensagem de solidariedade lida pelo Presidente, e o Kaiser fez pessoalmente uma visita de uma
hora e meia ao embaixador britânico.

Na semana seguinte, em Londres, a família real ficou ocupada recebendo visitantes reais que
chegavam na Victoria Station9. O Kaiser viajou em seu iate, o Hohenzollern, escoltado por quatro
destróieres ingleses; ancorou no estuário do Tâmisa e fez o resto do percurso de trem, chegando à
Victoria Station como se fosse um rei qualquer. Um tapete púrpura foi estendido na plataforma e
degraus forrados de púrpura foram colocados onde o vagão iria parar. Quando o trem chegou, ao
soar do meio-dia, surgiu a figura familiar do imperador alemão; ele saltou e foi recebido pelo primo,
o Rei George, a quem beijou em ambas as faces. Depois do almoço, foram juntos para o
Westminster Hall, onde o corpo de Edward estava sendo velado.

A tempestade da noite anterior e a chuva torrencial de toda a manhã não tinham diminuído a fila
silenciosa e paciente dos súditos de Edward que esperavam para vê-lo; nesse dia, 19 de maio, uma
quinta-feira, a fila se estendia por mais de oito quilômetros. Era o dia em que a terra deveria passar
pela cauda do cometa Halley, cujo aparecimento fez lembrar que ele era tradicionalmente o profeta
dos desastres - pois não anunciara a conquista normanda? - e inspirou os jornais corn editores
literatos a publicarem os versos de ”Júlio t» César”:

Quando morrem mendigos, não se vêem cometas:

O próprio céu anuncia num clarão a morte dos príncipes.

No imenso salão, o esquife jazia em soturna majestade, encimado pela coroa, o orbe e o cetro, e
guardado nos quatro cantos por quatro oficiais, cada um de um regimento do império, postados na
atitude tradicional de luto, corn as cabeças baixas e as mãos em luvas brancas cruzadas sobre o
punho da espada.

O Kaiser observou corn interesse profissional todos os detalhes de um velório imperial. Ficou
profundamente impressionado, e anos depois ainda conseguia rememorar fielmente aquela cena e
seu ”maravilhoso cenário medievai . Contemplou os raios do sol filtrando-se através das estreitas
janelas góticas e iluminando as jóias da coroa, e observou a mudança da guarda junto ao esquife: os
novos guardas marchando corn as espadas em riste, apontando-as para baixo quando chegavam a
seus lugares, enquanto os guardas rendidos deslizavam

9 Victoria Station, Paddington Station: estações ferroviárias em Londres. (N. da T.)


K

em câmara lenta^desapareciam por alguma saída oculta nas sombras. Ao colocar sobre o caixão a
sua coroa de flores brancas e vermelhas, ele se ajoelhou corn o Rei George numa prece silenciosa, e
ao erguer-se apertou a mão do primo num cumprimento másculo e solidário. O gesto, bastante
divulgado, provocou muitos comentários favoráveis.

Em público, o seu desempenho foi perfeito: em particular, ele não conseguiu resistir à oportunidade
de novas conspirações. Num jantar que o Rei ofereceu naquela noite a 70 visitantes reais e
embaixadores especiais, ele encurralou Monsieur Pichon, da França, e lhe propôs que, se algum dia
a Alemanha se achasse em posição oposta à da Inglaterra num conflito, a França se aliasse à
Alemanha. Diante da ocasião e do lugar, aquela última tempestade cerebral imperial causou
comoção - mais uma do tipo que levou certa vez Sir Edward Grey, o mortificado Secretário do
Exterior britânico, a declarar nostalgicamente: ”Os outros soberanos são bem mais quietos”.
Posteriormente o Kaiser negou ter dito qualquer coisa desse tipo; apenas conversara sobre Marrocos
e ”alguns outros assuntos políticos”. Só se conseguiu que Monsieur Pichon declarasse
discretamente que a linguagem do Kaiser tinha sido ”amável e pacífica”.

No cortejo da manhã seguinte, uma das raras ocasiões em que ele não podia conversar, o
comportamento de William foi exemplar. Manteve seu .cavalo atrás do cavalo do Rei George e,
para Conan Doyle, correspondente especial, ele parecia tão ”nobre que a Inglaterra terá perdido algo
de sua generosidade se hoje não o acolher de volta em seu coração”. Quando a procissão chegou ao
Westminster Hall, foi o primeiro a desmontar, e quando a carruagem da Rainha Alexandra chegou,
”ele correu para a porta corn tanto vigor queáícahçou-a antes dos lacaios reais”, apenas para
descobrir que a Rainha ia descer pelo outro lado. William rodeou agilmente o veículo, ainda à frente
dos lacaios; chegou primeiro à porta, ajudou a viúva a descer e beijou-a corn a afeição de um
sobrinho enlutado.

Felizmente o Rei George chegou nesse momento para socorrer a mãe e acompanhá-la ele próprio,
pois ela odiava o Kaiser, tanto pessoalmente quanto por causa de Schleswig-Holstein: embora ele
tivesse apenas oito anos de idade quando a Alemanha tomou os ducados da Dinamarca, ela nunca
perdoara a ele ou ao país dele. Quando o filho, numa visita a Berlim em 1890, fora feito coronel
honorário de um regimento prussiano, ela lhe escrevera: ”Então meu pequeno Georginho tornou-se
um nojento soldado alemão Picklehau-

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mensagem de solidariedade lida pelo Presidente, e o Kaiser fez pessoalmente uma visita de uma
hora e meia ao embaixador britânico.

Na semana seguinte, em Londres, a família real ficou ocupada recebendo visitantes reais que
chegavam na Victoria Station9.0 Kaiser viajou em seu iate, o Hohenzollern, escoltado por quatro
destróieres ingleses; ancorou no estuário do Tâmisa e fez o resto do percurso de trem, chegando à
Victoria Station como se fosse um rei qualquer. Um tapete púrpura foi estendido na plataforma e
degraus forrados de púrpura foram colocados onde o vagão iria parar. Quando o trem chegou, ao
soar do meio-dia, surgiu a figura familiar do imperador alemão; ele saltou e foi recebido pelo primo,
o Rei George, a quem beijou em ambas as faces. Depois do almoço, foram juntos para o
Westminster Hall, onde o corpo de Edward estava sendo velado.

A tempestade da noite anterior e a chuva torrencial de toda a manhã não tinham diminuído a fila
silenciosa e paciente dos súditos de Edward que esperavam para vê-lo; nesse dia, 19 de maio, uma
quinta-feira, a fila se estendia por mais de oito quilômetros. Era o dia em que a terra deveria passar
pela cauda do cometa Halley, cujo aparecimento fez lembrar que ele era tradicionalmente o profeta
dos desastres - pois não anunciara a conquista normanda? - e inspirou os jornais corn editores
literatos a publicarem os versos de ”Júlio »> César”:

Quando morrem mendigos, não se vêem cometas:

O próprio céu anuncia num clarão a morte dos príncipes.

No imenso salão, o esquife jazia em soturna majestade, encimado pela coroa, o orbe e o cetro, e
guardado nos quatro cantos por quatro oficiais, cada um de um regimento do império, postados na
atitude tradicional de luto, corn as cabeças baixas e as mãos em luvas brancas cruzadas sobre o
punho da espada.

O Kaiser observou corn interesse profissional todos os detalhes de um velório imperial. Ficou
profundamente impressionado, e anos depois ainda conseguia rememorar fielmente aquela cena e
seu ”maravilhoso cenário medieval’. Contemplou os raios do sol filtrando-se através das estreitas
janelas góticas e iluminando as jóias da coroa, e observou a mudança da guarda junto ao esquife: os
novos guardas marchando corn as espadas em riste, apontando-as para baixo quando chegavam a
seus lugares, enquanto os guardas rendidos deslizavam

9 Victoria Station, Paddington Station: estações ferroviárias em Londres. (N. da T.)


em câmara lenta ^desapareciam por alguma saída oculta nas sombras. Ao colocar sobre o caixão a
sua coroa de flores brancas e vermelhas, ele se ajoelhou corn o Rei George numa prece silenciosa, e
ao erguer-se apertou a mão do primo num cumprimento másculo e solidário. O gesto, bastante
divulgado, provocou muitos comentários favoráveis.

Em público, o seu desempenho foi perfeito: em particular, ele não conseguiu resistir à oportunidade
de novas conspirações. Num jantar que o Rei ofereceu naquela noite a 70 visitantes reais e
embaixadores especiais, ele encurralou Monsieur Pichon, da França, e lhe propôs que, se algum dia
a Alemanha se achasse em posição oposta à da Inglaterra num conflito, a França se aliasse à
Alemanha. Diante da ocasião e do lugar, aquela última tempestade cerebral imperial causou
comoção - mais uma do tipo que levou certa vez Sir Edward Grey, o mortíficado Secretário do
Exterior britânico, a declarar nostalgicamente: ”Os outros soberanos são bem mais quietos”.
Posteriormente o Kaiser negou ter dito qualquer coisa desse tipo; apenas conversara sobre Marrocos
e ”alguns outros assuntos políticos”. Só se conseguiu que Monsieur Pichon declarasse
discretamente que a linguagem do Kaiser tinha sido ”amável e pacífica”.

No cortejo da manhã seguinte, uma das raras ocasiões em que ele não podia conversar, o
comportamento de William foi exemplar. Manteve seu .cavalo atrás do cavalo do Rei George e,
para Conan Doyle, correspondente especial, ele parecia tão ”nobre que a Inglaterra terá perdido algo
de sua generosidade se hoje não o acolher de volta em seu coração”. Quando a procissão chegou ao
Westminster Hall, foi o primeiro a desmontar, e quando a carruagem da Rainha Alexandra chegou,
”ele correu para a porta corn tanto vigor que/álcahçou-a antes dos lacaios reais”, apenas para
descobrir que a Rainha ia descer pelo outro lado. William rodeou agilmente o veículo, ainda à frente
dos lacaios; chegou primeiro à porta, ajudou a viúva a descer e beijou-a corn a afeição de um
sobrinho enlutado.

Felizmente o Rei George chegou nesse momento para socorrer a mãe e acompanhá-la ele próprio,
pois ela odiava o Kaiser, tanto pessoalmente quanto por causa de Schleswig-Holstein: embora ele
tivesse apenas oito anos de idade quando a Alemanha tomou os ducados da Dinamarca, ela nunca
perdoara a ele ou ao país dele. Quando o filho, numa visita a Berlim em 1890, fora feito coronel
honorário de um regimento prussiano, ela lhe escrevera: ”Então meu pequeno Georginho tornou-se
um nojento soldado alemão Picklehau-

1$
be de casaco azul!!! Bem, nunca pensei que teria que ver isso em minha vida! Mas não tem
importância: (...) foi seu azar, não sua culpa”.

Ao som do rufar dos tambores abafados e dó lamento das gaitas de foles, o caixão, embrulhado no
Estandarte Real, foi retirado do Hall por uma vintena de marinheiros da Armada, corn seus chapéus
de palha. Um súbito clarão de sabres reluziu ao sol quando a cavalaria tomou posição de sentido. A
um sinal de quatro apitos, os marujos levaram o caixão para uma carreta de artilharia pesada envolta
em púrpura, vermelho e branco. O cortejo movimentou-se por entre fileiras imóveis de Granadeiros
como muralhas vermelhas a conter a multidão compacta, escura e silenciosa.

Londres nunca estivera tão apinhada e tão silenciosa. Ao lado e atrás do carro fúnebre puxado pela
Real Artilharia Montada caminhavam os 63 ajudantes-de-ordens de Sua finada Majestade, todos
coronéis ou capitães da Marinha e todos nobres, entre eles cinco duques, quatro marqueses e treze
condes. Os três Marechais-de-Campo ingleses - Lord Kitchener, Lord Roberts e Sir Evelyn Wood
cavalgavam lado a lado. Seis Almirantes da Armada os seguiam, e atrás deles, caminhando
solitário, o grande amigo de Edward, Sir John Fisher, o excêntrico e explosivo ex-First Sea Lord,
corn seu estranho rosto de mandarim, tão pouco inglês. Destacamentos de todos os regimentos
famosos, a Cavalaria de Guarda e a Cavalry of the Line, os Coldstream Guards, os Gordon
Highlanders e os Fuzileiros Reais, os brilhantes Hussardos e Dragões das unidades de cavalaria da
Alemanha, da Rússia, da Áustria e de outros países, das quais Edward era oficial honorário;
almirantes da Marinha alemã - para alguns observadores hostis, quase parecia um desfile militar
grandioso demais para os funerais de um homem denominado ”O Artífice da Paz”.

Seu cavalo, cpm a sela vazia e as botas viradas nos estribos, conduzido por dois cavalariços, e,
trotando ao lado, o seu cachorro terrier pêlo-de-arame, trouxeram um assomo de emoção. Em
seguida vinha a pompa da Inglaterra: Passavantes de Armas levando nas cometas garlhadetes
medievais brasonados, Silver Stíck-in-Waiting, White Staves, palafreneiros^arqueiros da Escócia,
juizes de túnica negra e peruca e o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em escarlate, bispos
trajando a púrpura eclesiástica, Yeomen da Guarda corn seus chapéus de veludo negro e seus
colarinhos elizabetanos embabadados, uma escolta de clarins e então o desfile de reis, seguidos por
uma carruagem de cristal levando a Rainha viúva e sua irmã, a Imperatriz-Mãe da Rússia, e mais
doze carruagens corn rainhas,
16 damas e potentados orientais. ; q
O comprido cortejo seguiu ao longo de Whitehall, do Mall, de Piccadilly e do parque até a Estação
de Paddington, de onde o corpo iria de trem para ser enterrado em Windsor. A banda da Guarda
Real da Cavalaria executava a Marcha Fúnebre de Saul. O passo lento do cortejo e a música solene
transmitiam a sensação de algo definitivo. Depois dos funerais, Lord Esher escreveu em seu diário:
”Nunca houve um rompimento assim. Foram varridas todas as antigas bóias que demarcavam o
canal de nossas vidas”.

17
OS PLANOS
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”Que o Ultimo Homem à Direita Esbarre no Canal corn sua Manga”


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O Conde Alfred Von Schlieffen, chefe do Estado-Maior alemão de 1891 a 1906, era, como todos os
oficiais alemães, escolado no preceito de Clausewitz, ”O coração da França fica entre Bruxelas e
Paris.” Tratava-se de um axioma frustrante, porque o caminho para o qual ele apontava era proibido
pela neutralidade belga que a própria Alemanha tinha garantido perpetuamente, corn as outras
quatro maiores potências européias. Acreditando que a guerra era inevitável e que a Alemanha
devia entrar nela sob as condições que lhe dessem maior garantia de sucesso, Schlieffen decidiu não
permitir que a neutralidade belga barrasse o caminho da Alemanha. Das duas categorias de oficial
prussiano - a de pescoço de touro e a de cintura de vespa -, ele pertencia à segunda. De monóculo,
aparência alquebrada e maneiras frias e distantes, ele se concentrou corn tal intensidade em sua
profissão que quando um ajudante, no final de uma noite inteira cavalgando pelo leste da Prússia,
apontou-lhe a beleza do Rio Pregel reluzindo ao sol nascente, o General lançou um olhar breve e
severo e respondeu:

- Um obstáculo pouco importante.

Ele pensava o mesmo da neutralidade belga. Uma Bélgica neutra e independente era obra da
Inglaterra, ou melhor, do seu mais brilhante Ministro do Exterior, Lord Palmerston. O litoral da
Bélgica era a fronteira da Inglaterra; nas planícies da Bélgica Wellington derrotara a maior ameaça
à Inglaterra desd^ Armada. Daí em diante, a Inglaterra manteve a decisão de transformar em zona
neutra aquele trecho de território aberto e acessível; nos termos do acordo pós-napoleônico do
Congresso de Viena, ela concordou corn as outras potências em unir a Bélgica ao Reino da
Holanda.

Desaprovando a união corn um país protestante, no ardor da febre nacionalista do século XIX, os
belgas revoltaram-se em 1830, iniciando um tumulto internacional. Os holandeses lutavam para
conservar sua província; os franceses entraram em campo, ansiosos para recuperar aquilo que já
fora seu. Os estados autocráticos Rússia, Prússia e Áustria -, decididos a manter a Europa submissa

21
às mãos mortas de Viena, estavam dispostos a abrir fogo ao primeiro sinal de revolta em qualquer
lugar.

Lord Palmerston foi mais hábil que todos eles. Sabia que uma província subjugada seria uma
tentação eterna para qualquer vizinho e que só uma nação independente, decidida a manter sua
própria integridade, poderia sobreviver como zona de segurança. Durante nove anos, demonstrando
sangue-frio e flexibilidade, jamais se afastando de sua meta e convocando a esquadra britânica
quando necessário, ele jogou melhor que todos os competidores e garantiu um tratado internacional
que tornava a Bélgica um ”estado independente e perpetuamente neutro”. O tratado foi assinado em
1839 por França, Inglaterra, Rússia, Prússia e Áustria.

Desde 1892, quando a França e a Rússia uniram-se numa aliança militar, era evidente que quatro
dos cinco signatários do tratado belga estariam automaticamente envolvidos - dois contra dois - na
guerra que cabia a Schlieffen planejar. A Europa era uma pilha de espadas em equilíbrio precário, e
não se podia puxar uma sem mover as outras. Nos termos da aliança austro-germânica, a Alemanha
era obrigada a apoiar a Áustria em qualquer conflito corn a Rússia; nos termos da aliança entre
França e Rússia, ambas eram obrigadas a ficar contra a Alemanha se alguma delas se envolvesse
numa ”guerra defensiva” contra aquele país. Esses arranjos tornavam invevitável que em qualquer
guerra a Alemanha tivesse que lutar em duas frentes - contra a Rússia e contra a França.

O papel que cabia à Inglaterra era incerto; ela poderia permanecer neutra ou, se tivesse um motivo,
colocar-se contra a Alemanha. Não era segredo que a Bélgica podia vir a ser esse motivo. Na guerra
franco-prussiana de 1870, quando a Alemanha ainda era um poder em ascensão, Bismarck, diante
de uma insinuação da Inglaterra, reafirmara corn satisfação a inviolabilidade da Bélgica. Gladstone
conseguira um tratado corn ambos os beligerantes estabelecendo que, se um dos dois violasse a
neutralidade belga, a Inglaterra cooperaria corn o outro para defender ia Bélgica, embora sem se
envolver nas operações gerais da guerra. Embora houvesse alguma coisa bem pouco prática nessa
ressalva da fórmula gladstoniana, os alemães não viam razão para achar que seu motivo oculto
estivesse menos atuante em 1914 do que em 1870. Schlieffen, no entanto, decidiu que, em caso de
guerra, atacaria a França via Bélgica.

Sua justificativa era a ”necessidade militar”. Segundo ele, numa


22 guerra de duas frentes ”a Alemanha inteira deve lançar-se sobre um
mssttf

único inimigo, o mais forte, o mais poderoso, o mais perigoso, que só pode ser a França”. O plano
completo de Schlieffen para 1906, ano em que ele se aposentou, concedia seis semanas e destacava
sete-oitavos das forças alemãs para derrotar a França, e um-oitavo para defender a fronteira oriental
contra a Rússia até que o grosso do exército pudesse ser trazido de volta para enfrentar o segundo
inimigo. Ele escolheu primeiro a França porque a Rússia poderia frustrar uma vitória rápida
simplesmente retirando-se para o interior do seu infindável território, atraindo a Alemanha para uma
campanha sem fim, como fizera corn Napoleão.

A França ficava mais perto e conseguiria mobilizar-se mais depressa; tanto o exército alemão
quanto o francês necessitavam de duas semanas para uma completa mobilização, antes que pudesse
haver um grande ataque no décimo-quinto dia. Segundo a aritmética alemã, a Rússia, por causa de
suas enormes distâncias, do grande número de habitantes e das estradas de ferro precárias, levaria
seis semanas para estar em condições de iniciar uma grande ofensiva, e antes disso a França já
estaria derrotada.

Era difícil aceitar o risco de deixar a Prússia Oriental, terra dos junkers10 e dos Hohenzollern11,
defendida por apenas nove divisões, mas, como dissera Frederico, o Grande, ”E melhor perder uma
província do que dividir as forças corn as quais se busca a vitória”; e nada fascina tanto a mente
militar quanto uma frase de um general ilustre já falecido. A França só poderia ser derrotada corn
rapidez se a maior força de ataque possível fosse enviada para o ocidente. Na opinião de Schlieffen,
só mesmo através de uma estratégia de cerco, usando a Bélgica como caminho, os exércitos
alemães poderiam atacar a França corn sucesso. Do ponto de vista puramente militar, esse
raciocínio parecia perfeito.

De 200.000 ou 300.000 soldados ncTano de 1870, os exércitos tinham crescido para quase um
milhão e meio cada um, e precisavam de espaço para suas manobras. As fortalezas francesas
construídas ao longo das fronteiras da Alsácia e da Lorena depois de 1870 impediam que os
alemães tentassem um ataque frontal através da fronteira comum. Enquanto as linhas francesas para
a retaguarda permanecessem abertas, um sítio prolongado não criaria condições de derrotar

10 Junkers: a aristocracia prussiana. (N. da T.)

11 Hohenzollern: antiga província da Prússia e a dinastia que governara a Prússia e à qual pertencia o Kaiser. (N. da
T.) 23
rapidamente o inimigo numa batalha de aniquilação; apenas pelo cerco os franceses poderiam ser
atacados pela retaguarda e destruídos. Mas em ambos os limites das linhas francesas havia território
neutro - a Suíça e a Bélgica. Não havia espaço suficiente para o enorme exército alemão circundar
os exércitos franceses sem sair do território francês. Os alemães tinham feito isso em 1870, quando
ambos os exércitos eram menores, mas agora tratava-se de movimentar um exército de milhões para
cercar outro exército de milhões. O espaço, as estradas e as ferrovias eram essenciais, e as terras
planas de Flandres possuíam essas três coisas. Na Bélgica havia espaço para a manobra de cerco,
que para Schlieffen era tanto a fórmula para o sucesso quanto um meio de evitar o ataque frontal,
que era a sua fórmula para o desastre.

Clausewitz, oráculo do pensamento militar alemão, colocara, como objetivo principal numa guerra
ofensiva, uma vitória rápida numa ”batalha decisiva”. A ocupação do território inimigo e o controle
dos seus recursos eram objetivos secundários. Decidir depressa era essencial; o tempo era mais
importante que tudo. Clausewitz condenava qualquer coisa que adiasse uma campanha e temia
como ao fogo do inferno a ”redução gradual” do inimigo, ou uma guerra de atrito. Sua obra tinha
sido escrita na década de Waterloo, e desde então era aceita como a bíblia da estratégia.

Para alcançar uma vitória decisiva, Schlieffen escolheu uma estratégia derivada de Haníbal na
Batalha de Canas12.0 ilustre general morto que fascinava Schlieffen existira havia muito tempo;
dois mil anos se passaram desde que Haníbal fizera um duplo cerco aos romanos em Canas.
Segundo Schlieffen, os canhões de campanha e as metralhadoras tinham substituído o arco e flecha
e a funda, ”mas :<os princípios da estratégia permanecem os mesmos. A frente inimiga hão é o
objetivo. O essencial é esmagar os flancos do inimigo (...) e
• completar o extermínio por meio de um ataque à sua retaguarda”. Sob a influência de Schlieffen, o
cerco passou a ser o grande trunfo, e o ataque frontal tornou-se urr^anátema para o Estado-Maior
alemão.

O primeiro plano de Schlieffen a incluir a violação da Bélgica foi formulado em 1899 e exigia que
se cortasse caminho pelo canto da Bélgica, a leste do Meuse. Ampliado a cada ano, em 1905 o
plano crescera para uma imensa volta pela direita numa manobra de cerco

12 Batalha de Canas: famosa batalha na qual Haníbal derrotou os romanos em 216 a.C. corn
24 uma estratégia considerada clássica pela ciência militar. (N. da T.)
l
ha qual os exércitos alemães atravessariam a Bélgica de Liège a Bruxelas antes de virarem para o
sul, onde poderiam aproveitar o terreno aberto de Flandres para marchar contra a França. Tudo
dependia de uma decisão rápida contra a França, e mesmo o caminho mais comprido, através de
Flandres, seria mais rápido do que sitiar a linha de fortalezas do outro lado da fronteira entre França
e Alemanha.

Schlieffen não tinha divisões suficientes para um cerco duplo à França, à moda de Canas, de modo
que criou uma ala direita fortemente unilateral que se espalharia por toda a Bélgica em ambos os
lados do Meuse, varrendo o país como um ancinho monstruoso, atravessando a fronteira
franco-belga em toda a sua extensão e descendo sobre Paris ao longo do vale do Oise. A massa dos
alemães ficaria entre a capital e os exércitos franceses, que, chamados de volta para enfrentar a
ameaça alemã, seriam pegos longe de suas áreas fortificadas, na decisiva batalha de aniquilação.
Para esse plano, era essencial uma ala esquerda alemã deliberadamente fraca na frente da
Alsácia-Lorena, que atrairia os franceses dessa área a avançarem para dentro de um ”saco” entre
Metz e o Vosges. Esperava-se que os franceses, preocupados em libertar suas províncias perdidas,
atacassem ali.

Isso era considerado excelente para o plano alemão; a ala esquerda alemã poderia então mantê-los
presos no saco enquanto a vitória principal era obtida na retaguarda. No fundo da mente de
Schlieffen brilhava sempre a esperança de que, no desenrolar da batalha, pudesse ser montado um
contra-ataque pela ala esquerda, para que se pudesse fazer um verdadeiro cerco duplo - a ”Canas
colossal” de seus sonhos. Economizando radicalmente sua força maior para a ala direita, ele não
cedeu à desmedida ambição de seu plano. Mas a isca da ala esquerda permaneceu, como uma
tentação para os seus sucessores. -.’

Assim os alemães entraram na Bélgica: a batalha decisiva exigia o cerco, e o cerco exigia o uso do
território belga. O Estado-Maior alemão definiu-o como uma ”necessidade” militar; o Kaiser e o
Chanceler aceitaram-no corn certo comedimento. Era irrelevante se o plano era aconselhável, ou até
mesmo viável, diante do provável efeito na opinião mundial, principalmente dos neutros; o único
critério era a sua importância crucial para o triunfo dos exércitos alemães. Em 1870 os alemães
tinham engolido a lição de que as armas e a guerra eram a única fonte da grandeza alemã. Tinham
aprendido no livro The Nation in Arms (O País em Armas), do Marechal-de-Campo Von der

25
Goltz, que ”Conquistamos nossa posição pela agudeza de nossa espada, não de nossa mente”. A
decisão de violar a neutralidade belga foi um seguimento natural!

; Caráter é destino, acreditavam os gregos. Cem anos de filosofia alemã entraram na confecção
dessa decisão que continha em si a semente da autodestruição esperando sua hora. A voz era de
Schlieffen, mas a mão era de Fichte, que considerava o povo alemão escolhido pela Providência
para ocupar o lugar supremo na história do universo; de Hegel, que os via liderando o mundo para
um destino de Kultur compulsória; de Nietzsche, que lhes ensinou que os superhomens pairavam
acima das restrições comuns; de Treitschke, que considerava o aumento de poder o mais elevado
dever moral do estado; e de todo o povo alemão, que chamava seu líder temporal de ”Altíssimo”. O
que moldou o plano de Schlieffen não foi Clausewitz ou a batalha de Canas, mas o total de egoísmo
acumulado que amamentou o povo alemão e criou uma nação nutrida corn ”a ilusão desesperada da
vontade que se considera absoluta”.

O objetivo-a batalha decisiva-foi produto das vitórias sobre a Áustria e a França em 1866 e 1870.
As batalhas mortas, assim como os generais mortos, capturam a mente militar em suas garras
mortas, e os alemães, não menos que os outros povos, preparam-se para a última guerra. A imagem
de Haníbal, eles jogaram tudo na batalha decisiva, mas o próprio fantasma de Haníbal poderia ter
lembrado a Schlieffen que, embora Cartago tenha vencido em Canas, quem ganhou a guerra foi
Roma.

O velho Marechal-de-Campo Moltke previu em 1890 que a guerra seguinte poderia durar sete anos
- ou trinta -, porque os recursos de um estado moderno eram tão grandes que ele não teria
consciência de ter sido vencido depois de uma única derrota, e não desistiria. Seu sobrinho e
homônimo, sucessor de Schlieffen como Chefe do Estado-Maior, também teve momentos em que
enxergava a verdade corn a mesma clareza. Em 1906 ele disse ao Kaiser, num momento de heresia
para cplm Clausewitz:

- Será uma guerra nacional não resolvida por uma batalha decisiva mas por uma luta longa e
cansativa corn um país que não será vencido até que todas as suas forças sejam derrotadas; uma
guerra que deixará nosso povo inteiramente exaurido, mesmo se formos vitoriosos.

No entanto, era contra a natureza humana - e a natureza dos Estados-Maiores - acompanhar até o
final a lógica de suas próprias
profecias. O conceito de uma guerra longa, amorfa e sem limites, não podia ser planejado
cientificamente como a solução ortodoxa, previsível e simples de uma guerra curta e uma batalha
decisiva. O Moltke mais jovem já era Chefe do Estado-Maior quando fez sua profecia, mas nem ele,
nem o seu Estado-Maior, nem o Estado-Maior de qualquer outro país, fizeram qualquer esforço para
planejar uma guerra longa.

Além dos dois Moltkes - um falecido e o outro sofrendo de excesso de objetivos -, alguns
estrategistas militares em outros países vislumbraram a possibilidade de uma guerra prolongada,
mas todos preferiram acreditar, como os banqueiros e os industriais, que por causa do deslocamento
da vida econômica uma guerra geral européia não poderia durar mais que três ou quatro meses.
Uma característica constante em 1914 - como em qualquer época - era a relutância de todos, em
todos os lados, em se prepararem para a alternativa mais difícil, ou agirem segundo o que
suspeitavam ser verdadeiro.

Tendo abraçado a estratégia da ”batalha decisiva”, Schlieffen subjugou a ela o destino da


Alemanha. Ele esperava que a França violasse a Bélgica assim que o movimento alemão na
fronteira belga revelasse sua estratégia, portanto planejou que a Alemanha fizesse isso primeiro, e
mais depressa. ”A neutralidade belga deve ser rompida por um lado ou por outro”, rezava a sua tese.
”Quem quer que chegue primeiro, ocupe Bruxelas e imponha um tributo de guerra de
1.000 milhões de francos, terá a supremacia.”

A indenização, que permite a um estado conduzir uma guerra à custa do inimigo, era um objetivo
secundário na lista de Clausewitz. O objetivo terciário era conquistar a opinião pública, o que se
atinge ”alcançando grandes vitórias e ocupando a capital inimiga” e ajuda a acabar corn a
resistência. Ele sabia que o sucesso material podia conquistar a opinião pública: esqueceu-se de que
o fracasso moral podia perdê-la, o que também pode serUm risco da guerra.

Tratava-se de um risco que os franceses nunca perderam de vista e que os levou à conclusão oposta
à que Schlieffen esperava. A Bélgica era o caminho de ataque também deles, através dos Ardennes,
se não de Flandres, mas seu plano de campanha proibia que seus exércitos o usassem até que os
alemães tivessem violado a Bélgica primeiro. Para eles, a lógica da questão era clara: a Bélgica era
um caminho aberto em ambas as direções; se a Alemanha ou a França iriam usá-lo, dependeria de
qual dos dois desejava mais a guerra. Como disse um general francês, ”Aquele que desejava a
guerra mais que o outro não podia deixar de querer a violação da neutralidade belga”. t?
Schlieffen e seus oficiais não pensavam que a Bélgica os combateria, juntando suas seis divisões às
forças francesas. Quando o Chanceler Bülow, discutindo o problema corn Schlieffen em 1904,
lembroulhe o aviso de Bismarck de que seria contra o ”bom-sensb” acrescentar outro inimigo às
forças contrárias à Alemanha, Schlieffen girou várias vezes o monóculo no olho, como era seu
hábito, e respondeu:

- É claro. Não ficamos mais estúpidos desde então.

Mas afirmou que a Bélgica não resistiria pela força das armas; a seu ver, ela ficaria satisfeita em
protestar.

A confiança da Alemanha no tocante a isso devia-se ao valor demasiado que ela atribuía à
conhecida avareza de Leopold II, Rei dos belgas na época de Schlieffen. Alto e imponente, corn sua
negra barba quadrada e sua aura de maldade composta de amantes, dinheiro, crueldades no Congo e
outros escândalos, Leopold era, na opinião do Imperador Franz Josef da Áustria, ”um homem
inteiramente mau”. O Imperador costumava dizer que poucos homens poderiam ser assim descritos,
mas o Rei dos belgas era um deles. Porque Leopold, entre outros vícios, era avarento, o Kaiser
imaginou que essa avareza dominaria o bom-senso e concebeu um plano inteligente para tentar
atrair Leopold a uma aliança oferecendo-lhe um pedaço do território francês.

Sempre que o Kaiser era dominado por um projeto, tentava executá-lo imediatamente, em geral para
sua surpresa e contrariedade quando não funcionava. Em 1904 ele convidou Leopold a visitá-lo em
Berlim, conversou corn ele ”da maneira mais simpática do mundo” a respeito de seus orgulhosos
antepassados, os Duques de Burgundy, e ofereceu-se para recriar para ele o antigo Ducado de
Burgundy, que ocuparia Artois, o Flandres francês e os Ardennes franceses. Leopold encarou-o
”boquiaberto” e depois, tentando descartar o assunto corn uma risada, lembrou ao Kaiser que muita
coisa mudara desde o século XV.

- De qualquer maneira, meus Ministros e o Parlamento jamais aceitariam uma sugestão dessas -
completou.

Ele disse exatamente a coisa errada, pois o Kaiser teve um de seus acessos de fúria e repreendeu o
Rei por colocar o respeito pelo Parlamento e pelos Ministros acima do respeito pelo dedo de Deus
(corn o qual William às vezes se confundia). William relatou ao Chanceler Bülow:

- Eu disse a ele que ninguém brincava comigo. No caso de uma


28 guerra européia, quem não estivesse comigo estaria contra mim. -
Ele se proclamou um soldado da escola de Napoleão e de Frederico, o Grande, que iniciaram suas
guerras para antecipar-se aos inimigos.

- Do mesmo modo, se a Bélgica não ficar do meu lado, deverei orientar-me apenas por
considerações estratégicas.

Essa intenção declarada, a primeira ameaça explícita de desobediência ao tratado, emudeceu o Rei
Leopold, que foi para a estação corn o capacete colocado de frente para trás, parecendo, aos olhos
do ajudante que o acompanhava, ”ter levado um choque”.

Embora o esquema do Kaiser tivesse fracassado, ainda se esperava que Leopold vendesse a
neutralidade da Bélgica por dois milhões de libras esterlinas. Quando um oficial de informações
francês, ao saber dessa cifra através de um oficial alemão depois da guerra, expressou sua surpresa
por tamanha generosidade, o alemão lernbrou-lhe que ”os franceses teriam que pagar”.

Mesmo depois que em 1902 Leopold foi sucedido pelo sobrinho


- o Rei Albert, um ser humano inteiramente diferente -, o sucessor de Schlieffen ainda esperava que
a resistência belga fosse apenas uma formalidade. Em 1911, um diplomata alemão sugeriu que essa
resistência poderia tomar a forma, por exemplo, de ”enfileirar seu exército ao longo das estradas
tomadas pelas forças alemãs”.

Schlieffen designou 34 divisões para tomarem as estradas através da Bélgica, dispondo-as no


caminho das seis divisões belgas se, como parecia improvável aos alemães, os belgas resolvessem
resistir. Os alemães estavam profundamente ansiosos para que eles não o fizessem, porque a
resistência significaria a destruição de pontes e ferrovias, e o conseqüente deslocamento do rígido
programa ao qual o Estado-Maior alemão era tão apaixonadamente afeiçoado.

A aquiescência belga, por outro lado, evitaria a necessidade de ocupar divisões no cerco às
fortalezas belgas, e contribuiria para silenciar a desaprovação pública pelo ato da Alemanha. Para
dissuadir a Bélgica de uma resistência inútil, Schlieffen providenciou para que antes da invasão
aquele país recebesse um ultimato exigindo a entrega de ”todas as fortalezas, ferrovias e tropas” ou
enfrentasse o bombardeio de suas cidades fortificadas. A artilharia pesada estava pronta para
transformar a ameaça de bombardeio em realidade, se necessário. De qualquer maneira, segundo
Schlieffen escreveu em
1912, os canhões seriam necessários futuramente, no decorrer da campanha: ”A grande cidade
industrial de Lille, por exemplo, oferece um excelente alvo para bombardeio.”

Schlieffen queria que sua ala direita fosse para o leste até Lille, para que o cerco aos franceses fosse
completo.

29
- Quando entrarem marchando na França, que o último homem à direita esbarre no Canal corn sua
manga - instruiu.

Além disso, levando em conta a agressividade britânica, ele queria um cerco bastante abrangente,
que varresse uma Fofça Expedicionária britânica juntamente corn os franceses. Tinha menos temor
ao exército britânico do que ao bloqueio marítimo que o poderio naval britânico tinha condições de
realizar; assim, estava determinado a alcançar uma vitória rápida em terra sobre as forças francesas
e inglesas e a decidir rapidamente a guerra antes que as conseqüências econômicas da hostilidade
britânica pudessem se fazer sentir.

Para esse fim, tudo devia servir para engordar a ala direita. Era preciso torná-la poderosa
numericamente, porque a densidade de soldados por quilômetro determinava a extensão do
território que podia ser coberto. Empregando apenas o exército ativo ele não teria divisões
suficientes para guardar a fronteira oriental contra uma invasão russa e conseguir superioridade
numérica sobre a França, necessária para uma vitória rápida.

Sua solução foi simples, embora revolucionária: ele decidiu usar unidades da reserva na linha de
frente. Segundo a doutrina militar dominante, apenas os homens mais jovens, recém-saídos dos
rigores e da disciplina do quartel e dos exercícios, estavam aptos para lutar; os reservistas, que ao
terminarem o serviço militar compulsório tinham retornado à vida civil, eram considerados
”frouxos” e não eram bem-vindos à linha de batalha. A exceção dos rapazes corn menos de
26 anos que estavam misturados às unidades ativas, os reservistas formavam suas próprias divisões,
a serem usadas apenas como tropas de ocupação e nas ações de retaguarda.

Schlieffen mudou tudo isso, acrescentando em torno de 20 divisões da reserva (o número variava
segundo o ano do plano) à linha de marcha das 50 ou mais divisões da ativa. Esse aumento nos
números possibilitava o cerco duplo que ele tanto almejava.

Depois que se aposentou, em 1906, Schlieffen passou seus últimos anos ainda escrevendo jjbbre a
Batalha de Canas, aperfeiçoando seu plano e redigindo memorandos para orientar seus sucessores, e
morreu aos 80 anos, em 1913, balbuciando:

- Terá que acabar em luta. Apenas não deixem de fortalecer a ala esquerda...

Seu sucessor, o melancólico General Von Moltke, era um pessimista que não estava disposto como
Schlieffen a concentrar todas as ao suas forças numa única manobra. Se o lema de Schlieffen era
”Ser
corajoso, ser corajoso”, o de Moltke era ”Mas não corajoso demais”. Ele se preocupava tanto corn a
fraqueza da sua ala esquerda contra os franceses quanto corn a fraqueza das forças destacadas para
defender a Prússia Oriental contra os russos. Debateu corn seu Estado-Maior se era aconselhável
empreender uma guerra defensiva contra a França, mas rejeitou a idéia porque isso destruía
qualquer possibilidade de ”combater o inimigo em seu próprio território”.

O Estado-Maior concordou que a invasão da Bélgica seria ”inteiramente justa e necessária”, porque
a guerra seria pela ”defesa e a existência da Alemanha”. O plano de Schlieffen foi mantido, e
Moltke, como ele próprio declarou em 1913, consolou-se corn a idéia de que ”Devemos deixar de
lado todos os lugares-comuns a respeito da responsabilidade do agressor. (...) Só o sucesso justifica
a guerra.” Porém, apenas para ter segurança total e negando o pedido de morte de Schlieffen, a cada
ano ele tirava forças da ala direita para acrescentá-las à esquerda.

Moltke planejou uma ala esquerda alemã corn oito unidades militares, perfazendo cerca de 320.000
homens, para defender a frente na Alsácia e Lorena, ao sul de Metz. O centro alemão, corn onze
unidades, totalizando uns 400.000 homens, invadiria a França através de Luxemburgo e dos
Ardennes. A ala direita alemã, corn dezesseis unidades e aproximadamente 700.000 homens,
atacaria através da Bélgica, destruiria as famosas fortalezas de Liège e Namur, que defendiam o
Meuse, e atravessaria o rio para alcançar o terreno plano e as estradas retilíneas do outro lado.

” O cronograma de cada dia de marcha foi fixado de antemão. Não se esperava que os belgas
resistissem, mas se isso acontecesse, calculava-se que o poderio do ataque alemão depressa iria
convencêlos a render-se. O cronograma requeria que as estradas que atravessavam Liège estivessem
livres no dia M-12 (décimo-segundo dia de mobilização), a última de suas doze fortalezas afastadas
estivesse destruída no dia M-14, Bruxelas tomada no dia M-19, a fronteira francesa atravessada no
M-22, a linha Thionville-St. Quentin alcançada em M-31, Paris e a vitória decisiva no dia M-39.

O plano de campanha era rígido e completo como o diagrama de um navio de guerra. Atendendo à
advertência de Clausewitz de que os planos militares que não deixam espaço para o inesperado
podem levar ao desastre, os alemães, corn infinito cuidado, tinham tentado prever todas as
contingências. Esperavam que seus oficiais, treinados nos exercícios de guerra e nos bancos das
academias mili-
31
tares para fornecerem a solução correta em qualquer conjunto de circunstâncias, pudessem cuidar
do inesperado. Contra esse fator incalculável, cruel e perigoso, todas as precauções foram tomadas,
exceto uma - a flexibilidade.

Enquanto se solidificava o plano para um esforço máximo contra a França, o temor que Moltke
sentia da Rússia diminuía gradualmente, à medida que seu Estado-Maior desenvolvia a teoria,
baseada numa contagem cuidadosa da quilometragem das ferrovias russas, de que a Rússia não
estaria ”pronta” para a guerra antes de 1916. Isso foi confirmado, nas mentes alemãs, pelos
relatórios de seus espiões a respeito de comentários russos de que ”alguma coisa ia começar em
1916”.

Em 1914, dois acontecimentos aguçaram o estado de prontidão da Alemanha. Em abril, a Inglaterra


iniciou conferências navais corn os russos, e em junho a própria Alemanha terminou o alargamento
do Canal Kiel, possibilitando aos seus novos couraçados o acesso direto do Mar do Norte ao
Báltico. Ao saber das conversas entre ingleses e russos, Moltke declarou, em maio, durante uma
visita a seu colega austríaco, Conrad von Hotzendorf, que daí em diante ”qualquer adiamento terá o
efeito de diminuir nossas chances de sucesso”. Duas semanas depois, a 1^ de junho, ele disse ao
Barão Eckardstein: ”Estamos prontos, e quanto mais cedo, melhor para nós.”
32
Jt Soribra de Sedan

O General Castelnau, Subchefe do Estado-Maior francês, certo dia de 1913 recebeu, no Ministério
da Guerra, a visita do General Lebas, Governador Militar de Lille, que foi protestar contra a decisão
do Estado-Maior de excluir Lille como cidade fortificada. Situada a 16 quilômetros da fronteira
belga e a 65 quilômetros do Canal da Mancha, Lille ficava perto do caminho que um exército
invasor tomaria se viesse por Flandres. Em resposta ao apelo do General Lebas por sua defesa, o
General Castelnau abriu um mapa e mediu corn uma régua a distância da fronteira alemã até Lille
através da Bélgica. Em seguida, declarou a seu visitante que a densidade média de soldados
necessária para uma ofensiva vigorosa era de cinco ou seis por metro; se os alemães se espalhassem
em direção ao oeste até Lille, seriam dois por metro, observou Castelnau.

- Vamos cortá-los ao meio! - declarou, explicando que o exército ativo alemão poderia dispor de 25
corpos, mais ou menos um milhão de homens, na frente ocidental. - Veja, calcule o senhor mesmo -
disse, estendendo a régua para Lebas. - Se eles chegarem até Lille, tanto melhor para nós - repetiu,
corn sardônica satisfação.

A estratégia francesa não ignorava a ameaça de um cerco pela ala direita alemã. Pelo contrário: o
Estado-Maior francês acreditava que, quanto mais forte os alemães fizessem sua ala direita, mais
fracos deixariam seu centro e sua esquerda, por onde o exército francês planejava penetrar. A
estratégia francesa deu as costas à fronteira corn a Bélgica e virou-se de frente para cuReno.
Enquanto os alemães tomavam o caminho mais longo para caírem sobre o flanco francês, os
franceses planejavam uma ofensiva bilateral que esmagaria o centro e a esquerda da Alemanha em
ambos os lados da área fortificada alemã em Metz e, através da vitória naquele local, separaria a
sala direita alemã de sua base, deixando-a indefesa. Era um plano ousado, nascido de uma idéia -
uma idéia inerente ao desejo da França de recuperar-se da humilhação de Sedan.

Nos termos de paz ditados pela Alemanha em Versalhes, em


1871, a França sofrerá uma amputação, um tributo a pagar e uma ocupação. Entre as condições
impostas havia até mesmo uma marcha
33
34

triunfal do Exército alemão pelos Champs Elysées. Ela ocorreu ao longo de um avenida silenciosa,
drapejada de negro, vazia de espectadores. Em Bordéus, quando o Parlamento francês ratificou o
tratado de paz, os deputados da Alsácia-Lorena abandonaram o salão em lágrimas, deixando seu
protesto: ”Nós proclamamos para sempre o direito da Alsácia e da Lorena de permanecerem
membros da nação francesa. Juramos, por nós mesmos, nossos eleitores, nossos filhos e os filhos de
nossos filhos, que vamos exigir esse direito incessantemente, por quaisquer meios, diante do
usurpador.”

A anexação, embora rejeitada por Bísmarck-que declarou que ela seria o calcanhar de Aquiles do
novo império alemão -, era exigida pelo Moltke mais velho e seu Estado-Maior. Eles insistiram e
conseguiram convencer o Imperador de que as províncias fronteiriças a Metz e Strasbourg e à crista
do Vosges deviam ser cortadas fora, para colocar a França eternamente em inferioridade geográfica.
Acrescentaram a exigência de uma esmagadora indenização de cinco bilhões de francos, corn a
intenção de deixar a França claudicante por uma geração, e colocaram lá um exército de ocupação
até que a indenização fosse paga. corn um enorme esforço, em três anos os franceses levantaram a
quantia e pagaram a dívida, e aí teve início a sua recuperação.

A lembrança de Sedan permaneceu, uma irremovível sombra escura na consciência francesa. ”N’en
parlez jamais: pensez-y toujours (Jamais falem disso; pensem sempre nisso), aconselhara Gambetta.
Durante mais de 40 anos a idéia de ”outra vez” foi o fator fundamental da política francesa. Nos
primeiros anos depois de 1870, o instinto e a fragilidade militar decretaram a estratégia das
fortificações e a França emparedou-se atrás de um sistema de campos fortificados, ligados por
fortalezas. Duas linhas fortificadas, Belfort-Épinal e ToulVerdun, defendiam a fronteira oriental, e
uma, Maubeuge-Valenciennes-Lille, protegia a metade ocidental da fronteira belga; os espaços
entre elas tinham por finalidade canalizar as forças invasoras.

Protegida atrás de sua^t muralhas, ”A França terá apenas um pensamento: reconstituir suas forças,
reunir sua energia, nutrir sua ira sagrada, educar sua nova geração para formar um exército de todo
o povo, trabalhar sem cessar, estudar os métodos e a capacidade dos nossos inimigos, tornar-se
novamente uma grande França, a França de 1792, a França de uma idéia corn uma espada. Então
um dia ela será invencível. Então ela retomará a Alsácia-Lorena”, Victor Hugo instava
fervorosamente.

k
Coexistindo corn a prosperidade que retornava, corn o crescimento do império e corn as eternas
querelas civis da França - o monarquismo, o boulangismo13, o clericalismo, as greves e o trágico
”caso Dreyfus”14 - a ira sagrada ainda ardia, especialmente no Exército. A única coisa que
mantinha unidos todos os elementos do Exército, fossem da velha guarda ou republicanos, jesuítas
ou maçons, era a mystique d’Alsace. Todos tinham os olhos fixos na linha azul do Vosges. Um
capitão da infantaria confessou em 1912 que costumava levar os homens de sua companhia em
patrulhas secretas de dois ou três soldados através dos pinheirais escuros até o topo das montanhas,
de onde podiam avistar lá embaixo o Colmar.

- Quando voltávamos dessas expedições clandestinas, nossas colunas entravam novamente em


formação sufocadas e mudas de emoção - relatou.

Originalmente nem alemã, nem francesa, a Alsácia foi disputada pela França e Alemanha até que,
no reinado de Luis XIV, ela foi ”confirmada como propriedade da França pelo Tratado de Vestfália
em 1648. Depois que a Alemanha anexou a Alsácia e parte da Lorena em 1870, Bismarck
aconselhou que se desse aos habitantes a maior autonomia possível, encorajando.suas
peculiaridades, pois, dizia ele, quanto mais alsacianos eles se sentissem, menos franceses se
sentiriam.

Seus sucessores não perceberam essa necessidade. Não levaram em conta os desejos de seus novos
súditos nem fizeram qualquer esforço para cativá-los; funcionários alemães administravam essas
províncias como Reichsland, ou ”território Imperial”, virtualmente sob os mesmos termos de suas
colônias africanas, e conseguiram apenas enfurecer e alienar a população, até que, em 1911, foi-lhes
outorgada uma constituição.

Mas já era tarde demais. Em 1913 o domínio alemão explodiu no caso Zabern, que começou
quando, djtpois de uma troca de insultos entre cidadãos e soldados, um oficial alemão golpeou corn
seu sabre um sapateiro aleijado. O caso terminou numa denúncia pública ’e completa da política
alemã na Reichsland, numa onda de sentimento pnti-Alemanha na opinião mundial e no triunfo
simultâneo do militarismo em Berlim, onde o oficial de Zabern tornou-se um herói e foi
parabenizado pelo Príncipe-Herdeiro.

Üi
” ::-*g&

li
13 Boulangismo: movimento encabeçado pelo general francês George Ernest Boulanger, (N. da T.)

14 Caso Dreyfus: o oficial francês Alfred Dreyfus foi condenado i prisão por traição, fato que provocou grandes
perturbações na França. Posteriormente foi comprovada a injustiça feita ao oficial. (N. da T.) ir 1*1 ^
Para a Alemanha, 1870 não era uma decisão definitiva. O dia alemão na Europa, que eles pensaram
ter amanhecido quando o Império Alemão foi proclamado na Galeria dos Espelhos em Versalhes,
ainda não chegara. A França não fora esmagada-na realidade, o império francês estava em expansão
na África do Norte e na Indochina; o mundo da arte, da beleza e do estilo ainda se prostrava aos pés
de Paris. Os alemães ainda eram aguilhoados pela inveja do país que tinham conquistado. ’Tão bem
quanto Deus na França” era uma expressão alemã.

Ao mesmo tempo, consideravam a França culturalmente em decadência e politicamente


enfraquecida pela democracia. O professor Delbrück, o mais importante historiador da Alemanha,
anunciou: ”É impossível que um país que teve 42 ministros da guerra em 43 anos possa lutar corn
eficiência.”

Acreditando-se superiores em espírito, força, energia, esforço e virtude nacional, os alemães


julgavam merecer o domínio da Europa: a obra de Sedan precisava ser completada.

Vivendo à sombra daquele caso inacabado, a França, corn seu espírito e sua força revividos,
cansou-se de ficar eternamente em guarda, eternamente instada por seus líderes a defender-se. Na
virada do século, seu espírito rebelou-se contra 30 anos na defensiva e o inerente reconhecimento de
sua inferioridade. A França sabia-se fisicamente mais fraca que a Alemanha; sua população era
menos numerosa, sua taxa de nascimentos, menor. Ela precisava de alguma arma de que a
Alemanha carecesse, para ganhar confiança em sua sobrevivência.

A ”idéia corn uma espada” preenchia essa necessidade. Enunciada por Bergson, ela era chamada
élan vital - a vontade que tudo conquista. A crença nesse poder convenceu a França de que o
espírito humano não precisava, afinal, curvar-se às forças predeterminadas da evolução que
Schopenhauer e Hegel tinham declarado serem irresistíveis. O espírito da França seria o fator de
equalização. Sua vontade de vencer - seuelan - permitiria à França derrotar o inimigo. Seu gênio
estava em seu espírito, o espírito de Ia gloire, de
1792, da incomparável Marsellaise, o espírito da heróica carga de cavalaria do General Margueritte
diante de Sedan, quando até mesmo Wilhelm I, observando a batalha, não conseguiu deixar de
exclamar:

- Oh, lês braves gens!

A crença no fervor da França, em seu furor gallkus, reviveu a


36 confiança em si mesma, na geração após 1870. Era esse fervor que
^Síí

desdobrava seus estandartes, fazia soar seus clarins, armava seus soldados e levaria a França à
vitória, se chegasse o dia do ”Outra vez”.

Traduzido em termos militares, o élan vital tornou-se a doutrina da ofensiva. À medida que a
estratégia defensiva cedia lugar à ofensiva, a atenção dispensada à fronteira belga sofreu um desvio
gradual e progressivo em direção ao leste, ao local de onde uma ofensiva francesa pudesse ser
lançada para abrir caminho até o Reno. Para os alemães, o caminho mais comprido, através de
Flandres, levava a Paris; para os franceses, a lugar nenhum. Eles só poderiam chegar a Berlim pelo
caminho mais curto. Quanto mais o pensamento do Estado-Maior se agarrava à ofensiva, maiores
eram as forças que ele concentrava no ponto de ataque, e menores as que ficavam para defender a
fronteira corn a Bélgica.

No entanto, enquanto a filosofia militar francesa se modificava, a geografia francesa não mudava -
os fatos geográficos de suas fronteiras permaneciam como a Alemanha os fizera em 1870. Diante
dos protestos da Imperatriz Eugenie, Wilhelm I explicara que as exigências territoriais da Alemanha
”não têm outro propósito além de empurrar para trás o ponto de partida do qual os exércitos
franceses poderiam nos atacar no futuro”. Também empurraram para a frente o ponto de partida de
onde a Alemanha poderia atacar a França. Embora a geografia da França exigisse que ela adotasse
uma estratégia defensiva, sua história e seu desenvolvimento entre 1870 e
1914 fizeram corn que ela se apegasse à ofensiva.

A doutrina da ofensiva tinha sua origem na Ecole Supérieure de Ia Guerre, a Escola Superior de
Guerra, refúgio da elite intelectual do Exército, cujo diretor, o General Ferdinand Foch, era o autor
da teoria militar francesa da época. O cérebro de Foch, como um coração, continha duas válvulas:
uma bombeava entusiasmo na estratégia, a outra fazia circular o bom-senso. De um lado, Foch
pregava uma fantasia de vontade, expressa em seus famosos aforismos: ”A vontade de conquistar é
a primeira condição para a vitória” - ou, mais sucintamente, ”victoire, c’est Ia volonté” (a vitória é
força de vontade)
- e ”a batalha ganha é aquela na qual não nos reconhecemos derrotados”.

No Marne isso se traduziria na famosa ordem de atacar quando a situação exigia uma retirada. Seus
oficiais daqueles dias lembram-se de ouvi-lo berrar ”Ao ataque! Ao ataque!”, corn gestos largos e
frenéticos, dando pequenas corridas de um lado para outro como se fosse movido por uma bateria
elétrica. Mais tarde perguntaram-lhe por que ele avançou quando estava tecnicamente derrotado.

J
37
- Por quê? Não sei. Por causa dos meus homens, porque tive vontade. Além disso... Deus estava lá.

Embora fosse um dedicado estudante de Clausewitz, Foch, ao contrário dos seguidores alemães de
Clausewitz, não acreditava que um plano de batalha preparado de antemão tivesse garantia de
sucesso. Em vez disso, ensinava a necessidade de adaptabilidade e improvisação constantes, para
adequar-se às circunstâncias.

-Os regulamentos são ótimos para os exercícios de guerra, mas na hora do perigo eles são inúteis.
(...) É preciso aprender a pensar pregava.

”Pensar” significava deixar espaço para a livre iniciativa, para o imponderável sobrepujar-se ao
material, e permitir que a vontade demonstrasse seu pcder sobre as circunstâncias. Mas Foch
advertiu: a idéia de que o entusiasmo por si só pudesse triunfar era uma ”infantilidade”.

Em suas conferências e seus livros anteriores à guerra, Lês Príncipes de Ia Guerre (Os Princípios da
Guerra) e La conduite de Ia Guerre (A Condução da Guerra), ele desceu das alturas da metafísica
para o terreno das táticas - a colocação de guardas avançados, a necessidade de süreté ou proteção,
os elementos de poder de fogo, a necessidade de obediência e disciplina. A metade realista de seus
ensinamentos foi resumida em outro aforismo que ele tornou conhecido durante a guerra: ”De quoi
s’agit il?” - ”Qual é a essência do problema?”

Apesar de toda a sua eloqüência a respeito de tática, foi a mística da força de vontade de Foch que
despertou a admiração de seus seguidores. Certa vez, em 1908, quando Clemenceau pensava em
Foch, na época professor, para o posto de Diretor da Escola Superior de Guerra, um agente
particular, a quem ele enviou para assistir às aulas relatou, abismado:

- Este oficial ensina metafísica tão obscura que faz de seus alunos uns idiotas.

Embora Clemenceau mesmo assim tivesse nomeado Foch, em certo sentido o relatório do agente
era verdadeiro. Os princípios de Foch, não por serem obscuros demais, e sim atraentes demais,
montaram uma armadilha para a França. Foram adotados corn particular entusiasmo por um ”oficial
ardente e brilhante”, o Coronel Grandmaison, que era diretor do Troisième Bureau - ou
Departamento de Operações Militares - e que em 1911 pronunciou na Escola Superior de Guerra
duas conferências que tiveram um efeito catalisador.
l
O Coronel Grandmaison apreendeu apenas a cabeça e não os pés dos princípios de Foch. Expondo
seu élan sem a sua súrete, ele expressava uma filosofia militar que eletrizava a platéia, apresentando
a seus olhares encantados uma ”idéia corn uma espada” que lhes demonstrava como a França
poderia vencer.

Sua essência era a offensive à outrance - a ofensiva até o fim. Apenas isso poderia provocar a
”batalha decisiva” de Clausewitz, que ”explorada ao máximo é o ato de guerra primordial” e que
”uma vez iniciada, deve ser levada até o fim, sem hesitações, até os extremos da capacidade
humana”. Tomar a iniciativa era condição sine qua non. Os arranjos preconcebidos, baseados em
opiniões dogmáticas a respeito do que o inimigo irá fazer, eram prematuros; só se conseguiria a
liberdade de ação impondo a própria vontade ao inimigo. ”Todas as decisões de comando devem ser
inspiradas pela vontade de tomar e manter a iniciativa.” A defensiva foi esquecida, abandonada,
descartada; sua única justificativa possível era uma ocasional ”economia de forças em certos
pontos, corn a intenção de acrescentá-las ao ataque”.

O efeito no Estado-Maior foi profundo, e durante os dois anos seguintes esses preceitos tomaram
forma nos novos Regulamentos de Campanha para a condução da guerra e num novo plano de
campanha que, denominado Plano 17, foi adotado em maio de 1913. Poucos meses depois das
conferências de Grandmaison, o Presidente da República, monsieur Falliêres, anunciou:

- Somente a ofensiva se coaduna corn o temperamento dos soldados franceses. (...) Estamos
decididos a marchar diretamente contra o inimigo, sem hesitação.

O novo Regulamento de Campanha, promulgado pelo governo em outubro de 1913 como


documento fundamental para treinamento e conduta do exército francês, começava corn um toque
de clarins: ”O exército francês, retornando às suas tradicpes, de agora em diante não admite outra
lei senão a ofensiva”. Seguiam-se oito mandamentos, cheios de expressões vibrantes como ”batalha
decisiva”, ”ofensiva sem hesitação”, ”impetuosidade e tenacidade”, ”quebrar a vontade do
adversário”, ”perseguição implacável e incansável”. corn todo o ardor da ortodoxia esmagando a
heresia, o Regulamento esmagava e descartava a defensiva. ”Somente a ofensiva leva a resultados
positivos”, proclamava. Seu Sétimo Mandamento, grifado pelos autores, declarava: ”As batalhas
são, acima de tudo, lutas de vontade. A derrota é inevitável quando a esperança da conquista deixa
de existir. O sucesso não vem para quem sofreu menos, mas para aquele cuja vontade é a mais
firme e cujo moral é o mais forte.”
39
- Por quê? Não sei. Por causa dos meus homens, porque tive vontade. Além disso... Deus estava lá.

Embora fosse um dedicado estudante de Clausewitz, Foch, ao contrário dos seguidores alemães de
Clausewitz, não acreditava que um plano de batalha preparado de antemão tivesse garantia de
sucesso. Em vez disso, ensinava a necessidade de adaptabilidade e improvisação constantes, para
adequar-se às circunstâncias.

-Os regulamentos são ótimos para os exercícios de guerra, mas na hora do perigo eles são inúteis.
(...) É preciso aprender a pensar pregava.

”Pensar” significava deixar espaço para a livre iniciativa, para o imponderável sobrepujar-se ao
material, e permitir que a vontade demonstrasse seu poder sobre as circunstâncias. Mas Foch
advertiu: a idéia de que o entusiasmo por si só pudesse triunfar era uma ”infantilidade”.

Em suas conferências e seus livros anteriores à guerra, Lês Príncipes de Ia Guerre (Os Princípios da
Guerra) e La conduite de Ia Guerre (A Condução da Guerra), ele desceu das alturas da metafísica
para o terreno das táticas - a colocação de guardas avançados, a necessidade de süreté ou proteção,
os elementos de poder de fogo, a necessidade de obediência e disciplina. A metade realista de seus
ensinamentos foi resumida em outro aforismo que ele tornou conhecido durante a guerra: ”De quoi
s’agit U?” - ”Qual é a essência do problema?”

Apesar de toda a sua eloqüência a respeito de tática, foi a mística da força de vontade de Foch que
despertou a admiração de seus seguidores. Certa vez, em 1908, quando Clemenceau pensava em
Foch, na época professor, para o posto de Diretor da Escola Superior de Guerra, um agente
particular, a quem ele enviou para assistir às aulas relatou, abismado:

- Este oficial ensina metafísica tão obscura que faz de seus alunos uns idiotas.

Embora Clemenceau mesmo assim tivesse nomeado Foch, em certo sentido o relatório do agente
era verdadeiro. Os princípios de Foch, não por serem obscuros demais, e sim atraentes demais,
montaram uma armadilha para a França. Foram adotados corn particular entusiasmo por um ”oficial
ardente e brilhante”, o Coronel Grandmaison, que era diretor do Troisième Bureau - ou
Departamento de Operações Militares - e que em 1911 pronunciou na Escola Superior
38 de Guerra duas conferências que tiveram um efeito catalisador.
O Coronel Grandmaison apreendeu apenas a cabeça e não os pés dos princípios de Foch. Expondo
seu élan sem a sua süreté, ele expressava uma filosofia militar que eletrizava a platéia, apresentando
a seus olhares encantados uma ”idéia corn uma espada” que lhes demonstrava como a França
poderia vencer.

Sua essência era a offensive à outrance - a ofensiva até o fim. Apenas isso poderia provocara
”batalha decisiva” deClausewitz, que ”explorada ao máximo é o ato de guerra primordial” e que
”uma vez iniciada, deve ser levada até o fim, sem hesitações, até os extremos da capacidade
humana”. Tomar a iniciativa era condição sine qua non. Os arranjos preconcebidos, baseados em
opiniões dogmáticas a respeito do que o inimigo irá fazer, eram prematuros; só se conseguiria a
liberdade de ação impondo a própria vontade ao inimigo. ”Todas as decisões de comando devem ser
inspiradas pela vontade de tomar e manter a iniciativa.” A defensiva foi esquecida, abandonada,
descartada; sua única justificativa possível era uma ocasional ”economia de forças em certos
pontos, corn a intenção de acrescentá-las ao ataque”.

O efeito no Estado-Maior foi profundo, e durante os dois anos seguintes esses preceitos tomaram
forma nos novos Regulamentos de Campanha para a condução da guerra e num novo plano de
campanha que, denominado Plano 17, foi adotado em maio de 1913. Poucos meses depois das
conferências de Grandmaison, o Presidente da República, monsieur Fallières, anunciou:

- Somente a ofensiva se coaduna corn o temperamento dos soldados franceses. (...) Estamos
decididos a marchar diretamente contra o inimigo, sem hesitação.

O novo Regulamento de Campanha, promulgado pelo governo em outubro de 1913 como


documento fundamental para treinamento e conduta do exército francês, começava corn um toque
de clarins: ”O exército francês, retornando às suas tradições, de agora em diante não admite outra
lei senão a ofensiva”. Segúiam-se oito mandamentos, cheios de expressões vibrantes como ”batalha
decisiva”, ”ofensiva sem hesitação”, ”impetuosidade e tenacidade”, ”quebrar a vontade do
adversário”, ”perseguição implacável e incansável”. corn todo o ardor da ortodoxia esmagando a
heresia, o Regulamento esmagava e descartava a defensiva. ”Somente a ofensiva leva a resultados
positivos”, proclamava. Seu Sétimo Mandamento, grifado pelos autores, declarava: ”As batalhas
são, acima de tudo, lutas de vontade. A derrota é inevitável quando a esperança da conquista deixa
de existir. O sucesso não vem para quem sofreu menos, mas para aquele cuja vontade é a mais
firme e cujo moral é o mais forte.”

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5*í

39
m

Em parte alguma dos oito mandamentos mencionava-se o poder material, ou poder de fogo, ou
aquilo que Foch denominava süreté. O ensino do Regulamento foi sintetizado na palavra predileta
do corpo de oficiais francês: lê cran, os nervos-ou, mais grosseiramente, as tripas. Como o rapaz
que partiu para o topo da montanha sob o estandarte escrito ”Excelsior!”, o exército francês
marchou para a guerra em 1914 sob um estandarte escrito ”Cran”.

Em 1911, o mesmo ano das conferências do Coronel Grandmaison, foi feito no Conselho Supremo
de Guerra um último esforço para ligar a França à estratégia da defensiva, por ninguém menos que
o General Michel, o homem designado para futuro Comandante-emChefe. Como Vice-Presidente
do Conselho, uma posição que levava consigo o cargo de Comandante-em-Chefe em caso de
guerra, o General Michel era então o mais graduado oficial do exército. Num relatório que refletia
precisamente o pensamento de Schlieffen, ele expôs sua estimativa da provável linha de ataque
alemã e suas propostas para enfrentá-la.

Ele argumentava que, por causa das escarpas naturais e das fortificações francesas ao longo da
fronteira comum corn a Alemanha, os alemães não poderiam esperar vencer uma batalha decisiva e
rápida na Lorena. Tampouco a passagem através de Luxemburgo e do canto mais próximo da
Bélgica, a leste do rio Meuse, dar-lhes-ia espaço suficiente para sua estratégia favorita: o cerco.
Apenas usando ”a Bélgica inteira”, disse ele, os alemães poderiam conseguir aquela ofensiva
”imediata, brutal e decisiva” que precisavam desfechar sobre a França antes que as forças dos
aliados desta entrassem em ação. Ele observou que os alemães ansiavam havia muito pelo grande
porto belga de Antuérpia, e isso lhes dava mais uma razão para um ataque através de Flandres.
Propôs, assim, que enfrentassem os alemães ao longo de uma linha Verdun-Namur-Antuérpia, corn
um exército francês de um milhão de homens cuja ala esquerda - como a direita de Schlieffen -
esbarrasse no Canal corn a sua manga.

O plano do GeneralMichel não apenas tinha um caráter defensivo como também dependia de uma
proposta que era anátema para seus colegas oficiais. Para equiparar-se ao número de soldados que
ele acreditava que os alemães enviariam através da Bélgica, o General Michel propôs duplicar o
efetivo da linha de frente francesa corn a adição de um regimento de reservistas a cada regimento
ativo. Não teria provocado oposição mais clamorosa se tivesse proposto Mistinguette15 para um
lugar de Imortal na Academia Francesa de Letras.
r
”Lês reserves, c’est zero!” era o dogma clássico do corpo de oficiais francês. Eram classificados
como reservistas os homens que tinham completado seu treinamento compulsório no serviço militar
e tinham entre 23 e 34 anos. corn a mobilização, as turmas mais jovens engordariam as unidades
regulamentares do exército até completar-se o efetivo de guerra; as outras formariam regimentos,
brigadas e divisões de reservistas, segundo seus distritos geográficos. Essas unidades eram
consideradas aptas apenas para serviço na retaguarda ou como guarnição das fortalezas, e
impossíveis de serem anexadas aos regimentos de combate por causa da falta de oficiais treinados
ou graduados. O desprezo do exército regular pelos reservistas, cornpartilhado pelos partidos da
direita, era exacerbado pelo repúdio ao princípio da ”nação em armas”: juntar os reservistas às
divisões da ativa seria colocar um peso morto no impulso de luta do exército. Eles acreditavam que
para defender o país só se podia confiar no exército ativo.

Os partidos de esquerda, por outro lado, corn lembranças do General Boulanger a cavalo,
associavam o Exército a coups d’état golpes de estado - e acreditavam nos princípios da ”nação em
armas” como a única salvaguarda da república. Postulavam que poucos meses de treinamento
deixariam qualquer cidadão apto para a guerra, e opunham-se violentamente à extensão do serviço
militar para três anos. O Exército exigira essa mudança em 1913, não apenas para equiparar-se ao
crescimento do Exército alemão mas também porque quanto mais homens estivessem treinando,
menos necessário seria confiar nas unidades de reserva. Depois de um debate furioso, corn o
amargo efeito de dividir o país, a Lei dos Três Anos foi promulgada em agosto de 1913.

O repúdio aos reservistas aumentou corn essa nova doutrina da ofensiva que, sentia-se, só os
soldados na ativa poderiam aprender. Para levar a cabo a investida irresistível do attaque brusquée,
simbolizada pela carga de baioneta, a qualidade essencial era o elan, e não se podia esperar élan de
homens acomodados na vida civil e corn responsabilidades familiares. Tropas de reserva misturadas
a tropas na ativa criariam ”exércitos de decadência”, incapazes de sentir vontade de conquistar.

Sabia-se que do outro lado do Reno havia sentimentos semelhantes. O Kaiser recebeu o crédito pelo
decreto ”Nenhum pai de família na frente de batalha”. No Estado-Maior francês, era um artigo

15 Mistinguette: artista francesa de cabaré muito famosa na época. (N. da T.)

n
de fé que a Alemanha não misturaria unidades de reserva corn unidades ativas, e isso levou à crença
de que os alemães não teriam na frente de batalha homens suficientes para fazer duas coisas ao
mesmo tempo; enviar uma ala direita forte numa varredura larga através da Bélgica a oeste do rio
Meuse e manter forças suficientes no centro e na esquerda para deter uma invasão francesa até o
Reno. i Quando o General Michel apresentou seu plano, o Ministro da

j:Guerra, Messimy, tratou-o ”comme une insanité’. Como presidente do | Conselho Supremo de
Guerra, ele não apenas tentou suprimi-lo, mas de imediato consultou outros membros do Conselho
quanto à conveniência de afastar Michel.

Messimy, um homem exuberante, enérgico e quase violento, de

pescoço taurino, cabeça redonda, brilhantes olhos de camponês por

trás dos óculos e voz estentórea, era um antigo oficial de carreira. Em

1899, aos 30 anos, como Capitão dos Caçadores, ele pedira baixa em

4 protesto à recusa do Exército em reabrir o Caso Dreyfus. Naqueles

J dias acalorados, o corpo de oficiais, que tradicionalmente se sentia

J separado do povo, cerrou fileiras e insistiu que admitir a possibilidade

* da inocência de Dreyfus depois de sua condenação seria destruir o

prestígio e a infalibilidade do exército.

Incapaz de colocar a lealdade ao exército acima da justiça, Messimy decidiu-se por uma carreira
política corn o objetivo declarado de ”reconciliar o exército corn o povo”. Irrompeu no Ministério
da Guerra corn paixão pelo aperfeiçoamento. Encontrando um número de generais ”incapazes não
apenas de liderar suas tropas, mas até mesmo de acompanhá-las”, ele adotou o expediente de
Theodore Roosevelt de ordenar que todos os generais conduzissem os exercícios montados em
cavalos. Quando isso provocou protestos de que o velho fulano seria forçado à reforma, Messimy
respondeu que era precisamente esse o seu objetivo. Ele fora nomeado Ministro da Guerra em 30 de
junho de 1911, depois de uma sucessão de quatro ministros em quatro meses; no dia seguinte, a
canhoneira alemã Panther surgiu repentinamente em Agadir, precipitando a segunda crise de guerra
no Marrocos.

Esperando a mobilização para qualquer momento, Messimy constatou que o generalíssimo


nomeado. General Michel, era ”hesitante, indeciso e esmagado pelo peso do dever que a qualquer
momento pode caber a ele”. Messimy julgava-o um ”perigo nacional” em seu posto. A proposta
”insana” de Michel forneceu-lhe a desculpa
42 para livrar-se dele.
No entanto, Michel recusou-se a sair sem primeiro apresentar seu plano ao Supremo Conselho de
Guerra, que incluía os principais generais da França: Gallieni, o grande colonialista; Pau, de um só
braço, veterano de 1870; Joffre, o engenheiro silencioso; Dubail, modelo de elegância, que usava o
quepe caído sobre um olho corr o ”chie exquis” do Segundo Império. Todos teriam comandos
ativos em 1914, e dois tornar-se-iam marechais da França.

Nenhum deles apoiou o plano de Michel. Um oficial do Ministério da Guerra presente à discussão
declarou: ”E inútil discutir. O General Michel está fora de si.”

Não se sabe se esse veredito representava a opinião de todos os presentes - mais tarde Michel
sustentaria que o General Dubail, por exemplo, originalmente concordava corn ele. Messimy, que
não fazia segredo de sua hostilidade, convenceu o Conselho. Um capricho do destino fez corn que
Messimy tivesse uma personalidade forte, e Michel não. Estar corn a razão e ser voto vencido não é
motivo para se perdoar pessoas em posições de responsabilidade, e Michel pagou devidamente por
sua clarividência. Destituído de seu comando, foi nomeado Governador Militar de Paris, onde, num
momento crucial da crise vindoura, ele mostrou-se realmente ”hesitante e indeciso”.

Messimy, tendo esmagado corn fervor a heresia de Michel apoiar a doutrina da estratégia ofensiva -
fez o possível, como Ministro da Guerra, para equipar o exército para uma ofensiva vitoriosa, mas
foi por sua vez frustrado em seu projeto favorito - a necessidade de reformar o uniforme francês.
Depois da Guerra dos Bôeres, os ingleses adotaram o caqui, e os alemães estavam para mudar do
azul-escuro para o cinzento-escuro. Mas em 1912 os soldados franceses ainda usavam os mesmos
dólmãs azuis, calças e quepes vermelhos de 1830, quando uma bala de fuzil percorria apenas 200
passos e os exércitos, lutando de perto, não precisavam de camuflagem. Visitando a frente nos
Bálcãs em 1912, Messimy constatou as vantagens usufruídas pelos búlgaros, que usavam cores
escuras, e voltou para casa decidido a diminuir a visibilidade do exército francês.

Porém seu projeto ,de vesti-lo em cinza-azulado ou cinza-esverdeado provocou uma onda de
protestos. O orgulho militar era tão intransigente no tocante a desistir de suas calças vermelhas
quanto o era a respeito de adotar armas pesadas. Mais uma vez sentia-se que o prestígio militar
estava em jogo. Os defensores do exército declaravam: vestir o soldado francês numa cor obscura e
inglória seria premiar as mais caras esperanças dos maçons e dos partidários de

«
Dreyfus. Banir ”tudo que é colorido, tudo que dá ao soldado seu aspecto vivido”, escreveu o Écho
de paris, ”é ir contra tanto o gosto francês quanto a função militar”. Messimy observou que essas
duas coisas talvez não mais fossem sinônimas, mas seus oponentes mostraram-se irredutíveis.
Numa audiência parlamentar, um antigo Ministro da Guerra, monsieur Etienne, falou pela França.

-Eliminar as calças vermelhas?-gritou.-Nunca! Lê pantalon rouge, c’est Ia France! ”16

”Essa fixação cega e estúpida à mais visível de todas as cores teria conseqüências cruéis”, escreveu
Messimy mais tarde.

Enquanto isso, ainda em meio à crise de Agadir, ele tivera que escolher um novo futuro
generalíssimo para o lugar de Michel. Planejava dar mais autoridade ao posto, combinando-o corn o
de Chefe do Estado-Maior e abolindo o posto de Chefe do Staff junto ao Ministério da Guerra, na
época ocupado pelo General Dubail. O sucessor de Michel teria todas as rédeas do poder em suas
mãos.

A primeira escolha de Messimy foi o austero e brilhante general de pincenê, Gallieni, que recusou;
segundo explicou, sentia escrúpulos em substituir Michel, por ter tido influência na sua demissão.
Além disso, estava corn 62 anos e faltavam apenas dois anos para aposentar-se. Acreditava também
que a nomeação de um ”colonialista” seria mal aceita pelo Exército Metropolitano - ”une question
de bouton”, ilustrou, indicando sua insígnia.

O próximo da fila, que era o General Pau, estabeleceu a condição de poder nomear generais de sua
escolha para os comandos mais graduados; conhecido por suas opiniões reacionárias, ele ameaçava
despertar a rixa mal adormecida entre o exército direitista e a nação republicana. Embora
respeitasse sua honestidade, o governo não aceitou sua condição. Messimy consultou Gallieni, que
sugeriu seu antigo subordinado em Madagascar, ”um operador frio e metódico, corn a mente lúcida
e precisa”. Assim o posto foi oferecido ao General Joseph Jacques Césaire Joffre, então corn 59
anos, antigo chefe do Corpo de Engenharia e no momento Chefe dos Serviços da Retaguarda.

Corpulento e barrigudo em sua farda frouxa, corn o rosto carnudo adornado por um espesso bigode
quase branco e pelas sobrancelhas cerradas, corn uma pele clara e juvenil, mansos olhos azuis e um
olhar cândido e tranqüilo, Joffre parecia-se corn Papai Noel e dava a impressão de benevolência e
ingenuidade - duas qualidades

44 16 ”As calças vermelhas são a própria França!” (N. da T.)


que não se percebiam em sua personalidade. Não vinha de uma família aristocrática, não era
diplomado em St. Cyr17 mas sim na menos aristocrática, embora mais científica,
ÉcolePolytechnique, não tinha passado pelo treinamento mais graduado da Academia Militar.
Como oficial do Corpo de Engenheiros, lidando corn assuntos prosaicos como fortificações e
ferrovias, ele pertencia a um ramo do exército de onde não costumavam sair ocupantes de
comandos mais altos.

Joffre era o mais velho dos onze filhos de um pequeno-burguês fabricante de barris de vinho nos
Pireneus franceses. Sua carreira militar era marcada pela eficiência silenciosa em cada posto que
ocupara; comandante de companhia em Formosa e na Indochina, major no Sudão e no Timbuctu,
funcionário da seção de ferrovias do Ministério da Guerra, professor na Escola de Artilharia, oficial
de fortificações sob Gallieni em Madagascar de 1900 a 1905, general de uma divisão em 1905 e de
um corpo em 1908 e, finalmente, Diretor da Retaguarda e membro do Conselho de Guerra desde
1910.

Não tinha ligações conhecidas corn clericais, monarquistas ou quaisquer outros grupos que
pudessem despertar preocupações; estava fora do país durante o Caso Dreyfus; sua reputação de
born republicano era tão imaculada quanto suas mãos manicuradas e ele era sólido e absolutamente
fleumático. Sua característica predominante era o hábito do silêncio, que em outros homens teria
parecido autodepreciativo mas, usado como uma aura sobre a grande e calma figura de Joffre,
inspirava confiança. Ainda lhe faltavam cinco anos para a aposentadoria.

Joffre tinha consciência de uma falha: não era treinado nas esferas rarefeitas do serviço burocrático.
Num dia quente de julho em que as portas do Ministério da Guerra na Rue St. Dominique foram
deixadas abertas, os oficiais que espiavam de suas salas viram o General Pau segurando Joffre por
um botão do uniforme.

- Aceite, cher ami - dizia Pau. - Nós lhe daremos Castelnau. Ele conhece tudo sobre o trabalho
burocrático. As coisas vão correr por si mesmas.

Castelnau, que se diplomara tanto em St. Cyr quanto na Academia Militar, era, como d’Artagnan,
da Gascônia, região que dizem produzir homens de sangue quente e cérebro frio. Ele sofria as
desvantagens do parentesco corn um marquês, das suas ligações corn Jesuítas e de um catolicismo
pessoal que ele praticava corn tanto

17 Si. Cyr: Colégio Militar francês. W. da T.)

45
fervor que durante a guerra ganhara o apelido de lê capucin botté- o Monge de Botas. No entanto,
tinha uma longa experiência no EstadoMaior. Joffre teria preferido Foch, mas sabia que Messimy
tinha um inexplicado preconceito contra ele. Como era de seu hábito, escutou sem comentários o
conselho de Pau e aceitou-o prontamente.

- Ai, ai, ai! - gemeu Messimy quando Joffre pediu que Castelnau fosse seu subchefe - Você vai criar
uma tempestade nos partidos de esquerda e arranjar um monte de inimigos.

Apesar disso, ambas as nomeações foram efetuadas, corn a concordância do Presidente, que ”fez
uma careta” ao ouvir essa condição mas concordou. Um colega general, tecendo alguma intriga
pessoal, advertiu Joffre de que Castelnau poderia tomar-lhe o lugar.

- Livrar-se de mim? Castelnau não - respondeu Joffre, sem se impressionar. - Preciso dele por seis
meses, depois you lhe dar o comando de um corpo.

corn o desenrolar dos acontecimentos, o que aconteceu foi que ele achou Castelnau insubstituível e,
quando veio a guerra, deu-lhe o comando não de um corpo, mas de um exército.

A suprema autoconfiança de Joffre ficou demonstrada no ano seguinte, quando seu


ajudante-de-ordens, Major Alexandre, perguntou-lhe se ele achava que a guerra era iminente.

-Certamente que sim-respondeu Joffre.-Sempre achei. Ela virá. you fazer a guerra e vencê-la.
Sempre triunfei em tudo que faço. Como no Sudão. Vai ser assim novamente.

- Isso vai significar um bastão de Marechal para o senhor sugeriu o major, corn certo temor diante
dessa perspectiva.

- Sim - concordou Joffre, corn lacônica serenidade.

Sob a égide dessa figura inexpugnável, de 1911 em diante o Estado-Maior lançou-se à tarefa de
rever o Regulamento de Campanha, treinando as tropas dentro do novo espírito e fazendo um novo
plano de campanha para substituir o então obsoleto Plano 16. O cérebro mentor, Foch, tinha sido
afastado, promovido e deslocado da Academia Militar para o campo e finalmente para Nancy, onde,
segundo ele próprio, a fronteira de 1870 ”corta como uma cicatriz o seio da nação”. Ali, protegendo
a fronteira, comandou o XX Corpo, que ele logo tornaria famoso. No entanto, deixou uma
”panelinha” de seus discípulos, que formavam o séquito de Joffre.

Deixou também um plano estratégico que se tornou a estrutura

do Plano 17. Completado em abril de 1913, esse plano foi adotado em

46 maio pelo Supremo Conselho de Guerra sem discussão ou consulta,


juntamente corn o novo Regulamento de Campanha. Os oito meses seguintes foram gastos na
reorganização do Exército segundo esse plano e na preparação de todas as instruções e ordens de
mobilização, transportes, serviços de suprimento, áreas e programações de movimentação e
concentração.

Em fevereiro de 1914 o plano já estava pronto para ser distribuído em partes para cada um dos
generais dos cinco Exércitos em que se dividiam as forças francesas; cada um tomava conhecimento
apenas da parte que lhe dizia respeito.

Sua idéia motivadora, segundo Foch, era: ”É preciso chegar a Berlim atravessando Mayende”, isto
é, atravessando o Reno em Mainz, 200 quilômetros a noroeste de Nancy. Esse objetivo, no entanto,
era apenas uma idéia; ao contrário do Plano Schlieffen, o Plano 17 não discriminava um objetivo
geral e nenhuma programação explícita de operações. Não era um plano de operações, mas de
movimentação, corn instruções para várias linhas de ataque possíveis para cada Exército,
dependendo das circunstâncias, mas sem um objetivo declarado. Por ser em essência um plano de
reação ou resposta a um ataque alemão, de cujo caminho os franceses não podiam ter certeza de
antemão, ele tinha de ser necessariamente, como Joffre afirmou, ”a posteriori e oportunista”. Sua
intenção era inflexível: atacar! Tirante isso, as disposições eram flexíveis.

Uma breve instrução geral de cinco sentenças, classificada como secreta, foi tudo que foi mostrado
a todos os generais que deveriam seguir o plano, e eles não tiveram permissão para discutir o
assunto. De qualquer maneira, o que eles ficaram sabendo pouco oferecia para ser discutido. Como
o Regulamento de Campanha, o Plano 17 começava corn um prelúdio: ”Sejam quais forem as
circunstâncias, a intenção do Comandante-em-Chefe é avançar corn todas as forças unidas para o
ataque aos exércitos alemães.”

O resto das instruções gerais declarava simplesmente que a ação francesa consistiria em duas
grandes ofensivas, uma à esquerda e uma à direita da área fortificada alemã de Metz-Thionville.
Aquela à direita, ou sul de Metz, atacaria diretamente em direção ao leste através da antiga fronteira
da Lorena, ao passo que uma operação secundária na Alsácia planejava ancorar os franceses no
Reno. A ofensiva à esquerda, ou ao norte de Metz, atacaria em direção ao norte ou, se o inimigo
violasse o território neutro, para o nordeste, através de Luxemburgo e dos Ardennes belgas, mas
esse movimento seria executado ”apenas por ordem do Comandante-em-Chefe”. O propó-

47
sito geral, embora isso não estivesse declarado em parte alguma, era atravessar até o Reno e ao
mesmo tempo isolar e cortar pela retaguarda a ala direita dos invasores alemães.

Para esse fim, o Plano 17 dispunha os cinco exércitos franceses ao longo da fronteira, de Belfort, na
Alsácia, até Hirson, a cerca de um terço do caminho ao longo da fronteira franco-belga. Os restantes
dois terços da fronteira belga, de Hirson até o mar, ficariam indefesos. Era ao longo desse trecho
que o General Michel planejara defender a França - quando substituiu Michel, Joffre encontrou esse
plano no cofre do escritório. Ele concentrava o centro de gravidade das forças francesas nesse
trecho da extremidade esquerda da linha, que Joffre deixou vazio. Tratava-se de um plano de pura
defesa, que não deixava lugar para a iniciativa; era, como Joffre concluiu depois de um estudo
cuidadoso, ”uma tolice”.

O Estado-Maior francês recebeu várias informações recolhidas pelo Deuxième Bureau, o órgão
militar de Informações, indicando um poderoso cerco alemão pela ala direita, mas considerava os
argumentos contra tal manobra mais convincentes do que as evidências a seu favor.

Não se acreditava numa invasão através de Flandres, embora o Estado-Maior tivesse sido informado
disso de modo contundente por um oficial do Estado-Maior alemão que em 1904 entregou a eles
uma antiga versão do Plano Schlieffen. Numa série de três encontros corn um oficial do serviço de
informações francês, em Bruxelas, Paris e Nice, o alemão apareceu corn a cabeça envolta em gaze,
revelando apenas um bigode grisalho e um par de olhos penetrantes.

Os documentos que ele entregou - em troca de uma quantia razoável - revelavam que os alemães
planejavam entrar através da Bélgica via Liège, Namur e Charleroi, e invadir a França ao longo do
vale do rio Oise via Guise, Noyon e Compiègne. A rota era correta para 1914, pois os documentos
eram autênticos. O General Pendezac, então Chefe do Estado-Maior francês, acreditava que aquela
informação ”combinava perfeitamente corn a atual tendência da estratégia alemã, que prega a
necessidade de uma ampla manobra de cerco”, mas muitos de seus colegas ficaram em dúvida. Não
acreditavam que os alemães pudessem mobilizar homens suficientes para uma manobra em tal
escala, e suspeitavam que a informação fosse uma farsa destinada a atrair os franceses para longe da
verdadeira área de ataque.

O planejamento francês foi prejudicado por uma variedade de incógnitas, e a maior delas era a
Bélgica: para a mente lógica dos
franceses, parecia óbvio que os alemães colocariam os ingleses contra si se violassem a Bélgica e
atacassem Antuérpia. Seria provável que os alemães fizessem a si próprios esse desserviço? Em vez
disso, não era mais provável que, deixando a Bélgica inviolada, eles voltassem para o antigo plano
de Moltke de atacar a Rússia primeiro, antes que a lenta mobilização russa pudesse ser completada?

Tentando adaptar o Plano 17 a pelo menos uma das diversas hipóteses sobre a estra tégia alemã,
Joffre e Castelnau acreditavam que a mais provável delas fosse uma grande ofensiva inimiga
através do planalto da Lorena. Imaginavam que a Alemanha violaria a Bélgica a leste do rio Meuse.
Calculavam em 26 corpos a força alemã na frente ocidental, sem o uso de reservas na linha de
frente. Castelnau concluiu: seria impossível que esse número aumentasse suas forças do outro lado
do Meuse. ”Eu tinha a mesma opinião”, reconheceu Joffre.

Jean Jaurès, o grande líder socialista, pensava de modo diferente. Liderando a luta contra a Lei dos
Três Anos, em seus discursos e seu livro UArmée Nouvelle (O Novo Exército) ele insistia: a guerra
do futuro seria de exércitos de massa, utilizando todos os cidadãos, e era isso que os alemães
estavam preparando; os reservistas dos 25 aos 33 anos estavam no máximo de seu vigor e eram
mais dedicados do que os mais jovens, sem responsabilidades; a França estaria sujeita a uma terrível
”submersão” se não usasse todos os seus reservistas na linha de frente.

Fora da panelinha do Plano 17 havia também críticos militares, que argumentavam fortemente em
favor da defensiva. O Coronel Grouard, em seu livro La Guerre Éventuelle (A Guerra Eventual),
publicado em 1913, escreveu: ”É acima de tudo na ofensiva alemã através da Bélgica que devemos
fixar nossa atenção. Pelo que se pode prever das conseqüências lógicas da abertura de nossa
campanha, podemos dizer sem hesitação que seremos derrotados se tomarmos a ofensiva no início.”
Mas se a França preparasse uma reação contra a ala direita alemã, ”todas as chances estarão a nosso
favor”.

Em 1913, o Deuxième Bureau recolheu, sobre o uso de reservistas em tropas ativas alemãs,
informações suficientes para impossibilitar que o Estado-Maior francês continuasse ignorando esse
fator crucial. Uma crítica de Moltke às manobras alemãs de 1813, indicando que os reservistas
seriam usados, caiu em mãos dos franceses. O Major Melotte, adido militar belga em Berlim,
percebeu e relatou que em
1913 os alemães estavam convocando um número incomum de reservistas, de onde ele concluiu
que estavam formando um corpo de reserva para cada corpo da ativa.

49
Mas os autores do Plano 17 não queriam ser convencidos. Rejeitaram as evidências favoráveis a que
ficassem na defensiva, porque seus corações e suas esperanças, assim como seu treinamento e
estratégia, estavam fixos na ofensiva. Convenceram-se de que os alemães pretendiam usar as
unidades de reservistas apenas nas ”frentes passivas”, tais como tropas de sítio e de ocupação, e
para proteger as linhas de comunicação. Eles conseguiram a rejeição à defesa da fronteira belga
insistindo que, se os alemães estendessem sua ala direita até Flandres, deixariam o centro tão
desfalcado que os franceses, no dizer de Castelnau, poderiam ”cortá-los ao meio”. Assim, uma ala
direita alemã forte daria aos franceses a vantagem da superioridade numérica contra o centro e a
esquerda do inimigo. Esse era o significado da frase clássica de Castelnau: ”Tanto melhor para
nós!”.

Quando, nessa ocasião, o General Lebas deixava a Rue St. Dominique, declarou ao representante de
Lille, que o acompanhava:

- Eu tenho duas estrelas na manga e ele tem três; como é que ;posso discutir?

50
”Um Único Soldado Inglês...’

Os planos militares conjuntos da Inglaterra corn a França nasce- i ram em 1905, quando as distantes
vitórias dos japoneses sobre os i russos revelaram a impotência militar da Rússia e perturbaram o l
equilíbrio da Europa. De súbito e simultaneamente, os governos de S todos os países tomaram
consciência de que, se naquele momento I algum deles resolvesse precipitar uma guerra, a França
teria que lutar l sem um aliado. De imediato a Alemanha fez um teste: três semanas l depois da
derrota russa em Mukden em 1905, o Kaiser lançou um l desafio à França, aparecendo
sensacionalmente em Tânger, no dia 31 i de março. l

Para os franceses isso significava que a Alemanha estava tatean- l do à procura daquela ”outra vez”
e a encontraria - senão naquela j ocasião, logo. ”Como todo mundo, eu viera a Paris às 9:00 daquela
j manhã”, escreveu Charles Péguy, poeta, editor, místico, socialista- f contra-seu-partido e
católico-contra-sua-igreja, que interpretava, na j medida em que isso era possível a um indivíduo, a
consciência da l França. ”Como todo mundo, às 11:30 eu sabia que no espaço daquelas j duas horas
começara um novo período na história da minha vida, na história deste país, na história do mundo.”

Péguy não mencionava sua própria vida por vaidade: em agosto de 1914, aos 41 anos, ele iria
voluntariar-se para o serviço militar e seria morto em ação no Marne em 7 de setembro.

Também a Inglaterra reagiu ao desafio de Tânger. Seu sistema militar estava sendo inteiramente
revisto pelo Comitê de Lord Esher, que incluía, além dele próprio, o turbulento First Sea Lord, Sir
John Fisher, que vinha reformando a Marinha por meio de uma série de explosões, e um oficial do
exército, Sir George Clarke, conhecido por suas idéias modernas a respeito de estratégia imperial. O
”triunvirato Esher” criara um Comitê de Defesa Imperial para governar a política relacionada à
guerra, do qual Esher era membro permanente e Clarke era secretário, e tinha dotado o Exército de
um antigo Estado-Maior. No momento exato em que o Kaiser cavalgava nervosamente um fogoso
cavalo branco pelas ruas de Tânger, o Estado-Maior ocupavase de um exercício de guerra teórica,
baseado na premissa de que os 51
52

alemães atravessariam a Bélgica num largo movimento de flanqueamento a norte e a oeste do


Meuse. O estudo do mapa provou ao Diretor de Operações Militares, General Grierson, e a seu
assistente, General Robertson, que havia poucas chances de deter os alemães a não ser que as tropas
inglesas ”entrassem em cena depressa e corn força total”.

Nessa época, o que os ingleses pretendiam era a ação independente na Bélgica. O Sr. Balfour, o
Primeiro-Ministro conservador, pediu imediatamente um relatório sobre quanto tempo seria
necessário para que uma força de quatro divisões fosse mobilizada e desembarcada na Bélgica no
caso de uma invasão alemã. Em meio à crise, enquanto Grierson e Robertson estavam no
Continente examinando o terreno ao longo da fronteira franco-belga, o governo de Balfour perdeu o
poder.

Por toda parte os nervos estavam tensos corn a expectativa de que a Alemanha aproveitasse a
catástrofe russa/para precipitar a guerra no verão seguinte. Ainda não havia qualquer plano para
uma ação militar conjunta anglo-francesa. corn a Inglaterra às voltas corn eleições gerais e os
ministros espalhados pelo país fazendo campanha, os franceses foram forçados a tentar uma
abordagem não-oficial. Seu adido militar em Londres, Major Huguet, fez contato corn um
intermediário ativo e ansioso - o Coronel Repington, correspondente militar do The Times, que, a
um aceno de Esher e Clarke, abriu as negociações. Num memorando enviado ao governo francês, o
Coronel Repington perguntava: ”Posso partir do princípio de que a França não violará o território
belga se não for compelida a isso por uma violação prévia por parte da Alemanha?”

”Sim, definitivamente”, foi a resposta francesa.

Pretendendo dar um aviso, além de um prognóstico, o Coronel perguntou: ”Os franceses têm
consciência de que qualquer violação da neutralidade belga nos coloca em cena automaticamente,
em defesa de nossas obrigações, assumidas através de tratados?” Nenhum governo britânico em
toda a íhistória alguma vez comprometeu-se a entrar em ação ”automaticamente” em qualquer caso,
mas o Coronel, tendo tomado o controle do ginete, galopava longe pelo campo.

”A França sempre imaginou isso mesmo, mas nunca recebeu uma confirmação oficial”, foi a
resposta um tanto perplexa.

Através de outras perguntas retóricas, o Coronel estabeleceu que a França não tinha em boa conta
uma ação independente da Inglaterra na Bélgica e acreditava que a unidade de comando - da
França, em terra e da Inglaterra, no mar - era ”absolutamente indi&- pensa vel”.

Nesse ínterim, os Liberais tinham ganho as eleições. Tradicionalmente opostos à guerra e às


aventuras estrangeiras, estavam certos de que suas boas intenções conseguiriam manter a paz. Seu
novo Secretário do Exterior era Sir Edward Grey, que, um mês depois de tomar posse, sofreu a
perda da esposa. O novo Secretário da Guerra, Richard Haldane, era um advogado apaixonado pela
filosofia alemã; quando os militares do Conselho Superior de Guerra lhe perguntaram que tipo de
exército tinha em mente, ele respondeu:

- Um exército hegeliano.

Mais tarde, recordava: ”A conversa morreu na mesma hora”.

Quando os franceses, corn certa cautela, abordaram Grey, ele insinuou que não tinha qualquer
intenção de ”recuar” nas declarações que seu antecessor fizera à França. Ao enfrentar uma séria
crise na sua primeira semana no cargo, ele perguntou a Haldane se existia algum plano para os
ingleses lutarem ao lado dos franceses no caso de uma emergência. Haldane procurou nos arquivos
e nada encontrou. Suas investigações revelaram que seriam necessários dois meses para colocar
quatro divisões no Continente.

Grey quis saber se não poderia haver ”conversações” entre os Estados-Maiores, como uma
”precaução militar”, sem compromisso para a Grã-Bretanha. Haldane consultou o
Primeiro-Ministro, Sir Henry Campbell-Bannerman, que, apesar de sua filiação partidária, tinha tão
grande estima pessoal pelas coisas francesas que às vezes pegava o vapor do Canal e ia almoçar em
Calais, voltando no mesmo dia. Ele deu permissão para as conversas entre os Estados-Maiores,
embora tivesse algumas dúvidas quanto ao destaque dado aos ”preparativos conjuntos”. Temia que,
chegando ”muito perto de um acordo de honra”, essas conversações pudessjem destruir a
maravilhosa indefinição da Entente,

Para evitar tal contrariedade, Haldane fez corn que o General Grierson e o Major Huguet
assinassem uma carta declarando que as conversas não significavam qualquer compromisso por
parte da GrãBretanha. Estabelecida essa fórmula de segurança, ele autorizou o início das conversas.
Daí em diante, ele, Grey e o Primeiro-Ministro deixaram o assunto nas mãos dos militares, na
qualidade de ”assunto departamental”, sem que o resto do Gabinete fosse informado disso.

Daí em diante os Estados-Maiores tomaram conta. Naquele verão, vários oficiais britânicos
participaram das manobras francesas, 53
inclusive Sir John French, um general da cavalaria que ganhara fama na Guerra dos Bôeres.
Grierson e Robertson revisitaram a fronteira em companhia do Major Huguet. Juntamente corn o
Estado-Maior francês, eles escolheram bases de desembarque e áreas de disposição das tropas ao
longo de uma frente que ia de Charleroi até Namur e para o interior dos Ardennes, na hipótese de
uma invasão alemã através da Bélgica.

No entanto, o ”triunvirato Esher” desaprovava fundamentalmente empregar o Exército inglês como


mero adjunto ao francês e, dissipada a tensão da crise marroquina, o planejamento conjunto iniciado
em 1905 não seguiu mais longe. O General GriersonT foi substituído. A opinião dominante,
representada por Lord Esher, favorecia a ação na Bélgica independentemente dos franceses, pois a
tomada de Antuérpia e do litoral adjacente era de interesse direto dos ingleses.

Na veemente opinião de Sir John Fisher, a ação inglesa deveria ser predominantemente naval. Ele
duvidava da capacidade militar dos franceses, calculava que os alemães os derrotariam em terra e
não via razão para enviar o Exército inglês de barco para ser incluído nessa derrota. A única ação
em terra que ele defendia era um salto audacioso para as costas da Alemanha, e já escolhera o local
exato - um ”trecho de 15 quilômetros de areia dura” ao longo da costa báltica da Prússia Oriental.
Ali, a apenas 150 quilômetros de Berlim - o ponto mais próximo à capital alemã que podia ser
alcançado por mar-, as tropas britânicas desembarcadas pela Marinha poderiam tomar e defender
uma base de operações e ”manter um milhão de alemães ocupados”. À parte isso, o Exército deveria
ficar ”absolutamente restrito a (...) fazer incursões súbitas à costa, recuperar Heligoland e guarnecer
a Antuérpia”.

Na opinião de Fisher, o plano de combater na França era uma ”idiotice suicida”, o Departamento de
Guerra era notável por sua ignorância a respeito de guerra e o Exército deveria ser administrado
como ”anexo à Marinha”. No início de 1910, Fisher, aos 69 anos, foi simultaneamente elevado à
nobreza e afastado do Almirantado, mas isso estava longe de signifidar o fim de suas atividades.

Passada a emergência de 1906, os planos militares conjuntos corn a França fizeram pouco progresso
nos anos seguintes. Nesse ínterim, dois homens formaram uma amizade trans-Canal que viria a
servir como primeiro cabo para a construção de uma ponte.

O Staff College era então comandado pelo General-Brigadeiro


54 Hervry Wilson, um anglo-irlandês alto, ossudo e exuberante, corn um
rosto que, segundo ele próprio achava, parecia um focinho de cavalo. Rápido e impaciente, Wilson
estava constantemente fervilhando de idéias, emoções, entusiasmo, imaginação e, acima de tudo,
energia. Quando servia no Departamento de Guerra em Londres, costumava exercitar-se antes do
café da manhã trotando em volta do Hyde Park carregando consigo o jornal, para ler sempre que
diminuía o passo. Educado por uma série de governantas francesas, falava fluentemente o francês.

Estava menos interessado na Alemanha. Em janeiro de 1909 Schlieffen publicou um artigo anônimo
no Deutsche Revue protestando contra certas mudanças feitas em seu plano por seu sucessor,
Moltke. Nesse artigo era revelada a estrutura básica, se não os detalhes, da ”Canas colossal”
preparada para o cerco dos exércitos francês e inglês, e a identidade de seu autor podia ser
adivinhada. Quando um estudante de Camberley trouxe o artigo à atenção do Comandante, Wilson
devolveu-o corn um comentário casual:

- Muito interessante.

Em dezembro de 1909, o General Wilson resolveu ir visitar seu colega francês, o General Foch,
Comandante da École Supérieure de Ia Guerre. Assistiu a quatro aulas e, um seminário, e foi
gentilmente convidado a tomar chá corn o General Foch, que, embora não tivesse paciência corn as
interrupções de visitantes ilustres, achava que devia isso a seu colega britânico.

O General Wilson, entusiasmado corn o que tinha visto e ouvido, ficou para três horas de conversa.
Quando Foch conseguiu finalmente levar seu visitante até a porta e fazer o que ele pensava ser a
despedida final, Wilson anunciou alegremente que voltaria no dia seguinte para continuar a
conversa e aprender mais sobre o currículo da Escola.

Foch não pôde deixar de admirar o cran do inglês e apreciar o seu interesse. A segunda conversa
abriu-lhes a mente: antes de um mês Wilson estava de volta a Paris para outro encontro. Foch
aceitou o convite para ir a Londres na primavera e Wilson concordou em voltar no verão para uma
visita ao Estado-Maior francês.

Quando Foch foi a Londres, Wilson apresentou-o a Haldane e aos outros no Ministério da Guerra.
Abrindo de chofre a porta de uma sala, ele declarou: ”Lá fora está um general francês, o General
Foch. Ouçam, o que eu digo: este homem vai comandar os exércitos aliados quando vier a grande
guerra”. Wilson já tinha então aceito o princípio da unidade de comando e escolhido o homem para
esse comando, embora fossem necessários quatro anos de guerra e a beira da derrota para que os
acontecimentos lhe dessem razão.

55
No curso de várias visitas depois de 1909, os dois comandantes ficaram grandes amigos, a ponto de
Wilson ser aceito no círculo familiar do francês e convidado para o casamento da filha de Foch.
corn seu amigo ”Henri”, Foch passava horas no que um observador ichamou de ”formidáveis
mexericos”. Costumavam trocar de quepes e caminhar juntos de um lado para outro, o comprido e o
baixinho, conversando e gracejando.

Wilson ficou particularmente impressionado corn a intensidade e rapidez corn que os estudos eram
conduzidos na Escola Superior de •f Guerra francesa. Os oficiais-instrutores apressavam
constantemente os alunos corn ”Vüe, vite!” e ”Allez, allezl”. Essa técnica da pressa, introduzida nas
aulas de Camberley, foi logo apelidada de ”operações allez de Wilson”.

Uma pergunta de Wilson a Foch durante sua segunda visita, em janeiro de 1910, provocou uma
resposta que expressava numa única frase o problema da aliança corn os ingleses, do ponto de vista
francês:

- Qual é a menor força militar britânica que seria de utilidade prática para vocês?

A resposta de Foch caiu como um golpe de espada:

- Um únicosoldado inglês., .e vamos providenciar para que ele logo seja morto.

Também Wilson queria ver a Inglaterra comprometida. Convencido de que a guerra corn a
Alemanha era iminente e inevitável, esforçou-se para transmitir seu sentimento de urgência aos
colegas e alunos, e ele próprio absorveu-se totalmente nisso. Sua oportunidade chegou em agosto de
1910, quando foi nomeado Diretor de Operações Militares - o posto que o General Grierson
ocupava ao iniciar as conversas militares corn a França. Quando o Major Huguet veio correndo
visitar o novo Diretor para queixar-se da falta de progresso desde 1906 na importante questão da
cooperação militar anglo-francesa, Wilson respondeu:

- Importante questão? Mas é vital! Não há outra!

O planejamento conjunto ganhou de imediato um novo impulso. Wilson não podia ver coisa alguma
ou visitar parte alguma que não a França e a Bélgica. Em sua primeira visita, em 1909, ele passara
dez dias inspecionando, de trem e de bicicleta, as fronteiras francobelga e f ranco-alemã, de
Valenciennes a Belfort. Tinha descoberto que ”a opinião de Foch sobre o avanço alemão através da
Bélgica é exatamente a mesma que eu tenho, sendo a linha importante entre
56 Verdun e Namur” - em outras palavras, a leste do rio Meuse.
Durante os quatro anos seguintes, ele repetiu as visitas três ou quatro vezes por ano, e em cada uma
delas fazia excursões de bicicleta ou automóvel pelos antigos campos de batalha de 1870 e os
campos de batalha previstos para o futuro, na Lorena e nos Ardennes. A cada visita ele
conferenciava corn Foch e, depois da partida de Foch, corn Joffre, Castelnau, Dubail e outros
membros do Estado-Maior francês.

Uma parede inteira do escritório de Wilson no Departamento de Guerra era coberta por um imenso
mapa da Bélgica, onde cada estrada por onde ele achava que os alemães marchariam estava
marcada corn forte tinta preta. Quando Wilson chegou ao Departamento de Guerra, descobriu que
sob a nova ordem - imposta pelo ”Schopenhauer entre os generais”, como Haldane era chamado - o
Exército regular tinha sido perfeitamente treinado, preparado e organizado para formar uma força
expedicionária no momento de necessidade, corn preparação completa para transformar-se numa
força de guerra corn um dia de mobilização, mas não havia plano algum para transportá-lo através
do Canal, alojá-lo, alimentá-lo, levá-lo para as áreas de concentração na França e alinhá-lo corn os
exércitos franceses.

Wilson foi levado a periódicos paroxismos de irritação pelo que considerava letargia do
Estado-Màior, e os registrava em seu diário: ”(...) muito insatisfeito (...) nenhum planejamento
ferroviário (...) nenhum planejamento de suprimento dos cavalos (...) um estado de coisas
escandaloso! (...) nenhum planejamento ferroviário para os portos, nenhum planejamento de pessoal
para os portos, nenhum ’. planejamento naval (...) absolutamente nenhum planejamento médico (...)
o problema dos cavalos não foi resolvido (...) não existe absolutamente coisa alguma, o que é um
escândalo! (...) vergonhosa falta de preparação (...) o problema dos cavalos num estado
vergonhoso!”

No entanto, corn toda essa falta de planejamento - e de cavalos


- ele conseguira criar, em março de 1911, um esquema de mobilização segundo o qual ”todas as seis
divisões da infantaria embarcariam no quarto dia, a cavalaria no sétimo dia, a artilharia no nono
dia”.

Foi bem a tempo: a 12 de julho de 1911, o Panther chegou a Agadir. Em todas as chancelarias da
Europa sussurrava-se: ”Guerra!” Wilson correu para Paris no mesmo mês em que o Conselho de
Guerra francês, afastando o General Michel, deu as costas definitivamente à defensiva. Junto corn o
General Dubail ele redigiu um memorando prometendo uma força expedicionária de seis divisões
regulares e uma divisão de cavalaria no caso de ser necessária uma intervenção britânica. Esse
memorando, assinado por Wilson e Dubail em 20 de 57
julho, especificava uma força total de 150.000 homens e 67.000 cavalos, que deveriam desembarcar
no Havre, em Bolonha e rio acima em Rouen, entre o quarto e o décimo segundo dias de
mobilização, para seguirem por trem para uma área de concentração na região de Maubeuge e
estarem prontos para entrar em ação no M-13 - décimo terceiro dia da mobilização.

corn efeito, se houvesse a guerra e a Inglaterra entrasse nela, o acordo Dubail-Wilson atrelava o
Exército inglês ao francês, colocando-o onde ele prolongaria a linha francesa e defenderia o flanco
francês contra o cerco. Como o Major Huguet registrou corn prazer, isso significava que os
franceses tinham demovido Wilson e o EstadoMaior inglês de ”um teatro de operações secundário”
em favor de uma ação conjunta no ”teatro principal, isto é, o francês”. Na verdade, a Marinha
inglesa era tão responsável quanto os franceses, pois sua recusa em garantir portos de desembarque
acima da linha Dover-Calais impedia que se desembarcasse mais perto da Bélgica, ou mesmo
dentro dela.

Wilson registrou em seu diário que ao voltar a Londres a questão do momento era se a Alemanha
iria à guerra ”corn a França e conosco”. Interrogado durante o almoço por Grey e Haldane, ele
apresentou um enfático programa de três pontos. ”Primeiro, precisamos nos juntar aos franceses.
Segundo, precisamos fazer a mobilização no mesmo dia que os franceses. Terceiro, precisamos
mandar todas as seis divisões.”

Ele, que se sentia ”profundamente insatisfeito” corn a maneira pela qual os dois civis enxergavam a
situação, logo teria outra oportunidade para instruir o Governo sobre os fatos da guerra. Em 23 de
agosto, o Primeiro-Ministro Asquith (sucessor de Campbell-Bannerman desde 1908) convocou uma
reunião especial e secreta do Comitê Imperial de Defesa para esclarecer a estratégia britânica em
caso de guerra.

A reunião durou o dia inteiro: na parte da manhã, o General Wilson expôs a opinião doíxército; à
tarde, o sucessor de Fisher - o Almirante Sir Arthur Wilson, conhecido como ”o velho durão”
apresentou a opinião da Marinha. Além de Asquith, Grey e Haldane, estavam presentes outros três
membros do Gabinete: o Secretário das Finanças, Lloyd George, o Chefe do Almirantado, Sr.
McKenna, e o Secretário do Interior.

Este era um rapaz de 37 anos a quem era impossível deixar


58 despercebido e que durante a crise, de seu inadequado posto, tinha
l
alvejado o Primeiro-Ministro corn suas idéias sobre estratégia militar e naval, todas bastante
sensatas; tinha também apresentado uma previsão impressionantemente acurada do futuro curso da
luta. Ele não tinha qualquer dúvida sobre o que era necessário fazer. Esse Secretário do Interior
chamava-se Winston Churchill.

Wilson, diante desse grupo de ”homens ignorantes”, como ele os chamava, e acompanhado por seu
colega oficial e futuro chefe, Sir John French, ”que não sabe coisa alguma do assunto”, prendeu seu
grande mapa da Bélgica na parede e discursou durante duas horas. Dissipou muitas ilusões ao
explicar que a Alemanha, contando corn a lenta mobilização russa, mandaria o grosso de suas
tropas contra os franceses, conseguindo superioridade numérica. Previu corretamente o plano
alemão de atacar numa manobra de cerco à ala direita mas, escolado nas teorias francesas, calculou
a força que desceria a oeste do rio Meuse em não mais que quatro divisões. Declarou que se todas
as seis divisões inglesas fossem enviadas para a extremidade esquerda da linha francesa assim que a
guerra fosse declarada, as chances de deter os alemães seriam favoráveis.

Quando, à tarde, chegou a vez do Almirante, os perplexos civis espantaram-se ao constatar que o
plano da Marinha nada tinha em comum corn o do Exército. Ele propunha desembarcar a força
expedicionária não na França, mas naquela ”faixa de 15 quilômetros de areia dura” no litoral norte
da Prússia, onde ”atrairia um número maior que o seu de alemães para longe da linha de combate”.
Seu argumento era combatido violentamente pelos generais. A ausência de Lord Fisher encorajou
Asquith a rejeitá-lo, e o Exército ganhou o dia.

Daí em diante Fisher emitiria periodicamente grunhidos de contrariedade. ”A supremacia


esmagadora da Marinha britânica (...) é a única coisa que manterá o Exército alemão fora de Paris”,
ele escreveu a um amigo, meses depois. ”Nossos soldados são grotescos, corn suas idéias absurdas
sobre a guerra, mas felizmente são impotentes. O que faremos é tomar Antuérpia, e não vamos
bancar os tolos na fronteira de Vosges.” Até o último minuto, em 1914, e mesmo ” depois disso, os
planos militares britânicos seriam cutucados por uma certa lógica inescapável no plano de
Antuérpia.

A reunião de agosto de 1911, como aquela do Conselho de

Guerra francês que afastara o General Michel algumas semanas antes,

foi decisiva para a estratégia inglesa e teve um subproduto também

decisivo. Tendo sido decretada uma sacudidela nos postos decisórios

a Marinha, o vivaz Secretário do Interior, para sua alegria, passou a 59


ser o Chefe do Almirantado, e como tal, em 1914, mostrou ser indispensável.

Os ecos da reunião secreta do Comitê Imperial de Defesa irritaram os membros do Gabinete que
tinham ficado de fora e que pertenciam à ala fortemente pacifista do partido. Henry Wilson ficou
sabendo que era considerado o vilão dos acontecimentos e que estavam ”pedindo a minha cabeça”.
Nessa época teve início a divisão no Gabinete que iria ter papel tão importante nos dias finais de
decisão. O Governo mantinha a confortável posição de que as ”conversações” militares eram
”apenas o desfecho natural e informal de nossa íntima amizade corn a França”. Podiam ser um
desfecho natural, mas não informal. Como disse Lord Esher, corn certo realismo, ao
Primeiro-Ministro, os planos feitos em conjunto pelos Estados-Maiores tinham ”certamente nos
comprometido a lutar, quer o Gabinete goste, quer não”.

Não há registro do que Asquith respondeu ou do que ele pensava dessa questão crucial no íntimo de
sua mente, uma área que mesmo nas melhores circunstâncias era de difícil penetração.

No ano seguinte, 1912, foi assinado um acordo naval corn a França, resultado de uma missão
solene-não à França, mas a Berlim. Num esforço para dissuadir os alemães de adotar uma nova Lei
Naval que significaria um aumento da frota, Haldane foi enviado para conversar corn o Kaiser, corn
Bethmann, corn o Almirante Tirpitz e outros líderes alemães.

Era a última tentativa anglo-alemã de encontrar um terreno comum de entendimento, e fracassou.


Como um quid pró quo para manter a frota inferior à da Inglaterra, os alemães exigiram uma
promessa de neutralidade inglesa no caso de guerra entre a Alemanha e a França. Isso os ingleses se
recusaram a fazer. Haldane voltou convencido de que a corrida da Alemanha pela hegemonia na
Europa teria que ser detida mais cedo ou mais tarde. ”Pelo que estudei do Estado-Maior alemão,
concluí que, uma vez o partido alemão próguerra estivesse montado r>a sela, a guerra não seria
apenas para a derrubada da França ou da Rússia, mas para o domínio do mundo.”

Partindo de Haldane, essa conclusão teve um efeito profundo no pensamento e no planejamento do


Partido Liberal. O primeiro resultado foi um pacto naval corn a França, pelo qual os ingleses
comprometiam-se, ante uma ameaça de guerra, a proteger de ataques inimigos o Canal da Mancha e
o litoral francês, deixando a frota
60 francesa livre para concentrar-se no Mediterrâneo. Como isso coloca-
° ^^^^làeCKMnaueoGenl^
Sir Henry Wilson conversando corn Foch e o Coronel Huguet
vá a frota francesa num lugar onde ela não estaria se não fosse por esse acordo, impunha-se à
Inglaterra uma nítida obrigação.

Embora os termos do acordo não fossem do conhecimento de todo o Gabinete, havia uma sensação
inquieta de que as coisas tinham ido longe demais. Não satisfeito corn a fórmula do
”não-comp^omisso”, o grupo antiguerra insistia que isso fosse colocado por escrito. Sir Edward
Grey acedeu, na forma de uma carta a Monsieur Cambon, o embaixador francês. Escrita e aprovada
pelo Gabinete, a carta era uma obra-prima de elipses18. As conversações militares, dizia ela,
deixavam ambos os lados livres para decidir a qualquer tempo ”se deviam ou não ajudar um ao
outro através de força armada”. O acordo naval ”não era baseado num compromisso de cooperação
na guerra”. Ante a ameaça de guerra, ambos os países iriam ”levar em consideração” os planos de
seus Estados-Maiores e ”então decidir o que deveria ser feito”.

Esse curioso documento conseguiu satisfazer a todos: aos franceses, porque o Gabinete britânico em
peso tinha agora reconhecido oficialmente a existência de planos conjuntos; ao grupo contrário à
guerra, porque afirmava que a Inglaterra não estava ”comprometida”; e a Grey, porque ele tinha
desenvolvido uma fórmula que salvava os planos e acalmava seus oponentes. Grey alegava que
definir uma aliança corn a França, como era instado a fazer por certos setores, seria ”fragmentar o
Gabinete”.

Depois de Agadir, à medida que cada ano trazia sua crise de verão e o ar ficava mais pesado corn a
tempestade que se aproximava, o trabalho conjunto dos Estados-Maiores ficava mais intenso. As
viagens de Sir Henry Wilson para o exterior tornaram-se mais freqüentes. Ele considerava o novo
chefe francês, General Joffre, ”um born soldado, másculo e imperturbável, corn muito caráter e
muita determinação”, e Castelnau ”muito inteligente e sagaz”. Sir Henry Wilson continuou a
inspecionar a fronteira.belga, andando de bicicleta de um lado para outro pelas várias estradas e
sempre voltando a seu campo-de-batalha predileto de 1870, em Mars-la-Tour, perto de Metz, onde
se emocionava cada vez que via a estátua chamada ”França” que comemorava a vitória. Certa vez,
segundo ele próprio registrou, ”coloquei a seus pés um pedacinho do mapa que eu levava,
mostrando as áreas de concentração das forças britânicas no território dela”.

Em 1912 ele inspecionou as novas linhas ferroviárias alemãs, todas convergindo para Aachen e a
fronteira belga. Em fevereiro

18 Elipse: omissão de palavras (que ficam subentendidas). (N. da T.)

63
Sír Henry Wilson conversando corn Foch e o Coronel Huguet
vá a frota francesa num lugar onde ela não estaria se não fosse por esse acordo, impunha-se à
Inglaterra uma nítida obrigação.

Embora os termos do acordo não fossem do conhecimento de todo o Gabinete, havia uma sensação
inquieta de que as coisas tinham ido longe demais. Não satisfeito corn a fórmula do
”não-compT’omisso”, o grupo antiguerra insistia que isso fosse colocado por escrito. Sir Edward
Grey acedeu, na forma de uma carta a Monsieur Cambon, o embaixador francês. Escrita e aprovada
pelo Gabinete, a carta era uma obra-prima de elipses18. As conversações militares, dizia ela,
deixavam ambos os lados livres para decidir a qualquer tempo ”se deviam ou não ajudar um ao
outro através de força armada”. O acordo naval ”não era baseado num compromisso de cooperação
na guerra”. Ante a ameaça de guerra, ambos os países iriam ’levar em consideração” os planos de
seus Estados-Maiores e ”então decidir o que deveria ser feito”.

Esse curioso documento conseguiu satisfazer a todos: aos franceses, porque o Gabinete britânico em
peso tinha agora reconhecido oficialmente a existência de planos conjuntos; ao grupo contrário à
guerra, porque afirmava que a Inglaterra não estava ”comprometida”; e a Grey, porque ele tinha
desenvolvido uma fórmula que salvava os planos e acalmava seus oponentes. Grey alegava que
definir uma aliança corn a França, como era instado a fazer por certos setores, seria ”fragmentar o
Gabinete”.

Depois de Agadir, à medida que cada ano trazia sua crise de verão e o ar ficava mais pesado corn a
tempestade que se aproximava, o trabalho conjunto dos Estados-Maiores ficava mais intenso. As
viagens de Sir Henry Wilson para o exterior tornaram-se mais freqüentes. Ele considerava o novo
chefe francês, General Joffre, ”um born soldado, másculo e imperturbável, corn muito caráter e
muita determinação”, e Castelnau ”muito inteligente e sagaz”. Sir Henry Wilson continuou a
inspecionar a fronteira-belga, andando de bicicleta de um lado para outro pelas várias estradas e
sempre voltando a seu campo-de-batalha predileto de 1870, em Mars-la-Tour, perto de Metz, onde
se emocionava cada vez que via a estátua chamada ”França” que comemorava a vitória. Certa vez,
segundo ele próprio registrou, ”coloquei a seus pés um pedacinho do mapa que eu levava,
mostrando as áreas de concentração das forças britânicas no território dela”.

Em 1912 ele inspecionou as novas linhas ferroviárias alemãs, todas convergindo para Aachen e a
fronteira belga. Em fevereiro
18 E/íp;

<se: o

missão de palavras (que ficam subentendidas). (N. da T.)

63
desse ano, os planos anglo-franceses tinham chegado a um ponto em que Joffre podia afirmar ao
Supremo Conselho de Guerra que contava que os ingleses fornecessem seis divisões de infantaria e
uma de cavalaria, mais duas brigadas montadas, num total de 145.000 homens. UArmée W, como
era chamada essa força inglesa em homenagem a Wilson, desembarcaria em Bolonha, no Havre e
em Rouen, concentrando-se na região de Hirson-Maubeuge e pronta para entrar em ação no décimo
quinto dia da mobilização. Meses depois, ainda em 1912, Wilson assistiu aos exercícios de outono,
corn Joffre, Castelnau e o Grão-Duque Nicholas da Rússia; mais tarde foi à Rússia para conversar
corn o Estado-Maior russo. Em 1913 ele visitou Paris a cada dois meses, para conferenciar corn os
chefes do Estado-Maior francês e juntar-se às manobras do XX Corpo de Foch, que protegia a
fronteira.

Enquanto Wilson firmava e aperfeiçoava suas combinações corn os franceses, o novo Chefe do
Estado-Maior Imperial da Inglaterra, Sir John French, fez, em 1912, uma tentativa de ressuscitar a
idéia de uma ação independente na Bélgica. Investigações discretas, levadas a cabo pelo adido
militar inglês em Bruxelas, pôs fim a esse esforço: descobriu-se que os belgas eram intransigentes
na observância de sua neutralidade. Quando o adido britânico perguntou a respeito de possíveis
acordos conjuntos para desembarques ingleses na Bélgica, no caso de uma violação anterior por
parte dos alemães, ele foi informado que os ingleses teriam que esperar até que sua ajuda militar
fosse requisitada. Ao ministro inglês, que fez sua própria investigação, foi dito que, se as tropas
inglesas desembarcassem antes de uma invasão alemã ou sem um pedido formal por parte da
Bélgica, os belgas abririam fogo.

A intransigência da Bélgica confirmou o que os ingleses não se cansavam de repetir aos franceses:
tudo dependia dos alemães violarem a neutralidade belga primeiro. Em 1911, Lord Esher advertiu o
Major Huguet:

- Nunca, sob pretexto algum, deixe os comandantes franceses serem os primeiros a atravessar a
fronteira belga!

E acrescentou que, se fizessem isso, a Inglaterra jamais poderia vir a apoiar a França. Se os alemães
o fizessem, colocariam a Inglaterra contra eles. Monsieur Cambon, embaixador francês em Londres,
expressou essa condição, mas ao contrário. Seus despachos tinham sempre o mesmo sentido: a
França só poderia ter certeza do apoio
64 britânico se a Alemanha violasse a Bélgica.
Na primavera de 1914, o trabalho conjunto dos Estados-Maiores francês e inglês estava completo,
até o último acampamento de cada batalhão, até mesmo os lugares onde beberiam seu café. O
número de vagões ferroviários franceses a serem usados, a contratação dos intérpretes, a preparação
de códigos e cifras, a ração dos cavalos, tudo já estava resolvido ou previsto para estar resolvido até
julho.

O fato de Wilson e seus homens estarem em constante comunicação corn os franceses tinha que ser
mantido em segredo. Todo o trabalho do Plano W - como ambos os Estados-Maiores denominavam
o movimento da força expedicionária - foi feito em total segredo, conhecido apenas por meia dúzia
de oficiais, que faziam até mesmo o trabalho de datilografia, arquivo e demais serviços de
escritório. Enquanto os militares dispunham as linhas de batalha, os líderes políticos ingleses,
tapando os olhos corn o manto do ”nãocompromisso”, recusavam-se resolutamente a enxergar o que
eles faziam.

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65
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O Rolo Compressor Russo

O colosso russo exercia um feitiço sobre a Europa. No tabuleiro de xadrez do planejamento militar,
o tamanho da Rússia e seu peso numérico representavam a peça maior. Apesar de seu fraco
desempenho na guerra contra o Japão, a idéia do ”rolo compressor” russo consolava e encorajava a
França e a Inglaterra; o terror aos eslavos às suas costas perseguia os alemães.

Embora as deficiências do exército russo fossem notórias, embora o inverno russo, e não o exército
russo, tivesse afastado Napoleão de Moscou, embora os russos tivessem sido derrotados em seu
próprio solo pelos franceses e ingleses na Criméia, embora em 1877 os turcos os tivessem vencido
no cerco de Plevna, só sucumbindo, mais tarde, ante uma maioria esmagadora de russos, embora os
japoneses os tivessem derrotado na Manchúria, o mito de sua invencibilidade perdurava. A
selvagem carga de cavalaria dos Cossacos aos berros era uma imagem tão forte nas mentes
européias que os desenhistas de jornal, em agosto de 1914, conseguiram desenhá-la em detalhes
impressionantes, mesmo não tendo chegado sequer a 1.500 quilômetros da frente russa. Os
Cossacos, e infindáveis milhões de mujiques rudes e estóicos, dispostos a morrer, compunham o
estereótipo do exército russo. Seus números inspiravam medo: uma força de
1.423.000 homens em tempo de paz, outros 3.115.000 a serem convocados numa mobilização e
mais uma reserva de 2 milhões de soldados de exércitos territoriais e recrutas, formando uma força
total disponível de 6.500.000 homens.

Essa força era imaginada como uma massa gigantesca, de início letárgica, mas, uma vez posta em
movimento, avançava inexoravelmente e, não importando o número de baixas, corn infindáveis
ondas de homens para ocupar o lugar dos caídos. Acreditava-se que os esforços do exército desde a
guerra corn o Japão para expurgar a incompetência e a corrupção tinham surtido efeito. Na política
francesa, ”todos estão imensamente impressionados corn o crescente poder da Rússia, seus enormes
recursos e sua força e riqueza em potencial”, observou Sir Edward Grey quando esteve em Paris,
em
66 abril de 1914, para negociar um acordo naval corn os russos. Ele
próprio compartilhava dessa impressão, e afirmou ao Presidente Poincaré: ”Os recursos russos são
tão grandes que a longo prazo a Alemanha ficará exaurida sem que precisemos ajudar a Rússia.”

Para os franceses, o sucesso do Plano 17 - a marcha irresistível para o Reno - seria a consagração de
seu país e um dos maiores momentos da história da Europa. Para assegurar sua penetração no centro
das forças alemãs, eles estavam decididos a que os russos atraíssem uma parte das forças que
tentariam impedi-los. O problema ’ era fazer a Rússia desfechar uma ofensiva na retaguarda da
Alemanha ao mesmo tempo que os alemães e franceses desfechassem as suas na frente ocidental,
isto é, o mais perto possível do décimo quinto dia de mobilização.

Os franceses sabiam muito bem que para a Rússia era fisicamente impossível completar a
mobilização e a concentração de suas forças em 15 dias, mas queriam que ela iniciasse a luta no dia
M-15 corn a força que estivesse disponível. Estavam determinados a forçar a Alemanha a lutar em
duas frentes desde o primeiro momento, para f?, reduzir a superioridade numérica alemã contra eles
próprios.

Em 1911, o General Dubail, então Chefe de Gabinete do Ministério da Guerra, foi mandado à
Rússia para doutrinar o Estado-Maior russo quanto à necessidade de tomar a iniciativa. Embora
numa guerra européia metade das forças russas viesse a ser concentrada contra a Áustria e apenas
metade daquelas destinadas a lutar contra a Alemanha pudesse estar pronta no dia M-15, o espírito
de São Petersburgo era ousado e disposto. Ansiosos por restituir a glória a seus escudos
deslustrados, e deixando que os detalhes de planejamento se resolvessem por si, os russos
concordaram, corn mais coragem do que bom-senso, em desfechar uma ofensiva simultânea à da
França. Dubail obteve a promessa de que os russos atacariam, cruzando a fronteira da Prússia
oriental no dia Msl6, assim que suas forças da linha de frente estivessem em posição, sem esperar
que a concentração se completasse. ”Devemos golpear bem no coração da Alemanha”, reconheceu
o Czar num acordo assinado. ”O objetivo de nós ambos deve ser Berlim.”

O pacto para uma ofensiva russa logo no início da guerra foi solidificado e aperfeiçoado nas
conversas militares anuais que eram uma característica da Aliança Franco-Russa. Em 1912, o
General Jilinsky, Chefe do Estado-Maior russo, foi a Paris; em 1913, o General Joffre foi à Rússia.
A essa altura os russos já tinham sucumbido ao feitiço do élan. Depois da Manchúria, também eles
tinham que corn- 67

pensar a humilhação de uma derrota militar e a consciência de suas deficiências militares.

As conferências do Coronel Grandmaisoh, traduzidas em russo, gozavam de imensa popularidade;


dominado pela brilhante doutrina da offensiveà outrance, o Estado-Maior russo ampliou suas
promessas. Em 1912, o General Jilinsky propôs-se a ter todos os 800.000 homens destinados à
frente alemã prontos no dia M-15, embora as ferrovias russas fossem evidentemente inadequadas
para isso. Em 1913, ele adiantou em dois dias a data da sua ofensiva, embora as fábricas de
armamento russas estivessem produzindo menos de dois terços da necessidade prevista de projéteis
de artilharia e menos da metade dos cartuchos de fuzil.

Os Aliados não se preocupavam seriamente corn as deficiências militares russas, embora lan
Hamilton, observador militar britânico junto aos japoneses, as tivesse relatado sem piedade, da
Manchúria. Essas deficiências eram: pouca informação, desleixo em relação à cobertura, ao segredo
e à rapidez, falta de entusiasmo, falta de iniciativa e falta de um born generalato. O Coronel
Repington, que semanalmente expunha no The Times a sua opinião sobre a guerra russojaponesa,
chegou a certas conclusões que o levaram a dedicar um livro corn a coletânea de seus artigos ao
Imperador do Japão. No entanto, os Estados-Maiores acreditavam que a única coisa importante era
simplesmente colocar o gigante russo em movimento, sem levar em conta como ele funcionava.

Isso já era bastante difícil: durante a mobilização, cada soldado russo tinha que ser transportado em
média 1.100 quilômetros, uma distância quatro vezes maior do que a média alemã, e a Rússia tinha
disponível, em ferrovias por quilômetro quadrado, um décimo do que dispunham os alemães. Como
defesa contra uma invasão, essas ferrovias tinham sido deliberadamente construídas corn uma bitola
maior do que as alemãs. Os pesados empréstimos franceses para ampliar a construção de ferrovias
ainda não tinham alcançado seu objetivo. Era obviamente impossível atingir a mesma velocidade de
mobilização, mas mesmo se apenas a metade dos 800.000 soldados prometidos para a frente alemã
pudesse ser colocada em posição no décimo quinto dia para uma investida na Prússia Oriental, e por
mais que sua organização militar fosse deficiente, calculava-se que o efeito de uma invasão ao
território alemão fosse enorme.

Enviar um exército para uma batalha moderna em território


68 inimigo, especialmente sob a desvantagem de bitolas ferroviárias
desiguais, é um empreendimento arriscado e complicado, que requer prodígios de cuidadosa
organização. E a atenção sistemática aos detalhes não era uma característica notável do exército
russo.

O corpo de oficiais era desequilibrado, corn uma superabundância de generais idosos cujo exercício
intelectual mais pesado era o jogo de cartas; para conservarem sua remuneração e seu prestígio,
eram mantidos na lista ativa independentemente de qualquer atividade. Oficiais eram nomeados e
promovidos principalmente através de apadrinhamento - social ou financeiro - e embora houvesse
entre eles muitos soldados corajosos e capazes, o sistema não tendia a levar os melhores para o
topo. Sua ”preguiça e falta de interesse” nos esportes espantaram um adido militar inglês, que, em
visita a uma guarnição da fronteira corn o Afeganistão, ficou pasmo por não encontrar ”sequer uma
única quadra de tênis”. Nos expurgos depois da guerra corn o Japão, grande número de oficiais
pedira demissão ou fora forçado a sair, num esforço para desmanchar a massa que entupia o topo.
Num único ano, 341 generais - quase tantos quanto todo o exército da França - e 400 coronéis
tinham sido aposentados por ineficiência. No entanto, apesar da melhora no pagamento e nas
promoções, em 1913 havia uma carência de 3.000 oficiais. Muita coisa tinha sido feita desde a
guerra corn o Japão para pôr um freio à decadência do exército, mas o regime russo ainda era o
mesmo.

Seu maior defensor, o Conde Witte, primeiro-ministro de 1903 a 1906, chamava-o ”Esse insano
regime, esse emaranhado de covardia, cegueira, esperteza e estupidez”. O regime era governado do
topo por um soberano que tinha uma única idéia de governo - preservar intacta a monarquia
absoluta herdada do pai - e que, carecendo de intelecto, energia ou preparação para seu trabalho,
recorria a favoritismos pessoais, caprichos, simples teimosia e outros artifícios de um autocrata de
cabeça vazia. Seu pai, Atexander in, que tencionava manter o filho ignorante em questões de estado
até os 30 anos, infelizmente calculou mal sua própria expectativa de vida e morreu” quando
Nicholas tinha 26 anos. O novo Czar, agora corn 46 anos de idade, nada aprendera nesse ínterim, e
a impressão de imperturbabilidade que ele dava era na realidade apatia - a indiferença de uma mente
tão pouco profunda que era só superfície. Quando lhe trouxeram um telegrama anunciando a
aniquilação da esquadra russa em Tsushima, ele o leu, enfiou-o no bolso e continuou a jogar tênis.

Quando o Primeiro-Ministro Kokovtsov, voltando de Berlim em


1913, fez ao Czar um relatório pessoal sobre os preparativos da

69
Alemanha para a guerra, Nicholas escutou corn seu costumeiro olhar atento e firme, ”olhando
diretamente dentro dos meus olhos”; quando o Primeiro-Ministro terminou, e depois de uma longa
pausa ”como se despertasse de um sonho, ele disse gravemente: ’Seja feita a vontade de Deus’”. Na
verdade ele estava simplesmente entediado, concluiu Kokovtsov.

Na realidade, o regime apoiava-se num formigueiro, corn a polícia secreta infiltrada em cada
ministério, repartição ou departamento de província, a tal ponto que o Conde Witte todos os anos
sentia-se compelido a depositar em segurança num cofre de banco na França as anotações e os
registros que fazia para as suas memórias. Quando outro Primeiro-Ministro, Stolypin, foi
assassinado em 1911, descobriu-se que os assassinos eram da polícia secreta, agindo como agents
provocateurs para desacreditar os revolucionários.

Entre o Czar e a polícia secreta, a base do regime era o Tchinovniki, uma classe de burocratas e
funcionários escolhidos entre os nobres e que realmente cuidavam das tarefas do governo. Não
eram responsáveis perante qualquer organismo constitucional, e eram sujeitos apenas à demissão
arbitrária por parte do Czar, que, levado pelos ventos das intrigas na Corte e das suspeitas da
esposa, fazia isso constantemente. Nessas circunstâncias, as pessoas mais capazes não ficavam
muito tempo em seus cargos, e um homem que recusou o posto alegando ”saúde fraca” inspirou um
colega a comentar: ”Naqueles dias todo mundo tinha saúde fraca”.

Fervilhando de crônico descontentamento, no reino de Nicholas II a Rússia foi vítima de desastres,


massacres, derrotas militares e insurreições que culminaram na revolução de 1905. Quando o Conde
Witte aconselhou o Czar: ou ele dava ao povo a constituição que o povo exigia ou restaurava a
ordem sob uma ditadura militar, o Czar viu-se compelido, embora amargamente contrariado, a
aceitar a primeira escolha, porque o primo de seu pai, o Grão-Duque Nicholas, comandante do
Distrito Militar de São Petersburgo, recusou-se a assumir a responsabilidade pela segunda. Por essa
falha o Grão-Duque nunca foi perdoado peleis hiper-Bourbons, os barões bálticos de sangue alemão
e simpatias alemãs, as Centenas Negras - aqueles ”anarquistas de direita” - e outros grupos
reacionários que guarneciam as trincheiras da autocracia. Eles sentiam - assim como muitos
alemães, inclusive o Kaiser em horas alternadas - que os interesses comuns das autocracias, antes
ligadas pelo Drei-Kaiser Bund, faziam da Alemanha um aliado natural da Rússia, mais do que as
democra-
70 cias do Ocidente.
Considerando os liberais russos o seu primeiro inimigo, os reacionários da Rússia preferiam o
Kaiser ao Duma, assim como a direita francesa de uma época posterior iria preferir Hitler a Léon
Blum. Apenas a crescente ameaça da própria Alemanha nos últimos
20 anos antes da guerra levaram a Rússia czarista a formar, contra sua inclinação natural, uma
aliança corn a França republicana. Mais tarde, essa ameaça chegou a aproximá-la da Inglaterra, país
que durante um século mantivera a Rússia fora de Constatinopla e do qual um dos tios do Czar, o
Grão-Duque Vladimir Alexandrovich, disse, em 1898: ”Espero viver o suficiente para ouvir os
suspiros de morte da Inglaterra. Esta é a fervorosa oração que faço a Deus todos os dias!”.

O grupo de Vladidmir dominava uma corte que vivia sua era de Nero, cujas damas se divertiam
corn as emoções de sessões vespertinas corn o pouco higiênico Rasputin. Mas a Rússia tinha
também seus democratas e liberais do Duma, seu Bakunin, o Niilista, seu Príncipe Kropotkin, que
se tornou um anarquista, sua ”intelligentsia”’, de quem o Czar comentou: ”Como detesto essa
palavra! Gostaria de poder ordenar à Academia a riscá-la do dicionário russo”, seus Levins, que
sofriam infinitamente por suas almas, pelo socialismo e pelo solo, seus desesperançados Tios
Vanyas e, finalmente, aquela sua qualidade particular que levou um diplomata inglês a concluir que
todos na Rússia eram um pouco loucos - uma qualidade chamada lê charme slav, metade
despreocupação, metade ineficiência, uma espécie de incapacidade de fin de siècle que pairava
como uma névoa fina sobre a cidade junto ao Neva que o mundo conhecia como São Petersburgo e
não sabia que era o Jardim das Cerejeiras.

No tocante à disposição para a guerra, o regime era personificado por seu Ministro da Guerra,
General Sukhomlinov, um homenzinho ardiloso, indolente, hedonista e balofo de quem seu colega,
o Ministro do Exterior Sazonov, disse: ”É muito difícil fazer corn que ele trabalhe, mas fazer corn
que fale a verdade é inteiramente impossível”.

Tendo recebido a Cruz de São George quando era um jovem e impetuoso oficial da cavalaria na
guerra de 1877 contra os turcos, Sukhomlinov acreditava que o conhecimento militar adquirido
naquela campanha era uma verdade imortal. Como Ministro da Guerra ele repreendeu um grupo de
instrutores do Staff College por seu interesse em ”inovações” tais como o fator de poder de fogo
contra o sabre, a lança e a carga de baioneta. Dizia que não suportava ouvir a expressão ”guerra
moderna” sem uma sensação de contrariedade. ”A

l
71
72

guerra continua como era... todas essas coisas são simplesmente inovações malignas. Vejam o meu
exemplo: não leio um único manual militar há 25 anos.” Em 1913 ele dispensou cinco instrutores
do Staff College que insistiam em pregar a maligna heresia de ”táticas de fogo”.

A inteligência inata de Sukhomlinov foi adulterada pela leviandade e transformou-se em esperteza e


ardilosidade. Era um homem pequeno e balofo, corn o rosto de um gato, suíças e barbas brancas e
bem cuidadas, e maneiras agradáveis, quase felinas, que cativavam aquelas pessoas - como o Czar -
que ele queria cativar. A outros, como Paléologue, o embaixador francês, ele inspirava
”desconfiança à primeira vista”.

Como o cargo de ministro, tanto na nomeação quanto na demissão, era inteiramente sujeito aos
caprichos do Czar, Sukhomlinov conseguira ganhar e manter as boas graças do governante sendo ao
mesmo tempo obsequioso e divertido, corn anedotas e atos de bufonaria, evitando assuntos sérios e
desagradáveis e cultivando cuidadosamente ”o Amigo”, Rasputin. Como resultado, mostrou-se
imune às acusações de corrupção e incompetência, a um divórcio sensacional e a um escândalo,
ainda mais sensacional, envolvendo espionagem.

Em 1906, conquistado por uma linda jovem de 23 anos que era esposa de um governador de
província, Sukhomlinov conseguiu livrar-se do marido dela através de um divórcio baseado em
evidências forjadas e fez da dama a sua quarta esposa. Preguiçoso por natureza, passou a deixar seu
trabalho cada vez mais nas mãos dos subordinados, enquanto ele, nas palavras do embaixador
francês, ”guardava as suas forças para os prazeres conjugais corn uma esposa trinta e dois anos mais
nova”.

Madame Sukhomlinov divertia-se encomendando roupas em Paris, jantando em restaurantes caros e


oferecendo grandes recepções. Para proporcionar-lhe essas extravagâncias, Sukhomlinov tornou-se
precursor e campeão da arte da ajuda de custo. Cobrava ao governo o preço de uma viagem de 24
verstas a cavalo, embora fizesse suas viagens de inspeção por trem. Conseguindo um born capital,
acrescido pelas informações internas sobre as tendências do mercado de valores, ele conseguiu
juntar 702.737 rublos durante um período de seis anos, nos quais seu salário total foi de 270.000
rublos. Nessa feliz atividade ele teve a ajuda de um círculo de pessoas suspeitas, que lhe
emprestavam dinheiro em troca de passes militares, convites para exercícios de guerra e outras
formas de informação.

Uma dessas pessoas era um austríaco chamado Altschiller, que fornecera as evidências para o
divórcio da Sra. Sukhomlinov e que era
recebido como íntimo na casa e no escritório do Ministro, onde documentos ficavam espalhados por
toda parte. Depois de sua partida em janeiro de 1914, descobriu-se que o austríaco era o principal
agente da Áustria na Rússia. Outra era o mais notório Coronel Myasoedev, que diziam ser amante
da Sra. Sukhomlinov: embora fosse um mero chefe da polícia ferroviária na fronteira, possuía cinco
condecorações alemãs e recebera do Kaiser a honra de um convite para almoçar em Rominten, o
pavilhão imperial de caça que ficava logo depois da fronteira.

Não era surpreendente que o Coronel Myasoedev fosse acusado de espionagem. Foi preso e julgado
em 1912, mas por intervenção pessoal de Sukhomlinov ele foi absolvido e pôde continuar em seu
antigo posto, até o final do primeiro ano da guerra. Em 1915, quando seu protetor finalmente perdeu
o cargo como resultado das derrotas russas, ele foi novamente preso, e então condenado e enforcado
como espião.

A sorte de Sukhomlinov depois de 1914 foi muito grande. Ele escapou de ser processado junto corn
o Coronel Myasoedev apenas pela influência do Czar e da Czarina, mas finalmente, em agosto de
1917, depois que o Czar abdicou e o Governo Provisório já se encontrava em desmoronamento,
também ele foi levado ao tribunal. Em meio ao desespero e ao tumulto daquela época, foi julgado,
mais pelos pecados do antigo regime do que por traição, que era a acusação formal. No resumo do
promotor, esses pecados foram resumidos em um só: o povo russo, tendo sido forçado a lutar sem
armas de fogo e munição, sofrerá uma perda de confiança no regime que se espalhara como uma
praga, corn ”conseqüências terríveis”.

Depois de um mês de depoimentos sensacionais, durante os quais os detalhes de suas especulações


financeiras e amorosas vieram à luz, Sukhomlinov foi absolvido da acusação de traição, mas
considerado culpado de ”abuso de poder e inatividade”. Sentenciado a trabalhos forçados por toda a
vida, foi liberado meses depois pelos bolchevistas e fugiu para Berlim, onde viveu até morrer em
1926 e onde, em 1924, publicou suas memórias, que dedicou ao Kaiser deposto. No prefácio efe
postulava que, tendo as monarquias russa e alemã sido destruídas durante a guerra como inimigas,
apenas a reaproximação dos dois países poderia levá-las de volta ao poder. Essa idéia impressionou
tanto o Kaiser exilado que ele chegou a dedicar suas próprias memórias a Sukhomlinov, mas
aparentemente foi dissuadido disso antes da publicação.

l
73
Esse era o homem que foi Ministro da Guerra da Rússia de 1908 a 1914. Personificando as opiniões
e gozando do apoio dos reacionários, sua preparação da guerra contra a Alemanha, que era a
principal tarefa do Ministro, foi algo menos que entusiasmada. A primeira coisa que fez foi deter o
movimento para a reforma do exército, que estava em progresso desde a vergonha da guerra
russo-japonesa. O EstadoMaior, que já ganhara independência para prosseguir seus estudos da
ciência militar moderna, depois de 1908 viu-se novamente subordinado ao Ministério da Guerra,
que detinha o único acesso ao Czar; privado de iniciativa e poder, não conseguiu um chefe
capacitado, ou sequer a permanência de um chefe de segunda categoria. Nos seis anos anteriores a
1914, o Estado-Maior teve seis chefes, e o efeito disso nos planos de guerra foi desastroso.

Embora deixasse o trabalho para os outros, Sukhomlinov não permitia liberdade de idéias.
Agarrando-se teimosamente a teorias obsoletas e glórias do passado, ele afirmava que as derrotas
russas deviam-se a erros dos oficiais em comando, e não a falhas de treinamento, preparação e
suprimento. corn uma fé inabalável na supremacia da baioneta sobre a bala, ele não fez qualquer
esforço para ampliar as fábricas e aumentar a produção de cápsulas, fuzis e cartuchos.

Os críticos militares sempre descobrem posteriormente que no tocante à munição nenhum país está
adequadamente preparado. A falta de munição da Inglaterra iria constituir um escândalo nacional;
na França, a carência de tudo, desde artilharia pesada até botas, já era um escândalo antes da guerra
começar; na Rússia, Sukhomlinov nem chegou a usar toda a verba que o governo destinou para
munição. A Rússia começou a guerra corn 850 cartuchos por arma, comparada à reserva de 2.000 a
3.000 por arma de que dispunham os exércitos ocidentais, embora o próprio Sukhomlinov tivesse
concordado corn um meio-termo de 1.500 por arma, em 1912. A divisão de infantaria tinha sete
baterias de canhões móveis, contra quatorze na divisão alemã. O exército russo inteiro tinha
sessenta baterias de artilharia pesada, contra 381 do exército alemão. Sukhomlinov recebia corn
desprezo as advertências de que a guerra seria principalmente um duelo de rifles e artilharia.

Maior que sua aversão por ”táticas de fogo”, apenas sua aversão

ao Grão-Duque Nicholas, que era oito anos mais novo que ele e

representava a tendência reformista dentro do exército. corn 1,97 de

74 altura, esbelto e corn uma bela cabeça, barba em ponta e botas da


altura da barriga de um cavalo, o Grão-Duque fazia uma figura galante e imponente. Após a guerra
corn o Japão, ele fora designado para reorganizar o exército, como chefe de um Conselho de Defesa
Nacional. Seu propósito era o mesmo do Comitê Esher depois da Guerra dos Bôeres, mas,
diferentemente de seu modelo inglês, ele logo sucumbira à letargia e aos mandarins. Os
reacionários, ressentidos corn o Grão-Duque por sua parcela no Manifesto Constitucional e
temendo a sua popularidade, conseguiram que o Conselho fosse abolido em 1908.

Como oficial de carreira que servira como Inspetor-Geral da Cavalaria na Guerra Japonesa e que
conhecia pessoalmente quase todo o corpo de oficiais - como Comandante do Distrito de São
Petersburgo, cada oficial que recebia um novo posto tinha que apresentar-se a ele -, o Grão-Duque
era a figura mais admirada do exército. Isso devia-se menos a alguma proeza específica do que por
sua estatura imponente, sua aparência e seus modos, que inspiravam nos soldados confiança e
respeito, e nos colegas, ciúme ou admiração.

De modos bruscos e até mesmo ríspidos tanto corn os soldados quanto corn os colegas, fora da
Corte ele era considerado o único ”homem” na família real. Soldados camponeses que nunca o
tinham visto contavam casos onde ele figurava como uma espécie de campeão legendário da Santa
Rússia contra a ”panelinha alemã” e a corrupção no palácio. Ecos de tais sentimentos não
aumentavam sua popularidade na Corte, especialmente corn a Czarina, que já odiava ”Nikolasha”
porque ele desprezava Rasputin. Ela escreveu ao marido: ”Não tenho a menor confiança em N. Sei
que está longe de ser inteligente, e tendo ido contra um homem de Deus, sua obra não pode ser
abençoada e seus conselhos não podem ser bons.” Ela sugeria constantemente que ele estava
conspirando para forçar o Czar a abdicar e, confiando em sua popularidade corn o exército,
apossar-se ele mesmo do trono.

As suspeitas da Corte o mantiveram distante do comando geral durante a guerra corn o Japão, e
conseqüentemente da culpa que se seguiu. Em qualquer guerra subseqüente teria sido impossível
passar sem ele; nos planos anteriores à guerra ele fora designado para comandar a frente contra a
Alemanha e o próprio Czar esperava que ele atuasse como Comandante-em-Chefe, corn um Chefe
do EstadoMaior para dirigir as operações.

Na França, aonde o Grão-Duque foi várias vezes para fazer manobras e onde sofreu a influência de
Eoch, de cujo otimismo

I
75
76

compartilhava, ele foi extravagantemente festejado, tanto por sua presença magnífica, que parecia
um símbolo tranqüilizador do poderio russo, quanto por sua conhecida aversão à Alemanha. Os
franceses repetiam, deliciados, os comentários do Príncipe Kotzebue, ajudantede-ordens do
Grão-Duque, segundo os quais seu chefe acreditava que só se poderia ter esperanças de que o
mundo vivesse em paz se a Alemanha fosse derrotada de uma vez por todas e dividida novamente
em pequenas nações, cada uma delas feliz e satisfeita corn a sua pequena corte.

Igualmente admiradoras da França eram a esposa do Grão-Duque, Anastasia, e sua irmã Militza,
casada corn o irmão do Grão-Duque, Peter. Como filhas do Rei Nikita, de Montenegro, seu apreço
pela França era diretamente proporcional à sua aversão pela Áustria. Num piquenique real num dos
últimos dias de julho de 1914, as ”cotovias montenegrinas”, como Paléologue chamava as duas
princesas, sentaram-se perto dele a tagarelar sobre a crise: ”Vai haver guerra (...) não vai sobrar
coisa alguma da Áustria (...) os franceses vão ter a AlsáciaLorena de volta (...) nossos exércitos vão
se encontrar em Berlim.” Uma das irmãs mostrou ao embaixador uma caixa cravejada de pedras
contendo terra do solo da Lorena, ao passo que a outra revelou que tinha plantado em seu jardim
sementes dos cardos da Lorena.

Para o advento da guerra, o Estado-Maior russo tinha montado uma alternativa de dois planos de
campanha, a escolha final dependendo do que a Alemanha fizesse. Se a Alemanha lançasse sua
força principal contra a França, a Rússia lançaria a sua contra a Áustria. Nesse caso, quatro
exércitos entrariam em campo contra a Áustria e dois contra a Alemanha.

O plano para a frente alemã previa a invasão da Prússia Oriental numa manobra de pinça pelo
Primeiro e o Segundo Exércitos da Rússia, o Primeiro avançando pelo norte e o Segundo pelo sul da
barreira formada pelos lagos masurianos. Como o Primeiro Exército, ou Exército de Vilna - nome
derivado da sua área de concentração
- tinha uma linha férrea Direta, ele seria o primeiro a estar pronto para partir e deveria avançar dois
dias antes do Segundo, ou Exército de Varsóvia, contra os alemães, ”corn o objetivo de atrair para si
a maior força inimiga possível”.

Enquanto isso, o Segundo Exército viria do sul rodeando a barreira dos lagos e, colocando-se por
trás dos alemães, cortaria sua retirada pelo Rio Vístula. O sucesso do movimento em pinça dependia
de uma sincronização perfeita para impedir que os alemães en-
frentassem qualquer das duas alas russas separadamente. O inimigo deveria ser ”atacado enérgica e
decididamente, a qualquer momento e em qualquer lugar que se encontre”. Uma vez o exército
alemão cercado e destruído, seguir-se-ia a marcha sobre Berlim, 250 quilômetros além do Vístula.

O plano alemão não previa renunciar à Prússia Oriental. Era uma terra de fazendas abastadas e
campos largos, onde pastava o gado Holstein; nos pátios das fazendas, cercados por muros de pedra,
espalhavam-se porcos e galinhas; ali o famoso garanhão Trakehnen produzia montarias para o
exército alemão e as grandes propriedades pertenciam aos junkers - que, para o horror de uma
governanta inglesa empregada na casa de um deles, atiravam nas raposas em vez de caçá-las de
maneira correta, a cavalo. Mais ao leste, perto da Rússia, ficava a terra de ”águas paradas, bosques
escuros”, corn lagos de amplos contornos, franjados de juncos, florestas de pinheiros e bétulas e
muitos pântanos e regatos. Seu acidente geográfico mais famoso era a Floresta de Tominten, reserva
de caça dos Hohenzollern, corn
40.000 hectares, na fronteira corn a Rússia; ali o Kaiser ia todos os anos, elegantemente trajado em
calções folgados presos à altura dos joelhos e chapéu emplumado, para caçar javalis e veados, e
ocasionalmente um alce russo.

Embora a população nativa não fosse teutônica mas eslava, essa região estivera sob domínio alemão
- corn alguns interlúdios poloneses - por 700 anos, desde que a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos se
estabelecera ali em 1225. Apesar de derrotados em 1410 por poloneses e lituanos numa grande
batalha numa aldeia chamada Tannenberg, a Ordem tinha sobrevivido e progredido-ou
regredido-para formar os junkers. Em Konigsberg, principal cidade da região, o primeiro soberano
Hohenzollern tinha sido coroado Rei da Prússia em 1701.

corn tais tradições, suas costas banhadas pelo Báltico, sua ”cidade dos Reis” onde os soberanos
prussianos tinham sido coroados, a Prússia Oriental não era um país que os alemães entregassem
facilmente. Ao longo do rio Angerapp, que corria através do Desfiladeiro de Insterburg, as posições
de defesa tinham sido cuidadosamente preparadas, ao passo que na pantanosa região oriental as
margens das estradas tinham sido elevadas, de modo a confinar os inimigos a seus estreitos cursos.
Além disso, toda a Prússia Oriental era riscada por uma rede de ferrovias, que dava ao exército
defensor a vantagem da mobilidade e da movimentação rápida de uma frente para outra, para
enfrentar o avanço de qualquer das duas alas inimigas.
77
Quando o plano Schlieffen foi adotado, os temores pela Prússia Oriental eram menores, pois
acreditava-se que a Rússia teria que manter grandes forças no Extremo Oriente para proteger-se
contra o Japão. Apesar do histórico de inabilidade da diplomacia alemã, esperava-se que ela
conseguisse manter o Japão neutro, como uma constante ameaça à retaguarda russa, derrubando
para isso o Tratado Anglo-Japonês - uma aliança que a Alemanha considerava pouco natural.

O especialista em assuntos russos no Estado-Maior alemão era o Tenente-Coronel Max Hoffmann,


cuja tarefa era descobrir o provável plano de campanha russo numa guerra corn a Alemanha. Aos
quarenta e poucos anos, Hoffmann era alto, corpulento e bem barbeado, corn a cabeça redonda e os
cabelos à moda prussiana, cortados tão rente que ele parecia ser calvo. Tinha expressão
bem-humorada, mas irredutível. Usava óculos de moldura escura e acostumara cuidadosamente as
sobrancelhas negras a crescerem numa ousada curva para cima nas pontas externas. Mostrava igual
cuidado e orgulho para corn as mãos delicadas e o vinco impecável das calças. Apesar de indolente,
era engenhoso; embora cavalgasse mal, esgrimisse pior e fosse glutão na comida e na bebida, era
sagaz e de raciocínio rápido. Era amável, sortudo e astuto, e não respeitava pessoa alguma. Nos
intervalos dos deveres regimentais, antes da guerra, ele passava a noite inteira bebendo vinho e
comendo salsichas no clube dos oficiais, até as 7 da manhã, quando liderava sua companhia no
desfile e voltava para um lanche de mais salsichas e dois quartos de vinho Moselle antes do
desjejum.

Depois de formar-se no StaffCollege em 1898, Hoffmann servira seis meses como intérprete na
Rússia e cinco anos na seção russa do Estado-Maior, sob as ordens de Schlieffen, antes de seguir
como observador militar da Alemanha na guerra russo-japonesa. Quando um general japonês
recusou-lhe permissão para assistir a uma batalha do alto de uma colina próxima, a etiqueta cedeu
lugar àquela qualidade natural nos alemães cuja expressão tantas vezes os torna desagradáveis aos
outros. ,

- Seu amarelo, você não me deixa subir aquela colina porque é um selvagem!-Hoffmann gritou ao
General, na presença de outros adidos estrangeiros e pelo menos um correspondente.

Pertencendo a uma raça que se equipara aos alemães em matéria


4e auto-importância, o General berrou de volta:

- Nós, japoneses, estamos pagando corn o nosso sangue essa


78 informação militar e não pretendemos dividi-la corn outros!
Nessa ocasião o protocolo foi inteiramente ignorado.

Voltando para o Estado-Maior sob o comando de Moltke, Hoffmann recomeçou a trabalhar no


plano de campanha russo. Um Coronel do Estado-Maior russo tinha vendido uma antiga versão do
plano de seu país por alto preço em 1902, mas desde então, segundo as memórias nem sempre
confiáveis de Hoffmann, o preço subira, ultrapassando a magra verba destinada à inteligência
militar alemã. No entanto, a geografia da Prússia Oriental tornava óbvias as linhas gerais da
ofensiva russa: os russos teriam que dividir-se em volta dos Lagos da Masúria.

O estudo que Hoffmann fez do Exército russo e dos fatores que governavam sua mobilização e
transporte permitiu que os alemães calculassem a sincronização da ofensiva. O Exército alemão,
inferior numericamente, poderia escolher entre os dois modos clássicos de enfrentar uma força
superior que avançava em duas alas - recuar ou atacar uma antes da outra -, aquele que oferecesse
melhores chances. A rígida fórmula ditada por Schlieffen era atacar ”corn todas as forças
disponíveis o primeiro exército russo que chegar ao nosso alcance”.
79
A Defl^p^ão

Segundo Bismarck, ”alguma infeliz bobagem nos Bálcãs” iria iniciar a guerra seguinte. O
assassinato do Príncipe-Herdeiro austríaco - o Arquiduque Franz Ferdinand-por
nacionalistas sérvios, em 28 de junho de 1914, cabia na definição de Bismarck. A
Áustria-Hungria, corn a leviana belicosidade dos impérios senis, decidiu usar a ocasião
para absorver a Sérvia, como tinha jeito corn a Bósnia e a Herzogovina em 1909. Naquela
ocasião, a Rússia, enfraquecida pela guerra corn o ]apão, tivera que concordar, forçada
por um ultimato alemão e pela presença do Kaiser em ”brilhante armadura” segundo ele
próprio - ao lado de sua aliada, a Áustria. Para vingar-se dessa humilhação e para
defender seu prestígio como a maior potência eslava, a Rússia estava agora preparada
para colocar ela própria a brilhante armadura.

Em 5 de julho a Alemanha assegurou à Áustria que esta poderia contar corn o ”fiel apoio”
alemão se qualquer ação punitiva que ela tomasse contra a Sérvia a colocasse em conflito
corn a Rússia. Esse foi o sinal que iniciou o fluxo irresistível de acontecimentos daí em
diante. Em 23 de julho a Áustria enviou um ultimato à Sérvia, em 26 de julho rejeitou a
resposta da Sérvia (embora o Kaiser, agora hesitante, reconhecesse que essa resposta
”destrói qualquer motivo para a guerra”), em 28 de julho declarou guerra à Sérvia, em 29
de julho bombardeou Belgrado. Nesse dia a Rússia mobilizou-se ao longo da fronteira
austríaca e, em 30 de julho, tanto a Áustria quanto a Rússia ordenaram a mobilização
geral. No dia 31 de julho a Alemanha mandou à Rússia um ultimato para que se
desmobilizasse dentro de doze horas e fizesse ”a nós uma clara declaração desse fato”.

A guerra pressionava todas as fronteiras. Os governos, subitamente assustados,


esforçaram-se em tentativas de afastá-la. Foi inútil. Os agentes nas fronteiras informavam,
sobre cada patrulha de cavalaria como se fosse um desenvolvimento para vencer a corrida
da mobilização. Os Estados-Maiores, instigados por seus cronogramas rígidos,
esmurravam a mesa pedindo o sinal de partida, para que seus oponentes não ganhassem
uma hora sequer de vantagem. Estarrecidos e assustados, os Chefes de Estado, que em
última análise eram os responsáveis pelo destino de seus países, tentaram recuar, mas o
impulso dos planos e programas militares
82 arrastou-os para a frente.
ifT”

9~’.\

l-de Agosto: Berlim

Ao meio-dia de sábado, l2 de agosto, o ultimato alemão à Rússia expirou sem resposta, e uma hora
depois foi enviado um telegrama ao embaixador alemão em São Petersburgo instruindo-o a declarar
guerra até as 17:00 daquela mesma tarde. As 17:00 o Kaiser decretou mobilização geral, sendo que
algumas providências preliminares já tinham sido tomadas na véspera por causa da declaração de
Kriegesgefahr (Perigo de Guerra). Às 17:30 o Chanceler Bethmann-Hollweg, absorto num
documento que tinha na mão e acompanhado pelo pequeno Jagow, Ministro do Exterior, desceu
correndo os degraus do Ministério do Exterior, parou um táxi comum e partiu em disparada para o
palácio. Pouco depois, o taciturno General Von Moltke, Chefe do Estado-Maior, foi detido quando
voltava de carro para seu escritório, levando no bolso a ordem de mobilização assinada pelo Kaiser:
um mensageiro em outro carro alcançou-o, corn uma convocação urgente ao palácio. Moltke
obedeceu, para ouvir do Kaiser uma última e desesperada proposta, que o levou às lágrimas e
poderia ter mudado a História do século XX.

Agora que o momento chegara, o Kaiser sofria por ter que arriscar a Prússia Oriental, apesar das
seis semanas de trégua - o tempo que seu Estado-Maior assegurara que os russos levariam para
completar sua mobilização.

- Odeio os eslavos - confessou a um oficial austríaco. - Sei que isso é pecado, não se deve odiar,
mas não consigo deixar de odiá-los.

^-^ No entanto, ele se consolava conxas notícias de greves e tumulto^ em São


Petersburgo-multidões quebrando vidraças e ”violentas > brigas de rua entre os revolucionários e a
polícia” -, que lembravam
1905. O Conde Pourtalès, seu idoso embaixador, que tinha passado sete anos na Rússia, acreditava
e assegurou várias vezes a seu governo que a Rússia, por medo de uma revolução, não lutaria. O
Capitão Von Eggeling, adido militar alemão, insistia em repetir o credo sobre 1916; quando a
Rússia mesmo assim mobilizou-se, ele insistiu que aquela nação não planejava ”qualquer ofensiva
tenaz, e sim uma lenta retirada, como em 1812”. Na afinidade corn o erro partilhada pelos
diplomatas alemães, essas opiniões estabeleceram um recorde. Elas

83
convenceram o Kaiser, que em 31 de julho compôs uma carta para a ”orientação” de seu
Estado-Maior, regozijando-se corn o ”estado de espírito de um gato doente”, que, baseado no
testemunho de seus enviados, ele afirmava prevalecer na corte e no exército russos.

Em Berlim, no dia is de agosto, as massas que enchiam as ruas e se agrupavam aos milhares diante
do palácio estavam tensas e ansiosas. O socialismo, que a maioria dos trabalhadores de Berlim
professava, não era tão arraigado quanto seu medo e ódio instintivos das hordas eslavas. Embora na
noite anterior o Kaiser tivesse discursado do balcão do palácio anunciando o Kriegesgefahr e
dizendo que ”a espada foi forçada em nossa mão”, a população ainda conservava uma leve
esperança de uma resposta da Rússia.

O prazo do ultimato se esgotou. Um jornalista na multidão sentiu o ar ”eletrizado de boatos. As


pessoas diziam umas às outras que a Rússia pedira urn adiamento do prazo. A Bolsa contorcia-se
em pânico. A tarde passou numa ansiedade quase insuportável”. Bethmann-Hollweg deu uma
declaração que terminava assim: ”Que Deus nos ajude, se os dados da guerra rolarem”. Às 17:00,
um policial apareceu ao portão do palácio e anunciou a Mobilização. Obedientemente, a multidão
pôs-se a cantar o Hino Nacional: ”Agora nós todos agradecemos a Deus”. Carros passavam
disparados por Unter den Linden corn oficiais de pé dentro deles, acenando corn lenços e gritando
”Mobilização!”. Instantaneamente convertidas de Marx para Marte, as pessoas gritavam corn
selvagem alegria e corriam a extravasar suas emoções nos suspeitos de espionagem para a Rússia,
vários dos quais foram mortos a pancadas nos dias que se seguiram.

Apertado o botão da Mobilização, automaticamente entrou em ação o imenso mecanismo de


recrutar, equipar e transportar dois milhões de homens. Os reservistas procuraram os depósitos
designados, receberam uniformes, equipamento e armas, agruparam-se em companhias e as
companhias em batalhões, juntaram-se à cavalaria, aos ciclistas, à artilharia, às unidades médicas,
aos vagões-cozinhas, aos vagões-ferrarias, e até mesmo aos vagões postais, e dirigiram-se, segundo
os horários preparados de antemão, para os pontos de concentração próximos à fronteira, onde
formariam divisões, as divisões formariam corpos, e os corpos formariam exércitos prontos para
avançar e lutar. Um único corpo do exército - de um total de quarenta nas forças alemãs -
necessitava de 170 vagões ferroviários para os oficiais, 965 para a infantaria, 2.960 para a cavalaria,
1.915 para a artilharia, e os vagões de serviço, 6.010 no total, agrupados em 140
84 trens, e um número igual para os suprimentos. Desde o momento em
O Gênero ^ukhomlinov corn oficiais do Estado-Maior
O Czar e o Grão-Duque Nicholas
que a ordem foi dada, tudo deveria mover-se em horas fixadas segundo uma tabela precisa, que
calculara até o número de eixos de um trem que passariam sobre uma determinada ponte num
determinado tempo.

Confiando em seu sistema magnífico, o Subchefe do EstadoMaior, General Waldersee, nem chegou
a voltar para Berlim no início da crise, mas escreveu a Jagow: ”Permanecerei aqui, pronto para agir.
No Estado-Maior, estamos todos preparados; enquanto isso, não podemos fazer coisa alguma”. Era
uma orgulhosa tradição, herdada do Moltke mais velho, ou ”o grande Moltke”, que, no Dia da
Mobilização de 1870, foi encontrado deitado num sofá lendo um romance popular, Lady Audley’s
Secret (O Segredo de Lady Audley).

Nesse dia, no palácio, sua calma invejável não era imitada. Face a face corn a realidade, e não mais
corn o fantasma, de uma guerra em duas frentes, o Kaiser estava tão perto do estado de espírito de
”um gato doente” quanto ele achava que os russos estavam. Mais cosmopolita e mais tímido do que
o prussiano típico, ele na realidade nunca quisera uma guerra generalizada. Queria mais poder, mais
prestígio, e acima de tudo mais autoridade para a Alemanha nas questões mundiais, mas preferia
obtê-los intimidando, e não combatendo, os outros países. Queria as recompensas do gladiador mas
não a luta, e, sempre que a perspectiva da guerra chegava perto demais, como em Algeciras e
Agadir, ele recuava.

Enquanto a crise final fervilhava, suas anotações nas margens dos telegramas ficavam mais
agiíãclásT^AW Que mentiroso vulgar!”, ”Lixo!”, ”E mentira!”, ”O Sr.TsicTtSrey é um cachorro
mentiroso”, ”Disparates!”, ”Esse patife é louco ou idiota!”. Quando a Rússia se mobilizou, ele
explodiu numa tirada apaixonada de maus augúrios, não contra os traidores eslavos mas contra a
figura inesquecível de seu malvado tio: ”O mundo será ejivolvido na mais terrível das guerras, cujo
propósito principal é a destruição da Alemanha. A Inglaterra, a França e a Rússia conspiraram para
a nossa aniquilação (...) Esta é a verdade crua da situação que foi criada, lenta mas seguramente, por
Edward VII (...) O cerco à Alemanha é agora um fato concreto. Enfiamos nossos pescoços na corda
(...) Edward morto é mais forte que eu vivo!”

Cônscio da sombra do falecido Edward, o Kaiser teria aceito corn prazer qualquer maneira de
escapar da contingência de combater ao mesmo tempo a Rússia e a França, e, atrás da França, o
vulto gigantesco da Inglaterra, um inimigo ainda não declarado.

87
No último momento surgiu uma escapatória: um colega de Bethmann veio implorar-lhe para fazer o
possível para salvar a Alemanha de uma guerra em duas frentes, e sugeriu um meio para isso.
Durante anos, discutira-se uma possível solução para a Alsácia em termos de autonomia como um
Estado Federal dentro do Império Germânico; se fosse aceita pelos alsacianos, essa medida retiraria
da França qualquer razão para tentar libertar as províncias perdidas. Pouco tempo antes, em 16 de
julho, o Congresso Socialista Francês tinha registrado ern seus anais que era favorável a essa
medida, mas os militares alemães sempre insistiram que as províncias permanecessem guarnecidas
e seus direitos políticos subordinados à ”necessidade militar”. Até 1911, nenhuma constituição tinha
sido permitida, muito menos a autonomia.

O colega de Bethmann agora insistia que ele fizesse uma proposta imediata, pública e oficial de
uma conferência sobre a autonomia da Alsácia. Poder-se-ia dar um jeitinho para que isso se
arrastasse sem resultados, ao passo que seu efeito moral impediria a França de atacar, pelo menos
enquanto estudava a proposta. Ganhar-se-ia tempo para a Alemanha voltar suas forças contra a
Rússia enquanto ficava estacionaria no Ocidente, mantendo assim a Inglaterra de fora.

O autor dessa proposta permanece anônimo, e ela talvez seja apócrifa. Não importa; ali estava a
oportunidade, e o Chanceler podia ter pensado nisso ele próprio. Mas aproveitá-la requereria
coragem, e Bethmann, por trás de sua solene fachada - sua grande estatura, os olhos escuros e a pêra
bem aparada, era um homem que, como Roosevelt comentou a respeito de Taft, ”tem boas
intenções ineficazmente”. Em vez de oferecer à França um motivo para ficar neutra, o governo
alemão mandou-lhe um ultimato, simultaneamente ao ultimato à Rússia, exigindo que a França
respondesse em 18 horas se ficaria neutra numa guerra russo-alemã e acrescentando que, se assim
fosse, a Alemanha iria ”exigir como garantia da neutralidade que nos sejam entregues as fortalezas
de Toul e Verdun, que ocuparemos e devolveremos quando a guerra terminar” - exigindo, em outras
palavras, a entrega da chave da porta da França.

O Barão Von Schoen, embaixador alemão em Paris, não teve coragem de transmitir essa exigência
”brutal” num momento em que, parecia-lhe, a neutralidade da França seria tão vantajosa para a
Alemanha que seu governo deveria ter oferecido um pagamento por ela, em vez de impor uma
multa. Von Schoen apresentou apenas o pedido de uma declaração de neutralidade, sem exigir as
fortalezas, mas os
u
w.

franceses, que tinham interceptado e decifrado suas instruções, tinham conhecimento de tudo.
Quando Schoen pediu a resposta da França, às 11:00 de l- de agosto, essa resposta declarava que a
França ”agiria segundo seus interesses”.

Em Berlim o telefone tocou no Ministério do Exterior logo após as 17:00.0 Subsecretário


Zimmermann, que atendeu, voltou-se para o editor do Berliner Tageblatt, que estava sentado perto
de sua mesa, e disse:

- Moltke quer saber se as coisas podem começar.

Nesse momento, um telegrama de Londres, recém-decifrado, irrompeu sobre os planos. Vinha do


Príncipe Lichnowsky, embaixador em Londres, e relatava, pelo que Lichnowsky compreendeu, um
oferecimento inglês ”de que, caso não ataquemos a França, a Inglaterra permanecerá neutra e
garantirá a neutralidade da França”. O telegrama oferecia uma esperança de que, se o movimento
contra a França pudesse ser detido imediatamente, a Alemanha teria condições de enfrentar corn
segurança uma guerra numa só frente. Levando-o consigo, Bethmann e Jagow dispararam no táxi
para o palácio.

O embaixador pertencia àquela categoria de alemães que falavam inglês e copiavam as maneiras, os
esportes e os trajes britânicos num esforço de tornar-se o protótipo do cavalheiro inglês. Seus
colegas da nobreza - o Príncipe de Pless, o Príncipe Bücher e o Príncipe Munster - tinham esposas
inglesas. Num jantar em Berlim em 1911, em homenagem a um general inglês, o convidado de
honra ficou pasmo ao saber que todos os 40 convidados alemães, inclusive Bethmann-Holl weg e o
Almirante Tirpitz, falavam inglês fluentemente. Lichnowsky diferia de sua classe por ser um grande
anglófilo não apenas nos modos, mas de coração. Ele fora para Londres decidido a fazer corn que
ele próprio e o país que representava fossem apreciados. A sociedade inglesa fora generosa corn
convites para fins de semana no campo. Para o embaixador, nenhuma tragédia seria maior do que
uma guerra entre o país de seu nascimento e o país do seu coração, e ele tentaria tudo para evitá-la.

Quando o Ministro do Exterior, Sir Edward Grey, telefonou-lhe naquela manhã, no intervalo de
uma reunião do Secretariado, Lichnowsky, por causa de sua própria ansiedade, interpretou o
telefonema de Grey como um oferecimento de neutralidade por parte da Inglaterra - o que faria corn
que a França também se mantivesse neutra numa guerra russo-alemã - se, em troca, a Alemanha
prometesse não atacar a França.

«9
Na realidade Grey não dissera exatamente isso. O que ele oferecera, a seu modo indireto, foi uma
promessa de manter a França neutra se a Alemanha prometesse ficar neutra em relação à França e à
Rússia; em outras palavras, não entrasse em guerra contra qualquer dos dois países, conforme o
resultado dos esforços para se resolver a questão servia. Depois de oito anos como Ministro do
Exterior num período de ”Bósnias19 crônicos”, como Büllow os chamava, Grey aperfeiçoara um
modo de falar destinado a transmitir o mínimo possível de significado; um colega seu dizia que o
modo como ele evitava falar claro quase chegava a ser um método. Lichnowsky, perturbado pela
tragédia iminente, não teria dificuldades em cornpreendê-lo mal pelo telefone.

O Kaiser agarrou-se àquele ”passaporte” para a guerra em uma única frente que Lichnowsky lhe
oferecia. Cada minuto contava; a mobilização já estava caminhando inexoravelmente para a
fronteira francesa. O primeiro ato hostil - a tomada de um entroncamento ferroviário em
Luxemburgo, cuja neutralidade tinha sido garantida pelas cinco grandes potências, inclusive a
Alemanha - estava marcado para daí a uma hora e tinha que ser detido imediatamente. Mas como?
Onde estava Moltke? Moltke deixara o palácio. Um ajudantede-ordens foi enviado para procurá-lo e
Moltke foi trazido de volta.

O Kaiser voltara ao seu natural: o Todo-Poderoso, o Senhor da Guerra, inflamado por uma nova
idéia, um novo plano, uma nova proposta, uma nova disposição. Leu o telegrama para Moltke e
disse, em triunfo:

- Agora podemos entrar em guerra contra a Rússia apenas. Simplesmente mandamos todo o nosso
exército marchar para o leste!

Horrorizado diante da idéia de ver seu maravilhoso mecanismo de mobilização colocado em marcha
à ré, Moltke recusou-se peremptoriamente. Nos últimos dez anos, primeiro como ajudante de
Schlieffen, depois como seu sucessor, o trabalho de Moltke fora fazer planos para esse dia - O Dia,
Der Tag, para o qual todas as energias alemãs tinham sido reunidas, no qual teria início a marcha
para a supremacia definitiva na Europa. Aquilo colocava sobre ele o peso de uma responsabilidade
opressiva, quase insuportável.

Aos 66 anos de idade, alto, corpulento, e calvo, Moltke mostrava habitualmente uma expressão de
profunda contrariedade, que levou o Kaiser a chamar-lhe der traurige Julius, embora na realidade
seu

j0 19 Bósnia: uma parte da Iugoslávia; antigo reino na Península Balcânica Ocidental. (N. da T.)
nome fosse Helmuth. A saúde fraca, que o levava a fazer uma cura anual em Carlsbad, e a sombra
de um grande tio, eram, talvez, a causa da sua melancolia. De sua janela no prédio de tijolos
vermelhos na Konigplatz, que abrigava o Estado-Maior e onde Moltke também morava, todos os
dias ele contemplava a estátua eqüestre de seu homônimo, o herói de 1870, juntamente corn
Bismarck, o arquiteto do Império Alemão. O sobrinho era um cavaleiro medíocre, corn o hábito de
cair do cavalo nas excursões militares e, pior, seguidor da Ciência Cristã, corn um interesse
colateral em antroposofia20 e outros cultos. Por essa fraqueza, pouco apropriada a um oficial
prussiano, ele era considerado ”mole”; e mais ainda: pintava, tocava violoncelo, carregava o Faust
de Goethe no bolso e iniciara a tradução de Pelléas et Melisande de Maeterlinck.

Introspectivo e cético por natureza, ele dissera ao Kaiser em


1906, quando foi nomeado:

- Não sei como me sairei no caso de uma guerra. Sou muito crítico de mim mesmo.

No entanto, não era tímido, pessoal ou politicamente. Em 1911, contrariado corn o recuo da
Alemanha na crise de Agadir, escreveu a Conrad von Hotzendorf que se as coisas piorassem ele
pediria demissão, proporia que o exército se dispersasse e que o país se colocasse ”sob a proteção
do Japão; então poderemos fazer dinheiro sem sermos perturbados, e virar imbecis”. Não hesitava
em responder ao Kaiser; em 1900 disse-lhe ”corn bastante brutalidade” que sua expedição a Pequim
era uma ”aventura maluca”; e quando o Kaiser lhe ofereceu o cargo de Chefe do Estado-Maior ele
perguntou se o Kaiser esperava ”ganhar o grande prêmio duas vezes na mesma loteria” - uma idéia
que certamente influenciara o Kaiser ao escolher outro Moltke. Recusou-se a aceitar o cargo a não
ser que o Kaiser parasse de vencer todos os exercícios de guerra realizados com^bandeirinhas sobre
o mapa, fato que estava transformando as manobras em tolices. Surpreendentemente, o Kaiser
obedeceu.

Agora, naquela noite de clímax em l2 de agosto, Moltke não estava corn paciência para as
intromissões do Kaiser em assuntos militares sérios, nem qualquer intromissão nos planejamentos
fixados. Inverter de oeste para leste o deslocamento de um milhão de homens bem no momento da
partida requeria mais coragem do que

20 Antroposofia: seita fundada por Rudolf Stríner, escritor e filósofo, constituindo uma cisão dateosofia.(N.daT.) ... , .-,..’,..-..
..,.-••.

»
Moltke possuía. Ele visualizou a manobra desfazendo-se em confusão, os suprimentos aqui, os
soldados acolá, a munição perdida no meio, companhias sem oficiais, divisões sem chefes, e
aqueles 11.000 trens, cada um deles minuciosamente planejado para passar sobre determinados
trilhos em intervalos de dez minutos, embaralhados numa grotesca destruição do movimento militar
mais perfeitamente planejado em toda a História.

- Majestade, isso não pode ser feito - Moltke afirmou agora. -A movimentação de milhões de
pessoas não pode ser improvisada. Se Vossa Majestade insiste em levar o exército inteiro para o
leste, ele não será um exército preparado para a batalha mas uma multidão desorganizada de
homens armados, sem qualquer planejamento para o fornecimento de comida e munição. Esse
planejamento levou um ano inteiro de trabalho complicado...

E Moltke terminou corn aquela frase que é a base de todo grande erro alemão, a frase que desfechou
a invasão da Bélgica e a guerra submarina contra os Estados Unidos, a frase que é inevitável quando
o planejamento militar dita a política:

-... e uma vez decidido, não pode ser modificado.

Na realidade, poderia ter sido modificado. O Estado-Maior alemão, embora comprometido desde
1905 corn um plano de ataque à França em primeiro lugar, tinha guardado nos arquivos um plano
alternativo contra a Rússia, que era revisto todos os anos até 1913 e que previa todos os trens
correndo para o leste.

- Não construam mais fortalezas, construam ferrovias-ordenara o Moltke mais velho.

Ele baseara a sua estratégia num mapa ferroviário e criara o dogma de que as ferrovias são a chave
da guerra. Na Alemanha, o sistema ferroviário estava sob controle militar, corn um oficial
designado para cada linha; nenhum trilho poderia ser colocado ou modificado sem a permissão do
Estado-Maior. Os exercícios anuais de mobilização bélica mantinham os funcionários das ferrovias
em constante preparo, e, através de telegramas informando linhas destruídas e pontes derrubadas,
sua capacidade de improvisar e de desviar o tráfego era testada. Dizia-se que os melhores cérebros
produzidos pela Escola Superior de Guerra iam para a seção de ferrovias e terminavam nos
hospícios.

Quando o ”não pode ser feito” de Moltke foi revelado em suas

memórias, depois da guerra, o General Von Staab, Chefe da Divisão

92 de Ferrovias, ficou tão revoltado corn o que considerava uma ofensa


\J
ao seu departamento que escreveu um livro para provar que podia ter sido feito. Ao longo de várias
páginas de tabelas e gráficos ele demonstrou que, se tivesse sido avisado em l- de agosto, poderia
ter colocado quatro dos sete exércitos na frente oriental até 15 de agosto, deixando três exércitos
para defender o Ocidente. Matthias Erzberger, o representante do Reichstag e líder do Partido
Centrista Católico, deixou outro testemunho. Ele diz que o próprio Moltke, seis meses depois do
acontecimento, confessou-lhe que o ataque à França no início foi um erro, e que, em vez disso, ”a
maior parte do nosso exército devia ter sido enviada primeiro para o leste para esmagar o rolo
compressor russo, limitando as operações no Ocidente a rechaçar ataques inimigos à nossa
fronteira”.

Agarrado ao plano fixado, na noite de l- de agosto Moltke não teve coragem para modificá-lo.

- Seu tio teria me dado outra resposta - disse-lhe o Kaiser corn amargura.

A reprimenda ”magoou-me profundamente”, Moltke escreveria depois. ”Nunca tive a pretensão de


ser igual ao velho Marechalde-Campo”. No entanto, persistiu na recusa. ”Não surtiu efeito o meu
protesto de que seria impossível manter a paz entre a França e a Alemanha enquanto ambos os
países estivessem mobilizados. Todos estavam cada vez mais excitados, e eu fiquei sozinho corn a
minha opinião.”

Finalmente, quando Moltke convenceu o Kaiser de que o plano de mobilização não poderia ser
modificado, o grupo que incluía Bethmann e Jagow rascunhou um telegrama para a Inglaterra
lamentando ter que informar que o avanço da Alemanha em direção à fronteira da França ”já não
pode ser alterado”, mas oferecendo uma garantia de não atravessar a fronteira antes de 3 de agosto
às 19:00 o que nada lhes custaria, pois a travessia não estava marcada para antes dessa hora. Jagow
correu a enviar um telegrama ao seu embaixador em Paris, onde a mobilização tinha sido decretada
às 16:00, corn instruções de grande valia para ”por favor manter a França quieta por enquanto”. O
Kaiser enviou um telegrama pessoal ao Rei George dizendo-lhe que por ”razões técnicas” a
mobilização não poderia ser cancelada tão tarde, mas ”se a França oferecer-me a neutralidade, que
deve ser garantida pela Marinha e pelo Exército da Inglaterra, naturalmente deixarei de atacar a
França e empregarei minhas tropas em outra parte. Espero que a França não fique nervosa”.

Faltavam agora dez minutos para as 19:00, hora em que a Décima Sexta Divisão deveria entrar em
Luxemburgo. Bethmann
PWS

*m”

93
insistiu veementemente que Luxemburgo não fosse invadido em quaisquer ciscunstâncias enquanto
se esperava uma resposta inglesa. Ó Kaiser, sem consultar Moltke, imediatamente ordenou que seu
ajudante-de-ordens telefonasse e telegrafasse para o Quartel-General da Décima Sexta Divisão, em
Trier, para cancelar o movimento. Moltke tornou a vislumbrar o desastre: as ferrovias de
Luxemburgo eram essenciais para a ofensiva através da Bélgica. Suas memórias contam: ”Naquele
momento pensei que meu coração ia partir-se”.

Apesar de todos os seus apelos, o Kaiser recusou-se a mudar de idéia. Em vez disso, acrescentou
uma frase final ao seu telegrama ao Rei George: ”As tropas na minha fronteira estão sendo detidas
por telefone e telegrama, para que não entrem na França”, uma distorção da verdade, ligeira, porém
vital, pois o Kaiser não poderia reconhecer diante da Inglaterra que o que ele pretendera e estava
sendo impedido de fazer era a violação de um território neutro. Isso teria traído sua intenção de
violar também a Bélgica, o que teria sido um casus belli para a Inglaterra, que ainda não se decidira.

”Acabrunhado”, segundo ele próprio, no dia que deveria ser o dia culminante da sua carreira,
Moltke voltou para o Estado-Maior e rompeu ”em lágrimas amargas de abjeto desespero”. Quando
seu ajudante-de-ordens trouxe-lhe a ordem cancelando a invasão de Luxemburgo, para que ele a
assinasse, ”joguei minha pena sobre a mesa e recusei-me a assinar”. Ele sabia que, como primeira
ordem depois da mobilização, assinar uma ordem anulando todos os meticulosos preparativos, teria
sido tomado como evidência de ”hesitação e indecisão”.

- Faça o que quiser corn este telegrama - disse ao ajudante. Não you assiná-lo.

Ainda estava abalado às 23:00, quando recebeu outra convocação do palácio. Moltke foi encontrar o
Kaiser em seu quarto de dormir, caracteristicamente vestido para a ocasião corn um sobretudo
militar por cima da camisola. Chegara um telegrama de Lichnowsky, que, numa conversa posterior
corn Grey, descobrira seu engano e agora telegrafava melancolicamente: ”No plano geral, não há
perspectiva de uma proposta positiva por parte da Inglaterra”.

- Agora você pode fazer o que quiser - o Kaiser declarou, e voltou para a cama.

Moltke, o Comandante-em-Chefe que tinha agora que dirigir

uma campanha que decidiria o destino da Alemanha, ficou perma-

$4 nentemente abalado. ”Aquela era a minha primeira experiência de


guerra”, escreveria mais tarde. ”Nunca me recuperei do choque daquele incidente. Alguma coisa
dentro de mim partiu-se, e daí em diante nunca mais fui o mesmo.”

Tampouco o mundo foi o mesmo, ele poderia ter acrescentado. A ordem telefônica do Kaiser para
Trier não chegara a tempo. As
17:00, como planejado, foi cruzada a primeira fronteira da guerra, uma distinção que ficou corn
uma companhia de infantaria do 69Regimento, sob o comando de um certo Tenente Feldmann.

Logo após a fronteira de Luxemburgo, nas encostas dos Ardennes, a quase 20 quilômetros de
Bastogne, na Bélgica, ficava uma cidadezinha que os alemães conheciam como Ulfligen. À volta
dela o gado pastava nas encostas das colinas; em suas ruas íngremes, calçadas de pedras irregulares,
nem um fiapo de palha sequer, mesmo durante a colheita de agosto, podia ofender as estritas leis
que governavam a limpeza municipal no Grão-Ducado. Aos pés da cidade havia uma estação
ferroviária e um telégrafo onde se cruzavam as linhas que vinham da Alemanha e da Bélgica. Esse
era o objetivo alemão, devidamente conquistado pela companhia do Tenente Feldmann, que chegou
em carros a motor.

corn seu talento incansável para a falta de tato, os alemães tinham escolhido violar Luxemburgo
num local cujo nome nativo e oficial era Trois Vierges. As três virgens representavam a fé, a
esperança e a caridade, mas a História, corn seu toque oportuno, dispôs que na mente do público
elas significassem Luxemburgo, Bélgica e Franca.

As 19:30, um segundo destacamento motorizado chegou (presumivelmente em resposta à


mensagem do Kaiser) e ordenou que o primeiro grupo se retirasse, dizendo que ”tinha havido um
engano”. Nesse ínterim, o Ministro de Estado de Luxemburgo, Eyschen, já telegrafara a notícia a
Londres, Paris e Bruxelas, e um protesto a Berlim - as três^virgens tinham deixado claro o seu
significado. À meia-noite Moltkç já retificara a contra-ordem, e ao final do dia seguinte - 2 de
agosto, M-l no programa alemão - o Grão-Ducado inteiro estava ocupado.

Desde então, uma pergunta tem perturbado os anais da História: que teria acontecido se os alemães
tivessem ido para o leste em
1914 enquanto permaneciam na defensiva contra a França? O General Von Staab mostrou como
isso poderia ser feito. Tecnicamente era possível voltar-se contra a Rússia; mas teria sido
emocionalmente possível deixar de atacar a França quando chegou o Der Tag? Isso já é uma outra
questão. -

95
Em São Petersburgo, às 19:00, mesma hora em que os alemães entravam em Luxemburgo, o
Embaixador Pourtalès, corn os olhos de um azul aguado injetados e vermelhos, o cavanhaque
fremente, as mãos trêmulas, apresentou a declaração de guerra da Alemanha a Sazonov, o Ministro
do Exterior russo.

- A maldição das nações cairá sobre vocês! - exclamou Sazonov.

- Estamos defendendo nossa honra - retrucou o embaixador alemão.

- A honra de vocês não estava ameaçada. Mas existe uma justiça divina.

- É verdade.

Balbuciando ”uma justiça divina, uma justiça divina”, Pourtalès cambaleou até a janela, inclinou-se
contra ela e rompeu em lágrimas.

- Este é o fim da minha missão - declarou, quando conseguiu falar.

Sazonov deu-lhe tapinhas no ombro, os dois se abraçaram e Pourtalès foi aos tropeços até a porta,
que mal conseguiu abrir corn a mão trêmula, e saiu, murmurando:

- Adeus, adeus.

Essa cena patética chegou até nós como foi registrada por Sazonov corn acréscimos artísticos de
autoria do embaixador francês, Paléologue, presumivelmente baseado no que Sazonov lhe contou.
Pourtalès informou apenas que por três vezes tinha pedido uma resposta ao ultimato e, depois que
Sazonov por três vezes respondeu negativamente, ”entreguei a nota, segundo as instruções”.

Por que era preciso que se entregasse uma nota? Esta foi a pergunta que o Almirante Von Tirpitz,
Ministro da Marinha, fizera queixosamente na noite anterior, quando a declaração estava sendo
redigida. Falando, segundo ele próprio, ”mais pelo instinto do que pelo raciocínio”, o Almirante
queria saber por que, se a Alemanha não planejava invadir a Rússia, era necessário declarar guerra e
merecer o repúdio universal que se dedica ao país atacante? Sua pergunta era particularmente
pertinente porque o objetivo da Alemanha era colocar a culpa da guerra na Rússia, para poder
convencer o povo alemão de estar lutando em defesa própria e especialmente para manter a Itália
presa ao seu compromisso sob a Tríplice Aliança.

A Itá lia só era obrigada a juntar-se a seus aliados em caso de uma

guerra defensiva, e já se mostrava hesitante quanto a essa aliança;

96 portanto, calculava-se que ela escapasse na primeira oportunidade.


l*

Bethmann ficou perturbado por esse problema e advertiu: se a Áustria continuasse recusando as
concessões sérvias, ”será impossível atribuir à Rússia a culpa de uma conflagração européia”, o que
iria ”colocar-nos numa posição insustentável aos olhos de nosso próprio povo”. Ele não foi ouvido.
Quando chegou o dia da mobilização, o protocolo alemão requeria que a guerra fosse
adequadamente declarada. Segundo Tirpitz, os juristas do Ministério do Exterior insistiram que
legalmente esse era o procedimento correto. ”Fora da Alemanha, essas idéias não são levadas em
consideração”, disse ele corn melancolia.

Na França, a consideração foi maior do que ele imaginava.

97
l-de Agosto: Paris e Londres
98

Um objetivo principal comandava a política francesa: entrar na guerra como aliada da Inglaterra.
Para assegurar isso e permitir que seus amigos na Inglaterra vencessem a inércia e a relutância do
Gabinete e de todo o país, a França tinha que deixar claro, acima de qualquer dúvida, quem era o
atacado e quem era o atacante: o ato físico e a conseqüente reprovação moral da agressão devia
pertencer inteiramente à Alemanha. Esperava-se que os alemães fizessem a sua parte, mas para
evitar que soldados franceses de uma patrulha qualquer ou uma guarnição de fronteira, num ato de
nervosismo, atravessassem a divisa, o governo francês tomou uma medida ousada e extraordinária:
em 30 de julho, ordenou um recuo de dez quilômetros ao longo de toda a fronteira corn a
Alemanha, da Suíça até Luxemburgo.

O Primeiro-Ministro René Viviani, um eloqüente orador socialista, antes preocupado


principalmente corn o trabalhismo e a saúde pública, foi quem propôs esse recuo. Ele era uma
curiosidade na política francesa - um Primeiro-Ministro que nunca fora ministro e agora atuava
também como Ministro do Exterior. Estava no cargo havia seis semanas, e tinha acabado de voltar
na véspera, dia 29 de julho, de uma visita oficial à Rússia corn o Presidente Poincaré.

A Áustria tinha esperado até Viviani e Poincaré estarem no mar para enviar seu ultimato à Sérvia.
Ao receberem a notícia, o Presidente e o Primeiro-Ministro franceses cancelaram uma visita a
Copenhague e voltaram correndo para casa. Em Paris, foram informados de que as tropas de
cobertura alemãs tinham tomado posição a poucas centenas de metros da fronteira. Até então nada
sabiam da mobilização da Rússia e da Áustria. Ainda havia esperanças de um acordo negociado.

Viviani sentia-se ”perseguido pelo temor de que a guerra possa explodir num grupo de árvores, por
um encontro de duas patrulhas, um gesto ameaçador... um olhar raivoso, uma palavra ríspida, um
tiro!”. Para deixar claras as linhas de agressão se houvesse guerra, enquanto houvesse a mais ínfima
chance de se resolver a crise de maneira pacífica, o Gabinete concordou corn o recuo de dez
quilômetros. A ordem, telegrafada aos comandantes das unidades, declarava
Si

ter por objetivo ”assegurar a colaboração de nossos vizinhos ingleses”. Simultaneamente enviou-se
um telegrama à Inglaterra, informando da medida. O recuo, levado a cabo diante às portas da
invasão, foi um risco militar calculado e adotado deliberadamente, por causa do seu efeito político.
Significava correr um risco ”como nunca antes na História”, declarou Viviani, que poderia ter
acrescentado, como Cirano: ”Ah, mas que gesto!”.

A ordem de recuar era uma ordem amargamente recebida por um Comandante-em-Chefe francês
escolado na doutrina da ofensiva e nada além da ofensiva. Pode ter perturbado o General Joffre
assim como a primeira experiência de guerra perturbara Moltke, mas o coração do General Joffre
não se partiu.

Desde o momento da volta do Presidente e do Primeiro-Ministro, Joffre estivera pedindo ao


governo a ordem de mobilização ou pelo menos a tomada dos passos preliminares: o cancelamento
das licenças, que tinham sido concedidas em grande número por causa da colheita, e o envio de
tropas de cobertura para a fronteira. Ele inundou o Governo de relatórios corn informações das
medidas pré-mobilização já tomadas pela Alemanha. Sua autoridade era grande, diante de um
Gabinete recém-nascido - o décimo em cinco anos
- cujo predecessor durara três dias. O atual era notável principalmente por ter a maioria dos homens
fortes da França fora dele Briand, Clemenceau, Caillaux, todos antigos primeiros-ministros,
estavam na oposição. Viviani, segundo seu próprio testemunho, encontrava-se num estado de
”terrível tensão nervosa” que, segundo Messimy - novamente nomeado Ministro da Guerra -,
”tornou-se uma condição permanente durante o mês de agosto”. O Ministro da Marinha, Dr.
Gauthier, um médico empurrado para o cargo naval quando um escândalo político removera seu
predecessor, ficou tão perturbado pelos acontecimentos que ”esqueceu-se” de ordenar que unidades
da Marinha entrassem no Canal da Mancha e teve que ser substituído na hora pelo Ministro de
Instrução Pública.

No Presidente, entretanto, combinavam-se inteligência, experiência e decisão, se não o poder


constitucional. Poincaré era advogado, economista e membro da Academia, antigo Ministro das
Finanças que servira como Primeiro-Ministro e Ministro do Exterior em 1912 e fora eleito
Presidente da França em janeiro de 1913. O caráter forte gera poder, principalmente em horas de
crise, e o inexperiente Gabinete apoiou-se de boa vontade na capacidade e na força de vontade do
homem que constitucionalmente era um zero à esquerda.

£=r
Natural da Lorena, Poincaré lembrava-se de ver, aos 10 anos de idade, a longa fila de capacetes
alemães corn suas pontudas extremidades de ferro, marchando através de Bar-le-Duc, sua cidade
natal. Os alemães atribuíam-lhe as intenções mais belicosas, em parte porque como
Primeiro-Ministro demonstrara firmeza durante a crise de Agadir, em parte porque em 1913 ele
usara sua influência como Presidente para aprovar a Lei do Serviço Militar de Três Anos contra
uma violenta oposição socialista. Isso, e mais suas maneiras frias, sua introversão, sua rigidez, não o
tornavam popular em seu país. As eleições corriam contra o governo, a Lei dos Três Anos estava
prestes a ser derrubada; os problemas corn os operários e o descontentamento dos fazendeiros
cresciam; julho tinha sido um mês quente, úmido e opressivo, corn tempestades de vento e
trovoadas de verão; boatos de crise vinham da Sérvia.

Além disso tudo, a esposa de Caillaux, que dera um tiro no editor do Figaro, estava então sendo
julgada por assassinato. Cada dia do julgamento trazia à tona novas e escandalosas irregularidades
nas finanças, na imprensa, nos tribunais, no governo e até mesmo na vida particular de Caillaux;
juntas, forneciam o mais rico escândalo dessa espécie em que a França é tão fértil.

Certo dia, os franceses acordaram e encontraram a Sra. Caillaux relegada à segunda página... e a
novidade terrível de que a França estava diante de uma guerra. Naquele país que é o mais
apaixonadamente político e brigão, um só sentimento prevalecia. Poincaré e Viviani, voltando da
Rússia, atravessaram Paris de carro ao som de um único grito, prolongado e repetido sem cessar:
”Vive Ia France!”.

Joffre declarou ao governo que, se não recebesse a ordem de reunir tropas de cobertura de cinco
corpos do exército e mais a cavalaria e transportá-las para a fronteira, os alemães iriam ”entrar na
França sem disparar um só tiro”. O motivo de ter aceito o recuo de 10 quilômetros das tropas já
posicionadas foi menos a subserviência ao braço civil - Joffre era de natureza tão subserviente
quanto Júlio César - do que o desejo de colocar toda a ênfase do seu argumento na questão das
tropas de cobertura. O governo, relutante enquanto houvesse uma chance de que as propostas e
contrapropostas diplomáticas percorrendo os fios telegráficos pudessem ainda produzir um acordo,
concordou em conceder-lhe uma versão ”reduzida” da mobilização, isto é, sem convocar os
reservistas.

Às 16:30 do dia seguinte, 31 de julho, um amigo banqueiro de Amsterdam telefonou para Messimy
corn a notícia do Kriegesgefahr
”alemão, confirmado oficialmente uma hora depois por Berlim. Era ”une forme hypocrite de Ia
mobilisation”, Messimy declarou raivosamente ao Conselho. Seu amigo em Amsterdam dissera que
a guerra era certa e que a Alemanha estava preparada para ela, ”desde o Imperador até o último
Fritz”. Seguiu-se a essa notícia um telegrama de Paul Cambon, embaixador francês em Londres,
informando que a Inglaterra estava ”lépida”. Cambon devotara todos os dias dos últimos 16 anos
em seu posto ao objetivo único de assegurar o apoio ativo da Inglaterra quando chegasse o
momento, mas agora via-se obrigado a informar que o governo britânico parecia estar esperando
algum novo desenvolvimento. A disputa até então não tinha ”interesse para a Grã-Bretanha”.

Joffre chegou, corn um novo memorando sobre os movimentos alemães, para insistir na
mobilização. Autorizaram-no a enviar sua ”ordem de cobertura” mas nada mais que isso, pois
chegara também a notícia do apelo de última hora feito feito pelo Czar ao Kaiser (e destinado a ser
inútil). O Gabinete continuou reunido, corn Messimy ardendo de impaciência diante da ”rotina da
baeta verde”21 que estipulava que cada ministro esperasse sua vez de discursar.

Às 19:00, o Barão Von Schoen, fazendo sua décima primeira visita ao Ministério do Exterior
francês em sete dias, informou que a Alemanha exigia saber que curso a França tomaria e que ele
voltaria às 13:00 do dia seguinte para saber a resposta. Ainda assim o Gabinete discutia medidas
financeiras, a convocação do Parlamento e a declaração do estado de sítio, enquanto Paris inteira
esperava em suspense.

Um rapaz enlouquecido sucumbiu à ansiedade, encostou uma pistola na janela de um café e matou
Jean Jaurès, cuja liderança no socialismo internacional e na luta contra a Lei dos Três Anos
tornarao, aos olhos dos superpatriotas, um símbolo do pacifismo. Um pálido
ajudante-de-ordens^órrompeu no Gabinete às 9:00 corn a notícia. Jaurès assassinado! Oi
acontecimento, pleno de possíveis conflitos civis, atordoou o Gabinete. Barricadas nas ruas,
tumultos, até mesmo a revolta, tornaram-se uma perspectiva no limiar da guerra.

Os Ministros reabriram a acalorada discussão sobre se deviam invocar o Carnet B, a lista dos
conhecidos agitadores, anarquistas e pacifistas e dos suspeitos de espionagem, considerados
perigosos para a segurança nacional e que deveriam ser presos automaticamen-

21 Provável alusão ao tecido verde que costumava cobrir as mesas de reunião, transmitindo a idéia de ”burocracia”. (N. da T.)

m
te no dia da mobilização, Tanto o Chefe da Polícia quanto o antigo Primeiro-Ministro Clemenceau
tinham aconselhado o Ministro do Interior, M. Malvy, a recorrer ao Carnet B, mas Viviani e outros
Ministros se opunham, esperando corn isso preservar a unidade nacional. Eles ficaram firmes.
Foram presos alguns estrangeiros suspeitos de espionagem, mas nenhum francês. Naquela noite as
tropas ficaram em alerta para o caso de tumulto, mas na manhã seguinte havia apenas um grande
sofrimento e um silêncio profundo. Das
2.501 pessoas da lista do Carnet B, 80% iriam ser voluntárias para o serviço militar.

Às 2:00 daquela madrugada, o Presidente Poincaré foi despertado pelo irrefreável embaixador
russo, Isvolsky, anteriormente um hiperativo Ministro do Exterior. ”Muito perturbado e muito
agitado”, ele queria saber:

- Que é que a França vai fazer?

«5 Isvolsky não tinha dúvidas quanto à atitude de Poincaré, mas !éle e outros estadistas russos eram
sempre perseguidos pelo temor de ique, quando chegasse a hora, o Parlamento francês - que nunca
fora informado dos termos da aliança militar corn a Rússia-não quisesse ratificá-la. Os termos
declaravam explicitamente: ”Se a Rússia for atacada pela Alemanha, ou pela Áustria corn a ajuda
da Alemanha, a França usará todas as suas forças disponíveis para atacar a Alemanha”. Assim que a
Alemanha ou a Áustria se mobilizasem, ”a França e a Rússia, sem que seja necessário um acordo
prévio, deverão mobilizar todas as suas forças imediata e simultaneamente, e transportá-las para o
mais próximo possível das fronteiras. (...) Essas forças iniciarão a ação total corn a maior presteza,
para que a Alemanha tenha que lutar ao mesmo tempo no Oriente e no Ocidente.”

Esses termos pareciam inequívocos mas, como Isvolsky perguntara ansiosamente a Poincaré em
1912, o Parlamento Francês reconheceria essa obrigação? Isvolsky explicara: na Rússia, o poder do
Czar era absoluto, de modo que a França podia ”ficar tranqüila em relação a nós”; e perguntaram

- Na França o Governo é impotente sem o Parlamento. O Parlamento não conhece o texto de 1892.
(...) Que garantia temos de que seu Parlamento seguirá a liderança do seu Governo?”

- Se a Alemanha atacasse, o Parlamento seguiria o Governo, sem dúvida - Poincaré respondera


nessa ocasião.

Agora, de novo enfrentando Isvolsky no meio da noite, Poincaré


102 assegurou-lhe que o Gabinete seria convocado dentro de poucas
horas para fornecer a resposta. Nessa mesma hora, o adido militar russo, em trajes diplomáticos
completos, aparecia no quarto de Messimy para propor a mesma pergunta. Messimy telefonou para
o Primeiro-Ministro Viviani, que, embora exausto pelos acontecimentos da noite, ainda não se
deitara.

- Meu Deus! Esses russos são piores para dormir do que para beber! - explodiu ele, recomendando
excitadamente ”du calme, du calme et encare du calme!”

Pressionado pelos russos, que queriam uma declaração, e por Joffre, que queria a mobilização, mas
de mãos atadas pela necessidade de provar à Inglaterra que a França só agiria em defesa própria, o
Governo francês não estava achando fácil ter calma. Às 8:00 do dia seguinte, 1a de agosto, Joffre
foi ao Ministério da Guerra na Rue St. Dominique implorar a Messimy, ”num torn patético que
contrastava corn sua calma habitual”, para arrancar do governo a mobilização. Ele estabeleceu as
16:00 como o último minuto em que a ordem poderia chegar à Agência Central dos Correios para
ser despachada por telegrama para toda a França, a tempo de que a mobilização começasse à
meia-noite.

Às 9:00 ele foi corn Messimy ao Gabinete e apresentou seu próprio ultimato: cada adiamento de 24
horas da mobilização geral significaria uma perda territorial de entre 15 e 20 quilômetros e como
Comandante ele se recusava a arcar corn essa responsabilidade. Joffre partiu, e o Gabinete atacou o
problema. Poincaré era favorável à ação, ao passo que Viviani, representando a tradição antiguerra,
ainda tinha esperanças de que o tempo fornecesse uma solução.

Às 11:00 Viviani foi chamado ao Ministério do Exterior para falar corn Von Schoen, que em sua
ansiedade chegara duas horas adiantado para a resposta à pergunta alemã da véspera: numa guerra
russo-alemã, a França^rianteria a neutralidade?

- Minha pergunta é um tanto ingênua, pois sabemos que vocês têm um tratado de aliança - declarou
o infeliz embaixador.

- Obviamente - respondeu Viviani, dando a resposta combinada entre ele e Poincaré - a França vai
agir de acordo corn seus interesses.

Assim que Von Schoen partiu, Isvolsky entrou correndo corn a notícia do ultimato alemão à Rússia.
Viviani voltou ao Gabinete, que finalmente autorizou a mobilização. A ordem foi assinada e
entregue a Messimy, mas Viviam, ainda corn esperanças de que um acontecimento salvador
surgisse nas poucas horas restantes, insistiu que
103
Messimy a mantivesse guardada no bolso até as 15:30. Ao mesmo tempo, o recuo de 10
quilômetros foi ratificado. Naquela noite, Messimy telefonou pessoalmente para os comandantes de
corpos corn a ordem: ”Por ordem do Presidente da República, nenhuma unidade do exército,
nenhuma patrulha de reconhecimento, nenhum tipo de destacamento, ultrapassará a linha
demarcada. Qualquer pessoa culpada de transgressão será sujeita à corte marcial”. Foi acrescentada
uma advertência especial ao XX Corpo, comandado pelo General Foch, pois havia informações
seguras de que um esquadrão de couraceiros tinha sido visto ”cara a cara” corn um esquadrão de
Ulanos22.

Às 15:30, como combinado, o General Ebener, do staff de Joffre, acompanhado por dois oficiais, foi
ao Ministério da Guerra para buscar a ordem de mobilização. Messimy entregou-a em compungido
silêncio. ”Cônscios das conseqüências gigantescas e infinitas que teriam origem naquele pequeno
pedaço de papel, nós quatro sentimos o coração compungido.” Ele apertou as mãos de cada um dos
três oficiais, que fizeram continência e partiram para levar a ordem ao Correio.

As 16:00, o primeiro cartaz apareceu nos muros de Paris (ainda existe um deles na esquina da Place
de Ia Concorde corn a Rue Royale, protegido por vidro). Em Armenonville, local de encontro do
hautmonde no Bois de Boulogne, o chá-dançante foi interrompido repentinamente, quando o
gerente adiantou-se, silenciou a orquestra e anunciou:

-A mobilização acabou de ser ordenada. Começará à meia-noite. Maestro, toque a Marseillaisé23.

Nas ruas da cidade já não havia veículos, requisitados pelo Ministério da Guerra. Grupos de
reservistas carregando trouxas e ramalhetes de flores ganhos em despedida marchavam para a Gare
de l’Est24, enquanto os civis acenavam e davam vivas. Um grupo parou para depositar suas flores
aos pés da estátua de Strasbourg, envolta em panos negros, na Place de Ia Concorde. A multidão
chorava e gritava ”Vive l’Alsace!”, enquanto rasgava os panos que a estátua usava desde 1870 ^m
sinal de luto. As orquestras nos restaurantes tocavam os hinos francês, russo e inglês.

- E pensar que todos eles estão sendo tocados por húngaros...


- comentou alguém.

22 Ulano: lanceiro de alguns antigos exércitos europeus. (N. da T.)

23 Marseillaise: a ”Marselhesa”, hino nacional f rances. (N. da T.) ttá 24 Gare de l’Est: estação ferroviária em
Paris. (N. da T.)
A execução do hino da Inglaterra, como se expressasse uma esperança, deixava constrangidos os
ingleses na multidão, principalmente Sir Francis Bertie, o rosado e gorducho embaixador inglês
que, usando fraque e cartola cinzentos, segurando um guarda-sol verde para se proteger do sol, foi
visto entrando no Quai d’Orsay. Sir Francis sentia-se ”triste e envergonhado”. Ele ordenou que as
portas da embaixada ficassem fechadas, pois, como escreveu em seu diário, ”embora hoje seja ’Vive
1’Angleterre’, amanhã poderá ser ’Perfide Albiorí”.

Em Londres, essa idéia pairava sufocantemente no aposento onde Monsieur Cambon, pequenino e
de barbas brancas, enfrentava sir Edward Grey. Quando Grey lhe informou que seria necessário
esperar algum ”desenvolvimento novo”, porque a disputa entre a Rússia, a Áustria e a Alemanha
girava em torno de uma questão ”de interesse nulo” para a Inglaterra, Cambon deixou uma pontada
de raiva penetrar em seu tato impecável e sua rebuscada dignidade. Perguntou se a Inglaterra iria
”esperar até que o território francês fosse invadido, antes de intervir” e opinou que, se assim fosse, a
ajuda poderia vir ”tarde demais”.

Grey, por trás dos lábios tensos e de seu nariz romano, estava igualmente angustiado. Ele acreditava
ferventemente que os interesses da Inglaterra ordenavam que ela apoiasse a França; na verdade,
estava disposto a demitir-se se isso não acontecesse; acreditava que os acontecimentos futuros
forçariam essa decisão, mas naquele momento nada podia comunicar oficialmente a Cambon.
Tampouco tinha a habilidade de expressar-se extra-oficialmente. Seus modos, que o público inglês,
vendo nele a imagem do homem silencioso e forte, achava reconfortantês, eram considerados
”gelados” por seus colegas. Ele conseguiu apenas esboçar o pensamento que estava na mente de
todos: ”a neutralidade da Bélgica pode se tornar um fator”.

Aquele era o desenvolvimento que Grey - e não apenas ele -• estava esperando.

O dilema da Inglaterra resultava de uma dupla personalidade, evidente tanto dentro do Gabinete
quanto entre os partidos. O Gabinete era dividido, por uma divergência derivada da Guerra dos
Bôeres, entre Imperialistas Liberais, representados por Asquith, Grey, Haldane e Churchill, e os
”Little Englanders”25, contrários à política

25 Little Englanders: na Inglaterra, grupo contrário à’política imperialista do governo. (N. da T.)

105
imperialista, representados por todos os outros. Herdeiros de Gladstone, eles guardavam, como seu
falecido líder, profundas suspeitas contra envolvimentos estrangeiros; consideravam a ajuda aos
povos oprimidos o único objetivo cabível em relação aos negócios exteriores, que constituíam para
eles uma interferência impertinente em coisas como a Reforma, o Livre Comércio, a Autonomia das
Colônias e o Veto dos Nobres. Viam a França como a cigarra frívola e decadente, e gostariam de
ver a Alemanha como a formiga trabalhadora e respeitável, se os posicionamentos e os rugidos do
Kaiser e dos militaristas pangermânicos não desmentissem essa visão. Eles não teriam apoiado uma
guerra para ajudar a França, mas a violação da Bélgica, um ”paqueno” país corn direito à proteção
britânica, poderia mudar essa postura.

O grupo de Grey no Gabinete, por outro lado, partilhava corn os Conservadores a premissa
fundamental de que o interesse nacional britânico estava ligado à preservação da França. O
raciocínio era melhor expresso nas palavras extraordinariamente brandas de Grey: ”Se a Alemanha
dominasse o Continente, seria desagradável para nós, assim como para outros, pois ficaríamos
isolados”.

Nesta frase épica está contida toda a política britânica, e dela derivava a consciência de que, se o
desafio fosse feito, a Inglaterra teria que lutar para impedir esse desfecho ”desagradável”. Mas Grey
não podia dizer isso sem provocar uma cisão, no Gabinete e no país, que seria fatal para qualquer
esforço de guerra antes mesmo que este começasse.

A Inglaterra era a única nação da Europa que não tinha serviço militar obrigatório; em caso de uma
guerra, dependeria dos alistamentos voluntários. Uma divergência corn o Governo por causa da
guerra significaria a formação de um partido antiguerra, liderado pelos dissidentes, corn efeitos
desastrosos sobre o recrutamento. Se o objetivo primordial da França era entrar na guerra tendo a
Inglaterra como aliada, para a Inglaterra era primordial entrar na guerra corn um Governo unido. }

Esse era o cerne do problema. Nas reuniões do Gabinete, o grupo que se opunha à intervenção
mostrou-se forte. Seu líder, Lord Morley, velho amigo e biógrafo de Gladstone, acreditava que
poderia contar corn ”oito ou nove que provavelmente concordarão conosco” contra a solução que
Churchill armava abertamente, corn ”energia demoníaca”, e Grey corn ”esforçada simplicidade”.
Nas discussões do Gabi-
106 nete ficou claro para Morley que a neutralidade da Bélgica era ”menos
importante do que a questão da nossa neutralidade na guerra entre Alemanha e França”. Para Grey,
era igualmente óbvio que apenas a violação da neutralidade belga poderia convencer o partido
pacifista da ameaça alemã e da necessidade de ir à guerra no interesse nacional.

Em 1a de agosto, a cisão era visível e crescente no Gabinete e no Parlamento. Naquele dia, doze dos
dezoito membros do Gabinete declararam-se contrários a dar à França a garantia do apoio da
Inglaterra em caso de guerra. Naquela tarde, no saguão da Câmara dos Comuns, uma convenção de
parlamentares Liberais aprovou por dezenove votos contra quatro (embora corn muitas abstenções)
uma moção para que a Inglaterra permanecesse neutra ”não importando o que acontecesse na
Bélgica ou em outro lugar”. Naquela semana, o Punch publicou ”Versos destinados a representar as
opiniões de um típico patriota inglês”:

Por que devo entrar na sua luta l

Por um assunto que não me diz respeito? (...)

Serei convidado para uma briga geral l Por todo o mapa da Europa j E arrastado para a
guerra dos outros,

l Pois é para isso que serve uma aliança dupla.

O patriota típico já esgotara na crise irlandesa o seu estoque normal de excitação e indignação. O
Motim do Curragh foi a ”Sra. Caillaux” da Inglaterra: como resultado da Lei de Autonomia
Colonial, o Ulster estava ameaçando uma rebelião armada contra a autonomia para o resto da
Irlanda, e as tropas inglesas estacionadas no Curragh tinham se recusado a forçá-lo a aceitar a Lei.
O General Gough, comandante da brigada no Curragh, tinha pedido demissão corn 57 de seus 60
oficiais. Para preencher essa terrível lacuna, Sir John French, Chefe do Estado^Maior, e o Coronel
John Seely, sucessor de Haldane como Secretário da Guerra»- tinham dado a Gough uma garantia
por escrito de que suas tropas não receberiam ordens de pegar em armas contra o Ulster. j

Como os partidários da Lei da Autonomia tivessem criado um grande caso por causa dessa
promessa, ela foi rapidamente desmentida pelo Governo; diante disso, French e Seely tinham se
demitido. O Exército fervilhava, o tumulto e as cisões dominavam o país, em vão os líderes dos
partidos reuniram-se corn o Rei numa conferência no Palácio. Lloyd George falava agourentamente
da ”questão mais grave surgida neste país desde os dias dos Stuarts”; ouviam-se as palavras ”guerra
civil” e ”rebelião”; uma empresa de armamentos

107
alemã, esperançosa, mandou para Ulster uma carga de 40.000 rifles e um milhão de cartuchos.
Nesse ínterim, não havia Secretário da Guerra, e esse cargo foi entregue ao Primeiro-Miràstro
Asquith, que tinha pouco tempo e ainda menos inclinação para o posto.

Ele tinha, no entanto, um Chefe do Almirantado particularmente ativo. Ao sentir o cheiro da batalha
distante, Winston Churchill mostrou semelhança corn o cavalo, no Livro de Jó, que não deu as
costas à espada mas ”galopava no vale e gargalhava em meio às trombetas”. Era o único ministro
britânico a ter uma convicção perfeitamente clara do que deveria ser feito, e agia sem hesitar. Em
26 de julho, dia em que a Áustria rejeitou a resposta da Sérvia e dez dias antes que seu próprio
Governo chegasse a uma decisão, Churchill baixou uma ordem crucial.

No dia 26 de julho, por acaso e sem qualquer relação corn a crise, a Armada britânica completava
um teste de mobilização e manobras corn tripulações completas em efetivo de guerra, teste esse que
vinha sendo efetuado no litoral de Portland desde 15 de julho. Às 7:00 do dia seguinte, os
esquadrões deveriam dispersar; alguns navios seguiriam para exercícios diversos em alto-mar,
outros para os portos onde a tripulação extra seria desembarcada de volta para as escolas de
treinamento, alguns iriam ser consertados. Churchill relembraria mais tarde que aquele domingo, 26
de julho, foi ”um dia muito belo”. Quando ele tomou conhecimento das notícias vindas da Áustria,
decidiu garantir que a ”situação diplomática não ultrapassasse a situação naval e que a Grande
Armada estivesse em sua Base de Guerra antes que a Alemanha pudesse saber se iríamos ou não
entrar na guerra, portanto, se possível, antes que nós mesmos tive’ssemos decidido”. (O grifo é dele
mesmo.) Depois de consultar o First Sea Lord, Príncipe Louis of Battenberg, ele deu ordens para
que a Armada não se dispersasse.

Em seguida informou Grey do que havia feito e, corn o assentimento deste, enviou a ordem do
Almirantado para os jornais, na esperança de que a notícia; tivesse ”um efeito de advertência” em
Berlim e Viena.

Manter a Armada unida não era suficiente; ela tinha que ser levada para a sua Base de Guerra - em
maiúsculas, como queria Churchill. O dever primordial de uma esquadra, segundo decretara o
Almirante Mahan - o Clausewitz da guerra naval - era permanecer como ”uma esquadra em
existência”. Em caso de guerra, a Armalog da inglesa, de quem dependia a vida dessa nação ilhada,
tinha por
obrigação estabelecer e manter o domínio das rotas de comércio oceânicas, proteger o arquipélago
inglês de uma invasão, proteger o Canal da Mancha e o litoral francês em cumprimento ao pacto
corn a França; tinha que manter-se concentrada corn efetivo suficiente para vencer qualquer conflito
se a Armada alemã procurasse a luta e acima de tudo tinha que proteger-se da arma nova e
ameaçadora, de potencial ainda ignorado: o torpedo.

No dia 28 de julho, Churchill ordenou que a Armada partisse para sua Base de Guerra em Scapa
Flow, bem ao norte, na ponta da enevoada Orkney, no Mar do Norte. A frota partiu de Portland no
dia
29 de julho; quando escureceu, 30 quilômetros de navios de guerra tinham passado pelos Estreitos
de Dover em direção ao norte, rumo a um encontro - não corn a glória, mas corn a discrição. O
Chefe do Almirantado escreveu: ”Um ataque-surpresa de torpedos era pelo menos um pesadelo
terminado para sempre.”

Tendo preparado a Armada para a ação, Churchill passou a dedicar sua abundante energia e
inquietação para preparar o país. No dia 29 de julho, convenceu Asquith a autorizar o Telegrama de
Advertência, que era o sinal combinado que o Ministério da Guerra e o Almirantado enviariam para
iniciar o Período de Alerta. Embora não se equiparasse ao Kriegesgefahr ou ao Estado de Sítio
francês, o Período de Alerta tem sido descrito como um mecanismo, ”inventado por um gênio, (...)
que permitia que se tomassem certas medidas mediante o ipse dixit do Secretário da Guerra sem
consulta ao Gabinete (...) num momento em que o tempo era a única coisa que importava”.

O tempo pressionava o inquieto Churchill, que, calculando que o Governo Liberal se fragmentaria,
saiu em campo para conquistar seu antigo partido, o Conservador. A coalizão não agradava o
mínimo ao Primeiro-Ministro, que estava decidido a manter seu Governo unido. Ninguém esperava
quéLord Morley, aos 76 anos de idade, continuasse no Governo em caso de guerra. A figura que o
Governo não podia perder não era Morley, mas sim alguém muito mais vigcK roso: o Secretário das
Finanças, Lloyd George - tanto por sua conhecida capacidade no cargo quanto por sua influência
junto ao eleitorado. Sagaz, ambicioso e dono de uma enfeitiçadora eloqüência galesa, Lloyd George
preferia o grupo pacifista, mas poderia escolher qualquer dos lados. Sua popularidade sofrerá
reveses recentes e ele via surgir um novo rival na liderança partidária na pessoa do indivíduo a
quem Lord Morley chamava ”aquele magnífico chefe de aventureiros no Almirantado”; alguns de
seus colegas achavam que

m
ele poderia encontrar uma vantagem política em ”jogar a cartada da paz” contra Churchill. De modo
geral, ele era um fator desconhecido e perigoso.

Asquith, que não tinha intenções de levar à guerra um país dividido, continuava a esperar, corn uma
paciência exasperante, algum acontecimento que conseguisse convencer o grupo pacifista. A
questão do momento, registrada por ele em seu diário no dia 31 de julho em seu estilo sóbrio, era:
”Entramos ou ficamos de fora? Naturalmente todos anseiam por ficar de fora.”

Numa atitude menos passiva, durante a reunião do Gabinete em


31 de julho, Grey foi direto, quase ao exagero. Disse que a política da Alemanha era a de ”um
agressor europeu tão ruim quanto Napoleão” (um nome que para a Inglaterra tinha um único
significado) e declarou que chegara o momento em que não se podia mais adiar a decisão de apoiar
a Entente ou manter a neutralidade. Disse que, se o Gabinete escolhesse a neutralidade, ele não era a
pessoa indicada para levar isso a cabo. Sua ameaça velada de demissão teve o efeito de uma ameaça
explícita.

”O Gabinete pareceu soltar uma espécie de suspiro”, escreveu um de seus membros. Depois, ficou
vários instantes em ”ofegante silêncio”. Seus membros se entreolharam, constatando de repente que
a continuidade de sua existência como Governo era agora duvidosa. A sessão foi encerrada sem que
tivessem chegado a uma decisão.

Naquela sexta-feira, véspera do fim de semana de feriado, a Bolsa de Valores fechou às 10:00 numa
onda de pânico financeiro que começara em Nova York, quando a Áustria declarou guerra à Sérvia,
e estava fechando as Bolsas em toda a Europa. Segundo Lloyd George, os banqueiros e financistas
estavam ”consternados” corn a idéia da guerra, que ”derrubaria todo o sistema de crédito, corn
Londres em seu centro”. O Presidente do Banco da Inglaterra ligou para Lloyd George no sábado
para informar que os círculos financeiros eram ”totalmente contrários à nossa intervenção” naquela
guerra.

Na mesma sexta-feira, os líderes Conservadores foram procurados em suas casas de campo e


convocados para uma reunião sobre a crise. Correndo de um lado para outro, de Lansdowne House
à casa de Austen Chamberlain e de lá à de Bonar La w, apelando, exortando, explicando a vergonha
da Inglaterra se os vacilantes Liberais recuassem agora, Henry Wilson foi o coração, a alma, o
espírito, a espinha dorsal e as pernas das conversações militares anglo-francesas - o eufemismo
consagrado para os planos conjuntos dos Estados-Maio-
r
rés era ”conversações”. A fórmula de não-compromisso que Haldane estabelecera, a mesma que
provocara dúvidas em Campbel-Bannerman, que Lord Esher rejeitara e Grey personificara na carta
de 1912 para Cambon - ainda representava a posição oficial, mesmo não fazendo sentido.

Fazia sentido, sim, mas pouco. Se, como Clausewitz afirmou corn acerto, a guerra é a continuação
de uma política nacional, o mesmo se dá corn os planos de guerra. Os planos de guerra
anglofranceses, aperfeiçoados durante nove anos, não eram um jogo (mesmo levando-se em conta
os hábitos esportivos dos ingleses), nem um exercício de fantasia, tampouco uma prática teórica
para manter ocupadas as mentes militares; eram a continuação de uma política, ou não eram coisa
alguma. Não eram diferentes dos arranjos da França corn a Rússia, ou da Alemanha corn a Áustria,
a não ser pela ficção oficial de que eles não comprometiam a Inglaterra. Os membros do Governo e
do Parlamento que eram contrários a essa política simplesmente fechavam os olhos e hipnotizavam
a si mesmos para acreditar na ficção.

Ao visitar líderes da oposição depois de sua dolorosa entrevista corn Grey, Monsieur Cambon
deixou de lado seu tato diplomático.

- Todos os nossos planos foram feitos em conjunto. Nossos Estados-Maiores sempre se


consultaram. Vocês conhecem todos os nossos planos e preparativos. Vejam a nossa Armada! Toda
a nossa frota está no Mediterrâneo, em conseqüência de nossos acordos corn vocês, e nosso litoral
está aberto ao inimigo. Vocês nos deixaram desprotegidos!

Afirmou que a França jamais perdoaria se a Inglaterra não entrasse na guerra. E terminou corn uma
indagação amarga:

- £í 1’honneur? Est-ce que^Angleterre comprend cê que c’est l’honneur?26

A honra veste roupas diferentes para olhos diferentes, e Grey. sabia que ela teria que usar uma
roupagem belga para que o grupo pacifista pudesse ser persuadido a enxergá-la. Naquela mesma
tarde ele enviou dois telegramas pedindo aos governos francês e alemão uma declaração formal de
que ambos estavam preparados para respeitar a neutralidade belga ”enquanto outra potência não a
violar”. Uma hora depois de receber o telegrama, no final da noite de 31 de

26 ”E a honra? A Inglaterra sabe o que é honra? ” (N. da T.)

m
julho, a França respondeu afirmativamente. A resposta da Alemanha jamais chegou.

No d ia seguinte, l2 de agosto, a questão foi exposta ao Gabinete. Lloyd George desenhou corn o
dedo num mapa a rota que ele achava que os alemães tomariam através da Bélgica, atravessando
apenas um canto, em linha reta para Paris; afirmou que seria apenas ”uma pequena violação”.
Quando Churchill requereu autorização para mobilizar a Armada, isto é, convocar os reservistas
navais, o Gabinete recusou, depois de uma ”acirrada discussão”. Quando Grey requereu autorização
para implementar as promessas feitas à Marinha francesa, Lord Morley, mais John Burns (o líder
sindicalista), Sir John Simon (Procurador-Geral) e Lewis Harcourt, Ministro Colonial, propuseram
demitir-se. Fora do Gabinete, fervilhavam boatos sobre as escaramuças de última hora entre o
Kaiser e o Czar, bem como do ultimato alemão. Grey deixou o aposento para falar corn Lichnowsky
- e ser mal interpretado - pelo telefone e ser a causa inconsciente da devastação no coração do
General Moltke. Ele esteve também corn Cambon, a quem afirmou:

-Neste momento a França deve tomar sua própria decisão sem contar corn uma ajuda que agora não
estamos em posição de oferecer.

Ele voltou ao Gabinete, enquanto Cambon, pálido e trêmulo, afundava-se numa poltrona na sala de
seu velho amigo Sir Arthur Nicolson, o Subsecretário Permanente.

- lis vont nous lâcher! (Eles vão nos abandonar!) - disse.

Ao editor do The Times que lhe perguntou o que iria fazer, ele respondeu:

- you esperar para descobrir se a palavra ”honra” devia ser apagada do dicionário inglês.

No Gabinete, ninguém queria queimar suas pontes. Vários pedidos de demissão foram alardeados,
nenhum foi feito. Asquith continuava firme, sem dizer muita coisa e aguardando os acontecimentos,
enquanto ia chegando ao fim esse dia de linhas cruzadas e frenesi. Naquela mesma noite, Moltke
recusava-se a levar as tropas para o leste, a companhia do Tenente Feldmann estava tomando Trois
Vierges em Luxemburgo, Messimy ratificava pelo telefone o recuo de dez quilômetros e o Chefe do
Almirantado recebia amigos da oposição, entre eles os futuros Lord Beaverbrook e Lord
Birkenhead. Para se ocuparem, distraindo-se da tensão, eles jogaram bridge depois do jantar.
Durante o jogo, um mensageiro trouxe uma caixa de entrega Ii2 de documentos vermelha - e
casualmente do maior tamanho que
havia. Churchill tirou uma chave do bolso e abriu-a, retirou a única folha de papel que ela continha
e leu a única linha no papel: ”A Alemanha declarou guerra à Rússia.” Ele deu a notícia aos outros,
trocou o traje formal e saiu ”direto, como um homem que vai para um trabalho habitual”.

Churchill atravessou a pé o Campo da Cavalaria de Guarda até a Downing Street27, entrou pelo
portão do jardim e encontrou o Primeiro-Ministro no andar superior corn Grey, Haldane - já então
Secretário do Exterior - e Lord Crewe, Secretário para a índia. Disselhes que pretendia ”mobilizar
imediatamente a Armada, independente da decisão do Gabinete”. Asquith nada comentou, mas
Churchill achou que ele parecia ”bastante contente”. Grey, acompanhando Churchill na saída,
disse-lhe:

- Eu acabo de fazer uma coisa muito importante: disse a Cambon que não permitiremos que a
Armada alemã entre no Canal da Mancha.

Isso significava que agora a Armada assumira um compromisso


- pelo menos foi o que Churchill, experimentando os perigos de um diálogo verbal corn Grey,
entendeu que ele disse. Os estudiosos concluíram depois que não faz muita diferença se Grey disse
que tinha feito a promessa ou que ia fazê-la no dia seguinte, pois apenas confirmou em Churchill
uma decisão que ele já tinha tomado. Churchill voltou para o Almirantado e deu ”de imediato a
ordem de mobilização”.

Tanto a sua ordem quanto a promessa de Grey de cumprir o acordo naval corn a França eram
contrárias ao sentimento da maioria do Gabinete. No dia seguinte, o Gabinete teria que ratificar
esses atos ou dividir-se, e Grey esperava que até então viesse da Bélgica um fato novo. Como os
franceses, ele confiava que a Alemanha iria fornecê-lo.

r•

27 DowningStreei:ruadacidadedeI#ndres0ndeetéh(ft&4to&1Íztáa,nonl10,aresidência oficial do Primeiro-Ministro.

113
8

Ultimato em Bruxelas

Trancado no cofre de Herr Von Below-Saleske, diplomata alemão em Bruxelas corn o cargo de
ministro, havia um envelope lacrado que no dia 29 de julho lhe fora enviado de Berlim por
mensageiro especial, corn ordens de ”não abrir até receber daqui instruções por telégrafo”. No
domingo, 2 de agosto, Below recebeu um telegrama ordenando que abrisse imediatamente o
envelope e entregasse a Nota que ele continha às 20:00, cuidando para não deixar de dar ao
Governo belga ”a impressão de que todas as instruções relacionadas a esse caso chegaram a você
hoje”. Ele deveria exigir uma resposta dos belgas em doze horas e telegrafá-la a Berlim ”o mais
rapidamente possível” e também ”enviá-la imediatamente por automóvel para o General Von
Emmich no Union Hotel em Aachen”. Aachen, ou Aix-la-Chapelle, era a cidade alemã mais perto
de Liège, a porta oriental para a Bélgica.

Herr Von Below, um solteirão alto e espigado de negros bigodes em ponta que usava
constantemente uma piteira de jade, assumira seu posto na Bélgica no início de 1914. Quando
visitantes à missão diplomática alemã lhe perguntavam sobre um cinzeiro de prata que ficava sobre
a sua mesa, perfurado por uma bala, ele ria e respondia:

- Sou um pássaro de mau agouro. Quando estive servindo na Turquia, houve uma revolução lá.
Quando estive na China, foram os Boxers. Um de seus tiros entrou pela janela e fez esse buraco de
bala.
- Ele então levava delicadamente o cigarro aos lábios, num gesto largo e elegante, e acrescentava: -
Mas agora estou descansando. Nada acontece em Bruxelas.

Desde a chegada do envelope lacrado, ele não esteve mais descansando. Ao meio-dia de l- de
agosto, recebeu a visita do Barão de Bassompierre, Subsecretário do Ministério do Exterior belga,
que lhe comunicou que os jornais vespertinos pretendiam publicar a resposta da França a Grey, na
qual aquele país prometia respeitar a neutralidade belga. Bassompierre sugeriu que, na ausência de
uma resposta alemã similar, Herr Von Below poderia desejar fazer uma declaração. Below não
tinha autorização de Berlim para fazer isso; recorrendo a uma manobra diplomática, ele recostou-se
para trás e,
114 corn os olhos fixos no teto, repetiu, palavra por palavra, através de
uma nuvem de fumaça de cigarro, tudo que Bassompierre acabara de lhe dizer, como se fosse uma
gravação. Erguendo-se, assegurou ao visitante que ”A Bélgica nada tem a temer da Alemanha” e
deu por encerrada a conversa.

Na manhã seguinte ele asseverou a mesma coisa a Monsieur Davignon, o Ministro do Exterior, que
fora acordado às 6:00 pela notícia da invasão alemã em Luxemburgo e viera pedir uma explicação.
De volta à legação alemã, Below acalmou a ImprenSsa corn uma frase muito feliz, que foi bastante
citada:

-O telhado do teu vizinho pode pegar fogo, mas tua casa estará segura.

Muitos belgas, funcionários do Governo ou não, estavam dispostos a acreditar nele - alguns por
simpatia pelos alemães, outros por vontade de acreditar no melhor e outros ainda por simples
confiança na boa-fé dos países que haviam garantido a neutralidade belga. Em 75 anos de
independência garantida, eles vinham tendo paz pelo mais longo período ininterrupto de sua
História. O território da Bélgica tinha sido um caminho de guerreiros desde que César cornbatera os
bélgae. Foi lá que Charles, o Bravo, da Borgonha, e Louis XI resolveram em combate sua longa e
amarga rivalidade; foi lá que a Espanha devastou as terras baixas; foi lá que Marlborough combateu
os franceses na batalha ”muito assassina” de Malplaquet; foi lá que Napoleão enfrentou Wellington
em Waterloo; e era lá que o povo se revoltava contra qualquer governante, fosse ele borgonhês,
francês, espanhol, Habsbiirgo ou holandês, até a revolta final contra a Casa de Orange em 1830.
Então, sob Leopold de Saxe-Coburg, tio materno da Rainha Vitória, eles se tornaram uma nação;
desde então prosperaram, gastavam suas energias em disputas fraternas entre flamengos e valões28
ou católicos e protestantes e também em discussões a respeito do socialismo e do bilingüalismp
francês e flamengo; confiando na neutralidade, esperavam ardentemente que seus vizinhos os
deixassem continuar em paz nessa feliz condição.

O Rei, o Primeiro-Ministro e o Chefe do Estado-Maior já não se sentiam em condições de partilhar


dessa confiança geral, mas tanto os deveres da neutralidade quanto a sua fé nessa neutralidade os
impediam de fazer planos para repelir um ataque. Até o último momento não conseguiam acreditar
que haveria realmente uma in-

28 Valões: povo que vivia nas regiões sul e sudeste da Bélgica e em regiões francesas vizinhas.

(N. da T.) ...:... .

m
vasão por um dos países que lhes garantira a neutralidade. Ao saber do Kriegesgefahr alemão em 31
de julho, eles ordenaram que a mobilização do Exército belga começasse à meia-noite. Durante a
noite e o dia seguinte, policiais iam de casa em casa, tocando as campainhas e entregando ordens, e
os homens saíam apressados da cama ou abandonavam o trabalho, juntavam sua trouxa, faziam suas
despedidas e iam para suas bases regimentais. A mobilização não era dirigida contra um inimigo
determinado nem orientada numa direção determinada, pois os belgas, mantendo estrita
neutralidade, não tinham até então decidido um plano de campanha. Era uma convocação sem
movimentação; a Bélgica, assim como os que garantiram sua neutralidade, era obrigada a
preservá-la e não podia agir abertamente até que agissem contra ela.

Quando, na noite de l2 de agosto, o silêncio da Alemanha quanto à resposta ao pedido de Grey


completou 24 horas, o Rei Albert ,.,.,; decidiu enviar ao Kaiser um apelo final. Redigiu-o
juntamente corn a esposa, a Rainha Elizabeth, alemã de nascimento, filha de um duque bávaro, que
traduziu sentença por sentença para o alemão, estudando corn o Rei a escolha das palavras e seus
diversos significados. O apelo reconhecia que ”objeções políticas” poderiam impedir uma
declaração pública, mas esperava que ”os laços de parentesco e amizade” levassem o Kaiser a dar
ao Rei Albert sua garantia pessoal e particular de respeito à neutralidade belga.

O parentesco em questão, que vinha da mãe do Rei Albert, a Princesa Marie de


Hohenzollern-Sigmaringen, um ramo distante e católico da família real prussiana, não foi suficiente
para levar o Kaiser a responder. Em vez disso veio o ultimato que nos últimos quatro dias estivera
esperando no cofre de Herr Von Below. Ele foi entregue às
19:00 do dia 2 de agosto, quando um criado do Ministério do Exterior assomou à porta da sala do
Subsecretáricre informou, num cochicho excitado:

- O diplomata alemão acabou de chegar para ver Monsieur Davignon!

Quinze minutos mais larde, Below foi visto dirigindo de volta pela Rue de Ia Loi levando o chapéu
na mão, corn gotas de suor na testa e fumando corn os movimentos rápidos e espasmódicos de um
brinquedo mecânico. No instante em que sua ”silhueta altiva” foi vista saindo do Ministério do
Exterior, os dois Subsecretários correram para a sala do Ministro, onde encontraram Monsieur
Davignon
- um homem até então irredutivelmente otimista - extremamente lie pálido.
- Más notícias, más notícias - disse ele, estendendo-lhes a Nota alemã que acabara de receber.

O Barão de Gaiffier, Secretário Político, leu-a em voz alta, traduzindo devagar à medida que lia,
enquanto Bassompierre, sentado à mesa do Ministro, a transcrevia, discutindo cada frase ambígua
para certificarem-se do significado correto. Enquanto eles trabalhavam, Monsieur Davignon e seu
Vice-Ministro Permanente, Barão Van der Elst, escutavam, sentados em cadeiras colocadas a cada
lado da lareira. A última palavra de Monsieur Davignon a respeito de qualquer problema era:
’Tenho certeza de que yai dar tudo certo”, e a estima de Van der Elst pelos alemães já o levara, no
passado, a assegurar ao seu governo que a ampliação do armamento alemão tinha como objetivo
apenas o Drang nach Osten e não prenunciava qualquer problema para a Bélgica.

Quando o trabalho chegava ao fim, entrou na sala o Barão de Broqueville, Primeiro-Ministro e ao


mesmo tempo Ministro da Guerra. Era um cavalheiro alto e moreno, de modos elegantes, cujo ar
resoluto era realçado pelo enérgico bigode e pelos expressivos olhos negros. Quando o ultimato foi
lido para ele, todos na sala escutavam cada palavra corn a mesma intensidade que os autores tinham
empregado ao redigi-lo. Pois ele tinha sido redigido corn muito cuidado, corn talvez uma sensação
subconsciente de que aquele seria um dos documentos críticos do século.

O General Moltke redigira ele próprio a versão original no dia


26 de julho, dois dias antes da Áustria declarar guerra à Sérvia, quatro dias antes da mobilização da
Áustria e da Rússia, no mesmo dia em que a Alemanha e a Áustria rejeitaram a proposta de Sir
Edward Grey para uma conferência das cinco potências. Moltke enviara seu rascunho para a
Secretaria do Exterior^onde ele foi revisto pelo Subsecretário Zimmermann e pelo Secretário
Político Stumm, novamente corrigido e modificado pelo Ministro do Exterior, Jagow, e pelo
Primeiro-Ministro, Bethmann-Hollweg, antes que o texto final fosse enviado para Bruxelas num
envelope lacrado, no dia 29. Os cuidados corn o texto refletiam a importância que davam ao
documento.

A Nota começava dizendo que a Alemanha recebera ”informações fidedignas” de um tencionado


ataque francês ao longo da rota Givet-Namur ”sem deixar dúvida da intenção francesa de avançar
contra a Alemanha através do território belga”. (Como os belgas não tinham visto qualquer
evidência de movimentação francesa em direção a Namur, pela excelente razão de que não havia
movimentação

117
alguma, essa acusação não logrou causar-lhes qualquer impressão.) A Nota continuava: a
Alemanha, não podendo contar corn o exército belga para deter o avanço francês, era obrigada,
”pelos ditames da autopreservação”, a ”antecipar esse ataque hostil”; ”lamentaria
profundissimamente” se a Bélgica encarasse sua entrada em solo belga como ”um ato de
hostilidade”. Se, por outro lado, a Bélgica adotasse ”uma neutralidade benevolente”, a Alemanha se
comprometeria a ”evacuar seu território assim que a paz for concluída”, pagar qualquer estrago
causado por tropas alemãs e ”garantir, na conclusão da paz, os direitos soberanos e a independência
do reino”. No original, essa sentença prosseguia: ”e conceder, corn a maior boa-vontade, qualquer
possível pedido de indenização por parte da Bélgica, à custa da França”. No ultime instante Below
foi instruído a retirar esse suborno.

A Nota terminava: se a Bélgica se opusesse à passagem da Alemanha por seu território, ela seria
considerada inimiga, e as futuras relações entre os dois países seriam deixadas à ”decisão das
armas”. Exigia-se uma ”resposta inequívoca” dentro de doze horas.

À leitura seguiu-se ”um silêncio longo e trágico de vários minutos”, segundo Bassompierre,
enquanto cada homem na sala pensava na escolha que seu país devia enfrentar. Pequena em
tamanho e jovem em independência, por isso mesmo a Bélgica agarrava-se mais ferreamente a essa
independência. Mas ninguém naquela sala precisava que lhe contassem qual seria a conseqüência da
decisão de defenderse: o país estaria ameaçado de ser atacado e suas casas destruídas, seu povo
sujeito a represálias por parte de uma força dez vezes maior do que a sua e sem qualquer dúvida
quanto ao desfecho para eles, que estavam no caminho dos alemães, fosse qual fosse o desfecho
definitivo da guerra.

Se, ao contrário, cedessem à exigência alemã, estariam tornando a Bélgica cúmplice do ataque à
França, além de violar sua própria neutralidade, expondo-se também à ocupação alemã corn poucas
probabilidades de que uma Alemanha vitoriosa fosse lembrar-se de se retirar de lá. De qualquer
maneira eles seriam invadidos; ceder seria perder também a honra. )

- Se devemos ser esmagados, que sejamos esmagados corn glória-declarara Bassompierre,


expressando o sentimento de todos.

Em 1914, ”glória” era uma palavra dita sem constrangimento, e a honra era um conceito conhecido,
em que as pessoas acreditavam. Van der Elst rompeu o silêncio da sala.

- Bem, senhor, estamos prontos? - perguntou ao Primeiro-


21» Ministro.
- Estamos, sim - respondeu Broqueville. - Sim - repetiu, como se tentasse convencer a si próprio. -
A não ser por uma coisa: ainda não temos nossa artilharia pesada.

Apenas no ano anterior o Governo obtivera um aumento das verbas militares, concedido por um
Parlamento relutante, condicionado à neutralidade. A encomenda de armas pesadas tinha sido feita
à firma alemã dos Krupps, que naturalmente atrasara a entrega.

Uma das doze horas já se tinha passado. Enquanto seus colegas começavam a convocar todos os
Ministros para um Conselho de Estado a ser iniciado às 9:00, Bassompierre e Gaiffier começaram a
trabalhar num rascunho da resposta. Não precisaram perguntar um ao outro qual seria essa resposta.
Deixando essa tarefa a cargo deles, o Primeiro-Ministro Broqueville foi ao Palácio para informar o
Rei.

O Rei Albert sentia uma responsabilidade como governante que aguçava sua consciência das
pressões externas. Não nascera para reinar. Filho mais moço do irmão mais moço do Rei Leopold,
foi deixado crescer a um canto do palácio corn um tutor suíço mais do que medíocre. A vida
familiar dos Coburg não era feliz. O filho de Leopold faleceu; em 1891, morreu seu sobrinho
Baudouin, irmão mais velho de Albert, fazendo de Albert herdeiro do trono aos 16 anos. O velho
rei, amargurado pela perda de seu filho e de Baudouin, a quem ele transferira seu amor paternal, a
princípio não via muita coisa em Albert, a quem chamava de ”um envelope lacrado”.

Dentro do envelope havia enorme energia física e intelectual, a mesma que marcou dois grandes
contemporâneos, Theodore Roosevelt, e Winston Churchill, corn quem, tirante isso, Albert em nada
se parecia. Ele era reservado, ao pasaoque os outros dois eram extrovertidos; mas tinha muitas
inclinações em comum corn Roosevelt, se não o temperamento: o amor pelo aHivre, pelos
exercícios físicos, por cavalgar e saltar, o interesse pelas ciências naturais e pela conversação, e a
avidez pelos livros. Como Roosevelt, Albert lia dois ou três livros por dia e a respeito de qualquer
assunto - literatura, ciência militar, colonialismo, medicina, judaísmo, aviação. Dirigia uma
motocicleta e pilotava um avião. Sua maior paixão, que ele perseguia, incógnito, por toda, a Europa,
era o montanhismo. Como PríncipeHerdeiro visitara a África para estudar em primeira mão os
problemas coloniais; como rei, estudou da mesma maneira o exército, as minas de carvão do
Borinage ou a ”terra vermelha” dos valões.

- Quando o Rei fala, parece sempre que deseja construir alguma coisa - disse um de seus Ministros.

li»
Em 1900 ele se casou corn Elizabeth de Wittelsbach, cujo pai, o Duque, clinicava como oculista nos
hospitais de Munique. A evidente afeição de um pelo outro, os três filhos, a vida familiar modelar,
contrastando corn os modos indecorosos do antigo regime, deram a Albert o apoio popular desde
antes de 1909, quando, para alívio e alegria gerais, ele subiu ao trono no lugar do Rei Leopold II. O
novo Rei e a nova Rainha continuaram a ignorar a pompa, a receber quem bem queriam, a exercitar
sua curiosidade e seu amor à aventura onde bem desejavam e a permanecer indiferentes ao perigo, à
etiqueta e às críticas. Não eram tão burgueses quanto a realeza da Boêmia.

Na escola militar, Albert fora cadete na mesma época do futuro Chefe do Estado-Maior, Émile
Galet. Galet, filho de um sapateiro, tinha sido mandado para a escola graças a uma subscrição
popular em sua aldeia. Mais tarde tornou-se instrutor na Escola Superior de Guerra e demitiu-se
quando não conseguiu mais aceitar as arrojadas teorias de ofensiva que o Estado-Maior belga, sem
levar em conta as circunstâncias diferentes, adotara dos franceses.

Abandonou também a Igreja Católica para tornar-se um estrito Evangélico. Pessimista, dedicado e
supercrítico, Galet era de uma seriedade intensa a respeito de sua profissão, como a respeito de tudo
mais - dizia-se que lia a Bíblia diariamente e nunca fora visto rindo. O Rei ouviu-o dar aulas,
encontrava-o nos exercícios militares e ficou impressionado corn seus ensinamentos; a ofensiva por
si só e em qualquer circunstância era perigosa, um exército devia procurar a batalha ”apenas se
houver perspectiva de um sucesso importante” e ”o ataque requer superioridade de meios”. Embora
ainda fosse Capitão, filho de um operário e convertido ao Protestantismo num país católico, ele foi
escolhido pelo Rei Albert como seu conselheiro militar pessoal, um posto criado especialmente para
ele.

Pela constituição belga, o Rei Albert só se tornaria Comandanteem-Chefe depois da deflagração de


uma guerra, portanto até então ele e Galet não teriam condições de impor ao Estado-Maior seus
temores ou suas idéias sobre estratégia. O Estado-Maior agarrava-se ao exemplo de 1870, quando
nenhum soldado prussiano ou francês pisara em solo belga, apesar de que, se os franceses tivessem
atravessado para o território belga, eles teriam tido espaço suficiente para recuar. No entanto, o Rei
Albert e Galet acreditavam que o enorme crescimento dos exércitos desde aquela época tornava
mais claro a cada ano que se as nações marchassem novamente elas transbordariam para o antigo
caminho dos guerreiros e se enfrentariam novaíí» mente na antiga arena.
O Kaiser deixara isso perfeitamente claro na entrevista que tanto espantara Leopold II em 1904. No
entanto, o choque de Leopold diminuiu gradualmente depois que ele voltou para casa, pois, como
pensava também Van der Elst, a quem o Rei relatou a entrevista, William era tão instável, como é
que se podia ter certeza? Numa visita de retribuição a Bruxelas em 1910, o Kaiser mostrou-se
realmente bastante tranqüilizador e declarou que a Bélgica nada tinha a temer Ha Alemanha.

’ - Vocês não terão motivos para queixar-se da Alemanha. (...) Compreendo perfeitamente a posição
do seu país. (...) Nunca irei tolocá-los numa posição falsa.

De modo geral, os belgas acreditaram nessa sua disposição de espírito e levaram a sério sua garantia
de neutralidade. A Bélgica esqueceu seu Exército, a defesa de suas fronteiras, suas fortalezas,
qualquer coisa que insinuasse falta de confiança no tratado protetor. O assunto do momento era o
socialismo. A apatia pública corn relação ao que acontecia lá fora e um Parlamento obcecado pela
economia permitiram que o Exército se deteriorasse a um ponto em que se assemelhava ao Exército
turco. Os soldados eram indisciplinados, relaxados e sujos, não faziam continência, não mantinham
a posição correta nas formações e recusavam-se a marchar sincronizados.

O corpo de oficiais era pouco melhor. O exército, por ser considerado supérfluo e ligeiramente
absurdo, não atraía os melhores cérebros ou as pessoas de maior capacidade e ambição. Aqueles
que faziam do exército uma carreira e passavam pela École de Guerre contaminavam-se corn a
doutrina francesa do élan e da offensive à outrance. A notável fórmula que [eles desenvolveram era:
”Para assegurar que não seremos ignorados^ é essencial que ataquemos”.

Por mais magnífico que fosse o seu espírito, essa fórmula não se adaptava às realidades da
posição-ftelga e a doutrina da ofensiva soava estranha num exército comprometido, por dever para
corn a neutralidade, a planejar apenas para a defensiva. A neutralidade proibia-lhes fazer planos em
conjunto corn qualquer outro país e obrigava-os a considerar hostil o primeiro pé que pisasse em
seu território, fosse ele inglês, francês ou alemão. Nessas circunstâncias, não era fácil montar um
plano de campanha coerente.

O Exército consistia em seis divisões de infantaria, mais uma divisão de cavalaria - para enfrentar
as 34 divisões que os alemães planejavam enviar atra vês da Bélgica. O equipamento e o
treinamento eram inadequados e a pontaria dos soldados era medíocre, pois a

121
verba militar só permitia munição suficiente para dois treinos de tiro ao alvo por semana, de um só
tiro. O serviço militar compulsório, só introduzido em 1913, servia apenas para tornar o Exército
menos popular que nunca. Naquele ano de boatos alarmantes vindos do estrangeiro, o Parlamento
aumentou relutantemente o contingente de
13.000 para 33.000 homens, mas só concordou em destinar fundos para a modernização das defesas
de Antuérpia corn a condição de que o custo fosse absorvido mediante a redução do período de
serviço obrigatório. O Estado-Maior só foi criado em 1910, por insistência do novo Rei.

Sua eficiência era limitada pela extrema dissidência entre seus membros. Um grupo defendia um
plano ofensivo, corn o Exército concentrado nas fronteiras diante de uma ameaça de guerra; outro
era favorável à defensiva, corn o Exército concentrado no interior do país; um terceiro grupo, que
consistia principalmente no Rei Albert e no Capitão Galet, preferia a defensiva corn o Exército
concentrado o mais perto possível da fronteira ameaçada, mas sem arriscar as linhas de
comunicação corn a base fortificada em Antuérpia.

Enquanto o céu europeu enchia-se de nuvens, os chefes militares belgas disputavam entre si - e não
conseguiam completar um plano de concentração. Sua dificuldade aumentava por não se permitirem
especificar quem seria o inimigo. Concordara-se somente corn um plano de conciliação, que existia
apenas em esboço, sem horários ferroviários, depósitos de suprimento e locais de alojamento.

Em novembro de 1913, o Rei Albert foi convidado a ir a Berlim, como ocorrera corn seu tio nove
anos antes. O Kaiser ofereceu-lhe um jantar real; a mesa era coberta de violetas e havia 55
convidados, entre eles o Secretário da Guerra, General Falkenhayn, o Secretário da Marinha,
Almirante Tirpitz, o Chefe do Estado-Maior, General Moltke e o Chanceler Bethmann-Hollweg. O
embaixador belga, Barão Beyens, que também estava presente, percebeu que o Rei passou o jantar
inteiro corn expressão extraordinariamente grave. Depois do jantar, Beyens observou-o^í conversar
corn Moltke e viu o semblante de Albert nublar-se cada vez mais. Ao partir ele disse a Beyens:

- Venha amanhã às nove. Preciso falar corn você.

De manhã ele saiu a passear a pé corn Beyens; atravessaram o

Portão de Brandeburgo, passando pelas filas de Hohenzollerns de

mármore branco em posturas heróicas, misericordiosamente semi-

escondidos pela névoa matinal, e foram até o Tiergarten, onde pode-

122 riam conversar ”sem serem interrompidos”. Albert revelou que rece-
bera seu primeiro choque num baile da corte, no início da sua visita, quando o Kaiser apontara-lhe
certo general como o homem ”que vai liderar a marcha sobre Paris”. (Era Von Kluck, já designado
para a tarefa que iria desempenhar nove meses depois.) Então, na noite anterior, antes do jantar, o
Kaiser levara-o a um canto para uma conversa pessoal e despejara uma tirada histérica contra a
França. Dissera que a França nunca deixara de provocá-lo e que, como resultado dessa atitude, a
guerra corn a França era não apenas inevitável, mas iminente; a imprensa francesa tratava a
Alemanha corn malícia, a Lei dos Três Anos era um ato deliberada de hostilidade, a França inteira
era impulsionada por uma imensa sede de revanche. Tentando estancar aquela torrente, Albert disse
que conhecia melhor os franceses, visitava a França todos os anos e podia assegurar ao Kaiser que
eles não eram agressivos, mas desejavam sinceramente a paz. Em vão; o Kaiser continuou a insistir
que a guerra era inevitável. a Depois do jantar, Moltke bateu na mesma tecla: a guerra corn a França
era iminente.

- Desta vez temos que ir até o fim. Vossa Majestade não pode imaginar o entusiasmo irresistível que
tomará conta da Alemanha íjuando chegar O Dia.

E prosseguiu: o Exército alemão era invencível, nada podia resistir ao furor teutonicus, a destruição
terrível marcaria sua passagem, não se podia duvidar da sua vitória.

Perturbado pelo que motivara essas espantosas confidencias, tanto quanto pelo seu conteúdo, Albert
podia apenas concluir que o objetivo delas era assustar a Bélgica para que ela não opusesse
dificuldades. Evidentemente os alemães estavam decididos, e ele achava que a França devia ser
avisada. Instruiu Beyens a repetir tudo aquilo para Jules Cambon, o embaixador francês em Berlim,
e encarregá-lo de transmitir o assunto ao Presidente Poincaré nos termos mais incisivos.

Mais tarde eles souberam que o Major Melotte, Adido Militar belga, ouvira uma explosão ainda
mais violenta do General Moltke, no mesmo jantar. Ouvira também que a guerra corn a França era
”inevitável” e ”muito mais próxima do que o senhor pensa”. Moltke, que geralmente mántinha-se
muito reservado corn os adidos estrangeiros, abriu-se nessa ocasião. Disseque a Alemanha não
desejava a guerra, mas o Estado-Maior estava ”arquipronto”:

- A França tem que parar de nos provocar e nos irritar, ou teremos que partir para a luta. Quanto
mais cedo, melhor. Já estamos fartos desses alertas contínuos.

123
Como exemplos de provocação francesa Moltke citou, além das ”coisas grandes”, a recepção fria
dada em Paris aos aviadores alemães e um boicote pelos salões parisienses ao Adido Militar
alemão, Major Winterfield; a mãe do Major, Condessa d’Alvensleben, queixara-se amargamente
disso. Quanto à Inglaterra, bem, a Marinha alemã não fora feita para esconder-se no porto. Ela iria
atacar, e provavelmente seria derrotada. A Alemanha perderia seus navios, mas a Inglaterra perderia
a hegemonia dos mares, que passaria para os Estados Unidos, o único que lucraria corn uma guerra
européia. Dando uma guinada em sua lógica, o General asseverou que a Inglaterra sabia disso e
provavelmente ficaria neutra.

E!e não terminara - longe disso. Perguntou ao Major Melotte o que faria a Bélgica se uma grande
potência estrangeira invadisse seu território; Melotte respondeu que a Bélgica defenderia a sua
neutralidade. Tentando descobrir se a Bélgica contentar-se-ia comum protesto, como acreditavam
os alemães, ou lutaria, Moltke forçou-o a ser mais específico. Melotte respondeu:

- Vamos combater corn todas as nossas forças qualquer potência que violar nossas fronteiras.

Moltke observou discretamente que boas intenções não bastavam:

- Vocês precisam ter também um exército capaz de cumprir o dever que a neutralidade impõe.

De volta a Bruxelas, o Rei Albert pediu imediatamente um relatório do progresso dos planos de
mobilização e constatou que não houvera progresso algum. Relatando o que ouvira em Berlim, ele
conseguiu a concordância de Broqueville para um plano de campanha baseado na hipótese de uma
invasão alemã. Conseguiu também nomear um homem de sua escolha e de Galet, um enérgico
oficial chamado Coronel Ryckel, para levar a cabo o trabalho, que foi prometido para abril; na data
marcada, porém, o trabalho ainda não estava pronto. Enquanto isso, Broqueville nomeara outro
oficial, o General Sellier de Moranvjlle, Chefe do Estado-Maior, acima de Ryckel. Em julho, ainda
eram estudados quatro diferentes planos de concentração.

j O desânimo não mudou a decisão do Rei. Sua política foi explicada num memorando redigido
pelo Capitão Galet logo depois da visita a Berlim: ”Estamos decididos a declarar guerra imediata se
qualquer potência violar deliberadamente o nosso território; combaíèí teremos corn a maior energia
e corn todos os nossos recursos militares,
onde for necessário, mesmo além de nossas fronteiras, e continuaremos a combater mesmo depois
que o inimigo retirar-se, até a conclusão de uma paz geral”.

Presidindo o Conselho de Estado reunido às 9:00 do dia 2 de agosto no Palácio, o Rei Albert abriu
corn as seguintes palavras:

- Nossa resposta deve ser ”Não”, sejam quais forem as conseqüências. Nosso dever é defender
nossa integridade territorial. Nisso não podemos falhar.

No entanto, ele insistiu que nenhum dos presentes se permitisse ilusões: as conseqüências seriam
graves e terríveis, o inimigo seria impiedoso. O Primeiro-Ministro Broqueville advertiu os indecisos
que não acreditassem na promessa alemã de restaurar a integridade da Bélgica depois da guerra.

- Se a Alemanha for vitoriosa, a Bélgica, seja qual for a sua atitude, será anexada ao Império
Germânico - afirmou.

Um Ministro idoso e indignado, que pouco tempo antes havia hospedado em sua casa o Duque de
Schleswig-Holstein, cunhado do Kaiser, não conseguiu conter a ira diante da perfídia dos protestos
de amizade do Duque, e passou toda a reunião resmungando. Quando o General Selliers, Chefe do
Estado-Maior, ergueu-se para explicar a estratégia de defesa a ser adotada, seu Subchefe, o Coronel
Ryckel, corn quem suas relações eram, nas palavras de um colega, ”despidas de amenidades”, ficou
a murmurar entredentes: ”Ilfaut piquerdedans, U faut piquer dedans (Temos que bater lá onde
dói)”. Tomando a palavra, ele espantou seus ouvintes corn uma proposta de anteciparem-se ao
invasor atacando-o em seu próprio território antes que ele conseguisse atravessar a fronteira belga.

A meia-noite a reunião foi adiada, mas um comitê composto pelo Primeiro-Ministro, o Ministro do
Exterior e o Ministro da Justiça voltava para o Ministério do Exterjpr para redigir uma resposta.
Enquanto estavam trabalhando, um automóvel parou na alameda escura sob a fileira de janelas
iluminadas. Os Ministros, perplexos, foram informados da presença do diplomata alemão. Era 1:30
da manhã. Que poderia ele querer a essa hora?

A inquietação noturna de Herr Von Below refletia a aflição crescente de seu governo quanto ao
efeito de seu ultimato, agora irrevogavelmente colocado no papel e irrevogavelmente agindo sobre
o orgulho nacional belga. Os alemães passaram anos dizendo uns aos outros que a Bélgica não
lutaria, mas agora, chegado o momento, começaram a sofrer de ansiedade aguda, embora tardia.
Um valente 125
e sonoro ”Não!” por parte da Bélgica ressoaria em todo o mundo, e o efeito nos outros países
neutros seria muito pouco benéfico para a Alemanha.

Esperando uma guerra curta, a essa altura os alemães ainda não estavam tão preocupados corn a
atitude dos países neutros, mas corn a possibilidade de que uma resistência armada belga pudesse
atrasar seu rígido programa de uma vitória rápida sobre a França. Se o Exército belga escolhesse
lutar em vez de ”enfileirar-se ao longo da estrada”, os alemães teriam que deixar para trás divisões
que seriam necessárias para a marcha sobre Paris. A destruição de ferrovias e pontes poderia
impedir a linha de marcha alemã e o fluxo de suprimentos, causando uma infinidade de problemas
que atrapalhariam seu programa.

Presa desses temores, o Governo alemão enviou Herr Von Below no meio da noite para tentar
influenciar a resposta belga através de mais acusações à França. Van der Elst, que o recebeu, foi
informado por ele que dirigiveis franceses tinham jogado bombas e que patrulhas francesas tinham
atravessado a fronteira.

- Onde se deram esses acontecimentos? - Van der Elst perguntou.

’•- Na Alemanha - foi a resposta.

- Nesse caso, não vejo em quê essa informação é relevante.

O diplomata alemão tentou explicar que tais atos, perpetrados sem uma prévia declaração de guerra,
indicavam que os franceses não respeitavam a lei internacional e poderiam, portanto, violar a
neutralidade belga. Esse engenhoso exercício de lógica não conseguiu seu intento. Sem outra
palavra, Van der Elst acompanhou seu visitante até a porta de saída.

As 2:30 o Conselho tornou a reunir-se no Palácio para aprovar a resposta à Alemanha. Essa resposta
dizia que o Governo belga ”sacrificaria a honra da nação e trairia seu dever para corn a Europa” se
aceitasse a proposta alemã, e se declarava ”firmemente resolvido a repelir, por todos os meios em
seu poder, qualquer ataque a seus direitos”.

Aprovada a resposta sem qualquer modificação, o Conselho

entrou em discussão a respeito da insistência do Rei de que não se

fizesse qualquer apelo às potências garantidoras da neutralidade

belga até que os alemães entrassem na Bélgica. Apesar da vigorosa

126 oposição, o Rei teve aprovado o seu ponto de vista.


A reunião do Conselho terminou às 4:00. O último Ministro a sair voltou-se e viu o Rei Albert de
pé, costas voltadas para o aposento e uma cópia da resposta na mão, olhando pela janela, onde a
aurora começava a iluminar o céu.

Também em Berlim houve uma reunião tardia naquela noite de


2 de agosto. Na casa do Chanceler Bethmann-Hollweg, o General Von Moltke e o Almirante Tirpitz
conferenciavam a respeito de uma declaração de guerra à França, como tinham feito na noite
anterior a respeito da Rússia. Tirpitz queixou-se ”várias vezes” de não entender por que essas
declarações de guerra eram necessárias. Elas sempre tinham um ”sabor agressivo”; um exército
poderia marchar ”sem essas coisas”. Bethmann disse que uma declaração de guerra à França era
necessária porque a Alemanha pretendia avançar através da Bélgica. Tirpitz repetiu as advertências
do Embaixador Lichnowsky em Londres de que a invasão da Bélgica poderia trazer a Inglaterra
para a guerra e sugeriu que a entrada na Bélgica fosse ”retardada”.

Apavorado corn mais essa ameaça ao seu programa, Moltke declarou de imediato que isso era
”impossível”; nada poderia interferir corn o ”mecanismo de transporte”. Disse também que ele
próprio não dava muito valor a declarações de guerra e que os atos hostis franceses no decorrer do
dia já tinham tornado a guerra um fato consumado.

Ele se referia aos alegados informes de bombardeios franceses na área de Nuremberg que a
imprensa alemã vinha trombeteando em edições extraordinárias durante o dia 2 de agosto, corn tal
efeito que as pessoas em Berlirrijiçávam a olhar nervosamente para o céu. Na realidade, não
houvera bombardeio algum, e os informes tinham sido inventados para justificar o ultimato à
Bélgica e a iminente declaração de guerra à França. Agora, segundo a lógica alemã, constatava-se
ser necessária uma declaração de guerra por causa dos bombardeios imaginários.

Tirpitz ainda o deplorava; disse que não podia haver qualquer dúvida de que os franceses eram
”pelo menos intelectualmente os agressores”; porém, devido ao descuido dos políticos alemães, que
não tinham deixado isso claro ao mundo, a invasão da Bélgica, que era uma ”pura medida de
emergência” ia aparecer, injustamente, ”à luz inclemente de um ato de violência brutal”.

Em Bruxelas, depois de encerrada a reunião do Conselho de Estado às 4:00 da manhã do dia 3 de


agosto, Davignon voltou ao Ministério do Exterior e instruiu seu Secretário Político, Barão de m
Gaiffíer, a enviar a resposta da Bélgica ao diplomata alemão. Precisamente às 7:00, no último
minuto do prazo de doze horas, Gaiffíer tocou a campainha da porta da Legação Alemã e entregou a
resposta a Herr Von Below. A caminho de casa, ele ouviu os pregões dos garotos vendedores de
jornais corn as edições matinais de segundafeira trazendo o texto do ultimato e a resposta belga. Por
toda parte ressoavam as exclamações das pessoas que liam as notícias e se reuniam em grupos
excitados. O desafiador ”Não!” da Bélgica regozijava o povo. Muitas pessoas expressavam a
certeza de que essa resposta faria corn que os alemães preferissem rodear seu território a arriscar-se
à censura universal. ”Os alemães são perigosos, mas não são loucos”, diziam.

Mesmo no Palácio e nos ministérios ainda persistia alguma esperança, pois era difícil crer que os
alemães escolheriam deliberadamente iniciar uma guerra colocando-se na posição de vilões. A
última esperança desapareceu quando, na noite de 3 de agosto, chegou a resposta atrasada do Kaiser
ao apelo pessoal do Rei Albert. Era mais uma tentativa de induzir a Bélgica a ceder sem luta. O
telegrama do Kaiser dizia que ”apenas corn as mais amistosas intenções para corn a Bélgica” ele
fizera essa grave exigência. ”Como deixaram claro as condições expostas, a possilidade de
mantermos nossas antigas e atuais relações ainda está em mãos de Vossa Majestade.”

- Que é que ele pensa que sou? - exclamou o Rei Albert, permitindo-se a primeira demonstração de
raiva desde o início da crise.

Assumindo o comando supremo, ele deu ordens imediatas para a explosão das pontes sobre o
Meuse em Liège e dos túneis e pontes das ferrovias na fronteira corn Luxemburgo. Ainda adiava
apelar à França e à Inglaterra; a neutralidade belga tinha sido o único ato coletivo das Potências
Européias que quase dera certo, e o Rei Albert não se sentia capaz de assinar seu certificado de
óbito até que um ato declarado de invasão tivesse realmente acontecido.

v

’Em Casa Antes que as Folhas Caiam”

Na tarde de domingo, 2 de agosto, poucas horas antes de ser entregue em Bruxelas o ultimato
alemão, Grey pediu ao Gabinete britânico autorização para cumprir o compromisso de defender a
costa francesa do Canal. O momento mais cruel para um Governo britânico será sempre aquele em
que ele necessitar chegar a uma decisão difícil, rápida e específica. Durante toda a longa sessão da
tarde, o Gabinete experimentou desconforto, despreparo e relutância em apertar o botão de uma
decisão que o comprometesse.

Na França, a guerra veio e foi aceita como uma espécie de destino nacional, por mais que uma parte
do povo tivesse preferido evitá-la. Quase assustado, um observador britânico informou o
crescimento da ”devoção nacionalista”, juntamente corn uma ”ausência total de excitação” num
povo de quem tantas vezes previu-se que a influência anárquica minaria seu patriotismo e
mostrar-se-ia fatal no caso de uma guerra. Também a Bélgica, que abrigava um dos raros heróis em
sua História, foi levada além dos seus limites pela consciência reta de seu Rei e, quando teve que
enfrentar a escolha entre ceder ou resistir, levou menos de três horas para tomar sua decisão,
sabendo que ela poderia ser fatal.

A Inglaterra não tinha Albert nem Alsácia; suas armas estavam prontas, mas não a sua vontade. Ao
longo dos últimos dez anos a nação estudara e se preparara para a guerra que agora estava sobre ela
e desde 1905 desenvolvera um sistema chamado o ”Livro da Guerra”, que não deixava coisa
alguma à mercê da tradicional improvisação caótica. Todas as ordens a serem dadas no caso de uma
guerra estavam prontas para serem assinadas, os envelopes endereçados, os avisos e proclamações
impressos ou prontos para serem impressos e o Rei nunca se afastava de Londres sem levar consigo
os documentos que necessitariam de sua assinatura imediata. O método britânico era claro; a
confusão estava na mentalidade britânica.

Uma frota alemã surgindo no Canal da Mancha seria um desafio à Inglaterra tão direto quanto fora
o da Armada Espanhola muito tempo antes; portanto, no domingo o Gabinete, embora relutante,
concordou corn o pedido de Grey. A garantia por escrito, que naquela

125
tarde ele entregara para Cambon ler, dizia: ”Se a frota alemã entrar no Canal da Mancha ou
atravessar o Mar do Norte para levar a cabo operações hostis à costa francesa ou a seus navios, a
Armada inglesa dará toda a proteção em seu poder”. Grey acrescentou, no entanto, que aquela
garantia ”não nos obriga a entrar em guerra corn a Alemanha a não ser que a frota alemã aja
conforme está expresso aqui”. Interpretando o verdadeiro temor do Gabinete, ele explicou: como a
Inglaterra estava insegura quanto à proteção de seu próprio litoral, ”seria impossível mandar corn
segurança nossas forças militares para fora do país”.

Monsieur Cambon quis saber se isso significava que a Inglaterra jamais faria isso; Grey respondeu
que suas palavras ”tinham relação apenas corn o momento presente”. Cambon sugeriu o envio de
duas divisões para ”efeito moral”; Grey disse que mandar uma força tão pequena, ou mesmo quatro
divisões, ”iria trazer o máximo de risco para elas e produzir o mínimo de efeito”. E acrescentou que
o cornpromisso naval não deveria ser divulgado antes que o Parlamento pudesse ser informado, no
dia seguinte.

Meio em desespero mas ainda corn esperança, Cambon informou seu Governo sobre o
compromisso num telegrama ”secretíssimo” que chegou a Paris às 20:00 da mesma noite. Embora
se tratasse de um compromisso unilateral - muito menos do que a França esperava -, ele acreditava
que isso levaria a Inglaterra à guerra total, pois, como ele próprio disse mais tarde, os países não
entram na guerra ”pela metade”.

Mas o compromisso naval foi arrancado do Gabinete à custa da cisão que Asquith tentara corn tanto
empenho evitar. Dois ministros, Lord Morley e John Burns, pediram demissão; o formidável Lloyd
George ainda estava ”em dúvida”. Morley acreditava que a dissolução do Gabinete esteve ”iminente
naquela tarde”. Asquith teve que confessar que ”estamos à beira de uma cisão”.

Churchill, sempre pronto a prever os acontecimentos, nomeouse emissário para trazer seu antigo
partido, o Conservador, para um governo de coalizão. Assirrt que a reunião terminou ele correu a
procurar Balfour, o antigo Primeiro-Ministro Conservador, que, como todos os outros líderes de seu
partido, acreditava que a Inglaterra deveria levar a linha de ação que criara a Entente até seu fim
lógico, embora amargo. Churchill disse-lhe que calculava que metade da bancada Liberal do
Gabinete pediria demissão se a guerra fosse declarada. Balfour disse que seu partido estaria pronto a
entrar numa
coalizão, embora prevendo que, se chegasse a haver essa necessidade, o país estaria dividido por um
movimento antiguerra liderado pelos Liberais insurgentes.

Até então, não se sabia do ultimato alemão à Bélgica. A questão subjacente no pensamento de
homens como Churchill, Balfour, Haldane e Grey era a ameaça da hegemonia alemã na Europa se a
França fosse esmagada. Mas a linha política pela qual se necessitava do apoio da França tinha sido
desenvolvida a portas fechadas e jamais fora inteiramente admitida ao país. A maioria do Governo
Liberal não a aceitava. Nessa questão, nem o Governo, nem o país entrariam na guerra unidos. Para
muitos ingleses, se não para todos, a crise era outra fase da velha briga entre Alemanha e França, e a
Inglaterra nada tinha a ver corn isso. Para que a Inglaterra tivesse algo a ver corn isso aos olhos do
público, seria necessária a violação da neutralidade belga
- ”cria” da política inglesa -, pois cada passo dos invasores pisotearia um tratado do qual a
Inglaterra era arquiteta e signatária. Grey decidiu pedir ao Gabinete na manhã seguinte que
considerasse tal invasão um casus belli formal.

Nessa noite, enquanto ele jantava corn Haldane, um mensageiro do Ministério do Exterior trouxe
uma caixa de entrega de documentos corn um telegrama que, segundo relato de Haldane, informava
que ”a Alemanha está prestes a invadir a Bélgica”. Não se sabe o que era ou de quem vinha esse
telegrama, mas Grey deve tê-lo considerado autêntico. Passando-o a Haldane, perguntou-lhe o que
este achava.

- Mobilização imediata - respondeu Haldane.

Deixaram imediatamente a mesa de jantar e foram para Downing Street, onde encontraram o
Primeiro-Ministro corn alguns convidados. Levando-o para outro aposento, mostraram-lhe o
telegrama e pediram autorização para a mobilização. Asquith concordou. Haldane sugeriu que ele
fosse temporariamente renomeado para o Ministério da Guerra naquela emergência, pois o
Primeiro-Ministro estaria ocupado demais para desempenhar também as tarefas desse cargo.
Asquith concordou novamente, tanto mais que faltava-lhe entusiasmo pelo gigante autocrata, o
Marechal-de-Campo Lord Kitchener de Khartoum, que já lhe tinham pedido para nomear para essa
pasta.

A manhã seguinte, uma segunda-feira de feriado, era um dia claro e belo de verão. Londres estava
repleta de pessoas que, devido à crise, foram passar o feriado na capital e não nas praias. Ao
meio-dia havia tanta gente em Whitehall que os carros não conseguiam atravessar; o zumbido de
um milhão de pessoas podia ser ouvido dentro do

m
salão de reuniões do Gabinete onde os Ministros, reunindo-se novamente numa sessão quase
contínua, estavam tentando decidir se guerreariam ou não por causa da Bélgica.

No Ministério da Guerra, Lord Haldane já estava enviando os telegramas de mobilização


convocando os reservistas e os soldados dos Exércitos Territoriais29. Às 11:00 o Gabinete recebeu
a notícia de que a Bélgica decidira jogar suas seis divisões contra o Império Germânico. Meia hora
mais tarde, o Gabinete recebeu uma carta insistente dos líderes Conservadores, escrita antes que se
conhecesse o ultimato à Bélgica, declarando que seria ”fatal à honra e à segurança do Reino Unido”
hesitar em apoiar a França e a Rússia.

A Rússia como aliada era algo que a maioria dos Ministros Liberais achava difícil engolir. Dois
outros - Sir John Simon e Lord Beauchamp - pediram demissão, mas os acontecimentos na Bélgica
convenceram LLoyd George, uma figura fundamental, a ficar corn o Governo.

Um nome foi lembrado várias vezes, em torn de urgência, ao atormentado Primeiro-Ministro: o de


um companheiro ainda mais necessário, Lord Kitchener, cujo imenso prestígio era mais do que
indispensável, e que naquele momento estava prestes a embarcar num vapor para atravessar o Canal
da Mancha, de volta para o Egito. A perspectiva de ter ”K. de K.” como colega de Gabinete depois
de seus anos de amplos poderes como Vice-Rei no Oriente não era das mais agradáveis, e Asquith
teria ficado feliz se o vapor tivesse partido na hora certa; mas ele foi encurralado por um bilhete
muito gentil de Balfour, transmitido por aquele ocupadíssimo intermediário, Winston, sugerindo
que ainda havia tempo de alcançar o Marechal-deCampo em Dover. corn relutância, Asquith
alcançou-o por telefone e pediu-lhe para permanecer na Inglaterra, mas isso foi o máximo que
conseguiu fazer naquele momento.

Ele teria preferido renomear Haldane, cuja gestão no Ministério da Guerra, mais do que qualquer
outra coisa, tinha sido responsável pela criação de um Exército e um Estado-Maior capacitado para
lutar numa guerra européia, mas Haldane era anátema para a imprensa de Northcliffe30: sendo o
único ministro inglês corn conhecimento perfeito da língua e da mentalidade alemãs, ele fora
marcado como

29 Exércitos Territoriais: na Inglaterra, exércitos organizados primordialmente para a defesa do país. (N. da T.) U2 30 O Visconde
de Northcliffe era proprietário de jornais na Inglaterra. (N. da T.)
pró-Alemanha, tanto mais que fizera freqüentes visitas a Berlim e certa vez comentara
descuidadamente, durante uma festa, que ”a Alemanha é meu lar espiritual”. Lord Northcliffe foi
pessoalmente à Downing Street ameaçando pronunciar-se contra essa nomeação, se ela fosse levada
a efeito. Como o Primeiro-Ministro não desejava provocar mais problemas em meio à sua
apaixonada busca da união, Lord Haldane foi deixado no Woolsack31, para ser finalmente afastado
da vida política pela imprensa, sem qualquer protesto por parte de seus bons amigos Asquith, Grey
e Churchill.

Às 15:00 daquela tarde de 3 de agosto, Grey era esperado no Parlamento para fazer a primeira
declaração oficial e pública do Governo a respeito da crise. Toda a Inglaterra, assim como toda a
Europa, estava esperando por isso. A tarefa de Grey era levar seu país à guerra, e levá-lo unido.
Teria que levar consigo seu partido, tradicionalmente pacifista; teria que explicar para o corpo
parlamentar mais antigo e experiente do mundo por que e como a Inglaterra estava comprometida a
ajudar a França por causa de algo que não era um compromisso; teria que apresentar a Bélgica
como causa sem esconder que a causa básica era a França; teria que apelar para a honra da
Inglaterra e ao mesmo tempo deixar claro que os interesses britânicos seriam o fator de decisão.

Grey teria ainda que postar-se no local onde a tradição de debates sobre relações exteriores
florescera por 300 anos e, sem o brilhantismo de Burke ou a força de Pitt, sem a maestria de
Canning ou o desembaraçado sangue-frio de Palmerston, sem a retórica de Gladstone ou a
sagacidadejde Disraeli, justificar o rumo da política externa inglesa sob seu comando e a guerra que
ele não conseguira evitar. Teria que convencer o presente, equiparar-se ao passado e falar para a
posteridade.

Não tivera tempo de preparar.iim discurso por escrito. Na última hora ele estava tentando compor
suas anotações quando foi anunciado o Embaixador alemão. Lichnowsky entrou ansioso,
perguntando o que o Gabinete tinha decidido. O que Grey ia dizer ao Parlamento? Seria uma
declaração de guerra? Grey respondeu que não seria uma declaração de guerra mas uma ”declaração
de condições”. Lichnowsky perguntou se a neutralidade da Bélgica era uma

31 Woolsack: o lugar do Lord High Chancellor britânico na Câmara dos Pares, à qual preside. Trata-se de uma grande almofada
quadrada, estofada corn lã, daí o nome ”woolsack”, que em tradução literal significa ”saco de lã”. (N. da T.)

133
das condições e ”implorou” a Grey para não mencioná-la como tal. Ele nada sabia dos planos do
Estado-Maior alemão, mas não podia imaginar que alguma violação ”séria” estivesse incluída neles,
embora as tropas alemãs pudessem talvez atravessar um cantínho da Bélgica.

- Se assim for, isso já não pode ser modificado - declarou Lichnowsky, expressando o eterno
epitáfio da rendição do homem aos acontecimentos.

Os dois conversavam de pé junto à porta, cada um oprimido por sua própria urgência; Grey
tentando retirar-se para uns poucos últimos momentos de privacidade para trabalhar em seu
discurso, Lichnowsky tentando deter o momento em que o desafio far-se-ia explícito. Eles se
despediram e nunca mais se viram oficialmente.

A Câmara dos Comuns estava reunida em sua totalidade pela primeira vez desde que Gladstone
propusera a Lei da Autonomia Política em 1893. Para acomodar todos os membros, foram
colocadas cadeiras nos corredores. A Galeria Diplomática estava apinhada, corn exceção de dois
lugares vazios marcando a ausência dos embaixadores da Alemanha e da Áustria. Membros da
Câmara dos Pares enchiam a Galeria dos Visitantes, entre eles o Marechal-de-Campo Lord Roberts,
defensor, durante tanto tempo e tão inutilmente, do serviço militar compulsório. No silêncio tenso
em que, para variar, ninguém fazia alvoroço, passava bilhetes ou se inclinava por sobre os bancos
para conversar em cochichos, houve um ruído súbito quando o Capelão, recuando para dar
passagem ao Presidente da Câmara, tropeçou nas cadeiras colocadas no corredor. Todos os olhos
estavam postos na bancada do Governo, onde Grey, usando um leve terno de verão, estava sentado
entre Asquith, cujo rosto afável nada exprimia, e Lloyd George, a quem os cabelos despenteados e
as faces sem cor faziam parecer anos mais velho.

Grey, mostrando-se ”pálido, conturbado e exausto”, pôs-se de pé. Embora fosse membro da Câmara
havia 29 anos, e da bancada do Governo havia oito, os membros em geral pouco sabiam - e o país
ainda menos - da sua condução da política externa. As perguntas feitas ao Secretário do Exterior
raramente conseguiam encurralar Grey numa resposta clara ou definitiva; porém suas evasivas, que
num estadista mais afoito seriam desafiadas, não eram consideradas suspeitas. Ele era tão
claramente não-afoito, tão não-cosmopolita, tão inglês, tão interiorano, tão reservado, que ninguém
poderia conside-
134 rá-lo um imprudente intrometido em brigas alheias. Não gostava das
relações exteriores, nem tinha prazer em seu trabalho, mas parecia deplorá-lo como um dever
necessário. Nos finais de semana, não corria para o Continente, mas enfronhava-se no campo. Não
falava qualquer língua estrangeira além do francês aprendido na escola. Viúvo de 52 anos, sem
filhos, solitário, parecia tão desapegado às paixões comuns quanto ao seu cargo. Toda a paixão que
conseguia romper a muralha que cercava a sua personalidade era reservada para os riachos de trutas
e os chamarizes de pássaros.

Falando lentamente, mas corn evidente emoção, Grey pediu à Câmara que abordasse a crise pelo
ângulo ”dos interesses britânicos, da honra britânica e das obrigações britânicas”. Contou a história
das ”conversações” militares corn a França. Afirmou que nenhum ”acordo secreto” restringia a
Câmara ou limitava a liberdade da Inglaterra de decidir seu próprio curso de ação. Disse que a
França estava envolvida na guerra por causa de sua ”obrigação de honra” para corn a Rússia, mas
”não fazemos parte da aliança franco-russa; nem mesmo conhecemos os termos dessa aliança”. Ele
parecia de tal forma estar recuando para mostrar que a Inglaterra não estava comprometida, que um
Conservador preocupado, Lord Derby, cochichou iradamente ao seu vizinho:

- Por Deus, eles vão abandonar a Bélgica!

Grey revelou então a combinação naval corn a França. Contou à Câmara que, como conseqüência
do acordo corn a Inglaterra, a frota francesa estava concentradavno Mediterrâneo, deixando o litoral
norte e oeste da França ”absolutamente indefeso”. Disse que era seu ”sentimento” que, ”se a
Esqua4ra^alemã descesse o Canal e bombardeasse e destruísse a costa indefesa da França, nós não
poderíamos ficar de lado e ver isso acontecer praticamente no nosso campo de visão, de braços
cruzados, observando friamente, não fazendo coisa alguma!”. Da bancada da Oposição ouviram-se
aplausos, enquanto os Liberais escutavam, ”gravemente aquiescentes”.

Para explicar o fato de já ter comprometido a Inglaterra a defen-” der as costas francesas do Canal,
Grey recorreu a um argumento complicado a respeito de ”interesses britânicos” e rotas comerciais
britânicas no Mediterrâneo. Era um novelo emaranhado, e ele depressa voltou para ”considerações
mais sérias, que a cada hora se tornam ainda mais sérias” a respeito da neutralidade da Bélgica.

Para fazer justiça ao assunto, e sabiamente não confiando em sua própria oratória, Grey recorreu ao
fulminante discurso de Gladstone em 1870: ”Poderia este país pôr-sede lado e testemunhar o crime

135
mais abjeto que alguma vez manchou as páginas da História, tornando-se assim participante nesse
pecado?”. Também de Gladstone ele usou uma frase para expressar a questão fundamental de que a
Inglaterra devia tomar posição ”contra o engrandecimento desmedido de qualquer potência”.

Em suas próprias palavras Grey continuou:

- Peço à Câmara que estude o que pode estar em jogo, tendo em vista os interesses britânicos. Se a
França cair de joelhos (...) se a Bélgica cair sob a mesma influência dominadora e depois a Holanda,
depois a Dinamarca. (...) Se, numa crise como essa, fugirmos dessas obrigações impostas pelas
honra e pelo interesse, em relação ao Tratado Belga (...).”

E concluiu:

- Mesmo se nos pusermos de lado, não acredito por um só instante que no final desta guerra
possamos desfazer seus efeitos e impedir que todo o Leste da Europa, que se opõe a nós, caia sob o
domínio de uma única potência. (...) Iríamos, acredito, sacrificar nosso respeito, nosso born nome e
nossa reputação diante do mundo e não escaparíamos das mais sérias e graves conseqüências
econômicas.

Ele colocou diante da Câmara ”a questão e a escolha”. A Câmara, que escutara corn ”angustiada
atenção” durante uma hora e quinze minutos, rompeu em aplausos ensurdecedores, que fizeram as
vezes de resposta.

São sempre memoráveis as ocasiões em que um indivíduo é capaz de dobrar uma nação, e o
discurso de Grey mostrou ser um desses feitos pelos quais mais tarde as pessoas datam os
acontecimentos. Ainda havia algumas dissensões, pois ao contrário dos parlamentos do Continente,
não se conseguia, por exortação ou persuasão, obter unanimidade na Câmara dos Comuns. Ramsey
MacDonald, falando pelo Partido Trabalhista, disse que a Inglaterra devia permanecer neutra; Keir
Hardie disse que levantaria as classes operárias contra a guerra; e depois, no saguão, um grupo de
Liberais ainda não convencidos aprovou unwresolução declarando que Grey não conseguira
justificar a guerra.

Mas Asquith estava convencido de que, de maneira geral, ”nossos extremistas amantes da paz
foram silenciados, mas breve tornarão a encontrar suas línguas”. Os dois ministros que tinham
pedido demissão de manhã foram convencidos a voltar naquela noite, e o
136 sentimento geral era de que Grey tinha conquistado o país.
\
- E agora, o que vai acontecer? - Churchill perguntou a Grey ao saírem juntos da Câmara.

- Agora vamos mandar-lhes um ultimato para que acabem corn a invasão da Bélgica dentro de 24
horas - respondeu Grey.

Horas mais tarde, ele disse a Cambon:

- Se recusarem, vai haver guerra.

Embora ele acabasse por esperar outras 24 horas antes de mandar o ultimato, o temor de
Lichnowsky se justificava: a Bélgica fome- • cera a condição. H

Os alemães correram esse risco porque esperavam uma guerra ü curta e porque, apesar das
reclamações e apreensões de última hora por parte de seus líderes civis a respeito do que a
Inglaterra poderia l fazer, o Estado-Maior alemão já tinha levado em consideração a
participação britânica e a tinha descartado como algo de pouca ou m nenhuma importância
numa guerra que eles acreditavam que estaria m terminada em quatro meses. W

Um prussiano morto e um professor vivo, embora mal corn- i preendido - Clausewitz e Norman
Angell - juntos alicerçaram o L conceito da guerra curta na mentalidade européia. A vitória decisiva
m rápida era a ortodoxia alemã; a impossibilidade econômica de uma M guerra longa era a
ortodoxia de todos. m

O Kaiser declarou às tropas de partida na primeira semana de m agosto: •

- Vocês estarão em casa antes que as folhas caiam das árvores. Um cronista social da corte alemsí
registrou em 9 de agosto que

o Conde Oppersdorf chegara naquela tarde e dissera que as coisas não poderiam durar dez semanas.
O Conde Hochberg pensava em oito semanas:

- E depois disso você e eu nos encontraremos de novo na Inglaterra.

Um oficial alemão de partida para a frente ocidental disse que pretendia tomar o desjejum no Café
de Ia Paix em Paris no Dia de Sedan (2 de setembro). Oficiais russos imaginavam estar em Berlim
na mesma época - seis semanas era a previsão mais comum. Um oficial da Guarda Imperial pediu a
opinião do médico do Czar: ele deveria levar logo seu uniforme de gala para usar na entrada em
Berlim, ou deixá-lo para ser transpostado pelo próximo correio para a frente de batalha?
Perguntaram a um oficial inglês, quando ele reuniu-se ao seu regimento, qual era a sua opinião
acerca da duração da guerra, pois, tendo servido como adido militar em Bruxelas, ele era jyf
considerado au courant. O oficial respondeu que não sabia, mas achava que havia ”razões
financeiras para que as Grandes Potências não continuem por muito tempo”. Ele ouvira isso do
Primeiro-Ministro, ”que me disse que Lord Haldane lhe dissera isso”.

Em São Petersburgo, a questão não era se os russos venceriam, mas se levariam dois meses ou três;
os pessimistas que sugeriam seis meses eram considerados derrotistas. O Ministro da Justiça russo
previu solenemente:

- Vassili Fedorovich (William, filho de Frederick, isto é, o Kaiser) cometeu um erro; ele não vai
conseguir resistir.

O Ministro não estava muito equivocado. A Alemanha não incluíra em seus planos a necessidade de
uma resistência longa, e ao entrar na guerra tinha um estoque de nitratos para fabricação de pólvora
para munição suficiente para seis meses, não mais. Apenas a utilização posterior de um método de
fixação do nitrogênio do ar foi que lhe permitiu continuar o esforço de guerra. Os franceses,
apostando num final rápido, não arriscaram soldados no que teria sido uma defesa difícil da bacia
ferrífera da Lorena, mas permitiram que os alemães a tomassem, julgando que corn a vitória iriam
recuperá-la. Como resultado, durante o conflito perderam 80% de seu minério de ferro e quase
perderam a guerra. Os ingleses, à sua maneira imprecisa, contavam vagamente corn a vitória - sem
especificar quando, onde ou como - em questão de meses.

Fosse por instinto ou raciocínio, três cérebros, todos militares, viam a sombra negra alongando-se
por anos, não meses. Moltke, prevendo a ”luta longa e exaustiva”, era um deles. Joffre era outro:
interrogado pelos ministros em 1912, disse que se a França vencesse a primeira batalha numa
guerra, começaria então a resistência nacional alemã, e vice-versa. Em qualquer dos casos, outras
nações entrariam no conflito e o resultado seria uma guerra de ”duração indefinida”. No entanto,
nem ele, nem Moltke, chefes militares de seus países desde 1911 e 1906 respectivamente, deixaram
espaço em seus planos para a guerra de atrito que ambos previam.

O terceiro - e único a^àgir conforme sua previsão - era Lord Kitchener, que não tomara parte no
planejamento inicial. Chamado de volta para tornar-se Ministro da Guerra no dia em que a
Inglaterra tornou-se beligerante, ele trouxe à tona, das profundezas oraculares de seu ser, a previsão
de que a guerra duraria três anos. A um colega incrédulo, disse que poderia durar até mais:

- Porém três anos servem para começar. Um país como a Alemanha, depois de ter forçado uma
guerra, só desistirá quando for
totalmente derrotada. Isso vai levar muito tempo. Nenhum vivente sabe quanto.

A exceção de Kitchener, que desde seu primeiro dia no cargo insistiu em preparar um exército de
milhões para uma guerra de anos, ninguém fez planos que abrangessem mais de três ou seis meses à
frente. No caso dos alemães, a idéia fixa de uma guerra curta incluía o corolário de que numa guerra
curta a beligerância da Inglaterra não teria importância.

- Se ao menos alguém tivesse me dito de antemão que a Inglaterra entraria em guerra contra nós! -
berrou o Kaiser algum tempo depois, durante o almoço no Quartel-General.

”Metternich”, arriscou alguém em voz baixa, referindo-se ao Embaixador alemão em Londres que
fora destituído em 1912 por causa de seu cansativo hábito de prever que os aumentos do poderio
naval trariam a guerra corn a Inglaterra antes de 1915. Em 1912, Haldane disse ao Kaiser que a
Inglaterra jamais permitiria que a Alemanha tomasse posse dos portos do Canal francês e
lembrou-lhe a obrigação para corn a Bélgica, imposta pelo tratado. Também em
1912 o Príncipe Henry da Prússia perguntou ”à queima-roupa” a seu primo, o Rei George:

-Se a Alemanha e a Áustria entrarem em guerra contra a Rússia e a França, a Inglaterra acorreria em
ajuda a esses últimos?

O Rei George respondeu:

- Sem dúvida que sim, sob certas circunstâncias.

Apesar desses avisos, o Kaiser recusou-se a crer naquilo que sabia ser verdade. Segundo o
testemunho de um companheiro, quando voltou para seu iate depois de dar carta branca à Áustria no
dia 5 de julho, ele ainda estava ”convencido” de que a Inglaterra ficaria neutra. Seus dois
Korpsbrüder dos dias de estudante em Bonn, Bethmann e Jagow, cuja qualificação para o cargo
consistia principalmente na fraqueza sentimental do Kaiser por irmãos que usavam a faixa branca e
preta da fraternidade e se tratavam por ”du”32, consolavamse de tempos em tempos corn
asseverações mútuas da neutralidade inglesa, como católicos devotos passando as contas de seus
rosários.

Moltke e o Estadq-Maipr não precisavam que Grey ou qualquer outra pessoa lhes soletrasset» que a
Inglaterra iria fazer, pois já tinham certeza absoluta da sua participação.

32 Du: tratamento familiar na língua alemã, correspondendo a ”você” em contraposição a ”o senhor, a senhora”. (N. da T.)

Í39
- Quanto mais ingleses, melhor - disse Moltke ao Almirante Tirpitz.

Ele queria dizer que quanto mais homens desembarcassem no Continente, mais homens seriam
apanhados numa derrota decisiva. O pessimismo natural de Moltke poupava-lhe as ilusões do
pensamento positivo. Num memorando que redigiu em 1913, ele expôs a questão de modo mais
acurado do que muitos ingleses o teriam feito: se a Alemanha marchasse através da Bélgica sem o
consentimento belga, ”então a Inglaterra terá que juntar-se aos nossos inimigos”, tanto mais que em
1870 ela tinha declarado essa intenção. Moltke achava que ninguém na Inglaterra acreditaria nas
promessas alemãs de evacuar a Bélgica depois de derrotar a França, e estava convencido de que,
numa guerra entre a Alemanha e a França, a Inglaterra lutaria mesmo que a Alemanha não violasse
o território belga, ”porque ela teme a hegemonia alemã e, de acordo corn a sua política de manter
um equilíbrio de poder, fará o possível para impedir o crescimento do poder alemão”.

”Nos anos que antecederam a guerra, não tínhamos qualquer dúvida da chegada rápida da Força
Expedicionária britânica à costa francesa”, testemunhou o General Von Kuhl, um oficial do
primeiro escalão do Estado-Maior. O Estado-Maior calculava que essa Força Expedicionária estaria
mobilizada no décimo dia, reunida nos portos ; de embarque no décimo primeiro, começando o
embarque no décimo segundo e completando a transferência para a França no décimo quarto dia.
Esse cálculo mostrou-se quase perfeito.

Tampouco o comando naval alemão tinha qualquer ilusão. ”Inglaterra provavelmente hostil caso
chegue a guerra”, telegrafou o Almirantado, ainda em 11 de julho, ao Almirante Von Spee a bordo
do Scharnhorst, no Pacífico.

Duas horas depois de Grey ter terminado seu discurso na Câmara dos Comuns, teve lugar o
acontecimento que desde 1870 estivera no fundo de todas as mentes em ambos os lados do Reno, e
desde 1905 ocupava na maioria dessas mentes o lugar principal: a Alemanha declarou guerra^à
França. O Príncipe-Herdeiro alemão disse que a guerra vinha como a ”solução militar” para a
tensão crescente, o final do pesadelo do cerco. ”É uma alegria estar vivo”, regozijava-se um jornal
alemão desse dia, numa edição especial cuja manchete era: ”A Bênção das Armas”. Segundo o
jornal, os alemães estavam ”exultantes de felicidade. (...) Desejamos tanto esse momen-
140 to. (...) A espada que fomos forçados a empunhar não será embai-
l
nhada até que nossos objetivos estejam totalmente cumpridos e nosso território expandido tanto
quanto seja necessário”.

Nem todos, porém, estavam exultantes. Os Deputados esquerdistas, convocados ao Reichstag,


achavam-se ”deprimidos” e ”nervosos”. Um deles, confessando sua disposição de votar pela
aprovação de todos os créditos de guerra, resmungou:

- Não podemos deixar que eles destruam o Reich. Outro não parava de murmurar:

- Essa diplomacia incompetente, essa diplomacia incompetente! Para a França, o sinal veio às
18:15, quando o telefone do

Primeiro-Ministro Viviani tocou e ele ouviu o Embaixador americano, Myron Herrick, dizer-lhe,
em voz entrecortada pelo pranto, que acabava de receber ordens para ocupar a Embaixada alemã e
içar a bandeira americana em seu mastro. Herrick revelou que aceitara a ordem, mas não o içamento
da bandeira.

Sabendo que isso significava a guerra, Viviani ficou esperando a chegada iminente do Embaixador
alemão, que foi anunciado momentos depois. Von Schoen, cuja esposa era belga, entrou
visivelmente conturbado. Primeiramente queixou-se de que a caminho dali uma mulher enfiara a
cabeça pela janela de sua carruagem e insultara ”a mim e ao meu Imperador”. Viviani, cujos nervos
estavam tensos corn a angústia dos últimos dias, perguntou se aquela reclamação era o propósito de
sua visita. Von Schoen admitiu que tinha um»tarefa a cumprir e, desdobrando o documento que
levava, leu seu conteúdo, o qual, por ser ele ”a honra em pessoa”, segundo Poincaré, era a causa de
seu constrangimento. O documento dizia que, em conseqüência dos atos franceses de ”hostilidade
organizada”, dos ataques aéreos a Nuremberg e Karlsruhe e da violação da neutralidade da Bélgica
por aviadores franceses que sobrevoaram-o território belga, ”o Império Germânico considera-se em
estado de guerra corn a França”.

Viviani negou formalmente as acusações, que tinham sido incluídas menos para impressionar
o/governo francês, que saberia que elas não eram verdadeiras, do que para convencer os alemães de
que eles tinham sido vítimas de agressão por parte da França. O Primeiro-Ministro acompanhou
Von Schoen até a porta e então, como se relutasse em chegar às despedidas definitivas, saiu corn ele
do prédio, desceu as escadas e foi até a porta da carruagem que esperava. Os dois representantes dos
”inimigos hereditários” ficaram por um momento imóveis em sua infelicidade, depois fizeram uma
mesura silenciosa

ll
l
m
um para o outro e Von Schoen entrou na carruagem e desapareceu na neblina.

Naquela noite, em Whitehall, Sir Edward Grey, postado à janela corn um amigo quando os
lampiões da rua estavam sendo acesos, fez o comentário que desde então definiu aquela ocasião:

- As luzes estão se apagando em toda a Europa; não as veremos acesas novamente durante nossas
vidas.

Às 6:00 da manhã de 4 de agosto, Herr Von Bulow fez sua última visita à Secretaria do Exterior em
Bruxelas. Ali, entregou uma nota dizendo que, diante da rejeição às ”propostas bem-intencionadas”
de seu Governo, a Alemanha seria obrigada a tomar medidas para sua própria segurança, ”se
necessário pela força das armas”. O ”se necessário” pretendia deixar uma abertura para a Bélgica
ainda mudar de idéia.

Naquela tarde, o diplomata americano Brand Whitlock, que fora chamado para ocupar a Legação
Alemã, encontrou Von Below e seu Primeiro-Secretário, Von Stumm, derreados em duas cadeiras,
sem sequer tentar arrumar as malas, parecendo ”quase sem forças”. Fumando corn uma das mãos e
enxugando a testa corn a outra, Below fora isso estava imóvel, enquanto dois funcionários idosos,
corn velas, cera de lacre e tiras de papel, percorriam lenta e solenemente o aposento selando os
armários de carvalho que continham os arquivos.

- Ah, pobres tolos! - repetia Von Stumm, meio para si mesmo.


- Por que não saem do caminho do rolo compressor? Não queremos feri-los, mas se ficarem no
nosso caminho serão esmagados na poeira. Ah, pobres tolos!

Só passado muito tempo foi que alguém do lado alemão se perguntou quem tinham sido os tolos
naquele dia. O Ministro do Exterior austríaco, Conde Czernin, constatou mais tarde que aquele
tinha sido o dia do ”nosso maior desastre”; o dia, como até mesmo o Príncipe-Herdeiro
reconheceria muito tempo depois, ”em que os alemães perderam a primeira grande batalha aos
olhos do mundo”.

Dois minutos depoisjdas 8:00 daquela manhã, a primeira onda cinzenta caiu sobre a fronteira belga
em Gemmerich, a 48 quilômetros de Liège. Os soldados belgas em suas guaritas abriram fogo. A
força destacada dos exércitos alemães para o assalto a Liège, sob o comando do General Von
Emmich, consistia em seis brigadas de infantaria, cada uma corn artilharia e outras armas, e três
divisões de cavalaria. Ao cair da noite tinham chegado ao Meuse em Vise, um nome que se íif
tornaria o primeiro de uma série de desastres.
t
Até o momento da invasão, muitos ainda acreditavam que os interesses alemães fariam corn que
eles desviassem seus exércitos para rodearem as fronteiras belgas. Por que iriam deliberadamente
trazer mais dois inimigos contra si? Como ninguém imaginava que os alemães fossem estúpidos, a
resposta que se impunha à mentalidade francesa era de que o ultimato alemão à Bélgica era um
blefe não se pretendia que ele fosse seguido de uma invasão real, mas que fosse a isca para ”fazer
corn que sejamos os primeiros a entrar na Bélgica”, nas palavras de Messimy numa ordem que
proibia os soldados franceses de atravessar a fronteira ”mesmo que uma patrulha ou um único
cavalariano”.

Por esse ou por outro motivo qualquer, Grey ainda não enviara o ultimato inglês. O Rei Albert
ainda não pedira ajuda militar aos poderes garantidores; também ele acreditava que o ultimato
pudesse ser um ”blefe colossal”. Se chamasse os^franceses e os ingleses cedo demais, a presença
deles arrastaria a Bélgica para a guerra contra a sua vontade, e no fundo de sua mente havia a
preocupação de que, uma vez estabelecidos em solo belga, seus vizinhos pudessem não ter pressa
em sair. Somente depois que os passos pesados das colunas alemãs marchando sobre Liège tinham
posto fim a todas as dúvidas, deixando-o sem alternativa, foi que o Rei, ao meio-dia de 4 de agosto,
fez seu apelo por uma ação militar ”combinada e conjunta” das potências garantidoras.

Em Berlim, Moltke ainda tinha esperanças de que depois dos primeiros tiros, disparados por honra
do país, os belgas pudessem ser convencidos ”a chegarem a um entendimento”. Por essa razão, a
nota final alemã mencionava simplesmente ”pela força das armas” e dessa vez não falava em
declarar guerra. Quando o Barão Beyes, Embaixador belga, veio exigir seus passaportes na manhã
da invasão, Jagow adiantou-se depressa, perguntando, como se esperasse uma proposta:

- Então, o que o senhor tem a me dizer?

Ele reiterou a oferta alemã de respeitar a independência da Bélgica e de pagar todos os danosse a
Bélgica não destruísse ferrovias, pontes e túneis e deixasse as tropas alemãs passarem livremente,
sem defender Liège. Quando Beyens voltou-se para sair, Jagow seguiu-o, esperançoso, dizendo:

- Talvez ainda haja alguma coisa para conversarmos.

Em Bruxelas, uma hora depois do início da invasão, o Rei Albert, num uniforme de campanha sem
qualquer adorno, cavalgou ao encontro de seu Parlamento. Num trote rápido a pequena procissão y|
desceu a Rue Royale liderada por uma carruagem aberta corn a Rainha e seus três filhos, seguida
por mais duas carruagens e, fechando o cortejo, o Rei sozinho a cavalo. As casas ao longo do
caminho estavam adornadas corn bandeiras e flores, e o povo exaltado enchia as ruas.
Desconhecidos apertavam-se as mãos, rindo e chorando, cada homem se sentindo, segundo
lembrança de um deles, ”unido a seu próximo por um sentimento comum de amor e ódio”. Onda
após onda de aplausos chegavam ao Rei, como se o povo, tomado de uma única emoção, estivesse
tentando dizer que ele era o símbolo de seu país e mostrar sua vontade de defender sua
independência. Até mesmo o diplomata austríaco, que tinha, não se sabe como, se esquecido de
partir, e corn outros diplomatas estava observando o cortejo das janelas do Parlamento, enxugava as
lágrimas dos olhos.

Dentro do saguão, depois que os membros, os visitantes, a Rainha e a corte se sentaram, o Rei
entrou sozinho, jogou o quepe e as luvas sobre o atril num gesto decidido e pôs-se a falar, em voz
apenas levemente insegura. Relembrando o Congresso de 1830 que criara uma Bélgica
independente, ele perguntou:

- Cavalheiros, os senhores estão irrevogavelmente decididos a manter intacta a dádiva sagrada de


nossos antepassados?

Foi então que os deputados, não mais capazes de controlar-se, ergueram-se aos gritos de:

- OuUOuUOui!

O diplomata americano, descrevendo a cena em seu diário, conta que ficou observando o
Príncipe-Herdeiro, de doze anos de idade, em seu terninho de marinheiro, que escutava corn o rosto
absorto e os olhos fixos no pai. O diplomata se perguntava: ”Quais serão os pensamentos desse
menino?”. Como se tivesse o dom de vislumbrar o futuro, o Sr. Whitlock perguntou a si mesmo:
”Será que esta cena virá à sua lembrança daqui a muitos anos? E como? Quando? Em que
circunstâncias?” Em 1940 o menino de terninho de marinheiro, já então o Rei Leopold in, iria
render-se a outra invasão alemã. }

Nas ruas, depois do discurso, o entusiasmo virou delírio. Os soldados do exército, até então
menosprezados, viraram heróis. As pessoas gritavam: ”Abaixo os alemães! Morte aos assassinos!
Vive Ia Belgique indépendante!” Depois da partida do Rei, a multidão gritou pelo Ministro da
Guerra, que normalmente, não importava a sua identidade, era, por causa do seu cargo, o homem
menos popular do lít Governo. Quando Monsieur Broqueville apareceu no balcão, até mês-
I
mo aquele homem fleumático e mundano chorou, dominado pela fervente emoção compartilhada
por todos que estavam em Bruxelas naquele dia.

No mesmo dia, em Paris, soldados franceses de calças vermelhas e casacos azuis largos, presos por
botões nos cantos, cantavam, marchando pelas ruas: . . •

Cest l’Alsace et Ia Lorraine í : u-,; Cest 1’Alsace qu’il nous faut,v^ Oh, Oh, Oh, OH!

A canção teminava corn um grito triunfante no último ”oh!”. O General Pau, que tinha apenas um
braço e cuja popularidade aumentara corn a perda do outro membro, passou a cavalo, usando a faixa
verde e preta dos veteranos de 1870. Regimentos de coureiros da cavalaria, corn peitorais de metal
brilhante e longas caudas negras de crina de cavalo pendendo dos capacetes, não se sentiam
anacrônicos. Atrás deles vinham enormes caixas contendo aeroplanos, e plataformas de rodas
trazendo os canhões compridos e finos, pintados de cinzento - os ”soixante-quinzes” que eram o
orgulho da França. Durante todo o dia, o fluxo de homens, cavalos, armas e material jorrou pelos
imensos portais em arco da Gare du Nord e da Gare de l’Est.

Pelas ruas vazias de veículos marchavam companhias de voluntários corn bandeiras e faixas
proclamando sua intenção: ”Luxemburgo jamais será alemão!”, ”A Romênia cerra fileiras corn a
Mãe das Raças Latinas”, ”Itália, cuja liberdade foi paga corn sangue francês”, ”Espanha, irmã
devotada da França”, ”Voluntários ingleses pela França”, ”Os gregos que amam a França”, ”Os
escandinavos de Paris”, ”Os povos eslavos do lado da França”, ”A América Latina vive pela mãe da
cultura da América Latina”. Aplausos e vivas saudavam a faixa que proclamava: ”Alsacianos
voltando para casa”.

Numa sessão conjunta do Senado e da Câmara, Viviani, pálido como um cadáver e corn aparência
de estar sofrendo física e mentalmente, ultrapassou sua própria capacidade de inflamada eloqüência
num discurso que foiaclamado-assim como todos os outros naquele dia - como o maior da sua
carreira. Ele trazia consigo, em sua pasta, o texto do tratado da França corn a Rússia, mas não foi
interrogado sobre isso. Vivas entusiasmados saudaram sua revelação de que a Itália, ”corn a clareza
de idéias própria do intelecto latino”, declarara sua neutralidade, desse modo poupando à França
uma 145
guerra em duas frentes. Como era de se esperar, o volúvel terceiro membro da Tríplice Aliança
saltara de lado quando chegou a hora do teste, corn o argumento de que o ataque da Áustria à Sérvia
era um ato de agressão que liberava a Itália das obrigações assumidas no tratado. Aliviando a
França da necessidade de proteger sua fronteira meridional, a neutralidade da Itália tinha o valor de
quatro divisões extras, ou 80.000 homens.

Depois que Viviani discursou, foi lido um discurso do Presidente Poincaré, a quem as obrigações do
cargo impediram de comparecer pessoalmente; a platéia ouviu-o de pé. Alterando, de um modo bem
característico seu, a tradicional trindade francesa, ele afirmou que a França se postava diante do
universo pela Liberdade, pela Justiça e pela Razão. À França chegavam mensagens de solidariedade
e boavontade vindas de todas as partes do que ele chamou, intencionalmente, de ”mundo
civilizado”. Enquanto essas palavras eram lidas, o General Jof f ré, ”inteiramente calmo e
completamente confiante”, foi despedir-se do Presidente antes de partir para a frente de combate.

A chuva caía forte sobre Berlim quando os deputados do Reichstag reuniram-se para ouvir a fala do
trono do Kaiser. Sob as janelas do Reichstag, aonde tinham se dirigido para uma reunião preliminar
corn o Primeiro-Ministro, eles escutavam o incessante bater de cascos de cavalos no pavimento à
passagem dos esquadrões de cavalaria trotando pelas ruas molhadas. Os líderes partidários
encontraram-se corn Bethmann num aposento adornado por um imenso quadro exibindo o
gratificante espetáculo do Kaiser Wilhelm I pisoteando gloriosamente a bandeira francesa. O
quadro mostrava-o, juntamente corn Bismarck e o Marechal-de-Campo Moltke, pavoneando-se no
campo de batalha de Sedan, enquanto um soldado alemão estendia a bandeira sob as patas do cavalo
do Imperador. Bethmann expressou preocupação pela unidade e exortou os deputados a ”serem
unânimes” em suas decisões.

-Seremos unânimes, Excelência-respondeu obedientemente um porta-voz dos Liberais. \

O onisciente Erzberger, que, como relator do Comitê de Negócios Militares e amigo íntimo do
Primeiro-Ministro, tinha a fama de ter um ouvido no Olimpo, azafamava-se entre seus colegas
deputados asseverando que os sérvios estariam derrotados ”a essa hora na próxima segunda-feira” e
que tudo estava indo muito bem.

Em Berlim, o soberano não foi ao Parlamento fazer seu discurso l« em 4 de agosto; os deputados
foram ao palácio. As entradas estavam
vigiadas e cercadas por cordas, e todas as credenciais eram examinadas em quatro postos diferentes,
antes que os representantes do povo pudessem finalmente sentar-se na Weisser Soai. Entrando
discretamente, acompanhado por vários generais, o Kaiser sentou-se no trono. Bethmann, corn a
farda dos Dragões, tirou o discurso da pasta real e entregou-o ao Kaíser, que levantou-se, parecendo
pequenino ao lado do Primeiro-Ministro, e leu seu discurso, de capacete posto euma das mãos sobre
o punho da espada. Sem mencionar a Bélgica, ele declarou:

-Empunhamos a espada corn a consciência tranqüila e as mãos limpas.

Afirmou que a guerra tinha sido provocada pela Sérvia corn a ajuda da Rússia e provocou vaias e
gritos de ”Vergonha!” ao evocar as iniqüidades russas. Terminando o discurso preparado, o Kaiser
ergueu a voz e proclamou:

- Deste dia em diante não reconheço quaisquer partidos, mas apenas alemães!

E convocou os líderes partidários que concordavam corn esses sentimentos para que se
aproximassem e lhe apertassem a mão. Em meio a ”enorme excitação” todos fizeram isso, enquanto
o resto da assembléia rompia em vivas e gritos de fervente alegria.

As 15:00 os membros voltaram ao Reichstag para ouvir o discurso do Primeiro-Ministro e


desempenhar o restante das suas tarefas: votar os créditos de guerra e depois suspender os trabalhos.
Os Social-Democratas concordaram em manter a unanimidade da votação e passaram suas últimas
horas de responsabilidade parlamentar em ansiosos debates se deveriam ou não. participar de um
”Hoch!” para o Kaiser. O dilema foi resolvido satisfatoriamente: o Hoch seria para ”o Kaiser, o
Povo e o País”.

Quando Bethmann ergueu-se para discursar, todos esperavam em nervosa expectativa o que ele
tinha a dizer sobre a Bélgica. Um ano antes, o Ministro do Exterior Jagow asseverara, numa sessão
secreta do comitê normativo do Reichstag, que a Alemanha jamais violaria o território belga, e o
General Von Heeringen, então Ministro da Guerra, prometera que em caso de guerra o Comando
Supremo respeitaria a neutralidade belga enquanto seus inimigos o fizessem também. No dia 4 de
agosto os deputados ainda não sabiam que seus exércitos já tinham invadido a Bélgica naquela
manhã. Sabiam do ultimato, mas nada acerca da resposta da Bélgica, porque o Governo alemão,
querendo dar a impressão de que a Bélgica tinha concordado, portanto sua resistência armada era
ilegal, nunca a tornou pública.

IV
Bethmann declarou à tensa platéia:

- Nossas tropas ocuparam Luxemburgo e talvez - esse ”talvez” era póstumo havia oito horas - já
estejam na Bélgica.

Houve grande comoção. Era verdade que a França fizera à Bélgica a promessa de respeitar sua
neutralidade, mas ”sabíamos que a França estava preparada para invadir a Bélgica” e ”não
podíamos esperar”. Era inevitável que ele dissesse tratar-se de um caso de necessidade militar, e ”a
necessidade não conhece leis”.

A essa altura, seus ouvintes estavam hipnotizados - tanto os direitistas, que o desprezavam, quanto
os esquerdistas, que não confiavam nele. Sua frase seguinte causou sensação:

- Nossa invasão da Bélgica contraria a lei internacional, mas o delito, e falo francamente, que
estamos cometendo, nós repararemos assim que o nosso objetivo militar for alcançado.

O General Tirpitz considerou esse o maior disparate jamais dito por um estadista alemão, ao passo
que Conrad Haussman, líder do Partido Liberal, considerou-o a melhor parte do discurso. Tendo
confessado o delito numa mea culpa pública, ele e seus colegas deputados esquerdistas sentiram-se
expurgados da culpa e saudaram ruidosamente o Primeiro-Ministro corn ”Sehr richtigl”. Numa
última frase de efeito - e antes que o dia de máximas memoráveis de Bethmann terminasse - ele
ainda acrescentaria mais uma, que o tornaria imortal: quem quer que fosse tão ameaçado quanto a
Alemanha só poderia pensar em tentar ”abrir caminho a golpes”.

Um crédito de guerra de cinco bilhões de marcos teve votação unânime, e depois disso o Reichstag
votou um recesso de quatro meses, prazo que todos esperavam que fosse a duração da guerra.
Bethmann encerrou os trabalhos corn uma afirmação que soava como a saudação dos gladiadores:

- Seja qual for o nosso destino, o dia 4 de agosto de 1914 permanecerá por toda a eternidade um dos
dias grandiosos da Alemanha!

A resposta da Inglaterra, aguardada por tanto tempo, corn tanta ansiedade, por tantas pessoas, foi
finalmente tornada definitiva, às
19:00 daquele mesmo dia. Naquela manhã, o Governo britânico, forçando sua determinação,
conseguiu enviar um ultimato que, no entanto, chegou em duas partes, pois a determinação dos
ingleses não tinha sido suficientemente forte. Primeiro, Grey pediu uma garantia de que as
exigências alemãs à Bélgica não seriam ”continuadas”, e pediu também uma ”resposta imediata”,
mas não tendo ele espe-
148 cificado um limite de tempo ou mencionado qualquer sanção em caso
de não haver resposta, tecnicamente a mensagem não era um ultimato. Ele esperou até depois de
saber que o Exército alemão tinha invadido a Bélgica, antes de mandar um segundo aviso
declarando que a Inglaterra sentia-se obrigada a ”defender a neutralidade da Bélgica e a observância
do tratado no qual a Alemanha tomou parte tanto quanto nós mesmos”. E exigia uma ”resposta
satisfatória” até meia-noite, na falta da qual o Embaixador britânico pediria seu passaporte.

O fato de o ultimato não ter sido enviado na noite anterior, imediatamente após o Parlamento ter
deixado claro que aceitava o discurso de Grey, é algo que só pode ser explicado pelo estado de
espírito indeciso do Governo. Que tipo de ”resposta satisfatória” ele esperava, a não ser que os
alemães humildemente recuassem para o outro lado da fronteira que eles tinham atravessado
deliberada e irrevogavelmente naquela manhã, e por que a Inglaterra concordou em esperar até a
meia-noite por esse fenômeno tão fantasioso, são coisas que não podem ser explicadas. Naquela
noite, no Mediterrâneo, as horas desperdiçadas antes da meia-noite seriam cruciais.

Em Berlim, o Embaixador britânico, Sir Edward Goschen, apresentou o ultimato numa entrevista
histórica corn o Primeiro-Ministro. Ele encontrou Bethmann ”muito agitado”. Segundo o próprio
Bethmann, ”meu sangue fervia diante dessa insistência hipócrita em mencionar a Bélgica, que na
verdade não era o motivo que levou a Inglaterra à guerra”. A indignação fez corn que Bethmann
pronunciasse um discurso declarando que a Inglaterra estava fazendo uma coisa ”impensável” ao
entrar em guerra contra uma ”nação afim”, que aquilo ”era como golpear um homem pelas costas
enquanto ele lutava para defender sua vida contra dois assaltantes”, que como resultado desse
”passo decisivo e terrível” a Inglaterra seria responsável por todos os acontecimentos horríveis que
pudessem se seguir, e ”tudo por uma palavra apenas - neutralidade - e por um pedaço de papel...”

Mal percebendo a frase que ressoaria por todo o mundo, Goschen incluiu-a em seu relatório da
entrevista.

Ele respondeu dizendo que, se por motivos estratégicos avançar através da Bélgica era uma questão
de vida e morte para a Alemanha, era também, por assim dizer, uma questão de vida e morte para a
Inglaterra manter seu pacto solene. ”Sua Excelência estava tão agitado, tão evidentemente
perturbado pela notícia de nosso ato, e tão pouco disposto a ouvir a razão”, que o Embaixador
desistiu de continuar argumentando.

149
* Quando ele estava saindo, dois homens num carro de imprensa do Berliner Tageblatt trafegavam
pelas ruas jogando panfletos que anunciavam a declaração de guerra inglesa -um tanto
prematuramente, pois o ultimato só expiraria à meia-noite. Vindo depois da deserção da Itália, esse
último ato de ”traição”, essa última deserção, essa outra adição aos seus inimigos, enfureceu os
alemães, e um grande número deles transformou-se imediatamente numa malta ululante que durante
a hora seguinte ocupou-se em apedrejar todas as janelas da Embaixada Britânica. De um dia para o
outro a Inglaterra tornou-se o inimigo mais odiado e ”Rassen-verrat!” - ”traição à raça” -o refrão
favorito. O Kaiser, em um dos comentários mais tolos sobre a guerra, lamentou:

- Quem diria que George e Nicky iriam me trair! Se minha avó estivesse viva, jamais teria
permitido...

Os alemães não conseguiram engolir essa perfídia, tanto mais que tinham sido levados a crer que os
ingleses estavam decadentes demais para lutar, tendo degenerado ao ponto em que as sufragistas
importunavam o Primeiro-Ministro e desafiavam a polícia. Eles acreditavam que a Inglaterra estava
ficando velha, apesar de seus amplos domínios e de ser ainda poderosa, e sentiam por ela, como os
visigodos pelos romanos do último período, um desprezo que se mesclava ao sentimento de
inferioridade de um recém-chegado. O Almirante Tirpitz queixou-se de que os ingleses pensavam
que podiam ”nos tratar como a Portugal”.

A traição da Inglaterra aprofundou a sensação de isolamento: os alemães tinham consciência de ser


uma nação sem amigos. Como podia acontecer que Nice, anexada à França em 1860, pudesse
acomodar-se confortavelmente e dentro de poucos anos esquecer-se que já fora italiana, ao passo
que meio milhão de alsacianos preferiam deixar sua terra natal a viver sob o domínio alemão?
”Nosso país não é muito amado em parte alguma, e na verdade é freqüentemente odiado”, o
Príncipe-Herdeiro observou em suas viagens.

Enquanto a multidão clamava por vingança na Wilhelmstrasse, os deprimidos deputados da


esquerda reuniam-se em cafés e gemiam juntos.

- O mundo inteiro está se levantando contra nós - disse um deles. - O germanismo tem três inimigos
no mundo: os latinos, os eslavos e os anglo-saxões; e agora todos eles estão unidos contra nós.

- Nossa diplomacia não nos deixou amigo algum a não ser a Áustria, e nós tivemos que sustentá-la -
disse outro.
. f - Pelo menos uma boa coisa é que não vai poder durar muito
- consolou-os um terceiro. -Teremos paz dentro de quatro meses. Econômica e financeiramente não
podemos agüentar mais que isso.

- A esperança está nos turcos e japoneses - sugeriu mais alguém.

Na verdade, na noite anterior um boato varrera os cafés quando os fregueses ouviram vivas
distantes gritados nas ruas. Um cronista da época registrou:

”Os gritos chegaram mais perto. As pessoas escutavam-nos e erguiam-se de um salto. Os vivas
ficaram mais altos; ressoavam pelo Potsdamer Platz e chegaram às proporções de uma trovoada. Os
fregueses abandonavam a refeição e corriam para fora do restaurante. Eu segui a corrente. Que foi
que aconteceu? ’O Japão declarou guerra à Rússia!’, ’Viva! Viva!’, rugiam eles. A alegria era
estentórea. As pessoas se abraçavam.’Viva o Japão! Viva! Viva!’ Júbilo sem fim. Então alguém
gritou: ’Para a Embaixada Japonesa!’ E a multidão afastou-se, carregando todos consigo, e logo
cercou a embaixada. ’Viva o Japão! Viva o Japão!’, gritavam impetuosamente, até que o
Embaixador japonês apareceu finalmente e, perplexo, gaguejou seus agradecimentos por essa
homenagem inesperada e, ao que parece, imerecida.”

Embora no dia seguinte se soubesse que o boato era falso, somente duas semanas depois é que se
avaliaria quão imerecida tinha sido aquela homenagem.

Quando o Embaixador Lichnowsky e sua equipe deixaram a Inglaterra, um amigo que foi
despedir-se ficou impressionado corn a ”tristeza e amargura” do grupo na estação ferroviária. Eles
culpavam os políticos de sua terra por arrastá-los para uma guerra sem outro aliado senão a Áustria.

- Que chance nós temos, atacados por todos os lados? Ninguém é amigo da Alemanha? - perguntou
melancolicamente umdiplomata.

- Eu soube que o Sião é - respondeu um colega.

Assim que os ingleses conseguiram mandar o ultimato, novas brigas explodiram no Gabinete por
causa da questão do envio de uma Força Expedicionária à França. Tendo-se declarado beligerantes,
passaram a discutir a respeito de até que ponto deviam ir. Seus planos conjuntos corn a França
previam uma Força Expedicionária de seis divisões chegando na França entre os dias M-4 e M-12,
que deveria |$a
estar pronta para entrar em ação na extremidade esquerda da linha francesa no dia M-15. O
cronograma já estava furado, porque o M-l inglês (5 de agosto), que se esperava que fosse dois dias
depois do francês, estava agora três dias para trás, e o atraso seria maior porque nas ordens havia
um espaço em branco onde deveria estar a palavra ”embarcar”.

O Gabinete do Sr. Asquith estava paralisado pelo medo da invasão. Embora o Comitê de Defesa
Imperial, depois de anos estudando o problema, tivesse declarado que uma invasão em grande
escala seria ”impraticável” e a defesa das ilhas domésticas estivesse suficientemente garantida pela
Marinha, os líderes ingleses de 4 de agosto não conseguiam reunir coragem para deixar a
Grã-Bretanha sem o Exército Regular. Propunha-se que fossem enviadas menos que seis divisões,
ou que elas fossem enviadas mais tarde, ou até mesmo que não fossem enviadas. O Almirante
Jellicoe foi informado que sua escolta à Força Expedicionária na travessia do Canal da Mancha, que
estava planejada, não seria necessária ”por enquanto”.

Nenhum botão no Ministério da Guerra colocou automaticamente a Força Expedicionária em ação,


porque o Governo britânico não conseguia decidir-se a apertá-lo. O próprio Ministério da Guerra,
sem ministro nos últimos quatro meses, estava perturbado pela falta de um chefe. Asquith tinha
progredido até o ponto de chamar Kitchener a Londres, mas ainda não conseguira tomar coragem
para oferecer-lhe o cargo. O impetuoso e tempestuoso Sir Henry Wilson, cujo desinibido diário
causaria tanta aflição quando publicado depois da guerra, ficou ”revoltado por tal estado de coisas”.
Assim também o pobre Monsieur Cambon, que, armado de um mapa, foi mostrar a Grey como era
essencial que a ala esquerda francesa fosse alongada pelas seis divisões inglesas. Grey prometeu
levar o assunto à atenção do Gabinete.

O General Wilson, furioso corn o atraso, que ele atribuía à hesitação ”pecaminosa” de Grey,
mostrou indignado a seus amigos na Oposição uma cópia da ordem de mobilização, que, em vez de
dizer ”mobilizar e embarcar , dizia apenas ”mobilizar”, e afirmou que esse pequeno detalhe
atrasaria o programa em quatro dias.

Balfour encarregou-se de esporear o Governo; numa carta endereçada a Haldane, ele lembrou que o
único objetivo da Entente e dos planejamentos militares derivados dela era a preservação da França,
pois, se a França fosse esmagada, ”o futuro de toda a Europa poderia ser mudado numa direção que
consideraríamos desastrosa”. Ele su-
geria que, tendo sido adotada essa política, a coisa a fazer era ”golpear depressa e corn toda a sua
força” .Quando Haldane foi procurá-lo para explicar a natureza das hesitações do Gabinete, Balfour
não conseguiu deixar de achar que elas eram caracterizadas por ”uma certa confusão de pensamento
e indecisão de objetivos”.

Naquela tarde de 4 de agosto, mais ou menos na hora em que Bethmann discursava ao Reichstag e
Viviani à Câmara de Deputados, o Sr. Asquith anunciou à Câmara dos Comuns uma ”mensagem de
Sua Majestade, assinada por seu próprio punho”. O Sr. Presidente pôs-se de pé e os outros
descobriram-se enquanto era lida a Proclamação de Mobilização. Em seguida, de uma cópia
datilografada que tremia ligeiramente em sua mão, Asquith leu os termos do ultimato
recém-enviado à Alemanha. Quando ele chegou às palavras ”uma resposta satisfatória até
meia-noite”, um viva solene fez-se ouvir no recinto.

Só restava esperar a meia-noite (23:00 no horário britânico). Às


21:00 o Governo foi informado, através de um telegrama secreto mas não em código - enviado de
Berlim, que a Alemanha considerava-se em guerra corn a Inglaterra desde o momento em que o
Embaixador inglês pedira seu passaporte. Convocado às pressas, o Gabinete expressou suas
suspeitas de que os alemães tivessem se adiantado para poder desfechar um ataque submarino de
surpresa ou outro golpe qualquer, que poderia até estar acontecendo naquele mesmo momento, na
escuridão de um ponto qualquer da costa inglesa. Os ministros debateram se deviam declarar guerra
desde esse momento ou esperar que expirasse o prazo marcado pelo ultimato.

Decidiram esperar. Em silêncio, cada utn imerso em seus pensamentos particulares, ficaram
sentados em volta da mesa verde no aposento mal-iluminado, cônscios das sombras daqueles que,
em outros momentos decisivos, tinham se sentado ali antes deles. Todos os olhos observavam o
relógio marcando o tempo que se escoava. ”Bum!”, o Big Ben bateu a primeira badalada das 23:00,
e cada badalada seguinte soava, segundo Lloyd George - que tinha um pendor celta para o
melodrama - como se fosse: ”Ruína! Ruína! Ruína!”

Vinte minutos depois, foi enviado o Telegrama de Guerra: ”Guerra, Alemanha, agir”. Ainda não se
resolvera quando e onde o Exército deveria agir - essa decisão fora deixada a um Conselho de
Guerra convocado para o dia seguinte. O Governo inglês foi deitar-se naquela noite como
beligerante, embora não belicoso.

ÜB
No dia seguinte, corn o assalto a Liège, houve a primeira batalha da guerra; nesse dia Moltke
escreveu para Conrad Von Hotzendorf que a Europa estava entrando ”numa luta que irá decidir o
curso da História nos próximos cem anos”.

154
A Batalha
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10

”Goeben... Um Inimigo então fugindo

/x

Antes de começar a batalha em terra, uma mensagem telegráfica do Almirantado alemão para o
Comandante alemão no Mediterrâneo, Almirante Wilhelm Souchon, viajou pelos ares nas horas que
precediam o amanhecer do dia 4 de agosto: ”Aliança corn Turquia concluída em 3 agosto. Siga
imediatamente para Constantinopla”. Embora a mensagem se mostrasse prematura, vindo a ser
cancelada quase em seguida, o Almirante Souchon resolveu proceder como ordenado. Seu comando
consistia em dois navios novos e rápidos: o cruzador blindado Goeben e o cruzador leve Breslau.
Nenhum outro episódio da guerra lançou sobre o mundo uma sombra tão longa quanto a viagem
empreendida pelo comandante desses dois navios durante os sete dias seguintes.

Na época de Sarajevo, a Turquia tinha muitos inimigos e nenhum aliado, pois país algum achava
que valesse a pena uma aliança corn ela. Durante cem anos, as potências européias consideraram
moribundo o Império Otomano, denominado o ”Homem Doente” da Europa, e ficaram observando,
atentas, esperando para caírem sobre a carcaça.

Mas passavam-se os anos e o fabuloso inválido recusava-se a morrer, e ainda segurava nas mãos
decrépitas as chaves de imensas riquezas. Aliás, a Turquia começara a rejuvenescer nos seis últimos
anos, desde 1908, quando a Revolução dos Jovens Turcos derrubou o velho Sultão Abdul, ”o
Maldito” e estabeleceu o governo do ”Comitê de União e Progresso”, sob o governo do irmão -
mais simpático de Abdul. O ”Comitê”-isto é, os Jovens Turcos, liderados por Enver Bey (seu
”pequeno Napoleão”) - decidiu refazer o país, forjando o poder necessário para manter as fronteiras
do império - em vias de desmoronamento -, afastar os abutres que sobrevoavam por perto e
recuperar o domínio pan-islâmico dos dias de glória otomana.

O processo foi atentamente observado pela Rússia, França e Inglaterra, que tinham ambições rivais
naquela área. A Alemanha, que chegara atrasada ao cenário imperial e tinha seus próprios sonhos
sobre Berlim-Bagdá, resolveu tornar-se a protetora dos Jovens Turcos. Uma missão militar enviada
por ela em 1913 para reorganizar o Exército turco provocou na Rússia um ressentimento tão grande
que

m
foi preciso o esforço conjunto das Potências para se achar um meio de ”lavar a honra” e impedir que
o caso se tornasse aquela ”infeliz bobagem nos Bálcãs” uni ano antes de Sarajevo.

Daí em diante, os turcos sentiam crescer sobre si a sombra do dia em que teriam que escolher um
dos lados. Temendo a Rússia, odiando a Inglaterra, desconfiando da Alemanha, eles não
conseguiam decidir. O ”Herói da Revolução”, o belo e jovem Enver, corn suas bochechas rosadas e
o bigode negro corn as pontas viradas como o do Kaiser -, era o único advogado entusiasmado de
uma aliança corn a Alemanha. Ele acreditava, como alguns pensadores fariam mais tarde, que os
alemães eram o futuro.

Talaat Bey, ”patrão” político do Comitê e seu verdadeiro governante, não tinha tanta certeza disso.
Tratava-se de um corpulento aventureiro levantino que conseguia devorar meio quilo de caviar corn
duas taças de conhaque e duas garrafas de champanhe; achava que seu país poderia obter melhor
preço da Alemanha do que da Entente e não acreditava que a Turquia tivesse qualquer chance de
sobrevivência como país neutro numa guerra entre as Grandes Potências. Sabia que, se os países da
Entente ganhassem, os domínios otomanos desmoronariam sob sua pressão; se as Potências
Centrais vencessem, a Turquia tornar-se-ia súdita da Alemanha.

Outros grupos no governo turco teriam preferido uma aliança corn a Entente, se isso fosse possível,
na esperança de poder livrar-se da Rússia, inimiga imemorial da Turquia. Durante dez séculos a
Rússia lutara para controlar o Mar Negro-aquela passagem estreita e famosa chamada Dardanelos,
corn 80 quilômetros de comprimento e não chegando a atingir cinco quilômetros de largura, era o
único acesso marítimo para o resto do mundo que a Rússia podia utilizar durante o ano inteiro.

A Turquia tinha uma qualidade de valor inestimável: sua posição geográfica, no entroncamento dos
caminhos imperiais. Por isso a Inglaterra foi durante cem anos o seu protetor tradicional, mas na
realidade já não levava a séjrio a sua protegida. Depois de um século apoiando o Sultão contra
todos, por preferir um déspota fraco e debilitado - portanto maleável - em seu caminho para a índia,
a Inglaterra finalmente começava a cansar-se dos laços que a prendiam ao que Winston Churchill
chamava simpaticamente de ”a Turquia escandalosa, decadente, decrépita e pobre”. A fama turca de
ineficiência, corrupção e crueldade vinha sendo, havia muito, um cheiro ruim
158 nas narinas da Europa. •:••-
Os Liberais, que governavam a Inglaterra desde 1906, eram os herdeiros do famoso apelo de
Gladstone para que se expulsasse da Europa o turco insuportável, ”o único grande espécime
anti-humano da humanidade”. A política desses Liberais apoiava-se na imagem de um turco meio
”Homem Doente”, meio ’Turco Terrível”. Eles acreditavam que a Turquia era incorrigível,
irremediável, senil e, de qualquer maneira, prestes a morrer. A metáfora de Lord Salisbury depois
da Guerra da Criméia, ”apostamos nosso dinheiro no cavalo errado”, adquiriu um torn de profecia.
A influência inglesa na Porta33 perdeu o valor, e foi abandonada ao declínio justamente na época
em que poderia mostrar-se valiosa.

Quando a Turquia requisitou uma aliança permanente corn a Grã-Bretanha, seu pedido foi recusado
em 1911 por obra de Winston Churchill, que tinha visitado Constantinopla em 1909 e estabelecera
”relações amistosas”, como ele as concebia, corn Enver e outros ministros da facção dos Jovens
Turcos. No estilo imperial usado para dirigir-se aos estados orientais, ele insinuou que, embora a
Inglaterra não pudesse aceitar uma aliança, a Turquia não faria bem em alienar a amizade britânica
”revertendo aos métodos opressivos do antigo regime ou procurando perturbar o status quo
britânico ora existente”. corn uma soberba visão do mundo do alto de seu cargo no Almirantado, ele
lembrou aos turcos que a amizade inglesa seria preciosa para a Turquia enquanto a Inglaterra
”sozinha entre os estados europeus (...) retíver a supremacia dos mares”. Nem ele, nem qualquer
outro ministro nos últimos anos pré-1914 jamais pensaram seriamente que a amizade da Turquia, ou
até mesmo a sua neutralidade, pudesse ser igualmente preciosa para a Inglaterra.

Em julho de 1914, corn a guerra em duas frentes pairando sobre seu país, os alemães ficaram de
repente ansiosos para garantir uma aliança corn o país que poderia bloqltear o Mar Negro e separar
a Rússia dos aliados e seus suprimentos. Uma antiga proposta turca de aliança, que fora deixada
pendente, de súbito passou a ser desejável. O Kaiser, em seus temores, insistiu que ”a coisa a fazer
agora é deixar todos os canhões a postos nos Bálcãs para atirar nos eslavos”. Quando a Turquia
começou a endurecer acerca dos termos da aliança e a dar

33 O principal órgão de governo do Império Otomano era denominado Babi Ali (Porta Elevada), por causa do portão alto do paUcio
onde a justiça era administrada. A tradução francesa é La Sublime Porte, a Porta Sublime, de onde surgiu o termo ”Porta” para
designar o Governo otomano turco. (N. da T.)

159
mostras de pender para o lado da Entente, o Kaiser, em seu pânico crescente, instruiu seu
embaixador a responder ao oferecimento da Turquia ”corn uma concordância inequivocamente
óbvia. (...) Em nenhuma circunstância temos condições de hostilizá-la”.

No dia 28 de julho, o dia em que a Áustria declarou guerra à Sérvia, a Turquia pediu formalmente à
Alemanha uma aliança secreta ofensiva e defensiva que entrasse em vigor no caso de qualquer dos
dois países entrarem em guerra corn a Rússia. No mesmo dia o pedido foi recebido e aceito em
Berlim, e um esboço de tratado assinado pelo Chanceler foi enviado de volta por telégrafo. No
último momento, porém, os turcos relutaram em amarrar o laço que ataria seu destino ao da
Alemanha. Se ao menos pudessem ter certeza de que a Alemanha venceria...

Enquanto os turcos hesitavam, a Inglaterra ajudou-os a decidir, confiscando dois navios de guerra
turcos que estavam sendo construídos por encomenda num estaleiro inglês. Eram navios de linha de
primeira-classe, iguais aos melhores da Inglaterra, um deles armado corn canhões de 13.5”. O
impetuoso Chefe do Almirantado ”requisitou” - para usar seu próprio termo - os navios turcos no
dia 28 de julho. Um deles, o Sultan Osman, tinha ficado pronto em maio, e a primeira parcela do
pagamento já fora feita, mas quando os turcos quiseram levá-lo para casa, os ingleses, corn sinistras
insinuações a respeito de uma conspiração grega para atacá-lo por submarino, convencera-os a
deixá-lo na Inglaterra até que o outro navio, o Reshadieh, ficasse pronto e os dois pudessem viajar
juntos.

Quando o Reshadieh ficou pronto, no início de julho, a Inglaterra ofereceu outras desculpas. Os
testes de velocidade e armamento foram inexplicavelmente retardados. Ao saber da ordem de
Churchill, o capitão turco, que esperava corn 500 marinheiros turcos a bordo de um navio de
transporte no rio Tyne34, ameaçou abordar seus navios e içar a bandeira turca. Não foi sem uma
certa satisfação que a voz no Almirantado deu ordens para que se resistisse a tal tentativa ”pela
força, se necessário”. ,

Os navios tinham custado à Turquia uma imensa fortuna para aquela época: 7.500.000 libras
esterlinas. O dinheiro tinha sido levantado através de uma subscrição popular depois que as derrotas
nas guerras da península balcânica alertaram os turcos para a necessidade

«o

34 O rio Tyne fica no condado de Tyne and Wear, no norte da Inglaterra, no Mar do Norte. (N.daT.)
de renovar suas forças armadas. Cada camponês da Anatólia35 ofereceu sua moeda. Embora o
público ainda não soubesse, a notícia do confisco causou, na expressão nada exagerada de Djemal
Pasha, Ministro da Marinha, ”angústia mental” a seu governo.

A Inglaterra não se deu ao trabalho de aliviar essa angústia. Sir Edward Grey, ao informar
oficialmente os turcos desse ato de verdadeira pirataria no Tyne, tinha certeza de que a Turquia
compreenderia por que a Inglaterra achara necessário tomar os navios para ”suas próprias
necessidades nessa crise”. Segundo ele, a perda financeira e outras perdas da Turquia-que o
Governo de Sua Majestade ”lamentava sinceramente” - receberia ”a devida consideração”. Ele não
mencionou compensação. Sob o efeito cumulativo dos conceitos de ”Homem Doente” e ”cavalo
errado”, a Inglaterra viera a considerar o Império Otomano inteiro como algo de menor importância
do que dois navios de guerra a mais. O telegrama de desculpas de Grey foi enviado no dia 3 de
agosto; no mesmo diàa Turquia assinou o tratado de aliança corn a Alemanha.

No entanto, ela não declarou guerra à Rússia, como se comprometera a fazer; não fechou o Mar
Negro nem tomou qualquer atitude que comprometesse publicamente uma estrita neutralidade de
sua parte. Tendo obtido uma aliança corn uma grande potência em seus próprios termos, a Turquia
mostrou não ter pressa em ajudar seu novo aliado. Seus ministros, indecisos, preferiam esperar para
ver que rumo tomariam as primeiras batalhas da guerra. A Alemanha estava muito longe, ao passo
que os russos e os ingleses eram uma ameaça próxima e sempre presente.

A entrada da Inglaterra na guerra, agora certa, provocava sérias hesitações nos turcos. Temendo
exatamente isso, o Governo alemão instruiu seu embaixador, o Barão Wangenheim, a obter a
declaração de guerra da Turquia à Rússia ”hoje, se possível”, pois era ”da maior importância
impedir que a Porta escape de nós sob a influência da ação inglesa”. A Porta, no entanto, não
obedeceu. Todos, exceto Enver, desejavam retardar um ato aberto contra a Rússia até que o
progresso da guerra revelasse algum sinal de seu provável desfecho.

No Mediterrâneo, sombras cinzentas tomavam posição para o combate iminente. Operadores de


rádio, tensos em seus postos de escuta, anotavam ordens operacionais de Almirantados distantes. A
tarefa imediata e primária das armadas da Inglaterra e da França era

35 Anatólia: a parte asiática da Turquia. (N. da T.)

161
salvaguardar a passagem do Corpo Colonial francês da África do Norte para a França; corn suas três
divisões - em vez do número normal de duas divisões - e suas alas auxiliares, eram mais de 80.000
homens. A presença ou ausência de todo um Corpo do Exército em seu lugar designado poderia ser
decisiva para o plano de batalha francês; ambos os lados acreditavam que a guerra seria
determinada pelo destino da França no primeiro combate corn a Alemanha.

Tanto o Almirantado francês quanto o inglês tinham os olhos fixos no Goeben e no Breslau como a
maior ameaça ao deslocamento das tropas francesas. Os franceses tinham a maior frota no
Mediterrâneo e para defender seus transportes36 dispunham de dezesseis encouraçados, seis
cruzadores e 24 destróieres. A frota britânica no Mediterrâneo, baseada em Malta, era chefiada por
três cruzadores blindados - Inflexible, Indomitable e Indefatigable - de 18.000 toneladas, corn um
armamento de oito canhões de 12” e uma velocidade de
27-28 nós. Eles tinham sido desenhados para dominar e destruir qualquer coisa que flutuasse, à
exceção de um encouraçado da classe Dreadnought. Além deles, a frota dispunha de quatro
cruzadores blindados de 14.000 toneladas, quatro cruzadores ligeiros corn menos de 5.000
toneladas e quatorze destróieres. A frota italiana era neutra. A frota austríaca, baseada em Pola, na
boca do Adriático, tinha oito navios de linha ativos, inclusive dois Dreadnoughts corn canhões de
12” e um número adequado de outros navios. A armada austríaca estava despreparada e mostrou-se
inativa: um tigre de papel.

A Alemanha, corn a segunda maior frota do mundo, tinha apenas dois navios de guerra no
Mediterrâneo. Um era o cruzador blindado Goeben, de 23.000 toneladas, grande como um
encouraçado, corn uma velocidade experimental registrada de 27.8 nós - equivalente à do Inflexible
britânico - e corn um poder de fogo aproximadamente similar. O outro era o Breslau, de 4.550
toneladas, um navio equivalente aos cruzadores ligeiros ingleses. Por causa de sua velocidade,
maior do que a de qualquer encouraçado ou cruzador francês, o Goeben ”poderia facilmente”,
segundo a lúgubre previsão do Chefe do Almirantado inglês, ”evitar os esquadrões de combate
franceses e, afastando ou deixando para trás os cruzadores franceses, atacar os transportes e afundar
um após outro todos esses navios apinhados de soldados”. Se havia uma coisa característica do
pensamento naval

162

36 Transporte: navio ou qualquer outro veículo para transportar tropas e material de guerra.

(N. da T.) ’..,:,’. ...-.„.,, . ,,


britânico antes do início da guerra, era a tendência a atribuir à Marinha alemã uma audácia e uma
disposição de se arriscar muito maiores do que aquelas que os próprios ingleses teriam mostrado e
do que os alemães de fato mostraram na hora do teste.

Na realidade, uma das razões pelas quais o Goeben e seu companheiro tinham sido enviados a
cruzar o Mediterrâneo depois que foram lançados à água em 1912 era o fato de estarem preparados
para atacar os transportes franceses. No último momento, porém, a Alemanha descobriu que eles
tinham uma tarefa mais importante a desempenhar. No dia 3 de agosto, quando os alemães
perceberam a necessidade de aplicar a maior pressão possível sobre os turcos relutantes em declarar
guerra, o Almirante Souchon foi enviado a Consftentinopla.

j Souchon, um marinheiro de 50 anos, moreno, atarracado e fenordaz, içara sua bandeira a bordo do
Goeben em 1913. Desde então vinha navegando pelos mares interiores e pelos estreitos de seu novo
comando, percorrendo suas costas e seus cabos, rodeando suas ilhas, visitando seus portos,
familiarizando-se corn os lugares e as personalidades corn os quais teria que se preocupar em caso
de guerra. Ele estivera em Constantinopla e conhecera os turcos, trocara cortesias corn italianos,
gregos, austríacos e franceses - corn todos, exceto os ingleses, que, segundo ele relatou ao Kaiser,
recusavam-se terminantemente a permitir que seus navios ancorassem nos portos onde houvesse
navios alemães. Os ingleses tinham por hábito surgir logo depois, para apagar qualquer boa
impressão que os alemães pudessem ter causado, ou, como o Kaiser expressou elegantemente, ”para
cuspir na sopa”.

Quando ouviu, em Haifa, a notícia de Sarajevo, Souchon sentiu imediatamente a premonição da


guerra e ficou bastante preocupado corn suas caldeiras. Elas vinham perdendo vapor havia algum
tempo, e o Goeben na realidade estava marcado para ser substituído pelo Moltke em outubro e
retornar a Kiel para reparos. Decidindo preparar-se de imediato para o pior, Souchon telegrafou
para o Almirantado pedindo que fossem enviados para Pola a nova tubulação da caldeira e
especialistas para consertá-la, e partiu para lá. Trabalhou-se arduamente durante todo o mês de
julho. Todos os membros da tripulação que soubessem manejar uma ferramenta foram colocados
em serviço. Mesmo assim, o conserto não estava terminado quando Souchon recebeu seu telegrama
de advertência e deixou Pola, para ; não ficar preso no Adriático. ...-.- •••-.-•. •

163

3
No dia l2 de agosto ele chegou a Brindisi, no calcanhar da Itália, onde os italianos, pretextando que
o mar estava agitado demais para o navio-tênder, recusaram-lhe um suprimento de carvão -
obviamente a esperada traição italiana à Tríplice Aliança estava prestes a tornar-se um fato.
Souchon reuniu seus oficiais para escolher um curso de ação. As chances de ganhar o Atlântico
rompendo a malha Aliada, e de passagem infligir todo o dano possível aos transportes franceses,
dependeriam da sua velocidade, e esta dependeria das caldeiras.

- Quantas caldeiras estão perdendo vapor? - Souchon perguntou a seu ajudante-de-ordens.

- Duas, durante as últimas quatro horas.

-Maldição!-praguejou o Almirante, revoltado corn o destino que incapacitava seu esplêndido navio
num momento como esse.

Resolveu então seguir para Messina, onde conseguiria encontrar-se corn os navios-mercantes
alemães, de quem poderia obter carvão. Para o caso de uma guerra, a Alemanha tinha dividido os
mares do mundo num sistema de distritos, cada um sob um Oficial de Suprimento alemão corn
autoridade para enviar todos os navios em sua área para lugares onde os navios de guerra alemães
pudessem encontrá-los, e requisitar os recursos de empresas e casas bancárias alemãs para suprir
necessidades navais.

Durante todo o dia, enquanto o Goeben rodeava a bota italiana, seu rádio enviava ordens aos
vapores comerciais alemães, chamando-os a Messina. Em Taranto, o Breslau foi ao seu encontro.

”Urgente. Navio alemão Goeben em Taranto”, telegrafou o cônsul britânico no dia 2 de agosto.
Aquele grito de ”caça à vista!” provocou no Almirantado ardentes esperanças de uma primeira
vitória para a Marinha inglesa; localizar o inimigo era metade do sucesso. Porém, como a Inglaterra
ainda não estava em guerra, a caçada não podia começar.

Churchill, sempre alerta, no dia 31 de julho tinha instruído o Comandante da Esquadra do


Mediterrâneo, Almirante Sir Berkeley Milne, que sua primeira tarefa seria ajudar na proteção dos
transportes franceses, ”dando-lhes cobertura e se possível provocando a ação de cada navio rápido
alemão, particularmente o Goeben”. Ele lembrou a Milne que ”a velocidade de sua esquadra é
suficiente para permitir-lhe escolher o melhor momento”. Ao mesmo tempo, no entanto, e corn
certa ambivalência, dizia-lhe para ”economizar suas forças no início” e ”nesse estágio, não ser
levado a agir contra forças
superiores”. Essa última instrução seria como um sino de aviso de uma bóia soando
melancolicamente durante os acontecimentos dos dias seguintes.

Como o próprio Churchill explicou mais tarde, as ”forças superiores” a que se referia era a armada
austríaca. Seus encouraçados estavam para os Inflexibles britânicos assim como os encouraçados
franceses estavam para o Goeben, isto é, mais blindados e armados, porém mais lentos. Churchill
também explicou mais tarde que sua ordem não pretendia ser ”uma proibição de que os navios
ingleses lutassem contra forças superiores sempre que a ocasião assim o exigisse”. Se sua ordem
não pretendia ser uma proibição, então pretendia que os comandantes a interpretassem como
julgassem acertado, o que leva a questão àquele ponto de fusão de uma guerra - o temperamento
individual de cada comandante.

Quando se aproxima o momento de usar munição de verdade, o momento para o qual todo o seu
treinamento profissional foi dirigido, em que a vida dos homens sob seu comando, o desfecho do
combate, até mesmo o destino de uma campanha podem depender de sua decisão num dado
momento, o que acontece dentro do coração e das entranhas de um comandante? A alguns, a
ocasião torna destemidos, a outros, indecisos, a muitos, prudentes, a outros, paralisados e incapazes
de agir.

O Almirante Milne tornava-se cuidadoso. Um solteirão de 59 anos, figura respeitada em sociedade,


antigo Camareiro da Corte do Rei Edward VII e ainda íntimo da Corte, filho de um
AlmiranteComandante-de-Esquadra, neto e afilhado de outros almirantes, entusiasmado pescador e
caçador de cervos, Sir Archibald Berkeley Milne parecia ser, em 1911, a escolha natural para o
Comando do Mediterrâneo, o cargo mais em voga na Marinha inglesa, mesmo já não sendo o mais
importante. Ele recebeu o posto por nomeação do novo Chefe do Almirantado, o Sr. Churchill. Essa
nomeação foi prontamente combatida, embora em particular, pelo Almirante Lorã: Fisher, antigo
First Sea Lord, criador da frota Dreadnought, o inglês mais enérgico e vibrante e o menos lacônico
de seu tempo, para quem aquilo significava uma ”traição à Marinha”. Seu projeto favorito era a
nomeação do Almirante Jellicoe/o especialista da Marinha em armamentos, para
Comandante-em-Chefena guerra que, segundo ele próprio, estouraria em outubro de 1914.

Quando Churchill nomeou Milne para o Mediterrâneo, a raiva de Fisher foi imensa, pois aquela
nomeação colocaria Milne na fila

165
O Mediterrâneo
O 50 100 200

MILHAS
para o posto que Fisher almejava para Jellicoe. Fisher acusou Winston de ”sucumbir à influência da
Corte”; rugiu, esbravejou e entrou em erupção num ódio vulcânico a Mime, um ”comandante
inteiramente inútil”, e ”despreparado para ser o mais importante Almirante embarcado e
praticamente Almirantíssimo, como o senhor o fez agora”. Referia-se a Milne de várias maneiras:
”um criado grosseirão”, ”uma serpente do pior tipo” e ”Sir B. Mean37, que só compra jornal de
segunda-mão, por um centavo”. Nas cartas de Fisher - que sempre traziam a imperiosa advertência:
”Queime isto!”, felizmente ignorada por seus correspondentes -, tudo era exagerado e precisa ser
reduzido às devidas dimensões para que se possa tirar delas uma noção proporcional à realidade. O
Almirante Milne não era uma serpente do pior tipo, nem um Nelson; era, isso sim, um elemento
corriqueiro e insípido entre os militares veteranos. Quando Fisher descobriu que Milne na realidade
não estava sendo cogitado para Comandante-emChefe, voltou sua feroz atenção para outros
assuntos, deixando ”Sir B. Mean” em paz no Mediterrâneo.

Em junho de 1914, Milne também visitou Constantinopla, onde jantou corn o Sultão e seus
ministros e recebeu-os a bordo de sua nau capitania, sem se preocupar, tanto quanto os outros
ingleses, corn o possível papel da Turquia na estratégia no Mediterrâneo.

No dia l2 de agosto, depois de receber o primeiro aviso de Churchill, ele já reunira em Malta a sua
esquadra de três cruzadores de combate e a segunda esquadra de cruzadores blindados, cruzadores
ligeiros e destróieres, comandanda pelo Contra-Almirante Sir Ernest Troubridge. Nas primeiras
horas do dia 2 de agosto ele recebeu uma segunda ordem de Churchill dizendo: ”O Goeben deve ser
seguido por dois cruzadores blindados” e o Adriático ”observado”, presumivelmente contra o
aparecimento da armada austríaca.

A ordem específica de mandar dois cruzadores de combate atrás do Goeben obviamente


pressupunha um combate, mas Milne não a obedeceu. Em vez disso, enviou o Indomitable e o
Indefatigable corn a esquadra de Troubridge para observar o Adriático. Tendo sido informado de
que o Goeben fora visto aquela manhã na costa de Taranto dirigindo-se para o sudoeste, ele enviou
um único cruzador ligeiro, o Chatham, para vasculhar os estreitos de Messina, onde calculou que o
Goeben estaria e onde ele de fato estava. O Chatham partiu de Malta às

ll
37 Trocadilho intraduzívei. ”be mean”, de som parecido a ”B. Milne”, significa, entre outras jjjjj coisas, ”ser mesquinho”. (N. da T.)
17:00, atravessou os estreitos às 7:00 da manhã seguinte e informou que o Goeben não estava lá. A
busca fora feita corn atraso: o Almirante Souchon partira seis horas antes.

Ele chegara a Messina na tarde anterior, exatamente quando a Itália declarava sua neutralidade. Os
italianos novamente recusaramlhe carvão, mas ele conseguiu 2.000 toneladas de uma firma alemã
de navios mercantes. Para transportá-lo, requisitou um vapor mercante, o General, da linha alemã
da África oriental, depois de desembarcar seus passageiros e dar a cada um o preço de uma
passagem de trem para Nápoles. Como ainda não recebera qualquer ordem de seu Almirantado,
Souchon decidiu colocar-se numa posição em que poderia entrar em ação logo quedas hostilidades
começassem e antes que forças superiores pudessem impedi-lo. Em plena escuridão, à uma hora da
manhã do dia 3 de agosto, ele deixou Messina em direção à costa argelina, a oeste, onde pretendia
bombardear os portos de embarque franceses de Boné e Philippeville.

Nessa mesma hora Churchill iríãndava uma terceira ordem a Milne: ”a vigia na boca do
AdriáticQjieve ser mantida mas o Goeben é o seu objetivo. Siga-o aonde ele for, e esteja pronto
para agir quando a guerra for declarada, o que parece provável e iminente”. Ao receber essa ordem,
o Almirante Milne não sabia onde o Goeben estava, pois o Chatham o perdera. Ele calculava que o
Goeben estivesse indo para oeste, para atacar os transportes franceses, e, tendo recebido o aviso da
presença de um barco-carvoeiro alemão esperando em Majorca, concluiu que depois disso o
Goeben iria para Gibraltar e para mar aberto. Então retirou o Indomitable e o Indefatigable da vigia
no Adriático e mandou-os para o oeste, para caçar o Goeben. Durante todo o dia 3 de agosto, o
Goeben, navegando de Messina para o oeste, foi perseguido por seus caçadores a um dia de
distância.

Ao mesmo tempo, a Armada francesa navegava de Toulon para a África do Norte. Ela devia ter
saído um dia antes, mas no dia 2 de agosto ocorreu em Paris a queda trágica do Ministro da
Marinha, Dr. Gauthier, depois que se descobriu que ele se esquecera de mandar torpedeiros para o
Canal da Mancha. No tumulto que se seguiu, as ordens da Armada do Mediterrâneo ficaram
prejudicadas. O Ministro da Guerra, Messimy, foi tomado pela necessidade de apressar a chegada
do Corpo Colonial. Gauthier, tentando consertar seu lapso, saltou para o extremo oposto da
beligerância e propôs atacar o Goeben e o Breslau antes de uma declaração de guerra. ”Ele está
demasiadamente nervoso”, concluiu o Presidente Poincaré. Logo em seguida, o

169
Ministro da Marinha desafiou o Ministro da Guerra para um duelo. Depois de grandes esforços dos
colegas para separar e acalmar os combatentes, ele, aos prantos, abraçou Messimy e deixou-se
convencer a pedir demissão por motivo de saúde.

A incerteza dos franceses a respeito do papel da Inglaterra, que ainda não tinha sido explicado,
complicava ainda mais as coisas. As
16:00 o Gabinete conseguiu compor um telegrama mais ou menos coerente para o
Comandante-em-Chefe francês, Almirante Boué de Lapeyrère, informando que o Goeben e o
Breslau tinham sido avistados em Brindisi e que ele deveria ”detê-los” assim que recebesse o sinal
para a abertura das hostilidades; além disso, teria que proteger os transportes dando-lhes cobertura,
não em comboio.

O Almirante Lapeyrère, um homem de personalidade forte, o grande responsável por tirar a


Marinha francesa de sua enferrujada obsolescência, decidiu prontamente formar comboios de
qualquer maneira, pois, em sua opinião, o papel ”duvidoso” da Inglaterra não lhe deixava outra
escolha. Acendeu imediatamente as fornalhas e partiu às 4:00 da madrugada seguinte, poucas horas
depois de Souchon deixar Messina. Durante as 24 horas seguintes, as três esquadras da Armada
francesa navegaram para o sul, em direção a Oran, Argel e Phillipeville, enquanto o Goeben e o
Breslau vinham para oeste corn o mesmo destino.

Às 6 da tarde de 3 de agosto, o rádio do Almirante Souchon informou que a Alemanha declarara


guerra à França. Ele apressou o passo, assim como os franceses, mas sua velocidade era maior. As
2:00 da madrugada de 4 de agosto ele estava se aproximando de seu objetivo e do momento
culminante de abrir fogo, quando recebeu a ordem do Almirante Tirpitz para ”seguir imediatamente
para Constantinopla”. Relutando em voltar sem ”saborear o momento de fogo tão ardentemente
desejado por nós todos!”, conforme ele próprio escreveu, manteve o curso até avistar a costa
argelina à luz do início da manhã. Então içou a bandeira russa, aproximou-se e abriu fogo,
”semeando a morte e o pavor”. Um membro da tripulação, que mais tarde publicou um relato da
viagem, escreveu: ”Nosso truque teve um sucesso fulminante”.

Segundo o Kriegsbrauch, o Manual de Conduta de Guerra publicado pelo Estado-maior alemão,


”Vestir fardas inimigas e usar bandeiras e insígnias inimigas ou neutras para fins de camuflagem
são procedimentos considerados permissíveis”. Como personificação ofi-
170 ciai do pensamento alemão sobre essas questões, o Kriegsbrauch se
sobrepunha à assinatura da Alemanha na Convenção de Haia, cujo Artigo 23 proibia o uso de
disfarces em cores inimigas.

Depois de bombardear Philippeville, e depois que o Breslau bombardeou Boné, o Almirante


Souchon voltou para Messina pelo mesmo caminho. Planejava abastecer-se ali de carvão dos navios
mercantes alemães antes de seguir para Constantinopla, a quase 2.000 quilômetros de distância.

O Almirante Lapeyrère, informado do bombardeio pelo rádio quase no instante em que ele
acontecia, imaginou que o Goeben continuaria para o oeste, talvez para atacar Argel a caminho do
Atlântico. Ele forçou a velocidade, na esperança de interceptar o inimigo ”se ele se apresentasse”.
Não destacou navio algum para procurar o Goeben porque, segundo seu raciocínio, se o inimigo
aparecesse, seria atacado; se não aparecesse, não era caso de preocupação imediata. Como todos no
lado Aliado, o Almirante Lapeyrère pensava no Goeben puramente em termos deestratégia naval.
Nem ele, nem qualquer outra pessoa jamais penso^i que o Goeben pudesse vir a desempenhar uma
missão política que afetaria profundamente - e prolongaria - o curso da guerra. Como o Goeben e o
Breslau não aparecessem no caminho dos franceses, o Almirante Lapeyrère não os procurou. Assim
perdeu-se a primeira oportunidade, no dia 4 de agosto. Outra foi oferecida logo depois.

Às 9:30 daquela manhã, o Indomitable e-o Indefatigable, que durante toda a noite tinham navegado
para o oeste, depararam corn o Goeben e o Breslau em frente a Boné, quando os navios alemães se
dirigiam para o leste de volta a Messina. Se Grey tivesse mandado o ultimato à Alemanha na noite
anterior, logo depois de seu discurso no Parlamento, a Inglaterra e a Alemanha estariam em guerra,
e os canhões dos cruzadores teriam roncado. Mas naquelas circunstâncias os navios passaram uns
pelos outrc*”em silêncio, a 2.500 metros de distância, portanto dentro do alcance das armas, e
tiveram que contentar-se em apontar os canhões e omitir a costumeira troca de saudações.

O Almirante Souchon, disposto a colocar a maior distância possível entre ele e os ingleses antes que
as hostilidades começassem, seguiu a toda pressa, forçando seu navio a atingir a maior velocidade
que as caldeiras podiam obter. O Indomitable e o Indefatigable fizeram meia-volta e partiram atrás
dele, decididos a mantê-lo sob mira até que a guerra fosse declarada. Seu rádio, como a cometa de
um caçador anunciando ter encontrado a caça, enviou a posição ao Almirante

itt
Milne, que imediatamente informou o Almirantado: ”Indomitable e Indefatigable seguindo Goeben
e Breslau, 37.M Norte, 7.56 Leste”.

O Almirantado sofreu agonias de frustração. Ali, nas mesmas águas que banhavam o Cabo
Trafalgar, navios ingleses tinham o inimigo sob mira e não podiam atirar. ”Muito bem. Não os
percam. Guerra iminente”, telegrafou Churchill, e enviou uma minuta ”urgentíssima” ao
Primeiro-Ministro e a Grey sugerindo que, se o Goeben atacasse os transportes franceses, os
cruzadores de Milne fossem autorizados ”a dar-lhe combate imediato”. Infelizmente, quando o
Almirante Milne revelou a posição do Goeben e do Breslau, esqueceuse de mencionar a direção que
eles seguiam, e Churchill imaginara que os navios alemãos iam para o oeste corn intenções
malévolas contra os franceses.

Segundo Asquith, ”Winston, corn sua pintura de guerra, anseia por uma batalha naval para afundar
o Goeben”. Asquith estava disposto a deixar que Winston tivesse sua batalha naval, mas o
Gabinete, a quem ele infelizmente mencionou o assunto, recusou-se a autorizar um ato de guerra
antes que o ultimato expirasse, à meia-noite. Assim perdeu-se a segunda oportunidade - embora ela
estivesse perdida de qualquer maneira, porque a ordem de Churchill dependia de que o Goeben
atacasse os transportes franceses, um objetivo ao qual o navio alemão já tinha renunciado.

Agora se iniciava uma caçada desesperada através do tranqüilo mar de verão, corn o Almirante
Souchon tentando ganhar distância de seus perseguidores e os ingleses tentando mantê-lo dentro do
seu alcance até a meia-noite. Forçando ao máximo o seu navio, Souchon levou-o a fazer até 24 nós.
Os marinheiros que alimentavam as caldeiras, e que, por causa do calor e da poeira de carvão, não
conseguiam trabalhar mais de duas horas de cada vez, eram mantidos no trabalho enquanto os tubos
que explodiam queimavam-nos corn o vapor. Quatro deles morreram entre a manhã e a noite,
enquanto a velocidade era mantida.

Devagar, mas perceptívelmente, o espaço entre a presa e seus perseguidores aumentou. O


Indomitable e o Indefatigable, também sofrendo problemas nas caldeiras e corn pessoal insuficiente
nas fornalhas, não conseguiam manter o ritmo. À tarde, o cruzador ligeiro Dublin, comandado pelo
Capitão John Kelly, veio juntar-se à longa e silenciosa perseguição. À medida que as horas
passavam, a distância entre eles aumentava, até que, às 17:00, o Goeben saiu do alcance das armas
do Indomitable e do Indefatigable. Apenas o Dublin continuou a
l
caçada, mantendo o Goeben ao alcance da vista. Às 19:00 sobreveio uma neblina. Às 21:00, diante
do Cabo San Vito, no litoral norte da Sicília, o Goeben e o Breslau desapareceram na crescente
escuridão.

Durante todo aquele dia, no Almirantado, Churchill e a sua equipe ”sofreram o suplício de
Tântalo”38. Às 17:00, o First Sea Lord, Príncipe Louis de Battenberg, observou que ainda havia
tempo de afundar o Goeben antes do escurecer. Tolhido pela decisão do Gabinete, Churchill não
podia dar a ordem. Enquanto os ingleses esperavam que soasse a meia-noite, o Goeben alcançou
Messina e o suprimento de carvão. /

Quando o dia nasceu, os ingleses, agora em guerra e livres para atirar, não conseguiram alcançá-lo.
Pelo último relatório do Dublin antes que o contato fosse perdido, eles calcularam que o Goeben
estivesse em Messina, mas nesse ínterim surgira um novo obstáculo: uma ordem do Almirantado
informando Milne da declaração de neutralidade da Itália instruía-o a ”respeitar rigidamente a
neutralidade e não permitir que um navio chegue? a menos de dez quilômetros da costa italiana”. A
proibição, que tinha como objetivo impedir que um ”incidente tolo” causasse problemas corn a
Itália, era talvez excessivamente cautelosa.

Proibido pelo limite de dez quilômetros de entrar nos Estreitos de Messina, o Almirante Milne
colocou vigias em ambas as saídas. Como estava convencido de que o Goeben partiria novamente
para o oeste, ele próprio, em sua nau capitania Inflexible, vigiava a saída ocidental para o
Mediterrâneo, juntamente corn o Indefatigable, enquanto um único cruzador ligeiro, o Gloucester,
comandado pelo Capitão Howard Kelly (irmão do comandante do Dublin), foi enviado a vigiar a
saída oriental para o Mediterrâneo39. Também porque desejava concentrar sua força no oeste, o
Almirante Milne mandou o Indomitable abastecer-se de carvão em Bizerte, ali perto, e não em
Malta, mais ao leste. Assim, nenhum dós três cruzadores blindados estava em local onde pudesse
interceptar o Goeben se este fosse para o leste.

38 T&ntalo: na mitologia grega, um rei, filho de Zeus, cujo castigo por ter roubado as iguarias dos deuses
para dá-las aos homens foi morrer de fome e sede, estando imerso em água que se afastava quando ele
tentava beber e sob árvores que erguiam os galhos quando ele tentava colher i seus frutos. (N. da T.)

39 Os Estreitos de Messina correm de norte para sul, sendo que a saída norte dá para o *.;
Mediterrâneo ocidental e a saída sul dá para o Mediterrâneo oriental Para maior clareza do texto, essas
saídas são chamadas respectivamente de saída ocidental e saída oriental. (Nota da Autora) : • 173
Durante dois dias, 5 e 6 de agosto, Milne patrulhou as águas a oeste da Sicília corn a idéia fixa de
que o Goeben pretendia sair naquela direção. O Almirantado, que também não conseguia pensar em
outro curso de ação para o Goeben senão irromper por Gibraltar ou abrigarse em Pola, não
desaprovou sua decisão.

Durante esses dois dias, até a noite de 6 de agosto, o Almirante Souchon enfrentou dificuldades para
abastecer-se de carvão em Messina. Baseados nas leis de neutralidade, os italianos insistiam que ele
permanecesse apenas 24 horas. O carvão tinha que ser transferido dos navios mercantes alemães,
cujos conveses tiveram que ser arrancados e as amuradas derrubadas para possibilitar a
transferência; o abastecimento levaria três vezes mais tempo do que o comum. Enquanto o
Almirante debatia minúcias legais corn as autoridades portuárias, todos os homens da sua tripulação
carregavam carvão.

Embora animados por rações extras de cerveja, banda de música e discursos patrióticos feitos pelos
oficiais, os homens desmaiavam sem cessar, pelo esforço no calor de agosto, e finalmente havia
corpos ’ escurecidos e encharcados de suor caídos por todo o navio, como cadáveres. Ao meio-dia
de 6 de agosto, quando 1.500 toneladas tinham sido transferidas para o Goeben - não o suficiente
para chegar aos Dardanelos -, não restava pessoa alguma apta para mais algum esforço. ”corn o
coração pesado”, o Almirante Souchon ordenou a interrupção do carregamento, um descanso para
todos e que estivesv sem preparados para a partida às 17:00.

Em Messina ele recebera duas mensagens que aumentavam sua aflição e exigiam uma decisão
crítica. A ordem de Tirpitz de seguir para Constantinopla foi subitamente cancelada por um
telegrama dizendo: ”Por motivos políticos entrada em Constantinopla desaconselha vel presente
momento”. Essa mudança foi causada pelo desacordo entre os líderes no governo turco. Enver dera
ao embaixador alemão permissão para que o Goeben e o Breslau passassem pelos trechos minados
que protegiam os Dardanelos; como isso seria uma violação flagrante da neutralidade que a Turquia
ainda mantinha publicamente, o Grão-Vizire outros ministros insistiram que a permissão fosse
retirada.

A segunda mensagem de Tirptiz informava Souchon que os austríacos não poderiam dar apoio
naval à Alemanha no Mediterrâneo e deixava ao próprio Souchon a escolha do rumo a seguir.

Souchon sabia que suas caldeiras não poderiam dar-lhe a velo-


174 cidade necessária para atravessar a densa rede inimiga numa ar-
l
remetida em direção a Gibraltar. Revoltava-se por ter que se abrigar em Pola, ficando na
dependência dos austríacos. Decidiu então seguir para Constantinopla, apesar das ordens em
contrário. Seu propósito, em suas próprias palavras, era bem claro: ”Forçar os turcos, mesmo contra
sua vontade, a levar a guerra até o Mar Negro contra seu velho inimigo, a Rússia”.

Ele ordenou que houvesse vapor suficiente para partirem às


17:00. Todos a bordo e na praia sabiam que o Goeben e o Breslau preparavam-se para enfrentar
possibilidades mínimas de sucesso. Durante todo o dia, sicilianos excitados Enchiam o porto
vendendo cartões-postais e últimas lembranças àqueles homens ”prestes a morrer” e os jornais
publicaram edições extras corn manchetes: ”Nas Garras da Morte”, ”Vergonha ou Derrota?”,
”Viagem para a Morte ou para a Glória?”

Calculando que seria perseguido, o Almirante Souchon escolheu deliberadamente partir enquanto
ainda estava claro, para que pudesse ser visto rumando para o norte como se fosse para o Adriático.
Pretendia mudar de rumo quando a.ní>ite caísse, em direção ao sudeste, e fugir à perseguição sob a
capa da escuridão. Como lhe faltasse carvão suficiente para a viagem completa, tudo dependeria de
ser capaz de, sem ser visto, encontrar-se corn um navio-carvoeiro que recebera ordens de esperá-lo
em frente ao Cabo Malea, na ponta sudeste da Grécia.

Quando o Goeben e o Breslau surgiram pela saída oriental dos Estreitos de Messina, foram
imediatamente avistados e seguidos pelo Gloucester, que patrulhava do lado de fora. Como o
Gloucester eqüivalia ao Breslau mas poderia ser destruído pelos canhões pesados do Goeben a
16.500 metros, tudo que ele pôde fazer foi manter o inimigo à vista até surgirem reforços. O
Capitão Kelly telegrafou posição e curso ao Almirante Milne, que ainda-estava em patrulha a oeste
da Sicília corn todos os três cruzadores blindados, e pôs-se a seguir o Goeben pelo lado do mar.
Quando a noite caiu, por volta das 20:00, ele mudou o curso, tomando a direção da terra, para ficar
à esquerda do Goeben e mantê-lo iluminado pela luz da lua que nascia à sua direita. Essa manobra
colocou-o ao alcance dos alemães, que não se sentiram tentados a atirar. Na noite clara, as duas
silhuetas escuras, seguidas por uma terceira, dirigiram-se para o norte; devido à qualidade inferior
do carvão embarcado em Messina, as chaminés soltavam nuvens negras que obscureciam o luar e os
tornavam visíveis à distância. •

175
Ao ser informado de que o Goeben tinha deixado Messina pela saída oriental, o Almirante Mime
ficou onde estava, calculando que se o Goeben continuasse naquele curso seria interceptado pela
esquadra do Almirante Troubridge, que vigiava o Adriático. Se, como ele se inclinava a crer, aquele
curso era um truque e o Goeben afinal tomasse o rumo oeste, sua própria esquadra de cruzadores
blindados o interceptaria. Nenhuma outra possibilidade lhe ocorria. Um único navio, o cruzador
ligeiro Dublin, foi enviado para leste corn ordens de juntar-se à esquadra de Troubridge.

Souchon, enquanto isso, sem conseguir despistar o Gloucester, não podia mais seguir um rumo
falso, se pretendia alcançar o Mar Egeu corn o carvão que tinha; perseguido ou não, teria que alterar
o curso para leste. Às dez da noite ele fez a volta, ao mesmo tempo em que ocupava todo o
comprimento de onda do Gloucester para impedir que sua mudança de curso fosse informada. Não
teve sucesso: a mensagem do Capitão Kelly informando a mudança de curso chegou a Milne e a
Troubridge por volta da meia-noite. Milne então partiu para Malta, onde pretendia se abastecer e
”continuar a perseguição”. Agora o inimigo ia em direção a Troubridge, a quem cabia interceptá-lo.

Troubridge tomara posição na entrada do Adriático corn ordens de ”impedir que os austríacos saiam
e que os alemães entrem”. Pelo rumo do Goeben, era óbvio que ele se afastava do Adriático, mas
Troubridge constatou que se partisse imediatamente para o sul conseguiria alcançá-lo. Poderia,
porém, ter esperanças de atacá-lo em circunstâncias que lhe permitissem uma esperança de vitória?
Seu esquadrão consistia em quatro cruzadores blindados - o Defence, o Black Prince, o Warrior e o
Duke of Edinburgh -, todos de 14.000 toneladas, corn canhões de 9,2” cujo alcance era
consideravelmente menor do que o alcance dos canhões de 11” do Goeben. A ordem original do
Almirantado, que seu superior, o Almirante Milne, lhe transmitira em forma de instrução, impedia
que ele agisse ”contra forças superiores”.

Não recebendo outras ordens de Milne, Troubridge resolveu que tentaria interceptar o inimigo, se
pudesse fazer isso antes das 6:00, quando a primeira luz do amanhecer a leste dar-lhe-ia visibilidade
favorável e ajudaria a diminuir a desvantagem do alcance das armas. Logo depois da meia-noite ele
partiu a toda velocidade para o sul; quatro horas mais tarde, mudou de idéia.

Como Adido Naval corn os japoneses durante a guerra russo-ja-


176 ponesa, Troubridge aprendera a respeitar a eficiência dos tiros de
l
longo alcance. Além de apresentar uma linhagem correta, corn um bisavô que lutara corn Nelson no
Nilo, e a reputação de ser ”o oficial mais bonito da Marinha, em seus dias de rapaz”, ele acreditava
”na habilidade náutica como um soldado de Cromwell acreditava na Bíblia”. Churchill tinha por ele
consideração suficiente para nomeá-lo para o recém-criado Staffde Guerra Naval, em 1912. Mas a
habilidade náutica e um excelente trabalho burocrático não ajudam necessariamente um
comandante quando ele enfrenta um combate iminente e mortal.

Por volta das 4:00 da madrugada, Troubridge ainda não tinha encontrado o Goeben; decidiu então
que não poderia mais ter esperanças de enfrentá-lo em circunstâncias favoráveis. Acreditava que o
Goeben, se interceptado à luz do dia, poderia manter-se fora do seu alcance e afundar seus quatro
cruzadores. Troubridge, evidentemente, via pouca chance de seus quatro cruzadores e oito
destróieres atingirem o Goeben corn canhões ou torpedos antes que este aniquilasse a sua esquadra.
Concluiu, portanto, que o Gaében era a ”força superior” que o Almirantado lhe instruíra a náo^
erifrentar. Interrompeu a perseguição, informou Milne disso por rádio e, depois de navegar em
frente à costa da ilha de Zante até as 10:00, ainda corn esperança de ver surgir um dos cruzadores
blindados de Milne, entrou no porto de Zante para preparar-se para retomar sua posição no
Adriático vigiando os austríacos. Assim se perdeu uma terceira oportunidade, e o Goeben, corn sua
tremenda carga - o destino -, seguiu seu caminho.

Às 5:30 da manhã, Milne, ainda imaginando que o Goeben tencionava virar novamente para oeste,
sinalizou para o Gloucester ”cair gradualmente para a popa para evitar a captura”. Até então, nem
ele, nem o Almirantado pensavam no Goeben como um navio em fuga muito mais ansioso em
escapar ao combate do que em procurá-lo e usando toda a sua capacidade e toda a-eua velocidade
para alcançar seu objetivo distante. Pelo contrário: os ingleses, impressionados corn o ataque a
Phillipeville e sob o efeito dos anos de temor crescente à Marinha alemã, pensavam no Goeben
como um corsário pronto a varrer os mares e deitar suas garras nos navios mercantes. Esperavam
acuá-lo de algum modo, mas sua perseguição carecia de urgência, pois, sempre esperando que ela
fizesse meia-volta, não perceberam que ele estava tentando escapar para o oriente - mais
especificamente, para os Dardanelos.

A falha dos ingleses foi mais política do que naval. ”Não consigo pensar numa grande esfera
política sobre a qual o Governo britânico

W
estivesse mais desinformado do que a Turquia”, Churchill admitiu melancolicamente, muito tempo
depois. Essa condição tinha raízes na aversão básica dos Liberais pelos turcos.

Já era dia claro, 7 de agosto. Apenas o Gloucester, ignorando a iai ordem de Milne, continuava
seguindo o Goeben, que, juntamente corn o Breslau, se aproximava da costa da Grécia. O
Almirante Souchon, que não poderia encontrar-se corn o navio-carvoeiro à vista do inimigo, ficou
desesperado para livrar-se de seu seguidor. Ordenou ao Breslau que ficasse para trás e, passando de
um lado para outro diante do Gloucester, tentasse fazê-lo crer que estava colocando minas, além de
outras táticas para intimidá-lo.

O Capitão Kelly, ainda esperando reforços, por sua vez também estava desesperado para atrasar o
Goeben. Quando o Breslau ficou para trás para intimidá-lo, ele decidiu atacar o navio alemão - sem
levar em consideração tratar-se ou não de uma ”força superior” - corn a intenção de forçar o
Goeben a fazer meia-volta para protegê-lo. No melhor estilo ”danem-se os torpedos”, ele abriu
fogo, que foi respondido pelo Breslau. Como era de se esperar, o Goeben fez meia-volta e também
abriu fogo. Ninguém acertou o alvo. Um pequeno vapor de passageiros italiano, que ia de Veneza
para Constantinopla e estava passando naquela ocasião, testemunhou o embate. O Capitão Kelly fez
cessar o ataque ao Breslau e ficou para trás. O Almirante Souchon, que não estava em condições de
gastar seu precioso carvão numa perseguição, retomou seu curso. O Capitão Kelly continuou a
segui-lo.

Por mais três horas ele manteve o Goeben à vista, até que Milne sinalizou uma proibição
peremptória de continuar a perseguição depois do Cabo Matapan, na ponta da Grécia. Às 16:30,
quando o Goeben rodeava o Cabo para entrar no Mar Egeu, o Gloucester finalmente desistiu. Livre
da vigilância, o Almirante Souchon desapareceu entre as ilhas gregas para encontrar-se corn o
navio-carvoeiro.

Mais ou menos oito horas mais tarde, pouco depois da meia-noite, tendo abastecido e realizado
alguns reparos, o Almirante Milne, corn o Inflexible, o Indomitable e o Indefatigable e o cruzador
ligeiro Weymouth, deixou Malta em direção ao leste. Seguindo a doze nós, talvez por achar que
andar mais depressa naquele estágio seria desperdiçar combustível, sua perseguição foi feita sem
pressa. Às 14:00 da tarde seguinte, 8 de agosto, quando ele estava a meio caminho entre Malta e a
Grécia, parou subitamente, ao receber do Almirantado ill a informação de que a Áustria entrara na
guerra.
Infelizmente aquela informação era falsa - um funcionário enviou por engano o telegrama em
código previamente combinado se a Áustria entrasse na guerra. Mas foi o bastante para fazer Milne
abandonar a perseguição e tomar posição num local onde um possível aparecimento da armada
austríaca não pudesse cortar seu caminho de volta a Malta. Ordenou também que a esquadra de
Troubridge e o Gloucester fossem juntar-se a ele-mais uma oportunidade perdida.

Ficaram concentrados ali por quase 24 horas, até as 12:00 do dia seguinte, quando, informado pelo
constrangido Almirantado de que a Áustria não era beligerante, o Almirante Milne novamente
retomou a caçada. A essa altura, não se tinha notícias do Goeben havia mais de
40 horas, desde que ele fora visto entrando no Mar Egeu na tarde de
7 de agosto. Tentando resolver em que direção procurar, o Almirante Milne, segundo seu próprio
relato posterior, estudou cursos que o Goeben poderia ter adotado. Ainda achava que o navio
alemão poderia tentar escapar para o Atlântico, a oeste, ou poderia seguir para o sul para atacar o
Canal de Suez, ou poderia procurar refúgio num porto grego, ou até mesmo atacar Salonica - duas
suposições bastante exóticas, levando-se em conta que a Grécia era neutra. Por um motivo qualquer,
o Almirante Milne não atribuía ao Almirante Souchon a intenção de violar a neutralidade turca, mas
não lhe ocorreu tampouco ocorreu ao Almirantado-que o destino do navio inimigo fosse os
Dardanelos. A sua estratégia era manter,o Goeben encurralado no Mar Egeu ”para o norte”.

”Para o norte” era, sem dúvida, exatamente onde Souchon estava indo; porém, como os turcos
tinham minado a entrada dos Estreitos, ele não poderia entrar sem a permissão deles. Não poderia
avançar mais até ter se abastecido e se comunicado corn Constantinopla. Seu navio-carvoeiro, o
Bogadir, estava esperando no Cabo Maleas, como ordenado, disfarçado dg. navio grego. Temendo
ser descoberto, Souchon ordenou que o Bogadir fosse para Denusa, uma ilha mais para o interior do
Mar Egeu. Sem saber que a perseguição inglesa tinha sido interrompida, ele ficou parado durante o
dia 8 de agosto e somente na manhã do dia 9 esgueirou-se para a costa deserta de Denusa. Ali,
durante todo o dia o Goeben e o Breslau abasteceram-se de carvão, enquando suas caldeiras
mantinham o vapor sob pressão, para que pudessem partir corn meia hora de preparativos. Um
posto de sentinela foi montado no topo de uma colina para vigiar a aproximação dos ingleses, que
estavam então a 800 quilômetros de distância, vigiando os austríacos.

m
O Almirante Souchon não ousava usar seu rádio para comunicar-se corn Constantínopla, porque um
sinal forte bastante para cobrir aquela distância iria também trair sua posição ao inimigo. Ordenou
então que o General, que o seguia desde Messina numa rota mais ao sul, fosse para Esmirna e de lá
transmitisse uma mensagem para o Adido Naval alemão em Constantínopla: ”Necessidade militar
indispensável obriga ataque a inimigo no Mar Negro. Faça tudo necessário para minha imediata
passagem através Estreitos, se possível corn permissão do Governo turco, sem aprovação formal se
necessário”.

Durante todo o dia 9 de agosto Souchon esperou a resposta. Em certo momento, os operadores de
rádio captaram um texto truncado cujo significado não se conseguiu decifrar. A noite chegou sem
uma resposta. A essa altura, a esquadra de Milne, tendo descoberto o equívoco sobre a Áustria,
avançava novamente em direção ao Mar Egeu. Souchon decidiu que, se não chegasse uma resposta,
forçaria, se necessário, a passagem pelos Dardanelos. Às 15:00 do dia 10 de agosto ele ouviu pelo
rádio os sinais da esquadra britânica entrando no Mar Egeu; não poderia esperar mais. Exatamente
então, uma série diferente de zumbidos sincopados chegou pelos fones. Era o General, finalmente,
transmitindo a mensagem oracular: ”Entre. Exija rendição dos fortes. Capture piloto”.

Sem saber se isso significava fazer uma demonstração de força para fornecer um pretexto para a
obediência do governo turco ou se teria que forçar mesmo sua passagem, Souchon deixou Denusa
ao amanhecer. Enquanto ele passou todo o dia navegando para o norte a 18 nós, o Almirante Milne
passou todo o dia navegando de um lado para o outro na saída do Mar Egeu para impedi-lo de sair.
Às 16:00 daquela tarde, Souchon avistou Tenedos e as planícies de Tróia; às
17:00, chegou à entrada da passagem histórica e inexpugnável sob os canhões da fortaleza de
Chanak. corn toda a tripulação em posição de combate e todos os nervos a bordo tensos em
suspense, ele aproximou-se devagar. A bandeira de sinalização ”Envie um piloto” tremulava em seu
mastro. J

Naquela mesma manhã, chegara a Constantinopla o pequeno vapor de passageiros italiano que
testemunhara a ação do Gloucester contra o Goeben e o Breslau. Entre os passageiros estavam a
filha, o genro e os três netos do Embaixador americano, Sr. Henry Morghentau, levando consigo um
relato excitante do estrondo dos canhões, iso das nuvenzinhas de fumaça branca e das voltas e
manobras dos
navios distantes. O capitão italiano contara-lhes que dois dos navios eram o Goeben e o Breslau,
que acabavam de fazer sua famosa saída de Messina. O Sr. Morghentau, que algumas horas mais
tarde teve ocasião de encontrar o Embaixador Wangenheim, mencionou-lhe o relato da filha, pelo
qual Wangenheim mostrou ”um interesse agitado”. Imediatamente após o jantar, ele apareceu na
Embaixada Americana acompanhado de seu colega austríaco. i

Os dois Embaixadores ”plantaram-se solenemente” diante da i filha do Sr. Morghentau e


”submeteram-na a um interrogatório mi- | nuciosíssimo, embora delicado. (...) Não permitiram que
ela omitisse | um único detalhe; queriam saber quantos tiros tinham sido dis- l parados, que direção
tinham tomado os navios alemães, quais tinham l sido os comentários dos passageiros de seu navio
e assim por diante. i (...) Foram embora muito contentes”. f

Ela lhes revelou que o Goeben e o Breslau tinham escapado da | Armada inglesa; faltava, então,
obter o consentimento turco para que eles atravessassem os Dardanelos. Enver Pasha, que, como
Ministro I da Guerra, controlava os campos minados, estava mais,do que dis- P posto a permitir,
mas tinha que fazer um jogo complicado corn seus I colegas mais nervosos. Um membro da Missão
Militar alemã estava | corn ele quando, naquela mesma tarde, outro membro, o Tenente-Co- i ronel
Von Kress, fez anunciar sua visita urgente. Von Kress contou que o comandante da fortaleza de
Chanak informara que o Goeben e m o Breslau solicitavam permissão para entrar nos Estreitos; o
coman- l dante do forte pedia instruções imediatas. Enver respondeu que não l poderia dar a
permissão sem consultar o Grão-Vizir; Kress insistiu em l uma resposta imediata. Enver ficou
vários minutos em silêncio, de- l pois disse abruptamente: i

- Terão permissão para entrar. 8 Kress e o outro oficial, que estavam inconscientemente prenden-
l

do a respiração, tornaram a respirar corn alívio. •

- Se os navios de guerra ingleses os seguirem, devem ser i atacados? - Kress perguntou em


seguida. i

Enver novamente recusou-se a responder, alegando que o Gabinete tinha que ser consultado, mas
Kress insistiu, alegando que o comandante da fortaleza não podia ficar sem instruções definidas.

- Os ingleses serão atacados ou não? - quis saber. Enver finalmente respondeu:

- Sim.

A 240 quilômetros dali, na entrada dos Estreitos, um destróier turco saiu do porto e aproximou-se
do Goeben, observado em tensa jgi
ansiedade por todos os olhos a bordo. Uma bandeira de sinalização tremulou brevemente e foi
identificada como ”Siga-me”.

Às 21:00 daquela noite de 10 de agosto, o Goeben e o Breslau entraram nos Dardanelos, trazendo,
segundo Churchill reconheceu corn tristeza muito tempo depois, ”mais chacina, mais sofrimento e
mais destruição do que jamais esteve ao alcance de um navio”.

As notícias, imediatamente telegrafadas para o mundo inteiro, chegaram a Malta naquela noite. O
Almirante Mime, ainda vasculhando as ilhas do Mar Egeu, recebeu-as no dia seguinte, ao meio-dia.
Seus superiores compreendiam tão pouco a missão do Goeben que instruíram o Almirante a
estabelecer um bloqueio na boca dos Dardanelos ”caso os navios alemães saiam por lá”.

O Primeiro-Ministro Asquith comentou a notícia dizendo que era ”interessante”. E escreveu em seu
diário: ”Porém, como insistiremos que a tripulação do Goeben seja substituída por turcos, que não
conseguirão navegá-lo, isso não importa muito.” Asquith julgava que ”insistir” era todo o
necessário.

Os embaixadores aliados puseram-se imediatamente a insistir, furiosa e repetidamente. Os turcos,


ainda esperando agarrar-se à neutralidade como um fator de negociação, resolveram pedir aos
alemães que desarmassem o Goeben e o Breslau ”apenas temporária e superficialmente”, mas
Wangenheim, chamado a ouvir essa proposta, recusou-a terminantemente. Depois de muita
discussão, um ministro sugeriu de súbito:

- Os alemães não podem ter-nos vendido esses navios? A chegada deles não pode ser considerada
uma entrega sob contrato?

Todos ficaram entusiasmados corn essa idéia, que não apenas resolvia um dilema mas impunha aos
ingleses uma justiça poética pelo confisco dos dois navios de combate turcos. corn o consentimento
da Alemanha, a venda foi anunciada ao corpo diplomático e pouco depois o Goeben e o Breslau,
rebatizados de Jawus e Midilli, usando a bandeira turca e corn as tripulações usando o tradicional
fez turco, foram passados em revista pelo Sultão em meio a grande entusiasmo popular. A presença
repentina de dois navios de guerra alemães, como se enviados magicamente para tomar o lugar dos
dois que lhes tinham sido roubados, deixou o povo doido de alegria e concedeu aos alemães uma
aura de popularidade.

Os turcos continuavam adiando a declaração de guerra à Rússia

>, que os alemães insistiam que fosse feita. Em vez disso, puseram-se a

exigir dos Aliados um preço cada vez maior pela sua neutralidade. A

182 Rússia ficou de tal maneira preocupada corn a chegada do Goeben à

i.
porta do Mar Negro que, Corno o pecador que na hora de morrer renuncia a uma vida inteira de
maus hábitos, estava disposta até mesmo a renunciar a Constantínopla. No dia 13 de agosto, o
Ministro do Exterior, Sazonov propôs à França oferecer à Turquia uma garantia solene de sua
integridade territorial e a promessa de ”grandes vantagens financeiras às expensas da Alemanha”
em troca da sua neutralidade. Estava disposto até mesmo a incluir a promessa de que a Rússia
manteria a garantia ”mesmo se formos vitoriosos”.

Os franceses concordaram e ”moveram céus e terras”, nas palavras do Presidente Poincaré, para
manter a Turquia sossegada e neutra e para convencer os ingleses a participarem de uma garantia
conjunta do território turco. Mas os ingleses não estavam dispostos a barganhar ou pagar pela
neutralidade da sua antiga protegida. Churchill, num de seus momentos ”mais belicosos” e
”violentamente anti-Turquia”, propôs ao Conselho enviar uma frota de torpedeiros para atravessar
os Dardanelos e afundar o Goeben e o Breslau.

Seria o único gesto que teria funcionado corn os indecisos turcos e que poderia ter impedido o que
aconteceu posteriormente. Uma das mentes mais aguçadas e corajosas da França já havia\sugerido
isso no dia em que os Estreitos foram violados. ”Devíamos entrar atrás deles”, dissera o General
Gallieni. ”Caso contrário, a Turquia ficará contra nós”. No Gabinete britânico a idéia de Churchill
foi vetada por Lord Kitchener, que afirmou que a Inglaterra não se achava em condição de hostilizar
os mulçumanos tomando a ofensiva contra a Turquia. À Turquia deveria caber ”desferir o primeiro
golpe”.

Durante quase três meses, enquanto os Aliados alternadamente vociferavam e pechinchavam e a


influência militar alemã em Constantinopla crescia dia a dia, os grupos dentro do Governo turco
discutiam e hesitavam. No final de outubro a Alemanha determinou que aquela procrastinação sem
fim teria que terminar - a beligerância ativa da Turquia tornara-se indispensável para bloquear a
Rússia pelo sul.

No dia 28 de outubro os antigos Goeben e Breslau, sob o comando do Almirante Souchon e


acompanhado por vários torpedeiros turcos, entraram no mar Negro e bombardearam Odessa,
Sebastopol e Feodosia, causando algumas mortes de civis e afundando um canhoneiro russo.

Horrorizado corn ofait accompli que o Almirante Souchon lhes entregara a domicílio, o Governo
turco estava disposto a repudiá-lo, mas foi impedido. O fator decisivo foi a presença do Goeben no
Crescente Dourado, comandado por seus próprios oficiais, corn sua iss
própria tripulação, rebelde a qualquer tipo de repressão. Como observou Talaat Bey: o governo, o
palácio, a capital, eles próprios, seus lares, seu soberano e Califa estavam sob os canhões do
Goeben. O afastamento das missões militar e naval alemãs, que os Aliados estavam exigindo como
prova da neutralidade da Turquia, era algo que eles não tinham condições de fazer.

Como o ato de guerra foi cometido em nome da Turquia, no dia


4 de novembro a Rússia declarou guerra àquele país, seguida pela Inglaterra e pela França, no dia 5
de novembro.

Daí em diante, as sangrentas fronteiras da guerra estenderam-se pela outra metade do mundo. Os
vizinhos da Turquia - Bulgária, Romênia, Itália e Grécia - mais tarde foram puxados para a guerra.
Daí em diante, a Rússia, corn a sua saída para o Mediterrâneo fechada, ficou dependendo de
Arcanjo, coberto de gelo metade do ano, e de Vladivostok, a quase 13.000 quilômetros da frente de
combate. corn o Mar Negro fechado, suas exportações sofreram uma queda de 98% e suas
importações caíram em 95%. O isolamento da Rússia corn todas as suas conseqüências, a tragédia
inútil e sanguinária de Gallipoli, o desvio da força Aliada nas campanhas da Mesopotâmia, de Suez
e da Palestina, bem como o esfacelamento definitivo do Império Otomano e a história subseqüente
do Oriente Médio-tudo isso foi conseqüência da viagem do Goeben.

Outras conseqüências foram igualmente amargas, embora menos importantes. Enfrentando a


censura de seus companheiros, o Almirante Troubridge exigiu um Tribunal de Inquérito que
ordenou seu julgamento por uma Corte Marcial em novembro de 1914, sob a acusação de que ”ele
se absteve de perseguir o navio HIGM Goeben, um inimigo então fugindo”. A Marinha, agindo em
seu próprio interesse, desobrigou-o quanto à questão principal: se ele estava ou não justificado em
considerar o Goeben uma ”força superior”. Apesar de absolvido, e embora continuasse prestando
serviços na guerra, ele nunca mais recebeu um comando no mar, por causa dos sentimentos da
Armada.

O Almirante Milne, chamado a regressar no dia 18 de agosto para deixar que o Mediterrâneo ficasse
sob o comando dos franceses, voltou para casa para se aposentar. Em 30 de agosto o Almirantado
anunciou que sua conduta e suas decisões em relação ao Goeben e ao Breslau tinham sido objeto de
”um exame cuidadoso”, corn o resultado de que ”Suas Excelências aprovaram em todos os aspectos
as medidas tomadas por ele”. Suas Excelências, que tinham ignorado Constantinopla, não
procuravam um bode expiatório. ,
11
Liège e Alsácia

Enquanto os exércitos se concentravam, grupos avançados das forças alemãs e francesas


posicionavam-se para o ataque como se através de uma porta rotativa: os alemães entraram pelo
leste e os franceses, pelo oeste. O primeiro movimento de cada oponente teria lugar em sua própria
extremidade direita, na borda do perímetro da porta rotativa, distante 450 quilômetros uma da outra.
Independentemente do que os franceses fizessem, os alemães partiriam para atacar Liège e
conquistar seu anel de doze fortalezas para poder abrir as estradas através da Bélgica aos exércitos
de sua ala direita. Os franceses, também independentemente do que o inimigo fizesse, arremeteriam
para a Alta Alsácia num movimento mais sentimental do que estratégico, planejado para iniciar a
guerra corn uma onda de entusiasmo nacionalista e encorajar a revolta da população local contra a
Alemanha. Estrategicamente, seu objetivo era ancorar a direita francesa no Reno.

Liège era a grade levadiça que protegia o portão de entrada alemão na Bélgica. Construída numa
encosta íngreme que se erguia a 150 metros da margem esquerda do Meuse, tendo como fosso de
proteção o rio, que ali tinha quase 200 metros de largura, e rodeada por uma circunferência de quase
50 quilômetros de fortalezas, era popularmente considerada a posição fortificada mais perfeita e
formidável da Europa. Dez anos antes, Port Arthur suportara um sítio de nove meses antes de
render-se; a opinião mundial esperava que Liège, se não resistisse indefinidamentejjelo menos
repetisse a façanha de Port Arthur.

Sete exércitos alemães, totalizando mais de 1.500.000 homens, colocavam-se ao longo das
fronteiras belga e francesa. Em ordem numérica, abrangiam desde o Primeiro Exército na
extremidade direita da linha alemã, em frente a Liège, até o Sétimo Exército em sua extremidade
esquerda, na Alsácia. O Sexto e o Sétimo Exércitos compunham a ala esquerda alemã, corn
dezesseis divisões; o Quarto e o Quinto, o centro, corn vinte divisões; o Primeiro, o Segundo e o
Terceiro compunham as 34 divisões da ala direita, que deveria atravessar a Bélgica. ....-••

.;* -y’

1*5
Um corpo de cavalaria independente, corn três divisões, estava anexado à ala direita. Os Exércitos
da ala direita eram comandados pelos generais Von Kluçk, Von Bülow e Von Hausen, todos corn
68 anos de idade, sendo que os dois primeiros eram veteranos de 1870. O comandante do corpo de
cavalaria era o General Von Marwitz.

Como o Primeiro Exército de Von Kluck tinha que viajar para mais longe, seu progresso regularia o
ritmo do avanço geral. Concentrando-se ao norte de Aachen, ele deveria tomar as estradas que
cruzavam o Meuse pelas cinco pontes de Liège, cuja captura, assim, era o primeiro e primordial
objetivo, do qual todo o resto dependia. Os canhões das fortalezas de Liège dominavam a brecha
entre a fronteira holandesa e os Ardennes, cheios de colinas e bosques; suas pontes possibilitavam a
única travessia múltipla do Meuse; seu entroncamento de quatro linhas férreas ligando a Alemanha
e a Bélgica ao norte da França era essencial ao abastecimento das tropas alemãs em marcha. Por
tudo isso, a ala direita alemã só poderia pôr-se em movimento quando Liège fosse tomada e suas
fortalezas colocadas fora de ação.

Um ”Exército do Meuse” especial, de seis brigadas, comandado pelo General Von Emmich, foi
destacado do Segundo Exército para abrir caminho através de Liège. Esperava-se que ele fizesse
isso corn presteza, enquanto os exércitos principais ainda estivessem se concentrando - a não ser
que a Bélgica oferecesse uma resistência séria. O Kaiser disse certa vez a um oficial britânico,
durante exercícios, numa de suas indiscrições do pré-guerra: ”you atravessar a Bélgica assimi”, e
cortou o ar corn um gesto de mão. Os alemães acreditavam que a intenção de lutar declarada pela
Bélgica não passava de ”raiva de carneiros sonhadores”, nas palavras que um estadista prussiano
certa vez aplicou a seus oponentes conterrâneos. Quando Liège tivesse sido tomada e o Primeiro e o
Segundo Exércitos estivessem nas estradas a cada lado dela num ponto paralelo à cidade, teria
início o avanço principal.

Brialmont, o maior ^engenheiro de fortificações de seu tempo, construíra as fortalezas de Liège e


Namur na década de 1880 por insistência de Leopold II. Localizadas em terreno elevado num
círculo em volta de cada cidade, elas destinavam-se a defender a passagem do Meuse contra
invasores que viessem de qualquer das duas direções. As fortalezas de Liège estavam situadas em
ambas as margens do rio, a uma distância média de seis a oito quilômetros da cidade e de três a
cinco quilômetros uma da outra. Seis ficavam na margem
oriental de frente para a Alemanha, e seis na ocidental, pelos lados e por trás da cidade

Como castelos medievais enterrados no chão, as fortalezas nada mostravam na superfície além de
um monte triangular no qual se salientavam as cúpulas das torrinhas escamoteáveis. Todo o resto
era subterrâneo. Túneis em declive levavam a câmaras subterrâneas, aos depósitos de armas e às
salas de controle de fogo. As seis fortalezas maiores e os seis fortins menores entre elas
contavarruiom um total de 400 canhões, dos quais os maiores eram obuses de 8” (210 mm). Nos
cantos dos triângulos havia torrinhas menores, para armas de disparo rápido e metralhadoras, que
cobriam as encostas logo abaixo. Um fosso seco corn nove metros de profundidade rodeava cada
fortaleza. Cada uma tinha um holofote instalado numa torre de aço que podia ser baixada para o
subsolo, como os canhões; como havia apenas uma dessas torres de observação em cada forte, a
defesa ficaria cega se ela fosse destruída.

A guarnição de cada uma das fortalezas maiores tinha 400 soldados, corn duas companhias de
artilharia e uma de infantaria. Planejadas como postos avançados para vigiar a fronteira, e não como
locais de resistência para suportar um sítio, as fortalezas dependiam do exército para defender os
espaços entre elas.

Demasiado confiantes na grande obra de Brialmont, os belgas pouco se preocuparam corn a


manutenção das fortalezas, deixando-as guarnecidas por reservistas das classes mais antigas e um
único oficial para cada companhia. Pelo temor de dar à Alemanha o menor pretexto para declarar
comprometida a neutralidade belga, só em 2 de agosto foi dada a ordem de construir trincheiras e
barricadas de arame farpado para a defesa dos espaços entre as fortalezas e de destruir árvores e
casas que estivessem no caminho dos canhões. Quando veio o ataque, essas medidas mal tinham
sido iniciadas.

Os alemães, de sua parte, acredjtando que os belgas cederiam ao ultimato ou no máximo


ofereceriam uma resistência simbólica, não levaram a arma-surpresa que possuíam: gigantescos
canhões de sítio de tal tamanho e poder de destruição que ninguém imaginaria que pudessem ser
transportáveis. Um deles era um morteiro de 12” (305 mm) construído pela Skoda, uma fábrica de
armamentos austríaca; o outro, construído pela Krupp em Essen, era um monstro de 16,5 ” (420
mm) que, corn sua carreta, tinha mais de 7 metros de comprimento e pesava 98 toneladas; disparava
uma bala de quase l metro de cornprimento e mais de 800 quilos num alcance de pouco menos de
15 quilômetros; requeria uma equipe de 200 pessoas.
187
Até então, os maiores canhões conhecidos eram os canhões navais de 13.5” da Inglaterra e as
maiores armas terrestres eram os obuses fixos deli” da artilharia costeira. O Japão, depois deseis
meses tentando em vão tomar Port Arthur, deslocara essas armas de sua costa para usá-las no cerco,
e tinham sido necessários três meses de seu poder de fogo para que o forte russo se rendesse.

O cronograma alemão não podia permitir-se tanto tempo para tomar as fortalezas belgas. Moltke
dissera a Conrad von Hotzendorf que calculava que no trigésijno nono dia a situação no Ocidente já
estivesse resolvida e que no quadragésimo dia mandaria tropas alemãs para o leste para ajudar a
Áustria.

Os alemães não esperavam que os belgas fossem lutar, mas mesmo assim o seu perfeccionismo
levava-os a estar preparados para qualquer contingência. O problema era desenhar o mais pesado
canhão de ataque a fortalezas que se pudesse transportar por terra. Tinha que ser um morteiro ou um
obus de cano curto corn um ângulo de disparo alto, capaz de arremessar os projéteis para o topo das
fortalezas e, ao mesmo tempo, sem a ajuda de um cano longo, ter a mira suficientemente acurada
para acertar um alvo específico.

A Krupp, trabalhando em férreo segredo, aprontou em 1909 um protótipo do canhão de 420”.


Aquele gigante de cano serrado, embora disparasse corn sucesso, mostrou-se excessivamente
desajeitado para ser transportado. Tinha que ser levado por trem em duas partes, cada uma
necessitando de uma locomotiva para puxá-la. Era preciso colocar trilhos até seu local de instalação.
Este, por sua vez, devia ter um buraco de vários metros de profundidade, cheio de concreto onde o
canhão seria encravado, por causa do tremendo coice na hora do disparo. Para retirá-lo era preciso
explodir sua base. O processo de colocação levava seis horas.

Durante mais quatro anos a Krupp” trabalhou para construir um canhão que, separado em várias
partes, pudesse ser puxado por rodovia. Em fevereiro de 1914, um protótipo desse tipo foi fabricado
e testado corn bons resultados no Kummersdorf, para alegria do Kaiser, convidado para a ocasião.
Novos testes nas estradas, corn veículos movidos a vapor, a gasolina e até mesmo puxados por
parelhas múltiplas de cavalos, mostraram que seriam necessários alguns aperfeiçoamentos. Foi
marcada uma data-limite: I- de outubro de 1914.

Os 305” da Skoda, completados em Pilsen em 1910, tinham a vantagem de melhor mobilidade.


Puxados por veículos a motor, em três partes - o canhão, sua base e um alicerce portátil - eles
podiam l»
rodar de 25 a 30 quilômetros por dia. Em lugar de pneus, tinham esteiras contínuas do que era então
chamado de ”pés de ferro”. No local de instalação colocava-se o alicerce portátil de aço; prendia-se
nele a base e nesta se encaixava o canhão. O processo inteiro levava quarenta minutos, e retirar o
canhão também levava pouco tempo, tornando a arma difícil de ser capturada. Esses canhões
podiam ser girados para a direita e para a esquerda até um ângulo de 60 graus, e tinham um alcance
deli quilômetros. Como os 420”, disparavam um projétil perfurante corn um detonador de ação
retardada para que a explosão só ocorresse depois da penetração no alvo.

Quando a guerra irrompeu, em agosto, vários 305” austríacos encontravam-se na Alemanha,


emprestados por Conrad von Hotzendorf até que o modelo alemão ficasse pronto. Nessa época, a
Krupp tinha construído cinco canhões 420” do modelo transportável por trem e dois do modelo
puxado em rodovia, mas nenhum deles estava totalmente concluído. Ordens urgentes de terminá-los
foram dadas a
2 de agosto. Quando a invasão da Bélgica teve início, a Krupp pôs-se a trabalhar desesperadamente,
dia e noite, para montar canhões, bases, motores, equipamento, parelhas de cavalos para
emergências, mecânicos, motoristas de caminhão e pessoal de artilharia, que tiveram que receber
treinamento de última hora.

Moltke ainda tinha esperanças de atravessar sem precisar deles. Se, no entanto, os belgas fossem
tolos a ponto de resistir, os alemães calculavam que as fortalezas seriam tomadas num simples
ataque sob cobertura da artilharia de campo. Nenhum detalhe do ataque foi deixado ao acaso. Seu
planejamento tinha sido obra de um oficial que era o mais devotado discípulo de Schlieffen no
Estado-Maior.

A vontade de trabalhar e um caráter de granito anularam o obstáculo da falta de um ”von”40 para o


Capitão Ehrich Ludendorff ter o direito de usar as almejadas listas vermelhas do Estado-Maior, em
cujas fileiras ele ingressou em 1895, aos 30 anos de idade. Embora o corpo atarracado, o bigode
louro sobre a boca curvado para baixo, o queixo duplo e o volume na nuca qj^e Emerson chamava
”a marca da besta”, dessem a Ludendorff um tipo físico oposto ao do aristocrático Schlieffen, ele se
moldava pela personalidade dura e fechada do mestre.

Deliberadamente severo e sem amigos, aquele homem, que dentro de dois anos iria exercer mais
poder sobre o povo e o destino

40 ”von”: prefixo ao sobrenome de famílias alemãs e austríacas, ocorrendo antigamente apenas


190 entre a nobreza. (N. da T.)
-%»

O
^I^P^IPlIpflf^

Almirante Souchon
Almirante Sir Berkeley Milne
ReiAlbert
da Alemanha do que qualquer outra pessoa desde Frederico, o Grande, permanecia pouco
conhecido ou apreciado. Nenhuma das costumeiras anedotas a respeito de amigos ou parentes,
nenhum caso ou comentário pessoal o acompanhavam; mesmo enquanto crescia em importância ele
vivia sem despertar comentários, como se não fosse humano - um homem sem sombra.

Considerando Schlieffen ”um dos maiores soldados que já existiram”, Ludendorff, como membro e
posteriormente Chefe da Seção de Mobilização do Estado-Maior de 1904 a 1913, devotou-se a
assegurar o sucesso do plano de seu mestre, de cuja eficácia, segundo ele, todo o Estado-Maior
estava convencido: ”Ninguém acreditava na neutralidade da Bélgica.” Em caso de guerra,
Ludendorff esperava tornar-se Chefe das Operações Militares, mas em 1913 entrou em conflito corn
o então Ministro da Guerra, General Von Heeringen, e foi removido do Estado-Maior para um
comando regimental. Em abril de 1914 foi promovido a general, corn ordens de, em caso de
mobilização, juntar-se ao Segundo Exército como Subchefe do Staff*1. Nessa condição, no dia 2 de
agosto foi destacado para o Exército do Meuse de Emmich para o ataque a Liège, encarregado da
ligação entre a força de ataque e o comando.

No dia 3 de agosto, o Rei Albert tornou-se Comandante-emChefe do Exército belga •- sem ilusões.
O plano que ele e Galet tinham concebido para a hipótese de uma invasão alemã fora frustrado. Eles
queriam deslocar todas as seis divisões belgas para uma posição ao longo da barreira natural do
Meuse, onde poderiam reforçar as posições fortificadas de Liège e Namur; mas o Estado-Maior e
seu novo chefe, General Sellíers de Moranville, estavam pouco inclinados a deixar o jovem Rei e o
humilde Capitão Galet ditarem estratégias; além disso, encontrando-se o próprio Estado-Maior
dividido entre idéias ofensivas e defensivas, nenhuma,providência tinha sido tomada para levar o
exército para o Meuse.

Em estrito respeito à neutralidade, antes da guerra as seis divisões estavam colocadas em posição de
receber todos os que chegassem: a Primeira Divisão em Ghent, voltada para a Inglaterra; a Segunda
em Antuérpia; a Terceira em Liège, voltada para a Alemanha; a Quarta e a Quinta em Namur,
Charleroi e Mons, voltadas para a França; a Sexta Divisão e a Divisão de Cavalaria no centro, em
Bruxelas. O plano do General Selliers era: uma vez identificado o

41 Subchefe do Staff: em alemão, Quartlermeister. (Nota da Autora.)

195
inimigo, concentrar o exército no centro do país de frente para o invasor, deixando que as
guarnições de Antuérpia, Liège e Namur cuidassem de si mesmas.

A força de um plano já existente é sempre maior do que o impulso de mudança; o Kaiser não
conseguiu mudar o plano de Moltke, nem Kitchener o de Henry Wilson, nem Lanrezac o de Joffre.
No dia 3 de agosto, quando o Rei Albert, tornou-se oficialmente Comandante-em-Chefe e ganhou
precedência sobre o General Selliers, era tarde demais para deslocar todas as divisões para a
margem do Meuse. A estratégia adotada então foi concentrar o Exército belga diante de Louvain, no
Rio Gette, cerca de 65 quilômetros a leste de Bruxelas, onde seria armada a defesa. A única coisa
que o Rei pôde fazer foi insistir que a Terceira Divisão fosse colocada em Liège e a Quarta em
Namur para reforçar as guarnições de fronteira, em vez de juntar as duas divisões ao resto do
Exército no centro do país.

O Rei obtivera, em janeiro de 1914, a nomeação de seu indicado, o General Leman, de 63 anos,
Comandante da Escola Superior de Guerra, para o Comando da Terceira Divisão e Governador de
Liège. Ex-oficial da Engenharia, como Jofre, Leman passara os últimos trinta anos (corn exceção de
seis anos no Staff da Engenharia) na Escola Superior de Guerra, onde Albert fora seu aluno. Ele
teve sete meses para tentar reorganizar as defesas das fortalezas de Liège, sem o apoio do
Estado-Maior. Quando veio a crise, uma tempestade de ordens conflitantes caiu sobre sua cabeça.
No dia 12 de agosto, o General Selliers ordenou a retirada de uma brigada da Terceira Divisão
correspondente a um terço de seu efetivo; mediante um apelo de Leman, o Rei anulou a ordem. No
dia 3 de agosto, foi a vez do General Selliers anular a ordem real de demolir as pontes acima de
Liège, alegando que elas eram necessárias para os deslocamentos do Exército belga; novamente
mediante um apelo de Leman o Rei apoiou o General contra o Chefe do Estado-Maior e acrescentou
uma carta pessoal encarregando Leman de ”manter até o fim a posição cuja defesa lhe foi
confiada”.

O desejo de defender o país era maior do que os meios para isso. No Exército belga, a proporção de
metralhadoras - armas essenciais para a defesa - era metade daquela do Exército alemão. De
artilharia pesada, necessária para as posições de defesa entre as fortalezas, a Bélgica de nada
dispunha.

A planejada expansão do serviço militar, que objetivava aumentar o efetivo do Exército para
150.000 soldados corn 70.000 reservistas, m e as tropas das fortalezas para 130.000 no ano de 1926,
mal tinha sido
iniciada. Em agosto de 1914, o exército de campanha dispunha de
117.000 homens e nenhuma reserva treinada, pois todos os reservistas eram usados para guarnecer
as fortalezas. De modo que a Guarda Cívica, um corpo policial de cavalheiros de cartola e vistosos
uniformes verdes, foi obrigada a entrar em serviço ativo, e muitos de seus deveres foram
transferidos para os Escoteiros.

O exército na ativa não tivera treinamento em trincheiras e dispunha de pouquíssimas ferramentas


para cavá-las. O transporte era deficiente, assim como o número de barracas e de cozinhas de
campanha; os utensílios de cozinha tinham que ser conseguidos nas fazendas e aldeias; o
equipamento telefônico era praticamente nulo. O exército pôs-se em marcha num caos de
improvisação.

Cercado por uma aura de ilusão, o exército marchou também numa onda de entusiasmo - ou melhor,
foi carregado por ela. Os soldados, gozando de súbita popularidade, eram cobertos de presentes,
alimentos, beijos e cerveja. Logo deixaram a formação e puseramse a passear pelas ruas, exibindo
suas fardas e cumprimentando amigos. Pais juntavam-se aos filhos para ver como era a guerra.
Magníficas limusines, requisitadas como transportes militares, passavam velozes, cheias de pães e
peças de carne. Acompanhavam-nos os vivas da multidão. Vivas saudavam também as
metralhadoras, que, como os carros de leite em Flandres, eram.puxadas por cães.

Na manhã clara e luminosa do dia 4 de agosto, os primeiros invasores - unidades da Cavalaria de


Von Marwitz - entraram na Bélgica. Num trote regular e decidido, eles traziam lanças de três
metros corn pontas de aço, e mais um arsenal de sabres, pistolas e rifles. Os camponeses nas
plantações ao longo da estrada, os aldeões em suas janelas, todos sussurravam: ”Ulanos!”42. Esse
nome estranho, derivado dos selvagens cavaleiros tártaros, evocava na Europa as lembranças
ancestrais da invasão bárbara; os alemães, quando se ocupavam de sua missão histórica de levar
Kultur a seus vizinhos, mostravam, como o Kaiser ao usar o termo ”Huno”, uma preferência por
modelos aterrorizantes.

Como vanguarda da invasão, a missão da cavalaria era fazer o reconhecimento da posição dos
exércitos belga e francês, vigiar desembarques dos ingleses e proteger o acampamento alemão de
um reconhecimento similar pelo inimigo.

42 Ulanos: lanceiros de antigos exércitos europeus. (N. da T.)

m
No primeiro dia, a missão dos esquadrões avançados, apoiados pela infantaria - levada até ali em
caminhões-, era tomar as pontes do Meuse antes que elas fossem destruídas, e conseguir alimento
para homens e animais nas aldeias e fazendas.

Em Warsage, junto à fronteira, o Burgomestre43 de 72 anos, monsieur Flechet, usando sua faixa do
ofício, postou-se na praça da aldeia enquanto um cavaleiro se aproximava ruidosamente pelo
calçamento de pedras. Esse cavaleiro, oficial do esquadrão, deu-lhe um sorriso polido e
entregou-lhe uma proclamação impressa que expressava a ”tristeza” da Alemanha por ”ser
compelida pela necessidade” a entrar na Bélgica. Embora declarando desejar evitar a luta,
ressalvava: ”Precisamos de ter o caminho livre. A destruição de pontes, túneis e ferrovias será
considerada um ato hostil”. Nas praças das aldeias ao longo de toda a fronteira, da Holanda a
Luxemburgo, os Ulanos espalharam as proclamações, baixaram a bandeira belga dos mastros das
prefeituras, içaram a águia negra do Império Germânico e foram em frente, confiantes na
afirmações de seus comandantes de que os belgas não oporiam resistência.

Atrás deles, enchendo as estradas que convergiam para Liège, fileira após fileira, vinha a infantaria
da tropa de assalto de Emmich. Apenas o número regimental pintado em vermelho nos capacetes
quebrava a monotonia cinza-escura. Atrás vinha a artilharia de campo, puxada a cavalo. O couro
novo das botas e dos arreios estalava. Companhias de ciclistas iam à frente, para capturar pontes e
fazendas e colocar os fios telefônicos. Carros abriam caminho a buzinadas, levando oficiais do
Estado-Maior usando monóculos, corn ajudantesde-ordens de arma empunhada sentados na frente e
baús amarrados atrás. Cada regimento tinha sua cozinha de campanha sobre rodas, corn o fogo
aceso e cozinheiros postados junto às panelas, preparando a comida, mesmo corn a carroça em
movimento. Dizia-se que essas cozinhas tinham sido inspiradas por um exemplar que o Kaiser vira
em manobras russas. A perfeição do equipamento e a precisão da marcha eram tais que os invasores
pareciam estar desfilando.

Cada soldado carregava trinta quilos: fuzil e munição, mochila, cantil, botas extras, ferramentas
para cavar trincheiras, faca e uma infinidade de implementos presos ao casaco. Numa sacola ficava
a

43 Burgomestre: o prefeito ou o principal magistrado das cidades da Bélgica, Suíça, Alemanha,


2jj. Holanda, Áustria, etc. (N. da T.)
sua ”ração de ferro”44, contendo duas latas de carne, duas de legumes, dois pacotes de ”pão
duro”45, um de café moído e um frasco corn uísque, que só poderia ser aberto mediante permissão
de um oficial e era inspecionado diariamente para verificar se o dono desobedecera. Outra sacola
levava linha, agulhas, gaze e esparadrapo; outra continha fósforos, chocolate e tabaco. Os oficiais
levavam ao pescoço binóculos e mapas encapados em couro cobrindo a linha de marcha designada
para cada regimento, de modo que nenhum alemão sofreria o problema do oficial inglês segundo o
qual uma batalha é um processo que sempre ocorre na junção de dois mapas.

Os alemães marchavam cantando Deutschland uber Alies, Die Wacht am Rhein e Heil dir im
Siegeskranz. Cantavam quando paravam de marchar, cantavam no acampamento, cantavam quando
faziam alto para descansar. Muitas pessoas que sobreviveram aos 30 dias seguintes de combates,
sofrimento e terror cada vez mais intensos, lembrar-se-iam, como o pior tormento da invasão, do
som ininterrupto e repetitivo de vozes masculinas cantando.

As brigadas do General Von Emmich, convergindo do norte, leste e sul sobre Liège, descobriram,
ao chegar ao Meuse, que as pontes acima e abaixo da cidade já haviam sido destruídas. Quando
tentaram atravessar por pontes flutuantes, a infantaria belga abriu fogo e os alemães, para seu
espanto, encontraram-se num combate real, atingidos por munição de verdade, os soldados feridos e
morrendo. Eles tinham 60.000 homens, para os 25.000 belgas. Quando a noite caiu, tinham
conseguido atravessar o rio em Vise, ao norte da cidade; as brigadas que atacavam do sul foram
detidas; as que atacavam pelo centro, onde o rio faz uma curva para dentro, chegaram à linha de
fortalezas antes de alcançarem o rio.

Durante o dia, enquanto as botas, os tacões e os cascos das fileiras alemãs atropelavam aldeias e
•pisoteavam campos de grãos maduros, o tiroteio aumentou, e corn ele a aflição das tropas alemãs,
que tinham sido informadas de que os belgas eram ”soldados de chocolate”. Surpresos e
enraivecidos pela resistência belga, os soldados alemães, corn os nervos tensos pela primeira
experiência de combate, tornaram-se suscetíveis ao primeiro grito de ”Tocaia!”. Imediatamente
imaginavam-se vítimas dos disparos de civis furiosos

44 ”Ração de ferro” (”iron ration”): ração de reserva. (N. da T.)

45 Pão duro (hard tack): tipo de pão não fermentado, tradicionalmente fornecido a soldados e marinheiros. Também
chamado ”biscoito do mar”. (N. da T.) I»
escondidos em todas as casas e atrás de todas as cercas. Reagiam instantaneamente corn o grito de
”Man hat geschossen!” que era o sinal combinado para total represália sobre civis desde Vise até as
portas de Paris. Desde o primeiro dia, começou a tomar forma a figura do terrível franc-tireur46 de
1870, que os alemães evocariam em proporções gigantescas.

O espírito da resistência, que logo encontraria sua voz no famoso jornal clandestino Lê Libre Belge
(O Belga Livre), mal despertava naquela primeira manhã entre os habitantes das cidades
fronteiriças. Seu próprio governo, conhecendo a natureza do inimigo, já distribuíra avisos a serem
afixados em todas as comunidades ordenando aos civis que entregassem suas armas às autoridades e
advertindo que, se fossem encontrados armados pelos alemães, poderiam estar sujeitos à pena de
morte. Os cartazes instruíam o povo a não combater ou insultar os alemães e a permanecer dentro
de casa, corn as janelas fechadas, para evitar ”qualquer pretexto para medidas de repressão que
resultem em derramamento de sangue ou pilhagem ou massacre da população inocente”. Assim tão
seriamente advertidas, e assustadas pela visão dos invasores, as pessoas não estavam preparadas
para tentar deter, corn suas espingardas de caçar coelhos, aquela horda armada e encouraçada.

Não obstante, no primeiro dia da invasão os alemães começaram a atirar, numa atitude deliberada,
não apenas em civis comuns mas nos padres belgas. No dia 6 de agosto, o Major-General Karl
Ulrich Von Bulow47, irmão do ex-Chanceler e comandante de uma divisão de cavalaria no ataque a
Liège, disse a um companheiro que desaprovava ”as execuções sumárias do padres belgas, que
tinham ocorrido no dia anterior”. A alegação de que os padres belgas estavam envolvidos numa
conspiração para encorajar os franco-atiradores conspiração organizada dentro das primeiras 24
horas e em desafio ao governo civil-era destinado ao consumo alemão; para o consumo belga, as
execuções pretendiam ser um exercício de terror, segundo a teoria desenvolvida pelo Ir/iperador
Calígula: Oderínt dum metuant Que nos odeiem, contanto que nos temam. ’

Também no primeiro dia os alemães mataram a tiros seis reféns tomados em Warsage e
incendiaram a aldeia de Battice como exem-

46 Franc-t ireur: os franceses que combatiam os alemães sem pertencerem ao exército. (N. da T.)

47 Karl Ulrich von Bulmv: não se trata do Generaloberst Karl von Bulow que comandou o H» Segundo Exército. (Nota
da Autora.)
l
pio. Ela foi ”inteiramente consumida”, escreveu um oficial alemão que marchou através dela alguns
dias depois. ”Através das aberturas das janelas via-se o interior dos quartos corn os restos
queimados de móveis e camas de ferro. Cacos de utensílios domésticos estavam espalhados pela
rua. A não ser os cães e os gatos remexendo entre os escombros/ o fogo extinguira qualquer sinal de
vida. Na praça do mercado ficava a igreja, sem telhado e sem torre”. Em outro local, onde, segundo
lhe informaram, três hussardos alemães tinham sido mortos, ”a aldeia inteira estava em chamas, o
gado berrava desesperadamente nos estábulos, galinhas meio queimadas corriam enlouquecidas,
dois homens em trajes de camponeses jaziam mortos de encontro a uma parede”.

”Nosso avanço na Bélgica certamente é brutal”, Moltke escreveu a Conrad em 5 de agosto, ”mas
estamos lutando por nossas vidas, e todos que estiverem em nosso caminho terão que arcar corn as
conseqüências”. Ele não estava pensando nas conseqüências para o seu próprio país, mas já estava
em curso o processo que faria da Bélgica o nêmesis da Alemanha.

No dia 5 de agosto, as brigadas de Emmich desfecharam o ataque aos quatro fortes mais a leste de
Liège corn um canhoneio pela artilharia de campanha, seguido pelo ataque da infantaria. Como as
balas de canhão eram leves demais para penetrar nas fortalezas, os canhões belgas abriram fogo
sobre as tropas alemãs, massacrando as primeiras fileiras. Companhia após companhia avançava,
procurando os espaços entre as fortalezas onde as trincheiras belgas não estavam terminadas. Em
alguns pontos onde conseguiram passar, os alemães disparavam encosta acima, onde os canhões
belgas não tinham ângulo para alcançá-los, e eram dizimados pelas metralhadoras das fortalezas. Os
mortos formavam pilhas de quase um metro de altura.

Os belgas no Forte Barchon, vendo as linhas alemãs ondularem, atacaram corn baionetas e
obrigaram-nas a recuar. Inúmeras vezes os alemães voltaram ao ataque, gastando vidas como se
fossem projéteis, sabendo que havia grandes reservas para compensar as perdas. Um oficial belga
descreveu mais tarde:

”Eles não tentavam espalhar-se, mas vinham, fileira após fileira, quase ombro a ombro, até que os
derrubávamos; os que caíam eram empilhados numa horrível barricada de mortos e feridos que
ameaçava impedir as balas dos nossos canhões e nos causar problemas. Essa barricada ficou tão alta
que não sabíamos se atirávamos através 201
dela ou se saíamos e abríamos buracos corn as nossas mãos. (...) Mas, inacreditavelmente, essa
verdadeira muralha de mortos e moribundos permitiu que aqueles alemães incríveis se
aproximassem rastejando e chegassem até a atacar a esplanada. Não passaram da metade do
caminho, porque nossas metralhadoras e nossos fuzis obrigaram-nos a voltar. Naturalmente tivemos
nossas perdas, mas foram leves, comparadas à carnificina que infligimos aos nossos inimigos”.

A pródiga perda de vidas por parte de todos os beligerantes, que cresceria a um excesso sem
sentido, até centenas de milhares no Somme e mais de um milhão em Verdun, começou naquele
segundo dia da guerra em Liège. Em sua furiosa frustração, os alemães jogavam seus homens
impiedosamente contra as fortalezas, tantos quantos fosse necessários para tomar o objetivo dentro
do prazo progra-

• mado.

H Durante a noite de 5 de agosto, as brigadas de Emmich reagru-

B param-se em suas respectivas estradas para um novo ataque, marcaB do para começar às 24:00. O
General Ludendorff, acompanhando a H Décima Quarta Brigada que ocupava o centro da linha
alemã, achou

• os soldados melancólicos e ”nervosos”. Diante deles avultavam, asB sustadores, os canhões da


fortaleza. Muitos oficiais duvidavam que B um ataque da infantaria pudesse derrotá-los. Os
boatos diziam que B toda uma companhia de ciclistas enviada para fazer reconhecimento B
tinha sido ”aniquilada”.

B Uma coluna, que na escuridão pegara a estrada errada, deu de

SP encontro corn outra coluna; as duas se embaralharam e tiveram que «s; deter sua marcha.
Cavalgando até lá para descobrir a causa da confusão, Ludendorff encontrou o ajudante do General
Von Wussow, comandante da Décima Quarta Brigada, puxando o cavalo do General, a sela vazia.
O ajudante-de-ordens disse que Von Wussow tinha sido atingido pelo fogo de metralhadoras na
mesma estrada, logo à frente. Ludendorff, corn súbita ousadia, agarrou a oportunidade pelo
pescoço; assumiu o comando da brigada e deu o sinal para o ataque que visava penetrar pelo
intervalo entre o Fort Fléron e o Fort d’Evegnée. Enquanto avançavam os homens caíam sob o fogo,
e pela primeira vez em sua vida Ludendorff ouviu ”o ruído peculiar de balas atingindo corpos
humanos”.

Por um dos vários acasos da guerra, os canhões do Fort Fléron, a menos de três quilômetros de
distância, não abriram fogo. Numa aldeia onde a luta se desenvolvia de casa em casa, Ludendorff
ordenou um tiroteio de obuses que ”atingia as casas de todos os lados” e
202 ^°8° abrui ° caminho. Às 14:00 do dia 6, a Brigada atravessara o anel
de fortalezas e atingira terreno elevado na margem direita do Meuse, de onde se podia ver,
diretamente do outro lado do rio, Liège e sua Cidadela - uma fortaleza imponente, mas fora de uso.
Ali o General Emmich juntou-se a eles; embora esperassem corn crescente ansiedade, examinando
as estradas para o norte e para o sul, não apareceu qualquer soldado das outras brigadas; a Décima
Quarta Divisão, a única que conseguira romper o círculo de fortalezas, encontrava-se isolada. Seus
canhões de campanha dispararam sobre a Cidadela como sinal às outras brigadas e também ”para
intimidar o governador da fortaleza e os habitantes”.

Irados por terem que perder tempo e homens combatendo um povo que, pelas regras do bom-senso,
devia tê-los deixado passar, os alemães passaram todo o mês de agosto dominados pela necessidade
de ”intimidar” os belgas para que eles desistissem de sua estúpida e inútil resistência. Sob urna
bandeira de trégua, o antigo Adido Militar alemão em Bruxelas, conhecido pessoal do General
Leman, fora enviado na véspera para persuadi-lo - se necessário, corn ameaças a render-se. O
emissário disse a Leman que os Zeppelins destruiriam j Liège se ele tentasse impedir a passagem
dos alemães. A intimidação não teve sucesso, e no dia 6 de agosto o Zeppelin L-Z foi enviado de
Colônia para bombardear a cidade. As treze bombas que ele soltou e os nove civis que ele matou
inauguraram um hábito do século XX.

Depois do bombardeio, Ludendorff mandou outro emissário, sob outra bandeira de trégua, que
também fracassou em persuadir ÜLeman a render-se. Tentou-se também alguns truques. Numa
tentajftiva de seqüestrar ou matar o Comandante, um destacamento de Itrinta homens e seis oficiais
disfarçados, usando fardas que pareciam [Inglesas, foram de carro até o quartel-general de Leman
na Rua Bjainte-Foi e pediram para ver o General. O ajudante-de-ordens, CoPronel Marchand,
gritou, ao chegar à porta:

- Não são ingleses, são alemães!

l Foi morto a tiros no mesmo instante. Foi também imediatamente vingado por seus companheiros,
que, segundo um relatório no estilo apaixonado e sem peias de 1914, ”enlouquecidos pela pérfida
violação das regras de uma guerra civilizada, não poupavam - chacinavam”. Na confusão, o General
Leman fugiu para o Forte Loncin, a oeste da cidade, de onde continuou a comandar a defesa.

Depois que uma brigada alemã penetrou entre os fortes, Leman constatou que não podia ter
esperanças de defender a cidade. Se as brigadas que atacavam pelo norte e pelo sul também
conseguissem

203
204

romper o círculo, Liège ficaria cercada e a Terceira Divisão ficaria separada do resto do exército,
podendo ser encurralada e destruída. O serviço de Informações de Leman identificara unidades de
quatro corpos do Exército alemão na força de ataque, o que parecia dar a Emmich o equivalente a
oito divisões, contra a única de Leman. Na realidade, as tropas de Emmich não estavam organizadas
em corpos mas em brigadas separadas, e totalizavam, corn os reforços enviados às pressas, cerca de
cinco divisões. A solitária Terceira Divisão não era suficiente para salvar-se ou salvar a cidade.

Na manhã de 6 de agosto, o General Leman, sabendo que o Rei estava inabalável em seu propósito
de preservar o Exército de campanha e mantê-lo em contato corn a Antuérpia não importando o que
acontecesse em outros lugares, ordenou que a Terceira Divisão recuasse de Liège e se reunisse ao
resto do exército diante de Louvain. Isso significava que a cidade cairia, embora não as fortalezas;
mas uma divisão não podia ser sacrificada, mesmo por Liège, pois acima de Liège estava a
independência da Bélgica. Se o Rei não permanecesse no comando de um exército em algum canto
do seu próprio país, ele estaria à mercê não apenas de seus inimigos mas também de seus aliados.

No dia 6 de agosto, Bruxelas enlouqueceu de excitação ante a notícia da derrota impingida aos
alemães no dia anterior. ”Grande Victoire Belge!”, proclamavam as edições extras dos jornais. A
população feliz e vibrante enchia os bares; as pessoas congratulavam-se umas corn as outras,
vangloriavam-se da vitória, passaram a noite inteira comemorando e de manhã leram umas para as
outras um comunicado belga segundo o qual 125.000 alemães tinham ”fracassado inteiramente sem
conseguir qualquer avanço e os três corpos de exército atacantes tinham sido dizimados e
inutilizados”. Refletindo esse otimismo, a imprensa Aliada informava que a debandada alemã fora
geral, corn a rendição de vários regimentos, muitos prisioneiros,
20.000 alemães feridos, os defensores triunfando em toda parte, os ”invasores definitivamente
repelidos” e seu avanço ”imobilizado”. Restou por explicar a retirada da Terceira Divisão belga,
concisamente mencionada.

No Quartel-General belga, na antiga Prefeitura de Louvain, todos se mostravam muito confiantes,


como se o Exército belga tivesse
34 divisões e os alemães seis, em vez do contrário. O grupo avançado dentro do Estado-Maior
”fervilhava de planos entusiásticos para uma ofensiva imediata”.
* O Rei vetou-os sem hesitar. Ele reconhecia, no tamanho das forças que atacavam Liège e nas
recentes notícias de cinco corpos alemães recém-identificados, os contornos da famosa ”estratégia
de cerco” de Schlieffen. Se recebesse em tempo o apoio das forças inglesas e francesas, ainda
haveria uma chance de deter os alemães no Rio Gette, a meio caminho entre Antuérpia e Namur.
Ele já enviara dois apelos urgentes ao Presidente Poincaré. A essa altura o Rei ainda esperava, como
todos na Bélgica, que seus aliados fossem juntar-se a ele em território belga. Por toda parte as
pessoas se perguntavam: onde estão os franceses, onde estão os ingleses? Em certa aldeia, uma
mulher belga ofereceu um ramo de flores atado por fitas corn as cores inglesas a um soldado de
farda estranha, que ela pensou ser caqui. Constrangido, o soldado identificou-se como alemão.

Na França, Poincaré e Messimy (este, em sua exuberância, propusera imediatamente mandarem


cinco corpos para ajudar os belgas) nada puderam fazer contra a recusa lacônica e irredutível de
Joffre em mudar seu plano de guerra. Três divisões de cavalaria francesas, sob o comando do
General Sordet, entrariam na Bélgica a 6 de agosto para fazer o reconhecimento das forças alemãs
ao leste do Meuse, mas, segundo Joffre, apenas o não-aparecimento dos ingleses o levaria a
espalhar sua ala esquerda. No final da noite de 5 de agosto, veio de Londres a notícia de que o
Conselho de Guerra, depois de um dia inteiro de reunião, decidira enviar uma força expedicionária,
mas de apenas quatro divisões, mais a cavalaria, em vez de seis.

Embora esse fato fosse decepcionante, não induziu Joffre a compensar a deficiência inglesa
transferindo quaisquer divisões para a sua esquerda. Ele estava reservando todas as forças para a
ofensiva francesa pelo centro. Tudo que mandou à Bélgica, além da cavalaria, foi um único oficial
de staff, o Coronel Brécard, corn uma carta para o Rei Albert sugerindo que o Exército^ belga
adiasse qualquer ação decisiva e se retirasse para Namur, onde ficaria em contato corn os franceses;
quando a concentração francesa estivesse completa, desfechariam uma ofensiva conjunta. Jofre
informou que quatro divisões francesas seriam enviadas a Namur mas só chegariam a seu destino
no dia 15 de agosto.

No entender de Joffre, o Exército belga deveria ignorar os interesses puramente belgas em favor de
uma frente comum, agindo como uma ala do Exército francês em conformidade corn a estratégia
francesa; no entender do Rei Albert, que tinha uma visão mais nítida do perigo da ala direita alemã,
se ele permitisse que o Exército belga

205
ficasse em Namur, o avanço alemão poderia isolá-lo de sua base em Antuérpia e até mesmo
empurrá-lo para fora da Bélgica pela fronteira francesa. Mais preocupado em manter o Exército
belga em solo belga do que corn uma estratégia conjunta, o Rei Albert estava decidido a manter
aberto o seu caminho de retirada para Antuérpia. Considerações puramente militares apontavam
para Namur; razões históricas e nacionais indicavam Antuérpia, mesmo correndo o risco de que o
Exército ficasse encurralado ali, onde não poderia exercer uma influência direta na guerra como um
todo.

O Rei declarou ao Coronel Brécard que, se fosse obrigado a isso, o Exército belga faria uma
retirada para Antuérpia, não Namur. Brécard, amargamente decepcionado, informou Joffre que não
era de se esperar que os belgas se unissem aos franceses numa ofensiva conjunta.

No dia 7 de agosto, o Governo francês, que nunca fora consultado sobre o Plano 17 e agora estava
impedido, por suas condições, de ir em socorro da Bélgica, conferiu a Grã-Cruz da Legião de Honra
a Liège e a Medalha Militar ao Rei Albert. O gesto, embora inadequado às circunstâncias,
expressava algo da surpresa admiração mundial pela luta belga. O Presidente da Câmara francesa
declarou que a Bélgica não estava apenas ”defendendo a independência da Europa; é a paladina da
honra”; segundo o The Times de Londres, ela ganhou l ”fama imortal” ao destruir a superstição de
que os exércitos alemães eram invencíveis.

Enquanto os elogios se multiplicavam, a população de Liège passava a primeira de inúmeras noites


que os europeus do século XX passariam nos porões. Depois do dia de terror sob o ataque do
Zeppelin, Liège foi bombardeada durante toda a noite pelos projéteis explosivos da artilharia de
campo de Ludendorff, numa tentativa de levar a cidade a render-se pelo terror. O método foi tão
inútil quanto o bombardeio de longo alcance sobre Paris pelos Big Berthas48 em 1918 ou o
bombardeio de Londres, anos depois, pela Lufrwaffe e os V-2.

Depois da primeira ofensiva, Emmich e Ludendorff decidiram entrar na cidade sem esperar que
chegassem as outras brigadas. Não encontrando resistência, pois a Terceira Divisão belga tinha
então sido afastada, a Décima Quarta Brigada alemã atravessou marchando as

l 48 Big Bertha: canhão de grandes dimensões usado pelos alemães para bombardear Paris; a l denominação deriva de Frau Bertha
Krupp, da família que fabricava a maior parte da artilharia \ 206 alemã. (N. da T.)
duas pontes ainda de pé. Ludendorff, achando que a Cidadela tinha sido tomada por uma
guarda-avançada enviada à frente corn esse propósito, subiu de carro a estrada sinuosa corn um
único ajudante. Ao chegar ao pátio, não encontrou qualquer soldado alemão, pois a guarda
avançada ainda não tinha chegado. Mesmo assim ele não hesitou em ”esmurrar os portões” e,
quando eles foram abertos, os soldados belgas que restavam entregaram-lhe a rendição da Cidadela.
Ele tinha 49 anos, o dobro da idade de Bonaparte em 1793; embora Ludendorff não fosse um
Bonaparte, Liège foi a sua Toulon.

Lá embaixo, na cidade, o General Emmich, não encontrando Leman, aprisionou o Burgomestre e,


afirmando que Liège seria bornbardeada e incendiada a não ser que as fortalezas se rendessem, j
ofereceu-lhe um salvo-conduto para obter a rendição do General Leman ou do Rei. O prisioneiro
recusou-se, e continuou prisioneiro. l À noite, mais três brigadas alemãs tinham rompido o círculo
de E fortalezas para juntar-se à Décima Quarta dentro da cidade. E Às 18:00 do mesmo dia, um
oficial do transporte motorizado

l disparou pelas ruas de Aachen trazendo ao Quartel-General do SeI gundo Exército a excitante
notícia de que o General Emmich estava l dentro de Liège, naquele momento negociando corn o
Burgomestre. j Em meio a gritos e ”Hochs!”, foi interceptado um telegrama de EmI mich para a
esposa, corn a seguinte mensagem: ”Viva! Em Liège!”. Às V 20:00 um oficial de ligação trouxe
uma mensagem de Emmich: embol rã o General Leman tivesse escapado, o Bispo e o Burgomestre
eram l prisioneiros, a Cidadela tinha se rendido, a cidade fora evacuada por l tropas belgas, mas ele
não tinha informação alguma sobre as fortalezas. I Em Berlim, onde o Quartel-General
Supremo, ou, em alemão, l Obersteheeresleitung (daqui por diante OHL), permaneceu até o final l
do período de concentração, o Kaiser ficou eufórico. A princípio, I quando ficou claro que os belgas
iam lutar afinal, ele censurara amargamente Moltke: ”Agora você estsí’vendo que colocou os
ingleses contra mim sem motivo algum!”; ao saber da queda de Liège, porém, ele o chamou de
”queridíssimo Julius”; segundo registro de Moltke, ”fui entusiasticamente beijado”.

Não obstante, os ingleses continuaram a preocupar o Kaiser. No Ü dia 10 de agosto, o Embaixador


americano, Gerard, que viera apre-

• sentar o oferecimento de mediação por parte do Presidente Wilson,

• achou-o ”desanimado”. Sentado a uma mesa de ferro verde sob um •guarda-sol no jardim do
Palácio, corn papéis e formulários telegráfi•cos espalhados diante dele e dois cães dachshunds
deitados a seus pés, m o Kaiser lamentava:

207
- Os ingleses mudam toda a situação. Que povo teimoso! Vão continuar a guerra. Ela não poderá
terminar logo.

A amarga verdade de que nenhuma das fortalezas tinha sido conquistada veio à luz no dia seguinte
à queda da cidade, quando Ludendorff saiu de Liège para fazer seu relatório. Diante disso, ele
insistiu para que os canhões de sítio fossem colocados em ação imediatamente, pois os belgas ainda
não se mostravam dispostos a render-se. O avanço do Primeiro Exército de Kluck, marcado para ser
o primeiro a começar, teve que ser adiado do dia 10 para o dia
13.

Enquanto isso, em Essen, os horríveis morteiros de sítio, negros e roliços, estavam imóveis,
enquanto à volta deles se desenrolava um esforço frenético para reunir transporte motorizado e
equipes treinadas para os canhões. A 9 de agosto os dois modelos de rodovia ficaram prontos, e
nessa noite foram colocados em vagões de carga para serem transportados à maior distância
possível em vagões ferroviários, para economizar suas esteiras. O trem partiu de Essen no dia 10 e
chegou à Bélgica ao cair da noite, mas às 23:00, em Herbesthal, 32 quilômetros a leste de Liège,
teve que parar - o túnel, dinamitado pelos belgas, estava bloqueado. Furiosos esforços não
conseguiram reabri-lo. Os canhões gigantescos tiveram que ser descarregados, para prosseguirem
viagem pela rodovia. Embora faltassem apenas onze quilômetros para chegarem ao alcance das
fortalezas, vários problemas técnicos retardaram seu progresso. Os motores falhavam, os cabos se
partiam, as estradas estavam bloqueadas; até mesmo soldados que passavam foram obrigados a
ajudar a empurrá-los. A lenta batalha corn os dois monstros silenciosos durou todo o dia.

Enquanto os 420s estavam a caminho, o Governo alemão fez um último esforço para persuadir a
Bélgica a ceder o direito de passagem através de seu território. No dia 9 de agosto foi entregue ao
Embaixador Gerard uma mensagem a ser levada a seu colega em Bruxelas para ser apresentada ao
Governo belga. ”Agora que o Exército belga defendeu sua honra corn sua heróica resistência a uma
força muito superior”, dizia, o Governo,alemão ”implora” ao Rei dos belgas e a seu governo para
poupar a Bélgica de ”outros horrores da guerra”. A Alemanha estava pronta a fazer qualquer acordo
corn a Bélgica para que seus exércitos tivessem passagem livre; daria sua ”promessa solene” de que
não tinha intenção de tomar território belga e evacuaria o país assim que o curso da guerra o
permitisse.

Ambos os ministros americanos, em Bruxelas e em Haia, recum saram-se a ser portadores de tal
proposta, mas esta finalmente chegou
ao Rei Albert, no dia 12 de agosto, corn a ajuda do Governo holandês. O Rei a recusou.

Diante da enormidade da ameaça a seu país, sua resolução parecia inacreditável até mesmo aos seus
aliados - ninguém esperava tanto heroísmo por parte da Bélgica. Depois da guerra, quando um
estadista francês elogiou sua conduta, o Rei Albert respondeu: ”Sim, fomos obrigados a agir assim”.

Em 1914, os franceses tinham suas dúvidas, e no dia 8 de agosto enviaram o Subsecretário de


Relações Exteriores, Monsieur Berthelot, numa visita ao Rei, corn base num boato de que ele iria
conseguir uma trégua corn a Alemanha. Berthelot foi encarregado da difícil tarefa de dizer ao Rei
que a França faria tudo que estivesse em seu poder para ajudar a Bélgica - exceto modificar seu
próprio plano de operações.

Albert tentou novamente transmitir aos franceses sua apreensão i diante da enorme ala direita alemã
que entraria através de Flandres. Avisou que, para evitar ser destruído por forças muito superiores, o
Exército belga poderia ter que se retirar para a praça fortificada de Antuérpia - corn a intenção,
segundo acrescentou sutilmente, de retomar a ofensiva quando ”a aproximação dos Exércitos
Aliados se fizer sentir”.

Para o mundo exterior, parecia que, como o correspondente militar do The Times anunciou do alto
de sua autoridade, as forças alemãs que atacaram Liège ”foram maravilhosamente derrotadas”. No
momento aquilo era verdadeiro até certo ponto: o orgulhoso Exército alemão, que esperara uma
vitória tão fácil sobre os ”carneiros sonhadores”, fracassara em tomar de assalto as fortalezas.
Depois de
9 de agosto os alemães fizeram uma pausa para esperar reforços mas não humanos. Estavam
esperando pelos canhões de sítio.

Na França, o General Joffre e a sua equipe ainda tinham os olhos resolutamente desviados de
Flandres e*âinda focalizavam ardentemente seus pensamentos no Reno. Os cinco exércitos
franceses, totalizando aproximadamente as mesmas 70 divisões que os alemães tinham na frente
ocidental, estavam arrumados em ordem, do Primeiro Exército à direita ao Quinto à esquerda.
Divididos pela área fortificada de Verdun-Toul, eles se concentravam em dois grupos, na mesma
proporção em que os exércitos alemães estavam agrupados de cada lado do Metz-Thionville. O
Primeiro e o Segundo Exércitos, de frente para o Sétimo e o Sexto Exércitos alemães na Alsácia e
Lorena, formavam juntos a ala direita francesa, cuja missão era, por meio de um ataque vigoroso,
empurrar os alemães à sua frente de 2fl9
volta para o Reno, enquanto enfiavam uma sólida cunha entre a esquerda e o centro alemães.

Na extremidade direita estava colocada uma força de assalto especial, como a de Emmich em Liège,
para o movimento que abriria a guerra na Alsácia. Destacada do Primeiro Exército e composta do
VII Corpo e da VIII Divisão de Cavalaria, ela devia libertar Mulhouse e Colmar e estabelecer-se no
Reno, no ângulo onde se encontravam a Alemanha, a Alsácia e a Suíça.

Junto a ela estava o Primeiro Exército, comandado pelo belo General Dubail, imagem tão perfeita
do oficial francês ideal que não parecia pertencer ao século XX e sempre inspirava comparações
corn ”um soldado de Corneille” ou corn o romântico General Bourbaki que conquistara todos cs
corações ao partir para a guerra em 1870 à frente de seus Turcos49. Diziam que Dubail não
reconhecia o impossível, combinava uma vontade indomável corn uma energia ilimitada e, por
alguma razão oculta nos intrincados desfiladeiros da política dentro do Exército francês, não tinha
boas relações corn o General Castelnau, seu vizinho à esquerda. Castelnau tinha deixado o
Estado-Maior para tornar-se comandante do Segundo Exército, que guarnecia a importantíssima
frente em volta de Nancy.

O Terceiro, o Quarto e o Quinto Exércitos estavam reunidos do outro lado de Verdun para a grande
ofensiva através do centro alemão prevista pelo Plano 17. Sua localização estendia-se de Verdun a
Hirson. O Quinto Exército, que defendia a extremidade aberta, estava voltado para o nordeste, para
avançar através dos Ardennes, e não para o norte, para enfrentar a descida das forças da ala direita
alemã. Esperava-se que a posição à esquerda do Quinto Exército, baseada na fortaleza de Maubeuge
- antes poderosa, mas depois negligenciada - fosse defendida pelos ingleses, que, segundo se soube
então, não viriam corn a força total originalmente planejada. Essa deficiência não tranqüilizava o
General Lanrezac, comandante do Quinto Exército, embora não preocupasse indevidamente Joffre e
sua equipe, cuja atenção estava voltada para outra parte.

Como teria que enfrentar o impacto da ala direita alemã, o General Lanrezac estava bastante
consciente de que cabia a ele o Trono Perigoso50. Seu predecessor no comando do Quinto Exército

49 Turco: soldado argelino de infantaria. (N. da T.)

50 Trono Perigoso (Siege Perilous): um assento na Tífoo/u Redonda do Rei Artur, fatal a :210 qualquer ocupante
exceto o cavaleiro destinado a encontrar o Santo Graal. (N. da T.)
antes da guerra tinha sido Gallieni, que, depois de percorrer o terreno diversas vezes e de tentar em
vão convencer o Estado-Maior a modernizar as fortifícações de Maubeuge, ficara bastante
insatisfeito. Quando Gallieni alcançou a idade-limite, em fevereiro de 1914, Joffre indicara
Lanrezac, um ”verdadeiro leão”, cujos dotes intelectuais ele muito admirava e que tinha sido uma
de suas três escolhas para Subchefe do staffem 1911. Graças à sua ”inteligência aguçada”, Lanrezac
era considerado um astro pelo Estado-Maior, que lhe perdoava os modos cáusticos, a tendência ao
mau humor e a linguagem rude, por causa da clareza, do brilhantismo e da lógica de suas
conferências. Aos 62 anos, ele se adequava - como Joffre, Castelnau e Pau - ao padrão dos generais
franceses: grandes bigodes e grande barriga.

Em maio de 1914, quando cada um dos generais dos cinco Exércitos recebera a parte do Plano 17
que lhe cabia, Lanrezac apontou de imediato os perigos de seu flanco exposto se os alemães
descessem corn todas as forças a oeste do Meuse. Suas objeções foram ignoradas; o Estado-Maior
tinha uma teoria básica de que quanto mais forte a ala direita alemã, ”melhor para nós”. Nos últimos
dias antes da mobilização, Lanrezac colocou suas objeções numa carta para Joffre, carta essa que se
tornaria um documento básico na montanha de críticas e controvérsias que cresceu depois da guerra
sobre o túmulo do Plano 17.

Segundo um colega oficial, o torn da carta de Lanrezac era menos um ousado desafio a um plano
dominante do que a crítica de um professor à tese de um aluno - corn nota zero. Ele demonstrava
que a ofensiva planejada para o Quinto Exército baseava-se na previsão de que os alemães
desceriam através de Sedan, quando na verdade era mais provável que eles rodeassem mais ao norte
através de Namur, Dinant e Givet. O professor explicava: ”Obviamente, uma vez que o Quinto
Exército esteja comprometido numa ofensiva na direção de Neufchâteau (nos Ardennes), ele não
poderá deter uma ofensiva alemã mais ao norte”.

Aquele era, aliás, o ponto principal; mas, Lanrezac, como se quisesse defender-se, reduziu a força
de seus argumentos acrescentando: ”Isso vai aqui como mera sugestão”. Joffre, que recebeu a carta
no Dia da Mobilização - 1^ de agosto - considerou-a ”inteiramente inoportuna” e, ”em meio aos
acontecimentos importantes que enchiam o meu dia”, deixou-a sem resposta.

Joffre ao mesmo tempo descartou os temores do General Ruffey, comandante do Terceiro Exército,
que viera expressar sua preocupação corn um possível ”desfile alemão através da Bélgica”. corn sua

flli mi

ia
concisão característica, Joffre respondeu: ”Está enganado”. Em sua opinião, um generalíssimo não
devia dar explicações, e sim ordens; um general não devia pensar, esim obedecer. Uma vez tendo
recebido suas ordens, um general devia executá-las corn a mente tranqüila, sabendo ser aquele o seu
dever.

Em 3 de agosto, dia em que a Alemanha declarou guerra, os generais reuniram-se num encontro
convocado por Joffre esperando ouvi-lo explicar finalmente a totalidade do Plano 17 e da estratégia
que deveriam empregar. A esperança era vã: Joffre limitou-se a aguardar os comentários em
benevolente silêncio. Finalmente Dubail manifestou-se, dizendo que a ofensiva planejada para seu
exército requeria reforços que não tinham sido previstos. Joffre respondeu corn uma de suas frases
misteriosas:

- Este pode ser o seu plano; não é o meu.

Como ninguém sabia o que isso significava, Dubail repetiu sua afirmação, julgando não ter sido
compreendido. Joffre, ”corn seu costumeiro sorriso beatífico”, respondeu corn as mesmas palavras
de antes:

- Este pode ser o seu plano; não é o meu.

A verdade era que para Joffre o que contava no imenso caos da guerra não era o plano, mas a
energia e entusiasmo corn que ele era executado. Joffre acreditava que a vitória não viria do melhor
plano, mas da vontade mais forte e da confiança mais firme - e essas, ele não tinha dúvida, eram
suas.

No dia 4 de agosto ele estabeleceu o quartel-general do EstadoMaior, conhecido como Grana


Quartier General (daqui por diante GQG), em Vitry-le-François, no Marne, a meio caminho entre
Paris e Nancy, onde ele estaria a uma distância mais ou menos igual - entre
130 e 145 quilômetros - do quartel-general de cada um dos cinco Exércitos. Ao contrário de Moltke,
que durante sua breve gestão como Comandante-em-Chefe nunca foi até a linha de frente ou visitou
os quartéis-generais dos Exércitos de Campanha, Joffre estava em contato constante e pessoal corn
seus comandantes. Fazia suas rondas placidamente acomodado no banco traseiro do carro dirigido a
110 quilômetros por hora por seu motorista particular Georges Bouillot, três vezes vencedor do Gr
and Prix, a famosa corrida de automóveis.

Tendo os generais alemães recebido um plano perfeito para ser executado, não se esperava que eles
necessitassem de orientação constante; já dos generais franceses esperava-se que raciocinassem,
como dizia Foch, mas Joffre, sempre suspeitando de fraqueza de nervos ou outras fraquezas
pessoais, gostava de mantê-los sob cer-
212 rada vigilância. Depois dos últimos exercícios de 1913, sua demissão
de cinco generais da lista ativa causara sensação pública e um estremecimento em todas as
guarnições da França; uma coisa dessas jamais acontecera antes. Durante o mês de agosto de 1914,
sob o teste terrível de tiroteios reais, Joffre afastaria generais como se fossem moscas, ao primeiro
sinal do que ele considerava incompetência ou insuficiente entusiasmo.

O entusiasmo era grande em Vitry, às margens bordejadas de árvores do tranqüilo Rio Mame,
brilhando verde e dourado ao sol de agosto. No prédio da escola ocupado pelo GQG, um golfo
insuperável separava o Departamento de Operações, a Troisième Bureau, que ocupava as salas de
aula, do Departamento de Informações, o Deuxième Bureau, instalado no pavilhão de ginástica,
corn os aparelhos empurrados de encontro às paredes e as argolas atadas ao teto. Durante todo o dia
o Deuxième juntava informações, interrogava prisioneiros, decifrava documentos, armava hipóteses
engenhosas e passava seus relatórios aos vizinhos. Esses relatórios sempre indicavam atividade
alemã a oeste do Meuse. Durante todo o dia o Troisième lia os relatórios, passava-os adiante,
criticava-os, discutia-os e recusava-se a acreditar quando eles apontavam soluções que obrigassem
os franceses a modificar seu plano de ofensiva.

Todas as manhãs, às 8:00, Joffre presidia reuniões dos chefes de seção - um árbitro majestoso e
imóvel, mas jamais um fantoche, como supunham as pessoas que se deixavam enganar por seu
silêncio e sua escrivaninha vazia. Ele não mantinha papéis sobre a sua mesa, nem mapas nas
paredes; nada escrevia, e falava pouco. Foch dizia que os planos eram preparados para ele; ”ele os
estuda, e então decide”. Poucos não tremiam em sua presença. Qualquer pessoa que se atrasasse
cinco minutos para as refeições era agraciada corn uma terrível expressão de contrariedade e
durante o resto da refeição permanecia um pária. Joffre comia em silêncio, corn a total devoção de
umgourmet.

Ele reclamava continuamente de_que sua equipe lhe sonegava informações. Quando um oficial
referiu-se a um artigo no último número de 1’Illustration, que Joffre não lera, este exclamou,
irritado:

- Está vendo? Eles escondem tudo de mim!

Joffre costumava esfregar a testa, murmurando ”Pobre Joffre!”, ato que sua equipe veio a
reconhecer como seu modo de recusar-se a fazer algo que lhe estava sendo imposto. Irritava-se corn
quem quer que tentasse demasiado abertamente fazer corn que ele mudasse de idéia. Como
Talleyrand, desaprovava o zelo exagerado. Sem o intelecto aguçado de Lanrezac ou a inteligência
criativa de Foch, ele inclinava-se, por temperamento, a confiar naqueles que escolhera

213
para o seu staff; mas permanecia o chefe, quase um déspota, ciumento de sua autoridade,
ressentindo-se da menor desobediência.

Quando foi proposto que Gallieni fosse instalado no GQG, por ter sido designado por Poincaré o
sucessor de Joffre em caso de emergência, este último, temendo ficar à sombra de seu antigo
comandante, não aceitou.

- Ele é difícil de entender - confidenciou a Messimy. Sempre estive sob as ordens dele. II m’a
toujours fait mousser (ele sempre me fez espumar).

Tratava-se de uma admissão de alguma importância, diante do papel que o relacionamento pessoal
entre Joffre e Gallieni viria a desempenhar nas horas fatídicas que antecederam à batalha do Marne.
Como resultado da recusa de Joffre em tê-lo no GQG, Gallieni foi deixado em Paris sem coisa
alguma para fazer.

Chegara o momento tão esperado em que a bandeira francesa seria içada novamente na Alsácia; as
tropas de cobertura, postadas entre os densos pinheirais do Vosges, aguardavam em trêmula
prontidão. Aquelas eram as montanhas de sua lembrança, corn seus lagos, suas cascatas e o cheiro
úmido e delicioso da vegetação onde samambaias perfumadas cresciam entre os pinheiros. As
pastagens onde o gado se alimentava alternavam-se corn trechos de floresta.

A frente, a linha púrpura e sombreada do Ballon d’Alsace, o ponto mais alto do Vosges, ocultava-se
na neblina. As patrulhas que se aventuravam até seu topo avistavam, lá embaixo, os telhados
vermelhos das aldeias do território perdido, as torres cinzentas das igrejas e a linha minúscula e
brilhante do rio Moselle, onde, jovem e perto de sua nascente, ele era suficientemente estreito para
ser atravessado a vau. Os quadrados brancos das plantações de batatas altemavam-se corn as faixas
de escarlate das ervilhas e corn as fileiras cinzentas-verdes-vermelhas dos repolhos. Montes de
feno, como pequenas pirâmides roliças, pontilhavam os campos, como se tivessem sido arrumados
por um pintor. Aquela terra estava no auge da sua fertilidade. O sol refulgia sobre todas as coisas. O
lugar nunca parecera mais digno de que se-iutasse por ele. Não era de estranhar que o primeiro
número da guerra de l’lllustration mostrasse a França na pessoa de um belo poilu51 arrebatando a
linda senhorita Alsácia num abraço apaixonado.

51 Poilu (literalmente; pelado, cabeludo): alcunha dos soldados franceses durante a Primeira fjfe Grande Guerra. (N. da T.)
O Ministério da Guerra já imprimira uma proclamação dirigida a seus habitantes, pronta para ser
afixada às paredes das cidades libertadas. O reconhecimento por aeroplano mostrava que a defesa
da região era precária - quase demasiadamente, no entender do General Bonneau, comandante do
VII Corpo, que temia ”estar caminhando para uma armadilha”. Na noite de 6 de agosto, ele enviou
um ajudante de ordens para informar o General Dubail que ele considerava a operação em
Mulhouse ”delicada e arriscada”, e estava preocupado corn seu flanco direito e corn a sua
retaguarda. Dubail, que expressara preocupação similar na reunião de generais no dia 3 de agosto,
consultou o GQG, que descartou todas aquelas dúvidas como falhas do espírito ofensivo.

As dúvidas de um comandante, expressas no início de uma operação, por mais válidas que fossem,
costumavam reduzir-se finalmente a uma fórmula para a retirada. Na doutrina militar francesa,
tomar a iniciativa era mais importante do que um exame cuidadoso do poderio do inimigo. O
sucesso dependia das qualidades de luta dos comandantes e, segundo Joffre e sua equipe, seria
desastroso permitir que a cautela e a hesitação triunfassem desde o início. O GQG insistiu que o
ataque à Alsácia fosse desfechado assim que fosse possível; obediente, Dubail telefonou para o
General Bonneau, perguntou se este estava ”pronto” e, recebendo resposta afirmativa, ordenou o
ataque para a manhã seguinte.

Às 5:00 do dia 7 de agosto, poucas horas antes de Ludendorff entrar em Liège corn a sua brigada, o
VII Corpo do General Bonneau assomou pela crista do Vosges-os soldados apresentando armas ao
cruzarem a fronteira - e arremeteu encosta abaixo numa clássica carga de baioneta sobre Altkirch,
ujna cidade de cerca de 4.000 habitantes no caminho de Mulhouse. Tomaram Altkirch de assalto
numa batalha que durou seis horas, corn 100 baixas. Não foi a última carga de baioneta numa
guerra cujo símbolo logo seria uma trincheira cheia de lama, mas poderia muito bem ter sido.
Executada no melhor estilo e espírito do Réglement de 1913, ela parecia uma demonstração de cran,
a apoteose de Ia gloire.

Segundo um comunicado francês, o momento foi ”de indescritível emoção”. Os postos de fronteira
foram arrancados do chão e carregados em triunfo pela cidade. Mas o General Bonneau, ainda
preocupado, não seguiu para Mulhouse; impaciente corn sua falta de 215
progresso, na manhã seguinte o GQG ordenou que Mulhouse fosse tomada e as pontes do Reno
destruídas naquele mesmo dia. No dia 8 de agosto o VII Corpo entrou em Mulhouse sem disparar
um único tiro, uma hora depois que os últimos soldados alemães partiram para defender a fronteira
mais ao norte.

A cavalaria francesa, corn suas armaduras brilhantes e as plumas negras de cauda de cavalo,
galopava pelas ruas. Quase mudos diante de tão súbita aparição, as pessoas a princípio olhavam em
silêncio ou em prantos, depois passaram gradualmente a mostrar alegria. Uma grande revista das
tropas francesas, corn duas horas de duração, teve lugar na praça principal. As bandas tocavam a
Marseillaise e a Sambre et Meuse. As armas eram enfeitadas corn flores vermelhas, brancas e azuis.
A proclamação de Joffre, qualificando seus soldados de ”a vanguarda do grande trabalho de
revanche (...) que carregam, nas dobras de suas bandeiras, as palavras mágicas Direito e
Liberdade”, foi afixada às paredes e muros. Os soldados ganhavam chocolates, doces e tabaco. As
pessoas acenavam corn bandeiras e lenços em todas as janelas, e enchiam até mesmo os telhados.

Nem todos davam as boas-vindas, pois muitos habitantes eram alemães ali estabelecidos depois de
1870. Um oficial cavalgando em meio à multidão percebeu ”rostos sérios e impassíveis, cachimbos
à boca, que olhavam como se estivessem contando quantos somos”. Realmente estavam, e durante a
noite fugiram correndo para informar aos alemães o poderio das divisões francesas.

O reforço alemão, enviado às pressas de Strasbourg, tomou posição ao redor da cidade enquanto os
franceses se dedicavam a ocupá-la. O General Bonneau, que desde o início carecia de confiança no
sucesso da ocupação, ordenara as disposições possíveis para impedir um sítio. Quando a batalha
começou, na manhã de 9 de agosto, sua ala esquerda em Cernay lutou feroz e teimosamente durante
todo o dia, mas sua ala direita, presa demasiado tempo num setor não ameaçado, não foi enviada a
tempo. Finalmente, reconhecendo a necessidade de reforços que tanto preocupara Dubail desde o
início, o GQG enviou uma divisão de reserva, mas a solidificação da frente requeria duas divisões.
Durante 24 horas a batalha oscilou, até às 7:00 de 10 de agosto, quando os franceses, obrigados a
recuar e temendo serem sitiados, bateram em retirada, entregando a cidade que tinham acabado de
libertar no primeiro triunfo da revanche.

Por mais humilhante que fosse para o Exército, depois da gloriosa retórica dos comunicados e das
proclamações e de 44 anos de
2ig ânsia acumulada, a perda de Mulhouse foi ainda mais cruel para seus
habitantes, sujeitos à represália alemã. Aqueles que tinham recebido os franceses corn mais
entusiasmo foram denunciados pelos moradores alemães, corn conseqüências trágicas. O VII Corpo
retirou-se para
15 quilômetros de Belfort

No GQG, cresceu a hostilidade natural e eterna entre oficiais de staffe oficiais de campanha.
Confirmada a sua opinião de falta de cran por parte de Bonneau, Joffre deu início às decapitações
que tornaram seu regime famoso. O General Bonneau foi o primeiro dos limogés os ”limogeados”,
assim chamados porque os oficiais destituídos de seus comandos apresentavam-se em Limogés para
funções de retaguarda. Culpando a ”execução falha”, em três dias Joffre destituiu o comandante da
Oitava Cavalaria e outro general de divisão.

Preocupado corn o plano original de libertar a Alsácia e prender naquela frente as forças alemãs, e
sem considerar os relatórios que vinham da Bélgica, Joffre pegou uma divisão regular e três
divisões de reserva e juntou-as ao VII Corpo para formar um Exército da Alsácia especial, para
novas ações em sua extrema direita. O General Pau foi convocado da aposentadoria para
comandá-lo. Durante os quatro dias de organização desse exército, as pressões cresciam em outra
parte. No dia 14 de agosto, dia em que Pau devia iniciar o avanço, trinta cegonhas foram vistas
voando para o sul sobre Belfort, deixando a Alsácia dois meses antes de sua época habitual.

A nação francesa não tinha conhecimento do que acontecera, pois os boletins do GQG eram
obras-primas de falta de conteúdo. Joffre acreditava firmemente que os civis não deviam ser
informados de coisa alguma. Nenhum jornalista tinha permissão para estar na frente de batalha,
nenhum nome de general, de baixas ou de regimento era mencionado. Para manter qualquer
informação útil fora do alcance do inimigo, o GQG adotou um princípio dos japoneses: fazer a
guerra ”silenciosa e anonimamente”. A França foi dividida em Zona de Retaguarda e Zona dos
Exércitos; nesta última, Joffre era ditador absoluto - nenhum civil, nem mesmo o Presidente, muito
menos os desprezadosparlementaires, podiam entrar sem sua permissão. Era ele, e não o
Presidente, quem assinava a proclamação dirigida ao povo da Alsácia.

Os ministros protestavam que estavam mais informados acerca dos movimentos das tropas alemãs
do que sobre as francesas. Poincaré, a quem Joffre, considerando-se independente do Ministro da
Guerra, informava diretamente, queixava-se de que nunca era informado dos reveses. Certa ocasião,
quando se propôs uma visita presi- 217
dencial ao Terceiro Exército, Jof f ré deu ”ordens estritas” a seu comandante para ”não discutir corn
o Presidente quaisquer questões de estratégia ou de política externa. ”Um relatório da conversa deve
ser enviado”. Todos os seus generais eram advertidos contra explicar operações militares a
membros do governo. Joffre declarou a eles: ”Nos relatórios que envio, nunca dou a conhecer o
objeto das operações em curso, ou as minha intenções”.

Seu sistema logo seria extinguido pela crescente pressão popular, mas em agosto, quando fronteiras
caíam e nações eram invadidas, grandes exércitos deslocavam-se no que ainda era uma guerra de
movimentação e a terra estremecia sob o fragor da guerra desde a Sérvia até a Bélgica, notícias
ruins da frente eram muito raras. Apesar de mil cronistas ansiosos, a história daquilo que estava
acontecendo naquele mês não era facilmente definível. O General Gallieni, jantando em trajes civis
num pequeno café de Paris na noite de 9 de agosto, ouviu um editor do Lê Temps na mesa vizinha
dizer ao companheiro:

- Posso lhe garantir que o General Gallieni acaba de entrar em Cornar corn 30.000 homens.

Inclinando-se para o amigo, Gallieni comentou baixinho:

- E assim que se escreve a História...

Enquanto os alemães em Liège aguardavam os canhões de sítio, enquanto o mundo maravilhava-se


corn a longa resistência das fortalezas e o Daily Mau de Londres citava um consenso de opinião
segundo o qual elas ”jamais seriam tomadas”, enquanto a reunião dos exércitos prosseguia, alguns
homens esperavam corn grande ansiedade que o plano da ofensiva alemã se revelasse. O General
Gallieni era um dos que se preocupavam: ”Que é que está acontecendo por trás da frente alemã?
Que concentração maciça se reúne atrás de Liège? corn os alemães, deve-se sempre esperar o
gigantesco”.

A resposta a essa pergunta era o que a cavalaria francesa, sob o comando do General Sordet, tinha
sido enviada para descobrir. No entanto, tão impetuoso era o entusiasmo dos cavalarianos de
armadura que levou-os longe demais, cedo demais. Eles entraram na Bélgica no dia 6 de agosto,
cavalgando ao longo do Meuse para fazer o reconhecimento da força e da direção da concentração
alemã. Cobrindo
177 quilômetros em três dias - quase 60 quilômetros por dia -, eles passaram por Neufchâteau e
chegaram a 15 quilômetros de Liège.

Segundo seu costume, os franceses não desmontavam nem

desarreavam os cavalos durante as paradas, de modo que os animais

estavam exaustos pela marcha forçada. Depois de um dia de descan-

^ só, a cavalaria continuou seu reconhecimento nos Ardennes e a oeste


do Meuse até Charleroi, mas em toda parte era cedo demais para encontrarem sinais de que os
alemães tinhamn atravessado o Meuse corn grandes efetivos, e em toda parte a ativa cavalaria alemã
ocultava a concentração dos exércitos que crescia atrás da fronteira alemã.

Os franceses não tiveram a emocionante carga de cavalaria corn o encontro de sabres que era o
modo tradicional de abertura de uma guerra. Embora mais ao norte, onde se desfechava a ofensiva
sobre Louvain e Bruxelas, a cavalaria alemã usasse táticas de choque como a carga, aqui eles
evitavam um combate direto e mantinham uma muralha impenetrável, apoiados por batalhões de
ciclistas e Jagers52 motorizados que mantinham os franceses afastados sob o fogo de
metralhadoras.

Era desanimador. Cavalarianos em ambos os lados ainda acreditavam na espada nua, a arme
blanche, apesar da experiência da Guerra Civil Americana, quando o Confederado General Morgan,
empregando seus homens como infantaria montada, corn fuzis, gritava: ”Rapazes, lá vêm de novo
aqueles tolos corn seus sabres; mostrem a eles!”. Na guerra russo-japonesa, um observador inglês, o
General Sir lan Hamilton, fazendo corn que o Departamento de Guerra se perguntasse se seus meses
no Oriente não lhe tinham afetado a mente, declarou num relatório que a única coisa que a cavalaria
podia fazer diante de metralhadoras entrincheiradas era cozinhar arroz para a infantaria. Quando o
Major Max Hoffmann, observador alemão na mesma guerra, relatou uma conclusão semelhante a
respeito do poder defensivo de metralhadoras entrincheiradas, inspirou a Moltke o seguinte
comentário:

- Nunca houve um modo tão doido de fazer guerra!

Em 1914, a estratégia alemã de evitar um confronto direto das cavalarias e o uso de metralhadoras
mostraram-se uma eficiente manobra de despistamento. Os relatórios de Sordet, segundo os quais
nenhuma grande massa alemã descia sobre a esquerda francesa, confirmaram as idéias
preconcebidas do GQG. Mas os contornos de um cerco pela ala direita alemã já se tornavam claros
para o Rei Albert e para o General Lanrezac que, estando bem no seu caminho, estavam mais
dispostos a reconhecê-lo. Outro foi o General Fournier, governador da fortaleza francesa de
Maubeuge; ele informou ao GQG que no dia 7 de agosto a cavalaria alemã entrara em Huy, no
Meuse, e que suas informações indicavam que os alemães estavam dando cobertu-

52 Jager: fuzileiro do exército alemão ou austríaco. (N. da T.)

219
rã a um avanço de cinco ou seis corpos. Como em Huy ficava a única ponte entre Liège e Namur,
essa força inimiga obviamente tencionava atravessar o Meuse, e o governador de Maubeuge
advertia que sua cidade não tinha condições de resistir a tantos soldados.

Para o GQG, a menção a cinco ou seis corpos parecia um exagero atemorizado de uma mente
derrotista. Para Joffre, naquele agosto, afastar os temerosos era a condição mais importante para o
sucesso, e ele prontamente destituiu o General Fournier de seu comando. Mais tarde, depois de uma
investigação, essa ordem foi rescindida. Nesse meio tempo, descobriu-se que seriam necessários
pelo menos quinze dias para colocar Maubeuge em condições de uma defesa eficiente.

A ansiedade do General Lanrezac, que também recebera o relatório de Huy, aumentava dia a dia.
No dia 8 de agosto ele enviou seu Chefe de staff, General Hély d’Oissell, para deixar clara ao GQG
a ameaça de uma manobra de cerco pela ala direita alemã. A resposta do GQG foi que a
preocupação do General Lanrezac era ”prematura”, porque tal manobra era ”desproporcional aos
meios à disposição do inimigo”. Outras evidências não paravam de chegar da Bélgica, mas para
cada relatório a ”panelinha” do Plano 17 encontrava uma explicação: as brigadas avistadas em Huy
estavam em uma ”missão especial” qualquer, ou as fontes de informação eram ”suspeitas”. O
ataque a Liège tinha por objetivo ”nada além” do que tomar uma ponte ali. No dia 10 de agosto, o
GQG considerou ”confirmada sua impressão de que a principal manobra alemã não teria lugar na
Bélgica”.

Empenhado em sua própria ofensiva iminente, o Estado-Maior francês queria apenas assegurar-se
de que o Exército belga resistiria até que o Quinto Exército e os ingleses pudessem juntar-se a ele.
Joffre enviou outro emissário, o Coronel Adelbert, corn uma carta pessoal de Poincaré ao Rei
Albert, esperando uma ”ação conjunta” dos dois exércitos. Esse oficial, que chegou em Bruxelas no
dia 11 de agosto, recebeu a mesma resposta de seus antecessores: se ocorresse um avanço alemão
através de Bélgica, como o Rei previa, ele não permitiria que seu exército corresse o risco de ficar
isolado da Antuérpia. O Coronel Adelbert, apóstolo ardente do élan, não teve coragem de transmitir
ao GQG o pessimismo do Rei. Foi eximido dessa responsabilidade por uma batalha no dia seguinte,
da qual os belgas saíram banhados em glória.

Os manos, penetrando em direção a Louvain, foram detidos na

ponte em Haelen pelo fogo da cavalaria belga sob o comando do

220 General Witte. Usando suas tropas como fuzileiros desmontados,


^

apoiados pela infantaria, Witte repetiu o sucesso do General Morgan no Tennessee. Das 8:00 até as
18:00 suas rajadas regulares de tiros de fuzil repeliram as repetidas cargas alemãs de lances e
sabres. Os Ulanos feridos, dos melhores esquadrões de Von Marwitz, cobriam o solo, até que afinal
o remanescente bateu em retirada, deixando o terreno livre para os belgas. A gloriosa vitória,
elogiada pelos entusiasmados correspondentes em Bruxelas como a batalha decisiva da guerra,
levou o Estado-Maior belga e seus amigos franceses a transportes de entusiasmo; já se imaginavam
em Berlim. Os coronéis Adelbert e Ducarne informaram o GQG que este podia considerar
”definitiva a retirada da cavalaria alemã, e adiado, ou até mesmo abandonado, o projetado ataque
através da Bélgica central”.

Seu otimismo parecia justificado pela resistência das fortalezas de Liège. Todas as manhãs os
jornais belgas publicavam a manchete triunfal: ”Lês forts tiennent toujours!”. No dia 12 de agosto,
o mesmo dia da batalha de Haelen, os grandes canhões de sítio que os alemães estavam esperando
finalmente chegaram para colocar um fim àquela jactância.

Liège estava isolada do mundo exterior; quando as grandes armas negras chegaram ao limite do
alcance das fortalezas, apenas os habitantes locais viram o advento dos monstros, que, para um
observador, pareciam ”lesmas gordas”. Seus canos atarracados, duplicados pelos cilindros de
retrocesso que cresciam em suas costas como tumores, apontavam suas bocas cavernosas para cima,
como se pretendessem estuprar o céu corn seus projéteis. No final da tarde de 12 de agosto, um dos
420s tinha sido montado e apontado para o Fort Pontisse. Os membros da sua equipe, usando
proteção sobre olhos, orelhas e boca, deitaram-se de barriga no solo, prontos para o disparo, que era
feito eletricamente de uma distância de quase 300 metros. Às
18:30 a primeira detonação trovejou sobre Liège; a bala ergueu-se num arco de 1.200 metros de
altura e levou 60 segundos para alcançar o alvo. Quando o atingiu, uma grande nuvem cônica de
poeira, entulho e fumaça ergueu-se a 300 metros de altura.

Enquanto isso, os Skodas 305 também tinham sido trazidos, e começaram a bombardear as outras
fortalezas, guiados para seus alvos por observadores da artilharia postados em torres de igrejas e
balões. Os homens das guarnições belgas ouviam os projéteis descerem corn um assobio forte,
sentiam as detonações cada vez mais próximas, à medida que a pontaria era corrigida, até que,
enquanto o terror dos defensores aumentava, os projéteis explodiram sobre eles

221
corn um estrondo ensurdecedor; as rígidas pontas de aço atravessavam o concreto. Uma após outra
vinham as balas, despedaçando os homens, asfixiando-os corn os vapores liberados pelas cargas
explosivas. Os tetos cediam, as galerias eram bloqueadas, o fogo, o gás e o barulho enchiam as
câmaras subterrâneas; os homens ficaram ”histéricos, até mesmo enlouquecidos, sob a terrível
apreensão do próximo disparo”.

Antes dos canhões entrarem em ação, apenas uma fortaleza tinha sido tomada de assalto. O Fort
Pontisse suportou 45 projéteis em 24 horas de bombardeio antes de ficar suficientemente
enfraquecido para ser tomado por um ataque da infantaria no dia 13 de agosto. Duas outras
fortalezas caíram nesse dia, e no dia 14 todas as fortalezas a leste e ao norte da cidade tinham caído.
Seus canhões foram destruídos; as estradas ao norte da cidade estavam abertas. Começara o avanço
do Primeiro Exército de Von Kluck.

Os morteiros de sítio foram então levados para atacar as fortalezas a oeste. Um dos 420s foi
arrastado através da própria cidade para disparar contra o Fort Loncin. Monsieur Célestin Demblon,
deputado de Liège, estava na Place St. Pierre quando viu chegar, rodeando a esquina da praça, ”uma
peça de artilharia tão colossal que não pudemos crer em nossos olhos. (...) O monstro avançava em
duas partes, puxado por 36 cavalos. O pavimento estremecia. A multidão, consternada, ficou muda
diante do aparecimento desse aparato fenomenal. Ele atravessou lentamente a Place St. Lambert,
virou para a Place du Théâtre, depois seguiu pelos Boulevards de Ia Sauvenière e d’Avroy, atraindo
multidões de espectadores curiosos ao longo de sua passagem lenta e pesada. Os elefantes de
Haníbal não teriam deixado mais atônitos os romanos! Os soldados que o acompanhavam
marchavam rigidamente, numa solenidade quase religiosa. Era o Belial53 dos canhões!... No Pare
d’Avroy ele foi cuidadosamente montado e escrupulosamente apontado. Então veio a assustadora
explosão; a multidão foi jogada para trás, a terra tremeu como num terremoto e todas as vidraças
das vizinhanças se partiram...”

No dia 16 de agosto^onze das doze fortalezas tinham caído; apenas o Fort Loncin ainda resistia.
Nos intervalos do bombardeio, os alemães enviavam emissários sob bandeiras de trégua para exigir
a rendição do General Leman. Ele se recusava. No dia 16, Loncin foi atingido por um projétil que
caiu sobre o depósito de munições e

222 53 Belial - A personificação da maldade, no Antigo Testamento. (N. da T.)


explodiu a fortaleza de dentro para fora. Quando os alemães entraram por cima de um amontoado
de cúpulas quebradas e pedaços de concreto soltando fumaça, encontraram o corpo aparentemente
sem vida do General Leman preso sob um bloco de alvenaria.

- Respeitem o General, ele está morto - disse um ajudante de rosto enegrecido que montava guarda
junto ao corpo.

Leman, no entanto, estava vivo, porém inconsciente. Recuperado e levado ao General Von Emmich,
ele entregou sua espada, dizendo:

- Fui feito prisioneiro enquanto estava inconsciente. Certifique-se de colocar isso em seus relatórios.

- Sua espada não violou a honra militar. Guarde-a - respondeu Emmich, devolvendo-lhe a arma.

Mais tarde o General Leman escreveu da Alemanha, para onde fora levado preso, ao Rei Albert:
”De born grado teria dado minha vida, mas a Morte não me quis”. Seus oponentes, o General
Emmich e o General Ludendorff, receberam a cruz azul, branca e dourada do Pour lê Méríte, a mais
alta medalha militar alemã.

No dia seguinte à queda do Fort Loncin, o Segundo e o Terceiro Exércitos iniciaram seu avanço,
colocando toda a ala direita alemã em movimento através da Bélgica. Como tinha sido decidido que
a marcha começaria depois do dia 15, Liège atrasara em apenas dois dias a ofensiva alemã, e não
duas semanas, como o mundo acreditava então. A coisa realmente importante que a Bélgica
proporcionou aos Aliados não foram duas semanas nem dois dias, mas uma causa e um exemplo.

223
12

A FEB54 no Continente

O atraso na cobertura do flanco exposto da ala esquerda do General Lanrezac foi provocado por
brigas e divergências entre os ingleses, que deveriam se encarregar daquela extremidade da linha.
No dia 5 de agosto - seu primeiro dia de guerra -, o plano do Estado-Maior inglês, elaborado em
seus mínimos detalhes por Henry Wilson, não entrou em ação automaticamente, como os planos de
guerra do Continente, mas teve que ser aprovado antes pelo Comitê de Defesa Imperial. Quando o
Comitê reuniu-se como Conselho de Guerra às 16:00 daquele dia, incluía os líderes civis de
costume, além dos líderes militares e um esplêndido colosso que tomava lugar entre eles pela
primeira vez e era ambas as coisas: o Marechal-de-Campo Lord Kitchener, que não estava mais
feliz em ser o novo Secretário de Estado para a Guerra do que seus colegas em tê-lo entre eles.

O Governo estava nervoso pelo fato de ter em seu meio o primeiro soldado na ativa a entrar para o
Gabinete desde que o General Monck servira sob Charles II. Os generais, por sua vez, temiam que
ele fosse usar sua posição, ou ser usado pelo Governo, para interferir no envio de uma Força
Expedicionária para a França. Ninguém se decepcionou em suas apreensões; Kitchener prontamente
expressou seu profundo desprezo à estratégia, à política e ao papel designado para o Exército
britânico pelo plano anglo-francês.

Não estava bem claro qual deveria ser a sua autoridade, devido à sua posição ocupando dois postos.
A Inglaterra entrou na guerra corn uma compreensão vaga de que a autoridade suprema residia no
Primeiro-Ministro, mas sem um acordo preciso sobre quem deveria assessorá-lo e de quem seria a
opinião definitiva. Dentro do Exército, os oficiais de campanha desprezavam os oficiais de
staffcomo ”tendo cérebros de canário e mooos de Potsdam”, mas ambos os lados mostravam-se
unidos em sua repulsa à interferência dos ministros civis, que eram conhecidos como ”os fraques”.
Por sua vez, o braço civil referia-se aos militares como ”cabeças de osso”. No Conselho de Guerra
de 5 de agosto, o grupo civil era representado por Asquith,

U5I 54 FEB: Força Expedicionária Britânica. (N. da T.)


Grey, Churchill e Haldane, e o Exército por onze generais, inclusive o Marechal-de-Campo Sir John
French, nomeado Comandante-emChefe da Força Expedicionária, seus dois comandantes de
Corpos, Sir Douglas Haig e Sir James Grierson, seu Chefe do staff, Sir Archibald Murray - todos
generais-de-divisão - e seu Subchefe do staff, o General-de-Brigada Henry Wilson/cuja facilidade
em fazer inimigos políticos florescera durante a Crise do Curragh e fizera-o perder o posto mais
elevado.

Entre eles, representando ninguém sabia bem o quê, estava Lord Kitchener, que tinha sérias dúvidas
acerca do propósito da Força Expedicionária e nenhuma admiração por seu Comandante-em-Chefe.
Embora não tão exuberante quanto o Almirante Fisher em seu modo de expressar-se, Kitchener
passou a dedicar o mesmo desprezo pelo plano do Estado-Maior de prender o Exército inglês à
cauda da estratégia francesa.

Não tendo qualquer participação pessoal no planejamento de guerra no Continente, Kitchener era
capaz de ver a Força Expedicionária em suas verdadeiras proporções, e não acreditava que suas seis
divisões pudessem afetar o desfecho no confronto entre 70 divisões alemãs e 70 divisões francesas.
Apesar de ser um soldado profissional
- ”o mais hábil que já encontrei em minha vida”, afirmou Lord Cromer quando Kitchener foi
colocado no comando da campanha de Cartum -, sua carreira ultimamente vinha se desenrolando
em níveis muito elevados. Kitchener lidava corn a índia, o Egito, o Império apenas corn conceitos
abrangentes; nunca foi visto falando corn um soldado raso, ou mesmo tomando conhecimento de
sua existência. Como Clausewitz, encarava a guerra como uma extensão da política e partia dessa
premissa. Ao contrário de Henry Wilson e do EstadoMaior, ele não estava enfronhado em
programas de desembarques, horários, cavalos e alojamentos. Postado à distância, ele tinha a
capacidade de enxergar a guerra como um todo - em termos de relações entre os poderes-e de
perceber o imenso esforço de expansão militar nacional que seria necessário para a longa disputa
prestes a começar.

- Temos que estar preparados - anunciou - para colocar em campo exércitos de milhões e mantê-los
durante vários anos.

A platéia ficou espantada e incrédula, mas Kitchener não teve misericórdia. Disse-lhes que, para
lutar e triunfar numa guerra européia, a Inglaterra precisava de um exército de 70 divisões, igual aos
exércitos continentais, e pelos seus cálculos tal exército só atingiria força total no terceiro ano da
guerra - insinuando o assustador

225
226

corolário de que a guerra duraria todo esse tempo. Ele considerava o Exército ativo, corn seus
oficiais profissionais e especialmente seus oficiais não-comissionados, precioso e indispensável
como um núcleo de treinamento da força maior que ele tinha em mente; considerava uma tolice
criminosa desperdiçá-lo numa batalha imediata sob o que ele imaginava serem condições
desfavoráveis e onde, a longo prazo, sua presença não poderia ser decisiva. Uma vez que o exército
partisse, não haveria, em sua opinião, tropas adequadamente treinadas para tomar seu lugar.

A inexistência de um serviço militar obrigatório era a mais flagrante diferença entre os exércitos
continentais e o exército inglês. O Exército regular destinava-se ao serviço de além-mar, mais do
que à defesa da terra natal, que ficava a cargo do Exército Territorial. Como o Duque de Wellington
estabelecera a regra inalterável de que o recrutamento para o serviço no exterior ”tem que ser
voluntário”, o esforço de guerra inglês dependia, conseqüentemente, de um exército voluntário, o
que deixava as outras nações em dúvida quanto à amplitude do compromisso que a Inglaterra
assumira, ou assumiria. Embora o velho Marechal-de-Campo Lord Roberts, agora corn mais de 70
anos, tivesse defendido exaustivamente, durante muitos anos, o serviço militar obrigatório, corn
apenas um único apoio no Gabinete

- desnecessário dizer que se tratava de Winston Churchill -, as classes trabalhadoras opunham-se


rigorosamente, e nenhum governo arriscaria a sua popularidade mostrando-se favorável.

O sistema militar inglês nas ilhas britânicas consistia em seis divisões e uma divisão de cavalaria do
Exército regular, corn quatro divisões regulares totalizando 60.000 no além-mar e 14 divisões do
Exército Territorial. Uma reserva de cerca de 300.000 homens era dividida em duas classes: a
Reserva Especial, que mal daria para elevar o Exército ativo ao efetivo de guerra e mantê-lo em
campanha durante as primeiras semanas da luta, e a Reserva Nacional, que deveria fornecer
substitutos para o Exército Territorial. Segundo os padrões de Kitchener, os soldados do Exército
Territorial eram ”amadores” destreinados e inúteis, a quem ele dedicava o mesmo desprezo

- corn a mesma injustiça -J- que os franceses dedicavam a seus reservistas, considerando nulo o seu
valor.

Aos 20 anos de idade, Kitchener lutara como voluntário corn o Exército francês na guerra de 1870 e
falava francês fluentemente. Tendo ou não adquirido então uma simpatia especial pela França, não
era um extremado defensor da estratégia francesa. Por ocasião da crise de Agadir ele dissera ao
Comitê de Defesa Imperial que imagi-
nava que os alemães passariam por cima dos franceses ”como perdizes”, e recusara-se, quando
convidado, a tomar parte em qualquer decisão que o Comitê houvesse por bem tomar. Segundo
registro de Lord Esher, ele mandou dizer-lhes ”que se eles imaginavam que ele ia comandar o
Exército na França, era mais fácil eles próprios se danarem antes”.

Não foi por suas opiniões, e sim por causa do seu prestígio, que a Inglaterra lhe deu o Departamento
de Guerra, adquirindo assim o único homem preparado para insistir em organizar uma guerra longa.
Sem talento para a burocracia dos escritórios de administração e pouco disposto a conformar-se à
”rotina da baeta verde” das reuniões do Gabinete depois de estar acostumado ao simples ”Que seja
feito” de um procônsul55, Kitchener fez o possível para escapar ao seu destino. O governo e os
generais, mais conscientes de seus defeitos de temperamento do que das suas virtudes de
clarividência, teriam tido prazer em deixá-lo voltar para o Egito, mas não podiam passar sem ele.
Não foi o fato de defender opiniões que ninguém mais defendia que fez corn que ele fosse
considerado qualificado para ser nomeado Secretário da Guerra, mas o fato de que a sua presença
era indispensável ”para tranqüilizar a população”.

Desde Cartum o país devotava a Kitchener uma fé quase religiosa. Entre ele e o público existia a
mesma união mística que se desenvolveria entre o povo francês e ”Papai Joffre” ou entre o povo
alemão e Hindenburg. As iniciais ”K ofK” eram uma fórmula mágica, e seu exuberante bigode
marcial constituía um símbolo que era para a Inglaterra o que o pantalon rouge era para a França.
Alto, de ombros largos, ostentando aquela hirsuta magnificência corn uma expressão de grande
poder, ele pareceria uma imagem vitoriana de Ricardo Coração de Leão, se não fosse algo
inescrutável no fundo dos olhos solenes e brilhantes. A partir de 7 de agosto, o bigode, os olhos e o
dedo apontado, acima da legenda ”Seu País Precisa de VOCÊ”, que apareciam num famoso cartaz
de recrutamento, ficariam gravados na alma de todos os ingleses. A Inglaterra entrar na guerra sem
Kitchener era tão absurdo quanto um domingo sem ir à igreja.

No entanto, o Conselho de Guerra não deu muito crédito à sua profecia, num momento em que
todos estavam às voltas corn o problema imediato de mandar seis divisões para a França. Muito

55 Procônsul: termo origiruírio da Roma Antiga, usado para designar o governador de qualquer colônia
inglesa. (N. da T.) 227
tempo depois, corn um espanto talvez desnecessário, Grey escreveu: ”Nunca foi revelado como ou
através de que processo de raciocínio ele fez essa previsão sobre a duração da guerra”. Fosse porque
Kitchener estava certo quando todos os outros estavam errados, fosse porque os civis acham difícil
atribuir aos soldados um processo mental normal, fosse porque Kitchener nunca foi capaz ou nunca
se deu ao trabalho de explicar suas razões, todos os seus colegas e contemporâneos partiam do
princípio de que ele chegou a essa conclusão, como afirmou Grey, ”através de algum vislumbre do
instinto, e não pelo raciocínio”.

Seja qual tenha sido o processo, Kitchener previu também o padrão da iminente ofensiva alemã ao
oeste do Meuse. Mais tarde concluiu-se que ele chegou a essa previsão através de ”algum dom de
adivinhação” e não por ”qualquer conhecimento acerca de horários e distâncias”, na opinião de um
oficial do Estado-Maior. Na verdade, Kitchener, como o Rei Albert, viu o ataque a Liège lançando à
frente a sombra do cerco pela ala direita que seria empregado por Schlieffen. Ele não acreditava que
a Alemanha invadiria a Bélgica e colocaria a Inglaterra contra si apenas para fazer o que Lloyd
George considerara ”só uma violaçãozinha” através dos Ardennes. Tendo evitado a
responsabilidade do planejamento de pré-guerra, Kitchener não poderia agora propor que não se
enviassem as seis divisões, mas não via razão alguma para arriscar a extinção daquelas divisões
numa posição tão avançada como Maubeuge, onde, pelos seus cálculos, elas enfrentariam a força
total dos exércitos invasores alemães. Ele propunha que em vez disso elas se concentrassem em
Amiens, 110 quilômetros para trás.

Exasperados por essa mudança de planos que, embora aparentasse ser tímida, era drástica, os
generais viram confirmadas suas piores expectativas acerca da interferência de Kitchener. Sir John
French, baixinho, atarracado e exuberante, prestes a assumir o comando em campanha, vivia numa
estado de espírito de coragem e cornbatividade. Sua expressão normalmente apoplética, combinada
corn o apertado estoque56 que ele gostava de usar em lugar de colarinho e gravata, davam-lhe a
aparência de estar eternamente a ponto de engasgar-se - o que realmente ocorria, emocionalmente,
se não fisicamente. Quando foi nomeado Chefe do Estado-Maior Imperial, em 1912, ele
imediatamente informou Henry Wilson que pretendia

56 Estoque: gravata alta, rígida e larga, espécie de faixa de couro ou pano ao redor do pescoço,
22g usada antigamente. (N, da T.)
deixar o exército preparado para uma guerra corn a Alemanha, que ele considerava uma ”certeza a
longo prazo”. Desde então ficara nominalmente responsável pelos planos conjuntos corn a França,
embora na realidade o plano de campanha francês lhe fosse praticamente desconhecido, assim como
o alemão. Como Joffre, ele fora nomeado Chefe do Estado-Maior sem ter qualquer experiência de
gabinete e sem ter estudado no Staff College.

Sua escolha, como a de Kitchener para o Departamento de Guerra, baseara-se menos na sua
capacidade inata do que em seu posto e sua reputação. Nos diversos campos de batalha coloniais
onde era feita a fama dos militares ingleses, Sir John demonstrara coragem e engenhosidade, além
daquilo que uma autoridade chamou de ”sua visão prática de táticas menores”. Na Guerra dos
Bôeres, suas proezas como general de cavalaria, culminando no romântico galope através das linhas
bôeres para socorrer Kimberley, deram-lhe a reputação de um comandante corajoso, disposto a
correr riscos, e um prestígio popular quase igual ao de Lord Roberts e Kitchener.

Como de modo geral a história da Inglaterra no combate a oponentes destreinados e carentes de


armas modernas não vinha sendo brilhante, a figura de um herói despertava orgulho no Exército e
gratidão no Governo. As proezas de French, juntamente corn seu brilho social, levaram-no longe.
Assim como o Almirante Milne, ele freqüentava os círculos edwardianos; sendo oficial da
cavalaria, tinha a consciência da pertencer à elite do Exército. A amizade corn Lord Esher não era
uma desvantagem, e politicamente ele se aliara aos Liberais que subiram ao poder em 1906. Em
1907 foi nomeado Inspetor-Geral; em 1908, representando o Exército, acompanhou o Rei Edward
na visita oficial ao Czar em Reval; em 1912 veio sua nomeação para Chefe do Estado-Maior
Imperial e em 1913 foi promovido a Marechal-de-Campo. Aos 62 anos, e{£ o segundo oficial ativo
mais graduado do Exército, depois de Kitchener, mais velho que ele dois anos, embora French
parecesse ter mais idade. Era de conhecimento geral que em caso de guerra ele comandaria a força
expedicionária.

Em março de 1914, o Motim do Curragh, desabando sobre as cabeças militares como o templo
sobre Sansão, levou-o à renúncia. corn essa atitude quixotesca ele aparentemente colocou um fim
abrupto à sua carreira; na realidade, porém, caiu ainda mais nas boas graças do Governo, que
acreditava que a Oposição tinha planejado o Motim. ”French é uma ótima pessoa e eu o adoro”,
escreveu Grey. Sir John ressurgira quatro meses mais tarde, quando veio a crise, e em 30

229
de julho fora designado Comandante-em-Chefe se a Inglaterra entrasse na guerra.

Sem o hábito do estudo e corn a mente fechada aos livros, pelo menos depois de seus primeiros
sucessos em ação, French era mais conhecido por sua irritabilidade do que por sua capacidade
mental. O Rei George VI confidenciou ao tio: ”Não acho que ele seja particularmente inteligente, e
tem um temperamento péssimo”. Nisso ele se assemelhava à sua contraparte do outro lado do Canal
da Mancha Jof fre, tampouco um soldado intelectual. Havia, porém, uma diferença fundamental; a
qualidade mais notável de Joffre era a sua solidez, ao passo que a de French era seu modo peculiar
de reagir a pressões, pessoas e preconceitos. Dizia-se que ele tinha ”o temperamento instável
comumente associado aos irlandeses e aos soldados da cavalaria”. Joffre mostrava-se imperturbável
em qualquer circunstância; Sir John alternava extremos de agressividade nas ocasiões felizes e
depressão nos momentos difíceis. Impulsivo e facilmente influenciável por mexericos, possuía, na
opinião de Lord Esher, ”um coração de criança romântica”.

Certa vez, durante a Guerra dos Bôeres, Sir John French deu de presente ao seu antigo Chefe do
staff um frasco de ouro corn uma inscrição gravada lembrando ”nossa longa e leal amizade,
comprovada ao sol e à sombra”. Esse amigo leal - e bem menos sentimental que ele - era Douglas
Haig, que em agosto de 1914 escrevia em seu diário: ”No fundo do meu coração sei que French não
é suficientemente qualificado para esse importante comando numa época de crise na História de
nosso País”. Essa certeza no coração de Haig não deixava de estar ligada à idéia de que a pessoa
melhor qualificada para o posto era ele próprio, e ele não descansaria enquanto não o obtivesse.

Tendo Kitchener reaberto o debate sobre a destinação - e conseqüentemente o propósito - da FEB,


os membros do Conselho de Guerra, que, na opinião de Henry Wilson, ”ignoravam quase
totalmente os seus assuntos (...) puseram-se como idiotas a discutir estratégia”. Sir John Frencn ”de
repente surgiu corn a proposta ridícula de irmos para Antuérpia”, argumentando que, como a
mobilização britânica estava atrasada, dever-se-ia estudar a possibilidade de colaboração corn o
Exército belga. Haig, que, como Wilson, mantinha um diário, estremeceu ”diante da maneira
leviana” corn que seu chefe resolvia mudar os planos. Igualmente contrafeito, o novo Chefe do m
Estado-Maior Imperial, Sir Charles Douglas, declarou que, estando
tudo planejado para o desembarque na França e o transporte ferroviário preparado para levar as
tropas para a linha de frente, qualquer mudança de última hora traria ”conseqüências graves”.

Nenhum problema preocupava tanto o Estado-Maior quanto a inoportuna diferença em capacidade


entre os vagões ferroviários franceses e os ingleses. Eram tantos os cálculos matemáticos
necessários para a transferência dos soldados de uns para os outros que os oficiais de transporte
estremeciam diante de qualquer ameaça de modificação nos planos.

Felizmente para a paz de espírito de todos, o desvio para Antuérpia foi vetado por Churchill, que
dois meses depois iria pessoalmente até lá e conceberia o ousado e)desesperado desembarque de
duas brigadas de fuzileiros navais e uma divisão do Exército Territorial num inútil esforço de última
hora para salvar aquele importantíssimo porto belga. No entanto, no dia 5 de agosto ele declarou
que a Marinha não poderia proteger os transportes na rota mais longa através do Mar do Norte até o
Scheldt, ao passo que a passagem através dos Estreitos de Dover poderia ser inteiramente protegida.
Ele argumentou que, como a Marinha tivera tempo para preparar a travessia do Canal da Mancha, o
momento era favorável; e insistiu que todas as seis divisões fossem enviadas imediatamente.
Haldane apoiou-o, assim como Lord Roberts. Surgiu então novo debate: quantas divisões deveriam
ser enviadas e se seria ou não de born alvitre reter uma ou mais de uma até que o Exército
Territorial tivesse mais tempo de treinamento ou até que os substitutos pudessem ser trazidos da
índia.

Kitchener voltou à sua idéia de ficarem em Amiens e recebeu o apoio de seu amigo e futuro
comandante da campanha de Gallipoli, Sir lan Hamilton, que, no entanto, achava importantíssimo
que a FEB chegasse lá o mais depressa possível. Qrierson falou em favor de ”um número decisivo
em local decisivo”; Sir John French, o mais extremista dos extremistas, sugeriu que ”devíamos
partir imediatamente e decidir o destino depois”. Concordou-se em requisitar imediatamente
transporte para todas as seis divisões, deixando o destino a ser decidido quando chegasse um
representante do Estado-Maior francês, convocado às pressas por insistência de Kitchener para
novas consultas a respeito da estratégia francesa.

A notícia das discussões acerca do efetivo da FEB vazou. A influente VJestminster Gazette, órgão
dos Liberais, denunciou a ”imprudente” retirada das defesas do país. No campo adversário, Lord

231
l
Northcliffe veio rugindo protestar contra a partida de um único soldado. Embora o Almirantado
confirmasse a conclusão de 1909 do Comitê de Defesa Imperial de que qualquer invasão séria era
impossível, as visões de desembarques inimigos na costa leste da Inglaterra não desapareciam.
Como resultado do medo da invasão que fermentou do dia para a noite, antes de passadas 24 horas
o Conselho de Guerra mudou de idéia e reduziu as seis divisões para quatro.

Para grande desgosto de Henry Wilson, Kitchener, agora responsável pela segurança da Inglaterra,
trouxe para esse país uma divisão que estava marcada para embarcar para a França diretamente da
Irlanda, e destacou duas brigadas das outras divisões, mandandoas vigiar a costa leste, assim
”estragando completamente os nossos planos”, segundo esbravejou Wilson. Decidiu-se enviar
imediatamente quatro divisões e a cavalaria, corn embarque a partir do dia 8 de agosto; a Quarta
Divisão seguiria mais tarde e a Sexta Divisão ficaria na Inglaterra. Quando o Conselho de Guerra
encerrou a reunião, Kitchener - mas não os generais - ficou corn a impressão de que ficara decidido
que Amiens seria o destino da FEB.

Quando o Coronel Huguet chegou, enviado às pressas pelo Estado-Maior francês, Wilson
informou-lhe as datas de embarque. Embora não se tratasse de algo a ser ocultado dos franceses, ele
incorreu na ira de Kitchener e recebeu uma repreensão por quebra de sigilo. Wilson deu-lhe ”uma
resposta à altura”, não tendo ”intenção alguma de ser intimidado por Kitchener, especialmente
quando ele diz tantas bobagens como disse hoje”. Assim teve início, ou agravouse, uma antipatia
mútua que em nada ajudaria o destino da FEB. Wilson, que, de todos os oficiais britânicos era o
mais ligado aos franceses e aos ouvidos de Sir John French, era considerado convencido e
presunçoso por Kitchener, que por isso o ignorava; por sua vez, Wilson afirmava que Kitchener era
”louco” e ”tão inimigo da Inglaterra quanto Moltke”, e insulava seu veneno na mente do
Comandanteem-Chefe, de temperamento desconfiado e excitável.

De 6 a 10 de agosto, enquanto os alemães em Liège aguardavam os canhões de sítio e os franceses


estavam libertando Mulhouse para perdê-la logo depois, 80.000 soldados da FEB, corn 30.000
cavalos, 315 canhões de campanha e 125 metralhadoras, reuniam-se em Southampton e Portsmouth.
As espadas dos oficiais estavam recém-afiadas, em obediência a uma ordem de enviá-las a um
armeiro no terceiro dia da mobilização, apesar de nunca terem sido usadas para outro fim
232 que não fossem os desfiles militares. À parte esses ocasionais gestos
nostálgicos, a Força Expedicionária, nas palavras de seu historiador oficial, era ”o Exército
britânico melhor treinado, melhor organizado e melhor equipado que já partira para uma guerra”.

O embarque começou no dia 9 de agosto. Os transportes partiam em intervalos de dez minutos.


Cada vez que um deles deixava o cais, todos os outros navios no porto tocavam apitos e sirenes,
todas as pessoas aplaudiam e davam vivas. Tão ensurdecedor era o ruído que, segundo um oficial, o
General Von Moltke não poderia deixar de escutá-lo em Liège. No entanto, corn a confiança que a
Marinha professava de ter bloqueado o Canal da Mancha para qualquer ataque, não era grande o
temor pela segurança da travessia e os transportes atravessaram à noite, sem escolta. Um soldado
que despertou às 4:30 da madrugada ficou atônito ao ver toda a frota de transportes corn os motores
parados, flutuando num mar absolutamente imóvel sem um único destróier à vista; estavam
esperando que os transportes vindos dos outros portos de embarque chegassem para o encontro
marcado no meio do Canal.

Quando os primeiros soldados ingleses desembarcaram em Rouen, foram recebidos, segundo uma
testemunha francesa, corn tamanho fervor que pareciam estar vindo para conduzir uma cerimônia
de expiação por Joana d’Are. Outros desembarcaram em Bolonha, ao pé de uma altíssima coluna
erigida em honra de Napoleão no local de onde ele planejara iniciar a invasão da Inglaterra. Outros
transportes chegaram ao Havre, onde os soldados da guarnição francesa subiram ao alto de suas
barracas para saudar euforicamente os aliados que desembarcavam pelas pranchas no calor intenso.
Naquela tarde, ao som de uma distante trovoada de verão, o sol morreu corn um brilho
vermelho-sanguíneo.

No dia seguinte os aliados britânicos foram finalmente avistados em Bruxelas - embora de relance.
Hugh Gibson, Primeiro-Secretário da Legação americana, que levava um recado para o Adido
Militar inglês, entrou na sala deste último sem se fazer anunciar e deparou corn um oficial inglês
sujo e barbado, em farda de campanha, escrevendo a uma mesa. Levado às pressas para fora do
aposento pelo Adido, Gibson perguntou corn irreverência se o resto do Exército britânico estava
escondido no prédio. Aliás, o segredo da localização dos desembarques britânicos foi tão bem
guardado dos alemães que eles só saberiam onde ou quando a FEB chegara quando esbarrassem
corn ela em Mons.

Na Inglaterra, as antipatias entre os comandantes estavam vindo à tona. Numa visita de inspeção, o
Rei perguntou a Haig, que era

233
íntimo da corte, sua opinião a respeito de Sir John French como Comandante-em-Chefe. Haig
considerou seu dever responder:

- Tenho sérias dúvidas de que o temperamento dele seja suficientemente estável, ou seu
conhecimento militar suficientemente profundo, para permitir-lhe ser um comandante eficiente.

Depois que o Rei partiu, Haig escreveu em seu diário que as idéias militares de Sir John durante a
Guerra dos Bôeres ”freqüentemente me chocavam”, e expressou a péssima opinião que tinha de Sir
Archibald Murray, uma ”tia velha” que ”concorda medrosamente” corn ordens que seu born senso
lhe diz serem errôneas, apenas para evitar cenas corn o temperamento difícil de Sir John. Nenhum
dos dois, na opinião de Haig, ”tem capacidade para os cargos que agora ocupam”. Ele confidenciou
a um colega oficial que Sir John recusava-se a ouvir Murray mas ”confia em Wilson, o que é muito
pior”
- Wilson não era um soldado, mas ”um político”, uma palavra que, segundo Haig, era ”sinônimo de
negócios escusos e valores errados”.

Desabafando esses sentimentos, o calmo, educado e impecável Haig, que tinha amigos nos lugares
certos e, aos 53 anos, uma carreira de sucesso ininterrupto, preparava seu caminho para mais
sucessos. Sendo ele um oficial que durante a campanha no Sudão incluíra ”um camelo carregado de
clareie” na bagagem pessoal que o acompanhara através do deserto, estava acostumado a tratar bem
de si mesmo.

No dia 11 de agosto, faltando três dias para a partida para a França, Sir John French pela primeira
vez tomou conhecimento de alguns fatos interessantes a respeito do Exército alemão. Ele e o
General Caldwell, Vice-Diretor de Operações, visitaram o Serviço de Informações, cujo chefe
começou a descrever-lhes o sistema alemão de utilizar os reservistas. Caldwell escreveu: ”Ele não
parava de mencionar novas levas de Divisões de Reserva e Divisões de ExtraReserva, como um
mágico tirando peixinhos do bolso. Parecia estar fazendo isso de propósito. Aquele homem
despertava muita irritação”.

Tratavam-se dos mesmos fatos que o Serviço de Informações francês descobriu na primavera de
1914, tarde demais para impressionar o Estado-Maior ou mudar sua estimativa acerca da ala direita
alemã. Era tarde demais também para fazer os ingleses mudarem de idéia. Seria necessário muito
tempo, bem mais do que ainda restava, para que uma nova idéia pudesse penetrar e efetuar uma
mudança fundamental na estratégia, assim como em todos os infinitos detalhes
23i materiais de organização.
No dia seguinte, a briga entre Kitchener e os generais a respeito da estratégia teve um embate final
na última reunião do Conselho de Guerra. Além de Kitchener, estavam presentes Sir John French,
Murray, Wilson, Huguet e dois outros oficiais franceses. Embora Kitchener não pudesse escutar,
senão corn os ouvidos da imaginação, os projéteis explosivos dos 420s abrindo as estradas em volta
de Liège, mesmo assim asseverou que os alemães viriam através do extremo do Meuse ”corn
grande força”. corn um gesto largo, traçou a manobra alemã de cerco num enorme mapa afixado à
parede e afirmou que, se a FEB se concentrasse em Maubeuge, ela seria dizimada antes de estar
preparada para combater e seria forçada a uma retirada desastrosa para o moral inglês no primeiro
confronto corn um inimigo europeu desde a Criméia. Argumentou que uma base mais distante, em
Amiens, proporcionaria mais liberdade de ação.

Seus seis oponentes - os três oficiais ingleses e os três franceses


- estavam igualmente decididos a manter o plano original. Sir John French, que vinha sendo
assessorado por Wilson depois da sua própria sugestão de um desvio para Antuérpia, agora
protestava que qualquer mudança iria ”atrapalhar” o plano de campanha francês, e continuava
determinado a ir para Maubeuge. Os oficiais franceses enfatizaram a necessidade de fechar a
extremidade esquerda da sua linha. Wilson indignava-se interiormente corn a ”covardia” que seria a
concentração em Amiens. Kitchener afirmou que o plano de campanha francês era perigoso e que,
em vez de tomar a ofensiva, à qual ele era ”inteiramente contrário”, eles deviam esperar um ataque
alemão para então reagir.

A discussão prosseguiu por mais três horas, até que Kitchener, não convencido, foi gradualmente
forçado a ceder. O plano existia, ele o conhecia e o desaprovava fundamentalmente havia cinco
anos. Agora, corn as tropas já no mar, o plano tinha que ser aceito, porque já não havia tempo para
se fazer outro.

Num último gesto infrutífero - ou calculado para eximir-se da responsabilidade - Kitchener


apresentou o assunto ao PrimeiroMinistro, levando consigo Sir John French. ”Sem saber coisa
alguma sobre a questão”, como Wilson escreveu em seu diário, Asquith fez o que era de se esperar:
entre as opiniões de Kitchener e a opinião especializada e unânime dos Estados-Maiores em
conjunto, ele aceitou esta última. Embora reduzida a quatro em vez de seis divisões, a FEB seguiu
conforme combinado; o impulso da predeterminação conseguira outra vitória.

235
No entanto, Kitchener - ao contrário dos ministros da guerra na França e na Alemanha - manteve a
direção do esforço militar de seu país, e as instruções que posteriormente deu a Sir John French para
a condução da FEB na França refletiam seu desejo de diminuir a vulnerabilidade da Força
Expedicionária nos primeiros estágios da guerra. Como Churchill, que, prevendo a enorme tarefa da
Marinha britânica, ordenara que a Frota do Mediterrâneo ao mesmo tempo desse cornbate ao
Goeben e evitasse combater ”forças superiores”, assim também Kitchener, prevendo o exército de
milhões que ele teria que reunir, deu à FEB uma diretriz e uma missão irreconciliáveis entre si.

Ele escreveu: ”O objetivo principal da Força sob seu comando é apoiar e cooperar corn o Exército
francês (...) e ajudar os franceses a impedir ou repelir a invasão de território francês ou belga pela
Alemanha”. E acrescentou, corn certo otimismo: ”(...) e posteriormente restaurar a neutralidade da
Bélgica” - um projeto comparável a restaurar uma virgindade. Como o ”poderio numérico da força
inglesa e seus possíveis reforços são estritamente limitados”, e tendo esse fato ”sempre em mente”,
seria necessário exercer ”o maior cuidado para ter um mínimo de perda e desperdício”. Refletindo a
desaprovação que Kitchener professava pela estratégia ofensiva francesa, sua ordem dizia que, se
chamado a participar de qualquer ”movimento de avanço” no qual os franceses não participassem
em grande número e no qual os ingleses pudessem ficar ”indevidamente expostos a ataques”, Sir
John deveria primeiramente consultar seu Governo e também ”compreender perfeitamente que seu
comando é inteiramente independente e que em caso nenhum o senhor ficará em qualquer sentido
sob as ordens de qualquer general aliado”.

Nada podia ser mais ambíguo. De um só golpe Kitchener cancelara o princípio da unidade de
comando. Seu motivo era preservar o Exército inglês como um núcleo para o futuro; a
conseqüência, tratando-se de um oficial corn o temperamento de Sir John, foi praticamente anular a
ordem de ”apoiar” e ”colaborar” corn os franceses. Essa ambigüidade perseguiria o esforço de
guerra aliado muito depois de Sir John ter sido substituído e do próprio Kitchener estar morto.

No dia 14 de agosto, Sir John French, Murray, Wilson e um oficial do staffque tinha o encorajador
nome de Major Sir Hereward Wake57 chegaram a Amiens, onde os soldados britânicos desembar-

l
^ 57 Hereioard Wake, tomado ao pé da letra, pode ser traduzido, entre outras acepções, por
caram dos trens para prosseguirem até a área de concentração, ao redor de Lê Cateau e
Maubeuge. Nesse dia, enquanto eles começavam a subir, o Exército de Kluck, partindo de
Liège, começava a descer. A FEB, marchando alegremente pelas estradas para Lê Cateau e
Mons, foi entusiasticamente saudada ao longo do caminho corn gritos de ”Vivent lês
anglais!”.

O entusiasmo das boas-vindas deu razão ao aviso acautelador de Lord Kitchener aos
soldados, de que eles deviam esperar ”encontrar tentações, tanto em vinho quanto em
mulheres”, às quais teriam que ”resistir totalmente”. Quanto mais para o norte os ingleses
marchavam, maior era o entusiasmo. Eles eram beijados e enfeitados corn flores. Mesas
repletas de comida e bebida lhes eram oferecidas e ninguém aceitava pagamento dos
ingleses. Uma toalha de mesa vermelha corn faixas brancas costuradas na forma da cruz de
Santo André da bandeira britânica pendia de uma balaustrada. Os soldados jogavam
distintivos regimentais, quepes e cintos para as garotas sorridentes e outros admiradores
que imploravam lembranças, a tal ponto que logo o Exército inglês marchava usando bonés
de tweed dos camponeses e as calças presas por barbante. Mais tarde um oficial da
cavalaria escreveu que ao longo de todo o caminho ӎramos festejados e aclamados pelo
povo, que logo nos veria pelas costas”. Rememorando aquela ocasião, ele recordava o
avanço da FEB para Mons como ”um mar de rosas durante todo o caminho”.

”velório vindo no di«^í»^p|f?^fl%|ííjíy

237
13

’Os Cossaeos Estão Chegando!’

No dia 5 de agosto, em São Petersburgo, o Embaixador da França, Paléologue, passou de carro por
um regimento de Cossaeos partindo para a frente. Seu general, vendo a bandeira francesa no carro
do Embaixador, debruçou-se em cima do cavalo para abraçá-lo e pediu-lhe para passar em revista
seu regimento. Enquanto Paléologue solenemente passava a tropa em revista de dentro de seu carro,
o General, entre brados de comando aos soldados, dirigia gritos de encorajamento ao Embaixador:

- Vamos destruir aqueles prussianos imundos! Vamos acabar corn a Prússia e corn a Alemanha!
William em Santa Helena!

Terminada a revista, ele afastou-se a galope atrás de seu regimento, acenando corn o sabre e
soltando seu grito de guerra:

- William em Santa Helena!

Os russos, cuja briga corn a Áustria tinha precipitado a guerra, eram gratos à França por cumprir os
termos da sua aliança, e sentiamse ansiosos em mostrar igual lealdade apoiando o plano francês. O
Czar foi levado a dizer, mostrando mais entusiasmo do que realmente sentia, que ”Nosso primeiro
objetivo é a aniquilação do Exército alemão”; ele assegurou aos franceses que considerava
”secundárias” as operações contra a Áustria e que tinha ordenado ao Grão-Duque ”abrir a qualquer
custo o caminho para Berlim, o mais cedo possível”.

Nos últimos dias da crise, o Grão-Duque tinha sido nomeado Comandante-em-Chefe, apesar da
amarga hostilidade de Sukhomlinov, que queria o posto para si. Entre os dois, nem mesmo o regime
russo nos últimos dias dos Romanov era louco bastante para escolher Sukhomlinov, corn suas
tendências alemãs, para liderar uma guerra contra a Alemanha. No entanto, ele continuou como
Ministro da Guerra. j

Os franceses, não sabendo se a Rússia poderia ou desejaria fazer realmente o que prometera, desde
a abertura da guerra exortavam seu aliado a apressar-se. O Embaixador Paléologue, numa audiência
corn o Czar no dia 5 de agosto, rogava:

- Suplico a Vossa Majestade que ordene aos seus exércitos que iniciem uma ofensiva imediata; caso
contrário/o Exército francês

238 corre o risco de ser esmagado.


l
Não satisfeito em falar corn o Czar, Paléologue visitou também o Grão-Duque, que assegurou ao
Embaixador que pretendia iniciar uma vigorosa ofensiva no dia 14 de agosto, mantendo a promessa
do décimo quinto dia de mobilização, sem esperar que todo o seu exército estivesse concentrado.
Embora famoso por seu modo de falar direto, às vezes impublicável, o Grão-Duque ali mesmo
compôs para Joffre uina mensagem de cavalheirismo medieval, segundo a qual ele marcharia contra
o inimigo ”corn a firme convicção da vitória”, levando, ao lado de seu próprio estandarte, a
bandeira da República da França corn que Joffre o presenteara durante os exercícios de guerra de
1912.

Estava bem claro que havia uma certa distância entre as promessas feita? aos franceses e os
preparativos para a ação, e isso pode ter sido a causa das lágrimas que, segundo relatos, o
Grão-Duque verteu quando foi nomeado Comandante-em-Chefe. Segundo um colega, ele ”parecia
inteiramente despreparado para a tarefa e, citando suas próprias palavras, ao receber a ordem
imperial passou muito tempo chorandP porque não sabia como abordar seus deveres”. Um
importante estudioso da história militar da Rússia considerou o Grão-Duque ”eminentemente
qualificado” para sua tarefa, e suas lágrimas podem ttfr sido mais pela Rússia e pelo mundo do que
por si mesmo.

O ano de 1914 tinha uma aura que fazia estremecerem pela humanidade aqueles que a percebiam.
Até os mais corajosos e resolutos choravam. Messimy, abrindo uma reunião do Gabinete no dia
5 de agosto corn um discurso cheio de coragem e confiança, interrompeu-0 pela metade, escondeu o
rosto nas mãos e rompeu em pranto. Winston Churchill, ao despedir-se de Henry Wilson desejando
sorte e sucesso à FEB, ”descontrolou-se e chorou tanto que não conseguia terminar a frase”. Essa
mesma emoção era sentida em São Petersbufgo.

Os colegas do Grão-Duque não constituíam o mais forte dos apoios. Eín 1914, o Chefe do
Estado-Maior era o General Yanushkevich, um fiomem de 44 anos, bigodes pretos e cabelos
encaracolados, famoso principalmente por não usar barba e a quem o Ministro da Guerra
considerava ”ainda um garoto”. Mais cortesão do que soldado, ele não combatera na guerra
japonesa, embora tivesse servido no mesmo Regimento de Guardas que Nicholas II, o que era uma
razão tão boa quanto qualquer outra para obter uma promoção rápida. Diplomara-se pelo
StaffCollege e mais tarde comandou-o; servira na equipe do Ministério da Guerra e quando a guerra
estourou ele era

239
Chefe do Estado-Maior havia apenas três meses. Assim como o Príncipe-Herdeiro alemão, ele era
completamente submisso à orientação do seu Subchefe, o severo e lacônico General Danilov, um
trabalhador incansável e estrito disciplinador que era o cérebro do Estado-Maior. O predecessor de
Yanushkevich, General Jilinsky, preferira deixar o posto e convencera Sukhomlinov a nomeá-lo
comandante do distrito militar de Varsóvia. Ele agora tinha o comando geral, sob as ordens do
Grão-Duque, do Grupo Noroeste do Exército na frente contra a Alemanha. Na guerra
russo-japonesa ele servira, corn pouca distinção mas nenhum erro, como Chefe do staff do
Comandante-em-Chefe, General Kuropatkin; sobrevivendo àquele túmulo de reputações, ele
conseguira permanecer nos altos escalões sem ter popularidade pessoal ou talento militar.

A Rússia não fizera preparativo algum para viabilizar o adiantamento da data do ataque que ela
prometera aos franceses e na última hora foi obrigada a recorrer ao improviso. Foi ordenado um
esquema de ”mobilização em avanço” que deixava de lado certos estágios preliminares para ganhar
alguns dias. Uma torrente de telegramas de Paris, entregues corn a eloqüência pessoal de
Paléologue, mantinha a pressão. No dia 6 de agosto, as ordens do Estado-Maior russo diziam ser
essencial estarem preparados ”para uma enérgica ofensiva contra a Alemanha o mais cedo possível,
para facilitar a situação dos franceses, mas, naturalmente, só quando dispusermos de forças
suficientes”.

No dia 10 de agosto, no entanto, essa condição acerca de ”forças suficientes” tinha sido descartada.
As ordens naquele dia diziam: ”Naturalmente é nosso dever apoiar a França, em vista do grande
golpe preparado contra ela pela Alemanha. Esse apoio pode ter a forma do avanço mais rápido
possível contra a Alemanha, ou do ataque às forças que ela deixou para trás na Prússia Oriental.” O
Primeiro e o Segundo Exércitos receberam ordens de estar ”em posição” para avançar no dia M-14
(13 de agosto), embora tivessem que partir sem seus serviços de suprimento, que só estariam
inteiramente preparados no dia M-20 (19 de agosto).

As dificuldades de organização eram imensas; a essência do problema, como certa vez o


Grão-Duque confessou a Poincaré, era que quando se dava uma ordem num império vasto como a
Rússia, ninguém jamais podia ter certeza se ela fora realmente recebida. A falta de fios telefônicos,
equipamentos telegráficos e pessoal treinado tornava impossível uma comunicação segura ou
rápida. A falta de
240 transP°rte motorizado também retardava o ritmo russo: em 1914, o
Exército tinha 418 veículos de transporte motorizados, 259 carros de passageiros e duas
ambulâncias motorizadas. (Tinha, porém, 320 aeroplanos.) Como resultado, os suprimentos ficavam
dependendo de transporte a cavalo, depois de deixarem as ferrovias.

O serviço de suprimento era, na melhor das hipóteses, irregular. Depois da guerra japonesa, os
testemunhos durante os julgamentos revelaram no exército uma rede oculta de propinas e
apropriações. Quando até mesmo o governador de Moscou, General Reinbot, foi aprisionado,
acusado de desonestidade nos contratos do exército, ele ainda contava corn suficiente influência
pessoal para obter não apenas o perdão mas também a nomeação para outro cargo. Reunindo-se
corn a equipe do seu serviço de intendência pela primeira vez como Comandante-em-Chefe, o
Grão-Duque exigiu:

- Cavalheiros, nada de roubos.

A vodca, outro tradicional companheiro da guerra, foi proibida. Na última mobilização, em 1904,
quando os soldados chegavam cambaleando e os depósitos regimentais eram uma confusão de
bêbados sonolentos e garrafas quebradas, fora preciso uma semana a mais para pôr fim à bagunça.
Agora, corn os franceses considerando cada dia de atraso uma questão de vida ou morte, a Rússia
recorreu à proibição como uma medida provisória durante o período da mobilização.

Nada poderia ter dado uma prova mais prática ou mais sincera de sua intenção leal de aceder aos
pedidos de pressa feitos pelos franceses, mas, corn aquele toque de impetuosidade característico
desse período final dos Romanov, o governo, num ucasse58 de 22 de agosto, estendeu a proibição
para todo o período da guerra. Como a venda de vodca era monopólio estatal, esse decreto cortou,
de um só golpe, um terço da renda do governo. Um perplexo membro da Duma59 comentou que era
notório que oe-governos em guerra procuram aumentar seu faturamento através de taxas e impostos,
”mas nunca, desde os primórdios da História, um país em guerra renunciou à sua principal fonte de
renda”.

Nos últimos momentos do décimo quinto dia, às 23:00 de uma linda noite de verão, o Grão-Duque
deixou a capital em demanda do quartel-general de campanha em Baranovichi, um entroncamento

l
58 Ucasse: nome dado aos decretos do Czar. (N. da T.)

59 Duma: antigo parlamento russo, criado em 1905 pelo Czar Nicholas II como órgão consultivo e extinto pela revolução
de 1917. (N. da T.)

241
242

ferroviário na linha Moscou-Varsóvia a meio caminho entre as frentes alemã e austríaca. Ele, sua
equipe e as famílias, reuniram-se em grupos tímidos na plataforma da estação de São Petersburgo,
esperando o Czar chegar para despedir-se do Comandante-em-Chefe. No entanto, os ciúmes da
Czarina sobrepujaram a cortesia, e Nicholas não apareceu. As despedidas e as preces foram feitas
em voz baixa; em silêncio, os homens tomaram seus lugares no trem e partiram.

Por trás da linha de combate, o esforço para reunir exércitos ainda estava em progresso. A cavalaria
russa em missão de reconhecimento vinha examinando o território alemão desde o primeiro dia da
guerra. Suas incursões tiveram menos sucesso em romper a malha alemã do que em fornecer um
pretexto para manchetes escandalosas nos jornais alemães e histórias fantasiosas sobre a brutalidade
dos cossacos. Ainda no dia 4 de agosto, em Frankfurt, na borda ocidental da Alemanha, um oficial
ouviu boatos de que 30.000 refugiados da Prússia Oriental estavam chegando para serem
acomodados naquela cidade. Os pedidos para que se salvasse a Prússia Oriental das hordas eslavas
começaram a distrair o Estado-Maior alemão da tarefa de concentrar todo o esforço militar contra a
França.

Na madrugada de 12 de agosto, um destacamento do Primeiro Exército do General Rennenkampf,


consistindo numa divisão de cavalaria comandada pelo General Gourko e apoiado por uma divisão
de infantaria, abriu a invasão da Prússia Oriental à frente do avanço principal e tomou a cidade de
Marggrabowa, oito quilômetros depois da fronteira. Disparando tiros ao atravessarem os subúrbios
e entrarem na praça do mercado deserta, os russos encontraram a cidade sem defesa e evacuada
pelos soldados alemães. As lojas estavam fechadas, mas os habitantes espiavam pelas janelas. No
campo, os moradores fugiam precipitadamente à frente dos esquadrões que avançavam, antes de
haver luta, como se aquilo tivesse sido combinado de antemão.

Na primeira manhã, os russos avistaram colunas de fumaça negra ao longo de sua linha de marcha;
ao se aproximarem, constataram não se tratar de fazendas e casas incendiadas pelos donos antes de
fugirem, mas montes de palha queimados para sinalizar a direção dos invasores. Em toda parte
havia evidências da sistemática preparação dos alemães. Torres de vigia tinham sido construídas em
madeira no alto das colinas. Os garotos das fazendas locais, entre doze e quatorze anos, tinham
recebido bicicletas para operarem como mensageiros. Soldados alemães postados como informantes
foram
descobertos vestidos de camponeses e até mesmo de camponesas. Esses últimos foram descobertos,
presumivelmente durante ações não-militares, pelas roupas íntimas fornecidas pelo governo, mas
decerto muitos jamais foram flagrados, pois, como admitiu melancolicamente o General Gourko,
seria impossível levantar as saias de todas as mulheres da Prússia Oriental.

Ao receber os relatórios do General Gourko acerca de cidades evacuadas e populações em fuga, e


concluindo que os alemães não estavam planejando uma resistência séria tão a leste de sua base no
Vístula, o General Rennenkampf ficou ainda mais ansioso em arremeter para a frente e menos
preocupado corn seu serviço de suprimento, ainda incompleto.

Rennenkampf, um oficial aprumado e elegante de 61 anos, corn um olhar direto e um imponente


bigode de pontas viradas para cima, conquistara a reputação de coragem, decisão e habilidade tática
durante a Rebelião Boxer, como comandante de uma divisão de Cavalaria na guerra russo-japonesa
e como líder da expedição punitiva a Chita, onde exterminou sem misericórdia o remanescente da
Revolução de 1905. Suas proezas militares foram ligeiramente ofuscadas por sua ascendência alemã
e por uma confusão inexplicada que, segundo o General Gourko, ”deixou sua reputação moral
consideravelmente prejudicada”. Quando, nas semanas seguintes, seu comportamento estranho fez
corn que esses fatores fossem lembrados, seus colegas mesmo assim permaneceram convencidos da
sua lealdade à Rússia.

Desprezando a cautela do General Jilinsky, comandante do Grupo Noroeste do Exército, que desde
o início mostrara-se pessimista, e apressando a concentração de seus três corpos de exército e suas
cinco e meia divisões de cavalaria, Rennenkampf abriu sua ofensiva no dia 17 de agosto. Seu
Primeiro Exército, corn cerca de 200.000 homens, atravessou a fronteira ao longo’de uma frente de
oito quilômetros interrompida pela Floresta Tomingen. Seu objetivo era o Desfiladeiro de
Insterburg, a uma distância de 60 quilômetros da fronteira, ou três dias de marcha na velocidade
russa.

O Desfiladeiro era uma extensão de terreno aberto, corn cerca de 48 quilômetros de largura, entre a
área fortificada de Kõnigsberg ao norte e os Lagos da Masúria ao sul. Era uma região de pequenas
aldeias e amplas fazendas, corn campos sem cercas e grande amplidão de vista nas ocasionais
elevações do terreno. Ali o Primeiro Exército poderia atravessar e enfrentar a principal força alemã
até que o Segundo Exército de Samsonov, contornando pelo sul a barreira dos

243
lagos, chegasse pa-a dar o golpe decisivo noflanco e na retaguarda dos alemães. Os do s Exércitos
russas deveriam reunir-se numa frente comum na área deAllenstein.

A linha de oljetivo do General Samsonov, alinhada corn a de Allenstein, ficava í 70 quilômetros da


fronteira, cerca de três dias e meio de marcha, ss tudo corresse bem. No entanto, entre seu ponto de
partida e seu objetivo havia muitas chances de acontecimentos inesperados - o que Clausewitz
denominava ”osatritos” da guerra. Devido à falta de uma linha férrea através da Polônia russa até a
Prússia Oriental, o Exército de Samsonov já teria uma semana de marcha quando conseguisse
atravessar a fronteiri, dois dias depois das tropas de Renrenkampf. Sua linha de marcha seguia por
estradas arenosas, através de uma região deserta e abandonada, pontilhada de florestas e pântanos e
habitada poruns poucos miseráveis campônios poloneses. Uma vez em território hostil, haveria
poucos recursos de alimento para horrens e animais.

O General Semsonov, ao contrário de Rennenkampf, não era familiarizado coma região, nem corn
seus soldados ou seu staff. Em
1877, na idade de 18 anos, ele combatera os turcos; aos 43 já era general; na guerra russo-japonesa,
também ele comandara uma divisão de cavalaria; desde 1909 estava num cargo semimilitar, como
governador do Tuiquistão. corn 55 anos quando irrompeu a guerra, Samsonov encontrava-se em
licença para tratamento de saúde no Cáucaso e só no dia 12 de agosto chegou a Varsóvia e ao
quartel-general do Segundo Exército.

A comunicação entre o seu Exército e o de Rennenkampf, e também corn o quartel-general de


Jílinsky na retaguarda, encarregado de coordenar a movimentação dos dois exércitos, era errática.
De qualquer maneira, a precisão nos cronogramas não era uma virtude russa. Tendo completado a
campanha nos exercícios de guerra em abril corn praticamente os mesmos comandantes que sairiam
em campo em agosto, o Estado-Maior russo estava melancolicamente consciente de suas
dificuldades. Embora os exercícios de guerra, nos quais Sukhomlinoy fez p papel
deComandante-em-Chefe, tivessem revelado que o Primeiro Exército partira cedo demais, quando
veio a guerra seguiu-se o mesmo esquema, sem modificações. Contando dois dias para o avanço de
Rennenkampf e quatro dias para a marcha de Samsonov, haveria um período de seis dias durante os
quais o Exército alemão teria que enfrentar apenas um Exército russo.

No dia 17 de agosto, os dois corpos de cavalaria do General u Rennenkampf, vigiando seus


flancos à direita e à esquerda, tinham
ordens não apenas de proteger seu avanço mas também de cortar ambos os ramais da ferrovia para
impedir a retirada dos vagões ferroviários alemães. Tendo usado deliberadamente uma bitola
ferroviária diferente da alemã, como proteção contra uma invasão, os russos não poderiam trazer
seus próprios vagões ou usar a preciosa rede ferroviária da Prússia Oriental a não ser que
capturassem trens alemães. Naturalmente os alemães deixaram para trás pouquíssimo material
ferroviário.

O Exército russo, afastando-se cada vez mais de sua base e penetrando em território hostil, começou
quase de imediato a avançar mais depressa que seu transporte de suprimentos, puxado por cavalos e
ainda não inteiramente organizado. Carecendo de fios para estender suas próprias linhas de
comunicação, os russos dependiam das linhas e dos aparelhos de telégrafo alemães, e, ao
encontrarem essa aparelhagem destruída, passaram a mandar mensagens pelo rádio - sem
codificá-las, pois não dispunham de códigos ou criptógrafos.

Poucas missões de reconhecimento ou de localização de artilharia foram levadas a cabo por


aeroplanos, pois a maior parte da força aérea tinha sido enviada para a frente austríaca. Quando os
soldados russos avistaram pela primeira vez na vida um aeroplano, dispararam seus fuzis contra ele,
convencidos de que uma invenção tão inteligente só podia ser alemã. Os soldados rasos consumiam
enormes quantidades de pão preto e chá, aos quais era atribuída embora não seja fácil saber a razão
- a capacidade de dar-lhes um cheiro parecido corn o de um cavalo. Estavam armados de uma
baioneta de quatro gumes que, quando montada no fuzil, tornava-se uma arma corn o comprimento
de um homem e lhes dava vantagem sobre os alemães no combate corpo a corpo. Em poder de fogo
e eficiência de luta, no entanto, a preponderância alemã na artilharia fazia duas divisões alemãs
corresponderem a três russas.

Essa desvantagem russa não diminuía o ódio recíproco de Sukhomlinov como Ministro da Guerra e
o Grão-Duque como Comandante-em-Chefe, especialmente porque a ligação entre a frente e a
retaguarda já era péssima, e o problema do suprimento era ainda pior. Antes de completado um mês
de luta, a falta de projéteis já era tão desesperadora, e a indiferença ou letargia do Ministério da
Guerra tão desanimadora, que no dia 8 de setembro o Grão-Duque foi levado a apelar diretamente
ao Czar. Segundo ele, as operações na frente austríaca teriam que ser paralisadas até que o estoque
de projéteis 245
chegasse a 100 por arma. ”No momento temos apenas 25 por arma. Acho necessário pedir a Vossa
Majestade para apressar o envio de munição.”

O grito de ”Kosaken kommen! (Os cossacos estão chegando!)”, vindo da Prússia Oriental, abalou a
resolução alemã de deixar naquela província um mínimo de defesa. O Oitavo Exército na Prússia
Oriental, composto por quatro corpos e meio, uma divisão de cavalaria, tropas da guarnição de
Kõnigsberg e algumas brigadas territoriais, era quase igual em número a qualquer dos dois exércitos
russos. As ordens de Moltke mandavam-no defender a Prússia Oriental e a Prússia Ocidental mas
sem se deixar aniquilar por forças superiores ou ver-se obrigado a entrar na praça fortificada de
Kõnigsberg; se ameaçado por forças muito superiores, ele deveria retirar-se para o outro lado do
Vístula, deixando a Prússia Oriental em mãos do inimigo. Tais ordens continham ”perigos
psicológicos para os fracos de caráter”, na opinião do Coronel Max Hoffmann, agora Subchefe de
Operações do Oitavo Exército.

O ”fraco de caráter” que Hoffmann tinha em mente era o General-de-Divisão Von Prittwitz und
Graffon, comandante do Oitavo Exército. Como favorito da corte, Prittwitz tivera uma carreira de
promoções rápidas porque, segundo um colega oficial, ”sabia como chegar aos ouvidos do Kaiser
durante uma refeição corn histórias engraçadas e mexericos picantes”. Agora corn 66 anos e famoso
pelo tamanho da barriga, era uma versão alemã de Falstaff, ”de aparência impressionante,
consciente ao último grau de sua importância, implacável, até mesmo rude e auto-indulgente”.
Conhecido como der Dicke (o Gorducho), ele não tinha qualquer interesse intelectual ou militar, e
nunca se movimentava se pudesse evitá-lo. Moltke, que o considerava inapto para o cargo, em vão
tentara durante anos retirar sua indicação para o comando do Oitavo Exército, mas as ligações de
Prittwitz inutilizaram seus esforços. O máximo que Moltke conseguiu foi nomear seu próprio vice,
o Conde Von Waldersee, para a chefia do staff de Prittwitz. Em agosto, Waldersee, sofrendo as
conseqüências de uma cirurgia, encontrava-se ainda, na opinião de Hoffmann, ”sem condições”, e
como Prittwitz nunca as tivera, Hoffmann ficou alegremente convencido de que o verdadeiro poder
para comandar o Oitavo Exército estava em mãos da pessoa melhor qualificada: ele próprio.

O temor pela Prússia Oriental tornou-se agudo no dia 15 de

agosto, quando o Japão declarou-se a favor dos aliados, liberando

^ grande parte das forças russas. Novamente a diplomacia alemã fra-


cassava em fazer ou manter amizades - nesse terreno, o sucesso sempre lhe escapava. O Japão tinha
idéias próprias acerca do que era melhor para seus interesses numa guerra européia, e essas idéias
eram bem compreendidas por sua tencionada vítima. ”O Japão vai tirar s vantagem desta guerra
para obter o controle sobre a China”, predisse !o Presidente Yuan Shi-kai. Como se viu, o Japão,
enquanto as potênícias européias estavam ocupadas demais para detê-lo, usou a oportunidade da
guerra para impor à China as Vinte e Uma Exigências e fazer incursões à soberania e ao território
chineses que iriam mudar a História do século XX. Para começar, o efeito imediato da união do
Japão corn os Aliados seria a liberação das forças russas do Extremo Oriente. Evocando visões de
mais hordas eslavas, os alemães tinham agora outro motivo para hesitar em deixar a Prússia
Oriental defendida apenas pelo Oitavo Exército.

Desde o início o General Von Prittwitz estava tendo problemas para controlar o comandante do seu
Primeiro Corpo, General Von François, um oficial de 50 anos de idade, descendente de huguenotes,
de olhos brilhantes e aparência ligeiramente parecida corn a de um Foch alemão. O Primeiro Corpo
era recrutado na Prússia Oriental; seu comandante, decidido a não permitir que um eslavo pisasse
em solo prussiano, ameaçava avançar demais e derrubar a estratégia do Oitavo Exército.

corn base nos cálculos de Hoffmann, o Oitavo Exército calculava que o Exército de Rennenkampf
avançaria primeiro e que a batalha ocorreria nos dias 19 e 20 de agosto na área de Gumbinnen,
cerca de
40 quilômetros da fronteira russa, antes que ele chegasse ao Desfiladeiro de Insterburg. Ao seu
encontro foram enviados três corpos e meio, além de uma divisão de cavalaria, enquanto o quarto
corpo seguia rumo ao sudeste para fazer contato corn o Exército de Samsonov que se aproximava.
No dia 16 de agosto, o quartel-general do Oitavo Exército mudou-se para Bartonstein, mais adiante,
mais perto da frente de Insterburg, onde, descobriu-se, François já chegara e ultrapassara
Gumbinnen. Ele acreditava em tomar a ofensiva imediatamente, ao passo que a estratégia de
Hoffmann era deixar o Exército de Rennenkampf chegar o mais longe possível em direção ao oeste
em seus dois primeiros dias de marcha, obedecendo à teoria de que quanto mais ele se afastasse de
sua base, mais vulnerável ficaria. Hoffmann não queria detê-lo; ao contrário, permitiu que ele
chegasse à área de Gumbinnen o mais depressa possível, para dar tempo aos alemães de enfrentá-lo
antes de serem obrigados a fazer meia-volta para enfrentar Samsonov.

247
François, ao avançar além de Gumbinnen, onde estabelecera seu quartel-general no dia 16 de
agosto, ameaçava arrastar atrás de si o resto do Oitavo Exército para apoiar seus flancos,
espalhando-se assim além de sua capacidade. No dia 16 Prittwitz ordenou-lhe peremptoriamente
que parasse. François fez por telefone um protesto indignado, afirmando que quanto mais perto da
Rússia ele enfrentasse o inimigo, menor o risco para o território alemão. Prittwitz respondeu que era
inevitável sacrificar parte da Prússia Oriental, e despachou uma ordem escrita lembrando que ele
era ”o único comandante” e tomando a proibir novo avanço. François ignorou-o. À 1:00 da
madrugada de 17 de agosto, Prittwitz, ”para seu enorme espanto”, recebeu uma mensagem de
François informando já estar em ação em Stallupõnen, 33 quilômetros além de Gumbinnen e a
menos de 13 quilômetros da fronteira russa.

Naquela manhã, quando o Exército de Rennenkampf cruzava a fronteira corn força total, seu in
Corpo, no centro, mais por falta de coordenação do que propositalmente, iniciou sua marcha várias
horas antes dos outros dois. Como os grupos de reconhecimento russos tinham localizado as forças
de François em Stallupõnen, foram dadas as ordens de ataque. A batalha teve lugar alguns
quilômetros a leste da cidade. O General François e a sua equipe estavam observando o progresso
da luta no alto da torre da igreja de Stallupõnen quando ”no meio daquela tensão”, o sino da igreja
começou a tocar de repente. A torre estremecia corn sua vibração, o telescópio tremia em seu tripé e
os oficiais, enfurecidos, soltaram um jato de maldições teutônicas sobre a cabeça do infeliz
conselheiro municipal que achou ser seu dever avisar o povo da chegada dos russos.

Fúria igual imperou no quartel-general do Oitavo Exército quando foi recebida a mensagem de
François. Por telefone e telegrama ele recebeu ordens de interromper a ação, e um
general-de-brigada foi enviado às pressas para confirmar pessoalmente essas ordens. Subindo à
torre num estado de espírito tão mal-humorado quanto o que já imperava ali, o emissário gritou para
François:

- O General-em-Chefe ordena que o senhor interrompa o combate imediatamente e^retire-se para


Gumbinnen!

Furioso corn o torn e os modos do outro, François retorquiu corn grandiloqüência:

- Informe o General Prittwitz que o General François irá interromper o combate quando tiver
derrotado os russos!

Enquanto isso, uma brigada alemã corn cinco baterias de artiftg lharia tinha sido destacada do
flanco direito alemão para pegar os
russos por trás. Como o avanço antecipado do in Corpo russo especialmente da sua 27a. Divisão,
agora combatendo em Stallupõnen - tinha aberto uma brecha entre ele e o corpo russo à sua
esquerda, o in Corpo ficou desprotegido diante de mm ataque alemão. O regimento sobre o qual
recaiu esse ataque dispersou e fugiu, envolvendo toda a 27a. Divisão e deixando 3.000 prisioneiros
para os alemães. Embora o resto do Exército de Rennenkampf tenha conseguido avançar até a
linha-objetivo determinada para aquele dia, a 27a. Divisão teve que recuar para a fronteira para
nova formação, impossibilitando o avanço marcado para o dia seguinte. Radiante corn a vitória, na
mesma noite François retirou-se para Gumbinnen, depois de evacuar Stallupõnen, pessoalmente
convencido das virtudes da desobediência.

Apesar da interrupção, o Exército de Rennçnkampf reiniciou seu avanço, mas já em 19 de agosto


ele começava a ressentir-se da irregularidade dos serviços de suprimento. A menos de 25
quilômetros de sua própria fronteira, os comandantes de corpos informavam que suprimentos não
chegavam e as mensagens de uns para os outros ou para o quartel-general não alcançavam seu
desitino. À sua frente, as estradas estavam entupidas de cabeças de gado e carneiros levados pela
população em fuga.

Essa fuga em massa e o movimento em retrocesso do corpo de Von François fizeram corn que
Rennenkampf e seu superior, o General Jilinsky, Comandante da Frente Noroeste, aoreditassem que
os alemães estavam evacuando a Prússia Ocidental. Isso não convinha aos russos; se o Exército
alemão batesse em retirada cedo demais, escaparia da destruição sob a pinça russa.
Conseqüentemente, Rennenkampf ordenou um alto no dia 20, menos por causa de suas próprias
dificuldades do que para atrair o inimigo para uma batalha e dar mais tempo para o Segundo
Exército de Samsonov chegar para o golpe decisivo sobre a retaguarda^lemã.

O General François estava mais do que de acordo. corn o cheiro da batalha novamente sob seu
nariz, no dia 19 ele telefonou para o General Prittwitz no quartel-general do Oitavo Exército e
exigiu permissão para contra-atacar em vez de prosseguir a retirada para Gumbinnen. Declarou que
se tratava de uma oportunidade de ouro, porque o avanço russo estava desordenado. Descreveu corn
eloqüência a fuga dos habitantes, e corn paixão demonstrou a vergonha de entregar o solo paterno
da Prússia às horríveis patas dos eslavos,

Prittwitz ficou dividido. Tencionando lutar atrás de Gumbinnen, o Oitavo Exército tinha suas
posições bem preparadas ao longo

2*9
do rio Angerapp, mas o avanço adiantado de François tinha estragado o plano e ele agora estava
cerca de 15 quilômetros além de Gumbinnen, a leste. Permitir que ele atacasse ali significaria
aceitar a luta longe da linha do Angerapp; os outros dois corpos e meio seriam empurrados atrás
dele e ficariam mais separados do XX Corpo, que tinha sido enviado para observar na frente
meridional a aproximação do Exército de Samsonov e que a qualquer momento poderia precisar de
ajuda.

Por outro lado, era muito desagradável continuar a exibir, para a população em pânico, o espetáculo
do Exército alemão em retirada, mesmo que por apenas 30 quilômetros. A decisão ficou ainda mais
difícil quando os alemães interceptaram a ordem de alto de Rennenkampf. A ordem foi enviada aos
comandantes de corpos russos por telégrafo, num código simples, que um professor de matemática
alemão que acompanhava o Oitavo Exército como criptógrafo não teve dificuldade em decifrar.

Isso levantava uma pergunta: por quanto tempo Rennenkampf ficaria parado? Estava a esgotar-se o
prazo em que os alemães poderiam combater apenas um exército russo, sem o outro; naquela noite,
três dos seis dias teriam passado. Se os alemães esperassem junto ao Angerapp que Rennenkampf
viesse enfrentá-los, poderiam ficar presos entre os dois exércitos.

Exatamente nesse momento chegou do XX Corpo a informação de que o Exército de Samsonov


tinha cruzado a fronteira naquela manhã: a segunda garra da pinça estava avançando. Os alemães
teriam que lutar contra Rennenkampf imediatamente, desistindo de suas defesas preparadas ao
longo do rio Angerapp, ou recuar e voltar-se contra Samsonov. Prittwitz e seu sfo/f decidiram pelo
ataque e ordenaram a François para atacar na manhã do dia seguinte, 20 de agosto. A única
dificuldade eram os outros dois corpos, que estavam esperando obedientemente perto do Angerapp
e não poderiam ser movimentados a tempo de alcançá-los.

A artilharia pesada de François abriu fogo antes do amanhecer, pegando os russos de surpresa. O
ataque durou meia hora. No luscofusco das 4:00 da manhã sua infantaria avançou pelos campos de
restolhos até chegarem à distância de tiros de fuzil das linhas russas. Quando o dia raiou, o combate
espalhou-se como um incêndio ao longo de toda a frente. As baterias de campanha russas
derramavam projéteis nas linhas cinzentas que avançavam e viam a estrada branca
250 à sua frente tornar-se cinzenta corn os corpos dos que tombavam.
Uma segunda onda cinzenta avançou, aproximando-se; os russos conseguiam distinguir os
capacetes pontudos. Suas baterias dispararam novamente, a onda caiu e outra surgiu. Os canhões
russos, que recebiam munição a uma taxa de 244 projéteis por dia, agora disparavam 440 por dia.

Um aeroplano corn cruzes negras sobrevoou e bombardeou as posições da artilharia russa. As ondas
cinzentas não paravam de avançar. Estavam a 500 passos quando as armas russas engasgaram e
silenciaram, sem munição. As duas divisões de François cortaram a
28a. Divisão russa, infligindo-lhe 60% de baixas, numa verdadeira devastação. A cavalaria de
François, corn três baterias de artilharia montada, fez um grande rodeio em volta da extremidade
russa desprotegida, sem qualquer interferência da cavalaria russa, que, não tendo artilharia,
retirou-se, permitindo que os alemães caíssem sobre os transportes russos na retaguarda.

Esse foi o destino do corpo da extremidade direita de Rennenkampf; no centro e à esquerda as


coisas correram de modo diferente.

Ali os russos, avisados pelo som do canhoneio noturno de François, estavam prontos para o ataque,
que veio fragmentado ao longo de uma frente de 55 quilômetros. No centro, o XVII Corpo alemão
só chegou à frente de batalha às 8:00, quatro horas depois de François, e na direita alemã o I Corpo
da Reserva só chegou ao meio-dia. O XVII Corpo era comandado pelo General August von
Mackensen, outro dos generais que tinham lutado em 1870 e estavam agora corn 65 anos ou mais.
OI Corpo da Reserva era comandado pelo General Otto von Below. Ambos os corpos estavam do
outro lado do rio Angerapp na noite de 19 de agosto, quando receberam a ordem inesperada de
juntar-se a François numa ofensiva além de Gumbinnen na manhã seguinte.

Reunindo às pressas as suas unidades, Mackensen atravessou o rio durante a noite, mas no outro
lado seus homens ficaram presos nas estradas bloqueadas por refugiados, carroças e rebanhos.
Quando conseguiram desembaraçar-se e avançar o suficiente para fazer contato corn o inimigo,
tinham perdido a vantagem da surpresa, e os russos abriram fogo primeiro.

O efeito de um tiroteio de armas pesadas é devastador, seja quem for a vítima, e nesse caso, um dos
raros em 1914, as vítimas foram os alemães. Os soldados da infantaria tiveram que ficar de cara no
chão, sem ousarem levantar as cabeças; carroças de munição explodiam; cavalos passavam
galopando sem cavaleiros. À tarde, a 251
35a. Divisão de Mackensen sucumbiu ao tiroteio. Uma companhia jogou fora as armas e correu,
outra foi contagiada pelo pânico, depois um regimento inteiro, depois os que o ladeavam. Logo as
estradas e os campos estavam cobertos de batalhões fluindo para a retaguarda. Oficiais de staff e de
campanha, além do próprio Mackensen, percorriam a frente em carros, tentando estancar o fluxo,
que continuou por quase 250 quilômetros antes de ser interrompido.

À direita de Mackensen, o I Corpo da Reserva de Von Below não tinha condições de ajudar, porque
se pusera em movimento ainda mais tarde, e quando chegou ao setor determinado em Goldap, na
borda da Floresta de Rominten, entrou imediatamente em feroz cornbate corn os russos. A
debandada do Corpo de Mackensen no centro deixou desprotegido o flanco esquerdo de Von
Below, forçando-o também a bater em retirada, tanto para cobrir a retirada de Mackensen quanto
para proteger a si mesmo. À direita de Von Below, a Terceira Divisão da Reserva, comandada pelo
General Von Morgen, que fora a última a deixar o Angerapp, só apareceu à noite, quando tudo
estava acabado, e não chegou a entrar em ação. Embora os alemães tivessem vendido caro a sua
retirada e François tivesse infligido pesadas perdas aos russos, a batalha de Gumbinnen foi, de
modo geral, uma vitória russa.

Prittzwitz viu toda a sua campanha anulada. Uma vigorosa perseguição russa através do estilhaçado
centro alemão poderia conseguir entrar no Desfiladeiro de Insterburg, dividindo o Oitavo Exército e
obrigando o Corpo de François a ir para o norte, refugiar-se dentro da praça fortificada de
Kõnigsberg, coisa que o OHL advertira expressamente que não poderia acontecer. Para salvar o
Oitavo Exército e mantê-lo unido, Prittwitz via como única solução a retirada para o Vístula. As
últimas palavras de Moltke para ele tinham sido: ”Mantenha o exército intacto. Não seja empurrado
para longe do Vístula, mas em caso de extrema necessidade abandone a região a leste do Vístula”.
Prittwitz sentia que era chegada a extrema necessidade, especialmente depois de falar ao telefone
corn Mackensen, que descreveu vividamente o pânico^de seus soldados.

Às 18:00 daquela tarde de 20 de agosto, ele telefonou para François e informou que, apesar do
sucesso em seu setor, o exército devia retirar-se para o Vístula. Atônito, François protestou
violentamente; ofereceu vários motivos para que Prittwitz reconsiderasse, argumentou que por
causa de suas próprias perdas os russos não poderiam organizar uma perseguição enérgica,
implorou-lhe que
&Sfe

mudasse de idéia. Desligou corn a impressão de que Prittwitz não estava inteiramente inabalável e
que concordara em pensar no assunto.

No quartel-general, dentro de um caos de excitadas idas e vindas e de informações conflitantes, uma


realidade espantosa começou a tornar-se óbvia: não estava havendo perseguição. No quartelgeneral
russo, Rennenkampf tinha dado a ordem de perseguição entre
15:00 e 16:00 daquela tarde, mas devido a informações de que a artilharia pesada alemã estava
cobrindo a retirada de Mackensen ele cancelou a ordem às 16:30. Em dúvida quanto à extensão da
debandada alemã no centro, ele aguardou. A um oficial do staff, exausto, que lhe pedira permissão
para ir para a cama, ele disse que poderia deitar-se, mas não despir-se. O soldado dormiu durante
uma hora e foi despertado por Rennenkampf, que, postado junto à cama, disselhe, sorridente:

- Agora você pode tirar a roupa; os alemães estão fugindo.

Os historiadores militares que enxameiam sobre uma batalha depois que ela termina teceram muitos
comentários acerca dessa frase
- especialmente Hoffmann, corn malicioso prazer, numa versão bastante distorcida. Esses
historiadores observam, corn certa razão, que quando um inimigo está batendo em retirada a hora é
de perseguir, não de ir para a cama.

Por causa dos importantes resultados da batalha de Tannenberg, da qual Gumbinnen foi uma
preliminar, essa decisão da Rennenkampf provocou muitas explicações e acusações febris, não
faltando referências à sua ascendência alemã e a acusação explícita de traição. A explicação mais
provável foi dada cem anos antes do acontecimento por Clausewitz, que escreveu, a respeito do
problema da perseguição: ”A massa total de tudo que é físico em um exército exige descanso e
alimento. É necessário um vigor excepcional de um comandante para ver e sentir além do momento
presente e agir imediatamente para obter os resultados que no momento parecem ser simples
enfeites da vitória - o deleite do triunfo.”

Tendo ou não percebido esses resultados, o fato era que Rennenkampf não podia, ou achava que
não podia, jogar-se atrás do inimigo em fuga para arrancar a vitória definitiva. Suas linhas de
suprimento funcionavam precariamente; afastar-se mais ainda do terminal ferroviário significaria
colocar-se fora do alcance. Ele estaria esticando suas linhas em território hostil ao passo que os
alemães, aproximando-se de sua base, encurtavam as suas. Ele não podia utilizar as

253
ferrovias alemãs sem capturar seus trens, e não tinha equipes ferroviárias para alterar a bitola. Seu
transporte estava caótico, depois do ataque da cavalaria alemã; a cavalaria de sua ala direita tivera
péssimo desempenho e ele perdera quase toda uma divisão. Assim, decidiu ficar onde estava.

A noite estava quente. O Coronel Hoffmann estava parado do lado de fora da casa onde se
localizava o quartel-general alemão, debatendo a batalha e as perspectivas do dia seguinte corn seu
superior imediato, o General-de-Brigada Grunert, corn quem ele esperava governar as vontades
mais fracas de Prittwitz e Waldersee. Exatamente nesse momento foi-lhes entregue uma mensagem
do General Scholtz do XX Corpo, informando que o Exército meridional russo estava agora corn
quatro ou cinco corpos do outro lado da fronteira e avançando numa frente de 90 a 95 quilômetros
de largura. Hoffmann, corn seus modos perturbadores que ninguém sabia se devia levar a sério,
sugeriu ”suprimirem” a mensagem, ocultando-a de Prittwitz e Waldersee, que, em sua opinião,
”tinham naquele momento perdido o controle de seus nervos”.

Nas memórias de guerra, nenhuma outra frase consegue a universalidade de ”Ele perdeu o controle
de seus nervos”, geralmente aplicada a um colega; nesse caso, ela era sem dúvida justificada. No
entanto, a breve conspiração de Hoffmann foi em vão, pois nesse momento Prittwitz e Waldersee
saíram da casa corn expressões que mostravam que eles também tinham recebido o relatório.
Prittwitz chamou-os para dentro e disse:

- Senhores, se continuarmos a combater o Exército de Vilna, o Exército de Varsóvia irá avançar em


nossa retaguarda e bloquear nosso caminho para o Vístula. Temos que interromper a luta contra o
Exército de Vilna e bater em retirada para o outro lado do Vístula.

Ele já não falava em retirada ”para” o Vístula, mas sim ”para o outro lado” do Vístula.

Imediatamente Hoffmann e Grunert puseram-se a questionar essa necessidade, argumentando que


eles poderiam ”liquidar” a batalha contra o Exército de Vilna em dois ou três dias, ainda a tempo de
enfrentar o perigo do sul, e até então os Corpos de Scholtz podiam ”cuidar de si mesmos”.

Prittwitz interrompeu-os rispidamente, dizendo que essa decisão cabia a ele e a Waldersee. Repetiu
que a ameaça do Exército de Varsóvia era grande demais e ordenou que Hoffmann fizesse os
preparativos necessários para a retirada para o outro lado do Vístula.
256 Hoffmann observou que a ala esquerda do Exército de Varsóvia já
fci,

estava mais perto do Vístula do que os alemães estavam, e, demonstrando corn uma bússola,
mostrou que a retirada tornara-se impraticável; pediu para ser ”instruído” em como levá-la a cabo.
Prittwittz despediu-se abruptamente de todos e telefonou para o OHL em Coblenz anunciando sua
intenção de retirar-se para o Vístula, se não para o outro lado dele. Acrescentou que as águas, no
calor do verão, estavam baixas, e ele duvidava se podia até mesmo proteger o rio sem reforços.

Moltke ficou consternado. Esse era o resultado de deixar aquele gorducho idiota comandar o Oitavo
Exército, isso sem mencionar suas últimas e impensadas palavras. Entregar a Prússia Oriental seria
sofrer uma tremenda derrota moral e perder a região mais importante em produção de cereais e
laticínios. Pior ainda: se os russos atravessassem o Vístula, ameaçariam não apenas Berlim mas
também o flanco austríaco e até mesmo Viena. Reforços! Em que lugar ele conseguiria reforços,
exceto na frente ocidental, onde todos os batalhões estavam combatendo? Retirar tropas da frente
ocidental agora poderia significar a derrota na campanha contra a França.

Moltke estava chocado ou distante demais da cena para pensar em dar uma contra-ordem. Não sabia
exatamente o que acontecera na batalha de Gumbinnen, e provisoriamente ordenou que sua equipe
tentasse descobrir os fatos falando diretamente corn François, Mackensen e os outros comandantes
de corpos.

Enquanto isso, no quartel-general do Oitavo Exército, Hoffmann e Grunert tentavam persuadir


Waldersee de que a retirada não era o único caminho - aliás, era um caminho impossível. Hoffmann
propôs então uma manobra pela qual o Oitavo Exército, tirando a máxima vantagem de suas linhas
interiores e do uso de ferrovias, poderia colocar-se em posição de poder enfrentar a ameaça de
ambos os exércitos russos e, se as coisas realmente tomassem o rumo que ele achava que tomariam,
estaria capacitado para jogar toda a sua força contra um deles.

Se, como ele acreditava, o Exército de Rennenkampf não os perseguisse no dia seguinte, ele
propunha retirar do combate o I Corpo de François e traze-lo de trem pelo caminho mais longo,
fazendo uma volta, para reforçar o XX Corpo de Scholtz na frente sul. François tomaria posição à
direita de Scholtz, bem em frente à ala esquerda de Samsonov, que, sendo a mais próxima do
Vístula, era a mais ameaçadora. A divisão do General Von Moltke, que não estivera em ação em
Gumbinnen, também seria enviada em socorro de Scholtz por outra ferrovia. O movimento de
soldados corn toda a sua baga- 257
gem, equipamento, cavalos, armas e munições, a montagem dos trens, o embarque nas estações
apinhadas de refugiados, a mudança de trens de uma linha para outra - tudo isso seria um negócio
complicado, mas Hoffmann tinha certeza de que o incomparável sistema ferroviário alemão, no
qual tantos cérebros tinham sido empregados, estaria à altura.

Enquanto esse movimento se processava, a retirada dos Corpos de Mackensen e Von Below seria
dirigida para o sul durante dois dias de marcha, de modo que quando estivessem em segurança
encontrarse-iam quase 50 quilômetros mais perto da frente sul. Dali, se tudo corresse bem,
marchariam através da pequena distância interna para tomar posição à esquerda de Scholtz, a quem
deveriam alcançar não muito depois que François tivesse alcançado a sua direita. Assim o exército
inteiro de quatro corpos e meio estaria em posição de cornbater o exército meridional do inimigo.
As reservas de cavalaria e de Kõnigsberg seriam deixadas como disfarce na frente do Exército de
Rennenkampf.

O sucesso dessa manobra dependia inteiramente de uma única condição-que Rennenkampf não se
movimentasse. Hoffmann acreditava que ele ficaria mais um dia ou dois parado, para descansar,
reequipar-se e atualizar suas linhas de suprimento. A certeza de Hoffmann não se baseava num
informante misterioso ou em qualquer outra informação sobrenatural, mas simplesmente em sua
convicção de que Rennenkampf fizera alto por motivos naturais. De qualquer maneira, os Corpos de
Mackensen e Von Below não conseguiriam completar a mudança de frentes em menos de dois ou
três dias. Até lá, certamente haveria - corn a ajuda de mensagens interceptadas algum sinal das
intenções de Rennenkampf.

Este era o argumento de Hoffmann, e convenceu Von WalderSee. De algum modo, em algum
momento daquela noite Waldersee Convenceu Prittwitz ou permitiu que Hoffmann preparasse as
ordens necessárias sem a aprovação de Prittwitz - os registros não são bem claros. Como o staff não
sabia que Prittwitz tinha nesse ínterim informado o OHL de sua intenção de bater em retirada para o
Vístula, ninguém se preocupou em informar o Comando Supremo de que a idéia da retirada tinha
sido descartada.

Na manhã seguinte, dois membros do staff de Moltke, depois de

passarem algumas horas lutando corn as deficiências do telefone de

campanha, conseguiram falar diretamente corn os comandantes de

corpos na frente oriental, de quem souberam que as coisas estavam

Kg sérias, mas a retirada era uma solução demasiado extrema. Como


Prittwitz parecia comprometido corn a retirada, Moltke resolveu substituí-lo. Enquanto conversava
sobre isso corn seu vice, Von Stein, o Coronel Hoffmann deleitava-se corn a maravilhosa sensação
de estar corn a razão - até então.

As missões de reconhecimento mostravam que o Exército de Rennenkampf estava parado: ”não


estão nos perseguindo”. Imediatamente foram expedidas ordens para o deslocamento do I Corpo de
François para o sul. François, segundo seu próprio relato, foi tomado de emoção e chorou quando
partiu de Gumbinnen naquela tarde. Prittwitz aparentemente aprovara o plano e imediatamente se
arrependera disso, pois naquela noite ele tornou a telefonar para o OHL e informou Von Stein e
Moltke que a proposta de sua equipe de avançar contra o Exército de Varsóvia era ”impossível,
ousada demais”. Em resposta a uma pergunta, ele disse que não podia sequer garantir defender o
Vístula corn seu ”punhado de homens” - precisava de reforços. Isso selou seu afastamento.

corn a frente oriental em perigo de colapso, era necessário alguém corajoso, forte e decidido para
tomar o comando imediatamente. Nunca se sabe de antemão como um comandante irá enfrentar as
crises de uma guerra de verdade, mas o OHL tinha a sorte de conhecer um oficial de gabinete que
apenas uma semana antes tinha provado seu valor em ação - Ludendorff, o herói de Liège. Ele
serviria como Chefe do staffdo Oitavo Exército. No sistema de comando alemão exercido através de
um par, o Chefe do staff era tão importante quanto o oficial comandante e às vezes, dependendo de
sua capacidade e seu temperamento, ainda mais importante.

Ludendorff naquele momento estava corn o Segundo Exército de Von Bülow nas redondezas de
Namur, onde, depois de seu sucesso em Liège, estava dirigindo o ataque à segunda grande fortaleza
belga. Encontrava-se no limiar da França num momento crucial - mas a situação na frente oriental
era drásticar Moltke e Von Stein concordaram que ele devia ser convocado. Um capitão foi
despachado imediatamente de carro corn uma carta que alcançou o General Ludendorff às 9:00 da
manhã seguinte, dia 22 de agosto.

”Pode ser que você consiga salvar a situação na frente oriental”, escreveu Von Stein. ”Não conheço
outro homem em quem tenha confiança tão absoluta.” Pedia desculpas por afastar Ludendorff do
limiar de uma ação decisiva ”que, se Deus quiser, será conclusiva”, mas o sacrifício era
”imperioso”. ”Naturalmente, você não será considerado responsável pelo que já aconteceu na frente
oriental, mas corn sua energia poderá impedir que aconteça o pior.”

259
Ludendorff partiu em 15 minutos, no carro do capitão que levara a mensagem. A 15 quilômetros de
Namur ele atravessou Wavre; mais tarde escreveu sobre essa cidadezinha: ”Na véspera, quando
passei por lá, era uma cidade pacífica. Agora estava em chamas. Ali também a população atirou em
nossos soldados.”

Às 18:00 Ludendorff chegou em Coblenz. No espaço de três horas foi informado da situação na
frente oriental, foi recebido por Moltke ”que parecia cansado” e pelo Kaiser, ”que estava muito
calmo” porém profundamente afetado pela invasão da Prússia Oriental. Ludervforff despachou
certas ordens para o Oitavo Exército e às 21:00 partiu para a frente oriental num trem especial. As
ordens expedidas por ele, além de instruírem Hoffmann e Grunert a irem a seu encontro em
Marienburg, eram para que o Corpo de François fosse enviado por via férrea para apoiar o XX
Corpo de Scholtz na frente sul. Os dois corpos de Mackensen e Von Below deveriam afastar-se do
combate e descansar e reequipar-se no dia seguinte, 23 de agosto. Em resumo: eram as mesmas
ordens de Hoffmann, realizando assim o ideal da Escola Superior de Guerra alemã, no qual todos os
estudantes encontram uma solução idêntica para um dado problema. Também é possível que
Ludendorff tenha visto um telegrama corn as ordens de Hoffmann.

Depois de escolher um Chefe de staff, o OHL voltara-se para o problema de encontrar um oficial
comandante. Todos sabiam que Ludendorff era certamente um homem de inegável capacidade, mas
para completar o par seria born ter um ”von”. Os nomes de vários comandantes de corpos foram
considerados. Von Stein lembrou-se de uma carta que recebera no início da guerra, de um antigo
companheiro, que dizia: ”Não se esqueça de mim se precisar de um oficial comandante em qualquer
lugar”, e garantindo: ”ainda sou robusto”. Seu nome era Paul von Beneckendorff und Hindenburg.
O homem perfeito. Ele vinha de uma antiga família junker estabelecida na Prússia havia séculos.
Servira no Estado-Maior sob o comando de Schlieffen e passara por todos os cargos até chegar a
chefe de staff de Corpo e subseqüentemente comandante de Corpo antes de aposentar-se aos
65 anos em 1911. Dali a dois meses ele faria 68 anos, mas não era mais velho que Kluck, Bülow e
Hausen, os três generais da ala direita. Na frente oriental, especialmente depois do pânico de
Prittwitz, era necessário um homem de nervos fortes, e Hindenburg era conhecido por sua
imperturbabilidade ao longo de uma carreira sólida e confiável. Moltke aprovou; o Kaiser deu seu
consentimento; foi enviado um
260 telegrama ao general aposentado.
Hindenburg estava em casa, em Hanover, quando às 15:00 recebeu um telegrama perguntando se
aceitaria um ”trabalho imediato”. Ele respondeu: ”Estou pronto”. Um segundo telegrama pedia que
ele partisse imediatamente para a frente oriental para tomar o comando do Oitavo Exército. O OHL
não se deu ao trabalho de chamá-lo a Coblenz para conversar. Ele recebeu instruções de tomar o
trem em Hanover às 4:00 da madrugada seguinte e foi informado que seu Chefe de staff seria o
General Ludendorff, que o encontraria no trem. Hindenburg mal teve tempo de tirar suas medidas
para um dos novos uniformes cinzentos de campanha antes de partir, bastante embaraçado, usando
o velho uniforme azul de general prussiano.

Quando o afastamento de Prittwitz se tornou público, alguns dias depois, o precioso diário da
Princesa Blucher recebeu a seguinte anotação: ”Um tal de General Hindenburg, bem velhinho, ficou
no lugar dele.” Os editores de jornal correram a reunir material sobre o novo comandante, no que
tiveram alguma dificuldade, pois na lista do Exército ele aparecia na letra B. Descobriram que ele
combatera em Sedan, onde recebera a Cruz de Ferro, Segunda Classe, e era também veterano da
guerra anterior, contra a Áustria em 1866. Seus ancestrais Beneckendorff estavam entre os
Cavaleiros Teutônicos que se estabeleceram na Prússia Oriental; o nome ”Hindenburg” era produto
de ligações por casamento no século XVIII. Ele nascera em Posen, na Prússia Ocidental, e no início
de sua carreira, como oficial de staff junto ao I Corpo em Kõnigsberg, estudara os problemas
militares do distrito dos lagos masurianos, um fato que logo tornar-se-ia o germe da lenda que
mostrava Hindenburg planejando a batalha de Tannenberg corn
30 anos de antecedência. Ele fora criado na propriedade dos avós em Neudeck, na Prússia
Ocidental, e lembrava-se de, quando criança, ter conversado algumas vezes corn um velho
jardineiro que durante duas semanas trabalhara para Frederico, o£rande.

Hindenburg estava esperando na estação de Hanover quando o trem chegou, às 4:00.0 General
Ludendorff, a quem ele nunca encontrara pessoalmente, ”saltou agilmente” para a plataforma para
apresentar-se e, durante a viagem para o leste, explicou a situação e as ordens que já tinha
despachado. Hindenburg ouviu e aprovou. Assim nasceu, a caminho da batalha que os faria
famosos, a combinação, o ”casamento” expresso no monograma místico HL que até a derrota
reinaria sobre a Alemanha imperial. Quando, algum tempo depois, ele foi feito
Marechal-de-Campo, Hindenburg ganhou o apelido de ”Marechal Was-sagst-du”, por causa de seu
hábito de, sempre que lhe

261
^ pediam uma opinião, voltar-se para Ludendorff e perguntar: ”Wízs sagst du? (Que é que você
acha?)”

Caracteristicamente, à primeira pessoa que o OHL pensou em informar da mudança no comando do


Oitavo Exército foi o Diretor de Ferrovias na frente oriental, o General-de-Brigada Kersten. Na
tarde de 22 de agosto, antes mesmo que o trem especial tivesse iniciado viagem, esse oficial entrou
na sala de Hoffmann corn ”uma expressão muito espantada” e mostrou-lhe um telegrama
anunciando a chegada em Marienburg, no dia seguinte, de um trem extra trazendo um novo
Comandante e um novo Chefe de staff. Foi assim que Prittwitz e Waldersee souberam de seu
afastamento. Uma hora depois, Prittwitz recebeu um telegrama pessoal colocando-o e a Waldersee
na ’lista de disponibilidade”. Hoffmann comentou: ”Ele livrou-se de nós sem uma única palavra de
desculpa por esse tratamento.”

Os métodos de Ludendorff não eram mais delicados. Embora conhecesse bem Hoffmann, tendo
ambos morado na mesma casa em. Berlim durante quatro anos, quando serviam no Estado-Maior
alemão, ele telegrafou suas ordens diretamente para cada um dos comandantes de corpos, e não
através do Staff do Oitavo Exército. Isso não era necessariamente um esforço deliberado para ser
agressivo; era normal que os oficiais do Estado-Maior fossem agressivos. Porém Hoffmann e
Grunert prontamente sentiram-se insultados. A recepção que fizeram aos novos comandantes em
Marienburg foi, segundo Ludendorff, ”tudo, menos simpática”.

Agora era preciso enfrentar a questão crítica, da qual dependia o destino da campanha: os Corpos de
Mackensen e Von Below deveriam ficar onde estavam para defenderem contra o avanço de
Rennenkampf, ou deveriam deslocar-se para o sul, de acordo corn o plano de Hoffmann de se opor
à ala direita de Samsonov? Não havia esperança de derrotar o Exército de Samsonov a não ser
usando todo o Oitavo Exército. Naquele dia, 23 de agosto, o Corpo de François estava terminando o
complicado processo de embarque em cinco estações diferentes entre Insterburg e Kõnigsberg e
agora estava rumando para a frente suL Seriam necessários mais dois dias de baldeações e desvios e
um processo de desembarque igualmente intrincado para que ele alcançasse a posição de combate.
A Divisão de Von Morgen também estava a caminho, por outra linha.

Os Corpos de Mackensen e Von Below fizeram alto por aquele dia. As missões de reconhecimento
da cavalaria informavam ”passividade” por parte do Exército de Rennenkampf. Este último estava
262 separado de Mackensen e Von Below por apenas uns 50 ou 60 quilo-
Marechal-de-Campo Sir John French
O Príncipe Rupprecht e o Kaiser
metros, e se eles fossem enviados para o sul contra o outro Exército russo ele ainda poderia-se se
movimentasse-segui-los e cair sobre a retaguarda deles. Hoffmann queria que Mackensen e Von
Below partíssem imediatamente. Ludendorff, que saíra de Namur havia pouco mais de 36 horas e
encontrava-se recém-chegado a uma situação na qual qualquer decisão poderia ser fatal e de
responsabilidade sua, estava indeciso. Hindenburg, mal completando 24 horas fora da
aposentadoria, confiava em Ludendorff.

No lado russo, a tarefa de sincronizar as garras da pinça para que se fechassem simultaneamente
sobre o inimigo atormentava o alto comando. Tantos e tão variados, difíceis e óbvios eram os
obstáculos, que desde o início os chefes militares deixaram-se dominar pelo pessimismo. O General
Jilinsky, comandante da frente noroeste, cuja função era coordenar os movimentos dos Exércitos de
Rennenkampf e de Samsonov, não conseguiu pensar em maneira melhor de desempenhar sua
função do que enviar contínuas instruções para que se apressassem. Como Rennenkampf partira
antes e entrara em ação W antes, Jilinsky dirigia todas as suas ordens de pressa para Samsonov. Ao
mesmo tempo, o próprio Jilinsky era o receptor de uma cadeia de pedidos cada vez mais urgentes
por parte dos franceses. Para aliviar a pressão sobre eles no oeste, os franceses instruíram seu
embaixador a ”insistir” na ”necessidade dos exércitos russos desfecharem sua ofensiva à outrance
em direção a Berlim”. De Joffre a Paris, de Paris a São Petersburgo, de São Petersburgo ao Stavka
(o Quartel-General russo em Baranovichi), do Stavka a Jilinsky, fluíam os pedidos, e Jilinsky
passava-os todos para o General Samsonov, que avançava laboriosamente, passo a passo, através da
areia.

Desde que comandara uma divisão de cavalaria na guerra russo-japonesa, esse ”homem simples e
bondoso”, como o chamara o oficial de ligação inglês corn o SegundOTíxército, não tivera qualquer
experiência que o qualificasse para comandar um Exército de treze divisões. Ele trabalhava corn
comandantes de staff e de divisão que não lhe eram familiares. Como o Exército russo não era
organizado em base regional, os reservistas recém-apresentados, totalizando, em alguns casos, até
dois terços de um regimento, eram completos desconhecidos para seus oficiais.

A carência de oficiais e o nível baixo, se não inexistente, de alfabetizados entre os homens


dificultava o processo de transmissão das ordens ao longo das linhas. A maior confusão talvez
estivesse no corpo de sinalização. No escritório do telégrafo em Varsóvia, um 265
oficial de staff descobriu, horrorizado, uma pilha de telegramas endereçados ao Segundo Exército,
ainda fechados, que não tinham sido entregues porque não se estabelecera uma linha de
comunicação corn o quartel-general de campanha. O oficial recolheu-os e entregou-os de carro. O
quartel-general de campanha tinha fio suficiente apenas para ligá-lo corn os comandos de divisão,
mas não suficiente para ligá-lo corn o quartel-general do Exército ou corn os corpos vizinhos. Daí
recorrerem ao rádio.

Por causa da insistência na pressa, quatro dias tinham sido cortados do período de concentração,
deixando incompleta a organização dos serviços de retaguarda. Um corpo teve que repartir sua
munição corn outro, cujo trem de suprimento não chegara, prejudicando assim seus próprios
cálculos. Alguns vagões-padaria estavam desaparecidos. Para permitir que um exército vivesse dos
suprimentos locais em território hostil, era necessário enviar à frente grupos de requisição corn
escolta da cavalaria, mas nenhum planejamento para isso tinha sido feito. A tração por um só cavalo
mostrou-se insuficiente para puxar carroções e carretas de canhões pelas estradas arenosas. Em
alguns lugares, era preciso desatrelar os cavalos de metade das carroças, atrelá-los aos pares na
outra metade, percorrer certa distância, desatrelá-los, levá-los de volta, atrelá-los às carroças que
tinham ficado para trás e então recomeçar todo o processo.

”Apresse o avanço do Segundo Exército e adiante as suas operações corn a maior energia possível”,
Jilinsky telegrafou em 19 de agosto. ”O atraso no avanço do Segundo Exército está colocando o
Primeiro Exército em posição difícil.” Isso não era verdade, pois no dia 19 de agosto Samsonov
estava atravessando a fronteira como planejado, mas Jilinsky tinha tanta certeza de que viria a ser
verdade que decidiu antecipar-se.

”Avançando de acordo corn o cronograma, sem parar, cobrindo quase 20 quilômetros sobre a areia.
Não posso ir mais depressa”, respondeu Samsonov. Ele informou que seus homens percorriam de
15 a 20 quilômetros por dia sem uma única parada. ”Preciso de operações imediatas e decisivas”,
Jilinski telegrafou três dias depois. ”O enorme cansaço” de seus homens tornava impossível maior
velocidade, respondeu Samsonov. ”O país está devastado, os cavalos estão há muito tempo sem
aveia, não há pão.”

Nesse dia, o XV Corpo de Samsonov, comandado pelo General Martos, defrontou-se corn o XX
Corpo alemão do General Scholtz. Houve um combate e os alemães, ainda sem reforços, bateram
em
2£f retirada. ,
A cerca de 16 quilômetros da fronteira o General Martos tomou Neidenburg, que até poucas horas
antes tinha sido o quartel-general de Scholtz. Quando patrulhas cossacas entrando em Neidenburg
informaram que civis alemães estavam atirando neles das janelas, o General Martos ordenou um
bombardeio que destruiu a maior parte da praça principal. O General, um ”homenzinho grisalho”,
sentiu-se constrangido naquela noite, ao encontrar-se alojado numa casa cujos proprietários alemães
tinham fugido deixando as fotos de família, que o encaravam da prateleira. Era a casa do Prefeito, e
o General Martos jantou a refeição preparada para o Prefeito e servida pela empregada dele.

Em 23 de agosto, dia em que Ludendorff e Hindenburg chegaram à frente oriental, o combate


espalhou-se; o VI e o XIII Corpos russos à direita do General Martos tomaram mais aldeias; o
General Scholtz, ainda sozinho a não ser por alguma ajuda da guarnição do Vístula atrás de si,
recuou um pouco mais. Ignorando a inatívidade de Rennenkampf no norte, Jilinski continuava a
disparar ordens para Samsonov. Ele declarou a Samsonov que os alemães na sua frente estavam
recuando às pressas, ”deixando apenas forças insignificantes para combatê-lo. Portanto, o senhor
deve executar uma ofensiva muito enérgica. (...) Deverá atacar e interceptar o inimigo em retirada à
frente do Exército do General Rennenkampf para cortar-lhe a retirada do Vístula.”

Esse, naturalmente, era o plano original, baseado na hipótese de Rennenkampf manter os alemães
ocupados no norte; na realidade nessa data Rennenkampf já não estava em contato corn o inimigo.
Em
23 de agosto ele reiniciou o avanço, mas na direção errada; em vez de deslocar-se lateralmente para
o sul para unir-se a Samsonov diante dos lagos, dirigiu-se diretamente para a frente, a oeste, para
atacar Kõnigsberg. Sem saber onde se encofitrava o Corpo de François, julgou que este ainda
estaria naquela região e atacaria seu flanco se ele fosse para o sul. Embora fosse um movimento
sem qualquer importância para o plano original, Jilinsky nada fez para alterá-lo. Agindo, como
Rennenkampf, em total desconhecimento dos movimentos inimigos, ele imaginou que os alemães
estavam fazendo o que os russos planejaram que eles fizessem - recuando para o Vístula. Agindo
segundo essa teoria, ele continuava a empurrar Samsonov para a frente.

Na tarde de 23 de agosto, o Corpo do General Martos, encorajado pela sensação de ver o inimigo
recuando, partiu de Neidenburg e aft-

«
268

alcançou uma posição a menos de 650 metros das linhas alemãs. O Corpo de Scholtz estava
entrincheirado entpe as aldeias de Orlau e Frankenau; os russos tinham ordens de tomar essas
trincheiras a qualquer custo. Passaram a noite toda em posição e antes do amanhecer rastejaram
quase cem metros. Quando soou o sinal para o ataque, eles cobriram a distância restante em três
arremetidas, jogando-se ao chão sob o fogo das metralhadoras alemãs, arremetendo novamente para
a frente, vez após vez. À medida que se aproximava a onda de soldados de camisas brancas corn
suas baionetas cintilantes, os alemães fugiam das trincheiras, abandonando suas metralhadoras.

Em todo o resto da linha, a superioridade da artilharia alemã castigou os atacantes. Devido a um


erro de comunicação, a uma falha de comando ou a ambas as coisas, o XIII Corpo russo, à direita de
Martos, não foi em seu apoio, de modo que não se tirou grande vantagem do combate. No final do
dia, os alemães tinham recuado, mas não tinham sido expulsos. Os russos capturaram dois canhões
de campanha e alguns prisioneiros mas suas perdas foram altas: um total de 4.000 homens. Um
regimento perdeu nove dos 16 comandantes de companhia; uma companhia perdeu 120 dos 190
homens e todos os seus oficiais.

As perdas alemãs foram menores, mas Scholtz, que enfrentava números avassaladores, recuou cerca
de 15 quilômetros, estabelecendo seu quartel-general por aquela noite na aldeia de Tannenberg.
Ainda apressado por Jilinsky, que insistia que ele prosseguisse para o lugar planejado, onde poderia
cortar a suposta ”retirada” inimiga, Samsonov enviou as ordens a todos os seus Corpos - o XXIII à
esquerda, o XV e o XIII no centro e o VI à direita - corn as disposições para a marcha do dia
seguinte. Depois de Neidenburg as comunicações vinham ficando cada vez piores. Um corpo tinha
ficado sem fios e estava recorrendo a mensageiros a cavalo. O VI Corpo não possuía a chave do
código usado pelo XIII Corpo. Conseqüentemente, as ordens de Samsonov eram transmitidas sem
código, pelo rádio.

Até esse momento, cerca de 24 horas depois da chegada de Ludendorff e Hindenburg, o Oitavo
Exército ainda não decidira se traria os Corpos de Mackénsen e Von Below para enfrentar a ala
direita de Samsonov. Hindenburg foi a Tannenberg corn sua equipe para consultar Scholtz, que
estava ”sério, mas confiante”. Os oficiais voltaram para o quartel-general. Mais tarde, Hoffmann
escreveu que aquela noite ”foi a mais difícil de toda a batalha”. Enquanto o staff discutia, um oficial
do corpo de sinalização trouxe as ordens interceptadas de Samsonov para o dia seguinte, 25 de
agosto. Embora essa
ajuda por parte do inimigo não revelasse as intenções de Rennenkampf, que eram a questão crucial,
ela mostrava aos alemães onde podiam esperar enfrentar as forças de Samsonov. Isso ajudou
bastante: o Oitavo Exército tomou a decisão de jogar toda a sua força em combate contra
Samsonov. Ordens foram expedidas para Mackensen e Von Below darem as costas a Rennenkampf
e marcharem imediatamente para o sul.

269

l
14 /•- ^

Sambre et Meuse

Na frente ocidental, o décimo quinto dia trouxe o fim do período de concentração e dos ataques
preliminares, iniciando o período de combate ofensivo. A ala direita francesa, abrindo a ofensiva na
Lorena ocupada pelos alemães, tomou um antigo caminho de batalha como tantos outros na França
e na Bélgica, onde, século após século, fosse qual fosse o poder que levava os homens à luta,
legiões passavam marchando pelas mesmas estradas, destruindo as mesmas aldeias. Na estrada de
Nancy para o leste os franceses passaram por um marco de pedra corn a inscrição: ”Aqui, no ano
362, Jovinus derrotou as hordas teutônicas.”

Enquanto na extrema direita o exército do General Pau renovava a ofensiva na Alsácia, o Primeiro e
Segundo Exércitos dos Generais Dubail e Castelnau marchavam na Lorena por dois corredores
naturais que determinavam a linha do ataque francês. Um seguia em direção a Sarrebourg, objetivo
do Exército de Dubail; o outro, descendo do anel de colinas em volta de Nancy chamado Grand
Couronné, levava, via Château Salins, a um vale que terminava na fortaleza natural de Morhange,
objetivo do Exército de Castelnau. Os alemães, usando arame farpado, trincheiras e bases para os
canhões, tinham preparado a região contra um ataque francês. Tanto em Sarrebourg quanto em
Morhange eles tinham posições bem fortificadas, das quais só poderiam ser expulsos por um ataque
irresistível de élan ou pela artilharia pesada. Os franceses contavam corn o primeiro e desprezavam
a segunda.

- Graças a Deus não temos! - respondeu um oficial de artilharia do Estado-Maior em 1909, quando
lhe perguntaram a respeito da artilharia de campanha de 105mm. - O que dá força ao Exército
francês é a leveza de suas armas.

Em 1911 o Conselho de Guerra propusera dotar o Exército francês de 105s, mas os próprios
soldados da artilharia, fiéis aos famosos 75s franceses, mostraram-se intransigentemente opostos.
Consideravam o pesado canhão de campanha um obstáculo à mobilidade da ofensiva francesa e os
tinham em conta - e às metralhadoras -de armas defensivas. Messimy, como Ministro da Guerra,
270 e o General Dubail, então no Estado-Maior, tinham forçado uma
encomenda de várias baterias de 105s, mas corn as mudanças de governo e o inabalável desprezo do
corpo de artilharia, em 1914 apenas uns poucos exemplares tinham sido incorporados ao Exército
francês.

No lado alemão, a frente da Lorena era defendida pelo Sexto Exército de Rupprecht,
Príncipe-Herdeiro da Bavária, e pelo Sétimo Exército do General Von Heeringen, que em 9 de
agosto foi colocado sob as ordens do Príncipe Rupprecht. A missão de Rupprecht era segurar tantos
soldados franceses quanto possível naquela frente, para mantê-los longe da frente principal diante
da ala direita alemã. Segundo a estratégia de Schlieffen, ele teria que conseguir isso recuando e
atraindo os franceses para um ”saco” onde eles, tendo alongado sua linha de comunicações,
poderiam ser enfrentados enquanto as batalhas decisivas tinham lugar em outra parte. A essência do
plano era deixar o inimigo nesse setor, impedindo-o de seguir em frente, como ele mostrava
disposição para fazer e, ao mesmo tempo em que o tentava corn uma vitória tática, infligir-lhe uma
derrota estratégica.

Como o plano para a Prússia Oriental, tratava-se de uma estratégia que envolvia ”perigos
psicológicos”. Na hora em que soaram os clarins, enquanto seus colegas comandantes avançavam
para a vitória, Rupprecht foi obrigado a aceitar obedientemente a neces- • sidade de recuar,
uma perspectiva nada agradável para um coman- I dante vigoroso e sedento de glória,
especialmente sendo ele de cate- l goria real. I

Ereto e dotado de uma beleza disciplinada, corn olhar direto e i um discreto bigode, Rupprecht não
mostrava semelhança corn seus volúveis predecessores, os dois Reis Lud wig da Bavária, cujas
paixões variadas e excessivas - um por Lola Montez e o outro por Richard Wagner - fizeram corn
que um fosse deposto e o outro declarado louco. Na realidade, ele vinha de urn-ramo menos
excêntrico da família, que tinha fornecido o regente para o rei louco. Como descendente direto de
Henrietta, filha de Charles I da Inglaterra, ele era o herdeiro Stuart do trono inglês. Em memória do
Rei Charles, rosas brancas decoravam o palácio da Bavária todos os anos, no aniversário do
regicídio.

Rupprecht tinha uma ligação mais prosaica corn os Aliados na pessoa da cunhada Elizabeth, irmã
de sua esposa, casada corn o Rei Albert da Bélgica. O Exército bávaro, no entanto, era inteiramente
alemão. Segundo informou o General Dubail depois dos primeiros dias de combate, tratava-se de
”bárbaros” que, antes de evacuar uma 271
cidade, saqueavam as casas onde se tinham alojado, rasgavam os colchões e o estofamento dos
móveis, espalhavam pelo chão o conteúdo dos armários, arrancavam as cortinas, despedaçavam
móveis, ornamentos e utensílios. Até então, esse era apenas o hábito de soldados recuando a
contragosto; a Lorena veria coisa pior.

Nos quatro primeiros dias da ofensiva de Dubail e Castelnau, os alemães recuaram lentamente, de
acordo corn o plano, combatendo apenas em ações de retaguarda contra os franceses. Os franceses,
corn seus casacos azuis e calças vermelhas, avançavam pelas estradas largas e retas, bordejadas de
plátanos. A cada elevação da estrada eles enxergavam grandes extensões de campos cultivados,
formando um tabuleiro de xadrez - um verde de alfafa, o outro dourado de grãos maduros, outro
marrom, já preparado para o próximo plantio, outros pontilhados de montes de feno em filas
alinhadas. Os 75s disparavam no céu corn ganidos estridentes, enquanto os franceses entravam no
território anexado que já lhes pertencera.

Nos primeiros combates contra uma resistência alemã não muito forte, os franceses foram
vitoriosos, embora a artilharia pesada alemã, quando usada, abrisse terríveis espaços vazios em suas
linhas. No dia 15 de agosto o General Dubail passou por carroças trazendo de volta os feridos,
pálidos e prostrados, alguns corn os membros arrancados pelas explosões. Ele viu um campo de
batalha do dia anterior ainda cheio de cadáveres. No dia 17, o XX Corpo do Exército de Castelnau,
comandado pelo General Foch, tomou Château Salins e chegou perto de Morhange. No dia 18,
Dubail tomou Sarrebourg. A confiança foi ao auge; parecia que a offensiveà outrance tinha
triunfado. Os soldados exultavam e já se imaginavam no Reno. Nesse momento o Plano 17
começou a desmoronar; na realidade, ele vinha desmoronando havia vários dias.

Na linha de frente diante da Bélgica, o General Lanrezac passara todo esse tempo pedindo ao GQG
permissão de voltar-se para o norte, para enfrentar a direita alemã que se aproximava, em vez de
virar-se para o nordeste, para a ofensiva nos Ardennes contra o centro alemão. Lanrezac já se
imaginava cercado pelas forças alemãs que desciam a oeste do Meuse e de cuja/força real ele
suspeitava, de modo que insistiu em receber permissão para levar uma parte de seu exército para a
margem esquerda do Meuse, na confluência corn o Sambre, onde poderia bloquear o caminho dos
alemães. Ali ele poderia defender uma linha ao longo do Sambre, o rio que nasce no norte da França
e corre para o nordeste através da Bélgica, margeando o distrito minerador do Borinage, para
juntar-se ao Meuse em Namur. Ao longo
de suas margens erguem-se montes de escória ferrífera; balsas transportando carvão cruzam suas
águas saindo de Charleroi, cidade de nome real que depois de 1914 teria, para os ouvidos franceses,
um torn tão trágico quanto Sedan.

Larenzac bombardeou o GQG corn relatórios de suas próprias missões de reconhecimento, que
indicavam uma massa derramandose por ambos os lados de Liège às centenas de milhares - talvez
700 mil, ”talvez até dois milhões”. O GQG insistia em dizer que esses números deviam estar
incorretos. Lanrezac afirmou que poderosas forças alemãs desceriam sobre seu flanco através de
Namur, Dinant e Givet exatamente na ocasião em que o Quinto Exército estaria entrando nos
Ardennes. Quando seu Chefe destaff, Hély d’Oissel, cuja expressão normalmente melancólica
ficava mais sombria a cada dia, foi ao GQG defender seu pedido, o oficial que o recebeu exclamou:

- Quê? Outra vez? O seu Lanrezac ainda está corn medo de ser flanqueado pela esquerda? Isso não
vai acontecer. - E acrescentou, transmitindo a principal tese do GQG: - Além disso, se acontecer,
ora, tanto melhor.

No entanto, embora decidido a não permitir que coisa alguma o desviasse da ofensiva principal,
marcada para começar no dia 15 de agosto, o GQG não poderia ficar inteiramente cego às
evidências crescentes de uma manobra de cerco pela ala direita alemã. Em 12 de agosto, Joffre
permitiu que Lanrezac deslocasse seu corpo da esquerda para Dinant.

- Até que enfim! - Lanrezac resmungou acidamente.

Mas isso já não bastava; todo o seu exército precisava ser deslocado para o oeste. Joffre não
permitiu, insistindo na idéia de que o Quinto Exército devia continuar orientado para o leste, para
cumprir sua missão designada nos Ardennes. Sempre zeloso de sua autoridade, declarou a
Lanrezac:

- A responsabilidade de deter o movimento de cerco não é sua. Exasperado, como todas as pessoas
de mente rápida, diante da

cegueira dos outros, e acostumado a ser respeitado como estrategista, Lanrezac continuou a insistir
corn o GQG até que Joffre acabou ficando irritado corn aquelas críticas constantes. Ele achava que
o dever dos generais era serem leões na ação e cães na obediência-um ideal ao qual Lanrezac, corn
idéias próprias e uma urgente sensação de perigo, achava impossível submeter-se. Mais tarde ele
escreveu: ”Minha inquietação aumentava a cada hora.” Em 14 de agosto, último dia antes da
abertura da ofensiva, ele foi pessoalmente a Vitry.

273
Encontrou Joffre em seu escritório, cercado pelo apoio dos Generais Belin e Berthelot, seu Chefe e
Subchefe de staff. Belin, que já fora famoso por sua vivacidade, mostrava sinais de demasiado
trabalho. Berthelot, tão rápido e inteligente quanto sua contraparte, Henry Wilson, era um otimista
inveterado, que por temperamento achava muito difícil prever o perigo. Pesava 105 quilos e, tendo
admitido a vitória do calor de agosto sobre a dignidade militar, trabalhava de camisa e chinelos.
Lanrezac, cujo rosto moreno já se encovava de preocupação, insistiu em afirmar que os alemães
apareceriam à sua esquerda justamente quando ele estivesse bem aprofundado nos Ardennes, onde o
terreno difícil tornava improvável uma vitória rápida e impossível uma meia-volta. O inimigo
poderia então cornpletar sem problemas sua manobra de cerco.

Falando no torn que Poincaré chamava de ”seu torn cremoso”, Joffre disse a Lanrezac que seus
temores eram ;”prematuros”. Acrescentou:

- Temos a impressão de que os alemães não têm coisa alguma preparada lá.

”Lá” significava a oeste do Meuse. Belin e Berthelot repetiram a afirmação: ”nada preparado lá” e
puseram-se de imediato a acalmar e animar Lanrezac. Pediram-lhe corn muito empenho que
esquecesse a manobra de cerco e pensasse apenas na ofensiva. Como escreveu depois, ele deixou o
GQG ”corn a morte na alma”.

Quando voltou para o quartel-general do Quinto Exército, em Reghel, na beira dos Ardennes, ele
encontrou em sua mesa um relatório do Departamento de Informações do GQG que aumentou sua
sensação de tragédia iminente. O relatório calculava uma força inimiga do outro lado do Meuse de
oito corpos de exército e de quatro a seis divisões de cavalaria-na realidade, uma estimativa por
baixo. Lanrezac imediatamente mandou um ajudante corn uma carta para Joffre chamando atenção
para aqueles relatórios ”vindos do seu próprio quartel-general” e insistindo que o movimento do
Quinto Exército para a região entre o Sambre e o Meuse fosse ”estudado e preparado a partir deste
momento”.

Enquanto isso, em Vítry, outro visitante chegou, profundamente ansioso, para tentar convencer o
GQG do perigo à esquerda. Quando Joffre se recusara a ter Gallieni no quartel-general, Messimy
dera-lhe uma sala no Ministério da Guerra, para onde todos os relatórios eram canalizados. Embora
eles não incluíssem os relatórios do Departamento de Informações do GQG, que Joffre sistemati-
274 camente deixava de enviar ao governo, Gallieni reuniu informações
suficientes para detectar os contornos da grande enchente que se derramaria sobre a França, a
”terrível submersão” que Jaurés previra ao se referir ao uso de tropas de reserva na linha de frente.
Gallieni disse a Messimy que este devia ir a Vitry para fazer Joffre alterar seus planos, mas
Messimy, que era quase 20 anos mais novo que Joffre e tinha medo dele, argumentou que o próprio
Gallieni deveria ir, pois a ele Joffre devia grande parte de sua carreira, portanto não poderia
ignorá-lo.

Messimy estava subestimando Joffre, que podia ignorar quem ele quisesse. Quando Gallieni
chegou, Joffre concedeu-lhe apenas alguns minutos e passou-o para Belin e Berthelot. Estes
repetiram as afirmações tranqüilizadoras feitas a Lanrezac. Ao voltar, Gallieni declarou a Messimy:
o GQG tinha a mente ”fechada à evidência” e recusava-se a levar a sério a ameaça do avanço
alemão a oeste do Meuse.

Naquela noite, no entanto, sob a pressão da evidência crescente, o GQG começou a hesitar. Em
resposta à última mensagem urgente de Lanrezac, Joffre concordou em ”estudar” a modificação
proposta para o movimento do Quinto Exército e permitir que se tomassem as ”providências
preliminares” para o movimento, embora ainda insistisse em afirmar que a ameaça ao flanco de
Lanrezac estava ”longe de ser imediata, e a certeza de que ela se realizaria estava longe de ser
absoluta”.

Na manhã seguinte, 15 de agosto, a ameaça se tornara muito mais próxima. O GQG, de nervos
tensos em preparação para a ofensiva, olhava para a esquerda corn apreensão. As 9:00, telefonaram
para Lanrezac autorizando-o a preparar o movimento, mas não a executá-lo sem ordens diretas do
Comandante-em-Chefe. Durante o dia inteiro o GQG recebeu informações de que 10.000 soldados
da cavalaria alemã tinham atravessado_o Meuse em Huy; mais tarde chegaram notícias de que o
inimigo estava atacando Dinant e tinha tomado a fortaleza que do alto do rochedo na margem
direita defendia a cidade; soube-se posteriormente que eles tinham tentado forçar a travessia mas o I
Corpo de Lanrezac desceu da margem esquerda e os enfrentou, obrigando-os a recuar para o outro
lado da ponte. No embate, um dos primeiros feridos foi um tenente de 24 anos chamado Charles de
Gaulle. Esse era o Corpo que em 12 de agosto recebera autorização para atravessar o rio.

A ameaça à esquerda já não podia ser minimizada. Às 19:00, a ordem direta de Joffre para mover o
Quinto Exército para a confluên-

275
cia do Sambre corn o Meuse foi transmitida a Lanrezac por telefone, e a ordem escrita chegou uma
hora depois. O GQG sucumbira, mas não de todo: corn essa ordem - Instrução Especial ne 10 - ele
pretendia mudar os planos de modo a enfrentar a ameaça de um cerco, mas não o suficiente para
desistir da ofensiva do Plano 17. A ordem admitia: o inimigo ”parece estar fazendo seu maior
esforço na ala direita ao norte de Givet” - como se Lanrezac precisasse que lhe dissessem isso-e
ordenava que o corpo principal do Quinto Exército se deslocasse para o noroeste ”para agir
juntamente corn o Exército britânico e o Exército belga contra as forças inimigas ao norte”. O resto
do Quinto Exército deveria permanecer voltado para o nordeste em apoio ao Quarto Exército, a
quem era agora transferida a tarefa principal de levar a ofensiva para dentro dos Ardennes. Na
realidade, a ordem espalhava o Quinto Exército para o oeste numa frente mais larga do que até
então e corn menos homens para cobri-la.

A ordem n-10 instruía o novo ponta-de-lança, General Langle de Cary, comandante do Quarto
Exército, a preparar-se para o ataque ”na direção geral de Neufchâteau”, isto é, para dentro do
coração dos Ardennes. Para fortalecer a capacidade de luta de seu Exército, Joffre colocou em ação
uma complicada troca de soldados entre os exércitos de Castelnau, Lanrezac e Langle. Como
resultado, dois corpos que tinham sido treinados por Lanrezac foram retirados de seu comando e
substituídos por outros. Embora as novas unidades incluíssem duas divisões muito valorizadas - as
divisões da África do Norte que o Goeben tentara deter -, toda essa movimentação e as mudanças de
última hora agravaram a amargura e o desespero de Lanrezac.

Enquanto o resto do Exército francês atacava para o leste, ele se via a defender sozinho o flanco
desprotegido da França do golpe que ele acreditava estar planejado para destruí-la. Coubera-lhe a
tarefa mais difícil - embora o GQG se recusasse a admitir isso - e os meios mais precários. Seu
estado de espírito não melhorou corn a perspectiva de agir em comum corn dois exércitos
independentes - o inglês e o belga - cujos comandantes lhe eram desconhecidos e ocupavam
posições hierarquicamente superiores. Seus homens teriam que executar, no calor çJe agosto, uma
marcha de 130 quilômetros que levaria cinco dias, e mesmo se chegassem à linha do Sambre antes
dos alemães, ele temia que fosse tarde demais; a essa altura os alemães teriam chegado lá corn
demasiada força para serem detidos.

Onde estavam os ingleses que deveriam achar-se à sua esquerda? Até então ninguém pusera os
olhos neles. Embora pudesse per-
27Í guntar ao GQG onde exatamente eles estavam, Lanrezac já não tinha
fé no GQG e suspeitava que a França estava sendo vítima de um pérfido truque inglês. Ou a FEB
era um mito, ou estava disputando uma última partida de etiquete60 antes de ir para a guerra; ele se
recusava a acreditar na sua existência até que um de seus oficiais a visse pessoalmente. Diariamente
eram enviadas missões de reconhecimento das quais participava o Tenente Spears, oficial de ligação
inglês junto ao Quinto Exército, mas não conseguiram avistar homem algum vestido de caqui - uma
atuação estranha para um oficial de ligação, que o Tenente (posteriormente General) Spears deixa
sem explicação em seu famoso livro. Isso aumentou em Lanrezac a sensação de perigo. A ansiedade
pesava sobre ele, que escreveu: ”Minha angústia cresceu ao máximo”.

Ao mesmo tempo que criava a Ordem ne 10, Joffre pediu a Messimy para transferir três divisões
Territoriais da defesa do litoral para preencher o espaço entre Maubeuge e o Canal. Ele estava
raspando o fundo do barril para montar uma defesa improvisada contra a ala direita alemã, para não
ter que subtrair uma única divisão de sua almejada ofensiva; ainda não estava preparado para
reconhecer que a vontade do inimigo iria impor-se à sua. Todos os Lanrezacs, Gallienis e relatórios
de missão de reconhecimento em todo o mundo não teriam abalado a convicção primordial do GQG
de que quanto maior a ala direita alemã, mais promissoras as perspectivas para a ofensiva francesa
pelo centro.

A marcha alemã através da Bélgica, como a marcha das formigas predadoras que periodicamente
emergem das selvas sul-americanas para deixar um rastro de morte atrás de si, abria seu caminho
através de campos, estradas, aldeias e cidades, como as formigas, que não se detinham diante de
rios ou qualquer outro obstáculo. O Exército de Von Kluck descia do norte de Liège e o de Von
Bülow vinha do sul, ao longo do vale do Meuse, em direção a Namur.

O Rei Albert dissera: ”O Meuse é um colar precioso, e Namur a sua pérola.” Fluindo por um largo
desfiladeiro entre rochedos altos afastados do rio nos dois lados, o Meuse era um local de veraneio,
e até então todos os anos, em agosto, o tradicional mês de férias, as famílias faziam piqueniques, as
crianças nadavam, os homens pescavam em suas margens, as mães tricotavam, sentadas em
cadeiras dobráveis sob guarda-sóis, enquanto pequenos veleiros passeavam

W Crfquete: jogo de bola disputado entre dois times, muitopopularnalnglaterra,especialmente no início do século - o que deu ensejo à
ironia da autora. (N. da T.)

277
pelo rio e os barcos de excursão iam de Namur a Dinant. Agora, parte do Exército de Von Bülow
estava atravessando o rio em Huy, a meio caminho entre Liège e Namur, para avançar pelas duas
margens sobre a segunda das famosas fortalezas belgas.

O anel de fortalezas de Namur, construídas no mesmo padrão das de Liège, era o último bastião
antes da França. Confiando nos punhos de ferro dos canhões de sítio que tinham trabalhado tão bem
em Liège e que agora eram arrastados na esteira de Von Bülow para seu segundo trabalho, os
alemães esperavam atravessar Namur em três dias. À esquerda de Von Bülow, o Terceiro Exército,
comandado pelo General Von Hausen, avançava sobre Dinant, de modo que os dois exércitos
estavam convergindo sobre a confluência do Sambre corn o Meuse exatamente quando o exército
de Lanrezac dirigia-se para lá.

Embora no campo de ação a estratégia de Schlieffen corresse segundo planejado, atrás da linha de
frente surgia um buraco nos planos. No dia 16 de agosto, o OHL, que permanecera em Berlim até o
final do período de concentração, mudou-se para Coblenz, no Reno, cerca de 130 quilômetros atrás
do centro da linha alemã. Ali Schlieffen imaginara um Comandante-em-Chefe que não seria um
Napoleão num cavalo branco observando a batalha do topo de um morro, mas um ”Alexandre
moderno” que iria dirigi-la ”de uma casa corn escritórios espaçosos, telégrafo, telefone e rádio à
disposição e uma frota de carros e motocicletas prontos para partir, aguardando ordens. Aqui, numa
cadeira confortável, diante de uma mesa grande, o comandante moderno vê todo o campo de
batalha num mapa. Daqui ele envia por telefone palavras inspiradoras, aqui recebe os relatórios de
comandantes de exércitos e de corpos, e também de balões e dirigíveis que observam os
movimentos do inimigo”.

A realidade estragou esse belo quadro. O Alexandre moderno acabou sendo Moltke, que, segundo
ele próprio admitia, nunca se recuperara de sua aterradora experiência corn o Kaiser na primeira
noite da guerra. As ”palavras inspiradoras” que ele devia enviar por telefone aos comandantes
nunca fizeram parte do seu vocabulário, e mesmo se fizessem, ter-se^am perdido na transmissão.

Quando estavam operando em território hostil, nada causava mais problemas aos alemães do que a
comunicação. Os belgas cortavam os fios de telefone e telégrafo; a poderosa estação de rádio da
Torre Eiffel bloqueava as ondas no ar, de modo que as mensagens chegavam tão entrecortadas que
tinham que ser repetidas três ou
27S quatro vezes até que se pudesse tirar delas algum sentido. A única
estação receptora do OHL ficava tão cheia que as mensagens levavam de oito a doze horas para
serem transmitidas. Aquele era um dos ”atritos” para as quais o Estado-Maior alemão, iludido pela
facilidade de comunicação nas manobras de exercício, não tinha feito planos.

A resistência inabalável dos belgas e a perspectiva do ”rolo compressor” russo vindo através da
Prússia Oriental aumentavam ainda mais as preocupações do OHL. Os oficiais prussianos afetavam
dolorosamente a si mesmos e a seus aliados. O General Von Stein, Subchefe do staff, embora fosse
inteligente, consciencioso e trabalhador, era descrito pelo oficial de ligação austríaco junto ao OHL
como sendo rude, sem tato, brigão e dado àquele torn sarcástico e autoritário conhecido como ”o
torn dos Guardas de Berlim”. O Coronel Bauer, da Seção de Operações, odiava seu chefe, o
Coronel Tappen, por seu ”torn cortante” e seus ”modos odiosos” para corn os subordinados. Os
oficiais reclamavam porque Moltke proibiu champanhe às refeições e porque a comida na mesa do
Kaiser era tão parca que tinha que ser suplementada corn sanduíches depois do jantar.

Desde o momento em que começou na Lorena o ataque francês, começou também a minguar a
resolução de Moltke de delegar à ala direita a responsabilidade que a confiança total de Schlieffen
depositava nela. Ele e a sua equipe esperavam que os franceses levassem as forças principais que
tivessem à sua esquerda para enfrentar a ameaça da ala direita alemã. corn a mesma ansiedade corn
que Lanrezac enviava patrulhas a procurar os ingleses, o OHL procurava evidências de grandes
manobras francesas a oeste do Meuse, e até 17 de agosto nada tinham encontrado.

Perturbava-os aquele desagradável problema bélico representado pela recusa do inimigo em


comportar-se como era de se esperar em seu próprio interesse. Pelo movimento na Lorena e a falta
de movimento a oeste, eles concluíram que os franceses estavam concentrando sua força principal
para uma ofensiva através da Lorena entre Metz e o Vosges. Perguntaram a si próprios se isso não
obrigava a um reajuste na estratégia alemã: se aquele fosse o principal ataque francês, os alemães,
deslocando forças para sua própria ala esquerda, não poderiam ensejar uma batalha decisiva na
Lorena antes que a ala direita conseguisse isso por meio de um cerco? Não poderiam eles, na
realidade, conseguir uma verdadeira Batalha de Canas, o cerco duplo que Schlieffen tivera em
mente? De 14 a 17 de agosto o OHL ocupouse corn ansiosas discussões acerca dessa tentadora
perspectiva, estudando até mesmo alguns deslocamentos preliminares do peso da

m
gravidade em direção à esquerda. No dia 17, concluíram finalmente que os franceses não estavam
se aglomerando na Lorena na quantidade antes imaginada, e voltaram para o plano original de
Schlieffen.

Porém, uma vez questionada a divindade da doutrina, não há como retornar à fé perfeita: daí em
diante o OHL sentiu-se tentado por essa oportunidade na sua ala esquerda. Moltke abrira a mente
para uma estratégia alternativa, que dependeria do que o inimigo fizesse. A extrema simplicidade do
plano de Schlieffen - o esforço total de uma única ala - foi rompida, bem como a rígida adesão ao
plano independentemente dos movimentos do inimigo. O plano que no papel parecia tão irretocável
cedeu sob a pressão das incertezas e, acima de tudo, das emoções - da guerra. Tendo renunciado ao
conforto de uma estratégia pré-combinada, Moltke viu-se, daí em diante, atormentado pela
hesitação sempre que alguma decisão era exigida. No dia 16 de agosto, o Príncipe Rupprecht exigiu
uma - e corn urgência.

Ele queria permissão para contra-atacar. Seu quartel-general em St. Avold, uma cidade feia e banal,
afundada num buraco na borda do distrito minerador do Sarre, não oferecia confortos principescos,
nenhum castelo para alojá-lo, nem mesmo um Grande Hotel. A oeste estendia-se uma terra de
colinas baixas sob céu aberto, sem obstáculos importantes antes do Moselle e, cintilando no
horizonte, o prêmio: Nancy, a jóia de Lorena.

Rupprecht argumentava que sua tarefa de enfrentar tantas unidades francesas quanto possível
poderia ser melhor levada a cabo pelo ataque, uma teoria exatamente oposta à estratégia do ”saco”.
Durante três dias, de 16 a 18 de agosto, a discussão ferveu pela linha telefônica - toda ela,
felizmente, em território alemão - entre o quartel-general de Rupprecht e o quartel-general alemão.
O atual ataque francês seria o principal esforço do inimigo? Eles não pareciam estar fazendo coisa
alguma de ”sério” na Alsácia ou a oeste do Meuse; que significava esse fato? E se os franceses se
recusassem a avançar e cair dentro do ”saco”? Se Rupprecht continuasse a recuar, não seria aberta
uma brecha entre ele^ o Quinto Exército, seu vizinho da direita, e os franceses não poderiam atacar
por ali? Isso não poderia trazer a derrota da ala direita?

Rupprecht e seu Chefe de staff, o General Krafft von Dellmen-

singen, afirmavam que sim. Diziam que seus soldados aguardavam

impacientes a ordem de atacar, que era difícil segurá-los, que seria

2go vergonhoso forçar a retirada de tropas ”ansiosas por avançar’’ e, mais


ainda, era imprudente ceder território na Lorena logo no início da guerra, mesmo temporariamente,
a não ser que fosse absolutamente necessário.

Fascinado, embora assustado, o OHL não conseguia decidir. Um major chamado Zollner foi
enviado ao quartel-general do Sexto Exército em St. Avold para discutir pessoalmente a questão.
Ele informou que o OHL estava estudando uma mudança no recuo planejado, mas não poderia
renunciar inteiramente à manobra do ”saco”. O major retornou ao OHL sem nada acertado. Mal ele
partira, chegou um relatório de um aeroplano de reconhecimento informando movimentos franceses
de recuo em direção ao Grand Courormé, que foram ”imediatamente interpretados” pelo staff do
Sexto Exército como evidência de que o inimigo não estava, afinal, avançando para dentro do saco,
portanto a melhor coisa a fazer era atacá-lo o mais depressa possível.

Instaurou-se a crise. Mais conversas telefônicas foram levadas a cabo entre Rupprecht e Von Krafft
de um lado e Von Stein e Tappen do outro. Outro mensageiro do OHL, o Major Dommes, chegou
em
17 de agosto corn notícias que faziam a contra-ofensiva parecer mais desejável que nunca: segundo
ele, o OHL tinha agora certeza de que os franceses estavam transferindo forças para sua ala
ocidental e não estavam ”amarrados” à Lorena; relatou o sucesso dos canhões de sítio | em
Liège, fato que fazia a linha francesa de fortalezas parecer menos J inexpugnável; disse,
ainda, que o OHL agora acreditava que os ingle- i sés ainda não tinham desembarcado no
Continente e, se uma batalha i decisiva pudesse ser levada a efeito rapidamente ali na Lorena,
eles | poderiam até não vir mais. Mas, acrescentou o Major Dommes, natu- J ralmente
ele era obrigado por instruções de Moltke a adverti-lo de todos os riscos de uma contra-ofensiva,
dos quais o maior e mais assustador era o de um ataque frontal-- aquele anátema da doutrina militar
- corn o cerco impossibilitado pelas montanhas e pelas fortalezas francesas.

Rupprecht retorquiu que havia menos risco no ataque do que no recuo; pegaria o inimigo de
surpresa e poderia desequilibrá-lo. Ele e sua equipe tinham estudado todos os riscos e pretendiam
anulá-los. Empolgando-se corn a eloqüência de sua ode ao espírito ofensivo de seus galantes
soldados a quem não se podia pedir que recuassem mais, ele anunciou que tinha tomado a decisão
de atacar a não ser que o OHL proibisse expressamente o ataque. 281
- Deixem-me atacar, ou me mandem uma proibição explícita!

- bradou.

Perplexo corn o ”torn vigoroso” do Príncipe, Dommes voltou depressa ao OHL, em busca de novas
instruções. No quartel-general de Rupprecht, como registrou mais tarde o General Von Krafft, ”nós
esperamos, perguntando-nos se receberíamos a proibição”. Esperaram toda a manhã do dia 18; à
tarde, sem ter recebido ordem alguma, Von Krafft telefonou a Von Stein exigindo saber se alguma
ordem seria enviada. Mais uma vez foram debatidas as vantagens e os riscos. corn a paciência
esgotada, Von Krafft pediu um Sim ou um Não.

- Ah, não, nós não vamos lhes fazer o favor de proibir o ataque

- respondeu Von Stein, demonstrando menos autoridade do que deveria ter um ”Alexandre
moderno”. - O senhor terá que assumir a responsabilidade. Tome sua decisão segundo o que a sua
consciência lhe ditar.

- Já tomei. Atacaremos!

- Na! - fez Von Stein, usando a expressão vernacular alemã correspondente a um dar de ombros. -
Ataque, então, e que Deus os proteja!

Assim foi abandonada a manobra do ”saco”; o Sexto e o Sétimo Exércitos receberam ordem de
fazer meia-volta e se preparar para a contra-ofensiva.

Enquanto isso, os ingleses, que os alemães supunham não terem ainda desembarcado, dirigiam-se
para a posição designada, na extremidade esquerda da linha francesa. As boas-vindas contínuas e
carinhosas por parte da população francesa provinham menos de um afeto profundo pelos ingleses,
seus antagonistas durante séculos, do que de uma gratidão quase histérica a um aliado nessa luta
que para a França era de vida ou morte. Aos soldados ingleses, beijados, alimentados e enfeitados
de flores, aquilo parecia uma comemoração, uma festa imensa, da qual, inexplicavelmente, eles
eram os heróis.

Seu combativo Comandante-em-Chefe, Sir John French, desembarcou no dia 14 de agosto^tom


Murray, Wilson e Huguet, que agora estava corn o comando britânico como oficial de ligação.
Passaram a noite em Amiens e no dia seguinte foram a Paris para encontrar-se corn o Presidente, o
Primeiro-Ministro e o Ministro da Guerra. ”Vive lê General French!”, gritavam em delírio as
20.000 pessoas que enchiam a praça em frente à Gare du Nord e se postavam ao longo das ruas.
282 ”Hip, hurrah! Vive l’Angleterre! Vive Ia France!” Por todo o caminho
até a Embaixada Britânica, a multidão, que dizem ter sido maior do que a que recebeu Blériot
quando ele sobrevoou o Canal da Mancha, acenava e dava vivas em eufóricas boas-vindas.

Poincaré ficou surpreso ao constatar que seu visitante era um homem ”de modos discretos (...),
aparência não muito marcial, bigodes caídos, poderia ser tomado por um laborioso engenheiro, mais
do que por um ousado comandante de cavalaria corn a sua reputação.” Parecia lento e metódico,
sem muito élan e, apesar de ter um genro francês e uma casa de verão na Normandia, era capaz de
dizer poucas palavras em francês reconhecível. Em seguida ele horrorizou Poincaré ao anunciar que
seus soldados só estariam prontos para entrar em ação dali a dez dias, isto é, em 24 de agosto. Isso
foi na ocasião em que Lanrezac já temia que 20 de agosto pudesse ser tarde demais. ”Como fomos
enganados!”, escreveu Poincaré em seu diário. ”Pensamos que estivessem prontos até o último
botão e agora eles não vão cumprir a data combinada!”

Na realidade, uma misteriosa mudança ocorrera no homem cuja | maior qualificação para o
comando, à parte ser o mais antigo e ter os j amigos certos, tinha sido, até então, o seu ardor
bélico. A partir do l momento em que desembarcou na França, Sir John French começou
l a mostrar preferência pela ”atitude de espera” - uma curiosa relu- j tância em colocar a FEB
em ação, um enfraquecimento da vontade de l lutar. Isso pode ter acontecido por causa das
instruções de Kitchener l corn sua ênfase em proteger o exército e sua advertência contra
l arriscar ”perdas e desperdício”, ou por ele ter constatado de repente l que no lugar da FEB
não ficara uma corporação nacional de reservis- l tas treinados para substituí-la, ou porque o
peso da responsabilidade l passara a oprimi-lo depois que ele chegou ao Continente, ao se ver
a ’ poucos quilômetros de um inimigo formidável e da batalha inevitável; podia ser, também,
que durante todo o tempo, por trás das palavras e atitudes destemidas, sua coragem estivesse a
evaporar-se invisivelmente; talvez ele não se sentisse inteiramente comprometido a lutar em solo
estrangeiro para defender um país estrangeiro. Fosse qual fosse a causa, só quem esteve na mesma
posição pode julgar.

O certo é que desde o início os encontros de Sir John French corn seus aliados deixava-os
desapontados, assustados ou ofendidos. O propósito imediato da ida da FEB à França - impedir que
esse país fosse esmagado pela Alemanha - parecia escapar-lhe; pelo menos, ele parecia encará-lo
sem qualquer sentimento de urgência. Parecia achar que sua independência de comando, que
Kitchener tanto rés- 2tó
saltara, significava poder ”escolher seu momento de lutar e seu momento de descansar”, como
observou Poincaré; Sir John French parecia indiferente ao fato de que nesse meio tempo os alemães
poderiam dominar a França, tornando obsoleto qualquer outro questionamento da luta. Como o
onisciente Clausewitz observara, um exército aliado agindo sob comando independente é
indesejável; se isso for inevitável, porém, é essencial pelo menos que seu comandante ”não seja dos
mais prudentes e cautelosos, mas dos mais empreendedores”. Durante as três semanas seguintes -
as mais críticas da guerra -, a razão para o grifo de Clausewitz tornar-se-ia óbvia.

No dia seguinte, 16 de agosto, Sir John French visitou o GQG em Vitry, ocasião em que Joffre
achou-o ”firmemente aferrado às próprias idéias” e ”ansioso para não comprometer seu exército”.
Sir John French, por sua vez, não ficou bem impressionado, devido talvez à sensibilidade de um
oficial britânico ao ambiente social; a luta para republicanizar o Exército Francês produzira uma
proporção infeliz do ponto de vista britânico - de oficiais que não eram ”cavalheiros”. ”Aufond, são
uma turma baixa”, Sir John escreveu a Kitchener alguns meses depois, ”e é preciso lembrar-se
sempre da classe de onde vêm a maioria desses generais franceses”. Indubitavelmente o
generalíssimo francês era filho de um comerciante.

Nessa ocasião Joffre expressou, delicadamente mas corn urgência, seu desejo de que a FEB entrasse
em ação no Sambre juntamente corn Lanrezac no dia 21 de agosto. Ao contrário do que dissera a
Poincaré, Sir John French declarou que faria o possível para isso. Pediu apenas que, como ele teria
que defender a extremidade exposta da linha francesa, Joffre colocasse a cavalaria de Sordet e duas
divisões de reserva ”diretamente sob minhas ordens”. Joffre, desnecessário dizer, recusou.
Relatando a visita a Kitchener, Sir John French disse que ficou ”muito impressionado” corn o
General Berthelot e os oficiais do staff, que eram ”ponderados, calmos e confiantes” e mostravam
uma ”total ausência de espalhafato ou confusão”. Não expressou opinião a respeito de Joffre/além
de observar que este parecia reconhecer o valor de uma ”atitude de espera” - um equívoco curioso e
revelador.

A visita seguinte foi a Lanrezac. O estado de espírito tenso no quartel-general do Quinto Exército
transpareceu na primeira saudação de Hély d’Oissel a Huguet quando este chegou de carro corn os
2S4 esperados oficiais ingleses, na manhã de 17 de agosto:
• ^^b

•s.-,,,.iíflBPife,-,«*»«»..jsHBHiMBkt<,s*BKi» General Von Fmnçois


faÜ”

Coronel Hoffmann
- Finalmente você está aqui. Já não era sem tempo! Se formos derrotados, deveremos isso a você.

O General Lanrezac apareceu à porta para cumprimentar seus visitantes, cuja presença em carne e
osso não dissipou as suspeitas de que ele estava sendo enganado por oficiais sem soldados. Na meia
hora seguinte nada foi dito que o tranqüilizasse. Apesar de um deles não falar inglês e o outro não
falar francês, os dois generais recolheram-se para conf erenciar a sós, sem intérpretes-um
procedimento de utilidade tão duvidosa que explicá-lo como uma mania de segredo, como sugeriu o
Tenente Spears, não parece cabível.

Eles logo retornaram para juntar-se aos outros oficiais, muitos dos quais bilíngües, na Sala de
Operações. Sir John French perscrutou o mapa, colocou os óculos, apontou para um ponto no
Meuse e tentou perguntar em francês se o General Lanrezac achava que os alemães cruzariam o rio
naquele ponto que tinha um nome virtualmente impronunciável - Huy. Como a ponte em Huy era a
única entre Liège e Namur e como os soldados de Von Bülow a estavam cruzando naquele exato
momento, a pergunta de Sir John French era correta, mas supérflua. Primeiro ele tropeçou na
expressão ”atravessar o rio” e teve que ser ajudado por Henry Wilson, que ofereceu ”traverser Ia
fleuve”; tornou a hesitar quando chegou a ”à Huy”.

- Que é que ele está dizendo? Que é que ele está dizendo? perguntava Lanrezac, impaciente.

-.... à Hoy - Sir John conseguiu finalmente dizer, como se, estivesse chamando alguém num
barco61.

Um oficial explicou a Lanrezac que o Comandante-em-Chefe inglês desejava saber se ele achava
que os alemães atravessariam o Meuse em Huy.

- - Diga ao Marechal que acho,que os alemães chegaram até o Meuse para pescar - respondeu
Lanrezac.

Seu torn de voz, que ele poderia ter usado ao responder alguma pergunta particularmente estúpida
em uma de suas famosas aulas, não era o que se costumava usar para corn um Marechal-de-Campo
de um exército amigo.

- Que é que ele está dizendo? Que é que ele está dizendo? perguntou Sir John French por sua vez,
entendendo o torn, se não o significado.

61 ”Ahoy”; termo náutico que significa ”olá, ó de bordo”. (N. da T.)

287
- Que eles vão atravessar o rio, senhor - Wilson respondeu diplomaticamente.

No estado de espírito provocado por esse diálogo, os mal-entendidos abundaram. O alojamento e as


linhas de comunicação, fonte inevitável de atrito entre exércitos vizinhos, produziram o primeiro
deles. Houve um sério equívoco a respeito do uso da cavalaria, cada comandante querendo usar a do
outro para as missões de reconhecimento estratégico. O Corpo de Sordet, que Joffre destinara a
Lanrezac, acabara de partir, corn soldados cansados e na maioria descalços, corn a missão de fazer
contato corn os belgas ao norte do Sambre na esperança de convencê-los a não recuarem para
Antuérpia.

Lanrezac-assim como os ingleses-tinha grande necessidade de informações sobre as unidades e a


linha de marcha do inimigo, e queria usar para obtê-las a descansada divisão de cavalaria inglesa.
Sir John French recusou; tendo ido para a França corn quatro divisões em lugar de seis, ele queria
segurar a cavalaria temporariamente como reserva. Lanrezac entendeu-o dizer que pretendia
empregá-la como infantaria montada na linha de frente, uma forma desprezível de ação, que o herói
de Kimberley teria usado corn a mesma relutância corn que um pescador adepto da isca artificial
usaria uma isca viva.

O mais sério de todos os equívocos foi a discussão sobre a data em que a FEB estaria pronta para
entrar em ação. Embora na véspera ele tivesse dito a Joffre que estaria pronto no dia 21, Sir John
French, por pura pirraça ou por causa de seu frágil estado de nervos, agora desdizia o que tinha dito
a Poincaré - que só estaria pronto no dia
24. Para Lanrezac essa foi a aflição definitiva. Ele pensou, mas não disse alto: o general inglês
achava que o inimigo esperaria por ele? Obviamente, como ele sabia desde o princípio, os ingleses
não eram de confiança.

A visita terminou ”corn rostos vermelhos”. Mais tarde Lanrezac informou a Joffre que os ingleses
só estariam prontos ”no dia 24 no mínimo”, a cavalaria deles seria usada como infantaria montada e
”não se poderia contar corn ela para qualquer outro propósito”, e levantou a questão de uma
possível confusão corn os ingleses ao longo das estradas, ”no caso de batermos em retirada”. Essa
frase provocou um choque no GQG: Lanrezac, o ”verdadeiro leão” de admirada agressividade, já
estava pensando na possibilidade de uma retirada!

Sir John French também recebeu um choque ao chegar a seu

quartel-general, temporariamente em Lê Cateau, onde soube que o

comandante do II Corpo, seu born amigo General Grierson, morrera

^ de repente naquela manhã no trem perto de Amiens. O pedido de


French a Kitchener de um determinado general para substituir Grierson - ”por favor, faça o que lhe
peço neste caso”, ele escreveu - foi recusado; Kitchener enviou o General Sir Horace
Smith-Dorrien, corn quem French nunca se dera bem, sendo ambos homens de opiniões fortes.
Como Haig, Smith-Dorrien não tinha muito respeito por seu Comandante-em-Chefe e inclinava-se a
agir por sua própria iniciativa. Sir John French transformou seu ressentimento pela escolha de
Kitchener numa aversão ainda maior a Smith-Dorrien; e quando tudo terminou descarregou-o
naquele documento triste e deturpado que ele intitulou 1914 e que um famoso crítico consideraria
”um dos mais infelizes livros já escritos”.

No Quartel-General belga em Louvain, no mesmo dia 17 de agosto em que Sir John French
encontrava-se corn Lanrezac e Rupprecht pedia permissão para contra-atacar, o Primeiro-Ministro
De Broqueville veio discutir corn o Rei Albert a hipótese de remover o Governo de Bruxelas,
levando-o, para Antuérpia. As informações davam conta de que destacamentos de todas as armas do
Exército de Von Kluck - superando os belgas na proporção de quatro ou cinco para um - atacavam a
linha belga no rio Gette, a 25 quilômetros dali;
8.000 soldados do Exército de Von Bülow atravessaram a ponte em Huy, a 50 quilômetros dali, e
seguiram para Namur. Se Liège tinha caído, que poderia Namur fazer? O período de concentração
terminara, o principal avanço alemão estava a caminho, no entanto os exércitos dos garantidores da
neutralidade belga ainda não tinham aparecido.

- Estamos sozinhos - o Rei comentou corn Broqueville.

Segundo sua estimativa, os alemães provavelmente dominariam o centro da Bélgica e ocupariam


Bruxelas, e ”o desfecho final dos acontecimentos ainda é incerto”. Era bem verdade que a cavalaria
francesa estava sendo esperada neese mesmo dia na área de Namur; ao informar o Rei Albert de sua
missão, Joffre lhe assegurara que, na opinião do GQG, as unidades alemãs a oeste do Meuse eram
apenas ”uma cortina de fumaça”. Asseverara também que outras divisões francesas logo chegariam
para ajudar os belgas contra o inimigo. O Rei Albert não achava que os alemães no Gette e em Huy
fossem uma cortina de fumaça e tomou a triste decisão: o Governo deixaria a capital. No dia 18 de
agosto o Rei ordenou também uma retirada geral do Exército de Gette para a praça forte de
Antuérpia e a remoção do Quartel-General de Louvain para Malines, 50 quilômetros para trás.

289
A ordem provocou uma ”incrédula consternação” no EstadoMaior belga entre os partidários do
avanço, especialmente no Coronel Adelbert, representante pessoal do Presidente Poincaré. Cheio de
energia e brilhantemente qualificado para a guerra, ele era ”menos qualificado” para missões
diplomáticas, segundo o Ministro francês, pesaroso, confessou à Bélgica.

- Vão bater em retirada por causa de uma simples cortina de fumaça da cavalaria deles? - explodiu o
Coronel Adelbert.

Atônito e irritado, ele acusou os belgas de ”abandonarem” os franceses sem aviso, logo no
”momento exato em que os corpos de cavalaria francesa surgiram ao norte do Sambre e Meuse”.
Segundo ele, as conseqüências militares seriam graves, o sucesso moral dos alemães seria grande e
Bruxelas ficaria desprotegida dos ”ataques da cavalaria alemã”. Essa era sua estimativa das forças
inimigas, que dois dias depois tomariam Bruxelas corn mais de 250.000 homens. Por mais
equivocada que fosse a sua opinião e por mais rude que fossem as suas palavras, pelo ponto de vista
francês a angústia do Coronel Adelbert era compreensível: recuar para Antuérpia significava que o
Exército belga iria retirar-se do flanco da linha aliada e romper o contato corn os franceses às
vésperas da grande ofensiva francesa.

Ao longo de todo o dia 18 de agosto a decisão do Rei modificouse várias vezes, na agonia da
hesitação entre o desejo de salvar o Exército belga da aniqüilação e a relutância em renunciar a boas
posições justamente quando a ajuda francesa poderia estar chegando. Antes do fim do dia o dilema
do Rei foi resolvido pela Ordem N213 de Joffre, datada daquele mesmo dia, que deixava claro que
o principal esforço francês seria feito em outra direção, deixando os belgas protegendo seu flanco
em Namur sem a ajuda que poderia ter sido obtida do Quinto Exército e dos ingleses. O Rei Albert
não hesitou mais; confirmou a ordem de recuar para Antuérpia, e naquela noite as cinco divisões
belgas retiraram-se de suas posições no Gette e dirigiram-se para a praça fortificada de Antuérpia,
onde chegaram em 24 de agosto.

A Ordem N5 13 de Joffre era o sinal de ”preparar-se” para a grande ofensiva através do centro
alemão, na qual repousavam todas as esperanças francesas. Dirigida ao Terceiro, Quarto e Quinto
Exércitos e comunicada aos belgas e aos ingleses, a ordem instruía o Terceiro Exército do General
Ruffey e o Quarto Exército do General Langle de Cary para prepararem o ataque através dos
Ardennes,
2go deixando em aberto uma alternativa para o Quinto Exército, depen-
dendo de uma última avaliação da força alemã a oeste do Meuse. Num dos casos, Lanrezac atacaria
para o norte, atravessando o Sambre ”em ligação total corn os Exércitos belga e inglês”; no outro
caso, se o inimigo estivesse combatendo corn ”apenas uma fração do grupo da sua ala direita” a
oeste do Meuse, Lanrezac deveria tornar a cruzar o rio e apoiar a ofensiva principal através dos
Ardennes, ”deixando aos Exércitos belga e inglês a tarefa de lidar corn as forças alemãs ao norte do
Sambre e Meuse.”

Eram instruções impossíveis; ordenavam que o Exército de Lanrezac - não uma unidade, mas uma
massa heterogênea de três corpos e sete diferentes divisões ocupando uma área de 50 quilômetros
de largura -, que estava então em movimento subindo até o Sambre, ficasse de frente para dois
lados; na segunda alternativa, exigia que Lanrezac voltasse à posição original, da qual conseguira
corn tanto trabalho retirar seu Exército apenas três dias antes. Essa ordem poderia ter paralisado
Lanrezac, deixando-o imóvel a esperar que Joffre escolhesse uma das alternativas. Em vez disso, a
expressão ”apenas uma fração da sua ala direita” selou sua falta de confiança no GQG. Ignorando a
segunda alternativa, ele continuou a rumar para o Sambre e informou Joffre que em 20 de agosto ele
estaria em posição de contra-atacar qualquer força inimiga que tentasse atravessar o rio entre Namur
e Charleroi e ”jogá-la de volta no Sambre”.

No caminho, seus batalhões cantavam a Sambre et Meuse, sobre a guerra de 1870, a canção de
marcha preferida do Exército francês.

”Lê régiment de Sambre et Meuse marchait toujours au cri de liberte Cherchant Ia route
glorieuse qui l’a conduit à 1’immortalité. Lê régiment de Sambre et Meuse reçut Ia mort
aux cris de liberte’, Mais son histoire glorieuse lui donne droit a l’immortalité.”

O que ditou a Ordem N-13 foi a férrea determinação por parte do GQG de levar avante o Plano 17,
depositário de todas as esperanças de vitória através de uma batalha decisiva - naquele agosto,
quando a guerra ainda era jovem, prevalecia a idéia de que uma batalha decisiva poderia acabar
corn ela rapidamente. O GQG acreditava firmemente que, por mais forte que fosse a ala direita
alemã, uma ofensiva francesa pelo centro alemão conseguiria isolá-la e destruí-la. Naquela noite,
Messimy, ”angustiado” corn a frágil defesa da fronteira abaixo do Sambre, telefonou para Joffre;
disseram-lhe que o Generalíssimo estava dormindo. Seu respeito era maior que sua angus- m
tia, de modo que ele concordou que Joffre não devia ser perturbado em seu descanso. Berthelot
disse-lhe, à guisa de consolo:

- Se os alemães cometerem a imprudência de uma manobra de cerco através do norte da Bélgica,


tanto melhor! Quanto rnais homens eles tiverem na ala direita, mais fácil será irrompermos pelo
centro da linha deles.

Naquele dia a ala direita alemã estava atravessando a Bélgica, corn o Exército de Von Kluck pelo
lado externo avançando sobre Bruxelas, o de Von Bülow pelo meio avançando sobre Namur, o de
Von Hausen pelo interior avançando sobre Dinant. Namur, defendida pela Quarta Divisão belga e
pelos soldados da guarnição, estava isolada e, apesar do que acontecera em Liège, era considerada
por todos uma fortaleza inexpugnável. Mesmo aqueles que se preocupavam corn Liège achavam
que Namur pelo menos agüentaria tempo suficiente para permitir que Lanrezac atravessasse o
Sambre, fizesse contato corn seus defensores e colocasse suas forças no perímetro do anel de
fortalezas de Namur. No dia 19 de agosto, o Comandante Duruy, ex-adido militar em Bruxelas, que
fora designado oficial de ligação junto a Namur, informou melancolicamente a Lanrezac que não
acreditava que a fortaleza conseguisse agüentar muito tempo; isolados do resto do exército, seus
defensores tinham pouco entusiasmo e pouca munição. Embora essa opinião fosse questionada por
muitas pessoas, Duruy permaneceu inabalável em seu pessimismo.

Em 18 de agosto os soldados de Von Kluck chegaram ao Gette, de onde foram repelidos pelo
Exército belga. A tarefa de Von Kluck era destruir aquele Exército e ele tinha esperanças de
consegui-lo arremetendo entre os belgas e Antuérpia e cercando-os antes que eles conseguissem
alcançar a segurança da sua base, mas chegou tarde demais. A manobra de recuo do Rei Albert
salvou seu Exército e manteve-o inteiro para tornar-se uma ameaça à retaguarda de Von Kluck
quando este mais tarde voltou-se para o sul para a marcha sobre Paris. Von Kluck viu-se obrigado a
informar ao OHL: ”Eles sempre conseguiram escapar de nós, de modo que seu Exército não foi
decisivamente derrotado nem forçado a retirar-se de Antuérpia.”

Logo ele teria que virar para o sul, não apenas corn os belgas à sua retaguarda mas corn um novo
inimigo - os ingleses - à sua frente. Os alemães tinham calculado que o lugar lógico onde os
ingleses desembarcariam seriam os portos mais próximos à frente de combate na Bélgica, e o
reconhecimento da cavalaria de Von Kluck, corn aquela maravilhosa capacidade humana de ver o
que se espera
ver mesmo que não esteja lá, informou devidamente que os ingleses estavam desembarcando em
Ostende, Calais e Dunquerque em 13 de agosto. Isso os teria feito atravessar a linha de frente de
Von Kluck a qualquer momento. Na realidade, naturalmente, eles não desembarcaram ali, e sim
mais abaixo, em Boulogne, Rouen e Havre. A informação de Ostende, no entanto, trouxe ao OHL a
preocupação de que Von Kluck pudesse ser atacado pelos ingleses se virasse para o sul e, se virasse
para a esquerda para enfrentá-los, poderia abrir uma brecha entre o seu Exército e o de Von Bülow.
Para prevenir esse perigo, em
17 de agosto, para grande contrariedade de Von Kluck, o OHL colocou-o sob as ordens de Von
Bülow.

Como era possível que o OHL agisse corn base numa informação de que os ingleses estavam
desembarcando em Ostende e no mesmo dia dissesse a Rupprecht que os ingleses ainda não tinham
desembarcado e talvez não aparecessem? Essa foi uma das curiosidades da guerra que só podem ser
explicadas através de hipóteses. Talvez os oficiais do staff no OHL que lidavam corn a ala esquerda
fossem de um grupo diferente dos que lidavam corn a ala direita, e os dois grupos deixaram de
consultar um ao outro.

Ambos os comandantes do Primeiro e do Segundo Exércitos da Alemanha tinham quase 70 anos.


Von Kluck, um homem estranho, moreno, de aparência feroz, aparentava menos idade, em contraste
corn Von Bülow, que, corn seus bigodes brancos e o rosto intumescido, aparentava mais idade do
que tinha. Von Kluck, que fora ferido na guerra de 1870 e recebera seu ”von” de nobreza aos 50
anos, tinha sido escolhido antes da guerra para o papel de líder na marcha sobre Paris. Era dele o
Exército que deveria ser o cabeça da ala direita e regular a marcha de toda aquela ala, e também o
que recebera o maior poder de ataque, corn uma densidade de 18.000 homens para cada 1.600
metros da linha de frente (cerca de 10 homens por metro), comparada corn os 13.000 de Von Bülow
e os 3.300 de Rupprecht. Perseguido, porém, pelo fantasma de um espaço desguarnecido, o OHL
achou que Von Bülow no centro da ala direita estaria em posição melhor para manter os três
Exércitos alinhados. Von Kluck, ressentindo-se amargamente dessa disposição, prontamente passou
a discutir as ordens de Von Bülow para cada dia de marcha, causando tanta confusão, combinada
corn as comunicações precárias, que depois de dez dias o OHL foi obrigado a anular a ordem - e por
causa disso abrir-se-ia realmente, de maneira irremediável, uma brecha entre os Exércitos.

293
Mais do que Von Bülow, eram os belgas que esgotavam a paciência de Von Kluck. O Exército
belga, forçando os alemães a lutarem para abrir caminho, atrasava o cronograma da marcha;
explodindo ferrovias e pontes, prejudicava o fluxo de munição, alimento, remédios,
correspondência e todos os outros suprimentos, obrigando os alemães a estarem constantemente
empregando esforços para manter abertas suas linhas para a retaguarda. Os civis bloqueavam as
estradas e - pior ainda - cortavam os fios de telefone e telégrafo, o que prejudicava as comunicações
não apenas entre os exércitos alemães e o OHL mas também entre um exército e outro e um corpo e
outro. Essa ”guerra de guerrilha extremamente agressiva”, como Von Kluck a denominava, e
especialmente os francs-tireurs que disparavam contra os soldados alemães, exasperavam-no e a
seus colegas comandantes. Desde o momento em que seu Exército entrou na Bélgica ele teve
necessidade de tomar, segundo suas próprias palavras, ”represálias severas e inexoráveis” tais como
”atirar em indivíduos e queimar casas” contra os ataques ”traiçoeiros” da população civil. Aldeias
incendiadas e reféns assassinados marcaram a passagem do Primeiro Exército.

No dia 19 de agosto, depois que os alemães atravessaram o Gette e constataram que o Exército
belga tinha batido em retirada durante a noite, eles descarregaram sua fúria em Aerschot, uma
pequena cidade entre o Gette e Bruxelas, a primeira a sofrer uma execução em massa. Em Aerschot
150 civis foram mortos. Esses números cresceriam à medida que o processo se repetia, pelo
Exército de Von Bülow em Andenne e Tamines, pelo de Von Hausen no massacre culminante de
612 pessoas em Dinant. O método era reunir os habitantes na praça principal-geralmente as
mulheres de um lado e os homens de outro
- e escolher um em cada dez, ou em cada dois, ou todos de um lado, segundo o capricho de cada
oficial; fazê-los marchar até um campo vizinho ou um terreno vazio atrás da estação ferroviária e
matá-los. Na Bélgica existem muitas cidades cujos cemitérios têm hoje fileiras e mais fileiras de
lápides corn um nome inscrito, a data de 1914 e a : frase, repetida em todas: ”Fusillépar lês
Allemands”. Muitos cemitérios abrigam também fileiras mais longas e mais recentes, corn a mesma
legenda e a data de 1944.

Assim como Von Kluck, o General Von Hausen, comandando o

Terceiro Exército, achava que o comportamento ”pérfido” dos belgas

em ”multiplicar os obstáculos” em seu caminho exigia represálias ”do

í maior rigor, sem um instante de hesitação”. Essas represálias inclui-

Ij^ riam ”tomar como reféns pessoas importantes, tais como proprietá-
•-’•Sí

í
rios, prefeitos e padres; incendiar casas e fazendas e executar pessoas flagradas em atos de
hostilidade”. Os soldados do Exército de Von Hausen eram saxões, uma palavra que na Bélgica
passou a ser o sinônimo de ”selvagens”.

O próprio Von Hausen não conseguia superar a ”hostilidade do povo belga”. Descobrir ”como
somos odiados” era para ele uma surpresa constante. Ele se queixou amargamente da atitude da
família d’Eggremont, em cujo luxuoso castelo de 40 quartos, corn estufas, jardins e estábulos para
50 cavalos ele deveria alojar-se por uma noite. O velho Conde conservou-se ”de punhos cerrados
dentro dos bolsos”, os dois filhos ausentaram-se da mesa de jantar, o pai chegou atrasado e
recusou-se a conversar ou até mesmo a responder a qualquer pergunta, e persistiu nessa conduta
desagradável apesar da atitude benevolente de Von Hausen proibindo sua polícia militar de
confiscar as armas chinesas e japonesas que o Conde d’Eggremont colecionara durante sua carreira
diplomática no Oriente. Foi uma experiência muito penosa.

A campanha alemã de represálias não era, a não ser a nível individual, uma reação espontânea à
provocação belga; ela tinha sido preparada de antemão, corn o costumeiro cuidado alemão para
corn qualquer contingência, e destinava-se a economizar tempo e homens intimidando os belgas
logo de início. Era também essencial entrar na França corn todos os batalhões disponíveis; a
resistência belga, obrigando os alemães a deixarem soldados para trás, interferia nesse , objetivo. As
proclamações foram impressas de antemão; assim que os alemães entravam numa cidade, suas
paredes ficavam brancas, como se vitimada por uma praga bíblica, corn um surto de cartazes
colados em todas as casas advertindo a população contra atos de ”hostilidade”. A morte era o
castigo para os civis que atirassem nos soldados, assim como para uma variedade dífatos menores:
”qualquer um que se aproximar a 200 metros de um aeroplano ou balão será executado na hora.” Os
proprietários das casas onde fossem encontradas armas seriam executados. Proprietários de casas
onde fossem encontrados soldados belgas seriam enviados para trabalhos forçados ”perpétuos” na
Alemanha. As aldeias onde fossem cometidos ”atos de hostilidade” contra os soldados alemães
seriam ”incendiadas”. Se tal ato tivesse lugar ”na estrada entre duas aldeias, os mesmos métodos
serão aplicados às duas”.

As proclamações concluíam: ”Para todos os atos de hostilidade serão aplicados os seguintes


princípios: todos os castigos serão exe- 295
síSK

cutados sem misericórdia, a comunidade inteira será considerada responsável, serão tomados reféns
em grande número”. Essa prática do princípio da responsabilidade coletiva, que fora expressamente
declarada ilegal pela Convenção de Haia, chocou o mundo de 1914, que acreditara no progresso
humano.

Von Kluck queixava-se de que por um motivo qualquer os métodos empregados ”demoravam a
remediar o mal”: a população

• belga continuava a mostrar a mais implacável hostilidade. ”Essas práticas malévolas por parte da
população corroía as próprias entranhas do nosso Exército”. As represálias ficaram mais freqüentes
e mais severas. A fumaça das aldeias incendiadas, as estradas entupidas de habitantes em fuga, os
prefeitos e burgomestres executados como reféns - de tudo isso o mundo foi informado pela
multidão de correspondentes Aliados, americanos ou neutros que, barrados da

• linha de frente por Joffre e Kitchener, reuniram-se na Bélgica desde o l primeiro dia da guerra.
Os americanos, entre eles um grupo notável l de mestres da literatura realista, incluíam Richard
Harding Davis

• para uma cadeia de jornais, Will Irwin para o Collier’s, Irwin Cobb l para o Saturday Evening
Post, Harry Hansen para o Chicago Daily News, l John T. McCutcheon para o Chicago Tribune
e outros.

l Tendo obtido credenciais do Exército alemão, esses jornalistas

l seguiam corn ele. Descreveram as ruínas das casas saqueadas, as l aldeias carbonizadas onde
nenhum ser vivo restara além de um gato H silencioso numa soleira desabada, as ruas cobertas de
cacos de garrafas H e de vidraças, o torturante mugido das vacas corn seus úberes por l ordenhar, as
filas inacabáveis de refugiados corn suas trouxas, suas l carroças, seus guarda-chuvas como abrigo
nas noites chuvosas pasI sadas na beira da estrada, os campos de cereais pesados de grãos H
maduros e ninguém para colhê-los, a pergunta feita incessantemente: l ”Vocês viram os franceses?
Onde estão os franceses? Onde estão os l ingleses?” Uma boneca de trapos caída na estrada corn a
cabeça l esmagada pela roda de uma carreta de canhão pareceu, a um corresponI dente americano,
um símbolo do destino da Bélgica naquela guerra. l No dia 19 de agosto, uma saraivada de tiros
explodia em Aers-

I chot, ao passo que Bruxelas, a 40 quilômetros dali, estava ominosaI mente silenciosa. O
governo partira na véspera. Bandeiras ainda enfeitavam as ruas, filtrando a luz do sol através do
tecido vermelho e amarelo. Em suas últimas horas como capital, a cidade parecia ter adquirido um
novo brilho, no entanto parecia estar ficando mais
296 quieta/ quase pensativa. Pouco antes do fim, foram avistados os
;rr
primeiros franceses - um exausto esquadrão de cavalaria cavalgando lentamente pela Avenue de Ia
Toison d’Or, os cavalos de cabeças pendentes. Poucas horas depois, passaram quatro carros cheios
de oficiais em estranhas fardas caqui. As pessoas olhavam, davam vivas sem entusiasmo: ”Lês
Anglais!”. Os aliados da Bélgica tinham chegado afinal - tarde demais para salvar sua capital. No
dia 19, refugiados continuaram a chegar do leste. As bandeiras estavam sendo retiradas, a
população tinha sido avisada, havia uma ameaça no ar.

No dia 20 de agosto Bruxelas foi ocupada. Esquadrões de Ulanos de lanças em riste apareceram de
repente nas ruas. Eram apenas os arautos de um melancólico desfile de poder e grandiosidade quase
inacreditáveis. Começou às 13:00, corn coluna após coluna de infantaria verde e cinza, os soldados
limpos e barbeados, de botas recémengraxadas e baionetas cintilando ao sol. As fileiras eram
cerradas, para eliminar as lacunas deixadas pelos que tombaram. A cavalaria apareceu usando o
mesmo verde e cinza, corn galhardetes em branco e preto pendendo das lanças, como cavaleiros
saídos da Idade Média. Essa falange, corn seus inumeráveis cascos ressoando em rígida precisão,
parecia capaz de pisotear até a morte qualquer coisa em seu caminho.

Os enormes canhões da artilharia trovejavam sobre o calçamento de pedras. Os tambores rufavam.


Um coro de vozes roucas berrava o hino da vitória, ”Heíl dir im Siegeskranz” corn a música de
”Deus Salve o Rei”62. Interminavelmente, brigada após brigada, em número cada vez maior, lá
vinham eles. A multidão silenciosa contemplava o desfile, estupefata corn sua enormidade, sua
duração interminável, sua esplêndida perfeição. A exibição do equipamento, que visava intimidar os
espectadores, conseguiu seu intento. Puxados por quatro cavalos, os carroções de cozinha, corn o
fogo aceso e a fumaça saindo pelas chaminés, não causavam menos ”pasmo do que os caminhões
transformados em oficinas de sapataria, corn os sapateiros diante de suas bancas martelando em
solas de botas, os soldados viajando nos estribos enquanto esperavam seus calçados serem
consertados.

O desfile mantinha-se de um lado das ruas para que os oficiais em carros e os mensageiros em
bicicletas pudessem subir e descer ao longo da linha de marcha. Os oficiais de cavalaria exibiram
um espetáculo variado - uns fumavam cigarros corn displicente ar-

l
62 ”God Sove the King” (Deus Salw o Rei): hino nacional da Grã-Bretanha - atualmente, ”God Sove the Queen”, Deus Salve a Rainha.
(N. da T.) 297
rogância, alguns usavam monóculos, outros tinham rolos de gordura na nuca, alguns levavam
chicotes de equitação ingleses, todos mostravam expressões de estudado desprezo.

Hora após hora continuava a marcha dos conquistadores, durante toda a tarde, a noite inteira e o dia
seguinte; durante três dias e três noites o Exército de Von Kluck marchou através de Bruxelas. Um
Governador-Geral alemão tomou posse, a bandeira alemã foi içada na Prefeitura, os relógios foram
acertados pelo horário alemão e foi exigida uma indenização de 50 milhões de francos (2,5 milhões
de dólares) pela capital, mais 450 milhões de francos (22,5 milhões de dólares) pela província de
Brabant, pagáveis em dez dias.

Em Berlim, à notícia da queda de Bruxelas os sinos tocaram, brados de prazer e orgulho foram
ouvidos nas ruas, as pessoas ficaram frenéticas de satisfação; desconhecidos abraçavam-se. Reinou
”uma alegria feroz”.

No dia 20 de agosto a França ainda não admitia ser desviada de sua ofensiva. Lanrezac chegara ao
Sambre e os ingleses estavam enfileirados corn ele. Sir John French, depois de todo o seu vaivém,
assegurou a Joffre que estaria pronto para entrar em ação no dia seguinte. Porém havia más notícias
da Lorena, onde a contra-ofensiva de Rupprecht começara corn tremendo impacto: o Segundo
Exército de Castelnau, desequilibrado pela perda de um corpo que Joffre transferira para a frente
belga, estava recuando, e Dubail informou estar sendo severamente atacado. Na Alsácia, contra
forças alemãs muito reduzidas, o General Pau retomara Mulhouse e toda a região em volta mas,
agora que o deslocamento de Lanrezac para o Sambre retirara forças da ofensiva central, os
soldados de Pau tornaram-se necessários para tomar o lugar deles na linha de frente. Diante dessa
grande necessidade, Joffre decidiu retirar as forças de Pau; até mesmo a Alsácia - o sacrifício maior
- seria oferecida no altar do Plano 17.

Embora se esperasse corn a vitória retomar a Alsácia, assim como as minas de ferro de Briey, o
desespero do General Pau transparece na última proclamação ao povo que ele acabara de libertar:
”No norte começa a grande batalha que decidirá o destino da França, e corn ele o da Alsácia. É lá
que o Comandante-em-Chefe convoca todas as forças da nação para o ataque decisivo. Para nós,
corn profunda tristeza, faz-se necessário deixar a Alsácia, momentaneamente, para assegurar sua
libertação definitiva. E uma cruel necessidade à qual o Exército da Alsácia e seu Comandante
submetem-se corn tristeza e à qual jamais se teriam submetido a não ser em último
caso.” Depois disso, tudo o que restou em mãos dos franceses foi uma minúscula fatia de território
em redor do Thann, aonde Joffre foi em novembro e disse simplesmente, levando às lágrimas a
multidão silenciosa:

- Je vaus apporte lê baiser de Ia France (Eu vos trago o ósculo da França).

A liberação definitiva do resto da Alsácia teria que esperar quatro longos anos.

No Sambre, onde Lanrezac deveria tomar a ofensiva no dia seguinte, ”O dia 20 foi um dia excitante
para os soldados”, nas palavras do Tenente Spears. ”Havia crise no ar. Nenhum homem deixava de
sentir que uma grande batalha estava próxima. O moral do Quinto Exército estava extremamente
alto. (...) Eles tinham certeza do sucesso.” Seu comandante, nem tanto. O General d’Amade,
comandante do grupo de três Divisões Territoriais que Joffre, num gesto de última hora, enviara
para a esquerda dos ingleses, também estava inquieto. Em resposta a uma consulta feita ao GQG, o
General Berthelot respondeu: ”As informações acerca das forças alemãs na Bélgica são muito
exageradas. Não há motivo para perturbação. As disposições tomadas por minha ordem são
suficientes no momento.”

Às 15:00 daquela tarde, o General Langle de Cary, do Quarto Exército, informou movimentos do
inimigo ao longo da sua linha, e perguntou a Joffre se não deveria iniciar imediatamente a ofensiva;
no GQG reinava a convicção de que quanto maior a movimentação dos alemães para a sua direita,
mais rarefeito ficaria o seu centro.

Joffre respondeu:

- Compreendo a sua impaciência, mas em minha opinião a hora do ataque ainda não é esta. (...)
Quanto mais a região (dos Ardennes) estiver esvaziada no momento em que passarmos à ofensiva,
melhores resultados poderemos»esperar do avanço do Quarto Exército apoiado pelo Terceiro. É,
portanto, da maior importância permitirmos que o inimigo passe por nós em direção ao noroeste
sem atacá-lo prematuramente.

Às 21:00 ele achou que chegara a hora e enviou a ordem para o Quarto Exército começar a ofensiva
imediatamente. Era a hora do élan. Ao cair da noite do dia 20 de agosto, Joffre informou a
Messimy:

- Temos motivos para esperar corn confiança o desenvolvimento das operações.

299
15

A Derrocada: a Lorena, os Ardennes, Charleroi, Mons

No dia 21 de agosto, Henry Wilson escreveu em seu diário: ”É gloriosa e terrível a idéia de que
antes do final desta semana haverá a maior batalha de que o mundo já teve notícia”. Enquanto ele
escrevia, a batalha já tinha começado. De 20 a 24 de agosto toda a frente ocidental explodia em
combates - na realidade, quatro batalhas, conhecidas coletivamente como a Batalha das Fronteiras.
Partindo da direita, na Lorena, onde a luta estava em progresso desde 14 de agosto, os resultados
eram comunicados ao longo da fronteira até chegarem à extremidade esquerda, de modo que o
resultado na Lorena afetava os Ardennes, o resultado nos Ardennes afetava a batalha de Sambre e
Meuse (conhecida como a Batalha de Charleroi) e esta afetava Mons.

Na manhã de 20 de agosto, na Lorena, o Primeiro Exército do General Dubail e o Segundo Exército


do General Castelnau tinham sofrido um duro e sangrento castigo por parte das defesas preparadas
pelos alemães em Sarrebourg e Morhange. A offensive à outrance logo encontrou seu limite contra
a artilharia pesada, o arame farpado e as metralhadoras entrincheiradas. Ao prescrever as táticas de
assalto, os Regulamentos de Campanha franceses calcularam que numa arremetida de 20 segundos
a linha de infantaria poderia cobrir 50 metros antes que o inimigo tivesse tempo de empunhar a
arma, apontar e atirar. Toda essa ”ginástica tão trabalhosamente praticada nos exercícios”, como
disse corn amargura um soldado francês, mostrou-se uma triste tolice no campo de batalha: corn as
metralhadoras, os inimigos precisavam apenas de oito segundos para atirar, e não 20. Os
Regulamentos de Campanha tinham também calculado que o fogo dos 75s neutralizaria as defesas,
forçando o inimigo a manter a cabeça baixa e ”atirar ao leu”. Em vez disso, e como lan Hamilton
advertira desde a guerra russo-japonesa, um inimigo sob fogo, se entrincheirado atrás de parapeitos,
poderia continuar a atirar, através de orifícios, diretamente sobre o atacante.

Apesar desses problemas, ambos os generais franceses ordenaram um avanço para 20 de agosto.
Sem o apoio de uma barragem de
300 artilharia, seus soldados jogavam-se sobre a linha fortificada alemã.
O contra-ataque de Rupprecht, que o OHL não tivera coragem de lhe recusar, começou na mesma
manhã, corn um fogo de artilharia assassino que abriu grandes rombos nas fileiras francesas. O XX
Corpo de Foch, do Exército de Castelnau, formava a cabeça do ataque.

O avanço tropeçou diante de Morhange. Os bávaros, cujo ardor Rupprecht relutara tanto em
reprimir, quando puderam atacar mergulharam para dentro do território francês, onde, assim que
alguém gritava ”franc-tireurs!”, eles se entregavam a um frenesi de saques, execuções e incêndios.
Na antiga cidade de Nomeny, no vale do Moselle entre Metz e Nancy, 50 civis foram mortos a tiros
ou a baioneta no dia 20 de agosto, metade da cidade foi destruída pela artilharia e o que sobrou foi
incendiado por ordem do Coronel Von Hannapel do Oitavo Regimento Bávaro.

Enquanto combatia arduamente ao longo de toda a sua linha de frente, o Exército de Castelnau foi
pesadamente atacado em seu flanco esquerdo por um destacamento alemão da guarnição de Metz.
corn a esquerda fraquejando e todas as suas reservas já utilizadas, Castelnau constatou não haver
mais qualquer esperança de avançar, e interrompeu a batalha. A defensiva - a palavra proibida, a
idéia proibida - teve que ser aceita como a única escolha. Não se sabe corn certeza se ele
reconheceu, como os mais apaixonados críticos do Plano
17 afirmam que deveria ter reconhecido, que o dever do Exército francês não era atacar, mas sim
defender o solo francês. Ele ordenou uma retirada geral para a linha defensiva no Grand Couronné
porque foi obrigado a isso.

A direita de Castelnau, o Primeiro Exército de Dubail, apesar de severas perdas, mantinha sua
posição e chegara mesmo a avançar. Quando seu flanco direito ficou descoberto pela retirada de
Castelnau, Joffre ordenou a retirada também do Primeiro Exército, em conformidade corn o seu
vizinho. Era ”grande a ”repugnância” que Dubail sentia em ter que renunciar ao terreno conquistado
depois de sete dias de batalha, e sua velha antipatia por Castelnau não se amenizou corn aquela
retirada que ele achava que ”a posição de meu exército não requeria de modo algum”.

Embora os franceses ainda não soubessem, a chacina em Morhange apagou a brilhante chama da
doutrina da ofensiva. Essa doutrina morreu num campo da Lorena onde, no final do dia, a única
coisa visível eram cadáveres espalhados em fileiras e caídos em posições estranhas de morte súbita,
como se o lugar tivesse sido varrido por um maléfico furacão. Um sobrevivente observou depois:
301
foi uma dessas lições ”pelas quais Deus ensina a lei aos reis”. Em Morhange revelou-se o poder da
defesa que iria transformar a guerra de manobras numa guerra de posições que duraria quatro anos e
destruiria uma geração inteira de vidas na Europa. Foch, pai espiritual do Plano 17, o homem que
ensinava que ”só há um modo de nos defendermos - atacarmos assim que estivermos prontos”, iria
experimentar isso. Durante mais quatro anos de destruição implacável e inútil os beligerantes
teimaram em bater corn a cabeça nessa parede. No final, foi Foch quem presidiu a vitória. Porém a
lição aprendida nessa guerra mostrou-se errada para a guerra seguinte.

No dia 21 de agosto, o General Castelnau soube que seu filho tinha sido morto em combate.
Quando sua equipe tentou exprimir suas condolências, ele disse, depois de um momento de silêncio,
a frase que se tornaria uma espécie de slogan para a França:

- Cavalheiros, nós vamos continuar.

No dia seguinte, o ribombar da artilharia pesada de Rupprecht soou incessantemente, como o


estrondo de um estouro de boiada. Quatro mil projéteis caíram em Ste. Genevieve, perto de
Nomeny, num bombardeio que durou 75 horas. Castelnau achava que a situação estava tão séria que
possivelmente exigiria a retirada para trás do Grand Couronné, entregando Nancy ao inimigo. Foch
escreveria mais tarde: ”Fui a Nancy no dia 21; eles queriam evacuá-la. Eu disse: o inimigo está a
cinco dias de Nancy e o XX Corpo está lá. Eles não vão passar por cima do XX facilmente!”

A metafísica das salas de aula transformou-se no ”Attaquez!” do campo de batalha. Foch


argumentou que, corn a linha fortificada às suas costas, a melhor defesa era o contra-ataque, e seu
argumento triunfou. No dia 22 de agosto ele viu uma oportunidade: entre as zonas fortificadas de
Toul e Épinal havia um desfiladeiro natural chamado Trouée de Charmes, onde os franceses tinham
imaginado canalizar o ataque alemão. As missões de reconhecimento mostraram que Rupprecht,
levando a ofensiva em direção a Charmes, expunha seu flanco ao Exército de Nancy.

A manobra de Rupprecht tinha sido decidida em outra das fatais conversas telefônicas corn o OHL.
O sucesso dos exércitos da ala direita alemã em fazer os franceses recuarem de Sarrebourg e
Morhange teve dois efeitos: deu a Rupprecht a Cruz de Ferro, Primeira e Segunda Classe - um
resultado relativamente inócuo - e trouxe de volta a visão que o OHL tinha de uma batalha decisiva
na Lorena. Eles imaginaram que talvez um ataque frontal pudesse ser vencido pelo I02 poderio
alemão. Talvez Épinal e Toul se mostrassem tão vulneráveis
l

l
quanto Liège, e o Moselle uma barreira tão frágil quanto o Meuse. Talvez, afinal, os dois exércitos
da ala esquerda pudessem conseguir romper a linha fortificada francesa e, em colaboração corn a
ala direita, completar um cerco duplo. Segundo o Coronel Tappen, essa era a perspectiva que
cintilava diante do OHL e, como o sorriso de uma mulher tentadora, dominou anos de devoção fiel
à ala direita.

Enquanto essa idéia era ansiosamente discutida por Moltke e seus conselheiros, houve um
telefonema do General Von Kraff t, Chefe do staffde Rupprecht, que queria saber se o ataque
deveria continuar ou cessar. Sempre se tomara como certo que, uma vez tendo os exércitos de
Rupprecht detido a ofensiva inicial francesa e estabilizado a linha de frente, eles teriam que
imobilizar-se, organizar suas defesas e liberar todas as forças disponíveis para reforçar a ala direita.
No entanto, uma alternativa conhecida como Caso 3 fora cautelosamente incluída e previa um
ataque atravessando o Moselle, mas apenas diante de ordens expressas do OHL.

-Definitivamente precisamos saber como a operação vai prosseguir - declarou Krafft. - Imagino que
será de born alvitre aplicar o Caso 3.

- Não, não! - contestou o Coronel Tappen, Chefe de Operações. - Moltke ainda não decidiu. Se você
esperar na linha cinco minutos, talvez eu possa lhe dar as ordens que deseja.

Ele voltou em menos de cinco minutos, corn uma resposta surpreendente:

- Siga em direção a Épinal.

Krafft ficou perplexo. ”Senti que naqueles poucos instantes fora tomada uma das decisões mais
cheias de conseqüências de toda a guerra.”

”Siga em direção a Épinal” significava a ofensiva através do Desfiladeiro de Charmes. Significava


comprometer o Sexto e o Sétimo Exércitos a um ataque frontal à linha de fortalezas francesas, em
vez de mantê-los disponíveis para reforçar a ala direita. Rupprecht atacou corn vigor no dia
seguinte, 23 de agosto. Foch contra-atacou. Nos dias que se seguiram, o Sexto e o Sétimo Exércitos
da Alemanha entraram em combate contra o Primeiro e o Segundo Exércitos da França, que eram
apoiados pelos canhões de Belfort, Épinal e Toul. Enquanto eles lutavam, outras batalhas
aconteciam.

O fracasso da ofensiva na Lorena não intimidou Joffre. Pelo contrário: no violento contra-ataque de
Rupprecht, que manteria toda a ala esquerda alemã atarefada, ele enxergou o momento propício
para iniciar sua própria ofensiva contra o centro alemão. Foi depois
303
^D CALAIS

>BOULOGNE
de saber da retirada de Castelnau de Morhange que Joffre, na noite de 20 de agosto, deu o sinal para
o ataque nos Ardennes-a manobra central e básica do Plano 17. Ordenou também que, ao mesmo
tempo em que o Quarto e o Terceiro Exércitos entravam nos Ardennes, o Quinto Exército tomasse a
ofensiva cruzando o Sambre contra o ”grupo norte” do inimigo - termo do GQG para a ala direita
alemã.

Joffre deu essa ordem mesmo tendo acabado de saber do Coronel Adelbert e de Sir John French que
para essa ofensiva não poderia contar, como esperava, corn o apoio dos belgas e dos ingleses. O
Exército belga, corn exceção de uma divisão em Namur, tinha perdido o contato; o Exército
britânico, segundo seu comandante, só estaria pronto dali a três ou quatro dias. Além dessa
modificação nas circunstâncias, a batalha na Lorena revelara perigosos erros de desempenho de
luta. Esses erros tinham sido reconhecidos ainda em 16 de agosto, quando Joffre enviou instruções a
todos os comandantes de exército sobre a necessidade de aprender ”a esperar o apoio da artilharia”
e de impedir que os soldados ”se exponham impensadamente ao fogo inimigo”.

Mesmo assim, a França estava comprometida corn o Plano 17 como o único caminho para uma
vitória decisiva, e o Plano 17 exigia a ofensiva-imediatamente, não mais tarde. A única alternativa
teria sido passar logo à defesa das fronteiras. Em termos de treinamento, planejamento, pensamento
e espírito do organismo militar francês, isso era impensável.

Mais ainda: o GQG estava convencido de que os Exércitos franceses teriam superioridade numérica
no centro. O stafffrancês não conseguia libertar-se da teoria que dominara todo o seu planejamento
- de que os alemães seriam necessariamente em menor número no centro. De acordo corn essa
crença, Joffre deu a ordem para a ofensiva geral nos Ardennes e no Sambre para 21 de agosto.

O terreno nos Ardennes não se presta a uma ofensiva. Ele é cheio de bosques e colinas, muito
irregular, corn os aclives geralmente no lado francês e os declives entre as colinas cortados por
muitos riachos. César, que precisou de dez dias de marcha para atravessar os Ardennes, descreveu a
floresta escura e misteriosa como ”um lugar cheio de terrores”, corn caminhos lamacentos e uma
perpétua neblina subindo das turfeiras. Desde então, grande parte da floresta fora derrubada e o
terreno cultivado; estradas, aldeias e duas ou três cidades grandes substituíram os terrores de César,
mas ainda havia grandes extensões cobertas de bosques cerrados e escuros, corn poucas estradas e
em-
306 boscadas fáceis.
Oficiais do staff francês tinham examinado o terreno em várias visitas antes de 1914 e conheciam as
dificuldades; apesar de suas advertências, os Ardennes foram o local escolhido para o desfecho
porque ali, no centro, esperava-se que o poder alemão fosse menor. Os franceses acreditavam que
aquele era o melhor lugar por causa da teoria de que sua própria dificuldade o fazia, segundo Joffre,
”favorável ao lado que, como o nosso, tiver inferioridade na artilharia pesada mas superioridade nos
canhões de campanha”. As memórias de Joffre, apesar do uso constante do pronome ”eu”, foram
coligidas e escritas por uma equipe de colaboradores militares e representam uma versão cuidadosa
e virtualmente oficial do pensamento dominante no Estado-Maior antes e durante 1914.

No dia 20 de agosto, o GQG, tomando as informações de manobras inimigas na linha de frente por
unidades alemãs dirigindo-se para o Meuse, imaginaram que os Ardennes estivessem relativamente
”vazios” do inimigo. Como Joffre pretendia efetuar seu ataque de surpresa, ele proibiu missões de
reconhecimento da infantaria, que poderiam fazer contato e provocar conflitos corn o inimigo antes
do encontro principal. Houve realmente surpresa - mas não somente para os alemães.

O canto inferior dos Ardennes encontra-se corn a França no canto superior da Lorena, onde fica a
região ferrífera de Briey. A área tinha sido ocupada pelo Exército prussiano em 1870 mas, como o
processo de refino de minérios fosfóricos só foi descoberto em 1878, Briey não tinha sido incluída
na parte da Lorena anexada pela Alemanha. O centro da região ferrífera era Longwy, na margem do
Chiers, e a honra de tomar Longwy tinha sido reservada para o Príncipe-Herdeiro, comandante do
Quinto Exército alemão.

Aos 32 anos, o herdeiro imperial era uma criatura magra, de tórax estreito e rosto de raposa, que em
nada se parecia corn seus cinco robustos irmãos corn que a Imperatriz presenteara o marido em
intervalos anuais. William, o Príncipe-Herdeiro, dava impressão de fragilidade física e, nas palavras
de um observador americano, ”de calibre mental apenas normal” - ao contrário do pai. Como
este/ele era dado a atitudes teatrais, sofria do antagonismo filial obrigatório aos filhos mais velhos
dos reis e expressava-o do modo costumeiro: rivalidade política e vida desregrada. Tornou-se
patrono e defensor da opinião militarista mais agressiva e sua fotografia era vendida nas lojas de
Berlim corn a citação: ”Só confiando na espada podemos ganhar o lugar ao sol que nos é devido
mas não nos é concedido voluntariamente.” g»-
307
Apesar de uma educação que pretendia prepará-lo para o cornando militar, aos 32 anos seu
treinamento ainda não chegara ao adequado. Ele era coronel dos Hussardos da Caveira e prestara
um ano de serviço no Estado-Maior, porém jamais tivera um comando de uma divisão ou de um
corpo. No entanto o Príncipe-Herdeiro achava que a experiência corn o Estado-Maior e as visitas
militares nos últimos anos ”deram-me uma base teórica para comandar grandes unidades”. Sua
confiança não era compartilhada por Schlieffen, que deplorava a indicação de comandantes jovens e
inexperientes, temendo que esses oficiais se interessassem mais em partir numa ”wildejagd nach
dem Pour lê Mérite”-uma busca impetuosa à honraria mais alta
- do que em seguir o plano estratégico.

O papel do Quinto Exército do Príncipe-Herdeiro, juntamente corn o Quarto Exército sob o


comando do Duque de Württemberg, seria de pivô da ala direita, avançando lentamente pelo centro
enquanto a ala direita fazia uma curva para fora e para baixo em sua grande manobra de cerco. O
Quarto Exército deveria avançar através da parte norte dos Ardennes contra Neufchâteau, enquanto
o Quinto Exército avançava através da parte sul dos Ardennes contra Virton e as duas cidades
fortificadas francesas, Longwy e Montmédy. O quartel-general do Príncipe-Herdeiro ficava em
Thionville - que os alemães chamavam de Diedenhofen-, onde ele jantou a mesma refeição de seus
soldados - sopa de repolho, batatas e carne cozida corn raiz-forte - acrescida, numa concessão à
realeza, de pato selvagem, salada, frutas, vinho, café e charutos. Cercados pelos rostos ”graves e
melancólicos” da população nativa e invejando a glória alcançada em Liège e o progresso da ala
direita, o Príncipe-Herdeiro e sua equipe esperavam febrilmente pela ação. Finalmente, no dia 19 de
agosto, chegaram as ordens de marcha.

Em frente ao exército do Príncipe-Herdeiro encontrava-se o Terceiro Exército francês, sob o


comando do General Ruff ey. Apóstolo solitário da artilharia pesada, Ruffey era conhecido como
”lê poete du canon”-o poeta do canhão-por causa da sua eloqüência em defesa dessas armas. Ele
ousara não apenas questionar a onipotência dos 75s mas também propor o uso de aeroplano como
arma ofensiva e a criação de uma força aérea de 3.000 aviões. A idéia não agradou.

- Tout ca, c’est du sport! - exclamara o Comandante da École Supérkure, General Foch, em 1910.
Quanto ao uso do aeroplano pelo Exército, ele declarara: - Uavion c’est zero!63

jjDf 63 ”Tout ca c’est du sport!”: Tudo isto é esporte1. ”Uavion c’est zero!”: O avião é uma nulidade!
No ano seguinte, durante exercícios, o General Gallieni, usando reconhecimento aéreo, capturou um
coronel do Conselho Supremo de Guerra e toda a sua equipe. Em 1914 o Exército francês já estava
usando a aviação, mas o General Ruffey ainda era visto corn desconfiança como alguém corn
”demasiada imaginação”. Além disso, por não permitir que oficiais do seu staff lhe dissessem o que
fazer, ele conquistara inimigos no GQG antes de entrar nos Ardennes. Seu quartel-general ficava
em Verdun e sua tarefa era fazer o inimigo recuar para o Metz-Thionville e ali investir contra ele,
recapturando a região de Briey no curso de seu avanço. Enquanto ele fazia o inimigo recuar à direita
do centro alemão, seu vizinho, o Quarto Exército, sob o comando do General Langle de Cary, faria
o mesmo à esquerda. Os dois exércitos franceses abririam caminho em cunha através do centro e
amputariam o braço da ala direita alemã junto ao ombro.

O General Langle, um veterano de 1870, tinha permanecido em comando apesar de ter alcançado a
idade limite na França - 64 anos -um mês antes da guerra. corn a aparência aguerrida e alerta de um
garnisé, cheio de energia, ele se parecia corn Foch e, como ele, nas fotos sempre parecia estar
pronto para fazer alguma coisa.

O General Langle estava pronto - aliás, ansioso - para fazer alguma coisa agora, e recusou-se a
desanimar corn as notícias inquietantes. Sua cavalaria, em combate perto de Neufchâteau,
encontrara uma forte oposição e fora forçada a bater em retirada. Um oficial que saiu de carro numa
missão de reconhecimento trouxe mais um aviso. O oficial tinha conversado, em Arlon, corn um
preocupado funcionário do Governo de Luxemburgo, que afirmou que os alemães estavam ”corn
muitas forças” nos bosques vizinhos; no caminho de volta, o carro do oficial foi atingido por
disparos. Mas o quartel-general do Quarto Exército considerou ”pessimistas” os seus relatórios. O
estado de espírito que prevalecia era de ousadia, não de prudência: chegara o momento de agir
depressa, sem hesitações. Só depois da batalha foi que o General Langle lembrou-se de ter
desaprovado a ordem de Joffre de atacar ”sem permitir que eu investigasse antes”; só mais tarde ele
escreveu: ”O GQG queria fazer uma surpresa, mas fomos nós os surpreendidos.”

O General Ruffey estava mais preocupado que seu vizinho. Ele levava a sério as notícias trazidas
por camponeses belgas sobre alemães alojados nos bosques e nos milharais. Quando deu ao GQG
sua
- x íçs§ví r- .’...-

(N. da T.)

309
estimativa da força inimiga oposta a ele, não lhe prestaram atenção e, segundo ele afirmaria mais
tarde, sequer leram seus relatórios.

A neblina erguia-se espessa do solo em todo Ardennes na manhã de 21 de agosto. O Quarto e o


Quinto Exércitos alemães tinham avançado durante os dias 19 e 20, entrincheirando suas posições.
Esperava-se um ataque francês, embora não se soubesse onde ou quando. Em meio à névoa densa,
as patrulhas de cavalaria francesas enviadas à frente para estudar o terreno ”estavam como se
tivessem os olhos vendados”. Os exércitos oponentes, avançando através dos bosques e por entre as
colinas, incapazes de enxergar mais de alguns passos à frente, tropeçaram um no outro antes que
soubessem quem estava diante deles. Assim que as primeiras unidades estabeleceram contato e os
comandantes perceberam que a batalha estava explodindo em volta deles, os alemães puseram-se a
cavar trincheiras. Os franceses, cujos oficiais durante o treinamento de pré-guerra não gostavam de
fazer os soldados praticarem o entrincheiramento para que não ficassem ”pegajosos”, e que
carregavam o menor número possível de enxadas e pás, lançaram-se a um attaque brusquée corn
baioneta. Foram dizimados pelas metralhadoras. Em outros embates, porém, os 75s franceses
chacinaram as unidades alemãs, que também tinham sido pegas de surpresa.

No primeiro dia, os encontros foram eventuais e preliminares; no dia 22, a parte baixa dos Ardennes
viu-se mergulhada numa batalha em grande escala. Em combates diversos em Virton, Tintigrfy,
Rossignol e Neufchâteau os canhões rugiam, os homens lançavam-se uns contra os outros, os
feridos tombavam e os mortos se empilhavam. Em Rossignol, os argelinos da Terceira Divisão
Colonial Francesa foram cercados pelo VI Corpo do Exército do Príncipe-Herdeiro e combateram
durante seis horas, até que restaram apenas uns POUCOS sobreviventes. Seu comandante de
divisão, General Raffenel, e um comandante de brigada, General Rondoney, foram mortos-na
guerra de agosto de 1914, os oficiais generais tombavam como soldados comuns.

Em Virton, o VI Corpo Francês, sob o comando do General Sarrail, atacou o flanco de/bm corpo
alemão corn o fogo de seus 75s. ”Depois, o campo de batalha era um espetáculo inacreditável”,
relatou um oficial francês enlouquecido de horror. ”Milhares de cadáveres em pé, apoiados uns nos
outros num arcobotante64 feito de mortos,

64 Arcobotante: peça em forma de arco que se encosta à parede externa de uma construção para ;j0 a sustentação das abóbadas de
cobertura, característica da arquitetura gótica. (N. da T.)
empilhados num arco ascendente, desde a posição horizontal até um ângulo de 60 graus.”

Os oficiais oriundos de St. Cyr65 iam para a batalha usando barretinas corn plumas brancas e luvas
brancas - era considerado ”elegante” morrer de luvas brancas. Um sargento francês não-identificado
escreveu em seu diário: ”Os canhões dão coice a cada tiro. A noite está caindo e eles parecem
velhos mostrando a língua e cuspindo fogo. Há cadáveres franceses e alemães em montes por toda
parte, ainda de fuzil na mão. Está chovendo, os projéteis zunem e explodem
- um atrás do outro. O fogo da artilharia é o pior. Passei a noite toda escutando os feridos gemerem -
alguns eram alemães. O canhoneio continua. Sempre que ele cessa, ouvimos os feridos gritando por
todo o bosque. Todos os dias dois ou três enlouquecem.”

Em Tintigny, um oficial alemão também mantinha um diário. ”Não se poderia imaginar algo mais
terrível”, escreveu ele. ”Avançamos depressa demais. Um civil atirou em nós. Foi executado na
mesma hora. Ordenaram que atacássemos o flanco do inimigo num bosque de faias. Perdemos o
rumo. Os homens estavam liquidados. O inimigo abriu fogo. As balas caíam sobre nós como
granizo.”

O Príncipe-Herdeiro, não querendo ser superado por Rupprecht, cujas vitórias em Sarrebourg e
Morhange eram agora conhecidas, forçou seus soldados a imitar ”os prodígios de coragem e
sacrifício” de seus camaradas. Ele movera seu quartel-general para Esch, em Luxemburgo, logo do
outro lado do rio em Longwy, e acompanhou a batalha em um enorme mapa preso à parede. O
suspense era uma tortura; as comunicações telefônicas corn Coblenz eram horríveis; o OHL estava
”recuado demais”; a luta era terrível, as perdas enormes, Longwy ainda não tinha sido tomada mas
ele sentia ”que detivemos a ofensiva do inimigo”; informara-se que unidades francesas estavam
recuando desordenadamente, numa manobra nãoplanejada.

Foi isso mesmo. No último momento antes da batalha, o General Ruffey ficou furioso ao descobrir
que três divisões de reserva, ao todo cerca de 50.000 homens, que formavam parte de seu exército,
já não faziam parte dele; em reação à ameaça da ofensiva de Rupprecht, Joffre as requisitara para
formar o Exército da Lorena, composto dessas três divisões e mais quatro divisões de reserva que
ele recolheu em outra parte. O Exército da Lorena, sob o comando do General

65 Sf. Cyr: Academia Militar francesa. (N. da T


Maunoury, começou a sua formação no dia 21 entre Verdun e Nancy para apoiar o exército de
Castelnau e proteger o flanco direito do avanço através dos Ardennes. Era uma das modificações de
última hora que provavam a benéfica flexibilidade do Exército francês, mas que naquele momento
teve resultado negativo: diminuiu a força de Ruffey e manteve sete divisões imobilizadas num
momento vital. Ruffey sempre afirmou depois que se tivesse tido aqueles 50.000 homens, corn
quem tinha contado e para quem já tinha enviado ordens, ele poderia ter vencido a batalha de
Virton.

Na hora, sua raiva foi maior do que o seu tato. Quando um oficial do GQG foi ao seu
quartel-general durante a batalha, Ruffey explodiu:

- Será que vocês do GQG nunca lêem os relatórios que nós enviamos? São tão ignorantes quanto
uma ostra a respeito de tudo o que o inimigo tem dentro da manga! (...) Diga ao Generalíssimo que
suas operações são piores do que 1870. Ele não enxerga absolutamente coisa alguma.
Incompetência por toda parte!

Esse não era um recado bem-vindo no Olimpo, onde Joffre e as divindades que o assistiam estavam
mais inclinados a colocar a culpa na incapacidade dos soldados e de seus comandantes - Ruffey
entre eles.

No mesmo dia, 22 de agosto, o General Langle estava passando pelos momentos mais dolorosos de
um comandante: esperando notícias da linha de frente. Confinado ”cheio de angústia” ao seu
quartelgeneral em Stenay, no Meuse, a 30 quilômetros de Sedan, ele recebia notícias ruins uma após
outra. Só conseguia controlar seu instinto de correr para o campo, de batalha quando lembrava a si
mesmo que um general não pode se perder entre suas unidades, pois só à distância ele consegue
dirigir seus movimentos. Manter o sangue-frio diante de seu staffe ”aquele domínio de si mesmo
indispensável a um chefe nos momentos críticos” era igualmente difícil.

corn o passar das horas, as terríveis baixas no Corpo Colonial foram se tornando conhecidas. Outro
corpo batia em retirada, colocando seus vizinhos em perigo, por causa - segundo Langle acreditava
-de um erro de seu comandante. ”Séria oposição em Tintigny; todos os soldados combatendo, corn
resultado insatisfatório”, foi o que ele teve que informar a Joffre, acrescentando que as perdas e a
desorganização da suas unidades impossibilitavam que ele cumprisse suas ordens para 23 de agosto.

312
Joffre simplesmente recusou-se a acreditar nisso. corn serena complacência ele informou a
Messimy, mesmo depois de receber o relatório de Langle, que os Exércitos tinham sido colocados
”onde o inimigo é mais vulnerável, para assegurar nossa superioridade numérica” O trabalho do
GQG estava feito. Agora a responsabilidade cabia aos soldados e seus comandantes, ”que têm a
vantagem dessa superioridade”. Ele repetiu essa asseveração a Langle, insistindo para que
retomasse a ofensiva, pois não tinha mais que três corpos inimigos diante de si.

Na realidade, as tropas francesas nos Ardennes não gozavam dessa superioridade. Pelo contrário: o
Exército do Príncipe-Herdeiro incluía, além dos três corpos que os franceses tinham identificado,
dois corpos de reserva corn o mesmo número de soldados do corpo da ativa; o mesmo acontecia
corn o Exército do Duque de Württemberg. Juntos eles perfaziam um número maior de homens e
canhões do que os do Terceiro e do Quarto Exércitos franceses.

A luta continuou durante o dia 23 de agosto, mas no final da tarde já se sabia que a flecha francesa
partira-se de encontro ao alvo. O inimigo, afinal, não estava ”vulnerável” nos Ardennes; apesar da
enorme força de sua ala direita, seu centro não estava fraco. Os franceses não o tinham ”cortado ao
meio”. corn o grito de ”En avant!”, corn a espada em riste, corn todo o ardor do qual o Exército
francês se orgulhava, os oficiais lideraram suas companhias no ataque - contra um inimigo que se
entrincheirava e usava seus canhões de campanha. O cinzento das fardas perdendo-se na névoa
tinha derrotado o muito visível pantalon rouge; o treinamento regular, sólido e metódico derrotara o
élan. Ambos os Exércitos franceses nos Ardennes estavam batendo em retirada, o Terceiro
recuando para Verdun e o Quarto para Stenay e Sedan. O minério de ferro de Briey não foi
recuperado, e durante mais quatro anos ajudaria-a forjar munições alemãs para a longa guerra que a
Alemanha não poderia ter sustentado sem aquele material.

Na noite de 23 de agosto Joffre ainda não tinha percebido a extensão total da derrota nos Ardennes.
Ele telegrafou para Messimy informando que a ofensiva tinha sido detida momentaneamente, e
acrescentou: ”Mas farei todos os esforços para renová-la.”

Nesse dia, o Exército do Príncipe-Herdeiro passou por Longwy, deixando que a fortaleza fosse
tomada por tropas de sítio, e avançou, corn ordens de desviar o Terceiro Exército francês de
Verdun. O 313
Príncipe, que menos de um mês antes fora advertido pelo pai a obedecer seu Chefe de staffem tudo
e ”fazer o que ele mandar”, ficou ”profundamente emocionado” nesse dia de triunfo ao receber um
telegrama de ”Papai William” concedendo-lhe, como a Rupprecht, a Cruz de Ferro, Primeira e
Segunda Classe. O telegrama passou de mão em mão entre o staff, para ser lido por todos. Logo o
próprio Príncipe estaria também concedendo medalhas - vestindo uma ”brilhante túnica branca”,
como descreveu mais tarde um admirador, caminhando entre duas fileiras de soldados e
distribuindo Cruzes de Ferro tiradas de uma cesta que um ajudante carregava. Um aliado austríaco
relataria mais tarde que a essa altura só se podia evitar receber uma Cruz de Ferro cometendo
suicídio.

Naquele dia o ”herói de Longwy”, como ele seria logo aclamado, alcançara uma glória igual à de
Rupprecht; se no meio da adulação o fantasma de Schlieffen resmungava sobre ”vitórias frontais
corriqueiras” sem cerco ou aniquilação, ou fazia referências sarcásticas a uma ”busca impetuosa a
honrarias”, ninguém o ouviu.

Enquanto isso, no Sambre, Joffre ordenara ao Quinto Exército de Lanrezac que atacasse do outro
lado do rio e, ”descansando na fortaleza de Namur”, corn a sua direita passando por Charleroi,
tomar como seu objetivo o ”grupo norte” do inimigo. Um corpo do Quinto Exército ficaria na
confluência dos rios para proteger a linha do Meuse contra um ataque alemão vindo do leste.
Embora Joffre não tivesse autoridade de comando sobre os ingleses, sua ordem previa que Sir John
French ”cooperasse nessa ação” avançando ”na direção geral de Soignies”, isto é, atravessando o
Canal de Mons. O canal é uma extensão do rio Sambre que permite a navegação até o Canal da
Mancha pelo Scheldt; fazia parte de uma hidrovia contínua, formada pelo Sambre de Namur a
Charleroi e pelo canal de Charleroi até o Scheldt, que ficava no caminho da ala direita alemã.

Segundo o cronograma alemão, o Exército de Von Kluck deveria chegar à barreira aquática em 23
de agosto, ao passo que o Exército de Bülow, que no caminho teria que tomar Namur, chegaria lá
antes e o atravessaria mais ou menos ao mesmo tempo.

Segundo o cronograma britânico montado pelas ordens de marcha de Sir John French, a FEB
também chegaria ao canal no dia 23, junto corn os alemães. Nenhum dos Exércitos tinha
conhecimento dessa coincidência. A cabeça das colunas inglesas deveria chegar antes, isto é,
durante a noite de 22. No dia 21, dia em que Lanrezac
314 recebeu ordem de atravessar o Sambre, a FEB, que Joffre esperava que
”cooperasse nessa ação”, estava um dia de marcha atrás dos franceses. Em vez de lutarem juntos
como planejado, os dois Exércitos, por causa da partida atrasada dos ingleses e da escassa
comunicação resultante das relações difíceis entre seus comandantes, combateriam em duas
batalhas separadas - Charleroi e Mons. Durante o combate, seus quartéis-generais estavam a menos
de 50 quilômetros um do outro.

No coração do General Lanrezac a doutrina da ofensiva já estava morta. Ele não tinha condições de
enxergar todo o quadro, agora tão claro, dos três exércitos alemães convergindo sobre a sua linha de
frente, mas podia sentir a presença deles. O Terceiro Exército de Hausen avançava do leste em sua
direção, o Segundo Exército de Bülow vinha do norte e o Primeiro Exército de Von Kluck avançava
contra o nanico Exército inglês à sua esquerda. Ele não sabia quem ou quantos eram, mas sabia que
estavam lá. Sabia, ou deduzia dos relatórios das missões de reconhecimento, que o inimigo
avançava contra ele em número maior do que ele poderia enfrentar. A avaliação da força do inimigo
não é um cálculo absoluto, mas um método de juntar pedaços de informações para formar um
quadro, se possível um quadro que caiba nas teorias prevalentes ou seja adequado às exigências de
uma estratégia determinada. O que uma equipe deduz da evidência disponível depende do grau de
otimismo ou pessimismo que prevalece nela, daquilo em que seus membros querem ou temem
acreditar, e às vezes da sensibilidade ou da intuição de um único indivíduo.

Para Lanrezac e para o GQG as mesmas informações sobre a força do inimigo a oeste do Meuse
formavam dois quadros diferentes. O GQG via um centro alemão fraco nos Ardennes; Lanrezac via
uma grande onda em movimento e o Quinto Exército bem em seu caminho. O GQG calculava a
força alemã a oeste do Meuse em 17 ou 18 divisões; contra elas, contavam corn as 13 divisões de
Lanrezac, outro grupo de duas divisões de reserva, cinco divisões inglesas e uma divisão belga em
Namur, totalizando 21 divisões, dando-lhes o que eles acreditavam ser uma superioridade numérica
confortável. O plano de Joffre era que essa força detivesse os alemães atrás do Sambre até que o
Terceiro e o Quarto Exércitos franceses conseguissem romper o centro alemão nos Ardennes e
então todos juntos avançariam para o norte e expulsariam os alemães da Bélgica.

A equipe inglesa, dominada na realidade por Henry Wilson, concordava corn a estimativa do GQG.
Em seu diário para o dia 20 de agosto, Wilson registrou o mesmo número de 17 ou 18 divisões para

m
os alemães a oeste do Meuse e concluiu corn alegria: ”Quanto mais, melhor, pois isso vai
enfraquecer o centro deles.”

Na Inglaterra, longe da frente de batalha, Lord Kitchener sentia ansiedade e pressentimentos. No dia
19 de agosto ele telegrafou para Sir John French dizendo que a manobra alemã em curva ao norte e
oeste do Meuse, a respeito da qual ele advertira Sir John French, parecia ”definitivamente estar se
desenvolvendo”. Pediu para ser informado de todos os relatórios, e no dia seguinte repetiu o pedido.
Na verdade, naquele momento a força alemã a oeste do Meuse não era de 17 ou 18 divisões, mas de
30 - sete corpos da ativa e cinco corpos da reserva, cinco divisões de cavalaria e outras unidades. O
Exército de Von Hausen, que a essa altura ainda não tinha atravessado o Meuse mas que fazia parte
da ala direita, acrescentaria mais quatro corpos ou oito divisões. Na Batalha das Fronteiras como
um todo, a superioridade numérica alemã era de 1,5 para um, ao passo que a preponderância da ala
direita era mais próxima de dois para um.

O alvo de toda esse poderio era o Exército de Lanrezac, e ele sabia disso. Depois de sua desastrosa
entrevista corn o comandante dos ingleses, ele considerava-os despreparados e indignos de
confiança, e sabia que a defesa belga estava cedendo em Namur. Um dos novos corpos que lhe
couberam na recente troca de unidades, que deveria defender seu flanco esquerdo a oeste de
Charleroi, no dia 21 de agosto ainda não estava em sua posição. Ele acreditava que, se atacasse
através do Sambre como ordenado, teria seu flanco cercado pelas forças alemãs caindo sobre a sua
esquerda, e então não restaria coisa alguma entre o inimigo e Paris. O princípio-guia de tudo que ele
ensinara em St. Cyr e na Ecole Supérieure, o princípio que treinara o Exército francês, era ”atacar o
inimigo sempre que o encontrar”. Lanrezac o recordava agora e via o rosto de um esqueleto.

O General Lanrezac hesitava. Escreveu a Joffre que se ele tomasse a ofensiva ao norte do Sambre o
Quinto Exército ”pode correr o risco de combater sozinho”, pois os ingleses não estariam prontos
para agir em conjunto corn ele. Para que ambos agissem em conjunto, o Quinto Exército teria que
.esperar até o dia 23 ou 24. Joffre respondeu: ”Deixo-o como juiz absoluto do momento para
começar a sua ofensiva”.

O inimigo não era tão aquiescente. Destacamentos do Exército

de Bülow, cuja força principal já estava atacando Namur, caíram sobre

o Sambre no dia 21 de agosto e forçaram a travessia em dois pontos

316 entre Namur e Charleroi. Lanrezac dissera aos soldados do Quinto


Exército que sua própria ofensiva estava aguardando ”exércitos vizinhos” e que nesse meio tempo
eles deveriam deter qualquer tentativa alemã de atravessar o Sambre. Como as preparações de
defesa não constavam da cartilha militar francesa, o X Corpo, que defendia esse setor, não cavara
trincheiras, tampouco colocara armas ou organizara qualquer defesa na margem sul, limitando-se a
ficar esperando para jogar-se contra o inimigo. ”corn clarins soando, tambores rufando e bandeiras
ondulando”, mas sem preparação de artilharia, os franceses então lançaram-se ao ataque. Depois de
um forte combate, foram obrigados a recuar, e ao cair da noite o inimigo continuava de posse de
Tamines e de outra aldeia na margem sul do rio.

Acima do ruído da fuzilaria e da explosão dos projéteis, ouvia-se à distância um som mais
profundo, como um tambor gigantesco: os canhões de sítio alemães tinham iniciado o bombardeio
dos fortes de Namur. Os 420s e 305s tinham sido arrastados desde Liège, cimentados em suas
posições e agora despejavam seus projéteis de duas toneladas num segundo forte belga. As balas
passavam no alto corn ”um grito longo e cantado”, escreveu um inglês que liderava um corpo
voluntário de enfermagem em Namur. Pareciam estar vindo diretamente sobre quem escutava,
estivesse ele onde estivesse, parecendo também explodir a um metro dele, caíssem onde caíssem. A
cidade encolhia-se de medo durante os dois dias em que, corn esse horrível ruído, a destruição caiu
do céu, trovejante, sobre os fortes que a rodeavam. Repetiram-se os efeitos de Liège - gases
explodindo, concreto desabando como se fosse gesso, homens enlouquecendo nas câmaras
subterrâneas. Isolados do resto do Exército belga, os soldados da guarnição e da Quarta Divisão
sentiam-se abandonados. O Comandante Duruy, oficial de ligação de Lanrezac em Namur, voltou
para o quartel-general do Quinto Exército para dizer que achava que os fortes não resistiriam mais
um dia sgm uma evidência qualquer da ajuda francesa.

- Eles precisam ver as tropas francesas marchando corn as bandeiras desfraldadas e uma banda
tocando. Tem que haver uma banda - ele pediu.

Três batalhões franceses - um regimento de cerca de 3.000 homens-foram enviados nessa noite e
juntaram-se à defesa de Liège na manhã seguinte. As forças de defesa contavam corn 37.000
soldados; as forças alemãs que atacaram Namur do dia 21 ao dia 24 de agosto tinham de 107.000 a
153.000 homens, corn uma artilharia de
400 a 500 peças. ........
317
%1fl
&J-O

Naquela noite de 21 de agosto, Sir John French informou Kitchener que achava que não haveria
qualquer embate de importância antes do dia 24. ”Acho que conheço perfeitamente a situação e a
considero favorável a nós”, ele escreveu. Na realidade, não conhecia a situação tão bem quanto
pensava conhecer. No dia seguinte, quando as tropas britânicas marchavam pela estrada para Mons
”na direção geral de Soignies”, patrulhas de cavalaria informaram ter avistado um corpo alemão
marchando pela estrada Bruxelas-Mons, também em direção a Soignies. Pela sua posição,
calculava-se que eles chegariam naquela noite à aldeia. Parecia improvável que o inimigo fosse
esperar até 24 de agosto, a data marcada por Sir John.

Um aviador inglês trouxe notícias mais alarmantes: outro corpo alemão marchava por uma estrada a
oeste, numa posição que lhe permitiria ultrapassar o flanco da ala esquerda britânica. O cerco! De
repente a ameaça surgiu corn assustadora clareza aos olhos ingleses
- pelo menos, aos olhos do Departamento de Informações. O movimento circular que Kitchener
estava sempre evocando já não era uma ameaça, mas colunas de soldados de verdade. O staffdo
Quartel-General, sob a influência de Henry Wilson, não lhe deu importância. Através de Wilson,
seus integrantes estavam comprometidos corn a estratégia francesa, e não estavam mais inclinados
do que o GQG a aceitar uma visão alarmista da ala direita alemã. ”A informação recebida e passada
para o Comandante-em-Chefe parece ser um tanto exagerada”, decidiram eles, e não fizeram
qualquer modificação nas ordens de marcha.

Eles tinham consciência de estar pisando o caminho de antigos triunfes. Quinze quilômetros ao sul
de Mons, passaram por Malplaquet, na fronteira entre a França e a Bélgica, e viram à margem da
estrada o monumento de pedra que marcava o local onde Marlborough derrotou os exércitos de
Louis XIV e ganhou a imortalidade numa canção folclórica francesa. A frente deles, entre Mons e
Bruxelas, ficava Waterloo. Retornando àquele campo de vitória quase no centésimo aniversário da
batalha, eles não podiam deixar de se sentir confiantes.

Quando a cabeça de suas colunas chegou perto de Mons, no dia


22, parte de um esquadrão de cavalaria que examinava a estrada ao norte do canal viu um grupo de
quatro cavaleiros vindo em sua direção. Não pareciam familiares. No mesmo instante, os estranhos
cavaleiros avistaram os ingleses e se detiveram. Houve uma espécie de perplexa imobilidade
quando cada um constatou que estava
olhando para o inimigo. Os Ulanos fizeram meia-volta e saíram a galope para juntar-se ao resto de
seu esquadrão, perseguidos pelos ingleses, que os alcançaram nas ruas de Soignies. No conflito
rápido e violento que se seguiu, os Ulanos eram ”estorvados por suas lanças compridas, e muitos as
jogaram fora”. Os ingleses mataram três ou quatro e, vitoriosos, abandonaram aquele campo de
batalha um tanto restrito. O Capitão Hornby, líder do esquadrão, recebeu a D.S.O.66 como primeiro
oficial inglês a matar um alemão corn o novo modelo de espada da cavalaria. A guerra começava no
estilo correto, corn resultados muito encorajadores.

Como o primeiro contato tinha ocorrido na estrada para Soignies, como se esperava, o staffdo
Quartel-General não viu razão para modificar sua estimativa da força e da posição do inimigo.
Wilson calculou em possivelmente dois corpos e uma divisão de cavalaria as forças alemãs que
enfrentariam os ingleses - inferiores, ou no máximo equivalentes, aos dois corpos e uma divisão de
cavalaria da FEB. O temperamento enérgico de Wilson, seu otimismo e sua reconhecida
familiaridade corn o terreno e corn os franceses mereceram mais crédito do que os relatórios dos
oficiais de Informações - especialmente porque os oficiais de Operações tradicionalmente
minimizam os cálculos dos oficiais de Informações, baseados na teoria de que esses cálculos
sempre são exagerados para pior. A morte de Sir James Grierson, que entre os ingleses tinha sido o
maior estudioso da teoria e prática militar alemã, deu mais força às teorias de Wilson, que eram
uma duplicata daquelas do GQG. A batalha do dia seguinte era esperada corn confiança pelo staff e
pelos comandantes dos corpos, embora não por Sir John French.

Seu estado de espírito ainda era soturno; sua indecisão, quase uma réplica da de Lanrezac. No dia
21, quando o General Smith-Dorrien, recém-desembarcado na França, chegou para substituir
Grierson, ele foi instruído a ”combater na linha do Canal Conde”. Quando Smith-Dorrien perguntou
se isso significava ação ofensiva ou defensiva, disseram-lhe para ”obedecer às ordens”. Um fator
que preocupava Sir John French era sua ignorância a respeito do plano de batalha de Lanrezac para
seu flanco direito; temia que surgisse uma brecha entre os dois exércitos. Na manhã do dia 22 ele
saiu de carro para conferenciar corn seu antipático vizinho, mas voltou do caminho ao saber que
Lanrezac tinha avançado para o quartel-general do corpo

66 D.S.O.: Distinguished Services Order - condecoração por atos relevantes. (N. da T.)

319
em Mettet, onde o X Corpo estava agora em plena batalha. Uma boa notícia o esperava em seu
próprio quartel-general: a Quarta Divisão, que de início tinha sido deixada na Inglaterra, chegara à
França e estava a caminho. A ameaça cada vez maior do avanço alemão através da Bélgica e a
retirada do Exército belga para Antuérpia tinham decidido Kitchener a enviá-la.

O General Von Kluck ficou mais surpreso do que os ingleses corn o combate entre cavalarianos na
estrada de Soignies. Tão eficientes eram as medidas de segurança inglesas e francesas que até
aquele momento ele não sabia que os ingleses estavam à sua frente. Sabia que tinham desembarcado
porque lera a notícia num jornal belga que publicara o comunicado oficial de Kitchener anunciado
que a FEB chegara em segurança ”em solo francês”; através desse comunicado de 20 de agosto, a
Inglaterra, o mundo e o inimigo ficaram sabendo do desembarque. Von Kluck ainda julgava que
eles tinham desembarcado em Ostende, Dunquerque e Calais, principalmente porque queria pensar
assim, pois sua intenção era ”atacar e dispersar” os ingleses juntamente corn os belgas, antes de
enfrentar os franceses.

Agora, descendo de Bruxelas, ele tinha que se preocupar corn um ataque belga à sua retaguarda,
partindo de Antuérpia, e um possível ataque a seu flanco pelos ingleses, misteriosamente
posicionados - segundo ele imaginava - em algum lugar na Bélgica à sua direita. Ele insistia em
tentar desviar seu exército para o oeste, para encontrar e enfrentar os ingleses, mas Von Bülow,
corn seu eterno medo de uma brecha, persistia em enviar ordens puxando-o para o interior. Von
Kluck protestou. Von Bülow insistiu, explicando:

- Caso contrário, o Primeiro Exército pode afastar-se demais e ficar sem condições de apoiar o
Segundo Exército.

Ao deparar corn os ingleses bem à sua frente em Soignies, Von Kluck tentou novamente desviar-se
para o oeste para procurar o flanco do inimigo. Quando foi novamente impedido por Von Bülow,
ele fez um protesto furioso ao OHL. A idéia do OHL corn respeito à localização dos ingleses era
ainda mais obscura do que a idéia dos Aliados quanto à localizaçãcyda ala direita alemã. ”Parece
daqui que nenhum desembarque importante teve lugar”, respondeu o OHL, recusando o pedido de
Von Kluck. Privado da oportunidade de efetuar o cerco e condenado ao ataque frontal, foi corn
muita revolta que Von Kluck deslocou-se para Mons. Suas ordens para o dia 23 de agosto eram
atravessar o canal, ocupar o terreno ao sul e forçar o inimigo a recuar de volta para Maubeuge, ao
mesmo tempo cortando
320 sua retirada pelo oeste.
Nesse dia, 22 de agosto, Von Bülow estava tendo tantos problemas corn Von Hausen à sua esquerda
quanto corn Von Kluck à sua direita. Assim como a tendência de Von Kluck era adiantar-se demais,
a de Von Hausen era ficar para trás. corn as unidades avançadas de seu exército já combatendo o X
Corpo de Lanrezac do outro lado do Sambre, Von Bülow planejava uma batalha de aniquilação num
grande ataque conjunto corn o seu exército e o de Von Hausen, mas no dia
22 Von Hausen não estava preparado. Von Büllow queixou-se amargamente da ”falta de
cooperação” por parte de seu vizinho; Von Hausen queixou-se, corn a mesma amargura, de ”sofrer”
constantes exigências de auxílio por parte de Von Büllow. Decidindo não esperar, Von Büllow
lançou três corpos num violento ataque sobre a linha do Sambre.

Durante aquele dia e o dia seguinte, os Exércitos de Von Büllow e Lanrezac enfrentaram-se na
Batalha de Charleroi; no final do primeiro dia o Exército de Von Hausen entrou no combate. Foram
os mesmos dois dias em que o Terceiro e o Quarto Exércitos franceses estavam lutando corn a
tragédia na neblina e na floresta dos Ardennes. Lanrezac encontrava-se em Mettet para dirigir a
batalha, um processo que consistia principalmente em esperar, aflito, que os comandantes das
divisões e dos corpos informassem o que lhes acontecia. Esses, por sua vez, achavam muito difícil
descobrir o que estava acontecendo corn suas unidades sob fogo pesado, ou envolvidas em
combates nas ruas das aldeias, ou recuando, exaustas e sangrando, sem um único oficial vivo para
mandar um relatório.

As evidências visuais chegavam a Mettet antes dos relatórios. Um carro levando um oficial ferido
chegou à praça onde Lanrezac e sua equipe caminhavam ansiosamente de um lado para outro, todos
demasiado inquietos para ficarem dentro de casa. O ferido era o General Boe, comandante de uma
divisão do X Corpo. corn o rosto cinzento e olhar trágico, ele sussurrou4enta e dolorosamente a
Hély d’Oissel, que correra para o carro:

- Diga a ele... Diga ao General... nós resistimos... enquanto pudemos.

À esquerda do X Corpo, o in Corpo defronte a Charleroi informou perdas ”terríveis”. Durante o dia,
os alemães tinham penetrado na grande cidade industrial que se espalhava pelos dois lados do rio, e
os franceses lutavam furiosamente para expulsá-los. Quando os alemães atacaram em formação
cerrada - como era seu hábito antes de aperfeiçoarem seus métodos - eles se tornaram alvos
perfeitos para os 75s. Mas os 75s, que podiam disparar 15 vezes por minuto,
eram municiados num ritmo que permitia apenas 2,25 disparos por minuto.

Em Charleroi, os Turcos das duas divisões argelinas, recrutados por alistamento voluntário,
combatiam corn tanta valentia quanto seus pais tinham combatido em Sedan. Um batalhão atacou
uma bateria alemã, matando a baioneta os atiradores e retornando corn ! apenas dois homens ilesos,
de todos os l .030 homens do batalhão. Por toda parte os franceses nos diferentes setores estavam
furiosos ou desanimados, segundo as circunstâncias, por causa dos projéteis vindos de baterias que
eles não conseguiam enxergar ou atingir. Sentiam raiva e frustração diante dos aeroplanos alemães
que atuavam como indicadores para a artilharia e cujo vôo sobre suas linhas era invariavelmente
seguido por uma nova saraivada de projéteis.

No final do dia Lanrezac teve que informar que o X Corpo tinha sido ”forçado a recuar”, tendo
”sofrido severamente”; o in Corpo festivera ”em intenso combate”; havia ”pesadas baixas” entre os
oficiais; o XVIII Corpo, à esquerda, ficara intacto, mas o Corpo de Cavalaria do General Sordet, na
extremidade esquerda, encontravaee ”imensamente exaurido” e também forçado a recuar, deixando
uma brecha entre o Quinto Exército e os ingleses. Essa brecha mostrou ser de 15 quilômetros,
suficiente para dar passagem a um corpo inimigo. A ansiedade de Lanrezac era tão aguda que
levou-o a enviar lima mensagem a Sir John French pedindo-lhe para atacar o flanco direito de Von
Bülow, aliviando assim a pressão sobre os franceses. Sir John respondeu que não poderia fazer isso,
mas prometeu defender a linha do Canal de Mons por 24 horas.

Durante a noite, a posição de Lanrezac ficou ainda mais periclitante quando Von Hausen colocou
quatro novos corpos e 340 armas em ação no Meuse. Ele atacou durante a noite e conquistou
cabeças de ponte através do rio, sob um contra-ataque do I Corpo de Franchet d’Esperey, cuja
missão era defender o Meuse ao longo do lado direito da linha de frente de Lanrezac. Foi o único
corpo do Quinto Exército a entrincheirar sua posição.

A intenção de Von Hausen, cumprindo ordens do OHL, era atacar ao sudoeste em direção a Givet,
onde esperava cair sobre a retaguarda do exército de Lanrezac, que poderia então ser colocado entre
suas forças e as de Von Büllow, sendo então destruído. Von Büllow, no entanto, cujas unidades
nesse setor tinham recebido um castigo tão severo quanto o que aplicaram, estava decidido a
desfechar um ataque maciço e definitivo, e mandou Von Hausen atacar a J22 oeste em direção a
Mettet, diretamente sobre o corpo do Quinto
l
Exército, em vez de a sudoeste, cortando sua linha de retirada. Von Hausen obedeceu. Isso foi um
erro: ele ficou todo o dia 23 envolvido | num ataque frontal contra as posições fortemente
defendidas pelo l vigoroso corpo de Franchet d’Esperey e deixou aberta a linha de i retirada de
Lanrezac - uma abertura pela qual se esvaiu a oportuni- i dade de uma batalha de aniquilação. l

Ao longo das horas quentes e claras do dia 23 de agosto, o céu i de verão manchou-se corn as
nuvens negras e pesadas dos projéteis j que explodiam. Os franceses puseram-lhes o apelido
de ”marmites”, | nome dos caldeirões de ferro que se encontram em todos os fogões f
franceses. ”// plut dês marmites (Choveram marmitas)”, foi tudo que f um exausto soldado
conseguiu recordar daquele dia. Em alguns < locais os franceses ainda estavam atacando,
tentando fazer os alemães | recuarem para o outro lado do Sambre; em outros locais, eles se
limitavam a resistir; em outros, ainda, batiam em retirada desordenada. As estradas estavam
apinhadas de longas fileiras de refugiados belgas, cobertos de poeira, carregando crianças e trouxas,
empurrando carrinhos de mão, caminhando exaustos em direção a lugar nenhum, lar nenhum,
refúgio nenhum, apenas fugindo do horrível rugido dos canhões ao norte.

As colunas de refugiados passaram por Philippeville, a 32 quilômetros de Charleroi, onde se


encontrava nesse dia o quartel-general de Lanrezac. Parado na praça, corn as pernas vestidas de
vermelho abertas e as mãos juntas às costas, Lanrezac observava-os melancolicamente, sem nada
dizer. Acima do dólmã preto, o rosto parecia quase pálido, e as bochechas redondas estavam
encovadas. Ele se sentia ”presa de extrema ansiedade”. A pressão do inimigo caía sobre ele de todos
os lados. Do GQG não vinha orientação alguma, e sim perguntas sobre a situação. Lanrezac tinha
aguda consciência da lacuna deixada pela retirada da cavalaria de §ordet. Ao meio-dia chegou a
notícia - prevista, porém ainda inacreditável - de que a Quarta Divisão belga estava evacuando
Namur. A cidade que dominava a confluência do Sambre corn o Meuse, assim como as fortalezas
nas alturas atrás dela, logo estariam nas mãos de Von Büllow. Nenhuma palavra chegou do General
Langle de Cary, do Quarto Exército, a quem Lanrezac enviara uma mensagem naquela manhã
pedindo uma manobra estratégica para fortalecer o setor onde suas forças se juntavam.

O staffde Lanrezac pedia corn insistência que ele permitisse um contra-ataque por Franchet
d’Esperey, que informara ter uma ótima 323
oportunidade para isso: uma força alemã em perseguição ao X Corpo apresentava-lhe o flanco.
Havia outros pedidos insistentes de um contra-ataque na extrema esquerda pelo XVIII Corpo para
aliviar a pressão sobre os ingleses, que nesse dia enfrentavam em Mons a força total do Exército de
Von Kluck. Para grande contrariedade dos que pensavam no futuro, Lanrezac recusou. Ele
permaneceu em silêncio, não deu ordem alguma, esperou. Na controvérsia que os críticos e os
defensores teceriam durante anos, depois, a respeito da Batalha de Charleroi, cada um deu a sua
própria versão do que se passava na alma do General Lanrezac naquela tarde. Para alguns, ele
mostrou-se pusilânime ou omisso; para outros, um homem que calculava sobriamente suas chances
numa situação obscura e perigosa. Privado de qualquer orientação do GQG, ele teve que tomar suas
próprias decisões.

O incidente conclusivo do dia ocorreu no final da tarde: soldados do Exército de Von Hausen
ampliaram uma cabeça de ponte através do Meuse em Onhaye, ao sul de Dinant. Franchet
d’Esperey enviou de imediato uma brigada sob o comando do General Mangin para lidar corn o
perigo que ameaçava pegar o Quinto Exército por trás. Ao mesmo tempo, Lanrezac recebia
finalmente notícias do General Langle. Essas notícias não poderiam ser piores: não apenas o Quarto
Exército não tivera nos Ardennes o sucesso que um comunicado anterior do GQG fazia supor, mas
estava sendo forçado a bater em retirada, o que deixaria desprotegido o trecho do Meuse entre
Sedan e o flanco direito de Lanrezac. Imediatamente a presença dos saxões de Onhaye tornava-se
uma ameaça ainda maior. Lanrezac acreditava - ”Fui obrigado a acreditar” - que essa força era a
vanguarda de um exército a quem a retirada de Langle daria liberdade de ação e seria reforçado se
não fosse logo obrigado a recuar. Ele ainda não sabia - porque ainda não tinha acontecido - que a
brigada do General Mangin, numa brilhante carga de baionetas fixas, expulsaria >s saxões de
Onhaye.

Para completar, chegou a informação de que o in Corpo diante Ide Charleroi tinha sido atacado, não
conseguira manter sua posição é estava recuando. O Comandante Duruy chegou corn a notícia de
que os alemães tinham tomado os fortes ao norte de Namur e entrado na cidade. Lanrezac retornou
ao Quartel-General do Corpo em Chimay, onde, conforme ele próprio escreveria mais tarde,
recebeu ”a confirmação da imobilização do Quarto Exército, que desde a manhã vinha batendo em
retirada de tal maneira que deixava completamente
324 a descoberto a direita do Quinto Exército”.
Para Lanzerac, o perigo à sua direita ”parecia crucial”. Perseeuia-o a lembrança daquele outro
desastre no mesmo local onde o Exército de Langle agora cedia terreno, ”onde, há 44 anos, nosso
exército foi envolvido pelos alemães e forçado a capitular - aquele desastre abominável que tornou
irreversível a nossa derrota - que lembrança!”

Para salvar a França de outro Sedan, o Quinto Exército teria que ser salvo da destruição. Agora ele
via claramente que os Exércitos franceses batiam em retirada ao longo de toda a linha, do Vosges ao
Sambre. Enquanto os Exércitos existissem, a derrota não seria irreversível, como fora em Sedan; a
luta poderia continuar. Se o Quinto Exército fosse destruído, porém, toda a linha ficaria
desequilibrada, e sobreviria a derrota total. Um contra-ataque, por mais corajoso e necessário que
fosse, não poderia salvar a situação em seu todo.

Lanrezac finalmente falou: deu a ordem de retirada geral. Sabia que poderia ser tomado por um
derrotista que deveria ser afastado
- o que ele realmente era. Seu próprio relato nos conta que ele disse a um de seus oficiais: ”Fomos
vencidos, mas o mal é reparável. Enquanto o Quinto Exército viver, a França não estará perdida.”
Embora o comentário tenha o sabor de memórias escritas depois do acontecimento, ele pode muito
bem ter sido verdadeiro. Os momentos cruciais costumam evocar palavras grandiosas,
especialmente nos franceses.

Certo de que Joffre desaprovaria, Lanrezac tomou sua decisão sem consultar o GQG. ”O inimigo
ameaça a minha direita no Meuse”, informou. ”Onhaye ocupada, Givet ameaçada, Namur tomada.”
Por causa dessa situação e do ”atraso do Quarto Exército”, ele ia ordenar a retirada do Quinto
Exército. corn essa mensagem desaparecia a última esperança francesa de derrotar o antigo inimigo
numa guerra curta. A última das ofensivas francesas-fracassara.

Joffre realmente desaprovou - mas não naquela noite. Nas horas confusas e amargas da noite de
domingo, 23 de agosto, quando o plano francês desabava por inteiro, quando ninguém podia ter
certeza do que estava acontecendo de setor a setor, quando o fantasma de um novo Sedan perseguia
outras mentes além da de Lanrezac, o GQG não questionou nem revogou a retirada do Quinto
Exército. corn seu silêncio, Joffre ratificava a decisão - mas não a perdoou.

Mais tarde, o relato oficial da Batalha de Charleroi afirmaria que o General Lanrezac, ”julgando-se
ameaçado em sua direita, bateu em retirada em vez de contra-atacar”. Isso foi quando o GQG,
precisando 325

m
de um bode expiatório para o fracasso do Plano 17, escolheu o comandante do Quinto Exército. Na
hora em que ele tomou sua decisão, no entanto, ninguém do GQG sugeriu ao General Lanrezac que
ele apenas ”julgava-se” ameaçado em sua direita sem realmente o estar, como insinuava o relato
posterior.

Bem à esquerda, desde o início da manhã o Exército inglês e o de Von Kluck estavam combatendo
pelos 20 metros de largura do Canal de Mons. O sol de agosto rompeu a chuva e a névoa matinal,
trazendo a promessa de muito calor mais tarde. Os sinos dominicais soavam nas igrejas, como de
costume, e as pessoas das aldeias mineradoras iam para a Missa em suas negras roupas de domingo.
O canal, margeado pelos trilhos ferroviários e pelos pátios das fábricas, estava negro de limo e
cheirava a dejetos químicos das fornalhas e das fábricas. Em meio a pequenas plantações, pastos e
pomares, erguiamse por toda parte os montes de escória ferrífera, cinzentos e pontiagudos como
chapéus de bruxa, dando uma aparência bizarra e anormal à paisagem. Ali a guerra parecia menos
incongruente.

Os ingleses tinham tomado posição nos dois lados de Mons. A oeste, o II Corpo, comandado pelo
General Smith-Dorrien, estendiase ao longo de um trecho de 25 quilômetros de canal, entre Mons e
Conde, e ocupava um bolsão logo a leste de Mons, onde o canal faz um círculo para o norte corn
cerca de três quilômetros de largura e dois de comprimento. À direita do II Corpo, o I Corpo do
General Haig defendia uma frente diagonal entre Mons e a ala esquerda do exército de Lanrezac. A
divisão de cavalaria comandada pelo General Allenby, futuro conquistador de Jerusalém, ficou de
reserva. Diante de Haig ficava a linha divisória entre os Exércitos de Von Kluck e Von Bülow. Von
Kluck mantinha-se tão a oeste quanto podia, e assim o corpo de Haig não foi atacado no combate de
23 de agosto que tornar-se-ia conhecido na História - e na lenda - como a Batalha de Mons.

O quartel-general de Sir John French estava em Lê Cateau, 50 quilômetros ao sul de Mons. As


cinco divisões que ele tinha que dirigir numa frente de 40 quilômetros - em contraste corn as 13
divisões de Lanrezac numa frente de 80 quilômetros - não o obrigavam a ficar tão atrás. O estado de
espírito vacilante de Sir John pode ter ditado a sua escolha; preocupado corn os relatórios de suas
missões de reconhecimento aéreo e de cavalaria, inseguro quanto ao seu vizinho, inquieto corn a
linha em ziguezague da frente que ambos compartilhavam e que dava múltiplas oportunidades ao
inimigo, ele não
326 estava mais feliz do que Lanrezac em tomar uma ofensiva.
Na noite anterior à batalha, ele chamou a Lê Cateau os oficiais mais velhos de ambos os corpos e da
divisão de cavalaria e informoulhes que ”devido à retirada do Quinto Exército francês” não haveria
ofensiva inglesa. Nessa ocasião, o Quinto Exército não estava em retirada - corn exceção do X
Corpo, que não era vizinho dos ingleses

/ mas Sir John French tinha que culpar alguém. Na véspera, o

mesmo espírito de companheirismo levara o General Lanrezac a culpar a ausência dos ingleses pela
sua omissão em tomar a ofensiva.

Assim como na ocasião Lanrezac ordenara que seu corpo defendesse a linha do Sambre em vez de
atacar atravessando o rio, Sir John French agora deu ordens de defender a linha do canal. A despeito
de Henry Wilson, que ainda estava pensando em termos da grande ofensiva para o norte que
expulsaria os alemães da Bélgica, a possibilidade de uma manobra muito diferente foi passada aos
comandantes. Reconhecendo-a, às 2:30 da madrugada o General Smith-Dorrien ordenou que as
pontes sobre o canal fossem preparadas para demolição. Era uma precaução sensata que os
franceses descartavam, por isso tornou-se a causa do terrível número de baixas entre os franceses
em agosto de 1914. Cinco minutos antes do início da batalha, Smith-Dorrien ordenou que as pontes
fossem destruídas mediante ordem do comandante da divisão ”no caso de ser necessária uma
retirada”.

As 6:00, quando Sir John French dava as últimas instruções aos comandantes dos corpos, sua
estimativa - e de seu staff- da força do inimigo que estavam prestes a enfrentar ainda era a mesma:
um, no máximo dois corpos, mais a cavalaria. Na realidade, naquele momento Von Kluck tinha
quatro corpos e três divisões de cavalaria
- 160.000 homens corn 600 armas - a pouca distância da FEB, cuja força era de 70.000 homens e
300 armas. Dos dois corpos de reserva de Von Kluck, um estava a dois dias der marcha e o outro
tinha sido deixado para cobrir Antuérpia.

Às 9:00 da manhã, os primeiros canhões alemães abriram fogo contra as posições inglesas, e o
ataque recaiu primeiro sobre o bolsão formado pelo canal. A ponte em Nimy, no ponto mais ao
norte do bolsão, era o foco do ataque. Caindo sobre ela em formação cerrada, os alemães ofereciam
”alvos perfeitíssimos” para os fuzileiros ingleses que, bem entrincheirados e eficientemente
treinados, dispararam corn tanta rapidez e pontaria certeira que os alemães julgaram estar
enfrentando metralhadoras. Depois que repetidos arremesses dos alemães foram derrubados, estes
trouxeram mais homens e mudaram 327
para formações abertas. Os ingleses, sob ordens de oferecer ”teimosa resistência”, mantiveram o
fogo, mas seu efetivo no bolsão ficava cada vez menor. Das 10:00 em diante, a batalha estendeu-se
ao longo do trecho reto do canal para o oeste, à medida que entrava em ação bateria após bateria de
armas alemãs, primeiro do in Corpo e depois do IV Corpo.

Às 15:00, tendo os regimentos ingleses que defendiam o bolsão suportado bombardeios e ataques
da infantaria durante seis horas, a pressão sobre eles ficou forte demais. Depois de explodir a ponte
em Nimy, eles recuaram, uma bateria de cada vez, para uma segunda linha de defesa que tinha sido
preparada três ou quatro quilômetros para trás. Como a perda do bolsão colocava em perigo os
soldados que defendiam o trecho retilíneo do canal, estes também receberam ordens de recuar,
começando por volta das 17:00.

Em Jemappes, onde o círculo se junta ao trecho em linha reta, e em Mariette, três quilômetros a
oeste, o perigo aumentou subitamente, quando se constatou que as pontes não poderiam ser
destruídas por falta de um detonador para explodi-las. Uma arremetida dos alemães atravessando o
canal no meio da retirada poderia transformar em fuga desordenada um recuo organizado, e até
mesmo possibilitar a passagem do inimigo. Nenhum Horácio67 poderia sozinho defender a ponte,
mas um oficial da Engenharia Real, Capitão Wright, pendurou-se pelas mãos e atravessou-a por
baixo, numa tentativa de ligar as cargas explosivas. Em Jemappes, um cabo e um soldado raso
passaram uma hora e meia tentando a mesma coisa, sob fogo contínuo. Eles tiveram sucesso e
receberam a V.C. e a D.C.AÍ.68, mas o Capitão Wright, embora tenha feito uma segunda tentativa
mesmo estando ferido, fracassou. Também ele recebeu a V.C. e três semanas mais tarde foi morto
em Aisne.

Durante o início da noite, o delicado processo de retirada foi efetuado sob fogo esporádico, corn
cada regimento cobrindo o recuo de seu vizinho até que todos tivessem alcançado as aldeias e as
posições da segunda linha de defesa. Os alemães, que pareciam ter sofrido igualmente naquele dia
de luta, não fizeram qualquer esforço sério para forçar a passagem pelas pontes intactas, nem
mostraram

67 Horácio: Horatius Codes, herói de uma antiga lenda romana segundo a qual ele defendeu a ponte de madeira que
levava a Roma contra as legiões de Lars Porsena ate” que os romanos conseguissem derrubá-la. (N. da T.)

68 V.C.: VictoriaCross e D.CM.: Distinguished Conduct Medal - condecorações inglesas.


3& (N. da T.)
desejo de perseguir os ingleses. Pelo contrário - no lusco-fusco do crepúsculo, os soldados ingleses
que recuavam ouviram os clarins alemães tocando ”Cessar fogo”, depois a inevitável cantoria,
depois silêncio do outro lado do canal.

Felizmente para os ingleses, a superioridade numérica maisque-dupla de Von Kluck não tinha sido
utilizada. Por causa das ordens restritivas de Von Bülow, Von Kluck ficara incapacitado de
encontrar o flanco inimigo e estender-se em volta dele e, corn seus dois corpos centrais, o in e o IV,
enfrentara os ingleses cara a cara e sofrerá pesadas perdas em conseqüência desse ataque frontal.
Um capitão da reserva do in Corpo foi o único oficial sobrevivente em sua companhia e o único
comandante de companhia sobrevivente em seu batalhão: ”O batalhão é uma ruína, meu lindo e
orgulhoso batalhão...” e o regimento foi ”abatido a tiros, esmagado - sobrou apenas um punhado”.
O coronel do regimento, que, como todos naquela guerra, só podia julgar o decorrer do combate
pelo que estava acontecendo em sua própria unidade, passou uma noite ansiosa, pois, como ele
disse:

- Se os ingleses tiverem a menor suspeita de nossa condição e contra-atacarem, eles simplesmente


nos atropelarão.

Nenhum dos dois corpos dos flancos de Von Kluck - o II à sua direita e o IX à sua esquerda -
entrara na batalha. Como o resto do Primeiro Exército, eles tinham marchado quase 250
quilômetros em onze dias e estavam espalhados ao longo das estradas vários dias de marcha atrás
dos dois corpos do centro. Se todos tivessem atacado juntos em 23 de agosto, a História poderia ser
diferente. Durante a tarde, Von Kluck, percebendo seu erro, ordenou que os dois corpos centrais
detivessem os ingleses até que os corpos dos flancos pudessem ser trazidos para a manobra de cerco
e a batalha de aniquilação. Antes desse momento, os ingleses foram forçados a uma drástica
mudança de planos.

Mentalmente, Henry Wilson ainda avançava, corn ardor medieval, seguindo o Plano 17, sem ter
consciência de que esse plano agora era tão aplicável à situação quanto o arco de mão. Como Joffre,
que ainda insistia na ofensiva seis horas depois de receber o relatório de Langle sobre o desastre nos
Ardennes, Wilson estava ansioso pela ofensiva no dia seguinte, mesmo depois que a linha do canal
teve que ser entregue ao inimigo. Ele fez um ”cálculo cuidadoso” e concluiu que ”tínhamos apenas
um corpo e uma divisão de cavalaria (possivelmente dois corpos) diante de nós”. ”Convenceu”
disso Sir John

329
French e Murray, ”corn o resultado de que obtive permissão para dar ordens de um ataque amanhã”.
Às 20:00, assim que ele terminou de redigir as ordens, todo esse seu trabalho foi anulado por um
telegrama de Joffre informando ter agora suficiente evidência de que a força do inimigo à frente
deles era de três corpos e duas divisões de cavalaria. Isso teve mais poder de persuasão do que
Wilson tivera, e imediatamente pôs fim a qualquer idéia de ataque.

Seguiram-se notícias ainda piores. Às 23:00, o Tenente Spears chegou, vindo às pressas do
quartel-general do Quinto Exército, para trazer a amarga notícia de que o General Lanrezac estava
interrompendo a batalha e recuando o Quinto Exército para uma linha na retaguarda da FEB. O
ressentimento e a perplexidade de Spears diante de uma decisão tomada sem consultar e informar os
ingleses foram iguais aos do Coronel Adelbert ao saber da decisão do Rei Albert de recuar para
Antuérpia. O relato de Spears, escrito 17 anos depois, ainda mostrava esses sentimentos.

A retirada de Lanrezac, que deixava a FEB no ar, colocou os ingleses em perigo imediato. Numa
reunião ansiosa, decidiu-se recuar os soldados imediatamente, assim que as ordens fossem escritas e
enviadas à frente. Um atraso que custaria muitas vidas deveu-se à estranha escolha para a
localização do quartel-general do corpo de Smith-Dorrien: uma modesta casa de campo corn o
pomposo nome de Château dela Roche-Castelo do Rochedo -, em Sars-la-Bruyère, um povoado
sem comunicação telefônica ou telegráfica numa estrada de barro difícil de ser encontrada durante o
dia, muito mais no meio da noite. Até mesmo seus dois predecessores ducais, Marlborough e
Wellington, tinham escolhido quartéis-generais mais convenientes, embora menos nobres, na
estrada principal - um numa abadia e o outro numa taverna. As ordens para Smith-Dorrien tiveram
que ser entregues de carro e só o alcançaram às 3:00 da madrugada, ao passo que o I Corpo de Haig,
que não estivera em combate, recebeu suas ordens por telégrafo uma hora antes e teve condições de
preparar sua retirada e pôr-se a caminho antes do amanhecer.

A essa altura o corpo do flanco alemão tinha chegado, o ataque foi renovado e a retirada do II
Corpo, que passara o dia inteiro sob fogo, começou novamente sob fogo. Na confusão, um batalhão
não chegou a receber suas ordens e lutou até ver-se cercado e quase todos os homens mortos,
feridos ou aprisionados. Dos mil homens, apenas dois oficiais e 200 soldados escaparam.
330
Assim terminou o primeiro dia de luta dos primeiros soldados ingleses a combater um inimigo
europeu desde a Criméia e os primeiros a lutar em solo europeu desde Waterloo. Foi uma decepção
amarga para o I Corpo, que marchara no calor e na poeira e agora tinha que dar meia-volta e refazer
o caminho mal tendo disparado um tiro; foi uma decepção ainda maior para o II Corpo, que se
orgulhava corn a perspectiva de enfrentar um inimigo famoso e formidável, nada sabia sobre a
superioridade alemã ou sobre a retirada do Quinto Exército e não conseguia compreender a ordem
de recuar.

Foi uma ”severa decepção” também para Henry Wilson, que colocou toda a responsabilidade em
Kitchener e no Secretariado por terem mandado apenas quatro divisões em lugar de seis. corn
aquela maravilhosa incapacidade de admitir seus erros que terminaria por fazer dele um
Marechal-de-Campo, afirmou que se todas as seis estivessem lá, ”essa retirada teria sido um
avanço, e a derrota teria sido vitória”.

Sir John French, que em seus melhores momentos mostrava-se indeciso e volúvel, agora mergulhou
no desânimo. Embora estivesse na França havia pouco mais de uma semana, as tensões, a ansiedade
e a responsabilidade, combinadas corn as iniqüidades de Lanrezac e culminando na frustração do
primeiro dia de combate, deixaram-no amargurado em relação à sua missão. Ele finalizou seu
relatório a Kitchener, no dia seguinte, corn uma sugestão sinistra, que indicava que já começara a
pensar na partida: ”Acho que dever-se-ia dedicar atenção imediata à defesa do Havre.” O Havre, na
boca do Sena, ficava quase 150 quilômetros ao sul da base britânica de desembarque em Boulogne.

Essa foi a Batalha de Mons. Como primeira batalha inglesa na guerra que se tornaria a Grande
Guerra, ela ganhou, em retrospecto, todas as qualidades de grandeza, e recebeu um lugar no panteão
inglês igual à batalha de Hastings ou a de Agincourt. Sobre ela construíram-se lendas como a dos
Anjos de Mons. Todos os seus homens eram destemidos e todos os mortos eram heróis. Os atos de
todos os regimentos foram registrados até o último instante e a última bala, e Mons passou a brilhar
corn uma aura de tal bravura e glória que mais parecia uma vitória. É inquestionável que os ingleses
lutaram em Mons corn coragem e eficiência, melhor do que algumas unidades francesas, mas não
melhor que muitas outras, não melhor que os belgas em Haelen, ou os Turcos em Charleroi, ou a
brigada do General Mangin em Onhaye, ou o inimigo em várias ocasiões.
331
A batalha, antes de iniciar-se a retirada, durou nove horas, envolveu duas divisões ou 35.000
soldados britânicos, custou um total de 1.600 baixas entre os ingleses e deteve por um dia o avanço
do Exército de Von Kluck. Durante a Batalha das Fronteiras, da qual ela fez parte, 70 divisões
francesas - cerca de 1.250 mil homens estiveram em combate em horas e locais diversos, num
período de quatro dias. As baixas francesas nesses quatro dias chegaram a mais de 140.000, ou duas
vezes o número de toda a Força Expedicionária Britânica na França nessa ocasião.

Na esteira de Charleroi e Mons, a Bélgica ficou coberta de poeira branca das paredes rachadas de
suas casas e marcada pela devastação da guerra. Pelas ruas, a palha enlameada que os soldados
usaram para dormir misturava-se a mochilas abandonadas e ataduras jogadas fora. Will Irwin
descreveu: ”E acima de tudo havia um cheiro que nunca vi mencionado em qualquer livro sobre
guerra - o fedor de meio milhão de homens sem tomar banho... Durante dias ele pairou sobre todas
as cidades por onde os alemães passavam.” Misturado a ele havia o cheiro de sangue, remédio,
estéreo e cadáveres. Os mortos deveriam ser enterrados por suas unidades antes da meia-noite, mas
geralmente seu número era demasiado e o tempo era escasso demais
- ainda mais escasso para os cavalos mortos, cujos corpos, que ficavam mais tempo por enterrar,
inchavam e apodreciam. Como num quadro de Millet, depois que os exércitos passavam viam-se os
camponeses belgas curvados sobre suas enxadas, tentando limpar seus campos dos cadáveres.

Abandonados em meio aos cadáveres jaziam os fragmentos do Plano 17 e brilhantes cacos dos
Regulamento de Campanha franceses: ”(...) o Exército francês de agora em diante não conhece
outra lei senão a ofensiva. (...) Somente a ofensiva leva a resultados positivos.”

Joffre, no centro da derrocada de todas as esperanças francesas, corn a responsabilidade pela


catástrofe pesando sobre seus ombros, as fronteiras da França violadas, todos os seus exércitos em
retirada ou lutando desesperadamente para manter uma linha defensiva, permaneceu
extraordinariamente tranqüilo. corn o artifício de jogar logo a culpa nos executores e absolver os
planejadores, ele conseguiu manter uma confiança total e imaculada em si próprio e na França.
Assim fazendo, forneceu o único requisito essencial nos dias de calamidade que se seguiram.

Na manhã do dia 24, quando, como ele mesmo afirmou, não j££ havia ”como fugir à evidência dos
fatos”, Joffre informou Messimy
que o Exército estava ”condenado a uma atitude defensiva” e precisava resistir, apoiando-se em
suas linhas fortificadas e, enquanto tentava cansar o inimigo, esperar por uma ocasião favorável
para retomar a ofensiva. Imediatamente tratou de preparar as linhas de retirada e o reagrupamento
de seus exércitos para formar uma massa capaz de renovar o ataque a partir de uma linha defensiva
que ele esperava estabelecer no Somme. Um telegrama recente de Paléologue em São Petersburgo
encorajou-o a ter esperanças de que a qualquer momento os alemães tivessem que retirar forças da
frente ocidental para enfrentar a ameaça russa, e no dia seguinte ao seu desastre ele esperou
ansiosamente o som do rolo compressor russo; tudo que lhe chegou foi um telegrama misterioso
informando que ”graves problemas estratégicos” estavam sendo resolvidos na Prússia Oriental corn
a promessa de ”novas operações ofensivas”.

A tarefa mais urgente de Joffre, depois de reorganizar suas linhas, era descobrir a causa do fracasso.
Sem qualquer hesitação ele a descobriu ”nas graves deficiências dos comandantes”. Alguns tinham
realmente sucumbido sob a terrível responsabilidade do comando. Um general da artilharia teve que
tomar o lugar do comandante do in Corpo diante de Charleroi porque aquele oficial não foi
encontrado em parte alguma durante a fase mais crítica da batalha; na luta nos Ardennes um general
divisional do V Corpo cometeu suicídio. Os seres humanos, como os planos, mostraram-se falíveis
diante daqueles ingredientes que não estão presentes nas manobras de treinamento: o perigo, a
morte, a munição de verdade. Mas Joffre, que não admitia que um plano fosse falível, também não
o admitia nos seres humanos. Exigindo saber o nome de todos os generais que tinham mostrado
fraqueza ou incapacidade, ele aumentou a lista dos limogés sem nenhuma complacência.

Como, à semelhança de Henry Wilson, ele não reconhecia erro de teoria ou de estratégia, só poderia
atribuir o fracasso da ofensiva, ’apesar da superioridade numérica que pensei ter assegurado aos
nossos exércitos”, a uma ”falta de espírito ofensivo”.

Ele teria feito melhor se tivesse dito ”excesso” do que ”falta”. Em Morhange na Lorena, em
Rossignol nos Ardennes, em lamines no Sambre, não foi a falta de élan, mas sim o excesso, que
causou o fracasso francês. Em uma ”Nota a Todos os Exércitos” enviada no dia seguinte à
derrocada, o GQG substituiu a palavra ”falta” por ”uma falsa compreensão” do espírito ofensivo. A
nota afirmava que os
333
Regulamentos de Campanha tinham sido ”mal compreendidos ou mal aplicados”; os ataques de
infantaria eram desfechados a uma distância grande demais e sem apoio da artilharia, expondo-se às
metralhadoras e sofrendo baixas que poderiam ser evitadas. Daí em diante, quando um terreno fosse
ocupado, ”ele deve ser organizado imediatamente. É preciso cavar trincheiras”.

O ”erro principal” tinha sido a falta de coordenação entre a artilharia e a infantaria, uma falha que
era ”absolutamente necessário” consertar. Os 75s deveriam disparar da maior distância possível.
”Finalmente, devemos imitar o inimigo e usar aeroplanos para preparar os ataques da artilharia.”
Fossem quais fossem os defeitos dos militares franceses, entre eles não estava a relutância em
aprender corn a experiência - pelo menos no terreno das táticas.

O GQG demorou mais a localizar o fracasso em sua própria estratégia, mesmo quando, no dia 24 de
agosto, o Deuxième Bureau fez uma revelação espantosa: ele descobrira que os corpos ativos do
inimigo eram seguidos por corpos de reserva usando o mesmo número. Essa primeira evidência de
que unidades de reserva estavam sendo usadas na linha de frente explicava como os alemães tinham
conseguido mostrar-se igualmente fortes na direita e no centro ao mesmo tempo. Mas isso não
despertou em Joffre a suspeita de que o Plano 17 pudesse ter tido uma base falível; ele continuou a
considerá-lo um born plano que fracassara por má execução. Depois da guerra, chamado a
testemunhar num inquérito parlamentar sobre a causa da catástrofe que deixara a França aberta à
invasão, pediram-lhe sua opinião sobre a teoria de antes da guerra de que quanto mais forte fosse a
ala direita alemã, melhor para a França.

- Mas ainda penso assim - Joffre respondeu. - A prova é que nossa Batalha das Fronteiras foi
planejada exatamente para isso, e se tivesse tido sucesso nosso caminho estaria aberto... Mais ainda:
teria tido sucesso se o Quarto e o Quinto Exércitos tivessem lutado direito. Se assim fizessem, teria
sido a aniquilação de todo o avanço alemão.

Na sombria manhã de agosto de 1914 em que a retirada começou, ele não culpava tanto o Quarto
Exército, mas sim o Quinto Exército e seu comandante. Embora a raiva dos ingleses também
recaísse sobre a cabeça do General Lanrezac, um porta-voz anônimo do Exército britânico declarou
mais tarde que a decisão de Lanrezac de recuar em vez de contra-atacar no dia 23 de agosto evitou
”outro Sedan”. O mesmo porta-voz acrescentou, a respeito da insistência
334
anterior de Lanrezac em levar o Quinto Exército do oeste do Meuse para Charleroi:

- Não há dúvida de que essa mudança de plano salvou a FEB, e provavelmente os Exércitos
franceses, da aniquilação.

No dia 24 de agosto, só estava claro que os Exércitos franceses estavam batendo em retirada e o
inimigo avançando implacavelmente. O público só ficou conhecendo a extensão real da derrocada
em 25 de agosto, quando os alemães anunciaram a captura de Namur corn
5.000 prisioneiros. A notícia chocou o mundo incrédulo. O The Times de Londres tinha afirmado
que Namur poderia resistir a um sítio de seis meses; ela caíra em quatro dias. Dizia-se na Inglaterra,
em torn de perplexa incredulidade, que a queda de Namur era ”reconhecida por todos como uma
óbvia desvantagem (...) e as chances de que a guerra chegue logo ao final estão consideravelmente
reduzidas”.

Ninguém sabia ainda até que ponto isso era verdadeiro, até que ponto o fim estava distante.
Ninguém poderia ainda perceber que, pelo número de soldados envolvidos e pelo número de baixas
sofridas num determinado tempo de combate, a maior batalha da guerra já tinha acontecido.
Ninguém poderia ainda prever suas conseqüências: que a ocupação de toda a Bélgica e do norte da
França daria aos alemães a posse do poderio industrial de ambos os países, das fábricas de Liège, do
carvão de Borinage, do minério de ferro da Lorena, das indústrias de Lille, dos rios, das ferrovias e
da agricultura; e que essa ocupação, alimentando a ambição alemã e provocando na França a firme
resolução de lutar até o último soldado, iria bloquear todas as tentativas posteriores de um acordo de
paz ou de ”paz sem vitória” e prolongaria a guerra por mais quatro anos.

Tudo isso foi constatado depois. No dia 24 de agosto os alemães sentiam uma enorme confiança. À
sua frente viam apenas exércitos vencidos; o gênio de Schlieffen tinha sido provado; a vitória
decisiva parecia estar ao alcance da Alemanha.-”

Na França, o Presidente Poincaré escreveu em seu diário: ”Devemos preparar nossas mentes tanto
para a retirada quanto para a invasão. Acabaram-se as ilusões da quinzena passada. Agora, o futuro
da França depende de seu poder de resistência.” ffa O élan não tinha sido suficiente.

335
16

Tannenberg

Na Prússia Oriental, o Oitavo Exército alemão, tendo dado as costas a Rennenkampf, preparava-se
para atacar Samsonov em ambos os flancos e conseguir o clássico cerco duplo dos sonhos de
Schlieffen. No Quartel-General, o ressentimento contra a nova direção de Hindenburg e Ludendorff
ainda não desaparecera; as relações eram difíceis. Perseguido pela consciência de que Rennenkampf
estava na sua retaguarda, Ludendorff tinha pressa em enfrentar Samsonov. Assim, deu ordens para
que o primeiro estágio da batalha começasse no dia 25 de agosto: o I Corpo do General Von
François atacaria Usdau, visando cercar a ala esquerda de Samsonov.

François recusou-se a obedecer; sua artilharia pesada e parte de sua infantaria ainda estavam
desembarcando dos trens que, fazendo um grande rodeio, trouxeram-nos da frente de Gumbinnen.
Ele argumentou que atacar sem o apoio total da artilharia e um suprimento completo de munições
seria arriscar-se ao fracasso; se o caminho para a retirada de Samsonov ficasse aberto, ele escaparia
da destruição planejada. François tinha o apoio pessoal de Hoffmann e do General Scholtz do XX
Corpo. Este, embora tivesse estado em combate contra os russos no dia anterior, assegurou a
François pelo telefone de campanha que poderia defender seu terreno sem apoio imediato.

Confrontado corn uma insubordinação no segundo dia de seu novo comando, Ludendorff, furioso,
foi de carro ao quartel-general de François, levando consigo Hindenburg e Hoffmann. Em resposta
à sua insistência, François declarou:

-Se a ordem for dada, naturalmente atacarei, mas meus soldados serão obrigados a lutar corn a
baioneta.

Para mostrar quem estava no comando, Ludendorff descartou as razões de François e tornou a dar
as mesmas ordens, sem qualquer modificação. Hindenburg não disse coisa alguma durante a
conversa, e quando esta terminou ele partiu corn Ludendorff. Hoffmann, em outro carro, parou na
estação ferroviária de Montovo, o lugar mais próximo que tinha comunicação telefônica e
telegráfica corn o Quartel-General. Ali, um oficial do corpo de sinalização entregou-lhe duas
336 mensagens radiofônicas russas interceptadas por ele, ambas enviadas
sem código, uma de Rennenkampf às 5:00 daquela manhã e a outra de Samsonov às 6:00. As
ordens de Rennenkampf, determinando as distâncias de marcha para o Primeiro Exército, revelaram
que sua linha-objetivo para o dia seguinte não o levaria suficientemente longe para ameaçar o
Exército alemão pela retaguarda. As ordens de Samsonov, em seguida à batalha da véspera contra o
General Scholtz, mostravam que ele tomara por uma retirada desordenada o recuo de Scholtz e dava
instruções e horários de movimento para a perseguição ao inimigo que ele acreditava estar
derrotado.

Um presente desses nunca fora concedido a um comandante, desde que um traidor grego guiou os
persas pelo desfiladeiro nas Termópilas. O fato de estarem as mensagens completas causou
suspeitas no Major-General Grünert, superior imediato de Hoffmann. Hoffman relata:

- Ele ficou perguntando ansiosamente se devíamos acreditar nelas. Ora, por que não? Por princípio
eu acreditava em cada palavra delas.

Hoffmann dizia ter conhecimento pessoal de uma briga particular entre Rennenkampf e Samsonov,
datando da guerra russo-japonesa, em que ele atuara como observador para a Alemanha. Disse que
os Cossacos siberianos de Samsonov, depois de lutarem corajosamente, tinham sido obrigados a
entregar as minas de carvão de Yentai porque a divisão de cavalaria de Rennenkampf permanecera
inativa apesar das repetidas ordens, e que Samsonov tinha derrubado Rennenkampf numa briga
acalorada na plataforma da estação ferroviária de Mukden. Em torn de triunfo ele concluiu:
obviamente Rennenkampf não teria pressa em vir ajudar Samsonov. Como era menos uma questão
de ajudar Samsonov do que de vencer - ou perder a campanha, é questionável se Hoffmann
acreditava em sua própria história ou apenas fingia acreditar; ele sempre gostou de narrar esse
episódio.

De posse das mensagens interceptadas, ele e Grünert correram para o carro e dispararam atrás de
Hindenburg e Ludendorff; alcançando-os poucos quilômetros depois, Hoffmann ordenou que o
motorista emparelhasse corn o outro carro e entregou as mensagens corn o carro ainda em
movimento. Ambos os carros pararam e os quatro oficiais estudaram a situação. As mensagens
mostravam que o ataque planejado para o dia seguinte, quando os Corpos de Mackensen e Below
deveriam atacar a ala direita de Samsonov, poderia ter lugar sem qualquer interferência de
Rennenkampf. Segundo as m
diferentes interpretações dos quatro oficiais, elas mostravam ou não mostravam que François tinha
condições de adiar seu ataque até que todos os seus homens e p material estivessem disponíveis.
Ludendorff, pouco disposto a ceder um centímetro de sua autoridade, quando voltou ao
Quartel-General confirmou suas ordens para François.

Ao mesmo tempo, deu ordens para que fosse executado o plano geral do cerco duplo no dia
seguinte, 26 de agosto. Na ala esquerda alemã, o Corpo de Mackensen, apoiado pelo de Below,
deveria atacar a ala da extrema direita de Samsonov, que - em Bischofsburg, corn a cavalaria em
Sensburg - atingira uma posição defronte aos lagos onde poderia formar uma frente conjunta corn
Rennenkampf se este estivesse lá. A sua ausência deixava aberto o flanco que os alemães
esperavam envolver. No centro, o XX Corpo de Scholtz, agora apoiado por uma divisão
Landwehr69 e pela Terceira Divisão de Reserva do General Von Morgen, deveria recomeçar sua
batalha da véspera. Na direita alemã, Von François deveria abrir o ataque que envolveria a ala
esquerda de Samsonov.

Todas as ordens foram enviadas antes da meia-noite de 25 de agosto; na manhã seguinte, o dia da
abertura da batalha generalizada, Ludendorff sofreu um ataque de nervos quando um aviador de
reconhecimento informou que Rennenkampf movimentava-se em sua direção. Embora Hindenburg
tivesse certeza de que o Oitavo Exército ”não precisava ter a menor hesitação” em deixar apenas
uma pequena força contra Rennenkampf, Ludendorff viu-se novamente tomado pela ansiedade. ”As
formidáveis hostes de Rennenkampf pairavam a nordeste como uma ameaçadora nuvem de
tempestade”, ele escreveu. ”Para nos derrotar, ele precisaria apenas aproximar-se de nós.”
Ludendorff começou a sentir os mesmos temores que assaltaram Prittwitz, e a duvidar se devia
comprometer todas as suas forças contra Samsonov ou possivelmente abandonar a ofensiva contra o
Segundo Exército russo e voltar-se contra o Primeiro. O herói de Liège ”parece ter perdido um
pouco da sua coragem”, registrou Hoffmann corn alegria; deÀodos os escritores militares, ele foi o
mais pródigo em atribuir essa fraqueza aos colegas.

Até mesmo Hindenburg reconhece que ”graves dúvidas” afligiam seu companheiro e afirma que
nesse momento foi ele quem

338

69 Landwehr: na Alemanha, e mais tarde em outros países, a reserva militar de homens treinados. (N. da T.)
f
encorajou seu Chefe de staff. Em suas próprias palavras: ”Nós superamos a crise interna.”

Uma crise diferente explodiu quando o Quartel-General descobriu que Von François ainda esperava
por sua artilharia e não iniciara a batalha conforme ordenado. Ludendorff exigiu autoritariamente
que o ataque começasse ao meio-dia; François respondeu que o terreno preliminar que o
Quartel-General supunha ter sido conquistado nessa manhã não o fora, o que provocou uma
explosão e aquilo que Hoffmann descreve como uma resposta ”provavelmente pouco »
amigável” de Ludendorff. Durante todo o dia, François conseguiu | adiar o ataque, esperando
pelo momento certo. i

De repente, um telefonema extraordinário, do OHL em Coblenz, l interrompeu a discussão


corn François. Já bastante preocupado sem j ter problemas corn o Comando Supremo,
Ludendorff pegou o recep- l tor e ordenou que Hoffmann escutasse ”o que eles querem” em
outro l aparelho. Para seu espanto, ele ouviu o Coronel Tappen, Chefe de Operações no OHL,
propor enviar-lhe reforços de três corpos e uma divisão de cavalaria.

Recém-chegado da Frente Ocidental, Ludendorff, que trabalhara nos planos de mobilização e


conhecia até a última fração da densidade necessária de homens por quilômetro de linha de
combate, mal podia acreditar no que estava ouvindo. O plano de Schlieffen [ dependia do
uso de todos os homens para fortalecer a ala direita; o ’ que poderia ter convencido o OHL a
retirar três corpos de sua linha no clímax da ofensiva? Perplexo, ele disse a Tappen que não havia
uma necessidade ”positiva” de reforços na frente oriental e que de qualquer maneira eles chegariam
tarde demais para a batalha que já se iniciava. Tappen reiterou que poderia dispor deles.

O que provocou essa decisão foi o pânico no OHL quando os russos desfecharam sua ofensiva
duas^manas depois da mobilização em vez das seis semanas previstas no plano alemão. Segundo
registro de Tappen, o fator decisivo foi a ”grande vitória” nas fronteiras francesas que ”criaram no
OHL a convicção de que a batalha decisiva no ocidente tinha sido lutada e vencida”. Sob essa
impressão, no dia 25 de agosto Moltke decidiu, ”apesar das objeções que lhe foram feitas”, enviar
reforços para salvar dos russos a Prússia Oriental. As queixas dos refugiados, as propriedades dos
Junkers abandonadas à pilhagem dos Cossacos, os pedidos lacrimosos de damas de alta linhagem
para salvar as terras e as fortunas de suas famílias, estavam fazendo efeito. Para fomentar o
ressentimento contra os 339
russos, o governo alemão deliberadamente distribuirá os refugiados em várias cidades, e conseguira
atemorizar a si próprio. O Presidente do Bundesrat70 da Prússia Oriental foi ao OHL pedir ajuda
para a sua terra natal. Um diretor da Krupp escreveu em seu diário para o dia
25 de agosto: ”De todos os lados as pessoas diziam: ’Bah! Os russos jamais completarão sua
mobilização... Podemos ficar muito tempo na defensiva.’ Mas hoje todos pensam diferente, e fala-se
apenas em abandonar a Prússia Oriental.”

O Kaiser ficou profundamente abalado. O próprio Moltke sempre se preocupara corn a frágil defesa
no oriente, pois, como ele escreveu antes da guerra, ’Todo o sucesso na frente ocidental será inútil
se os russos chegarem a Berlim.”

Dois dos corpos que ele agora retirava da frente ocidental tinham participado da tomada de Namur
na junção do Segundo corn o Terceiro Exércitos alemães e, corn a queda da fortaleza belga, tinham
sido declarados disponíveis pelo General Von Bülow. corn a Oitava Divisão de Cavalaria, eles
foram destacados em 26 de agosto e marcharam - por causa da destruição das ferrovias belgas - para
estações na Alemanha, para serem transportados ”o mais depressa possível” para a frente oriental.
Outro corpo tinha chegado até a estação ferroviária de Thionsville quando vozes acauteladoras no
OHL convenceram Moltke a cancelar suas ordens.

Em 26 de agosto o General Samsonov, l .300 quilômetros ao leste, preparava-se para recomeçar a


batalha. Na sua extrema direita, seu VI Corpo, sob o General Blagovestchensky, tinha alcançado o
ponto de encontro combinado, defronte aos lagos, mas Samsonov tinha deixado esse Corpo isolado
enquanto empurrava o grosso do seu Exército numa direção mais para o oeste do que para o norte.
Embora isso o afastasse de Rennenkampf, ou do lugar onde Rennenkampf deveria estar, Samsonov
julgava ser a direção correta para colocá-lo entre o Vístula e os alemães, que se supunha estarem
recuando para o oeste. O objetivo de Samsonov era a linha Allenstein-Osterode, onde poderia
dominar a principal ferrovia alemã e de onde ”seria mais fácil avançar em direção ao coração da
Alemanha”, segundo ele informou a Jilinsky em 23 de agosto.

Já se tornara evidente que seus soldados, que mal tinham conseguido alcançar a fronteira aos
tropeços, exaustos e famintos, não

70 Bundesrat: o conselho federal do Império germânico, que dividia corn o Reichstag os poderes legislativos e consistia em dois
membros de cada Estado do Império. (N. da T.)
estavam preparados para a batalha, muito menos para atingir o coração da Alemanha. As rações não
chegavam, os soldados tinham usado suas rações de reserva, as aldeias estavam desertas, o feno e a
aveia ainda não tinham sido colhidos nos campos, pouca coisa se conseguia retirar da terra para os
homens e os cavalos. Todos os comandantes de corpos pediam que se fizesse alto. Um oficial do
Estado-Maior informou ao Quartel-General de Jilinsky a ”miserável” alimentação dos soldados.
”Não sei como os homens ainda conseguem agüentar. É essencial organizar um serviço de
requisição eficiente.” Em Volkovisk, 300 quilômetros em linha reta a leste do campo de batalha, e
ainda mais distante por via férrea, Jilinsky estava longe demais para perturbar-se corn essas
informações. Ele insistiu que Samsonov continuasse a ofensiva ”para enfrentar o inimigo que recua
diante do General Rennenkampf e cortar sua retirada para o Vístula”. Esta versão do que o inimigo
estava fazendo baseava-se no que Rennenkampf lhe dissera, e como Rennenkampf não tivera
contato corn os alemães depois da batalha de Gumbinnen, suas informações eram apenas fantasias
otimistas. A essa altura, no entanto, Samsonov constatou, pelas evidências de movimentos por via
férrea e outras informações, que ele não estava enfrentando um inimigo em retirada, mas um
inimigo reorganizado, que avançava em sua direção. Chegavam informações sobre uma nova força
inimiga em concentração o corpo de Von François - defronte ao seu flanco esquerdo. Reconhecendo
o perigo para a sua esquerda, ele enviou um oficial para insistir pessoalmente corn Jilinsky sobre a
necessidade de mover seu Exército para oeste, em vez de continuar para o norte. corn o desprezo
que um comandante na retaguarda sente pelas cautelas de um comandante na linha de frente,
Jilinsky tomou esse pedido como um desejo de passar para a defensiva e respondeu ”rudemente” ao
oficial: l - É covardia enxergar o inimigo onde ele não existe. Não i permitirei que o General
Samsonov banque o covarde. Insisto em ordenar que ele continue a ofensiva.

Segundo um colega, sua estratégia parecia destinada ao Poddavki, uma versão russa do jogo de
damas na qual o objetivo do jogador . é perder todas as suas peças.

Na noite de 25 de agosto, ao mesmo tempo em que Ludendorff enviava suas ordens, Samsonov
dispunha suas forças. No centro, o XV e o XII Corpos sob o comando do General Martos e do
General Kliouev, corn uma divisão do XXIII Corpo sob o comando do General Kondratovitch,
deveriam levar o avanço principal à linha Allenstein- 3ti
Osterode. O flanco esquerdo do Exército seria defendido pelo I Corpo do General Artomonov,
apoiado pela outra divisão do XXIII Corpo.

A 80 quilômetros dali, o VI Corpo, isolado, defendia o flanco direito. Como as técnicas de


reconhecimento da cavalaria russa eram menos que competentes, Samsonov não sabia que o Corpo
de Mackensen, visto pela última vez fugindo em pânico do campo de Gumbinnen, reorganizara-se
e, em marchas forçadas, juntamente corn o Corpo de Below, chegara à linha de frente e agora estava
avançando sobre a sua direita. A princípio ele ordenou que o VI Corpo defendesse sua posição
”corn o objetivo de proteger o flanco direito do Exército”, depois mudou de idéia e ordenou-lhes
que viessem ”a toda velocidade” apoiar o avanço do centro sobre Allenstein. No último minuto da
manhã do dia 26 a ordem foi novamente mudada para a missão original de permanecer em posição
para proteger o flanco direito. A essa altura o VI Corpo já estava marchando em direção ao centro.

Na retaguarda, uma sensação de desastre dominava o Alto Comando russo. Ainda no dia 24 de
agosto, Sukhomlinov, o Ministro da Guerra que não se dera ao trabalho de construir fábricas de
armamentos porque não acreditava no poder de fogo, escreveu ao General Yanushkevich, Chefe do
staff: ”Pelo amor de Deus, dê ordens para reunir os fuzis. Mandamos 150.000 para os sérvios,
nossas reservas estão quase no fim e a produção das fábricas é fraca.”

Apesar do entusiasmo de oficiais galantes como o general que partiu para a guerra bradando
”William em Santa Helena!”, desde o princípio o estado de espírito dos chefes de comando era de
pessimismo - eles entraram na guerra sem confiança e permaneceram nela sem fé. Rumores sobre o
pessimismo do Quartel-General alcançaram inevitavelmente os ouvidos do Embaixador francês em
São Petersburgo. No dia 26 de agosto Sazonov contou-lhe que Jilinsky ”considera que uma ofensiva
na Prússia Oriental está fadada ao fracasso”. Dizia-se que Yanushkevitch concordava e que estava
protestando firmemente contra a ofensiva. No entanto, o General Danilov, Subchefe e cérebro do
Estado-Maior, insistia que a Rússia não podia decepcionar a França e teria que atacar apesar dos
”riscos indubitáveis”.

Danilov estava corn o Grão-Duque em Baranovichi, onde se encontrava o Stavka, Quartel-General


do Estado-Maior. Baranovichi era um tranqüilo lugar na floresta, onde o Stavka ficaria durante um
ano, e foi escolhido porque ali ficava a junção de uma linha férrea norte-sul corn a linha principal
entre Moscou e Varsóvia. Ambas as
frentes russas - corn a Alemanha e corn a Áustria - eram dirigidas dali O Grão-Duque corn sua
comitiva pessoal, os principais oficiais do Êstado-Maior e os adidos militares aliados, dormiam e
faziam as refeições nos vagões da ferrovia, porque descobriu-se que a casa destinada ao
Comandante-em-Chefe era distante demais da casa do chefe da estação usada pelo pessoal de
Operações e de Informações. Construíram-se telhados sobre os vagões para protegê-los do sol e da
chuva, colocaram-se calçadas de tábuas e erigiu-se uma marquise no jardim da estação, onde eram
feitas as refeições no verão. A pompa estava ausente e as deficiências materiais eram contornadas -
corn exceção das portas baixas, contra as quais o Grão-Duque tinha uma infeliz tendência de bater
corn a cabeça. Foi necessário fixar uma franja de papel branco sobre todas as portas, para lembrar
ao Grão-Duque que ele precisava curvar-se.

Danilov ficou ansioso corn a óbvia falta de contato de Rennenkampf corn o inimigo e pelas falhas
nas comunicações, pois Jilinsky parecia não saber onde estavam os exércitos, nem estes sabiam
onde os outros estavam. Quando chegou ao Stavka a notícia de que Samsonov enfrentara o inimigo
em 24 e 25 de agosto e estava prestes a recomeçar a batalha, aumentou a ansiedade sobre a omissão
de Rennenkampf em trazer o outro braço da pinça.

Em 26 de agosto o Grão-Duque visitou o quartel-general de Jilinsky em Volvovisk para insistir que


Rennenkampf recebesse ordens de avançar. Em sua lenta perseguição, iniciada em 23 de agosto,
Rennenkampf passara através das antigas posições alemãs no Angerapp, abandonadas pelo Oitavo
Exército em sua grande movimentação para o sul. Evidências de uma partida apressada
confirmaram sua idéia de um inimigo derrotado. Segundo as anotações de um dos oficiais do seu
staff, ele acreditava que seria um erro empurrar os alemães depressa demais, pois eles poderiam
então recuar para o Vístula antes de serem cortados por Saffisonov. Rennenkampf não se esforçou
em seguir de perto para obter uma confirmação visual de suas suposições; essa omissão tampouco
pareceu preocupar Jilinsky, que aceitou a versão de Rennenkampf sem pensar em questioná-la.

As ordens de Jilinsky para Rennenkampf no dia seguinte à visita do Grão-Duque eram para
perseguir um inimigo que ele ainda imaginava estar batendo em retirada e proteger-se contra um
possível ataque alemão, partindo da fortaleza de Kõràgsberg, sobre seu flanco. A intenção tinha
sido bloquear Kõnigsberg corn seis divisões de reserva, mas estas ainda não tinham chegado.
Jilinsky então instruiu Í43
Rennenkampf a bloquear Kõnigsberg corn dois corpos até que chegassem as divisões de reserva, e
corn seus dois outros corpos perseguir ”aqueles soldados inimigos que não se refugiaram em
Kõnigsberg e possam estar recuando para o Vístula”. Imaginando que o inimigo estava batendo em
retirada, não lhe ocorreu que esse inimigo ameaçaria Samsonov, e ele não pediu a Rennenkampf
para apressar-se em fechar a junção corn a ala direita de Samsonov, como tinha sido planejado;
disse-lhe apenas que as ”operações conjuntas” do Primeiro e do Segundo Exércitos deviam ter por
objetivo pressionar em direção ao mar, para longe do Vístula, os alemães em retirada. Como os dois
Exércitos russos não estavam em contato, nem movimentando-se na direção um do outro, a palavra
”conjunta” não tinha como ser aplicada.

Quando rompeu a manhã de 26 de agosto, o VI Corpo de Samsonov iniciou sua marcha para o
centro, em obediência a ordens que ele não sabia terem sido canceladas. Uma divisão estava a
caminho quando a outra recebeu notícias de que forças inimigas tinham sido avistadas ao norte,
cerca de dez quilômetros para trás. Imaginando que fossem os soldados fugindo de Rennenkampf, o
comandante divisional russo decidiu fazer meia-volta e atacá-los.

Na realidade, tratava-se do Corpo de Mackensen avançando para o ataque. Mackensen caiu sobre os
russos, e enquanto estes lutavam para salvar-se, foi chamada a outra divisão, que a essa altura já
estava a 13 quilômetros de distância; essa divisão fez meia-volta e, depois de ter marchado ao todo
quase 30 quilômetros, deparou no final do dia corn um segundo corpo inimigo - o de Below. O
contato entre as duas divisões russas foi desfeito. O comandante do corpo, General
Blagovestchensky, ”perdeu a cabeça” (neste caso, a expressão foi aplicada por um crítico militar
inglês); o comandante da divisão que estivera em combate durante todo o dia, sofrendo 5.000 baixas
e a perda de 16 canhões de campanha, ordenou a retirada por sua própria iniciativa. Durante a noite,
ordens e contra-ordens aumentaram a confusão; as unidades se confundiam nas estradas; pela
manhã o VI Corpo era uma turba desordenada e continuando a recuar - a ala direita de Samsonov
tinha sido flanqueada.

Enquanto isso acontecia, os dois corpos e meio do seu centro tomavam a ofensiva. O General
Martos estava no centro, em feroz combate. Sua vizinha da esquerda, uma divisão do XXIII Corpo,
foi repelida e obrigada a recuar, expondo seu flanco. À sua direita, o XIII Corpo do General
Kliouev tomou Allenstein mas, informado de que Martos estava corn problemas, saiu em sua ajuda,
deixando que Allenstein fosse ocupada pelo VI Corpo, que Kliouev supunha estar
a caminho. Naturalmente o VI Corpo não apareceu e surgiu uma brecha em Allenstein.

Alguns quilômetros atrás da linha de frente, no quartel-general do Segundo Exército em


Neidenburg, o General Samsonov estava jantando corn seu Chefe de staff, General Potovsky, e o
Adido Militar inglês, Major Knox, quando a divisão derrotada do XXIII Corpo encheu as ruas. No
estado de espírito temeroso, qualquer som fazia corn que pensassem estar sendo perseguidos; uma
ambulância que se aproximou ruidosamente provocou gritos de ”Os Ulanos estão chegando!”
Ouvindo a confusão, Samsonov e Potovsky-um indivíduo nervoso que usava pincenê e, por motivos
ignorados, era conhecido como o ”Mullah Louco”71 - pegaram as espadas e saíram às pressas, para
constatar em primeira mão as condições dos soldados. Os homens estavam ”horrivelmente exaustos
(...) tinham passado três dias sem pão ou açúcar”. Um comandante de regimento relatou:

- Há dois dias meus homens não recebem suas rações, e não apareceu suprimento algum.

Embora Samsonov não tivesse ainda recebido notícias completas do desastre do VI Corpo à sua
direita, no final do dia ele já tinha constatado que não se tratava mais de cercar o inimigo mas de
salvar-se do cerco. Mesmo assim decidiu não interromper a batalha, e sim reiniciá-la no dia
seguinte corn o seu corpo central, num esforço para deter os alemães até que Rennenkampf
chegasse para desfechar o golpe decisivo. Assim, enviou ordens ao General Artomov, comandante
do I Corpo que defendia a linha defronte a Von François na extrema esquerda dos russos, para
”proteger o flanco do Exército (...) a qualquer custo”. Afirmou ter certeza de que ”nem mesmo um
inimigo muito superior pode romper a resistência dcffamoso J Corpo”, e acrescentou que o sucesso
de toda a batalha dependeria do desempenho do I Corpo.

Na manhã do dia seguinte, 27 de” agosto, chegou o momento, aguardado corn impaciência, da
ofensiva de Von François: sua artilharia tinha chegado. Às 4:00 da madrugada, antes de clarear o
dia, um bombardeio de tremendo impacto caiu sobre as posições do I Corpo em Usdau. O alto
comando alemão, corn Hindenburg calmíssimo, Ludendorff grave e tenso, e Hoffmann uma sombra
zombeteira por trás deles, abandonou o quartel-general temporário em Lobau, a

Mullah: professor ou intérprete da lei religiosa muçulmana; geralmente usado como título w respeito para
corn um homem erudito. (N. da T.)
cerca de 30 quilômetros de distância, para tomar posição sobre uma colina de onde Ludendorff
pretendia ”dirigir no local” a coordenação dos corpos de Von François e Von Scholtz. Antes mesmo
que conseguissem alcançar a colina, chegou a notícia de que Usdau tinha sido tomada. No meio das
comemorações chegou outra notícia, desmentindo a primeira.

A barragem de artilharia continuava, corn um estrondo incessante. Nas trincheiras russas, os


homens do ”famoso I Corpo”, famintos como seus companheiros do XXIII e sem vontade de lutar,
fugiram do bombardeio; ficaram para trás os mortos, em número igual ao dos que conseguiram
escapar. Às 11:00 o I Corpo russo tinha abandonado o campo e a artilharia alemã sozinha vencera a
batalha. Ludendorff, cujas ordens prematuras poderiam ter trazido a derrota, escreveu que o
Segundo Exército russo estava agora ”fracionado” - mas não vencido; ”em contraste corn outras
guerras”, a batalha não fora ganha em um dia.

O avanço de Von François ainda estava sendo detido a leste de Usdau; os dois corpos russos no
centro, um contingente formidável de soldados, ainda estavam atacando; a ameaça de Rennenkampf
ainda pairava sobre a sua retaguarda. As estradas estavam entupidas de refugiados e animais -
aldeias inteiras estavam em fuga. Os soldados alemães estavam igualmente exaustos; também eles
viam inimigos nos ruídos dos cascos dos cavalos e gritavam: ”Eles estão chegando!”; à medida que
esses gritos eram passados adiante, tornavam-se ”Os Cossacos estão chegando!”.

Quando retornou a Lobau, o Alto Comando ouviu corn horrorizada incredulidade a notícia de que o
Corpo de Von François estava em fuga e que ”frangalhos” de suas unidades estavam chegando a
Montovo. Um telefonema frenético confirmou os rumores de que em frente à estação ferroviária
havia grupos de desanimados soldados do I Corpo. Se de um modo qualquer o inimigo tivesse
conseguido o cerco do flanco de François, a batalha poderia estar perdida; por um terrível momento,
essa perspectiva de uma campanha perdida, de uma retirada para o outro lado do Vístula, do
abandono da Prússia Oriental, surgiu diante dele, como ocorrera antes corn Prittwitz. Em seguida,
porém, constatou-se que os soldados em Montovo pertenciam a apenas um batalhão, que sucumbira
em combate no outro lado de Usdau.

Na tarde do mesmo dia, a verdade penetrou afinal no quartelgeneral de Jilinsky: os alemães não
estavam ”em retirada para o
Vístula”, mas sim avançando contra Samsonov. Então finalmente ele teleerafou para Rennenkampf
informando que o Segundo Exército estava sob ataque e que ele devia cooperar ”adiantando o mais
possível o seu flanco esquerdo”. Porém os objetivos designados por ele ficavam demasiadamente a
oeste e não eram suficientemente avançados para serem de alguma utilidade; além disso, não se
falou em pressa ou marchas forçadas.

A batalha estava em seu terceiro dia. Dois exércitos, agora inteiramente envolvidos no combate,
defrontavam-se, lutavam e se separavam para logo tornar a enfrentar-se, em combates confusos e
independentes, ao longo de uma frente de 65 quilômetros. Um regimento avançava, seu vizinho era
empurrado para trás, surgiam brechas, o inimigo penetrava por elas ou, inexplicavelmente, não
penetrava; a artilharia estrondava, trincheiras desabavam; esquadrões de cavalaria, unidades de
infantaria, pesadas baterias de canhões de campanha atravessavam aldeias e florestas, circundavam
lagos, percorriam campos e estradas. Projéteis atingiam as casas de fazenda e as ruas das aldeias.

Um batalhão avançando sob a cobertura do fogo de canhões desapareceu para sempre atrás de uma
cortina de fumaça e névoa. Colunas de prisioneiros enviados para a retaguarda bloqueavam o
caminho das tropas que avançavam. Brigadas conquistavam e abandonavam terreno, interferiam nas
linhas de comunicação umas das outras, misturavam-se a outras divisões. Comandantes perdiam
contato corn suas unidades, oficiais passavam em carros a toda velocidade, aviões de
reconhecimento alemães sobrevoavam tentando recolher informações, comandantes de Exército
esforçavam-se para descobrir o que estava acontecendo e davam ordens que podiam ser recebidas
ou não, executadas ou não, adequar-se à realidade no momento em que alcançassem a linha de
frente, ou não. Trezentos mil homens agrediam uns aos outros, marchavam e contramarchavam
fatigadamente, disparavam suas armas, embebedavam-se quando ocupavam uma aldeia,
sentavam-se no chão nas florestas corn uns poucos companheiros quando caía a noite; no dia
seguinte, a luta continuava. Assim decorreu a grande batalha da frente oriental.

Na madrugada do dia 28 o General Von François reiniciou o combate corn outra grande barragem
de artilharia. Ludendorff ordenou-lhe que fizesse um desvio para a esquerda para aliviar a pressão
sobre o^Corpo de Scholtz, que ele acreditava estar ”inteiramente exausto”. Ignorando-o, Von
François manteve o avanço diretamente 3*9
para o leste, determinado a completar o cerco do flanco de Samsonov e cortar a sua retirada. Dessa
vez, depois da bem-sucedida desobediência da véspera, .Ludendorff quase implorou a Von François
para obedecer, afirmando várias vezes que o I Corpo iria ”ser da maior utilidade possível ao
Exército se cumprir essas instruções”. Sem lhe dar atenção, Von François dirigiu-se para o leste,
deixando guardas ao longo das estradas para impedir que o inimigo passasse.

Aguardando que a batalha terminasse, Ludendorff e Hindenburg, preocupados corn o centro,


permaneceram no quartel-general de campanha de Scholtz, na aldeia de Frogenau, a cerca de três
quilômetros de uma aldeia ainda menor: Tannenberg. As ordens procediam de Frogenau.

Ludendorf achava-se novamente torturado pela apreensão em relação a Rennenkampf. Preocupado


corn o Corpo de Scholtz, irado corn Von François, enervado corn o ”telefone de campanha muito
ineficiente” que o ligava ao comandante insubordinado e pela ausência total de comunicação
telefônica corn Mackensen e Below na sua ala esquerda, ele se achava ”longe de estar satisfeito”.

Mackensen e Below, confusos corn as ordens conflitantes de tomar primeiro uma direção, depois
outra, mandaram um oficial de aeroplano ao quartel-general para esclarecer as coisas. Ele teve ”uma
recepção longe de amigável” porque nenhum dos dois corpos estava posicionado onde deveria. No
entanto, à tarde ambos estavam manobrando satisfatoriamente - Mackensen empurrando a ala
direita russa derrotada e Below dirigindo-se para a brecha em Allenstein para atacar o centro russo.
Agora o curso de François mostrava-se mais justificado, e Ludendorff deu ordens modificadas para
que ele seguisse a direção que já tinha tomado.

Exatamente quando a convicção da vitória iminente começava a espalhar-se pelo Quartel-General


alemão, chegou a notícia de que os soldados de Rennenkampf estavam avançando. Mas seu
progresso durante o dia deixava claro que ele chegaria tarde demais. Na realidade, no acampamento
daquela noite o corpo mais próximo de Rennenkampf estava-ainda a mais de 30 quilômetros de
Bischofsburg, onde o VI Corpo de Samsonov tinha sido derrotado dois dias antes. Avançando
lentamente em território hostil, no final do dia seguinte
- 29 de agosto - o maior progresso de Rennenkampf foi de cerca de
15 quilômetros para oeste e nada para o sul, e ele ainda não fizera qualquer contato corn Samsonov.
Esse contato estava fadado a não acontecer.
Para o General Samsonov, o colapso do ”famoso I Corpo”, em cuja resistência ele pusera tantas
esperanças, e o colapso do VI Corpo em sua outra ala, pressagiavam o fim. Ambas as suas alas
tinham sido flanqueadas; sua cavalaria - única arma em que ele tinha superioridade numérica sobre
os alemães - espalhada demais nos flancos, não tivera qualquer utilidade na batalha e agora estava
isolada; os s’uprimentos e as comunicações estavam completamente caóticos; apenas os eficientes
XV e XIII Corpos ainda combatiam. De seu quartel-general em Neidenburg ele ouvia, cada vez
mais próximo, o estrondo dos canhões de Von François. Parecia-lhe haver apenas uma coisa a fazer:
ele telefonou para Jilinsky avisando que ia abandonar a frente de batalha e então, ordenando que a
bagagem e a aparelhagem de rádio fossem enviadas de volta à Rússia, cortou a comunicação corn a
retaguarda.

Dizem que Samsonov ”levou para o túmulo” as razões dessa decisão, mas não é difícil
compreendê-las. O Exército cujo comando lhe fora confiado sucumbira; portanto, ele tornava-se
novamente um oficial de cavalaria e general divisional, e fez a coisa que mais sabia fazer: corn sete
de seus oficiais montados em cavalos requisitados de alguns Cossacos, partiu para a batalha, para
assumir pessoalmente o comando numa sela de montaria, onde se sentia em casa.

No dia 28, nos arredores de Neidenburg, Samsonov despediu-se do Major Knox, que o
acompanhara até ali. Estava sentado no chão, cercado pela sua equipe, estudando alguns mapas;
levantou-se, levou Knox a um lado e disse-lhe que a situação era ”crítica”. Declarou que seu lugar e
seu dever eram corn o Exército, mas, sendo o dever de Knox informar seu governo, ele o
aconselhava a voltar ”enquanto havia tempo”. Montou, mas antes de se afastar voltou-se na sela e
disse, corn um sorriso melancólico:

- O inimigo tem sorte num dia, nós teremos sorte no outro.

Mais tarde, o General Martos, que do alto de uma colina comandava a batalha em seu setor, acabara
de ordenar que uma coluna de prisioneiros alemães fosse levada para longe da linha de combate
quando, para seu espanto, o General do Exército surgiu a cavalo corn sua equipe. Samsonov
perguntou a respeito da coluna que se retirava e, ao saber que eram prisioneiros, freou seu cavalo
perto de Martos, inclinou-se para abraçá-lo e disse-lhe corn tristeza:

- Só você poderá nos salvar.

Mas reconhecia a realidade, e naquela noite deu a ordem de retirada eeral nara o OUP snbrava do
Seeundo Exército. 351
Durante os dois dias seguintes, 29 e 30 de agosto, a retirada foi um desastre crescente e inexorável.
Os dois corpos do centro, que tinham lutado melhor e por mais tempo, avançado mais e recuado por
último, tinham a menor chance de escapar, e foram os que ficaram mais completamente envolvidos
pelo cerco alemão. O Corpo do General Kliouev ainda estava na ofensiva quando Below passou
pela brecha à sua direita em Allenstein e completou o cordão que cercava o centro russo. Os
soldados de Martos e Kliouev andavam pelas florestas e pelos campos em marchas vãs, em direções
erradas e tentativas fracassadas de reagrupar-se para oferecer resistência, à medida que o cordão
ficava mais apertado. Na região pantanosa, onde as estradas eram elevadas, os alemães colocaram
guardas corn metralhadoras em todos os cruzamentos. Nos últimos quatro dias, os homens do Corpo
de Martos estavam literalmente famintos. O Corpo de Kliouev cobriu 67 quilômetros em 40 horas,
sem qualquer tipo de alimento; os animais nada comeram ou beberam.

Em 29 de agosto, o General Martos e alguns oficiais da sua equipe estavam tentando encontrar um
caminho através da floresta, corn uma escolta de cinco Cossacos. Por toda a volta o inimigo
disparava. O Major-General Machagovsky, Chefe do staffde Martos, foi abatido a tiros de
metralhadora. Outros do grupo caíram, um por um, até que apenas um oficial e dois soldados da
escolta acompanhavam o General. Tendo deixado sua mochila corn um ajudante que tombara,
desde manhã cedo Martos nada tinha para comer, beber ou fumar. Um cavalo exausto deitou-se e
morreu; os homens desmontaram e passaram a puxar os animais restantes. Caiu a noite. Eles
tentaram guiar-se pelas estrelas, mas o céu nublou-se. Ouviram soldados se aproximando e
julgaram-nos amigos, pois os cavalos tentaram ir até eles; de repente um holofote alemão iluminou
o bosque, movendo-se de um lado para outro à procura deles. Martos tentou montar e fugir a
galope, mas seu cavalo foi atingido. Ele caiu, e foi agarrado por soldados alemães.

Mais tarde, no ”hotelzinho sujo” aonde Martos fora levado como prisioneiro, Ludendorff entrou no
aposento e, num russo perfeito, pôs-se a provocá-lo, falando da derrota e afirmando que a fronteira
russa estava agora aberta à invasão alemã. Hindenburg entrou em seguida e ”vendo-me perturbado,
segurou minhas mãos durante longo tempo, implorando-me para ficar calmo”. Num russo
gaguejante, corn forte sotaque, ele prometeu devolver a espada de Martos, e despediu-se corn uma
mesura, dizendo:
352 - Desejo-lhe dias mais felizes.
Durante os dois dias seguintes, 29 e 30 de agosto, a retirada foi um desastre crescente e inexorável.
Os dois corpos do centro, que tinham lutado melhor e por mais tempo, avançado mais e recuado por
último, tinham a menor chance de escapar, e foram os que ficaram mais completamente envolvidos
pelo cerco alemão. O Corpo do General Kliouev ainda estava na ofensiva quando Below passou
pela brecha à sua direita em Allenstein e completou o cordão que cercava o centro russo. Os
soldados de Martos e Kliouev andavam pelas florestas e pelos campos em marchas vãs, em direções
erradas e tentativas fracassadas de reagrupar-se para oferecer resistência, à medida que o cordão
ficava mais apertado. Na região pantanosa, onde as estradas eram elevadas, os alemães colocaram
guardas corn metralhadoras em todos os cruzamentos. Nos últimos quatro dias, os homens do Corpo
de Martos estavam literalmente famintos. O Corpo de Kliouev cobriu 67 quilômetros em 40 horas,
sem qualquer tipo de alimento; os animais nada comeram ou beberam.

Em 29 de agosto, o General Martos e alguns oficiais da sua equipe estavam tentando encontrar um
caminho através da floresta, corn uma escolta de cinco Cossacos. Por toda a volta o inimigo
disparava. O Major-General Machagovsky, Chefe do staffde Martos, foi abatido a tiros de
metralhadora. Outros do grupo caíram, um por um, até que apenas um oficial e dois soldados da
escolta acompanhavam o General. Tendo deixado sua mochila corn um ajudante que tombara,
desde manhã cedo Martos nada tinha para comer, beber ou fumar. Um cavalo exausto deitou-se e
morreu; os homens desmontaram e passaram a puxar os animais restantes. Caiu a noite. Eles
tentaram guiar-se pelas estrelas, mas o céu nublou-se. Ouviram soldados se aproximando e
julgaram-nos amigos, pois os cavalos tentaram ir até eles; de repente um holofote alemão iluminou
o bosque, movendo-se de um lado para outro à procura deles. Martos tentou montar e fugir a
galope, mas seu cavalo foi atingido. Ele caiu, e foi agarrado por soldados alemães.

Mais tarde, no ”hotelzinho sujo” aonde Martos fora levado como prisioneiro, Ludendorff entrou no
aposento e, num russo perfeito, pôs-se a provocá-lo, falando da derrota e afirmando que a fronteira
russa estava agora aberta à invasão alemã. Hindenburg entrou em seguida e ”vendo-me perturbado,
segurou minhas mãos durante longo tempo, implorando-me para ficar calmo”. Num russo
gaguejante, corn forte sotaque, ele prometeu devolver a espada de Martos, e despediu-se corn uma
mesura, dizendo:
352 - Desejo-lhe dias mais felizes. f
q^u
Nos bosques ao norte de Neidenburg, os últimos Corpos de jvlartos foram dizimados ou se
renderam. Apenas um oficial do XV Corpo escapou e retornou para a Rússia. A cerca de 15
quilômetros de Neidenburg, o resto do XIII Corpo, cujo comandante, o General Kliouev, também
fora capturado, entrincheirou-se formando um círculo. corn quatro canhões capturados de uma
bateria alemã no bosque, esses homens detiveram o inimigo durante toda a noite de 30 de agosto até
que ficaram sem munição e quase todos mortos. Os remanescentes foram aprisionados.

Naquele dia foi desfechado um último ataque russo, organizado corn grande vigor pelo General
Sirelius, sucessor do General Artomonov, do I Corpo, que fora afastado. Juntando vários
regimentos e unidades de artilharia que estavam espalhados mas ainda não tinham combatido e que
formavam uma divisão, ele lançou uma ofensiva que rompeu as linhas de Von François e conseguiu
retomar Neidenburg. Essa vitória, porém, veio tarde demais e não pôde ser sustentada. Foi o último
combate do Segundo Exército russo, e não foi ordenado pelo General Samsonov, pois a essa altura
Samsonov estava morto.

Assim como o General Martos, na noite de 29 de agosto o General Samsonov também estava preso
na armadilha, em outra parte da floresta. Cavalgando pelo bosque que ladeava a ferrovia, ele e seus
companheiros chegaram a Willenburg, a apenas onze quilômetros da fronteira russa, mas os
alemães tinham chegado antes deles. O General e seu grupo permaneceram na floresta até cair a
noite e então, sendo impossível prosseguir a cavalo na escuridão, naquele terreno alagadiço,
continuaram a pé. Os fósforos acabaram-se/e eles não puderam mais consultar suas bússolas.
Andando de mãos dadas para não se perderem no escuro, continuaram seu caminho aos tropeços.
Samsonov, que sofria de asma, enfraquecia visivelmente. Não cessava de repetir a Potovsky, seu
Chefe destó/f.

-O Czar confiou em mim; como poderei encará-lo depois deste desastre?

Depois de percorrerem quase dez quilômetros, pararam para descansar. Era 1:00. Samsonov
afastou-se para a escuridão mais densa, sob os pinheiros. Um tiro rompeu o silêncio da noite e
Potovsky entendeu de imediato o que ele significava. Mais cedo, Samsonov confidenciara-lhe a sua
intenção de cometer suicídio, mas Potovsky achou que conseguira convencê-lo a desistir. Agora
tinha certeza de que o General estava morto. Os oficiais tentaram em vão encontrar o corpo na
escuridão. Decidiram esperar amanhecer, mas quando o céu
começou a clarear eles ouviram a aproximação de soldados alemães. Os russos foram forçados a
desistir de sua tarefa e prosseguir em direção à fronteira, onde encontraram uma patrulha de
Cossacos e finalmente conseguiram chegar à segurança. O corpo de Samsonov foi encontrado pelos
alemães, que o enterraram em Willemburg; em
1916, corn a ajuda da Cruz Vermelha, sua viúva conseguiu recuperá-lo e levá-lo para ser enterrado
na Rússia.

O silêncio caiu sobre o Segundo Exército. No quartel-general de Jilinsky não havia contato pelo
rádio; nada se ouvia de Samsonov havia dois dias. Agora, tarde demais, Jilinsky ordenou que a
cavalaria de Rennenkampf irrompesse através das linhas alemãs em Allenstein para descobrir o que
acontecera corn o Segundo Exército. Essa ordem não chegaria a ser cumprida, pois o Oitavo
Exército alemão, tendo destruído um braço da pinça que deveria tê-lo esmagado, já fazia a volta
para destruir o outro braço.

Era quase corn perplexidade que os alemães constatavam a extensão da sua vitória. O número de
inimigos mortos ou aprisionados e de armas capturadas era imenso. Contavam-se 92.000
prisioneiros, e segundo alguns esse número era ainda maior; foram necessários
63 trens para levá-los para a retaguarda durante a semana seguinte à batalha. Os canhões capturados
contavam-se entre 300 e 500, do total de cerca de 600 do Segundo Exército. Os cavalos capturados
eram levados para currais construídos às pressas para prendê-los. Embora não exista um número
consagrado de mortos e desaparecidos, o cálculo era de mais de 30.000. O XV e o XIII Corpos
desapareceram, seus homens capturados ou mortos; apenas 50 oficiais e 2.100 soldados escaparam.
Os sobreviventes dos dois corpos de flanco - o VI e o I, que recuaram primeiro - perfaziam cerca de
uma divisão cada um, e do XXIII Corpo restou apenas uma brigada.

Também os vitoriosos sofreram pesadas perdas; depois do cansaço e da tensão de uma batalha de
seis dias, seus nervos estavam em frangalhos. Quando Neidenburg - que por quatro vezes mudou de
mãos - foi reconquistada pelos alemães em 31 de agosto, um nervoso policial militar deu ordem cjíe
alto a um carro que passava em grande velocidade pela praça principal. Quando o carro, que levava
o General Von Morgen, ignorou a ordem, ele gritou: ”Parem! Russos!” e atirou. Imediatamente uma
rajada de tiros cobriu o carro, matando o motorista e ferindo um oficial sentado ao lado do General.
Na mesma noite, depois de escapar de ser morto por seus próprios homens, Von Morgan foi
despertado por seu ajudante, que, gritando ”Os russos
354 voltaram!”, saiu correndo, corn as roupas do General nas mãos. Para
i seu

l geu ”extremo constrangimento”, Von Morgen foi obrigado a sair para a rua envergando a
cartucheira sobre a roupa de baixo.

À exceção de uns poucos oficiais, aquela tinha sido para todos Ia primeira experiência sob o fogo;
de todas as fantasias nascidas do I medo, da exaustão, do pânico e da violência de uma grande
batalha, í nasceu uma lenda: milhões de russos, afogando-se nos pântanos ou | mergulhados até o
pescoço na lama e na areia movediça, a quem os ! alemães eram obrigados a destruir corn
metralhadoras. Descrevendo a i cena para uma impressionada platéia de amigos, um oficial
concluiu: j Ouvirei aqueles gritos até o dia da minha morte.

Ludendorff escreveu: ”A notícia amplamente divulgada de russos empurrados para os pântanos e


afogando-se neles é um mito; não ! ha via pântano algum perto dali.”

i A medida que ficava clara a extensão da derrota do inimigo, os comandantes alemães passaram a
considerar que tinham obtido, como Hoffmann escreveu em seu diário, ”uma das grandes vitórias
da História”. Por sugestão de Hoffmann-segundo ele próprio-ou de Ludendorff, segundo este
último, decidiu-se dar ao episódio o nome de ”Batalha de Tannenberg”, numa compensação tardia
pela antiga derrota sofrida ali pelos Cavaleiros Teutões72 nas mãos dos poloneses e dos lituanos.
Apesar desse segundo triunfo, ainda maior do que Liège, Ludendorff não conseguia alegrar-se,
”porque tinham sido grandes demais as tensões impostas a meus nervos pela incerteza quanto ao
Exército de Rennenkampf”. No entanto, ele agora conseguia voltar-se contra Rennenkampf corn
mais confiança, por causa do acréscimo de dois novos corpos que Von Moltke estava mandando da
frente oriental.

Ludendorff devia muito do seu triunfo a outras pessoas: a Hoffmann, que, embora correto pelas
razões erradas, mantendo-se firme em sua convicção de que Rennenkampf não daria perseguição,
tinha concebido o plano e redigido as ordens para trazer o Oitavo Exército para enfrentar
Samsonov; a Von François, que, desafiando as ordens de Ludendorff, possibilitou o cerco da ala
esquerda de Samsonov; até mesmo a Hindenburg, que num momento crítico acalmou os nervos de
Ludendorff; finalmente, e acima de tudo, a um tator que nunca figurou no cuidadoso planejamento
alemão-o rádio a Rússia. Ludendorff veio a depender das mensagens que sua equipe

na Terra S ”7 TeU>Ões:. °rdem militar e religiosa alemã criada originalmente em 1191 para servir P” a Alerwn^^d”^’ particiP°u
atívamente na conquista de terras bálticas e eslavas

355
interceptava regularmente durante o dia, decodificava ou traduzia e lhe mandava todas as noites às
23:00. Se por acaso elas se atrasavam, ele se preocupava e ia pessoalmente à sala do corpo de
sinalização para saber o que estava ocorrendo. Hoffmann reconhecia nas mensagens interceptadas o
grande vencedor de Tannenberg, e declarou:

- Tínhamos um aliado: o inimigo. Conhecíamos todos os planos do inimigo.

Para o público, o salvador da Prússia Oriental foi o seu suposto comandante, Hindenburg. A vitória
transformou num titã o idoso general arrancado da aposentadoria em seu velho uniforme azul. O
triunfo na Prússia Oriental, saudado e elogiado até mesmo além de suas verdadeiras proporções,
firmou na Alemanha o mito de Hindenburg. Nem mesmo a arguta malícia de Hoffmann conseguiu
feri-lo. No decorrer da guerra, quando Hoffmann, como Chefe dostaff da frente oriental, levava
visitantes ao campo de Tannenberg, dizialhes:

- Foi aqui que o Marechal-de-Campo dormiu antes da batalha; aqui ele dormiu depois da batalha;
aqui ele dormiu durante a batalha.

Na Rússia, o desastre não penetrou de imediato na consciência pública, pois a princípio ele foi
obscurecido pela grande vitória sobre os austríacos obtida na mesma ocasião na frente da Galícia73.
Essa vitória, que pelos números era ainda maior do que a dos alemães em Tannenberg, teve efeito
semelhante no inimigo: numa série de cornbates de 26 de agosto a 10 de setembro culminando na
Batalha de Lemberg, os russos infligiram 250.000 baixas, fizeram 100.000 prisioneiros e forçaram
os austríacos a uma retirada que durou 18 dias e cobriu 240 quilômetros, conseguindo mutilar de
maneira irrecuperável o Exército austro-húngaro, atingindo especialmente os oficiais de carreira.

A derrota aleijou a Áustria, mas não teve o poder de recuperar as perdas ou curar os efeitos da
derrota em Tannenberg: o Segundo Exército russo deixara de existir, o General Samsonov estava
morto e, de seus cinco comandantes de Corpos, dois foram capturados e três afastados por
incompetência. No episódio seguinte - a Batalha dos Lagos da Masúria -, o General Rennemkampf
foi expulso da Prússia Oriental, ”perdeu a cabeça” - nesse caso, a fórmula costumeira foi aplicada
por Jilinsky -, abandonou seu exército e atravessou a fron-

73 Galicia: não se trata aqui da antiga província espanhola mas sim da antiga província no sul yjf da
Polônia, agora dividida entre outras nações. (N. da T.)
teira de volta num carro, completando a ruína da sua reputação e trazendo a demissão desonrosa
para si e para Jilinsky. Num telegrama ao Grão-Duque, Jilinsky acusou Rennenkampf de ter partido
em pânico; isso enfureceu o Grão-Duque, que achava que a falha principal tinha sido de Jilinsky.
Assim, ele informou o Czar que tinha sido Tilinsky quem ”perdeu a cabeça e está incapacitado para
controlar as operações”; o resultado foi que outro ator na Batalha de Tannenberg tornou-se vítima.

A falta de treinamento e de material, a incompetência dos generais a ineficiência da organização,


tudo isso foi posto a nu pela derrota. O Ministro da Guerra subseqüente, General Guchkov, declarou
que depois da Batalha de Tannenberg ele ”chegara à firme convicção de que a guerra estava
perdida”.

A derrota deu novo vigor aos grupos pró-germânicos, que passaram a manifestar-se abertamente
pedindo que o país saísse da guerra. O Conde Witte estava convencido de que a guerra arruinaria j a
Rússia; Rasputin, que ela derrubaria o regime. Os Ministros da -J Justiça e do Interior redigiram um
Memorando ao Czar pedindo a paz corn a Alemanha o mais depressa possível, considerando fatal
continuar a aliança corn as democracias. Houve essa oportunidade: as propostas alemãs para uma
paz em separado corn a Rússia começaram logo depois do Marne e continuaram durante 1915 e
1916. Fosse por lealdade aos Aliados e ao Pacto de Londres, ou por medo de fazer acordos corn os
alemães, ou por insensibilidade à maré crescente da Revolução, ou por simples paralisia das
autoridades, a Rússia nunca as aceitou. Seu esforço de guerra prosseguiu, em meio ao caos
crescente, corn a munição diminuindo.

Na ocasião do desastre, o General Marquês de Laguiche, Adido Militar francês, veio trazer suas
condolências ao Comandante-emChefe russo.

- Ficamos felizes por termos feito tais sacrifícios por nossos Aliados - respondeu galantemente o
Grão-Duque.

Seu código era a impassibilidade diante da catástrofe; os russos, cônscios de seu suprimento quase
inexaurível de homens, estão acostumados a aceitar as grandes fatalidades corn relativa calma.

O rolo compressor russo, no qual os Aliados depositavam tanta esperança e que, depois da
derrocada na frente ocidental, era aguardado ainda corn mais ansiedade, desmantelara-se no
caminho, como se tivesse sido montado corn alfinetes. Em sua partida prematura e seu fim também
prematuro, ele tinha sido um sacrifício em favor de 357
um aliado, exatamente como definira o Grão-Duque. Não importava o custo para os russos; esse
sacrifício provocou aquilo que os franceses tanto desejavam e tanta pressão tinham exercido para
obter: a retirada da força alemã da frente ocidental. Os dois corpos que chegaram tarde demais em
Tannenberg estariam ausentes no Marne.

•^

”” i* «

358
17 -H«HHi

As Chamas de Louvain

Em 1915, Emile Verhaeren, o maior poeta vivo da Bélgica, publicou no exílio um livro sobre a
invasão do seu país. Até 1914, sua vida tinha sido inteiramente dedicada a ideais socialistas e
humanistas, que não reconheciam fronteiras nacionais. O prefácio dessa obra declarava:

”Aquele que escreve este livro, no qual o ódio não se esconde, era antigamente um pacifista. (...)
Para ele, nenhuma decepção foi tão grande ou mais repentina; golpeou-o corn tal violência que ele
não se julga mais o mesmo homem. No entanto, como lhe parece que nesse estado de ódio a sua
consciência se torna menor, ele dedica estas págírtas, corn emoção, ao homem que costumava ser.”

De tudo que já foi escrito sobre o assunto, este texto de Verhaeren é o mais pungente testemunho do
que a guerra e a invasão fizeram às mentes de sua época. Quando terminou a Batalha das Fronteiras,
a guerra já durava 24 dias, e durante esse tempo despertara paixões, atitudes, idéias e debates, tanto
entre os beligerantes quanto entre os neutros, que determinariam seu futuro e o futuro da História a
partir de então. Como o fantasma do antigo Verhaeren, o mundo que costumava existir e as idéias
que o conformavam também desapareceram pelos caminhos daquele mês de agosto e dos meses que
se seguiram. A fraternidade dos socialistas, as interligações da economia e do comércio e outros
fatores econômicos - coisas que julgava-se que tornariam a guerra impossível - deixaram de vigorar
quando chegou a hora; como urna louca rajada de vento, o nacionalismo surgiu e varreu-as para
longe.

As pessoas entravam na guerra corn idéias e sentimentos variados. Entre os beligerantes, alguns - os
pacifistas e os socialistas Opunham-se de todo coração à guerra; outros, como Rupert Brooke, a
desejavam. ”Agora podemos agradecer a Deus por ter nos concedido a Sua hora”, Brooke escreveu,
sem qualquer consciência de estar blasfemando, em seu poema ”1914”. Para ele, era uma época

359
De dar as costas, como nadadores para a limpidez saltando,

A um mundo envelhecido, frio e exaurido...

A honra retorna...

A Nobreza outra vez caminha em nossa estrada

E nós enfim tomamos posse da nossa herança.

Os alemães experimentavam emoções parecidas. Thomas Mann escreveu que a guerra seria ”uma
purificação, uma liberação, uma esperança enorme. A vitória da Alemanha será a vitória da alma
sobre os números”. E explicou: ”A alma alemã opõe-se ao ideal pacifista da civilização, pois não é
a paz um elemento da corrupção civil?” Esse conceito, imagem perfeita da teoria básica do
militarismo alemão segundo a qual a guerra enobrece, não estava muito distanciado dos arroubos de
Rupert Brooke e na época era amplamente partilhado por pessoas respeitáveis, entre elas Theodore
Roosevelt. Em 1914 não houvera guerra no continente europeu por mais de uma geração, à exceção
das guerras periféricas nos Bálcãs, e na opinião de um observador a atitude de boas-vindas à guerra
devia algo ao ”tédio inconsciente da paz”.

Enquanto Brooke exaltava a limpidez e a nobreza, Mann via um objetivo mais positivo. Segundo
ele, os alemães, sendo o povo mais educado, disciplinado e pacífico de todos, merecia ser o mais
poderoso, dominar, estabelecer uma ”paz alemã” como resultado ”daquilo que está sendo chamado,
corn toda razão, de guerra alemã”. Embora escrevesse em 1917, Mann refletia 1914, o ano que seria
o 1789 alemão
- o estabelecimento da idéia alemã na História, a entronização da Kultur, o cumprimento da missão
histórica alemã. Em agosto, um cientista alemão disse ao jornalista americano Irwin Cobb, quando
estavam ambos sentados num café em Aachen:

- Nós, alemães, somos a raça mais trabalhadora, mais honesta e mais educada da Europa. A Rússia
representa a reação, a Inglaterra representa o egoísmo e a perfídia, a França, a decadência; a
Alemanha representa o progresso. A Kultur alemã iluminará o mundo, e depois desta guerra jamais
haverá outra.

Um homem de negócios alemão que estava corn eles tinha objetivos mais específicos: a Rússia
seria tão humilhada que nunca mais o perigo eslavo ameaçaria a Europa; a Grã-Bretanha seria
cornpletamente esmagada e perderia sua Marinha, a índia e o Egito; a França teria que pagar uma
indenização da qual jamais se recobraria; a Bélgica seria obrigada a entregar seu litoral, porque a
Alemanha
3^0 precisava de portos no Canal da Mancha; o Japão seria castigado no
devido momento. Uma aliança de ”todas as raças teutônicas e escandinavas da Europa, inclusive a
Bulgária, ganhará o domínio absoluto, do Mar do Norte ao Mar Negro. A Europa terá um novo
mapa e a Alemanha estará no centro dele.”

Anos desse tipo de conversa antes da guerra não aumentaram o prestígio da Alemanha.
Bethmann-Hollweg admitiu que, proclamando corn freqüência o direito da Alemanha à liderança
mundial, ”Nós muitas vezes enervamos o mundo”. Segundo ele, aquilo que o mundo interpretava
como sede de poder era na realidade ”um entusiasmo infantil e desequilibrado”.

Por um motivo qualquer, o mundo não via as coisas assim. Havia no torn alemão uma estridência
que traía mais ameaça do que entusiasmo. O mundo tornou-se ”amargo e enfastiado” corn o ruído
da espada que os alemães vinham brandindo, escreveu o Sr. George Bernard Shaw em 1914.
”Fomos perturbados de maneira insuportável pelo Militarismo prussiano e seu desprezo a nós, à
felicidade humana e ao bom-senso; e nós apenas agimos motivados por esse desprezo.”

Algumas das pessoas que se sentiam motivadas tinham uma visão clara da questão, que satisfazia
pelo menos a eles próprios; outras, apenas uma vaga noção das causas e conseqüências; outras
ainda, não tinham noção alguma. O Sr. H. G. Wells pertencia à primeira categoria; em 4 de agosto
ele anunciou na imprensa que o inimigo era o imperialismo e o militarismo da Alemanha, ”a
monstruosa vaidade nascida em 1870”. A vitória da Alemanha, do ”kiplingismo teutônico de
sangue e ferro, agitando bandeiras”, significaria ”a entronização permanente do deus da guerra
sobre todos os assuntos humanos”. A derrota da Alemanha ”poderá” - note-se que o Sr. Wells não
disse ”irá” - ”abrir caminho para o desarmamento e a paz no mundo inteiro”. ]

Um reservista inglês viajando de trem a caminho da mobilização j mostrou visão menos clara
ao explicar a outro passageiro:

- Estou indo lutar contra aqueles malditos belgas, é isso aí.

O Major Sir torn Bridges, comandante do esquadrão de cavalaria que matou os primeiros alemães
na estrada de Soignies, pertencia à terceira categoria, feliz apenas em lutar, sem qualquer objetivo.
Ele revelou:

Não havia ódio à Alemanha. Estávamos prontos a lutar corn qualquer um (...) e teríamos combatido
os franceses corn o mesmo entusiasmo. Nosso lema era: ”Sim, nós faremos. O quê?”

Tendo anti8as contas a acertar, os franceses não precisavam p car-se; os alemães às suas portas já
era suficiente. Ali também m
sentia-se ”enorme esperança”. Bergson acreditava que, embora a vitória final dos Aliados fosse
exigir ”sacrifícios terríveis”, deles viria, juntamente corn ”o rejuvenescimento e a expansão da
França, a regeneração moral da Europa. Então, corn o advento da verdadeira paz, a França e a
humanidade poderão reiniciar sua marcha para a frente, só para a frente, para a verdade e a justiça”.

Essa não era a atitude pública dos estadistas, nem a atitude grupai das massas, mas a atitude
particular dos indivíduos. Nenhuma delas era ainda tão rígida quanto se tornaria depois; o ódio
nacional à Alemanha ainda não amadurecera. Entre as primeiras e mais memoráveis charges da
guerra que apareceram no Punch, uma delas foi publicada no dia 12 de agosto e se intitulava ”Sem
Passagem!”. Ela mostrava a pequena e corajosa Bélgica como um garotinho de sapatos de madeira e
fisionomia séria barrando a passagem da Alemanha invasora, representada por um maestro de banda
de música, velho e gordo, corn uma réstia de lingüiças saindo do bolso - um inimigo ridículo, e não
mau. Nos primeiros dias, outro preferido dos chargistas era o Príncipe-Herdeiro, que eles adoravam
retratar como um janota exagerado, de cintura fina, colarinho alto e apertado, boné de lado e uma
expressão fútil.

Essa imagem, porém, não perdurou. A guerra tornou-se séria demais e ela foi substituída pelo
alemão mais conhecido, o Supremo Senhor da Guerra, cujo nome assinava todas as ordens do OHL
de modo que ele parecia ser o autor de todos os atos alemães - o Kaiser. Não mais o governante
irreverente e implicante de antes da guerra, ele agora era mostrado como um tirano sombrio e
satânico, respirando crueldade e malignidade, expressando brutalidade em todos os seus traços. A
mudança começou em agosto e progrediu, da fria declaração de Bridges - ”Não existe ódio à
Alemanha” - à de Stephen McKenna, que em 1921 escreveu: ”Entre aqueles que se lembram, o
nome de um alemão cheira mal e a presença de um alemão é um ultraje.” McKenna não era um
pseudo-herói superpatriota mas sim um professor tranqüilo e pensativo cujas memórias são um
documento social da sua época; ele registrou uma mudança de sentimentos que viria impedir
qualquer acordo negociado e manteria a luta acesa até a vitória total. O que provocou a mudança foi
o que aconteceu à Bélgica.

O rumo dos acontecimentos na Bélgica foi um produto da teoria alemã do terror. Clausewitz
indicou o terror como o método apropriado para encurtar a guerra, pois toda a sua teoria bélica
baseava-se na
necessidade de fazê-la curta, eficiente e decisiva. Ele declarou que a D0pulação civil não devia ser
excluída dos efeitos da guerra, mas sim ser obrigada a sentir sua pressão e, através das medidas
mais severas, ser forçada a compelir seus líderes a fazer a paz: e argumentou que, como o objetivo
da guerra era desarmar o inimigo, ”Devemos colocá-lo numa situação na qual continuar a guerra
será pior do que render-se.”

Essa proposição aparentemente sensata combinava corn a teoria científica da guerra que ao longo
do século XIX o Estado-maior alemão fizera sua tentativa mais intelectual de elaborar. A teoria em
questão já tinha sido colocada em prática em 1870, depois de Sedan, quando surgiu a resistência
francesa. A ferocidade das represálias alemãs naquela época aos atos de guerrilha dos franc-tireurs,
sob a forma de execuções de prisioneiros e civis, espantou um mundo boquiaberto de admiração
pela maravilhosa vitória prussiana alcançada em seis semanas. De repente o mundo tomou
consciência do monstro sob a pele alemã. Embora 1870 provasse o corolário da teoria e prática do
terror - que ele aumenta o antagonismo, estimula a resistência e termina por alongar a guerra -, os
alemães continuaram fiéis a ela. Como disse Shaw, tratava-se de um povo que desprezava o
bom-senso.

No dia 23 de agosto, cartazes assinados pelo General Von Büllow foram afixados em Liège
anunciando que, tendo o povo de Andenne - uma cidadezinha junto ao Meuse perto de Namur
atacado os soldados alemães do modo mais ”traiçoeiro”, ”corn a minha permissão o General
comandando esses soldados incendiou a cidade e mandou matar 110 pessoas”. O povo de Liège
estava sendo informado para que soubessem que destino esperar se se comportassem do mesmo
modo que seus vizinhos.

O incêndio de Andenne e o massacre - que estatísticas belgas calculam ter sido de 211 pessoas -
teve-lugar em 20 e 21 de agosto, durante a Batalha de Charleroi. Tentando respeitar seus
cronogramas, pressionados pelos belgas que explodiam pontes e ferrovias, os comandantes de Von
Büllow executavam represálias sem misericórdia nas aldeias invadidas. Ern Seilles, do outro lado
do rio, 50 civis foram mortos e as casas entregues ao saque e ao incêndio. Em Tamines, capturada
em 21 de agosto, a pilhagem da cidade começou naquela noite depois da batalha, continuou pela
noite toda e pelo dia seguinte. A costumeira orgia de saques permitidos, acompanhados pela bebida,
liberou inibições e levou os soldados ao desejado estado de crua excitação que visava aumentar o
efeito aterrorizante. No segundo dia 3é3
em Tamines, cerca de 400 cidadãos foram reunidos sob guarda defronte à igreja na praça principal e
um pelotão de fuzilamento começou a atirar sistematicamente contra o grupo. Aqueles que não
estavam mortos quando o tiroteio cessou foram exterminados a golpes de baioneta. No cemitério de
Tamines existem 384 lápides corn a inscrição: ”1914: Fusülépar lês Allemands”.

Quando o Exército de Büllow tomou Namur, uma cidade de


32.000 habitantes, foram afixados cartazes anunciando a tomada de dez reféns em cada rua, que
seriam mortos se algum civil disparasse contra um alemão. A tomada e a execução de reféns eram
praticadas tão sistematicamente quanto a requisição de alimentos. Quanto mais os alemães
avançavam, mais reféns eram tomados. A princípio, quando o exército de Von Kluck entrava numa
cidade, imediatamente colocavam-se cartazes advertindo a população de que o burgomestre, o
principal magistrado e o senador do distrito estavam presos como reféns, corn a costumeira
advertência quanto ao destino deles. Logo três pessoas importantes já não eram suficientes; um
homem de cada rua, mesmo dez de cada rua não eram suficientes. Walter Bloem, um romancista
mobilizado como oficial de reserva no exército de Von Kluck e cuja narrativa do avanço sobre Paris
tem valor incalculável, conta que nas aldeias onde sua companhia ficava cada noite ”O Major Von
Kleist ordenava que em cada casa um homem ou, se não houvesse um homem, uma mulher, fosse
aprisionado como refém”. Através de alguma estranha falha no sistema, quanto maior o terror, mais
terror parecia fazer-se necessário.

Quando se informava algum atentado numa cidade, os reféns eram executados. Irwin Cobb,
acompanhando o Exército de Von Kluck, assistiu de uma janela dois civis obrigados a marchar
entre duas filas de soldados alemães corn as baionetas fixas. Foram levados para trás da estação
ferroviária; houve o som de tiros e duas maças foram carregadas de lá, contendo figuras imóveis
cobertas por lençóis, corn apenas as pontas rígidas das botas aparecendo. Cobb viu o espetáculo
repetir-se mais duas vezes.

Vise, cenário do primeiro combate no caminho para Liège no primeiro dia da invasão, não foi
destruída por soldados recém-saídos do calor da batalha, mas por tropas de ocupação muito depois
que o combate se distanciara. Em reação a um atentado, um regimento alemão foi enviado de Liège
a Vise no dia 23 de agosto; naquela noite, o som dos tiros foi ouvido em Eysden, logo depois da
fronteira da Holanda, a mais de oito quilômetros de distância. No dia seguinte,
36i Eysden foi invadida por uma enchente de 4.000 refugiados - toda a
população de Vise, corn exceção dos que tinham sido executados e por 700 homens e meninos que
seriam deportados para a Alemanha para trabalharem na colheita. As deportações, que teriam
tamanho efeito moral, especialmente nos Estados Unidos, começaram em agosto Mais tarde,
quando Brand Whitlock, o diplomata americano, visitou o que restava de Vise, viu apenas casas
vazias e enegrecidas, abertas para o céu, ”uma paisagem de ruínas que parecia Pompéia”74. Todos
os habitantes haviam partido. Não havia um único ser vivo, um único telhado de pé.

Em Dinant, no Meuse, no dia 23 de agosto os saxões do Exército do General Von Hausen estavam
combatendo os franceses num último embate da Batalha de Charleroi. Von Hausen testemunhou
pessoalmente a ”pérfida” atividade, ”tão contrária à lei internacional”, de civis belgas atrapalhando
a reconstrução de pontes. Seus soldados começaram a reunir ”várias centenas” de reféns-homens,
mulheres e crianças. Como era domingo, 50 reféns foram tomados na igreja. O General viu-os
”reunidos num grupo compacto - de pé, sentados, deitados - sob a guarda dos Granadeiros, os rostos
mostrando medo, uma angústia sem nome, raiva concentrada e desejo de vingança, sentimentos
provocados pelas calamidades que sofreram.” Von Hausen sentiu que deles emanava uma
”hostilidade irreprimível”.

Era ele o general que ficara tão infeliz na casa do cavalheiro belga que mantinha os punhos cerrados
dentro do bolso e durante o jantar recusara-se a conversar corn o oficial alemão. No grupo em
Dinant ele viu um soldado francês ferido, o sangue escorrendo da cabeça, agonizando, mudo e
apático, recusando qualquer auxílio médico. Von Hausen, sensível demais para descrever o destino
dos cidadãos de Dinant, termina aqui sua descrição. Os reféns foram mantidos na praça até a noite,
depois enfileirados, as- mulheres de um lado e os homens de outro, todos ajoelhados. Dois pelotões
de fuzilamento marcharam para o centro da praça; cada um voltou-se para uma das filas e pôs-se a
disparar até que não restasse mais refém algum de pé. Ao todo, 612 corpos foram identificados e
enterrados, inclusive o de Felix Fivet, de três semanas de idade.

Os saxões foram então liberados para uma orgia de pilhagens e incêndios. A cidadela medieval,
empoleirada como um ninho de

74 Pompéia: próspera cidade do Império Romano inteiramente destruída pela erupção do vulcão Vesuvio em 79 D.C.e escavada
recentemente. (N. da T.) m
águia nas alturas da margem direita sobre a cidade que ela antes protegia, via agora uma repetição
das chacinas da Idade Média. Os saxões deixaram Dinant queimada, arruinada, vazia e destruída.
”Profundamente comovido” por esse quadro de desolação criado por seus soldados, o General Von
Hausen abandonou as ruínas de Dinant corn a firme convicção de que a responsabilidade era do
Governo belga, ”que aprovava essa pérfida luta de rua, contrária à lei internacional”.

Os alemães tinham uma preocupação obsessiva corn as violações à lei internacional. Eles
conseguiam deixar de enxergar a violação constituída por sua presença na Bélgica para verem
apenas a violação cometida, segundo seu ponto de vista, pelos belgas que combatiam a sua
presença. O Abade Wetterlé, delegado da Alsácia junto ao Reichstag, certa vez confessou, corn um
suspiro de impaciência:

- Para um intelecto formado na escola latina, é difícil cornpreender a mentalidade alemã.

A obsessão alemã tinha duas partes: a resistência belga era ilegal e era organizada ”do alto”, pelo
Governo belga ou pelos burgomestres, padres e outras pessoas que podiam ser classificadas como
”do alto”. Juntas, as duas partes estabeleciam o corolário: as represálias alemãs eram justas e legais,
não importando o grau. A execução de um único refém ou o massacre de 612 pessoas e a destruição
de uma cidade eram coisas a serem atribuídas ao Governo belga - esse era o refrão de todos os
alemães, de Von Hausen depois de Dinant ao Kaiser depois de Louvain. Von Hausen não cessava
de afirmar que a responsabilidade devia ”recair sobre aqueles que incitaram a população a atacar os
alemães”. Ele insistia: não pode haver qualquer dúvida de que toda a população de Dinant e de
outras regiões era ”movida por ordem de quem? - pelo único desejo de deter o avanço dos alemães”.
Era-lhe inconcebível que o povo pudesse ser movido a deter o invasor sem uma ordem ”do alto”.

Os alemães viam essas ordens em toda parte. Von Kluck afirmava que os cartazes do Governo
belga advertindo os cidadãos contra atos hostis na realidade ”indtavam a população civil a disparar
contra o inimigo”. Ludendorff acusou o Governo belga de ter ”organizado sistematicamente a
guerrilha civil”. O Príncipe-Herdeiro aplicava a mesma teoria à resistência civil francesa. Ele
queixava-se de que a população ”fanática” da região de Longwy ”atira em nós traiçoeira e
perfidamente” escondida atrás de portas e janelas, corn espingardas de caça que tinham sido
”mandadas de Paris corn esse propósito”. Se
35g as viagens reais tivessem proporcionado um conhecimento mais
profundo do interior da França, onde uma espingarda de caça para matar lebres aos domingos era
um equipamento tão normal quanto um par de calças, o Príncipe-Herdeiro teria sabido que não era
necessário mandar buscar espingardas em Paris para armar osfranc-tireurs.

Os relatos alemães de sua experiência em território inimigo mostram-se histéricos em relação à


guerrilha. Ludendorff chamou-a de ”nojenta”. Ele, cujo nome logo tornar-se-ia sinônimo de
mentiras, violência e ardilosidade, afirmava que tinha ido para a guerra ”corn concepções
cavalheirescas e humanas”, mas os métodos dos francoatiradores ”provocaram em mim uma
amarga desilusão”. O Capitão Bloem era perseguido pela ”idéia monstruosa” de que pudesse ser
atingido ou morto por uma bala disparada por um civil, embora até duas semanas antes ele próprio
tivesse sido um civil. Afirma ele que, durante uma marcha exaustiva de 45 quilômetros num único
dia, nenhum soldado saiu da formação, porque ”a idéia de cair nas mãos dos valões era pior do que
os pés feridos - a outra grande agonia da marcha sobre Paris”.

O medo e o horror ao franc-tireur nascia do sentimento alemão de que a resistência civil era
essencialmente desorganizada. Goethe diz que, se um alemão tivesse que escolher entre a injustiça e
a desordem, ele escolheria a injustiça. Criado num país onde a relação do súdito corn o soberano
não tem outra base senão a obediência, ele é incapaz de entender um estado organizado sobre
qualquer outra base, e sente-se dominado por uma grande inquietação quando depara corn um.
Confortável apenas na presença da autoridade, ele considera o atirador civil algo particularmente
sinistro. Para a mente ocidental, o franc-tireur é um herói; para o alemão ele é um herege que
ameaça a existência do estado. Em Soissons existe um monumento de bronze e mármore dedicado
aos três professores que fomentaram uma revolta de estudantes e civis contra os prussianos em
1870. Contemplando-o, perplexo, um oficial alemão disse a um repórter americano em 1914:

Você está vendo como são os franceses: fazem um monumento para glorificar franco-atiradores! Na
Alemanha as pessoas não teriam permissão para fazer uma coisa dessas. Nem se concebe que
alguém quisesse fazer isso.

Como registrou o Capitão Bloem, os jornais alemães, para colocar o soldado alemão dentro do
estado de espírito apropriado, desde a primeira semana vinham cheios de histórias das ”revoltantes
crueldades dos belgas (...) padres armados à frente de bandos de civis

CIVIS 3É7
desordeiros cometendo todo tipo de atrocidades (...) emboscadas traiçoeiras, sentinelas encontradas
corn os olhos vazados e as línguas cortadas”. Em 11 de agosto, ”boatos sinistros” como esses já
tinham chegado a Berlim, como registrou a Princesa Blücher. Um oficial alemão a quem ela pediu
confirmação contou-lhe que em Aachen naquele momento havia 30 oficiais alemães no hospital
corn os olhos arrancados pelas mulheres e crianças belgas.

As emoções provocadas por essas histórias faziam corn que ao primeiro grito de ”Franco-atirador!”
o soldado alemão se lançasse numa orgia de pilhagens, incêndios e assassinatos, sem qualquer
repressão por parte dos oficiais. A Schrecklichkeü visava ser um substituto para as tropas de
ocupação, que o Alto Comando não tinha condições de destacar da marcha sobre Paris.

No dia 25 de agosto teve início o incêndio de Louvain. A cidade medieval na estrada entre Liège e
Bruxelas era famosa por sua Universidade e sua Biblioteca incomparável, fundada em 1426, quando
Berlim era apenas um punhado de choças de madeira. Localizada na sede da Corporação dos
Tecelões, uma construção do século XIV, a Biblioteca incluía, entre seus 230.000 volumes, uma
preciosa coleção de 650 manuscritos medievais e mais de mil incunábulos. A fachada da Prefeitura,
considerada ”uma jóia da arte gótica”, era uma tapeçaria em pedra, corn cavalheiros, santos e damas
entalhados, exuberante até mesmo para o estilo gótico. Nos altares da igreja de St. Pierre havia
painéis de Dierick Bouts e de outros mestres flamengos. O incêndio e o saque de Louvain,
acompanhados pela inevitável execução de civis, durou seis dias, antes de serem interrompidos tão
abruptamente quanto tinham começado.

Logo que Louvain foi ocupada, tudo correu bem. As lojas fizeram bons negócios; os soldados
alemães comportaram-se de modo exemplar: compravam cartões-postais e lembranças, pagavam
todas as suas compras e entravam nas filas juntamente corn os cidadãos locais para cortar o cabelo
no barbeiro. O segundo dia foi mais tenso. Um soldado alemão levou um tiro na perna, atribuído
aos franco-atiradores. O Burgomestre repetiu corn veemência seu apelo para que os civis
entregassem suas armas. Ele e mais dois funcionários foram presos como reféns. As execuções atrás
da estação ferroviária tornaram-se mais freqüentes. Dia após dia prosseguia a infindável marcha das
colunas de Von Kluck através da cidade.

No dia 25 de agosto o Exército belga em Malines, na borda da


36g praça-forte de Antuérpia, desfechou um ataque súbito sobre a reta-
l
guarda do Exército de Von Kluck, empurrando-a de volta para Louvain em desordem. No tumulto
da retirada, um cavalo sem cavaleiro entrando a galope pelos portões depois do escurecer assustou
outro cavalo, que tentou empinar, enredou-se nos arreios e tombou a carroça. Tiros foram
disparados, provocando gritos de ”Die Franzosen sind da! Die Englander sina da!”.

Mais tarde os alemães alegaram que civis belgas colocados no alto dos telhados tinham disparado
sobre eles, ou tinham disparado para sinalizar ao Exército belga. Os belgas afirmaram que os
soldados alemães tinham atirado uns sobre os outros na escuridão. Durante semanas, meses, até
mesmo anos depois do acontecimento que horrorizou o mundo, tribunais e inquéritos judiciais
investigaram a deflagração, as acusações alemãs sendo desmentidas pela acusações belgas. Nunca
ficou estabelecido quem atirou em quem, e de qualquer maneira isso era irrelevante em relação ao
que se seguiu, pois os alemães não incendiaram Louvain como castigo pelas alegadas infrações
cometidas pelos belgas e sim como uma advertência a todos os seus inimigos - uma demonstração
do poderio alemão diante do mundo inteiro.

O novo Governador de Bruxelas, General Von Luttwitz, disse exatamente isso no dia seguinte.
Durante uma visita oficial dos Ministros da Legação americana e da Legação inglesa, ele lhes disse:

- Uma coisa terrível aconteceu em Louvain: o nosso General foi atingido por um tiro pelo filho do
Burgomestre. A população disparou sobre nossos soldados. - Fez uma pausa, olhou para os
visitantes e concluiu: - Evidentemente, agora temos que destruir a cidade.

O Sr. Whitlock ouviria tantas vezes a história de um general alemão atingido pelo filho (às vezes
pela filha) de um burgomestre que lhe parecia que os belgas tinham produzido uma raça especial de
filhos de burgomestres, como os Assassinos da Síria.

Já se havia espalhado a notícia do incêndio em Louvain. Refugiados em choque, expulsos da


cidade, descreviam aos prantos as ruas incendiadas uma após outra, as pilhagens selvagens e as
prisões e execuções incessantes. No dia 27 de agosto, Richard Harding Davis, astro dos
correspondentes americanos que estavam na Bélgica, viajou ate Louvain num trem de transporte de
tropas. Os alemães o mantiveram trancado dentro do vagão, mas o incêndio chegara então ao
Boulevard Tirlemont, defronte à estação ferroviária, e ele pôde ver ”as colunas retas e regulares das
chamas erguendo-se das filas de casas”. |J|soldados alemães estavam bêbados e descontrolados. Um
deles m
l
enfiou a cabeça pela janela do vagão onde estava confinado outro correspondente, Arno Dosch, e
gritou:

- Três cidades destruídas! Três! Haverá mais!

No dia 28 de agosto, Hugh Gibson, Primeiro-Secretário da Legação Americana, foi a Louvam,


acompanhado de seu colegas da Suécia e do México, para verem corn seus próprios olhos. As casas
de paredes enegrecidas e madeirame fumegante ainda ardiam, as calçadas estavam quentes, havia
cinzas por toda parte. Cadáveres de cavalos e de seres humanos espalhavam-se pelas ruas; um velho
civil de barbas brancas jazia de costas, sob o sol. Muitos dos corpos estavam inchados,
evidentemente mortos havia vários dias. Entre as cinzas viam-se entulhos, móveis, garrafas, roupas
rasgadas, um sapato de madeira.

Soldados alemães do IX Corpo de Reserva, alguns bêbados, alguns nervosos, infelizes e de olhos
injetados, retiravam os moradores das casas restantes, para que, segundo informaram a Gibson, a
destruição da cidade pudesse ser completada. Iam de casa em casa; derrubavam as portas, enchiam
os bolsos de charutos, saqueavam as coisas de valor, depois ateavam fogo. Como as casas eram
feitas de tijolos e pedras, o fogo não se espalhava por si só. Um oficial encarregado de uma rua
observava melancolicamente, fumando um charuto. Ele estava revoltado corn os belgas e repetia
sem cessar:

- Vamos arrasar corn a cidade, não ficará pedra sobre pedra. Kein Stein aufeinander! Nada, estou
lhe dizendo. Vamos ensinar-lhes a respeitar a Alemanha. Durante várias gerações as pessoas virão
aqui ver o que fizemos.

Era a maneira alemã de se tornar memorável.

Em Bruxelas, o Monsenhor de Becker, Reitor da Universidade, cuja fuga foi planejada pelos
americanos, descreveu o incêndio da Biblioteca. Nada sobrara dela; tudo virará cinzas. Quando ele
chegou às palavras ”biblioteca” - Ia bibliothèque -, não conseguiu pronunciá-las. Parou, tentou
novamente, balbuciou as primeiras sílabas ”La bi...” - e, incapaz de prosseguir, baixou a cabeça e
chorou.

A perda, que provocoii um protesto público do Governo belga e foi oficialmente informada pela
Legação americana, causou tumulto no mundo exterior enquanto o incêndio ainda ardia. Relatos em
primeira-mão dos refugiados, transmitidos por todos os correspondentes, inundaram a imprensa
estrangeira. Além da Universidade e da Biblioteca, ”todos os nobres prédios públicos”, inclusive a
Prefeito tura e a igreja de St. Pierre corn todos os seus quadros, foram dados
como destruídos; só mais tarde constatou-se que, embora danificadas, a Prefeitura e a igreja ainda
estavam de pé. ”ALEMÃES SAQUEIAM LOUVAIN; MULHERES E PADRES EXECUTADOS”,
gritava a manchete do artigo de Davis para o Tribune de Nova York. Sob o subtítulo ”Berlim
Confirma Horror em Louvain” vinha uma declaração de Berlim, enviada pela Embaixada alemã em
Washington, segando a qual, por causa dos ”pérfidos” ataques de civis belgas, ”Louvain foi
castigada corn a destruição da cidade”.

Idêntica à declaração do General Von Luttwitz, ela mostrava que Berlim não desejava que o mundo
compreendesse mal a natureza do ocorrido em Louvain. A destruição de cidades e a guerra
deliberada e reconhecida aos não-combatentes eram conceitos que chocavam o mundo de 1914. Na
Inglaterra, editoriais proclamavam ”A Marcha dos Hunos” e ”A Traição à Civilização”. Segundo o
Daily Chronicle, o incêndio da biblioteca não significava apenas a hostilidade a não-combatentes,
”mas à posteridade até a última geração”. víesmo os jornais holandeses, geralmente tranqüilos e
cautelosamente neutros, foram levados a comentar o episódio. O Courant de Rotterdam afirmou
que, fosse qual fosse a causa do incidente, ”o fato da destruição permanece” - um fato ”tão terrível
que o mundo inteiro deve ter recebido a notícia corn horror”.

A notícia apareceu na imprensa estrangeira em 29 de agosto, e em 30 de agosto foi interrompido o


processo da destruição de Louvain. No mesmo dia, um comunicado oficial do Ministério do
Exterior alemão afirmava que ”toda a responsabilidade por esses acontecimentos recai sobre o
Governo belga”, sem esquecer a costumeira acusação de que ”mulheres e meninas tomaram parte
na luta e cegaram nossos feridos, arrancando-lhes os olhos”.

Em todo o mundo, as pessoas perguntavam: por que os alemães izeram isso? Numa carta pública a
seu ex-amigo Gerhardt Hauptmann, leão da literatura alemã, o escritor francês Romain Rolland
protestava: ”Vocês descendem de Goethe ou de Átila, o Huno?” Em :onversa corn o diplomata
francês, o Rei Albert declarou julgar que a :ausa era o sentimento de inferioridade e o ciúme dos
alemães:

Trata-se de um povo invejoso, desequilibrado e mal-humo•ado. Incendiaram a Biblioteca de


Louvain simplesmente porque ela
2ra única, e admirada universalmente.

Para ele, tratava-se de um gesto de raiva de um bárbaro contra »s coisas civilizadas. Essa
explicação, válida em parte, não levou em •onta o uso deliberado do terror como era prescrito pelo
Kriegsbauch: guerra não pode ser conduzida meramente contra os combatentes 371

,4
num estado inimigo, mas deve tentar destruir todos os recursos materiais e intelectuais (geistig) do
inimigo.”

Para o mundo, o episódio continuou sendo o gesto de um bárbaro. O gesto corn que os alemães
pretendiam assustar o mundo
- induzi-lo à submissão - convenceu, em vez disso, um grande número de pessoas de que ali estava
um inimigo corn o qual não poderia haver acordo.

No que tange a esclarecer as questões, a Bélgica tornou-se para muitos ”a questão suprema” da
guerra. Um historiador de sua época afirmou, olhando para trás: na América, a Bélgica foi o
”catalisador” de opiniões e Louvain foi o clímax da Bélgica. Matthias Erzberger, que logo depois
seria nomeado chefe de propaganda quando essa infeliz necessidade impôs-se à Alemanha,
descobriu que a Bélgica ”colocou quase o mundo inteiro contra a Alemanha”. Como ele próprio
admitiu corn certa tristeza, o argumento de sua contrapropaganda - o comportamento da Alemanha
foi justificado pela necessidade militar e pela autodefesa - era ”insuficiente”.

Não foi de grande valia ao Kaiser tomar a ofensiva dez dias depois de Louvain num telegrama ao
Presidente Wilson afirmando: ”meu coração sangra” pelo sofrimento da Bélgica, ”resultado de atos
criminosos e bárbaros por parte dos belgas”. Ele explicou: a resistência deles tinha sido ”incitada
abertamente” e ”cuidadosamente organizada” pelo Governo belga, compelindo seus generais a
tomarem medidas fortes contra ”a população sedenta de sangue”.

Tampouco foi de grande valia aos 93 professores alemães e outros intelectuais o Manifesto por eles
publicado, dirigido ”Ao Mundo Civilizado”, proclamando os efeitos civilizantes da cultura alemã e
declarando: ”Não é verdade que tenhamos violado criminosamente a neutralidade da Bélgica. (...)
Não é verdade que nossos soldados tenham destruído brutalmente Louvain.” Por mais imponentes
que tenham sido os signatários - Harnanck, Sudermann, Humperdinck, Roetgen, Hauptmann, Liszt
-, as cinzas mudas da Biblioteca falaram mais alto. No final do mês de agosto, os povos das nações
Aliadas estavam convencidos que estavam enfrentando um inimigo que tinha que ser vencido, um
regime que tinha que ser destruído, numa guerr^ que tinha que ser levada até o final. No dia 4 de
setembro, os Governos inglês, francês e russo assinaram o Pacto de Londres, comprometendo-se a
”não aceitar a paz separadamente durante a atual guerra”.

Daí em diante as coisas ficaram mais graves. Quanto mais os Aliados declaravam seu propósito de
derrotar o militarismo alemão
e os Hohenzollerns, mais a Alemanha repetia seu juramento imortal de não abandonar a luta sem a
vitória completa. Em resposta a uma oferta de mediação do Presidente Wilson, Bethmann-Hollweg
disse o Pacto de Londres obrigava a Alemanha a lutar até o limite de suas forças, portanto a
Alemanha não faria proposta alguma como base para uma paz negociada. Os Aliados tomaram a
mesma posição. E assim permaneceriam ambos os lados durante toda a guerra; quanto mais os
beligerantes mergulhavam na guerra e mais vidas e tesouros eram destruídos, mais determinados
eles se tornavam em emergir corn alguma compensação.

A compensação que a Alemanha pretendia obter corn a vitória foi especificada nos primeiros 30
dias de guerra, num Memorando apresentado ao Governo no dia 2 de setembro por
MatthiasErzberger. Líder do Partido Católico Central e relator do Comitê de Negócios Militares, ele
era o braço direito do Chanceler e um dos mais íntimos associados do Reichstag. Um oportunista
arguto e eficiente, que representava qualquer opinião que fosse a dominante, ele combinava energia
e inteligência corn uma flexibilidade política desconhecida na Europa desde Talleyrand. Dizia-se
que ele não tinha ”convicções, e sim apetites”. Do mesmo modo que um dia Erzberger far-se-ia
portador do pedido de armistício alemão e serviria no primeiro Gabinete da República de Weimar,
ele agora redigiu uma lista de objetivos de guerra que daria orgulho ao mais extremado
pangermanista. Bethmann, que confiava nele, jamais deixou de se perguntar de onde Erzberger
tirava todas as suas idéias brilhantes, pois ele nunca mostrou tê-las por si só.

Segundo Erzberger, a Alemanh^ deveria utilizar a vitória para obter o controle do continente
europeu ”para sempre”. Todas as exigências nas conversações de paz deveriam ter por base essa
premissa, para a qual eram necessárias três condições: abolição de estados neutros nas fronteiras da
Alemanha, fim da ”intolerável hegemonia” da Inglaterra nos negócios mundiais e esfacelamento do
colosso russo.

Erzberger imaginava uma Confederação de estados europeus análoga ao sistema posterior de


Mandatos da Liga das Nações75. Alguns estados ficariam sob ”orientação” alemã; outros, como a

7(rh*M”’?ia.t° d” L’8a das Nflfões: uma comissão da Liga das Nações

1S ? ma”datíiri°”> Pa ^ministrar uma região, uma colônia aplica a área ad-miníet-mj» i\i j- T- \ °

-- ...»,.HM[M, iv f yuru uamin aplica a área administrada. (N. da T.)

mesmo te,
Polônia e o grupo do Báltico destacado da Rússia, ficariam sob soberania alemã ”para sempre”,
corn possível representação mas sem poder de voto no Reichstag. Erzberger não tinha certeza da
categoria onde a Bélgica se colocaria, mas em qualquer caso a Alemanha teria o controle militar
sobre todo o país e sobre o litoral francês de Dunquerque para baixo, incluindo Boulogne e Calais.

A Alemanha receberia também a bacia ferrífera de Briey-Longwy e Belfort, na Alsácia Superior,


que ela não conseguira tomar em
1870. Receberia também as colônias francesas e belgas na África. Curiosamente, Marrocos foi
excluída, pelo risco de exigir demais do poder alemão. As colônias inglesas não foram
mencionadas, o que sugere que Erzberger podia estar pensando num acordo negociado corn a
Inglaterra. Como indenização, os países derrotados deveriam pagar pelo menos dez bilhões de
marcos pelas despesas diretas da guerra, além de uma soma suficiente para o fundo dos veteranos,
os prédios públicos, presentes para generais e estadistas e pagamento da dívida nacional alemã,
eximindo assim o povo alemão de pagar impostos durante os anos vindouros.

Esses objetivos de guerra, compilados nos inebriantes dias de conquista naquele mês de agosto e
que a Alemanha adotara como meta, eram tão grandiosos que não poderiam ser reduzidos ao nível
de uma negociação possível. No lado dos Aliados, o objetivo primordial da guerra naquele agosto
foi expresso pelo Ministro do Exterior Sazonov a Paléologue num almoço a sós em São Petersburgo
no dia
20 daquele mês:

- Minha fórmula é simples: temos que destruir o imperialismo alemão.

Os dois concordavam que aquela era uma guerra em prol da existência, e que seus objetivos só
poderiam ser atingidos através de uma vitória completa. Numa afirmação bastante temerária para
um ministro czarista, Sazonov concordou que mudanças políticas abrangentes deveriam ser
efetuadas para que o kaiserismo não ressurgisse das cinzas: a Polônia teria que ser restaurada, a
Bélgica ampliada, a Alsácia-Lorena devolvida à França, Schleswig-Holstein à Dinamarca, Hanover
reconstituída, a Boêmia libertada da Áustria-Hungria e todas as colônias alemãs entregues à França,
à Bélgica e à Inglaterra.

Assim eram os mapas desenhados pelos estadistas profissionais. Entre as pessoas comuns, que não
sabiam distinguir SchleswigHolstein da Boêmia, antes que a guerra completasse 20 dias já havia a
convicção interior de que o mundo estava mergulhado no ”maior fato humano desde a Revolução
Francesa”. Embora se tratasse dç uma
tremenda catástrofe, essa guerra, quando ainda no início, parecia conter aquela ”imensa esperança”,
a esperança de algo melhor depois, a esperança do fim de todas as guerras e de uma chance de
refazer o

mundo.

No romance de Wells, o Sr. Brithng, personagem que, embora fictício, era bastante representativo,
achava que a guerra poderia mostrar-se ”um grande passo adiante para a vida humana. É o fim de
40 anos de maléfico suspense. É crise e solução.” Ele via ”uma oportunidade tremenda. (...)
Podemos refazer o mapa do mundo. O mundo é maleável, para os homens fazerem o que quiserem
corn ele. Este é o final e o início de uma era...”

m

18 Água Azul, o Bloqueio e o Grande Neutro


376

”Correr riscos” era o conceito menos admirado pelo Almirantado britânico em 1914; sua Frota, a
propriedade mais preciosa. Não era uma ”frota de luxo”, como Churchill qualificara mordazmente a
Marinha alemã em 1912: era uma necessidade vital, no sentido literal da palavra. O Império
Britânico não sobreviveria a uma derrota naval ou mesmo à perda da supremacia naval,
conseqüência da perda de seus navios.

A tarefa da Frota britânica era imensa; cabia a ela impedir qualquer invasão às Ilhas Britânicas,
escoltar a FEB em segurança até o Continente, trazer tropas da índia para aumentar o Exército
Regular e substituí-las pelo Exército Territorial e, acima de tudo, salvaguardar o comércio marítimo
em todos os oceanos do mundo.

O Almirantado reconhecia como principal perigo a ”interrupção de nosso comércio e a destruição


de nossa marinha mercante”, e não a invasão, algo que o Comitê de Defesa Imperial declarara
”impraticável”. Dois-terços de todo o alimento na Inglaterra eram importados. Sua vida cotidiana
dependia de um comércio exterior transportado por navios ingleses que representavam 43% do total
mundial da tonelagem mercante e transportavam mais da metade de todo o comércio marítimo do
mundo, tanto quanto todos os outros países juntos. O medo de que os rápidos vapores alemães
fossem usados para destruir os navios mercantes perseguia os ingleses já antes da guerra;
calculava-se que a Alemanha empregaria pelo menos 40 desses navios para suplementar os
cruzadores alemães no ataque ao precioso fluxo de comércio marítimo. As unidades da frota inglesa
tinham que se espalhar para proteger a rota de Suez para a Pérsia, a índia e o Extremo Oriente, a
rota do Cabo em volta da África, a rota do Atlântico Norte para os Estados Unidos e o Canadá, a
rota do Caribe para as índias Ocidentais, as rotas do Atlântico Sul e do Pacífico Sul para a América
do Sul e a Austrália. As encruzilhadas marítimas para onde convergiam as rotas oceânicas
transformaramse em pontos de controle.

No equivalente naval a uma bula papal, Fisher afirmou: ”O princípio da luta naval é permanecer
livre para ir a qualquer lugar corn qualquer maldita coisa que a Marinha possua.” Traduzido em
termos práticos, isso significava que a Marinha deveria ser superior em toda parte ao mesmo tempo,
ou onde quer que houvesse posibilidade de topar corn o inimigo. corn seus inúmeros compromissos
a Marinha britânica fazia o possível para obter superioridade em áeúas domésticas, onde era
necessário evitar a qualquer custo uma batalha de forças iguais.

A expectativa comum era de um grande enfrentamento de navios capitais76 e seus companheiros,


no qual a supremacia marítima poderia ser decidida num único encontro, como a batalha
russo-japonesa de Tsushima. A Inglaterra não podia correr o risco de perder a supremacia numa
batalha assim, mas o mesmo não se aplicava à Marinha alemã, da qual esperava-se que corresse
riscos. A orgulhosa Alemanha de 1914, cujo Kaiser proclamara que ”O futuro da Alemanha está na
água”, cujas Ligas Navais tinham proliferado por todo o país e levantado subscrições populares para
a compra de encouraçados corn slogans como ”Inglaterra, a Inimiga!”, ”Pérfida Albion!”, ”A
Guerra Iminente!”, ”O Perigo Inglês!” e ”O Plano Inglês de Cair sobre Nós em 1911!”, era
conhecida por seu espírito agressivo e sua disposição para lutar em desvantagem, coisas que
poderiam levar a qualquer tipo de aventura desesperada.

O medo das intenções - desconhecidas, porém certamente belicosas - do inimigo, e particularmente


o medo do submarino invisível cujo potencial letal parecia mais assustador a cada ano, provocavam
nos ingleses um estado de nervos altamente sensível. O local tardiamente escolhido para a base de
guerra da Frota ficava quase no ponto mais distante que a Grande Frota poderia alcançar, quase a
última ponta do território britânico, um posto distante nas Ilhas Britânicas, ao norte até mesmo do
ponto mais setentrional do continente: Scapa Flow, um abrigo natural nas Ilhas Orkney.

Aos 59 graus de latitude, defronte à Noruega, Scapa Flow ficava no alto do Mar do Norte, 570
quilômetros ”mais ao norte do que Heligoland, onde a Frota alemã teria que passar se quisesse
aparecer, e 890 quilômetros ao norte da travessia Portsmouth-Havre da FEB. Ficava mais distante
da área de ataque dos alemães do que os alemães estavam dos transportes britânicos, supondo-se
que quisessem atacálos. Era uma posição de onde a Grande Frota poderia proteger suas rotas de
comércio marítimo através do Mar do Norte e bloquear as

avio capital: designação genérica do tipo de navio que executa as tarefas mais importantes guerra naval; em 1914 o navio capital era o
encouraçado. (N. da T.)

377
rotas alemãs, e corn sua presença confinar o inimigo ao porto ou, colocando-se entre ele e a sua
base, combatê-lo se ele se fizesse ao mar. Mas o local não estava pronto para ser ocupado.

Cada aumento no tamanho dos navios requeria docas e portos mais largos, e o programa
Dreadnought sofrerá corn a dupla personalidade do governo Liberal. Tendo se deixado convencer
pela paixão de Fisher e pelo entusiasmo de Churchill a adotar o programa de construção, os Liberais
compensaram essa injúria a seus sentimentos antibélicos corn a parcimônia na hora de pagar por
ele. Como resultado, em julho de 1914 Scapa Flow ainda não estava equipado corn docas secas ou
defesas fixas.

A Frota, mobilizada por Churchill, chegou até lá em segurança no dia l2 de agosto, enquanto o
Governo ainda debatia se devia lutar ou não. Os dias depois da declaração de guerra foram, nas
palavras do Chefe do Almirantado, um período de ”extrema tensão psicológica”. À medida que se
aproximava o momento da partida dos transportes, esperava-se a qualquer instante alguma ação do
inimigo, em forma de ataques à costa para desviar a frota ou alguma outra tática de provocação.
Churchill achava que ”a grande batalha naval poderia começar a qualquer momento”.

Seu estado de espírito era partilhado pelo Almirante Sir John Jellicoe, que, viajando de trem para
Scapa Flow em 4 de agosto, abriu um telegrama marcado ”Secreto” e descobriu-se
Comandante-emChefe da Grande Frota. O que pesava sobre Jellicoe não era essa nomeação, que ele
esperava havia muito tempo, nem alguma dúvida sobre sua própria competência. Desde que entrara
para a Marinha em
1872, corn doze anos e meio de idade e l,37m de altura, ele estivera acostumado a que seus talentos
fossem reconhecidos. Demonstrados no serviço ativo e em várias repartições do Almirantado, esses
talentos lhe granjearam a admiração firme, fervorosa e ressonante de Lord Fisher, que escolheu
Jellicoe para ”ser Nelson (...) quando vier o Armageddon”77.

O dia chegara, e o candidato de Fisher a Nelson sentiu, desde o primeiro momento, ”a,/maior
ansiedade confrontando-me constantemente” por causa da falta de defesas da base de Scapa Flow.
Carecendo de canhões de terra, barreiras flutuantes, redes e campos minados, ela estava ”aberta a
ataques de submarinos e destróieres”.

77 Armageddon: na Bíblia, local onde ocorrerá a batalha decisiva entre as forças do Ber, Mal antes do Juízo Final (Rev. XVI,16). (N. da
T.)
|p Tellicoe preocupou-se quando foram descobertos, a bordo de traineiras alemãs capturadas em 5
de agosto, pombos-correios sus.. jg gerem informantes dos submarinos. O medo dos campos
minados que os alemães anunciaram estar espalhando sem qualquer consideração para corn os
limites fixados para tais artefatos aumentava a sua ansiedade. Quando um de seus cruzadores
ligeiros abalroou e afundou o submarino U-15 em 9 de agosto, ele ficou mais preocupado do que
feliz, e enviou às pressas todos os seus navios capitais para fora da ”área infestada”.

Certa vez, quando dentro da base uma equipe de canhoneiros abriu fogo repentinamente sobre um
objeto móvel que pensou-se ser um periscópio, provocando um tiroteio e levando os destróieres a
uma caçada febril, ele ordenou que toda a Frota de três esquadrões de combate saísse para o mar e
ali passasse a noite inteira, temendo aquilo que até mesmo o historiador oficial da Marinha
reconhece que ”pode ter sido uma foca”. Por duas vezes a Frota foi transferida para bases mais
seguras no Loch Ewe, na costa norte da Irlanda - deixando o Mar do Norte livre para os alemães, se
eles tomassem conhecimento disso - e por duas vezes trazida de volta. Se nessa ocasião os alemães
tivessem iniciado uma ofensiva naval, poderiam ter obtido resultados espantosos.

Entre ataques de nervos e fugas súbitas, como um cavalo ouvindo o sibilar de uma serpente, a
Marinha britânica tratou de montar um bloqueio e patrulhar o Mar do Norte numa vigia incessante.
corn uma força de combate de 24 Dreadnoughts e a convicção de que os alemães tinham de 16 a 19
deles, os ingleses podiam contar corn uma margem de superioridade, e na classe seguinte de
encouraçados julgavam-se ”marcadamente superiores aos oito seguintes dos alemães”. Mas pesava
sobre eles a consciência de tudo que dependia do seu desempenho.

No dia 8 de agosto, Churchill advertiu Jellicoe: durante a semana da passagem dos transportes, ”os
alemães têm os mais fortes incentivos para agir”. Porém não se avistou sequer um torpedeiro. Nada
se movia. A inatividade do inimigo aumentou a tensão. Nos oceanos distantes, seus navios de
guerra - o Goeben e o Breslau no Mediterrâneo, o Dresden e o Karlsruhe no Oceano Atlântico, o
Scharnhorst, o ^neisenau e o Emden da esquadra de Von Spee no Pacífico - efetuavam ataques
ousados e fugas ainda mais ousadas, mas sua Frota de , o-mar, esc°ndida e imóvel atrás de
Heligoland, parecia pressagiar algo mais sinkh-n .......,..„..._
380

No dia 12 de agosto Churchill advertiu os comandantes da Frota: ”Extraordinário silêncio e inércia


do inimigo podem ser prelúdio de sérios empreendimentos (...) possivelmente um desembarque em
larga escala nesta semana.” Ele sugeria que a Grande Frota descesse para mais perto do ”teatro de
ação decisiva”. Jellicoe, porém, continuou sua patrulha remota na amplidão cinzenta das águas entre
o topo da Escócia e da Noruega e apenas uma vez aventurou-se abaixo da latitude 56 - em 16 de
agosto, quando o transporte da FEB estava no auge. Entre os dias 14 e 18 de agosto, os
navios-transportes fizeram
137 travessias do Canal, e durante todo esse tempo a Grande Frota inteira, corn seus esquadrões e
flotilhas, patrulhava em tensa expectativa, procurando a esteira branca de um torpedo, tentando
ouvir o sinal cie rádio indicando que a Frota alemã saíra para os mares.

O Almirante Von Tirpitz, o ”eterno Tirpitz”, corn sua barba branca em duas pontas, como a de
Netuno, era o Fisher da Alemanha
- pai, artífice e alma da Frota alemã; aos 69 anos, servira continuamente como Secretário da
Marinha desde 1897, mais tempo num só posto do que qualquer ministro desde Bismarck. Von
Tirpitz não teve permissão para conhecer o plano de guerra para a arma que ele mesmo montara. O
plano foi ”mantido em segredo pelo staff Naval até mesmo para mim”. No dia 30 de julho, quando
as ordens operacionais lhe foram mostradas, ele finalmente descobriu o segredo: não havia plano
algum. A Marinha, cuja existência tinha sido um fator importante na eclosão da guerra, não tinha
sido designado um papel ativo quando a guerra eclodisse.

Se o Kaiser tivesse limitado suas leituras a The Golden Age (A Idade Dourada), a história fantasiosa
da infância inglesa num mundo de adultos frios, que ele mantinha na mesa-de-cabeceira de seu iate,
é possível que não houvesse uma guerra mundial. No entanto, ele era eclético e leu um livro
americano que apareceu em 1890 corn o mesmo impacto em seu terreno que A Origem das Espécies
ou O Capital nos seus. No livro The Influence of Sea Power on History (A Influência do Poderio
Naval na História), o Almirante Mahan demonstrou historicamente que aquele qáe controla as
comunicações marítimas controla o seu destino; o dono dos mares é dono da situação.
Imediatamente uma visão grandiosa abriu-se diante do impressionável WiIhelm: a Alemanha
deveria ser um poder maior nos oceanos, assim como em terra. Teve início, então, o programa de
construção naval, que, embora não podendo sobrepujar de imediato a Inglaterra, acabaria por
constituir uma ameaça, se fosse levado a cabo corn a inten-
; idade típica dos alemães. O programa desafiava a supremacia marítima da qual a Inglaterra
dependia, e criava propositalmente a probabilidade da hostilidade da Inglaterra numa guerra e
conseqüentemente o uso contra a Alemanha da principal arma britânica: o

Como potência de terra, a Alemanha poderia ter enfrentado qualquer combinação possível de
poderes do continente europeu sem interromper seu suprimento marítimo enquanto a Inglaterra,
maior transportadora mercante do mundo, permanecesse neutra. Nesse sentido, a Alemanha teria
sido uma potência mais forte sem possuir l Marinha do que possuindo uma. Bismarck tinha
desaprovado a adulIteração da força em terra por causa de uma aventura marítima que iria trazer
mais um inimigo no mar. Wilhelm não quis ouvir; estava enfeitiçado por Mahan e enredado nos
ciúmes particulares de seu amor e ódio pela Inglaterra e por seu poderio naval - sentimentos que
anualmente chegavam ao auge durante as regatas da semana de Cowes. Ele via a Marinha como a
sua faca para cortar a muralha do Cerco. Insistia alternadamente que a hostilidade à Inglaterra era a
última coisa que tinha em mente e que ”uma frota maior fará os ingleses caírem em si por puro
medo”. Eles então iriam ”submeter-se ao inevitável, e nós nos tornaremos os melhores amigos do
mundo”. Em vão seus embaixadores na Inglaterra advertiram contra a lógica duvidosa dessa
política. Em vão Haldane foi a Berlim e Churchill j avisou que a Frota era uma Alsácia-Lorena nas
relações anglo-germânicas. Todas as propostas para um número-limite ou uma trégua naval foram
rejeitadas.

Uma vez lançado o desafio, era justo esperar a hostilidade britânica. Houve, porém, outro preço a
pagar: a Marinha, montada corn enorme despesa, retirava dinheiro e homens - o suficiente para
formar dois corpos de exército - do Exército. Se não tivesse sido montada sem propósito algum, ela
teria que cumprir uma função estratégica: impedir a vinda de mais divisões inimigas contra seu
próprio exército ou impedir um bloqueio. Como reconhecia o preâmbulo à Lei Naval de 1900,
”Uma guerra naval de bloqueio (...) mesmo durando apenas um ano destruiria o comércio alemão e
levaria o país ao desastre”.

A Marinha alemã tornava-se preciosa demais para ser perdida, medida que crescia em força e
eficiência, em número de homens e oticiais treinados, à medida que os desenhistas alemães
aperfeiçoavam seu armamento, o poder de destruição de seus projéteis, seus ecarusmos óticos e de
pontaria, o poder de resistência de suas m
couraças. Embora em número de navios ela estivesse perto de se equiparar à Inglaterra e em poder
de fogo fosse superior, o Kaiser, que não podia evocar um Drake ou um Nelson, jamais conseguiu
acreditar realmente que os navios e os marinheiros alemães pudessem derrotar os ingleses. Não
suportava pensar em seus ”queridinhos”, como Bülow chamava seus encouraçados, destruídos por
canhoneios, sujos de sangue, ou finalmente, golpeados e sem leme, afundando sob as ondas.

Tirpitz, a quem ele certa vez por gratidão dera o título de ”von”, mas cuja teoria a respeito da
Marinha era usá-la para lutar, começou a surgir como um perigo, quase como um inimigo, e foi
gradualmente afastado. Sua voz alta e estridente, como a de uma criança ou de um eunuco,
emergindo como uma surpresa do corpo de gigante e da postura impetuosa, não era mais ouvida.
Enquanto ele permaneceu na chefia administrativa, a política naval foi entregue, sob o Kaiser, a um
grupo composto pelo Chefe do staff Naval, Almirante Von Pohl, pelo chefe do Conselho Náutico do
Kaiser, Almirante Von Müller, e pelo Comandante-em-Chefe da Marinha, Almirante Von Ingenohl.
Pohl, embora defendesse uma estratégia de luta, era uma nulidade que alcançou o topo da
obscuridade possível na Alemanha dos Hohenzollern-nenhuma menção na enciclopédia de
mexericos de Von Bülow; Müller era um dos pederastas e bajuladores que enfeitavam a corte como
conselheiros do soberano; Ingenohl era um oficial que ”tinha uma visão defensiva das operações”.

- Não preciso de chefe - afirmou o Kaiser. - Posso fazer isso sozinho.

Quando chegou o momento do Isolamento, o momento que tanto perseguira seu reinado, o
momento em que o finado Edward pairava ”mais forte do que eu vivo”, as instruções do Kaiser
diziam: ”Por enquanto ordenei uma atitude defensiva por parte da Frota de Mar-alto.” A estratégia
adotada para o afiado instrumento que ele tinha em mãos era exercer a influência de uma
”frota-em-existência”. Permanecendo dentro de uma posição fortificada e inexpugnável, ela devia
atuar como um perigo potencial constante, forçando o inimigo a permanecer em guarda contra um
possível ataque e assim diminuindo os recursos navais do inimigo e mantendo inativa uma parte de
suas forças. Esse era o papel consagrado para a frota inferior entre as duas e aprovado por Mahan.
No entanto, ele concluíra posteriormente que o valor de uma frota-em-existência ”tinha sido muito
exagerado”, pois a importância de uma força naval que escolhe não
382 lutar tende a diminuir.
Nem mesmo o Kaiser conseguiria ter imposto tal política sem boas razões e um apoio forte, e ele
tinha ambos. Poucos alemães, principalmente Bethmann e os grupos civis mais cosmopolitas,
conseguiam acreditar no início que a Inglaterra era um beligerante realmente sério. Eles gostavam
de acreditar que ela poderia ser comprada numa paz em separado, especialmente depois que a
França fosse derrotada. Fazia parte dessa idéia o fato de Erzberger evitar cuidadosamente tomar as
colônias inglesas. A família materna do Kaiser, as esposas inglesas de príncipes alemães, os antigos
laços teutônicos, tudo isso criava um sentimento de parentesco. Lutas, mortes e sangue derramado
entre eles tornaria difícil, senão impossível, um acordo entre a Alemanha e a Inglaterra. (De um
modo qualquer, o sangue a ser derramado pela FEB lutando corn os franceses não contava
seriamente nesse raciocínio.) Além disso, esperava-se manter a Frota alemã intacta como um fator
de negociação para pressionar os ingleses, uma teoria que Bethmann defendia ardorosamente e que
o Kaiser comprazia-se em aceitar. A medida que o tempo passava e a vitória ficava mais difícil, o
desejo de manter a Frota sã e salva até o final para fins de negociação tornava-se mais enraizado.

Em agosto, o principal inimigo não parecia ser a Inglaterra e sim a Rússia, e controlar o Báltico era
considerado o principal dever da Frota-pelo menos por aqueles que desejavam adiar o confronto
corn a Inglaterra. Esses diziam que a Frota era necessária para evitar uma interferência russa no
suprimento que vinha dos países escandinavos por via marítima e um possível desembarque russo
na costa alemã. Temia-se que a ação contra a Inglaterra pudesse enfraquecer tanto a Frota alemã
que ela perderia o controle do Báltico, permitindo o desembarque russo, o que levaria a uma derrota
em terra.

Sempre se pode encontrar argumentos para transformar um desejo em uma linha de ação. Acima de
tudo, o que anulou a Marinha em agosto foi a confiança na vitória decisiva do Exército e a
convicção generalizada de que a guerra não duraria o suficiente para fazer do j bloqueio uma
grande preocupação. Já em 29 de julho - no mesmo ; dia em que Churchill mobilizara a
Frota -, Tirpitz, seguindo um j ”pressentimento correto”, pediu que o Kaiser colocasse o
controle da j Marinha nas mãos de um único homem. Como ele sentia que ’Tenho |
mais força em meu dedo mindinho do que Pohl em toda a sua l anatomia” (um sentimento
expresso em particular à sua esposa, não i ao Kaiser), ele podia apenas sugerir que essa
tarefa fosse ”confiada a mim”. Sua proposta foi rejeitada. Embora tenha pensado em demitirse, ele
não fez isso, corn o conveniente argumento de que o Kaiser 383

«SP
:-3&*
”não aceitaria a minha demissão”. Arrastado para Coblenz corn os outros ministros, ele teve que
aturar a aura triunfante do OHL enquanto ”o Exército tem todos os sucessos ô a Marinha, nenhum.
Minha posição é terrível, depois de 20 anos de esforço. Ninguém’ compreenderá”.

Sua Frota de Alto-mar, corn seus 19 Dreadnoughts, 12 encouraçados antigos, 11 cruzadores de


combate, 17 outros cruzadores, 140 destróieres e 27 submarinos, permanecia no porto ou no
Báltico, enquanto a ação ofensiva contra a Inglaterra no Atlântico limitava-se a uma varredura pelos
submarinos na primeira semana e à colocação de minas.

A marinha mercante também se recolheu - no dia 31 de julho o governo alemão ordenou que as
linhas de vapores cancelassem todas as viagens de comércio. No final de agosto, 670 vapores
mercantes, num total de 2.750.000 toneladas, ou mais que metade da tonelagem total alemã,
estavam abrigados em portos neutros e o resto, corn exceção daqueles que percorriam o Báltico, em
portos domésticos. Apenas cinco dos terríveis navios mercantes atacantes bem armados tinham se
materializado, e o Almirantado britânico, olhando em volta corn surpresa e pasmo, pôde informar
no dia 14 de agosto: ”A passagem através do Atlântico é segura. O comércio britânico corre
normal.” corn exceção dos navios atacantes Emden e Kõnigsberg no Oceano Índico, e a esquadra do
Almirante Von Spee no Pacífico, a Marinha alemã e os navios mercantes alemães tinham
desaparecido da superfície dos oceanos antes de terminar o mês de agosto.

Outra batalha se iniciara: a batalha da Inglaterra corn o Grande Neutro - os Estados Unidos.
Estavam de volta as velhas questões que provocaram a guerra em 1812, as velhas frases - os mares
são livres, a bandeira cobre a mercadoria - o velho e inevitável conflito entre o direito de comércio
do país neutro e o direito de repressão do beligerante.

Em 1908, como conseqüência da II Conferência de Haia, foi feita uma tentativa de codificação das
regras numa reunião de todas as nações que seriam beligerantes em 1914 e mais Estados Unidos,
Holanda, Itália e Espanha. A Inglaterra, como maior transportadora no comércio marítimo, corn o
maior interesse no fluxo livre do comércio neutro, foi a nação hóspede, e Sir Edward Grey foi o
patrocinador e o incentivador, embora não tenha sido delegado. Apesar da presença imponente do
Almirante Mahan como chefe da delegação americana, a resultante Declaração de Londres
favorecia o direito do neutro
334 a comerciar, contra o direito do beligerante a bloquear. Nem mesmo
Mahan, o Clausewitz dos mares, o Schlieffen oceânico, conseguiu vencer a ação manipuladora da
influência britânica. Todos estavam a favor dos neutros e dos negócios, e as objeções de Mahan
foram derrotadas por seus colegas civis.

A mercadoria foi dividida em três categorias: mercadoria de proibição absoluta, que cobria apenas
artigos para uso militar; mercadoria de proibição condicional, no caso de artigos de uso tanto militar
quanto civil; e uma lista livre, que incluía os alimentos. Apenas a primeira categoria poderia ser
confiscada por um beligerante que declarasse um bloqueio; a segunda poderia ser confiscada apenas
se ficasse provado um destino inimigo, e a terceira não poderia ser confiscada. Mas depois que a
Declaração foi assinada e os delegados foram para suas casas, outro interesse inglês ergueu a cabeça
- o poderio naval. A bandeira do Almirante Mahan tornou a ser içada. Seus discípulos ergueram as
vozes em horror à traição à supremacia marítima, garantia da sobrevivência britânica. Eles
perguntavam: qual é a vantagem de recusar ao inimigo o uso dos mares, se permitimos que os
neutros supram todas as suas necessidades?

Essas vozes fizeram da Declaração de Londres uma cause célebre e criaram uma campanha contra
ela na imprensa e no Parlamento. Diziam que ela anularia a Frota britânica; era uma trama alemã;
Balfour era contra ela. Embora a Declaração tenha sido aprovada na Câmara dos Comuns, os Pares,
num assomo de energia, permitiram que ela não chegasse a votação - talvez seu ato mais dinâmico
do século XX. O Governo, a essa altura, já mudara de idéia e ficou muito feliz em deixar o assunto
morrer. A Declaração de Londres jamais chegou a ser ratificada.

Enquanto isso, as novas realidades do poder naval tornavam obsoleta a política tradicional inglesa
de um bloqueio cerrado aos portos inimigos. Até então, numa guerra contra uma potência
continental o Almirantado recorria ao bfcqueio cerrado, efetuado por flotilhas de destróieres
apoiados por cruzadores e, em último caso, por encouraçados. O desenvolvimento do submarino e
da mina flutuante e o aperfeiçoamento do canhão estriado forçaram a mudança para o bloqueio à
distância. Adotada nas Ordens de Guerra do Almirantado para 1912, essa tática fez corn que mais
uma vez o assunto se visse imerso em confusão. Quando um navio tenta furar um bloqueio cerrado,
o porto a que ele se dirige é óbvio, não há dúvidas quanto ao seu destino; mas quando os navios são
interceptados a milhas de distância de seu destino, como no alto do Mar do Norte, a legalidade do
confisco dentro das regras do bloqueio tem que ser de- 385
monstrada através de prova de destino ou da natureza da carga. O problema era como uma mina
flutuante, prenunciando contratempos.

Quando irrompeu a guerra, a Declaração de Londres ainda era o ponto de vista oficial do conjunto
de nações a respeito do assunto; no dia 6 de agosto, segundo dia da guerra, os Estados Unidos
pediram formalmente aos beligerantes que declarassem sua adesão a ela. A Alemanha e a Áustria
apressaram-se a concordar, corn a condição de que o inimigo fizesse o mesmo. A Inglaterra, como
porta-voz dos Aliados em questões de política naval, compôs uma resposta afirmativa na qual,
reservando-se certos direitos ”essenciais à condução eficiente de suas operações navais”, ela dizia
um Sim que significava Não. Ainda não se chegara a fixar uma política sobre a proibição de certas
mercadorias, prevalecendo apenas um sentimento empírico de que os termos da Declaração de
Londres requeriam certos ajustes. Um relatório do Comitê de Defesa Imperial em 1911-12 já tinha
proposto que o destino final da mercadoria, e não dos navios, fosse o critério para definir o
contrabando condicional, de modo que couro para selas, borracha para pneus, cobre, algodão, fibras
têxteis e papel, tudo conversível ao uso militar, não poderiam ser transportados livremente só
porque eram destinados a um receptor neutro. Se dali fossem enviados por terra para a Alemanha,
nenhum bloqueio valeria a despesa de sua manutenção. O Comitê sugeria que a doutrina de viagem
contínua fosse ”aplicada rigorosamente”.

”Viagem contínua” era uma dessas expressões dotadas de uma força misteriosa que aparecem e
desaparecem ao longo da História deixando tudo diferente de antes; tratava-se de um conceito
inventado pelos ingleses durante uma guerra corn os franceses no século XVIII. Significava que o
destino final da mercadoria, e não o destino inicial, era o fator determinante. Enterrada
prematuramente pela Declaração de Londres antes de estar inteiramente morta, ela agora era
desenterrada como um dos gatos emparedados de Põe, corn igual capacidade de causar problemas.

O Ministério da Guerr^t tinha sido advertido de que alimentos enviados à Holanda por países
neutros iam suprir o Exército alemão na Bélgica. No dia 20 de agosto o Conselho de Ministros
enviou uma Ordem em Conselho78 declarando que daí em diante a Inglaterra

78 Ordem em Conselho: na Inglaterra, um decreto expedido pelo soberano, através do Conselho Privado, um grupo de conselheiros
confidenciais escolhidos pelo governante para assessorá-lo.
3g6 (N. da T.)
consideraria a mercadoria de proibição condicional sujeita à captura, se estivesse destinada ao
inimigo ou a ”um agente do inimigo”, ou se seu destino final fosse hostil. A prova do destino não
mais dependeria, como até então, das notas de embarque, e sim - numa expressão de incomparável
elasticidade - de ”evidência suficiente”.

Essa era a doutrina da viagem contínua - viva, agressiva e de garras afiadas. Segundo admitiu Sir
Cecil Spring-Rice, Embaixador inglês em Washington, o efeito prático dessa doutrina era
transformar tudo em proibição absoluta.

Os autores da Ordem em Conselho não pensaram então na enorme cadeia de conseqüências, nas
dificuldades gigantescas para implementar essa decisão - o ato de deter, abordar e examinar navios,
o Raio-X aplicado às cargas, os tribunais de presas e as complexidades legais -, no risco do recurso
final à guerra submarina irrestrita adotado pela Alemanha, corn seu efeito posterior nos Estados
Unidos. Quando Henrique VIII decidiu divorciar-se de Catarina de Aragão, ele não estava pensando
na Reforma: quando os ministros sentaram-se à mesa do Conselho no dia 20 de agosto, eles
estavam preocupados corn a necessidade militar de deter o fluxo de suprimentos de Rotterdam para
o Exército alemão na Bélgica. A Ordem em Conselho lhes foi submetida por orientação militar e
autorizada depois de alguma discussão, da qual o único registro é a referência passageira de Asquith
em seu diário a ”um Conselho comprido - todo tipo de coisinhas sobre carvão e mercadorias
proibidas”.

O Primeiro-Ministro não era a única pessoa despreocupada corn ”coisinhas” desse tipo. Quando um
oficial alemão, prevendo a mudança para uma longa guerra de atrito, apresentou a Moltke um
memorando sobre a necessidade de um Estado-maior Econômico, Moltke respondeu:

- Não me perturbe corn economia, estou muito ocupado dirigindo uma guerra.

Por uma bela coincidência, a Ordem em Conselho, ressuscitando a questão da guerra de 1812,
apareceu exatamente no centésimo aniversário do incêndio de Washington pelos ingleses.
Felizmente essa estranha casualidade e a própria Ordem passaram despercebidas ao público
americano, absorto nas variadas manchetes sobre a queda de Bruxelas, americanos perdidos em
Paris, Kaisers e Czars, Frotas, Cossacos, Marechais-de-Campo, Zepellins, frente ocidental e frente
oriental. O Governo dos Estados Unidos, no entanto, ficou chocado. 38?

B
O sutil preâmbulo inglês à Ordem, que afirmava sua lealdade à Declaração de Londres antes de
formular suas exceções, não conseguiu esconder seu significado aos olhos de advogado de Robert
Lansing, Conselheiro do Departamento de Estado. Ele redigiu um protesto firme e imediato, que
precipitou um longo duelo de cartas e respostas, mandados e precedentes, entrevistas corn
embaixadores e grande volume de documentos, arrastando-se por meses e anos.

Para o Daily Chronide de Londres em 27 de agosto, parecia haver ”um perigo muito real” de que o
país se enredasse corn os Estados Unidos em questões de mercadorias proibidas e direito de busca,
que reconhecidamente os Estados Unidos ”desaprovam energicamente”. Esse era um problema que
ocorrera a Sir Edward Grey e que requeria uma manipulação cuidadosa.

No início, quando se esperava que a guerra fosse curta e tudo que importava era a melhor maneira
de vencer depressa, parecia pouco provável que o conflito durasse o tempo suficiente para que
surgisse uma questão séria corn os Estados Unidos. Depois de Mons e de Charleroi, porém, dos
campos de batalha cobertos de cadáveres surgiu a inescapável realidade de uma guerra longa, que
os Aliados teriam que enfrentar. Numa guerra longa eles teriam que recorrer aos Estados Unidos
para obter alimento, armas e dinheiro (ninguém pensava ainda em homens) e cortar a mesma ajuda
à Alemanha. De repente tornou-se essencial-e incompatível-endurecer o bloqueio ao inimigo e ao
mesmo tempo manter a amizade corn o grande neutro. À medida que cada nova restrição imposta
ao comércio dos neutros corn a Alemanha provocava outro urro majestoso do Departamento de
Estado americano a respeito da liberdade dos mares, tornava-se incomodamente óbvio que a
Inglaterra acabaria sendo obrigada a decidir qual dos dois objetivos era o mais importante. Até o
momento, corn a aversão instintiva que os ingleses tinham ao absoluto, Sir Edward Grey conseguira
equilibrar-se em seu caminho de um incidente a outro, evitando os grandes princípios como um
timoneiro evita os recifes, e tomando o cuidado de não permitir que a discussão chegasse a uma
definição cl^ra que obrigasse cada lado a tomar uma posição que ele não pudesse abandonar depois.
Seu objetivo diário era, como ele próprio afirmou, ”assegurar o máximo bloqueio que possa ser
obtido sem uma ruptura corn os Estados Unidos”.

Ele tinha um formidável inimigo que era fundamentalmente um

homem de princípios: Woodrow Wilson. Rígida e puritanamente

^ apegado à neutralidade, ele foi levado a tomar e manter uma posição


sobre os direitos tradicionais dos neutros, menos por causa dos direitos em si do que por eles
constituírem parte do papel de neutro ao qual desde o início ele se agarrara corn feroz intensidade.
Wilson chegara ao governo corn uma extremada dedicação à tarefa de desalojar os ”Interesses” e os
diplomatas do dólar79 entrincheirados sob a sombra imponentemente protetora do Sr. Taft e
também para construir a Nova Liberdade nos assuntos domésticos e latino-americanos. Sabendo
que a guerra retarda a reforma, ele estava disposto a manter o país fora de uma aventura estrangeira
que frustraria seu programa.

Além dessa, porém, ele tinha uma razão mais grandiosa: via na guerra uma oportunidade para
alcançar a superioridade no palco do mundo. Em sua primeira declaração sobre a guerra, feita numa
entrevista coletiva em 3 de agosto, ele afirmou que queria ter o orgulho de sentir que a América
”está a postos para ajudar o resto do mundo” e que acreditava que ela ”assim fazendo colherá uma
glória grande e eterna”. Assim tão cedo, antes mesmo que os canhões disparassem, ele tinha
formulado o papel que queria que o seu país, corn o qual ele se identificava, desempenhasse; o
papel ao qual ele se agarrava corn crescente desespero, à medida que os golpes dos acontecimentos
enfraqueciam sua posição; o papel que em seu íntimo ele nunca abandonou, mesmo depois que seu
país entrou definitivamente na guerra.

Para Wilson, neutralidade era o oposto de isolacionismo; ele queria manter-se fora da guerra para
poder desempenhar um papel maior, e não menor, nos assuntos mundiais. Desejava a ”glória grande
e eterna” para si próprio, assim como para seu país, e percebia que só poderia conquistá-la se
mantivesse a América fora do conflito, para poder atuar como árbitro imparcial. No dia 18 de
agosto, numa declaração famosa, ele pediu a seus compatriotas que fossem ”neutros de fato, assim
como de nome, imparciais em pensamento assim como nos atos”, e explicou que a proposta última
da neutralidade era permitir que os Estados Unidos ”pronunciassem os conselhos de paz” e
”fizessem o papel de mediador imparcial”. No conflito europeu ele esperava exercer o dever de
”julgamento moral”, como afirmou em declaração posterior. Queria ”servir à humanidade”, exercer
a força força moral-do Novo Mundo para salvar o Velho Mundo de suas loucuras e, aplicando
”padrões de justiça e humanidade”, proporcio-

79 Diplomacia do dólar: política de usar o poder econômico de um governo para promover em outros países os interesses financeiros
particulares ou oficiais. (N. da T.)

389
nar a paz através da mediação sob a bandeira que era ”não apenas a bandeira da América, mas da
humanidade”.

Uma vez tendo a Marinha britânica tomado efetivamente o controle do Atlântico no final de agosto,
o duelo corn os Estados Unidos a respeito do confisco, por mais que fosse apaixonado, prolongado
e muitas vezes amargo, continuava a ser um duelo de sombras. Para Wilson, a liberdade dos mares
jamais foi a questão principal e ele não tinha o menor desejo de levar o debate à conclusão de 1812,
embora certa ocasião, quando o caso ficou particularmente contencioso, ele se sentisse perturbado
pela idéia de que poderia tornar-se o segundo presidente de Princeton, depois de Madison, a levar o
país à guerra. De qualquer maneira, a expansão do comércio corn os Aliados, que estava
abocanhando o comércio perdido corn a Alemanha, suavizou o rigor dos princípios nacionais.
Enquanto as mercadorias estavam sendo compradas, os Estados Unidos chegaram gradualmente a
aceitar o .processo iniciado pela Ordem em Conselho de 20 de agosto. ’.í Dessa época em diante,
por causa do controle de alto-mar pela ;3Frota britânica, o comércio americano foi obrigado a
voltar-se cada iyez mais para os Aliados. O comércio corn as Potências Centrais caiu ide 169
milhões de dólares em 1914 para l milhão em 1916, e durante o mesmo período o comércio corn os
Aliados subiu de 824 milhões de dólares para 3.000 milhões80. Para suprir a demanda, a indústria e
o comércio americanos produziam os artigos que os Aliados desejavam. Para permitir-lhes pagar
pela mercadoria americana, era preciso arranjar crédito financeiro para os Aliados. Assim, os
Estados Unidos acabaram tornando-se a despensa, o arsenal e o banco dos Aliados e adquiriu um
interesse direto na vitória Aliada, fato que durante muito tempo iria servir de apoio aos apóstolos de
pós-guerra do determinismo econômico.

Os laços econômicos se desenvolvem onde existe uma base de antigos laços culturais, e o interesse
econômico, onde haja interesse natural. O comércio dos Estados Unidos corn a Inglaterra e a França
sempre fora maior do que corn a Alemanha e a Áustria; o efeito do bloqueio não criaria uma
Condição artificial, mas ampliaria uma

80 Durante os dois primeiros anos da guerra, o comércio corn a Alemanha foi conduzido ocultamente através dos países escandinavos e
a Holanda. De agosto a dezembro de 1914, o comércio através desses países aumentou 300%, e durante os dois primeiros anos
aumentou
400%. Os mercadores ingleses comerciavam corn o inimigo através dos mesmos canais atél916, quando a situação ficou suficientemente
grave a ponto de ser necessário tapar esses furos no
390 bloqueio. (Nota da Autora) , , , , ..,.;;:••<
condição já existente. O comércio não segue apenas a bandeira de um país, mas suas simpatias
naturais.

Walter Hines Page, o Embaixador americano em Londres, afirmou: ”Um governo pode ser neutro,
mas nenhum homem pode sê-lo.” Como partidário total dos Aliados, a quem o conceito de
neutralidade era desprezível, ele falava corn emoção e escrevia cartas vividas e persuasivas a
Wilson. Embora a identificação declarada de Page corn os Aliados tenha desagradado o Presidente
a um ponto tal que ele deu as costas ao homem que fora um de seus primeiros correligionários, nem
mesmo Wilson poderia tornar-se neutro em pensamentos como queria que as outras pessoas fossem.
Quando Grey escreveu-lhe uma carta de solidariedade por ocasião da morte da Sra. Wilson, que
ocorreu em 6 de agosto, Wilson, que admirava Grey e se sentia ligado a ele como alguém que
também perdera a esposa, respondeu: ”Minha esperança é de que você me considere seu amigo.
Sinto que estamos unidos por princípios e propósitos comuns.” No Governo alemão não havia
pessoa alguma a quem ele pudesse dizer a mesma coisa.

As raízes culturais e a filosofia política de Wilson, como a da maioria das pessoas influentes na vida
americana, remontavam à experiência inglesa e à Revolução Francesa. Ele tentou reprimi-las por
causa de sua ambição de ser o artífice da paz mundial. Lutou durante dois anos, usando todos os
meios de persuasão ao seu alcance, para levar os beligerantes a uma paz negociada, uma ”paz sem
vitória”. A neutralidade, da qual dependiam seus esforços, era apoiada por uma forte corrente de
sentimento irlandês, ou o que poderia ser chamado de sentimento anti-George in, e pelos
barulhentos grupos pró-Alemanha, desde o Professor Munsterberg de Harvard às cervejarias de
Milwaukee. Ela poderia ter prevalecido, se não fosse por um fator diante do qual Wilson ficou
indefeso-e que foi o maior trunfo dos Aliados para formar o sentimento americano - não a Frota
inglesa, mas a loucura alemã.

Na deflagração em 4 de agosto, o Presidente, escrevendo a um amigo, expressou apenas ”total


condenação” ao conflito do outro lado do oceano e não fez qualquer tentativa de qualificar os
beligerantes. No dia 30 de agosto, depois de um mês de guerra na Bélgica, o Coronel House
registrou que o Presidente ”sentia profundamente a destruição de Louvain. (...) E vai até mais longe
que eu em sua condenação ao papel da Alemanha nesta guerra; quase chega a permitir que seu
sentimento abarque o povo alemão como um todo, em lugar de

m
apenas os seus líderes. (...) Ele expressou a opinião de que uma vitória da Alemanha mudaria o
curso de nossa civilização e faria dos Estados Unidos uma nação militarizada.” Alguns dias mais
tarde, Spring-Rice informou que Wilson lhe dissera ”de maneira muito solene que, se a causa alemã
vencer o presente conflito, os Estados Unidos teriam que desistir de seus ideais atuais e devotar
todas as suas energias à defesa, o que significaria o fim do atual sistema de governo”.

Mesmo tendo essa opinião, Wilson agüentou até o fim, um l Casablanca81 no convés em chamas da
neutralidade, mas uma neuI tralidade teórica e não realmente sentida. Ele jamais poderia conside-

• rar uma vitória dos Aliados como uma ameaça aos princípios sobre I os quais o Estados Unidos
tinham sido fundados, ao passo que a I perspectiva de uma vitória alemã, especialmente depois que
na BélI gica as circunstâncias tornaram-se óbvias, não poderia ser conside-
1 rada outra coisa.

I Se Wilson, que de todos os seus compatriotas era quem mais i tinha a ganhar corn a neutralidade,
sentia repulsa pelos atos alemães, I muito mais o homem comum. Os sentimentos provocados pela
desI traição de Louvain diminuíram o ressentimento pelos métodos de

• bloqueio da Inglaterra. Cada vez que os ingleses efetuavam uma l busca ou um confisco, ou
ampliavam a lista de mercadorias proibidas, l provocando novas ondas de raiva americana, os
alemães convenienI temente cometiam um ato repugnante. No dia 25 de agosto, exataI mente
quando a veemente censura de Lansing à Ordem em Conselho l estava prestes a amadurecer numa
grande controvérsia, os Zeppelins I alemães bombardearam a área residencial de Antuérpia,
matando I civis e por pouco não atingindo o Palácio para onde a Rainha belga l acabara de se mudar
corn os filhos. Como resultado, Lansing enconI trou-se fazendo um protesto contra ”esse ultraje à
humanidade” em l vez de um protesto contra o conceito de viagem contínua.

l Num momento de dolorosa previsão do futuro, Wilson confiou l a seu cunhado, Dr. Axon, pouco
depois do funeral da Sra. Wilson em
112 de agosto:

I - Temo que vá acontecer alguma coisa em alto-mar que tornará Bimpossível que fiquemos fora da
guerra.

l 81 Casablanca: filho do capitão do L’Orient, navio incendiado durante a batalha do Nilo; o | rapaz manteve-se em seu
posto até o final, e foi imortalizado num poema de Felicia Hemans,
392 Poetisa inglesa que faleceu em 1835. (N. da T.)
^^^H

O fator decisivo não foi o que aconteceu em alto-mar, mas o que não aconteceu. Quando Sherlock
Holmes chamou a atenção do Inspetor Gregory para ”o curioso incidente do cachorro durante a
noite”., o perplexo Inspetor objetou: ”O cachorro não fez coisa alguma durante a noite.”

”Foi esse o incidente”, esclareceu Holmes.

A Marinha alemã era o cão à noite: ela não fez coisa alguma. Não lutou. Manietada pela teoria da
marinha-em-existência e pela crença alemã numa vitória rápida em terra, não lhe foi permitido
arriscar-se no desempenho das funções de uma Marinha - manter as rotas marítimas abertas ao
comércio de seu país. Embora a indústria alemã dependesse de matéria-prima importada e a
agricultura alemã depen- j desse de fertilizantes importados, embora durante todo o inverno o gado
leiteiro alemão comesse ferragem importada, a Marinha não fez J qualquer tentativa de proteger seu
fluxo de suprimentos. A única batalha de que participou em agosto não foi proposital e serviu
apenas para confirmar a relutância do Kaiser em arriscar seus ”queridinhos”.

Trata-se da Batalha de Heligoland Bight, em 28 de agosto. Num desafio repentino, visando distrair
a atenção alemã do desembarque dos fuzileiros em Ostende, flotilhas de submarinos e destróieres da
Frota Britânica do Canal, corn o apoio de encouraçados, entraram no Bight, a base da Marinha
alemã. Tomados de surpresa, os cruzadores leves alemães foram enviados sem o apoio de navios
mais pesados. ”corn todo o entusiasmo do primeiro combate”, nas palavras de Tirpitz, eles corriam
de um lado para o outro na neblina, desordenadamente. Numa série de combates confusos,
dispersos e casuais que durou o dia inteiro, as unidades britânicas confundiam-se corn o inimigo e
só por pura sorte foram salvas daquilo que Churchill delicadamente chamou de ”constrangimentos
desagradáveis”.

Os alemães, não aceitando o desafio, abstiveram-se de enviar a Frota inteira ao mar e estavam em
minoria no tocante a homens e armas. A vantagem do dia ficou corn os ingleses. Três cruzadores
ligeiros alemães - o Kõln, o Mainz e o Ariadne-e um destróier foram inutilizados e afundados,
outros três sofreram danos graves e mais de mil homens, inclusive Wolf Tirpitz, filho do Almirante,
foram recolhidos da água e feitos prisioneiros. Os ingleses não perderam navio algum e sofreram
cerca de 75 baixas.

Horrorizado corn suas perdas e vendo confirmado seu medo de um teste corn os ingleses, o Kaiser
deu ordens de que não se corressem riscos: ”deve-se evitar a perda de navios”; a iniciativa do
Comandante

393
da Frota do Mar do Norte deveria ser ainda mais restrita e nenhuma grande manobra poderia ser
efetuada sem a prévia aprovação de Sua Majestade.

Daí em diante, enquanto a Marinha britânica erguia as muralhas do bloqueio em volta da Alemanha,
a Marinha alemã assistia passivamente. Revoltando-se contra os laços que o prendiam, o infeliz
Tirpitz escreveu, em meados de setembro: ”Nossa melhor oportunidade para uma batalha
bem-sucedida foi nas duas ou três primeiras semanas depois da declaração de guerra” - um triste
”foi”. E ele previa: ”À medida que o tempo passa, nossa chance de sucesso ficará menor, não
maior.” Era a Frota inglesa que estava ”conseguindo o efeito total de uma ’marinha-em-existência’:
uma pressão extraordinária e crescente sobre os neutros, a total destruição do comércio marítimo
alemão, um bloqueio prático completo”.

Finalmente, forçada a combater a situação que ela tinha permitido que se desenvolvesse, a política
naval alemã pôs-se a agir: num esforço tardio para romper o bloqueio, a Alemanha voltou-se para
os submarinos - os U-boats. Criados pela ausência de uma frota de superfície, os U-boats
terminaram por cumprir aquela condição em alto-mar que Wilson vislumbrara, temeroso, nos
primeiros dias da guerra.

39*
19

A Retirada

l
Como uma foice em movimento, os cinco exércitos alemães do centro e da ala direita penetraram na
França através da Bélgica, depois da Batalha das Fronteiras. Um milhão de alemães participaram da
força invasora, cujas colunas de vanguarda, matando e incendiando, entraram em território francês
no dia 24 de agosto. Na frente da Lorena não havia novidades; os dois exércitos da ala esquerda,
sob o comando do Príncipe Rupprecht, continuavam engajados numa batalha prolongada contra a
resistência furiosa dos exércitos de Castelnau e Dubail.

Ao longo das extensas rodovias brancas do norte da França, exibindo um espetáculo de 120
quilômetros de largura, a ala direita alemã marchava para Paris; na extrema direita, o Exército de
Kluck procurava cercar pelo flanco a linha Aliada. O problema imediato de Joffre era deter a
retirada de seus exércitos e ao mesmo tempo deslocar o peso para a esquerda, criando uma força
suficientemente poderosa para deter a manobra de cerco inimiga e ”capaz de retomar a ofensiva” -
depois da catástrofe, ”retomar a ofensiva” passou a ser o pensamento dominante do GQG. No dia
25 de agosto, 24 horas depois da derrocada, Joffre emitiu uma nova Ordem Geral, a segunda da
guerra. Ele não parou para avaliar o que significava realmente aquilo que oficialmente era chamado
de ”deter” os exércitos franceses, ou pelo menos para repensar a estratégia de acordo corn o que era
possível.

Propunha a Ordem que se criasse no caminho da ala direita alemã um Sexto Exército, formado pop
forças retiradas da frente de Lorena - que não tinha sido rompida. Transportado por via férrea a
Amiens, à esquerda dos ingleses, esse Exército iria formar, juntamente corn a FEB e o Quarto e o
Quinto Exércitos franceses, a massa que retomaria a ofensiva. Enquanto o Sexto Exército se
formava, os três exércitos franceses em retirada tentariam manter uma frente contínua e ”deter, ou
pelo menos atrasar, o avanço do inimigo através de contra-ataques curtos e violentos” efetuados
pelos homens da retaguarda. Como afirmava na Ordem Geral Ne 2, Joffre experava que no dia 2 de
setembro, Dia de Sedan, o Sexto Exército estivesse em posição e pronto para juntar-se à ofensiva
retomada.

395
396

Essa data se destacava também para os alemães que avançavam e de quem já então se esperava que
cumprissem o objetivo de Schlieffen: o cerco e a destruição dos exércitos franceses numa massa
central diante de Paris. Durante os doze dias seguintes, outra Sedan povoou as mentes em ambos os
lados do conflito. Foram doze dias nos quais a História do mundo oscilou entre dois rumos, e os
alemães chegaram tão perto da vitória que suas mãos estendidas puderam a tocá-la entre o Aisne e o
Mame.

”Lutar em retirada, lutar em retirada” era a ordem que ressoava em todos os regimentos franceses
durante aqueles dias. A necessidade de deter a perseguição e ganhar tempo para reagrupar-se e
restabelecer uma linha sólida conferia à luta uma urgência que tinha faltado na ofensiva. Seriam
necessárias ações da retaguarda que eram quase suicidas. A necessidade alemã de não dar aos
franceses tempo para se reagruparem impulsionava-os corn igual intensidade.

Na retirada, os fraceses lutaram corn competência e habilidade aprendidas na hora da emergência e


que nem sempre estiveram presentes durante as batalhas iniciais na Bélgica. Não mais engajados
numa ofensiva vasta e mal compreendida em florestas misteriosas em solo estrangeiro, eles estavam
de volta à sua própria terra, defendendo a França. O terreno que atravessavam era familiar, os
habitantes eram franceses, as ruas das aldeias, os campos e celeiros eram seus; eles lutavam agora
como o Primeiro e o Segundo Exércitos estavam lutando pelo Moselle e pelo Grand Couronné.

Embora derrotados na ofensiva, não formavam um exército vencido; sua linha, apesar de
perigosamente perfurada, ainda não se rompera. A esquerda do caminho principal do avanço
alemão, o Quinto Exército, escapando do desastre em Charleroi e no Sambre, tentava refazer sua
coesão durante a retirada. No centro, de costas para o Meuse, o Terceiro e o Quarto Exércitos
participaram de selvagens combates de Sedan a Verdun, contra os dois Exércitos do centro alemão,
frustrando o esforço inimigo para cercá-los e, como o Príncipe-Herdeiro admitiu melancolicamente,
”recuperando sua liberdade de movimentos”.

Apesar da ação de retaguarda, o avanço alemão era maciço demais para ser detido. Os franceses
recuaram ainda lutando, detendo o inimigo e atrasando-o quando isso era possível, mas sempre
recuando.

Certa distância depois da travessia do Meuse, um batalhão de chasseurs à pied do Quarto Exército
do General Langle recebeu no final

l
do dia ordens de defender uma ponte que as cargas de dinamite não * tinham conseguido explodir.
Os franceses passaram uma noite de ”angústia e terror” observando os saxões do Exército de Von
Hausen l na margem oposta ”incendiando a cidade e atirando nos cidadãos diante dos nossos olhos.
De manhã, subiam labaredas da cidade. Víamos as pessoas correndo nas ruas, perseguidas pelos
soldados. Houve tiros (...). De longe podíamos ver um movimento infindável de cavaleiros que
pareciam estar procurando a nossa posição. À distância, na planície, surgiu uma massa escura em
movimento.” A massa aproximou-se e logo surgiu pela estrada sinuosa um batalhão de infantaria
alemão em colunas de cinco, ”marchando diretamente para nós. Até onde a vista alcançava, a
estrada abaixo de nós estava tomada pelos soldados - colunas de infantaria precedidas por oficiais a
cavalo, carretas de artilharia, veículos de transporte, a cavalaria
- quase uma divisão inteira, marchando em perfeita ordem”.

- Fazer pontaria!

A ordem foi passada em voz baixa ao longo da fila dos chasseurs e os homens tomaram seus
lugares em silêncio.

- Fogo em rajadas; mirem primeiro a infantaria, cada homem escolha seu alvo!

Os líderes das companhia deram a linha de tiro.

- Abrir fogo!

A fuzilaria explodiu ao longo do rio. Abaixo, entre os alemães, produziu-se um estupor repentino.
As colunas contorceram-se e ondularam; os soldados fugiam. Os cavalos recuavam ou empinavam,
presos aos arreios; carroções tombavam. A estrada ficou coberta por centenas de cadáveres. Às
8:45, a munição dos franceses estava quase no fim. De repente, veio da esquerda atrás deles uma
rajada de fuzilaria: o inimigo os tinha cercado.

- Para trás, à Ia baionnettei

Sob o impacto da carga de baioneta, os alemães cederam; o regimento francês abriu caminho
através das forças inimigas.

Os homens da retaguarda participaram de centenas de combates como esse, enquanto os Exércitos


recuavam, tentando manter uma m frente contínua de um Exército para outro e chegar a uma
linha de l onde pudessem retomar a ofensiva. Ao lado dos soldados, a popula- l cão civil
juntou-se à massa que se movia para o sul, a pé ou em i qualquer tipo de engenhoca, desde
famílias em carroções de seis • cavalos até velhos carregados em carrinhos de mão e crianças
de colo em carrinhos de bebê. Impedindo a passagem, enchendo as estradas, 39*
essa gente aumentava a confusão. Os carros dos oficiais não conseguiam passar, os oficiais
praguejavam, as mensagens não eram entregues. Imprensados no meio de grupos em marcha,
caminhões comerciais e ônibus municipais mobilizados para o serviço militar, corn suas pinturas
familiares encobertas por símbolos militares, moviam-se lentamente, levando os feridos que jaziam
num silêncio ensangüentado, corn membros arrancados por projéteis e os olhos cheios de dor e
medo da morte.

Cada quilômetro da retirada intensificava a agonia de ter que entregar o solo francês ao inimigo. Em
alguns lugares os soldados franceses passavam perto de suas próprias casas, sabendo que no dia
seguinte os alemães estariam entrando nelas. Um capitão da cavalaria i corn o Quinto Exército
escreveu: ”Deixamos Blombay no dia 27 de agosto. Dez minutos depois ela foi ocupada pelos
Ulanos.”

As unidades que tinham enfrentado combates pesados marchavam em silêncio, fora do passo, sem
cantorias - homens desfigurados, crestados e famintos, alguns revoltados, resmungando contra seus
oficiais e cochichando palavras de traição. No X Corpo do Exército de Lanrezac, que perdera 5.000
homens no Sambre, dizia-se que todas as posições francesas tinham sido expostas aos observadores
de tiro da artilharia alemã. ”Os homens se arrastam, os rostos marcados por uma terrível exaustão”,
escreveu um capitão de infantaria desse Corpo. ”Eles acabaram de completar uma marcha de 62
quilômetros em dois dias depois de uma violenta ação de retaguarda.”

Mas à noite os soldados dormiam, e ”é extraordinário como umas poucas horas de sono os
revigoram. São novos homens.” Perguntam por que estão batendo em retirada e o capitão faz um
rápido discurso em ”voz fria e segura”. Ele lhes diz que vão lutar novamente ”e mostrar aos alemães
que temos dentes e garras”.

Os soldados da cavalaria, antes tão vistosos corn os alegres uniformes e as botas engraxadas, agora
sujos e enlameados, oscilam nas selas, tontos de exaustão. ”Os homens deixam pender a cabeça, de
cansaço”, escreve um oficial dos Hussardos corn a Nona Divisão de Cavalaria. ”Não enxergam
muito bem onde estão pisando; vivem como num sonho. Nas paradas, os cavalos famintos e
alquebrados mergulham no feno e devoram-no corn voracidade, antes mesmo de lhes retirarem os
arreios. Já não dormimos; marchamos durante a Inoite e enfrentamos o inimigo durante o dia.”
• Ficam sabendo que os alemães atravessaram o Meuse atrás deles e estão ganhando terreno,
incendiando as aldeias à sua passagem.
”Rocroi é uma massa de fogo, e os celeiros ardendo nas redondezas iluminam as árvores dos
bosques próximos.” A voz do canhão do inimigo começa ao alvorecer; ”os alemães saúdam o sol
corn suas balas”. Através do estrondo incessante os franceses escutam o corajoso silvo de seus
próprios 75s. Eles se agarram à sua posição, esperando o fim do duelo de artilharia. Um ordenança a
cavalo chega corn uma ordem do comandante: recuar. Eles partem. ”Contemplei os campos verdes
e os rebanhos de carneiros pastando e pensei: que fortuna estamos abandonando! Meus homens
recuperaram o entusiasmo. Encontraram um sistema de trincheiras cavado pela infantaria, que m
examinaram corn a maior curiosidade, como se fossem monumentos i expostos à admiração dos
turistas.” l

No dia 25 de agosto, alguns alemães do Exército do Duque de B Württemberg penetraram em


Sedan e bombardearam Bazeilles, cena- l rio da Famosa Batalha do Último Cartucho em 1870. Os
franceses do l Quarto Exército de Langle contra-atacaram para impedi-los de cruzar l o Meuse.
”Começou um violento duelo de artilharia”, escreveu um I oficial alemão do VIII Corpo de
Reserva. ”Foi uma rixa tão terrível l que a terra estremeceu. Todos os Territoriais, velhos e
barbados, l estavam chorando.” Mais tarde ele participou de um ”combate ter- l rível em encostas
arborizadas, íngremes como telhados. Quatro as- l saltos corn a baioneta. Tivemos que saltar por
cima de pilhas de nossos l próprios mortos. Recuamos de volta a Sedan corn pesadas baixas e a |
perda de três bandeiras”. l

Naquela noite os franceses explodiram todas as pontes fer- l roviárias da região. Divididos entre a
necessidade de atrasar o inimigo l e a perspectiva de breve precisarem eles próprios das pontes e
fer- l rovias para o retorno à ofensiva, os franceses deixaram a destruição l das comunicações para o
último momento, às vezes tarde demais. E

A maior dificuldade de todas era_a,designação de cada unidade, desde um Corpo do Exército a


simples regimentos, cada um corn seu transporte de suprimentos e auxiliares da cavalaria e
artilharia, para suas estradas e linhas de comunicação. Um oficial de suprimentos reclamava: ”Em
vez de ceder a estrada aos carroções de transporte, a infantaria fica marcando tempo nas
encruzilhadas.” Ao mesmo tempo em que recuavam, as unidades tinham que refazer sua formação,
reunir-se em volta de suas bandeiras, informar suas baixas e receber soldados para substituí-las,
companhia por companhia. Entre os oficiais, devotados à doutrina do élan, de general para baixo as
perdas foram severas. Uma das causas da derrocada, na opinião do Coronel 399
Tanant - um oficial do staffdo Terceiro Exército -, era os generais não dirigirem as operações de
seus lugares apropriados na retaguarda, mas liderarem a vanguarda; ”desempenhavam a função de
cabos, não de comandantes”.

Mas por amarga experiência das primeiras batalhas eles tinham aprendido outras táticas. Agora
cavavam trincheiras. Um regimento, trabalhando o dia inteiro em mangas de camisa sob o sol
quente, cavou trincheiras bastante fundas para um homem ficar de pé dentro delas. Outro,
recebendo a ordem de entrincheirar-se e organizar a defesa de um bosque, passou a noite sem
incidentes e tornou a movimentar-se às quatro da manhã, ”quase tristes por partirem sem uma briga
(...) pois a esta altura estamos possuídos pela raiva desta retirada incessante”.

Cedendo o menor território possível, Joffre pretendia tomar posição o mais perto que pudesse do
ponto de penetração: a linha que ele traçou na Ordem Geral Na 2 passava ao longo do Somme,
cerca de
80 quilômetros abaixo do Canal de Mons e do Sambre. Poincaré ficou imaginando se não haveria
um pouco de cegueira no otimismo de Joffre, e havia outros que teriam preferido uma linha mais
abaixo, dando tempo para se solidificar a frente. Desde o dia seguinte à derrocada os homens em
Paris já viam essa cidade como frente de batalha, mas o espírito de Joffre não viajara de volta à
capital e na França não havia quem questionasse Joffre.

O governo estava frenético; segundo Poincaré, os ministros encontravam-se em ”estado de


consternação”; segundo Messimy, os deputados estavam ”em pânico, uma máscara lívida de medo
em seus rostos”. Afastados do contato direto corn a frente de batalha, carecendo de testemunhas
oculares, desinformados quanto à estratégia, dependentes dos comunicados ”lacônicos e ferinos” do
GQG e de boatos, suposições e informações conflitantes, eles eram responsáveis diante do país e do
povo, mas não tinham autoridade sobre a condução militar da guerra. Sob as frases buriladas do
relatório de Joffre, Poincaré distinguia as bordas aguçadas da verdade - ”uma admissão de invasão,
derrota e a perda da Alsácia”. Ele sentia que seu dever imediato era revelar os fatos ao país e
preparar o povo para as ”terríveis dificuldades” que o esperavam; ainda não percebera que a
necessidade mais imediata era preparar Paris para um sítio.

Naquela manhã bem cedo a nudez de Paris revelou-se a Messimy, Ministro da Guerra, quando às
6:00 ele recebeu a visita do General Hirschauer, da Engenharia, encarregado das obras de defesa
^00 e Chefe do staff do General Michel, Governador Militar de Paris. Isso
foi várias horas antes da chegada do telegrama de Joffre, mas Hirschauer já tinha sido informado do
desastre em Charleroi e avaliou de um só golpe a distância entre as fronteiras e a capital. Ele disse
sem rodeios a Messimy que as defesas do perímetro não estavam prontas para serem guarnecidas.
Apesar de estudos complicados, corn previsão de todas as necessidades, ”as fortificações existiam
no papel mas nada tinha sido feito no chão”. A data marcada originalmente para o término das obras
de defesa era 25 de agosto, mas tal era a fé na ofensiva francesa que a data foi adiada para 15 de
setembro.

Por causa da relutância em dar início à destruição de propriedades, cavando trincheiras e


derrubando árvores e casas para fazer campos de fogo, não fora dada qualquer ordem definida para
que essas medidas primordiais fossem tomadas. A construção de bases para os canhões e de postos
de infantaria, a colocação de arame farpado, o corte de madeira para os parapeitos, a preparação de
depósitos para a munição não estavam sequer pela metade, e o aprovisionamento da cidade mal
tinha começado. O General Michel, como Governador Militar e responsável pela defesa,
mostrara-se omisso e ineficiente - talvez permanentemente desencorajado pela rejeição ao seu plano
defensivo em 1911. Sua gestão, que entrou em vigor quando estourou a guerra, logo descambou
para a anarquia e a desorganização. Vendo confirmada a má opinião que tivera de Michel em 1911,
no dia 13 de agosto Messimy convocara o General Hirschauer corn ordens para recuperar os atrasos
e completar as obras de defesa em três semanas. Hirschauer agora confessou que a tarefa era
impossível.

- O palavreado impera - explicou. - Todas as manhãs perco três horas corn relatórios e discussões
que não trazem resultado algum. Cada decisão obriga a um debate. Como simples general de
brigada, mesmo sendo Chefe do staffdo Governador, não posso dar ordens aos generais de divisão
que comandam os setores.

Como era seu hábito, Messimy mandou chamar Gallieni imediatamente, e estava em conferência
corn ele quando chegou o telegrama de Joffre. A primeira frase de Gallieni, responsabilizando pelo
fracasso ”os nossos soldados que não mostraram no campo de batalha as qualidades ofensivas que
se esperava deles”, deprimiu profundamente Messimy, mas Gallieni buscava fatos, distâncias e
nomes de lugares. Declarou friamente:

Resumindo: podemos esperar os exércitos alemães diante dos muros de Paris em doze dias. A
cidade está preparada para agüentar um sítio? r &
401
gjtfí^^^^ TÜ^^

402

Forçado a responder que não, Messimy pediu que Galliení voltasse mais tarde, pretendendo nesse
meio tempo obter do Governo autoridade para nomeá-lo Governador Militar no lugar de Michel.
Logo em seguida ele ficou ”estupefato” ao ser informado por outro visitante - o General Ebener,
representante do GQG no Ministério da Guerra - que Paris perderia duas divisões de reserva
designadas para a sua defesa: a 61a. e a 62a. Divisões: Joffre ia enviá-las para o norte para apoiar
um grupo de três divisões Territoriais que eram as únicas unidades francesas entre os ingleses e o
mar onde os corpos da ala direita de Kluck vinham avançando.

Furioso, Messimy protestou que, como Paris pertencia à Zona do Interior e não à Zona dos
Exércitos, a 61a. e a 62a. estavam sob seu comando e não de Joffre, e não poderiam ser removidas
da guarnição de Paris sem permissão sua, do Primeiro-Ministro e do Presidente da República.
Ebener respondeu que a ordem já se encontrava ”em execução”, e acrescentou, corn certo
constrangimento, que ele próprio deveria ir para o norte comandando as duas divisões.

Messimy partiu às pressas para o Palácio Elysée para falar corn Poincaré, que ”explodiu” ao ouvir a
notícia, mas estava igualmente indefeso. Quando perguntou quais as unidades que ficariam,
Messimy foi obrigado a responder: uma divisão de reserva da cavalaria, três divisões do Exército
Territorial e nenhuma unidade da ativa a não ser alguns soldados e oficiais em depósitos do
exército.

Aos dois homens parecia que o Governo e a capital da França tinham sido deixados sem meios de
defesa e impossibilitados de conseguir alguma ajuda. Só lhes restava um recurso - Gallieni.
Novamente lhe foi pedido para suplantar Michel, como ele, em vez de Joffre, poderia ter feito em
1911.

Aos 21 anos, como segundo-tenente recém-saído de St. Cyr, Gallieni combatera em Sedan e fora
feito prisioneiro, sendo levado para a Alemanha, onde aprendera a língua alemã. Depois, decidira
continuar sua carreira militar nas colônias onde a França estava ”criando soldados”. Embora a
”panelinha” do StuffCollege professasse considerar o serviço colonial ”lê turísme”, a fama de
Gallieni como conquistador de Madagascar levou-o, como a Lyautey de Marrocos, ao topo da
hierarquia do Exército francês. Ele mantinha um bloco de anotações em alemão, inglês e italiano
chamado ”Erinnerungen ofmy life di ragazzo” e nunca deixou de estudar, fosse o russo, o
desenvolvimento da artilharia pesada ou a análise comparativa das administrações das potências
coloniais. Usava um pincenê e um espesso
bigode grisalho que destoava de sua figura elegante e autocrátíca. Postava-se como um oficial num
desfile; alto e esguio, corn ar distante, intocável, levemente grave, não se parecia corn qualquer
outro oficial francês de seu tempo. Poincaré descreveu a impressão que ele dava: ”Alto, magro e
empertigado, corn a cabeça ereta e olhos penetrantes atrás dos óculos, ele nos parecia um exemplo
imponente de poderosa _ humanidade.” l

Aos 66 anos, ele sofria de prostatíte, mal que o mataria em dois l anos, depois de duas
operações. Acabrunhado pela morte da esposa l no mês anterior, e tendo renunciado ao mais
alto posto do Exército l francês três anos antes, ele estava acima das ambições pessoais-um
l homem a quem restava pouco tempo, tão impaciente corn a política * do Exército quanto
corn as rivalidades entre os políticos. Nos meses • que antecederam a guerra - antes de sua
aposentadoria em abril -, l quando as intrigas das ”panelinhas” fervilhavam em torno dele -
l algumas para nomeá-lo Ministro da Guerra ou futuro Comandante- l em-Chefe no lugar de
Joffre, outras para reduzir sua pensão ou afastar ’ seus amigos -, seu diário estava repleto de
insatisfação corn a vida, corn ”essa coisa mesquinha, a política”, corn o ”clã de arrivistas”, corn a
má vontade e ineficiência no Exército e corn a pouca admiração que j sentia por Joffre:
”Quando estava cavalgando passei por ele no Bois hoje - a pé, como sempre. (...) Como é gordo e
pesado! Duvido que ainda dure três anos.” i

Agora, no momento mais grave da França desde 1870, pediamlhe que consertasse um trabalho
malfeito, chamavam-no para defender Paris sem ter um exército. Ele acreditava ser essencial
defender a capital, tanto pelo efeito moral quanto por suas ferrovias, seus suprimentos e sua
capacidade industrial. Sabia muito bem que Paris não poderia ser defendida de dentro, como uma
fortaleza, mas apenas por um exército combatendo fora do seu perímetro - um exército que teria que
vir de Joffre, que por sua vez tinha outros planos.

- Não querem defender Paris - ele declarou a Messimy naquela noite, ao ser formalmente convidado
a tornar-se Governador Militar. - Aos olhos dos nossos estrategistas, Paris é uma expressão
geográfica, uma cidade como outra qualquer. De que poderei dispor para defender este lugar imenso
que guarda o coração e o cérebro da França? De umas poucas divisões Territoriais e uma ótima
divisão da Afnca. Isto é uma gota no oceano! Para que Paris não sofra o destino ae Liege e Namur,
terá que ser cercada num raio de 100 quilômetros, e para isso é necessário um Exército.
Entregue-me um Exército de três m
404

corpos da ativa e aceitarei o cargo de Governador de Paris; sob esta condição formal e
explícita podem contar comigo para defender a cidade.

Messimy agradeceu-lhe corn tanta ef usão, ”apertando-me a mão várias vezes e chegando
até a beijar-me”, que Gallieni ficou convencido, ”por essas demonstrações calorosas, que o
posto que eu passaria a ocupar não era invejável”.

Messimy não sabia como extrair de Joffre sequer um corpo da ativa, muito menos três. A
única unidade da ativa em que ele poderia botar as mãos era a divisão africana mencionada
por Gallieni, a 45a. Divisão de Infantaria de Argel, que, à parte das ordens regulares de
mobilização, fora formada diretamente pelo Ministério da Guerra e agora estava
desembarcando no sul. Apesar dos repetidos telefonemas do GQG reivindicando essa
unidade, Messimy decidiu agarrarse a todo custo a essa divisão ”descansada e esplêndida”,
mas precisava de mais cinco. Obrigar Joffre a fornecê-las pára satisfazer as condições de
Gallieni significaria um choque de autoridade entre o Governo e o Comandante-em-Chefe.
Messimy estremeceu.

No solene e inesquecível Dia da Mobilização ele jurara a si mesmo ”nunca incorrer no erro
cometido em 1870 pelo Ministério da Guerra”, cuja interferência, sob as ordens da
Imperatriz Eugénie, enviou o General MacMahon à marcha sobre Sedan. Juntamente corn
Poincaré ele examinara cuidadosamente os Decretos de’1913 delimitando autoridades em
tempo de guerra, e no ardor do primeiro dia asseverara voluntariamente a Joffre que os
interpretava como entregando a condução política da guerra ao Governo e a condução
militar ao ”domínio exclusivo e absoluto do Comandante-em-Chefe”. Assegurara também
que, segundo sua interpretação, os decretos davam ao Comandante-em-Chefe ”poderes
ampliados” no país como um todo, assim como poder ”absoluto” na Zona dos Exércitos.

- Você é o chefe e nós, os seus auxiliares - declarara.

Não era de se surpreender que Joffre tivesse concordado ”sem discutir”. O Conselho neóílto
de Poincaré e Viviani mostrara-se obedientemente de acordo.

Onde ele iria agora recuperar a autoridade que delegara? Depois de ficar quase até a
meia-noite procurando uma base legal nos Decretos, Messimy agarrou-se a uma frase que
encarregava o Governo civil ”dos interesses vitais do país”. Impedir que a capital caísse nas
mãos do inimigo era certamente um interesse vital do país; mas que forma deveria ter uma
ordem a Joffre? Pelo restante de uma noite inquieta

p
e insone o Ministro da Guerra tentou criar coragem para redigir uma ordem ao
Comandante-em-Chefe.

Depois de quatro horas de esforço, das 2:00 às 6:00, ele conseguiu redigir duas frases, corn a
palavra ”Ordem” no cabeçalho, instruindo Toffre- ”se a vitória não coroar nossos exércitos e eles
forem forçados a recuar, no mínimo três corpos ativos em boas condições deverão ser enviados para
a praça fortificada de Paris. O recebimento desta ordem deverá ser confirmado por escrito.” Enviada
por telegrama, ela foi também entregue em mãos às 11:00 do dia seguinte, 25 de agosto,
acompanhada de uma carta ”pessoal e amistosa” na qual Messimy afirmava: ”A importância desta
ordem não lhe passará despercebida.”

A essa altura, notícias da derrota nas fronteiras e da extensão da retirada espalhavam-se por Paris.
Ministros e deputados clamavam por um culpado; segundo eles, a opinião pública o exigiria. Nas
antecâmaras do Elysée, ouviam-se murmúrios contra Joffre: ”... um idiota (...) incapaz (...) demiti-lo
no ato.” Messimy, como Ministro da Guerra, era também um favorito; ”os grupos de pressão estão
querendo a sua pele”, sussurrou seu ajudante. Nessa crise, era necessário reafirmar a ”sagrada
união” de todos os partidos e fortalecer o ministério de Viviani, ainda novo e bastante fraco. Os
principais líderes políticos do país foram convidados a juntar-se ao governo.

O mais velho deles, o mais temido e respeitado, Clemenceau, o Tigre da França, embora adversário
radical de Poincaré, era a primeira escolha óbvia. Viviani encontrou-o ”de péssimo humor” e sem a
^ menor vontade de juntar-se a um governo que ele calculava que em M duas semanas estaria
derrubado. B

- Não, não contem comigo - declarou. - Em 15 dias vocês B estarão feitos em pedaços, e não
quero ter nada a ver corn isso. B

Depois desse ”paroxismo de paixão” ele rompeu em pranto, r abraçou Viviani, mas insistiu em sua
recusa. Um triunvirato composto por um ex-Premier - Briand -, o mais famoso e experiente
Ministro do Exterior do período de pré-guerra - Delcassé - e um ex-Ministro da Guerra - Millerand -
estava disposto a participar como grupo, mas sob a condição de que Delcassé e Millerand tivessem
de volta suas pastas corn a demissão dos atuais ministros, Doumergue no Ministério do Exterior e
Messimy no Ministério da Guerra.

corn essa constrangedora barganha (conhecida até então somente por Poincaré) pairando sobre suas
cabeças, o Gabinete reuniuse as 10:00 naquela manhã. Os ministros ouviam em imaginação o
troardos canhões e viam os exércitos em fuga desordenada e as tos

l
406

hordas de capacetes pontudos marchando para o sul; porém, tentando manter a dignidade e a calma,
eles seguiram o procedimento de rotina de tratar de assuntos pela ordem. Enquanto discursavam
sobre juros bancários, as intenções russas em Constantínopla e as perturbações no processo judicial
causadas pela convocação dos magistrados, a agitação de Messimy crescia. Após um surto de
otimismo inicial ele agora se aproximava do desespero. Depois das revelações de Hirschauer e corn
os doze dias de Gallieni ressoando em seus ouvidos, ele sentia que ”as horas valiam séculos, e os
minutos valiam anos”. Quando a discussão voltou-se para a diplomacia nos Bálcãs e Poincaré
mencionou a Albânia, ele explodiu.

-A Albânia que vá para o inferno!-berrou, dando um terrível murro na mesa.

Acusou aquele arremedo de calma de ser ”uma farsa ridícula” e, quando Poincaré pediu-lhe que se
controlasse, recusou, dizendo:

- Não sei quanto ao seu tempo, mas o nteu é precioso demais para ser desperdiçado.

Jogou no rosto dos colegas a previsão de Gallieni de que os alemães estariam às portas de Paris no
dia 5 de setembro. O tumulto generalizou-se, todos se puseram a falar ao mesmo tempo; exigia-se o
afastamento de Joffre, e Messimy foi censurado por passar do ”otimismo sistemático ao pessimismo
perigoso”. Um resultado positivo foi a aprovação da nomeação de Gallieni para o lugar de Michel.

Enquanto Messimy voltava para a Rue St. Dominique para demitir Michel de um ministério pela
segunda vez, sua própria demissão estava sendo extraída por Millerand, Delcassé e Briand, que
alegavam ser ele o responsável pelo falso otimismo dos comunicados e por enganar o público; ele
estava ”perturbado e nervoso” e, além disso, queriam seu posto para Millerand. Este, um homem
corpulento, taciturno, de modos irônicos, era um ex-socialista de indubitável coragem e capacidade;
na opinião de Poincaré, ”seu sangue-frio, sua coragem inesgotável” estavam sendo muito
necessários. O Presidente via Messimy ”cada vez mais melancólico”, e como um Ministro da
Guerra que ”prevê uma/grande derrota” não era um colega dos mais desejáveis, concordou em
sacrificá-lo. Os ritos ministeriais seriam seguidos à risca: pedir-se-ia a Messimy e Doumergue para
renunciar e eles tornar-se-iam Ministros sem Pasta; ao General Michel seria oferecida uma missão
junto ao Czar.

Essas ofertas apaziguadoras não foram aceitas pelas vítimas. Michel explodiu quando Messimy
pediu-lhe para renunciar. Protestou em voz alta e zangada e recusou-se obstinadamente a fazer isso.
Igualmente nervoso, Messimy gritou corn Michel: se ele insistisse em sua recusa, iria sair dali, não
para sua própria sala nos Invalides, mas sob guarda, para a prisão militar de Cherche-Midi.
Casualmente Viviani chegou quando os gritos deles ressoavam; acalmou os dois e finalmente
convenceu Michel a ceder.

No dia seguinte, mal tinha sido assinado o decreto oficial nomeando Gallieni ”Governador Militar e
Comandante dos Exércitos de Paris”, chegou a vez de Messimy explodir quando Poincaré e Viviani
pediram a sua renúncia: •

- Recuso-me a entregar meu posto a Millerand, recuso-me a I lhes dar o prazer de me ver
renunciar, recuso-me a ser um Ministro l sem Pasta.

Se eles queriam liberá-lo da ”missão esmagadora” que ele desempenhara no último mês, então o
Governo inteiro teria que renun- l ciar. j

- Nesse caso, tenho um posto de oficial no Exército e uma ordem de Mobilização no bolso. Irei para
a frente de batalha concluiu. l

Nenhum argumento conseguiu convencê-lo. O Governo foi obrigado a renunciar e no dia seguinte
foi reconstituído, corn Millerand, Delcassé, Briand, Alexander Ribor e dois novos ministros
socialistas substituindo cinco membros anteriores, inclusive Messimy. Este foi juntar-se ao Exército
de Dubail como major e serviu na linha de frente até 1918, chegando até o posto de
general-de-divisão. .,

Gallieni, que foi o seu legado à França, ficou sendo ”Coman- B dante dos Exércitos de Paris”
sem ter um Exército. Os três corpos da B ativa que iriam correr como um fio vermelho através
do emaranhado II escuro e confuso dos doze dias seguintes não foram enviados por Joffre. O
Generalíssimo logo detectou no telegrama de Messimy ”a ameaça de interferência do governo
rfâ’condução das operações”. Enquanto estava ocupado recolhendo todas as brigadas possíveis para
recomeçar a batalha no Somme, a idéia de enviar para a capital três corpos da ativa ”em boas
condições” era-lhe tão grata quanto a l idéia de obedecer a ditames ministeriais. Não tendo
intenção de fazer l qualquer das duas coisas, ele ignorou a ordem do Ministério da l
Guerra. l

No dia seguinte, Gallieni enviou o General Hirschauer para l exigir uma resposta.

B ,. ~ Sim’ a ordem está aqui - admitiu seu atendente, o General j eun, dando tapinhas no
cofre. - O Governo está assumindo uma *?/
responsabilidade terrível ao pedir três corpos para defender Paris. Pode ser a origem de uma
tragédia. Paris não tem importância!

Millerand chegou também, para ouvir de Joffre que Paris só poderia ser defendida corn eficácia por
um exército móvel no campo, e nesse momento até seu último homem era necessário para a
manobra e a batalha que decidiriam o destino do país. A contrariedade do Governo e a ameaça a
Paris não o perturbavam; ele afirmou que a perda da capital não significaria o fim da guerra.

Para ocupar o espaço aberto diante da ala direita alemã, seu

objetivo imediato era colocar o novo Sexto Exército em posição. Seu

^ núcleo era o Exército da Lorena, reunido às pressas poucos dias antes

S e lançado à batalha das fronteiras sob o comando do General Mau-

I noury, que tinha sido convocado d a aposentadoria para comandá-lo.

i Maunoury era um veterano esbelto, esguio e delicado, de 67 anos.

Fora ferido em 1870 quando era tenente, e tinha sido Governador

Militar de Paris e membro do Conselho Supremo de Guerra. Joffre

dissera dele: ”É um soldado completo.”

O Exército da Lorena era composto pelo VII Corpo, o mesmo que efetuara a primeira incursão
dentro da Alsácia sob o comando do infeliz General Bonneau, e pelas 55a. e 56a. Divisões de
Reserva que tinham sido destacadas do Exército de Ruffey e estavam demonstrando, como os
reservistas faziam corn freqüência, uma coragem confiável, um dos elementos que sustentavam a
França. No dia em que ? receberam a ordem de transferência para a frente ocidental, essas
duas | divisões estavam engajadas numa acirrada batalha para impedir a l passagem do
Exército do Príncipe-Herdeiro entre Verdun e Toul, o l que veio a ser um dos maiores feitos da
retirada. Exatamente quando sua firme resistência estava sustentando o flanco de uma
contra-ofensiva j pelo Exército de Ruffey na importantíssima bacia do Briey, elas foram l
retiradas de campo para apoiar as tropas fracassadas na esquerda. I Viajaram de trem até Amiens,
passando por Paris, onde foram

l transferidas para as ferrovias do norte, já congestionadas pelas exiI gências da FEB. As


manobras ferroviárias francesas não foram planeI jadas pelos melhores cérebros do
Estado-maior corn a fanática perfeiI cão dos alemães, mas mesmo assim a transferência foi
feita I rapidamente - embora não sem problemas -, por meio do equivalente francês à perfeição
alemã chamado lê systeme D, no qual o ”D” significa se débrouiller - dar um jeitinho. Os soldados
de Maunoury já estavam desembarcando em Amiens em 26 de agosto, mas essa rapidez não foi
suficiente; a frente estava recuando mais depressa do
40g que o novo Exército conseguia manobrar para colocar-se em posição,


e no extremo da linha a perseguição de Von Kluck já alcançara os ingleses.

Se um observador pudesse subir num balão a uma altura que lhe permitisse enxergar toda a fronteira
da França do Vosges a Lille, teria visto uma faixa vermelha, lês pantalons rouges - as calças
vermelhas - de 70 divisões francesas e, junto à ponta esquerda, uma minúscula cunha caqui, as
quatro divisões inglesas. No dia 24 de agosto juntaram-se a elas a 4a. Divisão e a 19a. Brigada
recém-chegadas da Inglaterra, levando a um total de cinco e meia divisões inglesas.

Agora que a manobra de cerco pela ala direita alemã finalmente se tornava óbvia, os ingleses
encontraram-se defendendo um trecho mais importante do que aquele que o Plano 17 tencionava
designarlhes. Não estavam, no entanto, sem apoio para defender a extremidade esquerda da linha de
frente; Joffre enviou às pressas o exausto Corpo de Cavalaria de Sordet para ampliar o grupo de três
divisões Territoriais francesas sob o comando do General d’Amade, grupo esse que ocupava o
espaço entre os ingleses e o mar. Os ingleses receberam ainda o reforço de uma divisão da
guarnição de Lille, que em 24 de agosto foi declarada cidade aberta e evacuada. (Não muito antes, o
General Castelnau dissera: ”Se chegarem até Lille, melhor para nós”...) Para que o plano de Joffre
triunfasse, era essencial que a FEB defendesse o espaço entre Lanrezac e o Sexto Exército ainda em
formação. Dentro da Ordem Geral Nfi 2 Joffre pretendia que a FEB se adaptasse ao ritmo geral da
retirada e, uma vez alcançando o Somme em St. Quentin, firmasse posição ali.

Mas essa não era a intenção dos ingleses. Sir John French, Murray e até mesmo Wilson, o antigo
progenitor entusiasmado do plano, ficaram horrorizados diante do perigo inesperado ameaçando a
sua posição. Não um, nem dois, mas quatro corpos alemães estavam avançando contra eles; o
Exército de Lanrezac estava em plena retirada, descobrindo sua direita; toda a ofensiva francesa
desabara. Sob tais choques, que ocorreram imediatamente depois do primeiro contato corn o
inimigo, Sir John rendeu-se à convicção de que a campanha estava perdida. Seu único pensamento
era salvar a FEB, onde se encontravam quase todos os soldados e oficiais de carreira da Inglaterra.
Ele temia estar na iminência de se ver cercado pela esquerda ou pela direita, através da brecha entre
ele e Lanrezac.

Usando como justificativa a ordem de Kitchener de não arriscar o Exército, ele não pensou mais no
propósito que o levara à França, mas apenas em retirar suas forças da zona de perigo. Enquanto seus

409
soldados recuavam para Lê Cateau, no dia 25 de agosto o Comandante-em-Chefe e a equipe do
Quartel-General foram colocar-se quase 42 quilômetros para irás, em St. Quentin, junto ao Somme.

Os soldados ingleses orgulhavam-se de seu desempenho em Mons, e era corn amargura que se viam
presos a uma retirada sem fim. A ansiedade de seu Comandante em afastá-los do perigo do cerco
pelo Exército de Von Kluck era tamanha que ele não lhes dava descanso. Os soldados se arrastavam
sob o sol inclemente, sem comida e descanso suficientes, caminhavam praticamente dormindo, e
quando paravam adormeciam instantaneamente, de pé.

O Corpo de Smith-Dorrien participou de constantes ações de retaguarda quando se iniciou a retirada


de Mons, e embora a perseguição de Kluck os tenha mantido sob fogo cerrado da artilharia, os
alemães não conseguiram imobilizar os ingleses.

Os soldados alemães sentiam-se em desvantagem, pois acreditavam que os ingleses fossem


peculiarmente aptos para o combate, ”por sua experiência de pequenas guerras”. Reclamavam que
os ingleses ”conhecem todos os truques” e ”sabem como escorregar para longe no último instante”.
No segundo dia, como em Mons, eles ”novamente desapareceram sem deixar traços”.

Alguns ingleses foram obrigados a adotar rotas de retirada não planejadas. Num esforço para
levar-lhes alimentos, o Chefe do Serviço de Intendência da FEB, General ”Wully” Robertson, um
indivíduo pouco convencional que fizera carreira desde soldado raso, ordenou que os suprimentos
fossem deixados nas encruzilhadas. Alguns não foram recolhidos e as informações alemãs sobre
essa comida largada na estrada confirmou no OHL a impressão de um inimigo em fuga
desordenada.

Quando os ingleses chegaram a Lê Cateau, na noite de 25 de agosto, o corpo do Exército de


Lanrezac mais próximo a eles tinha recuado para uma posição alinhada corn a FEB, porém não
mais ao sul que ela. Sir John, no entanto, considerando-se traído pelo que ele chamava de retirada
”de ponta-cabeça”, não estava disposto a tratar coisa alguma corn os franceses. Parecia-lhe ser
Lanrezac, e não o inimigo, a causa de tudo que saíra errado e, ao informar a Kitchener que os
soldados não queriam a retirada, afirmou:

- you explicar a eles que as operações de nossos aliados são a causa disso tudo.

Expediu ordens para que a retirada prosseguisse no dia seguinte


410 para St. Quentin e Noyon. Em St. Quentin, a cerca de 110 quilômetros
l
da capital, as placas de sinalização começavam a informar as distâncias até Paris.

Na tarde do dia 25 de agosto, Smith-Dorrien chegou em Lê Cateau algumas horas à frente de seus
soldados e foi procurar o Comandante-em-Chefe, mas Sir John já tinha partido e só Sir Archibald
Murray, o esforçado Chefe do staff, foi encontrado. Normalmente calmo, equilibrado e pensativo, o
oposto de seu chefe, Murray teria sido um excelente complemento para Sir John se tivesse
temperamento dinâmico; sendo, porém, cauteloso e pessimista por natureza, ele atuava como um
estímulo à depressão de Sir John. Nessa ocasião, exausto, preocupado e trabalhando demais, ele não
tinha notícias para dar a Smith-Dorrien sobre o Corpo de Haig, que era esperado para pernoite em
Landrecie, quase 20 quilômetros a leste de Lê Cateau.

Quando os soldados de Haig entravam em Landrecie, encontraram na estrada um corpo de soldados


usando uniformes franceses, corn um oficial que falou francês quando se identificou. De súbito os
recém-chegados ”sem o menor aviso baixaram as baionetas e atacaram”. Eram parte do IV Corpo
de Von Kluck, que, como os ingleses, deveriam pernoitar aquela noite em Landrecie. O conflito que
se seguiu envolveu cerca de dois regimentos e uma bateria de canhões de cada lado, mas Haig, na
tensão e incerteza da escuridão, julgou estar sob um ”ataque pesado” e telefonou ao
Quartel-General pedin- m^ do ”que mandem ajuda. (...) Situação muito crítica”. E

Ouvindo tais palavras do imperturbável Haig, Sir John French H e sua equipe não poderiam deixar
de acreditar que o I Corpo estava H em grande perigo. Murray, que voltara a juntar-se ao GHQ em
St. H Quentin, sofreu um colapso corn o choque. Ele estava sentado a uma H mesa estudando um
mapa quando um ajudante trouxe-lhe um tele- H grama, e no momento seguinte um oficial percebeu
que ele estava • caído para a frente, desmaiado. Sir John foi igualmente afetado. Seu B
temperamento instável, exageradamente sensível aos outros, por Bi muito tempo vinha sendo
influenciado pelo oficial controlado e mo- B delar que comandava o I Corpo. Em 1899 Haig
emprestara-lhe 2 mil II libras para pagar suas dívidas, quantia sem a qual ele teria que E abandonar
o Exército; agora, quando Haig pediu ajuda, Sir John • French imediatamente enxergou um cerco
ou-pior-uma penetraçao do inimigo entre o I e o II Corpo. Imaginando o pior, o GHQ enviou ordens
alterando a rota de retirada de Haig para o dia seguinte, corn o resultado que o Corpo de Haig
adotou uma rota de marcha «i
na margem do Oise oposta ao Corpo de Smith-Dorrien; o contato direto foi cortado e não foi
restabelecido nos sete dias seguintes.

Além da divisão da FEB, a estimativa exagerada de Haig quanto ao ataque em Landrecie teve outra
conseqüência, desproporcional à sua causa: aumentou o temor de seu velho amigo e impressionável
Comandante, que ficou mais decidido que nunca a livrar o Exército britânico a qualquer custo,
tornando-se muito mais suscetível ao golpe que estava por vir. Pois nesse momento, enquanto a
angustiante noite de 25 de agosto empalidecia na direção do nascente, ele recebeu outra mensagem:
Smith-Dorrien mandava dizer que o II Corpo encontrava-se assediado pelo inimigo a tal ponto que
lhe impedia a fuga, portanto teria que firmar posição e lutar em Lê Cateau. Apavorados, os homens
no GHQ consideraram a batalha já perdida.

O que aconteceu foi que o General Allenby, comandante da Divisão de Cavalaria no flanco de
Smith-Dorrien, descobrira durante a noite que o terreno alto que teria que ocupar para cobrir a
retirada do dia seguinte estava em mãos do inimigo. Sem conseguir entrar em contato corn o GHQ,
às 2:00 da madrugada ele foi consultar SmithDorrien, que passava a noite em Bertry, a cerca de 8
quilômetros de Lê Cateau. Allenby avisou-lhe que o inimigo estava em posição de atacar ao
primeiro sinal de luz do dia, e que se o II Corpo não se pusesse em movimento ”imediatamente e
fugisse na escuridão”, ele seria atacado antes de poder se pôr em marcha. Smith-Dorrien chamou
seus comandantes divisionais, que lhe informaram: alguns homens ainda estavam chegando, muitos
andavam às tontas procurando suas unidades, todos estavam cansados demais para marchar antes de
amanhecer. Informaram também que as estradas estavam atravancadas de refugiados e veículos de
transporte, alguns trechos encharcados por uma forte tempestade recente.

Fez-se silêncio no pequeno aposento. Era impossível sair da cidade imediatamente; ficar onde
estavam e lutar seria uma desobediência às ordens. Como seu quartel-general de campanha não
tinha comunicação telefônica corn o GHQ, o Comandante do Corpo teria que decidir sozinho.
Voltando-se para Allenby, Smith-Dorrien perguntou se o outro aceitaria ordens suas. Allenby disse
que sim.

- Muito bem, senhores, lutaremos - anunciou Smith-Dorrien.

Ele acrescentou que pediria ao General Snow, da recém-chegada IV Divisão, que atuasse também
sob seu comando. Sua mensagem comunicando a decisão foi enviada por automóvel para o GHQ,
onde
412 chegou às 5:00 e provocou consternação.
Henry Wilson, assim como o igualmente exuberante Messimy, passara do entusiasmo ao
derrotismo. Quando desabou o plano ofensivo, do qual ele era o principal arquiteto pelo lado inglês,
Wilson desabou junto - pelo menos momentaneamente -, corn um efeito significativo em seu chefe,
sobre cuja mente mais lenta ele exercia considerável influência. Seus dons de otimismo, born humor
e alegria não podiam ser reprimidos por muito tempo e eram a única coisa a manter à tona o estado
de espírito da equipe nos dias que se seguiram; não obstante, ele agora estava convencido da
calamidade iminente pela qual podia estar se sentido responsável.

Um mensageiro foi enviado de motocicleta para convocar Smith-Dorrien ao telefone mais próximo.

- Se ficar e lutar, haverá outra Sedan - disse-lhe Wilson. De sua posição em St. Quentin, ele garantiu
que o perigo não podia ser grave a ponto de obrigá-lo a tomar posição. - Os soldados que estão
enfrentando Haig não poderão lutar contra você também.

Smith-Dorrien mais uma vez explicou pacientemente as circunstâncias e acrescentou que de


qualquer maneira seria impossível partir, pois a ação já começara e ele escutava os tiros enquanto
conversavam.

- Boa sorte para você - respondeu Wilson. - A primeira voz otimista que escuto em três dias é a sua.

Durante onze horas, no dia 26, o II Corpo e uma e meia divisão do General Snow combateram em
Lê Cateau numa ação de retaguarda como as que os exércitos franceses estavam efetuando naquele
e em todos os outros dias da retirada. Von Kluck dera ordens para que naquele dia prosseguisse ”a
perseguição ao inimigo vencido”. Como o mais devotado discípulo do preceito de Schlieffen -
”esbarrar no canal corn a manga” -, ele ainda estava desviando sua rota para o ocidente e, para
completar o cerco aos ingleses, ordenou que seus dois corpos da ala direita rumassem para o
sudoeste em marcha forçada.

Como resultado, esses corpos jamais entraram em ação contra os ingleses, e se defrontaram corn
”poderosas forças hostis francesas”. Tratava-se dos Territoriais de Amade e da Cavalaria de Sordet,
a quem Smith-Dorrien informara de sua dificuldade e que barraram o caminho que cercaria o flanco
inglês. Smith-Dorrien reconheceu mais tarde que o atraso que isso causou aos alemães e ”a corajosa
frente formada por esses Territoriais foram de vital importância para nós, pois caso contrário era
quase certo que teríamos tido outro Corpo contra nós no dia 26”.
413
Na ala esquerda de Von Kluck, informações erradas ou manobras malfeitas mantiveram outro dos
seus Corpos fora de alcance; assim, embora ele tivesse superioridade numérica, na realidade não
dispunha em Lê Cateau de mais que três divisões de infantaria para combater as três divisões e meia
de Smith-Dorrien. Tinha, no entanto, reunido a artilharia de cinco divisões, e abriu fogo ao
amanhecer. Das trincheiras rasas, cavadas às pressas por civis inexperientes - inclusive mulheres -,
os ingleses repeliram os assaltos da infantaria alemã corn sua fuzilaria rápida e mortal. No entanto,
os alemães avançavam, jogando onda após onda de homens contra os ingleses. Num determinado
setor, cercaram uma companhia de Argyll82 cujos soldados mantiveram a fuzilaria, ”derrubando
homem após homem e contando em voz alta” enquanto os alemães ”ficavam soando o Cessar Fogo
dos ingleses e gesticulando para convencer os homens a se renderem, mas em vão”, até finalmente
arremeterem e dominarem os ingleses.

A linha sofreu outros rompimentos terríveis. Encerrar o combate era a parte mais difícil, e ainda
estava por ser efetuada; às 17:00 Smith-Dorrien achou que estava na hora. Era agora, ou nunca
mais. Por causa dos espaços vazios na linha, do grande número de baixas e da infiltração inimiga
em certos pontos, a ordem de cessar o combate e recuar não chegou a todas as unidades ao mesmo
tempo. Algumas mantiveram a posição por muitas horas mais, disparando incessantemente, até
serem forçadas a recuar ou fugir na escuridão. Uma unidade - os Gordon Highlanders - não chegou
a receber a ordem e, corn exceção de uns poucos que conseguiram escapar, deixou de existir como
batalhão. As baixas naquele dia apenas, nas três divisões e meia que lutaram em Lê Cateau, ficaram
acima de 8.000 homens e
38 canhões, mais que o dobro de Mons e igual à taxa de 20% de baixas que os franceses sofreram
em agosto. Entre os desaparecidos havia alguns que passariam os quatro anos seguintes em campos
de prisioneiros na Alemanha.

Por causa da escuridão, da fadiga das marchas forçadas, do grande número de baixas e do
desconcertante hábito inglês de ”esgueirar-se e sumir senyserem vistos”, os alemães não deram
perseguição imediata. Kluck deu ordem de alto até o dia seguinte, quando ele esperava que os
corpos da sua ala direita efetuassem a manobra de cerco. Ao decidir fazer meia-volta e enfrentar um
inimigo superior, Smith-Dorrien conseguira impedir o cerco planejado e a destruição

Irgyü: antigo con da Escócia, incluindo várias ilhas das Hébridas. (N. de
Quando chegou a St. Quentin, ele descobriu que o GHQ tinha partido ao meio-dia-enquanto a
batalha pela salvação ou destruição da FEB ainda estava em progresso - para Noyon, cerca de 32
quilômetros para trás. Os soldados que estavam na cidade não tinham ficado muito animados ao
verem os chefes do seu Exército partindo para o sul enquanto os canhões disparavam ao norte. Na
opinião inevitável de um compatriota, ”A verdade é que no dia 26 Lord French e sua equipe
perderam completamente a cabeça”. Sir Douglas Haig, que a essa altura já recuperara a sua,
perguntou:

- Não temos notícia do II Corpo, a não ser pelo estrondo de canhões na direção de Lê Cateau. OI
Corpo seria de alguma ajuda?

O GHQ estava paralisado demais para responder. Não obtendo ali resposta alguma, Haig tentou
falar diretamente corn Smith-Dorrien, dizendo que estava ouvindo o som da batalha e que, como
conseqüência do afastamento dos dois corpos, ”não temos a menor idéia de como podemos
ajudá-lo”. Quando ele conseguiu enviar a mensagem, a batalha já tinha terminado. Enquanto isso, o
GHQ tinha dado o II Corpo como perdido. O Coronel Huguet, ainda como oficial de ligação,
refletia o estado de espírito do GHQ num telegrama que enviou a Joffre às 20:00: ”Batalha perdida
pelo Exército inglês, que parece ter perdido a coesão”.

À 1:00 da madrugada, Smith-Dorrien, tendo estado em combate durante os últimos quatro dos seis
dias que estava na França, chegou a Noyon e encontrou todos no GHQ deitados, dormindo. Sir John
French foi despertado e apareceu de camisola; vendo Smith-Dorrien vivo e corn informações de que
o II Corpo não estava perdido, mas salvo, repreendeu-o por ter uma opinião otimista demais da
situação. Tendo sofrido um grande susto, Sir John agora entregou-se à raiva, mais forte ainda
porque desde o início ele desaprovara a nomeação de Dorrien em lugar da pessoa de sua^escolha; o
sujeito nem pertencia à cavalaria, e em Lê Cateau resolvera desobedecer ordens do EstadoMaior!
Embora Sir John fosse obrigado a reconhecer nos despachos oficiais83 que isso tinha resultado na
”salvação da ala esquerda”, ele não se recuperou logo do susto.

83 O despacho diz: ”A salvação da ala esquerda do Exército sob meu comando na manhã de 26 e agosto jamais poderia ter sido
conseguida se não estivesse presente para conduzir a operação um comandante de rara e incomum frieza, intrepídez e determinação.”
Tendo evidentemente intdl ”c” ”SS’”ado esse relattír’o em um dos extremos das oscilações de seu temperamento Sm-thr, • ^°hn retornou
deP°is a antipatia, não descansou enquanto não conseguiu que /íml ”17?fosse afastado e 1915 e continuou sua malévola vingança
publicamente, no livro que publicou depois da guerra. (Nota da Autora.) ’ ’
416

As perdas de Lê Cateau pareciam ainda maiores do que eram na realidade, pois vários milhares de
soldados dados como desaparecidos tinham se mesclado à fila de refugiados que se arrastava atrás
do exército em retirada - ou conseguiram atravessar as linhas alemãs, alcançar Antuérpia e de lá a
Inglaterra, e retornaram à França para finalmente tornar a juntar-se ao Exército inglês. O total de
baixas na FEB nos cinco primeiros dias de ação foi pouco menos de 15.000. Elas aumentaram a
ansiedade do Comandante-em-Chefe em levar seu Exército para fora do combate, fora do perigo,
fora da França.

Enquanto estava em curso a batalha de Lê Cateau, Joffre convocou em St. Quentin uma reunião
corn Sir John French, Lanrezac e seus staffs para explicar as instruções da Ordem Geral Na 2.
Quando Joffre iniciou a reunião corn uma educada pergunta sobre a situação do Exército britânico,
Sir John reagiu corn uma tirada agressiva, dizendo que ele tinha sido violentamente atacado por
números superiores, que sua esquerda estava ameaçada de cerco, sua direita ficara a descoberto por
causa da retirada frenética de Lanrezac e seus soldados estavam cansados demais para retomar a
ofensiva. Joffre, que acreditava acima de tudo em manter uma aparência calma diante dostaff, ficou
chocado corn o ”torn excitado” do Marechal-de-Campo. Lanrezac, a quem Henry Wilson fez uma
tradução bastante suavizada dos comentários de seu chefe, apenas deu de ombros. Não podendo dar
ordens a Sir John, Joffre expressou a esperança de que o Comandante inglês concordasse corn o
plano contido na Ordem Geral do dia anterior.

Sir John manteve uma expressão impassível e disse que não sabia coisa alguma dessa Ordem.
Murray, depois do colapso que sofrerá na véspera, estava ausente. Vários olhares franceses, atônitos
e interrogadores, voltaram-se para Wilson, que explicou que a Ordem tinha sido recebida durante a
noite e ainda não fora ”estudada”. Joffre explicou seu conteúdo, mas corn uma confiança
visivelmente decrescente. A discussão empacou, as pausas ficaram maiores, o constrangimento
ficou insuportável e a reunião terminou sem que se tivesse obtido a concordância dos ingleses para
uma ação conjunta. Acabrunhado pela sensação de ”fragilidade” em sua ala esquerda, Joffre voltou
para o GHQ, onde soube de novas deficiências em todas as frentes e desânimo em todos os níveis,
inclusive no staff. Finalmente, no final do dia, recebeu o telegrama negro de Huguet informando
que o Exército inglês perdera a coesão.

Von Kluck tinha a mesma impressão: suas ordens para o dia 27 eram para ”cortar o caminho dos
ingleses, que estavam em plena fuga para o oeste”. Além disso, ele informou ao OHL que estava
prestes a
reunir ”todas as seis” divisões inglesas (só havia cinco na França) e que ”se os ingleses ficarem em
suas posições no dia 27, o cerco duplo ainda pode trazer uma grande vitória”. Essa brilhante
perspectiva, surgindo no dia seguinte à queda de Namur e coincidindo corn o relatório de Bülow
segundo o qual seu oponente-o Quinto Exército francês - também era um ”inimigo derrotado”,
confirmou no OHL a impressão de uma vitória iminente. ”Os exércitos alemães entraram na França
de Cambrai ao Vosges, depois de uma série de combates sempre vitoriosos”, anunciava o
comunicado oficial do OHL no dia
27 de agosto. ”O inimigo, derrotado ao longo de toda a linha, está batendo em retirada (...) e não
tem capacidade para oferecer uma resistência séria ao avanço alemão.”

Em meio ao entusiasmo geral, Von Kluck recebeu sua recompensa. Quando ele se revoltou
furiosamente contra a ordem de Von Bülow de investir sobre Maubeuge, coisa que afirmava ser
dever de Von Bülow, e exigiu saber se deveria continuar subordinado, o OHL restaurou sua
independência, no dia 27 de agosto. Assim foi abandonada a tentativa, que causara tanto atrito, de
manter os três exércitos da ala direita sob um único comando; como o resto do caminho para a
vitória parecia fácil, no momento isso não pareceu importante.

Von Bülow, no entanto, ficou imensamente contrariado. No centro da ala direita ele era
constantemente atormentado pela recusa de seu vizinho em manter o mesmo passo. Ele advertira ao
OHL que os atrasos de Von Hausen já tinham criado ”um lamentável espaço vazio” entre o
Segundo e o Terceiro Exércitos. O próprio Von Hausen, cuja principal preocupação, depois de seu
respeito pela nobilidade, era uma apaixonada atenção às amenidades oferecidas nos pernoites,
estava igualmente contrariado: em 27 de agosto, sua primeira noite na França, não havia um castelo
disponível para ele e para o Príncipe-Herdeiro da Saxôràa, que o acompanhava. Tiveram que dormir
na casa de um sous-préfet (vice-prefeito), que fora deixada em total desordem; ”nem mesmo as
camas tinham sido arrumadas!”.

A noite seguinte foi pior: ele teve que suportar alojamentos na casa de um Monsieur Chopin, um
camponês! O jantar foi magro, os aposentos ”pouco espaçosos” e o sfo/fteve que se acomodar na
reitoria próxima, cujo pároco tinha ido para a guerra. A velha mãe do camppruo, que parecia um
bruxa, não saía de perto, ”desejando que fossemos todos para o diabo”. Faixas vermelhas no céu
mostravam que Rocroi, por onde seus soldados tinham acabado de passar, estava

em chamas.

l
417
»*• Felizmente a noite seguinte foi passada na casa lindamente mobiliada de um rico industrial
francês que estava ”ausente”. Ali o único desconforto que Hausen sofreu foi a visão de um muro
coberto por pereiras cobertas de peras que ”infelizmente não estavam cornpletamente maduras”. No
entanto, ele deleitou-se corn uma gostosa reunião corn o Conde Munster, o Major Conde
Kilmansegg, o Príncipe Schoenburg-Waldenburg dos Hussardos e o Príncipe Max, duque de Saxe,
que atuava como Capelão católico e a quem Von Hausen teve oportunidade de dar a boa notícia de
que acabara de receber por telefone os melhores votos de sua irmã, a Princesa Mathilda, para o
sucesso do Terceiro Exército.

Von Hausen queixava-se de que seus saxões estavam em marcha havia dez dias através de território
hostil, sob intenso calor e muitas vezes em combate. Os suprimentos não estavam conseguindo
acompanhar o avanço - faltavam carne e pão, os soldados tinham que alimentar-se corn as criações
do caminho, os cavalos não tinham ferragem suficiente e mesmo assim ele conseguira uma média
de marcha de 23 quilômetros por dia.

Na realidade, essa era a menor velocidade que se exigia dos exércitos alemães. O Exército de Von
Kluck, na borda do círculo, cobria 30 quilômetros ou mais por dia, e em algumas marchas forçadas
chegava a 40 quilômetros. Ele conseguia isso fazendo os homens dormirem ao longo da beira da
estrada em vez de espalhá-los à direita e à esquerda, e assim economizava seis ou sete quilômetros
por dia.

À medida que as linhas de comunicação se alongavam e os soldados afastavam-se mais das


ferrovias, o suprimento de comida passou a falhar. Os cavalos devoravam os cereais diretamente
nas plantações, e os homens marchavam o dia inteiro comendo apenas cenouras e repolhos crus.
Tão encalorados, cansados e de pés doendo como os inimigos, os alemães estavam cada vez mais
famintos, mas até então mantinham o cronograma.

No dia 8 de agosto, na metade do caminho entre Bruxelas e Paris, Von Kluck teve a alegria de
receber um telegrama do Kaiser expressando ”minha imperial gratidão às decisivas vitórias” do
Primeiro Exército e congratulações por estar chegando perto do ”coração da França”. Naquela
noite, à luz das fogueiras, as bandas regimentais tocaram a canção da vitória, ”Heil dir im
Siegeskranz” e, como um dos oficiais de Von Kluck registrou em seu diário, ”a canção foi cantada
por milhares de vozes. Na manhã seguinte retomamos nossa marcha, corn a esperança de
comemorarmos diante de Paris o aniversário de ife Sedan”.
No mesmo dia, ocorreu a Von Kluck uma idéia nova e tentadora, que antes do final da semana
deixaria sua marca na História. As missões de reconhecimento mostravam que o Quinto Exército
francês, recuando diante de Von Bülow, movia-se numa direção sudoeste que o colocaria diante da
sua Unha de marcha. Ele viu aí uma oportunidade de ”encontrar o flanco desse exército (...) forçá-lo
a distanciar-se de Paris e cercá-lo”, um objetivo que agora lhe parecia mais importante do que cortar
o , caminho dos ingleses para o litoral. He propôs a Von Bülow que os dois l exércitos
fizessem ”um giro para dentro”. Antes que se pudesse decidir | alguma coisa, chegou um
oficial da OHL corn uma nova Ordem alemã para todos os sete Exércitos.

Inspirado por um ”sentimento universal de vitória”, segundo o Príncipe-Herdeiro, o OHL não


obstante tomara conhecimento da transferência de forças francesas da Lorena e agora pedia ”um
avanço rápido para impedir a reunião de novos corpos de soldados e para j tirar do país todo o
possível do que eles possam usar para continuar a luta”. O Exército de Kluck deveria avançar para o
Sena a sudoeste de Paris, e o de Bülow, diretamente sobre Paris; Hausen, o Duque de Württemberg
e o Príncipe-Herdeiro deveriam levar seus Exércitos respectivamente para o Marne a leste de Paris,
para Château Thierry, Épernay e Vitry-le-François.

O OHL deixou bastante vago o rompimento da linha francesa de fortalezas pelos Sexto e Sétimo
Exércitos sob o comando do Príncipe Rupprecht, mas esperava que eles atravessassem o Moselle
entre Toul e Epinal ”se o inimigo recuar”. A velocidade era ”urgentemente necessária”, para não
deixar à França tempo para reagrupar e organizar a resistência. Lembrando-se de 1870, o OHL
ordenou ”severas medidas contra a população, para quebrar o mais rápido possível ,
qualquer resistência por parte dos/ranc-ízrewrs” e para impedir uma j ”sublevação nacional”.
Esperava-se uma forte resistência do inimigo i no Aisne e então, recuando, no Marne. O OHL
concluía repetindo a nova idéia de Von Kluck: ”Isto pode requerer que os exércitos façam um giro
do sudoeste para o sul.”

corn exceção dessa sugestão, a Ordem de 28 de agosto seguia o plano de guerra original, mas os
exércitos alemães que o levariam a cabo já não eram os mesmos. Tinham perdido cinco corpos, o
equivalente a um exército inteiro: Von Kluck deixara para trás dois corpos de reserva para atacar
Antuérpia e manter a posse de Bruxelas e outras partes da Bélgica; Bülow e Hausen tinham perdido
um corpo cada um na frente russa: algumas brigadas e divisões tinham ficado para atacar «9
Givet e Maubeuge. Para cobrir a distância planejada, corn o Primeiro Exército passando a oeste de
Paris, a ala direita teria que espalhar-se numa densidade ainda menor, ou então permitir que
surgissem brechas entre os exércitos que a compunham.

Isso já acontecia: no dia 28 de agosto, Von Hausen, puxado para a esquerda pelo Exército do Duque
de Württemberg, que estava em sério combate ao sul de Sedan e pedindo ”ajuda imediata”, não
conseguiu manter-se alinhado corn Von Bülow à sua direita e em vez disso pediu que Von Bülow
cobrisse seu flanco direito. Os dois corpos que deveriam estar na junção desses dois exércitos
estavam a caminho deTannenberg.

Em 28 de agosto o OHL começava a sentir os primeiros assomos de preocupação. Moltke, Stein e


Tappen discutiram ansiosamente se deviam enviar reforços dos exércitos de Rupprecht para a ala
direita, mas não conseguiam desistir da tentativa de atravessar a linha francesa de fortalezas. A
perfeita Batalha de Canas corn que Schlieffen sonhara e à qual renunciara, o cerco duplo pela ala
esquerda através da Lorena simultaneamente corn a ala direita em volta de Paris, agora parecia
possível. Os golpes de Rupprecht caíam sobre Épinal; seus exércitos estavam às portas de Nancy e
esmurravam os muros de Toul. Desde a queda de Liège, as fortificações tinham ”perdido seu
prestígio”, como afirmara o Coronel Tappen, e todo dia parecia ser aquele em que Rupprecht
conseguiria romper a linha.

De qualquer maneira, a destruição das ferrovias belgas tornava impraticável a transferência, e o


OHL tinha convencido a si mesmo de que era possível forçar o Desfiladeiro de Charmes entre Toul
e Épinal e possibilitar, nas palavras de Tappen, ”o cerco em grande estilo dos exércitos inimigos e,
em caso de sucesso, um fim para a guerra”. Conseqüentemente, a ala esquerda, sob o comando de
Rupprecht, foi mantida corn toda a sua força de 26 divisões, mais ou menos igual ao número
reduzido dos três exércitos da ala direita. Essa não era a proporção que Schlieffen tinham em mente
quando murmurou, ao morrer: ”Apenas não deixem de fortalecer a ala direita.”

Os olhos do mundo^ acompanhando o drama na Bélgica, estavam fixos no curso da guerra entre
Bruxelas e Paris. O público mal tomava conhecimento de que durante todo esse tempo ocorria na
Lorena uma luta mais longa e mais feroz, para forçar as portas orientais da França: ao longo de 130
quilômetros da linha de frente, de Épinal a Nancy, dois exércitos alemães enfrentavam os exércitos
,„ de Castelnau e Dubail num combate quase estático.
420 * ’, 5MKJMMSSSÍÍS.
No dia 24 de agosto, tendo reunido 400 canhões corn os que chegaram do arsenal de Metz,
Rupprecht desfechou uma série de violentos ataques. Os franceses, agora voltando toda a sua
capacidade para a defesa, tinham se entrincheirado e preparado uma série de improvisados e
engenhosos abrigos contra os projéteis. Os ataques de Rupprecht não conseguiram desalojar o XX
Corpo de Foch defronte a Nancy, porém mais ao sul conseguiu atravessar o Mortagne, o
5 último rio antes do Desfiladeiro de Charmes.

De imediato os franceses viram a oportunidade para um ataque de flanco, dessa vez corn preparação
da artilharia. Os canhões de campo foram trazidos durante a noite e na manhã do dia 25, a ordem de
Castelnau - ”En avant! Partout! Àfond!” - lançou suas tropas na sofensiva. O XX Corpo desceu
disparado da crista do Grand Couronné e retomou três cidades e 16 quilômetros de território. À
direita, o Exército de Dubail ganhou o mesmo avanço em um dia de furioso combate. O General
Maud’huy, comandante divisional dos Caçadores Alpinos, passando a tropa em revista antes da
batalha, fez corn que os soldados cantassem o valente refrão de ”La Sidi Brahim”:

Marchons, marchons, marchons, Contre lês ennemis de Ia France!

O dia terminou corn muitas unidades dispersas e mutiladas sem saber se tinham tomado
Clezentaine, seu objetivo. O General Maud’huy, a cavalo, ao ver uma companhia de homens
fatígados, cobertos de suor, procurando seus alojamentos, estendeu o braço e apontou para a frente,
bradando:

- Chasseurs, durmam na aldeia que conquistarem! | Durante três dias de combate sangrento e
implacável, a batalha |pelo Desfiladeiro de Charmes e pelp. Grand Couronné continuava, |chegando
ao clímax no dia 27. Joffre, nesse dia, cercado por melancojlia e desânimo e pouco disposto a
encontrar algo para elogiar, parafbenizou a ”coragem e tenacidade” do Primeiro e do Segundo
Exércijtos, que, desde as primeiras batalhas na Lorena, tinham lutado |iurante duas semanas sem
descanso e corn ”uma confiança tenaz e Inabalável na vitória”. Eles lutaram corn todas as forças
para manter vá porta fechada contra o aríete do inimigo, sabendo que se ele Conseguisse entrar por
ali a guerra estaria terminada. Nada cofiheciam da Batalha de Canas, mas conheciam Sedan e a
manobra :íue cerco.

l
421

jjjl
A necessidade de defender a linha de fortalezas era vital, mas a situação na sua esquerda era ainda
mais perigosa, e forçava Joffre a retirar de seus exércitos na frente oriental um dos principais
elementos de sua energia: Foch, símbolo da ”vontade de vencer”, de quem Joffre agora necessitava
para enrijecer a vacilante frente esquerda.

Uma perigosa brecha abrira-se entre o Quarto e o Quinto Exércitos e agora estendia-se por 48
quilômetros. Ela surgira quando o General Langle do Quarto Exército, não querendo deixar os
alemães atravessarem o Meuse sem luta, agarrou-se às margens altas ao sul de Sedan e deteve o
Exército do Duque de Württemberg num feroz combate de três dias, de 26 a 28 de agosto. Langle
sentia que o desempenho de seus soldados na batalha do Meuse vingaria sua derrota nos Ardennes.
Porém sua posição foi mantida à custa de perder contato corn o Exército de Lanrezac, que
prosseguia em sua retirada corn seu flanco no lado do Quarto Exército a descoberto. Foi para
ocupar essa brecha que Joffre mandou Foch, dando-lhe o comando de um exército especial de três
corpos, tirados parte do Terceiro e parte do Quarto Exércitos84. No mesmo dia em que recebeu a
ordem, Foch ficou sabendo que seu único filho, o Tenente Germain Foch, e seu genro, o Capitão
Bécourt, tinham sido ambos mortos no Meuse.

Mais para o oeste, na área ocupada por Lanrezac e os ingleses, Joffre ainda esperava amarrar a
frente de combate ao Somme mas, como o alicerce de um castelo de areia, a linha não cessava de
escorregar para trás. O Comandante-em-Chefe inglês recusava-se a prometer que permaneceria na
linha de frente - sua cooperação corn Lanrezac reduzira-se ao mínimo. O próprio Lanrezac, em
quem Joffre estava perdendo a fé, não parecia mais confiável. Embora em agosto Joffre tivesse
afastado generais aos punhados, ele hesitava em demitir um general corn a reputação de Lanrezac.
Sua equipe ainda estava procurando quem pudesse ser considerado pessoalmente culpado pelo
fracasso da ofensiva. ,

-Tenho na minha pasta as cabeças de três generais-informou um oficial do staffao voltar de uma
missão à frente de batalha.

Não era tão fácil descartar Lanrezac. Joffre acreditava que o Quinto Exército precisava de um líder
mais confiante, mas afastar um

84 Conhecido como o Destacamento Foch até 5 de setembro de 1914, quando transformou-se


424 no Nono Exército. (Nota da Autora.)
comandante no meio da retirada podia afetar o moral dos soldados. A um ajudante ele confessou
que o problema já lhe causara duas noites de insônia - a única situação em toda a guerra que lhe
provocou tão grave incômodo.

Enquanto isso, a 61a. e a 62a. Divisões de Reserva de Paris, que deveriam juntar-se ao novo Sexto
Exército, perderam o rumo; seu comandante, o General Ebener, passara o dia inteiro procurando,
mas ninguém sabia o que fora feito delas. Temendo que a área em que o Sexto Exército
desembarcaria estivesse prestes a ser conquistada, Joffre ordenou que o Quinto Exército fizesse
meia-volta e contraatacasse. Isto requeria uma ofensiva na direção oeste, entre St. Quentin e Guise;
o Coronel Alexandre, oficial de ligação corn o Quinto Exército, levou a ordem verbalmente ao
quartel de Lanrezac, depois a Marle, cerca de 40 quilômetros a leste de St. Quentin.

Ao mesmo tempo, num esforço para aplacar o ressentimento e revigorar o entusiasmo de Sir John
French, Joffre enviou-lhe um telegrama expressando a gratidão do Exército francês pela ajuda
corajosa por parte de seus camaradas ingleses. Mal o telegrama foi despachado, ele soube que os
ingleses tinham evacuado St. Quentin, deixando a descoberto o flanco de Lanrezac justamente
quando este devia atacar.

Segundo outra das declarações melodramáticas de Huguet, a FEB estava ”vencida e incapaz de
qualquer esforço sério”, corn três de suas cinco divisões incapacitadas de voltar ao combate a não
ser que fossem muito bem equipadas e descansassem o suficiente isto é, ”por alguns dias, até
mesmo algumas semanas”. Como Sir John French estava informando a mesma coisa, quase nas
mesmas palavras, a Kitchener, não se pode culpar Huguet por refletir o estado de espírito dos chefes
ingleses e não aquele dos soldados ou os fatos reais. Logo depois dessa mensagem, chegou uma do
Coronel Alexandre dizendo que Lanrezac estava relutando diante da ordem de ataque.

Embora muitos de seus oficiais tenham aceito a ordem corn entusiasmo, o próprio Lanrezac
considerava-a ”quase uma insanidade”, e disse isso. Enfrentar o Quinto Exército era convidar o
inimigo a atacar seu flanco direito descoberto; ele acreditava ser necessário cessar inteiramente o
combate e recuar mais, para Laon, antes que se pudesse estabelecer uma linha firme e contra-atacar
corn alguma chance de sucesso. Um ataque naquele momento, na direção ordenada por Joffre, iria
obrigá-lo a fazer meia-volta corn um exército semi- 425
desorganizado, numa manobra complicada, levando-se em conta a sua posição e a ameaça à sua
direita. O Comandante Schneider, seu Chefe de Operações, tentou explicar a dificuldade ao Coronel
Alexandre, que expressou incredulidade:

- Como? Por quê? Nada poderia ser mais simples! Você está de frente para o norte; nós estamos lhe
pedindo que vire de frente para o oeste, para atacar de St. Quentin.

corn um gesto da mão, cinco dedos erguidos representando os cinco corpos, ele descreveu no ar
uma curva em ângulo reto.

- Não diga asneiras, mon colonell - explodiu Schneider, exasperado.

f - Bem, se o senhor não quer...

O Coronel Alexandre terminou a frase dando de ombros, num gesto de desprezo que fez corn que
Lanrezac perdesse a paciência e expusesse, corn muitos detalhes e pouco tato, sua opinião sobre a
estratégia do GQG. A essa altura a sua confiança em Joffre e no GQG era comparável à deles nele.
Tendo numa ala um general estrangeiro independente, que se recusava a atuar em conjunto, e na
outra um flanco desprotegido (o destacamento de Foch só começou a se formar dois dias depois, 29
de agosto), e sendo agora convocado para uma contra-ofensiva, Lanrezac estava sofrendo uma
tensão severa. Ele não tinha um temperamento que fosse impulsionado pela tensão; encarregado de
uma missão tão importante para a França e não tendo confiança nas decisões de Joffre, ficava
paralisado, e desafogava seus sentimentos corn o mau humor e a cáustica rudeza pelos quais já era
conhecido antes da guerra. Ele expressou sua falta de respeito para corn Joffre, a quem chamou de
”sapador”, um mero soldado da engenharia.

- Encontrei o General Lanrezac rodeado por vários oficiais contou um oficial do staff de outro
corpo, que foi visitá-lo. - Ele parecia estar extremamente contrariado, e expressou-se numa
linguagem violenta. Não mediu palavras em sua crítica ao GQG e aos nossos aliados. Estava corn
muita raiva do GQG e dos ingleses. Resumindo o que ele disse: só queria que o deixassem em paz,
que ele ia recuar até onde fosse necessário, ia escolher a hora certa e então ia chutar o inimigo de
volta para o lugar de onde ele veio.

Nas palavras do próprio Lanrezac: ”Eu sentia uma ansiedade tão terrível que nem tentei escondê-la
do staff.”

Mostrar ansiedade diante de subordinados já era bastante ruim; e6 aumentar a ofensa, criticando
publicamente o GQG e o Generalís-
simo, sentenciou à morte os dias de comando de Lanrezac. Na manhã seguinte, 28 de agosto, bem
cedo, Joffre apareceu em pessoa em Marle, onde encontrou Lanrezac exausto, de olhos injetados,
objetando corn gestos nervosos ao plano de contra-ofensiva. Quando Lanrezac insistiu novamente
no risco de um ataque inimigo pela direita enquanto todo o seu exército estava voltado para o oeste,
Joffre teve um repentino ataque de raiva e gritou:

- Quer ser retirado do comando? O senhor terá que marchar sem discutir. O destino da guerra está
em suas mãos.

Esta explosão espetacular reverberou até mesmo em Paris, crescendo pelo caminho, de modo que
quando chegou, no dia seguinte, ao diário de Poincaré, foi registrada como uma ameaça de Joffre de
mandar executar Lanrezac se este hesitasse ou não cumprisse a ordem de ataque.

Convencido do erro do plano, Lanrezac recusou-se a se mexer sem uma ordem escrita. Mais calmo,
Joffre concordou; ditou a ordem ao Chefe do staff de Lanrezac e assinou-a. Na opinião de Joffre,
um comandante que conhecia suas ordens e seu dever não podia ter mais motivos para inquietação,
e ele podia ter dito a Lanrezac o que um dia diria a Pétain quando lhe deu ordem de defender
Verdun sob o maior bombardeio da História: ”Eh bien, mon ami, maintenant vous êtes
tranquttle”85.

Nada tranqüilo, Lanrezac aceitou sua missão mas insistiu que só estaria pronto na manhã seguinte.
Durante todo o dia, enquanto o Quinto Exército estava sendo virado de lado numa transferência
complicada de corpos passando uns pela frente dos outros, o GQG mandava mensagens pedindo
pressa, até que Lanrezac, furioso, instruiu sua equipe a não atender o telefone.

No mesmo dia, os líderes britânicos estavam levando a FEB para o sul corn tanta pressa que os
soldados ficaram sem o descanso, muito mais necessário a eles do que distandar-se do inimigo.
Nesse dia, 28 de agosto, as colunas de Von Kluck não lhes deram trabalho, mas Sir John French e
até mesmo Wilson estavam tão ansiosos em apressar a retirada que ordenaram que os carroções de
transporte ”jogassem fora toda a munição e outros equipamentos que não fossem absolutamente
necessários” e carregassem homens.

Desfazer-se da munição significava abandonar a guerra; como a FEB não estava combatendo em
solo inglês, seu Comandante estava

85 ”Bem, meu amigo, agora pode ficar tranqüilo.” (N. da T.)

427
pronto para retirar suas forças da linha de batalha sem qualquer consideração quanto ao efeito disso
sobre seu aliado. O Exército francês perdera a batalha inicial e estava numa situação séria, até
mesmo desesperada, na qual todas as divisões seriam necessárias para evitar a derrota. Mas a linha
não tinha sido trespassada, nem o Exército envolvido pelo inimigo; ele lutava corajosamente e seu
Comandante mostrava sérias intenções de continuar lutando. Mesmo assim, Sir John French
rendera-se à crença de que o perigo era mortal e que a FEB devia ser preservada de uma derrota
francesa.

Os comandantes de campo não partilhavam do pessimismo do Quartel-General. Recebendo uma


ordem que virtualmente afastava qualquer perspectiva posterior de luta, ficaram perplexos. O
General Gough, Chefe do staffde Haig, rasgou-a, furioso. Smith-Dorrien, que considerava sua
situação ”excelente”, corn o inimigo ”em pequenos grupos e mantendo uma distância respeitosa”,
enviou ordens em contrário às suas 3a. e 5a. Divisões, mas sua mensagem chegou tarde demais ao
General Snow, da 4a. Divisão. Tendo recebido uma ordem direta endereçada ”Para Snowball86, de
Henry”, corn instruções de ”embarque seus patinhes e venha conosco”, ele já a tinha cumprido, corn
um ”grande efeito desanimador” nos soldados. Eles foram levados a pensar que estavam em
extremo perigo, e perderam também suas mudas de roupa e sapatos.

Em meio à poeira, ao calor, ao desânimo e ao cansaço indescritíveis, a retirada inglesa prosseguiu.


Ao chegarem cambaleantes a St. Quentin, os exaustos soldados remanescentes de dois batalhões
desistiram: empilharam as armas na estação ferroviária, sentaram na Praça da Estação e
recusaram-se a prosseguir. Os homens disseram ao Major Bridges, cuja cavalaria recebera ordens
de deter os alemães até que todos os soldados tivessem deixado St. Quentin, que seus oficiais
comandantes tinham dado ao prefeito uma promessa por escrito de render-se para poupar a cidade
de mais bombardeios. Sem vontade de enfrentar coronéis que ele conhecia e que eram mais velhos
que ele, Bridges desejou desesperadamente uma banda para encorajar os 200 ou 300 homens
desanimados deitados pela praça. ’

”Por que não? Ali perto havia uma loja de brinquedos onde eu e meu corneteiro encontramos uma
flauta de lata e um tambor, e nós dois ficamos marchando em volta do chafariz da praça onde os
homens estavam caídos como mortos, e tocamos o hino dos Grana-
£2g 86 Snow (nome do General) = neve; snowball = bola de neve. (N. da T.)
deiros Britânicos e o hino de Tipperary87, batendo tambor”. Os homens se sentaram, começaram a
rir, depois a aplaudir, então se levantaram um a um, entraram em formação e ”finalmente paítímos
devagar para dentro da noite, ao som da música de nossa Banda improvisada, agora reforçada por
algumas gaitas”.

Sir John French, a quem flauta e tambor não animavam e que enxergava apenas seu próprio setor,
estava convencido de que o Kaiser, ”em seu rancor e ódio, realmente arriscou-se a enfraquecer
outras partes do campo” para concentrar uma força avassaladora ”para nos destruir”. Ele exigiu que
Kitchener lhe enviasse a 6a. Divisão; quando Kitchener declarou que essa divisão não poderia ser
enviada enquanto seu lugar na Inglaterra não fosse preenchido por tropas da índia, considerou essa
recusa ”altamente decepcionante e insulruosa”. Na realidade, depois do choque de Mons, Kitchener
pensara por um instante em usar a 6a. Divisão para um desembarque sobre o flanco alemão na
Bélgica.

A antiga idéia - defendida havia muito por Fisher e Esher de usar a FEB na Bélgica
independentemente, e não como um apêndice da linha francesa, nunca deixou de perseguir os
ingleses. Agora ela foi tentada, como seria novamente dois meses depois em Antuérpia, em
miniatura e em vão. Em vez da 6a. Divisão, três batalhões dos Royal Marínes desembarcaram em
Ostende em 27 e 28 de agosto, num esforço para atrair as forças de Von Kluck. A eles juntaram-se
6.000 belgas que tinham seguido a retirada francesa depois da queda de Namur e agora foram
enviados a Ostende por mar em navios ingleses, mas que se mostraram sem condições para lutar. A
essa altura, a retirada na França tinha levado a linha de frente para longe demais; a operação perdeu
a razão de ser e os Marínes foram embarcados de volta no dia 31 de agosto.

Antes disso, no dia 28 de agosto, Sir John French evacuou sua base de vanguarda em Amiens, que
agora estava ameaçada pelo giro para o oeste que Von Kluck estava fazendo, e no dia seguinte deu
ordens para a transferência da principal base inglesa de volta do Havre para St. Nazaire, abaixo da
península da Normandia. No mesmo espírito da ordem de jogar fora munição, essa manobra refletia
o desejo único e ardente, que agora o possuía, de abandonar a França.
87 Tipperary: condado da província de Munster, na Irlanda. (N. da T.)

429
Em parte sentindo o mesmo desejo, em parte envergonhado de senti-lo, Henry Wilson, segundo
descreveu outro oficial, ”andava devagar de um lado para outro da sala, corn aquela expressão
cômica que lhe era habitual, batendo palmas de leve para marcar o ritmo enquanto cantarolava em
voz baixa: Jamais chegaremos lá, jamais chegaremos lá’. Ao passar por mim, perguntei: ’Aonde,
Henry?’. Ele entoou, sem se interromper: ’Ao mar, ao mar, ao mar’.”
430

l
20

A Frente é Paris
Os grandes bulevares estavam desertos, as lojas encontravam-se fechadas; os ônibus, trens,
automóveis e carruagens tinham desaparecido. No lugar deles, rebanhos de carneiros atravessavam
a Place de Ia Concorde a caminho da Gare de l’Est para serem embarcados para a frente de batalha.
Livres do tráfego, os logradouros e as paisagens revelavam a pureza de seu desenho. Como a
maioria dos jornais tinha interrompido sua publicação, os quiosques exibiam apenas os magros
jornais sobreviventes, de uma só folha. Todos os turistas tinham desaparecido, o Ritz estava
desabitado, o Meurice era um hospital. Durante um único agosto em toda a sua história, Paris foi
francesa - e silenciosa. O sol brilhava, as fontes cintilavam na Rond Point, as árvores mostravam-se
verdes, o grande e tranqüilo Hj Sena fluía imutavelmente, feixes coloridos de bandeiras Aliadas rés-
H saltavam a beleza pálida e cinzenta da cidade mais bela do mundo. H

No vasto universo do Lês Invalides, Gallieni enfrentava o obs- H trucionismo e a indecisão dos
funcionários em tomar as medidas radicais necessárias para tornar as palavras ”praça fortificada”
uma realidade. Ele imaginava a praça forte como uma base de operações, não uma Tróia preparada
para um sítio. corn a experiência de Liège e Namur ele aprendera que Paris não poderia suportar um
canhoneio pelos novos e pesados canhões de sítio que o inimigo possuía; seu plano não era esperar
passivamente ser atacado e sim dar combate ao inimigo - corn o Exército que ele ainda não tinha -
fora do anel fortificado exterior. Estudando as guerras dos Bálcãs e da Manchúria, ele ficara
convencido de que um sistema de trincheiras fundas e estreitas, protegidas por troncos e montes de
terra, ladeadas por arame farpado e armadilhas - grandes buracos corn estacas pontudas fincadas no
fundo - e guarnecidas por soldados bem treinados e capazes, armados corn metralhadoras, seria
virtualmente inexpugnável. Era isso que ele estava tentando construir em trechos entre os postos de
artilharia, embora ainda não tivesse um Exército para utilizá-lo.

Todos os dias, e em certas ocasiões duas ou três vezes por dia, e e telefonava para o GQG, exigindo,
corn crescente desespero, os três 431

l
corpos da ativa. Escreveu para Joffre, mandou emissários, martelou o Ministério da Guerra e o
Presidente, avisou-os repetidas vezes que Paris não estava preparada. Até o dia 29 de agosto ele
tinha sob suas ordens uma brigada naval, que surgiu marchando pelas ruas, de farda branca, ao som
agudo do apito de contramestre, deliciando a população - mas não Gallieni.

Em sua concepção, o trabalho devia ser feito em três níveis: a defesa militar, a defesa moral e o
aprovisionamento. Para levar a cabo cada uma das três tarefas, era necessário ser franco corn o
público. Por mais que desprezasse os políticos, Gallieni respeitava o povo de Paris, a quem
considerava digno de confiança para comportar-se sensatamente diante do perigo. Ele acreditava
que Poincaré e Viviani não queriam dizer a verdade ao país, e suspeitava de que estivessem
preparando uma pantomima para enganar a população. Todos os seus esforços no sentido de obter
autorização para demolir certos prédios que obstruíam a linha de fogo das fortificações foram
prejudicados pela relutância oficial em alarmar a população. Cada destruição de propriedade
requeria um documento assinado tanto pelo prefeito do arrondissement quanto pelo Chefe dos
Engenheiros, fixando o valor da indenização ao proprietário - um processo que era fonte incessante
de embaraços e atrasos. Cada decisão enredava-se ainda numa discussão ”bizantina” por parte
daqueles que achavam que, como sede de governo. Paris não podia ser uma praça forte a ser
defendida militarmente. Segundo desabafou corn impaciência o General Hirschauer, a questão
oferecia ”um magnífico campo para controvérsias”, e ele temia que os proponentes de uma cidade
aberta conseguissem provar que o próprio posto de Governador Militar era ilegal.

- Não se pode convencer os juristas sem ter um texto comentou ele.

Gallieni forneceu um texto. No dia 28 de agosto, a Zona dos Exércitos foi expandida para incluir
Paris e a área de ambos os lados até o Rio Sena, corn o resultado de que o governo municipal de
Paris foi colocado sob a autoridade do Governador Militar. Às 10:00 Gallieni reuniu seus gabinetes
militar e civil num Conselho de Defesa que se desenrolou corn todos de pé e terminou às 10:15.
Pediu-se que os membros não discutissem se Paris deveria ser defendida, mas simplesmente
atestassem que a presença do inimigo tornava obrigatória a instituição de um ”estado de defesa”. Os
documentos que forneciam lít a base legal já estavam redigidos, esperando em cima da mesa.
Gallieni convidou cada pessoa a assinar e logo depois declarou o Conselho suspenso. Foi o primeiro
e o último que ele convocou.

Ele prosseguiu sem tréguas o trabalho da defesa, sem desperdiçar tempo ou piedade corn
procrastinadores ou indecisos, demonstrações de fraqueza ou ineficiência. Como Joffre, ele liquidou
os incompetentes: em seu primeiro dia de trabalho, demitiu um general da Engenharia, e outro
general dois dias depois. Todos os habitantes dos subúrbios, ”até mesmo os mais velhos e menos
capazes”, foram convocados para trabalhar corn enxadas e pás. Foi expedida uma encomenda de
10.000 enxadas e picaretas a serem entregues dentro de 24 horas; à noite, todas tinham sido
entregues. Quando, na mesma ocasião, Gallieni encomendou 10.000 facas de caçador para serem
usadas como ferramentas, o fornecedor protestou ser impossível, porque sua compra era ilegal.

- Mais um motivo - replicou Gallieni, encarando-o severamente por cima do pincenê.

As facas foram conseguidas.

No dia 29 de agosto, uma área ao redor de Paris num raio de cerca de 30 quilômetros, chegando a
Melun ao sul e Dammartin e Pontoise ao norte, foi colocada sob a autoridade de Gallieni. Foram
feitos preparativos para dinamitar as pontes da região. No caso das pontes classificadas como
”obras de arte” ou que faziam parte do ”patrimônio nacional”, foi montado um sistema de vigilância
especial para certificar-se de que elas só seriam destruídas em último caso. Todas as entradas para a
cidade - inclusive os esgotos - foram barricadas. Padeiros, açougueiros, horticultores foram
organizados, e o gado, levado para dentro, foi colocado a pastar no Bois de Boulogne. Para apressar
o processo de estocagem de munição, Gallieni requisitou transporte, ”qualquer um disponível”,
inclusive os táxis de Paris, que logo se tornariam imortais,-Para o staff da Artilharia da praça
fortificada foi indicado alguém já inserido na História: o antigo Capitão, então Major Alfred
Dreyfus, que aos 55 anos voltara ao serviço ativo.

Na frente de batalha na Lorena, o Primeiro e o Segundo Exércitos, sob a terrível pressão dos
canhões de Rupprecht, ainda se agarravam feroz e tenazmente à linha do Moselle. Sua linha
ondulava e formava bolsões, e em alguns lugares chegou a ser trespassada pelas cunhas alemãs, mas
essas cunhas, contidas por contra-ataques franceses em seus flancos, não conseguiam alargar as
brechas. A batalha prosseguia, corn os exércitos de Rupprecht tateando em busca dos 433
pontos mais fracos; Dubail e Castelnau, tendo perdido soldados por causa das exigências de Joffre
para o oeste, não sabiam quanto tempo poderiam resistir, ou mesmo se poderiam de todo resistir.

Nas aldeias tomadas pelos alemães, repetia-se o ocorrido na Bélgica. Em Nomeny, nas redondezas
de Nancy, ”cidadãos atiraram em nossos soldados”, declarou o Governador alemão de Metz num
boletim afixado nas paredes. ”Portanto ordenei, como castigo, que a aldeia fosse inteiramente
queimada. Assim, Nomeny agora já não existe.”

Na ala esquerda de Castelnau, onde a linha de frente fazia uma curva para o oeste, o Terceiro
Exército de Ruffey, desequilibrado pela remoção das divisões de Maunoury, recuou para o outro
lado do Meuse, abaixo de Verdun. Ao seu lado, o Quarto Exército, que mantivera a posição em 28
de agosto para provar que a retirada era ”estratégica” e não um blefe, recebeu ordens, para a
contrariedade do General Langle, de recomeçar a retirada no dia 29.

Mais à esquerda, onde a pressão contra a linha francesa era maior, o Quinto Exército do General
Lanrezac estava completando a manobra da meia-volta antes de contra-atacar em St. Quentin
conforme Joffre ordenara a seu relutante comandante. No extremo da linha, o Sexto Exército de
Maunoury estava entrando em posição, mas entre Maunoury e Lanrezac a FEB estava sendo
removida por Sir John French, embora este tivesse conhecimento da batalha que teria lugar no dia
seguinte.

O processo quase foi interrompido por um ato - muito necessário - de cooperação anglo-francesa,
quando Haig mandou dizer a Lanrezac que seus soldados estavam ”inteiramente prontos para atacar
e que ele gostaria de entrar em comunicação e agir em conjunto corn o Quinto Exército na ação
planejada em St. Quentin”. Um membro do staff de Lanrezac partiu imediatamente para conversar
corn Haig e encontrou-o de pé sobre um morrinho, em atitude teatral; um ordenança segurava seu
cavalo e uma lança fincada no chão ostentava um galhardete. Haig informou que seu
reconhecimento aéreo avistara o inimigo movimentando-se a sudoeste de St. Quentin e ”expondo o
flanco ao avançar”.

- Vá depressa ao seu General e lhe passe esta informação (...). Ele que aja. Estou ansioso para
cooperar corn ele nesse ataque.

O oferecimento, transmitido a Lanrezac, provocou-lhe ”extrema

satisfação” e levou-o a ”dizer coisas simpáticas em relação a Sir

43* Douglas Haig”. Foram confirmados os planos para a ação conjunta


de manhã, faltando apenas a aprovação do Comandante-em-Chefe britânico. Às 2:00 da madrugada
o GHQ mandou dizer que Sir John French recusava-se a dar essa permissão, argumentando que ”os
soldados estão muito cansados e precisam de pelo menos um dia de descanso”-uma necessidade
que, por mais que fosse verdadeira em relação ao II Corpo, não o era em relação ao I Corpo, cujo
comandante em pessoa declarou que seu corpo estava pronto e preparado. Lanrezac explodiu de
indignação.

- Cest unefélonie! (É uma traição!) - bradou.

Ele acrescentou ainda o que um ouvinte descreveu como ”coisas terríveis, imperdoáveis, a respeito
de Sir John French e do Exército inglês”.

Na manhã seguinte, porém, imprensado entre Von Bülow, que descia contra ele, e Joffre, que subia
para supervisionar a ofensiva, Lanrezac não teve escolha senão atacar. Pelos papéis encontrados
corn um oficial francês capturado, Von Bülow ficou sabendo do ataque iminente, e não foi pego de
surpresa. Duvidando da disposição de Lanrezac, Joffre chegou de manhã bem cedo em Laon, então
quartel- _ general de Lanrezac, para transmitir-lhe algum sangue-frio de seu l suprimento
inesgotável. l

Laon fora construída num planalto de onde se enxerga quilôme- ’ tros de planície corn ligeiras
ondulações, como num oceano. Cerca de
30 quilômetros ao norte, num grande semicírculo, o Quinto Exército foi colocado de frente para o
noroeste, em direção a Guise e St. Quentin. Da torre da catedral, no ponto mais alto da cidade,
cabeças de vacas esculpidas em pedra, em vez de gárgulas, contemplavam a paisagem corn bovina
serenidade. Abaixo delas, na mesma calma silenciosa, Joffre estava sentado, observando Lanrezac
ditar ordens e conduzir a batalha. Ele ficou três horas sem dizer uma palavra, até que, vendo que
Lanrezac estava mostrando ”autoridade e método”, sentiu-se livre para partir para um born almoço
no restaurante da estação antes de seguir para seu próximo destino, corn seu motorista de corrida.

Seu destino era encontrar Sir John French, que ele suspeitava estar de olho na costa do Canal ”e
pode estar saindo de nossa linha de combate”. O lugar que os ingleses defendiam na linha, entre o
Exército de Lanrezac e o Sexto Exército de Maunoury ainda em formação, era agora crucial, no
entanto estava fora do controle de Joffre. Ele não podia dar ordens ao Marechal-de-Campo French
como fazia corn Lanrezac, nem levá-lo a lutar sentando-se atrás dele em m


silenciosa vigilância. No entanto, se conseguisse persuadir os ingleses a firmarem posição, esperava
poder estabilizar uma linha de frente no Aisne ao longo da linha Amiens-Rheims-Verdun e retomar
a ofensiva a partir dali.

O Quartel-general inglês dera outro passo para trás na véspera, e Sir John French estava agora
estabelecido em Compiègne, que ficava a 65 quilômetros ou - para um exército cansado - cerca de
três dias de marcha de Paris. Enquanto seu vizinho, o Quinto Exército francês, lutava durante todo
esse dia em Guise, aliviando a pressão inimiga, o Exército inglês descansava. Tendo recuado sem
ser perseguido no dia anterior, ele agora, depois de oito dias de marcha no calor, cavando
trincheiras e enfrentando escaramuças pequenas e grandes, finalmente fez alto. On Corpo efetuou
uma marcha curta à noite para atravessar o Oise, mas o I Corpo gozou de um dia inteiro de descanso
na Floresta de St. Gobain, a apenas oito quilômetros de onde a ala esquerda do Exército de
Lanrezac, que estivera marchando e cornbatendo por 14 dias e não estava menos cansada,
encontrava-se envolvida numa grande batalha.

Quando Joffre chegou a Compiègne, implorou ao Comandante britânico que imobilizasse suas
forças até que a ofensiva pudesse ser retomada na ocasião propícia, mas seus argumentos pareciam
não causar efeito algum. Ele ”viu nitidamente” Murray cutucando o Marechal-de-Campo como se
para impedi-lo de ceder à persuasão. Os cutucões de Murray foram supérfluos, pois Sir John French
insistia em sua recusa, argumentando que, diante de suas baixas, seu exército não estava em
condições de lutar e precisava de dois dias de descanso. Joffre não podia demiti-lo no ato, como
teria feito corn um general francês; não podia sequer ter um acesso de indignação para alcançar seus
objetivos, como fizera corn Lanrezac em Marle. corn os ingleses retirando-se da área entre Lanrezac
e Maunoury, nenhum de seus exércitos poderia defender a linha atual, e toda a esperança de
executar a Ordem Geral Nfi 2 teria que ser abandonada. Joffre partiu, segundo suas próprias
palavras, ”em péssimo humor”.

As intenções de Sir John French eram ainda mais drásticas do que ele admitira a Joffre. Sem
qualquer consideração por um aliado combatendo às portas da derrota, ele ordenou que o
General-de-Divisão Robb, seu Inspetor de Comunicações, planejasse uma ”retirada prolongada e
definitiva para o sul, passando a leste e a oeste de Paris”.

Nem mesmo as instruções de Kitchener poderiam ser respon-


436 sabilizadas por isso; concebidas em meio a um grande sentimento de
desaprovação ao compromisso de Henry Wilson para corn o Plano 17, elas eram destinadas a
impedir que um Sir John agressivo demais e um Wilson demasiadamente francófilo arriscassem o
Exército inglês em algum esquema francês de offensive à outrance que pudesse levar à destruição
ou à captura. Kitchener jamais pretendeu sugerir um grau de cautela que pudesse levar à deserção;
mas o suor provocado pelo medo não pode ser controlado e Sir John estava agora possuído pelo
medo de perder seu exército, e corn ele seu nome e sua reputação.

Seus soldados não eram, como ele fazia crer, um exército vencido, incapaz de qualquer esforço; eles
próprios afirmavam que não estavam dispostos a desistir. O Tenente-Coronel Frederick Maurice, do
staffda 3a. Divisão, disse que apesar do cansaço, dos pés doendo e da falta de tempo para uma
refeição cozida, ”o efeito restaurador de uma refeição quente, uma boa noite de sono e um banho é
pouco menos que milagroso, e era principalmente disso que nosso exército precisava (...) para
permitir-lhe voltar ao combate”. O Capitão Ernest Hamilton, do 11- Regimento dos Hussardos,
disse que depois de seu dia de descanso em 29 de agosto a FEB estava ”agora em perfeitas
condições para fazer meia-volta e lutar a qualquer momento”. O General Macready, Assessor-Geral
junto à FEB, declarou que ”tudo que precisavam era de descanso e comida para deixá-los
preparados e dispostos” a mostrar aos alemães o que eram capazes de fazer.

Não obstante, no dia seguinte Sir John French mandou um aviso explícito a Joffre de que o Exército
inglês só estaria em condições de ocupar seu lugar na linha de batalha ”em mais dez dias”. Se ele
pedisse dez dias de descanso quando estivesse lutando perto de Londres, não permaneceria em seu
posto de comando, porém Sir John French continuou como Comandante-ern-Chefe por mais um
ano e meio.

Naquela tarde, ansioso por levar *eus homens para longe do inimigo, ele ansiava também que
Lanrezac interrompesse o combate e retomasse a retirada ombro a ombro corn ele, menos por
preocupação em cobrir o flanco de Lanrezac do que em proteger o seu próprio flanco. Num esforço
para obter uma ordem para o Quinto Exército recuar, Henry Wilson telefonou para o GQG e,
informado de que Joffre ainda não tinha retornado, falou corn o General Berthelot, que se recusou a
assumir essa responsabilidade mas providenciou para que Wilson interceptasse Joffre no Hotel Lion
d’Or, em Rheims, às
7:30 daquela noite - sempre se sabia onde Joffre estava na hora das refeições. Quando o encontrou,
Wilson argumentou em vão. Tudo 43?
438

que Joffre dizia era: ”Lanrezac tem que ir até o fim”, sem especificar a que fim se referia. Quando
Wilson voltou corn essa notícia, Sir John resolveu não esperar e deu ordens para que a FEB
retomasse a retirada no dia seguinte.

Enquanto isso, o avanço de Lanrezac sobre St. Quentin estava encontrando dificuldades. Um
regimento do XVIII Corpo, corn ordens de tomar uma aldeia mais abaixo na estrada, avançou sob
fogo cerrado. Os projéteis ”faziam buracos na estrada e arrancavam enormes galhos das árvores”,
escreveu um sargento sobrevivente.

”Era burrice deitar-se no chão; melhor continuar andando. (...) Por toda parte havia homens deitados
de bruços ou de costas. Estavam mortos. Um deles, sob uma macieira, não tinha mais rosto, e o
sangue cobria-lhe a cabeça. À direita, os tambores soaram a carga de baioneta, seguidos pela
cometa. Nossa linha avançou, marcada pelo brilho das baionetas de encontro ao céu azul. O ritmo
dos tambores aumentou. Os homens gritavam: ’À frente!’. Foi um momento esplêndido. Um
estremecimento percorreu-me o couro cabeludo e arrepioume as raízes dos cabelos. Os tambores
tocavam furiosamente, o vento quente levava as notas da cometa, os homens gritavam; estavam
arrebatados! (...) Mas interrompemos a arremetida; atacar uma aldeia a 800 metros de distância e
solidamente defendida era loucura. Veio a ordem: ’Deitar-se, proteger-se.’

O ataque a St. Quentin foi repelido e, como Lanrezac tinha previsto, uma forte pressão inimiga caía
sobre a sua direita. Von Büllow estava atacando corn todas as suas forças, em vez de permitir que
os franceses avançassem contra ele, para que pudessem ser atacados por trás pelos Exércitos de Von
Kluck e Von Hausen. Acreditando que a resistência francesa eram apenas os espasmos moribundos
de um exército vencido, Von Bülow sentia-se ”confiante quanto ao desfecho”. Num setor, os
soldados franceses foram obrigados a recuar para o outro lado do Oise, e fez-se o pânico quando as
pontes e estradas estreitas ficaram atulhadas. Mostrando ”a maior rapidez e compreensão”, nas
pajavras de seu observador menos simpático, Lanrezac ordenou rapidamente que se abandonasse o
combate em St. Quentin e se fizesse em Guise uma nova concentração de esforços para salvar a
situação à direita.

O comandante do I Corpo, Franchet d’Esperey, um general baixinho, forte e disposto, queimado


pelo sol de Tonkin e Marrocos, de quem Poincaré dizia ”desconhecer a depressão”, recebeu ordens
de reorganizar o in e o X Corpos à sua esquerda e à sua direita. corn
l
a ajuda de oficiais percorrendo a cavalo a linha de frente e bandas tocando novamente os acordes
rápidos e vibrantes do Sambre et Meuse, às 17’30 ele tinha remontado a linha. Precedidos por uma
ação de artilharia bem planejada, os franceses mais uma vez avançaram para

atacar.

A ponte em Guise tinha altas barricadas feitas corn pilhas de

cadáveres dos inimigos. Na extremidade, a resistência foi desorganizada; os franceses sentiam-na


enfraquecer. Um observador escreveu: ”Os alemães estavam fugindo” e os franceses, ”numa alegria
frenética diante daquela sensação nova e tão almejada, avançavam numa onda esplêndida e
vitoriosa.”

No final do dia, quando um sargento que participara do ataque a St. Quentin voltou à aldeia de onde
partira naquela manhã, encontrou um amigo que sabia de todas as novidades. O sargento relata:
”Ele me disse que tinha sido um grande dia. Não importava que nos tivessem detido; o inimigo
tinha sido empurrado para trás, nós fomos os vencedores. O Coronel fora atingido por um projétil e
morrera enquanto o carregavam; o Comandante Théron estava ferido no peito; o Capitão Gilberti
estava ferido e não sobreviveria; muitos homens estavam mortos ou feridos. Ele repetia que tinha
sido um ótimo dia porque o regimento não dormiria duas noites seguidas no mesmo lugar.”

A retirada do Corpo de Guarda - a elite do Exército de Von Bülow - puxou para trás os seus
vizinhos e deu a Lanrezac uma vitória tática em Guise, embora não em St. Quentin. Mas ele agora
estava sozinho e exposto, de frente para o norte, ao passo que seus vizinhos nos dois lados - os
ingleses e o Quarto Exército, ambos um dia inteiro de marcha à sua frente-prosseguiam na retirada e
a cada passo expunham ainda mais os flancos de Lanrezac. Para que o Quinto Exército fosse salvo,
ele deveria interromper o combate imediatamente e reunir-se aos outros Exércitos, mas Lanrezac
não conseguia obter instruções de Joffre, que não estava no GQG quando ele telefonou.

O Quinto Exército deve demorar-se na região de Guise-St. Quentin corn o risco de ser capturado? -
Lanrezac perguntou ao General Belin, assistente de Joffre.

Que quer dizer? Deixar seu exército ser capturado? Que absurdo!

Você não está entendendo. Estou aqui por ordens expressas «o Comandante-em-Chefe. (...) Não
posso assumir a responsabi-
439
lidade de recuar para Laon. É o Comandante-em-Chefe quem tem que me dar a ordem de retirada.

Dessa vez Lanrezac não queria arcar corn a culpa, como em Charleroi.

Recusando-se a assumir a responsabilidade, Belin disse que passaria a pergunta a Joffre assim que
ele voltasse. Quando Joffre voltou, embora parecesse ainda confiante e tranqüilo, suas esperanças
tinham sofrido um segundo golpe, ainda maior do que a derrocada nas fronteiras, pois agora o
inimigo penetrara muito mais no interior da França. Ele não tinha como saber que a ação de
Lanrezac tinha infligido um grande prejuízo ao Exército de Von Bülow, porque os resultados ainda
não apareciam; podia apenas reconhecer que o Quinto Exército estava realmente em posição
perigosa, que a FEB estava saindo da guerra e que ele não podia mais ”nutrir esperanças de segurar
nossos aliados na linha de batalha planejada”. O Sexto Exército, ainda em processo de formação,
estava sob cerrado ataque de dois corpos da ala direita de Von Kluck; a frente que ele esperava
manter estava desfeita; mais território teria que ser cedido - talvez até o Marne, talvez mesmo até o
Sena.

Durante esse período, o ”mais trágico em toda a História francesa” na expressão de seu maior
pesquisador, Joffre não entrou em pânico como Sir John French, nem hesitou como Moltke, nem
ficou momentaneamente perturbado como Haig ou Ludendorff, nem sucumbiu ao pessimismo como
Prittwitz. Ele nunca demonstrava o que se passava por trás de seu exterior impassível. Se devia sua
calma à falta de imaginação, ainda bem para a França. Clausewitz escreveu que os homens comuns
ficam deprimidos pela sensação de perigo e responsabilidade; para que essas condições ”emprestem
asas para fortalecer o julgamento, é preciso que esteja presente uma extraordinária grandeza de
alma”. Se o perigo não fortalecia o julgamento de Joffre, não deixava de evocar uma certa fortaleza
de alma ou de caráter. Quando tudo à sua volta estava em ruínas, ele manteve uma calma
inabalável, um controle sólido e aquilo que Foch, que esteve corn ele em 29 de agosto, chamou de
”uma tranqüilidade maravilhosa” que manteve o Exército francês coeso num momento em que ele
mais precisava do cimento da confiança. Num daqueles dias, o Coronel Alexandre, voltando de uma
missão ao Quinto Exército, justificou sua expressão sombria corn ”as más notícias que tenho para
informar”.

-Como?-explodiu Joffre. - Então já não acredita na França? tto Vá descansar um pouco. Você verá,
tudo vai dar certo.
Às 22:00 daquele 29 de agosto ele expediu a ordem para Lanrezac recuar e explodir atrás de si as
pontes do Oise. O General d’Amade recebeu ordens de explodir as pontes sobre o Somme em
Amiens e recuar, juntamente corn o Exército de Maunoury; à direita, o Quarto Exército teve ordens
de recuar para Rheims, e ao General Langle, que exigia descanso para suas tropas, foi declarado que
o descanso dependeria do inimigo. Como último e amargo ato da noite de 29 de agosto, Joffre
ordenou que se efetuassem os preparativos para abandonarem Vitry-le-François, ”aquele
quartel-general de esperanças fracassadas e ilusões perdidas”. O GQG deveria mudar-se de volta
para Bar-surAube, num afluente a leste do Sena. A notícia espalhou-se entre o staff, aumentando,
como Joffre percebeu corn desaprovação, ”o nervosismo e a ansiedade gerais”.

Por um erro do staff, a ordem de Joffre ao Quinto Exército só chegou a Lanrezac de manhã cedo,
proporcionando-lhe uma longa noite de sofrimento desnecessário. Felizmente Von Bülow não
renoyou o ataque, tampouco saiu em perseguição quando Lanrezac iniciou a retirada. Os resultados
da batalha eram tão obscuros para os alemães quanto para os franceses, e a impressão de Von
Bülow parece ter sido curiosamente confusa, pois ele informou o OHL de que o resultado tinha sido
um sucesso e ao mesmo tempo mandou um capitão do staff dizer a Von Kluck que seu exército
estava ”esgotado pela batalha de Guise e sem condições de efetuar a perseguição”. Os
franceses-Joffre e Lanrezac -, ignorando esse fato, estavam dominados por um único desejo: retirar
o Quinto Exército da ação e afastá-lo do perigo, colocando-o em alinhamento corn os outros
exércitos franceses antes que os alemães conseguissem cercá-lo pela esquerda.

Enquanto isso, era evidente a ameaça da ala direita alemã que avançava sobre Paris. Joffre
telegrafou a Gallieni as ordens para colocar cargas explosivas sob as pontes do Sena a oeste de Paris
e as pontes do Marne a leste, e colocar pelotões da Engenharia em cada uma delas para assegurar
que as explosões ocorreriam. O Exército de Maunoury, recuando, cobriria Paris e seria o grupo
ideal para fornecer o Exército de três corpos que Gallieni estava exigindo.

Para Joffre e o GQG, porém, Paris era ainda uma ”expressão geográfica”. Joffre não tinha a
intenção primordial de defendê-la e de para esse fim colocar o Exército de Maunoury à disposição
de Gallieni. Para ele, Paris cairia ou se salvaria corn o resultado da batalha que ele pretendia armar
corn todo o Exército de Campo sob seu próprio comando.
441
Para os homens dentro de Paris, no entanto, o destino da capital era de interesse mais direto. O
resultado aparente da batalha de St. Quentin-Guise aumentou o desespero que se abatia sobre eles.
Na manhã da batalha, Monsieur Touron, vice-presidente do Senado e magnata industrial do norte,
irrompeu na sala de Poincaré ”como um pé-de-vento”, bradando que o Governo ”está sendo
enganado pelo GQG” e que ”nossa esquerda foi flanqueada e os alemães estão em La Fere”.
Poincaré repetiu as peremptórias afirmações de Joffre de que a esquerda iria agüentar e que a
ofensiva seria retomada logo que o Sexto Exército estivesse pronto, mas no fundo do coração ele
temia que Monsieur Touron estivesse corn a razão. Mensagens codificadas chegavam até ele,
indicando uma grande batalha em progresso; a cada hora ele recebia relatórios contraditórios.

No final da tarde, Monsieur Touron tornou a surgir em seu escritório, mais excitado que nunca:
acabara de falar pelo telefone corn Monsieur Seline, senador do Aisne, que tinha uma propriedade
perto de St. Quentin e observara a batalha do alto do telhado de sua casa. Monsieur Seline viu os
soldados franceses avançando e as nuvens de fumaça e as explosões escuras dos canhões enchendo
o céu, e depois viu os franceses recuarem, à medida que chegavam reforços alemães como um
exército de formigas cinzentas. Monsieur Touron partiu gemendo - o ataque não tivera sucesso, a
batalha estava perdida.

O segundo estágio da batalha - em Guise - não foi visto pelo Senador no telhado e ficou ainda
menos claro para o Governo do que para o GQG. A única coisa que parecia clara era que a tentativa
de Joffre de deter a ala direita alemã fracassara, Paris estava prestes a ser sitiada e poderia
novamente comer ratos, como acontecera 40 anos antes. Já se discutia aberta e ansiosamente a
queda da capital e a conveniência da partida do Governo, possibilidades que desde a Batalha das
Fronteiras existiam no fundo das mentes ministeriais. O Coronel Penelon, oficial de ligação entre o
GQG e o Presidente, chegou cedo na manhã seguinte, o rosto normalmente sorridente dessa vez
carrancudo, e admitiu que a situação era ”profundamente grave”. Millerand, como Ministro da
Guerra, recomendou a partida imediata para evitar que ficassem isolados do resto do país. Gallieni,
chamado às pressas para dar sua opinião, aconselhou telefonarem a Joffre.

Joffre reconheceu que a situação não era boa: o Quinto Exército

tinha combatido bem, mas não tinha alcançado seus objetivos; os

m ingleses ”não tinham se mexido”, era impossível retardar o avanço


do inimigo e Paris estava ”seriamente ameaçada”. Ele aconselhava o Governo a partir, para não
atrair o inimigo à capital.

Joffre sabia muito bem que o objetivo alemão eram os exércitos franceses e não o Governo, mas à
medida que o campo de batalha se aproximava de Paris, a presença do Governo na Zona dos
Exércitos tenderia a confundir os limites da autoridade; seu afastamento removeria uma fonte de
interferência e deixaria o GQG corn maior poder. Quando Gallieni, pelo telefone, tentou
convencê-lo da necessidade de defender Paris como o eixo material e moral do esforço de guerra e
novamente exigiu um Exército para atacar o inimigo em campo antes que a cidade pudesse ser
atacada, Joffre prometeu vagamente mandar-lhe três corpos, embora não corn força total e
compostos principalmente de divisões da reserva. Ele deu a Gallieni a impressão de considerar Paris
descartável e de não estar disposto a diminuir suas próprias forças por causa da cidade.

Então o Presidente da República, parecendo ”preocupado e até mesmo desanimado”, embora como
sempre ”frio e reservado”, perguntou a Gallieni quanto tempo Paris poderia agüentar e se o
Governo deveria partir.

- Paris não poderá agüentar e o Governo deve partir o mais cedo possível - respondeu Gallieni.

Desejando, não menos que Joffre, ver-se livre do Governo, ele não relutou em externar essa
opinião. Poincaré pediu-lhe para voltar mais tarde e explicar sua opinião ao Gabinete, que, enquanto
isso, estava reunido a discutir apaixonadamente a questão que apenas dez dias antes, quando fora
desfechada a ofértsiva francesa, teria parecido impensável.

Poincaré, Ribot e os dois socialistas - Guesde e Sembat-eram favoráveis à permanência, ou pelo


menos a que se aguardasse o desfecho da batalha iminente. Eles argumentavam que o efeito moral
da partida poderia provocar desespero e até mesmo uma insurreição. Millerand insistia na partida;
segundo ele, uma companhia de Ulanos poderia penetrar abaixo de Paris e cortar as ferrovias para o
sul, e o Governo não poderia arriscar-se a ficar preso dentro da capital como em 1870; dessa vez a
França estava combatendo como parte de uma aliança, e era dever do Governo permanecer em
contato corn seus Aliados e corn o mundo exterior, assim como corn o resto da França. Doumergue
causou profunda impressão quando declarou:

E preciso mais coragem para parecer covarde e arriscar-se a incorrer no desfavor popular do que
para arriscar-se a morrer.

m
444

Uma questão foi tema de acalorada discussão: se aquela emergência requeria a convocação do
Parlamento, como exigiam os presidentes das duas Câmaras durante suas inquietas visitas.

Impaciente para voltar aos seus deveres, Gallieni teve que esperar uma hora do lado de fora
enquanto os ministros discutiam. Finalmente chamado a entrar, declarou abruptamente que eles não
mais estavam ”a salvo na capital”. Sua aparência, seus modos graves e marciais e a ”força e
clareza” corn que se expressou causaram um ”efeito profundo”.

Explicando que sem um exército para lutar fora do perímetro urbano ele não poderia evitar o ataque
da artilharia de sítio inimiga, Gallieni advertiu que Paris não estava em estado de defesa e não
poderia ”ser levada a tal. (...) Seria ilusório acreditar que a praça fortificada poderia oferecer uma
resistência séria se o inimigo aparecesse nos próximos dias diante de nossa linha exterior de
fortificações”. Era ”indispensável” que se formasse um Exército de quatro ou pelo menos três
corpos para lutar sob suas ordens do lado de fora da cidade, na extremidade da ala esquerda da linha
francesa. Ele atribuiu o atraso na preparação das defesas, antes de sua nomeação para Governador,
aos grupos influentes que queriam que Paris fosse declarada cidade aberta para salvá-la da
destruição-aliás, tinham sido encorajados a isso pelo GQG.

- É verdade - interrompeu Millerand. - O GQG é de opinião que Paris não deve ser defendida.

Guesde, o socialista, pronunciando suas primeiras palavras como ministro depois de uma vida
inteira de oposição, interveio excitadamente:

- Os senhores querem abrir as portas ao inimigo para que Paris não seja saqueada; mas no dia em
que os alemães marcharem por nossas ruas, um tiro será disparado de cada janela nos bairros da
classe trabalhadora. E então eu you lhes dizer o que vai acontecer: Paris será incendiada!

Depois de um conturbado debate, concordou-se que Paris devia ser defendida e Joffre precisaria
aceitar o fato, se necessário sob pena de ser demitido. Gallieni argumentou contra a demissão
apressada do Comandante-em-Chefe naquelas circunstâncias. Quanto à questão da conveniência da
partida do Governo, o Gabinete continuava inteiramente indeciso.

Deixando os ministros ”dominados pela emoção e pela indecisão” e, pelo que lhe parecia,
”incapazes de chegar a uma decisão
firme”, Gallieni voltou para Lês Invalides, abrindo caminho através da aglomeração de cidadãos
ansiosos reunidos diante de suas portas para conseguir permissão para deixar a cidade, pegar seus
carros, fechar seus comércios essenciais e mil outros pedidos. O zumbido de ansiedade era mais alto
do que o normal; naquela tarde, pela primeira vez um Tízube88 alemão bombardeara Paris. Além
das três bombas no Quai de Valmy que mataram duas pessoas e feriram várias outras, ele jogou
panfletos avisando aos parisienses que os alemães estavam às suas portas como em 1879 e ”vocês
nada podem fazer senão render-se”.

Daí em diante, todos os dias um ou mais aviões inimigos voltavam regularmente às 18:00, jogavam
duas ou três bombas e matavam um passante ocasional, num esforço, imagina-se, para assustar a
população. Os medrosos foram para o sul. Para aqueles que permaneceram em Paris durante esse
período em que ninguém sabia se o próximo dia traria ou não os capacetes pontudos, os vôos do
Taube, sempre na hora do aperitivo, forneciam a excitação para compensar a proibição
governamental ao absinto. Naquela noite de sua primeira visita, Paris ficou em blecaute pela
primeira vez. Poincaré escreveu em seu diário que o único ”raio de luz” a romper a escuridão geral
ficava no oriente, onde, segundo um telegrama do Adido Militar francês, os exércitos russos
estavam ”desenvolvendo sua ofensiva em direção a Berlim”. Na realidade eles estavam sendo
detidos e cercados em Tannenberg, e naquela noite o General Samsonov cometeu suicídio na
floresta.

Joffre recebeu uma versão mais acurada quando uma mensagem radiofônica alemã, interceptada em
Belfort, informou a destruição de três corpos russos, a captura de dois comandantes de corpo e de
70.000 prisioneiros, e anunciou: ”O Segundo Exército russo já não existe.”

Essa notícia terrível, quando as esperanças francesas já sossobravam, poderia ter desanimado a^é.
mesmo Joffre, se não fosse seguida por outras notícias que mostravam que o sacrifício russo não
tinha sido em vão: relatórios do Departamento de Informações revelavam a transferência de pelo
menos dois corpos alemães da frente ocidental para a frente oriental, confirmada no dia seguinte por
notícias de 32 trens de transporte passando por Berlim em direção ao leste. Aquele era o raio de luz
de Joffre, a ajuda pela qual a França exercera tanta pressão sobre a Rússia. Mesmo assim, ela mal
dava

os Taube (do alemão taube = pombo): monomotor alemão corn as asas em forma de asas de pombo. (N. da
T.)
«K
para contrabalançar a perda do poderio dos ingleses, cujo comandante, recusando-se a permanecer
em contato corn o inimigo, deixava aberto o caminho para o cerco alemão ao Quinto Exército, que
corria perigo também de ser cercado pela direita através da brecha precariamente preenchida pelo
Destacamento de Foch.

Sempre que um setor fraco precisava de reforço, outro setor tinha que ser perigosamente
enfraquecido. Nesse mesmo dia, 30 de agosto, Joffre visitou a linha de frente do Terceiro e do
Quarto Exércitos procurando forças que ele pudesse enviar a Foch. Na estrada, passou por colunas
em retirada - soldados que tinham combatido nos Ardennes e nas alturas do Meuse. As calças
vermelhas tinham desbotado, adquirindo a cor de tijolo claro; as túnicas estavam em farrapos, as
botas cobertas de lama, os olhos cavernosos nos rostos embrutecidos pelo cansaço e escurecidos
pela barba de muitos dias. Vinte dias de campanha pareciam ter envelhecido os soldados em muitos
anos. Eles caminhavam pesadamente, como se estivessem prestes a desabar a cada passo. Os
cavalos magros, de ossos saltados, sangrando nas feridas causadas pelos arreios, às vezes caíam
entre os varais das carroças, eram desarreados às pressas pelos homens da artilharia e arrastados
para a beira da estrada para não obstruírem o caminho. As armas pareciam velhas e gastas, corn
poucos trechos da pintura cinzenta aparecendo sob a lama e a poeira.

Em contraste, soldados de outras unidades, ainda cheios de vigor, em 20 dias transformaram-se em


veteranos confiantes, orgulhosos de suas habilidades de luta e ansiosos por deter a retirada. O elogio
definitivo foi feito à 42a. Divisão do Exército de Ruffey que, depois de defender a retaguarda e
retirar-se corn sucesso do combate, ouviu de seu comandante, o General Sarrail:

- Vocês deram provas de cran.

Quando Joffre ordenou que essa divisão fosse transferida para o comando de Foch, o General
Ruffey protestou violentamente, alegando um ataque antecipado. Ao contrário do General Langle
do Quarto Exército, que a Joffre sempre pareceu calmo, confiante e ”inteiramente senhor de si -
qualidade que, aos olhos de Joffre, era o único requisito essencial de um comandante -, Ruffey
parecia nervoso, excitável e ”imaginativo a um ponto excessivo”. Segundo o Coronel Tanant, seu
Chefe de Operações, ele era muito inteligente e cheio de mil idéias, uma delas magnífica, mas a
questão era: qual delas?

Como os deputados em Paris, Joffre precisava de um bode


446 expiatório para o fracasso da ofensiva, e o comportamento de Ruffey
decidiu a escolha; nesse dia ele foi destituído do comando do Terceiro Exército e substituído pelo
General Sarrail. Convidado a almoçar corn Joffre no dia seguinte, Ruffey atribuiu sua derrota nos
Ardennes à remoção de última hora das duas divisões da reserva que Joffre transferira para o
Exército da Lorena; se ele tivesse podido dispor daqueles 40.000 homens descansados e da 7a.
Divisão de Cavalaria, poderia ter feito recuar o flanco da esquerda inimiga e ”que sucesso para
nossas forças poderíamos ter obtido!”.

Num daqueles seus comentários lacônicos e enigmáticos, Joffre respondeu:

- Chut, U nefaut pás lê dire69.

Nada ficou registrado sobre o seu torn de voz, portanto jamais se saberá se ele queria dizer ”O
senhor está errado e não deve dizer isto” ou ”O senhor está certo mas não podemos admiti-lo”.

Naquele domingo, 30 de agosto - o dia da batalha de Tannenberg e o dia em que o Governo francês
foi aconselhado a deixar Paris -, a Inglaterra recebeu um choque, na forma de um artigo de jornal,
conhecido desde então como ”o despacho de Amiens”, enviado por um correspondente, Arthur
Moore, que chegara à linha de frente no meio da retirada de Lê Cateau e do tumulto desesperado no
GHQ. Exagerado desde o início, o artigo intitulava-se ”A Luta Mais Feroz da História” e apareceu
corn terrível impacto na primeira página de uma edição especial de domingo do The Times, onde
normalmente as discretas colunas de propaganda comercial poupavam os leitores de tais notícias. O
subtítulo proclamava: ”Pesadas Baixas nas Tropas Britânicas - Mons e Cambrai - Luta Contra
Chances Terríveis Necessidade de Reforços.”

Esta última era a parte mais importante, pois na realidade o artigo tinha sido publicado corn um
objetivo oficial, apesar de ter criado uma tempestade no governo, provocando um furioso debate no
Parlamento e merecendo uma censura do Primeiro-Ministro como uma ”lamentável exceção” à
”patriótica reticência” da imprensa em geral. Enxergando de imediato suas qualidades como
propaganda de recrutamento, o Censor, F. E. Smith, mais tarde Lord Birkenhead, aprovou-o e
insistiu que o The Times o publicasse como seu dever patriótico, corn um texto anexo sobre a
”extrema gravidade da tarefa diante de nós”.

O texto descrevia um ”exército vencido e batendo em retirada” depois de uma série de combates
que podem ser chamados de ”a
89 ”Psiu, o senhor não deve dizer isto.” (N. daT.)

4i7
campanha de Mons”; narrava a retirada dos franceses que protegiam seu flanco, a ”perseguição
alemã imediata, incansável e implacável” i e sua ”veemência irresistível”, os regimentos britânicos
”dolorosa-

mente atingidos”, embora não por ”pânico, desânimo ou qualquer falha na disciplina”. Apesar de
tudo, os homens ainda estavam ”tranqüilos e alegres”, mas ”forçados a recuar, sempre recuar”. O
jornalista
4 fazia menção a ”perdas enormes”, ”pedaços de regimentos esfacelap dos” e algumas
divisões que perderam ”quase todos os seus oficiais”. JB Evidentemente contagiado pelo
estado de espírito do GHQ, ele escrete véu quase em delírio sobre a ala direita alemã: ’Tão
grande era a sua P superioridade numérica estimada, que mais fácil do que detê-la seria ’M.
deter as ondas do mar”. Concluía afirmando que a Inglaterra teria que aceitar o fato de que ”o
primeiro grande esforço alemão foi vitorioso” e ”o sítio a Paris não pode ser afastado do campo das
possibilidades”. Quando, ao analisar a necessidade de reforços, ele mencionou o fí fato de a
FEB ter ”suportado o peso do golpe”, estava corn isso construindo os alicerces de uma lenda. Era
como se o Exército francês tivesse sido apenas um coadjuvante no fundo do cenário. Na realidav de,
durante o primeiro mês a FEB jamais, em momento algum, teve

contato corn mais que três corpos alemães de um total de mais de 30, mas a idéia de ter ela
”suportado o peso do golpe” foi a partir de então perpetuada em todos os relatos ingleses a respeito
de Mons e da ”Gloriosa Retirada”. Ele conseguiu implantar na mente britânica a convicção de que a
FEB, nos dias grandiosos e terríveis de seu primeiro mês de batalha, salvou a França, salvou a
Europa, salvou a civilização ocidental e ainda mais - como um escritor inglês descaradamente
escreveu: ”Mons - Nesta simples palavra estará resumida a Liberação do Mundo.”

A Inglaterra fora o único entre os países beligerantes a entrar na guerra sem uma estrutura
preestabelecida de esforço nacional, sem ordens de mobilização em todos os bolsos. À exceção do
Exército Regular, tudo era improvisado e, durante as primeiras semanas antes do despacho de
Amiens - o ambiente era quase festivo. Até então, a verdade do avanço alemão fora oculta pela
”reticência patriótica”, para usar a esplêndida expressão do Sr. Asquith. A luta fora apresentada ao
público inglês - assim como ao francês - como uma série de derrotas alemãs nas quais o inimigo
inexplicavelmente passou da Bélgica para a França e cada dia aparecia no mapa em posições mais
avançadas. No dia 30 de agosto, enquanto o The Times era lido tts às mesas do café da manhã, em
toda a Inglaterra as pessoas ficaram
h
horrorizadas. O Sr. Britling pensou: ”Era como se David tivesse lançado a pedra em Golias... e
errado o alvo!” j||

Diante da constatação repentina e terrível de que o inimigo estava ganhando a guerra, a população,
procurando uma esperança, aearrou-se a uma história que surgira nos últimos dias e transiormoua
numa alucinação nacional: no dia 27 de agosto, um atraso de 17 horas no serviço de trens entre
Liverpool e Londres inspirou o boato de que o problema se devia ao transporte de soldados russos
que teriam desembarcado na Escócia a caminho de reforçar a frente ocidental. Os russos teriam
atravessado o Mar Ártico de Archangel para a Noruega, dali vindo de vapor até Aberdeen; de lá
estavam sendo levados por trens especiais até certos portos de embarque no Canal da Mancha.

Daí em diante, qualquer pessoa cujo trem atrasasse atribuía o atraso aos russos. Na tristeza que se
seguiu ao despacho de Amiens, sfe à comparação do número de alemães às ”ondas do mar” e ao
brado por ”homens, homens e mais homens”, os pensamentos voltavam-se inconscientemente para
o poderio humano ilimitado da Rússia e os fantasmas vistos na Escócia tomaram corpo, reunindo
detalhes cor-
”J?

roborativos à medida que a história se espalhava. ~fy

Por exemplo, eles batiam as botas na plataforma das estações *j para retirar a neve... em agosto,
pleno verão! Em Edimburgo, um funcionário da estação disse que varreu essa neve. ”Fardas
estranhas” foram vistas de relance em trens de transporte que passavam. Os russos foram vistos
seguindo via Harwich para salvar Antuérpia ou via Dover para salvar Paris; dez mil foram vistos em
Londres depois da meia-noite marchando ao longo do Embankment a caminho da Victoria Station.

A batalha naval de Heligoland foi explicada pelos sabichões como um truque para escondem
transporte dos russos para a Bélgica. As pessoas mais confiáveis os tinham visto - ou conheciam
pessoas que os tinham visto. Um professor de Oxford tinha um colega que fora convocado para
servir-lhes de intérprete; um oficial do exército escocês em Edimburgo viu-os corn ”túnicas
compridas e coloridas, e grandes gorros de pele”, portando arcos e flechas em lugar de fuzis e corn
seus próprios cavalos ”como pôneis escoceses, só que mais robustos” - uma descrição que
correspondia perfeitamente aos cossacos de cem anos antes como eles apareciam nas antigas
gravuras vitorianas!

Um morador de Aberdeen, Sir Stuart Coats, escreveu ao cunhado na América que 125.000 cossacos
tinham acabado de atravessar «9
sua propriedade em Perthshire; um oficial do exército inglês assegurou aos amigos que 70.000
russos tinham atravessado a Inglaterra em direção à linha de frente ocidental em ”absoluto
segredo”. A princípio falava-se em 500.000, depois 250.000, depois 125.000, e o número aos
poucos estabeleceu-se entre 70.000 e 80.000 - o mesmo número da FEB. Toda essa história
espalhou-se principalmente por via verbal; devido à censura oficial, nada apareceu nos jornais, a
não ser nos Estados Unidos; nesse país, os relatórios de americanos que voltavam para casa - a
maioria embarcados em Liverpool, cidade que estava num furor de excitação por causa dos russos -
preservaram o fenômeno para a posteridade.

Outros países neutros tiveram conhecimento da história. Despachos de Amsterdã informavam sobre
uma grande força de russos sendo levada às pressas para Paris para ajudar em sua defesa. Em Paris
as pessoas ficavam pelas estações ferroviárias esperando ver a chegada dos cossacos. Passando para
o Continente, os fantasmas tornaram-se um fator militar, pois também os alemães tinham ouvido os
boatos. A preocupação corn possíveis 70.000 russos às suas costas seria um fator tão real no Marne
quanto a ausência dos 70.000 alemães que tinham sido transferidos para a frente oriental. Somente
depois do Marne, em 15 de setembro, um desmentido oficial apareceu na imprensa inglesa.

No mesmo domingo em que o despacho de Amiens horrorizou

j a população, Sir John French compôs um relatório que foi um choque

{ ainda maior para Lord Kitchener. O GHQ estava então em Compiè-

J gne, 65 quilômetros ao norte de Paris, e os soldados ingleses, livres da

| perseguição dos dias anteriores, descansavam enquanto o inimigo

í estava combatendo os franceses. A Ordem de Operação à FEB naquele

\ dia, levando a assinatura de Sir John French, declarava que a pressão

inimiga ”foi aliviada por um avanço maciço francês à nossa direita,

que obteve muito sucesso nas vizinhanças de Guise onde os Guardas

alemães e o X Corpo foram forçados a recuar de volta ao Oise”. Como

esse reconhecimento dos fatos era totalmente irreconciliável corn o

que Sir John em seguida escreveu a Kitchener, só se pode imaginar

que ele o assinou sem ler.

Sir John informou Kitchener do pedido de Joffre para que ele firmasse posição ao norte de
Compiègne, em contato corn o inimigo, mas ressalvou que estava ”absolutamente incapacitado para
permanecer na linha de frente” e pretendia recuar ”para o outro lado do
450 Sena” mantendo ”uma distância considerável do inimigo”. Seu recuo
envolvia uma marcha de oito dias ”sem cansar os soldados”, passando a oeste de Paris para ficar
perto de sua base. Sir John continuava: ”Não gosto do plano do General Jof f ré, e teria preferido
uma ofensiva vigorosa” - uma preferência que ele acabara de recusar em St. Quentin quanto proibiu
Haig de cooperar corn Lanrezac na batalha.

Efetuando uma rápida reviravolta na frase seguinte, Sir John deixou claro que, depois de dez dias de
batalha, ele estava pronto para reconhecer a derrota dos franceses e voltar para casa. Sua confiança
na capacidade dos franceses de ”levar a campanha a uma conclusão vitoriosa está minguando
rapidamente”, escreveu, e ”esta é a minha verdadeira razão para levar as forças inglesas tão para
trás”. Embora ”muito pressionado para permanecer na linha de frente, mesmo em minhas más
condições”, ele se recusara ”cabalmente a isso”, de acordo corn ”a letra e o espírito” das instruções
de Kitchener, e insistira em manter sua independência de ação ”para recuar minha base” se
necessário.

Kitchener recebeu o relatório em 31 de agosto e leu-o corn uma perplexidade que beirava a
consternação. Considerava ”calamitosa”, tanto do ponto de vista político quanto militar, a intenção
de Sir John French de retirar-se da linha Aliada e separar os ingleses dos franceses, corn sua
aparência de estar desertando na hora mais desesperada. Como uma violação do espírito da Entente,
isso se tornou uma questão política, e Kitchener pediu ao Primeiro-Ministro para convocar
imediatamente o Gabinete. Antes que este órgão se reunisse ele enviou a French um telegrama
discreto exprimindo sua ”surpresa” diante da decisão de recuar para o outro lado do Sena e
expressando delicadamente a sua consternação em forma de perguntas: ”Qual será o efeito desse
comportamento em suas relações corn o exército francês e na situação militar em geral? Seu recuo
deixará uma brecha na linha francesa, ou irá provocar nos franceses.algum desânimo do qual os
alemães possam se aproveitar?” Ele terminava corn um lembrete de que os 32 trens de transporte
atravessando Berlim mostravam que os alemães estavam retirando forças da frente ocidental.

Quando Kitchener, depois de ler para o Gabinete a carta de French, explicou que o recuo para o
outro lado do Sena poderia significar perder a guerra, o Gabinete ficou ”perturbado”, como
exprimiu o Sr. Asquith em seu estilo contido. Kitchener foi autorizado a informar Sir John French
da ansiedade do Governo diante do recuo planejado e sua expectativa de que ”o senhor irá na
medida do possível adequar-se aos planos do General Joffre para a condução da

•’l

4&
campanha”. Preocupado corn o amour-propre de Sir John, ele acrescentava: ”O Governo tem total
confiança em seus soldados e no senhor.”

Quando o OHL soube da intenção do General Von Prittwitz de recuar para o outro lado do Vístula,
ele foi imediatamente demitido, mas quando Sir John propôs abandonar não uma província, mas um
aliado, não foi aplicada a mesma solução. A razão pode ter sido que, devido ao estrago causado pelo
conflito do Ulster, não havia um substituto a respeito de quem o Governo e o Exército
concordassem; a razão pode ter sido também que o Governo considerasse a demissão de um
Comandante-em-Chef e naquele momento um choque grande demais para o público. De qualquer
maneira, levados pela aura de irritabilidade de Sir John, todos-franceses e ingleses-continuaram a
tratá-lo corn o maior tato, tendo na realidade muito pouca confiança nele. ”Joffre e ele nunca
chegaram a menos de um quilômetro do coração um do outro”, escreveu um ano depois Sir William
Robertson, Chefe do Serviço de Intendência do Exército inglês, ao secretário do Rei. ”Ele nunca se
entendeu realmente corn os franceses, de maneira sincera e honesta, e eles não o consideram um
homem capaz ou um amigo fiel, portanto não confiam nele.”

Essa não era uma situação propícia para o esforço de guerra Aliado. Kitchener, cujas relações corn
Sir John French não eram cordiais desde a Guerra dos Bôeres, nunca mais recuperou a confiança
nele depois de 31 de agosto, mas foi só em dezembro de 1915 que as maquinações de Sir John
contra Kitchener-conduzidas de um modo ”nem decoroso, nem delicado, nem leal”, nas palavras de
Lord Birkenhead - finalmente levaram o Governo inglês a afastá-lo.

Enquanto em Londres Kitchener aguardava corn impaciência a resposta de Sir John, em Paris Joffre
mobilizava a ajuda do Governo francês para tentar manter os ingleses na linha de frente. Joffre tinha
descoberto então que pelo menos a metade da batalha de Lanrezac a metade correspondente a Guise
- tinha sido um sucesso. Ele se sentiu encorajado pelas informações mostrando que a Guarda alemã
e o X Corpo tinham sido ”severamente tratados” e que o Exército de Von Bülow não estava
perseguindo, informações essas combinadas corn a notícia da retirada de soldados alemães para a
frente oriental.

Assim, Joffre afirmou a Poincaré que o Governo afinal podia não ter que partir, pois ele agora tinha
esperança de deter o avanço alemão numa ação retomada pelo Quinto e pelo Sexto Exércitos. Joffre
mandou uma carta ao Comandante inglês dizendo-lhe que o Quinto e o
452 Sexto Exércitos tinham ordens de não ceder terreno a não ser sob
pressão, mas como não se podia esperar que eles agüentassem se entre eles surgisse uma brecha, ele
pedia ”ansiosamente” ao Marechal-deCampo French que não recuasse, ou ”pelo menos deixasse a
retaguarda guarnecida para não dar ao inimigo a impressão nítida de retirada e de uma brecha entre
o Quinto e o Sexto Exércitos”.

Poincaré, a quem Joffre pediu que exercesse sua influência como Presidente da França para obter
dos ingleses uma resposta favorável, telefonou para o Embaixador britânico, que por sua vez
telefonou para o GHQ, mas todos os telefonemas e as visitas de oficiais de ligação foram em vão.
”Eu recusei”, como o próprio Sir John resumiu mais tarde sua resposta, destruindo assim as
esperanças - passageiras e ilusórias - de Joffre.

Kitchener esperava corn tanta ansiedade a resposta de Sir John ao seu próprio Governo que fez os
decodificadores lerem palavra por palavra à medida que elas chegavam, naquela madrugada. A
mensagem dizia: ”Naturalmente”, sua recusa abriria uma brecha na linha de frente francesa, mas ”se
os franceses continuarem corn as atuais táticas, que são praticamente recuar à minha direita e à
minha esquerda, geralmente sem aviso, e abandonar qualquer idéia de uma operação ofensiva (...)
as conseqüências serão suportadas por eles. (...) Não vejo por que eu deveria ser chamado a correr o
risco de um desastre completo para poder salvá-los pela segunda vez.”

Essa agressiva distorção da realidade, depois de Joffre acabar de lhe dizer o contrário, era o tipo de
coisa que, quando seu livro 1914 foi publicado, fez corn que seus compatriotas procurassem em vão
um sinônimo delicado para a palavra ”mentira”, levando até o Sr. Asquith a usar a expressão ”um
travesti dos fatos”. Mesmo levandose em conta as falhas de caráter de Sir John, permanece o
mistério: como o Comandante-em-Chefe britânico poderia ter chegado a esse quadro de derrotismo
em relação às forças francesas tendo Henry Wilson no staff, corn seu completo conhecimento da
língua francesa e sua amizade corn oficiais franceses, inclusive Joffre?

Quando terminou de ler o telegrama, à 1:00 da madrugada, Kitchener resolveu imediatamente que
só havia uma coisa a fazer, e não podia esperar até amanhecer: ele próprio tinha que ir à França.
Como Marechal-de-Campo mais antigo, ele era o chefe do Exército e como tel considerava-se no
direito de dar ordens a Sir John French em questões militares, assim como em questões políticas na
qualidade de Ministro da Guerra.
453
campanha”. Preocupado corn o amour-propre de Sir John, ele acrescentava: ”O Governo tem total
confiança em seus soldados e no senhor.”

Quando o OHL soube da intenção do General Von Prittwitz de recuar para o outro lado do Vístula,
ele foi imediatamente demitido, mas quando Sir John propôs abandonar não uma província, mas um
aliado, não foi aplicada a mesma solução. A razão pode ter sido que, devido ao estrago causado pelo
conflito do Ulster, não havia um substituto a respeito de quem o Governo e o Exército
concordassem; a razão pode ter sido também que o Governo considerasse a demissão de um
Comandante-em-Chefe naquele momento um choque grande demais para o público. De qualquer
maneira, levados pela aura de irritabilidade de Sir John, todos-franceses e ingleses-continuaram a
tratá-lo corn o maior tato, tendo na realidade muito pouca confiança nele. ”Joffre e ele nunca
chegaram a menos de um quilômetro do coração um do outro”, escreveu um ano depois Sir William
Robertson, Chefe do Serviço de Intendência do Exército inglês, ao secretário do Rei. ”Ele nunca se
entendeu realmente corn os franceses, de maneira sincera e honesta, e eles não o consideram um
homem capaz ou um amigo fiel, portanto não confiam nele.”

Essa não era uma situação propícia para o esforço de guerra Aliado. Kitchener, cujas relações corn
Sir John French não eram cordiais desde a Guerra dos Bôeres, nunca mais recuperou a confiança
nele depois de 31 de agosto, mas foi só em dezembro de 1915 que as maquinações de Sir John
contra Kitchener-conduzidas de um modo ”nem decoroso, nem delicado, nem leal”, nas palavras de
Lord Birkenhead - finalmente levaram o Governo inglês a afastá-lo.

Enquanto em Londres Kitchener aguardava corn impaciência a resposta de Sir John, em Paris Joffre
mobilizava a ajuda do Governo francês para tentar manter os ingleses na linha de frente. Joffre tinha
descoberto então que pelo menos a metade da batalha de Lanrezac a metade correspondente a Guise
- tinha sido um sucesso. Ele se sentiu encorajado pelas informações mostrando que a Guarda alemã
e o X Corpo tinham sido ”severamente tratados” e que o Exército de Von Bülow não estava
perseguindo, informações essas combinadas corn a notícia da retirada de soldados alemães para a
frente oriental.

Assim, Joffre afirmou a Poincaré que o Governo afinal podia não ter que partir, pois ele agora tinha
esperança de deter o avanço alemão numa ação retomada pelo Quinto e pelo Sexto Exércitos. Joffre
mandou uma carta ao Comandante inglês dizendo-lhe que o Quinto e o
452 Sexto Exércitos tinham ordens de não ceder terreno a não ser sob
pressão, mas como não se podia esperar que eles agüentassem se entre eles surgisse uma brecha, ele
pedia ”ansiosamente” ao Marechal-deCampo French que não recuasse, ou ”pelo menos deixasse a
retaguarda guarnecida para não dar ao inimigo a impressão nítida de retirada e de uma brecha entre
o Quinto e o Sexto Exércitos”.

Poincaré, a quem Joffré pediu que exercesse sua influência como Presidente da França para obter
dos ingleses uma resposta favorável, telefonou para o Embaixador britânico, que por sua vez
telefonou para o GHQ, mas todos os telefonemas e as visitas de oficiais de ligação foram em vão.
”Eu recusei”, como o próprio Sir John resumiu mais tarde sua resposta, destruindo assim as
esperanças - passageiras e ilusórias - de Joffre.

Kitchener esperava corn tanta ansiedade a resposta de Sir John ao seu próprio Governo que fez os
decodificadores lerem palavra por palavra à medida que elas chegavam, naquela madrugada. A
mensagem dizia: ”Naturalmente”, sua recusa abriria uma brecha na linha j de frente francesa, mas
”se os franceses continuarem corn as atuais
* táticas, que são praticamente recuar à minha direita e à minha esquer: da, geralmente sem aviso, e
abandonar qualquer idéia de uma operação ofensiva (...) as conseqüências serão suportadas por eles.
(...) Não vejo por que eu deveria ser chamado a correr o risco de um desastre completo para poder
salvá-los pela segunda vez.”

Essa agressiva distorção da realidade, depois de Joffre acabar de lhe dizer o contrário, era o tipo de
coisa que, quando seu livro 1914 foi publicado, fez corn que seus compatriotas procurassem em vão
um sinônimo delicado para a palavra ”mentira”, levando até o Sr. Asquith a usar a expressão ”um
travesti dos fatos”. Mesmo levandose em conta as falhas de caráter de Sir John, permanece o
mistério: como o Comandante-em-Chefe britânico poderia ter chegado a esse quadro de derrotismo
em relação às forças francesas tendo Henry Wilson no staff, corn seu completo conhecimento da
língua francesa e sua amizade corn oficiais franceses, inclusive Joffre?

Quando terminou de ler o telegrama, à 1:00 da madrugada, Kitchener resolveu imediatamente que
só havia uma coisa a fazer, e não podia esperar até amanhecer: ele próprio tinha que ir à França.
Como Marechal-de-Campo mais antigo, ele era o chefe do Exército e como tal considerava-se no
direito de dar ordens a Sir John French em questões militares, assim como em questões políticas na
qualidade de Ministro da Guerra.
453
Correndo à Downing Street90, Kitchener conferenciou corn Asquith e um grupo de ministros -
entre eles, Churchill, que ordenou que um cruzador ligeiro estivesse pronto em Dover dentro de
duas horas. Telegrafou a Sir John para esperá-lo e, para que sua presença no GHQ não agredisse a
sensibilidade do Comandante-em-Chefe, pediu-lhe para escolher um local de encontro. Às 2:00 Sir
Edward Grey foi tirado da cama corn um susto pela aparição de Kitchener entrando em seu quarto
para dizer que estava partindo para a França; às 2:30 ele partiu de Charing Cross num trem especial
e na manhã de l- de setembro encontrava-se em Paris.

”Irritado, violento, o rosto congestionado, mal-humorado, furioso”, o Marechal-de-Campo French,


acompanhado por Sir Archibald Murray, chegou à Embaixada britânica, local de encontro que ele
escolhera; pretendia que o local realçasse a natureza civil da reunião, pois insistia em considerar
Kitchener o chefe político do Exército sem outro status do que qualquer Ministro da Guerra civil.
Sua cólera não se acalmou ao encontrar Kitchener fardado, o que Sir John imediatamente tomou
como uma tentativa de intimidá-lo corn a sua superioridade hierárquica.

Na realidade, depois de aparecer de fraque e cartola em seu primeiro dia no posto, Kitchener logo
desistira das roupas civis em favor de sua farda de Marechal-de-Campo, que ele passou a usar
diariamente para ir trabalhar. Sir John, porém, tomou aquilo como uma ofensa pessoal. As roupas
eram para ele um assunto da maior importância e ele tinha a tendência de usá-las para realçar sua
própria dignidade, de um modo que seus colegas consideravam pouco ortodoxo; o ofendia o Rei
George corn seu hábito de ”usar estrelas em caqui” e ”cobrir-se de quinquilharias estrangeiras”, e
Sir Henry Wilson costumava dizer dele: ”E um homenzinho simpático quando está tomando banho,
mas quando veste suas roupas não se pode confiar nele; nunca se sabe o que vai usar.”

Quando a reunião na Embaixada britânica - na presença de Sir Francis Bertie, Viviani, Millerand e
vários oficiais representando Joffre-tornou-se constrangedoramente agressiva, Kitchener pediu que
Sir John se retirasse corn ele para um aposento particular. Como não se pode confiar na versão de
Sir John, publicada depois da morte de Kitchener, do que foi dito ali, só os resultados da conversa
são
90 Downing Street: rua de Londres onde ainda hoje está localizada, no n” 10, a residência oficial •c-, do Prímeiro-Ministro
britânico. (N. da T.) *
tDt rtisífe- pi-is-àfriã^if.- - - ..
conhecidos. Eles foram expressos num telegrama de Kitchener ao Governo declarando que ”os
soldados de French estão agora engajados na linha de combate, onde permanecerão em
conformidade corn os movimentos do Exército francês”, o que significaria recuar para o leste de
Paris, não para o oeste.

Numa cópia enviada a Sir John French, Kitchener acrescentou que tinha certeza de que aquilo
representava o acordo a que tinham chegado, mas, de qualquer maneira, ”por favor, considere-o
uma instrução”. Acrescentou que ”na linha de combate” significava dispor as tropas inglesas em
contato corn os franceses. Num fatídico retorno ao tato, ele ajuntou: ”Naturalmente o senhor julgará
em relação à posição deles nesse aspecto.” Sem se apaziguar, o Comandante-emChefe retirou-se
numa irritação mais profunda e mais paralisante do que antes.

Durante esse dia e o anterior, o Exército de Von Kluck, avançando em marchas forçadas em sua
pressa de cercar os franceses antes que estes conseguissem firmar posição, tinha tomado Compiègne
e atravessado o Oise, empurrando adiante de si a retirada Aliada, e em
12 de setembro estava em ação contra a retaguarda do Sexto Exército francês e a FEB, a 48
quilômetros de Paris. Nesse dia, o cadáver de um oficial alemão forneceu aos franceses uma
informação vital.
455
21
A Manobra de Von Kluck
„ Monsieur Albert Fabre, cuja casa em Lassigny, 19 quilômetros ao

norte de Compiègne, foi requisitada pelos alemães em 30 de agosto, escreveu:

”Chegou um carro. Dele desceu um oficial de porte arrogante e imponente. Avançou sozinho, e os
oficiais parados em grupos diante da casa abriam-lhe caminho. Era alto e majestoso, de rosto
barbeado e cheio de cicatrizes, feições duras e olhar assustador. Na mão direita levava um fuzil
militar e a esquerda descansava no cabo de um revólver. Voltou-se diversas vezes, golpeando o solo
corn o cabo do fuzil, e então estacou, numa pose teatral. Ninguém ousava aproximarse, ele
realmente tinha uma aparência terrível.” Contemplando, atônito, essa aparição tão bem armada,
Monsieur Fabre lembrou-se de Átila e foi informado de que seu visitante era o já demasiadamente
famoso Von Kluck.

O General Von Kluck, o ”último homem à direita” no plano de

Schlieffen, naquele momento debatia-se corn a necessidade de tomar

uma decisão importante. Nesse dia 30 de agosto ele se sentia à beira

de uma crise. Seus soldados da extrema direita tinham obrigado

unidades do Exército de Maunoury a recuar - um sucesso que Von

| Kluck pensara ser definitivo. Sua perseguição no centro não conse-

I guira alcançar os ingleses, mas encontrando ao longo da estrada as

j pilhas de casacos, botas e munição que os ingleses tinham descartado

|; em sua ansiedade de levar seus homens embora, Von Kluck viu

l confirmar-se a sua impressão de um oponente derrotado. À sua

| esquerda, uma divisão que ele emprestara a Von Bülow para ajudar

l na batalha de Guise informou que os franceses estavam fugindo

| daquele combate. Von Kluck estava tenazmente decidido a não lhes

J dar tempo para se recuperará

f As informações sobre a direção de Lanrezac indicavam que a

! linha francesa não se estendia tão a oeste quanto se calculara; Von j Kluck acreditava que poderia
obrigá-la a recuar o flanco ao norte de j Paris, tornando desnecessária uma grande curva pelo oeste e
sul da l cidade. A mudança requeria uma troca de direção no seu avanço; em | vez de ir diretamente
para o sul, ele iria para o sudeste. Haveria a jB6 vantagem também de fechar a brecha entre o seu
exército e o de Von

1
Bülow. Como todo mundo, ele iniciara a campanha imaginando que viriam reforços da ala
esquerda. Agora precisava deles, para substituir os corpos que tivera que deixar em Antuérpia, a
brigada em Bruxelas, as várias unidades deixadas a tomar conta da sua linha de comunicação cada
vez mais comprida-sem mencionar as baixas em combate. Mas os reforços não viriam; Moltke
ainda não os retirara da ala esquerda.

Moltke tinha muitas preocupações. Fiel ao seu temperamento, ’Triste Julius” ficava menos feliz
corn o avanço de seus exércitos conquistadores do que deprimido pelas dificuldades desse avanço.
Estavam no trigésimo dia, e o cronograma previa a vitória sobre a França entre o trigésimo sexto e o
quadragésimo dia. Embora os comandantes de sua ala direita continuassem a informar que os
franceses e os ingleses estavam ”definitivamente vencidos” e a se referir à retirada inimiga em
termos de ”fuga” e ”debandada”, Moltke estava preocupado. Percebia uma estranha falta dos
indícios costumeiros de uma debandada ou retirada desordenada; por que havia tão poucos
prisioneiros? Seu velho chefe Schlieffen costumava dizer: ”Uma vitória no campo de batalha não
tem muito importância se não resultar em penetração ou cerco. Embora obrigado a recuar, o inimigo
irá reaparecer em terreno diferente para retomar a resistência momentaneamente interrompida. A
campanha continuará. (...)”

Apesar de sua preocupação, Moltke não foi investigar por si mesmo, mas permaneceu no
Quartel-General, aflito, dependendo de mensageiros para receber informações. No dia 29 de agosto
ele escreveu para a esposa: ”É de cortar o coração ver como der hohe Herr (o Kaiser) pouco
suspeita da gravidade da situação. Ele já mostra um certo estado de espírito de comemoração ao
qual tenho ódio mortal.”

Em 30 de agosto, enquanto os exércitos alemães se aproximavam do clímax de sua campanha, o


OHL avançou de Coblenz para a Cidade de Luxemburgo, cerca de 15 quilômetros além da fronteira
da França. Estavam agora em território emocionalmente - embora não oficialmente - hostil e que,
tanto pela proximidade quanto pelos sentimentos, era um ninho de boatos Aliados. Corriam rumores
sobre os 80.000 russos chegando para ajudar os ingleses e franceses, e o OHL ocupava-se a
procurar indicações de um desembarque em algum lugar da costa do Canal da Mancha. Os temores
alemães ganharam uma aparente realidade corn o desembarque - real - de 3.000 Fuzileiros Navais
ingleses em Ostende; quando a notícia chegou a Luxemburgo, o número de soldados tinha assumido
proporções sénas, mesmo em termos russos.
457
Além do fantasma dos russos às suas costas, Moltke sentia-se perturbado pelas brechas em sua linha
de batalha, especialmente entre os exércitos da ala direita. Havia um espaço de 30 quilômetros entre
Von Kluck e Von Bülow, outro de 30 quilômetros entre Von Bülow e Von Hausen, e um terceiro
quase da mesma largura entre Von Hausen e o Duque de Württemberg. Moltke tinha a incômoda
consciência de que esses espaços deveriam ter sido preenchidos por reforços retirados da ala
esquerda, que ele agora comprometera totalmente na batalha pelo Moselle.

Schlieffen sempre insistira que o correto seria deixar a ala esquerda na defensiva corn um mínimo
de forças e enviar todas as divisões possíveis para o Primeiro e o Segundo Exércitos, mas o sonho
de penetrar a linha de fortificações francesa ainda atraía o OHL. Indeciso, no dia 30 de agosto
Moltke enviou o Major Bauer, seu especialista em artilharia, a uma inspeção pessoal da frente de
batalha de Rupprecht.

No quartel-general de Rupprecht, Bauer encontrou ”tudo, menos planos feitos”; quando foi para as
linhas de frente, comandantes e oficiais expressaram-lhe opiniões conflitantes. Alguns, apontando o
inconfundível recuo de divisões inimigas naquela frente, tinham confiança no sucesso iminente.
Outros reclamavam das ”montanhas íngremes, cheias de mato” e do Moselle ao sul de Toul, onde o
ataque estava tendo problemas, e afirmaram que mesmo se ele fosse vitorioso os soldados estariam
desprotegidos de um ataque de flanco partindo de Toul e as linhas de suprimentos iriam sofrer, pois
todas as estradas e ferrovias passavam por dentro da cidade fortificada - Toul teria que ser tomada
primeiro. No quartel-general do Sexto Exército, o antigo entusiasmo exuberante do Príncipe
Rupprecht esfriara, transformando-se na convicção de estar envolvido numa ”tarefa difícil e
desagradável”.

Para Bauer, que representava o Comando Supremo, a notícia da retirada francesa nessa frente era
um mau sinal, pois significava que o inimigo estava retirando unidades para reforçar a frente diante
da ala direita alemã. Segundo relatou a Moltke, ele voltou para o OHL corn a conclusão de que,
embora o ataque a Nancy-Toul e à linha do Moselle não fosse ”sem chances”, requereria um
esforço suplementar que parecia ”injustificável” naquela ocasião. Moltke concordou - e não fez
coisa alguma. Não conseguia criar coragem para interromper a ofensiva que já custara tanto. Além
disso, o Kaiser queria cavalgar
458 em triunfo pelas ruas de Nancy. Nenhuma ordem de mudança foi
expedida para o Sexto Exército e o esforço em grande escala para penetrar a linha do Moselle
prosseguiu.

Von Kluck não gostou da omissão em reforçar a ala em marcha naquele momento crítico. Mas o
que o levou a fazer uma curva para o interior não foi tanto a necessidade de estreitar sua frente, mas
a convicção de que os franceses já estavam vencidos e faltava apenas acabar corn eles. Em vez de
esbarrar no Canal corn a manga, ele esbarraria em Paris pelo lado de dentro, em perseguição direta
ao Exército de Lanrezac. Não ignorava o perigo de expor seu flanco a um ataque da guarnição de
Paris ou das forças de Maunoury, que estavam recuando para Paris na sua frente, mas calculava que
esse perigo não fosse grande. Considerava insignificantes as forças até então reunidas sob o
comando de Maunoury e não pensou na possibilidade de que elas fossem reforçadas, pois calculava
que os fran- , ceses, recuando aos tropeços, nas garras da derrota e do desastre, i estariam
desorganizados demais para tal manobra. ’ Além disso, ele imaginava que todas as forças francesas
dis-

poníveis estavam imobilizadas sob a forte pressão do Exército do JÈ Príncipe-Herdeiro ao


redor de Verdun e dos Exércitos de Rupprecht • ao longo do Moselle. Um de seus próprios
corpos, o vagaroso IV n Corpo da Reserva, seria suficiente para ser deixado diante de Paris
9 protegendo o flanco de seu Exército quando este se desviasse para o leste na frente da capital.
Afinal, nos exercícios de guerra na Alemanha ficara provado que forças de guarnição dentro de uma
praça de guerra não se aventuram a sair de lá até serem atacadas, e ele acredi[ tava que o IV da
Reserva conseguiria deter a maltrapilha coleção de l tropas sob o comando de Maunoury. Através
de uma carta capturada l ele tomara conhecimento da intenção de Sir John French de abanpdonar a
linha e recuar para o outro lado do Sena, e considerava a FEB ti- até então seu oponente direto
-.uma força sem nenhuma imporlitância.

Ao contrário do sistema francês, o sistema alemão dava a Von Kluck, como comandante em
campanha, a maior liberdade possível para tomar suas próprias decisões. Os generais alemães eram
preparados - pela instrução, por exercícios sobre o mapa e pelos exercícios de guerra - para
encontrar a solução correta para um determinado problema militar, e conseqüentemente esperava-se
que eles assim fizessem quando fosse necessário. O plano de Von Kluck de ignorar Paris e ir atrás
dos exércitos em retirada, embora diferisse da estratégia original, era a solução ”correta”, agora que
lhe parecia pôs- 459
:p
sível aniquilar os exércitos franceses no campo, sem sitiar Paris. Segundo a teoria militar alemã,
uma praça fortificada não devia ser atacada até que as forças móveis do inimigo tivessem sido
dominadas. Uma vez conseguido isso, todos os outros frutos da vitória se seguiriam. Embora a
atração de Paris fosse forte, Kluck decidiu não ser tentado a sair do caminho da correta conduta
militar.

Às 18:30 de 30 de agosto ele recebeu uma mensagem de Von Bülow que o fez chegar a uma
decisão. A mensagem lhe pedia que fizesse a curva para o interior para poder ajudar Von Bülow a
”obter maior oportunidade para a vitória” sobre o Quinto Exército francês. Quaisquer que tenham
sido as palavras que Von Bülow usou, não se sabe ao certo se ele estava pedindo ajuda para
explorar a vitória obtida em St. Quentin ou para compensar a derrota sofrida em Guise. Como o
pedido combinava corn aquilo que Von Kluck queria mesmo fazer, ele tomou sua decisão: os
objetivos que estipulou para a marcha do dia seguinte já não eram diretamente para o sul mas para o
sudeste, em direção a Noyon e Compiègne, para interceptar a retirada do Quinto Exército. Aos
soldados que já protestavam e tinham os pés feridos, pois não descansavam desde que tinham
iniciado o avanço em Liège 16 dias antes, sua ordem de 31 de agosto dizia: ”Outra vez, portanto,
precisamos pedir às tropas que façam marchas forçadas.”

O OHL, informado por Von Kluck de que o Primeiro Exército começaria a manobra na manhã
seguinte, apressou-se em aprová-la. Preocupado corn as brechas, Moltke enxergava o perigo dos
três exércitos da ala direita ficarem sem condições de se apoiarem mutuamente na hora do golpe
final. A densidade estava abaixo daquela prescrita para uma ofensiva, e para Kluck ater-se ao plano
original de uma curva em volta de Paris a linha de frente teria que esticar-se por outros 80
quilômetros ou mais. Agarrando-se à manobra de Von Kluck como uma feliz solução, na mesma
noite Moltke telegrafou sua autorização.

O final estava à vista: a planejada derrota da França no 39^ dia, a tempo de voltar-se contra a Rússia
- a culminação de todo o treinamento e planejamento1, o desempenho positivo de toda organização
da Alemanha, e último passo para ganhar a guerra e dominar a Europa. Faltava apenas arrebanhar
os franceses em retirada antes que eles conseguissem recuperar sua coesão e retomar a resistência.
Não se podia deixar que qualquer coisa - nem os espaços vazios, nem a derrota do Exército de Von
Büllow em Guise, nem o cansaço dos homens, nem uma indecisão ou um erro de última hora -
466 prejudicasse a derradeira arremetida para a vitória.
Von Kluck levou seu Exército para adiante corn extrema pressa. Na manhã de 30 de agosto,
enquanto os oficiais subiam e desciam as estradas e os sargentos vociferavam ordens, os soldados
sujos e maltrapilhos formavam exaustas colunas para iniciar outro dia de interminável arrastar de
pés. Nada sabendo de mapas ou de planos, eles não perceberam a mudança de direção. A palavra
mágica-Paris -os levava adiante e eles não foram informados de que aquele já não era o seu destino.

A fome aumentava seu sofrimento - eles tinham ultrapassado suas linhas de suprimento, que
funcionavam precariamente, por causa da destruição de pontes e túneis ferroviários na Bélgica. Os
encarregados da manutenção não conseguiam fazer as ferrovias acompanharem o avanço dos
exércitos; a importante ponte de Namur, por exemplo, só foi consertada em 30 de setembro. Muitas
vezes a fatigada infantaria, depois de um longo dia de marcha, descobria que sua própria cavalaria
tinha ocupado a aldeia onde ela deveria alojar-se. A cavalaria, que, segundo o planejamento, deveria
viver dos recursos encontrados na região, mostrava-se sempre tão ansiosa em relação a seus trens de
suprimento e forragem para os cavalos que para assegurá-los, segundo o Príncipe-Herdeiro - ele
próprio um antigo cavalariano -, ”constantemente se instalavam” em locais destinados à infantaria.
E acrescentou um testemunho que, partindo dele, era inesperado: ”Eles sempre faziam alto e se
metiam no caminho da infantaria no momento em que as coisas na linha de frente começavam a
parecer feias.”

No dia l2 de setembro o Exército de Von Kluck teve uma péssima surpresa quando alcançou a
retaguarda dos ingleses, que inexplicavelmente, já que o comunicado de Von Kluck dizia que eles
estavam em retirada ”na mais completa desordem” - conseguiram fazer meia-volta e oferecer uma
resistência dura e eficaz. Durante um dia de luta desesperada dentro e ao redor das florestas de
Compiègne e Villers-Cotterets, a retaguarda britânica deteve o inimigo, enquanto o corpo principal
da FEB, para desgosto de Von Kluck, escapava novamente.

Recusando aos soldados um descanso ”muito necessário”, Kluck ordenou outra marcha no dia
seguinte, desviando-se ligeiramente para o oeste na esperança de cercar os ingleses, mas estes
novamente conseguiram escapar ”bem na hora” e atravessar o Marne em 3 de setembro. A chance
de acabar corn eles estava terminada. De péssimo humor, tendo perdido tempo, aumentado sua
baixas e acres-

461
centado uma boa distância à marcha, ele retomou sua curva para o interior em perseguição aos
franceses.

”Nossos homens estão acabados”, escreveu um oficial alemão do Exército de Von Kluck em seu
diário no dia 2 de setembro. ”Eles avançam cambaleando, os rostos cobertos de poeira, as fardas em
farrapos. Parecem espantalhos vivos.” Depois de quatro dias de marcha, numa média de 40
quilômetros por dia, por estradas esburacadas pelas balas de canhão e bloqueadas pelas árvores
derrubadas, ”eles marcham de olhos fechados, cantando em coro para não adormecer. (...) Apenas a
certeza da vitória breve e da entrada triunfal em Paris os mantém caminhando. (...) Sem isso eles
teriam tombado, exaustos, adormecendo onde caíssem.”

O diário registra também um problema que se tornava cada vez mais sério no avanço alemão,
especialmente mais para o norte, onde as tropas de Von Bülow e Von Hausen atravessavam a
Champagne. ”Eles bebem demais, mas a bebida os faz caminhar. Hoje, depois da inspeção, o
General estava furioso. Queria acabar corn essa bebedeira geral, mas conseguimos dissuadi-lo de
dar ordens severas. Se usássemos severidade demais, o Exército não marcharia. Para combater a
fadiga anormal são necessários estimulantes anormais.” ”Nós vamos consertar isso em Paris”,
concluía esperançosamente o oficial evidentemente, ignorando também ele a nova direção da
marcha.

Na França, assim como na Bélgica, os alemães deixaram um rastro de destruição por onde
passaram. As aldeias eram incendiadas, os civis executados, as casas saqueadas e destruídas,
soldados cavalgavam dentro dos aposentos, latrinas foram cavadas no jazigo dos Poincaré em
Nubécourt. Ao passar por Senlis, a 40 quilômetros de Paris, no dia 2 de setembro, o II Corpo de
Von Kluck executou o Prefeito e seis outros reféns civis. Uma lápide junto à entrada da cidade, na
borda de um campo onde eles foram enterrados, registra seus nomes:

EugeneOdène Emile Aubert Jean Barbier Lucien Cottreau Pierre Dewerdt J-B. Elysée Pommier
Arthur Régant
*J

Prefeito

Curtidor

Carroceiro

Garçom

Motorista

Ajudante de padeiro

Operário de pedreira
462
O dia 2 de setembro foi um dia feliz para o General Von Hausen, que encontrou-se alojado no
castelo do Conde de Chabrillon em Thugny, na margem do Aisne. Ocupando o quarto de dormir da
condessa, o General ficou deliciado ao descobrir, examinando seus cartões de visita, que ela era por
nascimento Condessa de Lévy-Mirepois, o que o levou a dormir corn muito mais prazer no leito da
nobre dama. Depois de jantar um faisão obtido por seus oficiais de suprimento, que organizaram
uma caçada no parque do castelo, Hausen contou as peças do faqueiro de prata da condessa e
deixou uma lista corn um velho aldeão.

Naquela noite, Moltke, que depois de pensar melhor tinha começado a se preocupar corn o flanco
que o desvio feito por Von Kluck ia deixar desprotegido diante de Paris, expediu nova Ordem
Geral. Como no caso da ala esquerda, a ordem refletia a sua indecisão: ela ratificava a manobra de
Kluck ao ordenar que o Primeiro e o Segundo Exército empurrassem ”os Exércitos franceses na
direção sudeste, para longe de Paris” e ao mesmo tempo tentava evitar uma possível ameaça
ordenando que o Exército de Von Kluck seguisse ”em escalão91 atrás do Segundo Exército” e
ficasse ”responsável pela proteção ao flanco dos Exércitos”.

Em escalão! Para Von Kluck, aquilo era um insulto pior do que colocá-lo, como o OHL fizera, sob
as ordens de Von Bülow. O Átila de cara feia corn o fuzil numa das mãos e o revólver na outra, o
homem que ditava o ritmo da ala direita, não ia ficar atrás de ninguém! Ele expediu suas próprias
ordens para o Primeiro Exército ”continuar avançando sobre o Marne amanhã (3 de setembro) para
empurrar os franceses para o sudeste”. Para proteger o flanco exposto às forças francesas de Paris,
Von Kluck achou suficiente deixar para trás suas duas unidades mais fracas: a IV Divisão de
Reserva, que estava sem a brigada que ficara em Bruxelas, e a 4a. Divisão de Cavalaria, que sofrerá
pesadas perdas na luta contra os ingleses em 1^ de setembro.

O Capitão Lepic, oficial do Corpo de Cavalaria de Sordet, estava fazendo um reconhecimento a


noroeste de Compiègne no dia 31 de agosto - a primeira manhã do desvio de Von Kluck - quando
avistou a pouca distância uma coluna de cavalaria inimiga corn nove esquadrões, seguida quinze
minutos depois por uma coluna de infantaria corn canhões, carroças de munição e uma companhia
de ciclistas.
•*HÍ

«JS

Escalão: na estratégia militar, uma formação em forma de degraus na qual cada unidade fica progressivamente mais para a direita ou
para a esquerda da anterior. (N. da T.)

463
Ele percebeu que estavam pegando a estrada para Compiègne, e não a rota sul direta para Paris.
Sem saber que era a primeira testemunha de uma virada histórica, o Capitão Lepic ficou mais
interessado em informar que os Ulanos tinham descartado seus capacetes e estavam usando bonés
de pano, e que ”pedem informações ao povo local em mau francês, dizendo-se ’Englisch,
Englisch’”.

Essa informação sobre a linha de marcha do inimigo ainda não pareceu ao GQG ter grande
importância; julgava-se que a cidade e o castelo de Compiègne estivessem atraindo os alemães e
eles ainda poderiam pegar a estrada de Compiègne para Paris. Tampouco as duas colunas que o
Capitão Lepic avistou indicavam necessariamente o Exército inteiro de Von Kluck.

Também os franceses sabiam, no dia 31 de agosto, que a campanha estava chegando ao clímax. Seu
segundo plano - o plano de 25 de agosto de deslocar o centro de gravidade para a esquerda num
esforço de deter a ala direita alemã - falhara. Também fracassara a missão do Sexto Exército, que,
juntamente corn os ingleses e o Quinto Exército, deveria ter firmado posição no Somme. Agora
Joffre reconhecia que a missão do Sexto Exército era ”proteger Paris”. Como ele disse em
particular, os ingleses ”ne veulent pás marcher”92 e o Quinto Exército, corn Kluck em perseguição
a seu flanco, ainda corria o perigo de ser cercado.

De fato, chegaram notícias alarmantes segundo as quais uma ponta-de-lança da cavalaria de Von
Kluck já tinha penetrado entre o Quinto Exército e Paris, pela brecha deixada pela retirada dos
ingleses. Como o Coronel Pont, Chefe de Operações de Joffre, declarou, ”obviamente já não parece
possível enfrentarmos a ala direita alemã corn forças suficientes para deter sua manobra de cerco”.

Tornava-se necessário um novo plano; o objetivo imediato era a sobrevivência. No GQG, Joffre
debateu corn seus dois assistentes Belin e Berthelot, e os oficiais mais graduados do Departamento
de Operações, a atitude a tomar. Os ventos quentes dos acontecimentos tinham forçado a entrada de
uma nova idéia na ”panelinha” da ofensiva: ”resistir”, até que .xis Exércitos franceses conseguissem
estabilizar uma linha de onde retomar a ofensiva. Reconhecia-se que nesse ínterim o avanço alemão
iria estender suas forças ”ao longo de um enorme arco de Verdun a Paris”. O plano, dessa vez, era,
em lugar de enfrentar a ala em marcha do Exército inimigo, detê-lo mediante um
46*

92 ”Os ingleses não querem marchar”. (N. da T.)


ataque ao seu centro, revertendo à estratégia do Plano 17 - só que aeora o campo de batalha era o
coração da França e uma derrota francesa dessa vez não seria reversível, como nas fronteiras, mas
definitiva.

A questão era a ocasião em que o ”movimento para diante” deveria ser retomado-o mais cedo
possível? Ou quando se alcançasse uma posição alinhada corn Paris? Ou no vale do Marne? Ou
então a retirada devia continuar até uma linha 65 quilômetros mais para trás, do outro lado do Sena?
Prosseguir corn a retirada significaria ceder mais território aos alemães, mas a barreira do Sena
forneceria uma trégua para os exércitos reunirem forças longe da pressão direta do inimigo. Belin
argumentou: assim como o principal objetivo alemão era destruir os exércitos franceses, ”nosso
principal objetivo” devia ser ”nos mantermos vivos”. Tomar a ”atitude prudente” e organizar uma
nova formação do outro lado do Sena era, além de um dever patriótico, a conduta mais acertada
para frustrar os objetivos do inimigo. A argumentação de Belin teve o apoio eloqüente de Berthelot.
Joffre escutava - e no dia seguinte expediu a Ordem Geral N2 4.

Era l2 de setembro, véspera do aniversário de Sedan, e as perspectivas para a França pareciam tão
trágicas quanto tinham sido então. O Adido Militar francês enviara a confirmação oficial da derrota
russa em Tannenberg. A Ordem Geral N2 4, em contraste corn o torn firme da Ordem que se seguiu
à derrocada nas fronteiras, refletia o otimismo abalado do GQG depois de uma semana de avanço
cada vez maior do inimigo. Ela prescrevia a continuação da retirada para o Terceiro, o Quarto e o
Quinto Exércitos ”por mais algum tempo” e colocava o Sena e o Aube como limites do recuo ”não
significando que esse limite será necessariamente atingido”.

Segundo a Ordem, ”assim que o Quinto Exército tiver escapado à ameaça de cerco” os exércitos
”retpmarão a ofensiva” mas, ao contrário da Ordem anterior, esta não especificava hora ou lugar.
Continha, no entanto, a gênese da batalha futura, pois falava em trazer reforços dos Exércitos de
Nancy e Épinal para participar da retomada de ofensiva e afirmava que ”as tropas móveis da praça
de guerra de Paris também podem tomar parte na ação geral”.

Sobre essa ordem, assim como todos os atos e todas as ordens dos quatro dias seguintes, seriam
amontoadas muitas discussões entre partidários de Joffre e de Gallieni, numa controvérsia longa e
acirrada sobre as origens da batalha do Marne. Inquestionavelmente Joffre tinha em mente uma
batalha geral, embora não a batalha na

§ss&

465
hora e no local em que ela realmente ocorreu; a batalha que ele imaginava teria lugar quando os
quatro exércitos alemães em perseguição entrassem ”entre as pontas da pinça em Paris e Verdun” e
os exércitos franceses seriam reunidos e dispostos numa rede em curva rasa estendida através do
centro da França.

Joffre calculava ter uma semana para fazer seus preparativos, pois em l- de setembro comunicou a
Messimy, quando este veio despedir-se, que pretendia retomar a ofensiva em 8 de setembro, e
adiantou que ela se chamaria ”a batalha de Brienne-le-Château”. Brienne, 40 quilômetros depois do
Marne - mais ou menos na metade do caminho entre o Marne e o Sena -, tinha sido cenário de uma
vitória de Napoleão sobre Blücher, fato que pode ter parecido a Joffre um born augúrio. Em meio
ao desânimo generalizado daquela contínua retirada forçada, sob a terrível sombra do inimigo que
se aproximava, mais uma vez seu sangue-frio e sua aparência de serenidade e confiança
impressionaram Messimy.

Mas não tranqüilizaram Paris, que se via desprotegida pela retirada dos exércitos para o Sena. Joffre
chamou Millerand e lhe fez um resumo realista da situação estratégica. Disse que a ”acentuada”
retirada dos ingleses tinha deixado a descoberto o flanco esquerdo do Exército de Lanrezac, de
modo que a retirada deveria continuar até Lanrezac estar fora de perigo. Informou também que
Maunoury recebera ordens de recuar de volta a Paris e colocar-se ”em contato” corn Gallieni,
embora nada tenha dito sobre colocar o Sexto Exército sob o comando de Gallieni. Relatou que
colunas inimigas estavam tomando uma direção ligeiramente para fora de Paris, o que poderia
oferecer um ”descanso”, mas mesmo assim considerava ”urgente e essencial” que o Governo
deixasse Paris ”sem demora”, nessa noite ou no dia seguinte.

Gallieni, informado por um Governo apavorado, telefonou para Joffre, que conseguiu evitar falar
corn ele mas recebeu seu recado: ”Não estamos em condições de resistir. (...) O General Joffre
precisa entender que se Maunoury não puder agüentar, Paris não conseguirá opor-se ao inimigo.
São necessários mais três corpos da ativa para juntar às forças da praça fortificada.” Joffre telefonou
de volta naquela mesma tarde e informou Gallieni que ia colocar o Exército de Maunoury sob seu
comando como as unidades móveis da praça fortificada de Paris.

Tradicionalmente, o comando dessas unidades era indepen-


466 dente do Exército de Campo e elas poderiam ser afastadas de uma
-**• .A*

Oficiais da cavalaria alem em Bruxelas


General Callieni
i
Joffre, Poincaré, o Rei George V, Foch e Haig
General VonKluck
batalha geral por ordem do comandante da guarnição, de modo que Joffre não tinha a menor
intenção de cedê-las; numa rápida manobra, no mesmo dia pediu ao Ministro da Guerra para
colocar a praça fortificada de Paris e todas as suas forças sob a autoridade dele como
Comandante-em-Chefe, ”para permitir-me usar as forças móveis da euarnição no campo de batalha
se houver necessidade”. Millerand, tão encantado por Joffre quanto Messimy ficara, deu a ordem no
dia
2 de setembro.

Enquanto isso, Gallieni tinha finalmente um exército. As forças de Maunoury, das quais ele agora
poderia dispor, consistiam em uma divisão da ativa pertencente ao VII Corpo, uma brigada nativa
de Marrocos e quatro divisões da reserva: a 61a. e a 62a. sob o comando do General Ebener que
tinham sido originalmente retiradas de Paris, e as 55a. e 56a. Divisões da Reserva que tinham
combatido na Lorena corn tanta valentia. Joffre concordou em acrescentar a excelente 45a. Divisão
de Zuavos93 da Argélia, que estava justamente desembarcando em Paris e que de qualquer maneira
não estava mesmo sob o seu comando, e mais um corpo ativo do Exército de Campo. Assim como
Kluck, ele escolheu um corpo enfraquecido: o IV Corpo do Terceiro Exército, que sofrerá baixas
desastrosas nos Ardennes. No entanto, essa unidade estava recebendo reposições, e sua
transferência da frente do Terceiro Exército em Verdun para a frente de Paris era um reforço que
Von Kluck imaginara que os franceses seriam incapazes de fazer. Gallieni foi informado que
soldados do IV Corpo chegariam em Paris por trem nos dias 3 e 4 de setembro.

Logo depois de receber de Joffre a doação verbal do Sexto Exército, Gallieni dirigiu-se para o norte
para fazer contato corn seu novo comando. A hora tardia foi constatada quando ele passou por
refugiados, os rostos refletindo ”terror e desespero”, convergindo sobre Paris para fugir dos alemães
que se”aproximavam. Em Pontoise, bem junto a Paris ao noroeste, por onde estavam entrando a
61a. e a
62a. Divisões, tudo era desordem e confusão. Os soldados que tinham estado envolvidos em fortes
combates em meio à retirada encontravam-se feridos ou exaustos; a população local estava em
pânico por causa do estrondo dos canhões e das informações sobre a presença de Ulanos nas
vizinhanças. Depois de conversar corn o General Ebener,
93 Zuavos: unidade da infantaria francesa organizada na Argélia e originalmente composta apenas de argelinos, conhecida pela
bravura de seus soldados e pela farda colorida de aspecto oriental. (N. da T.)

471
Gallieni seguiu em frente, para visitar Maunoury em Creil, junto ao Oise, 48 quilômetros ao norte
de Paris. Nessa ocasião, deu ordens a Maunoury para explodir as pontes do Oise e tentar retardar o
avanço do inimigo enquanto recuava para Paris, e em nenhuma circunstância permitir que os
alemães se interpusessem entre ele e a capital.

Voltando apressado a Paris, ele avistou algo mais encorajador do que os refugiados: os esplêndidos
Zuavos da 45a. Divisão argelina marchando pelos bulevares para tomar seus lugares nas
fortificações. corn suas túnicas coloridas e calças bufantes, eles causaram sensação e deram aos
parisienses um motivo para alegrar-se novamente.

Mas dentro dos ministérios o estado de espírito era negro. Millerand tinha transmitido os fatos
”angustiantes” ao Presidente: ”todas as nossas esperanças estão frustradas; estamos em plena
retirada em toda a linha; o Exército de Maunoury está recuando para Paris. (...)”; como Ministro da
Guerra, Millerand recusava-se a assumir a responsabilidade pela permanência do Governo por uma
hora sequer depois da noite seguinte, 2 de setembro. Ficou então decidido que toda a administração
mudar-se-ia para Bordéus, sem deixar ministro algum em Paris para que o público não fizesse
cornparações invejosas entre eles. Poincaré enfrentava ”o acontecimento mais triste da minha vida”.

Ao voltar para a cidade naquela noite, Gallieni soube por Millerand que toda a autoridade civil e
militar da cidade mais importante da Europa ficaria em suas mãos quando ela fosse sitiada. corn
exceção do Prefeito do Sena e do Chefe de Polícia, ”eu ficaria sozinho”. Ele descobriu que o Chefe
de Polícia, de quem ficaria dependente, estava no cargo havia pouco mais de uma hora; o Chefe
anterior, Monsieur Hennion, quando soube que o Governo estava partindo recusou-se cabalmente a
ficar para trás; quando lhe ordenaram que permanecesse em seu posto, ele pediu demissão ”por
motivos de saúde”.

Para Gallieni, o êxodo do Governo tinha pelo menos a vantagem de silenciar os advogados de uma
cidade aberta; sua desculpa legal já não existia e ele estava livre para defender Paris como praça
fortificada. Embora ”preferisse estar sem ministros”, achava que ”um ou dois poderiam ter ficado
para salvar as aparências”. Isso não era justo para corn aqueles que gostariam de ter permanecido,
mas o desprezo de Gallieni pelos políticos abrangia todos eles.

Tarde da noite chegou ao GQG uma informação que poderia ter

poupado ao Governo a necessidade de fugir. Durante o dia, foi levada

4*2 ao Capitão Fagalde, Oficial de Informações do Quinto Exército, uma


bolsa encontrada no cadáver de um oficial de cavalaria alemão do Exército de Von Kluck que
levara um tiro de uma patrulha francesa quando passava de automóvel. Na bolsa havia diversos
documentos, inclusive um mapa manchado de sangue que mostrava as linhas de avanço para cada
um dos corpos de Von Kluck e o ponto que cada um deveria alcançar no final daquele dia de
marcha. As linhas de todo o Exército apontavam para sudeste a partir do Oise em direção ao

Ourcq.

O GQG interpretou corretamente a descoberta do Capitão Fagalde, concluindo que ela mostrava que
Von Kluck tinha a intenção de passar ao largo de Paris entre o Sexto e o Quinto Exércitos num
esforço para fazer recuar o flanco esquerdo da principal linha francesa. Se o GQG reconheceu
também que isso significava que Von Kluck não atacaria Paris, ele não se deu a muito trabalho para
convencer o Governo. Quando, o Coronel Penelon, oficial de ligação entre o GQG e o Presidente,
levou de manhã a Poincaré a notícia da mudança de direção de Von Kluck, não levou sugestão
alguma por parte de Joffre de que o Governo não precisava partir. Pelo contrário - Joffre mandou
dizer que o Governo devia ir, que não se podia ter certeza das intenções de Von Kluck, que as
colunas do general alemão já estavam em Senlis e Chantilly, a 30 quilômetros de distância, e breve
Paris estaria sob seus canhões.

É difícil dizer até que ponto Poincaré ou Millerand compreenderam a importância da manobra de
Von Kluck; no meio da guerra e da crise, nada tem a clareza ou a certeza que adquire depois. No ar
pairava a urgência, até mesmo o pânico. Uma vez tendo passado pela agonia de tomar uma decisão,
o Governo achava difícil mudar. De qualquer maneira, Millerand continuava a insistir na partida.

Era 2 de setembro, Dia de Sedan, e ”chegara o momento odioso”. Quando Poincaré soube que a
partida-do Governo tinha sido planejada para o meio da noite, e não durante o dia e à vista da
população, sua ”tristeza e humilhação” aumentaram. O Gabinete insistia que sua presença era
juridicamente obrigatória na sede do governo; nem mesmo a Sra. Poincaré, que implorou para
continuar seu trabalho de hospital em Paris como um gesto de satisfação ao povo, obteve permissão
para ficar. O Embaixador dos Estados Unidos, Myron Herrick, veio despedir-se corn o rosto
”contraído” e lágrimas nos olhos.

Para Herrick, como para todos que se encontravam na capital francesa naquele momento, ”a terrível
investida dos alemães parece
473
quase além da resistência”, segundo escreveu ao filho. Ele recebera um aviso dos alemães
aconselhando-o a partir para as províncias porque ”bairros inteiros” de Paris poderiam ser
destruídos. No entanto, estava decidido a ficar, e prometeu a Poincaré proteger os museus e
monumentos de Paris sob a bandeira americana como ”custódia da humanidade em geral”. Já tinha
um plano esboçado, condizente corn o momento de desespero e exaltação: ”Se os alemães
chegarem aos subúrbios da cidade e exigirem sua rendição, sair e falar corn o comandante do seu
exército e, se possível, corn o Kaiser”; como depositário da embaixada da Alemanha, ele pretendia
exigir uma audiência. Muito mais tarde, quando amigos que tinham vivido juntos a primeira semana
de setembro em Paris costumavam contarse num número seleto, Gallieni dizia:

- Não se esqueçam, Herrick também estava lá.

Às 19:00 Gallieni foi despedir-se de Millerand. O Ministério da Guerra na Rue St. Dominique
estava ”triste, escuro e deserto”, o pátio cheio de enormes caminhões de mudança nos quais se
empilhavam os arquivos a serem embarcados para Bordéus - o resto foi incinerado. O processo de
embalagem criava uma atmosfera ”lúgubre”.

Subindo a escadaria às escuras, Gallieni encontrou o Ministro sozinho numa sala vazia. Agora que o
Governo estava partindo, Millerand não hesitava em permitir que Paris e todos dentro dela ficassem
sob ataque; suas ordens a Gallieni, a quem era desnecessário ouvi-las, eram de defender Paris ”à
outrance”.

- O senhor compreende, Monsieur lê Ministre, o significado da expressão à outrance? - Gallieni


perguntou. - Significa destruição, ruínas, pontes dinamitadas no centro da cidade.

- À ou trance - repetiu Millerand.

Ao dizer adeus, olhou para Gallieni como para um homem que ele provavelmente jamais veria outra
vez, e Gallieni sentiu-se ”bastante convicto, eu próprio, de que estava ficando para morrer”.

Algumas horas mais tade, na escuridão e no segredo imposto por eles próprios e que d^va a muitos
deles uma sensação de vergonha, ministros e membros do Parlamento tomaram o trem para
Bordéus, vestindo aquele momento inglório corn as roupagens de \{f uma nobre declaração ao
público na manhã seguinte: ;« ”Resistir e lutar” teria que ser agora a ordem do dia; a França

resistiria e lutaria enquanto nos mares a Inglaterra cortava a comunicação do inimigo corn o resto
do mundo e os russos ”continuam a
474 avançar e levar o golpe decisivo ao coração do Império Germânico!”.

(Aquela não era considerada a ocasião propícia para dar a notícia da derrota russa.) Para dar maior
”élan e eficácia” à resistência francesa, o Governo, a pedido dos militares, estava sendo removido
”provisoriamente” para um lugar onde poderia permanecer em contato constante e ininterrupto corn
o país inteiro. ”Franceses, vamos ser dignos nestas trágicas circunstâncias. Obteremos a vitória final
- pela vontade indomável, pela capacidade de suportar, pela tenacidade, pela recusa em perecer.”

Gallieni contentou-se corn uma curta notícia que ele próprio redigiu deliberadamente para dissipar
os boatos de que Paris tinha sido declarada cidade aberta e para que as pessoas soubessem o que
esperar. Sua proclamação apareceu de manhã nos muros de Paris:

EXÉRCITO DE PARIS.

Cidadãos de Paris:

Os membros do Governo da Re- m

pública deixaram Paris para dar no- j

vo impulso à defesa nacional. J

Recebi o mandato de defender j

Paris contra o invasor. Executarei i

esse mandato até o final.

Paris, 3 de setembro de 1914.

Gallieni

Governador Militar de Paris, Comandante do Exército de Paris.

O choque da população foi ainda maior porque a política do GQG de fornecer apenas comunicados
muito pouco explícitos deixara o público desinformado quanto à seriedade da situação militar;
parecia que o Governo fugira sem motivo justo. Sua partida noturna deixou uma impressão
desagradável, intensificada pela demonstração posterior de um apego duradouro e tenaz a Bordéus.
Faziam-se trocadilhos zombando do Governo, chamando seu membros de ”tournedos à Ia
Bordelaise”94, e a multidão que encheu as estações ferroviárias em sua esteira inspirou uma paródia
da Marselhesa:

II
l
”4 Tournedos à Ia Bordelaise”: o ”tournedos” é um prato tradicional da culinária francesa. No caso, trata-se de um trocadilho
intraduzwel: ”tournedos” traduz-se literalmente por ”vira as costas” e ”à Ia Bordelaise” significa ”à moda bordalesa”, ou seja, à
moda de Bordéus. Desta forma o povo condenava o Governo por permanecer em Bordéus, virando as costas a Paris. (N. da T.)

475
• ”Aux gares, citoyens! l Montez dans lês wagons!95

Foram ”dias de angústia” para o Governo Militar de Paris. corn os exércitos em retirada ao norte e a
leste da cidade, a questão de quanto tempo resistir e quando destruir as oito pontes da região
causavam tensão e ansiedade crescentes. Os comandantes de cada setor ficavam ansiosos para
explodir a ponte atrás de si assim que seus soldados acabavam de passar, para deter a perseguição
inimiga. As ordens do GQG eram de que ”nenhuma ponte caísse intacta em mãos do inimigo”; ao
mesmo tempo, as pontes seriam necessárias para o retorno à ofensiva. Três comandos diferentes
operavam na mesma área: Gallieni, Joffre e, geograficamente entre os dois, Sir John French, cuja
maior preocupação desde a visita de Kitchener era fazer corn que todos tomassem conhecimento da
sua independência. O conflito entre as ordens confundia os soldados da Engenharia da praça
fortificada de Paris que protegiam as pontes. Um desses oficiais informou ao General Hirschauer:
”Está se preparando um desastre.”

Ao anoitecer de 2 de setembro os ingleses atingiram o Marne, que atravessaram no dia seguinte.


Abaixo de Compiègne os soldados descobriram que estavam marchando fora de seus mapas, e foi
então que lhes ocorreu que aquela não era, afinal, uma ”retirada estratégica” como seus oficiais lhes
tinham dito. A essa altura suas bases em Boulogne e no Havre já tinham sido evacuadas e todo o
material e o pessoal removido para St. Nazaire, na foz do rio Loire.

Cerca de um dia de marcha atrás deles, o Quinto Exército ainda não estava livre da ameaça de
cerco. No calor persistente, a retirada e a perseguição continuavam, os caçadores tão cansados
quanto a caça. O Quinto Exército vinha marchando de 28 a 32 quilômetros por dia desde a batalha
de Guise. Ao longo de sua rota, grupos de desertores saqueavam fazendas e casas e espalhavam o
pânico entre a população corn histórias sobre o terror alemão. Houve algumas execuções. Lanrezac
achava que nenhum exército passara algum dia por um suplício como o dele, ao passo que ao
mesmo tempo um oficial britânico dizia da FEB: ”Eu jamais teria acreditado que um homem
pudesse ficar tão cansado e tão faminto e mesmo assim sobreviver.”

Tentando encontrar um motivo de encorajamento durante esses dias, Henry Wilson disse ao
Coronel Huguet:
95 ”Às plataformas, cidadãos! Subam para os vagões!” (N. da T.)

WiSi
477
- Os alemães estão apressados demais. Estão fazendo uma perseguição rápida demais. A coisa toda
é exagerada. Certamente cometerão um grande erro, e então a nossa hora chegará.

Até então Joffre e seus conselheiros no GQG, embora conscientes do desvio de Von Kluck, não
viam nessa manobra uma oportunidade importante de atacar o flanco do inimigo. A tentativa de
Von Kluck de perseguir os ingleses no dia 2 de setembro deixou-os na incerteza se ele não estaria
voltando a rumar sobre Paris. De qualquer maneira, não estavam preocupados corn Paris e sim corn
uma batalha generalizada ao longo do Sena, que só teria lugar depois que eles restabelecessem uma
frente sólida. Depois de mais consultas ansiosas dentro do GQG, Joffre tomou a decisão de
continuar a retirada por ”vários dias de marcha para a retaguarda”, o que lhe daria tempo para
buscar reforços em sua ala direita - apesar do risco de enfraquecer a linha do Moselle, já
precariamente defendida, ele resolvera retirar um corpo do Primeiro Exército e um corpo do
Segundo.

Sua decisão foi transmitida em instruções secretas enviadas aos comandantes de cada Exército em 2
de setembro e estabeleciam o Sena e o Aube como a linha definitiva a ser alcançada. Joffre
explicava que o objetivo era ”retirar os Exércitos da pressão do inimigo e permitir que se
reorganizem”; quando isso tivesse sido feito e os reforços tivessem chegado da frente oriental,
”nesse momento passar à ofensiva”. Ao Exército inglês seria ”pedido que participasse da manobra”
e a guarnição de Paris ”atuará na direção de Meaux”, isto é, contra o flanco de Von Kluck. Ainda
omitindo a data, Joffre disse que daria o sinal ”dentro de alguns dias”. Os comandantes tinham
ordens de tomar ”as medidas mais severas” contra os desertores, para garantir uma retirada
ordenada. Pedindo que cada um compreendesse a situação e empregasse seus melhores esforços,
Joffre deixou claro que aquela seria a batalha ”da qual depende a salvação do país”.

Gallieni, tendo recebido essas ordens em Paris, condenou o plano de Joffre porque ele sacrificava a
cidade e estava ”divorciado da realidade” por deixar de levar em conta o avanço inimigo - ele
acreditava que a velocidade da perseguição alemã não daria tempo para que os exércitos franceses
alcançassem o Sena ou se organizassem lá. Chegavam-lhe informações dispersas sobre a marcha
rumo sudeste de Von Kluck, mas ele não fora informado da importante confirmação encontrada no
cadáver do oficial de cavalaria alemão. Na noite de 2 de setembro, esperando um ataque no dia
seguinte, ele
478 dormiu em seu quartel-general, então estabelecido no Liceu Victor-
Duruy, uma escola feminina defronte a Lês Invalides. Era um prédio amplo, escondido atrás de
árvores, isolado do público e, tendo menos entradas e saídas do que Lês Invalides, mais fácil de
vigiar. Havia sentinelas às portas, telefones de campanha ligados a todos os quartéis-generais
divisionais da praça fortificada, oficiais designados para os staffs de Informações e de Operações,
alojamentos e refeitórios preparados; Gallieni, para grande alívio seu, pôde mudar-se para ”um
verdadeiro quartel-general de campanha, exatamente como na frente de batalha”.

Na manhã seguinte, 3 de setembro, ele soube definitivamente da manobra de Von Kluck em direção
ao Marne, distanciando-se de Paris. O Tenente Watteau, um aviador da guarnição de Paris fazendo
um vôo de reconhecimento, avistou colunas inimigas ”deslizando do oeste para o leste” em direção
ao vale do Ourcq. Mais tarde um segundo aeroplano da praça forte de Paris confirmou a
informação.

Na sala do staff do Deuxième Bureau de Gallieni, uma excitação sem palavras comunicava-se entre
os oficiais. O Coronel Girodon, um oficial ferido na frente de batalha que mesmo assim
”considerava-se apto para fazer trabalho de escritório”, estava deitado numa espreguiçadeira corn os
olhos fixos no mapa na parede, no qual alfinetes coloridos traçavam a direção do avanço alemão. O
General Clergerie, Chefe do staff de Gallieni, entrou no aposento justamente quando era trazido
outro relatório de reconhecimento aéreo de aviadores britânicos. Quando mais uma vez os alfinetes
foram movidos e os contornos da manobra de Von Kluck surgiram, inconfundíveis, no mapa,
Clergerie e Girodon exclamaram em uníssono:

- Eles nos deram o flanco! Eles nos deram o flanco!

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«v *„-
*,Y*r ,
22

”Cavalheiros, Lutaremos no Marne’

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480

Gallieni percebeu imediatamente a oportunidade oferecida ao Exército de Paris. Sem hesitar, tomou
a decisão de desfechar um ataque ao flanco da ala direita alemã o mais breve possível e induzir
Joffre a apoiar a manobra retomando imediatamente a ofensiva em toda a frente, em vez de
continuar a retirada até o Sena. Embora o Exército de Paris, do qual o Sexto Exército de Maunoury
era o cerne, estivesse sob o comando de Gallieni, a praça forte de Paris corn todas as suas forças
estava desde a véspera sob o comando de Joffre. Para lançar o Sexto Exército na ofensiva eram
necessárias duas condições: a autorização de Joffre e a colaboração do vizinho mais próximo do
Sexto Exército, a FEB. Ambos estavam entre Paris e o flanco de Kluck
- Maunoury ao norte e os ingleses ao sul do Marne.

Gallieni convocou o General Clergerie, seu Chefe de staff, para o que qualificou de ”uma daquelas
longas conferências que ele faz sobre assuntos graves - geralmente duram de dois a cinco minutos”.

Eram agora 20:30 da noite de 3 de setembro. Os dois generais concordaram em exercer a máxima
pressão sobre Joffre para uma ofensiva conjunta imediata, se a linha de marcha de Kluck estivesse
igual no dia seguinte. Aviadores da praça forte de Paris receberam ordens de fazer bem cedo seus
vôos de reconhecimento, dos quais ”dependeriam graves decisões”, e apresentar seus relatórios
antes das
10:00.

Como advertiu o General Hirschauer, o sucesso do ataque a um flanco ”depende da penetração da


ponta de lança”, e o Sexto Exército não era o instrumento afiado que Gallieni teria apreciado.
Depois das marchas forçadas durante os últimos dias da retirada para Paris, ele tinha chegado ao
lugar designado em condições de exaustão total. Algumas unidades tinham marchado 60
quilômetros durante o dia e a noite de 2 de setembro. O cansaço baixava o moral. Gallieni, como
seus colegas, considerava ”de valor medíocre” as divisões de reserva, que compunham a maior
parte do Exército de Maunoury. A 62a. Divisão de Reserva, que não tivera um só dia de descanso e
um dia sequer sem combates durante a retirada, perdera dois terços de seus oficiais e tinha apenas
tenentes da reserva como substitutos. O IV
Corpo ainda não chegara. Apenas ”a calma e a determinação” do povo de Paris - daquelas pessoas
que não tinham fugido para o sul
- eram uma fonte de satisfação.

Von Kluck chegou ao Marne na noite de 3 de setembro atrás do Exército de Lanrezac, que ele
estava perseguindo; no fíanco externo do exército francês, os ingleses tinham atravessado mais
cedo, no mesmo dia; na pressa, no cansaço e na confusão da retirada e apesar, ou por causa, da
chuva de telegramas a respeito das demolições, ambos deixaram as pontes intactas ou apenas
parcialmente destruídas. Von Kluck armou suas defesas nas cabeças de ponte e, desobedecendo à
ordem de permanecer alinhado corn Von Bülow, pretendia atravessar de manhã, continuando seu
desvio para dentro em perseguição ao Quinto Exército. Ele enviara ao OHL três mensagens a
respeito de atravessar o Marne, mas como a comunicação por rádio era ainda pior corn Luxemburgo
do que corn Coblenz, elas só chegaram a seu destino no dia seguinte. Sem contato corn o Primeiro
Exército por dois dias, o OHL não sabia que Von Kluck tinha desobedecido à ordem de 2 de
setembro; quando descobriu, as colunas de vanguarda de Von Kluck já tinham atravessado o Marne.

No dia 3 de setembro elas marcharam entre 40 e 45 quilômetros. Segundo uma testemunha


francesa, quando os soldados chegavam a seus alojamentos ”eles caíam exaustos, murmurando
’quarenta quilômetros! quarenta quilômetros!’. Era tudo que conseguiam dizer”. Na batalha que se
seguiu, muitos alemães foram feitos prisioneiros enquanto dormiam, incapazes até mesmo de pôr-se
de pé. Durante o dia o calor era terrível. Apenas a expectativa de chegar a Paris ”amanhã ou depois”
fazia corn que fossem capazes de seguir marchando, e os oficiais não lhes corrigiram o engano. Von
Kluck, em sua febre de acabar corn os franceses, ultrapassou não apenas sua linha de transporte de
suprimento como também sua artilharia pesada.

Seu compatriota na Prússia Oriental, o General Von François, não se mexia do lugar até ter à mão
seu estoque completo de artilharia e munição. Mas Von François estava enfrentando uma batalha,
ao passo que Von Kluck, pensando estar enfrentando apenas uma perseguição e a tarefa de
”arrematar” a ação de guerra, ignorou essa precaução. Ele acreditava que depois de dez dias de
retirada os franceses não teriam o entusiasmo e a energia necessários para fazer meia-volta ao som
da cometa e tornar à luta. Tampouco estava preocupado corn seu fíanco. No dia 4 de setembro, um
oficial registrou: ”O General nada teme da direção de Paris. Depois que des-
4$1
truirmos o remanescente do Exército franco-britânico, ele voltará para Paris e dará à IV Divisão da
Reserva a honra de liderar a entrada na capital francesa.”

No dia 4 de setembro, enquanto prosseguia seu avanço, Von Kluck informou abruptamente ao OHL
que não poderia cumprir a ordem de ficar para trás como guarda do flanco do avanço alemão. Um
alto de dois dias - necessário para permitir que Von Bülow o alcançasse - enfraqueceria toda a
ofensiva alemã e daria tempo ao inimigo para recuperar sua liberdade de movimentos. De fato, se
não fosse a ”corajosa ação” de seu Exército, os pontos de travessia do Marne não teriam sido
abertos aos outros exércitos, e ”agora é de se esperar que se tirem todas as vantagens desse êxito”.

Ficando mais irritado à medida que ditava, Von Kluck exigiu

saber por que as ”vitórias decisivas” de ”outros” exércitos - uma

alusão a Von Bülow-eram sempre seguidas por ”pedidos de ajuda”.

Í Von Bülow ficou furioso quando seu vizinho transformou ”o

l escalão na retaguarda do Segundo Exército, prescrito pelo OHL, num

J escalão em avanço”. Também os seus soldados, como na maioria das

l unidades alemãs, estavam exaustos ao alcançarem o Marne. ”Não

j podemos fazer mais nada”, escreveu um oficial do X Corpo de Reser-

I vá. ”Os homens caem nas valas e ficam ali deitados, só para respirar.

j (...) Vem a ordem de montar. Eu cavalgo inclinado para a frente,

J apoiando a cabeça na crina do animal. Temos fome e sede. A in-

1 diferença tomou conta de nós. Uma vida assim não vale muito.

l Perdê-la é perder pouca coisa.” Os soldados do Exército de Von

\ Hausen reclamavam de ”passar cinco dias seguidos sem comer comida

’ quente”. No vizinho Quinto Exército um oficial escreveu: ”Marchamos

o dia inteiro num calor de fritar. corn os rostos barbados e polvilhados

de poeira, os homens parecem sacos de farinha ambulantes.”

Os comandantes de campo não se preocupavam corn o fato de seu avanço estar sendo feito à custa
da exaustão e apatia dos soldados. Como Von Kluck, eles estavam convencidos de que os franceses
não se recobrariam. No dia 3 de setembro, Von Bülow informou - pela terceira ou quarta vez - que
o Quinto Exército francês estava ”cornpletamente derrotado” e fugindo ”inteiramente
desorganizado para o sul do Marne”.

Era evidente que o Quinto Exército, embora não chegasse a estar


”inteiramente desorganizado”, não se encontrava em boa forma. A

perda de confiança em Joffre, que Lanrezac não se dava ao trabalho

482 de esconder, suas brigas corn oficiais de ligação do GQG e sua rebeldia
*á *

contagiaram o seu staff, onde a metade se desentendia corn a outra metade. Todos estavam irritados
e preocupados, corn os nervos tensos pela longa provação de fechar a retaguarda da retirada
francesa. O General Mas de Latrie, do XVIII Corpo, que era o mais próximo do inimigo, exprimiu
”angústia” diante das condições de seus soldados. No entanto, por mais arrasado que estivesse, o
Quinto Exército conseguira atravessar o Marne corn suficiente distância do inimigo para
considerar-se fora da batalha, cumprindo assim a condição de Joffre para a retomada da ofensiva.

Embora Joffre tivesse a intenção de iniciar a ação ”dentro de poucos dias”, segundo informou ao
Governo, ele não foi específico, e no GQG o desânimo era profundo. Todos os dias oficiais de
ligação voltavam deprimidos de suas visitas aos exércitos, sobre os quais segundo um deles -
”sopravam os ventos da derrota”. Preparava-se a mudança do GQG para Châtillon-sur-Seine, 48
quilômetros para trás, levada a cabo dois dias depois - 5 de setembro. Em dez dias a França perdera
as cidades de Lille, Valenciennes, Cambrai, Arras, Amiens, Maubeuge, Mèzieres, St. Quentin, Laon
e Soissons, bem como as minas de carvão e de ferro, as lavouras de trigo e beterraba e um sexto da
sua população. No dia 3 de setembro a cidade de Rheims, em cuja grandiosa catedral foram
coroados todos os reis franceses de Clóvis a Luís XVI, foi declarada cidade aberta e abandonada ao
Exército de Von Bülow; e uma grande tristeza baixou sobre todos. Passadas duas semanas, no
furioso desfecho da batalha do Marne, houve um bombardeio que faria da catedral de Rheims um
símbolo para o mundo, como a Biblioteca de Louvain.

Joffre ainda não dava mostras de nervosismo; seu apetite nas três refeições diárias permanecia o
mesmo e seu horário de dormir continuava sendo às 22:00. Naquele dia 3 de setembro, no entanto,
ele enfrentaria a única tarefa que durante esse período lhe era visivelmente desagradável: decidira
afastar Lanrezac. Suas razões declaradas foram ”a depressão física e moral” de Lanrezac e suas
”relações pessoais difíceis” corn Sir John, já então fato notório. Por causa da ofensiva iminente, na
qual o papel do Quinto Exército seria essencial, bem como a participação do Exército inglês, ele
teria que ser substituído. Apesar da firmeza corn que Lanrezac conduziu a batalha de Guise, Joffre
convencera-se de que depois disso o oficial ”sofrerá um colapso nervoso”. Além disso, Lanrezac
não cessava de fazer críticas e objeções às ordens recebidas. Aquilo não era necessariamente uma
prova de depressão moral, mas desagradava ao Generalíssimo.
483
corn poucas idéias próprias, Joffre tinha o hábito de pedir conselhos, e obedecia mais ou menos
conscientemente às instruções dos estrategistas que remavam no Departamento de Operações. Eles
formavam o que um crítico militar francês chamou de ”uma igreja fora da qual não havia salvação e
que jamais poderia perdoar aqueles que revelassem a falsidade da sua doutrina”. O pecado de
Lanrezac foi ter razão de maneira por demais acintosa. Ele estivera correto desde o início a respeito
do perigo de subestimar a ala direita alemã, pois ali estava o resultado: uma boa parte da França sob
os tacões alemães. Sua decisão de interromper a batalha em Charleroi ao ser ameaçado de cerco
duplo pelos Exércitos de Von Bülow e Von Hausen salvara a ala esquerda francesa. Como o
General Von Hausen reconheceu depois da guerra, aquilo estorvou todo o plano alemão, que
contava cercar a esquerda francesa, e finalmente provocou o desvio da rota de Von Kluck num
esforço de fazer recuar o flanco do Quinto Exército.

Não faz diferença se a decisão de Lanrezac nasceu do medo ou da sabedoria, pois às vezes o medo é
sabedoria e nesse caso seu ato possibilitou a retomada de ação que Joffre estava preparando. Tudo
isso seria reconhecido muito tempo depois, quando o Governo francês, num gesto tardio de
desculpas, deu a Lanrezac o Grana Cordon da Legião de Honra. Mas no amargo fracasso do
primeiro mês, a lese majesté (o crime de lesa-majestade) de Lanrezac tornou-o intolerável para o
GQG. No dia em que ele levou seu Exército para o outro lado do Marne, já estava condenado ao
Rochedo de Tarpéia96.

Na realidade, o estado de espírito de Lanrezac, depois de tudo que ele passara, não era dos mais
confiáveis; sem dúvida a desconfiança mútua entre ele e o GQG - fosse de quem fosse a culpa - e
entre ele e Sir John French fazia dele um risco como comandante numa ocasião crítica. Joffre achou
necessário tomar todas as medidas possíveis para evitar o fracasso da ofensiva. Contadas as
demissões dos dois dias seguintes, nas primeiras cinco semanas ele afastou do Exército francês dois
comandantes de Exército, dez comandantes de corpo e 38 generais divisionais-à metade do número
total. Outros homens, na maioria melhores do que os que foram afastados (inclusive três futuros
marechais - Foch, Pétain e Franchet d’Esperey), foram pro-
96 Rochedo de Tarpéia: na mitologia romana, Tarpéia foi a jovem que abriu traiçoeiramente os portões da cidadela do Monte Capitólio
aos Sabinos invasores, em troca do que eles carregavam nos braços; em vez de ganhar os braceletes, como esperava, ela morreu
esmagada pelos escudos que eles portavam. Seu nome foi dado ao rochedo no Monte Capitólio de onde era lançada a pessoa que
cometia uma traição contra o estado. (N. da T.)
movidos para ocupar seus lugares. Mesmo se algumas injustiças foram cometidas, o Exército ficou
melhor.

Joffre partiu em seu automóvel para Sézanne, onde estava localizado naquele dia o Quartel-General
do Quinto Exército. No caminho, quase não conseguiu passar por um engarrafamento nas estradas
causado pelo transporte do IV Corpo a caminho para reforçar Paris, misturado ao fluxo de carros
que fugiam de Paris. Num local de encontro combinado de antemão, ele conferenciou corn Franchet
d’Esperey, comandante do I Corpo, que apareceu corn a cabeça enrolada numa toalha de banho por
causa do calor.

- O senhor se sente capacitado para comandar um exército? -* Joffre perguntou.

- Tanto quanto qualquer outra pessoa - replicou Franchet d’Esperey. Como Joffre limitou-se a olhar
para ele, explicou:-Quanto mais alto se chega, mais fácil é. Recebe-se um staff maior; há mais
pessoas para ajudar.

Isso decidido, Joffre seguiu em frente. Em Sézanne ele conversou a sós corn Lanrezac e lhe disse:

- Meu amigo, você está esgotado e vacilante. Terá que renunciar ao comando do Quinto Exército.
Detesto dizer isso, mas terá que fazer o que estou mandando.

Segundo Joffre, Lanrezac pensou por um instante e respondeu, parecendo ter sido libertado de uma
carga esmagadora:

- General, o senhor está certo.

Segundo o relato do próprio Lanrezac, ele protestou vigorosamente e exigiu que Joffre mencionasse
uma prova concreta da sua incapacidade, mas Joffre apenas repetia ”Vacilante, indeciso” e se
queixava de que Lanrezac sempre fazia ”observações” sobre as ordens recebidas. Lanrezac disse
que isso não podia ser usado contra ele, pois os acontecimentos tinham pj-ovado que todas as suas
observações eram corretas - naturalmente o problema era esse. Mas Joffre obviamente não o
escutava. Fazia ”expressões faciais indicando que eu tinha esgotado a sua paciência e se recusava a
olhar-me nos olhos”. Lanrezac desistiu. Segundo seu ajudante-de-ordens, Joffre emergiu da
conversa parecendo ”muito nervoso” - uma ocasião única.

Franchet d’Esperey foi então convocado. Levantando-se da mesa do jantar na primeira colherada de
sopa, ele engoliu uma taça de vinho, vestiu o dólmã e partiu para Sézanne. Detido por uma
transferência de suprimentos militares efetuada corn toda calma num cruzamento, ele saltou do
carro. Tão conhecida no Exército era
485
a sua figura atarracada, a cabeça parecida corn um torpedo, os cabelos cortados rente, os olhos
escuros e penetrantes e a voz áspera e autoritária, que homens, cavalos e veículos abriram-lhe
caminho como por mágica. Nos dias vindouros, à medida que a tensão aumentava e seu humor
piorava, seu método de lidar corn bloqueios na estrada ao ir de um corpo para outro era disparar o
revólver pela janela do carro. Finalmente ficou conhecido pelos soldados ingleses como ”Franky
Desesperado”. Colegas oficiais acharam-no transformado, do comandante jovial e amigável -
embora severo - que eles tinham conhecido, em um tirano. Ele se tornou feroz, déspota, gélido, e
impôs um reino de terror a seu staffe à tropa. Mal Lanrezac lhe entregara o dossiê confidencial e o
comando em Sézanne, o telefone tocou e foi atendido por Hély d’Oissel, que passou a repetir, corn
crescente impaciência:

- Sim, General, não, General.

- Quem é? - quis saber Franchet d’Esperey.

Foi informado que se tratava do General Mas de Latrie, do XVIII Corpo, insistindo em dizer que
não poderia cumprir as ordens para o dia seguinte devido à extrema fadiga de seus soldados.

- Eu falo corn ele - decidiu o novo Comandante. - Alô! Aqui é o General d’Esperey. Tomei o
comando do Quinto Exército. Não há mais discussão. O senhor vai marchar; marche, ou morra.

E desligou.

O dia 4 de setembro começou corn uma sensação de clímax experimentada em lugares distantes uns
dos outros - uma espécie de consciência extra-sensorial que os grandes acontecimentos às vezes
enviam de antemão. Em Paris, Gallieni sentia que esse era o dia ”decisivo”. Em Berlim, a Princesa
Blücher escreveu em seu diário: ”Não se fala em outra coisa senão na esperada entrada em Paris.”
Em Bruxelas, as folhas tinham começado a cair das árvores e uma ventania repentina soprava-as
pelas ruas. As pessoas sentiam no ar o frio dissimulado do outono e se perguntavam o que
aconteceria se a guerra atravessasse o inverno. Na Legação dos Estados Unidos, Hugh l
Gibson percebeu ”um nervosismo crescente” no Quartel-General alemão, onde por quatro dias não
houvera anúncio de vitórias: ”Tei nho certeza de que hoje há qualquer coisa grande no ar.” ;
No OHL em Luxemburgo, a tensão chegava ao auge à medida

; que se aproximava o momento triunfal da História alemã. Espalhado ao máximo, o Exército


estava prestes a completar no Marne a obra iniciada em Sadowa e Sedan. corn o triunfo na voz, o
Kaiser declarou
486 a um ministro que o visitava de Berlim:
- Estamos no trigésimo quinto dia; investimos contra Rheims, já estamos a menos de 50 quilômetros
de Paris...

Na linha de frente, os exércitos alemães pensavam na batalha final em termos de um ”arremate” e


não de um combate. Um oficial do Quinto Exército registrou em seu diário: ”Grande notícia: os
franceses nos ofereceram um armistício e estão preparados para pagar uma indenização de 17
bilhões.” E acrescentou sobriamente: ”Por enquanto o armistício está sendo recusado.”

Considerava-se o inimigo derrotado, e qualquer evidência do contrário era mal recebida. Uma
dúvida terrível penetrou na mente do General Von Kuhl, Chefe do staffde Von Kluck, ao ser
informado da presença de uma coluna francesa perto de Château Thierry cantando enquanto
marchava em retirada. Ele reprimiu suas dúvidas, ”pois todas as ordens para uma nova manobra já
tinham sido expedidas”. À parte uns poucos exemplos como esse, não havia suspeita alguma de que
o inimigo estava preparando uma contra-ofensiva - pelo menos nenhuma suspeita influenciara as
decisões do comando. Embora os indícios fossem visíveis, o Departamento de Informações alemão,
operando em território hostil, não conseguiu captá-los. No dia 4 de setembro, um oficial do
Departamento de Informações do OHL foi ao quartel-general do Príncipe-Herdeiro para dizer que a
situação era favorável em toda a frente e que ”Em toda parte já estamos avançando em triunfo”.

Um homem não pensava assim: Moltke. Ao contrário de Joffre, ele não tinha confiança em sua
estrela, mas tampouco tinha o véu que a confiança às vezes coloca diante dos olhos, e via as coisas
sem ilusões. Nisso se parecia corn Lanrezac. No dia 4 de setembro ele estava ”sério e deprimido” e
disse a Helfferich, o mesmo ministro que acabara de conversar corn o Kaiser:

-Mal temos no exército um cavalo que consiga dar outro passo.


- Depois de uma pausa pensativa,”ele continuou::- Não devemos nos enganar. Obtivemos sucesso,
mas não a vitória. Vitória significa a aniquilação do poder de resistência do inimigo. Quando um
milhão de homens se enfrentam em batalha, o vencedor faz prisioneiros. Onde estão os nossos
prisioneiros? Apenas 20.000, e na Lorena talvez mais uns 20.000 no total. E pelo número
relativamente pequeno de armas capturadas, parece-me que os franceses estão conduzindo uma
retirada planejada e ordeira.

O pensamento inadmissível finalmente foi verbalizado.

Nesse dia, a mensagem de Von Kluck de que estava prestes a atravessar o Marne chegou finalmente
ao OHL, tarde demais para

l
487
impedi-lo. O flanco que Von Kluck exporia a Paris preocupava Moltke. Chegavam informações de
um intenso tráfego ferroviário na direção de Paris, ”aparentemente um movimento de tropas”. Em 4
de setembro Rupprecht informou que dois corpos franceses tinham sido retirados da sua frente. Já
se tornava impossível fugir à evidência de que o poder de resistência do inimigo ainda não chegara
ao fim.

Como observou o Coronel Tappen, a transferência de tropas francesas podia significar ”um ataque
de Paris sobre nosso flanco direito, para o qual não temos reservas disponíveis”. Era esse o
problema do qual Moltke, assim como os comandantes de campo, tinham aguda consciência. As
perdas provocadas pelos contínuos embates corn a retaguarda inimiga durante a retirada francesa
não poderiam ser compensadas pelos reservistas, como os franceses estavam fazendo. As brechas
nas linhas alemãs permaneciam, e os dois corpos enviados para a Prússia Oriental estavam fazendo
falta. Moltke agora estava disposto a buscar reforços na ala esquerda, mesmo tendo Rupprecht
acabado de desfechar um ataque renovado na linha do Moselle em 3 de setembro, mas aconteceu
que o Kaiser estava no quartel-general de Rupprecht quando chegou a proposta de Moltke.
Convicto de que dessa vez, finalmente, a defesa de Nancy seria derrubada, o Kaiser apoiou
Rupprecht e Von Kraft contra a diminuição de suas forças. Outro homem teria insistido, mas
Moltke não o fez; desde a torturante noite de l5 de agosto, as incertezas e tensões da campanha
vinham enfraquecendo sua vontade, em vez de fortalecê-la. Carecendo de reforços para a sua ala
direita, ele resolveu imobilizá-la.

A nova Ordem, dirigida a todos os Exércitos, redigida naquela noite e expedida de manhã cedo, era
uma admissão clara do fracasso da ala direita, do fracasso do plano para a vitória pelo qual a
Alemanha tinha sacrificado a neutralidade da Bélgica. Datada de exatamente um mês depois do dia
em que os exércitos alemães invadiram a Bélgica, a Ordem começava corn a declaração: ”O
inimigo escapou da tentativa de cerco pelo Primeiro e pelo Segundo Exércitos e uma parte de suas
forças juntou-se às forças de Paris”. Soldados inimigos estavam sendo retirados da frente de batalha
do Moselle e levados para o oeste, ”provavelmente para concentrar forças superiores na região de
Paris e ameaçar o flanco direito do Exército alemão”. Conseqüentemente, ”o Primeiro e o Segundo
Exércitos devem permanecer voltados para a frente oriental de Paris (...) para reagirem contra
qualquer
4Sí operação do inimigo a partir daquela área.” O Terceiro Exército
deveria continuar o avanço no rumo sul para o Sena e aos outros i

exércitos caberia cumprir as ordens anteriores, de 2 de setembro. |

Imobilizar a ala em marcha às portas da vitória parecia loucura i

completa ao Ministro da Guerra, General Von Falkenhayn, que dentro í

de duas semanas seria o sucessor de Moltke como Comandante-em- i

Chefe. Em seu diário do dia 5 de setembro ele escreveu: ”Uma coisa i

é certa: nosso Estado-maior perdeu completamente a cabeça. As l

instruções de Schlieffen já não ajudam, de modo que a esperteza de i

Moltke está chegando ao fim.” l

Não era a esperteza de Moltke que estava chegando ao fim, mas l

o tempo de que dispunham os alemães. Nos movimentos de tropas i

francesas Moltke diagnosticara corretamente um perigo crescendo J

sobre seu flanco externo e tomara uma medida apropriada e sensata J

para enfrentá-lo. Sua Ordem só tinha uma falha: vinha tarde demais. |

Mesmo então ela poderia ter vindo a tempo, se não fosse por um |

homem corn pressa: Gallieni. l

No amanhecer de 4 de setembro, informações de aviadores de f Paris mostraram-lhe que era


”essencial agir depressa”. A retaguarda | da marcha em curva de Von Kluck para o sudeste
apresentava um l alvo claro para o Exército de Maunoury e para os ingleses, se um i ataque
conjunto pudesse ser desfechado a tempo. As 9:00, antes de | obter o consentimento de Joffre, ele
enviou ordens preliminares a ’’ Maunoury: ”Minha intenção é enviar seu Exército para diante, em
conjunto corn as forças inglesas, contra o flanco alemão. Faça imediatamente seus preparativos para
que seus soldados estejam prontos l para marchar esta tarde como início do movimento geral das
forças S da praça de Paris em direção ao leste.” Assim que pudesse, Maunoury i deveria ir
pessoalmente conferenciar corn ele em Paris. i

Gallieni então partiu para obter de Joffre uma decisão ”imediata l

e enérgica”. Entre ambos havia os resquícios de um antigo relaciona- i

mento como comandante e subordinado. Ambos tinham consciência l

da indicação oficial de Gallieni para Comandante-em-Chefe se algu- l


ma coisa acontecesse a Joffre. Sabendo que Joffre se ressentia de sua i

influência, Gallieni contava menos em convencê-lo do que em força- f

Io. Para esse fim, já telefonara para Poincaré em Bordéus para dizer i

que achava que havia ”uma boa abertura” para a retomada imediata i

da ofensiva. S

As 9:45 ele telefonou para o GQG, o primeiro de uma série de • telefonemas que mais tarde o
levariam a comentar: ”A verdadeira

batalha do Marne ocorreu por telefone”. O General Clergerie con- 489


duziu a conversa corn o Chefe de Operações, Coronel Pont, pois Gallieni recusava-se a falar corn
qualquer pessoa além de Joffre, que por sua vez não quis ir ao telefone. Ele tinha aversão a esse
instrumento e costumava fingir que ”não entendia seu mecanismo”. Seu verdadeiro motivo era que,
como todos os homens em posição elevada, ele tinha um olho na História e temia que as coisas ditas
pelo telefone fossem registradas sem que ele tivesse a possibilidade de corrigi-las.

Clergerie explicou o plano de lançar o Sexto Exército e todas as forças disponíveis da praça forte de
Paris num ataque ao flanco de Von Kluck, de preferência ao norte do Marne-e nesse caso o contato
poderia ser feito no dia 6 de setembro - ou então na margem sul, o que significaria um dia de atraso
para permitir que Maunoury atravessasse o rio. Em qualquer caso, Clergerie pediu uma ordem para
colocar o Sexto Exército em marcha naquela noite. Ele insistiu na convicção de Gallieni de que
chegara o momento de encerrar a retirada e retornar o exército inteiro para a ofensiva em
combinação corn a manobra de Paris. Cabia ao GQG decidir.

Ao contrário da disposição do GQG em sacrificar a capital, Gallieni desde o início era motivado
pela convicção de que Paris tinha que ser defendida. Ele enxergava a linha de frente pelo ponto de
vista de Paris e sem conhecimento direto da situação dos exércitos de campo, pois o GQG não lhe
mandava informações. Assim, estava decidido a agarrar a oportunidade que a manobra de Von
Kluck lhe oferecia, acreditando que sua própria manobra deveria e realmente iria precipitar uma
ofensiva geral.

Tratava-se de um plano corajoso, até mesmo imprudente, pois, sem conhecer completamente a
situação dos outros exércitos, ele não podia avaliar corn clareza as suas chances de sucesso. Gallieni
achava que não havia escolha. Pode ser que ele tivesse o instinto de um grande comandante para
distinguir sua oportunidade; é mais provável que sentisse que a França não teria outra chance.

Às 11:00 Maunoury chegou para receber instruções, mas ainda não havia resposta de Joffre. Ao
meio-dia Clergerie tornou a telefonar.

Nesse ínterim, na escola de Bar-sur-Aube onde estava instalado o GQG, oficiais do Departamento
de Operações, amontoados diante do mapa de parede, discutiam animadamente a proposta de
Gallieni de uma ofensiva conjunta. A terrível destruição das esperanças francesas no último mês
tinham insulado a cautela no coração de alguns.
490 Outros defendiam a ofensiva corn o mesmo ardor de sempre e tinham
resposta para todos os conselhos de prudência. Joffre estava presente, ouvindo os argumentos
registrados pelo Capitão Muller, seu ajudante-de-ordens: ”Os soldados estão no fim de suas forças?
Não tem importância, são franceses e estão cansados de fugir. No momento em que ouvirem a
ordem de avançar esquecerão o cansaço. Uma brecha entre o Exército de Foch e o de Langle? Ela
será preenchida pelo XXI Corpo vindo do Exército de Dubail. Os Exércitos estão despreparados
para o ataque? Pergunte aos comandantes de campo e verá como responderão. A cooperação dos
ingleses? Bem, isso é mais sério. Não se pode dar ordens ao Comandante deles; é preciso negociar e
o tempo é curto. Mas o importante é aproveitar a oportunidade, pois ela é passageira. Von Kluck
ainda pode consertar seu erro e os movimentos do Sexto Exército certamente chamarão sua atenção
para o perigo a que ele se expôs.”

Sem ter dito uma única palavra, Joffre saiu para consultar Berthelot em sua sala. Este se pronunciou
contra o plano, argumentando que os Exércitos não poderiam fazer meia-volta de repente;
deveriam, isso sim, completar a retirada planejada até uma forte linha defensiva e deixar que os
alemães penetrassem mais fundo na rede. Acima de tudo, a superioridade numérica necessária só
poderia ser obtida depois que os dois corpos chegando da frente de batalha da Lorena tivessem
tempo para entrar em posição.

Silencioso, montado numa cadeira de assento de palha virada para o mapa de parede de Berthelot,
Joffre estudou o problema. Seu plano para um retorno à ofensiva sempre incluíra a utilização do
Sexto Exército num ataque ao flanco direito do inimigo. Gallieni, no entanto, estava precipitando as
coisas. Joffre queria mais um dia para que os reforços chegassem, o Quinto Exército pudesse
preparar-se e houvesse mais tempo para conseguir a cooperação dos ingleses. Quando chegou o
segundo telefonema de Clergerie, Joffre mandou dizer que preferia atacar na margem sul do Marne;
como Clergerie reclamasse do adiamento, foi-lhe dito que ”o atraso de um dia significará mais
forças disponíveis”.

Joffre agora enfrentava a decisão mais importante: levar avante a retirada planejada até o Sena ou
aproveitar a oportunidade - e correr o risco - de enfrentar o inimigo logo. O calor era avassalador;
Joffre saiu para o ar livre e sentou-se à sombra de um freixo no pátio de recreio da escola. Árbitro
por natureza, ele reunia as opiniões de outros, estudava-as, pesava o coeficiente pessoal de quem as
fornecera, ajustava a balança e finalmente anunciava seu veredito. A decisão 491

l
era sempre sua. Se desse certo, a glória seria sua; se falhasse, ele mesmo seria responsabilizado.

No problema que ele tinha agora diante de si, o destino da França estava em jogo. Durante os
últimos 30 dias, o Exército falhara na grandiosa tarefa para a qual vinha se preparando havia 30
anos; agora era sua última chance de salvar a França, torná-la novamente a França de 1792. O
invasor estava a 65 quilômetros de onde Joffre estava sentado e a pouco mais de 30 quilômetros do
Exército francês mais próximo. Depois da passagem do Exército de Von Kluck, Senlis e Creil
estavam em chamas e o prefeito de Senlis fora executado. Se os franceses atacassem agora, antes
que os exércitos estivessem preparados... e fracassassem?

A necessidade imediata era descobrir se eles tinham condições de preparar-se. Como o Quinto
Exército estava numa posição crucial, Joffre mandou uma mensagem a Franchet d’Esperey: ”Pode
ser vantajoso dar combate amanhã ou no dia seguinte corn todas as forças do Quinto Exército em
conjunto corn os ingleses e as forças móveis de Paris contra o Primeiro e o Segundo Exércitos
alemães. Por favor avise se seu Exército está em condições de fazer isso corn chances de sucesso.
Responda imediatamente.” Um pedido similar foi enviado a Foch, que estava posicionado ao lado
de Franchet d’Esperey e defronte a Von Bülow.

Joffre continuou sentado sob a árvore, pensando. Durante a maior parte da tarde aquela figura
imponente de dólmã preto, calças vermelhas bem largas e botas do exército-das quais, para
desespero de seus ajudantes-de-ordens, ele banira a afetação das esporas permaneceu imóvel e
silenciosa.

Gallieni, enquanto isso, saía de Paris às 13:00, levando Maunoury consigo, para ir ao
Quartel-General dos ingleses em Melun-surSeine, 40 quilômetros ao sul. O pedido de apoio que ele
dirigira aos ingleses recebera uma resposta negativa de Huguet, que informou que Sir John French
”adota os conselhos de prudência de seu Chefe do staff’, Sir Archibald Murray, e não participaria de
uma ofensiva conjunta a não ser que os franceses garantissem a defesa do trecho inferior do Sena,
entre os ingleses e o mar. Passando pelas filas de carros que fugiam de Paris para o sul, os dois
generais franceses chegaram ao Quartel-General inglês às 15:00 da tarde. À porta, sentinelas usando
kilts97 apresentaram armas; lá dentro havia soldados
492

97 kilt: saiote que faz parte da vestimenta tradicional escocesa. (N. da T.)
trabalhando, mas nem o Marechal-de-Campo, nem seu principal n assistente foram
encontrados, e o staff parecia ”perplexo” corn a situação. Depois de uma longa busca, Murray foi
localizado e informou que seu chefe estava fora, inspecionando as tropas, e ele não tinha a menor
idéia da hora do seu regresso.

Gallieni tentou explicar seu plano de ataque e a razão pela qual a participação britânica era
”indispensável”, mas sentia todo o tempo j a ”grande relutância em compartilhar de nossos
pontos de vista” que j o inglês demonstrava. Murray repetia sem cessar que a FEB tinha
j ordens formais de seu Comandante-em-Chefe para descansar, reor- i ganizar-se e esperar
reforços, e ele nada podia fazer até Sir John voltar. Depois de mais de duas horas de discussão
durante as quais Sir John i French não voltou, Gallieni conseguiu convencer Murray a
escrever ’ um resumo do plano de ataque e a proposta para a ação conjunta corn os ingleses,
que ”ele parecia não ter entendido muito bem”. Antes de partir, o general francês conseguiu de
Murray a promessa de avisá-lo assim que seu chefe retornasse.

Ao mesmo tempo, outra conferência anglo-francesa estava ocorrendo em Bray, cerca de 55


quilômetros rio acima no Sena, da qual Sir j John French também estava ausente: Franchet
d’Esperey, ansioso por consertar as relações estremecidas no tempo de Lanrezac, tinha cornbinado
um encontro corn o Marechal-de-Campo em Bray às 15:00. Num gesto de delicadeza ele usou para
a ocasião a condecoração de Comandante Cavaleiro da Ordem Vitoriana. Quando chegou em Bray,
uma sentinela francesa deteve seu carro para informar que havia uma mensagem importante para o
General na agência do telégrafo.

Tratava-se da consulta de Joffre sobre a batalha que se seguiria. Estudando-a, Franchet d’Esperey
andava de um lado para outro na rua, esperando corn impaciência crescente a chegada dos ingleses.
Depois de quinze minutos apareceu um Rolls-Royce ”corn um escocês enorme” ao lado do
motorista, mas no banco traseiro, em vez do simpático e pequenino Marechal-de-Campo, emergiu
”um demônio alto e muito feio, de rosto inteligente e expressivo”. Era Wilson, que vinha
acompanhado pelo Coronel Macdonogh, Chefe de Informações inglês. Tinham sido retidos no
caminho quando encontraram uma dama parisiense em dificuldades na beira da estrada e Wilson
galantemente providenciou combustível para o carro dela e mapas para o motorista.

O grupo recolheu-se a um aposento no segundo andar da Prefeitura, corn o escocês postado do lado
de fora como sentinela. Mac- m

li
donogh ergueu uma toalha pesada para olhar embaixo da mesa, abriu uma porta que levava ao
quarto de dormir contíguo, olhou debaixo da cama, levantou a colcha, abriu o armário e bateu corn
o punho nas paredes. Então, em resposta a uma pergunta de Franchet d’Esperey sobre a situação do
Exército inglês, ele desdobrou um mapa que marcava corn setas azuis a posição exata do inimigo na
sua linha de frente e fez uma análise magistral dos movimentos do Primeiro e do Segundo Exércitos
alemães. Franchet d’Esperey ficou impressionado.

- Vocês são nossos aliados, não guardarei segredo do senhor


- disse, e leu em voz alta o telegrama corn a proposta de Joffre. you responder que meu Exército
está preparado para atacar. Encarou os visitantes corn um olhar de aço.-Espero que os senhores não
nos obriguem a fazer isso sozinhos. É essencial que preencham o espaço vazio entre o Quinto e o
Sexto Exércitos.

Ele então esboçou o plano de ação que delineara em sua cabeça nos curtos 15 minutos depois de
receber o telegrama. O plano baseava-se na hipótese de um ataque pelo Exército de Maunoury ao
norte do Marne em 6 de setembro. Wilson, pactuando outra vez corn um general francês enérgico e
vigoroso como fizera corn Foch, concordou prontamente. Ali decidiram a disposição dos dois
exércitos, a linha que cada um deveria atingir na manhã de 6 de setembro e a direção do ataque.
Wilson advertiu que haveria dificuldades em obter o consentimento de Sir John French e
especialmente de Murray, mas prometeu fazer o possível. Ele partiu para Melun enquanto Franchet
d’Esperey enviava a Joffre a notícia do acordo.

Em Bar-sur-Aube, Joffre ergueu-se de sob a árvore. Sem esperar a resposta de Franchet d’Esperey e
de Foch ele tomou uma decisão. Entrou no Departamento de Operações e ordenou uma Instrução
”para estender a todas as forças da esquerda Aliada a ação local planejada pela guarnição de Paris”.
A ação deveria começar em 7 de setembro. De imediato uma grande calma seguiu-se às discussões
febris. A retirada estava terminada - chegara o momento de atacar. Todos se puseram a trabalhar,
preparando as ordens detalhadas. Para reduzir o risco de vazamentos ao inimigo, decidiu-se só
expedi-las no último momento.

Eram então 18:00; às 18:30 Joffre foi jantar, tendo como convidados dois oficiais japoneses.
Enquanto jantava, cochicharam-lhe que Franchet d’Esperey tinha conseguido convencer os ingleses
a participarem da ofensiva; do Quinto Exército tinham chegado documentos
494 importantes. As refeições eram sagradas e a cortesia internacional
também, especialmente porque na ocasião os Aliados estavam envolvidos em negociações otimistas
para a ajuda militar japonesa na Europa. Joffre não podia interromper o jantar, mas cometeu a
indelicadeza de ”apressá-lo”.

Quando leu a decidida resposta de Franchet d’Esperey, sentiuse empurrado para dentro d’água e
forçado a nadar. Num torn pouco menos abrupto do que o seu ”marche, ou morra”, d’Esperey
especificava horários e locais e as condições de batalha dos três exércitos
- o Quinto, o Sexto e o britânico. A batalha poderia ter início em 6 de setembro; o Exército inglês
executaria ”uma mudança de direção” sob a condição de que sua esquerda fosse apoiada pelo Sexto
Exército; o Sexto deveria alcançar certa linha ao longo do Ourcq numa ocasião determinada, ”senão
os ingleses não marcharão”; o Quinto Exército continuaria sua retirada no dia seguinte até o sul do
Grand Morin e no outro dia estaria em posição para um ataque frontal ao Exército de Von Kluck
enquanto os ingleses e Maunoury atacavam o flanco. Uma ”participação vigorosa” do Exército de
Foch contra o Segundo Exército alemão era uma condição necessária.

Franchet d’Esperey concluía: ”Meu exército pode lutar em 6 de setembro, mas não está em perfeitas
condições.” Esta afirmação era a expressão da verdade. Quando, mais tarde, d’Esperey disse ao
General Hache, do in Corpo, que o ataque estava marcado para a manhã seguinte, Hache ”parecia
ter levado uma porretada na cabeça”.

- É loucura! - protestou. - Os soldados estão exaustos. Não comem, não dormem... estão marchando
e combatendo há duas semanas! Precisamos de armas, munição, equipamento. Está tudo em
péssima forma. O moral está baixo. Tive que substituir dois generais divisionais. O staff não vale
coisa alguma e não serve para coisa alguma. Se tivéssemos tempo para nos recuperarmos do outro
lado do Sena...

Como Gallieni, d’Esperey acreditava não haver escolha. Sua reação imediata e corajosa, igual à de
Gallieni e que provavelmente seu antecessor não teria, mostrou ser um fator decisivo. Outros
comandantes vacilantes também foram expurgados. O General Mas de Latrie foi removido nesse
dia, substituído pelo galante General de Maud’huy, retirado do Exército de Castelnau. O Quinto
Exército sofrerá a substituição de seu Comandante, três dos cinco comandantes de corpo, sete dos
treze generais divisionais e um número proporcional de generais de brigada.
495
Encorajado pela ”audácia inteligente” da resposta de d’Esperey, Joffre ordenou ao Departamento de
Operações que redigisse as ordens de batalha segundo suas condições de lugar, embora a data
permanecesse 7 de setembro. Recebeu uma resposta igualmente afirmativa de Foch, que
anunciou-se simplesmente ”pronto para o ataque”.

Henry Wilson encontrou uma resposta desanimadora ao chegar ao Quartel-General inglês: Murray,
sem ao menos esperar a volta de Sir John French, expedira ordens para uma retirada de 15 a 20
quilômetros em direção sudoeste a ter início naquela noite - ”É simplesmente de cortar o coração”.
Wilson encontrou também o memorando de Murray sobre o plano de Gallieni. Enviou
imediatamente um telegrama para Paris informando que ”O Marechal ainda não voltou” e
mencionando a retirada. Parece que ele não informou d’Esperey, talvez na esperança de convencer
Sir John a cancelar a ordem.

Quando Sir John voltou, encontrou uma confusão de planos e propostas. Havia uma carta de Joffre,
escrita antes dos acontecimentos daquele dia, propondo uma ação inglesa no Sena; havia a proposta
de Gallieni a Murray; havia o acordo de Murray corn Franchet d’Esperey e havia o próprio Murray,
pedindo a retirada urgente. Confuso corn tantos pedidos de ação e incapaz de decidir o que teria
precedência, Sir John recorreu à inação: deixou vigente a ordem de Murray e informou aos
franceses, através de Huguet, que devido às ”contínuas mudanças” ele preferia ”reestudar a situação
antes de decidir o curso de ação”.

Mais ou menos na mesma hora Gallieni chegava em Paris, vindo de Melun. Encontrou o telegrama
de Wilson e também um de Joffre, enviado às 12:20, confirmando a preferência expressa por
telefone ao meio-dia de que o ataque de Maunoury tivesse lugar ao sul do Marne em 7 de setembro.
O telegrama de Joffre não trazia uma novidade, mas parece ter tido, juntamente corn a mensagem
de Wilson, um efeito decisivo em Gallieni. O tempo estava fugindo e Von Kluck avançando;
Gallieni viu sua chance desaparecendo e resolveu forçar a ação. Dessa vez ele próprio telefonou
para o GQG- Joffre tentou evitar falar corn ele, mandando Belin ao telefone, mas Gallieni insistiu
em falar pessoalmente corn o Generalíssimo. Segundo um registro da conversa feito pelo
ajudante-de-ordens de Joffre, Gallieni disse que o Sexto Exército fizera preparativos para atacar ao
norte do Marne e parecia-lhe impossível modificar a direção geral corn a qual o Exército já estava
comprometido; insistiu que o ataque fosse desfechado sem «g qualquer modificação nas condições
de hora e local já estabelecidas.
Confrontado diretamente corn seu antigo superior, Joffre talvez tenha sentido novamente a
autoridade moral que um homem corn o temperamento autoritário de Gallieni exercia. Ou, como ele
mais tarde argumentou, pode ter se sentido forçado, embora ”de má vontade”, a adiantar em um dia
a ofensiva geral por medo de que os movimentos de Maunoury, precipitados por Gallieni,
revelassem ao inimigo toda a manobra francesa. Tanto Foch quanto Franchet d’Esperey tinham
assegurado estar prontos para combater, e ele achava que cTEsperey, através do feitiço de sua
energia mágica, tinha conseguido o mesmo compromisso dos ingleses-ignorava que os ingleses
tinham dado o contra. De qualquer maneira, autorizou - ou concordou, talvez - que o Sexto Exército
atacasse ao norte do Marne e que a ofensiva geral começasse em 6 de setembro como Gallieni
desejava. Imediatamente, às 20:30, Gallieni confirmou suas ordens de marcha a Maunoury, que já
estava em movimento. O staffno GQG revisou as posições de ataque para adaptá-las ao
adiantamento da data. As 22:00, duas horas depois de Moltke ter assinado a Ordem imobilizando a
ala direita alemã, Joffre assinou a Ordem N9 6.

corn plena consciência do momento histórico, a Ordem começava: ”Chegou o momento de nos
aproveitarmos da imprudente posição do Primeiro Exército alemão e concentrarmos contra esse
exército todos os esforços dos Exércitos Aliados na extremidade da ala esquerda.” As manobras
prescritas para o Sexto e o Quinto Exércitos franceses, mais o Exército inglês, eram aquelas
contidas na resposta de Franchet d’Esperey. O Terceiro e o Quarto Exércitos receberam ordens
separadas para que se juntassem à ofensiva.

A noite ainda não terminara: mal a Ordem fora assinada, chegou a mensagem de Huguet
informando que Sir John French se recusava a ratificar qualquer plano de ação conjunta e desejava
”reestudar a situação”. Joffre ficou atordoado - ajmportante decisão tinha sido tomada, as ordens
estavam a caminho, dentro de 36 horas teria início a batalha para salvar a França. O aliado cuja
participação tinha sido planejada por causa - segundo Foch afirmara certa vez - de um único
soldado inglês morto, mas que por um truque do destino terminara encarregado de uma parte
essencial da linha de frente, estava recuando mais uma vez.

Por causa do tempo necessário para codificar e enviar as ordens, elas só chegariam aos exércitos no
dia seguinte; como único meio de persuasão que lhe ocorreu, Joffre enviou uma cópia da Ordem Na
6 ao Quartel-General inglês por mensageiro especial. Quando o oficial che-

r
i
499
gou a Melun às 3:00 da madrugada, os três corpos da FEB já tinham iniciado a marcha noturna de
retirada ordenada por Murray naquela tarde.

Na madrugada de 5 de setembro, o inimigo também estava marchando cedo demais. Arremetendo


para a frente em seu esforço de fazer recuar o flanco francês, Kluck já tinha seu Exército na estrada
antes das 7:00, quando chegou pelo rádio a ordem de Moltke para fazer meia-volta e enfrentar a
ameaça ao seu flanco. Quatro corpos, espalhados por 48 quilômetros, dirigiam-se para o Grand
Morin; Von Kluck não os deteve. Não dera crédito - ou não prestara atenção ao aviso sobre uma
concentração de tropas francesas em seu flanco. Supondo que os Exércitos alemães ”em toda parte
avançavam vitoriosos ao longo de toda a linha de frente” - o velho hábito alemão de acreditar em
seus próprios comunicados -, ele calculava que o inimigo não teria forças disponíveis para ameaçar
seu flanco.

Também ele começava a perceber indícios de que a retirada francesa talvez não fosse inteiramente
desorganizada, de modo que achava cada vez mais essencial que nenhuma quebra no impulso
pudesse conceder ao inimigo tempo de fazer alto ”e recuperar a liberdade de manobras, assim como
o espírito ofensivo”. Desdenhando as instruções de Moltke, Von Kluck avançou corn seu exército,
levando seu quartel-general para Rebais, entre os Morins, 40 quilômetros à frente. À noite os
soldados do Primeiro Exército alemão chegaram a uma linha dentro de 15 a 25 quilômetros da FEB
e dos franceses, corn postos avançados a menos de 8 quilômetros.

Seria o último dia do seu avanço.

Naquela noite um representante plenipotenciário do OHL chegou ao quartel-general de Von Kluck;


corn tristes experiências do rádio e do temperamento de Von Kluck, Moltke enviara o Coronel
Hentsch, Chefe do Departamento de Informações, a uma viagem de quase 300 quilômetros até
Luxemburgo, para explicar pessoalmente as razões da nova Ordem e fazer corn que ela fosse
cumprida. Von Kluck e seu staff tomaram conhecimento, ”para sua surpresa”, de que os Exércitos
de Rupprecht estavam presos numa batalha sem decisão possível diante da linha deíortificações
francesa, assim como o Exército do Príncipe-Herdeiro diante de Verdun. O coronel Hentsch
descreveu a evidência de movimentos das tropas francesas que levara o OHL a calcular que ”forças
inimigas muito poderosas” estavam sendo levadas para oeste numa ameaça ao flanco alemão.

Essas eram as circunstâncias que ditaram a dolorosa necesseo sidade da retirada. O Primeiro
Exército teria que retornar para o norte
do Marne. Embora isso servisse de pequeno consolo, o Coronel Hentsch acrescentou que ”o
movimento podia ser feito corn calma, não era necessário ter pressa”.

Do IV Corpo de Reserva, que tinha ficado protegendo o flanco ao norte do Marne, chegaram
confirmações perturbadoras: essa unidade tinha encontrado e enfrentado em combate uma força
inimiga de pelo menos duas divisões e meia, apoiadas pela artilharia pesada
- evidentemente, parte do Exército de Maunoury avançando em direção ao Ourcq. Embora o ataque
francês tivesse sido ”repelido corn sucesso”, o Comandante do IV Corpo de Reserva ordenara a
retirada assim que escurecesse.

Von Kluck cedeu. A distância extra pela qual ele arrastara seu Exército nos dois últimos dias antes
de atravessar o Marne agora tinha que ser refeita. Foram redigidas as ordens para o início da
retirada de dois corpos na manhã seguinte, 6 de setembro, corn os outros seguindo mais tarde.
Depois da marcha que Von Kluck fizera de Liège até a altura de Paris, foi um momento amargo
para ele; se tivesse permanecido em escalão atrás de Von Bülow conforme lhe tinha sido ordenado,
se tivesse pelo menos imobilizado seu Exército naquela manhã às 7:00, estaria em posição de
enfrentar a ameaça ao seu flanco corn todo o seu Exército reunido. Segundo o General Von Kuhl,
seu Chefe de staff, ”Nem o OHL, nem o staffdo Primeiro Exército tinham a menor idéia de que era
iminente uma ofensiva de todo o Exército francês. (...) Nem um sinal, nem uma palavra dos
prisioneiros, nem uma notícia de jornal nos deu um aviso”.

Se Von Kluck não sabia o que vinha pela frente, havia uma coisa que ele não podia deixar de saber:
interromper a perseguição e recuar agora, faltando quatro dias no cronograma alemão, não era um
prelúdio da vitória.

O dia 5 de setembro parecia ainda mais nublado aos Aliados. Tendo até então apenas derrotas atrás
de si, seus representantes encontraram-se em Londres nessa manhã para assinar o Pacto que os
obrigava a ”não concluir qualquer paz em separado no curso da presente guerra”.

Em Paris, Maunoury perguntou a Gallieni:

- Caso sejamos dominados, nossa linha de retirada será...? _ corn o olhar sombrio, Gallieni
respondeu: B

- Em lugar nenhum. ’ Preparando-se para um possível desastre, ele enviou ordens

secretas a cada comandante regional da praça de Paris para que estes sói

l
arrolassem todos os recursos em seu distrito que deveriam ser destruídos antes de cair em mãos do
inimigo. Até mesmo as pontes no coração da cidade, corno a Pont Neuf e a Pont Alexandre,
deveriam ser explodidas. Ele explicou ao General Hirschauer que era preciso deixar um ”vazio” na
frente do inimigo, caso este conseguisse penetrar.

Chegou ao GQG um relatório de Castelnau que parecia prenunciar o desastre antes mesmo que a
ofensiva pudesse começar: a pressão era tão severa que ele achava que poderia ser forçado a
evacuar Nancy. Joffre ordenou-lhe resistir mais 24 horas antes de tomar uma decisão, mas
concordou que, se findo esse prazo a manobra ainda fosse inevitável, ele aprovaria a segunda linha
de defesa sugerida na carta de Castelnau.

Ao transferir um corpo do Terceiro Exército e dois corpos da frente de Moselle, Joffre correu um
grave risco para obter dessa vez a superioridade numérica que lhe faltara na primeira ofensiva. Os
reforços ainda não tinham alcançado a linha de combate; quando chegou o momento de informar o
Governo da decisão de lutar, Joffre incluiu cautelosamente um álibi para si próprio em caso de
fracasso. Seu telegrama para o Presidente e o Premier dizia: ’Tendo Gallieni atacado
prematuramente, dei a ordem de suspender a retirada e, por minha vez, retomar a ofensiva.” Mais
tarde, numa fase em que Joffre estava sistematicamente tentando minimizar o papel de Gallieni no
Marne e até mesmo expurgar certas coisas dos registros, esse telegrama foi desenterrado por Briand
e mostrado a Gallieni.

- Esse ”prematuramente” vale ouro - foi seu comentário.

Na manhã de 5 de setembro, a incerteza de Joffre quanto às intenções britânicas tornaram-se


”absolutamente torturantes”. Por telegrama ele implorou a Millerand para usar a influência do
Governo: a batalha iminente ”pode ter resultados decisivos, mas em caso de um revés pode também
trazer as mais graves conseqüências para o país. (...) Conto corn o senhor para chamar a atenção do
Marechal-deCampo para a importância decisiva de uma ofensiva sem arrière-penseé*8. Se eu
pudesse dar ordens ao Exército inglês como posso ao Exército francês na mesma posição, passaria
imediatamente ao ataque”.

Às 3:00 daquela madrugada Henry Wilson recebeu a Ordem N-


6 de Huguet; este, no entanto, não permitiu que o Capitão Galbert, seu portador, conversasse corn
qualquer dos chefes ingleses-duran-
102 98 Arrière-penseé: idéias ocultas, segundas intenções. (N. da T.)
te esse período, a figura de Huguet aparecia, corn sinistra regularidade, no centro de todas as
discórdias. Constatando que a situação requeria alguém em posição mais elevada, o Capitão Galbert
voltou imediatamente para o GQG. Às 7:00 da manhã Wilson levou a Ordem a Sir John French e no
curso da manhã convenceu-o a cooperar. Enquanto isso, o Capitão Galbert chegava de volta ao
GQG às 9:30 sem qualquer notícia definitiva em relação à ofensiva. O prefeito de Melun dissera-lhe
que a bagagem de Sir John French estava sendo levada de volta para Fontainebleau.

Joffre sabia que precisava ter o Exército britânico na linha de combate ”a qualquer preço” - até
mesmo ao preço de percorrer de carro os 185 quilômetros até Melun. Mandando um recado por
telefone para que o aguardassem, partiu corn seu ajudante-de-ordens e dois oficiais do staff. Apesar
dos bloqueios nas estradas e da inevitável pausa para o almoço, seu motorista campeão de corridas
levou-o ao castelo onde Sir John French estava alojado às 14:00.

O Marechal-de-Campo esperava por ele postado junto a uma mesa e ladeado por Murray, Wilson,
Huguet - ”como sempre, corn a aparência de quem perdera seu último amigo” - e vários outros
membros de seu staff. Joffre aproximou-se e pela primeira vez ocupou o centro do palco. Em vez de
suas costumeiras frases lacônicas, derramou uma torrente apaixonada de palavras pontuadas por
gestos dos braços que ”pareciam lançar seu coração à mesa”; afirmou que o ”momento supremo”
chegara, suas ordens estavam dadas e, o que quer que acontecesse, até a última companhia do
Exército francês seria jogada à batalha para salvar a França. A ”vida de todo o povo francês, o solo
da França e o futuro da Europa” dependiam dessa ofensiva. ”Não posso crer que o Exército
britânico irá recusar-se a fazer sua parte nesta crise suprema. (...) A História julgaria corn
severidade a sua omissão.”

Seu punho esmurrou a mesa:

- Monsieur lê Marechal, está em jogo a honra da Inglaterra!

Sir John French, que até então vinha escutando corn ”atenção apaixonada”, enrubesceu subitamente
ao ouvir essas palavras. O silêncio caiu sobre a sala. Então, lentamente, os olhos do
Comandanteem-Chefe inglês encheram-se de lágrimas, que rolaram por suas faces. Ele tentou dizer
alguma coisa em francês, mas desistiu.

- Maldição, não consigo me explicar. Diga a ele que faremos tudo que pudermos.

Joffre olhou interrogativamente para Wilson, que traduziu:


503
- O Marechal-de-Campo disse ”Sim”.

Nem teria sido necessário traduzir, pois as lágrimas e o torn já traziam a resposta. Murray
acrescentou que os soldados ingleses estavam agora cerca de 15 quilômetros para trás das posições
requeridas pela Ordem e só poderiam começar às 9:00 e não às 6:00 como Joffre pedira. Era a voz
da cautela, que continuaria a se fazer ouvir. Joffre deu de ombros.

- Se não há outro jeito! - assentiu. - Tenho a palavra do Marechal-de-Campo, isto basta.

Então foi servido o chá.

A retirada do GQG para Qvâtillon-sur-Seine, planejada antes da ofensiva, tinha sido efetuada
durante a sua ausência. Joffre lá chegou de volta à noite, mais ou menos na hora em que o Coronel
Hentsch estava aconselhando Von Kluck Entrando na sala de Operações para confirmar uma
decisão já tomada, Joffre declarou aos oficiais reunidos:

- Cavalheiros, combateremos no Marne.

Ele assinou a ordem que seria lida aos soldados na manhã seguinte, quando soassem os clarins. De
maneira geral a língua francesa, especialmente em pronunciamentos públicos, requer certo esforço
para não parecer pomposa, mas dessa vez as palavras eram tíbias, quase desgastadas, e a mensagem
era curta e imprecisa:

”Agora, que se desenrolará a batalha da qual depende a segurança do país, todos devem se lembrar
de que não é mais o momento de olhar para trás. Todos os esforços devem ser envidados para atacar
e fazer o inimigo recuar. Uma unidade que achar impossível avançar deverá manter sua posição a
qualquer custo e ser destruída ali mesmo, mas nunca recuar. Nas circunstâncias atuais, nenhum
fracasso será tolerado.”

Isso era tudo; o tempo de pompa passara. Ele não bradou ”Avante!”, nem convocou os homens para
a glória. Depois dos primeiros 30 dias de guerra em 1914, reinava a premonição de que era pequena
a glória que os esperava.

fj
«04
Depois

l
Como o mundo inteiro sabe, a Batalha do Marne terminou na retirada alemã. Entre o Ourcq e o
Grand Morin, nos quatro dias que restavam de seu cronograma, os alemães perderam a aposta da
”vitória decisiva” e corn ela a oportunidade de ganhar a guerra. Para a França, para os Aliados e-a
longo prazo-para o mundo, a tragédia do Marne foi não chegar a alcançar a vitória que poderia ter
alcançado.

O ataque de Maunoury ao flanco alemão e a meia-volta de Von Kluck para enfrentá-lo abriu uma
brecha entre o Primeiro e o Segundo Exércitos alemães. O desfecho da batalha dependeria dos
alemães conseguirem esmagar as duas alas-de Maunoury e de Foch-antes que Franchet d’Esperey e
os ingleses pudessem aproveitar-se dessa brecha para penetrar até o centro alemão. Maunoury,
quase derrotado por Von Kluck, recebeu o reforço do IV Corpo. Os 6.000 soldados desse corpo que
estavam desembarcando do trem em Paris foram de táxi para a linha de batalha, enviados às pressas
por Gallieni, e conseguiram firmar posição. Foch, muito pressionado nos Charcos de St. Gond pelo
Exército de Von Hausen e uma parte do Exército de Von Bülow, num momento crítico, quando sua
direita estava sendo forçada a recuar e seu centro estava cedendo, deu sua famosa ordem:

- Ao ataque, haja o que houver! Os alemães estão no extremo de suas últimas forças. (...) A vitória
ficará corn o lado que sobreviver ao outro.

Franchet d’Esperey empurrou de volta a direita de Von Bülow, os ingleses entraram no espaço
vazio corn muito vagar e indecisão, o Coronel Hentsch fez sua histórica intervenção para aconselhar
a retirada e os exércitos alemães recuaram a tempo de evitar uma penetração em sua linha.

Tão perto os alemães estiveram da vitória, tão perto os franceses da derrota, tão grande, nos dias
anteriores, era o perplexo desânimo do mundo ao observar o avanço implacável dos alemães e a
retirada dos franceses para Paris, que a batalha que reverteu a situação veio a ser conhecida como O
Milagre do Marne. Henri Bergson, que certa vez formulara para a França a mística da ”vontade”,
viu nisso algo de milagroso que já acontecera um vez antes: ”Joana d’Are venceu a batalha do
Marne” foi o seu veredito.
505
O inimigo, imobilizado de repente como se por uma muralha de pedra erguida da noite para o dia,
também o sentia. Durante a batalha, Moltke escreveu melaneolicamente à esposa: ”O élan francês,
justamente quando está prestes a extinguir-se, volta a arder poderosamente”.

Von Kluck comentou posteriormente que a razão essencial da derrota alemã no Marne, ”a razão que
transcende todas as outras”, era ”a capacidade extraordinária e peculiar do soldado francês de
recuperar-se rapidamente. Os homens se deixam matar onde estão, isso é algo conhecido e levado
em conta em todos os planos de batalha. Mas uma coisa corn a qual nunca contamos é que homens
que bateram em retirada durante dez dias, dormindo no chão e meio mortos de cansaço, fossem
capazes de pegar em armas e atacar quando soam os clarins. É uma possibilidade jamais estudada
em nossa academia de guerra”.

Apesar de Bergson, não foi um milagre e sim os ”Sés”, os erros e as promessas do primeiro mês que
determinaram o desfecho no Marne. Apesar de Von Kluck, as falhas do comando alemão
contribuíram tanto quanto o entusiasmo do soldado francês. Se os alemães não tivessem destacado
dois corpos para enviar contra os russos, um deles estaria integrando a direita de Von Bülow e
poderia ter preenchido a brecha entre ele e Von Kluck; o outro estaria corn Von Hausen e poderia
ter significado uma força extra para dominar Foch. A lealdade da Rússia, desfechando uma ofensiva
ainda não inteiramente pronta, atraiu essas forças e mereceu o tributo do Coronel Dupont, Chefe do
Departamento de Informações francês:

- Vamos render a nossos Aliados a homenagem que lhes é devida, pois um dos elementos da nossa
vitória foi a sua derrocada.

Outros ”Sés” se acumularam. Se os alemães não tivessem cornprometido forças demais para tentar
um cerco duplo pela ala esquerda, se a ala direita não tivesse ultrapassado seus suprimentos e
esgotado seus homens, se Von Kluck tivesse ficado alinhado corn Von Bülow, se, mesmo no último
dia, ele tivesse marchado de volta para o outro lado do Marne em vez de avançar para o Grand
Morin, o desfecho no Marne poderia ter sido diferente e o prazo de seis semanas para a vitória sobre
a França poderia ter sido atingido - isto é, se não fosse pelo primeiro e decisivo ”Se”: se o próprio
prazo de seis semanas não fosse baseado na marcha através da Bélgica. À parte o efeito da guerra
em si de fazer da Inglaterra um beligerante, e o efeito soe na opinião mundial, a adição da Bélgica
às forças inimigas reduziu o
l
número de divisões alemãs que subiram até o Marne e acrescentaram cinco divisões inglesas à linha
de batalha Aliada.

No Marne, os Aliados conseguiram a superioridade numérica que não tinham atingido em qualquer
ponto da Batalha das Fronteiras. A ausência daquelas divisões alemãs foi parcialmente responsável,
e o equilíbrio foi definido pela presença das divisões francesas retiradas do Terceiro Exército e
pelos Exércitos fortificados de Castelnau e Dubail. Durante toda a retirada, enquanto os outros
Exércitos cediam terreno, esses dois mantiveram fechadas as portas orientais da França. Durante 18
dias eles lutaram num combate quase contínuo, até que no dia 8 de setembro, finalmente
reconhecendo o fracasso, Moltke mandou suspender o ataque à linha de fortificações francesa.

Se o Primeiro e o Segundo Exércitos franceses tivessem cedido em qualquer ponto, se tivessem


perdido as forças sob a arremetída final de Rupprecht no dia 3 de setembro, os alemães teriam
conseguido a sua Batalha de Canas e não haveria oportunidade para uma contra-ofensiva francesa
no Marne, no Sena ou em qualquer outro lugar. Se houve um milagre no Marne, ele foi viabilizado
no Moselle.

Sem Joffre, nenhuma linha de frente Aliada existiria para barrar o caminho dos alemães. Foi sua
inextinguível confiança durante os 12 dias trágicos e terríveis da retirada que impediu que os
Exércitos franceses se desintegrassem numa massa confusa e fragmentada. Um comandante mais
brilhante, mais rápido de raciocínio, corn idéias próprias, poderia ter evitado os erros iniciais, mas
depois da derrocada Joffre possuía a única coisa de que a França necessitava. É difícil pensar em
qualquer outro homem que pudesse arrancar os Exércitos franceses da retirada, colocando-os em
posição e condições de combater novamente.

Quando chegou o momento de fazer meia-volta, porém, Joffre sozinho teria sido insuficiente; a
posição que ele planejava atingir junto ao Sena poderia ter sido alcançada tarde demais. Foi Gallieni
quem viu a oportunidade e, corn a poderosa ajuda de Franchet d’Esperey, provocou o adiantamento
da contra-ofensiva. Foi a figura de Lanrezac, caída em desgraça e sem ter podido participar no
Marne, que ao salvar a França da loucura original do Plano 17 tornou possível aquela recuperação.
Ironicamente, tanto a sua decisão em Charleroi quanto sua substituição por Franchet d’Esperey
foram igualmente necessárias para a contra-ofensiva. Mas foi Joffre, a quem nada conseguia fazer
entrar em pânico, quem forneceu o Exército para empreendê-la. Foch, seu sucessor, afirmou:
507
- Se não o tivéssemos em 1914, não sei o que teria sido de nós. Desde então, os táxis fazem o
mundo lembrar-se dessa batalha.

Uma centena deles já estava a serviço do Governo Militar de Paris; o General Clergerie calculou
que mais 500, cada um carregando cinco soldados e fazendo duas vezes a viagem de 60 quilômetros
para o Ourcq, poderiam transportar os 6.000 soldados para a necessitada linha de frente. A ordem
foi expedida às 13:00; a hora da partida foi fixada para as 18:00. A polícia avisava os táxis nas ruas
e os motoristas prontamente expulsavam os passageiros, explicando corn orgulho que tinham que
”ir para a guerra”. Voltando às suas garagens para reabastecer, eles receberam ordens de ir para o
lugar de reunião, onde na hora marcada todos os 600 táxis estavam enfileirados em perfeita ordem.
Gallieni, chamado a inspecioná-los, ficou encantado, embora fosse uma pessoa que raramente se
mostrava expansiva:

- E/i, bien, voilà au moins, que ríest pás banal!”

Cada um corn sua carga de soldados, e corn caminhões, ônibus e veículos diversos completando o
cortejo, os táxis partiram quando a noite caía - o último ato galante de 1914, a última cruzada do
Velho Mundo.

Depois da vitória incompleta no Marne, seguiu-se a retirada alemã para o Aisne, a corrida ao mar
pela posse dos portos do Canal da Mancha, a queda de Antuérpia e a batalha de Ypres, onde oficiais
e soldados da FEB defenderam sua posição, lutaram literalmente até morrer e detiveram os alemães
em Flandres. Não foi Mons ou o Marne, mas Ypres, o verdadeiro monumento à coragem britânica,
como foi também o túmulo de quatro quintos da FEB original.

Depois, corn a chegada do inverno, veio a transição gradativa e fatal para o beco sem saída de uma
guerra de trincheiras. Correndo da Suíça até o Canal da Mancha através do território francês e belga
como uma ferida gangrenada, as trincheiras determinaram a guerra de posições e de atrito - a
insanidade brutal, enlameada e assassina conhecida como a Frente Ocidental, que perduraria por
mais quatro anos. i

O Plano Schlieffen tinha fracassado, mas tivera sucesso suficiente para deixar os alemães de posse
de toda a Bélgica e todo o norte da França até o Aisne. O jornal de Clemenceau lembraria
incansavelmente a seus leitores, mês após mês, ano após ano: ”Messieurs lês allemands sont
toujours à Noyon”100.
•flÉ 99 ”Ora,bem,pelomenosaquiestdumacoisaforadocomum!”(N.daT.)
O erro do Plano 17 foi responsável por essa presença no cerne da França; ele permitiu que o inimigo
penetrasse fundo demais para ser desalojado quando os franceses finalmente conseguiram reunir
suas forças no Marne. O Plano possibilitou uma vitória que só poderia vir a ser refreada, e mais
tarde apenas contida, à custa de um terrível sacrifício de homens franceses, que fez da guerra de
1914-18 a progenitora da guerra de 1940101. Foi um erro que jamais pôde ser reparado. O fracasso
do Plano 17 foi tão fatal quanto o fracasso do Plano Schlieffen, e juntos produziram o impasse na
Frente Ocidental. Devorando vidas a uma taxa de 5.000 - às vezes 50.000 - por dia, consumindo
munição, energia, dinheiro, cérebros e homens treinados, a Frente Ocidental liquidou os recursos de
guerra dos Aliados e predeterminou o fracasso das ações clandestinas, como a dos Dardanellos, que
poderiam ter encurtado a guerra. O impasse criado pelos fracassos do primeiro mês determinou o
curso futuro da guerra e, como conseqüência, os termos da paz, as características do período
entreguerras e as condições da Segunda Rodada.

Os homens não poderiam sustentar uma guerra de tal enormidade e sofrimento sem uma esperança -
a esperança de que a sua própria magnitude assegurasse que ela jamais poderia acontecer
novamente; a esperança de que quando, de um modo ou de outro, ela chegasse a um desfecho, as
bases de um mundo melhor tivessem sido lançadas. Como a cintilante visão de Paris que mantivera
de pé os soldados de Von Kluck, a miragem de um mundo melhor brilhava além das terras nuas e
esburacadas e dos tocos de árvores desfolhadas que antes eram campos verdes e choupos
ondulantes.

Nada menos que isso poderia dar dignidade ou sentido às monstruosas hostilidades nas quais
milhares e centenas de milhares

100 ”Os senhores alemães ainda estão em Noyon- {N. da T.)

101 O destino de um rapaz, André Varagnac, sobrinho do ministro Socialista Mareei Sembat, serve de
exemplo. Ele chegou à idade do serviço militar em 1914 mas escapou da mobilização de agosto devido a um
ataque de tuberculose. Dos 17 diplomados em sua turma no liceu, ele e outro rapaz eram os únicos ainda
vivos no Natal. Na capela de St. Cyr, antes de sua destruição na Segunda Guerra Mundial, a pedra memorial
dos mortos da Primeira Guerra Mundial continha uma única legenda para ”A Turma de 1914”. As baixas
francesas somente no mês de agosto foram de mais de300.000 num total de l .600.000 nos exércitos em
campanha. É impossível obter números exatos porque, de acordo corn a política do GQG em não liberar
qualquer informação passível de ajudar o inimigo, os números de baixas não eram publicados. Tampouco é
possível estabelecer relações comparativas corn os outros beligerantes porque eles foram tabulados em
momentos e bases diferentes. Quando a guerra terminou, o total conhecido de mortos perfazia per capita em
relação à população a proporção de l para 28 na França, l para 32 na Alemanha, l para 57 na Grã-Bretanha
e l para 107 na Rússia. (Nota da Autora.)

509
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Y&S
de pessoas foram mortas para que se ganhassem 15 metros e se trocasse uma trincheira inundada
por outra. Quando, todos os outonos, as pessoas diziam que ela não poderia durar outro inverno e
em todas as primaveras ainda não se vislumbrava o fim, apenas a esperança de que tudo aquilo
trouxesse algum bem para a humanidade mantinha os homens e as nações lutando.

Quando a guerra finalmente terminou, foram muitas as conseqüências que ficaram dela, uma das
quais dominava e transcendia todas as outras: a desilusão. ’Todas as palavras grandiosas foram
anuladas” para essa geração, escreveu D. H. Lawrence num resumo simples, dirigido a seus
contemporâneos. Se algum deles, como Emile Verhaeren, recordava corn um assomo de dor ”o
homem que eu costumava ser”, era por saber que as obras grandiosas e as grandes certezas de antes
de 1914 jamais seriam restauradas.

Depois do Marne, a guerra cresceu e espalhou-se, para atrair nações de ambos os hemisférios e
envolvê-las num padrão de conflito mundial que nenhum tratado de paz conseguia resolver. A
Batalha do Marne foi uma das batalhas decisivas do mundo, não por ter determinado que a
Alemanha iria perder afinal ou que os Aliados iriam ganhar a guerra, mas por determinar que a
guerra continuaria. Não era mais possível olhar para trás, disse Joffre aos soldados na véspera do
combate. As nações tinham se deixado pegar numa armadilha montada durante os primeiros 30 dias
de combates não-decisivos - uma armadilha da qual não havia, e não há, saída.

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