“Viva e deixe viver”: o Natal de 1914 e a fé antropológica
Arthur Bernardes de Oliveira
"Viva e deixe viver" é um termo cunhado que encapsula o princípio de
convivência e coexistência evidenciado, especialmente, em contextos de conflito ou adversidade, como uma guerra. Essa expressão sugere uma atitude de tolerância, respeito mútuo e aceitação das diferenças, onde indivíduos optam por não se envolver em hostilidades desnecessárias e procuram encontrar formas de conviver, seja de forma implícita ou explícita. Essa filosofia não se trata apenas de evitar confrontos diretos, mas também de reconhecer a humanidade no outro ou, até mesmo, de reconhecer a si mesmo no outro. Vamos destrinchar o entendimento desse conceito ao longo do texto a partir do evento que o cunhou: o Natal de 1914. No Natal de 1914, em meio à carnificina das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, um evento extraordinário ocorreu. Milhões de soldados, cansados dos horrores da guerra, cessaram os combates e confraternizaram temporariamente. Este evento é retratado em diferentes obras como o filme Joyeux Noël de 2005, dirigido por Christian Carion. No entanto, foi Tony Ashworth (1980), em seu livro Trench Warfare, que vai estudar mais a fundo tanto este evento, como seus antecedentes. O autor por sua vez vai defender que este momento representou mais vivamente o surgimento de uma verdade oculta: a maioria dos soldados não desejava a luta e encontravam maneiras de sobreviver. Essa trégua ocorreu após meses brutais de guerra, onde três milhões e meio de homens foram mortos ou feridos entre agosto e dezembro de 1914. O Exército Francês, apenas três dias após o início do conflito, sofreu 300.000 baixas em três semanas, com 27.000 mortos em um único dia. A Batalha do Somme, em 1916, testemunhou a perda de 26.500 soldados britânicos todos os dias durante as primeiras duas semanas, resultando em 1,2 milhão de vítimas. Nas vésperas do Natal de 1914, em várias, principalmente entre britânicos e alemães, soldados começaram a planejar um armistício. Naquela noite e no dia de Natal, eles simplesmente não iriam lutar e a maioria concordou. Mas o que realmente marcou esse dia aconteceu em uma das trincheiras da Bélgica, perto de Ypres. Os alemães, que estavam no clima de Natal, começaram a enfeitar as suas trincheiras, colocando árvores de Natal e velas, e também começaram a cantar canções natalinas, como a famosa música "Noite Feliz" ou "Noite Silenciosa". De início, os britânicos acharam que isso era uma espécie de armadilha, mas depois se juntaram aos alemães e começaram a cantar juntos. Ao longo das trincheiras, vários soldados começaram a gritar "Feliz Natal" para o outro lado. Nessa mesma noite, alguns homens se aventuraram na terra de ninguém para conversar com o inimigo e trocar alguns presentes. Mas a grande confraternização realmente aconteceu na manhã de Natal. Ainda nesse clima natalino e com curiosidade para saber quem era o seu inimigo e como era a vida do lado de lá, alguns soldados alemães tentaram a sorte e saíram das suas trincheiras no dia, completamente desarmados. Os britânicos acharam que isso era uma espécie de armadilha, mas depois perceberam que eles estavam desarmados e fazer algo assim era praticamente suicídio. Eles deram uma chance e saíram das trincheiras também. Em alguns minutos, alemães e britânicos estavam se cumprimentando na terra de ninguém. Estes trocaram os presentes que receberam, como cigarros, whisky, chocolate, trocaram de chapéus, trocaram botões dos casacos, jogaram cartas. Teve relato de um cabeleireiro britânico que estava cortando o cabelo de alguns alemães, mostrando como eles estavam confiando uns nos outros. Uma das histórias mais recordadas foram as partidas de futebol que ocorreram ao longo da terra de ninguém. Christmas Truce Statue, “The Bombed Out Church”, Liverpool
Fonte: Truce Statue Project
St. George's Park National Football Centre, Staffordshire,
Fonte: Truce Statue Project
“O FUTEBOL TRANSCENDE O CONFLITO.
Em 25 de dezembro de 1914, quando o dia de Natal amanheceu no
campo de batalha de Flandres, soldados que haviam enfrentado outros em batalha saíram de suas trincheiras no meio da terra de ninguém e apertaram as mãos hesitantemente. A maioria não conseguia falar a língua uns dos outros. Trocaram-se presentes, alguém produziu uma bola de futebol e começou uma partida. A paz irrompeu através do amor comum pelo futebol. Por um breve período eles conseguiram esquecer o frio, a chuva e sua façanha. O jogo os libertou. A Associação de Futebol, ao recordar a partilha desta humanidade comum em plena guerra, reflecte sobre ela como uma inspiração para todos nós. O futebol continua a unir as pessoas no espírito do jogo.
TODOS JUNTOS AGORA.”
Os eventos que se passaram e as interações diretas que ocorreram no
dia do Natal não foram meticulosamente organizadas, como um encontro entre dois líderes de duas potências rivais ou um grande armistício programado, mas simplesmente aconteceram. Como pode os soldados terem confiado tanto um no outro, no inimigo? Enquanto percorremos nossa jornada pela vida, vamos construindo valores que se transformam em princípios significativos, elementos e sentimentos que ganham importância na nossa história. Essa estrutura de significação, muitas vezes associada à fé, é a rota escolhida pelo indivíduo para alcançar sua realização pessoal, uma jornada distinta e única que molda todas as nossas ações e dá sentido à nossa existência. É como uma base sólida que guia nossas escolhas ao longo do caminho, mesmo quando o fim é desconhecido, exigindo que confiemos que estamos no melhor e mais adequado trajeto para nossa satisfação e sucesso no final da jornada. Essa jornada implica em riscos e requer uma dose de fé. A fé, frequentemente associada à confiança, pode ser depositada ou ligada a algo ou alguém, mas a fé antropológica transcende essa concepção, pois não pode depender de terceiros e deve ser centrada no próprio indivíduo. Nesse sentido, a fé tem um aspecto mais intrínseco do que a simples confiança na linguagem do povo. Colocar fé em outra pessoa implica em riscos, já que nunca podemos conhecer completamente o íntimo do outro. Acreditar no outro ou depositar fé é como apostar que essa pessoa irá corresponder às nossas expectativas. Para que essa fé no outro exista, é necessário que ele demonstre sinais de credibilidade, visto que os sinais emitidos pelos outros podem ser enganosos e sujeitos a mudanças. Desde que quando nascemos, aprendemos a confiar e crer em quem demonstra cuidado, seja a mãe, ou outro que se ocupa em zelar pelo seu bem, ela o faz, mesmo que inconscientemente. São nestas referências de amor que baseia sua fé e a faz confiar. Por sua vez, o termo "fé" também exibe uma singularidade em comparação com seus sinônimos como "crer", "acreditar" e "confiar", pois a fé não requer motivos explícitos para sua existência. Não se pode ter fé no que é visível. Quando a fé está presente, há uma esperança de que o que se precisa, deseja ou espera acontecerá, mesmo na ausência de sinais tangíveis. Por exemplo, quando um agricultor olha para o céu e diz: "Acredito que vai chover", isso implica que há algum sinal perceptível que o leva a acreditar nisso. No entanto, quando ele diz: "Tenho fé que vai chover", sugere que dentro dele existe um sentimento de expectativa, mesmo na ausência de qualquer sinal externo que o leve a acreditar que a chuva virá. O trabalho e pesquisa de Ashworth, baseado em entrevistas com veteranos britânicos e análise de documentos históricos, revela que os soldados, sempre que possível, evitavam o combate, buscando uma espécie de entendimento mútuo conhecido como "viva e deixe viver". A comunicação entre as trincheiras, muitas vezes mediada pela música, quebrava as barreiras linguísticas. Canções eram trocadas entre os lados, com os britânicos respondendo aos alemães com "It's A Long Way To Tipperary", uma favorita entre eles. A humanidade emergia até mesmo nos momentos mais sombrios, como quando soldados britânicos aplaudiam um violinista alemão tocando trechos de óperas à noite. Apesar das divisões, havia uma unidade entre os combatentes: o desprezo pelos comandos superiores. Oficiais e soldados compartilhavam uma simpatia mútua, alimentada pelo ódio em relação aos generais que os forçavam a lutar. Os altos comandos, no entanto, viam esse entendimento como uma ameaça e tomavam medidas para destruí-lo. Ataques noturnos, onde soldados se lançavam com baionetas contra o inimigo, eram incentivados para incutir uma mentalidade selvagem. No entanto, muitos soldados encontravam maneiras de contornar essas ordens, coletando arame farpado alemão sem sair das trincheiras ou mesmo evitando o combate em patrulhas noturnas. Pode-se dizer que depois de meses vivendo nas trincheiras, os soldados acabaram se adaptando e meio que criando uma rotina com o inimigo. Por exemplo, em muitas trincheiras, principalmente na parte norte, era comum soldados dos dois lados fazerem armistícios não oficiais para comer, dormir e, em alguns casos, até fazer manutenção das trincheiras e cuidar dos feridos que estavam na terra de ninguém. Também era comum ver soldados fazendo vista grossa para o inimigo em momentos de distração. Há relatos de soldados que foram conversar com o inimigo para pedir cigarro. Esse tipo de atitude ficava cada vez mais comum nas trincheiras do frente ocidental. Isso preocupava alguns generais, porém de início não tomaram nenhuma atitude drástica. No fim do ano de 1914 na Bélgica choveu muito e era comum as trincheiras ficarem alagadas. Isso mexeu muito com o psicológico dos soldados. Logo depois disso, veio o inverno rigoroso que cobriu tudo de neve. Por um lado, isso era bom, pois as trincheiras não estavam mais cheias de água, mas por outro, ficar em uma trincheira céu aberto em pleno inverno não era a melhor coisa do mundo. O governo considerou que por causa disso a “moral e o espírito de guerra” dos soldados estavam bem baixos. Para tentar melhorar isso e animar o pessoal, os governos dos dois lados mandaram presentes de Natal: cigarros, vinhos, whisky, chocolate, cartas da princesa, além de presentes pessoais das famílias dos soldados. Essa estratégia funcionou e animou o pessoal, mas não do jeito que os superiores queriam ou esperavam. Com certeza, o primeiro soldado que teve a coragem de atravessar a linha para a terra de ninguém durante a trégua de Natal de 1914 foi impulsionado por uma fé profunda. Embora possa ter sido influenciado pelo contexto natalino, caracterizado pela fé religiosa tradicional, sua motivação principal era a fé antropológica, enraizada na crença na humanidade e na busca pela compreensão mútua. Sua fé era baseada em referências e experiências que foram se desenvolvendo ao longo do período de guerra, especialmente no contexto do princípio de "viva e deixe viver" descrito por Ashworth. Uma fé alimentada pela observação de pequenos gestos de camaradagem e compreensão mútua entre soldados de lados opostos, foi se fortalecendo à medida que a trégua de Natal se desenrolava. Os sinais de boa vontade, como a troca de presentes, cantos de músicas natalinas e gestos amigáveis, construíram uma base de confiança que permitiu a esse soldado dar o primeiro passo em direção ao território inimigo. Acredito que grande parte dos soldados confiariam mais nos soldados do outro lado do que em seus superiores, pois identificavam-se com eles, viam- se neles. Ao optarem por "viver e deixar viver", os soldados demonstraram uma confiança mais profunda uns nos outros do que em seus comandantes, encontrando fé no outro até mesmo nas circunstâncias que parecem ser as mais adversas aos nossos olhares ou pelo que se compreende por guerra. É interessante destacar neste final que a primeira coisa que os soldados de ambos lados fizeram foi enterrar os mortos que estavam na terra de ninguém. Um ato que associa-se com um outro tipo de fé, a fé religiosa, que busca a dar um descanso digno não somente aos corpos, mas a seus companheiros, em espírito, um descanso junto a Deus. Enquanto narrativas gloriosas de batalhas heroicas e vitórias épicas foram destacadas pelos governos na época, é essencial elucidar uma outra faceta, a de que talvez a grande parte da história da Grande Guerra é composta por pessoas que se recusaram a lutar, heróis que se opuseram à máquina de guerra e que em frente ao campo de batalha podem ter se deparado com uma reflexão/verdade: para viver plenamente é preciso deixar os outros viverem. REFERÊNCIAS
ASHWORTH, Tony. Trench Warfare 1914-1918: The Live and Let Live System. Londres, 1980.
JOYEUX Noël. Direção: Christian Carion. Produção: Christophe Rossignon e
Benjamin Herrmann. França: UGC Fox Distribution, 2005.
PANASIEWICZ, Roberlei. Categorização de experiências transcendentais:
uma leitura da religiosidade, da fé e da religião. Revista Pistis Praxis, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 587-611, jul./dez. 2013.
ROCHA, Sheyla Cristina de Souza da. O problema da fé: uma análise da fé
antropológica e religiosa na contemporaneidade. 2019. Dissertação. (Mestrado em Ciências da Religião). Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
TRUCE STATUE PROJECT: About the project. Wedgwood Factory, Stoke-on-